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Pensando sobre o Franciscanismo com

Giorgio Agamben
João Paulo Bandeira de Souza

Cientista político, Doutor em Ciências Sociais (UFRN), Mestre em


Políticas Públicas e Sociedade (MAPPS/UECE), membro dos
grupos de pesquisa Marginália-UFRN e Democracia e
Globalização-UECE.

Giorgio Agamben, na obra “Altíssima pobreza: regras monásticas e


forma de vida [Homo Sacer, IV, 1](trad. Selvino J. Asmann, São Paulo:
Boitempo, 2014) ensina como o franciscanismo inventou uma forma-de-vida,
noutras palavras, um modo de viver inseparável da sua forma. O
franciscanismo, como resultado dos movimentos monásticos que o originaram,
inovou a vida monástica e abalou a Cúria ao criar uma forma-de-vida situada
no plano da doutrina e da lei, mas no plano da vida. […] Os frades menores,
que se dedicaram a seguir Cristo em extrema pobreza, consequentemente
renunciaram a todo direito de propriedade, conservando, porém, o uso das
coisas que outro lhes concede. (AGAMBEN, 2014, p.128)

Excetuando os anacoretas, o monaquismo buscou “[…] constituir-se e


afirmar-se como comunidade ordenada e bem governada”. […](AGAMBEN,
2014, p. 24) No monaquismo há uma estreita relação entre o modo de ser e
agir e o modo de vestir. O hábito monacal não tem como objetivo principal
cobrir o corpo, mas demonstrar um modo de vida compartilhado e organizado
por uma regra e forma de vida.

Se a liturgia se transforma integralmente em vida, então o princípio


fundamental do opus operatum [obra feita], que, já a partir de Agostinho,
sanciona a indiferença das qualidades morais do sacerdote com relação à
eficácia de seu ofício, não pode valer. Enquanto o sacerdote indigno continua,
em todo caso, sendo sacerdote e os atos sacramentais que ele realiza não
perdem sua validade, um monge indigno simplesmente não é um monge.
(AGAMBEN, 2014, p. 91) Os franciscanos tornaram vida e regra indivisíveis ao
invés de prometer uma regra ou prometer viver como manda a regra, assim,
“[…] o minorita não só não obedece à regra, mas vive a obediência e, com uma
inversão ainda mais extrema, é a vida que deve ser aplicada à norma, e não a
norma à vida”. (AGAMBEN, 2014, p. 70).

Na Regra bulada, Francisco buscou definir a vida dos minoritas como


uma Altíssima pobreza (Altissima paupertas) e sua novidade consiste na “a)
―[…] tentativa de realizar uma vida e uma prática humanas absolutamente
fora das determinações do direito. (AGAMBEN, 2014, p. 116) e b) ―[…] a
separação da propriedade com relação ao uso constituem o dispositivo
essencial de que se servem os franciscanos para definir tecnicamente a
condição peculiar que eles denominam ‘pobreza’.(AGAMBEN, 2014, p. 119).
Portanto, a forma-de-vida criada pela Altíssima Pobreza fez da vida dos frades
menores não uma liturgia ininterrupta, mas uma inovação tão diferente e numa
dimensão tão distinta da lei civil e do cânone eclesiástico que não entra em
conflito real com eles.

A novidade do franciscanismo não é a reivindicação da pobreza, mas o


fato dela não representar uma prática ascética ou martirizante que conduz para
a salvação da alma e, sim, uma ―[…] parte inseparável e „constitutiva da vida
“apostólica” e “santa”, que eles afirmam praticar em perfeita alegria. […]‖
(AGAMBEN, 2014, p. 98). O modo de vida originado dessa ressignificação da
pobreza torna-se inseparável da sua forma vitae. Como Francisco não cansa
de lembrar, o fato é que está em jogo na ―regra e vida‖ não tanto o ato de
preceituar algo, mas também e sobretudo o ato de seguir alguém […]. Não se
trata tanto de aplicar uma forma (ou uma norma) à vida, mas de viver de
acordo com aquela forma, ou seja, de uma vida que, no ato de a seguir, ela
própria se torna forma, coincide com ela.

Atentemos que a renúncia franciscana é em relação: ―[…] a toda


propriedade e toda faculdade de apropriar-se, não ao direito natural de uso
que, enquanto direito natural, é irrenunciável. […] (AGAMBEN, 2014, p. 120).

[…] O franciscanismo, mais radicalmente do que os outros movimentos


religiosos do mesmo período, e mais do que qualquer outra ordem monástica,
pode ser definido como a invenção de uma forma-de-vida, ou seja, de uma vida
que permanece inseparável de sua forma, não porque se constitui como
officium e liturgia, nem porque nela a lei tomou por objeto a relação entre uma
vida e sua forma, mas precisamente em virtude de sua radical estranheza
diante do direito e da liturgia. (AGAMBEN, 2014, p. 126)

Por fim, a forma-de-vida franciscana não corresponde a um código de


normas, quando definido por Santa Clara, assemelha-se ao que Francisco
chama de “vida”, “regra” e “vida ou viver segundo a forma do santo Evangelho”.
A escolha pela vida baseada no usus cria uma pobreza diferente, vivida com
alegria, capaz de gerar um modo de viver inseparável da sua forma-de-vida.

Fonte: https://segundaopiniao.jor.br/pensando-sobre-o-franciscanismo-com-
giorgio-agamben-por-joao-paulo-bandeira-de-souza/

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