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Introdução
* Paper apresentado na disciplina “História das Instituições Jurídicas”, ministrada pelo Professor
Doutor Antônio Carlos Wolkmer, no curso de Mestrado em Direito do CPGD/UFSC.
** Mestranda em Direito do CPGD/UFSC.
1 WOLKMER, Antônio Carlos. História do Direito no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 80.
2 Ibidem, p. 80.
tico do Brasil e de uma elite jurídica própria, e a elaboração dos instrumen-
tos legais, pilares da construção do Estado que se formava.3
Deve-se alertar o leitor que o viés crítico aqui adotado, bem como a aná-
lise privilegiando alguns enfoques, é escolha da autora, sem que com isso a
totalidade deste fragmento da história do Direito no Brasil seja prejudicada.
3 Ibidem, p. 80.
4 Ibidem, p. 38.
5 Ibidem, p. 39.
6 Ibidem, p. 39.
7 Ibidem, p. 39.
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Inicialmente, os magistrados lusos vieram trabalhar na colônia trans-
feridos de Portugal, trazendo de lá uma herança de abuso de poder e de
corrupção. Além disso, havia um grande distanciamento entre os juízes e a
sociedade, o que fazia com que aqueles interpretassem a lei friamente, “sin
preocuparse por las condiciones locales”8.
Com a Independência, muitos desses magistrados deixaram o Brasil,
mas sua maioria apenas transferiu a lealdade que tinha ao antigo rei de Por-
tugal para seu filho, comprometendo-se com seu constitucionalismo liberal.
Contudo, o espírito reformador que se difundiu imprimiu certa opo-
sição ao sistema legal Português, criticando-o e gerando a necessidade de
criação de faculdades de Direito para substituir a formação dada até então
por Coimbra.
Importante falar-se, ainda, do patrimonialismo, característica históri-
co-política herdada já no período colonial por nossas relações públicas/
privadas, inclusive na esfera jurisdicional.
Por patrimonialismo, “subtipo, na sociologia weberiana da domina-
ção tradicional”,9 pode-se entender uma forma de dominação “em que não
se diferenciam nitidamente as esferas do público e do privado”,10 sob a
égide de uma ordem nominalmente racional-burocrática que encobre este
tipo patrimonial.11 Imposto de cima para baixo à sociedade, o tipo de do-
minação patrimonialista não admite “que ela se determine de dentro para
fora, de baixo para cima. A chamada sociedade civil obedece, dessa forma,
ao comando do poder, sem que se determine pelos seus conflitos internos”.12
A prática desta forma de dominação no Brasil ocorre “quando o po-
der público é utilizado em favor e como se fosse exclusividade de um estra-
to social constituído por oligarquias agrárias e por grandes proprietários
de terras”,13 perpetuando uma dominação autocrática.
8 FLORY, Thomas. El Juez de Paz y el Jurado en el Brasil Imperial, 1808-1871. Control Social y
Estabilidad Politica en el Nuevo Estado. México: Fondo de Cultura Económico, 1986, p. 63.
9 FAORO, Raimundo. A aventura liberal numa ordem patrimonialista. Revista USP. Dossiê Libera-
lismo/Neoliberalismo. São Paulo: n. 17, mar./abr./maio 1993, p. 16.
10 WOLKMER, Antônio Carlos, op. cit., p. 35.
11 Cf. FAORO, Raimundo, op. cit., p. 16.
12 Idem, p. 17.
13 WOLKMER, Antônio Carlos, op. cit., p. 35. (nota)
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Como bem pontua Raimundo Faoro, “nessas circunstâncias, não é a
sociedade civil a base da sociedade, mas uma ordem política em que os
indivíduos ou são basicamente governantes ou governados. O soberano e
seu quadro administrativo controlam diretamente os recursos econômicos
e militares do seu domínio – que é também seu patrimônio”.14
Este fenômeno social permaneceu em nosso sistema político nos perí-
odos pós-coloniais, vindo acomodar-se na mais bizarra das situações, quan-
do conviveu, em tempos Republicanos, com o liberalismo, que é substanci-
almente adverso a qualquer forma de autocracia.
Em consonância ao patrimonialismo, o conservadorismo herdado de
Portugal será outro elemento integrante da formação política e jurídica
pós-colonial, uma vez que nossa metrópole era das mais retrógradas, dis-
tanciada das idéias renascentistas e mergulhada no dogmatismo eclesiás-
tico da fé e da revelação.15
Esta “cultura senhorial, escolástica, jesuítica, católica, absolutista, obs-
curantista e acrítica”16 vinda da metrópole solidificou-se no Brasil colonial,
da mesma forma que as legislações deste período foram basicamente “im-
portadas” de Portugal, formando um ordenamento jurídico que ignorava a
realidade nativa, consolidado como um sistema anacrônico, voltado aos
interesses da classe dominante.
Os reformadores que passaram a ocupar o cenário nacional com a In-
dependência trouxeram inovações que se refletiriam na Constituição de 1824,
principalmente vinculadas ao liberalismo. Contudo, as heranças lusitanas
deixadas no Brasil irão se misturar a estes ideais liberais, o que imprimirá
características peculiares na formação de uma cultura jurídica nacional.
2. O liberalismo pátrio
O liberalismo é um elemento-chave para o entendimento da cultura
jurídica brasileira a partir do século XIX.
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Esta análise buscará demonstrar alguns pontos fundamentais de sua
contribuição para a formação do arcabouço legal positivo durante o Impé-
rio e República, bem como para a formação de uma cultura jurídica pró-
pria, inexistente durante o período colonial.
Filosofia político-econômica, o liberalismo pode ser entendido como
uma concepção de mundo que tem como base o individualismo, um movi-
mento de idéias defensor da economia de mercado e do Estado mínimo.17
Nesse sentido, ensina Antônio Carlos Wolkmer, que a doutrina do
liberalismo
17 Cf. BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia. 7. ed.. São Paulo: Paz e Terra, 2.000, p. 128-130.
18 WOLKMER, Antônio Carlos, op. cit., p. 74.
19 Essa origem de nosso liberalismo é conhecida pela inexistência de uma Revolução Burguesa, que
seria capaz de desenvolver uma Revolução Liberal como ocorreu na França.
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Já para os estratos sociais que participaram diretamente do movimento de
1822, o liberalismo representava instrumento de luta visando à eliminação
dos vínculos coloniais. Tais grupos, objetivando manter intactos e seus inte-
resses e as relações de dominação interna não chegaram a “reformar a estru-
tura de produção nem a estrutura da sociedade. Por isso a escravidão seria
mantida, assim como a economia de exportação”.20
20 Ibidem, p. 76.
21 ADORNO, Sérgio. Os Aprendizes do Poder: o Bacharelismo Liberal na Política Brasileira. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1988 p. 75.
22 WOLKMER, Antônio Carlos, op. cit., p. 86.
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3. A Gênese do Estado Nacional
A gênese do Estado Nacional brasileiro é mais um elemento impor-
tante para a compreensão da formação da cultura jurídica no século XIX.
Seu estudo histórico mostra que o fenômeno da Independência do país não
passou de um grande acordo entre as classes dominantes ante a uma situa-
ção insustentável, que era a permanência do colonialismo.
Efetivou-se uma aliança entre o poder aristocrático da Coroa, que per-
maneceu na regência imperial do país, com as elites agrárias locais, aliança
esta que “permitiu construir um modelo de estado que defenderia sempre,
mesmo depois da independência, os intentos dos segmentos sociais donos
da propriedade e dos meios de produção”.23
Além disso, a construção do Estado Brasileiro se deu às expensas dos
princípios do liberalismo, de modo que toda a Teoria do Estado desenvolvida
tendeu para um modelo liberal, no entanto, “adequado” à nossa realidade.
Não houve o fomento revolucionário do povo para Independência,
e nem mesmo um amadurecimento histórico-político da nação unida
capaz de fazer surgir o Estado. Ao contrário, este nasceu da imposição
da vontade do próprio Império colonizador, instaurando-se a tradição
de um intervencionismo estatal na esfera das instituições sociais,
econômicas e políticas.
Nesse sentido, muito preciso é o argumento de Hélgio Trindade, cita-
do por Antônio Carlos Wolkmer, que sustentou que o Estado liberal brasi-
leiro “nasceu” em virtude da vontade do próprio governo (da elite domi-
nante) e não em virtude de um processo revolucionário’. O liberalismo apre-
sentava-se, assim, desde o início, como ‘a forma cabocla do liberalismo anglo-
saxão’ que em vez de identificar-se ‘com a liberação de uma ordem absolu-
tista’, preocupava-se com a ‘necessidade de ordenação do poder nacional’”,24
que seria feita com a elaboração de todo um aparato legal e administrativo
para a concretização e manutenção do Estado.
Desse modo, a partir de 1822, os legisladores começaram a realizar
uma alta produção legislativa (Constituição Federal, Código Criminal e de
23 Ibidem, p. 40.
24 Ibidem, p. 76.
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Processo Criminal, Código Comercial, Lei de Terras etc.), enquanto que a
formação de homens voltados à administração pública e ao aparato buro-
crático do Estado seria a função a ser desempenha pelas Faculdades de
Direito, criadas pouco tempo depois da Independência.
Assim, pode-se dizer que o Estado Brasileiro nasceu com o propósito
da manutenção do sistema político vigente, realizando mera reforma da
ordem antiga e não um processo de ruptura para o nascimento de um país
independente e democrático.
O Estado Nacional, pois, formou-se sob a égide de um liberalismo “à
brasileira”, nos moldes oligárquicos e com vistas à formulação de todo um
arcabouço jurídico para sua legitimação. O papel do Direito foi, portanto,
de instrumento de poder e de reforma para legitimar o novo estado auto-
crático, elitista e oligárquico.
25 Ibidem, p. 68.
26 ARRUDA JÚNIOR, Edmundo de Lima. Advogado e Mercado de Trabalho. Um Ensaio Sobre a Crise
de Identidade Sócio-profissional dos Bacharéis em Direito no Brasil. Campinas: Julex, 1988, p. 33.
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Mas com a Independência, bem como com as aspirações liberais que
passaram a tomar conta do país, novos anseios emergiram no cenários po-
lítico e jurídico, criando-se a necessidade de se formar uma elite burocrática
própria, em que pese a permanência de alguns lusitanos que transferiram-
se definitivamente ao Brasil integrando os quadros burocráticos do gover-
no, quando houve a ruptura com Portugal.
Assim, a implantação dos cursos de Direito refletiu a exigência de for-
mação dessa elite, o que se evidenciou até mesmo nas discussões na Assem-
bléia Geral Legislativa, com os trabalhos do processo de abertura das duas
primeiras faculdades:
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A organização dos cursos de Direito acabou voltando-se muito mais
para atender às necessidades do Estado Nacional que necessitava formar
sua burocracia do que para atender às expectativas jurídicas da sociedade.
Configurou-se, desse modo, um desvio na finalidade das Faculdades
de Direito, que será um dos principais fundamentos responsável pela for-
mação do bacharelismo, “fenômeno político e sociológico responsável por
algumas das dificuldades de articulação da sociedade brasileira, que permeia
grande parte da história imperial e republicana”.29
Em um cenário em que prevalecia uma cultura individualista e for-
malista-legalista, formar-se como bacharel em Direito significava não apenas
preencher os cargos burocráticos do Estado, mas também obter ascensão so-
cial e poder influenciar na organização política e econômica do país.
29 FARIA, José Eduardo. Sociologia Jurídica. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 158.
30 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças: Cientistas, Instituições e Questão Social no
Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 142.
31 WOLKMER, Antônio Carlos, op. cit., p. 100.
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trações dos publicistas europeus, com ênfase no liberalismo em um país
escravocrata, de modo que tratava temas totalmente desconexos com o
nosso meio social.
Além disso, o perfil essencialmente conservador do ensino jurídico
acabou por situar estas Faculdades como instituições encarregadas de pro-
mover a ideologia jurídico-política liberal do Estado Nacional.
Foi a Academia de São Paulo que se constitui como espaço de exce-
lência do bacharelismo, fomentando uma cultura jurídica nos moldes do
Estado, politicamente disciplinada conforme seus fundamentos ideológi-
cos, tornando o bacharel “criteriosamente profissionalizado para concre-
tizar o funcionamento e o controle do aparato administrativo; e habil-
mente convencido senão da legitimidade, pelo menos da legalidade da
forma de governo instaurada”.32
Mas inúmeras foram as dificuldades do ensino jurídico no curso
paulista, tanto didáticas quanto administrativas, sendo que “parece pou-
co provável que a estrutura curricular tenha sido eficaz do ponto de vis-
ta pedagógico”33.
O descontentamento diante do quadro do ensino atingia até mesmo a
qualidade do corpo docente, cuja didática era quase inexistente, a assiduida-
de às aulas era mínima e os conflitos com os discentes permanentes, revelan-
do um controle burocrático frágil do processo de ensino e de aprendizagem.
Desse modo, autores renomados como Venâncio Filho chegam a le-
vantar a hipótese de que “esse ensino nunca existiu concretamente”.34
Por tudo isso os alunos de Direito não apenas do Largo de São Fran-
cisco, mas também de Recife, acabaram privilegiando uma formação muito
mais política do que jurídica, principalmente porque as atividades fora da
academia eram muito mais intensas do que as realizadas em sala de aula.
Nesse sentido, ensina Adorno que a formação jurídica-política “não se de-
veu, quando menos exclusivamente, aos conteúdos doutrinários, transmi-
tidos em sala de aula”.35
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Tornar-se bacharel em Direito significava, assim, muito mais dedicar-
se ao periodismo e à atividade política do que engajar-se no exercício da ad-
vocacia. Na verdade, a erudição do bacharel nada mais era do que o simples
uso da retórica, da fala ornamental e sofisticada, enfatizando o culto à lin-
guística em detrimento do conhecimento da realidade social nacional.
Por isso, pode-se dizer que a atividade didático-pedagógica foi essen-
cialmente política, trazendo
São Paulo foi mais influenciada pelo modelo político liberal, enquanto a fa-
culdade de Recife, mais atenta ao problema racial, teve nas escolas darwinistas
e evolucionistas seus grandes modelos de análise. Tudo isso sem falar do
caráter doutrinador dos intelectuais da faculdade de Pernambuco, perfil que
se destaca principalmente quando contrastado com o grande número de po-
líticos que partiam majoritariamente de São Paulo.38
36 Ibidem, p. 154-155.
37 Havia no Largo de São Francisco um forte movimento literário poético.
38 SCHWARCZ, Lilia Moritz, op. cit., p. 143.
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ências estrangeiras. “Seu estrangeirismo relaciona-se à presença do ideário
liberal na e para a sociedade brasileira; fundamenta, também a visão inicial-
mente mais erudita do Direito que se forma na Escola do Recife”.39
5. A elaboração da Constituição e da
legislação imperial
Na caracterização da cultura do Direito e das instituições jurídicas de
destaque do século XIX, a elaboração da Constituição e da Legislação Im-
perial tiveram grande importância, pois refletiram o contexto social e polí-
tico de monocultura latifundiária, trabalho escravo e liberalismo à brasilei-
ra em que foram produzidas.
A Constituição Imperial de 1824 foi o primeiro grande documento
normativo do período pós-independência. Ela teve por base as idéias e ins-
tituições formuladas na Revolução Francesa de 1789 e além da grande in-
fluência de Benjamin Constant, sendo, pois, marcadamente liberal.
Outorgada pelo Imperador em 11 de dezembro de 1823 e jurada em
25 de março de 1824, esta Constituição foi um instrumento de grande rele-
vância para a formulação político-administrativa do Estado que surgia,
institucionalizando uma monarquia parlamentar.
Uma das características peculiares da primeira Carta Magna é a exis-
tência de quatro poderes estatais: ao lado dos Poderes Legislativo, Executi-
vo e Judiciário foi criado o Poder Moderador, inspirado em Benjamin
Constant e completamente original.
39 NEDER, Gizlene. Discurso Jurídico e Ordem Burguesa no Brasil. Porto Alegre: Sérgio Fabris,
1995, p. 110.
40 FAORO, Raimundo. Os donos do Poder: Formação do Patronato Político Brasileiro. v. 1. São Pau-
lo: Globo, 1996, p. 290.
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Este quarto poder conferia prerrogativas e amplos poderes políticos
ao Imperador, sendo inédito em todos os outros Países. A Constituição,
portanto, delegara-lhe o poder de uma representação não eleitoral dos
interesses gerais de toda a nação, incluindo-se nele a possibilidade de in-
terferências no Legislativo e no Judiciário, acumulando, ainda, a chefia
do Poder Executivo. Nesse sentido, muito pontuais os ensinamentos de
José Reinaldo Lopes:
41 LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na História – Lições Introdutórias. São Paulo: Max
Limonad, 2000, p. 284-285.
42 Já que o Imperador era tido como pessoa sagrada. Cf. Ibidem, p. 285.
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econômicas e sociais em relação àqueles que poderiam ser escolhidos como
eleitor para escolha de deputados e limites que aumentavam ainda mais
para eleger-se deputado.43
Este Diploma Constitucional de 1824, embora tenha se afirmado como
liberal, apresentou uma ideologia liberalista somente “de fachada”, pois
embora adotando a democracia popular como um de seus pilares ocultava
a escravidão, excluía as mulheres e a grande maioria da população do país.
Em outro aspecto, vale frisar que a presença do patriarcalismo e do
patrimonialismo são evidentes neste diploma legal de traços conservado-
res. Nesse sentido:
43 Ibidem, p. 285.
44 ADORNO, Sérgio, op. cit., p. 61.
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igual à exigida para ser eleito: “só os cidadãos ativos poderiam participar
desta função considerada política”.45
O Código de Processo Criminal completou a reforma liberal do siste-
ma judicial do Império pós-independência, alterando substancialmente o
direito brasileiro, pois pôs “fim, praticamente, ao sistema judicial antigo”,46
introduzindo novidades como o Tribunal do Júri (Conselho de Jurados) e o
Habeas Corpus. Este Código apresentou-se dividido em duas partes, a pri-
meira reorganizava a justiça criminal, sua hierarquização e sua própria com-
posição, num movimento de descentralização, e a segunda dispunha sobre
o processo criminal.
Já no ano de 1841 promoveu-se uma reforma no Código de 1832, resul-
tado da reação dos conservadores às mudanças liberais introduzidas no Di-
ploma Processual Criminal. O núcleo das alterações era “a substituição das
diretrizes judiciais descentralizadas por uma centralização rígida, poderosa
e policialesca”,47 reforçando-se a burocracia patrimonialista nacional.
O momento seguinte de elaboração legislativa no Império foi em 1850,
com a aprovação do Código Comercial, que teve em seu contexto social e
econômico muitas mudanças que contribuíram para que fosse editado 67
anos antes de nosso primeiro Código Civil, como o fim do tráfico de escra-
vos, e principalmente o aumento das atividades negociais e do comércio.
Quanto ao Código Civil, embora determinado pela Constituição que
fosse feito, ele nunca chegou a ser editado no Império, sendo três as tentati-
vas de sua codificação durante este período. Já na República, mais dois
projetos novos foram apresentados, sendo que o último, de Clóvis Beviláqua,
tramitando desde 1899, foi sancionado em 1916 e passou a vigorar em 1917.
Este Código, no entanto, já nasceu obsoleto, com traços fortes do
patriarcalismo, do individualismo e do patrimonialismo nacionais.
Apesar de toda esta elaboração legislativa, no século XIX, o Direito
brasileiro passou por dois problemas fundamentais, com reflexos na pro-
dução normativa: a escravidão e a questão da propriedade da terra, ambos
vinculados ao latifúndio que “desde sempre foi um problema nacional e
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que longinquamente nasceu sob a forma do exercício de direitos de propri-
edade do ponto de vista econômico e político”.48
A colonização brasileira teve como ponto de apoio a distribuição de
terras e, conseqüentemente, a base da sociedade brasileira tornou-se a agri-
cultura. Neste primeiro momento o regime de propriedade de terras é o
das sesmarias,49 que vai de 1500 a 1822.
Tal sistema foi, contudo, extinto em 1822, quando passou a haver a
simples posse ou ocupação sem qualquer disciplina do Estado.50
O regime de posse permaneceu até 1850, quando foi promulgado um
novo estatuto disciplinando a questão da terra, a conhecida “Lei de Ter-
ras”, um dos marcos no processo de institucionalização do país e de suma
importância para o controle do governo sobre as terras e regularização da
situação fundiária no país.
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ca; d) definiu como terras devolutas as que não tivessem uso público nem
título legítimo e particular, nem houvessem sido dadas em sesmarias
revalidadas, bem como as que não tivessem posse legítima; e e) instituiu a
necessidade do registro da terra possuída, através do pagamento de uma
taxa, quando se concederia o título de proprietário da mesma.52
Contudo, a Lei de Terras foi quase que um fracasso completo. Na corri-
da pelos registros públicos, os grandes proprietários efetivaram-no antes dos
pequenos proprietários, por possuírem melhores condições financeiras, en-
globando em sua propriedade as pequenas propriedades encravadas em seu
latifúndio, expropriando grande quantidade de pequenos agricultores.
No entanto, poucas sesmarias foram revalidadas e as posses legitima-
das, conforme exigia a lei, o “governo abandonou completamente a inspeção
das terras públicas em 1878”53 e as invasões de terras públicas continua-
ram, sendo que novas posses foram efetivadas por meio de registros frau-
dulentos (a conhecida grilagem, que ocorre até hoje).
Por outro lado, aqueles que não conseguiam obter a propriedade da
terra passaram a fazer parte de uma mão-de-obra livre, da qual o país passa-
va a necessitar, com a iminente abolição dos escravos. Além disso, o dinheiro
adquirido pelo Estado com as vendas das terras subsidiariam a imigração.
A lei proibindo o tráfico, decretada em 1831 sob pressão inglesa, não foi
obedecida até 1850, quando uma nova lei foi decretada, novamente sob pres-
são da diplomacia britânica. Isso coincidiu com um período de grande ex-
pansão das plantações de café. Nessas circunstâncias, os latifundiários, cujos
interesses estavam ligados às áreas em desenvolvimento, tiveram que recor-
rer à imigração como alternativa para recrutamento da força de trabalho. Ou
então o tráfico interno de escravos. Não foi por acaso que a Lei de Terras de
1850 foi decretada no mesmo ano que aboliu o comércio de escravos.54
52 Cf. COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à Republica: momentos decisivos. São Paulo: Ciências
Humanas, 1979, p. 358-359.
53 HOLLOWAY, Thomas H. Imigrantes para o Café: Café e sociedade em São Paulo, 1886-1934. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 173.
54 COSTA, Emília Viotti da., op. cit., p. 145.
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mento econômico que o Brasil passou a ter com a lavoura cafeeira e com a
própria questão da mão-de-obra.
Contudo, ela não encontrou eficácia social, de modo que seus objetivos
não se concretizaram, nem com o Estado conseguindo inibir a posse de
terras públicas, nem influenciando uma imigração massiva com vistas ao
fim da escravidão, que já se anunciava.
Conforme José Reinaldo Lopes, “em resumo, sem fazer cumprir a lei,
o Brasil não conseguiu rivalizar outros Países que se abriam à imigração
estrangeira: a qualidade das terras dos Estados Unidos era melhor, a escra-
vidão já havia sido abolida ( logo não havia a concorrência de dois regimes
de trabalho no campo) e a facilidade de aquisição era muito maior”.55
Já nos fins do século, com a República, nova Constituição foi promulga-
da, no ano de 1891. Entretanto, ela continuou a refletir as idéias liberais-con-
servadoras já consagradas pela primeira Carta Magna, sem qualquer vínculo
com os anseios sociais ou com a participação das massas populares.
Assim, neste momento de transição entre uma sociedade fundada no
escravismo para uma sociedade capitalista permaneceu a mesma estrutura
político e social de latifúndio, poder oligárquico e ausência de democracia,
apesar de ter ocorrido a ruptura republicana.
O Direito, mais uma vez, serviu de pilar de estruturação do Estado e
os bacharéis continuaram a constituírem-se em atores privilegiados dentro
da estruturação burocrática estatal.
Considerações finais
Sem a pretensão de esgotar a temática abordada neste texto, a análise
crítica aqui realizada dos traços mais importantes da formação da cultura
jurídica no século XIX visou levantar alguns pontos polêmicos capazes de
ilustrar como o Direito Positivo Brasileiro se formou no nosso primeiro sé-
culo como Estado independente.
Evidenciou-se neste trabalho que o Direito Nacional foi construído
como parte de um grande arcabouço para a formação do Brasil como Esta-
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do, sendo eminentemente instrumentalizador do país que surgia, daí sua
ligação com as elites dominantes e, ao mesmo tempo e de maneira bastante
anacrônica, seu vínculo liberalista.
Demonstrou-se que não só a produção legislativa a partir da Consti-
tuição de 1824, como também a instituição das duas primeiras Faculdades
de Direito para formação do corpo burocrático-administrativo do nosso
Estado, são elementos determinantes para a formação de uma cultura jurí-
dica em que ocorre a utilização do Direito como mecanismo de expressão
do poder político e econômico, de modo que ele serviu permanentemente
para manutenção dos interesses das oligarquias dirigentes.
Assim, categorias como o patrimonialismo, o patriarcalismo, o
juridicismo e o bacharelismo e de acontecimentos como a implantação dos
cursos de Direito e a promulgação da Constituição de 1824 foram elemen-
tos fundamentais para o entendimento da ordem que se colocava, em que a
grande massa era excluída e não se podia falar em democracia.
Por fim, importante dizer-se que a “releitura” crítica de nosso Direito
Positivo aqui apresentada a partir do entendimento da construção da cul-
tura jurídica que se formou no século XIX e que deixou traços em nosso
mundo jurídico até hoje possibilita seu questionamento a partir de sua pró-
pria gênese, único caminho de viabilização de uma sociedade democrática
e de uma cultura do Direito mais voltada à realidade social.
Referências bibliográficas
ADORNO, Sérgio. Os Aprendizes do Poder: o Bacharelismo Liberal na Política
Brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
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COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à Republica: momentos decisivos. São
Paulo: Ciências Humanas, 1979.
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