Você está na página 1de 272

DADOS DE COPYRIGHT

Sobre a obra:

A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros,


com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos
acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim
exclusivo de compra futura.

É expressamente proibida e totalmente repudiável a venda, aluguel, ou quaisquer


uso comercial do presente conteúdo

Sobre nós:

O Le Livros e seus parceiros disponibilizam conteúdo de dominio publico e


propriedade intelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que o
conhecimento e a educação devem ser acessíveis e livres a toda e qualquer
pessoa. Você pode encontrar mais obras em nosso site: LeLivros.site ou em
qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link.

"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando


por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo
nível."
Allan Massie

REI ARTHUR
Título original Arthur the King
Copy right © 1003, Allan Massie
Copy right da tradução © 1004, Ediouro Publicações Ltda. Capa
Ouriço Arquitetura c Design
Revisão Renata Lima
Produção editorial Felipe Schuery

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS) RJ.
M37H Massie, Allan, 1938-
Rei Artur / Allan Massie; tradução Laura Alves e Aurélio Rebello. — Rio de
Janeiro: PocketOuro, 2008.
Tradução de: Arthur the king ISBN 978-85-61706-19-7
1. Artur, Rei — Ficção. Camelot (Lugar lendário) — Ficção. 3. Romances
arturianos. I. Alves, Laura. II. Rebello, Aurélio B. (Aurélio Barroso). III. Título.
CDD: 813
08-3474 CDU: 8x1.111-3

PocketOuro é um selo da Agir Editora Ltda.


Todos os direitos reservados
Rua Nova Jerusalém, 345 - Bonsucesso
Rio de Janeiro - RJ - CEP 11042-235
Tel.: (21) 3882-8200 fax: (21) 3882-8212/8313
NOTA PRELIMINAR

A história do rei Artur tem sido narrada por muitos autores e de muitas maneiras
diferentes.
Esta versão pretende reproduzir a narrativa que o sábio e astrólogo medieval
Michael Scott escreveu para o seu pupilo Frederico II de Hohenstaufen (1194-
1250), Imperador do Sacro Império Romano.
Este livro, embora constitua um todo independente, também é o segundo volume
da minha trilogia sobre a Idade das Trevas (Idade Média), publicada pelas
editoras Weidenfeld & Nicolson e Phoenix. Quem se interessar em saber como e
onde o manuscrito de Scott foi supostamente descoberto encontrará um relato
detalhado na introdução de O Crepúsculo do Munao, primeiro romance dessa
trilogia.

A. M.
Em primeiro lugar para Susan,
como sempre, e em seguida para Claudia.
♦♦♦♦♦♦♦♦♦♦♦♦

LIVRO I
♦♦♦♦♦♦♦♦♦♦♦♦
I

O mar de inverno era cinza; a grama era cinza e a capelinha de pedra no alto da
colina era cinza. Por volta do meio-dia começou a chover, mas os rochedos
ainda ecoavam o ruído dos pés recobertos de malha de armadura, à medida que
os cavaleiros se afastavam do terreiro onde haviam amarrado os cavalos e
rumavam para a faixa de terreno em frente à capeia. Ali algo se destacava. Ao
longe estendia-se um vale pouco profundo e depois o solo tornava a se elevar
bruscamente em direção às muralhas externas do castelo.
Um esquife fora instalado no Grande Salão e nele jazia o corpo do rei Uther
Pendragon, com o rosto à mostra para que todos pudessem ver que se tratava, de
fato, do rei, à espera do sepultamento, assim que a terra se livrasse do domínio da
geada.
Porém os cavaleiros prestavam pouca atenção ao rei, a quem estavam
acostumados a obedecer ou desafiar. Um rei morto é um leão morto, que não se
precisa mais temer: a divindade que o rodeara em vida desaparecera. Uther
Pendragon não mais existia, e toda a Britânia (Grã-Bretanha) se mantinha em
suspense até que o sucessor fosse conhecido.
Diante da capela havia uma pedra e de uma fissura nessa pedra projetava-se
uma espada com o punho incrustado de gemas preciosas: rubis, ametistas,
topázios. Conhecia-se a vontade de Uther Pendragon: quem conseguisse arrancar
a espada da pedra seria o legítimo rei. Assim, durante o dia inteiro, cavaleiro
após cavaleiro fizera a sua tentativa. Cavaleiro após cavaleiro suara e se
esforçara, mas a espada continuava imóvel.
— Está duro como punho de judeu! — resmungou Sir Kay com as mãos
machucadas e sangrando de tanto lutar para desprender a espada.
— Duro como traseiro de rapaz! — grunhiu o seu irmão.
Soaram trombetas. A multidão já se retirava quando se encaminhou até a pedra
um homem atarracado, de aspecto soturno, espesso bigode negro e com a
mandíbula inferior projetando-se além da superior de modo que as duas não se
encontravam. No capacete usava um pequeno aro de ouro e, enquanto galgava a
alameda de pedra, enxugava na franja da túnica as mãos de dedos grossos e
peludos.
— Quem é esse? — perguntavam alguns que não o conheciam.
Mas Sir Kay, que fazia as honras do castelo em lugar do pai, acamado com uma
crise de febre terçã, deu um passo à frente para saudar o recém-chegado.
Encarou-o corajosamente mas não conseguiu sustentar o olhar inflexível que lhe
foi dirigido. Caiu de joelhos e beijou aquela mão peluda, autoritariamente
estendida.
— É o rei Lot, de Orkney — disse alguém. — Com certeza é o homem que
dominará a pedra.
Agora que fora identificado, outros balançavam a cabeça, concordando. Todos
conheciam a fama do rei Lot, poderoso guerreiro que liquidara com os piratas
dos mares do norte. Além disso, era marido de Morgan le Fay, filha de Uther
Pendragon, uma jovem de cabelos ruivos, olhos azuis como centáureas e com o
porte da deusa pagã Vênus Afrodite.
O rei Lot não olhou para a esquerda nem para a direita. Não deu atenção aos
murmúrios da multidão que agora fazia silêncio, em tranqüila expectativa, como
acontece quando um campeão famoso entra na disputa. Lot repeliu Sir Kay e
aproximou-se da pedra. Olhou firme para a espada. Ergueu para o céu os olhos
negros e estreitos e moveu os lábios, talvez pronunciando alguma prece. Cuspiu
duas vezes na mão direita e agarrou aquele punho ricamente adornado.
Puxou, mas a espada não se moveu. Recuou e franziu o cenho, depois avançou
novamente e tornou a agarrar. Forçou e arfou, com o suor escorrendo pelo rosto
moreno e as têmporas latejando. Deu um grito e, pondo também a mão esquerda
na espada, fez uma súbita arremetida para o alto. Mas nada se moveu.
— Deve haver algum truque, alguma feitiçaria —, disse o rei Lot e afastou-se,
irritado e abatido.
— Se Lot fracassou, então ninguém soltará a espada e não teremos rei na
Britânia — ouviu-se uma voz dizer na multidão e um fraco murmúrio de
desalento ergueu-se da assembléia.
Mas ainda assim outros cavaleiros faziam fila para tentar. Tudo em vão. Por um
momento pareceu que o gigantesco Sir Bedivere, homem de compleição taurina,
conseguira fazer a espada mudar de posição. Mas isso não aconteceu e ele
também bateu em retirada, derrotado. Outro cavaleiro, de armadura negra,
esforçou-se e arquejou tanto que desmaiou e foi retirado do local, desfalecido.
Um vento frio soprava do mar e a chuva começava a cair mais pesada. As
sombras da noite se acentuavam. A multidão se dispersava quando se ouviu uma
voz tranqüila indagar se alguém que ainda não fora armado cavaleiro poderia,
mesmo assim, tentar arrancar a espada.
Quem falava era um jovem recém-saído da adolescência. Porte esguio e pele
clara. Cabelos castanhos escuros, num corte extremamente curto. Aspecto geral
modesto. Mas olhou firme para a pedra, com os olhos azuis emoldurados por
cílios longos como os de uma jovem. Os lábios entreabertos em expectativa
revelavam um dente quebrado. Na testa, uma cicatriz em forma de V. Vestia
apenas uma túnica cinza azulada presa à cintura e repuxada de modo a exibir
coxas delgadas porém musculosas.
A multidão riu ao ver alguém de vestes tão humildes e figura tão insignificante
oferecendo-se para quebrar a pedra e Sir Kay gritou para o rapaz, dizendo-lhe
para ir embora e não desperdiçar o tempo alheio.
— Este desafio é para cavaleiros nobres — disse ele —, e não para garotos
imberbes, que deveriam estar freqüentando as aulas ou fazendo as suas tarefas
domésticas.
Mas o sacerdote oficiante interveio e declarou que a vontade de Uther Pendragon
era clara: não havia qualquer restrição para quem quisesse tentar vencer a pedra.
O rapaz deveria ter a sua chance.
Então o jovem deu um passo adiante, entre risos de caçoada da multidão. Mas
não deu atenção a isso. Ao contrário, olhou tranqüilo para a pedra e para o punho
da espada, recoberto de pedras preciosas. Deu uma rápida lambida nos lábios,
projetando a ponta rosada da língua. Então colocou a mão no punho e sem
esforço retirou suavemente a espada da pedra que a prendia. Ergueu-a bem alto,
acima da própria cabeça. Baixou-a até o chão e, segurando o castão, pareceu por
um momento absorto em prece.
Urros entusiásticos da assembléia romperam o silêncio do anoitecer.
— Temos rei, temos rei... O sacerdote perguntou:
— Qual é o teu nome, meu filho? — O rapaz sorriu.
— Na cozinha do castelo onde eu trabalho me chamam por muitos nomes, às
vezes Brat, ou Wat, ou Wart,{1} mas fui batizado como Artur.
— Então, longa vida para o rei Artur — exclamou o sacerdote —, Artur, Rei pela
Graça de Deus.
A multidão recomeçou a gritar, mas fez silêncio quando Sir Kay se adiantou
dizendo:
— Basta! Isto é um disparate!
Em seguida, o rei Lot avançou vigorosamente alguns passos, encarou o rapaz de
alto a baixo e cuspiu no chão entre os pés deste, dizendo:
— Há alguma bruxaria nisto, e loucura também! Quereis ser governados por um
moleque de cozinha, saído das entranhas de alguma devassa qualquer? Será que
ele vai vos liderar na batalha contra os saxões? Não sei como ele arrancou a
espada, mas fez isso de modo fraudulento, tenho certeza. Você aí, pirralho, vem
cá! — disse para Artur.
Mas Artur sorriu e não se mexeu, olhando calmamente para o enraivecido rei de
Orkney que, furioso com tal desacato (assim considerava) avançou e atingiu
Artur com o punho de ferro, de modo que o rapaz caiu ao chão e ali ficou, com o
sangue jorrando pela boca.
— Eis o vosso rei, rastejando na lama — disse Lot. — Ficai sabendo: se o
aceitardes como rei haverá guerra na Britânia. Eu não descansarei enquanto não
o destruir e desmascarar esta trapaça!
II

Esta é a história comumente contada. Constitui — por certo concordareis — uma


bela narrativa; e quando a ouvi pela primeira vez na minha infância, cantada por
um menestrel na torre de Newark, às margens do Yarrow Water, deliciei-me
com ela e não tive motivos para duvidar que fosse verdadeira. Pois sabe-se bem
e ocorre com muita freqüência que os grandes heróis costumam ser obscuros na
juventude e precisam provar a sua índole e afirmar os seus direitos vencendo um
teste que frustre outros homens. E este é indubitavelmente o caso do jovem
Artur, considerado insignificante até o dia em que, dizem, arrancou a espada da
pedra. Até pouco antes ele servira na casa de um cavaleiro que atende por
diferentes nomes mas que era o senescal do tal rei Vortigern que
imprudentemente convidara os reis saxões Horsa e Hengist a se estabelecerem
em Kent (que alguns chamam de “o jardim da Inglaterra”) e que depois serviu
como estribeiro-mor do próprio Uther Pendragon. E naquela casa, Artur, filho de
pais desconhecidos, era considerado medíocre. Tratavam-no como criado,
confinando-o a tarefas humildes — limpar arreios, varrer chão etc. Ninguém
imaginava que ele se tornaria um guerreiro famoso. Ninguém imaginava que
seria um guerreiro de qualquer tipo. E entre um pontapé e outro, Sir Kay, o filho
do castelão, freqüentemente o acusava de só prestar para servir a mesa ou a
algum sacerdote.
Ninguém sabia, ou não conseguia se lembrar, como Artur chegara àquele castelo
no oeste. Embora vivesse ali, jamais perdera o sotaque doce dos Scottish Borders;
e como os escoceses eram considerados bárbaros rudes, ele sofria caçoadas e
insultos também por esse motivo.
Pois foi esse rapaz que arrancou a espada da pedra, apesar de terem fracassado
homens adultos, cavaleiros experientes e reis poderosos. Com a vossa aguda
inteligência, meu Príncipe, inteligência que fico feliz em ver crescer cada dia
mais cética, duvidareis desta história. Mas apesar de tudo, é claro que pode ser
verdadeira. Coisas estranhas acontecem por motivos inexplicáveis. Quanto a isto
não há controvérsia. No entanto, se suspeitardes de alguma fraude e
simplesmente rejeitardes a narrativa, talvez estejais certo.
Por trás da história move-se furtivamente a misteriosa figura de Merlim. (Em
alguns relatos ele também se movia furtivamente no adro.) E Merlim precisa de
uma certa explicação. Quem era? O que era?
Geoffrey (ou Godofredo) de Monrnouth, autor de uma História dos reis da
Britânia, escrevinhador de uma audácia ímpar, faz este relato.
Mas em primeiro lugar algumas palavras sobre esse Geoffrey. Algumas pessoas
— tolas — tratam a sua obra com uma reverência só devida a grandes
historiadores como Lívio, ou mesmo Júlio César. Mas devo chamar a vossa
atenção para o julgamento pronunciado pelo meu velho amigo Guilherme de
Newburgh,{2} homem de retidão incontestável. “Fica muito claro”, escreveu
Guilherme, “que tudo o que esse tal Geoffrey escreveu a respeito de Artur e dos
sucessores deste, ou mesmo a respeito dos seus antecessores a partir de
Vortigern, foi formulado em parte por ele mesmo e em parte por outros, seja por
um amor incomum pela mentira, seja para agradar os bretões” (o meu amigo
queria dizer galeses, um povo grosseiro, dizem alguns, que roubou dos meus
rincões escoceses as melhores canções e histórias).
Bem, então esta é a história de Merlim como Geoffrey a conta, e de como
Merlim alcançou proeminência.
Aconteceu no tempo do rei Vortigern, cidadão romano pertencente a uma antiga
família real britânica. Vortigern liderara uma rebelião contra o imperador
Constâncio e fundara um reino independente. Então, como o seu governo era
precário, convidou os saxões (como já mencionei) para se estabelecerem em
Kent a fim de protegerem a costa da Britânia de outros invasores. Tolice: foi o
mesmo que convidar o lobo para proteger as ovelhas de outros predadores.
Assim, pouco depois, os saxões, desprezando Vortigern, voltaram-se contra ele,
prenderam-no, ataram-no com cordas e o obrigaram a ceder-lhes grande parte
do reino em troca da própria vida. Tudo isso está bem comprovado e não
precisamos confiar em Geoffrey como sendo a nossa única testemunha ou
autoridade.
Vortigern ficou extremamente apavorado e perdido, sem saber o que fazer.
Assim, convocou os conselheiros, a quem Geoffrey qualifica de “mágicos”
embora fique claro, no seu próprio relato, que tais homens eram ignorantes e
tolos, que desconheciam a magia, uma arte ou habilidade que requer profundo
estudo para ser dominada. Aconselharam-no a construir uma torre sólida, para
onde pudesse se retirar caso perdesse todas as outras fortalezas; e Vortigern, cuja
compreensão da arte da estratégia de guerra era evidentemente fraca,
considerou bom esse conselho. Convocou os seus pedreiros e pô-los para
trabalhar no local que escolhera nas montanhas ao norte do País de Gales. Mas
Geoffrey nos conta que, quando começaram a fazer as fundações da torre, tudo
o que se cavava de dia era engolido à noite, de modo que o trabalho não
avançava.
Vortigern, então, tornou a consultar os mágicos quanto ao que deveria ser feito. E
eles lhe disseram que procurasse um rapaz sem pai, depois matasse o rapaz e
aspergisse as pedras e a argamassa com o sangue deste. Diziam que depois disso
as fundações ficariam firmes.
Ora, apesar de no relato de Geoffrey, Vortigern ser um cristão que se
entristecera ao saber que os saxões veneravam deuses pagãos — Wotan (a quem
alguns chamam de Voden), Thor e Frey a —, ainda assim considerou bom esse
conselho absurdo e procurou segui-lo, enviando mensageiros por todo o país para
achar o tal rapaz. Em uma cidade chamada Kaermerdin, hoje Carmarthen,
depararam-se com dois rapazes discutindo a respeito de um jogo. Um atingiu o
outro acusando-o de insolente por brigar com ele, uma vez que o primeiro tinha
sangue real, enquanto o outro “ninguém sabe quem tu és, pois nunca tiveste pai”.
Os mensageiros indagaram mais e ficaram sabendo que aquilo era verdade,
embora a mãe fosse filha de um rei galês e então residisse em um convento
perto da igreja de São Pedro.
Foram buscá-la, sem dúvida sob protestos, e trouxeram-na junto com o rapaz até
Vortigern, que a inquiriu cuidadosamente quanto à origem do filho.
A mulher respondeu:
— Pelo Deus vivo, meu rei e senhor, eu jamais tive relações com homem algum
que me fizesse ter este filho.
Mas aconteceu que no convento às vezes fui visitada, no finai da tarde, depois do
pôr-do-sol, por um ser que adquiria a forma de um belo rapaz, de cabelos
ondulados de um vermelho dourado e uma voz agradável e melodiosa. Às vezes
ele me envolvia nos braços e me beijava e depois desaparecia, embora a porta e
as janelas permanecessem fechadas. Em outras ocasiões, quando eu estava
sozinha trabalhando na minha tapeçaria, ele me falava, apesar de eu não poder
vê-lo. E, apesar de invisível, a sua fala era toda amor; e assim ele me
engravidou. Portanto, meu rei e senhor, deveis decidir com a vossa sabedoria
quem foi o pai do meu filho porque eu vos juro pela Santa Cruz que sob nenhuma
outra forma e nenhum outro disfarce tive relações com qualquer homem.
Vortigern coçou a cabeça. (Todas as provas sugerem que ele era um homem que
se assustava facilmente, um homem que ficava desnorteado, que assumira
honras e um título que lhe chegaram pelo acaso e não pelo mérito.) Chamou um
conselheiro sábio, um certo Maugantius, de quem Geoffrey só sabia o nome, que
declarou o seguinte:
— Nos livros escritos pelos nossos sábios e em muitas histórias ouvi falar desses
nascimentos misteriosos. Apuleio, no seu tratado De Deo Socratis, afirma que
entre a lua e a terra vivem espíritos, íncubos, a quem denominamos demônios.
Têm a natureza dividida, parte homem, parte anjo, e, quando decidem, adquirem
a forma de homens e têm relações com mulheres que, sendo todas filhas de Eva,
são sugestionáveis e abertas à corrupção e sucumbem e, na verdade, recebem de
bom grado tais investidas. Na minha opinião, foi um desses que apareceu para
essa mulher e gerou o rapaz.
Então, segundo Geoffrey, o rapaz (Merlim) aproximou-se do rei e perguntou por
que ele e a sua mãe haviam sido levados até ali. Vortigern relatou o conselho que
recebera dos mágicos com certa satisfação pois, segundo dizem, era daqueles
que se deliciam infligindo dor. No entanto, se esperava que o rapaz mostrasse
terror ante à idéia da morte iminente, ficou decepcionado; Merlim sorriu,
supostamente de modo sinistro, e disse:
— Chamai até aqui os vossos mágicos e eu provarei que são impostores.
E assim foi feito; quando os mágicos estavam reunidos, Merlim falou o seguinte:
— Como sois ignorantes e não sabeis por que a torre não pode ser construída,
dissestes ao rei que o meu sangue deveria ser aspergido sobre a pedra e a
argamassa. Gostaria de saber que bobagem ireis maquinar em seguida, quando
descobrirdes que esse remédio não funcionou. Mas eu tenho uma pergunta mais
simples para vos fazer que, se de fato fordes mestres da magia, sereis capazes de
responder. O que há por baixo dos alicerces dessa torre?
Não deram resposta, pois não sabiam. Então Merlim disse:
— Meu rei e senhor, chamai os vossos trabalhadores e ordenai-lhes que cavem
mais profundamente. Encontrarão um lago. E por isso que os alicerces não ficam
estáveis e a torre não pode ser construída.
A sua convicção era tamanha que o rei atendeu ao pedido e assim se descobriu o
lago. Merlim disse:
— Então, sábios mágicos, o que há por baixo do lago? Mais uma vez ficaram em
silêncio.
— Drenai o lago e encontrareis dois dragões dormindo sobre uma rocha.
— Que dragões são esses? — indagou o rei, espantado.
— O dragão vermelho da Britânia e o dragão branco da Germânia — respondeu
Merlim.
Ora, Geoffrey não nos diz se esses dragões foram, de fato, descobertos. Em vez
disso, empreende uma longa narrativa daquilo que intitula “as profecias de
Merlim”, em que o destino dos dragões é adaptado à história da Britânia. Há
muita verdade nessas profecias, como se constata ao se penetrar sob a superfície
da linguagem e do estilo deliberadamente opaco.
E isso não deveria vos surpreender, uma vez que, como tantas profecias, estas
foram inventadas retrospectivamente.
Todavia, apesar de boa parte da narrativa de Geoffrey não passar de uma triste
bobagem, há ali um substrato de verdade; e, de fato, como vos relatarei, Merlim
foi um homem notável que fez maravilhas e foi um político astuto.
III

Alguns, por ignorância, qualificam Merlim de simples mágico, praticante das


formas mais vulgares das artes ocultas; e na verdade é sob essa aparência que o
ridículo Geoffrey o mostra. Outros mais imaginosos afirmam que ele era um
druida, talvez o último dos druidas, sacerdotes que serviram aos bretões à época
em que as legiões romanas penetraram pela primeira vez nestas ilhas. Vós lestes,
meu príncipe, o relato do grande César sobre esses sacerdotes que se reuniam
em bosques de carvalho, previam o futuro e realizavam sacrifícios humanos nos
dois solstícios e, segundo afirmam algumas autoridades, também na lua cheia.
Mas sabe-se bem que os druidas foram forçados a se refugiar na Ilha de
Anglesey, que os romanos chamavam Mona, e ali pereceram em um ato
pecaminoso de suicídio em massa. Portanto, é absurdo sugerir que Merlim, que
viveu várias centenas de anos depois, fosse um desses homens iludidos. A
verdade é outra.
Lembrareis, a partir do meu relato anterior,{3} que quando Marcos escapou da
prisão em Constantinopla, onde fora confinado, veio para a Britânia a conselho do
seu leal amigo Sir Gavin e foi recebido com alegria pelo rei moribundo, em uma
cidade denominada Winchester, e então reinou no lugar desse rei, depois que o
fraco, lascivo e covarde Imperador Honório retirou da Britânia as suas legiões.
Ora, sucedeu que três coortes da Vigésima Legião, baseadas em Chester para
proteger o mar irlandês, deixaram de atender à convocação do imperador, talvez
por estarem muito distantes do corpo principal da legião, ou porque tivessem sido
enviadas mais para o norte e assim não receberam o chamado ou, como dizem
alguns, porque se amotinaram e os soldados se recusaram a deixar as suas
mulheres britânicas e assassinaram o emissário que tentava impor o comando
imperial. Seja lá como for, ficaram para trás e os seus centuriões assumiram
total autoridade. A sós, e envolvidos em combates, sobreviviam com dificuldade.
Marcos soube disso e enviou Sir Gavin ao norte para convocá-los a lhe
integrarem os exércitos. Para tais homens, alguns já curtidos pelo tempo e
sofrendo as dores e as mazelas da idade avançada, foi uma grande alegria saber
que um verdadeiro romano retornara à Britânia e se tornara Imperador. Assim,
correram rumo ao sul.
O menino Merlim estava entre eles. Era filho de um centurião de nome Macro
com uma mulher de Ettrick Forest, na atual região de Scottish Borders. Alguns
dizem que o verdadeiro nome do menino era My rrdin, cognato do francês merde
e que significa “merdinha”. Mas não é assim; este foi apenas o apelido que lhe
deram outras crianças do acampamento, que achavam o menino estranho, sujo e
antipático. Na verdade, ele era um solitário por natureza, coisa que outros
meninos habitualmente temem e repudiam.
Se esta narrativa fosse ficção, eu vos contaria dos notáveis poderes que Merlim
demonstrou ainda criança. Mas como nada escrevo além da rigorosa verdade,
devo refrear tais invenções. O jovem Merlim distinguia-se não apenas por ser
desajeitado mas também por gaguejar, ser avesso à sociabilidade e por ter um
olho azul e o outro castanho. Além disso, costumava fazer gestos espasmódicos,
ter tiques nervosos e uma rara deselegância.
Talvez por ter consciência da própria esquisitice, Merlim dedicava-se com
extraordinário ardor a servir a Mitra, o deus dos soldados.
Foi Liças, antigo parceiro de cama e amante de Marcos, e então seu amigo mais
íntimo e mais leal seguidor, quem chamou a atenção de Marcos para o jovem
Merlim. Liças notara Merlim pouco depois da chegada deste ao palácio e sentira
aversão, pois amava a beleza. Mas também tivera pena do menino.
Então, certo dia, descendo ao pátio, viu um grupo de jovens maldosos atirando
pedras em um velho mastim ali acorrentado. Liças estava prestes a censurá-los
quando o menino Merlim, dando um grito de raiva ou indignação, lançou-se
sobre o cabeça do grupo que por sua vez o derrubou ao chão e o cobriu de chutes.
Liças correu até lá e atingiu o jovem com um forte golpe na orelha. Repreendeu
o grupo chamando-os de estúpidos, patifes e desgraçados com tanta veemência
que todos foram saindo de mansinho. Enquanto isso, o menino Merlim rastejara
até o cachorro, cuja cabeça, ferida e sangrando, acalentava entre os braços.
— Precisamos cuidar do cachorro e depois de ti — disse Liças.
O menino Merlim era rude. Liças, cujos gostos haviam sido refinados pela
convivência com Marcos e Artemísia, não conseguia ficar à vontade com ele.
Merlim parecia-lhe um animal selvagem, um ente dos bosques apanhado na rede
de algum caçador, pronto para morder até mesmo a mão estendida para ajudá-
lo. E no entanto, como disse para Marcos, “ali havia algo”. Se o olho azul do
menino parecia vazio, o castanho olhava o mundo com uma intensidade
apaixonada. Passavam-se dias em que Merlim raramente se movia; ficava
deitado sobre os juncos, sugando o polegar ou se pressionando contra um dos
mastins. Só os cães pareciam compreendê-lo, entrosar-se totalmente com ele.
Em outras ocasiões, quando falava no seu canhestro latim vulgar, as palavras
eram gnômicas.
Foi a cega Artemísia quem o pegou pela mão, insistiu para que lhe ensinassem a
ler e escrever, corrigiu-lhe o latim e mandou-o instruir na ciência da astrologia.
— Ele tem qualidades raras — disse Artemísia e à época outros foram obrigados
a concordar. Além disso, Artemísia defendeu-o dos sacerdotes que queriam
condená-lo à morte por ainda venerar deuses pagãos. Mas Artemísia disse: —
Embora declareis que só vós conheceis o verdadeiro Deus e seguis a única e
verdadeira Fé, sábios de outros tempos e de outros países falaram com igual
certeza e foram recompensados pelos seus deuses com o êxito em todo tipo de
aventura. Então, quero crer que há muitos caminhos pelos quais podemos chegar
à verdade e obter conhecimento.
Ao ouvirem isso, os sacerdotes quiseram acusar a própria Artemísia de heresia,
mas Marcos os proibiu.
Como sabeis, meu Príncipe, a Santa Igreja concordaria com aqueles sacerdotes
que queriam levar Artemísia a julgamento. Mas aqui em Palermo temos súditos
árabes que obedecem à regra de Maomé e sustentam que o Cristo Jesus é
meramente um dos profetas; e esses seguidores do islamismo, a quem os cristãos
qualificam de infiéis, são leais à própria fé e muitos são homens virtuosos que
obedecem à vossa lei real. Portanto, não vos apresseis em condenar aqueles que
seguem outros caminhos, mas julgai os homens pelas suas ações e não pelo Deus
ou deuses que veneram.
Merlim aderiu a Mitra, o Deus das Legiões, declarado como Mediador entre o
Deus desconhecido e a raça humana que sofre aqui na terra, o espírito da luz
celestial, que concede crescimento e abundância, cuida dos rebanhos e dá
fertilidade e vida.
E Marcos, ouvindo as palavras do menino, protegeu-o, pois elas poderiam ser
verdadeiras, e além disso lembrou-se de conversas que tivera com aqueles que
veneravam Mitra. E assim Merlim cresceu em força e sabedoria; e Marcos, que
então segundo os desejos dos britânicos assumira o trono, buscava o conselho de
Merlim em relação a todos os grandes empreendimentos. Mas muitas vezes
Merlim desaparecia em florestas ou lugares desertos durante meses ou até
mesmo anos; pois era da sua natureza reforçar o espírito na solidão.
A Britânia florescia no governo de Marcos. Homens importantes viviam felizes
em suas propriedades. O milho era colhido em paz. O gado branco pastava pelos
prados, vigiado não por guardas armados mas por jovens pastores solitários. As
colinas ressoavam o balido das ovelhas. O comércio revivia, os mercadores não
receavam cruzar as estradas e as cidades floresciam. Os saxões, sangrentamente
rechaçados, não mais ousavam atacar de surpresa; e Marcos firmou tratados
estabelecendo vínculos de amizade com os escoceses e os pictos. Na verdade foi
uma época abençoada, e assim lembrada por muito tempo.
Mas Marcos não conseguia esquecer que era romano. Houve um ano em que
todas as noites, durante uma semana inteira, ele sonhou com a Itália e com levas
brancas de fortes touros purificados no rio sagrado, Clitumno, sendo levados para
os templos dos velhos deuses de Roma. E de repente lembrou-se que a sua cidade
estava entregue aos godos. E pensou: “Com certeza a minha tarefa aqui acabou,
e a minha tarefa mais nobre ainda nem começou”. Artemísia procurou dissuadi-
lo e Liças também. — Estamos envelhecendo — disse Liças — e aventuras
como a que tu propões são para jovens e, de fato, nós já desfrutamos o nosso
quinhão em nossa juventude.
Marcos sentiu a força dessas palavras, mas ainda assim o seu espírito inquieto
não conseguia se apaziguar. Então enviou arautos para convocar todos os barões,
cavaleiros e vassalos a se reunirem em Dover. E quando estavam todos juntos
(cavaleiros dos longínquos distritos do centro da Britânia, arqueiros das
montanhas galesas, vigorosos lanceiros dos Scottish Borders e duas legiões
provenientes dos condados do leste e treinadas para lutar à antiga maneira
romana, com dardos, espada curta e escudo), Marcos dirigiu-se a eles assim:
— Soldados, somos todos filhos de Roma. Eu mesmo sou descendente do grande
Enéias a quem, nos diz o poeta, os velhos deuses prometeram um império sem
fim. Aqueles deuses se foram; hoje vivem apenas nas florestas escuras da
memória. O Império, hoje, é cristão e segue a verdadeira fé em um verdadeiro
Deus. E, no entanto, atravessa tempos ruins. O lobo que em certa época foi
guardião de Roma hoje saqueia a cidade e macula lugares antes sagrados. O
sucessor de São Pedro, assaltado por bárbaros, nos clama por socorro. A espada
que ora ergo em sua defesa é a espada do Senhor dos Exércitos e da Justiça.
Portanto, eu vos convoquei para uma cruzada, uma guerra santa, para restaurar a
paz em toda a Europa, que é romana, a fim de que a Gália, a Itália e a Espanha
possam novamente florescer como hoje ocorre com a Britânia. Aquele que se
sentir indigno desta grande causa que se retire, pois seremos mais fortes sem ele.
Porém todos os que ficarem devem decidir marchar comigo e combater do
modo digno dos nossos ancestrais e de Roma.
Quando Marcos acabou de falar ninguém se retirou, pois todos sabiam que seria
uma vergonha abandonar o Imperador. No entanto, Liças percebeu no ar uma
certa amargura, viu que entre as flores havia ervas daninhas. Teve um mau
pressentimento e naquela mesma noite Vortigern, conde da Saxônia, fugiu do
acampamento levando consigo o rei Lot, de Orkney, e todos os homens deste,
pois percebeu que, com Marcos além-mar, poderia se apoderar do trono. E Lot o
acompanhou porque Vortigern argumentou que Marcos fora seduzido pela
vaidade e pela ambição a deixar a Britânia indefesa.
Alguns dizem que a expedição foi amaldiçoada desde o início. No entanto,
Marcos recebeu com tranqüilidade a notícia dessas deserções.
— Quanto menor o número de homens, maior a cota de honra —, garantiu aos
que permaneceram; e isso satisfez a muitos que desejavam ardentemente a
glória. Mas Liças sofreu, embora em público sorrisse.
Atravessaram para a Gália e travaram muitas batalhas contra os bárbaros, saindo
vitoriosos em todas. No entanto, a cada batalha a força diminuía, apesar do
aumento do entusiasmo. Cada batalha e cada milha avançada rumo às
montanhas situadas entre a Gália e a Itália faziam Marcos parecer mais sereno
diante das tropas, como se carregado pelas asas de um espírito confiante.
Então, em um passo dos Alpes, quando o exército marchava em coluna, violentos
montanheses atiraram-se sobre eles e liquidaram a retaguarda, destruindo-a. Os
remanescentes desceram para uma planície encoberta pelo nevoeiro, onde
foram atacados por febre, disenteria e peste. Ali alguns se amotinaram e
juraram não prosseguir, mas Marcos mantinha o olhar fixo em Roma.
Alguns se aproximaram de Liças e disseram que o Imperador estava doente;
outros alegaram que ele estava louco e os destruiria a todos. Liças disse:
— Quem quiser que deserte, eu ficarei. Atravessaram aldeias e cidades então
despovoadas, campos despojados de rebanhos e manadas, vinhedos onde não
mais se fazia vinho, capelas caindo em ruínas, estradas construídas pelas legiões
e onde agora crescia o capim. Em determinado local — dizia-se que perto de
Terni — Artemísia morreu e foi sepultada. Ergueram uma cruz sobre a sua
sepultura, rezaram, mas ainda assim Marcos prosseguia vigorosamente em
direção a Roma. A essa altura, apenas um punhado de homens permanecia com
ele.
Afinal, conseguiram avistar a cidade. Encontraram ciprestes e hera crescendo
nas muralhas, ervas daninhas emaranhadas a goivos. Viram colunas caídas e
quebradas, os grandes aquedutos despedaçados, templos destelhados e igrejas
com portas abertas, balançando ao vento.
— Hoje, Roma é Tróia — disse Marcos; e cavalgaram lentamente naquilo que
antes fora o Fórum. Ali descansaram, pois o Imperador estava muito
enfraquecido. Marcos mandou um emissário ao Papa para comunicar a sua
chegada. Enquanto esperava resposta, Marcos estirou-se no que fora o Caminho
Sagrado e olhou para o céu, onde pairavam falcões e outras aves que se
alimentam de carniça.
IV

Pouco depois o mensageiro retornou dizendo que o Santo Padre não conhecia
Imperador algum, pois as chaves da cidade haviam sido entregues ao Bispo de
Roma pelo grande Constantino; mas se o pretenso Imperador vinha como
peregrino, seria bem-vindo e poderia se acomodar em alguma taverna. Ao ouvir
isso, os poucos soldados que permaneciam com Marcos depuseram as armas e
desapareceram na noite. Liças, que ficou sozinho com o seu amante e senhor,
ajudou Marcos a se pôr de pé e juntos deixaram o Fórum às escuras e
atravessaram o teatro que Augusto erguera em homenagem ao seu amado
sobrinho Marcelo; e ali, na rua que leva o nome da irmã do Imperador, Otávia,
entraram em uma taverna modesta.
Liças disse para a judia que tomava conta do estabelecimento:
— Por favor, arranja-nos um cantil do melhor vinho que tiveres.
— Agora há pouco vinho bom porque há poucos operários para cuidar das
parreiras que precisam ser cuidadas. No entanto, tenho um barril de um vinho de
Marino, das colinas da Albânia, que é um bom vinho quando está fresco e é
bebido novo, como este — disse a mulher.
— Muito bem, então traz-nos um cantil e dá-nos pão e queijo para acompanhar
pois o meu amigo está fraco e muito cansado — disse Liças.
Então sentou-se ao lado de Marcos que, em silêncio, conservava o manto à volta
dos ombros e sobre a cabeça. A mulher pousou diante deles o vinho, o pão e o
queijo, que era aquele queijo feito com leite de ovelha, que os romanos chamam
de pecorino, e também um prato de azeitonas pretas; e desejou-lhes bom apetite.
Persuadido pelos agrados de Liças, Marcos bebeu um pouco de vinho e comeu
um pedaço de pão com queijo. Pegou uma azeitona e disse:
— Como fomos tolos, Liças, de viver em uma terra onde não crescem oliveiras.
Então ficou em silêncio novamente, e por um certo tempo Liças não ousou falar
pois percebeu que Marcos relembrava tempos felizes.
— Caímos em desgraça — disse Marcos.
— E verdade — retrucou Liças —, mas muitas vezes te ouvi dizer que enquanto
conseguirmos falar da desgraça, podemos evitá-la.
Marcos disse:
— A que devemos culpar, a não ser ao meu desejo irracional? Ele me leva tão
alto e voa pelos céus até atingir a esfera do fogo que lhe queima as asas, assim
como as asas de Ícaro, feitas de cera, derreteram com o sol; e depois, incapazes
de me sustentar, deixam-me cair, afundando-me na terra. E contudo não é este o
fim da minha tentativa, pois o meu desejo, que alguns equivocadamente
chamam de ambição, faz brotar novas asas que se queimarão novamente; e
portanto parece-me que a minha ascensão c a minha queda jamais terão fim.
Liças não retrucou pois lhe parecia que Marcos esquecera da sua presença e que
as palavras proferidas eram de meditação dirigida a si mesmo, talvez uma
censura.
Mas um velho, sentado a um canto da taverna e tendo diante de si uma tigela de
sopa, sopa de peixe que cheirava forte a alho e a mar, ergueu a cabeça ao ouvir
as palavras de Marcos e se aproximou dos dois. Fez um gesto como que pedindo
permissão para se sentar com eles e, quando Liças fez-lhe um aceno, como
sempre amigável e hospitaleiro, o velho, vestido com uma túnica de lã
semelhante às que os pastores usavam na Arcádia, sentou-se e disse:
— Percebo o desespero em tuas palavras, o desespero de um homem que anseia
pela morte e descobre que sempre se esquivou pelos cantos. Ainda não te
ocorreu que a verdadeira imagem da realidade do mundo é uma alcachofra
cheia de muitas camadas pontiagudas, cada qual densamente superposta sobre a
outra? A partir daí, deduz-se que nada pode ser explicado quando se procura
apenas uma causa única para todos os efeitos, uma vez que todo efeito é
determinado pela multiplicidade das causas e que cada causa possui muitas
outras à espreita, prontas para se manifestar. Não sei por que estás em Roma e
procurando a morte, mas não faz sentido atribuir a causa a um desejo irracional,
uma vez que nenhum desejo pode existir, ou seja, brotar na tua consciência, sem
que haja ali várias causas; e como cada uma dessas causas é uma razão, nenhum
desejo pode ser adequadamente qualificado de irracional. Marcos respondeu:
— Não é a morte que busco, mas o sono. E o velho replicou:
— E não é o nosso sono mais doce aquele que mais se parece com a morte, em
que ficamos livres dos sonhos? Ao passo que o sono que nos perturba é leve,
inquieto e atormentado por imagens, narrativas interrompidas e aventuras
incompletas. Na minha opinião, este sono é a verdadeira imagem da vida.
— Onde é a tua morada? — indagou Marcos. Liças ficou satisfeito ao perceber a
curiosidade do amigo, pela primeira vez em muitos dias.
— Nasci na Sicília, mas a minha morada é pela estrada afora.
— Ouvi dizer que todos os sicilianos amam a morte e se esforçam para tornar a
vida o mais semelhante possível à morte — disse Liças.
— Em Cumas reside a Sibila, e quando lhe perguntavam qual o seu desejo ela
respondia “desejo a morte”, que lhe foi negada. De igual modo, homens prestes
a morrer podem desejar que a vida se prolongue. Somos feitos para desejar
sempre que a moeda caia do outro lado — disse o velho.
Mas embora o Papa negasse a Marcos o título imperial, que era seu por
nascimento e mérito, a notícia da sua chegada à cidade restaurou as esperanças
de outros, pois em Roma ainda viviam membros da velha nobreza, que haviam
perdido boa parte das suas grandes propriedades mas continuavam atentos ao que
haviam sido os seus antepassados e ao que eles próprios deveriam ser. Então,
quando alguns desses homens ouviram falar que o Imperador retornara a Roma,
foram procurá-lo.
Três vieram vê-lo na taverna onde ele estava doente. Era inverno. O vento norte
soprava trazendo o frio das montanhas e a neve caía pesada nas colinas da
Albânia. Os três, cujos nomes — Cúrio, Nepos e Metelo — lembravam os
grandes dias da República e o início do Império, eram todos jovens, ardorosos e
envergonhados de viver sob o domínio clerical.
— Talvez os nossos antepassados fossem pagãos, obedecessem a deuses falsos,
como nos ensinam os sacerdotes. E no entanto, enquanto agiam assim e
homenageavam Júpiter, Roma floresceu. Agora, sob o sucessor de Pedro, vigário
de Cristo, tudo caiu em ruínas — disse um deles.
— Ainda existe um Império no Oriente — lembrou aos amigos o segundo,
Nepos.
— De fato, sim, eu visitei Constantinopla e posso testemunhar a sua grandeza.
Mas ali o Imperador é o Senhor dos Sacerdotes e, de fato, é o Pontifex Maximus
da velha Roma. Mas aqui esse cargo foi usurpado pelo bispo, e aqueles que
deveriam simplesmente rezar, como nos velhos tempos em que realizavam
sacrifícios e auscultavam os auspícios, hoje exercem o imperium que de direito
pertence a homens de berço — falou Metelo.
Os três bravos jovens estavam confusos, e não é de admirar. Haviam sido criados
ignorando a história e o que sabiam era apenas o que a memória fragmentada
re-tivera e lhes transmitira. Contudo, discerniam mais do que, na verdade,
compreendiam, e percebiam a iniqüidade e a perversão do poder ao qual eles e
as suas nobres famílias haviam sido compelidos a se submeter. Assim,
procuraram Marcos, cuja fama chegara até eles, embora de modo vago.
Quando Liças entendeu as intenções dos jovens, teve medo. A sua experiência o
libertara de toda ilusão e ele compreendeu que a visão de mundo dos jovens era
vã porque não encarava as coisas como realmente são. Liças tentou explicar isso
aos jovens e implorou-lhes que voltassem para casa e vivessem tranqüilos. E
disse:
— Em todo caso, o Imperador a quem buscais está velho c doente. O seu
domínio sobre a vida é incerto.
Os jovens trocaram olhares preocupados.
— Então, não importa. Só queremos falar tranqüilamente com ele e prestar-lhe
uma homenagem — disse Cúrio, o mais alto de todos.
Então Liças, que olhava favoravelmente para Cúrio, talvez devido à semelhança
deste com Marcos quando jovem, consentiu. Mas ao fazer isso advertiu-os a não
buscarem ajuda alguma de Marcos para qualquer iniciativa que tivessem em
mente.
Conduziu-os até um quarto no interior da taverna. Marcos estava deitado sobre
um colchão e a luz da lanterna ao seu lado acinzentava-lhe o rosto, como se ele
já tivesse cruzado o portal da sombria terra dos mortos. E quando falou foi em
voz fraca, no latim de um mundo que desaparecera. Ajoelharam-se diante dele
chamando-o de Augusto. Marcos ouviu essa palavra e um sorriso cansado, como
o sol que irrompe momentaneamente no céu em meio a uma tempestade,
reconheceu-lhes a intenção e revelou-lhes toda a sua desesperança.
Depois falou com dificuldade, pois tinha pouco fôlego e estava muito fraco:
— Quando atravessei os Alpes rumo à Itália, os meus sonhos eram exatamente
como os vossos. Mas depois acordei no vale do Tibre, quando aquela que antes
era Roma se ergueu diante de mim e aquilo que eu sonhara revelou-se inútil.
Louvo o vosso espírito, mas não encontrareis homens na Itália que os
acompanhem na batalha. Roma viverá, Roma será revivida. Isto é certo, pois foi
prometido e ordenado. Mas deveis olhar para o norte, para a Britânia e para a
Gália, e até mesmo, talvez, para a Germânia, pois é nessas terras que nascerá
um novo espírito...
Então disse a Liças que pedisse vinho para os jovens e fechou os olhos. Os três se
retiraram para outro aposento, sentaram-se diante do vinho e partiram o pão da
tristeza. E enquanto faziam isso e debatiam o que poderia ser feito a seguir,
ouviu-se alguém bater com força à porta da taverna. E quando esta se abriu, um
destacamento da Guarda Papal entrou e o centurião comandante deu voz de
prisão aos jovens nobres. Cúrio puxou a espada e teria resistido mas dois guardas
o pegaram por trás e outro atingiu-lhe a cabeça, fazendo-o cair ao chão. Os seus
amigos foram presos com grilhões e Cúrio foi erguido do chão, inconsciente, e
também amarrado. Liças também foi capturado, dois outros guardas entraram
no quarto e arrastaram Marcos do seu colchão e ataram grilhões aos seus punhos.
Foram todos levados para o mausoléu do Imperador Adriano, que servia de
prisão papal, e lançados a uma cela escura.
Dois dias depois, os três nobres foram retirados da prisão e, ainda algemados,
enfiados em sacos, cada qual contendo um frango vivo e uma víbora, e então
lançados ao rio, de uma ponte que liga o mausoléu à cidade. Mas por enquanto
Liças foi salvo para ser submetido a inquérito por parte dos oficiais encarregados
da investigação de heresia. Como herege e sodomita, o condenaram a ser
queimado em um poste no Campo de Marte.
Não sobrevive registro algum do destino de Marcos. Supõe-se que tenha morrido
na cela onde estava confinado, alguns dizem que na noite anterior àquela em que
Liças foi levado para a câmara de tortura onde se realizou o inquérito.
A partir desse dia, e por muitos séculos, não houve Imperador em Roma; mas o
poder imperial foi exercido pelos Papas, em desafio à razão e à tradição.
V

E assim Marcos mergulhou na noite negra que chamamos de passado e Vortigern


reinou no sul da Britânia. Um rei fraco, tolo, convidou certas tribos dos saxões a
se estabelecerem naquela parte do país chamada de Kent. Vortigern agiu assim
por acreditar que os saxões teriam mais êxito do que ele em resistir às incursões
dos seus compatriotas. O povo dizia: “Ele convocou o lobo para guardar as
ovelhas”.
O Império que Marcos construíra não sobreviveu a ele. Foi dividido em vários
reinos e na região de colinas entre os rios Humber e Forth o rei era Uther
Pendragon, filho de Marcos com a filha de um cidadão de York, local que os
romanos chamavam de Eboraco.
Ora, vereis que Geoffrey de Monmouth nos conta que Uther era filho do rei-
imperador Constantino e irmão de Aurélio Ambrósio, que durante algum tempo
foi rei de toda a Britânia; e que esses irmãos lutaram contra Vortigern.
Há uma certa verdade nisso mas não muita, pois as minhas pesquisas concluíram
sem sombra de dúvida que esse tal Constantino jamais existiu. Mas, como eu
dizia, Marcos era o pai de Uther com a dama de quem falei; e esse Aurélio, que
certamente foi um general notável, era meio-irmão de Uther, sendo filho
daquele cidadão de York e, portanto, sem sangue real nem imperial. Não posso
saber por que Geoffrey teria pretendido contar outra história, a menos que
desejasse fomentar discórdia. Mas provavelmente o fez por ignorância, que a ele
não faltava.
Quando Vortigern soube que Uther fora consagrado rei no norte decidiu destruí-lo
e para tanto admitiu mais saxões no reino e também fez uma aliança com os
pictos. Além disso, Vortigern prometeu ao rei Lot, de Orkney, então um jovem
muito ambicioso, que este teria a parte norte do reino de Uther se se juntasse a
ele, Vortigern, na batalha. Lot concordou, embora cauteloso, e também enviou
embaixadores a Uther para perguntar que recompensa teria se abandonasse
Vortigern, a quem desprezava. Uther, prudente porém tímido, e não sendo ele
próprio um guerreiro (talvez por essa razão alguns negassem que Marcos fosse
seu pai), consultou Merlim, que o aconselhou que seria prudente firmar a paz
com o rei Lot.
— Mas eu vos advirto que esse rei é tão traiçoeiro quanto a víbora que vive nas
urzes. Portanto, é preciso achar um meio de comprometê-lo. Felizmente, ele tem
uma grande fraqueza pelas mulheres e só pode ser governado por uma mulher.
Até recentemente, ele só agia a conselho da própria mãe, mas agora ela morreu
— disse Merlim.
— É um bom conselho — disse Uther. — Mas onde encontrarei a mulher capaz
de governá-lo?
Merlim sorriu e disse:
— Esse Lot tem uma natureza tão desconfiada que rejeitará qualquer mulher que
lhe oferecerdes, pois a sua suspeita domina até mesmo a sua luxúria. Ele
conhece a própria fraqueza e teme ser controlado. Se sugerirdes qualquer mulher
em particular, ele de imediato detectará o complô. Portanto, é preciso que ele
acredite ter encontrado a mulher por acaso e suponha que ela está sozinha no
mundo, sem qualquer vínculo convosco nem com qualquer outro homem
poderoso.
— O que dizes faz sentido — retrucou Uther coçando a cabeça, não porque
estivesse com piolhos, mas porque tinha esse hábito quando ficava confuso. —
Mas onde acharei essa mulher e como daremos um jeito para que Lot a
encontre?
Merlim sorriu novamente, porém desta vez nada disse. Uther então falou:
— Ela precisa ser virgem. Com certeza. E no entanto, temo estar cometendo um
pecado se arranjar uma virgem para ser seduzida pelo rei.
Uther era um homem piedoso e tinha muito medo do inferno, o que o tornava
tímido. Merlim disse:
— Compreendo a vossa hesitação. Portanto, é melhor que deixeis o assunto em
minhas mãos.
Não ficareis surpreso em saber que ao longo dessa conversa Merlim não tinha
dúvida alguma onde encontrar a jovem que seria entregue, aparentemente como
vítima de sacrifício, àquele rei libidinoso.
Então, imediatamente Merlim deixou a corte depois que o rei Uther fora para a
basílica de São Pedro, em York, para se confessar e assistir à sua terceira missa
do dia. Merlim considerava que não havia grande dano em que o rei confessasse
os seus pecados, desde que ignorasse os cometidos em seu nome para lhe
aumentar a grandeza. Não era simples lealdade à memória de Marcos e Liças o
que deixava Merlim ansioso em frustrar os planos de Vortigern e Lot e no devido
tempo destruir a ambos. Ele sofrera com o escárnio destes, que em certa época o
consideraram idiota e caçoaram dele.
Então Merlim viajou durante muitos dias através de colinas escarpadas e vales
sinuosos até o longínquo norte e chegou a um lugar onde uma grande montanha
de três cumes paira sobre um rio. Prados luxuriantes, embelezados por flores da
primavera — calêndulas, campainhas, prímulas e lírios dourados — estendem-se
ao longo do curso d’água; e, como estava entardecendo, os sinos de um convento
dobravam convocando para as vésperas. Merlim apresentou-se ao portão e pediu
que fosse levada uma mensagem à priora, dizendo que ele esperava que ela lhe
desse o prazer de recebê-lo. Falou com cortesia, pois embora no íntimo
permanecesse devotado a Mitra, o Deus dos Soldados, em cuja fé fora educado,
aprendera que a prudência exigia que se mostrasse respeitoso para com a
Verdadeira Igreja e para com quem servia a Cristo. Em todo caso, fazia parte da
sua natureza deliciar-se com a duplicidade.
Assim, quando a priora se aproximou com toda a pompa do cargo, Merlim
ajoelhou-se diante dela como que para pedir-lhe a bênção. Se estais surpreso
(como bem podeis estar, conhecendo a arrogância de certas damas importantes
que comandam os assuntos das casas religiosas neste reino) com o fato de a
priora ter se humilhado a ponto de atender logo ao chamado de Merlim em vez
de deixá-lo esperando até que ela achasse conveniente fazê-lo vir à sua presença,
a explicação é que, possuidora de um orgulho fantástico e que inspirava terror,
essa dama se deliciava em disfarçá-lo sob aparente humildade.
A priora conduziu Merlim pela mão e levou-o para o interior do convento, até a
sua câmara diurna a que alguns chamam pela palavra francesa boudoir, embora
esta palavra ainda não fosse conhecida, pois àquela época ninguém falava
francês. A câmara era mobiliada com uma elegância então rara na Britânia,
obedecendo à moda bizantina, e as paredes eram recobertas de tapeçarias,
menos uma, decorada com ícones ricamente pintados.
— Vim buscar a minha tutelada — disse Merlim. Como se não ouvisse, a priora
chamou uma criada, ou talvez uma noviça acostumada a realizar tarefas de
criada, e ordenou-lhe que trouxesse peixe, pão e vinho.
— Vindes de longe e deveis estar cansado e faminto — disse ela para Merlim.
E recusou-se a conversar até que ele comesse o peixe de rio, que veio defumado
e acompanhado de fatias de limão trazidos da Itália por mercadores que
trocavam essas frutas por um carregamento de peixes locais, defumados ou
salgados.
Merlim teve a impressão de que ela continuava em silêncio porque arquitetava
algum artifício para enganá-lo. Contudo, comeu e bebeu o que foi posto à sua
frente.
— Eu preciso dela — disse Merlim.
A priora pegou a agulha e voltou a trabalhar em uma tapeçaria que estava
estendida em um cavalete. A agulha deixava rastos azuis e a priora trabalhava na
roupa da Virgem.
— Ela é jovem demais.
— Mesmo assim — disse ele.
— Trouxestes-me uma criança que ignorava as boas maneiras, de
temperamento irritadiço e violento. Nós a treinamos na docilidade e no dever.
Seria melhor ela permanecer aqui a serviço do Senhor e da Virgem — a priora
falava em latim e as suas frases eram bem construídas.
— Ela tem um papel a desempenhar nos eventos deste mundo — disse Merlim e
bebeu até a última gota uma taça daquele saboroso vinho.
— Nós aqui renunciamos ao mundo — disse a priora, alisando o seu hábito de
veludo com a mão que não segurava a agulha. Merlim disse:
— Não podeis me recusar isso. A minha habilidade é mais poderosa do que a
vossa fé.
Ela corou e não encontrou palavras mas inclinou a cabeça sobre o trabalho.
— Seria maldade levá-la, e além disso eu tenho predileção por essa menina —
disse.
— Irmã — disse Merlim —, assim como eu, amais apenas a vós mesma. Digo-
vos mais uma vez: eu preciso da menina. Dai ordens para que a tragam.
A priora começou a emitir suspiros breves e intermitentes e uma lágrima
semelhante à primeira gota de uma tempestade escorreu-lhe pela face colorida.
E assim a menina foi trazida e ficou de pé diante deles, desajeitada, torcendo
com dedos ágeis e finos as longas tranças de cabelos cor de milho.
— Precisas partir com o teu guardião — falou a priora. E enquanto falava não
olhou para a menina, mas sim para o rosto da Virgem, que se delineara na
tapeçaria.
— Não quero ir, pois me ensinastes que o mundo é mau — disse a menina.
— É verdade, e no entanto tu precisas ir.
— E se for minha vontade recusar?
— Então, eu dobrarei a tua vontade — disse Merlim, e dirigiu à menina um olhar
firme até ela empalidecer e os lábios tremerem. Ela tentou desviar o olhar de
Merlim como fazemos com algo que nos ofende, mas não conseguiu. Foi
compelida a ficar presa ao olhar de Merlim, como se fosse o de um basilisco, e
gritou:
— Madre!
Mas quando tentava formular as palavras seguintes a sua voz falhou. Se tivesse
muitos olhos, como Argos, que diziam possuir cem, não teria conseguido desviar
um só.
Também não conseguia se mexer mas sentia-se firmemente enraizada naquele
lugar, como se os seus pés, antes rápidos e ansiosos para correr, estivessem
plantados na pedra. Parecia-lhe que os cabelos se transformavam em folhagens
e que os braços pesavam como os galhos de um loureiro.
E quando Merlim percebeu que a dominara apanhou-lhe os pertences e partiram,
deixando a priora entregue ao pranto até se consumir totalmente nas próprias
lágrimas. E do céu choveu dor.
VI

Durante três dias viajaram para o norte, dormindo à noite na floresta em cama
feita de agulhas de pinheiros. E durante esses três dias a menina se recusou a
falar. No quarto dia soprou um vento frio e o ar estava pesado, ameaçando uma
nevasca inoportuna. Olharam para as montanhas e os cumes estavam
escondidos, velados por nuvens da cor de um arenito escuro. Finalmente a
menina perguntou qual o motivo da viagem e por que Merlim a tirara do
convento onde fora feliz, e da priora a quem amava.
— Quando te levei para lá, ainda criança, tu gritaste, chutaste, choraste,
praguejaste e berraste que não ficarias ali. Lembras-te?
— Eu era nova e tola como uma criança e pensava como criança — disse a
menina.
— E agora, estás mais prudente? — indagou Merlim. Ela mordeu o lábio e não
respondeu.
— Tu és uma filha do Império — disse Merlim.
— E daí? Que significa o Império para mim? Não fui criada em palácio, mas sim
abandonada pelo meu pai e condenada a viver com o amante da minha mãe, que
abusou de mim violentamente. À noite eu choro quando lembro como ele me
tratava.
— É verdade, foste muito maltratada — disse Merlim.
— Parece que essa idéia vos agrada — disse ela.
— Serve aos meus propósitos.
Então chegaram a um rio e não havia ponte. Na outra margem viram tendas que
se erguiam em meio à névoa que pairava sobre as margens do rio e sobre a
água. Um barco estava atracado aos juncos e Merlim ordenou à menina que
embarcasse. Então disse ao barqueiro que estava sentado na proa que a levasse
para o outro lado. Quando a menina viu que Merlim a abandonava gritou,
apavorada, mas ele disse apenas:
— Morgan, minha criança, o teu destino é passar para a outra margem, e o meu
é ficar aqui. — E continuou ali, observando o barqueiro mover os remos.
Merlim continuou observando quando o barco cutucou a margem oposta e viu o
barqueiro pegar a menina pelo braço e ajudá-la a desembarcar; e em meio à
bruma as pernas da menina pareciam de prata. Depois Merlim viu dois
cavaleiros avançarem cautelosamente entre as sebes de giestas e urzes em
direção ao rio e um deles inclinou-se e ergueu a menina, sentou-a à sua frente no
cavalo e voltou ao acampamento.
Então, embora Merlim não pudesse ver mais, na sua visão mental viu a menina
ser levada até o rei Lot, cujo exército estava ali acampado, e o rei recebê-la,
encantado, no seu pavilhão. E Merlim viu as mãos ásperas e peludas do rei
remexendo o vestido da menina e enfiando-se sob a sua saia; e o corpo do rei se
inclinou, forçando-a a se deitar.
Merlim afastou-se. “Escravizei-a à infelicidade”, pensou.
VII

Naquele ano, Aurélio Ambrósio comandou o exército de Uther Pendragon em


batalhas contra Vortigern e aliados saxões. O próprio Vortigern se esquivava da
guerra e o seu exército era liderado pelo filho, Paschent, homem traiçoeiro como
uma serpente, ainda mais traiçoeiro do que o pai.
Aurélio Ambrósio derrotou o inimigo em três grandes batalhas, uma no vale de
York, a segunda em uma ponte que atravessa o rio Trent, no local hoje
denominado Nottingham, e a terceira às portas da cidade romana de Silchester.
Então, em desespero, Paschent mandou um emissário ao rei Lot, de Orkney,
pedindo a ajuda que este lhe prometera. Mas Lot estava na cama com Morgan,
acariciando com as mãos peludas as pernas macias da jovem, e não se moveu. E
foi isso que Merlim planejara, pois dera à jovem o poder de enfeitiçar o amante.
No entanto, Morgan odiava Lot, mesmo quando ela o hipnotizava, e lhe teria
repelido as investidas se Merlim não a tivesse infectado também com uma
luxúria aguçada.
Então, apesar de estar indo tudo bem com os romanos — pois eu decidi qualificar
assim aqueles bretões que haviam conservado os costumes e a mentalidade de
Roma e que eram os legítimos herdeiros de Marcos —, Aurélio Ambrósio
adoeceu e ficou preso ao leito em Winchester, acometido de febre. Nesse
momento, um homem de nome Eopa chegou ao acampamento de Paschent e
perguntou-lhe que recompensa lhe pagaria se o livrasse do inimigo.
Paschent ficou encantado com o oferecimento e prometeu mil moedas de prata.
Mas então disse:
— Segundo percebo pelo teu modo de falar, és saxão. Como planejas te
aproximar de Aurélio? Não sabes que ele deu ordens para que qualquer saxão
que seja capturado tenha primeiro as orelhas cortadas, depois a língua arrancada
e a mão direita decepada, a menos que seja canhoto, caso em que é essa a mão
a ser decepada do braço?
— Ora, apesar de eu ser, de fato, saxão, sei falar tanto a língua britânica quanto o
idioma latino. Além disso, sou versado em ervas medicinais e tenho profundo
conhecimento de todos os venenos. Eu me disfarçarei de monge e declararei que
sou enviado por Deus para curar o general. Podeis confiar em mim, meu rei e
senhor, pois jamais fracassei em qualquer empreendimento que tentei. E para
provar que podeis confiar em mim, dai-me agora apenas cem das mil moedas
de prata que me prometestes.
Paschent ficou tão impressionado que fez o que lhe era pedido, ainda que a
esposa, uma irlandesa que alegava ter o dom da premonição, lhe dissesse que ele
não tornaria a ver Eopa nem o seu dinheiro. No entanto, nisso ela estava
equivocada, como, pela minha experiência, os irlandeses freqüentemente estão.
Eopa fez, de fato, o que disse que faria. Mandou fazer uma tonsura, vestiu-se
com um hábito marrom e aproximou-se do acampamento britânico carregando
no braço uma cesta contendo vários frascos do que dizia serem remédios.
— Fui enviado pelo Senhor para curar o general — disse.
Ora, infelizmente Merlim não estava no acampamento. Caso contrário, sem
dúvida teria testado Eopa e descoberto a impostura. Assim, Eopa foi admitido à
tenda do general onde este jazia, suando e gemendo e às vezes gritando, pois
sofria de pesadelos.
Eopa foi bem recebido, em razão dos gritos do general — de medo ou angústia,
ninguém saberia dizer — que tanto entristeciam aos que o serviam e também aos
seus guardas. Eopa preparou uma beberagem, franzindo o cenho enquanto o
fazia, para deixar claro que a tarefa exigia grande habilidade. Depois disse aos
criados que acordassem o general e quando este despertou deu-lhe a poção,
garantindo que ela lhe restauraria a saúde e o vigor. Aurélio Ambrósio engoliu-a
como o instruíram.
— Agora — disse Eopa —, vós dormireis até o galo cantar anunciando o
surgimento de um novo dia; e quando despertardes a febre terá ido embora e vos
sentireis forte.
Então o general puxou os cobertores e se deitou. Logo dormiu, e enquanto dormia
o veneno percorria-lhe as veias. Nesse meio tempo, os criados, ao verem o
general tranqüilo, como supunham, recuperaram a alegria e, achando que a crise
passara, começaram a beber cerveja, hidromel e vinho. Ao vê-los assim
entretidos, Eopa esgueirou-se do acampamento e correu até Paschent para
reivindicar a recompensa. E, de fato, a merecera, pois quando o galo cantou,
Aurélio Ambrósio foi encontrado morto.
Ao receber essa notícia, Uther Pendragon empalideceu como lua de inverno e
rasgou as roupas, praguejando e se lamentando. Voltou-se furioso para Merlirn,
dizendo que com as suas artes ele poderia ter evitado aquilo.
Merlim baixou a cabeça quando o rei decretou-lhe o banimento.
— Seja feito como dizeis — foi a sua única resposta, e preparou-se para deixar a
corte.
Desse momento em diante a boa sorte da guerra voltou-se contra os romanos.
Uther Pendragon, seja por ter sido amaldiçoado pelas Parcas, seja por não ter
habilidade alguma nas artes marciais, foi derrotado em sete batalhas, em sete
meses, e afinal forçado a se abrigar nas montanhas do norte, onde as forças de
Paschent e os saxões não ousavam persegui-lo. E ali sobreviveu por muitos anos.
Enquanto isso, os saxões voltaram-se contra Vortigern e Paschent, confinaram o
primeiro à masmorra e levaram o segundo, enfiado em um saco junto com uma
loba para atacá-lo, pois, diziam, “o assassinato de Aurélio Ambrósio, apesar de
nosso inimigo comum, prova que este homem é ignóbil e indigno de confiança”.
E assim por muitos anos os saxões governaram a terra da Britânia e passaram a
denominá-la Angleland (terra dos anglos) ou England (Inglaterra).
VIII

Quando recebeu a ordem de banimento, Merlim sentiu-se tentado a amaldiçoar o


rei, pois se ressentia com a injustiça da punição. Mas depois lembrou-se de que
Liças certa vez lhe falara sobre a justiça e a injustiça e que a primeira era
encontrada raramente, enquanto a segunda era comum a muitos homens. “Há os
que reagem vingando-se pois, dizem, a vingança é uma espécie de justiça
selvagem. Porém, da minha parte, não encontro satisfação em tais meios”,
dissera Liças. Merlim enxugou uma lágrima do olho castanho, que por acaso era
o único que chorava, enquanto o olho azul via o mundo com pouca nitidez.
Merlim freqüentemente se comovia ao pensar em Liças e agora, pensando em
Liças, lembrou-se do seu dever para com o falecido Marcos.
“Por que devo me sentir chocado ou ferido ao descobrir que este rei Uther
Pendragon é tolo e ingrato, que acredita poder se defender banindo o único
homem que poderia ajudá-lo nas suas aflições? Eu sempre soube que ele era um
indigno sucessor do Imperador”, dizia Merlim para si mesmo. E assim refletindo,
pegou o cajado e partiu de York.
Durante sete dias viajou para o norte, dormindo à noite na floresta. Era outono, as
folhas caíam e as folhas secas formavam uma cama para ele. Durante o dia os
ventos sopravam mas quando a escuridão descia tudo se acalmava. Era época de
compor baladas, pensou Merlim, mas as palavras não lhe vinham com facilidade
e, quando vinham, recusavam-se a se transformar em versos. Então, enquanto
fazia a jornada, Merlim entoava em voz alta versos de Virgílio que Artemísia
sabia de cor e recitara para ele tantas vezes que lhe ficaram impressos na mente.
E todas as noites, antes de tentar dormir, repetia para si mesmo versos que desde
o início lhe pareceram falar da verdadeira magia:

Suntgeminae somni portae, quorum alterafertur Córnea, qua verisfacilis datur


exitus umbris, Altera candente perfecta nitens elephanto, Sed falsa ad caelum
mittunt insomnia Manes.

Existem portões gêmeos do sono, um que dizem ser de chifre, através do qual os
verdadeiros fantasmas podem passar facilmente, o outro feito de marfim
brilhante, mas através do qual os espíritos enviam sonhos falsos para o mundo
acima.

E a cada manhã Merlim despertava para um dia azul, frio e brilhante, e no quarto
desses dias experimentou uma felicidade que raramente sentira.
Depois de sete dias chegou a um vale estreito, de flancos densamente arborizados
de bétulas, amieiros, aveleiras e sorveiras-bravas. A trilha acompanhava um
riacho sinuoso e se contorcia obedecendo a dança da água. Subia porém
lentamente até que depois de duas milhas o vale se abria em um pequeno platô
onde havia um prado e a um canto uma choupana rústica.
Uma velha estava sentada em um banco de três pernas, tendo à frente uma bacia
cheia de amoras silvestres. Ergueu os olhos quando Merlim se aproximou e disse:
— Então, chegou a hora.
— Chegou a hora.
A mulher fez um gesto apontando para o riacho além da cabana e a princípio
Merlim seguiu-lhe o olhar e depois se deslocou na direção que ela indicara.
Enquanto isso, a velha pegou a bacia e retirou-se para a cabana, para preparar o
jantar.
Merlim aproximou-se do rio, que ali formava um lago sob galhos pendentes. Fez-
se uma onda na água escura e então surgiu uma cabeça, e Merlim viu que era o
menino. Este nadou para a margem, saiu da água com leveza e pôs-se de pé
diante de Merlim, nu e sem se envergonhar da nudez.
— Nadas como um peixe! — disse Merlim.
— Eu preferia que fosse como uma lontra — retrucou o menino. Estirou-se sobre
uma pedra lisa, deixando o sol avermelhado do entardecer brincar com as suas
pernas brilhantes. O seu sorriso era largo, franco e confiante.
— Pensei que havias me esquecido — disse. — Caçar veados e nadar bastam
para me fazer feliz.
Merlim sorriu.
— Enxuga-te. Veste a túnica. Os teus dias despreocupados terminaram. Vim,
meu filho, para te lembrar dos deveres que te foram impostos pelo teu
nascimento.
— Não sei o que queres dizer, mas pelo menos teremos carne de veado para
jantar — disse o menino.
Depois de comerem, quando o menino dormiu, Merlim disse para a velha:
— Como é amargo pensar que precisamos matar a criança para formar o
homem!
Ela retrucou:
— Não sei o que queres dizer com isso, mas eu jamais compreendi os teus
dizeres e muitas vezes me perguntei como pude parir alguém como tu. Ainda
assim, agradeceria se te lembrasses que este menino é bom, gentil e de coração
generoso.
— Sinto ternura pela juventude, pois a minha foi lograda — disse Merlim.
A velha, em silêncio, ainda sugava um osso olhando para o fogo que se extinguia,
até erguer o rosto enfumaça do, e olhando firme para Merlim, disse:
— Até onde me lembro já nasceste com a alma velha, mas eu agradeceria se te
lembrasses que este menino, a quem passei a considerar como meu próprio filho,
é um dos inocentes do mundo.
— Nada é totalmente bom. Partiremos assim que o dia clarear — disse Merlim.
Durante três anos Merlim devotou-se a educar o menino Artur. No primeiro ano
ensinou-lhe latim e grego., sem o que, dizia, não se entende filosofia. Acontece
que 4rtur tinha pouco interesse por essa matéria: ignorava questões de essência e
existência. Franzia o cenho polidamente, unia as sobrancelhas parecendo mais
jovem do que os seus treze anos, e dizia:
— Que importância tem isso, meu senhor? Que importância tem isso, de
verdade?
— Sempre foi importante, moleque, para homens de inteligência e virtude
maiores do que as tuas — disse Merlim, envolvendo com as mãos a cabeça do
menino. — A filosofia, moleque, é a rainha das ciências.
— Talvez seja por isso que não me importa. Tenho pouco interesse pelas rainhas.
Ou talvez eu seja apenas estúpido. Achas-me estúpido?
— Acho que és preguiçoso.
— E estupidez preferir Ovídio a Aristóteles, meu senhor? Eu não acho assim. Por
exemplo, quando lemos Ovídio, as histórias parecem tornar impossível que o
tempo pudesse se arrastar ou ficar pesado em nossas mãos, como disseste certa
vez. Mas quando me fazes encarar Aristóteles, às vezes com rispidez, devo dizer
que tenho a impressão que o meu nariz está contundido e que os meus olhos
marejam, e o tempo parece imóvel. E isso é impossível, não é? O que para a
minha mente prova que a filosofia de Aristóteles é falsa.
Até mesmo Merlim, com toda a sua sagacidade, nunca tinha certeza se nesses
momentos Artur falava sério ou caçoava dele.
Na verdade fazia ambas as coisas, pois caçoar dessa intelectualidade é uma
forma de verdadeira seriedade, como ocorre quando nós debatemos se de fato
existe a mesa diante da qual eu vos coloco para estudar, quando não estamos ali
para vê-la ou tocá-la.
Artur tampouco apreciava a matemática, embora Merlim achasse muito
agradável essa disciplina e se sobressaísse (pelo menos supunha) ao expô-la. Mas
certo dia, quando explicava o teorema de Pitágoras relativo à medida do
quadrado da hipotenusa, Merlim observou que a mão direita do menino
escorregava para baixo da túnica e se ocupava em exercitar o seu membro viril;
Merlim arremessou o livro à cabeça do menino e praguejou, acusando-o de
indigno do banquete de sabedoria que lhe estava sendo oferecido.
— Desculpa, meu senhor — disse Artur —, mas eu estava distraído e, como
naquele verso de Virgílio que me ensinaste a amar, eu estava exercitando a
minha flauta com uma das musas da floresta.
Então não se ensinou mais matemática naquele dia nem em qualquer outro.
Era principalmente a poesia que encantava Artur e entre os poetas preferia
Ovídio e Virgílio. Também se encantava com todas as histórias da guerra de
Tróia e, em sua imaginação, ora era Aquiles, ora Heitor. Chorava ao ouvir falar
do conflito entre esses dois heróis, e a imagem das belas pernas de Heitor,
arrastadas na poeira enquanto a carruagem de Aquiles galopava em torno das
muralhas de Tróia, despertava em Artur um misto de piedade e terror, repulsa e
excitação. Quando Paris disparou o dardo que matou o herói Aquiles, Artur sentiu
raiva pelo fato de um traste tão frágil e pretensioso como Paris ter tido a
permissão de triunfar sobre um valor maior.
— Mas freqüentemente o mundo é assim — disse Merlim.
Artur também se encantava com a história natural, não apenas (como convém)
com histórias de animais terríveis como dragões, basiliscos e grifos, mas também
com os animais que são encontrados mais comumente, como lobos e ursos, e
ainda com pássaros, borboletas e flores. Merlim chamava-lhe a atenção para a
beleza do emaranhado de uma teia de aranha brilhando à luz do sol depois da
chuva e Artur ficava extasiado e esquecia, naquele instante, que se tratava de
uma armadilha mortífera para moscas descuidadas.
Merlim era severo com o menino pois, como dizia:
— Os limites da tua língua são os limites do teu mundo; e portanto, o homem cuja
linguagem é limitada e restrita vive como alguém na prisão, ao passo que quem
tem amplo comando da linguagem, e em conseqüência, consegue formular
agradáveis imagens mentais, pode ser livre mesmo quando confinado na mais
escura das masmorras.
— Pelo menos este raciocínio é agradável — disse Artur —, embora eu me
pergunte se experiências assim, que espero evitar, são verdadeiras. Será que os
tolos e estúpidos não achariam a prisão menos incômoda do que os cultos? Sei
que me ensinaste que a tua mente é um reino, e que a tua intenção é tornar a
minha um reino também, mas não posso deixar de observar que o gado
encurralado durante o inverno não parece sofrer com o confinamento, enquanto
o lobo posto em uma jaula emagrece e parece infeliz. E na minha opinião os
lobos são mais inteligentes do que os bois. Mas ouso dizer, meu senhor, que estou
errado e que, como sempre, tu estás certo.
— Às vezes tu me irritas mais do que eu imaginaria possível. E por isso que têm
razão os que te chamam de Brat (moleque) — disse Merlirn.
No entanto, até mesmo quando exasperado, Merlim não deixava de ter um tom
de voz amoroso, adequado a um mestre.
Também não negligenciava a necessidade de instruir Artur em exercícios
marciais. Incompetente para fazê-lo, contratou um velho cavaleiro para ensinar
a Artur o domínio da lança e da espada. Infelizmente não dispunham de um
cavalo, mas Merlim confiava em que a afinidade de Artur com os animais fosse
suficiente para torná-lo um cavaleiro notável; esperança essa que não se revelou
vã.
Enquanto isso, o próprio Merlim fez o menino aprender as artes da guerra a partir
dos Comentários de César e do manual de Vegécio. Dizia:
— Lê com atenção, lê profundamente, pois a história do mundo se parece com
as leis da natureza e é simples como a alma humana. As mesmas condições
trazem de volta os mesmos fenômenos.
Artur obedeceu; e como esses livros o interessassem em um grau que
considerava notável, não retrucou que em outras ocasiões Merlim lhe garantira
que a alma humana era obscura, impenetrável, retorcida como a hera que se
enrosca no tronco do carvalho.
E assim prosseguiu a educação de Artur, até o dia em que Merlim disse que,
apesar de ainda haver muito por ensinar pois a busca do conhecimento e da
compreensão é infindável como o oceano onde nada a terra, ainda assim
chegara a hora em que Artur deveria sair para o mundo.
— Lembra-te — disse Merlim — que acima de tudo “todo homem tem o seu dia;
todo homem tem um período de vida, curto e inalterável; mas através de atos
podemos ampliar a nossa fama; esta é a tarefa da virtude e da coragem”.
Artur empalideceu ao ouvir essas palavras pronunciadas tão solenemente.
Reconheceu-as como sendo de Virgílio e surpreendeu-se com o fato de, em certa
época, tê-las lido superficialmente.
IX

A intenção de Merlim era forçar Artur a abrir o próprio caminho no mundo, pois
dizia: “Aprendi que a dureza é a escola adequada para a excelência”. Por isso
despachou Artur sozinho, montado em um robusto pônei e levando no alforje
provisões para dois dias. Assim Artur deixou para trás a infância e rumou para o
sul; não se deve imaginar que Merlim não tenha derramado uma lágrima ao
observar o menino subir o vale sinuoso e desaparecer de vista.
Quanto a Artur, o seu coração estava cheio de entusiasmo. Ergueu o rosto e
sentiu o cheiro do vento.
Ao entardecer do primeiro dia da sua nova vida, Artur chegou a um rio e viu
tendas rústicas fincadas à margem. Parecia um acampamento modesto. A
fumaça erguia-se de pequenos lumes; cabras, ovelhas e bovinos vagueavam
soltos e três ou quatro pôneis esquálidos estavam amarrados a pilriteiros. Ouviu
gritos de crianças brincando e viu mulheres agachadas diante de caçarolas. Ao se
aproximar com o seu pônei que, de rédeas frouxas escolhia cuidadosamente o
caminho em meio a uma trilha pedregosa, Artur sentiu um cheiro apetitoso e
percebeu que estava com fome.
Um homem de barba grisalha surgiu de trás de um tufo de giestas e apontou-lhe
uma lança, ordenando-lhe que parasse e explicasse o que pretendia.
— Sou um viajante e venho em paz — disse Artur.
O homem, que ele julgou ser um guarda ou sentinela, baixou a lança, pegou o
pônei pelo freio e conduziu Artur ao acampamento.
Ali uma velha ergueu-se para encará-lo. Era muito alta, uma cabeça a mais do
que Artur, e o seu rosto listrado de fumaça e sujeira tinha traços fortes, nariz
grande e pontiagudo, boca retorcida e olhos negros como as asas de um corvo.
Quando falou sua voz era áspera e as palavras nada acolhedoras.
Porém a atitude calma e a linguagem modesta de Artur persuadiram-na de que
ele não representava ameaça alguma e assim ela indicou que ele podia apear e
postou-se ao seu lado enquanto o homem que o abordara primeiro encarregou-se
do pônei.
— Eu gostaria que permitísseis que o meu pônei bebesse água deste rio e depois
fosse alimentado, pois viajamos o dia inteiro e o animal está cansado.
Ensinaram-me a acreditar que sempre se deve cuidar das necessidades do
cavalo antes de atender às nossas — disse Artur.
E assim foi feito; e depois a mulher disse a Artur que se sentasse e serviu-lhe
uma tigela de um cozido que retirou da caçarola. Era um prato de aves selvagens
e ervas aromáticas que Artur achou muito bom. Enquanto comia, o grupo o
observava e ninguém falou.
Ele agora percebia haver cerca de doze pessoas: dois homens, cinco mulheres e
um punhado de crianças nuas. O tempo todo o guarda que o fizera parar
continuava segurando a lança. Ao ver isso, Artur desafivelou o cinto de onde
pendiam uma espada e uma adaga e depositou ao lado.
Então a velha que parecia ser a chefe indagou a Artur de onde ele viera e qual o
propósito da sua viagem.
— Descobrir o meu caminho no mundo — respondeu Artur.
— E por que queres fazer isso? — indagou a velha.
Era uma pergunta que Artur jamais se fizera e portanto não tinha uma resposta
pronta. Assim, fez o que os sábios fazem em tais circunstâncias: devolveu-lhe a
pergunta, indagando que tipo de gente eles eram e como viviam.
— Somos gente arruinada — respondeu a velha — que vive como pode. Em
certa época tivemos mais sorte, como os homens julgam. Tínhamos casas e
fazendas onde trabalhávamos e que nos davam abundância. Mas depois vieram
homens do mar e queimaram-nas, destruíram as nossas plantações e nos
expulsaram, então agora estamos sem terra e somos condenados a vaguear.
— Isso, sem dúvida, é um grande infortúnio — disse Artur.
— Assim pensávamos no início — concordou ela —, pois valorizávamos o que
possuíamos e nos considerávamos ricos e abençoados. Mas agora que tudo isso
acabou, que nos tiraram tudo, temos o que vês à nossa volta e vivemos nus como
viemos ao mundo, expostos ao vento e à chuva e a todas as intempéries do clima.
— E o que aprendestes com isso tudo? — indagou Artur depois de um momento
de hesitação, temendo que a pergunta a aborrecesse.
A mulher não respondeu de imediato, e assim ele continuou:
— Parece-me que os vossos sofrimentos comprovam que o mundo está mal
organizado.
— E por que não seria assim, se sempre foi? Homens e mulheres vivem às cegas
e o que vêem quando jovens como perspectivas douradas não passam de sonhos
vãos — disse ela.
— Contudo não precisa ser assim, pois eu ouvi falar que já houve uma época
áurea e que se vivermos corretamente talvez ela seja restaurada pelos nossos
esforços — disse Artur.
Pela primeira vez algo semelhante a um sorriso brilhou no rosto da velha e ela
estendeu a mão tisnada e áspera do trabalho árduo e tocou o rosto de Artur que
ainda ignorava o barbear.
— Tu és jovem e portanto tolo. O tempo vai te curar disso. Agora vives da
esperança, que é uma falsa amiga, uma sombra que se projeta diante de ti e que
se perderá na escuridão da noite. Vou te contar, rapaz, como é a vida. E
sofrimento, e nada mais. Nós continuamos vivos porque, por miserável que a
vida seja, a morte, que nos espera a todos como um animal selvagem espera o
caçador incauto, oferece apenas a extinção. Tu achas que a nossa vida é
deplorável, e de fato é. Sofremos de frio, fome e medo. No entanto, todas as
manhãs o sol se levanta. Ao entardecer, observamos a luz agonizante brincar
sobre as águas e sabemos que os mortos nada vêem. Tudo nos foi tirado, e ainda
assim continuamos vivos, e não posso te dizer por que, exceto que faz parte da
nossa natureza — falou a velha.
X

Na manhã seguinte Artur levantou-se antes do nascer do sol e depois de beber


uma tigela de leite que a velha lhe trouxera partiu, lamentando apenas ter umas
poucas moedas para oferecer em pagamento da hospedagem mas ela recusou-
as, dizendo que não precisavam de dinheiro e não conheciam ninguém que
precisasse. E assim Artur seguiu o seu caminho, que o conduziu através de uma
floresta escura. Então um vento soprou e começou a chover, mas ele cavalgava
obstinadamente e refletia sobre as palavras da velha. Pensava: “Eu achava a vida
boa mas ela, que sofreu tanto, considera-a apenas como algo que precisa ser
suportado. Aquela gente era infeliz e pobre, e no entanto foi bondosa comigo.
Merlim me ensinou que é dever dos reis cuidar dos pobres mas que, desfrutando
de todos os prazeres do mundo, eles muitas vezes negligenciam esse dever e por
isso a miséria é encontrada com tanta freqüência”.
O pensamento e a chuva fria deprimiram-lhe o ânimo. Artur sentiu-se só, pela
primeira vez desde que iniciara a viagem. Perguntava-se por que Merlim o
expulsara daquela maneira e sentiu pena de si mesmo. Lobos uivavam nas
profundezas da floresta. Agora a chuva o encharcava até os ossos. Os dentes
tremiam. E ele receava ter perdido o caminho, se é que algum dia o conhecera.
Então, lembrou-se de unia frase que Merlim costumava citar: “Enquanto
conseguirmos dizer 'isto é o pior', o pior ainda está por vir”. E pensou: “Essa idéia
é do agrado dele, mas me traz pouco alívio”.
Viajou o dia inteiro até a noite cair cedo na floresta, que ainda lhe parecia se
estender sem fim. Então parou, amarrou o pônei a um pilriteiro numa pequena
clareira onde havia capim e um riacho gorgolejante, para o animal pastar e
beber água. Como não tivesse com que acender fogo, e em todo caso os galhos à
volta estavam todos tão molhados quanto a sua túnica e o seu gibão, misturou
uma xícara de farinha de aveia com água do riacho e fez com isso o seu jantar.
Depois embrulhou-se em um manto que trazia enrolado no alforje e preparou-se
para dormir, apoiando-se ao tronco de um carvalho. Talvez tenha dormido. Mais
tarde não tinha bem certeza. Porém, se dormiu, despertou alarmado. Um lobo
uivava incomodamente perto. Artur dizia para si mesmo que não tivesse medo: o
lobo era apenas uma espécie de cachorro selvagem, e ele sempre se dera bem
com qualquer cachorro que se aproximasse. Ao mesmo tempo percebeu que
tremia e soube que não dormiria novamente, se é que de fato dormira.
Finalmente a chuva cessara e uma lua estreita dançava no céu, lançando
sombras misteriosas enquanto os ramos mais altos das árvores se agitavam ao
vento. O luar batia, frio, no rosto de Artur, e de repente uma voz dirigiu-se a ele.
Artur ergueu-se de chofre e a sua mão voou em direção à espada. Mas não viu
ninguém. “É imaginação minha” disse para si mesmo; e não acreditou nas
próprias palavras. Continuou com as costas apoiadas contra a árvore e olhou em
volta, e não havia ninguém à vista. Mas a voz soou novamente e desta vez ele
conseguiu distinguir as palavras. Mas eram ditas em uma língua que ele não
compreendia.
Corajosamente gritou, desafiando a pessoa que falava a avançar até a clareira e
se identificar.
— Sou apenas um rapaz viajando sozinho — disse, na intenção de tranqüilizar; e
depois lamentou as próprias palavras, temendo que elas encorajassem o seu
ouvinte invisível. — Mas tenho uma espada — disse, esforçando-se para manter
a voz calma. — E sei manejá-la.
Novamente não houve qualquer resposta. Artur sentiu-se tremer. Durante a vida
inteira lembraria desse momento, e que era essencial não revelar o seu terror.
Muitas vezes, em anos futuros, Artur diria aos seus jovens cavaleiros que era
natural sentir medo, mas que quando o medo é visível, os lobos atacam e
despedaçam a vítima. Então agora ele pressionava as costas com força contra a
árvore como se exercendo a força da vontade conseguisse deter o tremor.
Afinal uma figura surgiu das sombras e por um momento o medo de Artur
tornou-se ainda mais agudo, pois parecia que o capuz que encobria aquela
cabeça deixava antever a face de um cadáver. Mas foi a lua pálida que brilhava
branca sobre aquela aparição que se apresentou a ele. A figura avançava, lenta,
Artur viu que era alguém franzino e percebeu não ser perigoso. O seu corpo
relaxou e ele deu um passo à frente.
— Olha — disse, e tirando a mão do punho da espada, estendeu os braços
abertos, indicando que a intenção era pacífica. — Sou apenas um rapaz viajando
sozinho — repetiu.
E desta vez veio a resposta na língua de Artur:
— Se vens em paz, és bem-vindo. Artur sorriu:
— Por que eu não viria em paz, se não quero causar dano a ninguém? Mas estou
com frio, molhado e com fome, e se puderes me oferecer abrigo e comida,
ficarei agradecido e pagarei por isso.
— Abrigo e comida? Sim, posso oferecer isso, mas devo confessar que me
decepcionas. Quando te vi pela primeira vez pensei que fosses um anjo e agora
vejo que és, como dizes, apenas um rapaz. Talvez fosse o luar que deixasse um
halo pairar sobre a tua cabeça.
E assim dizendo conduziu Artur por uma trilha sinuosa em meio às árvores até
chegarem a uma cabana rústica feita de troncos e argila. Quando se
aproximaram, o homem gritou para alguém lá dentro, dizendo que tinham um
hóspede.
A lua erguera-se bem alto e lançava uma luz prateada sobre a porta aberta. Em
resposta ao grito, apareceu uma jovem. Talvez fosse da idade de Artur, porém
uma cabeça mais baixa do que ele embora ele próprio não fosse muito alto, e ao
vê-la não se admirou que a mente do seu acompanhante tivesse pensado em
anjos, pois a jovem era de uma beleza incomparável. Ela sorriu para Artur, mas
não falou. E quando Artur lhe dirigiu a palavra, respondeu apenas com um
grunhido.
— A minha filha é doente — disse o homem. — E muda desde que nasceu.
Então ordenou à jovem que fosse buscar pão, feijão e cerveja e sentou-se no
chão de terra da casa, mostrando que Artur deveria fazer o mesmo. Depois olhou
fixamente para Artur até que este sentiu que estava sendo privado da própria
vontade, que não conseguia mover as pernas e que estava sendo dominado pelo
outro. Mas naquele instante a jovem pousou a comida e a bebida diante de Artur,
o olhar do pai desviou-se e Artur sentiu-se livre daquele domínio.
Então o homem falou:
— Que significa este texto: “O meu reino não é deste mundo”? Que significa
isso?
— Depende de quem o pronunciou. Perdoa-me, mas não fui instruído como um
cavaleiro e não aprecio teologia — respondeu Artur, prudente.
— Chamam-no de Cristo. Mas será o Cristo celestial, ou o seu irmão mais velho a
quem alguns chamam de Satã e outros de Samael que, como está escrito,
construiu este mundo e portanto tudo o que é mau? E será que ele é o senhor e o
mestre deste mundo e de todas as coisas carnais?
— Sinto muito, mas não tenho esse conhecimento profundo — disse Artur, e
olhou para a jovem que lhe sorria docemente.
— Será que o espírito divino está preso a esta muralha carnal e que para
obtermos a perfeição precisamos renunciar à carne? — insistia o interlocutor.
A essas palavras a jovem se aproximou de Artur porém sutilmente, de modo que
o seu movimento não fosse percebido, e escorregou o braço esguio por trás da
cintura de Artur.
— Não terá sido o próprio Satã ou Samael que assumiu a forma de serpente e
seduziu Eva que, como todos dizem, é a mãe de toda a humanidade, e assim a
atraiu para o ato sexual, de modo que o desejo dela brilhasse como fogo ou
fornalha ardente, e nesse momento ele surgiu dos juncos sob a forma de serpente
e penetrou-a, de modo que ela lhe gerasse filhos, todos amaldiçoados?
— É claro... — disse Artur, deixando a jovem pousar a cabeça no seu ombro
(atitude que o pai, fascinado com a própria retórica, não percebeu) — é claro
que tu pensaste muito tempo e profundamente sobre esses assuntos, mas és muito
culto para mim, e isso ultrapassa a minha pobre compreensão.
Ao dizer isso Artur baixou a cabeça, roçou os lábios nos seios da jovem e os
beijou; percebeu que o ardor e o desejo eram grandes e iguais aos dele e que
estavam aumentando. Então, enquanto o pai falava, abstraindo-se daqueles que
supunha serem o seu público e elaborando as suas especulações teológicas, Artur
e a jovem retiraram-se para um canto da cabana e ali se acariciaram e se
beijaram. Artur buscou a língua da jovem muda, uniu-a à sua, ela correspondeu
e as línguas dançaram, unidas. Ficaram mais ardentes até o desejo não poder
mais ser contido e tudo se consumou, para grande prazer de ambos. E assim
descansaram nos braços um do outro, enquanto o velho prosseguia no seu
discurso interminável como um rio a correr pelos prados afora. E Artur e a
jovem descansaram até o raiar do dia.
XI

Artur despertou com frio, molhado e tenso. Suas costas premiam-se contra o
carvalho. Um vento cortante vindo do leste golpeou-lhe o pescoço. Merlim diria
que aquele vento era penetrante. Artur tentou se convencer a voltar a dormir,
para recuperar o sonho e o gosto da jovem muda. Porém ela lhe escapara. E ele
pensou: “Por que é muda? Sempre que os sonhos nos são enviados, nós é que os
elaboramos”. Isso era algo que Merlim também lhe ensinara. “Então, por que
não dei a ela uma voz? E a conversa do pai? Qual o significado, se é que tinha
algum? E de onde inventei isso? Seria Merlim, de novo?”
A cavalgada daquele dia foi árdua. O vento do leste ainda soprava forte. Artur
estava molhado até os ossos, tremendo de frio. Com a neve as nuvens se
avolumavam, pesadas. Artur afrouxou as rédeas e deixou o pônei seguir livre
pela trilha, que agora os levava a um trecho de charneca. Artur mal conseguia se
manter na sela. Por mais de uma vez escorregou e quase caiu. Versos passavam-
lhe pela cabeça, sem fazer sentido.
À medida que a luz esmaecia a neve começou a cair, primeiro suave, em
pequenos flocos, e depois mais pesada. Então Artur sufocou-se, cego pela neve, e
percebeu que soluçava. Agarrou a crina do pônei e as suas mãos sacudiam o pêlo
áspero do animal. Projetou-se para a frente, pressionando o pescoço do pônei,
usando-o instintivamente como escudo contra o vento. Mas não deu certo.
Artur sentia muito frio e o vento o cortava, entrando-lhe no corpo por um lado e
saindo pelo outro.
Foi o pônei, e não Artur, que viu os fundos do castelo logo adiante. A ponte
levadiça estava abaixada e o animal, como se estivesse se dirigindo para a sua
estrebaria, apertou o passo e atravessou a ponte a trote. Era um trote cansado,
mas ele conseguiu chegar ao pátio interno, cujas paredes os abrigavam do vento
terrível. O pônei parou, ergueu a cabeça e relinchou. Em resposta vieram sons
semelhantes, saídos da estrebaria. Nesse momento Artur escorregou pelo lombo
do animal e caiu ao chão, sem sentidos.
Quando acordou estava deitado na palha. Esta fedia e Artur percebeu que estava
imundo. Tinha a garganta mais seca do que esmola de avarento e a pele
queimava-lhe como fogo. Ouviu o arrastar de patas de animais, bois ou cavalos,
e o barulho de uma briga de ratos. Conseguia mover as pernas e os braços, mas o
esforço o exauria e ele fechou os olhos, barrando aquela luz tênue. Tão logo fez
isso, viu chamas dançando em volta e ouviu gritos de demônios. E em seguida
viu-os conversando e preparando-lhe suplícios. Sabia que eram suplícios dos
quais não tinha meios de escapar. Porejava-lhe um suor ora quente, ora frio.
Alguém aproximou-lhe dos lábios uma caneca, e Artur sentiu um braço rodear-
lhe os ombros, erguendo-o para que pudesse beber. A cerveja era doce, com
gosto de nozes e um ressaibo amargo. Artur engoliu e a garganta doeu. Por duas
vezes teve náuseas e tremores. A caneca foi afastada e depois reapresentada.
Artur deu outro gole, sentiu-se mais forte, abriu os olhos. A luz estava tênue, mas
ele viu um rapaz, de rosto magro como o de um rato.
— Achávamos que tu “tava” morto — disse o rapaz. — “Tás” me entendendo?
Artur fez que sim com a cabeça mas não conseguiu falar.
— Mas eu disse: deixa eu tentar a cerveja nele. Boa cerveja faz milagres, como
dizia o meu avô. Bebe de novo. Tiveste sorte de achar o caminho do castelo. Pelo
menos uma certa sorte. E claro que muitos que chegam aqui gostariam de fugir
de novo e não conseguem. Mas a vida é assim, né?
Nos dias seguintes, aos poucos Artur recuperou as forças. Ainda estava fraco
demais para caminhar e ficava deitado na estrebaria ou no estábulo. O rapaz,
cujo nome era Cal (diminutivo de Calgacus, nome de um famoso rei que liderou
os caledônios contra os romanos), trazia-lhe comida — cerveja, caldo de carne,
pão, um queijo duro, forte e revigorante feito de leite de vaca. (Pela vida afora
Artur adoraria queijo, e muitas vezes dizia que para ele não era sofrimento ficar
privado de carne bovina, desde que tivesse um vasto estoque de queijos, bom pão
e bolos feitos de aveia e banha.)
Cal, dois ou três anos mais novo do que Artur, era vivo, esperto e questionador.
Artur respondia lhe as perguntas com cautela. Lembrava-se de que Merlim o
instruíra a falar pouco de si mesmo, sempre que possível. “Quanto mais te
revelas, mais te rendes ao poder dos outros”.
— De quem é este castelo? — indagou Artur no terceiro dia, e viu que um nervo
saltava no rosto de Cal.
— Não sei o nome dele, só como nós “chama” ele.
— E como é?
— Cara de Pedra. Ele não tala muito, mas quando fala... Quanto ao filho dele, Sir
Cade... o rapaz baixou a voz — tomara que tu não caias no lado ruim dele, nem
a metade de ti. Ele é um... — Ele é o que, rapaz?
Cal deu um pulo, como se picado ou fisgado pela ponta aguda de uma adaga.
Artur ergueu os olhos e viu um homem barbado, alto e corpulento, que esticou
um braço, agarrou Cal pelos cabelos, ergueu-o do chão e segurou-o, balançando
e guinchando no ar. Depois arremessou o rapaz para longe de modo que este caiu
contra a parede, batendo a cabeça e ficou deitado ali, gemendo. Agora o homem
virou-se para Artur e ordenou-lhe que se levantasse. Ele obedeceu embora com
dificuldade, pois ainda estava muito fraco e as pernas tremiam.
— Quem és tu, e como chegaste aqui?
— Sou um viajante que perdeu o caminho e adoeceu na floresta, e o meu pônei
me carregou até aqui, e eu não sei onde estou — disse Artur.
— Pelo menos falas a nossa língua. Correu o boato de que eras um espião saxão.
Tu és saxão?
— Não, senhor.
— E no entanto falas uma língua estranha. Suponho que do norte. Talvez sejas um
dos espiões do rei Lot.
— Senhor, eu não sou espião algum, não sei quem é o rei Lot, nem onde ele pode
ser encontrado.
Artur baixou a cabeça para mostrar que não conseguia enfrentar o olhar do
questionador e assumiu um ar de humildade. Mas as pernas ainda tremiam
devido à fraqueza e teve medo de cair. isso ele não queria que acontecesse pois
percebeu que o questionador desprezaria uma demonstração de fraqueza.
Adivinhou que se tratava do Sir Cade de quem Cal começara a falar com tanto
medo.
O homem estendeu a mão, pegou Artur pelo queixo e forçou-o a erguer a
cabeça.
— Dizes que és um viajante. Suponho que para parecer misterioso e importante.
Mas... — e passou a mão áspera pelo rosto de Artur — quando estiveres limpo,
moleque, talvez fiques com boa aparência e isso pode me ser útil. Agora está
fedendo de modo abominável.
Empurrou Artur para fora do estábulo até o pátio onde estava um grupo de
soldados diante de uma bomba d’água. Entregou-o a um daqueles homens, um
sujeito com um gibão de lã cinza, e ordenou-lhe que despisse o moleque e o
mantivesse debaixo da bomba até livrá-lo daquela estrumeira toda. Artur teria
resistido a tal humilhação mas foi incapaz de escapar das garras do soldado e
assim se submeteu, embora profundamente triste por ser apresentado como
objeto de risos e caçoadas dos circunstantes. Depois de ter sido esfregado com a
água gelada que se originava de um poço profundo, ouviu Sir Cade dar ordens
para que lhe providenciassem uma túnica.
— Ponham esse moleque para trabalhar na cozinha. Aposto que é capaz de virar
um espeto melhor do que aquele Cal, que é mole e maricas.
E assim Artur foi condenado a ser ajudante de cozinha e não teve outra escolha a
não ser aceitar o papel. Apesar do orgulho ofendido, não fazia aquilo totalmente
contra a vontade pois Merlim lhe dissera que ele deveria viver por algum tempo
no Vale da Humilhação até chegar ao seu próprio lugar. Qual seria esse lugar ele
não sabia ao certo, nem quando aconteceria, porém as palavras de Merlim
cantavam-lhe na cabeça: “Só aqueles cujos rostos foram esfregados na lama e
que comeram o pão do desamparo estão aptos a chegar às alturas”.
E assim Artur, futuro rei e imperador, viu-se forçado a prestar serviços na
cozinha e ser alvo de ridículo para cozinheiro e serventes, que o chamavam de
Wart. Quando servia às mesas no salão os soldados tratavam-no ainda mais
rudemente, ora passando rasteiras quando ele carregava uma pilha de pratos
sujos fazendo-o se estatelar no chão, ora dando-lhe tapas ou contentando-se em
cobri-lo de insultos. E tudo isso ele agüentou firme.
Seu único amigo era Cal, que se apegara a ele com uma intensidade ávida, quase
assustadora. O próprio Cal, embora chegasse de vez em quando a explosões de
bom humor, na maior parte do tempo vivia em estado de pânico. Bastava ver Sir
Cade atravessar o pátio para começar a tremer e a procurar algum local para se
esconder. Quanto ao pai de Sir Cade, a quem chamava de Velho Cara de Pedra, a
simples menção a ele deixava o rapaz em estado deplorável: o nervo do rosto
saltava, as mãos tremiam, incontroláveis, e ao mesmo tempo ficava quase sem
fala. Quando mais tarde Artur o questionava a respeito, Cal dizia apenas:
— Aqui acontecem coisas que é melhor não falar, crê em mim, amigo, sei o que
“tô” dizendo.
De fato, logo Artur teve uma certa percepção do que poderia ser. Certo dia uma
tropa de prisioneiros saxões, membros de um grupo de ataque, se perdeu dos
companheiros e foi trazida para ali. Artur sentiu curiosidade; ouvira muito falar
nos saxões mas jamais vira um deles. Na maioria eram sujeitos grandes e
desajeitados, de olhar apalermado. Porém dois eram rapazes jovens, louros, de
olhos azuis, robustos, e mesmo ensangüentados e sujos de lama, com as túnicas
rasgadas e os cabelos emplastrados, pareceram a Artur irradiar vitalidade.
Os prisioneiros foram empurrados para o pátio, diante de Sir Cade e do velho e
silencioso Cara de Pedra. Sir Cade sorriu ao olhá-los.
— Aqui temos ouro — disse, e deu um soco na luva de couro amarrada à cintura
de um dos belos rapazes. Este dobrou-se e caiu ao chão segurando o diafragma,
tossindo e tentando respirar. Por um instante tudo ficou quieto. O rapaz tentou se
ajoelhar mas Sir Cade pespegou-lhe a bota no pescoço fazendo-o cair sobre um
monte de estrume.
— Os saxões são umas bestas imundas. — E deu uma gargalhada. — Mas estes
dois ainda podem alcançar bom preço no mercado de escravos de Silchester.
Açoitou com o chicote as coxas do outro rapaz. Este nada disse, não se mexeu
nem se encolheu com o golpe seguinte. Ao contrário, ergueu o queixo quadrado e
encarou Sir Cade como que o desafiando a repetir o golpe. Mas o cavaleiro
apenas riu e mandou que levassem os rapazes até o seu quarto.
— Para servirem ao meu prazer.
Enquanto isso o pai examinava os outros prisioneiros. Sempre sem falar, apontou
três que deveriam ser separados do resto; foram levados para um canto do pátio
e ali empurrados pelos degraus que conduziam a um calabouço.
Restaram dois saxões.
— Conheço este aqui, é um pirata famoso. E o outro, se bem me lembro, é seu
irmão. Só há uma coisa a ser feita com eles — disse Sir Cade.
Esta observação foi imediatamente entendida ou interpretada pelos soldados que
haviam trazido os prisioneiros. Sem mais delongas, amarraram-lhes cordas aos
pescoços e os levaram para o patíbulo que ficava no pátio interno do castelo. As
pontas das cordas foram rapidamente amarradas à forca e com a ponta da
espada os homens foram forçados a subir a uma carroça. Esta foi abruptamente
empurrada e os dois saxões ficaram pendurados.
— Nem receberam absolvição — murmurou Cal para Artur mais tarde. —
Significa que vão direto para o inferno. Eu sei que eles são pagãos, mas...
— Suponho que estamos em guerra contra os saxões
— disse Artur. — Em todo caso... fico feliz porque os dois rapazes se salvaram.
Devem ter a minha idade...
— Salvaram? Tu achas isso? — falou Cal — Salvaram-se para sofrer.
Naquela noite, quando Artur estava deitado meio dormindo, meio acordado
recostado em um mastim de pêlo duro que lhe proporcionava calor e conforto foi
surpreendido pelo barulho de gritos saídos da torre onde Sir Cade morava com o
pai. Cal engatinhou pelo chão da cozinha e se aproximou de Artur. Este estendeu
a mão e percebeu que o amigo tremia.
— Agora tu compreendes que tipo de lugar é este? — sussurrou Cal.
Artur pôs o braço em volta do amigo e segurou-o com força.
— É melhor não falar — disse, e se sentiu envergonhado, como se isso o tornasse
cúmplice daquele horror.
Jamais voltou a ver os rapazes saxões no castelo. Talvez de fato tivessem sido
levados para serem vendidos como escravos, dizia Artur para si mesmo, embora
incrédulo.
Uma noite Cal lhe perguntou:
— Amigo, tu já te perguntaste por que há tão poucas mulheres aqui?
Como antes, Artur disse:
— É melhor não falar nessas coisas. — Cal retrucou:
— Eu estive... Tu achas Sir Cade um horror, mas o velho Cara de Pedra...
Às vezes à noite os homens vinham buscar Cal e ele se ausentava por um dia e
uma noite. Ao retornar estava mais pálido e mais sujeito a tremores do que antes,
mas quando Artur procurava uma resposta para as suas perguntas, Cal apenas
sacudia a cabeça, mordia os lábios, emitia murmúrios sem significado e os olhos
se enchiam de lágrimas. Depois dizia:
— Se não fosse por ti, Artur, eu não conseguiria continuar vivendo.
Chegou a noite em que os dois homens que buscavam Cal em outras ocasiões
(sujeitos fortes, o mais alto tendo um olho só e o seu companheiro mancando
muito, resultado de um ferimento de lança) passaram pelo rapaz e se
encaminharam para Artur. Um deles torceu para trás o braço de Artur e a dupla
obrigou-o a marchar até a torre. Jogaram-no em um aposento onde Sir Cade e o
velho Cara de Pedra bebiam vinho.
— E este que tu estavas guardando para mim — disse o Cara de Pedra.
Foram as primeiras palavras que Artur o ouviu pronunciar. A voz era
curiosamente fina e de tom agudo.
Sir Cade concordou acenando com a cabeça e bebeu mais vinho. Os dois
portadores levaram Artur ao centro do aposento, onde havia um banco de cerca
de três pés de altura. Forçaram-no a se deitar e ataram-lhe os pulsos ao banco.
Artur se debateu mas os seus esforços foram vãos.
Sentiu que lhe amarravam os tornozelos unidos e o prendiam ali como um frango
no espeto. Então os dois portadores foram despachados e por alguns minutos nada
aconteceu. Artur conseguiu ouvir o som de mais vinho sendo despejado nas
taças. Depois fez-se silêncio. Ninguém se mexia.
— Eu te garanti que ele viria — disse Sir Cade. — Quando o encontramos não
passava de um pobre desgraçado.
O velho Cara de Pedra deu uma risadinha.
Artur ouviu um deles se aproximar. Sentiu que lhe erguiam a túnica e que alguém
lhe apalpava as nádegas. E depois veio o chicote. Logo a primeira chicotada
cortou-lhe a carne. Artur mordeu o lábio com força para se impedir de gritar.
Mas depois de chicotada após chicotada não conseguiu se conter. O corpo
estremecia a cada golpe e logo ele se viu gritando e pedindo piedade, mas ali era
mais difícil se arranjar piedade do que tirar leite de um leão; entre chicotadas,
Artur ouviu novamente a risadinha aguda do velho.
— E agora — falou Sir Cade pressionando-se sobre Artur; e as nádegas do rapaz
foram forçadas a se afastar e ele foi penetrado. Uivou, perdeu inteiramente o
controle e desmaiou.
Deveis vos admirar, meu príncipe, que eu escreva sobre esses assuntos
pecaminosos e repulsivos. Garanto-vos que não são do meu agrado. Mas
precisais compreender toda a maldade do mundo e as perversões que os homens
se permitem e com as quais (seria bom que eles soubessem) atormentam as
próprias almas.
Esse tal Sir Cade tinha prazer na crueldade, em infligir dor e humilhação, como
ocorre com muita gente. Alguns escondem do mundo a natureza dos seus gostos
e até talvez de si mesmos, fingindo virtude e declarando que agem em nome do
Senhor e da Santa Igreja. São os sábios doutores que servem ao Santo Ofício, em
outros lugares conhecido como Inquisição, que se deliciam em torturar
pecadores para, segundo dizem, salvar-lhes as almas.
Compreendei, pois, meu príncipe, que em tudo o que ponho no papel, por mais
obsceno e repulsivo que possa parecer à vossa leitura, a minha intenção é pura e
pretende apenas vos esclarecer.
Assim sendo, convém que eu diga mais alguma coisa a respeito dessa dupla de
libertinos: Sir Cade e o seu venerável pai.
Do último há pouco a relatar. Anos antes, liderando os seus cavaleiros e soldados
para repelir um ataque saxão, teve a infelicidade de ser capturado como
prisioneiro. Por algum motivo que desconheço, o chefe saxão não quis mandar
matá-lo como era a prática usual; ao contrário, determinou que o castrassem.
Dizem que isso aconteceu porque ele vira o prisioneiro lançando olhares lascivos
para um jovem príncipe saxão que fora designado para vigiá-lo. Mas se foi este o
caso ou não, hoje ninguém pode afirmar. O velho (já de cabeleira e barbas
brancas) foi submetido à mutilação e depois expulso a fim de retornar ao seu
castelo e servir como terrível advertência quanto ao destino dos que caíssem nas
mãos dos saxões; pois é bem sabido que os homens temem mais essa mutilação
do que a morte.
O velho sobreviveu e ninguém ousava mencionar a sua condição, com medo da
sua raiva, que era célebre. Daí em diante todos os saxões que os soldados do
velho aprisionavam não deviam esperar clemência. Os que eram enforcados
ainda ficavam com a maior sorte. Daí cm diante, também, o velho descobriu no
exercício lúbrico da imaginação o prazer que então fora negado ao seu corpo,
prazer esse estimulado por espetáculos terríveis encenados diante dos seus olhos.
Quanto a Sir Cade, embora possa parecer que o seu propósito, segundo gostava
de afirmar, era apenas agradar ao pai, e que atacava meninos e rapazes movido
apenas por um senso de obrigação filiai, pois só isso fazia o pai obter alívio da sua
condição de mutilado, a verdade era bem outra. O fato é que Sir Cade, quaisquer
que fossem as suas intenções ao enveredar por esse caminho, agora estava
escravizado ao vício. Negava a existência de Deus e até dos velhos deuses
pagãos. Se Ele ou eles existissem, dizia, não se interessavam pela humanidade a
não ser para nos perturbar. Na verdade, ele concluíra que não havia Deus e que
portanto tudo era permitido ao homem que ousasse. No entanto, faz parte da
natureza do vício, e em especial do vício sexual, que o prazer inicial perca o
efeito; as sensações antes vividas tomam-se insípidas; o que antes parecia ousado
e temerário torna-se banal. E preciso tentar mais, fazer mais, e no entanto o
retorno do esforço investido diminui, E como é pobre a imaginação dos viciados!
Como é empobrecida (gostaria que notásseis que este termo não é sinônimo de
“pobre” como alguns supõem, mas sim uma palavra que significa a transição da
riqueza para a pobreza, ou pelo menos da suficiência para a indigência), como é
empobrecida a imaginação dos viciados! Como é insípido o que delicia, os
viciados para aqueles que evitam esses prazeres; como é insípido e estúpido!
Para recuperar a primitiva sensação de ousadia e prazer, essas criaturas
estupidificadas precisam, seguir desenvolvendo novos requintes ou intensificando
o que fazem — e tudo em vão.
Mas estou divagando e por isso não devo ser condenado, pois o autor que não faz
uma pausa para colher flores ao longo do caminho ou, mais apropriadamente
neste contexto, para refletir sobre a sua narrativa, assemelha-se a um homem
que corre pela cidade em busca da experiência sem jamais fazer uma pausa
para encontrá-la, para olhar donzelas reunidas em torno de uma fonte, ocupadas
em conversar fiado, ou... mas basta! É hora de retornar a Artur.
Porém antes disso parece adequado acrescentar que algumas autoridades
atribuem a uma outra causa a tolerância de Sir Cade para com o vício mais
grosseiro e abjeto. Afirmam que ele pertencia a um desses cultos aos quais não
negam o título de religião, cujos iniciados procuram alcançar a união com o
espírito divino (o maior objetivo do homem) submetendo a razão e satisfazendo
todos os apetites carnais, por mais obscenos; pois, segundo dizem, só
ultrapassando todos os limites a alma pode escapar ao domínio da carne.
Tais práticas eram conhecidas no Mundo Antigo, em especial entre os seguidores
do deus Dioniso.
Da minha parte considero este argumento um vil sofisma e defendo a opinião de
que Sir Cade e o seu repulsivo pai eram monstros, e como tais deveriam ser
expulsos da sociedade dos homens e lançados aos ermos confins da terra.
XII

Artur arrastou-se dolorido, sangrando e angustiado, de volta ao corredor além da


cozinha onde ficava o seu refúgio. Sentia-se enojado e chegava a se desprezar
pelo fato de ter sido usado daquela maneira. Repeliu o consolo que Cal tentou
oferecer. Sua única reação foi perguntar:
— Fazem o mesmo contigo?
— O mesmo? Não, acho que não. O que ele me obriga a fazer... eu não posso
falar nisso, nem para ti, nem para ti agora...
— Eu gostaria de matá-lo — disse Artur. — Um dia eu vou matá-lo. Juro.
Enquanto isso, como não posso me submeter de novo ao que me foi feito ontem à
noite, precisamos fazer planos para fugir.
— Nós?
— Tu não achas que eu te deixaria neste... neste antro infernal...
— Se formos apanhados... — disse Cal.
— Sim, se formos apanhados... então, não devemos ser apanhados.
— Aonde iremos?
— Não importa. O mundo é vasto e...
Artur pôs-se de pé, pegou Cal pelo braço, levou-o até o fim do corredor onde
havia uma fenda na parede por onde se via o vale, abaixo do castelo. A lua bem
alta banhava todo o vale com uma luz prateada, trêmula e incerta como as
mechas de nuvens que se amontoavam pelo céu.
— Vê — disse Artur —, há um mundo além desta prisão. O problema é como
vamos alcançá-lo.
Esse problema perturbou-os durante dias. Havia dois portões no castelo, ambos
fortemente guardados noite e dia. A segurança estava mais intensa do que de
costume porque chegaram rumores de que fora visto nas vizinhanças um bando
de saxões supostamente buscando vingar os que haviam sido capturados pelos
homens de Sir Cade. Artur sugeriu que ele e Cal mergulhassem do ponto mais
alto da muralha para o fosso, e nadassem rumo à liberdade. Mas Cal não sabia
nadar e mesmo insistindo com Artur com os lábios trêmulos e a voz partida para
que este tentasse se salvar sozinho, Artur se recusou a abandonar o amigo.
E ambos, mas especialmente Artur, viviam o tempo todo apavorados de serem
novamente convocados ao quarto de Sir Cade.
Então uma tarde, quando começava a anoitecer e uma névoa gelada subia do
leito do rio logo abaixo, o pátio se encheu de tumulto e excitação.
— Os atores, os atores chegaram!
— Atores? — indagou Artur.
— Não ouviste falar? — perguntou Cal. — Eles apresentam um espetáculo de
lutas de espadas. É... oh, eu adoraria ser ator! — e suspirou. Artur jamais o vira
tão entusiasmado.
Mas logo se distraiu. Os atores iniciavam a tarefa de preparar o palco para o
espetáculo, com uma segurança que para Artur já parecia a própria encenação.
Eram sete e um, em particular, um homem magro e alto, chamou-lhe a atenção.
Não se tratava do líder, pois este era um velho bastante corpulento, com uma
careca brilhante bordejada por um tufo de cabelos brancos que pendiam em
cachos desalinhados. Mas o magro tinha um ar de total autoridade. Falava pouco
e em língua estranha para Artur, mas sempre que o fazia os companheiros
pareciam correr para cumprir as suas ordens.
— E porque ele faz o papel do Goloshan — sussurrou Cal.
— Goloshan?
— O malvado. Acham ou temem que ele tenha se transformado naquilo que
representa.
Então, quando a lua nascente penetrou a bruma, a peça começou.
Primeiro os atores formaram um cordão em forma de estrela de cinco pontas e
o velho careca ficou no meio, colocou duas espadas no chão, em cruz, e
começou a dançar. Movia-se com uma desenvoltura que lhe desmentia a idade e
saltava cada vez mais alto, com as mãos entrelaçadas sobre a cabeça, e os atores
que formavam o cordão entoavam um refrão ininteligível para Artur.
Então o magro, o Goloshan, entrou no cordão. Sobre os ombros trazia uma
cabeça de cavalo e se Artur não tivesse observado a maneira pela qual o pé
esquerdo formava um ângulo com a perna, resultado, sem dúvida, de algum
acidente, não o teria reconhecido. Essa deformidade fazia com que ele se
movimentasse de um modo que parecia letárgico, e no entanto, quando começou
a dançar, essa falta de jeito se transformou em zombaria para com o primeiro
dançarino e suas espadas, despertando-lhe a raiva. Este pegou as espadas e
segurando uma pela lâmina ofereceu-a ao Goloshan. Por duas vezes este
recusou, mas ao terceiro oferecimento aceitou e assumiu a posição en garde. Os
dois homens rodearam um ao outro fazendo gestos impetuosos com as espadas
que, no entanto, não se tocavam. A música agora mudara para um ritmo de
marcha e parecia que os cantores incitavam os dois contendores a esquentarem
os ânimos. Goloshan reagiu e arremeteu contra o adversário, que espertamente
se desviou. Isso provocou Goloshan, que atacou, desajeitado. Ao fazê-lo tropeçou
e recebeu, ao que parece, um violento golpe no pescoço. De imediato caiu ao
chão como que sem sentidos. O vitorioso avançou, removeu a cabeça de cavalo
e manteve a ponta da espada no pescoço do inimigo derrotado. Soltando um grito,
o vencedor parecia ir embora e todos os dançarinos lamentavam. Então um
destes rompeu o cordão e se ajoelhou diante do homem caído, soltando gritos
lamentosos. Com isso outro dançarino se aproximou, ajoelhou-se também e
passou as mãos pela testa do Goloshan aparentemente morto, enquanto
sussurrava um feitiço em língua ainda ininteligível para Artur. Ao fazê-lo, o
vitorioso e o primeiro a se lamentar reuniram os dançarinos e todos começaram
a se mexer lentamente no sentido anti-horário; e o seu canto, agora, era quase
um murmúrio. Depois de completarem o círculo por sete vezes, o ator que
ocupava o centro pegou a mão do Goloshan e ergueu-o, pondo-o de pé. Então
ambos começaram a dançar, enquanto o coro mudava para um cântico de
louvor à lua.
Artur ficou extasiado, embora sem entender o significado da encenação. Mas
não se esqueceu da idéia que maquinara ao ver os atores.
Finda a peça, o grupo ceou um carneiro assado no pátio. Uns bebiam cerveja,
outros cidra, pois estavam perto de uma região de maçãs. Artur espreitava os
atores às escondidas, procurando uma oportunidade para lhes falar, e Cal grudou-
se a ele.
Então, quando a lua chegou ao ápice, o mais jovem dos atores pegou um alaúde
e começou a cantar:

O meu amor ama um outro amor


E para oeste o vento agora soprou
E falso como os dados de um mágico, o meu amor,
Ai de mim, por que me abandonou?

Chegou-me num verão à noite


Como sobre a rosa o orvalho,
Envolveu-me em total deleite,
E roubou-me o sossego.

Ele me abandonou numa clara manhã


Sem ao menos olhar para trás;
O seu coração é frio como o esperma de satã,
Cuidado com os feitiços que ele faz.
Cuidado com os feitiços que ele faz, meu rapaz,
Cuidado com o seu hálito açucarado.
Ele é um ser sobrenatural, vem das Trevas,
E do Príncipe da Morte é um criado.

Quando terminou de cantar, algumas pessoas choravam, até mesmo os soldados;


e Artur observou isso e pensou como era estranho que a música pudesse tocar
homens que haviam testemunhado a crueldade das batalhas e que uma canção
de amor infeliz parecesse acovardá-los. No entanto, se o chefe lhes ordenasse,
esses sujeitos não hesitariam em pendurar na forca o jovem menestrel. Enquanto
Artur pensava assim, o jovem percebeu-lhe o olhar preocupado e piscou em sua
direção. Era um rapaz moreno, de cabelos cacheados, olhos negros como
groselhas. Artur percebeu o olhar e retribuiu com um sorriso, e o jovem
aproximou-se, oferecendo-lhe o alaúde.
— Sabes fazer música, meu amigo?
— Posso tentar.
— Pois tenta porque a minha garganta está mais seca do que o deserto que fica a
leste do Éden.
Artur pegou o alaúde, dedilhou algumas cordas, vendo nesse oferecimento um
meio de fugir dali, se conseguisse aproveitar a chance que lhe surgia. Virou-se
para Cal e disse:
— Vamos cantar juntos. A Balada das Coisas Perdidas.
— Ai de mim, não sei os versos — disse Cal.
— Então canta só o refrão. — Artur inclinou-se para o amigo e murmurou: —
Canta tudo o que puderes. É importante, estou te dizendo.
E então Artur dedilhou a harpa e cantou com uma voz clara e doce como o sino
das vésperas:

Um cavaleiro de verdade num riacho da floresta estava deitado,


E a rainha das fadas ajoelhou-se ao seu lado. Beijou-o uma vez, beijou-o três
vezes, Beijou-o uma vez, beijou-o três vezes, Encerrou-lhe o coração num
sonho de fada, E prendeu-o com um alfinete de prata.

Da muralha do castelo a amada observava, Observava e esperava, para ver


se o seu amor retornava.
Beijara-o uma vez, beijara-o três vezes, Beijou-o uma vez, beijou-o duas
vezes,

Observou e esperou até cair a sombra


Perguntando às criadas “Ouviram soar a sua trompa?”

Os cascos do seu cavalo nunca amassaram aquele gramado.


A sua trompa permaneceu, como a lua, silenciosa.

Beijos de fada o juízo lhe roubaram


Beijos de fada o coração lhe roubaram.
Ele jaz no vale onde não existe passado,
E as fadas dançam a sua melodia silenciosa...

— Por que chamas de “Balada das Coisas Perdidas”? — indagou o rapaz moreno
quando Artur acabou de cantar.
— Porque é o nome que me ensinaram — respondeu Artur.
— A tua música é boa — disse o homem que desempenhara o papel de
Goloshan. — Deverias ser músico.
— Nada agradaria mais ao meu amigo e a mim do que viajar convosco e fazer
música — disse Artur.
— E tu sabes outras canções?
— As canções são infindáveis e a música voa tão alto quanto o falcão — disse
Artur, citando Merlim.
— Bem — disse Goloshan —, veremos o que se pode fazer. Há muito venho
pensando que o nosso repertório estava limitado demais. Os tempos estão
mudando, como venho observando muitas vezes, e novos costumes exigem novo
material.
Então Artur achou prudente puxar para um lado o rapaz de cabelos
encaracolados, cujo nome era Peredur, sem esquecer de incluir Cal na conversa,
e explicar-lhe a situação, dizendo o quanto ansiavam escapar do castelo de Sir
Cade.
— Receio que seja difícil fugir para o reino das fadas da nossa canção — disse
Cal, que tinha tendência a melancolia e portanto a prever dificuldades, ao passo
que Artur, por ser sangüíneo, enxergava as oportunidades. Mas Peredur riu. Era
alegre como a manhã e pensava, portanto, que tudo era possível e que se o
desejo fosse suficientemente sentido, sempre poderia ser traduzido em ação.
— Quem dera fosse assim, mas o meu avô, que me criou, costumava dizer: “Se
os desejos fossem cavalos, os mendigos cavalgariam” — disse Cal.
— Deixa comigo — disse Peredur —, e verás que o teu desejo se transformará,
de fato, em um cavalo.
XIII

Peredur estava deitado com Artur e Cal, no porão sob a cozinha. A sua conversa
encantava Artur; e até Cal, cuja natureza melancólica e rabugenta piorara com a
infeliz experiência, começou a reagir às histórias do novo amigo sobre os
prazeres que faziam parte da vida dos atores.
— Nós somos vagabundos — disse o rapaz —, e embora isso signifique que
muitos homens ergam as mãos contra nós e nos olhem como ladrões ou
perturbadores da paz que pode ser encontrada nesta terra, ainda assim
desfrutamos de liberdade para perambular por onde quisermos, trabalhar como
quisermos, viver como quisermos sem dar atenção às leis nem àquilo que é
tomado por moral. Para mim só existe uma lei moral que vale: desfruta e dá o
máximo de prazer que possas. Pois quem sabe o que o amanhã trará?
E assim sorriu para Artur e para Cal e deu-lhes uma lição. Artur ficou feliz ao
constatar que ele falava a verdade.
Ainda era alta noite no vale escuro situado entre a lua velha e a lua nova quando
Peredur os acordou e os três engatinharam pela cozinha silenciosa até o pátio
onde a carroça dos atores aguardava para partir de manhã. Pararam diante do
portal, escutando o ruído dos sentinelas que marchavam nas ameias logo acima.
Quando tudo ficou em silêncio, Peredur caminhou para o pátio aberto e parou
por um momento, vigilante como uma raposa. Estirou os braços, como alguém
que desperta do sono e boceja. Então, com toda a delicadeza, ergueu a coberta
da carroça e mais uma vez parou, alerta. Mas não havia som nem movimento.
Sussurrou: “Venham”. E Artur e Cal, ágeis como a aurora, ultrapassaram o portal
e subiram na carroça. Esconderam-se debaixo do equipamento dos atores e
Peredur recolocou a coberta. Então, com gabolice, subiu a escada que conduzia
até as ameias e, reclamando estar sem sono, engajou-se em animada conversa,
e até mais do que isso, com os sentinelas.
Assim a noite passou, e de manhã os atores partiram daquele odioso castelo,
levando Artur e Cal a salvo.
— Em toda a minha vida, jamais fiquei tão contente de me livrar de um lugar —
disse Peredur.
Artur descobriu que a vida dos atores lhe agradava. Sentia prazer na liberdade da
estrada e logo passou a ser um valioso membro da trupe. Cal, no entanto, por
longo tempo continuou preso aos terrores que a experiência lhe trouxera, e nem
quando estavam muito distantes do castelo conseguia ficar à vontade. Além disso,
diferente de Artur, não tinha talento para o espetáculo, perspectiva essa que o
fazia passar mal do estômago. E logo ficou ciumento de Peredur e da amizade
fácil que este depressa desenvolvera com Artur. Esse ciúme crescia cada vez
mais quando Artur e Peredur cantavam em dueto e eram recompensados com
os aplausos do público nas cidades e nos pátios das hospedarias onde se
apresentavam. O ator manco que fazia o papel de Goloshan e outros personagens
sombrios e densos observou isso, mas naquele momento guardou para si e nada
disse.
Artur logo percebeu que Goloshan, como ele sempre o via, embora não fosse o
líder nominal, era a alma da trupe e o idealizador de novos entretenimentos.
Tratava-se de um homem misterioso, que jamais falava do seu passado nem das
suas origens e, na verdade ninguém sabia de onde viera nem qual a sua língua
nativa. Viajara muito e quando estava de bom humor deliciava os rapazes com
histórias de países distantes e povos estranhos. Chegara a viver por um certo
tempo na cidade do Grande Constantino e quando falava das igrejas, palácios,
casas de banhos, bibliotecas, da colunata e das milhas de muralhas fortificadas,
os olhos dos rapazes cresciam, maravilhados. Contou-lhes do grande Imperador
Marcos, que fora forçado a fugir de Constantinopla e viajar pelos mares até
chegar à Britânia onde, por uma temporada breve demais, restaurara a glória do
Império.
— Mas — dizia ele com um sorriso ao qual Artur vinculava um dos adjetivos
favoritos de Merlim: “sardônico” — o que nós, atores ambulantes, temos a ver
com imperadores? Somos vagabundos, e tanto melhor, pois isso nos dá uma
liberdade com a qual os dinastas (como são denominados na língua grega
homens e mulheres poderosos, oh, sim, as mulheres também) só podem sonhar.
Aprendei comigo: nenhum sábio procura o poder e a glória, mas sim desfrutar do
ar vigoroso da manhã e dormir sob as estrelas, na certeza de que a sua morte não
dará lucro a ninguém. Reis e imperadores vivem sempre com medo de inimigos
e, para falar a verdade, a maioria, mais cedo ou mais tarde, é vítima de traição
ou da ambição insaciável de outrem. Pedi pouco da vida, e recebereis mais do
que os que tentam em vão dominá-la — e assim falando enrolou entre os dedos
os cachos de Peredur e plantou um beijo úmido na boca do rapaz.
Em outras noites, Goloshan falava da arte que praticavam; chamava-a de teatro,
usando o termo grego.
— É a verdadeira alquimia, pois assim como os mágicos procuram transmutar
vil metal em ouro, nós também, naquilo que para os tolos parece apenas faz-de-
conta, apresentamos a realidade do mundo, das coisas como realmente são
quando compreendidas pelos iniciados. Pois o que é o mundo das sombras em
que habitamos, senão um anfiteatro onde ninguém aparece na luz verdadeira,
mas sim onde estão todos disfarçados? Portanto, ao nos exibirmos disfarçados,
possibilitamos aos perspicazes uma sugestão da natureza da realidade a qual eles
não têm palavras para descrever. A nossa fraternidade apresenta comédias que
servem de espelho da natureza. Assim como em sonhos os homens conseguem
ter uma compreensão das realidades que quando despertos não alcançam, assim
também o nosso teatro presenteia o público com um sonho que fornece à sua
imaginação matéria de grande importância.
— Mas se nós mesmos não compreendemos o que significamos, como tenho
certeza de que é o meu caso — disse Peredur —, isso não quer dizer... eu esqueci
qual ia ser a minha pergunta, de tanto que tu me confundiste.
— Deixa-me tentar — disse Artur —, pois acho que percebo a intenção da tua
pergunta. Se não compreendemos o significado oculto da comédia que
representamos, esse significado é real, ou não? Será que é a mera fantasia que
atribui à nossa comédia um significado que nós, atores, ignoramos inteiramente
ou não percebemos? Podes me responder isto?
— De fato, posso — falou Goloshan. — Não falamos freqüentemente sem
refletir e nos surpreendemos com as palavras que pronunciamos, cujo valor, ou
significado, ou verdade só são compreendidos quando elas já saíram voando das
nossas bocas?
— Sim, suponho que às vezes isso aconteça — disse Artur.
— E isso não provaria que sabemos mais do que supomos e que somos
freqüentemente movidos a falar de um modo que parece derivar não do que
pensamos antes mas do que não havíamos pensado, e que saiu de profundezas
onde ainda não havíamos mergulhado? E não será isso que acontece quando se
diz “Ele fala a língua dos anjos” que é outra forma de dizer que falamos mais do
que pretendíamos falar? E não será o caso de...
Artur ponderou a respeito de tudo o que Goloshan dissera e guardou em seu
coração, mas Peredur zombou e disse:
— Quando o velho começa a falar, sopra idéias assim como o vento de outono
sacode as folhas mortas; e se me perguntardes, amigos, exatamente com igual
sucesso.
Quanto a Cal, franziu o cenho e disse apenas:
— Na minha opinião ele é esperto o bastante para conseguir se manter
alimentado e aquecido, e essa conversa toda não passa de “papo furado”. —
Depois torceu o nariz e disse, olhando assustado e de esguelha com medo que
Goloshan o ouvisse e reparasse nas suas palavras: — Mas quem sou eu para falar
desses assuntos, alguém que nem conhece o pai?
Certo dia chegaram a uma estalagem situada em uma região plana. O
estalajadeiro que há muito os esperava recebeu-os com um sorriso e serviu-lhes
carne e vinho. Disse-lhes que a sua chegada era auspiciosa pois uma grande
dama, na verdade uma princesa, estava alojada ali com o seu séquito. Estavam
todos cansados de viajar e ficariam contentes em assistir a uma comédia alegre.
Portanto, assim que os atores se refrescassem e o sol do verão baixasse no céu, o
estalajadeiro ficaria feliz se a trupe apresentasse o seu espetáculo. Mas o que
apresentariam?
— Vamos apresentar uma comédia sobre o casamento — respondeu Goloshan
—, pois sempre agrada às damas. Não sei por quê — acrescentou de lado para
Artur e Peredur —, pois todo mundo sabe que a maioria dos casamentos se
revela infeliz.
A peça era simples, como todas as peças naqueles tempos iletrados. Mas como
Goloshan insinuara, havia um significado oculto sugerido, em primeiro lugar,
pelo título, A química do casamento e, em segundo, pela exposição de certos
emblemas bíblicos (os quatro animais de Daniel e a imagem de Nabucodonosor,
o rei mágico da Babilônia) na parede da estalagem que ficava por trás das
carroças onde o grupo se exibia; e essas imagens representavam alusões à
profecia.
Quanto ao enredo, desenvolvia-se da seguinte maneira: em certa localidade do
litoral (o ambiente era anunciado por Cal, pois este era o único papel que ele
conseguia representar) um velho rei, desempenhado por Sir Topas, o líder
nominal do grupo, encontrava um bebê (representado por uma boneca bastante
desgastada pelo excesso de uso e à qual faltava um. olho) em uni baú trazido
pelas ondas. As expressões de surpresa em. dísticos habilmente rimados
encantavam a princesa e as suas damas, que demonstravam a. aprovação
deixando de lado os bombons que comiam. Então, revolvendo mais
profundamente no baú, Sir Topas descobria urna carta que lia em voz alta.
Supunha-se vir do rei dos mouros e informava que ele capturara a terra onde
aquele bebê seria a verdadeira rainha.
A segunda cena mostrava a criança já totalmente desenvolvida em uma adorável
mocinha, desempenhada por Peredur com uma peruca de cabelos negros
anelados, tremulando os cílios naturalmente longos e revirando os olhos negros e
cristalinos. Essa atuação também despertou murmúrios apreciativos da princesa
e das damas. Então Peredur dançou expressivamente, suspirando, carente de
amor. Nesse momento, o rei dos mouros (Goloshan) erguia-se através do alçapão
da carroça, prendia nos braços a adorável jovem e desaparecia com ela na
escuridão. De modo muito comovente, Peredur gritava pedindo piedade, pois se
orgulhava dos seus gritos; e depois o silêncio só era cortado pela risada malévola
do mouro.
Então Artur surgia no palco com um peitoral de armadura, uma túnica reduzida
(que lhe revelava as pernas bem-feitas) e empunhando uma espada. Olhava em
volta por um momento, fazendo de conta, e depois, ao ouvir o mouro repetir a
risada, chamava-o para um desafio em alto e bom som. O mouro respondia.
Lutaram e Artur saía vitorioso e o mouro pulava da carroça, em fuga. Artur,
então, retirava Peredur da carroça e caía de joelhos aos seus pés, jurando-lhe
devoção. Ela o saudava como seu campeão, caía-lhe nos braços e por um certo
tempo os dois se acariciavam, arrulhavam e se beijavam com o maior amor.
Eram interrompidos por Silas, um membro do grupo de quem Artur aprendera a
desconfiar, e que estava vestido de sacerdote. Oferecia-se para casá-los e, como
preparativo, forçava-os a beber um cálice de vinho. Ao fazerem isso, ambos
caíam desfalecidos e o mouro reaparecia, entregava ouro ao sacerdote e
preparava-se para levar novamente Peredur, a princesa. Mas nesse instante
Artur despertava do desmaio, percebia o que estava acontecendo e, cheio de
justa indignação, em primeiro lugar despachava o sacerdote golpeando-lhe as
nádegas com a parte plana da lâmina da espada de modo a fazê-lo voar da
carroça e aterrissar com o rosto nas lajes de pedra do pátio da estalagem, para
contentamento geral; em seguida, a espada arremessada com destreza por Artur
parecia atravessar o coração do mouro. Nesse momento o velho rei entrava,
entendia tudo o que acontecera e anunciava o casamento do seu amado filho
(Artur) com a sua protegida, a princesa. Em seguida todos gritavam “vivat
sposus, vivat sposa” e saíam alegres como um sino de casamento, enquanto a
trupe cantava o triunfo do amor.
Apesar de simples e até mesmo rude a comédia agradou a todos, em especial à
princesa e às damas. Ela presenteou o grupo e deu rosas a Peredur e a Artur:
uma rosa amarela para o primeiro e uma vermelha para o outro. Depois houve
um banquete com carne bovina e de carneiro, tortas feitas com maçã, gengibre e
essência de amêndoas. Houve abundância de vinho, cidra, cerveja e hidromel, e
todos beberam profusamente. Artur participou com parcimônia pois percebera
os olhos da princesa fixos na sua pessoa e sentira um estranho tremor nas pernas,
além de uma incrível excitação carnal.
Assim, quando ficou escuro, uma das damas que serviam à princesa foi procurá-
lo, tocou-lhe o ombro de leve e acenou para que a seguisse. Conduziu-o ao
interior da estalagem e subiu a escada até chegarem ao quarto onde a princesa
estava alojada e para o qual já se recolhera.
A dama fez Artur entrar e depois deixou-o; a princípio ele pensou que o aposento,
de teto baixo e fracamente iluminado por um candelabro de três velas, estivesse
deserto. Depois viu que a princesa descansava sentada junto da janela; ela
ergueu-se e veio em sua direção. Sorriu, e o seu sorriso era de uma beleza que
Artur só conhecera em sonhos. Puxou-o para si e beijou-lhe os lábios e os beijos
eram suaves, trêmulos e delicados como noites de verão.
Suspiraram e fizeram uma pequena pausa, e para eles o tempo parou. Agora
Artur via que a princesa não usava saia nem anágua, apenas uma leve capa da
mais fina seda, como a que os mercadores de Damasco vendem por muito ouro.
Logo que a abraçou, a capa escorregou e ela ficou só de camisola, que encobria
menos o interior do que o vidro limpo esconde rosas ou lírios. Artur deslizou as
mãos sob a camisola e esta escapuliu; a pele da princesa era mais branca do que
a neve recém-caída e mais suave ao tato do que alabastro ou marfim. Os seios
eram pequenos, redondos e firmes e o espaço entre eles parecia um pequeno
vale entre suaves colinas, como vemos no início da primavera quando a neve se
deposita nas encostas. Por um momento Artur não teve palavras, e depois a
princesa conduziu-o ao leito e... e...
Mas o que se seguiu deixo a cargo da vossa imaginação, pois não me cabe
colocar em palavras tais prazeres, ainda que não me faltem palavras para
expressá-los. E na verdade, nem Artur nem a princesa precisaram de palavras.
Mas o prazer mútuo que sentiram foi perfeito.
Passou-se um momento, não, não um momento, passaram-se horas de magia e
prazer como Artur jamais experimentara e jamais esqueceria. No entanto o
mundo corre de modo tão amargo, a comédia que vivemos é tão pungente que
aquela noite se revelaria dolorosa para Artur, por motivos que explicarei em
ocasião oportuna da minha narrativa.
XIV

Só três dias mais tarde Artur notou que Silas não estava mais no grupo. A
princípio hesitou em perguntar a Goloshan para onde ele poderia ter ido e por
que, pois desde a manhã em que encenaram a peça no pátio da estalagem
Goloshan estava calado, soturno, e parecia ter algo a lhe perturbar a mente. E de
fato, agora observando Artur a olhado desconfiado, foi Goloshan quem curvou
um dedo chamando pelo rapaz e ordenando-lhe que se aproximasse.
Por três vezes tentou falar e por três vezes se interrompeu franzindo o cenho.
Finalmente serviu-se de uma caneca de cerveja do barril contra o qual estivera
apoiado, passou-a para Artur e depois pegou uma segunda para si mesmo.
— Boa cerveja — disse Artur, como que para encorajá-lo.
— É verdade. Se a vida fosse tão simples e tão saudável como a cerveja,
ninguém teria razões para reclamar. Deves ter observado que Silas não está mais
entre nós.
— Sim, de fato.
— O diabo que carregue aquele vilão intrometido, malicioso, hipócrita, sonso e
desprezível!
— Se dizes isso...
— Digo. — E bebeu mais cerveja. — E tu, meu rapaz, também terás de nos
deixar.
— Deixar? Mas eu não quero deixar a trupe.
— Nem eu quero te perder. Aprendi a gostar de ti, rapaz, não tanto quanto do
meu Peredur — beijou a ponta dos próprios dedos —, mas gosto de ti de verdade.
No entanto, precisas partir. Quanto mais tempo ficares conosco, mais perigo
corremos todos.
Artur sacudiu a cabeça, espantado; e como ocorre com os homens em tais
situações, sem dúvida empalideceu.
— Mas... — disse e depois fez uma pausa, sem saber que objeção levantar.
Goloshan suspirou novamente e depois revelou as suas razões. Contou que Silas
descobrira que a princesa, na verdade, era Morgan le Fay, esposa do famoso rei
Lot, de Orkney. Acreditando que o rei Lot, conhecido por ser homem muito
ciumento, o recompensaria se lhe desse a notícia da infidelidade da esposa, Silas
partira para a corte do rei a fim de ser o primeiro a dar tal notícia.
— Ele é maluco, além de safado. Eu o adverti de que o rei não recompensaria
com ouro o portador dessa notícia, mas sim cortando-lhe o nariz, arrancando-lhe
a língua, decepando-lhe as orelhas e cegando-o. Mas ele não quis ouvir. Ou não
quis acreditar. Além disso, parece que ele te odeia e espera que o rei Lot te
procure por toda parte e se vingue do insulto que lhe causaste fazendo-o de corno.
E temo que Silas fale a verdade; e assim, caro rapaz, deves nos deixar e te
esconder. Também devo te dizer que te ordeno a fazer isso para o nosso bem e
para o teu. E isso me envergonha. Mas não consigo pensar em outra alternativa.
Artur viu a justiça das palavras de Goloshan e assim corajosamente obedeceu.
Peredur chorou quando se despediram e ambos juraram amizade imorredoura.
Então, cm companhia apenas de Cal, Artur afastou-se. Os dois rapazes
derramaram lágrimas sinceras, Artur porque fora feliz com a trupe de
comediantes e Cal porque mais uma vez se aventuravam no desconhecido. Mas
logo ambos enxugaram as lágrimas. Tinham o mundo pela frente com a
promessa de aventuras e a única dúvida era escolher o próximo alojamento.
Assim vaguearam passo a passo, entregando-se aos cuidados das forças que
podiam velar por eles, e seguiram o seu caminho solitário.
Viajaram dias através de colinas e vales, pântanos e brejos, encontrando pouca
gente, não conversaram com ninguém, sempre alertas pois os homens do rei Lot
poderiam estar vasculhando a região em busca de Artur. Este, no entanto,
alegrava as horas escuras da noite e as longas horas da viagem permitindo que a
imaginação brincasse com imagens dos prazeres de que desfrutara no encontro
amoroso com a princesa; e decidiu que nada o impediria de procurá-la e de se
colocar inteiramente ao seu serviço. Não sabia dizer como conseguiria mas, com
a alegre confiança da juventude, não duvidava conseguir. Desejava, e portanto
assim aconteceria.
No sétimo dia, Artur e Cal chegaram a uma charneca árida onde não havia sinal
nem som de animal ou pássaro. O terreno era pesado, o céu cinza chumbo e
embora não houvesse vento fazia um frio extremo. A calma do ar e o silêncio do
mundo enfraqueceram-lhes os ânimos; e quando a luz começou a cair e não
havia sinal algum de vida, o cansaço e a fome os dominaram.
A escuridão, como inimigo furtivo, insinuou-se sobre eles. Arvores e arbustos
solitários assumiam formas estranhas e sinistras. A coruja noturna piou a sua
advertência para o mundo, e do outro lado do vale uma raposa uivou. Cal, com os
dentes tremendo de frio ou de terror, ou mais provavelmente de ambos, agarrou-
se ao braço de Artur e lamentou a sua infelicidade. Em vão Artur procurou
palavras para consolar ou encorajar o amigo; no entanto, ele próprio extraía
força da fraqueza de Cal.
Nesse instante uma luz tremulou diante deles, uma luz que se movia, inconstante.
Artur chamou a atenção de Cal para essa luz e insistiu para que este o seguisse.
Soava música distante, queixumes de mulheres acompanhados do bater lento de
um tambor.
— Talvez sejam demônios — disse Cal — ou espíritos dos mortos, pois esta
charneca sem fim com certeza pertence aos que se foram antes de nós.
— Acho que não — disse Artur, e novamente insistiu para que Cal o
acompanhasse.
Então seguiram a luz e chegaram a uma capela. Mais uma vez Cal hesitou e
recuou um passo mas Artur, cheio de determinação, avançou. Empurrou a porta,
que rangeu nas dobradiças, e entrou na capela.
O corpo de um cavaleiro jazia diante do altar e uma jovem, ajoelhada à
cabeceira, alisava aquele semblante pálido e se lamentava em voz alta. Ela
própria tinha a pele pálida, longos cabelos dourados caíam-lhe às costas e os
dedos que se moviam sobre o semblante do morto eram esguios como varinhas
de salgueiro. Ergueu os olhos quando os ouviu entrar e à luz tênue os seus olhos
pareciam lagos escuros.
Artur estava prestes a se dirigir a ela quando uma figura com roupas de
sacerdote emergiu das sombras. Então Artur dirigiu-se a ele, para não
interromper o lamento da jovem.
— Quem é o cavaleiro morto, e que lugar é este? — indagou.
— E a capela dos condenados, dos que foram expulsos para além das leis dos
homens e dos deuses — respondeu o sacerdote — e eu mesmo sou um deles.
Quanto a este a quem chamas de cavaleiro morto, é o César de olhos de falcão.
— Que César é esse? — perguntou Artur. —Até onde sei, agora não existe César
algum na Britânia. — E falou em voz clara para disfarçar o medo que sentia.
Cal agarrava-se à manga de Artur.
— Este lugar é sinistro, vamos embora! — dizia.
— Ouvi dizer — disse Artur sem prestar atenção a Cal, mas permitindo que este
o agarrasse com força para obter conforto e confiança — que mortos ilustres
como os Césares não ficam expostos em capelas escuras, cheirando a umidade e
decadência como esta, mas sim num lugar aberto, claro e alto.
— Era assim antigamente, nos tempos do Império, mas o Império pereceu sob as
ondas da grama esmagada ao peso dos cavaleiros. Diz-me qual é a tua fé, tu que
ousas invadir este lugar profano — foi a justificativa.
— Acredito na minha força — disse Artur. Mais tarde ele não conseguiria
explicar tais palavras, que expressavam algo em que jamais pensara, nem
tampouco saberia dizer de onde provinham.
— Então, com certeza pertences a este lugar — disse o sacerdote. Sorriu, e o seu
sorriso era o sorriso de um lobo.
— Pertences a este lugar — repetiu —, pois o homem é quem faz o seu próprio
destino.
— Falas por meio de enigmas — disse Artur. — Fala claro!
— Não existe uma fala clara — disse o sacerdote —, nem existe mentira. Se falo
por meio de enigmas é porque a própria vida é um enigma, e falar de outro
modo seria enganar. Quando nascemos, entramos numa estranha casa do espírito
e o chão dessa casa é um tabuleiro de xadrez onde jogamos uma partida em que
não sabemos o que fazer, nem como evitar um oponente que muda de forma e
aparência e a quem, se tivermos alguma sabedoria, passamos a temer.
Cal mais uma vez agarrou a manga de Artur e sussurrou-lhe ao ouvido:
— Vamos embora, enfrentar a imensidão lá fora, pois este homem é louco e me
causa mais medo do que a noite mais apavorante!
Mas Artur disse:
— Não vou mais ouvir isto. Tu dizes, amigo, que esta é a capela dos condenados.
Mas me ensinaram que os condenados são mantidos no Inferno, e esta capela
fica aqui na terra.
— E será que o Inferno deve ser restrito? Será que o Inferno deve ficar
confinado? — replicou o sacerdote. — Será que o homem não é uma criatura
suficientemente malévola para construir para si mesmo um Inferno aqui na
terra? Por que deves esperar pela morte para receberes a mão gelada sobre ti
antes de entrares a serviço do Mais Elevado, a quem alguns chamam de Satã e a
quem os sábios não ousam mencionar? Tu olhas para aquela mulher lamentando
o pai morto, ou talvez o amante, ou, quem sabe, talvez pai e amante, e a desejas,
segundo me informam os meus olhos. No exato momento do teu desejo te
encontras na soleira do Inferno, pois és como um homem sedento que dormindo
deseja beber e toma grande goles de água que não o satisfazem nem o saciam, e
que morre queimado de sede em meio a um riacho corrente. O mesmo acontece
com a Deusa do Amor a quem os romanos chamavam de Vênus, embora esse
não fosse o seu nome, que não pode ser pronunciado pelos homens nem pelas
mulheres, embora sejam seus criados, a quem ela emprega para serem o
chamariz e a perdição dos homens. Assim, essa deusa instiga todos os prováveis
apreciadores das imagens do desejo e similares, para inflamar-lhes o desejo e
alimentar-lhes a imaginação ansiosa. Por um certo período essa visão satisfaz,
mas com o transcorrer do tempo precisa ser transformada em ação. Mãos ávidas
e indecisas percorrem o corpo do amor imaginado. A carne cede e torna-se mais
quente. Uma antecipação do prazer é oferecida e parece que a deusa está prestes
a ceifar o campo da mulher. Os amantes se entrelaçam; então o desejo,
arquejante como um cão, aproxima-se da intensidade do calor, de modo que no
ardor amoroso os amantes chegam a se machucar e a cravar os dentes na carne.
E no entanto tudo isso em vão, pois não conseguem se perder um no outro e se
tornar, como desejam, uma carne única, uma unidade. Então se afastam e ficam
apartados, conhecendo a decepção. Quando a manhã cinza sucede à noite
ardente, a luxúria da ação dá lugar apenas ao cansaço e à autocomiseração. Tu,
meu bravo e jovem chevalier, estás marcado para seres um grande amante, e
qual será a tua recompensa? Desapontamento, ódio a ti mesmo e, finalmente, um
vazio gelado como o vento do norte, além de infelicidade e desgosto. Vê agora,
nesta Capela dos Condenados, aproximar-se aquela a quem desejas.
Enquanto ele falava a jovem ergueu-se do lado do caixão, o seu lamento
transformou-se em murmúrios amorosos e ela avançou em direção a Artur.
Quando se aproximou os seus traços, que pareciam tão adoráveis, começaram a
congelar e os seus olhos fitavam-no com uma luxúria voraz e o sangue lhe
escorria pelo canto da boca.
Inclinou-se sobre Artur e nesse instante a escuridão desceu e ele desmaiou.
Quando se recuperou do desmaio Artur estava deitado na charneca ao lado de
um riacho e Cal enxugava-lhe o rosto com um pano.
— Aonde foram todos? — perguntou Artur, mas Cal não respondeu.
Artur insistiu, mas Cal fingia ignorar tudo que fora feito e dito na capela dizendo
apenas que Artur levara um tombo e que ele tivera muito medo. E, de fato,
quando Artur olhou em torno da charneca, agora totalmente iluminada pela lua
cheia que brilhava, como o vento crescente espalhasse as nuvens, não viu capela
alguma e por alguns minutos se perguntou se sonhara tudo o que eu relatei.
No entanto, tinha certeza de que não sonhara e concluiu que o medo se apossara
do amigo de modo a persuadi-lo de que nada do que acontecera tinha de fato
acontecido.
As palavras do estranho sacerdote continuavam na mente de Artur, que meditava
a respeito quando os dois retomaram a viagem. Pensava: “Sem dúvida havia
uma certa verdade nas palavras dele, porém a minha experiência com a
princesa, na estalagem, de certo modo as contradiz”.
No entanto, não conseguia esquecer o que fora dito e perturbava-o lembrar que
Merlim falava no mesmo tom.
“Será que a mais intensa das experiências está condenada a causar desgostos?”
perguntava a si mesmo. “Será que estamos condenados a viver esta vida em um
deserto onde todo o prazer é passageiro e ilusório, e nenhum amor é verdadeiro?”
XV

Por volta do anoitecer chegaram ao topo de uma colina voltada para oeste. O céu
estava vermelho; no entanto, não um vermelho enraivecido, mas sim um
vermelho suavizado pelo ouro, riscando-se de um cinza melancólico à medida
que a luz esmaecia.
No vale abaixo viram uma cidade, e isso os alegrou. — Com certeza
encontraremos lá uma hospedaria — disse Cal — e uma lareira para nos
aquecer, além de carne, cerveja e talvez um bom queijo, pois os campos à nossa
frente sugerem uma região de gado.
Assim animados desceram a colina, pois ambos estavam famintos e exaustos, e
agradava-lhes a idéia de terem comida e um teto onde se abrigar à noite. Quando
a luz desapareceu o frio apertou, mas os rapazes não desanimaram.
Então chegaram a uma propriedade fora da cidade. Na fachada havia belas
colunas, mas a grama crescia entre as pedras do calçamento e tudo tinha um ar
de abandono. A porta estava aberta. Entraram, mas não havia ninguém; o terreiro
estava igualmente deserto.
Prosseguiram rumo à cidade, de espírito abatido com o que haviam visto, pois
era difícil acreditar que a cidade florescesse enquanto uma nobre propriedade
pouco além dos seus limites caíra em tamanha ruína e decadência. E os seus
temores logo se justificaram. Não encontraram viv’alma pelas ruas nem sinal de
vida na praça do mercado. Na verdade havia uma estalagem, mas a tabuleta,
que exibia uma águia, pendia retorcida e a própria águia parecia ter perdido as
penas. Ainda assim empurraram a porta que dava acesso à taverna. Três homens
estavam sentados à mesa e Artur ia se dirigir a eles quanto percebeu que todos
três estavam inacessíveis. Pousou a mão no ombro do primeiro homem, rígido e
frio como um galho gelado. Tocou a face do segundo e nenhum músculo se
moveu. O terceiro o olhava com a fixa indiferença da morte. Apenas um rato,
que correu no escuro quando eles se aproximaram, contestava o que acontecera
aos demais. Artur acendeu uma vela deixada sobre a mesa e aproximou-a dos
rostos dos mortos: estavam negros e inchados.
Então, acompanhado de Cal, percorreu a cidade, entrando em casas desprovidas
de ferrolhos que lhes fechassem as portas. Algumas estavam desertas; em outras
encontraram corpos e em um fosso no limite da cidade, sob a muralha do lado
oeste, depararam-se com uma pilha de cadáveres ali atirados, insepultos,
expostos aos elementos, como se os seus companheiros tivessem sido atingidos
pela calamidade antes de poderem completar o sepultamento. Ou talvez
estivessem aflitos demais pelo desastre que se abatera sobre eles para se
importarem com tais formalidades. Artur e Cal saíram dali e perto do poço da
praça do mercado acharam o corpo de uma criança, um menino, segundo
indicavam os restos da roupa, um menino de sete ou oito anos, cabelos louros, já
sujo e enlameado, e com a carne despedaçada por aves de rapina que lhe
haviam arrancado os olhos.
Naquele momento ouviram o barulho de cascos de cavalos e se detiveram, em
um misto de expectativa e medo. Os cavaleiros entraram na cidade passando sob
um arco erguido por algum governante provincial para homenagear
imperadores, celebrando algum triunfo insignificante sobre alguma tribo bárbara.
Eram quatro e cavalgavam em trote ritmado. Três cavalos eram negros como a
noite de inverno e o quarto, branco como a neve recém-caída.
Pararam segurando as rédeas e então o primeiro cavaleiro avançou pela praça
do mercado. Parecia alto na sua montaria e tinha o rosto marcado por uma
cicatriz esbranquiçada. Na mão direita portava uma lança e uma longa espada
pendia-lhe do cinto. Olhou em volta e era como se os seus olhos nada vissem.
Artur propôs um desafio; sem intenção, pois parecia-lhe que as palavras lhe
saíam da boca ou que algum outro poder falava por seu intermédio.
O cavaleiro fixou-o com olhos indiferentes e disse apenas:
— Eu sou a Guerra.
Então o segundo cavaleiro adiantou-se, pálido e lúgubre como a lua de inverno.
Artur falou novamente, e novamente o cavaleiro replicou:
— Eu sou a Fome.
Afastou-se e o terceiro cavaleiro assumiu o seu lugar e tinha a face inchada e
marcada com manchas de sangue. Em resposta a Artur, pronunciou estas
palavras:
— Eu sou a Peste.
Então todos três pegaram as rédeas e se afastaram e o companheiro do cavalo
branco avançou e os três o saudaram, aclamando-o como seu chefe. Este
levantou o visor da armadura e Artur viu que a carne desaparecera-lhe da face,
restando apenas ossos e dentes com falhas. Desta vez Artur sequer desejou
pronunciar um desafio, nem precisou fazê-lo, mas ficou em silêncio e o
esqueleto falou:
— Eu sou a Morte, chefe de todas as coisas, que domina o campo que os meus
companheiros conquistaram.
E sem outras palavras, os quatro cavaleiros esporearam as montarias e
cavalgaram em direção a oeste. Enquanto Artur e Cal continuavam espantados
com o que haviam visto, e antes que pudessem debater o que aquilo poderia
significar, a eles se juntou uma terceira pessoa. A princípio Artur pensou que
fosse Merlim, pois o homem se parecia muito com ele; mas não era Merlim, pois
não reconheceu Artur nem o saudou, como teria feito. Além disso, quando falou,
embora o sotaque fosse o de Merlim e o tom da voz de Merlim, as palavras não
eram de Merlim. Disse:
— Aqueles eram os Cavaleiros do Apocalipse, que anunciam o fim dos tempos e
a segunda vinda do vosso Senhor.
— E o teu Cristo? — perguntou Artur, com uma indignação digna de um pupilo
de Merlim e naquele momento esquecendo do seu destino como imperador
cristão. — E esse teu Cristo só vai aparecer quando este mundo, com todos os
seus prazeres, for destruído pela guerra, pela fome, pela peste e pela morte,
chefe de tudo? Terá sido essa a salvação que os teus sacerdotes cristãos
prometeram à humanidade?
— Paz, amigo — disse o homem que não era Merlim mas se parecia com ele —,
paz, e escuta o que tenho a dizer. Pois se não o fizeres, íu, a quem muito foi dado
e a quem muito mais está prometido, serás insultado através dos tempos como
traidor e apóstata, ingrato e renegado. Mas antes, como o que tenho para te dizer
é profundo e de grande importância, voltemos àquela hospedaria abandonada
para ver se a adega nos fornece uma garrafa de bom vinho, pois nada melhor do
que o vinho para animar os ânimos e tornar a discussão agradável.
Assim fizeram e a adega ainda estava bem abastecida de vinho, e o novo
companheiro escolheu um vinho da Borgonha que, como está bem comprovado,
é um vinho de bom corpo, que fortifica a mente e o espírito como nenhum outro,
nem mesmo como as nossas melhores safras daqui da Sicília. Por mais
admiráveis que estas sejam, meu príncipe, falta-lhes a sutileza do vinho da
Borgonha, assim como as nossas noites aqui, embora carregadas do cheiro das
flores do limoeiro, não podem se comparar com o suave entardecer da minha
Tweeddale natal, onde o perfume úmido das bétulas se mistura ao travo das urzes
e dos tojos... Mas fiz uma digressão e preciso voltar à nossa história. No entanto,
antes de fazê-lo, deixai-me explicar e não vos ofendais, meu príncipe, se
perceberdes a parcialidade que demonstro para com o meu torrão natal (onde
infelizmente não crescem parreiras nem se produz vinho algum), pois para o
beber cotidiano não há safras que se comparem às da Sicília, principalmente
quando as parreiras crescem nos flancos fertilizados pelas lavas do Etna. No
entanto, graças a uma combinação de sutileza e corpo, insisto em que não há
vinhos que se comparem aos da Borgonha. E em todo caso, foi um vinho da
Borgonha que Artur e os seus companheiros encontraram na hospedaria deserta,
e portanto foi um Borgonha que beberam. Quanto a isso não há dúvida.
Quando estavam à mesa do lado de fora da hospedaria — pois decidiram não
beber lá dentro devido aos corpos dos mortos e a qualquer infecção que estes
pudessem ter — saciada a sede inicial, tornaram a encher as taças e o novo
companheiro falou o seguinte:
— Os cavaleiros que tivestes o privilégio de encontrar aqui esta noite são
inquestionavelmente os do Apocalipse, mas não se sabe ao cerco se isto
acontecerá agora conosco ou se é uma premonição. A evidência dos nossos
sentidos sugere a primeira hipótese e no entanto o intelecto, o dom supremo que
Deus concedeu ao homem, afirma o contrário. Não podemos saber qual é a
verdade. No entanto, o certo é que este mundo é um campo de batalha entre o
Bem e o Mal, entre as Forças da Luz e as Forças das Trevas. Alguns insistem em
que o pêndulo está inclinado para estas últimas, pois afirmam que toda carne
pertence ao mal e que o mundo onde habitamos é criação do Senhor dos
Exércitos, a quem alguns chamam de Satã.
Envolveu-se com. o manto amarelo alaranjado, pois a noite ficara gelada, e
bebeu mais vinho.
— Seja lá como for, todos concordam em que a última etapa do mundo
testemunhará o Armagedom, a grande batalha final. Alguns dizem que o
Anticristo triunfará e que então o último dos imperadores cristãos pousará o cetro
no Monte das Oliveiras para que o Anticristo, como eles o chamam, estabeleça o
reino do mal, como foi narrado na Sagrada Escritura...
— Permite-me — disse Artur, com a delicadeza perfeita que é a marca dos
príncipes (ou deveria ser, pois conheci príncipes aos quais falta totalmente esta
delicada qualidade) —, permite-me, por favor, te interromper. Quando te
dirigiste a nós pela primeira vez, fiquei extremamente contente que o fizesses,
pois fascinou-me a tua conversa e entendi que eras cristão. Agora a tua maneira
de falar me convence de que eu estava equivocado. Assim sendo, te importarias
de nos dizer quem és e o que fazes, para que possamos te compreender
perfeitamente?
— Quem sou e o que faço pouco importa. Podeis considerar que sou aquele que
escolherdes que eu deva ser. Basta apenas dizer que sou um errante, que vi todo o
bem e todo o mal, viajei por todos os cantos do Império que Roma foi e pode
tornar a ser, e mesmo além das terras chamadas de bárbaras, onde vivi nas
florestas, atravessei planícies sobre as quais o vento jamais cessa de soprar. Vistes
os Quatro Cavaleiros e continuais vivos, enquanto milhares pereceram. Dizem
que o fim do mundo está perto o que, na minha opinião, não causaria desgraça
maior do que a já existente. Certos profetas declaram ser preciso primeiro
renovar o Império cristão, primeiro aqui na Britânia, que alguns chamam de
Terceira Roma, e depois em Jerusalém, sempre abençoada apesar dos
infortúnios, e que isso deve acontecer para que o Chefe de Todo o Mal, o
chamado Anticristo, que estabelecerá aqui o seu trono imperial, seja alimentado
pela fé, adversários suficientes contra quem possa lutar. E esses profetas insistem
em que a vitória do Anticristo é inevitável...
Fez uma pausa, deu uma risada e, para surpresa de Artur, o seu riso tinha o
frescor da manhã de primavera.
— Eu vos aflijo, vejo os vossos rostos empalidecerem — disse.
Pegou a garrafa, encheu as taças novamente e disse:
— Supremo remédio. Por miserável que pareça a minha longa vida, por terrível
que seja o meu destino, há momentos em que bebo um bom vinho e não posso
deixar de crer no ensinamento que insiste em que o mal governa a terra...
— Este vinho é bom, mesmo. Se tivéssemos um pouco de queijo para
acompanhá-lo... — disse Cal.
O novo amigo suspirou.
— Sim, é verdade, mas não se pode ter tudo. — Fez nova pausa, refletiu e
acrescentou:
— Pois às vezes uma coisa exclui a outra.
— É isso, mesmo — disse Cal e sacudiu a cabeça, um pouco tonto. — Mas não
entendo por que beber vinho excluiria também comer queijo.
— Seja lá como for, deixai-me resumir o meu discurso escatológico.
— Esgat... o quê? — indagou Cal — Não consigo entender onde entram os gatos
nessa história. — E fechou os olhos e adormeceu.
Mas Artur insistiu para que o recém-chegado continuasse e disse:
— O poeta romano Virgílio falava, como o meu mestre Merlim costumava dizer,
de uma época áurea hoje desaparecida e que havia uma promessa de que o
Imperador Augusto a restauraria. Mas jamais ouvi dizer que ele tenha feito isso.
A escuridão caíra mas não havia nuvens no céu e abaixo deles, no vale, uma
réstia de bruma, neblina que repousava pouco acima dos campos abandonados,
estirava-se como um dragão se arrastando, triste, para a sua ravina.
— Sempre que viajo encontro alguém que compartilhe da memória desse
período áureo do mundo e suspire ao pensar que ficou para trás, mesmo que essa
memória lhe fortifique o espírito. Contudo nunca tive essa certeza pois fui criado
na convicção de que os nossos primeiros antepassados foram expulsos do Éden
porque Eva deu ouvidos à serpente e presenteou Adão com a maçã que
arrancara da árvore. Ainda assim, quando vejo a coragem que até as pessoas
mais pobres e humildes imprimem à sua dura tarefa de viver, mera
sobrevivência, tenho pensado, embora por breves momentos, que enquanto um
pardal conseguir voar através de um grande salão, entrando por uma porta e
saindo por outra, talvez essa época áurea ainda venha a surgir, que a batalha do
Armagedom não será perdida e que a época áurea poderá se concretizar em
tempos futuros e, por assim dizer, ficar no interior da história, e não por trás
desta.
Ao dizer isso sorriu, estirou-se no chão com o manto amarelo apertado em torno
do corpo e preparou-se para dormir. Vale acrescentar que (a menos que
suponhamos que se trate de mera e selvagem especulação, adequada apenas a
um romance) esse personagem antecipava as idéias do sábio e douto Joaquim,
abade do mosteiro situado na bela e destacada cidade de San Giovanni dei Fiori,
na Calábria, famoso em todo o vosso reino, meu príncipe, pela sabedoria e pelo
profundo conhecimento. Esse Joaquim (de fama e sabedoria tais que há alguns
anos o rei inglês Ricardo Coração de Leão convocou para acompanhá-lo em
viagem à Terra Santa, para poder ouvir do abade as interpretações dos eventos
futuros) também afirma que a batalha do Armagedom não será perdida mas sim
que o Anticristo, identificado por ele como o Infiel, será derrotado e que a vitória
das Forças da Luz significará, escreve ele, o alvorecer de uma nova era em que
a Igreja reformada anunciará a Idade do Espírito, que ele denomina de
Sociedade Perfeita, manifestada aqui na Terra... Além disso, ele declara com
cândida confiança que cada evento da história corresponde a evento semelhante
em outra dimensão do Tempo e do Espaço. Pois diz que há três idades: Idade do
Pai, revelada no Antigo Testamento; Idade do Filho, revelada no Novo, que é a
que atualmente vivemos; e a Idade do Espírito, que está por vir.
Acompanhar esse argumento é mergulhar em águas profundas para as quais vós,
meu príncipe, ainda não estais preparado. Portanto, digo apenas que se trata de
um bom assunto, embora as datas sejam confusas, uma vez que hoje não há
evidências de uma Igreja reformada, mas sim de uma Igreja enclausurada em
uma corrupção ainda mais profunda, da qual esperamos possa se livrar.
Artur viu que os companheiros dormiam. Pegou um cobertor e depositou-o sobre
Cal, cujo rosto magro, durante o sono, perdia a aparência ansiosa que tinha
quando acordado.
Durante longo tempo Artur continuou desperto, a mente correndo enquanto ele
procurava fixar tudo o que dissera o estranho desconhecido. Olhou para as
estrelas onde, se calculasse corretamente, poderia ler o próprio destino. Ouviu o
pio da coruja-de-igreja, longo e penetrante, e o latido de cães distantes.
“Na verdade, quando estamos em paz, este mundo é maravilhoso. Na verdade,
se fosse possível estabelecer a paz, tudo seria bom...” disse para si mesmo.
Então pensou em Peredur e nos prazeres de que desfrutara com ele, e na
princesa da hospedaria e no prazer que conhecera ali. E depois dormiu e sonhou.
Sonhou, como freqüentemente acontecia, que Merlim chegava, pegava-o pela
mão e o erguia do colchão de flores onde dormia. Merlim vestia um manto
longo, preso em dobras como a roupa esculpida em uma estátua; e desta vez
Merlim estava em silêncio. Mesmo no sonho, Artur observou a estranheza disso:
de Merlim não estar ocupado em instruí-lo. Ao contrário, Merlim afastava-se e
Artur o seguia. Chegavam a um espaço aberto, limitado em três lados por um
claustro; e a lua brilhava sobre eles através dos arcos do claustro. Depois
caminhavam, ainda em silêncio, até um descampado onde o luar manchava os
campos. Agora Artur via que os campos estavam cheios de animais: cavalos,
gado branco, leões, tigres, lobos, veados e raposas; e não havia medo nem
selvageria entre eles, e numa pequena cova um filhote de leão convivia com um
cordeiro. Tudo estava tranqüilo e silencioso, e no leste a noite cinza recebia do sol
nascente toques rosados e listras vermelhas. Então todos os animais (e agora
Artur também via serpentes e dragões) erguiam a cabeça para o sol, como que
adorando-o. Era como se soubessem, assim como o sol, que a escuridão ficara
para trás e que a idade das trevas do mundo estava indo embora; e quando, por
um momento todos juntos curvavam a cabeça, pareciam concordar com essa
despedida. E assim novamente erguiam os olhos para o sol, que agora parecia
uma bola dourada acima das colinas do leste, e Artur entendeu que ofereciam as
boas vindas a uma nova era de paz e abundância.
Artur acordou e ainda era noite. Mas a coruja agora estava distante e o seu pio
morria ao longe. E pensou, sonhador: “Merlim falou tanto e tantas vezes de
mistérios, mas na verdade existem apenas três: de onde viemos, para onde
vamos e como conviver com os outros, uma vez que não somos solitários mas
sim membros de uma família que, como o meu sonho sugere, inclui igualmente
os animais. As questões são fáceis, mas e as respostas? Bem, vivemos para
descobrir essas respostas”.
Então ouviu mais uma vez o tênue pio distante da co-ruja-de-igreja e lembrou-se
de que Merlim lhe dissera que os gregos afirmavam que a coruja pertencia à
Deusa da Sabedoria. “Os romanos chamavam-na de Minerva, mas eu não
consigo me lembrar do nome em grego”, dissera Merlim. E ao tentar descobrir
isso, Artur finalmente caiu em sono profundo.
E quando acordou era dia claro e estava sozinho com Cal na cidade arruinada e
deserta.
♦♦♦♦♦♦♦♦♦♦♦♦

LIVRO II
♦♦♦♦♦♦♦♦♦♦♦♦
I

Se tomardes este compasso, meu príncipe, colocardes uma ponta em Londres, a


cidade de César, como dizem alguns, e com o lápis preso à outra ponta
desenhardes um semicírculo, descobrireis que a divisão da Britânia realizada à
época situa a norte e a oeste do semicírculo as terras altas e deixa a sul e a leste
as planícies férteis. E naquele tempo essas planícies estavam em poder dos
saxões, gente de inteligência turva e que se adapta aos solos ruins; mas a parte
alta da região estava livre deles e ainda obedecia ao domínio de Uther
Pendragon, a quem alguns chamavam de imperador e outros de rei. Na verdade,
tal obediência era pouco mais do que nominal, pois Uther Pendragon, embora de
aparência imponente e até nobre, dominador em casa, tinha caráter fraco,
vontade vacilante e espírito obtuso. Apesar disso, todos os que ainda se
consideravam romanos ou bretões livres o reconheciam e lhe juravam
fidelidade, embora na prática prestassem pouca atenção às suas ordens, fugissem
dos impostos que ele tentava lhes cobrar e seguissem o próprio caminho, cada
um daqueles barões insignificantes governando colinas e vales em torno do
próprio castelo e mantendo exércitos que resistiam em obedecer. Em resumo,
desfrutavam da liberdade perfeita apenas possível quando não existe verdadeira
monarquia. Seria cansativo listar as guerras desses barões, que não passavam de
escaramuças ou, como faria um bardo tribal, enumerar-lhes as genealogias, na
maior parte imaginárias. Mas todos conheciam a genealogia de Uther
Pendragon, filho de Marcos e descendente de César, Rômulo e Enéias e, como
diziam alguns, também de Brutus, um primo de Enéias e, como este, príncipe
troiano que fugira das torres ardentes de Ilion; e também, segundo alguns, do
próprio Júpiter e de Vênus, Deusa do Amor e, como insistiam outros, do Arcanjo
Miguel.
E vós, meu príncipe, não deveis escarnecer dessas genealogias pois devo
lembrar-vos que vós mesmo alegais descender de Wotan, a quem alguns
chamam de Woden, por sua vez descendente em linha direta de Noé.
Seja lá como for, quando se soube que Uther Pendragon estava morto, foi como
se uma mão poderosa lançasse uma cortina de trevas sobre a Britânia.
De passagem, devo também vos informar que Vortigern, o grande rival de Uther
Pendragon, também morrera. Foi totalmente recompensado pela loucura de
confiar nos saxões, a quem convidara para habitarem as suas terras. O notório
Geoffrey de Monmouth conta que Vortigern foi capturado por Aurélio Ambrósio
e queimado vivo na torre que construíra. Mas não foi assim, pelo simples fato de
que, em primeiro lugar, Aurélio Ambrósio morreu antes de Vortigern e, em
segundo, que foram os saxões que o condenaram à morte, por suspeitarem de
traição. E a morte de Vortigern foi a seguinte: depois de passar muitos anos como
prisioneiro, ferveu num caldeirão de óleo.
Ora, como relatei antes, à época da morte de Uther Pendragon, Artur vivia há
algum tempo naquele castelo no Oeste, onde ninguém lhe conhecia identidade
nem origem. Chegara ali com Cal e arranjara trabalho; e fizera isso instruído por
Merlim, que dizia que Artur precisava permanecer incógnito durante um certo
tempo. Além disso, como dizia Merlim:
— Precisas aprender o significado de ser humilde — e bateu de leve na cabeça
de Artur quando o rapaz sugeriu que a sua temporada com Cal no castelo do
velho Cara de Pedra e do filho deste, Sir Cade, já lhe haviam rendido experiência
suficiente. E Artur acrescentara:
— Experiência semelhante não pretendo repetir, mas continuo relembrando para
conseguir me vingar.
— Haverá tempo para isso; agora faz o que te mando — dissera Merlim.
E assim Artur obedeceu e, junto com o amigo Cal, sofreu menosprezo e
escárnio, chutes, bofetadas e cascudos de Sir Kay e dos cavaleiros que o
rodeavam. Artur logo compreendeu que eram todos uns pobres coitados:
arrogantes e vaidosos, arruaceiros e mais falastrões do que valentes em batalha.
Artur disse para Cal:
— Tenho em mente um modelo de cavaleiro no qual esses sujeitos não se
enquadram.
— Quanto a mim, ainda não conheci cavaleiro algum que não fosse bruto e puta
— disse Cal.
Devo vos informar que na Escócia não restringimos o tratamento de “puta” ao
sexo feminino, mas o aplicamos indiferentemente a homens e mulheres; e essa
era a prática em toda a Britânia, à época de Artur. As vezes essa palavra pode ser
usada carinhosamente entre amigos, mas não foi assim que Cal a empregou. Ele
sofrera mais do que Artur nas mãos da maioria dos cavaleiros, porque estes
percebiam que os temia. No entanto, a perseguição a Artur não fora menor, pois
os cavaleiros mais fortes e mais brutos invejavam-lhe a coragem e sentiam
grande prazer em tentar derrubá-la. E nenhum tentou isso com maior entusiasmo
do que Sir Kay, que se deleitava especialmente em castigar e punir Artur; no
entanto, às vezes Artur via no rosto de Sir Kay uma expressão de espanto, como
se lhe ocorresse que Artur talvez não fosse quem parecia ser.
Artur aprendeu a julgar os homens e o seu caráter nos meses em que viveu
naquele castelo sórdido e miserável, escutando no salão conversas de cavaleiros
que se gabavam dos grandes feitos realizados e de como expulsariam os saxões
daquelas terras, cavaleiros esses que de dia eram tão tímidos quanto haviam sido
audazes à noite, e cujas batalhas contra os saxões pertenciam todas a um passado
que eles modificavam ou embelezavam ou a um futuro que jamais chegaria.
Passou a desprezar aqueles a quem denominava “fanfarrões”, fortes apenas
quando as vítimas eram fracas. Na verdade, chegou quase a sentir ódio pela raça
humana e podia ter sucumbido a essa tentação se não se lembrasse dos heróis da
Antigüidade que Merlim lhe apresentara na história e na poesia. Além disso, foi
salvo do cinismo por ter experimentado a força moral da gente humilde que
encontrara nas suas viagens e pela virtude que descobrira em Cal, em Peredur e
naquele homem que conhecera apenas como Goloshan.
E assim Artur sobreviveu, certamente ferido no corpo e no espírito, cauteloso e
cético, e ao mesmo tempo retendo no íntimo um senso de respeito para com o
mundo à sua volta, na certeza de que a virtude prevaleceria. Essa certeza poderia
ser considerada uma ilusão por quem se aprofundasse na leitura dos anais da
história que com freqüência parece não passar de um registro dos crimes e
loucuras da humanidade; no entanto, pode-se perdoar Artur pois ainda era
jovem, e é próprio da juventude ser inocente e se prender a ideais virtuosos.
Quando circulou a notícia da morte do rei, muitos temeram a guerra civil e
outros que os saxões aproveitassem a oportunidade para completar a conquista da
ilha. Graças a essas apreensões os homens deram ouvidos à mensagem trazida
por Merlim.
Merlim manifestou a vontade do rei morto e embora alguns lembrassem que o
próprio Uther Pendragon o enviara para o exílio e que os bispos o denunciavam
como feiticeiro pagão e praticante da magia negra, que só mereceria ser
processado por heresia e queimado no poste (aquele meio agradável segundo o
qual a Santa Igreja mantém o monopólio da verdade e obriga à obediência
proibindo o livre pensar), ainda assim a voz de Merlim era tão cheia de
autoridade, e o seu artifício para decidir a sucessão foi tão engenhoso, que a sua
vontade prevaleceu. E deve-se dizer que ele declarou que Uther Pendragon
desejava que o sucessor fosse alguém que conseguisse retirar a espada da pedra.
Como todos os cavaleiros se julgavam capazes de fazer isso, ninguém discordou;
o único ponto de discordância foi a ordem em que a tentativa seria feita. Mas
Merlim decretou que tirassem a sorte e todos estavam ansiosos para iniciar a
disputa antes que o rei de Orkney chegasse para tentar arrancar a espada da
pedra.
Tudo decidido, Merlim procurou Artur. Levou-o até o topo do castelo e o fez
sentar-se à sombra de um torreão nas ameias voltadas para o norte. Depois de
constatar que ninguém poderia ouvi-los, falou o seguinte:
— Meu caro rapaz, chegou a hora ansiada, a hora para a qual eu te preparei. É
tempo de te revelar o que te ocultei até agora. Muitas vezes me pediste que
revelasse o segredo do teu nascimento e me recusei a fazê-lo. Não me culpes.
Na verdade, mantive esse segredo para te proteger.
Mas agora devo te dizer que tens sangue real e que, de fato, és o filho do rei, o
único filho vivo do rei que não mais existe, do próprio Uther Pendragon. Assim
sendo, estás destinado a ser o herdeiro e o rei em lugar do teu pai. Portanto, só tu
conseguirás retirar a espada da pedra.
Artur escutou essas palavras sem retrucar. Ergueu o queixo como alguém que faz
um desafio e olhou para além de Merlim, em direção ao céu do norte, onde as
primeiras estrelas da noite começavam a aparecer,
— Ouviste o que eu disse, rapaz?
— Sim, eu te ouvi, Merlim. Sempre te ouço. Mas desta vez as tuas palavras não
fazem, sentido para mim. Conheces a minha situação nesta casa, pois foi por tua
ordem que eu... — - .Artur fez uma pausa e riu. —- Portanto, o que dizes é
ridículo. Não há chance de sequer me permitirem tentar arrancar a espada. Se
eu me apresentar como candidato, Sir Kay vai me dar uma bofetada e me
chutar na lama...
— Apesar disso, depois que todos fracassarem tu terás êxito — disse Merlim.
E então, como sabeis, meu príncipe, tudo transcorreu como Merlim prometera, e
assim Artur foi sagrado rei. Mas como, por natureza e também, posso dizer com.
orgulho, em conseqüência da educação que vos dei, sois inclinado a pensamentos
especulativos e céticos, só aceitando o que examinais, deveis vos perguntar como
tudo aconteceu.
Para alguns bastaria a simples explicação de magia. Muitos acreditam em
magia, e são encorajados a ter essa ilusão pela Santa Igreja, que fala. dos
milagres realizados por Cristo e pelos santos que, no entanto, não passam de
homens como eu. Na verdade, alguns me atribuem fama de mágico, acusação
que é mera malícia e calúnia, pelo menos se a palavra mágico for vulgarmente
entendida. Compreendereis isso pois muitas vezes vos disse que não posso
transformar vara em serpente, nem realizar qualquer daquelas ações
disparatadas atribuídas aos mágicos, todos eles impostores, quando não também
trapaceiros.
Dizer isso não significa negar a ciência que pratico, muito antiga e digna do mais
profundo estudo, que muitos ignorantes chamam de magia. Existe magia ruim,
que não passa de mero embuste fraudulento, como a empregada por feiticeiros e
prestidigitadores, e existe a boa magia, também denominada filosofia natural.
Esta depende do estudo da matemática e das artes mecânicas e de livros eruditos
como a Cabala, onde podereis aprender a invocar os nomes sagrados de anjos
para efetuar a transmutação da matéria. Ora, apesar de se deleitar muitas vezes
em surpreender o vulgo com truques infantis (pelo que o censuro, como cientista
e erudito), Merlim lera profundamente o livro do conhecimento que inclui toda a
criação, e era um mestre nas artes matemáticas que movem o mundo.
Engana-se redondamente quem achar que ele lançou um feitiço sobre a espada
da pedra, para que só fosse arrancada com a tentativa de Artur, pois essa idéia é
infantil. Mas o mero senso comum afirma que Merlim, através do domínio da
matemática e das artes mecânicas, fez com que a espada só pudesse ser
removida da pedra por alguém que conhecesse o segredo que a prendia.
Portanto, estareis sendo sábio em vosso julgamento se preferirdes acreditar que
Artur teve êxito onde outros fracassaram apenas por saber o que impedia a
liberação da espada, e que isso foi uma forma de magia adequadamente
denominada de filosofia natural.
No entanto, para o público em geral, onde incluo, além do povo, os reis, barões e
cavaleiros ignorantes e iletrados ali reunidos, o triunfo de Artur pareceu magia do
tipo mais vulgar, ou seja, um milagre; e todos ficaram impressionados e
aturdidos. Se perguntardes por que Merlim chegou tão longe para garantir que
Artur fosse aceito facilmente corno rei, por todos exceto pelo rei Lot e pelos
seguidores deste, consumido pelo ciúme e portanto privado da razão, a
explicação é simples.
Merlim sabia que os homens são governados pela imaginação e pelos temores. E,
a não ser a evidência que todos tinham diante dos olhos, o que poderia de modo
tão seguro persuadir aqueles homens a aceitarem que aquele rapaz simples, sem
experiência de batalhas, de porte esbelto e pacífico, nascido de origem humilde
como todos julgavam, e certamente parecendo alguém de condição inferior, era
dotado de um poder indecifrável, sobrenatural e, portanto, aterrorizador? E
Merlim também sabia que muitos homens são insensatos, e que para conquistar-
lhes a mente devemos tirar proveito da sua insensatez.
II

Depois de lançar ao chão aos trambolhões o jovem Artur com um golpe de


punho de ferro e ameaçar guerra na Britânia, o rei Lot cuspiu no rapaz, girou nos
calcanhares e atravessou o adro. E foi seguido não apenas pela sua comitiva mas
por muitos outros cavaleiros, seja por também estarem ofendidos ou desgostosos
pelo que lhes parecera um embuste, seja porque, sem refletir, julgaram de
imediato que daquela guerra Lot sairia vitorioso.
Enquanto isso, Artur continuava de joelhos na lama. O sangue lhe escorria pelo
canto da boca. Sacudiu a cabeça como se estivesse tonto.
A multidão observava-o num silêncio nervoso, achando Artur medíocre, fraco e
indefeso. Alguns sentiam piedade; outros, desdém. Prosseguia um murmúrio de
incredulidade:
— Então é este o nosso rei?!
Muito devagar Artur pôs-se de pé e mais uma vez sacudiu a cabeça. A mão
dirigiu-se para o lado ferido e tocou o sangue que ainda gotejava.
Depois sorriu, dizendo:
— Um homem que não consegue dominar o próprio temperamento não serve
para governar um reino. O rei Lot ainda viverá para lamentar o que fez hoje.
Chamou Sir Kay e olhou diretamente nos olhos aquele cavaleiro acostumado a
esbofeteá-lo e puni-lo; subjugado pelo olhar real, Sir Kay caiu de joelhos diante
de Artur e este estendeu-lhe a mão para que a beijasse.
— Não vos perguntarei se está tudo pronto para o banquete desta noite para
celebrar a escolha do rei porque sei que está, uma vez que eu mesmo estive
ocupado na tarefa humilde de prepará-lo. Mas observo que alguns dos cavaleiros
cuja presença era esperada nos abandonaram e, naturalmente, o rei de Orkney e
sua comitiva. Portanto, ordeno-vos a escolher entre o bom povo desta cidade que
me saudou como rei um certo número de pessoas para assumirem o lugar dos
cavaleiros que se rebelaram... — disse Artur.
Sir Kay hesitou. Corou até o rosto ficar vermelho como um rabanete. Engoliu
duas vezes e depois, com a voz embargada de ressentimento, talvez mesclado de
apreensão, disse:
— Assim será feito... Vossa Graça.
Artur então retirou-se para os aposentos reais, levando consigo apenas Cal.
Quando estavam a sós, Cal perguntou:
— O que significa isso tudo?
— Que eu assumi os meus direitos. — Cal sacudiu a cabeça.
— Não sei se faz sentido para mim. Como devo te chamar agora?
— Quando estivermos a sós, será como sempre foi. Como poderias supor que
fosse diferente? Em público... não sei. Como foi que Sir Kay me chamou? “Vossa
Graça”, foi isso? Mas imagino que não conseguirias pronunciar estas palavras
sem rir. Anima-te, Cal. Não foi um desastre que se abateu sobre nós.
— Não? — indagou Cal. — Bem, se dizes que não... mas se queres a minha
opinião, devíamos sair daqui e pegar a estrada novamente antes que alguém
enfie uma espada no teu pescoço.
— Ninguém fará isso. Pelo menos ainda não. — E Artur passou o braço em torno
de Cal e abraçou-o. — Ainda somos tu e eu contra o mundo — continuou. — E
agora vou tomar um banho. Pois sou um romano e ao mesmo tempo um rei — e
sorriu. — E precisamos te arranjar algumas roupas, adequadas à tua condição de
amigo e conselheiro do rei.
Antes de descer para o banquete no Grande Salão, Artur convocou Sir Kay.
O cavaleiro parecia envergonhado e começou a apresentar desculpas
atrapalhadas pelo tratamento que dispensara a Artur. Se ele soubesse...
— É verdade, deveríamos todos agir com mais sabedoria se soubéssemos mais
do que sabemos. Mas como isso não acontece, não há o que acrescentar, exceto
que confio em que no futuro tratareis melhor qualquer menino ou rapaz da minha
casa do que costumáveis me tratar antes. Que a necessidade de refrear o vosso
mau temperamento seja a vossa única, exclusivamente única punição. Agora,
passemos a outros assuntos. Quantos dos nossos desertaram e acompanharam
Lot? — indagou Artur.
— Mais ou menos a metade, receio.
— Então fazei-os saber que estamos satisfeitos de nos livrar deles. Quanto menos
formos, maior será a cota de honra que conquistaremos. Amanhã estabelecerei
um conselho para discutir a guerra que nos será imposta. Esta noite festejaremos.
Amanhã também me exporeis os planos feitos para a minha coroação. Nas
circunstâncias atuais, quanto antes melhor. Alguns dos nossos, que podem estar
tentados a desertar, talvez hesitem em se rebelar contra um rei coroado e ungido.
Não pensais assim? — É... Vossa Graça diz...
Sir Kay, embora rude e grosseiro ao falar, arrogante, vaidoso e brigão, possuía
uma qualidade ao mesmo tempo rara e valiosa: competência. Na sua casa tudo
transcorria tranqüilamente, como que azeitado, mais pelo medo do que pelo
respeito. E assim, o banquete planejado para celebrar a escolha do novo rei foi
uma bela oportunidade. Podia haver escassez na terra. Os camponeses podiam
carregar fardos pesados e passar grandes privações. As estradas podiam estar
infestadas de bandidos, homens quebrados e arruinados, muitos deles pela guerra.
Viúvas e crianças sem pai podiam mendigar pão. Mas naquela noite houve
fartura no castelo de Sir Kay. Os convivas banquetearam-se com cisnes e gansos
selvagens, pernis de veados, carpas dos lagos, lombos de boi de um gado
cuidadosamente defendido dos que poderiam roubá-lo, fina pastelaria, queijos,
tortas ricamente preparadas com maçãs e frutas cristalizadas. Havia vinho da
Gasconha, cerveja preparada na cervejaria do castelo, cidra do oeste e hidromel
dos mosteiros.
E no entanto por algum tempo o ambiente esteve sombrio. Todos sentiam a
opressão de espírito que o medo provoca. Todos sabiam que a condução de Artur
ao trono colocara em sério perigo os que não o haviam abandonado. O medo da
vingança do rei Lot agora se aliava ao medo dos saxões; e, na verdade, muitos
tremiam ao pensar que o rei de Orkney provavelmente se uniria aos saxões, com
os quais dividiria as terras.
Sentado à esquerda de Artur, Cal percebeu nos presentes essa apreensão. Incapaz
de comer, mordiscou queijo, engoliu vinho enquanto os seus olhos circulavam
pelos convivas, como que buscando os não-confiáveis e que poderiam tentar
obter favores junto a Lot levando-lhe a cabeça de Artur. Adiante de Artur, Cal
viu Sir Kay, com o suor escorrendo pelas têmporas e uma aparência sombria.
“Ele está com medo de ter apostado no cavalo errado”, pensou Cal. “Não se
pode confiar nele.”
Um harpista cantava os grandes feitos dos heróis mortos há muito tempo, e no
entanto a sua música não conseguia banir a melancolia que pairava no salão.
Então Artur ergueu-se para falar, e estas foram as suas palavras:
— Vós me conheceis pelo que eu fui, não pelo que sou e serei. Havia uma terra
ameaçada por um dragão feroz, e a rainha estava presa numa torre bem
guardada por um praticante da magia negra. Essa terra estava devastada pelo
bafo do dragão e todos temiam que a própria rainha corresse sério perigo, pois
era sabido que o dragão era um servo do feiticeiro malévolo. A notícia chegou a
um nobre cavaleiro de nome Jorge. E assim ele cavalgou, enfrentando todos os
perigos, até chegar àquela terra devastada. Nos limites da floresta deparou-se
com o dragão, que lançou fogo contra ele para destruí-lo. Mas Jorge ergueu o
escudo contra as chamas e, avançando com a espada na mão direita, atingiu o
dragão com um grande golpe no pescoço, forçou-o a cair ao chão pisando-lhe
nos flancos e cortou-lhe a cabeça. Depois dirigiu-se à ponte que levava à torre,
onde o feiticeiro não lhe permitiu entrar. Mas Jorge desafiou-lhe as armadilhas
enganosas, derrubou a porta, prendeu o feiticeiro zombando daquela falsa magia
e libertou a rainha. Ora, o cavaleiro que matou o dragão e resgatou a rainha foi
São Jorge, e a terra onde realizou esses nobres feitos foi a Britânia. E eu mesmo,
Artur, embora jovem, dediquei-me ao serviço de São Jorge e da Britânia. E em
nome do Santo, e com a ajuda dos nobres cavaleiros aqui reunidos, libertarei a
Britânia do dragão representado pelos saxões e prenderei o falso mágico que é o
rei Lot, de Orkney.
E assim, quando Artur acabou de falar, todos sentiram-se confortados e
encorajados, e deram um grande grito de aclamação. E depois recolheram-se
para dormir.
Quando estavam na câmara real, Cal disse:
— Foram palavras bonitas, ditas com coragem; mas, como costumava dizer a
minha avó, belas palavras não enchem barriga, e em todo caso, tudo o que
consigo pensar é que tu te revelaste um belo ator quando estávamos na trupe que
apresentava comédias. Mas como vamos fazer para sair desta encrenca, é mais
do que consigo imaginar.
Artur riu:
— O que seria de mim sem ti?! Exatamente quando eu corria o risco de acreditar
na minha própria retórica, tu jogas água fria. Na verdade, meu caro Cal, bem sei
que foi apenas o primeiro passo. Mas deixa-me te dizer um outro provérbio, que
Merlim me ensinou e que é comum na Gália: o difícil é o primeiro passo...
— Talvez seja um provérbio, mas nem assim faz sentido para mim. Volto a te
dizer: vamos fugir enquanto podemos, e pegar a estrada. As durezas e os perigos
que enfrentamos não são nada diante do que está preparado para nós, se
persistirmos nesta encenação...
— Encenação... — disse Artur — por falar nisso, vou mandar mensageiros
procurarem Peredur e Goloshan e trazê-los para cá. Certamente, precisamos de
todos os amigos que temos.
Ao ver Cal franzir o cenho, Artur acrescentou:
— Não sejas tolo. Sei que tens ciúme de Peredur, e confesso que o amo. Mas
sabes bem que te amo também, ainda que de modo diferente. E quanto a
Goloshan, é o homem mais esperto que conheço à exceção de Merlim, e valorizo
os seus conselhos.
— Por que eu não deveria ter ciúmes? — indagou Cal. — Mas não sou tolo. Se tu
e Peredur continuarem como antes, o que achas que esses barões e cavaleiros
farão? E achas que ficarão satisfeitos se tiveres um ator como conselheiro? E
quanto a esse Merlim de quem falas, onde se enfiou? Ele é responsável por esta
bela encrenca e, se queres saber, acho que ele desapareceu. Por que será?
Responde, se puderes.
— Estás exagerando — falou Artur. — Não haverá problema com Peredur e
Goloshan. Quanto ao desaparecimento de Merlim, é o jeito dele. Provocador,
com certeza. Mas quando aparecer de novo, vai me dizer que estava me
testando, ao me deixar com as minhas próprias armas. Agora vamos dormir.
Temos muito que fazer amanhã de manhã.
III

Era uma primavera fria, que deprimia os ânimos. Choveu durante semanas. A
terra estava encharcada. Os rios transbordavam. A lama obstruía até mesmo as
estradas que os romanos haviam construído. Chegou a notícia de que o rei Lot
efetivamente fizera uma aliança com os saxões e estava reunindo um poderoso
exército. Farejando o ar, novos covardes desertaram Artur.
— Como consegues te manter tão animado? — indagou-lhe Cal.
— Se não me mostrar animado, estaremos, de fato, perdidos — respondeu Artur.
Cal sacudiu a cabeça.
— Eu morreria contigo, mas preferia ter vida longa. Peredur e Goloshan
chegaram. Artur abraçou ambos.
— Encontramos poucos vindo nesta direção e muitos apressados em se juntar aos
teus inimigos — disse Goloshan.
— E no entanto, tu e Peredur viestes.
— Há um velho tipo de teatro chamado de tragédia. Sempre tive vontade de
representá-lo.
Artur reconheceu ironia no tom de voz do amigo e disse:
— Terás de esperar. Tenho uma tarefa para ti. És o mais engenhoso elaborador
de enredos que conheço. Quero que dirijas a tua inteligência para a situação que
estamos vivendo.
— Inteligência é a palavra certa — disse Goloshan. — Em todas as obras de
história que li, a falta de inteligência tem sido a principal causa de calamidade. Se
tivesses lido o teu Lívio, saberias que foi a falta de inteligência que levou os
romanos ao desastre em Canas.
— Exatamente. Quero-te aqui como chefe do meu séquito. Acho melhor te
tornar cavaleiro — disse Artur.
E assim Goloshan se ajoelhou, Artur tocou-lhe o ombro com a espada e disse:
— É melhor adotares um novo nome. Qual será? Talvez Heitor, que foi o melhor
dos troianos, meus ancestrais.
— Não — disse Goloshan —, pois isso traria mau augúrio, uma vez que Heitor
morreu e Tróia foi queimada. Adotarei um nome grego que, como auto-elogio,
será Nestor, se permitires, pois Homero sempre antecede esse nome do adjetivo
“sábio”. E isso me diverte.
— Como quiseres — disse Artur. — Então, levanta-te, Sir Nestor.
Depois Artur também sagrou Peredur como cavaleiro, porque o amava; e
também teria sagrado Cal mas este recusou, dizendo que aquilo era tolice e que,
quando fossem derrotados e precisassem fugir, ele preferiria não estar com o
peso do título de cavaleiro. Mas a verdade era que o ciúme de Cal em relação a
Peredur revivera, e mais intenso porque Artur dormia com Peredur. No entanto,
Artur nada negava a Cal e teria lhe concedido tudo o que ele quisesse.
Apesar de Artur confiar muito em Goloshan (ou Sir Nestor, como devo chamá-lo
de agora em diante), não se descuidou de incluir outros cavaleiros em seus
conselhos, em especial Sir Kay e Sir Bedivere, pois sabia que precisava
conservar-lhes o apoio. E isso era cada vez mais indispensável, uma vez que
cavaleiros continuavam a desertá-lo e a aderir ao rei Lot e seus aliados saxões.
Enquanto isso, não havia qualquer sinal de Merlim, o que surpreendia Artur e
apavorava os demais. Cal disse:
— Merlim te meteu nesta encrenca e agora caiu fora. Se quiseres saber, eu te
digo: belo amigo tu arranjaste!
Depois de reunir o conselho, Artur puxou para um lado Sir Nestor, como este
agora se chamava, e disse:
— Parece que ninguém além de nós e, é claro, do nosso querido Peredur,
acredita que possamos derrotar os nossos inimigos. Com certeza, são mais
numerosos do que nós. Então, o que sugeres?
Sir Nestor disse:
— Quando menino, eu costumava caçar aves. E muitas vezes notei que quando
uma ave está com filhotes, finge ter uma asa quebrada e faz os caçadores
seguirem-na, enquanto corre em busca de abrigo, afastando-os sempre do ninho
até ficarem bem longe e ela ter certeza de que os filhotes estão a salvo. Só então
levanta vôo.
Artur meditou sobre estas palavras e entendeu-lhes o significado. E assim se
baseou para fazer planos para a campanha.
As chuvas cessaram, o vento soprou forte, vindo do leste, secando a terra; e
chegou a notícia de que o exército do rei Lot e seus aliados estava avançando.
Uma noite, quando Artur dormia, Merlim se aproximou e ordenou-lhe que se
levantasse, dizendo:
— Tens agido bem, meu filho, e agora cheguei com presentes e conselhos para te
dar.
E assim Merlim deu a Artur, primeiro, uma cota de malha que mandara um
duende ferreiro confeccionar com malha de aço; e o seu nome era Wy gar.
Depois, colocou-lhe na mão uma espada que fora forjada na ilha lacustre de
Avalon e que, segundo Merlim, possuía poderes mágicos; e o seu nome era
Excalibur.
E o conselho que Merlim deu a Artur foi o seguinte: confiar sempre na
velocidade e não na força; cavalgar pela terra como um navio desliza sobre as
ondas e viajar em silêncio, sem pronunciar qualquer palavra, para surpreender o
inimigo.
Enquanto Merlim falava, Peredur também se levantou do leito que
compartilhava com Artur e esfregou os adoráveis olhos para afastar o sono.
Merlim viu-o e foi tomado de luxúria pois, dizem alguns, era filho do Demônio.
Assim, lançou um feitiço em Peredur e quando partiu o rapaz o acompanhou.
Mas outros dizem que ele fez isso não apenas pela luxúria, mas para que Artur
não se desviasse do dever de guerrear contra os inimigos e para que os homens
não o desprezassem por parecer preferir um belo rapaz à mais linda das
donzelas. Seja como for, desse dia em diante Artur jamais se deitou com rapaz
ou homem algum embora, com o passar do tempo, muitos rapazes garbosos, de
beleza excepcional, tenham se apresentado à corte buscando os favores de Artur.
Apesar da partida de Peredur ter-lhe causado sofrimento profundo, Artur
entendeu a lição que Merlim procurara transmitir: ser um grande herói exige
sacrifício pessoal e abstenção de um vício que muitos homens corajosos
desprezam. Na verdade, como disse um bispo sábio e virtuoso, as almas
depravadas que se entregam ao horrível pecado de buscar prazer carnal com
meninos e rapazes, e não com meninas e mulheres que podem ser conduzidas à
bênção matrimonial, arderão dolorosamente no Dia do Juízo Final e sofrerão
tormento eterno devido às suas práticas obscenas e torpes.
IV

Antes de iniciar o relato da época de grandeza de Artur, devo discorrer


brevemente sobre a guerra e a arte de guerrear. Embora eu próprio não pegue
em armas desde jovem — dias felizes, quando eu participava de incursões para
roubar gado através da fronteira inglesa e passava dias e noites sem dormir,
cavalgando horas a fio o meu Galloway cinza escuro, de modo que afinal não
mais parecíamos homem e animal e sim um ser híbrido, como os centauros da
Antigüidade... — mas estou divagando. Devo retornar ao assunto do meu
discurso.
Como eu dizia, embora não pegue em armas desde jovem... certa vez, numa
dessas aventuras, lembro-me de estar levando à força um gordo abade inglês,
um baú de ouro e uma boa dúzia de monges que tremiam porque tínhamos posto
para correr o seu guarda-costas... mas lá estou eu divagando outra vez, escravo
das doces lembranças.
Onde eu estava? Ah, sim... embora não pegue em armas desde jovem, em outra
ocasião... mas pulemos esta parte e devo dizer simplesmente que em toda a
minha vida jamais deixei de estudar a guerra, as suas causas, os seus propósitos e
a maneira de realizá-la.
Portanto, preciso vos apresentar os frutos do meu estudo, pois um imperador,
como fica claro na forma latina original dessa palavra, é aquele que comanda,
em especial na guerra. Então, meu príncipe, por mais dócil que seja a vossa
natureza, que sejais devotado, como sois, aos vossos estudos, não podeis fugir ao
vosso destino, que é comandar exércitos em batalhas e conduzir campanhas.
E a minha esperança mais sincera é que possais aprender algo da arte da guerra
a partir do estudo das guerras travadas por Artur; em toda a história não
encontrareis modelo mais nobre e mais apropriado, exceto, talvez, Alexandre e o
próprio César. E em toda a literatura heróica não vos deparareis com alguém
mais admirado do que Artur, cujo entusiasmo supera até o de Aquiles, a quem
ultrapassa em constância e equivale em coragem.
Mas passemos antes às minhas reflexões, que lereis com atenção se quiserdes
me agradar.
O homem, segundo o grande filósofo grego Aristóteles, cujas obras eu traduzi
para a nossa douta língua, é um animal político. Permiti-me só mais uma
digressão: como será maravilhoso o dia em que a mente estreita dos beatos da
cúria papal chegar a compreender esta verdade simples e que, de fato, dispensa
explicações!
Enquanto animal político, o homem civilizado procura evitar a guerra.
Chamamos a esse processo de diplomacia. A propósito, é um erro comum supor
que a diplomacia só pode ser praticada entre dois Estados ou reinos civilizados. O
que vos contarei a respeito de Artur demonstrará que esta convicção é uma
falácia.
No entanto, a diplomacia falha com freqüência. Primeiro, porque muitos homens
são estúpidos e incapazes de reconhecer onde estão os seus melhores interesses.
Em quase todos os casos a guerra é evitável, se ambas as partes forem
inteligentes e capazes de pensar racionalmente. Mas, é claro, esta conjunção é
rara. Além disso, há outras ocasiões em que a diplomacia falha porque as duas
partes em disputa têm opiniões ou interesses inconciliáveis.
Para tais casos não há remédio a não ser a força. E por isso pode-se afirmar que
toda sociedade tem como alicerce a morte de homens.
Por ser um animal político, como diz Aristóteles — cujas obras eu vos
apresentarei depois de completar e rever as minhas traduções —, por ser um
animal político, como diz Aristóteles, o homem também é um fazedor de
guerras. Pois, nas condições que acabei de descrever pode-se definir a guerra
como a continuação da discussão política através de outros meios; e isso é
verdade até para as guerras que foram dignificadas com o nome de cruzadas.
Assim, a guerra é natural, por ser o homem, por natureza, um fazedor de
guerras. Mas aqui existe um paradoxo, pois não é natural lutar a guerra como os
homens o fazem, ou seja, até a morte. Não é natural ser espartano.
Já vos contei essa história? Deixai-me contá-la novamente.
Quando o grande rei da Pérsia guerreou contra as cidades da Grécia, coube aos
homens de Esparta (um Estado que se deve denominar mais precisamente de
república armada) a defesa do desfiladeiro das Termopilas, na Tessália, também
conhecido como Portão da Grécia oriental. Embora traídos e apanhados pela
retaguarda depois de dois dias de batalha, durante os quais infligiram pesadas
perdas aos persas, os espartanos e o seu general Leônidas recusaram-se a se
render ou a tentar fugir. Ao contrário, mantiveram-se no campo de batalha até
ser morto o último dos trezentos soldados. E este é o epitáfio que deixaram para
quem entra no desfiladeiro:

Vai, passante, vai dizer aos espartanos


Que aqui jazemos porque obedecemos às suas leis...
Belo exemplo! Palavras nobres, que eu gostaria que aprendêsseis de cor. A força
desses espartanos... os meus olhos se enchem de lágrimas quando penso nisso. Foi
magnífico, mas não natural.
O que a natureza DOS estimula a fazer quando estamos diante do perigo mortal?
Estimula-nos a fugir. A natureza defende a fuga, a covardia, o interesse pessoal,
aquilo que os verdadeiros romanos dos dias de hoje, habitantes daquela região
denominada Trastevere, chamam de “cuidar do número um”, ou seja, da
própria pessoa.
São essas as exigências d?t natureza, como o meu herói Artur logo descobriria
nas primeiras batalhas das suas guerras contra os saxões, o rei Lot e seus aliados.
Seriamente inferiores em número, os exércitos de Artur viram o inimigo e
bateram em retirada. Artur nada pôde fazer para detê-los. O vosso avô, o
Imperador de barba roxa, talvez tivesse conseguido deter essa fuga, pois tinha um
porte imponente, de onde derivava uma autoridade que fazia os homens gelarem
quando a eles se dirigia. Mas até isso é questionável. Houve urna batalha, creio,
na qual o vosso avô viu-se golpeando a própria infantaria em fuga com aparte
achatada do seu grande montante e gritando: “Cachorros! Pensais que vivereis
para sempre:”. Segundo a minha testemunha, quando isso aconteceu os soldados
não ficaram para responder à pergunta, mas a sua atitude bastou como resposta:
correram o mais depressa que as pernas conseguiram, e se alguns viveram para
a luta do dia seguinte é bem provável que se a batalha se voltasse contra eles,
teriam fugido novamente. A covardia é um. hábito como qualquer outro.
Artur também descobriu isso da maneira mais dolorosa que podeis conceber.
Aconteceu de chegar uma notícia trazida pelos mensageiros que, obedecendo ao
conselho de Sir Nestor, Artur enviara para a região mais longínqua do pequeno
território que então controlava; eles relataram que um bando de cavaleiros e
soldados fora visto cavalgando vindo do norte com o objetivo aparente de se
unirem aos saxões ou ao grande exército que o rei Lot vinha reunindo na parte
leste da região central. Portanto, Artur deu ordens para que os seus homens
cavalgassem para interceptar aquele bando e desarmá-lo. Ele próprio liderou a
investida, com a pequena coroa no capacete, cavalgando uma bela égua baia
escura cujo nome era Jubilee.
Cavalgaram animadamente e os homens de Artur iam cheios de uma
expectativa feliz. Todos satisfeitos depois de semanas de treinamento árduo,
sentiam-se prontos para entrar em ação.
Atravessaram uma floresta escura e chegaram a uma paisagem ondulada que os
ingleses chamam de “baixada”, local de colinas recobertas de pastos, vales
suaves e zona pastoril, embora naqueles tempos ruins os camponeses tivessem
abandonado os rebanhos e a agricultura.
Uma águia pairava no céu acima deles e Sir Kay, cavalgando à direita de Artur,
saudou isso como bom augúrio. Seguiam ruidosamente pelo vale, acompanhando
um riacho borbulhante, e alguns dos cavaleiros mais jovens começaram a cantar
para manifestar a sua alegria. Pareciam se dirigir para um carnaval, e não para
uma batalha.
Mas então, quando o vale guinou para o sul, ouviram-se gritos vindos da colina do
lado norte e um esquadrão de cavalaria desceu-a em trote rápido e ágil, lanças
imóveis e todos em ordem. Artur não teve tempo para organizar
os seus homens. A surpresa foi absoluta. Foram atingidos pelo flanco e primeiro
rolaram para trás e depois caíram em total confusão. Ouviu-se o terrível grito:
“Cada qual por si!”. Alguns componentes da tropa fizeram meia-volta e fugiram.
Sir Kay, que apesar das falhas de caráter não carecia de coragem, puxou a
cabeça do cavalo, baixou a lança e assumiu a linha de vanguarda. O seu esforço
não foi em vão, pois ele quebrou a linha do inimigo, mas ao fazer isso viu-se
isolado e julgou que retirar-se — ou melhor, fugir — seria a atitude mais sábia, e
talvez a mais honrosa.
Quanto a Artur, sentou-se por um momento, aturdido, como se não entendesse o
que acontecia. Um dos inimigos pegou a rédea do cavalo de Artur e o teria
levado prisioneiro. Mas Artur, num esforço de coragem, primeiro atingiu com a
espada o peito do homem e depois levou-a até o punho, cortando-o até o osso.
Por um momento, a mão cortada ainda segurou o couro, enquanto o cavaleiro
gritava de dor. Jubilee empinou, alarmada pelos golpes ou pelo barulho, e Artur,
já desequilibrado, caiu pesadamente ao chão e de modo vergonhoso ficou ali
prostrado no riacho. Tonto, cambaleou até se pôr de pé e viu Jubilee desaparecer
em direção ao castelo. Olhou em torno. A confusão era total. Arquejante de
agitação e — é preciso confessar — de medo, Artur sequer notou que perdera o
capacete e que a pequena coroa que o encimava jazia na lama ao lado do riacho.
Virou-se e correu desajeitado, como correm os homens vestidos de armaduras.
O seu fôlego era difícil. Em determinado momento precisou se esconder em
uma touceira de tojos, quando um cavaleiro que o perseguia tentou matá-lo mas
foi levado para longe pelo seu cavalo descontrolado. Então Artur viu à frente um
moinho e para lá se dirigiu. Dentro fazia frio e estava escuro. Atirou-se atrás de
uma barreira feita de sacos de farinha e ficou ali, mordendo os lábios para evitar
se trair com o som dos soluços. Estes afinal cederam. O tumulto da batalha se
distanciava. Ele não saberia dizer quanto tempo permaneceu ali, mas quando
recuperou o fôlego entregou-se a uma amarga autocensura. Na primeira batalha,
que não passara de simples escaramuça, ele se mostrara covarde. Sentiu uma
umidade quente entre as pernas e percebeu que urinara. Não saberia dizer quanto
tempo permaneceu ali, mas quando a escuridão começou a cair, saiu de trás da
barreira de sacos e ousou deixar o refúgio e voltar para o mundo.
Graças à boa sorte, aconteceu de encontrar Jubilee pastando abeira de um
bosque, como se o mundo estivesse em paz. A égua deixou-se apanhar e passou o
focinho pelo rosto de Artur. Ele montou-a e cavalgou, cauteloso, de volta ao
castelo. A ponte levadiça estava erguida e ele teve dificuldade em persuadir o
sentinela a baixá-la.
Os homens estavam sentados no pátio, desconsolados, nervosos, envergonhados.
Não houve grito de saudação ao rei. Quando Cal foi ao quarto de Artur, este
chorava novamente.
Cal disse:
— Agora tu vais me ouvir? E hora de desistir desta encenação e salvar as nossas
peles enquanto ainda as temos.
Artur ergueu o rosto molhado de lágrimas, dizendo:
— Não, eu sou o rei. Hoje eu me desonrei. No entanto, eu sou o rei.
V

Artur reuniu o conselho dos seus principais barões e cavaleiros. Alguns estavam
zangados, outros melancólicos. Todos sabiam que desde a escaramuça na
baixada a deserção fora freqüente. E então agora alguns argumentavam que
deveriam se render ao rei Lot.
— Eu conheço Lot — disse um dos cavaleiros, Sir Lucan, de barba grisalha,
antigo favorito do rei Vortigern e que, segundo certos rumores, na juventude fora
sodomita passivo de Vortigern e mais tarde seu proxeneta. A primeira acusação,
pensou Cal, é difícil acreditar devido à atual aparência do cavaleiro.
— Eu conheço Lot — repetiu Sir Lucan. — Ele não é adepto da negociação. Na
verdade, ele está torto como um teixo velho, mas nunca fará um acordo que o
obrigue a ceder uma polegada. Quer ser rei e será rei. Na minha opinião — e
olhou diretamente para o rosto de Artur — este menino esperto aqui deveria
ceder-lhe a coroa. E se o fizer, eu usarei a minha influência junto a Lot, a quem,
como disse, conheço de longa data e com quem lutei batalhas lado a lado, para
tentar persuadi-lo a conceder o perdão a todos os que aceitaram Artur como rei
e... — sacudiu a cabeça olhando para Artur — farei o máximo por ti, embora
seja forçado a dizer, temendo aquele homem como temo, que ele no mínimo
mande te privar de todas as regalias de cavaleiro e te recolher a um mosteiro.
Artur não desviou o olhar, embora todos o vissem corar de raiva ou embaraço.
— Talvez achais que Lot também mande me castrar — disse, e fez uma pausa
olhando o grupo em volta e ficou triste ao perceber que poucos o encaravam.
Então falou, muito tranqüilo e parecendo triste, e a sua voz saiu firme.
— Eu sou o rei, coroado e consagrado, o rei a quem todos vós jurastes lealdade.
Extraí a espada da pedra e fiz isso depois que Lot, exercendo toda a sua força,
fracassou. E agora vós me desertais...
— Não desertaríamos, se antes vós não tivésseis desertado os vossos homens em
batalha.
Quem assim falava era um jovem cavaleiro, Sir Cathal. Usava na testa uma
bandagem manchada de sangue, pois fora ferido na escaramuça, e o tom áspero
da sua voz fez tremer o lábio de Artur.
— No entanto, eu extraí a espada da pedra — disse Artur. No silêncio que se
seguiu, Artur percebeu a fragilidade do seu argumento e sentiu a ausência de
solidariedade.
— Quanto a isso, quanto a isso... — o novo orador era o arcebispo, um homem de
olhos amarelos como os de um falcão e com fama de hábil cavilador. — Quanto
a isso... — repetiu, e tamborilou os dedos ossudos sobre a mesa do conselho —
devo confessar que jamais aprovei aquele teste. Na verdade, argumentei contra
ele. Afirmei que ali havia algo de pagão, algo de estranho. Para falar a verdade,
não era assim que essas coisas deveriam ser feitas. Se me permitis empregar um
coloquialismo vulgar, ali havia mutreta.
— Mutreta diabólica — completou Sir Lucan. — Ali havia dedo do tal de Merlim.
Tenho certeza.
— Merlim? — indagou o arcebispo. — Receio que estejais certo. Um homem
em quem não se pode confiar, evasivo, desonesto, pagão ou herege. Sempre teve
protegidos em altos cargos, mas se eu tiver a minha chance, que talvez ainda
tenha, o lugar que lhe será destinado é o banco dos réus... o banco dos réus de
uma corte eclesiástica. E a acusação? A acusação, meus pares, será de feitiçaria.
Assim sendo, como isto é incontestável, quando a minha abalizada opinião for
aceita, poderemos anular a prova da espada na pedra e proceder de acordo com
as regras. Artur olhou em volta da mesa. Alguns concordavam com a cabeça;
outros, percebendo que ele os perscrutava, desviaram o olhar.
O arcebispo continuou:
— Há um mosteiro muito adequado na ilha de Anglesey, também chamada de
Mona...
Artur interrompeu:
— Já entendi o rumo desta reunião e vou meditar a respeito em particular.
Portanto, adio a minha decisão até a mesma hora de amanhã, quando darei a
minha resposta. Vem, Cal. Levantou-se e rapidamente saiu da sala seguido de Cal
e Sir Nestor, deixando o grupo surpreso com a velocidade com que, pensavam
eles, consentira na própria deposição.
Sir Cathal propôs que de imediato mandassem alguns homens prenderem Artur,
mas o arcebispo ponderou que não seria preciso:
— O rapaz compreendeu que foi colocado ou se colocou em uma posição falsa.
Na minha opinião, no íntimo está feliz de se livrar dela. Não há motivo para ele
não servir para a vida monástica. Ainda espero que ele se corrija, desde que... —
e esboçou um leve sorriso — seja submetido à mais rígida disciplina. E eu ficarei
feliz de me encarregar disso pessoalmente.
E assim a reunião se desfez, Sir Lucan puxou Sir Cathal para um lado e ordenou-
lhe que fosse imediatamente ao acampamento do rei Lot para lhe dizer que
estava tudo bem e que o castelo se rendia a ele.
— Quanto ao rapaz — disse —, deixemos o arcebispo pensar o que quiser, e
assim ficar de fora do nosso arranjo. Além disso, quem sabe talvez ainda
tenhamos um uso para o rapaz? A sorte é volúvel, meu jovem amigo.
Cal estava sentado com a cabeça entre os joelhos.
— É o fim — disse. — Não acreditas em toda essa história de mosteiro, não é?
Eles vão é te matar. Vão nos matar, não vão mesmo?
— Parece que sim — disse Sir Nestor, o antigo Goloshan, e riu. — Mas é claro
que eu já morri muitas mortes no teatro.
— E viveste para contar a história — disse Artur. — Anima-te, Cal. Este é o pior
momento que já vivemos, mas eu lembro de Merlim me contar que o grande
Marcos, meu avô, costumava dizer: “Enquanto conseguirmos dizer 'isto é o pior',
o pior ainda está por vir”.
— Acho que dizendo isso pretendes me confortar — disse Cal —, mas não posso
afirmar que me confortes...
— Vou pensar — disse Artur. E afastou-se deles, retirando-se para um assento
diante da janela.
Enquanto isso, Sir Nestor serviu vinho e passou uma taça para Cal.
— Bem que poderíamos... — disse Sir Nestor e começou a cantar. Era uma
canção que hoje deleita os nossos estudantes de alemão, e aquela talvez tenha
sido a primeira vez em que foi cantada. Meum est propositum, in taberna mori,
são as primeiras palavras, e o antigo Goloshan cantou-a com delicadeza,
melodiosamente, numa voz ao mesmo tempo melancólica e desafiadora.
Artur sentou-se diante da janela olhando para as colinas ainda tocadas pela luz
dourada que começava a sumir. O seu perfil estava voltado para os amigos e
quando Sir Nestor olhou-o por cima do copo em que bebia viu o rosto do jovem
rei imóvel, e pareceu-lhe puro e belo como o amanhecer. Artur olhava as
sombras movendo-se furtivas na paisagem ondulante e os arbustos assumindo
formas estranhas. Gralhas brigavam nas ameias logo acima, mas ao longe tudo
ficou tranqüilo quando os últimos corvos pousaram nos topos das árvores. Artur
percebeu o vazio da terra e pensou: “Para alguns a noite é apavorante, e para
outros representa a paz de Deus”. Ficou sentado ali por muito tempo, olhando
para o mundo que escurecia e levando aquele silêncio até o coração. E então
uma coruja piou e ele lembrou-se de que se tratava da ave de Minerva.
Pensou: “Não é o fim. Não vou achar que é o fim”. E voltou-se para os outros,
para os seus dois amigos, e deu-lhes ordens. E as deu como o rei que estava
determinado a ser.
VI

Nas caladas da noite os três se esgueiraram do castelo por uma porta secreta que
conduzia ao portão oeste e que lhes foi aberta por um jovem guarda de nome
Dermot, que chorara quando Sir Nestor lhe contou do perigo que ameaçava
Artur: ser castrado e enviado para um mosteiro. O guarda estremeceu e agora,
tremendo de medo, ajudou-os a escapar e acompanhou-os, deixando os guardas
seus companheiros adormecidos, drogados por um vinho adulterado que haviam
bebido.
Não havia fosso daquele lado do castelo, pois ali a rocha sobre a qual se
assentava era íngreme e só se podia alcançar o portão através de uma trilha
sinuosa, mais adequada às cabras do que aos cavalos dos cavaleiros. Arbustos
espinhentos subiam quase até o portão e as encostas inferiores eram repletas de
giestas e tojos. Desceram a colina, movendo-se com cuidado infinito para não
deslocarem alguma pedra e alertarem para a fuga os sentinelas que ficavam nas
ameias. Só pararam quando chegaram bem abaixo, num bosque de pinheiros,
atentos ao som de qualquer alarme de perseguição. Mas ouviram apenas o
sussurrar do vento nos galhos mais altos das árvores.
Ao amanhecer já estavam a sete milhas do castelo, e cansados. Temendo a luz,
abrigaram-se em um bosque espesso, e com a água salobra de um riacho
fizeram bolinhos da aveia que Sir Nestor carregava em um saco.
Depois, revezando-se na vigília, deitaram-se para descansar.
Mas Artur não conseguiu dormir, ou mergulhou em um estado de sonolência, e
palavras circulavam-lhe pela cabeça e imagens estranhas perturbavam-lhe a
mente. A terra é dominada pelo dragão, dizia a mensagem, de onde e de quem
ele não saberia dizer. Qual a condição dos homens, perguntava a si mesmo, ou
melhor, ouvia essa pergunta ser formulada. E a resposta vinha, inexorável e dura:
todos são prisioneiros atados a grilhões, olhando os companheiros com desprezo
ou fria indiferença, alguns diariamente condenados à morte na presença dos
outros.
Como um homem que busca pontos de referência em meio à neblina espessa,
Artur lembrou-se de que Merlim lhe falara da provação de Filoctetes, isolado
durante dez anos em uma ilha inóspita, reduzido a trapos, arrastando um pé ferido
e gangrenoso, lamentando o seu tormento inexprimível. “Essa imagem”, dissera
Merlim com os olhos turvos, “é a imagem definitiva do homem. No entanto,
devemos resistir, no entanto, devemos nos esforçar para...”
Esforçar para o quê? Artur não conseguia se lembrar.
“E é isso que significa ser rei?” pensou; e naquele instante, enquanto a sua mente
reprisava os horrores, viu diante de si uma realidade ainda mais terrível... ser rei
é se entregar a uma guerra sangrenta e sem piedade.
Então pensou: “Serei homem o bastante para ser rei?”
Quando a noite caiu, prepararam-se para prosseguir viagem. Viajavam em
silêncio, sem destino certo, alertas como lobos em relação aos caçadores.
E foi assim por muitos dias e muitas noites, e todo tempo moviam-se como que
guiados por um espírito, em direção ao refúgio das colinas.
Durante esses dias, dias cinzentos em que soprava um vento frio, Artur não se
permitiu dormir de verdade, mesmo quando os companheiros mergulhavam em
um profundo torpor de exaustão; mas, meio desperto, meio sonhando, dirigia a
mente para perguntas que pareciam sempre fugir. Não poderia ser diferente, pois
ele era jovem, ignorante do mundo e inexperiente em filosofia. No entanto,
vislumbrava vagamente o nadir da sua sorte, o que seria o seu princípio
norteador: a força sem a razão cai sob o próprio peso; a força dominada é
favorecida e aumentada pelo Céu. Esse pensamento lhe ocorreu, e no entanto ele
não conseguiu ou não pôde compreender-lhe a importância.
Depois da sétima noite, ao amanhecer, saíram de uma floresta e chegaram ao
alto de uma colina de onde se descortinava um vale no qual um rio de águas
tranqüilas estava encoberto pela bruma. Uma aldeia se aninhava na margem sul
e quando a luz aumentou, pela primeira vez desde que partiram em viagem o sol
irrompeu, como que lhes dando boas-vindas. Artur disse:
— Vamos descer e nos dar a conhecer ao povo da aldeia, pois chegamos ao fim
deste estágio da nossa viagem.
Os outros olharam-no, surpresos e desconfiados. Mas ele sorriu e disse:
— Vamos, estaremos entre amigos.
— Isso é fácil de dizer — replicou Cal. — Mas está além da minha capacidade
perceber que motivos tens para dizer isso.
— Muitas vezes eu sonhei com esta aldeia — disse Artur, e sorriu.
Então desceram a colina e entraram na aldeia, e ao fazerem isso, notaram que
estavam sendo observados a partir das pequenas cabanas feitas de galhos e argila
prensada.
Porém Artur não deu atenção aos observadores e avançou em passo firme
através do que para Cal parecia ser ou ter sido a praça do mercado e chegou à
extremidade da aldeia, onde a estrada bifurcava e oferecia vários caminhos. Um
seguia novamente em direção ao topo da colina, e Cal suspirou ao vê-lo; o
caminho era áspero, e diante da pedra que marcava o início havia uma mulher.
O seu rosto era sério e de uma beleza sombria, e ela não fez sinal algum nem
pronunciou qualquer palavra. A outra estrada conduzia, como Cal podia ver, a um
prado onde cresciam muitas flores e onde o sol brilhava suavemente. Ali
também havia uma mulher diante da pedra. Quando ela viu Artur, deitou-se no
gramado e acenou-lhe, e as tranças castanhas do seu cabelo caíam-lhe sobre os
ombros brancos. A boca era vermelha como a mais vermelha das rosas e os
olhos eram lagos profundos, azuis como o mar de verão. Sorriu para Artur e fez
um gesto para que ele descansasse ao seu lado e, ao fazê-lo, suspendeu as saias.
Mas Artur se desviou e tomou o outro caminho, e a mulher que ali estava de
sentinela não deu sinal de que o notara. Relutantes, e lançando muitos olhares
para aquela beleza reclinada, e muitos suspiros, e de coração pesado pois o prado
era agradável e cheio de frutas, os três amigos seguiram o rei. Ao fazerem isso,
subiram a trilha áspera e um cântico de louvor ou agradecimento se elevou da
aldeia que agora ficara para trás.
Então chegaram a um castelo cujos portões estavam abertos. Havia cavaleiros e
soldados no pátio que ao verem Artur saudaram-no como o rei que retornara. E
assim ele conseguiu um exército.
VII

De todos os grandes homens cujas histórias Merlim fizera Artur estudar, nenhum
impressionara o menino mais do que Alexandre, rei da Macedônia, conhecido
em toda a Antigüidade como “o Grande”. Tudo o que Artur aprendeu sobre
Alexandre encheu-o de admiração; amava-lhe a audácia e a ambição
desenfreada. Ao ler pela primeira vez, em uma tradução latina, a biografia de
Alexandre escrita por Arriano, suspirou de admiração e disse:
— Lutar ao lado de Alexandre teria sido a felicidade suprema.
Merlim sorriu carrancudo pois, na verdade, não sentia amor nem admiração
pelos conquistadores do mundo e, de fato, considerava todos os militares como
pertencentes a uma ordem inferior à dos filósofos como ele próprio.
Nisso, devo dizer, sendo eu mesmo um filósofo, Merlim sem dúvida tinha alguma
razão a seu favor, pois as jóias da filosofia são imperecíveis, enquanto os louros
que coroam a cabeça do conquistador fenecem. As batalhas e os triunfos de eras
distantes são como um vento que soprou feroz, mas que ao desaparecer deixa no
seu rastro apenas o murmúrio de uma lembrança. Alexandre e César estão no
túmulo e a sua luz não mais brilha sobre os homens. Mas as palavras dos poetas e
filósofos falam a épocas que jamais conheceram os seus autores. Deles é a fama
que conquista o tempo.
Contudo, Merlim errava ao desprezar a espada e aqueles que a empunham, e no
íntimo sabia disso. Além do mais, tinha total consciência de que Artur, sendo neto
de Marcos, a quem fora entregue a tarefa de restaurar Roma na Britânia, deveria
ser treinado na guerra e no estudo da arte de guerrear, lendo atentamente César,
Arriano, Vegécio e todos os outros que escreveram sobre o assunto. De fato,
Merlim foi o primeiro a declarar que Artur devia ser um segundo Alexandre e a
lhe ensinar também o verdadeiro propósito da guerra: estabelecer um império
como o de Augusto, cujo povo seria libertado do medo da guerra. E no entanto, a
natureza de Merlim era tão confusa, devido à sua origem incerta e à sua infância
infeliz, que até quando insistia para que o querido discípulo imitasse Alexandre
não conseguia resistir à tentação de zombar e desfazer de todos os
conquistadores.
Artur, cuja sabedoria era maior do que a esperada em sua idade, retinha das
lições de Merlim o que lhe parecia útil e descartava o entulho.
Então, agora estabelecido naquele castelo situado em um acampamento romano
de nome Trimontium, de onde se descortinava o adorável vale do rio Tweed,
Artur pensou em Alexandre e em como poderia aplicar o conhecimento daquele
grande rei à situação do momento.
E falou:
— Somos poucos, e os nossos inimigos, muitos. Se eles se reunirem em um
poderoso exército, não conseguiremos resistir. Eles nos suplantarão pelo simples
peso dos números. Portanto, devemos impedir que se reúnam, e atacá-los
separadamente. Alexandre cercou-se de cavaleiros armados, a quem denominou
Companheiros. Estes se uniram a Alexandre por um vínculo de irmandade, e
enquanto Alexandre foi preeminente todos os Companheiros foram iguais, um
servindo ao outro. Assim será com os meus Companheiros. E para que sejam
identificados em batalha, todos usarão um manto com o emblema de uma cruz
rubra sobre o peito de armas da cota de malha. Alexandre também dispunha de
uma infantaria grega, acostumada a lutar em fiteira cerrada, e de grupos
mortíferos, em uma formação chamada de falange. Não disponho desses
homens. Portanto, não posso me envolver em batalhas campais como as que
.Alexandre travou. Mas a arte da guerra, segundo aprendi, consiste em adaptar o
método aos meios disponíveis; e essa habilidade de Alexandre ainda pode me
servir de modelo. Na guerra precisamos combater, e a mobilidade e a surpresa
devem ser as minhas divisas.
Tendo chegado a essa conclusão, Artur escolheu os seus Companheiros, cujo
número não passava de duzentos; e a cada Companheiro vinculou três soldados,
cujas armas eram um arco e urna pequena adaga, como usavam os legionários
romanos. E depois Artur contratou ferreiros para forjarem grande numero de
espadas, das quais reuniu um estoque; e arqueiros para produzirem as flechas.
Depois convocou à sua presença artesãos que trabalhavam com couro e lhes
disse:
— Ouvi dizer que no Oriente, onde os soldados a cavalo reinam supremos,
desenvolveu-se um acessório para a sela a que chamam de estribo, e isso
permite que o soldado montado fique firme no assento e dirija o cavalo a partir
de uma sela alta, e assim maneje armas com maior habilidade.
Em seguida, ordenou que os artesãos moldassem estribos e selas altas, como
descrevera; e que os ferreiros forjassem armaduras, coras de malha e escudos
para serem utilizados na mão esquerda, lanças e espadas pontiagudas. Além
disso, fez com que cada cavaleiro usasse 110 cinto um punhal, para dispor de
uma arma com que se defender, caso fosse desmontado.
O próprio Artur treinou os Companheiros na tática de guerra súbita que pretendia
empregar, e fez isso porque só ele sabia o que queria. Fez de Goloshan (ou Sir
Nestor, como agora era chamado) o seu oficial intendente, cargo desprezado por
muitos jovens cavaleiros ansiosos por glória, que pensam que ele não traz fama
ao seu ocupante. Mas Artur disse:
— Aprendi com César e Vegécio que uma única vitória raramente decide uma
guerra, e que o sucesso é determinado pela administração de uma campanha, e
que isso exige suprimentos sempre disponíveis.
Nisso também a sabedoria de Artur foi superior à sua idade, ao compreender que
um exército marcha com o estômago, e que um arqueiro que acaba com o seu
estoque de flechas e não consegue reabastecer a sua aljava tem a mesma
utilidade, para um exército, que um cavaleiro sem um segundo cavalo para
substituir um animal morto, ferido ou desgastado e manco.
Naquele acampamento armado a que se reduzira o seu reino, Artur inspirava
todos com a sua graça e a sua esperança de glória. Ele próprio incansável (na
aparência, embora só Cal conhecesse a sombra de fadiga intensa que lhe
enevoava o rosto à noite) dirigiu todos os esforços durante os meses de inverno; e,
quando chegou a primavera, o pequeno exército estava pronto para iniciar a
campanha. Até Cal, desanimado por natureza e sempre temendo o pior, pois isso
era tudo o que conhecera, captou algo do entusiasmo de Artur para enfrentar o
futuro.
VIII

No entanto, se Artur estava confiante, outros estavam menos. Poucos cavaleiros


experientes haviam aderido ao seu estandarte. Um deles era Sir Bedivere,
homem de muitas batalhas e sábio conselheiro. Mas, apesar de ter aderido a
Artur devido ao juramento que fizera a Uther Pendragon, agia com desânimo.
— Toda a cavalaria da Britânia se reuniu sob o pavilhão do rei Lot... — dizia,
puxando os longos bigodes.
— Toda, quer dizer, menos os que estão aqui conosco — disse Artur.
— Enquanto isso — continuou Sir Bedivere como se Artur não tivesse falado —,
os saxões varrem o país como a maré que cobre as areias. Não podemos lutar
contra Lot e os saxões. Portanto, o meu conselho é que procureis chegar a um
acordo com um ou com os outros. Da minha parte, como patriota, insisto em que
vos aproximeis de Lot e ofereçais para dividir o reino com ele. Então, juntos,
poderemos expulsar aqueles bárbaros assassinos.
Artur sorriu e disse:
— O rei Lot prometeu me enforcar na árvore mais alta e se lhe perguntardes que
terra ele poderia me conceder, a resposta seria “sete palmos abaixo da terra”.
Em todo caso, enquanto não o derrotarmos em batalha, não haverá paz nem
aliança. Coragem, meu amigo, coragem e audácia! E vereis que venceremos.
— Os inimigos nos cercam e nos pressionam — continuou objetando Sir
Bedivere.
— Muito bem, eu os atacarei — disse Artur.
Nos meses do verão seguinte parecia que Artur desenvolvera um novo modo de
guerrear. Lot marchava contra ele, seguro na sua panóplia de poder. Artur
retirou-se para um vale remoto. Lot, expressando escárnio pela covardia do
adversário, avançou. Artur levou os seus cavaleiros para trás de uma colina no
flanco sul do vale, acima do rio hoje conhecido como Yarrow Water. Escolheu
um ponto acima de uma clareira, onde o rio era raso e Lot precisaria atravessar
para chegar ao nível do solo. Quando um terço do exército se debatia na água
para se reorganizar, Artur ordenou aos cavaleiros que atacassem em ordem
unida, e estes desceram a encosta com as lanças em riste. Enquanto isso, do
abrigo situado em terra firme os arqueiros de Artur fizeram voar saraivadas de
flechas sobre a parte do exército do rei de Orkney que ainda não cruzara o rio, e
com isso se estabeleceu total desordem. A força do ataque dos cavaleiros, tendo
Artur na vanguarda, com o sol brilhando nas jóias do capacete real, tudo isso
atingiu pelo flanco os inimigos desorganizados, fazendo alguns rolarem e
enviando muitos aos trambolhões para a água. A confusão foi total. O som dos
corneteiros de Artur se mesclava aos gritos de feridos e moribundos; e então,
enquanto Lot lutava para restabelecer a ordem no seu exército, que suplantava o
de Artur pelo menos em dez para um, a nota da trombeta mudou soando a
retirada e os cavaleiros de Artur, obedientes ao treinamento que ele lhes dera,
fizeram meia volta e retornaram às colinas, enquanto os arqueiros, a partir do seu
esconderijo, agora lançavam flechas na parte do exército de Lot que mantivera o
ataque aos cavaleiros de Artur, e com isso inibiram qualquer perseguição.
Foi esse o padrão obedecido nas semanas seguintes. Lot, com a determinação
soturna característica da sua natureza, seguiu a trilha que Artur, como que
caçoando, lhe preparara. Mantendo-se em terrenos elevados, viajando e às vezes
atacando à noite, Artur infligiu uma série de derrotas ao rei de Orkney. A cada
um desses ataques a confiança dos homens de Artur aumentava, e os de Lot
entravam em profundo desalento e experimentavam um medo paralisante. Era
uma nova espécie de combate que os frustrava e que, apreensivos, passaram a
chamar de guerra relâmpago. Cada uma dessas batalhas rápidas deixava grande
quantidade de cavaleiros e soldados como alimento de lobos, raposas e pássaros
comedores de carniça; e em cada uma dessas batalhas, mais cavaleiros
desertavam Lot, desesperados; e o humor do rei tornava-se mais terrível, à
medida que lutava para negar a própria impotência.
IX

Ora, Merlim observara tudo à distância, e o que ficara além da sua visão soube
através de espíritos, elfos, coureiros e toda a escória que o servia. Então agora,
tendo primeiro se assegurado de que Lot ainda estava ausente com o seu
exército, muito ferido e exaurido, Merlim dirigiu-se ao castelo de Roslin, para
onde Lot enviara a Rainha Morgan le Fay e os filhos.
A Rainha saudou Merlim com frieza, pois não o vira desde que ele a entregara a
Lot; e isso era algo que ela jamais o perdoara. E disse:
— Se eu fosse agir agora segundo o meu agrado, faria com que fôsseis
chicoteado como um cão e lançado a um calabouço até morrerdes de fome. Pois
vós me submetestes a um casamento com um homem que eu detestei desde o
primeiro momento em que ele me despiu com os olhos, em seguida me agarrou
e me estuprou. E me lembro que me dissestes que eu deveria me submeter ao
meu destino por ser uma filha do Império.
— Ora, todos nós precisamos nos submeter ao destino, e agora és uma rainha e
mãe de cinco belos filhos.
— Sou mãe de quatro filhos — disse ela —, e três deles são belos, e no entanto,
são filhos de Lot, concebidos no ódio e na decepção...
— E o outro? — indagou Merlim.
— Foi concebido na paixão mais ardente do amor; e no entanto, é aleijado.
Podeis me decifrar este enigma?
— E qual é o nome dele? — indagou Merlim. — Dize-me isto primeiro.
— O nome dele é Mordred, pois é um fruto amargo.
— E quem foi o pai?
— Por que me perguntais, se não tenho dúvida de que sabeis a resposta? O pai foi
um jovem ator, um amante elegante e gentil que conheci em uma hospedaria.
Então, conheceis a minha vergonha, pela qual o meu querido marido jamais
deixou de me censurar.
As palavras da rainha eram amargas e, no entanto, quando falou do jovem ator a
sua voz era doce como o mel e os seus olhos brilhavam com lágrimas.
— Eu teria impedido isso, se pudesse — disse Merlim, e passou a mão nos longos
cabelos de Morgan, como faria um pai amoroso.
— Então teríeis impedido a única noite de felicidade de que desfrutei desde que
me tirastes do convento onde me deixastes ainda criança e onde eu fui
verdadeiramente amada e tratada com carinho — e assim dizendo entregou-se
ao sofrimento, entre lágrimas copiosas e soluços sufocantes.
— Devo te dizer que aquele jovem ator que foi teu amante hoje é o rei, o jovem
Artur — disse Merlim.
Mas não acrescentou “e também teu irmão”, pois não lhe pareceu adequado
contar à rainha que aquela união fora incestuosa. Pensou que chegaria a hora em
que seria conveniente fazer tal revelação.
Morgan le Fay ainda chorava, com mais amargura do que antes; e o motivo era
o seguinte: o marido, o rei Lot, ao sabê-la grávida, interrogou as criadas e
assegurou-se de que o provável pai era um ator de origem humilde. Lot a
censurara pela infidelidade e a repreendera por preferir a companhia de gente
inferior à sua pessoa real. E dissera: “Bem poderias ter te deitado com o lavador
de pratos, aquele moleque de cozinha sujo e fedorento que por alguma arte
demoníaca usurpou o trono da Britânia, que é meu de direito; bela companhia
para uma filha de Roma, esposa de um rei de nobre linhagem como eu”. E
continuou nesse tom durante horas, e freqüentemente batia na esposa. Além
disso, quando a criança nasceu deformada, Lot primeiro tripudiou, exultante, e
depois teria mandado abandoná-la numa encosta durante o inverno, para que
morresse. Mas Morgan enganou-o e confiou o bebê a uma aldeã, e só o
recuperou quando o rei partiu para a guerra. Então naquele momento sentia-se
dominada por um misto de emoções, e se refugiou nas lágrimas.
Depois de chorar por meia hora de relógio, voltou-se e insultou Merlim, em parte
porque o considerava responsável pelos seus infortúnios, e em parte porque não
havia mais ninguém disponível para ela dar vazão às suas emoções e tristezas.
Merlim escutou-a em silêncio, sabendo que quando a mulher está zangada
demais não há argumentação possível.
Quando ela terminou, pois até a mais arrebatada das mulheres precisa ceder, e
no devido tempo se acalmar, Merlim lhe disse para buscar o pequeno Mordred.
Ela mandou que o trouxessem e a ama conduziu o menino até o quarto da mãe.
Merlim examinou-o e viu que, de fato, era aleijado, manco da perna esquerda e
com o lado esquerdo da boca repuxado; segundo Morgan, agora tremendo e
exausta pelas emoções, isso acontecera porque o marido a golpeara no estômago
com o seu punho de ferro quando ela estava grávida.
Merlim imitou com os dedos uma pata dc gato e o menino riu, contente, e os seus
olhos negros brilharam.
— E agora eu estou com o meu filho de novo faz três meses, e o meu senhor está
em campanha, e há seis meses não o vejo. Quando ele voltar, certamente me
matará — disse ela.
— O rei Lot já tem problemas suficientes. O seu exército sofreu muitas derrotas.
Logo será um homem arruinado. A cada dia mais cavaleiros o desertam e
procuram Artur para servi-lo. O tempo de Lot acabou. Isso não te aflige, creio —
disse Merlim.
— E no entanto — disse ela —, o nosso filho mais velho, Gawaine, a menina dos
meus olhos, o querido do meu coração, está com o pai.
Então Merlim contou-lhe que viera buscá-la, para a sua própria segurança e por
outros motivos que não queria revelar, para levá-la até Artur. Mas disse que Artur
não poderia saber de Mordred, de que era seu filho, e por esse motivo Merlim se
encarregaria do menino e seria responsável pela sua criação.
Ela concordou sem discutir e isso a surpreendeu, uma vez que Mordred fora
concebido por amor. No entanto, não conseguia olhá-lo com naturalidade e se
sentia desconfortável ao carregá-lo no colo. Certa vez, quando o amamentava,
ele mordera-lhe o seio até sangrar.
— Há algo de estranho nele. Nasceu com todos os dentes, e me disseram que isso
significa que é malévolo. Quando me mordeu, riu como se tivesse feito algo
inteligente — disse.
X

A respeito do que relatei no capítulo anterior, muitas coisas me parecem


enigmáticas.
A conversa que reproduzi está bem documentada. Com certeza não aparece na
História dos reis da Britânia, de Geoffrey de Monmouth, mas esse autor, como
eu vos disse, era ignorante, mentiroso e mitomaníaco. Essa omissão no relato de
Geoffrey não é interessante nem notável. Porém aquela conversa é admitida por
certos cronistas mais velhos e anteriores e, além disso, 110 mosteiro de
Montsegur, na Occitânia, existe um manuscrito que se diz ter sido copiado de um
outro, cujo ditado se atribui ao próprio Merlim; e nele pode ser lida a versão que
vos apresentei. Infelizmente desapareceu o manuscrito original, de onde foi
copiado o do mosteiro. Alguns dizem (e não há motivo para descrer) que foi
destruído quando o castelo de Montsegur foi queimado pelos mouros, ao se
retirarem depois de uma grande batalha em que foram derrotados pelo vosso
ilustre predecessor e ancestral Carlos Magno.
Seja lá como for, não é a procedência da história que considero enigmática, mas
sim o comportamento de Merlim.
Por que ele decidiu se encarregar do pequeno Mordred? Por que levou Morgan le
Fay até Artur sabendo, como sabia, do relacionamento existente entre eles,
suspeitando, como devia suspeitar (ou melhor, mais do que suspeitar, pois era um
feiticeiro dotado de presciência) que eles retomariam a relação incestuosa? Por
que não informou a Artur que Morgan era sua irmã? Será possível que, com o
seu coração deturpado, Merlim tivesse ciúme de Artur a quem, no entanto, há
razões para se crer que também amava?
Essa possibilidade vos surpreenderá, meu príncipe, pois sois jovem e inocente, e
portanto ignorais os caminhos insidiosos dos afetos e que aquilo que eu denomino
impulso sexual provoca má-fé.
Pois aconteceu o que era de se supor que, na minha opinião, deveria ter sido
previsto pelo mago.
Tão logo Morgan chegou ao acampamento de Artur e surgiu ali em toda a sua
beleza (desolada e infeliz, e portanto mais atraente), e Artur a viu, com os
cabelos castanhos espalhados como cachos de hera sobre os ombros magníficos
e desnudos, ele apaixonou-se novamente. E verdade que de início, com a luz
tênue e a fisionomia de Morgan tão mudada, ele não a reconheceu como a sua
Dama da Hospedaria; mas ao reconhecê-la, o seu ardor redobrou. Ajoelhou-se
diante dela, segurou-lhe as mãos pálidas, cobriu-as de beijos e avançou os lábios
pelos braços de Morgan, lisos como o alabastro imponente, porém macios, dóceis
e belos, chegou àqueles ombros desnudos e aproximou-se dos lábios de Morgan;
enquanto isso, as mãos agitadas, cheias de cicatrizes da guerra e ásperas devido
ao couro das rédeas dos cavalos, acariciavam os seios da dama, aqueles seios
que foram o deleite de todos os que os viram, seios cândidos como o queijo feito
do leite de búfalas mansas. Oh, ver o jovem rei naquele momento de êxtase era
ver alguém a quem o deus Eros tomara como jubiloso prisioneiro.
Ora, insisto que Merlim previra tudo isso. Como não teria previsto, sendo o que
era?
Há uma explicação que me ocorre e eu a apresento cauteloso por não ter provas;
e, como vos lembrareis, nesta narrativa jamais apresentei fato algum que não se
apoiasse em testemunhos indiscutíveis e somente quando na verdade
aconteceram.
Lembrar-vos-eis que Merlim, com suas artes, seduzira o adorável Peredur,
afastando-o de Artur, consumido pela luxúria no instante em que o seu olhar
recaiu sobre o rapaz. Ora, apesar de os velhos viciados quererem que a história
fosse diferente, é inconcebível que Peredur voluntariamente tivesse preferido
Merlim, que cheirava a bode e jamais fora bem dotado, em vez de Artur, esbelto
e adorável, de olhos emoldurados por longos cílios e lábios delineados como que
pelos deuses para o beijo. Para conquistá-lo Merlim recorrera a artes mágicas,
mas com o passar do tempo o encanto enfraqueceu e Peredur suspirava, perdido
de amor, ansiando por Artur. Então Merlim, apresentando a Peredur a visão de
Artur (talvez por meio de espelhos mágicos, pois não há provas de que Peredur
estivesse no acampamento de Artur naquele momento, e não é razoável supor
que Merlim arriscasse um encontro entre o seu relutante sodomita passivo e o
rei), apresentando a Peredur a visão de Artur extasiado diante da rainha, Merlim
esperava dissolver o encantamento que Eros tecera entre Peredur e Artur, e
assim conseguir dominar o recalcitrante e desesperado rapaz.
No entanto, confesso que esta explicação não me satisfaz totalmente. Porque
como Merlim era mestre nas artes mágicas, não teria dificuldade em criar para
Peredur imagens de Artur escravizado a um sem número de amores,
suficientemente constrangedores, feios, monstruosos ou grotescos, que
encheriam o rapaz de decepção e matariam o amor ou desejo que ainda sentisse
por Artur. Por exemplo, lembro-me de um certo necromante e exorcista judeu,
meu conhecido, que deleitou o arcebispo de Salamanca apresentando-lhe,
através do ilusionismo, um macaco deflorando uma virgem muito jovem. Em
sua defesa, pois era um homem culto e um bom amigo meu, eu deveria dizer
que ele executou esse truque abjeto apenas para salvar a filha, jovem e muito
querida, evitando que sofresse na realidade destino semelhante (e pior) nas mãos
daquele clérigo pervertido.
Talvez Merlim temesse que o próprio Artur tentasse recuperar Peredur, e assim
distraiu-o devolvendo Morgan aos seus braços.
Ou talvez Merlim tenha agido assim simplesmente por amor às brincadeiras de
mau gosto, ou porque se deliciasse em exibir os seus poderes e comandar a vida
alheia.
Em se tratando de Merlim, raramente existe uma explicação simples ou um
motivo puro e único a ser identificado.
Será que vos surpreende o fato de Merlim se mostrar tão dúbio, ou que Artur,
diante de todos os seus cavaleiros, tenha se entregue tão definitivamente à
expressão do desejo apaixonado? Pois sabei o seguinte: o amor se assemelha à
parte central do Céu, à qual chamamos de Via Láctea, uma estrada brilhante
composta de minúsculas estrelas. No amor, poetas e estudiosos identificaram e
descreveram inúmeros matizes de emoção, superpostos e emaranhados, e tão
difíceis de reconhecer quanto as estrelas daquela estrada leitosa. Então Artur
submeteu tudo (fama, reino, a liderança do exército) àquele único momento da
vida que então lhe parecia a perfeita felicidade. E sendo jovem não podia saber
que a vida de um homem apaixonado muda dez vezes por dia, e até mesmo por
hora; enquanto abraçava o amor recuperado, achando que aquele momento seria
eterno, a sua alma se saturaria pois a felicidade perfeita é transitória, a tristeza
segue-se à cópula e o homem bem alimentado esquece o que é ter fome,
Mas por um átimo de segundo o mundo parou para Artur, quando ele pousou os
lábios nos de Morgan e ela, embora a princípio rígida, logo se desmanchou em
um amor que percorreu a ambos como um riacho que se precipita pela encosta
da montanha. E então, lançando um grito que ecoou pelas colinas, Morgan
vergou-se como os galhos de uma árvore diante de um vento forte e caiu ao
chão, soluçando.
Mas Artur, murmurando palavras de amor, doces como mel, ergueu-a com
delicadeza e conduziu-a até a sua tenda, onde com muitos beijos e dedos
trêmulos desamarrou-lhe a roupa e quando esta caiu ao chão ele admirou a pele
de Morgan, mais branca do que neve recém-caída. Então levou-a até o leito e
ali... mas eu desisto, porque não é apropriado, meu príncipe, me deter no que se
seguiu, exceto para dizer que no instante em que ambos alcançaram o ápice do
prazer, Artur conheceu o deleite mais intenso de que é capaz um homem
pecador, e basta acrescentar que o acanto que envolve em círculos delicados as
colunas de um templo grego não se prende de modo mais maravilhoso do que as
pernas e os braços daqueles amantes; e nenhum viajante atravessando terras
desconhecidas jamais realizou descobertas mais felizes do que Artur e Morgan
naquela noite de verão.
Se me perguntardes por que Morgan primeiro se submeteu e depois, em plena e
ávida entrega, tentou dar tanto prazer quanto recebia e incitou Artur a novas
demonstrações de paixão, embora temesse que uma união abençoada por
Merlim fosse perigosa, já que experimentara de modo doloroso a intervenção
deste na sua vida, devo vos dizer que as minhas fontes oferecem duas
explicações.
A primeira diz respeito apenas a Morgan. Considerando-se que anos mais tarde,
como vos relatarei, ela seria acusada de feitiçaria, alguns escritores condenam-
na como imoral e de natureza duvidosa e malévola. Portanto, dizem eles, ela
estava em conluio com as Forças das Trevas e era atraída para uma trajetória de
destruição, como a mariposa é atraída pelas chamas; e, por acreditar que com o
passar do tempo Artur chegaria inevitavelmente ao seu destino de um modo ou
de outro, essa união lhe parecia mais agradável. E esses escritores acrescentam
que a demonstração inicial de relutância por parte de Morgan foi insincera e
destinada apenas a seduzir Artur, pois sabe-se bem que a mulher que finge não
querer torna-se, para o ardor dos homens, mais desejável do que quando se
mostra ansiosa pelo esporte.
Porém outros, embora não neguem isso, simplesmente observam que Morgan
era filha de Eva, e que as mulheres se inclinam mais para Satã do que para o
Senhor. Foram criadas pelo Diabo para desviar os homens, como Dalila fez com
Sansão, Helena com Paris e Cleópatra com o grande Antônio.
No entanto, nisso eu não acredito, pois tenho conhecido muitas mulheres castas e
virtuosas e, se me permitis confessar com uma certa imprudência, tive ocasião
de lamentar-lhes a castidade e a virtude. Mas isso nada tem a ver com a minha
história.
Da minha parte, falando como falo, a partir de uma experiência de vida ao
mesmo tempo mais vasta e mais intensa do que a da maioria dos moralistas
clericais, e também a partir de uma profunda compreensão da natureza humana,
rejeito ambas as explicações, e em seu lugar ofereço duas versões de minha
autoria.
Na primeira, nego que Morgan le Fay fosse àquela época o que agora se chama
de feiticeira, não importa até que ponto tenha se encaminhado nessa direção
posteriormente. Ao contrário, creio que Morgan fosse então uma seguidora da
doutrina Perfeita, que afirma que homem e mulher são uma só pessoa, cada qual
tendo passado por várias reencarnações neste invólucro de carne. Segundo os
ensinamentos dos Perfeitos, considerados heresia pela Santa Igreja, a realidade
definitiva é o eu divino e imanente, que não é homem nem mulher. Mas se neste
mundo material duas pessoas se unem (homem com mulher, homem com rapaz,
mulher com mulher) e assim prolongam a sua existência neste mundo da carne,
isso não dá uma boa matéria (perdoai-me o jogo de palavras).
Esta explicação que acabo de vos oferecer é convincente. E no entanto eu a
retiro: talvez seja metafísica demais para os tempos em que Artur e Morgan
viveram. Então, parece-me provável que ambos estivessem escravizados a Eros,
o deus menino do Amor, àqueles poderes que os antigos testemunham. Embora
menino, Eros é uma divindade dominadora e possessiva. Aqueles em cujos
corações ele penetra, perdem todo o livre arbítrio: tornam-se seus escravos.
Ficam cegos para as conseqüências do amor, como Paris, enamorado de Helena,
raptou-a do marido, Menelau, levou-a para Tróia e desencadeou uma guerra
terrível que viu queimarem as torres de Ilion e morrerem todos os seus heróis,
inclusive Heitor. E nada disso importou a Paris: dominado por Eros, só tinha olhos
para Helena, e ela igualmente para ele.
Além disso, aqueles a quem Eros escravizou esquecem todas as outras afeições
naturais, desconsideram códigos morais e aquilo que os sacerdotes denunciam
como pecado. Até Eros libertá-los, não têm forças para agir de modo diferente
daquele que esse deus escolhe. E assim aconteceu com Artur e Morgan. Tenho
certeza, é claro, que a Santa Igreja aboliu os deuses da Grécia e de Roma
dizendo que eram deuses falsos, imagens vãs, e que verdadeiramente não
existem. Bem pode ser assim. Mas por outro lado, quem observou a humanidade
não pode duvidar da realidade de Eros. Talvez ele não exista no mesmo sentido
que Deus Todo Poderoso e Jesus Cristo. Diferente de Cristo, Eros jamais teve
aparência material. No entanto, está nas mentes e nos espíritos de homens e
mulheres, e só um néscio nega-lhe o poder, a capacidade de aprisionar, cegar e
até enlouquecer os escolhidos. Negar Eros talvez seja o caminho da sabedoria e a
estrada da salvação; mas negar-lhe o poder é loucura, fuga da verdadeira
realidade, das coisas como realmente são.
É tudo o que tenho a dizer sobre o assunto, pelo menos por enquanto.
XI

Durante todo aquele verão Artur sentiu-se dois homens opostos. O primeiro era
prisioneiro de Eros, para quem o mundo estava totalmente distante desde que
pudesse se deitar com o seu amor. O segundo era o rei, o general de um exército
engajado em uma guerra sangrenta.
Talvez me pergunteis como isso podia acontecer, e posso responder apenas que
Artur era um homem notável. Na minha opinião, existe um teste para distinguir o
homem superior, aquele a quem um poeta alemão meu conhecido, grande
erudito e homem de extraordinária sagacidade (embora tenha morrido de tanto
beber numa taverna sórdida da Boêmia), chamou de vir ulterior, alguém que
consegue ir além dos companheiros; e essa é a capacidade de abrigar na mente
ao mesmo tempo duas idéias conflitantes, de ver ambas com igual firmeza e
continuar a agir. E assim era Artur.
E há também dois outros traços, segundo dizia o meu amigo, que distinguem um
homem superior, aquele que vai além dos companheiros. O primeiro é a leveza
de espírito, a “alegria”, a relutância em deixar-se prender ao barro vil que
satisfaz a muitos homens. E o segundo é o ceticismo, a recusa a se vincular a um
dogma ou a uma doutrina. A vida desse homem, dizia o meu amigo, é uma busca
perpétua. Pena que a sua própria busca tenha sido interrompida prematuramente.
Mas creio que o vinho fosse ruim e, dizem alguns, envenenado.
Cultivai essas qualidades, meu príncipe: alegria e ceticismo, e sereis a verdadeira
maravilha do mundo que, no entanto, vos ultrajará pois teme e detesta o que é
superior.
Até no acampamento de Artur e, apesar da sua maravilhosa juventude, havia
murmúrios, resmungos, queixumes. Ressentiam-lhe a superioridade. Entre os
principais murmuradores estavam Sir Kay e Sir Bedivere. Velhos aliados, bons
companheiros de bebida para quem cerveja alguma era suficientemente forte,
que sempre, ou pelo menos duas vezes por semana, se deixavam dominar pelo
vinho, achavam motivos para reclamar dos encantos de Artur. O seu corpo
esbelto e firme como a corda de um arco escarnecia da carne balofa dos outros
dois cavaleiros. Havia algo de feminino no rosto de Artur, sussurravam eles;
aqueles longos cílios não eram próprios de um guerreiro. Além disso, Sir Kay
lembrava-se da época em que Artur fora um humilde serviçal, e de quantas
vezes pousara a ponta achatada da sua espada nas nádegas daquele rapaz; e na
verdade, ansiava repetir esse gesto mas não ousava. Quanto a Sir Bedivere,
apesar das vitórias de Artur, dizia sem rodeios que Lot vingaria o insulto que
Artur lhe fizera dormindo com a sua esposa. Não ousava dizer isso diretamente
para Artur, pois embora Bedivere e Kay secretamente o chamassem de “o
rapaz”, no olhar firme dos olhos azuis escuros do rei havia algo que os
acovardava. Então, apenas Cal advertia Artur de que aquele caso de amor não
lhe valia boa reputação e acabaria mal.
— O que seria de mim sem ti, Cal? — riu Artur. E Cal respondeu:
— Como nunca aceitas o meu conselho, o teu destino será o mesmo, quer eu
fale, quer fique calado. Mas precisas saber que há quem diga que a dama te
enfeitiçou, e outros têm certeza de que ela foi enviada por Lot para acabar
contigo. Em todo caso, o boato é que tu estás ferrado.
— Pobre Cal, creio que estejas com ciúme.
— E, pode ser.
Artur pôs o braço em torno do amigo e puxou-o para perto:
— Cal, Cal, já sofremos muito, juntos. Acredita em mim, tens um lugar no meu
coração, do qual nunca serás desalojado. Fazes parte de mim, e eu de ti. Acredita
nisso, peço-te.
— Belas palavras, belas palavras, e bem pronunciadas, mas conversa fiada não
enche barriga. Eu já devia saber que tu não me escutarias porque és teimoso e
cabeçudo como um potro brabo. Bem, quando as coisas derem errado... — e Cal
abriu os braços.
— Tu terás a satisfação de dizer: “Eu bem que te avisei! .
— Podes rir à vontade. E outra coisa: não imagines que esses dois brutamontes,
Kay e Bedivere, tenham algum amor por ti.
Artur franziu o cenho.
— Não duvido do que dizes, mas não posso imaginar por que não teriam.
— Tu achas que todo mundo devia te amar, tu és tão maravilhoso! Bom, eles não
te amam. Não deves esquecer do tratamento que Kay te impôs quando não eras
nada perto dele. Pois bem, ele não consegue te perdoar por o teres perdoado.
Está bem, está bem, não vou dizer mais nada, pois não estás disposto a ouvir. E
agora suponho que vais correndo te encontrar com a tua senhora...
XII

Artur podia estar escravizado a Eros mas ainda era o rei, com uma parte da
mente devotada aos deveres reais e à guerra contra o rei Lot. E assim, retomou a
campanha. Lot se retirara para um sólido castelo situado em um desfiladeiro que
defendia a estrada para as montanhas do norte, perto de onde o general romano
Agrícola derrotou os caledônios chefiados pelo rei Cálgaco. Esse castelo era
fortemente protegido e jamais fora conquistado, em centenas de guerras.
Assim, Artur, desejando poupar o maior número de vidas possível, enviou um
desafio a Lot, convidando o rei a enfrentá-lo em um combate único, tendo como
prêmio o castelo. Quando Lot recebeu o desafio, encheu-se de raiva. A princípio
pensou em aceitar, pois estava certo de que o rapaz Artur não seria páreo para
ele. Em seguida não teve tanta certeza. Pensou nas batalhas em que fora
derrotado, lembrou-se que tinha as costas em mau estado e as juntas mais rígidas
do que na juventude. E isso o aborreceu ainda mais. Depois pensou na esposa nos
braços de Artur (porque essas coisas nunca se mantêm em segredo), torceu o
bigode e jurou que ainda serviria a cabeça do rapaz numa bandeja, no seu
banquete de vitória.
Sorriu com a imagem que isso representava e estava prestes a mandar um
mensageiro dizer que aceitava o desafio, quando foi tomado pelo medo: se
perdesse, estaria tudo acabado; seria a sua desgraça, se não a sua morte. E assim
hesitou, como um homem no alto de um rochedo, de onde precisa saltar para
atravessar um rio impetuoso, ora caminhando até a beira do rochedo, ora
recuando, imaginando o seu corpo a se precipitar contra as pedras. E assim preso
entre o desejo e o medo, Lot se debatia como a mosca na teia de aranha.
Estando totalmente confuso, Gawaine, o filho mais velho, se aproximou e lhe
perguntou se deveria lhe preparar a armadura, pois todos no castelo sabiam do
desafio. Lot franziu o cenho e disse:
— Ainda não; eu não vou lutar hoje. Estou doente do estômago e incapacitado
para guerrear. Amanhã responderei a esse insolente desafio.
No dia seguinte, Gawaine voltou a procurar o pai e indagou se devia preparar-lhe
a armadura.
Lot suspirou profundamente, sacudiu a cabeça e disse:
— Ainda não, pois acho que estou com febre terçã e incapacitado para a batalha.
Amanhã responderei a esse insolente desafio.
E assim, no terceiro dia, pela terceira vez Gawaine procurou o pai e fez a mesma
pergunta. E parecia-lhe que a cada dia o pai tinha a aparência mais sombria e se
mostrava depauperado; e, de fato, o corpo do rei Lot tremia, como se
efetivamente estivesse com febre terçã. Gawaine sentiu pena do pai. Mas disse:
— Quando estamos nas ameias, olhando para o sul, chega-nos, trazido pelo vento,
o som de gargalhadas.
E pensou: “A febre terçã que aflige o meu pai tem o nome de medo e o boato
que circula até mesmo entre os nossos cavaleiros é que o rei Lot se oculta no seu
quarto e não ousa batalhar contra Artur. E as colinas estão vibrando com o som
das gargalhadas provenientes do acampamento do inimigo. E eu tenho vergonha
do meu pai, e isso é algo verdadeiramente terrível.” Gawaine pensou tudo isso
mas não ousou pronunciar tais palavras pois, embora com vergonha do pai e
tendo direito de estar envergonhado, ainda assim o temia.
Então, em vez de falar o que pensou, afastou-se e estava prestes a deixar o quarto
do pai quando este falou:
— Não posso lutar, sento-me aqui lembrando-me das minhas muitas batalhas e
das minhas proezas que os nossos menestréis cantaram e, no entanto, não posso
lutar. Plantaram-me um par de chifres e não consigo me vingar. Na verdade, sou
o mais infeliz dos homens, o mais desgraçado dos reis.
Ao ouvir o pai falando como jamais o ouvira antes, Gawaine encheu-se de
piedade e disse:
— Pai, o desafio precisa ser enfrentado. Como estais doente, deixai-me assumir
o vosso lugar e batalhar como substituto.
Lot ergueu a cabeça. Os seus olhos cansados olharam para o filho e depois se
desviaram. Com a mão peluda esfregou o rosto com a barba por fazer. Havia
pústulas em meio aos pêlos. Olhou de novo para Gawaine. Este ainda era jovem
porém robusto e corpulento. O cabelo louro, cortado curto, e o rosto em geral
pálido e ligeiramente sardento, agora enrubescia pela ansiedade. Continuava de
pé, com as pernas separadas, pernas de rapaz, ainda flexíveis. Toda a sua beleza
residia na juventude, mas ele parecia um guerreiro. Lot disse:
— A tua mãe é prostituta dele. Lutarás contra ele? — Gawaine corou mais
profundamente. Não conseguiu falar, mas continuou olhando fixamente para o
pai. Lot prosseguiu:
— Muito bem, vai, arma-te e faz com que o arauto leve a resposta ao usurpador.
O trono que ele ocupa é meu de direito, e será teu quando o matares e eu estiver
morto. Recebe a minha bênção, meu filho, e cumpre o teu dever.
Se Gawaine tivesse a oportunidade de olhar em volta quando deixou o quarto do
pai, teria visto no rosto deste um sorriso dissimulado.
Porém não olhou para trás. Desceu até o Grande Salão e convocou o arauto de
Artur e lhe disse para levar a mensagem ao seu amo, de que o desafio fora
aceito e que Artur seria enfrentado e deveria se preparar para batalhar até a
morte no prado abaixo do castelo, ao meio-dia do dia seguinte. E acrescentou:
— Dize-lhe que como ele fez o desafio, o direito de escolher as armas é nosso.
Portanto, a luta será a pé, e cada um estará armado apenas com uma espada e
um escudo, e não haverá escudeiros de plantão, mas todos deverão se manter a
uma distância igual ao comprimento de dois arcos. Caso ele não concorde com
estas condições, então ele que ataque o castelo.
— O meu amo concordará — disse o arauto — pois compreende as regras do
combate e a elas se submeterá.
Enquanto o arauto retornava ao acampamento de Artur, Gawaine foi para a
capela e se ajoelhou, rezando. Agora estava muito pálido e sentia calafrios, pois
sabia que aquela noite poderia ser a última da sua vida. Manteve-se em vigília na
capela durante as horas de escuridão e ao amanhecer foi se fazer ouvir em
confissão.
Depois vestiu a armadura, uma cota de malha feita pelos melhores ferreiros da
longínqua Espanha e um capacete com uma pluma dourada. Testou várias
espadas de folha larga e escolheu uma bem-feita, cuja ponta fora afiada pelo
escudeiro. E assim Gawaine se preparou para o combate.
Chovera levemente antes do amanhecer, mas agora o sol se erguia em um céu
sem nuvens. Os seus raios incidiam nas folhas novas das faias que bordejavam o
prado além do fosso do castelo, fazendo-as brilhar. Gralhas voejavam de um lado
para outro nas ameias, e da floresta lá embaixo ecoou o canto zombeteiro de um
cuco.
Cal ajudou Artur a afivelar a armadura e disse: — Presta atenção, esse Lot é um
verdadeiro patife. A única coisa que podes confiar que ele fará é trair alguém.
Por volta do meio-dia as trombetas soaram e os cavaleiros de ambos os exércitos
estacionaram nas margens opostas do prado, todos atentos para o caso de ser
necessário romper as condições de armistício das quais dependia o desafio.
Artur avançou com passo leve e ansioso sobre a turfa primaveril. Ainda não
baixara a viseira e todos podiam ver que o seu semblante estava sereno.
Quando Artur se aproximou do centro do campo, Gawaine atravessou a ponte
levadiça do castelo. Deu um passo e tropeçou, e do seu exército elevou-se um
clamor, mas ele rapidamente se recompôs e quando ao fazer isso baixou a
viseira, pois não tinha a intenção de que Artur soubesse que não era o rei Lot
quem avançava contra ele. Mas o próprio Lot olhava os dois paladinos, a partir de
uma janela alta do castelo; olhou brevemente e se afastou, como que para
esconder a vergonha. E na verdade estava muito envergonhado porque não podia
fingir nem para si próprio que não fora o medo que o afastara do campo de
batalha. Atirou-se ao leito e mordeu as unhas, depois deu um profundo gole em
um cálice contendo um forte vinho
de Bordeaux, e arremessou o cálice ao chão. Chamou o :;eu pajem para que lhe
trouxesse mais vinho e bebeu novamente. Mas o vinho não lhe trouxe alívio.
Artur assumiu a sua posição no centro do prado, esperando pelo adversário que
agora se aproximava com 'lasso firme. Quando este chegou perto, Artur
constatou que não se tratava do rei Lot, pois Gawaine era mais alto uma cabeça
do que o seu atarracado pai e, além disso, movia-se em passos mais leves. Então
Artur disse:
— O meu desafio foi para o rei Lot, e tu não és ele. Gawaine replicou:
— Eu sou o seu paladino.
— E o rei, está com medo e não ousa me enfrentar de acordo com o meu
desafio?
— O rei Lot não teme homem algum mas está doente e me tornou seu
representante. Vamos, acabemos com esta conversa vazia e iniciemos. — Ao
dizer isso, Gawaine assumiu a posição em guarda e demonstrou estar pronto para
lutar.
Mas Artur ainda continuava constrangido, com a ponta da espada apontada para
o chão. E disse:
— Dize-me o teu nome para que eu possa saber com quem estou lutando. E
quem é a mãe cujo filho devo derrotar hoje.
— O meu nome não importa — disse Gawaine, pois fora assim que o rei Lot o
instruíra a responder, se essa pergunta lhe fosse feita.
— Então ergue a tua viseira, para que eu possa ver que tipo de homem enfrentou
o meu desafio.
Gawaine, ansioso por batalhar, fez o que Artur pedira e este, ao vê-lo, recuou um
passo.
— Não passas de um menino! — exclamou. — Será que o rei Lot ainda se atreve
a me menosprezar, embora eu o tenha derrotado em sete batalhas, a ponto de
enviar um menino para fazer a tarefa de um homem? Ele não tem cavaleiros
grisalhos para lutarem em seu lugar?
Essas palavras enfureceram Gawaine, e com razão, uma vez que ele era apenas
dois anos mais novo do que Artur. E assim perdeu o controle e gritou:
— Vem, pois eu tenho sangue real por ser o filho mais velho do rei. Sou Gawaine,
e estou pronto para lutar contra qualquer homem, até mesmo contra ti, Artur.
Estás com medo e queres recuar?
Artur sorriu um sorriso triste e sacudiu a cabeça:
— Não estou com medo, ou pelo menos não mais do que o medo natural de
alguém que está prestes a um combate mortal. No entanto, não posso lutar contra
ti, Gawaine. Volta para o castelo e dize ao teu pai que não é justo ele te mandar
para uma batalha que ele próprio não ousa lutar — e dizendo isso, Artur fez
menção de se retirar.
Ora, Gawaine tinha um temperamento irritadiço e in-disciplinado desde a
infância, que não estava distante, e essas palavras encheram-no de fúria.
Entendeu que Artur não lutaria com ele devido à sua mãe. E isso considerou
(com razão, podeis imaginar) uma afronta à sua honra: que Artur se deitasse
com a sua mãe e por isso declinasse de batalhar contra ele. Além disso, Artur
acusara o seu pai de covarde, e isso o enfurecera ainda mais, pois traduzira em
palavras a suspeita que ele, Gawaine, não ousara admitir.
Então, enquanto Artur se preparava para se retirar, recusando-se a combater,
Gawaine soltou um grito estridente, empunhou a espada e atingiu Artur na lateral
do pescoço, pouco abaixo da orelha direita, fazendo-o cair ao chão. Um grande
clamor ergueu-se de ambos os exércitos, os homens de Lot gritando de alegria e
excitação, e os de Artur, chocados. Sucederam-se murmúrios de aborrecimento
em voz baixa pois todos perceberam a traição, e por um momento pareceu que,
esquecendo o armistício e sem qualquer comando, aqueles homens avançariam,
ansiosos em aderir à batalha geral.
Mas o próprio Gawaine não se moveu depois do ataque. Ao contrário, recuou,
como que surpreso. Enquanto isso, Artur, ainda no chão, ergueu-se sobre um
cotovelo, sacudiu a cabeça por duas vezes e tentou se pôr de pé. Olhou para
Gawaine e viu a incerteza no seu rosto. Depois disse:
— Eu não queria lutar contigo, mas agora... agora tu tornaste impossível que eu
não o faça. Mas em primeiro lugar, estende-me a mão como prova de que esta
luta será justa, e depois desce a tua viseira.
Gawaine estendeu a mão, hesitante, como que temendo alguma armadilha. Mas
não havia armadilha alguma. Então ambos apertaram-se as mãos, abaixaram as
viseiras e iniciaram o combate.
A princípio, se equivaliam. Artur era mais velho e mais experiente no manejo
das armas em conflitos anteriores, mas Gawaine era um palmo mais alto, mais
pesado, mais robusto e não menos ágil. E assim, por muito tempo trocaram
golpes, muitos habilmente aparados, mas alguns soando contra as armaduras e
outros tão pesadamente desferidos que faziam o adversário tropeçar. Enquanto
isso, ambos os exércitos pareciam reter o fôlego, de tão excitante estava a disputa
entre os dois jovens heróis.
Os contendores tocaram espadas até ambos ficarem arquejantes e suados, e
ambos receberam ferimentos, de modo que o sangue escorria feito chuva. Então,
finalmente, um golpe veloz e poderoso de Gawaine atingiu Artur na cabeça,
arrancando-lhe o capacete, fazendo-o tropeçar e quase cair. Gawaine correu
com a espada erguida para derrubar Artur, mas naquele exato momento este se
recuperou, desviou-se do arco da espada que descia e lançou-se contra Gawaine.
Encontrou uma fenda na armadura, ou talvez a investida tenha sido tão poderosa
que perfurou a armadura, mesmo onde não havia fenda. Com a força a espada
penetrou, Gawaine caiu ferido no ombro, ainda com a espada de Artur cravada.
E a sua própria espada, agora inútil, caiu sobre a grama.
Então Artur inclinou-se e pegou Gawaine pela mão, erguendo-o para que ficasse
de pé e abraçou-o. Com muita delicadeza, retirou a lâmina e segurou Gawaine
para que este não caísse desmaiado. E disse:
— Basta! Já orgulhaste o teu pai e te mostraste um cavaleiro nobre, digno de toda
honra.
E assim, muito lentamente e ainda apoiando o inimigo ferido, Artur levou-o de
volta ao seu campo, enquanto ambos os exércitos continuavam em silêncio,
surpresos.
Morgan le Fay desceu do palanquim de onde assistira ao duelo, com um misto de
emoções, que podeis imaginar com mais facilidade do que eu posso descrever.
Artur entregou Gawaine à mãe, e ela retirou-se com ele para o acampamento, a
fim de cuidar do ferimento. Enquanto isso, nem Morgan nem Artur trocaram
qualquer palavra, pois os seus sentimentos eram profundos demais para serem
verbalizados.
Então Artur enviou um arauto até Lot, exigindo que este entregasse o castelo ao
meio-dia do dia seguinte. Mas acrescentou que, em reconhecimento à coragem e
à honra de Gawaine, não exigiria que os soldados de Lot depusessem as armas,
mas que os que quisessem poderiam se retirar com Lot, a quem era concedida
permissão para se retirar, ileso, para as ilhas Orkney, enquanto os que decidissem
ficar seriam bem-vindos no exército, prestando obediência a ele, Artur, como rei
da Britânia e, por direito, ainda que não o fosse na realidade, imperador romano.
Passaram-se dois dias antes de Lot aceitar, com amarga relutância, os termos
que Artur lhe oferecia. Nesses dois dias ele vira os seus cavaleiros desertarem-
no, primeiro em gotas de um ou dois, e depois às enxurradas. Entre os que
atravessaram para o acampamento de Artur estavam os irmãos mais jovens de
Gawaine, Agravaine e Gaheris, pois ambos preferiam os abraços da mãe aos
chutes e maldições do pai. E assim, Lot, curtindo o seu ódio, consciente de que se
desgraçara perante os olhos de todos os legítimos cavaleiros, pois poucos
duvidavam de que fora a covardia que o afastara do campo de batalha, partiu
para as ilhas Orkney, varridas pelo vento, onde construíra para si um palácio com
muitos aposentos subterrâneos, nos quais arrastou a sua amarga existência
enquanto os seus servidores perseguiam os nativos de Orkney, camponeses e
pescadores dedicados ao trabalho.
Na noite em que Lot partiu, Artur realizou um banquete no Grande Salão do
castelo. Instalou Morgan le Fay à sua direita e Gawaine à sua esquerda; e era
difícil dizer o que o agradava mais ou o que lhe dava maior prazer. Em uma
extremidade da longa mesa alta, Cal observava tudo o que se passava com um
sorriso, às vezes espantado ao pensar como ele e Artur haviam chegado tão
longe, os perigos que haviam enfrentado, a dor que haviam sofrido, as
humilhações que haviam suportado, e agora, ao olhar Artur, amoroso e quase
exultante, ele próprio, Cal, resplandecia de felicidade.
— Vós também deveis ser um homem feliz — disse um jovem cavaleiro que
respeitava a devoção de Cal para com o rei e que, diferente de tantos outros, não
caçoava dele nem o desprezava.
— É verdade — replicou Cal, erguendo uma sobrancelha —, e espero que isso
dure.
Depois de comerem salmão do prateado rio Tay, pernis de veado, cordeiros das
colinas, lombos de boi, pastelões recheados de miolo, molejas com cogumelos,
queijos de leite de ovelha, geléias, creme de leite batido com vinho, açúcar e
canela, tortas de maçãs, cremes de talos de ruibarbo e outros quitutes, e de
beberem grande quantidade de vinho do Reno e clarete, cerveja, hidromel e uma
espécie de fermentado feito de urzes, para aqueles cujo paladar preferia as
bebidas nativas, Artur pediu silêncio.
A conversa morreu, os menestréis e os músicos, no seu balcão, pousaram os
instrumentos, e então Artur falou, elogiando a todos os que lutaram com ele nas
guerras, prometeu esquecer o passado aos que lutaram contra ele mas que agora
aderiam ao seu exército e depois, voltando-se para onde Gawaine estava sentado,
pousou a mão sobre o ombro deste e saudou-o como o mais bravo dos
adversários, jurando que daquele dia em diante seriam como irmãos; e declarou
ainda que era um prazer todo especial, naquela noite, conferir a Gawaine a
honraria de cavaleiro.
— Tenho em mente criar uma nova ordem de cavaleiros que serão, se Deus
quiser, a mais admirável irmandade de nobres cavaleiros que o mundo já viu.
Ainda não decidi que forma essa ordem terá. Mas uma coisa é certa:
Gawaine provou o seu valor, e assim eu o consagro cavaleiro e o nomeio
primeiro e mais destacado membro dessa nova ordem.
E assim dizendo tomou a espada Excalibur e pousou-a gentilmente no ombro de
Gawaine, que corou e sorriu, parecendo envergonhado, surpreso e alegre.
XIII

Agora Artur estabelecera a sua autoridade sobre romanos e britânicos, cujos reis,
insignificantes, apressaram-se a reconhecer-lhe a supremacia e a prestar-lhe
homenagens. Recebeu a todos com cortesia, mas investigou a maneira como
governavam, elogiando os que comandavam o povo com justiça e bondade,
admoestando ou castigando os que abusavam da autoridade,
— Os vossos súditos são as vossas ovelhas e deveis cuidar deles com o mesmo
zelo com que um pastor zela o seu rebanho — disse.
Todavia, Artur ainda não era rei de toda a Britânia, pois no sul e no leste do país
os saxões haviam se estabelecido. Possuíam os seus próprios reis e chamavam os
britânicos sob seu domínio de “galeses”, que no idioma saxão significa
“estrangeiro”. Naturalmente, os britânicos que habitavam aquelas terras antes da
chegada dos saxões não se consideravam estrangeiros, muito pelo contrário; mas
eram um povo submisso, muitos, na verdade, pouco superiores a escravos, e não
tinham outra opção.
Ainda mais importante, os reis saxões ambicionavam estender os seus domínios e
conquistar novos territórios, e não podem ser culpados por isso, uma vez que
essas ambições são naturais. Davam pouca importância a Vortigern e Uther
Pendragon e se aliaram a Lot, pois o desafio deste a Artur garantia (pensavam
eles) que os britânicos continuassem fracos e divididos, e portanto presa fácil.
Então agora ficaram espantados ao ver o triunfo de Artur.
Vós, meu príncipe, sois germano pelo lado paterno, e no nosso mundo moderno
podemos constatar as muitas virtudes desse grande povo. Não preciso enumerá-
las. Na verdade, se aprendi corretamente, na Roma imperial muitos percebiam
nas tribos germanas que viviam do outro lado do Reno, além dos limites do
Império, admiráveis qualidades varonis que haviam desaparecido, ou estavam
desaparecendo, na própria Roma. Essas pessoas aprovavam o amor dos
germanos pela liberdade. O poder dos seus reis não era arbitrário nem absoluto;
relatava-se que as tribos tomavam as decisões coletivamente, em assembléias
populares, e os reis precisavam atender às deliberações dos seus conselheiros. Os
romanos do Império (aqueles que no fundo do coração permaneciam
republicanos) contrastavam a decadência de Roma, o amor pela luxúria e a
efeminação dos romanos, com o vigor e a virilidade dos germanos, que evitavam
todas as exibições extravagantes; e um grande historiador, cuja obra infelizmente
não tive a oportunidade de ler, apesar de excertos estarem preservados em livros
de outros autores, advertiu os contemporâneos de que uma Germânia livre
representava maior ameaça à Roma do que os reinos despóticos e o Império do
Oriente. E assim, nos séculos em que as tribos começaram a se deslocar, época
que em alemão é chamada de Volkervanderung, foram os bravos povos da
Germânia que se precipitaram sobre as defesas da fronteira, não para destruí-las
mas esperando ocupar o Império e compartilhar das suas benesses.
Algumas dessas tribos, como escrevi antes, invadiram a Britânia e fizeram um
acordo com Vortigern a quem, no entanto, desprezavam. Estabeleceram-se no
sul e no leste da ilha com tanta segurança que acabaram dando nome à metade
sul, hoje denominada Inglaterra, ou Terra dos Anglos. Mas à época os romanos e
os bretões que ainda governavam o resto da ilha consideraram esses germanos
como invasores e opressores, e ainda esperavam expulsá-los de volta aos seus
navios e ao mar cruel e inóspito.
Esses germanos, indiferentemente chamados de anglos ou saxões, ainda eram
considerados pelos britânicos como bárbaros aterrorizadores, embora tivessem
muitas virtudes, como registrou aquele historiador romano. Eram vistos com
medo e desdém. Os germanos eram incultos. Eram pagãos, cultuavam deuses
estranhos e guerreiros. Eram rudes no vestir e no falar. Dizia-se que tinham
hábitos obscenos. Violentavam mulheres e rapazes britânicos. Escravizavam os
prisioneiros, quando não os matavam, e assim por diante. Um povo sempre
formula tais acusações àqueles a quem se teme. Finalmente, e o pior de tudo, é
que muitos bretões acreditavam que os germanos não podiam ser derrotados em
batalha. Era essa a opinião de Vortigern. Arranhando o rosto feio (pois sofria de
uma erupção cutânea irritante), ele costumava dizer:
— Não há escolha, a não ser a colaboração. Apenas colaborando com os
germanos poderemos esperar moderar-lhes o comportamento e construir uma
paz duradoura.
Não eram palavras insensatas. Pareciam insensatas apenas porque Vortigern
temia os germanos. Porém Artur não tinha esse temor e disse:
— Os saxões se estabeleceram aqui. Talvez seja impossível expulsá-los da ilha.
Na verdade, talvez não seja desejável. Li que durante muitos anos os germanos
serviram no exército imperial e foram defensores leais do Império. O mesmo
pode acontecer aqui na Britânia. Mas é preciso primeiro subjugar os saxões,
deter-lhes a carreira de conquistadores e fazer com que os seus reis reconheçam
a nossa autoridade. Pretendo viver em paz com os saxões, mas para termos paz
precisamos antes ter guerra. Só derrotando-os, e derrotando-os cabalmente,
poderemos persuadi-los das virtudes da paz. Vós me dizeis que Vortigern falou
em colaboração, mas a sua perspectiva era falsa. Não pode haver boa
colaboração com um invasor determinado a conquistar. Estamos prontos para
conviver com os saxões em feliz colaboração, mas só quando eles aprenderem a
se submeter ao nosso regime imperial.
— Achas que eu os convenci? — perguntou a Cal quando ficaram a sós.
— Não sei, talvez devesses ter continuado a carreira de ator. Foi um belo e
imponente discurso teatral. Mas tu mesmo acreditaste em uma palavra do que
disseste?
— Até certo ponto — respondeu Artur. — Não acho que possamos expulsar os
saxões da Britânia. Por tudo o que ouvi dizer, eles hoje estão bem estabelecidos.
Mas se conseguirmos derrotá-los muitas vezes, então acho que talvez aceitem as
condições que lhes oferecerei.
— Mas aí há um grande “se” — disse Cal —, e posso te afirmar que aquela dupla
preciosa, Kay e Bedivere, estavam ambos com a mesma cara de felicidade de
alguém que tivesse engolido um sapo.
— Não podes culpá-los — replicou Artur —, pois ambos estiveram em muitas
batalhas contra os saxões e perderam todas. No entanto, eu preciso consultá-los.
Eles sabem como os saxões lutam, e eu não.
— Furiosos como estão, serão capazes de te dar menos incentivo do que um urso
com dor de cabeça.
Mas Artur perseverou. Como já deveis ter constatado, ele possuía muitas
qualidades nobres. Nesse estágio da vida era um cavaleiro acima de censura ou
medo, o padrão perfeito do que passaria a ser chamado de “cavalheirismo”. Mas
a perseverança não era a menor das suas virtudes, embora seja uma virtude que
o mundo valorize muito pouco.
Existem dois tipos de coragem, meu príncipe. Existe a coragem que brilha nos
momentos de perigo, a coragem que aparece sem refletir, como simples
resposta natural à urgência do momento. E embora eu diga “simples resposta
natural”, não devereis pensar que eu queira diminuir esse tipo de coragem, pois
falta a muitos homens, e o homem que é bravo na hora do perigo deve ser
merecidamente admirado.
Mas o outro tipo de coragem é ainda mais raro. É a coragem fria, que permite ao
homem encarar a realidade, contemplar a adversidade e não se intimidar. E uma
coragem obstinada, criteriosa, que permite ao homem persistir quando tudo à
volta desmorona. E essa coragem Artur também possuía.
A guerra contra os saxões deu errado desde o início. Os cavaleiros eram bravos,
extremamente bravos, mas desperdiçavam força e coragem em ataques inúteis
contra guerreiros saxões portando machados, protegidos por uma barreira de
escudos. Batalhavam contra essa barreira como o mar golpeando a face de um
penhasco. E logo muitos desanimaram. Sir Kay e Sir Bedivere voltaram a
procurar Artur e insistiram para que ele cedesse mais terras aos saxões e se
submetesse, chegando a um acordo enquanto era possível; caso contrário, diziam
eles, tudo estaria perdido, a Britânia seria definitivamente conquistada e “nós
seremos homens mortos”.
Repetiram isso no conselho, e muitos cavaleiros baixaram a cabeça,
envergonhados, acreditando que Kay e
Bedivere falavam a verdade. (
— Sejamos práticos — disse Kay —, fomos derrotados em quatro grandes
batalhas. A nossa força está desgastada. A cada dia somos menos. Se perdermos
outra batalha teremos perdido tudo, pois não restará exército algum e os saxões
poderão ir e vir onde lhes aprouver, estabelecer-se onde lhes aprouver e
escravizar os britânicos como lhes aprouver. E loucura continuarmos a luta.
Vamos fazer a paz enquanto ainda há tempo, enquanto podemos firmar um
tratado que nos permita viver como homens livres, em uma zona não-ocupada.
Sentou-se e por um instante houve silêncio. Todos os olhos estavam fixados no rei
e este parecia não querer enfrentá-los, pois olhava para além da assembléia, em
direção às colinas, como se avaliasse a possibilidade de se retirar para lá.
Então Gawaine pôs-se de pé. Estava enrubescido e parecia nervoso ao dizer:
— Sou apenas um jovem cavaleiro e não tenho experiência de falar em público.
Portanto, peço-vos que me perdoeis se o que digo parecer confuso e
despreparado. Mas, talvez por ser jovem, vejo as coisas de modo diferente e o
que acabamos de ouvir me parece um chocante derrotismo. Perdemos quatro
batalhas, e isso é ruim. Mas não perdemos território algum, não perdemos a
guerra e, acho que também posso falar por muitos dos jovens cavaleiros aqui
presentes, não perdemos o ânimo. Estamos lutando pela liberdade e embora eu
não seja um erudito, li que a liberdade é algo nobre e que nenhum homem de
valor se entrega, a menos que entregue a vida. Portanto, quero dizer que... quero
dizer que desistir da luta agora equivale a entregarmos o nosso direito inato. E isso
é errado.
Muitos dos jovens cavaleiros se animaram, mas Sir Bedivere os fez calar,
batendo com a parte achatada da espada sobre a mesa.
— O que acabamos de ouvir é puro sentimentalismo — disse. — Os fatos são os
que o meu companheiro Sir
Kay expôs. Fomos derrotados, e a nossa única saída é salvar o que pudermos.
Sempre afirmei que esta guerra era um equívoco e não fico satisfeito em
constatar que tinha razão.
Mais uma vez todos os olhos se voltaram para Artur e o que viram surpreendeu o
grupo, pois Artur sorria. Era um sorriso lento que lhe iluminava o rosto, e quando
falou a voz saiu suave:
— Tudo o que foi dito tem uma certa razão. Ninguém falou com desonestidade.
Mas se olhardes vereis que está chovendo, chovendo muito forte. Ora, eu
consultei sábios que observam o tempo e eles me disseram que as chuvas de
outono durarão semanas, impossibilitando os combates. E depois virá o inverno.
Então, temos o tempo a nosso favor. Este é um dos aspectos e o outro é o
seguinte: lutamos de modo errado. E eu me responsabilizo por isso. Mas podemos
mudar de tática, e teremos semanas e até meses para aprender novas, que
empregaremos quando retomarmos a guerra na primavera. E isso é tudo.
XIV

— Eu gostaria de saber onde Merlim se enfiou — disse Artur.


Cal torceu o nariz.
— Preciso dele — insistiu Artur. — Sinto falta dos seus conselhos.
— Não é de Merlim que estás sentido falta, andas suspirando é por Peredur. Eu te
ouvi uma noite dessas. Não sei por quê. Há muitos rapazes belos que ficariam
felizes em ser companheiros de cama do rei, alguns mais belos do que Peredur.
Por exemplo, o jovem Geraint. Eu o vi te lançar olhares compridos, e de fato
tem pernas muito bem torneadas e braços bonitos e roliços.
— Pára de tentar me irritar, Cal. Não é de Peredur que sinto falta. Já superei isso.
Em todo caso, sabes perfeitamente que durmo com Morgan le Fay, e ela não me
agradeceria se... não importa. Quanto a Geraint, bem, se tu o admiras tanto...
Mandei procurar Merlim e os meus mensageiros voltaram dizendo que não o
encontraram.
— Então para que tu o queres? Por tudo o que me contaste, metade das vezes o
seu conselho te levou a problemas... Não precisas de chefia. E se o que buscas é
um aconselhamento militar, então deixa-me te lembrar que disseste ao conselho
que sabias como derrotar os demônios saxões...
— Eles não são demônios, mas sim homens. Se fossem de fato demônios, eu
estaria menos confiante.
— Confiante? Agora estamos confiantes? Então por que precisas de Merlim?
— Para me tranqüilizar.
— Tranqüilizar? E essa agora!
Foram conversas assim que Artur e Cal mantiveram naquele inverno. Brigavam
como um velho casal de marido e mulher, o que de fato eram, em certo sentido,
por terem passado tantas situações juntos. Na corte, muitos desprezavam Cal,
muitos se ressentiam da sua intimidade com o rei e a interpretavam mal; alguns
procuravam ser amigos de Cal porque viam nele um meio de obter favores de
Artur, e outros não conseguiam entender por que Artur confiava tanto no amigo.
Mas a resposta era simples. Reis e imperadores, meu príncipe, estão sempre
cercados de bajuladores, que lhes dizem o que supõem que eles queiram ouvir,
ou aquilo que lhes será agradável. O rei sábio reconhece que isso é perigoso.
Lembra-se da resposta que um filósofo deu a um imperador romano que lhe
perguntou qual o veneno mais mortífero: “Incenso” respondeu o filósofo. Artur
conhecia essa história e sabia que Cal jamais o incensaria. Além disso, Cal era a
única pessoa com quem ele podia ser novamente rapaz e fazer piadas de igual
para igual. E sabia que Cal o amava e jamais o trairia. A propósito, também sabia
que Cal nunca tentaria seduzir o jovem Geraint, como zombeteiramente sugerira,
mas que se contentaria em amá-lo e admirá-lo à distância. (De fato, havia muito
a admirar, pois o rapaz tinha um rosto de anjo, olhos de um azul profundo,
abundantes cachos dourados e um sorriso semelhante ao sol de manhã de
primavera.) Os sofrimentos de Cal no castelo do velho Cara de Pedra causaram-
lhe horror à carne. Artur lamentava, mas ao mesmo tempo entendia que isso
tornava Cal ainda mais confiável.
Contudo, Artur se atormentava por não conseguir encontrar Merlim. Não que lhe
faltasse confiança nos próprios planos, nem que achasse falsa a sua análise da
maneira pela qual os saxões deviam ser combatidos. Na verdade, não saberia
dizer por que precisava de Merlim, mas tinha certeza de precisar.
Quando mencionou essa necessidade para Morgan le Fay ela o censurou, pois
não conseguia perdoar Merlim por tê-la entregue ao rei Lot. Além disso, embora
à época ela tivesse ficado feliz em entregar o pequeno Mordred aos cuidados de
Merlim, agora, livre de Lot e unida a Artur, lamentava isso.
Não deveis supor, meu príncipe, que essas questões dominassem a mente de
Artur naquele inverno. Ao contrário, ele estava imerso na tarefa de treinar
cavaleiros, soldados e arqueiros na nova maneira de guerrear que desenvolvera.
Essa maneira podia ser resumida, dizia ele, em uma palavra: mobilidade.
— Experimentamos a força da defesa dos saxões, quando os enfrentamos em
campo aberto. A sua barreira de escudos e os seus guerreiros portando machados
foram demais para nós, em todos os combates. Assim, quando retomarmos a
guerra na primavera, fingiremos uma retirada. Atrairemos os saxões para um
local que escolhermos, de onde os nossos arqueiros lançarão saraivadas de
flechas para desbaratá-los e enfraquecer-lhes a barreira de escudos. Aí então os
nossos cavaleiros atacarão e os soldados darão continuidade ao ataque a pé.
E assim a luta se revelou bem-sucedida. Após uma seqüência de combates, os
saxões foram vencidos. A sua força diminuiu e os ânimos começaram a se
exaurir, enchendo-os de medo. Afinal foram atraídos para um vale profundo,
cercado de colinas, parecendo um dos grandes anfiteatros construídos pelos
romanos.
Era noite de lua cheia, clara por ser o apogeu do verão, próximo ao dia do
solstício. Artur deslocava-se pelo acampamento iluminado pelo luar, elogiando e
encorajando os homens, enquanto mais abaixo os saxões se reuniam em torno
das fogueiras do acampamento e alguns, já bêbados, erguiam as vozes cantando,
como fazem os homens tentando repelir o desespero.
Na mesma noite, Artur também enviou uma tropa de cavaleiros comandados por
Gawaine para se posicionarem no topo do vale, por trás dos saxões, para assim
barrar-lhes o caminho da retirada. E os arqueiros estacionaram na orla da
floresta que revestia as colinas, acima do acampamento dos saxões. Depois Artur
levou os soldados por uma trilha que subia pelo vale, enquanto ele próprio e o
grupo principal de cavaleiros comandavam a linha de ataque aos saxões.
Portanto, quando o rei saxão, cujo nome era Ethelbert, homem de grande
coragem comprovada em muitas guerras, acordou na manhã seguinte, percebeu
o medo percorrer o seu exército como um boato corre em uma grande cidade.
Enviou um grupo de homens sob o comando de um dos seus filhos, cujo nome se
perdeu ou pelo menos me escapa (pois, como sabeis, não finjo um conhecimento
que não possuo), para achar uma saída para a armadilha em que haviam sido
apanhados; e antes que o sol atingisse o alto do céu, ouviu-se o ruído da batalha; e
depois silêncio, e o filho de Ethelbert e seus homens com machados não
retornaram. Pois, na verdade, Gawaine se precipitara sobre eles que,
descontrolados pelo medo, quebraram a formação em fileiras, desobedecendo
ao filho do rei. Assim muitos morreram, o filho do rei foi feito prisioneiro, com o
que não teria consentido, por ser corajoso, se não lhe cortassem o tendão do
jarrete, deixando-o incapacitado. O cavalheiresco Gawaine ordenou que lhe
tratassem os ferimentos, o que efetivamente foi feito porém inutilmente, pois a
perna apodreceu, causando a morte do jovem.
A medida que a manhã avançava, os saxões lançaram-se à batalha para resistir
ao ataque. Agiram corajosamente, porém abatidos pelo cansaço e pela febre.
Ora, o arcebispo, cujo nome era Eugênio, foi procurar Artur. Aderira
recentemente ao exército quando verificou que a guerra ia bem.
— O Senhor entregou os pagãos nas nossas mãos — disse. — Portanto, assim
como o profeta Samuel ordenou ao rei Saul, eu vos ordeno que desçais à planície
para punir os amalecitas, e que não deixeis sobrevivente algum, pois fizeram mal
aos fiéis, queimaram e destruíram muitas igrejas e mosteiros.
Artur olhou-o e viu diante de si um homem manei-roso, cujo rosto vermelho e
redondo suava, talvez devido ao calor do dia, mas também de zelo sagrado. Artur
sorriu e disse:
— Será mesmo esse o desejo do Senhor a quem servis? Que matemos aqueles
que estão à nossa mercê? No entanto, aqueles homens lutarão até a morte, pois é
seu costume, e na batalha morrerão muitos nobres cavaleiros, soldados honestos,
pais de família. Eu conquistarei a glória; mulheres e crianças chorarão.
Assim falando Artur chamou dois escudeiros, Geraint e Agravaine, o segundo
filho de Morgan le Fay, além de
Cal, em quem confiava mais do que em todos os outros. E esporeando o cavalo
desceu a colina rumo ao exército dos saxões. Não carregava lança e desafivelara
a espada, entregando-a ao pajem encarregado de sua armadura; os dois
escudeiros fizeram o mesmo, enquanto Cal usava apenas túnica e calções, sem
cota de malha.
Então Artur aproximou-se do exército saxão que o observava, espantado.
Ao chegar bem perto gritou perguntando se alguém ali falava latim.
Um guerreiro grisalho, com o rosto marcado por cortes de espada, avançou das
fileiras.
— Quando jovem servi nas legiões. A minha espada brilha, mas o meu latim está
enferrujado. No entanto, eu vos compreendo e posso me fazer compreender —
falou.
Então Artur disse que desejava falar com o rei, o nobre Ethelbert, a quem
esperava que a mensagem fosse levada, e que os saxões debatessem se o rei
deveria atender ao pedido. Artur tranqüilizava o cavalo, como alguém que espera
o início de um dia de caça. Tinha a cabeça descoberta e todos puderam ver que
estava calmo como um lago profundo em dia sem vento. Um sorriso brincava
nos seus lábios. Ergueu os olhos para o céu, onde pairava um falcão.
Finalmente, as fileiras dos saxões partiram e o rei apareceu em companhia do
velho legionário e de cinco dos seus oficiais. Ao ver o rei, e sabendo que era ele,
Artur desmontou, entregou as rédeas do cavalo a Geraint e aproximou-se do rei
saxão, uma cabeça mais alto do que ele.
Mas Artur viu que o rei se mantinha com dificuldade e presumiu que estivesse
fraco de fome.
— Eu sou o rei Artur — disse. — Saudações.
Ethelbert olhou-o de cima abaixo e viu aquele rapaz esguio que lhe sorria como
se fosse um amigo ou camarada.
— No momento somos iguais — disse Artur. — Eu me coloquei sob o vosso
poder. Mas o vosso exército está condenado. Sei que ele está fraco devido à fome
e à febre, e que não podeis avançar nem bater em retirada.
Fez uma pausa e olhou para o velho legionário, para que este pudesse traduzir o
que dissera. Mas para sua surpresa, o próprio Ethelbert respondeu prontamente,
falando um latim que, embora gramaticalmente imperfeito, pois amputava as
terminações dos casos, era facilmente compreensível.
— O que dizeis é verdade, Artur. Estais em meu poder. Eu poderia vos matar
com um golpe da minha espada.
— Sim, é verdade — disse Artur, ainda sorrindo.
— E, de fato, o meu exército está enfraquecido. Porém quanto mais distante a
probabilidade da vitória, maior a bravura com que o meu povo costuma lutar. E
bom morrer como guerreiro.
— Mas é melhor viver na amizade.
Ethelbert ficou em silêncio. Olhou para trás, para o seu exército. Olhou para as
colinas, onde o exército dos romanos permanecia em posição de combate.
— É possível haver amizade entre saxões e romanos? — indagou.
— É sempre possível haver amizade entre homens de coragem — respondeu
Artur. Deu um passo adiante, colocou as mãos nos ombros de Ethelbert,
aproximou-se, e os dois reis se abraçaram. Por um momento Artur achou que
Ethelbert resistia mas depois relaxou, como alguém que se entrega ao destino. E
um grito de júbilo ergueu-se de ambos os exércitos, ecoando pelas colinas
circundantes.
Artur ouviu aquele grito de júbilo e afastou-se de Ethelbert, dizendo:
— Parece que os homens de coragem de ambos os exércitos deram a resposta à
vossa pergunta.
E então Artur propôs que firmassem um tratado e Ethelbert concordou. Naquela
noite jantaram juntos, embora o banquete fosse pobre devido à situação difícil do
combate, mas os homens de ambos os exércitos se misturaram e trocaram
lembranças e sinais de amizade. Alua se ergueu alto naquela noite de verão e
tudo ficou tranqüilo e em paz.
Na manhã seguinte, Artur e os seus conselheiros voltaram a se encontrar com
Ethelbert e com os seus principais nobres que, na língua dos saxões, eram
chamados de condes, para discutir os termos do tratado e a maneira pela qual
todos, romanos, bretões e saxões, conviveriam pacificamente daquele dia em
diante. Ethelbert reconheceu Artur como imperador de toda a Britânia e, por
direito, também de Roma, e jurou-lhe fidelidade. Além disso, concordaram em
que nas regiões da Britânia, onde os saxões haviam se estabelecido e construído
os seus lares, as leis de ambos, saxões e romanos, deveriam ser observadas e
obedecidas; e que Ethelbert governaria o seu próprio povo, mas Artur indicaria
um pro-cônsul para orientá-lo a governar romanos e bretões que ali vivessem.
Quando tudo isso foi combinado, todos ficaram satisfeitos menos o arcebispo
Eugênio, que censurou Artur e reprovou-o por firmar um tratado de paz com os
pagãos e por ter se recusado a exterminá-los.
— Vós vos esquecestes das palavras do Senhor, que declarou não ter vindo para
trazer a paz mas sim uma espada, e desafiastes as ordens do Senhor dos
Exércitos.
Na verdade, meu príncipe, o texto bíblico a que ele se referia é um obstáculo
para muitos, mas não deveis supor que Cristo tenha tido a intenção de trazer uma
espada e condenar os homens à guerra, e sim que ele simplesmente
compreendeu que essa seria a conseqüência dos seus ensinamentos, como
provam a situação do mundo e as batalhas contra o Infiel na Terra Santa.
E assim o arcebispo amaldiçoou Artur e lhe teria arrancado a coroa da cabeça
acusando-o de desobediência mas, ao ver o quanto Artur era amado, temeu agir.
Porém alimentou o seu ódio e acalentou-o no coração, com conseqüências que
oportunamente revelarei.
E assim, o nobre Ethelbert, profundamente comovido pela generosidade de
espírito que Artur demonstrara, aproximou-se dele e disse:
— Meu senhor e imperador, sou homem simples e não tenho jeito para discursos
floreados, mas o que fizemos foi bom. A amizade entre os povos é melhor do que
o conflito, embora sempre seja preferível a guerra à servidão. No entanto, sendo
a natureza humana como é, a amizade é frágil, e é bom unir os povos pelos
vínculos do amor. Ora, eu tenho uma filha, cujo nome é Guinevere, tão doce
quanto bela, e a sua beleza reluz como um campo de milho maduro em tarde de
verão. Eu gostaria que a tomásseis como vossa esposa, para que ela sirva para
nos manter unidos um ao outro e igualmente manter a união dos nossos povos.
Quando Artur ouviu essas palavras, compreendeu que eram sábias, mas ao
mesmo tempo faziam-no sofrer, pois pensou em Morgan le Fay, a quem amava
de verdade.
XV

Artur deitou-se de barriga para cima e jogou as pernas para o alto, enquanto
mastigava uma palha. Cal o observava, esperando o momento em que o amigo
decidisse falar, e sabendo que era inútil apressá-lo. O rei franziu o cenho e
parecia o rapaz que Cal encontrara no estábulo naquele terrível castelo. Afinal
Artur disse:
-— Por que será que exatamente quando tudo está indo bem...
— ...alguém morre e tu ficas na merda — completou Cal.
— Exatamente.
— Presta atenção, ouvi falar dessa tal Guinevere. O povo conta mentiras, é claro,
todas as princesas são bonitas. No entanto, se metade do que dizem for verdade...
bem, para quem gosta dessas coisas, e tu gostas... pelo menos agora, não é? Ela
parece ser aquilo que os cavalariços chamam de pedaço de mau caminho.
— Não é essa a questão — disse Artur, jogando fora a palha. — A vida era mais
fácil antes de eu me tornar rei. As vezes me pergunto se todos esses problemas
valem a pena.
— Acredito em ti, é claro.
— Não, não acreditas, mas ainda assim é verdade...
— Então está bem, vamos jogar fora tudo isso e pegar de novo a estrada, cantar
para conseguir o nosso jantar, como fazíamos antes.
— Não me tentes — disse Artur.
No dia seguinte Ethelbert mandou buscar a filha para que o imperador-rei
pudesse “inspecioná-la”.
(— Ele fala desse assunto como se estivesse tentando me vender um cavalo —
disse Artur. — Mas não importa, é um homem honrado, e sem dúvida o
casamento com a sua filha ajudaria a promover a amizade entre nós e os saxões,
e isso eu quero encorajar.
— Ah! Então é o dever que está te empurrando... — disse Cal.)
Na verdade, embora Cal caçoasse assim do rei, estava satisfeito com a
destituição de Morgan le Fay. Nela havia algo de estranho, pensava.
Guinevere chegou ao castelo de Camelot, acima do rio chamado de Tweed onde
Artur estava residindo, e maravilhou todos os homens com a sua beleza. Os
cabelos tinham a cor da cevada madura, os olhos azuis como centáureas azuis e a
boca generosa, embora alguns achassem o lábio inferior espesso demais; a pele
branca como a mais branca das rosas, os seios, maçãs perfeitas; as pernas,
apesar de ligeiramente curtas, eram agradavelmente roliças e carnudas; e o
andar era lento e gracioso como o de um gato. Em resumo, Guinevere era a
apoteose da beleza, de tal modo que a minha pobre pena não consegue
reproduzir. E verdade que alguns diziam que em repouso o seu rosto era vazio
como uma folha de papel, e Morgan le Fay sempre afirmaria que se
assemelhava a um scone.{4} Mas quanto a isso, duas coisas precisam ser ditas:
primeiro, que a beleza é mais desejável quando existe alguma imperfeição e, em
todo caso, quando Guinevere sorria, o sol emergindo por trás de uma nuvem não
era mais radioso; e em segundo lugar, Morgan le Fay era ciumenta, e nunca se
ouviu dizer que elogiasse a beleza de outra mulher.
Portanto, não é de admirar que quando Artur viu aquele monumento de
perfeição fosse tomado pelo desejo. Na verdade, apaixonou-se ao primeiro
olhar, e mais completamente porque da parte de Guinevere não havia intenção
de seduzir; ela parecia totalmente indiferente à impressão que lhe causara.
Cal achou que ela parecia aborrecida. “E provavelmente aborrecendo os outros
também”, mas guardou para si este pensamento.
Naquela noite, Artur disse:
— Se dependesse de mim, se eu pudesse consultar os meus próprios desejos,
então, por mais adorável que ela seja, eu mandaria Guinevere embora e
continuaria fiel a Morgan le Fay. Mas o meu destino é manter unidos os povos
desta ilha, pois é assim que eu posso prosseguir na restauração do Império de
Roma. Portanto, devo me submeter.
— Belo argumento! — disse Cal. — No entanto, não juro que vais convencer
Morgan do teu destino com a mesma facilidade com que te persuadiste.
A essa idéia, Artur gelou. Destemido nas batalhas, hesitava em dizer a Morgan o
que seria obrigado a fazer. Sentiu-se tentado a simplesmente mandá-la embora
com uma guarda armada, de volta, se necessário, para o marido Lot ou, como
alternativa, para alguma fortaleza segura. Mas estremeceu diante daquela cruel
covardia. E ainda assim hesitava. Talvez pudesse mandar Cal dizer a Morgan o
que ele, Artur, precisava fazer. Olhou para Cal e suspirou... mas isso também não
serviria.
Enquanto Artur se debatia com tais dúvidas, Morgan entrou no quarto. Ordenou a
Cal que saísse, ele obedeceu com certa ansiedade, embora se escondesse atrás
de uma cortina. Então ela voltou-se para Artur e com palavras que atingiram o
coração do rei como chicotadas na carne, falou o seguinte:
— Traidor e covarde! Acreditaste que poderias disfarçar as tuas intenções e me
descartar sem uma só palavra? Me pores de lado por aquele projeto de mulher,
aquela ordenhadora saxã! E será que nada pode te deter, te impedir dessa
traição, nem a lembrança das juras de amor que trocamos, nem mesmo a idéia
do que vai acontecer à tua Morgan le Fay, condenada ao abandono e à desonra?
Ou é de mim, de fato, que estás tentando fugir? Se assim for, então faz uma
pausa, pensa e te compadece. Olha agora para as lágrimas que derramo pois,
pobre tola que sou, falta-me qualquer argumento para te comover. Pensa na
nossa união, no casamento que aconteceria. Lembra-te de tudo o que abandonei
por te amar: o respeito devido a uma mulher casada e rainha. Foi por amor a ti
que deixei o meu marido, assim como Helena deixou o honesto Menelau por
amor a Paris, que se revelaria um adorável covarde. Pelo teu bem, eu me
permiti ser desonrada, estigmatizada como adúltera, condenada pelos sacerdotes!
Eu costumava te chamar de esposo. Agora tu me despachas para casar com
outra?! Os meus filhos lutaram por ti com lealdade. E é essa a recompensa que
recebem, verem a mãe rejeitada e desgraçada aos olhos do mundo?!
Morgan continuou nesse tom pelo tempo que um homem leva para percorrer a
extensão da beira-mar de Palermo e só parou quando os soluços que não
conseguiu conter afogaram-lhe as palavras.
Artur ouviu tudo o que ela disse e esforçou-se para dominar a agonia que aquelas
palavras e censuras lhe despertavam no coração terno. E assim, afinal, em voz
doce e baixa, replicou:
— Morgan, rainha de Orkney e a mais adorável das mulheres, jamais negarei
que tenho uma profunda dívida para contigo, pela tua imensa bondade e pelas
horas de amor de que desfrutamos. Enquanto houver um sopro no meu corpo e
eu dispuser da faculdade da memória, jamais me cansarei de lembrar o que
representaste para mim. Mas não vou continuar com estes protestos, e sim falar
dos fatos. Não tencionava te ocultar o que preciso fazer. Nem te banir de Camelot
sem uma explicação. Por favor, peço-te, não imagines isso. Se o meu destino
tivesse me permitido guiar a minha vida como eu desejaria, e resolver os meus
problemas segundo a minha própria preferência, eu escolheria vivermos, juntos
e nos amarmos até o fim dos tempos. Mas isso não pode ser. Estou encarregado
de uma grande missão: restaurar o Império. Sempre que a noite oculta a terra
com a sua sombra orvalhada, sempre que as estrelas flamejantes brilham nos
céus, então o espírito ansioso do meu avô, o grande Marcos, paira sobre mim em
sonho e me convoca para essa missão. E agora um espírito que me parece ser o
mensageiro do Todo Poderoso, ou seja, um anjo, um dos mensageiros celestiais,
postou-se diante de mim, voando ligeiro pelo vácuo, para me transmitir a ordem
divina. Portanto, interrompe o teu desalento e o meu também com as tuas
alegações, que serão inúteis. Casar com Guinevere não é escolha minha.
Ao ouvir esse discurso, Morgan, de fato, interrompeu os soluços e, soltando uma
selvagem gargalhada de escárnio, gritou:
Com essas palavras Morgan interrompeu-se bruscamente e retirou-se às pressas,
aprisionada entre o sofrimento e a raiva; e deixou Artur infeliz, ansioso e
hesitante, mas agora irrevogavelmente preso ao curso do seu destino.
XVI

E assim, com muita raiva, Morgan le Fay deixou a corte e muitos consideraram
Artur culpado por tê-la enganado. No entanto, são esses os caminhos do mundo.
Os homens sempre enganarão as mulheres e não há remédio. Mas antes de
partir, ela enviou o filho Gawaine até Artur, não para interceder a seu favor, mas
sim para repetir os juramentos e ameaças de vingança.
Gawaine estava muito embaraçado, pois amava a mãe e também Artur, a quem
considerava o maior dos reis e a quem prestava lealdade absoluta. Então disse o
que precisava dizer, como a mãe lhe recomendara, e depois chorou, por estar de
coração dividido. Artur não o censurou por trazer a mensagem materna mas, ao
contrário, confortou-o.
Gawaine enxugou as lágrimas e disse: — Da minha parte, entendo que agistes
desse modo por necessidade e peço-vos apenas que não lamenteis, e que essa
princesa dos saxões se mostre boa esposa. Mas não consigo acreditar que ela vos
ame como a minha mãe vos amou, nem que vos será fiel como vós, por força
das circunstâncias, não fostes fiel à minha mãe.
Artur agradeceu-lhe a honestidade e prometeu não esquecer a coragem
demonstrada por Gawaine ao falar assim. Enquanto isso, Gawaine decidiu servir
fielmente a Artur até o fim da vida e não se relacionar com mulheres (embora
guardasse isso para si mesmo), por ter aprendido que o amor traz mais angústia
do que felicidade. Foi devido a essa resolução, que no entanto as circunstâncias
determinariam que ele nem sempre conseguisse manter, que anos depois muitos
considerassem Gawaine um grosseirão; de fato, ele costumava dizer muitas
vezes que o amor era uma armadilha do Diabo para privar do juízo homens e
mulheres e assim colocá-los sob o seu poder. Alguns o acusavam de cinismo. O
apóstolo Paulo escreveu que era melhor casar do que arder, mas Gawaine não
concordava.
Quanto a Morgan le Fay, recusou-se a voltar para o marido, o rei Lot, mas
retirou-se para um castelo nas montanhas do norte com o seu filho menor,
Gareth, e ali dedicou-se aos estudos.
Também enviou mensageiros para procurarem Merlim, pois o considerava
responsável pela sua infelicidade. Em determinado momento ele foi visitá-la
numa tarde de outono, depois do pôr-do-sol, naquela meia-escuridão que é a luz
da coruja.
Morgan acusou-o de ser o autor dos seus infortúnios, dizendo:
— A minha vida tem sido desgraçada desde o dia em que me tiraste do santuário
do convento onde eu fui feliz.
Merlim disse:
— Não foi por minha vontade que seduziste Artur, que é teu meio-irmão por ser
filho do teu pai. Se eu tivesse previsto, teria invocado o grande vento do mundo
para vos manter separados. Porém só tarde demais dispus desse conhecimento, e
tudo o que pude fazer foi retirar o teu filho Mordred que é, como sabes e jamais
confessaste, filho de Artur, e levá-lo para educá-lo ignorando a sua
hereditariedade.
Quando ele disse isso, Morgan le Fay ficou pálida como a mão gelada da morte.
A princípio, negou a verdade do que Merlim dissera e gritou que ele inventara
aquela trama para macular a lembrança do seu amor por Artur, mas Merlim
apresentou-lhe as provas e então ela chorou, sabendo que não mais poderia haver
reconciliação. E depois chorou lágrimas amargas como erva venenosa e
amaldiçoou Merlim acusando-o de ser o verdadeiro autor de todos os seus
infortúnios.
Quando Morgan fez isso o galo cantou três vezes, embora a penumbra fosse do
entardecer e não da aurora. A escuridão caiu e o quarto esfriou. Por muito tempo
continuaram ali, calados. Merlim estava apreensivo e não conseguiu achar
palavras para responder a Morgan. Afinal ela falou:
— Vi no espelho do futuro o que acontecerá. A mulher por quem ele me rejeitou
o trairá e fará dele corno e objeto de caçoada. E isso também é obra vossa,
Merlim.
Em seguida chamou os guardas e mandou que levassem Merlim e o atassem
fortemente, carregando-o para a masmorra nos porões do castelo e deu ordens
para inquiri-lo a fundo até descobrirem o paradeiro de Mordred, e que depois
fossem buscá-lo. Isso foi feito, Merlim ficou acorrentado e preso a um pilar. E
com o passar do tempo perdeu as faculdades mentais e uivava como cão
abandonado.
♦♦♦♦♦♦♦♦♦♦♦♦

LIVRO III
♦♦♦♦♦♦♦♦♦♦♦♦
I

Virgílio, o maior de todos os poetas, mestre dos que conhecem os mais


encantadores poemas, anunciou na “4a. Écloga” o retorno de uma Época Áurea
e declarou na Eneida que no Lácio essa época áurea seria estabelecida por César
Augusto, filho de um deus, nos campos antes pertencentes ao reino de Saturno.
Na verdade, meu príncipe, os homens rememoram um tempo, real ou
imaginário, em que tudo era paz e abundância, e cujo retorno esperam
ansiosamente. Mas há apenas uns poucos momentos, anos fugazes, em que esse
anseio se traduz em realidade, parecendo que o Éden foi reconquistado. Na
Britânia esse tempo foi inaugurado por ocasião do reinado de Artur.
A magnanimidade de Artur conquistara os saxões, que a espada não conseguira
subjugar. A amizade floresceu com a paz. O casamento de Artur com Guinevere
reconciliou romanos e bretões com os germanos que haviam invadido a ilha e
persuadiu os recém-chegados a usarem as suas espadas largas como arados e as
suas lanças como podadeiras. A lei e a não-violência governavam a todos, com
Artur e os seus juízes aplicando imparcialmente a justiça. Os homens que
haviam desistido de aproveitar os frutos da sua labuta agora armazenavam as
colheitas sem medo de pilhagem, nem precisavam de guardas armados para lhes
vigiar rebanhos e manadas. Em resumo, quem teve sorte suficiente para ser
súdito de Artur achou que havia trocado o pior pelo melhor dos tempos.
Tudo o que eu digo está bem comprovado por poetas e cronistas. Mas não faz
parte da natureza do pecador se contentar com o que é bom; ao contrário, muitos
homens são impulsionados a buscar o que consideram melhor, o que, na
realidade, interpretam como sendo o estabelecimento da própria superioridade. E
foi o que aconteceu então.
Artur estava passando o Natal em Londres, oferecendo um banquete na grande
torre cujo primeiro construtor fora Júlio César. Veio gente de todos os seus
domínios para homenageá-lo; de toda a Britânia, desde o extremo norte da
Escócia até onde a terra termina no oceano cinza, a oeste. Vieram da Irlanda e
da Islândia; e da Gália, que hoje é a França. Sete reis vieram homenagear Artur,
e muitos filhos de reis e cavaleiros nobres. Havia condes saxões e chevaliers da
Bretanha. De fato, jamais se vira uma reunião de tantos homens valorosos. A
comida era abundante e o vinho fluía copioso como chuva de outono. As mesas
estavam cobertas de tigelas de ouro e os menestréis cantavam feitos heróicos.
Então Artur retirou-se para o quarto com a rainha Guinevere. Deitaram-se e
fizeram amor, pois naquela época não se cansavam de trocar beijos e deleitar os
corpos em profundo prazer. O que era perfeitamente natural, embora sempre
haja sacerdotes, homens mesquinhos, prontos a condenar todos os prazeres
carnais. Nesse contexto, permiti-me afirmar que, embora a castidade
recomendada pela Igreja possa obter alguma bênção espiritual, na minha opinião
é errado declarar, como São Paulo, que os nossos membros têm um poder que
nos aprisiona e que se dedicar à carne significa a morte. Pois isso não é a
experiência comum aos homens. Nem tampouco às mulheres. Portanto, na
minha opinião, era natural que Artur e Guinevere extraíssem tanto deleite do ato
do amor e que na paixão mútua cada qual desse tanto quanto recebia. E, em todo
caso, como poderia ser diferente, se ambos eram jovens, belos e vigorosos?
No entanto, aconteceu que naquela ocasião o repentino ardor que os fez se
retirarem do banquete teve más conseqüências. Irrompeu uma briga na ausência
do rei. Não sei como começou. Há muitas versões diferentes e nenhuma
confiável. Alguns dizem que eclodiu por acaso. Alguns dos cavaleiros mais
jovens se divertiam arremessando fatias de pão. Em seguida voaram cálices de
vinho, um dos quais atingiu o rosto de um rapaz, que se enfureceu. (Diz-se que
era um cavaleiro vênedo, do extremo leste da Germânia, porém se era ou não,
mais uma vez não posso afirmar.) Em todo caso, esse jovem cavaleiro, ou talvez
outro, se enfureceu, pegou um trinchante e enfiou-o no pescoço do cavaleiro que,
pensava ele, havia arremessado o cálice no seu rosto. Este cavaleiro tinha um
irmão, ou talvez um amigo, que apanhou outra faca e atacou o agressor. Logo se
formou uma confusão geral, um tumulto. Mesas foram derrubadas; cavaleiros
lutaram e se estatelaram no chão. Houve muita gritaria e barulho, imprecações e
gemidos de dor. O sangue se misturou ao vinho derramado. Jamais se viu
tamanha balbúrdia. Comparada com aquela cena, uma batalha campal seria
ordeira.
O barulho da luta chegou até o quarto de Artur. Ele pulou de cima de Guinevere,
ajustou depressa a roupa e desceu correndo a escadaria em espiral e irrompeu
no salão. Pulou para cima de uma das poucas mesas ainda de pé e, tomando o
clarim de um dos músicos, soprou-o com força. Em seguida gritou:
— Sentai-vos, todos vós, imediatamente, ou perdereis as vossas vidas! Sentai-vos,
sob pena de morte!
A autoridade de Artur era tamanha que o tumulto cessou. Os homens olhavam
em volta, espantados com a confusão que haviam criado. Alguns envergonhados,
outros com medo, e outros ainda olhando fixamente, desafiadores. Artur ordenou
que os feridos fossem tratados. Depois mandou que todos se retirassem para os
quartos ou para os alojamentos na cidade e prometeu que a causa da violência
seria investigada na manhã seguinte.
Quando tudo se acalmou e o salão ficou deserto, à exceção dos serventes
ocupados em limpar a confusão, Artur puxou Cal para um lado e perguntou-lhe
se sabia como começara a luta.
Cal disse:
— O teu palpite é tão bom quanto o meu, pois se estavas ausente em carne,
ocupado com Guinevere, eu estava ausente em espírito. Não direi que estava
dormindo pois o barulho dos cavaleiros, todos gritando no maior volume enquanto
gabavam as suas proezas e importâncias, teria tornado o sono impossível. Mas
talvez eu tenha fechado os olhos porque estava chateado com a conversa que me
cercava. Como sabes, esse tipo de grande banquete não me agrada e a conversa
sempre se resume a gabolices e declarações vãs, ou desafios e zombarias, que
parecem ser a única espécie de conversa de que os teus cavaleiros são capazes, o
que me agrada tanto quanto tagarelice de aldeãs em torno de uma bomba d’água.
Na verdade, é menos agradável. Portanto não sei, mas se queres a minha
opinião, que é apenas o que posso chamar de palpite educado, então acho que
provavelmente tudo começou porque algum jovem idiota ficou enciumado
porque a localização de um outro jovem idiota lhe parecera de maior
proeminência ou importância. Eles são tolos a esse ponto.
Embora Artur não quisesse ouvir tais ofensas aos seus jovens cavaleiros, ainda
que da parte de Cal, a confiança que depositava no julgamento do amigo era
absoluta. Coçou o nariz, pensou por longo tempo e disse:
— Provavelmente tens razão, Cal. Bom, é preciso fazer algo para impedir que
essa cena infame se repita.
E foi isso que o levou a conceber a idéia da Távola Redonda, na qual nenhum
cavaleiro ocuparia posição superior à de qualquer outro.
II

Naquele inverno Artur planejou as qualificações, as regras e as formalidades


para a sua nova Ordem dos Cavaleiros da Távola Redonda. E embora na sua
época Artur tenha realizado muitos atos memoráveis, nenhum outro teve maior
significado para a história da cristandade do que esse, pois da sua definição do
caráter e dos deveres de um cavaleiro da Ordem da Távola Redonda derivaram
todas as leis e todos os costumes do cavalheirismo. Agora que vivemos dias
degenerados, quando o egoísmo voluntarioso governa o temperamento dos
homens, e quando o próprio cavalheirismo caiu em descrédito, é bom lembrar-
lhe as origens nobres.
Artur determinou que houvesse dois graus de cavaleiros, embora um não fosse
considerado superior ao outro, mas cada qual dedicado a diferentes deveres.
Porém para ambos a palavra suprema seria dever, ou devoir. Todos os cavaleiros
precisavam se submeter à disciplina, pois Artur entendia que um cavaleiro não
sujeito à disciplina não passa de um animal selvagem. Dizia:
— Não existe ser mais condenável, mais ameaçador à paz e à virtude da
comunidade do que um cavaleiro indisciplinado, que dá rédea solta aos próprios
desejos e não leva em consideração vontade alguma além da própria.
Declarou isso formalmente em um conselho e mais tarde Cal lhe diria:
— Estavas pensando naqueles monstros, em Sir Cade e no velho Cara de Pedra,
não era? E nos horrores que passamos naquele castelo.
Artur corou; odiava que lhe lembrassem a humilhação que forçosamente sofrera
e nunca falaria dessa experiência, nem mesmo com Cal. E assim mordeu o lábio
até o sangue começar a escorrer e depois se afastou.
Mas Cal insistiu:
— E pensar que aqueles monstros ainda podem... Quero te lembrar que em certa
época estavas determinado a te vingar deles...
Mais uma vez Artur nada disse. E Cal continuou:
— E pensar que outros rapazes, pobres inocentes, podem estar sofrendo o que nós
sofremos...
Artur disse:
— Sabes quem é o velho Cara de Pedra? E irmão do rei Lot, de modo que aquele
monte de esterco, Sir Cade, é primo do nosso Gawaine. E na juventude também
foi irmão de criação do nosso Sir Kay, que ouvi se referindo a ele com calorosa
afeição embora, naturalmente, ignore o que o outro fez comigo. Sim, ainda quero
me vingar, mas não farei com que ele morra em combate, pois seria honra
demasiada.
— Então como? — indagou Cal.
— Achas que eu não passei noites insones tentando resolver isso? Gostaria de vê-
lo denunciado, e que as suas iniquidades fossem expostas perante uma corte de
justiça, mas... — e a voz de Artur se dissipou.
— Mas isso lhe daria a chance de te humilhar perante o mundo inteiro, se
confessasse como te usou... Seria melhor atingi-lo na cabeça e atirá-lo a um
fosso.
Discutiram o assunto muitas vezes e em minúcias, sem conseguir chegar a uma
conclusão.
Perante o conselho, o rei expôs os seus planos para a Ordem.
O primeiro grau da classe dos cavaleiros era o dos cavaleiros solteiros. Estes não
seriam condenados à castidade, mas enquanto ocupassem essa categoria
deveriam se abster do casamento. A razão para essa exigência estava clara na
mente de Artur: os cavaleiros solteiros deveriam se dedicar à guerra e ao serviço
do rei; constituíam a força de elite da cavalaria. Além disso, precisariam estar
sempre disponíveis para qualquer missão da qual Artur decidisse incumbi-los,
sozinhos ou em pequenos grupos. Não poderiam ficar presos a vínculos
domésticos e enquanto fossem cavaleiros solteiros não poderiam possuir castelos
nem terras, ainda que confiadas a vassalos; porque Artur entendia que com o
passar do tempo aqueles que administram feudos da coroa passam a considerá-
los como suas propriedades. Em resumo, os cavaleiros solteiros seriam uma
espécie de monges de guerra mas, levando-se em conta a sua juventude, o seu
ardor e a sua virilidade, Artur achou errado lhes impor, como é imposto aos
monges, um voto de castidade que muito provavelmente seriam incapazes de
manter. E nisso demonstrou a sua sabedoria e a sua compreensão dos homens.
Mas julgou conveniente lhes proibir (e que eles prometessem proibir a si
mesmos) vínculos que os prendessem por lei, e não meramente pela honra e pelo
sentimento.
Aqueles que quisessem estabelecer tais vínculos, se insistissem, seriam
eliminados da ordem dos cavaleiros solteiros e entrariam para a segunda ordem,
a dos cavaleiros territoriais. Entre estes, Artur distribuiu pessoalmente castelos e
terras. Eles deveriam garantir a paz da região, manter tribunais de justiça e, em
tempos de guerra geral, fornecer ao rei determinado número de arqueiros,
soldados e tropas auxiliares. Teriam o dever de cobrar os impostos reais, prender
os malfeitores, impedir invasões ou rebeliões civis. Embora Cavaleiros da Távola
Redonda, estavam dispensados e, na verdade, proibidos de freqüentar a corte,
exceto nos grandes banquetes dos solstícios do inverno e do verão. Artur atribuiu-
lhes funcionários experientes, para ajudá-los nos deveres judiciais e fiscais. Mas
esses funcionários continuavam como empregados reais, devendo lealdade
primordial ao rei, que lhes pagava os salários, e não aos cavaleiros territoriais.
Além disso, os cavaleiros territoriais deveriam enviar os filhos para a corte real
quando atingissem a idade de poder portar armas; e alguns eram empregados ali
como pajens, enquanto os mais aptos tornavam-se noviços da ordem dos
cavaleiros solteiros.
E assim Artur preparou-se para bem governar o reino; e não terá escapado aos
vossos olhos inteligentes, meu príncipe, que para garantir isso ele desenvolvera
um criterioso sistema de verificações e avaliações. Pois, por um lado, os
cavaleiros solteiros atuavam como guarda pessoal do rei e estavam livres da
fidelidade dividida que os barões, que ocupam terras do rei, comumente
passaram a sentir; a ambição dos cavaleiros solteiros centrava-se apenas em
agradar ao rei e obter-lhe a aprovação. Ao mesmo tempo, se um cavaleiro
territorial viesse a ser movido pela ambição pessoal e procurasse desafiar o rei
chegando até a rebelião, ou negligenciasse os interesses reais em favor dos
próprios, então o grupo de cavaleiros solteiros, estando livres do impedimento da
propriedade, ficava à disposição do rei para sufocar a rebelião ou chamar à
ordem o faltoso. E por outro lado, os cavaleiros territoriais estabeleceriam as suas
propriedades para garantir que a lei real percorresse todo o território e que a
ordem fosse mantida. Isso seria prudente e seguro e também era do seu
interesse. Finalmente, a exigência de enviar os filhos para serem criados e
treinados na corte real, onde teriam emprego segundo as suas capacidades,
garantia a ausência de interesses hereditários nas propriedades que os seus pais
administravam para a coroa, bem como nos castelos por estes ocupados. Desse
modo Artur esperava evitar as conseqüências da ambição familiar que
enfraquecera tantas monarquias quando os feudos tornaram-se hereditários, e
também o interesse da família que, como filósofo, denomino de interesse
seccional, que assume precedência sobre o interesse do rei, que é nacional.
E assim, ao desenvolver essas ordens de cavaleiros e essa forma de Estado (quer
dizer, coisa pública, ou república, pois uma comunidade não passa de uma
república bem organizada, tenha um chefe ou vários), Artur demonstrou
sabedoria. Apoiou-se em muitos exemplos perfeitos, se é que se pode alcançar a
perfeição no nosso mundo desordenado, perfeição essa que, de fato, inexiste em
grande escala. Artur compreendeu, como poucos governantes, que a ciência de
construir uma comunidade (ou melhor, de renová-la, uma vez que nenhuma
comunidade se constrói a partir do nada) é uma ciência experimental, que não
pode ser ensinada a priori.
E no entanto, infelizmente, pode-se constatar que por mais admirável que fosse a
construção arturiana, admirável, de fato, a ponto de servir de modelo para todas
as eras, e ser uma das maravilhas da mente política, ainda assim não conseguiu
compartilhar da experiência comum da humanidade, não conseguiu escapar à lei
amarga que decreta que planos muito plausíveis, desenvolvidos com suprema
inteligência, freqüentemente possam ter conclusões vergonhosas e lamentáveis.
Pois a história demonstra que coisas aparentemente pouco importantes podem
assumir formas horríveis e com o passar do tempo levar à adversidade.
III

Em uma linda manhã de primavera, de céu azul anil e brisa suave como sorriso
materno, Gawaine procurou Artur. Plantou-se firme diante do Rei, com as pernas
abertas, sem dizer palavra, até que este suspirou, pôs de lado o livro que; como
sempre era a Eneida, de Virgílio, do qual jamais se cansava, e ergueu os olhos
indagadores em direção a Gawaine.
Gawaine, que viera falar franca e abertamente, não conseguiu. Artur fez um
gesto indicando-lhe uma cadeira; Gawaine sentou-se, abriu a boca, mas ainda
continuou calado.
— Pareces achar que eu não darei importância ao que tens a dizer — disse Artur.
Gawaine explicou:
— Estou entediado — e corou, como se tivesse dito uma indecência. — E não só
eu. Muitos jovens, vossos cavaleiros solteiros, sofrem da mesma aflição. Somos
soldados, cavaleiros, e não há guerra. Isso não é bom, pelo menos para nós. A
paz... (As palavras passaram a sair aos borbotões, embora ele não fosse um
orador e em geral guardasse o silêncio, qualidade que Artur valorizava dizendo
“Gawaine só fala quando é preciso. Jamais tagarela”) E Gawaine prosseguiu: —
...a paz é boa para camponeses, para agricultores. Eles fazem as suas colheitas,
os seus animais estão a salvo, no campo e no curral. A paz é boa para sacerdotes
e clérigos, mas liquida e nega o nosso ofício.
— Nem sempre haverá paz — disse Artur.
Por um instante pensou em contar para Gawaine a sua intenção de, após se
certificar de que toda a terra britânica estava verdadeiramente em paz, conduzir
o seu exército para além mar e restaurar o Império de Roma.
— Não — repetiu Artur —, nem sempre haverá paz, embora impor a paz seja o
dever de reis e imperadores. E sempre mais fácil fazer a guerra do que a paz,
mas a arte de governar consiste em impor o costume da paz, poupar os
conquistados e subjugar os orgulhosos.
— Seja como for, para nós, jovens cavaleiros, a paz é extremamente tediosa.
— Suponho que deva ser — disse Artur. — Mas não posso fazer surgir um
exército invasor para vos aliviar o tédio. Contudo, o que dizes me preocupa.
Conversaremos amanhã, depois que eu tiver meditado sobre o assunto.
“Como eu gostaria de ter Goloshan para me aconselhar!” pensou Artur. Mas
Goloshan não existia mais: a morte o apanhara como um ladrão.
Artur consultou Cal, que fungou profundamente e disse que os jovens cavaleiros
eram todos uns tolos. Quanto a ele, já conhecera desgraça e medo o bastante e se
contentava em ficar deitado na cama, de manhã, sabendo que comeria bem
naquele dia, e voltar à mesma cama à noite sem ter encontrado perigo algum
enquanto estivera ausente dali.
— Nem todos são tão sensíveis como tu, Cal — disse Artur.
E levou a sua preocupação para Guinevere, que estava deitada em um sofá, de
camisola; essa atitude langorosa distraiu-o. Ele deitou-se com ela e brincaram
prazerosamente; e quando conheceram o deleite, ela esticou o braço branco e
macio, pegou um doce, mordeu-o, pôs a outra metade na boca de Artur e disse:
— Eles não têm isto, e tu ainda te admiras que estejam entediados?!
Artur acreditou, pois já no início do casamento Guinevere também reclamara de
tédio, e portanto estava acostumada a reconhecer essa condição, que para ele era
estranha.
— Para ti está tudo bem — disse ela. — Quando não há ação, tu enfias o nariz
em um livro e isso parece te satisfazer. O motivo eu com certeza ignoro. Devo
dizer que não é muito cortês para comigo.
— Bem — disse Artur, desconsiderando o tom queixoso da voz de Guinevere —,
dentre os meus jovens cavaleiros, poucos sabem ler. Portanto, esse recurso lhes é
negado.
— Eles não dão a menor importância a isso — disse ela. Artur meditou sobre o
assunto na calada da noite, e de manhã chamou Gawaine e falou-lhe o seguinte:
— Fizeste bem em me procurar e me falar, e eu errei em não ter previsto nem
observado que a paz e a inação desgastam a ti e aos demais jovens cavaleiros.
Sois guerreiros, e apesar de ser preciso que o tempo inteiro a maior parte da
Ordem a que pertenceis resida na corte, pois nunca se pode prever quando será
necessária uma força de elite para reagir de imediato a alguma invasão ou
rebelião; e embora também seja preciso realizar exercícios militares regulares
para que os meus cavaleiros permaneçam aptos a executar qualquer tarefa que
se apresente, ainda assim percebo que também é preciso haver um pouco de
diversão. Portanto, decidi que os meus cavaleiros solteiros terão a liberdade de
buscar suas aventuras e atender por iniciativa própria qualquer apelo por ajuda,
feito por alguém em dificuldades, desde que ajam sempre de modo adequado ao
seu cargo, sob pena de desligamento caso não ajam assim, e também que
permaneça sempre um quorum de cavaleiros residentes na minha corte, prontos
e aptos para atender a qualquer emergência.
Ao ouvir essas palavras, Gawaine se ajoelhou e beijou a mão do rei, com o
coração cheio de alegria. Pediu para partir imediatamente em busca de
aventura, e a sua solicitação foi atendida.
E graças a essa sábia decisão, muitos nobres cavaleiros desfrutaram de grandes
aventuras, das quais se contam tantas histórias.
IV

Contam-se muitas histórias sobre as aventuras de Gawaine, algumas talvez


verdadeiras. Mas é estranho: nos anos que se seguiram ao estabelecimento de
Artur como rei e imperador da Britânia parece ter caído um véu sobre a história.
Tudo o que já relatei é fato, sem dúvida questionável quanto aos detalhes, porém
indiscutível em linhas gerais. Mas nas histórias relativas às aventuras dos
cavaleiros é como se penetrássemos no mundo das lendas. Há muitos detalhes
vividos, fascinantes e comoventes, tanto que somos tentados a crer que a história
que ilustram deve se basear em fatos. No entanto, alguns desses contos foram
obviamente planejados para divertir. São obras de poetas e não de historiadores.
Garanto-vos que os poetas revelam a verdade. Na presente narrativa, em várias
ocasiões mencionei Virgílio de quem, sem dúvida, voltarei a falar. Ora, é
altamente improvável que a história da Eneida narre os acontecimentos como
efetivamente ocorreram (e, na verdade, aqui para nós, permito-me duvidar da
existência de Enéias e de Dido) e, no entanto, quem poderá duvidar de que o
poeta fale com autoridade, fale, de fato, de uma espécie de verdade mais
elevada? Mas isso acontece porque Virgílio recorre ao mito, que tem significado,
e não à lenda, que freqüentemente não passa de conversa de mulheres tolas e
homens ociosos.
Assim, por exemplo, temos a história de Gawaine e o Cavaleiro Verde. E uma
boa história, como vereis.
Artur estava com a corte em Camelot. Era a última noite do ano e alguns
cavaleiros rememoravam com orgulho ou lamento o ano que morria, enquanto
outros pensavam ansiosos no que ia nascer. Alguns se gabavam dos brilhantes
feitos realizados; outros, das suas futuras conquistas. Alguns alegres, outros,
irascíveis; na verdade, uma certa ansiedade percorria o salão e o motivo
ninguém sabia ao certo, exceto que a lua nova deveria ter surgido sete noites
antes e ainda não aparecera, apesar das noites geladas e das estrelas brilhantes no
céu. Muitos diziam que era mau agouro.
Então, apesar de Artur conduzir a corte como devia, era sabido que há algumas
semanas algo lhe incomodava a mente e o corpo; vinha sofrendo de febre e
dormindo mal. Naquela noite, muitos dos cavaleiros olharam para o rei, sentado
com a rainha Guinevere à direita e o sobrinho Gawaine à esquerda, diante da
Mesa Alta instalada sobre um tablado na extremidade oeste do salão, e
observaram que ele não comeu, mas simplesmente esfarelou o pão e que, ao
beber vinho, o suor lhe porejou da testa. E isso os preocupou, pois temiam que a
doença do rei fosse como um espelho prenunciando a doença do reino.
Ninguém ousava mencionar esses temores que afligiam muitas mentes. Quanto a
Guinevere, sentada em silêncio, não fazia esforço algum para insistir em que
Artur comesse. Parecia pesada, melancólica, mal-humorada.
Então, com forte estrondo, as portas exteriores do salão abriram-se totalmente.
Todos ficaram em alerta. Todos se voltaram para saber o motivo daquele
distúrbio. E todos ficaram em silêncio.
Viram entrar um cavaleiro de armadura verde, bem mais alto do que o mais alto
cavaleiro da Távola Redonda.
Em uma das mãos carregava um machado, como os guerreiros saxões
empunhavam em batalha, e na outra um galho de azevinho. Na verdade, era
verde da cabeça à ponta dos pés, e à luz dos candelabros do salão o rosto também
parecia verde. Usava um capote reto que caía sobre o seu brilhante peitoral cor
de esmeralda.
Acompanhado por um escudeiro, também vestido de verde, o cavaleiro montava
um nobre cavalo como os que hoje chamamos de corcel. Os pendentes do arnês
de peito, o belo rabicho, os cravos do bocado e todos os equipamentos metálicos
também eram verdes, bem como os arcos e as abas da sela, ricamente
adornados de esmeraldas e ouro polido. Até o próprio cavalo parecia verde.
O cavaleiro era bonito, sem dúvida, e a sua cabeleira combinava com a crina do
cavalo. Era bela e se espalhava sobre os ombros largos; e uma grande barba,
verde como um arbusto na primavera, pendia-lhe sobre o peito.
Jamais se vira antes naquele salão cavaleiro e cavalo tão imponentes; e muitos
cavaleiros tomaram-no por um ogro apesar da beleza da fisionomia, porque
também era uma fisionomia dura e parecia cruel. E claro que vós, meu príncipe,
pertencendo a uma era mais esclarecida e tendo também o benefício dos meus
ensinamentos baseados na experiência e na razão, sabeis que ogros, monstros
comedores de homens, pertencem aos contos de fadas ou às histórias inventadas
por velhas matronas para atemorizar criancinhas (que não devem ser
desprezados, pois lhes estimula a imaginação). Porém os cavaleiros de Artur
eram mais ignorantes, muitos acreditavam em ogros e alguns juravam tê-los
combatido. Portanto, não é de admirar que muitos julgassem de imediato que
aquele cavaleiro extraordinário fosse um desses seres.
Segurando o machado no ar, o Cavaleiro Verde avançou em direção ao tablado,
como alguém que não teme, mas que está acostumado a inspirar temor nos
demais.
— Quem é o chefe deste grupo, pois eu gostaria de falar-lhe? — indagou. E os
seus olhos percorreram o salão, como se procurassem ver quem seria ali o mais
renomado.
Ninguém respondeu de imediato, mas todos o olhavam com espanto, pois jamais
haviam visto cavaleiro e cavalo verdes como a grama de início de verão. Alguns
julgaram tratar-se de ilusão ou magia e até os cavaleiros mais audaciosos
guardaram silêncio, como se todos tivessem caído no sono e esperassem que o
próprio Artur respondesse ao cavaleiro.
Embora adoentado de corpo e mente (como já mencionei), Artur deu as boas-
vindas ao visitante, dizendo:
— Sois estrangeiro e assim eu vos convido a participar da nossa companhia e
compartilhar do nosso banquete, nesta última noite do ano.
— Não, pelo amor de Deus, não é essa a minha intenção. Viajei até aqui, vindo
de uma região distante, para formular um desafio. Proponho uma boa aposta, a
qualquer cavaleiro aqui presente, suficientemente corajoso: uma troca de golpes.
Eis o meu machado. Ofereço-o àquele que pegar a luva; e resistirei ao primeiro
assalto sem revidá-lo agora. Mas desafio qualquer um que seja suficientemente
corajoso a me encontrar no meu castelo, de hoje a doze meses, para revidar
assalto a assalto, golpe a golpe. Portanto, quem se atrever que se manifeste.
Em seguida girou o olhar em volta e balançou a barba verde de um lado para o
outro, procurando ver quem se levantaria do seu lugar para enfrentar o desafio.
Mas ninguém se mexeu. Ele tossiu alto e alguns julgaram vê-lo expelir fogo pela
boca. Mas isso não poderia ser, embora o seu olhar continuasse relampejando.
Depois ele riu:
— Então, vós todos vos encolheis de medo, sem que se tenha realizado um só
assalto? Que tipo de cavaleiros são estes?
Artur ofendeu-se com a caçoada e erguendo-se do seu assento com a força que
o estado debilitado lhe permitia, aproximou-se do Cavaleiro Verde e disse:
— Entregai-me o vosso machado de batalha agora mesmo e eu satisfarei à vossa
exigência e vos concederei o favor que me pedis.
Mas o cavaleiro segurava firmemente o machado sem querer cedê-lo.
— Belos cavaleiros, os vossos! Nenhum aceita o meu desafio, e o deixa para o
seu rei e soberano!
Todo o grupo sentiu o escárnio e se retraiu ao ouvi-lo falar assim.
Então Gawaine, envergonhado com aquela provocação, avançou e disse:
— Esse mal-educado fala a verdade. Não convém que vós assumais o encargo
do desafio. Portanto, concedei-me o direito de aceitá-lo, pois este assunto é tão
bobo que não vos cabe vos preocupar com ele pessoalmente.
E assim Gawaine tomou o machado do Cavaleiro Verde que, depois de lhe
perguntar o nome e ficar satisfeito por ele ser um homem de berço e honras
suficientes, esticou o pescoço e ordenou que Gawaine o atacasse. Quando
Gawaine fez isso, atravessou o osso com um golpe poderoso, tanto que o sangue
jorrou, púrpura, sobre a carne verde e as roupas verdes; e a cabeça decepada
rolou pelo chão.
Todo o grupo se alegrou, mas logo fez silêncio quando o cavaleiro se abaixou,
apanhou a cabeça pelos cabelos verdes e segurou-a, exibindo-a para Gawaine.
Em seguida os lábios se moveram e pronunciaram estas palavras:
— Vós me golpeastes corajosamente, Sir Gawaine e, segundo o nosso acordo,
devereis receber os golpes corajosamente, quando chegar a vossa vez.
Gawaine empalideceu pensando no significado daquelas palavras. Tremeu como
faria qualquer homem, por mais corajoso, em tais circunstâncias. Mas apenas
disse:
— E onde devo vos encontrar daqui a um ano?
— Muitos me conhecem como o Cavaleiro da Capela Verde, e se perguntardes
por aí, não deixareis de me encontrar.
Então montou c cavalo, puxou as rédeas e galopou para se retirar, levando a
cabeça na mão; e dos cascos do cavalo voaram faíscas. Ninguém sabia de onde
ele viera nem para onde ia, mas Gawaine ficou olhando-o partir; e aos seus pés
havia sangue.
V

Quando a época de Natal terminou E a neve se acumulou em grossas camadas


de modo que não havia caça e todos estavam condenados ao ócio, como era de
se esperar houve muita conversa a respeito daquele estranho encontro e do
terrível desafio que Gawaine aceitara. O próprio Artur preocupou-se porque o
sobrinho se metera em tamanha encrenca. Muitas vezes dizia para Guinevere e
também para Cal que gostaria de ter Merlim por perto para consultá-lo sobre o
melhor a fazer. Mas Merlim desaparecera e ninguém sabia onde encontrá-lo.
Guinevere, descontente por achar que Artur, na sua perplexidade, parecia
negligenciá-la, e por não atribuir a Gawaine tão alto valor como o rei, amuou-se
e disse que na sua opinião Gawaine era um tolo por ter aceito o desafio, e seria
um tolo ainda maior se mantivesse a sua parte na barganha.
Artur suspirou. “E uma questão de honra”, pensou, “coisa que tu, minha querida
esposa, como saxã e mulher, não compreendes”. Nesse julgamento, que
prudentemente guardou para si, Artur foi injusto, pois os saxões tinham e têm um
senso de honra tão perfeito quanto o dos outros povos. Mas é verdade que as
mulheres entendem esses assuntos de modo diferente do dos homens.
Cal também não se impressionou e disse: — Honra é uma bela palavra, sem
dúvida, mas não passa de uma palavra, e aqueles que decidem se deixar guiar
pelo que entendem dessa palavra são, na maioria, tolos. Não nego que exista essa
coisa que eu também chamaria de honra, mas o meu entendimento disso é
diferente, e se baseia no senso comum. Na minha opinião, manter um acordo
que resultará em ter a cabeça decepada, é simplesmente grotesco. Além disso, a
honra, presumivelmente até no vosso código de cavaleiros, é algo que só pode
existir entre iguais, e por isso os teus cavaleiros se recusam a combater homens
de berço inferior, sem as qualificações para serem cavaleiros. Ora, é
perfeitamente óbvio que esse tal Cavaleiro Verde, quem quer ou o que quer que
seja, não é igual a Gawaine. Há algo de estranho nele. Na verdade, talvez nem
seja um mortal. Se fosse, não conseguiria apanhar a cabeça e ir embora. É
alguma espécie de espírito que assumiu a aparência de cavaleiro. O que não quer
dizer que seja incapaz de lidar com Gawaine como Gawaine lidou com ele,
apenas o resultado será diferente.
E voltando-se para Gawaine, falou:
— Tu achas realmente que quando aquela Coisa (que é como eu o chamo, pois
evidentemente não é um mortal) cortar a tua cabeça, serás capaz de pegá-la e
lhe agradecer, como ele te agradeceu? E loucura demais para expressar em
palavras, e se queres a minha opinião, serias sensato em tratar todo esse episódio
como um sonho ruim.
— Reconheço que o que dizes é inverossímil — replicou Gawaine. — Contudo,
dei a minha palavra e devo mantê-la.
Então, quando chegou a época do solstício do inverno seguinte, Sir Gawaine se
despediu do rei e dos seus irmãos, Agravaine e Gaheris, que choraram ao vê-lo
partir, temendo que se dirigisse para a morte. A geada fora violenta; os cascos do
cavalo retiniam quando ele atravessou a ponte levadiça; mas o céu agora estava
pesado de neve e o ar tranqüilo como um túmulo.
Gawaine cavalgou por três dias através de uma terra sem vida, com o lúgubre
Saturno em ascensão, embora o céu noturno ficasse encoberto e durante o dia
nuvens carregadas toldassem o firmamento. No primeiro dia, ele pediu a uma
velha que lhe indicasse a Capela Verde; ao ouvir a pergunta, ela fez o sinal-da-
cruz e se afastou. No segundo dia, Gawaine viu pássaros mortos caírem das
árvores; e no terceiro começou a nevar. Cavalgou por charnecas marrons e
seguiu o curso de um riacho congelado. Então o vento soprou, Gawaine o
enfrentou e continuou cavalgando até chegar a um castelo que surgiu à frente ao
mesmo tempo em que flocos de neve lhe batiam no rosto. Forçou o cavalo a
trotar e quando atravessaram a ponte levadiça, bateu no portão com o botão do
punho da espada.
Deu três batidas sem receber resposta. Gritou três vezes e só ouviu o eco da
própria voz. Bateu novamente
no portão, mas os seus esforços foram inúteis. “Ou este castelo está deserto, ou os
moradores são excessivamente inospitaleiros, ou temem até mesmo um viajante
solitário” disse para si mesmo.
Assim, girou a cabeça do cavalo e cavalgou novamente pela noite adentro.
Viajara pouco mais de milha quando viu uma luz brilhar na floresta, à esquerda.
Uma trilha conduzia naquela direção. Várias vezes, enquanto avançava, perdeu
de vista a luz e se perguntava se não seria um desses fogos-fátuos que, como se
sabe, desviam os viajantes e muitas vezes os levam à morte. A floresta ficou
mais espessa, a trilha estreitou e Gawaine viu-se cercado pelo silêncio. Às vezes
o caminho era recoberto de urzes brancas que chegavam a lhe arranhar o rosto,
parecendo que ninguém passara por ali há muito tempo. Um cavaleiro menos
corajoso teria abandonado a aventura, mas Gawaine tinha a coragem de um
mastim e não possuía a imaginação perturbadora que invoca terrores. E assim,
persistiu.
Afinal chegou a uma clareira e a luz tremeluzia à frente. Ao que parece, vinha
de uma pequena capela. Gawaine desmontou e conduziu o cavalo, cujas rédeas
amarrou a um galho que pendia de uma árvore. Então empurrou a porta e
entrou.
Viu que a luz no interior da capela era verde e que isso acontecia porque as
paredes eram recobertas de colgaduras de seda verde que refletiam a luz de um
candelabro pousado sobre o altar, mudando-lhe a cor. Uma figura de roupa verde
estava ajoelhada ali, como que orando, mas ao ouvir o som dos passos de
Gawaine nas lajes do chão ergueu-se, avançou em direção a ele, e em voz
áspera perguntou-lhe o que desejava.
— Sou um cavaleiro em busca da Capela Verde — respondeu Gawaine — e
acho que deve ser esta.
— Esta é a Capela Perigosa — foi a resposta.
— Então, se não é a Capela Verde, devo seguir adiante. Mas primeiro vou
descansar aqui — disse Gawaine.
— Aqui não se descansa. Esta é a Capela Perigosa e é por isso que estou
condenado a jamais desistir de orar, para me manter a salvo do perigo que me
ameaça.
— E que perigo é esse? — indagou Gawaine.
— Alguns chamam-no de Possessão; e agora devo retornar às minhas orações.
Então Gawaine cuidou do cavalo e depois se deitou para dormir. Mas a noite
inteira foi assaltado por demônios que vinham até ele sob a forma de belas
mulheres tentando seduzi-lo. Muitas vezes esteve perto de ceder, pois a tentação
era grande quando elas dançavam à sua frente e se inclinavam pressionando-se
contra ele, beijando-lhe os lábios, tentando enfiar as línguas na sua boca. E
algumas golpeavam-no, e outras se deitavam sobre ele, e todas murmuravam
palavras carinhosas, enquanto duas jovens de pele escura tocavam alaúdes e
cantavam.
Mas Gawaine resistiu, dizendo para si mesmo que eram provas para desviá-lo da
missão; e assim recusou-as e não cedeu ao desejo. E de manhã um vento gelado
soprou pela capela e os demônios desapareceram. Então Gawaine selou o cavalo
e seguiu caminho.
Ainda não viajara sete milhas quando chegou a um rio e cavalgou rio abaixo até
encontrar um vau. Na margem oposta havia um cavaleiro montado num cavalo
ruão e Gawaine chamou-o em voz alta, perguntando se ele poderia ensinar-lhe a
direção da Capela Verde. O cavaleiro convidou-o a atravessar o riacho e disse
que fora enviado para atuar como seu guia. Ao ouvir isso, Gawaine encheu-se de
alegria, pois era uma grande satisfação pensar que chegara ao objetivo e se
mostrara digno. É verdade, também, que sentiu um ligeiro tremor de medo, mas
isso não seria de admirar.
Então o cavaleiro convidou-o a acompanhá-lo até o seu castelo.
Chegaram, e Gawaine encontrou um banquete preparado. Comeu com avidez,
pois tinha um apetite voraz e era saudável. Um escudeiro postou-se atrás da sua
cadeira e oferecia-lhe mais comida: pedaços de rosbife, uma bela torta de galo
silvestre; perdizes e carne de veado. Para beber havia vinho do Reno e o
cavaleiro fez um brinde a Gawaine, que respondeu:
— Estou feliz em descobrir que não duvidaram da minha palavra.
— O banquete estava preparado, quer viésseis ou não. Então o cavaleiro conduziu
Gawaine pela mão, levou- o até um quarto e disse:
— Eu vos deixarei aqui, pois preciso ir buscar instruções e também vou caçar
esta noite, amanhã e depois, e quando nos encontrarmos trocaremos presentes.
E assim Gawaine ficou ali, espantado, porém não aflito. Ao mesmo tempo
sentia-se vagamente enganado. Precisara de coragem para fazer aquela viagem.
Fortalecera-se para enfrentar a provação que o esperava. E comera bem e
bebera bom vinho, e agora descansava em uma cama confortável. Tão
confortável que ele caiu no sono.
Quando despertou não estava mais sozinho. Havia no ar um perfume de violetas
e na cama ao lado reclinava-se a mais bela mulher que ele já vira. Foi essa a sua
primeira impressão. E quanto mais a olhava, mais certeza tinha. Havia algo de
Guinevere naqueles cabelos louros, na pele pálida, nos seios generosos e também
na boca em forma de arco. No entanto, ela suplantava Guinevere, as sim como o
corcel árabe suplanta o melhor cavalo de tiro. Havia fogo e nobreza em seus
olhos, e enquanto as pernas de Guinevere eram curtas demais para o
comprimento do corpo, tanto que ela ficava melhor sentada (ou pelo menos era o
que pensava Gawaine), a beleza daquela dama não era estragada por semelhante
desproporção. Na verdade, como o modelo da roupa tinha uma fenda que ia dos
quadris aos tornozelos e se abrira quando ela deitara na cama, Gawaine pôde ver
pernas longas e adoráveis como jacintos.
(Eu me tornei lírico. Perdoai-me, há semanas que estou sem mulher.)
A dama sorriu para Gawaine, mas não se mexeu. Ele sentiu um ímpeto de
luxúria, mas se conteve. Enquanto isso, de uma galeria, menestréis tocavam
música suave. O sol de inverno mergulhava no céu. E quando afundou totalmente
por trás das colinas distantes e os pinheiros ficaram negros contra um fundo
amarelo pálido e dourado com listras de cor púrpura, a dama ergueu-se da
cama. Inclinou-se sobre Gawaine, beijou-o nos lábios uma vez e deixou-o.
Naquela noite o cavaleiro voltou da caçada e entregou o troféu a Gawaine,
perguntando-lhe o que ele daria em troca. Gawaine viu-se corando:
— Um único beijo — respondeu; e o cavaleiro ofereceu-lhe o rosto.
No segundo dia, quando o cavaleiro partiu para a floresta, a dama voltou a se
deitar ao lado de Gawaine; e desta vez os dedos pálidos tocaram-lhe o semblante.
E ao deixá-lo, quando o sol do entardecer se esgueirava no céu, beijou-o duas
vezes.
E naquela noite o cavaleiro e Gawaine trocaram presentes pela segunda vez.
No terceiro dia a dama veio vestida de dourado, e quando o dourado desvaneceu
no céu, beijou Gawaine três vezes e depois tirou a saia lentamente, com um
movimento ondulante, desatou o cinto e entregou-o a Gawaine. Este abriu a boca
para falar, mas ela pressionou-se sobre ele, e não precisaram de palavras.
Gawaine recebeu liberalmente tudo aquilo com que sempre sonhara. E quando a
dama partiu sem olhar para trás, a mão de Gawaine recaiu sobre o cinto, que ele
agarrou e cobriu de beijos.
O cavaleiro ofertou-lhe o produto da caça e Gawaine lhe deu em troca três
beijos, mas nada disse sobre o cinto, nem sobre o que recebera quando o mesmo
fora desatado.
Na manhã seguinte, um pajem aproximou-se de Gawaine e disse que fora
enviado para guiá-lo à Capela Verde, onde o adversário o aguardava. E com um
sorriso tímido que lhe revelava o embaraço, disse:
— Estou encarregado de vos dizer que sereis considerado covarde se não vierdes
comigo.
— Não sou covarde — disse Gawaine. — E se tu és um dos criados do Cavaleiro
Verde, como imagino, então devo te dizer que há três dias espero que ele me
convoque, e estava quase duvidando se o teu amo manteria a palavra.
Mas embora falasse corajosamente, como convinha à sua condição, Gawaine
tremeu, pois era terrível se preparar para ter a cabeça decepada, como vós, meu
príncipe, bem podeis imaginar.
Então, Gawaine ordenou ao pajem que esperasse um momento enquanto vestia
uma segunda camisa para que ninguém o visse tremendo de frio. O pajem
segurou-o pela mão e levou-o do castelo para a capela, não muito distante, e
enquanto caminhavam, falou alegremente, como se quisesse distrair Gawaine da
provação que o esperava.
A geada estava forte e os pés de Gawaine, recobertos de malha, retiniam no chão
gelado.
Na capela, Gawaine ajoelhou-se e entregou a alma aos deuses que venerava
(pois não tenho certeza se era cristão) e o pajem ajoelhou-se ao seu lado, disse
algumas preces, talvez pela alma de Gawaine.
Ouviu-se o som de um vento poderoso e violento, assim como nos garantem que
os apóstolos ouviram no Dia de Pentecostes. Aporta da capela foi escancarada.
Folhas verdes, como se fosse verão e não pleno inverno, heras rasteiras, galhos
de azevinho, tudo isso rodopiava e subia em espiral, rumo a anjos que pareciam
mergulhar animadamente vindos do teto. Tudo girava, rodopiava e revolvia com
a gargalhada selvagem daquele vento poderoso.
Então tudo se acalmou, as folhas, os rebentos e os galhos começaram a cair e a
se depositar nas lajes do piso, como um tapete verde. Gawaine pôs-se de pé,
virou-se para a porta e viu ali o Cavaleiro Verde, alto como um pinheiro e largo
como um velho carvalho.
Avançou em direção a Gawaine e não falou até estarem a uma braça de
distância.
— Fantástico! — disse. — Sou forçado a te dizer, meu caro, que fiquei surpreso
ao constatar que mantiveste a palavra.
— E por que não o faria? A honra me obrigava, e da minha parte devo te dizer
que a tua surpresa me ofende, ofensa grave.
— Não precisas ser tão arrogante! — disse o Cavaleiro Verde, e riu. — Se eu te
contasse o número e os nomes dos cavaleiros que de início aceitaram o meu
desafio e depois o renegaram, agindo como covardes, não te admirarias da
minha surpresa. Na minha experiência, que é considerável pois vivi em seis
países e o que digo é verdade, há muitos cavaleiros que são corajosos na sua
conversa fanfarrona, mas extremamente tímidos quando se trata de encarar a
realidade. Portanto, eu me congratulo contigo, e não penses, rapaz, que ao fazer
isso me sinto culpado de te tratar com condescendência. Não é a minha intenção,
de modo algum, e te garanto que juraria te respeitar, se este fosse o dia da minha
morte e estas fossem as minhas últimas palavras.
Gawaine ficou satisfeito ao ouvir esse elogio, embora corasse um tanto
embaraçado pensando que em tais circunstâncias as últimas palavras do
Cavaleiro Verde não foram felizes.
— Na minha opinião, um verdadeiro cavaleiro deve fazer o que um cavaleiro
precisa fazer — disse.
— Essa também é exatamente a minha opinião — disse o Cavaleiro Verde. —
Então vamos ao assunto em questão. Ajoelha-te e eu te prometo que não
demorará muito tempo.
Gawaine ajoelhou-se e o pajem mordeu o lábio para conter as lágrimas, pois
jamais testemunhara bravura como a que Gawaine ora mostrava, e estava
tomado de admiração e atingido pelo amor. “Esta é a verdadeira nobreza!”,
pensou, e não se conteve e cedeu ao pranto.
O Cavaleiro Verde ergueu o machado, girou-o uma vez sobre a cabeça e o
baixou com força sobre o pescoço de Gawaine.
O golpe fez com que o rosto se curvasse para o chão e o nariz sangrasse, mas não
houve qualquer outro ferimento.
Mais uma vez, o Cavaleiro Verde golpeou com o machado e mais uma vez o
nariz de Gawaine enfrentou a pedra; mas novamente não houve qualquer outro
ferimento; ele sacudiu a cabeça, como que espantado ou surpreso por encontrá-
la ainda presa ao corpo.
Da terceira vez o Cavaleiro Verde desferiu um golpe ainda mais poderoso do que
os anteriores; e dessa vez o sangue esguichou do pescoço de Gawaine, mas a
cabeça continuou presa e o pajem gritou de alegria.
O Cavaleiro Verde estendeu a mão, fez Gawaine se pôr de pé e o abraçou.
— Jamais eu me defrontei com um cavaleiro que tenha suportado esta provação
com tanta bravura. De hoje em diante seremos irmãos — disse.
Ao dizer isso, soltou Gawaine e erguendo ambas as mãos em direção à própria
cabeça, removeu-a, sacudiu duas vezes, e por baixo apareceu uma outra cabeça;
e Gawaine constatou que era o cavaleiro que fora seu anfitrião no castelo.
Este riu ao ver a surpresa de Gawaine.
— Ora vamos, tu não acreditaste de verdade que decepaste a minha cabeça no
ano passado na corte de Artur e depois me viste sair da sala, não é? É um velho
truque; acho que pode ser chamado de esotérico. Aprendi em uma das minhas
viagens, com um dos xamãs, uns sábios que vivem no Cáucaso gelado. Eles
conhecem um ou dois truques, posso te garantir, e dizem que alguns descobriram
o segredo da imortalidade. Seja como for, não estou convencido. Mas o fato é,
meu velho, que esses xamãs falam um bando de bobagens. Enganam algumas
pessoas, mas eu sou um inglês ou britânico franco e sem rodeios, e ninguém joga
areia nos meus olhos. Agora acho que nós ambos merecemos um trago de
cerveja. Esta manhã nos abriu a sede.
Chamou o pajem e disse:
— Rapaz, nos traz cerveja. Imediatamente.
Voltando-se para Gawaine, baixou a voz e disse:
— Ele é um bom rapaz, afável mas demasiado doce, tu sabes, um pouco
maricas. Estava às lágrimas, talvez não tenhas visto mas ele estava, mesmo
sabendo que tu não terias qualquer ferimento.
— Não sei como foi isso — disse Gawaine, pondo a mão no pescoço que
sangrava abundantemente.
— Não é nada, apenas um ferimento na carne. Pega isto aqui — e entregou-lhe
um pano de linho para estancar o sangue. — Vou explicar — disse. — Mas a
propósito, fui descuidado e não me apresentei condignamente. Sir Tobias, mas
atendo por Toby. O que eu dizia? Ah, sim, falava do ferimento no pescoço. Foi
porque tu me enganaste.
— Te enganei?
— Sim, de fato. Quando trocamos presentes, tu me escondeste algo. E o cinto da
minha dama? O que aconteceu com ele? — e riu ruidosamente e cutucou as
costelas de Gawaine. — Tu és malandro, hein?
O rapaz voltou com uma jarra de cerveja e dois chifres, e eles beberam
brindando à saúde um do outro. Em seguida seguiram até a taberna e beberam
mais cerveja, e ficaram alegres como passarinhos.
Durante sete dias Gawaine continuou caçando e se banqueteando com Sir Tobias,
e a cada dia achava mais agradável a companhia do amigo. Tomando vinho da
melhor safra da Borgonha, o anfitrião lhe falava das suas excursões e aventuras,
das viagens que empreendera até as regiões do norte onde a neve jamais derrete
e onde, garantiu a Gawaine, as viúvas copulam com lobos e dão à luz crianças do
sexo masculino que são meninos de dia e lobos à noite, quando querem (o que, no
entanto, é freqüente).
— Além disso, uma vez fui atacado por um lobo quando buscava alojamento
para passar a noite em uma estalagem bem no fundo de uma floresta de
pinheiros; peguei a minha espada e matei-o, e descobri que aos meus pés havia
apenas uma pele, sem carne, nem osso, nem sangue, mas quando entrei no
vestíbulo da estalagem encontrei o dono estirado diante da lareira, com a
garganta cortada. E, no entanto, algumas pessoas afirmam que esses lobisomens,
como os chamam, só podem ser mortos com uma flecha de prata.
Então, em outra ocasião, eu viajava pelas montanhas que ficam além dos
grandes rios do leste. Cheguei a um castelo encarapitado no alto de um penhasco.
O castelão me recebeu hospitaleiramente, me alimentou bem, me deu para
beber uma bebida forte a que chamava de vodca, ou algo similar. Para dizer a
verdade, era uma aguardente. Mas não desagradável ao paladar. Não
desagradável ao paladar quando servida, como o foi, junto com cerveja forte.
O costume é disfarçar a cerveja com a vodca, ou será que é o contrário? Não
importa se não consigo me lembrar. Em todo caso, tudo ia às mil maravilhas,
embora o meu anfitrião não comesse nem bebesse a noite inteira. Mas contou
histórias de uma tribo selvagem, conhecida como tribo dos hunos aos quais, no
entanto, ele chamava de horda selvagem, que havia expulsado o seu pai das
planícies onde a família vivera durante gerações, rica em gado e em cavalos,
para aquele refúgio na montanha, onde ele lamentava tudo o que perdera. E
assim, ele se tornara alguém que só pensava em se vingar da humanidade e em
recuperar a fortuna que lhe fora usurpada. Mas me tratou bondosamente — disse
Sir Tobias a Gawaine. Porém depois sacudiu a cabeça e acrescentou:
— No entanto, fiquei feliz em fugir daquele castelo, pois houve uma estranha
manhã em que saí em busca do meu anfitrião e o encontrei aparentemente
dormindo em um caixão, tendo sangue seco no canto da boca. E quando escapuli
bem cedo uma certa manhã, desci a planície e cheguei até à aldeia, fui
apedrejado quando souberam de onde eu vinha. Na verdade, tive sorte de
escapar com vida. Sim, de fato, tenho vivido cada aventura...
Sir Tobias deu um gole do vinho e contou a Gawaine que visitara Bizâncio, a
grande cidade onde os pisos dos palácios imperiais são recobertos de pedras
preciosas: rubis, safiras, opalas e topázios. E prosseguiu:
— O imperador vive em tamanha pompa que homem algum, ainda que
apresente uma petição ou busque justiça, pode se dirigir a ele pessoalmente, mas
deve fazê-lo através de intermediários que levam a mensagem e a resposta de
aposento a aposento, de modo que quando chega ao reclamante não é a resposta
à pergunta formulada nem, de fato, com toda a probabilidade, a resposta do
imperador à pergunta desfigurada que recebera. E na minha opinião, isso explica
o fracasso político que aflige o Império.
Gawaine teria escutado Sir Tobias, satisfeito, até que as estações mudassem e a
primavera chegasse para renovar a terra. Aquelas histórias pareciam não ter
fim. Por exemplo, Sir Tobias caíra prisioneiro de piratas nos mares do norte e só
escapara de morrer porque o chefe dos piratas descobrira que ele jogava xadrez,
paixão que aquele rude nórdico desenvolvera quando servira na guarda imperial
em Bizâncio.
— Ele jurou, alegremente, que se conseguisse me aplicar um xeque-mate em
quinze jogadas, me penduraria no mastaréu da gávea, mas eu resisti e ele me
achou um adversário tão à altura que, creio, me manteria em sua companhia
para sempre, se certa noite não tivesse caído ao mar, bêbado.
— E como tu escapaste, então? — indagou Gawaine.
— Bom, não foi fácil, mas mergulhei na água como se fosse resgatá-lo e nadei
rumo à terra, que eu não teria conseguido alcançar pois estava bem distante, se
não me deparasse com um golfinho que me carregou no dorso.
Finalmente, depois de muitas semanas escutando, Gawaine decidiu que precisava
retornar para Camelot, pois era esse o seu dever. Mas antes de partir, tomou
coragem para perguntar ao anfitrião por que este inventara aquela farsa do
Cavaleiro Verde.
Sir Tobias puxou a ponta do bigode e por alguns minutos soprou e bufou. Mas
depois disse:
— Eu esperava que tu não perguntasses isso, meu velho, pois a verdade é que
detesto profundamente que me façam uma pergunta para a qual não tenho
resposta. Poderia inventar uma, é claro, como posso inventar qualquer coisa que
queira. Mas como tu resististe aos meus golpes com tanta coragem, com mais
coragem do que qualquer outro cavaleiro que ousou aceitar o meu desafio, devo-
te isso e tentarei ser verdadeiro... E não é fácil, pois, como tu deves ter
observado, os homens preferem mentiras à verdade. Seja como for, só posso
dizer isto: em certo dia de novembro, em uma tarde úmida, nublada e chuvosa,
com um sol vermelho-sangue pairando sobre os pântanos, eu pescava em um
riacho preguiçoso e não conseguia pegar um só peixe. Pensei comigo mesmo:
não terá chegado a hora de eu abandonar essa história de cavaleiro errante, que é
um jogo tolo quando já se disse e já se fez tudo, e pôr em ordem as minhas
terras? E naquele instante surgiu do pântano uma figura que diante dos meus
olhos deixou cair as roupas enlameadas e se revelou a mais bela das mulheres,
exceto por uma imperfeição: o coração fora arrancado e o peito derramava
sangue. Aproximou-se de mim e falou em voz baixa e em uma língua
estrangeira que não pude entender bem. Apesar do ferimento, eu teria me
deitado com ela, pois a desejei fortemente. Devo admitir isso. Mas ela não quis e
me recusou. Em vez disso, pegou a minha mão e colocou-a no ferimento, onde
deveria haver o coração, e depois falou novamente e eu a compreendi dizer que
fora cruelmente enganada por um cavaleiro que lhe jurara amor imorredouro.
Ela me enfeitiçou. Não há dúvida, pois a sua vontade subjugou a minha e eu me
deixei comandar. E o seu comando foi essa charada que desde então sou
obrigado a executar, e da qual hoje ouso esperar que a tua coragem e a tua
firmeza tenham me libertado.
Ao dizer isso, chorou, o que Gawaine jamais o vira fazer antes, e Gawaine o teria
consolado, se soubesse como.
Mas o Cavaleiro Verde se levantou, sacudiu o corpo e deu uma risada. E
Gawaine percebeu amargura e ansiedade naquele riso e teve medo.
— Mas pode ter sido um sonho — disse Sir Tobias —, e às vezes acredito que foi,
e que eu mesmo maquinei esse jogo meramente por estar entediado. E a
maldição da nossa era, que aflige especialmente cavaleiros como eu, que
viajaram o mundo até os limites, viram muito, demais, e não acharam coisa
alguma que valesse a viagem a não ser as fases da lua... E o tédio da vida que me
aflige e me faz ansiar pela morte, e que não tenho meios para satisfazer. E assim
represento essa paródia da morte que me é negada. Isso faz sentido para ti, meu
velho? — e encerrou com um sorriso pesaroso.
— Sentido nenhum — respondeu Gawaine —, pois na minha experiência, meu
amigo (acho que posso verdadeiramente te chamar assim), a morte chega fácil
para a maioria dos homens, e freqüentemente antes de eles quererem se livrar
da carne. Temo que estejas enfeitiçado.
— Essa idéia não me é estranha, acredita-me.
— E, no entanto — disse Gawaine —, quando falas do tédio da vida e do teu
desejo de morrer, o que dizes toca uma corda no mais íntimo do meu ser, ainda
que me julguem um homem que se alegra com a vida e que conquistou grande
fama. Será possível que o mundo em que habitamos não seja o que parece, mas
sim um mundo em que representamos um drama fantasmagórico regido pelo
destino?
— Bem pode ser assim — disse o seu companheiro. — São mistérios. E agora
acho que devemos beber cerveja. Sc queres saber, meu amigo, estamos
condenados a ter problemas e devemos enfrentá-los. E não há remédio, mas a
cerveja ajuda.
Na manhã seguinte, Gawaine partiu e cavalgou de volta para Camelot, e
enquanto cavalgava, pensou: “Foi a coisa mais corajosa que fiz na minha vida, e
no entanto agora parece sem sentido. Sir Tobias chamou-a de charada. Talvez
fosse apenas isso. No entanto, precisamos continuar, e o importante é produzir
um bom espetáculo e agir como se houvesse um significado que não
conseguimos compreender...”
VI

E assim Gawaine cavalgou de volta para Camelot e, com a mente ocupada com
as maravilhas que vira e ouvira, enganou-se de caminho e deparou com uma
floresta de carvalhos e faias gigantes. Estava tudo muito tranqüilo naquela
floresta. Nenhum pássaro cantava, e ele não viu sinal de casas nem de animais
selvagens. A noite caiu e ele se deitou para dormir, com as costas apoiadas em
um carvalho.
A lua surgiu e Gawaine acordou de um cochilo intermitente e ouviu música.
Depois de se assegurar de que estava tudo bem com o cavalo, seguiu uma trilha
que parecia levá-lo até a música. Caminhou cauteloso por entre as sarças que a
margeavam e logo chegou a uma clareira na floresta, onde viu de onde provinha
a música, ao som da qual dançavam seres de que ele apenas ouvira falar: fadas.
E a dança era leve e elegante, como ele vira na corte.
Durante algum tempo, Gawaine ficou ali, extasiado, pois jamais vira algo tão
belo quanto aqueles pequenos seres delicados, cujas roupas iridescentes lhe
pareceram frágeis como teias de aranhas. E na verdade, as fadas têm o hábito de
fiar com fios de teias de aranhas as roupas que usam em cerimônias como o
solstício do verão, embora primeiro as tinjam com todas as cores do arco-íris.
Então uma que parecia ser a rainha, pois usava uma coroa de madressilvas,
aproximou-se de Gawaine sem demonstrar surpresa com a sua presença e
dirigiu-se a ele como se fosse um convidado há muito esperado.
Depois o conduziu ao círculo mágico e as fadas dançaram à sua volta e o
agradaram muito, pois Gawaine era tão rude e simples quanto honesto; e por ser
inocente e isento de hipocrisia, não suspeitou de que poderiam lhe causar dano.
Então chegou outra fada, de tamanho humano, montando um cavalo branco, e
acenou para Gawaine, convidando-o a montar na garupa, ao que ele não se
negou e obedeceu, pois ela era adorável como um lírio primaveril. E a fada
cavalgou com ele para longe, levou-o para o seu recanto, onde fizeram amor.
Manteve-o ali durante sete dias e sete noites, dando-lhe um prazer contínuo até
ele ficar fraco de amor e totalmente exausto. E assim ele se submeteu à vontade
da fada, tornou-se seu escravo e se contentou em ser seu servo.
Não lhe ocorreu que essa conduta fosse pouco viril. Ao contrário, parecia
experimentar a suprema bênção, como de fato ocorreu, e o que a fada pretendia
era que ele jamais desfrutasse o amor de seres mortais.
Mas amor de fada é como ouro de fada: metal falso. Daquele dia em diante,
Gawaine foi menos feliz do que antes e vaguearia desconsolado pela vida. E
como pensava ter saboreado o vinho do Paraíso, desprezava todas as safras
inferiores.
Depois de muitos dias, Gawaine foi levado pela sua dama a um grande lago que
ficava na extremidade da floresta, cercado de colinas escuras por três lados. Ali
ela tocou com uma flauta um sinal de chamada e outra figurinha de fada surgiu
das águas do lago e adiantou-se para a margem onde eles a esperavam, sem
fazer qualquer movimento corporal que Gawaine pudesse observar. Era Vivian,
irmã da dama que levara Gawaine até ali. As duas fadas se abraçaram e depois
conduziram Gawaine a uma cabana rústica, entre sorveiras.
Ali estava deitado um cavaleiro que parecia dormir. Na verdade, Gawaine não
percebeu de imediato que se tratava de um cavaleiro, pois este vestia apenas
uma túnica exígua.
O cavaleiro era Lancelot, e a sua história, curiosa. Lancelot era filho de Ban,
duque da Bretanha, e da sua esposa Helena, meia-irmã mais velha de Morgan le
Fay, mas não de Artur, pois ele e Morgan compartilhavam o pai, enquanto
Helena era irmã de Morgan pelo lado materno. Helena era loura como um
campo de milho e famosa em toda a Europa pela beleza, e muitos cavaleiros
tentaram ser seus amantes. Mas ela era virtuosa e fiel ao marido duque. No
entanto, este era um homem pouco dotado e também imprudente e condenado
ao infortúnio. Assim, foi expulso do seu ducado pelos rebeldes e fugiu para a
Britânia, onde ele e Helena buscaram a ajuda do marido de Morgan, o rei Lot, de
Orkney. Mas Lot se recusou a ouvir os apelos do duque, e assim Ban e Helena
vaguearam muitos anos na. miséria até o filho nascer em uma humilde cabana
de lenhador. Então Ban adoeceu de febre e morreu; e Helena, temendo pelo filho
recém-nascido a quem amava ternamente, ouviu dizer que a fada Vivian possuía
poderes que tornariam um cavaleiro invulnerável em combate. E assim levou o
bebê Lancelot ao lago e pediu que Vivian empregasse os poderes em favor do
bebê. Ora, quando Vivian viu o menino, vislumbrou o bonito cavaleiro que seria,
superando todos os demais em beleza, e enamorou-se daquela visão. Ao mesmo
tempo, disse a Helena que poderia, de fato, conceder ao seu filho a
invulnerabilidade almejada, mas para isso Helena precisaria entregar-lhe o
menino e jamais voltar a vê-lo. Helena hesitou por um instante, mas o seu amor
por Lancelot era tal que ela consentiu. Assim, Vivian pegou o menino, levou-o
para o lago e afundou com ele naquela água negra. Helena acompanhou a dupla
com os olhos toldados de lágrimas, até desaparecerem. Chorou, e as lágrimas
não cessaram durante sete dias e sete noites e quando afinal pararam de fluir,
Helena ficara cega. E assim vagueou pela floresta, lamentando a triste sorte e a
escolha que fizera, pranteando o filho (que temia ter se afogado), até que ela
própria caiu em desespero e morreu. Enquanto isso, Lancelot era criado em uma
caverna no fundo do lago, guardado (dizem) por dragões até chegar à
maturidade e saber (ninguém sabe como) que era um homem.
Assim, decidiu voltar ao mundo dos homens e provar que era um poderoso
cavaleiro. Durante muitos meses, Vivian resistiu às alegações de Lancelot até ver
que ele, por sua vez, começava a definhar; temeu que ele morresse, pois, sendo
fada, tinha grande horror à mortalidade. E assim consentiu; e foi por isso que a
irmã de Vivian seduziu Gawaine e o levou até ali para que ele pudesse
acompanhar Lancelot à corte do Rei Artur e lhe ensinasse o que ela sozinha não
poderia: os deveres de cavaleiro, que as fadas não entendem, e as regras da
cavalaria, que para elas nada significam.
Gawaine logo se encantou com Lancelot. Desde o início amou-o como irmão.
Fazia parte da sua nobreza não invejar Lancelot, mesmo quando o levou para a
corte e viu como Artur o idolatrou desde o dia da chegada. Sim, apesar de
Lancelot suplantá-lo e ocupar na estima do rei a posição mais elevada, antes
pertencente a Gawaine, este jamais titubeou no amor e na admiração pelo
amigo.
E, de fato, Lancelot era maravilhosamente dotado. Desde o início, a sua beleza
suplantou a de todos os demais cavaleiros. Era alto, bem-feito, de pernas longas e
pele macia. Cabelos louros e vibrantes olhos castanhos escuros. Todas as damas
(e receio que muitos homens) achavam os seus lábios talhados para o beijo.
Nariz reto, queixo firme. Em resumo, era o cavaleiro mais perfeito que se
poderia imaginar. A voz também era grave e gentil, até mesmo suave.
Raramente ria, mas o seu sorriso era como o sol surgindo por trás de uma
nuvem.
Então logo se viu que ele se destacava em todos os exercícios da cavalaria.
Desde a primeira justa foi o campeão, e na batalha mostrou-se o mais bravo dos
bravos. Não havia cavalo que não conseguisse domar, e embora jamais tivesse
treinado um falcão até chegar à corte, logo também superou os outros nessa arte.
Apesar de tudo isso, Lancelot não era vaidoso. Na verdade, parecia nem notar a
própria excelência.
Como eu disse, Artur estava encantado. Os homens logo observaram que ele
mencionava o nome de Lancelot nos discursos, pouco importava o assunto em
discussão. Parecia que fazia isso pelo mero prazer de pronunciar aquela palavra.
Outros se comportavam igualmente; por exemplo, Gaheris, irmão de Gawaine,
não conseguia esconder o seu fascínio por Lancelot. Os homens diziam que para
conseguir um sorriso de Lancelot, Sir Gaheris se despiria e rolaria nas urtigas.
Por certo isso expressava a devoção de Gaheris, conhecido pela finura e pela
delicadeza a ponto de acusarem-no de efeminado.
Em resumo, Camelot jamais testemunhara prodígio igual.
Apenas Cal tinha reservas. Admitia os encantos de Lancelot, e até confessava
para si mesmo que lhe despertavam o desejo. Reconhecia que Lancelot fazia
melhor figura do que Artur que perdera a vivacidade infantil, apresentava um
rosto desgastado pela angústia e pela responsabilidade, com os cabelos escuros
recuando nas têmporas e ficando grisalhos. Agora Artur se vergava e caminhava
rígido, às vezes claudicando quando o vento soprava do leste. Tinha pouco apetite
e foi obrigado a se abster de vinho. Cal viu que Lancelot eclipsara o imperador-
rei, atraindo para si a devoção dos jovens cavaleiros, e com uma vitalidade que
parecia censurar o ar fatigado de Artur. Além disso, Cal percebeu antes de
qualquer outra pessoa que Guinevere lançava olhares para Lancelot. Sabia que
agora ela estava cansada de Artur, e que tudo o que sentira por ele morrera.
“Vaca saxã!”, resmungava Cal para si mesmo. Sabia algo que a corte ignorava:
que embora Artur se dirigisse todas as noites para o quarto da rainha, ali não
permanecia, mas o atravessava e ia dormir em uma cama de campanha no
quarto da torre, pouco adiante. O casamento, realizado por motivos políticos,
seguira o curso de muitos desses casamentos. O rei e a rainha ainda não
desgostavam um do outro, mas aproximavam-se dessa situação; e Cal percebeu
que Artur agora sentia desprezo pelo corpo que antes o excitara, e se censurava,
experimentando culpa. Na verdade, isso é comum até entre os que se casam por
amor, o que raramente é permitido aos príncipes. Mas devido ao elevado senso
de honra de Artur, ele não arranjou amante nem concubina, o que (pensava)
seria uma vergonha para a rainha. E então vivia infeliz, e Guinevere insatisfeita.
Ela fazia as aias lhe lerem romances sobre cavaleiros errantes e damas a quem
eles professavam devoção; e comia doces e, como boa saxã, engordou. Além
disso, o casamento não produziu filhos e o povo culpava a rainha.
Assim, desde o momento em que viu Lancelot pela primeira vez, Guinevere
ficou apaixonada e decidiu seduzi-lo. Ate então fora fiel a Artur, mas a sua
fidelidade começava a incomodar e ela estava pronta para uma aventura. E
agora, ansiosa por trair Artur, desenvolveu uma antipatia pelo marido; e isso,
meu príncipe, ocorre freqüentemente com as mulheres, que sempre acham
alguma justificativa para os seus atos que, na sua opinião, são sempre corretos.
Guinevere disse para si mesma que Artur a insultara com o descaso. Apoiou-se
nos boatos que ouvira relativos ao amor que Artur sentira antes pelo adorável
Peredur, e agora suspeitava de que ele desfrutasse relações carnais com alguns
dos jovens cavaleiros. Por esse motivo culpava Cal, a quem odiara desde o início,
considerando-o um alcoviteiro do rei, e a quem desejava destruir.
Investiu para Lancelot. A princípio ele hesitou, cônscio das lições que Gawaine
lhe dera sobre honra. Mas embora entendesse o conceito, não o sentia porque
fora educado pelas fadas. Então não demorou muito a corresponder e a se tornar
amante da rainha. Propiciou-lhe deleites que ela jamais conhecera; no amor, ele
era tão terno e imaginoso quanto lascivo. Mas logo se entediou. Era esse o seu
infortúnio, a maldição que Vi vi an lhe impusera: ele podia inspirar amor aos
outros, mas não experimentá-lo. Não poderia ser diferente e, portanto, ele não
deve ser condenado: era vítima da distorção que as fadas realizaram na sua
natureza. Buscava, encontrava e dava prazer no ato do amor, mas era incapaz de
ser constante, e também incapaz de se entregar. A vaga consciência dessa
condição causava-lhe infelicidade. Enquanto os verdadeiros amantes se deliciam
(assim me contam) em ficar um nos braços do outro depois de terem feito amor,
e encontram grande prazer em acordar juntos, Lancelot conhecia apenas o vazio
e uma profunda tristeza que, no entanto, o impelia a tentar ainda com mais ardor
o amor que não conseguia sentir. E, no entanto, aqueles com quem ele fazia amor
percebiam essa deficiência.
Enquanto isso, Sir Gawaine observava o progresso do amor da rainha por
Lancelot e ficou consternado. Compreendia a vergonha que aquilo causaria ao
rei e, temendo que Artur, se soubesse do caso repudiasse Guinevere, o que seria
uma grave ofensa para os saxões, insistiu para que Lancelot deixasse Camelot, de
modo que, na sua ausência, o amor da rainha pudesse esfriar. Lancelot
concordou, pois não desejava provocar vergonha no rei, a quem reverenciava e
a quem queria servir com lealdade.
E assim foi embora de Camelot, triste e buscando enterrar a sua desdita em
lugares desertos. Atravessou os mares rumo à sua Bretanha natal, onde foi
capturado pelo tio, o duque que usurpara o lugar do seu pai, e lançado à
masmorra. O tio temia e odiava Lancelot e mandou amarrá-lo a um pilar com
uma corrente de ferro. E ali Lancelot enfraqueceu, perdeu a consciência e ficou
louco.
Em Camelot, a confusão era geral. A rainha começou a definhar. O próprio Artur
ficou consternado com o que considerou deserção de Lancelot e não se
conformava, embora Cal lhe dissesse que fora melhor assim. Gawaine também
estava infeliz, embora dissesse para si mesmo que agira por bem. Parecia que
um inverno triste recaíra sobre a corte, extinguindo-lhe a alegria. Artur mandou
saber por toda parte o que acontecera a Lancelot, mas não recebeu notícia
nenhuma por muitos meses. Ninguém ousava dizer ao rei que Lancelot e
Guinevere o haviam enganado, e a própria Guinevere guardou segredo, com
medo do ódio de Artur. Finalmente, um cavaleiro de nome Sir Bors, que viajara
pela França, à época ainda conhecida como Gália, ouviu contar que o duque da
Bretanha capturara um imponente cavaleiro que fora reclamar o ducado e o
prendera em um castelo chamado Douloureux; e na vizinhança dizia-se que o
nome do cavaleiro era Lancelot.
Ao ouvir isso, Artur se regozijou e de imediato reuniu todos os cavaleiros e
liderou um poderoso exército pelo mar, em direção à Bretanha, onde atacou o
duque. Nunca houve tanta matança nem tantos nobres cavaleiros mortos (dizem).
A batalha durou três dias e a cada dia mais intensa do que no anterior, até que
afinal ambos os exércitos ficaram exaustos e o duque mandou um enviado a
Artur propondo trégua. Alguns aconselharam-no a rejeitar a proposta e reiniciar
o combate, mas Artur, entristecido com a perda de tantos companheiros, aceitou
o oferecimento do duque, desde que este libertasse e lhe entregasse Lancelot. E
se isso fosse feito, dizia, ele se retiraria pelo mar rumo à Britânia e deixaria ao
duque a posse do ducado. E assim o duque consentiu, sabendo que Lancelot
estava louco e acreditando que ele não mais ameaçaria superá-lo e reconquistar
o ducado que lhe pertencia por direito de herança.
E assim Sir Gawaine e Sir Gaheris entraram no castelo, corretamente
denominado Douloureux, para resgatar Lancelot; e quando o viram, e a condição
em que se encontrava, ambos choraram. Lancelot não os reconheceu, com
aquele olhar desvairado e vazio; a barba crescera e ele choramingou de medo
quando os dois se aproximaram. Os cavaleiros o libertaram dos grilhões,
ampararam-no suavemente e o fizeram montar na garupa do cavalo de
Gawaine, ao verem que estava fraco demais para cavalgar sozinho. E então
levaram Lancelot de volta ao exército e depois para a Britânia, e todos os homens
se horrorizaram com aquela visão. A própria Guinevere ficou dividida entre a
piedade e a decepção ao ver as condições do amante. Por um instante não
conseguiu entender como pudera amar alguém ora reduzido àquele estado tão
lamentável, e acreditou que jamais conseguiria amá-lo de novo. E como
considerava Cal responsável pela fuga de Lancelot, embora sem motivo algum a
não ser a inimizade que lhe devotava, acusou-o perante o rei de ter delatado
Lancelot ao duque. Cal negou a acusação e sentiu-se tentado a contar a Artur que
a rainha o traíra com Lancelot. Contudo, manteve o silêncio, pois sabia a tristeza
que isso causaria a Artur. Então a rainha arranjou uma testemunha, um cavaleiro
cujo nome a história não registra, embora seja raro cair no esquecimento o
nome de alguém tão iníquo. Esse cavaleiro declarou sob juramento que ouvira
Cal tramar com um emissário do duque a entrega de Lancelot. Artur hesitou em
acreditar, dizendo que jamais desconfiaria de Cal. Mas Guinevere insistiu em
culpá-lo e disse que se recolheria a um convento, se o rei não lhe desse crédito.
Portanto, com grande relutância Artur baniu Cal da corte e enviou-o para o exílio
além-mar.
Enquanto isso, Gawaine procurou a fada Vivian para pô-la a par do que
acontecera com Lancelot e lhe pedir que o curasse da loucura. Ela indicou um
lugar na floresta para onde Gawaine deveria levar Lancelot e entregá-lo aos seus
cuidados.
VII

Enquanto Lancelot se curava da loucura, Artur caiu em depressão. Parecia-lhe


que a jubilosa manhã do seu reinado escurecera. Nuvens sombrias pairavam
sobre o rei. O vento soprava e a chuva era gelada. As tentativas de evitar o
naufrágio do casamento falharam. Guinevere se afastava dele, pouco lhe falava,
e quando o fazia era com frieza. Enquanto isso, os saxões andavam inquietos,
prestes a se rebelar, e mais uma vez Artur precisou adiar a guerra que pretendia
empreender para restaurar o Império de Roma. Até o papa, oprimido por tribos
bárbaras (lombardos e vândalos), mandou lhe pedir ajuda e ele não pôde (ou
melhor, nem ousou) partir da Britânia, onde por toda parte cresciam o
descontentamento e a desordem. Até o seu velho inimigo, o rei Lot, de Orkney,
reerguera a cabeça, e corria o boato de que se aliara aos rebeldes saxões. Ao
mesmo tempo, piratas vagueavam pelos mares, e ferozes guerreiros do norte
faziam incursões até os rios do leste.
Artur sentiu-se sozinho. Perdera Merlim. Perdera Goloshan. Perdera Peredur. E,
sobretudo, perdera Cal. E assim, privado de conforto e de conselhos, passou
meses de inquietação. Os cavaleiros perceberam o estado de ânimo do rei e
foram infectados pela sua ansiedade. As brigas e as trocas de socos eram
freqüentes. A fraternidade da Távola Redonda se rompera.
Nesse período nada auspicioso ocorreu um evento estranho que alguns viram
como milagre e que para nós, de hoje, lança uma luz gloriosa sobre aqueles
tempos sombrios, e que levaria à busca do Santo Graal.
A propósito do Graal contam-se muitas histórias e oferecem-se muitas
explicações. Seria imprudente afirmar qual a verdadeira. Contudo, na medida
em que me dediquei a vos contar essas histórias, meu príncipe, agora vos
apresento a versão que ouvi quando jovem em Tweeddale, onde me garantiram
que os homens a transmitiam oralmente, ao longo das gerações, de alguém que a
ouvira dos lábios do próprio Merlim. Seja como for, nada do que eu aprendi nos
meus profundos estudos nas bibliotecas de Roma e Nápoles, Salerno e
Salamanca, Paris e Oxford, e aqui em Palermo, contradiz essa versão, pelo
menos não de modo conclusivo; e, de fato, os meus estudos mais profundos
servem, até certo ponto, para confirmar o que ouvi pela primeira vez de um
sábio em Drumelzier, que dizia tê-la ouvido de um ermitão do vale Ettrick.
Quando Lúcifer, que também é Satã e o Pai de Todo o Mal, foi expulso do Céu
indo viver num lago de enxofre ardente, aconteceu de cair uma jóia da coroa
que lhe fora concedida quando se sentava à direita do Todo Poderoso, jóia essa
desenhada pelo mais hábil dos ourives. Essa gema caiu na terra e foi encontrada
no Gólgota, local de sepultamentos nos arredores de Jerusalém, onde Cristo seria
crucificado. E isso é verossímil porque o Gólgota fica perto de Geena, uma das
entradas para o Submundo que os cristãos denominam Inferno.
Ninguém sabe quem encontrou jóia tão preciosa, mas sabe-se que foi levada à
presença do mais glorioso dos reis, Davi, pai de Salomão, o construtor do Templo
de Jerusalém. Essa missão fora negada a Davi, pois ele tinha nas mãos sangue de
inocentes, mas quando recebeu a jóia ordenou que fosse incrustada em um vaso
de grande beleza, que gostaria de dedicar ao uso no Templo que o filho
construiria. E assim a jóia permaneceu no Templo, outra maravilha, até ser
raptada pelos judeus para o exílio na Babilônia; e nesse período desapareceu.
Muitas gerações depois, ninguém sabe como mas talvez pela vontade do Todo
Poderoso (pode-se supor), chegou às mãos de um certo José de Arimatéia, rico
mercador de Jerusalém que a avaliou pela beleza, por ser grande apreciador das
belas jóias.
Esse José ouvira a palavra de Cristo, embora recusasse o batismo, e presenteou o
cálice a Jesus, que nele bebeu na Ultima Ceia que compartilhou com os
apóstolos. E então quando Jesus foi preso, traído por Judas chamado de Iscariotes
e crucificado, José ficou perto da Cruz e captou algumas gotas do sangue do
Redentor naquele cálice, o Graal, daí em diante denominado Sagrado, uma vez
que o sangue fluíra do ferimento causado pela espada do centurião no lado de
Jesus.
Então, acredita-se que daquele dia em diante o cálice adquiriu poderes mágicos,
pois estava escrito: “Todos os que o olhassem, mesmo que doentes à beira da
morte, não morreriam; todos os que o fitassem longa e atentamente escapariam
às intempéries da idade, pois os rostos não feneceriam e os cabelos não ficariam
brancos”.
Ora, segundo o relato, José carregou o corpo do Cristo crucificado, do Gólgota
até o Jardim, onde o fez descansar em um túmulo; e quando Cristo ressuscitou
dos mortos, os judeus, alarmados e aborrecidos, declararam que José o fizera
desaparecer misteriosamente. Assim, agarraram. José e o lançaram na prisão,
onde definhou por um ano e um dia sem comer nem beber. No entanto, como
José trazia consigo o Graal, fato que os judeus ignoravam, não sofreu qualquer
dano.
Muitos anos depois, um certo imperador (alguns dizem que foi Vespasiano e
outros, Adriano) ouviu falar da história da Paixão e da participação de José,
narrada por um cavaleiro que chegara a Roma, vindo da Terra Santa. Esse
imperador mandou saber a verdade, pois desejava obter uma relíquia sagrada. E
isso porque o seu filho Tito (se o imperador em questão foi Vespasiano) ou o seu
amante Antínoo (caso fosse Adriano) estava doente (leproso segundo alguns, ou
em profunda melancolia, segundo outros).
Antes que fosse tarde demais, os cavaleiros voltaram e relataram ao imperador o
que haviam apurado com Pilatos, o governador romano que lavara as mãos
quanto ao destino de Cristo. Também trouxeram uma velha de nome Verônica,
que enxugara o rosto de Jesus com um pano onde ficou impressa a sua
fisionomia; e ela trazia consigo esse pano, e a fisionomia era nítida como o sol
nascente. O imperador pressionou o pano no rosto de Tito (ou de Antínoo,
conforme o caso), e o rapaz instantaneamente recuperou a saúde e o vigor.
Então procuraram José e o encontraram na prisão, ainda acorrentado a um pilar,
porém saudável e forte. E assim ele foi libertado. Mas, temendo a vingança dos
judeus cujo Templo fora destruído por Tito, num acesso de raiva, José fugiu com
a irmã, Eugênia, e com o marido desta, Brons; atravessaram o mar até
chegarem a Massília, atual Marselha, onde permaneceram até que um dos seus
discípulos cometeu um pecado grave que causou na região uma escassez de
comida ou, segundo alguns relatos, uma praga.
Então, José procurou descobrir o culpado e convidou os discípulos para cearem
com ele um grande peixe que pescara naquela manhã. Onze tomaram os seus
assentos e fitaram o Graal que José colocara no centro da mesa. Quando o
décimo segundo discípulo, cujo nome era Moisés, se sentou, a sua culpa ficou
aparente, pois a terra se abriu e o engoliu, levando-o, segundo se supõe,
diretamente para o Inferno. As propriedades do Graal são verdadeiramente
miraculosas.
Em seguida José se endividou, como ocorre até hoje com muitas pessoas em
Marselha, e prudentemente escapou dos credores e veio para a Britânia. Trouxe
o Graal e estabeleceu-se em Glastonbury, onde enterrou uma lasca da Cruz em
que Cristo ficara pendurado. A lasca se transformou em uma roseira que floresce
todos os anos no dia de Natal. Por isso Glastonbury é um lugar sagrado de
peregrinação. Alguns nativos foram convertidos por José, ou melhor, pelo seu
exemplo, pois ele jamais pregou a sua fé. Mas isso aconteceu muitos anos antes
de o grande imperador Constantino ver a Cruz flutuando no ar quando estava
prestes a combater na Ponte Mílvia, sobre o Tibre, e sair vitorioso com aquele
símbolo. E assim a comunidade cristã de Glastonbury enfrentou perseguição no
reinado do imperador Domiciano (outros dizem que foi Diocleciano), até ser
extinta. No entanto, alguns historiadores relatam que essa comunidade escapou
graças às propriedades do Graal, que José deixara como herança; mas outros
sustentam que o último fiel, antes de ser condenado à morte, confiou o Graal às
profundezas do lago conhecido como Avalon, para que não fosse roubado nem
profanado pelos pagãos, como esse grupo considerava até mesmo os romanos. E
se alguém perguntar por que o Graal não salvou aqueles fiéis do seu infeliz
destino infeliz, deve-se responder que os caminhos do Todo Poderoso são
imperscrutáveis, e que Ele conduz a sua obra de maneira misteriosa; por isso, o
que a princípio parece ruim, a longo prazo muitas vezes serve a algum propósito
benéfico e vice-versa, naturalmente.
Esta é a versão da origem do Graal disseminada também pelo Abade de
Glastonbury e pelos seus monges, que alguns acusam de tê-la planejado para
aumentar a importância da sua comunidade...
Outra versão do conto é a seguinte: um famoso cavaleiro, de nome Titurel,
herdeiro de grandes propriedades concedidas ao seu avô pelo imperador
Vespasiano como recompensa pelos empenhos e façanhas na guerra contra os
judeus, passou os primeiros anos da idade adulta engajado na guerra contra os
sarracenos e venceu muitas batalhas e se apoderou de muito butim. Tudo isso ele
doou ou à Santa Igreja ou aos pobres (que fizeram melhor uso). A sua fama se
espalhou por muitas terras e há registros escritos de que a sua coragem e a sua
bravura na guerra apenas se equivaliam à sua virtude e à sua humildade.
Certo dia, caminhando pelas colinas da Galiléia, foi abordado por um anjo que o
saudou com uma voz de suprema doçura e comunicou-lhe ter sido ele o
escolhido para ser o guardião do Santo Graal, que encontraria em uma certa
montanha chamada de Monsalvat. Sentindo-se grandemente honrado, Titurel
voltou ao acampamento. Mas também ficou surpreso, pois não conhecia
montanha alguma com aquele nome. E, de fato, até os dias de hoje ninguém
descobriu o que era nem onde ficava, embora alguns digam que seja o monte
Etna, aqui na Sicília, e outros apontem para o monte Gargano, morada escolhida
pelo arcanjo Miguel em suas visitas à terra e que também é, como deveis vos
lembrar, segundo alguns, o local em que foi concebido o avô de Artur, o
imperador Marcos. Então, é provável que Montsalvat e o monte Gargano sejam
um único e mesmo lugar.
Durante muitos dias, Titurel esperou por um sinal e finalmente uma longa nuvem
branca surgiu no azul do céu e guiou-o em uma longa jornada que o levou
através de desertos e florestas e além-mar, até ele chegar ao sopé de uma
montanha envolta em bruma. Apesar do perigo, ele subiu, e quando chegou ao
topo miraculosamente se desfez a bruma através da qual a nuvem branca se
movimentara para conduzi-lo; e brilhando pouco acima, Titurel viu o Graal,
como que amparado por mãos invisíveis. Caiu de joelhos e rezou pedindo para
ser digno daquele encargo; e uma voz veio do Céu, ordenando-lhe que construísse
um templo adequado para receber o cálice sagrado. E em seguida a visão do
Graal desapareceu.
E assim Titurel convocou os seus cavaleiros, muitos pedreiros e trabalhadores
especializados em moldar pedras preciosas. A construção do templo demorou
muitos anos, pois era maior e mais imponente do que o de Salomão, e ali havia
uma capela para cada um dos cem cavaleiros, que a partir desse dia foram
denominados Cavaleiros Templários. Terminado e consagrado o edifício, os
cavaleiros formaram uma procissão e marcharam em torno, cantando salmos e
balançando incensórios. Então os olhares de todos foram atraídos para o altar
onde, em um feixe de luz branca, surgiu o cálice sagrado, movendo-se
silenciosamente pelo ar. Todos pareciam totalmente atônitos ao verem aquela
maravilha; e nesse exato momento um coro de anjos entoou um cântico de
louvor, e continuou cantando até Titurel erguer as mãos e se apossar do Graal.
Ergueu-o bem alto e todos caíram de joelhos e veneraram.
Por muitos anos, amparados pelo Graal, Titurel e os seus cavaleiros saíram
vitoriosos de batalhas contra os sarracenos, mesmo quando estes os suplantavam
em número na proporção de vinte para um. Pois quando lutavam em defesa do
Graal, eram invulneráveis.
Mas com o passar do tempo Titurel envelheceu e ficou frágil e, tendo morrido o
seu filho, foi o filho do seu filho, Amfortas, quem assumiu o cargo de Grão-Prior
da Ordem. Ele também era um cavaleiro pujante, porém de temperamento
irritadiço. E assim, certo dia, julgando-se desrespeitado pelo rei da França que
lhe roubara o pajem favorito, esqueceu as regras da Ordem de não fazer guerra
a um companheiro cristão. Nessa batalha, Amfortas foi ferido por uma lança
com a ponta embebida em veneno; com dificuldade e doente, dirigiu-se ao
templo. Embora não morresse, o ferimento jamais sarou e ele sofreu
dolorosamente.
E assim Titurel rezou para que Amfortas se livrasse da dor que lhe atormentava
todos os dias e todas as noites. E ao abrir os olhos depois de orar viu o Graal
iluminado e leu ali uma mensagem dizendo que um cavaleiro de espírito puro, e
que ignorava a carne, certo dia subiria à montanha e perguntaria o motivo do
sofrimento de Amfortas. Com essa pergunta, o malefício que mantinha a terra na
infelicidade cessaria, Amfortas ficaria curado e o cavaleiro puro seria aclamado
como guardião do Cálice Sagrado.

Artur costumava dar um grande banquete para todos os seus cavaleiros à época
de Pentecostes, mas naquele ano não tinha vontade de fazê-lo. Sentia-se triste e
mergulhado em melancolia. Não havia ninguém em quem pudesse confiar.
Gawaine e Lancelot ainda estavam ausentes e os mais próximos a ele, pela
posição na corte, eram os velhos cavaleiros Kay e Bedivere, que jamais o
apreciaram e cujos conselhos ele tantas vezes desconsiderara.
Então estava tudo tumultuado e muitos se perguntavam se o banquete se
realizaria ou não. Alguns jovens cavaleiros haviam perdido a calma. Um deles,
de nome Mordred, cujas origens todos ignoravam embora eu já vos tenha
revelado, fora recentemente admitido à Ordem e, como recém-chegado,
convinha que se mantivesse calado, falando apenas quando lhe dirigissem a
palavra, e assim mesmo com modéstia, mas logo passou a concordar com os
desafetos. Mordred tinha língua afiada e um sorriso insinuante. Aqueles que
conversavam com ele logo descobriam a sua inteira concordância, a simpatia
para com os seus infortúnios e sofrimentos e a disposição para fazer pilhérias às
custas da autoridade. Ao mesmo tempo, era cuidadoso. Referia-se a Artur de
modo sempre respeitoso; mas quando parava de falar, aos olhos dos
interlocutores o rei ficava diminuído.
— É claro que o rei fez bem em se livrar daquele Cal. Pelo menos é o que me
dizem. A minha mãe costumava dizer que ele estava sempre pronto a tentar
corromper o rei, por exemplo, caluniando a... virtuosa... Guinevere ou levando
algum cavalariço de olhos azuis ao quarto do rei. É claro que o rei nada tinha a
ver com isso e no entanto, dizia a minha mãe, ele se afeiçoara àquele Cal porque
na juventude foram atores ambulantes. Eu não creio nisso, é claro, nem a minha
mãe, tenho certeza. Não passa de conversa de mulheres, até mesmo das
melhores, como a minha santa mãe. Ainda assim, fico muito satisfeito por não
ter conhecido esse Cal. Tenho certeza de que a corte ficou um lugar mais limpo
sem essa presença. Mas, a propósito, tereis ouvido dizer que...
A essa altura ele relataria minuciosamente algum boato salaz.
Contudo, na presença do rei, ninguém mais humilde, zeloso, respeitador, mais
adepto da bajulação sutil do que esse Mordred. E no entanto, a sua atitude fazia
com que os cavaleiros insatisfeitos, que deram ouvido às suas conversas,
desconfiassem que ele se deliciava com o próprio desempenho e com a sua
capacidade de praticar a dissimulação.
Quando Artur compreendeu o estado de espírito dos seus cavaleiros, saiu da
letargia, condenando-se por ter se entregue ao desânimo, e mandou preparar o
grande banquete. Fez isso com mais disposição porque Sir Gawaine retornara a
Camelot, trazendo notícias de que Lancelot estava sendo curado da loucura.
E assim, no dia de Pentecostes, todos se reuniram no Grande Salão de Camelot e
assumiram os seus lugares na Távola Redonda. Mas havia duas cadeiras vazias,
uma das quais coberta com um pano de seda.
Quando todos se preparavam para comer, Sir Kay aproximou-se do rei e lhe
disse:
— Majestade, se comerdes agora estareis quebrando a regra dos vossos
costumes, pois nesta festa jamais comestes sem ter visto ou ouvido contar
alguma grande aventura.
— É verdade, e o costume é bom, e no entanto acho que deveremos omiti-lo
hoje, pois não há aventura alguma e os cavaleiros aqui sentados estão ansiosos
para comer e beber — replicou Artur.
Nesse instante, um escudeiro aproximou-se, ajoelhou-se diante do rei e disse em
voz trêmula, de medo ou excitação:
— Majestade, eu vi algo verdadeiramente maravilhoso.
— E o que foi? — indagou Artur, sorrindo pela primeira vez em muitos dias.
— Eu caminhava perto do rio e vi ali uma enorme pedra... — hesitou, e alguns
cavaleiros riram e caçoaram dele até o rei ordenar silêncio.
— ...e aquela pedra — continuou o escudeiro — era grande como um bloco de
montar mas não afundava na água, mas flutuava na superfície. E não é só. Havia
uma espada fincada na pedra.
Ao ouvir isso, Artur pensou em Merlim e na espada que ele próprio extraíra da
pedra, e por um momento receou que aquela maravilha de que o escudeiro
falava representasse algum mau agouro.
Mas sorriu novamente e disse:
— De fato, é uma grande maravilha. Vamos todos vê-la, e depois poderemos
comer e beber.
Então todos saíram do castelo e se encaminharam para a margem do rio, onde
viram a pedra flutuando com a espada fincada, exatamente como o escudeiro
dissera. A pedra era de mármore vermelho e no botão do punho da espada estava
escrito: “Nenhum homem me arrancará daqui exceto ele, em cujo lado devo ser
pendurada, e ele será o melhor cavaleiro do mundo”.
A princípio todos ficaram ansiosos para tentar retirar a espada, e discutiram
quem seria o primeiro.
Então alguém gritou, e dizem que foi Sir Mordred:
— Deixai que o rei retire a espada, pois com certeza ele é o melhor cavaleiro do
mundo.
Artur sorriu e disse que já retirara uma espada de uma pedra e que com aquele
ato fora reconhecido como rei; mas que não lhe convinha arrancar essa nova
espada. Se Sir Lancelot estivesse ali, disse ele, o convidaria para fazer tal
tentativa, pois com certeza todos o reconheciam como o melhor cavaleiro do
mundo.
— Quando não está louco, talvez seja — resmungou alguém, e a fisionomia de
Artur obscureceu.
E então Artur pediu a Gawaine que fosse o primeiro, mas este disse:
— Não, sei que não sou digno. Sou um homem simples, meu rei, e há cavaleiros
melhores do que eu. Além disso, lembro-me de que vós me derrotastes em
combate. Então, como agora posso pretender ser o melhor, se Lancelot também
me desbancou?
Então um velho, todo vestido de branco, que nenhum dos cavaleiros vira antes,
saiu de trás das árvores da margem do rio e falou:
— Vós sois prudente, Sir Gawaine, em declinar do desafio — (e ao ouvir isso
Gawaine corou de vergonha) —, ao constatar que está escrito que quem tentar
extrair a espada e fracassar, um dia será ferido pela mesma lâmina.
Ao ouvirem essas palavras, todos os cavaleiros recuaram, menos um jovem
cavaleiro de nome Parsifal, que se ajoelhou diante do rei e disse:
— Meu rei e senhor, não pretendo ser o melhor cavaleiro do mundo. Sou jovem
e pouco experiente. No entanto, ontem à noite sonhei que executaria um feito
grandioso, mas não consigo lembrar qual. Então, devido a esse sonho, peço-vos
que me concedais permissão para fazer a tentativa.
Artur disse:
— Mas tu não ouviste o velho acabar de dizer que, se fracassares, um dia serás
ferido por essa mesma espada?
— Ouvi, sim, e isso me dá medo. Por outro lado, ele disse “ferido”, e não
“morto”, e os homens se recuperam de todos os ferimentos não-mortais.
Portanto, peço-vos que me concedais a permissão — replicou Parsifal.
Artur olhou para o cavaleiro, pouco mais do que um menino, de constituição
franzina, rosto pálido, olhos cinzentos e pele macia:
— O teu raciocínio é tão válido quanto a grandeza da tua coragem. Portanto, eu
te concedo a permissão.
Parsifal deu um passo adiante, entre as saudações dos companheiros, porém
Mordred puxou a manga do cavaleiro que estava ao seu lado e murmurou:
— Vê com que facilidade um jovem bonito consegue a simpatia do rei! — e esse
companheiro, cujo nome era Ty ry ns, deu um riso abafado.
Parsifal puxou a espada mas não conseguiu extraí-la da pedra. Então afastou-se,
abatido, temendo se tornar objeto de caçoada por ter sido pretensioso a ponto de
achar que o seu sonho se realizaria daquela maneira. De fato, alguns cavaleiros
efetivamente começaram a rir e a gritar, caçoando, mas Artur os fez calar com
um olhar severo e disse:
— Vós, que não ousastes tentar, com medo do fracasso ou do ferimento que a
espada provocaria, ousais caçoar deste jovem que teve a coragem de arriscar a
sorte? Eu vos afirmo que ele se revelou um cavaleiro bravo e digno e, como
prova da sua coragem e em sinal da simpatia que conquistou aos meus olhos,
sentará à minha direita no banquete de hoje.
Muitos ficaram desconcertados e até envergonhados pelas suas risadas. Fizeram
silêncio. E depois retornaram ao castelo. Sir Mordred puxou o companheiro pela
manga e sussurrou:
— E exatamente o que eu disse. Esse Parsifal é um belo espertalhão. Precisamos
prestar atenção nele.
O sol do entardecer brilhava pela porta aberta do Grande Salão e iluminava os
estandartes dos cavaleiros, que pendiam do teto. As mesas, forradas com belas
toalhas de linho, os pratos de ouro e prata, as jóias colocadas no encosto das
cadeiras (ou sedes, como se deveria chamá-las mais adequadamente) dos
cavaleiros, tudo reluzia. O banquete foi de igual opulência. Havia fantásticos
lombos de boi, cordeiros inteiros assados no espeto, tortas recheadas de caça e
aves selvagens. Enormes peixes, salmões, lúcios, carpas cintilavam no braseiro,
cercados de mariscos, lagostas, camarões de água doce, caranguejos, lagostins,
camarões. Havia tigelas com frutas e nozes e muitas geléias, cremes, coalhadas,
queijos e tortas de amêndoas. Os vinhos eram oriundos de Bordeaux e dos
vinhedos de Hampshire, que agora floresciam novamente como no tempo da paz
romana. Em todas as mesas também havia grandes jarras de cerveja, cidra e
hidromel. Na verdade, a abundância de comida testemunhava a prosperidade da
terra e a paz que Artur restaurara através de coragem na guerra, sábia
administração e justiça imparcial.
Duas sedes permaneceram desocupadas quando todos os cavaleiros tomaram os
seus assentos. Uma era reservada para Lancelot, e muitos se perguntavam se ele
compareceria. A outra, ainda coberta por um pano de seda, não se destinava a
cavaleiro algum que se conhecesse, e muito se especulava se o rei os
surpreenderia sagrando algum novo cavaleiro e concedendo-lhe aquela sede.
Artur, no entanto, parecia indiferente. Negligenciando Sir Kay que, como
cavaleiro mais velho ali presente sentava-se à sua esquerda, dirigiu a conversa
para o jovem Parsifal. Alguns se admiraram, mas na verdade sem um bom
motivo. Artur conhecia Sir Kay havia muitos anos. Nada tinham a se dizer que
não tivessem dito muitas vezes antes. Além disso, nunca foram bons amigos. Kay
não conseguia esquecer que antes de Artur ser reconhecido como filho de Uther
Pendragon, ele o desprezava; enquanto, da sua parte, Artur se lembrava dos
chutes e socos que Kay lhe aplicara naquele tempo e dos maus conselhos que
tantas vezes lhe dera. Em todo caso, a triste verdade é que, ainda que tivessem
sido amigos mais próximos, com toda a probabilidade agora haviam esgotado a
conversa. Muito pode ser dito em defesa da amizade, e com boas razões. Muitos
filósofos de alta reputação, de Sócrates em diante, têm nos contado que a
amizade adoça a realidade amarga com que nos deparamos quando saímos do
ventre materno e caminhamos, nus, na terra fria. Ela nos aquece a existência e
nos conforta a solidão essencial. No entanto, o efeito da amizade é transitório.
Todas desmoronam, exceto as mais próximas, e no final constata-se que
ofereceram apenas uma união ilusória. Talvez até as maiores não consigam
escapar desse destino. Se Cristo escapasse da Cruz, chegaria o dia em que olharia
com indiferença para João, o Discípulo Amado. E assim, Artur considerava o
alegre entusiasmo, e até a ingenuidade do jovem Parsifal, preferíveis à conversa
que Kay ou Bedivere teriam a oferecer.
Enquanto todos se ocupavam em conversar, repentinamente as portas e as
janelas do salão se fecharam sozinhas. E uma vez fechadas, um forte vento
irrompeu pelo salão e apagou as velas. No entanto, para espanto geral, o salão
não ficou escuro, mas uma luz branca brilhou.
Então um velho que ninguém se lembrava de ter visto antes postou-se no portal, e
ninguém o vira entrar. Ao seu lado estava um jovem cavaleiro de armadura
rubra, sem portar espada nem escudo, apesar de trazer no cinto uma bainha de
espada vazia.
O velho disse:
— A paz esteja convosco, nobres senhores e cavaleiros. — Conduziu o jovem
cavaleiro até a mesa alta onde estava Artur e disse:
— Meu rei, senhor e imperador, trago-vos aqui um jovem cavaleiro de linhagem
real, e também descendente do santo José de Arimatéia que carregou o corpo do
Cristo crucificado até Getsêmane, o jardim do sepulcro; e este cavaleiro
realizará grandes maravilhas.
Artur, amável, deu boas-vindas e observou o velho conduzir o jovem cavaleiro
até a Sede Perigosa, onde nenhum outro ousara sentar. Ergueu o pano de seda
que a cobria e revelou a legenda: “Esta é a sede de Sir Galahad, Príncipe de alta
linhagem”.
Então o jovem cavaleiro Galahad acomodou-se ali e todos se surpreenderam de
que nenhum mal lhe acontecesse, e parecia que aquela sede era sua por direito.
No entanto, na aparência não passava de um menino, cuja barba ainda não
crescera inteiramente e cuja penugem do rosto ainda não sentira a navalha.
Sentou-se ali como alguém despreocupado com a agitação que causara e não
falou com ninguém, não bebeu vinho nem comeu carne.
Depois o salão ficou escuro como a mais negra noite de inverno, e o vento que o
percorreu vinha do norte e era frio como os ventos de dezembro que trazem a
neve. Todos tremeram e muitos se protegeram com os abrigos de pele, e ouviu-
se rangerem os dentes de vários cavaleiros. O medo se apoderou deles e não
conseguiram encontrar palavras para expressá-lo; todos continuaram sentados,
atônitos, se perguntando que grande maravilha apareceria em seguida.
E com o vento vieram o estrondo e o rugido de um trovão, tão alto que o palácio
estremeceu parecendo desmoronar e que o teto cairia sobre as suas cabeças.
Ainda estava escuro como a mais negra noite do Inferno e frio como o tato do
Demônio. Muitos cavaleiros pensaram nos seus pecados e nos erros que haviam
cometido, e os teriam confessado se o terror não lhes tivesse travado a língua.
Então tudo se acalmou, o vento sumiu e na escuridão brilhou um raio de sol
embora fosse noite, um raio de sol sete vezes mais brilhante do que os raios
solares do solstício de verão. Flutuando no ar, exatamente a meia altura entre o
chão e o teto, todos viram o Santo Graal, coberto por um pano de samito{5}
branco, e no entanto a cobertura era transparente. Ficou ali apenas por um
instante que não durou mais do que o tempo que uma andorinha leva para
atravessar um salão e depois desapareceu com igual rapidez e completamente,
de modo que mais tarde muitos se perguntavam se aquilo não passara de um
sonho, e outros questionavam a evidência dos próprios olhos.
Artur ergue a mão, pediu silêncio e disse:
— Foi-nos concedida uma grande maravilha e agora devemos agradecer a
Nosso Senhor Jesus Cristo pelo que nos mostrou neste dia de Pentecostes.
E Gawaine, profundamente comovido, disse:
— Com certeza, é uma grande maravilha, e no entanto falta algo: na verdade,
não vimos o Graal porque estava coberto por um pano de samito, creio. Portanto,
juro que amanhã à primeira luz do dia partirei em busca do Graal e não
abandonarei essa Busca durante um ano e um dia.
As suas palavras inspiraram muitos outros cavaleiros a se levantarem e fazerem
igual juramento, e os principais foram Lancelot (que chegara tarde ao banquete
e ainda estava pálido pela doença, com as forças debilitadas e indisposto) e o seu
primo Bors; além dos dois outros jovens cavaleiros, Parsifal e Galahad.
Artur ficou dolorosamente perplexo. Por um lado, tinha orgulho dos seus
cavaleiros e do zelo que demonstravam mas, por outro, foi assaltado por maus
presságios. Lágrimas brotaram-lhe dos olhos, o rosto ficou sombrio, ele deu um
profundo suspiro e disse:
— Gawaine, temo que ao fazeres esse voto me prives dos mais justos e mais
leais cavaleiros jamais vistos em qualquer reino, em todas as eras da
humanidade. Pois quando eles partirem, tenho certeza de que jamais voltaremos
a nos reunir no amor e na amizade, e que muitos morrerão nessa busca, e que a
nossa gloriosa confraria se dissolverá.
E com essas palavras retirou-se para o seu quarto e chorou.
VIII

Ninguém sabe ao certo por quanto tempo continuou a Busca do Graal. Há muitas
histórias dessa Busca e distinguir as verdadeiras das falsas é tarefa que desnorteia
até mesmo o Anjo Anotador.
Por exemplo, no curso de suas viagens, Parsival deparou-se com uma dama
acorrentada puxada por um cavaleiro que parecia se comprazer em atormentá-
la e torturá-la. Obediente ao código de cavaleiros que ensinava ser seu dever
auxiliar qualquer dama em dificuldade, Parsival desafiou o cavaleiro para um
combate e derrubou-o da sela. Bem, isso foi muito correto, mas divulgou-se que
o cavaleiro que Parsival obrigara a apear do cavalo era o marido de uma dama
que, na primeira viagem que empreendera a Camelot, Parsival encontrara
adormecida e despertara com um beijo. (Pois a mãe de Parsival, o recomendara
beijar todas as damas bonitas que encontrasse.) A princípio a dama se
aborrecera, mas depois de fitar Parsival, ficou menos zangada e afinal contente,
convidando-o, de fato, a beijá-la muitas vezes. E assim, devido à sua leviandade
com Parsival, o marido a punira e agora Parsival se perguntava se ele próprio
também não deveria se sentir culpado por ter sido o causador do tormento da
dama. Ergueu o cavaleiro caído e pediu-lhe desculpas pelo duplo mal que lhe
fizera, e insistiu para que no futuro tratasse a esposa com mais ternura, e depois
foi embora.
Também dizem alguns que Parsival chegou a um catelo onde o rei estava
acamado, sofrendo de um ferimento doloroso, ou então de uma doença
debilitante, e que por isso a região ficara improdutiva e afligida pela escassez de
alimentos. A rainha saudou-o amavelmente, pois em cada recém-chegado
procurava aquele que formularia a pergunta que livraria o rei da doença e
recuperaria a terra. Assim, ela fez Parsifal sentar-se ao seu lado à mesa alta,
embora, na verdade (se é que existe alguma verdade nessa história), o passadio
estivesse escasso.
Então o rei, com voz fraca, ordenou que presenteassem Parsifal com uma
espada produzida pelo mais perfeito artífice, com o punho decorado com
ametistas, berilos, rubis e safiras e (sem dúvida) outras gemas preciosas,
numerosas demais para serem citadas. Nesse momento, as portas do salão se
abriram inteiramente e um criado surgiu diante de Parsifal, trazendo uma lança
com a ponta toda ensangüentada; exibiu-a em torno do salão, enquanto os
presentes suspiravam, gemiam e choravam. Seguia-o uma bonita donzela vestida
de seda negra da cabeça aos pés e com o rosto mascarado. Carregava um cálice
brilhante que depositou diante de Parsifal e pelo salão correu um murmúrio de
que se tratava do Graal.
Do Graal, então, brotou uma quantidade de belas comidas e vinhos preciosos, e
todos os presentes compartilharam. No entanto, apesar da fome aplacada,
comeram em silêncio e tristes, e Parsifal se perguntava qual seria o significado
daquilo tudo. Finalmente, o rei se levantou e, apoiando-se pesadamente em dois
escudeiros, jovens corpulentos, talhados para carregar fardos, por um longo
minuto fitou Parsifal que, sem saber o que dizer, continuou calado; então o rei se
retirou, entre muitos gemidos e suspiros. Os cavaleiros agora olhavam zangados
para Parsifal, como se ele os tivesse enganado; e alguns lhe dirigiram palavras
ásperas; e partiram, deixando-o sozinho.
Um criado aproximou-se e indicou que Parsival deveria segui-lo. Este obedeceu
e aproveitou a oportunidade para indagar ao criado o significado do que
acontecera. Mas o velho sacudiu a cabeça, abriu a boca e mostrou a Parsival a
língua cortada pela raiz, o que o tornava mudo. Levou Parsival para um quarto
com as paredes cobertas de tapeçarias de grande arte e belos desenhos. Uma
dessas tapeçarias mostrava um grande cavaleiro muito parecido com o rei sendo
lançado ao chão por uma espada incrustrada no seu lado, de onde o sangue fluía.
Ao ver aquilo, Parsival ficou ansioso por obter esclarecimentos e decidiu
formular a pergunta na manhã seguinte.
Mas ao despertar na manhã seguinte descobriu que estava sozinho e que todas as
portas haviam sido trancadas, exceto uma que dava para o pátio onde encontrou
seu cavalo, com sela e arreios. A manhã era cinza, e o céu cor de ardósia e
soprava um vento leste. Parsival olhou em volta e viu tudo deserto, como se os
seus companheiros da noite anterior tivessem desaparecido. E assim montou o
cavalo e se afastou,; mas pouco adiante do castelo, uma voz lhe falou dos Céus,
amaldiçoando-o por ter deixado de realizar uma grande obra para a qual fora
escolhido.
Enquanto cavalgava pela planície improdutiva, Parsival se perguntava se de fato
vira o Graal ou se sonhara.
Ora, é esta a essência das histórias do Graal: tudo o que a princípio parece sólido
derrete e se dissolve em um castelo que se vê a distância ao meio-dia.
Então, por exemplo, quando eu defendo a hipótese de que o próprio Parsival se
perguntava se a visão que tivera não passava de um sonho, há estudiosos que
afirmam que ele não apenas viu o Graal, como também foi indicado para ser seu
guardião.
E por isso conta-se esta história.
Pelos poderes do Graal, Parsifal, agora grisalho e cansado depois de muitos anos
vagueando e de muita infelicidade, encontrou o caminho de volta para o castelo
do rei sofredor, onde igual cerimônia se repetiu. Desta vez Parsifal, cônscio do
que acontecera antes, rezou para poder vencer o teste que agora sabia que lhe
fora proposto. E assim aconteceu de, ao abrir os olhos, ver a figura do arcanjo
Miguel, glorioso em uma armadura púrpura, parado à sua frente. Atendendo ao
anjo, Parsifal perguntou ao rei o que o afligia. Com essas palavras o feitiço se
quebrou e o rei recuperou a saúde.
Graças a esse ato, Parsifal foi investido do cargo de guardião do Graal e casou-se
com Conduiramour, a filha do rei. Tiveram dois filhos: o mais velho, Kardeiss, do
qual nada se sabe, e o mais novo, -Lohengrin. Quando Lohengrin chegou à idade
adulta, um sinete de prata que ficava pendurado na parte mais sagrada do templo
onde o Graal era guardado (vigiado dia e noite por dignos cavaleiros, obedientes
a Parsifal) começou a repicar; e isso era um sinal de urgência.
Os cavaleiros se reuniram para saber o significado desse sinal e apareceu um
escrito no Cálice Sagrado declarando que Lohengrin fora escolhido para
defender os direitos de uma inocente ameaçada de sofrer uma grande maldade,
e que seria guiado até o local por um cisne.
Imediatamente ele vestiu a armadura de prata da justiça (preservada no nosso
templo por longo tempo até este ser saqueado pelo rei da França e que por isso
foi amaldiçoado por Deus) e despediu-se da mãe e das irmãs. E Parsifal o
acompanhou montanha abaixo até o lago, onde nadava um cisne puxando um
pequeno barco.
Parsifal deu ao filho uma buzina que ele deveria fazer soar quando chegasse ao
objetivo da jornada; e lembrou-lhe de que, como cavaleiro do Graal e também
do Templo, era obrigado a não revelar o seu nome nem a sua origem; mas que se
essa pergunta lhe fosse formulada e ele precisasse respondê-la, deveria voltar
imediatamente à montanha sagrada onde ficava o castelo. Lohengrin beijou o pai
se despedindo, entrou no barco e ao som de flautas e trombetas foi transportado
rumo ao rio negro que saía do lago.
Havia uma dama de nome Elsa, princesa e órfã, muito bela e desejada por
muitos homens; entre estes, o principal era o seu tutor, Frederico de Telramund, a
quem, no entanto, ela detestava; e com razão, pois ele era cruel, grosseiro e fedia
a peixe podre. Contudo, era-lhe difícil mantê-lo à distância e conservar a sua tão
prezada virgindade.
Um dia em que estava deitada em uma clareira da floresta, sonhou que um belo
e jovem cavaleiro chegara ali e lhe entregara um sinete de prata ordenando que
ela o fizesse soar caso precisasse de ura defensor. Ela despertou do sonho e viu
um falcão pairando sobre a sua cabeça; quando o pássaro percebeu que ela
estava acordada aproximou-se e pousou no seu ombro. Então ela notou um sinete
atado ao pios da ave; desatou-o e guardou-o consigo.
Enquanto isso, Frederico se cansara das recusas da princesa em se casar com ele
e, ansioso pelas terras que ela herdara, resolveu conquistá-las de outro modo.
Assim, raptou a jovem e lançou-a em uma prisão até o dia em que ela, entre
muitas lágrimas, prometeu desposá-lo a menos que um defensor a resgatasse
antes da lua cheia. Ele riu e deu ordens para que os limites das terras fossem bem
vigiados para que nenhum cavaleiro pudesse se aproximar. A adorável Elsa,
chorando na cela, se desesperava à medida que a lua crescia. Então se lembrou
do sinete que trazia amarrado ao rosário e tocou-o. O tinido era tênue como o
chilrear de um pardal e Elsa caiu em profundo desespero, pois não conseguia
imaginar que um som tão tênue pudesse ser ouvido por alguém além daquela
cela estreita. No entanto o som fluiu pela janela e atravessou muitas léguas até o
castelo da Ordem do Templo e graças a esse tinido ecoante Lohengrin entendeu o
comando do Graal.
O dia do combate foi marcado e nenhum defensor apareceu. O sol ergueu-se no
céu, passou do zênite e Frederico levou o cavalo para a arena e sorriu, pois os
seus guardas de fronteira haviam assegurado que nenhum cavaleiro passara por
eles. Os arautos soaram a última chamada para o defensor e Frederico fitou Elsa
com luxúria. Estava prestes a deixar o posto para se apossar da princesa quando o
barco do cisne deslizou pelo rio e Lohengrin saltou para a margem e soprou a
buzina. Ao ver Lohengrin, o rosto de Frederico ficou negro como uma nuvem de
trovoada e ele o atacou, enfurecido, esquecendo a ciência do combate.
Lohengrin era jovem e jamais lutara a sério até aquele dia, mas vinha armado
da certeza da justiça e protegido, como acreditava, pelo arcanjo Miguel. Aparou
com facilidade os golpes violentos de Frederico ou os evitou elegantemente; e
quanto mais o combate durava, mais furioso e descuidado tornava-se Frederico.
Então desferiu um tremendo golpe que teria cortado Lohengrin ao meio, mas
este se desviou e enfiou a espada no pescoço de Frederico, que caiu na areia,
com o sangue jorrando pela boca. A multidão deu vivas e os menestréis
imediatamente começaram a compor canções em homenagem ao Cavaleiro do
Cisne.
Elsa ficou tão encantada por se livrar do algoz que logo decidiu se casar com o
salvador, ainda que lhe ignorasse o nome. Lohengrin não a recusou mas advertiu-
a de que ela jamais deveria perguntar-lhe o nome; e sem dúvida, esse mistério
inflamou ainda mais a paixão de Elsa. Por outro lado, chegou-lhe ao
conhecimento que muitos diziam que ele ocultava o nome por ser culpado de
algum crime terrível; e assim certo dia, perante toda a corte, Elsa o pressionou a
se identificar. Ante essa pergunta, a cor desapareceu do rosto de Lohengrin. Mas
ele não podia mentir. E assim disse o seu nome, acrescentando que era filho de
Parsifal, o guardião do Santo Graal. Mas informou também a Elsa que, ao
quebrar o voto e perguntar-lhe o nome, quando ele a advertira a não fazê-lo, ela
também rompera o vínculo que os unia; pois, acrescentou, “o amor não consegue
viver sem fé”. Portanto, ele precisava deixá-la e voltar à montanha sagrada.
Dizendo estas palavras, levou aos lábios a buzina mágica e soprou três longas
notas, enquanto o ar à sua volta gelou e o céu escureceu. As notas da buzina
foram imitadas por música suave e o cisne surgiu, puxando o barquinho.
Lohengrin embarcou e Elsa jamais tornou a vê-lo.
Apesar de alguns elaborarem explicações mundanas e até escabrosas para a
conduta de Lohengrin, a verdade é simples, e foi revelada: ele era um servo do
Graal, o que também significa dizer servo de Cristo, que exige de todos os que
nele crêem mais do que o homem sensual e pecador se dispõe a dar, mais ainda
do que a maioria é capaz de dar.
Então, qual é a verdade do Graal? Ninguém sabe.
Eu inquiri muitos sábios e filósofos por onde andei. Ouvi poetas e trovadores
contarem histórias do Graal para divertir senhoras e às vezes ouvi coisas sábias
em meio àquelas bobagens.
Disse-me um certo rabino que conheci na Espanha (nativo de Córdoba, mas eu o
encontrei nas bibliotecas de Salamanca, e depois passamos muitas noites em
discussões profundas nas tabernas da cidade, onde ele bebia vinho para o bem do
seu estômago):
— O vosso Graal é apenas uma idéia. Não tern forma. Se fosse diferente não
poderia ser perfeito. A comida e o vinho que nas vossas histórias sem valor fluem
do Cálice não devem ser vulgarmente entendidas como coisas materiais. São o
pão e o vinho da vida, alimento para o espírito, e não para a carne. Aqueles que
buscam o esclarecimento também buscam a iniciação aos grandes Mistérios
Celestiais. Tem sido assim em todas as eras. Na essência do mistério reside o
Espírito, que é a Inteligência Pura; e é isso que o vosso Graal significa. Além do
mais, é por essa razão que ele não pode ser captado; porque da Inteligência Pura
nós, mortais, só podemos vislumbrar a sombra, e jamais a forma perfeita. E, no
entanto, nós a buscamos porque abandonar essa busca significa viver como
animais impuros, até mesmo porcos, e se entregar ao ócio e à sujeira todos os
dias da nossa vida.
Era essa a opinião do rabino, que eu vos apresento exatamente como ele falou; e
deveis ponderar tais palavras, meu príncipe...
Existem muitas histórias a respeito da Busca do Graal. Direis que são
demasiadas, meu príncipe?
O Graal vos entedia?
Achais que é tudo fantasia, invenção?
Quereis que eu prossiga com a história do vosso antepassado Artur enquanto
imperador?
Quereis ouvir sobre o seu relacionamento com o papa?
É fácil. Como legítimo imperador, Artur fazia o que queria e disse ao papa que o
obedecesse. O papa acenou com o documento intitulado Doação de Constantino,
provando que Constantino, ao partir para construir a Nova Roma no Oriente,
transferira (como dizem os advogados) para o papa o poder supremo sobre o
Império do Ocidente. Artur retrucou que o documento era falso e mandou o papa
(vou usar uma expressão vulgar que ouvi dos vossos lábios ontem, e por isso eu
deveria ter-vos admoestado ou surrado as vossas nádegas, porém, dadas as
circunstâncias, eu estava rindo demais, rindo convulsiva-mente...), mas onde eu
estava? Ah, sim, Artur mandou o papa enfiar a Doação de Constantino no
traseiro.
É isso que vós gostaríeis de ouvir, não é? E talvez seja verdade.
No entanto, antes de abandonar a narrativa das histórias relativas ao Graal e
retornar, como é o vosso desejo, à verdadeira história de Artur, ainda há algo a
ser dito.
Nas lendas, o ato de avistar o Graal é atribuído a cavaleiros mergulhadores, e não
deveis vos admirar ao saber que o preconceito decide quais cavaleiros terão êxito
na Busca.
Assim, por exemplo, escoceses e galeses declaram que Gawaine, por ser seu
herói, foi o bravo cavaleiro que superou muitos perigos e cuja recompensa foi a
de ver o Graal. Igualmente, os germanos concedem a palma a Parsifal, que os
Cavaleiros Templários declaram ter sido o fundador da sua Ordem. Mas os
franceses não aceitam nada disso, e juram que foi Sir Bors, um cavaleiro da
Aquitânia, quem, graças à sua virtude imaculada, foi premiado com a visão
sagrada. Esta alegação é ridicularizada pelos bretões, que têm certeza de que só
Lancelot teve sucesso na Busca; e justificam esta afirmativa com base no
reconhecimento geral de que Lancelot foi a mais fina flor do cavalheirismo e
que, portanto, seria ridículo supor que outros tivessem êxito e ele fracassasse.
Também há consenso entre os que não possuem uma devoção em particular;
para esses, quem viu o Graal foi Galahad, que ousou ocupar a Sede Perigosa e
que dizem ter sido o único cavaleiro sem pecado; e isso ele conseguiu apenas
depois de anos de jejum e penitência, com o que a sua alma imediatamente
nasceu para o céu. Esta versão é defendida por muitos clérigos, ansiosos em
demonstrar a eficácia da oração, do jejum e da penitência. E, de fato, é verdade
que Galahad não desempenha qualquer outro papel na história de Artur e jamais
foi visto em Camelot depois de partir em Busca do Graal. Mas pode ser
meramente porque ele foi morto em algum encontro obscuro, como tantas vezes
é o destino dos cavaleiros mais corajosos e mais dotados.
Finalmente, deveis considerar a teoria de que o aparecimento do Graal no salão
de Camelot durante a festa de Pentecostes foi uma ilusão criada por agentes
papais para distrair os cavaleiros e quebrar a unidade da Távola Redonda, e
assim dificultar, ou até mesmo impossibilitar, a intenção de Artur de restabelecer
a autoridade imperial e reduzir o Bispado de Roma à condição de subordinado.
Há duas coisas a serem ditas em favor desta teoria.
Primeiro, foi o que o próprio Artur passou a acreditar.
Segundo, de fato, foi a conseqüência da partida de tantos cavaleiros nessa Busca
quimérica.
Em resumo, por mais nobre que fosse a ambição de ver o Graal, a Busca afastou
os cavaleiros dos seus deveres e prenunciou a tragédia que recaiu sobre Artur e
causou as trevas que cobririam a Época Áurea que ele prometera reviver.
IX

Quando os cavaleiros partiram para a Busca do Graal, Artur, como eu já disse,


ficou consternado. Não podia impedi-los. E ainda que pudesse, não o teria feito.
Reconhecia que nenhum legítimo cavaleiro recusaria um desafio daquele porte
sem se envergonhar. Mas ao mesmo tempo considerava egoísta esse desafio.
Jamais tivera em alta conta os que, alegando vocação, apartavam-se do mundo
para aprimorar a alma. Além disso, embora o nome de Artur esteja
indelevelmente associado à palavra “cavalheirismo”, conceito admirável em si
(enquanto os homens se importarem com essas coisas), ele sentia apenas desdém
para com os chamados cavaleiros errantes que, com freqüência lhe pareciam ter
mero amor à boa vida.
É por isso que em muitas histórias de Artur e seus cavaleiros encontrareis poetas
e novelistas que tratam mais dos feitos dos cavaleiros do que do próprio Artur. De
fato, depois que ele retirou a espada da pedra e se estabeleceu como governante
do reino, parece ter deixado de interessar a tribo dos romancistas até retornar à
história nos últimos e tristes capítulos.
Devo admitir uma exceção: Geoffroy de Monmouth, o pseudo-historiador dc
quem vos falei anteriormente. Apesar de imbecil e mentiroso, ele pelo menos
tenta contar a história do rei e do seu reinado. Infelizmente, interessa-se apenas
por guerras e batalhas que, por certo, são importantes, mas não constituem o
assunto principal de um verdadeiro rei e imperador. Além disso, as guerras e
batalhas narradas por Geoffrey são, na maioria, meras invenções da sua fantasia
desordenada. Por exemplo, ele apresenta Artur empenhado em longa guerra
contra o imperador Lúcio, e o relato é detalhado (ainda que não muito excitante,
pois ele escrevia mal). Acontece que esse imperador Lúcio nunca existiu.
Pesquisei anais e registros arquivados nas bibliotecas papais e nas bibliotecas das
universidades de Salerno, Bolonha, Salamanca, Oxford e Paris, e dele não
encontrei vestígio algum. Portanto, essa história é ruim e inútil.
Naturalmente, é dever de um rei e imperador fazer a guerra quando necessário,
e assim alguns monarcas concluem que a guerra deve ser sempre a sua principal
ocupação. Mas um rei verdadeiro e bom, como Artur, compreende que a guerra
não é o que um certo sofista definiu: a extensão da política por outros meios. Ou,
se assim for, só acontece à revelia, pois a guerra é sempre a conseqüência do
fracasso da política. O mundo demorou muito tempo para entender isso, embora
todos os maiores imperadores de Roma, Augusto, Tibério e Adriano, tenham
chegado a essa conclusão pela experiência e pela meditação. Artur também
acreditava, como eu gostaria que vós acreditásseis, meu príncipe, que o
problema essencial da política reside em como superar a guerra para criar um
mundo onde ela não seja necessária nem desejada; em resumo, banir a guerra.
A verdadeira ocupação de um rei e, portanto, da política, é administrar e, em
especial, ministrar a justiça. Durante o seu reinado Artur esforçou-se para
estabelecer a paz e o primado da lei. Segundo as suas próprias palavras, a sua
intenção era: “a chave guardará o castelo e a samambaia protegerá o gado”.
Mas embora eu precise incutir isso em vós, meu príncipe, não é matéria que
deleite os romancistas. No entanto, Artur propiciou à Britânia algo que ela não
conhecera desde a partida das legiões: paz, prosperidade e segurança. Os barões
ladrões foram chamados à ordem ou eliminados. Suponho que Artur teve
satisfação peculiar em levar o seu antigo perseguidor Sir Cade c o infame pai a
enfrentarem julgamento perante o tribunal, sob acusação de assassinato, extorsão
e sodomia; mas estou igualmente certo de que eles também seriam julgados e
punidos exemplarmente se Artur e Cal não tivessem sofrido em suas mãos.
Esse julgamento aguçou a tristeza de Artur por ter se deixado persuadir por
Guinevere a afastar Cal; e então a melancolia apossou-se dele com a ausência de
muitos dos seus cavaleiros favoritos, aprofundada pela frieza que persistia entre
ele e Guinevere, a quem se vinculava apenas pela honra e pelo dever e não pela
afeição; assim, ele enviou mensageiros para procurarem saber onde o velho
amigo poderia ter se refugiado. Mas eles retornaram relatando que não
encontraram vestígio de Cal.
Quando Sir Kay ficou sabendo disso torceu o nariz e resmungou que a corte era
um lugar melhor com a ausência daquele pervertido intrigante; visão com a qual
concordava Eugênio, o arcebispo de Canterbury.
Artur, no entanto, sentia-se desconsolado. Solitário, com a saúde debilitada,
freqüentemente sofrendo de febre e de dor nas juntas, suspirava pelos dias da
juventude.
Apesar disso, aplicava-se, incansável, às suas atividades e realizava tribunais de
justiça em todas as partes do reino. “O mais importante é a justiça. Onde não há
justiça, a virtude é suprimida”, dizia.
Em certo dia de outubro, Artur instalou o tribunal em York, que os romanos
chamavam de Eboracum. Julgou muitos casos e retirou-se, cansado, para o
palácio do bispo onde estava hospedado, pois à época não havia castelo habitável
entre os muros da cidade. O bispo recebeu-o friamente. Ficara insatisfeito porque
Artur recusara uma acusação em que uma velha era apontada como feiticeira.
O bispo citou um texto bíblico: “Não tolerareis que uma feiticeira viva”.
— Já ouvi isso muitas vezes — disse Artur.
— E ainda assim libertastes aquela mulher.
— Não me persuadi de que fosse culpada. A feitiçaria depende da existência de
um pacto, tácito ou manifesto, entre o acusado e o Demônio. Não é esse o
ensinamento da Igreja? Não encontrei provas desse pacto, apenas uma velha que
alegava ser capaz de curar o gado ou de fazê-lo adoecer segundo a sua vontade.
Uma velha imbecil, talvez sórdida, mas não aliada do Demônio. Creio que não.
O bispo corou:
— Vós confiais demais, sois crédulo demais.
— Crédulo? — indagou Artur.
— Com todo o respeito, Vossa Graça, sim. Estais sempre pronto a confiar na
natureza humana e não avaliais quanto o Demônio é atuante nos seus esforços
para subornar e se apossar de pessoas simples. O temor ao Senhor é o início da
sabedoria e, mais uma vez com todo o respeito, esse temor vos falta. Portanto,
não percebeis que existe uma vontade monstruosa, poderosa, malévola e
inteligente contrariando a moral e o sistema de sacramentos da Santa Igreja, que
se destinam à redenção das almas. É a vontade do Demônio. E eu vos pergunto:
por que motivo Satã atrai pessoas para o seu serviço? Oferecer a maior ofensa à
Divina Majestade, usurpando para si uma criatura que é, ou deveria ser dedicada
a Deus, e assim, com mais certeza, garantir a condenação do discípulo, seu
principal objetivo. Então, ao recusardes a acusação contra aquela mulher pobre,
ignorante e desprezível, o que ela talvez seja, prestastes um serviço ao Demônio,
pois a liberastes para trabalhar em prol da corrupção de outras almas.
Artur suspirou. As palavras do bispo levavam-no para um terreno desconhecido.
Percebia-lhes a aspereza; intuía, ou tinha a impressão de que eram
essencialmente equivocadas; no entanto, dadas as premissas sobre as quais o
bispo construiu o seu argumento, Artur não poderia lhe questionar a conclusão.
Ao vê-lo hesitante, o bispo renovou o ataque: — Há anjos maus. Hoje está
comprovado que as essências angelical e humana são inteiramente diferentes
uma da outra e que os anjos bons respeitam tais limites sagrados. Mas não os
anjos maus. Uma onda de matéria atravessa a hierarquia estabelecida nas
regiões infernais e assim esses anjos maus buscam os corpos de homens e
mulheres; desejam se tornar carne, penetrar na carne humana, exclusivamente
por malícia. E criam um tipo de corpo que, na verdade, não é um corpo material
e, nesse corpo falso, sentem prazer em se relacionar com homens e mulheres
que, por sua vez, ficam intoxicados por essa experiência e liberam as suas
mentes confusas da lei moral e se entregam ao Demônio. E alguns desses
homens e mulheres assim comprometidos usam a máscara da verdadeira
religião, e por isso são ainda mais perigosos e mais propensos à malícia.
— Mas as provas não me persuadiram de que aquela velha fosse uma feiticeira
— disse Artur.
— Ela foi acusada de feitiçaria e testada em relação à feitiçaria, e se as provas
vos pareceram insuficientes, isso em si já prova a astúcia do Demônio em fazer
com que uma feiticeira pareça inocente.
— Se o que dizeis for verdade, então nenhum julgamento é legítimo, e a própria
justiça voa pela janela.
E assim Artur encerrou a discussão.
Mais tarde naquela noite, quando se preparava para se recolher, o seu escudeiro
se aproximou e disse que um certo homem que não queria se identificar viera
pedir uma audiência. Artur hesitou, pois estava cansado até a exaustão. Então o
escudeiro disse:
— Ele me falou que se vós não atendêsseis ao seu pedido, eu deveria vos repetir
os seguintes versos:

O meu amor ama um outro amor


E para oeste o vento agora soprou
É falso como os dados de um mágico, o meu amor,
Ai de mim, por que me abandonou?

Ao ouvir aqueles versos, Artur teve a impressão de que o tempo retrocedera,


restaurando-lhe a juventude. O seu coração bateu acelerado e ele mandou o
escudeiro trazer o homem sem demora. “Será que és tu, mesmo, Peredur, de
volta para mim, quando pensei que estivesses morto?” pensou.
O homem que entrou era forte, com o rosto quase gordo, barrigudo, e muito
diferente do rapaz de fantástica beleza que permanecia na imaginação de Artur.
Mas os olhos negros ainda brilhavam e olhando-o, Artur soube que era, de fato,
Peredur, e se lembrou de que ele mesmo não era mais o jovem insinuante de
quando conviveram, mas sim um homem cansado, de traços atormentados.
Agora era impossível um desejar o outro e, no entanto, o afeto fluiu entre eles
como os raios de sol repentinamente iluminam um aposento. E assim caíram nos
braços um do outro e se abraçaram. Peredur disse:
— Quando soube que vinhas a York, disse para mim mesmo que não ousaria me
aproximar de ti. Achei que não haveria propósito no nosso encontro, pois não
somos mais o que éramos, e o que éramos está tão distante que bem poderíamos
ser pessoas que jamais se conheceram.
— Como pudeste pensar isso? Não há um só dia em que eu não pense em ti —
disse Artur.
Tais palavras não correspondiam à verdade, mas naquele momento Artur
supunha que sim.
Peredur sorriu, sacudiu a cabeça e deu uma gargalhada:
— Mudaste menos do que eu temia, pois estás sempre pronto a me valorizar mais
do que eu mereço e a permitir que a tua fantasia doure a realidade.
Agora o próprio Artur riu, reconhecendo um verso de uma comédia que eles
haviam representado; na verdade, a que representaram naquela noite na
estalagem, quando Artur dormiu pela primeira vez com Morgan le Fay.
Então, conversaram um pouco sobre os velhos tempos, sobre Goloshan e Cal,
sobre as aventuras que viveram; e beberam um bom vinho de Bordeaux, embora
o médico de Artur o tivesse proibido.
Então Artur perguntou:
— Por que tu me deixaste? Por que tu me deixaste para sempre?
— Não era essa a minha vontade. Embora confesse que jamais tenha sido capaz
de constância no amor, devido à minha natureza volúvel, ainda assim eu te
amava de verdade, como era capaz de amar alguém. Mas Merlim se aproximou
de mim e me censurou, dizendo que eu era motivo de vergonha para ti e te
tornava objeto de caçoada dos teus cavaleiros. Eu podia constatar que isso
realmente acontecia. No entanto, eu não conseguia me dispor a te deixar, Merlim
entendeu isso e discutiu comigo severamente, e eu supus que ele o fazia em
defesa dos teus interesses. Ainda assim, resisti. Então ele me enfeitiçou, ou teceu
um feitiço à minha volta. Talvez tenha me dado alguma poção de amor, não sei
exatamente. O resultado foi que eu me vi incapaz de lhe resistir ao assédio, por
mais horrível que fosse. Ele me forçou a aceitá-lo, me humilhou e, embora hoje
eu estremeça só em pensar, naquela ocasião me deu um prazer profundo e
pecaminoso. Quando, com as suas mãos sujas, ele me despiu devagar, a minha
luxúria equivalia à dele. E assim eu me submeti, até a dor, alegremente. Isso te
repugna?
— Me apavora — respondeu Artur.
— Essa lembrança me repugna — disse Peredur e sorriu. — Eu não me lembro
quanto durou. Foi como se o tempo se consumisse. Hoje vejo que fui tomado
pela loucura. Mas tudo o que me importava eram Merlim, as suas carícias e
práticas brutais. Até o seu fedor me excitava. E depois ele desapareceu da minha
vida, a loucura passou, aos poucos recuperei a sanidade.
— Pobre Peredur, e também pobre Merlim! — disse Artur.
— A maneira pela qual ele desapareceu foi estranha. Jamais voltei a vê-lo.
Suponho que alguém o matou. É claro que mais tarde, quando comecei a pensar
sobre o assunto cora a cabeça no lugar, entendi que para ele eu fora um
substituto, que ele fez comigo o que jamais teve coragem de fazer contigo. Um
infeliz, não achas?
Aquela idéia jamais ocorrera a Artur, mas agora ele pensava: “Sim, Merlim foi
ignóbil”.
— E depois? — indagou Artur.
— Andei vagueando por aí até chegar aqui a York, casei com a viúva de um rico
negociante de tecidos e prosperei. Temos três filhas adoráveis. Tive sorte. Acho
que sou um homem feliz.
Beberam mais vinho e então Peredur disse:
— Aquela mulher que tu libertaste hoje é irmã da mãe da minha esposa, é uma
velha sórdida.
— Mas não feiticeira — disse Artur. Ele viu Peredur suar, embora o aposento
estivesse frio.
— Talvez não — disse Peredur —, mas contam histórias... Ela com certeza
participou de certas atividades associadas a... não sei exatamente a quem. Mas os
procedimentos a apavoraram, e foi por isso que eu fiquei sabendo. E o que devo
te dizer é que visavam te atingir. Há uma grande dama, cujo nome eu ignoro, que
tenta ou tentava conquistar o teu amor. Procurou um sacerdote e lhe deu ouro,
prometendo mais se ele a ajudasse a realizar o que chamam de missa arnatória...
Não conheço todos os detalhes. O que sei é horrível. Ela, a grande dama, despiu-
se e se deitou sobre o altar, nua. O sacerdote colocou o cálice sobre o seu ventre,
ou entre as suas pernas. Em seguida, continuou dizendo a missa. Então, no
momento do Ofertório, trouxeram uma criança, pousaram-na sobre o altar e
cortaram-lhe a garganta. Era um menino de sete anos, louro, de olhos azuis e um
belo rosto. O sangue esguichou e foi captado pelo sacerdote no vaso sagrado.
Então acrescentaram farinha ao sangue, formando uma pasta, e dessa pasta foi
feita uma hóstia, imitação sacrílega do Corpo de Cristo. Hoje eu sou cristão... —
e Peredur se interrompeu — e pensar no que eles fizeram, e no que isso significa,
me enche de horror. Então, segundo me contaram, o sacerdote ajoelhou-se
diante do altar e falou: “Ashtaroth, Asmodeu, Príncipe das Trevas e do Desejo,
eu recorro a ti para que aceites o sacrifício desta criança inocente e concedas em
troca o que agora, te peço: que o amor do rei volte para mim...” Ele falou, tu
compreendes, em nome da Grande Dama, ou em seu lugar, ou talvez tenha sido
ela mesma quem pronunciou essa prece obscena. A irmã da mãe da minha
esposa se confundiu na narrativa, pois até ela ficou com medo do que
testemunhara. Depois o sacerdote e a dama beberam o que restou do sangue da
criança e que não fora utilizado para preparar a hóstia. E mais tarde, não sei
quanto tempo depois, quando parece que a invocação fracassou, como sabes
melhor do que eu, houve outra missa, desta vez a Missa, da Morte, e o que foi
pedido foi tua morte.
— A morte chega para todos, na hora certa. Mas, como vês, ela ainda não
colocou a sua mão gelada no meu ombro — replicou o rei.
Porém, apesar das palavras corajosas e da aparência calma, Peredur sentiu
Artur tremer quando se abraçaram porque não precisara de palavras ou outras
provas para entender que a Grande Dama a quem Peredur se referia era
Morgan le Fay, que ele cruelmente descartara por motivos de Estado. E Artur
teve pena de Morgan e de si mesmo.
Na manhã seguinte mandou procurar a velha a quem concedera a liberdade,
desejando interrogá-la mais detalhadamente, e em particular, corno Peredur o
aconselhara. Mas ela não foi encontrada em toda a cidade. Poucos dias depois foi
descoberta pendendo do galho de um carvalho, num bosque no início de um vale
que conduz às colinas. Muitos diziam que ela se matara, mas outros sustentavam
que as companheiras feiticeiras a haviam assassinado.
Artur teria mantido Peredur consigo daquele dia em diante, mas este, embora
tentado devido ao amor que ainda sentia pelo rei, não aceitou. Explicou que tinha
um dever para com a esposa e as filhas e em especial para com a esposa que o
livrara dos pecados da luxúria e do desespero e o encaminhara para a Fé. E
assim Artur deu-lhe ouro para que pudesse ter um dote para as filhas e, triste,
cavalgou de volta. No dia seguinte, o bispo pregou um sermão sobre o tema “Não
tolerareis que uma feiticeira viva” e escreveu uma carta cifrada para o
arcebispo Eugênio, informando-o do que Artur fizera e dizendo que, ao libertar
uma feiticeira, o rei se mostrara indigno e não um verdadeiro monarca cristão.
Ao ler a carta, Eugênio chamou o jovem cavaleiro Mordred e conversaram
sobre esses assuntos.
Ao deixar York, Artur dispensou os companheiros e cavalgou sozinho até chegar
às colinas que ora servem de fronteira entre a Inglaterra e a Escócia. A
atmosfera estava penetrante, as nuvens se avolumavam a leste, o vento se
lamentava em torno dos cumes desnudos e subia pelos vales. Um grupo de
gansos selvagens voava para o sul. Um raposo cinzento, pois as raposas da colina
são cinzentas e não vermelhas, observava-o, cauteloso, em meio a uma touceira
de samambaias; e Artur sentiu-lhe o cheiro trazido pela força do vento.
Artur contornou um vale escuro que estreitava à medida que a trilha subia. Era
um lugar ermo, sem sinal de vida humana. Um par de busardos pairava no céu,
abaixo dos cumes das colinas, parecendo acompanhar o avanço de Artur; e
quando a luz começou a desaparecer, ouviu-se o guincho de uma coruja. Mas
além desse som e o dos cascos do cavalo, tudo era silêncio, e Artur podia estar
sozinho no mundo.
Naquele lugar escuro, em que o cavalo escorregava nos seixos e a grama era
rala como cabelo de leproso, Artur teve medo e não se censurou. Então a trilha
aplainou e ele se deparou em uma pequena planície ou platô onde havia algumas
árvores, pilriteiros, amieiros, bétulas, todas recurvadas pela força dos ventos de
muitos invernos. Começou a chover, aquela chuva fina que na Escócia
chamamos de tenebrosa, chuva difícil de se distinguir da bruma que a envolve,
porém fria, gelada e desagradável. E então Artur viu a torre, erguendo-se na
obscuridade.
Era uma construção achatada, feia, e parecia deserta, mas Artur bateu com o
botão do punho da espada na porta com tachas de ferro. Bateu três vezes e
naquele silêncio profundo pôde ouvir apenas a própria respiração.
E então a porta rangeu se abrindo e um anão surgiu do interior e lhe perguntou o
que queria:
— Se sois um viajante, aqui não encontrareis comida nem bebida, mas há uma
cervejaria no próximo vale — disse.
— Somos todos viajantes, em diferentes estágios da nossa jornada do nascimento
à sepultura, mas se levares este anel à tua senhora, ela me oferecerá um
acolhimento menos grosseiro do que o teu — e assim dizendo Artur tirou o anel
do dedo.
— Pode ser, se eu decidir entregar o anel, mas não estou inclinado a fazê-lo —
disse o anão, e com estas palavras preparou-se para fechar a porta, parando
apenas quando Artur lhe ofereceu ouro.
— Essa moeda pouco vale aqui — disse, mas mesmo assim pegou-a —, mas se
vós esperardes um pouquinho, verei se o vosso anel vai servir. Não garanto, pois
aqui nós somos pessoas precavidas e discretas, e não vemos com bons olhos o
mundo lá de fora.
E assim dizendo sacudiu a cabeleira ruiva e fechou a porta, deixando Artur do
lado de fora.
O anão demorou uma missa inteira até abrir de novo a porta e pedir a Artur que
desmontasse e amarrasse o cavalo a um pilriteiro que crescia a poucos metros da
porta. Quando Artur perguntou se não havia alguém para cuidar do animal, o
anão sacudiu a cabeça de novo e disse:
— Duvido que fiqueis por aqui tempo suficiente para que essa criatura precise de
um estábulo. Acompanhai-me.
Então, claudicando com a velocidade, conduziu Artur pela escada que subia em
curva no sentido anti-horário e o fez entrar em um aposento no alto da torre. O
ambiente era iluminado por três velas de cera em um candelabro em forma de
galhos; e sentada diante de uma roca estava uma dama com o rosto encoberto
por um véu espesso.
— Este é o homem que quer vê-la, minha senhora — disse o anão. — Sou
forçado a dizer que ele parece muito educado e bem falante. Mas julgareis por
vós, como sempre fazeis — e com essas palavras soltou uma gargalhada
estridente e deixou-os a sós.
Artur disse:
— Poderíeis erguer o vosso véu, senhora, para que eu tenha certeza de que, de
fato, é a Morgan le Fay que estou me dirigindo?
— E tu, de fato, precisas ver o meu rosto para ter certeza disso, se eu recebi o
anel que certa vez te dei em troca do nosso amor?
— No entanto, eu gostaria de revê-lo.
— E será que o reconhecerás, se o vires como está, devastado pelo sofrimento e
pela infelicidade, trazendo marcas e rugas profundas impostas pelo tédio da vida?
— Creio que sim — respondeu Artur. — Eu te causei um grande mal. Vim aqui
para te dizer isso.
— Causamos muito mal um ao outro — disse Morgan, e de repente a sua voz
suavizou. — Mas não foi por nossa própria vontade.
Ao dizer isso, ergueu o véu e Artur viu ali uma anciã, com os olhos brilhando à
luz dançante das velas, a boca retorcida, as faces encovadas. Pouco restara da
antiga beleza e, no entanto, quando ele a fitou, viu que restaram vestígios, como o
eco de uma canção que morre na noite.
— E agora... reconheces a Morgan que amaste? Reconheces a tua irmã?
— Irmã?
— Sim — insistiu ela —, irmã — c pela primeira vez sorriu. A verdade não pode
ficar escondida para sempre. Virá à tona, como óleo.
Por um instante Artur emudeceu. Era rei e imperador, e a ele as palavras jamais
deveriam faltar.
— Temos mães diferentes — prosseguiu Morgan —, mas o nosso pai era Uther
Pendragon.
— Então tu és minha meia-irmã — disse ele, como se isso fizesse diferença.
— Quando te casaste com aquela saxã, fiquei tentada a te contar. Mas o que
terias feito? Mandar-me para um convento? Cegar-me? Arrancar-me a língua?
— disse Morgan.
— Nada disso. Eu não faria nada disso. Tu sabias desde o início?
— Não na estalagem, quando pensei que fosses um simples ator.
Seria possível dizer algo? Artur sentia-se subjugado e paralisado pela verdade.
Não conseguia lembrar por que viera àquela torre, mas apenas de que com
mãos, lábios e todo o ser explorara o corpo de Morgan e lhe descobrira os
encantos.
— E depois isso não teve mais importância para mim — disse ela. — Os antigos
deuses praticavam o incesto. E,
segundo Merlim, os reis e as rainhas do Egito ptolomaico também. Por que eu
deveria me importar? Jamais fui cristã.
— Foi Merlim quem te contou?
— Quem mais poderia ser? Quem mais dispôs da minha vida desde a infância e
a deformou?
O vento uivava, rondando a torre. Só ele parecia lhes fazer companhia. “Se não
fosse o vento, eu nos imaginaria mortos. Mas o vento talvez lamente e uive
audivelmente sobre os nossos túmulos”, pensou Artur.
— Merlim — repetiu Morgan —, o insensível Merlim se viu como o mestre
puxando os cordões das marionetes que dançavam na sua narrativa. Tu e eu
tivemos um filho concebido naquela noite na estalagem.
— Então foi concebido no amor — Artur falou quase sonhadoramente.
— Concebido na ignorância, e nasceu aleijado. Merlim tirou-o de mim para
educá-lo. Mas eu o retomei e o enviei para Camelot, para te atormentar e servir
de meu instrumento de vingança — disse.
Será que ela realmente disse isso? Será que ele imaginou posteriormente? Artur
não saberia afirmar, mas muitas vezes parecia-lhe uma fala de uma das peças
em que costumava atuar com Peredur e Goloshan.
— O nome dele é Mordred... dizem que significa mordaz... — disse Morgan.
E então Artur lhe falou dos seus outros filhos. Ou pelo menos assim se lembrava
de ter agido, perguntando-se, no entanto, se conseguia se lembrar não do que
dissera, mas sim do que deveria ter dito. Falou da nobreza e do caráter resoluto
de Gawaine, da inteligência de Agravaine e da coragem desesperada que
Gaheris demonstrou para superar a própria efeminação e vencer o medo.
— Contaram-me que a tua saxã te engana, dormindo com os teus cavaleiros,
especialmente com Lancelot. Isso te deixa infeliz? — falou Morgan.
Artur suspirou, fez um gesto vago com as mãos, como se repelisse algo
desagradável e respondeu:
— Eu a decepcionei — agora sem negar o que jamais admitira e acrescentou: —
Não que isso importe.
Na noite vazia um sino muito distante começou a dobrar notas pesadas, sombrias
e agourentas.
— Durante anos pensei que voltarias para mim. Muitas vezes sonhei que o fizeras
e que estavas deitado ao meu lado — disse Morgan.
Artur fora até ali acusá-la de tudo o que soubera em York. Na sua imaginação,
ela se transformara na própria maldade. Agora sentia ternura; ela também
estava entre os derrotados. Morgan procurara tramar-lhe a morte? Não poderia
desejar isso mais ansiosamente do que ele próprio. Os sacerdotes diziam que isso
também era pecado.
Morgan disse:
— Sei por que vieste. Não era preciso. Acabou. Artur encarou-a e por um
instante, pelo tempo de uma expiração, a boca retorcida pareceu relaxar num
quase sorriso; e então ela baixou o véu e disse:
— Merlim está morto e tudo o que aquele louco tentou fazer — e pousou a mão
sobre um crânio colocado à mesa ao seu lado: — Preciso me lembrar de que nós
também devemos morrer — disse.
♦♦♦♦♦♦♦♦♦♦♦♦

LIVRO IV
♦♦♦♦♦♦♦♦♦♦♦♦
I

“O que escapa ao ataque da longa corrosão do tempo?” Este verso, citado com
freqüência por Merlim, que o ouvira do imperador Marcos cujo conforto na
velhice era ler Horário, soou como o bater surdo de um tambor aos ouvidos de
Artur quando ele se sentou à mesa alta do salão de Camelot. Gawaine estava
ausente, ninguém sabia dizer onde; Lancelot também; Parsifal partira há muito
tempo e dentre os que retornavam das terras longínquas, alguns diziam que ele se
casara e outros que morrera; Galahad sumira, como se nunca tivesse existido,
talvez para os reinos etéreos, ou talvez para se alojar em um mosteiro sombrio.
Enquanto isso, o bardo menestrel entoava um poema guerreiro áspero,
dissonante, gótico, desagradável aos ouvidos de Artur.
Guinevere também deixara a corte, retirando-se para um convento de onde
enviou uma carta (ditada, pois não tinha habilidade para escrever sozinha)
pedindo a anulação do casamento, alegando a esterilidade de Artur.
Da outra extremidade da mesa, Gaheris olhava para Artur, buscando afeto. Era
pálido, magro, exausto, como alguém perseguido pelo medo desde a infância. Os
seus olhos procuravam o rosto de Artur e o que viu o fez virar para o lado para
esconder as lágrimas.
Haviam transcorrido meses desde que Artur cavalgara de volta para Camelot.
Com a aproximação da Páscoa, o inverno agora relaxava o seu domínio. O
arcebispo Eugênio chupava um osso com tutano e falava de pecado, de vício e áa
necessidade de penitência. Naquela tarde, sob um céu chuvoso, alguns homens se
haviam flagelado, açoitando-se diante de Deus e do rei, pedindo piedade para
uma terra tomada pelos inimigos. As selvagens tribos do norte se
movimentavam. Saxões, jatos e anglos navegavam pelos rios do leste,
queimando e saqueando. Havia rumores de guerra entre os saxões já
estabelecidos na Britânia, e que agora se recusavam a pagar impostos ou
fornecer tropas ao rei. Até mesmo os insignificantes chefes de clãs das
montanhas cambrianas atacavam as baixadas, carregando carneiros e mulheres.
Foram esses os meses da ascensão de Mordred. O jovem cavaleiro, filho devoto
da Igreja, predileto do arcebispo, bajulador e hábil na lisonja, dispôs-se a ser o
advogado da reforma. Nada dizia contra Artur, mas todos aqueles com quem ele
falava acabavam ficando com uma impressão menos favorável em relação ao
rei.
Gaheris criou coragem, aproximou-se de Artur e disse-lhe que Mordred
conspirava contra ele. Artur sorriu, agradeceu, garantiu-lhe o seu amor, e nada
fez. A verdade é que não conseguia olhar para Mordred sem se envergonhar,
agora que o sabia seu filho, nascido da união incestuosa com Morgan. Além
disso, corno Mordred era aleijado, Artur se apiedava dele.
— Os aleijados têm o direito de ser impertinentes — disse para Gaheris.
Mas, apesar de Artur não agir diante daquela advertência, a preocupação de
Gaheris despertou-o do torpor que o afligira desde a sua visita à torre de Morgan.
Reuniu o exército, um exército pequeno, menor do que nos dias iniciais, pois
muitos dos seus mais valorosos cavaleiros estavam mortos ou ausentes, ou velhos
demais, rígidos demais, com o corpo dolorido demais para a luta, como os gordos
e pesados veteranos Kay e Bedivere, cuja teimosia nos primeiros anos
conquistara batalhas, mas cujo excesso de cautela, por outro lado, muitas vezes
os privara dos frutos das vitórias.
Mas nesses meses era maravilhoso observar Artur. Nem parecia mais aquele
imperador-rei curvado pelas res-ponsabilidades, mas sim o jovem príncipe
recuperado. Voltou à velha forma, diziam os soldados, e Artur conduziu o seu
pequeno exército acima e abaixo por vales e colinas, desferindo golpe após
golpe. Causando grandes perdas de vidas, repeliu os invasores irlandeses, cujos
lamentos atravessaram os mares. Atacou os saxões, à medida que se espalhavam
a partir do estuário do rio Humber. Quando o rei saxão mandou perguntar se
Artur lhes cederia a terra que haviam ocupado, ele respondeu que a única terra
que lhes concederia eram “seis pés de terra britânica”. E antes que a noite caísse
sobre as planícies, os saxões foram postos em debandada, como os ventos de
outono varrem as folhas das árvores; e o rio se encheu de sangue, por toda a ex-
tensão onde eles haviam ancorado os seus navios. Depois Artur voltou-se contra
os galeses e os despachou de volta para as suas altas montanhas, em meio a uma
confusão de gritos e palavrões. E finalmente desceu até as planícies e lutou
contra o rei saxão rebelde cujo nome era Cy newulf; derrotou-o cabalmente em
cinco grandes batalhas, até Cy newulf confessar a sua traição e pedir clemência.
Artur concedeu-lhe, dizendo que a clemência é prerrogativa do vitorioso e de
todos os grandes príncipes.
E, de fato, isso é verdade, meu príncipe; e eu insisto em que nunca vos esqueçais;
e quando vencerdes os vossos inimigos, lembrai-vos das palavras de Artur.
Todos os homens se maravilhavam com os feitos de Artur naquele verão; porém
Mordred os encarava com um espanto próximo do desespero, pois, pensava, “o
Leão despertou novamente e eu devo temer-lhe a fúria”.
Aquele verão foi o último em que Artur conheceu a alegria do combate. A
respeito disso há muito a se dizer. Alguns teólogos sustentam que a guerra é uma
prova do pecado original e que fôssemos isentos do pecado, como seremos no
Paraíso, não haveria guerra nem ocasião para guerra. Talvez seja assim, embora
tenha havido guerra no Céu quando Lúcifer, que também é Satã, e os anjos
rebeldes desafiaram o poder do Todo Poderoso. No entanto, apesar de talvez ser
assim, também é evidente que a luta e a guerra são tão naturais ao homem
quanto fazer amor, ou mesmo comer e beber. Pois não há nação que não tenha
feito guerras, nem povo que não homenageie os heróis de guerra acima de todos
os outros. Além disso, o ato da guerra pode ser, e muitas vezes é, divertido em si
mesmo, tão divertido e estimulante como o ato do amor. Lembramos que o
maior de todos os heróis, Alexandre, chorou porque não havia mais mundos a
conquistar.
Até os teólogos mais rígidos concordam em formular o conceito da Guerra Justa,
e apesar de ser discutível se determinada guerra é justa ou não, a existência
desse consenso é inegável. E se a guerra for justa, não há motivo para não ser
prazerosa.
Por outro lado, é inegável que a guerra também é cruel e ocasiona muito
sofrimento. Por isso, nenhum príncipe deve empreendê-la sem uma boa causa.
Mas todos os homens devem morrer, e a morte em combate é aclamada como a
mais nobre e honrosa das mortes, à exceção do martírio, que só é concedido a
uns poucos eleitos.
É por isso que todos os poetas cantaram a guerra, que dá aos homens a
oportunidade de demonstrarem as suas virtudes: coragem, devoção e
magnanimidade.
Tais virtudes podem ser reconhecidas na história de Artur, assim como nos contos
a respeito de Aquiles e Enéias, que têm deleitado gerações de homens. No curso
daquele verão, e com a ausência de Gawaine e Lancelot, Artur fez de Gaheris
seu confidente e principal assessor. Papel para o qual Gaheris se adequava bem,
melhor do que liderando homens em combate, por ser altamente inteligente, mas
também amaldiçoado por uma imaginação que o fazia sentir dor antes de
experimentá-la, e também sentir a dor alheia tanto quanto a própria. Por isso
sofria da fraqueza de nervos que os homens consideravam covardia.
Artur tinha prazer na companhia de Gaheris, e agora lhe falava como não
conseguia falar com ninguém mais.
O Rei dizia-lhe:
— Não há responsabilidade sem culpa. Quando o meu ancestral Enéias viajou de
Tróia e chegou à Itália, como era o seu destino, foi obrigado a guerrear contra
um povo chamado de etruscos. Estava engajado em combate contra aquele rei
quando este, temendo pela própria vida, foge. Então o filho do rei, um jovem de
nome Lauso, adianta-se como que para salvar o pai. Enéias adverte-o para se
manter a distância e diz: “Esta luta é demasiada para ti”. Mas o jovem insiste.
Lutam e Enéias apunhala-o “através da túnica que a mãe tecera com ouro
flexível”, nas palavras de Virgílio. Ao ver o jovem morto aos seus pés, com o
rosto pálido e surpreso, Enéias se comove profundamente. “Pobre rapaz, o que
eu posso te dar em recompensa por essa morte tão gloriosa? Guarda a armadura
que foi o teu orgulho; e eu devolverei o teu corpo aos teus amigos, se é que isso
serve de consolo”. E assim ergueu o corpo, carregou-o nos braços, e os longos
cabelos do jovem, manchados de sangue, pendiam como um véu. Naquele
momento, tenho certeza, Enéias sentiu o peso não apenas do cadáver do rapaz,
mas do seu próprio destino, que o impelia à guerra e à morte. A imagem de
Enéias carregando o corpo do falecido Lauso é uma das que me perturbam à
noite, quando fico deitado entre dormindo e acordado. No fim daquele grande
poema, com o qual convivo desde menino e que aprendi primeiro dos lábios de
Merlim, o próprio Virgílio, perplexo com as exigências que o destino ou os deuses
fazem aos homens, exclama: “Será esta a tua verdadeira vontade, Júpiter, que os
povos que deveriam conviver em eterna paz se confrontem na guerra?” Quantas
vezes eu me fiz essa pergunta, pensando nas guerras nestas ilhas e no nosso
Império! Será preciso que romanos e britânicos lutem contra saxões, que
romanos façam guerra a godos, germanos, francos e vândalos, para que possa se
formar um Império novo e mais grandioso? Venci muitas batalhas e se os nossos
poetas estiverem certos, adquiri fama eterna; no entanto, eu te garanto, Gaheris,
ser governante e conquistador é ser alguém que requer perdão e piedade pelas
crueldades que carrega consigo. De fato, agora quando a noite se apossa da
minha vida, parece-me que ser vitorioso e conquistador é ter um destino tão
terrível e tenebroso em muitos aspectos quanto sofrer derrota e submissão. Pois a
própria natureza da derrota exime os vencidos da responsabilidade de uma ação
futura, à qual, no entanto, o vitorioso está condenado. E eu me pergunto se depois
de todas as minhas vitórias o mundo é um lugar melhor do que aquele que
descobri quando eu era ninguém.
Que comentários o terno Gaheris poderia fazer em resposta àquela tendência à
autodestruição demonstrada por Artur? Nada além de lugares-comuns,
manifestando a sua profunda solidariedade para com a angústia do rei, mas sem
proporcionar consolo algum.
II

No ano seguinte, com toda a Britânia em paz, Artur atravessou a Gália, que ainda
não era a França, e os Alpes, e desceu para o vale do rio Pó até Ravena. Gaheris
o acompanhava atuando como secretário e havia também um grupo de
cavaleiros, sacerdotes, monges e dois bispos que Artur levava para mostrar que
viajava em paz; e, na verdade, se algum rei ou conde cujas terras ele
atravessava se decidisse a atacá-lo, esse exército seria fraco demais para resistir.
Mas a fama de Artur o precedera e todos os reis, príncipes, duques e condes
deram-lhe as boas-vindas. Além disso, em Milão ele foi saudado como
imperador e quando assistia à Grande Missa na catedral, o arcebispo colocou-lhe
sobre a cabeça um diadema de ouro que fora doado à catedral pelo grande
Constantino.
Menciono isto porque alguns afirmam que Artur não era um legítimo imperador,
mas simplesmente rei da Britânia. Os que dizem isso são ignorantes ou
mentirosos, pois eu li na biblioteca do arcebispo o documento que relata essa
cerimônia na catedral. No entanto, deveis compreender que não foi uma
coroação, pois nenhum bispo ou arcebispo tem autoridade para executar tal
cerimônia, a menos que aja por vontade do próprio imperador ou guiado (dizem)
por Deus Todo-Poderoso. Ora, no documento que examinei criteriosamente não
há qualquer indício de que Artur tenha dado essa ordem ao arcebispo. Portanto,
concluo que a cerimônia representou reconhecimento ou aceitação do título
imperial de Artur que, de fato, o herdara do avô, Marcos.
Certa noite, Artur descansava em seu quarto em Milão, entre dormindo e
acordado, ou naquele sono leve em que pensamentos e sonhos não se distinguem
uns dos outros, mas que, no entanto, parecem mais vivos, prementes e cheios de
significado do que as idéias que formulamos conscientemente ou as impressões
que nos atingem a mente em certas horas do dia; e isso porque, suponho, nesses
momentos a que chamo de meio-sono nos livramos do corpo, como no túmulo.
Portanto, talvez toda a atividade mental do meio-sono nos permita antever como
as coisas se passarão quando o corpo entrar em decomposição e a mente ou o
espírito se libertar.
Seja como for, nesse meio-sono Artur se viu em conversa com Marcos, que se
aproximou de barba branca (era como Merlim se lembrava dele ao descrevê-lo
para o menino Artur). Apareceu como um velho, em um mês seco, com a terra
ressequida à espera da chuva. E falou a Artur como se este ainda fosse jovem.
Artur olhou-o buscando encorajamento e a princípio não encontrou, pois Marcos
(ou o fantasma de Marcos, ou a imagem que Artur elaborara de Marcos ao
procurar por um igual que pudesse entender o fardo do Império que carregava e
que agora lhe pesava tanto) falou primeiro de trapaças e desilusões, de como a
história engana com ambições (segundo ele até as que apenas ousamos sussurrar
na escuridão que antecede o amanhecer) e nos guia pela vaidade.
“E então...” dizia Marcos, e Artur lembrava dessas palavras com clareza e na
manhã seguinte reproduziu-as para Gaheris, que as anotou e eu li o registro que
está preservado aqui em Palermo, na biblioteca fundada (segundo alguns) por
Arquimedes de Siracusa. Mas fiz uma digressão, ou corri o risco de fazê-la. Em
outra ocasião vos instruirei sobre as maravilhas que Arquimedes descobriu. “E
então”, disse Marcos, e Artur lembrava-se de que o tom de voz era triste e de que
ele falava como alguém que suportara mais do que um homem pode suportar, o
que, de fato, Gaheris pensou e anotou e que correspondia à sua opinião quanto à
cota de sofrimento de Artur.
“E então” disse Marcos, “os sinais são considerados maravilhas e a história
apresenta confusões tão maleáveis que não encontramos terreno firme no fluxo
do rio do tempo. No entanto, deve-se aprender uma lição com a história: que a
tarefa do rei ou do imperador é sempre a de consertar a parede. E a parede está
permanentemente desmoronando.”
Na manhã seguinte, Artur contou essas coisas a Gaheris e perguntou-lhe se
conhecia a história da Sibila que ficava guardada em uma jarra de vinho em
Cumas. Gaheris respondeu que não e Artur disse:
— Consultaram a Sibila para saber qual era o seu desejo e ela respondeu que
desejava a morte. As vezes me parece que a Sibila fala por todos os homens. O
chocalhar dos ossos soa nos meus ouvidos.
Gaheris não entendeu as palavras de Artur, mas sim o significado subjacente.
“De fato, o rei está cansado de tudo. E, no entanto, o Império está em paz e
prospera graças ao seu governo”, pensou. E ficou confuso remoendo essas
questões, enquanto viajavam de Milão para Ravena.
Ravena era o local de nascimento de Marcos, ou melhor, ele nascera em uma
solitária quinta, a poucas milhas da cidade, nos pântanos. Também foi para
Ravena que um servo devotado levou o seu corpo, depois da sua morte naquela
taverna romana; e respeitando-lhe a fama, e ansioso por anunciá-lo como filho
fiel da Igreja, o bispo da época ergueu um túmulo magnífico incrustado de
pedras preciosas, para abrigar-lhe os restos mortais. Uma efígie de Marcos
encimava-o. Artur fitou por muito tempo aquele rosto sereno sombreado pela luz
vermelha do crepúsculo, porém marfim na sua imobilidade. E os olhos de
mármore, que não viam... quanto terão visto os olhos que não eram de mármore?
Artur cambaleou e estendeu a mão para se amparar em Gaheris:
— Os olhos do meu sonho, se é que foi um sonho, eram da cor do mar ao
amanhecer, e igualmente profundos.
Também chegou a Ravena, com toda pompa e circunstância da grandeza
imperial, o outro imperador, que viera da cidade de Constantino para debater
negócios de Estado com Artur. O seu séquito compunha-se de cavalaria, uma
legião composta de fortes montanheses da Ásia, mil cortesãos com roupas de
tecido bordado a ouro e arminho, o Patriarca de Constantinopla, diversos bispos,
sacerdotes, confessores, sessenta eunucos que trabalhavam no seu secretariado,
músicos, dançarinos e malabaristas, concubinas, catamitos e uma coleção
itinerante de animais. Gaheris jamais vira tamanha imponência e tamanho luxo
e, no entanto, aquele imperador, com a sua longa barba tingida de vermelho,
aproximou-se de Artur e abraçou-o como a um igual.
A princípio, Gaheris sentiu embaraço e até vergonha pelo contraste entre o
esplendor da aparência do imperador Justiniano e a de Artur, e ficou zangado ao
ouvir alguns cortesãos orientais caçoarem da simplicidade das roupas e dos
modos de Artur.
Durante uma tarde e uma noite, e até altas horas, os dois imperadores reuniram-
se a portas fechadas. Enquanto isso, além das muralhas do palácio meio em
ruínas, com corujas fazendo ninhos nas torres que desmoronavam, ergueram-se
as tendas, prenderam-se os cavalos às correntes, e o canto dos montanheses da
Anatólia subiu, queixoso, em direção a um céu enevoado.
Ninguém sabe o que os imperadores conversaram, nem exatamente se falaram
do antigo esplendor de Roma e como restaurá-lo, ou se planejaram (como eu
creio) diminuir o Bispado de Roma e eliminar o pretenso direito do bispo de ser o
dono do Império, o que, como deveis vos lembrar, ele afirmava com base na
espúria Doação de Constantino. Mas com certeza reconheceram a grandeza
mútua e juraram preservar a unidade do Império.
Isto eu afirmo com base no ensaio escrito ou ditado por Gaheris, relatando
jamais ter visto Artur tão sereno como na hora em que precisou se despedir do
outro imperador e deixar Ravena.
Além disso, sabe-se que quando a notícia desse encontro chegou ao bispo de
Roma, este a princípio empalideceu de medo e o seu rosto ficou branco como
pedra. E a partir daquele instante, decidiu destruir Artur por meio de métodos que
agora devo relatar com dor e até com angústia.
III

Para melhor vos instruir, meu príncipe, deixai-me discorrer agora sobre a
chamada Doação de Constantino, embora se trate de uma coletânea de mentiras,
da primeira à última palavra. E, antes de fazê-lo, convém observar que ao longo
dos séculos a confiança dos bispos de Roma nesse documento evidencia fraude,
impiedade, arrogância, impertinência, falsidade e flagrante embuste.
A tal Doação simula uma carta datada de 30 de março do 315a ano de Nosso
Senhor, enviada pelo imperador Constantino ao papa Silvestre I. Inicia relatando
como Constantino se converteu depois que o sinal da Cruz apareceu no céu de
Roma quando ele se preparava para enfrentar uma batalha que lhe valeria o
domínio sobre a cidade. Essa aparição pode ser considerada autêntica, uma vez
que é comprovada por outras testemunhas. No entanto, deveis notar que quem
deseja enganar alguém começa freqüentemente fazendo uma declaração
verdadeira, para conquistar a confiança de quem pretende fazer de tolo. A carta,
pois, narra o batismo de Constantino; e se algo serve para provar-lhe a falsidade é
exatamente isso, pois diversos historiadores registram que apesar de Constantino
ter declarado o cristianismo como religião oficial do Império, ele próprio
recebeu o batismo já no leito de morte, e só morreu vinte e dois anos depois da
suposta data da carta.
Então, o imperador aparentemente relembra ter se curado de lepra por
intercessão do papa Silvestre; mas nenhuma autoridade que eu conheça, ou que
estudei em minhas profundas pesquisas, declara que Constantino tenha sido
leproso. Portanto, isso também é mentira.
Em seguida, o documento registra as concessões do imperador ao vigário de São
Pedro, que garantiram a este a preeminência sobre as sedes patriarcais de
Antioquia, Alexandria, Jerusalém e Constantinopla. E isto até hoje o Patriarca de
Constantinopla contesta e nega.
Registra também a concessão ao bispo de Roma das insígnias imperiais e do
Palácio de Latrão que ele, de fato, ocupa; e finalmente, a transferência para o
papa do poder imperial sobre Roma, sobre a Itália e sobre todas as Províncias do
Ocidente.
Podereis julgar, meu príncipe, quanto é improvável que Constantino, depois de
ter travado tantas campanhas para se estabelecer como autoridade suprema e
única sobre todo o Império, cedesse voluntariamente metade desse domínio.
No entanto, com base nesse documento, que eu não hesito em qualificar de falso
e fraudulento e que encontra raros paralelos nos anais da história escrita, os
bispos de Roma têm alegado primazia sobre os vossos próprios antepassados
imperiais; e também serviu de base para o papa da época de Artur, um certo
Hormisdas, posteriormente canonizado, se movimentar contra Artur e conspirar
para depô-lo.
Eu deveria acrescentar que, como cúmulo de impertinência, o autor da fraude
afirma que, para marcar a inviolabilidade da doação, o imperador Constantino
colocou o documento sobre o corpo de São Pedro, que ninguém mais viu porque
foi enterrado depois de morrer na cruz.
Talvez perguntareis por que esse tal papa Hormisdas, criatura perversa, um
monge filho de um camponês da região das colinas próximas de Roma, desejaria
destruir Artur, restaurador da paz e da prosperidade, e que todos os homens de
bem consideravam como o príncipe da cavalaria e a fonte da honra.
A resposta é simples: a grandeza de Artur era intolerável àquele monge, pois
fazia as suas pretensões parecerem ridículas. Ora, a notícia de que Artur e o
imperador do Oriente haviam se tornado amigos excitou o medo e o ciúme do
papa. Portanto, ele decidiu destruir Artur.
Primeiro escreveu para Eugênio, arcebispo de Canterbury, seu contemporâneo
como sacerdote da cúria romana e portanto seu velho aliado. Fez-lhe dois
pedidos: em primeiro lugar, que lhe fornecesse provas de pecados ou crimes
cometidos por Artur e de qualquer indulgência que este tivesse demonstrado para
com as antigas e ilegais religiões da Britânia, informando, por exemplo, se ele
traficara com feiticeiros ou bruxos. Em segundo lugar, pedia que Eugênio lhe
fornecesse o nome de um “príncipe nobre” que ele pudesse designar como rei
em lugar de Artur.
O arcebispo ficou feliz em atender.
Em poucas semanas, enquanto Artur ainda permanecia na Gália realizando
tribunais de justiça e recebendo a homenagem de numerosos príncipes, o
arcebispo pôs-se a trabalhar e logo forneceu ao bispo de Roma, pretenso vigário
de São Pedro, uma lista dos supostos crimes, pecados e graves delitos de Artur.
Eu incluo aqui essa lista porque sou honesto e nada vos esconderei, embora saiba
que muitos acreditam no provérbio que diz não haver fumaça sem fogo, e
conseqüentemente tendem a considerar qualquer alegação como prova positiva,
confundindo o que se diz com o que de fato acontece. É a seguinte:

Que cometera incesto com a irmã;


Que era culpado do pecado de sodomia com diversos jovens, entre os quais
citam-se Peredur, Parsifal, Gaheris e Geraint;
Que se permitira, para sua vergonha e prazer, ser sodomizado por Lancelot;
Que livrara de sentença judicial conhecidas feiticeiras;
Que, ensinado pelo feiticeiro Merlim, obtivera o reino por meio de bruxaria,
retirando da pedra uma espada ali incrustada por artes mágicas;
Que, ao descobrir que a rainha Guinevere era estéril, procurara, por meio de
feitiçaria, capacitá-la a engravidar;
Que, tendo isso fracassado, recorrera à Missa Negra com igual objetivo;
Que, com igual propósito, forçara ou encorajara Guinevere a beber o sangue de
uma criança morta;
Que subornara Lancelot para que este dormisse com a rainha a fim de engendrar
um filho e herdeiro;
Que, durante a celebração de ritos profanos e diabólicos, beijou o traseiro de um
gato, zombando da elevação da hóstia;
Que se associara com pagãos e com eles partira o pão;
Que vendera benefícios em troca de ouro, sendo, portanto, culpado de simonia;
Que oprimiu os pobres, cujas terras doou aos seus cavaleiros;
Que condenara barões à morte, sem o devido julgamento;
Que prendera três clérigos, embora a regalia do clero exigisse que fossem
julgados em tribunais eclesiásticos;
Que se associou a atores, malabaristas, meretrizes e prostitutos de ambos os
sexos;
Que a sua corte era um antro de vício;
Que insultara o próprio arcebispo, negando-lhe a autoridade;
Que declarara que o bispo de Roma não tinha sobre a Igreja da Britânia poder
maior do que qualquer outro bispo estrangeiro (s» 'c);
Que praticara a alquimia;
Que, para agradar o Demônio, cuspira na Cruz; Que...

Bom, a lista de acusações era longa. Eu não tive tempo, propensão nem ânimo
para registrar sequer a metade. O que escrevi deve bastar para vos esclarecer
sobre a intenção...
Ao preparar essa denúncia, Eugênio sentiu-se como jamais se sentira antes.
Como poderei manter o decoro desta narrativa, de modo a não chocar alguém
que a leia depois de vós, meu príncipe? Será que devo dizer simplesmente que
Eugênio sentiu algo que jamais tivera? Sentiu-se como um homem que caminha
pelas ruas consumido por uma luxúria tão aguda que os rins chegam a doer e
que, tarde da noite, atira-se sobre alguém e se alivia.
Satisfeito. Era assim que ele se sentia. Totalmente esvaziado e recompensado.
Leu a lista três vezes e mandou que lhe trouxessem vinho.
Depois enviou um lacaio convocando Mordred ao seu palácio.
Vinha observando Mordred há muito tempo. Sabia-o ser o homem certo para o
que tinha em mente.
Já vos pintei um retrato nítido de Mordred? Acho que sim. Porém deveis
esquecê-lo, já não é mais exato.
E isso porque Mordred crescera. Aprendera a refrear a língua que antes, para
seu deleite, batia como as presas venenosas de uma serpente. Aprendera que o
homem que exercita a perspicácia malévola às custas dos outros consegue
divertir o seu público e levá-lo a menosprezar aqueles a quem dirige as farpas e
os sarcasmos, mas não lhe conquistará a confiança nem lhe inspirará crédito.
Todos pensarão que a mesma perspicácia poderá se voltar contra os ausentes. E
assim, Mordred agora cultivava o silêncio. E como sobre ele pairava apenas a
lembrança da sua perspicácia, os homens começaram a considerá-lo perigoso.
Revelava tão pouco a seu respeito que todos o supunham possuidor de grandes
qualidades ainda ocultas.
Mordred fazia grande alarde da sua castidade. Não porque considerasse a
castidade uma grande virtude, mas sim por acreditar que ao dominar o desejo
mostrava-se forte. Além disso, temia entregar algo de si mesmo ao fazer amor.
Na verdade, talvez sentisse pouco desejo e concentrasse todo o seu amor na sua
própria pessoa. Não pretendo ler-lhe a mente. Mas a conseqüência é certa: os
homens se admiravam com o seu desprendimento, que ao mesmo tempo os
apavorara, e assim olhavam-no com respeito e até com espanto.
Então Mordred alterou a aparência quando mudou o comportamento. Logo que
chegou a Camelot, tomava bastante cuidado no vestir, de modo a disfarçar a
deformidade; agora, não mais. E isso porque calculava (pois tudo o que fazia era
calculado) que a aparente indiferença para com a própria deformidade
impressionaria aqueles a quem pretendia liderar. Pois é natural que busquemos
esconder as nossas fraquezas e disfarçar o que é feio; e o homem que desdenha
desses cuidados parece-nos notável.
Quando Eugênio o convocou, Mordred não respondeu de imediato, porque não
era esse o seu modo de agir. Fez o prelado esperar, para demonstrar
superioridade.
Finalmente permitiu-se fazer anunciar no palácio e sem demora foi conduzido à
biblioteca do arcebispo. Encontrou Eugênio à vontade, de robe de chambre de
seda amarela debruada de peles, lendo a denúncia que São Jerônimo dirigira
contra os pelagianistas, a quem denominava de hereges. Mordred beijou-lhe o
anel cortesmente e recusou o vinho oferecido.
Depois de alguns gracejos, pois deveis saber, meu príncipe, que na Britânia é
impossível se iniciar qualquer conversa sem algumas observações preliminares
sobre o tempo que naquela ilha cercada pelo mar é instável como não ocorre
aqui na Sicília e, portanto, ocupa a mente dos nativos a um grau que vos
surpreenderia... mas já estou eu fazendo uma digressão.,. Pois bem, depois de
alguns gracejos, o arcebispo começou um discurso cuidadosamente preparado
(Mordred logo entendeu isso).
— Pois assim como o Todo Poderoso determinou que o sol e a lua derramassem
uma luz para que olhos carnais pudessem perceber a beleza da Sua Criação em
todas as estações do ano, assim também permitiu que o Homem, criatura que Ele
formou à Sua própria imagem, possa ser atraído e estimulado a pecar, assim
pondo em perigo a própria alma, e proporcionou aos dignitários apostólicos e
reais os meios para governarem o mundo segundo a Sua vontade divina. Se eu,
como teu Pai terreno, precisar responder por ti perante o teu Pai celestial no
terrível Dia do Juízo... — fez uma pausa para enfatizar bem o significado da idéia
— perante o Juiz justo que não pode mentir e que é o teu Criador e o Criador de
tudo o que se move na terra e no mar, agora insisto em que consideres com
cuidado de que modo eu devo zelar pela tua salvação e como tu, meu filho, para
o teu próprio bem, deves me obedecer sem delongas nem questionamento em
tudo o que eu ordenar, para afinal conquistares a bem-aventurança perene.
Mordred, cujos olhos não haviam abandonado o arcebispo enquanto este falava,
agora os baixou, inclinou a cabeça e pareceu se entregar a uma séria reflexão.
Então, em voz baixa, demonstrando profunda humildade, disse:
— Farei o que disserdes e seguirei as vossas instruções, meu senhor.
Não havia o mais leve tremor na voz de Mordred, nem estremecimento no olhar
que pudesse dar indício do prazer que experimentava com aquela hipocrisia
abjeta. E assim continuou:
— Farei o que disserdes, pois o que é um príncipe senão uma espada para
obedecer à Santa Igreja?
— Se fosse sempre assim, como deveria ser... — e o arcebispo deu um profundo
suspiro, como alguém cuja mente está triste ou perturbada. Em seguida, dizendo
saber que Mordred, diferente de tantos dos seus companheiros, dominava a arte
da leitura, estendeu-lhe o documento que redigira listando as acusações a que
Artur deveria responder.
Mordred leu devagar, muito devagar, pois queria se conceder tempo para
escolher a melhor resposta; ao terminar, atirou-se ao chão, ruminando e uivando
como cão abandonado. Eugênio observava-o em silêncio e nada disse até que
Mordred, de joelhos, sacudiu a cabeça e gemeu:
— Será possível? Não, não é possível que o rei seja tão iníquo! — Eugênio pôs a
mão na cabeça inclinada do jovem e falou, sereno e como que compungido:
— Ai de mim, é tudo exatamente como escrevi, até a última palavra.
Então, já falando claro e com energia, disse:
— Quando o rei Saul pecou contra o Senhor e desobedeceu aos Seus
mandamentos, o profeta Samuel, o Sumo Sacerdote de Israel, pronunciou a
sentença contra ele e ungiu o jovem pastor Davi para ser rei em seu lugar. Artur
é Saul, eu sou Samuel e tu, meu filho, és o meu Davi.
Pegou um frasco de óleo consagrado, despejou-o sobre a cabeça de Mordred, e
disse:
— Meu filho, eu te consagro como Servo do Senhor Deus Todo-Poderoso, em
virtude da autoridade que me foi conferida pelo Santo Padre, Vigário do Sagrado
Apóstolo Pedro, e te convoco para seres o instrumento da sua vingança e
empunhares a Espada da Justiça e o Escudo da Verdade contra os seus inimigos,
hereges, pecadores, blasfemos e, em especial, contra o renegado e tirânico
Artur, ora destituído dos Altos Cargos e excomungado, segundo a Bula que será
publicada pelo Santo Padre. E que dele se afastem os corações de todos, e que
contra ele se ergam as mãos de todos os cristãos!
E em seguida ajoelhou-se ao lado de Mordred e juntos rezaram.
IV

Julgo necessário dizer algo mais sobre esse Mordred, de quem até agora vos
apresentei, meu príncipe, apenas rápidas pinceladas.
Como vos lembrareis, ele era filho caçula da adorável e infeliz Morgan le Fay,
que ela acreditava e afirmava ter sido gerado por Artur, quando este, como ator
ambulante na tenra juventude, encantou-lhe os olhos e foi atraído ao seu quarto,
onde ambos desfrutaram uma noite de amor.
Isso eu já relatei.
Talvez seja verdade o que Morgan disse.
No entanto, há quem questione esse relato.
Em primeiro lugar, dizem, Morgan e Artur eram igualmente paradigmas de
beleza, enquanto Mordred era feio. Isso, dizem, contradiz a natureza, pois um
belo garanhão e uma adorável égua não darão origem a um potro deformado e
insignificante. E, de fato, os que se dedicam a criar cavalos, cães ou gado
confirmam essa observação.
Em segundo lugar, acham que Mordred não tem qualquer semelhança de caráter
ou de físico com os supostos pais, pois as infelicidades de Morgan decorreram do
calor e da impetuosidade do seu caráter, enquanto Mordred era frio, astucioso e
precavido. E Artur, já vos demonstrei abundantemente, era uma síntese de todas
as virtudes.
No entanto, o segundo argumento é menos convincente, pois é bem sabido que
pais nobres podem gerar filhos ignóbeis: por exemplo, o imperador e filósofo
Marco Aurélio foi o pai do vicioso e dissoluto Cômodo.
Então, embora muitos neguem que Artur possa ter gerado um filho como
Mordred, eu não considero comprovada a negativa.
Seja como for, ninguém duvida que Morgan aceitou Mordred como filho,
mesmo que ele não tivesse qualquer semelhança com os seus irmãos ou meio-
irmãos Gawaine, Agravaine e Gaheris, fosse em aparência, costumes ou moral.
Contudo, alguns sugerem que a criança foi trocada ao nascer, substituída por
fadas ou talvez por alguma parteira corrupta, pelo bebê que Morgan dera à luz; e
dentre os que defendem essa hipótese, alguns afirmam que o verdadeiro filho de
Artur e Morgan, que teria sido raptado, era aquele Sir Galahad que se sentou na
Sede Perigosa e recebeu a visão do Graal, enquanto outros acreditam que esse
filho verdadeiro fosse Parsifal.
Mas não há evidências e, portanto, não posso vos aconselhar que acrediteis.
Menciono simplesmente de passagem.
O certo é que, como já mencionei, Merlim tirou o recém-nascido Mordred da
mãe para educá-lo segundo o seu método. Isso foi notável, pois nada havia que
recomendasse o menino. Nascera com uma fileira de dentes, com um ombro
mais alto do que o outro, de modo que alguns pensavam que fosse corcunda e
manco da perna esquerda. No entanto, é justo acrescentar que Merlim logo
descobriu que Mordred possuía uma inteligência aguçada; e, de fato, ele se
revelou um aluno competente. Aprendeu a ler e a escrever, a conhecer os cursos
da natureza e as propriedades das plantas, tornando-se exímio herborista. Foi
atraído pela matemática e adquiriu profundo conhecimento de astrologia.
Auxiliava Merlim em suas experiências de alquimia e aos quinze anos estava
mais preparado do que os jovens da sua idade.
A gratidão era emoção estranha à sua natureza deturpada. Longe de reverenciar
o sábio mestre, Mordred passou a detestá-lo. G porquê eu não posso saber,
suponho simplesmente que se ressentisse do fato de Merlim compreender-lhe a
verdadeira natureza. Portanto, buscou atormentá-lo. Certo dias surrupiou uma
poção de amor que Merlim preparara para uma Grande Dama cujo marido
estava cego aos seus encantos (preferindo as filhas núbeis dos seus arrendatários)
e diluiu-a no hidromel que Merlim tomava à noite; e depois arranjou para que
quando Merlim despertasse, pusesse os olhos em uma certa mulher suja e
desmazelada de nome Bárbara, filha de um guardador de porcos, que vivia na
floresta e que fedia aos porcos do pai. Merlim foi tomado por uma luxúria tão
violenta, que a jovem, assustada, fugiu para os recessos da floresta, onde foi
comida por lobos, ou raptada pelas fadas, ou se juntou a um bando de feiticeiras,
tornando-se uma das queridas do Demônio (pois se contam todas essas histórias a
seu respeito). Enquanto isso, Merlim vagueava pelos campos e bosques gemendo
de lascívia e frustração até que, enlouquecido pela impossibilidade de encontrar a
tal mulher, caiu de joelhos e comeu capim como um segundo Nabucodonosor. E
isso agradou muito a Mordred.
Já vos contei que quando Artur tomou Guinevere como esposa e, entre muitas
lágrimas, despediu Morgan da corte, esta, com o espírito de vingança que pode se
apossar até das nobres naturezas quando têm os brios feridos, mandou procurar
Merlim, prendeu-o, atirou-o a um calabouço e depois ordenou que lhe
trouxessem Mordred.
Ora, a princípio Morgan queria simplesmente ter o prazer da companhia daquele
filho que lhe fora tirado ainda criança; acredito que esperasse ternamente
encontrar nele as qualidades que adorava em Artur, para que ele pudesse
confortá-la na sua solidão. Mas logo descobriu o caráter malicioso Mordred e,
embora na sua generosidade procurasse uma desculpa para isso, dizendo ser
conseqüência da deformidade e também da educação que recebera do
destestável Merlim, não tardou muito a perceber que não conseguiria tolerá-lo.
Mordred espalhava calúnias sobre as damas de honra de quem ela tanto gostava
e fez com que ela tristemente despedisse duas; e há motivos para se crer que
tenha violentado uma outra. Assim, o entusiasmo inicial de Morgan transformou-
se em decepção e depois em repugnância.
Ao mesmo tempo, a dor inicial que experimentara ao ser rejeitada por Artur
transformou-se em ressentimento e se inflamou a ponto de a amargura
consumir-lhe o juízo; e o verdadeiro amor que sentira se converteu em ódio.
Pois, com certeza, o amor e o ódio ambos baseados na paixão, são como irmã e
irmão. Assim, quando Morgan perdeu as esperanças de reconquistar Artur,
pensou em destruí-lo. Portanto, decidiu enviar Mordred para a corte e deu-lhe
uma carta para ser entregue a Artur “pessoalmente”, na qual, com palavras
melosas, cuja escrita lhe causou profunda satisfação, ela recomendava o jovem
ao rei, como seu verdadeiro e único filho.
“Na verdade, eles se merecem”, pensou Morgan.
Mordred foi para Camelot com grandes esperanças. Ainda não estava totalmente
corrompido; mantinha algo do ardor natural da juventude; talvez até mesmo algo
do idealismo da juventude. Certamente, era ambicioso, mas isso é próprio dos
jovens. Tinha consciência da. sua deformidade que, como eu disse, naquela
época procurava disfarçar, pois se envergonhava ao perceber que era inferior
em força e agilidade aos cavaleiros mais comuns; mas também sabia que os seus
dons intelectuais o tornavam superior aos companheiros. Essa combinação é
infeliz, e só pode ser aceita com equanimidade pelos virtuosos. Mordred não era
virtuoso, e por isso deve ser lamentado.
Levou a carta da mãe para o rei. Artur leu-a e corou. Não duvidou do que
Morgan escrevera. Não podia. No entanto, não era uma boa notícia. Ficou
agitado, triste e ofendido. Muitas vezes sonhara com um filho, ansiara por um
filho, e dolorosamente aceitara não ter. E agora lhe apresentavam um bastardo,
produto de um amor que ele não podia lamentar, mas ao mesmo tempo um filho
deformado, a quem não podia reconhecer sem causar sofrimento a Guinevere; e
isso ele odiaria fazer, precisamente porque sabia que não mais a amava.
Mordred olhou-o e leu a rejeição no seu olhar. Daquele momento em diante,
decidiu se vingar.
Artur fê-lo cavaleiro, tratou-o com respeito, admitiu-o no conselho. Concedeu-
lhe o mesmo acesso privilegiado à sua pessoa de que desfrutavam Gawaine,
Agravaine e Gaheris. Em particular, dirigia-se a ele como filho, mas não o fazia
diante da corte nem o indicaria como herdeiro, como Mordred esperara. Durante
anos, Mordred tentou conseguir a predileção de Artur por meio da lisonja; em
vão. Percebeu que Artur sentia apenas piedade por ele e se ressentiu,
principalmente por lhe parecer que essa piedade se manifestava em
condescendência. O seu orgulho o impedia de revelar aos outros a sua
reivindicação; no entanto, não conseguia se impedir de lançar insinuações ou
falar de si mesmo, de modo oblíquo, como alguém que fora deserdado e
trapaceado naquilo que por direito seria seu. Aos poucos se aproximou de todos
os cavaleiros que por um motivo ou por outro estavam insatisfeitos, entediados,
contrariados em suas ambições e prontos para se rebelar.
Cultivou a amizade do clero. Comparecia regularmente à missa. Confessava-se
com freqüência. Permitia-se ser observado derramando comentários sobre as
Escrituras. E assim adquiriu a reputação de jovem probo e temente a Deus. Isso
não era inteiramente falso. Na verdade o zelo religioso estava longe de ser
insincero. Mordred, de fato, temia a Deus. Praticava uma extrema devoção aos
santos. Nada o deleitava mais do que ganhar alguma relíquia sagrada. Em certa
ocasião festiva, Eugênio, que entendia e desprezava essa peculiaridade do caráter
de Mordred, arranjou-lhe um rosário feito de ébano que, segundo disse, fora
moldado por um ermitão copta dos Montes do Líbano; e os olhos de Mordred
brilharam e a sua alegria foi ilimitada. O chapéu que costumava usar era
decorado com pequenas imagens d santos e mártires, feitas de chumbo, e outras
pendiam até mesmo do capacete que usava em batalha. Em conversa, quando
lhe pediam alguma opinião, ele frequentemente beijava uma dessas imagens
antes de responder; e observava-se que fazia isso com uma devoção mais óbvia
quando ia dizer algo falso ou calculado para enganar.
Apenas umas poucas pessoas, dentre as quais o meio-irmão Gaheris, o
chamavam de hipócrita; e na verdade, talvez no nível mais profundo estivessem
equivocadas. A inteligência de Mordred era tamanha que ele não poderia fingir
para si mesmo que o seu comportamento não fosse perverso, daí ser intenso o
seu temor ao Inferno. Portanto, como não podia ou não queria mudar de
comportamento, buscava segurança na beatice ou, ao meu ver, na mais vulgar
superstição.
O próprio Eugênio, como eu disse, desprezando o culto às relíquias, que sabia
inútil, ainda assim viu em Mordred as qualidades de que necessitava. Reconheceu
e admirou-lhe a falta de escrúpulos, a ambição, a crueldade. No entanto,
acreditou que, com a vantagem de ser mais velho, poderia ser o mestre nessa
associação. E nisso se enganou: Mordred não reconhecia mestre algum.
V

E assim Eugênio pronunciou a excomunhão de Artur, alegando a autoridade do


papa, “habilitado a unir e separar no Céu, agindo mediante a autoridade de São
Pedro, de quem é vigário e, portanto, igualmente habilitado, aqui na terra, a
conceder e retomar impérios, reinos, principados, ducados, marquesados,
condados e bens dos homens. Pois, sendo juiz em assuntos espirituais, por que não
poderia julgar todos os assuntos terrenos? E, assim como São Pedro julga e
governa os anjos do Céu, aqui na terra o seu vigário governa até o mais orgulhoso
dos príncipes, como certamente esse príncipe governa os seus escravos...”.
Esse foi o primeiro exemplo do emprego dos poderes de excomungar e depor
alegado pelo bispo de Roma, contrariando toda lógica, poderes que têm forjado
grandes sofrimentos, provocado rebeliões e guerras e causado muito
derramamento de sangue.
E assim, naquela clara tarde de março, ao sopro firme do vento leste, Eugênio
declarou Artur destituído do trono da Britânia e o substituiu por Mordred. Fez com
que este se sentasse sobre a pedra sagrada que alguns chamam de Pedra do
Destino e que, como se sabe, serviu de travesseiro para Jacó na noite em que ele,
fugindo da ira do seu irmão Esaú, descansou em Betel e antes do amanhecer
lutou com um anjo. Verdade ou não, sabe-se que alguns dos nossos ancestrais
retiraram do Egito essa pedra e a trouxeram para a Britânia, onde há muito vem
sendo reverenciada. É de arenito de cor amarelo acinzentado.
Contava-se que durante a cerimônia Mordred parecia impaciente, ansioso pra
acabar com aquilo tudo e ficar livre para agir como rei. E, no entanto, a
cerimônia era importante para ele. Parecia a concretização de seu destino. E,
fato curioso, a sua figura era imponente. O ombro levantado, a boca retorcida, os
olhos negros encovados, tudo revelara aos espectadores sua determinação.
Não demorou muito para o mundo, ou o país, sentir-lhe a força. Preparara
cuidadosamente o terreno. Despachou alguns jovens cavaleiros que lhe eram
fiéis, com ordens de tomarem os castelos litorâneos e desarmarem-lhes as
guarnições. Fez uma proclamação declarando que Artur e qualquer homem que
procurasse ajudá-lo seriam considerados proscritos e poderiam ser
sumariamente mortos, ainda que não fossem culpados. Dedicou-se a inflamar a
mento do povo atiçando-o contra estrangeiros e exigindo a entrega de todos os
judeus, hereges e feiticeiros aos oficiais da Guarda de Ferro (uma corporação de
tropas especiais por ele criada). Alguns foram queimados em Londres,
Winchester, York, Caerleon, e até em Camelot, para consternação o deleite do
populacho. Duas legiões se acantonaram entre os saxões estabelecidos no sudeste
do país e triplicaram os impostos cobrados de condes e ealdormen saxões. Se
algum proprietário de terras protestasse não poder pagar, teria os dentes extraídos
até confessar que escondera o seu tesouro. Se esta persuasão (era este o termo
oficialmente aprovado) fosse insuficiente, então primeiro extraíam-se as unhas
dos dedos das mãos e depois as dos pés.
Na Páscoa, com a aprovação da Igreja, foi decretada uma semana de
penitência. As ruas da cidade ressoavam com os gemidos, soluços e imprecações
de tanta gente se flagelando. O próprio Mordred deu o exemplo, fazendo-se
açoitar nos degraus da Basílica de São Pedro, em York; e, no Dia de Páscoa,
brandiu tão ferozmente um chicote cheio de nós nas costas e nas nádegas de um
cónego de Minster que o infeliz teria morrido se um anjo não descesse do Céu
para deter a mão do rei; isto foi comprovado por diversas testemunhas que
afirmavam ainda que o anjo colocou uma coroa de ouro na cabeça de Mordred
e o beijou três vezes: uma na mão, outra na testa e a terceira nos lábios, como
prova da estima que ele desfrutava no Céu.
E assim o entusiasmo turvou o juízo dos homens. Uns poucos se apavoraram; a
maioria se exaltou e dentre estes espíritos audazes alguns se entregaram a uma
orgia de crueldades cujos principais sofredores foram os judeus embora, por
ordem expressa de Mordred, as mortes mais dolorosas fossem reservadas aos
acusados de sodomia ativa ou passiva, onanismo e outras práticas denunciadas
como pecaminosas.
O temor dos primeiros eliminou qualquer perigo de rebelião, enquanto os que
deram asas à perseguição tornaram-se cada vez mais fortes, mais arrogantes e
mais ardentemente comprometidos com Mordred. Porque ele compreendeu que
a melhor maneira de amarrar os homens à tirania é dar-lhes a liberdade de
oprimir outros e estimular-lhes a eventual propensão à crueldade.
Mordred enviou soldados para prenderem Guinevere no convento para onde ela
se retirara. Porém a rainha, alertada para o perigo que a ameaçava, mandou que
a descessem da torre em um cesto, procedimento arriscado, pois a rainha,
glutona, engordara muito, comendo cada vez mais à medida que se sentia infeliz
e maltratada. No entanto, conseguiu escapar e, com a ajuda de um jovem
cavaleiro de nome Beaumains, que há muito a adorava (a distância), chegou ao
litoral, onde o capitão de um navio encarregou-se de levá-la à Bretanha para se
reunir a Lancelot que a abrigou, forçado pela honra, embora o amor que sentira
por Guinevere tivesse morrido.
Quando Mordred soube da fuga ficou aborrecido e com medo; aborrecido por ter
sido contrariado; e com medo porque tinha certeza de que se mantivesse
Guinevere em seu poder, Artur não ousaria fazer guerra tentando recuperar o
reino, pois a rainha correria um risco ainda maior ou seria condenada à morte. E
julgava sabiamente, como de costume.
Também mandou prender a própria mãe, Morgan, para ser julgada por
feitiçaria. De todas as suas maldades, esta é a mais aterrorizante. Embora muita
gente se impressionasse com a evidência de que ele carecia totalmente de
sentimentos. “Que odeiem, desde que temam”, costumava dizer citando um
verso que, pelo que sei, é atribuído ao imperador Tibério. Além do mais,
agradava a Eugênio e aos bispos, que pregavam sermões elogiando a santidade e
a devoção do rei para com a verdadeira religião. O próprio Eugênio (ou os seus
clérigos) redigiu as acusações contra a infeliz rainha de Orkney. Quando essas
foram lidas em voz alta em julgamento público, Mordred chorou, só de pensar
que tanta perversidade fosse possível! É claro que já conhecia as acusações,
algumas por ele próprio sugeridas; portanto, essas lágrimas eram uma comédia.
Mesmo nessa situação a sua hipocrisia não era absoluta. Tinha muito medo de
feitiçaria e talvez de fato acreditasse que a sua deformidade fosse conseqüência
do conluio da mãe com o Demônio. Sempre que a superstição se apossa de um
homem, o raciocínio se anula e não há limite para as bobagens que ele se dispõe
a acreditar.
No entanto, neste ponto os nervos de Mordred falharam: ele não consentiu que a
mãe fosse condenada à morte, segundo a sentença pronunciada quando, sob
tortura, ela confessou-se culpada de tudo o que a acusavam. Disse, mais uma vez
com lágrimas nos olhos, que não suportaria ter na consciência a morte da mãe; e
talvez fosse sincero. Pode ser que ainda restasse algum vestígio de afeto natural.
Quem sabe? Quem consegue penetrar com segurança nas profundezas da
natureza humana e entender o que a move?
Diz-se que Mordred mandou mensageiros entregarem veneno a Morgan, para
que ela pudesse escapar à morte terrível e desonrosa à qual fora condenada. Mas
ela desdenhou o presente.
E assim a sentença de morte foi comutada, ela foi presa em uma torre alta em
um vale remoto, vigiada por eunucos cujas línguas haviam sido arrancadas para
não poderem se comunicar com ela. Alguns historiadores afirmam que a
cegaram, mas não sei se eles dizem a verdade. Talvez estejam confundindo o
destino de Morgan com aquele a que são condenados, em geral, os membros
supérfluos da família imperial de Bizâncio.
Finalmente, Mordred mandou procurar todos os antigos amigos ou aliados de
Artur que não tivessem desertado para aderir ao novo governo.
Entre as vítimas estava o idoso Sir Kay que, embora resmungasse
freqüentemente contra Artur, lhe obstruísse muitos planos e muitas vezes se
referisse com ternura ao tempo em que o rei não passava de um pobre rapaz que
ele chutava, esbofeteava e submetia à disciplina, ainda assim o velho cavaleiro
lhe jurara fidelidade e possuía um obstinado senso de honra. Portanto, não se
sujeitaria ao usurpador Mordred e tentou fugir atravessando o mar para se reunir
a Artur. A fuga foi impedida quando Sir Kay se preparava para embarcar.
Arrastaram-no para fora do pequeno barco e lhe deceparam a cabeça em uma
praia lamacenta.
Peredur também foi caçado e levado para Camelot onde, apesar de
honestamente casado há muitos anos, foi condenado à morte por sodomia e
necromancia e sofreu a punição de ser queimado vivo, para grande satisfação de
Eugênio e Maior Glória de Deus, como foi declarado.
VI

E assim a Britânia padeceu sob um reinado de terror e muitos erguiam os olhos


para os céus perguntando quando Artur voltaria para redimir a terra. Muitos
faziam a pergunta em silêncio, em suas orações, pois os espiões de Mordred
delatavam todos os que mencionavam o nome de Artur sem lhe acrescentar
qualquer maldição. Esses eram capturados e confinados à prisão ou mantidos em
acampamentos onde se submetiam à chamada “reeducação”. Quem se
mostrasse intratável tinha a língua arrancada, pois, como disse um capelão de
Eugênio em um sermão pregado na Basílica de São Paulo, em Londres, não se
podia abusar do dom da fala, concedido pelo Senhor, pronunciando o nome de
um excomungado pela Igreja. Mas o sol do alto verão arrefeceu sem que
houvesse sinal nem notícia de Artur. As folhas se tingiram de vermelho e
amarelo e caíram das árvores, e com elas também feneceram as esperanças de
muitos. O inverno gelado envolveu a terra com geadas ou nevoeiros de sufocar a.
garganta, mas Artur não veio. Alguns diziam que morrera; outros, tristes, que
tinha medo. Apenas poucos continuavam acreditando que ele retornaria na
primavera; e assim o número dos que lhe eram leais minguou, e muitos acharam
conveniente se acomodar à Nova Ordem, como Mordred descrevia o seu
regime, e com ele colaborar. Alguns o fizeram com tristeza e relutância; outros,
apesar de terem custado a mudar de lado, agora demonstravam o zelo fervoroso
dos convertidos. E assim, semana após semana, Mordred se fortaleceu e
dominou completamente a Britânia.
Enquanto isso, Artur permanecia em Ly on, que os romanos chamavam de
Lugdonum, onde soube que fora excomungado e deposto e que o seu filho
bastardo usurpara o trono. A notícia o atingiu como o dia da ira, que reduzirá o
mundo a cinzas; e ele caiu ao chão, desmaiado. Uma pena colocada sobre os
seus lábios não se moveu, e a princípio pensaram que ele estivesse morto. Na
verdade, passou muitas semanas pairando entre a vida e a morte, como alguém
que bate à porta do outro mundo e não é admitido. Os médicos sangraram-no e
ele enfraqueceu. Esfregaram-lhe o corpo com óleos preciosos e ele não reagiu.
Até os seus seguidores mais próximos perdiam as esperanças quanto à sua
recuperação.
Mas Gaheris ouvira falar de um sábio médico da Germânia, que estudara textos
herméticos e era profundamente versado em Cabala; mandou convocá-lo,
enviando, como prova de confiança, um rubi do tamanho de um ovo de pomba.
Esse homem, cujo nome era Jacob Kuhnrath, respondeu que viria e também
enviou pelo mesmo mensageiro o seu emblema, que mostrava um filósofo
carregando uma lanterna pela floresta e seguindo as pegadas da Natureza. Isso
pareceu tolice aos médicos que assistiam o rei, e eles teriam negado a Jacob o
acesso ao paciente. Mas Gaheris insistiu; e como até então o consideravam um
homem de vontade fraca e até frívolo, agora todos se admiravam da autoridade
que assumira.
Quando Jacob chegou, primeiro elaborou o horóscopo do rei e garantiu aos
médicos que se persistissem naquele tratamento Artur com certeza morreria,
mas, se lhe confiassem o paciente, então as estrelas indicavam que o rei
recuperaria as forças. E disse:
— Pois, embora o destino do homem esteja escrito, não está escrito que caminho
deverá tomar.
Alguns consideraram tolas essas palavras, argumentando que o destino deve
acontecer, sem admitir escolha riem alteração.
Em seguida, Jacob mandou o seu auxiliar apanhar ervas em campos e bosques e
instruiu-o a selecionar as dotadas de diversas propriedades; algumas, se ingeridas
sozinhas, seriam nocivas e tóxicas. Pois dizia:
—- O espírito e o corpo estão igualmente desordenados e buscamos restaurar-
lhes a harmonia.
Enquanto o auxiliar estava ausente em sua missão, Jacob traçou certas figuras
matemáticas e geométricas em volta da cama onde o rei estava deitado, pálido,
frio e ao mesmo tempo suando; e essas figuras, dizia Jacob, imitavam caracteres
hieroglíficos que a Vontade Divina escreve no universo; e como todos
ignorassem, ninguém pôde desmenti-lo. Depois exigiu música de flautas,
instrumentos que, segundo afirmava, ecoam mais de perto a música das esferas;
e queimou enxofre enquanto a música soava à sua volta.
Quando o rapaz retornou, Jacob aprovou as ervas e preparou um prato cozinhado
em excelente óleo e aproximou-o das narinas do rei, para que este pudesse inalar
o odor. Nesse momento, pela primeira vez em sete meses, Artur abriu um olho.
Jacob, falando a meia-voz, muito baixo e indistintamente, pois conhecia o perigo
da missão, sussurrou um encantamento em idioma babilônico. Em seguida,
acendeu um fogo com galhos de oliveira c pegou um ovo, que nos estudos
esotéricos simboliza o universo, uma vez que dele surge a vida, e o manteve
sobre o fogo até a casca se partir. Nesse instante Artur abriu o outro olho, moveu
os lábios e falou. Mas ninguém compreendeu as suas palavras e Jacob passou as
mãos no rosto do rei e lhe deu para comer o prato de ervas. Ao fazer isso, Artur
ergueu-se da cama com forças renovadas, embora o cabelo tivesse
embranquecido.
Todos se maravilharam com o que viram e muitos tiveram medo, pois não lhes
parecia natural que Artur, aparentemente morto, se levantasse assim. E alguns
falaram em feitiçaria e deixaram a cidade. O próprio Jacob furtou-se a se
responsabilizar pelo que acontecera, quando pressionado em particular por
Gaheris, de quem. aceitou ouro e jóias; compadeceu-se do jovem cavaleiro,
garantindo-lhe que nada havia a temer no que fizera. E assim falou:
— Alguns falam em magia, mas usam a palavra de modo ignorante. E preciso
saber que existem quatro tipos de magia: a magia divina que está além da nossa
compreensão; a teurgia, magia religiosa que liberta a alma da contaminação do
corpo; a goetia, que é feitiçaria; e a magia, natural, ou ciência da natureza. A
partir dos resultados, julgareis que tipo de magia eu realizei; ficai sabendo que
dos quatro tipos de magia só a terceira, a goetia, é amaldiçoada.
Gaheris agradeceu, e então Jacob disse:
— Se quiserdes, podereis acreditar que vi o rei cercado por uma muralha de fogo
e ao me aproximar vi a muralha se mover, pois não passava de uma procissão de
muitos anjos que por ali caminhavam. E esses anjos estavam ali para me guiar e
também como guardiães do rei. E assim eu soube que a minha medicina
venceria.
Em seguida, pegou o pagamento e voltou para a Germânia e para os seus
estudos.
E daquele dia em diante, Gaheris passou a crer e a ter certeza da imortalidade de
Artur. Mas guardou segredo das palavras de Jacob, com medo do que pensariam
os outros, ouvindo-o se expressar daquela maneira.
VII

Artur levou muito tempo para recuperar as forças que, na verdade, não
retornaram totalmente. Para montar a cavalo precisava de ajuda e se esgotava
mais depressa do que a claridade de um dia de dezembro no norte. A mente
também estava incerta. Dava ordens e depois cancelava. Não conseguia se fixar
em um curso de ação. Secretamente, alguns o declaravam senil. Outros
julgavam ter chegado a hora de atravessarem para a Britânia e fazer as pazes
com Mordred. Era do conhecimento geral que ele daria as boas-vindas a
qualquer cavaleiro que desertasse Artur.
Até os mais devotados ao rei mal podiam ocultar a ansiedade. Gawaine e
Gaheris conversavam até altas horas e o assunto era sempre o estado mental de
Artur. No início, pouparam-no das piores notícias a respeito da tirania de
Mordred, receando talvez precipitar alguma recaída da doença; não conseguiam
esquecer que ele desmaiara ao ouvir o boato da chamada “rebelião”. Mas aquela
situação não podia perdurar. Gaheris disse ao irmão:
— Não podemos tratar o rei como a uma criança que precisa ser protegida de
saber o que está acontecendo.
— Porém, no íntimo, ambos achavam que o rei estava entrando na segunda
infância.
— Pelo menos Guinevere está a salvo? — perguntou Artur, hesitante.
— Assim entendemos. Fugiu ao encontro de Lancelot.
— É um certo alívio, eu fiz muito mal à pobre mulher — disse o rei.
Mais uma vez os dois irmãos pensaram até que ponto, aos olhos do mundo, Artur
fora desonrado, pois Guinevere procurara refúgio junto a um homem com fama
de ser seu amante, e não junto ao marido. Mas também não fizeram
comentários.
Na primavera, Artur estava mais forte. Cavalgou pela Bretanha, terra de charcos
salinos, santuários e castelos achatados. Enviou mensageiros a Lancelot pedindo-
lhe ajuda, mas era orgulhoso demais para exigir isso como tinha direito. Os
mensageiros voltaram .relatando o fracasso da missão. Gaheris jamais admirou
Artur tanto quanto no momento em que ele recebeu, aquelas palavras
inesperadas. Seu rosto parecia máscara. Ninguém conseguia, discernir-lhe a dor.
Lancelot não deu qualquer explicação; simplesmente apresentou uma recusa
brusca. Gawaine ficou furioso. Partiu imediatamente para falar com Lancelot,
seu amigo íntimo, o cavaleiro cuja superioridade reconhecera com toda a. força
da sua natureza generosa.
— Se ele tivesse me falado dessas intenções eu o teria, impedido — disse Artur
para Gaheris.
— Mas por quê? Nós necessitamos de Lancelot, e ele tem o dever de vos servir.
O meu irmão pretende chamá-lo ao dever. Está errado?
— Dever — disse Artur —palavra pesada que se esvai com o tempo! No que diz
respeito à necessidade, quanto menos numerosos formos, maior será a nossa cota
de honra. Lembro-me de ter dito isto antes. Naquela época fazia mais sentido.
— Então o que resta, afinal? — indagou Gaheris.
— Conheci um velho cavaleiro que me falava de dever e dizia: “Na minha idade
não há recompensa. O que ura dia foi meu dever, hoje me parece totalmente
desgastado, esgotado, velho demais, o tipo de coisa que se fez em certa época e
depois se descobre que não tem significado. Perdeu o sentido que tinha para
mim”. Recentemente tenho pensado muitas vezes naquele velho cavaleiro.
Gaheris pensou que o velho cavaleiro era o próprio Artur.
E o rei prosseguiu:
— Ontem à noite sonhei com Camelot. Não há tristeza maior do que lembrar a
felicidade de ontem, na hora da infelicidade atual. E, no entanto, precisamos
voltar para a Britânia.
E assim o rei meditava sobre a transitoriedade da sua glória. Enquanto isso,
Gawaine cavalgou até Joy euse Gard, o castelo de Lancelot, soprou a trombeta
três vezes e pediu para falar com Lancelot. Deixaram-no esperando por muito
tempo, e então a ponte levadiça baixou e ele entrou.
Lancelot recebeu-o em um pequeno aposento no alto de uma torre. Vestia-se não
como um soldado ou cavaleiro, mas sim com uma túnica de tecido vermelho,
amarrada à cintura, e calçava chinelos. Abraçaram-se, Lancelot serviu vinho e
disse:
— Gawaine, meu irmão por juramento! — e suspirou. — Como eu gostaria de
ter impedido a tua vinda ou de ter-me recusado a te receber!
Gawaine ficou contente ao ouvi-lo falar assim; sugeria-lhe que Lancelot se
envergonhava por não ter respondido imediatamente às convocações do rei.
E, de fato, Lancelot estava envergonhado. Mas, como Gawaine descobriu,
também estava decidido e disse:
— A rainha chegou aqui muito triste. Escapou à captura e ao julgamento, e com
certeza à morte ignominiosa. Fora desertada por Artur, abusada por Artur.
— Tenho certeza de que o rei sempre a tratou correta-mente... — disse Gawaine.
— Corretamente? — Lancelot enrolou a palavra na boca como se fosse vinho e
depois, como se o vinho se tornasse amargo, cuspiu. — Corretamente? E é isso
que uma mulher deseja, Gawaine? O rei casou-se com ela sem amor...
— Todos os reis agem assim. E também a maioria dos barões e dos cavaleiros.
Casamos por interesse...
— E devemos? Falamos em cavalheirismo, fazemos grande alarde do
cavalheirismo e da nossa devoção para com as nossas amadas. Mas não passam
de palavras, palavras vazias. Abusamos das mulheres porque não lhes
concedemos o que elas mais exigem...
— Palavras tolas, Lancelot! Esse é o jeito do mundo.
— De fato. Jeito ruim, de um mundo ruim. Artur abusou da rainha. E eu também
abusei, que Deus me perdoe. A minha constituição não me permite entregar-me
inteiramente ao amor, e assim recebi o que ela me ofereceu e não pude ser fiel.
No entanto, ela me procurou na sua infelicidade. Veio temendo que eu a
rejeitasse e, ainda assim, veio. Orgulhosa demais para me pedir piedade, buscou
simplesmente a minha proteção...
A luz esmaecida daquela tarde de inverno lançou sombras sobre o rosto de
Lancelot. No entanto, Gawaine teve a impressão de que ele se posicionara de
modo que o seu rosto não pudesse ser lido.
— Belas palavras, e sem dúvida te dão merecimento. Mas o que os temores e os
sentimentos da rainha têm a ver com a convocação que recebeste do rei?
Convocação que estás obrigado por juramento a obedecer?
— Já fiz outros juramentos — disse Lancelot —, talvez até demais. E o mais
recente foi em relação à rainha: jurei não abandoná-la e me deixar guiar por ela
em todas as situações.
— Então é a rainha que te impede de atender ao rei? E ela quem te prende? E por
que motivo?
— Ela deseja que eu não vá. Submeti-me à sua vontade, e nessa submissão
encontro paz.
Gawaine praguejou e deu um murro na mesa.
— Paz?! Não é hora de tagarelar a respeito de paz! Estamos em guerra!
Lancelot sacudiu a cabeça:
— Seria impossível eu te fazer entender.
— Ao contrário! Entendi bem demais! Tu estás ficando moleirão ou medroso! O
que o mundo dirá quando souber que Lancelot, o maior de todos os cavaleiros,
anda se escondendo por trás das saias de uma mulher, enquanto o seu rei
necessita dele?
— O mundo que diga o que quiser. O mundo diz muita tolice...
— Lancelot... — a voz de Gawaine adquiriu um tom de súplica e ele narrou tudo
o que soubera da tirania da Mordred. Falou bem e bastante; ele que nunca fora
bom orador, falou melhor do que nunca.
Porém Lancelot não se comoveu. Pela primeira vez sorriu e disse:
— Meu pobre Gawaine, que importância tem. isso? Mordred pode ser tudo o que
dizes, e até pior. Mas Artur está velho e fraco. Logo estará morto, vença essa
última batalha ou não. E então o que acontecerá? A raça perniciosa de vermes
que denominamos homens retomará as suas guerras, disputas e perseguições.
Haverá um segundo Mordred, e um terceiro. Muito sangue será derramado e
ninguém sairá vencedor.
— Não podes crer nisso — disse Gawaine. — Não podes estar sendo sério,
falando assim. Assim como eu, tu conheces Camelot. Viste como pode ser a vida
lá, viste como um Estado bem ordenado pode assegurar ordem e paz...
— E a felicidade dos homens..., meu pobre Gawaine, aquilo não passou de um
sonho. Até em Camelot havia ciúme e malícia, ambição e mesquinharia,
arrogância e crueldade, temor e ódio... No momento em que Artur se casou com
a rainha por “motivos de Estado”, ele não destruiu brutalmente a tua própria
mãe?
— Brutalmente não...
— Brutalmente, ou insensivelmente, ou pelos motivos mais elevados, o que
importa como descrevemos isso? Tu sabes o que ele fez, e as conseqüências.
Artur teve muitas virtudes, mas foi, sobretudo, um homem de poder, e as únicas
leis que o poder reconhece são aquelas que julga convenientes para o momento.
Não, Gawaine, não, eu não me mexerei daqui de novo. Estou farto de guerras.
Agora me basta cultivar o meu jardim... e as virtudes que eu possa ter.
— E se eu te chamar de “covarde”?
— Eu me contentarei em te deixar com a tua opinião.
VIII

Na primavera, Artur estava mais forte de corpo e de espírito, embora não de


soldados e material. Precisou alugar navios do condado de Picardia, pouco
numerosos porque o seu exército era pequeno. Atravessou saindo da embocadura
do rio Somme e desembarcou perto da atual cidade de Pevensey. Há travessias
mais curtas, como as empreendidas por Júlio César, mas Artur esperava
arregimentar novas tropas entre os saxões do sul. Tomara conhecimento da
opressão que estes sofreram da parte de Mordred, e conhecia-lhes o ânimo
belicoso. Alguns se juntaram a Artur, porém a maioria dos homens mais
importantes se manteve à parte, uns ressentidos com o tratamento por ele
dispensado a Guinevere, outros porque, ao verem aquele exército tão pequeno,
julgaram que Mordred derrotaria Artur, e assim concluíram que ficariam em
piores condições combatendo ao lado deste do que se mantendo à distância.
Além do mais, os anos de paz que Artur lhes impusera fizeram muitos perderem
o apetite pela guerra. Haviam-se tornado fazendeiros, e os fazendeiros sempre se
importam mais com colheitas e gados do que com assuntos de Estado. Um certo
ealdorman disse:
— Para nós não tem a menor importância quem se intitula rei da Britânia, desde
que em Londres tenhamos mercado para vender a nossa carne e o nosso milho.
No acampamento de Artur, os conselhos se dividiam. Cada homem tinha uma
opinião e todos estavam seguros de que o seu vizinho era insano. Alguns optavam
por permanecer nas suas terras e desafiar Mordred a atacá-los em um campo
bem fortificado.
Alguns preferiam lutar para tomar Londres. “Quem tem Londres, tem a chave
do reino”, era a opinião de Gawaine. Outros, entre os quais Gaheris, diziam que o
melhor era marchar para o oeste, onde julgavam conseguir apoio. Artur
contemporizava, sem se sentir pronto para se comprometer com determinado
caminho, embora todos, mesmo discordando, o pressionassem a agir.
Porém Artur despachou olheiros e ficou aguardando o relatório. Enquanto não
tivesse uma idéia das intenções de Mordred, não se moveria. O seu raciocínio era
válido: estabelecera uma base que poderia ser abastecida de provisões. Disse
para Gaheris:
— O teu meio-irmão jamais comandou um exército. Quando se mexer, vai fazê-
lo devagar. — Deu um suspiro e acrescentou: — Por outro lado, ele dispõe de
cavaleiros experientes. Já garantiram a linha do Tâmisa e nós estamos fracos
demais para rompê-la.
Correu o boato de que Mordred hesitava. Portanto, Artur enviou um
destacamento de cavaleiros pela estrada até Londres.
— Espalhai que a vanguarda sois vós — disse. Era um estratagema para atrair
Mordred a Londres.
(Vede, meu príncipe, eu vos desenhei um mapa bem melhor, garanto, do que
aquele de que dispunha o pobre Artur. Na verdade, o seu melhor mapa era a sua
memória e a sua visão do país, adquirida em outras campanhas. Certa vez,
quando lhe perguntaram como ele treinara para ser general, respondeu:
— Sempre que eu percorria uma região desconhecida, procurava adivinhar o
que havia do outro lado da colina. (Seria prudente seguirdes esse conselho, como
preparação para o dia em que comandareis um exército.)
Mordred agiu como Artur esperava e talvez previsse. Os olheiros relataram que
todo o exército de Mordred, exceto guarnições deixadas em fortes no Tâmisa,
rumava para Londres.
Ao receber esta notícia, Artur logo avançou para o norte, a fim de se livrar dos
pântanos que ficavam entre a sua base e o oeste, e então rumou na direção em
que ficaria além da região pantanosa. A sua intenção era dupla. Em primeiro
lugar, tendo escapado de Mordred, esperava fazer com que o usurpador o
seguisse. Estava certo de que o exército de Mordred era ma) organizado e que,
em marcha rápida, haveria muitas baixas. Em segundo lugar, esperava obter
reforço no oeste, onde sempre fora popular.
Gawaine expressou o seu alívio, embora o seu plano tivesse sido rejeitado:
— A mente do rei voltou a funcionar.
Agora Artur se movia depressa, cobrindo quarenta milhas em três dias. E então
parou, escondeu parte do exército por trás de um cume e aguardou a
perseguição. Atacou e desorganizou a linha de marcha de Mordred, e então
chamou de volta os seus cavaleiros.
— Ganhamos dois dias — disse. Em seguida apressou o passo através da velha
estrada romana que vai de Salisbury até o Canal de Bristol e acampou nessa
estrada, justo no local onde ela se afasta do caminho que leva ao cume,
aguardando novas tropas provenientes do oeste e Mordred que viria do leste. —
Precisamos de uma batalha curta para desencorajar o inimigo — disse.
E aí começou a chover, aquela chuva morna e pesada do verão britânico, quando
(tereis dificuldade em acreditar no que vou dizer, meu príncipe, pois vedes ali
fora o brilhante amarelo-ouro da Sicília) o verde é o único tom sob o céu, além
das flores que brotam luxuriantes. Um italiano meu amigo, doutor erudito,
versado em literatura e filosofia, esteve ensinando em Oxford há alguns verões.
Escreveu-me: “Este país é inacreditável. E como estar vivendo no meio de uma
salada”. E é assim mesmo, de fato. Além disso, em certos verões, como aquele
em que Artur lutou as suas últimas batalhas, o ar não seca, de modo que mesmo
não chovendo fica úmido. E então os vales inundaram, os rios encheram demais
para serem atravessados, os cavalos comeram mais do que o normal porque
havia excesso de capim ou sofreram de cólicas; e enxames de moscas
atormentavam a todos. Alguns homens adoeceram de disenteria, outros de febre.
Muitos resmungaram. Outros desertaram.
Sem dúvida, o exército de Mordred sofreu igualmente, até com maior gravidade.
No entanto, era muito maior e Mordred distribuía o ouro que tirara dos saxões,
confiscara dos mosteiros, extorquira dos mercadores de Londres, roubara das
viúvas e dos órfãos custodiados pelo rei, assim conseguindo recrutar mercenários
entre os escoceses, entre os selvagens irlandeses, e entre dinamarqueses e jutos
do Mar do Norte, enormes guerreiros de barba loura que brandiam poderosos
machados de guerra, pagãos a quem ele prometia honra, fama, festas e virgens
se morressem em combate.
O notório Geoffrey de Monmouth conta que o exército de Mordred chegou a 8o
mil homens. Isso é absurdo, típico daquele fantasista mentiroso. Naquele tempo
seria impossível reunir tamanho exército. Nem nos grandes dias de Roma os
exércitos atingiram tais proporções. Podeis dividir esse número por dez e
chegareis perto da verdadeira estimativa. Mas ainda assim era quatro vezes
maior do que o pequeno exército de Artur.
Artur agora estava preparado para lutar. Escolhera bem a sua posição, com uma
linha de retirada através das colinas, se a sorte não lhe favorecesse. As tropas
foram levadas para um assentamento arruinado, uma quinta que nos dias de
apogeu do Império fora uma rica vila romana. Ficava no alto de uma colina, de
modo que Mordred precisaria atacar de baixo para cima.
Os cavaleiros de Artur avançavam a trote rápido, embora pisando e
escorregando em solo molhado, de modo que a investida se desorganizou e
perdeu o ímpeto. Artur ordenara que muitos dos seus cavaleiros desmontassem e
se posicionassem protegidos por uma barreira de pedras, interrompida em certos
locais, mas, apesar disso, suficiente para servir de defesa. Enfiaram as lanças na
cavalaria de Mordred, ferindo muitos cavalos e fazendo-os cuspir da sela os seus
cavaleiros. Alguns morreram na queda, outros fugiram apressados, colina
abaixo, com isso impedindo um segundo ataque, e vários foram pisoteados pelos
cavalos.
Essa segunda investida foi igualmente repelida e desta vez, sem esperarem
ordem para avançar, muitos cavaleiros de Artur saltaram por cima da barreira e
atacaram os inimigos desorganizados, forçando-os a descer a encosta. Ao ver
isso, um destacamento de cavaleiros se encarregou de verificar se a cavalaria de
Mordred debandara.
Mas então, no exato momento em que se julgavam vitoriosos, se defrontaram
com a muralha de escudos de dinamarqueses e jutos, girando os seus poderosos
machados de guerra e causando grande número de baixas. Então a cavalaria
reserva de Mordred pegou-os pelo flanco e foi com grande dificuldade, e apenas
graças à coragem, maravilhosa de se ver, que os homens de Artur conseguiram
se livrar e, resistindo ao ataque enquanto perdiam terreno, voltar para o santuário
da sua defesa. O fato de conseguirem fazer isso demonstrava que Artur
selecionara cuidadosamente o terreno para travar a batalha.
Então, aquele dia de enfrentamento terminou empate e, ao abrigo da escuridão,
Artur planejou retirar o exército e retomar a marcha para oeste.
A batalha fora violenta e muitos nobres cavaleiros morreram. O principal,
lamentado por todos, foi o intrépido Gawaine, que comandava a retaguarda
quando caiu, atingido na garganta por uma flecha de balista atirada por um
mercenário. Foi a primeira vez que os soldados de Artur se depararam com essa
terrível arma e ela os surpreendeu, pois os olheiros falharam em relatar que
Mordred recrutara esses soldados profissionais italianos, provavelmente
lombardos.
Ao saber da morte do sobrinho, Artur disse:
— Eu preferia ter o meu braço direito decepado a perder Gawaine. Ele era o
mais corajoso dos corajosos, o mais verdadeiro e mais honrado dos cavaleiros.
E, de fato, era verdade. Nenhum ato indigno manchara-lhe a reputação, jamais
recusara qualquer desafio nem se furtara a dever algum.
Para a eterna vergonha de Mordred, quando soube da morte do meio-irmão,
mandou esquadrinhar o campo de batalha em busca do corpo e depois, em vez
de lhe dar o enterro honroso que Gawaine merecia, mandou decepar a cabeça,
fincá-la a um mastro que fez desfilar pelo acampamento, para que todos
pudessem ver que não mais existia o grande e terrível Gawaine.
E quando os olheiros relataram isso no acampamento de Artur, Agravaine e
Gaheris, irmãos do herói falecido, fizeram cortes nos rostos e dali extraíram
sangue que espalharam um na fronte do outro, jurando se vingar de Mordred,
pelo bem e em memória de Gawaine.
IX

Aquele ataque precipitado custara a Artur cerca de quinhentos homens e o


exército que conduzia para oeste estava com o corpo machucado e abatido, mas
o ânimo ainda resoluto. Ninguém que escreveu sobre essa última campanha
questiona esse fato, e não se registra qualquer deserção a Artur. Mas, apesar de o
exército de Mordred ter sofrido perdas ainda maiores, Artur foi obrigado a ceder
terreno, e assim Mordred foi considerado vitorioso. Além disso, mantendo
Londres e um rico tesouro, podia compensar as perdas; outros mercenários há
muito contratados agora chegavam e se reuniam a ele, de modo que poucos dias
depois da primeira batalha Mordred estava mais forte do que antes; e os novos
recrutas, robustos e ansiosos para se exibir.
E, no entanto, chovia, como se os Céus chorassem ao ver o reino tumultuado e
sentissem pena de ver empanada a glória de Artur. Também fazia muito frio, o
vento mudara para noroeste, de modo que a chuva caía gelada embora no
calendário ainda fosse alto verão.
Agora os homens hesitavam em aderir a Artur, pois muito poucos se dispõem
voluntariamente a ajudar alguém destinado à derrota. E então Artur encontrou
fechadas as portas de muitos castelos que ele mesmo mandara construir;
negavam-lhe refúgio ou fortalezas de onde pudesse desafiar Mordred. E também
ele agora estava fraco demais para sitiar esses castelos. Gaheris, sem o
conhecimento de Artur, mandou procurar novamente Lancelot, contando-lhe da
morte de Gawaine e suplicando-lhe que viesse logo com todos os seus cavaleiros,
pois “se não atenderes ao meu apelo, temo que o rei esteja perdido e que seja
destruída a Távola Redonda, aquela confraria nobre da qual em certa época te
orgulhaste de ser a principal glória e o mais belo ornamento”. E assinou a carta
coro. as seguintes palavras: “Pelo amor de Gawaine, peio amor que sempre te
dediquei, e pelo amor que outrora professaste a mim e ao rei”. Mas não
mencionou a carta para Artur, pois sabia que o orgulho do rei o condenaria.
Estavam acampados na cabeceira de um vaie atrás do qual ficava o mar do
oeste. A comida escasseava e não havia vinho; e quando a noite caía, Gaheris
tinha a impressão de que a escuridão que os cercava cobria todas as terras da
Britânia, pairando sobre elas tal qual mortalha fúnebre.
Certa noite chegou a notícia de que o exército de Mordred, embora avançasse
lentamente em virtude da enorme caravana de bagagem, estava a dois dias de
marcha dali, quando um velho apresentou-se no posto avançado para anunciar
aquela aproximação. Vestia-se como um mascate, com uma túnica amarela, e
carregava um cajado feito de um galho de freixo. Tinha a barba grisalha, o rosto
cheio de cicatrizes e movia-se como alguém muito cansado, como, de fato
estava por ter viajado muitas milhas naquela região inóspita até chegar ali e
passado por muitas dificuldades.
Pediu para ser levado ao rei. A sentinela a quem fez o pedido hesitou, temendo
que o aparente mascate fosse algum enviado de Mordred para espionar-lhes a
penúria ou talvez para assassinar o rei. Mas o velho falou com insistência,
embora com delicadeza, e afinal a sentinela chamou o capitão, que questionou o
velho minuciosamente. Mas este não revelou o seu nome nem o propósito da
visita e assim o capitão, aturdido e coçando a cabeça, mandou-o sob guarda para
ser examinado por Gaheris.
O próprio Gaheris fora ferido em batalha: uma lança atingira-lhe a coxa, nada
sério, apenas um ferimento na carne. Estava cuidando disso quando o seu pajem
veio lhe dizer que a sentinela estava do lado de fora da tenda com um velho que
queria uma audiência com o rei.
— Como é esse velho?
— Parece um mascate. Enrugado, sujo e fedendo como um bode — o rapaz,
jovem atrevido e petulante, cujo ânimo continuava elevado apesar do perigo da
situação, deu um sorriso amarelo e segurou o nariz como se sentisse nojo e
acrescentou: — Talvez seja louco.
— Será, será mesmo? E tu és já juiz da loucura, Will?
— Tão bom juiz quanto qualquer um. O olhar dele é vago, como se o mundo lhe
fosse estranho.
— Nas atuais circunstâncias, talvez seja estranho para todos nós. Bom, se for
louco, pelo menos nos divertirá.
— Pois muito bem, eu vou buscá-lo. Devo?
O velho entrou arrastando os pés, seguido pelo pajem, e transbordando de
curiosidade. Depois de longo exame, o velho falou:
— Se o teu criado não me dissesse que eras Gaheris, eu não teria te reconhecido.
Apoiava-se pesadamente sobre o cajado e com os olhos continuava a pesquisar o
rosto de Gaheris. E enquanto Gaheris mantinha silêncio, acrescentou:
— Bem, nenhum de nós é o que éramos, e vejo que tu também não me
reconheces. Nem esperava que o fizesses.
— Estás na vantagem, pois pelo menos sabes o meu nome. E então, meu velho,
como te chamas? — indagou Sir Gaheris.
O velho respondeu:
— Não és mais o jovem bonito de quem me lembro. A época parecias com o rei,
corno ele era quando eu conheci, ainda rapazola. (Quanto ao meu nome, viajei
muito e fui conhecido por diversos nomes em diferentes terras, mas quando tu
me conheceste e eu residia na corte de Artur, eu atendia pelo nome de Cal e,
embora o rei quisesse me dar o título de cavaleiro e algum outro nome mais
imponente, eu não quis nada disso. Esqueceste do Cal, meu belo rapaz, pois é
assim que eu sempre pensei em ti?
Gaheris ficou embaraçado. O pajem Will, por trás do velho, percebeu-lhe o
olhar e deu um risinho, sem dúvida porque o velho falava de modo tão ridículo.
Gaheris não soube o que responder de imediato. E então, para ganhar tempo e
organizar as idéias, mandou o pajem buscar vinho.
O rapaz respondeu:
— De bom grado, se ainda houvesse vinho. Mas não há, e vós sabeis disso,
porque eu mesmo vos disse ontem.
— Então cerveja, ou até mesmo hidromel, e pão e queijo, se conseguires
encontrar, pois tenho certeza de que o nosso hóspede ainda não comeu hoje e, na
verdade, eu também estou com fome.
Quando o rapaz saiu, Cal indagou:
— Será que o rei me receberá?
— E por que não? Talvez isso o desperte da letargia. Sabes que a nossa situação é
desesperadora?
— Assim ouvi dizer. Foi por isso que vim, embora durante anos jurasse jamais
retornar, mesmo que Artur me implorasse ou me mandasse um tesouro para me
atrair de volta. E nenhuma dessas hipóteses parece provável.
Gaheris foi primeiro avisar ao rei do retorno de Cal. Encontrou-o deitado em um
catre em sua tenda, fraco de corpo e angustiado de espírito. Não reagiu, mas os
seus lábios pareceram tremer como se tentasse formar palavras, e o suor
começou a porejar-lhe da testa.
Então Gaheris levou Cal até ele e sem dizer palavra deixou-os a sós.
Artur girou a cabeça e tentou se erguer dos travesseiros em que se apoiava.
Fitaram-se por muito tempo.
Artur disse:
— Vieste escarnecer de mim, diante da minha situação extrema? Se assim for,
tens razão. Ou vieste me censurar pelo mal que te causei? Nisso também tens
razão. Ou vieste por piedade? Neste caso, eu a rejeito...
Cal sorriu pela primeira vez desde que chegara ao acampamento:
— Tu ainda falas tolices, não é? Nossa! Pareces estar em um estado tão
deplorável, como quando te encontrei no estábulo do castelo infernal do velho
Cara de Pedra. Sempre me perguntei: será que algum dia tu o levaste ao tribunal
de justiça, junto com a besta do filho dele?
— No que passa por justiça neste nosso pobre mundo, isso eu fiz.
— Bem, então pelo menos fizeste algo de bom e terás poupado do sofrimento que
passamos muitos rapazes como, por exemplo, o pajem do teu sobrinho. Jamais
achei que o sofrimento enobrece o caráter, como alguns sacerdotes tolos às vezes
nos dizem, mas garanto que, a partir da nossa experiência na mão daqueles
monstros, nada do que me aconteceu depois foi tão ruim. E aconteceram muitas
coisas ruins, com certeza. Por que estás deitado aí nessa cama, como alguém que
desistiu da luta?
Artur sorriu pela primeira vez em semanas e disse:
— Pelo que me lembro, eras tu quem estava sempre perto do desespero, pronto a
declarar que todos estávamos condenados.
— Sim, e tu dizias: “Enquanto conseguirmos dizer 'isto é o pior', o pior ainda está
por vir”, ou algo parecido. Jamais soube o que querias dizer com isso, mas
costumava me irritar.
Conversaram longamente sobre o passado e Artur relaxou esquecendo o
presente. Então Cal falou das suas viagens; contou que visitara Constantinopla e
Jerusalém:
— Ali, além de outras relíquias, tentaram me vender pedaços da Verdadeira Cruz
dos quais, se quiseres saber, havia o bastante para fazerem cruzes para uma
legião inteira de soldados romanos. Sabias que São Pedro tinha mais de um
conjunto de dedos, sem contar, suponho, com os que foram pregados à Cruz?
Contou que fora feito prisioneiro por piratas gregos e escapara apenas porque o
filho do capitão se apaixonara por ele:
— Algo que jamais me acontecera antes ou depois, de modo que quase acreditei
em milagres.
Contou que viajara para as terras devastadas de Rus e que formara uma parceria
com um mercador judeu, Abraão ben Ezra, para venderem peles para o palácio
imperial da cidade de Constantino:
— Os judeus são uma gente matreira, e esse Abraão gostava de ficar na
retaguarda e me mandar à linha de frente em todos os nossos negócios; e isso
significava que, quando as coisas davam errado, como acontecia, eu ficava na
merda e ele ficava com todo o ouro que tínhamos ganhado. Sim, os judeus são
uma gente matreira, mas muito espertos. Eu também gostava dele, apesar de me
passar para trás. E então... me disseram que a tua rainha te descartou...
— Não exatamente — disse Artur, lembrando-se de que fora instigado por
Guinevere a banir Cal da corte e do reino. — Mas me conta o que aconteceu
com o filho do capitão grego. Ainda é teu companheiro?
— Estás mudando de assunto — disse Cal. — Por acaso, não. Talvez te lembres
de que eu sempre tive horror às coisas da carne, ou seja, quando a coisa vai além
da imaginação. Por isso eu não podia satisfazê-lo e, em todo caso, aquele
sacaninha arranjou logo um protetor rico, poucos dias depois da nossa chegada à
capital. Guinevere contou mentiras a meu respeito. Tu sabes, não é?
— Pobre mulher, não podia agir diferente. À época estava enciumada.
— E era saxã, e eu jamais conheci um que não fosse mentiroso.
Artur suspirou.
— Eu te causei mal.
— Todos nós causamos mal uns aos outros. Eu queria ser o único a te dizer a
verdade, o único com quem poderias contar e confiar acima de todos os outros.
Era vaidade. Ou presunção. Ou medo. Não sei.
Ficaram em silêncio. Mas agora era um silêncio cálido, o silêncio de uma velha
amizade renovada. Artur disse:
— Orgulho. Tem sido a minha ruína. Sempre permiti que o orgulho se
interpusesse entre mim e a realidade. Agora só o orgulho me impede de me
render a Mordred.
— Pelo que eu soube e vi, viajando pela Britânia, ele é a pessoa certa para se
combater. As terras estão devastadas e os homens não se encaram.
— Já ouviste falar do Graal? — indagou Artur.
— Ah, aquilo?
— Os melhores dos meus jovens cavaleiros saíram para buscá-lo e poucos
retornaram.
— Pelo que ouvi dizer, é uma caminhada inútil.
— Talvez — disse o Rei. — Quem poderá dizer? Pode-se afirmar isso a respeito
da própria vida. Na verdade, Merlim afirmava isso, ou talvez fosse Goloshan, não
consigo me lembrar. Seja quem for, dizia: “Uma longa e inútil caminhada para a
sepultura”. Acho que citava um poeta. Naquela época, parecia uma observação
tola.
— E agora, não é mais?
— Agora? Não sei. Sei muito pouco. Lembras-te de um sonho que tive certa vez,
e que devo ter te contado, de que eu estava nos campos, em um prado agradável,
ricamente florido e repleto de animais, belos cavalos, gado branco pastando
tranqüilamente e feras que caçam outras, leões, tigres e lobos; e, no entanto, não
havia medo nem ferocidade, mas sim paz, delicadeza e calma. E então o sol se
levantou no frescor da manhã e todos os animais ergueram a cabeça para adorá-
lo ou cultuá-lo. Havia dragões e serpentes, mas até eles prestaram reverência. E
o mundo era muito bonito e tranqüilo. Esse sonho me voltou ontem à noite, e eu
acordei ainda no escuro e me senti feliz.
— Sim, eu pensei muitas vezes nesse sonho que sonhaste. E ansiei para que fosse
verdade, mas sabia que não passava de um sonho, de como as coisas deveriam
ser e não são — disse Cal.
— Parecia-me que eu estendia as mãos para os animais e eles avançavam as
bocas molhadas em minha direção e me fuçavam os dedos, como os cães fazem
com os donos. Depois adormeci de novo e voltei a sonhar. E desta vez, no sonho,
vi os quatro cavaleiros que encontramos cavalgando naquele lugar desolado que
antes fora uma cidade... te lembras?
— Guerra, Fome, Peste e Morte. E o último não tinha rosto.
— Acordei soluçando e com frio, como se estivesse deitado em uma ladeira ao
ar livre, no inverno. E tremia pensando no sonho e no seu significado. Na minha
angústia, parecia que o primeiro sonho representava as coisas como poderiam ter
sido, e o segundo, o mundo como é; pensei que fora indicado para tornar
realidade o primeiro sonho e fracassara, de modo que tudo o que eu fizera fora
convocar os quatro cavaleiros e deixá-los livres para agir.
Cal olhou para o rei, que fora e continuava a ser seu amigo, e pareceu ouvir o
chocalhar de correntes e o arranhar de garras de ratos. E percebeu que não tinha
palavras para dizer.
X

Quando Cal saiu, Artur se preparou para dormir, com a mente aliviada como há
muito não sentia. No início dormiu profundamente por algumas horas, mas
depois acordou no meio da noite e tudo em volta era escuridão e silêncio. Sentia
muito frio, e parecia-lhe que o frio que o assaltava vinha do mundo dos mortos,
daquela terra que fica além da morte. Chamou o pajem para lhe esfregar os pés
e aquecê-los; e depois tornou a dormir.
Dessa vez sonhou, e no sonho viu-se sentado em uma cadeira amarrada a uma
roda presa a um cadafalso. Vestia-se com o mais rico tecido de ouro, como nos
seus dias de glória. Mas quando olhava para baixo da cadeira verificava que
estava amarrado com cordas e que debaixo do cadafalso, bem ao longe, havia
água, negra, profunda e medonha, estagnada e fedendo a tudo o que não se pode
mencionar. E cheia de vermes e serpentes e todo tipo de monstros infames e
nocivos. Então a roda girava e ele era lançado, ainda amarrado à cadeira,
naquele lago em meio às serpentes, e todas as feras tentavam agarrá-lo pelos
membros. E assim, com grande terror, pediu socorro e o pajem entrou e
confortou-o mais uma vez. Mas por um momento Artur não sabia onde estava
nem, na verdade, se vivo ou morto.
O pajem sentou-se ao seu lado, refrescando-lhe a testa, pois agora Artur suava
abundantemente, até o rei cair de novo em um meio-sono. Nesse instante
parecia-lhe que Sir Gawaine se aproximava em companhia de várias belas
damas.
Artur dizia:
— Bem-vindo, meu sobrinho, bem-vindo duplamente, pois temi que estivesses
morto. Mas quem são essas damas que trazes contigo até o meu leito de doente?
Então Gawaine dizia, ou parecia dizer:
— São todas as damas por quem batalhei enquanto vivia e, como a causa era
justa, lutei pelos seus direitos e elas me permitiram vir até aqui vos advertir que,
se lutardes hoje contra o meu meio-irmão Sir Mordred, com certeza morrereis.
Mas se lhe enviardes um mensageiro pedindo uma trégua de pelo menos um
mês, então continuareis vivo e o reino será preservado e a lei voltará a triunfar.
Pois nesse mês de trégua Sir Lancelot virá com todos os seus cavaleiros batalhar
ao vosso lado e vos garantir a vitória.
O rei despertou do meio-sono e constatou que apenas o pajem o acompanhava.
— Já está claro? O dia já raiou? — indagou. E o pajem respondeu:
— Na verdade, já é de manhã; há algum tempo ouvi os galos cantarem na aldeia
no sopé da colina. No entanto, não passa de uma luz meio sombria e a chuva
ainda cai em meio a uma bruma amarela.
— Esse amarelo significa o sol recuperando as forças — disse Artur.
E mandou o pajem acordar Gaheris, Agravaine e Cal e trazê-los até ali.
Enquanto esperava, mordiscou alguns damascos secos para adoçar a saliva, tirar
da boca o gosto desagradável e organizar as idéias.
Eles vieram como Artur ordenara e este lhes contou o segundo sonho, mantendo
segredo quanto ao primeiro.
— Mordred será um tolo se consentir na trégua, pois agora ele nos tem à sua
mercê — disse Gaheris.
— No entanto, exatamente por isso vale a pena tentar — disse Agravaine. —
Estou disposto a fazer essa tentativa. Quando éramos crianças, Mordred me
admirava, ou pelo menos me disse isso quando chegou à corte. Confesso que
fiquei aturdido porque ele ainda não me conhecia, uma vez que Merlim o tirara
dos cuidados da nossa mãe. No entanto, precisamente porque a nossa situação é
tão desesperadora, vou procurá-lo com um pequeno séquito de cavaleiros e lhe
propor a trégua que o fantasma de Gawaine aconselhou. Não acho que Gawaine
sairia do túmulo para vos oferecer um mau conselho.
E assim foi combinado.
Há diversas versões narrando o que se seguiu, e eu vos apresentarei duas, com
razões para sustentar a minha convicção de que uma é verdadeira.
Alguns dizem que Agravaine e Mordred, e seus acompanhantes, se encontraram
em campo aberto, entre os dois exércitos. Mordred levou vinho e beberam juntos
enquanto conversavam. Agravaine propôs que Artur prometeria ceder a
Mordred os condados de Kent e da Cornualha, e também o indicaria como
herdeiro de todo o reino. (Observareis que nesta versão até agora não se tratou de
trégua, mas sim de um acordo pacífico.) Diz-se que Mordred concordou e que
tudo ia bem, quando uma víbora apareceu por trás de um arbusto espinhento e
picou o calcanhar de um dos cavaleiros de Agravaine. Esse cavaleiro, então,
sacou a espada para matar a víbora, sem pretender causar qualquer outro dano.
Mas quando ambos os exércitos viram o brilho do aço, pensaram que os dois
grupos estivessem prestes a lutar e assim soaram as buzinas e as trombetas e a
batalha começou.
Ora, essa história não faz muito sentido nem se sustenta a um exame, porém é a
favorita dos poetas. Naquela manhã nenhum exército estava de prontidão.
Portanto, a batalha não poderia ter começado de imediato. Em todo caso, ficaria
claro, para os cavaleiros ocupados na negociação, que aquele outro cavaleiro
sacara a espada simplesmente para matar a cobra e (sem dúvida) a embainhara
logo depois. Portanto, trata-se apenas de uma bela história.
Podereis perguntar, então, meu príncipe, por que tantos decidem repeti-la. Tenho
duas respostas: em primeiro lugar, muitos gostam de pensar que as guerras
começam e são seguidas de desastres apenas devido a algum incidente ou
infortúnio. Acreditam em acaso, e não em malignidade. Essa visão dos
acontecimentos também é encorajada por poetas e autores de romances de
cavalaria, cujo espírito se baseia na generosidade e na renúncia. Portanto, na
visão dessas pessoas, a magnitude da tragédia que se desencadeia, e o seu pathos,
são igualmente acentuados se a malignidade for atribuída à Fortuna ou ao
Destino, e não a mortais. Além do mais, isso engrandece tudo o que ocorre com
os envolvidos. Sem dúvida, é por esse motivo que os poetas de antanho, ao
narrarem (por exemplo) a guerra de Tróia, apresentavam atuando como
guerreiros deuses e deusas do mundo antigo, que a Verdadeira Fé considera
falsos e quiméricos, assim privando os atores humanos do Livre Arbítrio e
tornando-os meros joguetes do Fadário maligno.
Talvez essa versão do que aconteceu tenha sido espalhada pelos que aderiram à
facção de Mordred, ou pelos seus descendentes, ansiosos por se livrarem, ou aos
seus antepassados, de toda culpa e responsabilidade pela destruição da nobre
Ordem da Távola Redonda.
Seja como for, a verdadeira história é muito diferente, mais terrível e mais
vergonhosa.
Agravaine levou um séquito de apenas sete cavaleiros, o suficiente para manter a
dignidade, porém reduzido demais para protegê-lo. Instruíra-os a polirem as
armaduras e verificarem se os cavalos estavam bem adornados, para poderem
apresentar um espetáculo de bravura e não traírem a triste condição a que o
exército do rei ficara reduzido.
Gaheris observou o irmão cavalgando pela chuva, observou-o até a pluma
vermelha do capacete ser engolida pela bruma persistente e o estrépito dos
arreios desaparecer.
Não há relato completo do que foi dito entre Agravaine e o seu meio-irmão, nem
mesmo do que o primeiro efetivamente propôs. Ficaram a sós, à exceção da
presença de dois guarda-costas dinamarqueses de Mordred, estacionados ao lado
de Agravaine e prontos para prendê-lo. Eram bárbaros e não falavam latim,
idioma em que os irmãos conversaram. Talvez Mordred tenha descartado logo a
trégua proposta. Certamente, nada tinha a ganhar cessando as hostilidades. Se
tivesse ouvido rumores de que Lancelot se preparava para vir ajudar o rei,
quanto mais cedo lutasse, melhor; seria loucura da sua parte pensar em trégua.
Esta parte é óbvia.
Alguns dizem que a briga irrompeu quando Agravaine censurou a rispidez com
que Mordred tratara a mãe de ambos, Morgan le Fay. Pode ser verdade; de todos
os filhos, Agravaine era o mais devotado.
Porém outros dizem que a causa da briga foi uma discussão a respeito do conluio
de Mordred com o arcebispo para declarar excomungados Artur e os seus
principais cavaleiros. Por certo, Agravaine se ressentia disso; era homem piedoso
e cumpridor dos seus deveres religiosos.
Mas a verdade é que ninguém sabe o que foi dito nem o que se passou entre os
irmãos, até o instante em que Mordred saiu do pavilhão gritando “Traição!” e
limpando na borda da túnica o punhal ensangüentado.
Os homens se lembravam de que ele estava com o rosto branco como a neve
que jaz nas montanhas e que os seus olhos eram negros como os portões do
Inferno. Em voz áspera e que tremia com a intensidade dos sentimentos, ordenou
aos guarda-costas dinamarqueses que prendessem os sete cavaleiros que haviam
cavalgado com Agravaine até o acampamento e que agora bebiam vinho com
cavaleiros que em dias felizes haviam sido seus companheiros.
Assim foi feito, e os sete cavaleiros foram enforcados em pinheiros situados
além da entrada ocidental do acampamento. Pela manhã, quando a neblina se
desfez e o sol lançou sombras escuras sobre a relva de cor pálida, verde
acinzentada, os homens de Artur, olhando para baixo a partir do seu
acampamento, viram os corpos inertes balouçando no ar.
Mas ainda não sabiam do pior.
Mordred saiu da tenda acompanhado por um dos Guardas Dinamarqueses que
carregava a cabeça de Agravaine pela longa cabeleira castanha que fora o seu
orgulho; e na calada da noite seguinte, um cavalariano levou-a colina acima e
arremessou-a por cima da paliçada e da fortificação tosca erguida em torno do
acampamento de
Artur, de modo que foi encontrada logo ao amanhecer, com o sangue coagulado
e os olhos totalmente abertos. Todos se aterrorizaram e alguns disseram:
— O sol brilha naquele que será o nosso último dia. Contudo, nenhum soldado se
uniu a Mordred, desertando Artur.
XI

Gaheris não conseguia se decidir a narrar a Artur a morte de Agravaine, pois ele
próprio estava consumido pelo sofrimento. Então Cal assumiu esse dever.
— Poupa-o do pior — disse Gaheris entre soluços.
Mas quando Cal deu a notícia, com a maior delicadeza possível, com grande
esforço Artur ergueu-se da cama, encarou o velho amigo e disse:
— Conta-me tudo. Não me poupes nada.
Então, relutante e com muitas hesitações, Cal descreveu todo o horror que ficara
sabendo. Artur fitou-o com os olhos azuis de onde as nuvens pareciam ter fugido
e que, para Cal, eram novamente os olhos do rapaz que ele conhecera e amara
tantos anos antes: azuis como as manhãs de inverno no norte.
— O luto nos atingiu. Mas não há tempo. O mundo não passa de um feixe de
espelhos quebrados e cada nova catástrofe é um reflexo fraturado de tudo o que
já conhecemos. Cal, chama o meu pajem para pegar a minha armadura.
E então ficou muito quieto, com a roupa manchada que usava desde que se
acamara. E Cal ouviu-o murmurar:

Aquilo que amas muito sempre fica,


O resto é ralé
Aquilo que amas muito não será tirado de ti...{6}

Artur pediu que lhe enchessem uma banheira, tirou a roupa de dormir
manchada, sentou-se na banheira e se lavou. Fez isso vigorosamente, esfregando
o corpo com pedra-pomes. Em seguida saiu e se enxugou com tanta força que o
corpo ficou vermelho por onde pressionou a toalha áspera. (Cal ficou chocado ao
ver como os braços e as pernas de Artur estavam finos.) Então o pajem lhe
trouxe roupas e ele vestiu-se; em seguida colocou com carinho cada peça da
armadura. E naquele dia a armadura era negra, pois Artur sabia que a morte o
rondava. Mas, por estar tão debilitado, a armadura ficou frouxa. Pediu um
espelho e examinou o rosto. A palidez da morte pairava sobre ele. Assim pediu
ruge para disfarçar essa condição, para que ninguém pudesse pensar que ele
estivesse com medo.
Quando ficou pronto e armado, Cal viu-lhe os olhos brilharem como no passado
e, ignorando o pajem, inclinou-se e beijou o rei, primeiro em um dos lados da
face e depois no outro; e o abraçou com força, dizendo:
— Deus esteja contigo, quem quer que Ele seja. Então Artur afivelou a espada
Excalibur que Merlim lhe dera e pediu para lhe selarem o cavalo.
Era lastimável o estado dos poucos soldados de que Artur dispunha para defendê-
lo. Muitos estavam fracos, uns se recuperavam de disenteria ou febre, e outros
doentes, lodos tinham fome. Durante dois dias haviam comido muito pouco,
apenas farinha de aveia misturada com água tirada de um poço perto da capela
em torno da qual haviam construído o acampamento. O mar ficava lá embaixo,
bem abaixo das rochas negras que desciam até o nível da praia de areia cinza.
Uma trilha sinuosa levava do acampamento até a praia, naquele canto do
acampamento em que as rochas haviam caído. Era nessa praia que Lancelot, se
viesse conforme circulava o boato, poderia ancorar os seus navios, mas no mar
não havia barcos nem sinal de velas.
Abaixo deles, do lado da terra, podiam ver o inimigo organizado e pronto para o
combate e ouvir as saudações a Mordred quando este passou em revista as
tropas. Alguns soldados de Artur gritavam maldições, chamando Mordred de
traidor, covarde e assassino; mas a maioria poupou fôlego para a luta.
No entanto, o sol se ergueu no céu e Mordred não fez qualquer movimento.
Passou o zênite e não houve qualquer sinal de avanço.
Artur também se movia entre os seus homens, pronunciando palavras de
conforto e encorajamento, embora mais de uma vez balançasse na sela, quase
dominado pela fraqueza, de modo que Gaheris, que cavalgava ao seu lado,
precisou estender a mão para firmá-lo e impedi-lo de cair. Mas não trocaram
palavra alguma, e na verdade
Gaheris não falara desde que enviara Cal para contar a Artur a morte de
Agravaine e lhe pedira que poupasse o rei do pior. Porém mais tarde Will, pajem
de Gaheris, contou que o seu amo ficara “esquisito” naquele dia.
— Ele tinha um olhar selvagem e sobrenatural como eu jamais vira, nem
gostaria de ver novamente no rosto de alguém.
E freqüentemente os olhos de Artur se voltavam para os corpos dos sete
cavaleiros enforcados que balançavam nos pinheiros. Então o nevoeiro voltou a
cair e cobriu a todos, gelando-os até os ossos. Mas naquele dia não houve batalha.
Cal disse:
— Ele sabe que estamos fracos e que a cada dia ficamos mais fracos.
Na manhã seguinte o vento frio soprou do leste, desfazendo a neblina, e o céu
ficou cinza como argila, ameaçando neve, embora no calendário ainda fosse
verão.
Por volta do meio-dia ouviram-se os sons de trombetas e tambores e viu-se o
exército de Mordred começando a se deslocar. Os besteiros contratados
avançaram agilmente em formação livre, diante da cavalaria montada.
Dispararam as suas flechas, causando grandes estragos. Uma flecha atingiu a
perna de Artur, prendendo-o ao cavalo e, para diminuir o alarme, o rei inclinou-
se à frente e quebrou a flecha, deixando a ponta enterrada no corpo. E por estar
enterrada, o sangue não escorreu.
A primeira onda da cavalaria atingiu a defesa com um poderoso choque, mas foi
repelida com muitas perdas de vidas em ambos os lados. Retiraram-se em
desordem e os remanescentes do exército de Artur fizeram um brinde ao vê-los
baterem em retirada. Isso se repetiu três vezes e cada uma das vezes os soldados
de Mordred recuavam.
Então Mordred despachou os seus soldados dinamarqueses que guerreavam com
machados, tendo como cobertura as flechas lançadas pelos lombardos. Era
apavorante vê-los avançando em ordem unida colina acima, cantando uma
canção de guerra que dizia mais ou menos assim:

Teribus ye Teri-Odin
Filhos de Thor por ele gerados.

A muralha de escudos por trás da qual avançavam e que protegia contra qualquer
projétil lançado pelos defensores assemelhava-se a uma onda do oceano por
ocasião das marés de primavera e a canção soava como um poderoso ribombar
de trovão. Brandiam os seus machados, ora rodopiando-os como se fossem
grandes foices, ora movimentando-os como picaretas, e muitos nobres cavaleiros
e galantes soldados caíram com aqueles terríveis golpes. No entanto, a defesa se
sustentou e os soldados de Artur usavam as espadas e lanças, arremessando-as
sob os machados balouçantes e os escudos, de modo que os dinamarqueses
recuaram até perderem o fôlego, deram meia-volta e fugiram.
Ao verem isso, alguns dos cavaleiros de Artur quebraram a barreira e
começaram a caçá-los. Mas se desorganizaram e foram longe demais, sendo
atingidos pelo flanco por um grupo de cavaleiros de Mordred e eliminados um a
um, sem que fosse pedida ou concedida qualquer clemência. Assim, embora
cada ataque fosse repelido e causasse muitos danos, os homens de Artur agora
eram bem menos numerosos e muitos estavam feridos. Nenhum se saíra com
mais valentia do que Gaheris, e os que antes o imaginavam doce e efeminado
ficaram surpresos com a sua coragem e com os feitos daquele dia.
Então houve uma calmaria no combate. Mordred enviou um arauto
recomendando que Artur se rendesse, e o arauto disse, como o instruíram:
— Não podeis vencer hoje e se não cederdes, com certeza morrereis.
Artur disse:
— Da minha parte lutarei até a morte, que não temo. Mas devo vos dizer, meus
nobres cavaleiros e bravos homens, que uma voz se aproximou de mim na
escuridão, quando o sono me era negado, e me advertiu que esta seria a minha
última batalha e que eu não viveria para ver um outro amanhecer. E agora que
lutamos tão bravamente e que o inimigo ainda está forte e capaz de avançar
contra nós, enquanto estamos tão enfraquecidos, eu temo que aquela voz falasse
a verdade. Portanto, se qualquer soldado ou cavaleiro quiser aproveitar este
oferecimento e assim se render, poderá fazê-lo com a minha bênção e o meu
agradecimento por tudo o que fez por mim no dia de hoje que, de fato, foram
ações grandiosas e serão lembradas com admiração enquanto os homens forem
homens e falarem das nobres façanhas das armas. E ele poderá fazer isso sem se
envergonhar, pois a vergonha não existe para quem lutou ao meu lado no dia de
hoje.
Ao ouvirem essas palavras, todos ficaram embaraçados e surpresos e muitos
decidiram morrer com o rei e ser recebidos como heróis no mundo de além
túmulo.
No entanto, cerca de vinte, desesperados e sem se considerar prontos para partir
desta vida, depuseram as armas e cavalgaram ou escalaram a paliçada para se
render. Mordred dera ordens para que fossem recebidos com honra, pois sabia
que isso lhe daria vantagem e enfraqueceria a decisão dos que permanecessem
com Artur. Estes lamentaram os que partiram, como sendo homens que
fracassaram no último e maior teste, preferindo a vida e a vergonha (apesar da
garantia do rei) à morte e à glória.
E assim pouco mais de cem ficaram com Artur, c todos encomendaram as
almas aos deuses em que acreditavam. Cal que, junto com os pajens se ocupara
em cuidar dos feridos, agora via tudo perdido e assim pegou uma espada de folha
larga e assumiu o seu lugar na barreira.
Então, como os espartanos nas Termopilas, permaneceram no seu campo,
obedecendo às leis da honra e ainda determinados a vender caro as próprias
vidas.
O sol já descera do céu sobre o oceano quando se viu o último ataque ser
montado; e o sol refletiu a cor de sangue dos escudos dinamarqueses que
tremulavam parecendo muralha incompleta, tamanhas as baixas e tamanha a
estafa, até dos guerreiros que lutavam com machados. Porém estes avançavam,
e desta vez a defesa de Artur não conseguiu detê-los por estar escassamente
guarnecida. E assim, os remanescentes foram obrigados a recuar e depois a se
separar em pequenos grupos, perdendo toda a ordem; e a esperança morria com
cada homem que tombava. Pois, embora todos os que permaneceram com Artur
aceitassem a certeza da morte, ainda assim a natureza do homem faz a
esperança perdurar por muito mais tempo depois que a razão a manda embora.
E agora os cavaleiros também os acompanhavam, não mais pressionando com
as suas longas lanças, porém golpeando com as espadas; o ar ecoava os gritos dos
feridos, os gemidos dos agonizantes, os juramentos e as ordens que haviam
perdido o sentido, pois na pressão da batalha, quem poderia obedecê-los?
Artur ainda montava o seu cavalo e Cal viu-o claramente: ele parecia um
espectador no teatro da própria tragédia. Depois Artur olhou para longe, os olhos
mortos recuperaram vida e ele viu Gaheris sendo atacado por dois cavaleiros
vigorosos que o obrigaram a desmontar e o prenderam ao chão. Então Artur,
fixando a lança no suporte, como nas liças em Camelot, esporeou o cavalo e
enfiou-a firmemente no pescoço do cavaleiro que descera do cavalo e pisava em
Gaheris, pronto para matá-lo. Em seguida Artur puxou a espada Excalibur e
desceu-a com força sobre o braço do segundo cavaleiro, que empunhava a
espada; a espada caiu ao chão, o braço pendeu, quebrado, e, dando um grito
estridente, o cavaleiro puxou as rédeas do cavalo e fugiu.
Artur inclinou-se e retirou a lança que espetava Gaheris e libertou-o; depois
estendeu a mão para ajudar o sobrinho a se levantar. Nesse momento foram
empurrados para a extremidade do acampamento, mas nem assim se renderam.
O sol mergulhou na água, o dourado perdeu o brilho e o céu empalideceu. No
exato momento em que o sol morria, uma flecha disparada ao acaso atingiu o
pescoço de Artur pouco abaixo da babeira do capacete. Ele balançou na sela,
inclinou-se à frente e agarrou a crina do cavalo, mas teria caído se Cal não
estendesse a mão para firmá-lo. Porém o cavalo, equivocando-se com o sinal
que o rei lhe dera, parou, empinou e saiu galopando, derrubando a pequena
muralha e se dirigindo para a floresta que naquele ponto se aproximava do
penhasco sobre o mar. Gaheris, Cal e os dois pajens que o dia inteiro haviam
vigiado de perto o rei o seguiram. Gaheris olhou para trás e viu que agora estava
tudo calmo, a batalha acabara porque nenhum homem pertencente ao exército
de Artur permanecia de pé. Então deu meia-volta e os quatro seguiram Artur,
penetrando no bosque onde a luz já sumira.
Encontraram Artur caído do cavalo em uma pequena clareira junto a um lago, e
o cavalo estatelado na moita adiante. Ergueram a cabeça de Artur, apanharam
água no lago e molharam a fronte. Ele tossiu duas vezes e uma gota de sangue
espirou-lhe da boca. Viram que a flecha perpassara o pescoço e se fincara ali.
Não seria possível removê-la sem rasgar totalmente a garganta. Artur tossiu
novamente: mais sangue. Moveu os lábios como se fosse falar. Gaheris e Cal
ajoelharam-se ao seu lado, cada qual segurando-lhe uma das mãos; e Gaheris
limpava-lhe a testa com um lenço molhado. O olhar delirante de Artur parecia
pesquisar-lhes os rostos, mas eles não saberiam dizer se os reconhecia.
Bem ao longe ouviram a canção dos soldados dinamarqueses que guerreavam
com machados dedicando o triunfo aos seus deuses:
Teribus ye Teri-Odin
Filhos de Thor por ele gerados.

E a brisa trouxe-lhes o cheiro de mar. Os pajens não tentavam ocultar o


sofrimento e choravam copiosamente e os olhos de Cal também estavam
embaçados. Mas Gaheris, embora ferido e sofrendo, tinha os olhos secos
enquanto olhava para Artur, como se essa recusa em ceder ao sofrimento fosse o
último serviço que prestaria ao rei.
Então Artur pareceu formar palavras; e mais tarde, quando recompuseram as
idéias e organizaram as lembranças, entenderam palavras, ou melhor, nomes
que Artur murmurara:
— Gawaine, Parsifal, Agravaine, Kay, Nestor, Peredur... Merlim, velha raposa...
esperai por mim... nos Campos Elíseos.
O corpo de Artur foi abalado por uma convulsão e o sangue jorrou da boca, do
nariz e dos ouvidos, então ele ficou muito calmo e morreu, e a lua nascente
brilhou-lhe nos olhos.
E assim ajoelharam-se ao lado de Artur e rezaram pela sua alma, enquanto a lua
refletia prata nas águas do lago e ecoava na noite o pio da coruja, a ave de
Minerva.
Cal disse:
— “Aquilo que amas muito não será tirado de ti.” Vamos, vamos carregar o
corpo do rei para lugar seguro, para que os homens de Mordred não o encontrem
nem o saqueiem.
XII

E então, meu príncipe?


Direis que não é assim que os poetas terminam a história?
Então, tendes lido esses poetas, não tendes? As escondidas?
Bem, não há razão para não os lerdes. Não estou zangado, não exatamente
zangado. Lede, se quiserdes, desde que não acrediteis no que escrevem. Poetas
são mentirosos. Como Geoffrey de Monmouth. Alguns são ainda mais
mentirosos do que Geoffrey. Portanto, não confieis no que dizem. Na melhor das
hipóteses, é o que denominam de “verdade poética”. A única exceção que faço é
Virgílio. Acreditai em tudo o que ele escreve. Mas não em Ovídio. E mentiroso
como os modernos. Divertido? Com certeza.
O próprio Geoffrey tem uma versão diferente da minha. Descreve que “Artur,
com uma única divisão em que alocara seis mil seiscentos e sessenta e seis
homens, atacara o esquadrão onde sabia que Mordred se encontrava. Eles
abriram caminho com as espadas e Artur ainda avançou, infligindo terrível
massacre. Foi então que o maldito traidor morreu e com ele muitos milhares dos
seus homens...”
Isso é tolice, meu príncipe. Comparado com o meu, é um relato desonesto de
uma batalha.
Adiante Geoffrey admite que Artur foi mortalmente ferido, mas ainda o
apresenta vencendo a batalha antes de “passar a coroa da Britânia ao seu primo
Constantino”.
Observareis que não menciono esse Constantino. E isso porque ele não existe.
Geofrey o inventou.
Um desses poetas que admirais narra uma história contando que Artur ordenou
que um dos seus cavaleiros pegasse a espada Excalibur e a arremessasse no lago.
De início o cavaleiro mente, fingindo que fizera o que o rei lhe pedira, embora na
verdade não o fizesse porque ambicionava as jóias incrustadas no punho da
espada e por achar uma pena jogar fora aquele objeto. Mas Artur o repreende e
o manda cumprir a tarefa, e desta vez ele obedece; e do lago surge a mão ou o
braço místico e maravilhoso, como diz o vosso poeta, segura a espada e
desaparece levando-a para o fundo da água.
Bem, é uma boa história e, se quiserdes, podeis acreditar, mas apenas aceitando
tratar-se de metáfora. Metáfora de quê?, perguntareis. Elaborai-a vós mesmo.
Geoffrey nos conta que Artur foi levado para a ilha de Avalon, para que lhe
cuidassem dos ferimentos.
Corno já nos contara que o rei fora ferido mortalmente, isso parece supérfluo.
Mas os poetas gostam desta história e a utilizaram muito.
Um (ou mais) mostra o rei sendo carregado para uma barcaça onde seis rainhas
vestidas de negro e com pesados véus o esperam para tratá-lo. Segundo algumas
versões, uma dessas rainhas era a meia-irmã de Artur, Morgan le Fay. Ora, a
partir do meu relato sabeis o que acontecera a Morgan, que fora mantida
prisioneira. Então vereis que esta história é uma tolice poética.
E então? Como eu sei que a minha versão é a verdadeira? Direis que é apenas
uma dentre várias, c nem tão belamente imaginada como algumas das outras?
Bem, é claro que não é “belamente imaginada”. As coisas verdadeiras não são
imaginadas, nem belamente nem de qualquer outro modo.
Como eu sei?, perguntareis. Acho que estais me provocando novamente, como
Artur costumava provocar Merlirn.
No entanto, sei porque tenho provas documentais.
Deveis vos lembrar dos dois pajens de Artur: Wiil e... esqueci de nomear o outro:
era Cristóvão, que significa “carregador de Cristo” ou, segundo algumas
interpretações, “aquele que narra a verdade”.
Como sabeis, os pajens sobreviveram à batalha e escaparam à vingança de
Mordred.
Então Gaheris mandou Cristóvão procurar Lancelot e lhe contar o que
acontecera. Esperava que Lancelot se apressasse em atravessar para a Britânia,
fazer guerra a Mordred e depor o usurpador, a quem Gaheris odiava
intensamente (embora o ódio fosse estranho à sua dócil natureza) devido à
traição e ao assassinato de Agravaine. Então, ou Cristóvão levou consigo uma
narrativa escrita dos últimos dias e da morte de Axtur, ou subseqüentemente a
elaborou na Bretanha.
Lancelot ficou horrorizado, consumido pela culpa ao saber o que acontecera.
Culpou Guinevere, culpou a si mesmo. (A propósito, Guinevere adotou atitude
diferente. Disse que se Artur a tivesse tratado como deveria, nada disso teria
acontecido. Portanto, ele atraíra para si o desastre, e não era culpa de ninguém,
exceto dele mesmo. Isso, meu príncipe, não vos surpreenderá quando souberdes
mais sobre as mulheres do que sabeis agora. Então descobrireis que a mulher
jamais é culpada.)
Gaheris esperara que Lancelot empunhasse armas. Calculou mal. Deveria ter
conhecido Lancelot melhor. O grande cavaleiro, paradigma do cavalheirismo,
fez o que sempre fazia em uma crise emocional: tornou a enlouquecer. Desta vez
mergulhou em uma obsessão religiosa e durante sete meses se açoitou duas vezes
por dia, até se recuperar. Enquanto isso, Guinevere se entediava. Permaneceu
por algum tempo na alcova comendo confeitos e bebendo o doce vinho branco
de Bordeaux e depois abandonou Lancelot. Mais tarde casou-se com um rei
germano, dono de um bonito castelo no Reno, apaixonado por mulheres gordas e
também pelo doce vinho branco de Bordeaux. Guinevere viveu até muito idosa e
quando esse rei morreu ela casou-se com outro mais novo do que ela. Na
verdade, o segundo era seu enteado, e tão jovem que a barba mal crescera.
Lancelot recuperou-se da obsessão quando Mordred estabelecera tão bem a
tirania que não haveria possibilidade de derrubá-lo. Em todo caso, Lancelot
adquirira horror à guerra, à morte e até às justas; a lembrança da sua bravura e
do seu renome era-lhe dolorosa. Alguns dizem que ele se tornou monge, mas isso
não ocorreu. Continuou residindo no seu castelo Joy euse Gard, cuidado pelo
pajem Cristóvão que, como tantos outros, apaixonara-se por ele à primeira vista.
O amor de Cristóvão sobreviveu à obsessão de Lancelot e perdurou. Passavam os
dias jogando damas (Lancelot agora odiava xadrez, que lhe lembrava guerra),
fazendo música ou escrevendo poesia ruim para amantes imaginárias.
Cristóvão também escreveu tudo isto em uma longa narrativa rimada, cheia de
erros gramaticais e em latim muito ruim. Eu a descobri na biblioteca do mosteiro
do Monte Saint Michel e a copiei fielmente, embora o estilo me fizesse
estremecer.
Então, o que vos conto é histórico, e muito mais estranho do que poesia. A ficção,
meu príncipe, não passa de pálida sombra dos fatos.
Quanto aos outros personagens que encontrastes na história, podem ser
rapidamente descartados.
Mordred reinou dez anos até ser morto por um dos seus condes dinamarqueses
que estava bêbado e se julgou insultado. Então o reino da Britânia desmoronou,
exposto a selvagens piratas e disputas internas.
Morgan le Fay finalmente escapou da prisão e ninguém confiável voltou a ouvir
falar a seu respeito. Alguns dizem que ela se retirou para as ilhas Orkney e ali
praticava feitiçaria sem qualquer eficácia. Há uma história de ter sido queimada
como feiticeira nos degraus da catedral de Kirkwall, capital de Orkney. Em
Tweeddale, quando eu era jovem, corria uma lenda a respeito de uma bela
rainha má que vivia nos rincões mais remotos do vale Ettrick e que a cada
primavera fazia sumir algum jovem pastor. Mas os que contam esta história
confundem Morgan com a rainha da Terra dos Elfos.
Gaheris e Will viajaram para a Terra Santa e combateram o Infiel. Foram
presos, escravizados, fugiram e depois de muitas aventuras chegaram à Etiópia,
onde desaparecem da história.
E Cal? Cal passou despercebido e retomou a sua atividade de mercador.
Costumava dizer: “Não me meto em briga de homem algum, mas sei muito bem
que os homens sentem necessidade de se engalfinhar”. Cal não tinha tempo para
se ocupar com honra, pois, na sua opinião, isso resulta em homicídio e tumulto,
mas apenas com o comércio, atividade de homens honestos.
POSFÁCIO

Pois tudo aconteceu como escrevi. Artur morreu dos ferimentos recebidos
naquela última batalha no Oeste. Embora aquele documento que eu descobri no
mosteiro do Monte Saint Michel não mencione o enterro, é razoável supor que Sir
Gaheris e Cal, com a ajuda dos pajens, tenham providenciado para Artur o
último descanso. Nenhum túmulo foi erguido, nenhuma sepultura demarcada.
Isso tem surpreendido alguns comentadores, desnecessariamente. O enterro foi
secreto, apressado, obra de homens ansiosos ou apavorados, cientes de que a
cavalaria de Mordred vasculhava a região procurando qualquer cavaleiro de
Artur que houvesse escapado durante o combate e, sem dúvida, com zelo
particular, o próprio rei. Além do mais, manter a sepultura em segredo era um
ato político. Sem o corpo de Artur para exibir, Mordred não poderia se sentar
confortavelmente no trono. Haveria sempre alguém para alegar que Artur ainda
vivia.
No entanto, o rei morrera. Mas não estava morto. Não está morto. Aonde quer
que se vá, onde quer que se componham canções e se elaborem histórias de
heróis, aí Artur vive. Podereis descartar isso como memória ou lenda. No
entanto, é certo que na imaginação dos homens e também na das mulheres,
Artur ainda é uma presença real.
Poetas e artesãos habilidosos e requintados o celebram nos salões dos castelos.
Porém preserva uma vida mais profunda do que a que os poetas podem lhe
conceder. Quando eu era menino em Tweeddale, onde certamente abundam
poetas embora muitos sejam rudes aproveitadores do bucolismo, era comum se
dizer que Artur se reúne com os seus cavaleiros da Távola Redonda em uma
gruta nas colinas Eildon, de onde partirá em época desconhecida para redimir a
terra. Ninguém duvida, e eu mesmo falei com um velho, sujeito de honestidade
transparente, ao que parece, que afirmava que quando menino tivera a grande
audácia de subir a colina e descer à caverna, cuja entrada ficava escondida e até
certo ponto protegida por galhos de urzes que cresciam até a altura de um
homem, segundo o seu relato; ali ele viu Artur comemorando com os seus
cavaleiros, um dos quais, me garantiu o velho, insistiu para que bebesse vinho
com eles. E sacudindo a cabeça de um lado para outro, como alguém que
negasse a. própria lembrança, disse:
— Aquela beberagem eu não bebi, nem beberia ainda que o Arcanjo Miguel
pessoalmente me tentasse, muito menos um tratante idiota como aquele
cavaleiro que atendia pelo nome de Parsifal, ou coisa parecida.
Mas igualmente no Oeste da Inglaterra haverá quem indique uma caverna nas
colinas acima de Glastonbury onde se diz que José de Arimatéia plantou um
pedaço da Verdadeira Cruz que se transformou numa roseira que floresce no Dia
de Natal; vos dirão que é ali que Artur e o seu grupo de paladinos aguardam a
convocação para ressurgir e salvar a. terra.
E também alguns dizem que Artur espera por esse chamado nas profundezas do
castelo ou da catedral de Winchester que depois do seu reinado se tornou a
capital da Inglaterra. Esta versão da história é diligentemente propalada pelos
monges ali residentes, que assim adquirem fama e recebem muitos presentes
ricos e raros graças à associação com o grande rei.
Em todas as florestas da Britânia, hoje dividida entre os reinos da Inglaterra e da
Escócia, ao longo dos séculos têm ocorrido muitas visões de Artur e dos seus
cavaleiros. Em certos dias, ao meio-dia, quando o ar está calmo, e também no
primeiro silêncio da noite, quebrado apenas pelas corujas e pelas raposas, e na
lua cheia, vê-se uma cavalgada de cavaleiros caçando veados com cães e
fazendo soar as buzinas. E quem reside na floresta jura tratar-se de seguidores e
servos de Artur.
Pois, meu príncipe, até aqui na Sicília Artur é conhecido. Há alguns anos ele
apareceu nas encostas do Etna, que no idioma antigo é chamado de Mongibel.
Aconteceu de um cavalariço que servia ao bispo de Catania ir até ali em busca
de um cavalo fugitivo que o derrubara. Seguiu as pegadas do animal em uma
região difícil e perigosa e o seu medo aumentou quando a escuridão caiu. Então o
rapaz encontrou uma trilha estreita que atravessava uma fenda da rocha, seguiu-
a e chegou a uma planície no meio do que parecia ser uma montanha, onde se
deparou com um palácio de beleza e imponência que jamais vira. Entrou
cautelosamente e viu Artur reclinado em um divã. Em linguagem vacilante, pois
estava com muito medo, o rapaz explicou como chegara ao palácio e assim que
o motivo da sua viagem foi conhecido, o cavalo do seu amo foi-lhe devolvido.
Artur, então, pediu-lhe que o recomendasse ao seu amo e disse que residia ali
durante muitos séculos, desde os tempos antigos. Estivera doente por longo
tempo, uma vez que todos os anos reabriam os ferimentos que recebera na
última batalha contra Mordred.
Como explicar isso? Persistência de memória? Não basta argumentar que as
lendas de Artur e dos seus Cavaleiros da Távola Redonda inspiram o espírito de
cavalheirismo do nosso tempo, e que assim, naturalmente, atraem bardos, poetas
e trovadores a expressar esse espírito em versos. Isso é óbvio e, no entanto,
insuficiente como explicação.
Devemos investigar mais a fundo. Então descobriremos que Artur é o Artur
renovador, o herdeiro de Enéias, pai do Império, e de Augusto, que estabeleceu
uma nova era áurea no reino onde um dia reinou Saturno (como diz o grande
poeta); que no crepúsculo do Império, a tocha foi levada por Marcos, como vos
contei, e agora mais gloriosamente por Artur que, mesmo derrotado, suplantou o
vencedor.
É essa idéia de Império que Artur encarna, o Império que, como Júpiter
prometeu a Enéias, não tinha limites de tempo nem lugar; o Império necessário à
humanidade, Império que, através da guerra, outorga as bênçãos de paz e justiça.
E a história de Artur deve toda a sua beleza patética ao fato de ele ter sido
destruído, como relatei, por malevolência e malignidade daquele papa
pervertedor do Império.
Finalmente, vemos em Artur a promessa renovada, quebrada, porém nunca
destruída definitivamente. Por isso ele é conhecido como o eterno rei, aquele que
congrega todas as esperanças do mundo.
E assim como vos mostrei que Artur era herdeiro de Enéias, Augusto e Marcos,
se Deus me der forças e vida suficientes para concluir a minha tarefa, ainda vos
mostrarei que Carlos Magno foi o legítimo herdeiro ou a reencarnação de Artur.
E vós também, meu príncipe, podereis ser.
SOBRE O AUTOR

Allan Massie nasceu em Singapura em 1930. Jornalista e escritor, é autor de


dezenove romances. Rei Artur é o segundo de uma trilogia sobre a Idade Média
— o primeiro, O crepúsculo do mundo, foi publicado pela Ediouro, que também
lançou sua série sobre imperadores romanos: Augusto, Tibério, César, Marco
Antônio e Cleópatra e Os herdeiros de Nero. Colaborador do Daily Telegraph e
do The Scotstnan, Massie vive na Escócia.
{1} Brat: moleque; Wart: verruga. (N. dos T.)
{2} “William of Newburgh (1136c. 1198), cronista inglês, autor de uma valiosa obra
histórica sobre a Inglaterra dos séculos XI e XII, Historia rerum anglicarum. (N.
cios T.)
{3} O Crepúsculo do Mundo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.
{4} Bolinho, em geral redondo, feito de farinha, leite e gordura. (N. dos T.)
{5} Tecido de seda usado na Idade Média. (N. dos T.)

{6} O leitor talvez se surpreenda ao verificar que Artur cita os Cantos Pisanos de
Ezra Pound e, na entanto, trata-se de uma tradução literal exata do latim feita por
Scott, que aqui parece estar em versos. Não imagino que Pound tivesse acesso ao
manuscrito original da Bibliothèque Nationale, principalmente porque o sábio
arquivista Sr. Albert Saniette me garantiu não haver prova de que o manuscrito
tenha sido lido por alguém, pelo menos nos últimos quarenta anos antes de ser
descoberto por Lorde Clanroyden, e que tampouco fora copiado. Portanto,
suponho que algum poeta italiano ou provençal do século XIII conhecesse esse
manuscrito, tenha retirado alguns versos e feito um poema com eles que Pound
extraiu da memória na prisão, em Pisa. Ou talvez Michael Scott tenha tirado esses
versos de algum trovador, o que é mais provável. Como os leitores já devem ter
entendido, ele não passava de um falastrão. (N. do A.)

Você também pode gostar