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BIBLIOTHECA DO CRUZEIRO

LOCDOÕBS POPULARES
ÍOR

THEOBALDO

R IO D E JA N E IR O
TYPOGRAPHY DO C r UZ EI RO

1879
P R O V É R B I O S

Bom. diia, B tiilip p in a

A uma mesa da melhor sociedade, em um


desses jantares meio-intimos, em que se conci­
liam a mais elevada cortezi* e a mais agradavel
sinceridade, o senhor vê-se collocado ao lado de
uma encantadora morena, a quem diz umas cousas
muito amaveis, que já lhe teem sido dirigidas
muitas vezes.
De vez em quando o senhor atira a sua sen­
tença na téla da conversação geral e continúa em
voz baixa a sua conversa com a vizinha, oífere-
cendo-lhe umas fructas ou quebrando umas
amêndoa?, que ella morde com uma graça extra­
ordinaria entre seus dentes de pérolas.
Ao abrir uma das nozes, o senhor verifica que
ella contém duas amêndoas; offerece uma a sua
interlocutora e guarda a outra para si, apostando
com ella quem será o primeiro a lembrar-se disso
em uma hora, ou dia determinado.
Ordinariamente, é ella quem marca e é galante
que o senhor a deixe ganhar.
Nesse caso, se ella for a primeira a dizer-lhe,
no momento aprazado, o B o m d i a , P h i l i p p i n a , o
senhor perde a aposta e tem de ofíerecer-lhe um
mimo delicado, que fica ao seu bom gosto, se
nada houverem convencionado.
4
Esse uso vem da Allemanha; importamol-o por
intermedio dos francezps, e certo que não é dos
peiores que tenhamos importado.
A palavra Philippum é uma corrupcào do vo­
cabulo germânico Viellicbchen, bem amado, que
representa uma allusào delicada á união das duas
amêndoas em uma só noz.
A pronuncia da pal .vra, com a mudança do b
em p, lez dell^ Philipchen•, que os francezes ver­
teram para Philippine, e nós traduzimos essa
ultim a palavra.
Bom dia, Philippi na - é a a fiei cão, o carinho,
a saudade durante longa ausência, ãs vezes até
uma delicada censura a quem parece escruccer-^e
de nós.
A ligaçao de todos esses sentimentos, tern
popularizado a phrase que os exprime, e ás Phi­
lipp mas cabe mn papel impor ante nessas peque­
nas manifestaçóes da vida immensa do coracão.
^ oh a appatenria de futilidades escondem-se
muitas vezes as mais sinceras alegrias.
Passageiras, embora; ha nada mais fugaz do
que a vida ? °

A Plulippina despe ás vezes esse caracter sen­


timental e torna-se o movei de jogos de espirito
apreciáveis.
Leinbr -me de que uma vez ganhei uma dessas
apostas e o prêmio er um perii.
O pagamento foi pontual; mas o perii era uma
avezinha tolhida e adoentada desde o ninho
pequena, mal emplumada, coxeando um pouco ;
o que lhe dava o aspecto de um corvo, depois da
carniça.
Nunca vi similhanca tão completa.
F^ôr* os p o n to s n o s ii

Não ha no alphabeto todo uma lettra tão in­


significante como o i; mais insignificante, porém,
ha ainda uma cousa—é o ponto do i.
E, entretanto, é comelle que o nosso provérbio
contende e, se tem uma historia, essa não é a da
lettra, é a historia do ponto do i.
. Porque aqueile ponto modesto tem uma histo­
ria mais interessante do que a de muito povos.
Ninguem ainda a tinha escripto ; cabe-me a
prioridade em contaI-a aos leitores.
Vou fazel-o com menos emphase do que aquella
princeza das mil e uma noites, porque a realidade
dispensa as pompas de que se rodeia sempre a
phantasia.
You contar pura e simplesmente a historia
verdadeira e curiosa do ponto do i.

O meu assumpto não é tão velho como os ho­


mens, nem mesmo como o alphabeto ; é séculos
mais moderno do que a Sé de Braga, e nào sei
mesmo se quando nasceu já não achou inventada
a polvora.
Os antigos nào usavam deponto no i ; em
nenhum dos alphabets primitivos encontra-se
esse appendice ; aquella gente, que requintou o
luxo a ponto de considerar o superfluo como
genero de primeira necessidade, não conheceu
esse luxo do pontoa pairar sobre a haste delgada
da lettra corno urna ameaça dc morte.
Ponto os latiu :s só admittiarn isolado no fim
da phrase, a marcar uma pausa ; os gregos jul­
gavam favorccel o muito, admittindo-o também
no meio, mas um pouco elevado, correspondendo
ao nosso ponto e virgula.
Sobre a lettra, nunca; não lhe viam geito.
Depois o tosco estylete, com que escreviam em
taboinhas cobertas de cêra, mal se prestava a
marcar esse signa!.
Inventou-se mais tarde o papel; veiu logo a
tinta ; na cdade-média começou a augmentar-se
o consumo da tinta e do papel, mas o ponto do i
•continuou por muito tempo a ficar no tinteiro.
Nos velhos manuscriptoi dos séculos anterio­
res ao XIV na > apparvce o ponto do i: é cousa
que facilmente se verifica nos archivos dasbiblio-
ih cas da Europa, equem não puder ir á Europa
vê nos facsim iles que correm mundo.
No século XIV é que appar^ceu esse appen­
dice ; os copistas desta epocha adoptaram o
talho gothico na sua calligraphia ; e como nesse
estylo o u facilmente se confunde com dous ti,
•deram em distmguil-os, sobrepondo a estes uns
accentos agudos ou graves, á v ntade ; esses
accentos modificados d<jram origem ao ponto.
Isto explica também a razão por que nunca se
usou desse signal senão na lettra minuscula ; na
maiuscula não se podia dar a confusão.
Tenho entre mãos o precioso livro do biblio-
philo Jacob, sobre as artes na edaie média, cheio
de reproducções de manuscriptos antigos, em
que o i figura sem ponto até o XIV século.
Dahi começa a divergência : em uma curiosa
miniatura dos fins desse século lè-se, repetida
sobre uma facha, a palavra jamais em gothico,
ainda sem ponto no i; em opposição, porém, o
pertence da biblia do duque de Berry, escripto
por Flamel em gothico florido, pela mesma epo­
cha irnis ou menos, apresenta a lettra com esse
signal.
Em manuscriptos do século XV continua a
mes ?a incerteza ; nos baralhos de Passerel e
Cornu, de que se guardara algumas cartas na
bibliotheca nacional de Paris, lê-se a palavra roi
sem o ponto no i, comquanto esteja em gothico •
mas é mais communique nos autographos desse
estylo se encontre sobre alettra um accento
agudo ; é o que mostra a pala\ra Parts, escripta
sobre uma tapeçaria, representando a vista da
cidade naquella epocha, e no celebre breviarium
que se conserva na bibliotheca real de Bruxellas.
No cursivo, porém, dispensava-se qualquer
signal.
Foi por essa epocha que Gutlemberg illustrou-
se pela maior das descobertas ; mas não lhe
coube fixar ainda uma regra para esse caso.
No Bonatus, na Bíblia Pauperum, no Specu­
lum e em outros codices impressos por Guttern-
berge Faust o i ora apparece sem o pm to, ora
com elle, com o accento agudo, com o grave, com
dous accentos, com um traço e até com um semi-
circul , notando-se estas dèsegualdades em cada
pagina e até nas mesmas linhas.
Só no secuto XVI é que estabeleceu-se o seu
emprego constante,e desde então a unica excí pçào
aberta a essa regra foi a daquelle hespanholque,
mandando que os guarda-livros dispensassem os
pontos dos ii, realizou em um anno uma econo­
mia de 100:000$ em tinta.
O nosso provérbio, que liga-se intimamente
ao ponto do i, nasceu com e!íe no século XIV.
Quando alguns copistas adoptaram o signal,
outros acharam-o inútil e desarrazoado, e teima­
ram em não cmpregal-o com toda a força de
uma convicção sincera.
E’natural que muito se tivesse discutido então;
e o resultado foi que, de um homem que levava
o escrupulo a minuciosidades fúteis, começou-se
a dizer que era um homem que punha os pontos
nos ii.
Foi essa a primeira significação da fórmula.

X
Mais tarde, quand) fez-se mudança radical na
opinião e entendeu-se que o ponto era essencial
ao i, para que não houvesse confusões, a phrase
tomou outro alcance, e pôr os pontos nos ii signi-
dicouo mesmo que por a questão a limpo, acla-
ral-a, assental-a de modo que excluísse qualquer
subterfugio.
E veiu a locução percorr ndo as edades agar­
rada ao pequeno signal do i até este dia memo­
rável, em que eu, com uma pennada, atiro â
âmmortalidade da historia o proverbio, o i e o
ponto do i.
Alviçaras por este esforço.
A historia não é a unica illustração que tenha
recebido o ponto do i. A canção também rendeu-
lhe homenagem nesta ligeira estrophe:
Cètait dans la nuit brune,
Sur le clocher jauni,
La lune
Comme un point sur un i
IVtatar' o btclio
0 nosso povo achou uma graça especial em
ficar sabendo que as bexigas, a sarna e outras
molestias eram produzidas por um bicho.
Foi uma diversão em meio dos sustos das epi­
demias.
Quando apparecia o cholera ou a fibre amarella
dizia-se logo que se estas molestias eommunica-
vam-se, é porque também traziam um bieho
proprio que se reproduzia.
Molestia epidemica sem bicho foi cousa que o
povo não comprehendeu mais.
Às premissas dos medicos deram com elle
nessa conclusão.
Contava-lhe ao mesmo tempo a sua velha sci­
enda, que os liquidos espirituosos, promovendo
a transpiração, preservavam até certo ponto de
algumas dessas enfermidades.
A ligação destes dous princípios generalisou
entre nós a velha expressão —malar o bicho.
Bebia-se, antigamente, para aquecer no tempo
frio, e para refrescar qnando fazia calor.
Essas duas virtudes estav- m ha muito tempo
sobre elevado pedestal ; não as apeiaram, mas
sobrepuzeram-lhe aos hombros a terceira.
Romancista que se empenhe em observar os
costumes populares ha de ver os pedreiros que
descem do andaime e os carregadores que des-
pejam os fardos convidarem-se mutuamente para
malar o bicho, e irem perpetrar esse vermicidio,
de parceria, na venda menos distante.
Para o sobrio é simplesmente um pretexto ;
para o amigo de Baccho é um euphemismo hem
aproveitável nas aulas de rhetorica; ha indivi­
duos que suicidam-se lentamente, no afan com
que tentam matar o bicho que teem em si.
1 o

Até aqui tudo é claro, e o proverbio é conhecido


de sobra, para não haver duvida sobre o seu al­
cance.
Mas que bicho é esse que se mata assim?
í;s Tiptores ha que tenham pretend.do que o
dicto se ref re aos vermes ou helminthos, esses
massantes parasitas.
Ris uma opinião para francez le r !
Se assim fosse nâo nos cansavariios em dizer
o bicho, miando é mais simples dizer a bicha,
que melíi r designa a cousa. A interpretação
póde servir para aquellepovo que emprega o vo­
cábulo ver tanto para indicar aquelie como para
esta.
Outros pretendem que o verme roedor da me­
lancolia da tristeza, que corróe tantas vezes o
homem é o iniuiig a quem se combate assim.
O proverbio seria, poio, urna variante dessa
ideia que se encontra em dithyrambos, mais ve­
lhos do que os livros:
afogar os cuidados no vinho,
e referir-se-hia á alegria e expansão que provoca
o b 'her.
hssa hyp these já é mais acceitavel; o uso
vulgar já vai ganhando com ella um toque de
philosophia que o cnnobrece.
Quem nâo tem desses aborrecimentos, sem
causa ou com motivo, que se dissipam aos gra­
cejos de uma amavel companhia reunida á roda
de uma mesa? Quem nunca sentiu esse gelo do
desanimo que se derrete aos primeiros calores de
um licor vivificante?
Este pensamento que dictara as primeiras can­
ções atravessou os séculos vibrado em quanta
!yra de poeta tem soado por este mundo.
Os poetas, quando menos, tem remoçado em
todas as epochas essi interessante escusa, que se
1 i
tornaria logo rafada e grosseira na boca do vul­
ga ch o .
Infelizmente, em que pese aos philosophos, o
proverbio tem uma origem hi torica que dispensa
profundas dissertações.
Pata e motivo, estâ tudo consignado nas Me­
morias de um burguez de Paris, curioso diario
do reinado de Francisco I, de França.
Foi o caso que Madame La Vtrnade,filha do ge­
neral Briconnet, morreu subitamente em Julho
de 1519, sem que os medicos pudessem saber de
que.
} ste acontecimento fez bastante abalo na corte,
onde a íinada tinha logar importante pelos altos
cargos que exerciam seus parentes.
Isso determin u uma autopsia no cadaver.
E o que haviam de encontrar t s medicos? Lm
bicho, mas um bicho pequeno, exqui. ito e des­
conhecido ; um bicho que nunca fui classificado
em zoologia alguma.
Tinha lhe varado o coraçào, assim á guisa de
quem abre uma picada, por onde lhe convém
passar.
Sim, senh r. s, um bicho, e de mais a mms
vivo, a passeiar-lhe pelo coração sem vida, uli,
ás barbas dos galenos absortos.
Também estes, mal despertaram do pasmo, não
estive*am mais com meias medidas e resolveram
applicar o assassino a pena de talião.
Derramaram sobre elle droga« diversis, vene­
nos energicos, tudo quanto ensinava a h xicologia
hem adeant da d ■pocha, e a nada disso o bruto
se moveu.
Aíinal deram-lhe vinho : de\ia ir ac Pantheon
em corpo e alma, quem primeiro se lembrou de
tal.
Mal sentiu o licor de Baccho, o bicho morreu,
12
fulminado logo, sem mais movimento nem con-
torsão.
Ora ahi está a origpm da expressão popular:
e como para melhor firm a r essa verdade, o grave
dironista que conta esta historia pòe-lhe por
fecho um conselho :
« De onde se conclue que é bom expediente
tomar vinho d* manhan, pelo menos em tempos
perigosos, aíim de não deixar entrar tal bicho no
corpo. »
vejam só como o povo ampliou este prudente
aviso.
Já se não contenta com o vinho, nem o bebe só
pela manhan.
O remedio ganha talvez em eííicacia, applicado
desse m odo; não se lhe deve levar isto a mal.
Maso que é hem para sustos é que não se in­
terrompa nunca o uso.
Pelos geitos, os tempos qm correm são mais
que perigosos.
Obras do Santa Engcaoia

Chamam-se obras de Santa Engrada aquelhs


cuja construcção dura largos annos e que nunca
chegam a concluir-se.
Esta locução tem uma importante origem his­
torica. Santa Engracia é uma egreja de Lisboa,
que se começou a edificar ha mais d * dous sé­
culos. De vez em quando, por um motivo ou por
outro, p ravam as obras e ficavam largo tempo
abandonadas,de m do que,quando se recomeça­
vam os trabalhos, jã havia ruinas a reparar.
Esses concertos absorviam muitos mezes de
trabalho, e quanio se continuava a edificação
sobrevinham novos contratempos, de modo que
nunca ficou prompta a egreja.
A essas tentativas mallogradas ligou o povo
uma lenda curiosa, de que dã testemunho Brito
de Lemos, no seu Abecedario militar, narrando a
historia da fundação do convento de Ouriçai.
Em 1630. pouco depois de iniciadas as obras,
Simão Lopes de Solis, accusado de sacrilegio, foi
condemnado a uma das penas barbaras usadas
nessa epocha cortarem-lhe as mãos, queima­
rem-o e atirarem lhe as cinzas ao mar.
O accusado nunca cessou de allegar a sua inno-
cencia, e quando, conduzido ao cadafalso, passou
pela egreja em construcção, protestou mais uma
vez contra a justiça dos'homens, vaticinando, em
prova da verdade que aífirmava, que aquelle
templo nunca seria acabado
Momentos depois cahiam no seio do mar os
restos do justiçado e o povo guardava na memória
as suas ultimas palavras, que a tradição se encar­
regava de perpetuar atravez das edades.
A prophecia cumpriu-se.
A legenda popular, que repet’a em solaus e
ballatas as historias dessa epocha, consagrou a
essa lenda tocante uma canção, em que desta»
ca-se o vaticinio da victima, nestas trovas sin­
gelas :
F/ tão certo que sem crime
Esta morte vou soffrer,
Como é certo que não minto.
No que vou ora dizer :
<( Nunca se darão por feitas
Por rnais sommas empregadas,
As obras de Santa Engracia
Que ali vêdcs começadas. »
Uma nota para as leitoras.
Este crime que expiou Solis innocente, foi o
celebre desacato de 30 de Janeiro de 1630, de
que rezam velhissimas tradições lisboetas.
Não podendo colher ã mão o criminoso, a ju s ­
tiça indagou de casa em casa quern tinha sahido
nessa noite fatal e para onde tinha ido.
Solis foi o unico que não deu explicação satis-
factoria de sua sahida a deshoras.
A justiça insistiu debalde: o moço repelliu
sempre este meio de salvar-se, e nada revelou.
Era um procedimento leal: o guapo cavalheiro
não quiz desvendar um segredo, que lhe não
pertencia exclusivamente.
Cabia-lhe só a metade: a outra era de uma
dama formosa e sensivel, que deixou queimarem
o amante innocente, mas guardou illesa a boa
fama de que gosava.
Em paga dessa ingratidão de uma pessoa do
vosso sexo, penso que YV. EEx. devem algumas
lagrimas ao desventurado moço.
X a t o r r a dos cegos qixeun te m
u m o llio © r e i

Ninguem ainda pòde demarcar geographica-


mente essa terra, onde cada um de nós que
ternos dous olhos seria com certeza divinizado;
é uma esperança que se esbarra em cheio na
sciencia de Ptoíomeu, Pomponio e Strabo.
Essa difficuldade, que parece insignificante â
primeira vista, sobe de ponto quando se attende
á lettra do dictado ; fala-se positivamente de
terra, e é exactamente o espaço que se lhe não
descobriu ainda; porque epocha jâ lhe foi
determinada e não é das mais recentes.
O nosso proverbio é a traducçào lateral do
latino : In regione caecorum luscus erit re x ;
a data é, portanto, certa ; a duvida é no local
em que se estende a região.
Que empreza1para futuros Colombos .
O m a l © o Ibonrx d o x * i n . I n d l o
v em
Vem rã, primeiro proverbio que os homens-
im aginaram; vem, Mathusalem da sabedoria
popular.
Quero travar-te do braço e apresentar-te ás
multidões absortas, a ti e â tua poenta historia.
Vamos ao paraiso
A ’ sombra de uma arvore frondosa, Adão
adormecera ao murmurar das aguas fugitivas ;
sobre a verde pellucia que revestia a terra, á luz
dos astros scintillantes,dormia aquelle innocente
a bom dormir.
F, t eus, que tivera pena do isolamento da
creatura, debruçou-se do céu e mansamente ti­
rou-lhe uma costella,com que formou a primeira
mulher.
A mulher é um bem, ou um mal ? Tem-se
sustentado que é um bem, e sente-se que o é :
tem-se sustentado o contrario e também disso se
tem sentido aprova.
Seja como fòr, mal ou bem veiu -durante o
somno.
Não nasceria dahi o dictado ? 0 leito onde
dormia aquelle primeiro homém não foi o berço
da phrase proverbial ?
Os povos antigos todos diziam como nós que
o mal e o bem a dormir vem; não foram buscal-o
na legenda biblica e nas lendas analogas de
outros paizes ?
.Depois, no periodo em que appareceram as
primeiras nações, não alludiu-se assim aos ma­
teiros e pescadores, que deixavam os laços e
redes armados â noite nas selvas e nos rios e
colhiam a presa emquanto repousavam no
somno ?
Timotheo, o feliz general atheniense, que con­
quistara diversas cidades,foi representado a dor­
mir, segurando com a mão uma rede, em que a
Fortuna prendia as cidades : era a mesma ideia
adoptada na Grécia.
Em Cicero se encontra uma allusão a esse an-
nexim,quando o orador declara na ultima verrina
que não é da classe des es nobres quibus omnia
populi roniani beneficia dormientibus deferuntur.
Cousa parecida se lê em outros escriptores
gregos e romanos ; dos povos orienta es se deve
dizer o mesmo, quando é certo que nelles agia a
crença de um acaso cego, que tudo movia sem
intervenção alguma da vontade humana e desti­
nava-lhes honras e desgraças emquanto dormiam.
Accresce ainda a superstição dos sonhos e de
sua realização para melhor firmar esta conclusão.
A historia do nosso annexim é,portanto,histo­
ria antiga; mas t.uiz XI, de França, teve a ex~
quisitice de ajuntar-lhe um capitulo moderno e
original ; o real amigo de * liveiros le Daim
viu um dia um padre adormecido em um con­
fessionário e disse aos que o seguiam :
— Hei de dar a este homem a primeira pre­
benda que vagar, afim de que elle veja que o
bem lhe vem a dormir.
E deu-o.
O espirito daquelle sujeito não lhe suggenu
cousa melhor.
Molliar* » p a la v r a
Um grupo de alegres companheiros, em torno
de uma mesa, trocam entre si amaveis brindes,
beijando a miúdo os copos em que espuma a
cerveja.
Da intensidade do enthusiasmo não destòa de
vez em quando uma saude, em que entrem my-
thologias ou ideias philosophicas transcen-
dentaes.
0 orador fala sentado, de vagar, entre sor­
risos, atirando um olhar á direita, e outro á
esquerda, invoca o testemunho de Aristoteles e
de Lamartine ao mesmo tempo, apresenta umas
phantasias a Murgere uns aphohsmosdo • igesto,
fazendo convergir tudo para uma saudação a
um amigo, que é indifferente que seja piloto de
escuna ou fazendeiro de assucar.
Us ouvintes acompanham os sentimentos do
,que fala e bebem um gole de espaço a espaço.
0 resultado é que o unico a não beber é
exactamente o que mais necessita fazel-o ; pois
com a continuação de perorar, secca-se a gar­
ganta e as palavras começam a sahir um pouco
mais asperas.
Essa aspereza prejudica por força a inspiração.
O orador aproveita, portanto, o piimeiro
ponto final que encontra, e prolonga a pausa, ati­
rando e>te aparte ao auditorio :
— Deixem-me molhar a palavra.
Humedece a garganta e c ntinúa o improviso.
Isto, que não é novo, explica o nosso pro­
verbio.
Molhar a pala vra não é mais nem menos do
que ficou explicado.
Origem historica não irei eu pesquizar em
fundas excavaçòe , que o caso não pede tanto.
Locução que por si mesma se aclara e traz em
si o sentido não carece de dissertações eruditas
que convençam seu alcance.
As conjecturas teriam largo campo em que
desenvolver-se, e sem muito custo eu iria achar
na Biblia o velho Noé molhando a palavra em
meio da reprimenda passada a Chanaan.
Mas um facto mais recente tenho á mão para
exhibir aqui, em abono da nobreza deste dito.
0 padre Thomaz Ceva, em seu poema latino
Jesus puer, depois e narrar a fngida da familia
sagrada para o Egypto, introduz galantemente no
enredo um conductor de camellos, que. vindo
daqueile paiz, é acabrunhado na Judéa de mi!
perguntas sobre o menino Deus.
0 homem vê-se atrapalhado com tantas
questões ; na hospedaria a qu acolheu-se não
entra freguez algum que não deseje ouvir a sua
interessante historia.
Isto, que dá-lhe ensejo de desenvolver a
sua oratoria, enfuna-o de vaidade, e o tropeiro
faz-se tribuno e conta e repete o que sabe a cada
ouvinte que chega.
Mas, como não se adquire tanta gloria sem
cansaço, começa-lhe a arder a garganta.
O orador attribue este incommodo a umas
eebolas cruas que comeu pelo caminho e pede
licença para molhar a palavra :
Nunc sequar, hospes ait, siccis permittite labris
(Nam crudis coepis vox aspera faucibus hcesit)
Tantisper liquido verba irrorare lyceo.
E o discurso segue nestes hexametros pom­
posos, feita uma interrupção de vez em quando
com esse curioso parenthesis.
Por conseguinte, se o padre Thomaz Ceva tem
razão,jã os camelleiros c a Judêa no principio de
20
nossa éra usavam da expressão proverbial__
molhar a palavra.
Se nào tem razão e o seu episodio é fabulado,
então o erudito auctor toma o logar de camelleiro
e nós lhe damos foros e breve de inventor do
proverbio.
"Vo I t e m o s á y a o o a f r i a

Contam que a um juiz apresentaram se ou-


i r ’ora dous litigantes, acompanhados de seus
advogados : a lide versava sobre a propriedade
de uma vacca, que pretendiam ambos.
Um dos advogados, tendo a palavra para defen­
der o direito de seu cliente, embrennou-se em
rofundezas philosophicas e em considerações
E istoricas de interminável e fastidiosa inutilidade.
0 juiz. que via eternisa= -se o discurso e já
estava mais que farto de philosophias, via-se
embaraçado para poder tirar daquelle labyrntho
alguma cousa que entendesse com a questào : era
impossível.
O advogado falava em tudo, menos no que era
essencial.
Afina1 o bom do homem »ão se pôde conter;
e, quando o jurista estava no melhor de uma
dissertação sobre Phaetonte e o carro ardente do
sol, atalhou-lhe o enthusiasmo com esta reflexão
glacial :
— Tudo isto é muito bonito ; mas voltemos á
vacca fria.
Magistral decisão 1 E’ a melhor sentença que
juizes tenham dado!
Desde então a vacca fria tornou-se o para­
deiro de digressões importunas, alguma cousa
assim á m-neira de duona que arnpia o correr
de enthusiasmos deslocados.
Os novelleiros dos bairro- teem-lhedido tam­
bém o valor de habil transição ; e quando falam
de um facto qualquer, historiam a vida inteira
do heróe, que prendem ao caso principal pela
phrase conhecida :
— Ma-, voltando á vacca fria, dizia eu que...
0,0,

E a historia continüa clara e seguida, graças s


feliz ideia do juiz de outr’ora
O que não f trào juizes I
Não pensem os ieitores que a historia foi in­
justa em esquecer o nome do togado simplorio
que nos legou tal proverbio.
A locução já fra velha.
Na antiga tareado Advogado Pathelin, já se
encontra o mesmo espirito, sob outra fórma.
Guilherme, accusando a ^gnelet de lhe ter fur­
tado vinte e cinco carneiros, ao chegar á audiên­
cia em que vai pedir contra, o gatuno a pena de
morte, julga reconhecer, no advogado do réu
Pathelin que furtou-lhe seis covados de panno ;
essa circumstan da e a duvida em que fica sobre
a identidade do defensor poem-lhe o espirito em
tal perturbação que, quando o juiz o interroga e
pede-lhe informações sobre os carneiros, o quei­
xoso fala de covados de panno, da cor e preco
da íazenda, produzindo os maiores disparates.
, O pobre julgador súa sem conseguir compre-
nender cousa alguma e interrompe-o de vez em
quando com esta phrase:
~ Espere, vo^ e aos seus carneiros. Que é
feito deites ?
“ 7 Fui taram-me seis covados, responde o
queixoso. r
E a scena continua no mesmo tom, sempre com
a phrase do juiz a atalhar digressões :
— _Volte aos seus carneiros.
O jocoso da situação fez tornar também pro­
verbial o dito e para os francezes revenir à ses
moutons tem o mesmo valor que voltar á vacca
fria.
Mas, por pua vez, o auctor da velha faíça nãa
tinha sido original.
Os curiosos de latinidade conhecem bem um
epigramma de Marcial, em que um advogado en-
23
carregado de delender os direitos de um cam-
ponez, a quem um vizinho furtara tres cabras, faz
uma longa dissertação philosophico-historica
sobre o punhal e o veneno, e atira-se em cheio
na apreciação das guerras púnicas; o pobre
cliente, cansado que farte de tanto palavriado,in­
terrompe-! lie os arroubos com este dito conciso:
— Não se tracta de veneno, nem de guerras ;
fale das minhas tres cabras.
Esse epigramma simples e vivo torn u-se po­
pular em Roma e o verso final passou em pro­
verbio :
Dic mihi de iribus capellis.
Se a antiguidade de origem é nobreza, é hern
fidalgo esse provérbio chão e rasteiro : voltar á
vacca fria.
Tanta cousa, insignificante ã primeira vista,
tem uma historia ; por que não a teria um dito
proverbial ?
C a r n e ir o s de P a n u r g io
Quem tiver o espirito triste, leia Rabelais;
aquillo 6 um desagravar enfados que se não en-
contra nas obras de nenhum outro escrintor.
Urna imaginação immensa e uma erudição su­
perior sao ali apenas um pretexto para as histo­
rias do alegre cura.
E que historias! Os deuses não ririam com
mais gosto no Olympo quando viram surgir o
torto do Vulcano, e Homero teria de retocar a
sua famosa descripção da gargalhada divina, se se
lesse naquelle tempo o Pantagruel.
A’ volta de aventuras tão extravagantes, que
desdourariam o cavalleiro de la Mancha apna-
recem umas ideias tão novas e de tào fina obser-
vaçao que poem o leitor em duvida se aquillo
foi trabutlio de um homem só ou de uma getação
inteira de amaveis desmiolados. *
0 jovial cura de Meudon, que estreara sua vida
collocando-se pomposamente em um nicho e ati­
rando uma risada sacrilega á cara dos devotos
repleto de erudição e de prudeutes conselhos’
versado em todas as scienc.as e falando d iv is a i
línguas, nao podia deixar de fazer passar a seus
1 X m ° r ? eX° t esse esPil it0 desegial, cheio de
sublimidades e baixezas, de simplicidade e de
descaro ao mesmo tempo.
E esse caracter que distingue as suas obras *
e na sustentação dos mais atrevidos absurdos e
e na pintura dos quadros mais torpes apparece
uma ingenuidade verdadeiramente angelical que
poe o leitor desconfiado de que.é só L a mal?cia
a, creadora de tudo quanto lê.
_ esPe^ialidadpí .que raro se encontra nos
escnptores, tem contribuido para tornal-o popu-
5
lar, e convertido em ditos vulgares as suas
expressões originaes.
E não foi delias escasso : que abundam aqui e
ali, multiplicam-se e seguem-se.... como os car­
eiros de Panurgio.
Mas é tempo de voltar ao proverb o, e ndi-
car-lhe a origem.
Acha-se ella no Pantagruel, liv. IV cap. ».•
Em uma de suas expedições, Panurgio encon­
tra um mercador de carneiros, que não sympa-
thisa lá muito co t» a sua honrada physionomia.
j indenault, que assim só chama o homem,
leva mesmo a sua antipashia a ponto de achar
que o Sr. anurvio tem cara de....
Leia Rabelai quem quizer sabel-o ; por mim
apenas affirmo que estas reticências encobrem
um insulto, que muitos teem lavado com sangue.
Foi também o que quiz fazer o oífendido ;
luxou do chanfalho afiado e pobre do Dm-
I enault, se lhe não acodem a tempo !
Mas o negocio apaziguou-se e contendores e
companheiros foram de braços dados esvasiar
algumas garrafas, brindando á concordia uni­
versal. , , •
Panurgio é que não esteve pelo arranjo, e
meditou uma vingança de mestre.
Afinal, dirigiu-se ao mercador e propoz com­
prar-lhe um dos seus carneiros.
O bom do Dindenault riu-se â farta, atirou-lhe
chufas, contou-lhe o nome e imitou-lhe o balido
de quasi todo o rebanho; o outro abaixou as
orelhas em ar de resignação e acceitou tude.
Concluiu-se por fim o ajuste : foi vendido por
alto preço o melhor dos carneiros, um bichinho
que até tinha o mesmo nome que o dono.
4 Panurgio pol-o ãs costas e lá se foi corn elle
para o m ar: o animal balia; os outros la so
foram atraz balindo com elle.
6
Rabelais mette aqui uma nota preciosa, fir­
mada na grave opinião de Aristoteles: que os
carneiros são ineptos e que é de sua natureza se­
guirem uns aos outros.
Não vem descabido este encaixe.
Os carneiros foram, portanto, atraz do compa­
nheiro ; e quando Panurgio o atirou ao mar, os
outros precipitaram-se também nas ondas, dei­
xando em desespero o pobre do Dindenault, que
via assim submergir-se a sua fortuna.
R se o leitor não esqueceu a nota do mestre de
Alexandre, combinando-a com esta historia, verá
porque q que se chamam cavixeivos de Panuvoio
a uns sujeitos que fazem o que vêem fazer, por
espirito de imitação e sem sombra de critério.
It* pianíarb?tata^

Os Srs. vadios constituem uma numerosa e


importante classe, que tem attrahido a attençào
«eral em todas as epochas.
'* Dos philosophos e economistas nenhum deixou
ainda de lançar suas vistas e suas reflexões sobre
essa parte interessante da sociedade para a qual
nunca se pediram direitos políticos, porque os
teem de sobra. . • ± m
Não sei se homicidas e revolucionários teem
feito suar tanto as reverendas calvas dos legisla­
dores como esses pacificos indolentes, que à volta
de todas as peripécias da vida, conservam a doce
convicção de que nasceram para serem muito
riCSó*em Portugal a Ordenação consagrou-lhes
varios artigos e vinte e tantas leis extravagantes
tentaram arrancal-os do seu extasi beatihco.
— Mas, para que? perguntaria o vadio acos­
sado por u u a dessas leis, se se quizesse dar ao
trabalho de falar; para que me arrancam aos
passeios ao ar livre, que me dao tanta vida aos
pulmões? Para que me roubam o direito de
contemplar o sol, cousa que só eu e as agmas
fazemos? Para que hão de privar-me de dormir
1 vista das estreitas, quando as noites de verão
são insupportaveis, e ao inverno o íelento fobus
tece-me os membros ? O que dá-me a socie^ ®
em paga dos primores da natureza, cujo goso quer

r °E &a lei, que não tem coração e não c° n“*


prebende esses arroubos de poesias, replicava
fria e severa ao vadio :
— Vai trabalhar ; a lavoura precisa de bra­
ços ; o povo tem fome ; é preciso plantar.
2 8

Ànalysava depois a vantagem das raizes fecu~


losas e concluía :
— Vai plantar batatas.
El-rei, por bem de seu povo, amontoava de­
cretos sobre portarias, sempre com o me^mo
pensamento.
Cabiam como um pesadelo as leis de 12 de
Marco de 1603 de 30 de Dezembro de 1605, de
20 de Dezembro de 1608; soavam lugubres
como um grito de morte os decretos de 13 de A.

I ram maldições <]ue se repetiam, como echos


Hor«3S anteriores, coevas dos primeiros legisla-
Vjnha (lepois o decreto de 4 de Novembro de
Jm.) ma udando empregar nas obras publicas os
p bua, dos vadios 0,1 entregal-os a particulares
#0, trabalho, pagando-lhes
íu i / oís por dia!
A lei de i"’ de Junho de 1760, nos art-. 18 e
J ■,descobria uma grande novidade, incluindo os
>
mendigos na mesma classe. 08
o alvará de 13 de Abril de 1810 estatuía que
è t ,( s aoraST a anct0/ idade 0 se« domicílio r
ro^:,ir:TiS,7a“ ideia*° ^
c q.n c.sc Pciav* a « p o rtacão
C -C d.uam laigas a importação, prohibia-sô
com pt'iiayrvcras a entrada de vadios no reino
d e ^ ' i n i h ^ ° de Marí° de 1810, ap o rta d a
Fevereiro de 'lo mesmo anuo e o edital de 19 de
, , c u , ° de 1811 recusavam despacho a genero
d e b e la ? 6" 6’ qua"Iuer 1ue fosse a
Conchisão: os legisladores occuparam-se e
39
muito com a muito nobre e distincta classe dos
Srs. vadios, que forçavam, por todos os meios,
aos serviços da lavoura.
Mas já em tempos bem anteriores uma lei
celebre tinha vindo dar uma fórma clara a essas
disposições.
A importante lei das sesmarias, dada em
côrtes e publicada por D. Fernando, em San­
tarém, em 13*75, obrigava os vadios cá lavoura,
sob penas severas, e determinava de certo mode-
a ordem de seus trabalhos.
Eis o recurso que ficava ao vadio : ir cultivar
a terra, plantar batatas.
Nos centros importantes havia auctoridades
especial men te creadas para syndiear da vaga­
bundagem e dar uma occupaçâo a todos os que
a nào tivessem.
Nos dialogos que se travavam de continuo
entre esses funccicnarios e seus governados, a
conclusão que devia apresentar-se muitas vezes
assim com ares de colenda sentença era a nossa
/) hrase popular :
— Vá plantar batatas.
Em abono do interesse que inspirava tal insti­
tuição, ba diversos exemplos.
11 i.sta citar um :
No reinado de 1). João IE, o terror dos vadios
no Porto, adormeceu na Providencia, deixando
medrar a vagabundagem,emquanto douravam-lhe
o ocio os honorários do cargo. S). João 111 ex »e-
diu urna portaria, mandando abrir devassa aper­
tada sobre a vadiagem de tal auct ri dado.
Entre nós, sob o dominio do codigo criminal.,
todas as auct midades policiaes e judiciarias são
terror de vadios * e, sc os nao mandam plantar
batatas, fazem-lhes cousa peior, em que entram
como elementos as torturas da enxovia e as deli­
cias da virtude da diligencia.
30
As leis portnguezas puniam com galés ou des­
terro
/» • a reincidência,. em tal crime ,; da iin ssâ
icLi oiiiijb ssa iei
lei
íoi m*is suave na imposição e mais efficaz ao
mesmo tempo, pois ha vadios em qualquer clima
e em qualquer paiz.
Isto que aqui vai á guisa de dissertação histo-
rico-juridica, visa apenas a estabelecer a origem
do nosso provérbio. ®
Como consequência das leis que obrigavam os
vadios ao trabalho, a expressão ir plantar batatas
equivale a taxar alguém de ocioso e vagabundo
Uxalã fora sempre seguido o conselho I
Amarrar o gato
Esta phrase vulgar é uma corrupção da ex­
pressão primitiva.
Um ebrio imita, com algum custo, as oscilla-
ções de um navio de pròa á pôpa e de estibordo
à bombordo.
Cuem j i apreciou as duas scenas, associais
facilmente no espirito.
Contra as oscillaçòes do ebrio, só ha um reme­
dio, é não an d ar; outros pretendem que não
beber faz o mesmo eífeito.
Mas um navio, por sua natureza, não póde
empregar p ecauçòes analogas ; para diminuir o
balanço só ha um meio—alar a gata.
Gata é a vela de cima da mezena.
Aberta ao vento, o jogo da nau diminue extra­
ordinariamente.
A metaphora tirou-se desse facto : o mari­
nheiro que vê alguém cambaleando, á conta de
repetidas libações, lembra-se logo da manobra
costumada e grita-lhe este conselho : largue a
gala.
Um homem que cambaleia é que esqueceu-se
disso : é um homem que amarrou a gata.
A. feliz applieação do termo nautico fel-o
adoptar geralmente ; mas como o povo é o mes­
mo em toda a parte e gosta sempre de preparar
torturas para os futuros Saumaises, corrompeu a
locução primitiva e, persuadido de que apenas
lhe trocava o genero, mudou em amarrar o gato.
Um absurdo,já se vê: os ebrios deviam pro­
testar contra elle.

■S
M o m e le m , s e ....

Entre as fôrmas barbaras que affectava a pe­


nalidade antiga figura a de atar-se o culpado
despido, untar-lhe o corpo todo de mel e aban-
donal-o aos insectos.
Era uma morte lenta, cheia das torturas do
isolamenlo, da immobilidade, da fome e de co­
michões horriveis, e contra as quaes não havia
remedio.
Uma dor aguda pôde adormecer os sentidos
ou provocar uma reacçào na natureza; mas ainda
esse triste allivio desapparecia contra dores leves
agindo em diversos orgams, continuadas a toda
hora e só devendo cessar quando fugisse a vida
de um corpo já meio roido dos vermes.
Essa peaa já era usada na antiguidade em pu­
nição de crimes horrorosos. Plutarcho, na Vida
de Artaxerxes, traz delia uma minuciosa des-
cripção.
Uma modificação introduzida pelas leis da
edade media deu uma nova fôrma á tortura, sem
desprezar a an tig i: foi a emplumação.
Sobre o corpo untado de mel collocavam-se
pennas, e o condemnado era conduzido pelas ruas
mais frequentadas, montado em um burro, de­
baixo dos apupos da populaça, que atirava-lhe
ovos, batatas e até apedrejava-o às vezes. Era
assim que se puniam as pessoas de costumes
escandalosos e os feiticeiros.
Sob qualquer das fôrmas, era um supplicio
muito para terrores ; e a tradicção popular con­
servou lembrança do medo que* infundia, acom­
panhando os juramentos com esta expressão
energica Me melem, se isto não é verdade.
P o r a r te s de b e r liq u e s e
b e r lo q u e s
Se pudessem desapparecer de todo os peloti-
queiros, esta locução era uma das poucas cou­
sas que nos legavam.
Mas também ella e de urna importanda nas
magicas que domina todos os passes e é estribi­
lho força o de todas as suas phrases desconnexas.
Se o prestidigitador tira um coelho de uma
garrafa ou um pepino do nariz de um especta­
dor,é sempre por artes de berliques e de berloques.
Qual será a origem dessa formula ?
Para alguns lexicographos, berliques é uma
palavra derivada do verbo italiano berlingare,
tagarellar, e berloques do francez breluque, cousa
de pouco valor, bagatella.
Ligar uma cousa com outra é o que ninguem é
capaz de fazer, nem mesmo um pelotiqueiro.
Tanto mais quanto breloqueem francez também
significa o tambor—também e mais frequente­
mente .
A meu ver, a fonte é outra.
No latim corrompido que falavam os habi­
tantes da Gallia meridional encontra-se a palavra
b e r l in g h u m , designando um jogo de azar,em que a
destreza do parceiro sempre valia alguma cousa...
Este vocabulo passou para os dialectos do sul
da França, e a palavra b e r lin g h d o significa ali o
mesmo jogo.
Os povos da peninsula ibérica deviam também
ter recebido o termo latino e derivar delle, entre
outros, b e r liq u e s , que em phrase trivial se applica
aum jogador trapaceiro.
P o r a r t e s d e b e r liq u e s corresponde, pois, a p o r
t n e io d e p e l o t i c a s .
Quanto a berloques, creio que não vem dofran-
cez, nem do chim, mas representa apenas um
desses termos, sem sentido algum, que os pelo-
tiqueiros empregam constantemente, e que re­
uniu-se ao primeiro para dar á locução um certo
cunho especial, proprio desses senhores que fa­
zem passes.
Esta opinião tem dons argumentos a seu favor :
um, a significação do epitheto vulgar bcrliques;
outro, o uso do nosso provérbio, que se toma
sempre em má parte.
Por arles de berliqv.es e berloques é pura e sim­
plesmente um meio de enfeitar trapaças e alican-
tinas.
L o g eo d© Io d© AlbAdi

0 dia I o de Àbril ha de ser sempre celebre :


é o dia das pulh s.
Mingúem se fie na carta perfumada que porta­
dor mysterioso lhe entregue logo pela manhan,
nem nos chamados ou convites de seus amig.s
affectuosos ; a sobrecarta capôa apenas um
papel em branco e a lettra tão conhecida do ami­
go está regularmente imitada por m.,o tr idora.
Presentes, quem os pôde receber então ? Os
doces m^is finos estão carregados de pimenta e
as trouxas de ovos recheiadasde um a godão que
prende-se aos dente^ e a custo se desapega por
entre as risadas dos espectador s.
Mingúem leia annuncios de jornae» nesse dia •
o logro está ali, em toda a parte, occulto, a pa­
gar com ironias e motejos o trabalho de’sahir
de atravessar as ruas, de ir procurar o que se
deseja e se viu annunciado sob condições ten­
tadoras.
U dia das pulhas já subiu â altura de uma in-
stituiç o social; já não é um gracejo do povo ;
das camadas pop lares f i-se guindando insen­
sivelmente, já tem entrada nos salões e não está
talvez longe o dia em que se installe á larga nas
amplas columnas das folha oíliciaes.
Foros de nobreza já elle os tem ; o que falta
agora é descer-lhe pelo tronco da arvore herál­
dica em buscadas raizes.
isso é que é difficil ; já se tem consumido nesse
empenho investigações que vingariam descobrir
apedra philo.ophai; tem se queimado pestanas
ás arrobas e até hoje ninguem póde dizer ao
certo qual seja a origem de se jogo.
(js gregos não o conheceram com certeza; sq
nâo estaria a mythologia cheia de legendas em
que se figuraria deuses e heroes galante mente
embaçados pelos homens de espirito.
« uso dove datar da edade média ; mas qual
foi o facto que o originou?
Profundos philologos contendem nesse ponto
e cada qual emitte a sua opinião mais ou menos
engenhosa e mais ( u meno acceitavel; ahi vào
al umas . .
0 duque de Lorena, Francisco, estava prisio­
neiro de Luiz XIII no castello de ancy, e o rei
niuit ancho dessa captura imp rtantc, quando
na noite de 1° de Abril, o duque escapou do car-
core atravessando o rio tv eurlho a n do.
1 ssa fu a, que era uma peca bem pregada teria
dado orieem aos gracejos que os francezes cha­
mam poisso/is <1an'il, peixes de bril.
I is a 111 uma, primeira ver>ão, com a vantagem
de explicar até a palavra franceza pnisaon.
nfclizmenle militam victoriosamente contra
ella umas desvantagens terríveis.
Imaginem que esse duque de Lorena é apenas
conhecido na historia por essa anedocta ; nutil
fui lgo p ssou a vida sem crea cousa alguma que
orecornmcndasse á posteridade.
A sua captura poderia ter alguma importância
para Luiz Xlll ; mas nós que já estamos longe
dessa epocha, nem a telescópio podemos lobrigar
o interesse que teria para nós a sua fuga, inte­
resse que a tornasse notável e proverbial.
Se até os francezes teem bons motivos de du­
vida, quanto mais os que se acham tão afasta­
dos ! Pms é lá possivel que se estendesse pela
Europa toda, e até atravessasse o Atlantico, esse
uso só em homenagem ao obscuro duque de
Lorena ?
Não é crivei.
Demais disto, a historia desse Francisco não é
hem essa, segundo aílirmam historiadores de boa
n o ta ; cabe-lhe, não a invenção, m s nma feliz
applicaçâo do Jogo das pulhas.
Elle fugiu da prisão, é certo, na noite de I o de
Abril , mas disfarçado em camponez.
Al guem que o reconheceu na fuga, denunciou-
o ao guarda e ao commaudante da guarnição do
castello, quando ainda era tempo de persêguil-o
e agarral-o; mas tanto o guarda, como o com-
mandante tomaram a historia por uma pulha
propria do dia e não se moveram, dando-lbe
largas horas para pòr-se a salvo.
6 uso popular já existia, portanto, nessa
epocha e o duque de Lorena o que fez foi utilisar-
se delle.
Estas considerações dão também em terra com
outra versão que attribue o I o de Abril a uma
anecdota da vida de Kichelieu.
Mas sabem a campo uns archeologos letra-
dissimos e raciocinam assim :
P/ muito co mm um no I o de Abril mandar-se
um simplorio levar um volume qualquer, cheio
de areia ou de pedras, a um individuo determi­
nado ; este que fareja o logro ou conhece-o de
antemão, dá outra direcção ao portador e envia-o
com a carga a uma terceira pessoa, que passa-o
a uma quarta, e assim successivamente.
Ora, isso mesmo se deu com Christo que andou
de Anaz para Caiphâs, deste para Pilatos, para
Herodes, e segunda vez para Pilatos, exacta-
mente pelo principio de Abril, em que a egreja
celebra a Paixão
O jogo das pulhas deve portanto ser uma allu-
são pouco piedosa aos passos de Christo, que se
parodiaram grotescamente na edade-média, e o
vocabulo poisson é uma corrupção de passion.
Tabaquiemos o caso. . . . ,
O Primeiro de Abril nasceu incontestavel­
mente na Europa, e na Europa cbristan ; gene­
ralizou-se entre povos christãos. Por conseguinte
não estaria a mythologia cheia de legendas em
que se figuraria " deuses e heróes galantemente
embaçados pelos homens de espirito.
< uso deve datar da edade média; mas qual
foi o facto que o originou ?
Profundos philologos contendem nesse ponto
e cada qual emitte a sua opinião mais ou menos
engenhosa e m a is u i meno acceitavel; ahi vão
al umas
0 duque de Lorena, Francisco, estava prisio­
neiro de Luiz XIII no castello de ancy, e orei
muit ancho dessa captura imp rtante, quando
na noite de 1° de Ahril, o duque escapou do cár­
cere atravessando o rio "r eurtlie a n do.
1 ssa fu a, que era uma peca hem pregada teria
dado origem aos gracejos que os francezes cha­
mam jxnssnnx <i<irnl, peixes de bril.
\ is ahi uma primeira ver>ão, com a vantagem
de explicar até a palavra franceza poisson.
nfrlizmenle militam victoriosamente contra
ella umas desvantagens terriveis.
imaginem que esse duque de Lorena é apenas
conhecido na historia por essa anedocta ; nutii
fid 1go p ssou a vida sem crea cousa alguma que
o recommendasse á posteridade.
A sua captura poderia ter alguma importância
para Luiz XIII ; mas nós que já estamos longe
dessa epocha, nem a telescópio podemos lobrigar
o interesse que teria para nós a sua fuga, inte­
resse que a tornasse notável e proverbial.
Se até os francezes teem bons motivos de du­
vida, quanto mais os que se acham tão afasta­
dos! Pois é lã possível que se estendesse pela
Europa toda, e até atravessasse o Atlantico, esse
uso só em homenagem ao obscuro duque de
Lorena ?
Não é crivei.
Demais disto, a historia desse Francisco não ó
hem essa, segundo aflirmam historiadores de boa
n o ta ; cabe-lhe, não a invenção, mas nma feliz
applicação do Jogo das pulhas.
Elle fugiu da prbão, é certo, na noite d e Io de
Abril, mas disfarçado em camponez.
Alguém que o reconheceu na fuga, denunciou-
o ao guarda e ao commandante da guarnição do
castello, quando ainda era tempo de perseguil-o
e agarral-o ; mas tanto o guarda, como o com-
mandante tomaram a historia por uma pulha
propria do dia e não se moveram, dando-lbe
largas horas para pòr-se a salvo.
Ò uso popular já existia, portanto, nessa
epocha e o duque de Lorena o que íez loi utilisar-
se delle.
Estas considerações dão também em terra com
outra versão que attribue o I o de Abril a uma
anecdota da vida de Richelieu.
Mas sahem a campo uns archeologos letra­
díssimos e raciocinam assim :
K’ muito commum no I o de Abril mandar-se
um simplorio levar urn volume qualquer, cheio
de areia ou de pedras, a um individuo determi­
nado ; este que fareja o logro ou conhece-o de
antemão, dá outra direcção ao portador e envia-o
com a carga a uma terceira pessoa, que passa-o
a uma quarta, e assim suecessivamente.
Ora, isso mesmo se deu corn Christo que andou
de Anaz para Caiphás, deste para Pilatos, para
Herodes, e segunda vez para Pilatos, exacta-
mente pelo principio de Abril, em que a egreja
celebra a Paixão
O iogo das pulhas deve portanto ser uma aliu-
são pouco piedosa aos passos de Christo, que se
parodiaram grotescamente na edade-media, e o
vocabulo poisson é uma corrupção de passion.
Tabaquiemos o caso. . ,
O Primeiro de Abril nasceu incontestavel­
mente na Europa, e na Europa christan ; gene­
ralizou-se entre povos christãos. Por conseguinte
38
\
ou os christàos somos uns patetas de marca
maior,que ridieularisamos o ponto mais sublime
de nossa crença ou essa opinião é absurda e
inadmissível.
F como os defensores delia são também chris­
tàos, para que n m se firam nas duas pontas do
dilemma, hão de livrar-se da primeira e dar ao
diabo o seu luminoso laudo na questão.
Um escriptor condescendente dá-nos ensanchas
á 1philosophia com mais uma explicacào* o eime-O
nhosa.
Diz Quitard que, quando em 1504, Carlos VI
m lidou por um decreto, que o atino começasse
no d ia l0 de Ab-il. essa medida foi mal acolhida
c continuando-se a d >r as boas festas em Janeiro,7
quando chegas a o Io de \hril faziani-s • falsos
cumprimentos, davam-se festas do anno bom por
zombar n, \ indo da 111 o 11s<• d as pit 1lias, a que se
ediamavam poíssoms d'an-ij, porque eni Abril o
.so| mitra no signo dos neix-'s.
Mas, meu caro Sr. Ouilard, que (em o sol com
os lisos (lo povo ? Pois 11a\ ia necessidade, de ir
ao zodiaco pedir-ilie um nome emprestado para,
um jogo vulgar ?
Depois, aqui. longe da França e da lingua fran-
<era, também temos sol e zodiaco ; também te­
rnos o signo dos peixes, e entretanto não chama­
mos preces de abril ás mentiras desse dia.
F aquella historia do povo - acolher mal a lei
de U«u los \1 ! O anno, na eda.de média, comecou
algum tempo c m a primav ra, começou na Pas-
clma, foi lixado em 25 de Marco. Os cumpri­
mentos de anno-hom, as boas festas da entrada
do anno são até uma recordação do uso antiqu-s-
sinio de daiem-se piesenles nu começo da prima-
xeia, usu que já era conhecido dos romanos e
que até agoia se conserva nos povos do oriente •
quando mudou-se o começo do anno para o I o dè
Janeiro, voltando-se á instituição de Numa Pom-
pilio, o costume das festas e cumprimentos da
primavera, estendeu-se também ao principio de
Janeiro, mas não ficou abolido na data pri­
mitiva.
V. è assim que se conservam ainda em muitos
pontos da Cutmpa os o c o s d a P a s c h o a , os b o m b o n s
Marquis que se dà »de mimo por essa festa e que
sào modificações apenas do uso dos presentes da
primavera.
Ora, se o povo sabia por tradição não muito
longa que o anno tinha começado cam a pri­
mavera, p rque é (pie havia de acolher mal a lei
de Carlos VI? Como é que havia de dar falsos
presentes no I o de Abril, se esse dia era mais ou
menos o dos verdadeiros mimos e cumprimentos
da P u rima, que datavam de remotas érase que
nunca se perderam?
A asserção do Sr. Quitar d passa, portanto,
para o rol das mitras.
0 uso das pulhas do 1° de Abril é, quanto a
mim, um vestigio das f e s t a s cios l o u c o s que se
fadam na eclade-média.
Cram uma parodia burlesca das ceremonias
mais solenines da egreja, que se guardaram largo
tempo como restos implantados no povo das an­
tigas saturnaes.
Tudo se tolerava então; havia um p a p a dos
l o u c o s , solemnemente carregado em procissão pelas
ruas ; b i s p o s e s a c e r d o t e s dos loucos com longo
sequito, a celebrar nas egrejas uma missa gro­
tesca e sacrilega ; a licença espandia-sa á larga
nessas manifestações, que a egreja só conseguiu
destruir lentamente e com muito custo.
As f e s t a s d o s l o u c o s acompanhavam todas as
solemnidades da egreja ; mas eram mais geraes
e mais pomposas pelo Natal e pela Paschoa ;
quaudo os decretos dos papas as desterraram dos
templos, atiraram-se ruidosas às praças e por
muitos annos nada decahiram de seu explendor
absurdo e ridiculo.
A marchn da civilização fez desapparecer o
seu apparato ; mas como o povonão póde perder
de urn momento para outro as suas velhas usan­
ças, eas festa* do* loucos já eram lembranças de
costum s coevos das legendas, não morreu esse
de todo, mas passou a nós apenas modificado—
no carnaval — que e a festa das ruas, e no /.° de
Abril, que é a festa dos loucos mais intima e
domestica.
Para quem considerar attento osdous folgue­
dos populares, ha de fatalmente descortinar-se o
intimo laço que os liga e a feição característica
que domina ern ambos : a alegria, a grossa
risada do povo, o disfarce, a mascara.
O i . ° de Abril não póde ser outra cousa : tanto
unais quanto refutada essa ideia ficará o carnaval
como vestigio unico das festas dos loucos, que
não recorda inteiramente, e que eram tão longas
e tão variadas que não se poderiam resumir nelle
somente.
Quanto ao termo francez poisson, nada obsta
á crença de que elle seja posterior : é isso até
mais natural.
Acceite-se, por exemplo, a historia do duque
de Lorena a aproveitar-se do dia dos logros para
a sua evasão de Nancy ; se os francezes acharam
que elle, atravessando o rio a nado, era poisson
d’avril, é porque já existia o uso dos logros de
abril.
Do contrario, nem teria razão de ser a allusão.
A origem que apresento desse jogo e do dicto
vulgar que o rememora é a que mais probabili­
dades oíferece em face da historia.
Não a dou por decisiva ; o que é certo é que
ella satislaz plenamente e não se lhe podem oppôr
objecções sérias.
41 e

As outras versões, essas são verdadeiras e legi­


timas pulhas de abril.
Creia nellas quem quizer.
; o s ta no
CO 111 O C íi . *
A quelle celebre Am,ml, euj.i eniumao „e per-
Joni^ua alo as fi‘()iii,('iiMs do san<<*rilo e quo n;,j»0_
C^'ll mlir aSUO it t aií.M-ISN Old .nr
S;1
« , ' u< iinii,iii!(
1" ■ I , (.])U \ ( 17v * 'i , i77f1111
(Ilhni l;Io’UIi,il P^J'inio í;i)ii:i(]i,( tnumuiila
e oLsoura, undo \ n o si u o.diida- «> .
. I>(Jlllr<) jn isy.t. nàr, iias.a ;T -' 0
" ' " sa " :el,K!,'> i'-' IvLda
i)" i,ill,,s :|M‘Z,'S Viipou o rir.» hi-jiad,) (]0 t ,,
V ' n v , ; \my„| f„j jt:dil-o an lvj ; 1 Xu
• l ^ ^ ri>3loii ia.ii ; Max a ; saYiVilo
C ( , I i l i;“ 1 P -ni : i e a ^ < i i M ( j u a i ' o 1 { a - l i o ?
• ‘ i" iiU‘ ' ,,;n ;i [) i-;. quo so
Y.ll ‘Imil'll d') ' •' i LU
i . ,),' l;,lli X'-'IA primeii-e parle «],. u.,s a
' " V - ' 11,'* an.yul leria side „ •> 1
. V ' V S” Uy «Hn-íi i .... ..........i ale
; l’" '" ''.|;;(l,'.l> •Hied..i-i.-i [diiryiinlii.i J - / ; J ,r« .
<, *• • < ■r - .
I I \ H I ; ’ d c i l a ' ' fr l S
U II I 1. »
1 1 >>• i ■i .• I ,
.Miti) ;i
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1 1 1' i ' O O ( ] , j A \ , ' i i ( i '

e' I n:l "I’iniii;' il'i Mira deMend-in.

f - f ......................i J t • i
i‘ -r • »■« ....* e tm .
I,;' ed.i IMS Melam >rp's-ists, VIU, met. 11 .
C'bus onuns ir ?//•»
('(DISK C)hi rs/ _

. .... . K Z n t í K
43
sòes se podem remontar com sua genealogia até
osbaiòes de Affonso Henriques,,, ainda que dahi
para cima seja a estirpe h da de carvoeiros.
Mas Ovidio por sua vez nào inventou o dito
proverbial; Quinto Curcio o attribue aos Scy-
, has,
0 bkgrapho enthusiasts de Alexandre indue
a phrase em um discurso que os Scythas dirigem
ao conquistador : P r i m u s o m n i u m s a t i e t a t e p a ­
r a s t i f u m e m ! L. VII, cap. 8.
O caso merece ser analysmlo.
Os Scythas dizem que Alexandre foi o pri­
meiro para quem o comer esteve no começar;
logo, antes delle assim nào era.
M-2 S o heróe de Ovidio é muito anterior a Ale­
xandre ; calha aqui o m donho dilemma de
Hamleio.
A discussão desse ponto pôde darem resultado
que se o facto era velho, os Scythas o ignoravam;
ou entào cabe a Alexandre a invenção do acto e
aos Scythas a dn phra.se.
Alma de incerta, ainda fica bipartida a gloria t
Bipartido ticou também o proverbio ; a> bis-
tona que espanca as trevas do passado sobre o
c o m e r , nada nos diz sobre o c o ç a r .
Mas também a idem, de c o ç a r e tao natural no
caso, srd'ire s<-r c.orrelaliva de c o m e r (em outra
accepcào, e o If re- e rima tão f.icil para c o m e ç a r ,
queufm se póde extnnliar a reunià* das duas
ideias.
F se esta explicação nào se impõe a lodos,,
pelo menos satisfaz a alguns.
Fu sou um desses.
ar* e s t a n o
o o i i i o e &. *
o

A quelle celelire Amyol, cnj.i oriidÁ-ao „e per-


a at(3 as Iruiiti'iiMs do saniori to ° rua n 1^0
c:; ; 1 asna a u ilm > annum ■m s o r
‘s;i‘,i(i e iiiiiiiiídi-,
1* * i (.bu-\ r d, <.arí- ..•1}v ^ p.,^ r 11111**
i'"’ . Uts. i, uln.uina | H ' < | a l . l .rui]■, tran.iiiilla
e oi.sriUM, onde \ n e si c i\.!i„l;|.<e
1 ,mri>li'in|M, tl.-iM.is, já ísm-, níií, Ikís.Í-U, •’ O
" ’" ' a " a'IÍK,r> ,:ma l-n-lh-ãda
i!" l,l,l.ns :," ' r ' s ............. I-i<-•■.' Id-j.lld-. ,1o \,|_
Xíiiv (‘ Annul fni |,;■,|j|-i1 ;ll. Iv; .
~ ■ I " ' ' - " 111"" ‘ -'di' : M.l'.:,; s;iI:sf'ilo
101,1 i;iM P hím a ;itr<;im i j i h u v ■ í a o i o ?
(‘jiíio,,
, ’ a P*ii11-1 ' 11,1 •> pi,1 I-».»>i i*ao (ilio so
vai ■‘111111 ■11 d ■i 1L
} .()n ;i!l1 Ví!Aa Pri,l,pi™ parle donos a piv.^r-
11 1' ,11;|s Amyul (ona sido o luv.-nfur ?
I i,,|M;í| na1° só ,,1"’ »■ r- <--'0 diroiío oomo até
(1,,(,!í' <]l .{^«riianhu, Vj ; joro-
0 ■
11-' 1 iI.ioposL lona. sido ;• lioróa da a void ura

O ; 'v' r ! | l.’s ;i'iI,■s j O nmI iO Í O u h i ..... .


MIII,I Mill:' rrfenuil .-so :i Kr,-:iciii,.í;, ,-,iidO'
d ”1 I j',vs a in,u om,,. ímmu-i c c u * .
I-I Mlà 11.K Moía:,! apV:se<, VIH, Hiet, n :
C'bus onuiis ir H/.,
("ousa abi rsi.
43
soes se podem remontar com sua genealogia até
os baiões de AAfonso Henriques^ ainda que dahi
para cima seja a estirpe t» da de carvoeiros.
Mas Ovidio por sua vez nào inventou o dito
proverbial ; Quinto Curcio o attribue aos Scy-
, has.
O bkgrapho enthusiasta de Alexandre indue
a phrase em ura discurso que os Scythas dirigem
ao conquistador : P r i m u s omnium satietate p a ­
r a s t i f a m e m ! L. Ml, cap. 8.
O caso merece ser analysmlo.
Os Scythas dizem que Alexandre foi o pri­
me ii\> para quem o comer esteve no começar;
le y s antes nolle assim não era.
M-2 S o heróe de Ovidio é muito anterior a Ale­
xandre ; calha aqui o medonho dilemma de
Hamleto.
A discussão desse ponto pôde darem resultado
que se o facto era velho, os Scythas o ignoravam;
ou eriíào cabe a Alexandre a invenção do acto e
aos Scvthas a da phrase.
Alem de incerta, ainda fica bipartida a gloria t
Bipartido ficou também o proverbio ; a* bis-
toria que espanca es trevas do passado sobre o
c o m e r , nada nos diz sobre o c o ç a r .
Mas também a idem de c o r a r é tao natural no
caso, sobre ser correlativa de c o m e r (em outra
accepcào, e otf rem rima tao f.teil para c o m e ç a r ,
que [lã', se póde extr.inhar a reunia ' das duas
ideias.
h se esta explicação não se impõe a todos,
pelo menos satisfaz a alguns.
iva sou um desses.
I3 u r\r* o d e B u rid a n
Com licença de VV. SS. chama-se vulgirmente
burro de H unian aqnelle que se acha indeciso
entre duas veredas cuja escolha é diílicil, entre
duas normas de acção cujos resultados diversos
é custoso prever.
Hu idan foi um philosopho e^cholastico que
tem atravessado as gerações e irá por ventura ate
á mais remota posteridade montado nesse ani­
mal interessante que a historia prende sempre
ao seu nome. r
Os habitos p cificos e estudiosos do homem
explicam que elle preferisse essa companhia ;
nào faria bom ver que um philosopho se apre­
sentasse aos séculos a cavalgar um bucephalo,
como Alexandre, ou um rossinante, como
i). Quixote.
A prefeiencia foi muito bem dada e em nome
da gente dos tempos que correm aqui estou a
louvar mmto o bom gosto do Sr. liuridan e a
recordal-o a vossa inteliigencia, a elle e ao seu
burro.
Sejam muito bem vindos. Também um sem
o outro nao conquistaria a immortaljdade : o
asno ficaria esquecido e abandonado desde que
nao pudesse levar cargas aos mercados, e o
philosopho morreria de todo com as já mortas
discussões balofas da hscholastica.
Salvou-os a inspiração de se ajustarem.
a união faz a força ; os dentes do tempo não
vingaram roer esse grupo.
I'0i o caso que líuridan celebrizou-se susten-
tando o livre arbítrio dos animaes.
Aos arrojos dessa these escudava um argu­
mento poderoso em fôrma de exemplo.
45
Imamne-se um burro com muita fome, collo-
cado a egual distancia de duas caçambas de ce­
vada, egu es em tudo e fazendo-lhe a mesma
impressão. . . ... ,
Que fa rã o animal ? inquina o philosopho. _
ISão se decidirá por nenhuma? Teremos então
o absurdo de morrer um asno à fome deante do
alimento, a que póde chegar-se.
Voltar-se-na para uma? sendo as duas vasi­
lhas exactam ente eguaes, á egual distancia, des-
apparecendo os outros motivos da escolha o
único motivo que resta é a vontade livre. Ha
então, no animal, o livre arbitrio.
Qualquer que seja a preferida, o motivo da
preferencia não está no objecto : e subjectivo

P0Quem diz motivo subjectivo diz vontade, diz


1 0 argumento era poderoso para a philosophia
de então ; de mais a mais era curioso de sobra
para generalizar-se e pass r â post ridaoe.
^ Passou e os escriptores de todas as línguas
modernas tem rendido homenagem a esse asno
que carrega ufano a Buridane sua lortuna.
H Citai o para comparações é das cousas mais
freu entes ; os exemplos formigam.
O que nem todos podem fazer e resolver o
problema ; para muitos é uma sphynge.
P Deus me livre, de atacar-me aqui a castellos
psychologicos para mostrar a decifração do
en|^ bem possivel que tivesse de«apparecido im-
teiramente a nossa locução se todos soubessem
solver a questão que ella rememora.
A celebridade nasce muitas vezes de te nao
conhecer o amago das cousas: é phenomeno
° bpo7conseguinle, quem quizer que dô voltas
ao argumento ; pouco se me da disso,
4G
Fiquem uns na primeira hypothese oufroc
acceitem a segunda. yy ’ outros
deixem%pUpe fonriQ í?,uderem Copiar nenhuma,
aeixtm- sc estai a olhar para ambas, que é assim
que ficou o nosso assumpto. ’ 1
T j :>''>í'^x3 d.» v is ta , lo n g e do
c w ' a coa o
Ha espiritos que se teem levantado contra essa
verdade ; nfio querem crer na iiiconsíaneia dos
homens como regra geral e íir .. a traduzir-se
no annexhn.
Enganam-se, ou miles tentam enganar-se.
Mais singular é que esta teima se requinte
ainda á theoria pared mal de que a ausência é
excellente meio de manier a amizade; a todos
o outros vieios junta-se aqui o do excesso.
E’ hem fácil combater taes prmcipios; é en­
ristar uma lança cujos botes nunca falir ram —
a sabedoria do povo.
Pôde, embora, Montaigne afíirmar que a ima­
ginação abraça melhor o objecto que busca do
que aquelle que está presente; a imaginação é
urna barquinha tao caprichoso e tao inconstante,
que não irá sempre buscar o mesmo objecto
afastado, e de um momento para outro lã está o
amigo esquecido.
Um individuo lembrou-se do sol de que nin­
guem se apaixona porque elle apparere todos os
dias e que só é apreciado de veras no mverno,
em que mais v ezes se esconde.
Sim, senhor; mas eu estou hern cerlo de que
não ba quem se tenha tomado de amores pelo
sol ; a questão não é de coração é de interesse.
Saadi que contou essa historia, mostrou-nos
também Mahomet reeommcndamlo a um crente
que não fosse adoral-o todos os dias para que na
frequência das visitas se não gastasse a sua boa
amizade.
Estes orientaes tem ideias 1
A moralidade da legenda é, para nós, bem
48
pouco airosa ao crente ou ao propheta : util en­
sinamento é o que nào parece ser. ?
Outros ainda disseram cousa parecida : mas
e certo que o povo deve saber mais no p o n t. do
que esses moralistas extravagantes ; e o povo diz
em todas as línguas cultas: longe da
do coraçao. ’ y
K nào só o diz agora como o disse sempre : nos
' . o s cancioneiros coevos da infancia da lingua
ja se acha este motte; nào é também difficil achai-o-
nos [nbhanx e trovas do bom tempo dos cavai?
Brair efíT'fleS) ll,lle mal8de un,a vez os barons
com ó,íe t V , y"\,X Se cal’P'rain da ingratidão
an d i^ m L r ’ I ' a"?aS °* ,,s<I®eciam, quando
andaxam poi longes terras a conquistar glorias
para essas ingratas. 1 ®
basian,e; ««wndo mau i&
\amos ai. íar em Propercio um verso de eme o
nosso dictado e traducçào quasi litteral: **
Quantum oculii animo tam procul ibit amor

q u e 'e r . Í Í S an PiH? JUS,ificar w ocluak :


nnvn os paizes e em todos os tempos o
E sta r em bom pó
Cortezãos I cortezãos! Mais loucos do que a
moda só elles teem sido.
Dionysio I de Syracusa era myope: seus
caudatarios faziam-se tão myopes como elle.
Francisco I de França, divertindo-se uma
vez em ver fogos de artificio, recebeu na cabeça
um foguete, que queimou-lhe uma parte dos
cabellos e obrigou-o a mandar cortar o resto ;
a còrte toda usou o cabello á escovinha.
Em logares afastados, em naçòes diversissi­
mas, em 'differentes épochas, através de todas as
mudanças e transformações, só os cortezãos não
mudam ; são sempre a mesma cousa an es ou
depob da nossa éra, na China ou a Allemanh*.
O conde de Anjou, Godofredo Plantagenet, fi­
dalgo de estirpe real, poderoso e ric >, elegante
e magnifico, tinha um pé disforme, descom-
munaí e cheio de excrescendas, como aquelle
pé que o mimoso poeta da Pata da Gazella
oppòe ao de sua heroina.
Força lhe foi por isso usar de uns sapatos
enormes no comprimento ena largura; não havia
outro meio de disfarçar aquelle aleijão. E zás...
de um momento para outro appareceram todos
calcados de sapatos enormes. .
Como parece ridicula esta historia nesta
epoc* a de sapatinhos de seda com saltos ver­
gados, que os minguam, e de h tinas Meiiés, que
apertam e diminuem o pê 1 . ,
pois as taes chancas estiveram no galarim da
moda por largo tempo, e no século XIV serviam
para determinar o grau de nobreza: as de um
principe tinham dous pés e meio; as de um
grande fidalgo, senhor de baraço e cutello, dous
s o

4 p i p ; x s : : i

S * - ’S « t E : s
4 5 S t o t 5 S7 )5 S S y 3 ''f“d“ *
Q uando s e am arravam cã es
com lin su
— ioa»
o
E os cães eram tão simplórios que se dei­
xavam ficar presos! A historia passa os limites
do inverosimil.
E’ preciso descobrir no passado um tempo de
tanta innocencia, que exclua até esse instincto
de gula no cão, que sente a linguiça a dansar-lhe
deante do focinho.
hevia ser, pois, antes da serpente do Paraiso,
porque então já havia maíicia.
_ Mas era necessario que então também houvesse
linguiça, o que a historia nega, e que fosse ne­
cessario amarrar os cães, no tempo da pureza
edenica, o que a logica repelle.
0 proverbio refere-se, portanto, a uma epecha
em que não havia coleira?-’ nem linguiças. I
Isto dá-lhe um sain* te especial, muito bem
cabido em uma phrase que contende com sal-
chicheiros.
Procuremos a origem da phrase, já que a da
ideia nos escapa.
O Sr. Merlin Cocaye. em sua Historia Maçar-

ãiÍíãi9ã^55ÍM^
ronica, traz alguma cousa que serve ao nosso
empenho ; a infroducção do liv. XX, tit. 2o.
apr 2 enta aos leitores embasbacados a descri peão
de uns reinos felizes, onde se passa uma vida de­
liciosa sem trabalho e com tal abundanda de
tudo que até se alam, as vinhas com linguiças.
Se Merlin invent u o dito ou colheu-o da
linguagem popular, não sei; o certo é que os
italianos adoptaram-o e dizem de u : logar en­
cantado— ri si legano le rili con le salcicie.
Da hi ao n -sso modo de dizer só vão duas dif-
ferencas italianos se referem ao
logar e nós ao tempo. Kssa difíiculdade não é
séria : esse logar existe tanto como existiu o
tempo ; nenhum tem direito á preferencia.
A segunda duvida é que elles falam de vinhas
e nós de cães : mas a linguiça ata bem um pro­
vérbio a outro; lia esse laço de união poderoso e
incontestável.
Passa, pois, em julgado que (eem parentesco
proximo e que descendem legitimamente da
Macarroneida de Merlin.
Um homem independente e seguro de si, um
liòmom que sabe o que faz, é um homem senhor
do seu nai iz.
Porque?
Sf- o lector não crô na iu portancia do nariz,
ha de lie u’ abysmado se eu 1lie disser (pie re­
presenta idle um papel importantíssimo na his­
ton a .
Chat s pyramidal ou arrebitado, o nariz tem
passad-' entre as ironias dos poetas, sobranceiro
a saborear uns incensos que usos tradicionaes lhe
offerees o de continuo.
Os orientaes levam-nos a palma neste culto ;
para elles ,mi nariz... é um nariz, isto é. o ponto
culminante do rosto, o que resume a pliysiono-
mia.
A legist içào mosaica prohibia receber para o
serviço religioso sujeito que tivesse nariz muito
pequeno ou muito grande ou adunco.
Se se considerar que o governo dos judeus era
iheccratico e, portanto, que o sem e religioso
era o mais importante de todos, resalta urna
prova poder*isissima do que valem narizes.
O principio tinha uma explicação . no typo
hebreu, o nariz conimurn era um nariz regular ;
individuo que o não tivesse as-im, trazia em si a
presumpçào d nào ser de raça pnra judaica, e
os estrangeiros eram excluidos da classe sacer-
^ A raça, pensava-se, traduz-se pelos traços
physionoinicos ; o que determina a physiono-
mia é o nariz.
O are *mento é incontestável.
No Cantico dos Canticos se encontra esta
-*'JL
phrase, que o poeta dirige n Item a m a d a : « Teu
nariz e romo a torre do Libano. »
Aa.. fique o leitor a scismar nas c o n seq u ê n cia s
da compara can, nem a procurar um simile para
o rosto em que se prende tal nariz. P
A t o r r e d o L í b a n o era o termo de uma serie de
comparacoes como symbolo de helleza e per-
Na phrase citada, o cantor destaca do rosto o
nariz como synthese do todo e, para cMmar
âquelle de perfeito, pinta o nariz como hello.
, ,rlllllnhando mais para os loyares onde nasce o
- I , emamtra-se a mesma ideia sobre o , a z
Nopom-oque explorailnres e missionários nos
commmii! aramdos nmmmes e dos tartaros uddu
re,;;Hl, a mesma in.por.aucU

11,1 e i e u ao a o une mp~


nos so paivciT coir. ;i t-.rre «lo l.ihano
'•■"■mosn pr.-t.,'!!,!.-! as honicmureiM .1 « » ,
! C !: : : ; “ ‘ ' r « .......... ™ '. ™ ‘

esulan.l'i',ÍMll’S'T,' ' CCOmu U1 a mulher de Gen-


h *'ra uma belleza ndebre • tW, o u i ,
aedes daquella terra . ’ ' ^dena dos
Ivita phrase tr.uisi.-r.o fa d l para a Gr,--
Cia , í.imiuos dos m'eyos * 1
I'ara n p m o a r l b i i . V . i a | | „ | | a(]P 0 MrÍ7 fj ,
muMimi impnrlaimia a a ‘ Ul3
extviilailo na sua r-ialaa,-,', | , Corn ,l"« 1V'Í
« * » - ....... b b j a,,xprps-
-lit lambam erifre dies n n,|p mareava »,
de mna pli.vsionmm», 0 »ne ' f-'Po
rosto. ’ hlL ua\a o cunho ao
real.1’”'0 ao nr,,';z aquilino—um nariz
pufjsgipgos nas snas doscripções da bei-
leza nunca o esqueceram e localisaram na cor-
recçào de seus traces a magestade ou a graça.
Na edade-média a penalidade ou os ódios
mantiveram essa importanda.
Xisto Y mandava cortar o nariz aos ladroes
convencidos ; esse signal correspond ia a uii,:1 es-
pecie de morte civil. pois não tram admittidos
nunca umis a empregos publicos e perdiam mui­
tos ou <.|uasi todos os sem direitos civis.
Os niusiilmanos cortaram o nariz a.os chris-
tãos e os (Ui via \ a tu salgados aos sultões.
lasse Iroplteu uinco <>ut‘ guardavam de -ua \in-
gauca, mostra que no nariz resumiam a persona­
lidade, como os indii s d America do Norte a. re­
sumem no s c a l p ou cabeíladura do guer.oiro.
Nos povos da Kuropa septentrional apertar o
nariz a alguém era maior insulto do que dar-lhe
uma bofetada; tanto que, se o esbofeteado come-
gnisse apertar o nariz ao seu c< nteiuh r, estava
vingado e não tinha, no duel lo que se seguisse,
nem a escolha, das arma:’, nci a pnMvciencta no
a; salto.
lassa ideia e os usos qm d Hl a origina r am - se ,
mantem-: o aimhi hoje ern muitas povoações da
Bretanha e da Imda'en a.
Oh ! um nariz !
Os japonezes ó que não levam tanto a mal o
negocio ; e o no.-n-o aperto de mão com toda a sua
significação de affecto e sinceridade é subsliluido
entre elles pelo aperlo dos narizes
Corr o elles o leem um tanto clia’o é possível
que esse costume fo&so esíabelecido como meio
de corrigir lenlameido o defeito; se asssni ó, é
força confessar que nada conseguiram.
Se quizermos metier o nariz em cousas de
Unguistica, veremos que a formula, das vaias na
Inglaterra é ainda hoje — l o n o s e , lo n o s e — ao
nariz, ao nanz.
o
Na Baixa Saxonia dizem a mesma cousa:
waxen, ab nasci i.
Sempre a mesma ideia de ridicularisar um
indivíduo, atirando-lhe o ridiculo ao nariz !
Entre nós, o homem mettido á hulha ou des­
apontado íica com um nariz depalmo; o homem
insolente arrebita o nariz; o que reage contra
qualquer provocação sente a mostarda subir-lhe
ao nariz.
Se elle tem tanta importância ; se tantas ge­
rações e tantos povos resumiram nolle a physio-
nomia, o sentimento, o caracter, tudo que con­
stitue o individuo, não é natural que ao homem
independente e seguro de suas aeçòes se cham e-
—sniJior do seu variz ?
Nào fica assim explicado o proverbio?
Lembro-me agora de que não necessitava fazer
uma dissertação historica para mostrar a origem
da nossa locução.
lia cousa ma s simples : a marca da escravidão
estampava-se outr'ora no nariz.
Prisioneiro de guerra que a tinha recebido,
cabia em incapacidade civil e pertencia inteira-
mente ao apresador.
Algumas nações, em vez da marca, punham
aos escravos argolas no nariz ; eram um sym­
bolo de escravidão perpetua.
Eis por que o homem livre, physica e moral­
mente, é senhor do seu nariz.
Entre essas duas explicações escolha o leitor a
que mais lhe agradar. Por. mim, penso que
acceitai uma e outra não tem nenhum inconve­
niente.
ãJ
E S tífc feó 1*5jüLll&l/ít 3>0 cl.Í8il)0
0 conego Felippe, que mereceu uma saudação
de Alvares de Azevedo, occupa logar distincto no
Pantheon da historia.
No drama immenso da humanidade os papeis
são variados como os a dores; uns celebri-
sam-se por altas virtudes, outros por crimes, al­
guns pelo ridiculo.
Ao conego Felippe coube symbolisar a pachor­
renta tranquillidade de espirito, que nem se
occupava em procurar a razão das cousas mais
simples, e cahia por isso em disparates curiosos.
Mas, Felippe de que? Esse homem devia per­
tencer a uma familia, ter um appellido pelo me­
nos. Oual é esse appellido ?
Mal volve-se uma geração sobre o seu tumulo
« para essa geração que o conheceu de perto,
•não existe sobrenome. ,. m
F’ nura e simplesmente o conego telippe.
Guerreiros, muitos dormem nos pampas, can-
gados*de um lidar glorioso; apostolos de cari­ »
dade, finam-se diariamente entre ^ ^ t .i d o s não
obscuridade ; ficam seus nomes esquecidos, nao
os renetirão nunca vindouios.
Mas o conego Felippe já está d e n o v o s
mortalidade, e de dia em dia ajuntam-lhe novos
florões â carapuça luminosa.
p a * » ™ que o ■-m
t7 1ãadanTel°queon seu‘espirito curtíssimo de-
pamva com ^solução de um
b k : o
nC t rcX a fabS e & admi-
rado:
5S

- F vmlr.de ; mas essa só lembra ao diabo.


Mu. is foram as occasiôes em que proferiu
es a phrase profunda ; mas ainda assim é nata
ral que algumas das historias que se puem
conla nao se tivessem dado com elle.
*' sestro velho que o povo reúna em tnmn
um personagem celebre Iodas as aventuras con
soantes a sua indole. ai5 con-
vá's°,'|l; . V í dl' " com psle c,,rin'io (vpo.
«4 - ; . ; ^ ahi v â 0 * *

uma gol leira mesmo em cima de s en ,?!


^ d e a g u a su c c e d ia m -se ^ ^ c a C m ^ !

r ^ - s e paciifieamenle a esperar que elIa Ve en-


Cada vez que chegava a esse ponto levanta
b r a s ■í “ t
compatível com esse ’l a b o r -,°t ° SOmno era in'
toda em claro. “ ’ atravessou a noita-

informava dl taa tlude" omafq™ 1 » se


e 0 meio empregado para remedial-" UCCedera

a aza do lado direito. 1 hlcar,u 9ue tivessem

desse lado q ^ d e r e Cficar Ta™ P-11fI°S0phia' é


guem a segura com 1 ^ ^ nÍn'
Afina. appareceu um caixeFro m i s ladino, que
explicou-lhe que bastava dar uma volta á chi-
cara, para que a aza passasse do lado esquerdo
para o direito
O heróe parafusou um pouco no caso e sa-
hiu-se por fim com a conclusão favorita :
— Esta só lembraria ao diabo.
E a da carapuça! Essa é que é soberba.
— Eu deito-me, dizia elle, e só depois de
deitado é que apago a vela, porque nào gosto
de andar pelo quarto no escuro. For isso, uma
vez mettido entre os lençóes, sópro a vela ; mas
como o sopro nào chega lá, pois a vela fica em
uma mesa afastada, eu atiro a carapuça contra ella
afé apagal-a.
— Mas então dorme sem carapuça... obser­
vou-lhe alguém.
— Não, respondeu o conego Felippe ; depois
de apagada a vela, eu levanto-me, vou buscar a
carapuça e volto para a cama.
— Pois então, era mais simples soprar logo a
luz e ir deitar-se, s m estar com esse trabalho
todo.
— Tem razão; mas isso é cousa que só lem-
èrava ao diabo.
Com a bençain paternal do notável prebendado,
■está a nossa"iocuçào correndo mundo e irá por­
ventura até a cosummação dos séculos.
Na applicação, é que ha alguma cousa a obser­
var-se ; ninguem a empregue fera do sentido
ir mico ; em que pese a tão conspicua aactori-
dade, o diabo não tem tido grandes ideias, e não
ha por abi leitor de Ponson du Terrail que lhe
não leve as lampas nesse ponto.
Não foi esse o menor dos esconjuros que
elle soffreu ; depois do conego Felippe o que só
lembra ao diabo é por força um disparate ou um
absurdo de marca maior.
O cJe ü i n : j o a d i vi n lio u
Meus sustos do criança I
Como eu ti «ha medo desse dedo minimo im­
portuno e tagarella, que conta todas as nossas
travessuras, que nos fíesmen e em tace, que adi­
vinha quanto pensamos e quanto fazemos 1
O dnhnho, para os pais e os mestres, ó urn
phantasma que le antam deante da imaginação
das crianças; e elle, lào pequeno, torn- umas
propo» çoos gigantescas e perde o seu ar de inno-
cencaa para tomar o aspecto carrancudo e renul-
sno de um delator, que nào dá tréguas nem
cansa na espionagem.
. 0 ule;i1 ,!(' policia astuta -' segura:
instituição que se -azasse em taes moldes' roda
deixava a desejar.
C a criança medita no caso quanto é licito
meddar nessa nl .de, e admira se de que o seu
dedmho seja mudo e nada lhe revele, quando os
outioN Mo (ao tal adores e táo promptos em
contar as novidades.
Se se pudesse escrever a philosophia singela
de um cerebro in!until, seria um trabalho bem
curioso e bem interessante.
Depois vai-se sabendo por experienda que o
tal dedmho nunca proieriu uma palavra e foi
simpl s lesta de (erro das observações alheias •
vai-se conhecendo que o olhar, o gesto trabem
o culpado e suo os unicos delatores das antigas
travessuras e começa-se a applicar ao que se
tâo" em vil :ÚS’ P°'' *"***>’ a « u trV a
— Foi o dedinho quem adivinhou.
„ . s cria)içw grandes instigam a curiosidade-
alheia corn o que assusta o espirito das pequenas.
m m
;m

61
Mas donde vem o proverbio ?
Alguns sábios francezes pretendem para a sua
patria os direitos de invenção, e affirmam que a
palavra antiga de, que se traduziu em franeez
moderno por doigt, dedo, é uma modificação de
Dex ou Dicx, com que os filhos dos gaulezes
designavam e os dialectos do sul da França ainda
designam a Deus.
A locução viria, portanto, a significar : foi o
meu deusinho, o meu espirito familiar quem
m’o contou.
E dão com isso largas á erudição historica
para mostrar-nos Numa Pompilio, inspirado
pela nympha Egeria, Mahomet por uma pomba
e Sertcirio por uma corsa; e concluem que o dito
proverbial é umarec rdação desses factos, guar­
dada nos archivosda tradieção populare aecom-
modada à nossa epocha, em que se não crê em
discurso, de corsa, nem as Egerias inspiram
cousa aproveitável.
Esses sábios sabem tanto !
Mas, se attendermosa que o proverbio é anti-
quissim » na nossa lingua, onde a palavra Deus
nunca se poderia ter corrompido em dedo; se
considerarmos que o mesmo se dá em outros
idiomas, onde se emprega a mesma ideia, fica-se
certo de que,se foi o dedinho quem lhes ensinou
tal etymologia, mentiu á linguistica e ao bom
senso.
E meditando-se mais um pouco, vê-se que o
dedo mi! imo é o unico que entra nos ouvidos; %
que é chamado até, por causa disso, dedo auri­
cular ; e comprehende-se que desse privilegio . '!
lhe tenha resultado a imputação de denunciador.
Pois esses sábios ignoram isto?
•ví
I^odr*a d© esoandalo
Havia em Roma junto ao portico principal do
Capitolio, urna pedra esculpida em fôrma de lean
era a pedra de escandalo. e °‘
Os bancarroteiros, os devedores dolosos eram
obrigados a assentar-se nella apenas cobertos
oom um manto e a proferir por tres vezes a for­
mula cedo bona—eu cedo os meus bens—-batendo
outras tantas com o anus na pedra.
Realizada esta cerempnia, não* podiam mais
ser perseguidos pelos credores nem presos n X
nulas antigas; mas ao lado dessa garantia a

depor como testemunha. J ’ na pocha


fní . sta ffei?a (1(JS antigos romanos estendeu-se por
h°J'e em Padua »
Nasceu dabi a nossa locucâo proverbial rmp

uma sociedade. p d0 escandalosa em


A l i i ó q i r e e -s t á o I>u.as i U s*
Isto é alii é que está a diíiiculdade.
Verdadeiro busílis conheço eu um neste mo­
mento : é apresentar a origem do proverbio.
As profundas locubraçòes dos philologos deram
comrnigo nesta indecisão.
Andaram a fazer excavaçôes para encontrar-lhe
uma raiz grega, foram ao latim, ao francez, e
disseram umas cousas que isoladas valeriam
muito, mas que juntas prejudicam-se mutua­
mente.
Foram ao grego e descobriram que a preposi­
ção epi e o substantivo salos, cuja combinação
âá o radical de busilis, soariam em portugüez
litteralmente debaixo da agitação, isto é, na du­
vida, e o nosso adagio referir-se-ia a esse estado.
Ora muito bem ; mas essa explicação presup-
põe uma grande corrupção de linguagem e era
natural que as linguas intermediárias conser­
vassem algum vestigio della, o que se não dá.
Outros pretenderam que busüis ou busiris,
como escrevem, seria uma modificação do velho
verbo bulir, atirar ao alvo, e alludiria ao ponto
capital de uma questão que é preciso tocar com
certeza para poder solvel-a.
Terceira hypothese, e esta é uma anecdota:
Um estudante, sendo examinado em latim, en­
controu no texto as palavras in diebus illis, es-
criptas de tal maneira que die ficara no extremo
de uma linha e o resto passara á seguinte.
À principio a versão affigurou-se-lhe a cousa
mais simples deste mundo : — In diey traduziu
elle, no dia...
Passou á linha de baixo e ahi é que foi a dif-
ficuldade. aquelle terrivel busillis era a avalanche
04
a fechar a picada da montanha ; rebelde a toda a
versão e a todo o sentido, não havia meio de pas­
sal-o para o portuguez, nem para qualquer outra
lingua.
Aquel la palavra tinha de ficarem latim : es­
tava esc ripto.
Nem houve outro remedio : o p bre rapaz não
pòdo achar sahida áquelle embaraço, í\u talvez
reprovado, abandonou por isso a carreira litte­
raria e guardou até a velhice a memoria daquelle
terrivel busillis, que lhe fizera tantos damnos.
Nas longas noites giadas dos Janeiros (note-se
que o facto aconteceu em Coimbra ha mais de
um século), divertia os amigos moços e desafiava
as rcílcxòes dos velhos narrando minu iosamente
esta historia extraordinaria ; a tradicção reco-
lheu-a, e Iransmittiu-a de pais a filhos, como um
appello á posteridade que tinha de julgar os jul­
gadores do estudante.
A acceilar-sc esta opinião, o vocabulo deve es­
crever-se busillis.
O peior é que surgem os historiadores com
uma quarta etymologia.
Butyris era um salteador famoso da Hespanha
ant ga, que fazia pagar cara a peagem nos terri­
tórios que infestava.
Floresceu esta triste flòr no tempo dos roma­
nos, quando não havia ainda um corpo de ur­
banos, que lhe pudesse dar uma prisão em fla­
grante e mandal-o para a cadeia, nem um jury
que soberanamente o condemnasse a galés per­
petuas com doze assignaturas.
O ladrão aproveitou bem o seu tempo e trouxe
em contínuos sobresaltos os bons habitantes da
Iberia, que antes queriam ver o diabo do aue
elle. ^
Esse sobresallo tornou-o popular entre os
povos da peninsula e o nome do depredador
symbolísou para olios todos os males quo podiam
receiar.
Achar-se em uma grande difficuldade, em tran­
ses apertados, foi o mesmo que achar-se perto
do Sr Busyris.
A solução impossível de uma situação critica
traduziu-se íiguradamente em passar por onde
estivesse o roubador :
— I odia-se bem tentar esse recurso : é o unico
que resta; mas, como executal-o? Ahi está o
Busyris.
E vai esta hypothese reunir-se ás já apontadas,
e mudar mais uma vez a orthographia da palavra.
Critiquemos tudo isto.
Busilis bem podia vir de epi salos.
Podia, não ha duvida alguma.
Mas o peior é que isto presuppõe uma corru­
pção em que perdeu-se o e, mudou-se o p em b,
o i em w, e as duas vogaes do substantivo em
dous ii. Isto tudo junto é carga pesada de
sobra para a consciência de um philologo. Já
dei atraz esta razão de duvidar e não reconsi­
dero a minha sentença.
a
A crença de que busilis venha de bulir é tam­
bém das taes que se não podem queixar de uma
repulsa
A primeira hypothese refere o dito ao sujeito,
esta ao objecto.
O busilis tanto pôde estar no espirito do pri­
meiro, como na substancia do segundo.
Ora, isto produz já uma fluctuação, em que
não sabe a gente para que lado voltár-se.
Por conseguinte, o melhor é deixar disputarem
á farta os apologistas de uma e outra, e rejeitar
ambas.
A historia do estudante, essa, sim senhor, é
muito interessante e satisfaz amplamente ao pro­
gramma.
60
Mas tem por seu lado o inconveniente de fazer
surgir outra questão.
Os hespanhóes também falam no busilis; foram
aprencle'-o na legenda de Coimbra ?
E aquelle salteador que se enfumaça de ter-nos
legado esse portentoso proverbio e ’que, entre­
tanto, é tao obscuro que bem poucos o conhecem f
Pois isso é natural?
0 busilis continua, portanto, nesta questão,
apezar de todas as philosophias imagináveis, ou
mesmo por causa delias.
Outra observação: nós dizemos busilis e na
duvida é mais prudente escrevei-o euphoni-
camente ; Moraes vai com a historia do exame e
dobra o l ; Philinto Elysio não diz que bandeira,
segue e escreve busiris.
Entenda lá quem puder.
Verdade seja que resta um ultimo recurso.
Como os hespanhóes usam da mesma locução,
é natural que lhe assignem um motivo razoavel.
Vamos alinal desatar esse nó gordio.
Tenho exactamente em mãos o Diccionario da
Academia dc Madrid, que é auctoridade em ma­
téria destas.
Vamos a vêr o que diz.
Diz pura e simplesmente que a palavra busilis
e uma invenção do povo.
Ora, morreu o Neves.
H espanliolada

Em que pese ao radical, esta palavra não


nasceu na Hespanha ; nunca transpoz talvez a
fronteira, nasceu e vingou em Portugal,onde fez
desapparecer a velha fanfarro nada.
Monumento dos velhos odios entre portu-
guezes e hespanhoes, este vocabulo estendeu-se
pela Lusitania toda, popularisou-se e, passando
o Atlantico com a pimenta do reino e os vinhos
do Alto Douro, naturalisou-se também entre nós.
Os portuguezes não queriam admittir bravura
nos hespanhoes ; a bravata, a ameaça pomposa
que não se ousa cumprir, o arremedo de leão
que acaba em humildade ou fuga, são caracterís­
tico do hespanhol quando o pintam portuguezes.
& As guerras continuadas nas raias dos dous
paizes, a dominação dos Felippes intrusos e a
recente questão do iberismo, perpetuando o velho
ciume, teem de certo modo consagrado o termo,
que nasceu delle e vive com elle.
A anecdota achou ahi vasto campo para ex­
pandir-se e formigam as historias das exage­
rações atrevidas dos hespanhoes.
Um fala de sua cidade natal,que tropas inimi­
gas tentam invadir:
— Aquella cidade é inexpugnável / não a to-'
mariam nem os anjos, nem Deus.
— Nem Deus ? pergunta-lhe surpreso um
ouvinte.
O homem medita um pouco e afinal concede:
— Deus, póde s e r; mas sempre havia de
custar-lhe um pouco.
Outro exalta as proezas de um de seus avós^
tão forte, que só matou-o Deus e por traição.
68
Aquelle encarece a sua força muscular, que se
atreve a tanto, a tanto que, se o mundo tivesse
argolas, havia de suspendel-o por ellas.
Este outro conta que fazia fogo contra os
inimigos em uma peça tão grande que entrava
muitas vezes a cavallo pela alma dentro ; e o
camarada, cujo testemunho invoca, declara que
nunca o viu penetrar nella, porque exactamente
nessas occasiòes sahia pelo ouvido.
E’ a taes hyperboles, innocentes ou ameaça­
doras, que se dava o nome de hespanholada.
Falo agora a portuguezes.
Vinde cá, meus amigos, áqui, aquem do
Atlantico, onde não nos ouvem hespanhoes e
conversemos com toda a franqueza.
Os moralistas já vos teem prégado á porfia,
como Santo Antonio aos peixes, que esse odio
de povos irmãos é uma cousa iniqua e detestável,
eque deveis desterrar de vossa linguagem esses
termos com que vituperaes por um epitheto
affrontoso a uma nacão
M inteira.
Nào quero insistir neste ponto.
Falo-vos de cousa mais directa ; atiro-vos um
argumento ad hominem.
Se os hespanhoes chamassem ás bravatasportu-
guezadas, não estavam em seu direito ?
E nós outros que somos imparciaes na con­
tenda, nào haviamos de adoptar esse vocabulo ?
Anecdotas, se vamos a ellas, é bem conhecida
a do soldado portuguez que fazia uma exigencia
a cem hespanhoes, obrigava-os a pagar una tanto
por passarem a fronteira e ouvia-os já afastados
dizerem com firmeza : « Assim como somos
cem, se foramos duzentos, podiamos bem dar
uma lição âquelle maroto.
Não será isto uma hespanholada ?
Hespanholadas e das melhores gravaram os
vossos nas lousas frias dos tumulos :
Aqui jaz Simon Antom
Que matou muito castellom
E debaixo do seu covom
Desafia a quantos som.
Hespanholadas esculpiram em seus monu­
mentos e até os vossos doutos historiadores não
ficaram isentos delias
Aquella façanha do soldado portuguez que,
perseguindo a um mouro em Africa e não
tendo mais balas com que carregar a espingarda,
arrancou um dente, pol-o na arma e matou com
elle o inimigo, que outro nome terá que não o
de hespanholada, para quem considera o custo
com que o boticão dá conta de tal recado?
E nos vossos diplomas mesmo, portuguezes...
aquelles titulos dos reis, senhores da conquista,
navegação e commercio do orbe todo, detalhado
eographicamente, não são exemplos dessas
f yperboles originaes ?
Agora muito á puridade; um dos vossos es-
criptores já observou esse defeito e teve o arrojo
de dizel-o ; este depoimento é importante ; é
um reu que confessa.
E’ Barbosa quem fala :
« Os nossos antigos em tudo queriam estron­
dos e façanhas extraordinarias: cada bote de
lança havia de derribar uma muralha e cada
golpe de espada partir um monte. Por isso, nas
.batalhas com os mouros, morriam aos tr^sentose
aos quatrocentos m il; favor é dos chronistas dei­
xarem alguns com vida para levar as novas do
estrago. A cada passo, mudavam os rios de cor,
porque, em logar de agua, os faziam correr de
sangue, e com estas narrações alegravam e sa­
tisfaziam ao povo.» Barb. Catalogo das Rainhas*
A h ! portuguezes, vós sois tão hespanhoes coma
os castelhanos!
A s s ia m a r * c io o r u z

Antiga mente, e hoje mal se vai perdendo o


uso, qm m não sabia escrever assignava os do­
cumentos em que era interessado ou testemunha,
as cartas e outros papeis, com uma cruz (f), ao
lado da qual se indicava a quem o signal per­
tencia. ‘ L
A simplicidade dessa marca, que todos podem
traçar e em que é pos ivel dar sempre um cunho
que só reconheça qmmi a tez e escape aos outros,
lel-a adoptar de pref» rencia e até muitas vezes
empregar como guarda ia firma dos que liam e
esore\iam.
Km antigos documentos encontra-se muitas
vezes uma r n i z , em cujos ângulos acham-se as
letlras da assignatura, dispostas de modos d i­
versius mos.
Mas o mais eommum é que este signal fosse
usado pelos analphahetos. Por isso, passando do
real ao figurado, nós dizemos a s x i g n a r d e c r u z
por assignnr sem ler, subscrever áquillo que se
não sabe o que é.
Houve quem affirmasse que o appellido C í u z
foi tomado por uma antiga familia portugueza
(pie, não saliendo escrever, adoptara essa figura!
Sp não haveria descendente de
portuguezes .lo século passado que não usasse tal
sobrenome. C m z c * seriam todos os moradores
de Portugal, Brasil, India e conquistas, e não
sei até se também os filhos de outro- paizes.
Uouve tanta ignorância outr’ora que ninguém
precisa ir muito longe para encontrar urif dos
seu-, ascendentes a traçar uma cruz debaixo de
umas regras que não entendia.
Km certa epocha, só os frades sabiam ler.
Mas estes... nào deixaram descendenda.
Oan to sio c y sn e
Buffon, o poeta dos naturalistas, iegou-nos.no
meio de suas paginas inspiradas, uma verdadeira
obra prima sobre o c a n t o d o c y s n e :
a Os antigos não se tinham contentado com
fazer do cysne um cantor maravilhoso : entre
todos os entes que estremecem ao aspecto de
sua destruição, só elle cantava em meio da
agonia e sons melodiosos eram o preludio de
seu ultimo suspiro : proximo a expirar, diziam
ellcs, atirando á vida um adeus triste e tocante,
desferia o cysne essas nolas tão suaves e com­
moventes, que, como ligeiro e doloroso mur­
murar de uma voz baixa, plangente c lugubre
formavam-lhe o canto funebre : ouviam-o, ao
romper da aurora, quando o vento era calmo e
o mar socegado ; tinham visto cysnes morrerem
entoando seus hymnos funerarios.
Nenhuma ficção na historia natural, nenhuma
fabula dos antigos foi mais celebrada, repetida
e acreditada do que esta; apoderou-se da ima­
ginação viva e sensivel dos gregos e poetas, e
oradores e até philosophos adoptaram-a como
um; verdade agradavel de mais para admittir
duvidas.
Perdoemos-lhes suas fabulas, porque eram
amaveis e tocantes, valiam muitos tristes e aridas
verdades, eram doces emblemas para as almas
delicadas.
Os cysnes, incontestavelmente, não cantam sua
morte ; mas sempre que se falar do ultimo vôo
e dos ultimos brilhos de um bello genio prestes
a extinguir-se, ha de-se rememorar com senti­
mento esta expressão commovente:
« — Foi o canto do cysne. »
72
Ha mais alguma cousa a dizer : o canto do
cysne é aspero e desagradavel; é um grito rouco
e desharmonioso como o dos patos e ganços.
Plinio e lodos os naturalistas, depois delle,.
teern feito esta observação, sem conseguirem des­
truir a locarão proverbial.
A razão é simpl es, pila 6 filha de uma lenda,
que data dos mais antigos tempos da Grécia.
Uma tradição conservada por Platão affir-
mava que Orpheu fora metuuiorplioseado em
cysne.
Hess,! transformarão que se at (ri bui a ao poeta
cujo nome syntheíisa uma geração inteira de
cantores nascera o preconceito vulgar, habil­
mente apro\eil.ulo em outras legendas pos­
teriores.
Dizia-se mais tarde que, quando Platão foi
pela primeira vez á eschola de Socrates, o philo­
sopho vira um cysne sahir do altar de Apollo,
vir pousar-lhe no seio e elevar o vôo pira o ceu
entre melodias arrebatadoras.
Corn essas poeticas históricas, que se trans-
miUiam de edade em edade, era natural que se
arraigasse o e.ro zoológico e dominasse a bella
expressão—canto do cysne.
O ultimo trabalho de um genio, a ultima pro-
(lueçao de um escripíor l m esse nome.
O celebre soneto de Hocage :

c,S0n 0[ ,l,r*? (le *,ío' t’Alverne, pregado na


p1p • j S. f-edro de Alcantara, e a se ti mental
elegia de Alvares de Azevedo
Sc cu mon'cxcp amanho

sao seus ctuilox d o cijsnc.

Se a suenda zoclogiea dá cm terra com todo


esse castello lendário, ha de çe durar o provér­
bio, emquanto houver poesia e os poetas do
futuro poderão dizer delicadamente como La­
martine no seu Canto do poeta moribundo :
Chantons, puisque mes doigts sont encore sur la lyre,
Chantons, puisque la mort, comme au cygne, m’inspire
A u bord d’un autre m ondeun chant melodieux.
P a g a r o pato

Os francezes dizem porter la pale au four por


solirer o trabalho de que outrem colhe o pro­
veito ou pagar o mal que se não fez.
Os nossos lexicographos vão buscar nessa lo­
cução a origem da nossa e consideram pato como
nesse caso?"'10 ^ mai ’• só “ .prgada
A ser isto verdadeiro, aquella historia que
contam de ties rapazes que mandaram preparar
um pato em uma hospedaria, e quando chegou a
occasiao de saldar a conta, disíizeram-se em
1 tenções, porfiando cada qual em não consentir
que os outros pagassem, e tantas que afinal foi
o cmven-o da casa quem pagou o p ilo, não será
existia? qUe Uma Z exijIica^ ° do dito que já
Seja como for, no século era eroniaW n
frequentemente na linguagem familiar e já Unha
penetlado na litteratura como o abona Sá de
Miranda em sua satyra 3a.
dfilrm !1? f f ' ' 1 -S6r; coin certeza muito antes
le íoimai-se a língua portugueza, já os sin nlo-
ios pagavam o pato pelos que o não eram *e a
língua nao podia ao formar-se deixar de render
culto a essas sabias creaturas com uma expressão
espertófn" CaSSe 6586 lribut' d°*
f

C a ste llo s na H espantia

Diz -se também - f a z e r c a s t e l l o s n o a r , expres­


são que se explica por si mesma.
E' até mais classico dizer assim ; mas o uso
tem introduzido a locução franceza, e a origem,
tirada da historia da peninsula Ibérica, torna
razoavel e logico o seu emprego.
Deixem que o povo finja ao rnenos saber his­
toria : não é cousa que prejudique á sua tran-
quillidade.
Um homem póde nascer na China ou no Perú,
na Siberia ou na Patagonia; póde ser tão rico
que não saiba contar a sua fortuna, ou tão pobre
que nem tenha um leito para dormir : uma ri­
queza hade ter sempre — castellos na Mespanha.
São bens de raiz que não se fixam ao solo, I
immoveis que um sopro derruba, propriedades I
que não rendem.
Pouco importa! Aquelle paiz afortunado tem
logar onde todos edifiquem sem custo e sem
capital.
E acontece até que os que menos trabalham,
os que passam os dias scismando ao sol e con­
templam as estrellas á noite são os mais impor­
tantes proprietarios de castellos ali.
E’ a unica difíerença o maior ou menor numero
defies; te'-os é para a humanidade uma lei tão
fatal como esta outra - viver.
Laponio ou cafre, todos teem seus castellos
na llespanha, monumentos que caliem conti­
nuamente, para serem logo substituídos.
E não é de hoje : data dos primeiros tempos
da edade méd a.
Quando os mouros se assenhorearam da Hcs-
\0 -1o' ' N-i■■' o. ’"■n\
d<?v V '
ca EPbUÓCA ; r
o
v ' *'° üe j
76
panha, D. Pelaio e seus companheiros, heroicos
Jeremias, transportaram para as gruttas de <’ova~
donga a arca s nta das tradicções antigas e come­
çaram, reconquistando palmo a palmo a terra
cie seus maiores, essa Iliada de cinco séculos, que
tinha de terminar em Granada.
Hude foi o começo: cada ;entativa irritava os
mouros e os mouros não eram de meias medidas:
arrazavam cidades e castellos, sem deixar pedra
sobre p^dra. r
Nessa sórie de luctas tenazes, castello que se
ecli!ica\ a, nao via longos annos ; os estilhaços da
primeira explosão de cólera que arrebentasse
perto destruiam-o logo.
Não valia a pena edificar então: as grossas
paredes, as imponentes fachadas eram ephemeras
como as rosas. ^
Urn castello na Hespanha era nesse tempo
como tu maça ; durava apenas momentos.
Ivis a origem do proverbio.
Ha, porém esori tores que seguem outra ver-
sao e per tendem que havia uma lei na Hespanha
probibmdo aos nobres levantarem castellos, y sto
<]ue esses mam servir de praça de armas para os
ui visores•
Um castello na Hespanha era nessa e ocha um
põK aL r C
0USaq,le na° exi8tia nera se
Na() sei o que ha de verdade sobre essa lei
n.,mca/ 01 apontada; mas é certo que ô
í loc,u;ao Proverbial é antes o que indica
aprim eiia versão; e é com esse sentido que ella
apparece no Romance da Rosa dos mais an f.W
monumentos da cavallaria. ant,g0S
fardo aeanU?i fÔ-r ’ ‘1 d:,ta é Prec*sai e sobre o
lacto capital mio ba contestação: o proverbio
romnrpT’UI!í<;a° da Peninsula Pelos mouros.
Uompieliende-se que se tivesse generalizado
logo : esses tão frágeis monumentos de pedra e
cal associam-se bem no espirito dos planos que
a imaginação vai formando com todo o esmero,
e que desabam a um ligeiro pensamento da vida
real, no momento em que vai contemplal-os
Scltisfôl tcL
E a vi<la, o mundo todo não trazem, em todas
as s as manifestações, em tudo e por tudo, uma
serie de castellos na Hespanha ?
Mme. de Villars, que não gostava da Hespanha,
obrigada a estar em Madrid, escrevia para Paris :
— Quando nós estamos em França, gostamos
muito de levantar castellos na Hespanha, mas
quando nos achamos na Hespanha, não ha von­
tade nenhuma de fazer taes castellos.
Fidalgo de meia tigella
Os nobres de outr’ora não o eram só nashon-

iseneã^laTS| i n r er0,S0n priviIegios- %uravam a


tos, eíc. t,1S 6 talhas’ a moradia, alimen-
porque a nobreza era mais ou menos im
fe rv id ®;nre0sií?lnme
seruços prestados, as * ?nti?uidade da estirpe
tensas e pensões e os
variavam
graduando-se pela mesma escala. ’
os ípie sen i?»f n^anl!me^ °.s que cabia a todos
os que sei viam ao rei, nao importava em vanfa
gens eguaes para todos. p vanta'
Conforme a nobreza e o cargo dava .«o in^r,
oapr“ o com 1 T um',f.raeão correspondente, ou
f ú f á K ™ 1 a °btlvessem 1uando residiam

outros*11
«m ?:
ía " ',,e‘ade da ra£ao concedida aos
s i d ^ l e l lemp0’ em 11116 se creditava na neces-
S i & ~ emnUPUeeZa d° “ "*»* aZ““>
dc meia geílà ra “ m e rm o d V d im " * 0
U
applicava aos n o b m d e ™cente
mento. da aP ee de
tnte üata X qUe 86
pouco

n j e * . " 6 1 seu a,cance.


ficou-se e um homem de poucos mefoTe" m°dl'
merecimento se m n lifirf 8 mei,os e Pouco
gella. qualiíica de meia
As cozinhas reaes, na falta de outro titulo, po-
dem gabar-se de ter legado este proverbio á his­
toria.
D. Maria I, a Louca, inventou outra classi­
ficação para os pequenos fidalgos, em que não
quiz tomar por base a tigella.
D. João VI foi algum tempo facil em crear
fidalgos ; não havia saloio nem. labrego que lhe
offerecôsse um sável fresco ou um casal de coe­
lhos que não voltasse dali com armas e brazões.
A rainha mãi, que não podia se conformar
com a grandeza de nobres tão recentes, chama­
va-os sempre: os fidalgos de João.
E nunca lhes deu outro nome.
r>ar* pallia

lh e °T o u % lh trhmente a eXpreSSã0 valSar :


° s etymologistas das ruas teem dado uma
falsa sigmlicação ft phrase, supprindo erronea-
mentea ellypse e dizendo: - J o dou palhas a
A locução prende-se, entretanto, ás mais an-
tigas phases da symbolica do Direito.
J primeiro emblema da soberania do noder
que apparece na historia, é tirado da a r v o r e 7
tira ■ °S ''"izes administravam jus-
Y*a ’ 0 c-jado dos pastores primitivos, emblema
do mando sobre o rebanho, transform ' sé no

JdeScadVumMa° ^ eslabelecer e defender o direito

como nos lictores de Roma.- mnccionario,


A essa , rimeira phase dosymbolismo hiridlno
oPrendeni-se os signaes de tod.4 a s t h ^ n í r e
As investiduras fazem-se pela vara.
As declarações de guerra, as tre»uas são nni-
ellas representadas. ° as sao Por
entres f u m f e l» ’ aspa.rtes ««tractantesdividem
como n e X f do ®Cadauma guarda um pedac™
que seímpae. d° CUmpnmento das obrigações
A technologia juridica tem nesses usos amplo
manancial: delles se derivam os termos mais
vulgares da linguagem do foro.
Uma transformação desse mesmo symbolismo,
faz da palha, penhor da estipulação, um emblema
do juiz que deve mantel-a.
Onde quer que a apresentem, a ficção suppõe
presente a auctoridade ; quem quer que a traga
comsigo, constitue-se mandatario e orgam da
vontade do julgador : é a ideia que se liga á vara
do meirinho.
Para as citações, bastava apresentar a palha
do juizo, a cuja presença eram chamadas as
partes.
Na concessão ou denegação defla, manifes­
tava-se o pensamento da auctoridade.
Dar palha a alguém, era um principio do re­
conhecimento do seu direito; era consentir que
em nome do juiz se chamasse um terceiro para
responder aos termos de uma demanda, ou li­
vrar-se de uma accusação.
Quando, porém, o juiz entendia maliciosa a
intenção do auctor, ou fúteis os motivos de
querellar, repellia-o do juizo: recusar-lhe a
palha era destruir a acção pela base, não per-
mittindo que se fizesse a citação.
Na linguagem forense, de envolta com uma
serie de expressões metaphoricas ficou a locução
proverbial; não dar palha a alguém era recusar
ouvil-o, não dar importância ao que allegava.
O povo adoptou-a com o mesmo alcance, e
applicou-a com tal frequência no seu phraseado
vulgar que ã primeira vista é difificil reconhecer
na phrase apparentemente rasteira, a sua origem
historica e o symbolo philosophico a que .'■e liga.
Quantas outras não estão no mesmo caso 1 #
Ha, entretanto, alguns lexicographos que deri­
vam palha do palam latino, e pensam que a_ lo-
cução dar palha significaria o consentimento
para que se publicasse o direito ou accão de
alguém.
ii • * -se uma etymologia e tor­
cer-lhe a significação quando factos historicos
incontestáveis firmam a accepcào metaphorica da
palavra.
Não \ ale a pena dar tantos tractos ao espirito
para colher o erro em resultado. 9
Aqui d’e l-r e i

Eu abro o livro V das Ordenações e encontro


esta disposição no titulo XL1V :
« Ninguem seja tào ousado que em ruido ou
briga que levante, chame outro appellido, salvo :
A qui d’el-rei. E o que outro appellido chamar,
seja degradado com prégào na audiência, por
cinco annos fóra do logar e termo onde isto
acontecer.»
Este grito com que seappellava para a protec­
ção e justiça do soberano apparece em escriptq-
res antiquissimos ; data certa é que não sei assi-
gnar-lhe.
Os francezes dizem haro! contracção da for­
mula com que os normandos invocavam o nome
prestigioso de Rollon : Ha Rol...
Pelos geitos, o duque da Normandia era tão
fatal aos criminosos, que só o nome os espan­
tava: foi mesmo este o pensamento que fez ado­
tava a expressão.
Mas, em Portugal, de quando datam os aqui
d’el-rei ?
Essa disposição da Ordenação, bem amalysada,
deixa ver que se teve em vista impedir que se
pedisse outra qualquer protecção.
Isso presuppòe abusos, que só se podem en­
tender com os senhores feudaes ; como estes ti­
nham direitos de administrar justiça em suas
terras, era natural que o seu nome se invocasse
contra os criminosos.
Orei, cioso dessaprerogativa que a noüreza
lhe disputava, só poderia ter-se apropriado
delia quando conseguiu dar um golpe seguro nos
cuçao dar palha significaria o consentimento
para que se publicasse o direito ou accão de
alguém.
^1 forçar -se uma etymologia e tor­
cer-lhe a significação quando factos historicos
incontestáveis firmam a accepção metaphorica da
palavra.
INão vale a pena dar tantos tractos ao espirito
para colher o erro em resultado. 9
Aqui &’el-r*eJL
Eu abro o livro V das Ordenações e encontro
esta disposição no titulo XL1Y :
« Ninguem seja tão ousado que em ruido ou
briga que levante, chame outro appelltdo, salvo :
Aqui d’el-rei. E o que outro appellido chamar,
seja degradado com pregão na audiência, por
cinco annos fóra do logar e termo onde isto
acontecer.»
Este grito com que se appellava para a protec­
ção e justiça do soberano apparece em escriptq-
res antiquissimos ; data certa é que não sei assi-
gnar-lhe.
Os francezes dizem haro! contracção da for­
mula com que os normandos invocavam o nome
prestigioso de Rollon : Ha Rol...
Pelos geitos, o duque da Normandia era tão
fatal aos criminosos, que só o nome os espan­
tava: foi mesmo este o pensamento que fez ado­
tava a expressão.
Mas, em Portugal, de quando datam os aqui
d’el-rei ?
Essa disposição da Ordenação, bem analysada,
«me
deixa ver que se teve em vista impedir que se
pedisse outra qualquer protecção.
Isso presuppõe abusos, que só se podem en­
tender com os senhores feudaes; como estes ti­
nham direitos de administrar justiça em suas
terras, era natural que o seu nome se invocasse
contra os criminosos. .
Orei, cioso dessaprerogativa que a non reza
lhe disputava, só poderia ter-se apropriado
delia quando conseguiu dar um golpe seguro nos
84
grandes barões que lhe ensombravam a auctori-
dade.
E licito, portanto, acreditar que essa formula
pela qual se pedia a protecção do rei em face
das aggressòes de que se era victima, só come­
çou a generalisar-se e porventura a ser adopta-
da, quando D. Joãol, o Mestre de A viz, cerceou
os privilégios dos nobres e collocou acima delles
as prerogativas da coroa, com cujo desrespeito
os seus antecessores tinham contemporizado á
conta do apoio de que careciam contra os ini­
migos externos.
Consolidado o throno pelo vencedor de Aliu-
barrotae graças aos textos do Direito Romano
que Joao das Regras naturalizara em Portugal e
° Prmc'Pio de que a vontade do
principe e lei, seus successores teriam conser-
;a>; s : r x » a r S i s i r s
J B á f S K S . ™'“ " ‘ il10
uma llri Í T l f n éeffec‘iv»™en‘e «opiada de
Barbos!^ D' D“ar comose vô largameute em
lloje desappareceu a íiccão antiga a iustica é
ant e u a T h ír " T dana5ao ; más a
em uso hx 5 ve7 8a.flC!íw ai!!da por rauit0 ‘empo
m oSdade J" tenha con9uistado a im-
Eüpada <
1 © D am ocles

Damocles é, na historia da insensatez, uma


especie de Prometheu atado á sua espada vir-
gem, emquanto os abutres da satyra roem-lhe
a triste reputação.
Porque Damocles não póde ser separado da
espada, que, entretanto, nunca pendeu-lhe da
cinta. , ,
hmor -se onde e quando nasceu, de quem era
filho e que manhas tinha; a quasi totalidade de
seus annos passou-os em uma obscuridade
donde nunca devera ter sahido. . , ,
O que se sabe é que floresceu na còrte de
Dionysio o Antigo, tyranno da Sicilia, isto
mesmo, que é pouco, só nos vem á noticia pelo
íacto unico de sua vida,que narraram historiado­
res e que mereceu-lhe uma fama detestável e a
gloria de entrar em uma locução litteraria.
g Foi o caso que o Sr. Damocles passava os
dias a asoinar os ouvidos do tyranno „om pa­
negyricos da vida real, que se lhe affigurava a
cousa melhor deste mundo e concluindo sempre
que daria tudo por ser rei, uma hora que tosse.
q Dionysio, a principio, nao deu f ^ n c ^ a q u e
las banalidades; mas afinal foi-lhe faltando
PaAquellé sujeito ensurdecia-o com o prégão das
vantagens de reinar ; era um realejo que soava
noite o dia, sempre no mesmo tom.
O tyranno quiz dar-lhe uma liçaq e acabar^ao
mesmo tempo com a monotonia terrível daquelle
SY a ra ÍOisso, mandou armar um leito pomposo
S6
sobre um estrado, collocou nelle a Damocles
paramentado com as vestes reaes, proclamou-o
rei por uma hora e ordenou que todos lhe pres­
tassem homenageme obedecessem durante aquelle
tempo como a soberano legitimo.
Estavam satisfeitos os votos do homem ; estava
elle, rei por uma hora, no goso de todas as gran­
dezas que encarecia.
O peior é que do tecto pendia sobre sua cabeca
uma espada, presa apenas por um fio de cabello
Damocles suou suores frios, pediu a todos os
dense - que nao deixassem arrebentar-se o frágil
liame e passou em transes horríveis aquella hora
de reinado.
hora a>lição de Dionysio ; o tyranno iá mani-
feslaxa. no fastígio do poder, a s u a 'vocacão
extraordinaria para a phdosophia, que teve "de
ensinar mais tarde para nào morrer á fome!
E foi assim que Damocles passou tá historia •
a posteridade tomou daquella espada fatal e li-
goiw ao seu nome para que lhe servisse de
etern >pesadelo e pnncipalmente para que ainda
hoje comparássemos á espada de Damocles o ne-
ngo mmmente que nos ameaça e que uma cir-
cabecanCia qualquer Póde precipitar sobre nossa
Atar o g u iz o

Os ratos deixaram um dia a tranquillidade de


suas tocas e arvorados em deputados, represen­
tantes de si mesmos, reuniram pomposo conselho.
0 decano da raça sentou-se gravemente na
poltrona presidencial; os outros tomaram logares
em torno e abriu-se a sessão.
Tractava-se de um assumpto de pasmosa ma­
gnitude : evitar os gatos.
Não tinha passado sem reparo aos pequeninos
miolos dos camondongos que os gatos não pu­
dessem ver um só dos seus que lhe não saltas­
sem ao gasnete para estrangulal-o e fazer delle
succulento repasto. Ora isto trazia inconvenien­
tes e gerava incommodos que deviam ter um
remite. A douta assembleia foi convocada para
deliberar sobre esse remate.
Exposta a questão pelo presidente, um dos
ratos tomou a palavra e propoz uma guerra de
morte aos gatos ; no seio daqueila populaçao
pacifica que ali fora protestar contra a lucta, o
alvitre não logrou muitos votos.
Outro que encanecera no fundo das despensas
abanou a cabeça descontente e illudia o pro­
blema com umas medidas de prudência muito
deslocadas. . , , n
Afinal, tomou a mão um descendente daqueila
raca heroica de ratos discursadores, que só
Homero ouviu, e indicou como solução ao eni­
gma o atar-se um guizo no pescoço do gato,
afim de que o tinir previnisse os ratos da appro-
ximacão do inimigo. , , , *
Flaminio, quando proclamou a liberdade da
s s
Grécia, não foi mais victoriado do que o pelludo
tribuno ; a ideia foi unanimemente acceita.
In felizmente, um rato velho,que chegava nesta
occasiào,tregeitando esgares de espantado, atirou,
esta pergunta aos juizes enthusiastas:
- Sim, senhores: o alvitre é magestoso e eu
diria mesmo que é dos que só lembram ao diabo,
se não receiasse plagiar o conego Felippe ; mas
digam-me : quem é que se encarrega de atar o
guizo ao ga to ?
O proponente foi o primeiro que escusou-se ;
o bichinho era bem capaz de não consentir-lhe
essa familiaridade de mau gosto e de estrafegal-o
a elle e ao guizo.
Outros meditaram nos sustos que lhes inspi-
ra\a só a lembrança de tal approximação, outros
ainda piiantasiaram realidade muito peior e até
hoje tem íicado entre os ratos como eterno pro­
blema o - citar o guizo ao galo.
Ilao de conquistar a sua independencia quando
lograrem resolvel-o.
K nós lemos acompanhado essa incerteza, na
It dos talnilistas de todas as epochas, e, até que
os ratos cheguem ao almejado resultado, temos
dito e conlinuaremos a dizer com elles que o ponto
capital do urna questão, o embaraço em que se
esbarram todos os planos, — 6 atar o guizo ao
I> a r* o r o . a g o . a c i e lb a r a r e i a
Isto é : dar em nada.
Os francezes dizem no mesmo sentido : dar
em agua de chouriço ; e os paremiographos da-
quelle povo quebraram a cabeça para descobrir
a origem dessa locução.
Aíin 1 chegaram 'a este resultado: sen alter
en eau de boudin, é uma corrupção ou modifi­
cação popular de atine de b o u d in e esse covado
de chouriço allude á velha historia dos tres de­
sejos do lenhador, quando junto ao fogo crepi­
tante do lar pediu a sua boa fada que fizesse
apparecer um chouriço a assar-se naquedas bra-
zas, quiz depois cheiral-o e elle prendeu-se-lhe
ao nariz, de modo que, em yer-se livre daquelle
appendice, esgotou o terceiro desejo, sem ao
menos comer o que tanto lhe appetecia.
Mas esta opinião cahe por terra deante da
nossa phrase : tracta-se hem de agua e não
de covado. _ .
Póde-se, pois, pensar que a agua do chouriço
teria s id » tomada como simile das emprezas
que abortam, em vista de sua completa inuti­
lidade. ( ,
E os francezes que se contentem com isso.
Nós, porém, vamos adeante.
E’ muito de investigar-se porque se taz a re­
ferencia á barreia e não a qualquer outro resí­
duo mais imprestável ainda — que os ha. E ao
cabo da pesquiza vai a gente dar com os narizes
nas retortas e capsulas dos alchimistas.
Estes estimáveis sujeitos pensavam que abar­
reiabem cozida dava um sal, o qual dissolvido
produzia um oleo ; esse, pelos processos myste-
90
riosos da Grande Arte, tranformava-se na pedra
philosophal; e de tudo isto dão fé uns versos
latinos que transmittiu-nos um curioso ou ura
crente ;
Calci nat in cinerem res ignis quaslibet; inde
Junctus acquie cinis est nobile lixivium :
Lixivium bene concoctum sal fiat, at hic sal,
Si dissolvatur, max oleosus erit.
Hoc oleum, arcana si consolidabitur arte,
Laudatus sophies nascitur inde lapis.
Estava, pois, nessa operação o segredo enorme
da transmutação dos metaes em ouro.
Mas se a operaçao falhasse — como parece que
Ueus permittm sempre ; - se faltasse aquella
ar('ana lao importante ao caso, o trabalho
do alchimisía, em vez de dar-lhe ouro, dava-lhe
pura e simplesmente agua dc barreia.
E se o nosso proverbio não veiu dahi, devia
ter vindo. ’
B ad e e jm is » s a r * io

0 bode era animal impuro entre os hebreus :


nao podia servir a alimentação nem aos sacri­
fícios
Isto não importa a sua exclusão de toda e
qualquer ceremonia ; havia mesmo uma em que
era figura obrigada.
Em certo dia do anno, levavam á presença do
summo sacerdote, ás portas do templo, um desses
animaes ; o pontifice cobria-o de maldições em
nome de todos os crimes que se tinh m conimet-
tido contra Deus, apostrophava-o com vehemen-
cia e o expel lia para o deserto.
Era uma solernnidade expiatoria ; íingia-se
que o bode levava comsigo todos os peccados do
pov ■». .. , .
Essa instituição, importante na historia ju-
daics não podia deixar de ser rememorada entre
as nações modernas, e nós chamamos ainda hoje
de bode emissário áquelle que carrega as culpas
do mal que não fez.
Esse pensamento supersticioso dos hebreus
presta-se a um parallelo com um uso dos
^ Os gregos immolavam o bode de Baccho ; mas
esse sacriíicio não importava em crendice.
Tinha uma razão de ser ; o animal devora os
brotos e folhas novas da vinha.
Os hebreus é que não podem justificar nem a
ideia de impureza nem o fardo dos peccados que
lhe sobrepunham.
Se esse insulto logrou atravessar-lhe o couro,
93
sirva-lhe de consolação a lembrança de que era
adorado no Egypto.
E não é n unica.
EJ interessante saber-se que todos os homens
são bodes emissários pelo menos uma vez na
vida.
Isto também consola.
G r o u s d.e Ib y co

Ibyco foi um poeta grego, que floresceu no


VI século, antes de nossa éra.
Os raros fragmentos que nos vieram ao estudo,
mal deixam apreciar a inspiração poderosa e a
melodia que lhe valeram coròas de louros e ap­
plausos da Grécia inteira nos jogos olympicos.
Foi mal que coube a muito talento robusto,
que só se lembrasse seu nome na fé dos escri-
ptores, devoradas as suas obras pelo tempo im­
placável
Mas, de uma vez, os gregos reunidos em torno
do estádio olynrpico voltavam os olhos para
todos os lados, afílictos e anciosos; o arauto tinha
proclamado a abertura do concurso de poesia e
canto, e entre os contendores não apparecia o
poeta. . ~ „
Era por isso que agitavam-se os coraçoes
affeitos a expandir-se com a doçura de seus
hymnos, e fixavam-se pensativos no solo os olhos
que se illuminavam aos seus accentos.
Aquelle povo era assim ; enthusiasta e gran­
dioso não podia conceber que se desdenhasse a
alma desse torneio sublime, que sagrava um
ornem divino á face de toda a Hellade.
A falta de Ibyco, se não era uma desgraça ma­
terial, era então cousa peor, um attentado ae
lesa-poesia, que constituia uma verdadeira cala­
midade publica.
E os jogos continuavam sempre entre os
carmes dos vates e a anciedade crescente dos
ouvintes, que esperavam ver surgir de um mo­
mento para outro aquelle que sobrelevava a todos.
94
. De repente, um bando de grous atravessou
piando o céu puro, que se estendia sobre o am­
phitheatro descoberto :
— Olha as testemunhas de Ibyco! disse um
individuo a outro. Este empallideceu.
Aquelle nome, aquella phrase, e a pallidez
que acompanhou-a, circularam immediamente ;
alguém as tinha ouvido e notado e atirava-as,
como um problema, á anciedade geral.
Esperando recolher alguma noticia do poeta,
interrogaram aos dous homens ; estes surpren-
didos confessaram que o tinham assassinado e
foram immediatamente punidos.
Ihyco, realmente, encaminhava-se para os jogos
Olympicos, quando foi assaltado e morto pelos
dons salteadores. No instante supremo, elle
chorou sobre a perda das coròas, que lhe roubava
a morte, e porque nao havia ali ninguem, que
lhe recolhesse o ultimo suspiro e o levasse aos
tribunaes, corno um protesto de vingança, ap-
pellou para uns grous, que passavam voando, e
tomou-os por testemunhas de sua morte.
Era a este appello supremo que alludiam os
(lous criminosos no amphitheatro olympico ; os
grous tinham cumprido o seu dever e servido
paia, inesperadamente, denunciar os culpados.
Aves im morta es vivem ainda hoje na litteratura
e se apphcam a todo o movei indirecto e inespe-
n c rlf (esco^)er,'a crimes, quesesuppoem
P e s c a r e m agnas tu r v a s

0 sentido é claro : nas aguas turvas os pesca­


dores apanham mais peixes do que nas aguas
muito limpidas : porque, em regra, a agua cor­
rente é mais clara do que a das lagôas, onde se
aninha de preferencia o paixe.
Essa observação nunca foi monopolio dos que
lancarn redes de tucum e anzóes de m etal; os
especuladores souberam sempre aproveital-a,
arranjando grandes lucros na desordem de qual­
quer negocio.
E’ sestro velho ; jà os gregos o tinham notado,
e diziam no mesmo sentido em que nós: turvar
as aguas para pescar enguias.
Nos poetas dramáticos as applicações são fre­
quentes, já ao particular que enreda a outros em
uma intriga que lhe reverta em lucros, já ao poli­
tico que move sedições que o elevem.
Não restou-nos, portanto, nem a prioridade
em generalizar a pesca : os especuladores gregos
não pescavam só enguias ; pescavam tudo quanto
podiam.
S e r C assandra d© algum a
c o u sa

Este dito litterario corresponde a predizer ma­


les futuros sem ser acreditado; prophecia de
uma parte, descrença dp outra, são os elementos
essenciaes para constituírem alguém Cassandra
domestico ou politico.
Nas legendas com que a poesia do povo hel-
leno enfeitou a lucta grandiosa de Troya, vai-se
Ri­ topar com a tradição, que legou-nos este pro­
lI l ' vérbio usual.
Diversas versões correm nas theogonias mais
ou menos authenticas da antiguidade ; mas, va­
riando nos accessorios, ellas chegam todas a este
ponto: (pie Cassandra apregoava os casos vin­
douros sem que dessem fé ás suas palavras.
A opinião mais corrente aíTmnaque Cassandra
ou Alexandra, como é também designada, fora
uma virgem troyana de rara helleza, por quem
Apollo se requebrou de um amor intenso.
O deus da luz, com toda sua loura bellezae
poesia, não logrou mover o coração da esquiva ;
era fortaleza impenetrável a trabucadas de Cu­
pido.
Mas naquellcs tempos de paixões impetuosas é
certo que já o interesse sobrelevava a tudo, em
que pese aos enthusiastas entanguidos de outras
éras; por esse canal Apollo pòde obter, se não
o affecto, pelo menos a promessa dos favores da
troyana.
Hoje, o preço razoavel de tal condescendenda
seria um cheque sobre o Banco Inglez ; o desen-
;1

r
07
volvimento commercial deu com a humanidade
nesta bruteza de instinctos.
Naquella epocha, não : Cassandra exigiu em
troca o dom prophetico, que foi-lhe concedido.
Mas o deus que inspirava oráculos e repartia
com as sibyllas as prophecias que lhe sobravam,
não pôde prever dessa vez que, apenas obtido o
oue pedira, Cassandra faltaria à promessa feita.
Foi o que aconteceu: imposturas de adevinhos
vão semp e esbarrar ne se rochedo.
Senhora de cantar âs gerações embasbacada*
o que estava gravad > no livro do destin , a
troyana fez umas figas a Apollo e desato • a rir
e fazer rir as amigas com a aventura interessante.
Pheb • ficou vermelho e eclypsou-se um pouco
«mquanto parafusava no logro, e vendo q e não
podia rrms revogar a mercê concedi5a, ajuntou-
lhe uma condição que a inutilisava: que taes
predições nunca fossem acceitas.
iuNo segundo canto da Eneida pparece a velhaca
honesta a bradar aos troyan s que não deixem,
entrar na cidade o cavallo de Epeus, pois aquella
mole traz em seu b jo a ruinae a morte,
i. E os patricios <ie Enéas fitam-a com olhares
4e piedade e dizem penalisados, cada vez que a
veem tregeitando esgares de inspirada:
— Coitadiüha! ensandeceu.
A c c o a d e r u m a vela a l>eus
o o u tr a ao diabo
0 espirito volta-se logo para S. Miguel ; o
nroverbio devia referir-se ao arcbanjo guerreiro
aue calca aos pcs o diabo ; deante dessa imagem
accendem-se facilmente duas velas com destinos
Ma satyra politica, o individuo que se prende
a dous partidos oppostos é figurado deante de
S. Muuel. , ■.
Na v da social a marujos aoalogos corresponde
a mesma figura, e não é pouco f equen e.
Mas o povo ' ão quiz saber disso : remontou-se
de S. Miguel a Deus para fazer mais ckro o con-
traste-
Mas como isto não exclue uma origem histo­
rica vamos procural-a.
E’ Brantòme quem a fornece; p nupo ao leitor
o francez antiquado do chronista e as maximas
profundas que enxurram na narração :
Foi o caso que Roberto de La Mark fez-se
representar em seus brazòes ajoelhado deante
de Santa Margarida com uma vela em cada mão;
como essa santa é apresentada sempre com o
diabo ao pé, por causa de uma má peça que
pregou ao espirito velhaco, era licito conjectu-
rar-se que a elle era destinada uma das velas.
Mas o fidalgo não quiz que essa ideia ficasse
em simples conjectura e por baixo do quadro
mandou escrever esta legenda: « Se Deus não
me ajudar, ao menos não me falte o diaho. »
E veiu dahi o proverbio.
C om er como uta alarve
A larves são os camponezes de Marrocos; raça
nue se occupa na lavoura e vive delia.
Frei Bernardo da Cruz, na sua Chronica d hl-
Rey D. Sebastião, diz delles umas cousas que
são muito de ler-se e de meditar-se :
« São os alarves gente de mui delicados enge­
nhos, para tractarem todos os negocios de entendi­
mento, eloqüentes em palavras, sentenciosos em
seus ditos,e muito lidos em todas as historias ara-
bicas, fazendo delicadissimos versos e de mui
elegante suavidade, com que levam vantagem a
todos os mouros africanos, e todos os cortezaos
lh’a reconhecem mui notável. São tidos os alar­
ves por toda Africa por a gente mais nobre delia
e o tronco de que os mouros mais se honram ; e
guardam entre si tal maneira de conservação de
sua geração, que em nenhum caso consentem
casar com outra gente que nao seja da mesma
nacão ainda que por isso lhe crescessem muitos
proveitos ; mostram elles por obra a nobreza de
aue se gloriam em o primor que guardam ; por­
que sâog homens de verdade e por seus amigos
ou por os que se acolhem a seu ampaio, porão
as vidas efazendas.., . m-
« Mas posto que os auurves sejam c o m
mente gente pobre e não vivam senão dos fructos
do campo, e de seus gados, tambc ,,
elles alcaides e senhores de m uito vassallos
quem obedecem e servem com o
de rendas; e assim como sao gente que M veno
campo, curados dos tempos, sao.mui^acostu­
mados ao trabalho e mais proiviptos a um brado
se ajuntarem a cavallo a (pialquci teito neeessa ,
ÍOO
rio o cine fazem com muita destreza, seguindo
seu exercito, msimianâo se com poucas dehmas
d e m a n j a r á e camas ; gente propna para fazer
rm^rra com muita soltura. »
8 Isto é O que diz frei Bernardo : que os alarves
são intellmentes e sobrios.
Abramos agora um diccionano qualquer, feito
nor indivíduo nue nunca foi á Africa:
P !, A (arre, do arulie alaravi, arabe do deserto
nue vive de roubos ; /i;;, homem grosseiro, abru-
tado, liomein rustico, campino: como
a l a r v e —excessiva, abi utaunnente. w
Ora, entenda esta gente quem puder.
iOIT* CO’fTiO 9-1i l l Hd ü »«1*1^®
B adutaqu e ou b a z \ d a q u e é um guisado de fíga­
do e imudos, c o-to'ios era pedaços muito peque­
nos e te operados de modo a affrontar o fastio
o mais i. bMdc. . . . . •-
Eu nunca o provei ; mas opiniões insuspeitas
teem jurado ua fé dos seus paladares, que não ha
prato ruais ib roso, e a historia recolheu esses
testemunhos importantes. .
Nos primeiros tempos da monarchia portu-
gueza, o badulaqne tinha fama; e os guerreiros
de Affoieo , Imiriques e do Mostre de aviz iam
refazer-se nelle das lides contra os mouros, e o
embutiam em seus robustos estomagos com o
mesmo enthn-mismo com que se atiravam a pe
le\ \ a batalha de Aljabarrota, entre os objectos
tomados , >s v-mci os figurava uru cald^.ira® d?
dimenm m pfmnomen>e>, <>ma massa de metal
capaz de acromim dar f dgadamente em seu bojo
o T „ , grar.de de Moscow e os sinos pequenos de
C°Oncondestavel D. Nuno Alvares Pereira offere-
ceu esse p>eci so ca’deirao aos frades hernardos
de Alcc! tça p a r a q u e p r e p a r a s s e m n e l l e o s s e u s
badulaques. . n
s r r r » " s ~ “ ; % « * * » ,«
•volta de outros títulos muito para gabos, gtwia
varn-se de preparar aquelle prato com^mais
pericia e comel-o com mais appetite ao q
ninguem. , . .
Eis o aue significa badulaque.
Dessa accepção natural passou-se a app
103
o termo aos apreciadores do manjar, por uma
figura mui usada em rhetorica.
E se alguém, ao levantar-se de uma lauta mesa,
repleto a mais não poder, declarar que devorou
c o r n o v r n b a d i t l c c j u e , póde estar certo de que
não erra.
.« cl
E o o n o m s■ #.5i' »it-.-.
Os mens estudos chron logicos não vão ao
ponto de assignalar data precisa ao acto que
deu origem a esta popular economia.
A t istoria do palito não é em si tão impor­
tante que tenha minuciosos annaes ou memoras,
em que s ache exarado com tocas as form ah-
dades o dia exacto do nascimento dessa locução,
que emende com elle.
Também não vai nisso grande mal : o aconte­
cimento de que derivou-se o proverbio póde
ser apresentado ã romana, a Luiz XY ou â mo­
derna ; <ada lucra nem perde com o accessorios.
Foi o caso que um cheíe dt familia, dando um
dia o balanço em sua casa, verificou que des­
pendia uma verba fabulosa em comedonas.
Desde que Sócrates affirmou que não vivia
para corner, não veiu mai ao mundo ga^trononio
ou comilão algum que se não inflasse da mesma
vaidade e não quizesse campar de sobrio.
Pelos geitos, foi esse pensamento que deu-lhe
uma guinada no espirito e obrigou-o a pensar
em economias.
O homem reuniu, portanto, a família em con-
selh , e resolveu examinar uma por uma as par-
cellas da conta monstruosa, afim de diminuir
A primeira que cahiu em discussão represen­
tava duas garrafas de vinho fim ; mas passar
sem vinho era difficil quando o habito o tinha
elevado a uma necessidade ; era além disso con­
tra as leis da hygiene, que o aconselham.
A suppressão era imposs vel.
A diminuição não o era menos; desde que se
104
reconhecia a necessidade do vinho, era ante-eco-
nomico usar de vinho ordinario que até podia
o germen de muitas enfermidades.
Ficou, portanto, incolume aquella verba do
0rÍToutr°.s foram passando por essa prova com
a mesma felicidade ; o serviço era custoso, nao
havia duvida ; mas subsiituil-o era sujeitar-se a
iguarias11mais ordinarias e por isso mesmo noci-
' &No fim^estava a importanda dos palitos :
—Oitenta réis por dia l e1xclam^ uíf J mayam oS
psnantado. E’ um despender sem fim. Vamos
refumir isto ; 40 rs. de palitos hastam muito.
E foi a unica economia que se fez uaquella
enorme conta, depois de maduro e aturado
eXEste facto que se está a repetir diariamente
na Vida domestica e na vida política, era bem
digno de gerar um proverbio que resumisse o
despender sem conta em cousas superfluas e
nrocurar reduzir as cifras insignificantes. _
^ Foi o que aconteceu ; e a nossa locução e a
orma concisa adoptada para taes casos.
Pasquim
Toma-se hoje em màu sentido esta palavra
que designava o espirito popular. .
E o povo que anda ahi a peair direitos políticos
todo o dia, ainda nào protestou contra essa
usurpacào do seu grande direito de satyra
Chamam p a s q u i m â correspondência i sulsa,
ao dito grosseiro e t< rpe ; e, entretanto o pas­
quim é em sua historia mmto mais nohre do que
muito figurão que se pavonêa de grandesJ^ ós.
I I S i g n o r P a s q u in o foi em seu temP° u
alfaiate moço e perito que tinha por teguezes os
homens mais importantes de Roma.
Em sua loia, da rua do Parione, talhavam se e
eoziam-se os fatos que iam tornar irresis i
os leões daquelle bom século XV l. f a(i 0
Thesoura afiada, no verdadeiro e no figurado^
Pasquino, em vez de cantar emqua desfiar
ou nas horas de ocio, entretmha-se em desfiar
a vida alheia com os ofíiciaes que emp g ’
que não eram poucos. nndiam
1 Papas, cardeaes, ministros e fidalgas, podiam
ir ali pedir i formações sobre tudo trg
nham feito ou tencionavam faze ,
sabia de tudo e contava quanto sabia. Q
Mas, Pasquino possuía outra <lual'dg d ^ tas.
elevava a ima dos m.rones vu gares a dos ta
tidi sos faladores: tinha espirito para repari
eom tres ou quatro ass<% fu ç a d a s ,
Os epigrammas fin<‘S, as tarpasn g .
formigavam em seus discursos e a admiracao uos
ouvintes as espalhava e o ' foco
A loja do mestre satynco tornou-se o w
IPPP
Si,.-;;

lOO
ft- de quanto appareda de chistoso e delicado era.
n onilit
Os iii1is altos personagens eram os menos pou­
pados porque il signor Casquino era como o sol
que illumina mais os montes do que os valles.
As victimas chegavam ao conhecimento do
molejo, mas não faziam muito caso delle.
Primei1,o, porque o auct >r era un povero vü -
•I/' lano, a quem um desforço qualquer viria dar
uma importância que não merecia.
I t'-. •
I, i :.
Segundo, porque reconheciam-lhe espirito e
cada um lhe p°rdoava o que o feria á conta do
que ia ferir aos outros.
E Pasquino ia-se tornando cada vez mais po­
pular : afinal não houve em Roma um só epi­
gramma de bom quilate que lhe não fosse attn -
ímido. _ . . „„„
Annos depois de sua morte, descobriu-se nas
excavacòes que se fizeram na rua Parione,
mesmo em frente á loja, uma estatua de mar
more mutilada, obra prim., de algum estatuano
antigo, que não se sabe quem fosse.
Emquanto os sábios discutiam longamente se
seria um Ajax, um Hercules, um gladiador ou
Outra C"usa parecida, o povo dava-lhe o nome
de mestre e encostava-a a um palacio vizinho,
que desde então se ficou chamando o palacio
Pasquino.
O immortal alfaiate dormia já o somno eterno :
não podia mais fallar; a estatua faltou por elle :
em suas costas de marmore branco escreviam-se
epigrammas, punham-lhe cartazes a tiracollo, e
Pasquin c ntinuou a ser a chronica commentada
de tudo quanto se passava na cidade.
Quando havia uma festa a que o povo applau-
dia, apparecia o Pasquino vestido a capricho
com letreiros que exprimiam saudações; maS
quando o negocio não lhe agradava, a figura ri-

■*;
107
dicularisava a quem quer que fosse o culpado e
até travava dialogos com outras estatuas.
Diversos papas tiveram de soffrer as suas
observações •
Quando Xisto V elevou sua irman Camilla Pe-
retti de lavadeira a princeza, Pasquino appare-
eeu do roupa suja, e interpellado sobre isso res­
pondeu :
— Já nao tenho lavadeira; deram lhe ,uma
coròa. _ . . , .
0 cardeal de Bonna, quando aspirava a cadeira
de S. Pedro, que depois occupou, pôde ler no
mármore, como todos os romanos, este aphorismo
conciso: .
Papa bona sarebbe un solecismo.
Adriano VI quiz pôr termo ás impertinências
que lhe dirigia o Pasquino, mandando-o lançar
ao T ibre: .
_ Santissimo Padre, observou-lhe judiciosa-
mente um dos cardeaes, se Pasquino em terra
fala todas as manhans, atirado ao rio conver-
ter-se-ha em ran e falará dia e noite.
0 conselho foi acceito e a estatua ainda la
existe em Roma, apreciada e admirada, e alvo
de sonetos e saudações dos poetas em todas as
hnguas.^onf^ontem 0 que abi fica dito com as in­
sulsas’ correspondências, e digam se nao é um
absurdo jiar a cousas tào ignóbeis o nome pro-
Tepa^quim^ o*wsrdad e iro pasquim, a synthese
do bom senso e espirito do povo, todas as nações
tiveram, e está longe da triste ideia que o fazem
hoje designar. A
Pasquim era aquelle celebre dístico afíixad
em Roma, quando César nomeou senadores a
uns matutos que trouxera pr.sioneiros das
Gallias :
tos
« E se o povo não ensinar aos novos sena­
dores o caminho do senado ! »
Pasquins sabia escrever o nosso povo nos
tempos coloniaes, orno pesadelo sos governa­
dores tyrannos ou prevan -odores ; a Historia
registrou muitos desses epigrammas friizes. _
Pasquim, e bem digno des^e nome, toi a
sextilha que escreveu em uma esqum. uni sapa­
teiro poeta, quando os ministros de le d r o l
faziam-se manequins de sua vout de.
Sentado na minln trtpeça
Metto a sovella nas viras,
E vejo pelos buracos
Este imperio de mentiras
Governado por macacos
Amarrados com embiras.
X & a mào á l b o o a a i n d a s a p o r d ©
a sopa

Uma observação já muitas vezes feita sobre


os provérbios é que os que exprimem o mesmo
nensamento são representad-s em divers, s lm-
ffuas por similes analogos e ás vezes idênticos.
g Essa ideia da inconstância da sorte e das vicis­
situdes que s urgem e se precipitam em um mo­
j i t o prende-se quasi sempre as necessidades
vitaes do h unem e delias tira o seu symb lo.
i or isso encontra-se em todos os povos cultos
essa expressão da inconsta cia ligada â nutrição,
forno qufoppondo a variedade de scenas que se
S l ^ f r i g no f T que ^fódf quebrar-se uma

COPO na occasião importante f


T uue me cabe é contar a letenda.
Anceu, filho to T o esmero.
P’Vn^ ‘f p b ilo síh ia com que este filho do
deus das aguas adorava o vinho
lio
Cruel e irritável em tudo quanto se referia ã
sua cultura favorita, não poupava maus tractos
aos seus escravos pela minima falta que pudesse
affectar-lhe a colheita. Uma das victimas ousou
predizer-lhe que não beberia do vinho que se
fizesse daquellas uvas.
Anceu dissimulou a cólera, mas preparou a
vingança ; e qu ndo, feita a safra, pr parou-se
o liquido, mandou que aquelle mesmo escravo
lhe trouxesse a primeira taça do vinho, apenas
sahisse d 1 cuva.
A ordpm foi cumprida e Anceu pôde olhar
com desdem para o enleado agoureiro e pergun­
tar-lhe com ar sinistro :
— Então 1 ainda dirás que eu não bebo deste
vinho ?
— Senhor, replicou o escravo, da taça â boca
podem sobrevir mil desgraças.
E quando Anceu ia saborear aquelle nectar,
surgiu-lhe em frente como Deus ex -machina um
outro escravo, av-sando-o de que um enorme
javali devastava-lhe as plantações ; o homem
larga a taça, toma as armas e vai atacar o javali*
que investe contra elle e o mata.
E era um dia o Sr. Anceu.
A moralidade da historia íicou sendo a res­
posta do escravo, que passou assim a proverbio.
Mas, se Anceu tivesse bebido antes o seu vinho
novo e feito depois a pergunta ao agoureiro,
teria mostrado muito mais senso e não perdera
o seu tempo ; em compensação, ficavamos nós
sem o proverbio.
Feliz irreflexão que nos legou tal antigualha t
0 annexim passou ãs linguas mordernas com
pequenas variantes, e o povo ainda h je tem
nelle um dos specimens de sua velha sabedoria.
Não se deve contar com o lucro que ainda não
está em nossas mãos; não se deve afnrmar aquillo
I ll
que ainda havemos de fazer; quando menos se
espera, lá vem um accidente e frustram-se as
esperanças. . . ., ,
Em todas as circumstancias da vida é provei­
toso seguir esse conselho. «
Infeliz mente nem sempre isso se faz. 1 or que f
Os moralistas dão largas explicações que nada
eXpara mim, o nosso provérbio traz em si o mo-
trvo de sua inobservância.
Da mão á boca ainda se perde a sopa
fe- Yâo lá fazer comprehender est bçao a um
novo que nunca comeu sopa com a mão
Salve-se ao menos a censura da verdade e a
das colheres Christ ofie.
S u b ir a m ostarda ao narias
Um individuo, naturalmente bondoso e pa­
cato, suppona impassivel as impertinências com
que o acabrunham todos os dias
Chega, porém, um momento em que uma das
mais leves desagrada-lhe, e eil-o a arremetter
furibundo contra os perseguidores admirados.
Que é one produziu tal mudança? indagam
todos, e buscam mil c rcumstancias* ponderosis­
simas que a expliquem.
A razào é, entretanto, muito simples : s u b i u -
lhe a m o s t a r d a a o n a r i z .
Aquelle caustico, agindo sobre a pituitaria,
provoca est irros e explosões até na alm a; è
aguilhão que a desperta sempre da apathia.
Só a sua acção rapida e formidável sobre o
nariz 6 que póde justificar e tornar logicos
cert s movimentos tão ageis que assombram.
Tudo mais ficará muito abaixo de seus effeitos?
no marcar graus para a cólera, o seu desenv lyer
quasi electrico, serà o ultimo e a essa electrici­
dade corresponde a mostarda.
Isto que nós pensamos jà os romanos pensa­
vam ; c o m e r m o s t a r d a era para elles locução tri­
vial com o mesmo alcance que nós lhe damos, e
quem ler Plauto ha de lã encontrar applicado o
dito a um homem colérico e irritável: s i h ic
hom o s in a p i v ic tite t. . .
Nos dezeseis séculos que nos separam daquella
gente, a expressão proverbial soffreu uma leve
modificação; mas é licito o orgulho, parece que
ganhou com isso.
C o m e r m o s t a r d a póde exprimir o ardor; mas
s e n t ü - a n o s n a r i z e s é pitada que provoca por
forca um espirro.
E esse espirro é formidável.
Q u er m ais figos
Isto é : é uma cilada encoberta â caça de um
lucro, mas uma cilada que se fareja e se evita.
E’ o dito final de uma fabula grega, coeva de
*U*m pastor da Sicilia apascentava, nas fraldas
de um morro, o rebanho que adquirira com seu
trabalho *■ constituía todo o seu haver.
Em baixo, o mar placido vinha lamber de
manso a praia e parecia convida -o para um
passeio em seu dorso azulado. 0 pastor de**ou s®
levar dessa ideia, vendeu o rebf |" ’/„0" nP de_
um navio, que carregou de figos, e
manda de plagas remotas onde os \endes.e bem.
Mas uma tempestade, que se desencadeiara iw
oceano, tragou lhe navio e carga, eam uitocusto
logrou o pastor salvar-se do naufragio e tocar
* Tempos depois, quando novos kbores come­
çavam a formar-lhe novopecuho, o rústico ia se
uma tarde na suave encosta da montenha « a
seus olhos o mar se espreguiçava ainda calmo e
m Alguém, que estava perto, estasiava-se na face
tranquilla do mar e commumcava sua impressão
ao pastor wi, suspirou e*te, eu sei o que aquillo
significa : Quer mais figos l
C aleodaa g reg a s
Os romanos dividiam os Inezes em calendas,
nonas e idos.
As calendas cahiam no dia primeiro do mez,
ás nonas a 5 e os idos a 13, excepto em Março,
Maio, Julho e Outubro, em que as nonas eram a
7 e os idos a 15. Marcadas assim estas datas,
contavam-se as outras retrogradando : primeiro
dia antes das calendas, segundo dia antes das
calendas etc*
O systema dos gregos era outro: o mez, divi­
dido em decadas, era contado como o nosso ;
o que não tinham era calendas, idos e nonas.
Ora, os romanos costumavam marcar para
certos negocios, ou como vencimento de certas
obrigações o dia das calendas; eqqando se que­
riam referir a cousas que não se tinham realizado
diziam que ellas tinham sido adiadas para
as calendas gregas, como indicando sarcastica­
mente que se tinham realizado em dia que não
existia.
Nós conservamos o proverbio e fazemos delle
uso frequente.
O que acontece, porém, é que muitas vezes é
preciso explicar ao ouvinte o que elle exprime.
Seria bem bom que se acabasse com esta ne­
cessidade : infelizmente é impossivel.
Para nós todas as calendas são gregas.
A

O cão do Alcibiades
0 Dr Antonio Ferreira França, o ce'ebre
Francinha, depubdo do p imeiro ?einado, cos­
tumava atar a «ravah na perna dar-lhe o aço
com todo o esmero, e tiral-a denois assim atada,
enfiando-a pela cabeça até o collarinho.
Aos que o interpellavam sobre essa singula­
ridade contou eile um d a:
Alcibiades tinha um âo soberbo, que lne
tinha cu st-ido uma somma fabub sa.
( W d o toda a cidade de Athenas o tinha
admirad de sobra e esgotado as • onver çoe»
sobre o bello animal, Alcibiades cortou-lhe a-
cauda, que era o sen principal orname to.
E as apreciações e commentarios choveram de
todos o-' lados: _ _ v , . nil.
... Cor b r a cauda de nm cao tao lindo 1 C?ue
^Que ideia extravagante! diziam de outra
^A lguns mais curiosos não ?e contiveram que
não f s em inquirir do gener d a causa de tal
proceder, arrando-lhe quanto se dizia ou se
nensava sobre o caso i _
P — , niquanto o» >'heni nses se occuparem
com o meu cão, não se hão occupar da minha

o facto necessita. imiiarln enxu


O exemplo foi mais de uma *ez imitado com
VaPoéticos e guerreiros renderam ao grego esta-
n e
merecida homenagem, seguindo-lhe a trilha ; e
longe fòra quem pretendesse escever tudo
quanto a historia nos ensina a tal proposito.
Hichelieu, - romwell, Mazarinq e mapoie o
empregaram muitas vezes artifícios analogos,
co.r que desviaram a attenção publica dos pl mos
que preparavam
Póde-se mesmo aíTirmar que não ha homem
politico que não lance mão delles
Com o facto guardou-se tarnbem a expressão;
e em todas as linguas dos povos cultos a locução
cão de Alcibiades recorda o müo com que se
acena â curiosidade alheia, para afastal-a daquillo
que se tem em mira.
Q u a r d .e lx o r * a do

Este quarto de hora não tem quinze minutos


de sessenta segundos cada um, como os outros, e
mesmo nunca foi marcado a relogio.
póde durar mais ou menos tempo e deve pa-
r pppr mais longo do que o ê real mente, as
sciendas exactas nad .teem que deslindar com
ellp„ ten, e exclusivamente à litter tura, onde
exprime a h“ a, em que rasga-se a nuvem dou-

de " urver comprehenderam sempre as agom


de rec her o P ^ ^ h ^ m “e a iía o ü l
CMtb*’doqjantar° opiparo em que excedeu-se um

^Sâo agonia que constituem o quarto


hora de Rabelais.

XShtiuísst “•
baixador de FranuL° ° * iraze? ao s-b^rano re-
«ua com missão ou p , q a Lyon fattou-lhe
cados importantes. Ch g . . era natural
que a ^ m : % J > nào era homem
que trouxesse a « ^ " P ^ S ^ u o u ’suores frios
com a p e rsp e c ta de dormir ao relento ou mor-
118
rer â fome, cogitou expedientes, e afinal lançou
mão de um meio heroico.
Foi no meio de taes apmos que os historia­
dores apprehenderam-lhe a figura para ser ir de
comparação a todas as da mesma natureza ; o
quarto de hora de R abelais foi esse em que elle
planeou impossiveis para pagar a hospedaria, a
que se recolhera, e presentiu em espirito os
transes das situações futuras.
E o meio heroico de que serviu-se foi este :
mandou annunciar pela cidade que um medico
estrangeiro desejava communiear aos seus con­
frades observações extraordinarias que tinha
recolhido.
O auditorio foi numeroso : os galenos da ci­
dade e muitos, que o não eram, pejaram a pe-
quema e enfumaçada sala da ho pedaria.
Rabelais disfarçou-se, mudou a voz, vestiu-se
de urn modo exquisito e, depois de ter falado
profundamente sobre medicina e assombrado 03
ouvintes com sua sciencia prodigiosa, recolheu-
se, tommi um ar grave e disse-lhes, apresentando
dous vidrinhos :
— Agora vou communiear-vos o meu segredo:
trago da Italia estes dous vidros de veneno enér­
gico e subtil, com que daremos cabo do rei e da
rainha, desses monstros que tanto mal fazem ã
Franca. E' estupenda a acção destas drogas que
aqui tenho...
Os assistentes olharam uns para os outros,
mudos e absortos, e apressaram-se em sahir ; Ra­
belais ficou só.
Mas não se tinha ainda passado meia hora,
quando o governador da cidade poz sitio á casa
com boa guarda e prendeu o audacioso faccinora.
A p pulaçâo abalou-se, circulou a noticia
pelas cidades vizinhas, lavrou logo pela França
ioda. E como tractava-se de um delicto de lesa-
n-isrn
y jm

119
magestade, enviaram o preso a Paris para que a
rei o visse e visse a fidelidade solicita dos lyo-
nezes que tinham capturado tal monstro.
Rabelais fez assim a viagem á custa do Estado;
e quando Franc sco I quiz ver o crim noso, de­
parou com o seu jovial embaixador, que con­
tou-lhe a historia e riu-se corn elle do artificio. * .as
Outros narradores divergem em um dos episó­
dios desfa passagem e dizem que, em Ly n, 1U-
belais fizera escrever por um menino dísticos
para os vidr s que trazia : veneno para o rei,
tieneno para a rainha ; e que a criança revelou
o facto, que chegou assim á noticia das auctori-
■(3âd.68
Umas reílexões sobre tudo isto. m
Esta historia do auctor de Pantagruel tem sido
acceita por historiadores de muito boa nota e I
de muito critério, que fazem derivar delia o
n °Ha, entretanto^uma consideração que permitte
a duvida sobre a sua verdade e sobre as suas
pretenções.
Ter-se-hia dado o facto r -j .
Na epocha que lhe assignam, tmha morrido
o delphim, e a França inteira se abalara, por
suspeitar nessa morte um envenenamento.
(? estratagema de Rabelais deveria, pois, ter
Sido recebiifo com odm violento e se a populaça
o noupasse, a auctondade nao se lembraua tai
vez de mandal-o a Paris, como nao era de lei,
nem de uso fazer-se.
F o facto de ser Rabelais o embaixador do rei

liariam proporções assombrosas a tal aconteci


mento ?
120

Parece que não.


E é este o sentir de Voltaire :
« Os auctores desta baixa historia, não con-
sideraram que, por um indicio terrivel como
era esse, teriam lançado Rabelais em um cárcere,
tel-o-iam carregado de ferros, applicado a tor­
tura ordinaria e a extraordinaria; e que em cir-
cumstancias tão funestas e em uma occasiào tão
grave, nào bastaria um mau gracejo para justi­
ficai-o. »
E’, portanto, muito razoavel a duvida sobre ft
existência desse facto.
E, quando elle se désse, nào era mais natural
que o proverbio a relembral-o procedesse, não
desses apuros que elle venceu, mas do plano com
que salvou taes embaraços ?
Em uma historia dessa natureza o que devia
admirar era a audacia de conceber e realizar
tal projecto: a elle, portanto, devia prender-se a
locução e nunca aos transes da situação, cuja
impõrtancia era muito somenos, e tanto que Ra­
belais logrou vencel-os.
A opi'dão de Larousse é mais simples e mais
acceitavel:
« Essa locução é talvez o resumo da vida de
Rabelais, que nào se distinguia por espirito de
ordem, nem por opulência; estava sempre sem
dinheiro, e mais de uma vez ter-se-ia visto
embaraçado e teria passado um mau quarto de
hora. Não é. pois, de pasmar que esse estado de
penuria constante se tornasse proverbial e désse
origem a uma locução pittoresca. »
Fazer figas

m o se assuste o leitor sisudo: os que dão a


«ssa expressão uma origem obscena nao conhe­
cem o facto original que a produziu.
F azer figas não é, como alguns pretendem, a
áradnecão de uma locucâo italiana contraria à
mais comesínhas noções da moral e da delicadeza.
Os fazedores de diccionanos assim o assoalham
íalOra.evaUw-nos ' eus, que não ha quem menos
«íúba da lingua do que esses senhores.
Fazer ftqas é realmente um dito italiano, e
«ia origem^ o facto historico de que derivou-se ê
omais^eomieo possivel e parece antes uma phan-
t ó a de caricaturista do que um acontecimento
’■“ ao ^ ô rrc o m p ^ e n d e e o leitor que -ao se
Ç’ - fldmittir na boa sociedade, onde, entre
tem f f l a R b a s t a só que não se isteja de
Ita c L , luvas e gravata branca para que se possa
ífflN t s Ç a s \” ao povo esconjura sempre o
d Í EnUtôíogrípbos Romancistas teem aproveitado

& aexl
locutores e ouvintes. " ° , ^ 0 e afém disso
pressão traz ^ ^ t rno3trar o punho fechado em
imeaçTdora pTovocação. Torna-se nesse caso uma

ÍnZ Veparaum milanez fazer figas é mais do


122
que isso, chega a ser crime; empregar a expres­
são jà é um insulto extraordinario.
Querem saber a razão ? Abramos as Matinêes
Senonaites cio P. Tuet:
« Os mdaneses, revoltados contra Frederico,
expulsaram da cidade a imperatriz sua esposa,
fazendo-a montar em uma mula velha chamada
Tacor, com o rosto voltado para a cauda do
animal. Frederico, tendo-os subjugado, mandou
collocar um figo debaixo da cauda de Tacor e
obrigou todos os milanezes captivos a arrancar
publicamente esse figo com os dentes e repol-o
no mesmo logar sem o auxilio das mãos, sob
pena de serem immediatamente enforcados ; e
elles eram obrigados a dizer ao carrasco que es­
tava presente : Ecco la fica. »
Desde eetão, este dito abrado ás barbas de um
milanez tornou-se um insulto, como lembrança
que era da mais comica das humilhações. Como
promessa de vingança, addicionaram-lhe o gesto
de um murro, e fazer figas tornou-se assim ao
mesmo tempo uma ameaça de desforço futuro e
um signal de zombaria e desprezo.
0 facto passado em Milão explica essas duas
accepçoes da phrase, o que não é extraordinario.
Mas o imperador Frederico sempre teve umâ,
lembrançad !... .i
C om o IPilatos no C red o
Entrar em alguma cousa corno Pilatos no
Uredo é entrar nella sem acção, sem importanda
alguma.
0 pobre pretor romano não primava nem por
intelligencia muito vigorosa, nem por energia
moral. Juiz fraco, entregou á sanha dos judeus o
Justo, cuja innoc ncia reconheci-. Não estava
talhado para em prezas altas.
O governo da Judeia tinha-lhe paiecido unia
cadeira commoda entro extasis beatificos e pas­
seios matinaes; acceitoua pretura ali paia des­
cansar. Aquelle povo vivia isolado dos outros,
adorando o seu Deus e fazendo suas festas; rao
cuidava dos povos vizinhos, não erguia candi­
datos à purpura dos Cesares, não se gastava em
guerras intestinas. . ,
Pilatos viu tudo isto tie Roma e ah dou-se
para lã, com mira no ocio santo que lhe negava
a Roma dissoluta e inquieta de Tiberio.
Quiz ir ali gosar da mediocridade que lhe
apontavam seus talentos; andar ás vezes de toga
desatada, abraçar os amigos sem etiquetas e
bocejar livremente, deixando bocejarem os cen-
ÍUTnfelizmente, depois que ali eslava, tudo
mudou de figura; armou-se de repente a tempes­
tade .
O crue faz o destino I ,
Os hebreus socegados levantaram-se : houve
uma conflagração geral. Lm homem ues­
corria o paiz ensinando uma doutrina nov*. que
solapava a velha religião do unpeno : preferia o
1Í24
pobre ao rico, exaltava os humildes sobre os po­
derosos, os escravos sobre os senhores.
Pregava a abnegação, o sacriíicio, a pobreza,
e executava tão bem como pregava.
Dizia-se Dens e provava cjue o eia ; o pobre
Jupiter nem lhe serviria para lacaio.
E aquelle homem, moço e hello, fugia aos pra-
zeres naquella epocha de prazeres e atravessava
sereno e calmo os campos, as villas, as cidades,
os mares por sobre as ondas, a pé, curando os
enfermos, resuscitando os mortos e consolando os
afflictos.
Prégava o amor e ninguem tinha mais amor do
que elle ; mas um amor que se repartia de prefe­
rencia pelos desamparados e pelos obscuros.
Não linha chegado ao z míh da vida, ninguem
o vira queimar as pestanas sobre as taboas da
lei e sabia mais do que os sábios encanecidos no
ensino; confundia a uns, tomava a outros por
discípulos, e nas campinas, nas montanhas, tirava
da flor que seus dedos tocavam ou da arvore que
florescia ao longe um ensino novo e sublime para
todos.
E emquanto uma multidão immensa o procla­
mava o promettid ■das gentes, outros o amaldi­
çoavam, o accusavam de impostura e pediam
contra elle a pena de morte.
E, os centuriòes do pretor despertavam a
subitas com os gritos do poviléu á porta do
palacio ; iam perturbar o romano em meio de
um bocejo mal começado e diziam-lhe aterrados
que os judeus traziam à barra de seu tribunal
aquelle homem extraordinario para ser julgado.
O pobre Pdatos viu-se atrapalhado naquella
balbúrdia; ouviu as queixas, as imprecações,
ouviu o accusado, achou-o puro e innocente
como um Deus que era, coçou a cabeça, andou
de um lado para outro e afinal foi declarar aos
A

judeus que não descobria crimes nenhuns em


Christo. ,
O povo pedia em alta grita que o crucificasse ;
o proconsul desesperou, apostrophou a s >rte
que o collocava em taes apuros, jurou que o
accusado era innocente, lavou as mãos e entie-
ffou-o aos seus perseguidores
Foi mau por ser cobarde e por ser basbaque,
ali á sombra do poder de Cesar, debaixo das
aguias romanas, ás barbas dos centuriòes pos­
santes que bastavam a cortar as línguas daquelles
^ Mas o castigo deu-lhe a posteridade; fez delle
o symbolo de um sujeito sem energia, que so
nensa em engordar e que, em face da occasiao
mais azada para illustrar-se, só produziu quatio
lettras (J. N. R- J.)» escriptas com a mao que
lavou expressamente para isso, quando devia
limctlig o a deram-lhe também os apostolos na
composição do seu symbolo monumental: Pila-
tos ali entrou apenas para marcar uma data da
vida de Christo : foi crucificado durante o go­
verno de Pondo Pilatos. .
E nada m ais; não disseram o que era o pretor
o que pensou, o que e x p rim iu n e m o que
praeücou ; a data apenas atirada ah como para

a rpiíãtodsaentrour no Credo como uma

£ esquerda de outros algarismos


Talvez elle em vida por sua mte'hgencia e
sua vontade não conseguisse passai de cifra.
Onde a p o rca to r c o o rabo
Se o senhor é curioso, ha de ter muitas vezes
consumido boa parte do seu engenho em busca
da origem deste provérbio.
Estou daqui a vel-o, a reflectir se a porca torce
a cauda em alguma circumstancia critica de sua
vida de chiqueiro, ou se, perseguiria no campo,
dá uma volt1» ao seu appendice para escapar
áquelles que a querem agarrar por elle.
A conclusão terá o senhor tirado sempre sem
proveito algum — ê que o negocio não entende
com o animal suino.
A sua attenção volta-se então para os parafusos,
a ver se ha nelles ou no encaixe delles alguma
cousa que possa tomar o nome de rabo, e que se
torça nas occasiões criticas, em beneficio do pro­
verbio.
E como nada ali depara em taes condições, fica
no mesmo estado em que ficaria, se lesse essas
ideias forçadas, á custa de muita dissertação indi­
gesta, em” uns alfarrabios ainda mais indigestos
do que ellas.
Ora, alviçaras, que vou tiral-o dessa profunda
ignorância, explicando-lhe porque é que a porca
torce o rabo nas situações diíFiceis.
O senhor lembra-se por certo de um adagio
que ouve todos os dias, que seus avós e os meus
ouviram também todos os dias e que creio ter
sahido da cabeça inspirada do pai Adão: esse
adagio indica que os maiores obst culos surgem
sempre no fim das emprezas, sob esta formula
vulgar : que o mais difficti de esfolar é o rabo.
Ora, muito bem ! Os nossos avós, contempo-
/•

1*2?
raneos da infancia da lingua, davam ao prover­
bio outra expressão, e diziam: a torcia e no rabo.
Torcia, como synonimo de embaraço, diüicul-
dade é um substantivo tão antiquado e obso­
leto que até tem sido esquecido em muitos dic-
cionarios. , ,
O povo dizia, portanto—a tom a e no rabo.
Mais tarde perdeu-se essa accepção do voca­
bulo e começou-se a introduzir na phrase o ver­
bo torcer, pôr uma corrupção de linguagem.
Isto embaraçou um pouco os nossos bons cam-
Donios de outr'ora, que procuravam um animai
que mettessem no rifão e a que ligassem o ap­
pendice que delle não podia sanir.
E foi assim que ali entrou a porca, preferida
n*0 ^ r. Comprehende' que ha anima» dem ais
nobreza e maior cauda, e que a elles melhor
se applicara o dito.
Por que foi escolhida a porca r . ,
P o í l m , que fui desencalhar esta historia da
poeira solidificada dos séculos passados confesso
ingenuamente que não sei ^ P ° n* * ™ e- 0
Ahi é que verdadeiramente a porca torce o
rabo.
Oonrio so e s o r e v ô Sí h is to r ia I

E' a traducção fiel de um verso de Voltaire


mie se tornou proverbial.
Como acontece muitas vezes, o povo adopta
de preferencia os ditos que lhe fazem impressão
no theatro : foi no theatro que este nasceu.
Uma das scenas do C h a r i o t , de Voltaire, pas­
sa-se em um castello: Henrique IV digna-se
honral-o com sua visita e para recebel-o o dono
da casa não poupa preparativos.
A entrada do rei deve ser feita com toda a
solemnidade; postam-se pelo caminho vedetas
em certos pontos, que annunciem umas às outras
a approximação do hospede.
A aldeia vizinha também abala-se com aquella
nova e prepara-se para festejar ao rei de longe,
com acclamações, musicas e foguetes; para isso
põe-se attentà, às sentinellas e espera o signal.
Estão nisso, quando apparecem ao longe uns
cavalleiros que as vigias julgam ser Henrique IV
e sua còrte, e dão o signal, que vai rapida­
mente de uns a outros correndo até o castello e
até a aldeia, onde rompem as festas.
Cedo, porém, verifica-se o engano; mas a
gente da aldeia não quer saber disso ou não ouve
o desmentido e contmúa as acclamações.
No castello, o intendente irrita-se com aquella
gente que se enganou e enganou aos outros, e
conta â senhora castellan o occorrido :
« Est»gente é assim mesmo ; é seu costume 1
Enganaram-se e gritaram : o r e i , o r e i . Agora
iâ na aldeia todos gritam e teimam que o rei
chegou ; são capazes de jurar que é a verdade.
E eis ahi como se escreve a historia.
>

139
Tout le monde a erié: le r o i ! sur les ehemins ;
On le crie au village et chez tous les voisins ;
Dans votre basse-eour on s’obstine à le croire
E t v o i l à j u s t e m e n t c o m m e o n é c r i t I’h is to ir e .

Um escriptor francez voltou habilmente contra


Voltaire a sua phrase celebre :
« Aquella Catharina da Russia, que inaugurou
o martyrio e a divisão da Polonia, tem sido re­
presentada como um grande politico, um con­
quistador, um legislador, como a razão e a phi­
losophia enthronisadas. Voltaire chama-a um
sabio. Seria então para seu uso que formulou
o verso proverbial ? »
O a u ta r* a p a l i n o d i a

Se o senhor abrir as obras de Horacio, ha de


encontrar lá pelo fim dos epodos, um em que o
Doeta diz cousas horrorosas de uma celebre Ca­
nidia cartomante ou feiticeira de seu tempo.
A pobre mulher é ali representada vagando
á noite pelos cemitérios e fazendo á lua umas
visagens terriveis, que até fazem-a eclipsar-se
de susto. , ^ ,
Com o espirito cheio daquellas visões medo­
nhas e prelibando maiores torturas, o senhor
volta a pagina e depara com um segundo epoch),
com o titulo Palinodia, em que o vate se desdiz
de tudo e curva-se reverente á arte magica.
Cantar a palinodia é isto ; retractar-se a gente
do uue pensou ou externou antes.
A etymologia por si só pouco esclareceria;
palinodia em grego significa apenas um segundo
canto. . . .
Falta-lhe o característico essencial: ser exa-
ctamente o contrario do primeiro.
Isto vai dirigido aos philologos; na philoso­
phia practica, a palinodia não se canta, fala-se.
E’ uma arte especial e fôrma um dos ramos da
politica.
jYIid.&s

Midas é uma das figuras mais comicas da anti­


guidade.
Nào lhe valeu o ser rei para que o nao agar­
rasse a comedia antiga, pondo-lhe um pai enoime
de orelhas de burro na cabeça e muito ouro nas
mãos. , - ,,
Favorito dos deuses, tendo de escolher um
bem que lhe não seria negado, Midas escolheu a
riqueza e obteve que se mudasse em ouro tudo
quanto tocasse. .
A ambição daquelle javardo • .
Veiu porém, cedo a experiencia dar-lhe uma
dessas ferroadas que aproveitam : em meio de
sua Tmmensa fortuna, o rei da Phrygia quasi
morreu de fome.
Deante de uma lauta mesa, desafiava-ll e o
aDDetite uma perna de perco assada, e, mal to
cava nos seus regios dentes, .tornava-se em ouro.
Era o requinte do tupplicio de lantalo.
Baccho compadeceu-se do homem e livrou-o
do fatal condão, mandando-o lavar as mãos,
talvez pela vez primeira, em um rio que desde
então rolou em suas aguas palhetas de ouro puro.
Fste primeiro facto já por si so nao <
muito boa ideia dos talentos de Midas; o segunc
âiTiflri vem míiis coiifi-riiicil 3»* . . , ^ r» _
Marsvas rei de um povo vizinho, desafiou

ct S
na musica e puzera-so ue «"SB ft
atirar flores aos assovios de Marsyas.
^
133
Também chegou-lhe o castigo.
Apollo mimoseou-o com um par de orelhas de
burro.
Vejam que ironia ! Kra mostrar que o ter ore­
lhas grandes não induz hom ouvi o musical.
O iton em eimrou, desesperou-se e aíinal, á
forra de muito bater na testa, descobriu que os
cabei los compridos e os rendilliad s da coroa
real podiam encobrir o defeito.
Havia um unica difíicutdade, —o barbeiro.
Midas comprou-'he a peso de ouro o silencio,
ameaçando-o de morte se désse com a lingua
nos dentes.
O mestre calou-se algum tempo ; mas afinal
nfio pòde mais ; o segredo sufibcava-o, estran­
gulava-o deveras; abriu uma cova no chão e
lá enterrou-o. • li nasceram mmiços e, quando o
vento soprava, sacudiam-se brandamente, di­
zendo a ciciar : Midas tem oivlhas de burro !
Analysemos ocaso:
Este Midas, postos de lado os atavios da lenda,
foi um rei muito ignorante e muito ambicioso,
que poz o povo a trabalhar nas minas, descu­
rando inteiramente as artes e a lavoura.
Foi um erro que vingou ainda muitos séculos
depob e que dictou em muitas naçòesc da Europa
leis, prohibindo a sabida do ouro.
Pretendem alguns historiadpres que a rainha,
tendo mais senso do que o marido e querendo
dar-lhe uma lição por apologo, serviu-ihe um
dia um jantar, em que todas as iguarias eram de
ouro rnassiço.
O rei estava com appetite, e nesse dia a fome
foi-lhe boa conselheira; cornprehendeu a mora­
lidade da cousa e mandou atirar ao Pactolo o ul­
timo ouro, que tinham colhido das minas, dedi­
cando-se desde então á agricultura.
Os gregos mais tarde contavam a historia de
133
outro modo e deram-nos a legenda que ficou
ustT*rada
Quanto ás orelhas,era uma ficção de estupidez,
que assentavam de preferencia em Midas, poique
o negocio üo ouro ja era uma pi ova delia.
E foi assim que formou-se essa tradição muito
preci sa para que eu a conte aqui nestas paginas.
4gora, applicando o conto, Midas é em lin­
guagem litteraria o parvenu ignorante c piesu-
miíío, carregado de ouro e pensando que do
metal lhe veem todos os dotes.
Desde que a rainha de Salsa mimosoou a Sa­
lomão com camellos carregados de ouro, os
•poetas leem clamado em toda a casta de metros,
que são sempre os camellos os que andam cai­
relados de melai precioso.
Gente que se agarra ate a um trocadilho pan,
atacar os'outros,' não podia deixar passar des­
apercebida essa ficção, que lhes dava um novo
epitheto de uma justeza a calhar; tonou-se o
nome de Mida* e deu-se-lhe a accept;ao figurada,
que ainda tem.
Ora, v K\ sabendo o alcance do provérbio
o a sua origem.
Dê me os emboras por isso.
A essa mesma legenda grega prenue-se a lo-
wicâo-O ndas do Pacldo-c o m quo se designa
uma grande riqueza, uma fortuna, que rola em
ondas, que inunda tudo.
O peior é quells vezes,íi força de aperfeiçoar-se
na Hoitaclo dò rio, a riq u m corre como suas
ondas e foge como ellas para o mar.
Oalpôi?a

Fulano de tal é infeliz em todos as emprezas


que tenta ; actividade, tino, intelligencia, tudo
elle possue em dóse regular.
Mas ha uma fatalidade armada contra elle a
destruir-lhe os fructos na vespera da colheita ;
ha alguma cousa de im dacavel que o opprime :
é a caipóra que o persegue.
Do algoz o nome passa para a victima ; a cai­
pora não é mais uma entidade estranha que vive
fóra e lanea-lhe -m ; dardos delonge; é um princi­
pio que vive nolle, que enlaça-se em sua vida,
que chega a con hnidir-se em sua individualidade.
Se tudo saho-!he mal é que elle está caipóra.
Outras vezes essa fatalidade está fóra e con­
substancia-se em um vizinho, que o acompanha
sempre, que medita com elle nas emprezas a
commetter, que acompanha-lhe os calculos,
trabalha com elle, que senta-se a seu lado á
mesa do jogo e discute com elle as cartadas a
jogar.
Então, se elle perde sempre, é que o vizinho
0 está cnraiporan lo.
Assim esta mesma expressão, de uso vulgar e
frequente, ora é a desgraça que segue a alguém,
ora se applica a um ente physico innocente nessa
desgraça, ora significa a victima : é um punhal
de tres’quinas.
Postas de parte zangas de philologos, não ha
mal algum nisso ; não é até raro que as palavras
soffram ampli icòps desta natureza.
O que importa em tacs casos é achar uma
origem que justifique a todos.
135
No -vertente, não é difiicil; é inútil remontar
ao grego ou ao sansci ito para descobnl-a.
ffs indígenas do Brasil chamavam caa-pora a
um espirito malfazejo, que acompanhava os
homens em suas expedições de guerra ou de caça
p «mscitava-lhes mil contrariedade s.
Esse ente invisível, que se fazia sentir por seus
aetos tomava nomes diversos—curupira, ma-
cachera, etc, conforme tinha sua séde nas mo -
tardias nos rios ou nos caminhos.
Se os inimigos presentiam sua chegada, ei
cã-pTra quem o's tinha previn.de. ddUti se a
caça escapava, era o caa-pora quem tinha des
viado as flechas. valov confirmam

£ t íís .ír - “
mais no menos elms ^ si0 °m

‘trsÇ tóSvssrs
como o fatuo da edade h óes^ 5ue fingiam casas
sosP e precipitando nelles os

^ p p ro x im a ç ã o ^ e
cance historico, que nao seaeie v
L iix o u 11 o ja ix ta e m casa de
L u c u llo

Elle luctou no Ponío largos annos contra


Mithridates ; o exercito romano o viu mais de
uma vez, general destemido, apontar o caminho
da victoria ás aguias de suas bandeiras.
Rico e considerado, elle podia, de volta á
patria, atirar-se á carreira das honras e patentear
na adrninistraçào os talentos que a natureza lne
dera com prodigalidade.
Não o quiz ; possuidor de uma fortuna extra­
ordinaria, cuidou apuias em gosar della com
toda a pompae todo o luxo.
Mas também ninguém o egualou por esse lado:
em seus viveiros cresciam as mais hei las morêas,
em seus pomares as mais bellas fructeiras, muitas
das quaes importara do Oriente; em sua adega
amontoavam-se as amphoras dos mais finos vi­
nhos da Italia e da Grécia.
Se levantava uma casa, era um palacio, ainda
que a edilicacào se fizesse sobre um terreno pe­
queno ; os gracejadores da epoclia diziam que
em muitos togares elle tinha mais terra para
varrer do que para cultivar.
A casa de sua residência em Roma sobrele­
vava em grandeza e sumptuosidade a tudo
quanto se podia conceber ; sua mesa era a ad­
miração e o prazer de todos os que floresciam
por letlras, armas ou riquezas.
Devia dizer — suas mesas ; porque Lucullo
tinlia diversas salas de jantar, mais ou menos
ricas, conforme o deus a quem era cada uma de-
137
dicada, e o serviço da mesa correspondia â sala
em que se fazia. . ,
Os escriptores antigos estão cheios de descn-
ncòes minuciosas desses jantares soberbos, em
que se levavam os convidados de surpreza em
surpreza e de encanto em encanto.
O mordomo já não era um simples adminis­
trador de casa ; era um general á frente de um
verdadeiro exercito de criados e escravos e uma
imaginação poderosa em busca de impossíveis
de-A m a n h a n jantaremos na sala de Apollo,
dizia o romano, e o mordomo tinha de engendrar
as iguarias m ar finas e de apresentar os vinhos
mais custosos, além do apparato necessario ex-
tGVerdade seja que o cofre bastava a supportar
os onus que lhe quizessem impor, e Lucullo nao
achava excessivas as despezas que se fizessem.
Uma vez, não o satisfez aquillo quej paraloutro
seria o mais bello dos festins; o mil lonaro. es­
teva só nesse dia, e tinha-lhe por ventura faltado
o tempero especial das alegres conversações em
que, de costume, passava o jantar; c>mord
foi chamado à sala e censurado por essa quehra WÈ
da opulência habitual. ,
o homem não achou cabida a observacao, e
exnlicou os seus motivos de assim procede .
mesa estava servida com luxo, e se " ao se e' -
rara em maiores pompas, e que seu amo ünti

^ q u e importava isso? respondeu-lhe o


general. Não sabias que Lucullo jantava hoje
emFsu1órm ukUfUilldesde então adoptada e cada
« r aue ó numero ou a cathegoria dos con- m
; dadqos merecia-lhe um semço de pnmerra
ordem, com todo o requinte do fasto e aa

,0 : HECA V , V ,i-Jm

• P u í i L i C /■
O Ü£ J Ai4£' ,,o /
sumptuosidade, não se esquecia nunca desse
dito expressivo :
— Lucullo janta em casa de Lucullo.
E o mordomo, por sua parte, nunca mais se
olvidou de que era com todo o luxo que o mais
rico dos romanos devia tractar ao mais magni­
fico dos seus convidados.
Nós não somos Lucullos... e muitos o sentem !
Aquella phrase feliz nào a podemos empregar
em seu sentido proprio e energico ; mas, dado
ao gracejo o direito da hyperbole ou da ironia,
dizer como o romano é dizer muito e muito bem.
Y lr a r casaca
Virar casaca ê uma especie de oidium tuckeri
que prendeu-se á politica e viverá emquanto
ella viver. ,
A inconstância humana, que reveste mil tór-
mas, adoptou, na lucta dos partidos, essa que se
refere ao vestuário, e delle tira o symbolo das
^ Também será preciso, para constituir dous
partidos oppostos, mais do que duas cores dit-
?erentes nos casacos dos chefes que os encorpo-
rarem ? O Sr. Dr. Ma edo sustenta espirituosa-
mente esta these em sua - Torre em co n cu r^
Dous especuladores chegam a uma vilia em
aue se chama a concurrencia dos constructores
para levantar-se a torre da egreja ; apresentam-
se cada qual com um plano,uma nacionalidade
e um vestuário de occasião, e logo a populaçao
pacifica do logar se divide em dous grupos, um
aue sustenta o homem da casaca vermelha, ou-
?ro que pugna pela pericia nâo provada do su-
^EV^vantam por bandeiras aquellas peças de
fazenda mal cerzidas, adoptam as duas cores,
cabalam e chegam até a vias fa.ct0, • mnem
k ca.

da^vüia'™nfhusiasmadc^ peío parüd^^emelhÒ!


forro ámàreHo° Ío seu
1 IO
solva-se a militar debaixo da bandeira contraria
e recolhe-se a ella no campo do combate; como
demonstrará essa resolução ?
De um modo muito simples : virando a casaca.
A solução é facil ehgica, e explica perfeita­
mente a nossa locução.
Infelizmente a comedia do nosso escriptor é
muito moderna para lhe ter dado origem ; muito
antes delia, já Carlos Emmanuel I da Saboya,
que alternadamente era pelos francezes e pelos
hespmhoes, e vestia-se com as cores da naçào a
que se alliara, a cada um desses passes virava o
casaco, que era de d. as vistas correspondentes
áquellas cores.
Kscriptores de boa nota marcam uma epocha
precisa ao nosso proverbio,- e essa epocha é a
das luctas motivadas pela Reforma ; catholicos e
huguenotes usavam d' cores differentes e o que
se bandeava de um para outro lado não se
esquecia de virar as roupas do avesso, afim de
indicar que era corno alliado e não como ini­
migo que dirigia-se ao campo opposto.
Penso que se lhe póde assignar mais remota
origem : desde os mais antigos tempos, foi uso
entre os diversos po\os cobrirem-se com ves­
tuários de còres differentes, de modo que os
transfugas e desertores nas guerras não podiam
deixar de parte essa precaução essencial para
livrarem-se de surprezas e ‘encontros imure-
vistos. r
Nos escriptores gregos e romanos deparamos
com muitas referencias ás outras nações, cara-
ctensadás pelo vestuário e isso importa muito
para lirmar esta opinião que sustento.
Quanto â palavra casaca, sua significação
variou muito e não se póde encaral-a com o
valor que hoje lhe damos: fòra em todo o caso
melhor que se dissesse : Virar casaco.
Os politicos que innovem.
Xjo 1>o n ã o c o m e lote o

Isto é : os maus temem-se, evitam-se, não


atacam uns aos outros.
Para figurar este facto tantas vezes observado
tirou-se o simile do lobo, porque o caracter do
lobo é a crueldade.
Em resultado, colheu-se um absurdo ; a
■phrase tem vigor, é incisiva e clara ; mas os
naturalistas não a podem deixar passar sem
^CM obo é exactamente o unico animal que
^ z o t o g o s estão de accòrdo sobre esse ponto.
Leia-se Buffon, Hist. N at.:
« Quando um lobo está gravemente fendo, os
outros seguem-o por toda a parte, matam-
^M ais^deânte a confirmação desse phenomeno
&mnis clara e decisiva ainda :
« Sua carne é tão ^esagradavel que ^pu^na
a todos os outros animaes, e o lobo é o unico
mip come carne de lobo. .
^ Em sua expressão, portanto, o proverbio sym-
bolísou uma ideia justa em um exemplo also.
Mas os lobos, força é reconhecel-o, se nao
atacam não é por instincto, por principio de
m a " 6 p o r Pque uns teem medo dos outros,
refe^ minner“ r " í e
essa forma seria a
J £ compleu das verdades e a mais feliz das
.comparações.
C am isas d© o n z e v a r a s

0 symbolo da jurisdicção entre os romanos


era um feixe de varas com uma machadinha no
meio.
A auctoridade que o usava tinha o direito de
vida e de morte sobre os seus administrados.
A vara, instrumento de supplicio, era emble­
ma da pena de açoutes que a lei lhe permittia
mandar applicar quando entenlesse.
Na edade média admittia-se o mesmo castigo,
e a vara representava ainda a auctoridade do
juiz, não já por esse poder discricionário, mas
como recordação dos velhos gaulezes, cujo tri-
bunaes funccionavam á sombra dos carvalhos
santos.
Desses factos teem alguns tirado a etymolo­
gia da nossa expressão.
Estar em camisas de onze varas, correspon­
dendo a estar em apuros, seria assim uma allu-
sao aos embaraços daquelle que se visse sob a
acção da justiça, longamente açoutado em puni­
ção de um crime.
Vestido de varadas — seria a metaphora dessa
transição do physico para o moral.
Tal versão é respeitável, sem duvida.
Mas o numero onze ?
Teria sido arbitrariamente tomado para esse
provérbio, quando ha tantos outros numeros
faticbcos de mais emprego?
Uma outra opinião assigna origem differente
ao nosso dito.
Antiga mente os condemnados iam para a forca
vestidos de uma longa camisa branca : é a esse
uso que se allude.
143
Posição mais critica do que aquella não posso
»11 cr neeber nem vejo outra com mais direito
» im obntaV um proverbio na linguagem do
a ímplan amiella funebre camisa branca,

£ " A S ”»»” ■
*' *“ ““
de tanta monta.
Ovo d.© C olom bo

0 descobridor do Novo-Mundo não teve o pri­


vilegio da legendária Leda; ás suas qualidades
extraordinarias não addicionou a natureza este
attributo, que o tornaria ridiculo.
Lsse ovo, que a litteratura acceitacomo seu
nao o foi por producção, mas p r conquista: foi
um ovo immortal, que lhe serviu de pretexto
para uma lição merecida aos cortezãos do rei de
Hespanha.
O navegador tinha consumido dezoito annos
de sua mocidade a apregoar pela Europa as
maravilhas da expedição que ia tentar e a pedir
o apoio de cada um daquelles reis de pouca
terra, a quem faria tão bom arranjo um mundo*
desdenhado, ndicularisado, tractado de louco
em algumas partes teve ainda de luctar contra
a universidade de Salamanca, que provava com
® ,com Aristoteles o absurdo de suas
e a 1-uropa era então uma grande Sala-
IlldlICa*
Havia nisso tudo barreiras de sobra para des-
^ m a r a qualquer outro; Colombo não^desanT
? p i®â *orfa de constância pôde um dia zarpar
oue^nham T» tr.es. navlos. pequenos e ronceiros
que tinham de vir a America.
ainda e n!o"llw J°ntrarieda(,es augmentaram-se
ainaa e nao lhe foram pequenos embaraços as
tava de ,“ ,nstantef! (la MpolaçSo, que se'assus-
Reflizin se efieX1f a a V0lta para a Hespanha.
brilhante resultado*' * SUa em pm a> Com 0 mais
Parecia que, quando tinha havido tanta remi-
gnancia em admittir seus planos, tantas objecçôes
145
contra as suas doutrinas, tanto afan em reputar
absurda a sua pretenção, não lhe deviam negar a
gloria dessa tenacidade laboriosa e desse embate
contra os obstáculos de toda a natureza.
Pois até isso lhe negaram. ,
De volta de sua descoberta, achava-se Colombo
uma vez á mesa com diversos sábios e nobres, e
a conversa recahira sobre sua expedição.
Das considerações que choviarn de todos os
lados tirava-se a limpo a conclusão de que des­
cobrir a America era cousa facilima, e tanto que
qU0 genovelaouvia calado aquellas impertinên­
cias, e quando deram por ftnda a discussão,
tomou um ovo e pediu aos presentes q
PUTodosm o tentaram sem resultado, ora force-
jando por equilibral-o, ora amparando-o com
^Então^pegando do ovo, Colombo quebrou-lhe
uma das extremidades e o collocou de po sob
essa^base : senhores, accrescentou sor-
rinlo que nada custa nu nos do que collocar
u m o V d e p è ; mas nenhum consegum fiw l-o

mente^^ ^ j^s£0Iqa ovo ^e Colombo.

i
T raz fe n o n o s o liifr e s

Pensam alguns etymologistas que esta phrase


eom que se designam os homens perigosos e
maus se originara do costume que tinham os an­
tigos romanos de atar feixes de palha aos chifres
dos bois bravos para que os evitassem.
Mas esse uso representa uma convenção e é
preciso assignar a esta uma origem também.
A explicação nada adeanta, portanto ; fica-se
na mesma.
Mas um facto historico bem conhecido resolve
a questão, assignando uma data certa e marcando
o acontecimento a que se liga o provérbio.
Leitor de De Viris illustribus não póde airo­
samente ignoral-o.
Annibal viu-se uma vez cercado em Capua
pelo exercito de Quinto Fabio Maximo.
0 contemporizador, que sabia tão bem andar
pelos cimos dos montes e só descer para ferir
batalhas seguras, tinha dado boas amostras de
si para que o carthaginez comprehendesse que só
uni estratagema novo podia livral-o do cerco
Foi o que fez.
A noite mandou Annibal que atassem fpixes
de palha âs pontas de touros bravos, e lhes
puzessem fogo, soltando os animaes no campo
em que estava o exercito inimigo.
A corrida frenetica dos touros, os seus mugi­
dos, aquelles fachos errantes a cruzarem em
todos os sentidos e o approximar continuado de
tudo aqui 11o, que não sabiam explicar, produ-
íoiínpníne.
rompendo or0r n0S romanos>
cerco. se debandaram,’
147
Desde então ficou e n tr elles o uso de a ta r
feno aos cornos dos bois perigosos, e a esse uso
correspondia o provérbio—habet f oenum in cornu,
fuge ! de que o nosso é traducção.
Do gado passou a locução, por uma facil me­
taphora, a applicar-se aos homens perversos.
Ah ! se todos os maus tivessem pontas e trou­
xessem feno nellas! . . .
A o s c o rn o s d a lu a

Elevar alguém aos cornos da lua é eloeial-o


com excesso.
0 povo, que nem por isso entende muito de
astronomia, imaginou lá de si para si que a lua
e o logar mais alto possivel.
Dalii tornou-se natural que, para engrandecer
aiguem, o alassem a essas alturas, com risco de
iazel-o torcer o pescoço na quéda ou de cousa
peior ainda.
A locução popular nasceu dessa ideia e vulea-
rizou-se com ella. s
Quanto á expresscão cornos, não é licito inqui­
rir se a lua os tem, desde que se attenda ás
pontas do crescente.
Cousa mais simples não ha.
Mas eu não recommendaria este dito em boa
sociedade ; é trivial demais para isso e relembra
ímmediatamente um quê da lingu gem dos boia-
deiros ou açougueiros.
E não é isso o peior que elle lembra.
rroverbios dessa natureza não se devem en­
grandecer até os cornos da lua.
E’ um aviso prudente.
Faclxo d e H e r o

Hero era uma sacerdotisa do templo de Venus


em Sestos, â margem meridional do Hellesponto.
Era moça e linda como todos os typos apai­
xonados da legenda antiga; o amor e o infor­
tunio ainda mais contribuir am para poeti al-a.
Um joven de Abydos ardeu de amores por
ella e foi correspondido em seu amor.
E porque Abydos ficava do lado opposto do
estreito, Leandro o atravessava a nado todas
as noites para ir ver a amante que dirigia-lhe a
empreza accendendo um pharol.
Quanto tempo duraram esses doces colloquios
na obscuridade da noite, não nos transmittiram
os vates; mas é natural que fosse curta a sua
duração, como é sina de todas as venturas.
Uma noite, quando o moço atirou-se nas
ondas encrespadas, um vento forte levantou-se a
subitas e apagou o facho qu* o dirigia; os
deuses tinham-lhe invejado a felicidade.
Leandro continuou em sua aventura arriscada
e continuou a luctar contra a furia das vagas ;
mas baldaram-se os seus esforços e horas depois
rolava nas areias de Sestos um cadaver, a cujo
contacto regelou-se no peito da amante a seiva
da sua primavera, o calor de sua existência.
Se este tocante episodio foi real ou fabulado
pela imaginação dos gregos é ponto difficil de
d ecid ir; mas é certo que de envolta com as phan­
tasias vieram a nós muitos acontecimentos reaes.
O que por largos annos se afigurou impossivel
não o é mais: atravessar o Hellesponto a nado.
Hábeis nadadores mais de uma vez o teem facil-
150
mente realizado. Byron entra nesse num ero; o
poeta guerreiro transpoz o estreito e mais não
logrou íóros de nadador extraordinario.
Adquirido este facto, ê possivel e provável o
que contou-nos a lenda
Seja, porém, como for, a litteratura recolheu
ahi uma comparação feliz,e chama facho de Hero
ao aviso ou signal, que as Heros modernas, e
muitas que o não são, dão aos Leandros para
que se approximem, quando a occasião permitte
as expansões amorosas.
Oii^oixlo d.© P o p ilio

Antiocho Epiphanes, rei da Syria, sitiava


Alexandria. Como bons alliados que eram dos
Egypcios, os romanos enviaram ao rei, por em­
baixador, o consul Caio Popilio Loenas, para que
fizesse levantar o cerco.
Quando chegou á presença de Antiocho o in­
cumbido de tão importante recado, já o invasor
tinha feito provisão que farte de diplomacia e
recebeu-o com uma abundancia de sorrisos, que
bem devia significar outra cousa.
Mas o consul, por seu lado, não era nenhum
calhorda que babujasse em redes de espertalhões,
nem prestasse ouvidos a discursos estudados.
O Antiocho principiou a resvalar em evasivas,
mais ou menos admissiveis, e ditas com tal geito
que desarmara o braço do romano, se este qui-
zesse exigir um u l t i m a t u m às punhadas.
Popilio foi pouco a pouco levando-o âparede
e tornando-se mais exigente, emquanto affectava
indifferença a traçar figuras na areia com a ben­
gala. O outro torcia e tergiversava com uma ha­
bilidade de desancar Tayllerands.
Afinal o romano não se conteve m ais; traçou
um circulo em roda do syrio e disse-lhe positi-
vamente : Antes que saias deste circulo, has de
dar-me uma resposta clara e decisiva que eu
leve ao senado.
E Antiocho ficou com medo e deu-me uma
resposta de paz, levantando logo o sitio.
Itahi derivaram-se duas cousas preciosas: um
exemplo que tem sido muitas vezes imitado, e
uma expressão proverbial, que não é menos
digna disso.
15S 5

Traçar o circulo de Popilio, é impor a alguém


que defina o seu programma, e o circulo de
Popilio para quem está dentro delle é uma si­
tuação critica que offerece muita analogia com
o leito de Procnsto e outras posições em què se
entala um homem, que é assim íorçado a sahir
pela unica porta que fica aberta.
Mas esta unica sahida é a que convém ao
sitiante.
■.-■.i
,\u§aS
i.1ífflP
O n d e o J u d a s deixou, as !>otas -‘

•vu
fe
Sgl

Os antigos, para darem aos seus heroes na


tragédia, proporções acima do vulgo, inventaram
os altos cothurnos, que alentavam a estatura dos
actores encarregados de os representar.
Os cothurnos ficaram symbolisando a tragédia
como os sóccos a comedia.
Essa natural ligação de ideias foi habilmente
aproveitada pela fidalguia na edade média»
Os nobres usavam então botas de tacão muito
alto e o mais das vezes como bico recurvado ; em
caçadas e em expedições não se calçavam de ou­
tro modo.
Os plebeus, esses é que não podiam passar
das sandalias. i
O calçado era característico da condição ;
quando, após uma batalha, faziam a contagem dos
mortos, distinguiam assim q villãq do fidalgo.
■■í,i
I
Se o nobre morria na peleja, dizia o povo : lá
deixou as botas.
Se era um plebeu, lá tinha perdido as san­
dalias.
Os francezes, que teem uma serie de provér­
bios tirados de taes costumes, usam frequente­
mente das duas locuções.
Entre nós não se dá o mesmo: a tendencia
demccratica já se fez sentir em tão importante
assum pto: fidalgo ou vilião que morre, bateu a
bota. i
O Judas também teve o seu dia funebre ; nao
era im m ortal! .
Mas onde morreu esse misero, que o Mestre
154
quiz fazer fidalgo e teimou em ser villão ? Foi
muito longe daqui, sem duvida.
Um logar afastado, um ponto muito longinquo
é, pois, para qualquer de nós o logar onde o
Judas perdeu as bolas.
Macaco vel lxo não melt© mão
em cooabuca
0 leitor, se nunca viajou pelo centro do paiz,
não sabe o original processo porque se apanham
macacos.
Yale a pena conhecel-o.
Prende-se a uma arvore, em logar frequen­
tado por macacos, uma combuca com uma espiga
de milho dentro. 0 animal vem e tira a espiga.
Remwa-se a isca nos dias subsequentes e o
bicho habitua-se a colhel-a ahi. Mas <hega afinal
um dia, dia fatal, em que substitue-se a combuca
costumada por outra de boca muito menor, em
que mal entra a mão.
0 parente de Darwin chega sem desconfiança,
olha, vê a espiga e tracta de tiral-a.
Mas a mão que entrou vasia e aberta não póde
sahir fechada e prendendo a espiga; o animal
forceja por tiral-a e o não consegue; não lhe
occorre o expediente de deixal-a e partir-se
dali.
E o resultado disso é que elle lucta debalde e
fica preso á combuca solidamente atada, até que
o caçador venha trocar-lhe essa alg ma por
outra mais pesada.
Esse estratagema é muito velho e velho como
as combucas, sem que jamais se tenha desmentido
o seu resultado.
Mas, imagine o leitor que um macaco tenha
envelhecido nas mattas, vendo de dia em dia
seus imprudentes companheiros cahirem nessa
arm adilha; esse já sabe que ella é fatal e não se


N
156
arrisca a tocal-a ; esse não mette mão em com­
bin'd.
E a locução que empregamos lembra as espar­
relas que se armam continuamente na vida
real e aconselha aos incautos que façam como os
macacos vtlhos e com a experienda" delles, não
toquem nas combucas dos espertalhões.
C a l o a u l i a r d o A e lx ille s

Achilles, sendo ainda muito criança, foi por


sua mãi Thetys mergulhado na lagoa Estygia
afim de tornar-se invulnerável.
Essas aguas, quo só aos mortos era dado
transpor, tinham esse principio de vida que tor­
nava inatacavel tudo quanto ei las banhavam.
ínfelizmente, houve um ponto ern que não
tocaram : o calcanhar, por onde Thetys segurava
na oecasião.
Em meio de seus triumphos sobre os troyanos,
uma flecha atirada por Paris, foi feril-o mortal-
mente no calcanhar, no unico logar vulnerável
de seu corpo.
E desde que o heróe morreu, já lá se vão
trinta e tantos séculos, todos nós temos deante
dos olhos a direcção daquelia flecha traidora, e
resguardamos cuidadosamente a nossa corda
sensivel, o nosso lado fraco, no physico ou no
moral.
Porque todos nós temos uma corda sensivel,
um ponto em que qualquer golpe fere fundo : é
o nosso c a l c a n h a r d e A c h i l l e s .
Ha até sujeitos que nada teem de invulnerável
em seu m oral; estes são, em linguagem litteraria,
verdadeiros calcanhares.
E não passam disso.
Tudo quanto Martlia íiou.

Tem-se projectado uma empreza e a execução


vai pouco a pouco correspondendo aos desejos;
vai sahir uma obra perfeita, o resultado vai com­
pensar os labores; falta só um passo, um acto
para rematal-os.
Vem a fatalidade e faz desandar tudo ; uma
medida impensada ou um accidente dá em terra
com as glorias sonhadas: lá se foi tudo quanto
Martha fiou, diz-se em tal caso.
11a e\ ídeiiiemente nesta phrase um simile
tirado da perda de uma teia, que a muito custo
tramou-se e que a eterna Penelope — o destino —
desmancha em um momento.
Quem fosse o primeiro a descobrir esse simile
e a applieal-o é cousa que ficará porventura
eternamenle ignorada ; mas é certo que não é de
pouca monta revelar quem fosse essa Martha
que íiou de molde a tornar-se proverbial, e que
vai nessa empreza meio caminho andado.
Para falar do bom tempo de outr’ora, em que
se faziam as maiores tropelias e horrores incri-
veis, mas que pretende á fina força passar por
muito bom ; para falar dessa quadra, com cujas
falsas virtudes se acena aos ignorantes e á gente
de boa fé, referem-se os francezes ao tempo oá
Berthe fila it.
Vejam só que innocencia de costumes a dessas
epoehas, em que a rainha de França manejava a
roca e o fuso 1 Verdade seja que, pouco tempo
depois, uma outra Bertha, neta da primeira, des­
fiava o romance de seus amores, carregando ás
costas o amante, para que as pegadas o não de-
159
nunciassem, na neve das noites de inverno ; ver­
dade seja também que dobrados annos tinham de
apparecer umas rainhas adulteras e assassinas,
como já tinham surdido antes ; que o bom tempo
passado assistiria a crueldades sem nome, morti-
cinios e iniquidades, e que nós hoje e a historia
teriamos pejo de contar com verdade quem foi e
o que fez o Barba-azul e outras couzinhas da
mesma marca.
Tudo isso não impedirá que nos atirem ás
bochechas esse labéu de corrupção e impureza
em que vai atufada a nossa edade, tão dege­
nerada do tempo em que Bertha fiava.
Essa Bertha é evidentemente a mãi de Carlos-
Magno, como dá fé a canção:
Berthe aux grands pieds,
Berthe la filandière.
Ora muito bem ! Esta digressão, que parece
ociosa á primeira vista, leva-nos a este argu­
mento : se o nosso proverbio falasse em tudo
quanto Bertha fiou, havia noventa e nove pro­
babilidades contra uma, para aífirmar-se que
elle contendia com essa Bertha dos pés grandes.
Porque essa Bertha foi quem tornou-se celebre
por fiar ; tornou-se até proverbial; chegou a ser
Berthe la filandière.
A questão fixa-se, portanto, nisto : descobri-
uma Martha nas condições dessa Bertha.
Os provençaes teem uma prompta para 0'
fornecimento; vamos acolhel-a.
No mesmo sentido em que os francezes do
norte falam do tempo em que Bertha fiava, os
provençaes reportam-se áquelle em que Martha
fiou.
Eu disse - no mesmo sentido; não é bem o
mesmo ; ha aqui uma restricçao que protesto
apresentar opportunamente.
160
Essa Martha é a irman de Lazaro, do resusci-
tado de Bethania. Conta a tradicção christan que
os inimigos do Salvador quizeram arredar da
Judéa aquelle testemunho vivo de seu poder di­
vino e que atiraram á mercê do mar em um li­
geiro batel sem velas nem remos Lazaro, Martha
e Maria; que esse esquife foi dar milagrosa­
mente em Marselha, onde Lazaro foi bispo, e
suas ir mans acabaram na penitencia e no traba­
lho uma vida que se iniciara na abastança de sua
casa em Bethania.
A legenda christan cede aqui o passo á pro-
vençal, que figura Martha afiar as roupas de que
deviam cobrir-se os seus e os pobres, e susten­
tando a uns e a outros com o trabalho de suas
màos.
U horn velho tempo do sul da França é assim
muito anterior ao do norte e já se approxima
muito da nossa phrase.
A restricçao no sentido é que vem aqui dar
mais torça ás probabilidades apontadas.
No dizer dos provençaes, nào ha propriamente
a referencia aos puros costumes passados: ha
antes urna expressão de dor pelo que já se teve e
se perdeu, como na heroina que fora rica na
sefiia ma 6 m0rreu no afan íla P ureza em Mar-
p,rover(bio leva especialmente essa mira
de contraste entre o mau resultado e as felizes
esperanças anteriores; nào é licito suppor que a
modi ficar, ao no sentido do dictado continuou na
passagem para a nossa lingua, ou que das duas
accepçoes em que o [ornavam os provencaes os
161
engenhosa explicação custou-me mais do que
tudo q u a n to M a r t h a f i o u ; seria uma pena que o
perdesse.
Oago da E sc r ip tu r a

No psalmo CXIII, David, tendo narrado as ma­


ravilhas do Altissimo aos filhos de Israel, que
Kile conduzira do Egypto, atravez do deserto,
traç urn rapido parallelo desse Deus, que ado­
ravam seus pais com os idolos dos gentios, simu­
lacros de metal ou de madeira, sem poder esem
vida, figuras que teem boca e não falam, teem
olhos e mio veem, tem ouvidos e não ouvem.
A grandeza dessa imagem ao lado de f ua ex­
pressão singela popularisou as phrases em que
ella se desenvolve, e dahi veem as expressões
cego da escriptura e surdo da Bíblia, que são de
frequente applica cão.
Mas, em litteratura, ha uma transição feliz do
sentir natural ao figurado ; não se alíude mais á
vista do corpo, senão á intelligencia, ao senso
moral.
Um individuo é de intelligencia acanhada,
não comprehende o que lhe explicam, não acha
a razão do q e vc : é o cego da Èscriptura.
Em outro, a desattenção deixa escapar o que
lhe cai debaixo dos oihos : é ainda o cego da
Escnplura.
Uma accepção irônica vem por seu turno am--
pliar o proverbio e dar-lhe um sainete especial.
E norma commum a muita gente só ver
aquillo que lhe quadra; do mais desviam o olhar
e não se preoccupam, como se não existira.
Ha um facto que destroe pela base o pretexto
de um acto que planearam, pretexto que foi
larga e pomposamente apresentado, e a que todos
deram inteira fé. Annullado, fora preciso buscar
103
outro, tão plausível como o primeiro, o que é
difficil; ou alterar o plano consequencial, o que
não convem.
0 remedio é um só : finge-se não ter visto o
phenomeno fatal, e está salva a situação.
Muitos o empregam : são ceg o s d a E s c r ip tu r a ,
que teem olhos e não veem.
Syoopliante

A alimentação dos gregos, e especialmente dos


athenienses, consistia, em larga porção, nos figos
que cultivavam com esmero e cuja producçã©
multiplicavam por diversos processos.
Para animar o cultivo das figueiras, os povos
da Attica tinham dedicado a planta aos deuses e a
guarda daquellas que pertenciam aos templos
era zelosamente feita pelos sacerdotes.
Elevar uma necessidade material á altura de
principio religioso era, nessa epocha, uma boa
norma dc governar ; mas o legislador não parou
ahi, e, aproveitando habilmente os ciúmes e
rivalidades em que se abrazavam as diversas
cidades da Hellade, proiiibiu, sob pena de morte,
que se transportassem as figueiras para fóra do
territorio de Athenas.
A crença, por um lado, a lei pelo outro, e sobre
ambas a vaidade de aperfeiçoar mais essa lavoura
e afastar dos melhoramentos obtidos todos os
outros povos rivaes, fizeram com que sempre se
mantivesse respeitada a prescripção.
Um ou outro, mais revel á auctoridade,
transgredia a prescripção : a pena não se fazia
esperar e o denunciante tinha um prêmio.
O resultado foi que uns sujeitos desalmados e
perversos iam por vezes furtar os fructos que
pertenciam aos deuses e denunciavam depois
aquelles a quem queriam mal.
Esta casta de gente, a que se deu o nome de
sycophantes ( denunciantes dos figos) legou
esse epitheto como tradicção de raça a todos os
calumniadores, velhacos e hypocritas que lhe
succederam no correr das edades.
B a te r -s e c o m arm as e g u a e s

Corresponde, figuradamente, a usar dos mes­


mos planos que o-contrario, acompanhando-o no
terreno para onde elle levar a discussão.
I/ uma metaphora tirada dos usos da cavalla-
ria ; nos duellos e principalmente nos combates
judiciarios, os contendores luctavam com espa­
das perfeitamente eguaes no comprimento, largu­
ra e tempera.
Era ponto de honra nos duellos que ninguem
se aproveitasse das vantagens de melhor arma, e
nas ordalias ou julgamentos de Deus, não se
esqueciam de equilibrar todas as probabilidades
de exito, r-ara que Deus decidisse pela victoria
nessas condições, qual dos antagonistas tinha
razão.
Para esse hm fabricavam-se até armas espe-
ciaes; eram ordinariamente duas espadas, cha­
madas gemeas, que até se ajustavam a uma só
bainha.
, Só com ellas se admittia a peleja e ... delias
nos ficou a locução.
«4

D e s p o d ir -s © á fra n o e z a

Despedir-se á franceza é sahir sem fazer des­


pedidas nem dar satisfações.
Porque ?
Portuguezes de boa intenção e cheios de pa­
triotismo poderão talvez achar na guerra penin­
sular a origem do dito e pensar que os compa­
nheiros de Junot, tendo sahido da Lusitania sem
muito largas explicações, teriam dado o exemplo
a todos os que se despedissem da mesma fórma.
A locução é entretanto mais antiga do que Junot
e por pouco que não data da invenção dos fran-
cezes e das despedi as.
Se attendermos ao vocábulo franquia, que si­
I gnifica primitiva e geral mente o imposto de
sahida, os direitos da expedição ; se conside­
rarmos que esta palavra tem a mesma origem
que francez, ser-nos-ha licita a conjectura de
que despedir-se d franceza seja uma modifica­
ção de saliir franco, como uma allusão à merca­
doria que uma vez franqueada não se demora
para conferencias e pagamento de impostos.
Esta etymologia póde razoavelmente ser assi-
gnada á phrase proverbial e explical-a satisfa­
toriamente.
O peior é que não é a unica a preencher ta
condição, o que gera uma incerteza muito para
tormentos de philologos.
Outra versão se apresenta em campo.
Imagine-se o leitor no tempo do Portugal
velho, cujos costumes se vão perdendo ; naquelle
Portugal em que se voltavam os olhos para índia
e Alrica, conquista, navegação e commercio do
mundo oriental e se fixava o espirito sobre o
1G*7
latim e só sobre ell© de todas as linguas vivas e
mortas de então.
O francez não era ali falado, desconhecia-se até,
Como vai longe esta epocha dos nossos dias
em que Lisboa sabe mais francez do que portu-
guez e os janotas do Chiado são irmãos no ridi­
culo e na insensatez dos petits-crevés de Paris í
Francez era então lingua que ninguem enten­
dia ; e se alguém deixava uma reunião ou sahia
de uma casa ás occultas, sem falar a pessoa ne­
nhuma, era o mesmo que se falasse em francez:
ficavam todos na mesma.
Viria dahi a phrase vulgar despedir-se á fran-
ceza por sahir sem despedir-se, como signifi­
cando a mesma cousa para os homens daquelle
tempo.
Esta hypothese tem para o povo mais visos de
verdade do que a primeira, pois modernamente
que se estuda o francez e ignora-se o latim, jã se
começa a modificar a phra e e não é pouco
eommum dizer : despedir-se em latim.
Isto porém não tira ao leitor nem a mira, o
direito de acceitar a outra : ha plena liberdade
na escolha.
V e r e m qulo p a r a m as mo< a s

Deram uma vez um córte de calcas a um doudo;


em vez de leval-o ao alfaiate para talhal-ase
apromptal-as, o homem guardou a fazenda e
continuou a andar pela rua esfarrapado e mal­
trapilho
Alguém estranhou esse proceder e perguntou-
lhe por que não mandava fazer as calças.
— Estou a ver em que param as modas — foi
a resposta do doudo.
Ai ! as modas não param nunca ; volvem-se
entre a acção e a reacção, monotonas ás vezes,
outras vezes variadas, e succedem-se rapidas
como os dias da pobre humanidade.
A observação e a experienda ha mu’to que
teem dado com o noss >escrito nessa solução e
já agora quem tenha o juizo são conta com o
mesmo movimento até o íim dos séculos enão se
põe quedo e impa sivel a esperar que os cos­
tumes e as roupas estaquem em uum moda defi­
nitiva e immutavel.
Neste mundo onde tudo gyra, afasta-se e des-
apparece, não seria dado a uma fugitiva invenção
humana esse cunho de estabilidade que nem os
inventores podem ter.
Nós não esperamos por isso ver em que param
as modas; mas, applicando o conto, sempre que
nos pomos de observação á espreita do fim de uma
agitação ou movimento para os passos que temos
de dar, dizemos, como o doudo, que estamos a
ver em que param as modas.
E se o pensamento primitivo era uma loucura,
a allusão é quasi sempre signal de bom senso e
de prudência.
Q u e i m a r o s n a v io s

Conta-se que Menelau, desembarcando deante


de Troya para vingar na cidade inimiga a aíYronta
que lhe fizera Paris escamoteando lhe a bella
Helena, para fazer comprehender aos soldados
que iam ferir uma lucta decisiva, em que era
preciso vencer ou morrer e não contar nunca com
os recursos da fuga, fez queimar deante do exer­
cito os navios que o tinham conduzido.
0 apologo em acção era claro de mais para
que todos o entendessem ; e tanto fui eite eom-
prehendido que daquelia cidade poderosa ficou
apenas a memoria em dous poemas de Homero,
um de Virgílio e um verso de Camões.
Dizem que Agathocles, tyranno da Sicilia, em
guerra com as carthaginezo, e guerra foi essa em
que deveu uma vez a victoria a uns morcegos
que atirou ás barbas dos inimigos, usou do
mesmo simile de cortar a retirada queimando as
embarcações.
Asseveram que Regulo empregou o mesmo
expediente, ao desembarcar na Africa em meio
da primeira guerra púnica.
Foi povo malfadado por esse lado o car th a-
ginez ; quem se abalava a ir atacai-os ia deci ido
a levar a historia ás ultimas extremidades.
De Julião o Apostata se narra que se atirou
também uma vez neste lance arriscado e tez
fogueira das galeras que o levaram á Asia.
Guilherme o Conquistador não lhe ficou atraz.
nessa originalidade e, ao tomar pe na Ing a ?
fez comprehender aos seus normandos qi-
se deviam mais sujeitar ao enjoo no ca
Mancha. Mov:„a
Depois, Cortez fez a mesma cousa no Mexico
ITO
e logrou conquistar esse imperio para morrer
mendigo em Madrid.
Muitos outros cabos de guerra repetiram «
medida, que acharam boa.
Queimar os navios tornou-se por isso prover­
bial para exprimir as decisões arriscadas, o plano
extremo com o qual se affronta um homem dis­
posto a não retroceder nem um passo.
E se, com ter sido posto em practica ha tantos
séculos, nunca surtiu mau effeito, é justo que s«
tomem taes exemplos e nas conjuncturas difficeis
faça-se o que elles fizeram:
— Queimem-se os navios!
Mas no sentido figurado: no natural não seria
íacil com as naus de ferro e com os couraçados.
O d.ial>o d.epoIs d© vellxo
fe z-se fi?ad.e

 gente da edade media fazia do diabo uma


ideia engraçada; não era para ella o monstro
horrível, que se agita por toda a parte a procurar
uma presa, como o descreve S. Pedro; menos
ainda o espirito que se abraza no mal e vive
entre torturas, por não poder sahir dessa esphera.
Não.
No symbolismo da edade media, Satanaz era
um pobre diabo, que se divertia á custa dos
homens e fazia muitas vezes as maiores tropelias,
sem intenções malevolas ; a culpa era da cabeça ;
o coração, esse era bom, mas fraco.
Eu não posso affirmar que esta ideia se ache
consignada em termos claros em um só dos co­
dices illuminados em que aquella epocha vasou
sua sciencia e consciência; sei, porém, que a leio
nas historias inverosímeis encobertas sob os ca­
racteres gothicos, vejo-a nos specimens de ar­
chitectura sacra e de iconologia, escuto-a nas
legendas que sobreviveram ao passar de tantos
povos e tantas gerações.
Basta um argumento para proval-o.
O diabo, como o entende a egreja, é um espi­
rito essencialmente perverso e m au; não póde
nunca desejar o bem, nem executal-o ; o senti­
mento do amor é nede impossível.
Pois o lendarium da media-edade figura-nos
© demonio inflammado de sentimentos puros,
pinta-o até convertido á adoração de Deus, vo­
tado á penitencia e ao culto, por arrependi­
mento e dor de suas maroteiras e crimes.
173
Quitard cita, entre outros exemplos, o do de-
monio Puck, que renunciou ao mal na velhice e
passou a servir santamente aos dominicanos de
Schewerin, no Meklemburgo, c. mo attesta a
Veridica ratio de Demonio Puck, que eu não li
nem pretendo ler ; o do diabo Bronzed, que fez-
se frade de Montmayor perto de 'tries, e o diabo
Duende de que fala Calderon de la Barca.
Ter-se-hia inspirado o nosso annexim nessas
legendas ? Escriptores de boa nota assim o crêiri
e adir main.
Mas essas lendas, pouco vulgarizadas e locaes,
não parecem poder evplicar essa phrase tão
vulgar e tão commutn; é mais crivei que as
tradições fossem já uma applicação do proverbio
anterior, se é certo que se ligam a elle.
Quando se considera esse facto, tão frequente
naquella epocha, de abraçarem, na velhice, os
rigores monasticos homens que tinham consu­
mido o melli r da vida entre prazeres e cri mes,
julga se sentir no dictado popular uma allusão
pungente a essa hypocrisia da impotência, e sen­
te-se que é verdadeiramente a esses diabos que
elle se refere.
O celebre Gilles de Lavai, o Barba A z u U
quando chamado ao tribunal para d .r conta de
suas torpezas, apresentou-se vestido com o ha­
bito dos carmelitas e pediu com instancia que o
deixassem morrer em um convento ; Bober o do
Diabo, como reza o conto, morreu anachoreta
piedoso, a macerar o corpo, que tinha gosado de
sobra.
Não parece que é a diabos desta marca que se
refere o proverbio ?
Eu penso que sim.
Deus me livre, porém, de qu brar lanças por
impingir como certe'.a o que é u na mera conje­
ctura e por dar a esses diabos-homens a gloria
173
de heróes de om annexim, que outros diabos, os

•tsisíií^sss *• «»r*~:°
Q uem pode Ir- a D e u s não vai
aos santos
Diz Voltaire que este proverbio veiu á luz na
Hespanha, na terra dos castellos e das guitarras.
A guerra arruinara os lavradores das vizi­
nhanças de Burgos e o rei prometteu-lhes uma
compensação.
0 escriptor não diz quem fosse esse rei ge­
neroso, que occultou modestamente o nome, e
os historiadores não quizeram ser mais indis­
cretos que Voltaire; foi um rei que houve
êutr ora.
Mas... os habitantes dos campos talados pela
guerra dirigiram-se á côrte a-receber do rei a
satislação de seus damnos ; á porta houve um
íi . . araço e os guardas do palacio sé
lhes permittiram a entrada depois que promet-
teram dar-lhes a metade do que recebessem das
maos reaes.
Cardero, um dos lavradores, mal entrou na
saia do throno, prostrou-se aos pés do rei e
disse-lhe: r
~ Senh?r ’ eu PeS° â Vossa Alteza Real (era
nessa épocha o tractamento magestatico) que
mande dar a cada um de nós cem acoutes.
bua Alteza Real ficou admirado”do caso e
inquiriu do motivo :
fiue 08 guardas de Vossa Alteza querem
por força receber a metade do que nos for dado.
dP« V n u "se muit0 > concIue Voltaire, e
aeu a Cardero um rico presente: e vem dahi
^ F o v erb io que é melhor ir a Deus do que aos

dednrr°sieUoI comP,;ehendeu a .logica daquella


que eu ’ C° m certeza é mais perspieaz do
I T 'S
A historia é engraçada, sem duvida ; mas não
se presta facilmente a essa moralidade ; ó mesmo
mister forçar muito a ligação dos raciocinios
para dar-se com ella.
Engraçada ê ella ; muito antes de Voltaire, jâ
Straparoli tinha pensado assim e tinha attribuido
o dito ao truão Cimaroste e dado ao Santo
Padre o papel que Voltaire attribue ao r e i; a
difíerença unica é que o escriptor italiano não
fala do proverbio.
Foi, pois, uma ligeireza de Voltaire; esca­
moteou uma historia velha e vestiu-a ã hes-
pan-ola para impingil-a ã posteridade des-
previnida.
T)eus lhe perdòe mais esta.
Quetard pensa que o annexim refere-se aos
santos vindimadores, cujas festas cahem em
Abril, epocha em que as geadas são perniciosas
âs sementes, o que fez tornal-os o povo res­
ponsáveis pelos males causados, chegando a
ponto de mutilar-lhes as imagens, de soval-as
e atiral-as ao rio.
E' uma conjectura como qualquer outra;
não ha razão alguma para acceital-a nem para
rejeital-a.
Quem sabe mesmo em que logar empregou-se
primeiro o proverbio; dous lavradores, dos
principios da edade média, ou dous artistas,
fizeram votos para um certo fim, um a Deus,outro
a um santo qualquer ; o primeiro foi feliz, o
segundo não foi satisfeito no que pedira.
Pois não basta um facto destes, tão natural
e tão commum, para dar origem a um adagio
como o nosso ? E’ possivel saber-se depois quaes
foram os seus inventores ? .
Deixem ao menos este proverbio à turba
anonyma i por que lh o hão de roubar as phan­
tasias dos paremiographos ?
Homem cia capa prota

Commetteu-se um crime horroroso: a opi­


nião publica agita-se, quer uma punição exem­
plar.
Mas ha uma difficuldade : não se tomaram as
precauções em tempo; não se sabe quem é o cri­
minoso : procurem agora o homem da capa preta.
Essa individualidade indefmivel é um anjo
mau, que arrosta incolume as iras da justiça ;
desde que ha sociedade que elle commette cri­
mes e nunca foi punido.
Designam-o pelo característico do seu trajar e
nunca elle foi visto. E’ mesmo o seu destino ser
apontado como auctor de todos os crimes, cujo
auctor se não conhece.
Ou então, se não é o mais perverso dos facci-
noras, é amais torturada das victimas; seu nome
por si só já é uma maldição; ninguem ainda
associou-o ao bem. Votado á expiação, perten­
cem-lhe de pleno direito todas as imprecações
que não levam sobrescripto.
Como o Ashavero, elle tem uma vida secular;
nossos avós o designavam, nós o indicamos, hão
de indigital-o os vindouros.
Mas a sua vida teve um principio ; qual foi
elle ? De quando data a ficção ?
A capa preta foi, nos bons tempos da fidal­
guia, um quasi distinctivo dos nobres ; os ple­
beus não a podiam trazer.
A's ricas côres das cotas de armas, dos gibões
e dos saios; ás variadas plumas dos chapéus, os
nobres íuntavam mais este privilegio : — o uso
aa capa preta.
177
Ao villào deixava-se, por muito favor, a capa
parda.
Também, qc.e valia um villão nesse tempo?
Não tinha castellos, não gosava de immunidades,
não tinha nem nome. Opprimido sempre, só
existia para aturar as exigendas dos poderosos,
servil os e mantel-os com o seu suor.
Nem se indagava mesmo como é que vegetava
essa turba sem nome.
O villào eia villâo, e nada mais.
Quando se commettia um crime e não ?e podia
saber quem era o auctor, esse auctor era por
certo um plebeu : os nobres não com met ti am
crimes.
O homicidio anonymo, o furto sem a sor-
preza, o ferimento por arma que não se sabia
quem vibrara, cabiam de direito a um villào.
Mas como descobril-o na multidào immensa
desses pariás? Elies eram tantos, que se tornava
irrealizável a empreza.
Procurem o homem da capa parda, dizia-se
então.
Mais Jarde, uma modificação no vestuário
atirou a capa preta sobre os hornbros dos mora­
dores da cidade e a capa parda cobriu os rus­
ticos.
Quando ignorava-se o auctor de um attentado,
quando não o podiam encontrar, è que o crimi­
noso tinha fugido para o campo, fóra da acção
da policia e fingia um pacato e laborioso cam­
pónio, envolto na capa parda.
I- xaurinar um por um para conhecer o réu
era um im possivel; estava elle salvo.
Fossem procurar o homem da capa parda.
U)timamente mudaram-se ainda as scenas ;
mas a modificação foi profunda: condemnaram
os nobres a viver e a acotevelar-se can essa
turba anonyma de plebeus ; desappareceram os
senhores e escravos ; todos ficaram senhores; o
ITS
rillào, o rustico, o homem das eidades e o mais
agaloado fidalgo cobriram-se com a capa preta,
emquanto houve capas; com o peletot preto,
quando ellas cahiram.
A locução proverbial modificou-se também;
não se procura mais o homem da capa parda; é
entidade que não existe. Hoje o que se procura é
o homem da capa preta. A difficuldade cresceu e
deu mais força ao proverbio ; é preciso buscal-o
não já em uma classe, mas na sociedade inteira.
Aessa origem historica junta a nossa expres­
são um outro merito: o valor philosophico.
Não é o homem da capa preta o embuçado que
fere á noite, e que busca nas trevas a impuni­
dade ? h o mysterio que rodeia a certos aconte­
cimentos não éuma capa que os torna impene­
tráveis ?
Reus ignorados de grandes crimes, quantos
passam incolumes por entre as iras sociaes ? O
segredo que os salva é um manto protector : são
homens da capa preta.
IV©Oi to d o s p o d em Ir* a
Oordotlio

Este provérbio nasceu na Grécia, ao tempo


em que Corintho era a séde de um sem numero
de bellezas celebres e venaes. Era então a cidade
dos lascivos prazeres, onde mulheres deslum­
brantes impunham-se ã admiração ou ao capri­
cho e faziam pagar caro um ou outro senti­
mento.
A ! frente desse exercito de bellas impudicas
estava Lais, cujo amor enlaçou a Aristippo e a
sua philosophia serviu de base e norma para a
sua eschola.
E se lhes não resistia um sisudo philosopho,
educado na pureza platônica, certo que ellas
podiam contar vencer,e dominar a todos quantos
fossem a Corintho.
Mas também as suas phantasias eram custosas ;
nem todas as bolsas podiam atirar ã voragem as
sommas fabulosas que ellas exigiam.
Entre essas duas certezas, a de ser subjugado
por uma dessas mulheres e a de ver-se em
apuros e sacrificar talvez a vida para satisfazer-
lhes os desejos de ouro, a prudência aconse­
lhava abster-se de ver aquella cidade.
Só fosse lá quem estivesse em condições de
arcar com tudo isso.
E o proverbio originou-se nessas eircumstan-
cias e formulou-se nesta phrase concisa : nem
todos podem, ir a Corintho.
Depois que cahiram as muralhas de Corintho,
e rolaram as suas casas e seus templos ; muito
depois que o tempo amarrotou com suas rugas
a pelle assetinada dessas impuras seductoras, a
formula ampliou-se por analogia, e ir a Corintho
ISO
tornou-se o simile de uma empreza audaciosa,
que nem todos podem levar ao cabo ou de um
goso tão caro que íica ao alcance de poucos.
J/ nesse sentido que a empregamos vulgar­
mente.
Apezar do sabio conselho, Diogenes affoutou-
se a ir a Corintho ; fez mais ainda, deixou-se
embellezar por Lais e quiz prestar-lhe home­
nagens.
Mas, em troca de seus favores, ella exigiu
uma somma elevada; foi uma ducha no cynico :
— Tão caro não quero eu comprar um arre­
pendimento, respondeu-lhe o philosopho reti­
rando-se.
A esta explicação, geralmente acceita do pro­
vérbio, oppoem-se duas outras versões.
Granier de Cassagnac assevera ter-se elle
derivado da organização de Corintho, onde os
estrange ros não podiam entrar, nem demorar-se
sem licença das auctoridades.
Eis ahi o que se chama um homem de imagi­
nação !
innumeros historiadores gregos falaram de
Corintho, de sua historia e de suas instituições;
escriptores latinos, firmados em obras hellenicas
que se perderam para nós, ensinaram o que
havia de curioso a respeito dessa cidade.
Nenhum delles Dmbrou-e de contar-nos esta
particularidade ; estava reservada ao Sr. Cas­
sagnac a honra de produzir em seu cerebro essa
m i n oVi d ade por tante.
Ha mais ainda; Diogenes esteve em Corintho, o
que é incontestável e até legou-nos a historia de
sua resposta a Lais como ensinamento aos Cas-
sagnacs futuros; antes e depois dessa epocha
estiveram lá muitos sujeitos tão importantes como
Diogenes e como G ranier; havia os jogos isthmi-
cos, que se celebravam de dous em dous annos
181
naqaella cidade e a que a Grécia inteira con­
corria.
E de todas as licenças especiaes que os magis­
trados concediam á generalidade dos estrangeiros
não ficou-nos uma só !
Decididamente ou o Sr. Granier de Cassa-
gnac nào tem fumaças de ter estudado historia
ou quiz dar um quináu em Herodoto, Thucy­
dides, Plutarcho, Diodoro e outros que taes.
Carlos Rozan arranca da imaginativa uma
outra ideia e sahe-se com ella a campo e mui
lampeiro.
Diz etle que Corintho estava assentada ao pe
de uma cidadella forte e elevada, de accesso
difficii. plantada sobre um rochedo escarpado ;
que é a essa cidadella que allude o proverbio e
deve-se entender Acrocorintho em vez de Co-
Mas a inexpugnabilidade da Acrocorintho
nada importava com a cidade que tinha muitas
outra entradas; e se is antigos quizessem alludir
a essa cidadella tel-o-iam dito muito antes de
Rozan. „ . „ . .1
O proverbio sempre referiu-se a cormtho, e
nisso mesmo está o seu mento, pois não íoia ex­
traordinario que nem todos os estrangeiros pu­
dessem penetrar na fortaleza que a deíendia.
Creio que Rozan nào tomou muito ao seno o
caso e não é mau que laçamos como elle.
M ai dio 1^*3dir*o

0 povo é quem usa desta expressão e quem


dá-lhe a origem em uma dessas legendas tradic-
cionaes que atravessam as edades e cujo comeco
é impossível determinar.
a mãi de S. Pedro, com ter dado á luz tão
grande apostolo, nem por isso foi santa; sua ava-
r~za era tal,que só uma vez deu uma esmola a um.
ponre, * esta esmola foi uma restea de cebolas
vazia. 0 mendigo recebeu agr decido a quelle
mimo, e se era philosopho, foi ajuntal-o á palh*
já meio gasta de seu pobre leito, berndizendo
ainda o ceu que o encaminhara áquella mulher,
exactam ente no instante em que ella acabava de
despojar a restea das ultimas cebolas que a nda
pendiam.
Mas, quando chegou a morte, o mendigo foi
natural mente para o seio de Abraham e a m ulher
para o Inferno.
Pedro não pôde ver com bons olhos que,
tendo em mãos as chaves do ceu, não pudesse
abril-o para sua mãi, e supplicou ao Divino
Mestre que lhe concedesse tal graça.
A quelle que prégara no mundo * amor filial e
moribundo na cruz, bgara ã sua mãi um segundo
hino que a consolasse, compadeceu-se daqueíle
hlho, que lhe fazia urn pedido tão de coração
e quiz satisfazei-o. Mas como a condernnada só
podia sahir do inferno por um acto de religião
que lhe apagasse as culpas, e o unico acto gene­
roso que se lhe encontrou em sua vida foi auuella
esmola da restea de cebolas, hristo permittiu
que S. Pedro a tirasse do inferno, suspendeudo-a
por aquella frágil c rda de salvação.
A

1 :Am
>v
"Ó5
1S3
0 santo assim o fez ; segurou de uma ponta
da restea e estendeu a outra extremidade ã sua
mãi, que se apegou a ella e foi subindo, susten­
tada pelo filho; quando já estavam perto do
paraizo, veiu ao espirito delia ver a distancia em
que estavam do reino das torturas, e olhou
para baixo
Só entào é que notou que outras almas, que
também expiavam suas culpas no fogo eterno,
tinham-se aproveitado do ensejo e iam agarradas
a s i ; não se desmentiu o seu egoismo terrivel;
e agitando-se e saltando para desvencilhar-se
delias, tanto fez, que partiu-se a frágil corda e o
inferno recobrou a sua preza.
Analysemos a legenda.
Esta tradícção é talvez uma phantasia sem
base do povo, que não a bebeu, por certo, nos
livros do Oriente; a mãi de S. Pedro foi talvez
uma piedosa senhora, que nunca cuidou senão
em ser mãi extremosa para seus filhos, e cuja
entrada no ceu não teria d =do f abalho algum
ao apostolo, visto ter sido anterior á sua eleição
para taes funcções.
Além dessa fa ta de base, as inverosimilhanças
formigam na legenda.
A immutabilidade divina não se compadece
com essa concessão que se attribue a Christo,
fazendo sahir urna alma do inferno ; e quando
fosse isto p íssivel, sahiria purificada e não com
uma dóse de egoismo e crueldade, que rematasse
o caso em tragédia.
Demais, uma ■estea, uma t anca de palha,
seria pouco propria para affrontar fornalhas in-
fernaes sem queimar-se, se é que já então se
vendiam cebolas ern resteas, o que ninguem sabe.
a tradicçâo é, portanto, absurda em todos os
seus pontos ; não obstante, o povo repeh-a.
Repete-a, e faz bem ; lia ndla um sentido
philosophico profundo,que se não deve despresar.
Não desafia grandes gabos que se chame mãi
de S. Pedro aos avarentos e usurários, quando
se ignora o que ella foi. Mas, para conservar-se a
moralidade da historia, ê preciso que se lhe dê
um heróe.
Fica ella nessa qualidade; a calumnia, se
existe, está attenuada com esta explicação.
conta, o jo. oocàto 8o—
^ c re s c e n ta u rn p o o to
Um principe da Italia casou-se.
Já se volver m tantos séculos sobre esta his­
toria, que ninguem sabe nem o nome do prín­
cipe, nem a epocha em que floresceu.
Foi ha muito tempo ; quando o mundo ainda
estava atraza io e os litteratos pouco tinham dito
sobre a curiosidade e a loquela femems; e taq
pouco, que o principe quiz experimentar por si
e constituir sua esposa guarda de um segredo.
Na noite das núpcias, quando se viu a sos
com ella, tomou um ar mysterioso e disse com
seried^u um grande segredo que devo con-

^ A princeza encarou-o pallida e sobresaltada.


— m o te afflijas; não é cousa que contenda
com o nosso amor e com a nossa felicidade; vi­
veremos unidos e ditosos : o meu segredo e un a
cousa indifferente. Jura-me que nao o contarás
nunca.
~ PNemTteus pais, nem ao teu confessor.
! Í elpoisbem , o segredo é este : eu ponho todos
os dias um ovo, exactamente como os de galli-
nha. E’ um capricho da natureza, que nao sei
explicar, mas dá-se comroigo.
X ouvinte abaixou os olhos; tumultuavam-lhe
«o cerebro mil pensamentos confusos.
Muito tempo depois, o príncipe, que nao
tornara a falar do caso, foi a Roma e quiz prestar
h°0 ^antQ1Padre^reoebeu-o em audiência par-
1S6
tieular e conversou largamente com elle, infor­
mando-se de mil cousas mais ou menos impor­
tantes ; mas atravez das perguntas e observações
que lhe fazia, o principe, se era perspicaz, devia
ter notado que o pontifice era presa de umapreo#-
cupaçào vivissima, que luctava por encobrir.
Afinal nào se conteve o papa que lhe não
dissesse :
Principe, neste mundo fala-se muitas vezes
errada e vãmente. Contaram-me uma cousa a
respeito de vossa alteza e eu não quiz acredital-a,
de tão extraordinaria que é. Mas aífirmaram-me
tom tal insistência...
— Que foi que disseram a Vossa Santidade ?
— Urna cousa estupenda... Mas qual ! ha de
ser inexacta por força. Disseram-me que vossa
alteza punha cem ovos por dia.
— Cem ovos ! E o principe ria-se a bom rir.
Cem ovos I Entendo o que isto significa, beatis­
simo padre. Querendo experimentar como minha
mulher guardaria um segredo, disse-lhe na noite
do nosso casamento que eu punha diariamente um
ovo. Veja Vossa Santidade o que são segredos de
mulheres! Ella jurou que nada diria; e entretanto
contou-o a alguém, que passou adeante e a no­
ticiacorreu tanto que veiu chegar aos ouvidos
de Vossa Santidade. Agora, quanto ao numero,
e que foram augmentando a conta até chegar a
essa ciira.
— E exacto, principe, acudiu o papa. Agora
e que rne recordo bem : tinham falado apenalem
noventa e nove; e eu, sem o querer, arredondei a
conta e disse eem. *
Quem conta um conto accrescenta um ponto_
hTstoria nmada que 0 povo tiro" d e m

c o n h e d °a f .S6. ‘T t o í i í * : maS ° fabulista nâ«


V o to d e M in e r v a

0 voto de Minerva, com que se desempata nos


tribunaes em favor dos réus, assenta em uma das
mais bellas e mais antigas legendas.
A guerra de Troia, esse poema das luctas dos
Pelagios com os Hellenos, teve o seu desen­
lace na destruição daquella cidade e na dispersão
de seus habitantes; mas o triumpho custou bem
caro aos vencedores.
Achilles expira na acção; Ajax morre no mar;
Ulysses vaga 10 annos de terra em terra antes de
aportar a Ithaca, e Agammemnon succumbe aos
golpes de Clytemnestra e de Egistho, cúmplice
desta no adultério.
Orestes, seu filho, decide vingal-o e levanta
mão matricida sobre Clytemnestra, depois
de ter dado a morte a Egistho.
As Furias perseguem-o de estado em estado e
na Attica é elle trazido deante do Areopago
que deve julgal-o.
Os juizes \acillam entre a hediondez do crime
e o movei que o dictou ; e quando se faz a vota­
ção secreta, a urna da morte tem tantos seixos
como a urna da absolvição.
Minerva toma do altar um dos seixos que
restam e vai depol-o na urna da vida, absolvendo
Orestes.
Desde então, diz a legenda, ficou o uso de des­
empatar as decisões em favor do réu, e a esse
voto se deu o nome da deusa.
No Areopago a praxe passou a lei escripta, e
ao archonte-rei, que o presidia, coube esse facil
dever.
O direito moderno, erguendo em principio que
a duvida fosse sempre favoravel ao accusado,
não podia deixar de sanccionar esse uso tra­
dicional.
Eis a origem e a razão de ser do voto de
Minerva.
O roto de qualidade, que alguns erroneamente
confundem com o de Minerva, tem outra signi­
ficação e outro alcance.
Em algumas associações, e nos conselhos, o
voto que cabe ao presidente, sempre que ha em­
pate, deixa-lhe o arbitrio de decidir por um ou
outro lado ; é o seu modo de pensar quem des­
empata.
TSo xoto de Minerva, não é o sentir de quem
o dá, mas ó a lei que o estabelece.
A quelle ó facultativo, esse é fixo e obriga-
torio.
O finado visconde de Jequitinhonha, a quem
pertencia o voto de qualidade, como fiscal do go­
verno, nos exames geraes de preparatórios, des­
empatava sempre pela reprovação do exami­
nando :
— F/ o voto de Minerva, dizia elle: a deusa
da sabedoria não pôde favorecer os ignorantes.
L adrar á lu a

Eis aqui um dicto que ja tem foros de fidalgo ;


ennobreceu-o a poesia.
Nas descripçòes de noite de luar, filho do Par­
naso não pócíe esquecer o latido impotente de
um fila ou perdigueiro :
A’ meia noite, quando todos dormem
E ladra á lua o solitario cão,
disse um traductor de Zedlitz.
Castro Alves foi mais longe e poz a latir uma
canzoada na sua canção dohohenvio :
Densa garôa faz fumar a lua,
Ladram de tedio vinte cães vadios.
E se, em vez dos modernos, fossemos aos an­
tigos, ja encontrávamos em Yirgilio a Ululata
Hecal e e ideia similhante em í omero. _
Fica, pois, fóra de duvida que os caes sem­
pre ladraram ao disco cheio ou meio roído cio
astro vagabundo. . . .
Apezar de sua intelligence astronomia e
cousa que nunca lhes entrou na cabeça.
Mas em quanto os pobres se estafam a latir,
perdendo o somno, a lua passa magestosa e so­
branceira, sem nem ao menos ouvir taes cla-
E que os ouvisse, não desceria a dar-lhes a
reSEisSporque, no sentido figurado, se applica ®
locucâo aos ataques impotentes dos diífama-
dores e a todos esses clamores que não merecem
re Cyrano de Bergerac conta que foi uma vez á
1Upor meio de um balão originalissimo, o nan-
190
gudo e amavel eseriptor conseguiu alar-se a taes
alturas.
0 processo explica-o elle com clareza bastante
para poder ser imitado.
Encheu muitos vidros de fumaça, atou-os em
si e como a lua attrahe tudo o que é vão como o
fumo, lá se foram machina e inventor pelo espaço
até o astro, que os recebeu e agazalhou con­
dignamente.
0 barão de Munchausen já lá tinha estado e
os heróes de Julio Verne só íoram séculos depois.
Senão, o encontro seria curioso e muito para
emoções apreciáveis.
Cyrano de Bergerac observou tudo quanto lá
havia e escreveu quanto observou; quando far­
tou-se desses estudos novos voltou á terra, rico
de sciencia.
« Mas, diz elle ao terminar a narração da via­
gem, vi-me atrapalhado nos primeiros tempos ;
todos os cães que encontrava perseguiam-me com
latidos horriveis ; sentiam em mim o cheiro da
lu a ! »
S u p p lic io d© M ezen o io
M o r tu a q u in e n im ju n g e b a t co rp o ra v iv is ,
diz Yirgilio. Elie atava os vivos aos cadaveres e
os expunha nos campos desertos á voracidade
das feras, ás torturas da forne e ao lento resfriar
ao contacto de um corpo em decomposição.
0 tyranno da Etruria teria passado clesaper-
cebido na legenda sem esse supplicio cuja inven­
ção deu-lhe a im m ortalidade-o supplicio de
Mezencio.
Que cousa tão horrivel e tão communi!
O homem cheio de nobres ardores e peiado por
uma mulher cruel e implacável a entorpecer-lhe
os vôos, a contorcer-lhe os sorrisos, a amesqui-
nhar-lhe a actividade, não é uma victima viva
dessa tortura que o prende a um cadaver inerte,
e sem calor, e sem vida ?
O que passou além do meio dia da vida e viu-
se já velho, orphão de seus filhos, não é um ente
vivo atado ás recordações afQictivas-; que o pun­
gem, e á solidão e frialdade dos tumulos que a
morte, o eterno Mezencio, cavou a seus olhos ?
i \ o tooripo dLo O uça
Entre os importantes personagens de que a
historia patria faz solemne apresentação aos
estudiosos, figura o Sr. Luiz Vahia, que em
tempo governou esta cidade.
Nesse tempo ainda não havia cidadãos livres
nem eleitos do povo ; Luiz Vahia governou, em
nome de El-Hei, seu augusto amo, aos fieis vas-
sallos desta porção colonial, que não era ainda
nem muito hal, nem heroica.
Dizer isto já é dizer muito : o governador
sobrecarregou o povo de vexações, cobrou os
tributos com toda a aspereza e recrutou que foi
um desproposito.
Isso estava no programma ; mas o que não
esperavam os nossos pacificos avós era que o
Sr. Vahia tivesse cóleras repentinas, assomos de
furor e furias de panthera ; o que os devia es­
pantar era que a auctoridade deixasse de vez
em quando a um canto o scept o do rei e to­
masse um cajado com que amolgasse as coste las
alheias.
0 governador teve a habilidade de fazer tudo
isto ; eis porque o povo chamou-o o onça.
Isso, que a principio era um incommodo ner­
voso, tomou mais tarde outras proporções, e os
frenesis degeneraram em uma cousa que se cura
hoje nos hospicios.
O Sr. Luiz Vahia endoudeceu ; mas, doudo
mesmo, continuou por algum tempo na admi­
nistração.
0 motivo é sim ples: o rei só via e só ouvia
por intermedio do seu mandatario; e como um
louco julga que só elle tem juizo, o soberano
foi dos ultimos a saber do caso.
193
Nesta occasiao é que Luiz Vahia foi verdadei-
w m en teo n fa; o alcunha vulgar lucrou era ver­
dade ante aquellas intermittendas de branduras
mírfiSd!lnr \ ’ qUe Se c?I?1Paravam ás blandicias
pcrndas e ás raivas subitas de taes feras.
in n o s depois, tendo já volvido uma geração,
conservava a legenda as historias do governador,
e quando se queria indicar que uma cousa era
velha, dizia-se logo : isso é do tempo do Onça.
Ura, muito bem, perguntará o le ito r; mas
por que e que não se diz : do tempo do Gomes
freire ou do conde da Cunha ?
lambem esses se tornaram celebres, e muito
mais^que q Luiz Vahia.
Outros tiveram alcunhas, se foi o alcunha que
minim no proverbio.
Se é pela figura triste, mais vergonhosa fez
Lrancisco de Moraes, que fugiu, abandonando a
cidade aos francezes.
Por que é, então, que o proverbio não se refere
a estes, mas ao Vahia ?
Eu lh'o explico.
Conta-se que annos depois da administração
do nosso homem, floresceu nesta cidade urn
capitão-mór José da Motta Pereira, homem rico
e importante, mas com ura fraco terrível — as
mulheres.
Imaginem a que excessos não poderia chegar!
Esse capitão-mór encarregou a uma velha
corretora de prostituição (que abundavam nessa
epocha) de levar-lhe á casa uma rapariga bem
bonita.
A velha, que via dali uma boa paga, nãotar-
pou em cumprir o encargo,e no mesmo dia con­
duziu a José da Motta uma mulher coberta com­
um veu, como então se usava, que apresentou
como uma bella moça.
O capitão-mór tomou a mão e ergueu o veu â
ií)i
iioii’oiMicpida, esperando ver alguma cousa que
u deslumbrasse.
lira uma cara enrugada como pergaminho e
abatida a lazer fugir inn coveiro.
— Pois V. promeUc-mo uma moça bonita, e
traz-me urna veih i dessas ? disse o capita o.
A corretora embasbacou a esta pergunta, íitou-
o espantada, e respondeu-lho com a maior con­
vicção possivel:
— Pois, senhor, no tempo do Lu vCilii a, era-
a melhor cara que ca bac ia.
Não sei quem se encarregou do divulgar a h is­
toria, se o iliudido galam se a velha despeitada ;
o certo é que et la espuihou-se, c poucos dias
depois já se lhe ihmm frequentes aiiusoes.
Quando se queria indicar que uma mulher
lura bonita, mas já estavadecaliida, dizia-se :
— Foi linda no tempo do Luiz Vahia.
O alcunha vulgar substituiu logo o nome do
governador : dc urna velha 1ourei ra começou-se
a dizer:
— Foi moca no t e m p o ã o O n e n .
F a locução foi-se ampliando a todos os casos
do passado c dura até hoje.
(i arantem a veracidade do caso ; mas, se o leitor
du\ ida cu não se contenta ainda com a explicação
do ditado, confesso-lhe que lho não sei dar
melhor.
D

TD tt.m íxia: o ]P a d r e - os so
'V í £3£»3?IO

0 nosso adagio é a traduc,cão um pouco livre


do írane*z : G r o s - S c a n q u i v e n t m r c m o n t r c r à
son cure.
Cmscoberta a origem deste, fica conhecida a do
P metro.
Se o facto, a que se r fere o dito, deu-se
também em Portugal ou se houve uma mera
vcrsào, é o que não soi.
fu ui tos cstarfio r.o mesmo caso ; o sobre cousas
de que nao falam historiadores nem moralistas
tem seu íogar a conjectura.
Faça cada qual a sua e contente-se com cila*
A liisíoria é a seguinte :
0 reitor de uma freguezia do campo fazia,
depois do Fvangelho, a practica do costume,
)
explicando urn dos milagres de Christo — o da
mitltip!icaçào dos pães.
Desgraçadamente, o calor cratorio fel-o con­
fundir os numeros, c o vigário atirou esta phrase
aos ouvites:
— J esus Chi isto corn cinco mil pães deu de
corner a cinco pessoas. Quem seria capaz de
fazer outro tanto?
Quando acabou-se a predica, um camponcz
andou pelos grupos a fazer os seus commentarios
e a rir-se do engano do parodio :
— 1C boa ; sustentar cinco pessoas com cinco
milpíicsl
Às boas almas que o ouviam c que nem se
davam á pena do «at tentar no caso, respond iam-
lhe a sacudir os hombros ■
190
_ Olhem só quem quer ensir.ar ao Sr. vi-
íííirio !
E o camponio narrava a novidade de casa em
casa a interlocutores, enfiados de verem um
ignorante a pretender dar quinaus ao reitor, em
cousas de egreja. . . . .
Afinal, chegou ao conh cimento do ministro
o proceder de sua presumida ovelha e o bom do
mestre planeou castigal-o com uma lição es­
trondosa. . ,
No domingo seguinte, ápractica, insistiu sobre
o milagre que antes referira, mas, emendando o
equivoco e atirando uma apostrophe, á guisa de
bala fulminante, ás barbas do camponez :
— Jesus Christo com cinco pâes susten ou
cinco mil pessoas. O’ João, e as capaz de fazei o
mesmo?
O iuterpollado não se deu por vencido e res­
pondeu-lhe corn uni cer o ar dc velhaco, que lhe
calhava como uma luva :
— Sim, Sr. v gario; susientava-as corn as
sobras do domingo passado.
Tinha ensinado o Padre Nosso ao vigário.
D o C a p i t o l i o á, r o e l i a T a v -
p ^ i li
0 Capitolio era uma das sete collinas de Roma.
As excavaçòes que nolle se fizeram, quando se
fundava apenas a cidade, dei varam a descoberto
uma cabeça,, donde lhe vem o nome ; os augures,
consultados, achavam nesse facto o symbol o de
que Roma seria sempre a calaça, do mundo.
Nesse local levantou-se o templo de Júpiter
Capitolino, protector dos romanos; e, comose
constituía assim o sanctuario principal do povo
guerreiro, era ali que se cor avam os gcneraos
vencedores em sua entrada triumphal pelas ruas
da cidade.
O rochedo inabalavel do Capitolio ficou assim
o emblema da estabilidade e grandeza romanas,
e urna figura magestosa c imponente de suas
glorias.
Ao pé alteiava-se a rocha Tarpeia.
Kra um pequeno morro, escarpado, esquecido
e sem nome a principio; mas, quando os samui­
tas pretendiam entrar em Roma, abi encontra­
ram a filha de Tarpeu, que prometteu indicar-
lhes a cnírada a troco dos hracelelcs que traziam
nos pulsos esquerdos; accordado <> ajuste, a
virgem traidora encaminhou-os pelo lado da
rocha, de cujo cimo se dominava a cidade.
Os samniías, nào precisando mais do auxilio
de tal guia, atiraram sobre elia os escudos que
traziam cubados no pulso esquerdo e premiaram
a traição com essa morte horrivcl.
Nem foi eOa a única punição da ambiciosa
Tarpeia ; os romanos, execrando-lhe a memória,
e, como evcmplo, a Iraidores futuros, deram
196 '
— Olhem só quem quer ensinar ao Sr. vi-

^ E o camponio narrava a novidade de casa em


casa a interlocutores, enfiados de verem um
ignorante a pretender dar quinaus aoreitoi, em
cousas de egreja. . . .
Afinal, chegou ao eonh cimento do ministro
o proceder de sua presumida ovelha e o bom do
mestre planeou castigal-o com uma lição es­
trondosa. . . . ,
No domingo seguinte, a practica, insistiu sobre y
o milagre que antes referira, mas, emendando o
equivoco e atirando uma apostrophe, á guisa de
baia fulminante, âs barbas do camponez :
— Jesus Christo com cinco pães susten ou
cinco mil pessoas. 0 ’ João, e as capaz de fazer o
mesmo?
0 iuterpellado não se deu por vencido e res­
pondeu-lhe com um cer o ar de velhaco, que lhe
calhava como uma luva :
— Sim, Sr. v gario; sustentava-as com as
sobras do domingo passado.
Tinha ensinado o Padre Nosso ao vigário.

m iji
1 m»
D o Oapl tolio á. Fooiia, Tar-
P ^ ia
0 Capitolio era uma das sole collinas de Roma.
As excavações que nelle se fizeram, quando se
fundava apenas a, cidade, deixaram a descoberto
uma cabeça, donde lhe vem o nome ; os augures,
consultados, achavam nesse facto o symbolo de
que Roma seria sempre a cabeça do mundo.
Nesse local levantou-se o templo de Júpiter
Capitolino, protector dos romanos; e, como se
constituía assim o sanctuario principal do povo
guerreiro, era ali que se cor avam or. genera es
vencedores em sua entrada triumphal pelas ruas
da cidade.
O rochedo inabalavel do Capitolio ficou assim
o emblema da estabilidade c grandeza romanas,
e uma figura magestosa e imponente de suas
glorias.
Ao pé alteiava-se a rocha Tarpeia.
Kra um pequeno morro, escarpado, esquecido
e sem nome a principio; mas, quando os samni-
tas pretendiam entrar em Roma, abi encontra­
ram a filha de Tarpeu, que promelteu indicar-
lhes a entrada a troco dos braceletes que traziam
nos pulsos esquerdos; accordant) o ajuste, a
virgem traidora encaminhou-os pelo lado da
rocha, de cujo cimo se dominava a cidade.
Os samnitas, não precisando mais do auxilio
de tal guia, atiraram sobre ella os escudos que
traziam enfiados no pulso esquerdo e premiaram
a traição com essa morte horrível.
Nem foi esta a única punição da ambiciosa
Tarpeia ; os romanos, execrando-lhe a memeria,
e, como exemplo, a Iraidores futuros, deram
to s
seu nome ao rochedo e estatuíram que delle se
precipitassem dahi em deante todos os traidores.
Muitos generaes que tinham s;do levados em
triumpho ao Capitolio e ahi coroados, viram-se
dias depois recusados de traição e precipitados
da rocha Tarpeia.
JVo material e no figurado a pedra da igno­
minia n o estava longe do templo do triumpho
e da gloria.
Cs te p n-amento já expressado pelos antigos
sobre tantas fôrmas, da inconstância das cousas
humanas, ligou-se a esse mages toso contraste
ma proximidade, de legares tào diversos em seu
destino, e miopíou-sc como provérbio dos mais
sábios e eloquentes essa phrase de Mirahoau:
fio Ca pit-djo a rocha Tarpeia não ha mais
de mu pmm.
N te g íiO B í d j g a : c ie s
n ã o " b o l d e r 6© !

Ninguem o diga, que ahi esBo as velhas tra­


dições populares a contar uma historia de pro­
funda moralidade.
Havia, talvez na Italia... quem podo precisar
o local onde se deu um facto dessa natureza?
Como ao nascimento de Homero n;io se lho
pode indicar logar certo e mais de sete paizes
hão de pretendcl-o.
Mas havia, talvez na Italia, iun adorador^de
Baccho, devotado ao seu. deus e tão fiei.
que não bema muito v
agua.
E evitava-a com medo, côm verdadeiro terror,
mais do que ao veneno e ás téras; era liquido
que aquelle organismo repellia, e cuja inutili­
dade, maldade até, a intelhgencia tinha assentado
nas conclusões de sua logica severa.
Esse homem tinha d ito : dessa agua não
beberei!
E fazia por cumprir a palavra e o conseguiu
muito tempo.
Mas um dia os operarios que saíram de ma-
nhan para o trabalho levantaram o cadaver de
um homem que se afogara em uma poça d agua
da rua : era o ebrio.
Se recuperou os se alidos entre o somno da
embriaguez e o somno da morte, devia ter phi-
losophado como nós sobre a fatalidade que o
atirou com o rosto na exigua lagoa e deduzir do
seu infausto passamento as considerações que
nos suggere.
300
Ou entào, que cruciante agonia não fora a sua,
sentindo-se morrer na agua que tanto detestava !
E’ o pensamento que Ariosto metrificou nestes
versos:
Come veleno e sangue viperino
L'acqua fuggia, quanto fuggir si puete :
Or quivi muore, e quel che piu Tannoia
E' sentir che ncll’acqua sene mu via.
j ustioa e in B e r lim

. Postas e historiadores de mais ou menos ly-


rismo e de mais ou menos critério teem-nos
azoinado o espirito com a historia do moleiro
de Sans-Souci.
. Frederico o Grande, da Prussia, fazia ohras
importantes no palacio real, e queria que ellas
fossem vistas de longe. Infelizmente, um moinho,
collocado em frente á Orangerie tirava-lhe a
vista, o rei mandou chamar o moleiro e quiz
comprar-lhe o moinho; offereceu alta somma por
elle e 6 lapuz recusou sempre grosseiramente.
— Sabes, disse-lhe afinal o rei impaciente,
sabes que eu poderia sem indemnizar-te, mandar
. destruir o teu moinho ?
— E’ o que eu queria v e r; ainda ha justiça em
Berlim !
E dahi nasceu uma demanda, em que os juizes
deram razão ao moleiro e condemnaram nas
custas o soberano.
Este, encantado de que em seus estados se
acreditasse na justiça e ella fosse devidamente
administrada não se enfadou com a sentença e lá
ficou de pé o moinho.
A quelle epiphonema ameaçador do moleiro —
ha justiça em Berlim ~ tornara-se desde então o
grito de energia do fraco, que vê seu direito
conculcado pela prepotência do poderoso e in ­
voca contra elle a força da lei.
E que poesias bonitas que tem inspirado esse
motte !
Infelizmente, não ha uma palavra de verdade
nesse facto interessante: foi uma phantasia, in-
Í3 0 .3
ventada unicamente para fazer crer na justiça de
0 primeiro que a contou aos povos absortos
foi um Dr. Zimmermmn, que foi chamado do
Hanover, onde residia, em 1785, para tractar de
Frederico, em sua ultima enfermidade.
Quinze dias depois do chegar a Berlim a pres­
tar sua assistência ao rei, este oxp rou e o galeno
pouco mais demorou so na cap:tab regressando
dias depois para o Hanover.
A subida honra quo receberão enchei de vai-
da de e- o Dr. Ztmrnernianii, Jembrou-se de es­
crever e tirar a publico os episodios de rua
viagem e suas conversos com u rei ; engrossou
o volume com os boatos que ouvira em Posidem
e lardeou-o dc a needed.as forjadas a d h o c : entre
essas fui a do moinho peia metade.
A historia parava na recusa energiea e bruta
do moleiro.
O poeta a'lernao Hebe!, reproduziu posterior-
mente o conto e addicion >u-iüe por conia pro­
pria o processo c a sentença.
O publico enguli a a pulha e espalhou-a como
verdade ; os poetas acharam nclla qu ilida dos
para a rima e lizerain-a soar em todos'os tens.
Não obstante, descobriu-se o embuste.
Neurnan, criado grave de Frederico, que o
distinguia entre todos os seus iam ui s, o ocupou
OS seus lazeres escrevendo memorias em que
emendou todos os erros e imposturas dc Zim-
mermam ; esse livro íicou inedito na famiJ ia a té
que em I ôuo um dos seus descendentes o o itoro cmi
ã sociedade historica de Posidam que o inseriu
em seusánnacs.
Neuman dei nara que e i o,>; a historia do
moinho e que até ci!e nao está, bem ern frente a
Orangerieç e a sociedade verificou esse ponto, e
não era diíílcil fazel-o, e correu todos os registros
judiciarios e cartórios de Berlim, ondo nào ai-hou
2>Q3
uma letíra do tal processo que Hebel autoara em
mente.
. E lá se foi pelos ares a firmeza do moleiro e a
justiça de Berlim.
Que pena! Além dessa phrase proverbial, a
aneedota ja tinha gerado um acto nobre e espi­
rituoso.
Um dos descendentes do moleiro, precisando
de dinheiro, propoz-se a vendel-o, não ha muitos
annos, a um descendente do r e i ; este respondeu
graciosamente assim :
« , caro vizinho. —F.u
i' S O i l
■ não -- posí
r -30 comprar o
seu moinho, poivjue elle lhe nào pertence, nem
viria nunca a., ser meu; pertence á historia.
Mas como os vizinhos devem-se mutuo auxilio,
envio-lhe um cneque de 10,000 florins, a o
meu. iliesoureiro pagar-J he -ha. a vista. »

/ 1
JPeloizr'Iiilio

A lar ao pelourinho da in famia, pelourinho de


reputações alheias — são expressões usuaes que
merecem uma explicação.
0 pelourinho era, outrora, o signal de juris-
dicçào do juiz ; levantava-se na praça principal
das villas que se creavam, e ainda hoje se vem
em povoações antigas.
A fórmâ era de uma columna de pedra ou de
madeira, que o mais das vezes servia de eixo a
uma gaiola giratória.
O pelourinho tinha duas explicações.
Como recordação symbolica dos" tempos, em
que se distribuia ajustiçaà sombra das altas ar­
vores, donde nascera a vara por emblema da
auctoridade, servia para serem nelle affixados os
editaes, regimentos, ordenações e sentenças.
A' publicidade o'rdenada, pela lei favorecia de
sobra a sua collocação na praça principal, a cuj >s
lados se assentavam a matriz," a municipalidade,
casas de audiências e outras repartições.
Como instrumento de penalidade,°e era este o
seu segundo emprego, era nelle que se atavam
os condemnados ao açoite, ás marcas de ferro
em braza, etc.
A gaiola giratória que fingia-lhe capitel, desti­
nava-se a uma pena especial: prendiam dentro o
criminoso e faziam-o rodar mais ou menos tempo
e com maior ou menor velocidade, segundo a
natureza e gravidade do crime.
Comprehende-se que nessas epochas em que
ainda não existia imprensa e dava-se muita so-
lemnidade à execução das sentenças ; nestas epo­
chas cm que se affixavam nos pelourinhos leis e
sentenças que contendiam com a vida da povoa*
çâo, deviam ir ali os curiosos respigar as novida­
des do dia e assistir ao apparto das penas.
As nossas locuções derivam-se dahi, vulgari­
zaram-se em face dessa columna erguida, em
torno da qual gravitavam todas as scenas de sua
existenia variada, ejã agora, abalada a institui­
ção e derrocados os pelourinhos, hão de sobre­
viver e perdurar muito as phrases que nelles
tiveram origem.
E é ; natural; não se desarraigam de um ins­
tante para outro ideias que se prendei am ao
espirito popular.
C?ao Q.IX0 Iíxd.ra iiao a io ru o

Este provérbio diz-se em todas as linguas mo­


dernas cultas e sempre sol) a mesma fórma.
E uma phrase universal da sabedoria do novo
que nao crô que desabafo por actos quem ia
desabafou por palavras. J J
Os turcos dão-lhe uma variante : sc o cão
laora a caravana passa.
0 fundo é sempre o mesmo.
iv.nTom ílf m tã° vu]gar e ®° geralmente usado,
nao devia ter uma origem historica ; formula do
1,HV0>;;ev;a scr «ma erwçilo do espirito popular
, portanto, ser anonymo o seu inventor e des­
conhecida a sua epocba.

« = s z . . n í -
1)17 P olnto Curcio: Apud Jiaclryanos rvlan
usurpabant canemtimidum intrare
quam mordere. u.uaic
l: «w para que servo a historia.
Oova do C n o o

F/ uma formula ião enorgica como esta outra :


caverna de ladroes.
A. litteratura empresta-lhe nm cunho especial
que torna menos pesada a expressão; é uma de
suas oGrandes vantagens.
o
Quanto ao historico, ó V rgilio quem so en­
carrega de trazer pela mão o Sr. Caco e aprcsen -
tal-o ás gerações embasbacadas.
Cm meio do seus doze trabalhos, Hercules
aportou ao Lacio e poz-so a criar gado de toda
a sorte. 0 seini-deus não desdenhou dessa pro­
fissão de vaqueiro, que muitos dos grandes
drums tinham exercido com mais ou menos
gloria
Mas dos animaes todos, os que mais cuidados
lho mereciam, eram as vaccas ; por isso anda­
vam nédias que era um gosto vel-as.
Vel-as e possuii-as, pensou Caco, salteador
famoso que morava perto.
E como não era sujeito de muitos escrúpulos,
foi uma noite com todas as cautelas e furtou
quantas pôde, puxando-as pel 4 cauda para que
a direcção das pegadas enganasse a Hercules.
Era uma previsão digna de melhor causa.
Hercules embaracou-se a principio,; por mais
que pensasse não pôde comprehender por onde
tinham sabido as suas vaccas.
Lá estavam ell s na cova do salteador, e este
já dava parabéns á boa fortuna quo assim 0 aim
x fiava..
ínfelizmente, quando o resto do rebanho pas­
sou por deante da caverna, as vaccas mugiram e
denunciaram o roubador, que foi logo morto
por Hercules.
E foi este o caso : a moralidade tire-a uuem
quizer.
Ir ao gallXulieiro de a lg u ém

Ir a o ' gaUinheiro de alguém é uma ameaça


terrível, ainda que esse alguém não tenha uma
só gallinha para amostra.
0 povo tem interpretado diversamente a locu­
ção ; mas a sua origem é pura e simplesmente o
que ella diz.
Nasceu em um tempo em que os ameaçados
tinham gallinhas, e os atrevidos iam empal­
mai-as. Esta explicação, paíentca-se por um
trecho do Hyssope de Antonio Diniz da Cruz e
Silva; pôde alé acontecer que esse trecho não
seja só a explicação, mas também a origem.
Ei ca a questão para a philologos mais profun­
dos. O que importa agora é a citação. 1 il-a :
O deão, aterrado com a theoria âa metempsy-
ehose, invoca o deus mysterioso da cabala, e
pede-lhe que laca transmigrar suã alma para o
corpo de certos animaes, que nomêa, concluindo
assim :
•Mas, se muito julgais o que vos peço,
Ao menos concedei-me que em fuinha
Ou matreira raposa me transtornem,
Só para do bispo ir ao gaUinheiro
1 e quantas aves lein a dar-lhe cabo.
"VeXlio oomo a sé d e Braga

Toledo c Braga-disputam entre si a prioridade


e a primasia sobre as eg rejas das Hespanhas.
Ha séculos (jue se agita a contenda e até hoje
não foi possível decidir qual a mais antiga ; os
hespanhóes pugnam pela primeira, os portu-
guezes peia ; egunda.
E’ dessa discussão que vem o simile prover­
bial :— Velho como a sé de Braga.
E’ realmente a sé mais velha de Portugal e
pretende sel-o de toda a Peninsula.
O que nao sei é se os hespanhóes dizem :—re­
lho como a sé de Toledo.
Se nào o dizem, deviam fazei-o.
O l i â l b l t ^ ii a o f a z o tiitín g a

Oa antig .s diziam : a toga de linho nao faz o


sacerdote de ísis.
Nao fior das apparc ncias é velho preceito da
experiencia do povo.
Maximas sobre maximas teem porfiado em
conveiicd-o ; c, entretanto, hoje como outr’ora
parecer equivale a ser realmente.
Vào la apresentar Homero pisando, descalço,
o pó das nossas ruas, o, quando menos, hão "de
voltar-lhe as costas e fechar os ouvidos ao divino
cantor. -
Sob a capa remendada, ninguem o receberia ;
ao passo que todos festejam o mais apoucado
espirito desde que se apresente de luvas brancas
e fato á ultima moda,
Ca neste mundo andam assim tortas as cousas,
que só a fcte lidemos ás exterioridades sem Valor.
E, entretanto, ahi está o rifão a toga de linho
não faz o sacerdote de Isis, sob mil formas di­
versas em cada lingua, a bater-nos no espirito
como um fúnebre memento e a dar-nos gui­
nadas na consciência cada vez que acolhemos
um tolo como um genio e nos mostramos
tolos em acolher os genios.
Esse adagio, popular na antiguidade, tomou
na edaclo média a formula que ainda conserva,
graças ás disputas da casuística.
Os senhores reis, que tinham então o direito
de padroado, queriam, de vez em quando, con­
ceder benefícios ecclesiasticos aos seus prote­
gidos leigos, fazendo-os receber apenas o habito
e a tonsura para evitar maiores escândalos.
As corporações religiosas ventilaram seria-
mente a questão da legalidade desse proòeder.
Escreveram-se in-folios illumina dos e volu­
mosas dissertações para demonstrar que os
benefícios seculares pertenciam aos seculares, os
regulares aos religiosos professos, e chegou-se
a esta conclusão final: o habito não faz o monge.
Do naufragio dessas eruditas polemicas sal­
vou-se só este aphorismo precioso ; e já não foi
pouco, que maiores catastrophes soffi eram oudvts
discussões.
O dito atravessou as edados o é de suppor
que os nossos bisnetos o repetirão como nós.
Ligada a elle, vá lambem esta explicação his­
torica, p an poupar aos vindouros doutas inves­
tigações, quando attentarem no caso.
Sc estas linhas forem parar debaixo dos olhos
de algum curioso do século XX, é bom que te
elle firme na convicção da verdade da origem
quo assigno ao nosso proverbio, e repilla perem­
ptoriamente urna outra explicação, que preten­
deram dar-lhe.
Pensa o padre Tuet que a locução orig"nou~se
do uso de abraçar, no ultimo quartel da vida, o
estado monastico e morrer envolvido no habito.
Desde o século Xí, muitos sujeitos, que tinham
passado a melhor parte da vida em doces lbl-~
guedos e cousas peiores ainda, empregaram este
artificio de tentar entrar no céu sob a" proteccào
de algum piedoso santo, com cujo habito"se
cobriam.
Desse facto, que não traduzia verdadeira peni­
tencia, teria nascido o proverbio d^ que o habito
não faz o monge, assim á guiza de protesto do
povo contra a hypocrita pretencão desses pa­
tuscos.
Não, meu caro padre T u et; tu cochilaste
aqui como Homero.
^0 proverbia que se derivou desse costume
não foi o que nos serve agora de titulo, não.
Foi um outro, que nós aqui, deste lado dos
mares, que nunca atravessaste, repetimos todos
os dias e alé já temos cantado em musica de
Offenbach'.
- Foi este: o diabo depois de velho fez-se frade.
Lá, em França, diz-se cousa parecida, mas
ainda não foi posta em musica,
Estamos mais adeantados.
I’] i i o o c m U o o l p au. d e la r an-
ry ; t

Uma veiha anccdota que terá sempre o seu


chiste: f
° CIira ^ unia frrgiièzia lembrou-se de levan­
t i ’ uma cruz eo largo fronteiro A matriz ; uni
camponez, que iinlia uma lellia laranjeira im-
prodactiva, cortou-a e oimreeeu-a para que fosse
convertida no sagrado lenho.
idas depois, a arvore, despida e transformada
em symbol o de fé, erguia seus braços no meio
no p; teo em írente á fachada da egreja, e lem-
j)rava aos parochianos as scenas sublimes do
Ca Iva rio.
todos quantos passavam por ella.tiravam o
rhapmi com reverencia ; só o que tinha, forne-
nuo a madeira, menosprezava a cruz e mal a
olhava. í...íe desrespeito do homem fez abalo
em fona a icegnczia e foi levado á noticia do
bom do cura,
Crrío dos sentimentos piedosos do recusado, o
pasíor aiialnii-se tarn hern com o facto e quiz
salser a razão delle ; para isso foi ter com o
camponio e perguntou-lhe sem rodeio :
— Porque, nao tiras o chapéu quando passas
por deanle do cruzeiro ? Não merece elíe a tua
at teu cã o ?
v\h! Sr. reitor: eu o conheci pau de la-
rangeira.
P como nós todos conhecemos esta historia4
sempre que vemos um homem de baixa condi­
cam elevada a altas honras, denegamos-lhes nossas
homenagens c dizemos como o villão ;
^'-,l ° conheci pau de larange ira.
E nem sempre a applicação é justa : se a gran­
deza 6 devida ao merecimento e valor proprios,
é\bem glorioso ter sido pau de la rang eira.
No caso contrario é que não: e ao parvenu
sem merito não será mau que convertam todas
as larangeiras velhas do adagio em cruzes para
carregar-lhe os hombros.
E g e ria

Nama Pompilio, que succedeu no throno ao


fundador de Roma, dedicou o seu reinado ás
instituições civis e religiosas.
Romulo se occnpara de c ear o seu estado á
custa de guerras continuas ; Numa, abrindo o
domínio da paz^ aproveitou-a para consolidar
pela crença e pelo direito esse editicio apenas
levantado.
Se era necessario que o primeiro rei fosse hel-
Jicoso, não podia vir em melhor occasião esse
politico prudente, a cujas leis principalmente
deveu Roma o seu âugmonto, e o penhor -de
sua estabilidade.
Mas e m u m nucl eo q ue se forni a ra dos sal tea-
dore3 do Lacio, homens que apenas reunira tnn
pensamento aventureiro, não era íaeil implantar
as normas da justiça em sua severa integridade :
íNuma assoberbou habilmente esse escolho.
Das crenças que enlào dominavam, e que se
prendiam em um ponto que era o principio fun­
damental do paganismo, elie conseguiu compor
uma reli grão especial para os romanos, mescla
das tradições da Grécia e das ceremonias dos
povof ítalos.
Sobre a base religiosa alteou-se logo o monu­
mento da ordem civil; para persuadir as suas
leis ao povo de Roma, Numa Pompilio assoalhou
quo era inspirado pela nympha Egeria em largos
^olloquios que tinha diariamente com cila "no
bosque sagrado.
™£°fm esse artiíl cio to&rou o intento ò foram
acceitas e respeitadas as suas decisões.
E deste facto que vem a expressão Egeria que
se applica ao que inspira a outrem as resoluções
a tomar.
O innocente embuste de Numa Pompilio foi
mais de uma vez imitado em situações analogas.
Sertorio tinha urna corsa domesticada, a quem
attribuia a primeira ideia de seus planos ; o'
animai estava tào adestrado que, muitas vezes,
quando o lusitano falava ao povo e mostrava-se
indeciso sobre alguma questão, logo galgava a tri­
buna e fingia falar-lhe ao ouvido. O orador,depois
de interromper-se por algum tempo como para
dar-lhe attençfio, continuava o discurso desen­
volvendo o projecto que lhe convinha e que era
sempre approvado pelos ouvintes maravilhados*
e ahsortos.
Mahomet fazia acreditar aos arabes que era
o archanjo Gabriel, quem lhe ensinava a rcdi-
gifio que impingia-lhes, #ora apparecendb-lhe
em sonhos, ora metamorphoseando-se em uma
pomba que ia adejando pousar-lhe na cabeça.
O kàiifa Oueai e muitos outros empregaram
meios analogos para arrogar-se o privilegio de
Qraculos do céu.
Em resumo : tem havido muitas Egerim, sob
varias formas e muitos Numas mais"ou meuos
impostores e mais ou menos ridiculos.
®
**ae*n. imwi'

Qwem escuta cle si ouvo

A razão é simples: é que quem escuta, alguma


razão tem para crer que estão falando delle; por
essa mesma razão ó elle o assumpto da con­
versa.
T. quando o não seja, como está desconfiado,
entende referir-se a si tudo quanto se lhe póde
applicar.
À Eiblia já dava esse conselho de prudência*
não se pôr ás escutas— nc fortr audias servum
iuum maledicentem, Hbi. Ecclesiast. Vlí, 22.
i lutarcho diz que os ouvidos de um curioso
Kio bombas de ar que attrahem tudo quanto ba
de mau.
Se Dionysio da Sicilia soubesse disto! Elle
que passou a vida inteira a escutar.
V á b v ig ia i?
Mais ura dito que contende com a classe dos
vadios; não sei de outra corporação que tenha
motivado tão diversos e expressivos dizeres.
Se isto é gloria, podem ieval-a inteira que
ninguém lli’a disputa.
Kdi ficava-se uma das egrejas de L islra,.n a
cidade baixa ; ao abrir dos alicerces appareceu
agua em tal quantidade que tornou-se necessario
íirmal-os com estacas, que outro meio não ha­
via de segural-os.
O labor era pesado e urgente ; os trabalhadores
empregados na obra não bastavam a executal-a
com a presteza demandada.
Uma medida administrativa, muitas vezes
usada, removeu o mal : mandaram agarrar
quantos vadios se encontrassem pela cidade o
íoiçal-os ao trabalho.
Ora, é de saber-se que as taes estacas em que
se apoiava o alicerce tinham vulgarmente o nome
de bugio, por ampliação desse termo que antes
só designava o apparelho proprio para fincai-os
na terra.
Da hi vein que a cada vadio que era apanhado
e remettido para as obras se dizia lacônica-
m ente: Vá bugiar.
E depois que se acabaram as obras e os bu­
gios, como se não acabaram os vadios, guar­
dou-se aquelía locução que redundava nesse
epitheto desairoso e continuou-se a applical-a
em homenagem ás recordações historicas da
classe e do muito que fez no fabrico das egrejas
de Lisboa.
/
F é puníoa
isto é—perfídia, m \ fé.
Para os romanos, o carthaginez era a desleal­
dade em pessoa ; das longas rivalidades sangui­
nolentas entre as duas cidades nasceu esse epi­
theto singular. F
Fé panica, oppunha-se á fé romana, expres-
san de sinceridade e 'ranqueza que o povo-rei
r.ão admittia que se contestasse. 4 P
PnnAo itCra<UroS n??dernas acolheram a locução
lio n^fr°pnraS
laoilludre diev,díí8-
íinado a tudo íIue
e deixaram eraemlegado
passar cie
migado
?ém paiai ra8 ^ CàHh*g0 era gente refalsada e
Montesquieu-foi o unico que rompeu o silencio
com esta observação impertinente •
« Foi a victoria só que decidiu que se devia
dí/^r /V' púnica e nao íé romana. »
e in sé u tem po.P3ra ^ ^ havia rom anos
A o c c a siã o f a x o l&drâo

Outros dizem que a occasião mostra o ladrão.


Não sei. -
E’ certo que o temor das penas influe em
muitos mais do que a noção do dever para evi­
tai em o crime.
Esses muitos, é natural que adiando ensejo
de furtar sem serem vistos, não o deixem passar
desaproveitado, sendo certo, entre tanto, que
nunca o buscariam seelle senão viesse ilerccer.
E* pois a occasião que os faz ladrões.
Outros guiam-se pela noção do dever, sem se
lembrarem de penas ou recompensas e nem ve­
riam a occasião se el!a hes apparecesse.
Para esses a verdade está na segunda phrase.
0 peior é que a maioria vota pela primeira e
vai nisso com os padres da Egreja que cscre-
a eram : In arca aperta diam justus peccat.
D u W iid a n a
D i i r i n d a n a era a espada de Rolando,
roi com ella a ue o ch 1 do - doze pares ndou
polo mundo t >do a partir ao meio mouros e
aereos e a derribar as arvo-e; colossaes rue
obslavam-lne ' camiuho,
Kni suas mãos era peior do ruo um exercito •
capolns, a chronica, qu> muitos c dos wais
solidos io iram aos bolos daquclia anna.
i l.is rhejpiu aliud o dia ,U quóda; o paladino
vm-se euriuTalado nos desfiladeiros de Ronce-
) au. \ ; o i jmmigns nmi aprisional-o, torlural-o
inaUI-o. *
J J j J T ili,P°1,tava ludo isso ; elle sabia que era
So uma cousa o prcoccupava, aguilhoava-lhe
O espirito : era que aquolla leal durindana fosse
oaiiit nas maos cobardes dos cont arios.
(M elno soldrdo não se alllige mais com a
lembrança de que possa ser tomada abm deira
a cuja sombra cnílorcsceram seus louros. ’
lioiaiiuo desesperou-se, abraçou pela ultima
fn íii!^ °inpa'? ,Iíierlda e resolveu-se a des-
desnõí' hI coilc'?L! 10 a'q[ini tempo ás lagrimas da
ütspeuida, índiou os olhos, alçou a espada e pre-
parou-se para descarregar um golpe sobre os
rochedos, tão forte que a despedaçasse.
braço erguido abateu-se ; e quando o guer-
rçiro abriu os olhos, cm vez das estilhas do aoo
fenda
loo e°,?lo*h
oa estiei T
ta e profunda. ° golpe fjrmai' « “>»
Mais duas vezes repetiu a manobra : os fra-
gmentos do granito voaram ao longe, alart-ou-se
a fenda; mas a espada não se quebrou.
333
Vendo então que os inimigos o alcançavam,
arrojou o corpo sobre o ferro e morreu unido
ainda áquolla que lhe fora leal companheira a
vida toda.
Os Rolandos de hoje não teem esse caracter
grandioso e cavalheiresco, que nos assombra no
antigo e impõe-nos a crença em todas as aven­
turas impossíveis de suas expedições arrojadas.
Os Rolandos de hoje só o são iío ridiculo; o
século despiu-se das couraças de ferro, e nao
admitte impunemente esse ° encarecer virtudes
ou exagerar qualidades, cujo dominio no mundo
já passou ha largo tempo.
Foi íambem a sorte da durindana ; e afora
algum leitor enthusiasta dos romances de caval-
laria ninguem emprega esta expressão com sin­
ceri jade.
Irônica é o que ella é.
AnaoI <
i©Gyges

Primeiro quo tudo é necessa io saber quem


foi este Gvires.
V ,
E’ Hcrodato quem se encarrega da sua solem-
ne apresenlaeào ; logj no liv. i, cap. 10 e seg.
d*' sua Historia app.ireee a curinsa uhysionomia
do homem.
Gyges era ministro de Candaulo, rei da Lydia.
issie Lamlauio passava a vida na inteira con-
vie^ào de que não havia mulher mais linda
que a sua.
Oue cúríe de marido ! Mesta degenerada hu­
manidade de hoje não ha nada que se pareça
com isso.
Os encantos da rainha eram o assumpto for­
çado das conversas do r e i; esse thema dava-lhe
sensações de abgria eonstaiiLs ; o que o am ar­
gurava era suppor que a sua eloquência não era
capaz de encaivar a verdadeira ideia -de tantas
peileiçòes na cabeça de Gyges, com quem pri­
vava na maim intimidadee a quem se dirimam
essas interessantes confidencias'. c
O iiiinistio não era casado; não era, pois dado
ao esposo cnthusiasfca fazer uma comparação, por
coníras te, entre aqueJie mimo que era sua mulher
e a bugia que compartilhasse o thalamo do seu
ouvinte.
Gyges também não era artista: Candaulo
perderia o seu tempo ern appellãr para a eslhetica
das estatuas de Ycnus e tirar dali um simile aue
hzesse comprehender tanta belleza.
Es!es pensamentos eram o alancear de Iodos
0111 fep coração cheio dc amor e de
vaidade. <..ozar dc tantas venturas, som ijne. nin-
pueril as invejasse, deixtva a sua felicidade in­
completa.
Uma manhan, o rei chamou o amigo e disse-
me com toda a solemnidade :
Apezar de quanto te tenho contado, não
jazes nem uma ideia approximada do que é a
rainha ; o* ouvidos são mais reveis á coaviccão
lo que os olhos ; quero que a vejas nua. Esta
noite, esconder-te-has atraz da porta do meu
quarto : has de vel-a despir-se; e quando ella
tiver deixado as roupas em uma cadeira, que
está perto da porta, e se dirigir ao leito, poderás
tacilmenie sahir sem ser visto.
O nosso histo i dor n v irta q u um discurso,
i ni que G-g s oppoi ui-e s s ob ecções ° t n ou
cissua ir 0 rei d o 'proposito firinaco com umas
razõ s - scolhi sas e tre ;.s m is f r . e s ; m s
th n:aulo insistiu e tu io se executou como es­
tava planejado.
Ho«ve só um episodio que i*ào estava o
progr rnm a: a rainha viu o ministro, no mo­
mento em que est* s hia, e comprehendeu logo
a historia; irritou-se devéras, m s fi.giu nada
ter percebido .
Candaulo dormiu essa noite m i tranquillo .
estava livre do peso com que se tinh affron-
iado inutiln ente todo o esforço
j de su; oratoria.
Ao outro dia, pela manhan, a rainha, mandou
chamar Gyges e declaroa-lhe positivamente que,
desde que a vira núa, h-vii de casar-se com
ella ou morrer.
A escolha nãoparecia diííicil; mas a primeira
proposta implicava o assassinato de Candaulo.
Gyges chamou á memoria o que tinha visto
na vespera, deu ao diabo os cuidados e á noite
foi-se postar atraz da mesma porta de onde vira
t r tinha.
Herodoto ú aqui de uma simplicidade que des­
ui i comme tarios:
236
« E quando o rei dormia Gyges, sahindo do
esconderijo, matou-o e tornou-se senhor da mu­
lher e do reino. »
Pobre Candaulo!
' Até aqui não se lobriga nem sombra de annel.
A legenda póde ser muito curiosa, mas não
explica a nossa locução.
E' preciso ir adeante.
Platão, na R e p u b l ic a , finge a historia de
outro modo. Gyges era um pastor da Lydia.
Descendo um dia por uma fenda larga e pro­
funda, que as chuvas tinham aberto no solo, en­
controu là em baixo um cavallo de bronze, em
cuja anca se achava um annel que tinha a pro-
propriedade de tornar invisivel aquelle que o
trazia.
Gyges apoderou-se do annel e com o auxilio
deste conseguiu penetrar no quarto de Candaulo,
matal-o e esposar a rainha por quem se apai­
xonara.
Esta lenda, que Cicero reproduziu em seu
tractado D e o ffic iis , III, 9., dâ a origem do nosso
proverbio.
Trazer o annel de Gyges é tornar-se invisivel,
nem mais nem menos.
O conto fabulado por Platão deu em terra
com toda a philosophia da narrativa de He­
rodoto.
Uma injustiça litteraria ! Abandonou-se a mo­
ralidade do castig} de um indiscreto, que tem
soube ser fel z eai silencio, p rasgarrar aquellr
annel absurdo, que até nos ■eixa ignoranckrcoroe
6 que Gyges soube de sua singular virtude.
E tudo isto só para ter-se o gosto de dizer que
nos perigos não ha poltrão que não possua o
c.nnel de Gyge'1.
Foi só o que se lucrou.
SProoairai a m u lH er
Foi um prefeito de policia de Paris que mimo-
seou-nos com esta phrase proverbial.
O homem encasquetou na cabeça a maxima f e
que uma mulher é sempre a causa de tu o
quanto se fa- »o mundo e não havia crime ou
desgraça alguma de que se não obstinasse a buscar
por movei uma mulher.
Commettia-se um homicidio, ás duas horas da
noite em um bairro afastado, arromb va-se uma
casa, cahia uma ponte sobre barqueiros que
vogavam por baixo: a todas essas communi-
<ações, o prefeito respondia invariavelmente :
— Procurai a mulher.
E nunca dava por finda diligencia policial
alguma sem deparar com uma mulher, causa
iiinocente ou culpada de todo o mal.
Foram uma vez participar lhe que um pedreiro
cahira de um andaime :
— Procurai a mulher.
—r Mas, senhor, em que podia influir uma
mulher em um desastre dessa natureza ?
— Procurai a mulher.
— Foi um descuido... falhou-lhe o pé ao
mudar de logar...
— Procurai a mulher, jâ disse.
Sabidas as contas, o pedreiro cahira do andaime
por ler-se enlevado na contemplação de um a
bella mulher que vira a banhar-se..
O prefeito tivera Tazão mais uma vez.
Todos riram -:e da singularidade e guardaram
essa phrace predilecta com duas accepções : ou
para exprimir que a mulher é a razão" final de
tudo quanto se practica ou com referencia ao
motor occulto e ignorado de qualquer cousa.

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