Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Almeidaop Gerente Da Revista Michelle 04 05 2019
Almeidaop Gerente Da Revista Michelle 04 05 2019
Resumo: Este artigo apresenta alguns dos debates sobre a temática das identidades sociais e
é parte da dissertação de mestrado desenvolvida por mim sobre as transformações que
ocorrem na identidade pessoal e social negra a partir da entrada no universo do movimento
social negro no Brasil. A motivação para transformar esta discussão em artigo veio junto com
a experiência de ministrar a disciplina “Identidade e Poder”, no curso de bacharelado em
Humanidades da UNILAB, e compreendê-la como uma introdução adequada para se pensar
a temática das identidades sociais e dos processos de identificação.
Palavras-chave: identidade social; processos de identificação; relações de poder.
Abstract: This article presents some of the debates on the theme of social identities and is
part of the dissertation developed by me on the transformations that occur in black personal
and social identity from the entry into the universe of black social movement in Brazil. The
motivation to turn this discussion into a paper came along with the experience of teaching
the discipline "Identity and Power" in the UNILAB Humanities baccalaureate course, and
to understand it as an adequate introduction to think about the issue of social identities and
identification processes.
Keywords: social identity; identification processes; Power relations.
53
Ayé: Revista de Antropologia nº1, v 1(2019)
segue, portanto, é um debate sobre o tema da identidade, realizado por algumas das autoras
e autores mais lidos e comentados na década passada, e que se mantêm extremamente
relevantes na sua perspectiva da identidade pessoal e social como um processo, sujeito a
modificações no decorrer do tempo, produto das relações entre indivíduo, sociedade e
cultura.
54
Ayé: Revista de Antropologia nº1, v 1(2019)
O tema da identidade tornou-se, então, central no debate das ciências sociais nas
últimas décadas. Mas o que é a identidade, afinal? Como a definem os teóricos
contemporâneos?
55
Ayé: Revista de Antropologia nº1, v 1(2019)
56
Ayé: Revista de Antropologia nº1, v 1(2019)
o poder do grupo para limitar a liberdade individual” (BAUMAN, 1998, p. 233, grifo do
autor). Ainda argumenta Bauman:
os comunitários querem que o resultado da escolha seja estabelecido antes que o
ato de escolher comece: para uma mentalidade comunitária, uma boa escolha é
uma escolha do que já está dado – a descoberta e concessão de expressão
consciente à ‘identidade histórica’ transmitida pelo nascimento. (...) Teoricamente,
a liberdade deveria ser empregada exclusivamente para escolher a falta de
liberdade; a voluntariedade, aí, significa utilizar a volição individual para se abster
de exercer o livre-arbítrio. A verdadeira escolha foi feita e assinalada antes do
nascimento do indivíduo. A vida que se segue ao nascimento é (ou deveria ser)
dedicada a descobrir qual foi essa escolha e comportar-se de acordo com isso
(ibid, p. 234).
Bell Hooks, por sua vez, no artigo Devorar o outro, no qual analisa as relações sexuais
e amorosas entre “brancos” e “negros”, critica a denominação do essencialismo negro
apontada pelos teóricos, e ao mesmo tempo sinaliza que este essencialismo é estimulado
pelos “brancos”:
Os intelectuais brancos progressistas, que criticam, sobretudo, as noções
‘essencialistas’ de identidade quando escrevem sobre a cultura de massas, raça e
gênero, ainda não dirigiram suas críticas até a identidade branca e à maneira como
o essencialismo informa as representações do branco. (...) Poucos intelectuais
brancos tem chamado a atenção sobre a maneira como a obsessão contemporânea
com o consumo do Outro moreno por parte do branco tem servido como
catalisador para o ressurgimento do nacionalismo negro e étnico baseado no
essencialismo. (...) a maioria dos intelectuais brancos que escrevem críticas a
respeito da cultura negra não vêem as dimensões construtivas do nacionalismo
negro, tendem a vê-lo como um essencialismo ingênuo, arraigado em noções de
pureza étnica semelhantes às suposições racistas dos brancos. (...) Dado este
contexto cultural, o nacionalismo negro é mais um gesto de impotência do que
um sinal de resistência crítica(HOOKS, 1996, pp. 27-31).
As perspectivas que se contrapõem às visões essencialistas encaram a identidade
fundamentalmente como uma questão de tornar-se, ou seja, a identidade é uma construção
social, um processo discursivo e, ao mesmo tempo, formador de subjetividades. Como
afirma Bauman, “a ‘identidade’ só nos é revelada como algo a ser inventado, e não
descoberto” (BAUMAN, 2005, p. 21). A concepção trabalhada por Stuart Hall compreende
que
as identidades não são nunca unificadas; que elas são, na modernidade tardia, cada
vez mais fragmentadas e fraturadas; que elas não são, nunca, singulares, mas
multiplamente construídas ao longo de discursos, práticas e posições que podem
se cruzar ou ser antagônicos. As identidades estão sujeitas a uma historicização
radical, estando constantemente em processo de mudança e transformação
(HALL, 2000, p.108).
A identidade não é, pois, um dado ou um fato – seja da natureza, seja da cultura; não
é estável nem permanente, tampouco homogênea. Ainda afirma Stuart Hall que as
identidades
têm a ver não tanto com as questões ‘quem nós somos’ ou ‘de onde nós viemos’,
mas muito mais com as questões ‘quem nós podemos nos tornar’, ‘como nós
temos sido representados’ e ‘como essa representação afeta a forma como nós
podemos representar a nós próprios(ibid, p. 109).
57
Ayé: Revista de Antropologia nº1, v 1(2019)
Compreender a identidade como uma questão de tornar-se, não significa negar que
a identidade tenha um passado, “mas reconhecer que, ao reivindicá-la, nós a reconstruímos
e que, além disso, o passado sofre uma constante transformação” (WOODWARD, 2000, p.
28).
Denys Cuche insere a perspectiva relacional no debate, para a qual “a construção da
identidade se faz no interior de contextos sociais que determinam a posição dos agentes e
por isso mesmo orientam suas representações e suas escolhas” (CUCHE, 1999, p.182). O
autor introduz o pensamento de Fredrik Barth, ressaltando que “para Barth, deve-se tentar
entender o fenômeno da identidade através da ordem das relações entre os grupos sociais”
(ibid). Este enfoque é essencial para o estudo da identidade negra no Brasil, pois foi através
do sistema escravista gerido pelos homens brancos que se instituiu a imagem do sujeito e da
cultura negra no interior da nossa sociedade e, em contrapartida, a “negritude” proclamada
pelos movimentos negros. A construção da identidade é tanto simbólica quanto social: “a
identidade é a intersecção de nossas vidas cotidianas com as relações econômicas e políticas
de subordinação e dominação”, afirma Kathryn Woodward (WOODWARD, 2000, p. 19).
A identidade é então o que está em jogo nas lutas sociais. (...) Na medida em que
ela é um motivo de lutas sociais de classificação que buscam a reprodução ou a
reviravolta das relações de dominação, a identidade se constrói através das
estratégias dos atores sociais(CUCHE, 1999, p.196).
Michel Agier também apresenta em seu texto as diferentes abordagens que
constituíram a “antropologia das identidades”. De acordo com a abordagem construtivista,
da qual Barth é a principal referência, “a realidade é ‘construída’ pelas representações dos
atores, e essa construção subjetiva faz parte ela própria da realidade que o olhar do
observador deve levar em consideração” (AGIER, 2001, p. 11, grifo meu). A abordagem
situacional, por sua vez, indica-nos que “a atenção principal do observador deve se colocar
antes sobre as interações e as situações reais nas quais os atores se engajam, do que nas
representações formuladas a priori das culturas, tradições ou figura ancestrais em nome das
quais se supõe que eles agem” (ibid, p. 12).
Stuart Hall denomina de “Tradição” (seguindo Robins) o movimento das identidades
que tentam “recuperar” uma suposta pureza, através de asserções que são sua verdade
absoluta. “Outras aceitam que as identidades estão sujeitas ao plano da história, da política,
da representação e, assim, é improvável que sejam unitárias ou ‘puras’; essas gravitam ao
redor daquilo que Robins (seguindo Homi Bhabha) chama de ‘Tradução’” (HALL, 1999, p.
87).
58
Ayé: Revista de Antropologia nº1, v 1(2019)
59
Ayé: Revista de Antropologia nº1, v 1(2019)
Este autor traz o conceito de performatividade, da teórica Judith Butler, para melhor
entendermos a questão da identidade como movimento e transformação, e assim
compreender também como novas identidades podem ser formadas. Este conceito “desloca
a ênfase na identidade como descrição, como aquilo que é – uma ênfase que é, de certa forma,
mantida pelo conceito de representação – para a idéia de ‘tornar-se’” (ibid, p. 92). Butler
entende que a maior parte do que dizemos são proposições descritivas, mas ressalta o fato
que muitas sentenças descritivas acabam funcionando como performativas. No exemplo de
Tomaz da Silva, a repetida enunciação de uma sentença como “João é pouco inteligente”
pode acabar produzindo o fato que supostamente apenas deveria descrever. Como assevera
Stuart Hall, falar uma língua “significa ativar a imensa gama de significados que já estão
embutidos em nossos sistemas culturais” (HALL, 1999, p. 40). Dessa forma, o que dizemos
pode contribuir para reforçar os padrões já existentes. Mas também, como aponta o mesmo
autor, as palavras
sempre carregam ecos de outros significados que elas colocam em movimento,
apesar de nossos esforços para cerrar o significado. (...) Tudo que dizemos tem
um ‘antes’ e um ‘depois’ – uma ‘margem’ na qual outras pessoas podem escrever”
(ibid, p. 41).
É assim que, segundo Butler, “a mesma repetibilidade que garante a eficácia dos atos
performativos que reforçam as identidades existentes pode significar também a possibilidade
da interrupção das identidades hegemônicas” e a produção de novas e renovadas identidades
(SILVA, 2000, p. 95). Identidades que se baseiam em movimentos de hibridismo cultural não
são mais inteiramente nenhuma das identidades originais, mesmo guardando traços delas.
“Ao confundir a estabilidade da identidade, a hibridização, de alguma forma, também afeta
o poder.” (ibid, p. 87).
Identificação e subjetividade
Mas de que forma explicar como e por que os indivíduos aderem a determinadas
identidades? Stuart Hall é um dos pensadores que mais se ocupa desta questão, e, nesse
sentido, defende a utilização do conceito de identificação, ao invés de identidade, para melhor
ressaltar a ideia de processo formador de subjetividades. Este conceito tem origem na
psicanálise, e Hall afirma que não devemos nos abster de buscar compreensões no repertório
psicanalítico, no intuito de pensarmos como se vinculam as realidades social e psíquica. A
abordagem de Hall vê a identificação como algo sempre em processo: “se pode, sempre,
‘ganhá-la’ ou ‘perdê-la’; no sentido de que ela pode ser, sempre, sustentada ou abandonada”
(HALL, 2000, p. 106, grifo meu). Hall cita Freud, que chama a identificação de
a mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa” (Freud, 1921,
grifo meu). No contexto do complexo de Édipo, o conceito toma, entretanto, as
60
Ayé: Revista de Antropologia nº1, v 1(2019)
figuras do pai e da mãe tanto como objetos de amor quanto como objetos de
competição, inserindo, assim, a ambivalência no centro mesmo do processo. ‘A
identificação, na verdade, é ambivalente desde o início’ (Freud, 1921)(HALL,
2000, p. 107).
A identificação “está fundada na fantasia, na projeção e na idealização”, afirma Hall.
O autor ainda argumenta, sobre a mesma ideia:
Uma vez assegurada, ela não anulará a diferença. A fusão total entre o ‘mesmo’ e
o ‘outro’ que ela sugere é, na verdade, uma fantasia de incorporação. (...) Há
sempre ‘demasiado’ ou ‘muito pouco’ – uma sobredeterminação ou uma falta,
mas nunca um ajuste completo, uma totalidade. (...) ela envolve um trabalho
discursivo, o fechamento e a marcação de fronteiras simbólicas(ibid, p. 106).
Mas Hall também afirma, mais adiante no texto, que “a natureza necessariamente
ficcional desse processo não diminui, de forma alguma, sua eficácia discursiva, material ou
política” (ibid, p. 109).
O autor entende a identidade como o “ponto de sutura” entre os discursos que
convocam o sujeito e os processos que constroem subjetividades. Argumenta Hall:
Uma teoria da ideologia deve começar não pelo sujeito, mas por uma descrição
dos efeitos de sutura, por uma descrição da efetivação da junção do sujeito às
estruturas de significação. (...) Se uma suturação eficaz do sujeito a uma posição-
de-sujeito exige não apenas que o sujeito seja ‘convocado’, mas que o sujeito
invista naquela posição, então a suturação tem que ser pensada como uma
articulação e não como um processo unilateral. Isto coloca com toda a força a
identificação, se não as identidades, na pauta teórica(ibid, p. 112).
Reafirma a autoridade da psicanálise no entendimento sobre a identidade, quando
cita Jacqueline Rose, que assevera que “se a ideologia é eficaz é porque ela age nos níveis
mais rudimentares da identidade e dos impulsos psíquicos” (Rose apud HALL, 2000, p. 113),
mas assegura que é somente na articulação deste campo de estudo com a sociologia que
podemos ter uma real compreensão do tema. Stuart Hall está preocupado em “diminuir o
fosso” entre os domínios das análises das práticas discursivas e do entendimento sobre a
formação de subjetividades; demanda uma teoria para entender os mecanismos que fazem
os indivíduos se identificar com as “posições” para as quais são convocados, para entender
de que forma eles moldam, estilizam, produzem e ‘exercem’ essas posições; que
explique por que eles não o fazem completamente, de uma só vez e por todo o
tempo, e por que alguns nunca o fazem, ou estão em um processo constante,
agonístico, de luta com as regras normativas ou regulativas com as quais se
confrontam e pelas quais regulam a si mesmos – fazendo-lhes resistência,
negociando-as ou acomodando-as(ibid, p. 126).
Kathryn Woodward é uma teórica que, assim como Hall, parte da perspectiva dos
Estudos Culturais para pensar o tema da identidade. Esta autora traz para a discussão o
conceito da subjetividade, que
envolve as emoções e os pensamentos conscientes e inconscientes que constituem
nossas concepções sobre ‘quem nós somos’. Entretanto, nós vivemos nossa
subjetividade em um contexto social no qual a linguagem e a cultura dão
significado à experiência que temos de nós mesmos e no qual adotamos uma
identidade(WOODWARD, 2000, p. 55).
61
Ayé: Revista de Antropologia nº1, v 1(2019)
Controvérsias da diferença
Os autores aqui citados sinalizam, com maior ou menor veemência, para os perigos
de uma noção de identidade estática, que não compreenda as diferenças internas ao grupo.
Stuart Hall, lembrando a crítica interna de Judith Butler ao movimento feminista, afirma que
as políticas identitárias, ao unificar um grupo sob um rótulo, por exemplo, “negros”, presume
a sua “unidade” e exclui todos os negros diferentes, como as mulheres e os homossexuais,
entre outros. “Essa ‘unidade’ é uma ‘unidade fictícia’, produzida e constrangida pelas mesmas
‘estruturas de poder por meio das quais a emancipação é buscada’”, reafirma Hall (HALL,
2000, p. 130).
Bauman também critica a luta por “identidade” que pode aprisionar quando pretende
o seu oposto, mas reflete sobre a promessa capitalista inconclusa, em um trecho que nos faz
pensar no fim da escravidão no Brasil:
O dever da liberdade sem os recursos que permitem uma escolha verdadeiramente
livre é, para muitos, uma receita para a vida sem dignidade, preenchida, em vez
disso, com humilhação e autodepreciação. (...) [Os lemas comunitários] têm todo
o direito de importunar a complacência liberal, uma vez que procedem das
camadas excluídas (...) e uma vez que esses lemas são empregados como
advertência de que a obra de promoção da liberdade está longe de completa, e
que a sua conclusão exigirá fazer algo para retificar a atual distribuição de recursos
(...). [Porém,] esses lemas trazem consigo uma proposta que, se aceita
acriticamente, terá exatamente o efeito oposto: a saber, a redução dessa liberdade
(BAUMAN, 1998, pp. 243-4).
62
Ayé: Revista de Antropologia nº1, v 1(2019)
Referências bibliográficas
AGIER, Michel. “Distúrbios identitários em tempos de globalização.” In: Mana 7(2): 2001.
BARTH, Fredrik. “Grupos étnicos e suas fronteiras”. In: POUTIGNAT, Philippe e
STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da Etnicidade. São Paulo: Fundação Editora da
UNESP, 1998.
BAUMAN, Zigmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 1998.
_________. Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: EDUSC, 1999.
GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada.
Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1963.
63
Ayé: Revista de Antropologia nº1, v 1(2019)
64