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SEBASTIEN CHARLES

Cartas sobfre 21
hip ermodernidade
ou O hipermodemo explicado cis cricmgas

TRADUQAO Xerxes Gusmfio

BARCARELLA
I9

CARTAS sonnn A HIPERMODERNIDADE

N6s pensamos, contrariamente, e este é 0 argurnento CARTA 1


que acabou por convencé—1o, nfio ser tiio ruim que 0 sen-
timento mesmo vago (porque ele nzlio precisa fornecer
Resposta 51 pergunta: o que é
como prova somente sinais de histéria), 0 pressentimento
de que alguma coisa muda nas sensibilidades se pro- o pos-moderno?
duza sem preparacfio e segundo a sua indeternainaciio. I

Longe de ser contrério :1 raziio, e :1 probidade, este estado para Erlc Donet
inacabado, essa puerilidade respeita, £1 sua maneira, o objeto Milfio, 29 de novembro de 2003

da su'é1 Ideia, a historia contemporzinea, Z1 inteligéncia


da qual 0 nosso pensamento somente pode se expor
enquanto criangas.
Retiramos desta correspondéncia os trechos nfio Nos vivemos um momento de crispacéio, tratando-se
relacionados com 0 sen objeto principal. Deixamos as das tendéncias atuais. Crispaciio em nivel social, com o
repeticoes de uma carta 5. outra. A apresentacfio do con- questionamento das vantagens adquiridas, hoje aineacadas
junto foi organizada por nos. pela légica liberal e a globalizagfio desenfieada que fazem
de cada individuo um concorrente potencial para todos
os outros; crispacfio em nivel politico, com a continuidade
FONTES de discursos extremistas de esquerda e de direita, e o
desaparecimento dos grandes projetos politicos que
Alguns dos textos aqui reunidos, apesar de terem sido mobilizavam a populaciio e que davam sentido ao futuro,
bastante remanejados, forarn publicados separadamente. indicando um caminho a ser seguido; crispacfio no que
A “Resposta” foi publicada. iniciahnente em portugués concerne aos valores, corn o surgimento de questoes
na revista Philosophica, 5 (2004), em fiancés na revista Argu- inéditas que o progresso da. ciéncia e a extensfio da. esfera
ment, 8 (2005); a “Carta” na revista Exchorésis, 3 (2005); dos direitos individuais tornaram inevitziveis (clonagem,
0 “Mernorando” na revista Le Débat (2006); a “Glosa”, eutanésia, casarnento entre pessoas do mesmo sexo, adociio
no primeiro nfimero de Médicme (2006) mas tarnbém em de criancas por casais homossexuais etc.). N6s assistimos
portugués na revista Integragfio, 11 (2005) e em italiano no a uma radicalizaciio da prépria log-ica das nossas sociedades
Bollettino d’/lteneo dell ’Um'versitd di Catania, 12 (2006). democniticas, que niio deixa de ter relagiio com o sen-

14 15

3
CARTAS SOBRE A HIPERMODEILNIDADE RESPOSTA A PERGUNTA2 o QUE 1;: o P(§S—MODERNO?

timento de angostia que invade os nossos contempora- contrario, e nos sabemos bem isso. O progresso tecnologico
neos e que pode ser explicado pela impressfio de nao mais perdeu__o sen encanto, mostrando que ele niio tinha
possuirmos referéncias seggras para CO1'1'1P1’€€I1d61lLBI'€— somente um papel positivo e que ele podia colocar-se aos
psenpte no plano individual, e de nao mais sermos relevantes
_ \- f —-—I——~ 7 W i H-(
servigos das causas mais nobres assim como das mais
__r3_o progresso p do mundo num plano
,,___E% q coletivo. vis; a justiga e a igualdade permanecem como reivindi-
Essa radicalizagfio e essa angostia parecem, numa cacoes e sfio passiveis de defesa, sendo a realidade somente
primeira analise, pouco compativeis com o ue repre- de uma minoria no mundo; a felicidade permanece como
j£m aesséncia damodernidade. D6 fato, a um ideal, o mundo do consumo, supostamente capaz
modernidade construiu-se com base na esperanga e na fé de nos trazo-la numa bandeja de prata, nao a tornou,
“Ev” 7 jji V ' A70 '
no futuro, o ue lhe perm1t1u assumlr a ruptura com o por conta dessa presunciio, mais atual. Donde o sentimento
drnnndo das tra_dic_oe_s. Para sair do modelo tra 1cional atual de desanimo diante da modernidade e do que nos
da repetigiio incessante do passado, da valorizacfio das no r~namos.
P
narrativas fundadoras, sobretudo no plano religioso, era Sera que o fato de a modernidade nao ter atendido
necessario impor um outro caminho, que pudesse mobi- as expectativas que ela fez surgirem seria indicio da sua
lizar de forma tao intensa quanto o anterior. O futuro obsolescéncia e da sua SL1l3Stl.lIlJi§§.0 por uma outra época?
foi, desse modo, convocado, a titulo supletivo, permitindo enamos nos nos tornado %§fi5S e1lt§o,por
I
wiw aos modernos se proj etarem no futuro em vez de se pren- que nélo nos satisfaaer com o conceito de 1Z3_§>,s;mo-
derem nos ensinamentos do passado.As promessas dos dernidade, que indica claramente uma saida eietiya da
2.-. <.r;' tempos futuros, é verdade, eram atrativas o suficiente modernidade? Essa pergunta que vocé faz, sabendo que
@*§_’
para desviar os homens dos caminhos imemoriais tomados eu prefiro falar de hipermodernidade, e nalo de pos-
pelos seus ancestrais e fazé-los tomar novos rumos: desa- modernidade, é bem pertinente. Em um mundo onde
@%~!< parecimento das tarefas inglorias e desgastantes gracas ?’
o exagero de conceltos e a regra, vocé tem razao de se
ao progresso tecno1ogico,justi<;a e igualdade para todos perguntar se o recurso a esse neologismo se justifica on
apos reformas politicas adequadas, felicidade universal em nao. Para responder adequadamente a essa pergunta, é
razfio de uma reformulacao da ordem social. 4(_;_o_1;__n_g preciso compreender corretamente os termos empre-
resistir a m¢mad ros? gados, e em primeiro lugar o termo pos-moderno. ,
O problema é que 0 futuro dos modernos -— que se tornou
o nosso presente ~—- nfio honrou todas as suas promessas, ao \\p~** a~<>~l"°*Q‘ »®>
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16 6:34‘ ".\ 17

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CARTAS SOBRE A I-IIPEFLMODERNIDADE RESPOSTA A PERGUNTA: o our E o POS-MODERNO?

O pos-moderno de’
cada um nfio podia mais ser reduzido aos cfinones
de beleza consa rados ela tradicao, tornava-se possivel
A nocfio de pos-modernidade apareceu primeiramente introduzir no plano estético a preocupaciio com a mudanca
nos textos de alguns ar uitetos dos anos 1960, que dese- permanente, a novidade tornando-se, alias, um dos sim-
javam romper com o estilo moderno. Em reacao a uti- bolos da modermdade, as provocacoes dos vanguardistas
lizacao excessiva de cimento no segundo pos-guerra, sendo uma prova do caréter propriamente artistico dessa
escolha de certa arquitetura moderna, surgiu uma von- iniciativa. Nos air1da nos encontramos sob essa influéncia:
tade nova que, para marcar a ruptura que ela PIf€tC1’1Cl121 vocé pode se lembrar, como eu, desse acontecimento
om——1 7 1‘ p- -u
‘- __||-_ 41-Irv’ _’ J *7’

marcar com a modernidade, optou deliberadamente por ao mesmo tempo trag1co e absurdo propiciado por um
, _ 1 > vc 1* "'* c *'" --' 2
T" ”. —Q" -37,- '
se identificarcomo pos-moderna.As ambigoes que ani- £11‘C1SC3._]E1PO1'16S, que tornou o seu quadro onico para sempre
mavam os arquitetos preocilpados em romper com o ao atirar-se_c_:o__ntra__ele <;l9.alto__,d§_ um edificio.A arte como
modelo uniforme das barras urbanas e em valorizar um sequéncia pura de acontecimentos —— também neste ponto,
estilo pos-moderno eram diversas: preocupacfio com o nada de novo sob o céu moderno...
espaco a se organizar e com a sua historia; consideragiio De todo modo, o termo “pos-moderno”, apos ter
das comunidades e do meio local; valorizagao do con- surgido na arquitetura, rapidamente fez sucesso e ultra-
forto interno, dos adornos e da harmonia geral; critica passou as fionteiras da estética urbana para ser reutilizado
dos projetos faraonicos modernos; recusa da amnésia em varias esferas do mundo das artes e da literatura.
voluntaria dos modernos em relacfio ao mundo das Eu citarei, como exemplo, somente uma area, a da filosofia.
tradigoes;toler?1ncia com relacao as diferencas de formas, Na obra dos filosofos, encabegados porVattimo e Lyotard,
de estilos ou de épocas e celebragfio da mestigagem; o recurso a essa nocfio explica-se com base na constatagfio
respeito aos individuos considerados como fi11TllI'OS usuarios da faléncia do projeto moderno. Esse projeto foi “liqui-
do lugar etc. Em resumo, tratava-se de uma oposicao a dado”, para retomar a. famosa expressfio de Lyotard, e essa
certa opcao arquitetonica e da s_uas1_.@§ 0r OUIIQ liquidagiio, para os pos-modernos, parece perceptivel e
oxpg5o.Tiido bastante moderno ja que a modernidade, evidente por muitas razoes. Primeiro, esse projeto mo-
especialmente no plano estético, caracterizou-se por uma derno construiu-se com base em grandes narrativas, as
renovagfio permanente dos estilos e das escolas, renovacao metanarrativas (sociedade sem classes sociais, felicidade
que representava, no fi11‘1ClO, o respeito a gostos ind1v1dua1s universal, realizagao do Espirito, emancipagiio dos indi-
particulares e irredutiveis.]u_stamente pgrgue o gosto viduos), que néio funcionam mais e cujo esvaziamento
¢

18 19 -
i 1.
CARTAS sonar A HIPERMODERN IDADE REsPosTA A PERGUNTAt o our 1'3 o P(§S—MODERNO?

das normas previstas para legitima-las, donde' a ideia de


gerou a crise de uma Historia co ida como um
se evocar a entrada num periodo dito pos-moderno.
caminho onico e universafiimsegundo 1 ar, o desen-
. . “*7 v "_'*"“"
volvlmento da tecnolog1a e da n'nd1a de massa acabou
- é_ 7.. __;|_i W*_ 4_'__,—..€-._..’,,-,,..|-1-n

com gjraiidcparte 5 dade. Por um\


O hipermoderno
lado, a tecnologia da informatica e d comunicagao (
enfraqueceu o humanismo moderno ao valorizar uma W" 7*" *~ _ J e ' t _ Y _:— __- _ _ 7

‘[\ KNem tudoi é falso nessa constatagaa longe disso_ M35


visfio a curto prazo, racional e pragmatica, em detrimento ‘="'”'”"“ _= 1---..-1 A _,_-r “-—;-—'!—u---:=_E ’

me parece bastante limitada a v1s§o que tenta ignorar


de__,uma visao a longo prazo, preocupada com a univep-J
alguns fatos que sugerem um maior cuidado com uma
salidade e a felicidade coletiva. P01: outro lado, a midia de
poss1vel saida da modernidade. O desaparecimento das
massa provocou uma diversificacfio da informaciio, per-
mitindo, por conseguinte, a multiplicacfio das mensagens grmdss narratiras base aos P65-m0d_qrnOSpara que-falem
que torna impossivel qualquer discurso unitéirio, e proble- dcumar1iq1_Eld3§50¢d9_Q1fqjcto modprno. Trata-se de
uma 1de1a relatlvamente fragfl, que nao leva em conta toda
matica a existéncia de valores unanimemente partilhados. /
a complex1dade da sociedade contemporfinea, seja no nivel i‘
Ehfim, o que representava a marca da modernidade, a
pol.1t1co, economico, social ou cultural. No que concerne
saber, a cultura da novidade e da mudanga, perdeu o
a essa fragllidade conceitual, podem-se fazer duas obser-
seu atrativo inicial. O culto que dedicaram os modernistas
vacoes complementares: por um lado, nem todas as gtandes
5. arte praticamente nao encontra mais adeptos, a formula
narrativas foram desacreditadas com o tempo (a que djz
azer a su ' bra de arte” erdeu o seu charme,
respelto aos d1re1tos humanos, por exemplo, continua
os combates vanguardistas de hoje empolgam somente os
atual, 2111'1ClI-1 ho_]e sendo um fundamento das nossas demo-
especialistas da arte contemporiineafltualmente, os critérios
""-""""-""-"""'~‘----'*='
crac1as); por outro lado, o desaparecimento de boa parte
artisti ue ‘s poss'1vel
das metanarrativas nao ' %ofi ade
garannr um consenso SO_l)1‘(;_(1,_,_lI§_I1'12l a estet1 o I

¢".
_g;
. . . pelo contrarlo. Eu acredito que essas narrativas eram. essen-
cranzou-se e d1fund1u-se de tal forma na soc1edade que
c1a1s para se transformar a ordem temporal e para fazgr
ela fez aparecer uma cultura de massa sensivel as plumas
os homens dos seculos passados aceitarem o sacrificio
e paetés e emeros e contrar1a a rande a e”.A saida
de um tempo concebido unicamente sob a forma da
da modernidade fez-se acompanhar de uma espécie de
repetlcao do passado, assim como eu penso que elas
fragilidade e de incerteza ligadas £1 evidente relatividade ' ~ A . A , _
ho_]e nao tem a mesma 1I1flL1C1'lC1El de antes slmplesmente
dos valores e dos gostos, assim como do enfiraquecimento
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20
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CARTAS sonar A I-IIPERMODERNIDADE \ RESPOSTA A PERGUNTA: o QUE E o POS-MODERNO?

\ \

porque nos pensamos e agimos como modernos e porque me parece o mais adequado pelo fato de o superlativo
o combate contra a tradicfio ja nao esta na moda. Alias, “hiper”, como demonstrou Lipovetslqg adaptar-se melhor
nos niio somos mais obrig PO_ a ideia de uma radicalizagfio da modernidade, como prova
c di§’:.'i‘o 1561310 faz1am, por exemplo, stas a sua reutilizaciio sob diversas formas: hiperligacfio, hiper-
face ao mundo gotico. Em veziide desvalorizar o passado,
¥ I 1 ~ -
3 texto, hiperpoténcia, hiperterrorismo etc. Por gue podemos
nos o celebramos; em vez de detesta-lo, nos o reutllizamos dizer ue houve nao u ida da modernidade, mas a
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sem complexo, quiga o reciclamos, porque sabemos sua radicalizacao? Para aceitarmos a tese pos-moderna,
perfeitamente que toda volta ao passado ja nao é mais seria necessario demonstrar como os quatro principios
possivel. Nos podemos sacralizar o passado, aumentar em torno dos quais se construiu a modernidade tornaram-
indefinidamente o patrimonio a ser protegido, estabelecer se desatualizados em razao da entrada no mundo pos-
uma lista dos lugares historicos a se preservar, decretar moderno. O problema é que nada indica ter sido este
dias dedicados a memoria historica, nada disso tornara l o caminho se ' o.
l

o P assado mais . os nos tornaremos mais sensive1s


-.. Primeiro pr' cipio: a libera ii e a valorizacfio do
ap passado, mas com uma sensibilidade tipica da nossa B
' dividuo entro do paradigmajuridico adotado no século
’ oca-hi oderna, que dese' tud conservar.

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XVII, sobretudo sob a forma do pacto social elaborado M)


)1
l

O que me parece mais problematico com a ideia por Hobbes no Leviata. Nx de Hobbe ,..pel,o_ con-
l
l

Al,
de um periodo pos-moderno, é que ele implica em
uma saida da modermdade das
. ll
tra a.¢naura a
qualquer coisa para ad uirir,em contra artida, QS direi-
grandes narrativas para justificar tal ideia me parece um
i ‘I’; _ '___,, __ v_7-P‘
tos civis e uma seguranga poblica que eles nao pos-
, .;,__ ""*' ', 02*’ *_""“;- =u-I-on P i ’ AI. ' JP iM7*'*‘_‘fi——- ,,-lg‘.

tanto fragfl como argumento.E eu nao sou o umco a suiam no estado natural. Esse modelo juridico corresponde
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P

pensar dessa forma. Ha aproximadamente uma década, a mvengao teorica dos direitos humanos clue enco
alguns adj etivos alternativos foram sugeridos para evocar pouco a pouco sua eficacia prati a. Segundo principio:
l 4l ' ‘(E
1.
o nosso tempo -—- metamodernidade (Giddens), ultramo- 1 a valorizagao da democracia como onico s1stema politico
U95“?
Q
dernidade (Gauchet e Zarka), hipermodernidade viavel permitindo combinarlibprdade individual e segu- do-A/.v<6””
(Lipovetsky) —- todos eles tendo em comum o fato de '1.\ W23
aéaranca coletiva Terceiro principio: promogao do mer- A
:¢,@;%-—w
evocar nao algo diverso da modernidade, mas uma
fil-
cado como siste A ' regulador dotado de todas vi ‘
radicalizacfio da mesma. Se todas essas expressoes sfio prova
de uma mesma intuigfio, o termo hipermodernidade

22
as vlrtudes por contribuir para a paz entre as nagoes e
para a riqueza tanto individual quanto coletiva. Quarto

23
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ll Q‘? CARTAS SOBRE A HIPERMODERNIDADE RESPOSTA A PERGUNTA: o QUE 1'2 o P63-MODERNO?

A v’ princ1pio:
A o desenvolvimento tecnologico-ciennfico
I I I
hipermodernidade? Por que nao se limitar a dizer sim-
concebido como solugao para o problema do arduo tra- plesmente que a modernidade continua normalmente
balho humano e como garantia da saode das populacoes o sen desenvolvimento?
\i\ A legitimidade da utilizagao deste conceito de hiper-
humanas.
Sinceramente, quem nao pode perceber que esses modernidade explica-se, a meu ver, pela forma que
quatro principios permanecem no centro das atengoes assumiu a modernidade hoje. Nossa hipermodernidade
e que a pos-modernidade nao os deslegitimou? Segu apresenta-se como uma modernidade que procuramos
ramente, os dois oltimos (o mercado e a ciéncia tec- “modernizar” sempre, e racionalizar ainda mais apro-
$'-<2:
nologica) sao bastante criticados atualmente, fazendo surgir fimdando os seus fundamentos.Ainda estamos bem dis-
"/4- ~“1'~'-'-"-"-'\-\____,,_,--n-II~I""'

desconfiancas contra eles, mas, no primeiro caso, nenhum tantes de uma hipotética pos-modernidade 9 em ruptura
_€%__k__

modelo economico alternativo nos parece legitimo para ‘=€'


6% P
e. O que explica que estejamos
substituir o mercado, somente alguns limites de ordem bem inseridos na era da hipermodernidade, que podemos
politica e uma melhor redistribuigao nos parecem definir como uma modernidade desprovida de qual-
ngcessarios (a modificagao da denominacao dos manifes-
tantes antiglobalizagzao para alter-globalizagao o demons- .‘;§§”ril quer ilusao e de qualquer concorrente, ou seja, uma
modernidade radical caracterizada pela exacerbagao e pela

de regula-la), *e,no segundo caso, mnguém questiona a


“If; \
tra bem — nao se trata mais de se opor a globalizagao, mas intensificacao da logica moderna na qual os direitos
humanos e a*de ' ornaram-se valores in vitaveis,
l dade das pes uisas e das descobertas cientificas, “ii I por vezes impostos pe a orca nos palses que nao atendem
enqua ramento ético iv
somente nos parece importante o ~m__,____A_ “ as suas exigéncias. Esse radicalismo pode ser igualmente
observado na esfera economica, com um mercado que se
. 3, a ser dado as mesmas. No tocante a democrac1a, se e pos-
sivel contestarmos alguns dos seus modelos ou certas globaliza cada vez mais, desenvolvendo-se de maneira
intencoes expansionistas tipicas do governo americano exponencial, chegando a invadir nao somente os locais
~ atual, ninguém procura questionar a sua existéncia. Quanto mais distantes do nosso planeta, como também todas as
/'~’*QGWQQJ’
u
aos direitos humanos, eles jamais foram tao festejados e esferas da nossa existéncia. O mesmo radicalismo se veri-
‘Q .
tao consensuais quanto atualmente. Portanto, se o desen- fica na area cientifica, sobretudo na biotecnologia, na qual
. rf/,r: volvimento do mundo nao coincide com u a ruptura
\_.._.--E ,
com a modern1dade, como pensava
, ,
s sectar1os da
a propria nogao de humanidade é questionada por pos-
siveis clonagens de seres l1umanos.A modernidade tinha
pos-modlelfiifdade,por“que"“utilTza'r o conceito de por finalidades fornecer um objetivo positivo aos seus

24 N 25


CARTAS SOBRE A I-IIPERMODERNIDADE RESPOSTA A PER.GUN'1‘A:O QUE E Q P(§g..MQDER_N0?

proprios excessos e apresentar um futuro glorioso através descrédito das proibicoes tradicionais, sobretudo religiosas,
de uma humanidade reconciliada consigo mesma, o no mundo ocidental. Quem ainda respeita estritamente
desaparecimento das desigualdades e da exploragao, uma as determinacoes bastante repressivas concernentes a
cooperacao internacional e uma concordia universal. Sobre sexualidade, que se aplicava1n nao mais do que cinquenta
este tema, o livro de Mercier, O cmo 2240 ou 0 sonho mmca anos atras? Geralmente, o momento pos-moderno é
sonhado antes, é umaparicatura das esperangas modernas. um momento em que nada nem ninguém pOd@1‘1']_]_egi1j__
Inversamente, a hipermodernidade apresenta-se como mamente impedir um individuo de construir sua vida
uma modernidade desprovida de qualquer sentido trans- como bem entender, on de escolher suas referéncias
cendente, funcionando plenamente — os quatro principios intelectuais ou sociais. Num contexto pos-moderno, tudo
modernizando-se sempre — sem, no entanto, poder jus- é uma questao de escolha, o que provocou as repercussoes
tificar o seu proprio funcionamento e parecer conseguir que ‘conhecemos: no plano familiar, assistimos ao aumento
se autolimitar. dos divorcios e das unioes civis explicando, em contra-
Nao é, portanto, na analise que a pos-modernidade partida, o surgimento das familias recompostas; no plano
enganou-se, é na ruptura que ela acreditava representar profissional, cada um escolheu a carreira desejada sem
com a modernidade.A. pos-modernidade nao é diferente lugar no espago poblico reservado antecipadamente para
da modernidade, ela é simplesmente a modernidade livre uma pessoa em detrimento de outra; no plano religioso,
_ J‘ 1 H . -Kalil 1741? 7 '7 _'
7 i 4|-an M

dos fieios institucionaisi que bloqueavam os grandes_princi- os dogmas nao foram mais impostos com o rigor de outras
pios estruturantes que a constituem (o individualismo, épocas, devendo cada um dar a sua vida o sentido que
"wt A-. ~ -W *.l- -----A‘ . ja nao se buscava externamente; no plano politico, o
a c1enc1a tecnoTog1ca, o mercado, a democracia) de se
manifestar plenamente. Se considerarmos assim a pos- carisma dos politicos e a grandiloquéncia dos seus dis-
modernidade, devemos compreendé-la nao como uma cursos desapareceram, o voto baseado na defesa de inte-
ruptura, mas como um paréntese, bastante agradavel na resses corporativistas tendo aumentado, em detrimento
verdade, durando dos anos 1960 aos anos 1980, e mar- do interesse geral ou de concepgoes ideologicas de classe, " ‘7€-3/\~=a¢
cando a decadéncia dos grandes discursos tradicionais tendo, como consequéncia, uma fiequente alternancia ,,/;<
contra os quais a modernidade em parte se -construiu, politica, que se tornou um habito democratico cada
a fim de liberar o individuo de qualquer sujeicao. Querem vez mais presente; no plano intelectual, cada um passou
\

um exemplo dessa decadéncia dos discursos tradicionais a escolher os seus mestres e a segui-los enquanto isso
>i._._¢._-

tipicos do periodo pos-moderno? Basta pensar no for da sua conveniéncia etc. Em resumo, no regime

(K A 2 L ‘J "N
‘ ks [.MAL\;y(§-LO: ‘"‘° “‘""'\*°" l»°-\-~'re=\W/2F'=4°"—“-
_,>‘wD4\h.,_ “°’“”‘“sW's-=4-»~a 27 'l“”“i’/Jugs)/”"flip$)
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CARTAS SOBRE A I-IIPERMODERNIDADE RESPOSTA A P RGUNTA2 o QUE I-3. o POS-MODERNO? lgflv-U“

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pos-moderno, a tradicao perde espaco face a maior -
volvimento desenfreado das tecnolog1as . da mformagao,
. __, owl‘
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autonomia dos individuos, cujo percurso de vida é mais uma precarizagao do emprego e uma estagnagao inquie- L
espontaneamente construido, nao mais seguindo uma via tante do desemprego em niveis elevados.Tudo preocupa
preestabelecida pelas instancias tradicionais da socializagao. e assusta. Em nivel internacional, o terrorismo e os estragos
Um outro elemento relevante, que permite a com- que ele provoca, a logica neoliberal e os seus efeitos sobre
preensao do inicio da hipermodernidade, leva em conta o emprego ou sobre o meio ambiente; em nivel local,
\\ a mudanga que nos levou desse paréntesis transitorio e a poluicao urbana, a violéncia nas periferias; em nivel pes-
alegre da pos-modernidade ao nosso mundo atual. Estou soal, tudo que fiagiliza o equilibrio corporal e psiquico.
alando da ruptura com a euforia dos anos 1970, ligada O reino do hedonismo continua, sem df1vida;a oferta
$1-‘*"'3 o sentimento de que o mundo se tornava cada vez de entretenimento explode mas nao equilibra o aumento
E ais preocupante e dificil de se viver, tanto no plano da angostia tipica da era hipermode1:na.A sociedade hiper-
individual quanto no social. O que mudou profunda- moderna é complexa e paradoxal porque, ao mesmo
mente entre o paréntesis pos-moderno e os tempos tempo em que ela estimula os prazeres (o hedonismo,
to ermodernos foi o ambiente social e a relacao com o consumo, a festa), ela produz comportamentos angus-
presente.A partir dos anos 1980, o dominio crescente tiados e patologicos. O paradoxo esta ligado ao fato de
permoderno revolucionou os nossos habitos e com- que o aumento do entretenimento se faz acompanhar de
ortamentos, tornando a analise do mundo mais dificil. uma dificuldade cada vez mais real de se viver, de que
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OPETOAET fim da guerra fria e o consequente surgimento do NiQ\/la prosperidade material surge unida a uma pobreza rela-
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mundo multipolar, o forte crescimento da globalizacao cional. Os tempos hipermodernos implicam no fato de
liberal ou ainda o desenvolvimento das novas tecnologias que cada individuo, entregue a sua propria liberdade, 6
da informacao tiveram participacao nessa evolucao. submetido a influoncias paradoxais que opoem, ao mesmo
Em resumo, pode-se dizer que na hipermodernidade tempo, as exigéncias do hedonismo e as da responsabi-
a desagregacao do mundo das tradigoes nao é mais sen- lizacao, gerando, como consequéncia, um tipo de sociedade
\
tida sob o regime da emancipacao, mas sob o da tensao. esquizofrénica dividida entre uma cultura do excesso e o
E o medo que vence e que domina diante de um futuro elogio da moderacao.
incerto, uma logica da globalizacao que se exerce inde- =-kf
~v
. O futuro da hipermodernidade depende disso,
pendentemente dos individuos, uma competigao liberal\€V;§§ parece-me, da sua capacidade de fazer vencer a ética
exacerbada, um aumento das desigualdades, um desenqfi da responsabilidade em detrimento dos comportamentos

ii 28 (Rik Hf 29

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o POS-MODERNO?
CARTAS SOBRE A HIPERMODERNIDADE
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irresponsaveis. Os comportamentos irresponsaveis nao instituigoes e nos preparar para os problemas do presente
vao desaparecer espontaneamente, porque eles estao neces- e do futuro.A responsabilizacao deve ser coletiva e se
sariamente ligados a logica da hipermodernidade, como exercer em todos os setores do poder e do saber, mas
precisamente analisou Gilles Lipovetsky nos seus filtimos ela deve também ser individual, porque nos cabe, em
trabalhos. Sao, de fato, os proprios mecanismos do indivi- filtima instancia, assumir essa autonomia que a moder-
l
dualismo democratico que explicam tanto a respon- \ nidade nos legou e compreender que o futuro nunca
sabilidade de uns quanto a irresponsabilidade de outros, foi tao determinado pelas decisoes do presente que
aqueles que preferem transformar a autonomia que eles decidimos tomar ou nao tomar. No fundo, o que nos
herdaram em egoismo puro. Nao é necessario, entretanto, espera, a curto prazo, é menos uma nova era de barbarie
CDXagerar os efeitos desse fenomeno, os comportamentos do que um imenso cansago, esse cansago de ser si mesmo
responsaveis permanecendo presentes. Isso representa, num mundo em que cada individuo deve incessantemente
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escolher, redefmir e justificar o seu modo de existéncia,
provavelmente, o fato mais surpreendente a se constatar:
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a sociedade hipermoderna, de consumo de massa, emo- ao mesmo tempo em que assume as suas responsabili-
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cional e ind1v1dual1sta, permite a coex1sténc1a entre um dades cada vez mais complexas de ator social e politico
l, e um num mundo cada vez menos compreensivel. Que vocé
espirito de irresponsaoilioade incapaz de res1stir aos pedidos q. fique avisado. Eu lhe desejo boa sorte...
3 e d é que alogica
dmfin crescendo e que a respon-
% sabilizagao de cada um se tornara cada vez mais impor-
tante. Nunca antes uma sociedade permitiu uma autonomia -1:;A8‘..__,._-M_.-A_4

2
l
e uma liberdade individuais tao amplas, jamais seu des- l

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tino esteve tao ligado aos comportamentos daqueles
a,¢. .=%-f ” que a compoem. E por isso que a responsabiliza<;ao do maior
,

nomero de pessoas é a {mica manelra' d e nos .proteger J—-t4-v-

tra os males causados pela hipermodernidade. Sem


responsabilizacao verdadeira, as virtuosas declaragoes de
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intengzoes, sem efeitos concretos, nao bastarao. Sera


necessario valorizar a inteligéncia humana, mobilizar as

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