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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA


Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
Programa de Pós-Graduação Stricto sensu em Ciências Sociais

Paulo Gomes Vaz

As “Sacoleiras” a Serviço do Capital: Um estudo sobre


as Africanas nos Circuitos Globais de Mercadorias

Salvador
2018
2

Paulo Gomes Vaz

As “Sacoleiras” a Serviço do Capital: Um estudo sobre


as Africanas nos Circuitos Globais de Mercadorias

Tese apresentada ao programa de pós-graduação em Ciências


Sociais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Federal da Bahia, como requisito obrigatório para
obtenção do grau de Doutor em Ciências Sociais.

Orientadora: Profa. Dra. Maria Gabriela Hita


Co-orientador: Prof. Dr. John Gledhil

Salvador
2018
3

_____________________________________________________________________________

Vaz, Paulo Gomes


V393 As “sacoleiras” a serviço do capital: um estudo sobre as africanas nos circuitos
globais de mercadorias / Paulo Gomes Vaz. - 2018.
239 f. :il.

Orientadora: Profa. Drª. Maria Gabriela Hita


Co-orientador: Prof. Drº John Gledhil

Tese (doutorado) - Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Filosofia e


Ciências Humanas, Salvador, 2018.

1. Mulheres - Vendedores ambulantes - África. 2. Mulheres comerciantes.


3. Setor informal (Economia) – África. 4. Globalização. I. Hita, Maria Gabriela.
II. Gledhil, John. III. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas. IV. Título.
CDD: 331.7
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África mãe Zungueira1

Esta que se aproxima


carrega uma criança às costas
e outra no ventre
uma nuvem húmida rasga-lhe a blusa
lembrando que é hora de parar e amamentar
e lá vai ela seguindo o itinerário que a barriga traçar
gestora de um ovário condenado a não parar
porque é património social
penhora o útero na luta contra a taxa de mortalidade

Conhece bem demais a cidade


não tanto pelos monumentos
mas pela necessidade
viandante como a borboleta
fez-se fiel e histérica amante
da lei da compra e venda de porta à porta
uma lei entretanto não prevista por lei
“depender só do marido? Nunca”
mal acordou a urbe já peleja aliciando clientes
no estômago só o funji2 do jantar de ontem
sem tempo sequer para escovar os dentes

Lá vai mais uma dobrando a esquina


de pregão firme como a voz do tambor
humilhada aos poucos pelo sol
nos mapas de salitre da poeira que adormeceu no suor

Forte por fora muitas vezes vulnerável no íntimo


veja esta nos olhos encarnados grita despercebida
uma mulher mal amada
nunca descoberta
rainha de etapas queimadas
ele que devia ser companheiro
é de se esconder no copo
quando os ventos são ásperos
autêntico chá em taças de champanhe
não estar disposta para mais um suor sagrado
é para ele frontal apelo à violência
habituada a levar da cara
odeia a sinceridade do espelho

1
É a palavra da língua nativa angolana quimbundo. O termo ‘nzunga’ é resultado da forma verbal
‘kuzunga (circular, rodear) mulher que percorre as ruas vendendo produtos diversos dentro de uma bacia
que leva na cabeça, antigamente eram comumente chamadas de Quitandeira.
2
Um dos pratos típicos de Angola.
6

Por aqui passou mais uma profissional da zunga


protagonista anónima com mil mestrados da vida
contudo não contada na segurança social
para o turista uma espécie de paisagem
rosto de uma noite que lançou a mulher
às avenidas dialéticas dos centros urbanos
no seu dever de sustentar a sociedade
a mesma que a condenará antes de amanhecer
por não participar da vida política
ou por não saber ler
nem escrever

Autora: Gociante Patissa, 2013

Guiné
sou eu
até depois da esperança

Guiné
és tu
camponês de Bedanda teimosamente
procurando a bianda na bolanha
que só encontra água na mágoa da tua
lágrima

Guiné
és tu
criança sem tempo de ser menino

Guiné
és tu
mulher-bidera3
em filas de insónia
noites di kumpra pon4
(mafé di aos)5

Guiné
é um grito
saído de mil ais
que se acolhe no calcanhar
da terra adormecida

Mas
Guiné somos todos mesmo depois da

3
Revendedora.
4
Noites de comprar o pão.
5
A única alimentação.
7

esperança
Tony Tcheca (poeta guineense)

Agradecimentos

Primeiramente agradeço a Deus pai todo poderoso por ter me guiado até aqui.
Pois gratidão é um dos sentimentos mais nobres que existe e eu não posso me abdicar
dela. Diante de uma jornada de trabalho muito intensa que está a terminar e certamente
prestes para o começo de um novo tempo. E sabe-se que o tempo é uma realidade
fugida, enquanto ela passa e olharmos para trás, observa-se que valeu a pena a
persistência e o sacrifício para chegar ao topo da montanha, e a minha escalada neste
exato momento é procurar dar voz a quem não a tem, isto é, as sacoleiras. Porém, para
que isso se torne realidade, contou-se com a contribuição direta e indiretamente de
amigos, colegas pesquisadores, professores, desde a graduação, no mestrado, e agora no
Doutorado. Para chegar a esta altura da escalada, algumas escolhas foram feitas, dentre
as quais, assumir a difícil tarefa de distanciar-se fisicamente dos meus familiares para
adquirir novos conhecimentos, numa condição de estrangeiro, enfrentando todas as
adversidades, e vivenciar diversas formas de preconceitos. Mas valeu a pena, pois todas
as experiências e amizades adquiridas só engrandeceram o meu conhecimento.
Com isso, quero dizer que é chegada a altura de retribuir com afinco,
agradecendo em alto e bom som, de forma cordial a todas e todos que contribuíram para
a concretização deste trabalho. Há sentimentos que ultrapassam o significado postulado
pelas palavras. Por isso, sintetizo os meus agradecimentos.
Esta tese é o fruto de um trabalho árduo, porém contou com contribuições
significativas de professores, alunos e colegas, pelas sugestões. Mas quero agradecer
primeiramente a quem me acolheu numa situação de desespero. Refiro-me cordialmente
a minha Orientadora, Profa. Dra. Maria Gabriela Hita, por ter aceitado o grande desafio
de me orientar, e com dedicação, paciência e disponibilidade, soube me apontar as
direções que nortearam a execução desta tese. Tive a honra e sorte de participar dos
grupos de estudos da professora Hita, no qual aprendi que é possível fazer com que a
etnografia e a teoria caminhem conjuntamente, de mãos dadas, sem comprometer o
8

objeto e os objetivos da pesquisa. Ademais, que o oficio de um sociólogo é aquele cujo


pesquisador prioriza o olhar de baixo para cima e, principalmente, de perto e por dentro,
deixando transparecer a voz dos sujeitos de estudo. Estas lições foram de fato as
contribuições valiosas para o enredamento desta tese, remetendo aquilo que o Paulo
Freire chama de Educador educado.
Ao Co-orientador, Prof. Dr. John Gledhill pela sua disponibilidade, dedicação e
pela forma como conduziu a tese, com as críticas pontuais que fortaleceram no
direcionamento e na estrutura da pesquisa.
Os meus respeitosos agradecimentos pela contribuição da banca do exame de
qualificação, composta pelos professores Leonardo Gomes Mello e Silva e o Robert
Wayne Slenes, que trouxeram contribuições importantes e valiosas para o procedimento
da pesquisa.
Ao Prof. Dr. Leonardo Gomes Mello e Silva, quero reiterar que sou grato a ele
por ter sido um encorajador, desde os tempos de Graduação, o professor contribuiu
muito na minha caminhada, através de sugestões, incentivos, pesquisas e principalmente
por acreditar que era possível sim eu caminhar como pesquisador e fazê-la com mais
retidão. Hoje pude acreditar que se não fossem esses incentivos, esta caminhada poderia
ter sido tortuosa. Sou grato.
À Coordenação de Apoio e Pesquisa em Estudo Superior (CAPES), pela
concessão de bolsa de estudo de Doutorado, a qual me possibilitou em toda a
manutenção necessária para o desenvolvimento desta pesquisa.
Um agradecimento especial ao Programa de Pós-Graduação em Ciências
Sociais da Universidade Federal da Bahia, por meio da sua coordenação e aos
professores, especialmente ao Professor Dr. Clóvis Roberto Zimmermann, pelas
discussões nas disciplinas cursadas, sugestões, e também por ter me aceitado no
tirocínio docente. Agradeço ao Prof. Dr. Jair Baptista da Silva, por ter me aceitado no
fazer estágio docente. Igualmente sou muito grato aos professores: Dr. Bruno Durães e
Professora Dra. Graça Druck pelo acolhimento.
O meu agradecimento também se dirige à Secretária Dora e Alberto pela atenção
que me deram durante os anos do curso, além das senhoras da limpeza e serviços gerais,
Edna e a secretaria Eunice.
À turma de Doutorado de 2014, em especial aos colegas do “sorvete
sociológico”, nomeadamente ao Eliseu, Irlena, Eunice, Mainara, Marcia, Jan, Stephan,
9

pelas discussões e conversas descontraídas. Agradeço à Eliane da Silva, ao Márcio


Roberto Oliveira, Priscilla, e a Tassia Nascimento, pelas contribuições.
Aos amigos, amigas e colegas, principalmente a Artemisa Candé por ter me
apontado essa universidade, e pelos incentivos. Também dirijo os agradecimentos aos
meus colegas em São Paulo, em especial ao David Batista Silva e Claudina Veigas e ao
nosso amigo em comum do apartamento 605, o Lucas (o nosso grande Luquinhas) e ao
Deolindo e o Bebito Manuel, em Salvador (BA), ambos pelas discussões diárias e
calorosas sobre diversos temas, destacadamente sobre as desigualdades sociais. A todos
fico muito grato pelas relações de boa vizinhança e pelos bons momentos
compartilhados.
Aos meus pais, regozijo-me muito em falar deles, por tudo que representam em
mim, principalmente pela educação, conselhos, perseverança, honestidade e pela
orientação, além de todo apoio e encorajamento que me deram durante toda a vida, e em
especial, neste momento tão difícil e importante souberam compreender o meu motivo
para prosseguir nessa caminhada.
Agradeço a minha família, em especial aos meus pais, Pedro João Vaz e Virginia
Gomes Vaz, por todo apoio e encorajamento que me deram durante toda a vida e pelos
ensinamentos que certamente carrego pela vida toda. De igual modo, dirijo meus braços
para os meus irmãos João Pedro, Tomás, Júlio, Augusta, Pedro, Marcelina, e ao meu
saudoso irmão Henrique, que cedo distanciou-se de nós, que Deus o tenha.
Aos meus tios, tias, primos, primas, sobrinhos e sobrinhas, em especial a minha
sobrinha Talismã, e a minha filha, Dandara Vaz.
À minha companheira, Patrícia Moreira, pelo incentivo e encorajamento em
todos os momentos do doutoramento, suportou-me e me acompanhou in loco em
diversos estudos de campo no Brás.
A todas as turistas compradoras por oficio, que aqui denominamos de sacoleiras,
que dedicaram parte do seu tempo em conceder entrevistas, papear (dialogar), ensinar
sobre a vida de quem vive do comercio, trabalha fora para garantir o seu djanta ku Cia
(almoço e jantar).
E entre várias experiências acumulados nessa jornada acadêmica e extra-
acadêmica, a brasilidade é também o que com certeza levo comigo pra vida. Verdade!
Por fim, quero reiterar a todos(as) que sou extremamente grato!
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Pa almas di nha garandis di Djiba, ku nha djorson Malobál sta sempri ku mi! (Que as
almas dos meus ancestrais de Geba e da minha linhagem Malobál estejam sempre
comigo nas minhas caminhadas).
Djarama! (Obrigado, em língua fula, uma das línguas da Guiné Bissau).
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Resumo

O presente estudo oferece uma perspectiva atual de um lado pouco falado no mundo do
trabalho contemporâneo, ao assumir o desafio de estudar as chamadas “sacoleiras”
angolanas e guineenses que se deslocam a São Paulo e para demais mercados
internacionais tais como: Singapura, Guangzhou, Dubai, Tailândia para comprarem
artigos de consumo a serem revendidos em seus países. Entendeu-se que esta
modalidade de trabalho consiste num circuito inferior da economia urbana que se
constitui como um dos modos antigos de ser da informalidade, e por conta disso não
pode ser tratado como um fenômeno deslocado, a-histórico. Pelo contrário, se trata de
uma realidade que tem sido alternativa de reprodução social de milhares de pessoas ao
redor do mundo. Por isso está inserida na história, a partir de um processo de interação
entre o trabalho formal e formal. A metodologia utilizada para coleta de dados no
campo baseou-se no questionário plicado às sacoleiras, buscando explorar as narrativas
de suas experiências de comprar mercadorias nos mercados internacionais, para depois
abastecerem os produtos comprados no guarnecimento de suas lojas e/ou fazer o
negócio à pronta-entrega. Com esse percurso visei responder à pergunta central desta
tese, que foi: com a sua participação nos mercados, o que diferencia a “sacoleira”
africana de outros trabalhadores e/ou trabalhadoras informais (Brasileiros ou Africanos),
a exemplo de quitandeiras, ou quituteiras, ou as bideras (revendedoras) de peixe, por
exemplo? Esta tese se enveredou numa direção que nos permite compreender que em
muitos países africanos, especialmente no caso de Guiné-Bissau e Angola, emergiu um
“reencantamento comercial” de compra-venda de produtos que vêm crescendo de modo
sem precedentes, e que são distribuídos em pequenas proporções em circuitos inferiores
da economia. Acredito com isso, que esta tese contribui ao acrescentar novos exemplos
e modos de operar da nova informalidade especialmente no que concerne ao modo
próprio e autêntico de ser desse tipo de economia informal engendrada por essa “nova
classe trabalhadora das sacoleiras” que cumprem a dupla função: a de manter a sua
reprodução social e a de alavancar a economia contemporânea.

Palavras-Chave: Trabalho informal. Mulheres africanas. Sacoleiras. Globalização e


pequenos circuitos da economia.
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Abstract

The present study offers a current perspective of a little talked about side in the world of
contemporary work, as it takes on the challenge of studying the so-called Angolan and
Guinean bagtraders that move to São Paulo and to other international markets such as
Singapore, Dubai, Thailand to buy consumer goods to be resold in their countries. It
was understood that this modality of work consists of a lower circuit of the urban
economy that constitutes one of the old ways of being of informality, and because of
this it can not be treated as a dislocated, a-historical phenomenon. On the contrary, it is
a reality that has been an alternative social reproduction of thousands of people around
the world. This is why it is inserted in history, starting from a process of interaction
between formal and formal work. The methodology used for data collection in the field
was based on the questionnaire about the bagtraders, seeking to explore the narratives of
their experiences of buying merchandise in the international markets, later to supply the
products bought in the furnishing of their stores and / or do the business to the prompt
delivery. With this path, I aimed to answer the central question of this thesis, which
was: with its participation in the markets, what differentiates the African "bagtraders"
from other workers and / or informal workers (Brazilians or Africans), such as grocers, ,
or fish bending (reselling), for example? This thesis was set in a direction that allows us
to understand that in many African countries, especially in the case of Guinea-Bissau
and Angola, a "commercial re-enchantment" of buying and selling of products that have
been growing unprecedentedly in small proportions in lower circuits of the economy. I
believe that this thesis contributes by adding new examples and modes of operation of
the new informality especially with regard to the proper and authentic way of being of
this kind of informal economy engendered by this "new working class of the
bagtraders" that fulfills the double function : to maintain its social reproduction and to
leverage the contemporary economy.

Keywords: Informal work; African women; bagtraders; globalization and small


economy circuits.
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LISTA DE ABREVIATURAS

CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível


Superior
CEPAL Comissão Econômica para a América Latina
ECINF Economia Informal Urbana
FLING Frente de Libertação e Independência Nacional da Guiné
FNLA Frente Nacional de Libertação de Angola
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
INEP Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (da Guiné-Bissau)
MPLA Movimento Popular de Libertação de Angola
OIT Organização Internacional do Trabalho
OUA Organização da Unidade Africana
P.A.I.G.C Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo-Verde
PALOP Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa
PNUD Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
PT Partido dos Trabalhadores
UFBA Universidade Federal da Bahia
UNECA Comissão Econômica das Nações Unidas para a África
UNILAB Universidade da Integração Internacional da Lusofonia
Afro-Brasileira
UNITA União Nacional para a Independência Total de Angola
UNCTAD Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e
Desenvolvimento
UNITA União Nacional para a Independência Total de Angola
14

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 Largo da Concórdia Brás-São Paulo 32


Figura 2 Estação de Trem – Brás, São Paulo, SP 34
Figura 3 Sacoleira despejando as compras na agência
transportadora de cargas 34
Figura 4 Mapa político da República da Guiné-Bissau 46
Figura 5 Mapa Político da República de Angola 52
Figura 6 Classificação dos Países de Língua Oficial Portuguesa em
IDH/relatório de 2016. 57
Figura 7 Fluxograma de Lumos (feiras livres) na Guiné-Bissau 74
Figura 8 Agricultura familiar (cooperativa de mulheres da granja
pessubé) 79
Figura 09 Bidera no mercado de bandim em Bissau 79
Figura 10 Transporte público Van (toca toca) durante o trajeto do
Bairro Cuntum Quelele 79
Figura 11 Avenida dos Combatentes da Liberdade da Pátria. A parte
externa no mercado de Bandim, Bissau (Guiné-Bissau) 82
Figura 12 Representação esquemática de semiformalidade 98
Figura 13 Tipo de atividade econômica e o seu status 103
Figura 14 As imagens da feira de madrugada-Brás 117
Figura. 15 Olga (de pé, posicionada à frente) e tia Alice (de pé,
posicionada atrás), ambas durante as compras de chinelos, 120
brinquedos e fantasias de aniversário infantil)
Figura 16 Sacoleira, organizando as compras enquanto aguarda o
despacho da sua mercadoria na agência transportadora 122
Figura 17 Chinelos havaianas comprados nas lojas do Brás
128
Figura 18 Cabelos (humanos) naturais 128
Figura 19 Teresino Junior - gerente e supervisor do Hotel Vitória, no
Bairro Brás - São Paulo – SP 131
Figura 20 Elementos dos dois circuitos da economia urbana nos
países “subdesenvolvidos” 142
Figura 21 Zona Econômica Especial da China 149
15

Figura 22 Brinsan após empacotar as compras em fardos brancos


(exposto no interior no hotel), aguardando o elevador para
subir com as compras do dia 154
Figura 23 Patrícia e Ana Sebastiao contabilizando os cosméticos
enquanto aguarda o despacho no interior da agência
transportadora de cargas 159
Figura 24 Cosméticos da Patrícia e da Ana Sebastião antes de serem
despachados na agência transportadora de cargas 159
Figura 25 Eugenia durante o ensacamento de suas mercadorias na
agencia transportadora de cargas 165
Figura 26 Diversos cabelos humanos (natural) lisos 180
Figura 27 Cabelo caipira (cacheado) 180
Figura 28 Cabelo caipira indiano (cacheado) 180
16

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO p.18
Capítulo I
1 A DESCRIÇÃO ESPACIAL DO BRÁS: COMÉRCIO E p.32
SURGIMENTO DE NOVOS PERSONAGENS NA CENA URBANA
1.1 Radiografando o cotidiano do Brás como lugar de compra e de p.38
sociabilidade

Capítulo II
2 BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO SOCIOPOLÍTICO E p.44
DEMOGRÁFICO DA GUINÉ-BISSAU E DE ANGOLA
2.1 Guiné-Bissau: Situação Geográfica e demográfica p.45
2.2 Guiné-Bissau: Situação histórica e política p.47
2.3 Guiné-Bissau: alguns elementos econômicos p.51
2.4 República Popular de Angola: Situação geográfica e demográfico p.52
2.5 Angola: Situação histórica e política p.53
2.6 Angola: Alguns elementos econômicos p.56
2.7 A África pós-colonial: transição e reestruturação p.58
2.8 Quando as atividades populares se tornam a alavanca da economia p.62

Capítulo III
3 TRABALHO INFORMAL NAS ECONOMIAS PERIFÉRICAS p.69
3.1 A cultura do trabalho e os mercados tradicionais “Lumo” como legado
da economia informal na Guiné-Bissau e em muitas economias
africanas p.71
3.2 Do fenômeno do subemprego urbano às resistências do trabalho não
tipicamente capitalista p.78
3.3 O conceito de informalidade no âmbito laboral: processo em
construção p.87
3.4 Um esboço sobre a economia informal e suas combinações: O p.93
processo de produção no debate contemporâneo
3.5 O Trabalho informal como fio (in)visível de acumulação p.106
3.6 A simbiose entre setor arcaico e moderno da economia nos debates da
CEPAL p.110
17

Capítulo IV
4 PROTAGONISMO FEMININO E SUBSISTÊNCIA DO TRABALHO EM
GUINÉ-BISSAU, ANGOLA E NO MERCADO TRANSNACIONAL p.113
4.1 Quando as escolhas por emprego são reduzidas, o espaço urbano se p.114
transforma em cenário de disputas para satisfação
4.2 A feminização do trabalho: Uma experiência das angolanas e p.125
guineenses
4.3 A força de trabalho feminino e a desigualdade do gênero no mercado p.134
de trabalho na Guiné-Bissau e Angola

Capítulo V
5 AS MERCADORIAS NOS FLUXOS CONTÍNUOS DA GLOBALIZAÇÃO
POPULAR p.137
5.1 As sacoleiras nos circuitos inferiores da economia urbana nos tempos p.139
da globalização
5.2 Enclaves étnicos, rede de relações e o destino de muitos turistas- p.143
compradores em busca dos artigos “Made in China”
5.3 Os impactos positivos da globalização de baixo custo e a dinâmica p.150
socioeconômica das revendedoras
5.4 O deslocamento de capital estrangeiro para os mercados periféricos p.167
abre novos espaços para a globalização popular
5.5 A vida social das mercadorias e a crise de identidade socialmente p.175
(des)construída nas antigas colônias
5.6 A globalização como fábula: um critério ideológico baseado em dois p.187
pesos e duas medidas

6. Considerações Finais p.193


Referências Bibliográficas p. 202
ANEXOS p.212
Anexo A. Questionário aplicado às Sacoleiras no Bairro de Brás/São Paulo p.213
Anexo B. As Muambeiras nos Subterrâneos das Cadeias Globais de
Mercadorias: o Caso das Sacoleiras Africanas no circuito Comercial entre São
Paulo (Brás) e Angola p.219
Anexo C. Cronograma dos principais eventos e personagens no agravamento da
instabilidade na Guiné-Bissau p.239
18

INTRODUÇÃO

A presente Tese de doutoramento pesquisou um tipo de trabalhadoras informais


oriundas de dois países africanos, Guiné-Bissau e Angola, respectivamente, e que as
denomino nesta tese como “sacoleiras” transnacionais, por se locomoverem numa rota
comercial global que conecta a África ao Brasil e o Brasil à África. A escolha do termo
“sacoleira” aqui empregado não tem quaisquer conotações pejorativas. Pelo contrário,
ao usar uma categoria nativa como esta, busco associá-la ao modo como ela é
reconhecida no seu campo de atuação por diversos dos atores envolvidos nesta rede de
comércio e relações as quais elas entram. Assim, a preferência foi por adotar essa
expressão popular dada às pessoas que têm como rotina e ofício essa forma de fazer
negócio. Mas também é uma terminologia que procurei associar à ideia da emergência
de um novo tipo de trabalho na era de globalização atual. Outros termos ou sinônimos
que, no momento, são usados são os de empreendedoras ou turistas compradoras, mas,
de modo geral, prefiro usar a terminologia nativa, tal qual usada na linguagem popular
por serem assim identificadas e referidas, e por isso considerei ser esta a melhor
denominação do fenômeno que estudei. Quanto ao título dado à tese, As “sacoleiras”
a serviço do capital: um estudo sobre as africanas nos circuitos globais de
mercadorias”, buscou-se explicitar uma hipótese importante da pesquisa associada a
essa função exercida por este tipo de atividades para o capitalismo, e que nos remeteram
à análise de uma série de polêmicas e conceitos sobre o tema da informalidade desde as
leituras mais marxistas - , com as quais iniciei meu trajeto neste campo de estudos.
Assim, Elas, as “sacoleiras” mesmo consideradas boas “empreendedoras individuais”
dificilmente se transformam em grandes empresárias, ou representantes diretas do
Capital, elas também atuam como se fossem uma espécie de “abelha operária” ao
trabalharem incansavelmente para abastecerem suas lojas do outro lado do atlântico. Ou
pelo fato de lançarem mão de outras estratégias de pronta-entrega dos produtos
adquiridos para que pudessem fazê-los chegar às mãos de seus clientes, e que, em
alguns casos, os aguardam em seus países de origem.
Entretanto, esse fenômeno instrumentalizado por essas mulheres africanas tem
19

características bem suis generis, as quais iremos apresentar e analisar, algumas delas, ao
longo desta tese. E que são próprias dessa prática de trabalho, deste tipo de sujeito e de
sua origem, o que lhes outorga um significado novo, no que acredito que esta tese
ilumina e mostra bem. Ao analisar algumas de suas principais características e
manifestações busquei por momentos intentar traçar uma análise morfológica e
socioeconômica de um tipo de atividade comercial e de um grupo de mulheres que
atravessam fronteiras e superam dicotomias ou tensões que atravessam debates e
polêmicas de questões como as do local e problemas globais, setores formal e informal
de trabalho, tudo isso no contexto maior de um capitalismo contemporâneo e
globalizado. Estas informações são temas importantes nesta tese, as quais tratarei mais
detidamente nos capítulos seguintes. As características desta modalidade de trabalho
comercial são altamente informalizadas, bastante heterogêneas e corroboram com o
conceito de poder estar tratando este fenômeno como um surgimento de uma nova
modalidade e tipo de sujeitos, ou, parafrasendo Antunes (2009) como uma classe-que-
vive-do trabalho, revelando por isso novas facetas, e umas das que têm sido pouco
reconhecidas neste campo de estudos até o momento, tanto no contexto brasileiro como
no africano.
A nossa leitura sobre o mundo do trabalho, a ser descrito aqui de vários
modos, se debruçará sobre diversos temas e debates teóricos em torno da noção e
implicações da informalidade impulsionada pelo fenômeno da globalização. Considero
que o trabalho é uma categoria humana revestida de razão prática que envolve múltiplas
dimensões e experiências de serviços e, por isso, ele se configura essencialmente como
elemento central às necessidades cotidianas. Discordo inteiramente da tese de que o
trabalho informal estaria hoje perdendo o seu significado e função nas estruturas
econômicas com o passar dos tempos devido aos avanços tecnológicos. Longe disso, a
realidade atual nos demonstra o contrário, pois é o trabalho informal que vem crescendo
em decorrência de elementos que destacarei adiante, e dos quais destaco aqui dois
motivos principais: o dos movimentos cada vez mais fortes em direção à flexibilização
das condições laborais e o resultante do aumento alarmante do desemprego. Isto me
permite afirmar que as modalidades informais de trabalho parecem estar longe de serem
extintas, ao levarmos em consideração o número cada vez mais significativo de
indivíduos que dependem deste tipo de atividades e modos de trabalho na atualidade
para a sua sobrevivência.
20

É neste contexto de grandes temas aqui rapidamente sintetizados que se insere a


experiência das Sacoleiras (trabalhadoras informais) de Angola e Guiné-Bissau e que
partem para as cidades de São Paulo, Dubai, Hong Kong, Tailândia ou Singapura,
comprando produtos têxteis, cabelos naturais, perfumes, roupas íntimas (lingeries),
eletroeletrônicos, entre tantos outros, para depois irem revendê-los nos seus países de
origem.
Estima-se que diariamente dezenas de mulheres Angolanas e Guineenses
adensam o comércio no bairro do Bom Retiro e do Brás, numa quantidade que varia de
acordo com as oscilações cambiais do dólar (moeda estrangeira), corroborando, em
determinadas conjunturas, o aquecimento deste mercado. Paralelamente a isto, observa-
se uma diminuição das demandas quando há valorização do real, direcionando as
estratégias para Dubai, China, Singapura ou Índia. Devido aos preços baixos, tal
redirecionamento permite maior retorno financeiro.
Encontramos aí uma nova forma de operar que vai modificar a morfologia do
trabalho comercial mais tradicional, e que até o momento tem sido pouco estudada e
invisibilizada na sociedade, e em pesquisas sobre o tema, especialmente em contexto
africano. Esta é uma modalidade nova de trabalho informal, e que se a explica pelo fato
da sua transnacionalização, apesar de que atividades comerciais sejam praticadas tanto
por homens como mulheres de modo milenar em diversas sociedades africanas. A
atividade comercial das sacoleiras, que atravessam fronteiras internacionais, combina,
pois, velhas e novas experiências de subsistência. Ela tem estimulado, por sua vez, o
surgimento de novos modos de força de trabalho, numa época em que o ato de se
trabalhar formalmente tem sido reduzido drasticamente, tanto no que concerne à força
de trabalho fabril, quanto no campo e ambientes mais rurais, criando cada vez mais um
maior afunilamento no “setor informal”. Observando nessa direção, entendemos que
tudo que é trazido aqui reforça a tese de que a atividade informal tem sido cada vez
mais associada às ideias de “modernidade e do futuro” e cada vez menos às de atraso,
precariedade e subdesenvolvimento, ao contrário do que defendiam certas escolas de
pensamento que analisarei com maiores detalhamentos adiante.
São os elementos paradoxais importantes deste processo de transformações pelas
quais passa o mundo do trabalho, que analisarei mais detalhadamente no capítulo 3 da
tese, têm sido o da maior flexibilização das formas do trabalho. Exemplo importante
disso é o caso aqui analisado das sacoleiras, que mobilizam-se e se conectam a
21

diferentes regiões do mundo. Elas se dirigem, desde a África, para outras cidades
industriais e comerciais cuja circulação de capital é maior, como São Paulo (no Brasil),
Dubai (em Emirados Árabes), Pequim (na China), e Singapura (Cingapura), comumente
conhecidos por serem cidades com maior poder atrativo de produtos atacados e varejos.
Além do mais, nessas grandes cidades industriais e comerciais encontram-se
múltiplos serviços como os de diversidade muito ampla de tratamentos estéticos,
produtos os quais estas africanas (as pesquisadas) têm especial atração, além do
oferecimento de diversos tipos de acomodações hoteleiras que estão ao alcance dos
recursos destas, e os mais variados tipos de quitutes e alimentos. Tudo isso em preços
considerados razoavelmente baixos quando comparados diretamente aos de outras lojas
locais, confundindo-se ou associando-se ao seu papel de turistas, o de serem
consumidoras e compradoras de mercadorias produzidas ou vendidas nestas cidades.
Portanto, ao analisar e ilustrar, ao longo desta tese, como vai sendo configurado esse
cenário atual do comércio internacional manifestado nas experiências destas sacoleiras
africanas, fui percebendo como este exemplo só veio a confirmar a afirmação de
Zygmunt Bauman (1999), de que a sociedade contemporânea (moderna ou pós-
moderna), tem hoje pouca necessidade da força de trabalho industrial, e que por conta
disso desloca boa parte dos seus membros a desempenharem cada vez mais outro tipo
de papel: o de consumidor (especialmente em atividades de setor terciário), como é o
caso aqui destas “turistas compradoras”6 que ao virem na procura de artigos que lhes
foram demandados pelas suas clientelas, elas são e se caracterizam primeiramente como
consumidoras, e só depois como vendedoras dessas mercadorias, as quais são colocadas
posteriormente para circular, sendo ofertadas aos consumidores finais das vendedoras.
Trata-se este de um processo de negociações diversas de compra e venda que as eximem
(excluem) de operar exclusivamente como consumidoras, ou as finais. Por isso, a sua
posição em relação ao fabricante dos produtos adquiridos é a de estimulá-los a criar
novos produtos para este tipo de compradora a partir das mercadorias que elas mais
procuram e demandam, por um lado, e a de que elas a consumirão e colocarão em
circulação espalhando-as por sua vez, em outros contextos onde atuam. Daí que
atividades comerciais como essas executadas pelas sacoleiras assumam a função de
exercer um papel importante no rol da divisão sócio-internacional do trabalho e na era

6
Por isso é que em alguns momentos da tese o termo “sacoleira” aparece como turista-compradora
(consumidora), por ela ser turista-compradora e só em segunda instância como revendedoras dos mesmos.
22

da globalização atual, mesmo quando ainda continuam sendo consideradas por muitos
como um substrato da economia subterrânea.
Desde esta perspectiva da internacionalização deste circuito comercial,
mobilizado pelo envolvimento na economia das atividades e roteiros destas sacoleiras,
pode ser melhor compreendida como um tipo de atividade do mundo da informalidade,
a qual tem passado a ter novos significados e existência maior. O que também se explica
mediante a ampliação dos processos socioculturais intrincados em outro conjunto de
trocas culturais e manifestações civilizatórias às que também estão associados os
processos ou situações como as vivenciadas pelas sujeitas de nossa pesquisa, pelo
simples fato de atravessarem novas fronteiras, e entrar em contato com outros valores,
costumes e modos de vida diferentes de outros países. Elas trazem também consigo os
seus próprios modos de ser, agir, sentir, pensar e imaginar, e que passam a ser
contrastados e comparados por elas aos modos de outras culturas dentro deste ampliado
e cada vez mais complexo processo de globalização. (IANNI, 1996, p.140).
O principal destino das sacoleiras originárias dos dois países africanos estudados
nesta tese se divide em quatro principais pontos do globo: Brasil, Emirados Árabes,
China e Singapura. Uma primeira questão que me fiz frente a esse dado foi a de buscar
explorar e compreender melhor quais as razões dessa segmentação, e de buscar
encontrar explicações para isso, o que o faço, empírica e teoricamente. Outra questão
relevante foi me perguntar o que faz com que uma parte destas mulheres escolha vir ao
Brasil e outra prefira ir para os Emirados Árabes ou China. E a partir destas questões
mais gerais e estruturais, fui levantando várias outras mais específicas, e que foram
também guiando parte de meu percurso nesta tese. São elas: Qual a posição dentro da
estrutura social de classe das sacoleiras que possibilitam-lhes uma escolha de rota de
viagem diversa? É possível dizer que as sacoleiras com maior poder aquisitivo se
dirigem para os Emirados Árabes e China, e as menos aquinhoadas vêm para o Brasil?
Quais produtos elas compram aqui e quais comprariam lá? A respeito dos
consumidores: quem seriam estes? E porque preferem produtos importados aos
nacionais? Será que existem produtos similares em seus países de origem? Qual é a
posição hierárquica na pirâmide social que as sacoleiras ocupam da divisão-sócio-
internacional do trabalho global que realizam? Essas foram apenas algumas das
questões mais gerais da nossa investigação e que contribuíram para aguçar o modo de
seguir este fenômeno e me guiar na reflexão e na investigação aqui desenvolvida.
23

Para responder maior parte dessas perguntas, usei metodologia qualitativa, e


entre os anos de 2015 e 2018 foram entrevistadas 15 (quinze) sacoleiras, sendo 7 (sete)
oriundas de Angola e 8 (oito) de Guiné-Bissau. Também realizei entrevistas com 3
(três) agentes de hotéis localizadas respetivamente nas ruas mais próximas, onde essas
sacoleiras se hospedam ou fazem compras, tendo um total de 18 (dezoito) entrevistas,
algumas em maior profundidade que outras, e nem todas elas gravadas, pois dependeu
das que o permitiram e se dispuseram a deixarem-se gravar, e sobre as que foram sendo
realizadas ao longo desses anos de pesquisa. Entre as guineenses entrevistei: Celeste
(guineense, 32 anos), Brinsan (guineense, 25 anos); Odete (guineense, 34 anos),
Mariama (guineense, 34 anos); Carmen (guineense, 32), Titina (guineense, 33 anos),
Helen Pinto (guineense, 36 anos), Iza (guineense, 41 anos). Entre as sacoleiras
angolanas me aproximei de: Nzinga, (angolana, 39 anos); Nilma (angolana, 25 anos);
Olga (angolana 25, anos), Alice (angolana, 45 anos), Eugenia Ribeiro (angolana, 30
anos), Patrícia (angolana, 25 anos), Ana Sebastiao (angolana, 34 anos). E entre os
agentes de hotéis entrevistei: Eliza (brasileira, 43 anos), a secretária do Hotel Borba;
Teresino Junior (brasileiro, 53 anos), supervisor do Hotel Vitória, e Thiago (brasileiro,
29 anos), gerente do Hotel Brás Palace.
Esse foi um volume de entrevistadas/os considerado mais do que suficiente
e razoável para realizar este estudo de caso, uma vez que os dados obtidos nas
entrevistas começaram a apresentar sinais de saturação, identificados quando
aumentaram as repetições das suas falas, e de relatos com trajetórias similares, assim
como pelo tipo de informações em torno dos produtos comprados que chegavam, o tipo
das escolhas e/ou preferências de cidades para as compras, etc. A maior parte das
entrevistas ocorreram nos pontos nodais do comércio do Bairro do Brás, enquanto
outras foram realizadas nos pontos de distribuições dessas mercadorias na Guiné-
Bissau, objetivando buscar observar e acompanhar também parte do circuito e modo
como eram despachadas algumas dessas mercadorias. Cabe ainda destacar, entretanto,
que eu já vinha acompanhando de perto o cotidiano desse universo de negócios desde
muito antes, e que minha atenção e contatos com este tipo de trabalhadoras iniciou-se
desde o ano de 2003. Eu já havia realizado algumas entrevistas exploratórias a uma
parte delas pouco antes de 2013, em estudo anterior que realizei para escrever um artigo
cientifico (VAZ, 2013), e uma fração dessas entrevistas foram aproveitadas nesta tese
de Doutorado. Decidi incluir este artigo tal como foi publicado (vide o anexo B), apesar
24

de incorrer por isso em algumas repetições de certos trechos narrativos de algumas


destas sacoleiras e gerentes de hotel, e que também recuperei no corpo desta tese, por
considerar ser este um complemento importante e diferenciado de nossa análise
empírica.
As 18 entrevistas realizadas foram a principal base de dados a partir do que
reflito e interpreto meu objeto de estudo, tanto desde a teoria de alguns destes achados,
como desde uma análise mais circunstanciada de alguns dos trechos narrativos gravados
e transcritos, e que vou os inserindo em todos os capítulos de modo misturado aos da
revisão da literatura que os iluminam. Entretanto, cabe destacar que outras bases de
dados importantes também coletados fortalecem o conjunto, e que mesmo quando nem
todos eles tenham sido diretamente descritos nesta tese, até porque alguns eu já o tinha
feito em pesquisa anterior de mestrado, sobre os trabalhadores braçais, e que defendi na
Unicamp, com o Prof. Ricardo Antunes, em 20117, foi a partir desse acúmulo de dados
anteriores e outros que vou trazendo que fui me permitindo realizar muitas das minhas
incursões e inferências mais teóricas. Outro elemento que cabe ser aqui destacado é que
boa parte de minha análise nesta tese parte também de todo o meu conhecimento, o que
poderia afirmar, parafraseando o Norbert Elias (2000), como um “sujeito” insider. Não
apenas pelo fato de eu mesmo ser africano, como elas, mas especialmente pela minha
experiência como trabalhador braçal em uma das agências transportadoras que enviam
produtos destas sacoleiras para África. A devida familiaridade com o objeto de estudo
se deve ao fato de eu mesmo ter trabalhado nessa região do comércio, como trabalhador
manual, por quase 6 meses, como já mencionado - numa agência transportadora de
cargas na qual as sacoleiras depositavam suas cargas. Também usei, entre uma
diversidade de técnicas para o registro de minhas observações de teor mais etnográfico,
a fotografia, caderno de campo com anotações, e outros modos de registros importantes
que fui realizando durante meu longo trajeto no campo de pesquisa, em que havia a
observação do participante e um teor etnográfico, tanto no mercado do Brás, no Brasil,
como em outros locais da África, tiveram um peso relevante. Sem ter sido a minha
intenção fazer uma etnografia, no sentido tradicional do termo, sobre todo este processo,
ou as sacoleiras africanas, o que visei foi o de poder ampliar a compreensão e elucidar

7
O trabalho Manual Africano nos Labirintos da Globalização: O caso dos Africanos em São Paulo.
(2011).
25

melhor o modo como algumas dessas mercadorias chegavam ao seu destino final, para
ampliar a minha compreensão do fenômeno como um todo e de todo o seu trajeto, assim
como algumas de suas principais implicações e efeitos. Também me preocupou buscar
testemunhar, em alguns casos, como se distribuem algumas dessas mercadorias aos
consumidores finais.
Para isso, e já numa etapa de finalização da pesquisa, que coincidiu com a da
redação final desta tese, precisei escolher entre ir para a capital angolana ou para a
capital guineense no início de 2018. Espremido em tempo para concluir meu trabalho de
campo e redação final desta tese, e pressionado pelo prazo que me tinha sido
preanunciado da possibilidade de sair a minha nomeação ao cargo de professor recém-
concursado na Unilab, na unidade de São Francisco do Conde, no que tinha sido
aprovado, decidi deslocar-me apenas para Bissau entre os dias 03 de janeiro e 06 de
fevereiro de 2018 para entrevistar algumas das sacoleiras de minha rede de contato e
que eu já tinha entrevistado antes no mercado do Brás, em 2015, na cidade de São
Paulo, como foi o caso da Odete, Celeste e Mariama. Já em Bissau, fui apresentado,
através de redes sociais do Facebook e o aplicativo WhatsApp, e por intermédio de um
amigo que trabalha com o comércio e que reside naquele país, a mais outras
comerciantes. Foi através desse amigo que logrei me aproximar de outras sacoleiras
com as quais não tinha tido nenhum contato anterior. Este foi o caso da Helem Pinto,
Brinsan, Carmem e Iza, que também realizam rotas de viagens entre Bissau-São Paulo e
São Paulo-Bissau. Com todas as sacoleiras contatadas em Bissau realizei as entrevistas
baseadas na mesma guia de entrevistas usadas no Brasil, com devidas adaptações aos do
novo contexto (vide o anexo A), mas também visitei as lojas de algumas e busquei
observar a estrutura da disposição das mercadorias em suas lojas, em alguns dos casos,
e acompanhar a distribuição final das mercadorias e algumas de suas rotinas de
trabalhos na capital guineense, em outros. Observei que em determinadas situações as
mercadorias são comercializadas em forma de “pronta-entrega” para os amigos e
funcionários públicos de sua rede de contatos (considerados por elas como os melhores
ou “bons pagadores”), mas em outras ocasiões são as clientelas que se deslocam para as
residências destas sacoleiras para escolherem algumas das mercadorias por elas trazidas.
Infelizmente não tive a chance de testemunhar nenhum dos circuitos da chegada
das mercadorias compradas na cidade de Luanda (Angola), o que teria dado um belo
contraponto pelas diferenças entre ambos os países, pela falta de tempo e devido a
26

ausência de recursos financeiros para viajar para lá de modo a fazer o tipo de


observação in loco que tinha me proposto no início do estudo e me foi sugerido ser
seguida na qualificação. Contudo, os relatos das sacoleiras angolanas obtidos no Brás
serviram como fontes de informações importantes que também puderam ser aqui
consideradas, e deram alguns insights interessantes sobre as diferenças entre elas. Cabe
ainda destacar também que nem todos os dados coletados foram analisados aqui, seja
pela falta de tempo mencionado, seja pelo tipo de escolha e de análise que privilegiei
fazer, uma vez que desde uma perspectiva mais antropológica que sociológica buscou
misturar mais a reflexão e interpretação de boa parte dos dados e achados identificados
no estudo de caso, desde uma reflexão mais crítica e teoricamente fundamentada, até o
fato de que muitos dos trechos narrativos que iam sendo trazidos foram operando mais
neste caso dos modos demonstrativos, dos tipos de análises e argumentos, sendo que
foram sendo construídos.
Assim, de modo sucinto informo aqui que o perfil das sujeitas desta pesquisa
tem sido composto por metade de mulheres guineenses e outra de angolanas na faixa
etária entre 24 a 45 anos, cuja escolha foi efetuada através de um critério aleatório no
acionamento dos primeiros contatos com a intenção de entrevistá-las pelo tipo de
atividade informal por elas desempenhadas, sem estabelecer previamente nenhuma
exclusão a partir de suas característica físicas, étnicas ou de “classe social” como
critério de seleção desses sujeitos, a não ser apenas o do gênero feminino. Todas as
nossas entrevistadas aceitaram participar desta pesquisa de forma devidamente
informada e consentida antes de passarem a responder o questionário (ou guia de
entrevista, pois operou o mesmo instrumento, dos dois modos, a depender da fluidez e
permissão delas de irmos além do apenas colocado no papel). Esse questionário foi o
material com o qual inicialmente me aproximei delas, sendo que a maioria das
entrevistadas preferiu e me solicitou não vir a ser identificada pelo seu nome original,
pois temiam sobre o tipo de uso que poderia vir a ser dado a suas falas e por alegarem
desconhecer a finalidade exata ou final desta pesquisa. Outras ainda comentaram que a
exposição de suas identidades poderia prejudicá-las nas suas futuras rotinas de viagens e
no seu modo de ganhar o pão, junto a setores de aduana ou hotéis onde se hospedam, ou
até mesmo junto às suas negociações com fornecedores. Por tudo isso, foram usados
pseudônimos, a fim de preservar suas identidades.
27

Outro aspecto importante a destacar é que em diversas situações houve


resistências por parte de minhas entrevistadas, e que em alguns momentos
demonstraram sinais de receio e desconfiança, além de certo desconforto em me
concederem suas entrevistas, mesmo quando eu era visto, em outros momentos, como
um pesquisador relativamente mais próximo ao do seu universo cultural e nacional,
dada a minha própria origem ser a de outro nativo da Guiné, e no que acredito possa ter
também influenciado as minhas semelhanças biológicas e físicas, língua, dialetos e etnia
compartilhadas, que são mais próximas às de algumas delas. Outro elemento que
acredito que possa, em alguns momentos, ter atrapalhado, é que por se tratar de um
segmento de comércio informal, que ora envolve fronteiras obscuras entre o legal e o
ilegal, formal e informal, o contrabando ou evasão de impostos, etc, que também por
esta especificidade deste tipo de atividade, suas desconfianças e estranhamentos podem
ter sido mais acionados e evidentes.
Por se tratar de uma pesquisa em que foram usadas as estratégias de método e
técnicas de teor qualitativo e etnográfico, optei por aplicar um tipo de questionário ou
guia de entrevistas semiestruturado (com algumas perguntas abertas) no intuito de
proporcionar mais flexibilidade, dinamismo, segurança e liberdade para que cada uma
das inqueridas externassem de modo mais livre as suas respostas. E à medida que a
conversa fluía melhor com umas, do que com outras, e o tempo que me foi por elas
disponibilizado, com algumas delas eu pude fazer mais e novas perguntas, buscando
sempre ir identificando as principais semelhanças e diferenças entre os dados de um
entrevistado e outro. Pelo fato de o pesquisador ter conhecido o cotidiano e o senso
comum da comunidade, tornou-se necessário selecionar as entrevistas cujos dados são
mais plurais pela multiplicidade de informações.
A pesquisa envolveu, como já dito, tanto trabalho de campo no bairro do Brás,
em São Paulo, como em Guiné-Bissau (com a observação do participante e in loco,
coleta, análise e interpretação de fatos levantados nas guias de entrevista). Por ser esta
uma pesquisa qualitativa, lançou mão também do recurso dos registros fotográficos. E,
sobretudo, a parte importante de nossa análise e reflexão se baseia e apoia na
importância dada à revisão da literatura e teoria, que num processo de apresentação de
algumas teorias para depois descontruir algumas delas, foi o modo privilegiado e que
considero ter me ajudado a ir me permitindo e construindo o tipo de argumentação de
teor e estilo mais antropológico, que se realiza a partir de diferentes exemplos e
28

comparações com outros casos em outros contextos diferentes, me permitir ir chegando


a uma visão mais clara, iluminada e ampliada do que seja o fenômeno das sacoleiras a
partir das diversas leituras teóricas que julguei parecer importante para serem realizadas
ao longo desta tese, e que expressam também o meu trajeto e experiências com o tema,
visando com isso dar um salto analítico e interpretativo útil e que julgo que possa
produzir contribuições ao campo de estudos do fenômeno em questão.
Para um estudo de caso como o desta tese, precisei partir da construção de dados
qualitativos, e reflexões sobre eles, mediante diversos tipos de aproximação e contatos
com o grupo pesquisado, como por exemplo, em algumas situações eu as ajudava com
as sacolas de compras quando precisavam, chegando a conduzir a entrevistada Celeste
para uma loja que vende cartão de telefone internacional (Africard), porque a mesma
queria fazer uma ligação para os seus familiares para saber em que situação se
encontrava a sua filha recém-nascida. Mas além de situações compartilhadas como
essas, o ponto que permitiu e facilitou maior aproximação e empatia, como já trazido,
foi o fato de eu ser visto como uma pessoa comum e “nativo” ao desse grupo e de
mesma nacionalidade, portanto, alguém em quem se poderia confiar um pouco mais,
não uma pessoa totalmente estranha. Já que, além de ter trabalhado na agência
transportadora de cargas, como já mencionado, fiz questão de manter esse contato ativo
com vários membros dessa agência transportadora, de modo pelo qual, nesse
empreendimento comercial e mesmo nas redondezas desse comércio não era estranho
eu ser visto na companhia do proprietário da agência, ora eu estava com administradores
ora com trabalhadores manuais. Porque afinal, além de ser fascinado pelo comércio
popular e pelos preços de baixo custo ofertado, a semelhança de muitos consumidores
que ali frequentavam, eu também era visto como um trabalhador, conterrâneo, colega e
amigo. Considerando também que o Brás era o meu lugar de distração, de igual modo a
de muitos colegas universitários e não universitários. Para todos nós, de forma unânime,
o Brás não era só o comércio, era também o lugar do lazer, do convívio, pois estar nesse
ambiente era uma espécie de “válvula de escape”, mesmo se tratando da vida nervosa
da grande metrópole paulista. Portanto, havia uma atmosfera favorável que me
colocava naquele enclave étnico constituído por esses agentes sociais africanos no Brás.
Por tudo isso, a minha relação com o meu objeto de estudo me permitiu
participar e me comunicar com “minhas sacoleiras” em todas as circunstâncias, isto é,
tanto como conterrâneo africano quanto como pesquisador. São situações de
29

estranhamentos que me impuseram, enquanto investigador, numa dupla situação nesse


universo: o do sujeito engajado (estabelecido) que espirava aquele clima do trabalho,
tido por parte das sacoleiras como um sujeito próximo (insider), porém, ao mesmo
tempo, sou tomado por parte delas como um elemento de fora (outsider), um intruso
que assumiu jogar o papel do pesquisador também, ao ir entrevistá-las, porque não
conhece tanto a realidade e vida delas, e portanto, um intruso, uma pessoa passível de
gerar desconfianças. Dito de outra maneira, nesse universo eu me senti ser enquadrado,
por momentos, em situações inconfortáveis e cheias de ambivalências e contradições,
isto é: primeiramente como membro da comunidade que conhece relativamente o
cotidiano, do saber local da comunidade e do objeto pesquisado, mas em outros
momentos, como cientista que as procurou e ao que lhe era exigido, pela sua busca de
seguir certo rigor mais acadêmico, buscar “distanciar-se mais criticamente” do seu
objeto de estudo, deixando transparecer a imagem do interlocutor como protagonista.
Assim, após o trazido e detalhado, esta pesquisa lançou-se a seguinte pergunta:
como é que ocorrem as participações destas sacoleiras na economia da informalidade no
seu lugar de compra no Brasil e de que forma se ocorre nos destinos finais na África? E
o que diferenciaria essa “sacoleira” africana de outros trabalhadores informais locais, a
exemplo de quitandeiras, ou quituteiras, ou as bideras (revendedoras) de peixe, na
África? Desta questão de pesquisa se depreendeu o seguinte objetivo geral: mostrar que
existem “novos modos” de trabalho emergente e que este aponta para um novo
fenômeno socioeconômico que exige maior atenção social por parte dos Estados
Nacionais, como por exemplo, o fato dos trabalhadores em questão não serem
registrados, a falta de direitos e contratos, entre outros elementos, etc.
Os objetivos específicos visaram aprofundar a investigação de como essas
pessoas enfrentam a essa nova onda morfológica do trabalho, quais sejam:
1- Identificar as especificidades desse tipo de trabalho comparado ao de outros
tipos de trabalhos (in)formais do setor de comércio;
2- Compreender as dinâmicas de organização social e econômica das vendedoras
em Angola e Guiné-Bissau (e como são tecidas as relações entre os comerciantes
que participam deste circuito, quais os investimentos financeiros que sustentam
as transações, as modalidades de compra das mercadorias e a tipologia de
objetos escolhidos);
30

3- Abordar o ponto de vista das sacoleiras, qual é o seu grau de emancipação


social na sua comunidade a partir dessa manifestação de trabalho;
4- Examinar também quais os motivos que levam as revendedoras a preterirem
mercados africanos ao de determinados mercados internacionais, tais como São
Paulo, Dubai, Pequim, Hong Kong, e não Argentina ou México.
A estrutura da tese é composta por cinco capítulos, após esta primeira parte
introdutória. O primeiro capítulo tratou de apresentar o ponto nodal da pesquisa,
descrevendo a estrutura social do espaço, mobilidade e sociabilidade das sacoleiras nos
ecos da grande metrópole paulista, conhecida como o maior comércio a céu aberto da
América Latina, nesse contexto, o bairro do Brás se torna o lugar de disputas entre
diversos atores sociais.
O segundo capítulo faz uma breve contextualização conjuntural da situação
sociopolítica e demográfica da Guiné-Bissau e de Angola, como forma de inseri-los no
contexto sociopolítico mais amplo dos países de origem das sacoleiras, mas também da
configuração deste fenômeno, que visa também oferecer elementos considerados
importantes para compreendermos a gênese desse impulso comercial, sem se esquecer
do seu contexto histórico, marcado essencialmente pela opressão das forças externas. E
que oferece também elementos que nos possibilitam compreender melhor as
experiências vividas pelas sujeitas do estudo.
O terceiro capítulo faz um diagnóstico acurado dos aspectos da informalidade no
seu sentido teórico mais amplo, assim como algumas das limitações e contradições de
algumas das perspectivas analisadas, tanto quando o do próprio conceito de
informalidade. Neste capítulo se discute a problemática do trabalho informal no Brasil
contemporâneo; as formas de subsistência e o trabalho formal e informal na África.
O quarto capítulo refere-se à discussão a respeito das estratégias e/ou mecanismos
impulsionadores da feminização do trabalho e a desigualdade do gênero, mas também o
de ideias e teorias de empoderamento das mulheres e destas sacoleiras.
No quinto capítulo, que é o mais importante de todos, e onde busco desenvolver
mais diretamente a leitura desde o momento em que vou analisando e pensando o
estudo de caso das sacoleiras, é onde discuto os impactos da globalização popular a
partir de uma perspectiva de baixo para cima, e uma que opera nos circuitos inferiores
da economia e diversos enclaves étnicos. Nele se aponta alguns dos problemas da
31

globalização como a fábula, constituída numa divisão desigual em dois pesos e duas
medidas. E, por fim, foram desenvolvidas as Considerações Finais.
32

Capítulo I

1. A DESCRIÇÃO ESPACIAL DO BRÁS: COMÉRCIO E SURGIMENTO DE


NOVOS PERSONAGENS NA CENA URBANA

A origem do bairro de Brás se confunde com a história de imigrantes, em especial


à figura do português José Brás8, o então proprietário de uma chácara na região, assim,
um bairro que era pacato cresceu e se desenvolveu como reduto de imigrantes italianos,
passa a ser predominado pelas indústrias, lojas de confecções que ofertam os produtos
nos atacados e varejos a todos os públicos. Hoje, além de redes de varejos, hotéis e
culinárias, viu suas ruas tomadas pelos comércios e serviços, acolhendo sacoleiras
vindas de diversas regiões do Brasil, destacadamente de regiões do nordeste do Brasil,
somada a um número reduzido de sacoleiras africanas, coreanos, chineses e,
recentemente, a emergência da força do trabalho dos rapazes imigrantes de países
africanos e jovens haitianos que comercializam produtos têxteis e tecnológicos
(eletroeletrônicos) nas ruas e avenidas do bairro do Brás. (Como consta na figura 1).

Figura 1 - Largo da Concórdia Brás - São Paulo, SP

Fonte: Imagens do Google. Disponível em:


https://www.google.com.br/maps/place/Largo+da+Concórdia+-+Brás. Acesso em: 11 mar. 2017.

8
Disponível em: http://almanaque.folha.uol.com.br/bairros_bras.htm. Acesso em: 03 mai. 2016.
33

Evidencia-se nesta região central da cidade a constituição de uma espécie de


cluster étnico9 alicerçada em relações de solidariedades, em que personagens com
propósitos diversos convivem, sobressaindo-se as sacoleiras africanas em um frenético
movimento de maximização do tempo10 diante dos parcos recursos, são espremidas
também pela tentação do consumo próprio (já que as mercadorias lhes atraem), às quais
por isso elas as procuram.
Mas para fazer isso se tornou importante observar in loco as relações sociais
entre os atores, acompanhar e analisar o itinerário de certas mulheres que se deslocam
de seus países e chegam a cidade de São Paulo como lugar de ritmos acelerados em que
o tempo-espaço ao menos no que tange à circulação de mercadorias parece assumir um
processo irreversível do consumo e da mobilização do trabalho, numa época em que as
soluções parecem estar na busca de dois ou três (sub)-empregos para se sobreviver, já
que as fábricas não parecem ser o lugar expressivamente inclusivo da classe
trabalhadora hoje, abrindo-se espaços para outros campos de [re]produção econômica,
em especial o setor de serviços comerciais como é verificado nesse cenário urbano que
testemunha cotidianamente a chegada de diversos perfis de compradores nesse centro
comercial, como consta na imagem abaixo, dos trens que chegam à estação cheia de
turistas no horário de “rush”, com os “vagões” lotados. A figura que se segue
apresenta o cenário perfeito da estação do trem.

9
Grupos étnicos que se congregam com especificidades de trabalhos diferentes numa divisão social do
trabalho: entre nacionais brasileiros (proprietários de lojas), bolivianos, no setor de costura, a comunidade
coreana, nas lojas das confecções voltadas para a moda feminina e redistribuidores de eletroeletrônicos,
comunidade Chinesa - eletroeletrônicos. A comunidade africana é composta por rapazes que atuam no
ensacamento de embalagens, somado a sacoleiras que perambulam durante suas rotinas de compras
diárias. Sendo que a parcela significativa atua nas atividades informais.
10
Serão aprofundados ao longo dos capítulos.
34

Figura 2 - Estação de Trem – Brás, São Paulo, SP

Foto: Paulo G. Vaz (17/11/2015).

Foi assim que, nesse cenário da pesquisa, ao retornamos aos corredores entre
restaurantes e lojas, cruzamos com uma moça exausta, depois de “perambular” pelas
ruas e comércios como muitas que seguem o itinerário de compras nas terras
longínquas, para além das fronteiras do emprego. (A figura abaixo mostra a celeste após
as compras).

Figura 3 - Sacoleira despejando as compras na agência transportadora de cargas

Celeste (nome fictício), 32 anos, de Guiné-Bissau. Foto: Paulo G. Vaz (04/11/2016).


35

A guineense Celeste reside em Bissau, sazonalmente parte para a capital paulista


para fazer as compras, não conhece muito bem a cidade, mas sempre tem por perto os
conhecidos e/ou conterrâneos que decidiram se mudar e radicar na cidade cosmopolita,
considerado atualmente o maior destino de refugiados e dos demais imigrantes africanos
por oferecer serviços no comércios, nas linhas de produção, e na construção civil,
incluindo o número expressivo de haitianas recém-chegadas (mas que não fazem parte
dos nossos sujeitos de estudo). Dentre os rapazes que desafiam as contradições da
cidade, alguns usam suas experiências para locomover-se e apresentarem as lojas e
promoções às mulheres estrangeiras, essa é a função que muitos jovens conterrâneos das
sacoleiras exercem na função de “guias comerciais” destas sacoleiras africanas.
Em pesquisa anterior realizada na referida zona comercial, (VAZ, 2011)11, um
dos depoentes da pesquisa, relatou que chegou a São Paulo com o visto de turista e hoje
trabalha e reside na cidade Paulista. Atualmente, além de dono de restaurante, Cardoso
também atua como guia-mediador, descreve que o papel do guia-mediador nesse
comércio informal é prestar apoio às sacoleiras, desde o aeroporto até o bairro do Brás,
onde fazem suas compras. Na visão de Cardoso, muitas sacoleiras não têm
conhecimento das promoções, dos hotéis baratos e, acima de tudo, as recém-chegadas
não sabem negociar preços mais acessíveis, já que, no entendimento do entrevistado,
barganhar ou “pechinchar” é a arte de negociar. Pois exige-se o carisma para que o guia
possa cumprir a função de interlocutor direto entre os diversos atores sociais (Lojistas,
sacoleiras e as empresas transportadoras). Observou-se, por meio de uma pesquisa de
teor qualitativo apoiada nas entrevistas empreendidas nessa pesquisa realizada em 2011
que:

No período de 2002 a 2007, os guias ganhavam em torno de R$


230,00 a R$ 250,00 de comissão por cada negócio fechado, isso de
acordo com seu empenho no papel de intermediário entre os lojistas,
as sacoleiras e as empresas transportadoras. Ou seja, quando a
negociação é satisfatória, nas vendas e compras e principalmente nas
quantidades dos produtos comercializados, eles ganham das duas
partes: dos lojistas e das transportadoras. Recebem cerca de 10% de
comissão da quantia comprada pelas sacoleiras, assim, quanto mais as
sacoleiras compram mais os guias ganham em comissão, o mesmo
ocorrendo na empresa transportadora. Assim, em média, os guias
ganham o salário de R$ 80,00 reais semanais dos lojistas e mais R$
80,00 das empresas transportadoras. Na relação que se estabelece

11
Dissertação de Mestrado cujo título é O trabalho Manual Africano nos Labirintos da Globalização: O
caso dos Africanos em São Paulo.
36

entre os guias e as sacoleiras não é estipulada uma quantia ou


comissão. A recompensa pelo serviço prestado dá-se por meio de
gorjetas, de valor indeterminado, que pode ser a partir de R$ 20 reais
até R$ 300 reais por total de serviço prestado. Contabilizando ao todo,
o salário “mensal” dos guias pode chegar a R$ 700 reais. De acordo
com Cardoso, de 29 anos, que chegou a concluir o segundo grau, a
crise econômica atual reduziu a generosidade das sacoleiras, fazendo
com que deem menos gorjeta aos ajudantes. Há vários motivos que
podem ser atribuídos à redução de gorjeta ou de presença massiva de
sacoleiras no Brás, tal medida pode estar associada escassez de divisa
(dólar), burocracia na concessão de visto de turismo ou mesmo à
procura por melhores preços de produtos e qualidade de produtos nos
outros mercados do sudoeste asiático, China, Dubai. (VAZ, p.40-42,
grifo nosso).

Nessa relação de “pessoalidade” na prestação de serviço, são apresentadas a


elas as duas características da cidade, desde os famosos shoppings paulistanos, as lojas
que vendem em atacado, principalmente o Lojão do Brás – maior vitrine da região, que
fica no Largo da Concórdia. Considerada a maior loja do bairro, é muito procurada por
oferecer produtos têxteis (roupas masculinas, roupas femininas e peças íntimas). Foi
nestas esquinas que cruzamos com uma conhecida guineense que denominamos de Sra.
Celeste, a qual gentilmente sugeriu que a acompanhássemos à agência transportadora de
cargas, onde seria despachada a sua carga (...). Quando perguntada por que escolhe São
Paulo como destino para as compras, a mesma responde:
Boa pergunta, as minhas amigas falam bem de coisas daqui
[tu sabes] a população da Guiné-Bissau adora os produtos brasileiros,
assistimos as telenovelas, e os rapazes assistem a seleção brasileira,
deve ser por isso que lá gostam das coisas daqui, também a língua é
quase a mesma coisa. Também nestes mercados do Brás e nos Bairros
do centro aqui da cidade tu encontra coisas num bom preço. Se quiser
a réplica (falsificado) ou original, tudo tu achas... tu é que vais
escolher de acordo com a tua clientela, há outros que não se
preocupam com a qualidade e só olham para a marca. Mas pra falar
verdade eu gosto de investir nas coisas que vão saindo muito rápido
principalmente cabelos naturais, havaianas e lingeries (roupas íntimas)
que vendem muito na Guiné. Estão a pedir muitos cabelos naturais, e a
calça legging. Por isso quero focar nas coisas que vendem rápido.
Eu só compro aqui em São Paulo, a passagem está muito cara para ir
comprar em vários países, mas aproveito as lojas internas dos
aeroportos para comprar algumas coisas pequenas como Telefone
(Iphone), Tablet, notebook, fones de ouvido e outras coisas de
pequeno porte, mas de valor alto. (Celeste,32 anos, Professora
desempregada (dona de casa), Guiné-Bissau, entrevista realizada em
04/11/2016).
37

A fixação da Celeste e de seus conterrâneos africanos pelo mercado Paulista


constitui-se somente numa parte dessa totalidade composta por diversas nacionalidades
e grupos étnicos que coexistem no bairro de Brás. Assim sendo, as características físicas
e as formas de atividades executadas predominantemente por certas nacionalidades
podem ser facilmente interpretadas de formas depreciativas ou apreciativas.
Com muita sagacidade, alguns estudiosos têm insistido muito no fato de que o
“olhar” diferencia o “outro”, sendo capaz de (re) conhecê-lo em sua especificidade,
adivinhando, por vezes, sua origem e/ou pertencimento; este “olhar” não é natural nem
espontâneo, mas moldado – seja pelas ideologias raciais, preconceitos ou mesmo pelo
ímpeto nacionalista através do qual se pretende distinguir quem é estrangeiro e quem
não é. A noção de olhar diferenciador do “outro” enquanto grupo exótico foi definida
por Erving Goffman (1998) como estima grupal, o que esmera a imagem do ser africano
como elemento estranhado quando está fora do seu reduto ou espaço social: o
continente Africano. Neste sentido, analisamos o caráter etnocêntrico e conflituoso
entre os grupos, classes e nacionalismos em situações que expressam estereótipos
negativos que motivam preconceitos, incluindo neste rol o papel ativo das lutas
simbólicas pertencentes a estes campos.
Para analisar a dinâmica dessa comunidade no mundo do trabalho, foi
imprescindível apoiarmo-nos nas contribuições teóricas que norteiam teias de
significados culturais que nos tempos atuais trazem elementos autênticos dos grupos
que se moldam em formas de estranhamento, enfrentamentos ou compartilhamento nos
centros urbanos. Assim como nestes mesmos lugares, brotam as novas redefinições das
fronteiras mobilizadas em nichos marcados que reforçam a dinâmica das cidades
globais.
Analisando o papel das grandes cidades e seus diversos níveis de influências de
um centro urbano sobre outros em diferentes partes do globo, assentadas no bojo do
hibridismo das modalidades comerciais, buscamos explorar o imbróglio que afeta as
grandes cidades e as relações de trabalho, mormente no que tange aos trabalhos
informais.
38

1.1. Radiografando o cotidiano do Brás como lugar de compra e de


sociabilidade

A extrema dinâmica que arrebata a vida urbana na compressão do tempo e


espaço é testemunhada pela chegada de sacoleiras oriundas de todos os cantos ao
comércio de São Paulo - notoriamente pelas sacoleiras da região nordeste brasileira e de
um número reduzido de certos países africanos. É nesse cenário que a pesquisa de
campo observou o cotidiano das sacoleiras africanas num dos maiores centros
comerciais da América Latina - lojas do Brás e os comércios a céu aberto. Nesse
contexto de mobilidades no comércio, o bairro do Brás tornou-se necessário para o
estudo de caso deste fenômeno que ocorre, de fato, com uma população especifica, na
qual os depoimentos dos sujeitos da pesquisa trouxeram contribuições diversas e
importantes que serviram para elencar uma discussão teórica da tese. Portanto, além dos
dados referentes à pesquisa de campo, durante a execução da investigação foram
levados também em consideração no roteiro da observação tais como: descrição do
ambiente; expressões emocionais; corporais; ritmo do movimento; comprometimento
(envolvimento) familiar; expressões afetivas, relações parentais; envolvimento humano
(o modo como as sacoleiras interagem com os seus conterrâneos na cidade de São
Paulo), etc.
Durante a execução do trabalho de campo no Brás, que ocorre geralmente nas
épocas festivas, um componente que chamou a atenção é a forma como o comércio se
aquece e se reifica, mas as estruturas dos edifícios continuam intactas, pois mesmo sem
quaisquer sinais de reabilitação urbanísticos, o comércio no bairro do Brás persiste ao
tempo e espaço cercado de comercio ambulante, negociações e permutas nas calçadas e
no interior das lojas. É uma região comercial, que conheço de outrora (de cabo a rabo),
por isso são-me familiares as relações sociais empreendidas por estrangeiros africanos
em são Paulo, pelo que a minha relação com esse mosaico étnico se deu basicamente
pela minha convivência pessoal com os meus conterrâneos guineenses em São Paulo
numa relação intrínseca de convívio sincero no espirito de reciprocidades constituído
sob pilares de “sociabilidade mobilizável”, que definimos como capacidade de certos
grupos arrastarem-se em multidões pelas causas sociais, econômica e de solidariedade.
39

Para superar a vida corrida e individualidade ocasionada pela grande cidade, os


sujeitos recorrem às estratégias de mediações a partir de mecanismo de solidariedade
em redes, buscando “o fortalecimento umbilical” com os conterrâneos que também se
encontram na mesma condição de deslocado. Essa estratégia é uma pratica muito
evidente na etnografia que empreendemos com as sacoleiras africanas, tanto nas suas
cidades locais, quando nas suas passagens em terras estrangeiras, cordialmente são
amparadas, ora pelos seus familiares que já vivem na urbe africana, ora pelos seus
conhecidos conterrâneos que têm residências fixas em São Paulo.
Ademais, além dos círculos estritamente familiares, as relações de proximidades
se estendem aos círculos maiores acionadas em mobilizações de diversas encontros
culturais, sendo que nesses encontros são comumente realizados os torneios de futebol
entre as diásporas das nações africanas residentes em São Paulo, nas datas
comemorativa das suas independências. Concomitantemente, as realizações desses
eventos permitem que os indivíduos dessas nacionalidades, sejam eles, ou elas,
estudantes ou imigrantes (refugiados) fortaleçam suas relações de identidades e redes de
solidariedades e inclusive no que concerne a reprodução econômica. Para mim, como
Guineense, essa relação serviu como a de pertença coletiva e ao mesmo tempo, a de um
trunfo para adentrar e trabalhar na empresa transportadora de cargas, que denominei de
import export trading12 (que transporta mercadorias compradas no bairro de Brás por
sacoleiras para em seguida envia-las para diversos países, dentre quais os países
africanos). Daí a minha inserção na empresa como trabalhador manual me permite ter
maior acesso a sacoleiras.
Durante a investigação, o acesso ao campo (observação in loco) e a obtenção do
material empírico (entrevistas, conversas e questionários em momentos diversos), me
permitiu comparar situações distintas relacionadas à comunidade de africanos (homens)
em São Paulo. Enquanto que na Zona Leste da cidade, na região do Brás, os
trabalhadores manuais africanos (guineenses, angolanos e senegaleses e peruanos)13,
que residem no capital paulista executam atividades manuais e/ou com predomínio da
força física, no empacotamento e carregamento de malas das sacoleiras a serem

12
Comércio de exportação de importação localizada no Brás. Uma empresa formal cujos proprietários são
africanos (de Angola e Guiné-Bissau) e exportam mercadorias para diversos países.
13
Certos rapazes (guineenses e angolanos) atuam como empacotadores e carregadores de malas e
mercadorias das sacoleiras a serem despachadas. Nas avenidas logo nas proximidades do Metrô Brás,
principalmente no Largo da Concórdia, a disputa em torno do espaço urbano se torna mais evidente e
acirrada entre os camelôs brasileiros, os senegaleses e os congoleses.
40

despachadas (VAZ, 2011), as sacoleiras, de forma distinta, estão sempre em transito,


constituindo um caráter completamente distinto nesse mercado, porque, elas, as
sacoleiras, estão apenas de passagem e com objetivo apenas de fazer compras. Talvez
isso foi o motivo que nos levou a fazer uma reflexão sobre as divisões de tarefas entre o
gênero e o trabalho a ser realizada nesse universo pesquisado. Neste sentido, o cotidiano
onde esses sujeitos estão inseridos, sejam eles construídos social e culturalmente podem
muito revelar se os seus papeis são manipuladas e legitimadas como algo que deve ou
não ser seguido: entre fazer tarefas com maiores esforços físicos (dominada por rapazes)
ou as atividades manuais, artesanais ou as chamadas aptidões domesticas para as
mulheres. Aqui se trata de uma construção social que nos aponta para a questão da
legitimidade de gêneros em assumir tarefas específicas a partir do imaginário social
desse universo. Daí que se torna importante refletir em que medida essas expertises
adquiridas nos seus “mundos femininos”, por exemplo, estimulam essas mulheres à ida
para trabalhar como sacoleiras ou não, considerando a existência de certas regras morais
instituídas socialmente nas suas sociedades.
Desse modo, para descrever os trabalhadores manuais (que foi objeto de estudo
da minha dissertação de mestrado), na qual atuei como trabalhador braçal, ensacando
mercadorias, que o serviu como pesquisar participante, que me permitiu mergulhar com
afinco nessa sociedade, buscando compreender e conhecer de perto, o modus operandi
dos trabalhadores que se constituíam fundamentalmente com base nas relações de
tolerâncias, solidariedade e divisão social do trabalho no chão da empresa onde são
despachadas as mercadorias que seguem para os seus destinos finais, dentre quais
Angola e Guiné-Bissau. (VAZ, 2011). A devida experiência me permitiu testemunhar a
minha relação direta e o meu engajamento enquanto pesquisador inteirado com o campo
numa relação de perto e de dentro (MAGNANI, 2002), uma relação de proximidade
com o objeto de estudo. Com efeito, esse convívio também nos permite compreender a
fluidez entre os diversos agentes sociais presentes nesse mercado, levando em
consideração os produtos e serviços ofertados, aos sabores gastronômicos, desde as
culinárias nordestinas, italianas, comidas peruanas, chinesas, churrascos, em especial, a
os pratos mais típicos de certas regiões africanas como: funge de angola, caldo-de-
mancarra e cafriela da Guiné-Bissau, somado a diversos gêneros musicais africanos
como (Zouk, Kizomba, Gumbé etc.), reunindo indivíduos com propósitos diferentes no
entorno das ruas próximas à praça largo da concórdia e da estação do metrô –Brás.
41

Entre os bares e calçadas também se servem petiscos como peixes grelhados na


brasa, prato muito procurado por africanos que queiram matar as saudades de casa. Fora
assim que, copiosamente nessas sextas-feiras, o dia de maior movimento dos rapazes e
de moças que se encontram e se reúnem para se inteirar das realidades econômicas, e
culturais dos seus países, que escolhemos para nos melhor inteirar e adentrar com o
nosso questionário no campo. Eram sempre por volta das 17h00, naquelas esquinas em
torno dos comércios que se tornou o local propício do entourage social (ambiente
social), afinal, estávamos todos nos sentindo em casa e num ambiente familiar. Foi
nessas circunstâncias de clima descontraído e favorável que espontaneamente ocorreram
boa parte das entrevistas.
Foram aplicados os questionários nos pontos nodais de comércio, além dos seus
encargos e tarefas do dia a dia das sacoleiras, não houve demasiados contratempos nos
horários combinados. Porém, houve as que pediram para não tirar fotos, nem mesmo de
costas, porém, todas elas, por partes, responderam ao nosso questionário de maneira
descontraída. Sendo que geralmente elas respondiam ao questionário, organizavam as
compras e contabilizavam os produtos simultaneamente, mesmo diante das suas rotinas
cansativas diárias, num extenso ambiente comercial, mas com micros espaços
abarrotados de negociantes – o que mostra que pelas pressões sociais ou familiares,
essas mulheres conseguem lidar com várias tarefas e distintas emoções, de modo
simultâneo, ao fazerem seus planejamentos, sociabilidade com colegas, e atender
também ao pesquisador.
Tudo isso foi num cenário onde as nossas entrevistas ocorreram de forma
espontânea, e que foram marcadas ou ocorreram nas varandas dos hotéis, no salão de
refeição, ou nas agências transportadoras em que as mesmas depositam suas cargas para
em seguida serem todos os seus produtos adquiridos ensacados em volumes extensos
para serem transportados através dessa mesma agência transportadora (segurada)14, para
seguir os seus destinos nas cidades africanas.
Mas enquanto a turma chegava, tornou-se necessário inquerir os agentes dos
hotéis, os quais se localizam nas esquinas em frente das calçadas. Um dos hotéis é o
Borba: nesse edifício quem esboça o cotidiano das sacoleiras é a gerente. Ao ser

14
A mercadoria é segurada pela agência transportadora. Todo transtorno da mercadoria é de inteira
responsabilidade da empresa transportadora.
42

questionada se poderia descrever a importância dos africanos nos serviços da casa,


prontamente a secretária-gerente do Hotel Borba, respondeu:

Olha, aqui nós temos gente que vem de todo lugar, e principalmente
os teus conterrâneos, os africanos ocupam muitos quartos, sai um,
entra outro, os corredores ficam cheio de malas, são malas alargadas
nos corredores dos hotéis, enquanto e sempre vem com os caras
(rapazes) que ajudam elas carregando as malas. Mas há dois anos atrás
o movimento era bem maior, mesmo quando o mundo estava em crise.
Ontem mesmo uma estava comentando sobre a dificuldade de se
conseguir o visto de turismo no consulado Brasileiro nos seus países,
por causa dos problemas. Dizem que não está sendo fácil conseguir o
visto de turismo para vir ao Brasil. Falam também que está sendo
difícil conseguir o dólar em Angola, já que é a moeda que elas
costumam usar no câmbio para o real (moeda brasileira). Sempre
quando o dólar está alto elas aparecem em maior quantidade e os
nossos quartos ficam totalmente cheios numa diária de 60 reais por
quarto simples com o banheiro externo, e 80 reais pros quartos com
banheiros internos. Mas este ano o ritmo caiu bastante, mas esperamos
que até o meio do ano as coisas melhorem. (Elza,43 anos, Brasileira,
secretária do hotel Borba. Entrevista realizada em São Paulo, no
bairro de Brás: 04/11/2016)).

A explicação da secretaria do hotel, Elza, releva como uma relação socialmente


imbricada e interdependente nesse complexo universo de interação socioeconômico é
moldada pala circulação de dinheiro envolvendo os atores de diversos cantos do globo
nessa região comercial. Essa dinâmica comercial é a causa e efeito da reprodução
econômica nesse comercio popular que se configura num nicho de mercado
expressamente dependente de fluxo de pessoas, e de circulação de mercadorias. É nesse
sentido que se propõe observar um complexo de tecido orgânico moldado por atores
sociais que se expressam suas especificidades. Aqui tratando-se da temática dos
movimentos migratórios temporais de mulheres que vão e vem para comprar e vender, e
que consiste numa mobilidade urbana transnacional engendrada por esse grupo de
africanas inseridas nas modalidades do trabalho informal nos meandros da globalização
popular e subterrânea. Pois fazer uma análise sobre mobilidade de pessoas, para além de
seus países, é uma experiência e aspiração que nos remete à de certos estudiosos que
também assumiram a preocupação de abordar seus conterrâneos. Podemos citar, como
exemplo, os teóricos: Sayad (1998), Ocada (2006) e Stuart Hall (2013). Embora em
níveis diferentes, há uma consonância no tocante à análise das comunidades étnicas
identificadas de maneira não abstrata e experiencial. Sayad, de origem argelina, aborda
os seus conterrâneos na França; Ocada, descendente de japoneses, traz à tona a temática
43

da emigração dekassegui (nipo-brasileiros ou brasileiros de ascendência japonesa) no


Japão. Stuart Hall apresenta a situação dos imigrantes jamaicanos e africanos na
Inglaterra. Entre tantos outros, eles ressaltam muito bem os aspectos dicotômicos de
pertencimento e distanciamento da cultura original, além da questão da sociabilidade.
44

Capítulo II

2. BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO SOCIOPOLÍTICO E DEMOGRÁFICO DA


GUINÉ-BISSAU E DE ANGOLA

“Quando os missionários chegaram pela primeira vez na nossa


terra, eles tinham as Bíblias e nós tínhamos a terra. Cinqüenta anos
depois, nós tínhamos as Bíblias e eles tinham a terra." (Jomo
Kenyatta)15.

Não se pode falar da história dos Países Africanos da Língua Oficial


Portuguesa sem falar do colonialismo, e de igual modo, não se apaga a forma como se
deu a ocupação nesses países. O pretexto consiste na ideia de que o real problema dos
africanos, sejam eles Guineenses ou Angolanos, consistia nos problemas culturais,
serviu-se de estopim para a aproximação de Portugal e outros invasores a terras
africanas. Para a monarquia Portuguesa, as práticas culturais dos indígenas e africanos
eram nefastas, retrógradas e, por isso, os trataram como se fossem indivíduos
desprovidos de cultura, indivíduos sem alma e que requeriam um endurecimento
religioso, somada a visão Darwinista sobre a superioridade e inferioridade racial, a
partir do “[...] processo inelutável da “seleção natural”, em que o forte domina o fraco
na luta pela existência. Pregando que “a força prima sobre o direito”, eles achavam que
a partilha da África punha em relevo esse processo natural e inevitável”. (UZOIGWE,
2010, p.25).
É neste sentido que o cristianismo evangélico se introduziu nos então reinos
africanos como um impulso “missionário” e humanitário, baseando-se no objetivo de
“regenerar” os povos africanos, de “salvar a alma dos infiéis” e ampará-los à civilização
para se tornarem humanos através de princípios fundamentais do cristianismo, a
começar pela catequese e batismo. (UZOIGWE, 2010). Tudo isso radiografa bem a
maneira como o expansionismo português foi movido inicialmente pelo espírito

15
Palavra proferida pelo Ex-presidente do Quênia.
45

evangelizador, no qual a força se fez impor minuciosa e cautelosamente sobre as


culturas locais, fazendo com que o catolicismo16 aparece como instrumento de
aprendizado-dominação, e ao mesmo tempo se configurando como um mito da
“harmonização ocidentalizada” entre os civilizados e “gentios” ou “grumetes” no
interior da administração ultramarina portuguesa nesses Países Africanos.
Essa concepção de inferioridade atribuída aos “indígenas negros” foram recursos
usados por demais invasores europeus (ingleses, alemães, franceses, portugueses,
espanhóis e holandeses), na partilha e na balcanização do continente na conferência de
Berlim, para seus interesses próprios, produzindo uma fragmentação geopolítica em
estados menores, não cooperativos entre si, e hostis entre si, para depois extirpá-lo. Foi
assim que os navegadores (exploradores), Diogo Cão, em Angola e o Nuno Tristão, na
Guiné-Bissau, trataram de realizar na fase inicial da ocupação.

2.1 Guiné-Bissau: Situação Geográfica e demográfica

Situada na Costa Ocidental de África, limitada a Norte pela República do Senegal,


a Leste e Sul pela República da Guiné-Conacri e a Oeste pelo Oceano Atlântico, a
Guiné-Bissau tem a sua superfície de 36.125 km² e 1.700.000 de habitantes. Além do
território continental, o país conta com uma ampla área que possui ainda cerca de 88
ilhas, que formam o arquipélago dos Bijagós, com a extensa área protegida e revestida
de uma diversidade incrível de ecossistemas, que vão desde as densas florestas tropicais
aos pântanos de mangue. A sociedade civil tem vindo a se conscientizar cada vez mais
do valor da sua riqueza natural, investindo consideravelmente na sua conservação, ao
ponto de cerca de 26% do seu território nacional serem já classificados como áreas
protegidas17. Sua extensão territorial é dividida em 8 (oito) regiões18 e subdivididas em

16
Os colégios católicos e protestantes surgiram como espaços privilegiados de homogeneização da sua
cultura religiosa e dos saberes demandados pela pequena nobreza e burguesia para a sua ordenação social.
“(…) A interferência da Igreja foi decisiva para a difusão da escolarização, principalmente dos jovens, na
medida em que ela centralizava a administração e os funcionamentos das instituições escolares”. (Veiga,
2007, p.2).
17
Cf. o desenvolvimento verde na Guiné-Bissau. Disponível em:
http://www.worldbank.org/pt/news/feature/2015/11/30/guinea-bissaus-green-development-takes-root-
starting-with-biodiversity-conservation. Acesso em: 08 nov.2017.
18
Região Bafatá, Biombo, Bolama, Cacheu, Gabu, Oio, Quinara e Tombali, e o setor autônomo de
Bissau.
46

37 setores. Tem clima tropical, caracteristicamente quente e úmido. Há duas estações


distintas: a estação das chuvas e a da seca. (Conforme consta na figura abaixo)

Figura 4 - Mapa político da Guiné-Bissau

Fonte: royalty-fre

A república da Guiné Bissau possui uma vasta diversidade étnica e cultural, além
de uma multiplicidade partidária, é um país laico. Ademais, é mister destacar que
embora diante das suas instabilidades políticas, o país vem se reinventando através da
47

sociedade civil, e empenhado em mecanismos de articulação da sua sociedade, com


iniciativas que visam erguer alternativas aos escombros causados pela desigualdade
social. Por ser uma sociedade multicultural, complexa, composta por dezenas de etnias,
as suas relações contemporâneas não chegam a ser antagônicas, ao ponto, por exemplo,
de eclodirem fortes conflitos étnicos, como ocorreu em 1967, na cidade de Kansala.
Houve uma guerra sangrenta, denominada de “guerra de Kansala”, entre as etnias fulas
e mandingas. Atualmente, na Guiné as diferenças étnicas são as que tornam a sociedade
mais rica, tanto na culinária, na música, quanto nos “costumes compartilhados” em todo
o seu território nacional.

2.2. Guiné-Bissau: Situação histórica e política

O atual território da Guiné-Bissau era parte do império Mali e fazia parte


do Reino de Gabu (império Kansalá) partes deste reino persistiram até o século XVIII.
Tinha suas organizações de poderes locais e tradicionais devidamente organizadas, entre
reis, regulados e demais chefes tradicionais que tinham poderes locais já consagrados. A
chegada do navegador português Nuno Tristão, em 1446 (no Séc. XV), data o momento
do “descobrimento”. Esse explorador e mercador de escravos da costa ocidental africana
foi o primeiro europeu que se sabe ter atingido o território da atual Guiné-Bissau. O
método aplicado para a ocupação, que inicialmente era comercial, se expande para a
tática religiosa e militar, estendendo até o início da guerra ultramar (guerra colonial) que
se configurou como estopim para a guerra colonial. Porém, a colonização só teve início
em 1558, quando implementaram fortes relações econômicas, tanto no setor agrário e na
comercialização de escravos que partiam de certas regiões do país como para as
Américas.
A região compreendida entre o rio Cacheu e a ponta de Tombali, englobando o
arquipélago de Bijagós, era a zona de maior afluência de navios de Cacheu, de Farim,
de Geba e de Cabo Verde, todos para comprar escravos. A memória da escravatura e do
tráfico negreiro encontra-se nos vestígios construídos pelos europeus, e principalmente
nos pontos de embarcações, que ainda guardam más memórias do tráfico negreiro. Mas
48

após o tráfico negreiro, as relações comerciais se estenderam até o fim da colonização


em 1974.
Mas é importante destacar que a história da Guiné-Bissau está fortemente ligada
também à importância e impacto da independência de todos os Países Africanos de
Língua Oficial Portuguesa (PALOP) sobre a região, porque é na Guiné-Bissau, antes
denominado de Guiné-Portuguesa, que ocorreu a maior resistência contra o regime
fascista e ultramarina salazarista. Tudo começa quando em Bissau, no dia 03 de agosto
de 1959, os trabalhadores portuários (os marinheiros e estivadores) declaram greve,
exigindo seus direitos, e foram duramente reprimidos pela polícia (autoridade
ultramarina), um incidente violento que ocasionou dezenas de mortes, registrando-se
cerca de 50 mortos e uma centena de feridos. Foi, no entanto, um evento histórico
conhecido como “massacre de pindjiguiti”. A partir desse incidente, o Porto de
Pindjiguiti se tornou o símbolo de resistência contra o colonialismo português, com
forte mobilização popular. Foram nestas circunstâncias que as classes populares
exploradas consolidaram as suas resistências e, consequentemente, a ocasião de
expressar-se neles a tomada de consciência. Em 20 de janeiro de 1963, guerrilheiros
armados e organizados pelo PAIGC- Partido Africano para a Independência da Guiné e
Cabo Verde, desencadeando assim uma revolução (a guerra colonial) que duraria 11
(onze anos) e, que teve o seu desfecho no dia 24 de setembro de 1973, com a vitória
esmagadora comandada pelo PAIGC. Mas a conquista da independência contou
também com a participação do FLING - Frente de Libertação e Independência
Nacional da Guiné. Este foi um movimento independentista da Guiné-Portuguesa. Uma
independência reconhecida, internacionalmente, um ano depois e, consequentemente,
vieram as independências dos demais países africanos de Língua portuguesa. No
entanto, foi a primeira colônia portuguesa na África a ter reconhecida a sua
independência.
Pode-se dizer que a Guiné-Bissau teve um papel (in) direto e fundamental na
revolução de 25 de abril de 1974, conhecida como a revolta dos cravos 19, uma revolta
militar e popular que derrubou o regime salazarista em Portugal, e ocorreu de forma a
estabelecer liberdades democráticas com o intuito de promover transformações sociais

19
Foi o movimento que derrubou o regime salazarista em Portugal, e ocorreu no ano de 1974, de forma a
estabelecer liberdades democráticas, com o intuito de promover transformações sociais no país. A
população saiu às ruas para comemorar o fim da ditadura de 48 anos, e distribuiu cravos, a flor nacional,
aos soldados rebeldes em forma de agradecimento, dando origem ao nome “Revolução dos Cravos”.
49

no país. Foi uma consequência dos 13 anos de guerra colonial, na qual os portugueses
enfrentaram os movimentos de libertação nas suas colônias: Angola, Moçambique,
Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Neste sentido, segundo
Manecas Santos20, o posicionamento e as resistências políticas, engendrados por
PAIGC, através dos confrontos militares, foram cruciais naquele momento para a
libertação da Guiné, e influenciando na “Revolução dos Cravos”. Afirma Manecas
Santos:
[A Guiné] foi a colónia onde a guerra foi mais violenta e mais eficiente por
parte dos guerrilheiros nacionalistas. Eu creio que ninguém tem dúvidas
disto. A partir do momento que nós conseguimos estas armas antiaéreas,
deixando o exército português completamente na defensiva [surgiu uma
situação] inimaginável para qualquer exército colonial ou qualquer exército
europeu. De facto, nós teríamos sido a ex-colónia cujo combate foi decisivo
para que acontecesse o golpe de Estado em Portugal e depois a libertação das
colónias. O golpe de 25 de Abril nasceu aqui.

Com ataques conjuntos e simultâneos de todas as demais colônias (Guiné-


Bissau, Moçambique, Angola e São Tomé e Príncipe) contra a ocupação colonial,
obrigou o governo ultramarino Português a reconhecer a sua incapacidade de sustentar
os ataques militares nas colônias, resultando no aceleramento da concessão das
independências em todas as demais colônias. Mas o primeiro a se tornar independente
foi a Guiné-Bissau (e Cabo Verde) em 24 de setembro 1973 e, em seguida,
Moçambique, em 1975; São Tomé e Príncipe, em 1975 e Angola em 1975,
repetidamente.
Após se tornar um estado independente, surtiram no seio das forças armadas da
Guiné-Bissau as contradições internas, que resultou no golpe de 14 de novembro de
1980, derrubando o então primeiro presidente da nação guineense, Luís Cabral, um
golpe de estado liderado por João Bernardo Viera, denominado de “movimento
reajustador”, tratado como o fruto de uma revolta ou indignação do próprio Nino
Vieira perante uma aristocracia cabo-verdiana na Guiné-Bissau. A justificativa que
Vieira deu sobre esse evento era de que havia uma relação sincrônica entre a tonalidade
da pele e a categoria classe, que se manifestava de forma explicita, ou seja: o indivíduo
é de classe média porque é de pele clara; é de pele clara porque é classe média. Isso era
a tessitura que marcou a sociedade guineense (os autóctones guineenses e os cabo-

20
O 25 de abril nasceu na Guiné. Está disponível em: http://www.dw.com/pt-002/o-25-de-abril-nasceu-
na-guin%C3%A9-diz-manuel-dos-santos/a-17656412. Acesso em: 07 jan.2018.
50

verdianos). O que, de outra maneira, pode ser chamado de “colorismo de classe” que
parecia um fenômeno natural.
Em decorrência disso, é importante também entender, porém, que o golpe de
estado “movimento reajustador” também joga por terra o projeto de unidade nacional
entre os guineenses e cabo-verdianos – projetado por Amílcar Cabral, acaba por nutrir
enorme estranhamento no aparelho do estado, enquanto para a sociedade civil restou-se
as incertezas. Decerto, essa reestruturação política a partir do golpe não trouxe uma
mudança substancial a uma nação recém “liberta”, senão a perpetuação de uma
aristocracia política e militar no poder por quase duas décadas de incertezas em todos os
segmentos sociais. Portanto, jogou-se um papel importante contra o imperialismo
português, porém, nos tempos da pós-independência o país acompanhou intensas
danças de cadeiras (alternâncias) no poder executivo, quase uma dúzia de presidentes
passaram sem êxito. Sendo que nessa incipiente democracia tortuosa, jamais um
presidente concluiu o seu mandato sem que tivesse sido deposto ou expulso por vias de
insurgências (golpes)21, assassinatos ou mesmo morte por doença (vide o anexo C).
Essas danças de cadeiras, em pouco espaço de tempo, numa república
teoricamente democrática, se enveredaram por um caminho marcado por intensas
incertezas, colocando em xeque o processo de estabilidade e, consequentemente, o
processo democrático, na medida em que os resultados dos escrutínios passam a não
significar o cumprimento dos cargos. Consequência de um sistema de governo
semipresidencialista que abre muitas brechas (espaços) a interpretações, fazendo com
que ora o presidente exonere ou nomeie o primeiro ministro, ora o presidente dissolve o
parlamento e nomeia um Governo de gestão e de iniciativa presidencial.
Ademais, somam-se a isso o histórico de constantes instabilidades, insurgências,
prisões arbitrárias, golpes, assassinatos de executivos, demissão de executivos, derrubes
de governos, muito comum nesses países, nos remete àquilo que Giorgio Agamben

21
Luís de Almeida Cabral foi um dos Fundadores do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo
Verde (PAIGC) e também o primeiro Presidente da Guiné-Bissau - em 1973/4. Luís Cabral ocupou o
cargo até 1980, data em que foi deposto por um golpe de Estado militar. Disponível
em:http://www.dw.com/pt-002/guin%C3%A9-bissau-o-pa%C3%ADs-onde-nenhum-presidente-
terminou-o-mandato/g-37918406 . Acesso em: 02 dez. 2017.
51

(2004) chama de estado de exceção, quando se inverte a lógica dos princípios do estado
de direito e de valores democráticos a situações “anormais”, em que a violação da
normalidade constitucional, a exemplo de golpes de estado - que em condições normais
são consideradas uma exceção, passa a se configurar como norma (regra), enquanto o
que era a regra constitucional, como é de praxe (habitual) dentro de um “estado
democrático” se transforma em exceção, e a exceção é tomada como regra. Esse
quiproquó entre o estado de direito e o estado de exceção (violação da normalidade), na
Guiné-Bissau tanto quanto em Angola, faz com que a estabilidade seja transformada na
instabilidade, e o desemprego se torna uma regra, minando possibilidades do diálogo, na
medida em que o estado, que deveria ser o principal interlocutor, se torna o cúmplice do
próprio caos.

2.3 Guiné Bissau: alguns elementos econômicos

No plano econômico, segundo o memorando do Banco Mundial, Guiné-Bissau


é um país com um enorme potencial. “É rico em recursos naturais ainda a ser explorado
(petróleo, bauxita, o lítio, o irídio, os diamantes, fosfato, ouro, pedras preciosas,
quartzos de grande valor), e a sua imensa biodiversidade é única. A sua sociedade é
largamente agrária, quase inteiramente dependente de uma única colheita: caju, pois é o
quinto maior exportador de castanha de caju do mundo, sendo que a sua qualidade é
reconhecida universalmente, [...] trata-se da principal fonte de rendimento para a
maioria dos pobres do país. As castanhas de caju são também a principal exportação da
Guiné-Bissau, correspondendo cerca de 85 a 90 por cento do total de exportações do
país. (World Bank, 2015, p.4)22.
A sua posição no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)23 de 2016,
elaborado com base nos números de 2015, e liderado pela Noruega, a Guiné-Bissau
apresenta uma ligeira melhora (subiu uma posição) no ranking em relação ao último
relatório e passa a ocupar posição 178º, estagnando no grupo de baixo desenvolvimento

22
Guiné-Bissau: memorando econômico do país - Terra Ranca! Um novo recomeço. Disponível em:
http://documents.worldbank.org/curated/pt/425691468276277003/pdf/582960PORTUGES0CEM0final01
0Feb150PT.pdf . Acesso em: 08 nov. 2017.
23
É uma medida comparativa usada para classificar os países pelo seu grau de “desenvolvimento
humano” e para ajudar a classificar os territórios como desenvolvidos (desenvolvimento humano muito
alto), em desenvolvimento (desenvolvimento humano médio e alto) e subdesenvolvidos (desenvolvimento
humano baixo). Disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%8Dndice_de_Desenvolvimento_Humano. Acesso em: 08 nov. 2017.
52

humano. Tem uma posição hierarquicamente inferior em relação a certos países da sub-
região da África ocidental, em especial quando comparado a Senegal, um país vizinho
que ocupa a posição 162º.

2.4. República Popular de Angola: Situação geográfica e demográfica

Situado na costa do Atlântico Sul da África Ocidental, a República Popular de


Angola é limitada ao norte e ao nordeste pela República Democrática do Congo, a leste
pela Zâmbia, ao sul pela Namíbia e a oeste pelo Oceano Atlântico. Angola ocupa
1.246.700 kom2, onde sucedem vários espaços geomorfológicos: a faixa litoral, uma
zona de transição para o interior, a cadeia marginal de montanhas, o planalto central. O
país está dividido entre uma faixa costeira árida, que se estende desde
a Namíbia até Luanda, um planalto interior úmido, uma savana seca no interior sul e
sudeste, e floresta tropical no norte e em Cabinda. A sua vegetação é muito
diversificada, com floresta tropical se interpenetrando com as savanas ao norte, que se
estendem por áreas e coberturas descontínuas de arbustos e ervas, para o sul e sudeste,
que se encontram limitadas pelas extensas áreas desérticas do Namibe, para o litoral
sudeste24. (Ver o Mapa da República de Angola na Figura que se segue).

Figura 5 - Mapa Político da República de Angola

Fonte: Royalty-free.

24
Cf. Ana Isabel Cabral. Cartografia de coberto do solo para o território angolano utilizando imagens de
satélite Modis. Revista portuguesa de estudos Regionais. N.15. 2007.
53

A república de Angola dispõe de uma rede hidrográfica importante, com


destaque para as bacias do Kwanza, do Lucala, do Kuango, do Catumbela e do Cunene,
e de paisagens muito diversas: praias, florestas, savanas, deserto. A população atual, na
sua maioria de origem banta, é o resultado de uma história antiga e complexa25.

2.5. Angola: Situação histórica e política

As sociedades que viriam a construir uma nação angolana eram do século XV, de
organização tribal, se apresentavam todas como estados semi-organizados cuja evolução
foi interrompida com a chegada dos portugueses, sob o comando de Diogo Cão, no
reinado de D. João II. Chegam ao Zaire em 1482, e estabelecem uma aliança com o
reino do Congo, enviando navios com padres e ferramentas ao Reino do Congo. É a
partir daqui que se iniciará a conquista, pelos portugueses, desta região da África,
incluindo Angola. O primeiro passo foi estabelecer uma aliança com o Reino do Congo,
que dominava toda a região. Na época, Angola era dominada por três reinos, o Reino do
Congo, o Reino de Ndongo, e o de Matamba, cujos dois últimos não tardam a fundir-se
para dar origem ao reino de Angola, em 155926.
Na segunda metade do século XVI, os exploradores tiraram o proveito das
rivalidades entre esses reinos para extrair os seus recursos e intensificar a pilhagem dos
seus recursos naturais, em particular os escravos, transformando a atual Luanda num
espaço propício de abastecimento de escravos para as Américas, uma vez que a
penetração para o interior era considerada muito limitada. Portanto, como mercadoria, o
escravo se transformou num dos bens mais procurados e prestigiados pelos Europeus,
que os trocavam por bebidas alcoólicas, armas de fogo, tecidos etc. Por isso, do ponto
de vista da organização social e econômica, o antigo comércio de escravos se mostrou
capaz de integrar profundas respostas. E, no século VI, os Portugueses se instalam na
região de Angola e começa a exportação dos escravos essencialmente para o Brasil. Em
1576 é fundada São Paulo de Assunção de Luanda, que se constituiu como ponto
estratégico no comércio entre a África, Europa e América. Um momento em que o
comércio de escravo se banalizou largamente nos finais do século XV e meados do

25
Isabel Castro Henrique & Isabel Medeiros (Org) Lugares de memória da escravatura e do tráfico
negreiro. Lisboa. CEA/FUL.
26
http://pt.wikipedia.org/wiki/Hist%C3%B3ria_de_Angola . Acesso em 18 de janeiro de 2018.
54

XIX, e Angola se tornou um importante reservatório de mão-de-obra. A rainha Nzinga


se revolta com Portugal e, com o apoio dos holandeses, ocupam Luanda. Em 1648 os
Portugueses reconquistam Angola. E a colonização do interior só se inicia no Século
XIX, com o fim do tráfico de escravos e as pretensões de outras potências, que
reclamavam sua parte na África na conferência de Berlim. Nesse encontro, as medidas
tomadas pelos colonizadores na conferência de Berlim entre 15 de novembro de 1884 e
26 de fevereiro de 1885, e que pelas regras estabelecidas, resultou em partilhas do
continente africano pelas próprias potências coloniais europeias. (UZOIGWE, 2010,
p.33).
Assim, Portugal continua a sua exploração com a construção da ferrovia até a
província de Malanje, em que abre-se novas possibilidades de exploração, somada à
ocupação do interior feita através de rios. Em decorrência disso, no plano econômico,
inicia-se a exploração intensiva de pedras preciosas, diamantes, minérios de ferro, e a
produção de café se incrementou, assim como a de cana de açúcar, e outros produtos
agrícolas, todos destinados à exportação (para a metrópole europeia).
Porém, a questão da descolonização das “províncias africanas” entra em
discussão internacional, mas Portugal se recusava ainda a abrir mão de suas colônias.
Em todas as colônias intensificavam-se as resistências contra a dominação colonial,
destacadamente aos movimentos de libertação nacional. Em 1956, fundou-se o MPLA –
Movimento Popular de Libertação de Angola, que em 1961, depois de esgotadas as
possibilidades do governo português conceder a independência via pacifica, dá início à
luta armada que durou 13 (treze) anos.
Após uma década de guerra e o esgotamento militar do regime fascista de Salazar,
veio a revolução dos cravos (25 de abril de 1974)27. Essa revolução trouxe grande
guinada para a independência de Angola, pois com o derrube do regime da ditadura
fascista colonial e a instauração do novo governo revolucionário, abriram-se
negociações com os principais movimentos de libertação nacional, FNLA – Frente
Nacional de Libertação de Angola, UNITA – União Nacional para a Independência
Total de Angola) e o (MPLA – Movimento Popular de Libertação de Angola, que se
comprometeram a cumprir os acordos do alvor (acordo de alvor, Janeiro de 1975), entre
o governo português e os principais movimentos da libertação na qual foi estabelecida

27
Revolução político e social. Disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Revolu%C3%A7%C3%A3o_de_25_de_Abril_de_1974#cite_note-DHP-2
55

os parâmetros para a partilha do poder Era uma condição sine qua non para a
independência de Angola, resultando assim na Independência em 11 de Novembro de
1975. Porém, após a assinatura do acordo do alvor, os três movimentos de libertação
descumpriram o acordo e entraram-se numa luta armada interna (conhecido como
guerra civil). Mas o importante a destacar aqui é que, em todos os momentos dos
conflitos, cada um desses movimentos de libertação era apoiado pelas potências
estrangeiras, ora uns como aliados, ora como inimigos. Foi assim, desde a guerra
colonial e durante a guerra civil. O partido MPLA- que controlou a cidade de
Luanda, Lobito e Benguela era apoiado principalmente por Cuba e União Soviética. A
África do Sul apoiou o FNLA e a UNITA. Pois a FNLA contou também com o apoio da
China, dos mercenários ingleses e portugueses e dos portugueses, e ainda recebia o
apoio dos EUA, sendo que os mesmos estadunidenses também apoiavam a UNITA.
Um fator importante a destacar nessas alianças é a forte presença ideológica e
militar demonstradas por parte das potências socialistas estrangeiras no apoio à
descolonização portuguesa nas antigas colônias portuguesas, assim como demonstraram
seus apoios aos demais movimentos de libertação em todos os territórios africanos que
lutavam pela independência. Mas o importante ainda é salientar as capacidades de
mobilização das suas lideranças partidárias nos eventos internacionais em que se
reuniam frequentemente (movimentos anticolonialistas africanos e as potências
socialistas estrangeiras), sejam elas através dos financiamentos militares, ajudas
alimentares, instruções militares, congressos etc.
E quando se trata de Angola e Guiné-Bissau, é importante destacar o papel de
Amílcar Cabral: como descreve Carlos Lopes (apud DURÃO, 2016, p.99):
Na década de 1950, Cabral, já tendo terminado seus estudos em
agronomia, pôde participar do processo de formação do MPLA
(Movimento Popular de Libertação de Angola) e em 1956 fundava o
PAIGC (Partido Africano pela Independência da Guiné e Cabo
Verde). A década seguinte ele já se articulava entre figuras
importantes e via os processos de libertação eclodirem em todo
continente africano.

É notório a resistência de movimentos nacionalistas e anticolonialistas


provenientes das revoluções socialistas apoiadas pela ideologia marxista-leninista e
lideradas pelo Guineense-guineense Amílcar Lopes Cabral e seus companheiros
Augustinho Neto, de Angola, e Eduardo Mondlane, de Moçambique, juntamente com
outros líderes africanos, tais como Kwame Nkrumah, em Gana, e Leopold Sédar
56

Senghor, no Senegal, no processo “da consciência coletiva” e revolucionária para o


desmantelar da resistência colonial, pois no Pós-independência o movimento começa a
fluir-se de forma tímida, sem resultados concretos.
A democracia angolana, por sua vez, tem sido questionada principalmente pela
permanência de um único chefe de estado, no poder por duas décadas, assim como são
questionáveis a liberdade de expressão, entre outros. Uma democracia que apresenta
dificuldades na transição de poder executivo, pois o seu então presidente (José Eduardo
dos Santos) permaneceu no cargo desde 1979, conquistada nas “eleições democráticas”,
levando os angolanos a acompanhar as ideologias do partido MPLA e a “[...]
perpetuação transfigurada do “Partido-Estado”, regulado crescentemente por um
presidencialismo “anomalamente forte”. (GOMES, 2009, p.34).
Uma democracia marcada por falta de liberdade de expressão, repressões e
escassas mobilizações populares, porém o último escrutínio registrou-se a transição de
poder que deu a vitória ao novo sucessor, João Lourenço, do mesmo partido do
presidente transato, ambos do (MPLA). Mas, quando se observa a recente conjuntura
sociopolítico de Angola, nota-se as diversas oscilações econômicas, todavia nas duas
últimas décadas (2004 a 2016), vem atraindo a força de trabalho estrangeiro para
serviços industriais, mas não supera a “petrodependência” (dependência de exportação
de petróleo) carecendo de diversificação econômica para descentralizar os
investimentos aos outros segmentos econômicos, resultando numa parcela significativa
da população relativa nos substratos informais e precários.

2.6. Angola: Alguns elementos econômicos

Um país com enorme potencial de recursos naturais e minerais, porém


atravancado por problemas sociais. Segundo o relatório das Nações Unidas, de modo
geral os países de expressão portuguesa mantiveram ou melhoraram a sua posição no
Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 2016. Pois, considerando a Comunidade
dos Países de Língua Oficial Portuguesa (CPLP), Angola não se configura como
destaque, onde o melhor colocado é Portugal, que aparece na posição 41º, enquadrado
no grupo dos países com desenvolvimento humano muito alto. Depois vem o Brasil,
ocupando o 79º lugar no grupo dos Países com desenvolvimento humano elevado. Já no
57

grupo do desenvolvimento humano médio, aparecem os três países que se mantiveram


nas suas respectivas posições no ano anterior, quais sejam: Cabo Verde (que mesmo
diante de sua gravíssima escassez de recursos naturais e/ou minerais) se posiciona no
122.º lugar, Timor-Leste, no 133º, e São Tomé e Príncipe, no 142º. Angola está na 150ª
posição, no grupo de baixo desenvolvimento, estando acompanhada, nesta classe, pela
Guiné-Bissau (que subiu, como dito, uma posição, para a de 178º). Moçambique
encontra-se no 181º lugar. (PNUD, 2016, p.198)28. (Ver figura abaixo).

Figura 6 - Classificação dos Países de Língua Oficial Portuguesa em IDH/relatório de 2016

Classificação dos Países de Língua Oficial Portuguesa em IDH (relatório


elaborado em 2016 com base nos dados de 2015)
Posição País Índice (0-1)
Desenvolvimento humano muito alto
41º Portugal 0.843
Desenvolvimento humano elevado
79º Brasil 0.754
Desenvolvimento humano médio
122.º Cabo-Verde 0.648
133º Timor Leste 0.605
142º São Tomé e Príncipe 0.454
Desenvolvimento humano baixo
150ª Angola 0.533
178º Guiné-Bissau 0.424
181º Moçambique 0.209
Fonte: Elaborado pelo autor, com base no Relatório de Desenvolvimento Humano, 2016.

Analisando a situação dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa,


especificamente para o caso de Angola e da Guiné-Bissau, nota-se que embora
potencialmente ricas em recursos naturais, porém tanto em nível de produção, quanto a
da redistribuição de renda, os mesmos demonstram ainda estar numa fase muito
incipiente no que concerne ao “desenvolvimento”. Porém, os debates sobre os
indicadores sociais são bastante polêmicos. Pois deve-se levar em consideração as
relatividades das preferências ou modalidades de trabalho das pessoas, por exemplo,

28
Relatório do Desenvolvimento Humano 2016. Disponível em:
http://www.br.undp.org/content/dam/brazil/docs/RelatoriosDesenvolvimento/undp-br-2016-human-
development-report-2017.pdf. Acesso em: 28 abr. 2018.
58

incluir as economias de subsistência e/ou ganhos de trabalho informal etc., pois uma
sacoleira pode ter um ganho anual maior que um português que atua formalmente num
posto de gasolina, ou numa rede de fast food. De igual modo, os dois podem
experimentar diversos níveis de informalidade que reflete diretamente na sua saúde
emocional ou não.
Observando o caso de Cabo-Verde, por exemplo, que está ranqueado numa
posição privilegiada, enfrenta cotidianamente o grave problema de dessalinização da
água, somada ao aumento de criminalidade. Por isso, muitos elementos ainda devem ser
considerados. Como diz Amartya Sen (2001)29, na sua obra intitulada Desigualdade
Reexaminada, enfatizando a pergunta “Igualdade em relação a quê? ”. Para esse autor,
os critérios e os indicadores que definem o “desenvolvimento” precisam ser
reexaminados.

2.7. A África pós-colonial: transição e reestruturação

Estamos na segunda metade do século XXI, e até este exato momento vê-se que
as histórias desses países foram acompanhadas por des-governações sem precedentes na
conjuntura democrática. Isto porque após o fim da guerra colonial permaneceram as
estruturas coloniais suplantadas, coisas que deveriam ter sido desenraizadas para conter
os fantasmas ou resquícios e interferências ultramarinas portuguesas nessas antigas
colônias. Como se não bastasse a segregação de classe, a própria estrutura política se
torna o lugar de enriquecimento, o que faz com que o aparelho de estado tenha servido
de trampolim para a ascensão social de um novo sujeito a se consolidar nessas
sociedades, trata-se de uma infraestrutura socialmente construída pela colônia
portuguesa para que as lideranças e o país se mantenham na dependência ao
neocolonialismo.
Para Nkrumah (1967), o neocolonialismo de hoje representa o imperialismo no
seu estágio final e talvez o mais perigoso, na medida em que torna impossível por parte
daqueles que sofrem por responsabilizar o culpado diretamente, como acontecia no

29
SEN, Amartya: Desigualdade reexaminada. Ed. Record, 2001.
59

antigo governo colonial, onde o inimigo era evidente, na atualidade, as estratégias são
outras, na qual, o mercado financeiro e as indústrias se expandem para os mercados
africanos explorando a força de trabalho dentro de uma infraestrutura já dependente a
abastecer.
Em síntese, queremos apontar que o termo “pós-colonial” é disfuncional à
realidade atual do capitalismo e da globalização, porque o que se vê é uma contínua
intervenção imperialista que persiste depois de desmantelamento da ocupação física sob
o domínio português, a ideologia imperialista retoma a nova estratégia sob o prisma da
globalização, mantendo suas relações as antigas colônias. (Hall (2013, p.134).
Pode-se dizer que à semelhança do que acontece nas Américas, quando
comparado aos países africanos, o estado português ainda se mantém com uma forte
influência nas suas antigas colônias, sem recorrer aos velhos meios, mas com os
mesmos fins no controle monopolístico e habitual das infraestruturas, concessões de
empréstimos etc., esta é uma das práticas habituais do neoimperialismo, como assevera
Ribeiro:

À independência formal se seguiram décadas de domínio imperialista


(...) pelo mecanismo habitual das concessões de empréstimos,
construção de ferrovias, portos e serviços telegráficos, que se haviam
revelado mais eficazes, como forma de controle monopolístico e de
exploração, do que o próprio estatuto colonial. (RIBEIRO, 2007,
p.131).

A estratégia do controle monopolístico português nas terras africanas, a partir


dos “bastidores do espetáculo”, nos leva a sugerir alternativas claras, ao invés do termo
“pós-colonial” apontamos para os sentidos como a globalização e a “colonialidade do
poder” (QUIJANO, 2005) que hoje estão em jogo, pois esses elementos se constituem
como upgrade (forma atualizada) das formas de explorações extremamente perigosas
para as antigas colônias a medida que elas se escondem nas estruturas do sistema
capitalista, imbuídos de diversas formas de cinismo, cujos meios e fins se resultam
sempre em exploração. Daí, todos os elementos apontados, demonstra que na prática
não há uma separação como limite, entre o colonial e pós-colonial, por isso a
globalização e a colonialidade aparecem como elemento novo, são extensões de novas
formas de dominação, dentre várias maneiras de dependência existente, tendo como
base as mobilidades econômicas, na qual a livre circulação de pessoas e bens, o alcance
e a influência da mídia ou comunicação através da internet, estimulam discursos de
60

que estejamos vivendo numa “aldeia global”. E à luz de tudo isso, é que estarmos longe
de um fim entre o centro e periferia. É nessa perspectiva ideológica que Moema Parente
Augel adverte que [...] “é preciso ter-se sempre a consciência de que o “pós” não
significa algo que passou. O “colonial” continua a ser para os países africanos o eixo de
referência e o elo entre a história que aconteceu antes e a que vem acontecendo depois
da independência”. (AUGEL, 2005, p.38)30.
Portanto, se analisarmos a situação de muitos países africanos hoje, especialmente
os casos de Angola e Guiné-Bissau, que são os países de origens das sacoleiras
pesquisadas, observa-se de fato que os resultados obtidos durante o processo de
libertação denotam os reais avanços no sentido da desocupação territorial, porém os
recuos no plano material e ideológico são notórios. Sendo que esses resultados em boa
parte se devem à queda do “império soviético”, pois notadamente a queda do muro de
Berlim sinalizou o desmoronamento do compromisso revolucionário que vinha sendo
mantido (entre as nações africanas e o bloco socialista ocidental e a China).
Por isso, embora continue a ser uma condição imprescindível, os resultados atuais
do pós-independência deixa a desejar em sua função essencialmente libertadora de uma
nação, para o da instituição de estado falido e desnorteado incapaz de andar com suas
pernas e, tampouco, de os seus líderes pensarem com suas próprias cabeças, faz com
que o país continua a depender de investimentos estrangeiros, diante de um setor
privado que se mantivera desfocado “sem-tração” e sem compromisso com o projeto
revolucionário.
Passou-se a vivenciar uma crônica da dependência econômica exercida em
espécie de políticas de “toma lá, dá cá”. Uma política de mãos estendidas às caridades
internacionais incapazes de engessar ou solidificar as instituições públicas ou mesmo as
privadas, que ao fim e a cabo resultaram em golpes e contragolpes, prevalecendo seus
interesses pessoais em detrimento da cidadania e do respeito pelo outro, de forma
inescrupulosamente assustadora.
Este perfil de políticos e de setores de segurança (tem sido os mesmos que
buscavam reconhecimento na sociedade “civilizada” desde a época colonial) continua
corroendo a democracia guineense, cuja classe política é dependente e alienada aos

30
É importante ressaltar que o conceito “colonial” aqui empregado por Augel (2005), para explicar a
presença e a influência ocidental no continente africano na contemporaneidade se assemelha ao conceito
de colonialidade definido por Quijano (2005).
61

cargos, pois aceitam-se quaisquer ofertas de promoções dos partidos opostos (na
maioria das vezes com incompatibilidades ideológicas), submetem-se a práticas de
fuxicos, intrigas para em seguida comporem-se os elencos governamentais. Daí, se
porventura forem nomeadas, assim poderão continuar a usufruir dos privilégios da
classe média alta.
Trata-se de uma elite de classe política corrompida, movida pelo seu interesse
particular que almeja e projeta seus meio e fins perpetuando-se no aparelho de estado,
cujo propósito é ascensão social. Este grupo de corruptos e corruptores (composto por
políticos e altos escalões das forças armadas), que para salvaguardarem seus interesses
particulares se personificam a modus vivendi da classe política infiltrando-se nos
governos com a pretensão de atingirem a escala mais alto da pirâmide social, como se
os cargos fossem ofícios (profissão), corriqueiramente recorrem às práticas reacionárias
para comprometer transições de governos.
É deplorável acompanhar o dia a dia no cenário político guineense, onde os
interesses pessoais continuam a sobrepor-se aos interesses coletivos da nação, e
copiosamente estes interesses continuam a alimentar os conflitos.

As respostas da Guiné-Bissau a estas crises, no entanto, têm sido de


curta duração e descurado as profundas deficiências e vulnerabilidades
institucionais do país. Os confrontos ocorridos no seio das Forças
Armadas, golpes de Estado e recorrentes assassinatos por motivos
políticos têm suscitado a condenação dos parceiros regionais e
internacionais e dado [ao] pedidos de investigação ou de novas
eleições, sem, no entanto, provocar reformas genuínas. Pelo contrário,
muitos dos responsáveis pelas crises da Guiné-Bissau mantêm ou até
consolidaram a sua influência e posição. Entretanto, o crescimento
económico tem sido esporádico, os indicadores de desenvolvimento
humano estagnaram e está iminente uma situação de emergência
humanitária que põe em risco a vida de 300 mil pessoas. Apesar do
impacto (...) destas crises, são sistematicamente ignorados os fatores
que estão na origem da instabilidade, nomeadamente um sistema
Político caracterizado pela autoridade quase absoluta do poder
executivo e um sector da segurança cada vez mais envolvido na vida
política. A sucessão de crises é deste modo inevitável. Ao mesmo
tempo que os narcotraficantes se interessaram pela Guiné-Bissau pelas
suas deficiências de supervisão e governação, o narcotráfico agravou
drasticamente estas fraquezas geradoras de instabilidade e criou novos
problemas (O’REGAN; THOMPSON, 2013. p.1).

É importante ressaltar que além de instabilidades crônicas analisadas por Davin


O’ Regan e Peter Thompson (2013) sobre a Guiné-Bissau, associando-a ao narco-
estado, há outro elemento a ser considerado na sua conjuntura política, é a crescente
62

presença do setor de segurança, cada vez mais envolvido na política. O outro vetor que
pode contribuir para este quadro é devido à sua localização geográfica e aos seus
recursos naturais, fazem da Guiné-Bissau um cruzamento de vários interesses externos
diversos na sub-região, somada às influências políticas das metrópoles ocidentais, que
opõem a sua estabilidade. Em especial, nas suas relações com o ocidente, que
sistematicamente resultam em trocas desiguais dentro de um sistema estrutural e
contínuo desde o tempo colonial ao neocolonial.

2.8. Quando as atividades populares se tornam a alavanca da economia

A temática sobre importância do setor informal da economia urbana em países da


África subsaariana consiste na geração de trabalho e renda para milhares de pessoas,
sejam elas para complementar a renda, seja como ofício incorporado de geração a
geração, são uma manifestação do trabalho muito presente em muitas sociedades
africanas. Elas podem ser expressas de diversas formas, como ocorre no caso das
sacoleiras, comprando num lugar para revender o produto adquirido em suas terras. Para
elas, (sacoleiras africanas), o tempo é demasiadamente curto, e para suprir as
necessidades da família inteira (em muitos dos casos extensa) assolada pelo subemprego
urbano, são obrigadas a atuarem como uma espécie de bricoleur, imbricando os ofícios
de trabalho, principalmente aquelas reservadas às atividades artesanais. Foi assim que,
em outras palavras, Maria Estela Guedes (s/d), procura dar voz a quem não a tem, ao
proferir o protagonismo das mulheres na sociedade africana, enquanto provedora da
família, na medida em que, segundo a autora:

É a mãe quem mais sofre com a fome, para voltarmos aos


problemas do sahel, não porque ela lhe fira mais o corpo do que aos
filhos, mas por ser lancinante a dor de sentir a fome deles. A mãe
sofre a sua e a fome da família, dando-se sobretudo o caso de que as
mulheres, tradicionalmente, são quem mais trabalham para sustentar a
casa: trabalham nas bolanhas, pescando e cultivando o arroz,
trabalham nos campos de mandioca e mancarra, vão aos mercados
vender o que produzem, quando a terra produz alguma coisa, quando
o mar as deixa apanhar ostras e caranguejos. Frente à morança, nas
tardes que morrem às seis da tarde, a mulher rivaliza com o tan-tan do
bombolom a pilar o arroz no almofariz, e depois ainda o peneira
sacudindo o balaio na direção da noite. A mulher africana tem a
63

magnitude da Ceiba pentandra, o poilão, no qual se abriga todo um


ecossistema. (GUEDES, s/d, p.70).

A especificidade desse grupo de mulheres se constitui não só pela forma como


se inserem na economia popular, mas também pela capacidade resiliente (superação)
presente no cotidiano e no imaginário social dessas mulheres, fazendo com que as
jornadas de trabalho se estendam, perpassando entre o ambiente doméstico e o ambiente
propriamente comercial “produtivo”.
O que se percebeu durante a nossa pesquisa de teor qualitativo com entrevistas
semiestruturadas e observações em campo com mulheres africanas de distintos grupos
sociais e em alguns casos com alguns de seus familiares é que, o comércio e o trabalho,
ainda que informal, é a arte nobre de servir à família. Essa é a particularidade sui
generis de comerciantes “turistas compradoras”, as quais, na verdade, alimentam a
cadeia de mercadoria de determinados bens que comercializam, mesmo constituindo
uma parte da “superpopulação relativa”.
Portanto, de modo geral, percebe-se que o fardo dos instrumentos neoliberais
implementados pelo FMI e Banco Mundial nesses países jamais atingiram os resultados
positivos na economia desses países, pois as medidas impostos a população foram
introduzidas de forma abrupta e forma precocemente avassaladora sem que permitisse a
esses países tivessem um maior preparo da população na qualificação da sua força de
trabalho, resultando no desemprego da população local e na informalização nas relações
de trabalho, tanto nas grandes e médias empresas como nos comércios de rua.
De acordo com o relatório da UNCTAD (2013), que a presença da mulher
angolana no mercado de trabalho formal sempre foi muito tímida, considerando que a
maior parte dessa força de trabalho feminina era predominantemente no setor agrícola e
também no setor informal urbano (antes e após os conflitos armados), pois a
persistência dessas informalidades também são reforçadas, principalmente, pela
reestruturação produtiva das últimas décadas, que ao invés de diminuir a divisão sócio-
sexual do trabalho entre gêneros – e que se configura nas tipificações do trabalho entre
os sexos (homem e mulher) – pelo contrário, só fez aumentar ainda mais as
contradições pelos quais simplesmente as mulheres seguem a rotina de atividades
manuais, desgastantes e estressantes “[...] principalmente, dos processos de compra,
processamento primário e venda de peixes, embora em alguns casos dediquem-se à
pesca no interior das cidades (rios) com métodos tradicionais para garantir o consumo
64

doméstico.” (UNCTAD, 2013, p.40). Elas, com frequência, atuam como intermediárias
entre os pescadores ou importadores de peixes por um lado, e os consumidores finais
por outro. Com base nos cálculos da UNCTAD, é possível concluir que o setor informal
é o principal meio de sobrevivência para a maioria dos angolanos e, quer seja rural ou
urbano, é ainda a fonte precípua ocupação para a força de trabalho feminina. Como
consta nos estudos da UNTAD (2013):

Uma das características marcantes da economia angolana é a


predominância do setor informal (...) estima [-se] que a participação
da informalidade no PIB oficial do país é de aproximadamente 45,2%.
(...). O setor informal urbano surgiu como consequência do ritmo
acelerado da urbanização, estimulada sobretudo pelo deslocamento de
populações rurais que fugiam dos conflitos em direção às principais
cidades. As ondas migratórias internas exacerbaram ainda mais a
escassez de empregos formais nas áreas urbanas (...). Além disso, a
regulamentação de preços durante um longo período encorajou a
população a operar na informalidade de modo a complementar sua
renda, derivada da venda de produtos controlados no mercado negro.
[...] Apesar da carência e desatualização dos dados sobre o tamanho da
economia informal, as informações disponíveis demonstram a
relevância socioeconômica das atividades informais como principal
meio de subsistência para uma considerável parcela da população
angolana. Cálculos recentes indicam que a informalidade constitui a
maior fonte de renda para 93% da população rural, e que 51% do
total da população urbana dependem da economia informal para
viver (...). Em especial, o setor informal representa a ocupação
central de 70% da população feminina em Angola (...) o que deixa
patente a necessidade de examinar especificamente esse setor de modo
a avaliar de forma adequada os efeitos do comércio e das políticas
comerciais sobre o gênero. (UNCTAD, 2013, p.9, grifo nosso).

A despeito disso, é imperativo elucidar que há um elemento chave que


corrobora no redesenhamento do mercado e da dinâmica socioeconômicas nesses
países, não há como não citar a reestruturação produtiva – vista como um dos elementos
impulsionadores, senão como o principal causador do crescimento do setor informal,
tanto entre gênero masculino quanto no feminino.

Dito de outra maneira, trazer a abordagem sobre os efeitos negativos criados


pelo Programa de Ajustamento Estrutural (PAE), significa também compreender a
forma como as influências da globalização e do capitalismo, juntos com suas
instituições internacionais, vêm des-configurando as estruturas sociais em quaisquer
pontos do globo. No caso da Guiné “[...] provocou uma deterioração geral do nível de
65

vida dos guineenses, sobretudo nas zonas urbanas e incentivou novas atividades
econômicas de sobrevivência. (GOMES, 2012. p.2)”.

Segundo Patrícia Gomes (2012):

Entre as várias medidas do PAE implantadas na Guiné-Bissau, três


iriam revelar-se especialmente importantes para a compreensão do
crescimento exponencial do fenômeno da economia informal: a
adopção de uma política fiscal restritiva, o que entre outras coisas
implicou despedimentos dos funcionários públicos, a desvalorização
dos salários públicos e redução dos investimentos nos sectores como
a saúde e a educação; a liberalização dos preços, do comércio e dos
mercados, o que significou o aumento das oportunidades de negócio; e
a desvalorização da moeda nacional, cujo principal resultado foi o
aumento dos preços dos produtos importados. A conjugação dos
efeitos destas medidas teve como consequência a procura, por parte de
um número sempre mais elevado da população, de estratégias
alternativas de sobrevivência geralmente apoiadas em esquemas
étnicos, comunitários e familiares. O PAE provocou uma deterioração
geral do nível de vida dos guineenses, sobretudo nas zonas urbanas e
incentivou novas atividades económicas de sobrevivência. A política
da redução do pessoal agravou ulteriormente a situação salarial dos
empregados da função pública. Se os baixos salários e os atrasos no
pagamento já davam aos trabalhadores razões suficientes para
procurarem outras fontes de receitas, esta política reforçou a crise no
seio das famílias (...) levou a que as mulheres se vissem “obrigadas” a
ter de recorrer a outras atividades remunerativas a fim de garantir a
sobrevivência do núcleo familiar. Um dos efeitos deste processo foi a
crescente autonomia conquistada pelas mulheres nas praças.
(GOMES, 2012, p.2, grifo nosso).

Isso significa que, apesar de ter gerado efeitos negativos, as medidas


implementadas também reforçaram relativamente a existência das sacoleiras nos centros
urbanos, as quais aumentam no plano geral como resultado dessa estrutura do trabalho.
É nesse sentido que a informalidade pode também ser compreendida como resultado do
produto da reestruturação produtiva inseparável às necessidades do capitalismo e,
portanto, longe de ser um fenômeno transitório como era imaginada na década de 70 e
80, atraídos pelos efeitos da globalização e flexibilização das formas de trabalho. Para
esse autor, trataria-se de uma utopia imaginar que a informalidade seria ultrapassada,
uma vez que o setor formal absorveria o setor informal com o avanço do progresso
técnico. Na visão de Carlos M. Lopes (2014):
Durante os anos 70 e 80 do século XX, a ideia dominante era a de que
as atividades informais eram um fenómeno transitório e que o
progresso técnico acabaria por permitir ao sector formal absorver os
trabalhadores informais. No entanto, a crescente informalização e
66

flexibilização dos processos de trabalho e dos trabalhadores, gerada


pela aceleração do processo de globalização e pela progressiva
generalização das teses neoliberais sobre o modelo de organização e
regulação da economia e da sociedade, sugerem outras perspectivas:
ao contrário do que inicialmente se admitia, a dimensão da economia
informal tem crescido, quer nos diferentes sectores de atividade quer
em países de nível de desenvolvimento diferenciado, e o fenómeno
não se apresenta nem residual nem temporário, assistindo-se ao
reforço da sua importância económica e social. O que vale por dizer
que, cada vez mais, é nas atividades e nas práticas informais que
contingentes cada vez mais numerosos de atores sociais africanos
encontram recursos e oportunidades que lhes permitem subsistir ou
acumular riqueza. (LOPES, 2014, p.1).

A reflexão de Carlos M Lopes (2014) nos possibilita compreender que


devido a sua importância econômica e social, o fenômeno da informalidade está longe
de ser residual e temporário, essencialmente enquanto impera o sistema capitalista de
produção. Igualmente, inserindo-se nesse debate estrutural e neoliberal, o outro
destacado sociólogo Bissau-guineense, Carlos Lopes (2015), ex-Subsecretário Geral da
ONU e ex-Secretário Executivo das Nações Unidas para a África, por sua vez, de forma
sagaz afirma que os países africanos não precisam do reajustamento estrutural, mas sim
de transformações estruturais (mudança completa) da estrutura das economias dos
países do continente. Para Lopes “[...] é urgente provocar a industrialização através do
agronegócio e da transformação de matérias-primas, formalizar o setor de serviços e
criar um mercado continental integrado. (LOPES, 2015)31.
O que o Guineense Carlos Lopes quer dizer é que, dos inúmeros arranjos
políticos e econômicos dos moldes liberais implementados nos países em
desenvolvimento, muitos não foram benéficos ao crescimento dessas economias porque
ao fim e ao cabo, só trouxeram impactos desastrosos na qualidade de vida dessas
populações que tiveram de se readaptar adequadamente à econômica de mercado.
Isso significa afirmar que, se o objetivo principal de reajustamento estrutural era
o de acelerar o desenvolvimento e anular a marginalização econômica dos países, os
resultados obtidos até os momentos atuais foram paradoxais, porque ainda persistem
graves e compartilhados problemas em muitos países em desenvolvimento, dentre os
quais a ampliação de novas culturas do trabalho, a “marginalização” dos trabalhadores
devido ao desemprego, a precarização e a diminuição da seguridade social.

31
Cf. palestra de Carlos Lopes no instituto Lula. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=IdAUjKryKJo . Acesso em: 29 abr. 2017.
67

Isso nos remete aos estudos de Karl Polanyi (2000), na sua obra intitulada A
grande transformação: as origens de nossa época, publicada desde 1944, na qual esse
autor já havia preconizado de forma sagaz, quando afirmava que com a expansão do
capitalismo, as sociedades tradicionais (enraizadas) foram diminuídas e viu as suas
formas de relações sociais substituídas e cerceadas pelo poder do capital. Ademais,
foram desmantelados importantes elementos tradicionais de subsistência do homem,
para implementação do novo sistema formal da economia de mercado (POLANYI,
2000).
Uma mudança que jamais significou a libertação, ao contrário, com estas
mudanças estruturais, os terceiro-mundistas assinam o atestado dos outsiders, punidos e
condenados à mercantilização das forças de trabalho, e precarização das forças
produtivas, em que o indivíduo produtivo passa a ser aquele que, direta ou
indiretamente, despende o seu tempo de trabalho a serviço do capitalista, sendo que, na
maioria das vezes, o trabalhador é tão explorado ao ponto de não reconhecer o produto
do seu próprio trabalho. Essas transformações causadas pelo capitalismo, faz Karl
Polanyi (2000), não ver com bons olhos a presença do capitalismo nas economias
“enraizadas”, ao preconizar que a demarcação hierarquizada entre as culturas do
trabalho foi exagerada, à exemplo disso é que desde o surgimento do arado, de lá para
cá, não sofreu mudança substancial no âmbito da agricultura. Neste sentido, os povos de
antigamente sobreviveriam substancialmente sem a economia de mercado, cabendo
ressaltar, por exemplo, a façanha do Novo Egito há dois mil anos, dispondo de uma
riqueza e cultura sólidas. Tal consternação é confirmada por Polanyi (2000) ao observar
que recentes pesquisas históricas e antropológicas mostram que historicamente a ação
do homem na economia como um ser social não ocorre para salvaguardar seus
interesses, mas para, na posse de bens materiais, reproduzir a situação social. Os
conflitos de interesses não ocorriam predominantemente por motivações econômicas
como tem acontecido exponencialmente (em cálculos matemáticos) na atual economia
de mercado dentro deste movimento insaciável pelo capital e a valorização do mesmo.
Isso significa que, as transformações estruturais implementadas pela economia
de mercado, além de paliativas, jamais serviram como alternativas concretas às
sociedades periféricas, ao contrário, os arranjos econômicos burocráticos só vieram a
reforçar o crescimento desigual exacerbado, resultando numa África que não se
industrializa como era esperado, nem tampouco melhora sua produtividade laboral na
68

agricultura, bem como tampouco ocorrem os desenvolvimentos no setor dos serviços


esperados, que poderiam ajudar a colmatar os desafios inerentes à falta de criação de
novos postos de trabalho para os milhões de jovens africanos. À luz disso, é que ainda
são encontrados nas economias urbanas fortes elementos de resistências e culturas de
trabalho imbuídos de arranjos híbridos (de caráter formal e informal) nas capitais
guineenses e capitais angolanas, assim como em diversos países em “desenvolvimento”,
as relações de trabalho que não são tipicamente capitalista.
69

Capítulo III

3. O TRABALHO INFORMAL NAS ECONOMIAS PERIFÉRICAS

Este capítulo discute as características econômicas, atividades de produção e


trocas econômicas que não são tipicamente reconhecidas e/ou protegidas nos modelos
do sistema capitalista – as geralmente denominadas “trabalhos informais”, tomando
como ponto de partida a sua historiografia e suas contradições no debate
contemporâneo, muito embora os elementos nela existente são tão funcionais e
necessários para todo o sistema econômico, essencialmente o capitalismo. É nesse
sentido que se faz necessário trazer essa discussão sobre um tema tão presente em todas
as sociedades, no sentido de buscar elucidar o problema que até então, os resultados
apresentados estão mais para hipóteses do que para resultados propriamente conclusivos
do fenômeno. O que me propus nesta tese não foi o de propor um novo e “puro tipo” de
trabalho informal, mas o de procurar pensar e identificar quais algumas das suas
ramificações a partir dos dados encontrados e que foram iluminando o trajeto desta
pesquisa e dos embasamentos teóricos considerados relevantes para uma melhor
compreensão desse fenômeno.
O conceito de trabalho informal é polissêmico e banhado de muitas
controvérsias e interpretações, e muitos dos seus usos trazem conclusões vagas,
imprecisas, reducionistas e retrogradas, que ao em vez de explicarem bem o fenômeno
em diferentes realidades locais, a categoria como concebida e muitos dos critérios e
dimensões aplicados para estas explicações acabam por se direcionar a uma perspectiva
muito abstrata e universalista. E em muitos casos, com base em resultados superficiais e
precipitados, como foi o caso do uso daquela categoria encetada no continente Africano
por parte da pesquisa da Organização internacional do trabalho (OIT), e uma que passou
a operar como marco inaugural, ou uma espécie de protótipo do conceito “setor
informal” dentro deste campo de estudos sobre informalidade, e da que maior parte de
estudos passaram a partir, seja para o replicar, criticar ou avançar a partir dela.
Partindo dessa premissa sobre a origem do termo, é imperativo ressaltar que os
estudos empíricos sobre a informalidade começaram nos países africanos,
destacadamente no país do Quênia, nos anos 70, e de lá para cá, exacerbadamente
70

muitas pesquisas posteriores vêm associando algumas características predominantes do


setor informal da economia aos países subdesenvolvidos, como se se tratasse de uma
relação indissociável entre as economias dos países periféricos e a informalidade.
Enquanto por outro lado, associam as empresas de maior porte predominante nos países
ocidentais à formalidade. Uma análise estanque desse tipo nos leva a crer que [...] a
partir desse momento, esse conceito foi generalizado em outros estudos da OIT e numa
direção que tendeu a adotar a concepção dual sobre a organização da economia
(ENGLER & SILVA, S/n/p.1).
Preocupado com a visão dualista e estática, Nogueira (2016) introduz o conceito
semiformalidade para dizer que em certas situações, a exemplo da realidade brasileira e,
mormente em muitos países subdesenvolvidos, além da formalidade e informalidade,
temos o terceiro elemento intermediário que dialoga num continuum delineado entre o
polo-formal e o polo-informal. Neste estudo foi possível observar essa dinâmica e/ou
interação, acompanhando o fluxo de mercadorias até o consumidor final. Não obstante,
como se verá em muitos dos trechos narrativos selecionados das falas de nossas
informantes nesta pesquisa, fica bastante evidenciada a constante
relação de interdependência que existe entre o setor formal e informal.
É neste sentido que na contemporaneidade não podemos compreender a questão da
(in)formalidade urbana isoladamente, e nem separadamente do capitalismo, visto que
ele mesmo está constituído por essa complexa relação que se da entre setores formais e
informais. Essa relação entre ambos setores pode se constituir em ritmos de “baixa
intensidade”, e em outros momentos como de “alta intensidade”, ainda que a inter-
relação entre capitalismo e informalidade seja complementar, necessariamente ocorre
numa relação de coexistência, e que via de regra costumam potencializar e alavancar as
economias dos diferentes países de modos singulares.
Daí que se tornou importante problematizar o conceito de informalidade,
olhando para suas contribuições e contradições que o circundam e perseguir como esta
denominação é entendida sob perspectivas capitalistas e “pré-capitalistas”. Pelo fato de
a informalidade ser um conceito amplo e polissêmico, tornou-se imperativo nesta tese
debruçar-me apenas sobre partes dele, principalmente aquelas relacionadas às
influências da globalização e às dinâmicas sociais ligadas ao processo de organização
do mundo do trabalho.
71

Assim sendo, é importante ressaltar possíveis fatores que reforçam elementos


relacionados à informalidade, especialmente o aumento do desemprego, o baixo nível
de proteção social, e também observar as situações em que a informalidade aparece
como um “oficio automático”, como constam em muitos dos trechos das narrativas de
pessoas entrevistadas nesta pesquisa.

3.1. A cultura do trabalho e os mercados tradicionais “Lumo” como legado da


economia informal na Guiné-Bissau e em muitas economias africanas

A questão sobre o trabalho e informalidade empreendido por africanos não é uma


pratica nova, pois remonta a um antigo e bem conhecido processo histórico
característico de povos africanos, e das novas modalidades que este tipo de trabalho
passou a adquirir, acrescentando sua maior notoriedade, devido à maior circulação de
pessoas e bens nesta era muito mais globalizada do desenvolvimento atual do
capitalismo. Desde aqui, por exemplo, sacoleiras africanas como as deste estudo, que se
deslocam à capital Paulista, obviamente que para comprar artigos comerciais ainda
quando usam do visto de turista para entrar no país, “estão seguindo a lógica comercial
que seu povo exerce há centenas de anos”32. O que significa dizer que apontar a
atividade das sacoleiras apenas como se fosse um tipo de “trabalho informal” apenas
novo ou associá-lo puramente aos efeitos do desemprego estrutural e atual, significaria
desconhecer as tradições, cultura e todo o processo histórico pelo que passam nativos
dessas comunidades, e que são elementos igualmente importantes a serem trazidos ao
seio da nossa análise, pois eles complexificam, completam e permitem identificar os
traços singulares e específicos de cada cultura, o que seja próprio deste fenômeno em
cada novo contexto e o que não. E por isso nos permitem explorar novos significados e
sentidos que todo este processo vem adotando, o que tem sido ressignificado nesses
espaços urbanos contemporâneos do trânsito de mercadorias entre Brasil e África

32
Cf. Juliana Borges. https://www.sescsp.org.br/online/artigo. Acesso em: 06 jan. 2018.
72

intermediado por sacoleiras africanas, e outros tanto significados sobre o circuito destas
mercadorias tanto a nível local quanto a nível global.
Um elemento importante a destacar à nível local é que em diversos regiões da
África ainda é observada a persistência de antigas formas de organizações comerciais
em pequenas células devidamente organizadas. Na Guiné-Bissau, por exemplo, existem
grupos informais socialmente organizados por homens e mulheres comprometidos com
o comércio local. Os expositores pagam os seus tributos junto à câmara de comércio
para a operacionalização e/ou fixação das feiras etc. Esta varia de municípios para
município e cada expositor de mercadorias é obrigado a pagar uma taxa nas datas da
realização das feiras comunitárias no valor de 150 francos CFA 33 (equivalente a seis
reais) no dia da exposição à administração do Comitê do Estado de Setor. Esta
modalidade comercial é muito explorada por pequenos comerciantes, que se mobilizam
esporadicamente nos mercados regionais dos seus municípios a partir de um circuito
econômico chamado Lumo34 (feiras livres populares) apoiadas pelos governos de
Estado. O que lhe distingue das férias livres no Brasil é que em muitos países Africanos
quando uma associação de feirantes de um determinado município (anfitrião) decide
organizar a feira, a mobilidade do comércio se volta a seu favor, atraindo todos os
feirantes da região, estados ou até de feirantes de países associados a exporem seus
produtos nessa feira. O efeito pretendido é o de atrair clientes de diversas áreas numa
situação de comércio análoga à de um monopólio social de comércio, já que existe
ordem de rotatividade em datas estipuladas para que cada município se incumba de
organizar o evento. Daí que, de modo geral, todos os feirantes membros terão que de
modo informal e consensual obedecer às normas de rotatividade do grupo, expondo seus
produtos exclusivamente naquela feira livre (lumo) e permitindo que a clientela se
desloque para esse único lugar da exposição (feira livre) na data marcada em cada local.
Estas feiras presentes em muitas culturas africanas que estão sendo analisadas
aqui são realizadas periodicamente e geralmente em exposições quinzenais ou mensais
(e rotatividade de lugares); elas ocorrem também em bazares especiais para a exposição
dos produtos socialmente compatíveis com o poder aquisitivo da população. Este evento

33
Moeda usada em doze países africanos (Camarões, Costa do Marfim, Burkina Faso, Gabão, Benim,
Congo, Mali, República Centro-Africana, Togo, Níger, Chade e Senegal), sendo também usado na Guiné-
Bissau (uma antiga colônia portuguesa) e na Guiné Equatorial (uma antiga colônia espanhola).
34
Feiras populares, organizadas por associações comerciantes, que expõem os seus produtos agrícolas,
não agrícolas, animais, vestimentas, etc.
73

quando é exposto numa aldeia, ou município, propicia maior circulação de produtos


nacionais ou importados de forma imediata.
Neste contexto, o lumo se configura como um ponto importante de cruzamento
transfronteiriço entre os mundos e produtos do rural e do urbano, ao estimular a
mobilidade de indivíduos das áreas rurais para exporem seus produtos assim como
demandando produtos importados. Todavia, na maioria das vezes esse cenário de bens e
serviços também enfrenta suas crises de relações conflituosas, por exemplo, quando nas
tomadas de certas decisões que desrespeitam o ideal da associação dos feirantes, visto
que na maioria das vezes as partes dentro de uma associação não possuem objetivos e
interesses idênticos, tanto por parte das ordens políticas, princípios valorativos e éticos
(pequenas corrupções) como pelas condições de organização, higiene e limpeza. Assim,
como todas as organizações comerciais, em determinadas situações, elas encaram
situações antagônicas.
Para superar os conflitos, segundo Camará (2010), eles usam estratégias e
técnicas tradicionais de gestão de conflitos como o chamado Djoké-Endham – segundo
a tribo fula da Guiné-Bissau. Djokére significa nó (de uma corda) e Endham significa
leite (leite da mãe). Assim sendo, dentre todas as suas variações de significados o termo
aponta para a união das pessoas, o consenso entre as partes dicotômicas, permeadas por
relações de solidariedade para que os sujeitos nele envolvidos atinjam a paz e a
dignidade.
Samba T. Camará (2010) em sua análise sobre redes de comércio informal,
representa esse movimento itinerante (rotatório) das feiras na figura de um mosaico em
rede dos lumos (feiras livres), um fluxograma importante de como eles se distribuem em
certas regiões da África Ocidental35. Na cidade de Mafanco - município de setor de
Sonáco na Guiné-Bissau (predominado por produtos agrícolas), por exemplo, este
mercado também se nutre de produtos importados, tais como materiais têxteis, camisas,
calçados vindos de comerciantes oriundos dos países vizinhos como Guiné Conakry,
Banjul, Dakar, etc. Essa necessidade da procura por materiais têxteis, por exemplo,

35
O legado de antigas fronteiras coloniais, criados pelos colonialistas que subdividiram África de
seguinte forma: África do Norte, Oriental, África Central, África Oriental e África Austral e África
Ocidental. A África Ocidental é uma região no oeste da África, que inclui os países na costa oriental do
Oceano Atlântico e alguns que partilham a parte ocidental do deserto do Saara. Os países que são
normalmente considerados parte da África Ocidental são: Benim, Burkina Faso, Cabo Verde, Costa do
Marfim, Gâmbia, Gana, Guiné, Guiné-Bissau, Libéria, Mali, Mauritânia, Níger, Nigéria, Senegal, Serra
Leoa e Togo. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%81frica_Ocidental.Acesso em: 29 jan.
2017.
74

deve-se ao fato de a Guiné Bissau carecer de indústrias. Assim, o mesmo processo


ocorre inversamente, os comerciantes de uma certa região da Guiné-Bissau se deslocam
para exporem seus produtos nos lumos dos países vizinhos36, diminuindo a escassez de
determinados artigos em todas as regiões. Segue na Figura. 7 o fluxograma
sistematizado das feiras estudadas por Camará (2010):

Figura.7- Fluxograma de Lumos (feiras livres) na Guiné-Bissau e países vizinhos da costa


ocidental

Autor: Camará (2010).

Este sistema de economia informal itinerante realizada em certas regiões na


África subsaariana chega a ser muito próximo e/ou análogo ao sistema do Kula,
estudado por Malinowski (1978), cujo tipo de circulação de mercadorias, nesse

36
As marcações caracterizam os diferentes países que compõem o fluxograma da Fig. 14. A cor vermelha
caracteriza o Lumo de Guiné-Conakry; a cor amarela - Lumo de Senegal; a cor azul celeste - Lumo da
Guiné-Bissau.
75

entreposto comercial (Lumo), nos permite observar como a informalidade orientava o


sistema de kula praticadas por comunidades localizadas num extenso conjunto de ilhas
do norte ao leste e extremo oriental da Nova Guiné, cujas estruturas informais se dão na
dinâmica do “informal organizado”, em que o comércio, a partir de permuta, se
configura de acordo com os símbolos presentes nessa esfera, que era permeada por
solidariedades, tolerâncias e comprometimento com os acordos assentados entre as
partes.
Neste contexto, é imperativo dizer que, se o Kula é importante para a sociedade
trobriandesa, de igual modo, o comércio informal como fato socialmente combinado e
organizacional também o é nos países subdesenvolvidos, onde a modernidade e a
tradição caminham juntos.
Neste sentido, a persistência desse sistema de fazer circular a economia em
certas localidades periféricas pode ser atribuído como combinação entre as velhas e
novas culturas do trabalho, que de forma imbricada com as estruturas complexas do
capitalismo contemporâneo e da compressão tempo-espaço-mercadoria, os indivíduos e
grupos durante o embate entre o trabalho e o capital, recorrem para certos arranjos da
economia que lhes possibilitam um certo grau de independência, por intermédio de:
a) trabalho por afinidade herdada (inserção automática), quando as experiências
acumuladas e herdadas no seio da família influenciam na escolha de atividades
(a)tipicamente capitalista, são conhecidos como atividades “antigas” ou tradicionais a
exemplo da dos artesãos, e da entrevistada Olga (angolana) que aprendeu com os tios,
e Helen Pinto, cujas experiências adquiridas desde adolescência resultaram dessa forma
e desenvolvimento desse gosto.
b) trabalho informal por necessidade, aquela em que o indivíduo, para suprir os efeitos
do desemprego estrutural é obrigado a lançar-se temporariamente a realizar atividades
informais, enquanto aguardada melhorar de condição ou lograr melhor inserção no
mercado, a exemplo da guineense Odete, que se deslocou da região de menor influência
econômica para o maior centro urbano do país.
Mas também é possível perceber que, na maioria das vezes, as relações de trabalho
por afinidade herdada (inserção automática) se mistura com a do trabalho por
necessidade, quando se trata de uma realidade de um país como o de muitas dessas
sacoleiras em que o desemprego é estrutural e conjuntural crônico, e se a isso
somarmos os diferentes “habitus” da cultura do trabalho pré-capitalista, informal e/ou
76

precário ao que estiveram sempre expostos, como julgamos ser o do perfil característico
de muitas das entrevistas neste estudo.
Porém, de modo geral, todos esses arranjos são imbricados a elementos do
capitalismo, o que concomitantemente pode ser benéfico ao capitalista. Uma realidade
que demonstra que esses efeitos de mobilizações organizacionais provocados nessas
sociedades podem ser caracterizados como um fenômeno social do “informal
organizado”, como formas das resistências a um determinado modo de produção ou não.
À luz de tudo isto até aqui posto, é importante destacar que nestas sociedades africanas,
apesar de resistências (políticas ou não), a presença do capitalismo vem introduzindo
novas relações entre o trabalho e o capital, fazendo com que as práticas antigas tenham
passado a ser exploradas pela acumulação do capital num nicho da divisão
internacional, tanto pela exploração da força de trabalho, quanto pela circulação de
mercadorias, no setor de comércio.
Nessa mesma linha de raciocínio, e embora se tratando a estudo anterior ao de um
capitalismo como o contemporâneo, Polanyi (2000) já vinha precavendo de forma
visionária e enfática os perigos da homogeneização e da ocidentalização econômica, na
sua obra intitulado: A grande transformação: as origens da nossa época. De acordo
com esse autor, vivemos num certo tipo de determinismo econômico do mercado que se
impõe sobre os tecidos sociais e, por conseguinte, um em que as formas tradicionais
preexistentes (locais) foram invadidas e substituídas pelas novas formas artificiais
consoantes às da ideologia econômica do mercado. Essas mudanças implicaram na
destruição da ordem social básica pré-moderna existente durante toda a história anterior,
impulsionando novas manifestações de formas de trabalho, principalmente nas cidades,
a exemplo do que é verificado nas urbes angolanas e guineenses, onde não há emprego
formal expressivo e nas quais as instituições sociais encarnam o sustentáculo à
sobrevivência.
De acordo com Gomes (2012) e Domingues (2000), em Guiné-Bissau as
mulheres engendram as cooperativas informais sustentadas através de arrecadação de
poupanças comunitárias de empresas de seus próprios membros. O montante acumulado
em forma de abotas (impostos) arrecadado, mensalmente ou trimestralmente costumam
ser depositados para fundos de associações, podendo ser usados nos momentos de
festividades, honras fúnebres, casamentos, e principalmente para os empréstimos aos
membros do grupo do que participam quando se encontram em situação de reunião ou
77

necessidades, sendo este um recurso de suma importância e que opera como um tipo de
investimento em pequenos negócios, etc. Em vários segmentos da sociedade,
mesclando-as às raízes étnico-culturais, assim como as de associações de
mandjuandade37 das mulheres e outras associações nas feiras de troca, como o “lumo”.
Podemos mencionar também a associação de horticultores – que visam potencializar as
ações individuais como alternativas à crise estrutural do capitalismo. Essas estratégias
de recursos são fundamentadas na circulação de certo capital social e econômicos,
baseados e apoiados em redes e relações de confiança, informalidade e cooperação entre
a membresia (membros) desse tipo de associações de vizinhos, parentes ou amigos. É
nessa perspectiva que o capital social, apesar de potencializar o empowerment dos
setores excluídos, deve ser igualmente entendido e visto como um possível e útil
instrumento complementar e não como um mero substituto de mecanismos
convencionais política e socioeconômica. (BAQUERO, 2003, p.84).
Em grupos, as mulheres costumam empregar parte de seus rendimentos
socioeconômicos, e por meio de diferentes arranjos de solidariedades como os descritos,
que estabelecem a reconversão entre o capital social e econômico, propiciando
oportunidades para o desenvolvimento de novas pequenas economias de subsistência.
Neste sentido, o capital social analisado por Domingues (2000), é também um elemento
importante para compreendermos a estrutura econômica do trabalho informal e um que
irá ser especialmente importante no caso das sacoleiras. Elas costumam utilizar suas
pequenas quantias de economias guardadas, ou adquiridas de outros modos, as que
passam a ser acionadas em formas de interajudas, relação de confiança e tolerâncias,
para lhes permitir fazer circular as mercadorias que irão adquirir e buscar além das
fronteiras conhecidas e que as fazem transitar de modo tão singular e único entre
diferentes tipos de serviços e atividades dos setores do (in)formal e (i)legal.
Marcel Mauss (1974) fez uma análise muito semelhante, e que me obrigou a
repensar melhor e através da sua obra a cultura africana, ao abordar aspectos de
solidariedade/reciprocidade em sua obra Ensaio sobre a dádiva. O texto reflete de modo
evidente como esses aspectos e formas de organização social de dar e receber (dádiva)

37
Associação “grupo” cultural folclórico, voluntários que se reúnem frequentemente para apresentações
nos eventos da comunidade através de cantos e danças e arrecadação de fundos para a manutenção da
associação.
78

produz a aliança não só econômica, mas também o cimento religioso, político e social,
permeados pela reciprocidade.

3.2. Do fenômeno do subemprego urbano às resistências do trabalho não


tipicamente capitalista

O Fenômeno do subemprego e de atividades não tipicamente capitalistas são


atemporais, presentes em muitas sociedades contemporâneas. E são nos países em
desenvolvimento que essas manifestações parecem assumir ramificações mais agudas e
impregnadas nas culturas e nas manifestações das formas de trabalho artesanais,
familiares e/ou autônomas, interdependente às tantas outras modalidades. Mas o
fenômeno do subemprego está sempre omnipresente e é predominante na economia
desses países, de modo que não se poderia afirmar sem cair em um grande simplismo,
que houve invasão dessas modalidades “atípicas de capitalismo” nesses mercados. Ao
contrário disso, foram as atividades de conteúdos modernas (inclusive as de arranjos
formais) que vieram a se aliar readaptando às atividades “arcaicas” ou pré-existentes.
Portanto, isso significa que, com a flexibilização das formas e forças do trabalho
implementadas a partir de medidas de ajustamento estrutural, ampliou-se ainda mais
atividades informais, o que significa que na pratica, o setor formal não se configura
como fator-chave e predominante nessas economias, porque os padrões de produção e
consumo revelam-se tanto em atividades informais como formais. No contexto da
realidade Angolana, se por um lado houve alguns avanços tecnológicos determinantes
para os avanços econômicos, por outro lado aumentou o retrocesso socioeconômico
com impactos desastrosos na qualidade de vida da população local. Por isso, além do
aumento do desemprego, as mudanças conduziram à ampliação de trabalhos não
tipicamente capitalistas, a exemplo das empresas familiares de “fundo de quintal”,
agricultura familiar; cooperativas de mulheres, e do tipo de comercio praticado pelos
ambulantes ou bideiras (quituteiras), entre outras tantas atividades “informais” que vem
surgindo e que reforçam a persistência e importância do papel desempenhado por esse
tipo de atividades na economia nacional e de seu povo. Estas manifestações de trabalho
estão presente nos centros urbanos combinando as novas e velhas práticas. (Ver figuras
abaixo).
79

Figura 8. Agricultura familiar (cooperativa de mulheres da granja pessubé).

Imagem: Pedro G. Vaz (02/08/2017). Imagem: Padro G. Vaz (02/08/2017).

Figura.9 Bidera (quitandeira) Figura.10.Transporte público -toca-toca

Foto: Paulo G. Vaz (Janeiro de 2018). Foto: Paulo G. Vaz (Janeiro de 2018).

Nessa perspectiva, podemos entender que o sentido do trabalho


compreendido no imaginário social de muitas comunidades africanas a exemplo daquilo
que é observado no mercado informal urbano de Luanda (Angola) e nos mercados de
Bissau (Guiné-Bissau), se caracteriza não só como elemento de sobrevivência, mas
como também das resistências do trabalho ao capital, inclusive para diminuir os efeitos
80

do subemprego urbano que se alastra em vários segmentos, a destacar principalmente o


aumento do trabalho sem registro, aumento do trabalho temporário e sazonal no setor de
serviços e comercio, como as chamadas “campanhas de caju”, que ocorrem
sazonalmente nos meados de abril à agosto tem sido a fonte de renda de muitas famílias,
médios e grandes comerciantes.
Mas também, é importante destacar que a concepção que certos grupos de
indivíduos têm sobre o trabalho-economia consiste de forma muito imbricada no “saber
local” que se molda numa existência prévia e bem arraigada culturalmente na lógica do
(trabalho objetivado), à reprodução social, fazendo com que a informalidade, além de
ser um mecanismo espontaneamente, passe a assumir o caráter iminentemente
necessário na luta pelo capital. Esses recursos presentes no próprio senso comum da
comunidade podem ser expressados ou manifestados de distintas maneiras e
manifestadas de modo informal em atividades baseadas em relações não tipicamente
capitalistas, tais como: revenda de peixe, agricultura familiar, em muitos casos,
dividem-se seus tempos em trabalhos formais e atividades informais para
complementarem a renda familiar.
Dentre inúmeros perfis de trabalhos informais na economia urbana, a dos jovens
desempregados – os chamados de geração dos nem, nem, nem (nem estuda, nem
trabalha, e nem procura emprego)38 – tem crescido muito nas últimas décadas em
Angola e na Guiné-Bissau. Uma das origens é o êxodo rural39 e a escassez de postos de
trabalho. Para apoiarem o sustento familiar, jovens aprendizes atuam corriqueiramente
em atividades que adotam formas de bicos – que vão desde categorias de atividades
como as de auxiliares de carpintaria, alfaiates, engraxates, candongueiros (motoristas de
vans) à categoria de jovens perambulantes que recarregam telefones de clientes pelas
ruas em troca de algum valor monetário “simbólico” por eles negociado. Há também os
jovens “codicadores” – prestadores de serviços a toca-toca (transportes populares)40
que atraem passageiros pela qualidade e conforto da viagem pela “empresa”. Podemos

38
Há um fenômeno batizado por “Bancadas”, constituído essencialmente por jovens do sexo masculino e
na sua maior parte desempregados. Que se concentram espontaneamente nas varandas, calçadas ou becos
para debaterem a situação política e social do país, ou mesmo do bairro. Ver Miguel de Barros:
Associativismo juvenil enquanto estratégia de integração social: o caso da Guiné-Bissau. INEP - Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas (2010).
39
Cf. Migração (deslocamento) de pessoas da zona rural (campo) para a zona urbana (cidades).
40
Veículos Populares de transporte (médio porte) de passageiros que, na Guiné-Bissau, geralmente são
vans pintadas de azul e amarelo. Em Angola é conhecido como candonga – pintados de azul e branco.
Esses veículos disputam os centros urbanos com os taxis, e outros meios de transportes.
81

citar ainda os antiquiares (antigos) – jovens que atuam como cambistas informais na
parte externa dos aeroportos abordando turistas e ao mesmo tempo cumprem a função
de guias turísticos prestando diversos auxílios possíveis ao turista, que nas suas disputas
concorrenciais entre si agem como uma espécie de aves de rapina para conquistar os
turistas. Todas essas modalidades citadas acima têm sido uma alternativa muito
recorrente de emprego para os jovens desempregados, principalmente nos centros
urbanos, a exemplo da cidade da Luanda (Angola) e Bissau (Guiné-Bissau). Muitos
estudos reforçam essas práticas do trabalho informal ou na cultura do trabalho. (Ver:
CÂMARA, 2010; DOMINGUES, 2000; SANTOS, 2011).
Todas essas manifestações do trabalho se moldam nesse tipo de Know-how
pelo qual os trabalhadores seguem o itinerário de trabalho sobrecarregado de esforço
físico e psiquicamente dispendioso, muitos acordam ao grito do galo da madrugada e só
voltam ao final da tarde ou à noite, cuja finalidade é administrar o seu lar. Isto remete às
experiências acumuladas ao longo da história de acordo com as suas infraestruturas
disponíveis e adequadas naquele determinado estilo de vida local. Atualmente, tem-se
evidenciado inúmeras estratégias de atividades em decorrência do desemprego. Em
determinadas sociedades africanas, algumas práticas, além de serem milenares,
carregando consigo relações simbólicas, coletivas e recíprocas, operam de forma
legitima de acordo com os elementos culturais valorativos da dignidade de quem as
vende. O ato de vender nas ruas, na esquina das varandas de casa fora encetado por
diversos mercadores e/ou os berberes41 (conhecidos como homens livres na Idade
Média). Os nômades usavam suas estratégias de comercialização em terras longínquas
no continente africano. Hoje é evidente a forma como as inúmeras atividades não
tipicamente capitalistas se incorporaram socialmente nos centros urbanos por rapazes
jdilas42 que perambulam de porta em porta com suas mercadorias debaixo dos braços
e/ou sobre a cabeça, transfigurando-se em mecanismos muito comuns na sociedade
africana, consentidas socialmente e legitimadas nessas sociedades e “tolerados” pelas
ordens estatais. Isso continua até hoje e parece estar longe de serem extintas devido ao
acumulo de experiências herdadas que passa a se configurar em sentimentos de pertença
aos de uma memória coletiva. Memória, que para Michael Pollak (1992), não se resume
à vida de uma pessoa, mas também pode ser um fenômeno construído coletivamente e

41
Comerciantes nômades do norte da África que depois povoaram a África subsaariana.
42
Jovens ambulantes que vendem nas ruas e de portas em portas.
82

organizado a partir do presente, e em parte herdada por intermédio de uma relação


fenomenológica muito estreita entre a memória e o sentimento de identidade.
Neste sentido e na direção do até aqui posto, a persistência de velhas atividades
tradicionais é neste estudo entendida como o resultado com que os atores “subalternos”
como também compreendemos o serem as nossas sacoleiras vêm reconstruindo suas
experiências, num continuum de herança e do pertencimento às praticas e tradições dos
“mercados populares”. Por isso é possível afirmar que as persistências dessas velhas
práticas tradicionais se misturam e se fundem com as de novas modalidades que tomam
na contemporaneidade, fazendo de espaços de feiras e mercados na rua como o
mostrado na figura 11, abaixo, do mercado de bandim, um abarrotamento de barracas e
de comerciantes ambulantes nas calçadas da maior avenida (principal) do país.

Figura11 - Avenida dos Combatentes da Liberdade da Pátria. A parte externa no


mercado de Bandim, Bissau, Guiné-Bissau

Foto: Paulo Vaz (Janeiro 2018). Foto: Paulo Vaz (Janeiro 2018).

A parte externa do mercado de Bandim, disputada por pedestres e camelôs é a


“personificação” característica de muitos dos mercados e feitas populares de países
africanos em desenvolvimento, em que a dimensão sócio-espacial do lugar “comercial”
é tomado expressamente pelas atividades tipicamente tradicionais (coexistência de
experiências artesanais, manuais, bicos e contratos informais) que se coadunam às
83

empresas regulares (formais) num mesmo segmento econômico. Não obstante, vemos
nas avenidas o conglomerado de pessoas no vai e vem das atividades autônomas e de
outros tipos de trabalhos e atividades exercendo seus expedientes em forma de prestação
de serviços para empresas formais, como por exemplo, é o caso dos Freelancers ou
Office boy (“menino de escritório”, que ficam disponíveis para realizar diversas tarefas
rotineiras nessas empresas, principalmente as que exigem deles funções mais
burocráticas (tais como as dos serviços bancários, reconhecimentos de firmas etc.). E
neste sentido, entendemos que há um conjunto de situações características
compartilhadas e vividas em comum, na maioria das cidades (capitais) africanas que
vivenciam a invasão dos espaços públicos, tais como: as avenidas, praças, e as calçadas
por parte dos empreendedores privados e/ou informais nas cidades como Bissau (Guiné-
Bissau) e Luanda (Angola). Sendo que em todas elas, observa-se um tecido urbano
constituído de uma certa des-configuração e degradação dos aspectos arquitetônicos e
estéticos das cidades, dando-lhes uma aparência desorganizada, devido à proliferação
desenfreada dos comércios informais, influenciada por uma economia ligada ao
pequeno comércio de sobrevivência. Além desses grupos espalhados nesses pontos da
cidade, percebe-se que vêm sendo criados, seja no centro e em demais bairros, inúmeros
outros pontos de concentração de camelôs, ao ar livre ou em pequenas galerias, como
espécie de Camelódromo, muito parecidos aos de outros contextos urbanos:

O fato é que essa atividade, implicando em uma dada ocupação do


espaço urbano, continua em expansão, obviamente em função da
intensificação dos fluxos globais subalternos. Estes compõem a cidade
real. Portanto, os camelôs e os fluxos que eles viabilizam no espaço
urbano não são um “problema” urbano, são um fenômeno do mundo e
das cidades reais contemporâneas. O problema é o urbanismo o qual
insiste em ignorá-los ou acredita ser possível suprimi-los, como em
geral se fez até então, levando a cidade para lugar nenhum, além de
espaço de conflitos seguidos de conflitos. (BRANDÃO. 2009.p. 249-
250).

A contínua ocupação (apropriação do espaço público) urbano por comerciantes


informais e os fluxos viabilizados por esses grupos não podem ser ignoradas ou
considerados como um problema social, e nem tampouco pode ser considerado como se
se tratasse de um constrangimento que assola todas as cidades nas que esse modelo se
manifesta. Ao contrário, como bem o aponta Brandão, trata-se de um fenômeno
contemporâneo presente e real, vivenciado nas cidades contemporâneas, que requer
84

soluções concretas e mais democráticas e includentes destes setores, atendendo um


melhor uso do espaço público, mas também o das necessidades de um número
expressivo e cada vez maior de indivíduos dedicados a este tipo de trabalho e atividades
que tem precisado recorrer a esses espaços e práticas. Nesse sentido, considero ser de
inteira responsabilidade do Estado, elites e sociedade desses países passar a levar mais
em conta e formalizar melhor esse nicho de mercado, ainda que recentes estudos
urbanos vêm apontando que nem mesmo as políticas de governos mais propensas à
maior equidade social tem logrado reverter essas implementações de políticas
neoliberais.
Esse emaranhado desafio social é experimentado pela maioria da população dos
países emergentes nas últimas décadas, principalmente o da sua população rural que, na
busca dos sonhos cosmopolitanos, se aglutinam em torno dos espaços urbanos fazendo
dele um local onde, nas suas práticas cotidianas, as pessoas constroem novas formas de
vida e novas maneiras de relações sociais. Tal como se observa nas falas de nossas
entrevistadas a seguir, muitas delas ocorrem sempre nas cidades e capitais. À exemplo
da capital Guineense e a capital Angolana, que apresentam maior “inchaço” ocasionado
pelo êxodo rural, fazendo com que essas cidades se configurem como o principal
destino de pessoas de diversas classes sociais, destacadamente as de renda média e as de
baixa renda e/ou provenientes de zonas periféricas que procuram as cidades para
trabalhar, avançar em seus estudos e formação acadêmica ou serviços públicos. Como
bem o testemunha a guineense Odete,
Sou natural de cidade de Bafatá, me mudei pra Bissau desde 2002,
porque lá em Bafatá tudo está parado, não tem boas escolas e hospitais
como em Bissau, aliás hoje muitas famílias estão saindo do leste do
país para Bissau (Capital), em Bissau é um corre-corre, tem muita
gente na rua, até demais, isso me faz entender que tem muitas pessoas
num mesmo barco. Tem de tudo, reencontrei muitas pessoas de Bafatá
em Bissau. Agora posso dizer que sou Bissauense de corpo e alma.
Pelo menos em Bissau temos escolas, luz elétrica, mesmo quando ela
costuma acabar, mas uma hora volta (risos). É o nosso maior
problema. Então, em Bissau tem todo tipo de trabalho aqui, a vida é
outra.(...) em Bissau consigo me virar com o meu pequeno negócio.
Comecei a fazer nha bida [pequeno comércio], pura necessidade
mesmo e hoje ninguém paga as minhas contas. E também [agora]
posso me organizar, as minhas viagem pra cá [Brasil] e até mesmo
organizar as minhas folgas. (Odete, guineense, 47 anos. Entrevista
realizada em São Paulo - Brás, em 13/11/2015).
85

A situação narrada por Odete, desde suas expectativas ao deslocamento para


a maior cidade da Guiné, mostra que pôr em pratica o seu próprio negócio e tirar a partir
dela o seu próprio sustento na Guiné-Bissau, está longe de ser associada a uma atividade
e precária, porque permite maior mobilidade social a Odete que se sente mais
independente financeiramente e ao mesmo tempo possibilitar a ela organizar suas
viagens e até, a de organizar suas folgas. Com esse movimento de ascensão social, ainda
que relativa, mas uma que nos permite dizer de fato, que parece existir uma relação
intrínseca entre o êxodo rural (ou de cidades de interior) e a busca de novas
modalidades nos centros urbanos. Algumas experiências narradas pelas sacoleiras da
Guiné-Bissau e de Angola, demonstram a construção dessa mobilidade urbana e
econômica. Processo também testemunhado por Olga, quem descreve sua trajetória do
seguinte modo:

Sou da província de Cunene, uma cidade do interior de Angola, não é


cidade assim como a Luanda, lá em Cunene meus pais têm alguns
animais e plantações, mas a seca está a complicar a vida das pessoas.
De uns tempos pra cá as pessoas começam a ir pra outros lugares, da
falta de água [que] está a matar até os animais, e se aquilo continuar
não sei o que vai acontecer. Ok, mas (...) por isso mudei para Luanda
para terminar meus estudos, mas pra isso quero juntar um dinheiro
antes, e espero conseguir um bom emprego assim que eu me formar.
Hoje vivo entre Luanda e Cunene, porque os meus pais ainda vivem
lá.
Quem começou a fazer este tipo de comércio é a minha tia, e o meu
tio, eles já estão acostumados a viajar e comprar coisas para vender,
antes compravam nas cidades vizinhas e a partir de 2010, o meu tio
conseguiu um emprego, praticamente parou de viajar, mas me deu
uma quantia de dinheiro para abastecer a loja dele, comprou-me as
passagens de ida e volta pra eu viajar com a minha tia para
Johanesburgo (África do Sul) comprar coisas simples para revender,
tínhamos a loja no antigo mercado chamado de Roque Santeiro, hoje
ampliamos uma loja no lateral da nossa casa. Eu ainda quero ter uma
formação escolar boa, sou muito nova ainda, mas a formação não vai
me impedir de fazer comércio, jamais. Embora o meu tio e a minha tia
acham que trabalhar com o comércio é bom caminho e dizem que sou
uma boa vendedora.
Desta vez a minha tia me chamou pra vir acompanhar ela pra fazer as
compras no Brás e em alguns dos bairros mais próximos, e com isso já
estou a aproveitar para fazer as minhas compras, e como estamos
juntos vamos dividir a hospedagem no hotel, aliás, é ela quem vai
pagar porque quem convida é que paga a conta (risos). (Olga, 25 anos,
Cunene-Angola, entrevista realizada no Brás-São Paulo.
(13/10/2015).
86

Na ausência de um fundo de investimento, Olga contou com o “empurrão” de


familiares para começar o seu próprio negócio. Nesse caso é o tio que parece ser uma
figura importante na realização dessa atividade. A situação da Olga é muito comum e
similar à de milhares de jovens que aguardam a primeira oportunidade, um suporte
familiar que lhe possibilite engrenar a sua situação financeira e construir a sua família.
Porém em inúmeros casos também é possível encontrar jovens que não encontram um
suporte familiar e financeiro, e serão obrigados a recorrer a atividades econômicas com
poucos recursos no centro urbano. Essa reconfiguração dos modos de acumulação e de
sobrevivência nos espaços urbanos e das transformações de dinâmicas urbanas que aqui
interessou-me analisar e situar estão também sinalizadas por Gledhill, Hita e Perelman
(2017), com valiosas contribuições de reconhecidos urbanistas brasileiros e
internacionais, na obra intitulada “Disputas em torno dos espaços urbanos”, na que
indicam na sua introdução, o complexo emaranhado de interesses adversos e de
distintos atores sociais que fazem e constroem as distintas cidades desde o passado até o
presente nos mais variados contextos e tipos de cidades. Especial destaque é dado nessa
obra ao tema do espaço público, visto por eles no trecho que destaco a seguir, como
lugar privilegiado de manifestação de multidões de inconformados, e de luta de
diferentes interesses e atores sociais pelos seus lugares nas cidades. Para eles:
O espaço urbano é em si mesmo um lugar revelador de todas estas
complexidades sociais do mundo contemporâneo [citadas antes]. O
acesso ao espaço público, a disputa pelo solo, o modo em que os
grupos sociais o constroem, o pensam e atuam sobre esse espaço
social e público, muitas vezes mostrando sua diferenciação e
complexidade interna durante estes processos, dão conta, já seja das
transformações passadas e presentes, quanto das dinâmicas
sedimentadas nesse próprio espaço urbano.
A concentração do capital em certos locus (tanto espaciais como em
atividades que produzem espaços) tem gerado fortes transformações
urbanas. Muitas delas relacionadas com novos modos de acumulação
ou velhas formas reatualizadas que têm um forte impacto espacial. [...]
Diversas políticas neoliberais têm gerado uma serie de transformações
sociais e urbanas que impactam de modos diferenciados as cidades e
seus habitantes. (GLEDHILL, John; HITA, M, Gabriela;
PERELMAN, Mariano, 2017, p.33).

Novos e velhos modos de acumulação fazem de muitos capitais de países em


desenvolvimento ou terceiro-mundistas um complexo e emaranhado cenário de disputas
e de sobrevivências dos atores sociais, os quais, como bem iluminado pelo trecho
87

citado, são os que agem e também participam na produção e no fazer dessas cidades.
Na capital guineense, como se vê na figura 11, acima, evidencia-se que, além das
calçadas, até os espaços domésticos (residências) e as varandas foram apropriadas por
ambulantes e demais comerciantes informais, somada à presença marcante dos
automóveis regulares e irregulares em disputas pelas principais avenidas da cidade, por
ser geralmente locais maiores de concentração e circulação de dinheiro. Esses fluxos
intensos reforçam a poluição visual e sonora da cidade, com os barulhos
ensurdecedores, somado ao vai e vem de transeuntes, motos, motocicletas e ambulantes,
os quais contribuem negativamente para os arrendamentos ou vendas de casas aos
comerciantes.
Nessas regiões comerciais, há um crescimento explosivo de aluguéis das casas
por médio de comerciantes e de ambulantes do entorno, na busca pela maior qualidade
de vida e sociabilidade. Uma eclosão urbana que faz com que os antigos moradores
(proprietários de casas) se vejam obrigados a se deslocarem para os novos bairros
urbanizadas tais como: bairro de Cuntum, bairro de Bôr, bairro Militar, que hoje vem se
configurando como bairros populares, e que até bem recentemente eram vistos
redutivamente como zonas periféricas, e que também começam a sofrer com as disputas
em torno desses novos espaços urbanos.

3.3 O conceito de informalidade no âmbito laboral: processo em


construção

O que se diz ser trabalho informal hoje e o setor informal da economia, na pratica
não é um fenômeno novo a partir de uma narrativa das grandes instituições ocidentais,
em especial o Banco mundial. Historicamente elas sempre existiram e suas
características eram devidamente assumidas nas sociedades, antes da economia de
mercado que traz consigo a burocracia e os impostos. Isso leva Lautier (2004) a afirmar
que a expressão "economia informal" refere-se a uma invenção das instituições
internacionais (Banco Mundial e OIT) para designar realidades muito diferentes
(comércio de rua, tráfico de drogas, o trabalho não declarado em grandes empresas e
emprego doméstico), podendo incluir o ilegal, ilícito e legal como distintas formas de
sobrevivência, dependendo das condicionalidades do estado e o controle num critério
bastante seletivo e relativo, porque há situações em que algumas atividades são
parcialmente formais e em outros casos ela assume alguns aspectos informais, a
88

exemplo das revendedoras de produtos de beleza (Natura). (ABÍLIO, 2002). Nela, são
criadas redes ampliadas de revendedores invisíveis na sociedade que atuam em forma de
células para a geração de capital. Podemos mencionar também o caso dos motoboys
(Godoy, 2012). Muitos deles atuam na empresa formal, mas suas condições de trabalho
são precárias dentro de um processo de “informalização” das empresas que passam a
usar desse tipo de funções ou terceirização do trabalho. Ao mesmo tempo eles possuem
potencial de força de trabalho equivalente aos da atividade de um trabalhador formal.
Porém o que lhes diferencia é que enquanto o setor formal vem sendo relacionado a
empresas tipicamente capitalistas, o setor informal tende a ser visto como se fosse o
avesso (é muitas vezes considerado ou associado ao conjunto de unidades não
tipicamente capitalistas). Como sustenta Maria Cacciamali (1994), sobre o uso
equivocado do termo:

O uso do termo setor informal, desde a sua origem até os dias de hoje,
vem sendo aplicado, na literatura especializada, muito mais para
denominar formas heterogêneas de produção e de trabalho não usuais
às empresas tipicamente capitalistas ou os serviços diretos prestados
pelo Estado, do que associado a um fenômeno específico e bem
definido do espectro produtivo ou do mundo do trabalho
contemporâneos. Por outro lado, cabe considerar, ainda, que o fato de
esse termo não constituir um conceito consensual entre os analistas
implica, e ao mesmo tempo deriva, racionalizações teóricas frágeis e
não homogêneas, e, não raramente, os estudos redundam em
descrições de distintos tipos e formas de trabalhos envolvidos em
atividades econômicas de baixa produtividade. (CACCIAMALI,1994,
p.217. Grifo – itálicos - nossos).

Com essa análise, Maria Cacciamali foi muito precisa apontando a construção
social desse elemento subjacente que está entre os setores formal e informal. Para essa
autora, a forma como os estudos vêm distinguindo os dois setores, se trata de critérios
essencialista que só consegue observar o modo de trabalho tipicamente capitalista, logo,
ao contrário dela é considerado setor informal, frequentemente empregado para
representar trabalhadores e proprietários que participam da produção em unidades
produtivas micro ou pequenas (não tipicamente capitalista). Para ela, após 20 anos da
criação do conceito informal pela OIT em 1972, não se chegou ainda numa definição
reatualizada e consensual sobre o que seja de fato o setor informal, e uma que se
distancie de forma significativa da fase embrionária desta noção. Neste sentido, as sete
condições originais que tinham como objetivos caracterizar o setor informal está mais
para o âmbito das controvérsias contemporâneas do que para indicar pontos sobre o que
89

diferentes autores chegam a consensos. Por que observando a realidade atual e real, se
percebe que o setor informal tem os “seus aspectos característicos relativos e não
absolutos [ainda por]/para captar”. (CACCIAMALI, 1994, p. 217).
Prosseguindo dentro dessa mesma linha analítica, Krein e Proni (2010),
ressaltam que o estudo pioneiro sobre o chamado setor informal da economia urbana
partiu originalmente de um reconhecido e muito utilizado estudo da OIT (Organização
Internacional do Trabalho) nos anos 1970, no Quênia. Nos estudos que se derivaram
dessa concepção, os resultados obtidos indicavam que o setor informal na economia
urbana se caracterizava como um fenômeno típico dos países do terceiro mundo nos
quais o avanço das relações mercantis modernas não havia sido capaz de “[...]incorporar
expressiva parcela da população trabalhadora no padrão de emprego capitalista,
possibilitando o aparecimento de outras estratégias de sobrevivência. ” (OIT, 1972,
apud KREIN; PRONI, 2019, p.8).
Comparativamente, este mesmo critério fora utilizado na América Latina para
caracterizar o conceito de informalidade na economia por incorporar certas
especificidades combinatórias do arcaico e moderno na economia. Devido a essa
narrativa construída pela OIT, Krein e Proni (2010) sustentam que a denominação do
termo “setor informal” originou-se de forma interpretativa associada à dicotomia entre
“setor tradicional” e “setor moderno”, nesse sentido associam-se ao setor informal as
transformações modernas ocasionadas pelo processo da urbanização. Esse quiproquó
consiste no plano discursivo que vem operando socialmente no imaginário social das
pessoas comuns, na sua visão de “senso comum”. Como sustentam estes autores:

Os termos “formal” e “informal” aparece[ra]43m em substituição à


[velha] dicotomia entre “setor tradicional” e “setor moderno”, uma
vez que o setor informal é entendido como fenômeno moderno e
resultado do processo de urbanização. A definição de “setor informal
urbano” no famoso estudo de 1972 sobre o Quênia tinha um caráter
descritivo. Não existia um corpo teórico de investigação social [de
modo] que explicasse claramente o que constituía a informalidade,
entendida como uma maneira de fazer as coisas. As atividades
informais foram pensadas como formando um setor, que engloba tanto
empresas como indivíduos envolvidos na produção de bens, na
prestação de serviços pessoais ou no pequeno comércio. (SALAS
apud KREIN & PRONI, 2010, p.9).
Pode-se acrescentar, ainda, outra forma de perceber e caracterizar o
setor informal, que o entende como sinônimo de ilegalidade (de certo

43
O conteúdo entre colchetes foi acrescentado pelo autor, como recurso estético, na reedição da citação.
90

modo, corresponde ao que na Europa é chamado de “economia


subterrânea”). [...] Constata-se, portanto, que as explicações sobre a
reprodução da informalidade e a própria definição do fenômeno foram
sendo ampliadas (...). Ao mesmo tempo, o uso diferenciado dos
termos “setor informal”, “trabalho informal” e “economia informal”
impediu que alcançassem uma definição consensual. E não havia
consenso sobre a possibilidade de uma teoria capaz de oferecer uma
explicação global para tais fenômenos.
Além disso, as propostas de políticas públicas para o setor informal,
em geral, diferenciam-se conforme o tipo de diagnóstico que se faz do
problema e de suas causas. (KREIN & PRONI, 2010.p.10. Grifo
nosso).

Não obstante, Marcuse,1996 (apud Furtado, 2004.p.5) aponta uma dificuldade


substancial sobre este impasse: “[...] o de que a economia informal e setor informal são
conceitos em busca de uma definição”, considerando-se as incongruências entre os
países. A preocupação com a indefinição do termo fez com que em 2002, na 90ª a OIT
reconhecesse de forma ampla a importância social daquelas atividades, adotando pela
primeira vez o termo economia informal, englobando todo complexo heterogêneo,
dizem ao respeito Krein e Proni (2010):
Ao contrário de dois setores distintos, já havia sido constatado que, na
maioria dos países, há distintos graus de formalização na estrutura
econômica, variando da absoluta informalidade à total formalidade
(KREIN; PRONI, 2010, p.12).

Observa-se que, de uma forma mais reexaminada e ampliada, porém não


consensual, a definição de economia informal passa a incluir as seguintes categorias:
a) trabalhadores independentes típicos (microempresa familiar,
trabalhador em cooperativa, trabalhador autônomo em domicílio);

b) “falsos” autônomos (trabalhador terceirizado subcontratado,


trabalho em domicílio, trabalhador em falsa cooperativa, falsos
voluntários do terceiro setor);

c) trabalhadores dependentes “flexíveis” e/ou “atípicos” (assalariados


de microempresas, trabalhador em tempo parcial, emprego temporário
ou por tempo determinado, trabalhador doméstico,
“teletrabalhadores”);

d) microempregadores;

e) produtores para o autoconsumo; e

f) trabalhadores voluntários do “terceiro setor” e da economia


solidária. (KREIN; PRONI, 2010, p.12).
91

Todavia, apesar dos esforços na busca de um consenso sobre o conceito


informal, as delimitações continuam sendo relacionadas a atividades não tipicamente
capitalistas, ou seja, tudo que não se enquadra nos paradigmas de trabalhos tipicamente
capitalistas (assalariado com carteira) e o funcionalismo público, são considerados
informais. Mas o que esses autores insistem em afirmar é que na realidade existem
empresas capitalistas que recorrem a serviços informais, logo por isso a definição
continua superficial e demasiadamente vaga.
Diante de um debate que agora é global, Cacciamale (2001.p.6) chega a propor
a utilização de um novo conceito, qual seja: o processo de informalidade, dadas as
mudanças ocorridas no setor a nível global, no ensejo de melhor iluminar a
reestruturação produtiva pela que vem passando. Por um lado, assinala que estarmos
diante de um equívoco (por não serem observadas as especificidades de diversas feições
da informalidade e suas ramificações, e que na maioria das vezes se interconectam com
as do setor formal), por outro, levanta que faz-se necessário observar o conteúdo da
informalidade e não apenas a sua forma. Entendemos o conteúdo como uma esfera
capaz de gerar efeitos produtivos dentro de inúmeros elementos pertencentes a uma
economia. Por conta disso, Maria Cacciamali adverte que é preciso tomar muita cautela
nessa demarcação do setor formal e setor informal. Segundo esta autora:

“[...] empresas com poucos empregados, devido às transformações


tecnológicas em andamento, podem ter características organizacionais
do setor formal, [pelo que] torna-se possível captar de forma
aproximada os empresários e trabalhadores ocupados em
microempresas do setor informal (CACCIAMALI, 2000, p.166).

A autora adverte para que sejam consideradas examinadamente em primeira


mão, as especificidades e características organizacionais dos setores, ao invés de
análises discursivas sobre o porte da empresa (se é pequeno, médio ou grande). Nesta
direção, a autora afirma:

O conceito de processo de informalidade (...) é a redefinição das


relações de produção, dos processos e das relações de trabalho, e das
formas de inserção dos trabalhadores decorrentes das mudanças
estruturais em andamento na economia mundial e dos processos de
ajustamento estrutural que estão sendo implementados nas diversas
economias nacionais. Foi adotada esta denominação - processo de
informalidade - para significar a corrosão ou inadequação de
92

determinadas instituições e práticas sociais e o processo de construção


de práticas sociais e de definição de instituições, ou seja, o processo
de informalidade apreende as mudanças nas formas - sociais e
jurídicas - das relações sociais no momento contemporâneo.
Esta categoria analítica foi construída com o objetivo de permitir a
apreensão, nas dimensões citadas, das mudanças decorrentes das
modificações do regime de acumulação (....) que estão sendo geradas
nesta fase do capitalismo mundial, nas diferentes sociedades e
territórios, podem apresentar-se em cada um deles com características
mais especificas ou mais universais impressas por seus processos
históricos. (CACCIAMALI,2001, p.6.grifo nosso).

A contribuição conceitual trazida por Cacciamali (2001) demonstra sua


preocupação e a possibilidade de superar o vácuo epistemológico sobre o assunto que
abala trabalhadores urbanos subempregados e desempregados em diferentes sociedades
e territórios, às vezes com características particulares, imbricadas ou com tendências
mais universais.
No Brasil, a economia informal se desenvolveu num contexto particularmente
específico dos países periféricos - denominados de “capitalismo tardio” e com
características diferentes da de países de capitalismo avançado. Mas é na década de
1990, segundo Cacciamali (1982), que o termo ganhou maior visibilidade em prol da
regulamentação do mercado, com o advento do fordismo e da mercantilização da força
de trabalho. Consequentemente, a parcela não absorvida persiste nas atividades
consideradas ilegais ou criminalizadas, um espaço reservado ao escopo da população
atormentada pela crise do capitalismo estrutural, econômico e social, que mesmo
quando consideradas “atividades informais” mantêm-se tão “produtivos” quanto aqueles
e continuam interagindo com o setor formal, na divisão social e internacional do
trabalho. Tais interseções entre o formal e informal dentro da divisão social do trabalho
tem os efeitos contínuos no fluxo metabólico da economia, gerando benefícios
múltiplos a diferentes tipos de sujeitos e agentes, tais como o são o caso dos fabricantes,
empresas, sacoleiras do meu estudo, entre outros dos envolvidos nestes processos e em
diferentes tipos de negociações.
93

3.4. Um esboço sobre a economia informal e suas combinações: O


processo de produção no debate contemporâneo

A conclusão a que chegamos é que os estudos sobre o trabalho informal, em


sua grande maioria, parte de princípios muito técnicos, tanto nos países africanos, como
nos demais países emergentes, esses estudos tendem a se direcionar por um víeis mais
dual- estruturalista da economia. Sendo que a maioria dos estudos a respeito (da
informalidade) que nos chegam, têm sidos ancorados nas áreas de direito (jurídico), com
critérios do legal-ilegal44, lícito e ilícito45. Nas ciências políticas, os estudos tendem a se
direcionar em relação ao estado; já na área de sociologia as questões da (in)formalidade
estão muito associadas à questão da marginalização ou não marginalização. Talvez esse
é o motivo que faz com que nas últimas décadas tenhamos presenciado cada vez mais
estudos dessas áreas inseridos sobre o debate do trabalho e informalidade. Mas de modo
geral os argumentos trazidos nesses estudos para a reelaboração do conceito não alteram
substantivamente os critérios originalmente levantados pela OIT, que parte dos
princípios estruturais, atraindo uma parcela significativa de economistas e sociólogos
que dialogam com o estado para uma melhor definição do conceito. Em decorrência
disso algumas das questões mais antropológicas e manifestações de como ocorrem
diversas formas de trabalho em diferentes contextos e povos tendem a ser colocadas em
segundo plano de importância, restringindo suas contribuições e reflexões aos de um
puro campo cultural e simbólico.
Tanto em Angola como na Guiné-Bissau e nos demais membros dos PALOP, as
primeiras definições que chegaram foram muito influenciadas pela concepção do FMI e
do Banco Mundial, e que não deram a devida atenção para as questões culturais e
características singulares destes povos. Talvez esse seja um dos motivos da inexistência
de dados estatísticos aprofundados e fidedignos sobre a economia informal na Guiné-
Bissau e Angola, o que tem levado e forçado estudiosos a buscarem caminhos
alternativos que permitam identificar e melhor tentar dimensionar a complexidade deste
problema (BIALOBORSKA, 2014).

44
Contrário à lei. Ilegítimo.
45
Não lícito, proibido por lei.
94

Ora, em todas as sociedades existem formas heterógenas de trabalho, desde as


chamadas atividades informais tradicionais (artesão, carpinteiro, comerciante, agricultor
familiar, etc.) e as chamadas novas modalidades de trabalho, desde o produtor industrial
ao administrador de empresas, entre outras, sempre existiram, porém devido ao maior
dinamismo na economia, essas práticas têm revelado faces mais complexas na
sociedade contemporânea, especialmente nas suas relações com os setores da economia.
Daí esses elementos somarem-se as diversas modalidades por eles adotadas durante o
processo produtivo: desde a fábrica e fora dela. Tudo isso torna mais difícil precisar as
delimitações claras de fronteiras entre os setores formal e informal. E, na maioria das
vezes, podemos encontrar só numa empresa, os diferentes e emaranhados níveis de
informalidades decorrentes em grande medida dos processos de abertura econômica e
das privatizações. Portanto, a devida falta de uma definição precisa é sublinhada por
Augusto de Souza, et al. (2006) que reforçam a existência de lacuna sobre a economia
informal e o setor informal na literatura brasileira. É nessa mesma ótica de raciocínio
que nos permite observar não só no caso brasileiro, mas também há na literatura
nacional (dos países dessas sacoleiras) uma lacuna no que se refere à conceituação
científica da informalidade. O que significa que não há uma definição precisa e
detalhada sobre o perfil de informalidade na Guiné-Bissau e em Angola, do que seja o
setor informal das suas economias.
Se olharmos para o cenário brasileiro, vários cientistas sociais se debruçaram
sobre a questão da informalidade urbana no presente, no sentido de fazer o upgrading
(atualizar) das particularidades dessa metamorfose. Não cabe nem interessa aqui
levantar e citar todos os autores que tem contribuído significativamente neste tipo de
debates, que são muitos, mas optei no lugar por fazer uma síntese do que têm sido
consideradas as principais posições sobre o termo e que foram tratadas em Druck,
Filgueiras e Amaral (2004), ao se debruçarem e explanarem sobre os três mais distintos
conceitos de informalidade/trabalho informal, que eles encontraram na literatura sobre o
tema nas ciências sociais. Em sua análise, esses autores levaram em consideração os
componentes e as combinações que envolvem as empresas e serviços prestados em
torno delas, desde as tipologias em que a informalidade aparece como legado tradicional
e outras em que se manifestam como características e tendências modernas e
combinadas. Druck, Filgueiras e Amaral (2004) apontaram três situações distintas sobre
os conceitos de informalidade: apontando que o primeiro conceito teve a sua origem no
95

país do Quênia, nos anos 70, através dos estudos da economia, no âmbito de programas
de estudo de iniciativa da OIT (Organização Internacional do Trabalho, como
consequência do excedente da força de trabalho, devido ao crescimento demográfico do
campo para a cidade). O segundo conceito de informalidade foi o elaborado nos finais
da década de 70, a partir da crise de Estado de bem-estar-social no pós-guerra, que
deflagrou em países centrais da Europa e o desemprego, levando indivíduos a
exprimirem atividades e práticas econômicas ilegais e/ou ilícitas fora dos padrões das
normas, ou seja, é aquela na que se “[...] distingue a economia registrada da economia
subterrânea a partir da legalidade/ordem jurídica. “(DRUCK; FILGUEIRAS &
AMARAL, 2004, p.228) ”. O terceiro, e o último conceito de informalidade, é o da
“nova informalidade”, caracterizada pela presença de novos trabalhadores informais em
novas e velhas atividades – assalariados ou não, com os processos produtivos formais,
ou mesmo em atividades tradicionais da velha informalidade – e que por esses motivos
os conceitos são redefinidos como a junção de dois critérios: ilegalidade e/ou atividades
econômicas, tanto as tipicamente quanto as não tipicamente capitalistas.
Dentre os conceitos de informalidade apresentado por esses 3 autores e
observando o relato de uma das nossas interlocutoras da pesquisa de campo, podemos
afirmar que atividade das sacoleiras é uma manifestação de trabalho que remete
exclusivamente aos tradicionais culturais dos povos africanos de fazer a economia, por
isso não se enquadra como ilegítimo, dentro dos seus padrões socioeconômicos.
Portanto, a questão de apresentada acima pelos autores (DRUCK et al,2004), é um
conceito ocidental e capitalista de compreender o trabalho.
A Guineense Helem Pinto, viaja sazonalmente a São Paulo, para comprar artigos
no varejo para depois revende-los. Desde que terminou o ensino médio, desencantou
com as ofertas no mercado de trabalho, porque encontra soluções nos seus pequenos
negócios autônomos que já empreendia com a sua Avó e a sua mãe, dona de um
restaurante, no bairro de Mindará. A entrevistada conta que, após terminar o ensino
médio, começou a encontrar no comercio melhores condições para ajudar nos encargos
familiares. Tal como descreve:
Djito tem ku tem [temos que saber a dar um jeito e procurar soluções],
eu já fiz de tudo neste mundo, desde pequena procurei conciliar os
estudos com o trabalho, já vendi sorvete [geladinho], comprava pão na
padaria do Dias Gomes e revendia no passeio da minha casa; fazia
bolos para vender, fazia comidas [quentinhas] para vender aos
funcionários. Já cheguei a revender peixe - comprava em atacado no
96

porto e revendia no mercado de Bandim. Olha já fiz de tudo nessa


vida!
Sou a primeira de cinco irmãos. Praticamente eu que cuidei de todos
os meus irmãos. Eu era menor, e ainda eu ajudava a minha mãe a
cuidar dos menores, enquanto a minha mãe estava no comercio,
porque minha mãe sozinha não dá conta. Porque ela passava, e ainda
passa, o tempo vendendo. Tu sabes como é a Guiné-Bissau, cada um
procura fazer um tipo de comercio que lhe traz o sustento, não gosto
de me estressar, procuro fazer aquilo que garante o meu sustento e que
me traz satisfação!
Eu nunca criei expectativas com um emprego bom na Guiné-Bissau,
como nós sabemos, aqui em Bissau hoje em dia, para conseguir um
emprego é só ter costa largu [só quem tem QI- quem indica]), Mas
independentemente disso eu já estou acostumada a viver assim e fazer
o que meu coração manda, sem depender do nosso estado. Já fui mais
de sete vezes para São Paulo, lá eu compro principalmente cabelo
natural, capas de telemóvel, carregador portátil para telemóvel, ahh as
peças não podem faltar, porque são muito recomendadas aqui [em]
Bissau. É mais ou menos isso, aqui em Bissau, já tenho comerciantes
que compram estes produtos nas suas lojas no centro da cidade. Mas
na maioria das vezes eu vendo aqui mesmo no bairro, a minha irmã é
muito conhecida aqui no bairro. (Helem Pinto, Guineense, entrevista
realizada em Bissau, 17 de janeiro de 2018).

O relato da entrevistada Helen, consiste numa relação cujo comercio se constitui


como atividade tradicional da família. Mas, além disso, é a forma como a figura da sua
mãe é vista por ela como provedora do lar, que consegue obter a sua independência
financeira e na reprodução social. Esse perfil da Helen é muito comum na sociedade
guineense ou angolana, um perfil de indivíduos, que tomam suas iniciativas de modo
mais autônomo, e, portanto, não são assalariados, mas pessoas igualmente
economicamente ativas pagam seus tributos devidamente e seguem realizando seus
ofícios que também já eram realizados pelos seus pais. Nesse sentido, a característica do
trabalho da Helen está simplesmente relacionada ao desenvolvimento de atividade
comercial tradicional, não tipicamente capitalista. E por isso não se relaciona com os
três conceitos de informalidade apresentados pela Druck et al. (2004).
É inegável que devido a abertura comercial, as pessoas tendem a se deslocar mais
para as grandes cidades, como é o caso da angolana Olga, que se desloca para Luanda e
da guineense Odete para Bissau. Uma realidade que reforça a tese de movimentos
migratórios para as grandes cidades. Daí evidenciamos em nossa pesquisa alguns relatos
de deslocamento demográfico, êxodo rural dos angolanos que partiram das cidades com
menos oportunidade de serviços públicos e infraestruturas, engrossando principalmente
a cidade de Luanda. De igual modo, além de nossa pesquisa que visou ter um teor mais
97

qualitativo, diversos estudos apontam para o impacto da imigração urbana sem


precedentes nas três últimas décadas na capital guineense, realizada principalmente por
jovens em busca de melhores condições materiais e de acesso a serviços públicos. Um
fenômeno de mobilidade urbana que se aproxima das características do terceiro conceito
da informalidade (como apontado por Druck, et al., 2004), é a chamada nova
informalidade – como uma consequência da reestruturação produtiva que desloca os
(ex) trabalhadores formais e/ou trabalhadores com qualificação prévia para atividades
não tipicamente capitalistas, as vezes informais. E como hoje, uma parcela significativa
parte da população desempregada nesses países em desenvolvimento são vítimas de
reajustamento estrutural imposta nos anos 1990, entre resultados encontrados na nossa
pesquisa constatamos que, muitas dessas desempregadas e desempregados formalmente
passam a ser incorporados ao perfil de trabalho com as características da terceira
modalidade, que: “[...] se caracteriza pela presença de novos trabalhadores informais,
em velhas e novas atividades, articuladas ou não com os processos produtivos formais,
ou em atividades tradicionais da velha informalidade (DRUCK et al., 2004)”.
Tomando emprestado os dizeres de Nogueira (2016) sobre a semiformalidade, o
mesmo conceito defendido por esse autor também se adequa não somente nessas duas
realidades dos países estudados (Angola e Guiné-Bissau), assim como está muito
presente nas estruturas de muitos países africanos em desenvolvimento. E por isso
podemos dizer que [...] fica evidente que não há dois espaços “paralelos”: o mundo
formal de um lado e o informal, de outro. Pois, nestes espaços, ambos os setores se
imbricam, atuam de modo simultâneo e complementam na semiformalidade,
conformando o que muitos autores vem identificando como tratar-se de um único
sistema socioeconômico. (NOGUEIRA, 2016, p.15). Neste sentido, uma das
contribuições mais inovadoras e ricas do nosso ponto de vista sobre o conceito da
informalidade é este conceito de semiformalidade difundido por Nogueira (2016), que
segundo ele, considerando as complexas relações e dinâmicas sociais do trabalho, para
além da informalidade ou formalidade, estamos diante de uma situação de
semiformalidade. E que Nogueira a caracteriza e representa na Figura.11, a seguir, da
seguinte maneira:
98

Figura 12 - Representação esquemática de semiformalidade

Fonte: Nogueira (2016)

Com base nesta representação esquemática, seria correto afirmar que a


semiformalidade jamais se constitui como um fenômeno isolado. Pois ela é o fruto de
interesses e tensões entre os dois setores, e por isso trata-se de um fenômeno
contemporâneo construído por agentes que pertencem ao universo formal, mas que
executam parte de suas operações no âmbito da informalidade, e que como descrito por
Nogueira (2016):
A semiformalidade seria composta por agentes que pertencem
ao universo formal, mas que executam parte de suas operações no
âmbito da informalidade. Trata-se de empresas que, a despeito de
serem formalmente estabelecidas (empresas com CNPJ), não incluem
parte de suas operações em seus registros contábeis (transações
realizadas sem a emissão do comprovante fiscal, ou Nota Fiscal) e/ou
possuem em seus quadros trabalhadores sem contrato formal de
trabalho (carteira de trabalho assinada). Essa forma de contratação
passou a ser reconhecida como trabalho informal pela OIT desde 2003
(ILO, 2003). Há, ainda, empresas que remuneram seus trabalhadores
em valores efetivos que são superiores àqueles que constam de seus
registros contábeis e dos respectivos contratos de trabalho – prática
usual no comércio, em que a remuneração variável (comissões de
vendas) é paga à margem dos registros oficiais. Esse conjunto de
práticas é conhecido pelos nomes de transações por fora ou caixa dois.
Observe-se que tais transações podem se dar tanto em uma relação
com outras empresas formais que também atuem na semiformalidade
(operações conhecidas como meia nota) quanto com empresas
informais, trabalhadores autônomos ou pessoas físicas, atuando tanto
como compradores, como fornecedores. (NOGUEIRA, 2016, p.11).

E ele prossegue dizendo:


99

No sentido inverso, a semiformalidade é construída a partir de


atividades formais que, de alguma maneira, conseguem espaços de
operação na economia formal. Uma das possibilidades é a existência
de agentes informais que transacionam com agentes formais por meio
das operações “por fora” descritas. Há também os casos em que, a
despeito de sua situação de informal, o agente consegue, quando
necessário, revestir de “legalidade” algumas de suas operações. Isso se
dá principalmente no setor de serviços, e o principal instrumento,
nesse caso, é a compra de notas fiscais emitidas por empresas formais
(transação conhecida como barriga de aluguel): a empresa formal
emite a nota fiscal ou recibo relativo à transação efetuada pelo agente
informal, e este assume o pagamento dos impostos correspondentes;
esse pagamento, dependendo da relação existente entre os envolvidos,
pode ser com ou sem ágio (Lucro). (NOGUEIRA, 2016, p.13).

Nota-se que enquanto a informalidade e formalidade são concebidas em estudos


primários da OIT (1972) como se fossem “dois polos extremos”, porém os estudos
recentes de certos autores vêm apontando o contrário, introduzindo os novos elementos:
os níveis de informalidade (FEIJO, 2011) e a semiformalidade (NOGUEIRA, 2016).
Elementos esses que insurgem e são capazes de superar essa dualidade. Considerando,
por exemplo, que entre os “dois polos extremos”, existe a semiformalidade que opera
através de agentes informais que transacionam com agentes formais por meio das
operações “por fora”. Em razão disso, podermos dizer que além dos dois setores, temos
a chamada “informalidade pela metade”, considerando as dosagens de (in)formalidade.
Numa perspectiva bem similar, Souza, Feijó e Nascimento e Silva (2006) entendem que
de fato existem na sociedade diferentes níveis de informalidade, caracterizados por eles
como: Alta informalidade, Média Informalidade e Baixa Informalidade. Descrito de
forma didática, por estes autores como:

A alta informalidade é definida pelas seguintes características: baixo


nível de renda; trabalho por conta própria (ao invés de condição de
empregador); local precário de atuação da empresa (domicílio, ou fora
do domicílio, mas sem local fixo – e.g. em veículos ou em áreas
públicas); mercado consumidor formado por pessoas variadas (ao
invés de instituições ou clientes fixos); falta de registro contábil; e
falta de constituição jurídica (i.e. em condição de ilegalidade). Neste
contexto, propomos categorizar os ramos de atividade do setor
informal urbano em três níveis: Alta Informalidade, Média
Informalidade e Baixa Informalidade. (SOUZA; FEIJÓ;
NASCIMENTO;SILVA , 2006. p.6).

Nessa esteira da informalidade, observa-se que existe realmente variações de


heterogeneidades no setor informal urbano nos países de origem dessas sacoleiras
100

angolanas e guineenses. E devido à existência de diferentes escalas de informalidade,


em alguns segmentos elas podem apresentar maior níveis de (in)formalidade e em
outros não, dependendo do envolvimento e relacionamento entre ambos os setores.
Porém, segundo Feijó (2011), a maneira mais prática e fundamental para detectar e
classificar a atividade econômica em três níveis de informalidade (alta, média e baixa) é
a partir dos critérios utilizados pela Organização internacional do trabalho (OIT),
baseados no paradigma (quatro componentes principais) de um trabalho decente:
1. Emprego;
2. Seguridade social;
3. Direitos Trabalhistas;
4. Diálogo social.

Quanto mais ausência desses componentes, mais uma determinada atividade


tende a se configurar como informal. Neste sentido, observa-se que se há enorme
dificuldade em delimitar com precisão as fronteiras do setor formal e do informal,
porém, por outro lado, esses componentes centrais apontados por Feijó et al. (2011)
podem nos ajudar a compreender relativamente os níveis de informalidade (alta, média
e baixa). Dito de outra maneira, quanto mais acumuladas e sincronizadas estivem essas
categorias numa mesma unidade de análise (emprego, seguridade social, direitos
trabalhistas, diálogo social), maior significância terá o grau do que possa ser
considerado um trabalho decente, e quanto menos acumulados e desintegrados forem os
montantes de cada sub-categoria, maior será o trabalho não decente e,
consequentemente, nesse segundo caso, não só estaremos diante de uma atividade que
além de apresentar maior nível de informalidade, a mesma tenderá a se configurar como
atividade com maiores níveis de precarização do trabalho. Nesse sentido, a relação entre
a informalidade e a precarização ganharia uma feição intrinsecamente maior.
A grosso modo, os estudos de Feijó et al. (2006) e Nogueira (2016) demonstram
que além de serem mais dinâmicos, inovadores e pluralistas, esses estudos trazem nova
roupagem daquilo que deve ser a informalidade hoje, pela realidade heterogênea e pela
diversidade de manifestações do trabalho, pois os mesmos estudos nos possibilitam
reinterpretar as interseções do trabalho, abrindo novo espaço para o diálogo, superando
os primeiros estudos apresentados pela OIT, empreendido no Quênia, que concebia o
setor informal de forma limitada com base nos seguintes elementos centrais: a)
101

facilidade de entrada; (b) dependência de recursos indígenas; (c) propriedade familiar


das empresas; (d) pequena escala de operação; (e) tecnologia de mão-de-obra intensiva
e adaptada; (f) habilidades adquiridas fora do sistema escolar formal; e (g) mercados
não regulamentados e competitivos.(OIT, 1972, p.6)46.
Esses primeiros estudos descreviam o setor (in)formal como dois polos estáticos,
estanques e dualistas. O que na prática tratou-se de estudos que, ao invés de esclarecer a
compreensão do fenômeno do setor (informal), só o obscurecia. Porém, nos estudos
subsequentes os resultados sobre os setores (in)formais, da economia foram mais
moderados, e avançaram na tentativa de redimir a rigidez conceitual apresentado
naqueles da década de 1970.
À luz disso é que se começou a observar mais os avanços do que os recuos no que
concerne a informalidade, pois uma caracterização mais plausível desse avanço pode ser
encontrada em Cacciamali (2007, p.152), que busca fazer upgrade (atualizar) de forma
mais abrangente a caracterização do conceito - setor informal – ao propor que:
O setor informal se constitui no conjunto de formas de organização
da produção que não se baseia, para o seu funcionamento, no trabalho
assalariado. Um conjunto de características define a organização de
produção no setor informal: (i) o produtor direto é o possuidor dos
instrumentos de trabalho e/ou do estoque de bens necessários à
realização de seu trabalho, e se insere na produção como patrão e
empregado simultaneamente; (ii) o produtor emprega a si mesmo e
pode lançar mão de trabalho familiar ou de ajudantes como extensão
do seu próprio trabalho; o proprietário obrigatoriamente participa de
maneira direta da produção e da direção do negócio; (iii) o produtor
direto vende seus serviços ou mercadorias, o ganho é utilizado,
principalmente, para consumo individual e familiar e para a
manutenção da atividade econômica, e mesmo que o indivíduo aplique
seu dinheiro com o sentido de acumular, a forma como se organiza a
produção, com apoio no próprio trabalho, em geral não lhe permite tal
acumulação; (iv) a atividade é dirigida pelo fluxo de renda que
fornece ao trabalhador e não por uma taxa de retorno competitiva; é
dessa renda que se retiram os salários dos ajudantes ou empregados
que possam existir.(CACCIAMALI, 2007, p. 152)

Portanto, é importante acrescentar que, além da definição da informalidade


descrita pela OIT nas conferências internacionais, e reatualizado por Cacciamali (2007)
de forma mais ampliada, o que se verifica em prática é uma combinação de elementos
(categorias de trabalho e características do trabalho) como apontam Alves e Tavares

46
Cf. Employment, Incomes and Equality: A Strategy for Increasing Productive Employment in Kenya,
disponível em: http://www.wiego.org/publications/employment-incomes-andequality-strategy-increasing-
productive-employment-kenya acesso: 19 de dezembro de 2017.
102

(2009 apud NOGUEIRA & WEIL,2016,p.36), de que as coexistências desses elementos


resultam em novos modos de ser da informalidade. Nesse sentido, compreende-se que,
ao menos no universo observado nesta tese em relação aos sujeitos entrevistados e os
seus arranjos na economia, observa-se que no bojo dessa realidade, não se trata dos
espaços paralelos ou dualísticos entre os dois setores (dicotômicos), mas sim
interdependentes, porque as duas modalidades incidem em diversas intensidades de
atividades que não são “nem puramente formais, nem puramente informais”, e por isso
cada vez mais se torna mais difícil afirmar com precisão os níveis de (in)formalidade,
porque em sua grande maioria elas resultam de um fenômeno combinatório das duas
categorias em diversas práticas. À luz disso é que sempre que se trata de (in)
formalidade seja importante observar se há ou não níveis de informalidade que a
constituem enquanto relação. Nesse contexto, outra coisa que pode ser levado em
consideração são os níveis de informalidade, considerando que, na maioria das vezes,
podem ser difíceis de serem demarcadas suas fronteiras. Para tal, segundo os dizeres de
Feijó et al.: “[...] políticas públicas que visem combater a informalidade devem buscar o
crescimento econômico e atuar sobre as diferentes características das atividades
informais”. (FEIJÓ et al., 2011, não paginado).
E por conta disso, segundo Cacciamali (1982), como não é possível delimitar
essas barreiras com exatidão, por conta de alternâncias durante o processo produtivo
(desde a fábrica até o consumidor final), mesmo que o sistema capitalista venha a
destruir certas atividades informais em um determinado momento e local, ele tende e
tenderá simultaneamente a refazer outras barreiras. Igualmente, Rosana Machado
(2008) afirma que existem,
[...] as “interpenetrações”, em que o formal está no informal e vice-
versa: as “metamorfoses legais”, que são as variações de status de
uma mercadoria conforme o espaço e os grupos que a legitimam; e,
finalmente, as “relações do mutualismo”, quando o formal é
alimentado pelo informal e o informal pelo formal. (MACHADO,
2008, p.118).

Isso significa que essas (inter)conexões ou (inter)dependências constituem-se


como metamorfose de um produto que, ao passar por diversas etapas da circulação,
pode assumir as novas feições nas esferas do formal e informal, passando a assumir um
caráter não só normativo (norma) mas também discursivo (discurso) inacabado. Como
assevera Machado (2008):
103

O campo conceitual que circunda a noção do “informal” parece


sempre inacabado, imperfeito e necessitando de reformulações
constantes, visto que a sua manifestação empírica surge por inúmeros
e complexos caminhos, reinventando a si próprio permanentemente e
caracterizando-se, na contemporaneidade, por sua imaterialidade.
(MACHADO, 2008, p.118).

Neste contexto, se tomarmos as análises da Rosana Pinheiro Machado (2000) para


descrever a situação das sacoleiras e dos produtos comercializados por elas, é possível
detectar essa relação de mutualismo47 ou alternância que envolve uma determinada
mercadoria desde a fábrica ao consumidor final, podem ser tanto genuínos quanto
copiados - em sua bagagem. Todas as situações apontadas podem mudar seus status.
Como propomos demonstrar na figura que se segue.

Figura. 13 - Tipo de atividade econômica e o seu status

STATUS
TIPO DE ATIVIDADE ECONÔMICA
Sacoleira africana compra mercadoria no mercado Lícito e formal48
Brás ou em Dubai com Nota Fiscal do produto
comprado
Trabalhador manual com a carteira de trabalho Lícito e Formal49
assinada numa empresa de transporte de carga export
trading.
Sacoleira compra Rolex ou perfume Dolce & Gabbana Informal tradicional e legal
nos Shoppings center de São Paulo e vende no
mercado de Bandim
Sacoleira compra vestido do Brás e vende nos Lumos Informal tradicional, legal e
de Bissau legitimo
Fonte: Reprodução do autor (Paulo G. Vaz).

A tabela acima descrita é um intento de buscar radiografar o perfil de um produto


em vários contextos sociais, do modo pelo qual em muitas das vezes as mesmas

47
Refere´se ao Biotipo de associação de dois organismos de espécies diferentes, na qual ambos são
beneficiados. Conforme consta no dicionário Houaiss (2004, p.511).
48
Alice
49
Cardoso- Trabalhador Manual.
104

mercadorias e sacoleiras podem ser beneficiadas num circuito econômico, dependendo


dos graus de tolerância do Estado. Nessa relação de tolerância e de leis brandas ou não,
um perfil considerado ilícito e informal num determinado território, pode ser lícito e
formal em um outro - de acordo com o que cada Estado-Nação convenciona
normativamente como legal ou informal. Isso obviamente pode variar relativamente
entre distintos estados nações mesmo que as leis sejam chanceladas pela OIT, mas na
prática alguns estados podem ser mais tolerantes que outros. Daí um evento comercial
poder ser formal ou legal na Guiné, em Angola ou China, mas na prática poder ser
informal ou ilegal no Brasil, como insinuam os estudos de Machado (2008) e Ribeiro
(2010). Mas além das fronteiras da economia informal e do Informal, podem ainda
existir as chamadas zonas cinzentas, que podem envolver atividades não declaradas,
criminosas. São as zonas cujas modalidades são praticamente invisíveis. Segundo o
estudo da OIT (2006):
Podem também existir zonas cinzentas em que a atividade
económica aglutina características da economia formal e da economia
informal como, por exemplo, quando os trabalhadores da economia
formal recebem remunerações não declaradas, ou quando existem, nas
empresas formais, categorias de trabalhadores cujas condições de
trabalho ou de remuneração são características da informalidade.
(OIT, 2006, p.7).

Podemos citar os trabalhadores fantasmas como elementos integrantes das


chamadas zonas cinzentas, porque são trabalhadores da economia formal que recebem
remunerações não declaradas. Uma relação criminosa não declarada é uma modalidade
constituída de forma invisível. Considerado praticamente marginal, mas que podem
envolver outros segmentos “legais”. Portanto, o que se pretende demonstrar é que de
modo geral, as interconexões das fronteiras do formal e informal dependem das
decisões políticas dos estados. Por isso, “[...] essa decisão política, no entanto, não é
automática e varia de país para país, especialmente de acordo com a tolerância e o nível
de dependência que se tem em relação ao mercado informal”. (MACHADO, 2008,
p.128).
As variações de níveis de dependências e níveis de tolerância estão muito
relacionadas ao alto índice de desemprego nos países em desenvolvimento, os seus
estados nacionais tendem a ser tolerantes e dependentes do mercado informal, para
sustentar a movimentação da economia local. Como ressalta Machado (2008):
105

[...] longe de ser marginal ao capitalismo e ao desenvolvimento, a


economia informal é parte estruturante dos mesmos. Os vendedores de
rua são responsáveis por levar bens de consumo às classes de baixa
renda, bem como por movimentar a economia em diversos setores da
sociedade ao abrirem conta em banco e crediários e, assim, tornarem-
se igualmente consumidores. (MACHADO, 2008, p.129).

O que Rosana Pinheiro (2008) tenta descrever sobre a importância da


informalidade é que o mundo do trabalho é constituído pela interseção de mercado
formal alimentado pelo informal num metabolismo econômico socialmente combinado,
que nos impossibilita polarizar os setores isoladamente, sem que haja interferência ou
influências entre ambas as partes. De modo pelo qual, cada um impõe a sua quota como
parte no “processo produtivo”. Por isso, é incongruente hierarquizá-los em escala
evolutiva (superior ou inferior).
É exatamente nesse sentido que após a leitura dos teóricos que estudam o
conceito de informalidade, tomando como ponto de partida os estudos pioneiros no
Quênia (que delimitava as características de trabalho informal, restringindo-a às
atividades domésticas empreendida por pequena escala de operação), resultante de um
estudo incipientemente superficial. Pois, tais interpretações de cunho generalista
obrigam Cacciamali (2007) a se apoiar no Hans Singer50 dentre outros autores,
advertindo que, na verdade, há um pré-conceito em torno do setor informal, ressaltando
que o mesmo não representa um setor arcaico que tenderia a desaparecer à medida que o
setor moderno-capitalista avançasse, porque constitui-se também como um dos
elementos engendrados pelo próprio avanço da produção capitalista em uma sociedade
periférica.
Preocupado com a determinação pré-conceituosa, Hans Singer (apud
Cacciamali,1982, p.37), atribui que o setor informal é como um fenômeno difícil de
descrever, mas fácil de reconhecer. Sendo que na maioria das vezes são explorados
pelas empresas formais, uma vez que a praticidade desses polos “formal” e “informal”
se dão funcionalmente numa relação de simbiose intrínseca e dialética, devido à
interdependência da circulação de capital.

50
Foi membro da missão da OIT. Durante os estudos sobre a economia, na Quênia, produziu o relatório
referente ao setor informal nesse país em 1972.
106

3.5. O Trabalho informal como fio (in)visível de acumulação

O grande desafio da nossa época e no mundo do trabalho consiste em saber se é o


setor informal que explora o setor formal ou se é o setor formal que se reproduz através
de flexibilização das formas de trabalho. Diante dessas “contradições” muitos
estudiosos das áreas de ciências sociais se debruçaram sobre o tema, dentre quais
destacadamente Maria Cacciamali (2001) e Maria Augusta Tavares (2002) sustentam de
forma unânime que na verdade o que ocorre é uma relação de continua interdependência
entre os “setores”. Ainda, Cacciamali preconiza que além de serem complexos e difíceis
de serem demarcados isoladamente, é urgente reatualizar o conceito de informalidade
antes de quaisquer comparações entre os dois setores.
Para entender melhor as supostas fronteiras do formal e informal, tomamos
emprestado o conceito de Boaventura de Souza Santos (2007) aquilo que o autor chama
de linhas cartográficas “abissais” – que para esse autor, o pensamento colonial que
demarcava o novo e o velho mundo ainda persiste ideologicamente, tanto nas
instituições ocidentais como no imaginário social. O que significa que essas pesquisas
sobre a informalidade, liderada pela OIT, além de dar muitas brechas, têm elementos
ideológicos perigosos, reproduzindo o pensamento do norte global versos sul global, de
modo pelo qual “[...] a característica fundamental do pensamento abissal é a
impossibilidade da co-presença dos dois lados da linha. (SANTOS, 2007, p.4). O que
Santos (2007) quer nos dizer é que essas formas de imposições ideológicas estão
presentes dialeticamente tanto na economia política quanto na sociedade e de modo pelo
qual é traçada em linha visível e linha invisível: a primeira – linha visível (norte global)
é opressora, formal, punitiva, legal e evasiva, ao passo que a segunda - linha invisível
(sul global) é oprimida, informal, ilegal, marginal, explorada, portanto, é passível de ser
explorada e criminalizada. Dito de outra maneira, se as características da economia
ocidental (capitalista) são tomadas como cenário da formalidade, da legalidade e da
burocracia, da ordem e do racional, logo, a economia dos países terceiro mundistas se
torna um campo polissêmico (passível de interpretação), no sentido oposto como se
fossem os da desordem, informalidade e ilegalidade. Essa é uma divisão superficial
muito presente e subjacente nas interpretações dos estudos da OIT e uma que predomina
107

na definição atual sobre a informalidade. Nesse sentido, o conceito “pensamento


abissal”, cunhado por Boaventura de Souza Santos, nos possibilita compreender a
maneira como muitos estudos sobre a informalidade têm sidos reproduzidos e aplicados
como critérios que impossibilitam coexistência entre o formal e informal, e por isso
copiosamente reduzem esse último à pequena economia (familiar), autônomas,
principalmente associando-a a características de países “em desenvolvimento”. Uma
análise reducionista e ideológica que trata os dois setores separadamente, quando na
pratica os dois setores deveriam ser tratados e vistos como indestrinçáveis (indivisíveis)
e, portanto, complementares.
Portanto, ao invés da impossibilidade da coexistência entre o setor informal e
formal tomados como elementos dualísticos, estanque (estática), entre os dois setores
contraditórios, temos uma realidade híbrida e/ou simbiose que opera no bojo do
processo da urbanização e das imbricadas formas de sobrevivências não só na África,
mas, em toda escala global. A informalidade tem estado presente na dinamização
econômica de acordo com as suas especificidades locais. Assim, as análises universais e
retrógradas (como os estudos da OIT sobre a informalidade no Quênia no ano de 1972)
são incapazes de resolver o impasse, uma vez que os conteúdos sobre a informalidade
são complexos, só os estudos locais empíricos e analíticos recentes podem esclarecer os
intrincados mecanismos de trabalho socialmente combinada no cotidiano das pessoas e
empresas que dependem de elementos informais dentro da divisão social do trabalho.
É exatamente nesse sentido, que por constituir-se em uma parte inserida na
divisão sócio internacional do trabalho, é profícuo ressaltar que, em essência, a
informalidade representa para os trabalhadores deserdados51 a subsistência para si,
podendo também gerar ganhos, inclusive para a manutenção familiar e/ou consumo
imediato, enquanto para o capitalista, se gera lucro. E isto por si só é fundamental para o
estabelecimento de uma “relação puramente monetária”, o que significa que esta
categoria de trabalho e de trabalhadoras participam diretamente da acumulação
capitalista. Pois a devida constatação dessa realidade pode ser observada na visão de
Beloque (2007):
As atividades que, nas últimas décadas, passaram a ser denominadas
de “informais” são espécies de trabalho que fazem parte da economia

51
José de Souza Martins (2016) usa o conceito de deserdados quando se refere a grupos de indivíduos
sem meios de produção, forças produtivas, e sem recursos naturais (terra, matérias-primas). Grosso modo,
é o perfil de indivíduos ou grupos carentes de bens materiais.
108

desde o início do capitalismo, vieram se combinando com as formas


de produção “tipicamente capitalistas” e influenciando-se,
mutuamente, ao longo do desenvolvimento deste sistema econômico.
Atualmente, as atividades “informais” são realizadas, grosso modo,
por um amplo espectro de trabalhadores [...]. E, em nenhum desses
casos, tais atividades são “informais” e exteriores à economia; ao
contrário, são partes constituintes da economia capitalista, seja da
produção, seja da circulação de bens e serviços.
[...] Essas proposições visam ressaltar que as atividades “informais”
não são “manchas de atraso” que perduraram, nem vão desaparecer
com a retomada do crescimento econômico, mas são elementos
integrantes, e em constante reprodução, de uma economia em que o
ato de trabalhar reproduz a exploração do trabalhador e de uma
economia em que a produção da riqueza gera pobreza.
É por essa razão que as políticas governamentais devem considerar a
“informalidade” não [como] um fenômeno a ser absorvido pelo
crescimento do emprego formal ou combatido, mas um elemento
constituinte desta economia excludente. (BELOQUE, 2007, p. 158-
162, grifo nosso).

O que Beloque (2007) quer explanar é que, pela ótica do modo de produção
capitalista, a informalidade é concebida como economia excludente, porém segundo o
mesmo autor, a história nos aponta para uma direção oposta, a de que se trata de uma
atividade econômica atemporal, que não podem ser concebidas, como se fossem as
manchas do atraso, que vão desaparecer com a retomada do crescimento econômico. E,
diz ainda, nem tampouco como encarada como um elemento deslocado, estanque e
intruso da economia, intruso (na sociedade), e na economia somente porque é
invisibilizada no modo de produção capitalista, ao contrário ambas podem se apresentar
como elementos de complementariedade e em constante produção de uma economia na
geração de riqueza. O que significa que, o serviço informal não é inferior, nem superior
a outra ocupação trabalhista, pois é simplesmente importante pelo que carrega os traços
da cultura do trabalho milenar, atuando nas diversas relações coexistência e de
interdependência direta na dinâmica da circulação dentro de uma economia, somada as
“novas e velhas” práticas de trabalho.
Isso significa que, esse universo comercial ainda quando seja informal, não está
desacoplado ao sistema capitalista de produção e por isso pode ser compreendido como
um importante fluxo monetário para a manutenção do sistema capitalista, de acordo
com suas especificidades na utilização das práxis humanas no processo de valorização
do capital e, que de igual modo serve também como força vital para a subsistência
dessas famílias. Aqui nos referimos ao tempo de trabalho daqueles indivíduos que,
109

depois de anos juntando suas quantias e ganhos, seja por empréstimos de familiares ou
por empréstimos ao banco, partem para a via-crúcis ou via-sacra, numa viagem em
caráter mercantil e monetária, objetivando-se a abastecer-se da compra de produtos que,
na maioria das vezes, são ofertados em lugares improvisados, ora em boxes de feiras
populares, ora em varandas de casa, para os revenderem em seus países de origem e
recuperar essa inversão feita na viagem e compra desses produtos, esperando ganhar
mais do que foi invertido inicialmente, no final do processo. Isso é algo que nem sempre
acontece, ou seja, que lhes esteja totalmente garantido.
O segmento da atividade mercantil e monetária praticada por esses indivíduos,
aquecem o mercado na medida em que estão inseridas num processo de negociação,
envolvendo (Dinheiro-Mercadoria-Dinheiro), numa esteira comercial, elas, as sacoleiras
reproduzem suas comunidades e, concomitantemente geram o retorno financeiro aos
fabricantes. Uma dinâmica compreendida por Marx (1978, p.15) como resultado de um
trabalho socialmente combinado e generalizado entre a produção, a distribuição, o
intercambio e o consumo. Por isso, entende-se que o setor econômico não se limita à
relação “ do trabalho típico”, mas de todos os mecanismos engenhosamente
interconectadas nas experiências de trabalho capaz de criar valor e constituir-se dentro
da economia. É exatamente nesse sentido que as atividades informais são elementos
dignos de apreciação e não depreciação, pois elas não são exteriores à economia, ao
contrário, constituem-se dentro da economia capitalista, seja nas fases da produção das
mercadorias, seja nas da circulação desses bens ou de serviços.
No capítulo VI inédito de O Capital, Karl Marx (apud ANTUNES, 2009) fala
sobre o trabalho produtivo, insinuando que não se trata necessariamente da qualidade do
trabalho que a pessoa executa enquanto métier (oficio), mas o que de fato incumbe
observar é se ele participa diretamente na geração do capital, inclusive através da
circulação de mercadorias que resultará em lucro. Segundo Antunes (2009), se o
trabalhador “[...] está de fato subsumido ao capital, se participa diretamente do processo
de valorização desse mesmo capital, então ele é um trabalhador produtivo. (ANTUNES,
2009, p.202).
110

3.6. A simbiose entre setor arcaico e moderno da economia nos debates da CEPAL

Apontado como fruto da experiência colonial, a história da economia política


latino-americana - e que se aplicaria também a países considerados terceiro mundistas
como os africanos – foi sempre associada à informalidade e ao subdesenvolvimento,
quando comparado aos de países chamados subdesenvolvidos ou de primeiro mundo,
carregando a crença, nesse tipo de olhar e perspectivas, de que havia neste outros
contextos mais atrasados uma mistura complexa entre muitos elementos arcaicos e pre-
capitalistas que se combinariam e misturariam aos de novos modos capitalistas
emergentes, desde o passado até o presente. Daí, para superar o legado colonial e o
subdesenvolvimento na América Latina, o pensamento cepalino52 aponta a falta de
industrialização principalmente na região do semiárido brasileiro como um desses
elementos arcaicos e, consequentemente, a principal causa do subdesenvolvimento e da
dependência da economia Brasileira.
Neste sentido, envolvido na tamanha preocupação em dar resposta a esses
teóricos do pensamento Cepalino, Francisco de Oliveira (1972), nesta famosa obra
sobre a Crítica à Razão dualista, se propõe a desenvolver um olhar com uma
metodologia em um terreno completamente oposto ao do dual-estruturalismo dos
Cepalinos que defendia a questão dualística de um modo mais estanque entre os dois
polos, o moderno e o mais atrasado. Oliveira defende que haveria uma relação de
simbiose entre o polo formal e informal, mas em um contexto em que o autor se referia
à estrutura econômica do Brasil como sendo uma estrutura pré-capitalista, numa fase
industrial própria e específica na que ocorreria essa simbiose entre o informal e formal,
carregado de elementos obsoletos do escravismo que se somariam aos de aparatos
tecnológicos modernos, nutrindo, assim, o sistema capitalista. Oliveira (1972) insinua

52
A Comissão Econômica Para a América Latina. A teoria desenvolvimentista da Cepal, em especial o
Celso Furtado, era que devido a situação de polarização do setor atrasado (do latifúndio), e do outro lado-
o setor moderno, daí a tarefa do estado, necessariamente tinha que ser a de superar o setor atrasado
porque era o empecilho ao desenvolvimento, o que fazia com que a economia se retraísse, e por isso a
solução seria a industrialização do Nordeste.
111

que estas práticas são características de países em desenvolvimento, acopladas ao


processo de industrialização e urbanização em veemência de acompanhar a
paradigmática modernização das forças produtivas. Por isso todos os elementos são
importantes e se constroem para ele, dialeticamente.
Isso leva Oliveira a asseverar que o setor moderno e setor atrasado da economia
operam concomitante e funcionalmente, contrariando a interpretação dominante da
época, (a cepalina) que via o antagonismo e incompatibilidade entre esses dois setores
ou “polos”. Principalmente, se contrapõe à tese de Celso Furtado que entendia que o
setor atrasado retraia (puxa para traz) o setor moderno. É nesse sentido que
contrapondo-se a essa concepção dualista econômica, que compreendia a operação
funcional dos dois setores estanque ao capitalismo, Oliveira diz:

[...] um setor "moderno", não se sustenta como singularidade: esse


tipo de dualidade é encontrável não apenas em quase todos os
sistemas, como em quase todos os períodos. Por outro lado, a oposição
na maioria dos casos é tão somente formal: de fato, o processo real
mostra uma simbiose e uma organicidade, uma unidade de contrários,
em que o chamado "moderno" cresce e se alimenta da existência do
"atrasado", se se quer manter a terminologia.
O "subdesenvolvimento" pareceria a forma própria de ser das
economias pré-industriais penetradas pelo capitalismo, em "trânsito",
portanto, para formas mais avançadas e sedimentadas deste; sem
embargo, uma tal postulação esquece que o "subdesenvolvimento" é
precisamente uma "produção" da expansão do capitalismo.
(OLIVEIRA, 1972, p. 7-8 grifo nosso).

Ao chancelar a interdependência entre o setor “moderno” e setor “atrasado” para


a expansão do capitalismo, Francisco de Oliveira (2011) associa metaforicamente o
Brasil a uma espécie biológica estranha, o ornitorrinco53, por não ser nem isso e nem
aquilo, porque falta-lhe mais ciência e técnica, diferente daquilo que é verificado nas
economias do capitalismo central. E que partindo nessa esteira de análise, tal raciocínio
pode nos levar a pensar o modo pelo qual boa parcela da sociedade brasileira vive na
informalidade e sem direitos sociais garantidos. Por isso para esse autor os chamados

53
O estranho animal é, ao mesmo tempo, um réptil, um pássaro e um mamífero. É anfíbio (vive na água e
na terra), dá de mamar aos filhotes, como os mamíferos, mas não dá à luz a esses filhotes, em vez disso,
põe ovos: como fazem muitos outros animais, exceto os mamíferos. Para além disso, tem um bico
semelhante ao de um pato, o rabo semelhante ao de um castor, membranas nas patas e, no caso dos
machos, espigões venenosos, uma característica também bastante rara em animais mamíferos. É tão
estranho quanto fantástico. Disponível em: http://noticias.terra.com.br/ciencia/interna/0,,OI2872257-
EI8145,00-Ornitorrinco+e+confirmado+como+ave+reptil+e+mamifero.html . Acesso em: 26 jul. 2016.
112

“setor moderno” e o “setor atrasado” atuam necessariamente de forma dialética e por


isso há funcionalidade do setor atrasado para o desenvolvimento do sistema capitalista
brasileiro, que por ser considerado periférico, o capitalismo Brasileiro se insere na
divisão internacional do trabalho de modo específico, mantendo necessariamente os
elementos do atraso, para reduzir os custos de mão de obra para que o setor mais
avançado se desenvolva.
Obviamente, isso mostra como a informalidade e a precarização do trabalho se
constituiria neste sentido, como resultado também do capitalismo moderno, por isso é
que tanto os países pré-capitalistas como capitalistas se apoiam necessariamente no
setor informal e na precarização para alavancar a sua acumulação. Talvez por este
motivo para muitos teóricos como estes, os trabalhadores “informais” de hoje
constituiriam uma parte integrante da economia capitalista, mesmo quando sejam
considerados agentes da economia subterrânea ou dos circuitos inferiores, como o são
muitos dos pequenos circuitos da economia.
113

Capítulo IV

4 PROTAGONISMO FEMININO E SUBSISTÊNCIA DO TRABALHO EM


GUINÉ-BISSAU, ANGOLA E NO MERCADO TRANSNACIONAL

Destacados como símbolos da agitação, do barulho e da multidão, os centros


comerciais (no mundo da reestruturação produtiva capitalista), em sintonia com a
modernidade, se caracterizam por traços intrinsecamente ligados à aceleração do tempo,
emancipação, monetarização das relações sociais e das realizações econômicas e/ou
materiais, deixando para trás o ritmo mais lento e habitual do campo marcado como
lugar de partida. Esse imaginário social criado em torno da cidade como lugar de
oportunidade, lança os indivíduos nas disputas por bens econômicos nas zonas urbanas,
destacadamente nas áreas comerciais e nos entornos das indústrias, onde teórica e
praticamente são encontrados muito maiores fluxos de dinheiro, mercadorias e serviços.
Nesse sentido, a economia monetária se constitui como um dos pontos centrais e
unificadores dos indivíduos das cidades grandes, mesmo diante da heterogeneidade da
cultura do trabalho dos agentes acionados em e de diversos espaços territoriais. Por isso,
o dinheiro aparece no pensamento de George Simmel (1998) como “o Deus da
modernidade”, na medida em que o dinheiro visto e percebido como o equivalente a
tudo e todos. Para esse autor, na modernidade tudo gira ao redor do dinheiro e, ao
mesmo tempo, a moeda faz tudo girar. Um fenômeno mediador no qual todas as coisas
distintas encontram o elemento comum e a de se poderem se tocar entre si por
intermédio do dinheiro. Mas o que Simmel quer nos transmitir é que não se trata de
afirmar que no mundo contemporâneo tudo é determinado e explicado pela vida
monetária, mas de perceber que esta é uma manifestação e encarnação de traços que
caracterizam os traços sociais mais importantes de nossa época, o seu leiv-motiv
(motor), por assim o dizer.
Nesse contexto, a cidade grande, por ser o lugar de intensa circulação de
dinheiro, testemunha a animosidade dos indivíduos com propósitos diferentes. Ao
mesmo tempo, também, é um lugar de alienação, e ao dinheiro, somado ao de diversas
114

outras contradições mais agudas. Todas essas vicissitudes da “capitalização do homem”


traçada entre a cidade, capital, dinheiro e a modernidade, carregam elementos
essencialmente paradoxais, perpassando a visão de um lugar emancipatório, igualitário
de livre circulação de pessoas e bens e, ao mesmo tempo, desvelando um palco
esmagador de múltiplos conflitos sociais, desempregos e aumento crescente de
trabalhos informais. Por isso, focamos nossa discussão entre cultura-relações de
trabalho, a partir do eixo da informalidade como fator vigorante e necessário em certos
países ditos “subdesenvolvidos”, como o são nos casos de Angola e de Guiné-Bissau,
onde são observadas a incidência do índice do desemprego e o aumento da
informalidade, caminhando concomitante e simultaneamente aos das modalidades mais
antigas e tradicionais de trabalho na região.
Ora, a combinação entre a “espoliação urbana” e o desemprego crônico é uma das
mais cruéis formas de genocídio social “jovem” na sociedade contemporânea,
destacadamente nos “países em desenvolvimento”. Isto aumenta em gravidade na
medida em que as incertezas do desemprego crescem devido à redução de nível de
salário ou ocupações, sejam elas intermitentes ou não, somados aos nefastos efeitos de
contratações “frouxas” provocadas pela maior flexibilização das diferentes modalidades
de forças do trabalho, que deixam enorme lacuna para a exploração do trabalho.

4.1. Quando as escolhas por emprego são reduzidas, o espaço urbano se


transforma em cenário de disputas para satisfação

Definitivamente não há como recusar que os espaços urbanos tornaram-se


territórios em disputa. Nessa perspectiva, também percebe-se que diversos estudos
sobre o trabalho e a urbanidade vem mostrando que as situações de desemprego e falta
de acessibilidade à serviços públicos e implementação de políticas públicas concretas
vem impulsionando indivíduos de áreas rurais e de economias modestas a adentrarem
nas grandes cidades, enfrentando uma encruzilhada de situações, dentre as quais:
superar o enigmático desemprego formal ou subsistir nos emaranhados territórios e
situações aos que os expõem viver da informalidade, pois a única certeza é a de que um
Estado que se manifesta de forma incipiente e tímido no que tange a questões de
oportunidades de inclusão social. Essa realidade, entre a falta de descentralização da
115

economia, a demanda pelo emprego e a falta de oportunidades, tem sido um dos maiores
desafios de economias nacionais, somada ao aumento significativo de novas
manifestações e emergência de novas culturas e modalidades de trabalho encontradas
cada vez mais em todo tipo de cidades.
Isso significa que as cidades de Luanda e de Bissau apresentam em suas
características, importantes semelhanças quanto à prática informal do trabalho,
visivelmente acompanhado pelo grande abarrotamento de suas ruas e calçadas. Pois,
durante a nossa pesquisa de campo, acompanhamos as idas e vindas de sacoleiras aos
seus países onde são expostos os produtos à venda, geralmente nos espaços
improvisados.
Muitos estudos teóricos também testemunham o drama que assolam as cidades
Guineenses e Angolanas. No caso particular de Angola, a cidade de Luanda é a que
vivencia o maior cotidiano de aumento abrupto de população e o crescimento de
atividades comerciais de rua (que nasce desde os primórdios da constituição dessas
sociedades), dominada pela presença de mulheres, conforme, descrito por Orlando
Santos (2011):
O rápido aumento das populações nos centros urbanos, agravado pelos
grandes influxos de deslocados (...) e pelo crescimento bastante lento
das oportunidades de emprego, e os salários pouco atrativos do
mercado de trabalho, aliado a uma tradição das populações ligadas a
atividades comerciais, fizeram de Luanda o maior canteiro de
alternativas de sobrevivência (...) estimulando a criatividade das
populações que tiveram de criar e inventar empregos para si próprios.
Esse acentuado incremento das atividades comerciais de rua tornou
ainda mais notória a presença das mulheres nesse tipo de atividade,
sendo atualmente apontada como a principal categoria social
fornecedora de mão-de-obra ao referido setor. Na procura de
alternativas de sobrevivência, as mulheres destacam-se enquanto
maioria, estando inseridas nos mais variados setores dessa atividade.
(SANTOS, 2011, p.8).

O perfil de sujeitos pesquisados por Santos (2011), o das chamadas


Quitandeiras, se constituem por um substrato socioeconômico ligeiramente inferior em
relação ao substrato social das sacoleiras que fazem viagens transnacionais, porém, de
forma geral, ambas usam diversas estratégias improvisadas para comercializarem seus
produtos, pois enquanto a Quitandeira depende do espaço público-rua, a sacoleira
(transnacional) atua numa condição de pronta-entrega nos estabelecimentos públicos,
aos seus clientes diretamente nos lugares de trabalho, de igual maneira também é
comum contribuir no abastecimento de algumas lojas (próprias ou não) e nos pontos de
116

venda nos modestos Shoppings centers da cidade. O que configura que a massiva
presença de mulheres no incremento das atividades comerciais de rua e/ou no mercado
informal é uma prática comum e necessária para a população local, dentro de uma
lógica comercial praticada por mulheres há anos.
Mas, a grosso modo, observa-se que especialmente nas maiores cidades da
Guiné-Bissau são também as mulheres que se destacam nessas modalidades, criando
alternativas de sobrevivência através de negócios próprios e participando na
solidificação da economia do país. Somadas aos demais segmentos informais, tais como
os chamados Djilas (camelôs) e demais proprietários de boxes, barracas distribuídas em
diversos pontos de vendas, contribuem proporcionalmente com seus impostos de acordo
com a capacidade dos seus pequenos empreendimentos, daí, que um imposto recolhido
pelo ministério das finanças serve como alavanca no PIB (Produto Interno Bruto da
Guiné-Bissau). Esse procedimento tributário no setor informal é muito mecanismo e
recurso muito comum e utilizado nos países periféricos, e um que também se aplica ao
caso de Angola, onde as feirantes, as quitandeiras, muambeiras seguem o mesmo ritual
de tributos que são canalizados para o cofre público54 através da circulação de
mercadoria e no tributo à câmara de comércio. Todavia, em todos esses segmentos
comerciais, há modos dos informais burlarem o fisco, quando não possuem um ponto de
fixação nos lugares públicos e improvisam estratégias de encontros informais em redes
de amigos para revenderem seus produtos a partir de suas casas ou em suas
proximidades, o que lhes permite igualmente realizarem seus afazeres domésticos,
embora algumas se desloquem até os mercados. Como é o caso da Sra. Nzinga que com
a participação dos guias que perambulam nas esquinas do Bairro do Brás, Nzinga
pechincha em todas as destacadas lojas do Brás e da feira da madrugada, um mercado
popular que oferta produtos de baixo custo, localizado na rua do oriente, além da rua
São Caetano, rua Monsenhor Andrade:

54
No Brasil os informais em geral também pagam impostos indiretamente na circulação, produção e
consumo de mercadorias. Além desses, outros tantos pagam via inserção como MEI –
Microempreendedor Individual.
117

Figura 14 - Imagens da Feira da madrugada-Brás

Imagem 1 - Feira da madrugada em Imagem 2 - Feira da madrugada em


2005 (Imagem retirada da internet) 2017 (Foto: Imagens do autor)

Imagem 3 Feira de Madrugada - Imagem 4. Atual feira da madrugada. (Foto: Imagens do autor)

Os circuitos inferiores, à exemplo das feiras de madrugada, no Brás em São


Paulo, são espalhadas em diversos polos do comércio popular, e às vezes torna difícil
uma sacoleira identificar os produtos falsificados dos originais. Jus ao próprio nome, a
feirinha funciona de segunda a sábado, das 3h00 às 10h00. E como muitas de suas
compatriotas no mesmo ramo, Nzinga segue o senso comum de mulheres que acreditam
no refrão usual de concepções do movimento feminista, a de que o lugar da mulher não
é da porta de casa para a cozinha, pois “o lugar da mulher é [nas palavras dela] onde ela
quiser”:

(...) sou comerciante em Luanda, tenho minha loja que fica ao lado da
minha casa, e que funciona há uma década, eu já sei dos países e sítios
que me proporcionaram boas peças de roupa, um bom preço de
cabelo, chinelos, lingeries etc. Vou a Dubai, Istambul, Cingapura,
Hong Kong e São Paulo. São nessas cidades que eu prefiro comprar as
minhas coisas. A Singapura e Hong Kong têm muitos acessórios,
118

eletroeletrônicos, roupas, em Dubai tem eletroeletrônicos, acessórios e


carros muito baratos porque os produtos não têm impostos, ainda tem
os passeios e restaurantes de luxos, mas que não são nada baratos, mas
pra quem quer curtir a vida vale pelo menos um dia de princesa (...). O
meu lugar não na cozinha, é onde eu quiser. Posso trabalhar em
qualquer lugar basta eu querer. (Sra. Nzinga, comerciante
angolana, 39 anos, entrevista realizada em 04/11/2016).

Esse cenário experienciado pela Nzinga tem sido definitivamente mais intenso
e flexível devido à reestruturação produtiva do capital a partir da década de 1990, em
virtude do deslocamento das pessoas nas áreas rurais (pequenas cidades) para as áreas
urbanas de maior impacto econômico. Nesse contexto, tanto em Angola quanto em
Guiné-Bissau, a vida no campo tem sido o passado de muitos jovens, e a cidade cumpre
a função de apresentar o presente e o futuro na economia, tornando-se o lugar adequado
para a aquisição de dinheiro. As cidades grandes têm sido refúgio abarrotado de
trabalhadores desempregados (e informais), que se aproximam da circulação de
dinheiro, mercadoria e serviços, partindo da noção de que naquele lugar eles serão
acionados para serviços informais (geralmente no comércio, convivendo muitas vezes
com uma realidade de trabalho e vida com desproteção social e precariedade). É o que
lhes resta, e elas, as sacoleiras, reinventam e reestabelecem seus modus vivendi nos seus
círculos sociais, criam e recriam novas relações de vizinhança, trocas de favores e
ajudas mútuas (muito próximas e similares aos de famílias extensas, nas que algumas
delas vivem) – uma característica típica de sociedades enraizadas (e categorizadas como
sociedades tradicionais) e nas instituições sociais, na qual os sujeitos constantemente
buscam preservar a imagem sensível-espiritual da vida.
Por conseguinte, a compreensão que se tem dessa comunidade de africanos é que
a compressão-tempo-espaço e/ou fugacidade do tempo e espaço não subestima os
valores morais e a importância familiar, sendo esta considerada uma essência humana
baseada em um simples preceito unificador consagrado na máxima Zulu 55, que é
comumente compartilhada em muitas sociedades africanas, e que segundo Louw (1998,
não paginado): "Um indivíduo só se torna um ser humano através da alteridade com
outros seres humanos", o que significa dizer que se eu sou humano é porque eu pertenço
aos humanos; logo, se eu existo, é porque “nós somos”. Isto é uma relação

55
Grupo étnico da África do Sul. Os zulus ou zulos (são um povo do sul da África que vive em territórios
correspondentes à África do Sul, Lesoto, Suazilândia, Zimbabwe e Moçambique).
119

metaforicamente intrínseca que resume a visão de mundo de certas comunidades que se


solidarizam num tom coletivo da alteridade na economia e na sociedade que está sempre
presente nesse grupo de sacoleiras, o de umas mulheres com as outras e para com suas
famílias extensas, onde a felicidade de um sujeito depende da do outro. Isso porque
ninguém vive feliz sozinho, daí que, dia após dia, buscam atingir a máxima espiritual de
que ter a consciência tranquila é o melhor dos travesseiros. Isso se refere a essa
experiência coletiva que rege os indivíduos dentro do círculo social.
Louw (1998) destaca muito bem isso quando faz uma releitura sobre a
pluralidade religiosa essencialmente na África do Sul, e critica contundentemente o
absolutismo religioso introduzido no continente africano pelos colonizadores. Para o
autor, as religiões sul-africanas foram colonizadas por uma ideologia e normas de
valores que não condizem com os costumes locais. Por isso, em uma tentativa de
transcender a essa colonização hegemônica, os nativos buscaram superar o absolutismo
sem recorrer ao relativismo, mas especificamente retomando a filosofia africana e o
modo de vida chamado "Ubuntu" (humanidade), praticada desde antes da colonização.
Esta filosofia de vida “africana” chamada Ubuntu, etimologicamente de origem Zulu,
serve como o fundamento espiritual de algumas das sociedades africanas essencialmente
apoiadas em valores humanos, obrigando socialmente os sujeitos a buscarem a moral,
redistribuição, reconhecimento, generosidade, solidariedade e compaixão para com os
outros (necessitados). Elas provisionam aos indivíduos ao princípio e disposição de
dadivar em todos os campos da vida social, econômica, política, etc. (LOUW, 1998, não
paginado).
Torna-se evidente compreender desde aqui que a economia e a cultura são
indissociáveis e os indivíduos são amarrados a teias de significados que eles mesmos
teceram, buscando conciliar seus costumes locais com as formas “convencionais”,
constituindo assim categorias híbridas nas cidades em detrimento de reforçar a relação
familiar ou o (círculo social), a partir dessas regras que operam no imaginário social
dessa comunidade. O impressionante é a forma como são encarados os aspectos do
humanismo nessas comunidades africanas (da Língua oficial Portuguesa) e no círculo
social das sacoleiras. Os sujeitos têm experiências compartilhadas e que passam de pai
para filho, constituindo assim uma relação simbólica para eternizar os laços espirituais,
sociais e econômicos, mormente no que diz respeito ao comprometimento com o
120

coletivo de uma da família extensa, com imponente presença das mulheres na economia
e na administração do lar. Como narra a entrevistada Alice:
A minha família é uma família grande, entre tios sobrinhos e netos,
todos praticamente dormem no mesmo teto, sempre ando por aqui
com algum parente ou amigas, que também vem pra cá fazer compras.
Sou muito conhecida aqui no comercio, desde [o] lojão do Bras até a
Feira da Madrugada. As vezes as atendentes das lojas me perguntam
se o meu marido não me ajuda a fazer compras e eu sempre dou risada
e falo que a passagem tá cara, agora está a custar 1.100 USD
[equivalente três mil reais]. Mas ele trabalha lá. Eu me sinto bem
[em] trabalhar com isso. Olha vou te falar uma coisa, já que eu não
desisti desde primeiros anos, não é agora que vou mudar para pra
fazer outra coisa, que nem sei se vai valer a pena. Os meus filhos
todos, nasceram e cresceram do meu trabalho e das minhas lojas.
E nunca pensei em mudar para fazer outra coisa. Dá um pouco de
trabalho, mas não posso reclamar. Se eu posso ajudar as minhas
sobrinhas ou algum outro parente, porque não? Não para tapar o
sol com a peneira. O único conselho que eu dou aos meus filhos e
sobrinhos é saber acreditar e levar as coisas serias, o dinheiro pode ser
pouco, mas se saber controlar bem, pode crescer. Estou aqui com a
minha sobrinha essa semana toda comprando daqui um pouco e
depois vamos para a Praça da República, [onde] tem uma loja
Rener, [lá] ela vai comprar alguns vestidos para misturar com o
que ela já comprou ontem, porque eu e o meu marido oferecemos
a ela uma quantia pequena pra comprar coisas simples como
chinelos e peças intimas e se der certo [para ela], ela pode
continuar, ela é quem vai se empenhar com isso. (Celeste,
angolana, 45 anos, entrevista realizada no Brás-são Paulo
13/10/2015).

Figura 15 - Olga (de pé, posicionada à frente) e tia Alice (de pé, posicionada atrás), ambas durante as
compras de chinelos, brinquedos e fantasias de aniversário infantil).

Foto: Paulo Gomes Vaz (13/10/2015).


121

Essas práticas de dadivar, partilhas e “experiências” transmitidas


transgeracionalmente entre os membros mais velhos da família para a nova geração
ultrapassam dos seus convívios domésticos (lar-casa) e se estende para o campo da
economia. E na maioria das vezes os primeiros passos no comércio vem sempre de
alguma influência e de empréstimo financeiro por parte de algum parente ou conhecido
(que já tem um capital fixo). Uma vez emprestada alguma quantia financeira à sobrinha
que a acompanha às compras, vê-se que esta então começa a empreender com pequenas
comprar pontuais e assim sucessivamente. O que significa dizer que, é raramente uma
sacoleira que começa o negócio com grandes investimentos financeiros sem que seja
amparado financeiramente por familiares ou outros modos de financiar suas primeiras
viagens. As pessoas mais novas, ou menos, ou com menos recurso financeiro,
geralmente se iniciam com pequenos volumes de mercadorias, à exemplo da
entrevistada Alice, que se assemelha à de muitas nesse segmento comercial, o que
demonstra que empreender-se como sacoleira constitui ser um tipo de experiências que
são transmitidas também geracionalmente (de tia à sobrinha), no caso da Olga.
Essa transmissão de experiências e práticas culturais seculares como a do
comércio, e entre os membros das mesmas famílias, nos aproxima ao conceito de
habitus de Bourdieu (2000), no sentido de uma interiorização das estruturas sociais,
decorrente da visão de mundo em que as experiências são transmitidas e interiorizadas
através de mecanismos inconscientes, que parecem ser “automáticas”. De igual modo,
se analisarmos a práxis social das sacoleiras, a informalidade e as tolerâncias também
são reflexos da estrutura social mais ampla na que elas estão inseridas. Neste sentido,
nota-se que as disposições pelas quais as sacoleiras percebem o mundo social ao seu
redor e reagem a ela (cultura do grupo), como se tratasse de algo naturalizado e habitual
para elas. Isso porque “[...] o habitus não é destino, como se [o] vê às vezes. Sendo
produto da história, é um sistema de disposição aberto, que é incessantemente
confrontado por experiências novas e, assim, incessantemente afetado por elas”
(BOURDIEU, 1992, p.108, apud SETTON, 2002, p.64, nota de Rodapé).
E não raramente, essas experiências geracionais se transformam numa espécie
de “ocupações por afinidade” devido às experiências acumuladas, como é o caso da
Olga, que naturaliza a sua vocação e afinidade de trabalhar como revendedora.
Igualmente, Nzinga aguça esse caráter de “ocupação por afinidade” pela forma como
demonstra o seu afinco no “oficio”, e que declarou, no momento da entrevista quando
122

estava na agência transportadora de cargas confeccionando as compras que serão


despachadas, o seguinte:

Quero sempre ter as minhas coisas, é neste comércio que eu tiro o meu
sustento diário. A vida está difícil em todo o lugar! Com o meu
negócio consigo pagar todas as minhas dividas e ainda ajudar os meus
parentes. Por isso ando de cabeça erguida e cuido muito bem dos
meus filhos. Eles [meus filhos] depois podem decidir escolher a
vida que eles querem, mas eu não, não tenho escolhas... é pegar ou
largar! A minha geração, por exemplo, já está perdida, muitos
colegas [homens e mulheres] estão perdidos no álcool e a depender
de ajudas de familiares. Eu não! Recuso a derrota, posso garantir
o meu sustento dignamente com este trabalho. Não sou uma pessoa
acomodada, sabemos que a vida é dura, mas enquanto temos saúde
vamos correr a atrás quem sabe ... e aguardar que os nossos políticos
ou pessoas mais estudadas tomem o juízo para o nosso país. (Sra.
Nzinga, comerciante angolana, 39 anos, entrevista realizada em
04/11/2016).

Figura 16 - Sacoleira organizando as compras enquanto aguarda o despacho da


sua mercadoria na agência transportadora

Sra. Nzinga, angolana de 39 anos organizando os produtos comprados, que serão despachados pela
transportadora de mercadorias. Foto: do Autor (04/11/2016).

A realidade de Nzinga para driblar a vida é muito comum nas experiências


dessas comunidades e, principalmente, no que tange às mulheres. Mesmo com parcos
recursos elas tomam iniciativas de partirem às compras para locais bem distantes, num
trajeto que ocorre de forma intencional devido a experiência geracional de carência de
123

condições materiais e/ou déficit de estruturas econômicas em seus países. Este contexto
as coloca em condições práticas desprivilegiadas no mercado de trabalho,
impulsionando-as a incorporarem o espírito resiliente para subsistirem socialmente e
garantirem a manutenção do núcleo familiar, numa persistência tenaz que lhes imputam
face aos desgastantes desafios cotidianos impostos pela vida diante de vários fatores de
desigualdade e carências de políticas públicas eficazes, por isso as escolhas para se
inserir no mercado de trabalho formal, são praticamente escassas. Tal fato explica até
certo ponto o alto índice de participação das mulheres nesse setor, pois é por meio dele
que elas poderão garantir seu sustento. O que significa que, a avaliação do impacto do
comércio e das políticas comerciais sobre o gênero deve predominantemente se enfocar
mais nesse setor.
Segundo o relatório do Programa das Nações Unidas Para o Desenvolvimento-
PNUD (2016), intitulado: “acelerar a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das
Mulheres em África”, os dados apontam que Angola e Guiné-Bissau estão entre os
países com maior nível de perdas econômicas devido às desigualdades de gênero no
mercado de trabalho:
A desigualdade de gênero está custando à África subsaariana em
média U$ 95 bilhões por ano, atingindo U$ 105 bilhões em 2014 - ou
seis por cento do PIB da região - prejudicando os esforços do
continente para um desenvolvimento humano inclusivo e crescimento
econômico (Relatório 2016).
O relatório analisa os fatores políticos, econômicos e sociais que
impedem o avanço das mulheres africanas e propõe políticas e ações
concretas para colmatar a disparidade de gênero. Estes incluem
abordar a contradição entre as disposições legais e a prática em leis de
gênero; Derrubando normas sociais nocivas e transformando cenários
institucionais discriminatórios; E assegurando a participação
econômica, social e política das mulheres.
Os obstáculos estruturais profundamente enraizados, como a
distribuição desigual de recursos, poder e riqueza, combinados com
instituições sociais e normas que sustentam a desigualdade, estão
mantendo as mulheres africanas e o resto do continente a retroceder. O
relatório estima que um aumento de 1% na desigualdade de gênero
reduz o índice de desenvolvimento humano de um país em 0,75 por
cento. (PNUD, 28 ago. 2016, tradução nossa)56.

56
Africa Human Development Report, 2016. Disponível em:
http://www.undp.org/content/undp/en/home/librarypage/hdr/2016-africa-human-development-
report.html. Acesso em: 10 nov. 2016.
124

Os elementos relatados pela PNUD (2016), dentre os quais os problemas sociais,


políticos e principalmente as instabilidades de diversas origens têm sido entraves à
progressão econômica, banalizando o índice da desigualdade social e de gênero. Ainda,
nesta direção a Guiné-Bissau, por seu turno, possui uma elevada biodiversidade, além
de vastos recursos hídricos, fauna variada, floresta, contando ainda com um potencial de
recursos minerais a ser explorado (UNECA, p.41, 2012). E é, apesar dessas riquezas
naturais, um país marcado por uma desigualdade acentuada de gênero. O seu sistema de
proteção social está disponível – em princípio – para os funcionários públicos, mas
tendo em conta as dificuldades financeiras do Estado, os processos estagnaram-se.
Embora 51,9% das mulheres sejam consideradas ativas, elas trabalham principalmente
no setor informal em todo o país. Bem como, 77,1% dedicam-se à agricultura de
subsistência, setor que apresenta as mais baixas taxas de rentabilidade econômica, como
por exemplo, são os casos das compradoras ou revendedoras de peixe.
Tais ocupações refletem-se nas experiências cotidianas relacionadas à noção de
vida herdada e acumulada ao longo do tempo, assim como nas modalidades adquiridas
em condutas grupais traduzidas por: espontaneidade, heterogeneidade, ambiguidade e
sagacidade, nas quais as dinâmicas culturais convergem com o modus operandi da
atividade comercial de intermediação (GEERTZ, 1978, grifo nosso). Segundo a
pesquisadora Portuguesa, e destacada especialista em estratégias associativas em África,
gênero, pós-colonialismo e multiculturalismo, Maria Domingues:

[...] a participação das mulheres na economia urbana, se é realizada


informalmente, não revela necessariamente uma prática de
marginalização econômica das mulheres, e os rendimentos obtidos são
relevantes para os orçamentos familiares e para a economia nacional.
No entanto, esta informalidade dos procedimentos econômicos e
sociais tem inevitavelmente como consequências uma maior
insegurança econômica, que as populações procuram contornar
através de outros procedimentos informais, nos contextos das relações
sociais (DOMINGUES, 2000, 46).

O desemprego e insegurança econômica têm sidos os elementos que mais tem


corroborado com a informalização do trabalho, mas ao mesmo tempo se trata de uma
realidade que pode ser compreendida como um lugar que cria paradoxalmente um novo
lugar, um lugar de afirmação para que os desempregados formalmente assumam de
outros modos seus compromissos familiares, já que se trata de um segmento onde as
pessoas nele envolvidas não têm pretensão imediata de se enriquecer, mas
125

primeiramente de subsistir, abrindo assim uma perspectiva viável e até confortável em


alguns dos casos para o equilibro do orçamento das suas famílias e até de realização oun
novas oportunidades e modos de participação no mundo social no trabalho e da
circulação pelo mundo e novas fronteiras.

4.2. A feminização do trabalho: Uma experiência das angolanas e


guineenses

A atividade de compra e venda de mercadorias envolvendo mulheres africanas,


como já trazido, é uma velha tradição na economia de muitas sociedades africanas,
porém no cenário das relações transatlânticas (e na travessia da África para a América)
cujo fim é a compra de produtos para a revenda, do Brasil para África, é uma realidade
relativamente nova (no Brasil) – empreendida de forma embrionária aproximadamente
na década de 1990 por diversos grupos de imigrantes e/ou turistas (especialmente as
angolanas) e, posteriormente, as guineenses, que começaram a chegar nos anos de 2000,
ambas atraídas individualmente pelos produtos ofertados no mercado brasileiro e que
apresentavam muita procura nos seus países de origens. Eram microgrupos (não há
valor exato, mas são centenas de mulheres) que se locomoviam de forma sazonal à
capital Paulista, principalmente (nas épocas festivas, finais de ano) devido a maior
demanda-consumo nos seus países de origem nessa época57.
Essa prática passara a tornar-se um exercício permanente na geração de recursos
de sobrevivência de mulheres, que viam nessa rota comercial o lugar de emancipação e
de inclusão social, devido a atribuições e papéis relacionados ao trabalho de acordo com
o gênero. Pesquisadoras como Saffiote (1976) e Helena Hirata (2007) compreendem
esse espaço predominantemente ocupado pelas mulheres como um que pode ser
reconhecido como o de feminização do trabalho58 um fardo ainda longe de ser extinto,
pela forma como essas diferenças têm sido banalizadas em todas as sociedades. Saffiote

57
Cf. (vide o anexo B): Uma análise interessante e condensada desse modus operandi das sacoleiras a
partir do comercio do Brás pode ser encontrada no artigo intitulado As “muambeiras” nos subterrâneos
das cadeias globais de mercadorias: o caso das sacoleiras africanas nos circuitos comercial entre
São Paulo (Brás) e Angola. (2013), publicada pela revista CERU da USP. Disponível em:
http://www.revistas.usp.br/ceru/article/view/87214/90179
58
Se caracteriza pela divisão sócio-sexual do trabalho predominado pelas mulheres. Cf. Helena Hirata em
Globalização e divisão sexual do trabalho, 2002.
126

(1976) preconiza em seus estudos que o trabalho nunca foi alheio à mulher. Neste
sentido, ela assume um papel preponderante na criação de riqueza social e na
subsistência de sua família, contudo, o que feministas relevam é que, em toda a história
da humanidade o gênero feminino tem ocupado uma relação subalterna e em nenhuma
sociedade de classe conseguiu extirpar as hierarquizações de gênero, que aparecem
como omnipresentes, em muitas sociedades, mesmo na maioria das africanas, onde um
significante protagonismo e maior autonomia das mulheres no exercício de atividades
no âmbito da economia, religião e culturas de modo geral lhe são mais reconhecidos,
quando comparados aos de outros contextos. Esta é uma situação e tipo de estereótipos
que requer a implementação de medidas mais eficazes de combate, mediante um maior
incentivo à inclusão social do gênero feminino através de políticas públicas, como uma
forma de buscar amenizar os efeitos nefastos e desigualdades das que elas são as
maiores vítimas.
As mulheres trabalhadoras, estão envolvidas diretamente com o comércio
internacional e com frequência, recorrem a instituições informais de empréstimos
financeiros (em raras exceções), e criam cooperativas informais para arrecadação de
fundos, somados aos dispositivos relatados de buscar a ajuda de familiares, buscam
armar-se e juntar seus recursos para viajar a países como China, África do Sul, Namíbia,
Emirados Árabes, Singapura, Turquia, Índia e Brasil, a fim de comprar mercadorias.
Esses artigos são posteriormente enviados a Angola ou Guiné-Bissau para serem
vendidos no comércio retalhista local59. Embora em menor proporção, estes sujeitos
desempenham um papel importante na balança comercial (comércio internacional) pela
quantidade de produtos comprados. No Brás, uma das áreas mais comerciais da cidade
de São Paulo, essas mulheres cruzam-se entre si, trocam cumprimentos e aconselham
umas às outras sobre suas diferentes estratégias de compra. Teresa Manuel, de 30
anos60, residente em Luanda, é uma delas. Viaja quase todos os meses para o Brasil.
Casada e mãe de quatro filhos (crianças na faixa etária de 2 a 14 anos), ela conta que
não teve oportunidades para estudar e ingressar na universidade “devido à
responsabilidade familiar”. Após uma pausa em sua fala, ela acrescenta, sorridente, que:
“[...] com o pequeno comércio já é possível empurrar a vida”. Teresa conhece bem o

59
UNCTAD (2013). Informação fornecida pela Federação Angolana de Mulheres do trabalho informal
durante a missão de levantamento de dados, 2013.
60
Nome fictício, entrevista realizada em 12/07/2013 como parte da pesquisa de campo. Cf. VAZ, Paulo
Gomes (2013).
127

mercado acima citado e afirma, sem hesitação, que a mercadoria brasileira é mais aceita
em termos de qualidade e design, enquanto os produtos da China são aceitos pela
quantidade e pelo preço:

“Não que os outros não tenham qualidade, mas o Brasil,


especialmente nos artigos femininos, se destaca mais”. Dubai destaca-
se pelas joias e bijuterias, enquanto a Índia, pela qualidade dos cabelos
humanos e preços considerados baixos. “Mas de todos estes países
que eu citei, o Brasil tem a passagem mais em conta, além do mais,
apesar de todos os problemas sociais, é o lugar onde somos mais bem
tratados nas relações comerciais. Teresa Manuel, 30 anos, entrevista
realizada no Brás em 26/09/2013) ”.

O relato da Teresa Manuela chancela de fato uma das partes importante nesse
circuitos e itinerários de compras. No caso da nossa interlocutora, são artigos femininos,
o design, que torna o mercado mais atrativo, enquanto o mercado chinês são os preços
baixos, e a Dubai é sempre associada a artigos luxuosos.
Francisca Guimarães é outra comerciante do grupo das sacoleiras. Mãe solteira,
de 35 anos, tem três filhos, aprendeu o negócio com a tia, que já comprava roupas nos
bairros do Bom Retiro em São Paulo, para revender em Angola. Nas palavras de
Francisca: “A minha tia sempre trabalhou com honestidade para dar de comer aos
filhos. E agora, cá estou eu a fazer o mesmo”. Ela diz que a vida é dura, mas persevera;
corajosa, arrisca-se em feiras de madrugada, acompanhada por guias (rapazes
angolanos), em busca dos preços baixos. Assim que amanhece e as lojas abrem as
portas, ela segue a rotina, sem despregar os olhos, seguindo o percurso que conhece tão
bem: “faço compras na loja Paraná, que fica na Rua Cavalheiro-Brás, no número 85, e
nas lojas que ficam na Rua Maria Marcolino”. Estamos no começo da área do Brás, no
Largo da Concórdia. Francisca abre os braços, aponta para o fim da avenida e para as
suas compras, durante uma pausa para o almoço durante a nossa conversa informal
(quando eu propus a ela que respondesse o meu questionário), a mesma seguiu que
mantivemos a nossa conversa de modo informal, porém breve, e diz: “veja”: são essas
havaianas que estão sendo muito procuradas lá em angola, é um produto que dá a
sensação de originalidade, de coisa pura, pode conferir a qualidade do material, com
esse material lá eu consigo vender rápido e tiro um bom lucro, me afirmou e mostrou
os produtos que eu fotografei e exponho nas Figuras 16 e 17, a Francisca Guimaraes:
128

Figura.17 - Chinelos havaianas comprados nas lojas do Brás

Fonte: Paulo G. Vaz (setembro de 2013).

Figura 18 - Cabelos (humanos) naturais

Fonte: Paulo G. Vaz (setembro de 2013).

Perseverança também é a palavra de ordem para Cláudia Maria, 31 anos, Aurora


Garcia, 36 anos, Luyana Carvalho, 24 anos e Helena Dias Joaquim, 25 anos – além de
outras mulheres de negócios que, na altura desta entrevista, estavam novamente de
partida para a cidade de Luanda, porque além de seguir com as malas para aeroporto,
era também a semana da inauguração da sua loja em Luanda, onde a sua presença em
pessoa era fundamental.
Toda esta peculiaridade e vivacidade dessas mulheres pode ser caracterizada
pelo comprometimento em fazer negócios sério em redes, é impulsionado pelas vitrines,
129

bens ofertados e considerados de baixo valor, e principalmente através dos seus


networks de amigos que lhes indicam os endereços de produtos, os descontos,
promoções, mormente nos entornos do comércio do Brás e shoppings centers da zona
leste de São Paulo. Pois um elemento importante a destacar é que ficou para mim
evidente a constituição de uma espécie de cluster étnico nessa região central da cidade,
onde convivem personagens com propósitos diversos (que se concentram em células de
nacionalidades visivelmente identificadas), sobressaindo-se as sacoleiras africanas, num
frenético movimento de maximização do tempo diante dos parcos recursos, premidas
também pela tentação do consumo próprio (já que as mercadorias as/lhes atraem). Elas
procuram, no entanto, muito sabiamente, não se deixarem tentar mais da conta. Isso faz
com que as situações em que se encontram hoje as informantes Teresa, Francisca e
tantas outras sejam comuns ao de milhares de africanas. Vejamos o caso de Claudia
Maria, 31 anos, atualmente proprietária de uma loja de calçados na antiga travessa da
Vila do Gamek, em Angola. Depois de dez anos de travessia do Atlântico, ela diz:

Viajo três vezes por ano e o meu negócio estendeu-se para outros
artigos, para além dos sapatos para todas as idades. Estou a contar já
com o fornecedor BBS (banco de crédito), mas os dias que correm não
são os melhores, temos tido muito pouco rendimento (Cláudia Maria,
31 anos, entrevista realizada no Bairro Brás, São Paulo, 27/09
2013)61.

Existe uma conexão óbvia entre o tipo de consumo e o sexo da vendedora,


conforme mencionado por Abílio (2012), assim como existe também conexão
importante, entre o tipo de consumo e o sexo da compradora. É impossível contornar a
realidade da feminização do trabalho e sua ligação a uma definição bastante utilitária de
classe social. A convivência entre exploração ou negócio próprio (realidade econômica)
e gostos femininos (realidade socialmente construída do “ser mulher”) dá a inteira
dimensão do sentido da classe social, numa configuração mais atualizada, descolada de
uma visão estática ou meramente econômica.
Isso significa que dizer que estamos bem longe da sociedade salarial descrita por
Robert Castels (1998), e mais perto da situação de precarização e informalidade descrita
pelo mesmo autor, com a lente, contudo, focada naquela realidade ideal que informa a
sua categorização das situações de trabalho. Ainda, Castels apresenta o mundo do

61
Cf. VAZ, Paulo Gomes (2013).
130

trabalho para além de uma especificidade da sociedade salarial - símbolo de status na


década de 60. Este foi se esmiuçando quando entrou em derrocada a partir da crise
estrutural do capital e das flexibilizações das forças produtivas, cedendo lugar para uma
mera retribuição monetária alicerçada e nutrida pelos excluídos e desfiliados
socialmente. Estes indivíduos “inimpregáveis” ou sem-emprego caracterizam-se por
uma gama mais atingida com a desproteção social e assolada pela consequência da
própria lei geral da acumulação capitalista e da crise do estado de bem-estar social.
A partir dessa compreensão, Polanyi (2000), demonstra sua total consternação a
respeito da economia de mercado, demonizando-a por restringir-se à ideologia
neoliberal. Além do mais, não agrega valores recíprocos que proporcionem a
subsistência humana. A economia de subsistência é chancelada por Polanyi porque os
indivíduos envolvidos agem para salvaguardar a situação social. Como sustenta o autor:
[...] a economia do homem, (enquanto ser genérico), como regra, está
submersa em suas relações sociais. Ele não age desta forma para
salvaguardar seu interesse individual na posse de bens materiais, ele
age assim para salvaguardar sua situação social, suas exigências
sociais, seu patrimônio social. Ele valoriza os bens materiais na
medida em que eles servem a seus propósitos [...]. (POLANYI, 2000,
p. 65, grifo nosso).

Eis a interpretação do real sentido da economia. A palavra vem


etimologicamente do grego Oikonomos, um composto de “oikos” traduzida por “eco”,
que significa (casa, propriedade, lar) e “nomos” (costume, lei) resultando em “regras ou
administração da casa, do lar” para garantir a perenidade e o bem-estar das pessoas que
o habitam e a atividade que nele desenvolvem. (ARISTÓTELES, 2004, p.11). Neste
sentido “stricto sensu” a economia é uma autêntica arte, não podendo senão ocupar-se
da correta utilização dos bens domésticos, estando mais para subsistência do que para
economia de mercado.
Esta compreensão do mundo impele as sacoleiras a se lançarem nas jornadas
entre os cantos e travessias intercontinentais em detrimento de salvaguardar a situação
social. A finalidade de comprar nas metrópoles, através de viagens a trabalho, para
abastecer algumas cidades da África pauta-se na subsistência dos seus familiares. Erra
quem pensa que o “pequeno negócio” ou “negócio por conta própria” está isento de
labor. Essas moças trabalham duro e não tem tempo para desfrutar das belezas e
encantos do Brasil, a exemplo de turistas que viajam a passeio. Como se pode observar
no relato do gerente do Hotel:
131

Elas são umas verdadeiras guerreiras. Acordam diariamente muito


cedo, tomam o café da manhã aqui no hotel e saem diretamente para
as lojas, ocupadas com as compras, só regressam para dormir. Às
vezes alugam o quarto em comum para diminuir os custos (Paulistano,
Teresino Junior, 53 anos. Gerente e supervisor do hotel Vitoria - Brás.
Entrevista realizada em 20/04/2013 )62.

Figura.19 - Teresino Junior - gerente e supervisor do Hotel Vitória, no Bairro Brás - São Paulo –
SP

Fonte: Paulo G. Vaz (20/04/2013 )

Elas chegam normalmente em grupos de cinco a dez mulheres e se hospedam nos


locais habituais, sempre nas proximidades dos pontos comerciais onde são abastecidas
as compras. São destinos comuns o Hotel Vitória, na Rua Cavalheiro; Brás Palace Hotel
na R. Dr. Ricardo Gonçalves, 37 - Brás, São Paulo; o Hotel Borba ou o Hotel 21,
ambos na Rua Doutor Ricardo Gonçalves. Conhecidas por sua honestidade, nunca
deixam nada por pagar. Ao contrário, logo que chegam a São Paulo, deixam as diárias
de hospedagem completamente quitadas, para não caírem na tentação de gastar mais
(segundo a versão do gerente do hotel que provavelmente reproduz o discurso fornecido
pelas próprias hóspedes sacoleiras ou muambeiras africanas). O juízo moralmente
positivo é confirmado pelo supervisor da loja Paraná, um dos estabelecimentos mais
procurados pelas compradoras. Ele mal esconde a satisfação com os lucros que elas lhe
trazem: “mesmo em tempo de crise, como a de 2008, as africanas continuavam a
comprar chinelos na minha loja”. Ele nota que elas chegam muito influenciadas pelas
novelas brasileiras. “Os chinelos que elas pedem evocavam temas dessas novelas (como

62
Cf. VAZ, Paulo Gomes (2013).
132

era o caso de) O Caminho das Índias (nome de uma novela televisiva muito popular à
época), mas procuram também os logotipos das seleções de futebol”.

Outro gerente de Hotel Brás Palace, na mesma região, acrescenta:


“recebo todos os dias mais de cem angolanos, e alguns da Guiné-
Bissau também, porém a minha maior clientela são as angolanas, em
um número bem maior que as outras”. E completa: “essas mulheres
são batalhadoras” (entrevista realizada em 20/04/2013, Thiago, 29
anos (Brasileiro)63.

Dentro desse quadro, é imprescindível traçar uma morfologia da comunidade de


comerciantes africanas em São Paulo, como estamos tentando fazer, inquirindo as
conexões comerciais enquanto conexões sociais. Há semelhanças com o que é
observado em outros agrupamentos, como é o caso da comunidade brasileira no
Paraguai, por exemplo, marcada predominantemente também pela atividade retalhista.
No entorno do comércio e das ruelas do Bairro do Brás é muito comum cruzar com
moças carregando bolsas e sacolas de plástico nas calçadas e lojas do Brás. Geralmente
elas estão acompanhadas por algum membro da família, na maioria das vezes as
sobrinhas, as quais reúnem experiências também para essas atividades artesanais ou
comerciais.
Durante suas viagens, as turistas compradoras64 (sacoleiras) podem aguçar
múltiplos choques culturais, porém cientes de seus objetivos econômicos nesses lugares
de trânsito. Sendo que embora não se tratando de características biológicas idênticas
(entre sacoleiras africanas e brasileiras), mas é possível observar alguns episódios em
comum no cotidiano das sacoleiras tanto as provenientes da África quanto as de certas
regiões do nordeste brasileiro, é a maneira pela qual, de ambas as partes, a questão de
gênero e a origem (lugar de nascença) trazem alguns desafios ainda a enfrentar.
Também é possível encontrar alguns pontos de convergências entre as sacoleiras
africanas que realizam suas compras em São Paulo, China e ao Sudoeste Asiático e as
sacoleiras brasileiras que vão ao Paraguai, por exemplo, é que além de marcadas pela
atividade retalhista, atraem interesses de pessoas que agem de fé. E não obstante em
certas ocasiões são também marcadas pelo assédio, feminicídios, estupros, como é o

63
Cf. VAZ, Paulo Gomes (2013).
64
É uma categoria que criamos para definir as sacoleiras, por denotar menos rotulações.
133

caso da jovem sacoleira - Priscila, grávida de 6 meses, a brasileira que foi estuprada e
morta na Bolívia, fato este que comoveu a sociedade e a imprensa Brasileira naquela
época e fica pululando no imaginário de toda sacoleira, sobre os riscos aos que podem
estar expostas. Ver a seguir um trecho da reportagem mencionada:

A comerciante Priscila Franco Silva, de 26 anos, moradora de


Campinas, interior de São Paulo, foi violentada e morta na cidade
boliviana de Puerto Quijarro, na fronteira com o Brasil. Ela estava
grávida de seis meses e tinha viajado com um grupo de sacoleiras para
comprar roupas - a cidade boliviana é vizinha de Corumbá, em Mato
Grosso do Sul. Os autores do crime levaram apenas dinheiro e
documentos, deixando a bolsa de mão, mala e demais pertences com a
vítima. A perícia concluiu que ela sofreu violência sexual e foi
estrangulada65.

Considerando diversas situações de vulnerabilidades e inseguranças que


atormentam os cotidianos de compras, tais como risco de assalto, homicídio ou
feminicídio (homicídio contra mulheres) - termo hoje em voga, demonstra que essas
viagens estão longe de ser um passeio. Sendo que nesses deslocamentos muitas
sacoleiras transitam por Foz de Iguaçu (município brasileiro que faz fronteira com o
Paraguai), em que se testemunha vários tipos de mercadorias contrabandeadas e que
geram o aumento de criminalidade. É uma porta de entrada de muitas sacoleiras
Brasileiras que se deslocam para Ciudad del Este, e que segundo Camilo Filho “[...] está
entre os municípios com os maiores índices de homicídio do Brasil”. (FILHO, 2012,
p.91).
Em todas as circunstâncias, como a descrita, essas mulheres correm o risco de
serem presas fáceis, igualmente, experimentam o dissabor do fisco (já que não são todos
os produtos que têm notas fiscais ou declaradas nas instituições alfandegárias). A isso
somam-se o estigma, que Goffman (1988) define como uma diferenciação
profundamente depreciativa, indesejada, que reduz ou macula o sujeito e que
implica numa intolerância grupal. Um processo de estigmatização que acompanha o
cotidiano das sacoleiras não se aplica exclusividade às africanas em São Paulo, por
exemplo, mas também é observado nas jornadas de trabalho das brasileiras que vão ao
Paraguai: geralmente associadas e/ou rotuladas a questões de ilegalidades e ilicitudes.

65
Disponível em: http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,gravida-de-6-meses--moradora-de-
campinas-e-estuprada-e-morta-na-bolivia,10000006875. Acesso em :28 de jan.2007.
134

4.3. A força de trabalho feminino e a desigualdade do gênero no mercado de


trabalho na Guiné-Bissau e Angola

A problemática da desigualdade de gênero no mercado de trabalho é uma


realidade espinhos na sociedade contemporânea, e a disparidade entre os gêneros no que
concerne ao capital-trabalho parece ser mais aguda ainda quando se fala de sociedades
de países em desenvolvimento como os africanos, onde também precisam ser
consideradas as influência do colonialismo, patriarcado e estima social do gênero. Daí,
que ao contrário da figura paternal (do patriarcado implementado pela colonização
portuguesa), as mulheres tendem a sofrer múltiplas formas de exploração no tecido
social, pois a sua parcela expressiva é subjugada palas imposições sociais e morais (de u
puritanismo) ou visão católica sobre o comportamento padrão que elas – mulheres-
deveriam ter, e que corroboram com certas limitações que lhes são impostas pelos
valores mais amplos das sociedades nas que estão inseridas, dentre as quais o não uso
de saia para evitar as violências ou assédio sexual, ao serem muitas vezes criminalizadas
e culpadas pelas maneiras como se vestem, além de outros cuidados e controles que são
exercidos sobre os corpos das mulheres para evitar de que sejam violadas, e que
respondem por outro lado ao mesmo tipo de condutas que subordina o gênero feminino
aos cuidados domésticos, restringindo-lhes suas possibilidades de afirmação e maior
autonomia no mercado de trabalho. Não obstante, Amílcar Cabral repetidamente
afirmava que [...]“as mulheres têm dois colonialismos a vencer: o dos portugueses e
dos homens” (ORAMAS, 1998 apud CANDÉ MOTEIRO, 2013, p.206). Obviamente,
percebe-se que esses estigmas e opressões decorrentes da desigualdade de gênero,
classe, patriarcado (homem como figura do chefe), e os outros elementos, apresentam
seus impactos concretos no mercado de trabalho. De acordo com as análises da UNTAD
(2013), “[...] estima-se a população total de Angola em cerca de 19 milhões de
habitantes, dos quais 50,24% são mulheres (UNTAD, 2013, p.36), sendo que as
mulheres, por incrível que pareça, são a maioria da população angolana, configurando-
se também na categoria mais atingida pelo desemprego.
O que esses dados nos permitem compreender é que devido à baixa participação
das mulheres no mercado de trabalho formal, na maioria das vezes restam-lhes os
135

segmentos do trabalho socialmente construído como “tradicionalmente feminina”


nomeadamente às atividades artesanais que remetem às aptidões domésticas, resultantes
do patriarcado (que coloca a figura do homem como elemento central). Essa divisão
entre o gênero e o trabalho é também verificada na sociedade guineense no que tange às
atividades e segmentos predominados pelas mulheres. Igualmente (tanto em Angola
como na Guiné-Bissau), essas contradições no mercado entre os gêneros passam a ser
naturalizadas e banalizadas de formas hierárquicas no imaginário social das pessoas, são
os que influenciam a divisão sócio-sexual do trabalho, reservando às mulheres as
atividades como as chamadas zungueiras66, bideiras67 (quituteiras), sacoleiras,
muambeiras; as rabidantes68, considerados como economia de subsistência em nichos
informais que garantem a sobrevivência, mas não a acumulação de capital.
Preocupada com essas construções sociais, influências, o imaginário social das
pessoas em certas tendências consideradas comuns ou não, Irna Kerner (2012) adverte
que, por não serem naturais, epistemologicamente o racismo e o sexismo estão
relacionados ao discurso dos saberes, mas também contém símbolos e imagens que
podem ser melhor desconstruídas. É possível perceber que na falta dessa desconstrução
do discurso novo, faz com que os homens dos centros urbanos, mesmo diante da
situação de desemprego, eles ainda resistam-se em realizar certas atividades comerciais
predominantemente realizadas ainda por mulheres, como é o caso observado dos
homens que resistem a atuar como sacoleiros, ou na revenda de peixe, por exemplo.
Não obstante, com a desocupação acelerada, as cidades vêm testemunhando o
crescimento de um fenômeno batizado pelo nome de “bancadas” nas ruas e esquinas de
casas, que refere-se aos lugares de encontros que reúnem jovens que, de modo informal,
falam sobre política, deporte e dos problemas da comunidade. Segundo Miguel de

66
Etimologicamente, vem do termo zungar, originário do quimbundo (língua de Angola), que significa
andarilha, andante ou vagante. Mulher que percorre as ruas vendendo produtos diversos dentro de uma
bacia que leva na cabeça e/ou outra no ventre, são conhecidas como quitandeiras. Só muda a
denominação e o lugar – na língua crioula da Guiné-Bissau são denominadas bideiras, enquanto no Brasil
recebem o nome de quituteiras.
67
Expressão empregada no crioulo da Guiné-Bissau para se referir as (mulheres revendedoras de
produtos essencialmente alimentícios, tais como peixe e outros produtos de primeira necessidade, no
“setor informal”.
68
Termo utilizado em Cabo Verde para definir as pequenas revendedoras.
(quem vende o que foi comprado com a intenção de ser comercializado, mas etimologicamente o sufixo
rabidar é também empregado em crioulo da Guiné-Bissau como sinônimo de revirar, dar a volta por
cima, superar. Cf. SILVA, Tatiana (2012).
136

Barros (2010), são nessas “bancadas” que os jovens, em sua grande parcela pessoas do
sexo masculino, e na sua maioria desempregados ou intermitentes, se dedicam a
participar em associações dos seus bairros adquirindo mais experiências políticas e, se
calhar, lançar-se como um político de carreira.
Como havíamos dito, observa-se que há sempre uma relação intrínseca entre os
gêneros ao que pertencem e o tipo de atividade a ser escolhida e realizada. Nesse caso,
observa-se uma divisão sócio-sexual e cultural do trabalho, que vão além de trabalhos
formais e informais, e que hierarquizam e reproduzem a distinção entre o homem e
mulher. No setor informal, foi-nos possível constatar que enquanto os homens procuram
os segmentos de construção civil e demais modalidades braçais, as mulheres preferem
se centram nas atividades associadas a atividades que não colidem com suas aptidões e
funções domésticas, ou que são até vistas como extensão deste âmbito mais privado ao
que se costuma recluir a mulher. Contudo como vimos, dedicar-se a esse tipo de
atividades acostuma estar associado e resultar do acúmulo de dupla, tripla ou até quarta
jornadas de trabalho (elas não são isentas de seus afazeres em suas casas), com exceção
em momentos de viagens. Como é o caso, quando elas precisam se deslocar para outros
territórios para comprar os artigos que serão transformados em mercadorias,
essencialmente em São Paulo e nas terras asiáticas.
137

Capitulo V
5. AS MERCADORIAS NOS FLUXOS CONTÍNUOS DA GLOBALIZAÇÃO
POPULAR

[...] globalização popular refere-se à participação de agentes sociais


que, em geral, não são considerados nas análises sobre globalização
ou, quando são, figuram apenas como migrantes, ou “transmigrantes”.
Na maioria das vezes, não se leva em consideração a existência de um
sistema mais amplo, de escala global, cujas amplitudes e
interconexões várias podem ser estudadas. Os agentes sociais que me
interessam são, para dizer de maneira simples e direta, gente do povo.
Existe uma globalização econômica não hegemônica formada por
mercados populares e fluxos de comércio que são, em grande medida,
animados por gente do povo e não por representantes das elites.
(RIBEIRO, 2010, p.21).

Este capítulo discute a dinâmica global a partir dos agentes sociais inseridos
numa globalização econômica não hegemônica, um universo também conhecido como
globalização popular constituído socialmente por indivíduos ou grupos comumente
entendidos por gente do povo, que relutam num movimento de baixo para cima com o
propósito de se manterem sua sobrevivência através de mercadorias e, de maneira pela
qual, tais mercadorias contribuem também para o processo de globalização, interligando
países e continentes. Esta forma de globalização, chamada de globalização popular, é a
que de fato nos interessa descrever nesta tese, demonstrando como os diferentes nós do
sistema mundial não-hegemônico explorado por diversos atores sociais se mobilizam
juntando seus recursos financeiros, deslocando-os para os mercados asiáticos, os
chamados tigres asiáticos, que se destacam pelo rápido desenvolvimento industrial em
um contexto histórico mais recente. Gustavo Lins Ribeiro ressalta que “[...] o centro
produtivo do sistema se encontra na Ásia, na Coreia, na Tailândia, Singapura e Taiwan,
mas especialmente no Sul da China, na província de Guangdong. (RIBEIRO, 2009,
p.514). Porém, além do sudoeste asiático, existem alguns pontos nodais espalhados
138

principalmente em alguns cantos do globo como a fronteira da ciudad del Este / Foz de
Iguaçu, considerado o principal nó do sistema mundial não hegemônico na América do
Sul, que abastece muitos estabelecimentos comerciais na rua 25 de março, em São
Paulo, Brás (Feira da Madrugada). É também um dos destinos de muitas sacoleiras que
procuram esses mercados alternativos para complementar os produtos.
Este capítulo discute o espírito transatlântico e a inserção da força de trabalho
feminino na economia global de baixo custo, centralmente sobre os encalços da
informalidade, assumindo o papel de se comprar num território para abastecer em outro,
em rotas que para elas são concretas, mas invisíveis à economia do mercado, uma
característica atípica quando comparada à dinâmica comercial tutelada pelas grandes
corporações.
Observa-se que a literatura predominante nos estudos sobre atividade econômica
nos tempos da globalização e de fluxos de mercadorias tendem a focalizar-se nos
processos comandados por agentes poderosos numa perspectiva hierárquica de cima
para baixo, dentro dos critérios normativamente estabelecidos pela economia de
mercado, cuja distribuição dos valores (mercadorias) é regulado pelas governanças
corporativas das empresas num conjunto de políticas integradas, muito presente nos
estudos do Gery Gereffi (1994), Gereffi et al. (2001) denominada de cadeias globais de
commodites (CGC), e Cadeias globais de Valores (CGVs), respectivamente.
Porém, de forma crítica, a nossa tese busca também partir de uma literatura
contra- hegemônica, destinada a explorar os “circuitos inferiores da economia urbana”
explorada por indivíduos e/ou grupos desprivilegiados de direitos políticos e sociais,
inserida numa economia invisibilizada pelas ordens estatais, cujos membros dependem
desse nicho de mercado para suas sobrevivências trançando percursos transnacionais
acionando suas redes de relações não hegemônicas, numa modalidade que, por sua vez,
desafia as estruturas econômicas tradicionais.
Decerto, essa globalização é de fato a que parece oferecer maior acesso às
mercadorias a diversas camadas da população e na circulação do dinheiro a nível global,
fato que, de outra forma, algumas mercadorias não estariam disponíveis para as
camadas mais vulneráveis de qualquer sociedade. Por isso, é imperativo elucidar que
esse cenário traçado pelas sacoleiras nos circuitos inferiores da economia parece apontar
para uma globalização mais popular e inclusiva para os problemas sociais
contemporâneos. Portanto, o crescimento acelerado dessa modalidade de comprar aqui,
139

para revender em outro lugar pode ser apenas a ponta do iceberg de uma crise sistêmica
do capitalismo que tem muito mais a nos revelar, uma vez que uma parcela significativa
da população ao redor do mundo se inscreve nos nichos do mercado como instrumento
de sobrevivência.

5.1. As sacoleiras nos circuitos inferiores da economia urbana nos tempos da


globalização

No contexto da globalização, se, por um lado, operam elementos que limitam a


ação do Estado Nacional, por exemplo, por outro lado esses elementos (da globalização)
potencializam os padrões de consumo em larga escala. Pois nessa esteira de consumo e
de diversas mobilizações em torno do globo, evidencia-se que (em nossa opinião) em
cada centro urbano existem as zonas de influência. Milton Santos (2008) demonstra isso
com maior precisão na sua obra Espaços divididos, na qual o autor chama a atenção
para a função dos circuitos superiores e circuitos inferiores da economia urbana que
constituem um verdadeiro novo paradigma da geografia urbana e de planificação nos
países subdesenvolvidos. E é nessa mesma perspectiva que Gustavo Lins Ribeiro
(2010) aponta para a emergência da globalização popular, quando descreve o fluxo de
bens moldados em pequenas economias, ou mesmo, para usar a outra expressão que
esse mesmo autor usa, a de Globalization from below (globalização desde baixo), na sua
obra conjunta com Carlos Alba Veja e Gordon Mathews (2012). Um estudo importante
para compreendermos a relação entre capital-trabalho e pobreza nos circuitos inferiores
da economia urbana, através de um olhar talvez diferente daquilo que tem sido
tradicionalmente apresentado na literatura sobre a economia e a sociedade.
Portanto, essas obras acima citadas, como as de Santos (2008), Lins Ribeiro
(2010) e a de Carlos Alba Veja, Lins Ribeiro e Mathews Gordon (2012) trazem à tona
uma nova roupagem sobre as características de economias modernas de países “em
desenvolvimento” impulsionada predominantemente por indivíduos que buscam
alavancar novas formas de reprodução social. Por isso, esses tipos de contribuições são
tomados nesta tese como interlocutoras diretas e mais próximas a partir das que
observarmos os percursos das pessoas e bens. Ademais, embora esses autores tenham
usado termos diferentes para falar dos fluxos da economia popular, seus conceitos,
140

entretanto, encontram-se envolvidos no mesmo processo dialético entre os “dois tipos


da economia”, e seus respectivos consumidores. Portanto, considero que estudos desse
calibre contribuem significativamente para a compreensão de como é que funcionam
na prática os fluxos de pessoas e bens, sob e desde o olhar e perspectiva dos interesses
de pessoas mais vulneráveis nativos de países “em desenvolvimento” e, sobretudo, de
qual seja a contribuição de determinadas comunidades oriundas de países africanos, e
que até recentemente era temas pouco tratados e muito escasso na literatura de países
ocidentais para a dinâmica do capitalismo atual e mais globalizado.
Segundo Milton Santos (2008, p.25), durante muito tempo as questões
essenciais dos países “subdesenvolvidos”69, tais como os mercados urbanos, foram
historicamente negligenciados, e quando apareciam nas estatísticas se configuravam de
formas superficiais, isso porque as estatísticas desses países eram baseadas em modelos
dos territórios desenvolvidos, neste sentido muitas particularidades das economias
africanas foram deixadas de lado nas estatísticas, à exemplo de atividades domésticas,
informais e familiares. Mas para superar esse epistemicídio (a recusa da produção de
conhecimento dos povos africanos e principalmente das suas economias), só com
estudos de teor mais etnográfico debruçados em entrevistas com este tipo de atores é
que nos permite (re) pensar e tentar (re) escrever a história dando maior voz às
trabalhadoras invisibilizadas nas estatísticas e estudos tradicionais. Daí, um estudo de
campo como no que adentramos com esta pesquisa é um primeiro passo para buscar
atenuar algumas das deficiências e ausência de dados neste campo de estudos, e desde
que sejam alicerçados nas representações e narrativas dos próprios envolvidos, à
exemplo do caso das sacoleiras nesta tese, que é um recorte e escolha empírica
importante no contexto dos países aqui tratados, diante do amplo universo de relações
de trabalho moldados em circuitos inferiores da economia.
De acordo com as narrativas dos sujeitos desse universo de pesquisa, percebe-
se que em todas essas cidades observadas (subdesenvolvidas), tanto dos Africanos como
nos lugares de trânsitos, a existência de dois circuitos da economia se fez presente. O
que nos permite apontar também para o deslocamento da população que utiliza esses
circuitos inferiores locais a partir de suas regiões de influências para o de outras

69
Santos (2008, p.19) prefere usar o termo Subdesenvolvidos ao invés de “em desenvolvimento” ou
‘terceiro mundo”. Para o autor o terceiro mundo é “um mundo em desenvolvimento”, quer dizer, que está
numa situação de transição para o que hoje são os países desenvolvidos.
141

cidades, como forma de subsistir às crises econômicas pelas que passam seus países, e
que reduzem suas possibilidades de sobrevivência.
Santos (2008) destaca que, se o circuito superior é impulsionado por um intenso
fluxo de capital e constituído pelos bancos, serviços modernos, indústria de exportação,
comércio, transportadoras e atacadistas, por outro lado, o circuito inferior é composto
por um fluxo de capital não intensivo, desde formas de fabricação aos serviços
fornecidos “a varejo”, o comércio, todos são elementos de pequena dimensão e não
modernos. Segundo Santos (2008), se no circuito superior pode-se distinguir atividades
“puras”, “impuras” e “mistas”. As atividades que se enquadram como “puras” são as
indústrias urbanas modernas, o comércio e serviços modernos, e ao mesmo tempo são
as atividades típicas da cidade e do circuito superior. Do outro lado, temos as atividades
“impuras”, sendo aquelas de comércios voltadas aos negócios e indústria de exportação.
Estes, geralmente quando instalados nas cidades, são para explorar os recursos locais.
Nessa “esteira” de circulação, as distribuidoras e atacadistas têm atividades do
tipo misto, pelos laços funcionais diretos com os circuitos superiores como com os
circuitos inferiores, ambos cumprindo dupla ligação. Mas além de atacadistas, apontado
por Santos (2008) como um elemento que está no topo da cadeia decrescente dos
intermediários, as sacoleiras (ambulantes) são também as que ocupam a importância
central nos circuitos inferiores, na medida em que cumprem a função de espalhar as
mercadorias nos níveis inferiores da atividade econômica aos consumidores finais. Por
isso consideramos a função dessa “classe de trabalhadores” ser muito importante na
acumulação do capital, tanto para os agentes do circuito superior, como no circuito
inferior, atuando como um métier e fonte de renda relevante para uma parcela
significativa da população, provenientes principalmente dos países onde o emprego
formal é escasso.
Mas o mais importante é a forma como Santos (2008) aponta para a existência
de intermediários que agem de forma mista, entre os dois circuitos, impossibilitando
quaisquer situações isoladas, dualísticas ou estanques. Mas o que de fato ocorre é a
relação de coexistência entre ambos tipos de circuitos, quais sejam: numa relação
hierárquica, ou numa relação de simples complementariedade, ou ainda, numa relação
de complementariedade recíproca. Como se observa na figura 19, abaixo.
142

Figura 20 -Elementos dos dois circuitos da economia urbana nos países


“subdesenvolvidos”

Fonte: Extraído de Santos (2008, p.40)

Além dos dois circuitos da economia urbana acima apresentados na figura 19, o
autor ainda acrescenta para um outro elemento do circuito inferior, que o mesmo chama
de circuito superior marginal – utilizando-se de normas mais ou menos modernas. Nele
os agentes “marginais” também realizam sistematizações normativas, embora de formas
limitadas e híbridas, quando comparadas aos agentes do circuito superior legal.
Atualmente são nesses países associados aos países do “terceiro mundo” ou sudoeste
asiático que recebem em grande proporção de turistas, pequenos empresários, inclusive
os de menor capital financeiro. Nessas relações as suas atividades econômicas não são
tão “claras” e munidas de tolerâncias, flexibilização da força do trabalho e os produtos
de baixo custo.
143

5.2. Enclaves étnicos, rede de relações e o destino de muitos turistas-compradores


em busca dos artigos “Made in China”

Na organização internacional do trabalho e nas literaturas que defendem a


economia de marcado, criaram-se todo um discurso em torno do mercado tradicional
para caracterizar os negócios honestos e desonestos através dos critérios seletivos que
definem o licito e ilícito, legal e ilegal, formal e informal dentro dos fluxos comerciais
entre os estados nacionais e as relações internacionais, que na prática, suas
procedências são delineadas por acesso e usos desiguais do poder controlador do Estado
como entidade de vida econômica, fiscal e política. Nesses mercados, alguns são mais
tolerantes e outros menos, esse último, para Gustavo Lins Ribeiro (2009), é a que
permite às classes vulneráveis ascenderem nas suas economias nacionais e globais.
Afirma o autor,
A globalização popular oferece acesso a fluxos de riqueza global que
de outra maneira jamais chegariam às classes mais vulneráveis de
qualquer sociedade. Abre um caminho para a mobilidade ascendente
ou para a possibilidade de sobrevivência dentro de economias
nacionais e globais que não conseguem oferecer pleno emprego a
todos os cidadãos. A globalização popular está estruturada por fluxos
de pessoas entre distintos mercados que, por sua vez, são os nós do
sistema mundial não–hegemônico. (RIBEIRO, 2009, p.511).

O que é possível compreender aqui, através dos dizeres de Gustavo Lins Ribeiro
(2009) é que, apesar da globalização popular se situar numa posição hierarquicamente
inferior, considerada de baixo para cima, ela, porém, jamais aparece como elemento
deslocado da globalização convencional, ao contrário, ambos tipos de globalização se
mantêm necessariamente imbricadas na circulação e na acumulação. Conforme assevera
Gustavo Lins Ribeiro (2009):
Os dois sistemas mantêm relações de complementariedade
complexas e frequentemente capilares e podem ser eventualmente
contraditórios entre si, mas não necessariamente antagônicos. Na
verdade, as pessoas que operam internamente ao não-hegemônico não
pretendem destruir o capitalismo, muito antes pelo contrário,
pretendem dele destruir. O mesmo poderia ser dito de muitos que
operam no sistema hegemônico, não querem realmente destruir ao
144

sistema não-hegemônico já que muitas de suas transações podem ser


feitas por meio dele para driblar ao fisco, praticar evasão de divisas
(...) e realizar acumulação. (RIBEIRO, 2009, p.512).

A análise de Lins Ribeiro sobre essa relação de complementariedade complexa


entre os atores inseridos nesses sistemas hegemônicos e não-hegemônicos na atual
sociedade de consumo de massa, se caracteriza por um movimento que insere os
mercadores (enquanto consumidores) nos circuitos da economia da globalização
popular numa interconexão necessária entre as partes que exploram e/ou se beneficiam
da globalização através do fluxo de mercadorias, serviços e de capital. Isso significa
que se as pessoas se deslocam cotidianamente dos seus espaços fixos para comprar
mercadorias e revendê-las, é porque essa globalização popular é a que parte num
movimento contra-hegemônico da ordem econômica e “[...] abre um caminho para a
mobilidade ascendente ou para a possibilidade de sobrevivência dentro de economias
nacionais e globais que não conseguem oferecer pleno emprego a todos os cidadãos
(LINS RIBEIRO, 2009, p.511).
Igualmente, num dos seus estudos etnográficos sobre os comerciantes
africanos nas terras chinesas, Yang Yang (2012), destaca que na última década, dezenas
de milhares de comerciantes africanos (principalmente os de nacionalidade Nigeriana) e
de muitos países da África subsaariana chegaram a Guangzhou, o centro da fábrica
mundial da China e uma cidade vizinha de Hong Kong. Muitos desses “[...]
comerciantes individuais viajaram dos países subsaarianos para Cantão para
encomendar bens fora de feiras e eventos organizados.” (YANG, 2012, p. 158). Nessa
onda de deslocamentos, estima-se que em 2009, além de milhares de visitantes em
trânsito (a curto prazo, isto é, comerciantes (sacoleiros e sacoleiras), havia cerca de
20.000 africanos vivendo a longo prazo em Guangzhou. Pois, segundo esse autor, eles
se reúnem em torno de vários mercados de atacado importantes e adquirem produtos
manufaturados chineses a granel (atacado) para envio de volta para a África Ocidental.
E devido a essa aglomeração de diversos atores no distrito, como Sanyuanli e Xiaobei, o
lugar tornou-se conhecido como "Cidade Chocolate", "Pequena África" e "Harlem" de
Gangang. Nessa região, muitos comerciantes conseguem abrir suas próprias lojas e se
tornar intermediários no lucrativo negócio global.
Essa aproximação entre os atores nesses comércios opera numa espécie do que
denominamos de sociabilidade mobilizável (que atrai um grupo de “minorias”, de
estrangeiros, ou comunidades a certas relações de proximidade para determinados
145

lugares de encontros, capazes de reproduzirem bens econômicos e simbólicos. Essas


congregações em torno do espaço urbano, que se configuram em clusters étnicos, têm
sido um mecanismo muito recorrente nas estratégias de sobrevivência dos estrangeiros
em torno das cidades globais e industriais. Igualmente, observa-se esse tipo de
aglomeração de forma muito concreta, por exemplo, nas zonas centrais da cidade de São
Paulo, e em Guangzhou. A cidade de Guangzhou, (capital da província de Cantão) é
ocupada por comerciantes africanos residentes, fazendo dessa cidade, um dos maiores
destinos de turistas a curto prazo - sacoleiras, que exploram os produtos “Made in
China” ofertados a preços baixos, provenientes da República Popular da China.
Assevera Yang Yang (2012):
Existem dois tipos de mercados em Guangzhou que os comerciantes
africanos vão para: - mercados africanos, onde há uma alta
porcentagem de lojas de propriedade africana e mercados de atacado
chineses, onde as lojas são administradas pelos moradores chineses. O
primeiro é um destino comercial popular, particularmente para
comerciantes de curto prazo da África, porque eles podem facilmente
encontrar consultores de negócios e assistentes de compras que falam
fluente Igbo, francês e árabe.(YANG YANG, 2012,p.161, tradução
nossa).

Neste sentido, a cidade de Guangzhou representa para a economia das


sacoleiras e de diversos comerciantes africanos que chegam à província de Cantão, onde
há excesso de oferta de mercadoria por mecanismo de muita tolerância para se fazer o
comércio. Não obstante, atrai muitos turistas compradores que fazem daquela região
como polo comercial dos revendedores, cujo propósito estabelecido nas suas viagens é o
de chegar exclusivamente à cidade, abastecer as malas cheias de artigos, para depois
revendê-los nos seus países, é um fenômeno que vem ganhando fôlego com maior
notoriedade a partir dos anos 1990. Recorda-se que até a década de 1980, a modalidade
das revendedoras se restringia a circuitos locais das sub-regiões africanas, hoje a força
propulsora do capital parece ter encurtado o tempo e espaço. É assim que David Harvey
(1992), compreende a agitação do mercado nos dias atuais, impulsionado numa
dinâmica da compressão do tempo e espaço frenético, estimulando a maior circulação
de bens de serviço, força do capital e de agentes sociais.
Uma modalidade que nos permite ter a noção prévia do processo de compressão
tempo-espaço, ainda conforme Harvey (1992), é ligado ao processo de aceleração dos
acontecimentos globais, de forma que sentimos que o mundo é menor e as distâncias
encurtam-se através de fluxos de pessoas e bens para diversos cantos. Porém, na prática,
146

elas também dependem obviamente dos acordos diplomáticos assentados entre os


países, o que faz com que, às vezes, podem ser restringidas ao deslocamento de
sacoleiras de certas regiões mais carentes que queiram se deslocar para outros
mercados. O que significa que, uma comerciante-turista (sacoleira) de um país
economicamente mais estruturado pode não ter tantas dificuldades de obter visto de
entrada às cidades globais, quando comparado ao de sacoleiras de um país menos
estruturado economicamente. O mesmo procedimento pode ser um dos critérios que
opera nos controles alfandegários, e que às vezes podem ser mais maleáveis e tolerantes
com sacoleiras de certas nacionalidades e mais rígidos com as de outras nacionalidades
nas abordagens ou revistas (vistorias) de malas. Por isso, as questões políticas e
socioeconômicas dos países podem ser entraves ou não à mobilidade de sacoleiras para
certos mercados, considerando o perfil das pessoas, o país de origem e do destino, na
maioria das vezes, suas viagens também podem estar condicionadas aos acordos
diplomáticos entre os países, de acordo com os critérios e trâmites de admissão e/ou
concessão de vistos de turismo junto aos órgãos consulares (embaixadas), por isso,
obviamente não são “automáticos” os deslocamentos, pois demandam todo um processo
burocrático, podendo restringir ou não a circulação de sacoleiras. Nesse sentido, quando
não foram concedidos os vistos, por exemplo, do Brasil, alteram-se suas viagens para
outros mercados de baixo custo, considerados por elas mais compensatória em termos
de preços baratos. Tais como: a China Continental, Hong Kong, Guangzhou,
Singapura, dentre outros mercados do sudoeste asiático ou mesmo para a África do Sul.
É importante acrescentar que, de acordo com os nossos cálculos é também
muito comum uma sacoleira aproveitar as escalas “tripe” para fazer as compras durante
as viagens num prazo de curta duração (escalas) nos Duty-free shops ou free
shops (lojas localizadas no interior de salas de embarque e desembarque
de aeroportos, onde os produtos são vendidos com isenção ou redução de impostos),
uma pausa que lhes permitem comprar algumas unidades (equivalente ao consumo
familiar ou para presentear), mas que são transferidas para a revenda, como perfumes
importados, relógios, Iphones - telefones móveis (celular), iPod, iPad, tablets,
notebook, etc. Entre minhas entrevistadas, quem testemunha de forma instigante e
personificada essa via-crúcis desse tipo de comércio é a Nilma:
Em todos os países que eu viajo, compro nos Shoppings Centers, nos
mercadinhos, nas feiras, tudo o que eu vejo que pode dar um lucro que
compensa eu compro, principalmente nas lojas dos aeroportos, eu
147

compro um perfume, Jean Paul Gaultier por USD 30 USD em Dubai,


equivalente [R$90,00], lá em Angola vendo no mínimo por R$
200,00. Eu costumo comprar sempre telemóvel, relógio de muitas
marcas famosas e revendo num preço equivalente ao mercado lá em
angola, ou até mais em conta, que outras lojas. Está a compensar
muito viajar para Dubai [mais] do que para outros lugares. E ainda
outra coisa, Dubai é Dubai, é coisa do outro mundo, mas só tem uma
coisa, a hospedagem é cara em Dubai, não é como em São Paulo que
tu encontra hostels, pousadas e hotéis de todos os tipos, ainda podes
hospedar na casa de conhecidos que moram cá, mas pela locomoção é
melhor ficar nos hotéis aqui perto dos comércios.
Eu amo São Paulo, a Feira da Madrugada tem produtos com preços
ótimos, há muitas coisas boas e baratas por aqui, compro também
réplicas (não originais), os meus clientes me pedem coisas do Brasil e
lá compram num piscar de olhos, eles adoram. Por essas coisas assim
que eu venho mais para cá (Brás).

E quando perguntada (sobre a passagem), se compensa sair de Angola para comprar em


outro país:
Sim, compensa, não muito, mas compensa, mas o segredo é comprar
atacado nas lojas que vendem atacado (...) e comprar algumas coisas
pequenas, mas muito valiosas para caber na tua mala de mão. E
também sempre enviar algumas malas nas agências de transportes de
cargas, que eles cuidam disso, tem seguro, se perder a empresa [se]
responsabiliza. (Nilma, 35 anos, angolana, entrevista realizado em
São Paulo, Brás, 11/11/2016).

É nessa engrenagem e estratégias de comprar nos diversos perfis de lojas que


respondem às expectativas das suas clientelas é que as mulheres “encurtam” as
distâncias fazendo suas viagens transatlânticas como se fossem daqui para ali, numa
demonstração incrível da aceleração do tempo que as novas tecnologias do transporte
permitiram, banalizando uma prática antes carregada de solenidade e perigo. Já não é
mais como se nem fosse mais uma viagem transatlântica, mas apenas um deslocamento
– regular, rotineiro, frequente - uma parte de seus atuais processos de trabalho, que são,
nesse caso, o de intermediação e venda, cuja produção não se perde de vista, desde os
atacados aos varejos, vinculado a certos mercados como o das feiras internacionais da
província de Cantão, que é u m nicho comercial que vem se tornando cada vez mais
atrativo, razão pelo qual:

A Feira de Cantão começou em 1957 e tornou-se a maior feira


internacional na China. É um dos eventos de expo preeminentes onde
produtos manufaturados chineses são exibidos e ordenados para
exportação para diferentes cantos do mundo. Os mercados africanos
encontraram sua "mina no leste" aqui e suas necessidades foram
atendidas por meios baratos. No final da década de 1990, muitos
148

outros comerciantes individuais viajaram dos países subsaarianos para


Cantão para encomendar bens fora de feiras e eventos organizados.
(YANG, 2012, p.158, tradução nossa).

Esses lugares explorados pela flexibilização das forças do trabalho, no mercado


não-hegemônico, têm sidos os circuitos (rotas), destinos de pequenas compradoras de
diferentes cantos do globo que se deslocam para as cidades chinesas, destacadamente
para a zona econômica especial (zona franca), província de Guangdong, que serve
essencialmente como a porta de entrada de diversos grupos étnicos nesse nicho de
mercado, como se pode observar nos dizeres de Lins Ribeiro:
Hong Kong e Shenzhen desenvolvem diferentes relações
complementares. A ex-colônia britânica é uma grande porta de entrada
para “sacoleiros” de todo o mundo, que cada vez mais adentram o
território da China continental e vão a Shenzhen portando vistos de
um dia adquiridos em Hong Kong para fazer suas compras em
shopping centers como o de Luohu. Muitos destes “turistas-
compradores” – designação simplificada dos praticantes do comércio
de longa distância típico da globalização popular – podem adquirir as
mercadorias no edifício mais globalizado do sistema mundial não-
hegemônico, o Chungking Mansions, em Hong Kong. Construído na
década de 1960, o prédio tem cinco blocos de 17 andares, dos quais os
dois primeiros são formados por lojinhas para compradores de mais de
100 nacionalidades. No restante da estrutura funcionam restaurantes e
pensões que abrigam pessoas provenientes especialmente da Ásia, do
Oriente Médio e da África. (LINS RIBEIRO, 2009, p. 515).

A Figura que se segue mostra o mapa da Repúbluca popular da China e suas, e as


localizações das suas zonas franca, devidamente destribuidos, algumas mais tolerantes
outras menos. (ver a figura abaixo).
149

Figura 21 - Zona Econômica Especial da China (ZOE)

Fonte: http://agk.wikia.com/wiki/File:China-map-9.jpg. Acesso em: 17 dez. 2017.

Fazendo jus às grandes metrópoles, Hong Kong se distingue pelo seu maior
desenvolvimento e grau de tolerância em relação à China continental, fazendo com que
Hong Kong venha se inserindo cada vez mais nos paradigmas da globalização, por
possuir cada vez mais aqueles elementos característicos das chamadas “Cidades
Globais”, que se impõem e destacam das restantes pela intensificação e imbricamendo
de suas capacidades econômicas, de conectividade e estruturais. As Cidades Globais se
destacam como os mais importantes centros financeiros do mundo, onde há maiores
refluxos de pessoas e de bens e serviços em tempos da globalização contemporânea. Em
razão disso, Hong Kong é talvez um distrito um dos mais diferenciados por se destacar
tanto na sua maior tolerância em outorgar vistos, pela maior mobilidade de pessoas,
como do seu comércio, indústrias e sofisticação de serviços que desenvolvem.
150

5.3. Os impactos positivos da globalização de baixo custo e a dinâmica


socioeconômica das revendedoras

Mathews, Gordon e Yang Yang (2012b) indicam a forma como certas


comunidades africanas perseguem a globalização de baixo custo em Hong Kong e na
China continental. Elas se concentram principalmente em Chungking Mansions, Hong
Kong, em um edifício que serve como um entreposto entre a China e o mundo em
desenvolvimento, e que vem costurando suas economias por meio de modalidades de
subsistência praticando “globalização de baixo custo” envolvendo pequenas quantidades
de capital. Um elemento importante a ser destacado é que cada vez mais tem aumentado
o número de pessoas inscritas nessa economia, principalmente de países
“subdesenvolvidos” que recorrem aos mercados alternativos, e nesse sentido, os
produtos “Made in China” vem mostrando estar jogando um papel econômico
essencial. Segundo MATHEWS et al. ,2012:
[...] a China desempenha hoje [papel importante] é na fabricação de
bens baratos, às vezes falsificados, que permitem que a África e outras
regiões do mundo em desenvolvimento experimentem a globalização.
Os comerciantes africanos que vêm para a China ajudam a tornar isso
possível. (MATHEWS et al 2012, p.95b).

Para além dos financiadores (empresários) dos países desenvolvidos e


empresários chineses, observou-se que desde os finais dos anos 1990, tem havido um
grande número de pessoas do mundo em desenvolvimento encontrados em Guangzhou
e Hong Kong, o que demonstra que de fato esse movimento reflete o papel da China nos
processos contemporâneos de globalização. Esse enclave de africanos e de outras
nacionalidades tornou a China urbana social e espacialmente mais heterogênea e
multicultural. É também possível fazermos aqui uma analogia entre o grupo de
comerciantes que engrossam o comércio da zona leste paulistana e dos comerciantes de
estrangeiros nos mercados populares chineses. Em ambos os casos têm se apresentado a
notoriedade dos comerciantes africanos, sendo que os perfis de comerciantes africanos
mais comum nas urbes chinesas, tais como Guangzhou e Hong Kong, são os
comerciantes residentes e comerciantes a curto prazo. Essa representação social é
evidenciada também em São Paulo, entre os guias e as sacoleiras. O primeiro é aquele
151

tipo de estrangeiro apontado por Simmel (1983), como estrangeiro em potencial que
chega e incorpora a cultura local para sobreviver na cidade do seu destino, age como um
comerciante ou negociador (recebe a cultura de outro e em troca faz questão de oferecer
a sua cultura). Enquanto o segundo tipo de estrangeiro, o turista-comerciante, está
sempre em trânsito, de um lado para o outro (seja esporadicamente ou frequentemente),
esse estrangeiro não reforça os vínculos sociais porque sabe da sua condição de
temporário, e conta com ajuda dos guias comerciais e/ou tradutores que lhe apresentam
os agentes comerciais. Geralmente não entende sequer a língua local, e não têm muitos
interesses em conhecer a cultura local, e sim interesses comerciais, e por isso contam
com os seus conterrâneos - tradutores africanos que residem nessas “cidades globais”,
que lhes apresentam os agentes comerciais nessa zona comercial.
Essa divisão social do trabalho observado nesse nessa comunidade é um dos
modus operandi nesse tipo de comércios presente em muitos países inscritos nas formas
de globalização subterrânea descrito e nomeadamente reconhecido como o de uma
globalização de baixo custo (MATHEWS et al.2012.a), globalização popular (LINS
RIBEIRO, 2009), circuitos inferiores da economia (SANTOS, 2008). Esses autores
conceituaram-a como um movimento contemporâneo da globalização redesenhada em
dinâmicas geográficas específicas da economia mundial, mobilizada por populações
muito concretas e específicas com condições econômicas reduzidas, e cujo objetivo é o
de comprar artigos em certas regiões do globo onde o custo de produção e força de
trabalho são mais baratas e, por conseguinte, os artigos ofertados nesse mercado são
também considerados de baixo custo, quando comparados àqueles circuitos maiores da
economia. Esse movimento ao redor do globo por esse mercado reflete a centralidade do
sudoeste asiático na economia da globalização de “baixo custo”.
Por ser um produtor em potencial, segundo Mathews et al. (2012b), a China
agrada a todos os gostos, desde as empresas dos bens genuínos às copias (produtos de
baixa qualidade). Esse segundo tipo é muito procurado por comerciantes dos países em
desenvolvimento que exploram o nicho do mercado asiático para revenderem aos seus
clientes nos seus países de origem, já que são os valores que a maioria dos seus clientes
poderá pagar, e essa má reputação é estendida aos produtos chineses como um todo. Por
isso, no que concerne às categorias de trabalho, podemos asseverar que nesse contexto,
a China, assim como os demais polos de fabricação de bens baratos se envolvem numa
realidade em que a fabricação deste tipo de produtos e sua comercialização não depende
152

puramente de um tipo de economia formal ou informal no seu espaço de produção,


porque a China se caracterizaria por ter um tipo de economia semiformal, para usar o
conceito do Mauro Nogueira (2016), quando analisa a situação de informalidade nos
países periféricos, em especial no caso Brasileiro.
Portanto, como havíamos apontado no capítulo anterior, que o negócio é
construído a partir de atividades formais que, de alguma maneira, conseguem espaços
de operação na economia informal e vice-versa. De igual modo, podemos dizer que a
situação das sacoleiras inseridas numa globalização de baixo custo, envolvendo
pequenas quantidades de capitais, elas podem ter também suas relações indiretas sendo
igualmente estabelecidas com os circuitos superiores da economia. Durante a
observação de campo, uma coisa que chamou bastante a minha atenção foi o modo
como se tornou um lugar comum o de uma sacoleira desses países africanos merecerem
atenção exclusiva dos atendentes das lojas, especialmente a dos gerentes das lojas que
na maioria das vezes fazem questão de lhes oferecerem os melhores “serviços da casa”,
desde os descontos, serviços da loja, tais como brindes, embrulhos, empacotamentos
etc. Pois toda essa atenção dada às compradoras africanas, deve-se aos elevados valores
gastos na compra de suas mercadorias . Desde os grandes Shoppings centers da Cidade
aos mercados mais populares como as lojas de Santa Efigênio que vendem
eletroeletrônicos, ou nas lojas do bom retiro e no Brás, a preferência e qualidade dos
atendimentos oferecidos a elas eram visivelmente melhores, por exemplo, do que
quando comparados aos de outras sacoleiras brasileiras. Durante a pesquisa de campo e
da minha já longa experiência de familiaridade de quase 15 anos tratando com esse
universo de pessoas – desde que eu era estudante de graduação e perambulava pelas
ruas de comércios populares de São Paulo – pude constatar a ideia que se costuma ter
desse grupo de mulheres nesses tipos de mercados, é que se trata este de um público
bem diferenciado, que chama a atenção pelo volume de compras efetuadas, as vezes
numa só loja, uma mesma sacoleira pode chegar a gastar em média de 1000 USD
(equivalente a aproximadamente 3000 reis, quando o dólar está no seu valor normal) em
roupas de grifes, tais como: TNG, Zara, Polos da Lacoste, e da Tommy Hilfiger. É
muito comum uma sacoleira mais “endinheirada” comprar em boutiques da parte mais
nobre da capital Paulista, mas também não é raro ela cruzar a rua, ou nos tropeçarmos
com a mesma nas avenidas espremidas do Brás, considerado por todas elas como o polo
comercial mais atrativo dada a extensa oferta produtos de baixo custo.
153

O que significa dizer que é notável a existência de elementos do hibridismo, no


qual as sacoleiras executam estratégias comprando um pouco de artigos nas lojas
formalmente mais estruturadas e nas menos estruturadas, e que igualmente, podem
comprar nos mercados populares, à exemplo do Brás, e alguns outros tipos de artigos
nos Shoppings Centers da cidade. Cabe destacar, entretanto, que nas suas sacolas são
raros os casos em que se observa haver algum artigo sem que este tenha suas
correspondentes notas fiscais. E quando, porventura, foram encontrados a existência de
artigos (mercadorias) não notificados, e foram apreendidos por agentes da fiscalização,
nesse caso não se pode dizer categoricamente que se trata de má-fé, visto que algumas
cópias chegam a ser muito similares ao original, dificultando a distinção daquilo que é
genuíno ou não. Não obstante, o que predomina no ato de compra são as notas fiscais,
como forma de comprovar a idoneidade do produto e da compra.
Esta é a minha segunda vez aqui em São Paulo, estive aqui no mês
de agosto de 2013, numa viagem longa que tive que ir de barco até
Dakar [capital de Senegal] para economizar a passagem, de lá peguei
avião que fez a escala em Marrocos e de lá pra São Paulo. Também
faço compras em Istambul (Turquia), lá tem muitas fábricas de roupas,
tem feiras e lojas até muito parecido com as lojas de São Paulo. Tenho
colegas que vão muito pra lá, tem de tudo, todos os tipos de produtos
pra revender, tanto atacado como no varejo, tem lojinhas, boxes, que
vendem as réplicas (não originais). Aqui no Brás tem tudo isso e mais
um pouco, tem muitos produtos brasileiros e também os xingui lingui
(réplicas made in China), aqui tem de tudo na feira de madrugada com
os produtos muito baratos. Assim, como se tu quiseres comprar nas
lojas mais chiques são preços mais altos, por isso dá pra fazer um bom
negócio, compensa viajar pra cá. Como sempre eu falo, o importante é
saber selecionar lugares, de tudo um pouco e discutir o preço
(pechinchar). Eu por exemplo peço sempre a nota fiscal das coisas
que eu compro, senão a fiscalização da alfandega pode apreender os
artigos que não têm notas fiscais. (Brinsan, guineense, 25 anos,
entrevista realizada em 04/11/2016 – Brás/ São Paulo).

A Brinsan segue a mesma jornada de muitas sacoleiras, geralmente não


permanecem em média mais que duas semanas. E como se observa na foto abaixo, a
mesma já estava com as mercadorias devidamente enfardadas, que serão enviadas para
o despacho numa das agencias transportadoras. Nesse dia, após a seção de compras, a
nossa entrevistada aguarda o elevador para guardar a compra do dia no Hotel Vitória,
onde ela se encontrava hospedada. (Conforme consta na figura abaixo).
154

Figura 22 - Brinsan após empacotar as compras em fardos brancos (exposto no


interior no hotel), aguardando o elevador para subir com as compras do dia

Fonte: Foto de Paulo G. Vaz (04/11/2016).

A Brinsan é somente uma entre centenas de turistas-compradoras que, ao invés


de se deslocar para a China, bebe diretamente na fonte da China no Brasil, somada às
fabricações nacionais brasileiras, sem ter que ampliar seus gastos com a passagem para
comprar nas terras chinesas, encontra no comércio do Brás e Bom Retiro uma
diversidade de artigos ofertados. E por ser o Brasil um país onde a fala e a linguagem é
lhe relativamente familiar, esse parece ser outros dos motivos da Brinsan se locomover
para São Paulo, onde saberá se mover e transitar melhor sozinha. Já não precisa contar
muito com o apoio dos guias. Compra nesses comércios populares e um pouco nos
grandes varejos da capital (como lojas Marisa, C&A e Renner). Um itinerário de
compras aos que está habituada e que a entrevistada narra de forma objetiva, a seguir:
Normalmente eu compro cabelos caipiras (cabelos naturais
brasileiros), vestidos, peças íntimas no Lojão do Brás. Mas os chinelos
havaianas não podem faltar! Existem chinelos temáticos, ou roupas
íntimas temáticas, ou desenhos animados, copa do mundo,
155

personagens ou atores de filmes etc. Aproveito as promoções nas lojas


Renner, C&A e lojas Mariza. Todas essas compras estão
aproximadamente em torno de 16 mil reais. A passagem, comida e
hotel em torno de 8 mil reais. E [dá um] o total de 24 mil reais.
(Brinsan, Guineense, 04/11/2017).

Comprar a retalho (varejo) nos grandes varejistas ou em atacado, por exemplo,


no Lojão do Brás, é a estratégia utilizada pelas sacoleiras para agradar (suprir) as
demandas de diferentes classes sociais, que contam muito com as sacoleiras para estar
em sintonia com as tendências do mercado e comprar artigos que cabem nos seus bolsos
(do que elas possam ter juntado ou consigam negociar a prazo, mas especialmente dos
que planejam obter da clientela à que irão atender). Pois muitos desses consumidores
finais sabem dos benefícios e das tolerâncias de comprar a prazo e sem juros com uma
destas sacoleiras. Este é o caso do guineense Inusa, que durante a nossa conversa
informal num dos salões de beleza, o mesmo se definiu como um bom pagador por isso
mantem a sua credibilidade com a Carmen que lhe permite comprar a prazo. Esse tipo
de negociações é muito recorrente no nicho deste tipo de mercado.
Mathews, et al. (2012) trazem uma grande contribuição na obra intitulada,
Globalization from below: the world's Other Economy (globalização a partir de baixo: a
outra economia do mundo). É uma obra ambiciosa que poderia revolucionar a literatura
sobre a globalização, na qual os autores ressaltam que, a exemplo de muitas economias
mundiais, na China hoje, existem as chamadas “globalização de ponta” ou
“globalização de cima” representadas por ocidentais, japoneses e outros cidadãos do
mundo desenvolvido. Um mercado representado muitas vezes por grandes corporações,
representados em grande parte por caraterísticas de trabalhos mais ou menos dentro da
lei. Se trata de uma globalização [...] tipificada pelas corporações multinacionais cujos
nomes todos conhecem, da Apple à Nokia, McDonald's, Coca-Cola, Samsung e
instituições como o Banco Mundial, o FMI e a OMC. (MATHEWS;YANG, 2012,
p.97). Ao passo que a outra globalização, consiste em atividades mais ou menos fora de
normas estabelecidas pela economia de mercado.
O que os autores acima querem apontar é que embora constituída de suas
formas de economia, essa globalização corporativa se apresenta e opera de forma
dialética com as chamadas “globalização de baixo custo” operando em fluxos
transnacionais envolvendo pessoas e pequenas transações de capitais. Os autores
procuram demonstrar que o retrato das rotas, mercados e pessoas em diversos locais do
156

mundo, estão envolvidos e imbricados, comprando bens de vendedores ambulantes,


trazidos por comerciantes que superam as barreiras das fronteiras físicas e situações
econômicas, de modo pelo qual os indivíduos ou grupos em todo o mundo podem estar
envolvidos direta ou indiretamente, como é o caso dos comerciantes africanos, tanto os
que estão em trânsito como os que residem em terras estrangeiras. O que significa que a
globalização, apesar das suas contradições, é um fenômeno explorado pela maioria da
população. Ademais, Mathews e Yang (2012, p.98) sugerem que, pelo fato da
“globalização de baixo custo”70 estar se tornando cada vez mais presente, suas
atividades vêm se englobando em todas a sociedades, por isso devemos evitar falar da
“economia informal” nessa sociedade ou naquela sociedade, mas da globalização de
baixo custo, porque ela está cada vez mais ligada às economias nacionais. Uma
realidade que tem sido presente cada vez mais com maior intensidade nas economias em
desenvolvimento, envolvendo pequenas quantidades de capital, impulsionada por
comerciantes estrangeiros residentes e turistas-compradores. Estes últimos dependem
muito de viagens transatlânticas para seguir pari passu os artigos nos mercados
externos.
Nessas viagens é possível perceber que, além de busca por produtos baratos e
compensatórios, algumas comunidades, por serem falantes de uma língua
internacionalmente conhecida, como o inglês, francês ou português, tendem a
deslocarem-se para certas zonas das cidades comerciais onde a comunicação lhes
tornarão mais fáceis e acessíveis o trânsito e negociações com os lojistas, redes de
hotelaria, agências de despachos, entre outros. Nessa rede de relações é possível
compreender nos dizeres das turistas-compradoras (sacoleiras) de Angola e de Bissau,
que escolhem a cidade paulista, porque sabem que ali facilmente serão acionadas por
seus conterrâneos que residem nessas redondezas permeadas por divisão social do
trabalho e também são nessas ruelas e avenidas cujos enclaves étnicos africanos
parecem ser mais evidentes, equivalente daquilo que é observado na zona leste
paulistana, concretamente no Brás. Este é um dos pontos em comum presente nesse
nicho de comércio, em que os estrangeiros em forma de suas identidades étnicas em
grupos (imigrantes residentes e turistas-compradores) habitualmente tendem a formar
suas redes de relações e de trocas.

70
Apontado por esses autores como “economia informal”.
157

À luz disso é que, tratando-se de enclaves étnicos, a nossa pesquisa escolheu


centrar-se em São Paulo, mas trata-se de um estudo que visa explorar seu teor de
relações mais globais, principalmente, se tomarmos em conta os relatos das
entrevistadas, os fluxos de mercadorias (artigos) que elas passam a circular entre
distintas regiões do mundo, produtos que são demandados por outros mercados de
consumidores, e que por isso envolvem diversas nações e culturas. Tudo isso nos aponta
para um desenho espacial de um tipo de “globalização de baixo” explorado por
indivíduos de países que não são centrais na globalização. Isso significa que, mesmo
não se tratando daquelas forças visivelmente apontadas como propulsoras-macro da
globalização, mostram como ela opera e entra em ação em contextos menos
desenvolvidos, e que responde pelas necessidades atuais dos fenômenos da
globalização, como é observado nos relatos das entrevistadas, realizadas nesse
entreposto comercial (Brás) em São Paulo, como o das duas angolanas, Patrícia e Ana
Sebastião, que durante a primeira abordagem sobre a entrevista, as amigas pediram-me
para que eu as aguardasse porque estavam exaustas após uma seção de compras nas
lojas do entorno daquela área comercial, e me pediram para que eu as procurasse 50
minutos depois, no mesmo lugar, para a realização da entrevista, afinal, era o horário de
almoço e seguiram para o restaurante, para almoçar.
Enquanto eu as aguardava, aproveitei o tempo para comprar quatro pares de
havaianas para dar de presente para minha família. Um presente que eu havia prometido
entregar pessoalmente aos meus que vivem em Bissau. Uma viagem que veio a se
concretizar no começo de janeiro. Mas ainda naquele instante, logo que eu terminei de
realizar as minhas compras, resolvi permanecer numa esquina próxima onde se
aglomeram os meus conterrâneos, e fazer como é de praxe entre os estrangeiros, discutir
a nossa situação da crise intermitente no cenário sociopolítico dos nossos países e dos
preconceitos e discriminações sofridas por africanos na cidade paulista e na diáspora
africana de modo mais geral. Já era por volta das 17 horas, quando, de forma
espontânea as duas comerciantes (Patrícia e Ana Sebastião ), aproximaram-se de mim e
me perguntaram se ainda daria tempo de fazer as entrevistas, e propuseram, caso eu
aceitasse, a que eu teria de ser o mais breve possível ou deixar para outro dia. Eu
prontamente sugeri que deixássemos então a entrevista para o dia seguinte: primeiro
porque estava escurecendo, não havia o clima para tal, e em segundo lugar para que as
entrevistadas pudessem responder ao questionário quando estivessem numa situação
158

mais cômoda (sem os ecos da hora do rush, do comércio) e com a calma e dedicação
que eu esperava. Daí trocamos os contatos de telefone (WhatsApp) para que, no caso de
desencontros no dia seguinte, eu pudesse lhes ligar. No dia seguinte, cheguei no horário
combinado, e como costumou ocorrer com muitas das outras entrevistas, enquanto as
entrevistadas despachavam seus produtos na agência transportadora,
concomitantemente, foram respondendo ao meu questionário, de maneira descontraída,
detalhando-me os itinerários de suas experiências no comércio transatlântico. Observei
entre elas comportamentos distintos, enquanto a primeira aparentava ser mais receosa,
cautelosa em conceder a entrevista e mais precavida nas suas palavras, a segunda,
Patrícia, mostrou ser mais extrovertida, simpática e comunicativa, contando-me que a
cidade paulista lhe proporciona diversidade de artigos de todos os gostos e para todos os
tipos de clientes que ela possui. O que lhe possibilita comprar um pouco de cada artigo
para agradar um perfil variado da sua clientela, como se observa nos relatos da Ana
Sebastião e da sobrinha, Patrícia, respetivamente.
“Compro, aqui no Brás, as vezes um pouco na 25 de março e também
vou na cidade de Franca [sp] comprar calçados. Como tu estás a ver
agora, estamos a fazer despachos aqui, já apresentamos as notas
fiscais, tudo certinho. Desta vez não vou poder ir pra Angola neste
mês [novembro] pra receber [despachar] as mercadorias, mas a minha
tia é quem vai receber as mercadorias, eu vou só no mês de dezembro.
Mas até lá vou ficar na casa das minhas amigas que moram e estudam
aqui. (Patrícia, angolana 25 anos. Entrevista realizada em São Paulo
10/11/2017. Grifo nosso).

E a tia Ana Sebastião acrescentou:

Assim que eu chegar em angola, eu vou despachar toda a mercadoria.


A minha família vai me ajudar, lá fica mais tranquilo. Enquanto isso,
Patrícia vai ficar aqui porque ela tem outras coisas para resolver e
esperar para resolver outros negócios. E também pra comprar mais
alguns vestidos e bolsas que faltam. Eu vou enquanto isso adiantando
as coisas. Eu já fui duas vezes para Dubai, mas este ano não vai dar,
porque o dólar está difícil de conseguir em Angola, está muito difícil.
E aqui no Brasil pelo menos dá pra economizar o dinheiro de
hospedagem, porque temos conhecidos aqui. (Ana Sebastião,
angolana, 34 anos. Entrevista realizada em São Paulo 10/11/2017.).

Há um elemento muito importante a relevar nos relatos da Patrícia e da Ana


Sebastião no mercado brasileiro. Talvez diferente de outras sacoleiras, as duas exploram
o setor de indústria de calçado brasileiro na cidade de Franca (interior de São Paulo),
conhecida como cidade de calçados, que vende em atacado com preços de baixo custo,
159

além das compras na Franca as duas também compram suas mercadorias nas lojas do
Brás pela diversidade de ofertas. E a figura abaixo demonstra as duas numa divisão de
papeis e contabilizando seus artigos na parte interna de uma das agências
transportadoras, (como consta na figura abaixo):

Figura 23 - Patrícia e Ana Sebastião contabilizando os cosméticos enquanto


aguardavam o despacho no interior da agência transportadora de carga

Fonte: Foto de Paulo G. Vaz. (São Paulo, 10/11/2017).

Figura 24 - Cosméticos da Patrícia e da Ana Sebastião antes de serem despachados na


agência transportadora de cargas

Fonte: foto de Paulo G. Vaz. (10/11/2017).


160

Nesses mercados populares da Zona Leste da capital paulista, narrado pelas


duas entrevistadas, é possível observar a divisão de papeis entre os familiares - quem
vai para o destino final, acompanhando o fluxo de mercadoria e quem ainda permanece
no lugar de transito, isto é, na cidade de São Paulo, para aguardar uma parte do dinheiro
enviado por parentes, para em seguida fazer novas compras e envia-las para a capital
Luandense.
Mas além dos traçados Angola – Brasil e Brasil-Angola, Ana Sebastião e Patrícia
também incluem nos seus itinerários o mercado emiradense. Já viajaram duas vezes e se
encantaram com as vitrines de Dubai, que é caracterizada nas suas narrativas como um
lugar singular, conhecido pelas riquezas exuberantes das construções arquitetônicas que
atraem turistas-compradoras ao mercado emiradense. E concomitantemente se trata de
um espaço urbano que proporciona no imaginário social dessas mulheres o sentimento
de empoderamento de gênero e classe71. Um gênero que resiste ao estigma social e até
então reduzido ao ambiente doméstico do lar-casa, agora insurge por diversos fatores,
buscando conquistar novos espaços sociais, arriscam-se em jornadas de trabalho
rotineiramente exaustivas, espremidas nas áreas comerciais, hotéis e as imponentes
vitrines luxuosas de Dubai, As sacoleiras precisam estar cientes dos artigos que
contemplam a necessidade dos consumidores e de novas tendências, considerando os
elementos da fugacidade e efemeridade que acompanham a vida útil da mercadoria -
ocasionado pela acumulação flexível - como subscreve Harvey (1992):
A acumulação flexível foi acompanhada na ponta do consumo,
portanto, por uma atenção muito maior às modas fugazes e pela
mobilização de todos os artifícios de indução de necessidades e de
transformação cultural que isso implica. A estética relativamente
estável de modernismo fordista cedeu lugar a todo fermento,
instabilidade e qualidades fugidias de uma estética pós- moderna que
celebra a diferença, a efemeridade, o espetáculo, a moda e a
mercadificação de formas culturais”. (Harvey, 1992, p.148).

O que Harvey (1992) quer nos apontar é que no mundo contemporâneo,


estamos acompanhando cada vez mais um cenário econômico marcado pela mudança
no próprio modelo de acumulação, que passa a ser marcado pela flexibilidade tanto da

71
Não obstante nos seus países de origens elas são conhecidas como empresarias, comerciantes, e/ou
chamadas pelos seus próprios nomes, sejam elas: Eugenia, Brinsam, Mariama, etc, menos sacoleira.
161

produção quanto do consumo. Pois nessa lógica cultural do capitalismo, a fugacidade


dos produtos parece ser algo mais evidente pelas formas como a vida útil da mercadoria
se torna cada vez mais reduzida, e o que era moda logo se torna ultrapassado e
transformado em “cafona”, insurgindo, no seu lugar, as novas tendências no mercado.
Essa relação entre a cultura e o consumo é o que Zigmunt Bauman (2008) chama de
cultura consumista:

" A cultura consumista é marcada por uma pressão constante para que
sejamos alguém mais. Os mercados de consumo se concentram na
desvalorização imediata de suas antigas ofertas, a fim de limpar a área
da demanda pública para que novas ofertas a preencham. Engendram
a insatisfação com a identidade adquirida e o conjunto de necessidade
pelo qual se define essa identidade. Mudar de identidade, descartar o
passado e procurar novos começos, lutando para renascer - tudo isso é
estimulado por essa cultura como um dever disfarçado de privilegio."
(BAUMAN, 2008, p.128).

A análise de Bauman sobre a cultura consumista é uma importante contribuição


para pensarmos os sentidos da mercadoria hoje, e principalmente quais são os atributos
valorativos que essas “mercadorias” necessitam para estar nas prateleiras. Para esse
autor, vivemos numa sociedade instável (liquida) cujos indivíduos agem tal qual a
própria mercadoria, buscando constantemente chamar a atenção consumindo (e
enfeitando-se), para poderem se manter sempre na linha de frente das “prateleiras”. A
razão disso é que o mercado de consumo se concentra na desvalorização imediata de
suas antigas ofertas, daí as mercadorias de todos os tipos (homens e objetos), se
esforçarem para serem vistas e “compradas” a um bom “preço”.
O que Bauman aponta é que na sociedade do consumo, estamos diante de dois
tipos de fetichismo, que ele descreve como fetichismo da subjetividade e fetichismo da
mercadoria, e que além de baseados na mentira, ambos podem ser resumidos na
objetificação, e como afirmado pelo autor:
O fetichismo da subjetividade, tal como, antes dele, o fetichismo da
mercadoria, baseiam-se numa mentira, e assim é pela mesma razão de
seu predecessor - ainda que as duas variedades de fetichismo
centralizam duas operações encobertas em lados opostos da dialética
sujeito-objeto entranhada na condição existencial humana. Ambas as
variações tropeçam e caem diante do mesmo obstáculo: a teimosia do
sujeito humano, que resiste bravamente às repetidas tentativas de
objetificá-lo. (BAUMAN, 2008, p.30).
162

Neste sentido, Bauman ainda amplia a concepção da mercadoria, (daquela


concepção marxista,), diversificando-o para questões sociocultural e de status social,
construído na base da mentira. Portanto, observando nessa perspectiva baumaniana
sobre a cultura consumista, nota-se o caráter extensivo e manipulador dos meios de
comunicação, no imaginário social das pessoas. Desse modo, os consumidores finais
dos países africanos não são imunes às tendências de modas em países de primeiro
mundo. Ao contrário, elas são a parte (vítima) importante dos interesses da “indústria
cultural” que depende dos consumidores, principalmente dos países que dependem da
importação dos bens. Isso significa que o processo de “liquefação” da sociedade
contemporânea, apresentado por Bauman, consiste em uma série de funções. Desde os
interesses das empresas que se modernizam substituindo os produtos, os meios de
comunicação que se concentram na desvalorização imediata das antigas ofertas, e
também aos clientes que utilizam os produtos buscando a autoestima, na medida em que
o consumo lhes proporcionam a melhora de autoestima, na pretensão de que poderão ser
vistos como sujeitos (mercadorias) importante tanto no mercado de trabalho ou na busca
pelo status social.
Nesse modo de produção cultural da indústria capitalista, que consiste em
padronizar e homogeneizar os produtos para que eles possam ser consumidos pela
maioria das pessoas, não é outra coisa senão, o resultado de um elemento socialmente
construído. E de modo pelo qual o papel do consumidor consiste numa situação de
alienação ao consumo de massa. Neste sentido, segundo Bittencourt (2013,p.1), “[...] a
Indústria Cultural traz em seu bojo todos os elementos característicos do mundo
industrial moderno e nele exerce um papel específico, qual seja o de ser importante
portadora da ideologia dominante, a qual outorga-lhe um maior sentido a todo o sistema
estabelecido”.
Daí, podemos conceber a ocidentalização do consumo que consiste num
fenômeno decorrente dessa série de fatores rapidamente elencados, dentre os quais os
dos meios de comunicações e o da colonização, que se impõe ainda sobre o que as
pessoas deverão vir a consumir, exercendo suas fortes influências em contextos mais
longínquos como os da Ásia e África. Nestes contextos, segundo Fagner Carvalho “[...],
refletir sobre a “Ocidentalização” é nos depararmos com as marcas, nem sempre boas”
(2007, p.71). Esses fatores, na visão de Bauman (2008), influenciam o comportamento
da atual sociedade de consumo, que não conhece exceção, onde “[...] todo mundo
163

precisa ser, deve ser e tem que ser um consumidor por vocação (ou seja, ver e tratar o
consumo como vocação). Nessa sociedade, o consumo visto e tratado como vocação é
ao mesmo tempo um direito e um dever humano universal que não conhece exceção."
(BAUMAN, 2008, p.73).
Neste sentido, o indivíduo consumidor passa a pertencer, e se identificar ao
mesmo tempo, e a ser identificado como membro da classe consumista, daí o consumo e
o status se configuram como elementos importantes na realização desse novo sujeito
moderno – que renuncia ao tradicional ao “se tornar chique” se adere ao modelo
globalizado e ocidentalizado. Pois este último, por ser um produto criado pela
propaganda, tende a se tornar obsoleto, e que na visão sustentada por Gilberto Dupas
(2007):
Marketing e propaganda criam objetos e serviços do desejo
manipulando valores simbólicos, estéticos e sociais (...). Essência da
lógica capitalista, a inovação tenta tornar obsoletos o mais
rapidamente possível os produtos existentes, transformando a
abundância ameaçadora de um mercado concorrencial em uma nova
forma de escassez transitória, e conferindo à nova mercadoria um
valor incomparável e imensurável, porque sua posse se transforma em
realização de um desejo quase mítico. É o caso típico das telas de
televisão de plasma em meados dos anos 2000. (DUPAS, 2007, p.80).

Dos elementos obsoletos aos lançamentos, os artigos são transformados em


realização de um desejo quase mítico, atraindo compradores para as periferias da
globalização, que preferem “beber da fonte” os produtos fabricados nesses mercados
considerados como aqueles que têm preços de baixo custo.
Como o exemplo que se pode observar na experiência da entrevistada Eugenia,
quem narrou o seu itinerário durante a entrevista no interior de uma agencia
transportadora. Nessa experiência a mesma elucida os benefícios desse circuito
comercial na estrutura socioeconômica das famílias, ao afirmar que “o negócio da China
e da Tailândia é barato para quem compra e o sustento para quem vende”, asseverando
que viaja para África do Sul, Tailândia e São Paulo. A entrevistada Eugenia, com seus
30 anos de idade, no relato a seguir se centra nos dois últimos mercados:

Escolhi a Tailândia porque o mercado de negócio têxtil é muito


bom, a roupa fica muito em conta porque o preço que a gente
compra lá é muito bom e compensa vender em Angola, isso foi a
razão e o motivo da minha viagem para lá. Porque antes de eu ir pra
lá, conversei com algumas amigas que já estavam lá e aí me
explicaram como é que o mercado de[sse] negócio tava lá. Fiz os
164

cálculos [a conta] e decidi ir pra lá. Quando eu cheguei me indicaram


um tradutor - um senhor Congolês, não é bem tradutor, mas alguém
que me guiava a alguns [dos] sítios. É a pessoa que trabalha e reside
em Tailândia, ele já está acostumado a trabalhar com o pessoal lá.
Quando ele leva alguém na loja o pessoal da loja já sabia o que era
necessário. Eu ando com ele nas lojas que ele conhece, assim vou
juntando as compras e [fico a] separá-las devidamente. E depois de
terminar todas as compras, chamo o taxi que me leva para a agência
de despacho que fica também no comércio, e a outra parte eu trago na
minha bagagem de mão, para economizar e viajo com ela para
Angola. A maior parte das coisas [artigos] que eu compro tanto em
Tailândia, África do Sul ou São Paulo, eu vendo na minha casa e o
que restar eu levo ao mercado e [vendo] no mercado. Um lugar
próprio, mas que no final do dia eu pago o imposto equivalente a 300
Kwanza [moeda local], aproximadamente 4.60 reais diária.
Antes eu vendia na feira de Roque Santeiro, mas depois o governo
obrigou para que todas as pessoas procurassem outro lugar. Mas os
meus conhecidos e vizinhos sempre me ligam para saber se eu trouxe
novidades. (Eugenia, São Paulo,11/11/2017).

A ida de uma sacoleira para um determinado mercado sempre tem os meios e


fins devidamente calculado. No caso da Eugenia, é o setor têxtil que lhe atrai, por ter
preços considerados de custo baixo, comparado ao de outros mercados, o que permite a
Eugenia comprar e revender uma parte em casa e outra no extinto mercado de Roque
Santeiro (que estava situado em Luanda no município do Sambizanga, Angola) cujo
nome é uma homenagem à novela brasileira, de 1985. E quando perguntada, o porquê
da extinção do mercado popular de Roque Santeiro, a entrevistada responde:

As pessoas saíram do mercado do Roque Santeiro porque o governo


obrigou que todo mundo deixasse o mercado. Porque o governo
precisava daquele espaço, para fazer algumas reabilitações do espaço.
Mas ninguém saiu do mercado de Roque Santeiro por livre e
espontânea vontade, ninguém! Todo mundo que saiu, foi por
obrigação do governo e olha que ainda hoje existem pessoas que com
a falta do mercado do Roque Santeiro perderam muita coisa [lucros],
perderam investimentos e essas pessoas hoje não são as mesmas,
porque o Roque Santeiro era um mercado que ficava no centro da
cidade e para além disso que certas pessoas angariavam muito fundo,
conseguiam muito lucro. Eu acho que era considerado um dos maiores
da África, e a maior parte das pessoas que saíram do mercado do
Roque Santeiro agora estão num mercado chamado praça das
mulheres, e outra parte está no mercado do Kikolo, com tendas
comercial, cada um com a sua tenda tem a sua bancada, bota a sua
roupa e aí vai comercializando as suas coisas produzidas no Brasil,
Dubai, China principalmente, África do Sul, Tailândia, por aí.
Na verdade, pra ser bem sincera, esse negócio era muito bom, dava
lucros maiores, mas agora com a falta de divisas esse mercado baixou
muito de rendimento, as pessoas agora viajam mas o lucro não
compensa pra nada por causa de escassez da divisa [dólar] em Angola,
165

por isso gostaria de continuar neste trabalho. Teve muitas vantagens,


mas agora não vejo essa vantagem toda, porque são muito reduzidos
que servem só para angariar dinheiro para o meu sustento e os lucros
agora consigo angariar dinheiro para fazer o meu financiamento,
entendeu? Por isso estou a pensar sério se vale a pena continuar nisso.
Sou independente, não preciso prestar contas [a] com ninguém, eu
faço as minhas horas próprias, trabalho quantas horas eu quiser e
até certo ponto sou feliz por isso, porque este trabalho me permite
manter. Agora terminei a licenciatura em administração de
recursos humanos. Nos últimos quatro anos decidi me fixar no
Brasil, me formei em recursos humanos, porque eu tinha visto
temporário que me permitiu estudar. Mas sempre fiz isso
simultaneamente, desde os tempos da faculdade até hoje. Pego daqui e
levo para Angola, despacho uma parte na agência e a outra segue
comigo na bagagem de mão. Ou, às vezes, eu peço para um amigo ou
familiar levar as minhas malas quando essa pessoa não tem excesso de
bagagem, depois dou-lhe uma quantia em dinheiro por esse favor de
levar a minha mala sem eu ter que ir pessoalmente. É um trabalho que
gera empregos, tanto pra mim que está esses tempos aqui em São
Paulo, quanto para a minha família que recebe as mercadorias [em]
Angola. Por isso que esse trabalho é uma fonte de rendimento muito
importante mesmo! Inclusive no meu caso, eu que trabalho com uma
irmã (Rosa), aqui tem outras amigas que trabalham com as mães que
estão por lá. Nesse caso, os dois lados estão trabalhando
conjuntamente. (Eugenia, angolana, 30 anos de idade, entrevista
realizada em São Paulo, 11/11/2017).

Figura. 25 – Eugenia, durante o ensacamento de suas compras

Fonte: Paulo G. Vaz. (11/11/2017).


166

A narrativa da entrevistada Eugenia personifica os sujeitos deste estudo, pela


forma como elas conseguem gerenciar os seus tempos entre trabalho e vida pessoal, sem
desfocar dos seus compromissos cotidianos. Ademais, um elemento importante
apontado pela mesma é a forma como são utilizados diversos recursos ou estratégias
alternativas para fazerem chegar uma mercadoria comprada no exterior (mercados
periféricos). Além de serviços de transportadoras considerados como um procedimento
convencional, burocrático, porém seguro, algumas sacoleiras recorrem à alternativas de
solidariedades de um portador, que pode ser um amigo ou guia-comercial, isto é, para
economizar o dinheiro com envio de mercadoria (feita via agência transportadora, ou
para evitar de pagar as taxas com excesso de bagagens de mão no avião no momento do
check-in no aeroporto). É comum uma sacoleira acionar uma pessoa de confiança em
torno dos comércios, que viajam com poucas bagagens para lhe fazer o favor de levar as
suas mercadorias, e em troca do favor, a sacoleira lhe retribui com uma quantia
equivalente aos quilos transportados. Esse procedimento também tem sido muito bem
explorado pelos guias – comerciais (rapazes), que vem sendo acionados também para
fazerem essa função de portador (pessoas que levam encomenda), por exemplo: quando
a comerciante (sacoleira), precisa de determinados produtos demandados pela sua
clientela nos seus países de origem, porém, que encontra-se impossibilitada de realizar
uma viagem (por motivos alheios), ou mesmo para também economizar com os
encargos da viagem, dos hotéis etc., é que se recorre às amigas sacoleiras, guias
comerciais ou demais conterrâneos que estão viajando ou e/ou a fazer compras.
Uma outra alternativa utilizada nesse meio é a que a Eugenia tem feito nos
últimos quatro anos, residente na cidade paulistana e próximo à zona comercial (na
Zona Leste da capital), com o visto temporário de estudante, a mesma faz as compras
mensalmente, ou trimestralmente, dependendo da situação financeira da família e depois
as envia para a cidade de Luanda. Na cidade angolana quem cuida de receber as
mercadorias é a irmã, Rosa, (que vive em angola), e é quem incumbe-se de despachar as
mercadorias nos serviços aduaneiros. Pois, uma vez recebida a mercadoria, a mesma
(Rosa) trata de abastecer a loja e a outra parte é distribuída em forma de pronta-entrega
para respetivos clientes que haviam solicitado antecipadamente determinados artigos.
167

5.4. O deslocamento de capital estrangeiro para os mercados periféricos abre


novos espaços para a globalização popular

É incongruente falar da globalização popular hoje, sem no mínimo considerar


os aspectos materiais, a vida social das mercadorias dentro das perspectivas sócio-
antropológicas, e acima de tudo, relevar as condições onde são produzidas essas
mercadorias, ou principalmente observar as situações socioeconômicas dos países na
divisão internacional do trabalho. Mas para isso é necessário analisarmos o cerne da
ideologia capitalista, e suas necessidades de acumulação, para compreendermos o
fenômeno da globalização hegemônica e, consequentemente, compreender os motivos
que impulsionam o fluxo das pessoas para certas regiões do globo a comprar
mercadorias onde os salários pagos aos trabalhadores das fábricas dessas regiões
periféricas e as mercadorias fabricadas ou produzidas por eles, são considerados de
baixo valor. Lins Ribeiro (2010) atribui isso a alguns fatores que tornam esse mercado
um lugar atrativo, dentre os quais: a superexploração da força de trabalho e a não
remuneração de uma série de fatores. A combinação desses elementos da flexibilização
da força de trabalho nos dá uma noção básica do porquê essas sacoleiras preferem ou
preterem certas regiões e não outras. Ou seja: porquê as sacoleiras se deslocam para as
zonas francas do mercado asiático ou latino americano e não ao mercado europeu? Uma
das respostas, senão a principal, a essa questão, são as mudanças estruturais e
flexibilizações das formas de trabalho. Para alguns autores, como Harvey (1992) e
Gereffi (1994), tais mudanças estruturais podem ser atribuídas às alternativas flexíveis,
tanto na aceleração da mais valia, como na descentralização de polos de exploração de
força de trabalho nos países em desenvolvimento “periférico”. Essas mesmas mudanças,
embora possam angariar novos postos de trabalho nos países onde são implantadas,
porém que tende a se nutrirem da precarização, nomeadamente, a dos contratos frouxos,
devido ao poder dos oligopólios de empresas estrangeiras nesses países.
Com isso, de acordo com Gereffi (1994), a globalização alterou a dinâmica
competitiva das nações, empresas, e das indústrias para uma nova reconfiguração do
consumo, que consiste de forma mais evidente em mudanças dos padrões de comércio
internacional, onde o crescimento explosivo das importações nos países desenvolvidos
indica que o centro de gravidade para a produção e exportação de muitos fabricantes se
168

moveu para uma matriz cada vez maior de novas economias industrializadas (NEI) no
Terceiro Mundo, destacadamente ao Sudoeste asiático (Singapura, Indonésia, Malásia,
Tailândia, Filipinas ); Nordeste asiático (China - Hong Kong, Taiwan, Coreia de Sul e
Macau); Sul asiático (Paquistão, Bangladesh, Sri Lanka e Índia); América do Norte
(Canadá e México); América Central e Caribenho (República Dominicana, Honduras,
Guatemala, El Salvador, Honduras, Costa Rica e Jamaica); Europa (Itália e Turquia).
Isso leva David Harvey (1992) a destacar que o mosaico da nova divisão
internacional do trabalho, faz com que as indústrias que tradicionalmente dependiam de
exportação de matérias-primas passam a tornar-se muitos mais interdependentes em
alguns aspetos e independentes em outros devido às corporações transnacionais
instaladas nos mercados periféricos. Afirma Harvey (1992):

Os países recém-industrializados (NICs), como a "gang dos quatro" do


Sudeste Asiático (Hong Kong, Singapura, Taiwan e Coréia do Sul),
começaram a fazer incursões nos mercados de certos produtos (têxteis,
eletrônicos etc.) nos países capitalistas avançados, e logo foram
acompanhados por muitos outros NICs (Hungria, Índia, Egito) e por
países que antes tinham implantado estratégias de substituição de
importações (Brasil, México) numa reformulação locacional da
produção industrial do mundo. Algumas mudanças de poder da
economia política global do capitalismo avançado a partir de 1972
foram verdadeiramente notáveis. A dependência dos Estados Unidos
(...) em países em desenvolvimento aumentaram quase dez vezes, e as
importações como um todo (particularmente as feitas no Japão)
passaram a ocupar grande parcela dos mercados norte-americanos em
áreas tão diversas quanto placas de silício, televisores e vídeos,
equipamentos controlados por computador, sapatos, produtos têxteis e
carros. O balanço de pagamentos de bens e serviços dos Estados
Unidos transformou rapidamente o país de credor global líquido em
maior devedor do mundo. Entrementes, houve um incremento do
poder financeiro japonês, que transformou Tóquio num dos mais
importantes centros financeiros mundiais (superando Nova Iorque,
pela primeira vez, em 1987) apenas em função das vastas quantidades
de fundos excedentes controlados pelos bancos. (HARVEY, 1992,
p.156, grifo nosso).

Com as implementações das linhas de montagens nesses países, a produção se


torna global, pois além das articulações entre a empresa matriz e as filiais em zonas
periféricas, a empresa pode fabricar em massa e ao mesmo tempo em unidades
reduzidas e seletivas, no chamado just in time (na hora certa), nos circuitos superiores
da economia, abastecendo os grandes varejistas como Walmart (loja multinacional
estadunidense), C&A (cadeia internacional de lojas de vestuário), ou os demais grandes
169

varejos nacionais brasileiros como as lojas Renner, lojas Marisa, etc. Daí a produção se
tornar global. Embora nessas empresas (empreiteiras) filiais que se instalam nos países
periféricos, os salários pagos aos trabalhadores são menores, tende-se a atrair os
pequenos comerciantes que acompanham as tendências dos produtos.
É nesse contexto social, em que a força do trabalho é desvalorizada em relação
à de outras regiões, que se torna uma “mina”, que atrai os compradores de diversos
espaços do globo. Não obstante, observa-se que o deslocamento de sacoleiras para
certas regiões do globo, onde os produtos são mais baratos. Por isso, o deslocamento de
sacoleiras não pode ser associado a um fenômeno aleatório ou acaso. Pelo contrário, se
trata de ação racional com relação a fins, porque a elas interessa os produtos de baixo
custo, ou seja, elas procuram escolher os meios possíveis para a realização de um fim
econômico que começa a se engendrar desde a viagem, moradia, contato (WhatsApp)
com seus conterrâneo que agem como guias - intermediários e/ou tradutores no interior
desses comércios locais e internacionais, daí somando-se a todos os artifícios
favoráveis, para depois realizarem suas viagens e compras, e para depois vender a um
preço que lhes permitem obter o seu retorno financeiro investido nos artigos. E de igual
modo, o capitalista também se beneficia desse processo de circulação de mercadorias.
As turistas compradoras (sacoleiras) estão cientes das suas limitações financeiras e
dos mercados, e por isso recorrem a mercados de baixo custo – considerado-os
adequados para a realização das suas compras nas áreas consideradas como periféricas
do “capitalismo mundial”, cuja matriz geralmente se fixa nos países tradicionalmente
industrializados, mas pela necessidade de acelerar os lucros (superexploração), as
empresas se deslocam para zonas periféricas, que apresentam menor custo da força
produtiva (insumos e forças de trabalho), trabalho degradante, além de salários dos
operários considerados extremamente baixo, comparado aos operário das mesmas
empresas situadas nas economias centrais. (GEREFFI, 1994); (HARVEY, 1992);
(SANTOS, 2008).
David Harvey (1992) categoriza essa situação como a globalização atrelada às
formas de produção flexível com base na desregulamentação das relações e a
flexibilização das leis trabalhistas. Uma reconfiguração que impõe uma nova
interlocução para as empresas, os sindicatos e o Estado à situação crítica. Uma violenta
destruição do estado e dos capitais estatais sob o domínio das multinacionais, em que as
matrizes podem estar num determinado país de origem, mas o seu alcance está para
170

além dos territórios fronteiriços, por isso seu impacto é de caráter exponencial. Desse
modo, essa nova reconfiguração do capital-trabalho, a nível global, opera através de
deslocamentos e transnacionalizações de capital-empresa, que consequentemente põe
em causa existencial as forças sindicais e a segurança dos trabalhadores em todos os
sentidos, entre os quais os impactos sobre o emprego e trabalho e as novas formas de
organização da produção e do trabalho, nessas novas formas de gestão e de relação
inter-firmas, e nas diferentes formas de precarização do trabalho, especialmente as da
terceirização, superexploração da força do trabalho e suas faces informais de contratos
sob regimes parciais, também conhecidos como trabalho part-time, temporário,
intermitente ou subcontratado.
Analisando o mapeamento do Gereffi (1994) sobre a desterritorialização e
deslocamentos do capital para as novas economias industrializadas (NEI) no Terceiro
Mundo, os dados da nossa pesquisa acrescentam um elemento importante e novo nessa
estrutura - o deslocamento de sacoleiras para essas regiões, espalhando as mercadorias
para consumidores finais, aumentando com isso o mercado global desses produtos. Uma
dinâmica que não estava prevista nas estruturas dos circuitos superiores, ou nas
chamadas cadeias globais de mercadorias, apresentado por Gereffi (1994, p.99), que
concebia a distribuição de mercadorias de forma hierárquica, liderado pelas empresas,
governanças em corporações producer-driver (produção dirigida) e buyer-driven
(comprador dirigido).
Nessas transnacionalizações das empresas por certas regiões do globo,
dilaceradas pela flexibilização das forças de trabalho, precarização, alienação do
trabalhador, tanto em relação contratual quanto à mercadoria fabricada pelo próprio
trabalhador, somado ao definhamento das relações sindicais, é que se apresentam
maiores ofertas de produtos finais e a serem exportados. É neste contexto que o
capitalismo internacional (globalizado) tende a se caracterizar por uma postura-
dinâmica e agressiva contra as forças sindicais que em diversas situações se constituem
por um claro esgotamento e descomprometimento dos trabalhadores com as causas
coletivas. Para Milton Santos (2000) essa é a característica das grandes empresas no
tempo da globalização, é uma que, na verdade, não têm responsabilidade social e moral,
e é por isso que termina desorganizando os territórios, tanto socialmente como
moralmente.
171

Ainda, de acordo com Milton Santos (2000), o que ocorre na globalização é uma
divisão internacional de trabalho injusta e desigual cujas grandes empresas
transnacionais ou multinacionais transferem suas produções industriais para países
terceiro-mundistas ou emergentes, principalmente onde não há limites para a exploração
da força de trabalho, e nas que se contabiliza o tempo de trabalho de seus funcionários
em frações de segundos, mascarando mais ainda, desse modo, os verdadeiros valores
dos salários pagos (salário real-medido pelo tempo de trabalho). Como bem abordado
também por David Harvey (1992):

Muitos dos sistemas padronizados de produção construídos sob o


fordismo foram, por essa razão, transferidos para a periferia, criando o
"fordismo periférico". Mesmo os novos sistemas de produção
tenderam a se transferir, uma vez padronizados, dos seus centros
inovadores para localidades terceiro-mundistas (a transferência da
Atari, em 1984, do Vale do Silício para o Sudeste Asiático, com sua
força de trabalho de baixa remuneração, é um caso exemplar).
(HARVEY, 1992, p.174).

Essa estratégia de acumulação capitalista em expansão, descrito por David


Harvey (1992), como trabalho socialmente combinado que globalmente consiste em que
tenhamos hoje uma remodelação internacional de superfaturamento do capital, por
exemplo: “[...] O mesmo molde de camisa pode ser produzido por fábricas de larga
escala na Índia, pelo sistema cooperativo da "Terceira Itália", por exploradores em
Nova Iorque e Londres ou por sistemas de trabalho familiar em Hong Kong.
(HARVEY,1992, p.175). Sendo que um salário pago entre os seus trabalhadores na
mesma empresa é desigual e, concomitantemente, diante da luta pelo capital, essas
empresas criamos exércitos de reservas para pressionar os trabalhadores estáveis ou
temporários, somando a uma legião de desempregados disponíveis ao comércio para
fazer circular a mercadoria, engrossando os segmentos do consumo. Uma divisão do
trabalho que ajuda a acelerar a circulação do capital em diversos segmentos.
Mas em toda essa “cadeia produtiva” que envolve desde os fabricantes a
comerciantes, nem todas as nossas entrevistadas apontam o lugar de fabricação como a
primeira opção de emprego, como é o caso da guineense Mariama, que eu já havia
entrevistado em São Paulo e faz parte da minha lista de contatos, a quem reencontrei-a
no seu empreendimento comercial (um prédio reabilitado da sua família), localizada no
172

bairro de ajuda em Bissau, um dos bairros relativamente de classe média, Mariama,


reitera a vontade de seguir no mesmo segmento do trabalho ao afirmar que:
Eu estudei na escola particular, mas eu sempre gostei de trabalhar com
comercio e fazer as coisas que eu gosto. Gosto de ter a minha
liberdade, o meu avô tinha duas lojas, uma pequena aqui mesmo, perto
da minha casa e a outra na feira de praça. Mas como a feira de praça
queimou na guerra de 7 de junho, daí ele resolveu investir nesta loja
aqui, numa parte ampliada da casa [puxadinho]. E ele sempre teve a
sua vida tranquila. Até bem melhor que muitos trabalhadores da
função pública. Acho que isso ele passou pra nós. O meu primeiro
negócio foi na área de confeitaria, eu fazia bolos e doces pra vender na
loja do meu avô, mas como eu tenho as minhas amigas “zucas” que
estudaram no Brasil, [e] sempre traziam malas para vender nas férias,
e vendiam bem, eu achei aquilo um bom caminho para seguir
investindo. Daí conversei com a minha avó e comecei a viajar,
comprando coisas pra loja da minha avó. Mas agora eu compro pra
mim mesmo e vendo aqui mesmo na loja de casa, mas também
quando alguém quer um produto, ele me avisa e na minhas viagem a
São Paulo eu compro e entrego pra ele e ele me paga. Mas eu não
consigo trabalhar com outra coisa senão com o comercio. Hoje tenho
o meu carro, já comprei o meu terreno para construir a minha casa
própria, (Mariama, guineense, entrevista realizada em Bissau,
15/01/2018).

A situação da Mariama, se enquadra como a daquele tipo de sujeito que ganha a


vida fazendo o que lhe dá prazer. Ela trabalha com o comercio autônomo porque lhe
permite se estabelecer socialmente, teve o apoio da família para se iniciar e continuar
nele, e também pela satisfação. E ao fazê-lo com prazer, ela está segura de nunca ter que
ser forçada a trabalhar ou ter que se profissionalizar em algo que não lhe agrada por
pura obrigação. Desde aí ela descontrói a definição negativa do trabalho associada à
vida penosa, do Tripalium – o do sofrimento e da tortura. Ela constrói a sua identidade
com o trabalho a partir de si. Pois na sua concepção de mundo ela mostra que a vida não
precisa necessariamente ser reduzida à pura troca econômica de um gasto de energia
pela conquista de um bom salário, mas também está imbuída na sua fala essa outra
dimensão simbólica que ela expressa, em termos da importância da realização de si, do
reconhecimento social e de um equilíbrio com vida pessoal que talvez um assalariado de
uma grande empresa estruturada não teria (DUBAR, 2012, p. 351- 354). De igual modo,
a Celeste, 32 anos, professora de liceu (ensino médio), moradora de Bairro de Tchada,
professora, mãe de dois meninos, um de quatro e outro de um ano, depende do comércio
para complementar sua renda. E para isso conta muito com ajuda do marido que
trabalha numa ONG internacional. Afirma a Celeste:
173

Eu trabalho com todo o público, compro coisas para homens,


mulheres e crianças, mas ultimamente estou comprando também
muitos produtos de maquiagem, vendo roupas, bolsas e sapato. Mas
sempre, claro, compro muitas roupas porque no Brás as roupas são
mais baratas, principalmente na Feira de Madrugada no Brás que
funciona das 3h00 às 10h00, e os preços compensam. O que eu vendo
rápido também aqui são cabelos naturais e a calça legging. Mas para
viajar e trazer as malas cheias de mercadorias, eu conto muito com o
apoio [do] meu marido, que aliás ainda não conhece o Brasil. Eu
comecei vendendo roupas para os amigos, parentes e vizinhos e
depois comecei a vender para os comerciantes das lojas mais
conhecidas daqui. Eles vão na minha casa, trazem o dinheiro e levam
o produto, mas as vezes eles levam e depois me dão o dinheiro. Mas
tudo sai, e ainda por exemplo nas quadras festivas todo mundo
compra. É um dinheiro que me ajuda. Não pago o imposto e isso me
ajuda muito, tenho filhos pequenos para criar e eles estudam na
escola (colégio) particular, por isso preciso economizar e vender
mais. (Celeste 32 anos, guineense, entrevista realizada em Bissau,
14/01/2018).

A flexibilidade do tempo permite a Celeste conciliar o seu trabalho com a vida


familiar e principalmente de estar mais centrada na educação dos filhos que estudam na
escola. Viajar ao Brasil – além de ensinar e tomar conta de filhos pequenos e sua casa –
é um malabarismo no seu dia-a-dia, que lhe permite impulsionar a sua economia,
vendendo em forma de pronta-entrega na sua casa ou nas casas dos clientes, é também
um meio de negociação muito comum nesse oficio, talvez um pouco mais rígido em
relação ao caso da Odete, de 47 anos. A Odete aposta num tipo de atendimento mais
dinâmico através de uso de recursos da tecnologia moderna para melhor comercializar
seus produtos. Ela usa os aplicativos e plataformas digitais como twitter para anunciar
as novidades trazidas nas suas bagagens e vende numa espécie de jus-in time (na hora
certa), fazendo suas entregas de modo pontual a seus clientes para evitar assaltos na
hora de entrega. No relato dela:
Sou separada, e vivo com os meus três filhos, dois meninos rapazes e
uma menina, mas o pai deles é um pai presente, sempre participa da
vida dos filhos. Mas então, comecei a fazer bida (comercio) com a
minha irmã, mas sempre no carnaval naquele espaço do Verbena de
Bairro de Ajuda, conhece? Então todos os anos vendíamos bebidas e
comidas. Mas em 2010 comecei a levar a coisa mais a sério, fui pra
Senegal comprar roupas para artigos e vendia aqui. Depois juntei a
minha parte do dinheiro com a parte da minha irmã e fui para o Brás,
em São Paulo, e como não tinha muito dinheiro, fui pra comprar
coisas específicas como cabelos, havaianas e roupas intimas
femininas, que vende rápido. Antes eu saia de porta em porta na
vizinhança para avisar sobre os modelos de roupas que eu estou a
vender, mas desde que as pessoas agora começaram a usar muito
facebook e Whatssap comecei a atualizar as novidades e as pessoas
174

compartilham nas suas páginas. Eles mesmos me ligam para pedir


coisas. Hoje toso mundo está conectado na internet. Hoje não preciso
ter um ponto fixo para vender minhas coisas, e também eu informo os
tamanhos dos vestidos, a numeração de chinelos e tudo. Tenho até
clientes que não compram roupas nas lojas do centro da cidade, e só
compram as minhas coisas. Aqui em Bissau o número de usuários de
internet ainda é bem pouco, comparado com outros países, mas
mesmo assim eu consigo vender. E ainda consigo fazer o meu curso
de informática. (Odete, guineense, 47 anos. Entrevista realizada em
Bissau em 16/01/2018.

A forma de comercializar da Odete, é um estilo mais moderno que explora os


recursos da internet e benefícios da era da informática. Durante a minha pesquisa de
campo, a mesma demonstra o seu fascínio de continuar no mesmo segmento, por estar a
ascender socialmente, porque consegue atingir um número de público significativo que
demanda os seus produtos. Isso significa que, se para os consumidores finais a aquisição
desses bens (artigos) é de suma importância e/ou algo associado ao status social nas
suas comunidades, para a sacoleira Odete, atuar como “abelha operaria” é uma condição
de suma importância adicional para a construção da sua economia. Sendo que na
maioria das vezes não cabe mais dizer que se trata de uma renda puramente
complementar, mas simplesmente uma renda. Do mesmo modo, já não se pode afirmar
que se trata de um universo relativamente pequeno (sacoleiras brasileiras e africanas),
ainda que cada vez mais o mettier de sacoleira tem sido um importante espaço onde as
mulheres constroem suas economias.
É notório também que a práxis dessa atividade comercial por necessidade é
bastante peculiar, e se insere no perfil dos trabalhadores que chegam hoje e partem
amanhã, aparentemente turistas, mas na verdade engajadas nas atividades de compra e
venda de mercadorias, tornando-as uma atividade rotineira, ao mesmo tempo em que
banaliza a viagem, retirando seu aspecto misterioso. As sacoleiras percorrem pontos
distantes do planeta realizando estes trânsitos como parte do seu trabalho, não como
lazer ou evasão.
Longe de poder ser vista ou entendida como uma mera forma de bricolagem
econômica local, parece-me que o uso desses esquemas massivos de compra no atacado
para a sua revenda no varejo começa a fazer parte dos cálculos da própria produção
global e nas que as sacoleiras como as africanas fazem um importante serviço ao
capital. Economia de entrepostos ou lojas em territórios onde se não for compensador,
devido às estratégias de marca, à localização comercial, deixando esse papel ser
175

preenchido pelas intermediárias (caso dos cosméticos, em que as lojas internacionais


são privilegiadas apenas em mercados de alto poder aquisitivo), deixa-se ao cargo de
pessoas como os das nossas sacoleiras a difusão “em massa” destes produtos que
chegam através delas até mercados mais restritos. Essa possibilidade de desdobramentos
foi uma das hipóteses das que parti ao iniciar esta pesquisa, e que agora ganha
visibilidade e corpus, depois de todo este trajeto de pesquisa teórica e empírica realizada
nesta tese, ao ir comparando este estudo de caso, com o de outros casos, como por
exemplo, o de mulheres cabo-verdianas que vão a Fortaleza comprar produtos para
revender naquele país africano, ou mesmo do caso das brasileiras que vão ao país
vizinho, Paraguai. Mas o que é certo, ao menos, é que o comércio híbrido típico dos
padrões mercantis africanos (sua informalidade e estreiteza) encontra uma via de
alimentação no interior dos paradigmas mais atuais do mercado ocidental, orientado
pela globalização.
Mas o fator principal que relacionam estas sacoleiras africanas ao Brasil é a
forma como estes produtos são almejadas pelas suas clientes africanas e demandados
para serem comercializados em suas comunidades de origem, compondo um quadro
claro dos trajetos que estes produtos percorrem e da internacionalização destas
mercadorias entre os mais diversos mercados periféricos ( como, no caso desta tese, os
de Angola e Guiné-Bissau) com o mercado de um país (como é o caso do Brasil) que
não é “central” no capitalismo, no máximo em desenvolvimento ou emergente, mas que
comercializa, por seu turno, os produtos das filiais de grandes grupos localizados ali.
(GEREFFI; KORZENIEWICZ, 1994, p.1-5).

5.5. A vida social das mercadorias e a crise de identidade socialmente


(des)construída nas antigas colônias

A compra desenfreada de produtos importados desvela o caráter


fantasmagórico que essas mercadorias provocam no imaginário social de muitos
consumidores finais africanos na aquisição dos produtos nos mercados externos. É
através da demanda por esses produtos por clientelas que faz emergir o metier (ofício)
das sacoleiras, obrigadas por necessidades próprias, a atravessarem os oceanos
(Atlântico e o Índico) à procura dos produtos nas Américas e nas terras asiáticas, uma
176

vez que esses bens são considerados bens relativamente muito escassos, principalmente
as do setor têxtil, eletroeletrônicos, e produtos estéticos.
Mas a carência das forças produtivas, por si só, não determina o fenômeno de
consumo protagonizado pelas sacoleiras, pois o que determina as preferências do
dispêndio em tempos da “mundialização do consumo” tem sido impulsionado por
intermédio dos grandes meios de comunicação, em especial a mídia tradicional (TVs),
que se configuram como agente de transformação e reprodutores de bens simbólicos,
através dos “rituais” por eles construídos e que passam a ser seguidos pelos seus fiéis.
Segundo Bourdieu (2007), esses mesmos bens simbólicos são concomitantemente
valorizados como mercadorias carregadas de significações, tanto em caráter mercantil
quanto cultural.
Nota-se que, o padrão de consumo dos produtos comercializados segue as
tendências modernas e ocidentais, desde vidros, aparelhos de som, ou até vasos de
flores, Sandálias havaianas, cabelos humanos, roupas íntimas, dentre outros. Como
observa o antropólogo angolano Carlos Serrano72(2007): “[...] o enorme interesse pelos
programas de televisão é um termômetro da influência que o Brasil exerce sobre alguns
países africanos (...) que nutrem quase que uma idolatria pelo Brasil”73.
A análise do Serrano desvela a relação intrínseca de causa e efeito entre o
consumo e a da imposição cultural, de forma pelo qual os impulsos por aquisição de
certas mercadorias relacionadas aos cuidados estéticos, em certas medidas são de
características supérfluas e fugazes, como o caso dos apliques, cabelos naturais
(humanos); cabelos artificiais, roupas idênticas à das personagens dos filmes ou
telenovelas, que passam a se constituir como elementos imperativos do status social do
outro lado do atlântico, e que incidem mais para satisfazer as “necessidades da
fantasia” do que para satisfazer as “necessidades do estômago”. Como se pode
perceber nos relatos das entrevistadas, que descrevem os produtos demandados pelas
suas clientelas (consumidores finais). Nos relatos das duas guineenses, Titina de 33
anos e Carmen de 32 anos que asseguram que têm como destino de suas compras a
cidade de São Paulo, uma cidade que, segundo a primeira, apresenta uma variedade
esmagadora de artigos e os preços são relativamente acessíveis. ela costuma fazer as

72
Prof. Dr. da Universidade de São Paulo (USP).
73
Disponível em: http://reporterbrasil.org.br/2007/04/das-novelas-brasileiras-aos-mercados-populares-da-
frica/ .
177

compras de acordo com os pedidos da clientela, sendo que as solicitações são baseadas
nas tendências de moda das telenovelas brasileiras, principalmente dos seus
protagonistas. Como os clientes seguem as tendências de modas, “os clientes pedem de
tudo que eles vêm na novela, desde vestidos, saias, blusas, calcinhas (roupas íntimas),
bermudas, camisetas, roupas de praia, havaianas personificadas ou com logotipos da
Copa do Mundo, bijuterias etc. E como o descreve a entrevistada:
“Eu vendo os produtos brasileiros para os funcionários públicos e
principalmente pros funcionários do Banco, sei que lá tem
dinheiro...(risos), e eles sempre me pagam, por isso é mais confiável
vender nos serviços do que na rua, e a grande verdade é que o pessoal
dos bancos ou outros funcionários públicos podem até demorar um
pouquinho, mas pagam, e quando eles levam um produto,
praticamente significava [para mim], uma garantia de [seu posterior]
pagamento. Além disso, elas não demoram como outras pessoas aqui
da vizinhança [do bairro] que tu nem sabes muito bem se têm
empregos fixos ou não. Na vizinhança muitas pessoas pedem o
produto mesmo sabendo que não vão conseguir o dinheiro pra te pagar
dentro do prazo, eles pedem, por isso não adianta trabalhar com
pessoas assim. (Titina, guineense,33 anos).

Assim como a Titina, a estratégia de pronta entrega da mercadoria encomendada


é muito utilizada nas negociações, entre uma sacoleira e uma determinada cliente
considerada como uma boa-pagadora, podendo até esse cliente (consumidor final) tomar
emprestado a mercadoria para depois pagar a prazo sem juros. Porém nessa relação se
espera que o consumidor tenha “a imagem de bom pagador” evitando de dar calote para
poder manter a sua credibilidade. Nessa relação descrita acima, sempre o consumidor,
os chamados “clientes fixos”, naturalmente tende a se esforçar para manter o histórico
positivo que lhe garanta a sua credibilidade para fazer futuras compras com essas
sacoleiras. Porém, essas negociações informais também são passiveis de sofrerem
vários tipos de riscos e incertezas, pois não há como evitar, por exemplo, os chamados
calotes de um cliente de não ter como pagar a dívida de um artigo adquirido a prazo, ou
que, devido a algum imprevisto, calculou mal as possibilidades de poder fazê-lo.
Observadas essas situações acima, torna-se possível destacar que a rotina de
trabalho das sacoleiras poderia ser descrita como constituída basicamente em quatro
tipos de atividades essenciais: o de estudarem o perfil da clientela; escolherem o
mercado (país) adequado para realizar as suas compras; decidirem o melhor modo da
entrega dos produtos (artigos) e a de garantir a cobrança do pagamento de sua clientela.
Um exemplo interessante disto é o caso da Carmen que vende cabelo humano
(extensão - apliques longos) e produtos de beleza. Ela escolheu o mercado paulistano
178

para comprar os cabelos porque considera que é o único entreposto que vende cabelos a
preços bons. E aproveita também para comprar produtos de beleza, como Shampoo,
condicionador, hidratante, vitaminas, esmaltes. Ressalta ainda que “os produtos de
beleza em geral fazem sucesso aqui “pra mulherada” da minha terra e “aqui eu revendo
[eles] diretamente para as donas dos salões de cabeleireiros, aqui mesmo em Bissau”.
Igualmente, fascinada pelos mercados paulistanos, a Iza é uma cliente assídua de
modas femininas específicas como as marcas Vizzano (Sandália feminina, bolsas,
vestidos) e Beira Rio (marca nacional-brasileira), compradas nos grandes varejos da
cidade, pois além de acompanhar as tendências e demandas da sua clientela em Bissau,
que frequentam a sua loja situada no empreendimento comercial situada no prédio
Ancar, ela geralmente viaja quatro vezes por ano para acompanhar e abastecer a sua
segunda loja em São Paulo, que vende produtos africanos, e de igual modo compra
artigos em São Paulo para abastecer a sua loja em Bissau.
Analisando o contexto social dos consumidores finais nas terras africanas e os
relatos das sacoleiras Titina e Carmen, quando afirmam que os pedidos são baseados
nas tendências de moda das telenovelas brasileiras, principalmente nos protagonistas
das telenovelas, isso nos mostra a capacidade da imagem e da publicidade hoje. E de
como fazem com que essas ideias sejam divulgadas de maneira repetitiva, aumentando
assim sua capacidade de memorização e fixação social (daquilo que deve ser tomado
como tendência).
Segundo Renato Ortiz (1996, p.99) “a comunicação aprofunda as condições de
deslocação das Pessoas” ao redor do mundo, podendo até contribuir com processos de
vir a desenraizá-las das suas culturas locais, sendo este um processo que entranha nas
mais diversas classes sociais e regiões. Não obstante, alguns teóricos arriscam-se a
chamar essa onda de intensificação de comunicações de “aldeia global”, provocada
também pelo poder da indústria cultural e midiática.
O desenvolvimento dos sistemas de comunicação social irão, deste
modo, redefinir a própria relação entre o local, o nacional e o mundial.
Não se trata, como já dito, apenas de uma redefinição espaço-
territorial mas, essencialmente, de uma redefinição de ordem cultural
no interior destes espaços e territorialidades onde o processo de
constituição de uma cultura nacional popular e a noção de identidade
nacional dela derivada passam a servir de marcos divisores e
fronteiras entre as sociedades e povos. (RETONDAR, 2007, p.4).

Observando os impactos e consequências da comunicação social, da indústria


cultual e dos elementos atrelados ao consumo, é possível compreender que os consumos
179

das mercadorias não ocorrem de forma isolada, pois estão associados a elementos
cultuais. É nessa mesma perspectiva cultural que Arjun Appadurai (2008) traz uma
contribuição importantíssima para compreendermos a vida social das mercadorias, ao
preconizar que as demandas por certos produtos (importados ou não), não devem ser
tomados como um evento natural, mas sim, a partir do pressuposto de que os desejos a
elas imputadas podem ser manipulados por uma elite econômica opressora, e por isso
essas demandas jamais podem ser tomadas como automáticas, porque as mercadorias
têm suas vidas sociais, status social (biografia de marca) principalmente na medida em
que se tornam superlogomarcas, é o significado pelo qual são embutidas nelas um certo
valor simbólico que representa um status para os consumidores. Pois nota-se que nesse
nicho de mercado e nos próprios comportamentos evidenciados por consumidores finais
em muitas sociedades africanas, os cabelos humanos naturais e longos ganham uma
maior notoriedade tanto pela sua escassez, procura, e principalmente pelo seu valor
simbólico, como se observa na narrativa da entrevistada a seguir,
“Pra falar a verdade, os preços variam muito, mas eu vou te falar o
valor exatamente que está no mercado hoje. Há pessoas que compram
cabelos brutos (sujos), eles compram por quilo, e depois lavam ou
fazem todo o processo higiênico, vendem pra nós já tudo organizado e
limpinho. Eles já deixam os cabelos bem processados (lavado) e
cheirosos, pronto nas prateleiras em centímetros. Desta forma:

Tamanho de 30 cm/35 cm, cada unidade = R$ 350,00. Equivalente a


130 US$.
Tamanho de 40 cm/45 cm, cada unidade = R$ 500,00. Equivalente a
175 US$.
Tamanho de 50 cm/55 cm, cada unidade = R$ 600,00. Equivalente a
200 US$.
Tamanho de 60 cm/65 cm, cada unidade = R$ 700,00. Equivalente a
233 US$.
Tamanho de 70 cm/75 cm, cada unidade =R$ 800,00. Equivalente a
267 US$.

Estes são os valores da compra, mas na hora de vender eu costumo


vender num valor mais alto, para conseguir no mínimo 60% do lucro
acima do valor que eu comprei. Então, por exemplo, no caso (...) eu
comprei uma unidade de cabelo aqui por R$ 350,00, lá eu vou vender
no mínimo por R$ 550,00. É a mesma coisa que vou fazer com todos
os outros produtos, porque eu preciso lucrar um pouco pra cobrir as
minhas despesas da viagem, hospedagem, comida etc.”. (Alice,
angolana, 45 anos, 12/06/2017).
180

Figura. 25. Cabelo humano (natural) liso.

Figura.25. Cabelo natural Figura 26 - Cabelo caipira, Figura 27 - Cabelo caipira


Liso exposto no mural das exposto no mural da loja. indiano, exposto no mural
lojas. (Foto: Imagem do (Foto: Imagem do Paulo da loja (Foto: Imagem do
Paulo Vaz). Vaz). Paulo Vaz).

As figuras 25, 26, 27 acima mostram diversos tipos de cabelos expostos


devidamente identificados na parte interna de loja localizada, na rua Joaquim Nabuco,
no Bairro de Brás. Dentre os tipos de cabelos, os dois últimos são os mais procurados
pelas africanas, sendo que o mais procurado pelos consumidores africanos, é o chamado
cabelo caipira (cabelo cacheado natural ondulado), por ter um aspecto natural e por não
ter muito contato com produtos químicos, a sua tonalidade é relativamente idêntica à
das africanas e quando usadas em forma de mega-hair (aplique) cria a sensação de
aspecto natural. Empregam-se o termo cabelo caipira à brasileira, por ser na maioria das
vezes de pequenas cidades do interior. Durante a conversa nesse estabelecimento
comercial, a entrevistada Alice afirmou que:
A diferença do cabelo caipira brasileiro e de outros cabelos por
exemplo é que o cabelo brasileiro dura mais que os outros, porque os
fios são resistentes, por isso é que as pessoas gostam muito de
comprar caipira ondulado ou lisa, mas compram outros cabelos
também. E o negócio de cabelo é um bom investimento porque o
produto não estraga mesmo de demorar para vender. Mas sempre
181

vende, mas [as mulheres] pessoas usam porque a pessoa se sente


importante, porque chama a atenção (Alice, 12/06/2017).

A relação entre o uso de cabelo, feminilidade e de se sentir importante pode ter


também suas influências culturais. Neste sentido, a opressão feminina pela imposição de
modelos estéticos que atraiam o olhar masculino ou mais valorizados no mundo
ocidental pode incidir sobre o processo civilizador e objetivado em atingir os seus
limites estratégicos ao impor-se sobre as culturas consideradas subalternas e
dependentes (inclusive no modo de cada uma reconfigurar seus próprios modos de
estilos de vida). Logo, a eles (minorias) são aplicados os códigos de estilo de vida
padrão que vai desde as vestimentas, etiquetas, o modo de sentar-se à mesa, a língua do
colonizador, certas preferências de estilos musicais do colonizador, caracterizando-se
assim, a luta pela imposição legítima e simbólica. E como subscrito por Bourdieu:
O capital simbólico (...) não é outra coisa senão o capital,
qualquer que seja a sua espécie, quando percebido por um agente
dotado de categorias de percepção resultantes da incorporação da
estrutura da sua distribuição, quer dizer, conhecido e reconhecido
como algo de obvio. (BOURDIEU, 1989. p.145).

Tal afirmação de Bourdieu (1989) se identifica com aquilo que Norbert Elias
(1990), explica com muita propriedade quando faz uma alusão à burguesia alemã, que
almejava aprender o idioma francês na esperança de ter privilégios e reconhecimentos
na estrutura social francesa, e que para isso procurava desenvolver com gentileza a
cortesia e a urbanidade adequada à sociedade francesa da época (sociedade de corte-
absolutismo monárquico, cristão e do Barroco). Isso impunha o contágio a um tipo de
comportamento mais uniformizado, obviamente oriundo de uma monarquia
centralizada, apoiada na religião e no processo civilizador, o que, por sua vez, apontava
para uma tendência a uma maior homogeneização e ocidentalização do mundo.
Frantz Fanon (2008) na sua importante obra, Pele negra, máscaras brancas,
nos adverte sobre o conflito de “identidade retraída” que atormenta a personalidade do
colonizado, fazendo-lhe procurar aderir à imagem do colonizador como ao da
representação socialmente perfeita. Essa (des)personificação pode se manifestar em
vários segmentos sociais, pois além de estar presente na comunidade africana
contemporânea e alastrando-se também em outras culturas, ela pode se tornar mais
evidente quando se trata do consumo de massa socialmente construída com base nas
182

mobilizações de uma grande mídia tendenciosa na formação da opinião sobre o que se


deve consumir (produto socialmente aceito) na sociedade.
Ao analisar os mecanismos de poder de dominação propriamente simbólicos e
culturais, Bourdieu (1989) diz que os mecanismos de produções simbólicas funcionam
como instrumentos de dominação e que, além de imponente, contribuem para a
integração das classes dominantes, diferenciando-as das outras classes, ou grupos. E que
esses mecanismos, geralmente para serem operacionalizados, precisam do
consentimento do dominado, aceitando a sua total alienação (mental, social e
econômica). Consequentemente, estes elementos influenciam os aspectos reprodutores
das hierarquias sociais, tanto no sistema de ensino, estilo de vida, daquilo que é certo e
o errado, do belo e do feio, dentre as demais formas estereotipadas que coagem nas
condições subalternas da sociedade.
Um aporte teórico que pode nos ajudar a compreender possíveis mecanismos de
superação desse quadro parte daquilo que Asante (20090, chama de afrocentricidade,
uma proposta epistemológica do lugar, pensando nas questões afrocêntricas, cujo
objetivo é reinserir a “africanidade” como elemento central tanto nos aspectos culturais,
psicológicos, econômicos e históricos. Assim sendo, [...] A afrocentricidade é um tipo
de pensamento, pratica e perspectiva que percebe os Africanos como sujeitos e agentes
de fenômenos atuando sobre sua própria imagem cultural e de acordo com seus próprios
interesses humanos (ASANTE 2009. p.93).
Asante acrescenta (1991):
Deve-se enfatizar que a afrocentricidade não é uma versão negra do
eurocentrismo (ASANTE, 1987). Eurocentrismo está assentado sobre
noções de supremacia branca que foram propostas para a proteção,
privilégio e vantagens da população branca na educação, na economia,
política e assim por diante. De modo distinto o eurocentrismo, a
afrocentricidade condena a valorização etnocêntrica às custas da
degradação das perspectivas de outros grupos. Além disso, o
eurocentrismo apresenta a história particular e a realidade dos
europeus como o conjunto de toda a experiência humana (ASANTE,
1987). O eurocentrismo impões suas realidades como senso
“universal”, isto é, apresentando o branco como se fosse a condição
humana, enquanto todo-não branco é visto como um grupo específico,
por conseguinte, como não humano. O que explica porque alguns
acadêmicos e artistas afrodescendentes se apressam por negar sua
negritude; elas e eles acreditam que existir como uma pessoa negra
significa não existir como ser humano universal. Conforme Woodson,
elas e eles se identificam e preferem a cultura, arte e linguagem
europeia no lugar da cultura, a arte e linguagem africana; elas e eles
acreditam que tudo que se origina da Europa é invariavelmente melhor
do que tudo que é produzido ou os assuntos de interesse de seu
183

próprio povo. (ASANTE, 1991, p. 171-172 apud SANTOS JÚNIOR,


2010, p. 3).

Todos esses elementos valorativos, ou variações conceituais, nomeadamente a


afrocentricidade ou negritude são elementos que energicamente fortalecem as ideologias
anticolonialistas. E por isso, o efeito destes elementos constitui-se um senso comum
essencialmente útil na formação da consciência coletiva das nações africanas em
salvaguardarem suas dignidades (materiais e simbólica) dos escombros da alienação
colonial. Observa-se que em certas sociedades “pós-coloniais”, sejam elas angolanas ou
guineenses, o aspecto misterioso de certas mercadorias é concebido de forma
espontânea e inconscientemente em forma de gosto, manifestando-lhes algo tão
imponente que parece ser uma escolha sem motivo pessoal. À luz disso pode-se
mencionar o exemplo dos objetos fetichizados, construídos socialmente pela influência
midiática (em especial os filmes hollywoodianos; as telenovelas), onde os cabelos lisos
e longos, roupas de grifes, exercem suas influências nas comunidades africanas,
especificamente as de língua portuguesa (e que observei não ser muito diferente com os
nossos sujeitos de estudo).
Aqui faz se necessário compreender a radiografia da cultura que se configura
como instrumento de dominação. Segundo Geertz (1973) a cultura nada mais é que
aquilo que deve ser percebido e interpretado, pois não se trata de algo dado, estático,
acabado ou automático, porque envolve sentimentos e intersubjetividades de homens de
carne e osso, pois esse autor trabalha a concepção de cultura para além do erudito ou
folclórico, mas como um instrumento, e passível de transformação. Mas a cultura, disse
Geertz,(1973), é um grande mecanismo de produção de significados, que são
compartilhados publicamente de forma direta ou indiretamente e/ou manipulados no
imaginário das pessoas, tanto material quanto imaterial, seja no campo da linguagem
ou nos gestos, do modo como as pessoas nomeiam, convivem e dão sentido às coisas,
mais do que algo que pode ser definido e localizado.
E para encontramos mecanismos de reconhecimento dentro do debate do
multiculturalismo, se faz necessário trazer o conceito de autenticidade definido por
Charles Taylor (1994). Esse autor introduz a concepção da autenticidade baseando nos
princípios de autoestima como elemento imprescindível para o reconhecimento do
oprimido. Pois, na concepção desse autor, as pessoas só podem conseguir o
reconhecimento através da autenticidade. O que não significa que a concepção de
184

Taylor sobre autenticidade se esgote sobre um EU individual. Porém, segundo


Andrade:

A maneira alternativa pela qual Taylor concebe a autenticidade aponta


para uma forma de vida mais autorresponsável, segundo a qual uma
outra maneira de nos representarmos pode conduzir a outro modo de
relacionamento (...) a autenticidade, entendida como a busca e o
reconhecimento da própria identidade, não precisa necessariamente
descambar numa sociedade atomista, individualista e fragmentada, na
qual cada um se preocupa com seus próprios interesses e pouco se
importa com a sorte dos outros ou com o espaço público. Ao contrário
disso, para Taylor, ser autêntico significa reconhecer não só que o
indivíduo se forma como sujeito a partir do seu envolvimento
corporificado e das configurações morais daí advindas, mas também
que se forma a partir de um horizonte dialógico, do contato contínuo
com o outro que diante de nós se apresenta. (ANDRADE, 2013,
p.180).

Porém, Taylor (1994), reconhece que o conceito da autenticidade é uma


questão problemática, mas é passível de diálogo e de negociações entre os grupos
(opressor e oprimido), visto que o próprio grupo oprimido, que ao se sentir excluído,
necessariamente terá de estabelecer sua autenticidade após sofrer com a crise de
identidade “atormentada” causado pelo não reconhecimento ou reconhecimento
incorreto por parte do opressor e principalmente se considerarmos a questão das
imagens negativas e distorcidas que o afetam negativamente, levando às rotulações e
diversas formas de exploração, tanto dentro de casa como no mercado de trabalho.
Se pensarmos de um modo mais geográfico, nas sociedades africanas é possível
verificar a dupla forma de auto-depreciação, uma em relação ao patriarcalismo presente,
em que as mulheres interiorizam a imagem da sua inferioridade. Em algumas
circunstâncias, elas acreditam que eram incapazes de aproveitarem novas oportunidades
de ascender e disputar os cargos tradicionalmente dominados pelos homens. Seja no
casamento ou profissionalmente, essa submissão reflete-se diretamente na debilidade da
autoestima do gênero feminino comum aos grupos mais vulnerados. A segunda dupla
forma de auto depreciação é a questão da Raça e/ou estética (cabelo liso e “cabelo
ruim”) que está na ideologia do colonialismo, projetada durante gerações com
fundamentos estéticos das imagens que hierarquizam os paradigmas e fenótipos como
algo natural (TAYLOR, 1994. p.46). Um mal-estar social que acontece no
multiculturalismo global leva Taylor a fazer um alerta sobre a importância do processo
de auto-(re)conhecimento identitário e, como indivíduos de uma coletividade,
185

precisam também valorizar suas identidades, mas, para que isso aconteça, antes da
própria superação do problema da “depreciação” propriamente dita, o autor destaca que
é preciso, em primeira mão, que as minorias possam expiar essa identidade imposta e
destrutiva. Para depois fazer um trabalho de recuperação das suas autenticidades, o que
significa buscar, acima de tudo, a autorrealização, no sentido de sentir-se bem consigos
mesmos.
Inspirado na obra Fenomenologia do espírito do Hegel, Frantz Fanon (2008)
avisa que é preciso que o colonizado tenha a própria consciência de si, pois o outro
espera o nosso reconhecimento, a fim de se expandir na consciência de si universal.
Segundo Fanon (2008):
O homem só é humano na medida em que ele quer se impor a um
outro homem, a fim de ser reconhecido. Enquanto ele não é
efetivamente reconhecido pelo outro, é este outro que permanece o
tema da sua ação. É deste outro, do reconhecimento por este outro que
dependem seu valor e sua realidade humana. É neste outro que se
condensa o sentido da sua alma. (FANON, 2008.p. 180).

Dito de outra maneira, ao fazer uma análise dialética, Fanon insinua que as
antigas colônias precisam se reconhecer (a si) primeiramente enquanto nações
independentes e dignas das suas liberdades, para que as metrópoles ocidentais as
reconheçam como nações livres, autônomas e capazes de galgar e pensar com suas
próprias cabeças. Porque imitar a imagem do colonizador sempre trará consequências
negativas e a tendência é de o oprimido ser renegado quando ameaçam ascender à
pirâmide social. Porém, ao sofrer a rejeição, Fanon alerta que, mesmo renegado, a
reação do mesmo indivíduo renegado (que imita o colono) deve procurar evitar o ódio,
mas deve ser flexivelmente “autêntico”, sem discriminar quem tenha o negado.
Para Fanon (2008) devido ao complexo de inferioridade histórico do negro
perante o colonizador-branco, o colonizado-negro tenta reagir por intermédio de
complexo da superioridade na tentativa de assemelhar-se à figura do colonizador,
buscando a ilusão dos espelhos como reflexo da imagem do colonizador-branco. É isso
que o mesmo chama de narcisismo dos negros contra negros. Esse quiproquó do
transtorno de identidade ou personalidade é o que caracteriza a situação neurótica. E
para esquivar dessa situação neurótica de assimilação e dependências, é preciso que o
colonizado não se fixe ao passado dependente, mas sim superando o dado histórico.
Portanto, é salutar dizer que a contextualização destes elementos é sumamente
186

importante, na medida em que vão descortinar o pensamento dominante-ocidental que


se faz presente no (constructo da imagem) do africano após a chegada do colonizador,
que sistematicamente induz o autóctone colonizado a incorporar em si uma prática do
narcisismo (dos negros contra o negro) buscando a ilusão dos espelhos que oferecem
um reflexo “ocidentalizado”. (FANON, 2008, p.15).
Estas estruturas que estão internalizadas inconscientemente ou espontânea em
forma de gosto é o que Bourdieu (1989) chama de habitus, que define-se como um
“sistema de disposições para a ação”. Um fenômeno que se manifesta em algo que
parece ser uma escolha sem motivo pessoal. Daí que a interiorização das estruturas
sociais faz com que o indivíduo, ainda que compreenda o seu sentido de mundo ou
visão de mundo como elemento consciente, não se dá conta da sua aculturação, uma vez
que a ele (colonizado) é o produto desse processo de alienação descrito.
Nas sociedades africanas contemporâneas é evidente a forma como os
resquícios coloniais se resplandecem no imaginário e no tecido social fazendo com que
os fregueses destes países demandem os produtos considerados chiques e fugazes
quando são importados, reproduzidos principalmente pela grande mídia, em especial a
televisão – o que muitas vezes impele as africanas e africanos à despersonalização das
suas identidades, ou até mesmo ao embranquecimento estético74 como o desejo por usar
peruca ou aplicação da tissagem de cabelo humano e outras imitações das aparências
fenotípicas em prol de status quo e/ou ocidentalização, que os levam a renunciarem ou
menosprezam os produtos locais, principalmente aqueles ex-colonizados que se
consideram mais “evoluídos”. É assim que essa despersonificação é caracterizada por
Fanon (2008):
Usar roupas europeias ou trapos da última moda, adotar coisas
usadas pelos europeus, suas formas exteriores de criatividade, florear
a linguagem nativa com expressões europeias, usar frases pomposas
falando ou escrevendo em uma língua europeia, tudo calculado para
obter um sentimento de igualdade com o europeu e o seu modo de
existência. (FANON, 2008.p.40).

Aqui, a contribuição do Fanon sobre as questões do colonizado que ao todo


custo busca passar-se pela imagem do colono-opressor para adentrar a cultura do
metropolitano, aponta para uma situação alienante da “identidade deteriorada do
oprimido” numa situação distorcida de si para uma sociedade que não lhe pertence,

74
Tornou-se comum o uso de produtos de clareamento de pele nos países africanos.
187

embora a ele somente lhe resta imitar, para quem sabe superar as barreiras impostas. É
neste contexto que considero se enquadrar a realidade dos consumidores de muitos
países africanos hoje, cujos demandantes dos produtos inspiram os sujeitos da nossa
pesquisa a suprir a demanda de boa parte dessa clientela alienada ao imaginário
socialmente padronizado pela mídia. Um labirinto que obriga Fanon (2008, p.26) a
erigir a seguinte questão: “o que quer homem? O que quer o homem negro?”. É
preciso que o oprimido se reconheça enquanto parte importante da totalidade humana,
pois só a partir disso é que ele pode descolonizar-se, olhando o mundo a partir do ponto
de vista próprio e não do ponto de vista do colonizador. Senão estará condenado a viver
do passado negativo e inculcando a cultura do colonizador.
Porém, olhando por outro lado, é importante destacar também o papel dos
movimentos negros e de grupos de identidade étnico e racial nas suas lutas diárias em
prol das políticas de ações afirmativas que trabalham em prol da autoestima e no resgate
da identidade étnica, um mecanismo capaz de reproduzir maior dinamismo no tipo e
maior variação dos produtos locais e de valorização da própria força de trabalho nos
tempos da globalização. Mas também caberia pensar o quanto saber ou poder usar essa
linguagem do outro, do europeu e saber mover-se e usar as ferramentas do dominador,
poderia ser também lido como uma importante forma de resistência e de luta dos
oprimidos, um modo sutil de resistir e “usar as armas dos mais fracos” parafraseando o
James Scott (em sua famosa obra Weapons of the Week de 1985) de saber impor sua
cultura e valores, em linguagem que possa ir além do local, e atingir o global.

5.6. A globalização como fábula: um critério ideológico baseado em dois pesos e


duas medidas

Quando se trata de globalização hoje, é importante buscar saber, afinal de


contas, de qual globalização está-se falando, visto que, além da globalização tradicional
(hegemônica), temos a chamada globalização popular (não hegemônica), sendo que a
relação entre as duas é a de coexistência e uma que é em si mesma dialética. Neste
sentido, observa-se que o grande problema dessa globalização tradicional é que, ao
invés de apresentar as contradições como elas são de fato, cinicamente ela anuncia uma
boa vida em comunhão entre as nações, banalizando a exploração e a distribuição
188

desigual, recusando-se a aceitar aquilo que Eduardo Galeano (19799) afirma que não
há nenhuma riqueza que seja inocente da pobreza dos outros, que todo processo de
acumulação é também um fenômeno de excluir.
Dito de outra maneira, toda riqueza é o resultado do sofrimento de outro, seja ela
fruto de decadências, de exploração física, psicológica, colonial, pós-colonial e
neocolonial e/ou da própria globalização. Sendo que neste último caso (o da
globalização), além de silencioso, opera de forma cruel pela coexistência de diversas
categorias acima apontadas no bojo do capitalismo contemporâneo no qual se insere o
nosso objeto de estudo, onde a exploração se dá essencialmente através de mecanismos
que reforçam os novos perfis de consumidores. Daí, não importa a região, o que
interessa ao funcionamento da chamada globalização contemporânea é explorar a crise
dos outros, mesmo recusando-se de falar sobre ela e principalmente banalizando as suas
necessidades e/ou dependências aos dos ditos países centrais. É pelo motivo dessas
polarizações ideológico-socioeconômicas que Milton Santos (2000) atribui a essa
globalização do capitalismo suas características bipolares em: “os de lado de cá”, isto é,
as ditas economias centrais, e “os do lado de lá” - as economias ditas periféricas, que
oferecem amplas isenções de impostos, tolerâncias, leis ambientais frágeis, entre outras
facilidades.
Na outra extremidade há os países de economias mais fortes e tradicionalmente
industrializados que nas últimas décadas passaram a deslocar as suas empresas para os
países “periféricos”. Aqui, trata-se de uma dinâmica conhecida como um processo de
aprofundamento internacional da integração econômica, social, cultural e política,
ocasionando diversas formas de exclusão social, desemprego e o globalismo, e lutas
simbólicas intermediada pelo consumo. É a despeito disso que Milton Santos (2000) nos
adverte sobre o perigo e competitividade fundados na mesma ideologia capitalista, e que
segundo ele, é porque o consumo “[...] além de ser um veículo de narcisismo, por meio
dos seus estímulos estéticos, morais, sociais; ele aparece como o grande
fundamentalismo do nosso tempo, porque alcança e envolve toda a gente” (SANTOS,
2000, p.49). Por isso, Milton Santos (2000) destaca também a sua perversidade quando
diz que a globalização em todas as suas fases tem sido cruel. A começar pela primeira
fase, na qual os africanos foram abandonados à própria sorte, uma globalização
“clássica” do colonialismo que se caracterizara pela ocupação territorial. Já a segunda
fase da globalização que começou no fim do século XX, fora marcada pela
189

fragmentação dos territórios e as revoluções tecnológicas que surgiram com o sonho de


um mundo melhor, ao mesmo tempo em que começa o desmanche do estado de bem-
estar social, o humanismo como motor do desenvolvimento e do progresso é substituído
pelo modelo dos consumos vorazes. O que levou Santos (2000) a afirmar como já dito,
que o consumo é o grande fundamentalismo, na medida pela qual as técnicas são
implantadas nas sociedades e nos territórios a partir da política de empresas globais e,
em seguida a política a partir dos estados impulsionados pelas nações.
Nessa mesma esteira, Chesnais (1996), ao falar de estratégias no mercado
internacional, prefere assumir o termo mundialização econômica por estar este mais
próximo da realidade atual dos fatos, em contraste, ao da pura globalização, que do seu
ponto de vista é uma farsa apoiada pela grande mídia para buscar anunciar uma nova e
mais positivada era, e uma que na prática reforça a desigualdade. Uma nova era da
internacionalização econômica cuja ordem natural das coisas são: “os grandes
globalizam, e os pequenos adaptam-se” (BECK 1999 apud BARALDI et al, 2008, p.2),
O que é um perigo, tanto no que diz respeito à enganação produzida pelo uso do termo,
quanto pelas formas de subordinação que acarretam novas formas de alienação do
trabalho, e outras formas de subordinação ditada aos países periféricos não
industrializados, que vivem a serviço do capital.
Por sua vez, Ortiz (2003), vai ainda mais longe, ao reforçar que o mundo não
condiz nem com a mundialização nem com a globalização. A primeira estaria associada
ao simples aumento da circulação da economia mundial, ao passo que a segunda
trabalha mais bem com as interdependências numa economia desigual. Todavia, ele
acredita que ambos não passam de um mesmo fenômeno emergente num processo ainda
em construção. Milton Santos (2000) concebe a globalização como uma fábula, um
fenômeno perverso que abre uma possibilidade em busca de uma nova civilização
planetária verdadeira (a de construir um mundo de outra forma), porque o mundo que se
vê é tomado pelas perversidades, e:

[...] fundada na tirania da informação e do dinheiro, na


competitividade, na confusão dos espíritos e na violência estrutural,
acarretando o desfalecimento da política feita pelo estado e a
imposição de uma política comandada pelas empresas. (SANTOS
apud TAVARES, 2000, p.15, prefácio).

Esse mundo imaginário, frustrante e paradoxal, refutado por Milton Santos (2000),
o qual salienta que nela as ações humanas são tomadas pela padronização cultural, onde
190

as pessoas são atraídas pelas mesmas coisas, mesmos costumes, mesmos hábitos, novas
atitudes, novos valores, que juntos são movidos numa intensa velocidade, o que não
significa redistribuição, ao contrário trata-se de uma velocidade que sobrevive das
desigualdades sem precedentes na história da humanidade. Santos ainda sugere que, se
de fato quisermos sair dessa percepção da crença enganosa do mundo e os seus
contrastes no interior da globalização, será preciso considerarmos a existência de “três
mundos num só”, quais sejam (SANTOS, 2000, p.17):

1- O mundo tal como nos fazem vê-lo: a globalização como fábula;


2- O mundo tal como ele é (mundo real): a globalização como perversidade;
3- O mundo como possibilidade (como pode ser): uma outra globalização.

Se o primeiro elemento desse mundo é uma fábula, porque se trata de uma


enganação, o segundo elemento é o da sua perversidade (a exemplo das propostas de
reformas do consenso de Washington), que consiste numa deterioração global na qual
[...] o desemprego crescente torna-se crônico. A pobreza aumenta e as classes médias
perdem em qualidade de vida. O salário médio tende a baixar, a fome e o desabrigo se
generalizam em todos os continentes (SANTOS, 2000, p.19) e, por conta dessa
perversidade, se abre uma nova possibilidade de escolhas. Uma possibilidade que seria a
de escolher uma outra globalização (ao contrário do que a que está posta). Tais
problemas, como as fabulações e perversidades da globalização, apontadas por Milton
Santos (2000) também é analisado de forma negativa por Boaventura de Sousa Santos
(2002), como a falácia da globalização de um fenômeno contemporâneo que se
caracteriza por duas intencionalidades ideológicas específicas. Primeiro está a que ele
designa de falácia do determinismo como algo natural. Ela:
“[...] consiste na inculcação da ideia de que a globalização é um
processo espontâneo, automático, inelutável que se intensifica e
avança segundo uma lógica e uma dinâmica próprias suficientemente
fortes para se imporem a qualquer interferência externa. (SANTOS,
2002, p.50).

A segunda falácia do determinismo, ao recusar que a estrutura da globalização não


se trata de caráter político, seria a de:

Que hoje, quer ao nível financeiro, quer ao nível da produção, quer


ainda ao nível do consumo, o mundo está integrado numa economia
191

global onde, perante a multiplicidade de interdependências, deixou de


fazer sentido distinguir entre Norte e Sul, e igualmente entre o centro
e semiperiferia do sistema mundial. Quanto mais triunfalista é a
concepção da globalização (...) menor serão as hierarquias do sistema
mundial. (SANTOS, 2002, p.51).

Nesse contexto, para o mesmo autor, a falácia da globalização consiste em


transformar as causas da globalização em efeitos desta natureza (de desigualdades)
como resultados de autorias políticas determinadas. Assim, para justificar que a
globalização não é algo espontâneo, mas sim politicamente construída, Santos (2002)
aponta ao Consenso de Washington75 como resultado de um conjunto de decisões
políticas da desregulamentação econômica, na qual a:
“[...] desregulamentação da economia, por exemplo, tem sido um
ato eminentemente político. A prova disso mesmo está na
diversidade das respostas dos Estados nacionais às pressões
políticas decorrentes do Consenso de Washington. (SANTOS,
2000, p.50).

É nessa perspectiva que os países africanos atendem às políticas econômicas de


reajustamento estrutural nos finais dos anos 1980, a partir duma abertura dos mercados,
anunciando uma nova era chamada comércio livre, se redefinia o mercado mesmo
naquela circunstância em que os países terceiro-mundistas não estavam sólidos
estruturalmente para o enfrentamento da livre concorrência que resultou na
flexibilização das forças produtivas e desemprego estrutural. Por conseguinte, esses
países viram suas ruas sendo tomadas pelos comércios ambulantes, desempregos,
precarização etc., que consiste em crises estruturais e epistêmicos do capitalismo em
reproduzir os papéis ou as funções da força do trabalho a “identidades flexíveis. Uma
situação que remete ao pensamento de teóricos da Escola de Frankfurt, nomeadamente

75
Conjugação de grandes medidas - que se compõe de dez regras básicas - formulado em novembro de
1989 por economistas de instituições financeiras situadas em Washington D.C., como o FMI, o Banco
Mundial e o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, fundamentadas num texto do economista
John Williamson, do International Institute for Economy, e que se tornou a política oficial do Fundo
Monetário Internacional em 1990, quando passou a ser "receitado" para promover o "ajustamento
macroeconômico" dos países em desenvolvimento que passavam por dificuldades. O FMI passou a
recomendar a implementação dessas medidas nos países emergentes, durante a década de 1990, como
meios para acelerar seu desenvolvimento econômico. Implementando as Dez Regras: Disciplina fiscal;
Redução dos gastos públicos; Reforma tributária; Juros de mercado; Câmbio de mercado; Abertura
comercial; Investimento estrangeiro direto, com eliminação de restrições; Privatização das estatais;
Desregulamentação (afrouxamento das leis econômicas e trabalhistas); Direito à propriedade intelectual.
Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Consenso_de_Washington. Acesso em 2 de dezembro de
2017.
192

ao de Adorno e Horkheimer (1985) na sua obra sobre A dialética do esclarecimento, ao


afirmarem que o projeto iluminista apoiado na busca pelo esclarecimento (iluminismo,
razão), plasmado sobre o princípio da razão (instrumental), não pode ser tomado como
um projeto triunfante, porque o “esclarecimento”, que havia tratado de liberar o homem,
ironicamente serviu para escravizá-lo com meios muito mais eficientes, criando o
paradoxo das consequências que arruinou a humanidade, na qual “o progresso
converte-se em regressão" – impulsionando os indivíduos na busca incessante pela
mais valia e superexploração das forças de trabalho para além dos territórios numa
distribuição desigual de bens. Daí o que se observa hoje é que ao invés de haver a
emancipação dos trabalhadores, sistematicamente, a globalização neoliberal coloca os
homens em condições análogas cada vez mais próximas às da escravidão. Um labirinto
do sistema econômico imposto pela sociedade onde não há escapatória.
Milton Santos (2000) chama isso de globaritarismo fundado nas ideologias
dominantes em padronizar as formas de pensamento baseado na “razão”, daí o autor
afirmar que vivemos em tempos da técnica e da tirania da informação e do dinheiro, que
nos fazem abandonar a solidariedade para as realizações exageradamente individuais
que se configuram em formas de medos e confusões do espírito, ao apontarem que; “[...]
jamais houve na história um período em que o medo fosse tão generalizado e alcançasse
todas as áreas da nossa vida: medo de desemprego, medo da fome, medo da violência o
medo do outro”. (SANTOS, 2000, p.58).
193

6. Considerações Finais

Nesta tese foram analisados diversos aspetos relativos ao nosso objeto de estudo.
Pois desde as dimensões locais à global buscou-se construir os elementos decorrentes da
velha informalidade e da nova informalidade, isto é, desde as chamadas modalidades
informais predominantes nas economias africanas aos efeitos das flexibilizações das
formas do trabalho nos países mais industrializados ou “desenvolvidos. No Primeiro
capitulo conclui-se que o comércio do Brás e os demais mercados populares se
constituem como espaços característicos de circuitos inferiores onde se sobressaem as
atividades de sacoleiras e os demais agentes sociais que foram analisados nesta tese. No
segundo capítulo, abordamos questões como os da instauração de elementos da
“colonialidade do poder” ocidental nas estruturas sociais de países africanos tanto no
caso de Angola quanto no da Guiné-Bissau, o que impediu essas duas sociedades de
construir em curto prazo o tipo de “transformação estrutural” requerido pelas suas
economias por intermédio de processos de aumento da industrialização de suas formas
produtivas, comprometendo por isso não apenas a sua emancipação econômica, como
também a política e cultural, que tem obrigado uma parcela expressiva da sua população
a engrossar cada vez mais o setor terciário.
No terceiro capítulo, sobre a problemática da informalidade e as principais
polêmicas deste conceito e sua evolução, concluímos ser a informalidade um processo
arbitrário, inacabado e baseada em critérios estruturalistas e ocidentais, o que tem
impedido de construir uma visão do campo, de modo a incluir uma pluralidade mais
enriquecedora dos fenômenos heterogêneos dessas manifestações das formas de
trabalho, a semelhança das modalidades que foram trazidas e iluminadas em toda esta
tese com o estudo de caso de sacoleiras africanas, que podem ajudar a romper e
contribuir com este campo de estudos, e que não pode mais ser visto desde concepções
mais antiquadas de informalidade praticada antes da economia de mercado. Ao observar
e analisar o caso das sacoleiras africanas como uma modalidade nova e particular de
trabalho informal, o qual buscamos examinar simultaneamente, tanto desde uma
perspectiva de análise mais macro sociológica –, pela posição na estrutura de classes
ocupada por esta atividade num mercado mundial de circulação e produção de
194

mercadorias comandado pelo capitalismo globalizado atual – como desde uma outra
perspectiva de análise mais micro sociológica e antropológica – e que visou buscar
compreender quem são e como operam, quais seus principais significados e efeitos e
como podem se ver e são vistas estas sacoleiras em diferentes momentos de seus
trajetos pelo mundo e em diferentes contextos pelos que elas transitam (países africanos,
Brasil, outros mercados, ou o mercado mundial) – esta tese buscou demonstrar que
mesmo quando em contextos africanos e de seus países de origem elas passam a ser
elementos de classes médias, mais altas e beneficiadas, pelo empreendedorismo de suas
atividades que, por outro lado, isso não as exime de processos de precarização, aumento
de desemprego e outras pressões criadas pelo capitalismo contemporâneo, e que
também, por isso, fazem o trabalho e podemos afirmar estarem também ao serviço do
capital, expostas no entanto à superexploração que diversas formas de reestruturação
produtiva e flexibilização do trabalho tem produzido em todo o mundo, inclusive nas
empresas de grande porte comumente instaladas onde o custo (da contratação) da força
de trabalho é menor, a exemplo do sudoeste asiático, entre outras. No quarto capítulo
foram apontados os principais elementos da resiliência e do empoderamento das
mulheres inseridas nessa modalidade de trabalho, e que mesmo não contando com as
devidas atenções dos seus Estados-Nação no que refere à falta de garantia ou leis que
lhes ofereçam proteção social, ou outro tipo de amparos materiais, e por isso, que
trabalham em situações de bastante precarização, elas por sua vez também são capazes
de traçar as mais diversas estratégias e tipos de agências e redes importantes para a
reprodução social das suas vidas e comunidades de origem. No quinto capítulo, e ao
que volto de modo diferente depois de todo o percurso feito, é onde inicio a construção
de nossas principais conclusões ou posicionamentos sobre este estudo de Caso. Nele
concluímos que existem duas faces e tipos de globalizações distintas, o de baixo (o dos
circuitos inferiores da globalização), e a de cima, sendo que o de baixo é aquele mais
explorado por pessoas com menores recursos financeiros na busca de consumo de bens
não duráveis, que cria outros circuitos e trajetos diferentes aos de uma globalização de
cima, e sem o qual muitas dessas mercadorias não estariam disponíveis e poderiam
chegar para camadas mais vulneráveis de qualquer sociedade. Nesse sentido, o papel
importante desempenhado pelas sacoleiras como as analisadas nesta tese é o de
propiciar e ajudar a acelerar em dinâmicas tanto nacional quanto global, interligando
195

países e continentes diferentes, uma maior circulação de mercadorias e a venda dela em


outros mercados mais distantes, estando também por isso, ao serviço do capital.
. A pergunta central desta pesquisa refletiu sobre a hipótese da que partimos e que
acreditamos ter comprovado, de que embora o trabalho das sacoleiras representa uma
forma de acumulação do capital, ao adentrarem nessa rota transnacional de compra e
venda de produtos, não pode ser apenas explicado todo este fenômeno apenas desde sua
função à acumulação do capital. Mas é inegável que elas exercem essa função, ao
operarem também como conectoras e parte importante das veias do próprio processo de
recirculação de mercadorias, em novos mercados, no que refere a esta esfera mais
voltada à comercialização dos produtos e mercadorias que foram anteriormente criados
no âmbito da produção, retroalimentando por isso a acumulação final do capitalismo. E
elas fazem isso “sem significar novos custos” para o capital (industrial), compondo o
substrato participativo, que é também invisibilizado daquele núcleo (normativo e
paradigmático) da pirâmide global denominada de cadeia global de commodities (GCC)
– um processo usado pelas empresas para reunir recursos, transformá-los em bens e,
finalmente, distribuí-los aos consumidores. Porém, quando o nosso foco de análise
privilegia refletir sobre este estudo de caso desde a perspectiva e as subjetividades das
mesmas sacoleiras, novos campos interpretativos e significados se abrem, e precisam
também ser melhor levados em conta. Nota-se que a função que lhes incumbe não
parece estar reservada apenas ou fundamentalmente voltada para elas para permitir a
realimentação da circulação do capital. Pelo contrário, para muitos, além disso, as
sacoleiras imprimem neste tipo de atividade uma atualização e renovação de velhas
tradições culturais e modos de ser do trabalho no continente africano, que denotam essa
velha tradição que ainda hoje é tão vívida nos diferentes mercados africanos e no tipo de
trocas realizadas no comércio retalhista expressado na economia contemporânea como
estratégias de sobrevivência destas mulheres e comunidades africanas, e que agora
passam a se inserir e competir pela sua presença e participação na expansão dos
mercados internacionais de produção de mercadorias capitalistas. Nesse processo, elas
(sacoleiras), impulsionam diversos agentes econômicos, desde os circuitos superiores
aos circuitos inferiores da economia urbana, possibilitando os demais setores a
exercerem múltiplas novas tarefas e a se inserir numa rede de relações bem mais
complexas e dinâmicas.
196

Mas o que lhes tornam singulares, comparado aos outros grupos de sacoleiras, de
certas regiões do nordeste brasileiro, por exemplo, como aquelas que vão ao Paraná, ou
das demais revendedoras vindas do Paraguai para o Brasil, é o de suas características
particulares étnico-históricos e culturais, o seu possivelmente maior know how milenar
no mundo comercial e a maior extensão e investimentos que exige participar de
circuitos de compra-venda como os que elas escolhem. Pois, enquanto algumas
sacoleiras brasileiras atuam na rota regional entre Paraguai-Brasil, as bideras e
quitandeiras se limitam aos espaços nacionais, enquanto as sacoleiras (sujeitos deste
nosso estudo) se configuraram neste âmbito de atividades como as de um novo tipo e
espécie de “sacoleiras globais”, porque exploram diversos continentes, destacadamente
o mercado brasileiro (continente sul-americano) e o sudoeste asiático para abastecer o
nicho de mercado em terras africanas.
Concluímos, por tudo isso, com um novo chamado neste campo de estudos ao do
“reencantamento” de uma manifestação do trabalho peculiar predominante no contexto
desses países analisados, que não se submetem puramente às ordens do mercado e nem
tampouco a de servir como marionete do capitalismo, como muitos estudos de teor
apenas economicista e de um marxismo mais ortodoxo, ou apenas voltados para a
análise do tema do aumento da precarização pela expansão da globalização poderiam
estar tentados a interpretar, impedindo ver outros aspectos, que acreditamos se encontrar
em nosso estudo, o qual com todas suas limitações e acertos, tentou iluminar a
discussão citada. O que ficou claramente evidenciado nesse cenário econômico em que
atuam e se movem as sacoleiras que fazem parte de nossa pesquisa, e que, embora o
vigor do capitalismo se faz presente em muitas sociedades, e não foi diferente nos
países de origem de onde cada uma das sacoleiras proveem, ele (o capitalismo) não
consegue apagar em absoluto o modo como o fenômeno se desenvolve localmente, e é
por isso que trazer os elementos próprios do contexto africano nos capítulos iniciais foi
tão importante, além de ser um modo de criar novas conexões que me permitem
compreender muito melhor esse fenômeno social e identificar algumas de suas
particularidades e singularidades, que foi principalmente na direção que visamos poder
nos enveredar nesta pesquisa. Nada disto teria sido possível sem termos lançado mão de
metodologia e técnicas de teor mais etnográfico que foram em grande medida a partir
das quais logrei realizar todo este trajeto e chegar ao tipo de dados e conclusões que
foram sendo apresentadas ao longo da tese. Tampouco teria sido possível o fazer desta
197

pesquisa se não tivesse partido deste estudo de caso e do que lhe é mais singular e
especifico –, que foi melhor iluminado com o apoio da revisão da literatura feita. Este
estudo de caso permite-nos visibilizar mais vividamente desde as vidas e percepções
destas sacoleiras e compreender muito melhor um fenômeno que também é muito mais
geral da globalização, mas que se opera de um modo particularmente diferenciado neste
caso e contextos analisados, ao que não teríamos chegado se não fosse o fato de
levarmos seriamente em conta a perspectiva e lugar de fala destas mulheres. Bem como,
tambémconsiste nisso, a originalidade e importância desta tese. E mais que isso, como
já dito, só pode ser percebido e iluminado desde as narrativas, desde as experiências e
pontos de vista de pessoas de carne e osso. É isso que tentamos trazer nesta tese ao
buscar dar-lhes voz (por meio das sacoleiras), invisibililizadas no processo produtivo e
na sociedade.
Ao se analisar este caso desde a perspectiva das sacoleiras, (enquanto lugar da
fala), nota-se que a função que lhes incumbe, é voltada a outras hipóteses e aspectos da
vida delas que aparecem e se evidenciam, e que não pareceriam estar fundamentalmente
voltados para o seu interesse em realimentar a circulação do capital – ainda que esta
ocorra independentemente de suas vontades -– muito pelo contrário, e para além de
muito disso, as sacoleiras mostraram continuar imprimindo neste modo novo e
moderno de atuar, velhas tradições e modos de ser do trabalho que nos remontam a toda
essa velha tradição dos mercados africanos no comércio retalhista expressado na
economia contemporânea como estratégias de sobrevivência de mulheres que agora
passam a se expandir para os mercados internacionais. Aspectos que nesta tese apenas
foram situados e mencionados, mas que mereceriam vir a ser melhor aprofundados em
estudos futuros.
. Por tudo isso, observou-se neste estudo uma espécie de proto76-empreendedoras
autônomas, que se constitui como um fenômeno que vem ganhando maior notoriedade
através de práticas antigas (velhas) do trabalho em novas estruturas do mercado nos
tempos da globalização, mobilizada por pessoas de diversas nacionalidades com
propósitos centralmente socioeconômicos. Nesta direção, o que as turistas compradoras
africanas, denominadas de “sacoleiras” estão apresentando é a peculiaridade da
persistência e revitalização dessa prática antiga de trabalho que permanece até os dias

76
Exprime a ideia de primeiro, anterior.
198

atuais e adota agora novos contornos. E, a partir da realidade desses dois países
africanos estudados, concluímos que as experiências de trabalho empreendida pelas
sacoleiras se constitui a partir de uma lógica de informalidade histórica, que se perpetua
há milhares de anos e é compartilhada entre muitas sociedades africanas, pois
analisando os resquícios das atividades tradicionais, por exemplo, como é o caso dos
chamados lumos, na África ocidental, fica mais evidente que a questão de
informalidade no imaginário social das sacoleiras e dos consumidores finais não é falta
de profissionalismo ou desorganização, mas sim, trata-se muito mais de uma
manifestação cultural concebida e compartilhada pelos membros dessa totalidade como
um novo “tradicional organizado”. Por isso, quando se fala de (in)formalidade, é
importante saber, afinal, desde qual tipo de informalidade se trata e desde onde o
estamos fazendo. Porque a classificação depende dos locais e das sociedades na qual os
eventos ocorrem, isto é, de acordo com seus níveis de tolerâncias ou não. Visto que em
muitas sociedades em desenvolvimento uma parcela considerável de pessoas dependem
das atividades antigas para sobreviver e/ou ascender socialmente, e levando em conta
que nem todas as sacoleiras sejam oriundas da mesma classe social, algumas mais
“privilegiadas” e outras nem tanto, ou menos, todas elas podem e devem ser
identificadas como uma “nova classe de trabalhadoras” cujo oficio se constitui como
uma modalidade digna de reconhecimento, resiliência e passível de criar em torno dela
maiores estratégias de empoderamento (das mulheres que as praticam e comunidades
que delas se beneficiam). Não obstante, o termo “sacoleira” socialmente desaparece
quando elas regressam ao lugar de partida, seja em Angola ou na Guiné-Bissau, elas são
donas de lojas, ou microempresárias, menos sacoleira.
Acredito por isso tudo que, esta tese esclareceu alguns dos atuais dilemas sobre
estudos da informalidade no âmbito laboral concebido na maioria das vezes como
alternativas ao desemprego, quando na realidade é preciso considerar que muitas das
pessoas podem ter também suas próprias preferências e escolhas, e nem todas as
alternativas podem ser influenciadas pelo fator desemprego. No caso das sujeitas
(sacoleiras) aqui trazidas, diversos foram os relatos que mostram que a busca pela
qualidade de vida e equilíbrio da vida pessoal é também um critério relevante, levado
em conta por elas, por optarem em não querer aderir ao assalariamento, entendido por
algumas das nossas entrevistadas como uma forma de “alienação do trabalho”.
199

Por tudo isso, essa atividade destas microempresárias reconhecidas como


“sacoleiras” carrega traços de informalidade tradicional que proporciona uma
reprodução social significativa nessas comunidades, construindo mais possibilidades
concretas na vida da população e criando maior dinamismo na economia local e até
internacional. Assim sendo, e de modo a intentar propor alternativas que visem
organizar e melhorar a atuação desses agentes em sociedades africanas, acreditamos
que em algum momento será necessário que os respetivos Estados-Nações possam vir a
se propor criar novas leis de proteção e garantias com mecanismos mais efetivos que
busquem alinhavar mais as regulamentações das atividades informais como o tem sido
feito mais com as do setor formal, porque aí teoricamente poderiam ter mais benefícios,
e de modo mais destacado as políticas de incentivos ao microcrédito, às que visem a
redução de taxas fiscais e flexibilização das formas de pagamentos, além de redução de
mecanismos burocráticos principalmente nos momentos de obtenção de financiamentos.
Mas para isso, as políticas públicas terão de ser implementadas onde os benefícios
superem os custos do trabalho informal, de modo a não causar frustrações. Porque
evidenciamos em vários momentos das entrevistas e mesmo nas observações durante
todo o nosso trabalho de campo, que as situações em que muitas sacoleiras preferem se
estabelecer nos segmentos informais são aqueles que elas escolhem por serem os mais
rentáveis, do que, por exemplo, aquelas outras atividades para as quais estariam
qualificadas e que eram ou poderiam ser exercidas no setor formal. Mas antes de
seguir pensando em transição do informal ao formal, é preciso saber de antemão: o que
querem mesmo as sacoleiras? Se elas realmente prefeririam fazer esse tipo de transição
ou não. Essa é uma pergunta importante da qual poderiam partir novos estudos e
pesquisas sobre este campo aberto por esta pesquisa. Na visão de muitas das nossas
entrevistadas, empreender de forma autônoma lhes proporciona muito mais liberdade e
equilíbrio emocional para lidar e integrar várias outras demandas de suas vidas pessoais
(qualidade de vida) e, em muitos dos casos, boa parte da família se beneficia e depende
destas atividades, visto que que elas são uma das mais importantes investidoras e
empreendedoras, mas em outros casos, pode ser resultado de todo um negócio e
empreendimento familiar. O que nos leva a pensar que o trabalho assalariado (formal,
entre o patrão e o empregado), é o que poderia em alguns casos, e desde certas
perspectivas, ser muito mais aquele que carrega os fardos da alienação, e se somarmos a
isso o tema da escassez de tempo livre, outras hipóteses e perguntas poderiam ser
200

levantadas e sobre as quais novos estudos poderiam se debruçar em recentes pesquisas.


Contudo, é inegável e também são incontáveis o número de casos dos sujeitos que estão
na informalidade por simples falta de alternativas melhores, como mostramos nos dados
analisados sobre o contexto sociopolítico dos dois países estudados. Esses são fatores
estruturais que não podem ser desconsiderados. E tendem a ser estes boas partes dos
casos daqueles que se encaixam e se reconhecem como vítimas do processo de
reajustamento estrutural.
Todavia, não se trata de uma única causa e efeito as problemáticas que possam
explicar este crescimento maciço de sacoleiras nos dois países estudados, mas sem
dúvida os efeitos da reestruturação produtiva e do ajustamento estrutural mundial que
afetou todos os países do globo desde os anos 90 é uma variável fundamental e, por
isso, a que me detive em alguns dos capítulos. Mas não se podem compreender todas as
motivações, causas e necessidades reais que levam a diferentes tipos de pessoas a
fazerem escolhas similares ou diferentes, e para isso é também preciso, como o tentei
fazer nesta tese, estar atentos às diferentes culturas do trabalho e histórias de cada uma
destas sociedades e sujeitos que estão sendo analisados. No caso desses países
estudados, as práticas de comercialização, além de ser “tradicional modalidade” de
reprodução social das mesmas, é também tido e interpretado pela intelectualidade dessas
regiões, como também foi aqui analisado e concluído, como um lugar de emancipação
contra as forças do capitalismo.
Outra das nossas principais conclusões a partir da investigação feita nesta tese é
aa certeza de que terá de ser encontrado urgentemente novos caminhos que possibilitem
o desenvolvimento e estímulos de novos modos de incentivos para empresas
informais, como algumas das quais este estudo mostrou, e um deles, senão o mais
importante, terá de ocorrer por meio da criação de novas e mais sensíveis, além de
eficazes políticas públicas que sejam erguidas desde diagnósticos mais completos e
complexos de como ajudar o setor informal a se fortalecer e articular melhor com o
setor formal. Pois “[...] enquanto (esse caminho estiver sendo proposto) ele não é
trilhado, a realidade da globalização impõe uma outra dinâmica às “sacoleiras globais”
cujo perfil está marcado por constrangimentos e estigmas construídos socialmente
(VAZ, 2013, p.211).
Nesse conjunto complexo de temas, problemas e dilemas que afetam o mundo
globalizado de hoje, como foi sendo trazido nesta tese, o exemplo das sacoleiras
201

reacende a polêmica sobre qual o “jeito de ser do comércio africano” e a informalidade,


superando até as fronteiras entre os circuitos superiores da economia aos circuitos
inferiores desta mesma, ou se preferir, a dos chamados “superguetos” no seu interior,
cujo único propósito é o de espalhar as mercadorias para os diversos públicos nos seus
países de origens, tanto os clientes mais “aquinhoados” aos menos “aquinhoados”.
E para finalizar, desejo concluir com o tema tratado sobre a feminilização e
empoderamento das sacoleiras por este tipo de trabalho. A partir de nosso estudo de
teor mais etnográfico, notabilizou-se que as narrativas das nossas inqueridas revelaram
importantes elementos no qual a literatura especializada em estudos de gênero e
trabalho analisam em torno de temas como os de feminização do trabalho e do
empoderamento das africanas que transitam entre o espaço urbano interno e externo,
nacional e global. Neste sentido, a tese chama a atenção para uma categoria de
trabalhadores característicos das economias “em desenvolvimento” que contribuem
significativamente para as economias essencialmente dos seus países, porém algumas
comerciantes tendem, na maior parte das vezes, a ser invisibilizadas pelas estatísticas e
desprovidas de benefícios sociais. Portanto, se antes este tipo de atividades e trabalhos
era tratado como se fosse o sinônimo do atraso, da periferia e do subdesenvolvimento, o
que busquei trilhar nesta tese foi a ideia contrária, a de que o presente estudo nos
mostra que o trabalho informal tem sido cada vez muito mais um sinônimo de
modernidade, e sobre o qual deveremos aprofundar e estudar melhor o seu “futuro”
desde novos paradigmas interpretativos e teóricos, que apostem em visões mais
complexas, e não temam, por medo de cair na incoerência ou aparentes e falsas supostas
inconsistências, temer-se a querer arriscar às mais variadas possibilidades de conexões
teóricas, como algumas das quais decidi incursionar nesta tese.

.
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212

ANEXOS
213

ANEXO A. QUESTIONÁRIO APLICADO ÀS SACOLEIRAS NO BAIRRO DO


BRÁS/SÃO PAULO

Guia utilizado para as entrevistas semiestruturadas às sacoleiras

Entrevistada: ____________________________

1 - Gênero/sexo:

a) Feminino ( )
b) Masculino ( )
c) Outro ( )

d) Escolaridade: __________________________________________

2 - Qual é a sua nacionalidade? Assinale com ( X ):

a) Angolana ( )
b) Guineense ( )
c) Outro ( )

d) Em qual cidade nasceu e onde reside (atualmente)?


______________________________________________________________________
__________________________________________.
e)) Mudaste de uma cidade pequena ou rural para morar e trabalhar na cidade grande?
Por que motivo se deu esta escolha?
______________________________________________________________________
____________________________________________.

3 - Em qual cidade/país você costuma comprar seus produtos? Favor assinalar


com a letra x os parênteses abaixo.

a) Brasil ( ). Qual a cidade e em que lugar? ______________________.


b) China ( ).Qual a cidade?___________________________________.
c) Emirados Árabes ( ).Qual a cidade?__________________________ .
d) Índia ( ).Qual a cidade?_____________________________________.

Há mais alguma cidade a acrescentar?


______________________________________________________________________
_______________.
214

4 - Por que escolheu esta (s) cidade (s) para realizar suas compras
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
___________________________,

5 - Assinale com (x) os três principais motivos que te levaram a ser empreendedora
autônoma, e por quais motivos:

a) Estás desempregada?
Sim ( ); Não ( )
b) Tem carteira de trabalho assinada? Sim ( ); Não ( )
c) Se está empregada, por que decidiu exercer esta atividade de autônoma? Favor
descrever:______________________________________________________________
______________________________________________________________________
________.
d) Houve algum evento “crítico” que te motivou a iniciar o negócio? (demissão,
aposentadoria, desemprego, outro?)
Sim ( ); Não ( )

Favor descrever:
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
___________________________________________________________________.

6 - Qual é para você a principal importância de trabalhar como revendedora


autônoma? (Pode escolher uma, duas ou três opções como resposta):

a) Pela Independência financeira ( )


b) Por que não há outra alternativa ( )
c) Equilíbrio com a vida pessoal (qualidade de vida) ( )

Favor descrever os motivos.


______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________.

7 - Atualmente trabalha no mesmo segmento? Pretende seguir no mesmo


ramo/setor ou procurar outro segmento?
215

a) Permanecer no segmento?
Sim ( )
Não ( )

b) Por que?
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
_____________________________________________________________________ .

8 - Gostaria de mudar para um emprego formal e ter carteira assinada?


Sim ( )
Não ( )

a) Independente da alternativa, justifique:


______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
____________________________.

9 - Você recebe ou recebeu algum tipo de apoio do governo de seu país ou de


alguma instituição (Banco) para realização das suas atividades?

Sim ( )
Não ( )

a) Há financiamento vindo de alguma instituição (Banco)? Por favor, r poderia explicar


como funciona?
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
_______________________________________________.

b) Você faz parte de alguma associação de mulheres cujos membros se apoiam e se


solidarizam para alavancar os negócios autônomos?
Sim ( )
Não ( )
Outro tipo de associação, qual?
______________________________________________________________________
__________________________________________________.

c) Se não há financiamento de alguma instituição, quem apoia financeiramente o seu


negócio?
216

______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
________________________________________.
d) Se conseguir emprego formal está difícil para muitos, o que você acha que o estado
ou governo do seu país deveria implementar para ajudar ou melhorar a vida das pessoas
ou mesmo na sua atividade como autônoma?
Resp:__________________________________________________________________
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
_____________________________________________________________________.

e) Onde são vendidos os seus produtos? Em sua residência? Na rua? Nos boxes das
feiras, nas lojas, mercados ou Shoppings centers? Por quê? Favor descrever:
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
__________________________________________________________.
f) Caso a resposta for a primeira ou a segunda (espaço residencial ou a rua), quais
as vantagens que esses espaços te dão que outros espaços não dão?
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________

g) Caso os produtos são vendidos na loja própria, justifique:


______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
_____________________________________________________________________.

f) Chegou a pagar impostos (tributo fiscal) ou ainda paga os impostos à instituição do


estado em que reside? Ou outras instituições informais, por exemplo, associações de
amigos?
Resp:__________________________________________________________________
______________________________________________________________________
_________________________________________________________.

10 - Família e Lar (casa):


a) Além de você, há mais alguém que contribui para a manutenção da economia de
sua casa?
217

Sim ( ). Justifique___________________________________.
Não ( ). Justifique___________________________________.
Quantas pessoas residem em sua casa?
__________________________________________________________..

11 - A freguesia:
a) Quais produtos a sua clientela mais procura?
Favor descrever os produtos (utensílios):
_____________________________________________________________________.

12 - Agentes de Hotéis:
a) Tratando-se de mulheres ou homens africanos que se hospedam no hotel, quais
são as nacionalidades estrangeiras que mais frequentam este hotel?
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________
_______________________________________________________________.
b) Quais são os valores das diárias dos quartos?
________________________________________________________________
________________________________________________________________
_______________________________________________________________
c) Poderia descrever o comportamento desses hóspedes?
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________
_______________________________________________________________.
13 - Guia turístico/comercial:
a) Você reside em São Paulo? Sim ( ); Não ( ).
b) Você poderia me dizer qual é a sua ocupação profissional?
Você atua no auxílio a mulheres que vem comprar produtos aqui no Brás (zona leste
e/ou centro de São Paulo) para enviar aos países africanos? Sim ( ) ; Não ( )
c) Caso a resposta seja sim, você poderia descrever qual é a sua função direta e
como a exerce nesse negócio com as mulheres que vão às lojas?
Resp:___________________________________________________________
_______________________________________________________.
d) Você poderia afirmar se recebe algum valor por este trabalho?
218

Sim ( )
Não ( )
Caso a resposta assinalada seja Sim, poderia me dizer qual é o valor?
Resp:__________________________________________________________.
219

ANEXO B. As Muambeiras nos Subterrâneos das Cadeias Globais de Mercadorias: o


Caso das Sacoleiras Africanas no circuito Comercial entre São Paulo (Brás) e Angola.
220
221
222
223
224
225
226
227
228
229
230
231
232
233
234
235
236
237
238
239

Anexo: C. Cronograma dos principais eventos e personagens no agravamento da


instabilidade na Guiné-Bissau

Fonte: O’ REGAN, & THOMPSON, Peter (2013).


240

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