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ARTE E FAKE NEWS: UMA RELAÇÃO ANTIGA

Existem obras que, apesar do tempo, não se tornam obsoletas. Nesses casos, a curadoria geralmente se
encarrega de nos lembrar da ressonância desses trabalhos na contemporaneidade. No entanto, a curadoria
também pode ser usada para revisitar obras que, talvez pelo seu formato ou pela sua conexão com contextos
passados, se tornaram obsoletas, e repensá-las como testemunhas que nos obrigam a rever o que julgávamos
ser novo.

Neste sentido, irei mencionar uma vertente artística experimental que sucedeu durante os anos 60 na
Argentina e ficou conhecida como “el arte de los medios”. Sua característica foi o uso dos meios de
comunicação massiva, no contexto de uma modernização acelerada, como matéria artística. Neste contexto,
os artistas Eduardo Costa, Raúl Escari e Roberto Jacoby realizaram um happening conhecido como
“Happening para um jabalí difunto”, que consistiu no envio a diversos meios de comunicação de uma
notícia com fotos sobre uma nova experiência artística, na qual numerosas celebridades teriam participado.
A notícia foi publicada em vários meios, porém era falsa, já que a o evento nunca havia ocorrido, e as
fotografias pertenciam a outras ações.

A ação funcionou como uma intervenção cujo meio e método artístico era aquilo que a própria obra buscava
criticar: os meios de comunicação massiva. Com isso, os artistas buscaram evidenciar os mecanismos de
construção da realidade que operavam através dos mass-media. Logo depois, afirmaram em seu manifesto:
“Em uma civilização de massas, o público não está em contato com os fatos culturais, se não que se informa
sobre eles através dos meios de comunicação.” Essa afirmação continua vigente, mesmo quando o
happening já se perdeu no tempo (como toda ação).

“Fake news” é apenas um término novo para denominar um fenômeno antigo. O uso de notícias falsas,
banais ou exóticas para manipular, diminuir e distrair a população dos acontecimentos críticos não é
nenhuma novidade. O famoso chupa-cabras, nos anos 90, é um bom exemplo deste uso midiático no final do
século XX. Outro caso foi o uso que os britânicos fizeram da propaganda durante a primeira guerra mundial
como uma estratégia para retratar-la como algo heróico. Da mesma forma, em 1835 o New York Sun
publicava relatos sobre criaturas estranhas supostamente vistas na lua pelo telescópio do astrônomo Jean
Herschel.

Quando Orson Welles transmitiu “A Guerra dos Mundos” no rádio em 1938, antes que o término
“happening” existisse e muito antes da internet e suas fake news, algo já havia ficado claro: a informação
midiática, no momento da sua transmissão, se torna fato. Os meios de comunicação transformam a
realidade, na medida em que eles legitimam os relatos.

Talvez a versão radial de “A Guerra dos Mundos” e o “Happening para un jabalí difunto” sejam obras
obsoletas: a primeira porque, pelo formato radial da época, já é mais um documento do que uma reflexão
sobre o meio como elemento narrativo; e a segunda porque, além de ser um happening, hoje a internet nos
permite publicar quase qualquer coisa. De qualquer modo, ambas as experiências permitem a reflexão sobre
um fato importante sobre as fake news na atualidade.

É certo que, provavelmente, seja a primeira vez na história da humanidade em que uma notícia possa ser lida
por um milhão de pessoas em questões de segundos. Talvez, como nunca antes, as instituições midiáticas
tenham tanta capacidade de difusão. No entanto, nunca foi tão fácil e rápido comprovar a veracidade de uma
notícia.

Quando Orson Welles transmitiu a sua obra radial, os ouvintes entraram em pânico já que desconheciam o
caráter fictício do relato. Além disto, não era possível verificar de forma rápida se aquelas notícias sobre
invasões extraterrestre eram reais (ainda não existiam as #hashtags rs).

A obra radial do Welles e o happening argentino dão conta de um paradoxo da atualidade: o atroz da mídia
contemporânea não é a sua capacidade de reprodução, mas a voracidade ingênua e sem critério com a qual
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consumimos as informações sem verificação nenhuma; justamente em uma era na qual basta procurar “fake
news na história” em um buscador para encontrar uma guia breve sobre a história das fake news.

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