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A VOCAÇÃO DO HOMEM E DA MULHER DE ACORDO COM A ORDEM NATURAL

E DA GRAÇA

O que significa ter vocação?

Vocação pressupõe ter havido um chamado: de alguém, a alguém, para algo,


de uma maneira perceptível. Por exemplo, um cientista é convocado por uma
universidade para ocupar a função de professor e pesquisador em vista de sua
capacidade e qualificação. Podemos dizer que para a sua qualificação contribuíram
ele mesmo e muitos outros, voluntária ou involuntariamente, mas sobre a base da
capacidade. Então, existe na natureza do ser humano uma predestinação a uma
profissão, isto é, à ação e ao trabalho. No decorrer da vida, através do
amadurecimento da pessoa a “capacidade” se torna perceptível a outros, a ponto de
destes “expedirem uma convocação”, de modo que a pessoa pode encontrar – com
sorte – o seu lugar na vida. Mas, a natureza humana e o caminho da vida não são um
fruto do acaso, são aos olhos da fé obra de Deus.

É Deus em última análise, quem convoca. É Ele que chama cada pessoa para
realizar aquilo a que toda humanidade é chamada, é Ele que chama cada um
individualmente para o que ele ou ela tem como vocação particular e, além e acima
disso, Ele chama homem e mulher, como tais, para algo especial.

Qual é a vocação do homem e da mulher?

A vocação natural e sobrenatural é comum ao homem e a mulher. A vocação


natural (segundo a ordem original) conferida por Deus ao ser humano é tríplice: que
sejam a Imagem de Deus (desenvolvendo suas forças devem dar forma à Imagem de
Deus dentro de si), que gerem descendência e que dominem a Terra (Gen 1, 26-
29). Acrescenta-se a essa vocação o objetivo sobrenatural da contemplação de Deus
que é prometida como prêmio de uma vida de fé e adesão ao Salvador.

Dentro da vocação comum, existe uma diferenciação das funções de acordo


com a natureza diversa dos sexos. A vocação primária do homem é o domínio
sobre a terra: nessa função, a mulher foi colocada ao seu lado como companheira e
ajudante. A função primária da mulher é a geração e a educação dos filhos: nessa
função, ela recebeu o marido como seu protetor. Portanto, no homem aparece em
primeiro lugar a vocação dominadora e, em segundo lugar, a da paternidade;
enquanto na mulher é a vocação à maternidade que predomina, sendo a participação
no domínio secundária.

Encontramos também os mesmos dons em ambos os sexos, mas em medidas


e proporções diferentes. No homem destacam-se os dons necessários à luta e à
conquista: a força corporal para a apropriação externa e o intelecto para o
conhecimento racional do mundo, força de vontade e de ação para a realização
criadora. Na mulher, no entanto, destacam-se os dons voltados para a prática de
cuidar, guardar e conservar. Ela possui uma percepção especial do orgânico, do
todo, dos valores específicos, do individual; é mais sensível e atenta a tudo que quer
vir a ser, crescer e desenvolver-se.

Edith Stein afirma que na escolha da profissão, por exemplo, ocorrerá uma
divisão espontânea entre homem e mulher, uma vez a diferença das naturezas impõe
a presença de aptidões específicas. Nas áreas que predominam a força física, o

Eliane Pereira da Silva


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raciocínio abstrato e a criatividade independente, por exemplo, trata-se de


profissões caracteristicamente masculinas. Portanto no trabalho pesado da indústria,
do comércio e da agricultura; no ramo das ciências exatas, na matemática, na física e
na tecnologia; além disso, no trabalho mecânico dos escritórios e da administração e
em alguns campos da arte. No entanto, quando houver a emoção, a intuição, a
empatia e a capacidade de adaptação, bem como onde está em jogo o ser humano
como um todo, para cuidar dele, formá-lo, ajudá-lo, compreendê-lo ou exprimir seu
ser, aí se trata de um campo de ação genuinamente feminino. Portanto, em todas as
profissões pedagógicas e de saúde, no trabalho social, nas ciências que têm por
objetivo o ser humano e sua atuação, nas artes ligadas à representação do ser
humano, mas também na atividade comercial, na administração pública voltada para o
contato com as pessoas e à assistência. Porém, independentemente das
características próprias de caso sexo, nada impede que algumas mulheres se
aproximem muito do tipo masculino e alguns homens do tipo feminino. Deste modo,
toda profissão “masculina” pode ser competentemente exercida também por certas
mulheres e toda profissão “feminina” por certos homens. O importante é não renegar
ou deixar definhar a própria natureza reconhecendo que o trabalho é um serviço
prestado a Deus que nos dá a possibilidade de desenvolver em sua honra os dons que
Ele mesmo nos deu.

Homem e mulher, originalmente, vivem em harmonia, eles se complementam.


Afinal, Deus criou o ser humano à Sua imagem. Ora, Deus é trino: assim como o Filho
procede do Pai, e do Filho e do Pai, o Espírito, assim a mulher procedeu do homem e
de ambos a descendência. Além disso, Deus é o amor. Não pode haver amor entre
menos que dois! Assim, a vida do primeiro casal humano deve ser entendida como a
mais íntima comunidade de amor. Do mesmo modo, antes da queda, em cada um
deles, individualmente, todas as forças eram cheias de harmonia, os sentidos e a
mente na proporção certa, sem possibilidade de antagonismos. Por isso mesmo, não
conheciam o desejo desordenado pelo outro (Gn 2,25).

O chamado de Deus e a vocação do homem e da mulher se modificam após a


queda (segundo a ordem da natureza caída). O castigo pela desobediência do homem
é a perda do domínio absoluto sobre a terra, a disponibilidade das criaturas
menos nobres, a luta dura pelo pão de cada dia, as dificuldades do trabalho e a
pobreza do seu fruto (Gn 3, 17-19). Já para a mulher as conseqüências são: as
dificuldades do parto e da luta pela vida para o homem, bem como, a sujeição ao
domínio do homem (Gn 3,16). Em virtude do pecado original, homem e mulher
perceberam que estavam nus e se envergonharam. Foi despertado neles o desejo
(desordenado), então começou a ser necessário proteger-se contra ele, por isso Deus
os vestiu. Deste modo, houve uma mudança na relação dos seres humanos com a
terra, com seus descendentes e entre si mesmos. Tudo isso nada mais é do que a
conseqüência da mudança de relacionamento com Deus.

Segundo Edith, o relato sobre a criação e a queda do homem está cheio de


mistérios que não conseguiremos compreender, mas algumas interpretações são
possíveis. Por exemplo, não faltava ao ser humano, antes da queda, o conhecimento
do bem, já que eles dispunham de um conhecimento mais perfeito de Deus. Porém,

Eliane Pereira da Silva


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certamente, deveriam ser protegidos daquele conhecimento do mal, que se adquire


praticando-o.

A conseqüência do primeiro pecado foi que o homem e a mulher começaram a


olhar-se com outros olhos, perderam a inocência em suas relações. Por isso podemos
supor que o primeiro pecado não tenha consistido apenas na desobediência contra
Deus; aquilo que era proibido, o que a serpente apresentou à mulher e esta ao
homem, como algo atraente, deve ter sido uma coisa bem determinada, um tipo de
junção que conflitava com a ordem original. O fato, por exemplo, de o tentador ter se
aproximado primeiro da mulher pode significar que, com ela, teria acesso mais fácil,
não porque a mulher em si pudesse ser levada mais facilmente ao caminho do mal
(ambos ainda estavam livres de qualquer inclinação para o mal), mas porque aquilo
que lhe foi apresentado era para ela mais importante. Pode supor-se que, a vida dela
deveria ser mais fortemente influenciada por aquilo que se relaciona com a procriação
e formação da descendência. Os castigos diferentes para o homem e para a mulher
também são um indício nessa direção.

Ao redor de nós, vemos os frutos do pecado original em suas formas mais


assustadoras, especialmente na relação entre os sexos: a vida subordinada aos
instintos desenfreados; a luta dos sexos entre si por seus direitos, aparentemente sem
dar atenção à voz da natureza e a voz de Deus. Mas vemos também a possibilidade
de uma alternativa onde entra em ação a força da graça, uma vez que a queda não
levou à suspensão completa da ordem original, foram conservadas as forças antigas e
a natureza não ficou totalmente corrompida apesar de debilitada e exposta ao erro.

Sabemos que a expulsão do paraíso está ligada à perda da própria vida, a


morte. No entanto, a expulsão é precedida por uma promessa (Gn 3, 15): Porei
inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e o seu descendente. Este te
ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar. Essa passagem é interpretada comumente
em relação a Nossa Senhora e ao Redentor, o que não exclui esse outro sentido: à
primeira mulher, chamada por Adão de “mãe de todos os viventes”, e a todas as suas
sucessoras foi confiada como incumbência especial a luta contra o mal e, com isso, a
preparação para a recuperação da vida, a ajuda para a fundação do novo reino de
Deus.

Assim como a tentação se aproximou primeiramente da mulher, também a


mensagem da redenção de Deus chega em primeiro lugar a uma mulher, e tanto num
caso como noutro é o sim saído da boca de uma mulher que define o destino de toda
a humanidade. No novo reino de Deus não se encontra mais um casal humano, como
aquele primeiro, mas sim, mãe e filho. A Virgem Maria e o Cristo são agora os
modelos. Segundo Edith, o fato de o filho de Deus ser filho do homem por sua mãe,
mas não por meio de um pai humano pode estar associada à mácula do primeiro
pecado que só seria eliminada no reino da graça. Ao mesmo tempo, seria um indício
da nobreza da maternidade como relação mais pura e elevada entre pessoas.

Surge, então, uma nova vocação (segundo a ordem da redenção), um


chamado à reordenação entre os sexos, a fim de que sejam eliminadas as relações
condicionadas pelo pecado e restabelecida a ordem original. Para isso homem e

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mulher precisam retornar ao relacionamento filial com Deus. Esta reaceitação como
filhos nos é garantida pela ação redentora de Cristo, contanto que cumpramos a nossa
parte. Mas, qual é a nossa parte? Viver pelas pela fé que vê em Jesus o caminho para
a salvação, confiando na verdade revelada por Ele e nos meios de salvação que Ele
oferece; pela esperança que confia firmemente na vida prometida por Ele; pelo amor
que procura achegar-se a Ele de todas as maneiras possíveis. No dia a dia, pela
meditação da vida de Cristo e de suas palavras o conheceremos cada vez melhor, na
Eucaristia almejaremos obter a união mais íntima com Ele e na Liturgia da Igreja
partilhamos de sua vida mística. Nesse caminho de salvação não há diferença entre
sexos. É o ponto de partida para ambos os sexos e para o relacionamento entre eles.

Segundo a ordem da redenção, toda alma é conquistada por Cristo para a vida
e todo aquele que é santificado pela união com Cristo, seja homem ou mulher, tem a
vocação para mediador. Quando uma mulher procura estar unida a Cristo, ela se
santifica, e passa a ser mediadora entre Cristo e o seu namorado ou esposo, seus
filhos, afilhados, amigos, pacientes, clientes e assim por diante. O mesmo se pode
dizer do homem que busca estar unido a Cristo, também ele passa a ser mediador
entre Cristo e a sua namorada ou esposa, seus filhos, colegas de trabalho, vizinhos,
etc. Deste modo, seja na vida profissional, matrimonial ou religiosa, pela graça de
Deus, homem e mulher podem viver em cooperação, de modo que ambos
desenvolvam seus dons a serviço de objetivos comuns pelo bem da humanidade e de
toda a criação.

A ação redentora não restabeleceu de uma só vez a pureza original da


natureza corrompida. Cristo introduziu a salvação na humanidade como uma semente
que precisa crescer dentro de e junto com o crescimento da Igreja e em cada alma em
particular. A alma humana como tal não é um ser pronto, parado. Seu ser é vir-a-ser
em que as forças que ela traz ao mundo em sua forma germinal devem desenvolver-
se pela atividade. Assim, homem e mulher só podem aproximar-se do
desdobramento perfeito da sua personalidade acionando suas forças (originais).

Cristo representa o ideal da perfeição humana, por isso todos são chamados a
imitá-lo, de modo que sejamos elevados cada vez mais para além dos limites da
natureza. Por isso, verificamos em homens santos a suavidade e bondade feminina e
uma preocupação verdadeiramente maternal com as almas que lhe são confiadas, e
em mulheres santas encontramos coragem, proficiência e determinação masculina.

Referência: Capítulo II do livro A mulher: sua missão segundo a natureza e a graça,


de Edith Stein, p. 61-85.

Eliane Pereira da Silva


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