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LUZ E PAPEL, REALIDADE E IMAGINAÇÃO: AS BIOGRAFIAS NA HISTÓRIA,

NO JORNALISMO, NA LITERATURA E NO CINEMA*

Benito Bisso Schmidt**

O objetivo da intervenção é apresentar algumas reflexões sobre a produção atual

de biografias no campo do conhecimento histórico, procurando também burlar esta fronteira

disciplinar e discutir as aproximações e afastamentos dos trabalhos feitos por historiadores

e aqueles elaborados por jornalistas, literatos e cineastas. Peço desculpas aos meus colegas

de mesa e ao público pela ousadia (ou pretensão?) de penetrar em searas alheias, mas

advogo, em minha defesa, que as idéias aqui expostas têm muito mais um caráter de

exercício e de convide ao debate, do que de construção pronta e acabada.

Por muito tempo a biografia foi vista como o modelo de história tradicional, mais

propensa à apologia do que à análise, mais preocupada com os fatos do que com as grandes

estruturas sócio-econômicas, políticas e culturais. Na trilha de Marx e de Braudel, os

historiadores preteriram as trajetórias individuais em favor das investigações macro-

orientadas, estruturais, quantitativas, de longa duração. O primeiro, por exemplo,

desqualificou o papel de personagens como Luís XVIII, chamado de “cérebro de

toucinho”, e Luís Bonaparte, caracterizado como “medíocre e grotesco”, explicando o

*
Comunicação a ser apresentada na sessão “A abordagem biográfica: meios e fins em diferentes campos de
expressão e saber” do GT “Biografia e memória social” no XXII Encontro Anual da ANPOCS.
Caxambu/MG, outubro de 1998.
**
Professor do Departamento de História do IFCH da UFRGS, doutorando em História Social do Trabalho na
UNICAMP.
2

golpe de 2 de dezembro de 1851 na França como resultado da “grande lei da marcha da

história, a lei segundo a qual todas as lutas históricas (...) são na realidade apenas a

expressão mais ou menos clara de lutas entre classes sociais (...)”1. Nesta perspectiva,

portanto, interessava aos pesquisadores desvendar as regularidades dos processos sociais e

não as conturbadas e imprevisíveis histórias de vida.

Nos últimos anos, contudo, os estudos biográficos deixaram os bastidores e

passaram para o primeiro plano da historiografia internacional, inclusive a brasileira. Prova

disso é que dois dos mais importantes periódicos especializados do país - a “Revista

Brasileira de História” da ANPUH e a “Estudos Históricos” da Fundação Getulio Vargas -

dedicaram seus números de 1997 ao tema2. Esta transformação implica obviamente uma

mudança na escala de observação, que já havia sido anunciada em um editorial de 1988 da

revista “Annales”:

“Certas proposições desenvolvidas pela micro-história, depois


de um longo período de atenção exclusiva aos processos globais e às
estruturas de conjunto, levaram a uma ginástica salutar. Elas
obrigam em particular a precisar e a discutir as formas de adequação
entre o tamanho dos objetos de estudo, as modalidades da observação
e as problemáticas. Do indivíduo ao grupo e à sociedade, do local ao
global, como assegurar a articulação entre os níveis de observação e
definir as modalidades das generalizações necessárias?”3.

No mesmo sentido, Roger Chartier, ao traçar um panorama da historiografia atual,

salienta que “o objeto da história (...) não são, ou não são mais, as estruturas e os

mecanismos que regulam, fora de qualquer controle subjetivo, as relações sociais, e sim as

1
Segundo o prefácio de F. Engels para a terceira edição alemã de “O 18 Brumário de Luís Bonaparte”. In:
MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos. São Paulo, Abril Cultural,
1978. p.p. 327-8.
2
REVISTA BRASILEIRA DE HISTÓRIA: biografia, biografias. São Paulo, v. 17, n. 33, 1997 e ESTUDOS
HISTÓRICOS: indivíduo, biografia, história. Rio de Janeiro, v. 10, n. 19, 1997.
3
“Histoire et sciences sociales. Un tournant critique? ”. Annales E. S. C. Paris, 2, mars-avril 1988. p. 292.
3

racionalidades e as estratégias acionadas pelas comunidades, as parentelas, as famílias, os

indivíduos”4.

Pelo exposto, percebe-se que o retorno da biografia, pelo menos no âmbito da

história, não significa simplesmente a retomada de um gênero “velho”, mas está inserido

em um processo de profunda transformação das bases teórico-metodológicas da disciplina,

com um conseqüente repensar de questões clássicas como: a relação indivíduo/sociedade,

as formas narrativas do conhecimento histórico, entre outras.

Quero, então, apresentar algumas características que, do meu ponto de vista,

diferenciam as biografias “novas” das “tradicionais”, embora esteja ciente do

esquematismo desta contraposição. A partir daí, buscarei traçar comparações com os

trabalhos biográficos realizados no jornalismo, na literatura e no cinema.

O primeiro elemento que marca as biografias históricas produzidas recentemente,

perceptível em uma passada de olhos pelos títulos dos trabalhos, diz respeito à escolha dos

personagens enfocados. Como se sabe, os biógrafos tradicionais voltavam-se, via de regra,

para aqueles homens a quem se atribui o fazer da história, os “grandes vultos”. Na

historiografia atual, ao contrário, verifica-se igualmente um interesse pelos membros das

classes subalternas, pelas pessoas comuns, pela “gente miúda”. Exemplos disto são os

estudos de Carlo Ginzburg sobre o moleiro Menocchio, condenado como herege pela

inquisição no século XVI; o de Eduardo Silva sobre o “tipo de rua” Dom Obá II D’África,

que viveu no Rio de Janeiro nas últimas décadas da escravidão e do Império, e o de Regina

4
CHARTIER, Roger. “A história hoje: dúvidas, desafios, propostas”. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.
7, n. 13, 1994. p. 102.
4

Horta Duarte sobre o anarquista mineiro Avelino Fóscolo5. Qual a importância de pesquisas

como estas?

Inicialmente, temos a questão da representatividade do “homem comum”. Neste

sentido, Ginzburg afirma: “alguns estudos biográficos mostraram que um indivíduo

medíocre, destituído de interesse por si mesmo - e justamente por isso representativo - pode

ser pesquisado como se fosse um microcosmo de um estrato social inteiro num determinado

período histórico (...)”6. Na mesma linha, Silva ressalta “o propósito de estudar um homem

comum como individualidade pensante, e, ao mesmo tempo, como via de penetração em

uma elusiva cultura popular ou mentalidade coletiva (...)”7.

Além disso, a realização de uma “biografia ordinária” permite ao pesquisador

investigar os espaços de exercício da liberdade possíveis em uma determinada sociedade.

Como escreveu Giovanni Levi,

“nenhum sistema normativo é de fato suficientemente


estruturado para eliminar toda possibilidade de escolha consciente,
de manipulação ou interpretação das regras, de negociação. Parece-
me que a biografia constitui nesse sentido o lugar ideal para se
verificar o caráter intersticial - e ainda assim importante - da
liberdade de que as pessoas dispõem, assim como para se observar a
maneira como funcionam concretamente os sistemas normativos que
nunca estão isentos de contradições”8.

Nos campos do jornalismo, da literatura e do cinema, parece-me que há um

interesse preferencial pelas trajetórias de indivíduos destacados como o magnata da

imprensa Assis Chateaubriand, o “empresário do Império” Mauá, o imperador romano

5
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela
Inquisição. São Paulo, Companhia das Letras, 1987; SILVA, Eduardo. Dom Obá II D’África, o príncipe do
povo: vida, tempo e pensamento de um homem livre de cor. São Paulo, Companhia das Letras, 1997 e
DUARTE, Regina Horta. A imagem rebelde: a trajetória libertária de Avelino Fóscolo. Campinas,
Pontes/Ed. da UNICAMP, 1991.
6
GINZBURG, C. “O queijo...”, op. cit., p. 27.
7
SILVA, E. “Dom Obá II...”, op. cit., p. 15.
5

Adriano, a primeira-dama da Argentina Eva Perón, só para citar alguns exemplos

conhecidos9. Provavelmente, isto se deve a um interesse comercial, já que o grande público

busca conhecer sobretudo a vida dos mitos que, mostrados em sua humanidade, com seus

tormentos e fraquezas, tornam-se “gente como a gente”.

Não estou querendo dizer que indivíduos da elite não possam ser objetos de

excelentes biografias, e os próprios historiadores oferecem exemplos disso, como os

trabalhos de Georges Duby sobre o cavaleiro medieval Guilherme Marechal e de Jacques

Le Goff sobre São Luís10. Da mesma forma, não penso que interesse comercial seja

necessariamente oposto à qualidade, como bem demonstram as obras mencionadas. Busco

apenas salientar a importância de se incorporar os subalternos no panteão dos biografados,

não por um ranço populista, mas porque estes indivíduos comuns podem permitir outros

olhares sobre a história.

Uma segunda diferença entre biografias tradicionais e novas refere-se aos

objetivos a que estas se propõem. As primeiras, normalmente, buscavam ou louvar ou

denegrir os personagens enfocados, apresentando suas vidas como modelos de conduta

positivos ou negativos para os leitores. O historiador gaúcho Aquiles Porto Alegre ilustra

bem esta tendência com a obra “Homens ilustres do Rio Grande do Sul”, publicada

inicialmente em 1917, na qual apresenta uma série de biografias de “rio-grandenses

8
LEVI, Giovanni. “Les usages de la biographie”. Annales E. S. C. Paris, 6, nov.-déc. 1989. p.p. 1333-1334.
9
MORAIS, Fernando. Chatô: o rei do Brasil, a vida de Assis Chateaubriand. São Paulo, Companhia das
Letras, 1994; CALDEIRA, Jorge. Mauá: empresário do Império. São Paulo, Companhia das Letras, 1995;
YOURCENAR, Marguerite. Memórias de Adriano. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980 e Evita, filme
dirigido por Alan Parker em 1996 (todos os dados sobre os filmes comentados neste texto foram retirados de
Vídeo 1998: o dicionário dos melhores filmes. São Paulo, Nova Cultural, 1998).
10
DUBY, Georges. Guilherme Marechal ou o melhor cavaleiro do mundo. Rio de Janeiro, Graal, 1987 e
LE GOFF, Jacques. Saint Louis. Paris, Gallimard, 1996.
6

notáveis” visando “a educação cívica dos nossos jovens patrícios, pondo-lhes diante dos

olhos exemplos dignos de serem imitados”11.

Já os trabalhos recentes procuram fugir deste viés apologético, encarando seus

personagens como vias de acesso para a compreensão de questões e/ou contextos mais

amplos. Assim, por exemplo, Eduardo Silva “(...) procura recuperar aspectos do cotidiano,

ambiência cultural e universo simbólico prevalecentes entre escravos, libertos e homens

livres de cor do Brasil do século XIX, através de um estudo de caso da vida e pensamento

do auto-intitulado Dom Obá II d’África (...)”12. Da mesma forma, Maria Elena Bernardes

revelou que sua motivação para escrever sobre a militante comunista Laura Brandão “(...)

não foi somente por aquilo que ela tinha de excepcional na sua experiência de comunista.

Busquei também a possibilidade de, através de sua trajetória pessoal, entender um pouco a

história do tempo em que viveu (...)”13. No âmbito do jornalismo, tal preocupação também

está presente. Fernando Morais, biógrafo de Olga Benário e de Assis Chateaumbriand,

afirma: “um personagem me seduz quando, além de ter tido uma vida rica, interessante,

permite que, por intermédio de sua trajetória, seja possível recontar um pouco da história

não oficial, da história que não nos contaram nos bancos de escola”14.

As expressões “através” ou “por intermédio de” mostram a preocupação dos

autores em fugir do voluntarismo individualista e estabelecer uma articulação entre as

trajetórias estudadas e os contextos onde elas se realizaram.

11
PORTO ALEGRE, Aquiles. Homens ilustres do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, ERUS, s/d. p. 13.
12
SILVA, E. “Dom Obá II...”, op. cit., p. 11. Grifo meu.
13
BERNARDES, Maria Elena. Laura Brandão: a invisibilidade feminina na política. Campinas, CPG em
História da UNICAMP, 1995. (dissertação de mestrado). p. 18. Grifo meu.
14
Apud BENCHIMOL, Jaime (org.). “Narrativa documental e literária nas biografias”. Manguinhos:
história, ciência, saúde. Rio de Janeiro, v. II, n. 2, jul.-out. 1995. p. 100.
7

Por outro lado, nos romances biográficos e nas cine-biografias, em geral as

referências históricas servem mais como uma ambientação para as ações e sensações dos

personagens, conferindo verossimilhança à narrativa. Ana Miranda, por exemplo, em

“Boca do inferno”, centra seu foco nas aventuras de Gregório de Matos, perseguido pelo

tirânico governador da Bahia Antonio de Souza Menezes, o Braço de Prata. Porém, não

deixa de apresentar alguns flashes da cidade de Salvador no final do século XVIII:

“Ainda se viam resquícios dos danos causados pelas guerras


contra os holandeses, desde quase sessenta anos antes. Ruínas de
casas incendiadas, roqueiras abandonadas, o esqueleto de uma nau
na praia. Em lugares mais ermos, podia-se encontrar, cobertos pelo
mato, estepes de ferro de quatro pontas. Perto da porta do Carmo
havia, ainda, covas profundas e altos baluartes que tinham servido de
trincheira”15.

Já em filmes como o clássico “Spartacus” de Stanley Kubrick (1960) ou o mais

recente “Gandhi” de Richard Attenborough (1982), percebe-se uma tendência para a

idealização dos protagonistas, sendo os eventos históricos explicados sobretudo por seus

desejos e qualidades pessoais. Nestas obras, a ênfase recai sobre a coragem e a abnegação

dos personagens-título, que lutam contra inimigos poderosos (a República Romana e o

Império britânico respectivamente). O contexto aparece como pano-de-fundo e, por este

motivo, há um cuidado muito grande com a ambientação das cenas em termos de figurino,

cenários, formas de agir e falar etc.

Outra questão que quero examinar, muito discutida na atualidade, é a forma de

construção da narrativa biográfica. Pierre Bourdieu, em artigo de 1986

significativamente intitulado “A ilusão biográfica”, criticou o pressuposto, presente na

maior parte das biografias, “(...) de que a vida constitui um todo, um conjunto coerente e

15
MIRANDA, Ana. Boca do inferno. São Paulo, Companhia das Letras, 1989. p. 11.
8

orientado, que pode e deve ser apreendido como expressão unitária de uma ‘intenção’

subjetiva e objetiva, de um projeto (...)”. Para o sociólogo, expressões como “sempre” ou

“desde pequeno” indicariam claramente a busca da coerência e da linearidade nas histórias

de vida16. Tal concepção parece ter uma origem bem remota: Duby assinala que é comum

encontrar nas narrativas de prodígios de heróis e santos suas virtudes já manifestas na

infância e em seus ancestrais17.

Examinando alguns trabalhos recentes, pude perceber que muitos autores

compartilham desta idéia, e buscam, na infância e/ou adolescência dos personagens, uma

espécie de predestinação para suas atividades futuras. Morais, por exemplo, ao tratar da

juventude de Chatô no Recife, comenta que este, embora trabalhasse em um armazém de

tecidos, freqüentemente fugia e invadia a redação do “Jornal Pequeno” localizada em

frente ao negócio. Lá, nas palavras do autor, “(...) se deixava hipnotizar pelo trabalho dos

repórteres, redatores e, sobretudo, pela mágica dos gráficos catando os tipos de metal

para compor, letra por letra, o jornal que ia ser lido por milhares de pessoas. Sua

realização não estava entre as peças de chita e caroá empilhadas no atacadista, mas do

outro lado da rua”18. Já se evidenciaria, então, a vocação para o jornalismo do futuro

magnata da imprensa.

Da mesma forma, a professora de literatura Nádia Gotlib, em seu belo livro sobre

Clarice Lispector, procura mostrar que, “desde pequena”, a escritora tinha uma imaginação

prodigiosa: “o apego a cenários imaginários, com oscilações sofridas entre o universo da

fantasia e o da, por vezes, triste realidade, sob a forma de histórias inventadas, parece que

16
BOURDIEU, Pierre. “A ilusão biográfica”. In: FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO, Janaína
(orgs.). Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro, Fundação Getulio Vargas, 1996. p. 184.
17
DUBY, G. “Guilherme Marechal...”, op. cit.
9

sempre marcou o trajeto da escritora. E ainda numa pré-história da sua arte, quando nem

sabia ler e escrever”19.

Ainda nesta linha, Alan Parker, diretor do filme “Evita” (1996), explicou a

ambição da futura primeira-dama da Argentina Eva Perón pela sua infância pobre, marcada

por humilhações devido à sua condição de bastarda em uma sociedade conservadora e com

pretensões aristocráticas.

Um último exemplo: o historiador Peter Gay, ao escrever a biografia de Freud,

destacou a importância da mãe do fundador da psicanálise enquanto exemplo de vitalidade:

“(...) seria a apaixonada, enérgica e dominadora mãe que (...) viria a prepará-lo para uma

vida de investigação ousada, fama fugidia e êxito incerto”20.

Nos casos citados, é nítida a preocupação de construir uma identidade estável para

os personagens, “(...) entendida como constância em si mesmo de um ser responsável, isto

é, previsível ou, no mínimo, inteligível, à maneira de uma história bem construída (por

oposição à história contada por um idiota) (...)”21. Não quero com estes comentários, o que

aí sim seria “idiotice”, negar a importância dos anos de formação no direcionamento das

trajetórias de vida, mas apenas chamar a atenção para as armadilhas de uma coerência

construída “a posteriori”. As próprias fontes, sobretudo as de caráter auto-biográfico, são

ardilosas pois estabelecem uma consciência e uma coerência retrospectivas sobre um

passado não tão linear. Ainda de acordo com Bourdieu:

“(...) o relato autobiográfico se baseia sempre, ou pelo menos


em parte, na preocupação de dar sentido, de tornar razoável, de
extrair uma lógica ao mesmo tempo retrospectiva e prospectiva, uma

18
MORAIS, F. “Chatô...”, op. cit., p. 49.
19
GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. São Paulo, Ática, 1995. p. 83. Grifo meu.
20
GAY, Peter. Freud: uma vida para o nosso tempo. São Paulo, Companhia das Letras, 1989. p. 28.
21
BOURDIEU, P. “A ilusão...”, op. cit., p. 186.
10

consistência e uma constância, estabelecendo relações inteligíveis,


como a do efeito à causa eficiente ou final, entre os estados
sucessivos, assim constituídos em etapas de um desenvolvimento
necessário. E é provável que esse ganho de coerência e de
necessidade esteja na origem do interesse, variável segundo a posição
e a trajetória, que os investigados têm pelo empreendimento
biográfico. Essa propensão a tornar-se o ideólogo de sua própria
vida, selecionando, em função de uma intenção global, certos
acontecimentos ‘significativos’ e estabelecendo entre eles conexões
para lhes dar coerência (...) conta com a cumplicidade natural do
biógrafo, que, a começar por suas disposições de profissional da
interpretação, só pode ser levado a aceitar essa criação artificial
deste sentido”22.

Ainda sobre este ponto, são significativas as observações da antropóloga Mirian

Goldenberg, que analisou diferentes biografias (escritas e filmadas) de Leila Diniz,

mostrando que todas elas evidenciam um mesmo lado da atriz: a mulher revolucionária que

ousou contestar os padrões morais vigentes em sua época. Tal destino parece delineado

desde a infância. Em uma das obras examinadas, pode-se ler que a personagem “nunca teve

grandes traumas na infância, apesar de seus pais terem se separado quando ainda era

pequena, mas o fato não pareceu influir na sua vida. (...) ela sempre foi de muitas

perguntas e nunca de acomodações, ainda mais na adolescência. (...) sempre foi uma

criança inquieta”23. A autora, porém, ao aprofundar a investigação, percebeu uma série de

silêncios nestas narrativas como o afastamento da mãe ainda na infância e o suicídio do pai

de Leila. Nas palavras de Goldenberg: “(...) ao contrário da idealização feita em algumas

das biografias analisadas (...), a vida familiar de Leila Diniz não foi ‘harmônica’,

‘saudável’ e ‘feliz’. A revelação dos dramas e conflitos existentes pode ajudar a

22
Idem ibidem. p.p. 184-185.
23
A autora refere-se ao livro “Leila Diniz” de Cláudia Cavalcanti. Apud: GOLDENBERG, Mirian. Toda
mulher é meio Leila Diniz. Rio de Janeiro, Record, 1995. p. 45. Grifos meus.
11

compreender o ‘trabalho sobre si’ feito por Leila para encontrar seu lugar no mundo”24.

Mesmo numa documentação aparentemente tão “verdadeira”, no sentido de reveladora da

intimidade, como os diários escritos pela atriz continuamente até sua morte aos 27 anos,

Goldemberg percebe esta reconstrução do passado: “a escrita fixa os sentimentos e coloca

em ordem o vivido”25.

Também por parte dos historiadores, percebe-se, em alguns estudos recentes, a

tentativa de resgatar facetas diferenciadas dos personagens e não apenas, como nos

trabalhos tradicionais, sua vida pública e seus feitos notáveis. Assim, emergem nestes

textos, entre outros aspectos, os sentimentos, o inconsciente, a cultura, a dimensão privada

e o cotidiano. Por exemplo, Duby comenta que procurou compreender Guilherme Marechal,

“apanhado nas malhas das obrigações entrelaçadas e não raro contraditórias que

decorriam de seus deveres de pai, senhor, vassalo e súdito (...)”26. Ginzburg, por seu turno,

buscou analisar diversos aspectos da vida de Menocchio: “(...) suas idéias e sentimentos,

fantasias e aspirações. (...) suas atividades econômicas, (...) a vida de seus filhos”27. Na

historiografia brasileira, destaco o mencionado trabalho de Maria Elena Bernardes sobre

Laura Brandão, no qual a autora contruiu a personagem: “(...) investigando como viveu suas

experiências no feminino, sua condição de mulher de vanguarda, sua militância política,

percebendo em que medida sua atuação na vida pública influenciou ou alterou sua vida

privada e vice-versa”28.

24
Idem ibidem. p. 101.
25
Idem ibidem. p. 122.
26
DUBY, Georges. A história continua. Rio de Janeiro, Zahar/UFRJ, 1993. p. 139.
27
GINZBURG, C. “O queijo...”, op. cit., 16.
28
BERNARDES, Maria Elena. “Laura Brandão: a invisibilidade feminina na política”. XII Encontro
Regional de História: Cultura-Memória-Poder: Programas e Resumos. Campinas, ANPUH/Núcleo
Regional de São Paulo, 1994. p. 44.
12

No cinema, o clássico de Orson Welles “Cidadão Kane”, inspirado na vida de

outro magnata da imprensa, William Randolph Hearst, avançou no sentido de construir uma

biografia a partir de diversos ângulos. O fio-condutor do filme é a investigação feita por um

jornalista sobre a vida de Kane, procurando decifrar o significado da palavra “Rosebud”,

pronunciada pelo protagonista pouco antes de morrer. Para isso, entrevista pessoas a ele

ligadas: um velho amigo, seu tutor econômico e sua segunda mulher, os quais reconstróem

fragmentariamente algumas das passagens cruciais da vida do personagem. Porém, apesar

desta narrativa polifônica, no final desvendamos o elemento que confere sentido a toda

trama: Rosebud era o nome do trenó de Kane quando criança, símbolo de uma curta época

de felicidade (a infância, antes de ser separado de seus pais). Como afirmava o próprio

Welles, “talvez Rosebud fosse algo que ele não pôde ter, ou que perdeu, porém não disse

isso a ninguém”29.

Com estes comentários, quero defender a idéia de que os biógrafos não devem se

fixar na busca de uma coerência linear e fechada para a vida de seus personagens, mas que

precisam sim apreender facetas variadas de suas existências, transitando do social ao

individual, do inconsciente ao consciente, do público ao privado, do familiar ao político, do

pessoal ao profissional, e assim por diante, sem tentar reduzir todas os aspectos da biografia

a um denominador comum. Afinal, como afirma o historiador Michel de Certeau, cada

homem é “um locus no qual uma incoerente e freqüentemente contraditória pluralidade de

determinações relacionais interagem”30.

29
Apud OS CLÁSSICOS DO CINEMA 1: Cidadão Kane. Barcelona, Altaya, s/d. p. 13.
30
DE CERTEAU, Michel. The practice of everyday life. Berkeley/Los Angeles/Londres, University of
California Press, 1984. p. xi.
13

Um último aspecto que me parece relevante neste elenco de características dos

trabalhos biográficos recentes, também relativo à construção da narrativa, relaciona-se com

espaço da ficção nas biografias históricas. Por muito tempo, e através de diversos

expedientes (crítica documental, quantificação...), os historiadores procuraram banir a

ficção de sua escrita. Hoje, pelo contrário, cada vez mais se fala do papel da invenção no

conhecimento histórico. A norte-americana Natalie Davis, que reconstruiu a trajetória de

um rico camponês na França do século XVI, é bastante enfática neste sentido: “o que aqui

ofereço ao leitor é, em parte, uma invenção minha, mas uma invenção construída pela

atenta escuta das vozes do passado”31.

Os jornalistas, igualmente assombrados pelos fantasmas da exatidão e da

objetividade, também procuraram nas últimas décadas, sob os influxos do “new

journalism”, aproximar-se da narrativa literária. As biografias parecem ser um campo

propício para tal encontro. Caldeira, por exemplo, classifica a biografia como “um híbrido

(...) que exige tanto fontes documentais como interpretação e ficção”32. O jornalista

Alberto Dines, que escreveu as biografias de Stefan Zweig e de Antônio José da Silva, o

“Judeu”, afirma de forma semelhante: “quem se deixa levar pela curiosidade, não deve

temer a invenção (...) a fidelidade aos fatos não é inimiga da criatividade (...). Importante

assinalar que o biógrafo não é um mero colecionador de informações, inéditas ou não, mas

um reconstrutor de existências, narrador de vidas, como dizia Virginia Woolf (...)”33.

31
DAVIS, Natalie Zemon. O retorno de Martin Guerre. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987. p. 21.
A pesquisa feita pela autora serviu como base do roteiro de Jean-Claude Carrière para o filme “Le Retour
de Martin Guerre”, dirigido por Daniel Vigne.
32
Apud BENCHIMOL, J. (org.). “Narrativa documental...”, op. cit., p. 96.
33
Idem ibidem. p. 101.
14

No cinema, mesmo nos filmes que se propõem a contar a vida de um personagem

real, a presença da ficção também é marcante. Neste sentido, Sérgio Rezende, diretor das

cine-biografias “O Homem da Capa Preta” (1986, sobre Tenório Cavalcanti) e “Lamarca”

(1994), assinala: “todos os filmes são inventados, até os que utilizam figuras históricas.

Recolhemos os fragmentos de suas vidas para depois preencher os espaços em branco”34.

Estas citações mostram que a biografia é realmente um “gênero de fronteira”

entre a história e a ficção, a realidade e a imaginação35. Nas palavras de Giovanni Levi, “a

biografia constitui (...) a passagem privilegiada pela qual os questionamentos e as técnicas

próprios à literatura se colocam para a historiografia”36. Algumas vezes, historiadores,

jornalistas, literatos e cineastas valem-se, inclusive, dos mesmos recursos narrativos para

construir biografias: o “flashback”, por exemplo. O livro “Guilherme Marechal” de Duby

inicia com a doença e os rituais fúnebres do protagonista para depois narrar suas aventuras

na cavalaria nos séculos XII e XIII. O best-seller “Chatô” também começa com a agonia e

morte do personagem central para só então retornar à sua infância. No romance clássico de

Marguerite Yourcenar, “Memórias de Adriano”, o imperador romano, já velho e doente,

narra sua vida pregressa. Tal estrutura mantem-se em filmes como os já citados “Cidadão

Kane” e “Evita”.

Porém, apesar das aproximações referidas, penso que existem diferenças

qualitativas entre as biografias produzidas nestes diferentes campos.

34
Entrevista a Roberto Sadovski. Set. São Paulo, Abril, ed. 134, ano 12, n. 8, agosto 1998, p. 44.
35
AGUIAR, Flávio; MEIHY, José Carlos Sebe Bom e VASCONCELOS, Sandra Guardini T. (orgs.).
Gêneros de fronteira: cruzamentos entre o histórico e o literário. São Paulo, Xamã, 1997.
36
LEVI, G. “Les usages...”, op. cit., 1326.
15

Acredito, embora isto possa soar “démodé”, que historiadores e jornalistas, por

dever de ofício, têm um maior compromisso com o “mundo real”, enquanto que cineastas e

literatos podem contar com uma margem muito mais significativa de invenção.

Esta diferença manifesta-se, por exemplo, no tratamento dado às fontes de

pesquisa. A historiografia, apesar de suas significativas transformações teórico-

metodológicas recentes, manteve-se fiel à tradição da crítica (interna e externa) das fontes:

quem produziu determinado documento? em que situação? com quais interesses? Afinal,

parodiando Thompson, as interpretações realizadas pelos historiadores devem ser sempre

julgadas pelo “tribunal de apelação da história”: o passado e seus vestígios37.

Além disso, nos trabalhos históricos, os momentos de invenção precisam ser

sempre sinalizados para o leitor através da utilização de expressões como “provavelmente”,

“talvez”, “pode-se presumir” etc. Natalie Davis, por exemplo, construiu diversas hipóteses

para explicar a partida do camponês Sanxi Daguerre, pai do personagem principal de seu

livro “O retorno de Martin Guerre”, da região basca francesa para uma aldeia do Condado

de Foix, em 1527. Diz ela:

“(...) Sanxi Daguerre decidiu partir. Talvez devido às eternas


ameaças de guerra que pesavam sobre a região (...). Na origem da
partida talvez estivesse um motivo pessoal, uma briga entre Sanxi e
seu pai (...) ou outra pessoa qualquer; ou talvez a iniciativa viesse da
mãe de Martin, pois as mulheres bascas passavam por intrépidas e
davam suas vontades a conhecer”38.

Sobre o trabalho de Davis, Ginzburg afirma acertadamente:

“A investigação (e a narração) de N. Davis não se baseia na


contraposição entre ‘verdadeiro’ e ‘inventado’, mas na integração,
sempre assinalada pontualmente, de ‘realidades’ e ‘possibilidades’.

37
THOMPSON, E. P. Miseria de la teoria. Barcelona, Grijalbo, 1981. p. 74.
38
DAVIS, N. “O retorno...”, op. cit., p. 24.
16

(...) A biografia das personagens de N. Davis torna-se de vez em


quando a biografia de outros ‘homens e mulheres do mesmo tempo e
lugar’, reconstituída com sagacidade e paciência, recorrendo a fontes
notariais, judiciárias, literárias. ‘Verdadeiro’ e ‘verossímil’, ‘provas’
e ‘possibilidades’ entrelaçam-se, continuando embora rigorosamente
distintas”39.

Ou seja, assim como o romancista ou o cineasta, o historiador também pode

utilizar-se da imaginação, desde que esta seja explicitada ao leitor enquanto tal e balizada

pelas fontes disponíveis.

Nas biografias “jornalísticas”, a pesquisa documental também tem um peso

relevante. Fernando Moraes, por exemplo, realizou uma minuciosa investigação para

reconstruir a trajetória de Chatô: consultou jornais, fotografias, documentos oficiais e

sobretudo valeu-se de numerosas entrevistas (184 ao todo!!), embora estas fontes não sejam

citadas ao longo do texto, aparecendo apenas no final do livro. Sua preocupação com os

detalhes é notável e transparece ao longo de toda a obra, o que contribui para compor o

“clima” da época em que viveu o personagem. De acordo com o autor, “quanto mais

minuciosa e detalhista tiver sido a pesquisa, tanto mais fácil será a segunda fase do

trabalho, que é a produção do texto final”40. Contudo, no mesmo trabalho, é possível

encontrar também passagens de forte cunho ficcional. Já no primeiro parágrafo, por

exemplo, Morais narra um delírio do personagem em estado de coma, pouco antes de

morrer.

“Inteiramente nus e com os corpos cuidadosamente pintados de


vermelho e azul, Assis Chateaubriand e sua filha Teresa estavam
sentados no chão, mastigando pedaços de carne humana. Um enorme
cocar de penas azuis de arara cobria os cabelos grisalhos dele e caía
sobre suas costas, como uma trança. O excesso de gordura em volta

39
GINZBURG, Carlo. “Provas e possibilidades à margem de ‘Il ritorno de Martin Guerre’, de Natalie
Zemon Davis”. In: A micro-história e outros ensaios. Lisboa, Difel, 1989. p. 183. Grifos meus.
40
Apud BENCHIMOL, J. (org.). “Narrativa documental...”, op. cit., p. 100.
17

dos mamilos e a barriga flácida, escondendo o sexo, davam ao


jornalista, a distância, a aparência de uma velha índia gorda. Pai e
filha comiam com voracidade os restos do bispo Pero Fernandes
Sardinha, cujo barco adernara ali perto, na foz do rio Coruripe,
quando o religioso se preparava para retornar à pátria portuguesa.
Quem apurasse o ouvido poderia jurar que ouvia, vindos não se sabe
de onde, acordes do ‘Parsifal’, de Wagner. No chão, em meio aos
despojos de outros náufragos, Chateaubriand viu um exemplar do
‘Diário da Noite’, em cujo cabeçalho era possível ler a data do festim
canibal: 15 de junho de 1556”41.

Nos romances e filmes, o espaço para liberdades poéticas é ainda maior, o que não

significa ausência de pesquisa histórica, ainda que esta seja menos sistemática e

metodologicamente orientada do que a dos historiadores. Ana Miranda, biógrafa de

Gregório de Matos e Augusto dos Anjos42, ao comentar sobre seu processo de criação,

aponta para este descompromisso do romancista em relação às fontes, o que, neste gênero,

não chega a se constituir num problema: “a coleta do material não é nada científica,

porque minhas fontes são tudo o que meus sentidos me informam, desde um raio de luz que

incide num botão de madrepérola até a maneira de um sujeito acender seu cigarro na

rua”43. Em seus livros, de uma qualidade estilística inegável, as referências históricas

visam sobretudo conferir verossimilhança à narrativa literária.

Em alguns filmes, chega-se inclusive a misturar personagens reais com fictícios ou

personagens reais que nunca se encontraram na realidade, como a Evita e o Che Guevara de

Alan Parker.

Concluindo, e de certa forma voltando ao começo, saliento que os pontos

abordados neste texto não são mais que um convite ao debate, num campo em que a troca

41
MORAIS, F. “Chatô...”, op. cit., p. 13.
42
MIRANDA, Ana. A última quimera. São Paulo, Companhia das Letras, 1995.
43
Apud BENCHIMOL, J. (org.). “Narrativa documental...”, op. cit., p. 100.
18

interdisciplinar torna-se fundamental. Afinal, não é fácil a tarefa de “contar uma vida”, seja

com luz ou papel, realidade ou imaginação...

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