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REVISTA DA SOCIEDADE DE

PSICOLOGIA DO RIO
GRANDE DO SUL

S E Ç AO 1 | A r t i g o s

Édipo feminino: uma variante do mito ou a


especificidade no destino da sexualidade feminina?
Feminine Oedipus: a variant of myth or the specificity of female sexuality

de Mariana Todeschini Almeida1 e Morgana M. Saft Tarragó2

RESUMO: O presente artigo aborda questões ABSTRACT: This article discusses issues about
acerca da sexualidade feminina a partir da leitura female sexuality from the Freudian reading about the
freudiana do complexo de Édipo na menina. As autoras Oedipus Complex of the girl. The authors propose to
se propõem a investigar nos textos psicanalíticos, investigate Freudian and post-Freudian psychoanalytic
freudianos e pós-freudianos, diferenças da estrutura texts, about the differences of the oedipal structure
e da travessia edípica de meninos e de meninas, and crossing from boys and girls, prioritizing the way
priorizando a forma como é vivenciada pela criança do it is experienced by the female child. The text begins
sexo feminino. O texto inicia com a premissa de que with the premise that the Oedipus Complex crossing
a travessia do complexo de Édipo é universal, do qual is universal, from which no child escapes, regardless of
nenhuma criança escapa, independente do contexto the family or sociocultural context in which he or she
familiar ou sociocultural em esta que vive. Em seguida, lives. Then, it presents issues about the human psyche
discute questões da origem do psiquismo humano e origin and moves towards the construction of the
segue em direção à construção da sexualidade feminina female sexuality from the pre-oedipal phase. The dual
a partir da fase pré-edípica. A relação dual com o objeto relation with the primordial object – mother –, that
primordial – a mãe –, que implanta a sexualidade no implants the baby´s sexuality, is inevitably abandoned
bebê, é inevitavelmente abandonada para que a menina so the girl tries to find, in the father – second object
passe a buscar, no pai – segundo objeto revestido de covered with libidinal investment –, what she lacks.
investimento libidinal –, aquilo que lhe falta. Dos destinos About the destinies of sexuality, the article discusses
da sexualidade, abordam-se questões relacionadas à issues related to the constitution of the female
constituição do supereu feminino. superego.
Palavras-chave: Complexo de Édipo; Sexualidade feminina; Keywords: Oedipus Complex; Female sexuality; Superego.
Supereu.

1 
Psicóloga e Psicanalista em Formação, Membro Provisório CEPdePA.
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Psicóloga e Psicanalista em Formação, Membro Provisório CEPdePA.

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Introdução ao outro (Freud, 1896) e, por fim, representá-los psiquicamente. O ingresso
no mundo representacional abre as portas para a fantasia e para o desejo.
Partimos da premissa de que todos os caminhos do desenvolvimento
O desamparo originário, a incompletude, a necessidade do outro para
da libido convergem no Complexo de Édipo, “situação pela qual toda a
sustentar o bebê vivo é marcado pelo encontro com a mãe, vivido, por ambos,
criança está destinada a passar e que decorre inevitavelmente do fato de
de forma onipotente. Ainda que seja desta forma que a criança alcance vida
ela ser cuidada por outras pessoas e viver com os pais durante um período
psíquica, ela é neste tempo, a depositária do desejo do outro, situação impres-
prolongado” (Freud, 1938, p.201). Sendo única travessia, não oferece escolha
cindível de ilusão de ser o falo, bem como, de ter algo que este outro deseja
de rota alternativa ou desvio. Ainda que haja caminho de volta, atravessá-lo
(Lacan, 1958). Mãe e filho vivem a ilusão compartilhada de completude. É
é obrigatório, tendo em vista que “nenhuma criança [...] escapa à torrente
um tempo mítico, todavia, abrir mão dele é custoso. Para ambos.
de pulsões eróticas que lhe afluem e porque nenhum adulto de seu círculo
imediato pode evitar ser alvo de suas pulsões ou tentar bloqueá-las” (Nasio, Ao nos remetermos ao texto de Freud de 1937, Análise Terminável e
2005, p.6). O destino apontado por Freud em Esboço de Psicanálise (1938) Interminável, lemos que uma característica da vida psíquica e que se opõe à
possibilitaria uma posterior organização sexual adulta, genital? Da sexualidade cura na mulher corresponde à inveja do pênis, atitude relativa ao complexo
inicialmente vivida como uma organização fálica, o destino genital, marcado da castração. Freud entende “que, desde o início, o repúdio da feminilidade
pela diferença, está reservado ao futuro. teria sido a descrição correta dessa notável característica da vida psíquica dos
seres humanos” (1937, p.268). Em seguida, afirma que
O Complexo de Édipo, complexo nuclear da personalidade normal e pa-
tológica, circunda ou bordeia todas as estruturas psíquicas. Pode ser entendido
como“marco zero de um caminho a partir do qual se modifica a ideia de tempo “os desejos de um pênis e o protesto masculino penetraram
na construção da subjetividade [...]” (Sigal, 2009, p.26). Assim, o Édipo e as através de todos os extratos psicológicos e alcançaram o fundo,
angústias que o antecedem e o fundam constituem umas das problemáticas
e que assim, nossas atividades encontram um fim [...] O repúdio
fundamentais da teoria e da clínica psicanalítica. O Édipo explica a origem de
nossa identidade sexual e dos nossos sofrimentos neuróticos, “ou melhor, do da feminilidade pode ser nada mais do que um fato biológico,
processo de produção da sexualização” (Oliveira, 2016, p.149). uma parte do grande enigma do sexo feminino (1937, p.270).
Nosso objetivo neste trabalho é percorrer as construções teóricas
freudianas e pós-freudianas acerca do Complexo de Édipo da menina e seus Poderíamos remeter que esta oposição à cura promovida pela análise
destinos na constituição da sexualidade feminina. Para tanto, é essencial que e referida no texto de 37, nos diz do tempo pré-edípico, aquele que marca o
priorizemos a relevância do “primeiro e mais forte objeto amoroso e protótipo destino do Complexo de Édipo da menina? A oposição neste primeiro tempo
de todas as relações amorosas posteriores” (Freud, 1938, p.202): a mãe! seria equivalente ao protesto para não ceder à aceitação de sua posição passiva/
castrada, que resulta em uma postergação: o desejo de ter um filho do pai
substitui o pênis não dado pela mãe?
O feminino e as origens do psiquismo
No texto A Sexualidade Feminina (1931), Freud não faz equivalência
entre o Complexo de Édipo do menino e da menina quando se recusa a dar o
A mãe, que com sua função materna desperta, através dos cuidados com
nome de Complexo de Electra à conflitiva que vive as crianças do sexo femi-
o corpo da criança, o corpo erógeno desta, torna-se, concomitantemente seu
nino. A menina reconhece sua castração, mas contesta contra este estado de
primeiro objeto sedutor (Laplanche, 1988). Nesse período de fusão, a mãe
inferioridade. Freud questiona: “o que exige a menina da mãe?”(1931, p.207).
ocupa o primeiro plano, o que é universal na medida em que é comum aos
meninos e às meninas. O feminino é constitutivo do psiquismo, visto que ele Recordemos que a separação com o seio é o modelo que determinará a
marca a disposição originária do bebê freudiano, bebê marcado pela chegada forma como o bebê lidará com a castração, não o contrário, refere Sigal (2009).
ao mundo desamparado, incapaz de sozinho ligar e encontrar vias de descarga Em relação a esta primeira perda, Freud (1926[1925]) afirma que a partir da
da intensidade pulsional da qual nasce sujeito (Paim e Quadros, 2008). A castração, as perdas anteriores são ressignificadas.
necessidade da presença de um outro que traga consigo a possibilidade de
Atividade-passividade agora se intercalam na relação em que a menina
oferecer ao recém-nascido uma ação específica (Freud, 1950 [1895]) de
foi passiva nas primeiras vivências sexuais com a mãe. Mamar passa a substituir
qualidade, faz da mãe ou de seu substituto, o responsável pela abertura que
ser alimentada, a criança tenta fazer da mãe um objeto e atribui um papel
instaura a psicossexualidade, como também confirma a sujeição e a passivi-
ativo a si mesma. Em 1932, no texto Feminilidade, Freud levanta a questão da
dade como marcas inquestionáveis do início da vida de todos. A intrincação
bissexualidade como constitutivo da sexualidade humana, o que refuta a teoria
da pulsão de vida com a pulsão desgovernada nestes primeiros momentos
inicial da anatomia como o destino. Freud depara-se com outro problema:
exige imprescindivelmente um outro para acolhê-lo e inundá-lo de libido. A
como este ser bissexual se torna mulher?
chegada ao mundo é traumática por excelência, são as ligações promovidas
pela função materna que irão cadenciar o efeito desse traumático ao longo
da vida de cada sujeito. O Édipo Feminino: a fase pré-edípica como
O recalcamento originário que incide sobre uma criança ainda submetida sustentação do destino da feminilidade
a um psiquismo alheio, cinde o seu aparelho psíquico em inconsciente e
pré-consciente/consciente. É por conta dessa cisão que os primeiros registros, A mulher é fabricada através de um longo trabalho psíquico, diz Freud
as primeiras marcas poderão ser retranscritas, sucessivamente, de um sistema em 1932. Sigal (2009) complementa que “[...] a sexualidade delineia-se
como uma construção, e não como algo que está dado pelas características

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constitucionais, naturalmente” (p. 32). Segundo entende Alizade (2008) a demorado”(1931, p.238), e criada pela influência da castração - se estendem
partir de sua leitura freudiana, as mulheres ao longo de seu desenvolvimento ao longo de toda a vida: “com muita frequência, de modo algum é superado
se deslocam da feminilidade primária (fusão com a mãe) para a feminilidade pela mulher” (1931, p.238). Essa fase de ligação exclusiva com a mãe tem
estrutural, esta última, resultado da decantação do Complexo de Édipo. importância muito maior do que pode ter para os homens (Freud, 1931), a
ponto de podermos tomar a transferência situada “em um marco materno”,
O modelo tomado por Freud (1932) nos leva ao Mito de Édipo, especi-
preconiza Sigal (2009, p. 35).
ficamente Édipo Rei, de Sófocles. Assim sendo, nosso modelo norteador é o
Édipo do menino – a mãe como primeiro objeto amoroso, o pai como rival e, Accioly et al (2007) postulam que a primeira identificação da criança,
por fim, a escolha essencialmente narcísica de manter seu pênis, representante primária e passiva, ocorre em relação à mãe e seu seio, não com o pai, o que
simbólico de força, virilidade e poder, em detrimento a este primeiro amor. difere do que postula Freud em 1923 no texto A Organização Genital Infantil.
Esta escolha funda o supereu, a identidade sexual via identificação secundária, Os autores buscam respaldo em outro texto freudiano, Esboço de Psicanálise
garante ao sujeito sua inserção à cultura e a introjeção da lei simbólica. O Édipo (1938), no qual Freud afirma que através dos cuidados com o corpo do bebê,
na menina é diferente desde sua origem, marcada pela especificidade da etapa a mãe se torna seu primeiro objeto sedutor. Assim, a mãe estaria como o
pré-edípica, mais longa e intensa se comparada a do menino. primeiro e mais forte objeto amoroso e como protótipo de todas as relações
amorosas posteriores (1938). É essa identificação primária e passiva, portanto,
O menino sai do Édipo, como dissemos, ao fazer uma escolha narcísica.
pseudonarcísica, que abriria caminho à identificação secundária, finalmente,
Segue adiante ao eleger uma parte de si, em nome de manter sua inte-
edípica (Accioly et al, 2007).
gridade (narcísica), o que não quer dizer que lhe seja fácil ou a experencie
livre de intensa angústia. A menina, para avançar, precisa abrir mão do que, No texto de 31, Freud põe luz sobre a etapa pré-edipiana nas mulheres ao
segundo Freud (1931) foi, na vivência pré-edipiana, seu primeiro objeto. A referir que esta fase “comporta todas as fixações e repressões a que podemos
menina busca pelo pai como substituto, alternativa à decepção imposta pela retomar a origem das neuroses, talvez pareça que deveríamos retratar-nos da
descoberta de que nem ela, tampouco sua progenitora, detém o pênis. Essa universalidade da tese segundo a qual, o Complexo e Édipo é o núcleo central
substituição que, na mesma esteira das perdas que a antecedem, projeta a das neuroses”(1931, p.234). No entanto, ao considerar o Complexo de Édipo
menina à ideia de que nada mais há para ser perdido. completo, Freud, nesse mesmo texto, confirma a tese inicial de ser o Édipo
universal e núcleo das neuroses. Embora na frase seguinte nos advirta de que
Na medida em que constata não ter o pênis, abandona por ódio e
a menina só atinge a situação edipiana positiva – pai como objeto de amor
decepção seu primeiro objeto. Quando muda o objeto de investimento, muda
– depois da fase chamada de Édipo negativo, reitera que não há paralelismo
também seu próprio sexo (clitóris como pequeno pênis). A menina vive, pre-
entre o Édipo masculino e feminino.
cocemente, um momento de intensa solidão e humilhação – intervalo entre
o abandono da mãe, seu objeto original, e a busca pelo pai – e, um momento Neste sentido, o que levaria a menina a abandonar o pai e, assim, sair do
de longa espera – intervalo entre o abandono do clitóris como zona erógena Édipo? Seria a promessa de que no futuro, no lugar do pênis negado, terá um
original e a futura descoberta da vagina. Frente à dor da humilhação, a menina filho? A possibilidade de substituir o pênis pelo filho, bem como, de deslizar
tem sua autoimagem ferida. É diante desse corte que ela se volta para o pai e do papel de filha para o de mulher e mãe, exige que já a mãe tenha sido
entra no Édipo, como forma de “tentar resgatar seu narcisismo ferido” (Nasio, retomada como objeto de identificação?
2005, p. 52). É a feminilidade em cena (Freud, 1925).
Em 1931, Freud refere os destinos possíveis do complexo de castração.
Enquanto o menino se angustia porque não quer perder seu órgão A menina reconhece sua castração, mas se rebela e tal rebeldia pode acarretar
valioso, a menina, o que teme? É da ordem do amor e o risco de perdê-lo sua em: (a) repulsa à sexualidade, com abandono da atividade fálica e da sexuali-
angústia? Se a resposta a esta pergunta é afirmativa, a escolha da menina é dade; (b) se aferra com desafiadora autoafirmatividade a sua masculinidade
narcísica por excelência? É pela expectativa de que no futuro ela terá o falo3, ameaçada e acredita que no futuro seu pênis crescerá. Este destino pode
uma vez que já foi privada e sente-se vítima de uma injustiça? A promessa resultar em homossexualidade manifesta; (c) atitude feminina normal, na
de futuro seria a esperança de reconstruir sua autoimagem ferida, imagem qual toma o pai como objeto, encontrando o caminho para a forma feminina
fálica da fase pré-edípica? Não se trata de preservar uma parte de si, senão do Complexo de Édipo.
de curar a ferida narcísica, incurável.
Nasio (2005) descreve o Complexo de Édipo da menina em quatro tempos:
Em 1924, no texto A Dissolução do Complexo de Édipo, Freud afirma que o primeiro, pré-edipiano, no qual a menina é como um menino (clitóris =
a conflitiva na menina escapa ao destino concedido ao menino, na medida em pênis).O segundo é o tempo de solidão, em que a menina se sente sozinha e
que, nela o Complexo é abandonado aos poucos, tramitado por repressão, mas humilhada ante a descoberta de que a mãe não lhe fez com pênis e de que,
ainda seus efeitos podem persistir por muito tempo na vida psíquica normal nem esta tem um. O terceiro tempo é marcado pelo desejo pelo pai, o tempo do
da mulher. No entanto, para a menina faltaria o motivo para a dissolução do Édipo propriamente dito, e o quarto e último tempo, é o desejo deslocado para
Complexo de Édipo, para a constituição do Supereu e para a organização genital outro homem. Segundo este autor, a mais feminina das mulheres tem sempre
adulta que dele resulta. Na menina, o que é herdado do Édipo não procede do o pai dentro de si. Com esta afirmação, Nasio (2005) se refere ao pai fantasiado,
medo da castração, mas sim, das intimidações provenientes do exterior, “as introjetado que, então, a menina deixa de desejar como parceiro amoroso, ou
quais a ameaçam com uma perda de amor” (1924, p.198). seja, o dessexualiza. Se esta introjeção está contrabalanceada pela identificação
com a mãe, a mulher pode alcançar relações de laço amoroso, apropriada dos
Freud (1931) afirma que tanto a fase pré-edípica quanto a edípica - esta
traços femininos e masculinos assimilados ao mesmo tempo da mãe e do pai.
última constituída pelo “resultado final de um desenvolvimento bastante

3 
A palavra falo referir-se ao caráter simbólico do pênis.

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Assim, o Édipo da menina é resolvido ou seu desenlace final se dá insuficiente? Lacan (1972) aborda esta questão afirmando ser a mulher
quando ela pode fazer o luto do falo ilusório. Daí, constata a diferença de seu não totalmente castrada.
sexo, que este não está balizado pela lógica do ter/não ter o falo. Ao deixar de
No trabalho Uma menina e sua mãe, André (1998) conclui que o
recriminar a mãe e de rivalizar com o homem, descobre a vagina, o desejo de
destino da menina é uma metáfora impossível e, por vezes, se mantém na
ser penetrada, o útero e seu desejo de carregar um filho do homem amado. Ao
luta permanente de ascender do registro metonímico para o da metáfora. A
ingressar na sexualidade adulta, a dicotomia é entre pênis e vagina, diferente
luta acirrada da menina com este objeto primordial segue como uma relação
da fase pré-genital, na qual a antítese dominante era ativo-passivo, e da fase
marcada pela ambiguidade amor-ódio, já referenciada por Freud em 1923. Ou
genital infantil, em que prevalecia a dualidade fálico-castrado.
seja, para que a menina possa endereçar-se para um homem é imprescindível
Todavia, para chegar ao Édipo, é necessário que tanto o menino quanto que ela consiga fazer uma ruptura com a figura materna-fálica, assim como
a menina se deparem com o desamparo inicial. O complexo de castração é entendemos que ela se beneficiará se puder identificar-se com esta figura
posterior, assim como é posterior à conflitiva edípica a possibilidade de o odiosa, para por fim, construir sua feminilidade.
sujeito poder sair da endogamia e fazer novas escolhas de objetos sexuais.
O processo identificatório da menina se dá, assim, em duas vertentes.
A alteridade é uma construção feita sobre fundações profundas e antigas.
A primeira, marcada pela fase pré-edípica, quando a mãe é seu objeto de
amor, objeto este primeiramente fálico, depois castrado. Poderíamos inferir
Na trilha dos destinos que, nesse primeiro tempo, a menina se identificaria com atributos tanto da
mãe fálica como da mãe castrada? E a segunda, então advinda do Complexo
Na fase pré-edípica, a menina deseja um filho da mãe, portanto seu de Édipo, no qual a mãe é a rival e a busca é de ocupar seu lugar, junto ao
rival é o pai. É depois dessa fase que a garotinha desenvolve um ódio intenso pai. Ao final deste segundo tempo, a identificação se dá também a partir de
por aquela que foi seu primeiro objeto de amor, justo por tê-la feito castrada atributos do pai.
como a mãe também é. Irrompe a inveja do pênis que perdurará por toda a Freud (1923b), pontua que“[...] agora, no lugar do investimento objetal,
vida, como em estado nascendi ou de forma sublimada: ter um filho, escolher pode entrar uma identificação com a mãe ou se intensificar a identificação
uma profissão ou outros substitutos que permitam satisfazer parcialmente com o pai” (p.43). Neste trecho de O Eu e o Id, exemplifica o processo iden-
o desejo reprimido. Poderíamos recorrer à equação simbólica dinheiro = tificatório a partir do desmoronamento do Édipo do menino. Em seguida,
presente = cocô = filho = pênis - que no inconsciente são tratados como aborda o processo identificatório da menina, incluindo a etapa de criação,
equivalentes entre si e que na linguagem simbólica costumam prescindir da além da intensificação da identificação da filha com a mãe. Por fim, reitera
diferença de sexos - para pensar que é possível ser acrescentada à equação que o desfecho da trama edípica resulta na introjeção do objeto no Eu e a
edípica feminina pênis = filho, outros substitutos simbólicos? identificação com um ou outro progenitor, dependendo, em ambos os sexos,
Na menina, o complexo de castração não dissolve o complexo edípico da força relativa das inclinações masculinas ou femininas presentes desde o
como no menino. Longe disso, na menina, o complexo de castração mantém início. A bissexualidade é constitucional, a ambivalência é secundária e se
o Complexo de Édipo (Silva e Folberg, 2008). No início da fase fálica, lembre- manifesta na travessia edípica até seu sepultamento, não é fruto da rivalidade
mos, a menina é um pequeno homenzinho. Não há diferença entre meninos desenvolvida a partir da identificação.
e meninas, vagina não existe e a masturbação é fálica para os pequenos Como vimos anteriormente, conforme a menina significar a destino
(Freud, 1932). Na menina, coexiste ao longo da fase pré-edípica a travessia edípico, três possibilidades se apresentam: a inibição sexual ou a neurose,
de cada uma das etapas do desenvolvimento da libido: oral, anal, fálica. Os na qual prevalece a desvalorização da mãe castrada e o recalque de suas
objetivos (da libido) passivos e ativos caracterizam a forte ambivalência da inclinações sexuais; o complexo de masculinidade, em que a menina recusa
filha com sua mãe. a ausência do pênis, identifica-se com a mãe (ou o pai) fálica; e a feminilidade
A luta reivindicatória em relação à mãe parece passível de ser deslocada, normal, na qual há um deslizamento simbólico (André, 1987). A menina abre
jamais abandonada absolutamente. Possuir um pênis ou ter um filho são mão do objeto materno e busca o pai e a este endereçará seu desejo de ter um
dois desejos que “permanecem fortemente catexizados no inconsciente filho, desejo feminino por excelência. Herdeiro deste primeiro deslizamento, o
[...]” (Freud, 1924a, p. 198). Ter um filho do pai já seria um deslocamento da resultado da frustração repetida pelo pai, de negar-lhe o filho e explicitar-lhe
figura materna, que pode inclusive, manter-se como protótipo na escolha de sua igual castração, permite que a menina, futura mulher, busque um outro,
parceiros em relacionamentos da vida adulta. Quer dizer, o pai não aparece um objeto alcançado por escolha exogâmica e de alteridade.
como figura central do desejo feminino desde o início. Voltemos à Narciso e ponderamos que a possibilidade de a menina
O enigma do feminino está associado à dissolução apenas parcial deslizar com maior ou menor fluidez de um objeto a outro e, enfim, alcançar
do Complexo de Édipo, conforme Silva e Folberg (2008), que recorrem à a alteridade de escolhas legítimas, tem relação direta com a maneira como
André (1998) para abordar o prejuízo na formação do supereu na mulher, as perdas anteriores foram sendo elaboradas, desde as etapas precoces do
na medida em que o autor, consoante com Lacan, questiona a existência, narcisismo. Se a castração é a marca da ferida narcísica de nunca ter tido, esta
na metáfora paterna, de um assujeitamento total da menina. Refere André marca certamente se sobrepõe a perdas constitutivas anteriores. A menina,
que “tudo se passa na realidade como se, para a menina, o pai nunca quando se depara com a ausência do pênis em si, encontra uma evidência
substituísse completamente a mãe, como se fosse sempre esta última desde o início, “ela viu, ela sabe, ela quer: a questão está decidida” (André,
que continuasse a agir através da figura do primeiro” (1998, p.179). Para 1987, p.174).
o autor, a mulher não estaria completamente inscrita na ordem fálica. Tal Como não nos deixa esquecer Lacan (1956), a criança é, mas não é,
ideia corroboraria a hipótese freudiana de que o supereu da mulher seria todo o falo da mãe, já que sempre permanece para a mãe algo que falta. A

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criança amada é aquela revestida do narcisismo materno e com esta criança, O primeiro objeto erótico, a mãe, é, assim, interditada pelo terceiro,
ela se conforma. Assim, a denúncia da falta não desaparece com a chegada tanto no caso do menino como da menina. No entanto, no caso feminino,
do filho desejado. isso se dá no pré-édipo e precisará ser reeditada na relação com o pai, no
édipo propriamente dito.
Silva e Folberg (2008) defendem, a partir de sua leitura do texto lacania-
no, que a mulher segue continuamente na direção de conquistar um objeto Ainda que o Ideal de Eu e o Supereu, o primeiro como herdeiro de Narciso
que lhe garanta a ideia de possuir um pênis. O encontro com este objeto é e o segundo como herdeiro de Édipo sejam constituintes do psiquismo hu-
enganoso, o que coloca em segundo plano a sua relação com o pai. mano, postulamos a seguinte questão: poderia, na constituição do feminino,
prevalecer o Ideal de Eu (o vir a ser) enquanto no masculino, prevaleceria o
Supereu (interdito da realização do desejo incestuoso)? Não podendo ser ainda
Quando se trata de feminino, respondida nesse trabalho, deixamos em aberto a questão, com a proposta de
conclusões são possíveis? seguir a investigação sobre os destinos da sexualidade em relação à instauração
do supereu na subjetividade feminina.
Entendemos que a conflitiva edípica trata-se de uma trama de sexuali-
zação, identificação e dessexualização. As figuras parentais são sexualizadas
pela criança para, depois, serem dessexualizadas e tornarem-se objetos de Referências
identificação. É a partir disso que, tanto o menino como a menina, poderão
sair da endogamia e fazer novas escolhas de objetos sexuais. Accioly, A. et al (2007). A constituição do eu entre a imortalidade de Narciso
e a Mortalidade de Édipo. In Revista da Sociedade de Psicologia do Rio
No caso do Édipo feminino, a menina erotiza a mãe em um primeiro Grande do Sul, 6 (1), 102-111.
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feita, por ela, mulher – a menina a dessexualiza, abre-se o caminho para a Janeiro: Jorge Zahar Ed. pp.170-188
identificação com ela ao mesmo tempo em que se volta para o pai. Essa busca Andre, S. (1987) O tornar-se mulher. In O que quer uma mulher? Rio de
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As figuras parentais, primeiros objetos eróticos das crianças – pressupon- Freud, S. (1895/1996). Projeto para uma Psicologia Científica. In: J. Strachey
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escolhas exogâmicas, nos fica a questão: na relação narciso-édipo, quanto da brasileira das obras completas de Sigmund Freud (Vol. I, pp. 281-287). Rio
prevalência recai para uma escolha do tipo edípica e, quanto prevalecem as de Janeiro: Imago.
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A partir do estudo acerca da travessia edípica feminina, entendemos que Rio de Janeiro: Imago.
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com que o menino abre mão da mãe como objeto de investimento erótico e Freud, S. (1925/1996). Algumas consequências Psíquicas da Diferença
identifica-se com o pai. A marca do masculino se dá nesse corte. Na menina, Anatômica entre os sexos In: J. Strachey (Ed. e Trad.), Edição standard
conforme nos alerta Freud e os autores pós-freudianos, o Complexo de Édipo brasileira das obras completas de Sigmund Freud (Vol. XIX, pp.273-288).
Rio de Janeiro: Imago.
se estende por mais tempo.
Freud, S. (1925[1926]/1996). Inibição, Sintoma e Ansiedade. In: J. Strachey
Entendemos que a saída do Complexo de Édipo implica um corte, uma (Ed. e Trad.), Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund
interdição. O que fica interditado são as figuras parentais como objetos sexuais. Freud (Vol. XX, pp. 81-174). Rio de Janeiro: Imago.
No caso do menino, esse corte se daria de forma marcante e decisiva devido Freud, S.(1931/1996). A Sexualidade Feminina. In: J. Strachey (Ed. e Trad.),
à angústia de castração. A mãe fica interditada e a lei, interiorizada. No caso Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud (Vol. XXI,
pp.231-254). Rio de Janeiro: Imago.
da menina, é por frustração que ela se afasta da mãe castrada, afastamento
Freud, S. (1932/1996). Feminilidade. In: J. Strachey (Ed. e Trad.), Edição
só viabilizado pela presença do terceiro - esse que tornará a mãe um objeto standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud (Vol. XXII,
impossibilitado – na medida em que o pai sinaliza um novo possível destino. pp.113-134). Rio de Janeiro: Imago.
Ou seja, o pai, enquanto terceiro, é um objeto primeiramente virtual na relação Freud, S. (1937/1996). Análise Terminável e Interminável. In: J. Strachey (Ed.
fusionada da mãe com seu filho. A permissão materna combinada com a e Trad.), Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud
disposição paterna de se incluir favorece a triangulação, imprescindível para (Vol. XXIII, pp.291-300). Rio de Janeiro: Imago.
a estruturação psíquica saudável do humano.

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Freud, S. (1938/1996). Esboço de Psicanálise. In: J. Strachey (Ed. e Trad.),
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