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Pentateuco 1

Pentateuco

IBETEL
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Pentateuco 3

(Org.) Profº. Pr. VICENTE PAULA LEITE

Pentateuco
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Apresentação
Estávamos em um culto de doutrina, numa sexta-feira destas quentes do
verão daqui de São Paulo e a congregação lotada até pelos corredores
externos. Ouvíamos atentamente o ensino doutrinário ministrado pelo Pastor
Vicente Paula Leite, quando do céu me veio uma mensagem profética e o
Espírito me disse “fale com o pastor Vicente no final do culto”. Falei: - Jesus
te chama para uma grande obra de ensino teológico para revolucionar a
apresentação e metodologia empregada no desenvolvimento da Educação
Cristã.

Hoje com imensurável alegria, vejo esta profecia cumprida e o IBETEL


transbordando como uma fonte que aciona apressuradamente com eficácia o
processo da educação teológico-cristã.

A experiência acumulada do IBETEL nessa década de ensino teológico


transforma hoje suas apostilas, produtos de intensas pesquisas e eloqüente
redação, em noites não dormidas, em livros didáticos da literatura cristã com
uma preciosíssima contribuição ao pensamento cristão hodierno e aplicação
didática produtiva. Esta correção didática usando uma metodologia eficaz que
aponta as veredas que leva ao único caminho, a saber, o SENHOR e
Salvador Jesus Cristo, chega as nossas mãos com os aromas do nardo, da
mirra, dos aloés, da qual você pode fazer uso de irrefutável valor pedagógico-
prático para a revolução proposta na gênese de todo trabalho.

E com certeza debaixo das mãos poderosas do SENHOR ser um motor


propulsor permanentemente do mandamento bíblico: “Conheçamos e
prossigamos em conhecer ao Senhor...”. Por certo esta semente frutificará na
terra boa do seu coração para alcançar preciosas almas compradas pelo
Senhor Jesus.

Dr. Messias José da Silva


In memorian
Pentateuco 5

Prefácio
Este Livro do Pentateuco, parte de uma série que compõe a grade curricular
do curso em Teologia do IBETEL, se propõe a ser um instrumento de
pesquisa e estudo. Embora de forma concisa, objetiva fornecer informações
introdutórias acerca dos seguintes pontos: Pentateuco; Livro de Gênesis;
Livro de Êxodo; Livro de Levítico; Livro de Números e Livro de Deuteronômio.

Esta obra teológica destina-se a pastores, evangelistas, pregadores,


professores da escola bíblica dominical, obreiros, cristãos em geral e aos
alunos do Curso em Teologia do IBETEL, podendo, outrossim, ser utilizado
com grande préstimo por pessoas interessadas numa introdução ao
Pentateuco.

Finalmente, exprimo meu reconhecimento e gratidão aos professores que


participaram de minha formação, que me expuseram a teologia bíblica
enquanto discípulo e aos meus alunos que contribuíram estimulando debates
e pesquisas. Não posso deixar de agradecer também àqueles que
executaram serviços de digitação e tarefas congêneres, colaborando, assim,
para a concretização desta obra.

Profº. Pr. Vicente Leite


Diretor Presidente IBETEL
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Declaração de fé
O que é doutrina? À luz da Bíblia, doutrina é o ensino bíblico normativo,
terminante, final, derivado das Sagradas Escrituras, como regra de fé e
prática de vida, para a igreja, para seus membros. Ela é vista na Bíblia como
expressão prática na vida do crente. As doutrinas da Palavra de Deus são
santas, divinas, universais e imutáveis.

A palavra "doutrina" vem do latim doctrina, que significa "ensino" ou


"instrução”, e se refere às crenças de um grupo particular de crentes ou
mesmo de partidários. O Velho Testamento usa a palavra leqach, que vem do
verbo laqach, "receber". O sentido primário é "o recebido". Aparece com o
sentido de "doutrina" ou "ensinamento", como lemos "Goteje a minha doutrina
como a chuva" (Dt 32.2); "A minha doutrina épura" (Jó 11.4); "Pois vos dou
boa doutrina; não deixeis a minha lei" (Pv 4.2). Com o passar do tempo a
palavra veio significar o ensino de Moisés que se encontra no Pentateuco.

As palavras gregas para "doutrina", no Novo Testamento, são didaque e


didaskalia, que significam "ensino". Essas palavras transmitem a idéia tanto
do ato de ensinar como da substância do ensino. A primeira aparece para
indicar os ensinos gerais de Jesus: "E aconteceu que, concluindo Jesus este
discurso, a multidão se admirou da sua doutrina" (Mt 7.28). "Jesus respondeu
e disse-lhes: A minha doutrina não é minha, mas daquele que me enviou. Se
alguém quiser fazer a vontade dele, pela mesma doutrina, conhecerá se ela é
de Deus ou se eu falo de mim mesmo” (Jo 7.16,17).

A mesma palavra aparece para "doutrina dos apóstolos" (At 2.42), que
parece ser uma indicação das crenças dos apóstolos. A segunda tem o
mesmo sentido e aparece em Mateus 15.9 e Marcos 7.7. É, portanto, nas
epístolas pastorais que elas aparecem com o sentido mais rígido de crenças
ou corpo doutrinal da igreja - a Teologia propriamente dita.

O que é Credo? Credo vem do latim e significa "creio", e desde muito cedo na
história do Cristianismo é mais que um conjunto de crenças. É uma confissão
de fé. Ele tem como objetivo sintetizar as doutrinas essenciais do cristianismo
para facilitar as confissões públicas, conservar a doutrina contra as heresias
e manter a unidade doutrinária. Encontramos no Novo Testamento algumas
declarações rudimentares de confissões fé: A confissão de Natanael (Jo
1.50); a confissão de Pedro (Mt 16.16; Jo 6.68); a confissão de Tomé (Jo
20.28); a confissão do Eunuco (At 8.37); e artigos elementares de fé (Hb 6.1-
2).
Pentateuco 7

O IBETEL crê:

O IBETEL professa fé pentecostal alicerçada fundamentalmente no que se


segue:

Cremos em um só Deus eternamente subsistente em três pessoas: o Pai, o


Filho e o Espírito Santo (Dt 6.4; Mt 28.19; Mc 12.29).

Na inspiração verbal da Bíblia Sagrada, única regra infalível de fé normativa


para a vida e o caráter cristão (2Tm 3.14-17).

No nascimento virginal de Jesus, em sua morte vicária e expiatória, em sua


ressurreição corporal dentre os mortos e sua ascensão vitoriosa aos céus (Is
7.14; Rm 8.34; At 1.9).

Na pecaminosidade do homem que o destituiu da glória de Deus, e que


somente o arrependimento e a fé na obra expiatória e redentora de Jesus
Cristo é que o pode restaurar a Deus (Rm 3.23; At 3.19).

Na necessidade absoluta no novo nascimento pela fé em Cristo e pelo poder


atuante do Espírito Santo e da Palavra de Deus, para tornar o homem digno
do reino dos céus (Jo 3.3-8).

No perdão dos pecados, na salvação presente e perfeita e na eterna


justificação da alma recebidos gratuitamente na fé no sacrifício efetuado por
Jesus Cristo em nosso favor (At 10.43; Rm 10.13; 3.24-26; Hb 7.25; 5.9).

No batismo bíblico efetuado por imersão do corpo inteiro uma só vez em


águas, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, conforme determinou o
Senhor Jesus Cristo (Mt 28.19; Rm 6.1-6; Cl 2.12).

Na necessidade e na possibilidade que temos de viver vida santa mediante a


obra expiatória e redentora de Jesus no Calvário, através do poder
regenerador, inspirador e santificador do Espírito Santo, que nos capacita a
viver como fiéis testemunhas do poder de Jesus Cristo (Hb 9.14; 1Pe 1.15).

No batismo bíblico com o Espírito Santo que nos é dado por Deus mediante a
intercessão de Cristo, com a evidência inicial de falar em outras línguas,
conforme a sua vontade (At 1.5; 2.4; 10.44-46; 19.1-7).

Na atualidade dos dons espirituais distribuídos pelo Espírito Santo à Igreja


para sua edificação conforme a sua soberana vontade (1Co 12.1-12).
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Na segunda vinda premilenar de Cristo em duas fases distintas. Primeira -


invisível ao mundo, para arrebatar a sua Igreja fiel da terra, antes da grande
tribulação; Segunda - visível e corporal, com sua Igreja glorificada, para reinar
sobre o mundo durante mil anos (1Ts 4.16.17; 1Co 15.51-54; Ap 20.4; Zc
14.5; Jd 14).

Que todos os cristãos comparecerão ante ao tribunal de Cristo para receber a


recompensa dos seus feitos em favor da causa de Cristo, na terra (2Co 5.10).

No juízo vindouro que recompensará os fiéis e condenará os infiéis, (Ap


20.11-15).

E na vida eterna de gozo e felicidade para os fiéis e de tristeza e tormento


eterno para os infiéis (Mt 25.46).
Pentateuco 9

Sumário
Apresentação
Prefácio
Declaração de fé

CAPÍTULO 1
Pentateuco
1.1. Introdução ao Estudo da Bíblia
1.2. Introdução ao Estudo do Pentateuco
1.2.1. O termo
1.2.2. Autoria
1.2.3. Teoria documentária da Alta Crítica
1.2.4. Ambiente do mundo bíblico

CAPÍTULO 2
Livro de Gênesis
2.1. O título do livro
2.2. A autoria
2.3. Data e ocasião
2.4. Dificuldades de interpretação
2.5. Características e temas
2.6. Estudos no Livro de Gênesis
2.6.1. A Criação
2.6.2. A Imagem de Deus
2.6.3. A Queda (Gn 3.6)
2.6.4. O Dilúvio
2.6.5. A raça humana começa novamente
2.6.6. A torre de Babel
2.6.7. A aliança da Graça de Deus
2.6.8. O concerto de Deus com Abraão, Isaque e Jacó

CAPÍTULO 3
Livro de Êxodo
3.1. Autor
3.2. Data e ocasião
3.3. Dificuldades de interpretação
3.4. Características e temas
3.5. Estudos no livro de Êxodo
3.5.1. “Sou o que Sou”: A auto-revelação de Deus (Êx 3.15)
3.5.2. A Páscoa
3.5.3. A Lei do Antigo Testamento (Êx 20.1, 2)
3.5.4. Os Dez Mandamentos (20.1, 2)
3.5.5. O Tabernáculo e suas peças
3.5.6. O Sumo Sacerdote e sua Indumentária
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CAPÍTULO 4
Livro de Levítico
4.1. O título e destinatário do livro
4.2. Autoria do livro
4.3. Lugar e ocasião
4.4. Características e temas
4.5. Estudos no livro de Levítico
4.5.1. A Presença Divina
4.5.2. Santidade
4.5.3. Expiação através do Sacrifício
4.5.4. O Dia da Expiação
4.6. Os Sacrifícios Levíticos
4.6.1. Ofertas
4.6.2. Holocausto
4.6.3. Oferta de manjares
4.6.4. Sacrifício pacífico
4.6.5. Por expiação do pecado
4.6.6. A oferta pela culpa
4.6.7. As festas solenes ao Senhor (Cap. 16, 23 e 25)

CAPÍTULO 5
Livro de Números
5.1. Data e Momento do Livro
5.2. A autoria do livro
5.3. Características principais de Números
5.4. Números e seu cumprimento no Novo Testamento
5.5. Tipos de ilustração de Jesus
5.5.1. O Nazireu
5.5.2. A Fita Azul
5.5.3. A Vara Florescente de Arão
5.5.4. A Novilha Vermelha
5.5.5. As Serpentes Abrasadoras
5.5.6. As Cidades de Refúgio
5.6. Estudos no Livro de Números
5.6.1. O recenseamento militar (1.1-54)
5.7. A Lei dos ciúmes do marido contra sua mulher (5.11-31)
5.7.1. A causa dos ciúmes (5.11-15)
5.7.2. Provas do crime (5.16-31)
5.8. O Voto dos Nazireus (6.1-21)
5.8.1. Condições para o Voto do Nazireu (6.1-8)
5.8.2. Penas destinadas às infrações involuntárias (6.9-12)
5.8.3. Como finda o voto do Nazireu (6.13-21)
5.9. A Coluna de Nuvem e de Fogo (9.15-23)
5.10. A Revolta de Coré, Datã e Abirã (16.1-50)
5.11. Balaão (Cap. 22-25)
5.11.1. Balaão vacila (Cap. 22)
5.11.2. As profecias de Balaão (Cap. 23 e 24)
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5.11.3. O ensino de Balaão (Cap. 25)


5.11.4. Lições práticas

CAPÍTULO 6
Livro de Deuteronômio
6.1. Título e fundo histórico
6.2. Data e ocasião
6.3. Autoria do livro
6.4. Propósito
6.5. Características e temas
6.6. Importância de Deuteronômio
6.7. Quatro fatos principais caracterizam Deuteronômio
6.8. O livro de Deuteronômio e seu cumprimento no Novo Testamento
6.9. Estudos no livro de Deuteronômio
6.9.1. O concerto de Deus com os Israelitas
6.9.2. O concerto renovado nas planícies de Moabe
6.9.3. Os três propósitos da Lei (Dt 13.10)
6.9.4. Profetas (Dt 18.18)
6.9.5. Deuteronômio Demônios (Dt 32.17)
6.9.6. Shemá e a Trindade
6.9.7. Os Dízimos (14.22-29)
6.9.8. Cidades de Refúgio (19.1-13)
6.9.9. A despedida de Moisés (32.44-33.29)

Referências
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Capítulo 1

Pentateuco
1.1. Introdução ao Estudo da Bíblia
A prova concludente do amor divino encontra-se no fato de que Deus se
revelou ao homem, e esta revelação ficou registrada na Bíblia. Nascida no
Oriente e revestida da linguagem, do simbolismo e das formas de pensar
tipicamente orientais, a Bíblia tem, não obstante, uma mensagem para a
humanidade toda, qualquer que seja a raça, cultura ou capacidade da
pessoa. Contrasta com os livros de outras religiões porque não narra uma
manifestação divina de um só homem, mas uma revelação progressiva
arraigada na longa história de um povo. Deus revelou-se em determinados
momentos da história humana. Diz C. O. Gillis: “Não se pode entender a
verdadeira religião... sem entender-se o fundo histórico por via do qual nos
chegaram estas verdades espirituais”.

A Bíblia é uma biblioteca de 66 livros escritos por 40 autores num período de


1500 anos; não obstante, nela se desenvolve um único tema que une todas
as partes, a redenção do homem. O Antigo Testamento foi escrito na maior
parte em hebraico (algumas passagens curtas em aramaico).
Aproximadamente 100 anos antes da era cristã todo a Antigo Testamento foi
traduzido para o grego. O Novo Testamento foi escrito na língua grega.
Nossa Bíblia é uma tradução dessas línguas originais.

A palavra “Bíblia” vem da palavra grega “biblios”. A palavra “Testamento”


quer dizer “aliança” ou pacto. O Antigo Testamento é a aliança que Deus fez
com o homem quanto à sua salvação, antes de Cristo vir. No Antigo
Testamento encontramos a aliança da lei. No Novo Testamento encontramos
a aliança da graça que veio por Jesus Cristo. Uma conduzia à outra (Gl 3.17-
25). O Antigo Testamento começa o que o Novo completa. O Antigo se reúne
ao redor do Sinai. O Novo ao redor do Calvário. O Antigo está associado com
Moisés. O Novo com Cristo (Jo 1.17).

Os autores foram reis e príncipes, poetas e filósofos, profetas e estadistas.


Alguns eram instruídos em todo o conhecimento da sua época e outros eram
pescadores sem cultura. Alguns livros logo se tornam antiquados, mas este
Livro atravessa os séculos.
Pentateuco 13

1.2. Introdução ao Estudo do Pentateuco


1.2.1. O termo

O Termo Pentateuco é a denominação mais comum para descrever os


primeiros cinco livros da Bíblia. Deriva do grego pente (cinco) e teuchos (rolo)
e, dessa forma, descreve o número desses escritos, não o seu conteúdo.
Pentateuco é um modo adequado de identificar esses livros. Em virtude dos
mais de dois mil anos de uso, ele está profundamente enraizado na tradição
cristã. Entretanto, um termo mais preciso e informativo é Torá (hebraico
torah). Esse nome baseia-se no verbo yarah, ensinar. Torá é, portanto,
ensino. Uma atenção cuidadosa a esse fato levará à apreciação do conteúdo
do Pentateuco, bem como do seu propósito fundamental: instruir o povo de
Deus acerca do próprio Deus, do povo e dos propósitos divinos concernentes
ao povo.

A enorme quantidade de material legal no Pentateuco (metade de Êxodo, a


maior parte de Levítico, grande parte de Números e praticamente todo o
Deuteronômio) levou à designação comum Lei ou Livros da Lei. Essa
maneira de ver o Pentateuco desfrutava a sanção do uso que se fazia dele no
antigo mundo judaico, e mesmo no Novo Testamento não é de todo sem
razão. Entretanto, estudos recentes têm mostrado de modo conclusivo que o
Pentateuco é essencialmente um manual de instrução (daí torah) cujo
propósito era guiar Israel, o povo da aliança, na peregrinação diante de seu
Deus. Por exemplo, Gênesis, embora contenha poucas leis, ainda assim
instrui o povo de Deus mediante suas narrativas da história primeva e dos
patriarcas. A lei formava “a constituição e os regulamentos” da nação
escolhida. Torá é, portanto, a denominação mais adequada para descrever
todo o conteúdo e o propósito dessa parte mais antiga da Bíblia.

1.2.2. Autoria

Até o iluminismo do século XVIII, havia consenso entre as tradições judaica e


cristã de que o testemunho do Pentateuco revelava Moisés como seu autor.
Tanto o Antigo (Dt 1.5; 4.44; 31.9; 33.4; Js 8.31-34; 1Rs 2.3; 2Rs 14.6; 23.25;
2Cr 23.18; Ed 3.2; Ne 8.1; Ml 4.4) como o Novo Testamento (Lc 2.22; 24.44;
Jo 1.17; 7.19; At 13.39;28.23; 1Co 9.9; Hb 10.28) sustentam a tradição da
autoria mosaica. Alguns intérpretes, antes do Iluminismo, levantaram
questões incidentes sobre discrepâncias cronológicas. Observaram, por
exemplo, a referência aos reis de Israel em Gênesis 36.31, a referência de
Moisés a si mesmo como varão “mui manso, mais do que todos os homens
que havia sobre a terra (Nm 12.3), e o relato que ele fez de sua própria morte
(Dt 34.5-12). Tais referências, porém, podem ser explicadas ou como
resultado da revelação divina sobre o futuro ou mais provavelmente como
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exemplos de acréscimos posteriores ao texto. Aqueles que aceitam Moisés


como personagem histórica, cuja vida e experiência são evidenciadas pelas
Escrituras (Êx 2.10-11; Hb 11.23-24) devem admitir a possibilidade genuína
de ele ser o autor dos escritos que tradicionalmente levam seu nome”.

Muitos estudiosos declaram positivamente as contribuições significativas de


Moisés para a formação do Pentateuco, mas sustentam que a forma final
desses livros evidencia algum trabalho de edição posterior à época de
Moisés. Esses críticos de modo algum negam a inspiração divina do
Pentateuco ou a contabilidade de sua história. Antes, afirmam que após a
morte de Moisés Deus continuou a estimular o povo da fé de modo que este
desenvolvesse com cuidado as verdades ensinadas por Moisés. Entre os
indícios de que os relatos foram recontados após a morte de Moisés
encontram-se Deuteronômio 34, em especial 34.10-12, que parece refletir
uma longa história de experiência com profetas que não conseguiram se
igualar a Moisés. Outros indícios são as notas históricas que parecem refletir
uma época posterior à conquista da terra dos cananeus por Israel (Gn 12.6;
13.7) e identificam nomes de lugares que aparentemente foram atualizados
para os que eram usados depois da morte de Moisés (compare Gn 14.14
com Js 19.47 e Jz 18.29).

1.2.3. Teoria documentária da Alta Crítica

Há dois séculos, eruditos de tendência racionalista puseram em dúvida a


paternidade mosaica do Pentateuco. Criaram a Teoria Documentária da Alta
Crítica, segundo a qual os primeiros cinco livros da Bíblia são uma
compilação de documentos redigidos, em sua maior parte, no período de
Esdras (444 a.C.) No entender desses autores, o documento mais antigo que
se encontra no Pentateuco data do tempo de Salomão. Julgam que o
Deuteronômio é uma “fraude piedosa” escrita pelos sacerdotes no reinado de
Josias tendo em mira promover um avivamento; que o Gênesis consiste,
mormente em lendas nacionais de Israel.

Muitos estudiosos conservadores acham provável que Moisés, ao escrever o


livro do Gênesis, tenha empregado genealogias e tradições escritas (Moisés
menciona especificamente “o livro das gerações de Adão”, em Gênesis 5.1).
William Ross observa que o tom pessoal que encontramos na oração de
Abraão a favor de Sodoma, no relato do sacrifício de Isaque, e nas palavras
de José ao dar-se a conhecer a seus irmãos “é precisamente o que
esperaríamos, se o livro de Moisés fosse baseado em notas biográficas
anteriores”. Provavelmente, essas valiosas memórias foram transmitidas de
uma geração para outra desde tempos muito remotos. Não nos causa
estranheza que Deus possa ter guiado Moisés a incorporar tais documentos
em seus escritos. Seriam igualmente inspirados e autênticos.
Pentateuco 15

Também é notável haver alguns acréscimos e retoques insignificantes de


palavras arcaicas, feitos à obra original de Moisés. É universalmente
reconhecido que o relato da morte de Moisés (Dt 34) foi escrito por outra
pessoa (o Talmude, livro dos rabinos, o atribui a Josué). Gênesis 36.31 indica
que havia rei em Israel, algo que não existia na época de Moisés. Em
Gênesis 14.14 dá-se o nome “Dã” à antiga cidade de “Laís”, nome que lhe foi
dado depois da conquista. Pode-se atribuir isto a notas esclarecedoras, ou a
mudanças de nomes geográficos arcaicos, introduzidos para tornar mais
claro o relato. Provavelmente foram agregados pelos copistas das Escrituras,
ou por algum personagem (como o profeta Samuel). Não obstante, estes
retoques não seriam de grande importância nem afetariam a integridade do
texto. Assim, pois, são contundentes tanto as evidências internas como a
externa de que Moisés escreveu o Pentateuco. Muitos trechos contêm frases,
nomes e costumes do Egito, indicativos de que o autor tinha conhecimento
pessoal de sua cultura e de sua geografia, algo que dificilmente teria outro
escritor em Canaã, vários séculos depois de Moisés. Por exemplo,
consideremos os nomes egípcios: Potifar (dom do deus do sol, Ra), Zafnate-
Paneá (Deus fala; ele vive), Asenate (pertencente à deusa Neit) e On, antigo
nome de Heliópolis (Gn 37.36; 41.45, 50). Notemos, também, que o autor
menciona até os vasos de madeira e os de pedra que os egípcios usavam
para guardar a água que tiravam do rio Nilo. O célebre arqueólogo W. F.
Albright diz que no Êxodo se encontram em forma correta tantos detalhes
arcaicos que seria insustentável atribuí-los a invenções posteriores.

Também, pelas referências feitas com relação a certos materiais do


tabernáculo, deduzimos que o autor conhecia a península do Sinai. Por
exemplo, as peles de texugos se referem, segundo certos eruditos, às peles
de um animal da região do mar Vermelho; a “onicha”, usada como ingrediente
do incenso (Êx 30.34) era da concha de um caracol da mesma região.
Evidentemente, as passagens foram escritas por alguém que conhecia a rota
da peregrinação de Israel e não por um escritor no cativeiro babilônico, ou na
restauração, séculos depois.

Do mesmo modo, os conservadores mostram que o Deuteronômio foi escrito


no período de Moisés. O ponto de referência do autor do livro é o de uma
pessoa que ainda não entrou em Canaã. A forma em que está escrito é a dos
tratados entre os senhores e seus vassalos do Oriente Médio no segundo
milênio antes de Cristo. Por isso, estranhamos que a Alta Crítica tenha dado
como data destes livros setecentos ou mil anos depois.

A Arqueologia também confirma que muitos dos acontecimentos do livro do


Gênesis são realmente históricos. Por exemplo, os pormenores da tomada de
Sodoma, descrita no capítulo 14 do livro de Gênesis, coincidem com
assombrosa exatidão com o que os arqueólogos descobriram. (Nisto se
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incluem: os nomes, movimento dos povos, e a rota que os invasores tomaram


chamada “caminho real”. Depois do ano 1200 a.C., a condição da região
mudou radicalmente, e essa rota de caravanas deixou de ser utilizada). O
arqueólogo Albright declarou que alguns dos detalhes do capítulo 14 nos
levam de volta à Idade do Bronze (período médio, entre 2100 e 1560 a.C.).
Não é muito provável que um escritor que vivesse séculos.

Além do mais, nas ruínas de Mari (sobre o rio Eufrates) e de Nuzu (sobre um
afluente do rio Tigre) foram encontradas tábuas de argila da época dos
patriarcas. Nelas se descrevem leis e costumes, tais como as que permitiam
que o homem sem filhos dessa sua herança a um escravo (Gênesis 15.3), e
uma mulher estéril entregasse sua criada a seu marido para suscitar
descendência (Gênesis 16.2). Do mesmo modo, as tábuas contêm nomes
equivalentes ou semelhantes aos de Abraão, Naor (Nacor), Benjamim e
muitos outros. Por isso, tais provas refutam a teoria da Alta Crítica de que o
livro do Gênesis é uma coletânea de mitos e lendas do primeiro milênio antes
de Cristo. A Arqueologia demonstra cada vez mais que o Pentateuco
apresenta detalhes históricos exatos, e que foi escrito na época de Moisés.
Há razão ainda para se duvidar de que o grande líder do êxodo foi seu autor?

1.2.4. Ambiente do mundo bíblico

Quando Abraão chegou à Palestina, esta já era uma ponte importante entre
os centros culturais e políticos daquela época. Ao norte achava-se o império
hitita; ao sudoeste, o Egito; ao oriente e ao sul, Babilônia; e ao nordeste o
império assírio. Ou seja, que os israelitas estavam localizados em um ponto
estratégico e não isolado geograficamente das grandes civilizações.

A maioria dos historiadores acha que a planície de Sinar, situada entre os rios
Eufrates e Tigre, foi o berço da primeira civilização importante, chamada
Suméria. No ano 2800 haviam edificado cidades florescentes e haviam
organizado o governo em cidades-estados; também haviam utilizado metais e
tinham aperfeiçoado um sistema de escrita chamada cuneiforme. Quase ao
mesmo tempo, desenvolvia-se no Egito uma civilização brilhante. É provável
que quando Abraão se dirigiu para o Egito, tenha visto pirâmides que
contavam mais de 500 anos.

A região onde se desenvolveu a primeira civilização é chamada “fértil


crescente” (pela forma do território que abrange). Estende-se de forma
semicircular entre o Golfo Pérsico e o mar Mediterrâneo, até ao sul da
Palestina. O território é regado constantemente por chuvas e rios caudalosos,
como o Eufrates, o Tigre, o Nilo e o Orontes, o que possibilita uma agricultura
produtiva. No interior desta região está o deserto da Arábia, onde há
escassas chuvas e pouca população. Ali, no fértil crescente, surgiram os
Pentateuco 17

grandes impérios dos amorreus, dos babilônios, dos assírios e dos persas. O
mais importante para nós, todavia, é que ali habitou o povo escolhido de
Deus e ali nasceu o Homem que seria o Salvador do mundo.

Toda a região compreendida entre os rios Eufrates e Tigre chama-se


Mesopotâmia (meso: entre; potamos: rio). No princípio denominava-se
“Caldéia” à planície de Sinar, desde a cidade de Babilônia, ao sul, até ao
Golfo Pérsico; mas posteriormente o termo “Caldéia” passou a designar toda
a região da Mesopotâmia (a mesma área chamava-se também Babilônia).
Abrangia muito do território do atual Iraque, e era provavelmente o local da
torre de Babel.

O território da Palestina é relativamente pequeno. Desde Dã até Berseba,


pontos extremos no norte e no sul, respectivamente, há uma distância de
apenas 250 quilômetros. O território tem desde o mar Mediterrâneo até ao
mar Morto, 90 quilômetros de largura; e o lago de Genesaré (mar da Galiléia)
dista aproximadamente 50 quilômetros do mar Mediterrâneo. A área total de
Canaã equivale, em tamanho a sétima parte do Uruguai ou a um terço do
Panamá. Contudo, nesta porção tão pequena do globo terrestre, Deus
revelou-se ao povo israelita, e ali o Verbo eterno habitou entre os homens e
realizou a redenção da raça humana.
18

Capítulo 2

Livro de Gênesis
Uma introdução ao livro do Gênesis, teria de ser muito extensa e, neste caso,
abranger a maior parte das questões relativas à origem e ao autor, ou então
demasiadamente concisa de forma a deixar a crítica dos principais pontos ao
lugar que lhe compete no respectivo texto. Portanto, optamos em dizer neste
intróito, apenas que, as primeiras palavras do Gênesis, que tratam da
Cosmogonia, são plenas de solene majestade. Sem adornos nem fantasias
inúteis, impressionam justamente por isto. Somente Deus existia naquele
tempo, com a sua Onipotência e a sua vontade de criar o mundo. Este
conceito tão elevado da realidade e do pensamento humano está expresso
de maneira simples e sem nenhum esclarecimento sobre o feito maravilhoso
da Criação.

2.1. O título do livro


O título “Gênesis”, como aparece em nossas Bíblias, é a tradução em grego,
do referido título em hebraico. O título em hebraico deriva da primeira palavra
do livro: bereshith (“no princípio”), e significa “origem, fonte, criação, ou
começo dalguma coisa”. Gênesis, portanto, é “o livro dos começos”.
Caracteriza perfeitamente o conteúdo do livro, ou seja, o princípio do
universo, o princípio do homem, o princípio do pecado, o princípio da
salvação, o princípio do povo hebraico, e bem assim o princípio de muitos
outros acontecimentos e fenômenos ocorridos na história do mundo.

2.2. A autoria
Ainda que não é opinião geral atribuir-se o livro a Moisés, esta é a nossa
posição. Mesmo porque não foi ainda apresentada qualquer outra teoria bem
fundada que nos levasse a pensar o contrário. Não quer isto dizer, no
entanto, que Moisés não se tenha servido de fontes de qualquer espécie para
a elaboração da sua obra. Uma possível indicação de Moisés ter utilizado
registros históricos existentes ao escrever Gênesis, é a repetida expressão
através do livro: “estas são as gerações de” (hb. e’lleh toledoth), que também
admite a tradução: “estas são as histórias por” (ver 2.4; 5.1; 6.9; 10.1; 11.10,
27; 25.12, 19; 36.1, 9; 37.2). Portanto, ninguém pode dizer com certeza que
esta frase constitua um subtítulo que indique a fonte da qual a informação foi
derivada, embora seja de admitir, com reservas, naturalmente, que Moisés
Pentateuco 19

teve presente essas fontes, talvez gravadas em tábuas de barro, e


procedentes de Noé, Sem, Terá e outros. Mera possibilidade é certa, mas
admissível.

Não podemos excluir Gênesis do testemunho do Novo Testamento que


afirma ser Moisés (século XV a.C.) o autor do Pentateuco. Mais
especificamente, nosso Senhor disse “pelo motivo de que Moisés vos deu a
circuncisão” (Jo 7.22; At 15.1), a qual é mencionada somente em Gn 17. Não
surpreende que o fundador da teocracia de Israel tenha lançado este
fundamento magistral da lei. A narrativa histórica de Gênesis estabeleceu os
fundamentos teológicos e éticos da Torá: o relacionamento ímpar de Israel
com Deus mediante a aliança (Dt 9.5) e as suas leis singulares (a lei do
sábado). Além do mais, desde que os mitos da criação são básicos nas
religiões pagãs, é natural que Moisés tivesse incluído um relato da criação
em oposição aos mitos pagãos. Este relato constitui-se, ainda, em alicerce
para a lei mediada por Moisés.

Embora o autor de Gênesis não seja mencionado em nenhuma parte do livro,


o testemunho do restante da Bíblia, é que Moisés foi o autor de todo o
Pentateuco (isto é, os cinco primeiros livros do Antigo Testamento) e,
portanto, de Gênesis (1Rs 2.3; 2Rs 14.6; Ed 6.18; Ne 13.1; Dn 9.11-13; Ml
4.4; Mc 12.26; Lc 16.29,31; Jo 7.19-23; At 26.22; 1Co 9.9; 2Co 3.15). Além
disso, os antigos escritores judaicos e os primeiros dirigentes da igreja são
unânimes em testificar que Moisés foi o escritor de Gênesis. Uma vez que o
relato de Gênesis no seu todo é de data anterior a Moisés, o papel deste ao
escrever Gênesis foi, em grande parte, reunir sob a inspiração do Espírito
Santo, todos os registros escritos e orais disponíveis, desde Adão até a morte
de José, como os temos hoje preservados em Gênesis.

O testemunho da própria Bíblia a favor da autoria mosaica é apoiado por


informações extrabíblicas. Os onze primeiros capítulos de Gênesis têm
muitos paralelos e diferenças propositais com os mitos do antigo Oriente
Próximo anteriores à época de Moisés e conhecidos por ele (os relatos da
criação mesopotâmicos tais como Enuma Elish e os relatos do dilúvio tais
como os encontrados na Epopéia de Atrahasis e na décima primeira tábua da
Epopéia de Gilgamesh). Os nomes e os costumes nas narrativas dos
patriarcas (caps. 12-50) refletem acuradamente a era em que viveram,
sugerindo um autor antigo que dispunha de documentos confiáveis. Os textos
de Ebla (século XXIV a.C.) mencionam Ebrium, que pode ser o mesmo Héber
de Gn 10.21, e os textos de Mari (século XVIII a.C.) atestam a existência de
nomes como Abraão, Jacó e amorreu. A prática de conceder um direito de
primogenitura (isto é, de privilégios adicionais para o filho mais velho, 25.5-
6,32-34; 39.3-4; 43.33; 49.3) era difundida no antigo Oriente Próximo. A
venda de uma herança (25.29-34) é documentada em diferentes períodos
20

nesta era. A adoção de um escravo pelo seu senhor (15.1-3) é encontrada


em uma carta de Larsa, na antiga Babilônia, e a adoção de Efraim e
Manassés por seu avô (48.5) pode ser comparada com uma adoção
semelhante de um neto em Ugarit (século XIV a.C.). A doação de uma
escrava como parte de um dote e a sua apresentação ao marido pela mulher
infértil (16.1-6; 30.1-3 e notas) são mencionadas nas leis de Hamurábi (c.
1750 a.C.). Esses e outros fatos semelhantes corroboram a confiabilidade
histórica da narrativa de Gênesis.

2.3. Data e ocasião


Considerando as evidências bíblicas e extrabíblicas que relacionam Gênesis
e o seu conteúdo a Moisés e a sua era, podemos concluir razoavelmente que
o livro remonta ao século XV a.C. Indubitavelmente, por exemplo, desde que
Davi (c. 1000 a.C.) compôs o relato da criação de Gn 1 em música (SI 8),
requer-se uma data de composição no segundo milênio para Gn 1. Os
leitores devem observar, porém, que embora ocasionalmente apareçam no
texto palavras conhecidas somente a partir da metade do segundo milênio, a
gramática do Pentateuco foi ocasionalmente atualizada, assim como alguns
nomes de lugares (14.14). Também a lista de reis em 36.31-43 foi
aparentemente acrescentada após a época de Saul.

O propósito de Gênesis, a exemplo da sua autoria e data, não pode ser


examinado senão com relação ao seu lugar dentro do Pentateuco como um
todo. O Pentateuco é uma combinação ímpar de história e lei, uma história
que explica as origens de suas leis. Por exemplo, as narrativas de Gênesis
explicam o rito da circuncisão (17.9-14). A proibição de comer o músculo
ciático (32.32) e a observância do sábado (2.2-3). Ainda mais importante, a
sua narrativa apresenta a eleição de Israel por Deus para um relacionamento
único mediante a aliança com Deus, a fim de abençoar o mundo caído. Esse
relacionamento pactual consiste na promessa feita por Deus aos patriarcas
de fazer da sua descendência eleita uma grande nação e no compromisso da
nação escolhida em obedecer-lhe para, assim, tornar-se uma luz para os
gentios. Gênesis narra as origens dessa nação redentora, retrocedendo aos
primórdios da humanidade e do mundo e, assim, do conflito entre o reino de
Deus e o reino de Satanás, no qual esta nação haveria de desempenhar um
papel crucial.

2.4. Dificuldades de interpretação


A tensão entre Gênesis e a ciência moderna sobre as origens do universo e
dos seres vivos é, em grande parte, resolvida quando se reconhece que
ambas as partes falam a partir de perspectivas diferentes. Gênesis preocupa-
se com quem criou e por quê, não com o como e quando. A ciência não pode
Pentateuco 21

responder àquelas questões e Gênesis, em grande parte, mantém silêncio


quanto a estas (2,5-6,11).

Por cerca de um século, os estudiosos adeptos da “hipótese documentária”


têm declarado que Gênesis é uma composição de documentos conflitantes: J
(de Javé, “o SENHOR”). E (de Elohim, “Deus”). D (de Deuteronomista) e P
(de escritor sacerdotal). Muito embora esse esquema ainda seja amplamente
aceito, poucos ainda acreditam que esses documentos possam ser usados
para reconstruir a história de Israel, uma vez que todos os supostos
documentos contêm o que se considera serem matérias “antigas” e
“recentes”. Em outras palavras, os quatro alegados documentos de fato
compartilham elementos e características que se supunha pertencerem a
apenas uma dessas fontes hipotéticas (p.ex. J contém matéria que
supostamente seria encontrada somente em E). É certo que, na composição
dos documentos no antigo Oriente Próximo, era comum a combinação de
documentos escritos mais antigos, e é provável que o próprio Moisés tenha
feito uso delas (5.1). Além do mais, muitos estudiosos hoje questionam os
critérios usados para identificar essas supostas fontes e enfatizam, ao
contrário, a unidade do texto tal como o temos. Por exemplo, o relato do
dilúvio, antes apontado como um exemplo clássico da hipótese documentária,
é visto hoje como portador de excepcional integridade (6.9-9.29).

2.5. Características e temas


Pelo estudo da estrutura literária de Gênesis, destacam-se os aspectos que
seguem. Após o prólogo, Gênesis divide-se em dez partes, cujo início é
caracterizado pela fórmula: “Esta é a genealogia (ou 'história') de”. Esse título
é seguido por uma genealogia da pessoa referida na fórmula ou por episódios
envolvendo os seus descendentes mais notáveis. Os primeiros três relatos
pertencem ao mundo pré-diluviano e os sete últimos ao período posterior ao
dilúvio. Os três primeiros relatos formam um paralelo com o quarto, quinto e
sexto relatos:

a) narrativas sobre o desenvolvimento universal da humanidade na


criação e na recriação após o dilúvio (relatos um e quatro,
respectivamente);
b) genealogia das linhagens da redenção a partir de Sete e Sem (relatos
dois e cinco);
c) as narrativas sobre as alianças com Noé e Abraão (relatos três e
seis).
22

Os dois pares finais de narrativas expandem a linhagem abraâmica,


contrastando os seus filhos rejeitados, Ismael e Esaú (relatos sete e nove).
Com as histórias sobre os descendentes eleitos, Isaque e Jacó,
respectivamente (relatos oito e dez).

A chave para compreensão das narrativas é, geralmente, oferecida em uma


revelação que serve de abertura às mesmas: por exemplo, a promessa a
Abraão (12.1-3); o sinal pré-natal da rivalidade entre Jacó e Esaú (25.22-23);
e os sonhos de José (37.1-11). Uma seção de transição encontra-se ao final
dos relatos (p.ex., 4.25-26; 6.1-8; 9.18-29; 11.10-26).

A seção que conclui a última narrativa contém fortes vínculos com o Livro de
Êxodo, terminando com um juramento que José obteve dos seus irmãos de
que, quando Deus viesse em seu socorro e os reconduzisse a Canaã,
levariam consigo o seu corpo embalsamado (50.24-25; Ex 13.19).

O enfoque do livro nas origens de Israel desdobra-se diante de questões que


afetam o mundo. Moisés nos diz que, antes que Deus elegesse os patriarcas,
os pais de Israel (caps. 12-50), a humanidade afirmou a sua independência
de Deus buscando o conhecimento do bem e do mal à parte de Deus e em
desafio ao seu mandamento (caps. 2; 3). Os seres humanos comprovaram a
sua depravação pela religiosidade de fachada, fratricídio e vingança irrestrita
(Caim, cap. 4); pela tirania, haréns e os contínuos maus desígnios (os reis
pré-diluvianos, 6.1-8); e por erguerem um anti-reino contra o próprio Deus
(Ninrode e a torre infame, 10.8-12; 11.1-9). O veredicto de Deus sobre a
humanidade permanece: “é mau o desígnio íntimo do homem desde a sua
mocidade” (8.21).

Certamente de forma tão maravilhosa e soberana como Deus transformou a


escuridão e o vazio por ocasião da criação da terra (1.2) em um habitat
glorioso para a humanidade e lhe trouxera descanso (1.3-2.3), assim também
Deus soberanamente elegeu em Cristo o seu povo da aliança para derrotar a
Satanás (3.15) e para abençoar o mundo depravado (12.1-3). Ele elegeu
incondicionalmente os patriarcas, Abraão, Isaque e Jacó, e prometeu fazer da
sua descendência eleita a nação destinada a abençoar a terra, uma
promessa que acarretava em uma semente, terra e rei eternos (12.1-3,7;
13.14-17; 17.1-8; 26.2-6; 28.10-15). Antes de Jacó nascer e ter praticado o
bem ou o mal. Deus o escolheu, e não a Esaú, o seu irmão gêmeo mais
velho (25.21-23). Ele escolheu Jacó, apesar deste ter trapaceado o seu
irmão, enganado o seu pai e blasfemado contra Deus (cap. 27). Deus usou
até mesmo os delitos escandalosos de Judá contra Tamar, além do ousado
ardil a que ela recorreu, para fazer continuar a linhagem messiânica (cap.
38). O Rei celeste demonstrou o seu governo glorioso preservando
miraculosamente as matriarcas em haréns pagãos (12.10-20; capo 20) e
Pentateuco 23

abrindo os seus ventres estéreis (17.15-22; 18.1-15; 21.1-7; 25.21; 29.31;


30.22). Ele não levou em conta os costumes e tradições quando escolheu o
filho mais jovem (Jacó), não o mais velho (Esaú), para herdar a bênção
(25.23). Profecias flagrantes e tipos sutis são testemunhos incontestáveis de
que Deus dirige a história. Por exemplo, Noé profetizou a submissão de
Canaã a Sem (9.24-26), e o grande êxodo liderado por Moisés foi prefigurado
quando Deus libertou Abraão e Sara com riquezas da opressão do Egito
(12.10-20).

Deus inclinou o coração dos seus eleitos a confiarem em suas promessas e a


obedecerem aos seus mandamentos. Contra toda esperança, Abraão confiou
que Deus lhe daria uma descendência incontável e o legislador diz que Deus
lhe imputou isso como justiça (15.6). Confiante nas firmes promessas de
Deus, Abraão renunciou aos seus direitos sobre a terra (cap. 13) e Jacó,
agora chamado “Israel” e apegando-se somente em Deus (cap. 22), devolveu
simbolicamente o direito de primogenitura a Esaú (cap. 33). No começo da
narrativa de José, Judá vendeu José como escravo (37.26-27), mas, no fim,
o ex-mercador de escravos dispôs-se a tornar-se um escravo em lugar de
seu irmão (44.33-34). Firmado na verdade de que o desígnio gracioso de
Deus trouxera o bem a partir de pecados tão atrozes como o assassinato e o
tráfico de escravos, José perdoou seus irmãos sem recriminação (45.4-8;
50.24).

O que começou em Gênesis cumpre-se em Cristo. A genealogia iniciada no


cap. 5 prossegue no cap. 11 e termina com o nascimento de Jesus Cristo (Mt
1; Lc 3.23-27). Ele é, em última análise, o descendente prometido a Abraão
(12.1-3; GI 3.16). Os eleitos são abençoados nele porque somente ele, por
sua obediência ativa e passiva, satisfez as exigências da lei e morreu em
lugar deles. Todos os que são batizados em Cristo e unidos com ele pela fé
são descendentes de Abraão {GI 3.26-291. As arrojadas profecias e as
prefigurações sutis em Gênesis mostram que Deus está escrevendo uma
história que conduz ao descanso em Cristo. No limiar da profecia bíblica, Noé
predisse que os jafetitas encontrariam salvação através dos semitas, uma
profecia que se cumpriu no Novo Testamento (9.27), e Deus mesmo
proclamou que o descendente da mulher destruiria Satanás (3.15). Este
descendente é Cristo e sua Igreja (Rm 16.20). A apresentação da noiva para
Adão prefigura a apresentação da Igreja a Cristo (2.18-25; Ef 5.22-321; o
sacerdócio de Melquisedeque é como o do Filho de Deus (14.18-20; Hb 7); e
assim como o Israel redimido da escravidão no Egito encontrou descanso,
subsistência e refúgio na Terra Prometida, a Igreja redimida do mundo
amaldiçoado encontra a vida em Cristo (13.15). O paraíso perdido pelo
primeiro Adão é restaurado pelo último Adão. Esta história sagrada, unificada
assim de forma tão maravilhosa, certifica que o enfoque de Gênesis é Cristo.
24

2.6. Estudos no Livro de Gênesis


2.6.1. A Criação

2.6.1.1. A Criação do Universo (1.1-2.3)

Como considerar a descrição em causa? Ciência, fábula ou revelação? Se,


por ciência, entendermos a disposição sistemática dum ramo do saber,
diremos, então, que a descrição nada tem de “científico”. E ainda bem, pois
se fosse utilizada a linguagem científica do século XX, como a entenderiam
os leitores dos séculos precedentes? E mesmo os atuais necessitariam duma
adequada preparação científica. Nesse caso ainda, não seria de prever que
passados cem ou duzentos anos fosse já considerada antiquada aquela
linguagem? A narração do Gênesis não foi, portanto, redigida em moldes
científicos, talvez para melhor mostrar a sua inspiração divina. Poderíamos,
no entanto, fazer a seguinte interrogação: -- Não sendo científica quanto à
forma, será a descrição do Gênesis científica quanto à substância, ou quanto
ao conteúdo? Serão de admitir erros ou pelo menos inexatidões na narração
bíblica. Graves conflitos têm surgido entre prematuras conclusões da ciência
e supostas deduções científicas da Escritura. Mas estudos ulteriores têm
vindo provar que, por um lado, não eram válidas as conclusões científicas,
ou, então, por outro, eram mal interpretadas no texto as afirmações
científicas.

Quanto a se supor uma fábula a narração do Gênesis, quer no sentido


popular, quer no sentido clássico, não é fácil de admitir-se. Pois no primeiro
caso tratar-se-ia duma obra puramente imaginária, e no segundo duma
exposição simbólica dum fato com certas verdades abstratas, que de outro
modo seriam incompreensíveis. Trata-se, sim, duma narração dos
acontecimentos que não seriam compreendidos, se fossem descritos com a
precisão formal da ciência. É neste estilo simples mas expressivo que a
divina sabedoria se manifestou claramente aos homens, indo assim ao
encontro das necessidades de todos os tempos. Os fatos apresentam-se
numa linguagem abundante e rica, que é possível incluir todos os resultados
das pesquisas científicas.

O primeiro capítulo do Gênesis não há dúvida que supõe a revelação divina.


Pelas muitas versões, algumas delas correntes já entre os pagãos da
Antigüidade, é fácil concluir-se que esta revelação é anterior a Moisés. Não
deve, no entanto, considerar-se como uma nova versão das tradições
politeístas dos fenícios ou dos babilônicos; porque acima de tudo a obra
criadora de Deus só por Deus poderia ser revelada. E essa revelação não
deixou de ser preservada de qualquer contaminação pagã ou corrupção
supersticiosa, encontrando-se perfeita e inviolável nos cinco livros de Moisés.
Pentateuco 25

Sob o aspecto científico nada se sabe acerca da origem das coisas. Mas o
certo é que a Geologia, através do estudo dos fósseis, vem confirmar, cada
vez mais, as diferentes fases da criação que Gn 1 nos descreve
pormenorizadamente. Baseados em motivos meramente teóricos, vários
comentadores supõem que a criação original de Deus foi destruída por uma
terrível catástrofe. Assim o verso 1 descreve o ato inicial de Deus, que deu a
existência ao universo; o verso 2 o estado desse universo arruinado “sem
forma e vazio”, se bem que não se faça qualquer alusão à catástrofe
provocadora dessa ruína; os restantes versos fazem uma análise da obra de
Deus na reconstituição desse universo. Trata-se duma teoria, ainda hoje
muito seguida, para resolver certos problemas que, no fim de contas,
continuam insolúveis, e é contestada por fortes argumentos lingüísticos. A
chamada teoria da “lacuna” não assenta em bases firmes e é desmentida
pela própria Geologia.

2.6.1.2. No Princípio (bereshith)

No princípio, criou Deus (Gn 1.1). A expressão “No princípio” é enfática, e


chama a atenção para o fato de um princípio real. Outras religiões antigas, ao
falarem da criação, afirmam que esta ocorreu a partir de algo já existente.
Referem-se à história como algo que ocorre em ciclos perpétuos. A Bíblia
olha para a história de modo linear, com um alvo final determinado por Deus.
Deus teve um plano na criação, o qual Ele levará a efeito. Várias conclusões
decorrem da verdade contida no primeiro versículo da Bíblia. Uma vez
que Deus é a origem de tudo quanto existe, os seres humanos e a natureza
não existem por si mesmos, mas devem a Ele sua existência e a sua
propagação. Toda existência e forma de vida são boas se estão corretamente
relacionadas com Deus e dependentes dEle. Toda vida e criação pode ter
relevância e propósito eternos. Deus tem direitos soberanos sobre toda a
criação, em virtude de ser seu Criador. Num mundo caído, Ele reafirma esses
direitos mediante a redenção (Êx 6.6; 15.13; Dt 21.8; Lc 1.68; Rm 3.24; Gl
3.13 ;1Pe 1.18).

2.6.1.3. O Deus da criação

2.6.1.3.1. Eterno

Deus se revela na Bíblia como um ser infinito, eterno, auto-existente e como


a Causa Primária de tudo o que existe. Nunca houve um momento em que
Deus não existisse. Conforme afirma Moisés: “Antes que os montes
nascessem, ou que tu formasses a terra e o mundo, sim, de eternidade a
eternidade, tu és Deus” (Sl 90.2). Noutras palavras, Deus existiu eterna e
infinitamente antes de criar o universo finito. Ele é anterior a toda criação, no
céu e na terra, está acima e independe dela (1Tm 6.16; Cl 1.16).
26

2.6.1.3.2. Transcendente

Deus é diferente e independente da sua criação homens, anjos, espíritos ou


coisas físicas ou materiais (Êx 24.9-18; Is 6.1-3; 40.12-26; 55.8,9; Ez 1). Deus
não deve jamais ser nivelado aos seres humanos, ou qualquer outro ser que
Ele criou. Seu ser e sua existência pertencem a uma dimensão totalmente
diferente. Ele habita numa esfera de vida perfeita e pura, em tudo acima da
sua criação. Ele não é parte da sua criação, nem sua criação é parte dEle.
Além disso, os crentes não são Deus e nunca serão “deuses” como afirma a
Nova Era. Sempre seremos seres limitados e dependentes de Deus, mesmo
na era do porvir. Embora exista uma distinção extrema entre Deus e toda
criação, Deus também está presente e ativo em todo o mundo. Ele vive e se
manifesta entre seus fiéis, que se arrependem dos seus pecados e que vivem
pela fé em Cristo (Ex 33.17-23; Is 57.15; ver Mt 10.31; Rm 8.28; Sl 2.20).

2.6.1.3.3. Criador

Deus criou todas as coisas em “os céus e a terra” (1.1; Is 40.28; 42.5; 45.18;
Mc 13.19; Ef 3.9; Cl 1.16; Hb 1.2; Ap 10.6). O verbo “criar” (hb.”bara”) é
usado exclusivamente em referência a uma atividade que somente Deus
pode realizar. Significa que, num momento específico, Deus criou a matéria e
a substância, que antes nunca existiram. A Bíblia diz que no princípio da
criação a terra estava informe, vazia e coberta de trevas (1.2). Naquele tempo
o universo não tinha a forma ordenada que tem agora. O mundo estava
vazio, sem nenhum ser vivente e destituído do mínimo vestígio de luz.
Passada essa etapa inicial, Deus criou a luz para dissipar as trevas (1.3-5),
deu forma ao universo (1.6-13) e encheu a terra de seres viventes (1.20-28).
O método que Deus usou na criação foi o poder da sua palavra. Repetidas
vezes está declarado: “E disse Deus...” (1.3, 6, 9, 11, 14, 20, 24, 26). Noutras
palavras, Deus falou e os céus e a terra passaram a existir. Antes da palavra
criadora de Deus, eles não existiam (Sl 33.6,9; 148.5; Is 48.13; Rm 4.17; Hb
11.3). Toda a Trindade, e não apenas o Pai, desempenhou sua parte na
criação. O próprio Filho é a Palavra (“Verbo”) poderosa, através de quem
Deus criou todas as coisas. No prólogo do Evangelho segundo João, Cristo é
revelado como a eterna Palavra de Deus (Jo 1.1). “Todas as coisas foram
feitas por Ele, e sem Ele nada do que foi feito se fez” (Jo 1.3).
Semelhantemente, o apóstolo Paulo afirma que por Cristo “foram criadas
todas as coisas que há nos céus e na terra, visíveis e invisíveis... tudo foi
criado por Ele e para Ele” (Cl 1.16). Finalmente, o autor do Livro de Hebreus
afirma enfaticamente que Deus fez o universo por meio do seu Filho (Hb 1.2).
Semelhantemente, o Espírito Santo desempenhou um papel ativo na obra da
criação. Ele é descrito como “pairando” (“se movia”) sobre a criação,
preservando-a e preparando-a para as atividades criadoras adicionais de
Deus. A palavra hebraica traduzida por “Espírito” (ruah) também pode ser
Pentateuco 27

traduzida por “vento” e “fôlego”. Por isso, o salmista testifica do papel do


Espírito, ao declarar: “Pela palavra do Senhor foram feitos os céus; e todo o
exército deles, pelo espírito (ruah) da sua boca” (Sl 33.6). Além disso, o
Espírito Santo continua a manter e sustentar a criação (Jó 33.4; Sl 104.30).

2.6.1.4. O propósito criação

Deus tinha razões específicas para criar o mundo. Deus criou os céus e a
terra como manifestação da sua glória, majestade e poder. Davi diz: “Os céus
manifestam a glória de Deus e o firmamento anuncia a obra das suas mãos”
(Sl 19.1; cf. 8.1). Ao olharmos a totalidade do cosmos criado - desde a
imensa expansão do universo, à beleza e à ordem da natureza - ficamos
tomados de temor reverente ante a majestade do Senhor Deus, nosso
Criador. Deus criou os céus e a terra para receber a glória e a honra que lhe
são devidas. Todos os elementos da natureza - o sol e a lua, as árvores da
floresta, a chuva e a neve, os rios e os córregos, as colinas e as montanhas,
os animais e as aves - rendem louvores ao Deus que os criou (Sl 98.7,8;
148.1-10; Is 55.12). Quanto mais Deus deseja e espera receber glória e
louvor dos seres humanos!

Deus criou a terra para prover um lugar onde o seu propósito e alvos para a
humanidade fossem cumpridos. Deus criou Adão e Eva à sua própria
imagem, para comunhão amorável e pessoal com o ser humano por toda a
eternidade. Deus projetou o ser humano como um ser trino e uno (corpo,
alma e espírito), que possui mente, emoção e vontade, para que possa
comunicar-se espontaneamente com Ele como Senhor, adorá-lo e servi-lo
com fé, lealdade e gratidão. Deus desejou de tal maneira esse
relacionamento com a raça humana que, quando Satanás conseguiu tentar
Adão e Eva a ponto de se rebelarem contra Deus e desobedecer ao seu
mandamento, Ele prometeu enviar um Salvador para redimir a humanidade
das conseqüências do pecado (ver 3.15). Daí Deus teria um povo para sua
própria possessão, cujo prazer estaria nEle, que o glorificaria, e que viveria
em retidão e santidade diante dEle (Is 60.21; 61.1-3; Ef 1.11, 12; 1Pe 2.9). A
culminação do propósito de Deus na criação está no livro do Apocalipse,
onde João descreve o fim da história com estas palavras: “... com eles
habitará, e eles serão o seu povo, e o mesmo Deus estará com eles e será o
seu Deus” (Ap 21.3).

2.6.1.5. A criação do homem

A criação do homem é o apogeu da obra criadora de Deus. É a Trindade


quem delibera, sem qualquer intervenção ou consulta feita aos anjos. A
expressão “à nossa imagem, conforme à nossa semelhança” no texto, são
sinônimos, e compreendem-se à face do paralelismo da poesia hebraica.
28

Trata-se duma semelhança natural e moral. É dessa semelhança com Deus


que deriva todo o domínio do homem sobre as criaturas.

2.6.1.5.1. O homem é formado

“Formou” 2.7, Heb. yatsar, rigorosamente “formou” ou “fez”. O corpo do


homem não é certamente diferente à restante criação material, e Deus
aparece agora a formar esse corpo duma substância já existente. A
semelhança entre a estrutura física dos animais e a do homem deve atribuir-
se, não a uma espécie de desenvolvimento natural, mas a um ato especial de
Deus em conformidade com os Seus eternos desígnios, e que poderiam ter
sido muito diferentes. A finalidade desta narração é explicar melhor o
significado do ato divino indicado por bara' em 1.27, sobretudo para frisar
que, ao contrário do que se passara com a criação dos outros seres, Deus
formou o homem “soprando-lhe nos narizes o fôlego da vida” (2.7). E assim o
formou à Sua imagem e semelhança. Pó da terra (7). Heb. 'adamah, que
significa a terra ou solo arável, que se encontra à superfície da terra. E daí
deriva o nome do homem. Excetuando os casos do 1.26 e 2.5, onde o artigo
seria inadmissível, a narração hebraica emprega sempre o artigo (“o Adão”)
até 2.20, onde o termo passou a ser um nome próprio, sem artigo, portanto.
Alma vivente (7). Heb. nephesh. Cfr. “criatura vivente” (1.20) e “alma vivente”
(1.24.

2.6.2. A Imagem de Deus

As Escrituras ensinam (Gn 1.26-27; 5.1; 9.6; 1Co 11.7; Tg 3.9) que Deus fez
o homem e a mulher à sua própria imagem, assim de que os seres humanos
são semelhantes a Deus, como nenhuma outra criatura terrena é. A
dignidade especial dos seres humanos está no fato de, como homens e
mulheres, poderem refletir e reproduzir - dentro de sua própria condição de
criaturas - os santos caminhos de Deus. Os seres humanos foram criados
com esse propósito e, num sentido, somos verdadeiros seres humanos na
medida em que cumprimos esse propósito.

O que tudo envolve essa imagem de Deus na humanidade não está


especificado em Gn 1.26-27, mas o contexto da passagem nos ajuda a defini-
lo. O texto de Gn 1.1-25 descreve Deus como sendo pessoal, racional
(dotado de inteligência e vontade), criativo, governando o mundo que criou, e
um ser moralmente admirável (pois tudo o que criou é bom). Assim, a
imagem de Deus refletirá essas qualidades. Os versículos 28-30 mostram
Deus abençoando os seres humanos que acabara de criar, conferindo-lhes o
poder de governar a criação, como seus representantes e delegados. A
capacidade humana para comunicar-se e para relacionar-se tanto com Deus
como com outros seres humanos aparece como outra faceta dessa imagem.
Pentateuco 29

Por isso, a imagem de Deus na humanidade, que surgiu no ato criador de


Deus, consiste em:

a) Existência do homem como uma “alma” e “espírito” (Gn 2.7), isto é,


como ser pessoal e autoconsciente, com capacidade semelhante à de
Deus para conhecer, pensar e agir;
b) Ser uma criatura moralmente correta - qualidade perdida na queda,
porém agora progressivamente restaurada em Cristo (Ef 4.24; Cl
3.10);
c) Domínio sobre o meio ambiente;
d) Ser o corpo humano o meio através do qual experimentamos a
realidade, nos expressamos e exercemos domínio e (e) na
capacidade que Deus nos deu para usufruir a vida eterna.

A queda deformou a imagem de Deus não só em Adão e Eva, mas em todos


os seus descendentes, ou seja, em toda a raça humana. Estruturalmente,
conservamos essa imagem no sentido de permanecermos seres humanos,
mas não funcionalmente, por sermos agora escravos do pecado, incapazes
de usar nossos poderes para espelhar a santidade de Deus. A regeneração
começa em nossa vida o processo de restauração da imagem moral de Deus.
Porém, enquanto não formos inteiramente santificados e glorificados, não
podemos refletir, de modo perfeito, a imagem de Deus em nossos
pensamentos e ações como fomos criados para fazer e como o Filho de Deus
encamado refletiu na sua humanidade (J0 4.34; 5.30; 6.38; 8.29, 46).

2.6.3. A Queda (Gn 3.6)

Na Carta aos Romanos, Paulo afirma que toda a humanidade está por
natureza sob a culpa e o poder do pecado, sob o reino, da morte e sob a
inescapável ira de Deus (Rm 1.18-19; 3.9, 19; 5.17, 21). Ele relaciona a
origem desse estado ao pecado de um homem – Adão –, que ele descreve
como nosso ancestral comum (At 17.26; Rm 5.12-14; cf. 1Co 15.22). Paulo,
como apóstolo, deu sua interpretação autorizada à história registrada em Gn
3, onde encontramos a narrativa da queda, a desobediência humana original,
que afastou o homem de Deus e da santidade, e lançou-o no pecado e na
perdição. Os principais pontos dessa história, vista pelas lentes da
interpretação de Paulo, são:

1) Deus fez do primeiro homem o representante de toda a sua


posteridade, exatamente do mesmo modo como faria de Cristo o
representante de todos os eleitos de Deus (Rm 5.15-19; cf. 8.29-30;
9.22-26). Em ambos os casos, o representante envolveu aqueles a
quem representou nos resultados de sua ação pessoal, quer para o
bem (no caso de Cristo), quer para o mal (no caso de Adão). Esse
30

arranjo divinamente estabelecido, pelo qual Adão determinou o


destino de seus descendentes, e tem sido chamado de a “aliança das
obras”, ainda que essa frase não ocorra nas Escrituras;
2) Deus colocou Adão num estado de felicidade e prometeu a ele e a
sua posteridade confiná-los nesse estado permanentemente se,
nesse estado, Adão mostrasse fidelidade, obedecendo ao
mandamento de Deus, não comendo da árvore descrita como a
“árvore do conhecimento do bem e do mal” (Gn 2.17). Aparentemente,
a questão era se Adão aceitaria Deus determinar o que era bom e mal
ou se procuraria decidir isso por si mesmo, independentemente do
que Deus lhe tinha dito;
3) Adão, levado por Eva - que por sua vez foi induzida pela serpente
(Satanás disfarçado, 2Co 11.3,14; Ap 12.9) - afrontou a Deus
comendo do fruto proibido. Como conseqüência, primeiro de tudo, a
disposição mental que se opõe a Deus e se engrandece a si mesmo,
expressa no pecado de Adão, tomou-se parte dele e da natureza
moral que ele transmitiu aos seus descendentes (Gn 6.5; Rm 3.9-20).
Em segundo lugar, Adão e Eva foram dominados por um senso de
profanação e culpa, que os levou a ter vergonha e medo de Deus -
com justificada razão. Em terceiro lugar, eles foram amaldiçoados
com expectação de sofrimento e morte e foram expulsos do Éden. Ao
mesmo tempo, contudo, Deus começou a mostrar-lhes graça
salvadora. Fez para eles vestimenta para cobrir sua nudez e
prometeu-lhes que, um dia, a Semente da mulher esmagaria a cabeça
da serpente. Essa promessa prenunciou a Cristo.

Ainda que essa história, de certo modo, seja contada em estilo figurado, o
Livro de Gênesis pede-nos que a leiamos como história. No Gênesis, Adão
está ligado aos patriarcas e, através deles, por genealogia, ao resto da raça
humana (caps. 5; 10-11), fazendo dele uma parte da história, tanto quanto
Abraão, Isaque e Jacó. Todas as principais personalidades do Livro de
Gênesis, depois de Adão - exceto José - são mostradas claramente como
pecadoras de um modo ou de outro, e a morte de José, como a morte de
quase todos os outros na história, é cuidadosamente registrada (Gn 50.22-
26). A afirmação de Paulo: “em Adão, todos morrem” (1Co 15.22) só torna
explícito aquilo que o Gênesis já deixa claramente implícito.

É razoável afirmar que a narrativa da queda sozinha dá uma explicação


convincente para a perversão da natureza humana. Pascal disse que a
doutrina do pecado original parece uma ofensa à razão, porém, uma vez
aceita, dá sentido total à condição humana. Ele estava certo; e a mesma
coisa poderia e deveria ser dita a respeito da própria narrativa da queda.
Pentateuco 31

2.6.4. O Dilúvio

O dilúvio foi o castigo divino universal sobre um mundo ímpio e impenitente.


O apóstolo Pedro refere-se ao dilúvio para relembrar a seus leitores que
Deus outra vez julgará o mundo inteiro no fim dos tempos, mas agora por
fogo (2Pe 3.10). Tal julgamento resultará no derramamento da ira de Deus
sobre os ímpios, como nunca houve na história (Mt 24.21). Deus conclama os
crentes atuais, assim como Ele fez com Noé na Antigüidade, para avisarem
os não-salvos sobre esse dia terrível e instar com eles para que se
arrependam dos seus pecados, e se voltem para Deus por meio de Cristo, e
assim sejam salvos.

2.6.4.1. A Condição da humanidade Pré-diluviana

Nos dias de Noé, o pecado abertamente se manifestava no ser humano, de


duas principais maneiras: a concupiscência carnal (Gn 6.2) e a violência (Gn
6.11,12). A degeneração humana não mudou; o mal continua irrompendo
desenfreado através da depravação e da violência. Hoje em dia, a
imoralidade, a incredulidade, a pornografia e a violência dominam a
sociedade inteira.

2.6.4.2. O arrependimento de Deus (Gn 6.6)

Deus se revela, já nestes primeiros caps. da Bíblia, como um Deus pessoal


para com o ser humano, e que é passível de sentir emoção, desagrado e
reação contra o pecado deliberado e a rebelião da humanidade. Aqui, a
expressão arrependeu-se significa que, por causa do trágico pecado da raça
humana, Deus mudou a sua disposição para com as pessoas; sua atitude de
misericórdia e de longanimidade passou à atitude de juízo. A existência de
Deus, o seu caráter e seus eternos propósitos traçados permanecem
imutáveis (1Sm 15.29; Tg 1.17), porém, Ele pode alterar seu tratamento para
com o homem, dependendo da conduta deste. Deus altera, sim, seus
sentimentos, atitudes, atos e intenções, conforme as pessoas agem diante da
sua vontade (Êx 32.14; 2Sm 24.16; Jr 18.7-10; 26.3,13,19; Ez 18.4-28; Jn
3.8-10). Essa revelação de Deus como um Deus que pode sentir pesar e
tristeza, deixa claro que Ele, em relação à sua criação, age pessoalmente,
como no recesso de uma família. Ele tem um amor intenso pelos seres
humanos e solicitude divina ante a penosa situação da raça humana (Sl
139.7-18).

2.6.4.3. O Varão Chamado Noé (Gn 6.9)

Em meio à iniqüidade e maldade generalizadas daqueles dias (Gn 6.5), Deus


achou em Noé um homem que ainda buscava comunhão com Ele e que era
32

varão justo. Reto em suas gerações equivale dizer que ele se mantinha
distanciado da iniqüidade moral da sociedade ao seu redor. Por ser justo e
temer a Deus e resistir à opinião e conduta condenáveis do público, Noé
achou favor aos olhos de Deus (Gn 6.8; 7.1; Hb 11.7; 2Pe 2.5). Essa retidão
de Noé era fruto da graça de Deus nele, por meio da sua fé e do seu andar
com Deus (Gn 6.9). A salvação no Novo Testamento é obtida exatamente da
mesma maneira, isto é, mediante a graça e misericórdia de Deus, recebidas
pela fé, cuja eficácia conduz o crente a um esforço sincero para andar com
Deus e permanecer separado da geração ímpia ao seu redor (v. 22; 7.5, 9,
16; At 2.40). Hebreus 11.7 declara que Noé foi feito herdeiro da justiça que é
segundo a fé. O Novo Testamento também declara que Noé não somente era
justo, como também pregador da justiça (2Pe 2.5). Nisso, ele é exemplo do
que os pregadores devem ser.

2.6.4.4. A Arca (Gn 6.14)

A palavra hebraica aqui traduzida como arca, significa um objeto apropriado


para flutuar, e ocorre somente aqui e em Êx 2.3,5 (onde a mesma palavra
refere-se ao cesto flutuante em que o nenê Moisés foi colocado). A arca de
Noé era semelhante a uma barcaça de tamanho colossal. Sua capacidade de
carga corresponde à de mais de 300 vagões ferroviários. Calcula-se que a
arca podia comportar cerca de 7.000 tipos de animais. Hebreus 11.7 assinala
a arca como um tipo de Cristo, aquele que é o meio de salvação do crente,
para livrá-lo do juízo e da morte (1Pe 3.20, 21).

2.6.4.5. O pacto (Gn 6.18)

Deus, mediante o seu pacto, prometeu a Noé que este seria salvo do
julgamento que ia ocorrer através do dilúvio. Noé correspondeu ao pacto de
Deus, crendo nEle e na sua palavra (Gn 6.13; Hb 11.7). Sua fé foi
demonstrada quando ele temeu (Hb 11.7) e quando construiu a arca e entrou
nela (Gn 6.22; 7.7; 1Pe 3.21).

2.6.4.6. Uso Neotestamentário do dilúvio

A referência ao dilúvio encontrada no Novo Testamento serve de advertência


de que Deus é o justo juiz de todo o mundo e castigará inexoravelmente o
pecado e livrará da prova os piedosos (2Pe 2.5-9). No tempo de Noé, Deus
destruiu o mundo com água, mas no futuro vai fazê-lo com fogo (2Pe 3.4-14).
Será o prelúdio para estabelecer uma nova ordem, na qual habitará a justiça.
O caráter repentino e inesperado do dilúvio exemplifica a maneira pela qual
ocorrerá a segunda vinda de Cristo e mostra que o crente deve estar
preparado em todos os momentos para aquele dia (Mt 24.36-42). Também o
apóstolo Pedro viu um paralelo entre o batismo em água e a salvação de Noé
Pentateuco 33

e sua família no meio das águas (1Pe 3.20-22). A água simboliza tanto o
juízo de Deus sobre o pecado como seu resultado (o do pecado), a morte. O
batismo significa que o crente se une espiritualmente a Jesus em sua morte e
ressurreição. À semelhança de Noé na arca, o crente em Cristo passa ileso
pelas águas do juízo e morte a fim de habitar em uma nova criação. No
Calvário todas as fontes do grande abismo foram rompidas, e as águas do
juízo subiram sobre Cristo, porém nenhuma gota alcança o crente porque
Deus fechou a porta.

2.6.4.7. Eventos cataclísmicos

De conformidade com Gênesis 7.11, 12 dois eventos cataclísmicos


precipitaram o dilúvio: a implosão dos imensos reservatórios de águas
subterrâneas, talvez causada por terremotos e maremotos, produziu ondas
gigantescas em série, geradas nos oceanos, além das chuvas torrenciais que
caíram sobre a terra por quarenta dias. Em conseqüência disso, todos os
seres viventes fora da arca, que normalmente viviam na terra seca,
morreram, tanto homens como animais (vv. 16, 17; 7.21, 22; Mt 24.37-39;
1Pe 3.20; 2Pe 2.5). Foi somente depois de 150 dias que a água começou a
baixar (v. 24). A arca finalmente repousou numa das montanhas de Arará (na
Armênia), a uns 800 km de onde começou o dilúvio (Gn 8.4). A terra
enxugou, e Noé desembarcou da arca 377 dias depois de iniciado o dilúvio
(8.13, 14). Em 2 Pedro 3.6 está escrito que o mundo antediluviano pereceu.
Esta palavra sugere que, devido às tremendas convulsões ocorridas na terra,
sua topografia antediluviana foi grandemente modificada, tanto física quanto
geologicamente, em relação à terra que agora existe (2Pe 3.7a). O relato do
dilúvio fala-nos, tanto do julgamento do mal, como da salvação (Hb 11.7). O
dilúvio, trazendo a total destruição de toda a vida humana fora da arca, foi
necessário para extirpar a extrema corrupção moral dos homens e mulheres
e para dar à raça humana uma nova oportunidade de ter comunhão com
Deus.

2.6.4.8. A extensão do dilúvio

Qual foi a extensão do dilúvio? Foi universal ou limitado à área do Oriente


Médio? O Gênesis diz que as águas cobriram as montanhas mais altas e
destruíram toda a criatura (fora da arca), sob os céus (7.19-23). Não
obstante, há diferença de opiniões entre eruditos evangélicos. Alguns
pensam que se refere somente à terra habitada daquele tempo, pois o
propósito divino era destruir a humanidade pecaminosa. Dizem que o uso
bíblico da expressão “toda a terra” amiúde significa a terra conhecida pelo
autor (Gn 41.57; Dt 2.25; Rm 10.18).
34

Por outro lado, os que crêem que o dilúvio foi universal notam que o relato
bíblico emprega expressões fortes e as repete dando a impressão de um
dilúvio universal. Perguntam: Qual era a extensão da população humana?
Parece-lhes possível que esta se houvesse estendido até à Europa e África.
Além do mais, certos estudiosos crêem que as grandes mudanças na crosta
terrestres e repentinas e drásticas alterações no clima de áreas geográficas,
como Alasca e Sibéria, podem ser atribuídas ao dilúvio. Talvez, com o
transcurso do tempo, os geólogos encontrem evidências conclusivas para
determinar qual seja a interpretação correta.

Têm sido encontradas em diferentes continentes tradições que aludem a um


grande dilúvio, inclusive detalhes da destruição de toda a humanidade,
exceto uma única família e a escapatória em um barco. A famosa epopéia de
Gilgames, poema babilônico, contém muitas semelhanças com o relato
bíblico, embora seja politeísta em seu enfoque. Parece que o dilúvio deixou
uma impressão indelével na memória da raça, e que as tradições, por mais
corrompidas que estejam, testificam do fato que houve um dilúvio.

Em Gênesis 7.19 lê-se: “E as águas prevaleceram excessivamente sobre a


terra; e todos os altos montes que havia debaixo de todo o céu foram
cobertos”. Observa-se que, a água elevou-se a ponto de cobrir todos os altos
montes, que havia debaixo de todo o céu; isto é, a terra inteira foi coberta
pelas águas. Isto significa um dilúvio universal, e não apenas uma gigantesca
inundação local, confinada a uma pequena porção da terra (2Pe 3.6).

2.6.4.9. Estabelece-se a nova ordem do mundo

Ao sair da arca, Noé entrou em um mundo purificado pelo juízo de Deus;


figurativamente era uma nova criação e a humanidade começaria de novo. A
primeira coisa que Noé fez foi oferecer um grande sacrifício a Deus como
sinal de sua gratidão pelo grande livramento passado e como consagração
de sua vida a Deus para o futuro. Deus estabeleceu a nova ordem dando
provisões básicas pelas quais a vida do homem se regeria na terra depois do
dilúvio:

a) Para dar segurança ao homem prometeu que as estações ficariam


restabelecidas para sempre;
b) Reiterou o mandamento de que o homem se multiplicasse;
c) Confirmou o domínio sobre os animais dando-lhe permissão para
comer sua carne, porém, não o seu sangue;
d) Estabeleceu a pena capital;
e) Fez aliança com o homem prometendo-lhe que jamais voltaria a
destruir a terra por meio de um dilúvio.
Pentateuco 35

Por que foi proibido comer o sangue? Alguns estudiosos crêem que o sangue
é o símbolo da vida, a qual só Deus pode dar; portanto, o sangue pertence a
Deus e o homem não deve tomá-lo. Há, porém, uma explicação mais bíblica.
A proibição preparou o caminho para ensinar a importância do sangue como
meio de expiação (Lv 17.10-14). O sangue representa uma vida entregue na
morte. Deus estabeleceu a pena capital para restringir a violência. O homem
é de grande valor e a vida é sagrada, pois “Deus fez o homem conforme a
sua imagem”. Martinho Lutero viu neste mandamento a base do governo
humano. Se o homem recebe autoridade de outros em certas circunstâncias,
também tem autoridade sobre coisas menores, tais como propriedades e
impostos. O apóstolo Paulo confirma que tal poder é de Deus, e que a pena
capital está em vigor (Rm 13.1-7). O magistrado não traz debalde sua espada
(instrumento de execução).

Deus fez um pacto com Noé e com toda a humanidade prometendo não mais
destruir o mundo por um dilúvio. Ao presenciar a terrível destruição pelo juízo
de Deus, o homem poderia perguntar-se: “Valerá a pena edificar e semear?
Pode ser que haja outro dilúvio e arrase tudo”. Mas, para dar-lhe segurança
de que a raça continuaria e o homem teria um futuro garantido, Deus fez
aliança com ele. Deixou o arco-íris como sinal de sua fidelidade. É provável
que o arco-íris já existisse, mas agora reveste-se de novo significado. Ao ver
o arco-íris nas nuvens de tormenta, o homem se lembraria da promessa
misericordiosa de Deus.

2.6.5. A raça humana começa novamente

Noé surge, sob a bênção de Deus, como o segundo cabeça da raça humana.
Observe-se os paralelos entre as bênçãos dadas a Noé e as que foram
dadas a Adão (Gn 1.28-29). Houve estimulações divinas também. Primeira,
referente ao alimento. Segundo o versículo 3 parece que somente depois do
dilúvio é que o alimento animal foi permitido ao homem. Essa permissão
talvez tenha sido dada em conexão com o sacrifício de Noé, e é possível que
aqui tenhamos a origem da “festa” do holocausto, da qual o próprio adorador
participava. A proibição de comer-se sangue nessa festa pode ser equiparada
com um instrutivo contraste com a proibição do jardim do Éden. A “árvore”
proibida, cuja abstenção era sinal de obediência, estabeleceu a santidade da
lei; o “sangue” proibido, cujo derramamento era o sinal da propiciação divina,
estabeleceu a santidade da graça. A segunda estipulação dizia respeito ao
derramamento do sangue. Essa solene advertência (versículos 5 e 6)
preservou a santidade da vida humana. “Sangue” representa aquele mistério
que chamamos de “vida”. É uma dádiva exclusiva de Deus, e o homem não
tem o direito de tirá-la. O mais alto motivo possível é empregado aqui,
“porque Deus fez o homem conforme a sua imagem”.
36

2.6.6. A torre de Babel

Babel. Os orgulhosos edificadores da cidade tinham-na chamado de Babel


(portão ou corte de Deus), mas o Senhor, aproveitando a palavra usada, e
dando-lhe outro significado, derivadamente, baseando a palavra numa raiz
semelhante, também a chamou de Babel (confusão).

Gn 11.1-4: “E era toda a terra de uma mesma língua e de uma mesma fala. E
aconteceu que, partindo eles do Oriente, acharam um vale na terra de Sinar;
e habitaram ali. E disseram uns aos outros: Eia, façamos tijolos e queimemo-
los bem. E foi-lhes o tijolo por pedra, e o betume, por cal. E disseram: Eia,
edifiquemos nós uma cidade e uma torre cujo cume toque nos céus e
façamo-nos um nome, para que não sejamos espalhados sobre a face de
toda a terra”.

Os acontecimentos registrados nesta seção são anteriores às divisões


resultantes da humanidade, as quais são esboçadas em Gn 10. A expressão
“Duma mesma língua, e duma mesma fala”, lit., “um lábio e uma palavra”,
significando que todos falavam da mesma maneira, tanto quanto à pronúncia
como quanto ao vocabulário. A unidade original da linguagem humana,
embora longe de ser demonstrável, torna-se cada vez mais provável. Sinear
é a planície dos rios Tigre e Eufrates. A região do Arará certamente ficava a
noroeste de Sinear, pelo que a migração, se é que não tomou uma rota
circular, deve ter sido feita da direção oriental. A palavra hebraica,
miqqedhem, é bastante vaga, e aparece novamente em Gn 13.11, onde é
traduzida novamente como oriente, que é a tradução correta num e noutro
lugar. Queimemo-los. Os tijolos eram usualmente secados ao sol, mas em
Birs Nimrude ainda podem ser encontrados tijolos queimados. Isso não
apenas demonstra o estágio avançadíssimo a que já haviam chegado as
artes de edificação antiga, mas também serve para dar testemunho sobre a
verdade desta narrativa. O betume aqui mencionado é a mesma coisa que
asfalto. Cujo cume toque nos céus. A cidade e a torre tinham a intenção
primária de servir de seguridade defensiva e de domínio político. É possível,
igualmente, que a torre tivesse uma significação religiosa e astrológica. O
hebraico diz literalmente “cujo topo seja o céu”, e isso pode significar que ali
eram pintados os sinais do zodíaco e que haviam outros desenhos celestes.
Entretanto, em vista do uso dessa frase em Dt 1.28, e também não nos
esquecendo do fato que os antigos babilônios se ufanavam da altura de seus
templos, esta expressão não contém necessariamente qualquer referência
astrológica.

O plano de centralização proposto pelo homem parece ter sido considerado


por Deus como indesejável: é possível que em seus motivos mais profundos
fosse um ato de auto-suficiência humana e de rebelião contra Deus. É
Pentateuco 37

altamente significativo que “Babel” (Babilônia), no relato bíblico, representa,


em todas as páginas bíblicas, até o Apocalipse, a idéia de federação humana
materialista e humanista em oposição a Deus. As razões para Deus ter
destruído aqueles planos humanos provavelmente tinham em vista
primeiramente tratar de modo eficaz com o perverso motivo da oposição, e,
em segundo lugar, realizar Seu desígnio que os homens cobrissem toda a
superfície da terra e desenvolvessem seus recursos. Note-se que Deus não
destruiu a torre; Ele confundiu a linguagem e espalhou o povo. Não é
asseverado aqui um milagre súbito. A confusão da linguagem pode ter sido
efetuada mediante a orientação e o apressamento providencial das
tendências naturais dos homens formarem dialetos, à base dos quais se
separariam em vários grupos com diferentes simpatias e interesses.

2.6.7. A aliança da Graça de Deus

Nas Escrituras, as alianças são acordos solenes, negociados ou impostos


unilateralmente, que ligam as partes umas às outras em relações
permanentes, definidas, com promessas específicas, com reivindicações e
obrigações de ambos os lados (p.ex., a aliança do casamento, em MI 2.14).

Quando Deus faz uma aliança com suas criaturas, só ele estabelece as
condições, como mostra sua aliança com Noé e seus descendentes (Gn 9.9).
Quando Adão e Eva fracassaram em obedecer os termos da aliança das
obras, Deus não os destruiu, mas revelou a sua aliança da graça,
prometendo-lhes um Salvador (Gn 3.15). A aliança de Deus descansa sobre
sua promessa, como fica claro da sua aliança com Abraão. Ele chamou
Abraão para ir à terra que ele lhe daria e prometeu abençoá-lo e a todas as
famílias da terra através dele (Gn 12.1-3). Abraão atendeu a chamada de
Deus, porque creu na promessa de Deus; foi a sua fé na promessa de Deus
que lhe foi creditada como justiça (Gn 15.6; Rm 4.18-22). A aliança de Deus
com Israel, no Sinai, está na forma dos tratados de suserania do antigo
Oriente Próximo. Estas são alianças impostas unilateralmente por um rei
poderoso sobre um rei vassalo e um povo servo.

Ainda que a aliança do Sinai exigisse obediência às leis de Deus, sob a


ameaça de maldição, ela era uma continuação da aliança da graça (Ex 3.15;
Dt 7.7-8; 9.5-6). Deus deu os mandamentos a um povo que ele já havia
redimido e reivindicado como seu (Ex 19.4; 20.2). A graciosa promessa da
aliança de Deus foi posteriormente definida por meio de tipos e sombras da
lei dada a Moisés. O fracasso dos israelitas em guardar a aliança de Deus
mostrou a necessidade de uma nova aliança que assegurasse o poder para
obedecer (Jr 31.31-34; 32.38-40; Gn 17.7; Êx 6.7; 29.45-46; Lv 11.44-45;
26.12).
38

A aliança de Deus com Israel foi uma preparação para a vinda do próprio
Deus, na pessoa do seu Filho, para cumprir todas as suas promessas e para
dar substância às sombras apresentadas pelos tipos (Is 40.10; MI 3.1; Jo
1.14; Hb 7-10). Jesus Cristo, o Mediador da nova aliança, ofereceu-se a si
mesmo como o verdadeiro e definitivo sacrifício pelo pecado. Ele obedeceu à
lei de modo perfeito e, como o segundo Adão (segundo representante da
raça humana), ele se tornou o herdeiro - com todos os que pela fé se unem a
ele - de todas as bênçãos relativas à aliança, paz e comunhão com Deus na
sua criação renovada. Os arranjos temporários do Antigo Testamento para
comunicar essas bênçãos tornaram-se obsoletos, quando se concretizou
aquilo que eles prefiguravam.

Como a Carta aos Hebreus (caps. 7-10) explica, através de Cristo, Deus
inaugurou uma melhor versão da sua única e eterna aliança com pecadores
(Hb 13.20) - uma aliança melhor com melhores promessas (Hb 8.6), baseada
num melhor sacrifício (Hb 9.23) oferecido por um melhor sumo sacerdote
num melhor santuário (Hb 7.26-8.6, 11, 13, 14). Essa melhor aliança garante
uma esperança melhor do que aquela explicitada na versão anterior da
aliança – glória com Deus numa “pátria superior, isto é, celestial!” (Hb 11.16).

O cumprimento da velha aliança em Cristo abre a porta da fé aos gentios. A


“semente de Abraão” – a comunidade com a qual a aliança foi feita – foi
redefinida em Cristo, que é a Semente final e definitiva de Abraão (Gn 3.16).
Os gentios e os judeus que se unem a Cristo pela fé tornam-se nele semente
de Abraão (Gl 3.26-29), ao passo que ninguém, fora de Cristo, pode estar
num relacionamento salvador de aliança com Deus (Rm 4.9-17; 11.13-24).

O objetivo da ação de Deus dentro da aliança é, como sempre foi, a reunião e


a santificação do povo da aliança vindo de “todas as nações, tribos, povos e
línguas” (Ap 7.9), que um dia habitarão a Nova Jerusalém, numa ordem
mundial renovada (Ap 21.1-2). Aqui, o relacionamento da aliança encontrará
a sua plena expressão - “Eles serão povos de Deus, e Deus mesmo estará
com eles” (Ap 21.3; Gn 17.7; Êx 29.45, 46). Deus continua a moldar os
eventos do mundo rumo a esse alvo.

A estrutura da aliança abrange toda a economia da graça soberana de Deus.


O ministério celestial de Cristo continua a ser o de “Mediador da nova
aliança” (Hb 12.24). A salvação é a salvação da aliança; regeneração,
justificação, adoção e santificação são misericórdias da aliança; a eleição foi
a escolha de Deus dos membros da comunidade da aliança, que é a Igreja. O
Batismo e a Ceia do Senhor - que correspondem aos ritos da circuncisão e
da Páscoa da antiga aliança e os substituem, são ordenanças da aliança. A
lei de Deus é a lei da aliança, e observá-la é a mais verdadeira expressão de
gratidão pela graça da aliança e de lealdade ao nosso Deus da aliança. A
Pentateuco 39

nossa aliança com Deus, em resposta à sua aliança conosco, deve ser o
exercício devocional regular de todos os crentes, tanto em particular como na
Mesa do Senhor.

2.6.8. O concerto de Deus com Abraão, Isaque e Jacó

2.6.8.1. O concerto de Deus com Abraão

Deus, ao estabelecer comunhão com Abraão, mediante o concerto (cap. 15),


fez-lhe claramente várias promessas: Deus como escudo e recompensa de
Abraão (15.1), descendência numerosa (15.5) e a terra de Canaã como sua
herança (15.7; 15.6; 17.8; 12.1-3).

Deus conclamou Abraão a corresponder a essas promessas por fé, aceitá-


las, e confiar nEle como seu Senhor. Por Abraão assim fazer, Deus o aceitou
como justo (15.6) e foi confirmado mediante comunhão pessoal com Ele.

Não somente Abraão precisou, de início, expressar sua fé para a efetuação


do concerto, como também Deus requereu que, para a continuação das
bênçãos do referido concerto, Abraão devia, de coração, agradar a Deus,
através de uma vida de obediência. Deus requereu que Abraão andasse na
sua presença e que fosse “perfeito” (ver 17.1). Noutras palavras, se a sua fé
não fosse acompanhada de obediência (Rm 1.5), ele estaria inabilitado para
participar dos eternos propósitos de Deus. Num caso especial, Deus provou a
fé de Abraão ao ordenar-lhe que sacrificasse seu próprio filho, Isaque (22.1,
2). Abraão foi aprovado no teste e, por conseguinte, Deus prometeu que o
seu pacto com ele (Abraão) ia continuar (ver 22.18). Deus informou
diretamente a Isaque que as bênçãos continuariam imutáveis e que seriam
transferidas para ele porque Abraão lhe foi obediente e guardou os seus
mandamentos (26.4, 5).

Deus ordenou diretamente a Abraão e aos seus descendentes que


circuncidassem cada menino nascido na sua família (17.9-13). O Senhor
determinou que cada criança do sexo masculino não circuncidada fosse
excluída do seu povo (17.14) por violação do concerto. Noutras palavras, a
desobediência a Deus levaria à perda das bênçãos do concerto.

O concerto entre Deus e Abraão foi chamado um “concerto perpétuo” (17.7).


A intenção de Deus era que o concerto fosse um compromisso permanente.
Era, no entanto, passível de ser violado pelos descendentes de Abraão, e
assim acontecendo, Deus não teria de cumprir as suas promessas. Por
exemplo, a promessa que a terra de Canaã seria uma possessão perpétua de
Abraão e seus descendentes (17.8) foi quebrada pela apostasia de Israel e
pela infidelidade de Judá e sua desobediência à lei de Deus (Is 24.5; Jr
40

31.32); por isso, Israel foi levado para o exílio na Assíria (2Rs 17), enquanto
que Judá foi posteriormente levado para o cativeiro em Babilônia (2Rs 25;
2Cr 36; Jr 11.1-17; Ez 17.16-21).

2.6.8.2. O concerto de Deus com Isaque

Deus procurou estabelecer o concerto abraâmico com cada geração


seguinte, a partir de Isaque, filho de Abraão (17.21). Noutras palavras, não
bastava que Isaque tivesse por pai a Abraão; ele, também, precisava aceitar
pela fé as promessas de Deus. Somente então é que Deus diria: “Eu sou
contigo, e abençoar-te-ei, e multiplicarei a tua semente” (26.24).

Durante os vinte primeiros anos do seu casamento, Isaque e Rebeca não


tiveram filhos (25.20,26). Rebeca permaneceu estéril até que Isaque orou ao
Senhor pedindo que sua esposa concebesse (25.21). Esse fato demonstra
que o cumprimento do concerto não se dá por meios naturais, mas somente
pela ação graciosa de Deus, em resposta à oração e busca da sua face (ver
25.21).

Isaque também tinha de ser obediente para continuar a receber as bênçãos


do concerto. Quando uma fome assolou a terra de Canaã, por exemplo, Deus
proibiu Isaque de descer ao Egito, e o mandou ficar onde estava. Se
obedecesse a Deus, teria a promessa divina: “...confirmarei o juramento que
tenho jurado a Abraão, teu pai” (26.3; ver 26.5).

2.6.8.3. O concerto de Deus com Jacó

Isaque e Rebeca tinham dois filhos: Esaú e Jacó. Era de se esperar que as
bênçãos do concerto fossem transferidas ao primogênito, isto é, Esaú. Deus,
porém, revelou a Rebeca que seu gêmeo mais velho serviria ao mais novo, e
o próprio Esaú veio a desprezar a sua primogenitura (ver 25.31). Além disso,
ele ignorou os padrões justos dos seus pais, ao casar-se com duas mulheres
que não seguiam ao Deus verdadeiro. Em suma: Esaú não demonstrou
qualquer interesse pelas bênçãos do concerto de Deus. Daí, Jacó, que
realmente aspirava às bênçãos espirituais futuras, recebeu as promessas no
lugar de Esaú (28.13-15).

Como no caso de Abraão e de Isaque, o concerto com Jacó requeria “a


obediência da fé” (Rm 1.5) para a sua perenidade. Durante boa parte da sua
vida, esse patriarca serviu-se da sua própria habilidade e destreza para
sobreviver e progredir. Mas foi somente quando Jacó, finalmente, obedeceu
ao mandamento e à vontade do Senhor (31.13), no sentido de sair de Harã e
voltar à terra prometida de Canaã e, mais expressamente, de ir a Betel (35.1-
Pentateuco 41

7), que Deus renovou com ele as promessas do concerto feito com Abraão
(35.9-13).
42

Capítulo 3

Livro de Êxodo
3.1. Autor

No Novo Testamento, Jesus chama Êxodo de “o livro de Moisés” (Mc 12.26;


7.10) e não há razões imperativas para a rejeição da autoria mosaica do livro
O título do livro, “Êxodo”, deriva-se da palavra grega exodos (Lc 9.31), que
significa “saída” ou “partida”. O livro recebe o seu nome a partir do evento
central da saída do Egito, registrada nos primeiros quinze capítulos da obra.

3.2. Data e ocasião


Assumindo a autoria mosaica de Êxodo, devemos datar o livro após o
acontecimento do êxodo (c. 1450-1440 a.C.) e antes da morte de Moisés,
próxima a 1406 a.C. De acordo com a datação abaixo, o nascimento de
Moisés teria ocorrido durante o reinado de Tutmés I. Hatsepsute, a rainha
viúva de Tutmés II, usou títulos masculinos e até mesmo uma barba quando
reinou a partir de 1504-1483 a.C. Talvez fosse ela então o Faraó que já havia
falecido quando Moisés retomou de Midiã ao Egito.

Êxodo prossegue com o relato do cumprimento da promessa de Deus a


Abraão no sentido de abençoá-lo e dele fazer uma grande nação (Gn 12.2).
O livro começa com a descida de Israel ao Egito (1.1-7), o que, em conexão
com Gn 46.8-27, vincula o livro às narrativas de Gênesis. A obra termina com
Israel no Sinai onde o tabernáculo é concluído. Os acontecimentos
registrados no livro podem ser situados no seu contexto histórico, como
veremos.

A ascensão de José ao poder (1.5) vincula-se melhor às condições favoráveis


para a família de Jacó criadas pelo domínio do Egito pelos hicsos, que
também eram semitas (c. 1700-1550 a.C.). A referência em 1.8 a um novo rei
“que não conheceu José” refere-se, provavelmente, à expulsão dos hicsos
pelo fundador da décima oitava dinastia, Ahmose I (1570-1546 a.C.). Datando
o Êxodo em torno de 1450-1440 a.C., o Faraó da opressão provavelmente foi
Tutmés I (1526-1512 a.C.), enquanto o Faraó do Êxodo teria sido Tutmés III
(1504-1450 a.C.) ou Amenotepe II (1450-1425 a.C.). Esta datação permitiria
uma possível identificação dos imigrantes israelitas com os habiru, um grupo
Pentateuco 43

mencionado nas cartas de Tell el-Amarna (correspondência entre o Egito e os


seus vassalos siro-palestinos durante o século XIV a.C.). Os habiru eram
uma classe social ou ocupacional comumente atestada em textos a partir de
2000 a.C. Eles tornaram-se parias políticos na Palestina (Gn 14.13).

A preservação por escrito das palavras da aliança de Deus tem importância


central para a teologia de Êxodo. Deus não apenas verbaliza as suas
palavras ao seu povo reunido no Sinai. Ele também lhes dá os seus Dez
Mandamentos por escrito, “escritas pelo dedo de Deus” em tábuas de pedra
(31.18; 32.15-16; 34.1, 28). Os termos da aliança foram apresentados de
forma mais detalhada pelo assim chamado “Livro da Aliança” (20.22-23.19),
as palavras de Deus registradas por Moisés, o mediador da aliança de Deus
(24.4,7; 34.27).

A aliança do Sinai (19.1-20.21; cap. 24) assemelha-se, tanto na forma como


no conteúdo, à forma dos tratados entre estados do segundo milênio a.C.,
especialmente os tratados entre os estados hititas. Esses tratados incluíam
um preâmbulo (20.2), estipulações (20.3-17), ratificação (24.1-11), além de
bênçãos e maldições. Uma cópia do tratado era muitas vezes guardada nos
santuários de ambas as partes (p.ex., as duas tábuas de 31.18). Igualmente a
semelhança do conteúdo das leis casuísticas dos caps. 21-23 em relação aos
códigos do antigo Oriente Próximo (particularmente o Código de Hamurábi da
Babilônia, em torno de 1750 a.C.) tem sido freqüentemente observada.

3.3. Dificuldades de interpretação


A data e a rota do Êxodo têm sido tópicos de considerável debate. A
cronologia bíblica data o acontecimento do êxodo em 480 anos antes do
reino de Salomão (1Rs 6.1). Isto colocaria o evento próximo a 1440 a.C. Esta
data é coerente com Jz 11.26, que declara haver decorrido trezentos anos
desde a entrada de Israel em Canaã. A data próxima de 1440 a.C. é também
apoiada por 12.40-41, onde a duração da permanência de Israel no Egito é
de 430 anos. O Faraó do Êxodo seria então Tutmés III ou Amenotepe II.

Os defensores duma data bem mais tardia apelam para o nome “Ramsés”
(ou “Ramessés,” Gn 47.11) como uma das cidades-celeiros construídas com
o trabalho israelita (1.11). Ramsés II (1304-1236 a.C.) é considerado o Faraó
do Êxodo, e a data aproximada é fixada em 1270 a.C. Afirma-se que essa
interpretação é mais coerente com a arqueologia das cidades destruídas na
Palestina e com a ausência de um assentamento mais antigo na
Transjordânia (a região oriental do rio Jordão e do mar Morto). Contudo,
descobertas mais recentes na Transjordânia e uma nova avaliação da
destruição de Jericó têm enfraquecido o argumento em favor de uma data
tardia.
44

A rota do Êxodo começou em Ramessés. A sua localização exata é objeto de


considerável debate, embora a moderna Qantir seja a localidade mais
provável (Tel el-Dabá). Dali, os hebreus peregrinaram para o sul até Sucote
(13.20). Aqui, aparentemente sem condições de continuar em frente, os
hebreus desviaram-se para o norte (14.2). Três lugares são mencionados:
Baal-Zefom, Migdol e Pi-Hairote. Baal-Zefom é associada com Tafnes, às
margens do lago Menzaleh, um dos lagos de água salgada entre o
Mediterrâneo e o Golfo de Suez. Havia três possíveis rotas de fuga para os
israelitas. O “caminho da terra dos filisteus” (13.17) ligava o Egito a Canaã
através de uma rota litorânea bastante fortificada. Um segundo itinerário, o
caminho de Sur, começava próximo ao Wadi Tumilat, na região do Delta, indo
em direção a Cades-Barnéia, e dali para Canaã. A muralha de Sur na
fronteira do Egito pode ter sido um obstáculo real a essa alternativa. Ao
conduzir o povo em direção sul, para a região da península do Sinai, o
Senhor não somente os trouxe para a montanha que havia indicado a
Moisés, mas também os afastou de possíveis contatos com os egípcios. O
livramento através do mar pode ter acontecido numa extensão sul do lago
Menzaleh.

A península do Sinai é um triângulo de terra medindo aproximadamente 240


km de leste a oeste no extremo norte e 420 km ao longo dos outros dois
lados. Dois braços do mar Vermelho, os golfos de Suez e de Ácaba, são os
seus limites longitudinais. Os hebreus dirigiram-se ao sul ao longo da costa
ocidental do Sinai. As águas amargas de Mara (15.22-251 são, normalmente,
identificadas com Ain Hawarah (em torno de 70 km ao sul da extremidade do
golfo de Suez), porém Ain Musa pode ser a localidade carreta. Elim, com as
suas diversas fontes e árvores, tem sido identificada com Wadi Gharandel, o
acampamento junto ao mar Vermelho (Nm 33.10), cerca de 11 km ao sul de
Ain Hawarah. O deserto de Sim seria melhor identificado com Debet er-
Ramleh, uma planície arenosa ao longo do limite do planalto do Sinai. Se a
localização tradicional do Monte Sinai como o atual Jebel Musa estiver
carreta, Israel teria então se afastado da costa por uma série de vales até o
Jebel Musa, viajando através do deserto de Refidim, onde eles lutaram contra
os Amalequitas (17.8-16). Refidim foi o último local de acampamento no
deserto do Sinai antes de chegarem à montanha sagrada. Depois,
prosseguiram até o Monte Sinai (cap. 19) onde receberam a lei.

3.4. Características e temas


Diversos temas importantes destacam-se em Êxodo. Primeiro, o livro conta
como o Senhor libertou Israel do Egito para cumprir a sua aliança com os
pais. Um segundo elemento importante do livro é a revelação da aliança no
Sinai, que especificou os termos do relacionamento entre o Deus santo e o
seu povo. O terceiro tema deriva dos dois primeiros e é sua consumação:
Pentateuco 45

trata-se do restabelecimento da morada de Deus com o ser humano. Cada


um desses temas envolve um triunfo da graça divina: Deus resgatou o seu
povo de forma poderosa da escravidão no Egito, revelou-se de forma
estrondosa no Sinai, e manifestou a sua graciosa condescendência ao
habitar no tabernáculo em meio ao seu povo pecador. O desdobramento
desses temas também revela a santidade e a graça do Senhor na sua lei da
aliança e no simbolismo cerimonial da vida e do culto de Israel.

Crucial para a narrativa é o papel de Moisés como o mediador entre Deus e o


homem. Como servo escolhido de Deus, Moisés é o mediador do juízo contra
o Egito e aquele por meio de quem Deus liberta Israel. Através de Moisés,
Deus dá a sua revelação no Sinai. Como um pastor, Moisés também guia o
povo através do deserto até a Terra Prometida. Ele intercede em favor do
povo e, por meio dele, Deus provê alimento e água. Mas o papel de Moisés
na história da redenção aponta diretamente para Cristo, o Mediador da nova
aliança (Dt 18.15). A revelação que Moisés recebe do nome de Deus que é
grande “em misericórdia e fidelidade” (34.6) justifica a construção do
tabernáculo, porém esta descrição do Senhor aponta para a frente, para a
vinda do verdadeiro tabernáculo, o Cristo encarnado, o grande Servo do
Senhor (Jo 1.14,17; Hb 3.1-6).

A lei de Deus revela a sua natureza santa e requer santidade do povo entre o
qual Deus irá habitar. As regulamentações cerimoniais para a vida e culto de
Israel (caps. 25-31; 35-40) assinalam a separação de Israel como povo em
cujo meio Deus vive e governa, demonstrando o seu reino perante as
nações. Além da descrição dos acontecimentos históricos por meio dos quais
Israel foi libertado para tornar-se o povo de Deus, Êxodo também traz uma
grande ilustração da obra salvífica de Deus através da história. O Deus
salvador redime o seu povo escolhido dos poderes do mal, julga esses
poderes e reivindica o seu povo como o seu primogênito, uma nação santa
de sacerdotes em meio a qual ele habita pelo seu Espírito. O padrão da
vitória divina sobre os inimigos, seguido pelo estabelecimento do lugar da
habitação divina, é repetido na primeira e segunda vindas de Cristo (p.ex., Ef
2.14-22 e Ap 20.11- 22.51).

O simbolismo encontrado em Êxodo torna-se realidade na nova aliança (Jr


31.31-34; Cl 2.17; Hb 10.1). 0 sangue aspergido do sacrifício de animais é
agora substituído pelo sangue de Cristo (24.8; Mt 26.27-28; Hb 12.24; 1Pe
1.2). A substituição simbólica do cordeiro da Páscoa é cumprida em Cristo, o
Cordeiro de Deus, o nosso sacrifício pascal (Jo 1.29; 1Co 5.7). 0 seu
“êxodo” em Jerusalém (Lc 9.31) realiza a salvação do verdadeiro povo de
Deus. O povo de Deus da nova aliança é unido a Jesus Cristo, em quem os
gentios tornam-se o povo de Deus, membros da comunidade de Israel e
concidadãos dos santos do Antigo Testamento (19.5-6; Ef 2.11-19). O
46

significado pleno da descrição de Israel no Êxodo pode agora, pois, ser


aplicado às igrejas dos gentios (1Pe 2.9-10).

3.5. Estudos no livro de Êxodo


3.5.1. “Sou o que Sou”: A auto-revelação de Deus (Êx 3.15)

No mundo moderno, o nome de uma pessoa pode ser apenas um rótulo, sem
revelar nada a respeito dela. 0s nomes bíblicos, contudo, têm como fundo
uma ampla tradição, segundo a qual o nome de uma pessoa oferece
significativa informação a respeito de quem o usa. O Antigo Testamento,
freqüentemente, celebra o fato de Deus tornar seu nome conhecido a Israel,
e os Salmos, muitas e muitas vezes, elevam louvores ao nome de Deus (Sl
8.1; 113.1-3); “Nome”, aqui significa o próprio Deus, como ele Se revelou por
palavras e ações. No centro dessa auto-revelação está o nome pelo o qual
Deus autorizou Israel a invocá-lo, nome comumente traduzido por “O
SENHOR” (tradução do termo hebraico Javé como os eruditos modernos o
pronunciam, ou “Jeová”, como é, às vezes, escrito).

Deus declarou esse nome a Moisés, quando lhe falou a partir da sarça que se
queimava, mas não se consumia. Deus primeiro identificou-se como o Deus
que tinha se comprometido numa relação de aliança com os patriarcas (Gn
17.1-14); depois quando Moisés lhe perguntou o que deveria dizer ao povo
quando esse quisesse saber qual era o seu nome (pois os antigos supunham
que a oração só seria respondida se o destinatário fosse nomeado
corretamente), Deus primeiro, respondeu: “Eu Sou O Que Sou”; depois,
abreviou para “Eu Sou”. O nome “Javé” (SENHOR) soa como “Eu Sou” em
hebraico; e Deus finalmente chamou-se a si mesmo “O SENHOR, o Deus de
vossos pais” (Êx 3.15-16).O nome, em todas as suas formas, proclama a
realidade eterna e soberana que se, auto-sustenta e se auto-determina, ou
seja, o seu modo sobrenatural de existência, que a sarça ardente representou
(Êx 3.2). A sarça que não se consumia ilustrava a própria vida inesgotável de
Deus. Ao designar “Javé” como “o meu nome eternamente” (Êx 3.15), Deus
indicou que seu povo deveria sempre pensar nele como o Rei vivo, poderoso
e sempre reinando, Rei que a sarça ardente o mostrava ser.

Mais tarde, Moisés pediu para ver a glória de Deus. Em resposta, Deus
proclamou o “nome”: “SENHOR, SENHOR DEUS compassivo, clemente e
longânimo e grande em misericórdia e fidelidade; que guarda a misericórdia
em mil gerações que perdoa a iniqüidade, a transgressão e o pecado, ainda
que não inocenta o culpado (Êx 34.6-7). Na sarça ardente, Deus tinha
respondido à pergunta pelo modo de sua existência. Aqui ele responde à
questão de como podemos descrever as suas ações. Essa proclamação
fundamental do seu caráter moral ecoa, com freqüência, em passagens
Pentateuco 47

posteriores das Escrituras (Ne 9.17; Sl 86.15; Jl 2.13; Jn 4.2). Todas essas
revelações são parte do seu “nome” ser reverenciado e glorificado para

No Novo Testamento, as palavras e atos de Jesus, o Filho encarnado de


Deus, constituem a plena revelação da mente, do caráter e do propósito de
Deus, o Pai (Jo 14.9-11; cf. 1.18). A frase “Santificado seja o teu nome”, na
oração do Pai nosso (Mt 6.9), expressa o desejo de que Deus seja
reverenciado e louvado como merece o esplendor da totalidade de sua auto-
revelação.

3.5.2. A Páscoa

Êx 12.11: “Assim, pois, o comereis: Os vossos lombos cingidos, os vossos


sapatos nos pés, e o vosso cajado na mão; e o comereis apressadamente;
esta é a páscoa do Senhor.”

3.5.2.1. Contexto histórico

Desde que Israel partiu do Egito o povo hebreu -posteriormente chamado


“judeus” - celebra a Páscoa todos os anos, na primavera. Depois de os
descendentes de Abraão, Isaque e Jacó passarem mais de quatrocentos
anos de servidão no Egito, Deus decidiu libertá-los da escravidão. Suscitou
Moisés e o designou como o líder do êxodo (3 - 4). Em obediência ao
chamado de Deus, Moisés compareceu perante Faraó e lhe transmitiu a
ordem divina: “Deixa ir o meu povo”. Para conscientizar Faraó da seriedade
dessa mensagem da parte do Senhor, Moisés, mediante o poder de Deus,
invocou pragas como julgamentos contra o Egito. No decorrer de várias
dessas pragas, Faraó concordava em deixar o povo ir, mas, a seguir, voltava
atrás, uma vez a praga sustada. Soou a hora da décima e derradeira praga,
aquela que não deixaria aos egípcios nenhuma outra alternativa senão a de
lançar fora os israelitas. Deus mandou um anjo destruidor através da terra do
Egito para eliminar “todo primogênito... desde os homens até aos animais”
(12.12). Visto que os israelitas também habitavam no Egito, como poderiam
escapar do anjo destruidor? O Senhor emitiu uma ordem específica ao seu
povo; a obediência a essa ordem traria a proteção divina a cada família dos
hebreus, com seus respectivos primogênitos. Cada família tinha de tomar um
cordeiro macho de um ano de idade, sem defeito e sacrificá-lo ao entardecer
do dia quatorze do mês de Abibe; famílias menores podiam repartir um único
cordeiro entre si (12.4). Parte do sangue do cordeiro sacrificado, os israelitas
deviam aspergir nas duas ombreiras e na verga da porta de cada casa.
Quando o destruidor passasse por aquela terra, ele passaria por cima
daquelas casas que tivessem o sangue aspergido sobre elas (daí o termo
Páscoa, do hb. pesah, que significa “pular além da marca”, “passar por cima”,
ou “poupar”). Assim, pelo sangue do cordeiro morto, os israelitas foram
48

protegidos da condenação à morte executada contra todos os primogênitos


egípcios. Deus ordenou o sinal do sangue, não porque Ele não tivesse outra
forma de distinguir os israelitas dos egípcios, mas porque queria ensinar ao
seu povo a importância da obediência e da redenção pelo sangue,
preparando-o para o advento do “Cordeiro de Deus,” que séculos mais tarde
tiraria o pecado do mundo (Jo 1.29). Naquela noite específica, os israelitas
deviam estar vestidos e preparados para viajar (12.11). A ordem recebida era
para assar o cordeiro e não fervê-lo, e preparar ervas amargas e pães sem
fermento. Ao anoitecer, portanto, estariam prontos para a refeição ordenada e
para partir apressadamente, momento em que os egípcios iam se aproximar
e rogar que deixassem o país. Tudo aconteceu conforme o Senhor dissera
(12.29-36).

3.5.2.2. A Páscoa na História Israelita

A partir daquele momento da história, o povo de Deus ia celebrar a Páscoa


toda primavera, obedecendo as instruções divinas de que aquela celebração
seria “estatuto perpétuo” (12.14). Era, porém, um sacrifício comemorativo,
exceto o sacrifício inicial no Egito, que foi um sacrifício eficaz. Antes da
construção do templo, em cada Páscoa os israelitas reuniam-se segundo
suas famílias, sacrificavam um cordeiro, retiravam todo fermento de suas
casas e comiam ervas amargas. Mais importante: recontavam a história de
como seus ancestrais experimentaram o êxodo milagroso na terra do Egito e
sua libertação da escravidão ao Faraó. Assim, de geração em geração, o
povo hebreu relembrava a redenção divina e seu livramento do Egito. Uma
vez construído o templo, Deus ordenou que a celebração da Páscoa e o
sacrifício do cordeiro fossem realizados em Jerusalém (Dt 16.1-6). O Antigo
Testamento registra várias ocasiões em que uma Páscoa especialmente
relevante foi celebrada na cidade santa (2Cr 30.1-20; 35.1-19; 2Rs 23.21-23;
Ed 6.19-22). Nos tempos do Novo Testamento, os judeus observavam a
Páscoa da mesma maneira. O único incidente na vida de Jesus como
menino, que as Escrituras registram, foi quando seus pais o levaram a
Jerusalém, aos doze anos de idade, para a celebração da Páscoa (Lc 2.41-
50). Posteriormente, Jesus ia cada ano a Jerusalém para participar da
Páscoa (Jo 2.13). A última Ceia de que Jesus participou com os seus
discípulos em Jerusalém, pouco antes da cruz, foi uma refeição da Páscoa
(Mt 26.1,2,17-29). O próprio Jesus foi crucificado na Páscoa, como o Cordeiro
pascoal (cf. 1Co 5.7) que liberta do pecado e da morte todos aqueles que
nEle crêem. Os judeus hoje continuam celebrando a Páscoa, embora seu
modo de celebrá-la tenha mudado um pouco. Posto que já não há em
Jerusalém um templo para se sacrificar o cordeiro em obediência a Dt 16.1-6,
a festa judaica contemporânea (chamada Seder) já não é celebrada com o
cordeiro assado. Mas as famílias ainda se reúnem para a solenidade.
Pentateuco 49

Retiram-se cerimonialmente das casas judaicas, e o pai da família narra toda


a história do êxodo.

3.5.2.3. A Páscoa e Jesus Cristo

Para os cristãos, a Páscoa contém rico simbolismo profético a falar de Jesus


Cristo. O Novo Testamento ensina explicitamente que as festas judaicas “são
sombras das coisas futuras” (Cl 2.16,17; Hb 10.1), isto é, a redenção pelo
sangue de Jesus Cristo. Note os seguintes itens em Êxodo 12, que nos
fazem lembrar do nosso Salvador e do seu propósito para conosco.

a) O âmago do evento da Páscoa era a graça salvadora de Deus. Deus


tirou os israelitas do Egito, não porque eles eram um povo merecedor,
mas porque Ele os amou e porque Ele era fiel ao seu concerto (Dt 7.7-
10). Semelhantemente, a salvação que recebemos de Cristo nos vem
através da maravilhosa graça de Deus (Ef 2.8-10; Tt 3.4, 5);
b) O propósito do sangue aplicado às vergas das portas era salvar da
morte o filho primogênito de cada família; esse fato prenuncia o
derramamento do sangue de Cristo na cruz a fim de nos salvar da
morte e da ira de Deus contra o pecado (12.13, 23, 27; Hb 9.22);
c) O cordeiro pascoal era um “sacrifício” (12.27) a servir de substituto do
primogênito; isto prenuncia a morte de Cristo em substituição à morte
do crente (Rm 3.25). Paulo expressamente chama Cristo nosso
Cordeiro da Páscoa, que foi sacrificado por nós (1Co 5.7);
d) O cordeiro macho separado para morte tinha de ser “sem mácula”
(12.5); esse fato prefigura a impecabilidade de Cristo, o perfeito Filho
de Deus (Jo 8.46; Hb 4.15);
e) Alimentar-se do cordeiro representava a identificação da comunidade
israelita com a morte do cordeiro, morte esta que os salvou da morte
física (1Co 10.16,17; 11.24-26). Assim como no caso da Páscoa,
somente o sacrifício inicial, a morte dEle na cruz, foi um sacrifício
eficaz. Realizamos em continuação a Ceia do Senhor como um
memorial, “em memória” dEle (1Co 11.24);
f) A aspersão do sangue nas vergas das portas era efetuada com fé
obediente (12.28; Hb 11.28); essa obediência pela fé resultou, então,
em redenção mediante o sangue (12.7, 13). A salvação mediante o
sangue de Cristo se obtém somente através da “obediência da fé”
(Rm 1.5; 16.26);
g) O cordeiro da Páscoa devia ser comido juntamente com pães asmos
(12.8). Uma vez que na Bíblia o fermento normalmente simboliza o
pecado e a corrupção (13.7; Mt 16.6; Mc 8.15), esses pães asmos
representavam a separação entre os israelitas redimidos e o Egito,
isto é, o mundo e o pecado (12.15). Semelhantemente, o povo
50

redimido por Deus é chamado para separar-se do mundo pecaminoso


e dedicar-se exclusivamente a Deus.

3.5.3. A Lei do Antigo Testamento (Êx 20.1, 2)

Um dos aspectos mais importantes da experiência dos israelitas no monte


Sinai foi o de receberem a lei de Deus através do seu líder, Moisés. A Lei
Mosaica (hb. torah, que significa “ensino”), admite uma tríplice divisão: a lei
moral, que trata das regras determinadas por Deus para um santo viver (20.1-
17); a lei civil, que trata da vida jurídica e social de Israel como nação (21.1-
23.33); e a lei cerimonial, que trata da forma e do ritual da adoração ao
Senhor por Israel, inclusive o sistema sacrificial (24.12-31.18). Note os
seguintes fatos no tocante à natureza e à função da lei no Antigo Testamento.

a) A lei foi dada por Deus em virtude do concerto que Ele fez com o seu
povo. Ela expunha as condições do concerto a que o povo devia
obedecer por lealdade ao Senhor Deus, a quem eles pertenciam. Os
israelitas aceitaram formalmente essas obrigações do concerto (24.1-
8);
b) A obediência de Israel à lei devia fundamentar-se na misericórdia
redentora de Deus e na sua libertação do povo (19.4);
c) A lei revelava a vontade de Deus quanto a conduta do seu povo (19.4-
6; 20.1-17; 21.1-24.8) e prescrevia os sacrifícios de sangue para a
expiação pelos seus pecados (Lv 1.5; 16.33). A lei não foi dada
como um meio de salvação para os perdidos. Ela foi destinada aos
que já tinham um relacionamento de salvação com Deus (20.2).
Antes, pela lei Deus ensinou ao seu povo como andar em retidão
diante dEle como seu Redentor, e igualmente diante do seu próximo.
Os israelitas deviam obedecer à lei mediante a graça de Deus a fim
de perseverarem na fé e cultuarem também por fé, ao Senhor (Dt
28.1,2; 30.15-20);
d) Tanto no Antigo Testamento quanto no Novo Testamento, a total
confiança em Deus e na sua Palavra (Gn 15.6), e o amor sincero a
Ele (Dt 6.5), formaram o fundamento para a guarda dos seus
mandamentos. Israel fracassou exatamente nesse ponto, pois
constantemente aquele povo não fazia da fé em Deus, do amor para
com Ele de todo o coração e do propósito de andar nos seus
caminhos, o motivo de cumprirem a sua lei. Paulo declara que Israel
não alcançou a justiça que a lei previa, porque “não foi pela fé” que a
buscavam (Rm 9.32);
e) A lei ressaltava a verdade eterna que a obediência a Deus, partindo
de um coração cheio de amor (Gn 2.9; Dt 6.5) levaria a uma vida feliz
e rica de bênçãos da parte do Senhor (Gn 2.16; Dt 4.1,40; 5.33; 8.1;
Sl 119.45; Rm 8.13; 1Jo 1.7);
Pentateuco 51

f) A lei expressava a natureza e o caráter de Deus, isto é, seu amor,


bondade, justiça e repúdio ao mal. Os fiéis israelitas deviam guardar a
lei moral de Deus, pois foram criados à sua imagem (Lv 19.2);
g) A salvação no Antigo Testamento jamais teve por base a perfeição
mediante a guarda de todos os mandamentos. Inerente no
relacionamento entre Deus e Israel, estava o sistema de sacrifícios,
mediante os quais, o transgressor da lei obtinha o perdão, quando
buscava a misericórdia de Deus, com sinceridade, arrependimento e
fé, conforme a provisão divina expiatória mediante o sangue;
h) A lei e o concerto do Antigo Testamento não eram perfeitos, nem
permanentes. A lei funcionava como um tutor temporário para o povo
de Deus até que Cristo viesse (Gl 3.22-26). O antigo concerto agora
foi substituído pelo novo concerto, no qual Deus revelou plenamente o
seu plano de salvação mediante Jesus Cristo (Rm 3.24-26; Gl 3.19);
i) lei foi dada por Deus e acrescentada à promessa “por causa das
transgressões” (Gl 3.19); isto é, tinha o propósito: de prescrever a
conduta de Israel; definir o que era pecado; revelar aos israelitas a
sua tendência inerente de transgredir a vontade de Deus e de praticar
o mal, e despertar neles o sentimento da necessidade da misericórdia,
graça e redenção divinas (Rm 3.20; 5.20; 8.2).

3.5.4. Os Dez Mandamentos (20.1, 2)

Estiveram no monte Sinai cerca de 11 meses (v. 1); Nm 10.11. Debaixo de


terrífica trovoada, acompanhada de terremotos e sonido muito forte e
sobrenatural de buzina, todo o monte envolto em fumaça, o cume coroado de
chamas aterrorizantes, Deus proferiu as palavras dos Dez Mandamentos, e
deu a Lei.

Os Dez Mandamentos, aqui registrados (cf. Dt 5.6-21), foram escritos pelo


próprio Deus em duas tábuas de pedra e entregues a Moisés e ao povo de
Israel (31.18; 32.16; Dt 4.13; 10.4). A guarda dos mandamentos proveu um
meio de Israel procurar viver em retidão diante de Deus, agradecido pelo seu
livramento do Egito; ao mesmo tempo, tal obediência era um requisito para os
israelitas habitarem sempre na terra prometida (Dt 41.14).

Os dez mandamentos são o resumo da lei moral de Deus para Israel, e


descrevem as obrigações para com Deus e o próximo. Cristo e os apóstolos
afirmam que, como expressões autênticas da santa vontade de Deus, eles
permanecem obrigatórios para o crente do Novo Testamento (Mt 22.37-39;
Mc 12.28-34; Lc 10.27; Rm 13.9; Gl 5.14; Lv 19.18; Dt 6.5; 10.12;30.6).
Conforme esses trechos do Novo Testamento, os dez mandamentos
resumem-se no amor a Deus e ao próximo; guardá-los não é apenas uma
questão de práticas externas, mas também requer uma atitude do coração
52

(Dt 6.5). Logo, a lei demanda uma justiça espiritual interior que se expressa
em retidão exterior e em santidade.

Os preceitos civis e cerimoniais do Antigo Testamento, que regiam o culto e a


vida social de Israel já não são obrigatórios para o crente do Novo
Testamento. Eram tipos e sombras de coisas melhores vindouras, e
cumpriram-se em Jesus Cristo (Hb 10.1; Mt 7.12; 22.37-40; Rm 13.8; Gl 5.14;
6.2). Mesmo assim, contêm sabedoria e princípios espirituais aplicáveis a
todas as gerações (Mt 5.17).

Primeiro Mandamento: “Não terás outros deuses diante de mim”, 20.3. Este
mandamento proíbe o politeísmo que caracterizava todas as religiões do
antigo Oriente Próximo. Israel não devia adorar, nem invocar nenhum dos
deuses doutras nações. Deus lhe ordenou a temer e a servir somente a Ele
(Dt 32.29; Js 24.14,15). Esse mandamento aplicado aos crentes do Novo
Testamento importa pelo menos três coisas. A adoração do crente deve ser
dirigida exclusivamente a Deus. Não deve haver jamais adoração ou oração a
quaisquer outros deuses, espíritos ou pessoas falecidas, nem se permite
buscar orientação e ajuda da parte deles (Lv 17.7; Dt 6.4; 34.17; Sl 106.37;
1Co 10.19,20). O primeiro mandamento trata, principalmente, da proibição da
adoração aos espíritos (isto é, demônios) através do espiritismo, adivinhação,
ocultismo e outras formas de idolatria (Dt 18.9-22). O crente deve totalmente
consagrar-se a Deus. Somente Deus, mediante sua vontade revelada e sua
Palavra inspirada, pode guiar a vida do crente (Mt 4.4). O crente deve ter
como seu propósito na vida, buscar e amar a Deus de todo o coração, de
toda a alma e de todas as suas forças, confiando nEle para conceder-lhe
aquilo que é bom para a sua vida (Dt 6.5; Sl 119.2; Mt 6.33; Fp 3.8; Mt 22.37;
Cl 3.5).

Segundo Mandamento: Imagem de escultura, 20.4. A proibição da adoração


a outros deuses determina que nenhuma imagem deles seja feita (Dt 4.19,23-
28); é também vedado a qualquer pessoa fazer uma imagem do próprio
Senhor Deus. Ele é infinitamente grandioso para ser representado por algo
feito por mãos humanas. O segundo mandamento, no que concerne ao
crente em Cristo, proíbe a feitura de imagens de Deus ou de criaturas, com o
propósito de adoração, oração ou qualquer outro tipo de auxílio espiritual (Dt
4.15,16). O princípio motivante desse mandamento está relacionado às três
pessoas da Trindade, igualmente. É impossível uma imagem ou quadro de
Deus representar corretamente a sua glória e caráter pessoal (Is 40.18).
Deus é tão transcendente, tão santo e tão insondável, que qualquer imagem
dEle o desonra e detrai a sua verdadeira natureza e aquilo que Ele tem
revelado de si mesmo (32.1-6). Os pensamentos e conceitos do crente a
respeito de Deus não devem basear-se em imagens ou pinturas dEle, mas na
Pentateuco 53

sua Palavra e na sua revelação através da pessoa e obra de Jesus Cristo (Jo
17.3).

Terceiro Mandamento: O nome do Senhor... em vão, 20.7. Tomar o nome do


Senhor em vão inclui o fazer uma falsa promessa usando esse nome (Lv
19.12; cf. Mt 5.33-37), pronunciá-lo de modo hipócrita ou leviano, ou
amaldiçoar e blasfemar envolvendo esse nome (Lv 24.10-16). O nome de
Deus deve ser santificado, honrado e respeitado por ser profundamente
sagrado, e deve ser usado somente de maneira santa (Mt 6.9).

Quarto Mandamento: Lembra-te do dia do Sábado, 20.8. O dia do Senhor no


Antigo Testamento era o sétimo dia da semana. Santificar aquele dia
importava em separá-lo como um dia diferente dos demais, cessando o labor
para descansar, servir a Deus e concentrar-se nas coisas respeitantes à
eternidade, à vida espiritual e à glória de Deus (vv. 9-11; Gn 2.2,3). A
observância do dia do Senhor por Israel era um sinal de que ele pertencia a
Deus (31.13). Lembrava-lhes o seu livramento da escravidão do Egito (Dt
5.15; ver Mt 12.1).

Quinto Mandamento: Honra o teu pai e a tua mãe, 20.12. Este mandamento
abrange todos os devidos atos de bondade, ajuda material, respeito e
obediência aos pais (Ef 6.1-3; Cl 3.20). Abrange, também, palavras maldosas
e agressão física aos pais. Em 21.15,17, Deus estabeleceu a pena de morte
para quem ferisse ou amaldiçoasse seu pai ou sua mãe. Assim fica
demonstrada a grande importância que Deus atribuiu ao respeito pelos pais
(Ef 6.1). Relacionado a esse mandamento está o dever recíproco do pai e da
mãe amarem seus filhos e lhes ensinarem o temor ao Senhor e os seus
caminhos (Dt 4.9; 6.6,7; Ef 6.4).

Sexto Mandamento: Não matarás, 20.13. O sexto mandamento proíbe o


homicídio deliberado, intencional, ilícito. Deus ordena a pena de morte para a
violação desse mandamento (Gn 9.6). O Novo Testamento condena, não
somente o homicídio mas também o ódio, que leva alguém a desejar a morte
de outrem (1Jo 3.15), bem como qualquer outra ação ou influência maléfica
que cause a morte espiritual de alguém (Mt 5.22; 18.6).

Sétimo Mandamento: Não adulterarás, 20.14. O sétimo mandamento proíbe o


adultério (cf. Lv 20.10; Dt 22.22) e abrange a imoralidade e todos os demais
pecados sexuais (Mt 5.27-32; 1Co 6.13-20). O adultério (isto é, a infidelidade
de um cônjuge ao outro) é tão abominável aos olhos de Deus, que a Bíblia
inteira condena esse pecado. A Bíblia ensina o seguinte a respeito do
adultério: Ele transgride a lei moral de Deus expressa no Decálogo. Na lei do
Antigo Testamento, o adúltero era punido com a pena de morte (Lv 20.10; Dt
22.22). Acarreta conseqüências permanentes e graves (2Sm 11.1-17; 12.14;
54

Jr 23.10,11; 1Co 6.16-18); quem comete adultério levará o opróbrio disso por
toda a vida (Pv 6.32,33). Como pecado hediondo, o adultério é ainda pior,
quando cometido por dirigentes do povo de Deus. No caso de cometerem
esse pecado, isso equivale a desprezar a Palavra de Deus e o próprio Senhor
(2Sm 12.9,10). Um crente que cometer tal pecado desqualifica-se, tanto para
ser indicado para o trabalho do Senhor, como para continuar no mesmo. Note
como no Antigo Testamento o adultério era um pecado generalizado em
Israel, devido à má influência de profetas e sacerdotes estragados, que o
cometiam (Jr 23.10-14; 29.23). O adultério e outros casos de imoralidade de
dirigentes e membros da igreja resulta muitas vezes no que a Bíblia chama
de adultério espiritual, isto é, infidelidade a Deus (Os 4.13, 14; 9.1;). O
adultério começa como um desejo mau no coração, para depois manifestar-
se na área física. A concupiscência é, claramente, um pecado na Bíblia (Jó
31.1,7; Mt 5.28). O adultério é um pecado de tal magnitude e efeito, que o
cônjuge inocente pode dissolver o casamento mediante divórcio (Mt 19.9; Mc
10.11). A imoralidade sexual dentro da igreja deve ser objeto de disciplina e
jamais tolerada (1Co 5.1-13). Adúlteros que prosseguem na prática desse
pecado, não têm herança no reino de Deus, i.e., eles privam-se da vida e da
salvação que Deus oferece (1Co 6.9; Gl 5.19-21). O adultério e a prostituição
são termos usados na descrição da igreja apóstata e das abominações que
ela comete (Ap 17.1-5; Ap 17.1).

Oitavo Mandamento: Não furtarás, 20.15. Este mandamento proíbe o furto de


dinheiro ou de qualquer outra coisa que pertence a outrem. Desonestidade
também é uma forma de furtar (2Co 8.21). Este mandamento demanda
honestidade em todos os nossos tratos com as pessoas.

Nono Mandamento: Não dirás falso testemunho, 20.16. O nono mandamento


protege o nome e a reputação do próximo. Ninguém deve fazer declarações
falsas a respeito do caráter ou dos atos de outra pessoa. Devemos falar de
modo justo e honesto a respeito de quem quer que seja (Lv 19.16; Jo 8.44;
2Co 12.20). Este mandamento inclui também a mentira em geral (Lv 6.2, 3;
19.11; Pv 14.5; Ef 4.25; Cl 3.9).

Décimo Mandamento: Não cobiçarás, 20.17. A cobiça inclui o desejo ou


concupiscência por tudo quanto é errado ou que pertence a outra pessoa.
Paulo declara que esse mandamento revela a profundidade da
pecaminosidade humana (Rm 7.7-13). Essa lei, bem como as demais,
desmascara a depravação do homem e da mulher, e os conclama a
buscarem graça e poder moral da parte de Deus (Lc 12.15-21; Rm 7.24, 25;
Ef 5.3). Somente pelo poder do Espírito Santo é que podemos viver uma vida
que agrade a Deus (Rm 8.2).
Pentateuco 55

3.5.5. O Tabernáculo e suas peças

3.5.5.1. O Tabernáculo

No cap. 25 de Êxodo, Deus mesmo dá suas instruções a respeito do


Tabernáculo. O significado histórico, espiritual e tipológico do Tabernáculo
deve apoiar-se no que a Bíblia diz a respeito. O Tabernáculo era um
santuário (v. 8), um lugar separado para o Senhor habitar entre o seu povo e
encontrar-se com os seus (v. 22; 29.45,46; Nm 5.3; Ez 43.7,9). A glória do
Senhor estava sobre o Tabernáculo de dia e de noite. Quando a glória do
Senhor seguia adiante, Israel tinha que avançar junto. Deus guiou os
israelitas dessa maneira enquanto estiveram no deserto (40.36-38; Nm
9.15,16). Era chamado o Tabernáculo do Testemunho (38.21), porque
continha os dez mandamentos. Os dez mandamentos lembravam sempre ao
povo, da santidade de Deus e das suas leis sobre o viver do seu povo
escolhido. Nosso relacionamento com Deus nunca poderá ser separado da
nossa obediência à sua lei. O Tabernáculo era o lugar onde Deus concedia o
perdão dos pecados mediante um sacrifício vicário (29.10-14). Esses
sacrifícios tipificavam o perfeito sacrifício de Cristo na cruz pelos pecados da
raça humana (Hb 8.1,2; 9.11-14). O Tabernáculo falava do céu, isto é, do
Tabernáculo celestial onde Cristo, nosso sumo sacerdote eterno, vive
eternamente para interceder por nós (Hb 9.11,12,24-28). O Tabernáculo
falava da redenção final quando, então, haverá um novo céu e uma nova
terra, isto é, o tabernáculo de Deus com os homens, pois com eles habitará, e
eles serão o seu povo, e o mesmo Deus estará com eles (Ap 21.3).

3.5.5.2. A Tenda

A tenda cobria o Tabernáculo. Era feita de tecido de pêlos de cabras: 11


cortinas, cada uma de 15 m de comprimento por 2 de largura: ajustadas com
grampos de bronze, todo o conjunto medindo 22 m ao leste e ao oeste, 15 m,
ao norte e ao sul. Sobre isto havia uma coberta de peles vermelhas de
carneiros. E por cima, uma terceira coberta de peles de animais marinhos
(focas? ou toninhas?). A tenda tríplice, de tecidos de pêlos de cabras, peles
vermelhas e peles de animais marinhos, era provavelmente sustentado por
um pau de cumieira, com os lados em declive.

3.5.5.3. O castiçal

Era feito de ouro puro. Uma haste no centro com 3 ramos de cada lado.
Presume-se fosse de uns 165 cm de altura, por 1 m na parte superior, de um
extremo ao outro dos ramos. Era alimentado de puríssimo óleo de oliva;
espevitado e aceso diariamente, 30.7,8. Os castiçais do Templo de Salomão,
feitos segundo o modelo deste, que também podia ter sido incluído entre
56

aqueles, estavam, sem dúvida, entre os tesouros levados para a Babilônia e


depois devolvidos, Ed 1.7. O castiçal do Templo de Herodes, nos dias de
Jesus, pode ter sido um destes. Foi levado para Roma, 70 d.C.; esculpido
no Arco de Tito; depositado no Templo da Paz; levado para Cartago, por
Genscrico, 455 d.C.; recuperado por Belisário e levado para Constantinopla;
depois “depositado respeitosamente na Igreja Cristã em Jerusalém”, 533 d.C.
Nada mais se sabe dele. O castiçal pode ter sido uma “figura” da Palavra de
Deus na Igreja; embora que em Ap 1.12, 20 os castiçais representem igrejas.

3.5.5.4. O altar do incenso

Com 1m de altura, quadrado, 50cm de cada lado. Feito de madeira de acácia,


revestido de ouro puro. Ficava defronte do véu. Devia-se queimar incenso
nele perpetuamente de manhã e à tarde. Simbolizava oração perpétua, Ap
8.3-5. A queima de incenso simbolizava a contínua adoração e orações do
povo de Deus (v. 8; Sl 141.2; Lc 1.10; Ap 8.3,4; ver Ap 5.8). O altar do
incenso podia ser profanado (v. 9), o que indica que a oração que não
visasse à glória de Deus, nem saísse de um coração dedicado à santidade
era, e ainda é, inaceitável ao Senhor (Sl 66.18,19; Is 1.15,16).

3.5.5.5. O pátio

Era a cerca em volta do Tabernáculo, 50 m de comprimento por 25 de


largura; olhava para o Oriente. Cortinas de linho fino torcido, 2,50 m de altura,
sobre colunas de cobre de 2,50 m entre cada uma, com colchetes e faixas de
prata, sobre bases de cobre. A porta, na extremidade leste, 10 ms de largura,
com uma coberta de linho, azul e escarlate. Uma grande bacia de cobre para
conter água, destinada à lavagem das mãos e pés dos sacerdotes, antes de
ministrarem no altar, ou na tenda. Significava limpeza, em sentido literal e
também do pecado. “Figura” da purificação do pecado pelo sangue de Cristo,
e talvez também figura do batismo cristão.

3.5.5.6. O Lugar Santo

Eram os 10 ms orientais do Tabernáculo. Continha a mesa dos pães da


Proposição, no lado norte; o castiçal, no lado sul; o altar do incenso, bem
defronte do véu. Talvez uma “figura” da Igreja. Feito de linho finíssimo, azul,
púrpura e escarlate, primorosamente bordado de querubins. Separava o lugar
Santo do Santíssimo; ou, por assim dizer, a sala do trono de Deus da sala de
espera do homem. O véu rasgou-se em duas partes na morte de Cristo, Mt
27.51, significando que, desde aquele momento, o acesso à presença de
Deus estava franqueado ao homem.
Pentateuco 57

3.5.5.7. A mesa dos Pães da Proposição

A mesa dos pães da proposição possuía 1m de comprimento, 50 cm de


largura, 70 cm de altura. Feita de madeira de acácia; revestida de ouro puro.
Destinava-se a conter 12 pães perpetuamente, substituídos cada sábado.
Ficava no lado norte do Lugar Santo. O pão colocado sobre essa mesa
representava a presença do Senhor como o sustentador de Israel na sua vida
em geral (Lv 24.5-9; Is 63.9). Aponta para Cristo, o Pão da Vida (16.4; Mt
26.26-29; 1Co 10.16).

3.5.5.8. O altar dos Holocaustos

O altar dos holocaustos (30.28; 31.9; Lv 4.7,10,18), era o lugar onde os


animais eram imolados em sacrifício para fazer expiação (isto é, cobrir o
pecado e alcançar o perdão de Deus). O sangue vicário do sacrifício era
posto nas pontas do altar e derramado à sua base (29.12; Lv
4.7,18,25,30,34). Esse ato expiador salientava que o pecado é digno de
morte, mas que Deus aceitava sangue inocente em lugar do culpado (Lv 16).
As suas pontas eram projeções em cada um dos quatro cantos do altar, e
simbolizavam o poder e a proteção através do sacrifício (1Rs 1.50,51; 2.28;
Sl 18.2).

3.5.5.9. O véu - Cortina Espessa

O véu (ou cortina espessa) fazia a separação entre o lugar santo (isto é, o
lugar onde o sacerdote orava e elevava ações de graças a Deus em nome do
povo) e o lugar santíssimo (isto é, a habitação de Deus). Esse véu mostrava
a solene verdade que o ser humano não podia aproximar-se livremente de
Deus, devido a sua condição pecaminosa. O acesso ao lugar santíssimo era
restrito ao máximo. O sumo sacerdote podia entrar ali somente um dia no ano
para representar o povo perante Deus, e mesmo assim, somente se levasse
consigo sangue de sacrifício expiador (30.10; Lv 16.12ss.; Hb 9.6-8). O
caminho para todo o povo de Deus entrar livremente na sua presença ainda
não tinha sido aberto (Hb 9.8). A única maneira de haver pleno acesso a
Deus seria rasgar o véu e estabelecer nova lei no Tabernáculo. Foi isso que
Jesus Cristo fez, ao derramar seu sangue na cruz. Seu corpo representava
esse véu que, na ocasião da sua morte foi rasgado (Mt 27.51; Cl 1.20-22; Hb
10.20). Agora, todo salvo pode entrar no santuário, pelo sangue de Jesus (Hb
10.19).
58

3.5.5.10. O Lugar Santíssimo - Santo dos Santos

Era os 5m ocidentais do Tabernáculo, um cubo perfeito. Este representava o


lugar da habitação de Deus. Continha apenas a Arca. Nele só entrava o
Sumo Sacerdote uma vez por ano. Era “a figura do céu” (Hb 9.24).

3.5.5.11. A Arca da Aliança

A arca era uma peça do Tabernáculo em formato de baú Era uma caixa, de
1,20 m de comprimento, 0,75 m de largara, 0,75 m de altura. Era feita de
madeira de acácia, recoberta de ouro puro. Continha os dez mandamentos
(16,22), um vaso de maná (16.33,34) e a vara florescida de Arão (Nm 17.10;
Hb 9.4). Tinha por cobertura uma tampa chamada propiciatório (v. 21).
Fixados em cada extremidade do propiciatório e formando uma só peça com
ele, havia dois querubins alados, de ouro batido (v. 18). A arca foi posta no
Lugar Santíssimo do Tabernáculo (26.34) e representava o trono de Deus.
Diante dela o sumo sacerdote se colocava, uma vez por ano, no Dia da
Expiação, para aspergir sangue sobre o propiciatório, como expiação pelos
pecados involuntários do povo, cometidos durante o ano anterior. A arca
provavelmente perdeu-se no Cativeiro Babilônico. Em Ap 11.19, João viu a
arca “no templo”. Mas isso foi em visão, não querendo certa- mente dizer que
a própria arca material lá estivesse; porque no céu não haverá templo, Ap
21.22.

3.5.5.12. O Propiciatório

O propiciatório era a tampa da arca. Nela, o sumo sacerdote aspergia o


sangue derramado do sacrifício, a fim de fazer expiação pelos pecados. Esse
ato simbolizava a misericórdia de Deus, que levava ao perdão (Lv 16.14,15;
17.11; Rm 3.25). Assim, o propiciatório e o sangue sobre ele prefiguravam o
perdão divino, acessível aos pecadores através do sacrifício expiador de
Cristo (Rm 3.21-25; Hb 7.26; 4.14-16).

3.5.5.13. Dois Querubins de Ouro

Ficavam em ambas as extremidades do propiciatório e simbolizavam seres


celestiais que assistem junto ao trono de Deus no céu (Hb 8.5; Ap 4.6, 8).
Simbolizavam a presença de Deus e a sua soberania entre o seu povo na
terra (1Sm 4.4; 2Sm 6.2; 2Rs 19.15). A presença deles sobre a arca
testificava da verdade que Deus permaneceria entre o seu povo, somente
enquanto houvesse provisão expiatória pelo sangue e o povo se dispusesse
a cumprir os mandamentos de Deus.
Pentateuco 59

3.5.6. O Sumo Sacerdote e sua Indumentária

O Senhor deu instruções a respeito do ministério de Arão, o sumo sacerdote,


e dos deveres do sacerdócio em geral (caps. 28-29). O sacerdote era uma
pessoa com a missão de representar o povo diante de Deus. Os sacerdotes
deviam queimar incenso, cuidar do castiçal e da mesa dos pães da
proposição, oferecer sacrifícios no altar e abençoar o povo. Além disso,
também julgavam causas civis (cf. Nm 5.5-31) e ensinavam a lei (Ne 8.7, 8).
Os sacerdotes ministravam como mediadores entre o povo e Deus (vv.
12,29,30) e também comunicavam ao povo a vontade e o concerto de Deus
(Jr 33.20-22; Ml 2.4) e intercediam, perante Deus, devido à pecaminosidade
do povo. Exercendo o seu ministério, eles faziam expiação pelo pecado do
povo e pelos seus próprios pecados (29.33; Hb 9.7,8), e testificavam da
santidade de Deus (v. 38; Nm 18.1). Para os crentes do Novo Testamento,
Jesus é o sacerdote do povo de Deus. Ele inaugurou o novo concerto
mediante a sua morte (Hb 9.15-22) e ofereceu-se como o sacrifício perfeito
(Hb 9.23-28). Ele se compadece das nossas fraquezas (Hb 4.15), comparece
diante de Deus em nosso favor (Hb 9.24), aperfeiçoa os salvos (Hb 10.14) e
aproxima-nos de Deus Pai (Hb 7.25; 9.24; 10.19-22; 1Jo 2.1).

3.5.6.1. O peitoral

Tratava-se de uma peça quadrada de tecido espesso, na qual foram


colocadas doze pequenas pedras preciosas, em quatro fileiras horizontais,
com três pedras em cada; nessas pedras foram gravados os nomes dos doze
filhos de Israel (vv. 15-21, 29, 30).

3.5.6.2. O Éfode

O Éfode era outra peça do vestuário do sumo sacerdote. Era uma espécie de
avental, folgado, sem mangas, usado sobre o manto do Éfode, e que descia
até os joelhos do sumo sacerdote (vv. 6-20; 39.1-21).

3.5.6.3. Urim e Tumim

As Escrituras não explicam o significado de Urim e Tumim. O sentido literal


pode ser luzes e perfeições, ou maldições e perfeições. Possivelmente eram
usados para lançar sortes, na busca de uma resposta sim ou não, na
definição da vontade de Deus em casos específicos (Lv 8.8; Nm 27.21; Dt
33.8; 1Sm 28.6).
60

Capítulo 4

Livro de Levítico
Levítico está estreitamente ligado ao livro de Êxodo. Êxodo registra como os
israelitas foram libertos do Egito, receberam a lei de Deus, e construíram o
Tabernáculo segundo o modelo determinado por Deus; termina quando o
Santo vem habitar no Tabernáculo recém-construído (Êx 40.34). Levítico
contém as leis que Deus deu a Moisés durante os dois meses entre o término
do Tabernáculo (Êx 40.17) e a partida de Israel do monte Sinai (Nm 10.11).

4.1. O título e destinatário do livro


Levítico é o terceiro dos cinco livros que compõem a “Lei” de Moisés. Contêm
dez das cinqüenta a quatro secções em que se dividia o Pentateuco para a
leitura anual da Lei na Sinagoga. O nome Levítico vem de Leviticus, a forma
latina do título grego do livro, e significa “a respeito dos levitas.” Os judeus
conheciam-no pelo nome de Wayyiqra, utilizando a frase inicial do primeiro
versículo: “E chamou”.

Os levitas eram a tribo de Israel da qual procediam os sacerdotes; eles eram


responsáveis pela manutenção do local e das práticas de culto de Israel. O
título é pertinente, porque o livro trata basicamente do culto e das condições
necessárias para o culto. No entanto, o livro não se destinava somente aos
sacerdotes ou levitas, mas também aos israelitas leigos, ensinando-lhes
como oferecer sacrifícios e como vir à presença de Deus no culto. Levítico
fala para a humanidade em todas as épocas, lembrando-nos da gravidade de
nosso pecado, mas também apontando-nos o sacrifício daquele cujo sangue
é muito mais efetivo do que o sangue de touros e cordeiros.

O livro destina-se especialmente aos sacerdotes, donde a freqüente alusão a


Arão e a seus filhos. Os Levitas são mencionados apenas num curto texto
(25.32 e segs.). Mas, tratando-se dum manual para os sacerdotes, convém
frisar que muitas das leis são precedidas da frase: “Fala aos filhos de Israel”.
É porque estas leis, muitas delas exigindo a mediação dos sacerdotes, se
dirigiam diretamente ao povo, formando parte daquela Lei que no fim de
contas pedia aos sacerdotes a responsabilidade sobre aquilo que ensinaram
ao povo (Dt 31.9; 33.10; Ne 8). Não se trata, pois, dum livro esotérico.
Apenas se esperava dos sacerdotes que cumprissem devidamente a sua
Pentateuco 61

missão naquele serviço do santuário, que tanta importância tinha para cada
verdadeiro israelita.

4.2. Autoria do livro


Nenhuma alusão se faz no livro a qualquer espécie de ordem para se
escreverem as leis que nele se encontram. Mas várias vezes se afirmam que
essas leis foram promulgadas através de Moisés, e cerca de trinta vezes
deparamos com esta frase: “E falou o Senhor a Moisés”. Pelo menos,
começam assim vinte dos vinte e sete capítulos deste livro. O nome de Arão
anda por vezes ligado ao de Moisés (11.1; 14.33; 15.1), sendo que uma única
vez aparece isolado (10.8). Em face, pois, dos textos de Êxodo, de Números
e de Deuteronômio, relativos à ordem para se escreverem os mandamentos
confiados a Moisés (Êx 24.4-7), podemos concluir que essas instruções, de
tanta importância para a felicidade e salvação do Povo de Deus, muitas delas
até tão minuciosas que dificilmente se recordariam, foram, sem dúvida,
escritas pelo próprio Moisés, ou então por alguém que o fizesse sob a
superior orientação do mesmo.

4.3. Lugar e ocasião


O lugar e altura em que estas leis foram promulgadas é bem definido, sendo
durante a permanência no monte Sinai (7.38; 25.1; 26.46; 27.34), que durou
até o “vigésimo dia do segundo mês do ano” (Nm 10.11). A afirmação do
versículo 1 supõe a construção do Tabernáculo, que Êx 40 acabava de
descrever. A alusão ao oitavo dia (9.1) deve referir-se ao dia seguinte aos
sete dias da consagração de Arão e de seus filhos (8.33), em princípio
contados a partir da montagem do Tabernáculo no primeiro dia do primeiro
mês (Êx 40.2). Seguiu-se logo o pecado de Nadabe e Abiú (10.1-2). As
palavras “E fez Arão como o Senhor ordenara a Moisés” (16.34), com que
termina o ritual do dia da expiação, são duma certa importância, porque
indicam que o próprio Arão executou este ritual de expiação por todo o povo,
o que significa que aqui foi adicionada à Lei a relação da sua primeira
observância, realizada quase cinco meses depois da partida do Sinai.
Saliente-se ainda que em 23.44 se faz esta afirmação: “Assim pronunciou
Moisés as solenidades do Senhor aos filhos de Israel”. Finalmente é de notar
que a libertação do Egito vem representada como um conhecimento pessoal
(11.45; 18.3; 26.45) e que a posse da terra se considera ainda futura (14.34;
19.23; 23.10; 25.2).

4.4. Características e temas


Nenhum outro livro no Antigo Testamento representa um desafio maior ao
leitor moderno do que Levítico, sendo necessário um pouco de imaginação
62

para visualizar o quadro das cerimônias e dos rituais que formam o grosso
do livro. Contudo, é importante procurar compreender os rituais de Levítico
por duas razões. Primeiro, porque os rituais conservam, expressam e
ensinam as idéias e os valores mais caros de uma sociedade. Analisando as
cerimônias descritas em Levítico, podemos descobrir o que era mais
importante aos israelitas do Antigo Testamento. Em segundo lugar, as
mesmas idéias aqui presentes são fundamentais para os escritores do Novo
Testamento. Em especial, os conceitos de pecado, sacrifício e expiação
encontrados em Levítico são usados no Novo Testamento para interpretar a
morte de Cristo.

É exatamente a centralidade dos rituais de Levítico para o pensamento do


Antigo Testamento que faz com que eles sejam, muitas vezes, obscuros para
nós, já que os escritores não precisavam explicá-los aos seus
contemporâneos. Todo israelita sabia por que um sacrifício específico era
oferecido em uma determinada ocasião e o que certo gesto significava. Para
nós, porém, os mínimos detalhes no texto precisam ser tomados em
consideração para compreendermos tais assuntos, e uma leitura perspicaz
por entre as linhas, às vezes, se faz necessária.

Levítico é parte da lei da aliança dada no Sinai. As idéias expressas em toda


a aliança sinaítica, inclusive a graça soberana de Deus em escolher Israel e
as suas exigências morais, são aqui pressupostas. Alguns temas são
especialmente proeminentes em Levítico. Primeiro, Deus está presente com
o seu povo. Segundo, porque Deus é santo, o seu povo também deve ser
santo (11.45). Uma vez que o homem é pecador, ele não pode habitar com o
Deus santo. O contato entre o pecador e a santidade divina pode resultar em
morte. Daí ser de máxima importância a expiação pelo pecado através da
oferta de sacrifício.

4.5. Estudos no livro de Levítico


4.5.1. A Presença Divina

Cada ato de culto é realizado “para o SENHOR” (p.ex., 1.2) que habita com o
seu povo na tenda da congregação. Porque Deus está presente no Santo dos
Santos, a entrada ali é vedada a todos, com exceção do sumo sacerdote uma
vez por ano, no Dia da Expiação (16.17). Embora a presença de Deus seja
normalmente invisível, ele pode manifestar a sua glória em ocasiões
especiais como, por exemplo, na ordenação dos sacerdotes (9.23-24). A
maior das dádivas de Deus é que ele condescendeu em habitar com o seu
povo.
Pentateuco 63

4.5.2. Santidade

O propósito de Levítico está resumido em 11.45: “Portanto, vós sereis santos,


porque eu sou santo.” O homem deve ser como Deus em seu caráter. Isso
implica em imitar a Deus na vida diária. A santidade de Deus envolve a sua
existência como a fonte da vida perfeita nas suas dimensões física, espiritual
e moral. Animais oferecidos a Deus em sacrifício precisam ser livres de
manchas (1.3) e os sacerdotes, que representam Deus diante do homem e o
homem diante de Deus, não podem ter defeitos físicos (21.17-23). Aqueles
que sofrem de fluxos, especialmente hemorragia, ou que estão afetados com
doenças que desfiguram a pele são vedados do culto até que sejam curados
(caps. 12-15). A saúde física é entendida como um símbolo da perfeição da
vida divina. Mas santidade é também uma questão interior relativa a atitudes
que se manifestam em conduta moral. O tema da santidade é enfatizado
especialmente nos caps. 17-25, os quais estão preocupados principalmente
com conduta ética pessoal, resumida em 19.18, “amarás o teu próximo como
a ti mesmo”.

4.5.3. Expiação através do Sacrifício

Uma vez que o homem falhou em viver de acordo com as exigências justas
de Deus, um meio de expiação tornou-se essencial para que tanto as suas
faltas morais como as suas imperfeições físicas pudessem ser perdoadas.
Para esse fim, Levítico oferece descrições extensivas e pormenorizadas do
sistema sacrificial (caps. 1-7), do papel dos sacerdotes (caps. 8-10; 21-22) e
das grandes festas nacionais (caps. 16; 23; 25) encontradas no Antigo
Testamento. Essas grandes cerimônias foram instituídas para tornar possível
a coexistência do Deus santo com o seu povo pecador.

Por meio dos símbolos e ritos que descreve, Levítico desenha um quadro do
caráter de Deus, o qual é pressuposto e aprofundado no Novo Testamento.
Levítico ensina que Deus é a fonte da vida perfeita, que ele ama o seu povo e
que deseja habitar entre eles. Temos nisso uma antevisão da Encarnação,
quando “o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1.14). Levítico também
revela claramente a pecaminosidade do homem: nem bem os filhos de Arão
tinham sido ordenados quando então profanaram o seu cargo e morreram em
uma demonstração atemorizante do julgamento divino (cap. 10). Os que
sofrem de doenças de pele ou hemorragias, bem como aqueles que são
culpados de pecados morais graves, são excluídos do culto porque as suas
imperfeições são incompatíveis com um Deus santo e perfeito (caps. 12-15).
Os símbolos de Levítico ensinam a universalidade do pecado humano, uma
doutrina endossada por Jesus (Mc 7.21-23) e Paulo (Rm 3.23). Preso entre a
santidade divina e a pecaminosidade humana, a maior necessidade do ser
humano é a expiação. É aqui que Levítico mais tem a ensinar aos cristãos,
64

pois as suas idéias são retomadas e desenvolvidas pelo Novo Testamento na


descrição da morte expiatória de Cristo. Ele é o Cordeiro sacrificial perfeito,
que tira o pecado do mundo (Jo 1.29). A sua morte é o resgate em favor de
muitos (Mc 10.45). O seu sangue purifica-nos de todo pecado (1Jo 1.7).
Acima de tudo, Jesus é o perfeito Sumo Sacerdote, que não entra em
tabernáculo terreno uma vez por ano no Dia da Expiação (cap. 16), mas sim,
que subiu ao tabernáculo celestial para sempre, não porque ofereceu um
simples cordeiro pelos pecados do seu povo, mas deu a sua própria vida (Hb
9.10). O rompimento do véu no templo, quando Jesus foi crucificado, foi uma
demonstração visível de que a sua morte abriu o caminho a Deus para todos
os crentes (Mt 27.51; Hb 10.19-20). Além do mais, Levítico restringe a
salvação à comunidade da antiga aliança. As leis quanto ao alimento (cap.
11) e a proibição de misturas (19.19) recordavam aos judeus a sua situação
ímpar. Mas o Novo Testamento abre o reino a todas as nações e ab-roga as
leis alimentares (Mc 7.14-23; At 10), enquanto, ao mesmo tempo, insiste na
separação da igreja em relação ao mundo (Jo 17.16; 2Co 6.14-7.1). E
enquanto o sofredor do Antigo Testamento tinha que esperar até que Deus o
curasse (cap. 14), nos evangelhos; Deus em Cristo, aproximou-se e curou
tanto os leprosos como os que sofriam de hemorragias (Lc 8.43-48; 17.12-
19). O Deus de Levítico, cujo caráter essencial é apresentado como vida
santa, é apresentado nos evangelhos como estando presente em Cristo e em
sua obra redentora.

4.5.4. O Dia da Expiação

4.5.4.1. A necessidade da expiação

A palavra “expiação” (heb. kippurim, derivado de kaphar, que significa


“cobrir”) comunica a idéia de cobrir o pecado mediante um “resgate”, de modo
que haja uma reparação ou restituição adequada pelo delito cometido (note o
princípio do “resgate” em Êx 30.12; Nm 35.31; Sl 49.7; Is 43.3). A
necessidade da expiação surgiu do fato que os pecados de Israel (16.30),
caso não fossem expiados, sujeitariam os israelitas à ira de Deus (Rm 1.18;
Cl 3.6; 1Ts 2.16). Por conseguinte, o propósito do Dia da Expiação era prover
um sacrifício de amplitude ilimitada, por todos os pecados que porventura não
tivessem sido expiados pelos sacrifícios oferecidos no decurso do ano que
findava. Dessa maneira, o povo seria purificado dos seus pecados do ano
precedente, afastaria a ira de Deus contra ele e manteria a sua comunhão
com Deus (16.30-34; Hb 9.7). Porque Deus desejava salvar os israelitas,
perdoar os seus pecados e reconciliá-los consigo mesmo, Ele proveu um
meio de salvação ao aceitar a morte de um animal inocente em lugar deles
(isto é, o animal que era sacrificado); esse animal levava sobre si a culpa e a
penalidade deles (17.11; cf. Is 53.4,6,11) e cobria seus pecados com seu
sangue derramado.
Pentateuco 65

4.5.4.2. A cerimônia do dia da expiação

Levítico 16 descreve o Dia da Expiação, o dia santo mais importante do ano


judaico. Nesse dia, o sumo sacerdote, vestia as vestes sagradas, e de início
preparava-se mediante um banho cerimonial com água. Em seguida, antes
do ato da expiação pelos pecados do povo, ele tinha de oferecer um novilho
pelos seus próprios pecados. A seguir, tomava dois bodes e, sobre eles,
lançava sortes: um tornava-se o bode do sacrifício, e o outro tornava-se o
bode expiatório (16.8). Sacrificava o primeiro bode, levava seu sangue,
entrava no Lugar Santíssimo, para além do véu, e aspergia aquele sangue
sobre o propiciatório, o qual cobria a arca contendo a lei divina que fora
violada pelos israelitas, mas que agora estava coberta pelo sangue, e assim
se fazia expiação pelos pecados da nação inteira (16.15,16). Como etapa
final, o sacerdote tomava o bode vivo, impunha as mãos sobre a sua cabeça,
confessava sobre ele todos os pecados dos israelitas e o enviava ao deserto,
simbolizando isto que os pecados deles eram levados para fora do arraial
para serem aniquilados no deserto (16.21, 22). O Dia da Expiação era uma
assembléia solene; um dia em que o povo jejuava e se humilhava diante do
Senhor (16.31). Esta contrição de Israel salientava a gravidade do pecado e o
fato de que a obra divina da expiação era eficaz somente para aqueles de
coração arrependido e com fé perseverante (cf. 23.27; Nm 15.30; 29.7). O
Dia da Expiação levava a efeito a expiação por todos os pecados e
transgressões não expiados durante o ano anterior (16.16, 21). Precisava ser
repetido cada ano da mesma maneira.

4.5.4.3. Cristo e o dia da expiação

O Dia da Expiação está repleto de simbolismo que prenuncia a obra de nosso


Senhor e Salvador Jesus Cristo. No Novo Testamento, o autor de Hebreus
realça o cumprimento, no novo concerto, da tipologia do Dia da Expiação (Hb
9.6-10.18). O fato de que os sacrifícios do Antigo Testamento tinham de ser
repetidos anualmente indica que eles eram provisórios. Apontavam para um
tempo futuro quando, então, Cristo viria para remover de modo permanente
todo o pecado confessado (Hb 9.28; 10.10-18). Os dois bodes representam a
expiação, o perdão, a reconciliação e a purificação consumadas por Cristo. O
bode que era sacrificado representa a morte vicária e sacrificial de Cristo
pelos pecadores, como remissão pelos seus pecados (Rm 3.24-26; Hb 9.11,
12, 24-26). O bode expiatório, conduzido para longe, levando os pecados da
nação, tipifica o sacrifício de Cristo, que remove o pecado e a culpa de todos
quantos se arrependem (Sl 103.12; Is 53.6, 11, 12; Jo 1.29; Hb 9.26). Os
sacrifícios no Dia da Expiação proviam uma “cobertura” pelo pecado, e não a
remoção do pecado. O sangue de Cristo derramado na cruz, no entanto, é a
expiação plena e definitiva que Deus oferece à raça humana; expiação esta
que remove o pecado de modo permanente (cf. Hb 10.4, 10, 11). Cristo como
66

sacrifício perfeito (Hb 9.26; 10.5-10) pagou a inteira penalidade dos nossos
pecados (Rm 3.25, 26; 6.23; Gl 3.13; 2Co 5.21) e levou a efeito o sacrifício
expiador que afasta a ira de Deus, que nos reconcilia com Ele e que restaura
nossa comunhão com Ele (Rm 5.6-11; 2Co 5.18, 19; 1Pe 1.18, 19; 1Jo 2.2).
O Lugar Santíssimo onde o sumo sacerdote entrava com sangue, para fazer
expiação, representa o trono de Deus no céu. Cristo entrou nesse “Lugar
Santíssimo” após sua morte e, com seu próprio sangue, fez expiação para o
crente perante o trono de Deus (Êx 30.10; Hb 9.7, 8, 11, 12, 24-28). Visto que
os sacrifícios de animais tipificavam o sacrifício perfeito de Cristo pelo pecado
e que se cumpriram no sacrifício de Cristo, não há mais necessidade de
sacrifícios de animais depois da morte de Cristo na cruz (Hb 9.12-18).

4.6. Os Sacrifícios Levíticos


4.6.1. Ofertas

O termo “oferta” (heb. corban) é cognato do verbo que significa “aproximar-


se”. Portanto, o sacrifício era uma dádiva que o israelita fiel trazia a Deus, a
fim de poder aproximar-se dEle e desfrutar da sua comunhão e bênção (cf. Sl
73.28). Cinco ofertas são descritas nos caps. 1-7: o holocausto (1.3-17), a
oferta de manjares, isto é, de cereais (2.1-16), a oferta pacífica (3.1-17), a
oferta pelo pecado e a oferta pela culpa (5.14-6.7; 7.1-7). Os adoradores
apresentavam ofertas com a finalidade de expressarem gratidão e fé, de
renovarem a comunhão, de aprofundarem a sua dedicação ao Senhor, ou de
pedirem perdão. As ofertas eram realmente orações em forma de atos (cf. Sl
116.17; Os 14.2; Hb 13.15). Em muitos casos, a oferta envolvia um sacrifício,
isto é, era ceifada a vida de um animal (9.8). Essas ofertas ensinavam a
Israel que: o ser humano é basicamente pecaminoso, cujos pecados
merecem a morte; sem derramamento de sangue não há perdão (17.11; Hb
9.22); a expiação pelo pecado precisa ser feita mediante substituição (v. 4;
17.11); a santidade de Deus deve regular e dirigir todas as áreas da vida
humana (cf. 10.3); e Deus quer ser gracioso, perdoar e ter comunhão com
homens e mulheres (Êx 34.6,7). Para que a oferta fosse aceita por Deus,
devia haver, da parte do ofertante, arrependimento genuíno, do profundo do
coração e uma sincera resolução de viver uma vida de bondade e de retidão
(23.27-29; Is 1.11-17; Mq 6.6-8).

4.6.2. Holocausto

O termo hebraico traduzido por “holocausto” significa “aquilo que sobe” para
Deus. O sacrifício era totalmente queimado, o que significa que a total
consagração do crente a Deus é essencial à adoração verdadeira. Ao mesmo
tempo, esse sacrifício abrangia o perdão do pecado (v. 4), o que realçava o
fato de que antes dos adoradores poderem dedicar-se a Deus, tinham que
Pentateuco 67

estar purificados do pecado (Mt 5.23,24). Segundo o escritor de Hebreus,


Jesus é o cumprimento cabal do holocausto (Hb 10.5-10). O israelita que
sacrificava um animal curvava-se sobre este, para significar assim que ele se
identificava com o referido animal que estava tomando o seu lugar. Esse ato
exprimia a idéia de substituição (cf. 16.21,22; 24.14). Quando o animal
morria, era como se a pessoa que o trouxera também morresse, no entanto
permanecia viva para servir a Deus. De modo semelhante, o cristão confia-se
a Cristo e une-se a Ele na sua morte (Rm 6.3-11; 2Co 5.21; Cl 3.3; Hb 9.14).
Ele é conclamado, portanto, a viver como se ressurreto dentre os mortos e a
apresentar-se como sacrifício vivo a Deus (Rm 12.1; Hb 13.15).

4.6.3. Oferta de manjares

A oferta de manjares (ou, melhor, de cereais) era uma dádiva apresentada a


Deus como ato de adoração, e que simbolizava a dedicação a Deus, do fruto
do trabalho da pessoa. Subentendia que todo o trabalho humano devia ser
feito como para o Senhor, e que nosso alimento cotidiano deve ser recebido
com ações de graças a Ele (1Co 10.31; Cl 3.23).

4.6.4. Sacrifício pacífico

O sacrifício pacífico era efetuado diante de Deus, no sentido do ofertante ter


comunhão com Ele, expressar gratidão (7.11-15; 22.29) ou fazer um voto
(7.16). Para o ofertante, envolvia um compromisso com o concerto e
celebrava a paz e a reconciliação entre Deus e o adorador. Essa oferta
prenuncia a paz e a comunhão que o crente tem com Deus e com os irmãos
na fé, tendo por base a morte de Cristo na cruz (cf. Cl 1.20; 1Jo 1.3).
Prenuncia ainda a nossa comunhão plena, quando todos nos assentarmos
com Deus no seu reino (Sl 22.26; Lc 14.15; Ap 19.6-10).

4.6.5. Por expiação do pecado

Deus requeria o sacrifício pelo pecado cometido por ignorância, fraqueza ou


involuntariamente (v. 2), para que o perdão fosse concedido. Pecados
deliberados e insolentes, por outro lado, eram punidos com a pena de morte
(Nm 15.30,31; Hb 10.28). Um sacrifício pela culpa, semelhante ao sacrifício
pelo pecado, foi provido para quem cometesse pecado ou dano passível de
plena restituição (6.2-6;5.15). O sacrifício pelo pecado era também
necessário à purificação ritual (12.6-8; 14.13-17; Nm 6.11). O sacrifício pelo
pecado prefigura a morte expiatória de Cristo e o fato de Ele tomar sobre si o
castigo dos nossos pecados. A eficácia da sua morte, porém, foi infinitamente
mais perfeita do que o sacrifício pelo pecado do Antigo Testamento, pois que
num só ato proveu uma expiação única por todos os pecados (Is 53; 2Co
5.21; Ef 1.7; Hb 9.11, 12); Nós, crentes do Novo Testamento, precisamos
68

continuamente do sangue de Cristo para expiar nossos erros, fraquezas e


falhas involuntárias que decorrem da fragilidade da natureza humana (Sl
19.12). Os pecados oriundos de uma atitude rebelde e deliberada contra
Deus e à sua Palavra, no entanto, resultarão em juízo e morte espiritual, a
menos que confessemos e nos arrependamos deles mediante uma fé
renovada na expiação efetuada por Cristo (Hb 2.3; 10.26, 31; 2Pe 2.20, 21).
Queimar o animal oferecido em sacrifício, “fora do arraial” simbolizava a
remoção total do pecado. O Novo Testamento relaciona esse fato com o
padecimento de Jesus fora da porta (isto é, fora de Jerusalém), a fim de
santificar o seu povo por meio do seu próprio sangue (Jo 19.17, 18; Hb 13.10-
13). O cristão também é conclamado assim: “Saiamos, pois, a ele fora do
arraial” (isto é, deixando para trás os prazeres pecaminosos deste mundo), a
fim de buscar uma cidade celestial e de oferecer sacrifício de louvor e de
gratidão a Deus (Hb 13.13).

4.6.6. A oferta pela culpa

O sacrifício pela culpa era requerido quando alguém, de propósito ou não,


apoderava-se de propriedade alheia (cf. 5.14-6.7; Js 7.1; 22.20). Era
necessário trazer uma oferenda, juntamente com o valor da indenização pelo
dano causado, mais uma taxa de vinte e cinco por cento sobre o valor (v. 16;
6.5). Essa oferenda também era requerida quando alguém,
involuntariamente, violava qualquer dos mandamentos do Senhor (v. 17).

4.6.7. As festas solenes ao Senhor (Cap. 16, 23 e 25)

Os hebreus celebravam várias festas sagradas no decorrer do ano às quais


denominavam “santas convocações” (literalmente, “os tempos fixados de
reunir-se”). A palavra hebraica traduzida por “festa” tem dois significados:
“uma ocasião assinalada” e “festa”. Em regra geral eram ocasiões de um dia
ou mais de duração em que os israelitas suspendiam seus trabalhos a fim de
reunir-se jubilosamente com o Senhor. Ofereciam-se sacrifícios especiais
segundo o caráter da festa (Números 28, 29) e se tocavam as trombetas
enquanto eram apresentados os sacrifícios de holocausto e de paz. A maioria
das convocações relacionava-se com as atividades agrícolas e com os
acontecimentos históricos da nação hebraica. Foram instituídas como parte
do pacto do Sinai (Êxodo 23.14-19). Todos os varões israelitas eram
obrigados a ir a Jerusalém anualmente a fim de participar das três festas dos
peregrinos: Páscoa, Pentecostes e Tabernáculos. Tecnicamente falando,
nem todas as convocações santas eram festas, porém seis delas eram
ocasiões para alegrar-se e desfrutar das bênçãos divinas. Somente uma era
celebrada com tristeza. No Cristianismo também é assim. Grande parte da
vida em Cristo é jubilosa e a ordem apostólica é: “Regozijai-vos sempre no
Senhor” (Filipenses 4.4).
Pentateuco 69

4.6.7.1. Propósito das festas solenes

As festas davam aos israelitas a oportunidade de refletir sobre a bondade de


Deus. Algumas convocações coincidiam com as estações do ano agrícola e
assim lembravam aos hebreus que Deus lhes provia continuamente seu
sustento. Também lhes ofereciam a oportunidade de devolver a Deus uma
parte do que ele lhes havia dado. Outras das festas celebravam grandes
acontecimentos na história de Israel nos quais Deus interviera para livrar ou
sustentar a seu povo. Encontra-se a palavra “santo” dez vezes no capítulo 23,
ressaltando o propósito das festas. Também se destaca o número sagrado
“sete” que significa: “totalidade, culminação ou perfeição”. O sistema das
festas solenes constituía-se sobre o ciclo de sete: sétimo dia era de
descanso; sétimo ano também era de descanso; sétimo ano sabático era
seguido do ano de jubileu; sétimo mês era especialmente sagrado, com três
dias de festa.

4.6.7.2. A Páscoa

Desde que Israel partiu do Egito em cerca de 1445 a.C., o povo hebreu
(posteriormente chamado “judeus”) celebra a Páscoa todos os anos, na
primavera (em data aproximada da sexta-feira santa). Depois de os
descendentes de Abraão, Isaque e Jacó passarem mais de quatrocentos
anos de servidão no Egito, Deus decidiu libertá-los da escravidão. Suscitou
Moisés e o designou como o líder do êxodo (3.4).

Em obediência ao chamado de Deus, Moisés compareceu perante Faraó e


lhe transmitiu a ordem divina: “Deixa ir o meu povo.” Para conscientizar Faraó
da seriedade dessa mensagem da parte do Senhor, Moisés, mediante o
poder de Deus, invocou pragas como julgamentos contra o Egito. No decorrer
de várias dessas pragas, Faraó concordava em deixar o povo ir, mas, a
seguir, voltava atrás, uma vez a praga sustada. Soou a hora da décima e
derradeira praga, aquela que não deixaria aos egípcios nenhuma alternativa
senão a de lançar fora os israelitas. Deus mandou um anjo destruidor através
da terra do Egito para eliminar “todo primogênito... desde os homens até aos
animais” (12.12). Visto que os israelitas também habitavam no Egito, como
poderiam escapar do anjo destruidor? O Senhor emitiu uma ordem específica
ao seu povo; a obediência a essa ordem traria a proteção divina a cada
família dos hebreus, com seus respectivos primogênitos. Cada família tinha
de tomar um cordeiro macho de um ano de idade, sem defeito e sacrificá-lo
ao entardecer do dia quatorze do mês de Abibe; famílias menores podiam
repartir um único cordeiro entre si (12.4). Parte do sangue do cordeiro
sacrificado, os israelitas deviam aspergir nas duas ombreiras e na verga da
porta de cada casa. Quando o destruidor passasse por aquela terra, ele
passaria por cima daquelas casas que tivessem o sangue aspergido sobre
70

elas (daí o termo Páscoa, do hb. pesah, que significa “pular além da marca”,
“passar por cima”, ou “poupar”). Assim, pelo sangue do cordeiro morto, os
israelitas foram protegidos da condenação à morte executada contra todos os
primogênitos egípcios. Deus ordenou o sinal do sangue, não porque Ele não
tivesse outra forma de distinguir os israelitas dos egípcios, mas porque queria
ensinar ao seu povo a importância da obediência e da redenção pelo sangue,
preparando-o para o advento do “Cordeiro de Deus,” que séculos mais tarde
tiraria o pecado do mundo (Jo 1.29). Naquela noite específica, os israelitas
deviam estar vestidos e preparados para viajar (12.11). A ordem recebida era
para assar o cordeiro e não fervê-lo, e preparar ervas amargas e pães sem
fermento. Ao anoitecer, portanto, estariam prontos para a refeição ordenada e
para partir apressadamente, momento em que os egípcios iam se aproximar
e rogar que deixassem o país. Tudo aconteceu conforme o Senhor dissera
(12.29-36).

4.6.7.2.1. A Páscoa na história Israelita

A partir daquele momento da história, o povo de Deus ia celebrar a Páscoa


toda primavera, obedecendo as instruções divinas de que aquela celebração
seria “estatuto perpétuo” (12.14). Era, porém, um sacrifício comemorativo,
exceto o sacrifício inicial no Egito, que foi um sacrifício eficaz. Antes da
construção do templo, em cada Páscoa os israelitas reuniam-se segundo
suas famílias, sacrificavam um cordeiro, retiravam todo fermento de suas
casas e comiam ervas amargas. Mais importante: recontavam a história de
como seus ancestrais experimentaram o êxodo milagroso na terra do Egito e
sua libertação da escravidão ao Faraó. Assim, de geração em geração, o
povo hebreu relembrava a redenção divina e seu livramento do Egito (12.26).
Uma vez construído o templo, Deus ordenou que a celebração da Páscoa e o
sacrifício do cordeiro fossem realizados em Jerusalém (Dt 16.1-6). O Antigo
Testamento registra várias ocasiões em que uma Páscoa especialmente
relevante foi celebrada na cidade santa (2Cr 30.1-20; 35.1-19; 2Rs 23.21-23;
Ed 6.19-22). Nos tempos do Novo Testamento, os judeus observavam a
Páscoa da mesma maneira. O único incidente na vida de Jesus como
menino, que as Escrituras registram, foi quando seus pais o levaram a
Jerusalém, aos doze anos de idade, para a celebração da Páscoa (Lc 2.41-
50). Posteriormente, Jesus ia cada ano a Jerusalém para participar da
Páscoa (Jo 2.13). A última Ceia de que Jesus participou com os seus
discípulos em Jerusalém, pouco antes da cruz, foi uma refeição da Páscoa
(Mt 26.1, 2, 17-29). O próprio Jesus foi crucificado na Páscoa, como o
Cordeiro pascoal (1Co 5.7) que liberta do pecado e da morte todos aqueles
que nEle crêem. Os judeus hoje continuam celebrando a Páscoa, embora seu
modo de celebrá-la tenha mudado um pouco. Posto que já não há em
Jerusalém um templo para se sacrificar o cordeiro em obediência a Dt 16.1-6,
a festa judaica contemporânea (chamada Seder) já não é celebrada com o
Pentateuco 71

cordeiro assado. Mas as famílias ainda se reúnem para a solenidade.


Retiram-se cerimonialmente das casas judaicas, e o pai da família narra toda
a história do êxodo.

4.6.7.2.2. A Páscoa e Jesus Cristo

Para os cristãos, a Páscoa contém rico simbolismo profético a falar de Jesus


Cristo. O Novo Testamento ensina explicitamente que as festas judaicas “são
sombras das coisas futuras” (Cl 2.16,17; Hb 10.1), isto é, a redenção pelo
sangue de Jesus Cristo. Note os seguintes itens em Êxodo 12, que nos
fazem lembrar do nosso Salvador e do seu propósito para conosco. O âmago
do evento da Páscoa era a graça salvadora de Deus. Deus tirou os israelitas
do Egito, não porque eles eram um povo merecedor, mas porque Ele os
amou e porque Ele era fiel ao seu concerto (Dt 7.7-10). Semelhantemente, a
salvação que recebemos de Cristo nos vem através da maravilhosa graça de
Deus (Ef 2.8-10; Tt 3.4, 5). O propósito do sangue aplicado às vergas das
portas era salvar da morte o filho primogênito de cada família; esse fato
prenuncia o derramamento do sangue de Cristo na cruz a fim de nos salvar
da morte e da ira de Deus contra o pecado (12.13, 23, 27; Hb 9.22). O
cordeiro pascoal era um “sacrifício” (12.27) a servir de substituto do
primogênito; isto prenuncia a morte de Cristo em substituição à morte do
crente (Rm 3.25). Paulo expressamente chama Cristo nosso Cordeiro da
Páscoa, que foi sacrificado por nós (1Co 5.7). O cordeiro macho separado
para morte tinha de ser “sem mácula” (12.5); esse fato prefigura a
impecabilidade de Cristo, o perfeito Filho de Deus (Jo 8.46; Hb 4.15).
Alimentar-se do cordeiro representava a identificação da comunidade israelita
com a morte do cordeiro, morte esta que os salvou da morte física (1Co
10.16,17; 11.24-26). Assim como no caso da Páscoa, somente o sacrifício
inicial, a morte dEle na cruz, foi um sacrifício eficaz. Realizamos em
continuação a Ceia do Senhor como um memorial, “em memória” dEle (1Co
11.24). A aspersão do sangue nas vergas das portas era efetuada com fé
obediente (12.28; Hb 11.28); essa obediência pela fé resultou, então, em
redenção mediante o sangue (12.7, 13). A salvação mediante o sangue de
Cristo se obtém somente através da “obediência da fé” (Rm 1.5; 16.26). O
cordeiro da Páscoa devia ser comido juntamente com pães asmos (12.8).
Uma vez que na Bíblia o fermento normalmente simboliza o pecado e a
corrupção (13.7; Mt 16.6; Mc 8.15), esses pães asmos representavam a
separação entre os israelitas redimidos e o Egito, isto é, o mundo e o pecado
(12.15). Semelhantemente, o povo redimido por Deus é chamado para
separar-se do mundo pecaminoso e dedicar-se exclusivamente a Deus.
72

4.6.7.3. A festa dos pães asmos (Êx 12.15-20)

Os versículos 15-20 descrevem a Festa dos Pães Asmos, que Israel devia
continuar a observar após entrar em Canaã. Essa festa representava a
consagração do povo de Deus, tendo em vista a sua redenção do Egito.
Nesse contexto, fermento ou levedura, um agente que causa fermentação,
simboliza o pecado, e os pães asmos (sem fermento) simbolizam o
arrependimento, o repúdio do pecado e a dedicação a Deus (13.7). Todo
fermento (isto é, a corrupção e o pecado) tinha de ser removido das casas
dos israelitas. Isso subentendia que suas vidas e seus lares, como crentes,
deviam ser consagrados a Deus (vv. 15,16), pelo que Ele fizera em prol deles
(13.8,9). O Novo Testamento estabelece um vínculo entre essa Festa e o ato
de o crente em Jesus expurgar a maldade e malícia e viver em sinceridade e
verdade (1Co 5.6-8). Persistir no pecado, desprezando a fé em Deus
resultava em julgamento divino, isto é, em ser eliminado do concerto com
Deus, das promessas e da salvação. A refeição da Páscoa assinalava o início
da Festa dos Pães Asmos (vv. 6, 18), que prenunciava a importância da fé no
Cordeiro sacrifical e a obediência a Ele. Os fiéis deviam sinceramente
arrepender-se do pecado e viver para Deus, em humilde gratidão.

4.6.7.4. Das primícias

A Festa das Primícias (vv. 10-14), em reconhecimento do fato que o fruto da


terra provinha do Senhor, era celebrada em conjunto com a Festa dos Pães
Asmos. As primícias deviam ser consagradas ao Senhor. Esse fato prenuncia
a dedicação do crente do Novo Testamento, que deve consagrar ao Senhor a
totalidade da sua vida. Os cristãos são as primícias da obra redentora de
Cristo (Tg 1.18; Ap 14.4).

4.6.7.5. Sete semanas (Lv 23.15)

Esta festa (Dt 16.10), também chamada Festa de Pentecostes, era celebrada
no fim da colheita do trigo, cinqüenta dias (“Pentecostes” significa
“qüinquagésimo”) depois da Festa das Primícias (v. 16). Nesse dia, o povo de
Deus rendia-lhe graças pelas suas abundantes dádivas de alimento e por
tudo quanto os sustinha. Foi no Dia de Pentecostes que Deus derramou o
Espírito Santo sobre os discípulos de Cristo (At 2.1-4).

4.6.7.6. A festa das trombetas (Lv 23.24)

“Memória de jubilação” é literalmente “toque de trombetas”. A Festa das


Trombetas era celebrada no primeiro dia do sétimo mês, provavelmente
lembrando que o Dia da Expiação se aproximava (vv. 26-32), e como
Pentateuco 73

preparação para ele, Deus queria que Israel pensasse nas coisas espirituais,
e especialmente no seu relacionamento com Ele, segundo o concerto.

4.6.7.7. A festa dos tabernáculos (Lv 23.34-43)

A Festa dos Tabernáculos era assim chamada porque durante a mesma, o


povo deixava suas casas e morava em cabanas ou tendas temporárias feitas
de ramos de árvores (vv. 40-42). Esse ato lembrava ao povo a bondade de
Deus para com ele durante seus quarenta anos no deserto, sem habitação
permanente. Também era chamada Festa da Colheita, porque ela
comemorava o término da colheita dos frutos e nozes do verão.
74

Capítulo 5

Livro de Números
5.1. Data e Momento do Livro
A data da composição do livro pode situar-se no período após a peregrinação
no deserto (que se seguiu ao êxodo) e antes da morte de Moisés. O livro
começa com os preparativos para a marcha através do deserto, relata as
experiências na jornada, descreve a falta de fé que levou os israelitas da
geração do êxodo a recusarem a conquista da Terra Prometida, relata os
quarenta anos de espera até que uma geração inteira morresse, e termina
com os preparativos para entrar em Canaã. Em vista do seu conteúdo,
Números foi, evidentemente, escrito como uma admoestação para que a
geração de israelitas nascidos no deserto perseverasse na fé e na
obediência, as quais faltaram aos pais. Para as gerações futuras do povo de
Deus, o livro teria uma mensagem semelhante.

Na Bíblia Hebraica, era costume designar cada um dos cinco livros de Moisés
pela palavra com a qual o obra iniciava. Para Números, essa prática foi
modificada pela adoção da quinta palavra como título. Essa palavra, que
traduzida significa “no deserto”, é uma descrição pertinente do conteúdo do
livro, uma vez que este descreve a experiência da nação durante os quarenta
anos no deserto.

Quando a Bíblia foi traduzida para o grego, seus livros receberam nomes
gregos. No caso de Números, a tradução grega abandonou o excelente nome
hebraico e empregou um termo grego significando “números” (arithmoi) que,
na realidade, descreve somente alguns dos seus capítulos. Esse título,
menos apropriado, foi traduzido para o português.

5.2. A autoria do livro


Junto com o restante do Pentateuco, Números tem sido tradicionalmente
atribuído a Moisés. Essa conclusão baseia-se no caráter do Pentateuco como
uma obra única e no claro testemunho tanto do Antigo como do Novo
Testamento, os quais atribuem esses livros a Moisés. Isto é também
fundamentado pela evidente Antigüidade do material contido no Pentateuco.
Historicamente a autoria de Números é atribuída a Moisés pelo Pentateuco
judaico e o Samaritano; pela tradição judaica; por Jesus e pelos escritores do
Pentateuco 75

Novo Testamento; pelos escritores cristãos antigos; pelos estudiosos


conservadores contemporâneos; e pelas evidências internas do próprio livro
(33.1, 2). Moisés, sem dúvida, escreveu um diário durante as peregrinações
no deserto, e mais tarde dispôs o conteúdo de Números em forma narrativa,
pouco antes de sua morte (1405 a.C.). A prática de Moisés, de referir-se a si
mesmo na terceira pessoa, era comum nos escritos antigos, e em nada afeta
a credibilidade da sua autoria.

5.3. Características principais de Números


Dois temas a graciosa fidelidade e o poder soberano do Deus da aliança com
Israel são vitais para a mensagem de Números. Os eventos de Números
retratam vividamente a fidelidade do Deus da aliança, apesar dos erros de
uma humanidade pecaminosa. Deus dirige o seu povo enquanto preparam-se
para a sua jornada pelo deserto, conforta-os nas dificuldades, lida com os
seus temores e fracassos, e os repreende ou pune quando necessário.

Este retrato da fidelidade de Deus para com a aliança contrasta de forma


aguda com a reiterada descrição que o livro faz da infidelidade humana, o
fracasso completo da humanidade que é incapaz de alcançar os padrões de
Deus por sua própria força. Os fracassos humanos são claramente descritos
e contrastados com as medidas sábias do Deus da aliança que é sempre fiel.
Mesmo Moisés, o maior de todos os líderes, pecou e não lhe foi permitido
entrar na Terra Prometida, embora a tivesse visto de longe (20.9-11; 27.12-
141). Isso mostra que mesmo as melhores pessoas ainda são pecadoras,
sendo salvas unicamente através dos méritos de Cristo - a salvação vem
somente através da graça de Deus.

Um segundo grande tema de Números é o poder soberano de Deus na


história. Apesar dos obstáculos interpostos, dos grandes perigos e dos
fracassos do povo, Deus os conduz com segurança através do deserto. O
seu poder soberano é suficiente diante de toda e qualquer eventualidade.

Através de toda a narrativa, Números apresenta o progresso do povo de


Deus na redenção, prenunciando Cristo, que é a verdadeira Água que torna
possível a vida, e a verdadeira Rocha que oferece segurança. A obra de
Cristo é antecipada pela tipologia da novilha vermelha (19.2-10; Hb 9.13), da
pedra que forneceu água (20.11; 1Co 10.4) e da serpente levantada que, da
morte, trouxe vida (21.4-9; Jo 3.14-15). A profecia específica das conquistas
de Davi, aquele que havia de vir e que derrotaria os inimigos de Israel (24.15-
19), prenuncia a hora em que Cristo, que é o cumprimento final da aliança
de Davi, será universalmente reconhecido como o maior de todos os reis.
76

5.4. Números e seu cumprimento no Novo Testamento


As murmurações e a incredulidade de Israel são mencionadas como
advertências aos crentes do novo concerto (1Co 10.5-11; Hb 3.16-4.6). A
gravidade do pecado de Balaão (22-24) e da rebelião de Coré (cap. 16)
também são mencionados (2Pe 2.15,16; Jd 11; Ap 2.14). Jesus faz referência
à serpente de bronze como uma alusão a Ele mesmo ao ser levantado na
cruz, de modo que todos os que nEle crêem não pereçam mas tenham a vida
eterna (Jo 3.14-16; ver Nm 21.7-9). Além disso, Jesus Cristo é comparado
com a rocha do deserto, da qual Israel bebeu (1Co 10.4) e com o maná
celestial que alimentou aquele povo (Jo 6.31-33).

5.5. Tipos de ilustração de Jesus


Esse livro é rico em ilustrações e tipos que se referem a Cristo e à
experiência cristã, estando registrado para nossa instrução e advertência
(1Co 10.1-11). Os mais importantes são os seguintes:

5.5.1. O Nazireu

É uma ilustração de Cristo como Santo, inofensivo e separado dos


pecadores. Não bebia nenhum tipo de vinho, que era um símbolo de
impureza e alegria natural. Nisso Jesus é prefigurado como puro e privado da
alegria comum. Seu cabelo não deveria ser cortado. Era um adorno de uma
mulher. Isso mostrava que ele não dependeria de força humana e seria
separado dos outros e do pecado.

5.5.2. A Fita Azul

Bem sabe o Senhor que neste mundo de Satanás é fácil esquecerem-se as


criaturas dos mandamentos do Criador. Para isso determinou o Senhor que
os israelitas usassem nas franjas dos vestidos um cordão azul, para que
mais facilmente se lembrassem dos preceitos do seu Senhor. É sempre bom
procurarmos novos processos de lembrarmos os nossos deveres para com
Deus, modificando-os sempre que seja necessário, a fim de que acima de
tudo se cumpra a vontade do Senhor.

5.5.3. A Vara Florescente de Arão

Ilustra a ressurreição de Jesus. Cada cabeça de tribo depositou uma vara


morta e Deus fez com que a de Arão vivesse. Isso sugere como Cristo, nosso
sacerdote, está vivo. Os fundadores de todas as outras religiões estão
mortos: Cristo também morreu, mas Deus O ressuscitou e O aceitou como
sumo sacerdote.
Pentateuco 77

5.5.4. A Novilha Vermelha

Aqui está o símbolo de Cristo como a base da nossa purificação. O abate


representa a morte de Cristo; o aspergir do sangue sete vezes aponta para o
completo e único cancelamento dos nossos pecados; a conservação das
cinzas é um memorial do sacrifício, a purificação através da aspersão de
cinzas misturadas com água, ilustra a obra do Espírito Santo e a palavra de
Deus, pela qual o pecador é purificado através do sacrifício de Jesus.

5.5.5. As Serpentes Abrasadoras

Mostram como Cristo na cruz salva todo aquele que confia nele.

5.5.6. As Cidades de Refúgio

Ilustram como Cristo nos protege do julgamento.

5.6. Estudos no Livro de Números


5.6.1. O recenseamento militar (1.1-54)

É este capítulo que rigorosamente origina o título grego e português do livro


inteiro, por descrever o recenseamento militar dos israelitas no monte Sinai,
que considerava válidos para a guerra todos os homens com mais de vinte
anos. Teve esta medida como finalidade determinar as possibilidades de
defesa do Povo Eleito, e por isso foi logo tomada no início da jornada.

Assim no deserto desta vida deve o Cristão começar por examinar


cuidadosamente os seus recursos espirituais, preparando-se assim para
todas as eventualidades. Isto para não se pensar apenas que a fé é
suficiente, embora seja vital e indispensável, não só para a salvação, mas
ainda para todas e cada uma das fases da vida cristã. É certo que Deus, para
as maiores empresas, pode escolher aqueles que em nada mais se fundam a
não ser na sua fé, embora privados dos necessários recursos e até de
inteligência, constituindo uma exceção à regra nos próprios arcanos de Deus.
É que só nEle devemos procurar a força e a coragem para as nossas
empresas; só dEle esperar o êxito das mesmas; só com Ele determinar com
exatidão os recursos de que dispomos e só por Ele empregá-los para que
tudo redunde em proveito para nós e glória para Ele. Lembre-se esta mesma
verdade apresentada por Cristo na parábola dos talentos (Mt 25.14-30; Lc
19.12-27).

Foi Davi censurado e severamente castigado por ter feito um recenseamento


(2Sm 24 e 1Cr 21). À primeira vista, parece contradizer o presente capítulo
78

de Números, sobretudo se repararmos que o recenseamento de Davi foi


também de caráter militar, como este (2Sm 24.9). Apenas diferem na
finalidade. Em Números determina o Senhor que se procurem saber dos
recursos do povo, apenas que sejam executadas as Suas leis, enquanto que
Davi recorre ao mesmo sistema, mas com o objetivo duma guerra agressiva,
depois de já ter libertado o Povo de Deus. Neste caso foi o orgulho da glória e
da força que pretendia levar a cabo uma conquista sem qualquer justificação.
É, no entanto, difícil de determinar e definir exatamente cada um dos casos.
O essencial é obedecer às leis divinas, que nos incitam a ponderarmos os
nossos recursos e utilizá-los somente na causa de Deus, pondo de parte toda
e qualquer ponta de orgulho que vise apenas aos nossos interesses.

5.6.1.2. Deus Ordena o Recenseamento (1.1-3)

Tenda da congregação. A palavra hebraica moedh não significa propriamente


“grupo de pessoas” ou “multidão”, mas antes o encontro de Deus com Moisés
ou de Deus com o povo. No primeiro dia do mês segundo, no segundo ano.
Antes de mais note-se que esta data é apenas um mês após a montagem do
Tabernáculo (Êx 40.17), que ocorreu precisamente um ano depois da partida
do Egito. Vinte dias mais tarde começava o povo a abandonar o monte Sinai
(10.11). Os primeiros dez capítulos narram muitos dos acontecimentos
passados durante este período. Parece impossível que Moisés e Arão,
apenas auxiliados por doze sacerdotes, tenham procedido a este
recenseamento em tão pouco espaço de tempo. Cerca de nove meses antes
(Êx 19.1; 30.11 e segs.; 38.26) ordenara Jeová o recenseamento do povo,
procedendo-se a uma coleta de meio ciclo por cabeça. O total era
precisamente idêntico ao do recenseamento agora feito - 603.550, levando-
nos a supor que Moisés tenha utilizado a estatística anterior, que começou
uns meses antes, para dar os resultados completos.

5.6.1.3. A Seleção dos Chefes (1.4-16)

De cada tribo foi escolhido um chefe dentre os mais destacados, para tomar
parte nos trabalhos do recenseamento. Apesar de “chamados”, não quer
dizer que já antes não desempenhassem papel de relevo na respectiva tribo.
Quanto à relação das tribos, não se seguiu a mesma ordem que no Gênesis
(Gn 29.32-30.24; 35.16-18). À exceção de Levi, os filhos de Lia ocupam o
primeiro lugar, seguindo-se os descendentes de Raquel e, por último, os
quatro filhos das duas concubinas. Naassom, filho de Aminadabe e chefe da
tribo de Judá (7), foi um dos antepassados de Cristo (Mt 1.4; Lc 3.32-33).
Pentateuco 79

5.6.1.4. Resultados do Recenseamento. (1.17-46)

É interessante observar a desproporção numérica das diferentes tribos, cuja


ordem é idêntica à dos vers. 4-16, salvo Naftali e Aser, que mudaram de lugar
e Gade que passou a ser nomeada logo a seguir a Simeão, quer dizer, em
terceiro lugar, talvez por se encontrar muito perto de Rúben e Simeão no
arraial (2.10-16).

Muitos leitores encontram certa dificuldade em compreender a grande


população de Israel durante a travessia do deserto. Mas se considerarmos
que as famílias eram então numerosas e que viveram largos anos no Egito
antes da opressão dos faraós, chegar-se-á à conclusão de que tais
estatísticas não devem ser exageradas, e que, aliás, não podemos deixar de
ver neste acontecimento o manifesto poder de Deus sem o qual a travessia
do deserto dum povo tão grande teria sido impossível (Dt 29.5). Houve ainda
quem quisesse evitar dificuldades tomando a palavra “mil” por “família” ou
“clã”. Mas como explicar os números exatos que também incluem centenas
tais como 45.650 (25) na tribo de Gade, ou 603.550 soldados aptos para a
batalha (46)?

Não é fácil preservar devidamente os algarismos em documentos antigos,


que se copiaram por diversas vezes de abreviaturas quase ininteligíveis e,
portanto, susceptíveis de dúvidas e incompreensões. Mas, por outro lado,
sabemos que é relativamente pequeno o número de casos da Bíblia que
possam ser problemáticos, tratando-se de algarismos, evidentemente. Dos
primeiros quatro capítulos do livro de Números há apenas a registrar uma
possibilidade de erro na transmissão, derivado à perda duma letra no original
hebraico, como mais adiante se verá.

5.6.1.5. Os Levitas não são Contados (1.47-54)

Não foi incluída a tribo de Levi no recenseamento militar (49), por lhe ter sido
confiada a missão de conduzir e cuidar do Tabernáculo (50-51), e a ele
andarem ligados por compromissos de caráter religioso (53), não tendo lugar
indicado de acampamento, mas sempre deviam assentar perto do
Tabernáculo.

5.7. A Lei dos ciúmes do marido contra sua mulher (5.11-31)


5.7.1. A causa dos ciúmes (5.11-15)

São duas as condições que implicam este gênero de pecado, tão prejudicial à
paz e à harmonia do acampamento: ou a mulher foi infiel, mas sem
testemunhas, e o marido se encheu de ciúmes (12-14); ou então a mulher é
80

inocente e o marido continua ciumento sem razão (14). É assunto que não se
resolve com facilidade, mas nem por isso deixa de ter solução. Quer culpada,
quer inocente, a mulher é objeto de ciúmes e o resultado – a suspeita e a
incompreensão – pode degenerar em ultraje à família e até à comunidade.

5.7.2. Provas do crime (5.16-31)

Seguem-se cuidadosas instruções acerca do exame a que se submeterá a


mulher em presença do sacerdote, a fim de avaliar a culpabilidade da ré e pôr
termo aos ciúmes e às suspeitas. Hoje talvez pareçam estranhas estas
medidas, por se pensar que causas físicas produzem efeitos físicos sem se
atender à questão moral ou espiritual. Mas, não se espera que haja uma
diferença física da mulher infiel necessariamente, da que tem ficado fiel ao
marido. Há quem afirme que este processo constituía uma prática primitiva
comum aos povos vizinhos de Israel de origem animista. No entanto, não há
evidência para suportar tal afirmação. É verdade que na Antigüidade alguns
admitiam a intervenção da divindade para revelar o criminoso ou o inocente
acusados de infração grave à lei. Mas o que não encontramos nesses povos
vizinhos é um cerimonial com semelhanças significativas às que nos
apresenta o livro de Números. O mais aproximado, no entanto, seria a prática
seguida em Babilônia e chegada até nós através do famoso Código de
Hamurabi, o que é muito diferente de tudo a esse respeito na Bíblia.

Deve-se notar que não se encontra indicação de que esta prática foi seguida
após a entrada na Terra Prometida. Nm 5 alude especificamente à
purificação do “arraial” (2-3) e não existe qualquer referência a tal prática nas
últimas partes da Bíblia ou em qualquer outro livro que tenha chegado até
nós antes da destruição de Jerusalém no ano 70 da nossa era. Passado um
século após esse acontecimento embrenharam-se os rabis nas minúcias da
Lei, especulando todos os aspectos da antiga vida de Israel. Assim se admite
que àquele costume acrescentassem outros completamente desconhecidos
ao livro de Números, escolhendo, por exemplo, um determinado lugar no
Templo onde diziam que esse rito era administrado e que foi abolido no
primeiro século depois de Cristo por iniciativa dum rabi. Mesmo que assim
fosse, todavia, nada provaria acerca do longo período desde Josué a Davi, a
Zedequias, e durante os séculos que vão desde Esdras aos Macabeus. O
mais admissível é considerar aquela prática à luz do contexto, como
determinação especial para ser unicamente utilizada durante a travessia do
deserto. O nosso capítulo diz-nos que Deus prometera realizar um milagre
durante aquele breve período, e não se fala de qualquer outro gênero de
“prova” como processo judicial noutro livro da história antiga de Israel.

Para melhor compreendermos a razão da atitude tomada por Deus nesta


altura, convém examinarmos as circunstâncias em que surgiu na história do
Pentateuco 81

Povo Israelita. O homem afastara Deus dos seus pensamentos, procurando


até esquecê-lo (Rm 1.21-28). O Senhor escolheu então um homem – Abraão
– que trouxe de Ur dos Caldeus, para através dele e de seus descendentes,
preparar a vinda do Seu Divino Filho, que a todos os homens traria a
salvação. As manifestações de Deus limitavam-se, pois, a esse povo que não
podia deixar de ter uma assistência especial para a segurança da
continuação do testemunho de Deus. É natural, então, que este venha a ser
um dos períodos entre poucos em que Deus operou muitos milagres.

Situação idêntica se verificou nos primeiros dias de vida da Igreja Cristã,


onde também milagres sem conta impediram Satanás de destruir o
testemunho de Deus, de tão diminutas proporções então. Mas, à medida que
se desenvolveu essa admirável instituição, e, portanto, diminuiu a
necessidade dos milagres, já não era fácil destruí-la.

Há muito quem julgue que a Bíblia só contém milagres. É falso. São mesmo
freqüentes os capítulos em que nem a um só se faz alusão. Comparem-se,
por exemplo, os milagres tão freqüentes no deserto e durante a conquista de
Canaã e tão raros no tempo de Abraão e nos reinados de Davi e Salomão.

É que a jornada através do deserto foi um período de crise em que Deus


julgou por bem manifestar a Sua Onipotência entre o povo de Israel, não
causando surpresa as medidas tomadas, pelos distúrbios de caráter emotivo
e moral que podiam vir a originar no Acampamento, como resultado dos
ciúmes com ou sem fundamento.

Mas não é impossível que aquela “prova” não exigisse naquela altura uma
intervenção divina para cada caso. Só atualmente o estudo da medicina
começou a dirigir a sua atenção para a influência das atitudes mentais e
emotivas no corpo humano. Certas doenças são hoje atribuídas, em princípio,
à força ou tensão das emoções. Imagine-se a situação duma israelita naquela
altura. Ela vira as maravilhas de Deus no Egito e no deserto. Ela teve
conhecimento direto do poder divino, que de tantos modos se manifestou.
Conduzida à presença do representante de Deus e em face duma vibrante e
solene exortação, não admirava que a bebida fosse acompanhada na mulher
culpada por uma sensação dos castigos descritos na maldição. Por outro
lado, a inocente, confiada na justiça do Deus que tudo vê, podia em paz e
tranqüilidade levar aos lábios o cálice da acusação. Em conclusão, seja-nos
lícito afirmar que, relacionado com esta “prova”, a divina Providência nunca
faltava com a Sua intervenção miraculosa, sempre que fosse necessário.
82

5.8. O Voto dos Nazireus (6.1-21)


O nazarita ou nazireu, do hebraico nazir distinguia-se do nazareno, do
hebraico também neser, aplicado a Cristo em Mt 2.23. Embora parecidas as
palavras nas línguas modernas, diferem bastante no hebraico por serem
diferentes as consoantes médias. Assim, por nazireu entendia-se todo aquele
que se separava e distinguia por qualquer modo invulgar para se dedicar a
Deus, fazendo um voto especial, quase sempre por determinado tempo. Por
isso o radical hebraico implica em separação e consagração, como podemos
ver em Deuteronômio 33.16 a propósito de José, que “se separou” de seus
irmãos. A maneira como a questão se apresenta leva-nos a supor que se
trata duma instituição já existente, uma vez que se acentua a diferença entre
nazireus e não nazireus. Quanto à duração do voto, não sabemos de
qualquer israelita que se tenha obrigado a ele durante a vida inteira. O caso
de Sansão (Jz 13-16) é diferente, por não se tratar dum voto propriamente
dito, mas duma obrigação que lhe foi imposta ainda antes de nascer e que o
vinculava para sempre (Jz 13.5,7,13-14). Mas não era este o caso da maioria
dos autênticos nazireus, embora certos aspectos fossem semelhantes. O
caso de Samuel e João Batista, por exemplo, encontram-se no mesmo caso
de Sansão por seus pais os consagrarem a Deus antes de nascerem (1Sm
1.11 e Lc 1.15).

5.8.1. Condições para o Voto do Nazireu (6.1-8)

O vers. 2 define o voto do nazireu, que o homem ou a mulher podem fazer


voluntariamente, separando-se por determinado tempo, a fim de se
consagrarem ao serviço militar do Senhor. São em número de três as
obrigações: abster-se de vinho e de toda a espécie de bebidas preparadas
com uvas (mishrah, traduzido beberagem, quer dizer simplesmente “sumo”);
não cortar o cabelo, e evitar o contacto com corpos mortos. Neste último
aspecto tem um padrão mais alto do que o sacerdote, mas ficaria a
comparar-se ao Sumo Sacerdote (cfr. Lv 21.1-3,10-11). Nem o amor da
família o levaria a faltar a tal obrigação. Não é que fosse pecado tocar nos
cadáveres. Em certos casos mesmo era um sinal de respeito pois havia entre
os judeus quem pensasse que tinha feito uma coisa santa em tocar num
cadáver para dar a alguém uma sepultura decente. Foi este princípio que
originou o livro apócrifo de Tobias. Mas ao nazireu exigia-se-lhe que de livre
vontade se abstivesse desta forma de impureza, mesmo que se tratasse de
membros de sua família. Enquanto separado e a Deus consagrado, devia
permanecer santo e puro para com dignidade se dedicar ao Culto do Senhor.
Pentateuco 83

5.8.2. Penas destinadas às infrações involuntárias (6.9-12)

Não se fala da infração às duas primeiras obrigações, de que falamos, por


constituírem sempre um ato voluntário e serem, portanto, inadmissíveis. A
possibilidade de alguém morrer junto dum nazireu é que o tornaria impuro
legalmente, mesmo contra a sua vontade. Neste caso ficaria sujeito às
mesmas prescrições que tornavam impuro qualquer israelita (Nm 19) e, além
disso, ao sétimo dia cortaria o cabelo e iria ao Santuário oferecer duas rolas
ou dois pombinhos para sua purificação (Lv 15.14) e, como expiação da
culpa, um cordeiro. O pior era o tempo do seu voto que seria descontado,
tendo de recomeçar, como se nada houvesse. Esta lei parece-nos demasiado
severa para quem não cometia qualquer erro voluntariamente. Mas a
santidade de Deus exige também que sejam santos todos os que se dedicam
ao Seu serviço, de forma a evitarem toda e qualquer espécie de pecado ou
impureza que os possa macular. Purifiquemo-nos, pois, da melhor maneira
para que no serviço do Senhor tudo seja puro e santo.

5.8.3. Como finda o voto do Nazireu (6.13-21)

Através do vers. 13 fácil é compreender-se que o voto do nazireu terminava


após um determinado período, seguido duma série de cerimônias que davam
a entender quem era ou não nazireu. Começavam à porta da tenda da
congregação e exigiam as oferendas descritas nos vers. 14-15. Após o ritual
a que presidia o sacerdote (16-17), ainda à porta da mesma tenda o nazireu
cortava o cabelo, que era queimado no próprio fogo do sacrifício. Nada podia
guardar como prova da sua consagração anterior. Novas cerimônias levadas
a cabo pelo sacerdote (19-20) indicavam que o nazireu estava dispensado
de todas as restrições que tinha imposto a si próprio.

O vers. 21 conclui numa espécie de título, aludindo ao sacrifício do nazireu, e


frisando que esse sacrifício deve exceder o que a lei normal prescreve. É o
que dá a entender a expressão idiomática “além do que alcançar a sua mão”.

5.9. A Coluna de Nuvem e de Fogo (9.15-23)


Como o início da nova jornada se aproxima, mais e mais se faz sentir a
liderança divina do povo escolhido. Quando foi montado o Tabernáculo, um
mês antes dos acontecimentos descritos no primeiro versículo do livro de
Números (Êx 40.1), sabemos que ele foi envolvido por uma coluna de nuvem
(Êx 40.34). Agora pouco mais se acrescenta. Apenas se insiste na proteção
divina, à medida que a viagem se vai tornando uma realidade. Os fatos
primordiais das nossas relações com Deus, que é o verdadeiro Guia da
nossa jornada através do deserto deste mundo, precisam de ser tomados em
conta, particularmente nos casos difíceis da vida. Se em Deus fixarmos
84

atentamente os olhos da alma, muitas das incertezas que nos atormentam,


automaticamente desaparecerão.

Os fatos narrados em Êx 40 e Nm 9 não eram desconhecidos a quando da


montagem do Tabernáculo, pois logo desde a partida do Egito que o Senhor
velava pelo Seu Povo (Êx 13.21-22).

Após a leitura destas páginas, quase poderíamos concluir que Moisés e o


povo não faziam uso das suas faculdades mentais, deixando-se guiar
cegamente por Deus, que tudo resolvia. Mas é evidente que tal conclusão é
contrária à doutrina geral da Bíblia e à experiência de cada um de nós. Aquilo
que o texto sagrado pretende realçar é o aspecto da fé, sem dúvida
primordial nas nossas relações com Deus. Realmente, sem a mão
orientadora de Deus, é impossível esperar o êxito desejado na dura travessia
do deserto da vida. Mas Deus não quer que sejamos autômatos,
inconscientes e comandados por vontade alheia. Não! O que Deus pretende
de nós é que saibamos usar da inteligência que Ele nos deu, e que O
sigamos por amor. A vida terrena é um período de preparação intensa, em
que temos tanto a aprender das lições do Divino Mestre!

O final do capítulo ensina-nos a não tomarmos posições extremas. Se


bastasse olhar para a nuvem, não haveria necessidade dum método de
anunciarem os chefes os acontecimentos do arraial, tal como nos descreve
10.1-10. No capítulo 10.29-32 vemos Moisés insistindo com o cunhado,
conhecedor da vida do deserto, para ficar com o povo e servir-se da sua
experiência para lhe indicar os melhores locais para o acampamento. Em Nm
13 o Senhor determina que se enviem espiões para investigar a terra de
Canaã. Quando Josué planeou o ataque a Jericó, procurou informar-se
primeiramente das possibilidades de defesa da cidade através de espiões.
Tudo isto por quê? Apenas porque é vontade de Deus que o Seu Povo se
sirva dos meios vulgares de previsão do futuro, para poder agir com
prudência e sagacidade. Repare-se como o próprio Jesus Cristo frisou este
aspecto em Lc 14.28-32. É ainda vontade de Deus que se utilizem todos os
meios ao alcance das faculdades intelectuais do homem, mas que nunca se
esqueça a superior orientação de Deus no Seu controle e providência.

5.10. A Revolta de Coré, Datã e Abirã (16.1-50)


O presente capítulo apresenta uma série complicada de acontecimentos, que
envolvem variadíssimos pormenores.

Notamos dois grupos distintos que se aliam contra Moisés e Arão. Um deles,
chefiado por Coré, constava principalmente de levitas, ofendidos com a
nomeação da família de Arão para o cargo altíssimo do Sacerdócio.
Pentateuco 85

O outro grupo, com Datã e Abirã à frente, achava-se com direito à chefia do
povo escolhido no lugar de Moisés, por serem os principais da tribo que
descendia do filho primogênito de Jacó. Assim, a insurreição contra a
autoridade eclesiástica associa-se a uma outra, contra a autoridade política,
numa íntima cooperação. Há diferenças notáveis entre a atitude de cada um
dos grupos; de certo modo, essas diferenças são tratadas separadamente,
embora complexas e por vezes de difícil interpretação. Examinemo-las tanto
quanto possível.

Em princípio, analisadas as circunstâncias atuantes de ambos movimentos,


dá-nos a impressão que o capítulo é baseado em duas fontes completamente
distintas. Não é porém assim, porque embora distintos os movimentos, é uma
só a série de acontecimentos; portanto, não pode provar-se que sejam
distintas as fontes. De resto, nem contradições se encontram, como se
inventaram para a narração dos espias, conforme vimos em Nm 13.

A objeção dos críticos baseia-se no fato de que em Dt 11.6 se faz referência


a Datã e Abirã, sem qualquer alusão a Coré, ao passo que em Nm 27.3
apenas se fala em Core sem mencionar Datã e Abirã. Considerem-se, no
entanto, os seguintes pontos:

Primeiramente, em Dt 11.6 Moisés chama a atenção do povo para o fato de


terem visto pessoalmente a terra abrir-se e engolir Datã e Abirã. Não havia
razão para aludir a Coré uma vez que não foi engolido pela terra, mas teve
um gênero de morte completamente diferente.

Em segundo lugar, em Nm 27.3 as filhas de Zelofeade afirmam que seu pai


não participou da revolta chefiada por Coré; sendo este um dos cabecilhas da
rebelião, não havia necessidade de fazer referência aos outros.

Em terceiro lugar, sabe-se que não são estes os únicos exemplos de alusão
a tal revolta. Em Nm 26.9-11 Coré, Datã e Abirã são todos mencionados. Cfr.
Sl 106.16-18, onde se descrevem os diferentes aspectos civis e eclesiásticos
da rebelião.

Finalmente, nas obras tão recentes, como as do primeiro século do


Cristianismo, reparamos que as duas fases da revolta são apresentadas
separadamente, como em Jd 11, que só fala em Coré, e Macabeus 2.17, que
apenas alude a Datã e Abirã. Mesmo que fossem verdadeiras as objeções da
crítica, nesta altura devia conservar-se a narrativa na sua forma atual durante
muitos séculos, sem que alguém se lembrasse de que na origem se baseava
em duas fontes distintas. Por isso Judas e o autor dos Macabeus aludem
apenas a um dos dois movimentos implicados na revolta. Se assim foi numa
data posterior, por que não no tempo de Moisés?
86

Recorde-se ainda que a intenção de dividir o capítulo em duas partes


diferentes dá origem a uma narrativa da revolta de Datã e Abirã muito
incompleta na primeira parte e a uma outra da de Coré com grandes lacunas
na parte final. Os críticos procuram, em princípio, preencher esta lacuna,
separando os vers. 24,27 do texto, riscando de cada um deles os nomes de
Datã e Abirã e substituindo o nome de Deus pelo de Coré, de forma a
alterarem estes versículos, numa tentativa para afastar o povo das
proximidades do Tabernáculo, onde se oferecia incenso. Mas quem não vê
que tal modificação é desprovida de sentido? Assim, estes versículos são de
uma perfeita naturalidade, com íntima relação com o vers. 26, que se
encontra entre eles. Não condiz com o significado da palavra hebraica a
tentativa para neste caso relacionar o vocábulo Tabernáculo apenas com o
Tabernáculo do Senhor. Enquanto se pode admitir que alguns manuscritos
dos LXX só falam em Coré e não de Datã e Abirã, todos os manuscritos
hebraicos aludem aos três chefes, como muitos dos manuscritos dos LXX.
Também se acrescenta que no vers. 24 os LXX lêem “companhia” em vez de
tabernáculo; todavia no vers. 27 fala de “tenda” em vez de tabernáculo. Nada
de concreto poderemos afirmar, a não ser que as teorias que dividem o
capítulo em duas seções não se fundam em qualquer argumento válido. Além
disso, como os coatitas - ramo da tribo de Levi a que pertencia Coré -
acampavam do lado sul do Tabernáculo, juntamente com a tribo de Rúben,
não é improvável que se determine uma separação do local onde habitavam
Coré, Datã e Abirã.

Esta revolta provavelmente surgiu muito depois da crise de Cades, pois


parece não haver ligação entre os dois acontecimentos. Não se diz que foi
um movimento contra a viagem através do deserto, nem contra os desígnios
de Deus relativos à nova vida em Canaã, nem sequer contra a Lei de Deus
em geral. Apenas uma insurreição contra a autoridade de Moisés e Arão,
talvez já nos últimos anos da travessia do deserto.

A importância da revolta é avaliada pela responsabilidade que cabia a cada


um dos cabecilhas. Assim Coré era membro da família coatita da tribo de
Levi, a que pertenciam Moisés e Arão. Com ele se encontravam três ilustres
membros da tribo de Rúben, o primogênito de Israel e 250 chefes da
congregação. Dizia-se que todo os membros desta eram santos e, portanto,
Moisés e Arão não dispunham de qualquer autoridade sobre eles.

É verdade que todos os crentes sinceros são iguais diante de Deus. Mas o
homem, nascido no pecado, não deixa de estar sujeito a erro. Exige-se,
portanto, uma autoridade, que só pode ser a que se encontra na Palavra
Deus. Mas nesse tempo só uma pequena parte da Bíblia se encontrava
escrita e era aflitiva a situação do povo eleito. O futuro de Israel dependia do
êxito daquela marcha através do deserto e, bem assim, da instalação na
Pentateuco 87

Terra de Canaã. Embora os insurretos proclamassem a sua adesão ao


Senhor, na realidade revoltavam-se contra Ele, uma vez que se opunham à
autoridade legitimamente constituída e pelo próprio Deus designada para
fazer progredir o Seu Reino nesta etapa vital.

Om. Como só no presente texto deparamos com este nome, ficamos sem
saber se esse personagem acompanhava apenas os outros e não merecia,
portanto, qualquer referência especial, ou, então, separou-se da revolta
contra Moisés.

A restrição do sacerdócio à família de Arão é um dos pontos de particular


discussão. Mas a boa ordem e a disciplina exigiam que tão importante
missão fosse limitada apenas àqueles que Deus escolhera para tal fim.
Sabemos que mais tarde um bom rei de Judá quis abusivamente
desempenhar as funções sacerdotais e foi por Deus castigado com a terrível
doença da lepra (2Cr 26.1-5,16-21).

É conveniente, muitas vezes, abordar os cabecilhas do motim para se tirar


uma conclusão e exigir satisfações. Por isso Moisés convidou Coré e os seus
sequazes a aparecerem diante do Senhor, juntamente com Arão, para que o
próprio Senhor decidisse a questão (4-11). Foram também intimados Datã e
Abirã (12), mas o ódio entranhável ao seu chefe impediu-os de comparecer
(12-14). Moisés confessou ao Senhor que nunca os prejudicara em coisa
alguma (15). Coré e seus sequazes foram então convidados a vir até junto ao
Tabernáculo com incenso nos seus turíbulos (16-17). Cedendo ao convite,
foram, (18) e com eles trouxeram toda a congregação que os aplaudia (19). O
Senhor ameaçou destruí-los a todos, com exceção de Moisés e Arão (20-21),
que logo se prostraram rogando-lhe que não se indignasse contra toda
aquela congregação (22). O Senhor ordenou em seguida que se levantassem
do redor da habitação de Coré, Datã e Abirã (23-24). Moisés foi ter com estes
dois últimos, seguido pelos anciãos de Israel (25) e rogou a todo o povo que
se afastasse das tendas destes ímpios homens (26). Obedecendo o povo às
ordens do Senhor, Datã e Abirã com as suas famílias colocaram-se às portas
das suas tendas (27). Moisés declarou então que, se a terra se abrisse e
engolisse todos aqueles homens com os seus haveres, seria prova mais que
suficiente para que nele vissem o mensageiro de Deus (28-30). Assim
aconteceu (31-34): Saiu por fim o fogo do Senhor que consumiu os duzentos
e cinqüenta homens que ofereciam o incenso (35).

Basta este simples resumo para nos dar uma idéia clara dos acontecimentos
descritos nesta seção do livro de Números. Só mais uma breve explicação
acerca do tabernáculo ou habitação dos revoltosos nos vers. 24 e 27. O
termo hebraico miskan, que na Bíblia muitas vezes é traduzido por
“tabernáculo” e em quase todas se refere ao Tabernáculo de Deus, tem o
88

significado literal de “lugar de habitação”. Assim, aquele termo é traduzido


algumas vezes por “habitação”, outras por “lugar de habitação” e uma só por
“morada” em Ct 1.8. Em todo o caso, nestes últimos exemplos, de modo
algum implica local de culto. Em Números 16.24,27; 24.5 a melhor tradução
é, portanto, a de “habitação” ou “morada”.

Depois da morte de Coré e dos seus partidários, ordenou o Senhor que dos
turíbulos dos revoltosos se fizessem placas de bronze para cobrir o altar,
como lembrança de que só aos membros da família de Arão era permitido
oferecer incenso ao Senhor (36-40).

Se as famílias de Datã e Abirã com eles pereceram, o mesmo não sucedeu à


família de Coré (cfr. Nm 26.9-11). Embora excluídos do sacerdócio, os seus
descendentes vieram a desempenhar lugar de relevo no Santuário. Um deles,
Samuel, foi mesmo um dos maiores profetas e juízes hebraicos (1Cr 6.33-
38), e Hemã, seu neto, foi um célebre cantor no reinado de Davi. Recorde-se
que alguns dos Salmos são designados como “para os filhos de Coré”.
Exemplo frisante duma situação em que o erro dos pais não impede o êxito
que possam vir a ter as ações dos filhos e até de certo modo, relacionada de
perto ao erro do patriarca.

Não obstante a morte e o desaparecimento dos caudilhos do motim, a


desordem ainda lavrou no acampamento dos israelitas durante algum tempo.
Nova revolta do povo se nota nos vers. 41-50. Nova intercessão de Moisés e
de Arão (46-48) quando Deus ameaça destruir a congregação inteira (44). O
castigo de Deus ali mesmo prostrou 14.700 membros desse povo indigno
(49).

5.11. Balaão (Cap. 22-25)


Quem é Balaão? Balaão era de Petor, na Mesopotâmia, perto do rio Eufrates
(22.5). Seus poderes sobrenaturais eram altamente estimados pelos
moabitas e pelos midianitas (22.6). É um dos mais misteriosos e estranhos
personagens da Bíblia. Era profeta de Deus ou meramente um adivinho em
cuja boca o Senhor colocou suas palavras? Tinha certa comunhão com Deus
(22.8-12), sabia algo da justiça divina (Miquéias 6.5), e algo sobre a vida
além-túmulo (23.10), ouvia os ditos de Deus, via “a visão do Todo-Poderoso”
(24.4), e não falaria o que Deus não lhe dissesse (22.18). Por outro lado,
parece que às vezes buscava agouros ou sinais a respeito do futuro (24.1).
Daí se infere que tinha dom de profecia, mas seu conhecimento de Deus
estava obscurecido, em certa medida, pelos conceitos pagãos.
Pentateuco 89

5.11.1. Balaão vacila (Cap. 22)

Balaque temia os israelitas e de acordo com os midianitas enviou a Balaão a


mensagem de que viesse a fim de amaldiçoar a Israel. Assim sucede muitas
vezes que o adversário procura encontrar um crente com o intuito de usá-lo
contra o avanço do povo de Deus. No princípio Balaão se nega a ir com a
delegação de Balaque porque Deus lhe havia proibido amaldiçoar a Israel,
pois era o povo bendito. Mas ao ver a segunda delegação composta de
personagens importantes, de novo perguntou a Deus, pois desejava
amaldiçoar a Israel para receber o pagamento de Balaque. Desta vez Deus
lhe deu permissão para acompanhar os mensageiros do rei, mas sob a
condição de que faria o que o Senhor lhe ordenasse.

Surgem algumas perguntas quanto ao incidente em que o anjo do Senhor


estorvava a viagem do profeta. Mudou Deus de idéia ao permitir que Balaão
acompanhasse a segunda delegação moabita quando o havia advertido de
que não fosse com a primeira? Depois, arrependeu-se Deus de haver-lhe
dado permissão e por isso enviou o anjo para detê-lo? A resposta encontra-
se em 23.19. Parece que não era a vontade diretiva de Deus que Balaão
fosse com eles, mas tão-só a sua vontade permissiva. Provavelmente
permitiu que Balaão acompanhasse os moabitas para demonstrar a Balaque
o caráter singular de Israel e o poder divino para frustrar toda adivinhação
contra o povo de Deus. Balaão foi repreendido porque interpretou a
permissão divina de ir com os príncipes como se fosse permissão de
amaldiçoar a Israel. Ele foi motivado pelo dinheiro de Balaque.

Em segundo lugar, como é possível que a jumenta de Balaão falasse? O


animal não é capaz de falar nem de raciocinar. É evidente que foi um milagre
de Deus. Se Satanás podia falar por meio da serpente no Éden, acaso Deus
não pode falar por uma jumenta? Em todo o incidente, Deus ensina a Balaão
que só lhe é permitido falar o que ele próprio transmite.

5.11.2. As profecias de Balaão (Cap. 23 e 24)

Balaão profetizou quatro vezes prognosticando a prosperidade futura de


Israel e a destruição de seus inimigos. As profecias de Balaão são as
seguintes:

a) Israel não era apenas uma nação entre outras muitas nações, mas
“um povo que habita à parte” (Bíblia de Jerusalém). Gozaria da
grande bênção de ter uma descendência numerosa (23.7-10);
b) Deus é imutável e não muda de idéia como o fazem os homens,
portanto abençoaria a Israel dando-lhe força irresistível para derrotar
seus inimigos. Deus não via o mal em Israel, pois via os israelitas
90

através do pacto, e as maldições e adivinhações não surtiriam efeito


contra o seu povo (23.18-24);
c) Os crentes podem lançar mão das promessas de Números 23.21 e
23. Deus vê seu povo não tal como é, mas através da justiça provida
por seu Filho. Com os justos as maldições dos espíritas e adivinhos
não têm poder;
d) Israel se estenderia amplamente e obteria domínio irresistível sobre
as nações inimigas (24.3-9);
e) Levantar-se-ia em futuro longínquo um rei brilhante em Israel que
conquistaria Moabe e Edom. Amaleque seria arruinado eternamente e
inclusive a Síria pereceria (24.15-24).

A quem se refere a “estrela que procederá de Jacó” e o “cetro que subirá de


Israel”? Muitos estudiosos da Bíblia crêem que o rei Davi cumpriu esta
profecia pois ele conquistou Moabe e Edom (2Sm 8.2, 14). Outros estudiosos
julgam que a profecia se refere primeiro a Davi e depois ao Messias, Jesus
Cristo. Neste contexto a “estrela” significa um governador brilhante. Comenta
uma nota da Bíblia de Jerusalém: “A estrela é, no antigo Oriente, sinal de um
Deus e, por conseqüência, de um rei divinizado.” Através dos séculos a igreja
cristã tem interpretado a profecia como messiânica.

5.11.3. O ensino de Balaão (Cap. 25)

Ao fracassar em seu intento de prejudicar a Israel mediante a maldição,


Balaão recorreu a outro estratagema. Aconselhou Balaque a induzir os
israelitas a participar das festas religiosas dos midianitas e a cometer
fornicação com eles (Ap 2.14). Sabia que Deus julgaria essa falta de
santidade e assim Balaão conseguiria seu propósito perverso. A ação
enérgica de Finéias deteve a mortandade resultante e conseguiu para ele e
seus descendentes a promessa do sumo sacerdócio.

5.11.4. Lições práticas

a) Balaão representa o crente que cumpre a letra da lei, mas viola seu
espírito. Não falaria o que Deus não lhe dissesse, mas queria fazer o
mal. Quis que Deus mudasse de idéia e lhe permitisse fazer sua
própria vontade. Então, não podendo amaldiçoar ao povo de Deus por
palavra, procurou prejudicá-lo ensinando os midianitas a colocar
tropeços diante deles;
b) Balaão é uma amostra do profeta mercenário que deseja negociar
com seu dom: “Amou o prêmio da injustiça” (2Pe 2.15);
c) Balaão, em seu trato com os midianitas, exemplifica a má influência
dos mestres insinceros que procuram fazer avançar a causa da igreja
Pentateuco 91

aconselhando-a a fazer aliança com o mundo e os mundanos (31.16;


Ap 2.14);
d) O relato de Balaão ilustra quão vazio é em uma pessoa o
conhecimento de Deus se não estiver acompanhado do sincero
desejo de obedecer-lhe. Balaão desejava morrer a morte dos retos,
mas não queria viver uma vida reta. Em conseqüência, morreu nas
mãos dos israelitas na guerra contra Midiã (31.8);
e) Ensina-nos que nada pode prevalecer contra os propósitos de Deus
nem contra seu povo. Além disso, Deus faz que a ira do homem o
louve (Salmo 76.10).
92

Capítulo 6

Livro de Deuteronômio
6.1. Título e fundo histórico
A palavra deuteronômio provém da Versão Grega que significa “segunda lei”
ou “repetição da lei”. O livro consiste em sua maior parte nos discursos de
Moisés, dirigidos ao povo na fértil planície de Moabe; Israel estava preste a
cruzar o rio Jordão e iniciar a conquista de Canaã e Moisés estava por
terminar sua carreira. Visto que a primeira geração que saiu do Egito havia
morrido e a segunda não havia presenciado as obras maravilhosas de Deus
realizadas nos primeiros anos, nem as entendia, Moisés trouxe-as à memória
do povo. Também lhes recordou os preceitos da lei do Sinai para que os
gravassem em seus corações, pois esses preceitos os guardariam da
iniqüidade dos cananeus. Depois Moisés escreveu os discursos em um livro.
Portanto, distingue-se dos outros livros do Pentateuco por seu estilo oratório
e seu fervor exortativo.

6.2. Data e ocasião


No século XIX, os críticos da Bíblia afirmavam que Deuteronômio fora escrito
em torno de 620 a.C., como parte da reforma religiosa promovida pelo rei
Josias, na qual ele insistiu que o culto fosse centralizado em Jerusalém. A lei
do santuário central (cap. 12) foi considerada por esses críticos como a
invenção de um escritor nos tempos de Josias. Desde o começo do século
XX, todavia, essa teoria tem perdido apoio. Alguns têm atribuído a
Deuteronômio uma data tão antiga como a época de Samuel, enquanto
outros lhe deram uma data tão recente como o exílio. Muitos críticos ainda
datam o livro no século VII a.C., que é o período do rei Josias. Esses
estudiosos também questionam a unidade do livro. Se algumas partes
parecem “antigas” (dos tempos de Moisés), eles atribuem essas partes a
alguma tradição de tempos remotos que foi convenientemente preservada.
Se outras partes parecem “recentes” (durante ou depois dos tempos de
Josias), elas são chamadas de “redações posteriores” ou ali se encontram
devido a alguma “edição tardia”. Tais métodos elásticos, subjetivos e
especulativos não poderiam ser refutados de forma conclusiva senão com um
manuscrito original do próprio Moisés, que ninguém possui. Nenhuma
evidência concreta exclui a composição de Deuteronômio nos tempos de
Moisés, reconhecendo-se, dentro de limites razoáveis, que adições
Pentateuco 93

posteriores tenham sido feitas por alguém como Josué, que adicionou o
obituário de Moisés ao livro, além de algumas atualizações posteriores da
gramática hebraica e de nomes de lugares.

O pano de fundo e o contexto histórico do livro refletem as condições


anteriores à conquista de Canaã sob Josué. Não há menção de algum rei em
Judá ou da cidade de Jerusalém, embora esta seja mencionada mais de cem
vezes pelo profeta Jeremias (que escreveu nos dias do rei Josias). É pouco
provável que um autor do século VI a.C. deixasse de fazer alguma alusão,
por mínima que fosse, à capital ou ao seu templo. As doze tribos estão
representadas como uma nação (e não, como no período de Josias, divididas
entre os reinos de Judá e Israel). As cidades de refúgio da Transjordânia são
citadas, enquanto que as situadas em Canaã (as quais foram designadas
mais tarde por Josué) não o são. Os nomes babilônicos dos meses não são
usados e não há estrangeirismos persas no vocabulário, embora se possa
esperar que estes fossem encontrados em uma obra escrita num período
dominado por esses impérios. Moisés, Arão e Josué são mencionados, mas
nenhum outro personagem ou acontecimento de uma época posterior
aparecem. É pouco provável que um escritor de um período tardio, mesmo
que versado nas tradições do passado, pudesse evitar de forma tão completa
o uso de termos e a menção de pessoas ou eventos da sua própria época.
Concluímos, portanto, que Deuteronômio foi escrito por Moisés, o legislador
de Israel, antes de sua morte em 1406 a.C.

6.3. Autoria do livro


Deuteronômio foi entregue a Israel como um documento do concerto, para
ser lido por extenso diante de todo o povo, a cada sete anos (31.10-13). É
provável que Moisés tenha completado o livro pouco antes da sua morte,
cerca de 1405 a.C. Pelo seu próprio testemunho (1.1,5; 31.22), Deuteronômio
é obra de Moisés. A autoria mosaica de Deuteronômio é atestada: pelo
Pentateuco judaico e samaritano; pelos escritores do Antigo Testamento (Js
1.7; 1Rs 2.3; 2Rs 14.6; Ed 3.2; Ne 1.8,9; Dn 9.11); em antigas fontes judaicas
(p.ex., Josefo) e no Novo Testamento por Jesus (Mt 19.7-9; Jo 5.45-47), bem
como escritores do Novo Testamento (At 3.22,23; Rm 10.19), por eruditos
conservadores contemporâneos; e pelas evidências internas do livro
(semelhança, na estrutura literária, com textos de pactos seculares de
vassalagem do século XV a.C.).

Os críticos observam corretamente que o último capítulo não poderia ter sido
escrito por Moisés. Existe um amplo consenso de que o capo 34 é um
adendo, talvez acrescentado por Josué. Dessa mesma forma, o Livro de
Josué termina com a morte de Josué, registro feito claramente pelo autor de
Juízes, o qual acrescentou alguns versículos de Juízes à parte final de Josué
94

(Jz 2.7-9; cf. Js 24.29,31). Semelhantemente, os primeiros versículos de


Esdras foram copiados e anexados ao último capítulo de Crônicas (Crônicas
termina no meio de uma frase). Essa maneira de vincular um livro
subseqüente ao precedente ou variantes dessa prática era comum na
Antigüidade e tinha como propósito indicar a seqüência correta dos
pergaminhos ou tabuletas de cerâmica. É provável que, Josué tenha
adicionado a nota sobre a morte de Moisés, sendo “ isto aceito por Israel. Isto
também veio a vincular o Livro de Josué à grande produção de Moisés. Tais
adições óbvias, contudo, não negam a autoria geral de Moisés.

De forma ainda mais controversa, alguns críticos têm argumentado que a


linguagem de 1.1,5 indica que o escritor do livro necessariamente estava no
lado ocidental do rio Jordão, ou seja, em Canaã (a expressão hebraica aqui
traduzida “este lado do Jordão” é geralmente traduzida “o outro lado do
Jordão” ou “dalém Jordão”). Tal descrição argumentam, solapa a
credibilidade de Deuteronômio como uma obra mosaica, uma vez que Moisés
nunca atravessou o Jordão. O argumento pressupõe que a expressão
hebraica em questão precisa sempre se referir à região oriental do Jordão. É
evidente, contudo, que o sentido exato da expressão precisa ser
determinado pelo contexto e que ela pode referir-se tanto a Transjordânia (a
região a leste do Jordão e mar Morto, 1.1-5; 3.8; 4.41, 47, 49) como a Canaã
(3.20, 25; 11.30; Js 9.1, 10). Aqui, esta expressão evidentemente significa a
região à leste do Jordão, como as descrições geográficas indicam (1.1,5).

6.4. Propósito
O livro tem como propósito principal preparar o povo para a conquista de
Canaã. Deus havia sido fiel em dar a Israel vitória após vitória sobre seus
inimigos. A presença e o poder de Deus eram a garantia de que ele lhes
entregaria a terra. Moisés anima-os repetindo trinta e quatro vezes a frase:
“Entrai e possuí a terra” e adiciona trinta e cinco vezes: “A terra que o Senhor
teu Deus te deu.” Outros propósitos que se pode observar são: apresentar os
preceitos da lei em termos práticos e espirituais para serem aplicados à nova
vida em Canaã; dar a Israel instruções e advertências quanto aos detalhes da
conquista, aos requisitos dos futuros reis, como distinguir entre profetas
verdadeiros e profetas falsos, as bênçãos que a obediência traz e os
malefícios da desobediência e estimular lealdade ao Senhor e à sua lei.
Pode-se dizer que o ensino de Deuteronômio é a exposição do grande
mandamento, “Amarás, pois o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de
toda a tua alma, e de todo o teu poder” (6.5).
Pentateuco 95

6.5. Características e temas


Deuteronômio tem sido usado extensivamente tanto por cristãos como pelos
antigos judeus. Ele é citado no Novo Testamento mais de cinqüenta vezes,
um número superado somente pelos Salmos, e por Isaías. O livro contém
muita exortação. O minucioso material jurídico (caps. 14-26), em grande parte
paralela a Levítico, não é tão familiar ou tão usado quanto o restante, embora
tenha importância para propósitos especiais.

O livro é uma repetição da lei e da história de Israel. A obra consiste,


principalmente, de três grandes discursos e um compêndio de leis dados por
Moisés ao final da sua vida, enquanto o povo estava acampado nas planícies
de Moabe, pouco antes de Josué assumir o comando e liderar o povo na
conquista de Canaã. A conquista da Transjordânia já havia sido concluída
com sucesso e Moisés desafiou o povo nesses discursos de despedida.

Como mensagens de despedida de Moisés ao seu povo, o livro combina


exortação e mandamentos.E serve como exemplo de como a lei deveria ser
ensinada. O discurso de abertura (1.5-4.40) recorda as experiências de Israel
sob a liderança de Moisés. Deuteronômio não descreve como Moisés
confrontou a Faraó e como os milagres das dez pragas forçaram ao Faraó a
deixar o povo partir, mas ele alude repetidamente ao êxodo (cinco vezes no
primeiro discurso: 1.20,34; 4.20,34, 37). Moisés relembra o cuidado
providencial e miraculoso de Deus para com o povo durante a jornada do
Egito até o Sinai. Ele então detalha a derrota do povo em Cades Barnéia
tanto em termos espirituais como militares. Há referências a eventos
registrados em Números, porém, à semelhança dos registros em Números,
quase nada é dito sobre os eventos acontecidos durante os quarenta anos
de peregrinação pelo deserto. A jornada ao redor de Edom em direção a
Transjordânia é mencionada, e a derrota dos reis Seom e Ogue é registrada
com mais detalhes do que em Números. Segue, então, a divisão da terra na
Transjordânia entre as tribos de Rúben, Gade e a meia tribo de Manassés
(como em Nm 32), e a narrativa termina com uma referência à súplica de
Moisés em seu próprio favor para entrar em Canaã, coisa que Deus não
concede (como em Nm 27.12, 23). Moisés conclui o discurso com exortações
à fidelidade ao Senhor.

O segundo discurso (4.44; 11.32) compõe-se de exortações. Alguns afirmam


que esse discurso vai até 26.19, incluindo as leis e regulamentos dos caps.
12-26. O discurso começa com os Dez Mandamentos, muito próximo de uma
repetição literal de Êx 20, com exceção do quarto mandamento (5.12-15). O
terror da teofania (uma auto-revelação visível de Deus) é relembrado com um
chamado à obediência. Somente os Dez Mandamentos são dados
diretamente pela voz de Deus; o restante da lei é mediado por Moisés (5.22).
96

O famoso Shemá - “Ouve, Israel, o SENHOR, nosso Deus, é o único


SENHOR” - encontra-se em 6.4, com a exortação para ensinar, lembrar e
obedecer. Os capítulos seguintes contêm vários exemplos do cuidado e do
juízo divinos desde a saída do Egito. Estes exemplos consistem em alusões a
conteúdos encontrados nos livros de Êxodo e Números. Esses exemplos
servem para admoestar Israel a confiar no Senhor e não em si mesmos. A
isso se segue uma promessa de sucesso nas guerras que se sucederiam em
Canaã.

As leis (caps. 12 - 26) incluem as regulamentações referentes ao culto,


alimentos puros, escravos e dívidas, festas anuais, juizes, cidades de refúgio
e questões relativas à conduta. A maior parte desses temas corresponde a
matérias encontradas nos livros precedentes do Pentateuco, o que será
observado nos, lugares apropriados.

O terceiro discurso (caps. 27 - 30) é uma exortação vigorosa para que se


obedeça às leis do Senhor. Ele inclui a cerimônia solene a ser realizada no
vale entre o monte Ebal e o monte Gerizim, próximo de Siquém, quando
Israel já tivesse iniciado a conquista de Canaã - uma cerimônia que lembra a
cerimônia da aliança em Êx 20.1-24.8, e que foi devidamente realizada por
Josué (Js 8.30 - 35). Essas leis e exortações foram enunciadas por Moisés
com ênfase sobre a obrigação de Israel perante Deus de ouvir e obedecer à
lei do Senhor.

As seções finais do livro são igualmente importantes e vigorosas (31.1-34.2).


Elas incluem a instalação de Josué como sucessor de Moisés, o grande
cântico de Moisés celebrando a grandeza de Deus e o seu cuidado em favor
do povo da aliança (cap. 32), o cântico no qual Moisés abençoa as doze
tribos (cap. 33, que se inspira no modelo da bênção de Jacó a seus filhos em
Gn 49), e, por fim, o adendo que descreve a morte de Moisés (cap. 34).

Por meio de prefigurações e profecias, esse livro também nos faz olhar para
Cristo. Ele é o Cordeiro Pascal (16.1) e o Profeta que havia de vir (18.15-19).
Moisés, o fundador da teocracia de Israel, foi o mediador da antiga aliança;
mas Jesus Cristo, o Filho de Deus, tornou-se o mediador da nova aliança (Jr
31.31-34). A essência das alianças é a mesma, porém o seu modo de
administração difere significativamente. Enquanto a antiga aliança foi escrita
em tábuas de pedra, Cristo escreve a nova aliança pelo Espírito do Deus vivo
nas tábuas dos corações humanos (2Co 3.3). A antiga aliança foi ratificada
com a promessa de Israel, “o ouviremos, e o cumpriremos” (5.27; cf. Êx 19.8;
20.19). Porém a nova aliança baseia-se em promessas superiores de Deus:
“também no coração lhas inscreverei” (Jr 31.33; Hb 8.7). A antiga aliança
requeria que o sangue de animais fosse derramado; a nova e eterna aliança
foi instituída uma vez por todas pelo sangue de Cristo (Jr 32.40; Hb 9.11-28).
Pentateuco 97

A antiga aliança exigia uma religião do coração, porém falhou devido à


fraqueza humana e tornou-se obsoleta após o seu cumprimento no Calvário
(Rm 8.3; Hb 7.12; 8.13).

Deuteronômio, o quinto livro de Moisés, recebe este título a partir da


Septuaginta, que o chama Deuteronomion, que quer dizer a “Segunda Lei” ou
a “Repetição da Lei”.

6.6. Importância de Deuteronômio


Este livro desempenhou um papel importante na história e na religião de
Israel. O código deuteronômico foi à norma para julgar as ações dos reis de
Israel. Ao descobri-lo no templo, sua leitura despertou um grande avivamento
no ano 621 a.C.

O Novo Testamento refere-se a Deuteronômio e cita-o mais de oitenta vezes.


Parece que era um dos livros prediletos de Jesus, pois ele o citava amiúde.
Por exemplo, citou versículos de Deuteronômio para resistir ao diabo em sua
tentação. Também a profecia acerca do profeta que seria como Moisés
(18.15-19) preparou o caminho para a vinda de Jesus Cristo.

6.7. Quatro fatos principais caracterizam Deuteronômio


Ele proveu à nova geração de israelitas prestes a entrar em Canaã, o alicerce
e motivação necessária para herdarem a terra prometida, ao realçar a
natureza de Deus e seu concerto com Israel.

É “O Livro de Repetição da Lei”, no qual, Moisés, o dirigente de Israel, já com


120 anos de idade, reafirmou e resumiu (em forma de sermão) a palavra do
Senhor contida nos quatro livros anteriores, do Pentateuco.

É “O Livro das Memórias”. Uma admoestação típica de Deuteronômio é:


“Lembra-te, e não te esqueças”. Em vez de apresentar novas verdades,
Deuteronômio exorta Israel a conservar e obedecer à verdade de Deus já
revelada, e entregue como sua Palavra absoluta e imutável.

Um ponto predominante no livro é a fórmula “fé-mais-obediência”. Israel foi


conclamado a confiar em Deus de modo irrestrito e a obedecer aos seus
mandamentos sem vacilação. A fé-mais-obediência capacitaria os israelitas a
herdar as promessas na plenitude da bênção de Deus. A falta de fé e de
obediência, por outro lado, traria o ciclo do fracasso e do julgamento.
98

6.8. O livro de Deuteronômio e seu cumprimento no Novo


Testamento
Quando Jesus foi tentado pelo diabo, Ele respondeu, citando trechos de
Deuteronômio (Mt 4.4,7, 10, cf. Dt 8.3; 6.13,16). Quando perguntaram a
Jesus qual era o maior mandamento da lei, sua resposta veio de
Deuteronômio (Mt 22.37; cf. Dt 6.5). Quase cem vezes, os livros do Novo
Testamento citam Deuteronômio, ou a ele aludem. Uma nítida profecia
messiânica deste livro (Dt 18.15-19) é citada duas vezes em Atos (3.22,23;
7.37). O cunho espiritual de Deuteronômio é fundamental à revelação do
Novo Testamento.

6.9. Estudos no livro de Deuteronômio


6.9.1. O concerto de Deus com os Israelitas

Dt 29.1 “Estas são as palavras do concerto que o SENHOR ordenou a


Moisés, na terra de Moabe, que fizesse com os filhos de Israel, além do
concerto que fizera com eles em Horebe” (o concerto no monte Sinai). Deus
fez um concerto com Abraão e o renovou com Isaque e Jacó.

Unicamente Deus estabelece as promessas e compromissos do seu


concerto, e aos seres humanos cabe aceitá-los com fé obediente. A diferença
principal entre este concerto e o anterior é que Deus fez um sumário das
respectivas promessas e responsabilidades do concerto antes da sua
ratificação (Êx 24.1-8). As promessas de Deus, neste concerto, eram
basicamente as mesmas que foram feitas a Abraão (Êx 19.1). Deus prometeu
que daria aos israelitas a terra de Canaã depois de libertá-los da escravidão
no Egito (Êx 6.3-6; 19.4; 23.20, 23), e que Ele seria o seu Deus e que os
adotaria como o seu povo (Êx 6.7; 19.6; Dt 5.2). O alvo supremo de Deus era
trazer ao mundo o Salvador através do povo do concerto. Antes de Deus
cumprir todas essas promessas, Ele requereu que os israelitas se
comprometessem a observar as suas leis declaradas quando eles estavam
acampados no monte Sinai. Depois de Deus revelar os dez mandamentos e
muitas outras leis do concerto os israelitas juraram a uma só voz: “Todas as
palavras que o SENHOR tem falado faremos” (Êx 24.3). Sem essa promessa
solene de aceitarem as normas da lei de Deus, o concerto entre eles e o
Senhor não teria sido confirmado (Êx 24.8). Essa resolução de cumprir a lei
de Deus continuou como uma condição prévia do concerto. Somente pela
perseverança na obediência aos mandamentos do Senhor e no oferecimento
dos sacrifícios determinados por Deus no concerto é que Israel continuaria
como a possessão preciosa de Deus e igualmente continuaria a receber as
suas bênçãos. Noutras palavras, a continuação da eleição de Israel como o
povo de Deus dependia da sua obediência ao seu Senhor (Êx 19.5). Deus
Pentateuco 99

também estipulou claramente o que aconteceria se o seu povo deixasse de


cumprir as obrigações do concerto. O castigo pela desobediência era a
destruição daquele povo, quer por banimento, quer por morte (Êx 31.14,15).
Trata-se de uma repetição da advertência de Deus, dada por ocasião do
êxodo, isto é, aqueles que não cumprissem as suas instruções para a Páscoa
seriam excluídos do povo (Êx 12.15, 19; 12.15). Essas advertências não
eram fictícias. Em Cades, por exemplo, quando os israelitas se rebelaram,
incrédulos, contra o Senhor e se recusaram a entrar em Canaã, por medo
dos seus habitantes, Deus se irou com eles e, como castigo, fê-los peregrinar
no deserto durante trinta e nove anos; ali, morreram todos os israelitas com
mais de vinte anos de idade (exceto Calebe e Josué, Nm 13.26-14.39; 14.29).
O castigo pela desobediência e incredulidades deles foi à perda do privilégio
de habitar na terra do repouso, por Deus prometido (cf Sl 95.7-11; Hb 3.9-
11,18). Deus não esperava de seu povo uma obediência perfeita, e sim uma
obediência sincera e firme. O concerto já reconhecia que, às vezes, devido às
fraquezas da natureza humana, eles fracassariam (30.20). Para remi-los da
culpa do pecado e reconciliá-los consigo mesmo, Deus proveu o sistema
geral de sacrifícios e, em especial, o Dia Anual da Expiação. O povo podia,
assim, confessar seus pecados, oferecer os diversos sacrifícios, e deste
modo reconciliar-se com o seu Senhor. Todavia, Deus julgaria severamente
os desobedientes, a rebeldia e a apostasia deliberada. No seu concerto com
os israelitas, Deus tencionava que os povos doutras nações, ao observarem
a fidelidade de Israel a Deus, e as bênçãos que recebiam, buscassem o
Senhor e integrassem a comunhão da fé. Um dia, através do Redentor
prometido, um convite seria feito às nações da terra para participarem dessas
promessas. Assim, o concerto tinha um relevante aspecto missionário.

6.9.2. O concerto renovado nas planícies de Moabe

Depois que a geração rebelde e infiel dos israelitas pereceu durante seus
trinta e nove anos de peregrinação no deserto, Deus chamou uma nova
geração de israelitas e preparou-os para entrarem na terra prometida,
mediante a renovação do concerto com Ele. Para uma conquista bem-
sucedida da terra de Canaã, necessário era que eles se comprometessem
com esse concerto e que tivessem a garantia que o Senhor Deus estaria com
eles.

Essa renovação do concerto é o enfoque principal do livro de Deuteronômio.


Depois de uma introdução (1.1-5), Deuteronômio faz um resumo histórico de
como Deus lidou com seu povo desde a partida do Sinai (1.6-4.43). Repete
as principais condições do concerto (4.44-26.19), relembra aos israelitas as
maldições e as bênçãos do concerto (27.1-30.20) e termina com as
providências para a continuação do concerto (31.1-33.29). Embora o fato não
seja mencionado especificamente no livro, podemos ter como certo que a
100

nação de Israel, a uma só voz, deu um caloroso “Amém” às condições do


concerto, assim como a geração anterior fizera no monte Sinai (cf. Êx 24.1-8;
Dt 27; 29.10-14).

O conteúdo básico desse concerto continuou como o do monte Sinai. Um


assunto reiterado no livro inteiro de Deuteronômio é que, se o povo de Deus
obedecesse a todas as palavras do concerto, teria a bênção divina; em
caso contrário, teria a maldição divina (ver especialmente 27-30). A única
maneira deles e seus descendentes permanecerem para sempre na terra de
Canaã era guardarem o concerto, amando ao Senhor (6.5) e obedecendo à
sua lei (30.15-20).

Moisés ordenou ao povo que periodicamente relembrasse o concerto feito.


Cada sétimo ano, na Festa dos Tabernáculos, todos os israelitas deviam
comparecer ao lugar que Deus escolhesse. Ali, mediante a leitura da lei de
Moisés, eles relembrariam do concerto de Deus com eles, e também,
mediante a renovação da promessa, de cumprir o que ouviam (31.9-13).

O Antigo Testamento registra vários exemplos notáveis dessa lembrança e


renovação do concerto. Após a conquista da terra, e pouco antes da morte de
Josué, este conclamou todo o povo com esse propósito (Js 24). A resposta
do povo foi clara e inequívoca: “Serviremos ao SENHOR, nosso Deus, e
obedeceremos à sua voz” (Js 24.24). Diante disso: “Assim, fez Josué
concerto, naquele dia, com o povo” (Js 24.25). Semelhantemente, Joiada
dirigiu uma cerimônia de renovação do concerto, quando Joás foi coroado
(2Rs 11.17), e assim fizeram também Josias (2Rs 23.1-3), Ezequias (cf. 2Cr
29.10) e Esdras (Ne 8.1-10.39).

A chamada para relembrar e renovar o concerto é oportuna hoje. O Novo


Testamento é o concerto que Deus fez conosco em Jesus Cristo. Lembramos
do seu concerto conosco quando lemos e estudamos a sua revelação
contendo suas promessas e preceitos, quando ouvimos a exposição da
Palavra de Deus e, mais especificamente, quando participamos da Ceia do
Senhor (1Co 11.17-34). Na Ceia do Senhor, também renovamos nosso
compromisso de amar ao Senhor e de servi-lo de todo o nosso coração (1Co
11.20).

6.9.3. Os três propósitos da Lei (Dt 13.10)

As Escrituras mostram que Deus pretende que sua lei funcione de três
modos, que Calvino cristalizou, numa forma clássica para benefício da Igreja,
como o tríplice uso da lei.
Pentateuco 101

Sua primeira função é a de ser espelho que reflete para nós a perfeita justiça
de Deus e a nossa própria pecaminosidade e deficiência. Como escreveu
Agostinho, “a lei nos obriga, a saber, como pedir auxílio da graça, quando
tentamos cumprir suas exigências e nos cansamos na nossa fraqueza sob
ela”. A lei foi dada para nos transmitir conhecimento do pecado (Rm 3.20;
4.15; 5.13; 7.1.11) e, mostrando-nos a nossa necessidade de perdão e o
perigo da condenação, levar-nos a Cristo em arrependimento e fé (Gl 3.19-
24).

Uma segunda função da lei - o uso civil - é a de refrear o mal. Ainda que a lei
não possa mudar o coração, ela pode, até certo ponto, inibir as desordens
com ameaça de julgamento, especialmente quando apoiada num código civil,
que aplica punição a ofensas comprovadas (Dt 13.6-11; 19.16-21; Rm 13.3-
4). Desse modo, ela assegura a ordem civil e serve para proteger os justos
da ação dos injustos.

Sua terceira função é a de guiar o regenerado às boas obras que Deus


planejou para ele (Ef 2.10). A lei diz aos filhos de Deus o que agrada ao seu
Pai Celestial. Ela pode ser chamada de código da família. Cristo estava
falando deste terceiro uso da lei, quando disse que os que se tornam seus
discípulos devem ser ensinados a fazer tudo o que ele mandou (Mt 28.20) e
que a obediência aos seus mandamentos provará a realidade do amor que
seus discípulos têm por ele (Jo 14.15). O cristão está livre da lei como
sistema de salvação (Rm 6.14; 1.4,6; 1Co 9.20; Gl 2.15-19; 3.25), mas está
“debaixo da lei de Cristo”, como uma regra de vida (1Co 9.21; Gl 6.2).

6.9.4. Profetas (Dt 18.18)

Os profetas canônicos, cujos livros constituem mais de uma quarta parte do


Antigo Testamento, foram chamados por Deus para serem canais de
revelação. Eram homens de Deus que estavam em seu conselho (Jr 23.22),
conheciam a mente de Deus e foram capacitados para declará-la. Deus, o
Espírito Santo, falava neles e através deles (2Pe 1.19-21; Is 61.1; Mq 3.8; At
28.25-27; 1Pe 1.10-12). Eles sabiam que Deus procedia desse modo; por
isso, eles ousavam começar suas proclamações dizendo: “Assim diz o
Senhor”, atribuindo ao próprio Javé aquilo que diziam.

A profecia envolvia predição, porém geralmente isso ocorria num contexto de


advertências e admoestações de Deus ao povo da sua aliança
(proclamação). Os profetas aguardavam a vinda do Rei messiânico, e seu
Reino, depois dos julgamentos de expiação; porém sua principal
preocupação era a de exortar para o arrependimento, na esperança de que
julgamentos iminentes pudessem ser evitados. Os profetas eram antes de
102

tudo reformadores que aplicavam a lei de Deus e chamavam o povo de Deus


de volta à fidelidade à aliança, da qual se havia afastado.

Junto com sua pregação dirigida à nação, oravam também por ela - falavam a
Deus a respeito dos homens tão seriamente quanto falavam aos homens a
respeito de Deus. Eles cumpriam um ministério todo especial de intercessão
(Êx 32.30-32; 1Sm 7.5-9; 12.19-23; 2Rs 19.4; Jr 11.14; 14.11).

Os falsos profetas foram uma perdição para Israel. Profissionalmente ligados


ao culto organizado de Israel, eles diziam aquilo que o povo queria ouvir e
falavam com base nos próprios sonhos e opiniões, ao invés de ministrarem a
Palavra de Deus (1Rs 22.1-28; Jr 23.9-40; Ez 13).

No Novo Testamento, um livro (o Apocalipse) se anuncia como profecia


verdadeira e fidedigna recebida diretamente de Deus (de Deus, o Pai, através
de Jesus Cristo, Ap 1.1-3; 22.12-20). O Ministério dos apóstolos trouxe
instruções diretamente de Deus ao seu povo, exatamente como fizera o
ministério profético do Antigo Testamento, ainda que a forma de
apresentação fosse diferente. Os profetas do período do Novo Testamento
foram ligados aos apóstolos no alicerce da Igreja (Ef 2.20; 3.5) como
expositores do cumprimento das profecias do Antigo Testamento em Cristo
(Rm 16.25-27).

6.9.5. Deuteronômio Demônios (Dt 32.17)

“Demônio” vem do grego daimon ou daimonion, que são os termos


empregados pelos Evangelhos para designar os seres espirituais corruptos e
hostis tanto a Deus como ao homem, seres que Jesus exorcizou de suas
vítimas durante o seu ministério terreno. Os demônios são anjos caídos,
criaturas imortais que servem a Satanás (Jesus equiparou Belzebu, o
alegado chefe deles, a Satanás, Mt 12.24-29). Tendo-se aliado à rebelião de
Satanás, foram expulsos do céu e esperam o juízo final (2Pe 2.4; Jd 6). A
mente deles é permanentemente oposta a Deus, ao bem, à verdade, ao
Reino de Cristo e ao bem-estar dos seres humanos. Eles têm efetivos, porém
limitado, poder e liberdade de movimento, embora, citando uma frase
pitoresca de Calvino, “eles arrastem suas cadeias onde quer que andem” e
jamais podem esperar sobrepujar a Deus.

O nível e a intensidade das manifestações demoníacas no meio do povo


durante o ministério de Cristo foram singulares, não encontrando paralelo nos
tempos do Antigo Testamento ou desde então; indubitavelmente, foram parte
da desesperada batalha de Satanás em favor do seu reino contra o ataque de
Cristo sobre ele (Mt 12.29). Os demônios têm não só conhecimento, mas
também força (Mc 1.24; 9.17-27). Eles provocavam doenças físicas e mentais
Pentateuco 103

ou tiravam vantagens delas (Mc 5.1-15; 9.17-18; Lc 11.14). Eles


reconheceram e temeram a Cristo, a cuja autoridade estavam sujeitos (Mc
1.25; 3.11-12; 9.25), embora ele tenha dito que era preciso muito esforço em
oração para expeli-los (Me 9.29).

Cristo dotou os doze apóstolos e os setenta de poder para expulsar demônios


em seu nome (isto é, por seu poder, Lc 9.1; 10.17), e o ministério do
exorcismo continua a ser uma eventual necessidade pastoral. No século XVI,
a Igreja Luterana aboliu o exorcismo, crendo que a vitória de Cristo sobre
Satanás tinha suprimido para sempre a invasão demoníaca, mas essa
medida foi prematura.

O exército de demônios de Satanás emprega também estratégias sutis –


engano e desencorajamento de muitas formas. Opor-se a essas coisas é a
tarefa da batalha espiritual (Ef 6.10-18). Ainda que os demônios possam
causar perturbações de diferentes espécies aos regenerados, em que habita
o Espírito Santo, eles não podem impedir o propósito final de Deus, que é de
salvar seus eleitos, do mesmo modo como não podem escapar de seu
próprio tormento eterno. Assim como o diabo é diabo de Deus (no dizer de
Lutero), do mesmo modo os demônios são demônios de Deus, inimigos
derrotados (CI 2.15) cujo poder limitado só lhes é permitido para o progresso
da glória de Deus enquanto o povo de Deus luta com eles.

6.9.6. Shemá e a Trindade

Este texto (Dt 6.4) é comumente chamado “o Shemá” (do hb. Shama, “ouvir”).
Os judeus dos tempos de Jesus eram afeitos a esse trecho, por ser recitado
diariamente pelos judeus devotos, e também regularmente nos cultos da
sinagoga. O “Shemá” é a declaração clássica do cunho monoteísta de Deus.
Ao “Shemá” segue-se um duplo preceito para Israel: amar a Deus de todo o
coração, alma e forças (vv. 5,6); e ensinar diligentemente aos seus filhos
sobre a sua fé (vv. 7-9).

Este texto juntamente com os de 11.13-21; Nm 15.37-41 - ensina o


monoteísmo. Esta doutrina afirma que Deus é o único Deus verdadeiro, e não
uma teogonia ou grupo de diferentes deuses; que é onipotente entre todos os
seres e espíritos do mundo (Êx 15.11). Este Deus deve ser o objeto exclusivo
do amor e obediência de Israel (vv. 4,5). Esse aspecto de “unicidade” é à
base da proibição da adoração a outros deuses (Êx 20.2). O ensino de 6.4
não contradiz a revelação no Novo Testamento, de Deus como um ser trino,
que sendo uno em essência, é manifesto como Pai, Filho e Espírito Santo (Mt
3.17, e Mc 1.11).
104

Por ocasião do batismo de Jesus há uma grandiosa manifestação da


realidade da Trindade. Jesus Cristo, declarado igual a Deus (Jo 10.30), é
batizado no Jordão. O Espírito Santo, que também é igual ao Pai (At 5.3,4),
desce sobre Jesus em forma de pomba. O Pai declara que se compraz em
Jesus. Temos, portanto, neste ato três pessoas divinas iguais. Contraria a
integridade das Escrituras explanar este evento de qualquer outra maneira. A
doutrina da Trindade mostra que as três pessoas divinas subsistem em tal
unidade que constituem o Deus uno (Dt 6.4).

Assim como no Antigo Testamento, Deus é revelado no Novo Testamento


como um só Deus, existente como Pai, Filho e Espírito Santo (cf. Mt 3.16,17;
28.19; Mc 1.9-11; Jo 15.26; 2Co 13.14; Ef 2.18; Ef 4.4-6; 1Pe 1.2; Jd 20,21).
Esta é a doutrina da Trindade, expressando a verdade de que dentro da
essência una de Deus, subsistem três Pessoas distintas, compartilhando uma
só natureza divina comum. Assim, segundo as Escrituras, Deus é singular
(i.e., uma unidade) num sentido, e plural (i.e., trina). As Escrituras declaram
que Deus é um só uma união perfeita de uma só natureza, substância e
essência (Dt 6.4; Mc 12.29; Gl 3.20). Das pessoas da deidade, nenhuma é
Deus sem as outras, e cada uma, juntamente com as outras, é Deus. O Deus
único existe numa pluralidade de três pessoas identificáveis, distintas; mas
não separadas. As três não são três deuses, nem três partes ou expressões
de Deus, mas são três pessoas tão perfeitamente unidas que constituem o
único Deus verdadeiro e eterno. O Filho e também o Espírito Santo possuem
atributos que somente Deus possui (Jo 20.28; 1.1,14; 5.18; 14.16; 16.8,13;
Gn 1.2; Is 61.1; At 5.3,4; 1Co 2.10,11; Rm 8.2,26, 27; 2Ts 2.13; Hb 9.14).
Nem o Pai, nem o Filho, nem o Espírito Santo, foram feitos ou criados em
tempo algum, mas cada um é igual ao outro em essência, atributos, poder e
glória. O Deus único, existente em três pessoas, torna possível desde toda a
eternidade o amor recíproco, a comunhão, o exercício dos atributos divinos, a
mútua comunhão no conhecimento e o inter-relacionamento dentro da
deidade (cf. Jo 10.15; 11.27; 17.24; 1Co 2.10).

6.9.7. Os Dízimos (14.22-29)

Quando Moisés pronunciou este discurso, já era bem conhecido e praticado o


uso dos dízimos, que podiam representar um sinal de gratidão (Gn 14.20) ou
mesmo de devoção (Gn 28.22). O princípio básico é o mesmo da lei do
sábado (5.12). Tudo o que o homem possui a Deus o deve, sendo apenas um
fiel depositário (Dt 8.18; Mt 25.14). Para que vissem que eram sagrados
todos esses bens, separavam uma parte deles e ofereciam ao santuário (23,
25). Em Nm 18.20-27 pede-se ao povo que, apenas entre na Terra
Prometida, separe para os levitas a décima parte das suas produções, que
por sua vez iria reverter a favor da família de Arão, também na mesma
percentagem. O Talmude e os escritores hebraicos referem-se ao conteúdo
Pentateuco 105

dos caps. 12, 14 e 26 como dum “segundo” ou “sagrado” dízimo, aliás, de


acordo com a tradição dos judeus. Com a modificação das circunstâncias,
primeiro no deserto, depois durante a conquista, e finalmente quando ficou
pacificado todo o território, não admira que se alterassem as leis; sem, no
entanto, se admitir qualquer contradição, apesar de nem sempre ser fácil a
sua interpretação. E alegra-te (26). Cfr. 12.7. A oferta dos dízimos e das
primícias dava ocasião à celebração de certas festividades, em que se
patenteava a generosidade dos israelitas para com todos os que viviam
dentro das “mesmas portas” (27). Moisés tinha em vista, sobretudo os tempos
de paz e prosperidade que haviam de seguir-se.

6.9.7.1. As Primícias e os Dízimos (26.1-15).

As fórmulas para a apresentação das primícias e dos dízimos constituem um


modelo perfeito de oração e de louvor. Irás ao lugar (2). Cfr. 12.5. Só aqueles
que estiverem em comunhão com o Doador podem apresentar devidamente
a sua oferta. Ao sacerdote (3). É o sumo-sacerdote ou um seu representante,
não o “levita”, a que se refere o vers. 11. Cfr. 18. As diretrizes para os
sacerdotes vêm expostas no Lv 23; estas se dirigem ao adorador que
apresenta as suas oferendas. Declaro (3). O primeiro ato é reconhecer que
Deus cumpriu as Suas promessas (Gn 28.13). As primícias contêm a
promessa das colheitas, que o Senhor providenciará na devida altura. Siro
(5). A mãe e os parentes de Jacó vieram da Síria ou de Arã (Gn 24.10;
25.20). Nos vers. 5-10 é evidente o estilo de Moisés ao referir-se à dura
escravidão (6), ao pedido de libertação (7) e à mão forte que libertou o povo
(8).

Quando acabares de dizimar (12). Cfr. 14.22; Lv 27.30-33. O caráter festivo e


o modo generoso de distribuição indicam que se trata aqui dum segundo
dízimo. Tirei (13). Literalmente: “queimei”, se atendermos a que a palavra
hebraica tem a mesma raiz que o vocábulo taberah em 9.22. O significado é,
pois, que tudo aquilo que é devido a Jeová foi pago, nada ficando em casa.
(Cfr. Ml 3.10).

6.9.8. Cidades de Refúgio (19.1-13)

Tendo já escolhido três cidades na Transjordânia, Moisés designa agora mais


três na região ocidental, conforme era seu desejo (Nm 35.14), e para isso
fornece as suas instruções. As leis relativas ao homicídio, tais como outras de
Deuteronômio, vêm a dar a conhecer costumes antigos. Moisés agora vem
confirmar umas e emendar outras. Quando comparadas com o código de
Hamurábi ou com os antigos costumes semitas, notam-se de fato analogias
sensíveis, mas não resta dúvida de que a Lei mosaica dignifica mais a vida
humana (5.17) e estimula ao amor de Deus e do próximo. Preparar-te-ás o
106

caminho (3). O Talmude lembra que nas estradas se viam uns letreiros com a
seguinte indicação: “Refúgio, refúgio”. O vingador do sangue (6). O goel
hebraico é “o vingador do sangue” ou O “parente” que tem direito de resgatar
(Rt 4) ou mesmo o “redentor” (Jó 19.25). Tal justiça retributiva destinava-se a
impedir novo homicídio. Não há, portanto, qualquer violação do sexto
mandamento (5.17).

Acrescentarás outras três cidades (9). A antiga promessa de Gn 15.18 não foi
esquecida, mas a conquista atual não abrangeu o território da promessa, pelo
que não se encontra noutro lugar, qualquer indicação da necessidade destas
cidades e, portanto, mais uma prova de autenticidade. Nenhum escritor mais
tarde teria inventado a necessidade de mais três cidades. Haja sangue sobre
ti (10). Cfr. Gn 4.11; Dt 21.6-8. Sendo “santa” a terra de Jeová, não pode
admitir-se nela qualquer mancha de sangue. Os anciãos da sua cidade (12).
Cfr. 16.18. Eram os que desfrutavam de maiores regalias e prestígio, quer
pela família a que pertenciam, quer pelas qualidades de que eram dotados, e
formavam a autoridade local em questões judiciais e até comerciais. Cfr.
21.20; 27.1; 29.10; 31.28.

6.9.9. A despedida de Moisés (32.44-33.29)

6.9.9.1. Última exortação (32.44-47)

Oséias (44). O nome primitivo de Josué era Oséias (“salvação”), mas Moisés
substituiu-o por Josué (em hebraico: “Jeová é a salvação”). (Nm 13.8-16). O
fato de se empregar aqui o nome original significa que este nome havia de
perdurar (cfr. o emprego de “Simão” em 2Pe 1.1). Aplicai o vosso coração
(46). É característico este apelo constante ao coração do povo (cfr. 30.14).
Estão contados os dias de Moisés. Só Deus pode dizer: “Estou convosco
todos os dias, até à consumação dos séculos” (Mt 28.20).

6.9.9.2. A aproximação da morte (32.48-52)

As circunstâncias pormenorizadas dos vers. 49-51 sugerem sem dúvida


alguma se tratar duma narração contemporânea. Abarim (49) significa “para
além” (cfr. Nm 21.11; 27.12). Nebo (49) é o moderno “Nebu” e parecia
aplicar-se apenas à montanha (cfr. 34.1). Cades (51). Cfr. Nm 20.12-13;
27.14; 33.36. A palavra quer dizer “santo”, duma raiz que entra no verbo
“santificar”. Já que, como chefe do povo, Moisés pecou em público, é em
público que vai sofrer o devido castigo. (1.37; 4.21).
Pentateuco 107

6.9.9.3. A Bênção Final (33.1-29)

A introdução deste capítulo leva-nos a crer que foi escrito depois da morte de
Moisés. Mas, a partir do vers. 2 nada impede que admitamos ter sido o
próprio Moisés ou alguém que o ouvisse pronunciar essas palavras. A
“bênção” é um processo profético de oração e de louvor (cfr. Lc 2.38). Tal
como a bênção de Jacó (Gn 49), Moisés conta em tom poético os benefícios
derramados por Deus sobre cada uma das tribos. Não só na introdução
(2-5), como em quase todo o capítulo, a nota geral teocrática das várias
referências, vem favorecer a autenticidade da narração, bem como a sua
contemporaneidade. Omite-se a tribo de Simeão, talvez propositadamente,
para se conservar o número doze. Cfr. vers. 6. É que, além de tudo o mais, a
tribo de Simeão foi gradualmente absorvida pela do Judá. Moisés, homem de
Deus (1). Este título sugere-nos que não seria seu autor o próprio Moisés.
Cfr. vers. 4. Foi aplicado a Moisés por Calebe (Js 14.6) e aparece de novo no
título do Sl 90. O Senhor... subiu... resplandeceu (2). A entrega da Lei é
comparada a um rutilante sair do sol oriental. Veio com dez milhares de
santos (2). À letra: “miríades de santidade”. Os LXX, talvez mais
corretamente, traduziram aquela última palavra por “anjos”. Cfr. At 7.53. Na
tua mão (3). A introdução repentina da segunda pessoa levou alguns
comentadores a atribuir este texto ao futuro Rei messiânico. Moisés nos deu
(4). Cfr. vers. 1. Pode ter sido uma expressão introduzida pelo autor do vers.
1, ou então atribuírem-se-lhe mesmo os vers. 1-5. De certeza, pelo menos foi
alguém que da boca de Moisés ouviu tais palavras. Foi rei em Jeshurun (5).
Este rei ou foi Jeová (1Sm 12.12), ou o Rei-Messias (3), ou então o próprio
Moisés.

6.9.9.4. A morte de Moisés (34.1-8)

Subiu Moisés (1). O autor recorda o último ato de obediência de Moisés, ao


subir ao Monte Nebo. Terminara a sua missão na terra, mas só depois de
contemplar de longe a Terra Prometida, conforme o seu desejo. Fala-nos
ainda a Escritura duma aparição de Moisés falando “face a face” com o
Senhor em Mc 9.4. Pisga (1). À letra: “quebrado”, do formato que tinha o
monte, quando observado da planície. Cfr. vers. 2. Toda a Terra (2). Em dias
de boa visibilidade abrangia-se do alto do monte uma grande extensão da
Palestina, desde a Galiléia ao Monte das Oliveiras, e desde Belém ao Mar
Morto. Servo do Senhor (5). Cfr. Hb 3.5. Por muitos títulos foi Moisés um
servo exemplar, cuja vida teve por bem: “como o Senhor ordenou”. E o
sepultou num vale (6). Uma tradição muçulmana localiza a sepultura do
grande patriarca numa depressão, não longe do cume. O Targum de Jônatas
acrescenta que o arcanjo Miguel foi encarregado por Jeová de guardar essa
sepultura. Cfr. Jd 9. Trinta dias (8). Por Arão ordenara também Moisés trinta
dias de luto. Nm 20.29.
108

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