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RELAÇÕES E RUPTURAS ENTRE O CRISTIANISMO MEDIEVAL E O CRISTIANISMO MODERNO.


Um Estudo Da Liberdade do Cristão (1520) e Do Cativeiro Babilônico da Igreja (1520)
Tamiris Alves Muniz 1
tamirismuniz@gmail.com
Profª. Dra. Teresinha Maria Duarte 2
teresinha_duarte@yahoo.com.br

O presente trabalho é fruto dos estudos que tenho realizado em torno da pessoa de Martinho
Lutero e de sua obra Da liberdade do Cristão (1520), a partir de minha participação como estudante de
iniciação científica (PIVIC), no projeto “Vivências Cristãs Ocidentais” (Séculos XIII-XVI), no qual
trabalho com o sub-projeto “O Nascimento do Cristianismo Moderno”: Um estudo Da liberdade do
Cristão (1520). Investigação esta que deu origem também ao meu projeto de Monografia de final do
curso em História, com o tema Lutero e o Pensamento Moderno.
Com esta comunicação procuro identificar as relações e rupturas que Lutero faz com o
cristianismo medieval e problematizá-las, uma vez que o Reformador viveu no período de transição da
Idade Média para a Idade Moderna. Metodologicamente, recorro às contribuições da História das
Idéias, para a análise do pensamento de Lutero, pensamento que é religioso, mas também, político.
Entendemos que não há uma separação nítida entre a Idade Média e a Idade Moderna, visto
que ocorreu um processo contínuo de transformações nestas sociedades, que são efetuadas em ritmos
diferentes e abrange os diversos setores da sociedade ocidental (econômico, político, religioso, cultural,
social). De maneira que os valores medievais ainda foram muito presentes no início da sociedade
moderna, influenciando o modo de vida e a crença religiosa de muitas pessoas desse período, inclusive
de Lutero.
Assim, o movimento religioso proposto por Lutero deve ser compreendido dentro de um quadro
maior de transformações, que caracterizaram a transição feudo capitalista, em que, a Europa passou e
pela formação de um conjunto de transformações sócio-econômicas e políticas, as quais permitiram a
nova sociedade, questionar o comportamento do clero e a doutrina da Igreja.
Lutero nasceu em Eisleben, na Alemanha, no ano de 1483, teve uma formação severa e sofreu
das angústias existenciais de sua época, com o medo do juízo final, da morte e do tormento eterno,
que refletem, segundo Jean Delumeau (1989, p.66), a angústia da Idade Média agonizante e que
também, explica o sucesso de Lutero, uma vez que, uma grande angústia coletiva diante da presença
da morte e do sentimento de culpabilidade se fazia presente no seio desta sociedade, que vira em

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Graduanda do Curso de História e PIVIC, Universidade Federal de Goiás / Campus Catalão. Programa de
Estudos Medievais (PEM/CNPq).
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Professora Adjunta do Curso de História, Universidade Federal de Goiás / Campus Catalão. Programa de
Estudos Medievais (PEM/CNPq)
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diversos acontecimentos catastróficos, como A guerra dos Cem Anos e a Peste Negra, castigos divinos
para o pecado do povo.
Lutero foi uma criança inteligente e dotada de uma viva sensibilidade, cuja inquietude maior,
surgiu no seu interior, no seu relacionamento com Deus. A este respeito, “o drama de Lutero, sentido
com acuidade do gênio espiritual, é a expressão individual de um drama coletivo, que afeta muitos”
(CHAUNU, 2002, p. 98).
Dessa forma, como colocado, Lutero também sofria das angústias de sua época; tanto que, ao
ser surpreendido por um forte temporal, fizera um voto à Santa Ana de renunciar sua vida secular e
tornar-se monge, se escapasse da morte e assim o cumpriu. Contudo, como compreende Delumeau
(1989, p.85-6), Lutero teria podido facilmente obter dispensa de um juramento arrancado pelo temor;
mas perseverou em seu projeto, por tomar consciência da incerteza de sua salvação, receando morrer
sem estar preparado. Assim, percebemos que o que importava a Lutero, inicialmente, era a salvação
de sua alma.
Homem de elevada erudição, Lutero foi galgando postos eclesiásticos. Seu grande
conhecimento bíblico, bem como seu drama pessoal e, ao mesmo tempo, coletivo acerca das
incertezas da salvação; situação esta que a vida religiosa e as próprias obras piedosas não foram
capazes de suprir, e que o levou a uma nova compreensão acerca dos escritos de Paulo, que declarara
que “o justo viverá pela fé”. Assim, chegou a uma nova fé, que enfatizava a graça e a salvação como
um dom gratuito de Deus, tornando-se desnecessário qualquer sacrifício, qualquer intervenção
humana, inclusive dos clérigos, a qual trouxe um grande conforto à sociedade da época, bem como
inúmeras pessoas de níveis sociais diversos, que optaram pela Reforma.
Assim, conforme Delumeau (1989, p. 59-60), a teologia luterana com ênfase na justificação
pela fé, no sacerdócio universal e na infalibilidade apenas da bíblia alcançou seu sucesso não por
atacar a Igreja e revelar seus abusos, mas por ter sido uma resposta religiosa às necessidades da
época: à grande angústia coletiva que afetava os indivíduos.
De acordo com Chaunnu, por problematizar a percepção cristã da salvação, “a aventura
religiosa de Lutero não foi apenas a aventura de uma época, mas também uma resposta válida para
muitos, noutros tempos” (CHAUNNU, 2002, p.73). Dessa forma, Lutero e sua nova fé marcaram
profundamente a sociedade da época, que se viu liberta das incertezas que lhe atormentava, e
contribuiu fortemente para o cristianismo moderno que estava sendo gestado.
Em 1520, Lutero publicou alguns escritos, considerados polêmicos; mas, que foram a base de
sua doutrina, como é o caso do Da Liberdade do Cristão, escrito com o objetivo de apresentar ao papa
a doutrina bíblica da “justificação pela fé” e Do Cativeiro babilônico da Igreja, que trata especialmente
dos sacramentos e o uso que Roma fizera destes para manter o controle da vida cristã e sua
hierarquia.
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Lutero afirmou em Da liberdade do Cristão paradoxalmente, que “um cristão é um senhor livre
sobre todas as coisas e não se submete a ninguém”; e que, “um cristão é um súdito e servidor de todas
as coisas e se submete a todos” (LUTERO, 1998, p.25).
Tais afirmações podem ser vistas como contraditórias, mas, para Lutero elas concretizam a
liberdade do cristão, uma vez que, segundo sua compreensão bíblica, a mesma fé que salva e liberta o
homem, também lhe cria responsabilidades, fazendo-o submisso a todos por meio do amor voluntário.
Para Lutero (1998, p.49-51), a fé torna a alma livre, mas também a une com Cristo. Ela eleva o cristão,
tornando-o espiritual (sacerdote), e digno de aparecer diante de Deus e rogar pelos outros.
Dessa forma, Lutero se opõe a idéia do sacerdócio ministerial defendido pelo cristianismo
medieval, que delegava aos clérigos o poder único de rogar pela vida das pessoas perante a Deus,
passando a defender o sacerdócio universal, pelo qual todo cristão, poderia se chegar diante de Deus
e rogar para si e pelos outros, colocando como desnecessário a mediação dos clérigos, pois para o
homem se comunicar com Deus era preciso apenas que ele tivesse fé. Assim, Lutero (2006) despreza
o sacramento da Ordem, admitindo que este é um rito eclesiástico, o qual foi e continua sendo uma
maquinação, para consolidar as monstruosidades cometidas dentro da Igreja.
Lutero (2006) negou também os sacramentos da penitência, da confirmação, do matrimônio e
da extrema-unção presentes na igreja medieval, afirmando que estes sacramentos não foram
instituídos por Deus, não sendo mencionados nas escrituras sagradas como tais.
Para Lutero (2006), apenas o batismo e a eucaristia são sacramentos verdadeiros, pois sua
instituição é divina – é mencionada nas Sagradas Escrituras e a promessa da salvação de Deus está
conexa a eles. Apenas esses dois sacramentos têm o “sinal visível da instituição divina”: a água no
batismo e o pão e vinho da eucaristia.
Contudo, ao analisar a instituição da ceia do Senhor à luz de alguns textos bíblicos, como I
Coríntios 11, Mateus, Marcos e Lucas, Lutero (2006) faz diversas observações, apontando para
inúmeros erros da Igreja Romana, na ministração da ceia, que vão contra sua forma original
estabelecida por Jesus, e assim, seu verdadeiro significado e implicação. Como, a ausência do cálice, a
doutrina da transubstanciação e a multiplicação das missas para vários fins.
Para Lutero, a eucaristia é um testemunho divino; um momento de louvor a Deus, que deve ser
atribuída completamente a todas as pessoas, tanto clérigos, quanto leigos. Assim, ele questiona
inicialmente, o fato da Igreja negar aos fiéis a comunhão sob as duas espécies (pão e vinho),
oferecendo-lhes apenas o pão, enquanto Jesus disse claramente “Bebei dele todos”, e ainda: “Este é o
meu sangue, derramado por vós e por muitos para remissão dos pecados”. O sangue é dado a todos,
por cujos pecados foi vertido, inclusive os leigos; de forma que, os sacerdotes não podem tomar do
cálice sozinhos, mas, o devem repartir com toda a Igreja (LUTERO, 2006, p.29).
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Em seguida, Lutero (2006:39) nega a doutrina da Transubstanciação defendida pela Igreja
Católica Romana, desde o IV Lateranense de 1215, mencionando que a eucaristia traz a presença real
de Jesus; “Como ocorre em Cristo, não é preciso que a natureza humana se transubstancie para que a
divindade habite corporalmente nela, mas a integridade das duas naturezas faz com que o homem é
Deus e Deus é o homem”.
Assim, Lutero defende a doutrina da Consubstanciação, que indica a crença na presença real
de Jesus nas espécies do pão e do vinho. E significa que Jesus se encontra presente nas substâncias
do pão e do vinho sem modificá-las / transformá-las. Ao contrário da Transubstanciação que se refere à
transformação da substância do pão e do vinho no Corpo e sangue de Jesus. Na consubstanciação, o
Corpo e o sangue, se juntam ao pão e ao vinho, porém a substância do pão permanece, juntamente
com sua aparência.
Segundo Klaas Woortmann (1997, p.85-7), o problema acerca da eucaristia era antigo, as
dúvidas sobre esta vinham se acumulando há muito tempo, questionando-se a presença divina no seu
ritual. Para o autor, Lutero optou por uma postura de meio-termo: aceitava ao mesmo tempo o mistério
e o testemunho dos sentidos; a hóstia consagrada é ao mesmo tempo pão e corpo de Cristo. O ritual
invocava e efetivamente reconstituía a presença real do corpo e sangue de Cristo na Eucaristia. Assim,
a doutrina de Lutero propunha a presença subtancial real do corpo e do sangue junto com o pão e o
vinho na Eucaristia. Dessa forma, o ponto de vista de Lutero distinguia-se do católico, mas retinha um
componente central da conscepção tradicional da transubstanciação.
Por vez, esse debate teológico acerca da Eucaristia, acabou proporcionando mudanças tanto
na concepção luterana quanto na católica: tanto a doutrina reformulada da transubstanciação (no
Concílio de Trento), quanto a da consubstanciação passaram a pressupor a separação entre a esfera
espiritual-mística e a esfera material-corporea. Todas essas alternativas eliminavam a transcidência e
imanência medieval, assim como o panteísmo (WOORTMANN, 1997, p.91).
Ao analisar o sacramento da Eucaristia, Lutero (2006) o relaciona com a celebração da missa,
que para ele, é o exercício da fé na promessa divina, nada mais do que isso. Entretanto, os sacerdotes,
monges, bispos e seus superiores têm burlado a missa, usando-se de idolatrias, ao invés de fazê-la
apenas em memória de Deus.
Por isso, é erro manifesto e ímpio oferecer ou aplicar missa pelos pecados,
pelas satisfações, pelos defuntos ou por quaisquer necessidades próprias ou
alheias. (...), a missa é promessa divina que a ninguém pode ser proveito, a
ninguém pode ser aplicada, a ninguém pode ajudar, a ninguém pode ser
comunicada, a não ser somente ao próprio crente por meio da fé (LUTERO,
2006, p. 50-51).
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Dessa forma, Lutero menciona o descrédito sofrido pela Igreja, que, passou a negociar a
pregação da palavra, onde os sacerdotes dirigiam missas sobre as necessidades alheias (aniversários
de morte, sufrágios, memórias...), em vez de preocuparem com as questões religiosas. Para ele,
a palavra de Deus é o principal; a ela segue a fé, e à fé, a caridade; assim,
não chegamos à salvação por nenhuma obra, nenhum esforço, nem mérito,
mas, somente pela fé. O autor da nossa salvação não é homem com seus
feitos, mas Deus. (LUTERO, 2006, p.42-3).

Lutero questiona ainda, o fato da Missa ser tida como sacrifício, colocando que é mais seguro
negar tudo que admitir que a Missa é obra ou sacrifício, negando assim, a palavra de Cristo. Para ele, a
eucaristia nós a recebemos, enquanto o sacrifício nós oferecemos.
Conforme a orientação de Jesus “fazei isto em memória de mim…” a ceia é um memorial e não
um sacrifício, e Jesus não está personificado na mesma. Lutero faz ainda, referência à pompa do
cerimonial místico, que buscava valorizar a autoridade dos líderes, iludindo o povo, com os “mistérios
divinos” que os faziam dependentes de seus “sagrados favores” que os permitia oferecer o sacrifício da
Missa, e ter comunhão real com o Cristo.
De acordo com Simon e Benoit, a celebração da eucaristia foi desde o século II, formulada em
termos de sacrifício. A palavra aplicou-se metaforicamente quer à própria comunidade dos fiéis, que se
oferecia a Deus, quer às orações, em particular à oração eucarística. Aplicou-se também aos
elementos – pão e vinho – que compunham a oblação ao Pai e que, consagrados pelas palavras do
oficiante e pela descida do Espírito Santo, se convertiam em alimento sacrifical para os fiéis. A conexão
com a morte de Cristo e o paralelo estabelecido entre a ceia e as refeições sacrificais judaicas e pagãs
contribuíram para que a noção de eucaristia-sacrificio se tornasse cada vez precisa, culminando na
concepção católica de missa (SIMON; BENOIT, 1987, p.186).
As questões levantadas por Lutero com relação ao entendimento da eucaristia como sacrifício
permanecem até hoje, constituindo atualmente um dos pontos fulcrais das controvérsias entre teólogos
católicos e protestantes (SIMON; BENOIT, 1987, p.186).Ainda para Lutero, “assim como é lícito
celebrar a missa em grego, latim e hebraico, também é lícito celebrá-la em alemão ou outra língua
qualquer; sendo importante celebrá-la em qualquer língua popular para que se promova a fé com maior
eficácia” (LUTERO, 2006, p.55),
Assim como a Ceia, Lutero também defende a existência do Batismo como um sacramento,
uma vez que a promessa divina se faz presente nele, “o que crer e for batizado será salvo”. Tendo
ainda, o sinal visível dessa instituição que é a própria submersão na água (Lutero, 2006, p.59; 64).
Para Lutero, o sacramento do batismo foi o único a ser conservado intacto e incontaminado dentro da
Igreja romana, e concordava com esta, no fato de que a realização deste sacramento deve ser feita
logo após o nascimento da criança.
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Entretanto, na visão de Lutero (2006, p.66), não é o batismo que justifica, mas, a fé na palavra
da promessa a qual se agrega o Batismo; isto é, os sacramentos só se cumprem quando são cridos.
Em Da liberdade do Cristão, Lutero condena ainda a crença, nas obras como meio de se
conseguir a justificação eterna, colocando que o cristão justificado por Deus é dispensado das boas
obras, pois somente sua fé lhe basta. As obras só são válidas mediante a fé, são conseqüência dela.
Assim, as boas obras, o servir ao próximo desinteressadamente, são as responsabilidades do cristão
para com a vida terrena, uma vez, que a mesma fé que o liberta, também cria-lhe responsabilidades
(LUTERO, 1998, p.21-3).
Dessa forma, O cristão deve, como conseqüência da fé, praticar as boas obras e zelar pelos
outros, não simplesmente como atos de caridade cristã, como queriam os medievais, mas como atos
de solidariedade humana, nascidos na razão.
Em suma, Lutero desenvolve sua teologia em meio a uma grande crise religiosa, o que o
instrumentalizou a questionar o cristianismo medieval. Como mencionado anteriormente, essa crise foi
parte, ao mesmo tempo constituinte e constituída, de um complexo contexto; um contexto geral de
dúvidas e inovações, entre as certezas evanescentes do medievo e as novas certezas que iriam
configurar um mundo moderno (WOORTMANN, 1997, p. 68).
Assim, o presente trabalho buscou abordar alguns aspectos da teologia luterana e relacioná-
los com a teologia católica medieval, identificando principalmente as rupturas que Lutero fez com
aquele cristianismo e suas propostas, para o cristianismo moderno que estava em ascensão, uma vez
que é notável sua influência na gestação dessa nova religião e de tudo que a envolve.

BIBLIOGRAFIA:

Fontes
LUTERO, Martinho. Da Liberdade do Cristão (1520). Trad. Erlon José Paschoal. São Paulo: Fundação
Editora da UNESP, 1998.

LUTERO, Martinho. Do cativeiro babilônico da Igreja. São Paulo: SP. Editora: Martin Claret, 2006.

Referências Bibliográficas

CHAUNU. Pierre. O tempo das Reformas (1250-1550). Trad. Cristina Diamantino. Lisboa. Edições 70.
2002.

DELUMEAU, Jean. Nascimento e afirmação da Reforma. Trad. João Pedro Mendes. S. Paulo.
Pioneira. 1989.
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SIMON, Marcel; BENOIT, André. Judaísmo e cristianismo antigo: de Antíoco Epifânio a Constantino.
São Paulo: Pioneira: Editora da Universidade de São Paulo, 1987.

WOORTMANN, Klas. Religião e ciência no renascimento. Brasília: Editora Universidade de Brasília,


1997.

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