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Wiliam Felippe
A Resistência é hoje uma das mais importantes correntes políticas do PSOL. Tem
origem na corrente trotsquista fundada por Nahuel Moreno, à qual esteve filiada até
sua ruptura com a LIT – Liga Internacional dos Trabalhadores, e sua seção no Brasil, o
PSTU, em 2016.
No dia 14/7, publicaram em seu site Esquerda Online uma nota [linkar], na qual se
posicionam sobre os recentes protestos em Cuba. Destacamos os pontos, a nosso ver,
mais relevantes: “o justo protesto espontâneo foi sendo apropriado pelas forças
contrarrevolucionárias organizadas pela burguesia cubano-americana” (...) O que se
pretende, na verdade, é liquidar a soberania de Cuba e as conquistas revolucionárias
que sobrevivem, retomando o controle colonial sobre a ilha. (...) a esquerda socialista
não pode vacilar em escolher de qual lado da trincheira deve se encontrar: o da defesa
de Cuba contra as agressões imperialistas.” E concluem: “Não apoiamos politicamente
nenhum protesto que tenha ligação com os EUA e a contrarrevolução”. Ao que
acrescentam alertas ao governo cubano sobre a “desigualdade social” causada pelas
medidas pró-capitalistas que vem sendo adotadas e reivindicam que “o governo
cubano garanta as liberdades democráticas”. Esta nota, portanto, se posiciona
nitidamente contra os protestos, caracterizando-os como contrarrevolucionários e
dirigidos pela burguesia cubano-americana, e se perfila ao lado do governo e do
regime cubano, que estariam defendendo Cuba de um ataque imperialista. Em suma,
trata-se da mesma posição expressa pelo bloco estalinista-castrista-chavista (que
analisamos na primeira parte deste artigo – LINKAR), adornada com “críticas” e
“conselhos” ao governo de Días-Canel. A Resistência busca justificar esta política com
base em dois artigos publicados por Gabriel Casoni e Valério Arcary.
De nossa parte, entendemos que é preciso definir o caráter da economia cubana como
capitalista a partir da caracterização de sua dinâmica: o “polo capitalista”, quer dizer, a
inserção subordinada e dependente no mercado mundial capitalista e o
desenvolvimento de relações sociais capitalistas no interior da ilha, já são os fatores
dinâmicos da economia e se impõem sobre os setores estatais da economia. É este
avanço destruidor do capitalismo sobre as conquistas da revolução de 1959 que obriga
as massas trabalhadoras a sair à luta em defesa de suas condições de vida e de
trabalho e de seus direitos sociais.
Durante um certo período, marcadamente até meados do século passado, frações das
burguesias da América Latina e de vários países dependentes no mundo, que
buscavam alavancar um “desenvolvimento nacional”, às custas de impor certos limites
ao imperialismo, impulsionaram a criação de empresas estatais para colocar o Estado a
serviço de seu projeto. No Brasil, Getúlio Vargas deu início a esta política econômica
com a criação de várias empresas estatais, como a CSN – Companhia Siderúrgica
Nacional, a Companhia Vale do Rio Doce, a FNM – Fábrica Nacional de Motores e a
Petrobrás. Até mesmo a ditadura militar criou empresas estatais, a exemplo da
Embraer e da Telebrás. Processo semelhante ocorreu no México, na Argentina, na
Venezuela, e inúmeros outros países. As antigas empresas estatais siderúrgicas
brasileiras, hoje privatizadas, a exemplo da CSN, vendiam as matérias primas de aço a
preço subsidiado pelo Estado, para alavancar os lucros do setor automotivo. O Banco
do Brasil é utilizado até hoje para fazer empréstimos bancários aos grandes
latifundiários e ao agronegócio, “empréstimos” que nunca são pagos integralmente,
gerando periodicamente a "rolagem" e "anistia" destas dívidas, o que, na prática,
significa um subsídio do Estado para a acumulação capitalista nestes setores.
Estas mudanças levaram a uma inversão completa do papel social das empresas
estatais, que se transformaram no principal instrumento manejado pela burocracia do
estado cubano para impulsionar a abertura da economia aos capitais privados
internacionais e para o apoio ao desenvolvimento de empresas capitalistas no país.
O bloqueio econômico, imposto a partir de 1962, foi a resposta dada pelo imperialismo
ianque às medidas socialistas adotadas pela direção da Revolução Cubana. A
belicosidade contrarrevolucionária dos Estados Unidos foi determinante para que os
objetivos meramente nacionalistas burgueses do Movimento 26 de Julho fossem
ultrapassados, fazendo a revolução avançar na direção do socialismo. Hoje, o bloqueio
segue impondo muitas restrições à importação de mercadorias vitais para a sociedade
cubana e também à exportação de produtos da ilha. Por esta razão, a luta pelo fim do
bloqueio é levantada por toda a vanguarda da classe trabalhadora em nível mundial.
Contudo, é preciso entender o bloqueio no novo contexto criado pela restauração do
capitalismo em Cuba.
Casoni se dedica pouco a esta análise, todavia, identifica duas classes sociais que se
beneficiariam com o avanço do “setor capitalista”: os pequenos proprietários e
trabalhadores por conta própria que vivem em Cuba; e a burguesia cubano-americana
que emigrou para a Flórida após a Revolução Cubana. Veremos, mais adiante, que se
esquece da classe ou fração de classe mais importante. Mas, comecemos pela análise
dos setores que ele identifica.
Além destes dados quantitativos, Feinberg aponta também o papel ativo dos novos
empresários cubanos em alavancar seus negócios se aproveitando das propriedades
estatais, seja através de aluguéis de imóveis do Estado para estabelecer seus negócios,
seja através de intercâmbios com empresas estatais para o fornecimento de insumos
ou para a venda de seus produtos e serviços.
Em fevereiro deste ano, o governo de Díaz-Canel ampliou de 127 para mais de 2000
atividades profissionais que podem ser oferecidas através de pequenos negócios e
trabalhadores autônomos. [https://www.moneytimes.com.br/cuba-abre-espaco-para-
pequenas-empresas-privadas-na-maior-parte-dos-setores/] e logo após os protestos
de 11 de julho, foi aprovada a permissão para a formação de pequena e médias
empresas e para o desenvolvimento de cooperativas não agropecuárias e dos
trabalhadores autônomos ou por conta própria.
[https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2021/08/07/interna_internacional
,1293699/cuba-legaliza-pequenas-e-medias-empresas.shtml]
Estes fatos e números dão conta da expansão acelerada das relações sociais e
econômicas capitalistas na ilha. E quando falamos em relações sociais capitalistas, é
preciso não esquecer de que falamos de relações de exploração de uma classe sobre a
outra. Estas relações de exploração se intensificam em Cuba a partir da flexibilização
da legislação trabalhista para a contratação de trabalhadores pelas grandes empresas
imperialistas ou de capital misto (estatal + imperialista) instaladas no país, assim como
pelas pequenas e médias empresas e cooperativas. Sob a rubrica de trabalhadores
autônomos, esconde-se que uma parte destes autônomos são patrões, e outra parte é
composta de assalariados que trabalham para estes patrões.
É preciso também explicar por que um número crescente de pessoas se vincula à
iniciativa privada, sob as mais variadas formas, e quais processos econômicos e sociais
dão base ao desenvolvimento destas relações e qual é o papel político do Estado como
incentivador delas.
Através deste mecanismo social está se formando e desenvolvendo uma nova classe
média, uma nova pequena burguesia e uma nova burguesia em Cuba. A burguesia
cubano-americana se encontra marginalizada deste processo, devido à política dos
seus setores mais reacionários que ainda prevalece. A restauração capitalista se deu
não pelas mãos da antiga classe dominante, mas pela ação de setores sociais no
interior de Cuba, como vimos. E há um setor social que ocupa um lugar privilegiado
neste processo de estratificação de classes: a burocracia estatal e a alta cúpula do
Estado cubano, que detém o monopólio do poder político, formula a política
econômica do regime e que, pelo controle que exerce sobre as empresas estatais, se
beneficia da associação com as empresas imperialistas, fator chave da restauração
capitalista em curso.
Porém, por incrível que pareça, nas análises de Casoni, a burocracia castrista não
aparece como beneficiária da expansão do “polo capitalista” na ilha. No seu esquema
teórico a burocracia estatal sequer existe como setor social, está oculta atrás das
categorias abstratas de “regime” e “estado”. Segundo ele “a liderança do Partido
Comunista Cubano (PCC), que detém o monopólio do poder político na ilha, defende e
patrocina as reformas pró-capitalistas até certos limites cruciais, como a preservação
da propriedade estatal sobre a maioria dos principais meios de produção e
distribuição”. (...) Ante a estratégia comum do imperialismo estadunidense e da
burguesia cubana emigrada, a governo cubano é impelido a travar o processo de
transição ao capitalismo em seus limites críticos.” E conclui que “o Estado cubano é
indutor da transição capitalista deflagrada e, ao mesmo tempo, obstaculizador do
avanço dela”.
Esta caracterização de Casoni de que a burocracia castrista tem uma dupla natureza,
pró-capitalista, por um lado, e pró-socialista, por outro, não é nada nova, é tomada de
empréstimo das elaborações de Ernest Mandel e de outras direções trotsquistas que
capitularam ao castrismo e ao estalinismo no passado. Nahuel Moreno, em sua obra
Teses para a atualização do Programa de Transição, tese XIII, faz uma análise
sociológica brilhante sobre o caráter de classe da burocracia dos antigos estados
operários, incluída a burocracia castrista, desmontando a tese da “dupla natureza”.
16/8/2021