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Ayé: Revista de Antropologia nº1, v 1(2019)

Identidade: o vir a ser - como e por quê


Identity: the becoming - how and why

Michelle Cirne Ilges


Instituto de Humanides – Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira

Resumo: Este artigo apresenta alguns dos debates sobre a temática das identidades sociais e
é parte da dissertação de mestrado desenvolvida por mim sobre as transformações que
ocorrem na identidade pessoal e social negra a partir da entrada no universo do movimento
social negro no Brasil. A motivação para transformar esta discussão em artigo veio junto com
a experiência de ministrar a disciplina “Identidade e Poder”, no curso de bacharelado em
Humanidades da UNILAB, e compreendê-la como uma introdução adequada para se pensar
a temática das identidades sociais e dos processos de identificação.
Palavras-chave: identidade social; processos de identificação; relações de poder.

Abstract: This article presents some of the debates on the theme of social identities and is
part of the dissertation developed by me on the transformations that occur in black personal
and social identity from the entry into the universe of black social movement in Brazil. The
motivation to turn this discussion into a paper came along with the experience of teaching
the discipline "Identity and Power" in the UNILAB Humanities baccalaureate course, and
to understand it as an adequate introduction to think about the issue of social identities and
identification processes.
Keywords: social identity; identification processes; Power relations.

O texto que se segue é parte de minha dissertação de mestrado, na qual procurei


compreender os processos de transformação identitária de ativistas do movimento negro
brasileiro. A partir da premissa de que a identidade social dos indivíduos negras e negros no
Brasil é deteriorada (GOFFMAN, 1963) por conta do racismo e da racialização, a pesquisa
visou a apreender como essa identidade social anteriormente atribuída, com a inserção nas
atividades e aderência ao discurso do movimento negro, foi transformando-se em uma
identidade positivamente afirmada.
A pesquisa foi realizada em Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, com pessoas
ligadas ao Centro Ecumênico de Cultura Negra – CECUNE, uma associação do movimento
negro local. Foi realizada por meio de observação participante e de entrevistas, e seu
resultado está disponível na página da internet do Programa de Pós-Graduação
Multidisciplinar em Estudos Étnicos e Africanos da Universidade Federal da Bahia, na qual
a dissertação foi defendida (CIRNE, 2008).
Para firmar as bases teóricas sobre as quais a pesquisa se desenvolveu, foi certamente
necessário selecionar algumas discussões contemporâneas feitas nas ciências sociais sobre os
temas sobre os quais a pesquisa se debruçava – racismo, cultura, identidade. O texto que

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segue, portanto, é um debate sobre o tema da identidade, realizado por algumas das autoras
e autores mais lidos e comentados na década passada, e que se mantêm extremamente
relevantes na sua perspectiva da identidade pessoal e social como um processo, sujeito a
modificações no decorrer do tempo, produto das relações entre indivíduo, sociedade e
cultura.

A multiplicidade das identidades e das identificações na contemporaneidade


Zigmunt Bauman, no livro Identidade, atesta que até o século XVIII, a ideia de
“sociedade”, para a maioria das pessoas, era igual à vizinhança. Nessa rede de familiaridade,
“o lugar de cada pessoa era evidente demais para ser avaliado, que dirá negociado”
(BAUMAN, 2005, p. 24). Com o crescimento do poder estatal e a revolução dos transportes,
em concomitância com a decorrente desintegração da força das comunidades locais, a
identidade nasceu “como problema e como tarefa”. Nesse primeiro momento, a identidade
nacional era a questão preeminente, e o Iluminismo legou uma visão unificada de homem,
aquele que é dotado pela razão. O indivíduo da sociedade moderna ainda contava com uma
identidade bem definida e localizada (HALL, 1999).
Atualmente, o fenômeno que conhecemos pelo nome genérico de globalização
acarretou o afrouxamento das fronteiras nacionais, cedendo lugar a uma transnacionalização
da vida econômica e cultural, através de uma maior interligação das pessoas e eventos, por
meio das novas tecnologias de comunicação, revolucionando as noções de tempo e espaço
na contemporaneidade. A modernidade tardia, como Stuart Hall denomina a
contemporaneidade, é por definição uma sociedade de mudança constante.
As instituições da família, da religião, do trabalho, que outrora funcionavam como
quadros de referência, assim como o estado-nação, também foram abaladas. Com o colapso
das antigas estruturas em que as identidades eram comumente inscritas, discute-se a “crise
da identidade”, e a fragmentação do indivíduo pós-moderno.
As identidades são agora localizadas e múltiplas; não existe mais uma identidade
“mestra”, como já foi, por exemplo, a classe social, que abrangia e alinhava em seu torno
diferentes posições e características. Hall afirma que a globalização tem um efeito pluralizante
sobre as identidades, tornando-as mais posicionais, mais políticas. Bauman ainda assevera
que, segundo as nossas condições modernas, “a escolha não é só uma possibilidade, mas uma
realidade a que é difícil escapar. Os indivíduos modernos estão ‘sentenciados’ a uma
existência de escolha” (BAUMAN, 1998, p. 234).

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O tema da identidade tornou-se, então, central no debate das ciências sociais nas
últimas décadas. Mas o que é a identidade, afinal? Como a definem os teóricos
contemporâneos?

Classificação como organização social


A primeira característica a ser ressaltada é que a identidade depende da diferença:
uma coisa é o que é porque não é todas as outras coisas. Nesse sentido, a identidade é
relacional, depende de algo fora dela. Identidade e diferença são mutuamente determinadas.
A identidade é, assim, marcada pela diferença; e a diferença é mantida pela exclusão. “Toda
identidade tem necessidade daquilo que lhe falta”, atesta Stuart Hall (HALL, 2000, p. 110).
Conforme também aponta o etnólogo francês Denys Cuche, “não há identidade em si, nem
mesmo unicamente para si. A identidade existe sempre em relação a uma outra. Ou seja,
identidade e alteridade são ligadas e estão em uma relação dialética” (CUCHE, 1999, p.183).
Afirma Tomaz Tadeu da Silva, de acordo com as escolas estruturalista e funcionalista
de Antropologia, que “o processo de classificação é central na vida social. [É] um ato de
significação pelo qual dividimos e ordenamos o mundo social” (SILVA, 2000, p. 82). Kathryn
Woodward, remetendo-se a Mary Douglas, no mesmo sentido argumenta que “a marcação
da diferença é a base da cultura porque as coisas - e as pessoas - ganham sentido por meio
da atribuição de diferentes posições em um sistema classificatório” (WOODWARD, 2000,
p. 39). Como a identidade e a diferença são também atos linguísticos, de denominação, as
teorias do linguista Ferdinand de Saussure corroboram para pensarmo-las como interligadas,
pois a linguagem é, segundo Saussure, fundamentalmente um sistema de diferenças. A noção
de diferença é a operação ou o processo básico de funcionamento da língua, do mesmo modo
como opera a identidade: novamente, uma coisa é o que é porque não é todas as outras coisas
(e é assim que apreendemos o seu significado, por exclusão de todos os outros). Saussure,
como teórico estruturalista, apresenta esse jogo classificatório da linguagem através das
oposições binárias, a forma mais extrema de marcar a diferença. Mas, enquanto para os
estruturalistas o binarismo está ligado à lógica subjacente da linguagem, para outros autores
“a força psíquica dessa duradoura estrutura de pensamento deriva de uma rede histórica de
determinações culturais”, conforme aponta Woodward.

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Essencialismos e processos históricos e políticos


Na discussão sobre o tema da identidade, as diversas perspectivas podem ser
divididas em dois grandes blocos: as denominadas “essencialistas” e as “não-essencialistas”.
Na visão que entende a identidade como tendo um núcleo essencial, os argumentos se
baseiam na biologia, através das noções da raça e das relações de parentesco, e também na
história, na reivindicação da herança de um passado comum que se torna uma verdade
imutável, a “origem” ou “ancestralidade”. Woodward afirma que
em uma política de identidade, o projeto político deve ser reforçado por um apelo
à solidariedade daqueles que ‘pertencem’ a um grupo oprimido. A biologia oferece
uma das fontes dessa solidariedade; a busca de raízes e laços culturais fornece
outra (ibid, p. 38).
Michel Agier, em um artigo no qual versa sobre as atuais relações entre identidade e
cultura em tempos de globalização, afirma que toda declaração identitária é “múltipla,
inacabada, instável, sempre experimentada mais como uma busca que como um fato.”
(AGIER, 2001, p. 10). Entretanto, o grupo constrói sua identidade afirmando-a como
absoluta, autêntica e atemporal; é assim que estabelecem tal identidade. Agier comenta as
atitudes tomadas pelos grupos que se fundam em uma busca identitária: atitudes que “dão o
ar de retornos (‘retorno à etnia’) ou de recolhimento (busca de ‘raízes’)”; entretanto, escreve
o autor, “ao decodificar os processos e resultados de sua busca, descobrimos antes inovações,
invenções, mestiçagens e uma grande abertura para o mundo presente” (ibid).O autor faz
uma crítica da noção de “identidade cultural”, tornada “lugar-comum das novas formas do
político, fonte de mobilização popular em zonas rurais e urbanas”. Afirma que para as novas
etnicidades “o espetáculo da diferença cultural se torna não somente um objeto identitário,
mas também um recurso político ou econômico para indivíduos e redes à procura de um
lugar na modernidade”. Os movimentos identitários “expõem sua ‘identidade cultural’ como
fonte de legitimação em face dos outros ou do Estado”, mostrando sua cultura como
tradicional e atemporal; no entanto, esta foi fabricada em cima de fragmentos múltiplos, ação
essa que favorece a dinâmica cultural, a transforma. “Esse é o paradoxo permanente da
relação entre identidade e cultura – uma relação problemática, conflituosa, ou seja, o
contrário absoluto da transparência suposta pelo qualificativo de ‘identidade cultural’” (ibid,
p. 21-2).
Bauman, em artigo no livro O mal estar da pós-modernidade, critica a visão de identidade
unificada e permanente dos “comunitários”. Analisando as divergências entre pensadores
liberais e comunitários, especialmente sobre a questão da diferença, afirma que “a “diferença“
liberal representa a liberdade individual, ao passo que a “ diferença“ comunitária representa

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o poder do grupo para limitar a liberdade individual” (BAUMAN, 1998, p. 233, grifo do
autor). Ainda argumenta Bauman:
os comunitários querem que o resultado da escolha seja estabelecido antes que o
ato de escolher comece: para uma mentalidade comunitária, uma boa escolha é
uma escolha do que já está dado – a descoberta e concessão de expressão
consciente à ‘identidade histórica’ transmitida pelo nascimento. (...) Teoricamente,
a liberdade deveria ser empregada exclusivamente para escolher a falta de
liberdade; a voluntariedade, aí, significa utilizar a volição individual para se abster
de exercer o livre-arbítrio. A verdadeira escolha foi feita e assinalada antes do
nascimento do indivíduo. A vida que se segue ao nascimento é (ou deveria ser)
dedicada a descobrir qual foi essa escolha e comportar-se de acordo com isso
(ibid, p. 234).
Bell Hooks, por sua vez, no artigo Devorar o outro, no qual analisa as relações sexuais
e amorosas entre “brancos” e “negros”, critica a denominação do essencialismo negro
apontada pelos teóricos, e ao mesmo tempo sinaliza que este essencialismo é estimulado
pelos “brancos”:
Os intelectuais brancos progressistas, que criticam, sobretudo, as noções
‘essencialistas’ de identidade quando escrevem sobre a cultura de massas, raça e
gênero, ainda não dirigiram suas críticas até a identidade branca e à maneira como
o essencialismo informa as representações do branco. (...) Poucos intelectuais
brancos tem chamado a atenção sobre a maneira como a obsessão contemporânea
com o consumo do Outro moreno por parte do branco tem servido como
catalisador para o ressurgimento do nacionalismo negro e étnico baseado no
essencialismo. (...) a maioria dos intelectuais brancos que escrevem críticas a
respeito da cultura negra não vêem as dimensões construtivas do nacionalismo
negro, tendem a vê-lo como um essencialismo ingênuo, arraigado em noções de
pureza étnica semelhantes às suposições racistas dos brancos. (...) Dado este
contexto cultural, o nacionalismo negro é mais um gesto de impotência do que
um sinal de resistência crítica(HOOKS, 1996, pp. 27-31).
As perspectivas que se contrapõem às visões essencialistas encaram a identidade
fundamentalmente como uma questão de tornar-se, ou seja, a identidade é uma construção
social, um processo discursivo e, ao mesmo tempo, formador de subjetividades. Como
afirma Bauman, “a ‘identidade’ só nos é revelada como algo a ser inventado, e não
descoberto” (BAUMAN, 2005, p. 21). A concepção trabalhada por Stuart Hall compreende
que
as identidades não são nunca unificadas; que elas são, na modernidade tardia, cada
vez mais fragmentadas e fraturadas; que elas não são, nunca, singulares, mas
multiplamente construídas ao longo de discursos, práticas e posições que podem
se cruzar ou ser antagônicos. As identidades estão sujeitas a uma historicização
radical, estando constantemente em processo de mudança e transformação
(HALL, 2000, p.108).
A identidade não é, pois, um dado ou um fato – seja da natureza, seja da cultura; não
é estável nem permanente, tampouco homogênea. Ainda afirma Stuart Hall que as
identidades
têm a ver não tanto com as questões ‘quem nós somos’ ou ‘de onde nós viemos’,
mas muito mais com as questões ‘quem nós podemos nos tornar’, ‘como nós
temos sido representados’ e ‘como essa representação afeta a forma como nós
podemos representar a nós próprios(ibid, p. 109).

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Compreender a identidade como uma questão de tornar-se, não significa negar que
a identidade tenha um passado, “mas reconhecer que, ao reivindicá-la, nós a reconstruímos
e que, além disso, o passado sofre uma constante transformação” (WOODWARD, 2000, p.
28).
Denys Cuche insere a perspectiva relacional no debate, para a qual “a construção da
identidade se faz no interior de contextos sociais que determinam a posição dos agentes e
por isso mesmo orientam suas representações e suas escolhas” (CUCHE, 1999, p.182). O
autor introduz o pensamento de Fredrik Barth, ressaltando que “para Barth, deve-se tentar
entender o fenômeno da identidade através da ordem das relações entre os grupos sociais”
(ibid). Este enfoque é essencial para o estudo da identidade negra no Brasil, pois foi através
do sistema escravista gerido pelos homens brancos que se instituiu a imagem do sujeito e da
cultura negra no interior da nossa sociedade e, em contrapartida, a “negritude” proclamada
pelos movimentos negros. A construção da identidade é tanto simbólica quanto social: “a
identidade é a intersecção de nossas vidas cotidianas com as relações econômicas e políticas
de subordinação e dominação”, afirma Kathryn Woodward (WOODWARD, 2000, p. 19).
A identidade é então o que está em jogo nas lutas sociais. (...) Na medida em que
ela é um motivo de lutas sociais de classificação que buscam a reprodução ou a
reviravolta das relações de dominação, a identidade se constrói através das
estratégias dos atores sociais(CUCHE, 1999, p.196).
Michel Agier também apresenta em seu texto as diferentes abordagens que
constituíram a “antropologia das identidades”. De acordo com a abordagem construtivista,
da qual Barth é a principal referência, “a realidade é ‘construída’ pelas representações dos
atores, e essa construção subjetiva faz parte ela própria da realidade que o olhar do
observador deve levar em consideração” (AGIER, 2001, p. 11, grifo meu). A abordagem
situacional, por sua vez, indica-nos que “a atenção principal do observador deve se colocar
antes sobre as interações e as situações reais nas quais os atores se engajam, do que nas
representações formuladas a priori das culturas, tradições ou figura ancestrais em nome das
quais se supõe que eles agem” (ibid, p. 12).
Stuart Hall denomina de “Tradição” (seguindo Robins) o movimento das identidades
que tentam “recuperar” uma suposta pureza, através de asserções que são sua verdade
absoluta. “Outras aceitam que as identidades estão sujeitas ao plano da história, da política,
da representação e, assim, é improvável que sejam unitárias ou ‘puras’; essas gravitam ao
redor daquilo que Robins (seguindo Homi Bhabha) chama de ‘Tradução’” (HALL, 1999, p.
87).

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O movimento constante dos significados e as relações de poder


As teorias pós-estruturalistas e sua crítica à ideia clássica de representação,
contribuem para entendermos as identidades como fluidas e mutantes. Representar é
significar, preencher o mundo com sentidos, e a linguagem é um sistema de significação por
excelência. Para os pós-estruturalistas, a linguagem é instável e permite deslizamentos, pois
os signos eternamente adiam a presença da “coisa” em si – os objetos ou conceitos – e
dependem de uma operação de diferença, em relação aos outros signos (duas características
sintetizadas no conceito de différance de Derrida). Depreende-se que o processo de
significação (a linguagem) é “fundamentalmente indeterminado, sempre incerto e vacilante”
(SILVA, 2000, p. 80). O trabalho de Derrida também questiona as oposições binárias, pois
para ele as dicotomias são uma forma de tentar fixar o significado, e não inerentes à lógica
do pensamento, como apontam os estruturalistas.
Na perspectiva pós-estruturalista, o conceito de representação incorpora todas as
características de indeterminação, ambigüidade e instabilidade atribuídas à
linguagem. (...) Aqui, a representação não aloja a presença do ‘real’ ou do
significado. A representação não é simplesmente um meio transparente de
expressão de algum suposto referente. Em vez disso, a representação é, como
qualquer sistema de significação, uma forma de atribuição de sentido. Como tal,
a representação é um sistema lingüístico e cultural: arbitrário, indeterminado e
ligado a relações de poder (SILVA, 2000, p. 91).
Todas as práticas que produzem significados envolvem relações de poder, assim,
quem tem o poder de representar tem o poder de definir e determinar a identidade. “A
identidade e a diferença têm a ver com a atribuição de sentido ao mundo social e com disputa
e luta em torno dessa atribuição.” (ibid, p. 96). Stuart Hall afirma que, como produtos de
relações desiguais de poder, as identidades são
mais o produto da marcação da diferença e da exclusão do que o signo de uma
unidade idêntica, naturalmente constituída, de uma ‘identidade’ em seu significado
tradicional – isto é, uma mesmidade que tudo inclui, uma identidade sem costuras,
inteiriça, sem diferenciação interna(HALL, 2000, p. 109).
No processo de constituição das identidades estão presentes os atos que envolvem
disputa: diferenciar, classificar, excluir, hierarquizar, normalizar. Nas classificações binárias,
nos opostos que muitas vezes estabelecem as identidades, existe uma violenta hierarquia
entre os dois pólos, onde o superior recebe a designação de identidade “normal” – é a
identidade, e não uma identidade – e, paradoxalmente, são as outras identidades que são
marcadas como tais. Como atesta Tomaz Tadeu da Silva:
A normalização é um dos processos mais sutis pelos quais o poder se manifesta
no campo da identidade e da diferença. (...) Numa sociedade em que impera a
supremacia branca, ‘ser branco’ não é considerado uma identidade étnica ou racial.
(...) A força homogeneizadora da identidade normal é diretamente proporcional à
sua invisibilidade(SILVA, 2000, p. 83).

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Este autor traz o conceito de performatividade, da teórica Judith Butler, para melhor
entendermos a questão da identidade como movimento e transformação, e assim
compreender também como novas identidades podem ser formadas. Este conceito “desloca
a ênfase na identidade como descrição, como aquilo que é – uma ênfase que é, de certa forma,
mantida pelo conceito de representação – para a idéia de ‘tornar-se’” (ibid, p. 92). Butler
entende que a maior parte do que dizemos são proposições descritivas, mas ressalta o fato
que muitas sentenças descritivas acabam funcionando como performativas. No exemplo de
Tomaz da Silva, a repetida enunciação de uma sentença como “João é pouco inteligente”
pode acabar produzindo o fato que supostamente apenas deveria descrever. Como assevera
Stuart Hall, falar uma língua “significa ativar a imensa gama de significados que já estão
embutidos em nossos sistemas culturais” (HALL, 1999, p. 40). Dessa forma, o que dizemos
pode contribuir para reforçar os padrões já existentes. Mas também, como aponta o mesmo
autor, as palavras
sempre carregam ecos de outros significados que elas colocam em movimento,
apesar de nossos esforços para cerrar o significado. (...) Tudo que dizemos tem
um ‘antes’ e um ‘depois’ – uma ‘margem’ na qual outras pessoas podem escrever”
(ibid, p. 41).
É assim que, segundo Butler, “a mesma repetibilidade que garante a eficácia dos atos
performativos que reforçam as identidades existentes pode significar também a possibilidade
da interrupção das identidades hegemônicas” e a produção de novas e renovadas identidades
(SILVA, 2000, p. 95). Identidades que se baseiam em movimentos de hibridismo cultural não
são mais inteiramente nenhuma das identidades originais, mesmo guardando traços delas.
“Ao confundir a estabilidade da identidade, a hibridização, de alguma forma, também afeta
o poder.” (ibid, p. 87).

Identificação e subjetividade
Mas de que forma explicar como e por que os indivíduos aderem a determinadas
identidades? Stuart Hall é um dos pensadores que mais se ocupa desta questão, e, nesse
sentido, defende a utilização do conceito de identificação, ao invés de identidade, para melhor
ressaltar a ideia de processo formador de subjetividades. Este conceito tem origem na
psicanálise, e Hall afirma que não devemos nos abster de buscar compreensões no repertório
psicanalítico, no intuito de pensarmos como se vinculam as realidades social e psíquica. A
abordagem de Hall vê a identificação como algo sempre em processo: “se pode, sempre,
‘ganhá-la’ ou ‘perdê-la’; no sentido de que ela pode ser, sempre, sustentada ou abandonada”
(HALL, 2000, p. 106, grifo meu). Hall cita Freud, que chama a identificação de
a mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa” (Freud, 1921,
grifo meu). No contexto do complexo de Édipo, o conceito toma, entretanto, as

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figuras do pai e da mãe tanto como objetos de amor quanto como objetos de
competição, inserindo, assim, a ambivalência no centro mesmo do processo. ‘A
identificação, na verdade, é ambivalente desde o início’ (Freud, 1921)(HALL,
2000, p. 107).
A identificação “está fundada na fantasia, na projeção e na idealização”, afirma Hall.
O autor ainda argumenta, sobre a mesma ideia:
Uma vez assegurada, ela não anulará a diferença. A fusão total entre o ‘mesmo’ e
o ‘outro’ que ela sugere é, na verdade, uma fantasia de incorporação. (...) Há
sempre ‘demasiado’ ou ‘muito pouco’ – uma sobredeterminação ou uma falta,
mas nunca um ajuste completo, uma totalidade. (...) ela envolve um trabalho
discursivo, o fechamento e a marcação de fronteiras simbólicas(ibid, p. 106).
Mas Hall também afirma, mais adiante no texto, que “a natureza necessariamente
ficcional desse processo não diminui, de forma alguma, sua eficácia discursiva, material ou
política” (ibid, p. 109).
O autor entende a identidade como o “ponto de sutura” entre os discursos que
convocam o sujeito e os processos que constroem subjetividades. Argumenta Hall:
Uma teoria da ideologia deve começar não pelo sujeito, mas por uma descrição
dos efeitos de sutura, por uma descrição da efetivação da junção do sujeito às
estruturas de significação. (...) Se uma suturação eficaz do sujeito a uma posição-
de-sujeito exige não apenas que o sujeito seja ‘convocado’, mas que o sujeito
invista naquela posição, então a suturação tem que ser pensada como uma
articulação e não como um processo unilateral. Isto coloca com toda a força a
identificação, se não as identidades, na pauta teórica(ibid, p. 112).
Reafirma a autoridade da psicanálise no entendimento sobre a identidade, quando
cita Jacqueline Rose, que assevera que “se a ideologia é eficaz é porque ela age nos níveis
mais rudimentares da identidade e dos impulsos psíquicos” (Rose apud HALL, 2000, p. 113),
mas assegura que é somente na articulação deste campo de estudo com a sociologia que
podemos ter uma real compreensão do tema. Stuart Hall está preocupado em “diminuir o
fosso” entre os domínios das análises das práticas discursivas e do entendimento sobre a
formação de subjetividades; demanda uma teoria para entender os mecanismos que fazem
os indivíduos se identificar com as “posições” para as quais são convocados, para entender
de que forma eles moldam, estilizam, produzem e ‘exercem’ essas posições; que
explique por que eles não o fazem completamente, de uma só vez e por todo o
tempo, e por que alguns nunca o fazem, ou estão em um processo constante,
agonístico, de luta com as regras normativas ou regulativas com as quais se
confrontam e pelas quais regulam a si mesmos – fazendo-lhes resistência,
negociando-as ou acomodando-as(ibid, p. 126).
Kathryn Woodward é uma teórica que, assim como Hall, parte da perspectiva dos
Estudos Culturais para pensar o tema da identidade. Esta autora traz para a discussão o
conceito da subjetividade, que
envolve as emoções e os pensamentos conscientes e inconscientes que constituem
nossas concepções sobre ‘quem nós somos’. Entretanto, nós vivemos nossa
subjetividade em um contexto social no qual a linguagem e a cultura dão
significado à experiência que temos de nós mesmos e no qual adotamos uma
identidade(WOODWARD, 2000, p. 55).

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Ao incluir a dimensão inconsciente, necessariamente depara-se com a existência de


contradições, assegura a autora. Na mesma direção de Stuart Hall, Kathryn Woodward é
favorável ao desenvolvimento do conceito da subjetividade, pois ele “permite uma
exploração dos sentimentos que estão envolvidos no processo de produção da identidade e
do investimento pessoal que fazemos em posições específicas de identidade” (ibid, grifo
meu).
Bauman lembra-nos que o anseio por “identidade” vem do desejo de segurança, em
contraposição às experiências em um mundo que é marcado pela fragmentação e incerteza;
e é provavelmente por este motivo que se empregue a linguagem das raízes e do passado nas
políticas identitárias, porque é preciso “validar” as escolhas. É também por esta razão que “a
verdade sobre a condição precária e eternamente inconclusa da identidade deva e tenda a ser
laboriosamente oculta” (BAUMAN, 2005, p. 21). No mesmo sentido, Woodward apresenta
um questionamento muito importante: “vê-las [as identidades] como fluidas e mutantes é
compatível com a sustentação de um projeto político?” (WOODWARD, 2000, p. 16).

Controvérsias da diferença
Os autores aqui citados sinalizam, com maior ou menor veemência, para os perigos
de uma noção de identidade estática, que não compreenda as diferenças internas ao grupo.
Stuart Hall, lembrando a crítica interna de Judith Butler ao movimento feminista, afirma que
as políticas identitárias, ao unificar um grupo sob um rótulo, por exemplo, “negros”, presume
a sua “unidade” e exclui todos os negros diferentes, como as mulheres e os homossexuais,
entre outros. “Essa ‘unidade’ é uma ‘unidade fictícia’, produzida e constrangida pelas mesmas
‘estruturas de poder por meio das quais a emancipação é buscada’”, reafirma Hall (HALL,
2000, p. 130).
Bauman também critica a luta por “identidade” que pode aprisionar quando pretende
o seu oposto, mas reflete sobre a promessa capitalista inconclusa, em um trecho que nos faz
pensar no fim da escravidão no Brasil:
O dever da liberdade sem os recursos que permitem uma escolha verdadeiramente
livre é, para muitos, uma receita para a vida sem dignidade, preenchida, em vez
disso, com humilhação e autodepreciação. (...) [Os lemas comunitários] têm todo
o direito de importunar a complacência liberal, uma vez que procedem das
camadas excluídas (...) e uma vez que esses lemas são empregados como
advertência de que a obra de promoção da liberdade está longe de completa, e
que a sua conclusão exigirá fazer algo para retificar a atual distribuição de recursos
(...). [Porém,] esses lemas trazem consigo uma proposta que, se aceita
acriticamente, terá exatamente o efeito oposto: a saber, a redução dessa liberdade
(BAUMAN, 1998, pp. 243-4).

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Tomaz Tadeu da Silva adverte ainda que, no chamado multiculturalismo, o


movimento pelo reconhecimento das diferenças, a noção da diversidade é problemática, pois,
através dela, a diferença e a identidade tendem a ser naturalizadas, cristalizadas. O respeito e
a tolerância são insuficientes quando não se entendem essas questões por meio de uma crítica
política. Nesse sentido, Silva propõe que se aproxime a diferença do múltiplo, e não do
diverso. O múltiplo liga-se à idéia de processo ativo; não é uma diferença entre duas
identidades, mas sim uma diferença da identidade, da “mesmidade”. Não é uma outridade
“’relativamente a mim’ ou ‘relativamente ao mesmo’, mas é absolutamente diferente, sem
relação alguma com a identidade” (Pardo, citado em SILVA, 2000, p. 101).
Já Patrícia Pinho apresenta uma reflexão divergente sobre a noção da diferença:
O senso comum intelectualizado, ao pensar que o racismo se reduz a uma
heterofobia (aversão ao diferente), abraça a causa da diferença como algo anti-
racista, humanitário, de esquerda. No entanto, com isso, deixa-se de perceber que
o racismo é (como o são os direitismos de todos os tipos) uma celebração da
certeza das diferenças. (...) A defesa das diferenças tem em seu bojo ‘um temor da
perda das identidades coletivas’, como se houvesse culturas fixas e cristalizadas
que se quebrariam através da mistura entre os povos(PINHO, 2004, pp. 190-1).
As perspectivas apresentadas neste texto demonstram que as contradições estão
presentes no tema da “identidade social”. Vimos que ela é uma construção social, mas como
funciona para dar segurança e coesão aos grupos que a utilizam, é referenciada nas ideias de
um passado e cultura comuns, que têm de ser, no discurso desses grupos, “resgatados” e
“preservados”, o que omite o fato de que a cultura está em um processo constante de
transformação. Esperamos com este texto ter contribuído com a reunião de algumas das
linhas que discutem o tema das identidades na ciência social, apresentando a complexidade
inerente a este objeto de estudo que diz respeito a nossa localização e posicionamento na
vida social.

Referências bibliográficas
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