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93 f.
CDD – 363.2
Sou grato aos meus pais pela dedicação e por seus esforços em me oferecer a melhor educação
que podiam.
Sou grato ao Heitor, meu amado filho, por me alegrar diariamente com sua felicidade
contagiante.
Sou grato a Raquel, minha esposa, pela companhia, dedicação e amor nos mais de 20 anos
juntos.
Sou grato a Dra. Célia Cristina, responsável pelo meu desenvolvimento racional e pela
orientação e ajuda que possibilitou a conclusão desse trabalho.
Sou grato à minha orientadora, Dra. Joana da Costa Martins Monteiro, pelo cuidado e pela
dedicação diligente, mesmo com o enorme desafio de aceitar a orientação de uma pesquisa em
andamento.
Sou grato ao Coronel e Dr. Márcio Pereira Basílio pelas diversas horas de orientação e por ser
um comandante com entendimento acadêmico suficiente para que eu pudesse cursar o Mestrado
e concluir a pesquisa.
Sou grato ao meu atual chefe Coronel e Dr. Max William pelas conversas e críticas construtivas,
e, ainda, por entender as dificuldades da reta final do mestrado, disponibilizando o tempo
necessário para a conclusão.
Sou grato ao Dr. Renato Lima por aceitar participar desta banca de mestrado.
Sou grato aos integrantes da Banca de defesa desta Dissertação, por dedicar seu tempo ao
desenvolvimento científico do país.
Sou grato à FGV e ao seu corpo docente por proporcionar um curso de excelente qualidade.
Sou grato à Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro e todo o seu efetivo por tornar essa
pesquisa possível.
RESUMO
Objetivo – Este estudo tem como objetivo analisar a prevalência do ethos guerreiro entre
policiais militares do Rio de Janeiro. Analisa-se a cultura policial militar, e a percepção do
policial militar no exercício de sua função frente à concepção de uso moderado da força.
Metodologia – Realizamos um levantamento bibliográfico e uma pesquisa survey, com 1164
policiais militares.
Resultados – A pesquisa concluiu que o ethos guerreiro é uma perspectiva hegemônica
prevalente entre policiais militares do estado do Rio de Janeiro. Em particular, as afirmações
dos policiais indicam a prevalência de uma cultura de combate ao inimigo, que alimenta o ideal
do ethos guerreiro. Por outro lado, houve elementos para afirmar a existência significativa de
sujeitos alinhados com a perspectiva de segurança pública cidadã.
Limitações – O limite prático do método é a impossibilidade de saber se os policiais que
responderam são representativos da visão geral da Polícia Militar do estado do Rio de Janeiro,
dado que só um percentual respondeu à pergunta. Outra limitação é que, apesar de esse ser um
pensamento relevante na Corporação, nada pode ser dito sobre como ele foi constituído, em
particular se a PMERJ cria esse ethos ou se seleciona pessoas com esse tipo de pensamento.
Contribuições práticas – A compreensão acerca dos fundamentos ideológicos que sustentam
a cultura policial militar, auxilia no entendimento da prevalência de uma cultura de combate o
inimigo, abrindo espaço para a implantação de políticas públicas específicas, como a criação
do perfil profissiográfico sugerido nessa dissertação, que pode contribuir para mitigar a
ideologia de combate prevalente na Instituição.
Contribuições sociais – Explicar aspectos culturais institucionais e desmistificar discursos
presentes no senso comum é uma forma de contribuir para o desenvolvimento de uma
perspectiva de segurança pública mais alinhada com os Direitos Humanos e com o Estado
democrático.
Originalidade – Esta é uma pesquisa inédita, uma vez que não encontramos publicações de
pesquisas que analisem a prevalência do ethos guerreiro na percepção do policial militar sobre
sua própria atividade, em nenhum estado do território nacional.
Palavras-chave: ética policial militar; cultura policial; uso excessivo da força; violência
policial militar; Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro.
Categoria do Artigo: Dissertação de Mestrado
ABSTRACT
Purpose - This study aims to analyze the prevalence of the warrior ethos among military police
officers in Rio de Janeiro. The military police culture is analyzed, and the perception of the
military police in the exercise of their function in the face of the concept of moderate use of
force.
Methodology – We carried out bibliographic and documentary research and a survey with 1164
military police officers.
Findings - The research concluded that the warrior ethos is a hegemonic perspective prevalent
among military police officers in the state of Rio de Janeiro. In particular, the police officers'
statements indicate the prevalence of a culture of fighting the enemy, which feeds the ideal of
the warrior ethos. On the other hand, there were elements to affirm the significant existence of
subjects aligned with the perspective of citizen public security.
Research Limitations - The practical limit of the method is the impossibility of knowing
whether the police officers who responded are representative of the general view of the Military
Police of the state of Rio de Janeiro, given that only a percentage answered the question.
Another limitation is that, despite this being a relevant thought in the Corporation, nothing can
be said about how it was constituted, in particular if the PMERJ creates this ethos or if it selects
people with this type of thought.
Practical contributions – Understanding the ideological foundations that support the military
police culture helps to understand the prevalence of a culture of fighting the enemy, opening
space for the implementation of specific public policies, such as the creation of the professional
profile suggested in this dissertation, which can contribute to mitigate the ideology of combat
prevalent in the Institution.
Social contributions - Explaining institutional cultural aspects and demystifying discourses
present in common sense is a way of contributing to the development of a public security
perspective that is more aligned with Human Rights and the democratic State.
Originality – This is an unpublished research, since we did not find research publications that
analyze the prevalence of the warrior ethos on the military police officer perception of his own
activity, in any state of the national territory.
Keywords: Military Police Ethics; Warrior ethos; Police Culture; Excessive use of force of
force; and Military Police Violence.
Paper category: Masters Dissertation.
LISTA DE SIGLAS
BA Bahia
DF Distrito Federal
EB Exército Brasileiro
EMG Estado Maior Geral
IN Instrução Normativa
MG Minas Gerais
PA Pará
PB Paraíba
PE Pernambuco
RJ Rio de Janeiro
RP Rádio Patrulha
SC Santa Catarina
SP São Paulo
INTRODUÇÃO ....................................................................................................................... 15
Capítulo 1 – Metodologia ........................................................................................................ 17
1.1. Objetivos da pesquisa ............................................................................................ 18
1.1.1. Objetivo Geral: analisar a prevalência do ethos guerreiro sobre a percepção
do policial militar no exercício de sua função. ................................................................ 18
1.1.2. Específicos: ......................................................................................................... 18
1.1.2.1. Revisar o conceito de ethos guerreiro através de produção científica e teórica
sobre cultura no trabalho policial militar; ...................................................................... 18
1.1.2.2. Explicar os parâmetros legais nacionais e estaduais para atuação das polícias
militares e da PMERJ; ...................................................................................................... 18
1.1.2.3. Examinar os protocolos da PMERJ para atuação na preservação da ordem
pública com uso da força;.................................................................................................. 18
1.1.2.4. Analisar a compreensão do policial militar acerca de sua atividade laboral
frente ao desenvolvimento do Estado democrático; ....................................................... 18
1.1.2.5. Investigar os motivos de possível inadequação entre o comportamento de
combate do policial militar e os limites impostos por pactos internacionais no uso da
força pelo Estado. ............................................................................................................... 18
1.2. Hipóteses ................................................................................................................. 18
1.3. Pesquisa Survey ...................................................................................................... 19
1.4. Levantamento Bibliográfico .................................................................................. 21
Capítulo 2 – Referencial Teórico............................................................................................ 25
2.1. Ética e o Ethos Guerreiro ...................................................................................... 25
2.2. Cultura Policial Militar ......................................................................................... 29
2.3. Força Policial, Direitos Humanos e Estado Democrático de Direito................. 31
2.4. Temáticas presentes na produção acadêmica levantada .................................... 35
2.5. Segurança Pública, Polícia Militar e Marcos legais ............................................ 40
2.5.1. Modelos de Patrulhamento ............................................................................... 46
Capítulo 3 – Ethos guerreiro e a atividade policial militar no Rio de Janeiro ..................... 51
3.1. Perfil dos policiais participantes ........................................................................... 51
3.2. Percepção do Policial militar sobre a sua própria função.................................. 59
CONCLUSÃO ......................................................................................................................... 84
REFERÊNCIAS...................................................................................................................... 89
15
INTRODUÇÃO
As polícias militares brasileiras têm sua origem na Guarda Real de Polícia (GRP),
instituída em 1809, no Rio de Janeiro, com a chegada da Família Real no Brasil. Sua
organização hierárquico-disciplinar, a partir do início do século XX, passa a ter como modelo
as Forças Armadas, tornando-se braço do Exército Brasileiro (EB), o que afetou seu desenho,
formação e visão. Esse fato impulsionou, desde sua criação, a formação dos policiais militares
a partir de uma pedagogia pautada na lógica do combate ao inimigo, minimizando a ideia de
proteção do cidadão e de guardião do Estado.
O objetivo dessa dissertação é identificar qual prevalente segue essa visão da cultura
do ethos guerreiro sobre a percepção do policial militar no exercício de sua função de defensor
da cidadania. Para isso, o método escolhido para alcance dos objetivos da pesquisa partiu de
uma pesquisa bibliográfica e survey, cujos instrumentos de coleta foram a documentação, o
levantamento e questionário aplicado a policiais da PMERJ. A partir da documentação,
construímos uma bibliografia que nos auxiliou tanto na construção do referencial teórico,
quanto na revisão de literatura e na análise de documentos institucionais que serviram de base
para compreensão dos parâmetros oficiais da PMERJ inerentes à problemática investigada.
Essa dissertação está organizada da seguinte forma. Além dessa introdução, o primeiro
Capítulo, descreve a base conceitual do quadro teórico necessário para discussão do assunto
com a ideia de ethos guerreiro, além dos resultados da revisão de literatura realizada a partir da
coleta e sistematização dos trabalhos acadêmicos encontrados. O segundo Capítulo, contém a
organização da metodologia utilizada na pesquisa. O terceiro Capítulo, contém a análise dos
resultados do levantamento realizado a partir de questionários aplicados a mais de mil policiais
militares do Rio de Janeiro. Nesse questionário, buscamos compreender o entendimento desses
policiais acerca de seu perfil profissional. Para isso, foram organizadas 24 questões, distribuídas
em dois eixos. O primeiro eixo de questões foi organizado para entender o perfil do participante
da pesquisa e o segundo eixo para coletar dados sobre o entendimento desse policial acerca de
sua própria atividade e da função do policial em um Estado democrático.
Capítulo 1 – Metodologia
militar e os limites impostos por pactos internacionais no uso da força pelo Estado. Esse
questionário também foi útil para analisar a prevalência do ethos guerreiro sobre a percepção
do policial militar no exercício de sua função.
Entendemos que o limite prático do método adotado pode ser conferido pela ascensão
hierárquica do pesquisador sobre os participantes do questionário, à medida que esses viessem
a apresentar certas respostas por receio, e, ainda, não dizerem o que pensam de fato sobre o
tema. Nossa ação para mitigar essa possibilidade foi a adoção do anonimato total dos
participantes da pesquisa. No entanto, essa decisão impôs outro limite prático à pesquisa, uma
vez que isso possibilita a participação de público não policial militar, ainda que tenhamos
adotado o recurso de envio apenas pelo e-mail pessoal dos policiais militares do Rio de Janeiro.
1.1.2. Específicos:
1.2. Hipóteses
na hierarquia e disciplina reduzem a possibilidade de uma abordagem mais franca, por temor,
por parte daqueles que estão em condição hierárquica inferior. Ainda mais, pelo fato deste
pesquisador ocupar o segundo posto mais alto na hierarquia institucional. Nesse sentido, ainda
que o anonimato imponha limites no que diz respeito ao grau de confiabilidade da pesquisa,
pela dificuldade de garantia total de que o participante seja policial militar, entendemos que
essa escolha poderia contribuir mais com a compreensão da realidade concreta que a aplicação
de entrevistas. Para evitar que pessoas externas, que não fossem policiais militares,
respondessem ao questionário, enviamos o formulário para os e-mails pessoais de todos os
policiais militares cadastrados nos sistemas de pessoal da PMERJ.
Outro aspecto importante, é que esta pesquisa foi autorizada pela instituição, em
atenção à solicitação formal deste discente, conforme SEI-350503/000973/2021-CAEs, tendo
sido publicada a Nota EMG/Sec nº 384, de 06 de outubro de 2021, no Boletim da PMERJ nº
28, de 07 de outubro de 2021.
SCIELO; 2
BDTD; 19
Catálogo de Teses
Periódicos CAPES; e Dissertações; 31
62
para os termos “ética policial militar”, “virilidade policial militar” e “abuso de poder policial
militar”. Portanto, o resultado foi obtido a partir da consulta realizada com os termos: “cultura
policial militar”, “ethos guerreiro”, “uso excessivo da força” e “violência policial militar”,
conforme pode ser observado no Gráfico a seguir. Esse levantamento demonstrou que as buscas
a partir da palavra-chave “ethos guerreiro” retornou o maior número de produções científicas
nas bases de dados selecionadas, seguido de “uso excessivo da força”.
40
35
30
25
20
15
10
0
"Ethos guerreiro" "Uso excessivo da Força" "Violência Policial Militar" "Cultura policial militar"
A análise geográfica das produções acadêmicas sobre cultura policial levantadas nesta
revisão de literatura evidenciou que mais de 50% desses trabalhos foram produzidos na região
24
sudeste, seguido pela região nordeste. Os estados de São Paulo e Rio de Janeiro são os que têm
se destacado em número de produções científicas sobre o tema, conforme pode ser observado
no Gráfico a seguir.
12
12
10
4 4 4
4
3
2 2 2
2
1 1 1 1
0
SP RJ PB DF BA RS SC MG GO CE PA RN PE
Fonte: elaborado pelo autor.
A etimologia da palavra ética tem origem no grego antigo que possuía duas variantes:
eqoV (ethos – hábito) que apresenta relação com hqoV (éthos – caráter) uma ligeira variação
morfológica, que modifica a letra grega e pela letra h (ARISTÓTELES, 2007). Entretanto,
importante na formação originária da palavra, já que a palavra hábito é definida pelo dicionário
Aurélio como uso, costume, maneira de viver, modo constante de comportar-se, de agir; e a
palavra caráter o mesmo dicionário define como conjunto de qualidades boas ou más que
distinguem uma pessoa ou povo, gênio, índole, humor, temperamento.
Segundo Alba Zaluar, o conceito de ethos guerreiro está expresso em situações nas
quais “seres humanos matam-se entre si por considerarem rivais como inimigos, agredindo-os
com variáveis graus de ferocidade e crueldade” (ZALUAR, 1994, p. 33). Essa percepção, no
entanto, é mais aprofundada em Elias (1997). Para esse autor, o “ethos guerreiro” é um modo
de ação caracterizado por um código de guerra composto por valores de caráter militaristas e
de honra, em que os indivíduos consideram os rivais como inimigos a serem mortos sem
compaixão (ELIAS, 1997). Desta forma, a teoria da formação subjetiva do “ethos guerreiro”,
pensada por Elias (1997), é fundamental para analisarmos o contexto de violência que vivemos
no Brasil atualmente.
26
Elias (1997) afirmou que havia uma tendência de longo prazo para a elaboração e o
refinamento das maneiras no Ocidente. Ele definiu a civilização em termos amplos, incluindo
o nível de desenvolvimento de uma sociedade; suas ideias e costumes religiosos; seus níveis de
limpeza e higiene corporal; sua abordagem aos esportes; seu nível de compreensão científica;
seus padrões de classe, gênero e raça; e as formas como as pessoas preparam os alimentos, entre
outros fatores. Segundo Elias (1997), a noção de civilização passou a representar a
autoconsciência do Ocidente. A ideia de civilização foi elaborada por uma classe média em
ascensão, que a formulou em contrapartida à sua ideia de barbárie.
O código burguês, que tinha sido outrora contra a corte e orientado para a igualdade
social, estava impregnado mais do que nunca de elementos oriundos do código
monárquico-aristocrático, o qual, de acordo com a situação social e a tradição do seu
estrato proponente, era orientado para uni ethos guerreiro, para a manutenção da
desigualdade entre as pessoas, para julgar que os mais fortes são os melhores e, assim,
para a implacável dureza da vida (ELIAS, 1997, p. 66).
27
Para Zaluar (1994) a ideia de virilidade destrutiva fundamenta o “etos guerreiro”. Com
base nesse ethos, ela argumenta, que um homem não pode deixar provocações ou ofensas sem
resposta, mas em vez disso, espera-se que reaja com uma resposta violenta contra seus
28
oponentes. E ainda,
Pierre Bourdieu (1989) entende que todo poder é violento, tendo em vista a violência
simbólica intrínseca a ele, tendo em vista o ocultamento do real através de um imaginário
coletivo introjetado no sujeito. Assim, a dominação masculina se origina no poder, ou seja,
ethos da masculinidade, impelindo ao homem o lugar de dominador (Bourdieu, 1989). Joseph
Vandello e Dov Cohen (2003) descreveram essas tendências como uma “cultura de honra”
masculina, na qual os homens usam a violência em competições por honra e prestígio e que os
insultos exigem violência como meio de restaurar a posição social.
Assim, a cultura policial militar é sempre atravessada pelas múltiplas identidades que
essa ideia carrega: o modo de ser militar, o modo de ser policial, o modo de ser trabalhador, o
modo de ser brasileiro etc. Muitas vezes essas ideias nem sempre foram vividas, apenas fazem
parte do inconsciente coletivo identificado por Carl Jung.
Robert Reiner (2004) entende exatamente que a cultura da polícia não é monolítica, e
que as experiências trazidas pelos policiais antes de serem policiais acabam se amalgamando a
cultura institucional.
A cultura da polícia – como qualquer outra, não é monolítica, embora certas análises
tenham tido a tendência de retratá-las assim (por exemplo, Crank, 1998). Há variantes
particulares – "subculturas” – que se podem distinguir no interior da cultura policial
mais geral, geradas por experiências distintas associadas a posições estruturais
específicas, ou por orientações especiais que os policiais trazem de sua biografia e
histórias anteriores. Somado a isso, entre as forças, as culturas variam, modeladas por
diferentes padrões e problemas de seus ambientes, e pelos legados de suas histórias.
Apesar disso, pode-se argumentar que as forças policiais, nas democracias liberais
modernas, vêem-se frente a frente coma as mesmas pressões básicas similares que
modelam uma cultura distinta e característica em muitas partes do mundo, mesmo
tendo ênfases diferentes no tempo e no espaço, e variações subculturais internas.
(REINER, 2004, p. 132).
Além disso, há que se considerar que a cultura policial militar está fundamentada em
uma cultura anterior, de ordem milenar, que é a própria ideia do ser militar, com todos os entes
que esse termo carrega. A lógica militar não apenas valora ideias como heroísmo, virilidade,
força, combate como atributos masculinos, mas também rechaça seus antônimos como
sinônimos de fraqueza, impureza, inferioridade. Com base nesses atributos, espera-se do militar
que ele seja uma espécie de homem máquina, que não tenha medo da morte, que esteja pronto
para aniquilar seus inimigos (MUNIZ, 2001; DA SILVA, 2014; CASTRO, 2004). Nesse
sentido, conceito de militarismo como cultura aponta direções para compreensão da ideia de
cultura policial militar, a partir do entendimento de que o militarismo:
em prol do objetivo final que é derrotar o inimigo e sua vontade deve ser submetida à
obediência irrestrita e servidão aos superiores e ao Estado (VEIGA; SOUZA, 2019,
p. 11).
Conceitos até aqui tratados como violência e ethos guerreiro nos trazem ideias sobre
certos comportamentos sociais que ameaçam a prática cotidiana democrática. Diante disto, é
essencial pensarmos como é formado o Estado Democrático de Direito e como instituições
políticas, como a Força Policial, são ferramentas que nos ajudam a fortalecer ou enfraquecer
regimes democráticos.
apenas em um sentido limitado. Nos Estados de massa modernos, a força parlamentar depende,
segundo o autor, de várias condições, além do sufrágio igualitário e universal. Essas condições
são, em primeiro lugar, uma competição institucionalizada entre partidos políticos e entre seus
dirigentes, para selecionar os dirigentes mais talentosos e dar-lhes formação política. Além
disso, a responsabilidade do Governo perante o Parlamento e, indiretamente, perante o
eleitorado. E, finalmente, alguma representação política do eleitorado para impedir o completo
domínio da administração pública e dos interesses capitalistas por parte da administração
pública e dos interesses capitalistas (WEBER, 1978).
Para pensar os direitos humanos, podemos citar Henry Dunant. Como fundador da
Cruz Vermelha Internacional, Dunant nos ajuda a pensar os princípios humanitários em
contextos de conflitos. A instituição foi criada por Dunant em meio Batalha de Solferino entre
as tropas do Império Austro-húngaro e da Aliança Franco-Sardenha com o objetivo de amenizar
o sofrimento das vítimas da guerra. Assim é estabelecido o direito humanitário, ou seja, regras
específicas relativas à proteção e à assistência a categorias específicas de pessoas vulneráveis
(civis, doentes e feridos e pessoas privadas de liberdade) em situações de conflito armado.
Norberto Bobbio (2000) aponta que os ideais liberais e democráticos passariam a andar
de mãos dadas, na medida em que a liberdade (como destino comum dos homens) e a igualdade
(como intervenção do povo para definir a orientação da sociedade) se tornassem compatíveis
com eles. Embora o autor estabeleça diferenças conceituais entre democracia e liberalismo.
Os modernos liberais nasceram exprimindo uma profunda desconfiança para com toda
forma de governo popular, tendo sustentado e defendido o sufrágio restrito durante
todo o arco do século XIX e também posteriormente. Já a democracia moderna não
só não é incompatível com o liberalismo como pode dele ser considerada, sob muitos
aspectos e ao menos até um certo ponto, um natural prosseguimento (BOBBIO, 2000,
p. 37).
Esta exposição apoia-se no recurso à explicação de uma dupla diferenciação: que não
se trata apenas de categorias políticas que têm tempos históricos distintos, mas que a separação
que existe entre elas tem a ver ao mesmo tempo com a concepção e experiência da liberdade,
aspecto que representa um distanciamento entre as civilizações antigas e modernas, mas
também tem a ver com o significado conceitual que o liberalismo político e a democracia têm.
Enquanto o primeiro está nas terras da restauração do senso de independência individual, a
segunda o faz do igualitarismo.
Em sentido geral, o liberalismo surge então como uma filosofia de mudança, como
uma espécie de pensamento que provoca (ou fomenta) transformações e que adota posturas
progressistas capazes de quebrar todos os fatores que tendem a paralisar o pensamento e a
sociedade (ideologia do progresso). Mas em um sentido mais específico, isto é, mais político,
o liberalismo se tornará uma filosofia sobre o indivíduo (como sujeito) e a liberdade humana
(como princípio) uma filosofia institucional sobre a forma do Estado. Para Bobbio esta é uma
34
De modo que, quando Bobbio menciona o Estado liberal, se refere a um ponto de vista
doutrinário, segundo o qual o poder, entendido em sentido neutro, isto é, independente de quem
o exerce, deve ser limitado (em seu uso e funções). Nestes termos, a identificação do Estado
liberal como Estado limitado materializa-se no Estado de Direito (ou Estado constitucional),
que se rege pelas leis, pela supremacia das normas superiores (as leis fundamentais) criadas
pelos homens e que estão contidas nas Constituições políticas (segundo uma positivação
extensiva aos direitos naturais). Nesse sentido, a estrutura do Estado moderno é composta por
funções básicas, que, segundo Weber (1978), sem elas não haveria Estado: Função legislativa;
a Polícia; a Justiça; e a Administração Militar.
Para Reiner (2000) polícia e policiamento são objetos distintos, em que polícia é uma
instituição formal, enquanto policiamento é um conjunto de processos com funções sociais
específicas. Para o autor, a sociedade moderna possui um certo “fetichismo da polícia”,
vinculando a ordem social a sua existência, concluindo que sem a instituição policial o caos se
instalaria automaticamente.
Sobre a estrutura policial, a democracia e a política, Robert Reiner (2000) analisa que
a polícia, seja qual for sua ideologia, não deveria ser nem da burguesia nem da classe
trabalhadora. Ela deveria ocupar um lugar contraditório na estrutura de classes. Enquanto seu
papel social e político sublinha a ideologia política e as iniciativas descritas por Weber (2011),
ao mesmo tempo suas condições de assalariados sujeitos ao controle gerencial exercem pressões
35
Assim, ser um líder da polícia responsável é, segundo Robert Reiner (2016), uma
consequência não só das qualidades pessoais do líder, mas também da maturidade política da
polícia. Weber (2011), por outro lado, continua argumentando que a maturidade política
significa a capacidade por parte do eleitorado de uma nação de compreender seus interesses
duradouros. Implica também na capacidade e na vontade do cidadão de exercer um controle
permanente sobre a administração pública e as influências capitalistas sobre as instituições
políticas, por meio de comissões parlamentares e investigações. Finalmente, a maturidade
política promove a capacidade e a vontade de participar ativamente na determinação do curso
político da nação. Essa capacidade e vontade decorrem e apontam para a existência de
orgulhosas tradições democráticas, instanciadas pelo povo (WEBER, 1978).
Por outro lado, o aumento no número de ingresso de mulheres nas polícias militares e
sua ampla participação em todas as atividades também contribui para ressignificar esse perfil
masculino, conforme aponta Barreiras (2010). Embora a pressão da hegemonia masculina
nessas instituições possa impulsionar as policiais a abdicarem sua feminilidade, é fato que a
presença das mulheres nessas instituições vem transformando a cultura institucional com o
passar dos anos, principalmente, porque isso vem ocorrendo em concomitância com a promoção
37
Sob essa perspectiva, a fora e a virilidade masculinas (ainda que por policiais do sexo
feminino) tem constituído traços típicos da cultura policial ao longo do tempo... Logo,
o use das potencias físicas por um agente público, para constranger alguém a fazer ou
deixar de fazer algo que esteja previsto em normas de convívio social, pode ser
considerado como uma espécie de comportamento abrangível pelo referido vocábulo
bourdieano. (REIS, 2016, p. 33).
Russo (2005) argumenta que as escolas de formação da polícia militar têm sido
frequentemente apontadas como parte da causa da violência policial, seja pela forma incisiva e
intensa de inserir o indivíduo na vida castrense, que muitas vezes leva o sujeito a condições
humilhantes, fato que fica impregnado no policial, que acaba passando esse comportamento
adiante; ou pela incapacidade de estruturar uma grade curricular e aplicá-la de maneira
adequada, fazendo com que o policial saia dos bancos escolares incapaz de se posicionar
38
O treinamento também é apontado como uma das causas desta violência, por ser
inadequado devido à complexidade do trabalho policial (resolver conflitos
interpessoais, saber agir em situações críticas). Isto faz com que os novatos aprendam
mais no trabalho diário, na rua com os mais antigos, reproduzindo as velhas práticas.
É interessante notar que a literatura brasileira também aponta estes fatores como
possíveis causa da violência policial, mais por ser considerado humilhante e menos
por não preparar o profissional suficientemente para o trabalho diário. (RUSSO, 2005,
p. 28).
A cultura policial militar e seus hábitos vinculados ao uso da força e a ideia de servir
e proteger, leva o indivíduo a posicionar a Instituição como uma razão de ser e não como um
emprego qualquer. O policial militar se sente parte de algo maior, se sente responsável pela
proteção e bem-estar da sociedade.
Neste contexto marcado pelo combate, nasce o “guerreiro”, dentro de uma filosofia
totalmente encaixada com o cenário que lhe apresenta, exceto se esse guerreiro for
atender a uma sociedade marcada pela democracia e pela legitimação dos direitos do
cidadão. Quem pensa que a incongruência está somente neste viés, engana-se
facilmente, uma vez que, maior incongruência se apresentará quando da violação, na
formação, dos direitos mais elementares dos futuros policiais, incorporado como
certos currículos ocultos (NETO, 2014, p.103).
Essa violência de Estado não afeta todas as frações e classes de indivíduos da mesma
maneira. Os autores apresentam resultados de um levantamento que aponta para o fato de que
a questão racial é preponderante para compreensão do medo da violência. Assim, Rodrigues
(2017) apresenta elementos históricos e regionais como relevantes para compreensão do
desenvolvimento de violências por grupos políticos locais que contribuem para letalidade difusa
na Baixada Fluminense (RJ), impulsionadas, sobretudo, por questões econômicas. Segundo
esse autor,
O padrão homicida na Baixada está articulado à operação dos mercados ilegais nos
quais o ato de matar opera como fator chave. Poder matar é adquirir credenciais nos
mercados ilegais de bens financeiros e políticos. Se os mercados ilegais já́ vinham, há
muito, sendo apontados como correlatos às dinâmicas do homicídio no Brasil, o
contexto da Baixada exemplifica processos nos quais esses mercados estão em relação
com a política e com o Estado. Vimos, assim, como o uso excessivo da força, o poder
de matar, por parte dos policiais é manejado como uma ferramenta para a aquisição
de ganhos financeiros. Já́ no que diz respeito à fronteira com a política, explicitamos
uma rede de poderes que tem, na base, o controle de territórios e eleitorados e a
exploração criminosa serviços públicos e privados e, na ponta, carreiras políticas em
cargos eletivos e de confiança. É nessa fronteira com a política e seu vínculo com os
mercados criminosos que se configura uma modalidade de letalidade violenta que
chamamos de clientelismo homicida (RODRIGUES, 2017, p. 126).
essa revisão de literatura nos permitiu avançar o olhar sobre o objeto para construção da
pesquisa.
Dessa forma, por mais que a literatura apresentada não seja definitiva, entrega uma
abordagem justa ao tema, além de trazer importantes contribuições sobre a cultura policial, seja
no processo formativo, seja na violência sofrida ou praticada pelos policiais militares, ou, ainda,
seja na construção do policial como “guerreiro”. No capítulo seguinte, abordaremos a
construção teórica que irão estruturar a presente pesquisa.
Entretanto, as polícias militares brasileiras que têm sua origem na Guarda Real de
Polícia (GRP), datam de 1809, inicialmente no Rio de Janeiro, com a chegada da Família Real
no Brasil. Sua organização hierárquico-disciplinar, a partir do início do século XX, tem como
modelo as Forças Armadas. Esse fato impulsionou, desde sua criação, a formação dos policiais
militares a partir de uma pedagogia pautada na lógica do combate ao inimigo, minimizando a
ideia de proteção do cidadão e de guardião do Estado.
2017).
Segundo Kant de Lima diversos dos problemas ligados ao ethos repressivo, que
envolvem a segurança pública do Estado do Rio de Janeiro, tem origem na cultura formada pela
vinda da Família Real ao Brasil em 1807, criando a ideia da polícia a serviço do Rei.
o caráter “real” da polícia brasileira, tanto militar como civil: desde D. João VI, cuja
coroa enfeita o brasão de nossa Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, até o ethos
repressivo que permeia nossa Polícia Civil, está, sempre, a polícia, a serviço do Rei,
do Estado, para conciliar forçadamente ou para reprimir conflitos e não para resolvê-
los, garantindo a ordem estatal pública e não negociando e disciplinando,
preventivamente, a ordem dos cidadãos. (LIMA, 1999, p.35).
Essa polícia, que é a ferramenta latente do Estado, para fazer valer uma de suas
principais características que é o monopólio do uso da força física (JACHTENFUCHS, 2005),
desenvolve estratégias militares em modelos de policiamento orientados por ações de guerra
que fortalecem uma cultura belicista. Diante disso, vivencia profunda crise de identidade
(MUNIZ, 2001) e evidencia tensões entre a demanda de existir como polícia cidadã, adequada
ao contexto democrático, e a identidade militar forjada a partir da cultura tradicional do país
(VEIGA; SOUZA, 2018).
Apesar da influência militar das Forças Armadas ainda estar presente nas polícias
militares, a atividade policial também está impregnada com características civis devido ao
atendimento aos cidadãos com base nas leis de constituição do país, criando uma tensão entre
a sua constituição militar e atividade policial desempenhada. Para Rocha (2013), a dependência
das polícias com as Forças Armadas já não apresenta mais a exclusividade do passado,
possuindo um entrelaçamento de características militares e civis na atividade policial.
Nota-se que a relação das polícias com as Forças Armadas, com os militares em geral,
não se dá mais em uma exclusiva dependência institucional, mas, atualmente, ela
opera em um nível de representação no qual as polícias não se identificam como
instituições tipicamente castrenses, contudo adotam símbolos, culturas, valores,
condutas, procedimentos militares. Fortalece-se, assim, um campo policial-militar
com interfaces no campo propriamente militar e no campo 199 policial civil, no qual
os ritos do militarismo, sobremodo a hierarquia e a disciplina, são interpretados como
valores institucionais, normas organizacionais e procedimentos de ação. (ROCHA,
2013, p. 198-199).
Após mais de dois séculos da existência legal de órgãos policiais no país, o aumento
dos debates e preocupação com a redução da violência e dos índices criminais, em geral, data
do “final da década de 1960 e início dos 70. Desde então, jornais e revistas começaram a dedicar
mais atenção ao tema da violência urbana, particularmente no Rio de Janeiro e em São Paulo”
42
(COSTA, 1999, p. 03). Com a redemocratização do país na década de 1980, houve o aumento
da tendência de acompanhamento social dos índices de violência e de produção policial,
iniciada nas décadas anteriores.
Com a volta da democracia e o olhar mais próximo da sociedade civil nas ações dos
agentes públicos, incluindo os agentes ligados à segurança pública, iniciou um escrutínio do
sistema policial, passando assim a aparecer diversos indícios de corrupção não só nas polícias,
mas também, em outros órgãos públicos. Segundo Dellasoppa et alli (1999), havia, além da
corrupção, uma descrença no sistema de persecução criminal, misturada à ideia de diversos
setores sociais de que criminoso deve morrer. Isso que fazia com que os policiais fizessem
julgamentos sumários dos criminosos, inclusive com aplicação de pena letal.
Os números de mortes por intervenção policial – quando alguém é morto por confronto
com a polícia – no estado do Rio de Janeiro são muito altos quando comparados com os Estados
Unidos (EUA), por exemplo. Segundo o Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (ISP,
2021), no ano de 2019, houve 1.814 mortes por intervenção de agentes do Estado. Nos EUA,
segundo levantamento (Democracy Dies in Darkness) feito pelo Washington Post (2021),
ocorreram 999 mortes por policiais em todo o país, no ano de 2019, no estado americano de
Nova York foram apenas 18 mortes da mesma natureza. Comparando os dois estados, são 1.000
vezes mais mortes por intervenção policial no Rio de Janeiro.
43
Após o conturbado período, que passa pela criação de uma nova Constituição Federal,
a estrutura pública brasileira, na década de 1990, sob o governo do Presidente Fernando
Henrique Cardoso, entra na era do gerencialismo, com a publicação do Plano Diretor da
Reforma do Aparelho do Estado (BRASIL, 1995). O Plano trazia objetivos claros para o gestor
público, como linhas de ação para aumento de desempenho do Estado, a partir de conceitos
inovadores de gestão e da tentativa de mitigar os entraves do modelo burocrático do país.
Somando-se a isso, o Plano apresentava o discurso de redução do tamanho do Estado com
políticas de privatização, terceirização de mão de obra e de parceria público-privada e que fosse
mais ágil e possuísse um custo menor (BRASIL, 1995).
No ano de 2003, foi publicada a Matriz Curricular Nacional Para Ações Formativas dos
Profissionais da Área de Segurança Pública. A edição dessa Matriz Curricular foi um marco
44
para a segurança pública do país, uma vez que passou a ser “um referencial teórico-
metodológico para orientar as Ações Formativas dos Profissionais da Área de Segurança
Pública” (BRASIL, 2014, p.12). A vinculação da malha curricular das escolas das polícias
militares e civis, além dos bombeiros militares, à Declaração Universal dos Direitos Humanos
e aos organismos internacionais referentes ao tema aponta para uma nova perspectiva para área.
Conforme o próprio documento:
cargo e descrição do cargo, que são analisadas por uma amostra de ocupantes do
cargo, a profissiografia tem como diferencial um levantamento de dados na população
ocupante do cargo ou em uma amostra representativa de grande parte dessa população.
Dessa forma, é importante que as ações ligadas ao ensino estejam alinhadas com o
46
desenvolvimento das habilidades, habilidades e atitudes dos profissionais que atuam direta e
indiretamente na Corporação. Com isso, a capacitação dos policiais militares deve estar em
consonância com o perfil profissiográfico estabelecido para os múltiplos cargos da Instituição,
já que o perfil profissiográfico é o responsável por definir as tarefas dos cargos e os requisitos
essenciais para que sejam ocupados adequadamente. Para tanto, se torna importante que o
processo de educação profissional da Instituição esteja totalmente alinhado com o perfil
profissiográfico com o intuito de que o objetivo da Corporação seja cumprido.
Todo o esforço dos governos federais e estaduais tem sido direcionado a atingir um
alinhamento da política de polícia de proximidade e de polícia cidadã, que estão instituídas nos
acordos e declarações internacionais, como a Declaração Universal de Direitos Humanos,
adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU, 1948).
Dessa forma, o país tem procurado se manter alinhado formalmente aos organismos
internacionais que tratam de direitos humanos e polícia cidadã, tendo em vista que o próprio
Plano e Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (2018) tem a previsão de
cumprimento do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS), promovido pela
Organização das Nações Unidas, onde estrutura um conjunto de 17 objetivos e 169 metas que
foi assinado por 193 países, após dois anos de debate e que passou a vigorar janeiro de 2016,
principalmente os “ODS 3, 5,10, 16 e 17 que tratam, de forma integrada, das ações relacionadas
com a prevenção e superação da violência e do crime” (BRASIL, 2018, p. 13).
A Polícia Militar hoje tem como função principal a preservação da ordem pública e o
47
policiamento ostensivo, definido pelo Art. 144, inciso V, §5º da Constituição da República
Federativa do Brasil (BRASIL, 1988). Ainda, o Art. §6º dessa mesma Constituição prevê que
as polícias são forças auxiliares e reserva do Exército Brasileiro (EB), mas, subordinam-se aos
Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.
O tipo de policiamento mais importante da PMERJ é o POO, pois é a forma pela qual
a polícia está nas ruas diariamente. O POO é normalmente passivo, pois espera um acionamento
e tem como objetivo cumprir a sua função constitucional de preservação da ordem pública.
Segundo a IN nº 23/2015 é o “Policiamento regular destinado ao cumprimento da missão
precípua da PMERJ. Caracteriza-se pelo emprego do policiamento implantado no terreno de
forma duradoura e contínua” (RIO DE JANEIRO, 2015, p. 38).
pacíficos e raramente é utilizada arma de fogo para contenção das ocorrências policiais geradas.
O POC é o tipo de policiamento que está mais ligado a ações que envolvem violência,
e ela possui quatro formas: A Rep 1 – Vasculhamento; A Rep 2 - Busca e Captura; A Rep 3 –
Revista; e A Rep 4 – Cerco. Todas essas formas são ações ativas, que são executadas após uma
ordem do comando do Batalhão ou do alto comando da Polícia Militar. As ações repressivas
são determinadas para que haja recuperação, apreensão ou prisão de algum criminoso ou
material que seja produto de crime. Assim, o risco de haver confronto armado é muito alto em
operações desse tipo.
A atividade policial militar em linhas gerais é composta por ações cotidianas, que não
envolvem violência de nenhum tipo, muito menos há a necessidade do uso de arma de fogo
para a solução da grande maioria dos atendimentos realizados pelo policial militar. As operações
policiais militares complementares, por mais que ocorram quase que diariamente, ocupam um
percentual muito pequeno no total de atividades realizadas pela Polícia Milita, tendo em vista
da natureza da atividade ser de uso específico e com duração definida. Contudo, ainda assim,
são elas que representam quase a totalidade de divulgação da mídia formal sobre a Instituição,
e acabam estimulando o ideário policial militar do combate a criminalidade e,
consequentemente, do ethos guerreiro.
Nessa mesma direção, o estado do Rio de Janeiro, em 2008, por meio da Polícia
Militar, iniciou o chamado processo de pacificação na Comunidade Santa Marta, no bairro de
Botafogo, zona Sul da capital, por meio do Decreto nº 41.650/2009 (RIO DE JANEIRO, 2009).
A primeira Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), com foco na prática da polícia cidadã, foi
muito bem-sucedida em retomar o controle territorial da comunidade, antes dominada pelo
narcotráfico. Após à implementação da UPP Santa Marta, outras 37 (trinta e sete) UPPs foram
criadas com o objetivo de pôr em prática a Política de pacificação em diversas áreas da cidade
do Rio de Janeiro.
[...] A polícia de proximidade é uma filosofia na qual policiais e cidadãos dos mais
diversos segmentos societais trabalham em parceria, desenvolvendo ações em regiões
territoriais específicas, promovendo o controle das questões relacionadas ao
fenômeno criminal. Está alicerçada sob os seguintes princípios: Prevenção,
Descentralização, Proatividade e Resolução Pacífica de conflitos. Sua
operacionalização consiste nas ações de polícia baseadas na Aproximação, Presença,
Permanência, Envolvimento e Comprometimento do policial no seu ambiente de
trabalho, objetivando a redução dos indicadores de violência e criminalidade e a
melhoria da qualidade de vida das pessoas naqueles locais.
E polícia comunitária:
[...] É uma filosofia e estratégia organizacional que proporcionam uma nova parceria
entre polícia e comunidade. Baseia-se na premissa de que tanto a polícia quanto a
comunidade devam trabalhar juntas para identificar, priorizar e resolver problemas,
tais como crimes graves, medo do crime e, em geral, a decadência do bairro, com o
objetivo de melhorar a qualidade de vida na área. Observe-se que tanto a polícia
comunitária quanto a polícia de proximidade, em essência, estão sob um mesmo feixe
de significados (RIO DE JANEIRO, 2015, p. 20).
Dessa forma, percebemos que houve um esforço da PMERJ em teorizar uma filosofia
para a formação da sua cultura institucional voltado para a prática da polícia cidadã, buscando
50
estar alinhada com os organismos internacionais que são referências no tema, a partir da
publicação de marcos legais corporativos e de construção de currículos voltados para a prática
da polícia de proximidade e da cidadania.
51
1
Conforme a distribuição das Regiões Integradas de Segurança Pública (RISP) estabelecida pelo Decreto nº
41.930, de 25 de junho de 2009 (RIO DE JANEIRO, 2009).
52
Entre os sujeitos pesquisados, cerca de 86% do grupo participante são praças (soldado
a subtenente) que são empregados como elementos de execução e responsáveis pelo
policiamento ostensivo nas ruas do estado do Rio de Janeiro. O outro grupo, que representa
menos de 14% do total do grupo participante são oficiais (tenente a coronel) que exercem
funções de chefia e gestão da corporação.
Outros aspectos sobre o sujeito médio da PMERJ, como posto e graduação, gênero e
faixa etária também estão alinhados com o perfil dos participantes desta pesquisa. Entre os
sujeitos pesquisados, cerca de 86% do grupo participante são praças. O outro grupo, que
representa menos de 14% do total do grupo participante são oficiais. Os participantes da
pesquisa representam, com muita proximidade, a média de policiais entre praças e oficiais,
tendo em vista que os registros internos da PMERJ dão conta de que o seu efetivo total é
representado por cerca de 10% de oficiais e cerca de 90% de praças.
35,00%
30,00%
25,00%
20,00%
15,00%
10,00%
5,00%
0,00%
M
PM
PM
M
PM
M
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PM
PM
PM
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Te
Participantes Efetivo
90%
80%
70%
60%
50%
40%
30%
20%
10%
0%
FEMININO MASCULINO
Participantes Efetivo
Cerca de 66% dos participantes da pesquisa estão inseridos na faixa etária acima de 36
anos. Esse fato demonstra que o perfil do grupo participante consiste em policiais militares mais
maduros, como evidenciado anteriormente na análise dos postos e graduações dos participantes.
Esse dado coletado pode indicar que policiais mais experientes, seja por conta da idade ou por
conta do tempo de serviço, possuem maior entendimento sobre a necessidade de responder
pesquisas sobre a instituição, para otimizá-la ou desenvolvê-la.
55
45,00%
40,00%
35,00%
30,00%
25,00%
20,00%
15,00%
10,00%
5,00%
0,00%
18 a 25 anos 26 a 35 anos 36 a 45 anos acima de 46 anos
Participantes Efetivo
45,00%
40,00%
35,00%
30,00%
25,00%
20,00%
15,00%
10,00%
5,00%
0,00%
até 5 anos 06 a 10 anos 11 a 15 anos 16 a 20 anos 21 a 25 anos 26 a 30 anos Mais de 30
anos
Participantes Efetivo PM
O questionamento acerca da área de residência dos participantes indicou que 36% dos
sujeitos pesquisados residem na área do 2º CPA da Polícia Militar, que compreende zona Oeste
e parte da zona Norte da Capital, coincidentemente, área com maior indicativo de bairros pobres
e comunidades, que são as regiões com menor custo de vida da Cidade do Rio de Janeiro. Cerca
de 20% dos participantes responderam que são residentes do 3º CPA da Polícia Militar, que
57
compreende a Baixada Fluminense, que também possui características de periferia, com altos
índices de desigualdade social e econômica. As duas regiões de residência compreendem mais
de 50% do total dos participantes da pesquisa.
35,00%
30,00%
25,00%
20,00%
15,00%
10,00%
5,00%
0,00%
1º CPA 2º CPA 3º CPA 4º CPA 5º CPA 6º CPA 7º CPA
Participantes Efetivo PM
A pergunta sobre os dados da área de subordinação dos sujeitos investigados nos dão
a mesma perspectiva da área de residência dos participantes, que é entender se há diferença de
percepção entre os policiais militares lotados em diferentes tipos de unidades da Polícia Militar,
que, consequentemente, executam tarefas distintas. O dado que chama atenção é o número de
participantes do 2º CPA, que computa 22% do total de participantes. Entretanto, devemos
considerar que pode haver distorções nessas respostas tendo em vista que o 2º CPA é onde a
maioria dos participantes dessa pesquisa tem residência, assim os participantes podem ter
confundido as perguntas.
58
30%
25%
20%
15%
10%
5%
0%
A
s
E
E
A
AM
ai
CP
CO
CP
CP
CP
CP
CP
CP
CP
CP
er
CP
1º
2º
3º
4º
5º
7º
sG
6º
ria
to
re
Di
ou
Participante Efetivo
QG
Fonte: elaboração do autor
Nesse caso, há um equilíbrio muito positivo nas respostas entregues, pois cerca de 31%
dos participantes da pesquisa estão em curso, cerca de 26% estão em atividades administrativas
e cerca de 33% estão executando atividades operacionais, que são as atividades finalísticas de
policiamento ostensivo e de preservação da ordem pública do Estado do Rio de Janeiro. Esse
equilíbrio entre a atividades dos participantes permite que o resultado da pesquisa seja mais
homogêneo e confiável.
59
Saúde
3%
Administrativa
26%
Operacional
33%
Correcional
2%
Ensino
5%
Em curso de
formação
31%
Nesta seção, apresentamos a análise das questões referentes ao segundo grande bloco
de perguntas. Concentramos nesse eixo questionamentos acerca da percepção dos policiais
militares participantes da pesquisa em relação à cultura institucional e a aspectos éticos que
perpassam as ações policiais. Nossa intenção foi levantar dados acerca da forma os sujeitos
investigados se relacionam com eventos de violência na rotina profissional e como se
posicionam em relação a dimensões políticas, legais e estruturais da profissão policial militar.
Os dados apresentados nesta seção foram coletados a partir de 16 questões, mencionadas no
início deste Capítulo, sendo 14 de múltipla escolha e duas dissertativas.
A primeira pergunta desse bloco diz respeito a um conceito ético, bem subjetivo, de
difícil definição que é a ideia de “Bem”, desenvolvidas na percepção do que é “Bom” e do que
é “Mau”. Essa questão visou compreender características que os sujeitos participantes da
pesquisa consideram como inerentes ao bom policial e a questão posterior propôs a percepção
inversa, ao realizar o mesmo questionamento acerca do mau policial. Entretanto, sem a
necessidade de um aprofundamento filosófico, podemos perceber como os sujeitos investigados
60
Inserimos na questão referente ao bom policial, palavras que seguem uma gradação de
intensidade comportamental que vão de: agressivo e insensível, como atitudes mais rudes; e
cordial e simpático, como atitudes mais afáveis. Na questão referente ao mau policial inserimos
palavras diferentes, mas que seguem a mesma gradação de intensidade comportamental que
vão de: bronco e feroz, como atitudes mais obtusas; e atencioso e agradável, como atitudes mais
amistosas.
CORDIAL
ESTUDIOSO
GUERREIRO
AMIGO
FORTE
SIMPÁTICO
RESPEITOSO
INSENSÍVEL
AGRESSIVO
0 100 200 300 400 500 600 700 800 900 1000
Por outro lado, ainda que haja certo alinhamento formal, ao menos no campo do
discurso, com a Política de segurança pública acerca do perfil adequado do policial, nas duas
primeiras características escolhidas, a ideia de guerra, e consequentemente, do ethos guerreiro
permanece presente inclusive na forma como o sujeito pesquisado considera um bom policial.
A terceira característica de um bom policial, escolhida por cerca de 57% dos participantes da
pesquisa foi: guerreiro. Essa escolha indica que um ideário pautado no ethos guerreiro está
solidificado na cultura institucional, constituindo valor para a práxis profissional no cotidiano
do policial militar (MUNIZ, 2001; ZALUAR, 2014; PONCIONI, 2005; BOURDIEU, 1989).
FEROZ
DURO
TEÓRICO
DIPLOMÁTICO
VIGOROSO
AGRADÁVEL
COMBATENTE
ATENCIOSO
BRONCO
Não
562
Sim
602
Sim
Não
participantes da pesquisa que informaram terem sido alvejados por projetil de arma de fogo
durante o serviço é cerca de 8% do total dos investigados. Esse número também é alto e indica
o nível de violência sofrida pelos policiais, quando em atividade de policiamento ostensivo.
Esses eventos tendem a fortalecer a ideia de combate à criminalidade, a ideia de reciprocidade
no uso da violência, enfim, a cultura do ethos guerreiro.
Sim
28%
Não
72%
Sim
24%
Não
76%
Perguntar o sentimento dos policiais sobre alguma ocasião que o levasse a alvejar um
66
Nenhum sentimento.
0 100 200 300 400 500 600 700 800 900 1000
Fonte: elaboração do autor
Nesse sentido, podemos perceber a diferença das respostas dos sujeitos pesquisados,
quando se trata do alvo atingido, pois acertar com um projétil de arma de fogo uma pessoa gera
sentimentos absolutamente opostos nos policiais investigados, tendo em vista que se for um
potencial criminoso, o sentimento é de serenidade ou realização, mas se for um pretenso
inocente, o sentimento passa a ser de culpa.
Nenhum sentimento.
O criminoso citado na pergunta, pode ser um sujeito que comete qualquer tipo de
crime, inclusive um furto famélico (aquele que é cometido apenas para saciar a fome do
indivíduo que pratica o crime). Ainda assim, 86% dos participantes afirmaram se sentirem
serenos ou realizados por cumprimento do dever ao alvejar esse sujeito. Esse movimento do
público pesquisado indica como a ideia de combate ao crime e do ethos guerreiro ocorre no
inconsciente coletivo do policial militar, que muitas vezes não se dar conta dessa ideia.
As respostas sobre ferir gravemente um cidadão, podendo tirar sua vida, indicam,
claramente, a existência de percepções diferentes entre o dito “cidadão de bem” e o
68
“criminoso”, mesmo que a legislação brasileira não permita julgamentos sumários, muito
menos pena de morte. O criminoso, em nossa estrutura legal, é apenas um cidadão que cometeu
uma infração prevista em lei e deve responder em um devido processo legal com ampla defesa
e contraditório. Para que o policial pudesse se sentir tranquilo por ter cumprido o dever legal,
seria necessário que agisse em estado de necessidade, legítima defesa ou estrito cumprimento
do dever legal, que são as excludentes de ilicitude do Artigo 23 do Código Penal Brasileiro
(BRASIL, 1940). Entretanto, a legítima defesa só se caracteriza se os meios necessários forem
usados, de forma moderada, para repelir injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de
outrem, conforme o artigo 25 do mesmo Código Penal Brasileiro (BRASIL, 1940). Ou seja, os
meios legais não permitem alvejar alguém, a não ser em condições muito específicas, coisa que
não está especificada na pergunta. Esse sentimento está ligado exclusivamente à cultura
institucional do ethos guerreiro, pois a legislação é proibitiva.
Essas perguntas possuem uma construção mais formal e direta, com pouco espaço para
interpretação pessoal. As opções de resposta apresentadas costumam ser o tipo de informação
massificada nos processos formativos da Corporação. Ademais, a atividade fim da Polícia
Militar está prevista no artigo 144 da Constituição da República (BRASIL, 1988).
Combate à criminalidade.
Orientação da população.
Efetuar prisões.
A caracterização da função da Polícia Militar é mais ampla, dando mais margem para
o sujeito investigado responder com o “inconsciente coletivo”, tanto que o combate à
criminalidade se fez presente. A caracterização do papel do policial militar durante a atividade
de policiamento ordinário é bem específica e dá pouca margem para o sujeito investigado fugir
da resposta formal. Assim a opção “Promover segurança pública” foi assinalada por cerca de
95% do total de respostas e as opções “efetuar prisões” e “controlar confrontos armados” não
chegou a 1% cada.
Nas duas questões posteriores pretendemos compreender o que pensa o sujeito pesquisado
70
acerca do tratamento que deve dispensar às pessoas que cometem crimes. A diferença entre as
questões se estabelece no nível de violência do crime cometido: menor ou maior potencial
ofensivo. As respostas a essas perguntas sobre o entendimento do sujeito pesquisado acerca do
tratamento dispensado a alguém que cometeu um crime, seja de maior potencial ofensivo ou
seja de menor potencial ofensivo foram muito similares, ambas com mais de 95% das respostas
na opção de conduzir quem cometeu o crime para a delegacia, todas respondidas conforme as
leis do ordenamento jurídico do país.
Embora, quase a totalidade das respostas tenham sido para a opção que melhor se
enquadra nos diplomas legais brasileiros, há algumas diferenças entre as escolhas das opções,
tendo em vista que na pergunta de menor potencial ofensivo, quase 10% dos participantes
disseram que avaliariam a gravidade e encerrariam a ocorrência no local e nenhuma resposta
foi assinalada na opção de agir com força muito superior a utilizada pelos criminosos. Contudo,
na questão envolvendo um crime de maior potencial ofensivo, nenhum participante encerraria
a ocorrência no local e quase 10% dos participantes usariam uma força igual ou superior a
utilizada pelos criminosos.
71
de poder e a sociedade. Em seguida, com cerca de 36%, está a opção que demarca o Estado
democrático amplo com participação popular em todas as esferas de poder e com garantia da
pluralidade de pensamento. As respostas voltadas para um Estado autoritário obtiveram baixa
adesão, tendo em vista que, a opção de Estado democrático com viés autoritário foi escolhida
por apenas 8% dos sujeitos investigados.
As respostas indicam que cerca de 59% dos sujeitos investigados acreditam que os
protocolos são cumpridos e as atividades policiais militares são efetivamente executadas
conforme o legalmente prescrito. Entretanto, cerda de 26% dos sujeitos investigados acreditam
que a Instituição não funciona a partir de seus protocolos formais. Isso indica a força que a
cultura Institucional tem sobre as atividades diárias dos policiais militares, quando de serviço.
73
Para ratificar ainda mais a força da cultura Institucional, cerca de 14% dos sujeitos investigados
sequer conhecem os protocolos formais para a atividade policial militar. Essas respostas
indicam que cerca de 40% dos policiais militares não acreditam que os protocolos da
Corporação funcionam ou mesmo nem os conhecem, gerando uma margem enorme para a
atividade policial militar ser executada a partir do hábito diário. Em outras palavras, o
conhecimento é transmitido de policial para policial, gerando um ambiente multicultural, com
diversas culturas locais carregadas de experiências de vida dos policiais ou mesmo pela cultura
social onde determinada prática policial está sendo desenvolvida (REINER, 2004; RIBEIRO,
1995; KOSIK, 1969).
Não
Sim
Não conheço os
protocolos de
policiamento
ordinário
Para isso, propusemos uma categoria que dimensionasse respostas alinhadas com uma
perspectiva combatente do serviço policial militar. Nessa categoria, pudemos agrupar respostas
que refletissem, de algum modo, um perfil policial militar guerreiro, que cumpre missões,
garante a manutenção da ordem, que se destaca na luta contra o mal, que observa o criminoso
como inimigo a ser derrotado e morto.
O resultado dessa análise aos questionamentos: “Qual seu entendimento sobre o seu
papel como policial militar em um Estado Democrático de Direito?” e “Defina o serviço policial
militar com uma frase”, nos permitiu concluir que 46% das respostas fornecidas estão
relacionadas à perspectiva combatente de segurança pública. Cerca de 37% apresentaram
respostas alinhadas à perspectiva de polícia cidadã e outros 12% apresentaram respostas que
consideramos uma abordagem pragmática do tema.
As respostas categorizadas como concepção cidadã foram separadas por palavras que
apresentam ideia de: cidadania, servir e proteger, direitos fundamentais, preservação da ordem
pública, entre outras (Tabela 2). A ideia de servir e proteger foi agregada nessa categoria, tendo
em vista que o manual “Servir e Proteger: Direitos Humanos e Direito Internacional
76
A categorização das respostas como pragmáticas foi realizada para agregar as respostas
que possuíam um direcionamento estritamente legalista, sem que o sujeito investigado se
posicionasse para o viés de concepção combatente ou cidadã. Dessa forma, as respostas que
indicavam apenas o cumprimento da lei foram agregadas nessa categoria, conforme tabela
abaixo.
Destarte, entendemos que a cultura do combate, ou seja, do ethos guerreiro, está muito
presente na concepção de segurança pública do policial militar, tendo em vista que a maior parte
das frases construídas, de forma irrefletida, pelos sujeitos investigados tem um viés combatente.
Esse fenômeno é justificado pelo fato de se tratar de uma Instituição bicentenária, de estrutura
hermética e de cultura militar, em contextos de uma cultura nacional autoritária, excludente e
conservadora (RIBEIRO, 1995; ZALUAR, 1994; CHAUÍ, 2000b). Entretanto, a constatação
do quantitativo de respostas alinhadas à concepção cidadã de segurança pública evidência a
consolidação, ainda que inicial, das políticas de segurança pública adotadas pelo Governo
Federal e Estadual do Rio de Janeiro sob esse fundamento (BRASIL, 2014; 2018; RIO DE
JANEIRO, 2004; 2009).
78
Indetectável
Pragmatismo
Combatente
Cidadã
Após a separação das respostas dos sujeitos pesquisados nas categorias descritas
acima, passamos a fazer uma análise em que cruzamos o perfil dos policiais participantes com
as categorias criadas, para compreender as principais características dos policiais que possuem
uma concepção combatente mais presente ou a concepção de polícia cidadã mais evidente.
Nosso objetivo foi identificar essas tendências a partir do tempo de serviço, área de residência,
área de lotação, tipo de atividade policial desempenhada, gênero, idade e participação ativa ou
passiva em situação de violência armada. A partir desses aspectos, buscamos compreender as
distorções encontradas, de modo que, pudéssemos analisar as diferenças existentes entre os
participantes que apresentaram tendências aproximadas ao ethos guerreiro e à concepção
cidadã. No que diz respeito ao gênero e à idade não houve distorções consideráveis que
evidenciassem tendências, para uma ou outra concepção, originadas pelo fato de ser mulher ou
homem, jovem ou idoso.
institucional à medida que mulheres passam a adotar posturas masculinas para exercerem a
profissão e serem respeitadas.
Outro dado que apresenta distorção em relação ao total para concepção combatente e
cidadã, conforme Tabela 5, é o coletado sobre os participantes que residem no 5º CPA – Sul
Fluminense, uma vez que a concepção combatente se mostrou superior à média do percentual
total coletado. Esse dado se repete no que diz respeito à área de lotação e pode ter influência do
percentual de policiais militares residentes na área onde estão lotados. Mesmo resultado foi
evidenciado no 3º CPA – Baixada Fluminense, uma vez que os participantes lotados nessa
região também apresentam um percentual superior ao percentual total para concepção
combatente. Sendo assim, tanto o PM que reside nessas áreas, quanto o que está lotado nas
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unidades que atuam nessas áreas, apresentaram uma perspectiva combatente superior à média
do total levantado na pesquisa.
Essa divergência pode estar relacionada à ausência de critérios objetivos para alocação
de pessoal na PMERJ, tendo em vista que os policiais não costumam ser lotados em suas
respectivas Unidades devido à qualificação ou à existência de uma política institucional de
alocação de efetivo. Não há, até o momento, normas gerais que indiquem os atributos ou
competências que um policial militar precisa para ser lotado nas Unidades da Corporação,
tampouco, um perfil profissiográfico definido para as funções a serem ocupadas. Os únicos pré-
requisitos estão ligados, exclusivamente, à posição hierárquica (soldado a coronel) que o sujeito
possui no momento da classificação.
Embora essa Tabela não apresente distorções no que diz respeito à atividade
operacional, uma vez que os sujeitos pesquisados que atuam neste tipo de atividade
apresentaram respostas condizentes com a média total das categorias de fundamentos
ideológicos, foi observado que sujeitos alvejados por projétil de arma de fogo durante o serviço
policial militar apresentaram tendências aproximadas em maior percentual da concepção
cidadã.
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Por outro lado, a pesquisa evidenciou que essa percepção combatente diminui,
enquanto a concepção cidadã aumenta com o passar dos anos de serviço policial militar,
conforme Gráfico apresentado a seguir. O Gráfico evidencia ainda que os sujeitos investigados
apresentam maior concepção combatente durante os primeiros 10 anos de serviço policial
militar. Dessa forma, cerca de 50% dos sujeitos investigados com menos de 10 anos de serviço
apresentaram uma concepção combatente, em contrapartida cerca de 50% daqueles que
possuem mais de 30 anos de serviço passam a apresentar uma concepção cidadã. Nesse sentido,
fatores internos ou externos à atividade policial militar, impingidos ou não pela atividade,
podem influenciar nessa mudança de percepção. Contudo, os limites dessa pesquisa não nos
permitem afirmar quais as razões para tal fenômeno, sendo importante o aprofundamento do
tema a partir de novas pesquisas.
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Acima de 30 anos
20 a 30 anos
10 a 20 anos
Ate 10 anos
CONCLUSÃO
A ideia de ethos, que chega à atualidade como ideia de ética, remete a um conjunto de
valores, costumes, hábitos que compõem a ação de determinado grupo, em determinado espaço
e determinado tempo. Dessa forma, o ethos guerreiro compõe a ética do guerreiro que é
determinada pelas relações sociais estabelecidas, em determinadas condições geográficas,
espaciais e temporais. Com isso, entendemos que o conceito de ethos guerreiro é a relação de
um conjunto de valores, costumes e hábitos, com um recorte temporal e espacial, que fazem
relação com guerra.
Para tanto, tomamos como hipótese geral que o ethos guerreiro é uma
característica integrante e prevalente na cultura institucional na PMERJ e ainda entendemos
que se tal hipótese fosse verdadeira, seria necessário verificar onde essa cultura se mostra mais
forte dentro da Corporação. A partir disso, consideramos a hipótese secundária de que o ethos
guerreiro é mais presente nos policiais que desempenham atividades operacionais do que nos
policiais que desempenham atividades administrativas.
concepção cidadã cresce com o passar do tempo de serviço policial, tendo em vista que é mais
fraco nos policiais com menos de 10 anos e passa a ser mais forte com o tempo, chegando a
50% dos policiais com mais de 30 anos de serviço policial militar.
Assim, após analisar os dados da pesquisa de forma ampla, podemos inferir que o
ethos guerreiro do policial militar é prevalente sobre a percepção do policial militar acerca do
exercício de sua função. Em primeiro lugar, essa ideologia do combatente infunde uma cultura
institucional que permite a reprodução do ethos guerreiro a despeito da condição de gênero,
tendo em vista, que não houve distorções entre as respostas de homens e mulheres. Isso
evidencia que perspectivas próprias do gênero feminino acabam sendo suplantadas pela cultura
institucional, à medida que mulheres passam a adotar condutas masculinas, possivelmente, para
angariarem respeito no exercício da profissão.
combatente, conforme evidenciado na pesquisa. Essa ideologia acaba por ser reforçada pela
perspectiva de combate daqueles que são responsáveis por sua formação. Isso foi percebido no
fato de que esse policial recém-formado, que será responsável direto pela execução do
policiamento no estado do Rio de Janeiro, inicia sua atividade laboral impregnado da cultura
do ethos guerreiro.
Ao nos determos com mais cautela sobre a percepção dos policiais investigados
quanto à segurança pública no Estado democrático de direito, pudemos observar a prevalência
da cultura do ethos guerreiro na escolha pelo uso de força letal para garantir o cumprimento da
Lei, por parte do grupo investigado. Importante frisar essa escolha, pois por mais que seja
escolha de um quantitativo menor, não deveria ser uma escolha possível, tendo em vista que
não há previsão legal no direito brasileiro do uso letal para garantia da Lei.
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