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A percepção do corpo na performance musical:

o lugar da imagem corporal na prática camerística

Resumo: O presente trabalho apresenta resultado parcial de estudo sobre diferentes aspectos das etapas de
preparação para performances musicais. Esta etapa compreendeu as relações entre corpo e realização da
performance musical, e concentrou-se no conceito de imagem corporal. O objetivo foi investigar como performers
experimentam e constroem as imagens de seus corpos na prática camerística. Discute-se a natureza e percepção do
corpo humano a partir de conceitos defendidos por Paul Schilder e Maurice Merleau-Ponty a fim de identificar como
se constitui o mosaico de nossa existência corporal. Pode-se concluir que as imagens que os performers fazem de si
dependem necessariamente da qualidade do seu engajamento no fazer musical.

Palavras-chave: performance musical; música de câmara; imagem corporal; percepção corporal.

1. Fundamentação teórica
O presente trabalho apresenta resultado parcial de estudo sobre diferentes aspectos das etapas de
preparação para performances musicais. Esta etapa, compreendida entre agosto de 2006 e julho
de 2007, estudou-se as relações entre corpo (mais especificamente, imagens corporais) e
realização da performance musical. As discussões são resultantes da revisão de literatura
realizada até o momento.
A formação do performer musical envolve, além dos aspectos teóricos e técnicos inerentes à sua
prática musical, saberes de várias áreas do conhecimento, como a psicologia, anatofisiologia,
física (acústica), filosofia, entre outras. Por isso, a performance musical tem se caracterizado
como um campo de estudos interdisciplinares. Merecem especial atenção recentes pesquisas
investigando como o corpo do performer emerge nas relações entre aprendizado e realização da
música. Como apontam Cazarim e Ray (2005), o corpo dos músicos apresenta uma tripla
natureza no momento dos ensaios e da performance musical: 1) corpo-meio, o corpo como
responsável pela associação de gestos à produção dos sons específicos; 2) corpo-emoção, que
expõe nas diferentes posturas e expressões faciais realizadas pelo performer o caráter individual
que a música lhe desperta; 3) corpo-comunicação, responsável pela interação entre músicos na
prática camerística.
Tais apontamentos indicam que o conjunto corpo-mente, de fato, constitui um todo inseparável,
o que é discutido por diversos autores (CONABLE, 1992; SCHILDER, 1999; GELB, 2000;
PEDERIVA, 2005). Merleau-Ponty (2006) vai além ao afirmar que categorizações como “corpo-
objeto/corpo-sujeito”, “corpo/mente”, “percepção/realização” só têm sentido se pensadas
enquanto manifestações distintas da mesma realidade. Poder-se-ia dizer, no caso da performance
musical, que só é possível estudar seus diferentes aspectos considerando-os não como partes de
um mesmo processo, mas como manifestações desse processo. Assim, ainda pensando com
Merleau-Ponty, somos levados a finalmente restabelecer a unidade essencial inerente ao corpo, e
os processos mentais e “puramente” motores se unificam sob a existência de uma corporeidade
(FREITAS, 2004, p. 52).
Porém, como o próprio Merleau-Ponty admite, o corpo se engaja em atividades que fazem com
que ele assuma uma caráter ora predominantemente “psíquico” (como no caso de operações ditas
intelectuais, como ler e contar), ora predominantemente “físico” (como no ato de pegar objetos).
Não se nega, com isso, as afirmações anteriores sobre a unidade do corpo, mas antes, aquelas são
recolocadas ao se admitir as diferentes perspectivas que o corpo me apresenta. Nesse sentido, é
possível falar em imagens corporais (SCHILDER,1999), em representações que eu, como ser
encarnado em um corpo, tenho dessa encarnação. Mas aqui não existem imagens “puras”: não é
possível que haja um corpo fora de um contexto de ação, o ser não pode ser visto como uma
máquina inerte, nem tampouco apenas como uma mente. Eu tenho imagens de meu corpo apenas
a partir da experiência de meu corpo.
A atividade do performer musical proporciona um terreno fértil para essas discussões. Se,
pensando com Merleau-Ponty (2006), somos levados a reconhecer a indissolubilidade do sistema
sujeito-corpo, por outro lado somos levados a refletir acerca das diferentes aparições desse corpo
no momento da performance. Primeiramente, podemos dizer sem dúvidas que há, como afirma
Gabrielsson (1999), representações mentais envolvidas no processo de execução musical, mas
não podemos nos esquivar dos processos motores. Se existe, por um lado, a representação e a
percepção de um corpo que faz música, existe necessariamente um corpo vivo que realiza
música e que é percebido. Mas, além do aspecto unificador, também reconhecemos que a
performance se estratifica em processos distintos, que ela “aparece”, no sentido da
fenomenologia, sob diferentes perspectivas, dependendo da etapa de sua preparação ou
realização analisada.
Especificamente na prática de música de câmara, as discussões sobre a emergência das
percepções e usos do corpo se fazem pertinentes, pois há, a todo momento, uma
intercorporalidade (BOSI apud FREITAS, 2004, p. 56) premente, o corpo aparece em relação a
outro (duo) ou outros corpos (trios e formações maiores) e, mais do que depender dessa relação,
ele surge nela durante o fazer musical. Ora, se existo como corpo em interações contínuas
(corpo/música, corpo/corpos), eu só “existo” para alguém, sou passível de percepção e
representação por mim e pelos outros. Justamente considerando o corpo em sua unidade
simultaneamente indivisa e perspectivística, é que se pretende investigar como os performers
experimentam seus corpos e de seus companheiros através de imagens.

2. Objetivos
O objetivo geral deste trabalho é investigar como os performers experimentam e constroem as
imagens de seus corpos durante sua prática musical em conjunto. Discutindo os conceitos de
imagem corporal (SCHILDER, 1999; FREITAS, 2004), corporeidade (FREITAS; 2004), e
buscando uma visão da totalidade do ser que realiza música (MERLEAU-PONTY, 2006),
pretende-se compreender quais as relações existentes entre percepção e produção da música.
Também é objeto deste estudo discutir a percepção que os músicos têm de seus corpos e dos
corpos de seus companheiros, e como essas percepções constituem imagens corporais. Pretende-
se, mais especificamente, discutir o papel central do corpo na prática musical de câmara, de
modo a disponibilizar material de consulta para grupos camerísitcos, professores de performance
musical e estudiosos de áreas afins. Para tal, realizou-se uma revisão da literatura disponível (em
inglês e português) nas áreas de performance musical, psicologia e filosofia, na quais o corpo
aparece como objeto de diferentes análises.

3. Contribuições
Este trabalho propõe a discussão de conceitos relativos à percepção e a representação do corpo
na forma de imagens. Abordando importantes teóricos, espera-se poder ampliar a compreensão
sobre o comportamento do corpo humano durante a performance musical, em especial a
camerística, e compreender as relações entre percepção corporal individual e entre performers,
bem como aquelas existentes entre notação musical e representação corporal.

4. Implicações
O corpo próprio discutido por Merleau-Ponty (2006), no qual o sujeito é encarnado e o corpo é
existencial, nos revela que, para além das divisões binárias entre corpo e mente, percepção e
percebido, sujeito e objeto, o que existe é um corpo provido de intenções. A percepção, nesse
contexto, aparece como um engajamento do sujeito em uma realidade material: a percepção,
através de seus atos (visão e audição, por exemplo), informa o mundo sensível e o adapta à sua
estrutura perceptiva. O objeto, portanto, existe pela intervenção direta do sujeito no mundo, ele
reflete a própria estrutura perceptiva do sujeito. Contudo, para que se possa projetar sobre o
mundo sensível, é necessário que esse mundo já esteja ali presente. O mundo não existe apenas
pela vontade pura do sujeito, mas o sujeito só pode se apropriar dele se estiver sempre disponível
para os atos de percepção. Pode-se dizer, em outra palavras, que o mundo se constrói no
momento em que se toma posse dele: ao mesmo tempo em que o sinto sempre presente, é só
quando o tomo em um ato perceptivo que essa sensação se efetiva. Portanto, me engajo no
mundo de modo a transcendê-lo, mas é preciso definir bem em que consiste essa transcendência:

“a função simbólica repousa na visão como em um solo, não que a visão


seja sua causa, mas porque é este dom da natureza que o Espírito
precisava utilizar para além de toda a esperança, ao qual ele devia dar um
sentido radicalmente novo e do qual todavia ele tinha a necessidade não
apenas para se encarnar, mas ainda para ser. A forma integra a si o
conteúdo a tal ponto que, finalmente, ele parece um simples modo dela
mesma [...].” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 178)

É assim que a percepção do corpo se dá. Ela está fundado nessa relação latente manifestada
através da visão, da percepção tátil, das representações mentais, da percepção cinestésica, entre
todas as outras formas de retomada do mundo pelas ações do sujeito. Essa unidade não é dada
expressamente: não é possível representá-la em imagens mentais ou senti-la diretamente. Só
podemos ter acesso a ela claramente através de suas manifestações, que aparecem a nós como
individualizadas e independentes. O corpo pode ser “visto”, “sentido” ou “representado” para
mim, mas eu nunca consigo apreender a “forma” (Gestalt) dessas aparições racionalmente, eu só
posso estar imerso nela. Ora, se não é possível compreender diretamente essa forma, é preciso
atingi-la através das perspectivas que ela me apresenta. Só enquanto coisa que se mostra aos
poucos é que posso compreender aquilo que está sempre presente, mas que não aparece com
clareza.
“Imagem”, “sensação”, “percepção” do corpo remetem à unidade do corpo, que é existencial.
Cada uma dessas perspectivas nos faz pensar sobre a emergência do corpo na performance
camerística. Quando toco em conjunto, há corpos presentes, disponíveis para meus atos
perceptivos, e, como tal, disponíveis pela estrutura desses atos. Representar esses corpos é, antes
de tudo, me colocar neles, é habitá-los, coexistir com eles e neles. Se sou pianista e toco com um
cantor, devemos respirar juntos, eu preciso saber quando o cantor fará essa respiração. Mesmo
que eu não olhe para ele o tempo todo, o cantor tem que estar ali necessariamente, o corpo do
outro está presente para mim. Como afirma Schilder:

“as representações de pessoas normais também apresentam características


muito semelhantes às da percepção perturbada do agnóstico visual [que
tem ‘cegueira mental’]. Aparentemente, não precisamos mais do que
partes, que podem ser até distorcidas, a fim de dar significado a um
objeto através da representação.” (SCHILDER, 1999, p. 20-21)

Portanto, na medida em que o corpo do outro sempre está ali de fato, não apenas porque eu o
percebo, mas porque ele sempre pode ser percebido por mim, e considerando as afirmações
acima de Schilder (1999), fica evidente que o corpo sempre é representado, mesmo que confusa
ou parcialmente. Dito de outro modo, eu sempre represento o corpo: mesmo que se trate de um
processo inconsciente, sempre posso me projetar sobre ele.
Entretanto, ao mesmo tempo em que percebo o corpo do outro performer, percebo-o como corpo
que se aplica à música, um corpo inserido numa ação. Meu próprio corpo está também nessa
ação. Assim, questiona-se a pretensa visão de uma representação “eterna” do corpo: essa
representação traz consigo o ambiente no qual o corpo estava entranhado, a percepção do corpo é
a percepção de um corpo agindo em um ambiente. Logicamente, as imagens que adquiri do
mesmo performer anteriormente dialogam com as minhas percepções atuais. Mas é só como
movimento de retomada atual do passado, no presente, é que essas imagens me ajudam a
construir o performer que “estava ontem” como o “mesmo” que se apresenta a mim hoje.
Do mesmo modo como a percepção dos corpos interage com a percepção de meu próprio corpo,
é possível dizer que a representação da música também o faz: só quando eu me projeto numa
ação musical é que posso perceber meu corpo, construir a imagem da música para realizá-la
pressupõe implicitamente que é meu corpo que a realizará. Não se pode falar de um “plano de
representação” no sentido estrito. Do mesmo modo como Merleau-Ponty (2006) nos lembra que
o pensamento tende para a fala para seu acabamento, o “plano mental” tende para a ação para se
fechar. Não é que não existam representações da música, mas elas só se completam no momento
da ação.
Considerando as discussões acima, pode-se dizer que as imagens que os performers fazem de si
dependem necessariamente de seu engajamento no fazer musical e, no caso da camerística, dos
corpos dos outros. Só ao se relacionar – e isso ocorre a todo o tempo – com corpos e a música é
que a imagem de seu corpo surge. Representando os outros, o músico se representa simultânea e
necessariamente. Eu “vejo” meu companheiro em minha mente, eu “sinto” meu braço que se
move, eu “toco” o instrumento que produz sonoridades, mas apenas porque sou um sujeito
intencional, por minha capacidade de me projetar sobre esse mundo. Entretanto, a única forma de
acesso a essa Gestalt, essa forma completa que sempre me é dada por minha partitura, por meus
co-performers, por meu próprio corpo, só é percebida através de certas particularizações dessa
mesma unidade. Se me proponho à leitura de uma nova peça, o que fica em evidência é minha
capacidade de leitura e memorização; portanto, meu intelecto “aparece” mais. Se, ao contrário,
preciso olhar para um músico e perceber quando ele respira, troca de arco ou ainda quando eu
preciso mover meu corpo de maneira diferente para produzir um determinado som, é a
motricidade e a percepção “objetiva” que se mostram. Dessa forma, fundando-se numa unidade
que se apresenta múltipla, é que as imagens corporais dos músicos devem surgir. Mais do que
ficar preso à imersão aparentemente irrefletida no mundo, o que nos é exigido é o movimento de
retomada perpétua das imagens construídas, é poder interagir com elas, reconstruí-las à luz do
presente. E não há outra maneira de haver imagens, pois só quando nos colocamos em relação
direta com elas em nossa atividade musical é que elas podem existir para nós.
Pode-se dizer ainda que os autores pesquisados nos conduzem a repensar o papel que o corpo
assume na performance. Ele não é mais visto como uma máquina de produzir sons desprovida de
intenções, muito menos está subordinado a uma consciência reguladora: o corpo nos aparece de
diversas formas, mas o sentido comum que as une é sua capacidade de existir num mundo e de
transformá-lo por sua atividade. O corpo do músico não se esquiva dessa realidade: ele dialoga
com os outros músicos e com a música, e as representações que faz desse mundo dado o
transcendem ao mesmo tempo em que permanecem “coladas” a ele.

5. Sub-áreas de conhecimento
Filosofia, psicologia, performance musical, música de câmara, percepção corporal.

BIBLIOGRAFIA

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performance dos instrumentos de cordas. Revista PER MUSI, 2, 118-128.

Cazarim, T. e Ray, S. (2005, Novembro). Preparação para a performance musical: o ensaio geral.
Trabalho apresentado por ocasião do V Seminário Nacional de Pesquisa em Música (SEMPEM).
Universidade Federal de Goiás, Goiânia, Brasil.

Conable, B. e W. (1992). How to learn Alexander Technique. Colombus, OH: Andover Road.

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Gabrielsson, A. (1999). The Performance of Music. In Deutsch, D. (Ed.) The psychology of


music (p. 501-623). San Diego: Academic Press.

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Martins Fontes.

Merleau-Ponty, M. (2006). O corpo. In Merleau-Ponty, M. Fenomenologia da Percepção. (p. 102


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Nietzsche, W. F. (2004). Sobre Aqueles que acreditam no além e Daqueles que desprezam o
corpo. In: Nietzsche, W. F. Assim Falava Zaratustra. (p. 35 – 39). São Paulo: Editora Escala.

Pederiva, P. (2004). A aprendizagem da performance e o corpo. Revista MÚSICA HODIE 4 nº


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Silva, R. F.; Venditti Júnior, R.; e Miller, J. (Consultado em 09.09.2006). Imagem corporal na
perspectiva de Paul Schilder: contribuições para trabalhos corporais nas áreas de educação física,
dança e pedagogia. Disponível em: <http://www.efdeportes.com/efd68/schilder.htm>.

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