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Universidade Federal da Paraíba

Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes


Programa de Pós-Graduação em Letras

A Representação da Natureza
na poesia de Emily Dickinson e Cecília Meireles
e uma proposta de leitura na Internet

Maria de Fátima de Barros Neves

Professor Doutor João Batista B. de Brito


orientador

João Pessoa, 2006.


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Maria de Fátima de Barros Neves

A Representação da Natureza
na poesia de Emily Dickinson e Cecília Meireles
e uma proposta de leitura na Internet

Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação


em Letras da Universidade Federal da Paraíba
como requisito parcial para a obtenção
do título de Doutor em Literatura Brasileira.

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: Teoria do Texto Poético

Professor Doutor João Batista B. de Brito


Orientador

João Pessoa, 2006.


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A Representação da Natureza
na poesia de Emily Dickinson e Cecília Meireles
e uma proposta de leitura na Internet

Maria de Fátima de Barros Neves

Tese aprovada em 03/04/2006.

__________________________________
Professor Doutor João Batista B. de Brito - UFPB
Orientador

___________________________________
Professor Doutor Michael Harold Smith - UFPB
Primeiro examinador

___________________________________
Professor Doutor Sérgio de Castro Pinto - UFPB
Segundo examinador

___________________________________
Professora Doutora Marluce Oliveira Raposo Dantas - UFPE
Terceiro examinador

___________________________________
Professora Doutora Vilma Maria de Lima Bezerra - UFAL
Quarto examinador

João Pessoa, 2006.


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“Querem outros muito dinheiro;


Outros, muito amor; outros, mais
Precavidos, querem inteiro
Sossego, paz, dias iguais.
Mas eu, que sei que nesta vida
O que mais se mostra é ouropel,
Quero coisa muito escondida:
– O sorriso azul de Isabel.

Um mistério tão sorrateiro


Nunca o mundo não viu jamais.
Ah que sorriso! Verdadeiro
Céu na terra (o céu que sonhais...)
Por isso, em minha ingrata lida
De viver, é a sopa no mel
Se de súbito translucida
O sorriso azul de Isabel.”

Manuel Bandeira,
Balada para Isabel.

A minha filha Isabel


por cada momento
em que ficamos distantes.
11

AGRADECIMENTOS
___________________________________________________________________________

Ao Professor Doutor João Batista B. de Brito, pela dedicação e orientação segura ao longo do
curso e durante a elaboração deste trabalho;

Ao Professor Doutor Michael Harold Smith, pelo apoio constante, pela crítica ao texto original e pelas
sugestões bibliográficas;

À Professora Doutora Marluce Raposo Dantas, cujo exemplo como educadora me motivou a estudar a
literatura de língua inglesa;

À Professora Doutora Vilma Maria de Lima Bezerra, pelas considerações pedagógicas sobre o papel da
poesia no currículo escolar;

Ao Professor Doutor Wellington Gomes, pelas valiosas sugestões no âmbito da Metodologia Científica;

Aos Professores do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPB, pelo excelente nível das aulas e
pelos comentários às pesquisas realizadas;

À Professora Kátia Barreto – Mestra, pela revisão do anteprojeto e pelas sugestões sobre o arcabouço
teórico da pesquisa;

Às professoras Ana Francinete, Augusta Gundes, Carla Falcão, Cristina Dubeux e Maria do
Carmo Galvão, do CAp/UFPE, pelo estímulo e apoio durante a realização do curso;

Aos amigos Marcelo Inojosa e Bernardo Nunes, que me revelaram no passado a poesia da natureza em
Emily Dickinson e Cecília Meireles;

A Hugo de Andrade, pelas indicações de leitura em filosofia e pelos poemas de alento;

A Francisco Fabiano Barros, pela sensibilidade e dedicação durante a elaboração do site;

A Francisco Gomes, pelo respeito ao meu trabalho e pela seleção musical para o site;

A Valderez Rezende, pelo estímulo e confiança que me fizeram acreditar na realização do curso;

A Vandilson Félix, cujo apoio incansável me permitiu estudar e escrever esta tese;

A Cleonice Muniz, pela acolhida em sua residência, pelos conselhos e gestos de amor;

A meus pais, José Neves e Conceição Barbosa, pela lição de disciplina, rigor e perseverança;

A meu irmão, Eduardo Neves, pelo exemplo de coragem e força de vontade;

Aos familiares, amigos e alunos, pela compreensão e estímulo durante todo o curso;

A minha tia Isabel Barbosa Guedes, que me ensinou a sonhar.


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RESUMO
___________________________________________________________________________

O presente trabalho compreende dois objetivos principais, um no âmbito da crítica literária, outro
de ordem pedagógica: 1) comparar poemas de Emily Dickinson e Cecília Meireles sobre a representação
da terra na abordagem da natureza; 2) elaborar um site na Internet para leitura de tais poemas, traçando um
estudo da linguagem poética, que seja acessível a alunos do ensino médio.
Para realizar essa análise comparativa, adotaremos leituras complementares do texto poético: 1) a
teoria de François Rastier sobre isotopias, conforme adaptada por João Batista B. de Brito na obra Signo e
Imagem em Castro Pinto, que explica o contexto semântico; 2) a teoria de Samuel Levin sobre
acoplamentos, que identifica equivalências fônicas, semânticas e sintáticas; 3) a lei da imaginação material
de Gaston Bachelard, que classifica as imagens poéticas segundo os quatro elementos primordiais: terra,
água, fogo e ar; 4) a representação da terra segundo Platão no diálogo Timeu, em que são
discutidos os quatro elementos constituintes do mundo sensível.
Esta pesquisa, que envereda pelos caminhos da Literatura Comparada, não pretende sugerir
qualquer influência da poesia de Emily Dickinson na obra de Cecília Meireles nem apontar dados
biográficos ou históricos que justifiquem escolhas temáticas. Nosso intuito é revelar pontos de contato e
divergência na representação da natureza, que caracterizem a criação por cada uma das autoras de uma
poética da terra.

Palavras-chave: Teoria do Texto Poético, Literatura Brasileira, Literatura Americana, Literatura


Comparada, Cecília Meireles, Emily Dickinson, Platão, Bachelard, imaginação material, isotopia,
acoplamentos, representação da natureza, ensino de poesia, ensino médio, Internet.
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ABSTRACT
___________________________________________________________________________

The present paper comprises two main objectives, one in the field of literary criticism, the
other in the area of education: 1) to compare Emily Dickinson’s to Cecília Meireles’s poems
about the representation of earth in the approach to nature; 2) to create a website for the reading
of such poems, providing a study of poetic language accessible to high-school students.
In order to carry out the comparative analysis, we will adopt complementary poetical
views: 1) François Rastier’s isotopy theory as adapted by João Batista B. de Brito in his book
Signo e Imagem em Castro Pinto, which focuses on the semantic context; 2) Samuel Levin’s
coupling theory, that identifies equivalent phonic, semantic and syntactic features; 3) Gaston
Bachelard’s law of material imagination, which classifies nature representation according to four
primordial elements: earth, water, fire and air; 4) earth representation according to Plato’s
dialogue Timeu, in which the four elements of the material world are discussed.
This research in the field of Comparative Literature does not intend either to imply any
influence of Emily Dickinson’s poetry on Cecília Meireles’s or to gather biographical and
historical data that may justify their thematic choice. Our aim is to reveal similarities and
divergences in the representation of earth that characterize the writers’ poetry about nature.

Key-words: Poetry theory, Brazilian Literature, American Literature, Comparative Literature,


Cecília Meireles, Emily Dickinson, Plato, Bachelard, material imagination, the four elements of
nature, isotopy, couplings, nature representation, poetry teaching, high school education,
Internet.
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SUMÁRIO
_________________________________________________________________________

APRESENTAÇÃO ................................................................................... p. 08
INTRODUÇÃO ........................................................................................ p. 11
Considerações pedagógicas ................................................................. p. 11
Considerações teóricas ......................................................................... p. 16
1. A REPRESENTAÇÃO DA TERRA NA POESIA DE EMILY
DICKINSON ............................................................................................. p. 23
2. A REPRESENTAÇÃO DA TERRA NA POESIA DE CECÍLIA
MEIRELES ............................................................................................... p. 48
3. A REPRESENTAÇÃO DA NATUREZA NA POESIA DE
EMILY DICKINSON E CECÍLIA MEIRELES ...................................... p. 69
3.1 A Estilística da natureza ................................................................ p. 70
3.2 Natureza, religiosidade e ceticismo .............................................. p. 83
3.3 O Lirismo da natureza em fogo, ar e água .................................... p. 92
3.4 A Poética da terra .......................................................................... p. 108
4. POESIA E INFORMÁTICA NA ESCOLA ........................................ p. 125
4.1 Poesia e informática ...................................................................... p. 131
4.2 Os primeiros passos da informática educativa .............................. p. 134
4.3 O papel do computador na escola ................................................. p. 137
4.4 Letramento digital ......................................................................... p. 140
4.5 Hipertextos .................................................................................... p. 142
4.5.1 O conceito de hipertexto .................................................... p. 146
4.5.2 Componentes de um hipertexto ......................................... p. 148
4.5.3 Interfaces ............................................................................ p. 149
4.6 Internet .......................................................................................... p. 150
4.6.1 A rede mundial de computadores ...................................... p. 151
4.7 Informática e ensino de literatura ................................................. p. 153
4.7.1 Hipertexto e ensino de literatura ........................................ p. 157
4.7.2 O potencial didático do hipertexto ..................................... p. 163
4.8 Descrição do site na Internet “A Representação da Natureza na
poesia de Cecília Meireles e Emily Dickinson” ....................................... p. 167
p. 169
CONCLUSÃO ..........................................................................................
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA .......................................................... p. 175
APÊNDICE ............................................................................................... p. 188
TABELAS ................................................................................................. p. 214
ANEXOS .................................................................................................. p. 226
15

No princípio, Deus criou os céus e a terra.


A terra, porém, estava informe e vazia;
as trevas cobriam o abismo
e o Espírito de Deus pairava sobre as águas.
Deus disse: “Faça-se a luz!”
E a luz foi feita.
Gênesis 1, 1-3.
16

APRESENTAÇÃO
____________________________________________________________________________________

Seguindo o conselho de Sócrates (2002.2, p. 112) de que “toda arte levada ao sumo grau deve
basear-se em pesquisas e meditações sobre a natureza”, nosso objetivo neste trabalho consiste em analisar
a temática da natureza na poesia de Emily Dickinson e Cecília Meireles. Pretendemos comparar a lírica
dessas autoras, uma historicamente ligada à geração do romantismo americano, a outra, ao modernismo
brasileiro. Estudaremos particularmente a representação da terra, um dos quatro elementos constituintes
do mundo sensível na cosmogonia da antiguidade grega.
Analisaremos, como nos ensina Gaston Bachelard, imagens poéticas que se nutrem da matéria para
revelar a imaginação criadora. Tanto Emily Dickinson quanto Cecília Meireles moldam a matéria da
natureza para traduzir em palavras uma leitura poética do real. Criam, assim, um universo onírico em
torno de certos temas, cuja constância contribui para a unidade e solidez de suas composições. Através
da imaginação material, manipulando água, terra, ar e fogo, as autoras dão uma nova plasticidade às
formas ao mesmo tempo em que revitalizam a linguagem. Em seus devaneios diante da natureza,
aproximam-se ao buscar na terra a matéria primordial para dar corpo e unidade às suas composições
poéticas.

Ao estudarmos a temática da terra, não nos restringiremos à análise dos campos semânticos de cada
composição nem apenas à leitura das imagens recorrentes em poemas distintos. Desejamos abordar
aspectos estruturais, como a ocorrência de acoplamentos, e aspectos fenomenológicos, uma vez que o
tema perpassa todos os estratos da composição poética.

Traçaremos a análise estrutural da temática, a exemplo do que Lévi-Strauss denomina “rede de


relações”, estabelecendo paralelos entre um tema específico do poema (como a rosa) e outros a ele
vinculados (como a fugacidade do tempo), uma vez que o tema, grau zero da idéia, se expande no texto
poético, incorporando novos campos semânticos. A temática, afinal, demanda processos estéticos,
razão por que Genette se refere a “temas-formas”, e Baudelaire (apud BRUNEL et al., 1995, p. 110)
afirma que “a imaginação (...) não traz um material temático neutro, mas um material já
ordenado conforme os esquemas estruturais que lhe são próprios”. Cientes de que o estudo dos temas
não pode ser dissociado da forma, buscaremos, em nossa leitura das imagens da terra, caminhar na
fronteira entre poética e tematologia.
17

Ao lado dos ensaios de Bachelard sobre a imaginação da matéria, serão adotados, portanto, dois outros
instrumentos de análise: 1) o conceito de isotopia1 de François Rastier, que busca revelar, no texto
poético, padrões de homogeneidade de significados e intersecções entre campos semânticos; 2) a teoria
dos acoplamentos de Samuel Levin, que identifica no poema a incidência de formas equivalentes do
ponto de vista fônico, sintático e semântico. Essas duas últimas abordagens, inclusive, integram a leitura
estrutural do poema, que contempla a análise dos estratos gráfico, fônico, lexical, sintático e semântico.

Pretendemos combinar, então, quatro teorias complementares para discutir as imagens da terra na
poética de Emily Dickinson e Cecília Meireles: a cosmogonia platônica do ponto de vista da filosofia; a
imaginação material, cuja gênesis Bachelard explica por meio da fenomenologia; a análise das
isotopias, que envereda pelos caminhos da análise semântica; o estudo dos acoplamentos, no âmbito da
gramática do texto poético. Nossa perspectiva é que tais vias de acesso ao poema guardam uma relação
de complementaridade, a exemplo da concepção heraclitiana de que na interação dinâmica entre
opostos reside a unidade.

A idéia de confrontar duas autoras da lírica moderna, que viveram em épocas tão distintas, mas que, em
sua solidão interior, se debruçaram, entre outros temas, sobre a natureza, caracteriza um estudo de
Literatura Comparada, mas não nos moldes tradicionais, como propuseram, por exemplo, Villemain,
Ampère e Posnett, pioneiros nos estudos comparatistas do séc. XIX.

Não desejamos buscar traços biográficos similares, fatos históricos correlatos ou movimentos literários
afins que possam justificar pontos de contato temático entre a poesia de Emily Dickinson e Cecília
Meireles, embora eventualmente venhamos a comentar esses aspectos. Não propomos traçar uma linha
rígida de reciprocidade entre os textos a partir da busca de obras literárias que possam ter influenciado
as duas escritoras ou sugerir uma influência da obra de Emily Dickinson na poesia de Cecília Meireles.
Não almejamos, tampouco, apontar as causas prováveis da incidência de temas comuns em suas obras,
dos quais surgiram imagens semelhantes para exprimir diferentes histórias de vida, horizontes culturais
e experiências quotidianas.

Propomos elucidar a representação da natureza na poesia das autoras a partir de uma “reflexão
significativa” sobre os motivos2 vinculados à temática da terra, abordagem que julgamos didática por
tornar menos árida a leitura de poesia. Trata-se, portanto, de um estudo que se aproxima da tematologia,

1
Conjunto redundante de categorias semânticas subjacentes ao discurso.
2
Segundo Tomachevski (1978, p. 169, 174), “tema” é aquilo de que se fala; “motivo” é a unidade temática. Os motivos de uma
obra são heterogêneos e, combinados entre si, constituem o apoio temático da obra.
18

enfoque vinculado por Northrop Frye à análise da poesia lírica, e que, após um período de ostracismo3,
atualmente integra a análise textual (BRUNEL et al., 1995).
Nosso intuito, enfim, é observar, no universo poético das autoras4, relações fecundas quanto às imagens
da natureza, entre flor e nuvem, / estrela e mar, como a poeta5 carioca resume em Inscrição. No
diálogo entre os textos, pressupomos o exame de convergências e divergências, a elucidação de pontos
de aproximação e de distanciamento a partir de aspectos semânticos, sintáticos e fônicos. Quer pela
semelhança, quer pelo contraste, através da leitura intertextual, a poesia de Emily Dickinson e a de
Cecília Meireles devem se iluminar mutuamente. Procuramos, a exemplo de Italo Calvino (2001, p. 9),
“considerar a literatura como universal, sem distinções de língua e caráter nacional (...) e o
passado em função do futuro”.

A segunda etapa do trabalho consiste na adaptação do texto final da tese para a elaboração de um
site na Internet, dirigido a alunos e professores do ensino médio, no qual poderão ser lidos, além dos
poemas estudados e suas respectivas análises, outras composições, dados biográficos das autoras e
comentários críticos.
Não perdemos de vista, contudo, o fato de que o novo é sempre uma recriação. De fato, como
afirma Nigel Woodhead (1991, p. 57-74), a idéia de interligar textos através de links em ambientes de leitura
on-line reflete a tradição acadêmica de fazer referências em um texto a outros anteriormente publicados,
através de notas de rodapé e listagens bibliográficas. Da mesma maneira, textos literários remetem o leitor
a outras obras, através de epigrafes, ou lançam mão da intertextualidade, por meio de alusões no próprio
texto ou escolhas temáticas.
Segundo Nigel (idem), os hipertextos que compõem as páginas da Internet reproduzem a estrutura
de dicionários, enciclopédias, catálogos e manuais, que não pressupõem uma leitura linear da primeira à
última página. Enquanto nos sites há menus, setas, botões e links, que permitem a navegação de um texto
a outro, nos documentos impressos, o acesso à informação é facilitado por certas convenções, como ordem
alfabética, glossários, índices, sumários, capítulos, seções, títulos e subtítulos. Além disso, por trás da
aparente novidade da leitura não-linear nos hipertextos on-line, estão o livro, a página, o poema, a
ilustração – velhos conhecidos, transportados, na era da informação, para o mundo virtual.
Ao lançarmos mão da Internet, nosso objetivo não é apenas ampliar o número de leitores da
pesquisa, mas, sobretudo, sensibilizar um maior número de docentes para a importância da inserção do

3
A tematologia, após fomentar os debates da “nova crítica” nos anos 60, foi perdendo prestígio até ser relegada a um segundo plano na década de
80. A partir dos anos 90, graças aos esforços de Raymund Trousson e Harry Levin, entre outros, que procuraram reacender entre os críticos o
entusiasmo dos estudiosos alemães do começo do séc. XX, a tematologia, aos poucos, tem resgatado seu prestígio.
4
Para este estudo serão consultadas as seguintes obras das poetas: JOHNSON, Thomas (ed.). The Complete Poems of Emily
Dickinson. London: Faber and Faber, 1975; MEIRELES, Cecília. Obra Poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1977.
5
Empregamos o termo “poeta”, como preferia Cecília Meireles, que o popularizou a partir da publicação do poema Motivo, em
sua obra Viagem (1938), no qual se lê: Eu canto porque o instante existe / e a minha vida está completa. / Não sou alegre nem
sou triste / sou poeta (PEREIRA, 1999, p. 182).
19

universo virtual e do texto poético no processo de ensino-aprendizagem de Língua Inglesa e Literatura


Brasileira. Acreditamos que os recursos da informática, aliados à abordagem adotada, nos permitirão
despertar o interesse de alunos e professores pela leitura de poesia na escola.
20

INTRODUÇÃO
____________________________________________________________________________________

Considerações pedagógicas

Propomos uma abordagem de leitura na Internet, envolvendo Literatura Brasileira e Língua Inglesa, disciplinas aparentemente isoladas no currículo do ensino
médio da maioria das escolas públicas. Seguimos os caminhos propostos para educação pelos Parâmetros Curriculares Nacionais, que destacam o papel da
interdisciplinaridade e das novas tecnologias de informação.

Segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, o ensino médio é a “etapa final da
educação básica” (Art. 36) e, por conseguinte, deve garantir ao educando, como sujeito produtor de
conhecimento, a possibilidade de consolidar e aprimorar as competências básicas adquiridas no ensino
fundamental. Ao concluir o ensino médio, o aluno deverá ter recebido uma educação de caráter geral, em
sintonia com o mundo contemporâneo, que lhe possibilite não apenas atuar no mercado de trabalho e
exercer a cidadania, mas, sobretudo, que o faça crescer como ser humano integral.
A nova lei (Lei no 9.394/96) para o ensino médio, ao propor uma abordagem pedagógica em
consonância com a revolução tecnológica e suas implicações no âmbito da produção e da informação,
aponta o desenvolvimento cognitivo e cultural como a única saída para o impasse entre os percursos da
escolaridade e a formação profissional. Na sociedade tecnológica, as competências exigidas pelo mercado
de trabalho correspondem justamente àquelas necessárias ao pleno desempenho da cidadania: capacidade
de abstração, de desenvolvimento do pensamento sistêmico, de resolução de problemas, de trabalhar em
equipe, de pensamento crítico, de pesquisa e de saber comunicar-se.
A escola tradicional, centrada na transmissão de regras, na obediência cega a modelos, na memorização de dados, na fragmentação do conhecimento, na exclusão
da tecnologia como fonte de informação, comunicação e construção do saber, apenas consolidou as injustiças sociais, tendo falhado em seu papel de agente
transformador da sociedade. Cabe a nós, professores, criarmos uma nova escola que realize em seu dia-a-dia as proposições da LDB, no sentido de construção de
um currículo orgânico, que rompa com o padrão de disciplinas estanques e busque a interdisciplinaridade como forma de superação da segregação do saber.

Integração e articulação do conhecimento são, portanto, palavras de ordem para a atual grade
curricular do ensino médio, na qual as disciplinas organizam-se em três áreas: 1) Linguagens, Códigos e
suas Tecnologias, 2) Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias, 3) Ciências Humanas e suas
Tecnologias. Na área 1, incluem-se Língua Portuguesa, enquanto “língua materna, geradora de
significação e integradora da organização do mundo e da própria interioridade”; Língua Inglesa, “como
forma de ampliação de possibilidades de acesso a outras pessoas e a outras culturas e informações”; as
Artes, inclusive a Literatura enquanto “expressão criadora e geradora de significação”; Informática como
ferramenta para “informação, comunicação e resolução de problemas” (1999, p. 33); Educação Física e
atividades desportivas. Tais disciplinas devem propiciar ao aluno meios de engajamento no mundo
contemporâneo, cuja produção essencialmente simbólica requer do cidadão o domínio das linguagens e
seus múltiplos códigos como instrumentos de comunicação e negociação de sentidos.
21

Façamos um recorte nesse universo de disciplinas para analisarmos aquelas que dizem respeito à
pesquisa. O ensino de Literatura Brasileira na escola pública, via de regra, tem como eixo principal a
apresentação das características dos movimentos literários, sem a leitura efetiva das obras ou o olhar atento
da crítica. Em geral, são lidos resumos que não conseguem contribuir para a aprendizagem de literatura ou
criar no aluno o interesse pelo texto literário. O ensino de Língua Inglesa, por sua vez, é igualmente
problemático, restringindo-se, em geral, à repetição oral de padrões sintáticos ou à memorização de regras
gramaticais, em detrimento da leitura e da produção de textos. Na melhor das hipóteses, são lidas versões
simplificadas de romances e contos, mas raramente há espaço para a leitura de poesia. Indubitavelmente, a
escassez de material de didático, a oferta insatisfatória de livros paradidáticos nas bibliotecas escolares, a
não-distribuição de livros-texto para ensino de Inglês, a inadequação do material fornecido, entre outros
fatores, contribuem para as lacunas no ensino dessas disciplinas.
Diante dessa realidade, o Colégio de Aplicação da UFPE, campo de estágio para alunos das várias
licenciaturas, e locus privilegiado para atividades de ensino, pesquisa e extensão, desenvolveu duas
propostas inovadoras que, se viabilizadas para a rede estadual, significariam um salto qualitativo para o
ensino fundamental e médio: 1) estudos de língua estrangeira por nível de conhecimento, 2) oficinas de
leitura com caráter interdisciplinar.
O ensino de Inglês e Francês por níveis significou um avanço na aprendizagem, levando os alunos
a concluírem o ensino médio com real domínio de uma língua estrangeira, em termos das quatro
habilidades básicas - ler, ouvir, falar, escrever. Já as oficinas de leitura reúnem disciplinas das três áreas de
ensino, desenvolvendo uma abordagem interdisciplinar para interpretação e discussão de textos didáticos,
jornalísticos ou literários (poesias, contos, crônicas, romances e peças teatrais).
Em face das condições materiais e pedagógicas do Colégio de Aplicação, pensamos em oferecer,
além da oficina de Literatura Norte-americana, que reúne alunos dos níveis mais avançados, um espaço
interdisciplinar para a leitura de textos em inglês e português. Através dessa abordagem, pretendemos criar
novas oportunidades de aprendizagem que ampliem não apenas o conhecimento dos idiomas em questão,
mas sobretudo o horizonte cultural dos alunos.
Dentre os gêneros literários, o estudo da poesia nos pareceu o mais adequado por várias razões de
ordem prática que julgamos relevantes: 1) o texto poético pode ser facilmente reproduzido através de
fotocópias e transparências ou apenas copiado no quadro; 2) a brevidade do poema permite a leitura de
um número maior de textos em um curto espaço de tempo; 3) a oferta de textos distintos é um fator de
motivação e desafio intelectual para os alunos; 4) dentre os gêneros literários, a poesia é o mais
negligenciado pela escola, apesar de sua relevância para a aprendizagem; 5) a linguagem poética parece ser
uma incógnita para muitos alunos e professores.
22

Uma vez que outras oficinas haviam sido organizadas anteriormente, tendo a questão temática
com eixo norteador, resolvemos adotá-la como uma linha de intersecção entre as obras poéticas a serem
escolhidas. Surgiu, assim, a idéia de um estudo comparativo entre poetas que compartilhassem uma
mesma temática e tivessem certas afinidades literárias como, por exemplo, a linguagem, o estilo, ou o
movimento literário.
Passo a passo, traçamos essa viagem pelo universo da literatura, em cujo roteiro poético estão os
temas abordados por duas autoras distantes no tempo e no espaço – a norte-americana Emily Dickinson
(1830-1886) e a brasileira Cecília Meireles (1901-1964). A escolha de Cecília Meireles foi motivada pelo
fato de que os alunos estudam, na última série do ensino médio, o Modernismo Brasileiro, em cujo rol de
autores, a poeta é incluída, apesar dos traços simbolistas, parnasianos e até mesmo barrocos já identificados
em sua obra (DAMASCENO, 1996).
O nome de Emily Dickinson surgiu inicialmente de forma impressionista, fundamentado apenas
na suposição de existir uma correspondência temática entre sua obra e a de Cecília Meireles. De fato, o
estilo lírico e a linguagem espontânea de Emily Dickinson, suas inconstâncias prosódicas, suas oscilações
entre o concreto e o abstrato, além da poesia rebelde, não filiada a uma única escola literária, são aspectos
de sua obra que a aproximam de Cecília Meireles. Como afirma João Batista B. de Brito em seu ensaio
sobre o poema Safe in their Alabaster Chambers (1989, p. 103), “Emily Dickinson foi em parte romântica,
realista, moderna e clássica, sem nunca ter sido qualquer dessas coisas in totum”.
Escolhidas as autoras, era necessário ainda encontrar um assunto que despertasse o interesse de
jovens leitores para quem os principais temas apontados pela crítica em Emily Dickinson e Cecília
Meireles – morte, solidão, religiosidade, amor e desengano – teriam pouca aceitação por seu teor de
melancolia e abstração. Em busca de traços comuns na poética das autoras, um assunto finalmente nos
pareceu adequado ao público-alvo: a poética da terra na representação da natureza. Em face do caráter
didático-literário de nossa pesquisa, a abordagem da terra também se mostrou satisfatória por viabilizar o
emprego de ilustrações, que certamente devem estimular a leitura e auxiliar a interpretação. Não pudemos,
entretanto, evitar temáticas como morte e religião, profundamente entrelaçadas em seus poemas.
O enfoque escolhido, talvez por sua aparente simplicidade, tenha despertado pouca atenção dos críticos,
interessados, certamente, em questões mais complexas tanto do ponto de vista temático quanto estilístico.
Warren (1963), por exemplo, afirma que os poemas de Emily Dickinson sobre a natureza não são os mais
belos e profundos, mas sim os de cunho metafísico ou trágico.
Nosso último passo foi a escolha de um arcabouço teórico capaz de elucidar o sentido dos poemas
e traduzir para alunos do ensino médio conceitos de crítica literária. O ensaio de João Batista B. de Brito
No way out of polysemy: A reading of Blake (1999), que apresenta uma interpretação do poema The Sick
Rose a partir do entrelaçamento de isotopias, apontou-nos o referencial teórico inicial para a pesquisa.
23

Adotamos a análise das isotopias semânticas, bem como o estudo dos acoplamentos da forma apresentada
pelo professor João Batista em seus ensaios e, particularmente, na obra Signo e Imagem em Castro Pinto
(1995), em que o autor comenta o texto Sistemática das Isotopias de François Rastier e o livro sobre
acoplamentos, Estruturas Lingüísticas em Poesia de Samuel Levin. Trata-se de uma abordagem clara e
didática do significado poético, que guia até mesmo o leitor mais inexperiente pelas veredas do texto
literário.
A fim de verificar-se a aceitação dessa proposta de leitura por parte dos alunos, apresentamos o
referido ensaio como tema para discussão em uma aula da Oficina de Literatura Norte-americana. Como já
era esperado, em face da objetividade e clareza da análise do poema de Blake e, inegavelmente, da
maturidade intelectual dos alunos do Colégio de Aplicação, pudemos constatar a imediata compreensão do
conceito de isotopia e seus desdobramentos nos caminhos da leitura.
Posteriormente, ao buscarmos um parâmetro para a escolha das imagens da natureza, encontramos
na cosmogonia antiga, discutida por Platão no diálogo Timeu (2001) a alusão aos quatro componentes
fundamentais do universo: terra, água, ar e fogo. Para melhor analisarmos as imagens poéticas na lírica
das autoras, descobrimos em Gaston Bachelard (1998) o estudo da imaginação material, segundo o qual a
poesia traduz o devaneio em palavras e dá substância à imaginação através das quatro matérias básicas.
Na cosmologia do universo e da poesia, Platão e Bachelard dialogam ao considerar que os “elementos
materiais permanecem como elementos fundamentais” para o processo de criação (BACHELARD, 1999,
p. 5).
Propomos a leitura das imagens da terra na poesia de Cecília Meireles e de Emily Dickinson, mas
sem a pretensão de uma classificação excludente, tal como a das antologias do século XIX, cujo formato
ditou a primeira publicação dos poemas da poeta norte-americana em secções intituladas: “Vida”,
“Natureza”, “Amor”, “Tempo” e “Eternidade”. Em um único poema, não raro, encontramos imagens da
terra, da água, do ar e do fogo ou, pelo menos, de dois desses elementos; além disso, a natureza, por vezes,
é uma alegoria para a discussão de questões filosóficas, religiosas ou sentimentais, que nem sempre
poderemos evitar.
Considerando os avanços no processo de ensino-aprendizagem alcançados no Colégio de
Aplicação com o uso de software no ensino de Língua Inglesa (NEVES, 1991), em particular, com o
hipertexto elaborado para a leitura de Walt Whitman, descrito em nossa dissertação de mestrado, o
interesse dos alunos pela Internet, e a orientação dos Parâmetros Curriculares Nacionais, que apontam as
novas tecnologias de comunicação como ferramentas indispensáveis para a escola no século XXI,
propomos uma abordagem de leitura do texto poético que concilia literatura e informática: a criação de um
site para leitura de Emily Dickinson e Cecília Meireles.
24

Da mesma forma que pontos de contato entre as isotopias aproximam, no eixo sintagmático,
formas semânticas correlatas, os links de uma página da Internet permitem ao leitor estabelecer correlações
entre estruturas convergentes e temáticas similares. Através de links que vinculem imagens recorrentes a
nível intratextual e intertextual, é possível enriquecer a leitura do texto poético ao relacionar comentários
crítico-interpretativos e poemas, aproximando in praesentia elementos de textos afins que estão unidos in
absentia.
O processo de interligação de textos na rede (hipertexto) é também útil para ilustrar a noção de
acoplamento, discutida por Samuel Levin (1975), que elucida o caráter simétrico da composição.
As correspondências entre os estratos fônico, morfológico, sintático e semântico podem ser indicadas no
poema a partir de links que remetam o leitor a uma análise estrutural da linguagem.
Acreditamos que a navegação desse site abra novas possibilidades de leitura a partir de um estudo
intertextual da temática das imagens da terra na poesia das autoras. Ao explorar os recursos desse
hipertexto on-line, cada aluno estará elaborando um itinerário de leitura único, construindo suas próprias
interpretações, buscando elos estilísticos entre as obras ou apenas seguindo as linhas isotópicas de um
poema que, a exemplo, dos hipertextos, constroem uma leitura não-linear. Como as metáforas, pontos de
convergência entre campos semânticos distintos, em que se cruzam isotopias, os links da Internet
interligam páginas correlatas, cruzando diferentes linguagens e contextos de informação.
O uso do hipertexto on-line como ferramenta de leitura do texto poético, aproximando Literatura
Brasileira e Língua Inglesa, disciplinas tradicionalmente isoladas na grade curricular, parece-nos uma
abordagem com o mesmo teor de modernidade que permeia a obra de Cecília Meireles e os versos
rebeldes de Emily Dickinson. O trabalho proposto deve aproximar, portanto, três linhas de estudo:
Literatura Comparada, Teoria do Texto Poético e Informática Aplicada ao Ensino.
Considerando-se o âmbito de divulgação propiciado pela publicação do trabalho na Internet, nossa
atuação como docente em cursos de formação de professores e o fato de que o Colégio de Aplicação é
campo de estágio para formandos do Curso de Letras da UFPE, os quais posteriormente devem atuar na
rede pública e privada, acreditamos que este projeto trará uma contribuição significativa para o ensino
tanto de Literatura Brasileira quanto de Língua Inglesa. Afinal, como atesta Widdowson (1992), a inserção
do texto poético no currículo escolar é um fator definitivo tanto para ampliação do universo cultural do
aluno, quanto para o desenvolvimento da linguagem e do raciocínio abstrato.
Considerações teóricas

Para Greimas, o termo isotopia designa as reiterações sêmicas presentes nos lexemas de um
determinado texto e que compõem um campo semântico específico (BRITO, 1995). A isotopia é, portanto,
“um plano comum de sentido”, gerado pela “redundância ou repetição de categorias semânticas, que
25

subjazem às variações do plano da manifestação lingüística” (D'ONÓFRIO, 2000, p. 37). Ler um texto
significa inventariar as isotopias, isto é, os sememas pertencentes a cada um dos campos semânticos, cujos
pontos de intersecção ou “engates” são constituídos, por exemplo, por dêiticos, palavras homônimas ou
figuras de sentido.
Coube a Rastier (1975) aplicar à poesia o conceito de isotopia, “implicando que todo poema é
pluri-isotópico, e que as várias isotopias subjacentes ao seu tecido se entrecruzam” (BRITO, 1995, p. 122).
Para o crítico francês, isotopia como repetição de uma unidade lingüística é um conceito fundamental para
o estudo do texto poético.
Ao analisar as estruturas discursivas, as quais não distingue a priori das estruturas lingüísticas,
Rastier divide-as em dois grupos: 1) as retóricas, que organizam os elementos de um mesmo nível
lingüístico; 2) as estilísticas, que estabelecem as correlações entre as estruturas retóricas de diferentes
níveis. Com base nessa classificação, o teórico identifica isotopias do conteúdo ou retóricas e isotopias
estilísticas.

As isotopias do conteúdo classificam-se em 1) isotopias classemáticas, formadas pela redundância


dos termos de categorias sêmicas em ação na sintaxe (classemas); 2) isotopias semiológicas, que
compreendem as isotopias horizontais ou semêmicas, formadas pelo inventário dos sememas em classe;
3) isotopias verticais ou metafóricas, formadas por sememas ou grupos de sememas pertencentes a dois
campos distintos; 4) isotopias semânticas, formadas pela redundância de sememas que ocupam a mesma
posição lógica em enunciados isomórficos.
As isotopias estilísticas classificam-se em 1) léxicas, formadas pela redundância de lexemas,
codificados da mesma maneira pelo sistema axiológico social; por exemplo, o tom de um texto;
2) sintáticas, formadas por unidades lingüísticas que tenham uma mesma função; 3) fonêmicas ou
fonológicas, formadas por lexemas que recobrem sememas equivalentes a nível dos fonemas que os
manifestam, compreendendo a assonância, a aliteração e a rima.
Em sua interpretação da sistemática das isotopias, Brito (1995), dispensa essa classificação
minuciosa e complexa do teórico francês, nos moldes do que T. S. Eliot bem-humoradamente chamou de
“escola de crítica de espremedor de limão” (1972, p. 161), que fragmenta excessivamente a leitura do texto
poético, desmembrando-o em estruturas microscópicas. Adota uma visão mais ampla do conceito de
isotopia como repetição de uma unidade lingüística, seja no plano sintático, semântico ou fonológico. Sua
abordagem torna muito mais clara e simples a tarefa de identificar, “por detrás da visibilidade dos
lexemas” (BRITO, 1995, p. 122), as isotopias, que dão cor às metáforas e determinam o caráter polissêmico
da mensagem poética.
26

No esteio dos estudos de Greimas acerca da motivação do signo lingüístico, e da noção de


paralelismo defendida por Jakobson, Samuel Levin identifica no texto poético acoplamentos simétricos
entre as estruturas fônica, métrica, morfológica, sintática e semântica (BRITO, 1995). Segundo o teórico
americano, formas semânticas e/ou foneticamente equivalentes ocorrem no poema em posições
sintagmáticas equivalentes, constituindo tipos especiais de paradigmas6 (LEVIN, 1975).

Acoplamentos ligam in paesentia, através de elos sintagmáticos ou contextuais, termos que estão
unidos in absentia, através de elos paradigmáticos ou não-contextuais. São, portanto, estruturas poéticas
em que ocorrem convergências entre os contextos lingüístico e extralingüístico. A unificação desses
segmentos posicionais e naturais no tecido poético contribui para o efeito de unidade, ao mesmo tempo em
que corrobora o processo de repetição, traço intrínseco da poesia.

Enquanto linguagem ordenada de forma inusitada, o poema estabelece suas próprias regras,
concessões e limites. Nesse processo de desautomatização lingüística, os acoplamentos, que surgem da
incidência de construções paralelas, têm um papel fundamental: estabelecer uma relação entre o código e o
significado. Essa unidade entre forma e mensagem, que caracteriza o discurso poético, fornece, portanto,
uma justificativa estrutural para o efeito de estranhamento que faz da poesia um discurso singular.
Kristeva (1974, p. 98, 100), no encalço dos estudos de Tynianov e de Bakhtin, caracteriza a
linguagem poética como “um diálogo de dois discursos”, cuja ambivalência consiste na “coexistência do
discurso monológico (científico, histórico, descritivo) e de um discurso destruidor desse monologismo”.
O poema, por vezes, nomeia um referente que não existe, do ponto de vista lógico, em qualquer outro
espaço, senão o da poesia. A metáfora, a metonímia e as demais figuras de palavras instauram no poema
uma “estrutura semântica dupla”, na qual o significado poético encerra uma afirmação simultaneamente
verdadeira e falsa, conforme julgada pela ótica da poesia ou do real. O prazer da leitura, segundo Barthes
(1999a, p. 12-13) reside justamente no espaço que se instaura entre as duas margens do texto: “uma margem
sensata, conforme, plagiária e uma outra margem, móvel, vazia (...), subversiva”. Se textos distintos
transparecem no discurso poético, amplia-se essa dualidade intratextual, inerente à poesia, intensificando-
se o efeito de sentido. Todo poema, portanto, é plural, pois nele ecoam “vozes vindas de outros textos, de
outros códigos” (BARTHES, 1999b, p. 17).
Em Palimpsestes, Genette (1997) adota o termo transtextualidade (transcendência textual) para se
referir à relação do texto, óbvia ou velada, com outros textos, inclusive quanto a tipos de discurso, modos
de enunciação e gêneros literários que determinam a produção de um texto singular. Segundo o teórico, a

6
Paradigmas são classes de equivalência, cujos membros possuem traços comuns quanto a aspectos lingüísticos (contexto) ou
extralingüísticos (som e significado). Levin (1975) nomeia três tipos de paradigmas: 1) sintáticos – estruturalmente equivalentes
quanto à posição em enunciados; 2) semânticos – que apresentam afinidades ou oposições de significado; 3) fonéticos – que
compartilham sons idênticos ou semelhantes.
27

transtextualidade compreende cinco formas distintas de relações entre textos: intertextualidade,


paratextualidade, metatextualidade, arquitextualidade e hipertextualidade. Intertextualidade (GENETTE,
1997, p. 1) é a relação de copresença entre dois ou vários textos, confirmando ou alterando o sentido do
texto original através da citação, do plágio e da alusão. Paratextualidade é relação que vincula o texto a seu
paratexto, ou seja, título, subtítulo, prefácio, posfácio, resumo, nota de rodapé, notas à margem da folha,
notas finais, epígrafes, ilustrações, capas, sobrecapas etc. Metatextualidade é a relação geralmente
denominada comentário, que une um texto a outro, o qual ele evoca, sem necessariamente citar ou nomear.
Arquitextualidade é o conceito mais abstrato e implícito de todos. Envolve uma relação silenciosa,
articulada, no máximo, por uma alusão paratextual, que pode ser um título (Os Contos da Cantuária) ou
um subtítulo (Bakhtin: ensaios e diálogos sobre seu trabalho), cuja natureza é apenas taxonômica.
Hipertextualidade é qualquer relação que une um texto posterior (hipertexto7) a um texto anterior
(hipotexto), ao qual ele se filia. Compreende não apenas o pastiche, a paródia e a caricatura, mas todos os
gêneros literários. A hipertextualidade, segundo Genette, é um aspecto universal da literatura, pois cada
texto literário evoca outros; nesse sentido, todas as obras são hipertextuais. A esse intercâmbio literário,
que transforma cada texto em “um mosaico de citações”, Kristeva (1974, p. 83) denomina intertextualidade.
O termo adotado por Genette, todavia, nos parece mais amplo por não se restringir ao “trabalho de
transformação e assimilação de vários textos, operado por um texto centralizador” (JENNY apud
CARVALHAL, 1986, p. 51).
Ao compararmos Emily Dickinson e Cecília Meireles, pretendemos realçar traços intertextuais de
aproximação e de distanciamento entre seus poemas, revelando, através de nossa intencionalidade
dialógica, um encontro de afinidades temáticas. Não queremos apontar qualquer intercâmbio intelectual
no sentido restrito de influência ou assimilação entre as autoras. Propomos um estudo de coincidências e
analogias entre textos poéticos, abordagem que Benedetto Croce julgava uma “predileção da velha crítica”,
e Étiemble atribuía à literatura geral, deixando ao encargo da literatura comparada o estudo das influências
efetivas (BRUNEL et al., 1995, p. 103, 91).
No âmbito da filosofia, os ensaios de Bachelard sobre a imaginação literária, relacionando imagens
aos quatro elementos da natureza, constituem outro referencial teórico importante para a elaboração de um
estudo comparativo da produção lírica de Emily Dickinson e Cecília Meireles. Em A Água e os Sonhos, o
filósofo expõe uma síntese de seus estudos sobre a relação entre imaginação e matéria na criação poética:
Com efeito, acreditamos possível estabelecer, no reino da imaginação, uma lei dos quatro elementos,
que classifica as diversas imaginações materiais conforme elas se associem ao fogo, ao ar, à água e à
terra (BACHELARD, 1998, p. 3-4).

7
O hipertexto, nesse sentido, é um texto derivado de outro texto preexistente através de transformações simples ou indiretas
(imitação).
28

Ainda segundo o filósofo, a cosmologia e a filosofia clássicas e a antiga alquimia colocaram a


imaginação dos quatro elementos na base de todas as coisas (2001a). Em torno das matérias
primordiais, constrói-se a imagem poética, como “uma planta que necessita de terra e de céu, de
substância e de forma”. Por isso, “só quando tivermos estudado as formas, atribuindo-as à sua exata
matéria, é que poderemos considerar uma doutrina completa da imaginação humana” (1998, p. 3). Para
Bachelard, a leitura do poema deve revelar como cada um dos quatro elementos fundamentais empresta
à poesia uma cor, um peso e uma textura peculiar.

Curiosamente, Rastier8 e Bachelard encontram na Química uma terminologia e uma metáfora para
o estudo da poesia, o qual, segundo formalistas e estruturalistas, deve abandonar interpretações
impressionistas em favor de uma abordagem científica. Estamos diante do caminho inverso percorrido
pela mente pré-científica: caminhamos ao lado da filosofia em direção à ciência (BACHELARD, 1997).
Pelas mãos de François Rastier, o termo isotopia9 integra o arcabouço teórico da semiótica poética; o
filósofo francês, por seu turno, refere-se à “Química poética que acredita poder estudar as imagens,
fixando para cada uma delas seu peso de devaneio interno, sua matéria íntima” (ibidem, p. 48).
Embora consideradas linhas antagônicas de estudo, tanto a postura semiótica quanto a filosofia da
composição poética elucidam a constituição do poema enquanto discurso que estabelece uma rede de
articulações entre os planos da expressão e do conteúdo. Ao ler Emily Dickinson e Cecília Meireles,
pretendemos manter um equilíbrio entre essas propostas de análise em que se manifestam duas concepções
distintas do poema: 1) como “signo decodificável”, estruturado em torno de isotopias e acoplamentos, no
esteio das teorias de Rastier e Levin; 2) como “imagem inefável”, materializada através dos quatro
elementos, na visão fenomenológica de Bachelard (BRITO, 1995, p. 109). No diálogo dessas vertentes
analíticas, julgamos poder revelar a polissemia do texto poético, cujas múltiplas leituras suscitam
arcabouços teóricos suplementares: de um lado, a lingüística estrutural, de outro, a filosofia.
Ao selecionarmos as imagens da terra na obra de Emily Dickinson e Cecília Meireles, percebemos
uma correspondência indiscutível entre os dois sistemas imagéticos: um de ordem poética, outro de ordem
filosófica. Cada autora, priorizando as imagens da terra, cria um universo metafórico em torno dos quatro
constituintes básicos da natureza, segundo Empédocles10 e Platão: a terra, a água, o ar e o fogo. Em face
dessa analogia entre o universo sensível e o horizonte poético, o presente estudo sobre a isotopia da terra
espelha-se no critério de classificação dos reinos animal, vegetal e mineral adotado por Platão no Timeu:

8
O conceito de isotopia como reiteração sêmica que determina a criação de campos semânticos em um texto foi elaborado por
Greimas, mas foi Rastier quem primeiro o aplicou ao estudo da poesia (BRITO, 1995, p. 122).
9
Ocorrência de elementos químicos com diferentes quantidades de massa, mas cujo número atônico e posição são idênticos na
tabela de Mendeleev (DUBOIS et al., 1980, p. 29).
10
Empédocles, filósofo e médico de Agrigento (séc. V a.C.), possuía extensos conhecimentos filosóficos, médicos e físicos,
razão por que seus contemporâneos o julgavam versado em magia.
29

1) a terra, os minerais11, as plantas e os animais terrestres; 2) a água e os seres aquáticos; 3) o ar em suas


várias manifestações, e os seres alados; 4) o fogo sob a forma de luz e calor, compreendendo todos os
astros.
Essa correspondência temática entre o discurso platônico acerca da origem do mundo e a
classificação das isotopias da natureza no universo poético das autoras nos faz lembrar uma afirmação de
Todorov (1976, p. 128) acerca da aproximação estrutural entre textos líricos e filosóficos: “No plano da
organização dos discursos, o poema lírico partilha certas propriedades com os enunciados filosóficos;
outras, com a prece ou a exortação.” Ao lado dos aspectos formais apontados pelo crítico, a relação
temática entre poesia e filosofia é irrefutável, razão por que Bachelard e Platão discutem a matéria
primordial com que a poeta norte-americana e a brasileira moldaram seus poemas – a terra. Corroborando
essa premissa sobre a relação entre filósofos e poetas, Emily Dickinson comenta seu fascínio por velhos
livros de filosofia: A Precious, mouldering pleasure ’t is (Que precioso prazer se reduz a pó) / To meet an
antique book (É encontrar um livro antigo) /... // What interested scholars most, (O que mais interessava
aos eruditos,) / What competitions ran (Que competições havia) / When Plato was a certainty, (Quando
Platão era uma certeza,) / And Sophocles a man... (E Sófocles um homem...).
O contato com os textos poéticos nos fez constatar a influência da filosofia de Emerson na obra de
Emily Dickinson, bem como relações temáticas entre seus ensaios e a poesia ceciliana. Fundador do
Transcendentalismo americano, de tendência panteísta, Ralph Waldo Emerson (1803-1882), pregou o
desprendimento das riquezas materiais e a comunhão entre o homem e a natureza, temáticas presentes na
lírica das autoras. Por essa razão, ao longo deste estudo, estabeleceremos também alguns paralelos entre as
idéias defendidas pelo filósofo e o assunto abordado em determinados poemas.
Em face da extensão da obra poética das autoras e da necessidade de um parâmetro numérico de
seleção, recorremos mais uma vez à concepção platônica acerca da origem do mundo. Em busca de
valores quantitativos que norteassem a leitura, percebemos que o número dois assume um papel
fundamental na cosmogonia da Antiga Grécia. Platão (2002d) vislumbra dois mundos: 1) o das idéias,
fonte de arquétipos incorpóreos e eternos; 2) o das formas sensíveis, locus das cópias imperfeitas e
transitórias. Aristóteles (2003) afirma que duas regiões distintas compõem o universo: a sublunar,
formada pelos quatro elementos, caracterizada por movimentos circulares e descontínuos; a supralunar,
formada pelo éter, caracterizada por movimentos circulares e contínuos. Geometria e simetria exercem
um papel fundamental na ciência, na filosofia e na arte gregas, ditando o padrão de beleza, harmonia e
perfeição.

11
Incluímos todos os minerais na isotopia da terra, contrariando a orientação de Platão, que vincula alguns à água.
3021

Devido à importância do número dois para a cosmologia grega, adotada como critério para
classificação das imagens da terra, tomamos esse valor como indicativo numérico para a pesquisa12.
A princípio, analisaremos, então, dois poemas de cada autora nos quais predomine a isotopia da terra.
Para essa análise e para a publicação no site, serão selecionados poemas curtos, cujo vocabulário e
estruturas sintáticas correspondam ao nível de conhecimento dos nossos alunos do ensino médio.
Pretendemos evitar que ao primeiro contato com o poema surjam dificuldades básicas de compreensão
da linguagem que possam reduzir a motivação, criando um obstáculo para estudos posteriores.
Precisávamos ainda de um fator quantitativo para uma escolha mais ampla de poemas que
permitissem uma visão panorâmica da representação da natureza em Emily Dickinson e Cecília
Meireles. Como em 2001 comemoramos o centenário do nascimento de Cecília Meireles, pretendemos
selecionar aleatoriamente13 cem poemas de cada poeta para identificação de isotopias e imagens
recorrentes. Nosso último passo será um estudo comparativo entre a poesia de Emily Dickinson e a de
Cecília Meireles a fim de estabelecer pontos de contato e divergência sobre a temática da terra na
representação da natureza.

As imagens da terra serão analisadas nos capítulos 1 e 2, sobre a poesia de Cecília Meireles e
de Emily Dickinson, respectivamente; o estudo comparativo será elaborado no capítulo 3; questões
sobre informática, leitura e ensino de poesia, bem como a descrição do site na Internet serão incluídas
no capítulo 4. Ao longo da tese, as citações de obras em prosa ou verso consultadas em Inglês serão
traduzidas a fim de tornar mais democrático o acesso ao texto, embora saibamos que “a poesia é uma
constante lembrança de todas as coisas que só podem ser ditas em uma língua, e que são
intraduzíveis” (ELIOT, 1972, p. 39).

A partir da leitura do ensaio de Thackrey (1963, p. 51) sobre Emily Dickinson, o qual se inicia
com uma referência ao Evangelho de São João (“No princípio, era o verbo.”), nos ocorreu preceder
os capítulos com epígrafes extraídas do Gênesis sobre o elemento terra.

Essa aproximação entre filosofia e poética nos autoriza a imaginar o poeta um alquimista que
combina signos e imagens, estruturas e sons para obter um raro elixir – o efeito poético. Se para
Emerson (1974, p. 1277), “a Arte é a natureza filtrada no alambique do homem”, como professores,
assumimos o desafio de destilar as palavras poéticas e partir com os alunos em busca dos segredos da
poesia. A exemplo dos químicos do século XVIII, ora com olhar de cientista, ora com imaginação de
filósofo, manipulamos o poema, nosso “frasco dos quatro elementos”14, à procura das imagens da terra.

12
Os estudos de Filosofia posteriormente desacreditaram a noção de número (BACHELARD, 1990, p. 10).
13
Para o sorteio dos poemas usamos uma rotina de programação (Apêndice).
14
Frasco usado no século XVIII para ilustrar a diferença de densidade entre as substâncias, mediante a ordem em que nele se
depositavam (BACHELARD, 1997, p. 98).
31

Se nossa proposta para leitura de poesia no ensino médio parece utópica, é porque a escrevemos com a
matéria dos sonhos, pois como nos ensina Bachelard (1999, p. 34), “só se pode estudar o que
primeiramente se sonhou”.
32

Deus disse:
“Que as águas que estão
debaixo do firmamento
se ajuntem num mesmo lugar,
e apareça o elemento árido.”
E assim se fez.
Deus chamou ao elemento árido TERRA,
e ao ajuntamento das águas MAR.

Gênesis 1, 9-10.
33

1. A REPRESENTAÇÃO DA TERRA NA POESIA DE EMILY DICKINSON


_______________________________________________________________________________
_____

Diz Platão que a atividade criadora do Demiurgo ativou as propriedades dos quatro elementos
contidos no receptáculo. A terra esférica e indissolúvel fora, então, gerada a partir da combinação de
partículas elementares15 do fogo, do ar, da água e da terra na forma de triângulos planos, as quais deram
origem a poliedros regulares, respectivamente: a pirâmide, o octaedro, o icosaedro e o cubo. A
diferença entre essas figuras acarretou o movimento irregular, que determinou a separação dos quatro
elementos, responsável pelo estado de equilíbrio anterior à organização do cosmos. No universo16
eterno que a filosofia platônica criou, nada é completamente estável, pois o movimento é inerente até
mesmo à matéria primordial de que tudo se origina.
Platão tenta conciliar a concepção heraclitiana de que o mundo está sujeito ao devir com a
filosofia eleata17 de que o ser é imutável. Essa dualidade perpassa a Teoria das Idéias, segundo a qual o
Demiurgo usou o simulacro, elemento pré-existente, para criar o universo sensível e mutável a partir da
contemplação de modelos eternos e estáveis. A alma do mundo e a alma do homem18, criadas sob os
mesmos princípios, contêm o divino e o mortal, são dotadas de movimento e possuem função motora.
A vida humana, submetida à influência da alma e da matéria19, realiza-se, portanto, sob a dicotomia da
permanência e da mudança. O movimento é o elo entre o mundo e a divindade, “a prece da matéria, a
única língua falada por Deus” (GASQUET apud BACHELARD, 2001b, p. 57).
Ao vincular a poesia ao sonho, Bachelard (1977, p. 4) relaciona o homem aos quatro elementos
que, segundo Platão (2001, p. 24), são os constituintes básicos do mundo e da natureza humana: “Mais
ainda que os pensamentos claros e as imagens conscientes, os sonhos estão na dependência dos quatro

15
O reconhecimento de que a massa é uma forma de energia eliminou da ciência o conceito de substância material básica.
Segundo a moderna teoria quântica, o universo é formado por partículas elementares, interligadas, em constante movimento.
Tais partículas subatômicas, interdependentes e inseparáveis, não são formadas por qualquer componente material: são
padrões de energia (CAPRA, 1983, p. 233, 245).
16
Os estudiosos da cosmologia acreditam que o universo surgiu há aproximadamente dez milhões de anos quando a
totalidade de sua massa explodiu a partir de uma pequena bola primitiva de fogo (CAPRA, 1983, p. 152).
17
Eleata: (adj.) Relativo à escola filosófica de Eleia. Eleatas: (s.) Filósofos da antiguidade grega cujos principais
representantes foram Xenófades, Parmênides e Xenão de Eleia. Atribuíam o absoluto ao Ser uno, imutável e eterno, negando
o movimento. O Eleatismo só admitia duas espécies de conhecimento: o que provém dos sentidos e é apenas ilusão, e o
que provém do raciocínio e é o único verdadeiro.
18
Segundo Platão (2001, p. 32), a alma é formada pela combinação das essências do Mesmo, indivisível e idêntico; do Outro,
divisível e mutável; e da Substância, síntese do Mesmo e do Outro. É racional e percebe tanto o reino estável das Idéias
quanto os fenômenos passageiros da matéria, agindo sobre ambos. A alma do mundo é responsável pelo movimento celeste,
relacionado ao princípio do Mesmo, e pelo movimento dos planetas, relacionado ao princípio do Outro (PLATÃO, 2001, p.
32).
19
A matéria sensível, criada pelo Demiurgo a partir do paradigma eterno, é regida pelas leis matemáticas da forma e do movimento e está
sujeita ao devir.
34

elementos fundamentais.” Os espíritos biliosos20, os melancólicos, os pituitosos21 e os sangüíneos


encontram a matéria do sonho no elemento que os caracteriza: fogo, terra, água e ar. Como Platão
afirma no Timeu (2001, p. 24), os princípios da ordem que rege o mundo aplicam-se também aos
homens, assim os biliosos sonham com fogo, incêndios, guerras, assassinatos; os melancólicos, com
enterros, túmulos, espíritos, fugas; os pituitosos sonham com lagos, rios, enchentes, naufrágios; os
sangüíneos, com vôos de pássaros, corridas, festas, concertos.
Para Bachelard (1977, p. 5) a experiência onírica antecede tanto a contemplação quanto a
produção estética, logo cada um desses elementos determina as imagens de uma cosmologia poética
que emerge de “um sentimento humano primitivo, uma realidade orgânica primordial, um
temperamento onírico fundamental”. Como se lê em Crítias (2001, p. 156), todo discurso é imitação ou
representação, seja das “coisas celestes e divinas”, seja “do que é mortal e humano”.
A cada um dos quatro elementos devotam-se poetas fiéis às imagens materiais do fogo, da
terra, da água e do ar. Instaura-se, então, um paralelismo entre o microcosmo e o macrocosmo: de um
lado, o homem, sua imaginação, sua arte; de outro, o universo, o mundo, a natureza. Considerando-se a
Teoria das Idéias22, podemos supor que a poesia, que torna inteligível o sonho, é uma leitura mítica da
natureza, uma criação apenas provável ou verossímil, pois exprime o sensível e o instável. Nas
palavras de Bachelard (1977, p. 11), “é necessária a união de uma atividade sonhadora e de uma
atividade ideativa para produzir uma obra poética. A arte é natureza enxertada”.

A poesia da terra, segundo Bachelard (ibidem, p. 8), é regida pela dialética do duro e do mole,
determinada pela constante resistência da matéria a que alude Platão no diálogo Timeu23. Entre as
imagens da dureza, o filósofo francês inclui, por exemplo, a árvore, o rochedo, a montanha, o ferro;
entre as da maleabilidade, a lama, o barro, a massa. Do verde da terra, brotam duas formas de
vegetalismo: o mole, que caracteriza a fragilidade dos galhos, a maciez da grama, a carícia das
ramagens; o duro, que dá forma às árvores de grande porte, de cujos troncos eretos ou retorcidos partem
galhos frondosos.
A dureza produz inúmeras imagens em torno de valores morais e formas da natureza. A
imagem de uma árvore secular, por exemplo, guarda a resistência às intempéries e a retidão de caráter.

20
Hipócrates, na Grécia Antiga, associava o excesso de bile negra à melancolia; Aristóteles a relacionava não somente à
tristeza, mas também à inclinação para a arte e para a filosofia.
21
Segundo Hipócrates, a saúde advinha do equilíbrio entre quatro substâncias produzidas pelo organismo: a bile negra, a bile
amarela, o sangue e a pituíta. O excesso de pituíta determinaria problemas de saúde e de humor.
22
Na Teoria das Idéias, Platão apresentou duas teses: 1) a da existência do mundo das formas inteligíveis, eternas e
detentoras do ser, e do mundo das formas sensíveis, instáveis e sujeitas ao devir; 2) a de que o mundo sensível seria uma
imagem ou cópia do mundo das idéias.
23
Duro é o nome que se dá a tudo aquilo a que nossa carne cede, e mole, o que cede ao contato de nossa carne. As mesmas
expressões se aplicam aos objetos em suas relações recíprocas; cedem os que têm base pequena; as figuras constantes de
quatro faces e dotadas de base firme são as mais resistentes, e porque contraídas ao máximo, extremamente rígidas
(PLATÃO, 2001, p. 107).
35

Sua verticalidade é um exemplo a ser imitado. À sombra de uma mangueira, o homem encontra solidez
e proteção. Em seu tronco, reside a possibilidade de todas as formas, pois a madeira é uma matéria
fértil de sonhos. Sua copa guarda a leveza do vôo no movimento da folhagem; em seu vegetalismo,
sentimos a liberdade dos pássaros. Suas raízes são um exemplo de solidez, um alento à efemeridade do
mundo.
A terra, enquanto matéria mole, sugere a maleabilidade e o prazer da criação que o tato
propicia. Uma alegria natural surge do gesto da mão que molda com a substância dócil os devaneios da
imaginação. Na terra informe, o poeta encontra um bálsamo para as inquietudes do espírito, para sua
ânsia de imagens traduzíveis em palavras.
Na lentidão da terra, repousa a fecundidade morna de que se originam as metáforas da
permanência, a ilusão do tempo adormecido, a possibilidade de envelhecer lentamente como as árvores.
Em seu âmago, o poeta encontra um refúgio para a fugacidade de tudo – as imagens de solidez e
duração (BACHELARD, 2001a, p. 72-73).
A terra é a paisagem da vida, sua seiva alimenta frutos e flores; suas entranhas guardam gemas
e minérios; em sua superfície, habitam homens e animais; em sua quietude, escondem-se água e fogo.
É a mãe das espécies, cujo calor fecunda os ovos e as sementes, cujas cores compõem as imagens das
árvores, dos animais, das colinas. Da terra brotam alguns elementos de que se nutre a poesia: a
quietude dos prados, o silêncio dos desertos, a solidão das montanhas.
Em Emily Dickinson, certas imagens da terra guardam da cosmologia platônica as noções
de perfeição e equilíbrio que refletem a plenitude da divindade e a harmonia entre forças
antagônicas, porém complementares: “Nay – Nature is Harmony –”. Ordenada pela mão do
criador, a terra renova-se na dinâmica de seus ciclos, no eterno retorno de suas estações, na
seqüência dos dias e das noites, no fluxo infinito de nascimento e morte: To venerate the simple days
(Para venerar os dias simples) / Which lead the seasons by, (Que levam as estações,) / Needs but to
remember (Só basta lembrar) / That from you or I, (Que de mim e você,) / They may take the trifle
(Eles talvez levem a bagatela) / Termed mortality! (Chamada mortalidade!)

Emily Dickinson revela uma assustadora consciência existencial, ora questionando os dogmas
da fé ora ridicularizando o sentimentalismo fácil. Segundo VanSpanckeren (1994, p. 34-35), sua poesia
é hoje um elo entre as concepções de sua época e a sensibilidade literária da virada do século. Celebra a
vida simples e canta a terra com grande senso de humor: If she had been the Mistletoe (Se ela fosse a
Erva-de-Passarinho) / And I had been the Rose – (E eu fosse a Rosa –) / How gay upon your table
(Quão alegre em sua mesa) / My velvet life to close – (Minha vida aveluda se fecharia –). Seus poemas
36

são um testemunho do quanto ela observava e amava plantas e animais com naturalidade e alegria
(Aiken, 1963, p. 13).
Reclusa, por temperamento e hábito, durante anos, recusou-se a sair para o jardim da própria
casa, e por muito tempo, seus passeios se restringiram a caminhadas pela propriedade de seu pai.
Voltou-se, então, para a natureza, cuja força e harmonia retratou em seus poemas. Tímida e solitária,
escreveu versos em profusão e alguns dos melhores poemas da Literatura Norte-americana do século
XIX, que têm fascinado o público desde sua redescoberta nos anos 50 (VANSPANCKEREN, 1994, p. 35).
Seu percurso lírico realiza, no universo da poesia, o ideal de Descartes (2002, p. 60) - desvendar os
segredos do mundo a partir do conhecimento dos seres mais simples da criação:
conhecendo a força e a ação do fogo, da água, do ar, dos astros, do céu e de todos os demais corpos

que nos cercam, tão distintamente quanto conhecemos os diversos misteres dos nossos artífices,

poderíamos empregá-los igualmente a todos os usos para os quais são próprios, e desse modo nos

tornar como que senhores e possuidores da natureza.

Com as imagens da natureza, construiu para si uma vida isolada da sociedade – o mundo da poesia,
feito de flores, pássaros, rios, vales e montanhas. Em seu refúgio, teceu animais, plantas, o humano e o
divino nas linhas do poema (REEVES, 1963, p. 118).

Através de certas imagens da terra, a poeta explora, como Edgar Allan Poe e outros românticos,
o lado sombrio da mente, dramatizando a morte. Nessas composições, o perfume das plantas, por
exemplo, é um bálsamo para os vivos e os cadáveres: Of Sycamore – or Cinnamon – (Plátano – ou
Cinamono –) / Deposit in a Stone (Depositado em um Túmulo) / And put a Stone to keep it Warm –
(Sob uma Lápide Aquecido –) / Give Spices – unto Men – (Perfuma – os Homens –). Aiken (1963, p.
15) comenta que morte e eternidade foram uma obsessão na poesia de Emily Dickinson, que parece ter
morrido toda a vida e diariamente vivenciado a morte.

Individualista, assume óticas surpreendentes acerca de uma infinidade de temas – alguns


abstratos como o amor, a esperança, a vitória; outros concretos como a flor, a pedra, a cobra: On silver
matters charmed a Snake (Em prata encantada uma Cobra) / Just winding round a Stone – (Só
enroscando-se ao redor de uma Pedra –) // Bright Flowers slit a Calyx (Flores Brilhantes rasgam o
Cálice) / And soared upom a Stem (E pairam sobre o Caule). Tendo morado todo o tempo em uma
pequena cidade de Massachusetts, sua poesia jamais foi limitada pelos valores daquela sociedade
teocrática e paroquial (REEVES, 1963, p. 118).
37

Educada para ser cristã praticante e esposa devotada, sua personalidade original não a deixou
cumprir tais estereótipos, levando-a a contestar tanto o Puritanismo24 de inspiração calvinista25 quanto o
papel da mulher em seu tempo. Como Descartes, não quis subordinar a razão ao que lhe “fora
inculcado apenas pelo exemplo e pelo costume” (DESCARTES, 2002, p. 26). Em meio às imagens da
fauna e da flora, a poeta ora questiona a fé inabalável ora aceita a promessa de eternidade: And “Jesus”!
Where is Jesus gone? (E “Jesus”! Para onde foi Jesus?) / They said that Jesus – always came –
(Disseram que Jesus – sempre vinha -); So much of Heaven has gone from Earth (Tanto do Paraíso
saiu da Terra) / That there must be a Heaven (Que deve haver um Paraíso) / If only to enclose the
Saints (Pelo menos para abrigar os Santos) / To Affidavit given (Pela Garantia dada). Allen Tate, em
ensaio sobre a autora e sua relação com o Puritanismo (1963, p. 27), afirma que Cotton Mather26 a teria
condenado à fogueira como bruxa.
Em 1854, após alguns anos de relutância, Emily Dickinson decidiu não se converter, embora
continuasse indo esporadicamente à igreja até 1860, ano em que resolveu isolar-se da religião e do
mundo. Spiller (1967, p. 126) acredita que sua liberdade de pensamento, provavelmente instigada pela
leitura de Emerson27, a fez questionar a fé e recusar as bênçãos da conversão cristã para encontrar seus
próprios valores e convicções. Sua opção em abandonar o credo protestante muitas vezes é o terreno
sobre o qual se delineia a paisagem: Which is best? Heaven – (O que é melhor? o Céu –) /Or only
Heaven to come (Ou apenas o Céu do porvir) / With that old Codicil of Doubt? (Com aquele velho
Codicilo de Dúvida?) / I cannot help esteem (Não posso estimar) / The ‘Bird within the Hand’ (O
‘Pássaro na Mão’) / Superior to the one (Superior ao que) / The ‘Bush’ may yield me (Ao que o
‘Arbusto’ me dará) / Or may not (Ou talvez não) / Too late to choose again (Tarde demais para
escolher novamente).
Ao buscar a solidão e o anonimato, certamente experimentou o mesmo silêncio que se escuta
em algumas composições: There is no Silence in the Earth – so silent (Não há Silêncio algum na Terra

24
Puritanismo: Doutrina extremamente rigorosa quanto ao sentido literal das Escrituras. Na Inglaterra, seus adeptos
envolveram-se na revolução de 1648, tendo sido perseguidos pelos Stuarts, motivo por que muitos imigraram para a América.
Os Puritanos, influenciados pelo Calvinismo, acreditavam que o ser humano era basicamente mal e estava condenado à
punição eterna, a menos que abdicasse de todo prazer, devotando sua vida a religião, sobriedade, trabalho e economia. Tais
valores, através de livros, cartas e sermões, foram transmitidos, de geração em geração, aos imigrantes ingleses que se
fixaram na América.
25
Calvinismo: Sistema religioso criado por João Calvino (1509-1564) e que se difundiu principalmente na Suíça, Holanda e
Escócia. O Calvinismo difere das outras doutrinas protestantes nos seguintes pontos: atribuição da origem democrática à
autoridade religiosa; supressão completa das cerimônias; dogma da predestinação; redução dos sacramentos ao batismo e à
eucaristia.
26
Cotton Mather, famoso clérico puritano do séc. XVII, escreveu mais de 450 textos advogando os ideais do Puritanismo,
inclusive, o trabalho árduo.
27
Pouco antes de Emily Dickinson abandonar o seminário e recusar a conversão ao Puritanismo, Emerson havia publicado o
ensaio Autoconfiança no qual se lê: Aquele que ambiciona ser um homem precisa ser um dissidente. (...) Enfim, nada é
sagrado, a não ser a integridade de nossa própria mente. (...) Lei alguma pode ser sagrada para mim, a não ser a lei de
minha natureza. Bom e mau são apenas nomes transferíveis imediatamente a isso ou àquilo; a única coisa correta é a que
está em harmonia com minha constituição, a única coisa errada, a que está contrária a ela.” (EMERSON, 2003, p. 57).
38

– tão silencioso) / As that endured (Quanto aquele suportado) / Which uttered, would discourage
Nature (Que proferido, desencorajaria a Natureza) / And haunt the World (E assombraria o Mundo).
Para a persona poética, o maior silêncio sobre a terra é o que se entranha na alma e cujo vazio consome
as palavras.
Preferiu escrever versos sobre a paisagem a dar ouvidos às imposições do mundo em sua volta.
Ciente das relações poéticas entre as palavras, resistiu à retórica fria e à emoção falsa (FAUSTINO, 1977,
p. 86). Soube colorir o estilo com a vida, descobrindo, nas imagens da terra, a raiz mais profunda de
toda poesia: ‘Lethe’ in my flower, (‘Letes’28 em minha flor,) / Of which they who drink (Do qual
aqueles que bebem) / In the fadeless orchards (Nos pomares eternos) / Hear the bobolink! (Ouvem o
triste-pia!) // Merely flake or petal (Meramente floco ou pétala) / As the Eye beholds (Como o Olho
contempla) / Jupiter! my father! (Júpiter! meu pai!) /I perceive the rose! (Percebo a rosa!).
Fiel ao estilo lírico, traduziu em imagens, sentimentos e emoções que sua imaginação e a
natureza em torno da casa paterna lhe sugeriam: I tend my flowers for thee – (Cultivo minhas flores
para ti –) / Bright Absentee (Ilustre Ausente)!// Globe Roses – break their satin flake – (As Rosas
Carnudas – partem seus flocos de cetim –) / Upon my Garden floor – (No chão do meu Jardim –). O
cenário natural nos arredores de Amherst, como uma cortina espessa, abafava os sons da realidade e
encobria o mundo além do horizonte. Eis por que sua poesia escapou quase ilesa29 da Guerra Civil do
início dos anos de 1860, por sinal, um período bastante fértil em sua produção poética (BODE, 1988, p.
91). Longe do conflito, a poeta certamente encontrou na paisagem um bálsamo para aquela época de
incertezas. Sem envolver-se com as questões políticas, embora jamais alheia às angústias de seu tempo,
pôde escrever, segundo High (1993, p. 75), com a liberdade de quem viveu além do presente.
Seus poemas sobre a terra têm uma extraordinária delicadeza e brevidade, contudo, algumas
vezes são superficiais; apenas um encontro casual com plantas ou animais, apenas a revelação de um
sutil prazer: She slept beneath a tree – (Ela dormia embaixo de uma árvore –) / Remembered but by
me. (Lembrada apenas por mim.) / I touched her Cradle mute – (Toquei seu berço silencioso –) / She
recognize the foot – (Ela reconheceu meu pé –) / Put on her carmine suit (Colocou seu traje carmim) /
And see! (E me vê!). Outros textos parecem ritos de aplacação das forças destrutivas da terra – morte e
sensibilidade – um alívio do medo e do êxtase (REEVES, p. 120): I never felt at Home – Below – (Nunca
me senti em Casa – aqui embaixo -) /... // Because it’s Sunday – all the time – (Porque é Domingo –
todo o tempo –).

28
Na mitologia, o Letes é um dos rios do inferno, cujo nome significa esquecimento. As sombras dos mortos bebiam suas
águas para esquecerem os males e os prazeres da vida terrestre. As águas do rio Ameles, por sua vez, fazem com que as
almas esqueçam tudo sobre a eternidade antes de regressarem à terra.
29
Em suas composições datadas do início dos anos de 1860, há breves referências a lutas armadas, por exemplo: Bold as a
Brigand! (Ousado como um Salteador!) / Stiller than a Fleet! (Mais sereno que uma Esquadra!); A brief Campaign of sting
and sweet (Uma breve Campanha de dor e delícia) / Is plenty! Is enough! (É demais! É bastante!).
39

Dentre as flores sobre as quais escreveu, dedicou vários poemas à rosa, sua flor predileta.
Na opinião de Ferlazzo (1971, p. 118), muitas dessas composições são textos sentimentais em tom
convencional. Imagens de flores, na verdade, constituem um lugar-comum na literatura, expondo a
fragilidade de tantos poetas que buscam seus matizes. Em O Ar e os Sonhos, Bachelard (2001b, p. 3.)
as inclui entre as imagens tradicionais e afirma que, embora “tão importantes no herbário dos poetas”,
dão apenas um colorido às descrições, pois “perderam seu poder imaginário’.
Na poesia de Emily Dickinson, algumas flores guardam o frescor das imagens inovadoras que
não se confundem com os desenhos da tradição. A intimidade entre o zangão e a rosa, por exemplo, é
uma alegoria para o comportamento sexual masculino e a repressão à sexualidade feminina: A Bee his
burnished Carriage (Um Zangão em sua Carruagem lustrosa) / Drove boldly to a Rose – (Dirigiu-se
ousadamente à Rosa –) / (...) Their Moment consummated – (Seu Momento consumado –) / Remained
for him – to flee – (Restou a ele – fugir –) / Remained for her – of rapture (Restou a ela – do êxtase) /
But the humility (Apenas a humilhação). Mas como para a poesia de Emily Dickinson confluem tantos
paradoxos, à fragilidade das rosas e das flores opõe-se a resistência do cacto, a que a poeta se refere no
feminino: My Cactus – splits her Beard (Meu Cacto – afasta sua Barba) / To show her throat (Para
mostrar sua garganta –). Originalidade e audácia, segundo Reedes (1963, p. 124), marcam suas idéias
e sua linguagem.
Na simplicidade da temática da terra e na abordagem aparentemente banal da paisagem, estão
presentes incertezas que lhe atordoaram a existência e hoje ainda consomem a humanidade: So has a
Daisy vanished (Então uma Margarida desapareceu) / From the fields today – (Dos campos hoje –) /
So tiptoed many a slipper (Então muitos na ponta dos pés, de chinelos) / To Paradise away – (Partiram
para o Paraíso –). Através de metáforas e alegorias, ao cantar a natureza, Emily Dickinson considera a
fugacidade da vida, o amor impossível, a morte inexorável.
Na quietude do jardim, a poeta tantas vezes encontra uma metáfora para questões espirituais ou
éticas acerca das quais a religião e a moral de sua época não lhe forneceram respostas: I keep my
pledge. (Mantenho meu voto.) / I was not called– (Não fui chamada –) / Death did not notice me. (A
Morte não me viu.) / I bring my Rose. (Trago minha Rosa.) / I plight again, (Prometo novamente,) / By
every sainted Bee – (aos pés de cada santa Abelha –). Tomando as imagens da terra como um pretexto,
traça especulações metafísicas acerca do sentido da vida e da promessa de eternidade: Saints, with
ravished slate and pencil (Santos, com lousas e lápis arrebatados) / Solve our April Day! (Solucionam
nosso Dia de Abril!) // Modest, let us walk among it (Modestos, caminhemos nele) / With our faces
veiled – (Com nossas faces encobertas –) / As they say polite Archangels (Como dizem que Arcanjos
educados) / Do in meeting God! (Fazem ao se encontrarem com Deus!).
40

No poema seguinte, a poeta capta as cores rosa e marrom de que se revestem as árvores, e a
tonalidade dos montes nos arredores de sua cidade, ora cobertos de vegetação ora desertos. A poesia se
debruça sobre o curso contínuo dos dias, sobre a fugacidade da paisagem, sobre o tempo que semeia
mudanças:
Frequently the woods are pink –
Frequently are brown.
Frequently the hills undress
Behind my native town.
Oft a head is crested

I was wont to see –


And as oft a cranny
Where it used to be –
And the Earth – they tell me –
On its Axis turned!

Wonderful Rotation!

By but twelve performed!

O poema é a expressão da poesia mais pura e pessoal com que Emily Dickinson descrevera a
natureza como se a visse pela primeira e última vez. Seu olhar ingênuo devolve à paisagem da
América do século XIX o frescor que as chaminés das fábricas e máquinas a vapor lhe haviam furtado
(HIGH, 1993, p. 74). Escrito por volta de 1858 e publicado pela primeira vez em 1891, o poema em
versos heterométricos, como tantos outros de Emily Dickinson, se antecipa à revolução poética do
século XX. A criação de uma poesia que questionasse a realidade e o próprio cânone literário foi o
que propôs, entre outros, Maiakovski em 1926, no tratado Como fazer versos?: “O poeta precisa
encontrar seu caminho numa pesquisa livre e desimpedida, isenta de preconceitos e de compromissos
com a tradição. O grande poeta descobre estruturas e ritmos novos, inicia uma poesia nova” (PEIXOTO,
1978, p. 169).
O estrato gráfico revela o emprego inusitado de maiúsculas e travessões – uma marca da poesia
de Emily Dickinson (VANSPANCKEREN, 1994, p. 35) que intensifica o caráter icônico dos signos. A
exemplo dos hinos de Watts30, as letras maiúsculas particularizam sememas que aludem ao tema
central da composição. No poema, os termos grafados com inicial maiúscula pertencem ao mesmo
campo semântico (Earth, Axis, Rotation) e traduzem o sentimento de inconstância diante do mundo.
Observa-se também o emprego “idiossincrático do travessão” que, para alguns críticos, corresponde à
notação musical” (DAGHLIAN, 1985, p. 163).
30
Isaac Watts (1674-1748), criador do moderno hino inglês, caracterizado pela melodia, brevidade e unidade temática; autor
de hinos famosos, ainda apreciados até hoje. Nos três hinários usados por Emily Dickinson nos anos em que freqüentou a
igreja predominam as composições de Watts, considerado um inovador na época (DAGHLIAN, 1985, p. 165).
41

Além da métrica irregular, o emprego das rimas não obedece a um modelo pré-fixado nem
adota um mesmo padrão ao longo do poema. Segundo Daghlian (1985, p. 165), o uso de rimas
imperfeitas, que se observa no poema, foi uma das técnicas formais que Emily Dickinson adotou a
partir do contato com hinos religiosos. Há versos de sete (Frquently the woods are pink –), seis (Behind
my native town.), cinco (I was wont to see –) e quatro sílabas (On its Axis turned!), e rimas
emparelhadas (be, me), toantes31 (undress, crested), alternadas e soantes32 (brown, town). Reeves (1963,
p. 123) comenta que Emily não se sentia compelida a encontrar rimas perfeitas, empregando a
assonância como recurso para inovar tanto a melodia quanto o ritmo.

O poema faz da natureza um objeto de contemplação estética, procedimento que, segundo


Schopenhauer (apud BACHELARD, 1997, p. 30), por um instante liberta o homem da infelicidade e do
drama da vontade. Diante da “hostilidade da matéria”, que não se molda segundo o devaneio
(BACHELARD, 2001a, p. 46), resta à persona poética contemplar a vegetação. As imagens da terra
representam o mundo múltiplo e mutável em que, segundo a metafísica aristotélica33, cada um
atualiza suas virtualidades devido à atuação de outro ser (ARISTÓTELES, 2003, p. 145-146). A
inconstância da natureza, que se opõe ao desejo de permanência, é singularizada nos matizes da
paisagem que surgem e desaparecem com as estações. Recusando-se a aceitar como Heráclito34 o
contínuo devir de todas as coisas no mundo sensível, a poeta parece adotar as idéias de Parmênides35,
que via uma contradição entre a noção de ser e o movimento (PLATÃO, 2002b, p. 29).
O acoplamento dos três versos iniciais determina uma correspondência entre aspectos sintáticos
e semânticos que conferem uma maior unidade ao poema. Faz com que a poesia permaneça na
memória do leitor, assegurando-lhe uma qualidade duradoura (LEVIN, 1975, p. 14). Esse paralelismo
léxico-sintático intensifica o ritmo da repetição, princípio unificador da poesia, ao mesmo tempo em
que relaciona construções equivalentes do ponto de vista semântico (D’ONOFRIO, 2000, p. 24).
A repetição da estrutura sintática construída em torno do advérbio frequently (freqüentemente),
seguido do sintagma nominal (the woods – as matas), claro no primeiro verso e elíptico no segundo,
caracteriza o acoplamento, o qual anuncia a idéia de que a terra está sujeita a mudanças constantes.

31
A rima toante consiste na reiteração vocálica a partir da última vogal forte dos versos.
32
A rima soante se realiza como uma homofonia ou reiteração total a partir da última vogal forte dos versos.
33
Platão tenta conciliar a concepção de Heráclito com a da filosofia eleata, que afirma que o ser é imutável. No diálogo
Sofista, renova a noção de não-ser, entendendo-o não como o nada ou como o vazio: o não-ser seria o outro, a alteridade que
sempre complementa o mesmo, a identidade.
Aristóteles substitui a concepção unívoca de ser pela concepção analógica, que lhe permite fazer uma distinção fundamental:
ser não é apenas o que já existe, em ato; ser é também o que pode ser, a virtualidade, a potência (ARISTÓTELES, 2003, p.
143-144).
34
Heráclito, filósofo grego da escola jônica, nascido em Éfeso (576-480 a.C.).
35
Parmênides de Eléia, filósofo grego, nascido por volta de 540 a.C. No seu poema Da Natura, o universo é eterno, uno,
contínuo e imóvel.
42

Ainda nos dois versos iniciais, observa-se o paralelismo das construções em torno da forma
verbal (are - estão) e de um adjetivo relativo à cor (pink - rosa, brown - marrom), cuja proximidade
espacial e equivalência sintático-semântica intensificam o tom efêmero da paisagem.
A presença do advérbio oft (freqüentemente) no quinto e no sétimo versos corrobora o caráter
cíclico da natureza, singularizada nos montes que se cobrem ou se despem de plantas: And as oft a
cranny (E tão freqüentemente uma fissura), Oft a head is crested (Freqüentemente um cume verde).
Nota-se ainda a repetição do mesmo padrão sintático em oft a cranny e oft a head, em que após o
advérbio há um artigo indefinido e um substantivo (a cranny – uma fissura; a head – um cume).
Um outro paralelismo delineia-se nos versos sexto e oitavo a partir das expressões wont to see
(acostumado a ver) e used to be (costumava haver), em que ocorrem equivalências sintáticas (to +
infinitivo), semânticas (wont – acostumado; used – costumava) e fônicas (a rima em /i:/). Essa
repetição intencional de padrões enfatiza a vulnerabilidade da natureza diante do tempo, cuja ação
determina seus matizes e sua tessitura.
O poema realiza, portanto, a superposição de estruturas sintáticas, semânticas e fônicas, ilustrando a singularidade do discurso poético enquanto
linguagem debruçada sobre si mesma. Ao contrário do discurso coloquial, cuja transparência facilita o fluxo da informação, o discurso poético é opaco e

intransitivo, pois seu objetivo não se subordina à comunicação, mas à produção de um efeito estético (LEVIN, 1975, p. 27).

A análise das associações semânticas é outro passo para revelarmos o caráter poético da
linguagem, cujos efeitos de sentidos, segundo Barthes (1970, p. 212-213) fazem do texto literário uma
obra aberta e atemporal:
Uma obra é ‘eterna’ não porque ela impõe um sentido único a homens diferentes, mas porque ela
sugere sentidos diferentes a um homem único, que fala sempre a mesma língua simbólica através
dos tempos múltiplos: a obra propõe, o homem dispõe.(...) A literatura é a exploração do nome (...);
pois, se as palavras tivessem somente um sentido, o do dicionário, se uma segunda língua não
viesse perturbar e liberar ‘as certezas da linguagem’, não haveria literatura. Eis por que as regras
da leitura não são as da letra, mas as da alusão: são regras lingüísticas, não regras filológicas.
(grifo nosso)

Considerando que “a isotopia é a unidade do plano do conteúdo dentro da variedade do plano da


expressão” (D’ONOFRIO, 2000, p. 37), verificamos que algumas linhas isotópicas cruzam-se ao longo
do poema. A isotopia da terra, em torno das palavras wood (mata), hills (montes), head (cume), crested
(coberto por vegetação), cranny (fissura) e earth (terra), se inscreve na temática do tempo que permeia
os versos. As matas, os montes e seus cumes mudam conforme os dias se passam: Wonderful
Rotation! (Maravilhosa Rotação!) / By but twelve performed (A cada doze realizada).
O verso Oft a head is crested, inclusive, encerra uma imagem singular, porque o vocábulo head
significa, conforme o contexto, cabeça ou cume; crested, cristado ou semelhante a uma crista é
também uma metáfora para coberto de vegetação. Emily Dickinson parece comparar o cimo do monte
a uma cabeça de galo cuja crista ora surge ora desaparece na paisagem, conforme a flora se revele ou
não.
43

Uma vez que, segundo Bachelard, “os cimos rígidos não são totalmente aéreos”, a imagem do galo
empoleirado no alto da colina, sugerida pelos vocábulos head e crested, traduz o desejo de vôo do
eu lírico ao acrescentar “uma asa à altura imóvel” (2001b, p. 215). A alusão a cumes cobertos de
vegetação revela, portanto, a necessidade de conquistar as alturas para libertar-se das amarras do
quotidiano. No “vegetalismo dos picos”, reside o onirismo da poesia que se nutre de uma
vida aérea (Behind my native town / Nos confins de minha cidade nativa), além do destino das raízes
fincadas na terra (2001b, p. 213).

Acerca desses devaneios da imaginação material, Bachelard (2001b, p. 260) afirma que “a
imagem literária nos mostra que a formação do duplo sentido é uma atividade lingüística normal e
fecunda”. Pontos de convergência entre as isotopias, as metáforas apontam diferentes percursos de
leitura. Seu jogo conceitual ilustra também a intraduzibilidade da linguagem poética a que nos
referimos anteriormente (ELIOT, 1972, p. 39).
A inconstância do mundo sensível perpassa a isotopia da terra, aliada ao sentimento da persona
poética de que o tempo tudo modifica. O poema nos remete a uma poesia não-ortodoxa,
aparentemente frágil e idiossincrática, mas cuja força poética nos deixa experimentar mais do que a
paisagem – a pura emoção das estações. Suas imagens nos ensinam que a natureza é paradoxalmente
eterna e efêmera: “o tempo da flor é o tempo dos seres provisórios” (BOSI, 2004, p. 223).
Emily Dickinson, que parece ouvir dos astrônomos a mesma lição que diariamente se estampa
na paisagem, a expressa no mais puro idioma da poesia: And the Earth – they tell me – (E a terra –
dizem-me –) / On its Axis turned! (Em seu eixo girou!). Essa idéia de que a rotação da terra determina
mudanças climáticas nos transporta a Platão, para quem o universo esférico36 girava uniformemente em
torno de si mesmo (2001, p. 43, p. 70), em cujo centro, a terra37, redonda e em equilíbrio, movia-se em
torno de seu eixo (2002c, p. 95).
No diálogo Timeu, Platão (2001, p. 73-74), diz que o demiurgo compôs o tempo, “imagem
eterna que se movimenta de acordo com o número” a fim de tornar a terra mais próxima do modelo
imaterial regido pela eternidade. Antes não havia “nem dias nem noites nem meses nem anos” apenas
o universo imutável, sempre idêntico. Mas o tempo se fez e nada permanece estático na natureza: as
florestas mudam de cor, a vegetação cobre os montes, depois os desnuda, o solo antes viçoso se abre
em rachaduras. Tudo é movimento, pois a natureza inserida no tempo submete-se a mudanças.
Duas outras isotopias delineiam-se ainda no poema: a isotopia do movimento, que se nutre de
palavras como undress (despem-se), on its Axis (em seu eixo), turned (girou), Rotation (rotação); e a
isotopia do tempo, que se constrói em torno dos advérbios sinônimos - frequently e oft

36
A teoria da esfericidade do universo era também aceita pelos discípulos de Pitágoras.
37
Empédocles julgava a terra fixa e atribuía sua estabilidade ao girar do céu à sua volta.
44

(freqüentemente), e das expressões – was wont to (estava acostumado a), it used to (costumava), By
but twelve performed! (Porém a cada doze realizada!). O movimento determinado pelo curso
contínuo do tempo aproxima essas isotopias, cujos termos se tocam no breve espaço do poema, seja
no mesmo verso ou em versos contíguos: Frequently the hills undress (Freqüentemente os montes
se despem), Wonderful Rotation! (Maravilhosa Rotação!) / By but twelve performed! (Porém a
cada doze realizada!).

O sol e a lua alternam-se a cada doze horas, o tempo impõe o seu curso, a natureza se transforma a
cada doze meses, a terra é o território do devir: Where it used to be (Onde costumava haver), I was
wont to see (Eu estava acostumado a ver). A temática da passagem rítmica do tempo, segundo
Ferlazzo (1976, p. 48), marcada pelo intervalo de doze horas (Wonderful Rotation! / But by
twelve performed), correspondente a um círculo completo dos ponteiros do relógio, simboliza o final
de um ciclo, o nascimento ou a morte. No tempo exíguo do poema, caleidoscópio do
mundo real, “o repouso não passa de um bem efêmero” (BACHELARD, 2001b, p. 222), pois a
natureza morre e renasce, veste-se das mais variadas cores, desnuda-se em inúmeros tons, eterniza-
se em um movimento contínuo.
Ao contrário do que se observa em alguns poemas, em que a natureza imaginária se sobrepõe à real, nessa composição, a ação do tempo é vista como algo
natural, inerente à essência da própria terra. Tal postura da persona poética em face das mudanças operadas pelas estações se retrata no emprego do adjetivo
wonderful (maravilhosa) para qualificar a rotação: Wonderful Rotation. Aceitando as leis que regem a vida, o eu lírico parece compartilhar a concepção

aristotélica de que “a natureza é uma autocriação, e o ser potencial que nela atua é o movimento” (ARISTÓTELES, 2002, p. 15). Como

Joachim Grasquet (apud BACHELARD, 2001b, p. 57) podemos ouvir na rotação da terra a voz de Deus: “O movimento! Por
ele se exprime em sua ordem despojada o amor dos seres, o desejo das coisas. Sua perfeição une, anima tudo, liga a terra às nuvens...”

A efemeridade da existência é apenas um traço intrínseco da vida na terra, algo que unifica os
reinos animal, vegetal e mineral. Ao traduzir em palavras o caráter fugaz da paisagem, Emily
Dickinson se aproxima da pintura impressionista, que revela o movimento sutil da natureza em tons e
matizes fugidios. Sua poesia nos permite discordar, como Bachelard, dos que acreditam que “a tarefa
do escritor consiste em descrever aquilo que o pintor pintaria” (2001b, p. 207), no sentido de cópias fiéis
ou imagens estáticas da natureza.
Emily Dickinson certamente leu seus contemporâneos com os quais compartilhou uma posição
de vanguarda ao reiventar, ao seu modo, a linguagem da poesia. No final do século XIX, período em
que a Literatura Norte-americana descobria novas possibilidades estilísticas38, criou formas de
expressão poética que somente a partir de 1920 passariam a integrar a poesia iconoclasta e radical da
modernidade, insuscetível aos cânones da tradição. Sua obra nos revela a criatividade com que

38
Quando Emily Dickinson tinha vinte anos, Hawthorne publicou A Letra Escarlate, e saiu a primeira coletânea dos poemas
de Edgar A. Poe; em 1851, surgiu Moby Dick, de Herman Melville. Quando ela tinha vinte e quatro anos, Thoreau lançou
Walden; no ano seguinte, Whitman publicou Folhas da Grama (AIKEN, 1963, p. 11).
45

desenhou um universo complexo e passional a partir dos livros, alguns lidos às escondidas, das
conversas com raros amigos e do cenário natural de Amherst.
Quando começou a escrever poesia, mesmo com uma lacônica formação escolar, Emily
Dickinson conhecia a Bíblia, a mitologia clássica, Shakespeare, e obras de Emerson, Hawthorne,
Thoreau, Elizabeth Browning39 e das irmãs Brontë40. Diz ela em um poema: Unto my Books – so good
to turn – (Para meus Livros – tão bom voltar-me – ) / Far ends of tired Days – (Ao final de Dias
cansativos –) / ... // I thank these Kinsmen of the Shelf – (Agradeço esses parentes das estantes –). O
contato com a literatura, a religião e a filosofia, segundo Carl Bode (1988, p. 90-91), lhe chegara pelas
mãos de alguns professores e amigos que lhe apresentaram autores e livros.
O primeiro, Benjamin Newton, um jovem advogado que trabalhava com seu pai, estimulou seu
gosto pela literatura e pelas artes, além de lhe incutir idéias sobre religião. Seu segundo professor foi
Charles Wadsworth, um pastor casado, de meia-idade, com quem mantinha discussões intelectuais,
inclusive sobre temas contemporâneos. Acredita-se que Emily Dickinson nutria uma certa afeição por
ele, a qual não pôde ser correspondida, mas perdurou em muitos poemas. Thomas Higginson, com
quem Emily Dickinson se correspondia, era autor e crítico literário. Admirava seus poemas, mas os
julgava pouco convencionais para serem publicados, razão por que a aconselhou a suavizar seus ritmos
e adequá-los às regras da gramática.
Emily Dickinson felizmente ouviu o conselho de Emerson (2003, p. 58): “Aquilo que tenho de
fazer é somente o que me diz respeito, e não o que os outros pensam”. Nunca deu ouvidos às normas da
tradição, preferindo a ousadia do anonimato ao sacrifício de sua criatividade, afinal “o mérito supremo
que atribuímos a Moisés, Platão e Milton deve-se ao fato de eles terem ignorado livros e tradições, e
expressado não o que os homens pensavam, mas sim o que eles próprios pensavam” (EMERSON, 2003,
p. 54). Com espontaneidade e audácia, rejeitou os padrões formais para encontrar o poético nas
sutilezas do ritmo e do tom. Seu estilo, que oscila entre hermetismo e simplicidade, guarda o colorido
particular de quem revela um mundo interior (MACLEISH, 1961, p. 154).
Imaginação e rebeldia fizeram de sua obra um enigma para os contemporâneos e uma
revelação para as gerações futuras. Nesse sentido, afirma Rolland Barthes que o século XIX marca a
ruptura com os tratados de retórica, que serviam de modelo para a literatura clássica, e o surgimento de

39
Elizabeth Browning (1806-1861) foi considerada, em sua época, como poeta, superior a seu marido, Robert Browning.
Aurora Leigh, seu romance em verso branco, foi saudado como o maior acontecimento literário na Inglaterra desde
Shakespeare, mas, embora seja legível atualmente, não revela marcas de grandeza. Seus poemas líricos, especialmente
Sonnets from the Portuguese retratam uma paixão feminina que, contudo, parece débil, se comparada ao arrebatamento dos
versos de Emily Dickinson.
40
Charlotte Brontë (1816-1855), autora de Jane Eyre, romance vitoriano de grande realismo, com observações agudas e
espirituosidade. Emily Brontë (1818-1848) escreveu poemas originais e o romance O Morro dos Ventos Uivantes, história de
uma paixão selvagem, que desafia os costumes de Yorkshire. Anne Brontë (1820-1849), autora de Agnes Grey e O Senhor de
Wildfell Hall, foi menos talentosa do que as irmãs, e talvez ainda seja hoje lembrada por causa delas.
46

uma nova ordem para o discurso - a escritura moderna (1974, p.148). Afinal, a literatura não poderia
ficar alheia às mudanças de valores experimentadas pela sociedade, mesmo sob o risco de afastar-se
dos leitores ao empregar formas originais, ainda não incorporadas aos padrões estéticos vigentes.
Para Luiz Tatit (1997), a distância entre a obra inovadora e o público explica-se pela coexistência de pressupostos estéticos absolutamente
assimétricos, os quais determinam a questão do gosto. Enquanto o artista busca novas técnicas de expressão a partir de critérios formais, centrados no saber erudito,
o público julga a obra com base em critérios figurativos, culturalmente assimilados. Cria-se, portanto, um hiato de comunicação que impede a apreciação da obra e
percepção de seu efeito estético. De um lado, o artista à procura de linguagens inventivas, de construções semióticas inusitadas; de outro, o público à espera de
representações incrustadas na tradição, de reproduções segundo modelos cristalizados.

Entre a História e a tradição, Emily Dickinson guiou-se pela força do presente, embora a linguagem da época, impregnada de memórias, certamente
fez de sua poesia um desafio entre criatividade e lembrança. Acerca dessas questões, que alimentam os processos de intertextualidade e intratextualidade, diz

Barthes (ibidem, p.126) que toda produção literária aprisiona o autor nas palavras dos outros e em suas próprias palavras: “Uma remanência obstinada, vinda
de todas as escrituras precedentes e do passado mesmo da minha própria escritura, cobre a voz presente de minhas palavras.” Embora incompreendida em sua
época, Emily Dickinson, manteve-se fiel à decisão de instaurar uma nova poesia com versos simples ou enigmáticos, que hoje abrigam ora o frescor dos campos
ora a aridez do silêncio.

Na opinião de George Gesner (1982, p. xviii), ao se distanciar do estilo clássico, Emily


Dickinson aproximou-se da existência psíquica real, buscando, em sua complexa experiência interior,
palavras que sempre tocarão a todos em qualquer época. Sua poesia, em que razão e sentimento ora se
alternam ora coexistem, não pôde ser apreciada por seus contemporâneos por estar muito além de seu
próprio tempo, tanto do ponto de vista temático quanto estrutural.
Em toda sua vida, Emily Dickinson publicou apenas três ou quatro poemas por insistência de
amigos. Segundo Thomas Higginson (1982, p. xix), sua poesia corresponde ao que Emerson
denominou “the Poetry of the Portfolio”, tendo sido escrita sem interesse de publicação, como uma
expressão absoluta da sua arte ousada e inovadora. Longe das lições da crítica e das impressões do
público, alheia a qualquer pretensão de agradar, Emily Dickinson pôde experimentar a liberdade do
verso não-convencional e cultivar a ousadia do pensamento41. Compôs versos excêntricos e
marcantes, em que o mais absoluto lirismo brota do convívio doméstico e da vida interior. Afinal, o
verdadeiro poeta nos livra “da rotina das imagens costumeiras – pois desperta a capacidade inventiva e
fantasiadora do leitor por meio da liberdade indomável do esboço e por meio da sucessão incessante de
enérgicos contrastes de surpresa.” (EMERSON, 2003, p. 48). Imaginação e criatividade delineiam sua
produção poética, a despeito das limitações impostas pela reclusão.
A leitura de Emerson42 aguçou em Emily Dickinson a crítica dos valores e despertou-lhe a autoconfiança, fazendo-a sobrepor, como aconselhava o
filósofo, seus valores pessoais aos pressupostos cristalizados pela ótica social:

41
Essa postura diante da arte e da vida lê-se no poema seguinte, em que Emily Dickinson exalta a felicidade de uma pedra
solitária, que vaga livre pelos caminhos, alheia às convenções: How happy is the little stone / That rambles in the road alone,
/ And doesn’t care about careers, / And exigencies never fears; / Whose coat of elemental brown / A passing universe put on;
/ And independent as the sun, / Associates or glows alone, / Fulfilling absolute decree / In casual simplicity.
42
Em 1836, Ralph Waldo Emerson (1803-1882 fundou o Clube Transcendental, cuja revista, O Quadrante, foi bastante
criticada por suas idéias “tolas” ou “vagas”. Todavia, ali estavam os postulados do grupo que, durante algum tempo, manteve
uma comunidade experimental, a Fazenda Riacho. Essa experiência comunitária, contudo, encerrou-se quando os
Transcendentalistas dividiram-se em dois grupos: um interessado na reforma social; o outro, no indivíduo. No mesmo ano de
47

Aquilo que tenho de fazer é somente o que me diz respeito, e não o que os outros

pensam. Árdua tanto na vida concreta como na intelectual, é essa regra que

pode servir para a total distinção entre grandiosidade e mesquinharia

(EMERSON, 2003, p. 58).

A concepção emersoniana de que o poeta é um visionário igualmente a fez suportar a solidão e o degredo que lhe foram impostos pela rebeldia contra os padrões da

época (FERLAZZO, 1973, p. 26). Sua poesia é um grito de liberdade, um jorro de sua luz natural, um mergulho nos valores individuais que a fizeram
negar os moldes comportamentais da época e rejeitar a doutrina calvinista.

Sem submeter-se a regras ou convenções, seus poemas obedeciam, contudo, a um rigoroso


estilo pessoal. Cada palavra de seus versos precisava, antes de tudo, agradar às exigências de seu
ouvido musical. Seus ritmos, considerados variações de padrões rígidos, dependem das formas e sons
de cada poema em particular. Sob a aparência visual dos poemas, há inúmeras sutilizas rítmicas que
revelam sua criatividade e maestria (REEVES, 1963, p. 123).
Comparando-a com Blake43, Higginson destaca sua percepção intensa e original da natureza e
da
existência humana, a nitidez de suas imagens descritivas e o poder imaginativo de seu verso. Para
Higginson (1982, p. xxi), certos poemas de Emily Dickinson parecem molhados de chuva e sereno,
arrancados da terra com areia ainda agarrada às raízes, impregnados do frescor e do cheiro do campo.
Outros versos, cujo lirismo se deixa entrever em meio a um vigor exasperado e inevitável, revelam
conflitos interiores, crises mentais ou problemas de saúde. Seu pensamento inquieto e sua
extraordinária apreensão da alma humana fazem parecer uma impertinência qualquer crítica à
insubordinação de sua poesia a regras gramaticais.
No poema seguinte, Emily Dickinson ironicamente aproxima espaços antagônicos: o universo doméstico e o plano transcendental, a banalidade do
quotidiano e as leis que regem o cosmo. Combinando objetos concretos e idéias abstratas, revela uma forte oposição aos dogmas cristãos, beirando a heresia

(VANSPANCKEREN, 1994, p. 35):

Papa above!
Regard a Mouse
O'erpowered by the Cat!
Reserve within thy kingdom

1836, Emerson publicou uma coletânea de ensaios, Natureza, nos quais apresentava suas idéias. Segundo a Filosofia
Transcendentalista, o homem não deve ver a natureza apenas do ponto de vista prático; sua relação com a natureza deve
transcender a idéia de utilidade (HIGH, 1993, p. 43).
43
William Blake (1757-1827), um dos maiores poetas ingleses, conhecido por sua obra Canções da Inocência e pelo poema
Tigre. Aliando o desenho à poesia, desejava criar um universo mitológico que retratasse as forças em conflito na alma
humana. Seus grandes poemas, Milton e Jerusalém, contudo, são épicos de leitura difícil. Entre seus poemas breves, os
melhores denunciam os mecanismos de repressão impostos pela lei, pela religião ou pela ciência, contra os quais lutou em
vida.
48

A “Mansion” for the Rat!


Snug in seraphic Cupboards
To nibble all the day,
While unsuspecting Cycles
Wheel solemnly away!

Trata-se de um poema marcado pela irreverência temática, pela métrica irregular e pela
liberdade rímica, características apontadas por Higginson na poesia de Emily Dickinson (apud AIKEN,
1963, p. 9). Ao olhar a natureza sob uma perspectiva individual, nela projetando sua vida e sua época,
Emily Dickinson não poderia seguir os modelos da tradição. Nas palavras de Ferreira Gullar
(1977, p. 47):
O que move o artista é a necessidade de exprimir a sua própria existência (o que implica a das

demais) e a sua visão da existência. Isso, evidentemente, impõe a reelaboração e modificação das

formas.

No estrato visual, destaca-se o emprego de iniciais maiúsculas em substantivos comuns


(Mouse, Cat, Mansion, Rat, Cupboard, Cycles), procedimento que confere um caráter simbólico às
palavras e que, segundo MacLeish (1961, p. 153), tem uma dupla função na poesia de Emily Dickinson:
dar conotações abstratas a substantivos concretos, e conotações concretas a substantivos abstratos. As
letras maiúsculas são, portanto, “chaves” que abrem portas para a leitura, revelando em uma mesma
palavra perspectivas distintas: natureza e religião, realidade e transcendência.
O poema, como transgressão das expectativas da linguagem, organiza-se em torno de escolhas
lexicais particulares em consonância com aspectos semânticos. A predominância de substantivos (9) e
verbos (6) caracteriza a objetividade do tom exortativo com que o eu lírico se dirige ao Pai ao interceder
pela “salvação” dos ratos. O poema advoga o postulado platônico de que a alma imortal, após suportar
todas as provas necessárias e tendo adquirido sabedoria, segue para os céus a fim de conhecer a
verdadeira felicidade (PLATÃO, 2002d, p. 319).

A diversidade vernacular, na opinião de Warren (1963, p. 105), é um traço marcante da poesia


de Emily Dickinson, em que se mesclam provincianismos, o modo comum de falar em sua época, o
discurso dos jovens e as palavras teológicas dos pregadores. Ao buscar a linguagem contemporânea,
Emily Dickinson certamente encontrou, nos sermões ortodoxos, o léxico de origem latina; e nas
conversas corriqueiras, o de origem anglo-saxônica. Como afirmam Baugh e Cable (1978), no inglês
moderno (a partir do séc. XVI), as palavras provenientes do anglo-saxão compõem, sobretudo, o
49

vocabulário informal e nomeiam o mundo concreto, enquanto as oriundas do latim designam


abstrações e integram a linguagem culta, em que se insere o discurso religioso.

A esse respeito, observa Allen Tate (1963, p. 26) que na lírica dickinsoniana idéias e conceitos
são, em geral, nomeados por termos procedentes do latim, enquanto objetos concretos são designados
por termos originários do anglo-saxão. Embora no poema não ocorra essa distinção rígida, a
justaposição de palavras de origens anglo-saxônica e latina agrava a tensão implícita na temática.
Enquanto a feição latina dos signos Papa, Reserve, Mansion e seraphic traduz a promessa bíblica de
paraíso celestial, o caráter anglo-saxão dos termos kingdom, snug, nibble e wheel denota o reino secular
da terra e dos astros. O estrato lexical reflete, portanto, as angústias da poeta e de toda uma geração que
absorveu o idealismo de Emerson e o sentido do pecado de Hawthorne44. Com o filósofo, Emily
Dickinson compartilha o amor pela vida; com o escritor, a obsessão pela morte.

Escrito por volta de 1859, o poema sintetiza todo o seu desdém para com a religiosidade cristã
nos moldes do Puritanismo da época. Ferlazzo (1976, p. 29) chega a comentar, em tom jocoso, que
Emily Dickinson, por vezes, revela-se herege, embora nunca tenha enfeitiçado alguém, invocado o
demônio ou falado com os mortos. Reeves (1963, p. 121) diz que a poeta, reconhecendo o caráter
provisório da verdade, a busca de forma intuitiva e super-racional como uma sibila.
A isotopia da religião, que inicia o poema com Papa above! (Pai nas alturas!), desdobra-se nos
termos kingdom (reino), mansion (mansão) e seraphic (seráfico), com os quais o eu lírico ironiza a
promessa de vida eterna. Invocando a Deus, o trata como Papa, termo informal e familiar, que ainda
hoje parece desafiar o respeito e a veneração à divindade, impostos pela fé cristã45.
Em face do destino da humanidade na terra, Emily Dickinson ridiculariza a única chance de
recompensa para uma vida de atribulações: a promessa de uma morada eterna, bálsamo para todo
sofrimento. O céu bíblico, símbolo da harmonia celestial, é descrito no poema como uma mansão
habitada por querubins, em cujos armários há espaço para os espíritos dos ratos descansarem em paz.
Ao desconstruir a concepção transcendental da “casa do pai” como paraíso dos bem-aventurados, o eu
lírico destila sua mordaz ironia ao sugerir que, entre as muitas “moradas” a que se refere a Bíblia,
haverá certamente uma para os ratos. Inegavelmente, como afirma Smith (1996, p. 20), a imaginação é

44
Nathanial Hawthorne (1804-1864) possuía uma imaginação inquisitiva, uma mente meditativa e um incessante interesse na
ambigüidade humana. Conhecia o coração humano e a solidão do homem no universo. Em seus romances e contos, assumiu
uma postura moralista, embora questionasse os exageros do Puritanismo.
45
Em um outro poema, Emily Dickinson compara o túmulo a uma pensão de segunda categoria, e usa os termos
“necromante” e “hospedeiro” para se referir a Deus: What inn is this / Where for the night / Peculiar traveller comes? / Who
is the landlord? / Where the maids? / Behold, what curious rooms! / No ruddy fires on the hearth, / No brimming tankards
flow. / Necromancer, landlord, / Who are these below?
50

uma forma especial de poder pessoal que garante ao artista uma identidade e lhe permite viver em um
mundo com o qual não se identifica.
Emily Dickinson toca ainda em uma outra questão polêmica: a dicotomia entre céu e inferno.
Fica implícito no poema que o inferno para os ratos se resume à sua passagem pela terra à mercê da
astúcia dos gatos; paradoxalmente, a morte nas garras de seus próprios agressores significaria a
passagem para o paraíso. A dor e a angústia da perseguição sofrida pelos ratos, símbolo da timidez do
próprio eu lírico (REEVES, 1963 p. 125), seriam um veículo para a obtenção do prazer celestial.
Ironicamente esse prazer se resumiria em comer compulsivamente até saciar o apetite, procedimento a
que a Bíblia se refere como
“o pecado da gula”. Desvirtua-se, assim, o conceito de “morada eterna”, fazendo-o significar “paraíso”,
no sentido secular de local para a realização impune dos desejos.
Entre denotação e alegoria, é possível cruzar o poema de uma a outra margem, entre niilismo e
fé, pois como na natureza aos olhos de Emerson (2003, p. 19-20):
Tudo (...) é bipolar, ou tem um pólo positivo e um pólo negativo. Há um macho e uma fêmea, um

espírito e um fato, um norte e um sul. O espírito é o positivo, o fato é o negativo. A vontade é o

norte, a ação é o pólo sul.

Abrigados em armários seráficos, os ratos desfrutariam da eternidade, imersos no egoísmo de seu bem-
estar, alheios a tudo, inclusive ao deslocamento dos corpos celestes. Se aos ratos seria permitido gozar
de tantas regalias, por conseguinte, o poema nos leva a supor que o mesmo deve ocorrer com Deus e os
anjos, que desfrutam das benesses do paraíso, sem se ocuparem com os desígnios do universo à sua
volta. Daghlian (1985, p. 166) comenta que embora Emily Dickinson tenha empregado a forma dos
hinos litúrgicos em muitos de seus poemas, seria extremamente irônico julgá-los suas preces, em face
da irreverência ora velada ou explícita tantas vezes destilada acerca de questões religiosas.
Segundo Aiken (1963, p. 12-14), a poeta inspirou-se no misticismo moral dos ensaios de
Emerson46 e no estilo gnômico47 de sua poesia, para criar poemas herméticos, cujo sentido se esconde
em metáforas e símbolos, beirando muitas vezes o criptograma48. Em linguagem concisa, simbolista e
epigramática49, propõe enigmas e aforismos entre humor e irreverência. Resta-nos aceitar seus lapsos
deliberados e tiranias como manifestações inevitáveis de sua originalidade e experimentarmos o prazer

46
Ralph Waldo Emerson (1803-1882), líder do movimento Transcendentalista e de um grupo de autores Românticos. Em
viagem pela Europa, conheceu os poetas ingleses Wordsworth, Carlyle e Coleridge, através dos quais entrou em contato com
o Idealismo Germânico e o Transcendentalismo. Defendia a experiência espiritual intuitiva, a supremacia do indivíduo e
pregava o fim da religião formal. Envolveu-se na abolição da escravatura e em outros movimentos reformistas.
47
gnômico: em forma de provérbios e aforismos.
48
criptograma: escrito em caracteres secretos; texto hermético.
49
epigramática: em forma de epigrama; epigrama: pequena composição poética que termina por um pensamento engenhoso
ou satírico.
51

da “contradição lógica”, da “ironia socrática”, da “coabitação das linguagens” (BARTHES, 1973, p. 8).
Afinal, “ser grande é ser malcompreendido”, pois “a coerência não cabe em uma grande alma”
(EMERSON, 2003, p. 61).
Ao contrapor o banal ao grave, e o profano ao divino, por exemplo, Emily Dickinson dilui em
humor o mais amargo ceticismo diante de dogmas religiosos como a imortalidade da alma, a vida
eterna, a remissão dos pecados, a certeza do paraíso celestial50. O texto ilustra, portanto, seu conflito
religioso que oscila entre devoção e ceticismo, desejo de salvação e negação do paraíso, crença na
imortalidade e dúvida sobre a vida após a morte. Nesse percurso entre a fé e descrença, como explica
Ferlazzo (1976, p. 32), sua poesia registra a jornada de uma alma em busca de um lugar no universo:
Ao mesmo tempo em que desejava salvação e imortalidade, negava a visão ortodoxa do paraíso e
questionava se além do túmulo haveria apenas o esquecimento. Embora acreditasse no Criador, às
vezes duvidava de sua benevolência. Ora por brincadeira, ora por zombaria, negava a Bíblia, o
pecado e a devoção ortodoxa. Como tantos outros assuntos sobre os quais se debruçara, Emily
Dickinson abordou questões escatológicas com ousadia e perseverança, quer a levassem ao seio do
Pai ou ao limite da anulação cósmica51.
Lançando mão do elemento terra, em que se inclui a isotopia dos animais, com os vocábulos Mouse (rato), Cat (gato), Rat (ratazana), Snug (esconder-se),
nibble (beliscar, roer), Emily Dickinson constrói sua cruel zombaria ao estender aos seres irracionais as bênçãos divinas prometidas pela Igreja. Os ratos, à
mercê da própria sorte nas garras dos gatos, simbolizam os homens diante de seus inúmeros percalços, sem um pai que lhes socorra nos momentos de aflição.

Diante da impossibilidade de receber qualquer ajuda divina, o eu lírico não implora ao criador a
salvação pessoal, mas sim a redenção dos ratos, perseguidos e subjugados em vida pelos gatos. Ao
rogar a Deus que reserve aos ratos um lugar confortável nos armários dos anjos, Emily Dickinson
parece ironizar a frase bíblica – “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão
saciados!” (Mateus 5, 6). Aos ratos não é concedido o direito de saciar a fome de justiça, mas apenas o
próprio apetite, uma vez que nenhuma punição é mencionada para os gatos que lhes impuseram o jugo
na terra.
Ao fazer do céu a morada dos anjos, dos ratos e dos astros, Emily Dickinson revela uma ironia
cruel, que desvirtua, ao mesmo tempo, a fé cristã e a objetividade científica. Um certo niilismo parece,
então, impregnar todo o poema em face das incertezas que assolam tanto a religiosidade, de cunho
subjetivo, quanto a ciência, subordinada à razão. Nem a Igreja nem a astronomia nos fornecem certezas
absolutas: a vida eterna é uma questão de fé; os astros movem-se em órbitas desconhecidas. Resta-nos
uma única verdade: Deus e o universo são um enigma absoluto.

50
A mesma visão problemática se instaura em um outro poema, no qual Emily Dickinson justapõe a bondade celestial à astúcia demoníaca, e
chega a afirmar que Deus existe (I know that He exists. / Somewhere - in Silence -) para a seguir pôr em dúvida sua benevolência infinita
(Should the glee - glaze - / In Death's - stiff - stare -). Se não há salvação após a morte, conclui Emily Dickinson: somos vítimas de uma
brincadeira cruel, (Would not the fun / Look too expensive), fomos traídos por Deus (Would not the jest - / Have crawled too far!).
51
“While she desired salvation and immortality, she denied the orthodox view of paradise; she wondered, in fact, if merely
oblivion lay beyond the grave. Although she believed in a Creator, she sometimes doubted His benevolence. Sometimes in
jest, sometimes in mockery she denies the Bible, sin, and orthodox piety. As with all subjects fit for meditation, she pursued
eschatalogical questions with daring and perseverance wherever they might lead – to the bosom of the Father, or to the brink
of cosmic annihilation.”
52

Conciliando opostos, Emily Dickinson justapõe à terra o elemento ar, que compreende termos
da isotopia da religião, Papa above (Pai nas alturas), thy kingdom (teu reino), seraphic (seráfico), e da
isotopia do movimento Cycles (órbitas), Wheel away (giram). Percebe-se de imediato o cruzamento
das isotopias da religião e do ar, cujos termos em comum aludem ao reino celestial, morada de Deus e
dos anjos.
O poema atualiza, portanto, a dicotomia entre o divino e o terreno: Deus reina em um paraíso
etéreo, além das nuvens; confinados à matéria, os animais e, por analogia, os homens vivem na
concretude do mundo. O criador imortal habita o elemento ar, experimenta a leveza e a bem-
aventurança; a criatura mortal pertence à terra, vivencia o peso e o sofrimento. Nas entrelinhas do
poema, ouvimos passagens bíblicas selarem nosso destino: “O Senhor Deus formou, pois, o homem do
barro da terra” (Gênesis 2, 7), “és pó, e em pó te hás de tornar” (Gênesis 3, 19). Estamos irreversivelmente
ligados à matéria que nos deu vida; em nosso corpo, estão os mesmos elementos da terra. Nas palavras
de Bachelard (2001a, p. 80): “É na modelagem de um barro primitivo que a Gênese encontra as suas
convicções.”
As torturas dos ratos, entregues ao apetite dos gatos no inferno terrestre, contrastam também
com as delícias almejadas para a vida eterna no paraíso celestial. Revelam-se, assim, “as marcas
fundamentais da dupla cosmologia de uma imaginação terrestre e aérea” a que alude Bachelard em O
Ar e os Sonhos. Subir é elevar-se, libertar-se mediante a inocência ou a beatitude; descer é confinar-se à
terra, devido à imperfeição do espírito. Tais são as “lições de uma física da moral, de uma moral que já
tem uma vida simbólica nos elementos da matéria” (2001b, p. 56-57). Ironicamente, os ratos livram-se
dos gatos e, por conseguinte, do sofrimento, que lhe tolhe a leveza, contudo permanecem presos ao
hábito de roer, que os liga aos prazeres terrenos.
A isotopia do movimento reúne termos com registros bem distintos: snug (esconder-se) e
nibble (beliscar) têm uma conotação informal, enquanto unsuspecting Cycles (Órbitas desconhecidas)
e Wheel solemnly away (Giram solenemente) guardam um tom formal, que provém do adjetivo
unsuspecting e do advérbio solemnly. Com esse recurso estilístico, a linguagem situa em pólos
distintos dois movimentos antagônicos: os ratos se escondem aleatoriamente nos armários; os corpos
celestes percorrem o universo em órbitas precisas52.
O tom formal dos dois últimos versos (While unsuspecting Cycles / Wheel solemnly away!)
intensifica o grau de imprevisibilidade do poema, em que predomina o discurso informal, instaurado

52
Segundo Dioniso, o Aeropagita (c. 500 d.C.), que elaborou uma base teológica para a configuração simbólica do
firmamento a partir da visão medieval, o universo é dinâmico. Os querubins e os serafins são responsáveis pelo primeiro
movimento e pelas esferas das estrelas fixas; os anjos, por sua vez, determinam o movimento da lua (BIEDERMANN, 1993,
p. 32).
53

desde a primeira linha, com a irreverência do vocativo (Papa above!). Emily Dickinson surpreende o
leitor ao mudar subitamente de registro, incorrendo no recurso estilístico que consiste em reduzir a
previsibilidade para evitar uma leitura superficial e focalizar a atenção do receptor no texto poético,
simultaneamente discurso e mensagem (RIFFATERRI, 1973, p. 37). O poético se insurge, portanto,
contra a transparência do signo, que caracteriza o enunciado em prosa. Acerca do caráter inventivo da
poesia e a objetividade da prosa, Mario Faustino (1977, p. 64-65) comenta que a linguagem poética é
“antes de tudo criação, ou recriação”, enquanto a linguagem prosaica é “uma linguagem de
comunicação”.
Nos dois últimos versos, delineia-se o percurso dos astros em suas órbitas, metáfora para a
passagem do tempo e o desenrolar da vida na terra. Esse movimento orbital nos reporta à astronomia
filosófica exposta no diálogo Timeu (2001, p. 33). Diz Platão que o demiurgo dividiu a matéria da alma
em duas metades, cruzou-as em X e uniu suas extremidades, vergando-as, criando assim os círculos do
Mesmo e do Outro, aos quais determinou o movimento: “O círculo exterior, do Mesmo, permanece
sem divisão; o interior, do Outro, ele divide em sete círculos de diâmetros diferentes, que recebem
movimentos contrários uns dos outros.” No centro desses sete círculos, que correspondem às órbitas
dos sete planetas, a divindade colocou a terra, centro do próprio universo.
No poema, o movimento dos círculos celestiais e o destino da vida na terra, contudo, parecem entregues às próprias leis, já que a divindade importa-se tão
pouco com os astros quanto com os homens ou os camundongos. Retorna-se, então, ao ponto de partida da primeira estrofe: os ratos como os homens não
podem esperar que a intervenção divina lhes traga a solução para os males da terra.

Esse tema da indiferença do Pai em face do sofrimento humano inspira outros versos em que a poeta chega a afirmar que Deus, se de fato existe, não se
empenha em socorrer a humanidade: My Business, with the Cloud, (Minha preocupação com a Nuvem,) / If any Power behind it be, (Se algum Poder por trás
dela houver,) / Not subject to Despair – (Não sujeito ao Desespero –) / It care, in some remoter way (Preocupar-se-ia tão remotamente) / For so minute affair
(Com um problema tão diminuto) / As Misery – (Quanto a Miséria –). Em outro poema sobre a eternidade, os mortos acreditam que vão se sentar à mão
direita do pai, mas Deus não está no céu e sua mão foi amputada: Those - dying then / Knew where they went – / They went to God's Right Hand – / That Hand
is amputated now / And God cannot be found –. Somos todos órfãos. Estamos irremediavelmente sós.

Integram o estrato fônico aliterações que contribuem para a unidade dinâmica entre som e
significado e, cujo emprego em conjugação com a rima, segundo Warren (1963, p. 103), é um traço de
maturidade poética: Snug in seraphic Cupboards / While unsuspecting Cycles / Wheel solemnly away!
Nesse labirinto de idéias a que nos leva a leitura do poema, revela-se ainda uma nítida correlação entre recursos fônicos e semânticos. Esse paralelismo
instaura-se no segundo e no quarto verso da primeira estrofe, que começam com verbos no imperativo. Iniciados pela sílaba Re (Regard e Reserve), cuja
primeira letra é maiúscula “R”, são versos por meio dos quais a persona poética suplica à divindade um consolo para os ratos. É interessante observar que a
primeira letra da palavra Rat (rato) também é R, o que nos permite conjeturar que a “morada celestial” a que aludem esses versos é um direito intrínseco dos
ratos, suposição reforçada pela inicial maiúscula dos vocábulos Mansion (mansão) e Mouse (rato).

A conciliação entre a palavra e o mundo, que está no cerne da onomatopéia, encontra na poesia um território fértil de sonoridades. Ao preencher o intervalo
entre imagem e som, o código verbal “parece mover-se, no poema, em função da aparência-parecença”, que “resulta sempre de um encadeamento de

relações”, uma vez que o signo não mais revela “a mimese inicial própria da imagem” (BOSI, 2004, p. 31). No som do vocábulo, ouvimos o
referencial à medida que identificamos na expressão poética três vertentes complementares: as impressões vocais, as auditivas e as visuais. A palavra desenha

visões, o ouvido capta imagens, a imaginação recria a realidade através dos sons (BACHELARD, 1997, p. 196-197).
54

Essa “intenção imitativa, quase gestual”, a que alude Bosi (2004, p, 50), realça o caráter expressivo de outras palavras-chave do poema, iniciadas pela
letra C maiúscula: Cat, Cupboards e Cycles. Da mesma forma, os dois últimos versos, que descrevem o movimento dos astros, começam com as
palavras While e Wheel, que têm em comum as consoantes iniciais Wh e as letras e e l. A poeta enfatiza, assim, a duração e o movimento dos astros em suas
órbitas, ao mesmo tempo em que os relaciona ao comportamento dos ratos na mansão celeste. Esses movimentos de natureza oposta, pois um é aleatório, e o
outro ordenado, parecem estar codificados no formato invertido das consoantes M e W, que iniciam respectivamente as palavras Mansion (mansão), Mouse
(rato), While (enquanto) e Wheel (girar).

Tais escolhas sonoras projetam uma sucessão de imagens, tornando a palavra simultaneamente
signo e objeto, recurso poético a que Greimas (1975, p. 18) se refere como “isomorfismo da expressão e
do conteúdo”. Uma pluralidade de significados emerge da estreita correlação entre forma e conteúdo,
fazendo com que a linguagem seja uma tradução absoluta do tema, a exemplo do que propunha
Emerson (2003, p. 86): “Causa e efeito, meios e fins, semente e fruto não podem ser separados, pois o
efeito já viceja na causa, o fim preexiste nos meios, o fruto na semente.”
Ainda na primeira estrofe, observa-se um outro acoplamento em que a mesma estrutura sintática (preposição + artigo definido + substantivo), seguida de
interjeição, repete-se no final do terceiro e do quinto versos, a saber: by the Cat! e for the Rat! Do ponto de vista semântico, o paralelismo dessas expressões
realça uma nítida correspondência entre o sofrimento imposto pelos gatos, expresso no verso O’erpowered by the Cat! e a recompensa alcançada pelos ratos
na vida eterna, resumida em A ‘Mansion’ for the Rat!

Do mesmo modo, a rima que se estabelece na segunda estrofe entre as palavras day e away, cujas letras finais são idênticas (ay = /ei/), relaciona os ratos
minúsculos aos astros gigantescos. Alheios a tudo em volta, ambos movem-se nos armários ou nas órbitas, qualquer que seja o destino das criaturas. Uma
indiferença recíproca parece caracterizar a existência no cosmos, de tal sorte que, embora compartilhando o mesmo universo, todos os seres são
incomunicáveis.

A concisão do poema prova que Emily Dickinson, como afirma VanSpanckeren


(1994, p. 35), jamais emprega duas palavras quando apenas uma é capaz de sintetizar suas
idéias. Com estilo compacto e excelente senso de humor, adota uma postura não-conformista como
Thoreau53. Desafia conceitos ideológicos e revoga manuais de gramática, criando suas próprias regras
poéticas. Brinca com os significados de palavras e frases, com as quais desenha uma visão sensível da
natureza em poemas claros e lapidados como o que acabamos de ler.
Em sua aparente simplicidade, o poema revela a marca da poesia a que Jean Cohen (1978, p. 12-
54
14) denominou fonossemântica ou integral , por apresentar uma estreita combinação de caracteres
fônicos, como o metro e a rima, e recursos semânticos, como a duplicidade de sentido. Considerando a
poesia um desvio em relação à norma da linguagem prosaica, tanto do ponto de vista da versificação
quanto do conteúdo, o autor retoma o conceito de Roland Barthes sobre os graus da escritura. Sugere
que o fenômeno do estilo pode ser ilustrado por uma linha reta em cujas extremidades há dois pólos
distintos: o prosaico, com desvio nulo; o poético, com desvio máximo. Entre esses pólos, situam-se os
diversos tipos de linguagem. Próximo ao pólo máximo, está o poema; próximo ao mínimo, o texto
53
Henry David Thoreau (1817-1862), autor de Waden (1854), obra que retrata a vida simples em uma cabana próxima ao
lago Waden, como pretexto para abordar a necessidade do autoconhecimento e da harmonia com a natureza. Como Emerson
e Whitman, Thoreau foi influenciado pela filosofia hindu e pelo Budismo (VANSpanckeren, 1994, p. 30).
54
Cohen identifica três tipos de poemas: 1) poema semântico (ou poema em prosa), em que os recursos fônicos não são
explorados; 2) poema fônico (ou prosa versificada), em que rima e metro são acrescidos àquilo que semanticamente é prosa;
3) poema fonossemântico (ou poesia integral) em que há uma forte correlação entre aspectos fônicos e semânticos.
55

científico (COHEN, 1978, p. 23). Diante do poema de Emily Dickinson, temos a certeza de que a íntima
correlação entre forma de expressão e significado o situam próximo ao grau máximo de poeticidade,
razão pela qual tanto foi dito na tentativa de traduzi-lo em prosa.
Considerando a produção poética desde Blake ou Landor55, diz Mario Faustino (1977, p. 86)
que Emily Dickinson “ostenta uma sabedoria de percepção ontológica e de expressão verbal raríssima”
na literatura de língua inglesa. Reinventando a vida ou indagando a morte, torna-se “a principal fonte
próxima das correntes metafísica e ‘pura’ dessa poesia em nosso tempo”. Sem abdicar da integridade
da alma humana e da importância da natureza, a poeta inegavelmente buscou conciliar o finito com o
infinito.
Spiller (1967, p. 127) também alude ao aspecto metafísico de sua lírica, comparando-a com os
poetas ingleses dos séculos XVI e XVII, devido a suas imagens inspiradas nos livros e na vida, sua
compreensão sutil e complexa do significado das palavras e seu ouvido musical. Como a poeta
americana, poucos metafísicos56 publicaram poemas, pois sua poesia hermética não se dirigia a leitores
comuns, mas a uma minoria privilegiada, capaz de compreender linguagem e questões filosóficas
inacessíveis ao senso comum. Outras características aproximam a obra dickinsoniana da lírica
metafísica: originalidade, emprego do paradoxo e engenhosidade.
Segundo T. S. Eliot (apud CEVASCO; SIQUEIRA, 1988, p. 31), a sagacidade é outro traço
marcante da poesia metafísica, em que se insere a obra de John Donne (1572-1631), que é leve, bem-
humorada e colorida pela racionalidade como a de Emily Dickinson. A exemplo do autor de A
Pulga57, a poeta retrata as incertezas da vida através de um complexo jogo de palavras, e imagens
permeadas pela ciência da época. Os versos fortes do poeta inglês revelam, como os da reclusa de
Amherst, um gosto por especulações filosóficas em contextos inusitados, ao mesmo em que atendem
aos anseios das últimas décadas do século XVI por uma linguagem mais densa e menos prolixa.
Essa predileção, no final do período elisabetano, pela expressão concisa e pensamento
hermético, alcançados através da sintaxe elíptica e da versificação áspera, tornou popular o poema
epigramático, que desafia o leitor a sentir o raro prazer de decifrar o poético. Brevidade e linguagem
econômica, versos curtos e estrofes heterométricas são, portanto, aspectos que caracterizam tanto a
lírica dickinsoniana quanto a poesia metafísica, em que cada poema, na opinião de Gardner (1982, p.

55
Walter Savage Landor (1775-1864), escritor inglês cujas publicações, desde Poems (1795) até Heroic Idylls (1863)
compreendem 68 anos. Sua primeira obra de importância, Gebir (1798), é um épico em versos livres sobre a fundação de
Gibraltar. Count Julian: A Tragedy (1812) é um drama romântico. Seu verdadeiro dom como poeta revela-se em
composições curtas e buriladas, em estilo clássico.
56
O termo “poesia metafísica” foi sugerido por Samuel Johnson (1709-1784) a partir da leitura de John Dryden (1631-1700),
que escrevera acerca de John Donne em 1693: “Ele afeta a metafísica, não apenas em suas sátiras, mas em seus versos de
amor, nos quais apenas a natureza deveria reinar; e atordoa as mentes do belo sexo com especulações filosóficas, quando
deveria tocar seus corações, e distraí-los com a suavidade do amor.” (GARDNER, 1982, p. 15).
57
Poema em que John Donne usa “o prosaico picar de uma pulga como argumento que desencadeia uma série de associações,
cujo resultado final é persuadir a amada a ceder a seu desejo” (CEVASCO; SIQUEIRA, 1988, p. 32).
56

18), parece o desdobramento de um epigrama. Afinal, para os metafísicos, o pensamento deveria ser
expresso em poucas palavras, mesmo sob o risco de hermetismo, concepção defendida por Chapman
(apud GARDNER, 1982, p. 16), para quem a poesia não tem por objetivo a clareza nem deve revelar-se à
primeira leitura.
Para Mario Faustino (1977, p. 85-86), a densidade poética da obra de Emily Dickinson explica-
se pela reclusão que lhe permitiu um “intenso debruçar-se sobre si mesma e sobre a essência da
limitada escala dos objetos que a rodeavam”. Seu valor literário, segundo o crítico, não se vincula à sua
condição feminina, mas à força estética de sua obra. Emily Dickinson abordou, com exatidão e
minúcias, a aceitação do universo, o estoicismo e o heroísmo humilde, questões éticas permeadas por
seu dom lírico de humanizar a realidade.
A despeito da ótica puritana do início do séc XIX, que ditava o comportamento de seus
contemporâneos na Nova Inglaterra, Emily Dickinson recusou-se a associar o prazer ao pecado. Sua
poesia revela um caminho para o encontro com o sagrado através da contemplação da natureza e da
identificação com os seres ligados aos quatro elementos, entre animais, flores e plantas.
Em sua obstinação por experimentar a vida, questionou a rigidez do Puritanismo, mas
paradoxalmente se isolou do convívio social, negando o mundo para ser fiel à sua verdade interior.
Mesmo pertencendo à oitava geração de uma família de puritanos que se fixaram na Nova Inglaterra,
no século XVII, Emily Dickinson rejeitou a moral puritana, descrevendo a criação divina como fonte
inesgotável de gozo e alegria. Embora não seja nosso objetivo identificar, em sua produção poética,
traços de sua história pessoal, lembramos as palavras de Bachelard (1998, p. 11): “para conhecer o
homem dispomos apenas da leitura, da maravilhosa leitura que julga o homem de acordo com o que ele
escreve”. Em seus versos rebeldes, a ruptura com valores sociais e religiosos se traduz no rompimento
dos padrões de versificação, na infração das regras da sintaxe e na desobediência às normas de
pontuação.
A natureza aos olhos de Emily Dickinson ora é um refúgio idílico, um paraíso longe das
atribulações do mundo, ora um quadro dinâmico, cujas imagens estampam as alegrias e os conflitos
humanos. A poeta não se contenta em apenas descrever a natureza, indaga-a acerca dos mistérios da
vida, projeta em suas imagens o sentimento humano de incerteza, analisa a questão do prazer e da dor.
Tal como fez Platão no diálogo Fédon58, questiona a relação entre o homem e o demiurgo, aborda a

58
Eis o que escreve o filósofo: “ – Que coisa desconcertante parece ser, amigos, aquilo que os homens chamam prazer! Que
relação maravilhosa há entre a sua natureza e o que se julga ser seu contrário, a dor! Os dois se recusam a se encontrar lado a
lado, simultaneamente, no homem; mas se seguirmos um deles e o apanharmos, somos sempre obrigados, de um certo modo,
a apanhar também o outro, como se a sua dupla natureza estivesse ligada a uma única cabeça!” (PLATÃO. Fédon. São Paulo:
Martin Claret, 2002. p. 21)
57

fugacidade da existência, volta-se, enfim, para as questões que em todas as épocas têm atormentado a
humanidade e instigado poetas como Cecília Meireles, cuja obra discutiremos a seguir.
58

Deus disse: “Produza a terra verdura,


ervas que contenham semente
e árvores frutíferas que dêem fruto
59

segundo sua espécie,


e o fruto contenha a sua semente.”
(...)
“Produza a terra seres vivos
segundo sua espécie:
animais domésticos, répteis
e animais selvagens,
segundo a sua espécie.”
E assim se fez.

Gênesis 1,11; 24.


60

2. A REPRESENTAÇÃO DA TERRA NA POESIA DE CECÍLIA MEIRELES

__________________________________________________________________________________

___

A cosmologia platônica, cujo princípio básico é a economia, através da qual os elementos mais
simples e constantes determinam ordem e regularidade, baseia-se no pressuposto metafísico de que dois
mundos coexistem: o das formas inteligíveis e o das formas sensíveis (PLATÃO, 2001, p. 40-1). Esse
dualismo entre espírito e matéria é o cerne da filosofia grega em que a natureza reduz-se a leis
fundamentais e eternas59. Platão, no diálogo Timeu (2001, p. 69), a exemplo dos pré-socráticos, defende
a teoria dos quatro elementos que coexistem em harmonia no universo, mas não os considera as raízes
da realidade sensível:
A estrutura do mundo absorveu tudo o que havia desses quatro elementos; seu autor incluiu nele
todo o fogo e toda a água e todo o ar e toda a terra, sem deixar de fora nenhuma porção da força
de qualquer desses elementos, por haver determinado, primeiro, formar um animal de conjunto tão
perfeito quanto possível e constituído de partes perfeitas, e também que fosse uno, porque nada
sobrara para dar nascimento a outro mundo; e, por último, isento de velhice e de doenças. (grifo
nosso)

Supondo que o cosmos é resultado da ação da inteligência ordenadora do demiurgo, Platão


afirma que o mundo sensível é um simulacro do mundo ideal, tendo sido criado a partir de um modelo
eterno e imutável. A terra e os seres vivos seriam, então, cópias exemplares, imagens de um paradigma
eterno e perfeito, razão de sua beleza e funcionalidade (PLATÃO, p.65-66).
Na concepção platônica, Deus é o geômetra dos céus. Formas geométricas compõem o
espaço, e os corpos celestes, fixados em esferas cristalinas, movem-se ao redor da terra60 em
círculos. Após o nascimento do tempo61, a divindade teria distribuído a matéria em quatro raças
distintas: os deuses celestes (compreendendo todos os astros), os seres alados, as espécies aquáticas
e os animais que andam em terra firme. Surgiram, então, a lua, o sol, e os outros cinco astros
errantes ou planetas – sete corpos em sete órbitas distintas, inclusive a terra (ibidem, p.76):

59
Tal concepção, que permeia toda a tradição judaico-cristã, influenciou a filosofia e a ciência ocidentais. Para Tomás de Aquino, o universo é
governado pela razão, lei que emana de Deus; Descartes e Newton acreditavam que a ciência deveria revelar as leis de Deus na natureza.
60
Por volta de 700 a.C., as escolas de Tales e Pitágoras divulgaram a rotação da terra e o sistema heliocêntrico. Aristarcos de
Samos, astrônomo grego do séc. III a.C., foi o primeiro a afirmar que a terra e os demais planetas giravam em torno de seu
eixo e em volta do sol.
61
A teoria geral da relatividade aboliu completamente os conceitos clássicos de espaço e tempo como entidades absolutas e
independentes. Todas as medidas que envolvem espaço e tempo são relativas e dependem do estado de movimento do
observador. O espaço tem diferentes graus de curvatura e o tempo flui a diferentes taxas em diferentes partes do universo
(CAPRA, 1983, p. 139).
61

A terra, ele dispôs para ser nossa nutridora, fazendo-a girar em torno do eixo que atravessa o
universo, guarda e artífice da noite e do dia, a primeira e mais antiga das divindades nascidas no
interior do céu (grifo nosso).

Essa geometria euclidiana62, produto fundamental da matemática grega, exerceu influência


marcante na filosofia da Grécia Antiga. Platão a julgava inerente à natureza, e não simplesmente um
arcabouço por meio do qual os fenômenos poderiam ser descritos. Para os gregos, os teoremas
matemáticos encerravam verdades eternas e imutáveis, e as formas geométricas eram revelações
divinas da comunhão entre lógica e beleza.
Ao relacionar a mobilidade dos quatro elementos às figuras geométricas63 a que eles
correspondem, Platão (2001, p. 98) considera o ar menos instável que o fogo, porém mais dinâmico que
a água e a terra, a mais estável e plástica das substâncias.
Bachelard (2001a, p. 23), por sua vez, afirma que somente a imaginação nos permite modelar
“a geometria interna, a geometria verdadeiramente material de todas as substâncias” e excitar “as
potências formadoras de todas as matérias”. Para o filósofo, a poesia da terra é palpável, concreta, ao
contrário das imagens do ar, da água e do fogo que se mostram fugazes e instáveis. Da energia da terra,
a imaginação extrai vigor, estabilidade e força.
À mobilidade da água, do fogo e do ar contrapõe-se a solidez da terra, que solicita do poeta um
exaustivo empenho da imaginação. A resistência da matéria inerte desafia a vontade de imagens. Para
modelar suas metáforas64, o poeta precisa manejar com destreza a palavra, ferramenta com que enfrenta
a adversidade da substância. Nomear a matéria terrestre é dar-lhe vida, extraindo de sua inércia as mais
variadas formas do poético. Somente ao superar a percepção objetiva e lançar-se ao devaneio65, o
poeta saberá traduzir a natureza em linguagem. Bachelard (2001b, p. 269), em seu ensaio sobre a
imaginação do movimento, afirma que a terra é “dinamicamente o mais inerte dos sonhos”, enquanto
“ao ar e ao fogo – aos elementos leves – pertencem, ao contrário, as exuberâncias dinâmicas”.
Manipular as imagens da terra significa, portanto, vencer o impositivo da mimese do real para que as
palavras cumpram o destino da poesia – surpreender o leitor, graças à “sua diferencial de novidade”
(BACHELARD, 2001a, p. 1-5).

62
Euclides, matemático grego, ensinou em Alexandria no reinado de Ptolomeu I (cerca de 300 a 283 a.C). Sua obra,
Elementos de Euclides, que constitui a base da geometria plana, foi um texto-padrão para as escolas européias até o início do
século XX. O modelo euclidiano da natureza do espaço, embora questionado no séc. XIX pelo matemático Georg
Riemann, perdurou por mais de 2000 anos, até Einstein demonstrar que o universo é curvo devido à presença dos campos
gravitacionais dos astros (CAPRA, 1983, p. 127, 137).
63
Principal característica da matemática grega, a geometria situava-se no âmago das atividades intelectuais e do treinamento
filosófico. Eis por que na porta da Academia de Platão, em Atenas, lia-se: “Só é permitida a entrada a quem conhece
geometria” (CAPRA, 1983, p. 126-127).
64
Em A Poética (2003, p. 74-75), escreve Aristóteles: “A metáfora é a transposição do nome de uma coisa para outra,
transposição do gênero para a espécie, ou da espécie para o gênero, ou de uma espécie para outra, por via de analogia”.
65
Eis o que Alfredo Bosi (2004, p. 27) escreve sobre o devaneio: “Diz-se de um pensamento vagamundo que se engendra no
vão, no vazio, no nada. Devanear é comprazer-se que o espírito erre à toa e povoe de fantasmas um espaço ainda sem
contornos. (...) O devaneio seria a ponte aberta à toda ficção.”
62

Cecília Meireles encontra nas imagens da terra a comunhão com a natureza, as pessoas e a
divindade, resistindo à fragmentação do mundo contemporâneo. Parecem suas as palavras de Emerson
(2003, p. 36): “Para o poeta, para o filósofo, para o santo, tudo o que existe é favorável e sagrado, todos
os acontecimentos vantajosos, todos os dias santos, todos os homens divinos.” Opõe-se à urgência e à
superficialidade de sua época e indaga a natureza em busca de explicação para os mistérios da
existência e da alma humana. Nos devaneios da terra, a poeta reescreve a utopia da unidade entre todos
os seres, resgatando do caos e do esfacelamento toda forma de vida, proposta a que Damasceno (1977,
p. 29) atribui um caráter panteísta66: “Caminham os búfalos ao lado dos homens: uma só família. //
Todas as coisas do mundo: / homens, flores, animais, água, céu...” Sua poesia, “simples e equilibrada”,
segundo Zambolli (2002, p. 6), é uma “resposta ao complicado e desequilibrado mundo cotidiano”.
Inserida no tempo da modernidade, que se caracteriza pelo niilismo e pelo isolamento, Cecília Meireles
quer aproximar as criaturas e, através de “uma contemplação poética afetuosa e participante”, “mostrar-
lhes a vida em profundidade” (MEIRELES, 1977, p. 58) .
O ideal de comunhão entre os seres justifica o tom confessional de alguns poemas em que os
elementos da terra traduzem, em seus vários matizes, o mais íntimo sentimento do eu lírico. Flora e
fauna assimilam os tons da emoção, refletindo o processo romântico de identificação do eu com a
paisagem. De seu exílio, que Otavio Paz (1982, p. 50) considera uma forma autêntica de rebeldia, o
poeta faz de sua obra a única possibilidade de comunicação com o mundo. Com as imagens da terra,
Cecília Meireles ilustra a solidão interior, ora marcada pela tristeza profunda (Estou caída num vale
aberto, / entre serras que não têm fim. // nunca ninguém passará perto) ora pela resignação (Sinto-
me toda igual às árvores: / solitária, perfeita e pura.).

Segundo Bachelard (2001a, p. 2), esse processo de espelhamento da natureza permeia toda produção
poética, uma vez que “as imagens trazem a marca do sujeito” e “a imaginação nada mais é senão o
sujeito transportado às coisas”. Para Cecília Meireles, a terra guarda não apenas o seu perfil, mas o
de tantas outras faces anônimas ou familiares, que se desenham nos tons da vegetação: Como eu
preciso de campo, / de folhas, brisas, vertentes, / encosto-me a ti, que és árvore; Tu eras a árvore, a
árvore, Antonio, / com sua alma preliminar // Tu eras a árvore andando na terra, / com raízes vivas,
pássaros a cantar. Símbolo de resistência, a árvore propicia ao sonhador a certeza da solidez
inabalável (BACHELARD, 2001a, p. 55).

Com as cores da terra, a poeta faz um painel sobre as expectativas do querer e os percursos do
existir, confrontando sonho e realidade: Quando é que frutifica, nos caminhos infinitos, / essa vida,
que era tão viva, tão fecunda, / porque vinha de um coração? O poeta é o senhor dos desejos que

66
O Panteísmo considera Deus como a alma do mundo, e o mundo como o corpo da divindade, ou seja, tudo é Deus.
63

não se subordinam ao possível ou ao verossímil. A imagem poética, explica Otavio Paz (idem, p. 80),
é “a ponte que liga o desejo entre o homem e a realidade”. Diz Zambolli (2002, p. 7) que Cecília
Meireles não pretendia “salvar o homem, mas apenas dar-lhe o testemunho terreno de sua
experiência individual, revelando-lhe a sua própria condição no mundo.” Tal preocupação, presente
em diferentes momentos de sua poesia, lê-se em Herança: E os que vierem depois, pelos caminhos
infinitos, / do pranto que caiu dos meus olhos passados, que experiência, ou consolo, ou prêmio
alcançarão? Sua poesia é um mosaico de memórias nítidas ou embaçadas, coloridas ora pela alegria
estampada nas flores ora pela decepção forjada na paisagem árida: Quem falou de primavera / sem
ter visto o teu sorriso, / falou sem saber o que era. // mas quem falou de deserto / sem nunca ver os
meus olhos... / – falou, mas não estava certo.

A terra oferece as imagens em que a persona poética experimenta um tempo aparentemente


incomensurável e reversível – o tempo da poesia lírica. Em Solombra, caminhamos em direção ao
abismo temporal que separa o ser do mundo: Nada somos. No entanto, há uma força que prende / o
instante da minha alma aos instantes da terra. Essa ruptura com o tempo cronológico corrobora o
caráter revolucionário do poema, discurso que se constrói como transgressão da linguagem tanto do
passado quanto do presente. Otavio Paz (1982, p. 31) comenta que a poesia revela ao leitor a
suspensão do tempo, instante em que os opostos se fundem e o ser conhece a plenitude da
reconciliação com a natureza. “Pois o poema é via de acesso ao tempo puro, imersão nas águas
originais da existência.” Diz Cecília Meireles em outros versos: Ir falando contigo, e não ver
mundo ou gente. / E nem sequer te ver – mas ver eterno o instante.

A terra é um território fértil para a poesia com que Cecília Meireles reproduz a paisagem:
Madrugada na aldeia nevosa, / com glicínias escorrendo orvalho, / os figos prateados de orvalho, /
as uvas multiplicadas em orvalho, / as últimas uvas miraculosas. Noutros poemas, retoca o colorido
das flores ou pinta todo o quadro de uma natureza plena, mas inexistente: Torres, piscinas,
palmeiras, / de pura imaginação, / pareciam tão verdadeiras... Como argumenta Bachelard (2001a,
p. 23), “imita-se com mais ardor uma realidade que antes foi sonhada”: Pareceu que houve o
perfume... / E a flor, sem vir, se acabou. / Oh! abelha imaginativa! / o que o desejo inventou...

A poesia da terra se nutre do olhar que sonha com a profundidade da matéria, que averigua suas
entranhas na tentativa de revelar seu mais recôndito segredo. A persona poética quer a intimidade
material da natureza, a revelação do avesso de suas formas. Debruçada na paisagem, se entrega ao
desejo de ver detalhes e minúcias que se escondem no âmago da vegetação: Agora, o cheiro áspero
das flores / leva-me os olhos por dentro de suas pétalas. // Restitui-te na minha memória, por dentro
das flores! A imaginação oscila entre o que se percebe e o que se sonha quando a imagem quer
64

abarcar toda a matéria sob a dialética do profundo e do aparente (Bachelard, 2001a, p. 21). O
devaneio não busca apenas o visível, mas o interior, a sutileza que se abriga no íntimo da paisagem.

No microcosmo, a poeta descobre a infinita beleza da terra que como nosso inconsciente só se
mostra ao olhar atento e vagaroso: A luz revela orvalhos no fundo das flores, / – e ensina a cintilar a
mais ignorada areia, / perdida nas sombras, / submersa nos limos. Escreve Bachelard (idem, p. 39):
“Ao sonhar a profundidade, sonhamos a nossa profundidade. Ao sonhar com a virtude secreta das
substâncias, sonhamos com nosso ser secreto.” No minúsculo ser da terra, contempla-se a criatura
humana: Brilhou a rosa / no espinhoso galho. / Quem a viu? Ninguém. // Vê-te a ti mesmo, / sê teu
agasalho, / pobre Pero Sem.

Seu olhar ora pousa na vegetação para examiná-la com uma curiosidade quase pueril ora vagueia
sem rumo pelos campos. Nesses momentos, Cecília Meireles prefere abarcar a amplitude da
paisagem, sacrificando a contemplação pormenorizada em favor de uma visão panorâmica: Todas
as coisas do mundo: / homens, flores, animais, água, céu... Sobre esse ir e vir da poeta pelas
imagens, como um pássaro que abandonasse seu ninho para sobrevoar uma campina, escreve
Damasceno (1977, p. 20):

Sobre a vastidão da realidade física estendem-se os seus olhos, num levantamento rigoroso da vida
em todas as suas manifestações. O ser orgânico e o inorgânico, o bicho e a planta, a pedra e a luz,
montanha, céu, floresta, tudo cabe no círculo enorme que domina os olhos do contemplador.

Em Canção da Tarde no Campo, lê-se: De tanto olhar para longe, / não vejo o que passa perto. /
Subo monte, desço monte, / meu peito é puro deserto. Alheia à sutileza do detalhe, a poeta compõe
“a pintura larga, policrômica, na qual se retrata um cenário de árvores, nuvens, rios, bichos e
homens.” (idem, p. 29).

Em outros versos, parte da inventariação das imagens da terra para pintar a paisagem. Justapondo
recortes, cria um painel da natureza. Nomeia o pormenor, construindo, passo a passo, o desenho
final, esboço que lentamente se delineia aos olhos do leitor: Cinza. / Branco. / São as canas, as
canas cortadas / no canavial. Damasceno (ibidem) comenta esse procedimento de recriação da
realidade, “que se faz da parte para o todo: frases curtas, ritmo arrastado, constatação gradativa da
natureza campestre”, tal como nestes versos: Chão verde e mole. Cheiros de relva. Babas de lodo. /
A encosta barrenta aceita o frio, toda nua. A aridez da paisagem desolada, por sua vez, traduz-se na
lírica ceciliana em linguagem sóbria, concisa, enxuta: A terra toda seca. Os rios – valas amarelas. /
O pó que o vento levantava. O suor que caía do nosso rosto. / A solidão que abria os braços até o
céu: memória e silêncio. / Muito longe o horizonte: uma faixa vermelha. / O sol baço de névoa e pó.
(...) // Sobre os duros trabalhos do mundo, / a paz, a misericórdia de eternos pensamentos.
65

A terra conhece ainda o mistério do renascimento após cada estação. Seu tempo parece imutável,
permitindo aos animais e plantas escapar da fugacidade a que nos sujeitamos: Mutilados jardins e
primaveras abolidas / abriram seus miraculosos ramos // Recompuseram-se tempos, formas, cores,
vidas... Nosso único consolo, a eternidade, é apenas mais uma dúvida que paira sobre a humana
existência. Não temos a mesma confiança que a terra experimenta diante do presente absoluto,
tempo inconsútil que se desdobra a cada dia: Ah! mundo vegetal, nós, humanos, choramos / só da
incerteza da ressurreição.

Mas como a leitura plural da realidade é inerente à poesia, em outras composições, a terra se revela
também contaminada pela efemeridade de nossas vidas. “Uma nuvem mutável que é sempre e
nunca a mesma é a natureza” (EMERSON, 2003, p. 36). Nada perdura, tudo se esvai: Não te aflijas
com a pétala que voa: / também é ser, deixar de ser assim. Até mesmo as imagens que deveriam
permanecer mais sólidas e constantes se vão: – Os ares fogem, viram-se as águas, / mesmo as
pedras, com o tempo, mudam. Como observa Damasceno (1977, p. 19), Cecília Meireles canta “o
conjunto de seres e coisas que latejam, crescem, brilham, gravitam, se multiplicam e morrem, num
constante fluir, perecer ou renovar-se”. O mundo é o objeto de sua contemplação,
“apreendendo-o em sua inexorável mutação e eternizando a beleza perecível que o ilumina e se
consome” (idem).

No poema seguinte, Cecília Meireles aborda alguns temas recorrentes em sua poesia: a fugacidade
do tempo, a instabilidade do mundo, a presença implacável do destino. Esses matizes fundamentais
delineiam sua obra, “que revela a condição humana e a luta para enfrentar o tempo e a morte”
(SILVA,2004, p. 13):

Cantiga

Ai! A manhã primorosa


do pensamento...
Minha vida é uma pobre rosa
ao vento.

Passam arroios de cores


sobre a paisagem.
Mas tu eras a flor das flores,
Imagem!
66

Vinde ver asas e ramos,


na luz sonora!
Ninguém sabe para onde vamos
agora.

Os jardins têm vida e morte,


noite e dia...
Quem conhecesse a sua sorte,
morria.

E é nisto que se resume


o sofrimento:
cai a flor, – e deixa o perfume
no vento!
67

Embora Roman Ingarden, a partir do método fenomenológico de Husserl, tenha considerado


irrelevante o aspecto visual do poema, opinião inclusive aceita por Wellek e Warren, que
desenvolveram a tese do autor sobre a estrutura da obra literária, julgamos como D’Onófrio (2000, p.
7), entre outros, que o estrato gráfico pode elucidar a leitura. Ao primeiro contato visual, o poema
apresenta-nos, de imediato, seu título. Originalmente, a cantiga era uma composição poética
destinada ao canto e à dança, razão da relevância de seu aspecto fônico (D’ONÓFRIO, 2000, p. 86).
Composto por cinco quadras heterométricas, apresenta versos respectivamente heptassílabos,
tetrassílabos, octossílabos e dissílabos, como se observa na segunda estrofe:

Pas / sam / ar / roi / os / de / co / res – 7 sílabas

so / bre a / pai / sa / gem. – 4 sílabas

Mas / tu / e / ras / a / flor / das / flo / res, – 8 sílabas

I / ma / gem! – 2 sílabas

De origem popular, a cantiga se torna erudita ao desvincular-se da pauta musical e começar a ser
lida. Como manifestação literária, remonta à lírica trovadoresca, movimento estético surgido no sul
da França, na Provença, e que se espalhou pela Europa. As cantigas provençais começaram a ser
escritas na Idade Média, servindo posteriormente de inspiração para que poetas ibéricos e italianos
cantassem o amor, seu principal tema, além de outros assuntos, como patriotismo, ética e sátira
social.

No poema, a alternância de versos longos e curtos realça a temática da instabilidade do mundo em


que nada perdura imutável, onde tudo está sujeito ao devir. O estrato óptico e o semântico
estabelecem, portanto, um “encadeamento de relações”, em que o código verbal articula-se em
função da semelhança intrínseca entre imagem e significado (BOSI, 2004, p. 31).

Entretanto, a manutenção do padrão estrófico (7 – 4 – 8 – 2) constrói uma certa isometria e produz o


efeito harmônico de contraponto das cadências silábicas, em que se delineia a tentativa de apreensão
do efêmero. Ao repetir as mesmas seqüências métricas ao longo do poema, Cecília Meireles parece
também buscar, no caos da existência humana, um equilíbrio possível entre a fugacidade inelutável
e o desejo de permanência. À medida que os esquemas métricos se repetem, reitera-se um
movimento anterior, resgatando-se a noção de unidade que, do contrário, se perderia. Afinal,
segundo as teorias pitagóricas e neoplatônicas, a música é a unidade na multiplicidade, a união dos
opostos; razão por que na Idade Média, atribuía-se à música a harmonia do universo e a saúde do
corpo.
68

A distribuição das sílabas tônicas ao longo do poema determina o ritmo dos versos que a simples
identificação da métrica não é capaz de elucidar, como afirma J. Pfeiffer (apud RAMOS, 1974, p. 45):

O metro é o exterior, o ritmo, o interior; o metro é a regra abstrata, o ritmo é a vibração que confere
vida; o metro é o Sempre, o ritmo o Aqui e o Agora; o metro é a medida transferível, o ritmo a
animação intransferível e incomensurável.

A incidência de tônicas, por exemplo, na quarta sílaba favorece a manutenção do ritmo como se
observa nos dois versos iniciais das quatro primeiras estrofes, no terceiro verso da quarta estrofe e no
segundo verso da última estrofe:

Ai ! / a / ma / nhã / pri / mo / ro / sa.


do / pen / sa / men / to

Pas / sam / a r / roi / os / de / co / res


so / bre a / pai / sa / gem.

Vin / de / ver / a / sas / e / ra /mos,


na / luz / so / no / ra!

Os / jar / dins / têm / vi / da e / mor / te,


noi / te / e / di / a...

Quem / co / nhe / ces / se a / su / a / sor / te.

o so / fri / men / to

Além das pausas fixas, a presença da tônica na segunda sílaba do último verso das quadras também
contribui para a preservação da cadência acentual:

ao / ven / to.

I / ma / gem!

a / go / ra.

mor / ri / a.

no / ven / to!
69

Essa regularidade acentua o tom lírico do poema em que se instaura a musicalidade, de tal sorte que
cada palavra parece insubstituível, pois como afirma Emil Staiger (1975, p. 22): “o valor dos versos
líricos é justamente essa unidade entre a significação das palavras e sua música”. A harmonia entre
som e significado determina o lirismo da composição. Sons e ritmos transmitem uma disposição
anímica que prescinde da linguagem discursiva. Signo e referencial experimentam um estado de
unicidade em que a palavra se dilui na fluidez do canto. A constante preocupação com o andamento
fônico assegura à lírica ceciliana um caráter musical que a aproxima da lírica trovadoresca. Além da
qualidade musical, Coêlho (2002, p. 39) identifica na obra de Cecília Meireles temas e motivos
comuns ao cancioneiro medieval.

A aliteração, reiteração através da repetição de sons consonantais em um mesmo verso,


intensifica o colorido musical do poema ao mesmo tempo em que destaca sememas relevantes
como “flor” e “sorte”:

Ai! A manhã primorosa

Mas tu eras a flor das flores,

Vinde ver asas e ramos,

Quem conhecesse a sua sorte,


Ramos (1974, p. 43) comenta que essa relação som-sentido, cuja origem remonta ao
experimentalismo dos simbolistas franceses Rimbaud e Mallarmé, tornou-se um traço particular da
poesia contemporânea. A musicalidade da poesia ceciliana assume tão claramente valores
semânticos que, a despeito da importância da feição plástica de sua obra, alguns críticos, como
Gaspar Simões (apud MELLO, 1997, p. 79), consideram-na essencialmente musical. Mello (1997, p.
87), inclusive, afirma que, em seus poemas, o efeito musical das palavras é uma forma de
comunicação tão nítida quanto as imagens.

A melancolia revela-se no poema inicialmente pela prosódia, através de assonâncias e


aliterações, que “dissolvem o corpo da palavra” com aproximações fônicas, processo que traduz a
dissolução imposta pelo tempo à realidade. Nos versos seguintes, a reiteração da fricativa / f / e da
sibilante / s / determina uma tensão sonora, que contamina o estrato semântico com ressonâncias: Mas
tu eras a flor das flores, / Quem conhecesse a sua sorte. A incidência desses padrões minimiza a
transparência do signo, “tensionando ao máximo a relação entre o significante e o significado – o corpo
e o sentido” (VIANA, 1994, p. 145-146).
70

A “diversidade articulatória” das vogais é outro fator que corrobora o tom melancólico dos
versos ao reduzir a harmonia do discurso e dificultar sua emissão, exigindo do leitor uma postura
incômoda dos órgãos da fala (VIANA, 1994, p. 147). A distribuição de fonemas vocálicos orais e nasais
se observa em todo o poema, tanto nos versos longos quanto nos versos dissílabos que encerram cada
uma das estrofes. Eis alguns exemplos:
Minha vida é uma pobre rosa
ao vento.

Mas tu eras a flor das flores ,


Imagem!

Ninguém sabe para onde vamos


agora.

Os jardins têm vida e morte,


noite e dia...
Quem conhecesse a sua sorte ,
morria.

A variedade de pontos de articulação das vogais tônicas ou átonas além de realçar o código lingüístico, ilustra a inconstância da realidade na qual tudo muda
incessantemente.

Como em outras composições, Cecília Meireles emprega o octossílabo67, com alternância


básica de acentos e pausas, “sem dar primazia a qualquer esquema particular, variando intensamente
suas realizações”, segundo observa Chociay (1979, p. 94):

Mas / tu / e / ras / a / flor / das / flo / res,


3 6 8
Nin / guém / sa / be / pa / ra on / de / va / mos
2 3 6 8
Quem / co / nhe / ces / se a / su / a / sor / te
3 8
cai / a / flor, / – e / dei / xa o / per / fu / me
1 3 5 8

67
Verso de uso comum na lírica trovadoresca, popularizado por parnasianos e simbolistas, devido à influência da literatura francesa.
71

Perdura na cantiga um lirismo ingênuo, que remonta à poesia popular galego-portuguesa, cuja
influência na obra ceciliana já foi apontada por vários autores. Lemos (apud COELHO, 2002, p. 26)
vincula essa atmosfera lírica à antiga tradição folclórica que se nutria de motivos simples e
universais, “os chamados temas iniciais, relativos às forças elementares da alma e da
natureza, ou a certas situações tópicas, de valor quase mágico” – o amor, a dança sob as árvores, os
banhos em rios e fontes, os lamentos à beira d’água, o canto das aves, o encontro e a despedida dos
amantes.

Nos moldes tradicionais, segundo D’Onófrio (2000, p. 86-87), a cantiga possui três estrofes, formadas
de quatro ou sete versos, com forma paralelística e estribilho, alcançado pela repetição do mesmo
verso ao final de cada estrofe. Chociay (1979, p. 85), por sua vez, diz que a cantiga deve ser escrita
em redondilhas, quadras de versos pentassílabos, com o esquema rímico ABBA, a exemplo das
cantigas provençais. De qualquer sorte, a poeta foge desses modelos de versificação, escolhendo,
inclusive, rimas alternadas (ABAB), graves (entre segmentos paroxítonos) e soantes (reiteração total
a partir da última vogal forte), como se observa na primeira estrofe:

Ai ! A manhã primorosa – A
do pensamento... – B
Minha vida é uma pobre rosa – A
ao vento. – B

A primeira, a quarta e a quinta estrofes possuem duas rimas: uma pobre, envolvendo palavras
de mesma classe gramatical (pensamento / vento; morte / sorte; sofrimento / vento), e outra rica,
entre palavras de classes gramaticais distintas (primorosa / rosa; dia / morria; resume / perfume). A
segunda estrofe reúne apenas rimas pobres (cores / flores; paisagem / imagem), e a terceira, somente
rimas ricas (ramos / vamos; sonora / agora). Tais escolhas acentuam a iconicidade do signo poético,
em que a valorização do tempo presente é expressa em rimas ricas, enquanto a fugacidade do
instante se traduz em rimas pobres. A singeleza das escolhas lexicais, por sua vez, reitera o caráter
popular da canção que, do século XI até o começo do Renascimento, andava na boca dos
trovadores.

Quanto à variedade rímica, ocorre a reiteração de oito segmentos distintos e o reaparecimento,


na última estrofe, da rima presente na primeira quadra. Na forma canônica, a cantiga termina por
uma estrofe breve, a qual apresenta uma dedicatória à mulher amada ou um resumo da temática, tal
como se lê no poema:

E é nisto que se resume


72

o sofrimento:
cai a Flor, - e deixa o perfume
no vento!
Repete-se, no início e no fim do poema a palavra vento, símbolo da fugacidade inerente à vida,
gerando-se um retorno rímico e temático à primeira estrofe. Esse processo, que corrobora o caráter
cíclico da composição, foi responsável pela denominação “redondilha”, atribuída às quadras em
heptassílabos que pareciam, então, redondas (CHOCIAY, 1979, p. 85). A circularidade alimenta o
desejo de permanência, e o círculo, segundo Aristóteles (2002), encarna o movimento eterno e
contínuo. Em Cecília Meireles, a repetição encerra a utopia de conter o avanço do tempo e resgatar
o instante efêmero.

O poema se constrói em torno de acoplamentos – equivalências fônicas, semânticas e sintáticas


– que articulam efeitos de sentido, definindo percursos de leitura. O terceiro e o sétimo versos, por
exemplo, aludem à beleza e à fragilidade da existência através de metáforas com estrutura sintática
(sujeito + verbo de ligação + predicativo) e campo semântico (rosa – flor) idênticos:

[Minha vida] é [uma pobre rosa]

Mas [tu] eras [a flor das flores]

O emprego do artigo indefinido (uma) e do adjetivo (pobre), que denigrem o eu lírico, uma pobre
rosa, contribuem para a idealização do destinatário, que ganha ares de superioridade, a flor das
flores.

Diz Bachelard (2001a, p. 5) que a linguagem poética amplia o sentido das palavras ao criar imagens
que não apenas revelam a natureza, mas sobretudo a recriam. A terra, espelho em que se refletem os
rostos humanos, é o quadro em que se inscreve o poema. Como se lê na segunda estrofe, os termos
paisagem e imagem, em posição de equivalência fônica, sintetizam o argumento poético – o caráter
transitório da vida.

Essa mesma quadra parece antecipar o desfecho do poema, graças ao acoplamento semântico-
sintático que aproxima os versos: Passam arroios de cores e cai a flor. A água em que se espelha o
colorido da vegetação é tão fugaz quanto a flor de que só resta um breve perfume a ser levado pelo
vento. A matéria estéril revela sua força sobre a vida: flor e rosto não perduram mais que um
instante, apenas a ventania prossegue seu curso. Tudo é “interino e efêmero”, diz Emerson (2003, p.
57), exceto a alma humana.

A cantiga nos lembra, através de paralelismos, que compartilhamos com a natureza uma existência
fugaz. O nono e o décimo terceiro versos, por exemplo, que apresentam estruturas sintáticas
73

equivalentes (complementos verbais) guardam uma analogia semântica. Asas e ramos aludem à
fauna e à flora, que estão sujeitas às leis que regem vida e morte de todos os seres. Esses
paralelismos nos reportam à afirmação de Levin (1975, p. 13) sobre a singularidade da estrutura
poética em que “a forma do discurso e seu significado se amalgamam numa unidade superior”.

No verso nove, a sinédoque, ao contrário do que, segundo DAMASCENO (1996, p. 21), comumente
se observa na poesia de Cecília Meireles, não precede uma seqüência de imagens. Antecedida pelas
imagens das estrofes iniciais, é seguida apenas pela sinestesia, caracterizada pelo que Cohen (1978,
p. 99) denomina “adjetivação impertinente”68: Vinde ver asas e ramos / na luz sonora. Esse desvio
da norma da linguagem usual, que institui o sentido conotativo, é um dos mecanismos responsáveis
pela instabilidade de sentido que se observa na lírica ceciliana (COSTA, 1989, p. 208).

O paralelismo fonossemântico na última quadra, entre o segundo e o quarto versos, vincula o


sofrimento do eu poético à efemeridade do mundo, personificada no vento que varre os jardins. Em
entrevista à revista Manchete (BLOCK, 1964, p. 20), Cecília chegou inclusive a confessar o quanto a
perturbava a instabilidade da existência humana:

A noção ou sentimento da transitoriedade de tudo é o fundamento mesmo da minha personalidade.


Creio que isso explica tudo quanto tenho feito em literatura, jornalismo, educação e mesmo
folclore.
Ainda na quinta estrofe, a falta de sincronismo entre a pausa métrica e a pausa semântica,
recurso poético discutido por Ivan Fónagy (apud RAMOS, 1974, p. 54), retrata a inquietude da
persona poética diante da transitoriedade da vida, bem como seu desejo de evasão da dor de existir:

E é nisto que se resume


o sofrimento:
cai a flor, - e deixa o perfume
no vento!”
Mello (1997, p. 80) comenta que a poesia ceciliana guarda ritmos harmoniosos ou dissonantes
conforme o eu poético encontre, em meio ao caos da realidade, equilíbrio ou angústia. Seus poemas
mais musicais adotam alguns recursos rítmicos como a repetição de sons, a distribuição cuidadosa
de sílabas tônicas, o uso de anáforas, rimas e métrica. A canção, segundo Damasceno (1996, p. 20), é
a forma poética com a qual Cecília Meireles mais comumente traduz a harmonia entre o sonho e o
mundo.

A análise do estrato semântico revela a isotopia do destino, em que se incluem os sememas vida,
morte, sorte, morria e sofrimento, os quais definem o ciclo da existência na terra. A fragilidade e a

68
A adjetivação impertinente é um desvio poético, que consiste em vincular a um substantivo um atributo que não lhe
condiz; por exemplo: “solidão azul” (Mallarmé).
74

beleza do ser confluem para a imagem da flor que cai na terra à mercê da gravidade, a que
Schopenhauer atribui uma vontade. Para o filósofo, a gravidade é a força primordial que nos
predispõe à queda (apud Bachelard, 2001a, p. 307). Nosso último destino é cair sobre a terra, quando
formos apenas uma recordação como a flor ao vento. Para Damasceno (1977, p. 33), a lírica
ceciliana capta a mais recôndita mensagem da natureza:

Da consideração da flor, que morre em formas e vive em perfume, tira-se a lição que aproveita aos
homens: ser e deixar de ser é sempre um modo de vida; feitos perfume e lembrança, perduramos
no que de nós se perde.
A temática da dor, presente em Cecília Meireles, parece fincar uma de suas raízes no
misticismo oriental com que a poeta se identificara desde muito jovem. Para o Budismo, a vida
enquanto individualização do espírito é fonte de sofrimento e limitação. A única forma de liberdade
consiste na busca da leveza, através do desapego à terra, proposta, inclusive, formulada no poema:
Vinde ver asas e ramos, / na luz sonora! Sobre as concepções místicas que permeiam sua obra,
Sampaio (apud MELLO, 1997, p. 82) identifica uma postura metafísica, com raízes não apenas na
filosofia oriental, mas também na filosofia platônica, neoplatônica e na religiosidade ocidental.
Correntes do pensamento para as quais o mundo material é apenas uma imagem inconsistente.

Em meio a ramos e jardins, compõe-se a isotopia da terra, que compreende também os


vocábulos: rosa, flor(2x), flores, ramos e perfume. São imagens de um vegetalismo mole, que
desconhece a resistência de uma árvore, capaz de suportar tempestades e desafiar o tempo.
Damasceno (1996, p. 19) percebe que na poesia ceciliana a rosa adquire um tom peculiar:

encarada já pelo aspecto sensorial, já pelo conceitual (simbolização da brevidade da vida), ou do


amor-perfeito, que permite um desdobramento de planos semânticos e metafóricos de extrema
singularidade.
Diz Bachelard (2001a, p. 55) que “o tronco de um carvalho atormenta em nós forças que almejam ser
inabaláveis”. A flor, a rosa, o ramo, ao contrário, expõem nossa fragilidade diante das ameaças do
mundo.

Em contraponto à atmosfera melancólica, ilumina o poema a isotopia do fogo, retratando a


passagem do sol sobre a paisagem, com os termos manhã, luz, noite e dia. Essa confluência de
vocábulos antônimos procede da idéia de que no universo, do microcosmo ao macrocosmo, coexistem
imagens opostas, que aludem às várias possibilidades do ser. O próprio sol surge e desaparece no
horizonte no ciclo contínuo dos dias; luz e treva, aos nossos olhos, alternam-se infinitamente. Acerca
dessa incidência de antíteses na poesia ceciliana, Cañizal (1966, p. 58) identifica “um jogo de presenças e
ausências” que determina a “tonalidade emotiva dos poemas”.
75

Ao delinear o quadro da paisagem em que se inscreve o tempo, Cecília Meireles reúne os


vocábulos cores, paisagem e imagem, os quais integram a isotopia da pintura. A poesia capta o
colorido da natureza que, refletida nas águas, flui como os arroios e se torna ainda mais efêmera.
Somente a moldura do verso é capaz de iludir o curso do tempo, guardando nas entrelinhas o
momento. Na tela do poema, o eu lírico resgata o ente querido da transitoriedade do mundo ao
transformá-lo em imagem, embora tão fugaz quanto a rosa. Ao transpor para o poema a natureza,
Cecília Meireles nos lembra que “a vida flui, constante, e o tempo, inexorável, tudo corrói”
(DAMASCENO, 1996, p. 19).

Nada se prolonga por muito tempo na terra – a flor não dura mais que o instante em que sua
presença se faz nossa companhia. O tempo, personificado no vento que passa pela vida e pelos
jardins, é tão efêmero quanto os pássaros que mal pousam e logo se vão. Asas e vento compõem a
isotopia do ar, elemento de leveza e dinamismo que o peso dos corpos parece contradizer. O
movimento aéreo arrasta a existência na teia das horas: E é nisto que se resume / o sofrimento. A
vegetação e suas cores, o homem e seus sonhos, a terra e, como já revelou a ciência, o próprio sol de
que depende a vida, tudo é uma pobre rosa ao vento. Nas palavras de Bachelard (2001b, p. 13), “as
imagens do ar estão no caminho das imagens da desmaterialização”. A asa do pássaro sobre os
ramos faz da realidade o mais fugidio quadro sob o olhar transitório do eu lírico.

O termo alótopo69, arroios, traduz a força da água que arrasta consigo os reflexos da vegetação
com o mesmo capricho com que o tempo inunda a paisagem da terra e arrasta a vida em seu curso.
A água, como o ar, encarna a transitoriedade da natureza em movimento contínuo, sob o fluxo do
presente, guardado no poema. Acredita Linhares (1976, p. 200) que o traço mais constante da poesia
ceciliana é justamente “a euforia proveniente do contato com o mundo físico e a melancolia de sabê-
lo perecível”. Os regatos, ao contrário dos rios caudalosos, não conhecem a permanência, são o
espelho mais fugaz da realidade. Não apenas levam as imagens da terra, refletidas em suas águas,
como eles próprios se deixam levar pelo tempo. As águas ribeirinhas vivem a essência do
movimento, captado nesse e em outros poemas de Viagem, obra em que a natureza é um cenário de
lições inesgotáveis.

Cantiga exprime o lamento do eu lírico contra o curso inexorável da vida. A imaginação


criadora quer a todo custo modificar a realidade porque não se sujeita à sua fenomenologia. Nesse
sentido, a persona poética questiona a natureza e se torna o contra-ser das coisas (BACHELARD, 2001a,
p. 94-95). O poema ilustra a forma como a própria Cecília Meireles (apud PELOSO, 1970, p. 61)

69
Alótopo: vocábulo que não pertence a nenhuma isotopia instaurada no poema.
76

definiu sua poesia: “Os meus versos são quase inscrições de amor triste, saudade, lágrima sobre a
decadência ou falência de tudo.”
Em Os Gatos da Tinturaria, como em seus poemas infantis, a poeta não teme “o risco de ser
considerada superficial”, fazendo-nos encontrar, a princípio, um “encantamento sonoro” que se
sobrepõe à “percepção do sentido” (MARCO POLO, 2001, p. 12):

Os gatos brancos, descoloridos,


passeiam pela tinturaria,
miram polícromos vestidos.

Com soberana melancolia,


brota nos seus olhos erguidos
o arco-íris, resumo do dia,

ressuscitado dos seus olvidos,


onde apagado cada um jazia,
abstratos lumes sucumbidos.

No vasto chão da tinturaria,


xadrez sem fim, por onde os ruídos
atropelam a geometria,

os grandes gatos abrem compridos


bocejos, na dispersão vazia
da voz feita para gemidos.

E assim proclamam a monarquia


da renúncia, e, tranqüilos vencidos,
dormem seu tempo de agonia.

Olham ainda para os vestidos,


mas baixam a pálpebra fria.

Composto de seis tercetos e um dístico, com rimas graves (entre segmentos paroxítonos),
soantes (reiteração total a partir da última vogal forte) e alternadas, segundo o padrão ABA-BAB e
AB, o poema causa um certo estranhamento por não manter três versos na última estrofe. A
77

seqüência de rimas produz uma impressão de contraste e de complementaridade, devido,


respectivamente, à alternância das terminações (idos, ia) e à reiteração do fonema / i /. Além disso,
entre as palavras rimadas, verificam-se dois grupos de sentido: as que expressam falência
(descoloridos, olvidos, sucumbidos e vencidos); e as que revelam sofrimento (melancolia, jazia,
agonia). Caracterizam-se, portanto, acoplamentos fonossemânticos que reiteram o caráter
complexo da linguagem poética.

O aspecto gráfico sugere uma temática comum, com que Cecília Meireles em muitos poemas
faz “um convite à novidade do trivial, ao inusitado do conhecido” (MESQUITA, 2001, p. 19). Gatos,
entretanto, parece um assunto pouco adequado à lira, prova de que a poeta, embora não tenha
adotado incondicionalmente os pressupostos modernistas, certamente deixou-se influenciar pela
idéia de renovação propagada pelo movimento. Em sua obra, Monteiro (2001, p. 10) identifica
“novas e freqüentes inserções temáticas e estilísticas”, graças a seu “dom de transformar assuntos
banais, aparentemente simplistas ou espinhosos em poemas de alta resolução imagética e melódica”.

Uma leitura mais detalhada do estrato fônico, revela que cinco tercetos apresentam dois versos
eneassílabos, seguidos por um verso octossílabo; já o segundo terceto e o dístico apresentam o
seguinte padrão métrico:

Com / so / be / ra / na / me / lan / co / li / a, – 9 sílabas


bro / ta / nos / seus / o / lhos / er / gui / dos – 8 sílabas
o ar / co-í / ris, / re / su / mo / do / di /a, – 8 sílabas

O / lham / a / in / da / pa / ra os / ves / ti / dos, – 9 sílabas


mas / bai / xam / a / pál / pe / bra fri / a. – 8 sílabas

A propósito de metrificação, ao analisar Viagem, diz Mário de Andrade (2002, p. 168) que prefere
“Cecília Meireles nos seus poemas medidos”, embora julgue “belíssimos” seus versos livres.
Indiscutivelmente, nesse como em outros poemas, a métrica nos conduz a uma musicalidade tão
fluida que as palavras não parecem submetidas a um esquema métrico anterior à composição, mas
combinadas segundo sua melodia natural. Ao contrário dos modernistas mais radicais, a poeta “não
passou pelo destroçamento às vezes pueril da métrica; preferiu manter a fidelidade a uma poesia
mais sensorial, musical e cromática, ligada à tradição poética portuguesa” (ESTENSSORO, 2001, p.
61).

Ocorre ainda no terceiro verso um processo de translação, responsável pela mudança da tônica do
vocábulo policromo para a sílaba anterior, como se observa no terceiro verso: miram polícromos
78

vestidos. Certamente Cecília Meireles preferiu alterar a tonicidade original70 a comprometer a


reiteração sonora com os vocábulos descoloridos e vestidos, que apresentam em sílabas contíguas os
fonemas / i / tônico e / o / átono. Além disso, a acomodação acentual garante a aproximação fônica
de termos correlatos, que caracteriza o acoplamento: os polícromos vestidos eram descoloridos.

Destaca-se também uma série de enjambements, que rompem o paralelismo fonossemântico do


discurso, separando, em versos consecutivos, termos sintática e semanticamente vinculados:

No vasto chão da tinturaria,


xadrez sem fim, por onde os ruídos /
atropelam a geometria,

os grandes gatos abrem compridos /


bocejos, na dispersão vazia /
da voz feita para gemidos.

E assim proclamam a monarquia /


da renúncia, e tranqüilos vencidos,
dormem seu tempo de agonia.

Esse procedimento, que afeta a disposição visual dos vocábulos, é particularmente significativo no
poema ao conciliar expressão e conteúdo. Realiza-se a iconicidade do signo, a que se refere Karl
Bühler (apud BOSI, 2004, p. 3):

o homem que aprendeu a ler e interpretar o mundo silabando vê-se, pelo instrumento mediador que
é a linguagem e suas leis próprias, apartado da plenitude imediata do que os olhos podem ver, os
ouvidos escutar, a mão apreender, e busca o caminho de volta, trata de lograr uma apreensão plena
do mundo concreto, salvando o silabeio, no que é possível.

Estamos diante do signo motivado a que também alude Tinianov (1975, p. 15) e cuja presença se
justifica por sua relação com os demais componentes do enunciado poético. O caráter expressivo da
versificação elucida aspectos semânticos, determinando a correspondência entre som e significado
que caracteriza a linguagem poética. O processo rímico, definido pelas rupturas no ritmo da frase,
incorpora ao aspectos fônico e óptico a incompatibilidade entre o sujeito e o mundo. O enjambment
traduz o sentimento que a poeta revelou em carta a Fernando Azevedo (apud NEVES, 2001, p. 85), ao
se confessar uma “criatura tão embebida em sonho”, que se esforça para conviver “de olhos abertos”
com os que não a compreendem. As dificuldades de interpretação impostas pela estrutura do poema

70
Em Lembrança de Patna, a prosódia é assegurada: As flores de ervilha enchiam com o seu perfume toda a cidade, //
penetravam no museu, animavam os velhos retratos, / dançavam pelas ruas, frescas e policromas, / alegravam o céu e a
terra, / coroavam a tarde com seus ramos apaixonados.
79

reproduzem esteticamente o hiato entre o desejo e a realidade. Uma certa indefinição paira nessas
sentenças em que o eu poético traduz a incerteza e a incompletude inerentes à vida, como se lê em
outra correspondência de Cecília Meireles para o educador (apud SILVA, 2004, p. 207):

Imagine, pois, como me distraem suas cartas, que acreditam em coisas definidas e claras, e me
aparecem tão envoltas de obscuridade que eu apenas posso constatar a verdade do mistério
humano: buscando-se, perdendo-se, contradizendo-se, incansável, atormentado por si mesmo,
detestando e amando a sua própria indefinição.
De um verso a outro, instaura-se no poema um vazio semântico, em que se inscreve a busca de
significado para a existência. Cecília Meireles empreende em sua obra, marcada por aspectos
intimistas e introspectivos, uma “permanente viagem interior”, cujo personagem central é o tempo
fugidio (TERRA; NICOLA, 1977, p. 328).

A instabilidade inerente à vida e o absurdo do cotidiano parecem determinar o estrato lexical


em que se justapõem antônimos, nos moldes da estética barroca, marcada pelo dualismo e pelo
conflito conceitual. Eis alguns termos que encerram oposições: Os gatos brancos, descoloridos, /
miram polícromos vestidos; Com soberana melancolia, / o arco-íris, resumo do dia; ressuscitado
dos seus olvidos, / onde apagado cada um jazia, / abstratos lumes sucumbidos; E assim proclamam
a monarquia / da renúncia, e, tranqüilos vencidos; brota nos seus olhos erguidos // mas baixam a
pálpebra fria. Cecília Meireles encontra nas antíteses apregoadas pelo Barroco uma forma para
expressar a angústia instaurada no mundo moderno, cuja única certeza é a infinita contradição:

A imagem reconcilia os contrários, mas essa reconciliação não pode ser explicada pelas palavras –
exceto pelas da imagem, que já deixaram de sê-lo. (...) O poema é linguagem em tensão: em
extremo de ser e em ser até o extremo (PAZ, 1982, p. 135).
Uma vez que o código poético é estruturalmente plural, resta ao leitor compreender as ambigüidades do texto que extrapolam a simples denotação. Suas
palavras encerram sentidos múltiplos e sugerem incertezas. Embora a linguagem prática também comporte certo dualismo, o contexto sociolingüístico é capaz
de esclarecer o sentido de seus enunciados. O mesmo não ocorre na poesia, cujo discurso conciso e simbólico, desprovido de uma contingência situacional,
não pode ser reduzido a uma única leitura. A linguagem poética entrelaça significados, sugerindo traduções distintas e complementares das imagens que
constituem cada uma de suas linhas isotópicas.

No espaço do poema, a experiência do real torna-se irredutível à palavra; somente a linguagem


poética, múltipla de significados, pode exprimir os quadros díspares da realidade. O poema
pressupõe uma leitura simbólica do mundo, a que Zambolli (2002, p. 17) atribui um caráter subjetivo.
“O símbolo poético”, segundo o autor, “não pertence à ordem intelectiva, mas à da afetividade”, por
ser “essencialmente linguagem”. Os gatos, por exemplo, furtivos e noturnos, representam uma forte
ligação com a terra e um empecilho para o onirismo do ar (BACHELARD, 2001b, p. 156). Para a
heráldica, simbolizam a liberdade e a coragem, porque não se submetem facilmente quando
apanhados e são caçadores implacáveis (BIEDERMANN, 1994, p. 173). Ternos e dissimulados, os
gatos são símbolos de perspicácia, tenacidade, reflexão e magia. Sua representação no imaginário
oscila, portanto, entre o bem e o mal.
80

Cabe aos gatos o chão da tinturaria, onde não há espaço para o devaneio. Pendurados no alto,
os vestidos são o horizonte interdito do desejo. Melancólicos, os gatos brancos personificam o
pragmatismo dos valores terrestres; os vestidos tinturados desenham o arco-íris do sonho. Nesse
contexto, integram a isotopia dos felinos, os vocábulos gatos (2x), bocejos, gemidos e dormem, em
que se traduz o conformismo diante da realidade. Como analisa Tufano (1983, p. 179), a poesia
ceciliana “é marcada por uma nota de tristeza e desencanto” , em que se lê “uma resignação madura
perante as angústias da vida”. No poema, o contraste entre a cor dos gatos e a tintura dos vestidos é
pretexto para a sugestão de questões inerentes à humanidade: a falta de colorido em nossas vidas, a
pequenez do homem em face das circunstâncias, o conformismo diante da impossibilidade dos
desejos, a busca do sonho como um refúgio.

Na primeira estrofe, delineia-se também a isotopia da cor, que compreende os sememas brancos,
descoloridos, tinturaria, polícromos, arco-íris e apagado, os quais remetem o leitor aos tons da
juventude e da velhice. O branco dos gatos, que contrasta com o colorido dos tecidos, é a unificação
das cores do espectro solar – o avesso do arco-íris. Branco é o símbolo da inocência e da purificação
do espírito, objetivo final da vida. Na tradição chinesa, o branco é a cor da velhice, do outono, da
morte, do luto, mas também da castidade e da pureza (BIEDERMANN, 1994, p. 59). Como escreve
Emily Dickinson em um poema, The Color of the Grave is white – (A Cor do Túmulo é branca).
Refugiados na tinturaria, os gatos do poema não lutam mais contra o tempo, apenas aceitam os tons
desbotados da idade.

Em torno de um motivo aparentemente banal, o poema constrói uma alegoria do tempo inexorável
que tudo consome: o colorido das roupas, o vigor dos felinos, o brilho dos olhos, o viço da pele.
Como os gatos, mais cedo ou mais tarde, vemos embranquecer as cores de nosso percurso. Quando
branqueiam os cabelos e desbotam os sonhos como os tecidos, tantas vezes bocejamos sem ânimo
para pintar outros quadros ou sequer descobrir uma explicação para o traçado de nossas vidas.
Restam-nos apenas as cores da sabedoria, que compensam o ar esbranquiçado dos anos.

A isotopia da visão reúne as palavras miram, olhos, olham e pálpebra, que expressam a reação dos
gatos diante dos vestidos entre fascínio e contemplação. Longe do alcance dos felinos, as roupas
tinturadas são apenas uma imagem que o desejo sabe impossível. Os gatos brancos inutilmente
almejam a alegria devolvida pela cor às roupas, mas seus olhos guardam tristeza e resignação por
sabê-la inatingível. Em branco, vivem abandonados como os vestidos, antes que a tintura lhes
devolvesse a vida.

Os vocábulos soberana, proclamam, monarquia, renúncia e vencidos, que compõem a isotopia do


poder, ironicamente expressam a vitória do tempo sobre os gatos. Sua decadência no chão
81

esquecido da tinturaria é anunciada com a pompa de um acontecimento político. Entregam-se os


gatos ao sono e desistem dos vestidos porque é soberana a melancolia, e o tempo governa-lhes a
vontade. Deitados no chão, os gatos aceitam, sonolentos e derrotados, a impossibilidade de
reaverem a “cor” perdida. Da mesma forma, nos resignamos diante da velhice ao sabermos o
ontem irrecuperável – marca indelével, resistente a qualquer tintura. “A nostalgia do tempo
passado”, analisa Ferreira (2001, p. 279), é um tema presente tanto na poesia quanto na prosa
ceciliana. Sobre o mundo, preside o tempo na memória, adormecido na alma dos objetos, na
lembrança dos gatos melancólicos e na textura dos vestidos tinturados.

O declínio, ameaça que paira sobre os gatos, os homens e os vestidos, se traduz nos seguintes
isótopos: melancolia, olvidos, sucumbidos, vencidos e agonia. A isotopia da morte compreende os
sememas jazia e ressuscitado que correspondem respectivamente à ausência e à recuperação da cor.
A imagem dos gatos na tinturaria é apenas um pretexto para a análise de questões universais como a
transitoriedade da existência e o devir a que se submete o mundo.

Fazer das imagens naturais um motivo para a abordagem de questões filosóficas é uma
característica da tradição poética chinesa. A natureza figura como uma alegoria, por exemplo, em
dois poetas da Dinastia T’ang (618-907), Li Po (699-762) e Tu Fu (712-770), cuja obra de inspiração
epicurista e taoísta Cecília Meireles não somente admirava como traduziu para o Português
(GOUVÊA, 2001, p. 42; PAES, 2002, p. 17). O Taoísmo explica a harmonia entre o homem e a
paisagem, traço do lirismo chinês que a poeta, como poucos ocidentais, soube compreender e
apreciar. Poemas breves, em linguagem concisa são uma marca da poesia chinesa, cuja economia
de meios encerra um enorme poder de sugestão71 (BIRCH, 1967).

Na lírica ceciliana, sob a aparente simplicidade dos versos, as palavras revelam dimensões
semânticas, visuais e sonoras que ratificam o caráter icônico da composição poética . Atribuindo à
poesia de Cecília Meireles um cunho epigramático, Rónai (apud DAMASCENO, 1996, p. 80) comenta
que “as palavras enchem-se de sentidos múltiplos, um verso condensa três, uma imagem,
um poema inteiro”. O poema corrobora, portanto, a concepção de Kristeva (1974, p. 98) sobre
o aspecto intertextual da linguagem literária. “Diálogo de dois discursos”, cada poema é feito de
“todos os textos do espaço lido pelo escritor”, isto é, do “corpus literário anterior ou sincrônico”: “O
texto literário se insere no conjunto dos textos: é uma escritura-réplica (função ou negação) de um
outro (dos outros) texto(s).”

71
Um bom exemplo é o poema de Li Po Na Montanha: Pergunta e Resposta, que traduzimos do inglês: Você me pergunta: /
Por que vive / nesta verde montanha? / Sorrio / Sem resposta / Meu coração sereno / Na água passam / flores do pessegueiro /
quietas vão / para longe / Esta é outra terra / outro céu / Nada se parece /com o mundo humano lá embaixo. (BIRCH, 1967,
p. 225).
82

Em outra linha isotópica situam-se as palavras xadrez e geometria, que definem o traçado do piso e
das linhas da vida. Como os gatos que se movem no chão quadriculado da tinturaria, caminhamos
sobre um enigmático tabuleiro de xadrez – o destino. Nossos passos tantas vezes erram o caminho,
face à complicada geometria72, desenhada pelo tempo sobre a vida, lance após lance. Podemos
ainda supor que a complexidade inerente ao jogo de xadrez e à geometria ilustra as dificuldades da
existência para gatos e homens, que se irmanam nos percalços da juventude e no tempo descolorido
da velhice.

Compõe ainda o poema a isotopia do som, envolvendo os substantivos ruídos, voz e gemidos, que
reproduzem os sons da tinturaria e dos gatos no final do dia. Os felinos, cujos gemidos certamente
antes se ouviam, calam-se agora na dispersão vazia da voz e apenas bocejam. Vencidos pelos anos,
renunciam o prazer de perambular pela noite, pois já não lhes animam a vontade e a esperança.
Como os homens, os gatos abdicam da cor e dos sonhos. Embalados pelo torpor da velhice, baixam
a pálpebra fria e dormem tranqüilos.

O poema Os gatos na tinturaria, em última análise, é um exemplo de que Cecília Meireles,


como em suas crônicas, extrai dos eventos mais corriqueiros e simples uma profunda reflexão sobre a
vida humana (FERREIRA, 2001, p. 278). Conclusão semelhante é exposta por Coêlho (2002, p. 8) ao
afirmar que em sua poesia, na qual coabitam os “conflitos do cotidiano” e do “mundo invisível”, “as
palavras triviais” e “os temas comuns” escondem nas entrelinhas ares de complexidade. Diante do
espetáculo comum da natureza ou das banalidades do dia-a-dia, a poeta encontra na literatura um meio
para discutir o drama da existência. Essas e outras questões também presentes na lírica dickinsoniana,
serão abordadas no capítulo seguinte.

72
Emily Dickinson e Cecília Meireles aludem à geometria: – Tudo foi sobrenatural, / sem peso de contentamento, / sem
noções do mal nem do bem, / – jogo de pura geometria; Best Witchcraft is Geometry (Melhor Feitiçaria é a Geometria) / To
the magician’s mind – (Para a mente do mágico) (grifo nosso).
83

Deus disse: “Eis que eu vos dou

toda a erva que dá semente sobre a terra,


84

e todas as árvores frutíferas

contendo em si mesmas a sua semente,

para que vos sirvam de alimento.’

E a todos os animais da terra,

a todos os pássaros dos céus,

a tudo o que se arrasta sobre a terra,

e em que haja um sopro de vida,

eu dou toda a erva verde por alimento”

E assim se fez.

Gênesis 1, 29-30.
85

3. A REPRESENTAÇÃO DA NATUREZA NA POESIA DE EMILY DICKINSON E CECÍLIA MEIRELES


____________________________________________________________________________________

Ao adotarmos uma abordagem comparativa da obra de Cecília Meireles e de Emily


Dickinson73, estamos lançando mão de um procedimento inerente ao próprio texto poético –
a analogia. Tanto na criação quanto na leitura de poemas, a comparação é um meio de
aproximação de imagens e uma forma de intersecção de discursos. A essência da linguagem poética,
segundo Aristóteles (2003, p. 80), reside justamente em estabelecer relações de comparação
que se manifestam através da metáfora e produzem uma elocução única, isenta de vulgaridade.
Para Emerson (1974, p. 1278), a analogia não se restringe aos sonhos dos poetas, mas está presente
na alma humana, levando-nos a estabelecer infinitas relações entre os objetos e a natureza.
Comparar, portanto, é estabelecer analogias e contrastes, é buscar traços de similaridade ou divergência
entre entidades singulares.
No horizonte imaginário do poema, a comparação instaura uma leitura inaudita do real, aproxima o que o senso comum distancia, como o sonho e a
casca da noz: How fits his Umber Coat (Como ajusta seu Casaco Castanho) / The Tailor of the Nut? (O Alfaiate da Noz?) / Combined without a seam (Feito
sem uma costura) / Like Raiment of a Dream – (Como a Roupagem de um Sonho –). Fruto da analogia, o poético revela-se um discurso polifônico,
um tecido de idéias que se entrecruzam, um enunciado polêmico em que não cabe uma verdade única e autoritária74: Mas não verás tua existência / nesse
mundo sem sol nem chão, / por onde se derramarão / os mares da minha incoerência. Afinal, “as imagens mais belas são amiúde focos de

ambivalência” (BACHELARD, 2001a, p. 8), e o poema, como a metáfora que o particulariza, é o locus do cruzamento de isotopias, o espaço
para a intersecção de vozes dialógicas.

A despeito de influências, a poesia das autoras está repleta de afinidades que denotam posturas filosóficas e concepções estéticas semelhantes. Religiosidade e
ceticismo, a relação entre o homem e a terra, a observação aguda, a preocupação com detalhes, as escolhas temáticas inusitadas e a experimentação estilística
fazem da poesia de Emily Dickinson e de Cecília Meireles uma viagem original pela natureza.

73
Os versos citados neste capítulo foram extraídos das seguintes obras: JOHNSON, Thomas (ed.). The Complete Poems of
Emily Dickinson. London: Faber and Faber, 1975; MEIRELES, Cecília. Obra Poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1977.
74
Questionado certa vez sobre a contradição em sua poesia, Walt Whitman respondeu: “Sou imenso, tenho em mim todas as
contradições” (OSHO, 2005, p. 69).
86

3.1 A Estilística da natureza

Como Emily Dickinson, Cecília Meireles colhe na natureza cenas corriqueiras que se
transformam em motivos líricos e adquirem um colorido singular: Som / frio. // Rio / sombrio. // O
longo som / do rio / frio. // O frio / bom / do longo rio. // Tão longe, / tão bom / tão frio / o claro som /
do rio / sombrio! O poema ceciliano, ágil e ritmado, surge da “pureza do olhar inaugural”
(COELHO apud REZENDE, 2001, p. 252) que lhe confere a ingênua perspectiva da infância: No cedro e
na rosa, / o gesto da brisa. Esse mesmo aspecto é identificado por High (1993, p. 75) na obra de Emily
Dickinson. O contato com o Calvinismo a fez encarar a vida sob o prisma da morte e interpretar o
mundo com a inocência de quem o contempla pela primeira e a última vez: A slash of Blue – (Um
entalhe de Azul –) / A sweep of Gray – (Uma varredura de Cinza –) / Some scarlet patches on the way
(Alguns retalhos escarlate no caminho), / Compose an Evening Sky – (Compõem um Céu Poente –).
A poeta carioca geralmente traduz as imagens da terra em versos e poemas mais longos que os
de Emily Dickinson. Em sua lírica, vários motivos da paisagem se entrelaçam a considerações sobre a
existência: Como pequena flor que recebeu chuva enorme /... // e vê passarem as leves borboletas
livremente, / e ouve cantarem os pássaros acordados sem angústia, / e o sol claro do dia as claras
estátuas beijando sente, / ... // há um coração nas lânguidas tardes que envolvem a vida. Todavia, em
algumas composições, Cecília Meireles nos surpreende com versos tão densos e breves quanto os da
poeta de Amherst. “As palavras enchem-se de sentidos múltiplos, um verso condensa três, uma
imagem um poema inteiro” (RÓNAI,1958, p. 56). Em Canção Mínima, por exemplo, parece focalizar as
sutilezas da imagem com uma câmera cinematográfica: No mistério do Sem-Fim, / equilibra-se um
planeta. // entre o planeta e o Sem-Fim, / a asa de uma borboleta. “Poucos poetas brasileiros”, na
opinião de Ataide (1983, p. 36), “conseguiram manipular com tanta segurança o verso breve (cinco e
sete sílabas) como Cecília Meireles”. Seus poemas curtos, feitos de versos compactos, aproximam-se
da expressão sucinta e exata da lírica dickinsoniana, observando, algumas vezes, a mesma precisão
epigramática.
A poeta norte-americana prefere os versos concisos, dispostos em poemas breves, em linguagem sucinta, muitas vezes em torno de uma única imagem da
natureza, na qual se revela a alma humana: Our lives are Swiss – (Nossas vidas são Suíças –) / So still – so Cool – (Tão quietas – tão Frias –) / Till some odd
afternoon (Até que em uma tarde incomum) / The Alps neglect their Curtains (Os Alpes negligenciam suas Cortinas) / And we look farther on (E olhamos

adiante). Marcados pela economia de palavras e objetividade de sentimento (CAVALCANTI, 1997, p. 26), seus poemas curtos, em geral, com
quatro estrofes, são compostos com doses mínimas de filosofia e paisagem: Of Nature I shall have enough (Da Natureza terei o bastante) / When I have
entered these (Quando houver conhecido) / Entitled to a Bumble bee’s / Familiarities (As Familiaridades / Concedidas À Abelha). Condensados como
telegramas, lembram oráculos, algumas vezes, espirituosos; outras vezes, extravagantes. Essa opção pela brevidade perpassa toda sua obra, inclusive, os

últimos poemas, que revelam uma absoluta liberdade de expressão (CAVALCANTI, 1989, p. 133). Sua lírica cultiva o hermetismo e a

concisão dos hi-kais, características que agradam particularmente ao leitor moderno (FULLER; KINNICK, 1980, p. 154).
Mas como a poesia é linguagem de exceção, o poema que abre a edição de Johnson apresenta trinta e oito versos longos, dispostos em uma única estrofe,
precedidos do seguinte dístico: Awake ye muses nine, sing me a strain divine (Acordem nove musas, cantem uma melodia divina) / Unwind the solemn twine,
87

and tie my Valentine! (Desentrelacem o barbante solene e amarrem meu Presente!). As imagens da natureza, que permeiam toda a sua produção literária ao
lado das temáticas de amor e morte, parecem fincar raízes nesse poema em que a poeta identifica um caminho para a contemplação e identificação com a vida
que se nutre da terra: pássaros, insetos, flores e plantas.

Fragmentados ou incompletos, os poemas dickinsonianos não conhecem limitações de


rima, grafia ou pontuação (CAVALCANTI, 1989, p. 133). Como os românticos e os
modernistas, a poeta foi fiel somente à rebeldia, à busca de novas formas para a expressão do
sentimento humano em face da vida. Desafiou os cânones da erudição com as peculiaridades
de sua gramática particular, marcada por idiossincrasias – emprego insólito do travessão e do
pronome pessoal, alteração na ordem sintática, ausência de flexão verbal e uso incomum de
iniciais maiúsculas –, como atestam estes versos: The Wind didn’t come from the Orchard –
today – (O Vento não veio do Pomar – hoje –) / Further than that – (Mais do que isso
–) / Nor stop to play with the Hay (Nem parou para brincar com o Feno) / Nor joggle a Hat –
(Nem sacudiu um Chapéu –) / He’s a transitive fellow – very – (Ele é um sujeito transitivo –
muito –) / Rely on that – (Acredite nisso –) // If He leave a Bur at the door (Se ele deixar um
Carrapicho na porta) / We know He has climbed a Fir – (Sabemos que Ele subiu um Pinheiro
–) (grifo nosso). Segundo Reeves (1963, p. 122), o uso do subjuntivo, que muitos críticos
questionam, é um recurso para indicar o caráter provisório da verdade, tornando menos
absolutas e definitivas as afirmações: Manacles be dim – they say – (Algemas sejam obscuras
– dizem –) / To the new Free – (Para os Recém-libertados); If Blame be my side – forfeit Me
– (Se a Culpa estiver do meu lado – confisque-Me –); But God be with the Clown (Mas Deus
esteja com o Palhaço) – / Who ponders this tremendous scene – (Que medita sobre esta cena
tremenda –) (grifo nosso).
Apesar de suas excentricidades, Emily Dickinson criou uma obra íntegra e original, fruto de seu talento para traduzir em poesia o mundo a sua volta: They
called me to the Window, for (Chamaram-me à Janela, pois) / “ ’T was Sunset” – Some one said – (“Era o Crepúsculo” – Alguém disse –); I watched the
Moon around the House (Olhei a Lua ao redor da Casa). Termos de diferentes áreas de conhecimento (Geometria, Direito, Astronomia, Física, etc.)
compõem sua linguagem poética ao lado de palavras corriqueiras, que ganham vida em novos contextos. Os versos a seguir, por exemplo, reúnem vocábulos
relacionados à Geografia, os quais integram a isotopia do fogo: Volcanoes be in Sicily (Vulcões há na Sicília) / And South America (E na América do Sul) / ...
/A Lava step at any time (Um passo de Lava por vez) / ... / A Crater I may contemplate (Uma Cratera posso contemplar) / Vesuvius at Home (O Vesúvio em
Casa) (grifo nosso).

Cecília Meireles, mesmo presenciando o Modernismo, ousou empregar uma linguagem bem-
comportada, nos moldes da tradição luso-brasileira. Não desafiou como Emily Dickinson as
convenções gramaticais, tendo adotado apenas o emprego de iniciais maiúsculas para realçar o caráter
simbólico de algumas palavras: (Ilhas... Pássaros... Portos... – nesse ruído. / – O mar!... O mar!... O
mar inteiro!...) / Mas é tempo perdido!; Como podes chamar por mim como às coisas concretas, / e
assegurar-me que sou tua Necessidade e teu Bem?; A serviço da Vida fui, / a serviço da Vida vim; Se
existe a tua Figura, / se és o Sentido do Mundo, / deixo-me, fujo por ti; No mistério do Sem-Fim, /
88

equilibra-se um planeta. Por mais perfeito que seja o emprego do idioma nesses versos, que
contrastam com a expressão inovadora de seus contemporâneos, “é Cecília Meireles quem se mostra
menos ligada a uma língua, uma terra ou uma literatura” (RÓNAI, 1958, p. 56-57). Não propôs como os
modernistas um idioma nacional ou uma poesia com motivos tropicais, escrita para brasileiros. Nunca
aceitou outras idéias radicais do movimento, como a negação da espiritualidade, a ruptura com a
tradição literária, o nacionalismo exacerbado ou o abandono do subjetivismo em favor da objetividade
(MARQUES, 1977, p. 27). Em Metal Rosicler, criticou, inclusive, a falta de lirismo da vanguarda:
Embora chames burguesa, / ó poeta moderno, à rosa, / não lhe tiras a beleza. // A tua sanha imprevista
/ contra a vítima formosa, / é um mero ponto de vista. Sua poética, fiel à lírica portuguesa, aos temas e
à métrica dos trovadores e romanceiros do passado, ocupa uma posição singular no Movimento
Modernista por seu teor de espiritualismo, tradição, subjetividade e universalismo (MARQUES, 1977, p.
28).
A ousadia temática na obra das autoras determina a diversidade de motivos e a liberdade para criar um discurso de exceção, como o poema sobre os ratos,

analisado anteriormente (fl. 37): Snug in seraphic Cupboards (Escondendo-se nos Armários dos Serafins) / To nibble all the day (Para beliscar todo o dia).
Cabem nos versos todas as palavras, formais ou informais, silenciosas ou onomatopaicas: Na, na, / nada disse: que esta menina / quer a flor do maracujá. //
A flor abriu-se lá em cima. / Sua mão não a alcançará. // Na, na. / E ela a quer apanhar sozinha! / E chora que chora a menina / pela flor do maracujá. / Na
na.

As autoras, que não se filiaram a nenhuma escola contemporânea, empregaram procedimentos estilísticos de correntes literárias distintas, entre as quais as
antíteses barrocas: Your Riches – taught me – Poverty (Suas Riquezas – ensinaram-me – a Pobreza); If I’m lost – now (Se não estou perdida – agora) / That I
was found (Que fui encontrada); When Night is almost done – (Quando a Noite quase se esvai –) / And Sunrise grows so near (E a Alvorada se aproxima);
Une o Céu e o Inferno, / e Deus e o Demônio; Escrevo o teu nome na vida e na morte; Na minha alegria, / corre um mar de lágrimas; E as velhas fontes /

contam histórias, / tristes, risonhas. Galhoz (1965, p. 35) identifica em Cecília Meireles “um certo Barroco” que se revela na intensidade da linguagem e

da significação poética, na dualidade entre o mundo concreto e o metafísico, na dialética da vida e da morte: o homem pula entre as canoas! / É o próprio
Tupã que chega! //... / é sol? é estrela? / que armado de flechas voa / como um pássaro celeste. Seu lirismo feito de símbolos guarda “a força recriadora da

palavra que nomeia a sua significação terrestre em ar, em terra, em fogo, e em água” (idem, p. 37).

Fiel às paisagens do mundo, a poeta de Amherst as transforma em fotografias feitas com


palavras. A flor, a campina, a montanha materializam-se em seus versos com tanta nitidez que quase as
tocamos. Sua poesia é uma pintura talhada segundo a imagem larga dos campos ou a beleza sutil dos
quintais: Four Trees – upon a solitary Acre – (Quatro Árvores – em um Campo solitário –) / Without
Design (Sem Padrão) / Or Order, or Apparent Action (Ou Ordem, ou Ação Aparente) / Maintain –
(Mantêm –) / The Sun (O Sol). Em certas composições, a mimese da natureza é uma busca incessante,
como confessa a poeta ao aludir à fidelidade dos quadros de Vandyke: ’T was more – I cannot
mention – (Era mais – não posso citar –) / How mean – to those that see – (Quão pouco – para os que
vêem –) / Vandyke’s Delineation (O Esboço de Vandyke) / Of Nature’s – Summer Day! (De um Dia de
Verão – da Natureza!). Com pinceladas leves e traços amenos, o pintor capta tons e formas da
paisagem, submetendo a natureza a seu olhar impressionista.
89

A lírica dickinsoniana tem a “escala peculiar” (CUNLIFFE, 1974, p. 189) que se percebe nos
versos de Cecília Meireles. Um mundo em miniatura transborda aos olhos – a borboleta, o pássaro, o
grilo não parecem criaturas minúsculas: Caravanas de formigas / tomam sempre outro caminho. / ... //
O sol consome as cigarras, / a lua pelas escadas / se quebra. A paisagem longínqua e enorme soa
familiar e singela – a montanha, o vale, o prado têm a nitidez e a simplicidade de um jardim: Eis a
estrada, eis a ponte, eis a montanha / sobre a qual se recorta a igreja branca; / E depois há campos
verdes, campos, / campos de mostarda em flor, campos... Como nos ensina Bachelard (1990, p. 11), “as
coisas sonhadas jamais conservam suas dimensões”.
Em busca de uma explicação para a existência, Cecília Meireles aborda uma infinidade de
temas com um virtuosismo técnico que coloca seus poemas entre os melhores da língua portuguesa.
Segundo Damasceno (1996, p. 12), sua obra é um “inventário da vida” em plenitude:
o universo e as gentes, a flor e o pássaro, os seres ínfimos e as estações do mundo, a pedra, a cor, o
mar, a criança, e a carga de sentimentos, impressões, vivências e juízos que informam a mente e a
natureza humanas.

Em meio às impressões sensoriais, não raras vezes, a poeta subtrai da paisagem a plasticidade, fazendo-
a adquirir o movimento e a inconstância das nuvens. Capta as cores do espaço, descolorindo a matéria
e suavizando suas linhas à procura dos tons diáfanos de impressão simbolista:

Suas notações da natureza são esboços de quadros metafísicos, com objetos servindo de signos de
uma organização espiritual onde se consuma a unidade do ser com o universo. Cristais, pedras,
rosicleres, flores, insetos, nuvens, peixes, tapeçarias, paisagens (...), todas essas coisas percebidas
pelo sentido são carregadas para a região profunda onde se decantam e sublimam (DRUMMOND,
1975).

As imagens etéreas diluem a compacidade das formas terrestres e apagam seu teor visual. Fruto da
contemplação que recria o mundo, projetam-no para além do real concreto. Suas paisagens lembram o
matiz suave de um quadro ou uma tênue recordação que muda gradualmente de cor. Em sua poética,
apagam-se freqüentemente as arestas dos objetos: corpo e sentido dissolvem-se no espaço imaterial do
devir. Resta apenas a mobilidade, o desprendimento da matéria, a experiência absoluta da diluição em
uma atmosfera de sombras e leveza. Seus versos cumprem as palavras de Bachelard (1990, p. 23) sobre
a imaginação aérea: cobrem de névoa “flores, árvores, luzes” e transportam o leitor para o mundo das
“eflorescências, arborescências, luminescências”, em meio a formas sugestivas e vagas que fazem
sonhar.

Suas metáforas envolvem a terra em um véu diáfano que traduz a inconstância de tudo,
inclusive, da própria vida humana: E a névoa da tarde vinha / com seu véu tão delicado / envolver a
torre, o monte, / ... / Ah! quanta névoa de tempo / longamente acumulado... “É esta a atmosfera poética
de Cecília Meireles: um universo em movimento incessante, um substituir-se contínuo de formas e
90

aparências” (RÓNAI, 1958, p. 55). As nuvens rarefeitas, o vento brando, a inconstância das alturas
parecem sinais da brevidade de nossa existência. Em outros versos, a simples recriação do real é signo
de uma leveza que prescinde de véus e transparências: Leve é o pássaro: / e sua sombra voante, / mais
leve. // E a cascata aérea / de sua garganta, / mais leve. Esse mesmo “despojamento da linguagem”
dá a certos poemas de Emily Dickinson, como observa Italo Calvino (2001, p. 28-29), uma “rarefeita
consistência”: A sepal, petal, and a thorn (Uma sépala, uma pétala, um espinho) / Upon a common
summer’s morn – (Numa simples manhã de verão –) / A flask of Dew – a Bee or two – (Um frasco de
Orvalho – uma Abelha ou duas –) / A Breeze – a caper in the trees – (Uma Brisa – um bulício nas
árvores –) / And I’m a Rose! (E eis-me Rosa!). Instaura-se, então, na poesia a mais absoluta suavidade e
anula-se todo o peso da matéria.

Para a imaginação ceciliana, toda a natureza é fugaz, tudo está sujeito à mudança, nada
perdura intocável. O movimento se sobrepõe ao quadro em repouso, a dinâmica neutraliza a
estabilidade da matéria. “A imagem assume fisionomias várias ao cumprir seu destino de
exibir-mascarar o objeto do prazer ou da aversão” (BOSI, 2004, p. 26). As nuvens encobrem o
céu, a fumaça se esvai lentamente na paisagem, o vento75 passa e o mundo se cobre com um
véu.
As linhas da natureza em seus poemas evaporam-se fugidias e vagas como os pensamentos.
Deixam a concreção, integram o abstrato à medida que traduzem sentimentos, divagações, conjecturas:
Estrela fria / da tua mão. / Tênue cristal, / exígua flor; Andei buscando esse dia / ... / os amuletos dos
grilos / e os trevos de quatro folhas... / Só achei flor de saudade. A rosa, a campina, a montanha se
esvaem em fumaça, desaparecem sutilmente diante de nossos olhos: Pastora de nuvens, fui posta a
serviço / por uma campina tão desamparada / que não principia nem também termina, / e onde nunca
é noite e nunca madrugada. A natureza perde seus contornos e formas, os quatro elementos diluem-se
entre nossos dedos, transformam-se em metáforas: Eu vi as pedras nascerem, / do fundo chão
descobertas. / ... // Eram pesadas e densas, / carregadas de destino / ... // E ali ficavam expostas / ao
mundo e às horas volúveis, / para, submissas e dóceis , / terem outra densidade: / como nuvens.
Sugestão e evanescência tornam a expressão irredutível à simples denotação, privilegiando a
multiplicidade de sentidos.
As palavras ganham a aparente imprecisão dos traços subjetivos da pintura impressionista. Até
mesmo os rostos tornam-se abstrações, dissolvendo-se em meio às paisagens – traço estilístico que a

75
No antigo Irã, assim como no Islã, o vento é um princípio ordenador cósmico que participa da criação do mundo. Na
narração das sagas dos judeus, lê-se que o vento e a água não foram criados, pois existiam desde o princípio, porém o vento
rege a terra e está na origem de todas as coisas. Diz São João no Apocalipse que os quatro ventos da Antiguidade, nomeados
segundo os pontos cardeais, são seguros por quatro anjos. (BIEDERMANN, 1993, p. 384).
91

própria Cecília Meireles revela no poema Turismo: Levantou seu rosto que nem camélia. / E sorriu,
com uma tênue espuma / nos dentes de cristal. // Eu pensava-a abstrata, / e desmanchava-a em
laranjeira florida, / sob um luar absoluto. Nesse processo de sobreposição de imagens, a natureza é
uma fonte para os tropos de sentido, e as isotopias, constituídas de elementos que integram metáforas e
símiles, prescindem de um significado literal.
Ao retratar os elementos da natureza, Emily Dickinson prefere substantivos e verbos em vez de
adjetivos: Between My Country – and the Others – (Entre Meu País – e os Outros –) / There is a Sea –
(Há um Mar –) / But Flowers – negotiate between us – (Mas as Flores – nos fazem negociar –) /
As Ministry. (Como Ministério.). Aliado ao processo de inventariação da paisagem, esse recurso
garante a seus poemas um caráter tátil e visual: A full fed Rose on meals of Tint (Uma Rosa
desabrochada em refeições de Matiz) / A Dinner for the Bee (Um Jantar para a Abelha). Além disso,
em sua poesia, os adjetivos são compatíveis com os substantivos, atribuindo-lhes formas e propriedades
específicas, ainda que marcadas pela subjetividade: Heavenly – Hopeless Distances, (Distâncias
Desesperançadas – Celestiais,) Solitary Fields, (Campos Solitários,) Failess as the fair rotation
(Perfeitos como a exata rotação) / Of the Seasons and the Sun, (Das Estações e do Sol,) jealous
Daylight. (ciumenta Luz do Dia.).
Cecília Meireles, com freqüência, adota uma adjetivação impertinente, que destitui os
substantivos de suas características originais, atribuindo-lhes qualidades inusitadas. Em Desenho, tinge
a paisagem com as cores do céu: Árvore da noite / com ramos azuis / até o horizonte; em Faisão
Prateado, cria uma atmosfera de requinte oriental em torno do pássaro: Quem trouxe o faisão
prateado! / para a sombra de meus ramos? / ... // Com seus modos de safira, / em finos corais pousado.
O vocabulário exótico torna as imagens instáveis como nuvens que surgem e se apagam: Vi a Névoa da
Madrugada / deslizar seus gestos de prata, / mover densidades de opala / naquele pórtico de sono. As
imagens da terra, outras vezes, são desfiadas em um longo inventário de conotações: Tua voz, planta
marinha, / árvore crespa e orvalhada: / – ramos transparentes, / folhas de prata. Os elementos da
isotopia perdem, então, o sentido denotativo para integrar metáforas.
Com menor incidência, ocorre na obra ceciliana a visualização do abstrato: Lavradeira de
ternuras, / trago o peito atormentado / pelas eternas securas / de tanto campo lavrado. Suas imagens,
contudo, têm menor grau de concreção devido às escolhas lexicais carregadas de metáforas: Estes
meus tristes pensamentos / vieram de estrelas desfolhadas; Entre mil dores palpitava a flor antiga, /
quando o tempo anunciava um suspiro do vento. Com maior incidência, opera-se o processo inverso –
o apagamento das imagens que desaparecem em brumas e nuvens. Conforme afirma Bachelard (1990,
p. 213), a literatura, expressão do universo onírico, opera a “reversibilidade do concreto e do abstrato”.
92

As paisagens dickinsonianas, em geral, guardam melhor a textura de objetos sólidos e táteis:


The Mountain – at a given distance – (A Montanha – a certa distância –) / In Amber – lies – (Em
Âmbar jaz –) / Approached – the Amber flits – a little – (De perto – o Âmbar move-se – um pouco –) /
And That’s – the Skies – (E Eis – os Céus –). Em alguns momentos, a descrição tem a tonalidade exata
de uma fotografia que revela a paisagem sob do jogo conceitual das palavras: Oh some Wise Man from
the skies! (Ah algum Homem Sábio dos céus!) / Please to tell a little Pilgrim (Diga, por favor, a um
humilde Peregrino) / Where the place called “Morning” lies! (Onde fica o lugar chamado ‘Manhã’!).
A aproximação de vocábulos pertencentes a isotopias distintas caracteriza esse processo de
visualização de imagens. Suas palavras, entre conflito e desejo, refletem significados vários e
inusitados, com uma limpidez de espelhos: Over the fence – (Sobre a cerca –) / Strawberries – grow –
(crescem – Morangos –) / Over the fence – (Sobre a cerca –) / I could climb – if I tried, I know –
(Poderia passar – se tentasse, eu sei –) / Berries are nice! (São bons os Frutos!).
Corroborando a identificação de traços comuns na representação da natureza na obra das
autoras, MacLeish (1961, p. 152) identifica na poesia de Emily Dickinson um tênue limiar entre o
concreto e o abstrato, entre a nitidez absoluta e a imagem diáfana, tal como se percebe na obra de
Cecília Meireles. O beija-flor, por exemplo, ora é uma ressonância de matizes florais: A Route of
Evanescence (Uma Rota de Evanescência) / With a revolving Wheel – (Com uma Roda giratória –) / A
Resonance of Emerald – (Uma Ressonância de Esmeralda –) /A Rush of Cochineal (Uma Pressa de
Cochinilha); ora uma imagem firme e impenetrável: Within my Garden rides a Bird (Em meu Jardim
voa um Pássaro) / Upon a single Wheel (Sobre uma única Roda) / Whose spokes a dizzy Music make
(Cujas palavras são uma Música estonteante) / As t’were a travelling Mill – (Como um Moinho
andarilho –). Seus poemas revelam um dualismo entre a imaginação aérea e a terrestre: uma busca a
liberdade, a outra quer o apego; uma quer despojar-se, a outra quer acumular:
Parece que para a imaginação terrestre, dar é sempre abandonar, tornar-se leve é sempre perder
substância, gravidade. Mas tudo depende do ponto de vista: o que é rico em matérias, quase sempre
é pobre em movimentos (BACHELARD, 2001b, p. 269).
Na lírica dickinsoniana, sentimentos e abstrações são definidos visualmente, assumem a
plasticidade de formas sólidas, ganham as cores da natureza, podem ser tocados, ouvidos: Grief is a
Mouse – (O Desgosto é um Rato –) / And chooses Wainscot in the Breast (E escolhe Abrigar-se no
Peito); Presentiment – is that long Shadow – on the Lawn – (Pressentimento – é aquela longa Sombra
– no Gramado –) / Indicative that Suns go down – (Indicando que os Sóis se põem –); An Hour is a Sea
(Uma Hora é um Oceano) / Between a few and me – (Entre uns poucos e eu –) / With them would
Harbor be (Com eles haveria Porto)76. Em outros versos mais objetivos, Emily Dickinson descreve

76
A idéia de que o amor é um porto seguro nos remete a estes versos cecilianos que também fazem da ancoragem uma
metáfora para a certeza do afeto: Muitas velas. Muitos remos. / Âncora é outro falar...
93

abstrações com uma precisão quase matemática, embora não as relacione necessariamente à natureza: I
measure every Grief I meet (Meço cada Dor que encontro) / With narrow, probing, Eyes – (Com
Olhos, estreitos, em investigação –) / I wonder if It weighs like Mine – (Indago se Ela pesa como a
Minha –) / Or has an Easier size (Ou tem Menor tamanho).
Em contrapartida, imagens reais tornam-se, às vezes, abstrações ou assumem a função de
símbolos: Talk not to me of Summer Trees (Não me fale das Árvores do Verão) / The foliage of the
mind (A folhagem da imaginação) / A Tabernacle is for Birds (É um Tabernáculo para os Pássaros) /
Of no corporeal kind (Sem forma corpórea) / And winds do go that way at noon (E os ventos sopram
nessa direção ao meio-dia) / To their Ethereal Homes (Para suas Moradas Etéreas). No espaço
mágico da leitura, sua poesia parece conferir transparência à natureza ao combinar as cores translúcidas
da lírica ceciliana. A luz perpassa as imagens da terra, realiza um intercâmbio entre o concreto e o
abstrato, brinca com a incongruência entre o visível e o invisível (MacLEISH, 1961, p. 153).
Cecília Meireles transforma em metáforas as imagens da natureza, atribuindo-lhes conotações
que se sobrepõem ao sentido referencial: Por uns caminhos extravagantes, / irei ao encontro desses
amores / – por que suspiro – distantes. // Rejeito os vossos, que são de flores. / Eu quero as vagas,
quero os espinhos / e as tempestades, senhores. O abandono da denotação corrobora o processo
simbólico que torna as imagens etéreas e abstratas: Choveu tanto sobre o teu peito / que as flores não
podem estar vivas. Seus versos fazem os elementos perder a plasticidade, envolvendo-os na névoa da
linguagem figurada em que gravitam incongruentes as palavras: Mas vi-lhe os braços de líquen, / e as
duas mãos desfolhadas.
As paisagens cecilianas, repletas de ambiências noturnas, nuvens, sombreados, tornam quase
imperceptíveis os animais, as plantas, as feições humanas: Tudo celeste, inumano, intocável, /
subtraindo-se ao olhar, às mãos: / fuga das rendas de alabastro e dos jardins minerais, / com lírios de
turquesa e calcedônia / ... / E os pés naufragando em sombra. Suas palavras passam como brumas,
deixando para trás significados imprecisos, conotações vagas: As mães contam histórias à sombra dos
templos / para meninos tênues, fluidos como nuvens. / E no último reflexo dourado dos jarros / os
rostos diurnos vão sendo apagados. As alterações na luminosidade do dia também influenciam o olhar
do eu lírico dickinsoniano para quem a alvorada, o entardecer e o cair da noite são indícios da
efemeridade da existência: Of this is Day composed (Disto se compõe o Dia) / A morning and a noon
(Uma manhã e um meio-dia) / A Revelry unspeakable (Uma Folia inominável) / And then a gay
unknown (E então uma alegria desconhecida) / Whose Pomps allure and spurn (Cujas Pompas
seduzem e repulsam) / And dower and deprive (E doam e despojam). Por isso uma certa melancolia
parece incidir sobre o mundo à medida que a luz do sol enfraquece (CUNLIFFE, 1974, p. 190).
94

Tanto Emily Dickinson quanto Cecília Meireles encontram na natureza uma trilha para
o sonho, para o surreal: The Hills in Purple syllables (Os Montes em Sílabas Púrpuras) /
The Day’s Adventures tell (As Aventuras do Dia contam) / To little Groups of Continents
(Para pequenos Grupos de Continentes) / Just going Home from School (Indo para Casa
após as Aulas). Nessas composições, a realidade é uma tela para a fantasia, o impossível
instala-se na leitura do mundo, dois planos coexistem – o verdadeiro e o onírico. No quadro
surreal das metáforas, a concepção lúcida dos objetos dá lugar a percepções inusitadas: Bring
me the sunset in a cup, (Traga-me o pôr-do-sol em uma xícara,) / Reckon the morning’s
flagons up / And say how many Dew, (Diga quanto Orvalho / Enche o frasco da manhã) /
Tell me how far the morning leaps – (Conte-me quão longe a manhã salta – ) / Tell me what
time the weaver sleeps (Diga-me a que horas dorme o tecelão) / Who spun the breadths of
blue! (Que fiou a imensidão do azul!) Como tintas que se misturam em uma paleta, realidade
e imaginação definem o colorido das imagens.
Escreve Bachelard (2001a, p. 57) que “o Surrealismo – ou a imaginação no ato – vai à imagem
nova em virtude de um ímpeto de renovação. (...) Livre da preocupação de significar, ele descobre
todas as possibilidades de imaginar.” A poesia é um refúgio insular, onde convivem o real e a fantasia:
Within that little Hive (Naquela pequena Colmeia) / Such Hints of Honey lay (Há sugestões de Mel) /
As made Reality a Dream (Que fazem da Realiade um Sonho) / And Dreams, Reality – (E Sonhos,
Realidade –). Também os versos de Cecília Meireles transformam em imagens surrealistas a paisagem
rural: Bois esperam, mirando: / corpo cheio de céu, luas / nos olhos recordativos. // Rodas, charruas, /
sol, abelhas... / Colar de prata dos rios / sobre gargantas vermelhas. A rara combinação dos sememas
nesses versos, em que coabitam isotopias aparentemente inconciliáveis, determina a passagem da
realidade para o inaceitável.
As poetas, outras vezes, descrevem a natureza através de metáforas constituídas por elementos
estranhos à paisagem, compondo um quadro de imagens sobrepostas. Emily Dickinson compara o mar
às copas das árvores que se movem ao vento, transpondo os termos da isotopia da água para outra série
semântica – a terra: By my Window have I for Scenery (De minha Janela tenho por Cenário) / Just a
Sea – with a Stem – (Apenas um Mar – com um Caule –) / ... // It has no Port, nor a “Line” – but the
Jays – (Não tem Porto, nem “Horizonte” – mas os Gaios –) / ... // For Inlands – the Earth is the under
side – (Por Terra Firme – o Solo é seu leito –). Em outro poema, estabelece uma analogia entre o céu
e o mar, atribuindo valores conotativos aos sememas que integram a isotopia da água, com os quais
representa o poente: Where Ships of Purple – gently toss – (Onde Navios de Púrpura – balançam
suavemente –) / On Seas of Daffodil – (Em Mares de Narciso –) / Fantastic Sailors – mingle –
(Fantásticos Marinheiros – misturam-se –) / And then – the Wharf is still! (E então – o Cais fica
95

sereno!). Segundo Emerson (1974, p. 1281), “partes do discurso são metáforas porque toda a natureza é
uma metáfora da mente humana”. Logo, montanhas, ondas e céus são emblemas de nossos
pensamentos. Também Cecília Meireles navega nas águas da conotação, atribuindo ao mar um sentido
metafórico: por onde se derramarão / os mares da minha incoerência. / ... // E ondas seguidas de
saudade, / sempre na tua direção. A própria natureza parece conciliar o concreto e o onírico.
A poeta brasileira concebe misteriosas paisagens, aproximando os quatro elementos e
conjugando isotopias distintas: Eu vi a rosa do deserto / ainda de estrelas orvalhada: / era a alvorada;
O arco-íris saltou como serpente multicor / nessa piscina de desenhos delicados; Lua do crepúsculo
abrindo no céu jardins aéreos, / nuvens de opalas delicadas; Pastam nuvens no ar cinzento. / Bois
aéreos que trabalham / no arado do esquecimento. Os significados resvalam de uma seqüência
semântica para outra, aproximando sememas em uma sobreposição de imagens responsável pela
conotação. Nesse contexto, a natureza é um quadro de traços inconstantes em que presidem a
ambigüidade e a sugestão. Fios semânticos entrelaçados alinhavam os versos cecilianos, compondo
um tecido de linhas isotópicas em que se recria a natureza: Ao longo dos campos verdes, / tropeiros
tocando o gado... / O vento e as nuvens correndo / por cima dos montes claros / O pequeno vaga-lume
/ com sua verde lanterna, / que passava pela sombra / inquietando a flor e a treva // Estrelinha de lata,
/ assovio de vidro, / ... // Pássaro de prata / sacudindo guizos. A observação aguçada, a perspicácia e o
desejo de captar a paisagem fazem de suas composições experiências únicas. Em Alvura, diz Cecília
Meireles: De dia, lemos na flor que nasce e na abelha que voa; / de noite, nas grandes estrelas, e no
aroma do campo serenado. Nesses e em outros versos em torno da isotopia da terra, agregam-se
imagens de outros campos isotópicos.
Em Emily Dickinson, persiste uma concepção romântica que projeta rostos, sentimentos e
desejos na paisagem da poesia: The Sun is gay or stark (O Sol é alegre ou desolado) / According to our
Deed (De acordo com nossos Atos). Cecília Meireles também cultiva um certo romantismo no
território de seus poemas: Seremos ainda românticos / – e entraremos na densa mata, / em busca de
flores de prata, / de aéreos, invisíveis cânticos. Como os românticos, ora projeta na paisagem suas
emoções: Minha ternura nas pedras / vegeta; ora se identifica com os elementos da natureza:
Profunda é a noite onde moro; Sobre o leito frio, / sou folha e pertenço / a um profundo rio. A poeta
norte-americana também considera a serenidade de uma existência vegetal: But, Blossom, were I, (Mas,
se Botão, eu fosse,) / I would rather be (Queria ser) / Thy moment (Teu momento) / Than a Bee’s
Eternity77 – (Que a Eternidade de uma Abelha –).

77
Segundo a tradição cristã, as abelhas que voam no céu levam para longe a alma das flores. Confirmam o presságio de
quem as vê voar em sonhos e percebe a morte iminente (BIEDERMANN, 1993, p. 9).
96

Reeves (1963, p. 124) refere-se a esse processo presente na lírica das autoras como uma projeção
do “ser” na natureza, uma diluição da persona poética, cuja subjetividade parece levada ao extremo da
auto-aniquilação: Bee! I’m expecting you! (Abelha! Estou esperando você!) /…// You’ll get my Letter by
(Você receberá minha Carta pelo) / the seventeenth; Reply (dia dezessete; Responda) / Or better, be
with me – (Ou melhor, esteja comigo – ) / Yours, Fly. (Sua, Mosca.). Flores, pássaros e insetos são
velhos conhecidos: The Bee is not afraid of me. (A Abelha não teme a mim.) / I know the Butterfly.
(Conheço a Borboleta.) / The pretty people in the Woods (O povo bonito nas Matas) / Receive me
cordially. (Recebe-me cordialmente.). A paisagem é subjetiva e apenas existe em função do
observador78: realidade e imaginação diluem-se no universo da poesia. Com as cores da terra, Cecília
Meireles traduz todos os sentimentos da pureza do afeto (Se eu fosse apenas uma rosa, / com que
prazer me desfaria, / como em teu próprio pensamento / vai desfazendo a minha vida!) à amargura da
solidão (Na noite profunda, / deixa-me existir / como os loucos em nuvens / como os cegos em flores. /
Na noite profunda, / deixa-me chorar / sobre os rios convulsos). A identificação do eu lírico com a
paisagem corrobora a afirmação de T. S. Eliot de que “a poesia está primeiramente ligada à expressão
dos sentimentos e das emoções” (1972, p. 33).
As poetas humanizam o pássaro, a cigarra, a borboleta, a cobra, tornando-os tão familiares
quanto pessoas: Cigarra de ouro, por que me chamas, / se quando eu for, / bem sei que foges por entre
as ramas?; Com que doçura esta brisa penteia / a verde seda fina do arrozal – // Com que doçura a
transparente aurora / tece na fina seda do arrozal // Com que doçura as borboletas brancas / prendem
os fios verdes do arrozal. A flor, ao acaso da chuva e do orvalho, como um coração magoado, encontra
consolo na paisagem a seu redor: e vê passarem as leves borboletas livremente, / e ouve cantarem os
pássaros acordados sem angústia, / ... / e espera que se desprenda o excessivo, úmido orvalho.
A borboleta lépida sobre as flores experimenta a leveza a que aspiramos (BACHELARD, 1990, p. 139), e
a joaninha (ladybird) repousa no campo como uma misteriosa dama: A Lady red – amid the Hill (Uma
Senhora de vermelho – no Monte) / Her annual secret keeps! (Seu segredo anual guarda!) / A Lady
white, within the Field (Uma Senhora de branco, no Campo) / In placid Lily sleeps ! (Em um Lírio
plácido dorme!).
Dois movimentos complementares ocorrem na poesia das autoras – a natureza, sempre
animada, compartilha as ações humanas: Nature is fond, I sometimes think, (A Natureza gosta, às vezes,
penso,) / Of Trinkets as a Girl79. (De Bijuterias como uma Garota.); a persona poética quer integrar o

78
Segundo a moderna física quântica, a realidade é relativa e depende do observador (Weigl, 2005, p. 84).
79
Imagem semelhante encontramos em outro poema no qual Emily Dickinson compara as cores da natureza aos tons do
vestuário feminino: Nature rarer uses Yellow (A Natureza se veste de Amarelo) / Than another Hue.(Menos que de outro
Tom) / Saves she all of that for Sunsets (Poupa essa cor para os Poentes) / Prodigal of Blue (Pródigos de Azul) / Spending
Scarlet, like a Woman (Gastando o Escarlate, como uma Mulher).
97

cenário da terra: Lest I should be old fashioned, (Para não ficar fora de moda,) / I’ll put a trinket on.
(Usarei uma bijuteria.). O eu lírico assimila os traços da natureza: “Eu sou a rosa do campo...” / ... //
O beduíno pára e escuta, / ... // Mas tudo o que ouve e está vendo / é a poeira, apenas, que voa: / o
vento dá voz ao vento. Desenha-se, assim, “uma vida imaginária, vivida em simpatia com o vegetal”
(BACHELARD, 2001a, p. 207). Também as flores se humanizam – são crianças que se despedem
do dia relutantes e acordam ávidas de brincadeiras: My flowers raise their pretty lips – (Minhas flores
elevam seus lindos lábios –) / Then put their nightgowns on. (Depois vestem seus pijamas.) // As
Children caper when they wake (Como Crianças saltam ao acordar) / Merry that it is Morn – (Felizes
porque é Manhã). A flora se personifica: o fruto carnudo tem a face mais rechonchuda (The berry’s
cheek is plumper), a rosa está fora da cidade (The Rose is out of town).
A imaginação literária, pródiga em adereços (BACHELARD, 2001a, p. 244), mantém com a
natureza um diálogo profundo, repleto de símbolos e significados. As plantas usam roupas de outono, a
folhagem do bordo é um alegre cachecol (The Maple wears a gayer scarf), a cor do campo surge de seu
roupão vermelho (The field a scarlet gown). A imagem vertical do bordo ereto, em contraste com os
campos horizontais, alude à dialética fundamental entre humildade e altivez80. Sua postura sóbria é
atenuada pelas cores do outono que fazem de sua folhagem um cachecol. O eu lírico, portanto, nega ao
bordo o exemplo de sobriedade e constância, em busca da jovialidade e da leveza que lhe permitem
adotar as tonalidades da estação. No gesto feminino de embelezar-se, a poeta deixa seu rosto nas
entrelinhas do poema, afinal “a imaginação nada mais é senão o sujeito transportado às coisas”
(BACHELARD, 1990, p. 2).

A projeção do ser na paisagem corrobora a afirmação de Emerson (1974, p. 1271) de que os


campos e florestas nos revelam um enorme prazer – a secreta relação entre o homem e o vegetal.
Na poesia dickinsoniana, em que se inscreve o postulado budista de comunhão entre o ser, a terra e o
universo (COEN, 2005, p. 19), até mesmo o mundo mineral ganha vida. Os eventos naturais assumem
ares domésticos, e as brisas são típicas senhoras às voltas com as tarefas do lar: The tidy Breezes, with
their Brooms – (As Brisas ordeiras, com suas Vassouras –) / Sweep vale – and hill – and tree! (Varrem
o vale – e o monte – e a árvore!) / Prithee, My pretty Housewives! (Por favor, Minhas belas Donas de
Casa!) / Who may expected be? (Quem é esperado?). Cecília Meireles, em contrapartida, atribui ao
vaga-lume a condição inorgânica de frágil equipamento: o pequeno vaga-lume, / queimada a sua
lanterna, / jaz carbonizado e triste / e qualquer brisa o carrega: // Quebrou-se a máquina breve / na
precipitada queda. / E o maior sábio do mundo / sabe que não a conserta. Nesse jogo conceitual entre

80
Whitman (1986, p. 124) recorre a essa simbologia da imagem horizontal em Song of Myself: “I bequeath myself to the dirt
to grow from the grass I love, / If you want me again look for me under your boot-soles.” (Eu me entrego ao lodo para
germinar com a grama que amo, / Se você ainda me quiser, procure-me sob as solas de suas botas.)
98

a vida biológica e o funcionamento da engrenagem, uma máquina como o trem recebe atributos de
animal. É uma fera mitológica que salta milhas, lambe vales como um gato, relincha e pára à porta do
estábulo como um cavalo (WARREN, 1963, p. 112): I like to see it lap the Miles – (Gosto de vê-lo saltar
as Milhas –) / And lick the Valleys up – (E lamber os Vales –) // And neigh like Boanerges – (E
relinchar como Boanerges –). Ao mesmo tempo, a invenção feita de ferro guarda a pontualidade
mineral de uma estrela no espaço: Then – punctual as a Star (Então – pontual como uma Estrela) /
Stop – docile and omnipotent (Parar – dócil e onipotente) / At its own stable door – (Na sua própria
porta do estábulo –). Aos eventos naturais que se repetem pontualmente também se reporta Emerson
(1974, p. 1274): “As tribos de pássaros e insetos, como as plantas são pontuais em sua estação, seguem
umas às outras, e o ano tem espaço para todas”81; assim como à máquina que tenta reproduzir a
pontualidade da natureza: “Representa um passo do homem em direção à harmonia com a natureza um
barco a vapor cruzando o Atlântico entre a Antiga e Nova Inglaterra, e chegando a seus portos com a
pontualidade de um planeta” (2003, p. 230).
A preferência de Emily Dickinson pelos pronomes he (ele) e she (ela) em alusões a animais e
plantas corrobora o processo de humanização da natureza: I stole them from a Bee – (Eu as roubei de
uma Abelha –) / Because – Thee – (Por causa – de Ti –) / Sweet plea – (Doce apelo –) / He82
pardoned me! (Ela me perdoou!); Nature rarer uses Yellow (A Natureza raramente usa Amarelo) / ... /
Spending Scarlet, like a Woman (Gastando o Escarlate, como uma Mulher) / Yellow she affords
(Amarelo ela oferece) / Only scantly and selectly (Apenas escassamente e seletivamente) / Like a
Lover’s Words (Como Palavras de Amor) (grifo nosso).
Na lírica das autoras, ao lado da aproximação entre o eu poético e a natureza, ocorre em larga
escala o emprego da primeira pessoa, explícita através dos pronomes pessoais ou implícita na
desinência verbal: Minha partida, / minha chegada, / é tudo vento...; Traze-me um pouco das sombras
serenas; por onde se derramarão / os mares da minha inocência; Não me interessam mais nem as
estrelas, nem as formas do mar, / nem tu. Emily Dickinson também adota esse recurso da poesia lírica:
I shall keep singing! (Eu devo continuar cantando!); I started Early – Took my Dog – (Eu parti cedo –
Levei meu Cão –); Me, change! Me, alter! (Me mude! Me altere!); Me – come! My dazzled face (A
mim – vem! Minha face fascinada); Mine – by the Right of the White Election! (O Meu – pelo Direito
da Eleição Branca!); Myself can read the Telegrams (Eu mesma posso ler os Telegramas); We don’t
cry, Tim and I, (Nós não choramos, Tim e Eu,); We introduce ourselves, (Nós nos apresentamos,).
Tanto a poesia de Cecília Meireles quanto a de Emily Dickinson oferecem uma descrição
sensorial da natureza: Caem pedaços de sono, entre os silêncios, / em grandes flores, mornas e dóceis, /

81
The tribes of birds and insects, like the plants punctual to their time, follow each other, and the year has room for all.
82
Emily Dickinson considera masculino (He / Ele) o substantivo bee (abelha).
99

com o peso e a cor de vagas borboletas. Sensações visuais, olfativas, auditivas, gustativas e tácteis
integram os poemas, materializando a paisagem: Mirávamos a jovem lagartixa transparente / ... // E
não havia coisa obscura no seu peito: / apenas luz, apenas – transpassando a tênue carne / de opalas
tenras, quase líquidas, tão frias... / Pois agora está morta, entre as folhas, e seca / ... // Morto silêncio
de uma vida de silêncio... Um ar bucólico e pitoresco marca essas composições em que a natureza é
exaltada com euforia: Spring comes on the World – (A Primavera chega ao Mundo –) / I sight the
Aprils – (Vejo Abris –) / Hueless to me until thou come (Incolores até que chegues) / As, till the Bee /
Blossoms stand negative, (Como, até que as Flores / Da Abelha) / Touched to Conditions (Sejam
Tocadas) / By a Hum (Pelo Zumbido). No olhar afetuoso das poetas, capaz de reconhecer a
singularidade de toda forma de vida, ressoa um postulado do Budismo, como veremos no tópico
seguinte.

3.2 Natureza, religiosidade e ceticismo

No quadro efêmero da natureza, Emily Dickinson e Cecília Meireles percebem sutis


correspondências entre a terra e o céu: Rama das minhas árvores mais altas, / deixa ir a flor! que o
tempo, ao desprendê-la, / roda-a no molde de noites e de albas / onde gira e suspira cada estrela; The
Daisy follows soft the Sun – (A Margarida segue suavemente o Sol –) / And when his golden walk is
done – (E quando seu caminho dourado termina –) / Sits shyly at his feet – (Senta-se
timidamente a seus pés –) / ... / Because, Sir, love is sweet! (Porque, Senhor, o amor é suave!). Na lírica
dickinsoniana, terra e ar, água e fogo complementam-se como opostos bem feitos, ecoando as palavras
de Emerson (2003, p. 82): “Um dualismo inevitável divide a natureza, de modo que toda coisa é uma
metade sugerindo outra parte para totalizá-la”. Na harmonia entre os elementos, persiste o gesto
amoroso da divindade.

Entre as imagens da natureza, a poesia aérea registra o curso ascensional que o homem
persegue em seu destino. Leveza e luz refletem o anseio absoluto da alma pela essência
eterna. Emily Dickinson, segundo a tradição cristã, busca o Salvador nas alturas celestiais: At
least – to pray – is left – is left – (Pelo menos – rezar – nos resta – nos resta –) / Oh Jesus – in
the Air – (Ó Jesus – no Ar –); Cecília Meireles refere-se a Anchieta como um enviado dos
céus: Vede o Santo Anchieta, / ... / posto em oração, / erguido nos ares, / acima do chão! / ...
// Vede Anchieta, o Santo, / tão leve, tão puro / com celeste manto, / a dizer adeus / entre o
céu e a terra, / aos índios de Deus. A altura encerra a elevação espiritual, o sentimento de
transcendência e união com o divino.
100

Nas imagens etéreas e simples, escutam-se “as lições de uma física da moral”, cuja
simbologia emana dos “elementos da matéria” (BACHELARD, 2001b, p. 57). Luz e o peso
traduzem a dualidade da vida, refletem os dois mundos com que o homem convive: o sagrado
e o terreno. No ar, reside a felicidade absoluta, a recompensa pelo ideal de perfeição. O céu é
o horizonte possível e o destino das almas bondosas que ganham a mobilidade das asas83.
Na poética das autoras, a isotopia da água também flui no terreno da religiosidade. Emily Dickinson descreve os trabalhadores das águas que, purificados pelo
mar, banhados em suas ondas, na labuta diária de uma vida simples, conquistam a eternidade e vivem como anjos alados em um lugarejo celeste: How far the
Village lies – (Quão longe fica o Vilarejo –) / Whose peasants are the Angels – (Cujos camponeses são Anjos – ) / Whose Cantons dot the skies – (Cujos
Confins pontuam os céus – ). E Cecília Meireles, com sua poesia translúcida, canta o misticismo das águas, como se lê em Canção: Vela teu rosto, formosa, /
... / se o deus dos mares não olha / por quem se distrai a amar?/ e em Périplo: Deus-Mar! por ti vimos o Eterno e a Variedade: / a ti pedimos o que deste e o
que negaste. Seus mares, povoados de divindades, guardam um tom politeísta que não se percebe na lírica dickinsoniana. No poema Deusa, por exemplo,
canta Cecilia Meireles uma temível divindade indiana: Entraremos na Mitologia. / Queremos ver a Deusa. / Entre sol e fumaça, / ... // Todos seremos

destruídos por ti, / Deusa! Segundo os ensinamentos do Budismo, de que a poeta nunca se afastou (GOUVÊA, 2001, p. 45), não podemos esperar

nenhuma ajuda dos deuses, que como nós, estão sujeitos à lei do carma, embora experimentem mais poderes e deleites (PORTELA, 2005, p. 17).

Em Emily Dickinson, Cunliffe (1974, p. 188-189) identifica duas nuanças do profundo


isolamento a que se submeteu a poeta: de um lado, a força agonizante e opressora do
Puritanismo; de outro, o êxtase transcendental da comunhão com a natureza. Nas imagens dos
quatro elementos, coexistem paradoxalmente o desejo de experimentar a vida e a negação do
prazer imposta pela religião. A onipresença divina nos cenários da terra
impede o eu lírico de gozar a beleza e lhe impõe um tormento inelutável: If God could make a
visit – (Se Deus pudesse sair para uma visita --) / Or ever took a Nap – (Ou ao menos
Cochilasse --) / So not to see us – but they say (Para não nos ver – mas dizem) / Himself – a
Telescope (Ele – um Telescópio) // Perennial behold us – (Perene nos observa –). Contra
esse deus opressor, instituído pela teologia protestante, Emerson (2003, p. 85) se rebela: “A
verdadeira doutrina da onipresença é a de que Deus reaparece com todos os seus elementos
em cada musgo e em cada teia de aranha”.

Ao lado da Bíblia, a influência mais marcante na obra dickinsoniana advém da


filosofia de Emerson, razão por que muitos a consideram transcendentalista. Como os
transcendentalistas, a poeta julgava “o ideal” mais importante que “o real” e acreditava que se
deveria enfrentar a vida com coragem e investigar seus mistérios. Cecília Meireles igualmente
debruçava-se sobre questões metafísicas, adotando uma ética de inspiração budista e platônica
(GOUVÊA, 2001, p. 43): Não acuso. Nem perdôo. / Nada sei. De nada. / Contemplo. //
Caminho, navego, vôo, / -- sempre amor, / Rio desviado, seta exilada, onda soprada ao

83
No Fedro, Platão (2002, p. 83) considera a asa um atributo da pureza: “Quando (a alma) é perfeita e alada, paira nas esferas
e governa a ordem do cosmos. Mas quando perde as suas asas, decai através dos espaços infinitos.”
101

contrário, / -- mas sempre o mesmo resultado: direção e êxtase. A obra de Emily Dickinson
está repleta de temas extraídos dos ensaios do filósofo americano, revigorados por uma
interpretação poética nova e interessante. Como Cecília Meireles, Emerson também
simpatizara com o Budismo e o Platonismo, os quais transparecem em sua obra84 e, por
conseguinte, ecoam na lírica dickinsoniana. Em suas composições de inspiração
transcendental, a poeta define a natureza a partir de suas manifestações exteriores – formas,
cores e sons: Nature is what we see – (A Natureza é o que vemos –) / The Hill – the Afternoon
– (O Monte – na Tarde –) / Squirrel – Eclipse – the Bumble bee – (Esquilo – Eclipse – Abelha
–) / Nay – Nature is Heaven – (Mais ainda – Natureza é Paraíso –) / Nature is what we hear
– (Natureza é o que ouvimos –). Um elo místico entre o homem e a natureza permeia essas
canções que, em linguagem “suave e evasiva” (CAVALCANTI, 1997, p. 27), divagam sobre os
segredos da vida e do universo.
Nos moldes da filosofia emersoniana, a natureza é um espetáculo grandioso – a verdadeira fonte de revelação divina: The Skies can’t keep their
secret! (Os Céus não podem guardar seu segredo!) / ... // So keep your secret – Father! (Então guarde seu segredo – Pai!). Nos quadros da natureza, o
homem encontra um motivo para a religiosidade: Some know Him whom We knew – (Alguns conhecem Aquele que Nós conhecemos –) / Sweet Wonder –
(Doce Maravilha –) / A Nature be (Natureza é) / Where Saints, and our plain going Neighbor (Onde os Santos e nosso afável Vizinho) / Keep May!
(Guardam Maio!). Os versos parecem atestar a orientação budista de que Deus é uma energia universal, fonte de amor e perfeição, presente na natureza e nos
homens.

Em meio à paisagem, a presença de Deus é tão natural quanto o vento que sopra nas árvores ou
um riacho que corre entre as pedras: The Sun – upon a Morning meets them – (O Sol – sobre a Manhã
os Encontra –) / The Wind – (O Vento –) / No nearer Neighbor – have they – (Nenhum Vizinho
próximo – eles tem –) / but God – (apenas Deus –). Junto à natureza, a divindade, despida das vestes
da ótica puritana, torna-se simples e familiar: How excellent the Heaven – (Quão excelente o Paraíso –)
/ When Earth – cannot be had – (Quando a Terra – não se tem –) / How hospitable – then – the face
(Quão hospitaleira – então – a face) / Of our Old Neighbor – God – (De nosso Velho Vizinho – Deus –
). O paraíso, todavia, é o espaço imaterial do devir: Is Heaven a Place – a Sky – a Tree? (É o
Paraíso um Local – um Céu – uma Árvore?). A existência de um deus onipotente e salvador, como nas
seitas judaicas, cristãs ou islâmicas, cede lugar no poema à concepção budista de Deus como ordem e
bondade, uma força impessoal, presente em tudo. Em um lugarejo da Nova Inglaterra submisso ao
rigor do Puritanismo, somente uma mulher solitária poderia ser tão lúcida e ciente da contigüidade e da
inter-relação entre este mundo e a eternidade (CUNLIFFE 1974, p. 188).

84
No ensaio Compensação, lê-se, por exemplo: “Mal algum podeis fazer sem sofrê-lo”; e no ensaio Prudência: “Nunca a
sabedoria consentirá que nos coloquemos em uma posição hostil com qualquer homem ou homens” (EMERSON, 2003, p.
90; 160).
102

A temática bucólica em algumas composições parece refletir também um certo


panteísmo85. O eu lírico vê na paisagem o rosto do criador, cuja voz não se faz ouvir nos
sermões, mas no canto dos pássaros: Some keep the Sabbath in surplice (Alguns guardam o
sabá em sobrepeliz86); / I just wear my wings, (Eu só uso minhas asas,) / And instead of
tolling the bell for church, (E em vez de tocar o sino da igreja,) / Our little sexton sings.
(Nosso pequeno sacristão canta.). Nas palavras de Emerson (1974, p. 1271): “Nessas
plantações de Deus, um decoro e uma santidade reinam, um festival perene se realiza, e o
convidado não vê como possa deles se cansar em milhares de anos. Nas matas, retornamos à
razão e à fé”87. Abelhas, plantas e pássaros são venerados como imagens sacras a quem são
endereçados pedidos e agradecimentos: I keep my pledge. (Mantenho minha promessa.) / ... / I
bring my Rose. (Trago minha Rosa.) / I plight again, (Prometo outra vez,) / By every sainted
Bee – (Por cada santa Abelha –) / By Daisy called from the hillside – (Pela Margarida da
encosta chamada –) / By Bobolink from lane. (Pelo Triste-pia da alameda.). O próprio Deus
vive nos cenários da terra, em suas cores e formas. Panteísmo e transcendência compõem o
santuário da paisagem: Since I am of the Druid, (Se eu sou dos Druidas88,) / And she is of the
dew – (E ela é do orvalho–) / I’ll deck Tradition’s buttonhole – (Eu enfeitaria a casa de botão
da Tradição –) / And send the Rose to you (E enviaria a Rosa a você).

Para Cecília Meireles, a natureza, fonte de misticismo, suplanta qualquer cerimonial


religioso ao oferecer o caminho para a harmonia entre os seres: Minha família anda longe, /
com trajos de circunstância: / uns converteram-se em flores, / outros em pedra, água, líquen.
Seus versos também traduzem em poesia o pensamento emersoniano (2003, p. 29): “Haverá
alguma religião além desta, a saber que em alguma parte do vasto deserto da existência o
sentimento santo que acalentamos desabrochou em flor, que viceja para mim?” Em meio à
natureza e não na reclusão do templo, como na poesia dickinsoniana, efetiva-se o encontro
com a magia e com o divino. Esta sou eu – a inúmera. / Que tem de ser pagã como as árvores
/ e, como um druida, mística. A terra é uma evidência de Deus mais forte do que credos e
igrejas: Cresceram prados ondulantes / e o céu desenhou novos sonhos, / e houve muitas

85
Alguns panteístas julgam Deus a alma do mundo, e o mundo, o corpo da divindade. Outros acreditam que os objetos da
natureza não têm outra realidade senão a própria existência de Deus. De qualquer sorte, o panteísmo é a adoração à natureza
em que se reflete a divindade, ou seja, existe algo de sagrado na pedra, na flor e nas plantas.
86
sobrepeliz: veste branca usada pelos sacerdotes sobre a batina.
87
“Within these plantations of God, a decorum and sanctiry reign, a perennial festival is dressed, and the guest sees not how
he should tire of htem in a thousand years. In the woods, we return to reason and faith”.
88
Gauleses ou celtas, os druidas não possuíam templos, reuniam-se nos bosques e veneravam certas plantas. Reconheciam
vários deuses, mas a sua principal divindade era Teutates, rei da guerra. Acreditavam na imortalidade da alma e na
metempsicose (transmigração da alma de um corpo para outro). Sua filosofia é mal conhecida porque eles não escreviam e
confiavam tudo à memória dos seus discípulos. Os druidas eram também astrólogos, adivinhos, feiticeiros; recrutavam-se
entre a nobreza e obedeciam a um grande sacerdote eleito por toda a vida.
103

alegorias / navegando entre Deus e os homens. As poetas parecem descobrir na natureza um


caminho para a participação no absoluto e uma promessa de revelação do ser. Sua poesia
dialoga com as pequenas criaturas de Deus – o pássaro, a borboleta, a flor.
Embora fale em isolamento, Emily Dickinson não se devotou ao misticismo como Santa Teresa d’Ávila89 nem ao lirismo religioso como São João da
Cruz. Sua poesia a revela ora recatada e tímida: I hope the father in the skies (Espero que o pai celestial) / Will lift this little girl – (erga essa garotinha –

); ora coquete e atrevida (CUNLIFFE, 1974, p. 188-189): I had some things that I called mine – (Eu possuía coisas que julgava minhas –) / And
God, that he called his, (E Deus, que julgava suas,) / Till, recently a rival Claim (Até que, recentemente uma Disputa rival) / Disturbed these amities.
(Perturbou essas cordialidades.). Em seus poemas, cor e regozijo se contrapõem à atmosfera de sombra e austeridade imposta no século XIX pela moral
calvinista de Amherst: The Wild Rose – redden in the Bog – (A Rosa Silvestre – avermelhada no Pântano –) / The Aster – on the Hill (O Áster – no Monte) / ...
// Till Summer folds her miracle – (Até que o Verão dobre seu milagre –) / As Women – do – their Gown – (Como as Mulheres – dobram – seus Chambres –)
/ Or Priests – adjust the Symbols – (Ou Padres – ajustam os Símbolos –) / When Sacrament – is done – (Quando o Sacramento – termina –). Natureza e
religiosidade são fios que se entrelaçam em sua poesia.

Na busca de uma explicação metafísica para a vida humana, em uma época em que a
Revolução Russa e o Marxismo marcavam o clima de depressão no mundo, Cecília Meireles
filia-se também ao misticismo indiano de Rabindranath Tagore90 (DAMASCENO, 1996, p. 11):
Àquele lado do tempo / onde abre a rosa da aurora, / e onde mais do que ventura / a dor é
perfeita e pura, / chegaremos de mãos dadas. // Chegaremos de mãos dadas, / Tagore, ao
divino mundo / em que o amor eterno mora / e onde a alma é o sonho profundo / da rosa
dentro da aurora. Com Tagore, Lorca91 e Rilke92, a poeta compartilha a corrente neo-
simbolista, na qual a poesia é “sentimento transformado em imagem” (CROCE apud BOSI,
1994, p. 461).
Ao assumir a discussão de questões transcendentais como o amor, o tempo, a morte, faz, então,
da natureza uma ponte para o misticismo. As paisagens do mundo sugerem divagações espirituais e
revelam os caminhos da existência: Anda o sol pelas campinas / e passeia a mão dourada / pelas

89
Santa Teresa (1515-1582), reformadora das Carmelitas, nasceu em Ávila, na Espanha. Foi célebre por suas visões e
misticismo, tendo fundado 17 mosteiros de mulheres e 15 de homens, com São João da Cruz. Os seus escritos se enfileiram
ao lado das obras-primas da língua castelhana e do misticismo cristão. A Igreja a denominou a Virgem Seráfica. É festejada
em 15 de outubro.
90
Rabindranath Tagore: escritor indiano, nasceu em Calcutá em 1861 e morreu em Bengala em 1941. Depois da
educação tradicional na Índia, completou sua formação na Inglaterra entre os anos de 1878 e1880. Começou sua
carreira poética com versos em língua bengali. Em 1931, recebeu o prêmio Nobel de literatura. Desde então,
traduziu seus livros para o inglês, a fim de lhes garantir maior difusão. Tagore oferece ao mundo uma
mensagem humanitária e universalista. Seu mais famoso livro de poemas é Gitãñjali (Oferenda Poética).
Fundou em 1901 uma escola de filosofia em Santiniketan, que, em 1921, foi transformada em universidade.
91
Frederico Garcia Lorca nasceu em Fuentavaqueros (Granada) em 5 de junho de 1898 e morreu assassinado em
Viznar (Granada), vítima da Guerra Civil Espanhola, em 19 de agosto de 1936. Foi dotado de uma personalidade
extraordinariamente voltada para a arte. Além de ser grande poeta, revelou também pendores musicais, tendo
feito, ainda, alguns desenhos. É o poeta espanhol mais conhecido universalmente. Entre suas obras, destacam-se:
Livro de Poemas, Mariana Pineda, Romanceiro Cigano e Poeta em Nova Iorque.
92
Rainer Maria Rilke: escritor austríaco nascido em Praga, em 1875, falecido em Valmont, na Suíça, em 1926.
Sua obra poética iniciou-se com composições de estilo impressionista, nas quais se antecipam alguns dos temas
centrais de sua poética, envoltos na tendência decadentista da época: a morte, a pobreza, a mística. Seus poemas
posteriores estão marcados por um profundo misticismo, que culmina em Sonette an Orpheus (1923) e Duineser
Elegien (1923). Em tais obras, questiona a possibilidade do homem viver sem Deus, tendo a criação poética
como única forma de redenção.
104

águas, pelas folhas... / Ah! tudo bolhas / que vêm de ondas, piscinas / de ilusionismo... – mais nada. //
Mas a vida, a vida, a vida, / a vida só é possível / reinventada. Terra, água, ar e fogo são apenas sinais
que demarcam um percurso pelos mistérios da alma.
Cecília Meireles considera os enigmas da natureza, indagando constantemente o cenário ao seu
redor: Que foi mundo, sol e terra, / amor, pensamento, guerra, / morte, coração vazio, / Sabiá? / Não o
saberás. / E tu, quem foste, quem eras, / Sabiá, / que não se explica, também? Receptáculo de calma e
perfeição, a natureza é o espaço de encontro com a beleza mais absoluta, uma experiência ímpar,
mística e silenciosa. Sua lírica de cunho espiritualista procura revelar a terra enquanto manifestação
exterior e potência. Na natureza, a poeta percebe “o transcendente” e torna-se porta-voz “de um
processo de desvelamento do universo através da linguagem” (MELLO, 1997, p. 79): Venho de longe e
vou para longe: / mas procurei pelo chão os sinais do meu caminho / e não vi nada, porque as ervas
cresceram e as serpentes andaram.
Os versos cecilianos encontram a divindade no espaço transcendente e imaterial, onde nada
pode ser medido ou testado: O cego vai sendo levado pelo menino. / O cego sorri, de olhos fechados,
dentes nítidos: / como se visse o lago azul dentro das pedras, / ... / Como se visse os bois de chifres
dourados / ... / Talvez esteja vendo o cavalo do Profeta / no meio do Paraíso. A poeta questiona o
caráter positivista da cultura e o materialismo das pesquisas científicas, que propiciam o distanciamento
entre os homens e a negação do sagrado: Criamos o fogo, a velocidade, a nova alquimia, / os cálculos
do gesto, / embora sabendo que somos irmãos. / Temos até os átomos por cúmplices, e que pecados /
da ciência, pelo mar, pelas nuvens, nos astros! / Que delírio sem Deus, nossa imaginação! Ao
Positivismo e à objetividade dos sentidos, a poeta prefere a comunhão mística com o divino, a primazia
do instinto e da emoção, pois tudo parece transitório e inescrutável: Faro do planeta e do firmamento, /
bússola enamorada da eternidade, / um sentimento lancinante de horizontes. Sua poética traduz em
lirismo os ensinamentos budistas de que no universo tudo é transitório e mutável, razão por que
devemos cultivar o desapego a bens, lugares e pessoas.
Na opinião de Ferlazzo (1976, p. 96), alguns poemas de Emily Dickinson acerca das máximas
de Emerson, colhidas em sua obra, Natureza, parecem superficiais, provavelmente devido a suas
incertezas em relação ao tema. Abordam, segundo High (1993, p.. 75), os mistérios da terra como uma
manifestação divina, suas lições de sabedoria e sua influência benéfica, todavia, parecem não chegar a
nenhuma conclusão sobre a natureza da fé, nem revelar respostas definitivas sobre a existência: The
Murmur of a Bee (O Murmúrio de uma Abelha) / A Witchcraft – yieldeth me (Um Feitiço – concedeu-
me) / If any ask me why – (Se me perguntarem o motivo –) / ‘T were easier to die – (Seria mais fácil
morrer –) / Than tell – (Que revelar –). Inegavelmente, ao renunciar a teologia da Nova Inglaterra,
Emily Dickinson expõe seu profundo questionamento sobre a vida e a eternidade, o secular e o divino.
105

Sua poesia parece oscilar entre a busca de transcendência e o ceticismo que lhe perturbava o espírito,
assumindo indagações que marcaram o século seguinte, em permanente conflito entre ciência e fé:
That it will never come again (Que jamais voltará) / Is what makes life so sweet. (É o que torna a vida
tão doce.) / Believing what we don’t believe (Acreditar no que não acreditamos) / Does not exhilarate.
(Não nos alegra.).
Os poemas dickinsonianos que detêm uma concepção antitranscendental opõem-se à leitura
ingênua da natureza e da religiosidade mística: Of Paradise’s existence (Da existência do Paraíso) / All
we know (Tudo que sabemos) / Is uncertain certainty – (É a certeza da incerteza –). Neles a poeta
adota uma postura crítica, incapaz de contentar-se com idéias pré-concebidas e generalizações
casuais: The Fact that Earth is Heaven – (O Fato de que a Terra é o Paraíso –) / Whether Heaven is
Heaven or not (Se o Céu é Paraíso ou não). Emerson (2003, p. 104), todavia, afirmara que “a
simplicidade da natureza não reside no que pode ser facilmente compreendido, mas sim naquilo que é
inexaurível”.

Em sua poesia não-transcendental, Emily Dickinson propõe o distanciamento do observador


como única forma de contemplação objetiva da natureza, cuja proximidade beira o inconsciente e a
morte (CHASE apud FERLAZZO, 1979). Seu mistério é o mesmo da vida: suas alegrias passageiras
atestam a fugacidade da existência e a certeza do fim. A poeta questiona, então, a imortalidade e
duvida da natureza. Suspeita do que não se submete à análise objetiva e adota, como Cecília Meireles,
uma certa amargura diante do destino. Em tom de mordaz ironia, acusa os céus e a terra de serem
indiferentes às questões que atordoam a alma humana: And yet, how still the Landscape stands! (E
ainda, quão quieta fica a Paisagem!) / How nonchalant the Hedge! (Quão imperturbável a Cerca!) / As
if the “Resurrection” (Como se a “Ressurreição”) / Were nothing very strange! (Não fosse nada
estranha!).

A paisagem, longe de compartilhar a emoção do eu lírico, apenas existe, alheia tanto ao seu
regozijo quanto à sua frustração. Destituída de compaixão, a natureza prossegue indiferente ao homem;
pouco lhe importa sua vida ou sua morte: If I should die, (Se eu devo morrer,) / And you should live –
(E você deve viver –) / And time should gurgle on – (E o tempo deve passar –) / And morn should
beam – (E a manhã deve brilhar –) / And noon should burn – (E o meio-dia deve queimar –) / As it has
usual done – (Como sempre faz –). Nesses poemas, estamos irremediavelmente sós. Um abismo
intransponível nos separa da natureza, que não nos ajuda a superar a dor de existir: Nature assigns the
Sun – (A Natureza designa o Sol –) / That – is Astronomy – (Isso – é Astronomia –) / Nature cannot
enact a Friend – (A Natureza não pode ser Amiga –) / That – is Astrology. (Isso – é
106

Astrologia.). Apenas nos é permitido observá-la, experimentá-la, não podemos compartilhar seu
enigma. Foi-nos negada a entrada em seu reino. Foi-lhe negada a percepção da nossa existência.
Até mesmo os seres da natureza não lamentam a dor de seus semelhantes, apenas seguem o
curso inexplicável da vida: Apparently with no surprise (Aparentemente sem nenhuma surpresa) / To
any happy Flower (Para qualquer Flor feliz) / The Frost beheads it at its play – (A geada a degola ao
brincar –) / In accidental power – (Por um poder acidental –) / The blonde Assassin passes on – (A
loura assassina passa –) / The Sun proceeds unmoved (O Sol prossegue imóvel) / To measure off
another Day (Para cortar outro Dia) / For an Approving God. (Para a Satisfação Divina.). O próprio
Deus silencia diante do sofrimento e compactua com a indiferença do acaso. A natureza não tem
consciência ou vontade. É apenas um processo ordenado, ininterrupto, irreversível. Nesses
versos, lê-se a concepção budista de que Deus não existe como uma entidade onisciente, capaz de
atender às preces dos homens.
Cecília Meireles faz do misticismo um caminho para suas indagações pessoais, incorporando-o
definitivamente à sua obra, apesar de alguns momentos do mais absoluto ceticismo: Mutilados jardins e
primaveras abolidas / abriram seus miraculosos ramos / no cristal em que pousa a minha mão. /
(Prodigioso perfume!) / Recompuseram-se tempos, formas, cores, vidas... / Ah! mundo vegetal, nós,
humanos, choramos / só da incerteza da ressurreição. Nesses instantes de dúvida, um certo niilismo
destitui o mistério e a religiosidade: Não temos bens, não temos terra / e não vemos nenhum parente. /
Os amigos já estão na morte / e o resto é incerto e indiferente. / ... / Deus respondia, no passado, / mas
não responde, no presente. Escrevem-se, então, nas entrelinhas os ensinamentos do Budismo: nenhum
pai celestial nos salva ou condena. Não há a quem agradecer ou adorar. Em outras composições, a
poeta questiona a ordem do mundo em que a alegria é efêmera, e a dor, natural: Quando amanhã todos
formos / a mesma terra perdida, / ninguém saberá das dores / que sofria. No tempo mítico da poesia,
responde-lhe Emily Dickinson: I reason, Earth is short – (Penso, a Terra é breve –) / And Anguish –
absolute – (E a Angústia – absoluta –) / And many hurt, (E muitos sofrem,) / But, what of that? (Mas e
daí?). Segundo Buda, o desejo é a causa de todo sofrimento, pois sempre existe um descompasso entre
o que almejamos e o que vivemos de fato, por isso devemos eliminar o desejo e aprender a viver feliz
com as dádivas do presente (TICIANI, 2005, p. 6).
Não raras vezes, a poeta norte-americana recorre à galhofa ou à zombaria para negar a Bíblia, o
pecado e a fé ortodoxa (FERLAZZO, 1976, p. 32): The Bible is an antique Volume – (A Bíblia é um
Volume Antigo –) / Written by faded Men. (Escrito por Homens descorados.); The Missionary to the
Mole (O Missionário para a Toupeira) / Must prove there is a Sky (Deve provar que há um
Céu) / ... / But what excuse have I? (Mas que desculpa tenho eu?). Ironiza a morte, por exemplo, ao
afirmar em tom irreverente que o verme enamora-se do cadáver que devora: The worm doth woo the
107

mortal, (O verme enamora-se do mortal,) / death claims a living bride. (a morte quer uma noiva viva.).
E debocha até mesmo da cura pela fé: Is Heaven a Physician? (É o Paraíso um Médico?) / They say
that He can heal – (Dizem que Ele pode curar –) / But Medicine Posthumous (Mas a Medicina
Póstuma) / Is unavailable – (É indisponível –). Nesses poemas antitranscendentalistas, a natureza
parece confirmar a inexistência de Deus.

Em sincronia com a ciência, que na época já destituíra a cosmologia platônica, dogmática e


insondável, Emily Dickinson refere-se aos astros com a familiaridade de quem os conhece de perto:
We introduce ourselves (Nós nos apresentamos) / To Planets and to Flowers (A Planetas e Flores);
Peter, put up the sunshine; (Peter, prepare o brilho do sol;) / Patti, arrange the stars; (Patti, arrume as
estrelas;). E com a objetividade de quem não vê mistério algum nos céus, acrescenta: The earth upon
an axis (A terra em seu eixo) / Was once supposed to turn, (Certa vez se acreditou girar,) / By way of
gymnastic (Com o intuito de exercitar-se) / In honor of the sun! (Em honra ao sol!). Refugiando-se na
observação guiada pela razão, questiona a crença inabalável que desafia a investigação positivista,
como se lê no seguinte quarteto: ‘Faith’ is a fine invention (A Fé é uma fina invenção) / When
Gentlemen can see – (Quando os Cavalheiros podem ver –) /But Microscopes are prudent (Mas
Microscópios são prudentes) / In an Emergency. (Em uma Emergência.). Mas ao mesmo tempo
reconhece que a ciência ainda tem muito a revelar sobre a natureza: The Scientist of Faith (O Cientista
da Fé) / His research has just begun – (Sua pesquisa apenas começou –) / ... / The Flora unimpeachable
(A Flora não se submete) / To Time’s Analysis – (À Análise do Tempo –). E admite que, a despeito
de sua relevância, a ciência não pode substituir a sensibilidade: A Color stands abroad (Há uma Cor
lá fora) / On Solitary Fields (Em Campos Solitários) / That Science cannot overtake (Que a Ciência não
pode superar) / But Human Nature feels. (Mas que a Natureza sente.).

Tanto Emily Dickinson quanto Cecília Meireles revelam, por conseguinte,


contradições em seus versos, que oscilam entre uma postura mística ou cética, austera ou
irônica. Em um extremo, lemos Transcendentalismo e Budismo, em outro Positivismo e
niilismo. Não consolidam, portanto, um pensamento sistemático ou progressivo, uma vez que
nunca pretenderam veicular através de sua obra uma completa teologia em torno das imagens
da natureza.
108

3.3 O Lirismo da natureza em fogo, ar e água

Emily Dickinson, embora tendo escolhido uma vida de reclusão93, revelou interesse por lugares
longínquos e inacessíveis, como a Índia, que tanto fascinara Cecília Meireles: I’m sure ‘tis India – all
Day – (Estou certa de que é a Índia – o Dia todo –) / To those who look on you (Para os que te
estimam); The Frock I used to wear – (A Túnica eu costumava usar –) / But where my moment of
Brocade – (Mas onde meu momento de Brocado –) / My – drop – of India? (Meu – bocado – da
Índia?). Sua opção pelo isolamento doméstico não foi motivada pela renúncia à vida e ao ego,
apregoada pelo Calvinismo, mas sim pela relutância em negar o mundo e a si mesma para devotar-se a
Deus.
Isolada no seu refúgio em Amherst, a poeta pôde experimentar o mundo porque enclausurada
em um reino imutável – a arte (SPILLER, 1967, p. 127). Certamente a leitura lhe proporcionou inúmeras
viagens, depois reveladas em seus versos, afinal: There is no Frigate like a Book (Não há nenhuma
Fragata como um Livro) / To take us Land away (Para nos levar Terra afora) / Nor any Coursers like
a Page (Nem nenhum Corcel como uma Página). Para Emerson (1974, p. 1274), um único dia torna
ridículos os grandes impérios: a aurora é a Assíria; o meio-dia, a Inglaterra dos sentidos e da
compreensão; o crepúsculo e o anoitecer, Chipre, o reino da fantasia; a noite, a Alemanha da filosofia
mística e dos sonhos. Como o filósofo, Emily Dickinson foi buscar a liberdade na natureza de vários
países, inclusive do Brasil, a que se refere em quatro poemas, citados por Cavalcanti (1989, p. 115-117),
e dos quais destacamos alguns versos: The Mighty Merchant sneered – (O Poderoso Mercador
zombou –) // Brazil? He twirled a Button – (Brasil? Fez girar um Botão –) / Without a glance my way –
(Sem sequer me olhar –); A Moth the hue of this (Uma Mariposa com este matiz) / Haunts Candles in
Brazil. (Ronda Velas no Brasil.); Some such butterfly be seen (Algumas borboletas assim aparecem) /
On Brazilian Pampas – (Nos Pampas brasileiros –); The Summer deepened, while we strove – (O
Verão agravou-se, enquanto melhorávamos –) / She put some flowers away – (Guardou algumas flores
–) / ... // She dropped bright scraps of Tint, about – (Deixou cair sobras de tinta brilhante –) / And left
Brazilian Thread (E deixou Fios de Linhas Brasileiras) / On every shoulder that she met – (Em todo
ombro que encontrou –). O vôo da imaginação levava o eu poético para longe de Amherst, como as
abelhas, nas vagas do vento: What Liberty! So Captives deem (Em que Liberdade! Os Cativos crêem) /
Who tight in Dungeons are. (Presos em Calabouços) .
O cenário de seus poemas, como nos versos de Cecília Meireles, ora é familiar ora exótico,
compondo um território pelo qual seguimos fascinados: Soil of Flint, if steady tilled – (Solo de Pedra,

93
Solidão que a poeta explica nestes versos: The Soul selects her own Society – (A Alma seleciona seus próprios Amigos) /
Then – shuts the Door – (Depois – fecha a Porta).
109

se constantemente lavrado – ) / Will refund the Hand – (Recompensará a Mão –) / Seed of Palm, by
Libyan Sun (Semente de Palmeira, ao Sol do Líbano) / Fructified in Sand – (Germinada na Areia –).
Com igual teor de exotismo, escreve a poeta brasileira: Sedas vermelhas para Sarojíni! // Tudo quanto
amavas, tudo que cantavas / encontrei aqui. / Ouro, prata, véus, marfim, bogari. // Colares de flores
para Sarojíni! // ... // Tudo é teu, aqui. / (Falo para aquele Rouxinol da Índia / que não conheci.) As
paisagens do Oriente94 são um exemplo de que as poetas não se limitaram à cor local, buscando na
imaginação ou na vivência matizes incomuns para representar as imagens da terra.
A exemplo de Emily Dickinson95, a poeta brasileira traça um roteiro lírico por terras
estrangeiras, refugiando-se das incongruências da realidade nas trilhas do mundo, como escreve Rónai
(1958, p. 56): “Exílio começado antes do nascimento, e que envolve uma separação bem marcada dos
conterrâneos e dos contemporâneos, e uma procura imperiosa das coisas da natureza: as plantas, os
pássaros, os insetos.” Como a reclusa de Amherst, Cecília Meireles apreciava a solidão e o convívio
doméstico (THOMPSON, 2004, p. A21), mas a vida a levou por países tão distantes quanto México,
Portugal, Holanda e Índia, retratados em seus versos: Pela fresca das seis horas, / as mesas estão
floridas. / Pelos canteiros, abóboras. / Pelas mesas, mãos unidas. / (Tacos y tortillas.); Barqueiro do
Douro, / tão largo é teu rio, / tão velho é teu barco, / tão velho e sombrio / teu grave cantar!; // Quem
passar pelas casas triangulares, / quem descer as breves escadas, / quem subir para as barcas
oscilantes, / repetirá perplexo: / “Há um claro afogado nos canais de Amsterdão; O vento da tarde
vem e vai da Índia ao Brasil, e não se cansa. / Acima de tudo, meus irmãos, a Não-Violência.. “Nesta
viagem incessante, para além da Índia, para além do mistério das religiões e dos sonhos, Cecília
Meireles consumiu sua vida” (ANDRADE, 1975): Estão prosternadas as mulheres da Índia, como
trouxas de soluços. / Tua fogueira está ardendo. O Ganges te levará para longe.
Cecília Meireles parece, às vezes, reproduzir a nitidez e a claridade dos cenários que
caracterizam a poesia dickinsoniana96: Ao longo dos campos verdes, / tropeiros tocando o gado... / O
vento e as nuvens correndo / por cima dos montes claros. Nessas composições, a luz define os traços
da vegetação e o olhar encontra o colorido límpido de um quadro: Grande festa na rua matinal, / sob
árvores imensas, entre tabuleiros de bétel, / e grãos amarelos.
As paisagens típicas da poética de Emily Dickinson são claras e repletas de ambiências diurnas,
de sol e luz: Had I not seen the Sun (Se eu não tivesse visto o Sol) / I could have borne the shade

94
Desde a adolescência Cecília Meireles se interessou pelo Oriente. Estudou sua cultura, língua, filosofia e literatura,
chegando a ministrar um curso de Literatura Oriental na Universidade do Distrito Federal. Em 1953, visitou a Índia, ocasião
em que recebeu da Universidade de Delhi o diploma de Doutor Honoris Causa. De volta ao Brasil, em 1956 proferiu a
conferência O Elemento Oriental em García Lorca, por ocasião do vigésimo aniversário da morte do poeta. Seu poema
Elegia a Gandhi foi traduzido para dois idiomas indus: o industani e o bengali.
95
Letícia Cavalcanti (1989, p. 123) identificou 154 referências a lugares na poesia dickinsoniana.
96
No universo pesquisado, 25 poemas de Emily Dickinson apresentaram como isotopia principal o fogo, enquanto apenas 12
poemas de Cecília Meireles foram construídos em torno dessa isotopia (Tabela 11).
110

(Poderia ter gerado a sombra) / But Light a newer Wilderness (Mas a Luz uma nova Vastidão) / My
Wilderness has made – (Minha Vastidão fez – ). Suas imagens da terra captam os matizes das manhãs.
A noite cede lugar ao dia, o inverno ao verão, a penumbra à claridade: The Sun and Fog contested (O
Sol e a Neblina disputaram) / The Government of Day – (O Controle do Dia –) / The Sun took down his
Yellow Whip (O Sol pegou seu Chicote Amarelo) / And drove de Fog away. (E espantou a
Neblina.).
Mas como “todas as obras claras têm uma margem de sombra” (BACHELARD, 1990, p. 161),
em algumas composições da poeta norte-americana, paira uma atmosfera de tristeza e angústia, como
nestes versos sobre uma tarde chuvosa, provavelmente em 1861: There’s a certain Slant of light, (Há
uma certa inclinação na luz,) / On Winter afternoons – (De Tardes invernais) / That oppresses, like the
Heft (Que oprime como o Peso) / Of Cathedral Tunes – (De Sons em Catedrais –). High (1993, p. 76)
comenta que, no início da década de 1860, a temática do sofrimento instaurou-se na lírica dickinsoniana
devido ao clima da Guerra Civil. Sua dor, contudo, não era a do campo de batalha, mas a da criatura
solitária no vazio da noite97. Sua angústia era a mesma dos Existencialistas diante do silêncio da
natureza e da omissão de Deus. Talvez por essa razão sua poesia tenha sido finalmente compreendida
na década de 1920 pela geração do pós-guerra. Também Cecília Meireles canta a tristeza das tardes
que prenunciam as sombras noturnas e a languidez da lua: Jardim da tarde divina, / por onde íamos
passeando / saudade e melancolia; há um coração nas lânguidas tardes que envolvem a vida;
Primeiro, foram os verdes / e águas e pedras da tarde, / e meus sonhos de perder-te / e meus sonhos de
encontrar-te...
Outras imagens da terra guardam a melancolia que o eu lírico ceciliano conhece de perto: Tristes / essas mãos na areia / levantando dunas. Até mesmo os
animais são tristonhos, como se conhecessem o destino trágico e a inconstância de tudo: À cigarra, queimando-se em música, / ao camelo que mastiga sua
longa solidão, / ao pássaro que procura o fim do mundo, / ao boi que vai com inocência para a morte. Eventualmente algum regozijo aporta em seus versos

como um desconhecido, vindo de terras longínquas, mas eis: Que tudo passa ... / O prazer é um intervalo / na desgraça... Ataide (1983, p. 36) vê em
seus tons melancólicos traços autobiográficos: “Tendo passado por situações humanas trágicas, aproveitou sua experiência vivencial e criou uma poesia triste,
infeliz, amarga.” A poesia de Cecília Meireles inegavelmente projeta na paisagem uma certa desilusão: Quem veio para esta vida, / tem de ir sempre de
aventura: / uma vez para a alegria, / três vezes para a amargura. Amargura que Emily Dickinson também deixa transparecer em sua poesia, embora em
menor escala: Too happy Time dissolves itself (O Tempo muito feliz se dissolve) / And leaves no remnant by – (E nada deixa para trás) / ’Tis Anguish not a
Feather hath (A Angústia nem uma Pluma tem) / Or too much weight to fly – (Mas muito peso para voar –).

A luz, expressão do fogo, é símbolo do devir, da mudança, do tempo que passa, da vida que se
esvai. Talvez por essa razão, nestes versos, Emily Dickinson atribua à luminosidade uma influência
nefasta: A Toad can die of Light – (Um Sapo pode morrer de Luz –) / Death is the Common Right
(A Morte é um Direito Comum) / Of Toads and Men – (De Sapos e Homens –); Insulting is the sun

97
Segundo a narrativa mitológica do Timeu (PLATÃO, 2001), quando o sol, parente do fogo do dia, desaparece ao anoitecer,
a escuridão cerra nossas pálpebras, que guardam a potência do fogo. Somente ao acordarmos, após a noite sombria, nossa luz
interior encontra-se com o fogo do sol e as trevas se dissipam.
111

(Insultante é o sol) / To him whose mortal light (Para ele cuja luz mortal) / Beguiled of immortality
(Distraída da imortalidade) / Bequeaths him to the night. (Deixa-o para a noite.) Além disso, para
Heráclito, “o mundo sempre foi, é e poderá ser um fogo sempre vivo, ora atiçado, ora apagado” (apud
DIANÉ, 2004, p. 22). No cosmos heraclitiano, que jamais fora criado, porque sempre existira, eterniza-
se o paradoxo da fugacidade de tudo. Na mudança contínua, reside a unidade de todas as coisas e a
fonte de toda coerência: “tudo flui”98 (apud CAPRA, 1983, p. 146). Na presença da luz, inscreve-se,
portanto, a fugacidade da existência, o instante dickinsoniano, entre exuberância e destruição.
A representação do fogo guarda a transitoriedade que as poetas lamentam encontrar na natureza
e na existência humana. Na lírica ceciliana, povoada de sombras, as imagens do fogo são as mais raras
(Tabela 6); na lírica dickinsoniana, o fogo é mais freqüente que a água, porém menos freqüente que o ar
(Tabela 7). O verão que anima o mundo se esvai tão rápido quanto o destino: Summer is shorter than
any one – (O Verão é mais breve que qualquer um –) / Life is shorter than Summer – (A vida é mais
breve que o Verão –). E o sol, que alegra o dia, logo desaparece nas sombras noturnas, povoadas de
tristezas: Quando o sol ia acabando / e as águas mal se moviam, / tudo que era meu chorava / da
mesma melancolia. Também são efêmeras as estrelas que partem ao chegar a aurora nestes versos em
que o ritmo dos astros é alvo de ironia: Trusty as the stars (Confiáveis como as estrelas) / Who quit
their shining working (Que param de brilhar) // (...) Durable as dawn (Duráveis como o amanhecer).
O pôr-do-sol é a fronteira para o território da morte – a noite sombria em que não
penetra a luz: Let down the Bars, Oh Death – (Abra as Grades, Ó Morte –) // Thine is the
stillest night (Tua é a noite mais Quieta). Nos versos de Cecília Meireles, as horas noturnas
também acolhem vultos: Abri na noite as grandes águas / criadas no tempo de chorar. /
Levantei os mortos do sonho / que trouxestes para viajar. O mesmo sol que se apaga no
horizonte é o signo de nossos fracassos, de nossas perdas diárias, de nosso luto e escuridão:
We learn in the Retreating (Aprendemos com a Retirada) / How vast an one (Quão vasta e
única) / Was recently among us – (Estava recentemente entre nós –) / A Perished Sun. (Um
Sol Extinto.).
Mas, como explica Bachelard (1999, p. 29), enquanto o percurso do sol traduz o tempo quase
imperceptível sobre os dias, em contrapartida, “tudo o que muda velozmente se explica pelo fogo”.
A luz do sol é sempre uma promessa de esperança após as lágrimas feitas de chuva e sofrimento:
Choveu tanto sobre o teu peito / que as flores não podem estar vivas / ... // Pode ser que o sol se levante
/ sobre as tuas mãos sem vontade / e encontres as coisas perdidas / na sombra em que as abandonaste.

98
Heráclito parece ter previsto a inquietude fundamental da matéria, característica do espaço cósmico e do mundo
subatômico. Segundo a teoria quântica, a matéria jamais se encontra em repouso, mas em permanente estado de movimento,
apresentando um equilíbrio dinâmico, e não estático (ibidem, p. 150).
112

O brilho do sol é também uma metáfora para o pensamento que não cabe em palavras,
que desafia qualquer tentativa de expressão – luz intensa que não se deixa esconder sob a mão
espalmada: I found the phrase to every thought (Encontrei a frase para todos os
pensamentos) / I ever had – but One – (Que já tive – exceto Um –); / And that – defies me – as
a hand (E isso – me desafia – como uma mão) / Did try to chalk the sun. (Que tentasse
encobrir o Sol.). No Romanceiro da Inconfidência, a ausência de luz representa a rigidez do
dogma e a imposição ideológica: E o lugar da esperança. E a fonte. E a Sombra. / E a voz que
já não fala, e se prolonga; Palavras que se interpretam / nos discursos, nas saúdes... / ... /
(Em redor das grandes luzes, / há sempre sombras perversas...) A escuridão encobre o sonho
inominável sob a opressão.
Cecília Meireles, ao sol dos trópicos, refugia-se na penumbra, no entardecer, na
palidez das chuvas: Tocam tão longe! / O turvo dia / mistura piano, árvore, nuvens, / séculos
de melancolia... Em vez das alegres cores do verão, prefere os tons melancólicos do inverno:
Quem toca piano sob a chuva, / na tarde turva e despovoada? Até mesmo a música guarda
notas sombrias e pálidas: / ... // alguém colhe com dedos calmos / ramos de som, descoloridos.
Suas claridades noturnas não anunciam sonhos, mas infindáveis sofrimentos: A estrela que
nasceu trouxe um presságio triste / ... // A estrela que nasceu tinha tanta beleza / que
voluntariamente a elegeu minha sorte. / Mas a beleza é o outro perfil do sofrimento. Em
muitas composições, a paisagem, longe de alegrá-la, apenas experimenta sua dor: Levai-me a
esses longes verdes, / cavalos do vento! / Pois o tempo está chorando / por não ter colhido /
meu contentamento! Em seus poemas persiste uma tristeza feita de silêncios, lágrimas e
sombras: A névoa que se adensa vai formando / nublados reinos de saudade e pranto; Chora
a espuma pela areia, / na maré cheia. Como a natureza, a persona poética verte em soluços
seu mais profundo desencanto: À beira d’água moro, / à beira d’água / da água que
choro.
A poeta norte-americana procura na natureza o calor do sol, o brilho das estações, a
alvura das manhãs sobre a vegetação: A Light exists in Spring (Uma Luz existe na Primavera)
/ Not present on the Year (Que não está presente no Ano) / At any other period – (Em nenhum
outro período –). Por isso, no outono, implora a Deus determinação para conviver com a
melancolia das horas: Grant me, Oh Lord, a sunny mind – (Concede-me, Ó Deus, uma mente
ensolarda –) / Thy windy will to bear. (Para suportar tua ventania.). No inverno, pede que
lhe pintem o sol, o pássaro, a borboleta: Make me a picture of the sun –(Façam-me um quadro
do sol –) / So I can hang it in my room –(Para que eu possa pendurá-lo em meu quarto –) / …
// Draw me a Robin – on a stem – (Desenhem-me um Paparoxo – em um caule –) / So I am
113

hearing him, I’ll dream. (Então, o ouvindo, sonharei.). Sua poesia nos faz lembrar o olhar
emersoniano sobre a paisagem: cada estação tem uma beleza própria e o mesmo campo a toda
hora revela imagens novas, nunca vistas e que jamais voltarão (EMERSON, 1974, p. 1274).
Como Platão (2002d, p. 206-207), relaciona o sol à idéia do bem e sua luz à verdade,
atribuindo-lhe a função de garantir às coisas visíveis gênesis, crescimento e alimentação: The
Color of a Queen, is this – (A Cor de uma Rainha, é esta –) / The Color of a Sun (A Cor de
um Sol); And what a privilege to be (E que privilégio ser) / But the remotest Star (Ao menos a
mais remota Estrela). Uma alegria pueril se espalha pelos campos, pelas árvores e ressoa no
canto jovial dos pássaros: Upon his Saddle sprung a Bird (Em sua Sela saltou o Pássaro) /
And crossed a thousand Trees (E cruzou milhares de Árvores) / ... / And then he lifted up his
Throat (E então ergueu sua Garganta) / And squandered such a Note (E esbanjou uma Nota
tal que) / A Universe that overheard (Um Universo que a ouviu) / Is stricken by it yet – (Por
ela é ainda tocado –). A claridade é uma infinita promessa de bem-estar.
Algumas vezes, contudo, pousa em seus versos uma sombra de tristeza, um breve lamento: I
have a missing friend – (Tenho um amigo que se foi –) / “Pleiad” its name, and Robin, (“Pêiades” seu
nome, e Paparoxo,) / And guinea in the sand. (E guinéu na areia.). Mas raramente, há espaço para
amargura ou constatação de que a dor é inerente à própria vida: For each ecstatic instant (Por cada
instante de êxtase) / We must na anguish pay (Uma angústica devemos pagar) / ... // For each beloved
hour (Por cada hora adorável) / … // Bitter contested farthings – (Amargos e árduos vinténs –) / And
Coffers heaped with Tears! (E Cofres abarrotados de Lágrimas!). Essas tonalidades entre luz e
sombra, aliadas a escolhas semânticas das autoras, conferem a seus poemas atmosferas distintas: ora a
lucidez do dia, ora a noite onírica.
Seus poemas são quadros em que se contempla a beleza e a variedade dos espetáculos da paisagem. As poetas retratam os diferentes tons da natureza no
alvorecer e no crepúsculo. O ciclo diário do amanhecer ao entardecer e o fluxo contínuo das estações se refletem em sua poesia. A primavera lhes sugere
uma renovação física e espiritual; o verão lhes traz uma súbita alegria; o outono as embala com sua brisa suave e morna; o inverno as entristece, com seus dias
frios como a morte.

Na representação das estações, pairam o onirismo e a quimera de uma antiga


cosmologia exposta no Timeu99. O deslocamento dos astros, que determina a passagem do
tempo e o fluxo das estações, traça o ritmo de nossas vidas. Os corpos celestes, acredita
Platão (2001, p. 75), forjam os dias e noites ao percorrerem os círculos concêntricos de um

99
“Para que houvesse uma medida visível da rapidez ou lentidão relativas com que perfazem as oito revoluções, a divindade

acendeu uma luz na segunda órbita a contar da terra, que presentemente denominamos sol... nasceram o dia e a noite, que

completam a revolução do círculo único e o mais inteligente; depois nasceu o mês, quando a lua perfaz seu círculo e atinge

o sol; e de seguida o ano, ao chegar o sol ao fim de sua revolução” (grifo nosso) (PLATÃO, 2001, p. 75).
114

universo finito sobre os quais paira Deus, causa final de todo movimento. Luz e calor, frio e
escuridão afetam o ciclo vital dos animais, da vegetação e da raça humana, estabelecendo-se
uma nítida relação entre o percurso dos astros e a existência na terra.
Em suas leituras, Bachelard (2001a, p. 124-125) vê a poesia forjar auroras e poentes,
arrancando faíscas do sol – ferro malhado pela imaginação cósmica. Ao golpear o sol na
bigorna, o escritor se torna um ferreiro capaz de moldar o universo segundo sua emoção ou
devaneio. O ofício de forjar a imagem poética tem ainda o mesmo teor do trabalho do
demiurgo, cujo malho imprime no horizonte as paisagens do sol – “último vestígio da forja
original” (SARAMAGO, 2002, p. 112). Essa bigorna do entardecer é da mesma matéria onírica
daquela com que Vulcano100, o deus romano do fogo e do metal, trabalha nas entranhas do
Etna em sua forja.
Entre as imagens do fogo, o vulcão pode representar um sentimento guardado, que se esconde
sob a calma estampada nas fisionomias: If the stillness is Volcanic (Se a placidez é Vulcância) / In the
human face (Na face humana) / When upon a pain Titanic (Quando sob um sofrer Tinânico) / Features
keep their place – (A expressão se mantém inabalável –). Sua erupção surpreende a todos com a
imprevisibilidade das lavas: Fire, and smoke, and gun, (Fogo, e fumaça, e arma,) / Taking Villages for
breakfast, (Tomando vilarejos como desjejum,) / And appalling Men – (E horrorizando os Homens –).
Suas metáforas preservam a força destruidora do magma. Como um vulcão, escreve Cecília Meireles, o
destino nos surpreende com seus subterfúgios: Dos meus retratos rasgados / me recomponho, / ... /
meus solos vivos de fogo. // Muito se sofre. / As doces uvas sabem a enxofre. // Vulcões mordem as
raízes / das minhas plantas. Sua súbita chegada é um segredo guardado nas entranhas da terra ano após
ano, uma confidência revelada apenas à natureza: The reticent volcano keeps (O reticente vulcão
guarda) / His never slumbering plans (Seus planos nunca adormecidos).
Segundo Bachelard (1999, p. 29), as questões sobre o fogo estiveram sempre situadas em uma
região híbrida, entre intuição e objetividade, pois os devaneios ligados ao fogo não se apagaram com o
advento da ciência. Parecem confirmar essa suposição, estes versos de Emily Dickinson, que se situam
a meio caminho entre imparcialidade e subjetivismo: Fire exists the first in light (O fogo existe a
princípio na luz) / And then consolidadates (E depois se consolida) / Only the Chemist can disclose (Só
o Químico pode revelar) / Into what Carbonates (O que se Carboniza).

Para além do fogo, na inconsistência do ar, as poetas encontram a essência das


metáforas sobre tudo que é abstrato e impalpável como a morte, a eternidade ou o amor. Na

100
Vulcano, filho de Júpiter e de Juno, marido de Vênus, nasceu tão feio que a mãe o precipitou do Olimpo. O infeliz caiu na
ilha de Lemnos e ficou coxo. Auxiliado pelos Ciclopes, manipulava, no mundo subterrâneo, o fogo dos vulcões.
115

heráldica, as asas simbolizam a retidão de caráter e a bondade de espírito, temas que a poética
do ar traduz em imagens diáfanas de vôo e arrebatamento (BIEDERMANN, 1993, p. 39-40):
It’s like the Light – (É como a Luz –) / A fashionless Delight – (Um Prazer atemporal –) / It’s
like the Bee – (É como a Abelha –) / A dateless – Melody – (Uma Melodia – imemorial –). O
ar é o segundo elemento mais freqüente na poesia de Emily Dickinson (Tabela 7); na
poesia de Cecília Meireles, os motivos do ar sucedem os da terra, enquanto a isotopia do ar
ocupa uma posição intermediária entre a água e o fogo (Tabela 6).

Em Cecília Meireles, as imagens do ar revelam o êxtase provocado por uma


experiência profunda, quase transcendental: Auricelete manhã com as estrelas diluídas / numa
luz nova. / ... // Auriceleste manhã com a brisa da montanha, / a rósea brisa, / desenhando
seus giros de libélula / no horizonte de gaze. Na atmosfera rarefeita das alturas, que se
contrapõe à compleição sólida dos objetos, habitam as imagens da valorização espiritual.

Sob o influxo do elemento ar, as cores familiares ganham as nuanças efêmeras do


impressionismo. Os contornos da imagem se diluem nos tons esfumaçados de um esboço. O
tempo é uma composição diáfana, cuja substância permanece um segredo, cujo território é
inominável. Dinamismo e verticalidade integram sua poética, em que paira o esforço da
valorização humana em face do dilema de ligar-se à matéria ou livrar-se de seu peso: Para o
alto da noite negra, / da noite muito negra, / partiu o delicado pássaro / que só na extrema
solidão / do último ramo / se atreve a cantar, porque diz a sua canção: / “Eu te amo! Eu
te amo! Eu te amo!” Tanto do ponto de vista temático quanto estilístico, suas imagens são
envoltas em fluidez e desmaterialização. Sua poesia está impregnada de uma moral em torno
da negação dos valores materiais que o hábito empresta permanência.

O mobilismo que transcende o real traduz a leveza inscrita nos objetos contemplados.
Aos olhos da poeta brasileira, a realidade se transforma em miragem, torna-se vaporosa,
efêmera, pois “a imaginação voa mais longe do que a vista” (GRACIÁN, 2002, p. 133): Foi meu
professor um pássaro, / dono de arco-íris e nuvens, / que dizia com as asas, / em direção às
estrelas. Suas cores e contornos ganham os tons subjetivos, de um mundo interior. Os objetos
tornam-se voláteis, desaparecem no espaço em meio a transparências e matizes. Nessa
“fenomenalidade mínima” (BACHELARD, 2001b, p. 171), seus poemas reúnem as metáforas
do vazio, do ar e da liberdade. Voamos tão alto, para longe das amarras do mundo que a
imaginação nos parece “uma das formas da audácia humana” (ibidem, p. 6).
116

Emily Dickinson descreve o desejo de leveza que impele o eu lírico a voar. Seus versos
transportam o leitor para um horizonte em que todo o peso se dilui numa atmosfera de alívio: My
Cocoon tightens – Colors tease – (Meu Casulo comprime-se – Cores perturbam-se –) / I’m feeling for
the Air – (Examino o Ar – ) / A dim capacity for Wings (Uma confusa capacidade para Asas) / ... // A
power of Butterfly must be – (Uma força de Borboleta deve ser –) / The Aptitude do fly (A Aptidão para
voar). Nesse dinamismo inerente à poética do devaneio, todo quadro é transitório, e a paisagem da
terra é apenas um ponto de partida para o intangível. Na isotopia do ar, revela-se a sedução do vôo para
além da aparente quietude das coisas terrenas: The duties of the Wind are few, (As obrigações do Vento
são poucas,) / To cast the ships, at Sea, (Lançar os navios, ao Mar,) / Establish March, the
Floods escort, (Instalar Março, as Enchentes escoltar,) / And usher Liberty (E anunciar a Liberdade).
Mais que o ar, o vento traz consigo instabilidade e mudança.
Tendo vivido boa parte de sua vida na reclusão da casa, que como um casulo a impedia de
voar, escreveu poemas sobre a natureza, povoados de insetos e pássaros. Em meio à rotina diária, a
poesia era o ninho que a embalava no vôo onírico das palavras, era a árvore mais alta de cujo abrigo
partia para “onde todo pássaro ousa ir” (Where every bird is bold to go). Fiel ao estilo lírico, traduziu
em imagens, sentimentos e emoções que o cenário em torno da casa e as páginas dos livros lhe
sugeriam.
Em Cecília Meireles, paira no ar a música da natureza, suave e contínua, nutrindo de sonho a vida dos homens. Sua harmonia não se restringe ao colorido da
paisagem, revelando-se também na pureza de seus sons: Toca essa música de seda, frouxa e trêmula, / que apenas embala a noite e balança as estrelas noutro
mar. // Toca essa música de seda, entre areias e nuvens e espumas. A paisagem parece lhe oferecer a “natural e límpida musicalidade” de sua poesia:

ondulante como o mar, sutil como uma prece, eternamente furtiva (CARNEIRO, 2002, p. 7).

Emily Dickinson conhece os músicos do ar, que compõem melodias celestiais e acalantam a alma humana: Musicians wrestle everywhere – (Músicos tocam
em toda parte –) / All day – among the crowded air (O dia inteiro – no ar repleto) / ... // Some – say – it is “the Spheres” – at play! (Alguns – dizem – são “as
Esferas” – tocando!); The earth has many keys. (A terra tem muitas teclas.) // ... / The cricket is her utmost (O grilo é a melhor) / Of elegy to me. (Elegia para
mim.). A música que advém dos instrumentos, em contrapartida, é apenas uma tênue alusão à riqueza melódica do canto dos pássaros ou do murmúrio das
águas: A careless snatch – a ballad – (Um trecho à toa – uma balada –) / A ditty of the street – (Uma cantiga da rua –) / ... / It was as if a Bobolink (Como se
um Triste-pia) / Sauntering this way (Passeando por aqui) / Carolled, and paused, and carolled – (Cantasse, e parasse, e cantasse –) / ... / It was as if a
chirping brook (Como se um riacho gorjeando) / Upon a dusty way – (Sobre um caminho poeirento –) Set bleeding feet to minuets. (Com pés sangrentos,
dançasse minuetos.). Por seu teor musical, vários poemas das autoras já foram transformados em canções101.

Modeladas pela imaginação, as formas do ar “aparecem ao olho como algo de firme,


consistente”: Este pardal travesso / pia toda a manhã com fome exagerada. // Mesmo assim pequeno, /
tenta voar dos galhos, / e salta desajeitado / entre as plantas baixas. Somente assim, “as imagens ditas
fugidias, esgarçadas, vaporosas, podem ser objeto de retenção e de evocação” (BOSI, 2004, p. 22). A

101
Para listagem das obras de Emily Dickinson e Cecília Meireles que foram musicadas, consultar respectivamente:
MEIRELES, Cecília. Obra Poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1977. p. 76.; DAGHLIAN, Carlos (Org.). Poesia e
Música. São Paulo: Perspectiva, 1985. p. 167-169.
117

poética do ar quer anular a gravidade e vencer a imobilidade que nos prende à terra e à matéria de
nossas angústias: Air has no Residence, no Neighbor; (O Ar não tem Residência, ou Vizinho;) No Ear,
no Door, (Nem Ouvido, ou Porta,) / No Apprehension of Another (Nenhuma Preocupação com o
Outro) / Oh, Happy Air! (Oh, Ar Feliz!).
Com precisão quase científica, Emily Dickinson descreve um sinistro habitante das alturas: The
Bat is dun, with wrinkled Wings – (O Morcego é sombrio, com Asas enrugadas –) / Like fallow Article
– (Como Algo sem pouso –) / ... // His small Umbrella quaintly halved (Sua pequena Sombrinha
estranhamente dividida) / Describing in the Air (Descrevendo no Ar) / An Arc alike inscrutable. (Um
Arco igualmente inescrutável.). Antecipando-se ao mundo moderno, a poeta adota uma postura
positivista: The butterfly obtains (A borboleta obtém) / But little sympathy (Somente alguma simpatia) /
Though favorably mentioned (Embora favoravelmente mencionada) / In Entomology – (Na
Entomologia –).
No tempo da modernidade, Cecília Meireles considera a natureza sob o prisma da ciência e do
progresso. Faz da máquina uma metáfora para definir a produção de som pelo grilo e, como vimos, de
luz pelo vaga-lume: Máquina de ouro a rodar na sombra, / serra de cristal a serrar estrelas... / ... //
Máquina de ouro tremendo no ar de vidro frio, / cortando o broto das palavras rente à boca...; Na
oficina do ar, todo matiz fugidio, captado pela imaginação dinâmica, se traduz em movimento ainda
que breve e mecânico.

Na lírica dickinsoniana, a abelha representa a liberdade que o Puritanismo condena,


mas que a imaginação aérea consente: Could I but ride indefinite (Pudesse ao menos voar
sem rumo) / As doth the Meadow Bee (Como a Abelha do Prado) / And visit only where I
liked (E ir apenas onde quisesse) / And No one visit me (E Ninguém me visitar). / And flirt all
Day with Buttercups (E flertar todo o Dia com Botões de Ouro) / And marry whom I may (E
casar com quem quisesse). Negando a tradição102 ocidental, em que a abelha é símbolo de
infatigabilidade no trabalho, a poeta a descreve como um exemplo de vício e leviandade:
When ‘Landlords’ turn the drunken Bee (Quando os ‘Senhorios’ a Abelha embriagada) / Out
of the Foxglove’s door – (Expulsarem da porta da Erva-dedal –). Por viver supostamente do
perfume das flores, a abelha simboliza a pureza e a castidade, mas Emily Dickinson a acusa
de leviandade por se deixar seduzir pela beleza: Of Silken Speech and Specious Shoe (Com
Voz de Seda e Sapato Especioso103) / A Traitor is the Bee (Traidora é a Abelha) / His
service to the newest Grace (Sua atenção para a mais nova Beleza) / Present continually

102
Watts, por exemplo, em um hino bastante popular (How doth the little busy bee / Improve each shining hour), apresenta a
abelha como um exemplo de diligência e perseverança (DAGHLIAN, 1985, p. 166).
103
Especioso: belo, formoso.
118

(Volta-se continuamente). No Oriente, inclusive, a abelha representa o rapaz enamorado que


se nutre da jovem “flor em botão” (BIEDERMANN, 1993, p. 9), aspecto a que a poeta parece
aludir nestes versos: Did the Harebell loose her girdle (A Campainha perdeu sua auréola) /
To the lover Bee (Para a Abelha amante) / Would the Bee the Harebell hallow (A Abelha
cortejará a Campainha) / Much as formely? (Tanto quanto antes?). Na poética
dickinsoniana, que destitui verdades pré-concebidas, a abelha foge da conduta exemplar,
cultivada pelo imaginário cristão.
Para além da aparente estabilidade do mundo, as metáforas do ar incorporam o dinamismo das
alturas. A borboleta representa para muitos povos “a capacidade de mudar e a beleza”, mas também a
fugacidade da alegria (BIEDERMANN, 1993, p. 57). Na lírica das poetas, é símbolo de tudo que se esvai
leve e frágil como o instante ou a voz: Or Butterflies, off Banks of Noon (Ou Borboletas, das Margens
do Meio-Dia) / Leap, plashless... (Saltem, límpidas...); Caem pedaços de sono, entre os silêncios, / em
grandes flores, mornas e dóceis, / com o peso e a cor de vagas borboletas; Bando de borboletas
multicores, / as palavras voam. / Bando azul de andorinhas, / bando de gaivotas brancas, / as palavras
voam. A liberdade impossível à vida humana é um sonho primordial que a borboleta realiza no espaço
do poema: entre o planeta e o Sem-Fim, / a asa de uma borboleta; A menina da varanda, / com tantas
asas nos braços / e borboletas na mão; outro sonho é metamorfosear-se e ludibriar o peso da matéria:
But who am I, (Mas quem sou eu,) / To tell the pretty secret (Para revelar o belo segredo) / Of the
Butterfly! (Da Borboleta!); – Tão bonitinha! Preta, preta! / Que vai ser a alma dela, agora? / – Ou
beija-flor ou borboleta... A isotopia do ar, na lírica das autoras, realiza, portanto, o desejo de leveza que
se aninha na alma dos homens: Two Butterflies went out at Noon – (Duas Borboletas saíram ao Meio-
Dia –) / And waltzed upon a Farm – (E valsaram sobre a Fazenda –). Na paisagem dos poemas, as
borboletas são veículos do mobilismo que as imagens aéreas suscitam em nós: Em redor de Miraclara /
dançam borboletas: / brancas, e encarnadas / com riscas pretas. No vôo brando das horas, a vida é
tão fugaz quanto a borboleta que se move inquieta ou o vento que simplesmente passa.
Na poesia das autoras, o equilíbrio dinâmico da natureza desenha a harmonia dos elementos:
Em tua mão quieta, pousarão borboletas silenciosas. A abelha admira a flor, o vento acaricia os
galhos, a onda contempla a lua, a terra deseja o céu: The bee doth court the flower, the flower his suit
receives, (A abelha corteja a flor, a flor seu galanteio recebe,) / And they make merry wedding,
whose guests are hundred leaves. (E eles fazem um casamento alegre, cujos convidados são uma
centena de folhas.). No imaginário cristão, borboletas, abelhas e pássaros semeiam o aroma das flores
no céu claro (BIEDERMANN, 1993, p. 9). Seu vôo extrai das plantas todo o peso, acalentando na
paisagem o destino das imagens fugidias: As borboletas douradas e as brancas / palpitam com asas de
pétala, / entre água e flores.
119

Pássaros repousam nas árvores, borboletas e abelhas visitam as flores: as imagens aéreas são
símbolo de equilíbrio e harmonia. A aproximação entre os elementos é também um ofício da água
corrente, que reflete a paisagem em seu curso. Fator de unidade entre os seres (BACHELARD, 1998,
p. 201), as águas reproduzem os cenários da terra (E a água cai, refletindo estrelas, céu, folhagem... /
Cai para sempre!), as nuanças do coração (Meus olhos eram mesmo água, /– te juro – / mexendo um
brilho vidrado, / verde-claro, verde-escuro) e o rumo do destino humano (Quando as águas
escurecem, /... / todos os barcos se perdem, / entre o passado e o futuro.). Nas imagens da água, as
poetas resgatam a identidade entre o homem e a natureza.

No convívio da água com a terra, Emily Dickinson percebe uma lição de sabedoria: The
Caspian has its realms of sand, (O Cáspio tem seu reino de areia,) / Its other realm of sea (Seu outro
reino de mar); An Everywhere of Silver (Uma Imensidão de Prata) / With Ropes of Sand (Com Cordas
de Areia) / To keep it from effacing (Para evitar que se apague) / The Track called Land. (A Trilha
chamada Terra.). Cecília Meireles retrata a calma absoluta que a água transmite aos habitantes do
ar ou do solo, enormes ou minúsculos, astros, plantas, insetos: Há uma água clara que cai sobre pedras
escuras / e que, só pelo som, deixa ver como é fria; Talvez fiques tão tranqüila, / ó vida entre o mar e o
vento.

Para a metafísica, a água resulta da metamorfose ontológica entre fogo e terra, embora sua
substância sugira uma intimidade distinta da que emana desses elementos. A água arrasta o leitor ao
destino das coisas fugidias: Um poeta é sempre irmão do vento e da água: / deixa seu ritmo por onde
passa; O mar é só mar, desprovido de apegos; We send the Wave to find the Wave (Nós enviamos a
Onda para encontrar a Onda) / ... / The sagest time to dam the sea is when the sea is gone – (O
momento mais prudente para se represar o mar é quando o mar partiu –). Em seu curso se revela a
mobilidade da vida humana de que nos fala Heráclito104: como as águas, passamos.

A água favorece a combinação dos quatro elementos que a imaginação material privilegia.
Incorpora sabores e essências, dissolve os sólidos e potencializa as substâncias segundo os princípios de
uma química ingênua e comum, compartilhada também pelos poetas: e a água derrete um brilho fino,
que em si mesmo logo se perde; Minhas mãos ainda estão molhadas / do azul das ondas entreabertas, /
e a cor que escorre dos meus dedos / colore as areias desertas. Mas as imagens profundas do devaneio
da água jamais provêm da diluição simultânea de todos os elementos, resultam da dissolução binária

104
Heráclito, filósofo grego da escola jônica, nascido em Éfeso. O fogo era para ele o elemento primitivo da matéria
submetida a uma transformação perpétua (576-480 a.C.).
120

com o fogo, com a terra ou até mesmo o ar, como no vapor e nas brumas105. A razão dessas
aproximações dualistas é que para a imaginação material, substâncias contrárias “casam-se”
por terem sexos opostos e, no cânone ocidental, todo casamento pressupõe a paridade. Para
os poetas, o sol que nasce no mar é uma labareda da água, suas “chamas molhadas”, seus
“pingos de fogo” aquecem as manhãs com um calor úmido, resultante da união entre opostos.
(BACHELARD, 1997, p. 95-103). Na lírica das autoras, as imagens da água e das estrelas ou do mar e
da lua conjugam-se para traduzir saudade e melancolia: E entre água e estrela estudo a solidão; Each
that we lose takes part of us; (Todos que perdemos levam uma parte de nós;) / A crescent still abides,
(Um crescente ainda permanece,) / Which like the moon, some turbid night, (Que como a lua, em uma
notie turva,) / Is summoned by the tides. (É convocado pelas marés.).
Nas águas salgadas, as poetas descobrem uma expressão para a força esmagadora e incontrolável do amor: The Heart has narrow Banks (O Coração tem
Margens estreitas) / It measures like the Sea (Tem a medida do Mar); a que oceano se prende e desprende / a onda da minha vida, em que estás como um
barco...?; Não me interessam mais nem as estrelas, nem as formas do mar, nem tu. A travessia do oceano, por sua vez, é uma metáfora para a existência, cujo
sofrimento assemelha-se às tormentas em alto-mar: Whether my bark went down at sea – (Se meu barco naufragou –) / Whether she met with gales – (Se
enfrentou tempestades –) / Whether to isles enchanted (Se em ilhas encantadas) / She bent her docile sails – (Baixou suas dóceis velas –); Levanta meu lábio /
um mar extenuado, / um mar já sem barco, /sem alma de náufrago, / sem ilha nem viagem / para qualquer lado.

Mas como as forças oníricas nutrem-se de experiências colhidas na banalidade do


cotidiano, muitos devaneios privilegiam as águas fluviais, as águas doces, que refrescam e
dessedentam (BACHELARD, 1977, p. 158-162): Geram os olhos incertos, / por onde descem os
rios / que andam nos campos abertos / da claridade do dia; São dois rios os meus olhos / – te
juro – / noite e dia correm, correm, / mas não acho o que procuro. Os rios que convidam ao
sonho e à contemplação revelam também sensualismo e desejo: No rio dos teus encantos, /
banhei minhas amarguras.

A água, como os demais elementos, encerra um potencial de adversidade que o


homem, através da ação ofensiva, deve superar para usufruir de sua essência. O nadador e o
barqueiro são heróis que enfrentam a fúria das águas, que se lançam contra as correntes e
desafiam a força do rio ou do mar: It tossed – and tossed – (Sacudia – e sacudia –)
/ A little Brig I knew – o’ertook by Blast – (O pequeno Brigue que eu conhecia – ameaçado
pela Ventania –). Essa personificação da água como um inimigo confere à aproximação
humana um teor de luta e coragem: O alento heróico do mar tem seu pólo secreto, / que os
homens sentem, seduzidos e medrosos. Para conhecer a água revolta é preciso senti-la,
conviver com seus perigos, interpretar seus sinais, reconhecer seus ritmos.

105
As águas termais, por exemplo, no século XVIII, devido ao cheiro característico de enxofre e betume, eram consideradas
compostas por água e fogo. Para o sonhador, o mar como o álcool em chamas é uma água feminina que renunciou ao pudor,
seduzida pela masculinidade do fogo (BACHELARD, 1997, p. 95-103).
121

As poetas, com as imagens da água violenta, celebram o devaneio da vontade, cantam


eventos futuros, não recordações: Declaiming Waters none may dread – (Águas que
declamam ninguém pode temer –); Queremos a ilusão grande do mar, / multiplicada em suas
malhas de perigo; água de todas as possibilidades, / mas sem fraqueza nenhuma. O nadador
e o barqueiro que desafiam as águas são movidos pela certeza do triunfo, pelo desejo viril da
façanha, pelo desafio à natureza, pela alegria de superar limitações: Edifice of Ocean (Edifício
do Oceano) / Thy tumultuous Rooms (Teus aposentos tumultuados) / Suit me at a venture
(Adequam-se à minha aventura) / Better than the Tombs (Melhor que os Túmulos). Nas águas
agitadas, deparam-se com o cansaço e a dor, com gestos heróicos e derrotas vergonhosas: Este
rugido das águas / é uma tristeza sem forma: / sobe rochas, desce fráguas, / vem para o
mundo e retorna...; Chora a espuma pela areia, / na maré cheia. As vagas e as corredeiras
carregam toda ambivalência da felicidade e do sofrimento que o homem experimenta ao
lançar-se ao desconhecido (BACHELARD, 1977, p. 170-173).
Já a poesia das águas quietas está encharcada da melancolia com que um riacho umedece uma campina ou um bosque: Have you got a Brook in your little
heart, (Você tem um Riacho em seu coração,) / Where bashful flowers blow, (Onde flores tímidas brotam,) / And blushing birds go down to drink, /...?

(E pássaros acanhados vão beber água, /...?). Pergunta-nos Emerson (1974, p. 1278): Quem contempla o rio e medita sem recordar o fluxo de todas as
coisas? À beira de um córrego, o sonhador encontra refúgio no devaneio sugerido pelas águas que transbordam e dão cor aos prados. Qualquer curso d’água
sabe seus segredos e o faz mergulhar lentamente no passado: Cantar de beira de rio: / água que bate na pedra, / pedra que não dá resposta. / Noite que vem
por acaso, / trazendo nos lábios negros / o sonho de que se gosta. Mesmo as águas anônimas embalam quem chega a suas margens – sua superfície tranqüila

reflete recônditas lembranças (BACHELARD, 1977, p. 8-9).

Segundo Bachelard (1997, p. 35-37), as águas límpidas espelham uma moral natural que a imaginação vai buscar em mares e córregos tranqüilos: falo

do campo florido, / das águas claras, / da vida que andava ao lado / da nossa vida. Substância elementar, a água cristalina reflete todas as metáforas da pureza
para tornar-se símbolo imaculado de uma ética universal: The Brooks laugh louder when I come – (Os Riachos riem mais alto quando me aproximo –); How
slow the Wind – (Quão lento o Vento –) / how slow the sea – (Quão lento o mar –) / how late their Feathers be! (Quão tardios os Pássaros!). Sua
transparência, ao contrário da opacidade das águas escuras é fonte de paz e regozijo, fenomenologia com que Cecília Meireles parece, às vezes, discordar: Tão
longe, / tão bom / tão frio / o claro som / do rio / sombrio! /; Acostumei minhas mãos a brincarem na água clara: / por que ficarei contente? / ... // Acostumei
minhas mãos / a brincarem na água turva: / e por que ficarei triste?

As águas paradas guardam em suas entranhas a calma lúgubre da morte. Não flui em seu leito a vida, apenas o tempo imperceptível. A ausência de
movimento lhe confere a quietude sombria do vale das almas, a morbidez das horas silenciosas: But Waters that are still (Mas Águas que são quietas) / Are so
for that most fatal cause (São assim pela causa mais fatal) / In Nature – they are full – (De Natureza – estão repletas –). Conhecem o peso das lágrimas e a
tristeza das sombras sobre a superfície. Essas águas quietas estão impregnadas de lamúrias contidas e silenciosos presságios: Teu nome nas águas / tão fundas,
tão grandes // perde-se na espuma, / castelo de instantes. Desconhecem a leveza dos rios ágeis, que murmuram cantilenas enquanto passam. Não refletem a
claridade do dia, mas a substância da noite escura.

Em Cecília Meireles, tanto nas águas turvas quanto nas águas claras está dissolvida uma profunda melancolia que se espalha no curso dos rios e no movimento
das marés: as águas mudam seu brilho, / quando o tempo anda inseguro. // Quando as águas escurecem, / – te juro – / todos os barcos se perdem, / entre o
passado e o futuro. /; À beira d’água moro, / à beira d’água, / da água que choro. / Em verdes mares olho, / em verdes mares, / flor que desfolho. /; Chora a
espuma pela areia, / na maré cheia.
122

A mesma água que banha o devaneio transporta os vivos e os mortos. Símbolo paradoxal da
vida e da morte, a água é nascimento e maternidade, sepulcro e dissolução. Traz dos céus a alma e a
leva para o paraíso após um longo degredo (BACHELARD, 1977, p. 75): What Twigs We held by –
(Que Galhos Nós agarramos –) / Oh the View (Oh a Vista) / When Life’s swift River striven through
(Quando o ágil Rio da Vida passa). Imaginada em profundidade, a água se alastra pelos caminhos da
infância e faz germinar os sonhos primordiais: Mas é tudo sempre muito mais distante, / e sempre são
navegações e mares, / para o homem só da morte caminhante. É o líquido seminal ou a água do
embrião, que guarda o mistério da vida, que dilui o medo da morte. É o riacho que embala o recém-
nascido; é a onda que carrega o ataúde para o alto-mar: Rowing in Eden – (Remando no Eden –) /
Ah, the Sea! (Ah, o Mar!) / Might I but moor – Tonight – (Pudesse eu apenas ancorar – À Noite – ) / In
Thee! (Em Ti!). Na água viva, que alimenta o que há de efêmero no mundo, as poetas encontram uma
seiva para nutrir suas imagens.

A água é o percurso da vida efêmera que deságua no ancoradouro da morte definitiva. Agente
catalisador entre o fogo e a terra ou mediador plástico entre a existência e a eternidade, a água aproxima
o horizonte ideal do mundo sensível: Não é apenas este mar que reboa nas minhas vidraças, / mas
outro, que se parece com ele. / ... // E este mar visível levanta para mim / uma face espantosa. Na lírica
das poetas, os braços da água-mãe embalam as almas em calmaria após tantas tempestades: Entre as
estrelas e a lua, / passa pelo mar do Norte / um breve rosto sem datas, / curta pétala de morte; Land
Ho! Eternity! (Terra Ó! Eternidade!) / Ashore at last! (Em terra firme por fim!). Em Emily Dickinson
a eternidade é a chegada em terra firme, e Deus, o navegador que veleja pelos mares, nas rotas da vida e
da morte: On this wondrous sea (Neste mar assombroso) / Sailing silently, (Navegando
silenciosamente,) / Ho! Pilot, ho! (Ó! Navegador, Ó!).

Qualquer curso d’água flui e cai sobre a terra, por isso em seu rumor o poeta da água
experimenta a melancolia de uma morte contínua e diária (BACHELARD, 1977, p. 7): No meio das
águas faz frio. / Faz frio nomeio das águas, / muito frio. // Marinheiro serei sombrio, / por minha
provisão de mágoas. / Tão sombrio! /; Guardo uma sensação de drama sombrio, com vozes de ondas
lamentando-me; No desequilíbrio dos mares, / as proas giraram sozinhas... / ... // e morri de
infinitas mortes. Segundo Reedes (1963, p. 124), na poética dickinsoniana, a água simboliza a
eternidade: Exultation is the going (Alegria é a ida) / Of an inland soul to sea (De uma alma reclusa ao
mar) // Can the sailor understand (Pode o marinheiro entender) / The divine intoxication? (A
intoxicação divina?) / Of the first league out from land? (Da primeira liga a deixar a terra?). Canta
Cecília Meireles as águas que velam pelo sono dos mortos: Abri na noite as grandes águas / criadas no
tempo de chorar. / Levantei os mortos do sonho / que trouxestes para viajar. / Fechai os olhos, despedi-
123

vos, / atirai os mortos ao mar. Nas águas de sua poesia, como quisera Emerson (1974, p. 1273), “até
mesmo o cadáver tem sua própria beleza” 106: Porque a morte é que o veste dessa maneira gloriosa, / a
morte que o guarda nos braços como um belo defunto sagrado. // Sem podridão nenhuma, jazerá um
afogado / nos canais de Amsterdão.

Em suas primeiras composições, as poetas descrevem a natureza a partir de uma abordagem


antiintelectual, que evita a redução de todos os fenômenos naturais a simples axiomas e lhes
preserva o teor de encanto e magia: The rainbow never tells me (O arco-íris nunca me diz) / That
gust and storm are by, (Que chuva e tempestade estão próximas,) / Yet is she more convincing
(Contudo é mais convincente) / Than Philosophy. (Que a Filosofia.). Seus versos, através de
imagens fortes, expressas em um lirismo de tom modernista, traduzem o prazer e o arrebatamento
proporcionados pela contemplação do mundo: Fez tanto luar que eu pensei nos teus olhos antigos /
e nas tuas antigas palavras. Nos dois poemas sobre a vegetação anteriormente estudados, os
cenários da terra são um convite ao devaneio. Emily Dickinson e Cecília Meireles descobrem a
beleza nas nuanças mais simples da paisagem: Oft a head is crested (Com freqüência uma cabeça é
cristada) / I was wont to see – (Eu costumava ver); Vinde ver asas e ramos, / na luz sonora!
A poesia da natureza parece vir da mesma fonte da qual procedem os cantos e os mitos primitivos, em cuja linguagem emotiva, imagens e ritmos simbólicos

desnudam algo do universo e do homem (MELLO, 1997, p. 79): o mundo é mágico! / Tocou-se o Lírio, e apareceu um Cavalo Selvagem. / E um
anel no dedo pode fazer desabar da lua um temporal. // .... // Noites e noites, estudei devotadamente / nossos mitos, e sua geometria. A poesia, recriação
simbólica do mundo, não pode prescindir do mito, cujo devaneio é sua essência mais pura: “Se a poesia é palavra, melodia, sonoridade, ela é também,
basicamente, mito. Primeira linguagem e primeira memória, em sua origem, seria o suporte convencional mais sólido de tudo, o que os homens não deveriam

esquecer” (AVERBUCK, 1982, p. 78).

Os últimos poemas das autoras, por outro lado, revelam o olhar intelectual com que se
debruçam sobre a vida, julgando-a sob o prisma analítico da experiência. Suas composições assumem,
então, uma atitude filosófica acerca da natureza e expressam um sentimento de dissolução das imagens
em face ao tempo. Cecília Meireles retoma incansável a temática da fugacidade do mundo: As
orquídeas do mosteiro fitam-se com seus olhos roxos. / ... // Que dia? que dia? dói-me a sua brevidade.
/ Mas eu amo o eterno e o efêmero e queria fazer o efêmero eterno. Emily Dickinson compõe poemas
herméticos e densos, considerando, como a poeta brasileira, a questão da morte, presente em toda sua
poesia: Of Glory not a Beam is left (Da Glória nem um Raio restou) / But her Eternal House – (Mas
sua Casa Eterna –) / The Asterisk is for the Dead, (O Asterisco é para os Mortos,) / The Living, for the
Stars – (Os Vivos, para as Estrelas –). Propõe ainda a investigação da consciência, a busca do eu e dos
segredos da alma humana: Soto107! Explore thyself! (Soto! Explora a ti mesmo!) / Therein thyself shalt
find (Assim encontrarás) / The “Undiscovered Continent” – (O “Continente Desconhecido” –) / No
106
“Even the corpse has its own beauty” (EMERSON, 1974, p. 1273).
107
Fernando de Soto (1499-1542), navegador espanhol, companheiro de Pizarro, um dos exploradores da América do Norte.
124

Settler had the Mind. (Nenhum Habitante tem a Mente.). Da expressão intimista e descrição cromática
da natureza à consideração filosófica do ser e da paisagem, as duas poetas caminharam entre inúmeros
motivos (Tabela 1), compondo um painel das imagens da terra, como veremos a seguir.

3.4 A Poética da terra

Na poesia da terra, Emily Dickinson e Cecília Meireles semeiam as palavras, cujas raízes se
nutrem de todas as cores e florescem nas mais diversas paisagens. Elemento predominante na obra das
poetas, a isotopia da terra108 congrega, entre outros sememas, a flor, a rosa, o jardim, a árvore, o monte
e a montanha. Quer assumam um valor conotativo ou denotativo, são imagens constantes na lírica das
autoras e que dialogam em muitos aspectos.
Motivos comuns a vários poemas, a flor e a rosa (Tabelas 2 e 3) representam a fugacidade da
vida diante do tempo que tudo apaga: As três orquídeas brancas eu sonharia que durassem, / com sua
nervura humana, / seu colorido de veludo; The Flowers would slumber on their Stems (As Flores
podem tombar em seus Talos). O tempo ágil das flores é uma lição para vivermos a urgência do
presente: To love thee Year by Year – (Amar-te Ano após Ano –) / ... / Forever might be short, I thought
to show – (A eternidade pode ser breve, pensei em demonstrar –) / And so I pieced it, with a flower,
now. (E então acrescentei-lhe uma flor agora.). A poesia das flores aborda a inconstância do mundo
em que o real está em contínua transformação, e o presente é um instante efêmero que se esvai: my
minutest dower, (meu dote mais diminuto,) / My unfrequented flower, (Minha flor não-visitada,); e um
cravo, de mil cravos, que cheira a cinza e se desfolha; é tépida a terra / que guarda sem guerras / a
caveira e a flor.
Na lírica das poetas, a imagem do jardim guarda a transitoriedade das rosas, signo da
impermanência de tudo: Mutilados jardins e primaveras abolidas / abriram seus miraculosos ramos /;
Vinde ver meu jardim sem flores / no presente nem no futuro, /; We should not mind so small a flower –
(Não deveríamos nos preocupar com flor tão pequena --) / Except it quiet bring (Exceto que ela traz) /
Our little garden that we lost (Nosso pequeno jardim que perdemos). As flores cumprem a sina do
movimento, contínuo devir que arrebata o instante sem qualquer piedade: Recebo teu nome também
repartido, / quebrado nos diques, levado nas flores... / Quem sabe teu nome, – tão longe, tão tarde.
Sobre os homens e sobre a terra, as horas incansáveis passam, fluir ininterrupto de que também se
queixa Emily Dickinson: Some things that fly there be – (Coisas que voam há –) / Birds – Hours – the
Bumblebee – (Pássaros – Horas – a Abelha –). Como argumenta Ferlazzo, a natureza em sua obra
108
Em 100 poemas de Cecília Meireles, sorteados aleatoriamente (Apêndice), foram encontrados 98 elementos da terra
(Tabela 10) e 42 poemas em que predomina a isotopia da terra (Tabela 11 ). Nas mesmas condições de amostragem, foram
encontrados, na poesia de Emily Dickinson, 84 elementos da terra (Tabela 10) e 32 poemas em que predomina a isotopia da
terra (Tabela 11).
125

oferece alegrias passageiras, e sua efemeridade aponta o caráter frágil e provisório da vida humana
(1976, p. 102).
Nas mãos do acaso, vive a flor, sujeita às intempéries e à força dos elementos que contrastam
com sua delicada existência: To make a prairie it takes a clover and one bee, (Para fazer um prado
basta um trevo e uma abelha,) / One clover, and a bee, (Um trevo, e uma abelha,); Os sons mais
frágeis nascem / na fronde da acácia leve, / com frouxos cachos de flores / e folhinhas paralelas.
Qualquer ventania ou chuvarada põe em risco a vida da flor tão débil e efêmera. Desfeita em pétalas,
ainda guarda um encanto, embora como uma imagem melancólica do jardim: Nem sei se é flor, se uma
estrela caída da chuva / no jardim desfolhado; Globe Roses – break their satin flake – (Trólios –
espalham seus flocos de cetim –) / Upon my Garden floor – (No chão do meu Jardim –). A mais sutil
presença pesa na pacata atmosfera dos canteiros, pois “a vida dos jardins é suave demais”
(BACHELARD, 1990, p. 247): New feet within my garden go – (Novos pés no meu jardim andam –) /
New fingers stir the sod – (Novos dedos agitam o gramado --) / A Troubadour upon the Elm (Um
Trovador no Olmo ) / Betrays the solitude. (Trai a solitude.). Até mesmo a chegada de um pirilampo
no jardim perturba sua tênue quietude: O pequeno vaga-lume / com sua verde lanterna / que passava
pela sombra / inquietando a flor e a treva. Os versos parecem tocados pela textura das flores, pela
delicadeza da mão que as colhe, pela suavidade do vôo das abelhas. A valorização da flor, nos moldes
da estética nietzschiana, reside justamente em ser vulnerável ao clima e às horas, porque “tudo o que é
divino corre sobre pés delicados” (NIETZSCHE apud BACHELARD, 2001b, p. 34). A fragilidade do
vegetalismo terrestre invoca a efêmera poesia da terra, à mercê do tempo, cujo sopro suave e contínuo
determina o caráter transitório da vida no curso das estações.
Nos poemas analisados nos capítulos anteriores, a passagem das horas, representada pelo vento
em Cantiga (fl. 52) e pela rotação da terra no poema de Emily Dickinson (fl. 29), estampa-se no ritmo
contínuo da natureza. Os jardins conhecem a beleza da flor, intensa, porém fugaz: cai a flor, – e deixa o
perfume / no vento!; as paisagens experimentam a efemeridade das folhas: Frequently the woods are
pink – (Freqüentemente as matas são rosadas –) / Frequently are brown. (Freqüentemente são
marrons.) / Frequently the hills undress (Freqüentemente os montes se despem). A imagem dos
campos e colinas ilustra, no poema de Emily Dickinson, o macrocosmo, a natureza exuberante e
estável; o jardim, nos versos de Cecília Meireles, representa o microscosmo da vegetação, uma
miniatura dos cenários instáveis da terra: E, no planeta, um jardim, / e, no jardim, um canteiro; / no
canteiro, uma violeta, /; Quem me compra um jardim / com flores? // borboletas de muitas / cores, //
lavadeiras e pas- / sarinhos, // ovos verdes e azuis / nos ninhos?
Sujeito ao vento, à chuva, ao orvalho, ao sol, o jardim é o espaço onde a beleza perdura apenas
o instante fugaz em que a colhemos: My Garden – like the Beach – (Meu Jardim – como a Praia –) /
126

Denotes there be – a Sea – (Sugere que há – um Mar –) / That’s Summer – (É Verão –); A ventania
misteriosa / passou na árvore cor-de-rosa, /... // Foram-se os pássaros para céu. / Mas as flores
ficaram no chão. A brevidade de suas flores é um sinal de que nada perdura inalterável, mesmo em
nossa momentânea existência. Como o eu lírico ceciliano, compartilhamos o destino da rosa no tempo
efêmero dos jardins: Vai descer a tempestade, / Sabiá, / Sobre nuvens tenebrosas, / ... / – Presas
morriam as rosas, / em seu destino de flor.
Emily Dickinson, como uma criança travessa, brinca com os quatro elementos, subjuga as leis da natureza e desenha um paraíso particular, espaço à margem
das perdas do mundo. No jardim imaginário, o tempo não flui e, por conseguinte, inexiste mudança ou morte: There is another sky, (Há outro céu,) / Ever
serene and fair (Sempre sereno e belo). Liberta do tempo cronológico, a terra projeta-se no espaço atemporal, pois, como afirma Platão no Timeu, só o que se

forma no tempo, “imagem móbil da eternidade” (2001, p. 73), está sujeito a envelhecer e mudar. Na eternidade, modelo em que se inspirou o demiurgo
para criar o tempo, tudo permanece estável, sem passado, presente ou futuro. Somente a poesia capta a doçura do eterno instante em que a vegetação parece
definitiva e o tempo estático: A little Madness in the Spring (Um pouco de Loucura na Primavera) / Is wholesome even for the King, (É saudável até para o
Rei,) /... / This whole Experiment of Green – (Este total Experimento do Verde) – / As if it were his own! (Como se fosse só seu!).

O eu lírico ceciliano também evoca o modelo platônico de um mundo perfeito, livre da ação das horas: E sobe a lua no crepúsculo, abrindo no céu / jardins
evaporados, / em nuvens de opala, delicadas nuvens; Mariposas, jasmins, tinhorões, vaga-lumes / moravam nos jardins sussurrantes e eternos. Ao lado dos
jardins terrenos, a poeta cultiva jardins imateriais, em cujos canteiros brotam flores etéreas, alheias ao mundo em sua volta: nos límpidos, impecáveis, para
sempre vazios espelhos, / brilhantes jardins fictícios de enganoso pórtico. /; Ai! celebro-te em meu peito, / em meu coração de sal, / ó flor sobrenatural, /
grande girassol perfeito!/ . Entre as rosas transitórias, vicejam as rosas eternas que perduram na imaginação, livres do tempo e das estações: Roses of a
steadfast summer (Rosas de um verão constante) / In a steadfast land, (Em uma terra constante,) / Where no Autumn lifts her pencil – (Onde nenhum Outono
pega seu lápis –) / And no Reapers stand! (E nenhum Ceifeiro aparece!). Compensa-se, então, a instabilidade da vida que as poetas lamentam em tantos
poemas.

A natureza cede lugar à imaginação, e a cópia perfeita se realiza no horizonte onírico. A linguagem reproduz as essências platônicas, imutáveis e
sublimes, das quais o jardim sensível é apenas uma redução: When I believe the garden (Quando eu acredito no jardim) / Mortal shall not see – (Que os
mortais não podem ver –) / Pick by faith its blossom (Colho na fé sua flor) / And avoid its Bee, (E me esquivo de sua Abelha,) / I can spare this summer,
unreluctantly. (Posso renunciar a este verão, sem relutância.). Em plantas, flores e insetos, as poetas reconhecem um esboço das paisagens celestiais e
idealizam a beleza dos jardins eternos, feitos de nuvens, no espaço intangível entre o sonho e a mão: ... na água do tanque / as rosas da madrugada. // ...
jardim celeste / refletido na onda fria; Vencendo sucessivos planos, / abrindo mundos encobertos, / chegando aos reinos sobre-humanos / onde há jardins
para os desertos!

Nas linhas da poesia, opera o fluxo contínuo dos eventos que refletem a essência da vida e da
linguagem. A natureza é a esfera do devir, onde tudo se renova a cada instante: Term of Light this Day
begin! / Failless as the fair rotation / Of the Seasons and the Sun. Os meses alteram o curso dos fatos,
as estações transportam o colorido da natureza, o tempo redefine as feições. Como as nuvens, cujas
formas se modificam com o vento, a poesia traduz a mudança a que se submetem as imagens da terra:
Rosas verás, só de cinza franzida, / mortas intactas pelo teu jardim. “Uma nuvem mutável que é
sempre e nunca a mesma é a natureza” (EMERSON, 2003, p. 36).
Símbolo da afetividade e da feminilidade, a flor, na poesia de Emily Dickinson e Cecília
Meireles, é uma dádiva única do instante em que o eu lírico, como certa rosa ou violeta, faz-se botão:
Eu digo aroma até nos meus espinhos, / ao longe, o vento vai falando em mim. / E por perder-me é que
me vão lembrando, / por desfolhar-me é que não tenho fim; A moça diz, muito longe: / “Eu sou a rosa
do campo...”; A Breeze - a caper in the trees – (Uma Brisa – um salto nas árvores –) / And I’m a
127

Rose! (E sou uma Rosa!). Sujeito e objeto confundem-se no realismo do imaginário e a imagem
polemiza o eu lírico que se mostra ou se resguarda nas nuanças das palavras (BACHELARD, 1990, p. 70-
71).
Somente na vida decalcada das paisagens, feitas de linhas ou versos, as flores se eternizam nos
canteiros: Os jardins do mundo / aos vossos bordados / não são superiores, / ó bordadores, / ... /
recolhendo cores, / desenhando pontos, / inventando flores / que não morrem nunca, / ó bordadores.
Como esses artífices, promete Cecília Meireles imortalizar as flores com seu canto: Durai, durai, flores
como se estivésseis ainda / no jardim do mosteiro amado onde fostes colhidas, / que escrevo para
perdurardes em palavras; Meus olhos te ofereço: / espelho para a face / que terás, no meu verso, /
quando, depois que passes, / jamais ninguém te esqueça. // Então, da seda e nácar, / toda de orvalho
trêmula, / serás eterna.
Em meio às flores reais, feitas de pétalas e perfume, brotam as flores metafóricas, com uma
infinidade de tons entre luz e sombra: Pray gather me – (Por favor, colha-me –) / Anemone –
(Anêmona –) / Thy flower – forevermore! (Tua flor – eternamente!); Andei buscando esse dia / ... /
onde se escondem as coisas / que trazem felicidade: / os amuletos dos grilos / e os trevos de quatro
folhas... / Só achei flor de saudade. Como as flores, os jardins cultivam tristezas: Jardim da tarde
divina / por onde íamos passeando / saudade e melancolia; No jardim que foi de Gonzaga, / a pedra é
triste, a flor é débil. Porém entre arbustos viçosos e rosas frágeis, germina sempre uma suave alegria
que faz silenciar roxos queixumes de rolas, / pios súbitos, gorjeios melancólicos, tingindo matizes
desbotados: O jardim é verde, encarnado e amarelo.
Graças à sua beleza, a flor é ornamento para os instantes alegres da vida: My first well Day – since many ill – (Meu primeiro Dia bem – desde muitos doente –)
/ I asked to go abroad, (Pedi para sair) / ... // The Summer deepened, while we strove – (O Sol, mais intenso, enquanto sobrevivemos –) / She put some flowers
away – (Fez surgir algumas flores –). Seu perfume e suavidade são um consolo para a dor infinita da morte: We do not play on Graves – (Não brincamos nos
túmulos –) / Because there isn’t Room – (Porque não há Espaço –) / Besides – it isn’t even – it slants (Ademais, – não é plano – inclina-se) / And People come
– (E as pessoas vêm –) // and put a Flower on it – (E deixam lá uma flor –). Com o mesmo tema, escreve Cecília Meireles: Relógios certeiros: / a noiva já
desce, / e está pronta a morta. // Por sombra de flores / os carros deslizam, / as portas afastam-se.

Úmida, entre as imagens dos jardins, a flor é uma promessa da natureza plena, sem qualquer
mácula: Flores molhadas. Última abelha. Nuvens gordas. // Vontade de ficar neste sossego toda a vida.
Suas pétalas, após a chuva, despertam o mais puro lirismo: Como pequena flor que recebeu uma chuva
enorme / e se esforça por sustentar o oscilante cristal das gotas / na seda frágil, e preservar o perfume
que aí dorme, // e vê passarem as leves borboletas livremente, / e ouve cantarem os pássaros
acordados sem angústia. Mas o orvalho, elixir da natureza, faz-se tristeza destilada sobre a rosa:
Nuvens muito altas / lágrimas de orvalho / deram-lhe: – de além. A folha molhada pela chuva ou
pelo orvalho encerra a vitalidade da terra, a força da vegetação ainda intacta, longe do ar das cidades. A
chuva que cai das nuvens traz a fertilidade, mas o orvalho que cai do firmamento traz a candura, é “uma
128

água celeste” (BACHELARD, 2001a, p. 257). Um pouco de sol, uma paisagem amena e algumas gotas
de orvalho fazem brotar a manhã: A Dew sufficed itself – (Um Orvalho bastou –) / And satisfied a Leaf
– (E satisfez uma Folha –) /.. // The Sun went out to work – (O Sol saiu para trabalhar –) / The Day
went out to play (O Dia saiu para brincar).
Plantas, flores e frutas compõem a pintura sutil da vegetação por onde passeia o olhar em devaneio. O eu poético contempla a beleza da terra109, que passa
despercebida aos nossos olhos apressados: What tenements of clover (Que moradias de trevo) / Are fitting for the bee (Feitas para a abelha) / What edifices
azure (Que edifícios azuis) / For butterflies and me – (Para mim e as borboletas –). A imagem quase imperceptível, adquire plenitude, surge do anonimato,
ganha cores, sons e aromas: Vou mirando no bosque /o arroio claro / e a provisória / flor escondida; Brilhou a rosa, / no espinhoso galho. / Quem a viu?
Ninguém. Mais uma vez o olhar do eu poético supera as dimensões reais da imagem.

A flor é o símbolo dessa natureza furtiva, cuja suavidade não notamos: Except to Heaven, she is
nought. (Exceto para o Céu, ela não existe.) / Except for Angels – lone. (Exceto pelos Anjos – solitária.)
/ Except to some wide-wandering Bee (Exceto para alguma Abelha peregrina) / A flower superfluous
blown. (Uma flor qualquer desabrochada.). Na paisagem, a flor se esconde como a cigarra que canta
por entre os ramos e logo desaparece ao primeiro ruído dos passos: Brilhou a rosa / no espinhoso
galho. / Quem a viu? Ninguém; ou como o pássaro que se escuta ao longe nos quintais: In the fadeless
orchards (Nos pomares viçosos) / Hear the bobolink! (Escutam o triste-pia!) // Merely flake or petal
(Meramente floco ou pétala) / ... / I perceive the rose! (Percebo a rosa!). Discreta, em sua breve
estadia, tantas vezes a flor não se mostra: How many Flowers fail in Wood – (Quantas Flores murcham
na Floresta –) / Or perish from the Hill – (Ou morrem no Monte –) / Without the privilege to
know (Sem o privilégio de saberem) / That they are Beautiful – (Que são Belas –); No meio da areia, /
um trevo solitário / pesa a prata do orvalho recebido. Para perceber a rosa mais tímida, escondida entre
as ramagens dos jardins, é preciso olhar com as lentes da imaginação e cultivar a esperança de ver sem
limites (BACHELARD, 1990, p. 14).
A rosa é um ornamento que alude à harmonia da terra, ao colorido dos campos, ao sossego dos prados. As flores nos vitrais, embora simples imitações,
sugerem um elo profundo com a natureza: Levaram a sombra dos limoeiros / por onde rodavam arcos de música / e formigas ruivas. // Levaram a casa de
telhado verde / com suas grutas de conchas / e vidraças de flores foscas. As flores naturais, por sua vez, guardam em seu âmago a essência da paz: Em frente
do céu, coberto de flores, / o Mahatma. Traduzem a bondade do espírito e a brandura do coração: The good Will of a Flower (A Bondade da Flor) / The Man
who would possess (O Homem que possuir) / Must first present (Deve primeiro apresentar) / Certificate (Certificado) / Of minted Holiness. (Impresso de
Santidade.). Guardam o segredo do paraíso em seu néctar e perfume: Come slowly – Eden! (Venha lentamente – Eden!) / Lips unused to Thee – (Lábios
alheios a Ti –) / Bashful – sip thy Jessamines – (Timidamente – provam teus Jasmins –) / As the fainting Bee – (Como a Abelha timidamente –) / Reaching

late his flower (Alcançando tardia sua flor). “O céu inteiro”, afirma Bachelard (1990, p. 41), “cabe no espaço de uma rosa. O mundo vem viver num
perfume.”

Imagem da leveza que suaviza o peso do quotidiano, a rosa é um alento para a vida: If I could bribe them by a Rose (Se pudesse suborná-los com uma Rosa) /
I’d bring them every flower that grows (Eu os traria cada flor que brota). A promessa de sua vinda deixa em expectativa o coração: O que amamos está
como a flor na semente, / entendido com medo e inquietude, talvez. E sua presença parece a única forma de suportarmos o peso do mundo: Chegaram agora
pássaros e flores, / e de novo guerras, aulas, missas, viagens; E o ramo que leva, tão verde, na tarde / cinzenta e pesada, / e que primaveras irá conduzindo /
seu corpo ou sua alma?

109
Em 200 poemas sorteados, isto é, 100 de cada poeta, foram identificados 37 motivos em comum entre as imagens da terra
(Tabela 1).
129

A impossibilidade das flores traz um certo desencanto diante das forças da terra: Nature can do
no more (A Natureza nada mais pode fazer) / She has fulfilled her Dyes (Já escolheu suas tintas) /
Whatever Flower fail to come (Qualquer Flor que fracasse) / Of other Summer days (De outros dias de
Verão) / ... / Nature’s imposing negative (A Natureza se impõe negativa) / Nulls opportunity – (Anula a
oportunidade –). Rosas e violetas não perduram nos jardins – logo se vão com a chegada das folhas
vermelhas do outono: When Roses cease to bloom, Sir, (Quando as Rosas pararem de brotar, Senhor,)
/ And Violetas are done – (E as Violetas estiverem prontas –). A mão que as colhe em breve repousará
ociosa sobre os tons da próxima estação; seus gestos tolhidos pela fugacidade imanente à terra.
Também para Cecília Meireles a ausência das flores torna melancólicos os dias: Não tinha havido
pássaros nem flores / o ano inteiro. A ausência da flor representa o sonho malogrado, o desejo
interrompido: As flores faltavam. / Sobravam espinhos; Sou dançarina do arame, / não tenho mão para
flor.
Contrastando com o vegetalismo tenro das flores, a árvore é outro motivo freqüente na obra das poetas (Tabela 1). Ligada à imagem da dureza, representa
a luta contra o tempo inexorável que tudo consome. As árvores parecem resistir tacitamente ao curso das horas, embora suas flores não perdurem: Rama das
minhas árvores mais altas, / deixa ir a flor!; Somente a árvore seca fica imóvel entre borboletas e pássaros. Como árvores fortes, Cecília Meireles descreve as
corajosas camponesas indianas: E mulheres carregando ramos ainda com folhas, / árvores caminhantes ao longo da tarde silenciosa; e uma esguia e leve
bailarina110: A bailarina era tão grande / como uma árvore caminhante; / e seus braços longos e brancos / tão fugitivos e flutuantes / como as nuvens filhas do
campos. Nesses quadros da natureza, definem-se os traços do “vegetalismo duro”, que caracteriza a permanência das árvores sobrecarregadas de tempo

(BACHELARD, 2001a, p. 53).


Emily Dickinson também alude à solidez da árvore: Nature – sometimes sears a Sapling – (A Natureza – às vezes seca um Arbusto –) / Sometimes –
scalps a Tree – (Às vezes – escalpa uma Árvore –) / Her Green People recollect it (Seu Povo Verde recorda) / When they do not die – (Quando elas não
morrem –). Resgata a terra das mãos devastadoras do tempo, libertando-a dos caprichos naturais e da presença furtiva da morte. Eternamente intocável, a

natureza pintada pela poeta se insurge contra a fugacidade da existência e a visão dialética do mundo conforme a escola jônica (GUEDES, 2000, p.

81):

Segundo Heráclito, o ser está no vir-a-ser ou no devir. O ser está a cada momento se modificando.
Uma coisa é, e deixa de ser, para ser, num outro momento. Afirmava Heráclito: ninguém toma
banho duas vezes no mesmo rio.

A beleza sólida das árvores ganha imortalidade, e a natureza se faz perene nas imagens do
poema: o verde inalterável das folhas nas árvores, os arbustos sempre viçosos no jardim.
Diz Bachelard (2001a, p. 56) que uma árvore majestosa é “um grande destino de dura coragem”. Símbolo de solidez e proteção, contrasta com a
vulnerabilidade da vida humana: ... negras mangeiras antigas, / de grossos, torcidos galhos, / franjados de parasitas. Seus galhos ao sol oferecem sempre um
abrigo: Homem que descansas à sombra das árvores, / com um cesto de frutas cercado de abelhas. Exemplo de firmeza, a árvore encarna a luta obstinada
contra as adversidades do mundo: Cedros e sândalos bravos / e o pau chamado brasil / crescem por todos os lados / nas verdes matas daqui. A
imagem da árvore corporifica a supremacia do poder divino sobre a fragilidade dos homens, pois sua resistência alude à idéia de força inabalável

(BACHELARD, 2001a, p. 55).


Em Lembrança Rural, as árvores, como as flores nos jardins imaginários, guardam a certeza das horas iguais e quietas, alheias às mudanças: Cigarra
escondida, ensaiando na sombra rumores de bronze. // Vontade de ficar neste sossego toda a vida: / ... / enquanto as formigas caminham nas árvores. Aos

110
Em Balada para as Dez Bailarinas do Cassino, a poeta apresenta outra imagem inusitada: As dez bailarinas avançam /
como gafanhotos perdidos.
130

olhos da poeta, a natureza permanece imutável em uma impossível e eterna primavera, idealizada no colorido estático das árvores. Ao mesmo motivo recorre
Emily Dickinson: Four Trees – upon a solitary Acre – (Quatro Árvores – em um Acre solitário –) / Without Design (Sem Plano) / Or Order, or Apparent
Action – (Ou Ordem, ou Ação Aparente –) / Maintain – (Permanecem –). O poema parece retratar o modelo arquetípico, sem qualquer mácula, forjado pelo
demiurgo segundo a concepção platônica. Cria-se uma natureza eterna, fruto da mimese ideal, da imitação exata do paradigma divino111. Quase inalteradas
diante do curso dos anos, as árvores parecem velar sobre a quietude da paisagem, tornando lentos os instantes: The Road was lit with Moon and star – (O
Caminho estava iluminado com Lua e estrela –) / The Trees were bright and still (As Árvores eram luminosas e quietas). Acerca desse caráter subjetivo da

poesia e de sua insubmissão às normas do real, lemos em Ética a Nicômaco, de Aristóteles (2002, p.131): “Toda arte relaciona-se à criação e ocupa-se

em inventar e em estudar as maneiras de produzir alguma coisa que pode existir ou não, e cuja origem está em quem produz, e não no que é produzido.”
Também para Bachelard a poesia da natureza não se limita a retratar a paisagem – projeta um território imaginário, amálgama entre a natureza contemplada e a

natureza contemplativa (1997, p. 31).

Embora as árvores representem a resistência, em alguns momentos, sob o olhar ceciliano, tornam-se frágeis e delicadas sob a força impetuosa do ar ou da
água: Estas altas árvores / são umas harpas verdes / com cordas de chuva / que tange o vento; Entre o lago e a lua, / sozinha subia / uma árvore fria, /
delicada e nua; O cipreste inclina-se em fina reverência / e as margaridas estremecem, sobressaltadas. / ... / Frondes rendadas de acácias palpitam
inquietamente. Mesmo as árvores altas e sólidas são submetidas ao processo estilístico de diluição ou transformação da imagem: Voltei aos campos de bruma,
/ onde as árvores perdidas / não prometem sombra alguma. Longe da claridade do dia, parecem vultos quase indistintos na paisagem: Árvores da noite ...
Pensamento amante... / – Transporta-me a sombra, na altura profunda, /aos campos felizes onde se desprende, / o diurno limite de cada criatura; Vejo
árvores, nuvens, e a longa / rota do tempo, descoberta. / ... // Tocam tão longe! O turvo dia / mistura piano, árvore, nuvens, / séculos de melancolia. Suas
sombras são um convite ao devaneio e ao esquecimento. Também Emily Dickinson destitui a imagem da árvore firme ao revelar sua vulnerabilidade às
chuvas112: The Wind begun to knead the Grass – (O Vento começou a amassar a Grama –) / ... / The Leaves unhooked themselves from Trees – (As Folhas
soltaram-se das Árvores –) / The Waters Wrecked the Sky – (As Águas Destroçaram o Céu –) / ... / Just Quartering a Tree – (Já Esquartejando uma Árvore –
).

Em Emily Dickinson como em Cecília Meireles, a árvore está associada ao pássaro, um motivo simples e universal: that Bird of mine (aquele meu Pássaro) /
Though flown (Embora tendo Voado) / Shall in a distant tree (Em uma árvore distante) / Bright melody for me (uma Alegre melodia para mim) / Return.
(Retornará.). Como o vento em que se esvai o pássaro, fluem os versos. As isotopias da terra e do ar coexistem nesses poemas em que o verde das copas
acolhe aves e insetos em pouso breve: Pássaros jorram de altas árvores / caem na relva como pedras frouxas. / As borboletas douradas e brancas / palpitam
com asas de pétala, / entre água e flores. Tão leves e efêmeros quanto a atmosfera da poesia são os pássaros de inúmeros matizes e cantos: Este pardal

travesso / ... / desde da árvore, espaneja-se na areia, / rápido, assustadiço, / pronto para a evasão. A árvore, diz Bachelard (2001b, p. 56), arrebata do

solo firme o sonhador, devolvendo-lhe “a mobilidade dos pássaros e do céu”, por isso os dias felizes estão entre as árvores, como os pássaros. Também o
sagüim anda nas árvores, esconde-se, espia, foge depressa e ouvem-se cigarras agarradas aos troncos, ensaiando na sombra suas resinas sonoras.

Na árvore coexistem os quatro elementos: suas raízes prendem-se à terra de que sugam a água;
em seu tronco corre a seiva; seus galhos espalham-se pelo ar; sua madeira transforma-se em lenha e
fogo. Bachelard (1990, p. 229) comenta que os poetas demonstram preferência por partes distintas da
árvore: “Uns vivenciam a copa, as ramagens, as folhas, o galho, outros o tronco, outros enfim as
raízes.” Sob qualquer perspectiva, sua representação é objeto de admiração e deleite: Tudo se
transformou em cristal fosco: / as jaqueiras cansadas de frutos, / as palmeiras de leque aberto, / e as
mangueiras com suas frondes / de arredondadas nuvens negras superpostas.
Mas Emily Dickinson não se contenta em contemplar as árvores, procura transplantá-las,
carregadas de afetividade, para o terreno da poesia: With thee, in the Desert – / With thee in the thirst – /

111
Em grego, inclusive, o verbo “fazer” e o substantivo “poeta” têm a mesma raiz etimológica, corroborando o conceito
de poesia dado em O Banquete (PLATÃO, 2002a, p.147): “Em geral se denomina criação ou poesia a tudo aquilo que
passa da não-existência à existência.”
112
Em O Banquete, Erixímaco atribui ao Eros anárquico o domínio sobre as estações que trazem danos às plantações e
matam os animais (ibidem, p. 119).
131

With thee in the Tamarind wood – / Leopard breathes – at last! A contemplação projeta o observador
no objeto contemplado, ao mesmo tempo em que reflete o objeto em quem o contempla
(BACHELARD, 2001b, p. 302). Um jogo sutil de semelhanças entre o observador e a paisagem
singulariza o discurso literário, cujo grau de liberdade permite ao poeta explorar relações que jamais
caberiam em uma pintura. Escreve Cecília Meireles: E eram flores encarnadas, / por cima das folhas
verdes. / (Entre os espinhos de prata, / só meus sonhos de perder-te...). Reside aí a riqueza da imagem
literária que se nutre da seiva mais plena da imaginação (BACHELARD, 2001a, p. 148).
Mas a temática da morte que aflige a poesia ceciliana deixa seu hálito impregnado até mesmo nas árvores: Cidadezinha perdida / no inverno denso de bruma,
/ que é dos teus morros de sombra, (...) das tuas árvores frias / subindo das ruas mortas? O poema desenha uma natureza fugaz onde o tempo deixa suas
marcas, e o homem não encontra um abrigo para as vicissitudes da existência. As árvores guardam a lembrança da morte nas imagens da imbolibilidade, do

silêncio e do frio (BACHELARD, 2001a, p. 168). Também Emily Dickinson pressente na natureza o tempo finito das árvores: Death is like the
insect (A Morte é como o inseto) / Menacing the tree, (Ameaçando a árvore,); The trees held up (As árvores ergueram) / Their mangled limbs (Seus
membros desfigurados). Com suas imagens cria um microcosmo em que o homem pode se refugiar da convivência com o efêmero, da certeza da fugacidade
do mundo, da perda diária de si mesmo: Never mind silent fields – (Esqueça os campos silenciosos –) / Here is a little forest, (Aqui está uma pequena floresta,)
/ Whose leaf is ever green. (Cuja folha é sempre verde.).

Essa tensão entre elementos opostos (vida e morte) cristaliza o papel do poeta como um
demiurgo que cria um mundo à revelia das leis naturais. No espaço simbólico da linguagem,
questiona-se o mundo, elegendo a fantasia como solução de equilíbrio para a dicotomia entre o ideal e o
possível. Cecília Meireles canta, por exemplo, a alegria de presenciar o espetáculo das árvores que se
renovam a cada estação e se eternizam no presente infinito: O cipreste inclina-se em fina reverência / e
as margaridas estremecem, sobressaltadas. // A grande amendoeira consente que balancem / suas
largas folhas transparentes ao sol. / ... // Frondes rendadas de acácias palpitam inquietamente / com o
mesmo tremor das samambaias / debruçadas nos vasos.
Na lírica das autoras, natureza e fecundidade estão intimamente relacionadas; talvez porque
segundo a tradição cristã, com a terra fértil, o “deus argileiro” “multiplicou as suas obras” e povoou o
planeta (Pierre Guéguen apud BACHELARD, 2001a, p. 139). Emily Dickinson faz do verde dos campos o
espaço propício para o encontro amoroso: Approach that tree with caution, then up it boldly climb,
(Aproxime-se daquela árvore com cuidado, depois ousadamente nela suba,) / And seize the one thou
lovest, nor care for space, or time! (E pegue aquela que amares, sem preocupar-se com espaço ou
tempo!) / Then bear her to the greenwood, and build for her a bower.(Então a carregue até o bosque, e
lhe construa um abrigo de folhagens.). E Cecília Meireles identifica no encontro amoroso as imagens
da natureza: Um beijo seria uma borboleta afogada em mármore. / Uma voz seria raiz perfurando
cegueiras. “A vida nos campos”, segundo Bachelard (1990, p. 247), “mesmo em seus seres vegetais, é
uma representação por imagens da vida amorosa.”
A harmonia entre os animais e minerais é um convite à união entre os homens: Os bois
deitados olham a frente e o longe, atentamente, / ... // Estão deitados, mirando-se, dos seus opostos
132

lugares, / e amando-se em silêncio, como esposos separados. Os versos cecilianos parecem corroborar
o princípio defendido por Platão (2001, p. 24) de que as mesmas forças que regem a terra influenciam a
humanidade, assim como a afirmação de Eudoxo (apud ARISTÓTELES, 2002, p. 217) de que o prazer é
um bem, razão pela qual todos os entes racionais e irracionais o buscam: Ora vamos ao campo colher
amoras / e amores! / A amar, amadores amantes! Também Emily Dickinson parece concordar com o
filósofo: The Heart asks Pleasure – first – (O Coração procura o Prazer – primeiro –) / And then –
Excuse from Pain – (E depois – Escusa-se da Dor –). A comunhão entre os seres materializa-se
nesses versos, inclusive, nas escolhas lexicais que propiciam intersecções entre os estratos semântico,
óptico e fônico.
Na paisagem do jardim, reúnem-se as isotopias da terra, da água e do ar, compondo a imagem do aconchego. Nesse mundo em miniatura, habitam a
borboleta, a abelha, o pássaro, a cigarra e grilo por entre folhas, flores e arbustos: A luz revela orvalhos no fundo das flores, / nas asas tênues das borboletas, / –
e ensina a cintilar a mais ignorada areia, / perdida nas sombras, / submersa nos limos. // Ensina a cintilar também / os insetos mínimos, / – alada areia dos
ares, que se eleva / até a ponta dos ciprestes vagarosos.

Circundando o cenário dos jardins, para além das flores nos canteiros, erguem-se as montanhas silenciosas: Para muito longe, muito longe, passa. / Monte
sobre monte; The Mountain sat upon the Plain (A Montanha sentada na Planície) / In his tremendous Chair – (Em sua enorme Cadeira). Muito acima do
nível do solo, ocupam um espaço intermediário entre os deuses e os homens. Sua presença onipotente excita a imaginação humana, razão por que tantas

montanhas são sagradas ou propiciam experiências místicas. Essa mesma simbologia, a que alude Biedermann (1993, p. 249), observa-se na poesia das
autoras. Emily Dickinson compara as montanhas a divindades da natureza que cismam das alturas os descaminhos humanos: His observation omnifold, (Sua
observação oniforme,) / His inquest, everywhere – (Seu julgamento, em toda parte –). Cecília Meireles considera as montanhas um território limítrofe entre a
vida e a morte, um caminho para a eternidade: Os mortos, detrás do morro, / falam na voz do teu canto, / acauã! // ... // Detrás do morro estaremos / todos
dançando amanhã, / Acauã! E os jovens soldados, que a guerra silenciou, repousam serenos à sombra das montanhas amenas: E agora estão na calma da
terra, / sob estas cruzes e estas flores, / cercados de montanhas suaves.

Símbolos da força divina, montanhas e montes, mais próximos do céu que da terra, são considerados a morada dos deuses. Guardam os mistérios da criação,
impondo-se majestosos sobre a paisagem e desafiando a compreensão humana: We spy the Forests and the Hills (Observamos as Florestas e os Montes) /
The Tents to Nature’s Show (As Tendas para o Espetáculo da Natureza) / Mistake the Outside for the in (Confundimos o Exterior com o interior) / And
mention what we saw. (E mencionamos o que vimos.). Representam também elevação espiritual e transcendência, razão por que cruzeiros e santuários
são construídos em seus cumes e encostas: Na ponta do morro, / mulheres descalças / põem flores nos jarros / da capela de ouro. No passado, cerimônias
pagãs e cultos pré-cristãos eram realizados no topo das colinas, talvez por isso Emily Dickinson recorra aos montes como parâmetros para a fé: My Faith is
larger than the Hills – (Minha Fé é maior que os Montes –). Como um patriarca bíblico, a montanha preside solenemente sobre a natureza. O cenário à sua
volta lhe respeita a onipotência e a dádiva da sabedoria: The Seasons played around his knees (As Estações brincavam a seus pés) / Like Children round a sire
– (Como Crianças ao redor de um antepassado). Sua altura majestosa é um conselho de constância e firmeza.

Na poesia dickinsoniana, a montanha humanizada encerra a confiança de um venerável ancião (Grandfather of the Day is He -- Avô do Dia é Ele / Of
Dawn, the Ancestor -- Da Aurora, Ancestral), enquanto os montes testemunham os percursos da vida (The Hills in Purple syllables – Os Montes em sílabas
Púrpuras / The Day’s Adventures tell – Contam as Aventuras do Dia). Também Cecília Meireles concede às montanhas características humanas, como a
respiração: Vejo o céu que ao longe caminha. / As montanhas respiram a luz das estrelas. Personificações da natureza são um recurso comum

na lírica das poetas, afinal “a matéria é um centro de sonhos” (BACHELARD, 2001a, p. 55).

Como árvores seculares, carregadas de tempo, perduram as montanhas quietas no horizonte, à sombra dos anos: In their Eternal Faces (Em seus Rostos
Eternos) / The Sun – with delight (O Sol – com prazer) / Looks long – and last – and golden (Olha longamente – e fica – e doura) / For fellowship – at night –
(Por solidariedade – à noite). As árvores obedecem à “lei temporal dos objetos da terra” e “da matéria terrestre” – sabem “viver lentamente” e “envelhecer

suavemente” (BACHELARD, 2001a, p. 73). Debruçadas ao longe, sobre a paisagem, são um refúgio tranqüilo também para os pássaros que,
como o sol, procuram um abrigo seguro: Sabiá, entre as batalhas do vento, / escutei pela montanha / tua voz tranqüila e pura, sabiá.
133

Compartilham a retidão e a verticalidade das árvores, constituindo um exemplo de resistência física e moral a ser alcançado pelos homens: Dize-me tu,
montanha dura, / onde nenhum rebanho pasce, / de que lado na terra escura / brilha o nácar113 de sua face. A imagem hostil da montanha árida paralisa o

cenário em um devaneio petrificante que extrai do relevo a vida (BACHELARD, 2001a, p. 165). Ao mesmo tempo, como uma árvore seca,

mas estável, a montanha acorda em nosso íntimo forças que desejamos ver inabaláveis. Sua constituição imponente, segundo Emerson (1974, p. 1285),
concede aos homens uma solidez interior, uma moral cósmica de que a natureza é porta-voz: “Quem pode saber o que o rochedo batido pelo mar ensinou de
firmeza ao pescador?”114

Por sua altivez de árvore e sua proximidade do paraíso, a montanha simboliza a elevação espiritual e o desapego às coisas terrenas: Were it but Me that gained
the Height – (Não fosse eu que alcançasse as alturas --) / Were it but they, that failed! (Não fossem eles, que falhassem!). Paradoxalmente, as montanhas
também representam o orgulho e a vaidade, que contradizem a nobreza de caráter: And I cannot be proud (E não posso me orgulhar) / Because a Height so
high (Porque uma Altura tão elevada) / Involves Alpine (Envolve Alpinos) / Requirements (Requisistos).

Na poética das autoras, montanhas e montes suscitam imagens relativamente simples se comparadas a outros motivos da natureza, como os mares, os pássaros
ou as árvores. A solidez de suas formas exige da imaginação um empenho mais firme para que se consolidem os devaneios da intensidade da matéria

(BACHELARD, 2001a, p. 2). As montanhas como outras imagens da terra assumem tanto um sentido denotativo quanto conotativo. São
acidentes geográficos que se impõem na paisagem: Nature – the Gentlest Mother is, (A Natureza – é a Mãe mais Gentil,) / Impatient of no Child – (Com
nenhuma Criança Impaciente) /.../ Her Admonition mild – (Seu Conselho suave --) // In Forest – and the Hill – (Na Floresta – e no Monte --) / By Traveller –
be heard – (Pelo Viajante – é ouvido); The Firmamental Lilac (O Lilás do Firmamento) / Upon the Hill tonight -- (Sobre o Monte hoje à noite --). São
montanhas metafóricas que aludem a obstáculos, sonhos inatingíveis, objetivos alcançados: Nor Mountain hinder Me (Nem Montanha Me impede) / Nor Sea
– (Nem Mar --) / ... / Who’s Cordillera? (Quem é Cordilheira?); To Him who strives severe (Para Ele que luta com perseverança) / At the middle of the Hill –
(No meio do Monte --) / But He who has achieved the top – (Mas Ele que alcançou o topo --); The Height I recollect – (A Altura que reconheço --) / ’T was
even with the Hills – (Tinha a altura dos Montes --); Os sonhos são flores altas / de umas distantes montanhas! / Se não houvesse paredes! Diz Bachelard

(2001a, p. 52) que “é através das metáforas, da imaginação, que a realidade assume os seus valores”. A resistência da montanha, assim, se fortalece à
medida em que lhe atribuímos a função de empecilho à vontade.

Como as rosas furtivas nos jardins, as montanhas apenas existem, longe de um olhar que as contemple: The Mountains – grow unnoticed – (As Montanhas –
crescem despercebidas --) / Their Purple figures rise (Suas imagens Púrpuras se elevam); A Light exists in Spring (Uma Luz existe na Primavera). // A Color
stands abroad (Uma Cor existe no exterior) // ... // Upon the furthest slope you know. (Sobre a mais distante encosta que conheces.) Suas linhas perdem-se na
distância onde os olhos não as alcançam, seus traços diluem-se na paisagem como sonhos que o tempo lentamente desmancha: E fundiram-se as montanhas
(Há névoa); The Mountains stood in Haze – (As Montanhas ficaram sob a Névoa --) / The Valleys stopped below (Os Vales parados a seus pés).

Os versos dickinsonianos fluem entre a emoção do contato com a natureza, e a razão que a descobre insondável e efêmera: For each ecstatic instant (Para
casa instante de arrebatamento / We must an anguish pay (Devemos uma angústia pagar) / In keen and quivering ratio (Na alta e variável proporção) / To
the ecstasy. (Do êxtase.). O prazer diante das imagens da terra depara-se com a incerteza do mundo, não mais considerado uma obra acabada, mas sim um
experimento em processo, um enigma sobre o qual não há verdades absolutas: The Chemical conviction (A convicção Química) / That Nought be lost (De que
Nada se perde) / Enable in Disaster (Transformam em Disastre) / My factured Trust – (Minha Verdade Fraturada –) / ... // How more the Finished Creatures
(Quão mais as Criaturas Concluídas) / Departed me! (Abandonaram-me!). Os cenários da terra, como na teoria platônica, ainda que belos, são apenas cópias
imperfeitas das paisagens celestiais.

A natureza, julgada sob um prisma grave e inquisidor em certos poemas, é vista sob um olhar
inocente em outros. Canta Cecília em Ou Isto ou Aquilo: Quem me compra um jardim / com flores? /
... / uma estátua da Primavera?; Descansa entre as flores, cavalinho branco, / de crina dourada! Em
tom de gracejo, escreve Emily Dickinson: A Flower will not trouble her, it has so small a Foot, (Uma
Flor não vai perturbá-la, tem um Pé tão pequeno,) / And yet if you compare the Lasts, (E mais, se você

113
Nácar: substância dura, brilhante, que se encontra em grande número de conchas; seu nome vulgar é madrepérola. Por
extensão, cor de carmim, cor-de-rosa. Sobre o nácar (substantivo feminino em francês), René François (apud BACHELARD,
2001a, p. 265) compõe um belo devaneio: “O Nácar é emprenhado pelos céus, e só vive do Néctar celeste, para parir a pérola
argentina, ou pálida, ou amarelada, conforme o Sol e a pureza do orvalho”.
114
“Who can guess how much firmness the sea-beaten rock has taught the fisherman?”
134

comparar os Sapatos,) / Hers is the smallest Boot – (Sua é a menor Bota –). VanSpanckeren (1994, p.
35) comenta que ao lado de temas sombrios como o tempo inexorável e a morte definitiva, Emily
Dickinson demonstra um grande senso de humor e uma ironia irreverente, revelados em seus
trocadilhos e paradoxos115.
A coexistência de opostos, presente na lírica das escritoras, manifesta-se também no emprego de motivos simples para introduzir questões relevantes. Nos

poemas sobre a fauna (fl. 37, 60-61) como vimos, substantivos concretos (ratos e gatos) integram alegorias em torno de abstrações, como o tempo e a
morte: Com soberana melancolia, / brota nos seus olhos erguidos / o arco-íris, resumo do dia; Regard a Mouse (Lembra-te do Rato) / O’erpowered by the
Cat! (Subjugado pelo Gato!). A escolha de animais domésticos para aludir a assuntos tão graves confere aos poemas humor e ironia. No tom crítico das
imagens poéticas, anula-se a distância entre a fauna e a humanidade. Cecília Meireles parece nos falar dos homens ao se referir aos gatos: Os gatos brancos,
descoloridos, / passeiam pela tinturaria; Emily Dickinson, em contrapartida, implora a Deus pela salvação dos ratos: Reserve within thy kingdom (Reserva em
teu reino) / A “Mansion” for the Rat! (Uma “Mansão” para o Rato!). Gatos, ratos e homens, todos se submetem ao tempo que reduz à morte qualquer
forma de vida. Um certo niilismo subjaz sob a aparente plenitude do mundo. Nenhum paraíso nos espera, nenhuma redenção nos cabe. Os gatos, entregues
ao torpor da velhice, renunciam à vontade; os ratos, entregues ao ócio da eternidade, proclamam o prazer da gula. A irreverência com que a poeta de Amherst
considera a vida a aproxima da vanguarda modernista, cujas características estéticas antecipou; ao mesmo tempo, a distancia dos arroubos do Romantismo do

século XIX, geração a que pertencia (DAGHLIAN, 1985, p. 169). Talvez por essa razão, somente nos últimos anos da década de vinte sua obra

tenha recebido a importância devida e se tornado uma “força transformadora na poesia mundial” (FAUSTINO, 1977, p. 85).

Emily Dickinson e Cecília Meireles descrevem motivos tipicamente poéticos, como pássaros,
campinas, riachos, ao lado de outros raramente cantados em verso, como aranhas, desertos, vulcões.
Seus versos ora dramáticos e tensos ora serenos e suaves recriam o discurso e pluralizam o sentido das
palavras. Em resumo, são poemas que “vivem da vida da linguagem viva”, nos fazem experimentar
“seu lirismo em ato” e nos sensibilizam como “uma carta íntima” (BACHELARD, 2001b, p. 3). Em um
poema de 1862, inclusive, Emily Dickinson diz literalmente que sua poesia é uma modesta carta ao
mundo (This is my letter to the World // With tender Majesty) e pede a seus conterrâneos que, por amor
à natureza, não a julguem com rigor (For love of Her – Sweet – countrymen – / Judge tenderly – of
Me). Cecília Meireles também confessa em uma “missiva” seu amor pela natureza e pela poesia: Sei
que canto. E a canção é tudo. / Tem sangue eterno a asa ritmada. / E um dia sei que estarei mudo: / –
mais nada. Em seus mais belos poemas sobre a natureza, as autoras surpreendem o leitor, fazendo-o
habitar imagens novas, feitas de terra, água, fogo e ar. Sua poética traduz, então, “a beleza íntima das
matérias” (BACHELARD, 2001a, p. 6), manipuladas como elementos primordiais nas mãos de um
demiurgo. Assumindo uma postura filosófica diante da vida, a exemplo da reclusa de Amherst, escreve
a poeta carioca: Nada somos. No entanto, há uma força que prende / o instante da minha alma aos
instantes da terra, / como se os mundos dependessem desse encontro.

115
O poema seguinte, por exemplo, reúne versos cômicos e enigmáticos: Much Madness is divinest sense – (Muita loucura é
a Sensatez mais divina –) / To a discerning Eye – (Para o Olho que discrimina –) / Much Sense – the starkest Madness –
(Muito Senso – pura Loucura –) /’Tis the Majority (E nisso a Maioria) / In this, as All, prevail – (Como em Tudo,
predomina –) / Assent – and you are sane – (Tu és são – se consentes –) / Demur – you’re straightway dangerous –
(Contestas – e és um perigo –) / And handled with a Chain. (E és preso nas Correntes.).
135

Emily Dickinson e Cecília Meireles sugerem que escrever não advém apenas do simples ato de
contemplar a natureza, mas da “adesão total do sujeito que se envolve a fundo naquilo que imagina”
(BACHELARD, 1990, p. 63). Para captar os tons da vegetação, tocam as árvores, colhem seus frutos,
sentem o perfume de suas flores. Movidas pela vontade de possuir a paisagem contemplada, não se
restringem à observação à distância. Abdicam da segurança do refúgio, arriscam-se em sua direção,
tomam em suas mãos cores e formas.
Aos poucos, nos deixamos embriagar pela atmosfera onírica que se instaura em seus poemas e
aceitamos que a natureza descrita não é uma mera representação do real, mas a própria paisagem
furtada pelo eu lírico. Entre a fuga na imaginação e a essência da realidade, as poetas nos remetem à
questão da mimese sobre a qual se debruçou a filosofia grega. Enquanto Platão relacionara o valor da
poesia à problemática da verdade, Aristóteles a libertou do compromisso com o real, em favor do
critério de verossimilhança. O pensamento do estagírico, por sua vez, nos transporta a Bachelard, que
opõe o conceito da cultura realista de “bem ver” ao onirismo arquétipo de “bem sonhar”. Distingue-se,
assim, a imaginação reprodutora, vinculada à percepção e à memória, da imaginação criadora, que
transforma a “imagem percebida” em “imagem imaginada” (2001a, p.2). Para o filósofo, essa “função
do irreal” é a essência mesma da poesia, que “destrói as imagens preguiçosas da percepção” (2001a, p.
22).

Com Emily Dickinson e Cecília Meireles vivenciamos uma “participação imaginária” no


universo da poesia, recebemos a permissão de sonhar, deixamos para trás as marcas da realidade.
Compreendemos, então, que a poesia, mesmo quando se debruça sobre as imagens da terra – flores,
árvores, pássaros e campos – transforma a paisagem em devaneio. Mas a singularidade do fato poético,
segundo a concepção estruturalista de Tzvetan Todorov (1976, p. 15), não se restringe à fenomenologia
da composição, consiste na produção de uma linguagem segundo um tecido abstrato de regras que lhe
conferem “literariedade”. Nesse sentido, vale ressaltar que a poesia das autoras sobre a natureza traduz
as leis que regem a estrutura e o funcionamento do discurso poético, na medida em que suas imagens
atualizam regras que conferem poesia às palavras. Com os motivos da terra, do ar, da água e do fogo,
Emily Dickinson e Cecília Meireles traduzem em absoluto lirismo o discurso da natureza. A exemplo
das poetas, cujo lirismo harmoniza concepções e imagens tão diversas, no capítulo seguinte,
procuramos conciliar informática e poesia, universos aparentemente imiscíveis.
136

Tendo, pois, o Senhor Deus formado da terra


todos os animais dos campos,
e todos os pássaros dos céus,
levou-os para o homem,
para ver como ele os havia de chamar;
e todo o nome que o homem pôs aos animais vivos,
esse é o seu verdadeiro nome.
O homem pôs nome a todos os animais,
a todos os pássaros dos céus
e a todos os animais dos campos.

Gênesis 2, 19-20.
137

4. POESIA E INFORMÁTICA NA ESCOLA


__________________________________________________________________________________
___

Em A República, Platão submete a poesia ao critério de verdade e utilidade. Julga o poeta mero
imitador, que desconhece a essência do real e produz apenas cópias imperfeitas da aparência do mundo.
Sua arte “é uma brincadeira”, e ele “não tem conhecimentos que valham nada sobre aquilo que imita”
(PLATÃO, 2002d, p. 301). O filósofo o acusa de viver no erro e não contribuir para que os homens se
tornem mais virtuosos:

O poeta imitador instaura na alma de cada indivíduo um mau governo, lisonjeando a parte
irracional, que não distingue entre o que é maior e o que é menor, mas julga, acerca das mesmas
coisas, ora que são grandes, ora que são pequenas, que está sempre a forjar fantasias, a uma enorme
distância da verdade (ibidem, p. 304-305).
O poeta descreve homens tomados pela paixão, incendiados pelo ódio, aturdidos pela desgraça,
enlouquecidos pelo desgosto, entregues a lamentações, enfim, dominados pela alma irascível. A poesia
mimética, segundo Platão, é um entretenimento para as multidões incultas, que desobedecem à lei
segundo a qual “belo é conservar a calma o mais possível nas desgraças e não se indignar” (ibidem, p.
303).

Guiado por idéias ascéticas, o filósofo ateniense exige da poesia uma função moralizadora que
justifique sua permanência na polis. Mas como legislador justo, concede aos admiradores da poesia o
direito de se pronunciarem em sua defesa,

mostrando como é não só agradável, como útil, para os Estados e a vida humana. E escutá-los-
emos favoravelmente, porquanto só teremos vantagem se se vir que ela é não só agradável, como
também útil (ibidem, p. 307).
Aristóteles, procurando responder ao mestre, não vincula a poesia à moral nem a dissocia,
embora afirme que seu valor estético não a autoriza a afrontar a ética. Caracteriza a poesia não apenas
pelo verso, mas também por uma temática particular, desatrelada de questões didáticas ou utilitárias:

Nada de comum existe entre Homero e Empédocles, salvo a presença do verso. Mais acertado é
chamar poeta ao primeiro e, ao segundo, fisiólogo, mais do que poeta (ARISTÓTELES, 2003,
p. 24).
Para o estagírico, a poesia imita os homens tal como são, melhores ou piores, pois o poeta deve
se ater apenas à verossimilhança e não à realidade: “Não compete ao poeta narrar exatamente o que
aconteceu; mas sim o que poderia ter acontecido, o possível” (ibidem, p. 43). Poesia e história diferem,
portanto, pelo compromisso com a verdade, cabendo ao poeta a missão de fabricar mais fábulas do que
versos: “No que respeita à poesia, deve-se preferir o impossível crível ao possível incrível” (ibidem, p.
138

93). Ao imitar o mundo, a poesia reproduz o geral e o necessário, descobre a essência eterna sob a
aparência das coisas e “completa assim a natureza que muitas vezes não conclui sua obra” (ibidem, p.
16).

Ao contrário de Platão, Aristóteles não acredita que a poesia enfraqueça o caráter do indivíduo
ao traduzir as paixões. Em sua opinião, a excitação causada pelo poético beneficia o espírito ao
provocar a catarse, definida como a liberação de um humor incômodo por seu excesso, de que emana
uma sensação de alívio e de apaziguamento. A concepção aristotélica, portanto, é o marco inicial para
as teorias estéticas que não submetem a poesia a critérios morais ou à reprodução da realidade.

Sidney (1554-1586), em Uma Apologia para a Poesia, argumenta que a poesia é uma arte
antiga e universal. O poeta, que para os gregos era um criador e, para os romanos, um profeta, para ele
é um monarca:
Agora entre todas as ciências (falo ainda das ciências humanas, e de acordo com os conceitos
humanos) nosso poeta é o rei. Pois ele não apenas mostra o caminho, mas oferece uma visão tão
doce, capaz de seduzir qualquer homem a percorrê-lo. Mais ainda, ele o descreve como se a
viagem se estendesse por um belo parreiral, primeiro lhe oferece um cacho de uvas, cujo sabor o
impele a prosseguir. Não começa com definições obscuras, que embaçam a margem do poema
com interpretações, e sobrecarregam a memória com dúvidas; mas emprega palavras dispostas em
adorável proporção, acompanhadas ou preparadas para a encantadora arte da música; e chega com
uma história pronta, uma história que afasta as crianças das brincadeiras, e os velhos da lareira
(SIDNEY, 1956, p. 285).
Como Aristóteles e os críticos renascentistas, julga a imaginação o âmago da poesia, e o verso um
simples ornamento. A poesia, fruto da inspiração, imita a natureza, mas não a copia; sua função é
ensinar e deleitar. O poeta, afirma Sidney (apud DAY, 1963), percebe o mundo ideal na realidade
transitória e revela conceitos universais. Além disso, contribui para uma vida virtuosa ao reunir no
poema os benefícios da história e da filosofia através da imaginação.

A visão utilitarista da poesia nos moldes platônicos, contudo, ainda perdura no ambiente
escolar. Oliveira e Costa (2004) comentam que, em geral, a poesia integra a prática pedagógica como
veículo de controle ideológico ou lingüístico. À margem do currículo, o texto poético justifica-se como
um pretexto para aulas sobre ética, civismo ou gramática. A esse respeito, comenta Bordini (1986) que
não é próprio da poesia ilustrar questões sobre moral ou linguagem; sua função é propiciar, através da
musicalidade, o prazer da leitura. A escola, diz Machado (1996), ainda não aprendeu que a poesia
atualiza as regras da língua culta e, portanto, não pode se submeter a padrões de normas gramaticais e
critérios rígidos de correção. Seu valor e sua beleza consistem em reorganizar as estruturas peculiares à
linguagem e pregar a utopia:

A poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação capaz de transformar o mundo, a


atividade poética é revolucionária por natureza; exercício espiritual, é um método de libertação
139

interior. A poesia revela este mundo; cria outro. (...) Convite à viagem; regresso à terra natal. (...)
Experiência, sentimento, emoção, intuição, pensamento não-dirigido. Filha do acaso; fruto do
cálculo. Arte de falar em forma superior; linguagem primitiva. Obediência às regras; criação de
outras. Imitação dos antigos, cópia do real, cópia de uma cópia da Idéia. Loucura, êxtase, logos. (...)
Ensinamento moral, exemplo, revelação, dança, diálogo, monólogo (PAZ, 1982, p. 15).
Em detrimento da linguagem rebelde da poesia, a escola prefere o discurso bem-comportado da
prosa, em que se impõe o raciocínio linear, e não o pensamento analógico, produtor de metáforas. A
escola impõe a disciplina e a passividade a que a poesia, segundo Emily Dickinson, não se submete:
They shut me up in Prose – (Eles me trancaram na Prosa -) / As when a little Girl (Quando eu era uma
Garotinha) / They put me in the Closet – (Eles me fecharam no Armário) / Because they liked me
“still” – (Porque me queriam“quieta” --). Não há lugar na escola para a poesia porque não há lugar
para o pensamento crítico e para a inovação; o papel do ensino se resume em garantir a permanência de
fórmulas cristalizadas de comportamento e linguagem.

Averbuck (1982), Pinheiro (1995) e Amarilha (1997) afirmam que a poesia é um dos gêneros
literários menos incorporados ao cotidiano do ensino. Sua função no calendário escolar é meramente
decorativa – um adorno cultural para dias festivos. Nas aulas corriqueiras, predominam os textos em
prosa, cabendo à poesia um papel marginal, como fonte para extensas atividades de interpretação,
sobretudo no segundo e terceiro ciclos.

Goés (1993) menciona que os poemas adotados pela escola, via de regra, desagradam aos
alunos por sua linguagem hermética, vocabulário erudito e temática anacrônica, em que não há espaço
para os valores do mundo contemporâneo. Naturalmente, essa poesia não motiva os jovens, afinal, “o
que leva o indivíduo a ler não é o reconhecimento da importância da leitura, e sim várias motivações e
interesses que correspondem à sua personalidade e ao seu desenvolvimento intelectual” (OLIVEIRA;
COSTA, 2004, p. 176). A esse respeito, Widdowson (1992) adverte que a questão não é remover da
escola a poesia canônica, culturalmente remota, mas torná-la acessível à leitura à medida que o aluno é
estimulado a destrinçá-la, submetendo-a a seus critérios de análise. É um direito do educando conhecer
todo estilo de poesia (clássica, romântica, moderna etc.), mas é também um dever da escola facilitar o
acesso ao texto poético através de atividades de leitura e/ou um arcabouço teórico, de acordo com seu
conhecimento e maturidade.

Bamberger (1986) e Kleiman (1989) sugerem que o contato com poemas diversos permite ao
educando expandir e aprimorar sua área de interesse, favorecendo a motivação para a leitura. Para
desenvolver no aluno o hábito e o prazer de ler poesia, tanto por razões culturais quanto por
entretenimento, a escola, na opinião dos autores, precisa tornar a leitura do texto poético uma prática
regular.
140

O âmago do problema, na opinião de Pinheiro (1999), é que a maioria dos professores não lê
poesia e, portanto, desconhece as obras que poderiam motivar seus alunos. Além disso, muitos são
malsucedidos ao orientar os estudantes justamente porque não desenvolveram a sensibilidade
necessária para a perceber as sutilezas da expressão poética. O fato de tão poucas pessoas gostarem de
poesia, alerta Widdowson (1992), é um indício do fracasso da escola, que sacraliza poemas
reverenciados pela erudição, porém alheios aos interesses dos alunos. Dessa forma, o ensino nega a
essência revolucionária da linguagem poética ao canonizá-la conforme os valores impostos pela
tradição. A escola precisa desmistificar a poesia, revelando-a ora sublime ora ridícula, ora laudativa ora
irreverente. Afinal, como a define Otavio Paz (1982, p. 15), a poesia é a “língua dos escolhidos”, mas
também a “voz do povo”: “Pura e impura, sagrada e maldita, popular e minoritária, coletiva e pessoal.”

O papel secundário do texto poético na educação, segundo Amarilha (1997, p. 36), deve-se, em
parte, ao desconhecimento dos professores de que “através da poesia, o aluno tem oportunidade para
fazer aflorar sua formação lingüística, humana e social”. A relevância pedagógica do poema, do ponto
de vista cognitivo, lingüístico e estético, repousa nos livros esquecidos nas bibliotecas escolares. Em
contrapartida, a escola apregoa a linguagem lógica e objetiva da ciência. Acerca do poder coercivo da
educação sobre a tendência inata do indivíduo para a poesia, questiona Drummond (apud Averbuck,
1982, p. 65):

Por que motivo as crianças de modo geral são poetas e, com o tempo, deixam de sê-lo? (...) Mas se
o adulto, na maioria dos casos, perde essa comunhão com a poesia, não estará na escola, mais do
que em qualquer outra instituição social, o elemento corrosivo do instinto poético da infância que
vai se fenecendo à proporção que o estudo sistemático se desenvolve, até desaparecer no homem
feito e preparado supostamente para a vida?
Ao preferir a prosa-padrão, o ambiente escolar deixa ser um espaço fértil para a criatividade, optando
pelo ensino e reprodução de modelos pré-estabelecidos pelas normas da língua culta.

Amarilha (1997) destaca a relevância do estudo de poesia na escola, cuja síntese imagística e
sensorial assemelha-se ao processo mental de apreensão da realidade pela criança e favorece, portanto,
o desenvolvimento da cognição. Através de atividades lúdicas e prazerosas, a poesia, integrada ao
currículo escolar, pode cumprir sua função – “pregar a prática da infância entre os homens” (BARROS
apud AMARILHA, 1997, p. 33).

Para Mário Faustino (1976, p. 30), poesia e didática podem caminhar juntas desde que a arte não
seja julgada a partir do critério de utilidade, mas sim de beleza. Para o crítico, “o verdadeiro poema é
sempre pedagógico” no sentido de transmitir a importância da vida, lembrar ao leitor a essência da
natureza humana ou simplesmente contribuir para a depuração da linguagem.
141

Como toda manifestação artística, a poesia promove a diversidade. Rompe com o discurso-
padrão ao mesmo tempo em que apresenta percepções distintas da realidade. Estimula o pensamento
crítico do educando ao instituir uma nova linguagem, insurgindo-se contra as amarras da gramática e a
mimese do real. Segundo Emily Dickinson, a poesia instaura leituras múltiplas da realidade: I dwell in
Possibility – (Moro na Possibilidade –) / A fairer House than Prose – (Uma Casa mais agradável que
a Prosa –) / More numerous of Windows – (Com numerosas Janelas --) / Superior – for Doors –
(Superior em Portas –-) É simultaneamente rebelde e conservadora: opõe-se à lógica da frase linear,
mas institui a metáfora e a repetição; abandona as regras da comunicação prosaica, mas adota a rima e a
métrica. É princípio de ruptura e reconciliação: subverte a ordem do discurso para criar uma
nova ordem – a liberdade poética. Razões pelas quais Reeves (1963) diz que o poeta, feito de técnica e
inspiração, é essencialmente contraditório.

Widdowson (1992) afirma que a poesia é uma linguagem subversiva, que nega a autoridade e
celebra a divergência. Aguça a percepção e estimula o raciocínio ao impor-se como linguagem lúdica,
que propositadamente afronta o código lingüístico e desafia regras de coerência e coesão. Sua presença
na escola justifica-se, portanto, não somente do ponto de vista lingüístico, mas também político, como
atestam as palavras de Barthes (1980, p.17):

As forças de liberdade que residem na literatura não dependem da pessoa civil, do engajamento
político do escritor que, afinal, é apenas um ‘senhor’ entre outros, nem mesmo do conteúdo
doutrinal de sua obra, mas do trabalho de deslocamento que ele exerce sobre a língua.
É a responsabilidade para com a forma e não para com a ideologia o cerne da obra literária. É a
“trapassa salutar” e o “logro magnífico” da língua-padrão que situam o texto literário “fora do poder, no
esplendor de uma revolução permanente da linguagem” (ibidem, p. 16).
Pronunciar a palavra poética é desafiar a linguagem do poder, cuja expressão, segundo Barthes
(1980, p. 12), é a língua, enquanto legislação e classificação opressiva. Para raças nutridas na
escuridão (To races – nurtured in the Dark –), escrever é um ato de rebeldia, “porque é no interior da
língua que a língua deve ser combatida, desviada (...) pelo jogo de palavras” (ibidem, p. 17). Presos ao
senso comum que lhes tolhe a fala, os homens, como os prisioneiros no interior da caverna platônica,
estão “desde a infância, algemados”. Longe da luz, sujeitos às “sombras projetadas” (PLATÃO, 2002d,
p. 210), resta-lhes apenas a poesia, embora o hábito torne escassa e branda a palavra.

O poema, explica Widdowson (1992), tanto sob o aspecto estético quanto cultural, tem uma
contribuição significativa para a formação do educando. Permite-lhe debruçar-se sobre sua própria
época, bem como descobrir outros tempos e lugares. É simultaneamente fonte de prazer e
aprendizagem. Como artefato lingüístico, possibilita ao aluno experimentar a beleza das combinações
142

entre as palavras, a melodia inusitada dos vocábulos, o paralelismo das construções, as


correspondências entre os extratos lingüísticos, a plasticidade do signo. Como meio de expressão, o faz
compartilhar a experiência individual do poeta, conhecer distintas concepções de vida, pensar sobre a
existência, enfim ampliar sua cultura. Auxilia, por conseguinte, na socialização do estudante, no
desenvolvimento do intelecto e da maturidade.

Para que a poesia signifique uma contribuição efetiva para a educação, é necessário estimular o
aluno a reagir às provocações do poético, ao hermetismo da linguagem, à iconicidade das palavras, à
pluralidade de significados. Afinal, como ensina Barthes (1970, p. 212-213), uma mesma obra pode
inspirar uma variedade de leituras:

Cada época pode acreditar, com efeito, que detém o sentido canônico da obra, mas basta alargar
um pouco a história para transformar esse sentido singular em sentido plural e a obra fechada em
obra aberta. (...) É nisso que ela é simbólica: o símbolo não é a imagem, é a própria pluralidade de
sentidos.
Cabe, portanto, ao professor fazer com o que o educando apresente sua leitura do poema, sua percepção
das relações entre significado e significante, sua articulação dos sentidos entrelaçados nas estrofes.

Widdowson (1992) não advoga que seja vetado ao aluno acesso a qualquer abordagem
intrínseca ou extrínseca do poema. O essencial é que sua interpretação do texto preceda o contato com a
crítica acadêmica. Dessa forma, ele desenvolverá o senso crítico e aprenderá a ter confiança na leitura
guiada por sua intuição e conhecimento. Segundo o autor, é dever da escola evitar que a análise de
eruditos ou especialistas guie a percepção do estudante e lhe seja imposta como a única interpretação
correta e definitiva do texto poético.

Argumento semelhante apresenta Cavalcanti (1997, p. 27) ao comentar que “a principal riqueza
da poesia” é “ser analisada de formas diferentes e segundo objetivos diferentes”. O ensino precisa,
portanto, dessacralizar a poesia, libertando-a da exegese da erudição, que a faz parecer um código
acessível apenas a iniciados. Cumpre também apartar a poesia da crítica ideológica, que enxerga um
único tom nos diversos matizes do texto poético e reduz sua multiplicidade de sentidos a um só viés de
leitura.

Widdowson (1992) comenta que, embora cada poema sugira um campo de interpretação
possível, no qual o aluno pode situar sua leitura, a arbitrariedade do signo poético não o autoriza a
contrariar as idéias inscritas no próprio texto. Sua interpretação, mesmo como reação subjetiva ao
poema, deve encontrar argumentos objetivos na linguagem poética. Com o intuito de estimular a leitura
de poesia, o professor não pode ser conivente com leituras idiossincráticas. O aluno deve ser
143

estimulado a indicar, no texto poético, evidências que justifiquem sua interpretação, evitando, assim, a
abordagem impressionista, que contradiz as informações textuais.

Para reverter a posição marginal da poesia na escola, é preciso que ela seja integrada ao
currículo escolar e seu potencial explorado em benefício da aprendizagem. O professor tem um papel
crucial nesse processo, pois cabe a ele não apenas selecionar poemas segundo a realidade dos
educandos, como também motivá-los para o trabalho de leitura e compreensão. O texto poético pode
ser estudado tanto do ponto de vista intrínseco, como objeto literário, quanto do ponto de vista
extrínseco, como veículo de informação. O primeiro enfoque compreende a análise da linguagem
poética (rimas, aliterações, métrica, musicalidade, léxico, sintaxe, figuras de estilo etc.); o segundo
permite a leitura interdisciplinar do tema116, em consonância com as disciplinas do ensino fundamental
e médio. Atividades de leitura podem ser executadas nas aulas curriculares, enquanto studos temáticos
adequam-se à programação de oficinas ou à pesquisa extraclasse: desenhos, exposições, instalações
artísticas, painéis fotográficos, jograis, representações dramáticas, canções etc. Não ensina Otavio Paz
(1982, p. 22) que “uma tela, uma escultura, uma dança são, à sua maneira, poemas”?

Do mural ao computador, o texto poético pode ser editado em diferentes mídias, cada uma das
quais expressa e sugere leituras distintas: em jornais estudantis, em painéis, em cartazes, em ambientes
multimídia, em hipertextos off-line ou na Internet. Hoje a informática, a um custo relativamente baixo,
permite a interação entre o leitor e o poema, ao mesmo tempo em que propicia a aproximação entre arte
e tecnologia. Enquanto no espaço do poema, “a linguagem recupera sua originalidade primitiva,
mutilada pela redução que lhe impõem a prosa e a fala cotidiana” (PAZ, 1982, p. 25-26); no ambiente
virtual, a leitura de poesia recupera a liberdade da interação oral, mutilada pela redução que lhe impõem
a impressão e a escrita linear.

4.1 Poesia e informática

À primeira vista, as imagens da terra talvez pareçam incompatíveis com a tecnologia do


computador, como se fossem mundos excludentes: um fruto do divino, o outro, obra da razão humana.
Contudo, desde a Antigüidade Grega, a natureza e a ciência têm sido postas lado a lado na visão dos
estudiosos. No princípio do século VI a.C., Tales de Mileto e seus sucessores, Anaximandro e
Anaximenes, deram o primeiro passo em direção à ciência ao buscar o princípio fundamental da

116
Eis algumas sugestões de estudos temáticos, adequados à programação de oficinas ou à pesquisa extraclasse: Paisagens com Figuras, de
João Cabral, graças à riqueza de topônimos pode ser lido com o apoio da Geografia; O Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles, por
seu caráter factual, pode sugerir uma leitura sob o olhar da História; a poesia religiosa de Emily Dickinson, ora puritana ora cética, pode ser
estudada à luz da Filosofia; Zoo Imaginário, de Sérgio de Castro Pinto, pode motivar uma pesquisa na área de Ciências; a poesia concreta de
Haroldo e Humberto de Campos dá margem a um estudo em Desenho Geométrico.
144

natureza (TARNAS, 2003). Bacon (1561-1626) acreditava que a ciência abriria “a porta da natureza”, e
Spencer (1820-1903) julgava o progresso uma necessidade imposta pela natureza (BRIGGS; BURKE,
2004, p. 123).

Ao longo dos séculos, a história da humanidade se encaminhou por duas vertentes distintas: o
domínio da natureza em busca de melhores condições de vida, com o surgimento da agricultura, da
pecuária e da exploração sistemática de recursos naturais, culminando hoje com a biotecnologia e a
engenharia genética; e o desenvolvimento da comunicação sob a forma de sinais, palavras e imagens,
através da linguagem oral e escrita, por meio de publicações, rádio, televisão e, nos últimos anos, da
Internet.
Platão considerava a poesia, a dança e a música saberes inter-relacionados; com a descoberta de
Pitágoras sobre a base numérica dos intervalos musicais, a matemática e a música tornaram-se irmãs
(SMITH, 1996). Bosi (2004, p. 49), inclusive, comenta essa aproximação entre matemática e poesia:
“A poesia vive em estado de fronteira. Como a matemática. No poema, força-se o signo para o reino do
som. No teorema, o signo é repuxado para as convenções do intelecto.” Na época de Bacon (1561-
1626), um erudito, segundo o espírito da Renascença, deveria dominar dois saberes complementares –
ciência e linguagem; a primeira envolvia o estudo da matemática, a segunda, o estudo da gramática
(MANGUEL, 1997). Somente no final do séc. XVII, com o progresso científico fomentado pela
pesquisa, delineou-se a divisão entre arte e ciência. Segundo Smith (1996), até então, não havia
qualquer separação entre os que lidavam com o comércio e a ciência e os que se dedicavam à arte.
Hoje, poesia e informática parecem horizontes incomunicáveis, suposição que pode ser
ratificada pelos programas curriculares em que as duas disciplinas raramente se cruzam. Todavia,
ambas envolvem números, raciocínio abstrato e linguagem para traduzir emoções em padrões rítmicos
ou para transformar procedimentos em rotinas de programação; e nutrem o fascínio pela supra-
realidade através do universo poético ou do mundo virtual. Mesmo assim, talvez a proposta de “que a
arte nos revele aspectos humanos das tecnologias”, como supõe Domingues (1997, p. 15), soe, para
alguns, “estranha e idealista”.

Ao buscarmos na Internet um ambiente para a leitura das imagens da terra no texto poético,
julgamos que não há arestas entre informática e literatura, mas sim intersecções em que aspectos
comuns se articulam. Como uma ferramenta117 para acesso ao texto literário, o hipertexto facilita o
estudo do recorte temático ao permitir uma leitura hipermodal, em que palavra, som e imagem

117
Santaella explica que “ferramentas são artefatos projetados como meio para se realizar um trabalho ou uma tarefa”,
funcionando como “extensões ou prolongamentos de habilidades, na maior parte das vezes manuais” (1997, p. 35). Nesse
sentido, softwares são ferramentas na medida que são projetados para viabilizar a realização de ações (pesquisas, cálculos,
projetos, leituras etc.) pelo usuário.
145

desvelam o olhar poético sobre a natureza. A relação estabelecida entre unidades de informação de
origem diversa “gera uma nova realidade comunicativa” que amplia as possibilidades de compreensão
do texto, uma vez que cada forma semiótica “agrega um conjunto de normas interpretativas e
possibilidades de significado que lhe são particulares” (BRAGA, 2004, p. 148). Essa visão intersemiótica
da mídia já estava presente no cinema mudo das primeiras décadas do séc. XX e nos iconotextos118 da
arte religiosa medieval, que relacionavam a imagem à escrita.

Na Internet como no poema, há uma convergência de textos, imagens e sons em “um diálogo
multidimensional”, através do “pensamento associativo, não-linear”, a que se refere Domingues (1997,
p. 21). Espaço de documentos interligados, o hipertexto reproduz a estrutura da linguagem poética em
que linhas de significado se entrecruzam para gerar um efeito estético. Através desse recurso, o
computador reproduz no ambiente virtual a concepção de Rolland Barthes (1999b, p. 13) de que
“interpretar um texto não é dar-lhe um sentido (...), é, pelo contrário, apreciar o plural de que ele é feito”.
Ferramenta capaz de propiciar múltiplos caminhos de leitura, o hipertexto se molda à proposição do
crítico sobre a definição do texto literário como um tecido de significados a ser desfiado pelo leitor:

Nesse texto ideal, as redes são múltiplas e jogam entre si sem que nenhuma delas possa encobrir as
outras; esse texto é uma galáxia de significantes e não uma estrutura de significados; não há um
começo: ele é reversível; acedemos ao texto por várias entradas sem que nenhuma delas seja
considerada principal; os sentidos que ele mobiliza perfiliam-se a perder de vista, são indecidíveis
(...); os sistemas de sentido podem apoderar-se desse texto inteiramente plural, mas o seu número
nunca é fechado, tendo por medida o infinito da linguagem (grifo do autor).
Ao sugerir uma leitura não-linear da multiplicidade de sentidos do texto poético, Barthes parece
antever a criação do hipertexto, que ocorreu somente na década seguinte à publicação de S/Z. A
propósito do caráter polissêmico do poema, não escapa ao teórico a dificuldade de orientação do leitor
em face dos inúmeros percursos de leitura, fenômeno que ocorre também no ambiente virtual, cujo
acesso através de links revela uma teia de significados.

Embora estejamos no séc. XXI, muitos pais e professores receiam que a Internet afete as
formas de autoridade, prejudique o comportamento dos alunos e ameace valores sociais e éticos. Essa
resistência à informática reflete uma postura comum de rejeição à difusão da informação através de
novas mídias, tal como se observou no séc. XI quando o povo via com desdém os pergaminhos de reis
e papas, no séc. XVI quando a leitura era considerada uma atividade subversiva, e mesmo no séc. XX
quando se acusou o rádio de contribuir para a propagação das idéias de Hitler e Mussolini (MANGUEL,

118
Gravuras e pinturas cuja interpretação dependia da leitura de legendas em forma de rolos que saíam da boca de santos e
virgens. São exemplos de iconotextos as gravuras de William Horgarth (1697-1764): A rua do gim, O progresso de uma
prostituta e O aprendiz diligente (BRIGGS; BURKE, 2004).
146

1997). “Há pessoas tão resistentes”, comenta Domingues (1997, p. 15) “que não admitem nem mesmo
um convívio necessário com as tecnologias.”

Embora alguns estudiosos afirmem que o uso do computador não provoca uma mudança
qualitativa na percepção do indivíduo, nos colocamos ao lado dos que, como Peter Drucker (apud
BRIGGS; BURKE, 2004), pensam que o computador influencia radicalmente os processos de aprender e
ensinar. Levy (apud DOMINGUES, 1997) acredita que as novas tecnologias contribuem para o
desenvolvimento da inteligência humana, e Xavier (2004, p. 174) afirma que a leitura no ciberespaço
atualiza a etimologia da palavra “inteligência”, do latim intelligentia (inter + legere), que significa “ler
entre” as linhas do texto ou “escolher entre” as várias direções projetadas pelo autor.

A revolução da informática, que introduziu a interatividade119, pôs fim à concepção de que a


literatura é um espetáculo, e o leitor um espectador passivo. Em um ambiente hipertextual, toda leitura
crítica de prosa ou poesia é um objeto manipulável, cujo arcabouço teórico e/ou ideológico pode ser
ilustrado, questionado e remodelado através de links. A contemplação, fruto da sacralização do
documento linear, é substituída pela interação, sugerida pelo ambiente virtual:

Formas impressas, cuja circulação é limitada, assumem o caráter de objetos únicos, enquanto
experiências culturais transmitidas eletronicamente não possuem tal estabilidade, perdendo sua
áurea ou auréola de objeto sagrado (SMITH, 1996, p. 26).
A semelhança estrutural entre as redes de documentos interligados que compõem o hipertexto e
a teia de significados de que emerge o efeito poético torna esse ambiente on-line adequado ao estudo de
relações intertextuais e à abordagem das isotopias na obra de Emily Dickinson e de Cecília Meireles.
Além disso, o hipertexto nos permite traduzir a poética da terra através da imagem, que desde o mundo
antigo é um meio eficaz de comunicação120.

Ramos (1974, p. 59) comenta que “a expressão lingüística, por muito simbólica e abstrata que
seja, guarda ainda estreita relação com a iconografia dos tempos primitivos”. Os egípcios associavam
palavras e figuras em sua arte, e os manuscritos medievais abundavam em palavras e formas com o
objetivo de facilitar a comunicação. O início do séc. XX, contudo, se caracterizou pela arquitetura do
invisível, expressa no geometrismo plástico das artes, na linguagem matemática dos estudos
literários121 (POISSANT, 1997). e no vocabulário computacional aplicado à neurociência (RATEY,

119
Rokeby (1997, p. 67) afirma que “uma tecnologia é interativa na medida em que reflete as conseqüências de nossas ações
ou decisões, devolvendo-as para nós”.
120
No Egito e na Grécia, esculturas em pedra retratavam o poder de deuses e governantes; na Idade Média, os vitrais das
igrejas ensinavam história, religião, ética e ciência. Essa arte didática era dirigida à população inculta que não tinha acesso
aos manuscritos em papiro ou pergaminho.
121
Com a finalidade de dar cunho científico aos estudos literários, o Formalismo e, sobretudo, o Estruturalismo empregaram
a linguagem e o raciocínio abstrato da matemática na análise de prosa e poesia.
147

2002). Somente a partir de 1957, o computador inaugurou a “era da transparência”, em que a


visualização revolucionou as ciências122 e as artes visuais. Assistimos hoje à predominância do
enfoque visual, como no séc. XVI quando emissor e discurso distanciaram-se através da palavra
impressa, e diagramas e tabelas foram incorporados aos livros (BRIGGS; BURKE, 2004).

Considerando-se o papel elucidativo da imagem e do som, e a relação entre as artes,


ilustraremos os textos e os poemas selecionados para o site com obras musicais e quadros
impressionistas que, como os poemas de Cecília Meireles e de Emily Dickinson, retratam o caráter
dinâmico e transitório dos fenômenos. Selecionamos telas de impressionistas franceses e americanos,
pois as obras dos modernistas brasileiros, contemporâneos de Cecília Meireles, não revelam a essência
de sua poesia. Escolhemos o compositor Claude Debussy, cuja música traduz a pintura de Claude
Monet e a poesia de Mallarmé e Verlaine, poetas em que Cecília Meireles colheu influências
simbolistas. Além disso, a arte de Debussy, como a de Cecília Meireles, é esotérica e envolta em um
“simbolismo nebuloso”; como a de Emily Dickinson, é inovadora, senão revolucionária e “diferente de
qualquer outra, anterior” (CARPEAUX, 2004, p. 387).

Através do ambiente virtual, pretendemos sensibilizar os alunos para a beleza da poesia, da


pintura, da música e da natureza. Afinal, a cultura representa uma forma de salvação (SMITH, 1996, p.
39), e a arte é um substituto para tudo que perdemos no curso do progresso e da secularização. Numa
época em que a experiência virtual se justapõe à realidade concreta, pensamos como Heiddeger (apud
BRIGGS; BURKE, 2004) que a tecnologia, mais do que em qualquer outro momento da história, deve
aproximar o homem da natureza.

4.2 Os primeiros passos da informática educativa

A História nos prova que as civilizações nunca retrocedem, pois as descobertas acumulam-se e
servem de alicerce para novos inventos. Por conseguinte, “a vida vem se transformando, com uma série
de tecnologias que amplificam nossos sentidos e nossa capacidade de processar informações”
(DOMINGUES, 1997, p. 15). Hoje a importância da Internet para a comunicação em tempo real entre os
continentes compara-se ao papel do telégrafo no séc. XIX, considerando-se a precariedade do sistema
postal nos séculos anteriores.123

122
Como o gráfico das fractais, funções matemáticas consideradas impossíveis de desenhar, ou a visualização de órgãos
internos do corpo através de equipamentos computadorizados.
123
No séc. XVII, uma correspondência da Espanha para o México chegava em 4 meses; para o Peru poderia chegar em seis
ou nove meses; para as Filipinas, em quase dois anos (BRIGGS; BURKE, 2004, p. 35).
148

Nos Estados Unidos, os computadores são usados com fins educativos desde os anos 60. Nos
anos 70, surgiram as telas e o teclado, que se tornaram partes integrantes do computador, facilitando a
interação entre o usuário e as rotinas de programação. Nas duas primeiras décadas da informática
educacional, o foco principal era a aprendizagem de programação e a instrução programada – o
uso do computador para suprir materiais curriculares na forma de testes, tutoriais, jogos e simulações.

Na década de 80, o aparecimento dos computadores pessoais trouxe novos rumos para a
aprendizagem: professores e estudantes começaram a explorar processadores de texto, bancos de dados,
planilhas, programas gráficos e hipertextos. Surgiram softwares educacionais com que foi possível
estimular o pensamento crítico, a resolução de problemas, a tomada de decisão e a pesquisa
(KEARSLEY; HUNTER; FURLONG, 1992).

À medida que os docentes adquiriam mais experiência com computadores como ferramentas
para aprendizagem e raciocínio, perceberam que a informática poderia ser um veículo para reestruturar
o currículo e a prática pedagógica. Em vez de executar atividades passivas e assistir a aulas expositivas,
os alunos realizaram projetos interdisciplinares, envolvendo temas transversais segundo seus próprios
interesses e necessidades. Outro avanço significativo na década de 80 foi o emprego do computador
para a elaboração de material didático, apresentado através de datashows, usados como quadros
eletrônicos (BALAJTHY, 1982).

Todavia, em 1991, na Inglaterra, muitas universidades e faculdades ainda não dispunham de


computadores compatíveis com os softwares existentes no mercado para as várias disciplinas. Mesmo
nos EUA, não havia ocorrido a revolução cultural prevista pelos teóricos nos anos 80, envolvendo a
democratização do conhecimento para todas as classes sociais. Nos dois países, as vantagens da
informática educacional eram até então praticamente restritas a uma elite privilegiada (SUTHERLAND,
1994) tal como fora o acesso às primeiras bibliotecas da História, como a de Assurbanipal124 (séc. VII),
freqüentada apenas pelos membros da corte que eram de inteira confiança do rei.

Nos últimos anos da década de 90, o acesso à Internet minimizou a necessidade de uso de
softwares, ao mesmo tempo em que viabilizou a consulta a bases de dados para pesquisa e o uso do
correio eletrônico para realização de projetos interescolares. Enquanto nos séc. XVI e XVII, a prensa
de Guttenberg empilhou o saber nas livrarias, em obras restritas à elite, a Internet possibilitou a difusão
do conhecimento, inclusive com acesso gratuito através de terminais públicos. Atualmente já existem

124
Último soberano importante da Assíria, que governou de 668 a 627 a.C. Era alfabetizado e gabava-se de ser o primeiro rei
a saber ler e escrever, tendo alto domínio da arte dos escribas. Sua biblioteca particular, para a “contemplação real”, reunia
obras diversas, inclusive épicos, em escrita cuneiforme sobre placas de argila (CASSON, 2002, p. 10-11).
149

cerca de 4 bilhões de webpages indexadas à rede. Se a impressão gráfica caracterizou a era da


revolução industrial, o hipertexto on-line tornou-se o ícone da era da informação virtual.

Dentre as diversas disciplinas que se beneficiaram com o advento da Internet, o ensino de


inglês como língua estrangeira teve um avanço significativo, uma vez que esse idioma se tornou a
língua mais freqüente na rede, exatamente como fora o latim na Idade Média para a comunicação
escrita entre vários povos, cujos dialetos eram usados para a interação oral.

A partir do ano 2000, os professores demonstraram mais interesse e confiança em acessar a


Internet e explorar a informática educativa com segurança. Hoje muitos já empregam o computador de
forma personalizada para dar suporte a seus estilos de ensino e atender à realidade dos alunos. Afinal,
“tudo passa pelas tecnologias: a religião, a indústria, a ciência, a educação, entre outros campos da
atividade humana, estão utilizando intensamente as redes de comunicação, a informação
computadorizada” (DOMINGUES, 1997, p. 17).

Em países desenvolvidos, os educadores estão experimentando abordagens inovadoras de


ensino através da informática, que os fazem reexaminar suas convicções acerca da aprendizagem.
Ministram poucas aulas expositivas, dedicam mais tempo à orientação individual e propõem atividades
cooperativas em pequenos grupos ou em duplas, envolvendo pesquisa e solução de problemas.
Acreditam que a aprendizagem é um processo contínuo, razão por que delegam aos alunos mais
responsabilidade na construção do conhecimento (KEARSLEY; HUNTER; FURLONG, 1992).

No Brasil, há algumas iniciativas pioneiras, como o projeto Universidade Aberta à Terceira


Idade, criado pela Universidade Federal de São Paulo para introduzir idosos no mundo virtual, e a
Universidade Virtual Brasileira, primeira rede de instituições de ensino superior privadas a oferecer
cursos de graduação e especialização à distância, reconhecidos pelo MEC. Após um processo seletivo
convencional, em que a presença do candidato é obrigatória, os alunos assistem a webconferências,
realizam trabalhos em grupos virtuais, têm acesso a salas de aula e bibliotecas on-line, consultam
dicionários, enciclopédias e livros eletrônicos. Assim como a invenção da imprensa125 retirou da Igreja
Medieval o monopólio de informação, a Internet abalou o monopólio das bibliotecas no séc. XX, cujos
catálogos e acervos já estão, em parte, disponíveis on-line.

O desejo de contextualizar a aprendizagem está impulsionando muitas inovações no uso de


computadores na educação através de ambientes mais humanos e dinâmicos que as salas de aula

125
No Novum Organum, Bacon afirma que as três descobertas que exerceram maior influência sobre a humanidade foram: a
pólvora, a bússola e a imprensa (SMITH, 1996, p. 64). Hoje certamente ele mencionaria uma quarta – a Internet.
150

tradicionais. À medida que a interação entre o usuário e a máquina tornou-se simples, graças a
softwares e interfaces flexíveis, o próprio computador, segundo Santaella (1997), foi perdendo suas
feições de máquina e humanizando-se.

A concepção do computador como uma ferramenta de ensino é uma nova etapa na


informatização das escolas. Acreditamos que essa perspectiva deve revelar o verdadeiro potencial do
computador na educação, fazendo com que os professores se tornem mais produtivos, criativos e bem-
sucedidos em suas aulas. Afinal, a Internet, a leitura de livros e o uso de ambientes de multimídia são
hoje elos fundamentais para a comunicação tal como no séc. XIX foram os correios e telégrafos e as
ferrovias.

4.3 O papel do computador na escola

A década de 60 testemunhou o surgimento da Sociedade da Informação, em que todas as


mensagens verbais e visuais tornaram-se dados coletados e transmitidos através da tecnologia
eletrônica. “Antes do advento do computador”, argumenta Santaella, “as máquinas não passavam de
robôs acéfalos, puramente musculares. O computador veio lhes trazer um pouco de cérebro para seus
músculos embrutecidos” (1997, p. 36).

Em 1980, Robert Taylor já previa a relevância da informática para a educação ao afirmar que
no futuro o computador iria exercer um papel central na aprendizagem humana, embora não lhe fosse
possível prever exatamente como a informática estaria inserida no currículo escolar. Segundo o autor,
poucas pessoas fora da restrita comunidade de estudiosos em computação poderiam prever exatamente
a função do computador no ensino das próximas gerações devido à velocidade das inovações
tecnológicas e à escassez de publicações sobre experiências didáticas.

Atualmente, as inovações prosseguem, tanto em hardware quanto em software, e inúmeras


obras e periódicos sobre informática educacional já apontam empregos bem-sucedidos do computador
na educação, sobretudo nos países do primeiro mundo. Talvez esse sucesso decorra simplesmente da
motivação pelo uso da tecnologia126, ou seja inerente ao canal, pois as reações das pessoas sobre o que
ouvem, vêem ou lêem, segundo Burne e Briggs (2004), dependem, em parte, da mídia em que a
informação é veiculada. Balajthy (1982) alerta que abordagens de ensino por computador podem ter um
impacto positivo pelo simples fato de que qualquer inovação no ambiente escolar motiva alunos e
professores. Smith (1996), por outro lado, diz que as inúmeras formas de divulgação da cultura já não

126
A palavra “tecnologia” foi introduzida nos EUA em 1828, época em que o termo “revolução industrial” era empregado na
França pela primeira vez (BRIGGS; BURKE, 2004, p. 122).
151

causam mais impacto algum no receptor, para quem é indiferente se uma informação é obtida através
de bites ou de um meio tradicional. Seja como for, a aproximação entre informática e pedagogia
paulatinamente tem sensibilizado alunos e professores com a possibilidade de aulas mais dinâmicas e
interessantes, capazes de propiciar uma aprendizagem efetiva.
152

O livro de Taylor, The Computer in the school: tutor, tool, tutee, publicado em 1980, tornou-se
um marco na história da informatização do ensino. Como o título sugere, nele são apresentadas três
formas didáticas de emprego do computador, as quais descrevem sua utilização nas escolas ao longo
dos últimos anos: como tutor, como ferramenta e como aprendiz.

Como tutor, o computador apresenta conteúdos previamente organizados pelo professor e/ou
equipe multidisciplinar. Ambientes multimídia e tutoriais flexíveis permitem ao aluno explorar o
assunto segundo seu próprio ritmo de compreensão; programas de instrução programada têm uma
apresentação fixa do conteúdo, seguida por testes que determinam o prosseguimento do assunto
conforme o desempenho do aluno. Essa abordagem é criticada por não propiciar a resolução de
problemas e não estimular a criatividade (DWYER, 1980). De fato, muitos programas educativos
negligenciam o desenvolvimento dessas habilidades, explorando exercícios de repetição e prática,
estudo dirigido e testes baseados em uma concepção mecanicista da aprendizagem. Atualmente há
muitos programas tutoriais em CD-ROM disponíveis no mercado para o ensino de praticamente todas
as disciplinas, inclusive literatura. Desde que inseridos no currículo como um complemento das
atividades didáticas, tais programas podem trazer uma contribuição satisfatória para a aprendizagem.

Como ferramenta, o computador é empregado pelo aluno para pesquisas na Internet e para
produção de documentos variados como textos, partituras, desenhos, mapas, gráficos, planilhas,
apresentações em hipertextos etc. Segundo Dwyer (1980), trata-se da abordagem mais eficaz por
viabilizar a realização de tarefas que estimulam a criatividade, o pensamento crítico e exigem a tomada
de decisão para resolução de problemas nas diversas áreas do conhecimento. A proposta de criação de
um hipertexto on-line para leitura da poesia de Emily Dickinson e Cecília Meireles se inclui nesse
emprego do computador como ferramenta didática.

Como aprendiz, o computador é programado pelo aluno para executar tarefas e rotinas
específicas, criar páginas na Internet ou produzir jogos educacionais. Em face da sofisticação crescente
dos computadores, trata-se de um emprego hoje cada vez mais restrito a cursos técnicos na área de
informática por exigir o conhecimento de linguagens de programação. Para Taylor (1980), essa
abordagem transpõe o foco do ensino do produto final para o processo e traz algumas vantagens
educacionais: enquanto o aluno percebe mais nitidamente o desenvolvimento das suas idéias e a
organização do seu pensamento, o professor observa como ele interage com o computador e a forma
como são vencidas as várias etapas até o domínio total da linguagem de programação.
153

Dwyer (1980) adverte que, ao usarmos o computador no ensino, devemos lembrar as teorias
educacionais de Aristóteles, Dewey, Piaget, Rogers, Illich e Papert, entre outras, segundo as quais, a
educação deve estar vinculada ao ideal de liberdade e desenvolvimento do potencial humano. Em
outras palavras, a educação deve garantir que o indivíduo controle seus próprios impulsos para melhor
interagir com o ambiente em termos sociais, físicos e econômicos. Nesse sentido, o computador é uma
ferramenta valiosa com a qual o homem pode buscar seu autocontrole e o controle do mundo que o
cerca. Para tanto, a escola deve ensinar o aluno a conviver com o erro, testar hipóteses e resolver
problemas.

A instrução programada, na opinião de Dwyer (1980), não reflete aspectos do desenvolvimento


mental do indivíduo, tolhendo a busca para a construção do conhecimento. Por essa razão, ele defende
o emprego do computador para a pesquisa, que permite ao aluno aprender a partir da investigação,
traduzindo a necessidade do espírito humano de questionar a realidade.

A esse respeito, Papert (1980) comenta que quando a tecnologia é usada na escola para
estimular o desenvolvimento de projetos e a execução e pesquisas, o aluno adquire um domínio mais
articulado do mundo, uma percepção mais aguçada da aplicação do conhecimento e uma imagem
autoconfiante de si mesmo como agente intelectual. Em resumo, Papert acredita, como Dewey,
Montessori e Piaget, que o estudante aprende fazendo e pensando no que faz. O computador, portanto,
deve ser um instrumento para viabilizar a educação inovadora, voltada para projetos de pesquisa que
priorizem a articulação do trabalho intelectual com a realidade. Tecnologia em educação, nesse
sentido, não significa inventar novos instrumentos para ensinar velhos conteúdos, através de versões
disfarçadas de antigas abordagens.

Cabe às instituições de ensino criar ambientes computacionais que estimulem o aluno a usar a
intuição e o pensamento crítico, a despeito de programas governamentais que, muitas vezes, impõem
uma percepção distorcida das necessidades do educando. Projetos educacionais devem ter uma duração
adequada para propiciar o envolvimento pessoal, intelectual e emocional do aluno. Se o crescimento
intelectual, para Dewey (1980) depende das situações didáticas vivenciadas em sala de aula, a questão
reside em usar a informática para proporcionar aos educandos o maior número possível de experiências
ricas e significativas. Afinal, hoje sabemos que “as relações do homem com o mundo não são mais as
mesmas depois que a revolução da informática e das comunicações nos coloca diante do numérico, da
inteligência artificial, da realidade virtual, da robótica e de outros inventos” (DOMINGUES, 1997, p. 17).
Desenvolver programas segundo os interesses e habilidades do aluno parece ser, portanto, um passo
fundamental para que a escola possa caminhar em consonância com as novas tecnologias.
154

Há muitas razões para acreditarmos na relevância do computador para o ensino; entre elas, a
importância da leitura e da escrita como formas centrais de comunicação após o advento da
informática, e a necessidade de letramento digital, que significa familiarizar os alunos com a nova
tecnologia para que eles possam explorar o potencial de máquinas e programas e conheçam as
implicações de seu uso (BALAJTHY, 1982, p. 8). É esse o tópico que abordaremos a seguir.
155

4.4 Letramento digital

Nos primórdios da humanidade, as bibliotecas ficavam nos templos127 e guardavam segredos


tão sofísticos quanto os desígnios dos deuses, pois ler e escrever eram mistérios apenas revelados a
sacerdotes e escribas. A leitura ainda era um privilégio de poucos quando a eloqüência dos filósofos na
Grécia Antiga e posteriormente os sermões dos padres na Idade Média tornavam o conhecimento
acessível aos leigos. Com a invenção da prensa gráfica em 1450 e a diminuição do analfabetismo, a
cultura oral passou a ser impressa e lida. No séc. XX, a chegada dos computadores trouxe a
necessidade de uma outra forma de letramento – o domínio da linguagem da informática.

Nos anos 80, a definição de “alfabetização” como um processo desenvolvido cognitivamente


através do pensamento verbal e visual passou a incluir alfabetização oral (saber ouvir e falar),
alfabetização textual (ler e escrever), alfabetização visual (compreender e criar imagens) e alfabetização
em informática. Ser alfabetizado não mais pode significar ser capaz de assinar o próprio nome ou
responder um teste de múltipla escolha. Ler, escrever, pensar, formular opiniões e aprender
continuamente são habilidades essenciais nos dias de hoje.

Ao lado dos conceitos de alfabetização oral e escrita, a noção de letramento em informática


inclui alfabetização gráfica e visual. A habilidade de criar, comunicar e dar prosseguimento a análises
críticas usando um computador e interfaces128 é uma expectativa crescente no mercado de trabalho.
Luehrmann (1980) advoga que, como a leitura e a escrita, a informática constitui uma nova ferramenta
intelectual. Saber lidar com computadores hoje é uma exigência do mundo contemporâneo que a
escola não pode ignorar, sob pena de formar alunos para os quais não haverá empregos no futuro.

Ao sairmos da era industrial para os primeiros anos da era da informação, surgiu uma
economia baseada em dados, e não apenas em bens e serviços. Conhecimento (cognição) e capacidade
para aprender (metacognição) aumentaram em importância e significado. Duas tendências foram,
então, marcantes para o ensino: a aceleração da tecnologia e a expansão da informação disponível para
pesquisa, seleção e análise. A aceleração da tecnologia fez com que a comunicação e a aplicação da
informação, sobretudo no campo da ciência, fossem rapidamente disseminadas. Ainda na década de 60,
a Universidade da Grã-Bretanha foi pioneira em recrutar estudantes para aprendizado a longa distância.

127
Tiglath-Pileser I, rei da Assíria (séc. XII a.C.), parece ter sido o primeiro a fundar uma biblioteca, cujo acervo em placas
de argila com caracteres cuneiformes foi encontrado nas ruínas do Templo de Assur, deus supremo dos assírios.
128
“Quando falamos em interfaces temos de pensar em contatos de superfícies diferentes que se conectam de alguma forma,
fazendo que corpos diferentes partilhem de uma mesma decisão” (DOMINGUES, 1997, p. 24).
156

Com o advento da Internet, encurtaram-se as fronteiras entre os países, ampliaram-se as


possibilidades de aprendizagem continuada, formal e informal. O mundo tornou-se “um grande
organismo vivo que circula nos vasos comunicantes das redes” (DOMINGUES, 1997, p. 19). Nos
EUA, foram elaborados projetos para universidades sem paredes e escolas sem professores. Passada a
euforia inicial, hoje a Internet é uma ferramenta integrada ao currículo da maioria das escolas e, apesar
da opinião de alguns conservadores, oferece oportunidades didáticas tão estimulantes quanto o acesso a
aparelhos de TV no final dos anos 20 e a computadores pessoais na década de 80.

Para participar de uma sociedade rica em tecnologia digital, o indivíduo deve saber selecionar
informação pertinente, significativa e relevante para a solução de problemas, ser capaz de elaborar e
testar hipóteses, analisar e integrar dados, avaliar os resultados, organizar e comunicar seus
pensamentos e opiniões para formar o novo saber. Logo, como professores, devemos familiarizar os
alunos com o computador e desenvolver abordagens que priorizem uma postura crítica diante da
realidade, ao mesmo tempo em que favoreçam a cooperação e o acesso à informação para a produção
do saber. O progresso intelectual dos alunos pressupõe a elaboração de projetos em hipermídia,
envolvendo a combinação de idéias, símbolos e abstrações.

A educação precisa formar indivíduos alfabetizados em informática, embora o receio de


experimentar computadores e software leve alguns educadores a retardar o acesso dos alunos aos
benefícios da informática. Essa postura diante do computador lembra o pudor e mesmo o respeito que,
no princípio da era moderna (1450-1789), talvez devido à escassez de publicações, os leitores nutriam
pelo livro, cuja dessacralização só parece ter se iniciado depois de 1750 com o aumento da oferta de
publicações (BRIGGS; BURKE, 2004).

Em detrimento do ceticismo de que ainda é alvo o ensino através da informática, a Sociedade


Internacional para Tecnologia em Educação (ISTE) recomenda, entre outros aspectos, uma legislação e
uma política educacional que dêem suporte à pesquisa e à criação de ferramentas educacionais; o
desenvolvimento de técnicas de ensino que reflitam a aprendizagem por meio da tecnologia; e a
capacitação e formação de docentes que lidem com recursos tecnológicos. A tecnologia, portanto,
precisa ser integrada ao currículo para propiciar novas oportunidades de aprendizagem, o
desenvolvimento do pensamento crítico e de estilos pessoais de aprendizagem. Os ambientes
educacionais devem permitir o contato com diferentes aspectos da tecnologia, oportunidades criativas
de aprendizagem, além de acesso a informações variadas. Os estudantes precisam saber se comunicar
através da Internet e manipular softwares para realização de tarefas. Reestruturar o currículo,
introduzindo o computador como um veículo para a aprendizagem é imprescindível para garantir
157

maiores oportunidades para os educandos. Além disso, a Internet disponibiliza para professores e
alunos uma vasta rede de informação, a despeito de barreiras físicas, geográficas ou temporais.

Cabe ao professor planejar as aulas de forma que o computador não seja um fim em si mesmo,
mas um meio para a construção do saber. Para isso, deve verificar quais objetivos podem ser
alcançados através do computador e quais podem ser atingidos melhor e mais eficientemente através de
outros meios. Considerando-se o emprego da informática na sociedade contemporânea, o currículo de
cada disciplina pode vir a ser ampliado ou reduzido conforme as habilidades exigidas pelo mercado de
trabalho ou pela vida acadêmica. Objetivos que estimulem as habilidades de pensar, resolver
problemas, ler, interpretar e iniciar a própria aprendizagem devem ser realçados.

Uma vez que os computadores oferecem infinitas oportunidades para experiências valiosas de
aprendizagem, os sistemas educacionais estão instituindo currículos que priorizam a alfabetização em
informática desde as séries iniciais. Acredita-se que a realização de tarefas escolares através de
computadores garanta uma base sólida para aprendizagens posteriores na vida acadêmica ou
profissional, graças ao conhecimento adquirido e à familiaridade com a informática. A presença da
informática no ensino faz com que o aluno perceba naturalmente a versatilidade do computador como
ferramenta para realização de pesquisas e manipulação de dados nas várias áreas do saber. Tal
emprego desmistifica a máquina, que deixa de ser um enigma tecnológico, sobretudo para alunos que
não têm acesso à informática fora da escola, tornando-a uma ferramenta fácil de manusear e flexível à
demanda das diversas disciplinas, inclusive literatura.

4.5 Hipertextos

O Egito e a Mesopotâmia, terras banhadas por grandes rios, testemunharam os primeiros


registros da civilização: a escrita. Os sumérios, que viveram ao sul da Mesopotâmia, deixaram
inscrições cuneiformes em placas de argila que datam de 3000 a.C. E em Tell Brak, na Síria, foram
encontradas duas plaquetas de formato vagamente retangular, datadas de 4000 a.C., época em que “os
desertos eram verdes” (MANGUEL, 1997, p. 41). Os babilônicos, os assírios e povos da Síria e da Ásia
Menor adaptaram os sinais cuneiformes às necessidades de seus idiomas, atribuindo-lhes novos sons e
significados (CASSON, 2002). Desde então documentos são organizados de forma linear como veículos
de informação, cultura e ciência. A Psicologia, contudo, já revelou que o pensamento humano se
processa de forma associativa e que a informação é armazenada na mente de maneira não-seqüencial,
158

formando uma intricada estrutura de trilhas. Conjuntos de neurônios ou mapas129, que se comunicam
através de um sistema de conexões (laços dentro de laços), guardam qualidades sensoriais ou cognitivas
dos objetos, tornando possível a construção de conceitos perceptivos complexos.
Embora o computador imite e simule os processos mentais, o cérebro, ao contrário do
computador, é um processador analógico, ou seja, não usa a lógica predicativa de um chip, funcionando
por metáfora e analogia:

Relaciona objetos completos uns com os outros e procura estabelecer as semelhanças, diferenças
ou tipos de ligações existentes entre eles. Não procede à montagem de pensamentos e sentimentos
a partir de pequenos fragmentos de dados (RATEY, 2002, p. 13).

Esse conhecimento estimulou a criação de mecanismos não-lineares para armazenamento e obtenção


de informação a partir de relações de analogia130, culminando com o surgimento do hipertexto. A idéia
de interligar assuntos correlatos, abordados por autores distintos, tal como se vê nos hipertextos que
compõem as páginas da Internet, é acalentada pela humanidade há muito tempo.

Com as primeiras bibliotecas surgiram sistemas para compilar e localizar informação. Na


Biblioteca de Alexandria, que guardava aproximadamente meio milhão de rolos de papiro, antes de ser
parcialmente catalogada por Calímaco de Cirene, era impossível a um leitor encontrar determinado
título, a não ser pelo mero acaso131 (MANGUEL, 1997). Arquivos e catálogos têm sido elaborados ao
longo da história das bibliotecas para permitir que seus leitores encontrem livros e artigos em revistas e
jornais a partir dos critérios de assunto, título ou autor. Os catálogos da Biblioteca de Alexandria, por
exemplo, tornaram-se modelos para bibliotecas na Roma imperial, no Oriente bizantino e, depois, na
Europa cristã.

No século XVII, Samuel Hartlib (1600-1662) fez um grande esforço para organizar uma vasta
base de dados abrangendo todo o conhecimento europeu. Seus manuscritos remanescentes, que
compreendem documentos interconectados, estão atualmente guardados na Biblioteca da Universidade
de Sheffield. Sistemas de hipertexto, portanto, representam a realização de uma busca antiga pela
conectividade e associação do conhecimento em larga escala.

129
Gerald Edelman criou o conceito de sinalização reentrante para definir a comunicação entre mapas cerebrais que nos
permite construir conceitos perceptivos complexos a partir de conexões para categorias distintas de informação.
130
Uma vez que a analogia é a base da metáfora, processo que caracteriza a linguagem poética, o hipertexto revela-se um
instrumento adequado para o estudo de poesia.
131
Aristóteles foi o primeiro a reunir uma vasta coleção de livros no Egito, tendo ensinado os reis a organizar uma biblioteca;
mas deve-se a Calímaco a disposição dos exemplares por assunto e em ordem alfabética.
159

O final do séc. XVIII foi marcado por uma revolução na leitura, facilitada pela redução do
tamanho dos livros132, com o surgimento da prática de folhear, passar a vista no texto, consultar
capítulos alternados e buscar uma informação específica. Os textos eram cada vez mais divididos em
capítulos e parágrafos, contendo notas de resumo impressas nas margens, sumários detalhados e índices
em ordem alfabética para facilitar o acesso à informação.

A leitura com o propósito de referência, por sua vez, é uma prática consagrada nos círculos
acadêmicos desde o final da Idade Média. A consulta a textos anteriores para pesquisa ou análise fez
com que referências extratextuais fossem indicadas nas obras através de notas de rodapé, notas no final
dos capítulos e bibliografia final. De sorte que a escrita não-linear paulatinamente foi incorporada ao
texto impresso, permitindo ao autor associar informações correlatas, como referências em determinado
ponto de um trabalho a outros trechos do mesmo documento ou a outras publicações sobre o mesmo
assunto. Essa necessidade de relacionar textos impressos a documentos suplementares e permitir a
leitura e a escrita não-seqüencial deu origem ao conceito de hipertexto.

A grosso modo, a idéia de material impresso não-linear é antiga. Dicionários, enciclopédias,


catálogos, manuais de referência e a própria Bíblia133, por exemplo, não são textos elaborados para
serem lidos seqüencialmente, do início ao fim. A leitura desses documentos pressupõe a consulta por
ordem alfabética ou a partir de índices, glossários e capítulos, que são mecanismos eficientes para
categorizar e filtrar a informação. Para acessar dados em um livro, o leitor faz uso de recursos de
referência, como prefácio, sumário, glossário, divisão em capítulos, títulos e subtítulos de seções.
Publicações acadêmicas fornecem mecanismos para localização de informação como resumo, abstract,
introdução, conclusão, bibliografias e notas, que permitem ao leitor encontrar assuntos específicos.
Trabalhos artísticos, por sua vez, exploram temas e conceitos desenvolvidos por outras manifestações
culturais a que os artistas fazem alusões implícitas ou explícitas. A intertextualidade, aspecto central nos
hipertextos, é subjacente a toda produção intelectual da humanidade.

Vannevar Bush, diretor da Agência de Pesquisa Científica e Desenvolvimento no governo de


Franklin Roosevelt, idealizou um sistema mecânico, baseado no processo da cognição humana, capaz
de organizar a informação tal como ocorre na memória, por associação de conceitos correlatos. No
artigo “Como podemos pensar”, publicado em julho de 1945, no jornal Atlantic Monthly, Bush
descreveu um precursor do hipertexto. Sua invenção, denominada Memex (Memory Extender –

132
Nas igrejas, a partir do séc. V, livros imensos (missais, corais, antifonários), com letras enormes, eram postos no meio do
coro para que fossem lidos pelos fiéis a vários metros de distância.
133
Primeiro texto impresso com tipos por Gutenberg entre 1450 e 1455.
160

Ampliador de Memória), era uma máquina para escrita e leitura, que permitiria aos cientistas guardar
informação em microfilmes e acessá-la de forma não-linear. Bush tinha por objetivo preservar os dados
resultantes das pesquisas científicas durante a II Guerra Mundial, em face da inadequação dos
mecanismos de armazenamento de informação existentes na época. Pretendia usar a tecnologia
disponível na ocasião (microfilme, facsimile, fotocélula e telégrafo) para arquivar uma grande
quantidade de dados em uma escrivaninha, acessada através de alavancas. A construção de seu
engenho, contudo, não pôde ser levada a cabo devido à falta de recursos tecnológicos adequados
(WOODHEAD, 1991).

Outro pioneiro foi Theodore Nelson, que em 1965 criou ferramentas para administração de
informação a que denominou “hipertextos”, tendo sido o primeiro a propor alguns dos recursos hoje
usados em hiperdocumentos. Trabalhou no Projeto Xanadu em 1970, um sistema de hipertexto por ele
definido como uma “biblioteca universal”. Em um artigo publicado na ocasião, criticou os softwares de
instrução programada e afirmou que o hipertexto oferecia melhores oportunidades de aprendizagem ao
mesmo tempo em que facilitava o processo de cognição (SHNEIDERMAN, KEARSLEY, 1989, p. 100).

Em 1968, Douglas Engelbart desenvolveu e implementou as idéias de Bush no Instituto de


Pesquisas de Stanford, criando o primeiro hipertexto, NSL (On-line System – Sistema On-line).
Posteriormente trabalhou em outro ambiente de hipertexto também estruturado a partir de uma base de
dados, o Augment System (Sistema de Aumento), composto por uma rede de textos fragmentados e
interligados, cuja finalidade era ampliar o intelecto humano.

Desde o surgimento dos ambientes de hipertexto, algumas universidades realizaram pesquisas


sobre seu valor educacional. O Instituto para Pesquisa e Cultura (IRIS) na Universidade Brown foi uma
das primeiras instituições a desenvolver e testar hipertextos off-line. Sob a supervisão de Andries Van
Dam alguns dos primeiros sistemas de hipertextos foram projetados, entre os quais: o Sistema de
Edição em Hipertexto (1968), o Sistema de Edição e Consulta a Arquivos – FRESS (1969-1982), o
Sistema de Documentos Eletrônicos (1982), o Animador e Simulador de Algoritmos da Universidade
Brown - BALSA (1983) e o INTERMEDIA nos anos 80. A Universidade Carnegie-Mellon desenvolveu
ZOG, um dos mais populares sistemas de hipertextos dos anos 70. Essa base de dados textuais podia
ser consultada simultaneamente por vários leitores e era aplicada à teleconferência e ao treinamento
assistido por computador. A Universidade de Maryland também foi pioneira na produção de
hipertextos educacionais. O HYPERTIES (Hipertexto Baseado no Sistema de Enciclopédia Interativa),
desenvolvido por Ben Shneiderman, era bastante versátil, tendo sido usado em exposições de museus,
manuais de instrução, bancos de dados de bibliotecas etc.
161

HYPERCARD, um sistema criado por Bill Atkinson e lançado pela Apple in 1987, é um dos
hipertextos mais populares entre educadores por ser de fácil interação e oferecer recursos de autoria
para iniciantes. NOTECARDS, desenvolvido em 1987, no Centro de Pesquisa da Xerox em Palo Alto,
fora inicialmente apenas um projeto experimental antes de ser comercializado como uma ferramenta
para leitura, categorização, interpretação, produção escrita e projetos cooperativos, evolvendo textos,
gráficos, programas, imagens e vídeo.

De acordo com Maenza (1994), outros sistemas de hipertexto off-line foram também
produzidos com fins educacionais: Domesday Advanced Interactive Videodisc (1985-1987), Guide
(1986), Hitch-Hiker’s Guide (1988), Tutor-Teach (1988) , Linkway (1989) , HyperStudio (1989),
SuperCard (1989), HyperScreen (1990) e Toolbook (1990).

Até meados de 1980, a tecnologia de hipertextos permaneceu restrita a laboratórios de


pesquisa. Somente a partir de 1985, a ferramenta começou a ser divulgada comercialmente, fora do
círculo restrito de pesquisadores e laboratórios de universidades. Atualmente, a linguagem de hipertexto
(HTML) é empregada para a construção de sites na Internet, em que inúmeros documentos estão
interligados, e em softwares de autoria, como o HyperStudio, que simula ambientes on-line e permite
acesso não-linear à informação. Há hipertextos desenvolvidos para fins comerciais como catálogos de
produtos e para fins educativos, como dicionários, enciclopédias, cursos e livros virtuais.

Desde que os hipertextos passaram a ser comercializados e usados na educação, várias


definições foram propostas por técnicos e educadores, na tentativa de expressar o potencial de tais
sistemas como ferramentas úteis para armazenamento de informação e aprendizagem.

4.5.1 O conceito de hipertexto

Há mais de trinta anos se discute o papel do hipertexto como uma ferramenta para manipulação
de informação. Definições distintas têm sido apresentadas conforme os autores enfatizem um ou outro
aspecto.

Em 1985, Yankelovich et al. (apud SUTHERLAND, 1994), em uma das primeiras definições de
hipertexto, afirmam que a rede de documentos interligados é um elemento central na base de dados,
cujo acesso através de links permite ao leitor visualizar um mapa conceitual do assunto.

Em 1986, Yankelovich (apud KAHN, 1988) define o hipertexto como um sistema que possibilita
ao autor: 1) conectar informação, 2) criar caminhos em um corpus de material relacionado, 3) tecer
comentários sobre textos, 4) indicar dados bibliográficos, 5) e remeter o leitor a um texto de referência.
162

A característica principal do hipertexto é, portanto, a associação de textos correlatos em uma mesma


base de dados.

Conklin (apud MARCHIONINI, 1988) explica que o hipertexto é um meio computacional, capaz
de veicular o pensamento e a comunicação, dando suporte pedagógico à leitura e à escrita. O autor,
como outros defensores do hipertexto, argumenta que o ambiente baseia-se no processo associativo da
memória humana e, portanto, facilita a retenção da informação e desenvolve a inteligência.

Segundo Marchionini (1988), o hipertexto envolve o acesso randômico de documentos, o qual


supera a seqüência linear do texto impresso, oferecendo novas possibilidades de leitura. Em sua
opinião, é um ambiente flexível que permite a manipulação da informação de acordo com o interesse e
a necessidade do leitor.

A definição proposta por Jonassen (1988) também focaliza a natureza não-seqüencial da leitura
em hipertextos, realçando a liberdade do aluno em acessar a informação. Para ele, o hipertexto facilita a
compreensão ao dar ao leitor o controle da seqüência e do ritmo de apresentação do texto.
A aprendizagem, por sua vez, consiste na reorganização de estruturas do conhecimento, que refletem a
associação de idéias na memória. Em sua opinião, a eficácia do hipertexto como ferramenta didática
reside no fato de que a organização da informação em redes corresponde à estrutura mental do leitor,
segundo os princípios da psicologia cognitiva:

O hipertexto é um documento dinâmico ou não-linear. (...) No hipertexto, os leitores não são


tolhidos pela estrutura do assunto ou pela organização textual. Uma vez que a estrutura do
conhecimento de cada indivíduo é única, baseada em um conjunto de experiências e habilidades, a
forma como cada pessoa prefere acessar e inter-relacionar a informação é também distinta. Para
que o texto se acomode ao leitor, e não o leitor ao texto ou à sua estrutura implícita, a estrutura do
texto deve estar sob o controle do leitor (JONASSEN, 1988, p. 13-14).
Parsaye et al. (apud MAENZA, 1994) descreve o hipertexto como um ambiente baseado na
criação e representação de links entre documentos distintos, os quais o usuário acessa ao navegar a base
de dados, determinando caminhos específicos de leitura.

Shneiderman e Kearsley (1989) definem o hipertexto como um banco de dados, composto por
textos não-lineares, entre os quais há referências cruzadas, que permitem ao usuário saltar de um ponto
a outro. Esses recursos, que tornam o processo de leitura ou escrita não-seqüencial, fazem do hipertexto
um instrumento eficaz para armazenar e consultar informação.

Nielsen (apud SMITH, 1993) comenta que o hipertexto é uma ferramenta para a leitura não-
seqüencial, em que diferentes percursos textuais são apresentados ao leitor. O autor expande a definição
usual de que o sistema é um banco de textos, incluindo, sob o mesmo rótulo, outras mídias como
163

imagem e som. Nielsen diz que é irreal definir o hipertexto apenas como uma rede de textos
interconectados, uma vez que outros recursos podem integrar o sistema.

Layman e Hall (1991, p. 114) afirmam que uma rede de documentos interligados é a principal
característica do hipertexto, mas não se referem à natureza dos documentos que compõem a base de
dados:

Um sistema de hipertexto permite aos autores ou grupos de autores conectar informação, criar
caminhos de leitura através de textos correlacionados, acrescentar notas a textos já existentes, criar
referências que remetem os leitores para unidades de informação no próprio texto ou em textos
distintos, produzindo uma base de dados com documentos e links, os quais podem guiar os leitores
por um percurso de leitura particular ou fornecer opções diversas para leitura da informação.
Johnson-Eilola (1994) também não alude a multimeios, enfatizando a ordem não-seqüencial
dos textos interconectados. Descreve o hipertexto como uma rede de segmentos de textos interligados,
que o leitor pode acessar na ordem em que preferir. Embora essa idéia da manipulação aleatória de
dados esteja presente em várias definições de hipertexto, os autores não parecem concordar quanto aos
tipos de documentos estruturados.

Slatin (1991) define o hipertexto como uma reunião de documentos (textos, imagens e sons)
conectados eletronicamente por links, formando um sistema computacional.

Smith (1993, p. 1) prefere o termo “hipermídia” para descrever uma base de dados em que
vários tipos de mídia (textos, gráficos, áudio e vídeo) estão interligados. Diante dessa oscilação
terminológica, os termos “hipertexto” e “hipermídia” são empregados indistintamente em relação a
sistemas de textos que incluem multimeios.

Bourne (apud SMITH, 1993) e Xavier (2004, p. 171) entendem por o “hipertexto” uma rede de
documentos interligados, entre os quais há textos, gráficos, sons e vídeo. Xavier define o hipertexto
como “uma forma híbrida, dinâmica e flexível de linguagem que dialoga com outras interfaces
semióticas, adiciona e acondiciona à sua superfície formas outras de textualidade”.

Maenza (1994, p. 30) faz distinção entre os termos “hipertexto” e “hipermídia”, afirmando que o
primeiro compreende textos e imagens fixas, enquanto o segundo reúne textos, áudio, vídeo e software.

Poole (1995, p. 342) distingue hipertexto de hipermídia e aponta as principais características


desses sistemas:

Sistemas de hipertexto são redes intrincadas de dados eletrônicos semelhantes à rede neural a que
chamamos cérebro. (...) Um sistema de hipertexto é elaborado para que o usuário possa saltar de
um item a outro em uma ordem semi-randômica, não-linear. (...) Com modernos sistemas de
164

hipertexto, o usuário tem acesso não-linear a uma ampla base de dados de material multimídia –
texto, imagem estática, vídeo, música e sons em geral. Eis a origem do termo hipermídia.
Acreditamos que a importância de distinguir-se “hipertexto” de “hipermídia” reside no fato de
que o emprego didático dessas ferramentas é determinado por recursos específicos de programação,
como a possibilidade de reunir-se apenas materiais impressos (textos e ilustrações) ou documentos
sujeitos a seqüências temporais de apresentação (vídeo e áudio). Nesta pesquisa, usaremos o termo
“hipertexto” para nos referirmos a bases de dados não-lineares, envolvendo quaisquer tipos de mídia,
em ambientes off-line ou on-line.

Definido o hipertexto, é importante compreendermos seu funcionamento para melhor


dimensionarmos seu potencial didático.

4.5.2 Componentes de um hipertexto

Três componentes integram um hipertexto: documentos, botões e links. Textos, imagens fixas,
vídeos e gravações denominam-se documentos. Cada documento associa-se a outros através de
enlaces, cujo número varia dependendo da extensão dos documentos. Cada link vincula um par de
documentos ou blocos de informação, definindo a estrutura do hipertexto. Cavalcante (2004) explica
que esses blocos tanto podem indicar relações sêmicas quanto redefinir o horizonte de leitura,
remetendo o leitor para textos de natureza diversa.

Os botões permitem a navegação de um documento a outro, a consulta à página inicial e a


exploração de diversas ligações. Cada botão é o ponto inicial de uma referência, identificado como uma
região sensível do mouse, que ganha destaque na tela através da cor ou da formatação da letra. Um
botão pode recair sobre uma palavra, um grupo de palavras, uma área de um gráfico ou diagrama, um
ícone, um título de secção etc. Ao ser acionado um botão, fecha-se uma janela e/ou abre-se uma nova,
revelando seu conteúdo.

O destino de uma ligação pode ser um texto, um parágrafo, uma imagem, um programa
executável, uma seqüência de som, um filme, uma referência bibliográfica e, no caso de hipertexto on-
line, um documento de outro site.

Há três formas de apresentação de um hipertexto: 1) a tela exibe um documento de cada vez;


2) há justaposição de documentos em uma mesma tela, cada um dos quais ocupa uma janela distinta;
3) dois documentos aparecem juntos, representando duas páginas consecutivas de um livro aberto.
165

Há janelas do tipo pop-up, que são ativadas por botões somente enquanto o mouse estiver
posicionado. Nesse caso, a tela exibe simultaneamente a informação-fonte e o texto suplementar. Uma
janela pode ocupar uma área fixa na tela ou mais de uma tela. Nesse último caso, o usuário deve
utilizar um mecanismo de deslocamento para acessar seu conteúdo.

4.5.3 Interfaces

Interface é a forma de apresentação de um software ou site na tela do computador em termos


de aspectos visuais e recursos para acesso à informação. A interface deve ser simples o bastante para
ser usada por leigos, apresentar um tempo de resposta curto para ativação de documentos e evitar a
sobrecarga cognitiva134 para o usuário. Toda interface apresenta dispositivos de entrada (mouse e telas
sensíveis ao toque) e dispositivos de saída (telas simples e de alta resolução). Deve haver
homogeneidade no desenho de botões e ícones e na seleção de cores para fontes, segundo plano e
janelas (projeção de documentos na tela).

Sistemas de janelas múltiplas devem permitir que o usuário controle o tamanho, a posição e o
fechamento das janelas sempre que necessário. Evita-se, assim, a sobrecarga cognitiva, causada pelo
excesso de documentos justapostos ou sobrepostos na tela.

A possibilidade de leitura não-linear do hipertexto, dependendo do número de botões e do grau


de experiência do usuário, pode gerar dificuldades de compreensão ou de orientação. Uma ferramenta
que pode ser acionada para minimizar esse problema é o backtrack. Trata-se de um recurso de
navegação que permite o mapeamento do caminho percorrido pelo leitor até determinado documento.
Ao utilizar esse mecanismo, o usuário tem acesso aos links na ordem inversa de seu percurso original,
podendo rever os textos já consultados.

Uma vez definido o funcionamento básico do hipertexto, veremos a seguir o papel da Internet e
da Web na publicação, interconexão e consulta de hipertextos on-line.

134
Esforço adicional do leitor para coordenar as conexões entre documentos, sobretudo se o hipertexto compreende uma rede
complexa de links.
166

4.6 Internet

Em Os Habitantes da Floresta, Thomas Hardy (1840-1928) comenta que “os trajetos solitários”
de seus personagens “eram parte da grande rede humana de seres entrelaçando-se em ambos os
hemisférios”, trecho que inspirou Ian Gregor a escrever, em 1974, um estudo sobre o autor, intitulado
“A grande rede”. Ambos pareciam prever o surgimento da Internet, que nos anos 90 redimensionou o
sentido do termo “aldeia global”, introduzido em 1960 por outro visionário, Marshall McLuhan
(BRIGGS; BURKE, 2004, p. 269, 247).

A Internet é um conjunto de computadores interligados, que permite comunicação entre


usuários e transferência de informação de uma máquina para outra. A rede existe em um espaço
virtual imaginário, o ciberespaço, composto de sites onde estão armazenados dados acessíveis via
computador. Cada site na Internet tem um endereço único, localizado em um servidor. Todos os
endereços na rede começam por “http”, que significa “protocolo de transferência de hipertexto”
(hypertext transfer protocol), seguido por “www”, acrograma para “ampla rede mundial” (world wide
web), e pelo nome do servidor que abriga o hipertexto solicitado, por exemplo: http://www.ufpe.br.

Suas origens foram a física e a política de defesa dos EUA, no esteio das pesquisas em
cibernética (kybernein – governo), ciência que surgiu a partir da Segunda Guerra Mundial e cujas
pesquisas determinaram o aparecimento dos primeiros computadores. A rede surgiu em 1968, com
apoio financeiro da ARPA, Administração dos Projetos de Pesquisa Avançada do Departamento de
Defesa dos EUA, criado em 1957 em resposta ao lançamento do Sputinik pelo governo russo.

Inicialmente havia uma rede limitada, a ARPANET, para troca de informação entre
universidades e institutos de pesquisa. Seu objetivo, segundo o Pentágono, era preservar a informação
mesmo que computadores interconectados fossem desligados ou ainda que toda a rede de
comunicações fosse destruída. Na concepção das universidades, a ARPANET garantia aos professores
e pesquisadores livre acesso às pesquisas científicas.

Para ser plenamente viável, o sistema deveria ter uma arquitetura própria, distinta daquela
construída para a rede telefônica. Computadores em diferentes cidades do país foram, então,
conectados em rede para emissão e recebimento de dados. O sistema de envio “fatiava” a informação
em partes codificadas, e o sistema de recepção as reagrupava em “pacotes” de mensagens.

A idéia de blocos de informação foi concebida nos anos 60, entre outros, por Donald Watt
Davis, do Laboratório Nacional de Física da Grã-Bretanha, que empregou, pela primeira vez, a
167

expressão “transferência de pacote”. Também se deve a ele a descoberta de que para conectar
computadores com “faces” (estruturas) e linguagens distintas eram necessários microcomputadores
com função de interfaces, denominados “processadores de mensagem de interfaces”.

Em 1969, essa tecnologia começou a ser usada na Universidade da Califórnia, tornando


possível a total operacionalização da ARPANET em 1971. Quatro anos mais tarde, com o nome de
Darpa, a rede já possuía 2000 usuários, que se comunicavam principalmente através de e-mails135.

Em 1985, a Darpa foi ligada à Rede de Pesquisa da Ciência da Computação (CSNET), grupo
sem fins lucrativos, criado em 1979 com apoio financeiro da Fundação Nacional de Ciência (NSF), que
posteriormente criou uma rede, a NSFNET, para “comunicação avançada, colaboração e troca de
recursos entre pesquisadores geograficamente separados ou isolados” (BRIGGS; BURKE, 2004, p. 311).

Para que a comunicação em rede pudesse crescer em larga escala, criou-se uma infra-estrutura
comercial136. Em 1979, surgiu o CompuServe, do grupo Time/Warner, o primeiro provedor de serviços
comerciais on-line, seguido do American On-line e do Prodigy, provedores rivais, que, em 1993, já
possuíam 3,5 milhões de assinantes. No final dos anos 90, E. M. Noam afirmou que a Internet fora a
maior contribuição da tecnologia para a mídia do séc. XX (apud BRIGGS; BURKE, 2004). Com o
surgimento da Web e a perspectiva de distribuição de dados para todo o mundo, a rede revalidou a
previsão otimista de uma sociedade mais justa, tal como a década de 80 idealizara para a “Era da
Informação” (Smith, 1996, p. 76).

4.6.1 A rede mundial de computadores

Em 1989, Tim Berners-Lee, um inglês que realizava pesquisas no CERN, um instituto europeu
de pesquisas de física de partículas, nas montanhas da Suíça, imaginou uma ampla rede mundial de
computadores, a World Wide Web. Seu projeto era a criação de um espaço virtual onde toda a
informação arquivada em computadores espalhados pelo mundo estivesse disponível para consulta. Tal
hipótese, contudo, não correspondia aos objetivos das redes norte-americanas da época.

Em 1991, David Gelernter, no livro Mirror Worlds, previu a Web, embora sem empregar o
termo. O passo definitivo para o surgimento da rede ocorreu no final de 93 e meados de 94, quando a
linguagem de hipertextos permitiu a criação de uma rede mundial de computadores. A idéia era
permitir que pesquisadores pudessem compartilhar os resultados de seus experimentos através de

135
O símbolo @ (at – em) nos endereços eletrônicos surgiu quando a Internet era restrita aos meios acadêmicos.
136
Em 1986, apareceram as abreviações “com” para comércio, “mil”, para as forças armadas, “ed”, para educação.
168

recursos de multimídia (ilustrações, tabelas, gráficos, sons e vídeos). Tópicos relevantes e/ou correlatos
em um trabalho ou em vários poderiam ser conectados por uma série de elos hipertextuais, como em
um hipertexto off-line. Através de links, indicados por palavras destacadas no texto ou botões simples,
os usuários poderiam atravessar um mesmo documento para ler trechos de seu interesse ou consultar
documentos correlatos.

Esse projeto de uma rede mundial determinou a criação de interfaces de fácil manipulação,
para consulta à base de dados disponível na Internet. Para percorrer os caminhos dessa intricada rede de
informação, foi desenvolvido um programa de navegação capaz de permitir acesso aos documentos
compilados, estabelecer contato com o computador central e transmitir para qualquer terminal, no
formato de hipertexto, um arquivo solicitado.

O programa de navegação, Mosaico, tornou-se a primeira via de acesso para o ciberespaço137,


como um sistema de hipermídia que operava com uma interface gráfica, com janelas, menus e
navegação através de mouse. Esse software foi tão importante para a Internet quanto o Windows foi
para a plataforma DOS. Trouxe para o usuário a possibilidade de pressionar com o mouse um botão
sobre um grupo de palavras ou um ícone, em vez de digitar um comando. Em 1994, surgiu o
Navegador Netscape, que substituiu o programa Mosaico como um meio de pesquisa na Internet.

Hoje o usuário acessa a Internet com a mesma facilidade com que manipula a barra de
ferramentas de um processador de textos, sem que para isso necessite ter conhecimento de linguagem
de programação. A rede é, portanto, um conjunto de aplicativos e interfaces para acessar hipertextos
disponíveis na Internet, segundo o modelo usuário-servidor. Tecnicamente, pode-se afirmar que a Web
é um sistema de distribuição de hipertextos com recursos de mídia (hipermídia).

Os usuários dispõem de browsers, programas de busca, que os ajudam a conectar


computadores distantes, enviando suas solicitações e exibindo os resultados através de palavras,
imagens e links para outras fontes. Tais programas-servidores são usualmente instalados em
computadores possantes para que atendam aos pedidos simultâneos de informação procedentes de
vários usuários.

A metáfora para a rede é o livro. Uma tela na Web é chamada “página”, na qual combinam-se
textos, imagens e links. Em geral, uma página contém mais de uma tela e pode ser consultada através
do elevador, localizado à sua direita. A primeira página do site denomina-se home page. Muitos sites
137
O século XX, afirma Domingues (1997, p. 18), criou um novo conceito de espaço, “mais do que o bidimensional, o
tridimensional ou o arquitetônico, é o ciberespaço, o espaço de computadores, o espaço planetário, o espaço de ambientes
digitais”.
169

na rede são home pages com links. A linguagem de computação usada para criar hiperdocumentos,
como já mencionamos, denomina-se HTML (hypertext mark-up language). Através do sistema, é
possível consultar uma rede de arquivos, saltar de um hiperlink para outro, sem se aprofundar no
conteúdo de nenhum documento específico, ou pesquisar um tópico em determinado assunto,
examinando vários textos correlatos, como em uma biblioteca.

Vale ressaltar que a rede não é a Internet, embora tenha se tornado seu item mais famoso e
popular. A Web é uma convergência de conceitos computacionais para apresentar e conectar
informação dispersa na Internet de forma fácil e acessível. É um sistema de distribuição de informação
em rede, um macroprojeto de hipertexto, que paulatinamente integrou em seu arcabouço conceitual
algumas técnicas da Internet. Feitas essas considerações, é fácil perceber por que razão “World Wide
Web” tornou-se para muitas pessoas um sinônimo do termo “Internet”.

Hoje a rede mundial de computadores é um labirinto de informação tal como o fora a


Biblioteca de Alexandria. E ao contrário da cidade de Londres na Época Vitoriana, a que Dickens (apud
BRIGGS; BURKE, 2004) se refere como “um jornal” em que “tudo está lá e tudo está separado”, na
Internet tudo está interligado através de uma complexa teia de hipertextos, a Web. Como um periódico
de alta circulação ou qualquer outro meio de comunicação em massa, a rede promove o livre tráfego de
idéias138 e o intercâmbio cultural.

Sociedades distintas, que iniciaram suas jornadas históricas separadamente, hoje compartilham
a mesma via expressa de informação. Com uma rede de documentos interligados, disponíveis no
espaço virtual, a Internet faz o mundo adequar-se à definição de Nathaniel Hawthorne – “um
gigantesco nervo de inteligência” (apud BRIGGS; BURKE, 2004, p. 275). Não há, portanto, como negar a
contribuição que Web trouxe para o ensino ao viabilizar a publicação e consulta de hipertextos em
tempo real.

4.7 Informática e ensino de literatura

“O homem passou do espaço das cavernas às videoconferências, à telepresença, à robótica, à


realidade virtual, chegou à arquitetura do ciberespaço139, aos menus eletrônicos, aos CD-ROMS, aos
websites” (DOMINGUES, 1997, p. 29), entretanto, a informática ainda não causou um impacto
significativo no âmbito da literatura como o fez em outras áreas do conhecimento.

138
Em 1983, Sola Pool chamou as mídias de massa de “tecnologias da liberdade”.
139
Kac (apud SANTAELLA, 1997, p. 42) define ciberespaço como um espaço sintético no qual “um ser humano equipado
com hardware apropriado pode atuar tendo por base um feedback visual, acústico e mesmo tátil, obtido de um software.”
170

Salvo algumas propostas pioneiras, pouco mudou, contrariando os prognósticos iniciais: alguns
negativos, como o desaparecimento do livro impresso e o fim da autoria individual nos textos da Web;
outros positivos, como um aumento considerável do número de leitores e a proliferação de novas
formas de expressão escrita. Passados vários anos após a criação do microcomputador e outros tantos
após o surgimento da Internet, não só o livro continua a ser o principal veículo para difusão da
mensagem escrita, como o advento da informática gerou uma enxurrada de publicações impressas em
forma de manuais, dicionários, revistas e jornais. A esse respeito, Manguel (1997, p. 159) tece o
seguinte comentário:
É interessante observar a freqüência com que um avanço tecnológico (...) antes promove do que
elimina aquilo que supostamente deve substituir. (...) Em nosso tempo, a tecnologia dos
computadores e proliferação de livros em CD-ROM não afetaram – até onde mostram as
estatísticas – a produção e venda de livros na antiquada forma de códice.

Recentemente, devido à popularização da rede mundial de computadores e ao


desenvolvimento de ferramentas específicas para a manipulação de textos, surgiram novas perspectivas
na criação, divulgação e consumo de textos literários. Iniciativas como o Projeto Gutenberg, nos
Estados Unidos e o Arquivo de Textos de Oxford, na Inglaterra, são responsáveis por gravações de
clássicos como as obras de Shakespeare e de dicionários contemporâneos como o Roget’s Thesaurus
(MANGUEL, 1997, p. 79).
Livros eletrônicos on-line e softwares para acompanhamento de estratégias de leitura, para
indicação e exploração de relações intertextuais, para análise de dados estilísticos, como incidência de
estruturas sintáticas e emprego de palavras, entre outros, representam a possibilidade de uma revolução
na abordagem de textos literários. Aliados a esses recursos, o aumento da velocidade de acesso aos
sites tem determinado o emprego, cada vez mais freqüente, de multimeios nas páginas de literatura on-
line.
A despeito dessas possibilidades didáticas, relativamente pouco se produziu no país, sobretudo
devido a lacunas na política de informática educacional. Em quase todas as instituições, faltam
equipamentos e/ou software, profissionais aptos a lidar com tecnologia e ações interdisciplinares.
Embora computadores e programas sejam ferramentas complexas, não é preciso que o professor tenha
um vasto conhecimento em informática para que possa explorar seu potencial didático. A inclusão de
computadores nas aulas de literatura requer, antes de tudo, um processo contínuo de capacitação
docente em face das constantes inovações da indústria de software.
De um modo geral, quando há computadores disponíveis, a escola não tem um projeto definido
para produção e/ou aquisição de software, razão por que as incursões dos educadores na informática se
restringem ao uso de processadores de textos e ferramentas simples para elaboração de aulas
expositivas, como o PowerPoint. Julgamos que outros empecilhos para o diálogo entre computação e
171

ensino de literatura são: 1) o arcabouço teórico das duas áreas – uma vinculada às ciências exatas, outra
às humanidades; e 2) a escassez de pesquisa em literatura para elaboração de software.
Em detrimento da oferta de e-books140 e de ferramentas como hipertextos para elaboração de
ambientes on-line e off-line, as aulas de literatura, via de regra, obedecem aos mesmos padrões
tradicionalmente impostos pelo texto impresso, como a leitura linear e a escassez ou ausência de
imagens. Se todos os recursos da informática fossem devidamente explorados e incorporados à prática
pedagógica, o ensino de literatura passaria por uma mudança tão radical quanto a experimentada pela
educação após o advento da prensa gráfica no século XV.
Embora relativamente poucos professores tenham se dedicado nos últimos anos a averiguar o
potencial didático de ambientes virtuais, muitos resultados positivos foram observados, atestando a
relevância da informática para o ensino de literatura, tanto no âmbito da motivação para a leitura quanto
da construção do conhecimento. Alguns softwares exploram estratégias subjacentes à compreensão de
textos141, outros permitem a leitura não-linear, como os hipertextos.
Já foram testadas ferramentas que se mostraram eficazes para o desenvolvimento da habilidade
de leitura, propiciando formas de interação que o texto impresso não viabiliza. A multimodalidade,
característica dos ambientes hipertextuais, por exemplo, permite que um texto literário seja traduzido
em intertextos de linguagens (pintura, música, cinema) e gêneros (poesia, ficção, critica) distintos,
possibilitando ao aluno maiores oportunidades para a apreensão de seu efeito estético, mediante formas
de recepção mais adequadas às suas necessidades e formas de inteligência142:
Esse potencial comunicativo diferenciado pode favorecer a construção de textos e materiais mais
didáticos, já que uma mesma informação pode ser completada, reiterada e mesmo sistematizada ao
ser apresentada ao aprendiz na forma de uma complexo multimodal (BRAGA, 2004, p. 150).
A cada ano, um número maior de textos eletrônicos, entre os quais, obras da literatura mundial,
anais de congressos, dissertações e teses, estão disponíveis em páginas on-line e CDs. A essas
publicações, contudo, só tem acesso um pequeno grupo de leitores das classes mais favorecidas e da
comunidade acadêmica. CDs com mais de 100 livros em língua portuguesa já podem ser adquiridos
em bancas de revistas por preços populares, entretanto, a grande maioria da população de baixa renda,
que tem dificuldade de comprar o livro impresso, não dispõe de computadores pessoais. Além disso, a
notável ausência de artigos em revistas e jornais universitários sobre pesquisa e ensino de literatura por
computador indica que o campo é ainda marginal.

140
Clássicos das literaturas de língua portuguesa e inglesa são facilmente encontrados em CDs, em sites de literatura e em
bibliotecas on-line.
141
Um bom exemplo é o programa Sherlock, produzido no SENAC de São Paulo por uma equipe multidisciplinar
coordenada por David Carraher.
142
De acordo com Antunes (2001), os indivíduos possuem estilos cognitivos distintos ou inteligências múltiplas (musical,
sinestésica, naturalística, interpessoal, intrapessoal, verbal e lógica), cuja exploração através de estratégias de ensino e
materiais diversificados facilita o processo de aprendizagem.
172

A perspectiva de que o texto eletrônico substitua o texto impresso, tal como prevê Patrick
Connor (apud MIALL, 1995), depende dos avanços da informática e das forças culturais que prendem o
leitor ao livro enquanto objeto físico e não apenas como veículo de linguagem. Os livros, diz Manguel
(1997, p. 242-244), são emblemas e símbolos, pois o simples fato de segurá-los sugere um perfil
ideológico, estético ou religioso:
Infligem a seus leitores um simbolismo muito mais complexo do que o de um mero utensílio. A
simples posse de livros implica uma posição social e uma certa riqueza intelectual. (...) Tão
importante é o simbolismo do livro que sua presença ou ausência pode, aos olhos do observador,
dar ou tirar poder intelectual a uma personagem 143.
Talvez por essa razão, em 1313, época em que a alfabetização era praticamente vetada às mulheres,
Giotto, em um dos afrescos que fizera para a capela de Arena, em Pádua, tenha retratado a Virgem
Maria segurando um pequeno livro de oração.
Ademais, desde os tempos remotos, os leitores preferem livros que caibam confortavelmente
em suas mãos. As tabuletas mesopotâmicas, por exemplo, eram blocos quadrados de argila, com cerca
de 7,5 cm de largura, facilmente manuseados; séculos depois, pequenas tabuletas de cera foram usadas
na Grécia e em Roma para cartas particulares (MANGUEL, 1997). E muito antes que se pudesse supor o
acesso a inúmeras obras na tela de um computador, surgiu em 1588 uma máquina de leitura144, que
permitia ao leitor consultar vários livros sem sair do lugar.
É cedo, todavia, para aconselharmos nossos alunos a ler exclusivamente no computador.
Embora já existam laptops tão fáceis de manusear quanto um livro, com telas tão claras e versáteis
quanto uma página impressa, tais recursos só estão ao alcance de uma parcela mínima da população, e
o número de textos disponível eletronicamente (na Internet e em CDs) é ainda pequeno para satisfazer
as exigências de um curso médio ou universitário. As gravações de e-books procedem lentamente dos
clássicos em direção às obras contemporâneas, lentidão infelizmente que é um sinal claro do
conservadorismo de leitores e editores, e das restrições impostas pelos direitos autorais.
Com um laptop e um bom software não parece haver qualquer razão intrínseca para que a
leitura não ocorra na tela em vez de nas páginas de um livro, desde que mais versões eletrônicas sejam
produzidas. No hipertexto, a divisão do conteúdo textual em unidades interconectadas é uma forma de
minimizar as restrições espaciais da apresentação via computador (BRAGA, 2004). Algumas versões de
hipertexto, inclusive, simulam o formato das páginas de um livro a ser consultado mediante um toque
do mouse. Evita-se, assim, o desconforto de visualizar uma parte do texto de cada vez ao rolar a tela do

143
No séc. XVIII, na Rússia, durante o reinado de Catarina, a Grande, os cortesãos compravam fileiras e mais fileiras de
encadernações recheadas de papel velho para forjar o ambiente de uma biblioteca e agradar sua imperatriz letrada
(MANGUEL, 1997, p. 242-243).
144
Dispositivo semelhante a uma roda-gigante, mas com altura menor (c. 2m de altura), no qual os livros eram dispostos
abertos.
173

computador, desvantagem curiosamente também enfrentada pelos primeiros leitores ao manusear os


rolos de papiro (MANGUEL, 1997).
Atualmente, o destino principal dos textos para computador é a pesquisa, embora os programas
utilizados sejam ainda falhos e não tenham gerado nenhuma mudança no paradigma teórico. Segundo
Miall (1995), ainda é prematuro acreditarmos que a compreensão da literatura seja radicalmente
influenciada pela informática, a despeito dos avanços e resultados já alcançados145, uma vez que a
produção de software inteligente para análise e estudo de textos literários pressupõe uma compreensão
mais acurada dos procedimentos envolvidos no ato de leitura.

De acordo com Lecours (apud MANGUEL, 1997), o processo de leitura compreende duas etapas
iniciais: 1) ver as palavras e 2) relacioná-las a um código lingüístico, estabelecido em secções
específicas do cérebro, embora não saibamos exatamente quais. Wittrock (apud MANGUEL, 1997)
comenta que durante a leitura produzimos significados para o texto a partir de imagens, transformações
verbais e relações entre nossa bagagem individual e as palavras do enunciado. Percebemos o sentido de
um texto, portanto, através de uma teia de significações anteriores à leitura: convenções culturais, grau
de conhecimento do assunto, experiências e valores pessoais.

Ler não é “um fenômeno idiossincrático e anárquico” tampouco “um processo monolítico e
unitário” em busca de um significado correto; é um processo gerativo, respaldado na busca disciplinada
do leitor em construir um ou mais sentidos mediante as regras da linguagem. Não é um processo
automático de captação de sentidos, mas “um processo de reconstrução desconcertante, labiríntico,
comum e, contudo, pessoal” (MANGUEL, 1997, p. 54). Tais procedimentos inerentes à leitura tornam
inviável sua exata reprodução através de qualquer método computacional conhecido.

Há evidência de que certos aspectos do texto literário, como variações estilísticas e


manipulações do enredo, podem dificultar a compreensão de forma relativamente previsível, mas
nenhum estudo descreveu em minúcia a interação entre leitor e a obra. A análise completa do processo
de leitura envolveria a descrição do complexo funcionamento da cognição na mente humana (MIALL,
1995; E. B. HUEY apud MANGUEL, 1997). Acerca desses tantos segredos do cérebro, escreve Saramago
(2002, p. 29) que pensamos com “uma casca muito fina de substância nervosa, chamada córtice, com

145
Miall (1995) cita, como exemplos de trabalhos bem-sucedidos, a análise da prosa de Carlyle feita por Oakman, e o estudo
dos idioletos dos personagens de Jane Austin, desenvolvido por Burrow.
174

cerca de três milímetros de espessura”, que “cobre a parte anterior do cérebro” e “constitui o órgão da
consciência” 146.

Sabemos que a leitura não pode ser descrita por um modelo mecânico, que ela envolve áreas
específicas do cérebro e que depende da decodificação da linguagem, contudo não chegamos a uma
síntese clara desses dados. “Misteriosamente, continuamos a ler sem uma definição satisfatória do que
estamos fazendo” (MANGUEL, 1997, p. 54). Portanto, até que possamos estabelecer as etapas do
mecanismo de leitura, faremos um uso limitado do computador como recurso para a abordagem do
texto literário (MIALL, 1995), fato que não nos impede de propor a leitura de poesia através do
hipertexto, software que simula os processos associativos ativados pela leitura na mente humana.

4.7.1 Hipertexto e ensino de literatura

Connor (apud MIALL, 1995) acredita que o hipertexto trará o restabelecimento do sistema
textual de oralidade, caracterizado pela flexibilidade da informação, uma vez que a integridade e a auto-
suficiência do texto não serão mais favorecidas como na mídia impressa. A concepção lingüística de
texto como registro fixo, que é peculiar ao livro, será, então, substituída pela concepção semiótica, que
desapareceu no período medieval sob o impacto da tecnologia de impressão. Segundo o autor, a
concepção lingüística gera uma retórica linear, que se opõe à retórica associativa e reduz a referência
extratextual e semiótica. O hipertexto, portanto, diminui o controle do autor sobre o leitor,
ampliando os horizontes do texto para além das restrições da linearidade.

De fato, se considerarmos que a interatividade e a multimodalidade “alteram significativamente


a natureza do texto na tela”, somos levados a crer que a transposição do texto impresso para o ambiente
virtual acarreta mudanças no modo de apreensão de seu significado. Uma vez distribuído em links e
descentrado, o texto não apenas confere maior liberdade ao leitor como também “favorece a pluralidade
de sentidos preconizada pelas orientações pós-estruturalistas para as interpretações textuais” (BRAGA,
2004, p. 145, 148). Marshall McLuhan (apud BRIGGS; BURKE, 2004, p. 23) resume a influência da forma
de apresentação sobre o conteúdo da informação, com a frase: “o meio é a mensagem”.
A suposição de que a leitura de um texto impresso é intrinsecamente linear, por sua vez, parece
uma simplificação de um processo bastante complexo. Indagar a página com o olhar não é um ato
contínuo e sistemático como se supõe. Durante a leitura de um texto em qualquer idioma ocidental, por

146
O escritor português percebe uma “perturbadora semelhança” (...) “entre os três milímetros de córtice que nos permitem
pensar e os poucos quilômetros de atmosfera que nos permitem respirar” (SARAMAGO, 2002, p. 29).
175

exemplo, os olhos não se movem suavemente nas linhas, da esquerda para a direita, sem interrupções.
Ainda no séc. XIX, o oftalmologista francês Émile Javal descobriu que os olhos saltam pela página três
ou quatro vezes por segundo, em uma velocidade de duzentos graus por segundo. Permanece uma
incógnita para os cientistas o fato de que a percepção do texto é determinada pela velocidade com que o
olhar varre a página e não pelo seu movimento, pois lemos durante as pausas do descolamento dos
olhos.
“Processamos as palavras como unidades visuais e não como uma série de letras separadas”,
afirma Ratey (2002, p. 312), “e reconhecemos palavras inteiras tão depressa quanto letras singulares.”
Além disso, “processamos visualmente as palavras em vias paralelas de visão e som, cada uma com seu
próprio sistema neural separado”, motivo pelo qual algumas pessoas lêem pela visão, e outras pelo som.
A leitura relaciona-se, portanto, com a continuidade do texto sobre a página ou com a seqüência do
texto na tela do computador, permitindo ao leitor a assimilação de frases ou grupos de palavras.
Diante de um texto, o leitor percebe além de letras e palavras, como explica Manguel (1997), os
espaços em branco que compõem o sistema de sinais147, captado supostamente de forma errática pelos
saltos do olhar. A seguir, reconstrói o código lingüístico por meio de uma teia de neurônios que o
processam no cérebro, rede a qual varia de acordo com a natureza do texto lido, impregnando-o de
traços afetivos e cognitivos.
A habilidade lingüística depende, em parte, da atuação em conjunto de regiões distintas do
cérebro, uma vez que não há um lugar fixo para o processamento da linguagem. Já foram mapeadas as
regiões do córtex que controlam algumas funções especializadas e dados específicos da linguagem.
Essas áreas, contudo, não são as mesmas para todos os indivíduos e variam segundo o nível de QI
verbal, razão por que não é possível traçar um mapa geral da localização de cada função da linguagem
no cérebro. Além disso, regiões distintas do cérebro estão envolvidas na produção e decodificação da
linguagem, mas não sabemos como elas interagem (RATEY, 2002). O fato é que o cérebro permanece
um enigma “para o entretenimento das gerações, como a quadradura do círculo ou a duplicação do
cubo” (SARAMAGO, 2002, p. 59).
Decodificada a linguagem, ao prosseguir pelas linhas de um texto informativo, o leitor faz
pressuposições acerca dos próximos parágrafos, da mesma forma que faz incursões a trechos lidos
anteriormente para elucidar o sentido. Em outros momentos, elabora a informação passo a passo,
adotando uma perspectiva cumulativa, à medida que dá continuidade à leitura e constrói um mapa
conceitual do texto (GRELLET, 1981). A regularidade das palavras no texto e o conhecimento prévio do

147
Embora os primeiros Homo sapiens tenham surgido entre 100 mil e 200 mil anos atrás, acredita-se que a linguagem
simbólica só entrou em uso contínuo há cerca de 50 mil anos, enquanto a escrita e a leitura datam de 5 a 6 mil anos (RATEY,
2002, p. 288-289).
176

leitor determinam a velocidade da leitura, uma vez que o contexto lingüístico determina a capacidade
de se conjeturar uma palavra vista de relance.
Várias vertentes parecem se justapor no ato da leitura de um texto literário: a percepção do
assunto, das escolhas estilísticas, que correspondem aos vários estratos do texto, intimamente
interligados no tecido textual, e as alusões extratextuais e intertextuais. Os recursos da linguagem e da
estrutura do texto literário permitem ao leitor superar as limitações da apresentação linear. O leitor
forma esquemas interpretativos provisórios, que podem ou não vir a ser confirmados, sendo ampliados
a partir de novos elementos fornecidos pelo texto ou eliminados para ceder lugar a outros esquemas
interpretativos mais pertinentes. Modelos teóricos sugerem que o leitor de literatura reformula
constantemente seus conceitos e expectativas, procedimento menos freqüente na leitura de enunciados
jornalísticos ou científicos. Imagens, idéias, lembranças e sentimentos que ocorrem ao leitor são
incorporados definitivamente ao texto ou remodelados à medida que a leitura prossegue. O ato de ler
um texto literário, portanto, envolve uma indeterminação central, que se origina da própria construção
textual (MIALL, 1995).
Embora se possa falar acerca da linearidade do texto impresso, no sentido concreto de
seqüência de exposição da primeira à última linha, sem desvios para documentos correlatos, o processo
cognitivo subjacente à leitura, tanto de textos informativos quanto literários, pressupõe interrupções,
recuos e avanços para formulação, confirmação ou reformulação de hipóteses. Em busca do sentido de
um texto informativo ou dos efeitos estéticos de um texto literário, o leitor lança mão de seu
conhecimento e de suas experiências para interagir com a palavra escrita. O que denominamos “leitura
linear” se refere, em última análise, à consulta progressiva de um documento impresso, salvo incursões
a notas e referências apontadas pelo autor e digressões mentais do leitor, sugeridas pelo próprio assunto.
No hipertexto, além dessas idas e vindas no interior do próprio texto, o leitor desvia-se do texto
original para acessar documentos adicionais, retornando posteriormente para terminar a leitura. Pode-
se concluir, portanto, que o hipertexto amplia em larga escala certos processos de interpretação do texto
linear, exigindo do leitor uma postura ativa diante da rede de documentos correlatos, que podem ser
consultados aleatoriamente. Muito mais do que a simples decodificação das palavras, o hipertexto exige
do leitor participação efetiva na “construção da coesão e da coerência geral entre os diferentes
segmentos textuais” que compõem a rede de dados (BRAGA, 2004, p. 150).
Enquanto Rolland Barthes (1999b) distingue o texto lido do texto escrito, os defensores do
hipertexto vêem o livro como uma distorção do que lhes parece a verdadeira natureza da textualidade.
Na opinião de Connor (apud MIALL, 1995), a mensagem impressa submete-se às restrições físicas dos
objetos concretos, fenômeno que não ocorre no hipertexto, considerado uma realização temporal do
177

texto escrito, cujo significado depende do rumo de leitura traçado pelo usuário. A esse respeito, Xavier
(2004, p. 175) destaca o papel do leitor enquanto produtor de sentido:
Ao atualizar o hipertexto e percorrer seus links, o hiperleitor estará realizando tentativas de
compreensão, efetivando gestos de interpretação ou de uso, porque, em última análise, é ele mesmo
quem define a versão cabal do que será lido e compreendido.
O autor alerta também para o risco de um usuário inexperiente cair na cilada dos links e deixar-se
seduzir pela imprevisibilidade, perdendo-se em um emaranhado de documentos aparentemente caótico.
O sistema típico de hipertexto provê janelas para documentos complementares e fornece dados
que ampliam o conhecimento do leitor e facilitam a compreensão, todavia, o processo de construção do
significado não deve se restringir à escolha das redes de ligações disponíveis. É importante que o leitor
perceba relações intratextuais e intertextuais a partir de uma leitura linear, anterior à consulta ao
ambiente virtual. O hipertexto literário, que facilita “a leitura plural, sem ordem de entrada” também
pressupõe a releitura proposta por Barthes (1999b, p. 19) como condição para a compreensão:
A releitura, operação contrária aos hábitos comerciais e ideológicos da nossa sociedade – que
recomenda que se ‘abandone’ a história depois de consumida (‘devorada’), para que se possa
passar logo para uma outra história, comprar um outro livro, e que só é tolerada em certas
categorias marginais de leitores (as crianças, os velhos, os professores) – a releitura é proposta aqui
logo de início, pois só ela pode salvar o texto da repetição (aqueles que desprezam a releitura
sujeitam-se a ler a mesma história em toda parte), multiplica-o na sua diversidade e no seu plural.
Após realizar várias incursões ao longo do texto, tal como Barthes sugere, e consultar
documentos em um hipertexto off-line, o leitor pode anotar seus insights no ambiente virtual, através de
novos links para leituras suplementares, ou usá-los para a produção de um novo hipertexto, evitando,
assim, a sobrecarga de digressões na base de dados. O leitor ideal, que o hipertexto tenta reproduzir é
inegavelmente utópico, embora mesmo o leitor mais inexperiente possa trazer uma contribuição
significativa para a compreensão de um texto literário.
É possível, contudo, que após ler o texto e interpretá-lo, vinculando-o a determinadas imagens,
a sons, sentimentos e memórias afetivas, o leitor discorde da seleção de documentos compilados e
lamente não encontrar suas projeções pessoais e interpretação particular na versão hipertextual, que
reflete uma outra leitura, sem a relevância subjetiva de sua experiência única diante do texto. A
liberdade de escolha do leitor, portanto, “é a liberdade possível, não a ideal, pois o produtor do texto
eletrônico é quem decide disponibilizar ou não links”, os quais podem “apenas respaldar o ponto de
vista do seu autor, embora a transparência de idéias e posições seja um traço inerente à própria
concepção da rede informacional” (XAVIER, 2004, p. 173).
Em contrapartida, as representações hipertextuais de um texto literário que não são precedidas
pela leitura linear podem inibir a imaginação do leitor, a qual deve ser inerente ao contato com a
literatura. Ao apresentar uma leitura pronta do original, o hipertexto pode eximir o leitor da
necessidade de interpretar a obra com base em seu próprio conhecimento e sistema de valores. A
178

interação do leitor com o texto e a percepção de seu valor estético não podem ser substituídas por
relações extratextuais, respaldadas na tradição literária e/ou na exegese crítica. Afinal, o valor do texto
literário consiste justamente em falar a leitores distintos e em épocas diversas, conforme sua vida
pessoal, nível de erudição e momento histórico.
Vários hipertextos para estudo de literatura já foram elaborados e atenderam satisfatoriamente
às necessidades dos alunos por meio de referências a textos complementares, que elucidam aspectos
textuais além do contexto histórico-cultural das obras. Esse uso da informática, contudo, não representa
uma mudança radical na apreensão do texto literário nem provém de uma nova teoria sobre a leitura.
Representa apenas uma maneira eficaz de propiciar ao aluno informação on-line para a compreensão
do texto literário, a qual pode ser acessada, segundo seus interesses e necessidades, na seqüência que
lhe for mais conveniente.
Uma vez que o principal benefício do hipertexto é a intertextualidade, várias ligações para
outros documentos escritos, sons e imagens fazem com que o leitor se afaste demasiadamente do texto
principal para examinar caminhos alternativos. Constantes digressões rompem o vínculo do leitor com
o texto original, fazendo-o perder o investimento imaginativo, o sentimento específico diante do tema e
o rumo da interpretação:
O uso inadequado dos links pode dificultar a leitura por quebrar, quando visitados
indiscriminadamente, as isotopias que garantiriam a continuidade do fluxo semântico responsável
pela coerência, tal com ocorre em uma leitura de texto convencional (XAVIER, 2004, p. 173).
Por conseguinte, textos de curta extensão como poemas, contos e crônicas parecem mais adequados
para a leitura em hipertexto por não permitirem um grande número de links, serem facilmente lidos,
relidos e guardados na memória do leitor.
O modelo de leitura proposto pelo hipertexto-padrão, no qual há uma ampla rede de
documentos, não é válido, portanto, para qualquer tipo de documento, uma vez que textos literários e
não literários demandam diferentes funções cognitivas e procedimentos de leitura. Enquanto o texto
informativo permite uma rede maior de hiperdocumentos sem perda de sentido, uma vez que o
conteúdo se sobrepõe à forma, o mesmo não se observa no texto literário, cujo foco recai sobre a
linguagem e as relações intratextuais em que forma e conteúdo se entrelaçam. Embora dados
intertextuais enriqueçam a leitura, em geral, não são imprescindíveis para a compreensão do assunto e
percepção do valor estético. Além disso, “o excesso de informação ou a integração inadequada das
diferentes modalidades podem confundir o aluno e levá-lo a perder o foco previsto para a atividade
didática” (BRAGA, 2004, p. 161). Hipertextos para estudos literários, portanto, devem compreender um
número moderado de documentos, compilados para propiciar uma releitura a partir do exame dos
constituintes intrínsecos do texto.
179

Miall (1995) considera desfavorável o fato de que abordagens de leitura em hipertextos não
tenham quaisquer garantias a longo prazo, devido à rapidez com que novas soluções tecnológicas são
propostas, tornando programas e equipamentos obsoletos em poucos anos. A esse respeito, é
importante considerarmos se desejamos repetir infinitamente nossas aulas de literatura ou recriá-las a
cada ano letivo, produzindo materiais didáticos segundo a realidade dos alunos e a renovação da crítica.
Sob esse prisma, o hipertexto é justamente uma ferramenta válida do ponto de vista pedagógico por não
pressupor a cristalização de abordagens didáticas do texto literário.
Na verdade, a utilização de quaisquer recursos da informática envolve o desafio de
encontrarmos constantemente soluções para o ensino de literatura. Embora o cânone literário se
construa a partir das raízes da tradição, devemos propor leituras atualizadas e que façam uso dos novos
recursos da mídia, em consonância com os valores da sociedade contemporânea. Como professores,
estamos constantemente tecendo fios e desfiando o tecido de nossas aulas para novamente tecê-las com
outros textos, outras cores, outras idéias. Essa postura diante do ensino faz com que a educação se
renove na busca de caminhos alternativos que consigam levar o livro ao aluno, seja por meio do
hipertexto ou de outra ferramenta que o motive para a leitura do texto literário.
Antigas e novas mídias têm exercido um papel complementar ao longo dos séculos. O
surgimento da imprensa no séc. XV, segundo Burke e Briggs (2004), não fez desaparecer o gosto pelo
texto escrito à mão, nem reduziu o valor dos manuscritos, uma vez que a produção em larga escala
determina a valorização do objeto manufaturado e a menos-valia do produto industrializado. Smith
(1996) comenta que essa tendência de sacralizar o trabalho artesanal reflete a necessidade de valorizar o
homem em detrimento da máquina. Talvez por essa razão, Gutenberg e seus seguidores tenham tentado
imitar a arte dos escribas, dando uma aparência de manuscrito a seus textos impressos, exatamente
como hoje alguns softwares reproduzem, na tela do computador, letras cursivas e a imagem de um livro
aberto.
Das placas de argila ao códice manuscrito, o livro tomou, através dos milênios, a forma que
hoje conhecemos, mas desde os últimos anos da era da informação questiona-se qual será seu destino.
Ao que tudo indica, parece que o texto impresso sempre conviverá com a mídia eletrônica, mesmo que
para muitos leitores a Internet se torne no futuro a interface principal entre o computador e a literatura.
Assim como o texto linear não desapareceu com o advento do hipertexto, acreditamos que o livro
continuará a existir ao lado de outros ambientes virtuais de leitura e escrita.

4.7.2 O potencial didático do hipertexto

Embora autores, como Burbules, Callister, Postman e Birkerts (apud BRAGA, 2004), entre
outros, se mostrem cautelosos quanto à inserção do hipertexto no contexto pedagógico, algumas
180

características do hipertexto o tornam uma valiosa ferramenta didática, conforme atestam experiências
pedagógicas realizadas com sistemas on-line e off-line.
ƒ Hiperdocumentos são ambientes virtuais de fácil interação. Uma vez que os dados não
estão dispostos de forma seqüencial, podem ser acessados a qualquer momento e em qualquer ordem
(LANDOW 1988, p. 2). O leitor pode interromper a leitura de um poema, por exemplo, para assistir a
um vídeo sobre a vida do autor e, em seguida, consultar um texto de crítica sobre sua poesia. Ao ler um
conto, pode solicitar descrições de personagens e lugares ao posicionar o mouse sobre uma “janela” do
texto. Com um simples click sobre um ícone, um botão ou uma palavra, o usuário tem acesso a
documentos inter-relacionados na base de dados do hipertexto.
ƒ O hipertexto garante oportunidades de aprendizado mais justas para grupos heterogêneos.
O aluno pode esclarecer suas dúvidas e solicitar informação complementar sobre assuntos de seu
interesse ao escolher determinados links e textos. Como Kearsley (1988, p. 21) afirma, “os leitores
principiantes podem solicitar explicações básicas, enquanto os mais experientes podem prosseguir na
leitura e consultar tópicos mais complexos”. Woodhead (1991, p. 63) também comenta que “o valor
potencial da abordagem em hipermeios consiste em fornecer material para alunos com habilidades e
níveis distintos”.
ƒ O hipertexto permite uma abordagem interdisciplinar do ensino ao vincular assuntos
correlatos como literatura, lingüística, arte, história, religião e filosofia. Vários projetos off-line foram
elaborados e testados com sucesso, articulando essas disciplinas, tais como: “A base de dados sobre os
Maias”, “O projeto Perseus”, da Universidade de Harvard, sobre a civilização grega, “A
Máscara da Morte Vermelha”, sobre um conto de Poe, e o “Projeto Shakespeare” (MAENZA, 1994).
ƒ O hipertexto redefine os limites entre o leitor e o autor. O usuário pode determinar em que
seqüência deseja ler o texto-base e o hiperdocumento como um todo. No caso de um hipertexto aberto,
pode criar novos links para textos já existentes ou acrescentar documentos à base de dados.
ƒ O hipertexto permite ao usuário manipular informação de acordo com suas necessidades
específicas, interesses pessoais e estilos de aprendizagem. Como Landow (apud SMITH, 1993) comenta,
nenhuma disposição da informação é satisfatória para todos que dela necessitam, de qualquer forma, o
hipertexto provê um meio mais flexível de acesso a dados. Sutherland (1994) também se refere ao valor
didático do hipertexto, o qual permite que os alunos naveguem livremente pela rede de textos,
escolhendo caminhos de leitura segundo suas próprias necessidades e preferências.
ƒ O hipertexto exige estratégias de leitura ativas e garante uma melhor aprendizagem. Os
alunos têm mais liberdade de escolha e mais responsabilidade sobre a aquisição do conhecimento. Ao
permitir que o aluno determine sua própria ordem de leitura, o hipertexto gera uma aprendizagem mais
significativa, fazendo-o relacionar o texto à sua experiência pessoal, em vez de simplesmente
181

memorizar a informação apresentada. Harry e Cady (1988) também estão convencidos de que o
hipertexto é uma ferramenta eficaz para o ensino de literatura por motivar os alunos, estimular a
pesquisa e torná-los mais independentes.
ƒ O hipertexto cria um ambiente interativo, multidimensional. A possibilidade de interligar
diferentes tipos de informação torna o hipertexto um poderoso instrumento de cultura. Bantz (apud
PATRIKIS, 1990) vê no hipertexto novas formas de aprendizagem através da integração de diferentes
recursos de mídia que propiciam atividades de audição, leitura e escrita: “Um ambiente eletrônico
multidimensional desenvolvido com criatividade pode motivar os alunos a pesquisar e aprender com
autonomia, sem se limitarem apenas ao CD, ao dicionário ou à biblioteca.”

Xavier (2004, p. 175) argumenta que a pluritextualidade “viabiliza a absorção de diferentes


aportes sígnicos numa mesma superfície de leitura, tais como palavras, ícones animados, efeitos
sonoros, diagramas e tabelas tridimensionais”, causando um impacto positivo na apreensão do texto.
A convergência desses recursos de mídia, à medida que permite uma organização mais ampla e efetiva
do discurso, amplia as possibilidades de compreensão do texto, propiciando a leitura sinestésica.
ƒ O hipertexto propicia a democratização da cultura. Permite uma redistribuição da
informação, possibilitando um acesso mais democrático às fontes culturais. Teoricamente, da própria
escola, alunos de várias classes sociais poderiam navegar em hipertextos on-line para visitar museus,
galerias de arte e bibliotecas em todos os continentes. Dessa forma, a pesquisa não mais se restringiria
às instituições, e o conhecimento se torna disponível para os cidadãos de todo o mundo, sem qualquer
forma de discriminação.

Infelizmente, não apenas no Brasil, mas em outros países do terceiro mundo, na maioria das
escolas púbicas e privadas, não há acesso à Internet, e existem poucos terminais públicos disponíveis
em associações e entidades com fins sociais. Outra vez na história da humanidade148, a cultura é um
legado acessível, na prática, às classes mais privilegiadas. Além disso, há o risco de que a consulta à
Internet em larga escala promova o colonialismo eletrônico, face à influência da cultura e da ideologia
norte-americana na rede (BRIGGS; BURKE, 2004). É papel dos professores estimular os alunos a
assumirem uma postura crítica e lúcida diante da informação virtual disponível.
ƒ O hipertexto estimula o trabalho cooperativo. Kearsley e Shneiderman (1989) afirmam que
o hipertexto estimula a cooperação entre os alunos, que trabalham em conjunto para melhor localizar
informação e percorrer os links entre os textos. Da mesma forma, a elaboração de hipertextos on-line
geralmente exige a cooperação entre o professor e um especialista em informática. Para Smith (1993), o

148
No Antigo Egito, a escrita estava nas mãos dos sacerdotes e reis, que detinham as bibliotecas; no Velho Mundo, os papiros
estavam sob a tutela dos monges medievais.
182

fato de o hipertexto estimular a colaboração é um dos melhores argumentos para sua utilização no
ensino.
ƒ O hipertexto reúne uma multiplicidade de vozes. Um único tópico mencionado em um
documento pode gerar vários links para outros textos que corroboram ou contestam a fonte original.
Essa pluralidade de visões propicia o desenvolvimento da visão crítica do aluno ao ampliar seu
horizonte cultural e fazê-lo perceber questões ideológicas subjacentes ao texto escrito. Além disso, o
hipertexto não propõe uma verdade final como um produto acabado, mas sim um significado potencial,
negociado pelo próprio processo de troca de informação. É essa concepção de leitura que nossa
proposta de hipertexto sobre a poesia de Cecília Meireles e de Emily Dickinson deve resgatar.
Johnson-Eilola (1994) comenta que a multiplicidade de vozes em um hipertexto faz com que os alunos
percebam a importância da consulta a diversas fontes para elaboração de uma pesquisa.
ƒ O hipertexto ressalta a intertextualidade. Entre os critérios usados para interligar
documentos em um hipertexto, tais como assunto, temas afins, aspectos estruturais e traços estilísticos,
a intertextualidade desempenha um papel central. O fato de que um determinado texto reflete outros
pode ser facilmente indicado no hipertexto através de links para os documentos originais ou para textos
de crítica que apontem os elementos comuns entre esses textos (SMITH, 1993).
ƒ O hipertexto facilita a investigação de aspectos históricos da obra. Os textos literários
podem ser estudados quanto ao contexto político-social em que foram criados e publicados. Tais dados
ajudam os alunos a melhor perceber o valor da história como referencial para uma compreensão mais
ampla do texto literário. Sutherland (1994) argumenta que o hipertexto permite situar a obra no
momento histórico de sua produção, elucidando questões socioculturais relevantes para sua
compreensão. Segundo a autora, o hipertexto nos permite resgatar o modelo cultural do passado com
uma ferramenta do presente.
ƒ O hipertexto enfatiza a aprendizagem, e não o ensino. Ao transpor a ênfase do professor
como fonte de informação para o estudante enquanto pesquisador, o hipertexto permite a aprendizagem
por exploração. O aluno trabalha por conta própria, escolhe caminhos de leitura na rede de documentos
e chega às suas próprias conclusões. A introdução do hipertexto como uma ferramenta pedagógica no
currículo escolar, portanto, torna o docente um consultor a quem o aluno recorre para esclarecer
dúvidas e solicitar orientação (LANDOW, 1988).

O potencial do hipertexto como mídia interativa permite que o aluno por si mesmo descubra a
importância de um assunto sem que o professor precise persuadi-lo de sua relevância no currículo
escolar. Além disso, segundo os autores, o hipertexto propicia a percepção de inter-relações temáticas
que passariam despercebidas ou só seriam identificadas após longas pesquisas (CAMPBELL e
183

HANLON apud Smith, 1993). Guilherme (1992) recomenda que os educadores não se preocupem com o
que o hipertexto pode ensinar, mas sim com o que os estudantes podem descobrir ao percorrer a rede de
documentos não hierárquicos.

Em contrapartida, embora o hipertexto aumente a liberdade e a motivação do leitor, traz uma


sobrecarga cognitiva devido ao montante de informação e à necessidade de organização e análise dos
dados significativos. Mas segundo Xavier (2004, p. 179), esse temor diante da oferta de leitura já fora
alardeado por ocasião da invenção da imprensa, “mesmo antes do livro chegar ao seu apogeu com a
industrialização das tipografias no século XIX e com a multiplicação das tiragens de versões de bolso
no início do século XX”.

Como qualquer inovação, o hipertexto propõe uma série de desafios, por isso o professor deve
estar preparado para correr riscos e superar os obstáculos através de novas estratégias de ensino.
ƒ O hipertexto facilita a aprendizagem. Vários autores afirmam que o hipertexto facilita a
leitura ao vincular dados tal como a associação do conhecimento na memória humana. Shneiderman e
Kearsley (1989, p. 72) vinculam o valor pedagógico do hipertexto à forma de organização da
informação, embora as associações semânticas (conexões significativas), provenientes de experiências
pessoais, não possam ser reproduzidas no software:

Do ponto de vista da teoria da aprendizagem, o hipertexto contribui para a aprendizagem porque


apresenta relações entre idéias, e não fatos isolados. As associações viabilizadas pelos links de um
hipertexto facilitam a memorização, a formação de conceitos e a compreensão.
Maenza (1994) também relaciona o potencial educacional do hipertexto à organização de dados
por associação tal como se observa na mente humana. Charney (apud SELFE, HILLIGOSS, 1994), por
outro lado, argumenta que boa parte do conhecimento é armazenado na memória de forma seqüencial e
hierárquica, ao mesmo tempo em que afirma não haver evidência de que a informação seja mais
facilmente apreendida de uma maneira não-linear. De qualquer forma, a eficácia do hipertexto, como
de qualquer outra ferramenta didática, depende, acima de tudo, da abordagem de ensino e não de
aspectos intrínsecos do software.
ƒ O hipertexto estimula a motivação e a participação. Entre os vários depoimentos que
aludem ao potencial do hipertexto como ferramenta didática, Shneiderman e Kearsley (1989) aludem a
uma pesquisa realizada na Universidade Brown, segundo a qual os alunos que usaram o software
Intermedia demonstraram um melhor rendimento e maior participação do que os que assistiram a aulas
expositivas.
As características do hipertexto discutidas atestam seu papel na educação como uma ferramenta
flexível, que estimula a pesquisa e a aprendizagem cooperativa. Traz possibilidades de ensino únicas ao
184

permitir que o aluno assuma uma postura ativa na sala de aula como responsável pelo seu próprio
crescimento intelectual. Nesse sentido, o hipertexto redefine o papel do professor de mero expositor a
consultor que dá assistência e trabalha em conjunto com os alunos, orientando-os a realizar descobertas
e solucionar problemas. Além disso, a leitura em ambiente virtual propicia um novo caminho para a
literatura ao garantir a verdade imparcial, fruto da pluralidade de idéias e do caráter enciclopédico do
discurso.

Como qualquer outra ferramenta multimídia, o hipertexto requer novas estratégias pedagógicas,
cuja elaboração e implementação representam um desafio para a escola. Cabe ao professor explorar o
potencial didático dessa ferramenta, elaborando atividades e arquivos criativos, que contribuam para a
melhoria do ensino através do estímulo ao raciocínio lógico, ao pensamento crítico e ao gosto pela
leitura, inclusive de textos literários.

A introdução da informática no ensino, em resumo, exige do professor dedicação e


planejamento para que sejam minimizados quaisquer fatores que possam interferir negativamente na
consecução dos objetivos propostos. Dentre os inúmeros ambientes virtuais que podem otimizar a
introdução de conteúdos, a apresentação de pesquisas e a leitura de poemas, julgamos que o hipertexto
on-line, em face das razões já apresentadas, trará uma contribuição significativa para o estudo da poesia
de Emily Dickinson e de Cecília Meireles.

4.8 Descrição do site na Internet “A Representação da Natureza na poesia de Emily Dickinson e


Cecília Meireles”

Estrutura geral do site


ƒ Página inicial
ƒ Apresentação do site
ƒ Autoria
ƒ Links para as páginas principais

Documentos compilados
ƒ Vida e obra de Cecília Meireles
ƒ Tabela de datas importantes
ƒ Tabela de publicações
ƒ Vida e obra de Emily Dickinson
185

ƒ Tabela de datas importantes


ƒ Galeria de fotos das poetas
ƒ Estudos críticos
ƒ Sobre a poesia de Cecília Meireles
ƒ Sobre a poesia de Emily Dickinson
ƒ Poemas sobre a natureza
ƒ Poemas de Cecília Meireles
ƒ Poemas de Emily Dickinson
ƒ Poemas traduzidos de Emily Dickinson

Documentos produzidos
ƒ A Representação da terra na poesia de Emily Dickinson
ƒ A Representação da terra na poesia de Cecília Meireles
ƒ Análise de poemas de Emily Dickinson
ƒ Análise de poemas de Cecília Meireles
ƒ A Estilística da natureza na poesia de Emily Dickinson e Cecília Meireles
ƒ Natureza, religiosidade e ceticismo
ƒ O Lirismo da natureza em fogo, ar e água
ƒ A Poética da terra

Considerações finais
186

Bibliografia
CONCLUSÃO
_________________________________________________________________________________
___

O trecho seguinte, extraído de um artigo de Fábio Lucas sobre a origem do universo e


publicado na revista Continente (abr. 2004, p. 13), aborda algumas questões que discutimos ao longo da
pesquisa, ao mesmo tempo em que nos desafia a pensar sobre o mistério do ser:
Acreditamos um dia que os deuses estavam nas florestas, nos animais, na água, no fogo, na terra e
no ar – menos em nós. Acreditamos um dia que éramos filhos dos deuses. (...) Acreditamos que
nosso planeta era o centro do universo, morada nobre da criação. (...) Muitos mistérios
permanecem em seu lugar de origem, milhares de anos depois que demos início à nossa saga. Um
deles nos diz respeito diretamente. De que matéria é feita a vida? Que sopro nos permite existir,
descrever a existência, e questioná-la? O que somos nós, afinal?
Essas mesmas perguntas parecem estar entrelaçadas na poesia de Cecília Meireles e de Emily
Dickinson. Nas imagens da natureza, as poetas vêem um enigma aparentemente inescrutável – a vida.
A autora de Mar Absoluto tenta “encontrar no seu microcosmo resposta às perguntas que lhe lança o
universo” (RÓNAI, 1958, p. 59), percurso que identificamos na poética da reclusa de Amherst. Outras
questões igualmente complexas nos ocorrem: Em que padrão se baseia a harmonia do universo,
a combinação dos átomos? Que sistema preside as operações do cérebro, a geração do conhecimento?
A ciência contemporânea nos fornece uma explicação simples: o cosmos é uma rede de interconexões,
uma “teia dinâmica de eventos inter-relacionados” (CAPRA, 1983, p. 247). Se a essência da vida
permanece um mistério, conhecemos, ao menos, o arcabouço do mundo que nos cerca, nas palavras de
Emily Dickinson: By such and such an offering (De tal e tal uma lembrança) / To Mr. So and So, (Para
o Sr. Fulano de Tal) / The web of life woven – (A teia tecida da vida –).
Bosi (2004, p. 29-30) nos lembra que “a superfície da palavra é uma cadeia sonora”, e o discurso
“um modo encadeado de dizer a experiência”, sentença após sentença. Assim, “entre a cadeia das
frases e a cadeia dos eventos, vai-se urdindo a teia dos significados, a realidade paciente do conceito”.
O tecido poético, por sua vez, estrutura-se como uma rede de paralelismos e reiterações à semelhança
dos mecanismos em cadeia, subjacentes aos processos da natureza. Ao explicar a célebre definição de
Jakobson sobre o discurso poético149, Bosi (ibidem, p. 34), inclusive, faz um paralelo entre as estruturas
do poema e do cosmos:
Numa palavra, é o triunfo do paradigma, da matriz, a deleitação em um universo curvo que se
fecha e se basta no seu círculo de ressonâncias. É a imitação do Paraíso ainda não machucado pela
dor da ruptura e do contraste (grifo nosso).

149
Projeção do eixo das semelhanças no eixo das contigüidades”, ou seja, subordinação da linguagem serial aos processos da
analogia.
187

O poema, sistema de repetições e paradigmas, entrelaça signos e fios de imagens em teias de insólitas
relações fônicas, semânticas, lexicais, sintáticas, gráficas. Otavio Paz (1982, p. 15) diz que “o poema é
um caracol onde ressoa a música do mundo, e métricas e rimas são apenas correspondências, ecos, da
harmonia universal”. E Emerson (2003, p. 49), ao vincular o homem à natureza, afirma que “um homem
é um feixe de relações, um nó de raízes, cujas flores e frutos são o mundo” e que “na multiplicidade de
suas afinidades, no fato de que sua vida está entrelaçada com toda a cadeia dos seres orgânicos e
inorgânicos consiste seu poder”.
Italo Calvino, por sua vez, em Seis Propostas para o Novo Milênio (2001, p. 138), faz a apologia
do texto literário como “grande rede”, apontando qualidades inerentes à obra literária que a informática
já incorporou à sua linguagem: a leveza do tecido verbal e das imagens poéticas, a rapidez com que o
texto salta de um tema a outro, a precisão das palavras empregadas com rigor, a visibilidade das
imagens reais ou oníricas, a multiplicidade de relações entre todas as coisas, e a consistência interna do
texto. Todas esses aspectos da obra literária podem ser potencializados em um hipertexto on-line.
Transformada em impulsos eletrônicos, a palavra adquire leveza, prescinde da página e do livro; os
links de um ambiente virtual agilizam o acesso às várias partes do texto; a precisão da publicação na
Internet garante o rigor da linguagem literária; os recursos multimídia traduzem as imagens textuais; a
rede de conexões entre documentos amplia a visão plural e multifacetada do mundo; a consistência
estrutural do hipertexto reflete a organização dos vários estratos do discurso.
Ao adotarmos a idéia de interconexão como eixo norteador para esta pesquisa, lembramos
também as palavras de Kristeva (1974, p. 92): “O texto literário é uma rede150 de conexões”, responsável
pela “plurideterminação do sentido”. Buscamos, portanto, uma analogia entre sistemas distintos, porém
relacionados: a matéria do mundo, a tessitura do poema, a organização da linguagem e a produção do
conhecimento. A noção de interação dinâmica, que determina a unidade de tudo, presidiu cada um dos
aspectos por nós abordados.
A partir dessa teia interconexa de relações, em busca da unidade do conhecimento, fizemos
convergir para a leitura de poesia as concepções de alguns estudiosos como Platão, Gaston Bachelard,
Vannevar Bush, Gerard Genette, François Rastier, Samuel Levin e H. G. Widdowson, entre outros.
Procuramos encontrar uma intersecção entre conhecimentos aparentemente distintos: a cosmologia
platônica, as teorias formalistas e estruturalistas, a fenomenologia da composição, a tecnologia de
computadores, a poesia de duas autoras de lugares e tempos diversos. Acreditamos que esse arcabouço

150
“O termo rede substitui a univocidade (a linearidade) ao englobá-la e sugere (...) que as palavras guardam uma relação
plurivalente”, ou seja, a imagem poética “constitui-se na correlação dos constituintes sêmicos, por uma interpretação
correlacional” (KRISTEVA, 1974, p. 101, 103).
188

teórico tenha conferido maior precisão à nossa análise, embora saibamos que, ao contrário da prosa,
mais clara e objetiva, a linguagem poética, como afirma Emily Dickinson, guarda algo intangível151.
Ao adotarmos a interdisciplinaridade como eixo fundamental para a leitura das imagens da
terra, aproximamos, portanto, não apenas Literatura Brasileira e Língua Inglesa, disciplinas da grade
curricular do ensino médio, mas também Filosofia, Poética, Lingüística e Informática. Afinal, todas as
artes e ciências estão ligadas à natureza, embora somente a poesia a possa reinventar (SIDNEY apud
SMITH, 1996). Nas palavras de Italo Calvino (2001, p. 138), para quem a literatura, na multiplicidade
polifônica da imagem, procura “fazer falar o que não tem palavra, o pássaro que pousa no beiral, a
árvore na primavera e a árvore no outono”, revelando “a continuidade das formas” e “a natureza
comum a todas as coisas”:
Quem é cada um de nós senão uma combinatória de experiências, de informações, de leituras, de
imaginações? Cada vida é uma enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objetos, uma
amostragem de estilos, onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as
maneiras possíveis.
A literatura, segundo Calvino, tem procurado reunir os inúmeros fios do conhecimento e formas de
linguagem para tecer uma rede de conexões e aproximar, em um mesmo texto, vários campos da
atividade humana. Julgamos que essa “visão pluralística e multifacetada do mundo” (idem, p. 127) pode
ser ampliada no ambiente virtual, em que cada texto literário, conectado a outros documentos em
diferentes linguagens (texto, áudio, vídeo, imagem), entrelaça “uma multiplicidade de vozes, olhares e
sujeitos” (idem, p. 132).
A proposta de criação do hipertexto on-line para um estudo comparativo da obra de Cecília
Meireles e de Emily Dickinson, em face da lacuna temporal que as separa, responde também a algumas
considerações de Letícia Cavalcanti (1997, p. 27) acerca do ensino de literatura nos dias de hoje:
Cercados como estamos por todos os tipos de informação fornecida por computadores, vídeos,
televisores, filmes e outras tecnologias, um aspecto importante a ser ensinado não é a cronologia,
mas o desenvolvimento da sensibilidade em relação às palavras, a educação do gosto e a indicação
de formas e meios de comparação e contraste. E examinar textos estrangeiros como produtos
culturais comparáveis aos nossos é, de fato, um passo inicial e importante.
Foi exatamente essa preocupação em ampliar o horizonte de leitura dos alunos que nos fez propor a inclusão da poesia no currículo do ensino médio, em oficinas
de caráter interdisciplinar, através de uma abordagem na Internet. Quisemos aproximar as margens de um mesmo rio por que trafega a cultura da humanidade: de
um lado, a poesia, primeira expressão literária; de outro lado, a informática, última instância da comunicação; em seu curso, as imagens da terra pela qual transita o
homem ao construir o conhecimento.

Sabemos que as experiências culturais transmitidas eletronicamente não têm a estabilidade e a


singularidade que a circulação limitada confere ao texto impresso (BENJAMIN apud SMITH, 1996), mas
acreditamos que os recursos da informática facilitam a leitura do texto poético ao permitir o acesso não-
linear e a consulta a textos correlatos. Ademais, a escola não pode continuar alheia ao processo de

151
I dwell in Possibility – (Vivo na Possibilidade –) / A fairer House than Prose – (Uma Casa mais promissora que a Prosa –).
189

informatização da sociedade, ainda que a introdução do computador como uma ferramenta didática seja
um desafio para muitos docentes pouco familiarizados com ambientes de ensino virtuais
(GUILHERME, 1992).
Ao desenvolvermos nossa pesquisa entre dois pólos eqüidistantes, a adoção da cosmologia
platônica, como critério de classificação das imagens da natureza, e a proposta de leitura da poesia de
Emily Dickinson e Cecília Meireles através de um hipertexto on-line, realizamos, de certa forma, o que
propõe Bachelard (1999, p. 2) acerca da Filosofia: “tornar a poesia e a ciência complementares, uni-las
como dois contrários bem-feitos”.
Naturalmente lembramos a lição de Kristeva (1974) de que nossas palavras são ecos de outras
vozes, de outros discursos. Assim pôde a humanidade partir das inscrições cuneiformes, das bibliotecas
cravadas no interior dos templos para a criação de hiperdocumentos, para a polifonia da Internet, para
navegação no ciberespaço. Entrelaçamos nossas sentenças e concepções com frases e idéias alheias.
Nosso texto dialoga com pesquisadores, críticos e filósofos, confronta suas idéias, resgata dados,
encontra na erudição um amparo para considerações didáticas.
Não pretendemos apontar um dialogismo nato entre a poesia de Cecília Meireles e a de Emily
Dickinson, no sentido de que a poeta brasileira tenha incorporado à sua obra aspectos estilísticos ou
temáticos adotados pela autora norte-americana. Para isso precisaríamos determinar se Cecília
Meireles leu Emily Dickinson e em que momento o teria feito. Não tivemos a pretensão de apontar
fontes ou influências, como nos estudos clássicos de literatura comparada da escola francesa do final
do séc. XIX e início do séc. XX (BRUNEL et al., 1995). Tampouco quisemos provar que a coincidência
temática entre suas composições advenha de leituras comuns ou correlatas, que tenham marcado a
formação intelectual de cada autora. Investigação, inclusive, que teria nos obrigado a considerar em
profundidade questões extrínsecas, de cunho biográfico e ideológico que só mencionamos de
passagem. Construímos apenas um discurso intertextual, capaz de revelar pontos de contato entre suas
obras a partir de uma abordagem intrínseca do texto literário.
Esse percurso na trilha de tantos mestres nos permitiu estabelecer algumas relações sobre a
abordagem da natureza em Emily Dickinson e Cecília Meireles, mas embora tenhamos traçado alguns
comentários críticos, não nos cabe a pretensão de havermos esgotado o assunto, afinal, como Emily
Dickinson diz em um poema, nem mesmo a Filosofia conhece todas as verdades: This World is not
Conclusion. (Este Mundo não é Conclusão.) / A Species stands beyond – (Algo existe mais além – ) /
Invisible, as Music – (Invisível, como a Música –) / But positive, as Sound – (Mas positivo, como o Som
–) / ... / Sagacity, must go – (Sagacidade é preciso –) / To guess it, puzzles scholars – ( Acertar desafia
os eruditos –).
190

Emily Dickinson e Cecília Meireles, ao encontrarem a poesia da natureza, tecem um longo


diálogo sobre as imagens da terra. Debruçam-se sobre a paisagem bucólica para compor imagens
líricas, filtradas ora pelo sentimento ora pela razão, e criar um tecido de metáforas com o que Descartes
(2002, p. 61) chamou de “princípios ou primeiras causas de tudo o que é ou pode ser no mundo”: o céu,
os astros, a terra, a água, o ar, o fogo. Em Desapego, diz o eu lírico não ter vontade de falar senão com
árvores, vento, / estrelas, e águas do mar. Com os motivos da terra, as autoras escrevem poemas que,
embora em línguas distintas, parecem complementares como quadros inspirados em uma mesma
paisagem.
Tanto Cecília Meireles quanto Emily Dickinson não permitiram que o contexto histórico ou o
momento literário ditasse o teor de sua criação poética. Ambas seguiram caminhos preteridos por seus
contemporâneos: a poeta norte-americana adotou, na época do Romantismo, procedimentos estéticos
inovadores, que só seriam validados após o advento do Modernismo; a poeta brasileira, na
efervescência do Modernismo, incorporou à sua obra traços árcades, barrocos, parnasianos, simbolistas
e até mesmo trovadorescos.
Embora tenham escrito em séculos distintos, experimentaram as angústias da modernidade:
a ruptura com as certezas do passado, a crítica aos valores sociais, a convivência com o efêmero, a
insegurança diante do desconhecido, o tempo como fator de dissolução de tudo. Esses
questionamentos estão estampados em seus poemas sobre a natureza, em que flores, árvores,
montanhas, animais ora integram apenas o mundo natural, ora são pretextos para a discussão de
assuntos polêmicos e universais – a inconstância de tudo, a impossibilidade do amor, a fugacidade da
vida, o tempo inexorável, a certeza da morte, o sentido da existência, a fragilidade da fé. Temas que
pretendíamos evitar em virtude de nosso público-alvo152, mas que, segundo Tomachevski (1978, p. 171),
permanecem inalteráveis no decorrer da história da humanidade e perpassam a literatura de todos os
tempos, garantindo a atualidade e o vigor das obras. Afinal, a poesia é natureza sonhada sob o olhar
crítico do artista.
Wilson (apud FERLAZZO, 1976, p. 150), por exemplo, comenta que as imagens da poesia
dickinsoniana exigem do leitor intuição e conhecimento de inúmeras associações simbólicas. Sua
técnica de exploração da imagem nos moldes da poesia contemporânea a aproxima de Pound, Eliot e
dos imagistas americanos. Warren (1963, p. 106) escreve que seus poemas mais profundos são
metafísicos ou trágicos e que sua visão da natureza é simbolista, centrada em analogias. Segundo o
autor, suas imagens nítidas ou sugestivas a filiam também aos poetas do século XX que se inspiraram
nos simbolistas franceses.

152
Alunos do ensino médio do Colégio de Aplicação da UFPE.
191

A poesia ceciliana, por sua vez, de caráter modernista, aproxima-se também do Simbolismo,
cuja influência determina a vagueza de imagens e o viés “espiritualista e idealista de sua lírica”
(DAMASCENO, 1977, p. 37). Traços simbolistas, entre outros aspectos temáticos e estilísticos, marcam,
portanto, a representação das imagens da terra na poesia das autoras. Afinal, tanto Emily Dickinson
quanto Cecília Meireles foram testemunhas da crise espiritual que assolou o ocidente no final do século
XIX e início do século XX. O conhecimento científico-positivista abalara, então, os alicerces da
religiosidade e da fé, fazendo surgir, na literatura, a tendência transcendental, de cunho simbolista, que
tentou resgatar o mistério e a magia negados pela ciência. Compromisso que a poeta carioca assumiu
em seus versos: Com a vocação do mar, e com seus símbolos. / Com o entendimento tácito, / instintivo,
/ das raízes, das nuvens, / dos bichos e dos arroios caminheiros.
Entre as incertezas da modernidade e o refúgio na paisagem onírica, deixamos
no ar um questionamento de Cavalcanti (1997, p. 27), como uma proposta para
complementação deste estudo sobre a poética da terra na obra de Cecília Meireles e
de Emily Dickinson: “Como podem duas pessoas de séculos diferentes e culturas
diferentes (...) abordar o mesmo conteúdo, embora em estilos distintos?” Conforme a
própria autora sugere, esse é um problema a ser resolvido através de estudos culturais,
uma abordagem que poderia dar continuidade à nossa pesquisa. Nesse sentido,
ocorre-nos talvez um paralelo entre o Transcendentalismo, que Emily Dickinson
conheceu através dos escritos de Waldo Emerson, e o Budismo, pelo qual Cecília
Meireles se interessou desde jovem e a fez admirar o Oriente. Que algum leitor mais
ousado siga esse caminho ou tantos outros com que apenas sonhamos: Going to Him!
Happy letter! (Vai até Ele! Alegre missiva!) / Tell Him – (Conta-lhe – ) / Tell Him the
page I didn’t write – (Conta-lhe sobre a página não escrita –) / Tell Him – I only said
the Syntax – (Conta-lhe – que apenas escolhi a Sintaxe –) / And left the Verb and the
pronoun out – (E o Verbo e o pronome esqueci –). Outras pesquisas certamente
complementarão nossas palavras, consolidando, com argumentos e dados precisos, o
que apenas margeamos entre teoria e hipótese, razão e intuição. A verdade, dizia
Emerson, é tão difícil de agarrar e engarrafar quanto a luz (2003, p. 237). Se o devaneio
mais do que o experimento impulsiona a ciência, “são necessárias muitas
experiências para se apagarem as brumas do sonho” (BACHELARD 1999, p. 34).
192

Consideramos, então, esta tese apenas um exercício, pois como nos ensina Cecília
Meireles: Ciência, amor, sabedoria, / tudo jaz muito longe, sempre / – imensamente
fora do nosso alcance.
193

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
_____________________________________________________________________________

O corpus

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______. 75 Poemas. Tradução Lucia Olinto. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1999.
______. Fifty Poems: Cinqüenta Poemas. Tradução Isa Mara Lando. Rio de Janeiro: Imago; São
Paulo: Alumni, 1999.
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206

APÊNDICE
_____________________________________________________________________________

REPRESENTAÇÃO DA NATUREZA
EM 100 POEMAS DE EMILY DICKINSON154

1. Except to Heaven, she is nought.


2. A Bird came down the Walk –
3. Absent Place – an April Day –
4. Adrift! A little boat adrift!
5. A Drop fell on the Apple Tree –
6. After all Birds have been investigated and laid aside –
7. Ah, Necromancy Sweet!
8. Always Mine!
9. A fuzzy fellow, without feet,
10. A Murmur in the Trees – to notice –
11. An Antiquated Tree
12. An Hour is a Sea
13. A narrow Fellow in the Grass
14. A Saucer holds a Cup
15. A sepal, petal, and a thorn
16. Ashes denote that Fire was –
17. At least – to pray – is left – is
18. A train went through a burial gate
19. Aurora is the effort
20. Away from Home are some and I –
21. Blazing in Gold and quenching in Purple
22. By a departing light
23. Come slowly – Eden!
24. Declaiming Waters none may dread –
25. Fame is a bee.
26. For every Bird a Nest –
27. Had I not seen the Sun
28. Her breast is fit for pearls,
29. How far is it to Heaven?
30. How fits his Umber Coat
31. How happy is the little Stone
32. How many Flowers fail in Wood –
33. How slow the Wind –
34. I cannot buy it – ‘tis not sold –
35. If I could bribe them by a Rose
36. I had a Bird in spring
37. In Winter in my Room

154
Poemas foram escolhidos ao acaso através de uma rotina de programação elaborada para sortear os números de 1 a 1775,
que correspondem à numeração adotada na edição de Thomas H. Johnson (1975). Caso a temática da natureza não fosse
identificada, passaríamos ao texto subseqüente.
207

38. I reckon – when I count at all –


39. I see thee better – in the Dark –
40. I send Two Sunsets –
41. I suppose the time will come
42. I tend my flowers for thee –
43. It can’t be ‘Summer’!
44. It will be Summer – eventually.
45. Longing is like the Seed
46. Love reckons by itself – alone –
47. Mama never forgets her birds,
48. My Cocoon tightens – Colors tease –
49. My Faith is larger than the Hills –
50. My Garden – like the Beach –
51. My river runs to thee –
52. Of Being is a Bird
53. Perhaps you’d like to buy a flower,
54. Portraits are to daily faces
55. Presentiment – is that long Shadow – on the Lawn –
56. Publication – is the Auction
57. Snow beneath whose chilly softness
58. Soil of Flint, if steady tilled –
59. Some say goodnight – at night –
60. Summer – we all have seen –
61. Sunset at Night – is natural –
62. Teach Him – When He makes the names –
63. The Bat is dun, with wrinkled Wings –
64. The Bee is not afraid of me.
65. The Brain, within its Groove
66. The Clover’s simple Fame
67. The Drop, that wrestles in the Sea-
68. The earth has many keys.
69. The Gentian weaves her fringes -
70. The Heart has narrow Banks
71. The joy that has no stem nor core,
72. The Mountains – grow unnoticed –
73. The parasol is the umbrella’s daughter,
74. The pedigree of Honey
75. The Robin is a Gabriel
76. There is a June when Corn is cut
77. The reticent volcano keeps
78. The Road was lit with Moon and star –
79. The Spider holds a Silver Ball
80. The Sun and Moon must make their haste –
81. The Sun is reining to the West
82. The Sun is one – and on the Tare
83. The Sun kept setting – setting – still
84. The Sunset stopped on Cottages
85. The Wind begun to rock the Grass
86. The Winters are so short –
87. This – is the land – the Sunset washes –
208

88. This World is not Conclusion.


89. ‘Tis whiter than an Indian Pipe -
90. To make a prairie it takes a clover and one bee,
91. Until the Desert knows
92. Water, is taught by thirst.
93. We send the Wave to find the Wave –
94. We should not mind so small a flower –
95. Where every bird is bold to go
96. While Asters -
97. Will there really be a “Morning”?
98. With thee, in the Desert –
99. Within my Garden, rides a Bird
100. You cannot put a fire out –
209

MOTIVOS DA TERRA155
84 elementos

1. AMETHYST / ametista
The Sun is reining to the West

2. ANGLEWORM / MINHOCA
A Bird came down the Walk –

3. APPLE / MAÇÃ
I suppose the time will come

4. APPLE TREE / MACIEIRA


A Drop fell on the Apple Tree –

5. ASTER / ÁSTER
It will be Summer – eventually.
While Asters –

6. AUBURN / “OUTONO”
How fits his Umber Coat

7. BERRY / FRUTO (MORANGO, AMORA, FRAMBOESA)


Teach Him – When He makes the names -

8. BLOSSOM / FLOR DE ÁRVORE FRUTÍFERA


The Gentian weaves her fringes -
Within my Garden, rides a Bird

9. BOG / PÂNTANO
A narrow Fellow in the Grass
It will be Summer – eventually.

10. BOUGH / GALHO


A fuzzy fellow, without feet,
For every Bird a Nest –
If I could bribe them by a Rose

11. BOUQUET / BUQUÊ


It will be Summer – eventually.

12. BUSH / ARBUSTO


A Drop fell on the Apple Tree –

13. CACTUS / CACTO


I tend my flowers for thee –

155
Integram os motivos da terra os sememas “Spring” (primavera) e “Fall” (outono).
210

14. CALYX / CÁLICE DA FLOR


I tend my flowers for thee –

15. CARNATION / CRAVO


I tend my flowers for thee –
We should not mind so small a flower –

16. CATERPILLAR / LAGARTA


A fuzzy fellow, without feet,

17. CATTLE / GADO


The Wind begun to rock the Grass
The Winters are so short –

18. CHESTNUT / CASTANHA


How fits his Umber Coat

19. CHRYSOLITE / CRISÓLITO (PEDRA PRECIOSA DOURADA)


It can’t be ‘Summer”!

20. CLOVER / TREVO


Perhaps you’d like to buy a flower,
The Clover’s simple Fame
To make a praire it takes a clover and one bee,

21. CORAL / CORAL


I tend my flowers for thee –

22. CORE / CAROÇO


The joy that has no stem nor core,

23. CORN / MILHO


A narrow Fellow in the Grass
I suppose the time will come
The is a June when Corn is cut

24. COW / VACA


The Clover’s simple Fame

25. DAFFODIL / NARCISO


Absent Place – an April Day –
Perhaps you’d like to buy a flower,

26. DAISY / MARGARIDA


I tend my flowers for thee –
The Clover’s simple Fame

27. DANDELION / DENTE-DE-LEÃO (PLANTA)


We should not mind so small a flower –
211

28. DESERT / DESERTO


Until the Desert knows
With thee, in the Desert –

29. DOG / CÃO


Within my Garden, rides a Bird

30. DUST / PÓ, POEIRA


A Drop fell on the Apple Tree –

31. earth / terra

I suppose the time will come


The earth has many keys.
The Wind begun to rock the Grass

32. EARTHQUAKE / TERREMOTO


At least – to pray – is left – is left –

33. FLINT / SÍLEX (PEDRA DE ISQUEIRO)


Soil of Flint, if steady tilled –

34. FLOWER / FLOR


Come slowly – Eden!
Except to Heaven, she is nought.
If I could bribe them by a Rose
How many Flowers fail in Wood –
I tend my flowers for thee –
My Faith is larger than the Hills –
Perhaps you’d like to buy a flower,
The Sun is one – and on the Tare
The Clover’s simple Fame
We should not mind so small a flower –

35. FOLIAGE / RAMAGEM


An Antiquated Tree

36. FOREST / FLORESTA


A fuzzy fellow, without feet,

37. FUCHSIA / BRINCO-DE-PRINCESA


I tend my flowers for thee –

38. GARDEN / JARDIM


I tend my flowers for thee –
My Garden – like the Beach –
We should not mind so small a flower –
Within my Garden, rides a Bird

39. GENTIAN / GENCIANA


212

The Gentian weaves her fringes –

40. GERANIUM / GERÂNIO


I tend my flowers for thee –

41. GRASS / GRAMA


A Bird came down the Walk –
A fuzzy fellow, without feet,
A narrow Fellow in the Grass
Except to Heaven, she is nought.
Presentiment – is that long Shadow – on the Lawn –
The Sun kept setting – setting – still

42. GROUND / CHÃO


For every Bird a Nest –
Longing is like the Seed

43. HERB / ERVA


Ah, Necromancy Sweet!

44. HILL / MONTE


How many Flowers fail in Wood –
It will be Summer – eventually.
My Faith is larger than the Hills –
The Brain, within its Groove
The Road was lit with Moon and star –
While Asters –

45. HYACINTH / JACINTO


I tend my flowers for thee –

46. JESSAMINE / JASMIM


Come slowly – Eden!

47. LAND / TERRA


I have a Bird in spring
This – is the land – the Sunset washes –
Water, is taught by thirst.

48. LAWN / RELVA


A Murmur in the Trees – to note –
Except to Heaven, she is nought.
Presentiment – is that long Shadow – on the Lawn –
We should not mind so small a flower –

49. LEAF / FOLHA


The Wind begun to rock the Grass
213

50. LEOPARD / LEOPARDO


Blazing in Gold and quenching in Purple
With thee, in the Desert –

51. LILAC / LILÁS (flor)


It will be Summer – eventually.

52. LIMB / RAMO


Of Being is a Bird

53. MAPLE / BORDO


The Gentian weaves her fringes -

54. MEADOW / CAMPINA


Blazing in Gold and quenching in Purple

55. MOUNTAIN / MONTANHA


The Mountains – grow unnoticed –
Will there really be a “Morning”?

56. NECTAR / NÉCTAR


Come slowly – Eden!

57. NUT / NOZ


How fits his Umber Coat

58. PALM / PALMEIRA


Soil of Flint, if stedy tilled –

59. PETAL / PÉTALA


A sepal, petal, and a thorn

60. PENINSULA / PENINSULA


The earth has many keys.

61. PLAIN / PLANÍCIE


Ah, Necromancy Sweet!

62. POD / VAGEM


How many Flowers fail in Wood –
The joy that has no stem nor core,
The Winters are so short –

63. PRAIRIE / PRADO


To make a praire it takes a clover and one bee,

64. RIDGE / SERRA


How far it to Heaven?
214

65. ROSE / ROSA


A sepal, petal, and a thorn
I have a Bird in spring
I tend my flowers for thee –
If I could bribe them by a Rose
It will be Summer – eventually.
The is a June when Corn is cut
This – is the land – the Sunset washes –
Within my Garden, rides a Bird

66. SAND / AREIA


Soil of Flint, if steady tilled –
Until the Desert knows

67. SEED / SEMENTE


Longing is like the Seed
Soil of Flint, if steady tilled –
The is a June when Corn is cut
The joy that has no stem nor core,

68. SEPAL / SÉPALA (folíolo do cálice das flores)


A sepal, petal, and a thorn

69. SNAKE / COBRA


In Winter in my Room

70. SOIL / SOLO


Soil of Flint, if steady tilled –

71. SPRING / PRIMAVERA


A fuzzy fellow, without feet,
It can’t be ‘Summer”!

72. SQUIRREL / ESQUILO


A Saucer holds a Cup

73. STEM / CAULE


My Faith is larger than the Hills –
The joy that has no stem nor core,

74. STONE / PEDRA


How happy is the little Stone

75. TARE / ERVILHACA (tipo de forragem)


The Sun is one – and on the Tare

76. THORN / ESPINHO


A sepal, petal, and a thorn
215

77. tree / árvore

A Murmur in the Trees – to note –


A Saucer holds a Cup
An Antiquated Tree
I have a Bird in spring
I suppose the time will come
Mama never forgets her birds,
The Road was lit with Moon and star –
The Wind begun to rock the Grass
We should not mind so small a flower –

78. TWIG / GALHO


For every Bird a Nest –
Her breast is fit for pearls,
This World is not Conclusion.

79. TWINE / RAMO OU GALHO ENROSCADO


Her breast is fit for pearls,

80. WILDERNESS / DESERTO


Had I not seen the Sun

81. WOOD / MATA


How many Flowers fail in Wood –
If I could bribe them by a Rose
The Bee is not afraid of me.
With thee, in the Desert –

82. WORLD / MUNDO


I cannot buy it – ‘tis not sold –
My Faith is larger than the Hills –
The Winters are so short –
This World is not Conclusion.

83. WORM / VERME


In Winter in my Room

84. VIOLET / VIOLETA


I see thee better – in the Dark –
216

ISOTOPIA DA TERRA
32 poemas

1. ABSENT PLACE – AN APRIL DAY


2. A fuzzy fellow, without feet,
3. Ah, Necromancy Sweet!
4. A narrow Fellow in the Grass
5. A Saucer holds a Cup
6. A sepal, petal, and a thorn
7. In Winter in my Room
8. Come slowly – Eden!
9. Except to Heaven, she is nought.
10. How many Flowers fail in Wood –
11. How far is it to Heaven?
12. How fits his Umber Coat
13. How happy is the little Stone
14. The earth has many keys.
15. I cannot buy it – ‘tis not sold –
16. If I could bribe them a Rose
17. I tend my flowers for thee –
18. It will be Summer – eventually.
19. Longing is like the Seed
20. My Faith is larger than the Hills –
21. Perhaps you’d like to buy a flower,
22. Soil of Flint, if steady tilled –
23. The Clover’s simple Fame
24. The joy that has no stem nor core,
25. The Mountains – grow unnoticed –
26. The Sun is one – and on the Tare
27. The Wind begun to rock the Grass
28. The World is not Conclusion.
29. Until the Desert knows
30. We should not mind so small a flower –
31. While Asters –
32. With thee, in the Desert –

ISOTOPIAS DA TERRA E DO AR
2 poemas

1. An Antiquated tree
2. To make a prairie it takes a clover and one bee,
217

156
REPRESENTAÇÃO DA NATUREZA EM 100 POEMAS DE CECÍLIA MEIRELES

1. A CANA AGRESTE OU A HARPA DE OURO


2. ACOSTUMEI MINHAS MÃOS
3. A estrada – pó de açafrão que o vento desmancha.
4. A ESTRELA QUE NASCEU TROUXE UM PRESSÁGIO TRISTE;
5. AI! A MANHÃ PRIMOROSA
6. AI, PALAVRAS, AI, PALAVRAS,
7. AI, TERRAS NEGRAS D’ÁFRICA,
8. ALHEIAS E NOSSAS
9. A LUA NOS NOSSOS OMBROS
10. ANTIGA
11. AQUI ESTOU, JUNTO À TEMPESTADE
12. ARMEM A REDE ENTRE AS ESTRELAS,
13. ÁRVORE DA NOITE
14. ASSIM MORO EM MEU SONHO
15. A terra toda seca. Os rios – valas amarelas,
16. BEM DE MADRUGADA,
17. CAÇADOR QUE ANDAS NA MATA,
18. Cantemos também os frescos lençóis e as colchas brancas,
19. Cansei-me de anunciar teu nome
20. Chão verde e mole. Cheiros de selva. Babas de lodo.
21. Cigarra de ouro, fogo que arde,
22. Cinza
23. Cinza pisamos, cinza.
24. Como estes rostos
25. Como caíram tantas águas,
26. Das tuas águas tão verdes
27. Dize-me tu, montanha dura,
28. Dos meus retratos rasgados
29. Do trigo semeado, da fonte bebida,
30. E AQUI ESTOU, CANTANDO.
31. E EM REDOR DA MESA, NÓS, VIVENTES,
32. EM TRÊS ALTAS ONDAS A FONTE DESATA
33. EIS A ESTRADA, EIS A PONTE, EIS A MONTANHA
34. E HOJE ERA O TEU DIA DE FESTA!
35. EM SILENCIOSAS RODAS FULGENTES, COMO DESLIZAS,
36. ESCUTAI, NOBRES FIDALGOS:
37. ESTAS ALTAS ÁRVORES
38. ESTE PARDAL TRAVESSO
39. Eu canto porque o instante existe
40. EU VI AS ALTAS MONTANHAS
41. Face do muro tão plana,
42. Frágil ponte:
43. Gosto da gota d’água que se equilibra
44. Levaram as grades da varanda
45. Mais que a mão do amor,
156
Adotamos como forma de identificação dos poemas o primeiro verso a fim de mantermos um padrão único, uma vez que
os poemas de Emily Dickinson não têm título. Os poemas foram escolhidos ao acaso através de um programa para sortear os
números de 81 a 759, que correspondem às páginas da edição da Nova Aguilar (1977). Como em algumas páginas havia mais
de um poema, considerou-se o primeiro mencionado.
218

46. Meu coração tombou na vida


47. Meu sangue corre como um rio
48. Meus olhos andam sem sono,
49. Meus olhos eram mesmo água,
50. Nas grandes paredes solenes, olhando,
51. – Não faz mal que a chuva caia!
52. NÃO FIZ O QUE MAIS QUERIA
53. NÃO TINHA HAVIDO PÁSSARO NEM FLORES,
54. NÃO TINHA VINTE ANOS
55. NEM SEI SE É LUA, SE APENAS UM RASTRO DE NUVEM
56. NESTE LUGAR SÓ DE AREIA,
57. NO ALTO DA MONTANHA JÁ QUASE CHUVOSA
58. NO MEIO DO MUNDO FAZ FRIO,
59. NO MISTÉRIO DO SEM-FIM,
60. NOSSAS MENINAS BRINCAVAM
61. NUNCA EU TIVERA QUERIDO
62. O CHORO VEM PERTO DOS OLHOS
63. Ó DIMENSÕES DO INFERNO, DESMEDIDAS,
64. Ó LINGUAGEM DE PALAVRAS
65. O meu amor não tem
66. O pequeno vaga-lume
67. O rumor do mundo vai perdendo a força
68. O que amamos está sempre longe de nós:
69. O que me encanta é a linha alada
70. Os sonhos são flores altas
71. OU SE TEM CHUVA E NÃO SE TEM SOL
72. PASSAM ANJOS COM ESPADAS DE SILÊNCIO
73. PASSOU UM LOUCO, MONTADO.
74. PASTORZINHO MEXICANO:
75. PELA ESTRADA DE SANTIAGO,
76. PELO ARCO-ÍRIS TENHO ANDADO.
77. PELO MONTE CLARO,
78. PESCADOR TÃO ENTRETIDO
79. Quando o sol ia acabando[
80. Quando passarem os dias,
81. Quente é a noite,
82. Que tempo seria
83. Quieta coruja do bosque negro,
84. Rua da Estrela,
85. Relógios certeiros:
86. Se de novo passares,
87. SE EU FOSSE APENAS UMA ROSA,
88. SE NÃO HOUVESSE MONTANHAS!
89. SOBRE O CAMPO VERDE,
90. SOM
91. Sonhaste as ilhas, a vaga, a lua,
92. Sou entre flor e nuvem,
93. Teu nome nas águas
94. Uma voz cantava ao longe
95. Vejo o cavalo parado
96. Vem ver as cascas das conchas
219

97. Vens sobre noites sempre. E onde vives? Que flama


98. Viajo entre poços cavados na terra seca.
99. Vimos a lua nascer, na tarde clara.
100. Vi teus vestidos brilharem
220

157
MOTIVOS DA TERRA
98 elementos

1. AÇAFRÃO
A estrada – pó de açafrão que o vento desmancha.

2. ACÁCIA
Estas altas árvores

3. AGAVE
Pastorzinho mexicano:

4. AMENDOEIRA
Estas altas árvores

5. ANANÁS
Nossas meninas brincavam

6. ANIMAL
Nossas meninas brincavam
PASSOU UM LOUCO, MONTADO.
Viajo entre poços cavados na terra seca.

7. AREIA
Cansei-me de anunciar teu nome
Cinza pisamos, cinza.
Dos meus retratos rasgados
EM TRÊS ALTAS ONDAS A FONTE DESATA
Este pardal travesso
Frágil ponte:
Meus olhos andam sem sono,
Neste lugar só de areia,
O meu amor não tem
Os sonhos são flores altas
Quieta coruja do bosque negro,
SE NÃO HOUVESSE MONTANHAS!
Teu nome nas águas
Vem ver as cascas das conchas
Vi teus vestidos brilharem

8. ÁRVORE
Árvore da noite
Chão verde e mole. Cheiros de selva. Babas de lodo.
Estas altas árvores
Este pardal travesso
O rumor do mundo vai perdendo a força
Quieta coruja do bosque negro,

157
Integram os motivos da terra os sememas “primavera” e “outono”.
221

9. BAMBU
Quente é a noite,

10. BARRO
– Não faz mal que a chuva caia!
Os sonhos são flores altas
Viajo entre poços cavados na terra seca.

11. BOI
BEM DE MADRUGADA,
Viajo entre poços cavados na terra seca.

12. BOSQUE
Nas grandes paredes solenes, olhando,
Quente é a noite,
Quieta coruja do bosque negro,

13. BÚFALO
Quente é a noite,
Viajo entre poços cavados na terra seca.

14. CAMELO
Viajo entre poços cavados na terra seca.

15. CAMPINA
PELO MONTE CLARO,

16. CAMPO
BEM DE MADRUGADA,
Cantemos também os frescos lençóis e as colchas brancas,
Chão verde e mole. Cheiros de selva. Babas de lodo.
Das tuas águas tão verdes
DO TRIGO SEMEADO, DA FONTE BEBIDA,
Nas grandes paredes solenes, olhando,
Ó linguagem de palavras
O rumor do mundo vai perdendo a força
Os sonhos são flores altas
PASSOU UM LOUCO, MONTADO.
PASTORZINHO MEXICANO:
Sobre o campo verde,
Viajo entre poços cavados na terra seca.
Vi teus vestidos brilharem

17. CANTEIRO
EM TRÊS ALTAS ONDAS A FONTE DESATA
Face do muro tão plana,
No mistério do Sem-Fim,

18. CANAVIAL
Cinza.
222

19. CANA
A cana agreste ou a harpa de ouro
Cinza.

20. CAVALO
EIS A ESTRADA, EIS A PONTE, EIS A MONTANHA
PELA ESTRADA DE SANTIAGO,
PELO MONTE CLARO,
Vejo o cavalo parado

21. CHÃO
A LUA NOS NOSSOS OMBROS
Chão verde e mole. Cheiros de selva. Babas de lodo.
E AQUI ESTOU, CANTANDO.

22. CIPRESTE
Estas altas árvores
Vejo o cavalo parado

23. CORDEIRO
PASTORZINHO MEXICANO:

24. CRAVO
A estrada – pó de açafrão que o vento desmancha.
Face do muro tão plana,

25. CRISÂNTEMO
– Não faz mal que a chuva caia!

26. DÁLIA
– Não faz mal que a chuva caia!
Cantemos também os frescos lençóis e as colchas brancas,

27. DESERTO
A terra toda seca. Os rios – valas amarelas,
Gosto da gota d’água que se equilibra
NÃO FIZ O QUE MAIS QUERIA
Viajo entre poços cavados na terra seca.

28. DUNA
Vem ver as cascas das conchas

29. ELEFANTE
Quente é a noite,

30. ENCOSTA
Chão verde e mole. Cheiros de selva. Babas de lodo.
EIS A ESTRADA, EIS A PONTE, EIS A MONTANHA
223

31. ERVA
E AQUI ESTOU, CANTANDO.
NO ALTO DA MONTANHA JÁ QUASE CHUVOSA
O que amamos está sempre longe de nós:

32. FERA
SONHASTE AS ILHAS, A VAGA, A LUA,

33. FLOR
AI! A MANHÃ PRIMOROSA
Cigarra de ouro, fogo que arde,
Chão verde e mole. Cheiros de selva. Babas de lodo.
Em três altas ondas a fonte desata
Estas altas árvores
Levaram as grades da varanda
Mais que a mão do amor,
Nas grandes paredes solenes, olhando,
NEM SEI SE É LUA, SE APENAS UM RASTRO DE NUVEM
NÃO TINHA HAVIDO PÁSSARO NEM FLORES,
Nossas meninas brincavam
O pequeno vaga-lume
O que amamos está sempre longe de nós:
O rumor do mundo vai perdendo a força
Os sonhos são flores altas
Quente é a noite,
Que tempo seria,
Relógios certeiros:
Rua da Estrela,
Se de novo passares,
Sou entre flor e nuvem,
Viajo entre poços cavados na terra seca.
Vimos a lua nascer, na tarde clara.
Vi teus vestidos brilharem

34. FLORESTA
Como caíram tantas águas,
Vimos a lua nascer, na tarde clara.
Vi teus vestidos brilharem

35. FOLHA
E hoje era o teu dia de festa!
Estas altas árvores
Gosto da gota d’água que se equilibra
Os sonhos são flores altas
Rua da Estrela,

36. FORMIGA
Chão verde e mole. Cheiros de selva. Babas de lodo.
Levaram as grades da varanda
224

37. FRUTO
A terra toda seca. Os rios – valas amarelas,
Como caíram tantas águas,
Nossas meninas brincavam

38. GALHO
Estas altas árvores
Este pardal travesso
Face do muro tão plana,

39. GINETE
Vejo o cavalo parado
40. JAQUEIRA
Como caíram tantas águas,

41. JARDIM
Ai! a manhã primorosa
A lua nos nossos ombros
E em redor da mesa, nós, viventes,
Nem sei se é lua, se apenas um rastro de nuvem
No mistério do Sem-Fim,
PASSAM ANJOS COM ESPADAS DE SILÊNCIO
Rua da Estrela,
Viajo entre poços cavados na terra seca.

42. LENHA
Nossas meninas brincavam

43. LEÃO
ARMEM A REDE ENTRE AS ESTRELAS,

44. LIMO
Como estes rostos

45. LIMOEIRO
Levaram as grades da varanda

46. LÍQUEN
Como estes rostos

47. LOBO
E EM REDOR DA MESA, NÓS, VIVENTES,

48. louro
QUANDO PASSAREM OS DIAS,
225

49. macaco
Quente é a noite,
226

50. madeira
AI, PALAVRAS, AI, PALAVRAS,
NOSSAS MENINAS BRINCAVAM

51. malmequer
Cantemos também os frescos lençóis e as colchas brancas,

52. mandioca
NOSSAS MENINAS BRINCAVAM

53. mangueira
Como caíram tantas águas,
Estas altas árvores
Quente é a noite,

54. MATA
CAÇADOR QUE ANDAS NA MATA,

55. montanhas
Dize-me tu, montanha dura,
EIS A ESTRADA, EIS A PONTE, EIS A MONTANHA
Eu vi as altas montanhas
No alto da montanha já quase chuvosa
Os sonhos são flores altas
SE NÃO HOUVESSE MONTANHAS!

56. monte
No alto da montanha já quase chuvosa
PASSOU UM LOUCO, MONTADO.
PELO MONTE CLARO,
Quieta coruja do bosque negro,

57. mundo
ASSIM MORO EM MEU SONHO:
CANSEI-ME DE ANUNCIAR TEU NOME
DO TRIGO SEMEADO, DA FONTE BEBIDA,
E EM REDOR DA MESA, NÓS, VIVENTES,
Meu coração tombou na vida
Meus olhos andam sem sono,
NÃO FIZ O QUE MAIS QUERIA
NO MEIO DO MUNDO FAZ FRIO,
O RUMOR DO MUNDO VAI PERDENDO A FORÇA
PELA ESTRADA DE SANTIAGO,
Relógios certeiros:
SONHASTE AS ILHAS, A VAGA, A LUA
Vens sobre noites sempre. E onde vives? Que flama
Viajo entre poços cavados na terra seca.
227

58. musgo
COMO ESTES ROSTOS
ANTIGA

59. NÉCTAR
Se de novo passares,

60. OUTONO
Vi teus vestidos brilharem

61. PALMEIRA
Como caíram tantas águas,
Dize-me tu, montanha dura,

62. PASTO
PASSOU UM LOUCO, MONTADO.

63. PAU VERMELHO


Nossas meninas brincavam

64. PAVÃO
Quente é a noite,
Viajo entre poços cavados na terra seca.

65. PEDRA
A lua nos nossos ombros
DO TRIGO SEMEADO, DA FONTE BEBIDA,
O pequeno vaga-lume
Pescador tão entretido
Sou entre flor e nuvem,
Teu nome nas águas
Uma voz cantava ao longe
Vejo o cavalo parado
Vens sobre noites sempre. E onde vives? Que flama

66. PLANTA
Como caíram tantas águas,
Dos meus retratos rasgados
Este pardal travesso
PELO MONTE CLARO,

67. planeta
NO MISTÉRIO DO SEM-FIM,

68. PLANÍCIE
PASSAM ANJOS COM ESPADAS DE SILÊNCIO

69. PÓ
A terra toda seca. Os rios – valas amarelas,
228

70. POEIRA
PELA ESTRADA DE SANTIAGO,

71. PRADO
Se de novo passares,

72. PRIMAVERA
No alto da montanha já quase chuvosa

73. RAIZ
CAÇADOR QUE ANDAS NA MATA,
Dos meus retratos rasgados

74. RAMAGEM
Face do muro tão plana,
Vi teus vestidos brilharem

75. RAMO
Ai! a manhã primorosa
Árvore da noite
Cigarra de ouro, fogo que arde,
No alto da montanha já quase chuvosa

76. REBANHO
Dize-me tu, montanha dura,
Pastorzinho mexicano:

77. RELVA
O pequeno vaga-lume

78. ROCHA
A terra toda seca. Os rios – valas amarelas,
Cansei-me de anunciar teu nome
Não tinha vinte anos
No alto da montanha já quase chuvosa

79. ROCHEDO
Das tuas águas tão verdes

80. ROSA
Ai! a manhã primorosa
AI, PALAVRAS, AI, PALAVRAS,
Quando passarem os dias,
Relógios certeiros:
SE EU FOSSE APENAS UMA ROSA,

81. ROSILHO (cavalo com o pêlo avermelhado)


PASSOU UM LOUCO, MONTADO.
229

82. SABUGUEIRO
Face do muro tão plana,

83. SEIXO
CAÇADOR QUE ANDAS NA MATA,

84. SELVA
AI, TERRAS NEGRAS D’ÁFRICA,
Chão verde e mole. Cheiros de selva. Babas de lodo.
PELO MONTE CLARO,

85. SEMENTE
BEM DE MADRUGADA,
O que amamos está sempre longe de nós:

86. SERPENTE
E AQUI ESTOU, CANTANDO.
Quieta coruja do bosque negro,

87. SERRA
CAÇADOR QUE ANDAS NA MATA,
Pastorzinho mexicano:

88. SOLO
Dos meus retratos rasgados

89. TÂMARA
Quente é a noite,

90. TAMAREIRA
A terra toda seca. Os rios – valas amarelas,

91. TERRA
AI, TERRAS NEGRAS D’ÁFRICA,
A terra toda seca. Os rios – valas amarelas,
BEM DE MADRUGADA,
Como estes rostos
Dize-me tu, montanha dura,
Dos meus retratos rasgados
Mais que a mão do amor,
Meu coração tombou na vida
Neste lugar só de areia,
NOSSAS MENINAS BRINCAVAM
PASSAM ANJOS COM ESPADAS DE SILÊNCIO
PASSOU UM LOUCO, MONTADO.
PELO MONTE CLARO,
Relógios certeiros:
Rua da Estrela,
230

92. trigo
DO TRIGO SEMEADO, DA FONTE BEBIDA,

93. UVA
Dos meus retratos rasgados

94. VACA
Nas grandes paredes solenes, olhando,

95. VALE
A estrada – pó de açafrão que o vento desmancha.
CAÇADOR QUE ANDAS NA MATA,
Como caíram tantas águas,
VEJO O CAVALO PARADO

96. vergel (JARDIM)


Quando passarem os dias,

97. VERME
Ó DIMENSÕES DO INFERNO, DESMEDIDAS,

98. violeta
No mistério do Sem-Fim,
231

ISOTOPIA DA TERRA
42 poemas

1. A estrada – pó de açafrão que o vento desmancha.


2. Ai a manhã primorosa
3. AI, TERRAS NEGRAS D’ÁFRICA,
4. A lua nos nossos ombros
5. Árvore da noite
6. A terra toda seca. Os rios – valas amarelas,
7. BEM DE MADRUGADA,
8. CAÇADOR QUE ANDAS NA MATA,
9. Chão verde e mole. Cheiros de selva. Babas de lodo.
10. CINZA.
11. COMO CAÍRAM TANTAS ÁGUAS,
12. COMO ESTES ROSTOS
13. DIZE-ME, TU, MONTANHA DURA,
14. Dos meus retratos rasgados
15. DO TRIGO SEMEADO, DA FONTE BEBIDA,
16. EIS A ESTRADA, EIS A PONTE, EIS A MONTANHA
17. Estas altas árvores
18. Este pardal travesso
19. Face do muro tão plana,
20. LEVARAM AS GRADES DA VARANDA
21. – NÃO FAZ MAL QUE A CHUVA CAIA!
22. NÃO FIZ O QUE MAIS QUERIA
23. NO ALTO DA MONTANHA JÁ QUASE CHUVOSA
24. NO MISTÉRIO DO SEM-FIM,
25. NOSSAS MENINAS BRINCAVAM
26. O MEU AMOR NÃO TEM
27. O que amamos está sempre longe de nós:
28. Os sonhos são flores altas
29. PASSOU UM LOUCO, MONTADO.
30. PASSAM ANJOS COM ESPADAS DE SILÊNCIO
31. Pastorzinho mexicano:
32. PELA ESTRADA DE SANTIAGO,
33. PELO MONTE CLARO,
34. Quando passarem os dias,
35. Quente é a noite,
36. QUIETA CORUJA DO BOSQUE NEGRO,
37. RELÓGIOS CERTEIROS:
38. Se de novo passares,
39. SOBRE O CAMPO VERDE,
40. SOU ENTRE FLOR E NUVEM,
41. VEJO O CAVALO PARADO
42. Viajo entre poços cavados na terra seca.
232

ISOTOPIAS DA TERRA E DA ÁGUA


2 poemas

1. Mais que a mão do amor,


2. Teu nome nas águas

ISOTOPIAS DA TERRA E DO AR
3 poemas

1. E AQUI ESTOU, CANTANDO.


2. Cinza pisamos, cinza.
3. Gosto da gota d’água que se equilibra

ISOTOPIAS DA TERRA E DO FOGO


3 poemas

1. CANTEMOS TAMBÉM OS FRESCOS LENÇÓIS E AS COLCHAS BRANCAS,


2. CIGARRA DE OURO, FOGO QUE ARDE,
3. UMA VOZ CANTAVA AO LONGE

ISOTOPIAS DA TERRA, DA ÁGUA E DO FOGO


1 poema

1. Nas grandes paredes solenes, olhando,

ISOTOPIAS DA TERRA, DA ÁGUA E DO AR


1 poema

1. Se eu fosse apenas uma rosa,


233

TABELAS
_________________________________________________________________________________
______

Tabela 1: MOTIVOS DA TERRA


37 elementos em comum

Elementos POEMAS DE ELEMENTOS POEMAS DE


DA TERRA CECÍLIA da Terra EMILY
MEIRELES DICKINSON
ÁRVORE 6 TREE 9
AREIA 15 SAND 2
CAMPINA 1 MEADOW 1
CHÃO 3 GROUND 2
CRAVO 2 CARNATION 2
DESERTO 4 DESERT 2
WILDERNESS 1
ERVA 3 HERB 1
FLOR 24 FLOWER 10
BLOSSOM 2
FLORESTA 3 FOREST 1
SELVA 3
FOLHA 5 LEAF 1
FRUTO 3 BERRY 1
GALHO 3 TWIG 3
BOUGH 3
JARDIM 8 GARDEN 4
VERGEL 1
MATA 1 WOOD 4
MONTANHA 6 MOUNTAIN 2
MONTE 4 HILL 6
MUNDO 14 WORLD 4
NÉCTAR 1 NECTAR 1
OUTONO 1 AUBURN 1
PALMEIRA 2 PALM 1
PEDRA 9 STONE 1
PLANÍCIE 1 PLAIN 1
234

ELEMENTOS POEMAS DE ELEMENTOS POEMAS DE


DA TERRA CECÍLIA da Terra EMILY
MEIRELES DICKINSON
PÓ 1 DUST 1
PRADO 1 PRAIRE 1
PRIMAVERA 1 SPRING 2
RAMAGEM 2 FOLIAGE 1
RAMO 4 LIMB 1
TWINE 1
RELVA 1 LAWN 4
SERRA 2 RIDGE 1
ROSA 5 ROSE 8
SEMENTE 2 SEED 4
SERPENTE 2 SNAKE 1
SOLO 1 SOIL 1
TERRA 15 EARTH 3
LAND 3
VACA 1 COW 1
VERME 1 ANGLEWORM 1
WORM 1
VIOLETA 1 VIOLET 1
235

Em 100 poemas escolhidos ao acaso, através de uma rotina de programação158, os


motivos da terra, foram os mais freqüentes na lírica as autoras, tendo maior incidência os
seguintes: a árvore, a flor, a rosa, a montanha e o monte.

158
Foram sorteados cem números de 1 a 1775, correspondentes à numeração dos poemas de Emily Dickinson na
edição de Johnson; e cem números de 81 a 759, correspondentes à numeração das páginas dos poemas de Cecília
Meireles na edição de Afrânio Coutinho.
236

POEMAS elementos da natureza


flower / flor
10
tree / árvore
9
rose / rosa
8
grass / hill / monte
6 grama
garden / lawn / relva seed / wood / mata world / seed /
4 jardim semente mundo semente
bough / clover / trevo corn / milho earth / terra land / terra pod / twig / galho
3 galho vagem
aster / áster blossom / bog / carnation / cattle / gado daffodil / daisy / desert /
2 flor pântano cravo narciso margarida deserto
ground / leopard / mountain / sand / terra Spring / stem / caule
chão leopardo montanha primavera
amethyst / angleworm / apple / apple tree / auburn / berry / fruto bouquet / bush /
ametista minhoca maçã macieira outono buquê arbusto

cactus / calyx / cálice catepillar / chestnut / chrysolite / coral / coral core / cow / vaca
cacto lagarta castanha crisólito caroço
dandelion / dog / cão dust / pó earthquake / flint / sílex foliage / forest / fuchsia /
1 dente-de- terremoto ramagem floresta brinco-de-
leão princesa
gentian / geranium / herb / erva hyacinth / jessamine / leaf / folha lilac / lilás limb /
genciana gerânio jacinto jasmim ramo

maple / meadow / nectar / nut / noz palm / petal / peninsula / plain /


bordo campina néctar palmeira pétala península planície

Tabela 2: MOTIVOS DA TERRA


em 100 poemas de Emily Dickinson
237
238

Tabela 3: MOTIVOS DA TERRA


EM 100 POEMAS DE CECÍLIA MEIRELES

elementos da natureza

flor

areia terra

campo mundo

pedra

jardim

árvore montanha

folha rosa

cavalo deserto monte planta ramo rocha vale

animal barro bosque canteiro chão erva floresta fruto galho mangu

boi búfalo cana cipreste cravo dália encosta formiga madeira musg

pavão raiz ramagem rebanho semente serpente serra

açafrão acácia agave amendoeira ananás bambu camelo campina canavial cordei

duna elefante fera ginete jaqueira lenha leão limo limoeiro líque

louro macaco malmequer mandioca mata néctar outono pasto pau vermelho plane

pó poeira prado primavera relva rochedo rosilho sabugueiro seixo solo

tamareira trigo uva vaca vergel verme violeta

Tabela 4: MOTIVOS DA ÁGUA


EM 100 POEMAS DE EMILY DICKINSON

POEMAS ELEMENTOS DA NATUREZA

12 sea / mar

4 bank / margem dew / orvalho pearl / pérola water / água

3 brook / riacho ocean / oceano snow / neve


239

2 drop / gota flood / enchente frost / geada rain / chuva river / rio

1 beach / praia current / gale / tormenta otter / lontra water lily / wave / onda
corrente nenúfar
240

Tabela 5: Motivos da Água


em 100 poemas de Cecília Meireles

POEMAS elementos da natureza

35 água

23 mar

11 onda

10 rio

9 praia

7 chuva

6 fonte espuma

5 concha

3 peixe

2 ilha lago orvalho pérola vaga

arroio búzios caverna coral gota limo litoral lodo


1
maré neve oceano pingos de poça poço rosa tormenta
chuva
241

Tabela 6: MOTIVOS DO AR
em 100 poemas de Emily Dickinson

POEMAS elementos da natureza


14 bee / abelha

7 breeze / brisa butterfly /


borboleta

6 wind vento

5 nest / ninho sky / céu

4 air / ar wing / asa

3 robin / paparoxo

2 bobolink / feather / pena firmament / heaven / céu horizon / horizonte


triste-pia firmamento

sparrow / pardal winter / inverno

1 balm / bálsamo bat / morcego beetle / besouro blackbird / melro blue-bird / azulão

cloud / nuvem crest / crista cricket / grilo crow / corvo fog / nevoeiro

cocoon / casulo gauze / névoa hurricane / furacão jay / gaio lark / cotovia

maelstrom / oriole / papa-figo phoebe / papa- spider / aranha storm / tempestade


redemoinho mosca

tempest / thunder / trovão wren / cambaxirra


tempestade
242

Tabela 7: MOTIVOS DO AR
em 100 poemas de Cecília Meireles

poemas elementos da natureza

31 vento

20 nuvem

17 céu

12 ar

11 horizonte

10 asa

5 pássaro

4 arco-íris borboleta

3 universo

águia andorinha aranha ave cigarra névoa teia


2
tempestade tempo vagalume

abelha abutre aragem beija-flor brisa bruma codorna


1
coruja gaivota larva mariposa morcego monção neblina

nevoeiro pardal passarinho pena perdiz trovão ventania


243

Tabela 8: MOTIVOS DO FOGO


EM 100 POEMAS DE EMILY DICKINSON

POEMAS elementos da natureza


sun / sol
19
Summer / verão
13
light / luz
9
dawn / sunset / crepúsculo
5 madrugada

3 moon / lua star / estrela

day / dia dusk / crepúsculo eclipse / eclipse fire / fogo morning / manhã
2
night / noite
evening west / glow worm / vaga- ignis fatuus / fogo-
ashes / cinzas aurora / aurora
crepúsculo lume fátuo
1 illume / lume
lightning / ray / raio de luz sunrise / aurora volcano / vulcão
relâmpago
244

Tabela 9: MOTIVOS DO FOGO


EM 100 POEMAS DE CECÍLIA MEIRELES

elem entos da natureza


POEMAS

22 noite

18 estrela

16 lua

15 dia

13 sol

8 luz

7 tarde

6 fogo

5 luar

2 aurora chama madrugada manhã

alvorada brasa calor claridade


1
crepúsculo flama fumaça raio vulcão
245

Tabela 10 : MOTIVOS DA NATUREZA

TERRA AR FOGO ÁGUA

CECÍLIA 98 41 22 30
MEIRELES

EMILY 84 40 24 19
DICKINSON

Na obra das autoras, destacam-se os motivos da terra e do ar. Na lírica ceciliana,


os motivos da água, associados à fugacidade do tempo e à morte, são mais freqüentes
que os motivos do fogo, relativos à luz que dissipa as brumas da melancolia.
Na poesia dickinsoniana, a representação do fogo, através do sol e da luz, é superior à
representação da água, conferindo aos poemas as tonalidades da alegria.

Tabela 11: ISOTOPIAS DA NATUREZA

POEMAS
EM QUE NÃO HÁ
TERRA AR FOGO ÁGUA ISOTOPIA
DOMINANTE

CECÍLIA 42 15 12 19 12
MEIRELES

EMILY 32 28 25 12 3
DICKINSON

Na lírica das autoras, a exemplo dos motivos da natureza, predomina a isotopia da


terra. As isotopias da água e do fogo, por sua vez, comportam-se como os motivos
associados a esses elementos: a presença da água é mais intensa em Cecília Meireles, e a
incidência do fogo mais constante em Emily Dickinson. Na poesia dickinsoniana,
motivos e isotopias têm o mesmo padrão de ocorrência.
246

Tabela 12 : REPRESENTAÇÃO DA NATUREZA


NA POESIA DE CECÍLIA MEIRELES

TERRA AR ÁGUA FOGO

MOTIVOS 98 41 30 22

ISOTOPIAS 42 15 19 12

Os motivos e as isotopias da terra e do fogo comportam-se da mesma forma na


lírica ceciliana: terra é o elemento de maior incidência; fogo, o de menor.
No caso dessas temáticas, as isotopias, campos semânticos predominantes em cada
poema individualmente, coincidem, portanto, com os motivos presentes em
inúmeros poemas, em que integram isotopias ou funcionam como termos
alotópicos.

Tabela 13: REPRESENTAÇÃO DA NATUREZA


NA POESIA DE EMILY DICKINSON

TERRA AR FOGO ÁGUA


MOTIVOS 84 40 24 19

ISOTOPIAS 32 28 25 12

Os motivos e as isotopias da natureza apresentam o mesmo padrão de


incidência na poesia dickinsoniana: terra, ar, fogo e água se sucedem em
ordem decrescente de ocorrência. Há, portanto, uma íntima relação entre
motivos dispersos em uma obra poética e as isotopias predominantes em cada
poema isoladamente.
247

ANEXOS
_________________________________________________________________________________
______

Notícia da Vida159
Darcy Damasceno

Cecília Meireles nasceu no Rio de Janeiro, no bairro do Rio Comprido, no dia 7 de novembro
de 1901, e na mesma cidade faleceu a 9 de novembro de 1964. Eram brasileiros seus pais, e
portugueses os avós, à exceção da avó paterna. Marcada pela morte, dizimou-se-lhe a família muito
cedo: aos três anos de idade, já perdera os pais e três irmãos que não chegou a conhecer. Criada pela
avó materna, habituou-se desde a infância ao exercício da solidão, e as circunstâncias dramáticas que
lhe envolveram os primeiros tempos de vida foram em grande parte causadoras do precoce
desenvolvimento de sua consciência e do afinamento de sua sensibilidade.
Essa avó – Jacinta Garcia Benevides -, cujo nome Cecília deixou inscrito numa belíssima
“Elegia” de Mar Absoluto e outros poemas, exerceu sobre a criança extraordinária influência. Em
vários lugares deixou a poeta declarados o afeto e a admiração que lhe despertara aquela ilhoa rude e
simples como os dons da terra. “O que há de mais terno em mim, de mais profundo e autêntico, é, sem
dúvida, o que herdei da minha avó, açoriana de São Miguel”, confidência em carta a um amigo. E
revelou numa entrevista a Pedro Bloch, para a revista Manchete:
- Vovó era uma criatura extraordinária. Extremamente religiosa, rezava todos os dias. E eu
perguntava: “Por quem você está rezando?” “Por todas as pessoas que sofrem!” Era assim. Rezava
mesmo pelos desconhecidos. A dignidade, a elevação espiritual de minha avó influíram muito na
minha maneira de sentir os seres e a vida.
Por outro lado, envolve-se numa névoa lendária a figura do avô materno, a quem também
Cecília não conheceu, mas de quem fez comovida evocação: um homem de cepa antiga, que jamais se
deixara fotografar, “para que não morresse”. Esse avô, cuja figura apenas imaginária por coisas de
ouvir dizer se fixaria tão emocionadamente em sua alma, esse avô não teria sequer nome em papéis: as
notícias respeitantes à biografia de Cecília e por ela mesma fornecidas passaram sempre da designação
dos avós paternos – sem expressão afetiva em sua vida – para a avó Jacinta. Era como se se
prolongasse a magia daquele ser, calando-se-lhe o nome.

159
DAMASCENO, Darcy. Notícia da Vida. In: MEIRELES, Cecília. Seleta em Prosa e Verso. 2. ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1975. p. xi-xii.
248

A infância de orfandade deu a Cecília, conforme a escritora mesma declarou mais de uma vez,
duas coisas que parecem negativas, mas que para ela foram sempre positivas: silêncio e solidão. Nessa
área e sob esse clima desenvolveu-se toda a sua vida e a sua arte.
Estudante da antiga Escola Normal, onde se tornou professora em 1917, distinguiu-se como
aluna exemplar, merecendo a estima de mestres como Alfredo Gomes, Basílio de Magalhães e outros.
Ingressou então no magistério primário, mas desdobrou também sua atividade noutros numerosos
campos: o jornalismo, a pedagogia, o folclore – tudo a par, sempre, da criação literária. Empolgada
pelos problemas educacionais, participou ativamente das campanhas renovadoras do ensino, antes e
depois da Revolução de 30. Em 1935, era nomeada professora de literatura luso-brasileira da recém-
fundada Universidade do Distrito Federal.
De grande significação na sua vida foram as viagens. Elas começaram em 1934 com breve
visita a Portugal, onde reencontrou as raízes do sangue e a herança cultural; continuaram em 1940
(Estados Unidos e México) e, depois, em diferentes oportunidades, conheceu o Uruguai, a Argentina, a
Espanha, a Índia, Israel, Itália, Holanda, França, etc., extraindo do contato com gentes, costumes e
idiomas matéria de melhor compreensão da vida e da humanidade. Nenhuma região, entretanto,
imprimiu-se-lhe na sensibilidade como a Índia, para cuja cultura se voltara Cecília desde a adolescência
e de cujo pensamento filosófico se aproximara através dos anos.
Cecília Meireles casou-se duas vezes: a primeira (em 1922) com o artista português Fernando Correia
Dias; a segunda (em 1940) com o agrônomo Heitor Grillo. São do primeiro matrimônio as três filhas
que deixou.
249

Dados Biográficos160
Cecília Meireles
Darcy Damasceno

1901 – 7 de novembro: Nasce no Rio de Janeiro Cecília Meireles Benevides, filha de Carlos Alberto de
Carvalho Meireles e de Matilde Garcia Benevides. O pai morrera antes de seu nascimento; sua mãe
morrerá aos seus três anos de idade. É criada pela avó materna.
1917 – Diplomada pela Escola Normal, passa a exercer o magistério.
1919 – Estréia na literatura com alguns sonetos parnasianos. Silêncio da crítica a respeito do livro.
1920 – Primeiros contatos com a cultura oriental. Literatura e filosofia indianas terão grande influência
em sua personalidade.
1922 – Casamento com o artista português Fernando Correia Dias, de quem teria três filhas e
enviuvaria em 1935.
1923 – Publica o livro de inspiração neo-simbolista, Nunca mais... e Poema dos poemas.
1929 – Publica a tese O espírito vitorioso, que defenderá com vista à cadeira de Literatura da Escola
Normal.
1930 – Começa a escrever, em jornais do Rio de Janeiro, sobre educação, folclore e literatura infantil.
1934 – Visita Portugal, em cuja tradição encontrou suas raízes culturais.
1935 – É nomeada professora de Literatura Luso-Brasileira da recém-fundada Universidade do Distrito
Federal.
1938 – Recebe o prêmio de poesia da Academia Brasileira de Letras pelo livro Viagem, que levanta
polêmicas e é publicado no ano seguinte.
1940 – Casa-se pela segunda vez, agora com o Prof. Heitor Grillo. Viaja para os Estados Unidos, onde
permanece três meses. As viagens serão então freqüentes e influenciarão bastante sua visão do mundo.
1942 – Publica Vaga Música. Intensa atividade jornalística.
1944 – Viaja pela América do Sul (Argentina e Uruguai).
1945 – Publica Mar absoluto e Outros poemas.
1948 – Participa da instalação da Comissão Nacional de Folclore.
1949 – Publica Retrato Natural.
1951 – Organiza o Primeiro Congresso Nacional de Folclore.
1953 – Publica o longo poema Romanceiro da Inconfidência.
1953-1958 – Longo período de viagens pela Europa, Açores, Índia, Groa, Porto Rico e Israel, que
refletirão em sua poesia.
1958 – Sai a primeira edição de sua Obra poética pela Editora Aguilar, com 1094 páginas em papel-
bíblia.
1960 – Publica Metal Rosicler.
1963 – Publica Solombra, seu último livro.

160
Adaptação a partir de: DAMASCENO, Darcy. Cecília Meireles. Rio de Janeiro: Agir, 1996. p. 9-10.
250

1964 – 9 de novembro: Falece no Rio de Janeiro, após dolorosa enfermidade. No ano seguinte, a
Academia Brasileira de Letras lhe atribuirá, post mortem, o Prêmio Machado de Assis, destinado a
conjunto de obra.

Obras em verso161

TÍTULO ANO DE
PUBLICAÇÃO
Espectros 1919
Nunca Mais... e Poema dos Poemas 1923
Baladas para El-Rei 1925
Viagem 1939
Vaga Música 1942
Mar Absoluto 1945
Retrato Natural 1949
Amor em Leonoreta 1952
Doze Noturnos da Holanda e O Aeronauta 1952
Romanceiro da Inconfidência 1953
Pequeno Oratório de Santa Clara 1955
Pistóia, Cemitério Militar Brasileiro 1955
Canções 1956
Romance de Santa Cecília 1957
A Rosa 1957
Obra Poética 1958
Metal Rosicler 1960
Poemas Escritos na Índia 1962
Solombra 1963
Ou Isto ou Aquilo 1964
Antologia Poética 1965
Crônica Trovada 1965
Poemas Italianos 1968
Poemas II 1950-1959
Flor de Poemas 1972

161
ATAIDE, Vicente. Modernismo. Curitiba: HDV, 1983, p. 36; MEIRELES, Cecília. Obra Poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1977. p.
69-70.
251

Emily Dickinson162

Carl Bode

Emily Dickinson (1830-1886) escreveu seu verso excêntrico e dardejante com indiferença
sublime a qualquer noção de democracia ou popularidade. Seu trabalho, bem diferente do de Walt
Whitman (1819-1892) e Longfellow (1807-1882), ilustra o fato de que alguém pode criar uma poesia
encantadora, inspirada em um vida simples e doméstica.
Emily Dickinson nasceu em Amherst, Massachusetts, cidade onde seu pai era um eminente
advogado e político, e seu avô havia fundado uma academia e faculdade. Sua família era muito unida, e
Lavinia, sua irmã, permaneceu em casa e nunca se casou.
Emily raramente deixava Amherst; cursou a faculdade em uma cidade próxima por apenas um
ano, e depois fez uma viagem a Washington e duas ou três a Boston. Após 1862, tornou-se
completamente reclusa, sem sair de casa ou encontrar sequer os amigos mais íntimos. Suas primeiras
cartas e autodescrições da juventude revelam-na uma garota atraente, de inteligência brilhante. Seu
definitivo afastamento da sociedade, talvez causado por um amor infeliz, parece, sobretudo, ter sido
fruto de sua própria personalidade, de um forte desejo de ausentar-se do mundo. A amplitude de sua
poesia não reflete suas experiências limitadas, mas o poder de sua criatividade e imaginação.
Quando começou a escrever poesia, Emily Dickinson tinha relativamente pouca educação
formal. Conhecia Shakespeare, a mitologia clássica e estava especialmente interessada em escritoras
inglesas como Elizabeth Browning (1806-1861) e as irmãs, Charlotte (1816-1855), Emily (1818-1848)
e Anne Brontë (1820-1849). Conhecia também os trabalhos de Ralph Waldo Emerson (1803-1882),
Henry David Thoreau (1817-1862) e Nathaniel Hawthorne (1804-1864). Embora não acreditasse na
religião convencional de sua família, estudou a Bíblia, e muitos de seus poemas têm a forma de hinos
religiosos.
Algumas figuras masculinas, em momentos distintos, influenciaram sua vida, atuando como
seus professores ou mestres. O primeiro foi Benjamin Newton, um jovem advogado que trabalhava no
escritório de seu pai e que contribuiu para sua cultura e gosto literário, tendo ainda influenciado suas
idéias sobre religião. Emily Dickinson refere-se a ele como “um amigo que me ensinou a
Imortalidade”.
Seu próximo professor foi Charles Wadsworth, um ministro casado, de meia-idade, que lhe
propiciou desafio intelectual e contato com o mundo. Parece que Emily Dickinson sentiu uma atração
por ele, a qual não pode ser correspondida; quando ele partiu para São Francisco em 1862, ela afastou-

162
BODE, Carl. Highlights of American Literature. Washington, D.C.: United States Information Agency, 1988. p. 90-91.
252

se da sociedade ainda mais. Wadsworth provavelmente inspirou seus poemas de amor, embora talvez
eles tenham sido endereçados a uma figura apenas idealizada, que jamais existira.
Sua intensa produção poética ocorreu no início dos anos de 1860; como ela vivia muito isolada,
a guerra civil pouco afetou seu pensamento. Nessa ocasião, enviou alguns de seus trabalhos para
Thomas Higginson, um crítico e autor renomado, que ficou impressionado com sua poesia, mas sugeriu
que ela empregasse as regras convencionais da gramática. Emily Dickinson, contudo, recusou-se a
modificar os poemas para adequá-los aos padrões da época, e não demonstrou interesse em publicá-los;
na verdade, apenas sete poemas seus foram publicados em vida. Higginson, contudo, foi um crítico
inteligente e sensível, com quem ela pôde discutir seu trabalho.
Nos últimos anos de sua vida, Emily Dickinson recebeu raras visitas, mas manteve-se em
contato com os amigos através de cartas, poemas breves e pequenos presentes. Após sua morte em
1886, sua irmã encontrou quase 1800 poemas, muitos dos quais foram publicados nos anos de 1890.
Emily Dickinson, como Herman Melville (1819-1891), foi reconhecida pelo mundo literário nos anos
de 1920163.
A poesia de Emily Dickinson surge como um arrebatamento. Os poemas são curtos muitos
dos quais em torno de uma única imagem ou símbolo. Em seus poemas líricos, Emily Dickinson fala
sobre questões importantes da vida. Escreve sobre o amor, que ela nunca encontrou, mas de que nunca
desistiu. Escreve sobre a natureza, sobre a fugacidade da vida, sobre a imortalidade. Escreve sobre o
sucesso, o qual ela jamais pensava alcançar, e sobre o fracasso, que ela considerava um fiel
companheiro. Emily Dickinson escrevia sobre esses temas tão brilhantemente que hoje é considerada
um dos nomes mais significativos da literatura americana.
Sua poesia atualmente é lida em todo o mundo, embora alguns aspectos estilísticos de sua obra,
como a escolha lexical e o emprego da pontuação, não tenham sido ainda definitivamente estabelecidos
e registrados. Como Emily Dickinson nunca organizou seus poemas para publicação, uma das
polêmicas mais acirradas da história literária americana tem sido a quem caberia publicar e editar sua
obra. A despeito de detalhes textuais e conflitos de interesse, a solitária Emily Dickinson de Amherst,
Massachusetts, é uma poeta cuja obra tem grande beleza e valor.

163
Época em que Cecília Meireles começou a publicar seus poemas.
253

Dados biográficos164
Emily Dickinson
Paul Ferlazzo

1830 – Emily Dickinson nasceu em Amherst, Massachusetts, em 10 de dezembro.


1840 – Abril, a família muda-se da propriedade rural na Rua Main para uma casa na Rua North
Pleasant. 7 de setembro, começa o primeiro ano na Academia Amherst.
1846 – Final de agosto à primeira quinzena de setembro, em Boston para tratamento médico.
1847 – 10 de agosto, conclui o sétimo ano na Academia Amherst. 30 de setembro, entra para o
Seminário Feminino Mount Holyoke em South Hadley.
1848 – Janeiro, Emily passa por uma severa crise religiosa. Agosto, termina o ano letivo em Mount
Holyoke. Conhece Benjamin F. Newton.
1850 – Janeiro, Newton envia os Poemas, de Emerson para Emily. 30 de novembro, Leonard
Humphrey, um de seus primeiros mestres falece.
1852 – 20 de fevereiro, dia dos namorados, “Sic transit”, publicado no jornal Springfield Republican.
1853 – 24 de março, Ben Newton falece em Worcester.
1855 – Março, conhece o Reverendo Charles Wadsworth na Filadélfia. Novembro, a família retorna
para a casa de campo na Rua Main. Inicia-se a longa enfermidade de sua mãe.
1858 – Inicia a amizade com Samuel Bowles, editor do jornal Springfield Republican. Primeiro
rascunho da carta para o “Mestre”, endereçada a alguém que ela amava.
1860 – Primeira quinzena de março, o Reverendo Charles Wadsworth visita Emily em Amherst.
1861 – Rascunho da segunda carta ao “Mestre”. 4 de maio, “I taste a liquor never brewed” publicado
no jornal Springfield Republican.
1862 – Inverno, Emily sofre uma crise emocional. 1 de março, o jornal Springfield Republican publica
“Safe in their Alabaster Chambers”. 15 de abril, inicia correspondência com Thomas Wentworth
Higginson. Terceiro rascunho de uma carta ao “Mestre”. Escreve 366 poemas durante esse ano.
1864 – 12 de março, Round Table publica “Some keep the Sabbath going to Church.” 30 de março, o
jornal Springfield Republican publica “Blazing in gold, and quenching in purple”. Abril a novembro,
em Boston para tratamento da vista.
1865 – Abril a outubro, novamente em Boston para tratamento da vista. Final do seu período mais
prolixo.
1866 –14 de fevereiro, “A narrow fellow in the Grass”, publicado no jornal Springfield Republican.
1870 – 16 de agosto, recebe a visita de Thomas W. Higginson.
1873 – 3 de dezembro, segunda e última visita de Thomas W. Higginson.
1874 – 16 de junho, seu pai falece em Boston. Busca consolo no Juiz Otis P. Lord.
1875 – 15 de junho, sua mãe sofre um ataque de paralisia; Emily passa a cuidar dela constantemente.

164
FERLAZZO, Paul J. Emily Dickinson.Boston: Twayne Publishers, 1976, p. 11-12.
254

1878 – 16 de janeiro, Samuel Bowles falece. “Success is counted sweetest” é publicado em um volume
anônimo, A Masque of Poets. O relacionamento com o Juiz Lord torna-se amor após o falecimento de
sua esposa em dezembro de 1877.
1880 – Início de agosto, inesperada e última visita do Reverendo Charles Wadsworth.
1882 – 1 de abril, o Reverendo Wadsworth falece. Sua mãe falece em 14 de novembro.
1883 – 5 de outubro, muito perturbada com a morte de seu sobrinho predileto, Gilbert.
1884 – 13 de março, o Juiz Lord falece. 14 de junho, sofre o primeiro ataque de sua moléstia final.
1885 – Doente durante o outono e confinada ao leito.
1886 – Emily Elizabeth Dickinson falece em 15 de maio. Lavínia queima a maioria da correspondência
da irmã, mas poupa sua poesia.
1890 – É publicada a primeira edição da poesia de Emily, editada por Mabel Loomis Todd e Thomas
W. Higginson.
255

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