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ORFEU,

EURÍDICE E O MUNDO SUBTERRÂNEO


Apontamentos para aula

Lilian Wurzba


Mais enigmática que a figura de Pitágoras, Orfeu vivera cerca de 3.000 anos a.C.,
embora seu aparecimentos oficial se deu por volta do século VI a.C. quando houve uma
extensa difusão dos Hinos Órficos. De acordo com a tradição grega, Orfeu é anterior a
Homero e Hesíodo, provavelmente originário da Trácia, pátria de Dioniso, a quem estava
ligado intimamente.
Ορφευς (Orpheús), na etimologia popular grega, está associado a obscuro,
obscuridade, por ele ter descido às trevas do Hades, enquanto Blavatsky afirma que
Orfeu significa “enegrecido”, de tez escura, pelo seu vínculo a povos orientais e da sua
relação com a Índia, onde sediou os seus Mistérios, de acordo com Heródoto.
Filho do rei Eagro (alguns apontam Apolo como seu pai) e da mais importante
das nove Musas, Calíope, Orfeu foi poeta, músico (tocava lira e cítara, da qual foi
inventor), e cantor, possuidor de uma divina voz que até as copas das árvores se
inclinavam para ouvi-lo, os animais selvagens o seguiam e mesmo os homens mais
raivosos tornavam-se ternos. Considerado criador da teologia pagã (orfismo), foi
curandeiro e profeta, como os xamãs.
Ainda que sejam incertas as datas, é possível afirmar que Orfeu seja um herói
muito antigo, pois integrou a expedição dos Argonautas, com o papel de cantor mágico
que, seguindo o conselho de Quíron, recorre ao poder do seu canto sempre que a força
dos heróis não é suficiente, principalmente contra o canto das sereias. No que tangia ao
relacionamento dos heróis com a religião, Orfeu era quem presidia as cerimônias, as
oferendas e as visitas aos santuários, segundo Apolonio de Rhodes (240 a.C.).
Ao regressar da expedição, Orfeu se casa com a ninfa Eurídice, a quem muito
amava, considerando-a como “metade de sua alma”. De acordo com a versão do poeta
latino Virgílio, Eurídice, ao fugir de Aristeu que tentara violá-la, foi picada por uma
serpente e morreu. Orfeu, inconformado com a perda da esposa, resolveu descer ao
Hades para resgatá-la. Com sua cítara e sua voz divina, encantou o mundo ctônico a
ponto de amolecer o coração de Cérbero, deter a roda de Íxion, parar a oscilação do
rochedo de Sísifo, fazer Tântalo esquecer a fome e a sede, e fazer descansar as Danaides
de sua eterna tarefa de encher os tonéis sem fundo. Vendo tamanha prova de amor,
Plutão e Perséfone concordaram em devolver-lhe Eurídice, mas sob uma condição:
sairiam do mundo subterrâneo caminhando ele à frente, seguido por ela, e durante este
percurso, em hipótese alguma, Orfeu poderia olhar para trás. Porém, quando quase
alcançava a luz, ocorreu-lhe uma dúvida: estaria sua esposa ali atrás dele? E Orfeu olhou
para trás para ver sua Eurídice sumir para sempre, “morrendo pela segunda vez”.
Inconsolável, Orfeu vagava às margens do rio Estrimão, sem conseguir esquecer
sua amada. Em uma das várias versões, diz-se que Orfeu, ao voltar do Hades, instituiu
mistérios e iniciações que trouxera da sua visita à rainha do mundo subterrâneo, dos
quais participavam somente os homens, pois era totalmente proibido às mulheres. De
acordo com Ésquilo, as Mênades, furiosas por causa desta proibição, esquartejaram-no.
Outra versão aponta que em função de sua mãe Calíope ter arbitrado uma querela entre
Afrodite e Perséfone, na disputa de Adônis, e decidido que este permaneceria parte do
ano com uma e parte, com outra, Afrodite, para se vingar de Calíope, incitou as mulheres
trácias a uma paixão tão violenta que, diante da rejeição de Orfeu, elas o esquartejaram e
lançaram seus restos no rio Évros ou Maritsa. Enquanto sua cabeça rolava rio abaixo,
seus lábios chamavam por Eurídice. Este crime das mulheres trácias foi punido pelos
deuses com uma peste que só seria aplacada quando a cabeça de Orfeu fosse encontrada
e um templo fosse erguido em sua homenagem. A partir daí, a cabeça de Orfeu passou a
servir de oráculo e sua alma foi para os Campos Elísios, onde ele canta para os imortais.
Segundo Diógenes Laércio, “o cantor da lira de ouro, Orfeu da Trácia, foi aqui sepultado
pelas Musas, e o Rei da Alturas, Júpiter, feriu-o com os seus raios inflamados.”
A importância de Orfeu não só é atestada pelas variadas versões, mas pelas
inúmeras aproximações filosóficas (Jâmblico, Porfírio, Plutarco, Pausânias, Virgílio e
Ovídio, além de Platão, Clemente de Alexandria e Orígenes) ao longo dos séculos, bem
como pelos Mistérios por ele introduzidos (Orfismo). Temos, inclusive, uma peça de
Vinícius de Moraes, de 1954, “Orfeu da Conceição”, que serviu de base para o filme
“Orfeu Negro”, de 1959, premiado com a Palma de Ouro, o Oscar e o Globo de Ouro. Em
1999, Cacá Diegues dirige “Orfeu”, com música de Caetano Veloso.
O conteúdo mítico é altamente simbólico, destacando-se, entre outros, alguns
pontos:
- olhar para trás
- rejeição do feminino
- esquartejamento
- crânio
- apolíneo x dionisíaco
- seu aspecto arcaico
- inovações do Orfismo: cosmogonia, antropogonia e escatologia
As palavras de Martin P. Nilsson sintetizam o significado de Orfeu e de seus
Mistérios:
O Orfismo é o compêndio e, ao mesmo tempo, o coroamento dos agitados e
complexos movimentos religiosos da época arcaica. A constituição de uma cosmogonia
em sentido especulativo, com o encaixe de uma antropogonia que, antes do mais,
pretende explicar a dupla natureza do homem, composta de bem e de mal; o ritualismo
nas cerimonias e na vida; o misticismo na doutrina e no culto; a elaboração de ideias
acerca de uma vida no além, plástica e concreta, bem como a transformação do inferno
em um lugar de castigo por inluxo da exigência de reparação, segundo a ideia antiga de
que a vida no outro mundo é uma repetição da existência sobre a terra. Tudo isto se pode
constatar em outras partes, ao menos em esboço, mas a grandeza do Ofismo reside em
ter combinado o todo numa estrutura harmônica.

Para além da importância do Orfismo e independente dele, a figura de
Orfeu, segundo Mircea Eliade, continuou sendo reinterpretada tanto por teólogos
judeus quanto cristãos, por hermetistas e filósofos do Renascimento, por poetas
desde Poliziano até Pope e desde Novalis até Rilke.
Como poderíamos entender Orfeu e seus Mistérios a partir da perspectiva
psicológica junguiana?


Referências:
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. Petrópolis: Vozes, 1992. Vol. II.
ELIADE, Mircea. História das crenças e das ideias religiosas. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.
KERÉNYI, Karl. A mitologia dos gregos. Petrópolis: Vozes, 2015. Vol. II.

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