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A NOITE DO IGUANA

PERSONAGENS:
SRTA. ALMA JELKES
OWEN
MIKE

HOTEL COSTA VERDE PRÓXIMO DE ACAPULCO.

MIKE - Lá vem esta maldita novamente. Está sempre nos espionando ou tentado nos
ouvir. Isso já está me irritando. Vou falar com ela agora mesmo.
OWEN - Não. Não vai nada. Sente-se aí e fique calado.
MIKE - Pelo Amor de Deus! O que está querendo me dizer! Para eu deixar para lá,
enquanto essa maldita nos espiona. É isso?
OWEN - Não seja tão teimoso, por favor. (SRTA. JELKES OBSERVA-OS
TENTANDO VER OS ESCREVEM, MAS NÃO CONSEGUE NADA. MIKE TIRA A
FOLHA DA MÁQUINA DE ESCREVER E COLOCA DE COSTAS NA MESA,
ESPERANDO QUE ELA SAIA DO RECINTO. OWEN VAI ATÉ O MIKE E ABRAÇA-
O TENTANDO ACALMÁ-LO. SRTA. JELKES FITA OS DOIS ESPANTADA).
JELKES - Bom dia. (SEM OBTER RESPOSTA.) Conseguiram dormir ontem? Com
todo aquele barulho! Viram, não viram. Sabem o que aconteceu? (PARA MIKE.) Aquele
rapaz horroroso, o filho da patroa, amarrou uma iguana na porta do meu quarto. Eu ouvi-o,
mas não sabia o que se passava: e já dura horas, desde o jantar. Levantei-me a pouco e
quando observei a varanda ela lá estava, lutando com a pequena corda!
OWEN - (PARANDO O QUE ESTAVA FAZENDO E OLHANDO PARA ELA.) O
que foi?
MIKE - Ela está falando da iguana.
OWEN - Ah, sim. E então?
JELKES - Como é que eu posso dormir com esse barulho? Como é que uma pessoa
pode dormir, com este espetáculo de selvageria primitiva, debaixo de sua porta?
OWEN - Tem aversão aos lagartos?
JELKES - Tenho aversão à brutalidade!
OWEN - Mas os lagartos são uma espécie muito inferior. Não é verdade?
MIKE - Há outras mais inferiores. (PARA SRTA. JELKES.) De qualquer maneira
não acredito que o animal sinta tanto a sua desgraça como você parece sentir.
JELKES - Não estou de acordo. Não concordo com você de maneira nenhuma! Nós
gostamos de pensar que somos os únicos capazes de sofrer, mas isso não passa de um
conceito humano. Nós não somos os únicos capazes de sofrer. Não, até as plantas sentem.
Eu já vi algumas plantas fecharem as folhas quando as tocamos! (MIKE COMEÇOU A
RIR DELA. E OWEN SÓ OBSERVOU.) Tenho a certeza de que a iguana tem sensações
bem definidas e você pensaria como eu se a tivesse ouvido andar se rastejando e tentando
fugir naquela terra seca e poeirenta, tentando chegar aos arbustos com a corda no pescoço,
quase a asfixiá-la!
OWEN - Você tem mesmo o dom de vestir a pele dos outros. O seu nome é Alma.
Alma não é? Deve haver alguma relação de causa e efeito. Um dia deste eu vou lhe mostrar
um mapa de anatomia do corpo humano que eu tenho lá no quarto. Talvez você possa me
mostrar onde é que a sua linda alma está localizada.

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JELKES - Bom, eu não posso ficar passivamente a assistir ao sofrimento dos outros. O
meu posso suportá-lo, mas o dos outros não, sejam homens, sejam animais. Há tanta dor no
mundo, tanto sofrimento que nós é infligido, doenças acidentes coisas que não podemos
evitar. Mas há também tanto sofrimento desnecessário porque algumas pessoas são
insensíveis às dores dos outros. À vezes quase que parece que este mundo foi idealizado
pelo Marquês de Sade! Eu não acredito no princípio da penitência. Não é horrível, não é
absurdo que praticamente todas as religiões se baseiem no princípio da penitência, quando
no fundo não há nada que se possa chamara de culpa?
OWEN - Tenho muita pena, mas não estou em condições de falar de Deus.
JELKES - Não; Não estou a falar de Deus, estou a falar da iguana!
MIKE - Ela tenta fazer ver que a iguana é uma criatura de Deus.
OWEN - Mas essa criatura de Deus está agora na posse do filho da patroa!
JELKES - Essa criatura de Deus, está agora amarrada a um poste, mesmo à beira da
minha porta, e, por mais tarde que seja, vou acordar a patroa e dizer-lhe para libertar o
animal ou, ao menos, levá-lo para um lugar onde eu não possa ouvi-lo!
OWEN - (MIKE CONTINUA RINDO.) O que é que te deu?
MIKE - Se ela for acordar a patroa não sei o que pode acontecer!
JELKES - O que poderia me acontecer?
OWEN - É verdade. Uma das coisas que estes mexicanos não suportam é que lhes
perturbam o sono!
JELKES - Mas o que ela deve fazer é pedir desculpas e levar o animal! No fim das
contas é uma afronta prender um lagarto à porta de uma mulher, sabendo que ela não
poderá dormir durante toda à noite!
OWEN - Pode ser que não seja toda à noite...
JELKES - Quem é que vai impedir?
OWEN - A iguana adormecerá.
JELKES - Nunca! O animal está impaciente, é como se vivesse um pesadelo!
OWEN - Os ruídos incomodam-na bastante, não é?
JELKES - É verdade, incomodam-me! Entenda, há alguns anos tive uma crise nervosa
e embora hoje esteja muito melhor, preciso, mais do que ninguém, de dormir. Durante
meses tive de recorrer aos sedativos, às vezes dois por noite! O que mais detesto é
incomodar as pessoas com problemas absurdos. Quero estar bem com elas, em paz e
cordialmente, mesmo com estranhos com quem raramente falo... Já sei o que vou fazer!
MIKE - O que?
JELKES - Vou me mudar?
MIKE - Você vai embora do Hotel Costa Verde?
JELKES - Oh, não, não! De maneira nenhuma! É o hotel mais encantador que conheço!
Vou é mudar de quarto.
MIKE - Mudar para onde?
JELKES - Para cá, para este lado do hotel. Nem vou esperar até amanhã. Mudo-me
agora mesmo. Todos estes quartos estão vagos, não há problema. E se houver direi que é
totalmente impossível dormir com aquele lagarto na porta! Qual é o quarto de vocês?
MIKE - Nós temos dois quartos.
OWEN - Sim, cada um tem o seu quarto.
JELKES - Oh, claro, claro! Só estou perguntando porque não quero pegar por engano a
cama de um de vocês! (DEIXANDO CAIR O ESPELHO).
MIKE - Sete anos de azar!

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JELKES - Não se quebrou! (PARA OWEN.) Pode me ajudar? Desculpem-me tantos


incômodos! Bom, acho que vou ficar com este aqui. (ELA ENTRA NO QUARTO).
MIKE - Eu não acredito nisso. Eu vou me mudar de quarto. Não vou ficar ao lado
desta louca. È melhor irmos conversar na praia.
OWEN - Porque?
MIKE - Ela pode nos ouvir não acha?
OWEN - Tenho certeza disso. Acredito que foi por isso que se mudou para este lado
do hotel.
MIKE - Então não acredita naquela história da iguana?
OWEN - Claro que não, isso foi apenas um pretexto. Não viu como estava satisfeita?
Parecia que tinha feito uma descoberta brilhante.
MIKE - Aposto que neste momento está nos espionando.
OWEN - Está mais do que certo. Mais o que ela pode fazer?
MIKE - Ir à patroa. A patroa quer ver-se livre dela.
OWEN - Ah, sim?
MIKE - Sim, sim. Está doida para lhe por para fora daqui.
JELKES - Com licença. (PARA O MIKE.) Importa-se de vir aqui dentro por um
minuto?
MIKE - Sim. Não irei. Diga o que quer? (DEPOIS DE UM TEMPO.) Então?
JELKES - Eu... Eu ouvi-o!
MIKE - E depois?
JELKES - Não compreendo!
MIKE - Não compreende o que?
JELKES - A crueldade! Nunca a consegui compreender!
MIKE - Mas sabe o que é espiar, não sabe?
JELKES - Eu não estava espiando.
MIKE - Sua maldita por que não vai embora, hãn! Vá para o inferno! (SAI).
OWEN - Mike!
MIKE - (GRITANDO DE LONGE.) Vá para o inferno!
OWEN - (DEPOIS DE UM TEMPO PARA ELA.) Vai haver tempestade.
JELKES - Sim! Ainda bem!
OWEN - É melhor sair da friagem! Vamos entrar no seu quarto um pouco!
JELKES - Oh, está bem...
OWEN - (PROCURANDO ALGO NOS BOLSOS.) Comprimidos...
JELKES - (PEGANDO UM DOS SEUS.) Aqui estão os meus, quer um?
OWEN - Obrigado.
JELKES - Tome são bons. Eu acabei de tomar um.
OWEN - Quais são os seus?
JELKES - Seconal. E os seus?
OWEN - Barbital. Os seus são bons?
JELKES - Uma maravilha.
OWEN - Como é que a fazem sentir? Como um nenúfar?
JELKES - Sim, como um nenúfar numa lagoa chinesa! Talvez você deva...
OWEN - (GRITANDO.) Mike?
JELKES - O seu amigo...
OWEN - Mike?

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JELKES - Ele é... A pessoa mais indicada para você? Desculpe. Vocês são um casal. É
isso?
OWEN - Ele é uma pessoa sem esperança, desamparada e essas pessoas sempre me
atraíram.
JELKES - Mas você, você não precisará também de ajuda?
OWEN - Ajuda de Deus! Se isso não acontecer só posso contar comigo próprio.
JELKES - Mas se houvesse alguém, alguém que o compreendesse, alguém mais
parecido com você...
OWEN - Que dizer: você? Me desculpe, mas a onde quer chegar com essa conversa.
JELKES - Eu... Eu... Eu não sei. (OWEN A OLHA INTENSIVAMENTE E A
AGARRA, AMBOS COMEÇAM UM RITUAL SEXUAL. DEPOIS DE TRANSAREM A
SRTA. JELKES O MATA).
MIKE - (DEPOIS DE ALGUM TEMPO.) O que se passa aqui? O que está
acontecendo, me diga vamos! Você fez tudo isso de caso pensado não foi! Diga, diga!
Vamos!
JELKES - Às vezes é preciso uma tragédia como esta para transformar um fraco em um
forte.
MIKE - Sua... Sua solteirona de sangue aguado! Vocês, gente correta, tão pios e tão
pomposos. Fique aqui! Quero lhe mostrar uma coisa. Veja o corpo humano! Olhe!
JELKES - Eu já olhei.
MIKE - Você não têm coragem de olhar.
JELKES - Por que não?
MIKE - De medo.
JELKES - Você deve estar louco. Me largue, se não eu grito.
MIKE - Grite, vamos grite. Preste atenção você não fala sempre em piedade, em
sofrer pelos outros. Agora preste atenção. Esta parte aqui é o cérebro, que tem fome de uma
coisa chamada verdade, não é muito saciado e continua faminto. Aqui no meio é a barriga,
que tem fome de comida. E esta parte aqui é o sexo, tem fome de amor, porque às vezes se
sente sozinho. Eu alimentei os três. Alimentei tanto quanto podia, ou tanto quanto queria.
Você não alimentou nenhuma.
JELKES - Então é este o elevado conceito que você faz das ambições humanas! O que
está aqui não é a anatomia de um animal, mas de um homem! Eu refuto a sua opinião
quanto à localização ao amor, e o tipo de verdade que você acha que o cérebro procura. Há
uma coisa que não está indicada no mapa.
MIKE - Aquela coisa que é homônima do seu nome de batismo não é?
JELKES - Exatamente. Ela não está indicada no em qualquer mapa de anatomia. Mas
mesmo assim está ali! Está sim! Em um lugar onde não a vemos, mas está! E foi com isso
que eu amei ele, com isso! Não como o que você pensa. Foi com a minha alma que eu amei
ele, Mike, e ela quase morreu quando ele morreu.
MIKE - Ele não teria feito amor com você.
JELKES - O que?
MIKE - Você é um mostro. Um mostro que deve morrer. Apodrecer sozinha. Ouviu.
Agora eu vou correndo chamar a patroa, você vai ver. (MIKE SAI RAPIDAMENTE E
SRTA. JELKES VAI ATRÁS E AO CHEGAR NA ESCADA ENCONTRA A CORDA
QUE PRENDIA A IGUANA CORTADA.) Oh, meu Deus! Ela foi solta. Só pode ter sido
ele, graças. Foi ele quem soltou a iguana. O belo, cruel, desesperado Mike, quem libertou a
iguana? Quem importa? Que importa quem o fez, a iguana foi embora, embrenha-se na

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mata. Oh, como é bom, como é gratificante, respirar agora! Obrigada Owen. Estou grata
também porque, de uma maneira igualmente misteriosa, e asfixiante, a corda da solidão que
me envolvia também foi quebrada nesta noite, neste quarto num hotel tão longe de tudo.
Oh, Deus, será que não podíamos parar agora? De uma vez? Nos deixe, por favor. Tudo
está tão quieto aqui, agora. (SAI).

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