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CENTRO DE TEOLOGIA E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE LETRAS

LITERATURA E CULTURA

ENEIDA CUNHA LEAL

O TRABALHO DE LIMA BARRETO E A REALIDADE


BRASILEIRA ATUAL

UM CONTO SOBRE MERITOCRACIA

LUIZA KHOURY

Rio de Janeiro

Novembro de 2020
Afonso Henriques de Lima Barreto, conhecido popularmente apenas por Lima
Barreto, foi um escritor brasileiro que publicou diversos romances, sátiras, contos e
crônicas, além de uma diversificada bibliografia em periódicos. Literariamente
caracterizado como pré-modernista, sua vida e sua obra são referências marcantes da
trajetória de um homem negro em um país racista. Descendente de escravos, teve
diversas experiências com a exclusão social e do meio acadêmico – independentemente
de seu trabalho como jornalista e literário. A importância do autor vai além da
genialidade de sua obra, visto que foi percursor no combate ao preconceito racial e
discriminação social. Embora conhecido como “o patrono dos boêmios”, foi obrigado a
abandonar a formação em Engenharia para cuidar de seu pai – vitimado por uma grave
doença mental.

A vida e a obra de Lima Barreto negam um ideal que, atualmente, é muito


debatido na sociedade brasileira: a existência da meritocracia. Do latim meritum
(mérito) e do grego cracia (poder), o termo foi apresentado pela primeira vez em um
livro de distopia1 para caracterizar a ascensão social advinda do mérito de conquistas
próprias. Segundo o Dicionário Michaelis da Língua Portuguesa, meritocracia é “1.
Forma de administração cujos cargos são conquistados segundo o merecimento, em que
há o predomínio do conhecimento e da competência. 2. Indicação de promoção por
mérito pessoal. ”

Para discutir a falibilidade do termo, cabe a leitura atenta da passagem a seguir


da obra Diário Íntimo, de Lima Barreto:

1905

***

16 de janeiro.

Um livro que pensei. Tibau, filho de uma rapariga que


fugira da casa de seu pai em companhia de um valdevinos, que
1
O título “The rise of meritocracy” foi publicado em 1958 pelo sociólogo britânico Michael Young. Uma
sátira distópica da realidade, a obra traz uma versão de futuro na qual a elite é consolidada com base no
resultado de testes de QI (quociente de inteligência) padronizados. Para alcançar bons resultados nos
testes, era necessário frequentar uma boa escola e, para tal, era preciso fazer parte da elite. Dessa
forma, a meritocracia foi apresentada como instrumento de perpetuação da desigualdade social.
pouco depois a abandona, educa com grande dificuldade esse
filho, que chega a estudar medicina; mas, no terceiro ano, sem o
adubo que era sua mãe, a planta fenece sem arrimo e, por fim, por
recomendação de um colega, vai ser professor de História do
Brasil, num colégio em Botafogo; o diretor, notando que era um
desar para seu estabelecimento ter um professor sem título algum,
arranja-lhe o de major da Guarda Nacional. Eis senão quando o
Major Tibau, que do seu avô pouca notícia tivera, vem a saber
que ele acabava de morrer no Porto, deixando-lhe (e
reconhecendo-o como neto) toda a sua fortuna: dois mil contos.
No curso das suas lições de história, Tibau tinha adquirido um
grande amor do Brasil e acariciara o sonho de uma Sociedade de
Folclore, que se destinava a recolher os cantos, as tradições e a
poesia popular da nossa terra. Cultivar e festejar as datas
familiares com o sainete nacional e os respectivos manjares.
Possuidor dessa fortuna, funda a sociedade, com a qual é
explorado por jornalistas, poetas, estudantes, debicado pelos
ministros e funcionários, a quem se dirigiu para pedir uma
subvenção. Morre numa estalagem, às sete horas da noite,
estalagem a que se recolhera com um preto velho, o Nicolau, que,
fazendo “ganchos”, ia-o fazendo viver; morre, mandando que se
lhe abram a porta e a janela, para ouvir melhor a cantilena da
criançada ao luar.

(Lima Barreto, Diário Íntimo p. 33)

Na passagem apresentada, Lima Barreto discorre acerca de sua ideia para um


novo personagem fictício, ainda que muito vivo na realidade brasileira. Notavelmente
em uma situação desfavorecida, o personagem vive problemas sociais desde sua
ascendência. Sua mãe, que fugiu da casa do pai acompanhada de valdevinos, encontrou-
se grávida e desamparada financeiramente, visto que havia se desligado da família e o
homem que a engravidou fugiu. Ao nascer, portanto, Tibau já se encontrava em uma
posição desprivilegiada decorrente dos problemas financeiros em meio aos quais foi
criado e da estrutura de família não tradicional proporcionada por sua mãe solteira,
considerando que na época, e ainda nos dias atuais, famílias não tradicionais são vítimas
de julgamentos por parte da sociedade.

Mesmo com as dificuldades, Tibau foi capaz de ultrapassar as dificuldades e


ingressar na faculdade de Medicina graças ao apoio que recebeu de sua mãe. Sua
trajetória poderia ser usada como um argumento pró-meritocracia se o rumo de sua vida
não fosse desvirtuado por fatores alheios e que fogem ao controle de qualquer um. No
terceiro ano da graduação de medicina, sua mãe se foi, fazendo com que ele largasse a
faculdade e a possibilidade de se tornar médico. Assim, pode-se observar pela primeira
vez o contexto influenciando no rumo do personagem. Uma vez que foi criado por uma
mãe solteira, sua perda o deixou sem nenhum apoio familiar, de modo que não
conseguiu completar seus estudos.

Lima Barreto o encaminha, então, para a ocupação de professor de História do


Brasil. No entanto, independentemente de ser ou não um bom profissional – único fator
que deveria ser levado em conta para medir mérito – Tibau fora demitido pelo diretor
por motivos elitistas: não queria ter um professor sem títulos trabalhando em sua escola.
O título, no entanto, era impossível pelas adversidades que o impediram de finalizar a
formação em medicina. Assim, novamente por fatores alheios ao seu controle, o
protagonista perdeu uma oportunidade.

O avô de Tibau, no entanto, não havia mais sido mencionado desde a fuga de sua
mãe com os valdevinos. Em outra situação proposta pelo destino, o personagem se
descobre herdeiro da fortuna de dois mil contos de seu avô, que havia reconhecido
Tibau como neto. A condição de herdeiro – ao contrário do que se pode tentar afirmar
de posições, empregos ou títulos – independe de mérito. É impossível exercer qualquer
tipo de influência sob a família na qual se nasce ou na condição financeira de seus
ascendentes. Entretanto, foi graças ao recebimento da herança que o protagonista pôde
exercer o papel de professor e fundar uma sociedade dedicada aos estudos acadêmicos.
Assim como Lima Barreto, Tibau mostrou que não se trata de meritocracia. O contexto
social e cultural em que uma pessoa nasce, ainda que não determine seu futuro, exerce
enorme influência sob as circunstâncias em que aquela pessoa viverá.

Atualmente, na sociedade brasileira do século XXI, uma série de fatores da


essência humana – ou seja, tudo aquilo que não pode ser modificado de acordo com a
escolha – têm sido determinantes acerca da posição social que o indivíduo ocupa e das
dificuldades que enfrenta em seu caminho. Questões de gênero, de orientação sexual e,
como trazidas na obra de Lima Barreto desde o século passado, questões raciais e
sociais vem sendo o palco para definir alguns dos percalços que serão encontrados ao
longo da vivência de alguém. Ainda que muito distantes de uma solução para os
problemas de desigualdade social, repertórios como o de Lima Barreto auxiliam a
elucidar a solução para a problemática social que atinge o mundo desde sua formação.

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