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O NÓ DA HISTÓRIA BRASILEIRA

Título:
O Nó da História Brasileira
Resumo:
O texto apresenta reflexões a partir da obra “O Nó do Diabo” (2018), filme paraibano
que se desenvolve desde o contexto nordestino às primeiras resistências sociais
quilombolas do período colonial. O terror enquanto gênero se torna fundamental para
demonstrar o nó da história, ao diminuir a distância entre a desigualdade e a
desumanização sofrida por pessoas pretas e indígenas da atualidade com o passado
que a sociedade brasileira busca negar.
Palavras-chave:
história brasileira; racismo; resistências sociais quilombolas; ancestralidade.

Title:
The Knot of Brazilian History
Abstract:
This article presents reflections from the “O Nó do Diabo” (2018), a Paraíba film that
develops through the northeastern context to the first quilombola social resistances of
the colonial period. Terror as a genre becomes fundamental to demonstrate the knot of
history, by reducing the distance between inequality and dehumanization suffered by
black and indigenous people today with the past that brazilian society seeks to deny.
Key-words:
Brazilian history; racism; quilombola social resistance; ancestry.

Titulo:
El nudo de la historia brasileña
Resumen:
El texto presenta reflexiones de la obra “O Nó do Diabo” (2018), una película
brasileña que se desarrolla desde el nordeste actual hasta las primeras resistencias
sociales quilombolas del período colonial. El terror como género se vuelve
fundamental para demostrar el nudo de la historia, al reducir la distancia entre la
desigualdad y la deshumanización que sufren los negros e indígenas con el pasado
que la sociedad brasileña busca negar.
Palabras-clave:
historia brasileña; racismo; resistencias sociais quilombolas; ancestralidad.

O filme de terror paraibano “O Nó do Diabo” (2018) se desenvolve de modo


retrospectivo desde o contexto nordestino atual às primeiras resistências sociais
quilombolas do período colonial. Tal como a obra analisada, o presente texto busca
demonstrar como o racismo, o trabalho escravo e as desigualdades sociais jamais
desapareceram completamente da sociedade brasileira. Nesse sentido, em primeiro
lugar, o terror enquanto gênero expressivo se torna fundamental para demonstrar o nó
da história brasileira ao diminuir a distância entre a desigualdade e a desumanização
sofrida por pessoas negras e indígenas na atualidade com este passado escravagista.
Em segundo, a experiência de pessoas pretas, descendentes de africanos ou
afro(latino)americanas e afro-caribenhas é compreendida por meio do conceito de
diáspora africana que segundo a African Union1, são parte da sexta região africana, o
conjunto de povos de origem africana que vivem fora do continente,
independentemente da sua cidadania e nacionalidade que estejam dispostos a
contribuir para o desenvolvimento do continente, a construção de solidariedade entre
os estados africanos, (latino) americanos e caribenhos. Em terceiro lugar, os novos
matizes do racismo modermo e do maniqueísmo colonial que estruturam as
sociedades americanas e produzem o genocídio, a invisibilização e as desigualdades
sociais de pessoas historicamente racializadas. Em 2003, o Brasil ao promulgar a lei
10.6392 entendeu que a rede de ensino público nunca havia pressuposto ser
fundamental o estudo da população negra na formação da sociedade nacional, da
História da África e dos africanos, da luta e da cultura dos negros no Brasil, e de suas
inúmeras contribuições sociais, culturais, econômicas e políticas, apesar de vivermos
em um país em que 56,2% da população é negra3. Tal fato não nos surpreende ao
ponto de podermos afirmar que em sua maioria o currículo escolar brasileiro foi por
muito tempo centrado na história e cultura dos brancos europeus e em sua “efetiva”
colonização dos africanos e dos povos originários na América, o que em parte impede
aos brasileiros em geral uma melhor compreensão da identidade latino-americana e
caribenha ou da categoria política e cultural da amefricanidade4. É sempre importante
lembrar que a lei vigente citada é resultado da luta social do movimento negro que
desde sempre enfatizou a falta de políticas públicas de inserção social e de reparação
desde a pós-abolição.

1
A União Africana (UA) é um organismo continental constituído pelos 55 Estados membros que
constituem os países do Continente Africano. Foi lançado oficialmente em 2002 como sucessor da
Organização da Unidade Africana (OUA, 1963-1999). Disponível em: https://au.int/en/overview.
Acessado em 21 de abril de 2021.
2
Lei que estabelece em 2003 as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo
oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira". BRASIL.
Lei 10.639/2003, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9. 394, de 20 de dezembro de 1996. Diário
Oficial da União, Poder Executivo, Brasília. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm. Acessado em 21 de abril de 2021.
3
Segundo os dados da Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, da Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios/PNAD (2012-219) do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística - IBGE que se constitui como principal provedor de dados e informações do país, que
atendem às necessidades dos mais diversos segmentos da sociedade civil, bem como dos órgãos das
esferas governamentais federal, estadual e municipal.
4
GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo Brasileiro, Rio de
Janeiro, v. 92, n. 93, p. 69-82, (jan./jun.), 1988b, p. 69-82.
O filme “O Nó do Diabo” é compartimentado em cinco momentos, dirigidos por
Ramon Porto Mota, Gabriel Martins, Ian Abé e Jhesus Tribuzi. Logo na primeira
parte, vemos um capitão do mato5 ou nos dias atuais um miliciano que protege a terra
e a antiga fazenda dos Vieira6 e declara guerra aos novos moradores da periferia da
cidade, em sua maioria pretos, gays, religiosos, lésbicas e crianças. Ele possui
profunda aversão aos moradores da cidade, desdenha o culto religioso, fura a bola de
crianças que jogam em um campo de futebol, assassina um casal de evangélicos e
mata adolescentes que entram na fazenda para se divertirem, ao final já alucinado pelo
trabalho sujo atira a esmo no interior escuro da casa grande, a cada flash dos tiros se
intercala um rosto negro.
A segunda parte, que se passa em 1989, um casal preto chamados
respectivamente, Sebastião e Joana buscam por emprego na fazenda dos Vieira,
ambos caminham a pé já faz muitas horas. Eles são recebidos por duas senhoras da
casa grande7 e conseguem trabalho a meio cruzados cada, Sebastião para trabalhar na
roça e Joana para trabalhar nos serviços domésticos. Há um momento específico que é
quando ambos vão formalizar o contrato, onde uma das senhoras que os recebeu
indica para ambos firmarem o contrato com o dedo, pressupondo que ambos não
sabiam ler. É notório que logo após a falsa abolição em 1888, a população preta foi
vetada diversas vezes do acesso à educação formal. Mas é Joana quem rompe com
esse ciclo e diz que sabia assinar, ou seja, entendemos que ela foi alfabetizada. Esse
momento é de reafirmação da humanidade do casal ao não querer ser tratado como
um(a) qualquer, assinar o próprio nome e sobrenome é um ato de auto-determinação e
auto-definição. Com o passar do tempo e com trabalho pesado, Sebastião encontra
diversos instrumentos de tortura enterrados na roça e Joana encontra uma mancha
enorme na parede atrás de um móvel - que remete na terceira parte do longa à morte
do Sr. Vieira sendo queimado vivo - além de ter visões de fetos e crianças mortas pela
casa. É importante destacar que a figura do Sr. Vieira é atemporal na narrativa, ela
percorre todas as cinco partes demarcando com sua presença constante e destrutiva de
um patriarca que rege os destinos de quem ele escraviza, que marca seus corpos, o

5
Segundo o Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa, a locução “capitão do mato” ou “capitão do
campo” datado desde o século XIV, no Brasil é entendido como um regionalismo nas seguintes
acepções: a)encarregado de tropilha que caava, a lao e a tiro, nos matos ou mocambos, escravos
fugidos das senzalas; capito do campo e b) feitor de escravos na lavoura.
6
Em referência à família e aos descendentes do escravagista Sr. Vieira.
7
Segundo o Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa, “casa-grande” significa casa senhorial rural,
engenho ou fazenda construída no Brasil pelo colonizador português a partir do século XVI.
cotidiano e a tudo devora, assim como, se fosse o próprio deus Cronos da mitologia
euro-ocidental. Sebastião sofre feridas pelas más condições de trabalho na roça e é
chicoteado pelo Sr. Vieira, Joana ao fugir da fazenda ao perceber que o marido foi
dominado, ela vai para cidade onde encontra todos, os Vieira, o capitão do mato, as
senhoras da família e seu marido, todos indicando pelo olhar que já não havia mais
fuga para ela, Joana chora e suas lágrimas jorram feito sangue.
Em 1921, já na terceira parte, a narrativa nos conta a história de duas irmãs pretas
escravizadas, estupradas e os abortos corriqueiros que eram feitos, uma vez que tanto
a fertilidade das mulheres negras quanto a virilidade dos homens negros eram
acompanhadas pelos seus senhores. Ambas tinham consciência da mãe que foi morta
por desobedecer às ordens impostas, uma delas que aparentava ser mais obediente aos
olhos do capitão do mato, expressa seu ódio interior quando de posse dele fazia ferver
as correntes que a aprisionavam, ou quando sua irmã considerada desobediente aos
olhos dos senhores era chicoteada no tronco na frente das três filhas brancas do Sr.
Vieira, como um exemplo a ser seguido por elas. Quando na ocasião de um jantar
com um amigo do senhor do engenho, uma das irmãs deveria prestar serviços sexuais
a esse amigo de Vieira. Nesse momento é importante enfatizar que a tal mestiçagem
racial em realidade sempre foi o estupro de mulheres negras (e indígenas) por homens
brancos, da qual nasceriam filhos “bastardos” que hoje são muitos dos que não se
veem como pertencentes à nenhuma raça, se afirmam mistura ou da “raça humana”
afim de reiterar uma falsa ideia de democracia racial não tendo em vista que a cor
da sua pele será o que demarca nos dias de hoje as relações raciais no Brasil. Quanto
mais branco mais humano, quando mais escuro mais desumanizado e invisível aos
olhos da sociedade. A irmã que fervia em ódio pelo Sr. Vieira quando este tenta
matá-la o queima num efeito contrário com a própria pólvora de sua arma. O Sr.
Vieira é queimado vivo na mesma parede que no episódio anterior Joana tentava
remover a mancha negra. Cabe notar a figura do capitão do mato que geralmente era
um “mestiço” ou negro serviçal da fazenda encarregado captura de escravizados(as)
fugidos(as), ou neste episódio como o responsável por castigar as próprias irmãs. Essa
figura de um negro algoz de seus próprios semelhantes faz parte tanto do contexto
colonial, em que ambos eram despojados de sua humanidade, quanto hoje promovido
pelo auto-ódio e pela falta de consciência étnico-racial de uma mínima parte da
população que ainda acredita que nunca houve trabalho escravo ou racismo no Brasil
ou seja, acreditam que sempre vivemos em um país racialmente democrático. A
quarta e quinta parte já nos direciona a caminho da liberdade que só conseguimos
quando estamos entre os nossos, livres da opressão, nos nossos aquilombamentos8. Na
quarta parte, um homem negro vê sua companheira e seu bebê morto no chão, quando
o capitão do mato e o Sr. Vieira vão à senzala para desfazer-se dos corpos, o homem
luta com o capitão, pega o corpo do bebê e foge numa longa jornada em busca do
quilombo e de sua liberdade, o ambiente se passa em algum sítio arqueológico da
Paraíba, no nordeste brasileiro, nessa jornada somente com a roupa do corpo,
buscando sobreviver e fugindo com um bebê morto nos braços, escapando de seus
algozes que o persegue ele tem diversas revelações, sinais e encontros com os
ancestrais. Em outros momentos ele encontra alguns restos mortais de possíveis
negro-africanos que fugiram da opressão em busca da liberdade nos quilombos, ele se
desespera e chora em sua jornada. Já ao final, em uma conversa com um preto velho
que o encontra, este o diz: “é só seguir os sinais (...) “tu vai ter que ler até onde pisa”
(1:23:14 - 1:23:34, O NÓ DO DIABO, 2018).
Um ponto importante da narrativa está na presença da tradição oral africana de
origem yorubantu (yorubá e bantu), onde por um lado, a oralidade, o espiritual e o
material não estão dissociados, por outro, que a visão ontológica que emana dessa
tradição é complementar, ou seja, busca conservar a sua força na interação entre a
natureza, os seres vivos, os não-vivos e os que ainda não nasceram9. Em tais tradições
africanas, a palavra tem um poder misterioso, pois elas criam coisas. A tradição pode
ser definida, de fato, como um testemunho transmitido verbalmente de uma geração
para outra. Por exemplo, os Dogons, os Bambara e Fulas da África Ocidental sem
dúvida expressaram esse nominalismo da forma mais evidente; nos rituais
constatamos em toda parte que o nome é a coisa, e que “dizer” é “fazer”. A oralidade
é uma atitude diante da realidade e não a ausência de uma habilidade. O professor da
República Democrática do Congo Kimbwandènde Kia Bunseki Fu-Kiau, um grande
pesquisador das áreas da antropologia cultural e iniciado em tradições bantu-kongo,
nos diz que que é ingenuidade ler um texto oral, uma ou duas vezes e supor que já o
compreendemos. Ele deve ser escutado, decorado, digerido internamente, como um
poema, e cuidadosamente examinado para que se possam apreender seus muitos

8
Segundo o Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa, o verbo “aquilombar” significa reunir(-se) em
quilombo.
9
RAMOSE, Mogobe B. A importância vital do “Nós”. [Entrevista concedida a Moisés Sbardelotto],
tradução Luís Marcos Sander. IHU-Unisinos, São Leopoldo/RS, Edição 353, 2010.
significados – ao menos no caso de se tratar de uma elocução importante. Outros
estudiosos africanos, como o grande professor do Mali, Amadou Hampâté-Bâ têm
expressado esse mesmo-raciocínio, deve-se iniciar, primeiramente, nos modos de
pensar da sociedade oral, antes de interpretar suas tradições. Por outro lado, o
professor belga Jan Vansina nos ensina que numa civilização oral, a maioria das obras
literárias são tradições, e todas as tradições conscientes são elocuções orais. Ao
considerarmos a heterogeneidade cultural que representam as sociedades
latino-americanas e caribenhas, entende-se que desde a invasão colonial se enfrenta
uma cultura oral negada e/ou invisibilizada (indígena e africana) e uma cultura letrada
de origem europeia. Esta última, desde então, procura impor-se estimulando várias
formas interação entre comunicação oral e escrita, fato que favorece a conformação
de diversos graus de letramento e analfabetismo.
A partir da década de 1970, especialistas na oralidade, apoiados nas hipóteses de
Walter Ong sobre oralidade e escrita e as teorias de Mikhail Bakhtin sobre o
dialogismo e o romance, decidiuse revisar a tradição literária latino-americana que
excluía a oralidade da escrita. Os críticos literários latino-americanos exploraram a
disputa entre letra e voz em seus aspectos básicos e nos ofereceram algumas reflexões.
Antonio Cornejo Polar discutiu o eurocentrismo do cânone literário
hispano-americano e os problemas que isso implicava na inclusão da oralidade dentro
do marco letrado. O africano-descendene e martinicano, Edouard Glissant, por sua
vez, afirmou que a oralidade era um elemento emblemático da literatura caribenha
que serviu de arma na luta contra a hegemonia europeia. Por outro lado, o uruguaio
Ángel Rama, propôs o conceito de transculturação como forma de inclusão,
preferencialmente, de culturas orais dentro do conceito de estado-nação, em
contraponto à John Beverley, o qual fez sua proposta multicultural que buscava a
igualdade até suas últimas consequências. As concepções desses autores mostraram a
validade das lutas entre a letra e a voz, e as colocam no centro de suas reflexões
críticas sobre literatura e oralidade.
Segundo Walter Ong (p.38-80, 1987)10, a oralidade é estereotipada, cumulativa,
redundante ou copiosa e depende do presente real de sua enunciação. A oralidade é
estereotipada porque conta com fórmulas mnemônicas e ritmicamente expressivas,
como os provérbios, que ajudam a fixar e processar os dados da experiência vivida

10
ONG, Walter J. Oralidad y Escritura: tecnologías de la palabra. México, Fondo de Cultura
Económica, 1987.
coletivamente. A oralidade é cumulativa porque o discurso oral é menos dependente
das regras da lógica eurocêntrica, pois é regido pelos contextos de enunciação que o
ajudam a transmitir significados (gestos, entonação, volume, pausas, velocidade,
ritmo etc) e que são difíceis de reproduzir na forma escrita. A oralidade é redundante
ou abundante, por se baseiar na repetição para preservar a continuidade ou linha de
pensamento e, desta forma, garantir a sua compreensão à posteridade. Segundo o
professor Jan Vansina
um estudioso que trabalha com tradições orais deve
compenetrar-se da atitude de uma civilização oral em
relação ao discurso, atitude essa, totalmente diferente da de
uma civilização onde a escrita registrou todas as mensagens
importantes. Uma sociedade oral reconhece a fala não
apenas como um meio de comunicação diária, mas
também como um meio de preservação da sabedoria dos
ancestrais, venerada no que poderíamos chamar
elocuções-chave, isto é, a tradição oral. (p.140, 2010)

Tal preservação da sabedoria ancestral por meio da oralidade na diáspora africana


podem ser evidenciadas desde os séculos XVI e XVII com as comunidade
quilombolas. É importante ressaltar que muitos termos de origem africana ganham
carga semântica pejorativa nas Américas devido aos efeitos do colonialismo europeu
e do racismo de ontem e hoje, daí que o termo Kilombo aqui deve ser lido
estritamente do ponto de vista a seguir: de origem no quimbundo ou kimbundu, língua
africana pertecente ao tronco linguístico bantu, kilombo, “união”, “organização” mais
ou menos permanentes também as feiras e mercados de Kasanji, de
Mpungo-a-Ndongo, da Matamba e do Kongo. A existência de kilombos
contemporâneos é uma realidade latino-americana. Tais comunidades são encontradas
em países como Colômbia, Equador, Suriname, Honduras, Belize e Nicarágua. E em
diversos deles - como ocorre no Brasil - o seu direito às terras tradicionais é
reconhecido na legislação. Na América do Sul, três constituições reconhecem direitos
de comunidades quilombolas: as da Colômbia, do Brasil e do Equador.
Por outro lado, a partir dos séculos XVIII e XIX, essa preservação da sabedoria
ancestral por meio da oralidade, podem ser demarcadas pela chegada de africanos de
outras regiões do continente que traziam consigo fórmulas mnemônicas e rítmicas do
pensamento, não somente bantu como também yorùbá. Tal matriz de pensamento
pertence a grande Yorùbáland, uma região cultural africana que compreende parte da
Nigéria, de Togo e do Benim. Nas Américas e no Caribe, o pensamento yorùbáno está
presente, principalmente, no universo espiritual Vodu (Haiti), Palo Mayombe e
Santería (Cuba), Candomblé (Brasil)11, Batuque (Sul do Brasil e Uruguai) Kumina e
Rastafari (Jamaica), Quimbois (Martinica), Winti (Suriname), Obeah dentre outros.
Antes da colonização inglesa no séc. XIX, a nação yorùbá constituía uma federação
de cidades estado tendo como centro Ilê-Ifé. Segundo a tradição, os yorùbás migraram
para Ilê-Ifé, vindos do leste africano, sob a liderança de um chefe guerreiro chamado
Oduduwa. Apesar de ser difícil estabelecer com exatidão a época dessa migração, a
arqueologia e a história estimam que ela tenha ocorrido entre os anos 500 A.E.C. e
400 de nossa era. É provável que esse deslocamento tenha acontecido, durante várias
gerações e cada nova cidade-estado que passava a integrar a federação yorùbá recebia
como chefe um Obá, cujo cargo representa uma forma de monarquia hereditária. Cada
dignitário nomeado Obá passa por um processo iniciático que o torna um descendente
espiritual de Oduduwa, já que as instituições políticas da tradição yorùbá são
intimamente ligadas ao universo espiritual de seu povo. Várias dessas cidades como
Ilê-Ifé sobreviveram sob o governo colonial inglês na Nigéria e continuam a funcionar
até nossos dias.
Na quinta e última parte do longa temos o protagonismo das mulheres guerreiras
quilombolas. Essa parte se inicia com negros fugindo do Sr. Vieira e seus capitães
indo em direção ao quilombo, alguns chegam e montam guarda ao lado das mulheres,
uma delas Tetê (representada pela atriz Cíntia Lima) e sua avó se preparam para
proteger o quilombo da destruição por parte dos brancos invasores. A avó de Tetê
(representada pela atriz Zezé Motta) em um dado momento diz para a neta: “essa terra
também pertence ao do quilombo Tetê, não é dos Vieira não, é tua, é minha e dos
outros, dos vivos e dos mortos” (1:53:39 - 1:53:53, O NÓ DO DIABO, 2018). O
quilombo não se configura somente como um espaço de resistência mas também de
paz, união e de ancestralidade ambas, avó e neta se preparam para um ritual em que
convocam os antigos ancestrais para que eles possam proteger o quilombo e ajudá-los
no confronto que se aproxima. No momento em que invadem o quilombo avó e neta
são postas para fora do barracão, onde começam a enunciar em voz alta: “ela ta
durmindo/Angola me chamou/Fé levanta povo/Cativeiro acabou” (2:01:33 - 2:02:04,
O NÓ DO DIABO, 2018). Em seguida, Tetê corta a garganta da avó em sacrifício

11
No Brasil é comum encontrar as expressões “candomblé ketu” e “candomblé angola” se referindo as
duas tradições yorùbá e bantukongo.
após ela proferir alguns dizeres em língua bantu. Os antepassados enterrados no
quilombo se levantam e se juntam à sua neta espantando os Vieira e seus capachos e o
quilombo (sobre)vive mais uma vez.
Beatriz do Nascimento, uma grande historiadora e intelectual do pensamento
negro e quilombola no Brasil, nascida em Aracaju, capital do estado de Sergipe e que
viveu durante a maior parte da sua vida no Rio de Janeiro, ao longo de vinte anos,
tornou-se estudiosa das temáticas relacionadas ao racismo e aos quilombos,
abordando a correlação entre corporeidade negra e espaço com as experiências
diaspóricas dos africanos e descendentes em terras brasileiras, por meio das noções de
“transmigração” e “transatlanticidade”12. Em sua ampla pesquisa de pós-graduação
em 1981, denominada “Sistemas alternativos organizados pelos negros: dos
quilombos às favelas” a historiadora busca caracterizá-los como uma instituição
africana de origem angolana na história da pré-diáspora e que “entre os primeiros
quilombos brasileiros, no séc. XVII, Palmares13 se sobressai (...) talvez sendo o único
a poder ser correlacionado concretamente com o kilombo angolano” (2018, p.281).
Sua pesquisa contribuiu significativamente para a compreensão contemporânea das
comunidades de remanescentes de quiilombo.
Outro grande intelectual do pensamento negro e do movimento negro no Brasil,
Abdias do Nascimento com sua perspicácia pan-africanista e crítica social foi um dos
grandes intelectuais do século vinte que romperam com os nós da história mundial e,
do Brasil, em particular, quando nos diz que
todas as formas imagináveis de coação se praticaram e se
praticam, inclusive a violência religiosa, no afã de assegurar a
imposição do etnocentrismo ocidental sobre os
afro-brasileiros. A elaboração da chamada "democracia
racial" obedeceu à intenção de disfarçar os privilégios do
segmento minoritário, detentor exclusivo da renda do país e
do poder político nacional. Fique registrado que muitos
brancos íntegros são ofuscados pela maligna fosforescência da
"democracia racial" e se comportam diante da população
negra da maneira tradicional do racista brasileiro: com postura
paternalista (2002, p.355).

12 RATTZ, Alex. Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz nascimento. SP: Imprensa
Oficial do Estado de São Paulo/ Instituto Kuanza, 2007.
13
“O Quilombo dos Palmares localizava-se na serra da Barriga, região hoje pertencente ao estado
brasileiro de Alagoas. Foi o mais emblemático dos quilombos formados no período colonial, tendo
resistido por mais de um século, o seu mito transformando-se em moderno símbolo da resistência do
africano à escravatura, ainda que, paradoxalmente, tenha-se conhecimento do uso de escravos em
muitos quilombos” GELEDES, Instituto da Mulher Negra.Quilombo dos Palmares, 2009. Disponível
em: https://www.geledes.org.br/quilombo-dos-palmares/. Acessado em 21 de abril de 2021.
Esse trecho da segunda edição de sua obra “O Quilombismo (2002)” é bastante
significativa tanto para as reflexões deste texto quanto para melhor compreensão do
contexto sócio-histórico de dois séculos que o longa-metragem buscou abarcar.
Apesar dos esforços do estado nacional brasileiro, como bem aponta o trecho acima,
em “disfarçar os privilégios do segmento minoritário” branco, “detentor exclusivo da
renda do país e do poder político nacional” tal como o foi a queima dos arquivos14
referentes à escravidão, ordenada pelo então ministro Ruy Barbosa, em 1890, dois
anos após o Brasil ser o último país do continente a abolir a escravidão em todo
território nacional não foi possível expurgar a identidade, a cultura e história negra (e
índígena), muito menos tratá-las como parte de um discurso de
miscigenação sutilmente compulsória ou da criação do mito da "democracia racial"
brasileira.
A obra “O Nó do Diabo” (2018) busca narrar em cerca de duas horas a
experiência do negro através do horror e das diversas formas de violência racial em
um período de dois séculos, como bem aponta Ian Abé, um dos diretores do filme, em
entrevista ao Canal Curta, “é um filme de gênero, é um filme de horror, que através
dessa chave fala da quantidade de desgraça que a gente já viveu e ainda está
vivendo”15. O racismo em filmes de terror ou o terror racial enquanto gênero narrativo
se torna fundamental no que se refere à verossimilhança requerida na representação
dos horrores da história além de estreitar a distância entre a desigualdade sofrida por
pessoas negras (e indígenas) na atualidade com o passado escravagista brasileiro.
Nesse sentido do racismo em filmes de terror, “O Nó do Diabo” (2018) talvez possa
estar situado ao lado de outras produções como “The Birth of a Nation” (1915), uma
das primeiras obras cinematográficas racistas estadunidenses que buscou exaltar e
justificar as origens da Ku Klux Klan, ou mais recentemente nas obras do ator e
cineasta Jordan Peele, “Get Out” (2017) e “Us” (2019); na obra dos cineastas Gerard
Bush e Christopher Renz “Antebellum” (2020); na série da Amazon Prime Video
“Others” (2021) e da HBO “Lovecraft Country” (2020). Violência policial,
deslocamentos forçados, sexismo, encarceramento em massa, desemprego, falta de
moradia digna, insegurança alimentar dentre outros são apenas alguns pontos do

14
Em 14 de dezembro de 1890, o ministro da Fazenda, Ruy Barbosa assinou um despacho ordenando
a destruição de documentos referentes à escravidão. Lacomba denomina a ação como “uma pedra de
escândalo em nossa história cultural” (p.33). Lacombe, Américo Jacobina, Silva, Eduardo e Barbosa,
Francisco de Assis. Rui Barbosa e a queima dos arquivos, Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1988.
15
Disponível em: https://ims.com.br/filme/o-no-diabo/. Acessado em 21 de abril de 2021.
terrorismo racial que nós negros e negras no Brasil experenciamos desde quando
situamos nosso corpo-negro-território-quilombo no mundo pela primeira vez. Talvez
esses pontos sejam o grande nó do diabo, esse nó da história brasileira que nunca se
desata a não ser no samba que diz “não dá pra fugir dessa coisa de pele16, sentida por
nós, desatando os nós”. A narrativa se desenvolve e termina onde começa a história
brasileira, não com o “descobrimento” do “Novo Mundo” mas com as primeiras
resistências à escravidão e à supremacia branca, nos Quilombos, a resistência, uma
possibilidade nos dias da destruição.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo


Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 92, n. 93, p. 69-82, (jan./jun.), 1988b, p. 69-82.

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Brasília/Rio de Janeiro: Fundação Cultural Palmares, 2ª ed. OR Editora, 2002.

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O NÓ DO DIABO. Direção: Ramon Porto Mota, Gabriel Martins, Ian Abé e Jhésus
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Lucas Guimaraes Salgado, Jhésus Tribuzi. Brasil: Warner Bros, 2018. 1 DVD (128
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ONG, Walter J. Oralidad y Escritura: tecnologías de la palabra. México, Fondo de


Cultura Económica, 1987.

RAMOSE, Mogobe B. A importância vital do “Nós”. [Entrevista concedida a Moisés


Sbardelotto], tradução Luís Marcos Sander. IHU-Unisinos, São Leopoldo/RS, Edição
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RATTS, Alex. Eu sou atlântica. Sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento.


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África, I; metodologia e pré-história da África. 2.ed. rev. – Brasília : UNESCO, 2010,
pp. 139-166.

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Trecho da música “Coisa de Pele”, do sambista brasileiro Jorge Aragão: “Podemos sorrir, nada mais
nos impede/ Não dá pra fugir dessa coisa de pele/Sentida por nós, desatando os nós/ Sabemos agora,
nem tudo que é bom vem de fora”.

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