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Os diálogos de
PL
ESTRUTURA E MÉTODO DIALÉTICO
TRADUÇÃO:
Dion Davi Macedo
SBD-FFLCH-USP
lilli
III
254239
Edições Loyola
OS DIÁLOGOS APORETICOS NASCIMENTO DO DIALOGO
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NASCIMENTO DO DIÁLOGO
OS DIÁLOGOS APORÉTICOS
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JNASCIMENTO ISO DIALSCb •
Mas, possa a virtude ser ensinada ou não, uma coisa é certa: todos A obrigação de conhecer as Formas faz que os Diálogos, com algumas
pretendem possuí-la e "todos devem declarar-se justos, sejam ou não, ou poucas exceções, se apresentem como ensaios de definição. Não no início,
que está louco o que não fingir justiça"5. visto que nascem no mundo das opiniões onde têm lugar unicamente as
O que pensar então das constantes divergências de nossas opiniões qualidades. Mas depois de um preâmbulo mais ou menos trabalhoso, a
sobre os Valores?6 — Se o vulgo opõe a esta questão uma maneira de
conversa se dirige para a essência e aborda a questão: O que é...?
declarar a oposição do adversário improcedente, o filósofo, assim como não
Podem-se, portanto, distinguir nos Diálogos a questão inicial e a
admite a contradição das sensações, não aceita as opiniões. Aqui como lá,
o desacordo é a prova inegável da ignorância7. questão prévia. Inicialmente, Hipotalo se pergunta como tornar-se o ami-
Porque sobre os Valores homens diferentes têm julgamentos con- go de Lísis, Sócrates pergunta a Eutífron se, em seu papel de acusador,
traditórios e que variam constantemente em um mesmo indivíduo, é ele acredita agir piedosamente. Para responder a estas questões, é neces-
preciso concluir que os Valores são ignorados. Resta-nos encontrar uma sário, previamente, se perguntar o que é a amizade, o que é a piedade. Às
ciência que nos possa ensiná-los e que, a respeito das opiniões, assuma vezes também é um fato inicial que serve de apoio à investigação dialé-
o papel que desempenham o cálculo, a medida e o peso na justa apre- tica, é o que acontece quando o jovem Alcibíades, seguro de seu talento e
ciação dás sensações. de seus conhecimentos, quer tratar da vida política. É necessário então
Este papel é justamente o de um critério que nos permite "chegar a perguntar-se previamente qual é o objeto da política e, sendo este objeto
uma decisão satisfatória''. Para julgar corretamente a piedade de tal ato, semelhante à arte de aconselhar sobre a paz e a guerra justas, interrogar-
devemos saber o que é a Piedade em si, isto é, é necessário conhecer a se sobre o que é a justiça. — O prólogo e a entrada na matéria são
essência da Piedade para poder reconhecê-la como qualidade ligada a tal consagrados a esta questão inicial. O diálogo propriamente dialético não
ato ou tal pessoa. É preciso aprender "a Forma do Piedoso, voltar sua principia senão com o enunciado da questão prévia.
atenção para ela e usá-la como um paradigma"8 para poder dizer que tal Poder-se-ia acreditar que a partir desse momento a questão inicial,
ato é piedoso e tal outro ímpio. na medida em que tiver desempenhado a sua função de "despertar a
15. Enquanto não encontrarmos este paradigma, nossas opiniões reflexão", não reterá mais a atenção dos interlocutores. É este, com efeito,
permanecerão "cegas"1 e, por isso, danosas. o caso nos diálogos aporéticos. Visto que o fim da discussão não traz
Que a contemplação do Bem deva beneficiar os companheiros que nenhuma clareza para a questão preliminar, seria vão voltar à questão
continuaram na Caverna, que das Formas seja necessário voltar a descer ao inicial, se não for para tornar o fracasso mais sensível e para ressaltar,
mundo sensível, não é somente a República que o quer assim. Os diálogos uma vez mais, a necessária ligação entre as duas questões6. Mas alhures
chamados de juventude não têm uma linguagem diferente quando afirmam o problema inicial é resolvido: a República, após ter terminado a sua .
a necessidade de conhecer o Belo antes de dar aulas sobre as belas profis- investigação sobre a Justiça, volta à discussão inicial e conclui que o
sões2, conhecer a Coragem antes de discutir sobre o melhor meio de adquiri- homem justo é mais feliz do que o injusto. O Fedro comenta o juízo pouco
la3, conhecer a Justiça antes de matar uns aos outros nas guerras em que lisonjeiro que um anônimo pronunciou contra os discursos de Lísias. Põe-
cada parte pretende defender a própria causa4. Q conhecimento das Formas se previamente a questão de saber em quais condições um discurso é bom.
nos é necessário não talvez para viver, mas para bem viver5. Com esta questão resolvida, pode-se voltar aos discursos de Lísias e pro-
nunciar contra eles uma condenação, à qual, aliás, a cortesia de Sócrates
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Protágoras, 323 b 6-8. confere uma forma hipotética7. — Deste modo são confirmadas a função
rã né^iOTa, diz Platão (por exemplo no Primeiro Alcibíades, 118 a 7, falando da prática da filosofia e a imposição para os fi:ósofos de voltar a descer para
tríade do Belo, do Bem e do Justo). o mundo das opiniões.
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Postulado constante do platonismo, por exemplo no Mênon, 96 a-b, Górgias, 487 e,
Primeiro Alcibíades, 111 b, Hípias Menor, 372 d 7-e 1: èvíore HEVTOI MM toiivavriov 5oxeí noi 16. Os diálogos aporéticos não chegam a tanto, pois eles não resol-
Totmov xai nXavfitytai repi raCra, ôfjXoü õn Sià to nr| d5Évai.
s
vem sequer a questão preliminar. Esta solução deveria constituir o objeto
Eutífron, 6 e 4-6: icrórtiv noívuv |i£ avríiv SíSaÇov TÍ)V iSÉav TÍÇ note ÈOTIV, íva eic éxeívriv de um ensinamento. Mas ninguém é aberto a um ensinamento que não
àiroSXéiKov xai xfxtyievoç aúrfl Ttapa&ryuaTt xtX. se pretende necessário. Ora, os interlocutores desses diálogos são todos,
15. ' República, VI, 506 c.
2
Hípias Maior, 286 b-d. em qualquer grau, "eruditos". Se nem todas as suas respectivas compe-
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Laques, 190 b-c.
4
Primeiro Alcibíades, 112 b-c; Eutífron, l d-e. ' Assim: Hípias Maior, 304 d 8-e 2, Lísis, 233 b, Loques, 200 e.
5 ;
Críton, 48 b 5-6: ox> to Çf^v Jtepi nXeíotou jtoitvrÉov. àXXa TO EÍ Çflv. Cf. Górgias, 512 e. Fedro, 277 a in fine -e.
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tências figuram na lista da Defesa de Sócrates1, todas pretendem ter por libertados das opiniões arrogantes e intransigentes; está aí a melhor de
objeto os Valores2. Estas pretensões diferem entre si em natureza e em todas as libertações10 para o ouvinte11 e, para quem a sofre, a mais sóli-
qualidade. No grupo dos sofistas, a vaidosa presunção de Hípias contrasta da12. Há, na realidade, um princípio, meu jovem amigo, que inspira aque-
com a tranqüila segurança de um Górgias; entre os jovens, Lísis e les que praticam este método púrgativo; o mesmo que diz, ao médico do
Menexeno não têm nem a inteligência nem o conhecimento de um Teete- corpo, que da alimentação que se lhe dá não poderia o corpo tirar qual-
to. Mas todos têm opiniões sobre a questão prévia, e antes que estas quer proveito enquanto os obstáculos internos não fossem removidos. A
opiniões sejam reduzidas ao silêncio Sócrates saberá proveitosamente propósito da alma formaram o mesmo conceito: ela não alcançará, do que
começar o seu ensinamento. Pois, assim como não teremos a idéia de se lhe possa ingerir de ciência, benefício algum, até que se tenha subme-
recorrer às artes do cálculo e da medida por todo o tempo que o testemu- tido à refutação13, causando-lhe vergonha14 de si mesma, até que se tenha
nho das sensações nos parecer suficiente, assim também os interlocutores desembaraçado das opiniões que cerram as vias do ensino e que se tenha
não verão mais necessidade de silenciar o ensinamento socrático enquan-
to permanecerem persuadidos da justeza das próprias opiniões. 489 d 8-9: xol, S> OcrofiámE, npçtótEpóv ^E 7tpo5í6aaxE, íva HT) àitcxpoiníoa) Jtapà 006), chama Laques
à ordem (195 a 7: 8i5áa>ea>n£v oòróv, àXXà HT| XoiüopõHiEv) porque ele violou a regra da "bene-
. É necessário, pois, começar por "purgá-los" de suas opiniões, de acor-
volência" que é preciso observar nas discussões (Carta VII, 344 b 6; èv EÚHEVÉOW èXéyxoiç, cf.
do com o método dos educadores "modernos"3: "Propõem, ao seu interlo- República, VI, 499 a), felicita Trasímaco, èjtEiS^i nov npçioç èyévou xod xoXeraxívcov èraxíoco (Re-
cutor, questões4 às quais acreditando responder algo valioso ele não res- pública, I, 354 a 12-13), o Estrangeiro "adoça" (Sofista, 246 d 4-5: PEXTÍODC, oràtoíiç JIOIEIV e 247
ponde nada de valor; depois, verificando facilmente a vaidade de opiniões c 3) os materialistas que dificilmente se prestam a uma discussão, por oposição aos amigos
tão instáveis6, eles colocam sem cessar as opiniões à prova6, as aproxi- das Formas: itopà JÍEV TÔV EV eíSEonv crôrnv TiSenÉvrav pâov, f||iEpcí>T£poi yáp) (cf. § 9, final).
10
mam em seus raciocínios7 e as confrontam umas com as outras. Por meio raxoôv [TE] àiraXXotYÔv. Por razões de sintaxe mais do que por causa do testemunho
de Estobeu, parece difícil manter o TE. Em todo caso, consideramos que se deve construir
desse confronto, demonstram que a propósito do mesmo objeto, sob os jiacrôv com àjtaXXaY<õv (em vez de com SoÇôv), aproximação que retoma a doutrina do
mesmos pontos de vista, e nas mesmas relações, elas são mutuamente Górgias (477 e ss.): de todas as libertações, aquela que age sobre a alma é a mais bela
contraditórias. Ao percebê-lo, os interlocutores irritam-se contra si mes- e a mais útil.
mos8 mas se tornam conciliadores com os outros9 e, desta maneira, são 11
áxoÓEiv TE T|SíoTT|v. Enquanto as discussões entre erísticos degeneram em injúrias,
se bem que Txnx, Ttopóvtoç ãx6ea6ai írnep oqxõv avtfiv, ôn TOioíraov àv6ptí>rai>v fjÇíoxjav âxpoaTai
16. * Que cita os políticos, os poetas e os artesãos (21 c-22 c). •yEvécrôai (Górgias, 457 d 7-9).
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Defesa de Sócrates, 22 d 7: xai TÔXXa TO néyioTa. pE6aióraTa yiyvoiiévTiv. A refutação é definitiva (Teeteto, 210 b 4-5: i\ oüv £n xuoOnév
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Por oposição ao método tradicional: àpxouotpEJtéç TI itáTpiov (Sofista, 229 e 4). •n xai.ib8ívop.£v, á> (píXE, itEpi ÈjnmT|p.iiç, fl JIÓVTCC ÈXTETÓXOUEV;), e a vantagem que o respondente
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Sofista, 230 b-d. — SiEparaôoiv. O prevérbio marca simultaneamente: a) a insistência tira disto é a maior e melhor coisa conquistada, enquanto as outras artes de libertação
do interrogatório (assim: Górgias, 458 a 2) que Sócrates torna manifesto na Defesa de (Górgias, 477 e ss.) proporcionam apenas benefícios passageiros e instáveis (como a riqueza
Sócrates: ov> EÍiOw; óxpiíoü) OTOTÒV ox>5' ãra:i|u (29 e 3-4) e 6) o detalhamento das questões tanto ou a saúde), benefícios dos quais apenas o homem cuja alma é sã pode tirar proveito
irrita os respondentes: Górgias, 497 c 1: ÊpcÓTOt 5-f) cí> TO: onixpá TE xaiCTTEVÓ;Hípias Menor, (Górgias, 511 c ss.). Enfim, a clara consciência de nossa ignorância evita "hesitações" (cf.
369 c 1: xaTà anixpòv ÈipajtTÓpxvoc. nota 5) e torna firme a nossa conduta: oíxoíiv oi TOIOVCOI Trâv \i-í] EÍSÓTOIV àvap.ápTriToi Çóxnv 5ià
5
7cXava>névo>v. O melhor comentário desta expressão se lê no Primeiro Alcibíades, 117- TO ãXXoic JtEpí aikôv ÈJtnpÉTtEiv (Primeiro Alcibíades, 117 e 4-5).
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118 b. ÈXÉYXIOV. Outro termo técnico que se encontra igualmente na passagem da Defesa
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è^ETÓÇoixn, termo técnico que se encontra na passagem citada da Defesa de Sócrates de Sócrates, 29 e 5.
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(29 e 4). riç cdoxiivnv xaTacmíoaç. Procedimento que tem uma aplicação freqüente nos Diá-
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É o procedimento da recapitulação (Protágoras, 332 d 1: àvaXoyicú>n£9a Ta logos: República, I, 350 d 2-3: TÓTE xai EÍSov iyá>, jtpÓTEpov SE oiSitra, ©paoúnaxov Èpx>6picüvTa, mas
<í>Ho/U>mnéva T](ÚV) que aproxima duas teses contraditórias que o respondente havia con- que nem sempre consegue chegar em primeiro plano: Górgias, 494 d 3-5: ToiyópToi &
cedido separadamente, sem suspeitar do desacordo e, muitas vezes, espantando-se com o KaXXíxXeiç, OrôXov P.EV xai ropyíav xai èZ,éiü.-rf,a xai aiaxx>vEo6ai éitoírioa, cri) SE o-ú \ii\ ÈxTiXayfjç
que ele toma por uma questão que não pertence ao tema (por exemplo, Cármides, 164 a O-ÒSE P.-ÍI aiaxw 9fl;- àSpEtoc yàp EÍ. Poder-se-iam estudar também as concessões feitas pelo
6: ctXXà TÍ TOX)TO;). respondente tomado pela vergonha (cf. Eutífron, 8 c 9-d l, Primeiro Alcibíades , 109 c 1-3,
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èa\)Toíç M.ÈV xaXEitaívowji (cf. Teeteto, 210 c 2-3, 168 a 5: O-ÚTOXI; ÔE mofiooxwi). Tal é. Sofista, 247 b 9-c 2), procedimento honesto, o que quer que digam Polo (Górgias, 461 c) e
por exemplo, a reação de Laques (194 a 8-9: xai úç àXt|9(íx; àYavaxTfi EÍ...fi vorá HT) oióç T'EÍ|JÍ Cálicles (482 d), porque a concessão sempre conduz a uma exigência essencial (cf. adiante
EÍTIEÍV). Outros, contudo (Defesa de Sócrates, 23 c 8-9), preferem voltar-se contra o questio- § 25) e constitui o que se poderia chamar uma braquilogia dialética que faz economia de
namento, como Cálicles, Hípias ou Ânito (Ménon, 95 a 2: "A. \iév noi SOXEI xaXcnaívEiv). uma demonstração não para esquivar-se dela (veja-se Sofista, 265 d), mas para tornar o
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jipòç 8èTOÜÇãXXow; -fmtpowTat. Muitas vezes, no decorrer da discussão, Sócrates faz diálogo mais leve (cf. Essai sur lê Cratyle, p. 57): o "bom natural" do respondente dispensa
um apelo à "doçura" para o respondente (Górgias, 467 b 11: HTJ xaTrryópEi. w XÔOTE então que se leve mais longe a argumentação.
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levado ao estado de manifesta pureza e a acreditar saber justamente o
que ela sabe15, nada além".
Seria preciso citar, em toda a sua extensão, este texto tão importan-
te. Resta-nos apenas iniciar o estudo dos diálogos aporéticos para ver
como procede este método "purgativo". A pesquisa há de nos permitir ao
CAPÍTULO II
mesmo tempo tornar mais precisos alguns pontos sobre os quais nosso
texto não se exprime com muita clareza e que, mais facilmente talvez do
que por um ensaio de interpretação interna, poderão ser elucidados no
decorrer da análise dos Diálogos nos quais este método é aplicado. Em busca dos valores
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