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Andityas Soares de Moura Costa Matos

Bruno Morais Avelar Lima


(Coordenadores)

INSURGÊNCIAS:
dominação e resistência nas redes e nas ruas

Série
DESOBEDIÊNCIAS E DEMOCRACIAS RADICAIS:
A potência comum dos direitos que vêm

Belo Horizonte
2019
INSURGÊNCIAS:
dominação e resistência nas redes e nas ruas

Copyright © desta edição [2019] Initia Via Editora Ltda.

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autorais é punível como crime e passível de indenizações diversas.
Sumário

Apresentação 5
Andityas Soares de Moura Costa Matos
Bruno Morais Avelar Lima

Paradoxos do big data:


otimização de funções x proteção
de dados pessoais, em meio à
(des)contextualização do discurso
político e jurídico do Estado 9
Alfredo Emanuel Farias de Oliveira
Caio Augusto Souza Lara
Nilo Pinheiro Oliveira

Perspectivas sobre resistência a partir do


conceito de grande espaço em Carl Schmitt 28
Bruno Morais Avelar Lima
Douglas Carvalho Ribeiro

Ativismo juvenil sob lentes decoloniais:


uma proposta 51
Bruno Vieira
Claudia Mayorga

Hackerativismo e midiativismo:
possibilidades de resistência no paradigma
da governamentalidade algorítmica 68
Emanuella Ribeiro Halfeld Maciel
Igor Viana Ferreira
o poetry slam como estratégia de insurgência 89
João Henrique de Sousa Santos
Eduardo Antônio Santos Machado
Harrison Lucas Rocha de Freitas

O algoritmo estoico:
a subjetivação política em
Foucault e o problema da
“governamentalidade algorítmica” 110
José Antonio Rego Magalhães

Plataformas democráticas 130


Nattyelle L. B. B. Silva
Frederico Canuto

As sutis transformações da arte


de governar ou governamentalidade
de Foucault a Rouvroy 162
Rone Eleandro dos Santos
O algoritmo estoico:
a subjetivação política em Foucault e o problema
da “governamentalidade algorítmica”

José Antonio Rego Magalhães1

1. Introdução

Ainda não superamos Foucault – nem filosoficamente, nem


do ponto de vista daquilo que ele denominou, a partir de um certo
ponto a sua carreira, dispositivos de governo. Escrevo esse enuncia-
do por impulso, e sem condições de demonstrar a sua veracidade,
embora talvez, até o final deste artigo, ele possa parecer mais convin-
cente. Poderia, em todo caso, enumerar duas razões que me levam
a crer na importância continuada desse autor. Curiosamente, são
razões que poderiam ser (e às vezes são) arroladas para argumentar
justamente o contrário: que Foucault foi ultrapassado e precisa ser
atualizado – não no sentido óbvio em que todo pensador deve sem-
pre ser atualizado, mas em um sentido suplementar. A primeira é
que Foucault foi aquele, dentre os filósofos da sua geração, que mais
levou a sério, sobretudo nas suas práticas e estratégias de pesquisa e
de escrita, a contingência radical de toda verdade, subjetividade ou
relação de poder. Isso o levou a análises detidas, trabalhosas, atentas
às minúcias de cada objeto, e com uma tal evitação da abstração ou
da generalização que, para quem encontra um livro seu, pela pri-
meira vez, em uma estante de filosofia, pode parecer que ele perten-
ceria a outra área, menos generalista. As implicações filosóficas do
seu trabalho – e elas não são pequenas, afinal fala-se, desde o início
da sua carreira, de coisas como a “morte do homem” – constroem-se
devagar, sem estrondo.
A segunda é que, por isso mesmo, Foucault recusou-se a
abordar, nas suas obras de maior fôlego, qualquer questão que pu-
desse ser considerada “do seu tempo”. Parece estar sempre olhando
para trás. Como ressalta Deleuze2, é somente nas entrevistas contem-
1
Doutorando em Teoria do Direito, Ética e Construção da Subjetividade pelo
Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro. Mestre em Direito pelo PPGD da Faculdade Nacional de Direito – UFRJ.
2
DELEUZE, 2016.
111

porâneas a cada um dos seus livros que Foucault deixa escutar seu
ponto de vista sobre a atualidade. Nos livros em si, “pelo rigor, por
vontade de não emaranhar tudo, por confiança no leitor”3, Foucault
optaria por resumir-se à arqueologia e à genealogia das relações de
saber, relações de força, e processos de subjetivação. As entrevistas,
segundo Deleuze, são diagnósticos, enquanto os livros são análises.
Esse cuidado metodológico, esse rigor – precisamente aquilo que
tantas vezes Foucault é acusado, pelos seus detratores, de não ter – é,
frequentemente, o que causa uma reação de perplexidade diante do
corpus foucaultiano: o que podemos, afinal, fazer com isso tudo hoje?
Este artigo dedicar-se-á a três questões relacionadas, que
costumam aparecer nos debates sobre Foucault. A primeira é se
aquilo que Foucault discutiu, no final da sua carreira, em torno dos
temas do cuidado de si e da parrésia, não resultaria em uma concep-
ção demasiado “individualista” da resistência política, que só per-
mitiria a cada um – recorrendo-se aqui a uma simplificação retórica
– cuidar de si mesmo, enquanto as relações de poder, em uma escala
mais ampla, permaneceriam inalteradas. As lutas ditas micropolíti-
cas, segundo essa crítica, seriam insuficientes para gerar mudanças
mais abrangentes nas configurações sociais, ao passo que a macro-
política seria tida como ultrapassada pelos moldes do pensamento
foucaultiano. A segunda questão é se esse paradigma de subjetivação
política que Foucault vai buscar na Grécia antiga poderia, de alguma
forma, ser recuperado para pensar a prática política contemporânea,
e em que sentido essa recuperação seria legítima, possível ou, em
todo caso, útil. A terceira questão – a ser introduzida em detalhe
mais à frente – é se o advento de novidades do mundo da técnica
como os megadados (Big Data) e aquilo que alguns têm chamado
de “governamentalidade algorítmica” apresentaria, como argumenta
Antoinette Rouvroy4, um problema do qual o pensamento de Fou-
cault não daria conta.
Uma amostra da atenção extrema dedicada por Foucault à
contingência é a maneira como, ao longo da sua carreira, ele não ces-
sou de elaborar, reelaborar, substituir e abandonar suas ferramentas
de análise, deixando que cada investigação (arqueológica, genealó-
gica) afetasse drasticamente o próprio método da sua abordagem.
3
DELEUZE, 2016, p. 367.
4
ROUVROY, 2016.
112

Como ressalta Edgardo Castro5 – e esse parece ser também o ponto


de vista de Deleuze6 –, se Foucault descrevia, já em seus primeiros
livros, como As Palavras e as Coisas, as diferentes “epistemes” atra-
vessadas pela história do ocidente, é apenas mais adiante na sua car-
reira (a partir do primeiro volume da História da Sexualidade) que o
autor passa a dar conta das condições a partir das quais se articula a
transição entre os diferentes regimes de saber – que já não aparecem
sob a figura das epistemes, mas sob o conceito de dispositivo. Já não
se trata, a partir de então, de uma análise apenas dos saberes e dos
discursos, mas sobretudo das relações de poder cujas configurações,
subjacentes a cada plano de circulação de enunciados, fornecem
suas condições de possibilidade. O saber, assim, se faz vontade de
saber, no sentido de inserir-se a cada vez, como pretensão, em um
campo de relações de poder, de força e de estratégia.
Outra transição decisiva no percurso de Foucault, operada
na parte final da sua carreira, é a que se articula em torno do concei-
to de governamentalidade. Foucault já não fala, a partir de um certo
ponto, tanto em poder, ou, em todo caso, se fala, o faz sob o modelo
da governamentalidade. É sobretudo esse “último Foucault” que in-
teressará aos fins deste artigo. Entendido como poder de governar
(e distinguindo-se, assim, da soberania, da violência, da força bruta
e de outros exercícios de força), o poder, para o Foucault7 tardio, é
sobretudo a capacidade de agir sobre a ação de um outro, de agir
de tal maneira a estabelecer as condições pelas quais o outro pode
ou não agir. Não se trata, assim, de agir diretamente sobre alguém
ou sobre o corpo de alguém, mas de exercer uma determinação so-
bre sua potência de agir. O exercício de poder, segundo Foucault8
“incita, induz, seduz, torna mais fácil ou mais difícil; no extremo,
constrange ou proibe absolutamente”. Ele pode ser expresso na equi-
vocidade da palavra “conduta” – há o conduzir-se do sujeito livre,
segundo as suas possibilidades de ação, e há o conduzir alguém no
sentido de guiá-lo.
Essa abordagem da questão do poder – que nunca diz res-
5
CASTRO, 2015.
6
Sobre A Arqueologia do Saber, livro em que Foucault (1969) explica o método
“arqueológico” usado nas suas primeiras obras, Deleuze (1988, p. 59) escreve: “esse
livro […] parece conceder um primado radical ao enunciado”.
7
FOUCAULT, 1982.
8
FOUCAULT, 1982, p. 789, tradução minha.
113

peito, em Foucault, à essência ou à substância do poder, mas à sua


função, à sua dinâmica, à rede de relações em que se exerce – ilu-
mina um seu aspecto que não aparecia em trabalhos anteriores do
autor: o sujeito já não aparece simplesmente como escravo de forças
que atravessam o seu corpo, mas também, em alguma medida, como
livre – não no sentido a-histórico do sujeito iluminista, mas, ainda
assim, como dispondo de um “espaço de manobra” em que pode go-
vernar a si mesmo. Afinal, como Foucault9 ressalta, se esse não fosse
o caso, já não se trataria propriamente de poder, mas de um exercício
de força bruta, uma determinação física direta e decisiva. O poder
“é exercido apenas sobre sujeitos livres, e apenas na medida em que
são livres”10. É preciso que haja “uma possibilidade de recalcitrância”
que não fala tanto da liberdade como essência em si mesma, mas sim
como “agonismo” – relação estratégica de forças em que o exercício
determinante de poder não está determinado, em cada caso, de an-
temão. O agonismo é o âmbito da prática política por excelência, em
Foucault – tarefa da liberdade pensada na sua contingência radical,
no interior dos dispositivos.
Essa tarefa da liberdade se relaciona, em Foucault, às prá-
ticas de subjetivação – práticas pelas quais um sujeito constitui a si
mesmo enquanto sujeito (o que resulta, é claro, em uma anteriorida-
de da prática sobre o praticante) –, e estas à parrésia (o dizer a ver-
dade) e aos jogos de verdade. Nem todas essas práticas, contudo, se
equivalem, e é especificamente no modo grego da subjetivação e da
veridicção que Foucault11 encontra um paradigma diferente de tudo
o que veio depois, em termos da capacidade de estabelecer-se uma
relação do sujeito consigo mesmo: um dizer a verdade que não busca
(como no dispositivo confessional que o sucederia) o estabelecimen-
to de um conhecimento profundo e paralisante sobre o sujeito, mas
sim “a produção da verdade na forma mesma da vida”12, uma verda-
de como força, no sentido de ela não estabelecer-se por interpreta-
ção ou referência, mas sim por afirmação dela própria. Essa verdade
não se coloca atrás ou dentro do sujeito, mas à sua frente, como força
de atração, a partir de uma relação que ele estabelece com as suas

9
FOUCAULT, 1982.
10
FOUCAULT, 1982, p. 790, tradução minha.
11
FOUCAULT, 2005.
12
FOUCAULT, 2009, p. 200, tradução minha.
114

práticas e os seus interlocutores. Trata-se, segundo Foucault13, de


um “jogo de verdade” cuja natureza específica se observa, como logo
será visto, no discurso dos estoicos.
Essa é toda a problemática da fase final de Foucault, o “ter-
ceiro eixo” – nas palavras de Castro14 – em que a questão princi-
pal já não é tanto o poder quanto a “constituição dos modos de ser
do sujeito por meio das diferentes práticas de relacionar-se consigo
mesmo”. Relação consigo que Deleuze15 interpretou sob a imagem
da dobra – um vetor de força que incide sobre si mesmo, criando
um interior a partir do qual a relação com o fora, e consequente
produção estratégica de si, torna-se possível. Já não se trata, como
em uma tematização mais estrita do poder, das práticas entendidas
como determinadas por uma relação estanque entre meios e fins,
mas de um espaço para táticas e estratégias, entendidas como práti-
cas em que a ligação entre meios e fins é posta em questão, podendo
reconfigurar-se a cada vez.

2. O dizer a verdade como subjetivação política

Duas questões iniciais: A subjetivação grega enquanto


enunciação da verdade sobre si mesmo não seria demasiado “indi-
vidualista” (ainda que tomado o cuidado de não buscar-se no sujeito
antigo uma individualidade especificamente moderna)? E, mesmo
que ela possa ser pensada como coletiva, de que serve observá-la,
quando ela pertence a um dispositivo situado em uma época tão dis-
tante, histórica e tecnologicamente, da nossa? Para demonstrar o ca-
ráter político do dizer a verdade é preciso sublinhar que ele não se dá
em um ato privado. No dispositivo político ateniense, por exemplo,
a parrésia se vinculava ao direito dos cidadãos de usar da palavra nas
assembleias16. Enunciar forçosamente a verdade não se resume, por-
tanto a pôr, à frente de si, uma hipótese de trabalho para a própria
essência – e pode ser, muitas vezes, projetar uma pretensão de verda-
de coletiva, pública, de um povo que se constitui como povo naquele
ato, da mesma maneira que se poderia dizer que sujeito individual se

13
FOUCAULT, 2016.
14
CASTRO, 2015, p. 143.
15
DELEUZE, 1988.
16
FOUCAULT, 2009.
115

constitui como função da sua enunciação, e não o contrário.


Mesmo quando se trata da interlocução entre discípulo e
mestre – um dos casos privilegiados de veridicção analisados por
Foucault –, o discurso é de natureza política na medida em que está
voltado, sempre, às maneiras como cada um se portará nos assuntos
coletivos. Foucault17 recupera um texto de Sêneca em que o estoico
aconselha a um jovem amigo chamado Serenus. O jovem quer con-
fessar ao mestre a verdade sobre si, a fim de superar um estado de
desgoverno da alma. Não se trata – observe-se – de uma confissão
no sentido do cristianismo – de algo análogo a um pecado, em que
entrariam em questão relações de culpa e de absolvição. Tem-se an-
tes a exposição de práticas concernentes àqueles que, à época, eram
os principais eixos de qualquer vida prática: a aquisição de rique-
za (economia), a vida na polis (política) e a glória (guerra). Nada,
portanto, de íntimo ou de profundo na alma ou no sentimento. O
discípulo confessa não para ser perdoado, mas para tornar-se me-
lhor, e quer tornar-se melhor não para finalidades que concernam a
ele isoladamente, mas para ser melhor na vida pública: governar-se
para melhor governar os outros – não necessariamente no sentido de
sobrepor-se a eles como autoridade, mas para participar produtiva-
mente do governo geral do povo no dispositivo político/democráti-
co.
“Pode-se então falar de um diagrama de poder que se es-
tende através de saberes qualificados”, escreve Deleuze18, afinal o
governo de si mesmo, o da casa e o da cidade não são distintos em
natureza, mas apenas, por assim dizer, no escopo da sua aplicação,
na complexidade e natureza dos elementos com os quais é questão,
em cada caso, de lidar. A noção de diagrama será de grande impor-
tância daqui em diante, uma vez que ela serve não só para pensar
a transferência de escala entre os âmbitos do corpo, da casa e da
cidade (respondendo à questão sobre se o caráter do dispositivo gre-
go é necessariamente individualista ou não), mas também articula a
transferência temporal em que a operação de um dispositivo pode
ser levada a diferentes contextos históricos, além de geográficos.
A palavra “diagrama” aparece, em Vigiar e Punir, apenas um
par de vezes, no contexto em que Foucault discute o panoptismo
17
FOUCAULT, 2009.
18
DELEUZE, 1988, p. 107.
116

enquanto dispositivo disciplinar. É o suficiente para que Deleuze


faça dela um conceito do qual extrairá consequências não apenas
centrais na sua interpretação do pensamento de Foucault, mas re-
percutindo nas suas próprias obras posteriores ao longo dos anos
80. Trata-se, assim, de um conceito nem propriamente foucaultiano,
nem propriamente deleuziano. A primeira aparição da palavra “dia-
grama” faz referência, em Vigiar e Punir, ao acampamento militar
como “modelo quase ideal”19 de um dispositivo em que cada ponto é
levado um grau máximo de visibilidade – “o diagrama de um poder
que age pelo efeito de uma visibilidade geral”20. Modelo quase ideal
– nem propriamente a materialidade do acampamento (as tendas
dos oficiais, as tendas dos subalternos, os depósitos de armas), nem,
como talvez fique mais claro ao longo desta seção, propriamente
uma idealidade, no sentido de algo que pudesse ser pensado de for-
ma independente a qualquer instância concreta. O que se tem por
diagrama, aqui, é algo como uma série de instruções concernentes
à maneira como cada acampamento deve ser montado – Foucault
chega ao ponto de transcrever21 um “Regulamento para a infantaria
prussiana”, expressão escrita dessas instruções. Esse regulamento, ou
a série de condutas que ele ordena, é o que mais propriamente pode
ser considerado como o diagrama do acampamento militar.
Na sua segunda aparição, a palavra não se refere ao diagra-
ma do acampamento militar, mas ao do famoso panóptico – “mo-
delo generalizável de funcionamento; uma maneira de definir as
relações do poder com a vida cotidiana dos homens”22. Trata-se do
desenho abstrato não simplesmente de um edifício – não simples-
mente a sua planta arquitetônica como disposição dos elementos
materiais de que é feito –, mas desse edifício somado à distribuição
dos corpos no seu interior, da visibilidade desses corpos, até mesmo
19
FOUCAULT, 1975, p. 173, tradução minha.
20
FOUCAULT, 1975, p. 174, tradução minha.
21
“Dans la place d’armes, on tire cinq lignes, la première est à 16 pieds de la seconde
; les autres sont à 8 pieds l’une de l’autre; et la dernière est à 8 pieds des manteaux
d’armes. Les manteaux d’armes sont à 10 pieds des tentes des bas officiers, précisément
vis-à-vis le premier bâton. Une rue de compagnie a 51 pieds de large... Toutes les tentes
sont à deux pieds les unes des autres. Les tentes des subalternes sont vis-à-vis les ruelles
de leurs compagnies. Le bâton de derrière est à 8 pieds de la dernière tente des soldats
et la porte regarde vers la tente des capitaines... Les tentes des capitaines sont dressées
vis-à-vis les rues de leurs compagnies. La porte regarde vers les compagnies mêmes”
(FOUCAULT, 1975, p. 173)
22
FOUCAULT, 1975, p. 206, tradução minha.
117

das possibilidades de enunciação que acompanham esse sistema de


disciplinas (leis, regulamentos, sentenças). O panóptico é compos-
to, como se sabe, de uma periferia circular em que se distribuem os
corpos que devem permanecer visíveis (as celas), e um ponto central
elevado (a torre) em que se exerce uma função de vigilância – onde
se posicionam aqueles que devem ver mas não ser vistos. Nas pala-
vras de Edgardo Castro23, “uma tática arquitetônica para distribuir o
olhar no espaço”.
Foucault24 ressalta porém que o panóptico “não deve ser
compreendido como um edifício onírico: é o diagrama de um meca-
nismo de poder levado à sua forma ideal; seu funcionamento, abstra-
ído de todo obstáculo, resistência ou atrito”. Não uma transposição
ao incorpóreo de um simples conjunto de partes materiais, mas um
complexo de relações de poder separado dos corpos concretos em que
essas relações se exercem. Trata-se de um puro funcionamento, no
sentido de um funcionamento abstraído de tudo aquilo que funciona.
“Uma figura de tecnologia óptica”, continua Foucault, “que pode-se
e deve-se destacar de todo uso específico”, na medida em que não
fazê-lo seria deixar passar o seu caráter abstrato, a capacidade do
diagrama de concretizar-se em diferentes circunstâncias, com dife-
rentes bases materiais e possíveis adaptações, rearticulações da rede
de relações que ele expressa.
Mecanismo ou funcionamento abstrato; tecnologia destaca-
da de qualquer uso concreto – importa, neste momento, dizer que
aquilo que Foucault descreve, nos dois trechos mencionados, é o
próprio conceito de algoritmo. Com efeito, o algoritmo como tecno-
logia pode ser descrito como uma série de operações voltada a execu-
tar uma função, não se identificando nem à função executada, nem a
qualquer caso concreto da sua implementação. Se meu computador
pessoal executa um algoritmo, não deixa de ser o mesmo algorit-
mo executado por outra pessoa que roda o mesmo programa. Mais
que isso, se duas pessoas rodam dois programas diferentes, os dois
ainda podem computar um mesmo algoritmo, pois trata-se de uma
sequência de tarefas abstraída dos seus casos concretos. É preciso es-
clarecer, nesse ponto, que apesar da recente popularização do termo
“algoritmo” estar relacionada ao seu crescente uso na informática,
23
CASTRO, 2015, p. 95.
24
FOUCAULT, 175, p. 207, tradução e grifos meus.
118

ele existe há centenas de anos, remetendo ao nome do matemático


persa Al-Khwarizmi, que viveu no século IX. Aquilo ao que o termo
se refere – uma série determinada de tarefas voltada a resolver um
problema – existe, evidentemente, desde tempos imemoriais, na me-
dida em que podemos imaginar um homem das cavernas explican-
do ao outro, por exemplo, a técnica para produzir fogo: primeiro ob-
tenha um graveto e uma pedra; depois posicione-os de tal maneira;
depois exerça fricção de tal forma; se uma faísca se produzir, repita o
gesto; se não for, mude a posição, etc. A diferença entre tais tarefas e
a especificidade do algoritmo computadorizado é uma diferença de
minucia, de grau de complexidade, de grau de precisão na execução,
talvez – não mais que isso.
Nos casos do panóptico de que fala Foucault, o seu algorit-
mo não é mais que a série de regras abstratas que devem ser imple-
mentadas para que a função do dispositivo panóptico – uma certa
distribuição dos corpos, das visibilidades, etc. – se concretize da for-
ma mais exata possível. Sua expressão é dada por Bentham, e pode
ser tanto verbal quanto gráfica, desde que, em qualquer dos casos,
tomemos o cuidado de não confundir a expressão do algoritmo (em
uma linguagem, por exemplo) com a série de funções de que ele é
constituído. No caso do panóptico, tratar-se-ia de algo como: “a tor-
re deve ser construída no centro do espaço; celas devem ser cons-
truídas ao redor; os corredores devem ser traçados segundo tal e
tal cálculo geométrico”, etc., assim como no caso do acampamento
militar falava-se em, a partir do ponto tal, traçar tantas e tantas li-
nhas, a primeira a 16 pés da segunda, as demais a 8 pés cada uma e
assim por diante. A rigor, a definição de diagrama, em Foucault, tem
caráter metonímico, no sentido em que se confunde a expressão das
relações de poder ou tarefas (o desenho que dá a ver essas relações)
com as próprias relações. Mais exato seria dizer não que o diagrama
é o algoritmo de um dispositivo, mas que ele o expressa, e nesse caso
o panóptico é antes o algoritmo que a sua expressão gráfica.
Isso importa porque, como já foi dito, é o fato do algoritmo
(ou diagrama) ser uma rede de funcionamentos abstraída de qual-
quer concretude que permite pensar a transferibilidade de um al-
goritmo entre diferentes dispositivos. É o que torna possível para
Foucault25 argumentar que o panóptico é o paradigma geral para dis-
25 FOUCAULT, 1975.
119

positivos disciplinares tão concretamente díspares quanto as prisões,


as escolas e os quartéis. É o seu funcionamento que é o mesmo ou,
em todo caso, são os elementos fundamentais desse funcionamen-
to que podem se articular diferentemente em cada caso. Por isso o
conceito de diagrama ou de algoritmo importam aqui. São eles que
permitem pensar a transferibilidade do dispositivo grego de subje-
tivação para diferentes contextos, não na forma concreta de dispo-
sitivo, mas por meio do seu algoritmo. A partir daí, não só se pode
observar as maneiras como dispositivos historicamente posteriores
rearticulam em si elementos do diagrama grego (a exemplo do dis-
positivo confessional cristão), com diferentes tipos de reinterpreta-
ções, inversões, citações, paródias, repetições e alterações de temas
(como na música), como se pode pensar nas dinâmicas estratégicas a
partir das quais, em uma dinâmica entre dispositivos mais amplos e
mais restritos, ou dispositivos vizinhos que se tocam, algoritmos po-
dem produzir-se e transferir-se, com maiores ou menores alterações,
entre diferentes campos e amplitudes – como no caso do algoritmo
ateniense que se redimensiona entre o corpo, a casa e a cidade.
Parece claro que tanto os dispositivos quanto os algoritmos
são telescópicos, no sentido de que se encaixam uns com os outros
e formam uns aos outros como peças acopláveis. Cada peça tem ela
própria uma materialidade e desempenha uma função. A relação,
porém, entre eles não precisa ser de homogeneidade ou harmonia.
Ela pode ser agonística, no sentido que Foucault26 dá ao termo – e
o dispositivo democrático grego da rivalidade de homens livres é
exemplo disso. Com efeito, é para inserir-se em um processo agonís-
tico, e não homogêneo, que o cidadão grego produz algoritmos no
âmbito do seu corpo, da sua casa, e finalmente no âmbito da assem-
bleia política. Cada algoritmo pode ou não acomplar-se à máqui-
na democrática, em um processo cheio de ruido e impertinências.
O algoritmo do dispositivo mais amplo não é a simples soma das
suas partes, nem tampouco as partes são simples funções do todo.
A relação entre parte e todo é mutuamente constitutiva, em diferen-
tes níveis, a partir de um processo que é tático e estratégico porque
agonístico – repõe constantemente os fins em função dos meios e os
meios em função dos fins.

26
FOUCAULT, 1982.
120

Em outro texto de Sêneca lido por Foucault27, o estoico des-


creve a prática de reavaliar, todos os dias, antes de dormir, as práticas
daquele dia, julgando cada ação segundo a relação entre seus meios
e seus fins. Foucault observa o recurso de Sêneca ao vocabulário
jurídico (a mente torna-se um tribunal, dobrada sobre si mesma),
mas sobretudo administrativo – vocabulário ligado à contabilidade, à
medida, ao exame da adequação dos fluxos. “Sêneca é um adminis-
trador permanente de si, mais que um juiz do próprio passado”28. As
falhas que Sêneca reprova a si mesmo não são propriamente ofensas
morais, mas erros estratégicos. São erros de ajuste entre os meios e
fins, não erros na eleição dos fins ou no uso de meios condenáveis
em si mesmos. O objetivo não é punir-se nem tornar-se consciente
dos próprios pecados, como se verá depois no cristianismo, e sim
ativar, da melhor forma possível, as regras de uma conduta eficiente.
O dizer a verdade estoico, em suma, na forma descrita por Sêneca,
não se assemelha tanto à produção de discurso verdadeiro sobre si
mesmo quanto ao traçado de um algoritmo – um algoritmo do dia,
a série de instruções práticas mais efetiva para chegar a determina-
dos fins, sendo que, do ponto de vista da montagem, tanto os meios
quanto os fins estão sempre em jogo, não havendo a prioridade de
um dos lados.
Em um contexto contemporâneo, é curioso observar que
tanto os algoritmos de computador quanto os processos de trabalho
privados ou empresariais são comumente expressos em diagramas
ou, mais especificamente, em um tipo de diagrama conhecido como
flowchart. No vocabulário convencional básico desse tipo de diagra-
ma, caixas referentes a processos, decisões, terminais, inputs, outputs,
etc. são conectadas entre si por vetores ou linhas de fluxo (na forma
de flechas). Cada processo corresponde a uma tarefa a ser executa-
da, cada vetor à direção a ser percorrida pelo impulso de força que
movimenta as tarefas, e cada decisão estabelece a possibilidade de
diferentes caminhos a depender de entradas de dados contingentes.
Sêneca sem dúvida poderia expressar o algoritmo do seu dia em um
flowchart da mesma forma que executivos contemporâneos o fazem
(seria interessante pensar se revolucionários o fazem), e esse dia-
grama seria a expressão de um funcionamento abstrato transferí-
27
FOUCAULT, 2016.
28
FOUCAULT, 2016, p. 30, tradução minha.
121

vel. Na próxima seção, a discussão sobre as implicações políticas dos


conceitos de diagrama e algoritmo será transferida ao contexto dos
dispositivos de governo dos nossos dias.

3. Os megadados e a “governamentalidade algorítimica”

Admitido o que foi dito até aqui, um outro nome para o que
tem-se chamado de “governamentalidade algorítmica” seria sim-
plesmente “governamentalidade”. O sentido dado por Foucault ao
termo se entrelaça intimamente à figura do algoritmo, ainda que o
autor não use essa palavra. Se o poder é puro exercício – exercício
que precede a um sujeito que exerce – voltado a condicionar as prá-
ticas possíveis e impossíveis para os elementos do dispositivo em
que opera, se ele é uma rede de operações que determinam outras
operações, então a governamentalidade não é senão um complexo
intrincado de algoritmos que acoplam-se uns aos outros executando
inúmeras funções. Ainda assim, o dispositivo amplo designado por
“governamentalidade algorítmica” não deixa de ter as suas especifi-
cidades que o distinguem, de forma decisiva, de dispositivos anterio-
res – só não se trata do recurso a algoritmos.
Antes de mais nada, a própria palavra dispositivo, enuncia-
da hoje, remete, para o cidadão médio, a um dispositivo específico
– o “dispositivo móvel”. Os smartphones e tablets são as variedades
mais comuns desses computadores portáteis através dos quais exe-
cutamos uma parte considerável e cada vez mais ampla das nossas
tarefas. A maior parte deles, ou em todo caso os mais populares/co-
merciais, operam através de sistemas operacionais de interface sim-
ples (iOS, Android, Windows Mobile) que, por sua vez, se baseiam
em aplicativos (apps) destinados, cada um, a um tipo de tarefa, a de-
sempenhar uma ou mais funções. No meu celular tenho aplicativos
para organizar meu dia, operar transações bancárias, me localizar
e locomover pelo espaço urbano (rotas calculadas por algoritmos),
aprender línguas, escutar música, assistir vídeos, ler textos, me rela-
cionar socialmente, tirar fotos, tomar notas e fazer gravações. Se os
dispositivos são realmente telescópicos no sentido exposto há pou-
co, não me pareceria uma impropriedade técnica dizer não só que os
dispositivos móveis são dispositivos, no sentido de Foucault, como
que os aplicativos formam parte de um tipo atual de dispositivo, na
122

medida em que se fundam em um hardware (dispositivo móvel) e


um software (sistema operacional).
Os aplicativos agem, de forma talvez mais clara que qual-
quer outro dispositivo ou peça de dispositivo atualmente vigente, so-
bre as nossas possibilidades e modos de agir, e não apenas no sentido
de disponibilizar alternativas a um sujeito livre anterior e externo a
eles, mas, foucaultianamente, no sentido de fazer agir. E cada vez
mais, na medida em que o imperativo de movimentar os fluxos de
informação leva aplicativos como o Facebook a criar posts inteiros
pré-prontos, por exemplo, quando o usuário faz uma fotografia, tor-
nando desnecessário que este tome a iniciativa de criar o post, basta
consentir – dizer “OK”29 – para criá-lo e compartilhá-lo. Na rede con-
temporânea de dispositivos disciplinares e de controle – que ainda
conecta, é claro, elementos tão díspares quanto o Estado, as prisões,
os hospitais, as empresas, as bolsas de valores, as bases militares, etc.
–, e no interior de dispositivos mais amplos, os “dispositivos móveis”
e seus aplicativos desempenham um papel de importância cada vez
maior, não só por influenciar constante e intensamente as ações de
indivíduos, mas por um segundo fator que será, mais que qualquer
outro, decisivo na determinação da especificidade da chamada “go-
vernamentalidade algoritmica” – eles coletam e armazenam dados
sobre cada uma das ações que facilitam.
O volume imenso de dados gerados e acumulados pelo dis-
positivo amplo em que se incluem os “dispositivos móveis” e seus
aplicativos é o que convencionou-se chamar de megadados (Big
Data) – e são eles que permitem observar-se uma virada decisiva nos
regimes de governo contemporâneos como faz, por exemplo, Antoi-
nette Rouvroy30. A autora argumenta que o advento dos megadados
viria gerando uma coincidência cada vez maior entre o possível e o
provável, ao ponto em que a realidade ficaria restrita ao atual, cence-
lando-se o virtual (em um sentido deleuziano que em breve procu-
rarei explicar) e, com ele, a possibilidade de pensar-se a ação política
e a política democrática das maneiras que costumamos pensá-las.
Rouvroy31 argumenta ainda que haveria uma crise dos regimes de

29
Em 2017 foi lançada uma reedição comemorativa por ocasião dos dez anos do
album OK Computer, da banda britânica Radiohead.
30
ROUVROY, 2016.
31
ROUVROY, 2016.
123

verdade no sentido pensado por Foucault, e com eles uma crise da


representação e da subjetividade. Procurarei explicar os argumentos
da autora até o ponto em que os acompanho, para em seguida expor
os sentidos em que seu diagnóstico me parece equivocado.
Rouvroy32 define os megadados como um “excesso de ve-
locidade, rapidez, quantidade de dados e complexidade que já não
podemos compreender com nossa racionalidade moderna”. Os da-
dos brutos (raw data), entendidos como “grau zero da escritura” aca-
bariam precluindo a importância da verdade como a conhecemos
em benefício de uma da “pura realidade” ou “pura atualidade”. Uma
busca no Google dirá que os megadados são conjuntos de dados tão
grandes e complexos que aplicativos de processamento de dados tra-
dicionais são inadequados para dar conta deles, fazendo da sua cap-
tura, armazenamento, análise, curadoria, busca, compartilhamento,
transferência e visualização um desafio. São volumes de dados enor-
mes e sem organização dada, e por isso o seu processamento está
sempre em jogo, é sempre uma questão – ele sempre deve operar um
recorte arbitrário, definir um critério arbitrário de corte, e esse cor-
te sempre deixará um resto nada desprezível do qual não terá dado
conta. Ainda assim, é possível, através de diferentes dispositivos e
algoritmos, “minerar” esses dados e assim obter quantidades mui-
to grandes de informação sobre praticamente qualquer coisa que se
opere através dos dispositivos cibernéticos. Hoje, praticamente tudo.
Em termos Deleuzianos, pode-se dizer que os megadados
tendem em direção a um “corpo sem órgãos” ou a um “espaço liso”, e
que o desenvolvimento de algoritmos cada vez mais efetivos estaria
voltado a organizar esse corpo ou a estriar esse espaço, a traçar li-
nhas de organização que permitam tornar esses dados utilizáveis de
maneiras produtivas (para as empresas, por exemplo). Isso significa
transformar os dados brutos em informação, em um sentido estri-
to de informação que pressupõe que ela deva ser compreensível em
uma linguagem e que possa ser organizada em categorias, de modo
que responda a perguntas determinadas. A informação é, assim, o
produto final de um processo em que os dados brutos são a entra-
da inicial, e esse processo é operado por algoritmos que fazem sua
triagem.
Ocorre que, como o aumento telescópico, de um lado, da
32
ROUVROY, 2016, p. 8, tradução minha.
124

quantidade de dados brutos acumulada por dispositivos na forma


de megadados e, de outro, da potência de operação dos algoritmos
de triagem, parece tornar-se possível uma espécie nova de raciona-
lidade puramente indutiva que difere tanto dos modos tradicionais
da dedução quanto da indução33. A lógica dedutiva, como é sabido,
liga premissas a conclusões que são necessariamente verdadeiras se
as premissas e o uso da lógica estão corretos. Para que um raciocínio
dedutivo possa operar-se, é necessária a referência a regras gerais. Já
no raciocínio indutivo, parte-se de uma série de casos singulares e, a
partir deles, extrai-se uma regra. A racionalidade indutiva, tradicio-
nalmente concebida, não tem o grau absoluto de certeza da dedutiva
– do fato de que X experimentos deram um resultado não decorre
necessariamente (apenas de maneira aproximada) que X + 1 expe-
rimentos dariam o mesmo resultado. O que ocorre com o advento
dos metadados é que, ao mesmo tempo que a racionalidade dedutiva
torna-se inviável dado o volume de dados em questão (seria preciso
transformar os dados brutos em informação para obter categorias
gerais e, assim, tornar possível o recurso à dedução), a indutiva, em-
bora permaneça sempre no campo da aproximação e da probabili-
dade, começa a tender a uma grau tamanho de aproximação que o
resto de incerteza torna-se, na prática, cada vez mais insignificante.
É nesse sentido que se pode dizer que o possível tende cada
vez mais a coincidir com o provável. O possível pode ser expresso
como um “sim” (1) ou um “não” (0). Por exemplo, se um sujeito
pode ou não executar uma dada ação: ou ele pode, ou ele não pode.
Na medida em que os dados disponíveis sobre esse sujeito e suas
ações são volumosos no sentido em que se fala de megadados, tem-
-se uma potência de previsão praticamente total. A probabilidade,
ao contrário da possibilidade, não se expressa por “sim” ou “não”
mas por uma escala de 0 a 1 (de 0% a 100%). Normalmente, haveria
uma distância entre a probabilidade e a possibilidade de um sujeito
executar uma certa ação, do ponto de vista de um banco de dados
sobre esse sujeito. Na medida, porém, em que os megadados apro-
ximam a probabilidade do 100% via abundância de dados brutos,
a zona de imprevisibilidade da ação do sujeito ou a falibilidade da
previsão tornam-se desprezíveis – diferença de 99% a “sim” (100%),
por exemplo.
33
ROUVROY, 2016.
125

Isso permitiria, argumenta Rouvroy34, “modelar o social di-


retamente no social”. O social torna-se idêntico a si mesmo, à medi-
da que não se faz mais necessária nenhuma categoria geral, nenhum
modelo abstrato do social ou interpretação sociológica – faz-se um
“bypass” desse processo de abstração, de qualquer generalização,
significação, representação e, no limite, de qualquer determinação
de um sujeito ou de um indivíduo como tal. Não é mais necessário
formular “hipóteses” sobre o social e verificá-las, e isso em si torna
dispensável o conceito de verdade entendido como correspondência
entre uma proposição linguística e um dado do real. Quando e se há
hipóteses em jogo, nesse novo regime, “elas não serão necessaria-
mente verificadas, mas serão operacionais”35.
Daí Rouvroy depreende, porém, que estaríamos abando-
nando os regimes de verdade conforme concebidos por Foucault e,
com eles, a possibilidade de qualquer subjetivação política – “não há
um momento para a subjetivação”36. Há, porém, uma confusão aqui:
a autora trata a subjetivação em Foucault como se fosse questão de
verdade como correspondência, como se dissesse respeito ao campo
dos saberes enquanto forma, sendo que, como foi visto, ela é uma
questão de verdade como força. Isso muda tudo porque a verdade
como força, ao contrário da verdade como forma, em nada se opõe
ao algoritmo. Ela opera através dele, na forma dele, assim como a
governamentalidade sempre operou em termos diagramáticos, e não
através de representações e categorias gerais. Toda a especificidade
do tratamento de Foucault do poder está justamente em dar conta
desses aspectos não-semióticos do governo sobre os corpos. Como
já foi dito, se há uma novidade na governamentalidade algorítmica,
ela não está nem na governamentalidade, nem nos algoritmos, mas
em um aumento de efetividade que, no limite, colocaria em risco o
virtual como campo de possibilidade da ação política. Em qualquer
dos casos, o problema do sujeito não é a ausência de uma verdade
como forma, mas o fato de ser ele atravessado por forças que o go-
vernam sem que ele possa governá-las. Em qualquer dos casos, a
resistência é uma questão de criar potências de liberdade agonisti-
camente, e isso não é mais nem menos possível quando esse fluxo se

34
ROUVROY, 2016, p. 9, tradução minha.
35
ROUVROY, 2016, p. 10, tradução e grifos meus.
36
ROUVROY, 2016, p. 10, tradução minha.
126

configura por fora do regime significante. O problema é somente sa-


ber se a coincidência crescente entre o possível e o provável descrita
por Rouvroy cancela o campo do virtal, como crê a autora.

4. Por uma política dos algoritmos

Me parece estratégico, a esta altura, voltar sobre a discussão


dos diagramas, para enfatizar sua relação com o campo do virtual.
Um diagrama, como foi visto, expõe os mecanismos abstratos que
compõem um funcionamento. Por isso, um diagrama não representa
nada. Sua função não é de representar algo já presente, mas de expor
linhas probabilísticas – possibilidades práticas ainda não efetuadas;
virtualidades ainda não atualizadas. Aquilo que o diagrama expõe,
por exemplo, no caso do panóptico, não são relações concretas, mas
possibilidades de exercício de poder; relações estratégicas, de causa
e consequência, entre os meios e os fins do poder. Se quer-se chegar
a um efeito tal, deve-se agir de tal maneira; para outro efeito, de ou-
tra maneira. Nesse sentido, o diagrama descreve relações de poder
enquanto elas ainda estão no campo estratégico ou agonístico, antes
que a sua configuração se concretize em formas. Ele “permite obser-
var o estado que vem antes da formação de um objeto, e aquilo que
vai na formação desse objeto”37. Nos termos de Deleuze38, ele não
diz respeito ao “estratificado”, mas ao poder, isto é, às “estratégias”
– à virtualidade em vias de atualizar-se. Partindo-se desse pressu-
posto, haveria que se concluir que, quanto mais um dispositivo de
governo é “algorítmico”, quanto mais calcado nos diagramas e nas
estratégias, mais ele daria espaço, justamente, para a possibilidade
da intervenção política. Se o diagrama é, como foi visto, a expressão
do próprio virtual, por que uma “governamentalidade algorítmica”,
eminentemente diagramática como tal, implicaria o cancelamento
da virtualidade?
O argumento de Rouvroy, como já visto, é de que a possibi-
lidade técnica de aproximar maximamente o possível e o provável
precluiria o virtual por forçar, através da previsão estatística, todas
as virtualidades a atualizarem-se imediatamente. Ela dá o exemplo
do novo sistema de shipping da loja Amazon.com, que se adianta
37
ZDEBIK, 2012, tradução e grifos meus.
38
DELEUZE, 1988.
127

em enviar produtos aos consumidores com base na mera probabi-


lidade de que eles o comprariam mais cedo ou mais tarde, induzida
a partir dos dados de compras anteriores. Ocorre que o argumento
de Rouvroy pressupõe justamente aquilo que pretende demonstrar,
a saber, que o campo da ação humana, no interior de um regime
de governamentalidade não-representacional, careça totalmente de
virtualidade. Afinal, para que a previsão exata da atualização das
possibilidades de ação possa ser feita a partir dos dados atualmente
disponíveis, é preciso pressupor que o campo do virtual não seja um
campo múltiplo de possibilidades estratégicas, mas uma função do
atual. Que algoritmos possam servir à máxima atualização da virtu-
alidade em geral pressuporia que o virtual fosse redutível ao atual. É
essa questão, contudo, justamente a que está em disputa.
Como procurei mostrar ao longo deste artigo, a transferibi-
lidade dos diagramas de subjetivação implica em um campo mui-
to rico de possibilidades estratégicas, tanto é que hoje, mais do que
nunca, desenvolve-se toda uma cultura em torno da produção de
algoritmos de bem-estar, de produtvidade, de mindfulness, e que
inclusive incluem-se esses algoritmos no interior de dispositivos
empresariais e capitalísticos. Como já havia dito Foucault, a gover-
namentalidade não exclui a liberdade enquanto agonismo, e sim a
pressupõe no interior do seu próprio funcionamento. Em vez de su-
por que os processos de subjetivação já não existam nas tecnologias
atuais de governo, talvez fosse melhor indagar em que medida esses
processos podem ser capturados pelos dispositivos de poder como
peças voltadas à sua transformação estratégica – àquele grau de adap-
tação necessário para evitar rupturas mais drásticas –, e através de
quais práticas o mesmo espaço de subjetivação pode ser deslocado
para um funcionamento que, aí sim, gere a possibilidade de transfor-
mações políticas efetivas.
De certo modo, é como se fossem sempre as mesmas fer-
ramentas que, usadas de maneiras diferentes, pudessem implicar o
maior risco de captura e a maior oportunidade de emancipação po-
lítica. O mesmo algoritmo estoico em que Foucault observa um dos
paradigmas mais interessantes para a subjetivação política criativa é
hoje vendido nas estantes de auto-ajuda e empreendorismo, e uma
busca rápida na loja de aplicativos do Android por “stoicism” reve-
lará vários apps com citações estoicas organizadas de forma prática
128

para ser lidas por executivos em aeroportos. Em todo caso, a política


é possível – é de certo modo inevitável –, de tal maneira que a ques-
tão não é tanto como a tornar possível, mas como fazer com que os
diferentes campos de virtualidade que são a cada momento traçados
possam entrar em constelação e gerar alternativas agonisticamente
consistentes ao que está posto. Isso inclui não apenas estratégias de
conectividade, mas muitas vezes estratégias de opacidade, como as
propostas pelo Comitê Invisível. É um pouco o caso do blockchain
enquanto dispositivo que, reproduzindo o funcionamento do capital
em um molde distribuído e cifrado, consegue tornar-se opaco aos
próprios fluxos do capitalismo em geral. Esse movimento estratégico
entre a criação de zonas que se dobram sobre si mesmas na opacida-
de e o traçado de diagramas conectando-as umas às outras já parece
configurar toda uma “política do algoritmo”.
Como escreve Tatiana Roque39, “o problema do diagrama é
o [...] de criar pontes, fazer política com um cuidado às conexões”.
É nesse sentido que se poderia falar, nos termos propostos por
Guillaume Sibertin-Blanc40 – na tentativa de recuperar uma espécie
de “macropolítica” em Deleuze e Guattari – no traçado de um devir
minoritário universal ou, com ecos comunistas, internacional. Do
mesmo modo como um certo algoritmo de maio de 1968 parece ter-
-se reagenciado no ciclo insurgente que começou com a Primavera
Árabe, ou que um certo algoritmo de junho de 2013, de alguma for-
ma, reconfigurou-se para dar lugar às ocupações dos secundaristas
de São Paulo em 2015 e do Rio de Janeiro em 2016, poderíamos per-
guntar-nos como traçar o diagrama, hoje, que conecta todos esses
funcionamentos, onde quer que eles funcionem ou onde quer que se
mantenham inoperantes.

Referências bibliográficas

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