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Seminário Missionário Arquidiocesano

“Redemptoris Mater” de Brasília


 

 
 
Esquemas de filosofia zubiriana
 
Filosofia do Homem
 
(Apostilas)

 
 

 
Pe. Francisco Javier Sotil Baylos
 

2003
 

FORMA DE REALIDADE HUMANA (I):

O HOMEM É “ANIMAL DE REALIDADES”


 
 
 
 
 
 

A.  O homem é um animal; enquanto tal, a sua essência está constituída pela função de
“sentir” que consiste “num processo unitário de três momentos.
 
 
 
 

1.     Momento apreensor: “suscitação”

a.    O processo senciente animal inicia no momento em que o sistema de receptores sensitivos (=sentidos) do animal é
“suscitado” por algo, seja de caráter exógeno seja de caráter endógeno.

b.   Este momento de suscitação consiste formalmente em que o animal “apreende algo em impressão”.

c.    Apreender algo em impressão é a unidade intrínseca de três momentos.

=    Afecção

#   Que o animal apreende algo em impressão consiste, em primeiro lugar, em “afecção”, quer dizer, em que o sistema
de receptores sensitivos do animal é “afetado” por algo: cores, sons, cheiros, dores, temperatura interna, etc., afetam o
sistema de receptores sensitivos do animal.

#   Daí que, em virtude deste momento de afecção, digamos que o animal “padece” uma impressão
(por isso os gregos chamavam de pathémata as coisas sentidas).

=    Alteridade

#   Que o animal apreende algo em impressão consiste, em segundo lugar, em “alteridade”, quer dizer, em que aquilo
que afeta o animal lhe “está presente como algo “outro” (autônomo ou independente).

#   Em virtude deste momento de alteridade, o animal apreende aquilo que o afeta como “outro” (distinto) que ele
mesmo e que outras coisas que o afetam.

#   Este momento de alteridade tem dois momentos diversos.

+   Conteúdo de alteridade

-    Que algo está presente como outro na apreensão impressiva do animal consiste, em primeiro lugar, em que esse algo
“outro” está presente com um “conteúdo” próprio: cor, dureza, temperatura, etc.

-    Este é o único momento da alteridade do apreendido em impressão que teve em conta a filosofia ocidental: as
chamadas de “qualidades sensíveis” do sentido pelo animal.
+   Formalidade de alteridade

-    Esse conteúdo “outro”, apreendido em impressão pelo animal, “fica formalmente enquanto outro” na impressão.

-    A formalidade de alteridade, portanto, é a formalidade de independência ou autonomia a respeito do animal com a
qual fica presente o conteúdo do sentido na sua impressão.

-    A filosofia ocidental desconhece completamente este momento da formalidade de alteridade do sentido em
impressão; assim caiu em dois erros antropológicos nefastos:

¬   O divórcio sentidos/inteligência no homem.

¬   A logificação e racionalização da inteligência humana, quer dizer, a identificação sem mais da inteligência humana
com o logos (conceito e juízo) e com a razão.

-    No entanto, é fundamental este momento da formalidade de alteridade das coisas apreendidas impressivamente pelo
animal.

¬   Justamente neste momento da formalidade de alteridade se abre a diferença essencial entre o mero animal e o animal
humano.

¬   Precisamente neste momento de formalidade de alteridade radica o modo primário e formal da inteligência humana,
como vamos ver.

-    No caso dos animais não humanos a formalidade de alteridade é formalidade de “estimulidade”.

¬   Que o mero animal apreende impressivamente as coisas como formalmente outras
consiste em que as apreende impressivamente como meros estímulos, quer dizer, como
meramente suscitantes, como meros signo de resposta.

¬   Para o mero animal, todas as notas da coisa apreendida impressivamente pertencem só
ao caráter suscitante dela.

¬   Por exemplo, o mero animal apreende impressivamente o calor apenas como algo
esquentante do qual tem que aproximar-se ou fugir, etc.

=    Força de imposição

#   Que o animal apreende algo em impressão consiste, em terceiro lugar, em que aquilo que lhe está presente como
outro ao animal na afecção “impõe-se-lhe com força”, a qual pode ser muito variável.

#   Força de imposição não equivale a intensidade da afecção: uma afecção muito intensa pode ter mínima força de
imposição, e vice-versa.

+   Uma afecção muito intensa pode ter mínima força de imposição (para quem mora perto dum aeroporto, o estrondo
dum avião passando tem seguramente pouca força de imposição...).

+   Uma afecção pouco intensa pode ter uma grande força de imposição (num país agitado por terremotos, um leve e
surdo rumor terá seguramente uma grande força de imposição...).

d.   A formalidade de alteridade constitui o âmbito de todo o processo senciente animal.

=    A formalidade de alteridade, antes de tudo, é formalidade da apreensão impressiva, isto é, do momento de
suscitação, como acabamos de dizer.

=    Mas, ademais, é aquilo que constitui o âmbito no qual se desenvolve todo o processo senciente animal; por isso
envolve constitutivamente também os outros dois momentos do processo senciente, como vamos ver.

 
 
2.     Momento tônico: “afeto”

a.    A suscitação, a apreensão impressiva de algo, afeta (modifica) o estado tônico vital em que o animal se encontra.

b.   Atenção a não confundir afecção com afeto.

=    Na afecção, como temos dito, é afetado o “sistema de receptores sensitivos (=sentidos)” do animal.

=    No afeto, é afetado “o estado tônico vital” do animal.

c.    No caso dos animais não humanos, que apreendem impressivamente as coisas meramente como estímulos, esses
estímulos afetam (modificam) só estimulicamente o estado tônico vital do animal; o seu estado tônico vital resulta
afetado apenas estimulicamente.

d.   Modificação tônica ou afeto consiste em sentir estados tais como ira, alegria, surpresa, medo, tranqüilidade,
insegurança, etc.

 
 

3.     Momento responsivo: “tendência”

a.    A suscitação, seguida do afeto ou modificação do estado tônico vital do animal, desencadeia nele a tendência ou
impulso, que consiste na ação de resposta do animal.

b.   Esta ação de resposta do animal vai dirigida a conseguir um novo estado tônico vital estimulicamente constituído
(meramente estimúlico no caso do animal não humano).

c.    A resposta pode ser muito diversa; pode consistir inclusive na ação positiva de não fazer nada.

 
 
 
 

B.  O homem não é um mero animal, mas um animal “de realidades”; o sentir humano,
com efeito, não é puro sentir; os três momentos do processo senciente humano são:
inteligência-senciente, sentimento-afetante e vontade-tendente.
 
 
 

1.     Inteligência senciente

a.    Aqui faremos só um resumo já que a Inteligência Senciente é estudada demoradamente na Filosofia da Intelecção
Humana.

b.   A apreensão senciente humana consiste essencialmente em apreender realidade em impressão.

=    A apreensão impressiva do mero animal e do animal humano são essencialmente diferentes.

#   Não enquanto apreensão impressiva, porque tanto o mero animal quanto o animal humano apreendem as coisas em
impressão.
#   Não no que diz respeito ao conteúdo de alteridade do apreendido impressivamente, porque tanto o mero animal
quanto o animal humano apreendem impressivamente calor, som, peso, etc.

#   Mas sim enquanto à formalidade de alteridade do apreendido impressivamente.

+   O mero animal apreende impressivamente as coisas em formalidade de estimulidade: as coisas lhe estão presentes na
apreensão impressiva como meros estímulos.

+   O animal humano apreende impressivamente as coisas em formalidade de realidade: as coisas lhe estão presentes na
apreensão impressiva como realidades.

=    Realidade

#   Realidade é a formalidade de alteridade com a qual as coisas lhe estão presentes ao homem na sua impressão, quer
dizer, não como meramente estimulantes (estimulidade), mas como sendo “em próprio”, “de seu” (=realidade), aquilo
que são.

#   Por exemplo:

+   O calor que apreende impressivamente o cachorro é mera estimulidade: todos os caracteres térmicos pertencem ao
calor só enquanto estímulo, só enquanto suscitante duma resposta; quer dizer, os caracteres térmicos pertencem ao calor
meramente enquanto suscitação esquentante que afeta o estado tônico vital e provoca uma resposta.

+   O calor que apreende impressivamente o homem é realidade: todos os caracteres térmicos pertencem ao calor
enquanto realidade; quer dizer, os caracteres térmicos pertencem “de seu” (em próprio) ao calor e não só enquanto
suscitação esquentante que afeta o estado tônico vital e provoca uma resposta.

#   Habitude de realidade e atualidade da realidade

+   O homem tem esse modo de haver-se com as coisas (=habitude) que consiste em enfrentar-se com elas como
realidades; o homem tem “habitude de realidade”.

+   A habitude de realidade do homem está fundada em que as coisas lhe estão presentes (=atualidade) ao homem como
reais.

+   Esse estar presentes as coisas ao homem como reais é a “atualidade da realidade” no homem.

#   Realidade não é “ser”.

+   O ser é sempre e só ulterior à realidade.

+   Se dizemos de algo que “é real”, isso se deve à estrutura de nossas línguas, completamente viciadas pela entificação
da realidade própria do pensamento ocidental.

+   Mas não há “ser real” e sim “realidade que ulteriormente é”, quer dizer, realidade que ulteriormente está presente
(atualidade) no mundo (na unidade respectiva de todo o real enquanto real).

#   Realidade não é aquilo que as coisas são em si mesmas “além da apreensão”.

+   A filosofia ocidental, de modos diversos, pensa mais ou menos assim:

-    Os sentidos captam o conteúdo sensível (qualidades sensíveis) das coisas; nisso consiste a apreensão sensível.

-    “Depois”, a partir dos dados sensíveis recebidos da apreensão sensível, a razão “deduz” o que as coisas são no
mundo além da apreensão sensível.

-    Pois bem, a realidade das coisas é justamente isso que as coisas são “em si mesmas” no mundo “além” e
independentemente da apreensão sensível delas.

+   Todas essas afirmações são radicalmente falsas.


-    O homem, num único ato, apreende impressivamente as coisas como conteúdos-reais.

¬   Realidade é a formalidade “de seu” (em próprio) das coisas que estão presentes na apreensão impressiva humana.

¬   Realidade não é algo “inferido” (deduzido pela razão), mas algo imediatamente apreendido pelo homem na
apreensão impressiva.

†    A razão humana “chega tarde” neste assunto como em tantos outros...

†    Quando a razão humana chega, a apreensão impressiva humana já apreendeu a formalidade de realidade das coisas
que estão presentes nela.

-    Realidade não é aquilo que as coisas são “em si mesmas” no mundo “além” da apreensão impressiva, mas aquilo
que é “de seu” seja no mundo seja na apreensão impressiva.

¬   Não há dois âmbitos (âmbito da apreensão impressiva e âmbito da realidade), mas dois “âmbitos de realidade”
(âmbito da realidade na apreensão impressiva e âmbito da realidade no mundo).

¬   Jamais há salto do apreendido impressivamente ao real, mas uma e única formalidade de realidade na sua dupla face
de apreendida impressivamente e de em si mesma.

¬   A ciência moderna mostra claramente que as qualidades sensíveis das coisas presentes na apreensão impressiva não
coincidem com aquilo que as coisas são no mundo.

†    Pensar hoje, por exemplo, que as coisas no mundo sejam coloridas é uma autêntica ingenuidade.

†    Mas muito mais gravemente ingênuos são os sujetivistas modernos que pensam, por isso, que as cores, por exemplo,
não sejam realidade mas apenas impressões sujetivas.

†    Tão real (tão “de seu”) é a cor verde da folha que estou vendo, quanto é real (quanto é “de seu”) a onda de fótons
que lança a folha!

=    A impressão de realidade

#   O homem tem uns receptores especiais que sentem o presente na impressão com alteridade de realidade.

#   A impressão de realidade não é uma segunda impressão acrescentada à impressão do conteúdo, mas tão só o
momento de formalidade de alteridade duma impressão unitária e única: a impressão de conteúdo-real.

c.    Essência da intelecção humana

=    Inteligir não é primariamente e radicalmente conceber, julgar, conhecer.

#   Certamente a inteligência concebe, julga e conhece.

#   Porém, tanto conceber e julgar (“logos”) quanto conhecer (“razão”) não são o inteligir enquanto tal, mas só as duas
modalizações ulteriores do modo primário e radical do inteligir.

=    Inteligir consiste primariamente e radicalmente em apreender realidade, isto é, em apreender as coisas como sendo
“de seu” aquilo que são, quer dizer, em apreender que os caracteres duma coisa pertencem “em próprio” a essa coisa
mesma.

d.   Sentir intelectivo ou inteligência senciente

=    A impressão de realidade não é a unidade de dois atos, mas um só ato com dois momentos.

#   Enquanto apreender em impressão, a impressão de realidade é um ato de sentir.

#   Enquanto que o sencientemente apreendido é formalmente realidade, a impressão de realidade é um ato de inteligir.
=    A impressão de realidade, portanto, é indistintamente sentir intelectivo ou intelecção senciente.

#   Não se trata de que a inteligência esteja vertida ao sentido (isto constituiria a inteligência humana como inteligência
sensível).

#   Trata-se duma unidade estrutural sentir-inteligir pela qual a inteligência sente a realidade (isto constitui a inteligência
humana como inteligência senciente).

=    Sentir realidade é o modo primário e radical do inteligir.

=    Isto não constitui um sensualismo, mas sim um sensismo.

#   O sensualismo pretende reduzir todo o inteligido a conteúdos de impressão; isso é absurdo.

#   O sensismo consiste em afirmar que realidade é sempre o “de seu”, mas que a forma primária e radical de apreender
o “de seu” é o sentir intelectivo.

 
 

2.     Sentimento afetante

a.    Nos dois capítulos seguintes trataremos demoradamente sobre o sentimento afetante; agora só adiantamos algumas
coisas.

b.   O afeto ou modificação do estado tônico vital do mero animal e do animal humano são “essencialmente” diferentes.

=    Não enquanto afeto: ao apreender algo em impressão, tanto o mero animal quanto o animal humano são afetados
(modificados) no seu estado tônico vital por esse algo.

=    Não a respeito do conteúdo do afeto: tanto o mero animal quanto o animal humano sentem tristeza, alegria, raiva,
etc.

=    Mas sim enquanto à formalidade do afeto sentido.

#   O conteúdo do afeto ou modificação do seu estado tônico vital que sente o mero animal tem formalidade de
estimulidade: o mero animal sente-se estimulicamente afetado por meros estímulos.

#   O conteúdo do afeto ou modificação do seu estado tônico vital que sente o animal humano tem formalidade de
realidade: o homem sente-se realmente afetado por realidades.

c.    Em virtude disso, o afeto ou modificação do estado tônico vital do homem pelo apreendido em impressão não é
puro afeto, mas “sentimento afetante”.

=    O afeto do mero animal é “puro afeto”: o estado tônico vital, o modo de estar tônico-vitalmente, do mero animal é
meramente estimúlico: consiste meramente na modificação do seu estado tônico vital.

=    O afeto do homem é “sentimento-afetante” ou “afeto sentimental”: o estado tônico vital, o modo de estar tônico-
vitalmente, do homem é modo de estar na realidade:

#   É uma modificação do estado tônico vital do homem (momento afetante).

#   Mas essa modificação do seu estado tônico vital é formalmente um modo de estar o homem na realidade, de sentir-se
na realidade (momento de sentimento).

d.   Exemplo

=    Um cachorro faminto sente alegria estimúlica (puro afeto) ao apreender estimulicamente a comida estimúlica que
lhe servem.
=    Um homem faminto sente alegria real (sentimento afetante) ao apreender realmente a comida real que lhe servem.

e.    Portanto, o afeto humano (sentimento afetante) é um estado único constituído unitariamente por dois momentos
essenciais:

=    Momento afetante: por ser “animal” de realidades, o homem tem afetos tônicos (modificações do seu estado tônico
vital).

=    Momento de sentimento: por ser animal “de realidades”, os afetos tônicos que o homem tem são afetos tônicos “da
realidade” considerada como tonificante, quer dizer, como modificante realmente do estado tônico vital do homem.

f.    Em definitiva, o sentimento-afetante humano é a modificação do estado tônico vital do homem (afeto) enquanto
realidade pela realidade (sentimento).

 
 

3.     Vontade tendente

a.    Aqui fazemos só um resumo já que a vontade tendente se estuda demoradamente no Curso de Filosofia do Moral I.

b.   A apreensão de algo real, ao modificar realmente o estado tônico vital do homem enquanto realidade, lança-o a
responder com uma ação.

c.    Esta resposta do homem é um tender já não só estimulicamente a uma nova situação estimúlica (tendência do mero
animal), mas a situar-se realmente de outra maneira na realidade (vontade tendente do animal humano).

d.   Para tender volentemente, o homem tem que optar.

e.    Assim, a tendência ou apetite do mero animal cede a passagem à volição tendente que tem essencialmente um
momento de realidade: o homem quer um modo de configurar-se na realidade.

 
 
 
 

C.  Conclusão
 
 
 

1.     A unidade do puro-sentir animal é processo de estimulação (apreensão senciente do estimúlico, afeto do estimúlico
e tendência estimúlica).

 
 

2.     A unidade do sentir humano é processo de realização (apreensão intelectiva-senciente do real, sentimento afetante
do real e volição tendente no real).

a.    Esta unidade do animal e do humano no homem não é uma justaposição, como se o humano estivesse acrescentado
ou apoiado no animal, mas uma unidade intrínseca e formal: o animal é constitutivo do humano:

=    A inteligência humana é em si mesma formalmente e constitutivamente senciente.

=    O sentimento humano é em si mesmo formalmente e constitutivamente afetante.


=    A vontade humana é em si mesma formalmente e constitutivamente tendente.

b.   Portanto, o homem se enfrenta com a realidade animalmente: o homem enquanto tal é em si mesmo formalmente e
constitutivamente um animal de realidades.
II

O SENTIMENTO-AFETANTE DO HOMEM
 
 
 
 
 
 

A.  Crítica da concepção do sentimento na filosofia ocidental


 
 
 
 

1.     Concepção filosófica do sentimento como “modo de apetite” (filosofia clássica e moderna até o século  XVIII).

a.    Exposição

=    O termo “sentimento”, como conceito filosófico técnico, só entrou na filosofia ocidental no século XVIII.

=    Até então, acerca daquilo que depois chamou-se tecnicamente de “sentimento”, a filosofia ocidental dizia em síntese
o seguinte.

#   O homem só tem duas faculdades psíquicas: o nous (inteligência) e a órexis (apetite ou tendência ou desejo).

#   O apetite tem modalidades ou modos diferentes (que são aquilo que depois chamou-se tecnicamente de sentimento).

+   Apetite é tender a algo que está ordenado ao termo desse apetite (S. TOMÁS DE AQUINO).

+   O objeto do apetite são as coisas reais e efetivas.

-    Entende-se por coisas reais aquelas que se contrapõem às coisas intencionais e às coisas imaginárias.

-    Não se apetece uma coisa imaginária ou intencional (por exemplo, um ente de razão, um projeto vago, etc.).

+   O apetite tem duas dimensões:

-    Vai “para” aquilo que é bom (=atração).

-    Vai “contra” aquilo que é mau (=repugnância).

+   O apetite humano tem dois estratos essencialmente distintos e incomunicados (ainda que extrinsecamente podem se
influir mutuamente).

-    Apetites sensíveis ou inferiores: são os apetites mais ou menos animais que tem o homem: são as paixões.

-    Apetite racional ou superior: é a vontade.

+   O apetite tem modalidades ou modos diferentes (que são aquilo que depois chamou-se tecnicamente de
sentimentos); estes modos são de duas classes:

-    Apetites concupiscíveis

¬   São os apetites que tendem “sem mais” para o objeto proporcionado a eles.
¬   Dão lugar a dois apetites fundamentais: amor e ódio.

¬   Junto a estes estão a alegria e a tristeza (objeto presente ou ausente), o desejo e a rejeição.

-    Apetites irascíveis

¬   São os apetites que tem dificuldade em alcançar o seu objeto.

¬   São a esperança e a desesperação, a audácia e o temor, e a ira (que não tem contrário).

b.   Crítica: tudo isso é falso.

=    O caráter de “real” do objeto ao qual presumivelmente tende o apetite não consiste meramente em ser “não-
imaginário”, “não-intencional”.

#   Realidade não são as coisas além da apreensão humana.

#   Realidade são as coisas, além ou aquém da apreensão humana, que são “de seu” aquilo que são.

=    As duas presumíveis classes de apetite (sensível e racional) não são dois apetites, mas dois momentos duma única
faculdade humana: a vontade-tendente (ver Curso de Filosofia do Moral I).

=    Os sentimentos não são formalmente modos de apetite.

#   Certamente os apetites podem ser motivo de sentimentos.

#   Mas isso não quer dizer que os sentimentos consistam formalmente em modos de apetite; há estados de ânimo que
não têm nada a ver com motivos apetitivos.

+   Alguém pode estar triste só porque é melancólico (motivo fisiológico).

+   Alguém pode estar alegre porque tomou substâncias euforizantes (motivo físico).

 
 

2.     Concepção filosófica do sentimento como “estado subjetivo íntimo” (filosofia moderna a partir do século XVIII).

a.    Exposição

=    Nos séculos XVII-XVIII começa a se considerar que o homem não tem só inteligência e vontade, mas também um
terceiro tipo de funções ou fenômenos que são os sentimentos.

=    Assim SCHULZE, MENDELSOHN, TETENS e sobretudo KANT (Crítica do Juízo).

=    Os sentimentos são formalmente estados subjetivos íntimos.

#   São estados, quer dizer, modos de estar o homem, modos de sentir-se o homem.

#   São subjetivos, a diferença da inteligência e da vontade, as quais buscam algo objetivo das coisas.

+   A inteligência busca conhecer aquilo que são as coisas.

+   A vontade quer decidir sobre a bondade das coisas.

#   São íntimos: pertencem à ordem estrita da intimidade humana.

b.   Crítica: tudo isto é falso.


=    Certamente os sentimentos são estados, quer dizer, modos de estar, de sentir-se o homem.

=    Certamente os sentimentos são íntimos, mas não segundo a concepção moderna de intimidade.

#   Intimidade não é formalmente, em contra daquilo que pensa a filosofia moderna, uma espécie de núcleo central, de
miolo oculto da pessoa ao qual ninguém chega.

#   Intima é toda nota da minha pessoa enquanto “minha”: por exemplo, a “minha” cor do “meu” rosto são
perfeitamente íntimos.

#   Íntimo não equivale para nada a oculto.

+   Há coisas íntimas que podem ser ocultas, evidentemente.

+   No entanto, há coisas ocultas que são internas, mas não íntimas.

=    Certamente os sentimentos são subjetuais; mas não são subjetivos.

#   Subjetual é aquilo que é próprio dum sujeito; é óbvio que os sentimentos, enquanto modos de sentir-se o sujeito, são
subjetuais.

#   Subjetivo é aquilo que “só” depende das disposições próprias do sujeito, quer dizer, que não tem nada a ver com o
resto dos fenômenos; é óbvio que os sentimentos não são subjetivos, como vamos ver.

 
 
 
 

B.  O sentimento é modo de estar realmente na realidade, é atemperação à realidade, é


fruição da realidade.
 
 
 

1.     Aproximação genética ao sentimento humano

a.    O afeto ou modificação do estado tônico vital do mero animal e do animal humano são “essencialmente” diferentes.

=    Não enquanto afeto: ao apreender algo em impressão, tanto o mero animal como o animal humano são afetados
(modificados) no seu estado tônico vital por esse algo.

=    Não enquanto ao conteúdo do afeto: tanto o mero animal como o animal humano sentem tristeza, alegria, raiva, etc.

=    Mas sim enquanto à formalidade do afeto sentido.

#   O conteúdo do afeto ou modificação do seu estado tônico vital que sente o mero animal tem formalidade de
estimulidade: sente-se estimulicamente afetado por meros estímulos.

#   O conteúdo do afeto ou modificação do seu estado tônico vital que sente o animal humano tem formalidade de
realidade: sente-se realmente afetado por realidades.

b.   Em virtude disto, o afeto ou modificação do estado tônico vital do homem pelo apreendido em impressão não é puro
afeto, mas “sentimento afetante”.

=    O afeto do mero animal é “puro afeto”: o estado (o modo de estar) do mero animal é meramente estimúlico: consiste
meramente na modificação do seu estado tônico vital.
=    O afeto do homem é “sentimento-afetante” ou “afeto sentimental”: o estado (o modo de estar) do homem é
formalmente real:

#   É uma modificação do estado tônico vital do homem (momento afetante).

#   Mas essa modificação do seu estado tônico vital é formalmente um modo de estar o homem na realidade, de sentir-se
na realidade (momento de sentimento).

c.    Por exemplo:

=    Um cachorro faminto sente alegria estimúlica (puro afeto) ao apreender estimulicamente a comida estimúlica que
lhe servem.

=    Um homem faminto sente alegria real (sentimento afetante) ao apreender realmente a comida real que lhe servem.

d.   Por isso é falsa a concepção clássica dos apetites.

=    1º: porque algo é real não porque não seja imaginário ou ente de razão, etc., mas porque não é formalmente
estimúlico e sim formalmente real, quer dizer, porque é formalmente “de seu” aquilo que é.

=    2º: porque no homem não há por um lado apetite sensível e por outro apetite racional, mas um único modo de estar
que é unitariamente “sentimento-afetante”.

e.    O afeto humano (sentimento afetante) é um estado único constituído unitariamente por dois momentos essenciais:

=    Momento afetante: por ser “animal” de realidades, o homem tem afetos tônicos (modificações do seu estado tônico
vital).

=    Momento de sentimento: por ser animal “de realidades”, os afetos tônicos que o homem tem são afetos tônicos “da
realidade” considerada como tonificante, quer dizer, como modificante realmente do estado tônico vital do homem.

f.    Em perspectiva genética, portanto, o sentimento-afetante humano é a modificação do estado tônico vital do homem
(afeto) enquanto realidade pela realidade (sentimento).

 
 

2.     Aproximação formal ao sentimento humano

a.    O sentimento é formalmente “atemperação à realidade”.

=    Tanto as coisas que afetam o estado tônico vital do homem como o homem mesmo que é afetado no seu estado
tônico vital por elas são formalmente “reais”.

=    Em virtude desse momento de realidade, todo afeto humano é formalmente sentimento afetante, quer dizer, afeto de
realidade pela realidade.

=    Se não houvesse esse momento de realidade, o homem não teria sentimento algum, mas só puros afetos, como o
mero animal.

=    Isso quer dizer que o sentimento humano é um estado tônico da realidade humana a respeito da realidade; vamos
expressá-lo com o termo “atemperação”.

#   Empregamos o termo “atemperação” como ação do verbo “atemperar, atemperar-se” no sentido de acomodar-se algo
a algo.

#   Não confundir com temperamento, moderação nas ações, comedimento nas reações, etc.

=    Pois bem:


#   A essência formal do sentimento humano é “atemperação à realidade”.

#   O sentimento humano é formalmente o modo de estar o homem “atemperado” tonicamente enquanto realidade à
realidade.

b.   Por conseguinte, os sentimentos, em contra daquilo que pensa a filosofia moderna, não são nunca atos subjetivos,
mas atos “subjetuais de realidade”.

=    Para que os sentimentos fossem subjetivos, seria necessário que os sentimentos dependessem exclusivamente das
disposições próprias do sujeito.

=    Pois bem, do dito se desprende que isso é completamente impossível; afirmar o contrário é simplesmente grotesco.

=    O que acontece é que a filosofia moderna não tem em conta que em todo ato de sentimento (o mesmo que em toda
intelecção e volição) há dois momentos.

#   O ato de sentimento enquanto ato “meu” (momento subjetual do ato de sentimento).

+   É o ato de sentimento “enquanto executado por mim”.

+   Os meus sentimentos enquanto “meus” são atos executados por mim, são subjetuais.

+   Segundo este momento, também  a minha intelecção lógica mais elementar, como pode ser o juízo: “Chove!”,
enquanto minha é um ato executado por mim, é subjetual.

#   O ato de sentimento “enquanto apresentante de realidade” (momento de realidade do ato de sentimento).

+   Os meus atos de sentimento, como as minhas intelecções e volições, podem ser muito diferentes no seu modo e no
seu conteúdo.

-    Posso apreender algo, conceituá-lo, afirmar aquilo que é, dar razão daquilo que é, etc. (intelecções).

-    Posso propor-me algo, discuti-lo comigo mesmo, arrepender-me de tê-lo feito, etc. (volições).

-    Posso estar triste, admirado, alegre, iracundo, deprimido, tranqüilo, assustado, impaciente, etc. (sentimentos).

+   Mas todos esses atos meus sempre envolvem formalmente uma “realidade” que de algum modo me “está presente”.

+   Assim, no exemplo anterior, no meu ato intelectivo lógico: “Chove!”, me está presente uma realidade: a chuva que é
“de seu” chuva, não chuva “de mim”.

+   Sem este momento formal duma “realidade que me está presente” também não haveria formalmente jamais nem
intelecção nem volição nem sentimento como atos meus.

+   Assim pois, o sentimento humano é atemperação do homem à realidade, a uma realidade que indubitavelmente é
realidade “de” o sentimento, que está presente nele.

-    Efetivamente, o que indica formalmente este “de”?

¬   Não indica uma mera conexão causal (como afirma o racionalismo), quer dizer, não se trata de que a realidade seja
“causa” dos sentimentos.

¬   Não indica uma mera referência intencional (como afirma HUSSERL), quer dizer, não se trata de que a realidade
seja “mero correlato” dos sentimentos.

¬   Mas indica justamente o estar presente a realidade no sentimento:

†    O sentimento é formalmente sentimento-de-a-realidade.

†    A realidade é formalmente realidade-de-o-sentimento.


-    A realidade ganha um caráter distinto segundo esteja presente na inteligência, na vontade ou no sentimento.

¬   A realidade é realidade-de-a-inteligência enquanto que a inteligência é apreensão da realidade que está presente na
inteligência.

¬   A realidade é realidade-de-a-vontade enquanto que a vontade é determinação na realidade que está presente na
vontade.

¬   A realidade é realidade-de-o-sentimento enquanto que o sentimento é atemperação à realidade que está presente no
sentimento.

+   Portanto, que a realidade é um momento do sentimento não consiste formalmente só em que os atos ou estados do
sentimento estejam suscitados pela realidade, mas em que é a realidade mesma, estando presente no sentimento, aquela
que é “temperante”: triste, alegre, amável, antipática, odiosa, etc.

+   Uma presumível objeção.

-    Alguém objetará: isto não é assim.

¬   Uma mesma realidade é triste para um e alegre para outro.

¬   Por conseguinte, tanto a tristeza do primeiro como a alegria do segundo são subjetivas e não reais.

-    Isso é completamente quimérico.

¬   Certamente é indubitável que uma mesma realidade é triste para um e alegre para outro.

¬   Mas onde está dito que algo não é realidade se não é o mesmo em todos?; isso não é assim para nada.

¬   Efetivamente:

†    A mesma realidade é tão da tristeza do primeiro quanto da alegria do segundo!

†    Por isso, tão real (tão “de seu”) é a tristeza do primeiro quanto a alegria do segundo!

c.    A essência formal do sentimento (atemperação à realidade) é ser “fruição” (gosto e desgosto) da realidade.

=    Que a realidade seja “de” o sentimento consiste formalmente na “atualidade” (=estar presente) da realidade como
temperante no sentimento.

#   A habitude de realidade que tem o homem é uma única estrutura humana que concerne unitariamente à sua
inteligência, ao seu sentimento e à sua vontade.

#   Por isso as coisas estão presentes como realidade tanto na inteligência como no sentimento como na vontade do
homem.

+   Trata-se sempre da atualidade da realidade mesma das cosas; a atualidade é sempre atualidade da realidade.

+   Mas essa mesma atualidade da realidade, e portanto a realidade que é atual, fica “modalizada” segundo aquilo em
que se atualiza.

-    A realidade se atualiza na inteligência como realidade apreensível, como realidade “verdadeira” (“verdade”).

-    A realidade se atualiza na vontade como realidade determinável, como realidade “boa” (“bondade”).

-    A realidade se atualiza no sentimento como realidade temperante, como realidade “bela” (“beleza”), como veremos
no capítulo seguinte.

=    O sentimento é estar na atualidade temperante da realidade.


#   A realidade se atualiza, está presente, no sentimento como realidade temperante.

#   No mesmo estar (atualidade) da realidade como temperante no sentimento, o sentimento está (co-atualidade) na
realidade.

#   Portanto, o sentimento é formalmente “estar na atualidade temperante da realidade”, “estar na realidade enquanto
temperante”.

=    A essência formal do sentimento é ser “fruição” da realidade.

#   Desde o ponto de vista dos sentimentos enquanto atos que o homem executa (momento subjetual do sentimento), os
sentimentos são muitos e muito diversos.

#   Mas desde o ponto de vista da realidade enquanto realidade que se atualiza no sentimento (momento de realidade do
sentimento) só há um sentimento: “fruição” da realidade.

#   A fruição da realidade, na qual consiste essencialmente todo sentimento, pode ser fruição positiva (gosto) ou fruição
negativa (desgosto).

#   Gosto e desgosto são só dois momentos, positivo e negativo, do mesmo: da essência de todo sentimento humano, da
fruição da realidade.

+   Efetivamente, gosto e desgosto não são dois sentimentos a mais na enorme lista dos sentimentos humanos: tristeza,
alegria, admiração, desilusão, entusiasmo, gosto, desgosto...

+   Gosto e desgosto são os dois únicos momentos possíveis de “todo” sentimento humano, da fruição da realidade que
está presente no sentimento.

-    Gosto e desgosto podem ser momentos do sentimento de tristeza, por exemplo.

¬   Normalmente o homem sente tristeza desgostosamente.

¬   Poder-se-ia pensar, então, que no sentimento de tristeza não pode haver momento de gosto.

¬   No entanto, aí estão, para provar o contrário, tantas pessoas que afundam na sua própria tristeza gostosamente
(fruindo positivamente)...

-    Gosto e desgosto podem ser momentos do sentimento de alegria, por exemplo.

¬   Normalmente o homem sente alegria gostosamente.

¬   Poder-se-ia pensar, então, que no sentimento de alegria não pode haver momento de desgosto; não é assim:

†    Há alegrias que não têm nada de gosto.

†    O homem, com efeito, pode sentir estados sumamente alegres que lhe produzem, no entanto, um íntimo desgosto...

d.   Em conclusão: o sentimento humano é “fruição da realidade”, desfrutar (gostosamente ou desgostosamente) o


homem a realidade atual nele enquanto temperante.

=    O homem não só apreende a realidade (=inteligência) e se determina na realidade (=vontade).

=    O homem também frui da realidade, desfruta a realidade (=sentimento).


III

ESTÉTICA OU BELEZA DO REAL


 
 
 
 
 
 

A.  O momento estético fundante de todo sentimento


 
 
 

1.     A realidade que está presente como temperante no sentimento é formalmente “tempérie”.

a.    O que é realidade como “tempérie”.

=    Tempérie, na linguagem comum, é o estado da atmosfera segundo os diversos graus de calor ou frio, secura ou
umidade, etc.

=    Filosoficamente é necessário aplicar este significado do termo “tempérie” ao âmbito inteiro da realidade em todas as
suas dimensões.

=    Dizemos, então, que a realidade atualizada (que está presente) no sentimento é “tempérie”.

=    Efetivamente, dizer que, mediante o sentimento, o homem está atemperado à realidade, que está na realidade
enquanto temperante, equivale a dizer que, mediante o sentimento, o homem está na realidade enquanto tempérie, que
está na tempérie da realidade.

=    Por isso o homem é o único animal que pode estar também (e com muita freqüência) na intempérie da realidade,
destemperado no céu raso da realidade.

=    Cada atemperação do homem à realidade como tempérie é um sentimento.

b.   Daí que o sentimento nos apresente facetas da realidade.

=    Dizíamos que, em virtude do sentimento, o homem está afetado pela realidade, quer dizer, que a realidade afeta,
modifica, o estado tônico vital do homem.

=    Os sentimentos do homem são os modos de estar ele atemperado à realidade que lhe está presente, que se lhe
atualiza, no sentimento formalmente como tempérie.

=    Os nossos sentimentos, portanto, nos apresentam facetas da realidade que não nos apresentam nem a inteligência
nem a vontade.

#   Diz-se, por exemplo, que aquele que está enamorado vê coisas que não vê a pura inteligência.

#   Isso é uma grande verdade (ainda que não tão grande como usualmente se pensa).

#   Mas ninguém nos tem dito por que isso é assim; eis a nossa explicação.

+   É que essa “vidência” da realidade não é exclusiva do sentimento de enamoramento, mas é própria de “todo”
sentimento.
+   Todo sentimento é, ao seu modo, “vidente” da faceta que nos apresenta da realidade como tempérie.

+   Todo sentimento, com efeito, apresenta-nos um modo de atualidade da realidade no nosso enfrentamento temperante
com a realidade.

+   Assim como há homens que têm uma grande capacidade intelectual ou uma grande capacidade volitiva, também há
homens que têm uma grande capacidade sentimental.

+   Pois bem, os homens que têm grande capacidade sentimental podem “ver” a realidade segundo facetas, podem “ver”
facetas da realidade, que outros não vêem.

-    Esses homens não são precisamente os sentimentalistas...

-    São, entre outros, aqueles homens dos quais costuma se dizer vulgarmente que têm uma grande “sensibilidade”
artística, etc.

 
 

2.     O “estético” de todo sentimento

a.    Usualmente se fala do sentimento estético como dum sentimento a mais entre outros.

b.   Isso não é assim para nada: não há um sentimento estético, mas o estético como dimensão constitutiva de todo
sentimento enquanto atualizante da realidade.

=    Os sentimentos, como atos meus, podem ser muito diversos: tristeza, alegria, medo, etc.

=    Mas dizíamos que a fruição (gosto ou desgosto) é a dimensão de todo sentimento enquanto atualização temperante
das coisas reais enquanto reais.

=    Essa dimensão de fruição (gosto ou desgosto) é, em rigor, o estético de todo sentimento.

=    Estética é a realidade enquanto fruível, ou seja, enquanto atualizada como tempérie no sentimento.

=    Trata-se da fruição das coisas reais não pelo seu conteúdo, mas pelo seu carácter de realidade.

#   O homem pode, por exemplo, ter fruição duma maçã.

#   Mas essa fruição da maçã tem uma dupla dimensão.

+   A fruição da maçã pelo seu conteúdo ou qualidades: pelo seu sabor, porque me senta bem, pela companhia agradável
com a qual a como, etc.

+   A fruição da maçã puramente e simplesmente porque é real; esta é a essência do estético: a fruição do real enquanto
real (e não só pelo seu “conteúdo” real).

=    Todo sentimento, portanto, envolve uma dimensão de aísthesis temperante do real enquanto real: é o estético de
todo sentimento.

c.    Por que se fala usualmente do sentimento estético como dum sentimento a mais entre outros?

=    A expressão “sentimento estético” - que transforma o estético num sentimento especial a mais junto aos sentimentos
morais, sociais, religiosos, etc. - procede da concepção do sentimento como estado subjetivo íntimo e da consideração
do estético como dum estado em si mesmo e por si mesmo.

=    Ambas coisas são falsas.


#   O sentimento não é um estado subjetivo íntimo, como pensa a filosofia moderna e contemporânea, mas um estar o
homem na realidade enquanto tempérie.

#   O estético não é um estado, mas uma dimensão de todo estado em que o sentimento consiste.

=    A confusão é favorecida porque à inteligência e à vontade não costuma acrescentar-se-lhe nenhum adjetivo,
enquanto que ao sentimento acrescenta-se-lhe o adjetivo “estético”.

=    Isso não é nada a mais do que uma ilusão produzida pela história mesma dos conceitos.

#   Intelecção

+   Todos os atos de intelecção enquanto atos são subjetuais.

+   Toda a filosofia considera óbvio, porém, que a intelecção não é meramente subjetual (=subjetiva), mas que envolve
um momento que pertence, de algum modo, à coisa inteligida pela inteligência.

+   Esta obviedade faz que se omita, ao falar da intelecção, um adjetivo que a qualifique.

+   Pois bem, essa omissão é fonte de graves confusões e de erros na filosofia da intelecção.

+   Em rigor, dever-se-ia falar sempre de intelecção veritativa, aliás, do veritativo da intelecção, para indicar o momento
de realidade de toda intelecção.

+   O veritativo não é um ato de intelecção entre outros, mas a dimensão da atualidade da realidade na inteligência em
todo ato de intelecção.

#   Volição

+   Todo ato de volição é um ato de determinação complacente na realidade.

+   Mas em toda determinação complacente na realidade se opta pela figura de realidade que se quer ser, pela figura do
próprio bem plenário.

+   O bem não é um ato acrescentado ao ato de determinação complacente na realidade, mas a dimensão da atualidade
da realidade na vontade em todo ato de volição.

+   Portanto, haveria que falar sempre, em rigor, não de volição, mas de volição boa optativa, aliás, do bom da volição,
para indicar o momento de realidade atualizada em toda volição.

+   Omite-se o adjetivo bom porque se supõe.

#   Sentimento

+   No entanto, quando se fala do sentimento, como não se tem um conceito estrito nem do sentimento nem do estético,
fala-se sempre de “sentimento estético”, mas entendendo por sentimento estético não o estético de todo sentimento, mas
um sentimento (estado subjetivo íntimo) especial entre outros.

+   Isto é tão falso quanto dizer que a intelecção veritativa é uma intelecção a mais entre outras e que a volição boa é
uma volição a mais entre outras.

+   Veritativo, bom e estético só expressam a dimensão de atualidade do real enquanto real na inteligência, na vontade e
no sentimento.

+   O estético de todo sentimento é o momento de realidade atual em todo sentimento, quer dizer, a realidade enquanto
fruída em todo sentimento.

d.   A atemperação estética não é subjetiva em modo algum (como também não são subjetivas nem a apreensão
veritativa nem a determinação boa), mas é uma atualidade do real na fruição.
=    O sentimento é subjetual enquanto ato meu.

=    Nessa dimensão, pode ser muito diverso segundo os indivíduos, as mentalidades, as épocas, etc.

=    Mas sempre envolve formalmente uma faceta do real, uma atualidade do real: o real como temperante enquanto
real.

=    Essa realidade temperante não é nem causa do sentimento (racionalismo) nem termo intencional do sentimento
(HUSSERL), mas mera atualidade do real no sentimento.

=    Pelos mesmos motivos é falsa a tese de HEGEL sobre a Arte.

#   HEGEL diz que a Arte é a expressão da vida do Espírito.

#   Isto é radicalmente falso.

+   Esta concepção hegeliana transforma o momento subjetual do estético nada menos que na sua essência!

+   No entanto, o momento subjetual do estético é só um momento do estético fundado no momento fundante do
estético: a realidade atualizada no sentimento.

+   A essência da obra de Arte é ser expressão ulterior não da vida do Espírito, mas da atualidade da realidade mesma
em mim, no meu sentimento, enquanto realidade (expressão de como na minha vida, aliás, no meu tom vital, se faz
atual o real).

e.    Lógica, Ética e Arte são três expressões ulteriores da atualidade primária da realidade na inteligência, na vontade e
no sentimento do homem.

=    Lógica

#   É radicalmente falso que o modo primário de intelecção do real seja a Lógica.

#   Essa falsidade tem arrastado toda a filosofia ocidental pela via nefasta da logificação da inteligência e da entificação
da realidade.

#   O modo primário de intelecção é a apreensão das coisas como reais; a verdade real primária é a atualidade mesma do
real na apreensão primordial de realidade (cfr. Curso de Filosofia da Intelecção Humana).

#   A Lógica é só um modo ulterior (logos e razão) dessa intelecção primária; é uma expressão ulterior da primária
verdade real.

=    Ética

#   É radicalmente falso que o primário do moral seja a Ética como sistema de bens, deveres ou valores.

#   Essa falsidade tem arrastado toda a filosofia ocidental pela via nefasta do moralismo e do juridicismo.

#   O primário do moral é a atualidade do real enquanto bem na vontade, quer dizer, enquanto fonte de possibilidades
apropriáveis da realização plenária do homem.

#   A Ética (juízo moral e razão moral) é só expressão ulterior da volição primária que é a apropriação de possibilidades
apropriáveis do real (cfr. Curso de Filosofia do Moral).

=    Arte

#   O primário e radical do estético é a atualidade do real enquanto fruível no sentimento.

#   A expressão dessa atualidade estética da realidade é a Arte em todas as suas variadíssimas formas expressivas.

 
 
 
 

B.  O estético em si mesmo: a estética ou beleza


 
 
 

1.     O que é a estética ou beleza.

a.    A realidade, que se atualiza, que está presente, na inteligência como “verdad” e na vontade como “bem”, atualiza-
se, está presente no sentimento como “estética”.

b.   Essa atualidade estética da realidade no sentimento é, em rigor, aquilo que chamamos de “beleza”.

c.    A beleza é beleza “das coisas reais” e não um valor absoluto em si mesmo.

=    Os “valores” são o frenesi da filosofia ocidental nos tempos hodiernos; pensa-se o seguinte:

#   A beleza (como a verdade e a bondade) consiste formalmente em ser um “valor” absoluto em si mesmo.

#   As coisas reais são só o “suporte” dos valores beleza, bondade e verdade.

=    Isso não é assim para nada: a beleza (como a verdade e a bondade) é um caráter “das coisas reais”; isto quer dizer o
seguinte:

#   Não se trata de que a beleza seja um caráter da nua realidade das coisas, quer dizer, das coisas em si mesmas; com
efeito, se não houvesse inteligências, sentimentos e vontades, não haveria verdade nem beleza nem bens).

#   Trata-se de que a beleza é um caráter que ganham as coisas reais ao atualizar-se no sentimento.

d.   Assim pois, estéticas ou belas são as coisas reais enquanto atualizadas, enquanto que estão presentes, no sentimento
como tempérie, como temperantes, como fruíveis.

 
 

2.     Os três estratos da estética ou beleza das coisas reais

a.    Primeiro estrato: a fruição das coisas reais “enquanto reais”: o estético ou belo enquanto pulchrum: estética ou
beleza transcendental.

=    Este é o momento radical e primário da estética ou beleza das coisas reais: a fruição das coisas reais meramente
enquanto reais, o âmbito transcendental da realidade enquanto tempérie.

=    Toda oposição, por radical que for, só é possível num âmbito prévio dentro do qual se estabelece ulteriormente essa
oposição; por exemplo:

#   Só se pode falar de números pares e ímpares dentro do âmbito prévio dos números.

#   Se, no entanto, falamos dentro do âmbito das cores, não tem nenhum sentido falar de cor par e ímpar.

=    O âmbito prévio dentro do qual ulteriormente se opõem a beleza e o seu contrário, a feiúra, tem que ter
unitariamente dois caracteres:

#   Tem que ser um âmbito dentro do qual se estabelece ulteriormente essa oposição.
#   Mas, além disso, tem que ser um âmbito necessário que faça que essa oposição ulterior seja também necessária e não
uma mera arbitrariedade.

=    O âmbito dentro do qual, ulterioremente, se opõem necessariamente o belo e feio é o momento inespecífico
(transcendental) de realidade do real como tempérie, como fruível.

#   A realidade é o âmbito da realidade verdadeira na inteligência, da realidade boa na vontade e da realidade bela no
sentimento.

#   A estética ou beleza primária e radical é a realidade como âmbito temperante para o homem que tonicamente está
acomodado a ela de inúmeros modos.

#   O sentimento recai:

+   Primariamente e radicalmente sobre o âmbito mesmo da realidade enquanto tal (primeiro estrato da estética ou
beleza: a estética ou beleza transcendental).

+   Ulteriormente (como veremos):

-    Sobre as coisas reais em função do campo de realidade (segundo estrato da estética ou beleza).

-    E sobre as coisas reais em função do mundo de realidade (terceiro estrato da estética ou beleza).

=    O estético ou belo das cosas reais meramente enquanto reais o chamamos de pulchrum (usando o termo clássico da
beleza transcendental).

#   Entendemos por pulchrum unitariamente as duas dimensões que indica esse termo: o simplesmente belo, e a
pulcritude, limpeza, decoro, etc., por exemplo, dum ambiente, duma idéia, etc.

#   Todo sentimento humano supera essencialmente em dois momentos a mera modificação do estado tônico vital em
que consiste formalmente o puro afeto animal.

+   A modificação do estado tônico vital do homem se deve precisamente e formalmente ao caráter de realidade das
coisas que lhe estão presentes e às quais se atempera.

+   Cada uma das coisas reais que está presente no sentimento do homem o instala inamissivelmente no âmbito da
realidade como estética ou bela.

#   Pulchrum, a realidade transcendentalmente estética ou bela meramente enquanto realidade não é algo separado das
coisas estéticas ou belas, nem algo superposto a elas.

+   Foi a tese de PLATÃO.

-    Para ele, a beleza é uma Idéia separada que está no mundo das Idéias.

-    Isso colocou PLATÃO perante o problema insolúvel da “participação”, quer dizer, de como as coisas belas
participam de “a” Beleza (Idéia), e de como a Idéia Beleza participa das demais Idéias.

+   É que PLATÃO, neste âmbito transcendental, como nos demais, confunde erroneamente transcendental com
transcendente.

-    Pulchrum, a estética ou beleza transcendental não é algo transcendente às coisas belas: não é nada que tenha
realidade separada das coisas belas.

-    A estética ou beleza transcendental da realidade (como a verdade e a bondade transcendentais) não é nem uma
espécie de região de realidade separada à qual se ascende passando pelas coisas belas, nem uma espécie de pélago em
que bóiam as coisas belas.

#   Pulchrum, a estética ou beleza da realidade meramente enquanto realidade, é formalmente transcendental, quer
dizer:
+   Pulchrum é um caráter que as coisas reais mesmas ganham na sua atualidade no sentimento (fora das coisas belas, a
beleza não tem realidade nenhuma).

+   Mas pulchrum é um caráter que não se reduz à estética ou beleza concreta de nenhuma delas nem do conjunto de
todas elas.

+   A estética ou beleza das coisas reais meramente enquanto reais é “mais” do que elas, mas “em” elas; é formalmente
“transcendental”.

=    Daí uma conseqüência fundamental: todas as coisas reais atualizadas no sentimento meramente enquanto reais são
necessariamente estéticas ou belas.

+   O âmbito transcendental da estética ou beleza das cosas reais é um âmbito necessário e não uma espécie de capricho
arbitrário do homem.

+   Todas as coisas reais atualizadas no sentimento são necessariamente estéticas ou belas meramente enquanto reais.

+   No âmbito transcendental da estética ou beleza das coisas reais meramente enquanto reais não cabe feiura alguma; é
metafisicamente impossível.

b.   Segundo estrato: estética ou beleza campal: a fruição das coisas “em realidade”: estética ou beleza como belo/feio.

=    Como acabamos de dizer, no primeiro estrato, o homem primariamente e radicalmente frui as coisas meramente
enquanto reais, enquanto transcendentalmente belas.

=    Nessa primária e radical fruição das coisas reais, o homem inexoravelmente as frui como respectivamente abertas a
todas as demais coisas já fruídas.

=    Daí que a fruição primária e radical da beleza transcendental das coisas reais se modaliza ulteriormente em fruição
das cosas desde as demais cosas já fruídas, quer dizer, desde o campo de realidade como âmbito de fruição.

=    Nisso consiste a estética ou beleza campal das coisas reais: a fruição delas “em realidade”, quer dizer, desde e em
função das demais coisas reais já fruídas.

=    Na fruição das cosas reais “em realidade” aquilo que no primeiro estrato era fruído como transcendentalmente belo
agora pode ser fruído também como feio (do latim foedus), quer dizer, como repugnante, desagradável, etc.

=    Precisamente e só porque é necessariamente bela toda coisa real meramente por estar presente como real no
sentimento, tem sempre a dupla possibilidade de ser ou bela ou feia neste estrato ulterior.

#   Esta dupla possibilidade de cada coisa real não é um dualismo dialético do conceito.

+   É aquilo que pensa HEGEL: se põe a beleza de algo (tese); por negação se contrapõe a feiúra desse algo (antítese), e
se dá uma superação (síntese).

+   Isso é radicalmente falso; a dupla possibilidade ulterior (beleza/feiúra) do real pertence estruturalmente ao real
mesmo na sua atualização ulterior no sentimento.

#   Esta estrutura do real não é uma estrutura de carência.

+   É aquilo que pensa a Escolástica: o feio co-pertence ao belo porque o feio consiste formalmente em ser mera
carência do belo.

+   Isso não é assim para nada.

-    O feio co-pertence estruturalmente ao belo em virtude da constitutiva limitação das coisas reais.

-    Quer dizer, a limitação constitutiva das coisas reais em si mesma não é nem beleza nem feiura, mas sim é o princípio
que faz possível a disjunção beleza/feiura.
-    Dito de outro modo: tudo pode ser belo e não-belo (feio) porque é essencialmente limitado, porque o pulchrum é o
âmbito transcendental duma realidade que é essencialmente limitada.

-    Mas isso não quer dizer que o belo e o feio funcionem ex aequo, ou seja, que estejam no mesmo plano, mas tudo
pelo contrário; com efeito:

¬   O feio não é mera carência do belo, mas uma positiva privação do belo (uma toupeira carece de vista; um homem
cego está positivamente privado da vista).

¬   O âmbito radical transcendental no qual estriba a ulterior disjunção belo/feio é a estética ou beleza do real
(pulchrum), não a feiura.

c.    Terceiro estrato: estética ou beleza mundanal: a fruição das coisas “na realidade”: estética ou beleza como
formosura e deformidade.

=    O homem não frui ulteriormente as coisas reais só desde outras coisas reais já fruídas, mas desde qualquer outra
coisa real fruída ou não.

=    Nisso consiste a estética ou beleza mundanal das coisas reais: a fruição delas “na realidade”, quer dizer, desde e em
função das demais coisas reais já fruídas ou não, ou seja, desde e em função da pura e simples realidade.

=    Assim, por exemplo, é fruível uma paisagem não só pelo seu conteúdo real fruível, mas por ser um conteúdo fruível
na realidade, na pura e simples realidade.

=    Neste estrato, a estética ou beleza (o domínio da realidade fruível) tem uma enorme dualidade: as coisas que
chamamos de formosas e as que chamamos de deformes.

#   As coisas formosas são as coisas bem feitas, perfeitas (estética ou beleza é aqui perfeição).

#   As coisas deformes são as coisas não bem feitas (estética ou beleza negativa é aqui imperfeição).

=    Formosura e deformidade clássicas

#   Lingüisticamente

+   Aquilo que constitui a realidade de algo, os gregos o chamaram de morphé, e os latinos de forma.

+   Para dizer que algo é belo (tó kalón), os gregos diziam que era eu-morphé, ou seja, que tem “boa-forma”.

+   Daí deriva em latim o adjetivo formosus, e daí “formoso”, em português.

#   Culturalmente e filosoficamente

+   As coisas perfeitas são formosas; as imperfeitas são deformes.

+   Nisso apóiam a cultura e a filosofia clássicas - desde os gregos até quase os nossos dias - para estabelecer a idéia da
beleza como simetria ou como mensuração, e a idéia dos cânones de beleza (nos gregos, o cânon de POLICLETO; no
Renascimento a proporção áurea, a divina proporção, o entusiasmo pelos poliedros, pelas figuras geométricas,
regulares, etc.).

+   Tudo aquilo que constitui de alguma forma a perfeição é fonte e objeto de formosura; o deforme é justamente o
imperfeito.

=    Aqui está a margem imensa da relatividade do belo como formoso: o cânon da formosura muda com as distintas
épocas, culturas e indivíduos.

=    Mas tenha-se em conta que esta relatividade da estética ou beleza mundanal empalidece no segundo estrato e é
impossível no primeiro estrato.
#   Com efeito, a fruição das coisas “em realidade” faz que aquilo que mundanalmente é considerado deforme seja
termo dum gozo estético.

+   Não se trata de que haja uma Arte que expresse belamente uma coisa deforme; isto pode acontecer e acontece, mas
isso está dentro da beleza mundanal.

+   Trata-se de que a feiura mesma da coisa enquanto coisa deforme é justamente um modo de beleza (é aquilo que os
franceses chamam: la beauté de la pourriture).

-    A coisa mais mundanalmente horrenda do planeta torna-se por isso mesmo, enquanto feia “em realidade”,
esteticamente fruível.

-    Podemos ter fruição em realidade de algo na sua própria feiúra.

+   Não há contradição.

-    Não é que uma coisa seja bela e feia num mesmo estrato.

-    É que uma coisa é deforme no terceiro estrato e bela no segundo.

+   O estrato da estética ou beleza campal anula a diferença entre o formoso e o deforme mundanalmente; campalmente
é belo também aquilo que pode ser mundanalmente horrendo.

+   É que em realidade tudo tem beleza ao seu modo, seja positiva, seja negativa.

#   Na fruição das cosas meramente enquanto reais é metafisicamente impossível a feiura ou deformidade; toda cosa real
é transcendentalmente bela e só bela.

 
 

3.     A unidade dos três estratos da estética ou beleza

a.    A unidade dos três estratos da estética ou beleza não é uma unidade de projeção nem de contração nem de
manifestação.

=    A unidade dos três estratos da estética ou beleza não é uma unidade de projeção por participação e divisão (em
contra de PLATÃO e, em certo modo, em contra de HEGEL).

#   Pensam que “a” Beleza (1º estrato) se projeta por participação nas coisas belas (2º estrato), as quais se projetam na
realidade, por divisão, em belas e feias (3º estrato).

#   Isso é impossível e não passa de ser uma metáfora puramente ótica.

+   Para que haja projeção participativa, é preciso substantivar o primeiro estrato da estética ou beleza, quer dizer, é
preciso converter o âmbito transcendental da estética ou beleza das coisas em “a” Realidade Bela, ou seja, converter o
transcendental em transcendente.

+   Agora bem, isso é absurdo.

-    A estética ou beleza das coisas enquanto reais é mais do que a estética ou beleza de cada coisa real ou do conjunto
de todas elas, mas não é nada separado, fora, aparte, das coisas belas e do conjunto delas.

-    A estética ou beleza das coisas enquanto reais é mais do que a estética ou beleza de cada coisa real ou do conjunto
de todas elas, mas “em” elas mesmas e “em” o conjunto delas, não fora ou aparte.

-    A estética ou beleza das coisas reais enquanto reais é transcendental, não transcendente.
=    A unidade dos três estratos da estética ou beleza também não é uma unidade de contração (em contra da concepção
da contração do ser na Escolástica).

+   Os escolásticos pensam o seguinte:

-    O ser é indivisível.

¬   Só poderia dividir o ser algo distinto do ser, quer dizer, o não-ser.

¬   Mas o não-ser não é nada, e aquilo que não é nada dificilmente pode dividir algo...

-    Aquilo que acontece é que o ser, que é único, se “contrai” em cada uma das coisas que “são”.

-    Do mesmo modo, o pulchrum, caráter transcendental do ser, se contrai em cada uma das coisas belas.

+   Isto é insustentável.

-    Acusa claramente uma visão conceptiva da realidade: pensa-se que aquilo que se contrai nas coisas é um “conceito”
único.

-    Mas nós não estamos falando do conceito de pulchrum, mas do pulchrum como âmbito de realidade física, ou seja,
duma dimensão física única em cada coisa real.

=    A unidade dos três estratos da estética ou beleza também não é uma unidade de manifestação (em contra de S.
AGOSTINHO e de HEIDEGGER).

#   Ambos pensam, cada um ao seu modo, que se trata duma unidade de manifestação na qual cada estrato da beleza é
mera manifestação do anterior.

#   Também isto é insustentável: toda manifestação pende essencialmente de que esteja presente (atualidade) a cosa que
se manifesta.

b.   A unidade dos três estratos da estética ou beleza é uma unidade de atualização: os três estratos da estética ou beleza
são três modos de atualidade do real no sentimento fundados cada um no anterior.

=    O pulchrum (o âmbito da realidade como tempérie, como âmbito de fruição) é um caráter transcendental da
realidade enquanto atualizada no sentimento.

#   A realidade se atualiza no sentimento primariamente e radicalmente meramente em quanto real (primeiro estrato da
estética ou beleza: o real fruído puramente e simplesmente enquanto real).

#   Ulteriormente o real se atualiza no sentimento de dois modos:

+   Desde e em função das demais cosas reais já fruídas (segundo estrato da estética ou beleza do real: o real fruído em
realidade, desde e em função do campo de realidade).

+   E desde qualquer coisa real fruída ou não (terceiro estrato da estética ou beleza do real: o real fruído na realidade,
desde e em função do mundo de realidade).

=    Junto à verdade e à bondade, pulchrum (estético, belo) é um transcendental próprio, complexo e disjunto das coisas
reais.

#   Próprio

+   A Escolástica (STO. TOMÁS, etc.) o nega; diz que pulchrum é só um modo da bondade, dado que considera o
sentimento como um modo do apetite racional que é a vontade.

+   Mas não é assim.

-    O homem não tem só inteligência e vontade, mas inteligência, sentimento e vontade.
-    Portanto, a realidade enquanto tal se atualiza na inteligência como verdade, na vontade como bondade, e no
sentimento como beleza.

#   Complexo

+   A beleza não é um transcendental simples, porque não é um caráter transcendental da nua realidade das coisas reais,
quer dizer, das coisas em si mesmas.

+   A beleza é um transcendental complexo, porque é um caráter transcendental da realidade das coisas reais enquanto
atualizadas no sentimento.

#   Disjunto

+   Toda a realidade mundanal é necessariamente limitada.

+   Em virtude dessa limitação, os transcendentais mundanais complexos podem ter um momento de negatividade pelo
qual todo o real pode ser feio (como falso e mau).

+   Essa disjunção belo-feio (verdadeiro-falso, bom-mau) é transcendental por dois motivos:

-    É uma disjunção metafisicamente necessária (o real, atualizado no sentimento, tem que ser necessariamente belo ou
feio - como verdadeiro ou falso, bom ou mau).

-    É uma disjunção que se inscreve no âmbito único da beleza (verdade e bondade) da realidade enquanto tal atualizada
no homem.[3]

IV

FORMA DE REALIDADE HUMANA (II):

O HOMEM É “UM SISTEMA PSICO-CORPÓREO”


 
 
 
 
 
 

A.  O homem, enquanto forma de realidade, é um sistema substantivo constituído por


dois subsistemas: corpo e psique.
 
 
 

1.     Sistema substantivo e subsistema

a.    Sistema substantivo

=    Toda coisa real, enquanto forma de realidade, está constituída por uma multidão de notas que formam uma
“unidade”.

#   “Nota” é tudo aquilo que pertence a uma coisa ou forma parte dela “em propriedade”, como algo “seu”.

#   Ha diversas classes de notas.

+   Adventícias: são as notas da coisa que se devem à interação dessa coisa com outras.
+   Formais: são as notas que pertencem à coisa por aquilo que ela é “de seu”, são as “suas” notas.

-    Constitucionais: são as notas formais fundadas em outras notas formais (exemplo: todo gato branco de olhos azuis é
surdo; essas notas constitucionais se fundam nos genes).

-    Constitutivas: são as notas formais que não estão fundadas em outras, mas que repousam sobre si mesmas (exemplo:
os genes).

=    A unidade que formam as notas de cada coisa real não é uma unidade aditiva (a coisa real não é verde, mais pesada,
mais quente, etc.), mas uma unidade estrutural: é uma unidade sistemática ou sistema.

=    A unidade sistemática ou sistema consiste em que cada nota da unidade não é meramente “nota”, mas “nota-de”
todas as demais notas.

#   Cada nota do sistema não é um elemento “em” o sistema, mas um elemento “de” o sistema.

#   A unidade sistemática não consiste numa espécie de misteriosa adesão dumas notas da coisa às outras, mas em que
toda nota do sistema é real tão só em unidade com as outras notas reais do sistema.

=    As notas formais duma coisa real são “suas” notas, quer dizer, “constituem” essa coisa real, são a “constituição”
dessa coisa real.

=    O sistema de notas que tem capacidade suficiente para ser algo “de seu”, quer dizer, para ser algo real, tem
“suficiência constitucional”, ou seja, tem capacidade suficiente para constituir uma coisa real.

=    O sistema de notas que tem suficiência constitucional, ou seja, suficiência para ser algo “de seu”, algo real, possui,
em virtude disso, um certo caráter de autonomia ou independência: possui “substantividade”.

=    A coisa real, enquanto unidade sistemática de notas constitucionalmente suficiente, é o que chamamos de
substantividade, de “sistema substantivo”.

b.   Subsistema

=    Subsistema é um sistema parcial ou quase-sistema de notas que tem certamente muitos caracteres dum sistema, mas
que não é sistema porque faltam-lhe alguns caracteres essenciais do sistema, sobretudo, a suficiência constitucional e,
portanto, a substantividade.

=    O subsistema só pode chamar-se de sistema por abstração ou desde um ponto de vista fragmentário.

 
 

2.     O sistema substantivo de notas em que consiste a forma de realidade humana é um único sistema substantivo
constituído por dois subsistemas: corpo e psique.

a.    Corpo humano é o subsistema de notas humanas animais (=notas materiais sencientes) constituído pela unidade
intrínseca de três momentos: organismo, compago e sóma.

=    Organismo

#   Cada nota corpórea humana tem uma “posição funcional” bem precisa, quer dizer, tem uma posição própria e
desempenha uma função própria a respeito das posições e funções de todas as outras notas corpóreas humanas.

#   Em virtude disso, a unidade das notas corpóreas humanas constitui uma unidade funcional-posicional que chamamos
de “organismo”.

=    Compago
#   Cada nota corpórea humana está completamente inter-ligada com as outras, de modo que cada nota repercute sobre
as demais e depende delas.

#   Em virtude disso, a unidade das notas corpóreas humanas constitui uma unidade de inter-ligação que chamamos
de compago.

=    Sóma

#   As notas corpóreas humanas organizadas e inter-ligadas são o princípio da atualidade do homem na realidade, quer
dizer, do estar presente o homem no cosmos e no mundo.

#   Em virtude disso, a unidade das notas corpóreas humanas constitui uma unidade de atualidade que chamamos
de sóma.

b.   Psique humana é o subsistema de notas humanas essencialmente irredutíveis às notas corpóreas humanas.

=    A psique humana não é uma “substância”.

#   Obviamente a psique humana não é uma substância no sentido usual do termo, quer dizer, no sentido de substância
material.

#   Mas a psique humana também não é uma substância no sentido metafísico clássico do termo, quer dizer, no sentido
duma entidade substancial (=alma) que habita “dentro” de outra entidade substancial (=corpo).

=    A psique humana, como o corpo humano, é um “subsistema”, quer dizer, um momento parcial e abstrato do único
sistema psico-corpóreo humano; só desde um ponto de vista fragmentário e abstrato pode-se falar do corpo e da psique
como sistemas, porque nenhum dos dois é plenamente sistema.

=    Mas isso não quer dizer que a diferença entre a psique humana e o corpo humano seja meramente “gradual”; pelo
contrário, a diferença entre a materialidade-senciente (=corpo) do homem e as suas notas intelectivas-sentimentais-
volitivas (psique) é uma diferença “essencial”.

#   Com efeito, toda a diferença entre o corpóreo e o psíquico no homem estriba na diferença entre o momento
estimúlico e o momento de realidade na inteligência-senciente, no sentimento-afetante e na vontade-tendente do
homem.

#   Pois bem, essa diferença é “essencial”; realidade é essencialmente diferente de estimulidade; jamais uma
complicação de estímulos, por sofisticada que for, conduzirá a um cisco de realidade.

 
 
 
 

B.  O caráter da “unidade” psico-corpórea ou corpóreo-psíquica do sistema substantivo


humano
 
 
 

1.     O homem não “tem” corpo e psique, porque nem o corpo humano nem a psique humana têm substantividade
alguma; só tem substantividade o sistema psico-corpóreo ou corpóreo-psíquico humano.

 
 

2.     O homem não é “união” de corpo “e” psique, mas “unidade” psico-corpórea ou corpo-psíquica.

 
a.    A psique humana é formalmente e constitutivamente “psique-de” o corpo (a psique humana é desde si mesma
corpórea).

b.   O corpo humano é formalmente e constitutivamente “corpo-de” a psique (o corpo humano é desde si mesmo
psíquico).

 
 

3.     A unidade sistemática da substantividade humana é constituída pela identidade física e numérica desse “de”
(corpo-“de” e psique-“de”).

a.    O “de” (corpo-“de” e psique-“de”) é numericamente e fisicamente idêntico no corpo e na psique; por isso a unidade
da substantividade psico-corpórea ou corpóreo-psíquica humana não é uma unidade aditiva, mas uma unidade
estrutural.

b.   O “de” (corpo-“de” e psique-“de”) é uma unidade sistemática de tipo metafísico superior ao da unidade do ato e da
potência.

=    Corpo e psique se co-determinam no homem, mas não como potência (matéria) e ato (forma) duma unidade
substancial hilemórfica.

=    Corpo e psique se co-determinam no homem como dois subsistemas dum único sistema substantivo, como dois
momentos reais em ato e ex aequo, porque o corpo é “corpo-de” a psique, e a psique é “psique-de” o corpo.

 
 

4.     Nesse “de” único (corpo-“de” e psique-“de”) consiste não só a unidade radical da substantividade humana, mas
também a mesmidade da substantividade humana ao longo da vida inteira; essa mesmidade é essencialmente distinta
duma persistência numérica de todas as notas, coisa perfeitamente inexistente.

 
 

5.     Por ser uma substantividade única, organicidade, interligação e atualidade são momentos do sistema psico-
corpóreo ou corpóreo-psíquico inteiro.

a.    A funcionalidade-posicional abrange o sistema psico-corpóreo completo.

=    Por exemplo, o sentir, o afeto e a tendência têm uma posição muito determinada no sistema humano a respeito da
inteligência, do sentimento e da vontade.

=    Em virtude disso, no homem, o sentir é intelectivo, o afeto é sentimental e a tendência é volente.

b.   A interligação ou interdependência abrange o sistema psico-corpóreo completo: o momento psíquico se transfunde a
toda nota corpórea e vice-versa.

c.    A atualidade abrange o sistema psico-corpóreo completo.

=    O momento somático da corporeidade como princípio da atualidade do homem na realidade, do estar presente o
homem no cosmos e no mundo, concerne ao próprio momento psíquico.

=    Isto se vê claramente em fenômenos como a expressão, a fisionomia, etc.

 
 
6.     A atividade humana é unitariamente psico-corpórea absolutamente em todos os seus atos.

a.    Cada nota da substantividade humana atua sempre “sistematicamente”.

=    Apesar de atuar só pelas suas propriedades, cada nota atua sempre não sozinha e por sua conta (por assim dizer),
mas como sendo “nota-de”.

=    Dito de outro modo: a atuação de cada nota é tão só um momento da “atividade-de” todas as demais notas.

#   Todas as notas, por serem “notas-de”, constituem um único sistema substantivo.

#   Assim também, a atividade de toda nota, por ser “atividade-de”, constitui uma única atividade sistemática: a
atividade da substantividade humana inteira.

b.   O que significa a unitariedade psico-corpórea da atividade humana?

=    Não significa que a atividade humana seja “ao mesmo tempo” corpórea e psíquica, como se fosse a união de duas
atividades, uma corpórea e outra psíquica.

=    Também não significa que seja um e o mesmo o “sujeito” de todas as atividades, tanto corpóreas quanto psíquicas.

=    Significa precisamente que toda atividade humana é “formalmente” psico-corpórea.

#   Quer dizer, no homem, porque todo o corpóreo é psíquico, todo o corpóreo transcorre psiquicamente, e, porque todo
o psíquico é corpóreo, todo o psíquico transcorre corporeamente.

#   Ou seja, no homem, há uma só e mesma atividade do sistema inteiro em todas e cada uma de suas notas: a atividade
humana tem sempre caráter de sistema; é uma atividade sistemática em si mesma por ser própria do sistema inteiro, o
qual está em atividade em todas as suas notas.

c.    Certamente a atividade humana, precisamente por ser sistemática, é complexa e nela dominam às vezes uns
caracteres mais do que outros.

=    Em cada atividade humana há uma dominância variável dumas notas sobre outras (como os distintos níveis e
ondulações duma superfície líquida inteira).

=    Mas nunca há uma atuação duma nota psíquica sobre uma nota corpórea ou vice-versa.

=    Só pode haver atuações dum estado psico-corpóreo sobre outro estado psico-corpóreo.
V

MODO DE REALIDADE HUMANA:

O HOMEM É UM VIVENTE PESSOAL


 
 
 
 
 
 

A.  O homem é um vivente.


 
 
 

1.     O modo de ter “de seu” as suas notas constitui o homem no modo de realidade que chamamos de “vida”.

 
 

2.     Todo vivente está constituído por dois momentos: uma certa independência do seu meio e um controle específico
sobre ele.

a.    Entorno, meio e situação do vivente

=    O “entorno” do vivente é tudo aquilo que o circunda, que o rodeia, por assim dizer.

=    O “meio” do vivente está constituído só por aqueles elementos do seu entorno que podem afetar às estruturas do
vivente.

#   O meio do vivente, portanto, não coincide com o seu entorno: o entorno do vivente é mais amplo que o seu meio.

+   Com efeito, no mesmo entorno vivem viventes dos mais diferentes graus de vida.

+   Daí que no mesmo entorno caibam meios vitais muito diversos dependendo dos diferentes viventes que vivem nele.

#   O meio, dentro do qual o vivente vai viver, está perfeitamente delimitado a priori pelas estruturas determinadas do
vivente.

=    Dentro do seu meio, o vivente se acha colocado nas mais diversas situações.

#   O meio do vivente, portanto, não coincide com a sua situação: o meio do vivente é mais amplo que a sua situação.

#   Com efeito, toda a diversidade de situações que se lhe oferecem ao vivente se inscrevem no mesmo meio vital dele.

b.   Impulso vital, situação, processo senciente e estímulo.

=    A articulação dinâmica entre o vivente e o seu meio é o que podemos chamar de “impulso vital”.

=    O impulso vital do vivente vai se desenvolvendo na seqüência de “situações” em que vai se encontrando o vivente
no seu meio.

=    Cada situação em que vai se encontrando o vivente no seu meio desencadeia o “processo senciente” do vivente,
quer dizer, a unidade dos três momentos que já temos descrito no capítulo I:
#   Em cada situação determinada, algo do meio suscita o sistema de receptores sensitivos do vivente (momento de
“suscitação”).

#   Esta suscitação modifica o estado tônico vital em que se encontra o vivente (momento de “modificação tônica”).

#   O vivente, suscitado e modificado tonicamente, responde com uma ação (momento de “resposta”).

=    O processo senciente do vivente dá tanto às coisas que há no meio dele quanto ao vivente mesmo o caráter de
“estímulo”, como já sabemos.

c.    Em virtude disso tudo, o vivente é sempre ele mesmo, mas nunca é o mesmo.

=    O meio do vivente é o seu “espaço vital” e o vivente é um “aqui absoluto” dentro desse seu espaço vital.

#   O vivente é tanto o ponto de partida quanto o ponto de chegada do processo senciente: o vivente é suscitado por algo
do seu meio (ponto de partida) e responde com uma ação no seu meio (ponto de chegada).

#   Desse modo, no processo senciente, as estruturas sensitivas conferem ao vivente o caráter de “centro” do seu meio; o
vivente se torna algo assim como o “aqui absoluto” dentro do seu meio.

#   Por sua vez, em função do aqui absoluto do vivente, o seu meio vital ganha o caráter de “espaço vital” dentro do qual
se move vitalmente o vivente.

=    O impulso vital do vivente é a sua “tensão vital” e o vivente é um “agora absoluto” dentro dessa sua tensão vital.

#   É completamente impossível que o vivente permaneça numa situação.

+   Primeiro, porque, ao responder à uma situação, o vivente se encontra forçosamente numa situação distinta, por
pouco que for, à anterior: cada resposta do vivente a uma situação o leva inexoravelmente a outra situação.

+   Segundo, porque, em virtude de que as estruturas do seu corpo estão submetidas constantemente a um processo
físico da mudança, também a situação do vivente muda continuamente.

#   Por conseguinte, o vivente se encontra sempre em transição duma situação a outra; em virtude disso, o impulso vital
do vivente ganha o caráter de “tensão vital”.

#   Essa tensão vital do vivente tem dois momentos bem precisos: é distensão e é retenção.

+   Desde o ponto de vista prospectivo, quer dizer, de que o vivente vai em tensão de uma situação a outra, a tensão vital
do vivente é uma “distensão vital”.

+   Desde o ponto de vista do vivente, a sua tensão vital é uma “retenção”: em cada situação, o vivente dá uma resposta
mais ou menos adequada que retém (mantém) a sua própria substantividade; em virtude disso, cada resposta reverte
(reflui) sobre o vivente.

#   A unidade estrutural distensão-retenção da tensão vital do vivente é a “duração” da substantividade do vivente.

#   Desse modo, na sua duração vital, o vivente constitui um “agora absoluto”.

=    O dito mostra claramente que o vivente é sempre ele mesmo, mas que nunca é o mesmo.

#   O vivente é sempre ele mesmo porque consegue manter a sua própria substantividade na resposta a cada situação.

#   Mas o vivente nunca é o mesmo porque cada resposta o leva a outra situação e cada resposta reverte sobre a sua
substantividade afetando-a e modificando-a.

 
 

3.     Estes dois momentos (ser sempre ele mesmo e nunca ser o mesmo) expressam o momento radical e formalmente
exclusivo do vivente: ser um “si mesmo”, um autós, autopossuir-se.
 

a.    Toda substantividade, ainda que meramente material, atua ativamente ou passivamente pelo sistema de notas que
possui.

b.   Mas só a substantividade viva tem ações ordenadas ao seu sistema enquanto tal, isto é, atua por si mesma e para si
mesma: auto-possui-se, quer dizer, é um “si mesmo” (autós).

 
 

4.     Vida não é nem reflexão nem decurso vital.

a.    Vida não é reflexão (em contra de ARISTÓTELES).

=    Exposição

#   Vida é o momento de reflexão desde as notas para si mesmo.

#   A reflexão enquanto tal consiste em tomar-se a si mesmo como objeto: o vivente, entre muitos objetos, tem um
objeto a mais, próprio só dele: si mesmo.

=    Crítica

#   O conceito aristotélico de reflexão é radicalmente falso (ver Curso de Filosofia da Intelecção Humana).

#   Além disso, ser si mesmo (autós) é formalmente anterior a toda reflexão, e o fundamento da possibilidade dela.

+   Vida é auto-possessão; ser vivente é ser autós.

+   Só porque é autós o vivente atua como autós.

+   Desse modo, por ser já autós, o vivente pode em alguns casos exercer a reflexão.

b.   Vida não é decurso vital.

=    O decurso vital dum vivente é só a sua maneira do viver, do autopossuir-se: é o argumento da sua vida.

=    Mas a sua vida enquanto tal consiste simplesmente em autopossuir-se.

 
 

5.     Graus de vida

a.    Nos viventes mais elementares, há algo assim como um rudimentar primórdio de autós que vai crescendo na escala
biológica até chegar ao homem.

b.   São os distintos graus de vida, de ser si mesmo, que constituem os distintos tipos de viventes.

 
 
 
 

B.  O homem não é um mero vivente, mas um vivente “pessoal”: o homem, enquanto
modo de realidade, é pessoa, é uma realidade pessoal.
 
 
 

1.     Ser pessoa consiste formalmente em “suidade”.

a     O modo de realidade do homem não se reduz a mera vida; a vida do vivente humano tem um caráter bem peculiar,
como vamos ver.

b.   Em virtude das notas que constituem a substantividade humana como animal de realidades, o homem se enfrenta
com todas as coisas e consigo mesmo enquanto realidade.

=    O homem não se enfrenta com todas as coisas e consigo mesmo somente desde o ponto de vista das propriedades
que realmente possuem tanto ele quanto as coisas.

=    O homem se enfrenta com todas as coisas e consigo mesmo sobretudo desde o ponto de vista do caráter de realidade
que têm tanto ele quanto elas.

=    Vejamos um exemplo: a diferença essencial que há entre a queda duma pedra e a queda dum homem.

#   A queda duma pedra

+   Uma pedra cai pelas propriedades gravitatórias que efetivamente tem.

+   Pois bem, entre essas propriedades gravitatórias não figura nenhuma chamada de “realidade”: em nenhuma das
equações da queda da pedra há um parâmetro ou uma variável chamada de “realidade”.

+   Na queda da pedra, a realidade da pedra simplesmente se supõe.

+   A lei da gravitação, portanto, é suficiente para dar razão do ato da queda da pedra.

#   A queda dum homem

+   O homem cai conforme à lei da gravitação exatamente igual que a pedra.

+   Mas há uma diferença essencial: para dar razão do ato da queda do homem é preciso saber que forma de realidade
tem essa queda: foi suicídio, acidente, assassinato, etc.?

+   O homem, com efeito, na sua queda, não só atua com as notas psico-corpóreas que possui, mas, sobretudo, atua a
respeito do seu próprio caráter de realidade.

+   No caso da queda do homem, realidade não é algo que se dá meramente por suposto, mas algo a respeito do qual são
executadas as ações humanas.

c.    Numa palavra: o homem é “suidade”, quer dizer, é a “sua própria” realidade.

=    Efetivamente, a realidade humana, para o homem mesmo, não é só um simples sistema de notas que “de seu” o
constituem (forma de realidade humana), mas, antes de tudo e sobretudo, é a realidade que lhe é própria enquanto
realidade, isto é, a sua própria realidade (modo de realidade).

=    Em virtude disso, o homem é uma realidade que, como modo de realidade, não é só “de seu” (realidade) como todas
as demais coisas reais, mas, ademais, é “seu” próprio “de seu”.

=    O homem tem, como modo de realidade, o que chamamos de “suidade”, ser reduplicativamente “seu”.

#   Todas as demais realidades têm “de seu” as propriedades que têm, mas a sua realidade não é formalmente e
explicitamente “sua”.

#   O homem é formalmente e explicitamente “seu”, é “sua” própria realidade, é suidade.


=    Suidade não é um ato nem uma nota ou sistema de notas, mas o modo de realidade humana enquanto realidade:
execute ou não as suas ações, a realidade humana é, como realidade, algo formalmente anterior a toda execução.

d.   De qualquer ponto de vista que abordemos a questão, aparece claramente que ser pessoa consiste formalmente em
ser “suidade”, em ser “sua” própria realidade, em ser “seu” próprio “de seu”; aparece claramente que a razão formal da
realidade pessoal consiste em “suidade”.

=    Ser pessoa não consiste em ser realidade subsistente; com efeito, a pessoa é inexoravelmente uma realidade
subsistente, mas o é porque, anteriormente, a pessoa é “sua” própria realidade.

=    Ser pessoa não consiste em ser sujeito volente-livre dos seus atos; com efeito, só pode ter estrutura subjetual (com
caracteres de vontade e liberdade) uma realidade que já é pessoal por ser “sua” própria realidade.

=    Ser pessoa não consiste em ser realidade inteligente e volente; com efeito, tudo isso são notas substantivas (forma
de realidade) em virtude das quais o homem é “sua” própria realidade (modo de realidade).

 
 

2.     Personeidade e personalidade.

a.    Chamamos de “personeidade” esse modo de realidade que consiste em “pessoa”, quer dizer, em “modo de realidade
pessoal”.

b.   Chamamos de “personalidade” a figura concreta que vai adquirindo a personeidade, modelada pelos atos da pessoa,
ao longo do seu decurso vital.

=    A personalidade enquanto tal não é primariamente e radicalmente uma questão de psicologia, nem de antropologia
empírica, quer dizer, uma questão de caracteres psico-corpóreos, como são, por exemplo, tolo, experto, tardo, irascível,
introvertido, etc.

=    A personalidade enquanto tal é primariamente e radicalmente uma questão de metafísica, quer dizer, uma questão
de todos esses caracteres enquanto que determinam e modulam a figura (personalidade) do modo de realidade pessoal
(personeidade).

c.    A personalidade, modulação da personeidade, se configura desde o momento da concepção.

=    O embrião humano, em virtude das suas notas substantivas, tem já esse modo de realidade que é personeidade
(como veremos depois).

=    Desde o primeiro instante, portanto, a personeidade do embrião humano vai ganhando figura concreta
(personalidade) por modelação.

#   Num princípio, recebendo passivamente a figura que na sua personeidade decantam os processos genéticos que
acontecem no embrião humano (atos passivos pessoais).

#   Depois, também usando o homem ativamente ao longo da sua vida a inteligência, o sentimento e a vontade (atos
ativos pessoais).

d.   Personeidade “e” personalidade

=    O homem é sempre ele mesmo, mas nunca é o mesmo.

#   Por razão da sua personeidade (por razão do seu modo de realidade pessoal), o homem é sempre ele mesmo, porque
personeidade é algo que simplesmente se é, e sempre se é a mesma personeidade.

#   Por razão da sua personalidade (por razão da figura concreta do seu modo de realidade pessoal), o homem nunca é o
mesmo, porque a personalidade vai modelando-se ao longo de todo o decurso vital desde a concepção até a morte.
=    Personeidade e personalidade não são dois estratos ou camadas da realidade pessoal do homem, mas dois momentos
duma realidade pessoal única: da concreta pessoa humana.
VI

MODO DE IMPLANTAÇÃO NO MUNDO

DA REALIDADE HUMANA:

O HOMEM É UMA REALIDADE

RELATIVAMENTE ABSOLUTA
 
 
 
 
 
 

A.  Diferença do modo de implantação no mundo do mero vivente e do vivente pessoal


humano.
 
 
 

1.     O modo de implantação no mundo do mero vivente: integração no mundo

a.    O mero vivente está caracterizado meramente por uma independência do seu meio e por um controle específico
sobre ele.

b.   Esta independência e controle do meio é distinta segundo o grau de vida do mero vivente.

c.    Em virtude dessa independência e controle, o mero vivente está implantado no mundo meramente formando parte
dele; o modo de implantação no mundo do mero vivente é “integração” no mundo.

 
 

2.     O modo de implantação no mundo do vivente pessoal humano: absolutização do mundo

a.    O vivente pessoal humano, justamente em virtude de ser “pessoa”, é algo a mais do que meramente independente
do meio da sua vida e do que controlador dele.

b.   O homem, com efeito, é pessoa (é “seu”, é “sua própria” realidade) frente a toda realidade real ou possível (também
frente à realidade divina!).

c.    Em virtude disso, a realidade humana, enquanto “sua”, tem um modo peculiar de implantação no mundo, que não é
formar parte dele (integração), mas estar “solto-de” o mundo (absolutização).

 
 
 
 

B.  O homem está implantado no mundo como realidade relativamente absoluta.


 
 
 

1.     O homem, por ser sua própria realidade, está implantado no mundo como solto-de toda realidade enquanto
realidade.

 
 

2.     Este modo de implantação no mundo é modo “ab-soluto” de estar implantado no mundo.

 
 

3.     Mas o modo de implantação do homem no mundo é o duma realidade “relativamente absoluta”.

a.    Absoluta, porque a realidade humana é solta-de (sua) frente a toda realidade.

b.   Relativamente, porque o caráter absoluto do homem é um caráter “ganhado”: na sua vida, e na mais modesta das
suas ações, com as coisas, com os demais homens e consigo mesmo, o homem não só vai realizando uma série de atos
pessoais segundo as propriedades que tem e segundo as situações em que se encontra, mas, em cada um desses atos, vai
definindo duma maneira precisa e concreta a figura segundo a qual a sua realidade é absoluta.

 
 
 
 

C.  Inquietude da vida pessoal humana


 
 
 

1.     O dito a respeito dos atos do homem mostra claramente a gravidade de todo ato do homem: as coisas reais,
apreendidas como reais, impõem ao homem que determine frente a elas uma figura concreta de ser absoluto.

 
 

2.     Esta gravidade dos atos do homem, como traço da pessoa humana, é a inquietude constitutiva da vida humana, que
não consiste na mera inquiescência própria da vida como decurso vital, mas em não saber bem a figura concreta de ser
absoluto.

 
 

3.     Daí que a inquietude constitutiva da vida pessoal humana seja formalmente a problematicidade do absoluto, quer
dizer, a problematicidade de ser realidade “absoluta”.
VII

SER DA REALIDADE HUMANA:

O HOMEM É UM “EU”
 
 
 
 
 
 

A.  O ser da realidade pessoal humana é o “Eu”.


 
 
 

1.     O ser da realidade humana é a atualidade mundanal, quer dizer, o estar presente no mundo, da sua realidade (forma
de realidade), da sua realidade pessoal (modo de realidade) e da sua realidade relativamente absoluta (modo de
implantação no mundo).

 
 

2.     Pois bem, a atualidade mundanal da realidade pessoal relativamente absoluta do homem é o “Eu”.

a.    O Eu não é a realidade humana (a realidade pessoal relativamente absoluta), mas o “ser” da realidade humana (a
atualidade mundanal da realidade pessoal relativamente absoluta).

b.   Dito de outro modo: o Eu não consiste em que “Eu sou” pessoa relativamente absoluta, mas em que a pessoa
relativamente absoluta “sou Eu”.

c.    O ser da pessoa humana relativamente absoluta é o que expressamos tantas vezes quando dizemos: “Eu mesmo”.

 
 

3.     Três momentos do ser pessoal relativamente absoluto: me, mim, Eu

a.    Me (atualização mundanal medial)

=    O mero animal, por exemplo, sente fome e come uma maçã.

#   A fome do mero animal, a maçã que come e o ato de comê-la, são “efetivamente” reais.

#   Mas o mero animal não se enfrenta com as coisas nem consigo mesmo “formalmente” enquanto reais.

=    No meu caso, como homem, “me” sinto faminto e “me” como uma maçã, porque a fome, a maçã e o ação de comê-
la não só são efetivamente reais como as do mero animal, mas as enfrento “formalmente” enquanto realidades.

=    Assim, enfrentado com o real enquanto real, o homem atualiza mundanalmente a sua realidade relativamente
absoluta, em primeiro lugar, como um “me”.

=    Ser “me” é o primeiro modo do ser pessoal, do ser relativamente absoluto a respeito de toda realidade.
=    “Me” é a atualização mundanal “medial” da realidade relativamente absoluta.

b.   Mim (atualização mundanal ativa)

=    Além disso, como homem, não só me sinto faminto e me como uma maçã, mas é que a fome, a maçã e o ato de
comê-la, são meus, são de “mim”.

=    O homem atualiza mundanalmente a sua realidade relativamente absoluta, em segundo lugar, como um “mim”.

=    Ser “mim” é o segundo modo do ser pessoal, do ser relativamente absoluto a respeito de toda realidade.

=    “Mim” é a atualização mundanal “ativa” da realidade relativamente absoluta.

c.    Eu (atualização mundanal radical)

=    Tem mais: quem me sinto faminto e me como uma maçã, e aquele cuja fome, maçã e ato de comê-la são de mim,
sou “Eu”.

=    O homem atualiza mundanalmente a sua realidade relativamente absoluta, em terceiro lugar, como um “Eu”.

=    Ser “Eu” é o terceiro modo do ser pessoal, do ser relativamente absoluto a respeito de toda realidade.

=    “Eu” é a atualização mundanal “radical” da realidade relativamente absoluta.

 
 

4.     Articulação do me, mim e Eu

a.    Cada um destes três momentos da atualização mundanal da realidade do homem se funda no anterior.

=    Não poderia ser “mim” (ser minha realidade) senão fosse fundado em que sou “me”: sou meu ao longo de tudo
aquilo que “me sou” (por assim dizer).

=    Não poderia ser “Eu” senão sendo um “mim” e fundado em sê-lo: por isso sou “Eu mesmo”.

b.   Cada um destes três momentos da atualização mundanal da realidade do homem se conserva no seguinte como
momento intrínseco e formal dele.

=    O “Eu” é sempre e só o “Eu” dum “mim” que “me” sou.

=    Por isso a potiori chamaremos simplesmente de “Eu” o ser da realidade substantiva humana.

 
 
 
 

B.  Figura concreta do ser da realidade pessoal humana, do “Eu”


 
 
 

1.     Enfrentado com o real, em cada ação o homem não só configura, ou seja, determina a figura (personalidade) da sua
personeidade, mas esta configuração é também configuração (ser da personalidade) do Eu (ser da personeidade).

 
 
2.     Assim, o Eu tem em cada instante da vida do homem uma figura concreta determinada.

a.    O ser da minha personeidade sou Eu.

b.   O ser da minha personalidade é o modo concreto como sou Eu.

 
 

3.     Por isso, como temos dito já, a personalidade não é simples questão de psicologia, mas antes de tudo de metafísica;
eis um exemplo: o caso do arrependimento.

a.    Duma pessoa que cometeu um crime e se arrependeu, costuma dizer-se que “apagou o crime”.

b.   Isto é falso.

=    O crime teve uma realidade que nem a onipotência divina pode apagar: ninguém (nem Deus) pode fazer que aquilo
que foi real não o tenha sido.

=    O crime continua “sendo” como momento da realidade do criminoso.

c.    Em que consiste, então, o ato de arrependimento para os efeitos do crime?

=    Não consiste em que os outros não tenham em conta o crime ao criminoso por ter-se arrependido: isto é obra do ato
de perdão, não do ato de arrependimento.

=    Consiste em assumir o ser da realidade passada numa figura de ser distinta:

#   O criminoso continua sendo um criminoso que cometeu um crime.

#   Mas agora é criminoso “arrependidamente”, coisa que não era quando cometeu o crime.

d.   O arrependimento aponta, portanto, a uma nova “figura do ser” (ser da personalidade) do ato criminal.
VIII

A REALIDADE HUMANA SENDO


 
 
 
 
 
 

A.  Unidade de ser e realidade humana


 
 
 

1.     O Eu é puramente e simplesmente a atualização mundanal da realidade pessoal (suidade).

a.    Contra todo idealismo há que dizer:

=    Não só a realidade não é posição do Eu.

=    Tudo pelo contrário: o Eu está “posto” pela realidade: a própria realidade pessoal do homem é aquela que “põe” a
atualidade mundanal pessoal do homem (=Eu).

b.   Pela mesma razão, o Eu não é “sujeito” nem lógico nem metafísico.

 
 

2.     A unidade de ser e de realidade humana é a “realidade humana sendo”.

a.    O primário e radical é a realidade humana.

b.   Ulteriormente, a atualização mundanal da realidade humana constitui o ser da realidade humana (=Eu).

c.    O Eu reflui sobre a realidade humana e constitui essa unidade de ser e realidade que chamamos de “Eu mesmo”: é
justamente “a realidade humana sendo”.

d.   A realidade humana sendo é o homem sendo Eu, é a realidade humana “euizada”.

e.    Para simplificar, a partir de agora, quando falemos do Eu, estaremos falando da unidade ser-realidade, da realidade
humana formalmente sendo.

 
 
 
 

B.  Estrutura da realidade humana sendo: co-determinação de pessoas na espécie humana


 
 
 

1.     Espécie humana


 

a.    O homem é realidade relativamente absoluta não só frente às coisas reais, mas também e sobretudo frente a outras
realidades relativamente absolutas, frente às outras pessoas.

b.   Essas outras realidades pessoais existem não só de fato, mas necessariamente, em virtude dum caráter essencial à
substantividade humana enquanto tal: a sua especificidade.

c.    O que é espécie?

=    Espécie na filosofia clássica

#   Exposição

+   Espécie é o correlato real duma definição.

+   É um momento de unidade das realidades múltiplas.

-    O primeiro é a multiplicidade de homens.

-    O segundo é a espécie humana, a qual se dá porque há muitos homens.

#   Crítica

+   Isso não é espécie, mas só classe natural.

+   A espécie clássica é algo meramente conceptivo.

+   Na realidade o primeiro é a espécie e o segundo a multiplicidade (como vamos ver).

=    Espécie real

#   Cada animal humano tem intrinsecamente e formalmente um “momento específico”.

+   É o momento segundo o qual o animal humano se multiplica.

+   Esse momento específico aquilo que faz primariamente não é unificar, mas multiplicar.

-    O momento específico existe tão só “especiando”.

-    Por isso não há uma mera multiplicidade especificada (conceito clássico), mas uma multiplicação constituinte.

+   Gênese é justamente esta multiplicação constituinte.

+   A realidade humana é constitutivamente genética.

#   O momento específico da realidade humana consiste no seu momento genético.

#   Phylum

+   O momento específico (genético) não se pluraliza em todas as notas da realidade humana em seu detalhe, mas só
segundo um esquema de replicação estrutural.

+   Este esquema de replicação estrutural é um momento constitutivo de cada animal:

-    Não é um momento acrescentado à realidade do animal humano.

-    Pelo contrário: a própria realidade do animal humano envolve alguns caracteres que constituem o esquema duma
possível replicação: é o código genético.
+   Phylum é formalmente a multiplicação genética segundo um esquema.

#   Espécie real é a unidade filética dos indivíduos.

+   Ser de cada espécie determinada é pertencer a tal phylum determinado.

+   Realidades que não são filéticas não constituem espécie.

 
 

2.     Três importantes consequências

a.    O esquema de replicação estrutural (código genético) é esquema de “outra” pessoa humana.

=    Cada replicado é um animal de realidades (animal pessoal).

=    Portanto, o esquema é esquema de “outro” animal pessoal.

b.   A substantividade humana está constitutivamente e vitalmente vertida desde si mesma a outras pessoas.

=    O esquema, com efeito, não é algo marginal à substantividade, mas um momento constitutivo da substantividade e,
portanto, da própria vida dessa substantividade.

=    Assim os “outros” não são algo acrescentado ao homem, mas algo ao qual o homem está constitutivamente vertido
desde si mesmo.

=    O homem é “de seu” esquematicamente as outras pessoas.

c.    As “outras pessoas” estão refluindo sobre mim.

=    A minha própria realidade, dum modo esquemático, mas real, está afetada pelo seu próprio esquema, e, portanto,
pelas outras pessoas.

=    Graças à estrutura esquemática da minha substantividade, os “outros” estão já refluindo sobre mim mesmo.

=    Esta refluência tem dois aspectos.

#   Refluência por razão da função orgânica-compágica do esquema.

+   O esquema é esquema de constituição psico-corpórea (orgânico-compágica).

+   O esquema me afeta como esquema de outro organismo-compágico psico-corpóreo: o organismo-compágico psico-
corpóreo replicado geneticamente.

+   O “outro” é esquematicamente outro animal de realidades, outra pessoa.

#   Refluência por razão da função somática do esquema.

+   O esquema é unitariamente esquema de atualidade corpórea.

+   O esquema me afeta pela sua presença a meu respeito.

+   O “outro” é esquematicamente algo corporalmente presente a mim.

=    Daqui resulta que cada pessoa tem uma dupla vertente.

#   Por um lado, é uma realidade que é “sua”, determinada como absoluta frente a toda realidade enquanto tal.
#   Por outro lado, a pessoa é uma realidade cujo caráter absoluto está de alguma maneira co-determinado por refluência
por outras pessoas, por outros absolutos.

=    A minha realidade psico-corpórea, portanto, ao determinar minha realidade sendo absoluta (o Eu mesmo), a
determina não só a respeito de “a” realidade, mas também a respeito de outros relativamente absolutos.

 
 

3.     Co-determinação das pessoas

a.    Dimensões inter-pessoais

=    Ao próprio sistema substantivo do homem pertencem as notas constitutivas do seu esquema genético.

=    A refluência deste esquema na sua substantiva “realidade sendo” é por isso a atualização da unidade do sistema
inteiro do homem nas notas do esquema (=dimensão).

=    Como o esquema é muito complexo, também o é esta dimensão: tem distintos aspectos interpessoais (=dimensões
interpessoais).

=    As dimensões interpessoais estão determinadas, portanto, pela refluência esquemática dos “outros” sobre a minha
realidade.

b.   Três dimensões inter-pessoais: animal individual, animal social, animal histórico

=    Animal individual

#   O homem se multiplica geneticamente como animal de realidades só de modo esquemático.

#   Cada membro do phylum humano, portanto, tem traços e caracteres que não pertencem aos demais membros da
espécie.

#   Isso quer dizer que os membros do phylum humano não são meramente diferentes, mas “diversos”.

+   Diferença consiste simplesmente em distinção numérica e qualitativa pela qual um não é o outro; assim um homem é
diferente dum cachorro.

+   Diversidade consiste em diferença dentro da mesma versão (neste caso dentro da espécie).

-    Um homem e um cachorro não são diversos, porque a sua versão é distinta.

-    São diversos dois homens entre si, porque a sua versão é idêntica.

#   Como os homens são animais de realidades, resulta que o diverso de mim é outro animal de realidades.

+   Este momento de realidade é essencial; sem ele não haveria diversidade humana duma maneira expressa e formal.

+   O homem é “de seu” um animal diverso neste sentido preciso: pertence a uma mesma espécie, mas constitui, pelo
seu momento de realidade, outra “realidade”, mas outra dentro da mesma espécie de realidade.

#   Chamamos de “dimensão individual” esta dimensão de diversidade de cada realidade humana; a noção metafísica de
individualidade, com efeito, tem fundamentalmente dois sentidos.

+   Individualidade, antes de tudo, é o caráter de toda realidade enquanto realidade (independentemente de que haja ou
não outras realidades).

-    Toda realidade é “por si mesma” (não por algum princípio especial) algo individual.
-    Esta individualidade pode ser de três modos:

¬   Mera singularidade numérica (caso da mera matéria); assim são individuais, por exemplo, dois átomos de oxigênio
ou duas moléculas de água.

¬   Individualidade qualificada segundo a qual cada realidade é individual, mas ao seu modo (caso da matéria viva); por
exemplo, dois ipês ou dois cachorros.

¬   Individualidade da suidade:

†    É a individualidade própria tão só das realidades pessoais enquanto realidades.

†    A pessoa tem seu modo de individualidade que consiste em ser uma realidade formalmente sua e tão só sua.

+   Individualidade como dimensional interpessoal

-    É o caráter que concerne às realidades pessoais em virtude das outras realidades pessoais que há.

-    Concerne a cada realidade pessoal precisamente e formalmente pelo seu respecto específico a essas outras realidades
pessoais.

-    Assim o indivíduo pessoal é “este indivíduo” não tão só como realidade individual (primeiro sentido), mas como
diverso dos outros indivíduos pessoais (segundo sentido).

-    Esta individualidade como dimensional interpessoal é o refluxo das outras realidades pessoais sobre cada uma das da
mesma espécie.

#   Esta dimensão individual interpessoal enquanto ao ser da realidade humana consiste em que a respeito de outras
pessoas “eu” sou absoluto, mas diversamente.

+   Todo homem é seu, e o seu ser é ser Eu.

+   Mas este Eu está determinado dum modo próprio a respeito dos Eus das outras pessoas.

+   Este modo tem um caráter sumamente preciso: é essa dimensão segundo a qual o “Eu” é um “eu” a respeito dum
“tu”, dum “ele ou eles”, etc.

+   O Eu, como atualidade mundanal da minha realidade substantiva, tem essa dimensão a respeito das demais pessoas
que chamamos “ser-cada-qual”.

+   O Eu tem o caráter dimensional de ser “eu”: é a “cada-qualidade” do Eu.

+   A suidade do Eu está além de toda “cada-qualidade”.

-    O Eu é a atualidade mundanal da realidade pessoal humana.

-    O eu é a atualidade da realidade pessoal humana a respeito de outras pessoas; é o eu como co-determinado a respeito
dum tu e dum ele, etc.

+   A dimensão individual interpessoal da minha pessoa humana consiste em que “eu” sou absoluto, mas diversamente.

=    Animal social

#   A dimensão social interpessoal humana é a unidade radical de três momentos fundados cada um no anterior.

+   “Versão” estrutural de convivência humana

-    Todo homem está vertido desde a sua própria substantividade enquanto realidade aos demais viventes
do phylum humano enquanto animais de realidades.
-    Esta versão humana de convivência têm quatro caracteres constitutivos.

¬   É uma versão geneticamente constitutiva da estrutura humana e não algo adicionado a ela.

†    Radica “em” e emerge “de” as estruturas psico-corpóreas que o homem possui como substantividade.

†    Dá-se, com efeito, em virtude da refluência sobre cada substantividade humana do esquema filético constitutivo que
possui.

¬   É uma versão de cada animal de realidades a outros animais do mesmo phylum, isto é, a outros animais de
realidades.

†    Por isso não há versão de convivência dum homem a um cavalo, por exemplo.

†    O homem pode incorporar “livremente” à sua vida outros animais não humanos enquanto realidades, mas não pode
conviver com eles.

¬   É uma versão aos outros animais de realidades enquanto realidades.

†    O homem convive com os demais não porque sejam bipedestantes, porque tenham determinado rosto, etc., mas
porque são realidades bipedestantes, com tal rosto real, etc.

†    É algo do qual carece completamente a convivência entre animais não humanos.

¬   É versão pessoal

†    O homem, com efeito, é animal de realidades, e todo animal de realidades é animal pessoal.

†    Resulta, então, que a versão do homem como real aos demais homens como reais é uma versão da pessoa dele às
pessoas dos demais.

†    Esta versão pessoal pode ter duas formas: impessoal e propriamente pessoal.

°   Impessoal: é a versão à pessoa do outro, mas meramente enquanto outro.

˙    O impessoal é um caráter pessoal.

˙    Só a pessoa pode ser impessoal; o mero animal nunca pode ser impessoal: é a-pessoal.

°   Propriamente pessoal: é a versão à pessoa do outro enquanto pessoa.

+   Comunidade humana

-    A versão estrutural de convivência humana se realiza em comunidade.

-    Comunidade é a convivência do homem com os demais homens enquanto realidades.

-    As agrupações animais não humanas

¬   Os animais certamente convivem entre si.

¬   Na sua convivência formam grupos mais ou menos coerentes até constituir agrupações fundadas no caráter signitivo
dos estímulos animais.

¬   Mas esta realização da versão estimúlico-signitiva da convivência animal nunca é comunidade porque lhe falta a
formalidade de realidade.

-    A comunidade duns homens como reais com outros homens também como reais é a passagem da agrupação animal
à comunidade humana.
-    Daí que à comunidade pertençam não só as notas “naturais”, mas também as notas “apropriadas” por uma opção
perante o real como real.

-    As duas formas de versão pessoal se realizam em duas formas de comunidade: sociedade e comunhão.

¬   Sociedade

†    A convivência impessoal de pessoas humanas constitui a sociedade.

†    A sociedade é essencialmente a convivência impessoal, isto é, a convivência na qual cada pessoa funciona só como
outra.

¬   Comunhão

†    A convivência propriamente pessoal de pessoas humanas constitui a comunhão.

†    A comunhão é essencialmente a convivência propriamente pessoal, isto é, a convivência na qual cada pessoa
funciona como pessoa.

+   Habitude de alteridade pessoal

-    Na comunidade em que se realiza a versão do homem aos demais, cada homem fica afetado pelos demais.

-    É o momento de habitude (héxis) de alteridade pessoal.

#   Comunalidade do ser humano

+   O caráter social humano é um caráter da realidade humana enquanto tal.

-    O homem tem este caráter social “de seu”.

-    É um caráter que lhe compete por ser realidade psico-corpórea.

-    Por isso o homem é animal social.

+   Mas esta estrutura da realidade psico-corpórea determina uma dimensão do ser da realidade substantiva humana
(Eu).

-    O eu, o tu, etc., não só se diversificam, mas se co-determinam.

-    O Eu, enquanto envolve a determinação dum tu, já não é somente um eu individual, mas um “ser comum”.

-    O meu Eu não é só individual, mas congeneremente comunal: é a comunalidade do ser humano (do Eu).

-    Comum não significa aqui comunicado ou participado.

¬   A comunicação ou participação se funda em algo prévio: num caráter da realidade humana sendo que é a sua
comunalidade.

¬   É o “sendo” mesmo aquele que pela sua própria índole é intrinsecamente e formalmente comum antes de toda
comunicação ou participação.

¬   A possibilidade da comunicação é a comunalidade do ser humano, do Eu.

-    O Eu é comum enquanto Eu.

¬   A realidade substantiva humana é relativamente absoluta.

¬   Vimos na dimensão individual que o Eu é diversamente absoluto, é um eu.


¬   Na dimensão social vemos que o Eu é comunalmente absoluto.

=    Animal histórico

#   A espécie (o phylum) é geneticamente “prospectiva”.

+   Uma espécie não seria espécie se não fosse prospectiva, e se esta prospecção não estivesse determinada por um fator
genético.

+   A prospecção são os demais não enquanto que sou diverso deles (dimensão individual), nem enquanto que convivo
com eles (dimensão social), mas enquanto que vou determinar a continuação da espécie.

+   Esta continuação tem dois momentos.

-    Biogenético

¬   Um pai vai gerando uns filhos, etc.

¬   Não é a simples constatação de que cada homem pode ter de fato descendentes; é que o próprio phylum é
formalmente prospectivo.

-    Real: o geneticamente determinado é uma pessoa, isto é, tem um momento formal de realidade.

#   História

+   É a alteridade da prospecção real enquanto real na sua unidade com o momento genético.

+   Por isso a história tem dois momentos constitutivos: transmissão biogenética e transmissão tradente.

-    Transmissão biogenética

¬   A história é uma dimensão radicalmente e constitutivamente genética.

¬   Se o homem não tivesse uma gênese biológica, não se poderia falar de história.

¬   Por este momento, o histórico é herança e evolução.

-    Transmissão tradente

¬   Só há história no homem.

¬   Por isso, o histórico não é mera herança ou mera evolução.

†    A evolução procede por mutação; a história procede por invenção, por opção duma forma de estar na realidade.

†    O homem é essência aberta; portanto, as suas formas de estar na realidade hão de ser necessariamente elaboradas.

†    Por isso, a história não é uma prolongação da evolução (como sempre se diz): herança e evolução são só aspectos do
momento biogenético da história.

¬   A história é formalmente tradição, entrega (parádosis) de formas de estar na realidade.

¬   Só há história ali onde o processo de transmissão genética concerne às formas de estar na realidade como realidade.

¬   A transmissão genética é só o momento vector da transmissão tradente.

+   O que é formalmente tradição

-    Tradição é entrega.


-    A tradição tem três caracteres constitutivos.

¬   É “constituinte” da realidade substantiva humana.

¬   É “continuante”.

†    Para poder ser constituinte, a tradição está fundada na forma de estar na realidade recebida dos progenitores.

†    Sem isto, em cada indivíduo e em cada sociedade, a história começaria de zero, quer dizer, não haveria história.

¬   É progredinte: a tradição continua entregando aos gerados umas formas de estar na realidade.

-    Estes três caracteres estão geneticamente veiculados.

-    Neste sentido, a pessoa mesma está constituída por estes três caracteres geneticamente veiculados: é biográfico-
histórica.

-    O biográfico é momento do histórico.

+   O que é formalmente a história.

-    A história não é nem uma sucessão de vicissitudes, nem um relato, nem muito menos relato testemunhal,
documental, nem “sentido”: a tradição não transmite necessariamente nem primariamente um sentido da vida.

-    Aquilo que entrega a tradição são as formas de estar na realidade dos progenitores como “possibilidades” de estar na
realidade aqueles que recebem a história.

¬   As formas de estar na realidade enquanto transmitidas são só possibilidades.

¬   Por isso o chamado de fato histórico não é em rigor “fato”, mas “sucesso”.

†    O “fato” se refere sempre ao mero exercício duns atos.

†    Mas as possibilidades não são exercício, e sim algo que se apropria ou se rejeita ou se substitui para poder ser
exercitado.

†    O possibilitado enquanto tal é aquilo que formalmente constitui o “sucesso”: é realização de possibilidades
apropriadas e não mera execução dum ato.

¬   O histórico é uma forma de estar na realidade recebida como princípio de possibilidades.

-    O que são possibilidades.

¬   Não é o conceitualmente possível, quer dizer, o não contraditório.

¬   É o fisicamente (realmente) possível, quer dizer, aquilo que está “feito possível” por algo.

¬   Algo pode estar feito possível de quatro modos fundado cada um no anterior.

†    Por potência (potenciado): aqui possível é o potencial (é a dynamis de ARISTÓTELES)

†    Por faculdade (facultado)

°   Não toda potência está sem mais facultada para produzir o seu ato.

°   Por isso nem sempre coincidem potência e faculdade.

°   No homem, por exemplo, as meras potências do sentir e da inteligência não podem por si mesmas produzir o seu ato;
só produz o ato a faculdade única da inteligência senciente.
¬    Por possibilidades (possibilitado)

°   As possibilidades fazem possível algo por possibilitação.

°   O homem de Cro-Magnon, por exemplo, era, em potências e faculdades, tão completo como o homem de hoje, mas,
à diferença de homem de hoje, não lhe era possível voar pelo espaço, porque carecia de possibilidades.

°   É o próprio da história.

¬    Por dotes (capacitado)

°   Para executar os atos, às vezes é necessário ainda que se possam alcançar determinados objetos e atos.

°   Para isso é preciso ter o que chamamos de “dotes”.

°   As dotes fazem possível na realidade humana aquilo que chamamos de capacidade.

-    A história é processo positivo ou negativo de capacitação.

¬   As capacidades vão-se adquirindo e perdendo, e às vezes se transmitem tradentemente.

¬   A história de cada pessoa é ultimamente capacitação.

¬   A transmissão tradente é um momento da pessoa como capacitada.

+   Em que consiste a realidade humana “sendo” em dimensão histórica.

-    Tempo e historia

¬   A história, por ser prospectiva (por ser transmissão tradente), tem caráter processual.

¬   Poderia pensar-se, então, que o histórico é formalmente o temporal.

†    Só em certo modo é assim, porque o temporal não qualifica sem mais o processo histórico.

†    Pode haver, e tem havido de fato, histórias temporalmente independentes entre si.

†    Portanto, o tempo enquanto tal é formalmente plural: tem havido tempos distintos, isto é, independentes entre si.

¬   Cada processo histórico tem enquanto processo o “seu” tempo.

¬   Este “seu” tem dois caracteres bem precisos: figura e altura.

†    Figura do tempo

°   Há uma figura do tempo distinta segundo as diferentes histórias.

°   Só quando o histórico unificou-se, constituiu-se uma história “universal” com uma figura própria mais ampla.

°   A figura do tempo mudou assim prospectivamente.

°   Há assim um processo da figuração do tempo.

°   Cada fase figurante enquanto fase a chamamos de “zona do tempo”.

°   Todas as substantividades reais, por estar sendo, pertencem a uma zona temporal determinada.

°   Esta zona tem um caráter e um nome bem preciso: idade.


˙    Idade é questão não de mera cronometria, mas de pertença a uma zona temporal.

˙    Por isto, todos os homens que existem na mesma idade não são meramente sincrônicos, mas “coetâneos”.

¬    Altura do tempo

°   Mas a zona do tempo é um momento do processo temporal total: é a altura dos tempos.

°   Uma mesma ação executada hoje e no século V aC pode não ser a mesma porque se executou em distintas alturas do
tempo.

°   As realidades humanas dum mesmo processo histórico não são simplesmente coetâneas entre si, mas coetâneas numa
mesma altura.

-    Etaneidade do ser humano

¬   Ao ser da realidade da pessoa humana compete a sua etaneidade, que abrange figura e altura: é a realidade humana
histórica do eu.

¬   O eu é formalmente etâneo.

¬   A realidade humana sendo (o Eu) é unitariamente animal diverso, animal comunal e animal etâneo.
IX

COMO SE É HOMEM
 
 
 
 
 
 

A.  O homem é agente, ator e autor das suas ações.


 
 
 

1.     Introdução

a.    A vida pessoal humana é possessão de si mesmo (autopossessão) como realidade.

b.   Esta autopossessão vai se realizando.

=    A vida é ir tomando possessão da própria realidade enquanto tal.

=    Em definitiva, a pessoa vai se fazendo “vivendo”: a vida é realização pessoal.

c.    Esta realização se leva a termo executando “ações”.

=    As ações não são a vida; pelo contrário: a vida vai plasmando-se em ações.

=    Só por isso tais ações são vitais: porque são a possessão de si mesmo.

=    A pessoa vai fazendo-se ao ir executando ações.

=    Reciprocamente: as ações se executam porque a vida se plasma nelas.

=    Tomadas por si mesmas, as ações não são a vida, mas o “argumento” da vida.

d.   Isto coloca a questão: o que é o homem segundo as suas ações?

=    Cada homem é pessoa co-determinada frente a tudo o demais e frente a todos os demais, individualmente,
socialmente e historicamente.

=    O homem executa as suas ações sempre segundo estas três dimensões interpessoais: as ações humanas sempre estão
configuradas segundo esta tríplice dimensão individual-social-histórica.

=    Tomadas assim as ações humanas, perguntamo-nos: o que é o homem como executor de suas ações referidas à
realidade e às demais pessoas?

 
 

2.     Desde o ponto de vista das suas ações, o homem é agente, ator e autor delas.

a.    O homem é agente das suas ações.


=    As ações humanas são em primeira linha atuações das potências e faculdades do homem.

=    Toda ação humana é executada pelo sistema substantivo inteiro, com todas as suas notas, em que cada homem
consiste.

#   Não há ações tão só do sentir, do inteligir, do querer, etc.

#   O que acontece é que o sistema substantivo inteiro em ação tem suas predominâncias.

+   No sistema acionante, alguma ou algumas notas podem predominar diversamente sobre outras.

+   Dizer que alguma nota não intervém com uma atuação positiva não significa que não intervenha na ação, mas que
intervém nela constituindo algo assim como um “vão”: ser vão é uma intervenção real (como os silêncios na música).

#   Cada ação, portanto, é sempre atuação das notas como potências e faculdades em predomínio variável segundo a
ação e dentro de cada ação.

=    O homem é assim, antes de tudo, agente de seus atos, isto é, da sua vida: possui-se a si mesmo pela atuação de suas
potências e faculdades.

b.   O homem é ator das suas ações.

=    A vida do homem é unitariamente e intrinsecamente a vida que ele executa e, em certo modo, a vida que caiu-lhe
em sorte (por assim dizer).

=    O homem vive no perfil dum contexto já parcialmente traçado, segundo a zona temporal, o marco social e o modo
peculiar da individualidade que lhe foram dados.

=    Ao homem lhe é dado um contexto de vida antes de executar as suas ações e precisamente para poder executá-las.

=    A vida do homem não começa no vazio, mas num determinado contexto vital.

=    Podemos incluir neste contexto, parcialmente pelo menos, fenômenos tais como a vocação, etc., que não são
forçosamente algo meramente natural (como o são as potências e faculdades), mas antes de tudo um contexto vital.

=    Assim o homem é unitariamente agente das ações de sua vida e ator delas: a pessoa é em certo modo a grande
personagem da sua vida.

c.    O homem é autor das suas ações.

=    Dentro de certos limites, o homem poderia executar ações muito diversas: para isso tem que optar.

=    Optar, mais que eleger uma ação, é ad-optar nessa ação uma determinada forma de realidade entre outras.

#   Cada coisa nos impõe a forçosidade duma forma de realidade.

#   A adopção duma dessas formas de realidade entre outras é justamente a opção.

=    Neste aspecto, o homem não é só agente e ator de suas ações, mas também autor delas.

#   Cada ação confere uma forma de realidade.

#   Quando esta forma de realidade é opcional, o homem é autor da sua própria vida, da sua autopossessão nas suas
ações (numa área muito real com limites muito estreitos).

 
 
 
 
B.  Como se faz o homem pessoa relativamente absoluta em suas ações.
 
 
 

1.     Executando as suas ações, o homem ganha seu caráter de relativamente absoluto.

 
 

2.     Este “ganhar” consiste em executar ações “frente a”.

a.    O absoluto da realidade pessoal humana consiste em ser ab-soluto “frente a” tudo o demais e todos os demais; é um
momento que pertence intrinsecamente e formalmente à pessoa mesma; sem este “frente a” não se pode ser pessoa
humana.

b.   Mas, para ser real “frente a”, é intrinsecamente e formalmente necessário que haja algo a respeito do qual se esteja
“frente a”; esta necessidade lhe é imposta ao homem pela sua própria realidade.

c.    Em virtude de estar-lhe imposta esta necessidade, a realidade do homem, é absoluta, mas tão só relativamente; a
relatividade do absoluto do homem consiste formalmente em ser absoluto “frente a”, porque este “frente a” não é uma
relação àquilo frente ao que o homem está, mas uma respectividade intrinsecamente e formalmente constitutiva da
realidade pessoal do homem enquanto pessoa.

d.   Este “frente a” é frente a todas as coisas, porque as ações se executam com elas (coisa tem aqui o sentido vulgar de
“algo”; são as coisas apessoais, as demais pessoas e as notas da própria substantividade pessoal).

 
 

3.     Estando “com” as coisas, o homem está “em” a realidade.

a.    O homem está “com” as coisas.

=    O homem faz a sua vida com as coisas: viver o homem é estar em suas ações com as coisas.

=    Este “com” não é um momento acrescentado à pessoa humana como uma espécie de relação extrínseca (não é que o
homem é já absoluto e “depois” trata de configurar-se numas coisas), mas é um momento que pertence intrinsecamente
e formalmente à pessoa justamente como absoluta (é que o homem só é efetivamente e realmente absoluto vivendo com
as coisas em suas ações).

b.   Mas, estando com as coisas, o homem está “em” a realidade.

=    Onde estamos nós homens realmente e efetivamente ao executar uma ação pessoal com as coisas?

=    Aparentemente o homem está neste país, nesta casa, com uns amigos, etc.

=    Mas formalmente, estando com essas coisas, onde o homem está é “em” a realidade.

#   Toda ação humana tem formalmente um momento de realidade.

#   Em virtude disso, está justamente nessa forma de realidade que o homem adotou.

#   A missão das coisas é fazer-nos estar na realidade.

+   Aquilo “com” o qual estamos é aquilo que nos faz estar “em” a realidade.
+   Não podemos estar na realidade senão com as coisas reais.

+   Por isso, as coisas têm a missão de veicular “a” realidade.

=    Em cada ação, portanto, a pessoa humana tem sua posição “em” a realidade.

=    O homem se funda na realidade como realidade.

#   Só porque o homem está em “a” realidade executando as suas ações, pode o homem ser pessoa.

#   Vida pessoal, com efeito, é possuir-se a si mesmo como realidade estando com as coisas na realidade.

=    É o problema da fundamentalidade da realidade para o homem que se estuda nos Cursos de Filosofia da Religião e
de Filosofia de Deus.
X

NASCIMENTO DA REALIDADE HUMANA (I):

A CONSTITUIÇÃO DO “PLASMA GERMINAL”

NO MOMENTO DA CONCEPÇÃO
 
 
 
 
 
 

A.  Conceito de “materialidade”


 
 
 

1.     Conceito aristotélico de materialidade

a.    ARISTÓTELES foi o primeiro filósofo que deu um conceito rigoroso de materialidade enquanto tal; eis os pontos
básicos dessa sua concepção da materialidade.

=    As coisas são radicalmente “sujeitos substanciais”.

#   Cada coisa tem uma série de “propriedades” (qualitativas, quantitativas, relacionais, posicionais, de lugar, de tempo,
de situação, de ação e de paixão).

#   Mas todas essas propriedades duma coisa não têm realidade por si mesmas (nem isoladas nem em conjunto); têm
realidade apenas como acidentes inerentes a um sujeito que jaz por baixo delas.

#   Este sujeito subjacente de cada coisa é a sua “substância”.

=    As coisas materiais são radicalmente “substâncias materiais” ou “matéria segunda”.

#   Coisa material é aquela substância cujas propriedades são sensíveis (elementares ou combinadas), isto é, captáveis
pelos sentidos.

#   As substâncias materiais são chamadas de “materiais” justamente porque são “os materiais” dos quais estão feitos
outras coisas.

#   As substâncias materiais, portanto, são os sujeitos das mudanças.

=    A substância material (matéria segunda) é uma complexão de matéria prima e de forma substancial.

#   Na substância (matéria segunda) de toda coisa material há claramente dois momentos:

+   Os materiais que são algo “indeterminado” a respeito daquilo que com eles se pode fazer; efetivamente, com os
mesmos materiais se podem fazer coisas muito diferentes.

+   Aquilo que se faz com os materiais, que é uma configuração ou conformação de materiais, ou seja, uma “forma”.

#   Por conseguinte, a substância (matéria segunda) de toda coisa material é a complexão de dois momentos: da “matéria
prima” e da “forma substancial”.
=    A matéria prima, considerada radicalmente e em si mesma, carece de toda propriedade: não é quê nem quanto nem
nada daquilo que se diz de qualquer ente determinadamente.

#   É algo aóriston, indefinido; algo ápeiron, indeterminado.

#   É pura potência: a matéria é em toda coisa a potência.

#   É tò dektikón, pura receptividade (algo puramente “susceptível” como dirá depois a Escolástica).

=    Como a “matéria prima” é a essência da materialidade substancial das coisas materiais, a essência da materialidade
enquanto tal é ser indeterminação, potencialidade e receptividade.

b.   A concepção aristotélica da materialidade é insustentável.

=    As coisas não são substâncias, como vamos ver; é preciso superar definitivamente a idéia de substância na
concepção metafísica da realidade.

=    A idéia de matéria prima é uma construção conceptual sem base real: efetivamente, na realidade não há outra
matéria que a chamada  por ARISTÓTELES de “matéria segunda”, isto é, a coisa material a seco.

=    A concepção da materialidade como indeterminação, pura potência e pura receptividade é totalmente insuficiente.

 
 

2.     Conceito correto da materialidade das coisas materiais

a.    As coisas não são substâncias (sujeitos de propriedades), mas substantividades (sistemas de notas).

=    As coisas não são substâncias (sujeitos de propriedades): se consideramos atentamente as coisas reais, vemos
claramente que as coisas reais, de fato, não são meros agregados de propriedades inerentes a um sujeito misterioso que
jaz por baixo delas.

=    As coisas são substantividades (sistemas de notas).

#   As coisas são sistemas, isto é, conjuntos de notas que são intrinsecamente e formalmente coerentes entre si como
momentos dum tudo sistemático.

#   As notas do sistema não precisam nenhum misterioso sujeito (substância) por baixo delas.

#   As coisas são substantividades, isto é, conjuntos de notas tais que têm suficiência para constituir esse tudo
independente e uno que chamamos de coisa.

b.   O que é a materialidade enquanto tal das coisas materiais.

=    Em si mesma, a materialidade das coisas materiais ou substantividades materiais não é indeterminação.

#   Com efeito, a materialidade não é indeterminada “em si mesma”, mas “a respeito de” aquilo que com ela vai se
fazer.

#   Nesse sentido respectivo, a materialidade das coisas materiais tem certamente alguma indeterminação, ainda que
muito limitada: não qualquer substantividade material serve de material para qualquer coisa.

=    A materialidade das coisas materiais é o “sistema de potencialidades polivalentes que têm as coisas materiais de
“dar de si” algo novo.

#   A indeterminação que em certo modo tem a materialidade das coisas materiais é tão só o aspecto negativo dum
caráter estritamente positivo delas: a “polivalência” das coisas materiais para “dar de si” algo novo.
#   As coisas materiais, com efeito, têm um sistema de potencialidades polivalentes bem qualificadas e determinadas
para “dar de si” em ordem à composição de novas realidades substantivas (coisas reais) ou de novas notas reais.

#   Este “dar de si” das coisas materiais é sempre um dar de si “desde si mesmo”, tanto “por si mesmo” quanto “por
outro”, quer dizer, pela ação de outra coisa.

#   As potencialidades polivalentes de dar de si algo novo que têm as coisas materiais são potencialidades estruturais e
constitutivas delas.

+   São potencialidades de dar de si que “saem” das estruturas mesmas do sistema de notas das coisas materiais; neste
sentido, dar de si é um “sair de si”.

+   São potencialidades de dar de si que “constituem”, que realizam mais plenamente o próprio sistema de notas das
coisas materiais; neste sentido, dar de si é um “dar de si para si”.

#   As potencialidades polivalentes de dar de si algo novo que têm as coisas materiais podem ir variando no curso
mesmo do dar de si.

+   Por exemplo, uma célula germinal, inicialmente, é “totipotente” em ordem à sua diferenciação; mas esta
potencialidade vai limitando-se enormemente a medida que a diferenciação progride.

+   Talvez o caso extremo seja o neurônio, que é incapaz de toda divisão e diferenciação uma vez constituído.

c.    Classes de potencialidades polivalentes de dar de si algo novo

=    Potencialidades de caráter ativo e de caráter receptivo.

#   Potencialidades ativas são aquelas que dão de si ativamente, quer dizer, num ato ativo.

#   Potencialidades receptivas são aquelas que dão de si receptivamente, quer dizer, num ato receptivo; exemplos de atos
receptivos vêem-se claramente nas ações tanto animais quanto humanas:

+   Apalpar, a diferença do mero tocar.

+   Olhar, a diferença do mero ver.

+   Escutar, a diferença do mero ouvir.

+   Saborear, a diferença do mero gostar.

+   Farejar, a diferença do mero cheirar, etc.

=    Potencialidades de caráter imediato e potencialidades de caráter só mediato.

#   Potencialidades imediatas são aquelas que dão de si por si mesmas.

#   Potencialidades mediatas são aquelas que dão de si pela ação de outro.

=    Potencialidades de transformação e potencialidades de sistematização.

#   Uma coisa material, dando de si, pode produzir por “transformação” uma ou algumas notas novas.

#   Uma coisa material, dando de si, pode produzir por “sistematização” uma coisa nova.

 
 

3.     Desde a mera matéria até a matéria senciente

 
a.    A mera matéria dá de si por sistematização a matéria viva (ver Curso de Filosofia do Mundo II).

b.   A matéria viva

=    A matéria viva não consiste em que o vivente esteja “feito” de matéria, mas em que a matéria “é” vivente em si
mesma.

=    A matéria viva é o primórdio de vida, isto é, de sistematização vital: é a via aberta entre a mera matéria e o segundo
modo de sistematização vital que é o organismo (corpo vivo), cujo grau elementar é a célula vegetal.

=    A física atual teve que distinguir entre partículas elementares e corpúsculos; do mesmo modo a biologia tem que
distinguir entre matéria viva e organismo.

=    Os limites entre matéria viva e organismo são difíceis de traçar, porque trata-se de formas de transição.

#   Comparada com a célula, a matéria viva parece mera matéria.

#   Mas, comparada com as grandes moléculas orgânicas, inclusive enzimas e proteínas, a matéria viva é rigorosamente
viva.

=    Corresponde à biologia identificar qual é a matéria viva.

=    A matéria viva dá de si por sistematização o organismo.

c.    O organismo (matéria organizada)

=    Organismo é o corpo vivo ou corpo orgânico.

=    O seu grau elementar é a célula vegetal cuja função vital é “pura troficidade”, quer dizer, puro nutrir-se para crescer.

=    O organismo está formado por órgãos.

#   Órgão (como já dizia ARISTÓTELES) é tudo aquilo que no corpo vivo está constituído com vistas a uma função
própria.

#   ARISTÓTELES pensava, porém, que só algumas partes do corpo vivo são órgãos (para ele, artérias, nervos, pele,
etc., não são órgãos).

#   Mas, na biologia atual, todas as partes biológicas têm caráter de órgãos.

=    Conceito de organismo

#   Segundo ARISTÓTELES, o corpo vivo é organismo porque está constituído com vistas a uma função própria
determinada pela forma substancial.

#   Mas isto não define a estrutura formal do organismo considerado em si mesmo - que é aquilo do qual se trata -, mas
o corpo vivente em função da sua forma substancial.

#   Organismo, em si mesmo, é um sistema de órgãos em combinação funcional.

+   O corpo vivo é organismo porque é em si mesmo intrinsecamente e formalmente uma unidade de estrutura funcional
de órgãos.

+   Para que haja organismo, portanto, são precisos dois momentos essenciais: uma estrutura de órgãos (1) que tem esse
modo de unidade que consiste em combinação funcional (2).

+   Nessa unidade de órgãos em combinação funcional, as partes (órgãos) determinam a função do tudo (organismo), e o
tudo (organismo) determina a função das partes (órgãos).

+   Organismo é uma espécie daquilo que os matemáticos chamam de “funcional”.


d.   O animal (matéria senciente)

=    O organismo dá de si por sistematização o animal quando se põem em jogo as potências da “sensibilidade” que é a
função vital da “estimulação”.

=    Nesse momento, há que dizer com estrito rigor que a matéria sente, que a matéria é animal.

=    O animal é certamente uma inovação, mas tão só na ordem duma nova sistematização: matéria viva, organismo e
animalidade são três tipos de sistematização vital puramente material, fundado cada um deles nos anteriores.

=    As estruturas da matéria senciente (do animal) têm diversos tipos de potencialidades:

#   Potencialidades genéticas: são as potencialidades de replicação das próprias estruturas e pelas próprias estruturas que
constituem a “gênese” de outro animal.

#   Potencialidades filéticas: pelas potencialidades genéticas as próprias estruturas podem ser princípio de linhas animais
relativamente homogêneas: podem constituir um phylum.

#   Potencialidades de evolução:

+   Estes phyla podem, por sua vez, dar de si e produzir outros phyla distintos: é a “evolução”.

+   A evolução é a produção dum phylum “feito” desde outro pela modificação deste outro, uma modificação que pode
ser de distinto caráter.

 
 

4.     Conclusão

a.    Não podemos reduzir o conceito de matéria à matéria puramente mecânica, dotada das qualidades que usualmente
chamamos de propriedades físicas (massa, peso, temperatura, etc.)

=    A matéria é de extraordinária riqueza: pode em seu momento chegar inclusive a viver e a sentir nas formas
fileticamente mais distintas.

=    Atenção que estamos dizendo somente que “pode”: efetivamente nem toda matéria vive (como quer o
“hylozoísmo”), nem toda matéria sente (como quer o “pan-psiquismo”).

=    Mas, por mera sistematização, a matéria pode chegar a viver e sentir: quando isto ocorre, a matéria vive e sente
exatamente igual que pesa ou esquenta.

b.   Isto não é materialismo, mas “materismo“.

=    A concepção que estamos a expor não é materialismo.

#   Primeiro, porque o conceito de matéria aqui exposto é distinto do conceito de matéria que deu origem ao
materialismo.

#   Segundo, porque o materialismo consiste em dizer que não há mais realidade que a material; e isto é absolutamente
falso também adotando o conceito de matéria aqui exposto.

=    A concepção aqui exposta deveria chamar-se de “materismo“.

c.    Ademais das potencialidades de transformação e sistematização há ainda outro modo de dar de si: é a gênese da
substantividade animal humana desde a substantividade meramente animal.

 
 
 
 

B.  A gênese da realidade humana


 
 
 

1.     A geração do plasma germinal pelos elementos germinais

a.    A questão

=    O homem é uma unidade substantiva psico-corpórea, isto é, um sistema intrinsecamente unitário e estrutural de
notas materiais-animais (corpo) e de notas psíquicas (psique).

=    Pois bem, esta unidade é algo rigorosamente gerado; em que consiste esta geração?

b.   Geração não é “transmissão de vida” pelos progenitores.

=    À primeira vista, geração parece ser transmissão de vida.

#   O gerado seria um vivente produzido por seus progenitores: o novo vivente seria a resultante duma transmissão vital.

#   Mas esta idéia de transmissão é sumamente inexata, tanto pelo que concerne ao corpo quanto pelo que concerne à
psique.

=    Os progenitores não transmitem o corpo (a célula germinal).

#   Usualmente se fala só da não-transmissão da psique; mas há que salientar com precisão que o corpo também não é
termo de transmissão.

#   Os progenitores transmitem os elementos germinais (espermatozóide e óvulo).

+   Nenhum dos dois elementos germinais, apesar de serem células, é a célula germinal (corpo); nenhum dos dois é
organismo vivo no sentido em que vai sê-lo a célula germinal.

+   Os dois elementos germinais por fecundação, isto é, por si mesmos, por uma ação deles mesmos e não dos
progenitores, produzem por sistematização a célula germinal (o corpo).

#   Os progenitores, portanto, não transmitem o corpo, mas só aquilo que por si mesmo vai produzir o corpo.

=    Os progenitores também não transmitem a psique.

#   A substantividade humana é uma unidade na qual o corpo é “corpo-de” a psique, e a psique é “psique-de” o corpo.

+   O “de” do “corpo-de” é “corporização“ da psique; o “de” da “psique-de” é “animação” do corpo.

+   Por isso o corpo não é só “de” a psique e a psique não é só “de” o corpo, mas o corpo é em si mesmo “psíquico” e a
psique é em si mesma “corpórea”.

+   O homem é uma unidade psico-corpórea ou corpóreo-psíquica.

#   Portanto, se na ação dos progenitores não se transmite o corpo, também não pode se transmitir a psique.

+   Só pode haver psique quando há um corpo “de” quem é a psique, isto é, só desde que há célula germinal.

+   Portanto, não há psique senão “depois” da ação dos progenitores, porque não há corpo senão depois da ação deles.
=    A psique, portanto, não é termo de transmissão, mas resultado da sistematização dos elementos germinais na célula
germinal.

c.    Geração é resultância do processo da sistematização constitutiva dos elementos germinais no “plasma germinal”.

=    O espermatozóide fecunda o óvulo e se produz a “célula germinal” (=corpo).

=    Plasma germinal

#   Desde o momento da fecundação, porém, a célula germinal é “já” corpo humano capaz de ser “corpo-de”.

#   Assim que se produz a célula germinal surge nela a “psique-de” ela.

#   Tudo aquilo que o homem é, está já embrionariamente no ponto de partida e nele há, portanto, não só corpo-de
(célula germinal), mas psique-de.

#   No ponto de partida embrionário há já um sistema psico-corpóreo integrado por célula germinal (corpo) e psique.

#   Para expressar este sistema psico-corpóreo inicial (psique-célula germinal) usamos a expressão “plasma germinal”.

d.   Ainda que os pais não transmitem nem o corpo nem a psique do filho, cabe falar perfeitamente duma continuidade
real da vida dos pais na vida do filho.

=    O novo vivente (filho) procede de dois viventes (pai e mãe).

=    Nessa geração, há uma continuidade real da vida dos pais na vida do filho; os pais, com efeito, transmitem os
elementos germinais (espermatozóide e óvulo) que constituem desde si mesmos e por si mesmos o corpo, e este, desde
si mesmo, ainda que não por si mesmo, como vamos ver, a psique.

=    Na estrutura interna desses elementos germinais gravita o peso inteiro da continuidade real da vida dos pais na vida
do filho...; corresponde à biogenética descobri-lo

 
 

2.     A célula germinal faz desde si mesma apsique.

a.    A questão

=    A psique não é transmitida, mas resultância do processo de sistematização constitutiva da célula germinal: enquanto
há corpo, há psique.

=    O que é esta resultância?; esta é a questão radical.

b.   O corpo não é causa dispositiva da psique.

=    Poder-se-ia pensar, com efeito, que a célula germinal é uma causa dispositiva da psique, isto é, algo que está a ponto
para receber uma psique.

=    Isto não é assim, por duas razões convergentes.

#   Primeiro, porque a resultância não consiste em “recepção”.

#   Segundo, porque esta recepção não daria lugar a uma psique-corpórea nem a um corpo-psíquico.

+   Daria lugar só a uma psique “em” um corpo.

+   A psique, porém, não está “em” o corpo, mas “é-de” o corpo.
c.    O corpo não é causa exigitiva da psique.

=    Não se trata de que o corpo peça uma psique.

=    A razão é simples:

#   Nem o corpo exige uma psique, nem a mera psique exige um corpo.

#   Exigir é sempre e só exigência da substantividade; e acontece que nem o corpo nem a psique cada um por si mesmo
são substantividade.

#   Só pode exigir o homem inteiro, mas exige para sobreviver e não para constituir-se como vivente humano.

d.   A psique brota processualmente desde o corpo mesmo (desde a célula germinal).

=    Brotar não é surgir (florescer).

#   Brotar não é meramente surgir como se se tratasse dum mero florescimento.

#   Florescer é uma vaga metáfora que nos levaria de novo a uma psique “em” um corpo, mas não a uma psique “de”
um corpo (a um “de” de constituição intrínseca).

=    Brotar é “brotar-desde” as estruturas daquilo do qual se brota: a psique brota desde a estrutura mesma da célula
germinal.

=    Brotar-desde é um “fazer” que consiste em “constituir”: as estruturas da célula germinal fazem, constituem, a
psique.

#   Dizemos que algo brota desde algo quando o primeiro algo ao qual dá origem o segundo é algo constituído por este
segundo: trata-se dum estrito “fazer constitutivo”.

#   O “desde” do brotar-desde não é um mero ponto de partida nem um simples meio, mas é um desde de originação
constitutiva.

#   A psique está produzida desde a célula germinal mesma e pelas suas estruturas; portanto, a psique resulta constituída
como tal psique pelas estruturas celulares das quais brota.

#   Com efeito, este “fazer” das estruturas celulares é tal que ditas estruturas são momentos intrínsecos, formais e
estruturais, das notas psíquicas.

#   O fazer da célula germinal é, pois, um fazer constitutivo do psíquico; portanto, este fazer é constituir algo que é
momento próprio em si mesmo, mas próprio em forma tal que pertence à estrutura corpórea mesma: é um momento
unitariamente psico-corpóreo em toda nota constitutiva da substantividade.

#   Por exemplo:

+   Não é que haja cérebro e “ademais” intelecção; no homem há intelecção cerebral ou cérebro inteligente.

+   Não é que haja sentir e “ademais” inteligir; no homem há intelecção senciente ou sentir intelectivo.

#   As notas de todo sistema possuem nele uma rigorosa posição, distinta segundo seja a substantividade; pois bem, na
substantividade humana todas as notas psíquicas formam “uma” estrutura com as notas corpóreas, e ao invés; todo o
psíquico “é” corpóreo, e todo o corpóreo “é” psíquico.

=    As estruturas da célula germinal “fazem” desde si mesmas a psique, e com isso o sistema psico-corpóreo em todas e
cada uma de suas notas, e em sua unitária e indivisível atividade.

 
 

3.     A célula germinal faz desde si mesma a psique pela natureza naturante
 

a.    O corpo não pode fazer por ele mesmo que a psique brote desde ele mesmo.

=    Corpo e psique, com efeito, são distintos não gradualmente, mas essencialmente.

=    Portanto, ainda que as estruturas da célula germinal fazem “desde elas mesmas” a psique, não fazem a psique nem
podem fazê-la “por elas mesmas”.

=    Se fazem brotar a psique desde elas mesmas é porque algo as leva intrinsecamente a fazê-lo, isto é, porque algo lhes
“faz que façam” a psique.

#   O fazer a psique que a célula germinal faz desde ela mesma é um estrito fazer.

#   Mas é um fazer que lhe fazem que faça.

b.   Aquilo que leva a célula germinal a fazer desde si mesma o que por ela mesma não poderia fazer é a natureza
naturante.

=    O homem, como todas as realidades intramundanas, pelo seu momento corpóreo, é fragmento dessa unidade
primária e radical que chamamos de mundo.

#   Na realidade, toda coisa é “uma” tão só por abstração: nenhuma coisa é plenamente substantiva; é só um fragmento
quase-substantivo do mundo, um rudimento de substantividade.

#   O único que tem substantividade plena é o mundo.

#   O mundo não é um agregado (nem sequer ordenado) de coisas substantivas, mas uma substantividade, um sistema,
uma unidade primária das coisas, que são as notas nas quais se expressa essa unidade primigênia e formal que é o
mundo.

#   Esta unidade do mundo é formalmente dinâmica: o mundo é uma espécie de melodia dinâmica que vai fazendo-se
em suas notas.

#   Podemos chamar o mundo também de natureza.

=    A natureza ou mundo tem dois momentos:

#   Natureza naturada (natura naturata): são as coisas naturais nas quais dinamicamente se expressa a natureza.

#   Natureza naturante (natura naturans): é o momento da unidade primária de todas as coisas naturais (que não é uma
magna coisa natural).

=    A natureza naturante, por ser a unidade primária, determina o mais intrínseco das estruturas naturadas: esta
determinação é o que chamamos de “produção”.

#   Esta ação naturante da natureza naturante é aquilo que produz a psique, não só produzindo-a “em” as estruturas
celulares e “desde” as estruturas celulares, mas fazendo que sejam “as estruturas celulares mesmas” as que produzam a
psique.

#   A produção da psique é uma ação da natureza naturante, mas que transcorre intrinsecamente na natureza naturada da
célula germinal fazendo que ela esteja estruturalmente levada a realizar desde si mesma as notas psíquicas.

#   Nisto consiste “fazer que faça”: a natureza naturante faz que a natureza naturada faça.

#   A unidade intrínseca deste dois fazeres é justamente a constituição do plasma germinal.

c.    Com certeza, os alunos ficarão perplexos diante desta explicação e se perguntarão: como pode a natureza naturante
produzir por elevação uma inovação essencial como é o homem?; o que é, então, essa natureza naturante?
=    Obviamente é para ficar perplexo; porque também deste lado aparece o enigma constitutivo da realidade enquanto
realidade, isto é, do mundo como natureza naturante...

=    Aqui não dizemos o que é a natureza naturante em profundidade fundamental transcendente; o dizemos na Filosofia
de Deus: é Deus, que é distinto do mundo, mas não separado do mundo.

 
 

4.     Fazer a natureza naturante que a célula germinal faça a psique consiste formalmente em “elevação”.

a.    Fazer que algo faça não é aqui produzir mediante uma causa instrumental.

=    Poder-se-ia pensar que as estruturas celulares são a causa instrumental da constituição do plasma germinal pela
natureza naturante, a qual seria a causa principal.

#   A causa instrumental produz o seu efeito como causa utilizada ou aplicada por uma causa principal.

#   Assim, a causa instrumental tem dois efeitos distintos:

+   O seu efeito próprio: por exemplo, o efeito próprio do pincel do pintor seria corar a tela.

+   O efeito segundo: aquele efeito segundo o qual, corando a tela, a cor constitui uma paisagem, um retrato, etc.

#   O efeito segundo o faz o pincel desde si mesmo (é, portanto, algo feito pelo pincel), mas não por si mesmo, mas pelo
pintor, que é quem faz que o pincel faça.

#   Toda combinação de causa principal e causa instrumental é, pois, um “fazer que faça”.

=    Mas isso não quer dizer que todo fazer que algo faça seja articulação de causa principal e causa instrumental:

#   A natureza naturante não utiliza ou aplica as estruturas celulares como um instrumento.

#   Há outro modo de fazer que algo faça, que é o que se dá na produção do plasma germinal.

b.   Fazer que a célula germinal faça a psique é produzir por “elevação”.

=    A natureza naturante absorve as estruturas da célula germinal num nível superior que consiste precisamente em
fazer que as estruturas celulares mesmas façam a psique.

=    A célula germinal, como momento peculiar da natureza naturada na natureza naturante, pode originar a psique: as
estruturas celulares produzem a psique “por elevação”.

=    A elevação é o ato próprio da natureza naturante na geração da psique.

=    A elevação enquanto tal consiste em que aquilo que faz a célula seja “nas estruturas celulares mesmas” superior às
simples estruturas materiais.

 
 

5.     A elevação consiste em elevação à realidade como tal: faz-se trabalhar à célula em ordem à realidade como tal.

a.    Nas estruturas celulares reais nunca está presente “formalmente” o caráter mesmo de realidade.

=    Toda estrutura material é efetivamente real (é “de seu” aquilo que é).
=    Todas estas estruturas efetivamente reais constituem a célula germinal e atuam nela em virtude daquilo que são
realmente.

=    Mas jamais constituem a célula germinal nem atuam celularmente por e para o caráter mesmo de realidade.

b.   Elevar é fazer que aquilo que é “de seu” constitua um “seu próprio de seu”, que atue “formalmente” pelo seu caráter
mesmo de realidade.

=    Elevação é um modo superior de realidade: é fazer que aquilo que é “de seu” se faça “seu próprio de seu”, isto é, se
faça “de seu” dum modo expresso e formal.

=    Em toda elevação há um momento de homogeneidade física entre o elevado e aquilo ao qual se eleva.

=    Na produção da psique por elevação, este momento é a formalidade do “de seu”, a formalidade de realidade que é
momento estritamente e rigorosamente físico de toda coisa real.

=    A natureza naturante eleva a célula germinal a fazer-se plasma germinal: um modo superior do “de seu”, isto é, o
modo formal e expresso, expressamente constitutivo do psíquico.

c.    Justamente aí surge o psíquico.

=    As três notas da psique estão “feitas” pelas estruturas celulares, mas elevadas.

#   Inteligência

+   O animal apreende as coisas como estímulos (puro sentir).

+   Por elevação à ordem do real como tal, estas mesmas apreensões apreendem o estímulo como estímulo “de seu”
(estímulo real): cor real, som real, etc.

+   Aí temos a inteligência senciente, produzida pelas estruturas animais, mas elevadas à ordem do real como real.

#   Sentimento

+   O estado tônico vital do animal é modificado pelos estímulos apreendidos (puro afeto).

+   Por elevação à ordem do real como tal, estes mesmos afetos são modos de estar realmente na realidade (afetos reais):
estar realmente triste, alegre, com raiva, etc.

+   Aí temos o sentimento afetante, produzido pelas estruturas animais, mas elevadas à ordem do real como real.

#   Vontade

+   O animal modificado pelos estímulos apreendidos responde com uma ação (tendência).

+   Por elevação à ordem do real como tal, estas mesmas tendências respondem realmente na realidade (respostas reais):
são as diversas volições.

+   Aí temos a vontade tendente, produzida pelas estruturas animais, mas elevadas à ordem do real como real.

=    Assim está feita toda a psique, porque uma nota é psíquica quando envolve “formalmente” o momento de versão à
realidade.

=    O animal não só não se perde, mas fica constituído como animal de realidades, quer dizer, como homem.

 
 

6.     O que são as notas psíquicas da célula germinal elevada à ordem da realidade como realidade.
 

a.    A questão

=    Intelecção senciente, sentimento afetante e volição tendente, tal como os acabamos de descrever, concernem ao
homem em fases mais desenvolvidas do seu crescimento.

=    Estamos dizendo, porém, que a célula germinal está elevada a plasma germinal (corpo-psíquico) desde o instante
mesmo da concepção.

=    É forçoso, então, perguntar-se:  o que são as notas psíquicas da célula germinal elevada à ordem da realidade como
realidade?

b.   Elevação é um “princípio” constitutivo dinâmico.

=    Elevação não é a produção duma substância ou coisa de ordem superior à material.

=    A elevação é só uma espécie de movimento impelente para a ordem do formalmente real.

=    Portanto, não é algo estático, mas algo constitutivamente dinâmico.

=    É, pois, um “princípio” já que consiste em impelir intrinsecamente a célula germinal (em impelir a atividade celular)
para uma ordem superior.

c.    O movimento constitutivo dinâmico que é a elevação faz que o feito pela célula seja rigorosamente “psique”.

=    Efetivamente: por elevação (princípio) a célula germinal (o principiado) está dinamicamente vertida ao real como
real.

=    Não há elevação porque há psique, mas justamente ao invés: há psique porque há elevação.

=    O psíquico é o resultado da elevação das estruturas celulares à ordem da realidade enquanto tal.

d.   As estruturas celulares hiperformalizadas são as que produzem eo ipso o ato de elevação.

=    A elevação é terminativamente um segundo ato novo numericamente e especificamente distinto do ato que produz
as estruturas celulares desde os elementos germinais (espermatozoide e óvulo).

=    Com efeito, a diferença da estimulidade e da realidade é essencial e não gradual.

=    Mas estes dois atos não são independentes: o primeiro (produzir o material) determina o segundo (elevação) por um
processo evolutivo do primeiro, mas não o produz terminativamente: o produz a natureza naturante.

=    Enquanto determinação do primeiro, a produção do segundo ato é evolução das estruturas materiais.

#   Evolução - lembremos - não é transformação duma coisa em outra, mas produção dum segundo phylum feito em
função de transformações do primeiro.

#   A evolução ao psíquico está feita pela transformação das estruturas celulares animais.

=    Está feita pelas estruturas celulares mesmas, mas não por si mesmas.

=    Este momento de evolução na produção da psique é a “hiperformalização animal”: as estruturas celulares
hiperformalizadas são as que produzem eo ipso o ato de elevação.

e.    Evolução e elevação são duas potencialidades do mundo mesmo; daí quatro consequências:

=    1ª: A elevação concerne a todo o phylum humano, e, portanto, é uma elevação que passa de progenitores a gerados.
=    2ª: A psique mesma não se transmite, porque a elevação não é a psique: cada psique surge individualmente desde
cada célula germinal.

=    3ª: Esta psique radical e primigênia tem notas estruturais psíquicas que ainda não são estritamente intelecção nem
sentimento nem volição, mas sim “geradoras” delas.

#   Alguns exemplos:

+   A sexualidade humana

-    A célula germinal, em função da paridade de seus cromossomos, é constitutivamente sexuada (sexualidade animal).

-    Mas por elevação torna-se nota psíquica: é a sexualidade humana (a sexualidade como forma de versão à realidade)
a diferença da sexualidade animal.

+   Forma mentis

-    Por controle gênico estão determinadas certas capacidades mentais de toda ordem, assim como o possível
predomínio dumas sobre outras e da sua diferente intensidade.

-    Trata-se de estritas notas psíquicas, porque são uma forma de versão à realidade.

-    Constituem um esboço primigênio e primário de forma mentis.

+   Anomalias psíquicas

-    O controle gênico pode determinar também algumas anomalias que afetam dum modo radical à psique, por exemplo
alguns tipos de oligofrenia.

-    Nestes casos não é a estrutura cerebral a raiz da oligofrenia.

-    Pelo contrário: o cérebro está determinado por uma célula germinal que duma maneira radical é já oligofrênica, por
exemplo, mongolóide pela trissomia do cromossomo 21.

#   Consequência importantíssima: não se transmite a psique, mas se transmite o primeiro estado psíquico.

+   Não se transmite a psique; transmite-se tão só a elevação, a qual eleva justamente as estruturas celulares ao seu
caráter psíquico e, portanto, faz que sejam as estruturas celulares as que determinem as notas radicais constitutivas do
primeiro estado psíquico.

+   Mas, como as estruturas celulares estão determinadas pelos progenitores, resulta que, ainda que a psique não se
transmita, o primeiro estado psíquico está rigorosamente determinado e transmitido pelos progenitores.

=    4ª: A psique e as suas notas constitutivas são constitutivamente de caráter genético.

#   Assim como a célula germinal (a matéria animal) é genética, também é genética a psique: há uma rigorosa gênese
psíquica.

#   As notas chamadas de superiores - inteligência, sentimento e vontade, etc. - são conquistas da gênese psíquica, do
caráter constitutivamente genético das notas inferiores.

#   A psique, o psíquico, “vai formando-se” como tal psique.

f.    A atividade psíquica do plasma germinal

=    A questão

#   Estamos dizendo que no plasma germinal está o sistema substantivo humano integral.

#   Isto quer dizer que desde o momento da concepção há já uma só atividade humana (psico-corpórea).
#   Isto pode parecer absurdo, porque os processos da célula germinal são manifestamente bio-químicos exclusivamente,
e nestes processos a psique não tem nada a fazer.

=    Efetivamente: a psique não pode aí fazer nada, porém está em atividade.

#   Atividade não é sinônimo de fazer, de ação.

+   A toda atividade compete essencialmente um momento de passividade.

+   A passividade é estrita atividade: é atividade passiva.

+   A ação, porém, é atividade acional.

#   Como atividade acional, no plasma germinal só há ações bioquímicas: nelas não intervém o psíquico para nada; dizer
o contrário seria simplesmente absurdo.

#   Mas nessa atividade germinal se acha também em atividade o psíquico dum modo passivo, isto é, como atividade
passiva.

=    No transcurso dos processos moleculares, vai se modelando passivamente a psique.

#   No plasma germinal há uma única atividade acional-passiva do sistema psico-corpóreo.

#   Nessa fase inicial, há evidentemente um predomínio acional do corpóreo; em outras fases, na vida adulta, acontecerá
o contrário.

=    Explicações necessárias para evitar interpretações absurdas do que estamos dizendo.

#   Não se trata de que a psique no plasma germinal vai “sentindo” sensações, ou que tenha “memória” desta vida
germinal.

+   Isso é absolutamente quimérico.

-    Estas sensações e memorizações seriam “atos” que a psique executaria.

-    Mas no plasma germinal, a psique não executa ato algum.

+   A psique vai formando-se passivamente.

-    Formar-se passivamente não significa executar atos elementares, mas ir se dispondo para, no seu momento (só no
seu momento), executar os atos para os quais foi-se formando no plasma germinal.

+   Esta conformação se forma passivamente por aquilo que conferem à psique os atos bioquímicos que a célula
germinal executa.

+   É a formação, por exemplo, duma psique pobre ou rica, sã ou enferma, fraca ou forte, etc.

#   A passividade psíquica do plasma germinal não se limita ao vegetativo e ao sensitivo, mas se estende a todas as
notas psíquicas, inclusive intelectivas, sentimentais e volitivas.

+   Na fase germinal, a psique não tem consciência, nem intelige, nem tem sentimentos, nem toma decisões, etc.

+   Mas os processos moleculares começam a conformar, por exemplo, o tipo de inteligência, de afetividade, de
voluntariedade, etc., que terá a psique quando entrar em ação.

+   Esta conformação vai levando-se a termo ao longo de todo o desenvolvimento psico-corpóreo durante a etapa pré-
natal, e ainda depois do nascimento.

-    A criança não nasce com o cérebro já completamente organizado e formado.


-    Na etapa post-natal continua a organização cerebral, até o ponto de que não há nenhum homem que haja “usado”
todo o seu cérebro.

-    Unitariamente se organizam muitos outros aspectos da psique.

-    Mais ainda: todos os processos animais da vida adulta, tanto normais quanto patológicos, continuam conformando a
psique.

-    O corpo vai se configurando em formas distintas ao longo de toda a vida; exatamente igual, a psique vai se
configurando em atividade passiva ao longo de toda a vida.

#   Tudo quanto estamos dizendo se refere à psique mesma e não só ao psiquismo.

+   O termo psiquismo alude preferentemente à atividade da psique; a psique, porém, é em si mesma algo mais radical
que a atividade dela.

-    Não é o mesmo o uso melhor ou pior que se faça da inteligência (psiquismo), que ter muita ou pouca inteligência,
inteligência pobre ou rica, etc. (psique).

-    Não é o mesmo não saber bem as coisas por não querer sabê-las (psiquismo), que ter uma inteligência mal formada
(psique).

-    A psique é anterior ao psiquismo.

+   A psique mesma vai adquirindo geneticamente a sua conformação radical; a formação psíquica não concerne ao
ponto de vista do exercício da atividade psíquica (psiquismo).

-    Da mesma forma que o corpo, a psique não está dada duma vez por todas: a psique não surge já completamente feita
nem no indivíduo nem na espécie.

-    Há uma estrita “morfogênese” da psique.

+   Mas esta morfogênese da psique é só o momento psíquico da morfogênese da única substantividade humana.

-    Desde o plasma germinal há um só sistema integral psico-corpóreo.

-    A morfogênese, portanto, é morfogênese do sistema (morfogênese unitária psico-corpórea), isto é, morfogênese
humana.

-    Na fase germinal, a psique vai conformando-se geneticamente em atividade passiva.

#   Pensa-se que o psíquico começa só com o aparecimento do cérebro; não e assim; a psique começa com o plasma
germinal, e nele está em atividade ainda que só passiva.

+   O que faz o cérebro é “autononomizar” até certo ponto a fase de atividade acional da psique (psiquismo).

+   Falamos “até certo ponto” porque não só o cérebro regula a atividade da psique e do corpo, mas também esta
atividade acional psico-corpórea regula a atividade nervosa e cerebral.

+   Trata-se duma unidade cíclica que põe de manifesto que a psique não está primariamente nem radicalmente adscrita
ao cérebro, mas ao homem inteiro desde o plasma germinal.

+   Este processo psíquico não se limita à transmissão do impulso nervoso, mas tem um aspecto bioquímico especial:

-    O cérebro mesmo segrega neuropéptidos e hormônios que regulam a atividade da hipófise.

-    Em termos mais gerais, há toda a atividade dos transmissores bioquímicos.

-    Não são eles a explicarem o psíquico, mas são os que conformam passivamente a psique adscrita desde o plasma
germinal.
#   Nisto, e não em outra coisa, consiste o termo da “psicologia profunda”: o processo da constituição psíquica desde o
plasma germinal.

+   A psicologia profunda não corresponde ao domínio do chamado “pré-consciente”, porque isto significa dar por certo
três coisas absolutamente falsas:

-    Que a psique se identifica com o psiquismo.

-    Que a essência do psíquico é consciência.

-    Que tudo o que antecede à consciência é mera preparação para o psíquico.

+   Menos ainda a psicologia profunda corresponde ao domínio do consciente “reprimido”.

+   A psicologia profunda corresponde à constituição dos caracteres do psiquismo enquanto “realidade psíquica”: à
conformação da psique como realidade desde o plasma germinal.

-    Esta psicologia não pode prescindir do biológico, porque toda atividade humana sem exceção alguma é
constitutivamente psico-corpórea.

-    O profundo da psique não é um sistema de seqüelas mais ou menos larvadas, mas a configuração da psique mesma,
proceda ou não de influências externas.

-    Se estas influências externas existem, o profundo não está nas seqüelas que deixam no funcionamento psíquico, mas
na conformação da psique mesma.

-    Esta conformação pode ser devida à constituição mesma do plasma germinal, e não a influências externas.

¬   Um exemplo claro é o mongolismo (síndrome de Dawn).

†    Deve-se à trissomia do cromossomo 21; é, portanto, um processo meiótico anormal de caráter estritamente físico-
químico.

†    No seu desenvolvimento conduz a um corpo com caracteres peculiares, mas também a um modo de inteligência,
sentimento e vontade notoriamente distinto do normal.

†    Poder-se-ia pensar que isso é devido a que o cérebro é mongolóide, mas não é assim.

°   A psique e a sua função existem já anteriormente à sua entrada em ação: existe em atividade passiva desde o plasma
germinal.

°   No mongolóide, esta atividade passiva da psique é mongolóide desde o plasma germinal pela trissomia do
cromossomo 21.

°   O sistema germinal psico-corpóreo sofre uma alteração num preciso ponto físico-químico: na replicação dos
cromossomos.

°   Em virtude disso, o sistema inteiro é já anormal.

°   Portanto, não é que a psique será mongolóide quando haverá cérebro, mas a psique é já mongolóide desde a
concepção.

°   Na sua hora, se formará um sistema nervoso mongolóide.

°   Este desmembrará mongoloidemente a entrada em ação de certos aspectos duma psique já mongolóide desde a
concepção.

¬   O mesmo deve dizer-se, por exemplo, da oligofrenia fenil-pirúvica.


†    A falta de certa enzima produz uma acumulação de ácido fenil-pirúvico que bloqueia a transformação do triptófano
em serotonina, essencial na bioquímica neuronal.

†    Temos, então, uma psique oligofrênica, porque temos um sistema humano oligofrênico.

g.   Caráter genético da elevação

=    A elevação é um movimento genético para o real como tal.

=    Por ser um movimento genético, há que dizer que a matéria animal vai elevando-se geneticamente para o real como
real.

=    Com isso, a psique também vai fazendo-se como tal psique.

=    Dizíamos que a elevação é uma espécie de força, de impulso de elevação: um dinamismo.

=    Pois bem, esta força tem um caráter preciso: é dinamismo genético, é gênese.

=    A gênese não consiste na modificação duma realidade segundo as suas “partes” constitutivas, mas numa gênese de
ordem puramente “qualitativa”.

=    A elevação não é, pois, algo instantâneo, mas algo de caráter genético.

=    O resultado da elevação (a psique) não é um sistema estático de notas, mas um princípio genético de suas próprias
notas psíquicas ulteriores.

=    A elevação não é a psique; mas a psique é aquilo que produzem as estruturas celulares por elevação.

=    Este processo de notas produzirá em seu momento, e ao ritmo dos processos celulares, uma inteligência senciente,
um sentimento afetante, uma volição tendente, etc.

=    Daí que a verdadeira psicologia profunda é esta estrutura genética radical, primária e constitutiva.

 
 

7.     Não há duas gêneses, uma material-animal e outra psíquica, mas uma só gênese psico-corpórea desde a concepção
mesma dum vivente já psico-corpóreo.

a.    O corpo faz a psique e a psique faz o corpo.

=    Esta única gênese se prolonga ainda depois do nascimento.

=    Chega um momento em que a psique (feita pela célula germinal) faz por sua vez o corpo.

=    Assim o recém nascido não tem terminada a organização funcional do seu cérebro: a irá adquirindo; nesse processo
inegavelmente intervém como determinante a própria psique.

b.   A elevação faz que o material-animal (corpo) seja mais que material-animal (psíquico).

=    Elevada a célula germinal à realidade como tal, o produzido em e por as estruturas celulares humanas é superior
nelas à ordem da mera realidade material-animal delas.

=    Obteve-se um nível de realidade não deixando fora a ordem material-animal, nem acrescentando-o à ordem
material-animal, mas fazendo que o material-animal mesmo seja mais que material-animal.

=    Ser mais que material-animal é ser “de seu”, mas sê-lo formalmente como realidade.
c.    Em contra de HEGEL há que dizer o seguinte:

=    Este mais que material-animal não é uma reflexividade da matéria-animal sobre si mesma (uma entrada da matéria-
animal em si mesma).

=    A reflexividade, com efeito, não é o modo único nem o mais radical de superação: o modo mais radical é a
elevação.

d.   Unidade matéria-animal e psique na substantividade humana.

=    Só porque há elevação pode haver psique; e só porque há já psique pode haver reflexão.

=    Graças a isso tudo, a diferença no phylum animal entre célula germinal e psique, apesar de ser essencial, não quebra
a continuidade do processo genético, mas o prolonga a um nível superior: ao nível da substantividade humana.

=    Assim a unidade corpo-psique na substantividade humana é unidade física, intrínseca e constitutiva: aquilo que se
concebe na concepção “é um homem”.

=    O resultado da produção da psique pela célula germinal, portanto, é a constituição da única substantividade humana.

#   Esta substantividade não é um “agregado” de corpo e psique.

#   Precisamente porque a psique está produzida desde as estruturas celulares, todas e cada uma das notas humanas são
rigorosamente psico-corpóreas.

#   Cada nota é corpóreo-psíquica ou psico-corpórea.

#   Portanto, a produção da psique pelas estruturas da célula germinal não consiste em “despedir-se” do corpo, mas, pelo
contrário, em “conservar” o corpo e as suas estruturas, mas como momentos duma estrutura superior: a estrutura da
substantividade humana.

#   Esta estrutura superior, pois, não consiste numa espécie de esforço por libertar-se (evadir-se atualmente ou
intentadamente) da matéria, como se a psique estivesse prisioneira no corpo, mas numa estrita “elevação” desde si
mesma: consiste em fazer que a matéria-animal mesma esteja fazendo a sua própria superação (=elevação).

#   Ser homem não consiste em deixar de ser matéria-animal, nem em que a matéria-animal sirva à psique, mas em
“corporizar” a psique ou “psiquizar” o corpo.

=    Chamamos de “hominização” esta elevação estrutural do material da matéria.

#   As estruturas da célula germinal são as que por elevação fazem a psique.

#   A hominização, portanto, é uma estrita potencialidade da matéria, em virtude da natureza naturante.

 
 
 
 

C.  Conclusão: as grandes linhas da gênese humana


 
 
 

1.     A matéria tem um sistema de potencialidades de dar de si algo novo.

a.    Aquilo que a matéria dá de si não constitui uma mera “repetição” ou reiteração das propriedades que já tinha.
b.   A matéria dá de si uma novidade, pelas potencialidades que intrinsecamente e formalmente possui pelo mero fato de
ser aquilo que é.

c.    Segundo é a inovação, assim é também o tipo de potencialidade que a constitui.

 
 

2.     Os diversos tipos de potencialidades da matéria

a.    Potencialidades de transformação: são as potencialidades de dar de si que produzem a transformação dumas notas
em outras novas.

b.   Potencialidades de sistematização

=    É o dar de si que produz uma nova sistematização de notas.

=    É o caso da vida: dando de si por sistematização, a matéria se faz vivente.

=    Esta sistematização vital pode ter diversos tipos: matéria viva, matéria-viva-organizada (organismo celular),
matéria-animal (autonomização da sensibilização das estruturas celulares no seu duplo aspecto de gênese e de
evolução).

=    Em virtude disso, dizemos que a matéria vive, que a matéria se organiza, que a matéria sente.

c.    Potencialidades de elevação

=    A matéria pode dar de si a sua própria elevação a estruturas superiores.

=    É o caso da hominização.

=    É um rigoroso dar de si: não é uma adição extrínseca.

=    Só que é um dar de si de distinta índole:

#   Na transformação, na sistematização (gênese e evolução animal), a matéria dá de si desde si mesma por si mesma.

#   Na hominização, a matéria dá de si desde si mesma, mas não por si mesma, mas porque a natureza naturante lhe faz
fazer.

d.   Pode haver outras potencialidades da matéria...

 
 

4.     Todas as potencialidades de dar de si têm estruturas materiais bem precisas.

a.    As potencialidades dão de si, mas sistematicamente estruturadas no seu dar, isto é, por um desdobramento
sistemático e não arbitrário de suas potencialidades.

b.   A matéria sente: um pedaço de ferro não sente, mas uma célula sim.

c.    Um pedaço de ferro não tem potencialidade imediata de hominização, mas a tem um animal hiperformalizado:

=    Nesse caso, não podemos dizer que a matéria intelige.

=    Mas temos que dizer que a matéria faz inteligir materialmente.
=    A matéria elevada, isto é, o homem, intelige.
XI

NASCIMENTO DA REALIDADE HUMANA (II):

ESTRUTURA DE VIDA QUE LEVA AO MUNDO


 
 
 
 
 
 

A.  Primeira etapa: automorfismo ou vida ativamente vegetativo-animal dentro do seio


materno.
 
 
 

1.     Primeiro momento: vida ativamente vegetativa

a.    O plasma germinal constituído vai desenvolvendo as suas estruturas somáticas e unitariamente as suas estruturas
psíquicas (estas por conformação passiva).

b.   O plasma germinal vai exercitando as suas funções de independência e controle do meio com respostas adequadas
completamente garantidas nesta etapa pelas suas estruturas somáticas.

c.    Deste modo, o plasma germinal dará passagem à totalidade do vivente (inicialmente, o plasma germinal é
relativamente totipotente, como temos dito).

d.   O processo de desenvolvimento das estruturas é fundamentalmente um processo de “regulação” (estabilização e


liberação).

=    À medida que o plasma germinal vai prolongando as suas estruturas, acontecem unitariamente duas coisas:

#   Por um lado, uma “estabilização” das estruturas: vão se fixando certas estruturas e, com isso, vão se restringindo
paulatinamente as potencialidades anteriores.

#   Por outro lado, uma “liberação” de potencialidades superiores: graças justamente à maior estabilização das
estruturas, abre-se para o vivente uma série de potencialidades superiores que antes não tinha.

=    A estabilização e a liberação são dois momentos dum processo único que chamamos de “regulação”.

#   A estabilização libera necessariamente potencialidades de ordem superior.

#   Essa liberação de potencialidades superiores não é viável senão montada sobre uma maior estabilização das
estruturas.

e.    Deste modo, progressivamente, a totipotencialidade relativa inicial do plasma germinal vai se fixando, graças às
estruturas mais estabilizadas, numas potencialidades mais determinadas e mais ricas.

 
 

2.     Segundo momento: vida ativamente vegetativo-animal

 
a.    Neste processo de regulação (estabilização-liberação), constitui-se a passagem da vida ativamente vegetativa à vida
ativamente vegetativo-animal.

=    Constituem-se os órgãos específicos de sensibilidade e, com eles, aparecem para o vivente situações estimulantes de
diverso tipo.

=    O impulso vital do vivente vai se modulando pela liberação de novas potencialidades em impulsos e tendências
múltiplas.

=    Assim, por exemplo, pela canalização dos movimentos espontâneos do vivente, as respostas motrizes vão se
formalizando em movimentos habituais (reflexos) e em movimentos adaptados.

b.   Subtensão dinâmica do vegetativo no sensitivo (animal).

=    O sensitivo não é um estrato montado sobre o estrato do vegetativo.

=    Em cada um dos impulsos e tendências em que, desde o ponto de vista sensitivo, vai se modulando o vivente, está a
sua vegetação inteira em subtensão dinâmica.

=    O sensitivo é uma liberação intrinsecamente fundamentada na estabilização vegetativa em subtensão dinâmica.

c.    As potencialidades são aqui potenciação: vão se constituindo as potências e com elas as possibilidades radicais e
básicas constitutivas do vivente.

d.   A independência funcional do vivente a respeito do seu meio é basicamente mera defesa e conservação.

 
 

3.     Vida vegetativo-animal enquanto “vida”: automorfismo

a.    Vida, como sabemos, é auto-possesão; viver é auto-possuir-se, ser “si mesmo”, ser autós.

b.   Pois bem, nesta etapa pré-natal a vida é auto-possesão na dimensão de “auto-morfismo”: o vivente humano se
possui a si mesmo em forma de auto-morfismo.

=    Obviamente trata-se do automorfismo da anatomia corpórea e das potências vegetativo-sensitivas.

=    Mas unitariamente é um automorfismo passivo do subsistema psíquico.

=    É o automorfismo da substantividade corpóreo-psíquica inteira.

c.    O automorfismo não consiste em que a alma vai organizando o corpo (que é a idéia que corre
desde ARISTÓTELES até UEXKÜLL e DRIESCH); o automorfismo é o modo inicial de auto-possesão do vivente
humano.

=    Inicialmente, o automorfismo corpóreo (e passivamente psíquico) é um fenômeno de auto-regulação (auto-


estabilização e auto-liberação).

=    No entanto, aquilo que há de automorfismo no homem não estriba sem mais na auto-“regulação”, mas na “auto”-
regulação, isto é, no autós que se acha em regulação.

=    Por muito heteromorfa que for a formação corpórea (e passivamente psíquica), a substantividade humana é
automorfa.

=    A unidade de ser sempre ele mesmo e nunca o mesmo se funda num autós (si mesmo) em toda a prolongação e
potenciação da sua morfé (forma).

 
 
 
 

B.  Segunda etapa: automorfismo-autoafirmação ou vida ativamente vegetativo-animal


fora do seio materno.
 
 
 

1.     Pela estrutura mesma do automorfismo se produz a separação da mãe, o fato de ser dado à luz, que está constituído
para o vivente por duas dimensões.

a.    Uma maior independência do vivente a respeito do seu meio, quer dizer, uma dilatação formal do meio do vivente.

=    A independência do vivente a respeito do meio se converte em “separação”.

=    Com isso, dilata-se enormemente o meio do vivente.

#   A dilatação do meio produz no vivente a novidade sensorial.

#   A novidade sensorial lhe produz alarme.

#   A articulação de novidade e de alarme se faz presente em dois fenômenos básicos: a incomodidade e o susto.

=    Para os demais homens, que já vivem na luz, o fato de ser dado à luz o novo vivente é vir à luz; mas para o novo
vivente, é vir à luz como intempérie...

b.   Um menor controle do vivente sobre o seu meio, que dizer, a indigência e a necessidade constitutivas do vivente.

=    O conjunto de estruturas corpóreas já não assegura sem mais ao vivente a sua articulação com o meio mediante
respostas adequadas.

=    Todos os impulsos vitais do vivente ganham o caráter de indigência.

=    Na indigência do vivente se constitui aquilo que vai ser formalmente a sua constitutiva necessidade.

=    Indigente e necessitada, a substantividade do vivente tem maior independência do meio, mas com menor
possibilidade de controle sobre o seu meio: isto o abocará à abertura ao seu mundo.

 
 

2.     Vida ativamente vegetativo-sensitiva enquanto “vida”: automorfismo-autoafirmação

a.    Independência do seu meio

=    Depois de ter sido dado à luz e antes de abrir-se ao mundo, vai se consolidando a independência funcional do
vivente a respeito do seu meio.

=    Esta independência leva à transformação (por pura prolongação, mas transformação profunda e radical) da mera
defesa e conservação em “autoafirmação”.

=    Poucas realidades se afirmam mais brutalmente que uma criança humana antes de entrar no seu mundo.

b.   Controle sobre o seu meio


=    Nesta etapa, como temos dito, o controle do vivente sobre o seu meio está caracterizado pela perda de controle: o
vivente tem muitas mais coisas que controlar e não pode fazê-lo apenas pelas suas próprias estruturas.

=    Assim, na autoafirmação, o controle do vivente sobre o meio tem duas dimensões.

#   Uma reversão instintiva para a mãe em busca de nutrição (sustento) e de amparo.

+   Ao escindir-se o vivente da mãe, o automorfismo se abre à necessidade de nutrição e de amparo (estas duas
necessidades [nutrição e amparo] imprimem caráter na vida do homem...).

+   O vivente já não pode subsistir se não é pela inteligência, inicialmente pela inteligência dos outros.

+   O homem é a realidade mais indefesa não por ser o animal mais incompleto, mas justamente ao invés, por ser o
animal mais completo em virtude da sua estrutura cerebral peculiar (o cérebro é o “produto” mais perfeito da natureza
humana).

#   Uma organização constitutiva de recursos (de suas estruturas e padrões de trabalho) com os quais mover-se no meio
novo e hostil.

+   Nesta etapa, dá-se uma maior regulação: há maior estabilização (fixação de estruturas e organização de padrões de
trabalho), mas unitariamente há uma maior liberação de funções superiores.

+   Este modo de unidade de regulação é aquilo que se chama de “aprendizagem” (sem o sentido especializado que o
termo tem na psicologia).

-    O fenômeno radical da aprendizagem é o “movimento” frente ao “obstáculo”.

¬   O movimento abrange tanto os movimentos automáticos (fixados num sistema de reflexos ou hábitos e de padrões
de trabalho) quanto os movimentos livres.

¬   Todos esses movimentos tropeçam com as coisas do meio, encontram obstáculos.

-    Nesse choque entre o movimento e o obstáculo, a criança vai exercitando a sua aprendizagem em múltiplas direções.

¬   Por exemplo, a criança aprende a perceber, quer dizer, a construir o campo perceptivo.

†    Na construção do campo perceptivo intervém tanto o automorfismo, que dura bastantes anos, quanto a
aprendizagem.

†    A prova é que no fenômeno patológico da desintegração do mundo sensitivo, ao desabar o campo da percepção, não
se produz um caos imediato.

°   Primeiramente, se produz uma diminuição da discriminação: onde viam-se muitas cores, vêm-se poucas, depois
nenhuma.

°   Finalmente, fica decomposto o campo perceptivo.

°   Quer dizer, é provavelmente o inverso daquilo que acontece na construção do campo perceptivo nesta etapa da vida
da criança.

†    Seria quimérico pensar que a criança começa vendo coisas; não é assim; a criança tem que aprender a perceber
coisas a partir de cores, sons, cheiros, etc.

†    A aprendizagem da construção do campo perceptivo se conjuga com o automorfismo das estruturas corpóreas.

°   Com efeito, se só houvesse a aprendizagem, haveria tantos campos perceptivos quantos homens.

°   Não é assim; ao intervir o automorfismo dumas estruturas corpóreas relativamente homogênas em todos os homens,
a aprendizagem da construção do campo perceptivo leva também a uma certa homogeneidade do aspecto do mundo.
†    Na aprendizagem, vai se constituindo o modo humano de perceber.

°   Não desaparece essa visão mais ou menos caótica das coisas.

°   Mas, sobre esse fundo caótico, vão se destacando os elementos que vão conferindo orientação à aprendizagem
obrigando a criança a fixar-se.

°   Nesse ato de “atenção” vão se fixando as coordenadas com as quais a criança vai constituindo o seu ato perceptivo.

¬   A criança aprende também a mover-se.

†    Primeiro, desde o ponto de vista dos movimentos automáticos e habituais.

°   Estes não lhe bastam.

°   São, porém, o seu apoio para exercer funções que já não são meramente automáticas.

°   Exercita-se assim o automatismo num novo sentido: a “exploração”.

†    Segundo, desde o ponto de vista dos movimentos livres.

°   Os movimentos livres se convertem em movimentos de “expansão”, que ganham caráter de expressão para os que
contemplam a criança.

°   É discutível que a criança expresse as suas emoções.

°   A criança tem movimentos expansivos das suas emoções.

°   Aquilo que esses movimentos têm de expressão pode ser uma interpretação dos demais.

°   Estes são aqueles que lentamente vão ensinando à criança que os seus movimentos expansivos são expressivos.

¬   A criança aprende a orientar o impulso vital em forma de impulsos distintos; isto é aquilo que decanta o humor em
que se encontra a criança.

+   Educação

-    Na aprendizagem, a criança não opera sozinha; toda aprendizagem implica a cooperação dos demais: é a educação.

-    Com a cooperação dos demais, a criança vai aprendendo aquilo que é a expressão dos seus estados internos e vai
confirmando a direção das suas atividades vitais.

+   O resultado da aprendizagem fica incrustado no vivente.

-    Inicialmente não tinha mais recursos que as estruturas com que nasceu e a apelação à mãe.

-    Agora conta já com recursos de ordem superior que proporcionou-lhe a aprendizagem.

c.    Dinamismo integral

=    Toda esta independência do meio e controle sobre ele estão modulados no sentido dum dinamismo integral que tem
duas dimensões irredutíveis ainda que conjugadas: a prossecução e a aversão, que conduzem à satisfação ou à
contrariedade.

=    Não há que pensar que os movimentos de aversão são produzidos só pela contrariedade, e os movimentos de
prossecução só pela satisfação.

#   A criança sente a mesma contrariedade se entorpece-se-lhe um movimento aversivo que se entorpece-se-lhe um
movimento prosecutivo.
#   Tanto a prossecução quanto a aversão se envolvem com a satisfação e a contrariedade.

#   Essa contrariedade pode ser uma simples surpresa, ou bem contrariação dum movimento (nisso consiste
precisamente a adversidade).

=    A tentativa do vivente é a de procurar-se só satisfações; a surpresa e a adversidade lhe ensinam que isto não é tão
simples...

=    Satisfação e contrariedade modulam o movimento de prossecução e de aversão com um caráter especial: o do éxito
ou o do fracasso.

#   Aquilo que era apenas um impulso, desdobra-se em dois momentos distintos:

+   O desejo, quer dizer, aquilo que deseja fazer.

+   A impressão daquilo que efetivamente se pode fazer limitado pelo fracasso da tentativa.

#   A unidade entre o impulso como desejo e o poder limitado de realizá-lo, é o empenho na sua unidade de obstinar-se
em algo e de estar embarcado em algo.

=    Neste duplo sentido, profundamente unitário, a vida da criança transcorre num constante empenho.

=    Neste empenho, só se empenha numa coisa: em fazer o que lhe sai de dentro desde a interna dimensão de satisfação
e de insatisfação.

d.   Unidade de automorfismo e autoafirmação.

=    O automorfismo segue: o vivente continua auto-possuindo-se auto-possuindo formas novas.

=    Mas nesta nova etapa da vida, aquilo que há formalmente de vida, de auto-possessão, é auto-afirmação, isto é, auto-
possuir-se em forma de satisfação.

=    Esta possessão em forma satisfatória não é um mero estado que possa aparecer e desaparecer: é uma posta em
forma, uma conformação das estruturas psico-corpóreas.

=    Esta conformação não consiste apenas em adquirir novas estruturas que não se tinham (a esta altura da vida, há
muito disso), mas em que se reconformem em determinada forma as estruturas já possuídas.

=    Vai se constituindo assim o esquema animal no qual vai configurando-se passivamente a personalidade.

=    Trata-se dum conformação unitariamente psico-corpórea.

=    Desde o primeiro recurso à mãe, até a construção da conduta, encontramos uma conformação das estruturas
morfológicas e dinâmicas de caráter psico-corpóreo.

=    Este processo de conformação de estruturas se evidencia sobretudo na crescente hiperformalização.

=    Chegará um ponto em que esta hiperformalização deixe em suspenso o animal humano para dar uma resposta
adequada.

=    Então a criança terá que fazer-se cargo da situação: é quando a vida se abre a um mundo propriamente tal.
XII

NASCIMENTO DA REALIDADE HUMANA (III):

ABERTURA AO MUNDO
 
 
 

 
 
 

A.  Passagem do meio ao mundo


 
 
 

1.     A transmutação do estímulo em realidade estimulante constitui a passagem do meio ao mundo: o meio do vivente
se converte no mundo do vivente.

a.    Aí é onde o animal humano se separa radicalmente do mero animal.

=    O mero animal, na sua aprendizagem aprende muitas coisas, mas a sua aprendizagem é sempre e só aprendizagem
de estimulidade.

=    O animal humano, na sua aprendizagem aprende coisas reais; a sua aprendizagem é aprendizagem de realidade.

b.   A criança começa a mover-se no mundo; vai abrindo progressivamente, e em princípio indefinidamente, o seu modo
de mover-se no mundo.

 
 

2.     O específico da realidade humana é a habitude de realidade.

a.    Como já temos dito inúmeras vezes, o específico da realidade humana é a sua habitude de realidade, isto é, o seu
haver-se com as coisas, com os demais homens e consigo mesmo formalmente enquanto reais.

b.   O homem é um animal, mas um animal de realidades.

=    O sentir humano é unitariamente sentir-intelectivo ou inteligência senciente: o homem apreende tudo
impressivamente como real, tem impressão de realidade.

=    Em virtude disso, o afeto humano é unitariamente afeto-sentimental ou sentimento-afetante: o homem está
afetantemente em tudo como real, tem afeto de realidade.

=    Conseqüentemente, a tendência humana é unitariamente tendência-volente ou vontade-tendente: o homem tende a


tudo como real, responde na realidade.

c.    A criança não sabe que aquilo que tem é habitude de realidade (não é um metafísico precoce!!!), mas a tem.

 
 
3.     Comum atualidade realidade-homem

a.    Em virtude da habitude humana de realidade, as coisas atualizam no homem o seu caráter de realidade, estão
presentes nele formalmente como reais.

b.   Nessa mesma e única atualidade, o homem está inamissivelmente instalado na realidade das coisas.

c.    A estrutura dessa comum atualidade realidade-homem dá lugar a três conceitos fundamentais:

=    Experiência

#   Usualmente se pensa que experiência é o conjunto de informações empíricas que vamos adquirindo das coisas; mas
com isso não se diz em que consiste o caráter experiencial dessas informações.

#   Pois bem, o que lhes confere o caráter de experiência é justamente a atualização no homem do caráter de realidade
que têm as coisas; o caráter de realidade atualizado no homem é aquilo que constitui formalmente a experiência.

#   A experiência é provação física de realidade; é a atualização no homem das coisas na sua realidade.

=    Dado (experiência enquanto “das coisas”)

#   As coisas, na sua atualização em nós, nos “dão” o seu caráter de realidade; o caráter de realidade nos é “dado” pelas
coisas.

#   Daí que “dado” não seja sem mais aquilo que encontramos no nosso contato com as coisas, mas “o dado pela
realidade” na experiência em forma de encontro.

=    Vivência (experiência enquanto minha)

#   Na sua atualização em mim, desde o meu próprio estar já na realidade, as coisas reais ganham a dimensão duma
atualização “minha”.

#   É aquilo que se expressa na forma medial do “me”: a atualização das coisas reais enquanto “em mim”, enquanto
“minha”, é aquilo que constitui formalmente a “vivência”.

 
 

4.     Mundo

a.    Desde a primeira impressão de realidade, a vida do homem vai se movendo neste constitutivo e físico estar na
realidade.

b.   A impressão de realidade, pelo que tem de realidade, vai orlando cada uma das impressões reais com esse
coeficiente de realidade que transcende cada uma delas e remete a uma totalidade.

c.    Essa totalidade das coisas enquanto reais (a unidade de todo o real enquanto real) é o que chamamos de “mundo”.

d.   Mundo não é meramente o conjunto das coisas, nem aquilo que chamamos de mundo dos meus projetos, nem do
mundo em que vivo, mas a totalidade das coisas em seu caráter de realidade, isto é, a realidade como um tudo.

 
 
 
 
B.  A vida vegetativo-animal-humana enquanto “vida”: auto-morfismo/auto-
afirmação/auto-definição.
 
 
 

1.     O meu mundo

a.    Com a realidade estimulante e com o meio convertido em mundo, o próprio vivente ganha uma nova forma de auto-
possessão sob a forma medial do “me”.

b.   Assim, a experiência do mundo é experiência do “meu mundo”; aquilo que arbitrariamente chamou DILTHEY de
“o” mundo, não seria mundo se não fosse um mundo efetivamente “meu”.

 
 

2.     A vontade-tendente

a.    A vontade-tendente enquanto vontade

=    O homem não é só inteligência senciente e sentimento afetante, mas também vontade-tendente.

=    Volição é aquilo que expressamos com o verbo “querer”.

=    Querer (volição) é complacência na realidade das coisas.

=    A complacência (querer, volição) é a unidade de dois momentos: amar e preferir.

#   Por um lado, comprazer-se é amar, isto é, entregar-se a uma realidade enquanto boa.

#   Por outro lado, comprazer-se é preferir, isto é, depor o amor nesta realidade e não em outras.

=    O caráter de realidade do querido é aquilo que escinde radicalmente a complacência humana da satisfação do mero
animal, isto é, do mero desejo e da mera ferência.

b.   A vontade-tendente enquanto tendente

=    Mas o animal humano, precisamente enquanto animal, não é pura vontade, mas vontade-tendente, isto é,
complacência-satisfazente (amor-desejante, preferência-ferente).

=    O homem quer (ama e prefere) justamente em virtude da formal inconclusão das suas tendências (desejos e
ferências) que o deixam suspenso sobre si mesmo e o levam a ter que decidir.

=    A tendência é momento unitário da vontade humana como o sentir o é da inteligência humana e o afeto o é do
sentimento humano.

 
 

3.     Autodefinição.

a.    Pela intelecção senciente, pelo sentimento afetante e pela vontade tendente, o homem se autopossui formalmente
como realidade na realidade.
b.   Esta forma de vida, específica da vida humana, que consiste em auto-possuir-se como realidade na realidade, é
aquilo que chamamos de “auto-definição”: o homem se autodefine, autoconfigura a sua personalidade em cada um dos
seus atos vitais.

c.    A vida não é o argumento da vida, mas aquilo que tem de vital esse argumento.

=    O argumento da vida é aquilo que se pode contar, isto é, o quadro e a estrutura que vai tomando a vida.

=    A vida é aquilo que nesse argumento há de íntimo modo de auto-possuir-se autodefinindo-se.

d.   A vida humana é a figura da realidade do homem que ele vai auto-definindo ao longo do argumento da sua vida, ao
longo dos seus atos vitais.

=    A vida não é uma unidade de sentido, como pensava DILTHEY; isso seria em todo caso a unidade argumental da
vida.

=    O sentido do sentido da vida (o sentido vital do sentido argumental da vida) é a auto-possesão do homem em forma
de auto-definição ao longo dos seus atos vitais.

 
 

4.     A vida humana (auto-definição) é a unidade de vida humana-animal-vegetativa (auto-definição/auto-


afirmação/auto-formismo).

a.    É quimérico querer separar o humano do animal e do vegetativo.

=    É impossível separar o senciente da inteligência, o afetante do sentimento, e o tendente da vontade.

=    Do mesmo modo é impossível separar a auto-definição da auto-afirmação e do auto-formismo.

b.   A vida humana é uma única vida humana-animal-vegetativa.

=    A dimensão vital animal-vegetativa do homem é raiz, fundamento e estrutura formal da vida humana.

#   O vital animal-vegetativo é raiz da vida formalmente humana, da abertura do vivente ao mundo.

+   A inteligência, o sentimento e a volição não têm coisas com que estar na realidade, se a eles não chegam coisas
formalmente reais.

+   Pois bem, não lhes chegam coisas reais até que o organismo animal se hiperformaliza; a hiperformalização do
animal-vegetativo é o arranque natural da atividade ativa do formalmente humano.

+   A dimensão especificamente humana da vida humana é assim exigida e sustentada pela dimensão vital animal-
vegetativa.

+   Nesta profunda exigência e sustentação do humano por parte do animal-vegetativo consiste a unidade “radical” da
vida humana.

#   O vital animal-vegetativo é fundamento da vida formalmente humana.

+   Efetivamente, o vital vegetativo-animal é unitariamente vital humano desde o plasma germinal: desde o plasma
germinal há realidade humana, há substantividade corpóreo-psíquica.

+   Até a entrada em atividade ativa do vital humano, o vital humano está em atividade conformando-se passivamente
pelo vegetativo-animal que está em atividade ativa.

+   Sendo o homem uma única substantividade corpóreo-psíquica, as estruturas corpóreas (vegetativo-animais) vão
modulando a psique.
+   Desse modo, o vegetativo-animal constitui o fundamento ou fundo mesmo do humano; por isso:

-    Sem sentir, não haveria para o homem estímulo.

-    Sem estímulo, não haveria para o homem realidade.

-    Mas, sem inteligência, o estímulo não seria para o homem realidade.

-    Dito de outro modo: sem meio, não haveria mundo; mas, sem inteligência, o meio não seria mundo.

+   Assim, a primeira linha da personalidade do homem está dada pelo vegetativo-animal.

+   De tal modo isto é assim, que o esquema profundo da personalidade está dado provavelmente duma vez por todas
quando entra em atividade ativa a psique.

#   O vital animal-vegetativo é estrutura formal da vida formalmente humana.

+   Não só não haveria vida humana sem o vital animal-vegetativo, mas a vida humana não seria como é se o vital
animal-vegetativo não fosse determinadamente aquilo que é.

+   A vida humana pode mudar em algo distinto os recursos que o vital animal-vegetativo oferece.

-    Pode organizar o seu meio não só pela construção duma maneira de perceber, de sentir, de mover-se, mas fazendo da
construção um projeto de realização.

-    Pode converter o empenho em esforço, pois o esforço é a floração a nível humano daquilo que é o empenho a nível
vegetativo-animal.

-    Pode abrir-se desde as impressões à impressão de realidade.

-    Pode abrir-se desde os afetos ao sentimento de realidade.

-    Pode abrir-se desde as satisfações à complacência na realidade.

+   Mas tudo isso seria impossível se o homem não fosse construtivo, empenhativo, impressivo, afetivo e satisfativo
pelo vital animal-vegetativo.

=    A unidade da vida humana

#   O automorfismo deu ao vivente humano as possibilidades básicas.

#   A autoafirmação deu-lhe um sistema determinado de satisfações.

#   Agora, o vivente vai tendo a forma querida que dá à sua substantividade.

+   É uma autêntica conformação, uma plasmação que vai abrindo-lhe ao orbe, historicamente inesgotável, das
possibilidades operativas.

+   É uma plasmação estritamente psico-corpórea.

+   Nela aparece mais formalmente aquilo que é a vida: ir possuindo-se o homem a si mesmo como realidade
conformando a sua própria realidade.

+   Em conformar-se com uma determinada figura de realidade consiste o “querer”.

+   A forma do homem não é neste caso mera autoafirmação, mas estrita autodefinição desde a sua própria realidade.

#   Graças à inteligência, o homem se encontra unitariamente:

+   Atido à realidade: vai dando forma à sua substantividade por automorfismo.
+   Enchido de realidade: vai dando forma à sua substantividade por autoafirmação.

+   Aberto ao mundo: vai dando forma à sua substantividade por autodefinição.

#   Radicalmente, fundamentalmente e estruturalmente, o homem leva uma vida única: essa auto-possessão de si mesmo
que possibilita e exige o ser animal de realidades.

#   O resto é o quadro externo da vida, a ocupação da vida.


XIII

MORTE DA REALIDADE HUMANA


 
 
 
 
 
 

A.  Insuficiência do pensamento de HEIDEGGER a respeito da morte


 
 
 

1.     Segundo HEIDEGGER, a morte é o caráter de pura possibilidade em que consiste a vida.

a.    Quaisquer que forem as coisas que o homem projete e decida realizar, tudo fica pendente de que haja vida.

b.   A vida, portanto, é uma pura possibilidade.

c.    Daí que em cada um dos momentos da existência humana subjaz a angústia, não em virtude duma ameaça de ordem
externa, mas da ameaça intrínseca do caráter de meramente possível constitutivo da vida.

d.   Porque a vida é pura possibilidade, a morte pertence à vida, e existir é constitutivamente existir face à morte.

 
 

2.     Esta interpretação tão sedutora da morte como um caráter da pura possibilidade que é a vida é impossível por três
motivos.

a.    A morte não pode ser o caráter da pura possibilidade da vida, porque a vida enquanto vida não é pura possibilidade,
mas auto-possessão.

=    Aquilo que nos atos vitais há de possibilidade é devido simplesmente a que qualquer coisa que o homem queira
fazer na sua vida começa por ser uma mera possibilidade.

#   Em primeiro lugar, porque tudo aquilo que o homem faz, até fazê-lo efetivamente é uma mera possibilidade
apropriável.

#   Em segundo lugar, porque nem sequer sabe se essa possibilidade é aquela da qual vai apropriar-se efetivamente;
pode, com efeito, não seguir querendo o mesmo e querer outra possibilidade.

=    Partindo da análise do conteúdo concreto da vida (da análise dos atos humanos enquanto vitais) a vida é
autopossessão.

#   Aquilo que os atos humanos tem de vitais, de vida, é que em cada um deles, apropriando-se possibilidades, o homem
está possuindo a sua própria realidade.

#   Vida é formalmente auto-possesão e não o caráter de possibilidade que têm de entrada aquilo do qual o homem se
apropria para auto-possuir-se, isto é, para viver.

#   Viver é formalmente auto-possuir-se; a definição de vida é “auto-possesão”.


#   Por isso a vivência da vida é fundamentalmente “ter que ser”, “ter que viver”.

=    O caráter de pura possibilidade que tem a vida (visando a morte) lhe vem à vida de outra análise: da análise do
caráter de totalidade que tem a vida, caráter que inclui a morte.

#   Aí sim: todo ato vital que o homem projete fazer pende obviamente do suposto de que viva para realizá-lo.

#   Mas o que é essa possibilidade?

+   Não é uma possibilidade que se deduz da análise interna das possibilidades da vida.

+   Não é uma possibilidade que afeta ao conteúdo concreto da vida em si mesmo e por si mesmo.

+   É uma possibilidade que afeta a esse conteúdo concreto da vida “em função da vida considerada como um tudo que
inclui a morte”.

#   Por isso a vivência da vida, que é fundamentalmente “ter que ser”, “ter que viver”, inclui “ademais” a vivência de
“ser ou não ser”, de “viver ou não viver”.

=    Além do mais, em contra daquilo que pensa HEIDEGGER, fica claro o seguinte:

#   A morte não pertence à vida porque a vida como um tudo seja um pura possibilidade.

#   Ao invés: a vida como um tudo é pura possibilidade porque à vida como um tudo lhe pertence intrinsecamente a
morte.

b.   A morte não pode ser o caráter da pura possibilidade da vida, porque a realidade da morte não é a vivência da morte.

=    HEIDEGGER entende por futurição o caráter pré-currente e precursor que tem a existência a respeito do seu
próprio conteúdo: o homem é precursor de si mesmo.

=    Dessa futurição nos diz que é pura possibilidade à qual pertence intrinsecamente a morte porque inclui
intrinsecamente a futurição da morte.

=    Pois bem, isso é impossível, porque não se pode identificar a morte com a futurição da morte.

#   Para identificar sem mais a morte com a futurição da morte, é preciso identificar a realidade da morte com a vivência
da morte.

#   Mas é óbvio que a vivência da morte não é a morte: a morte é uma realidade e não apenas uma vivência.

=    Por isso, buscar a realidade da morte na vivência da morte, como faz HEIDEGGER, é um falsidade desde o ponto
de vista integral da morte (que é primariamente um fenômeno físico).

c.    A morte não pode ser o caráter da pura possibilidade da vida, porque é falso que todos os homens tenham vivência
prévia da sua morte.

=    HEIDEGGER resolve o problema dizendo que aquele que vive sem essa vivência tem uma existência inautêntica ou
imprópria, não uma existência própria (eigentliches Dasein).

=    Isso é verdade, mas uma verdade relativa: uma criança, que já usa a inteligência, não tem sem mais a vivência da
morte, e não por isso a sua é uma existência inautêntica ou imprópria.

=    Todavia, ainda no caso de que não haja vivência prévia da morte em forma de futurição, a morte pertence
intrinsecamente à vida.

=    O problema da morte é o problema da pertença intrínseca da realidade morte à realidade vida.

 
 
3.     Conclusão

a.    O decurso vital não é só futurição, mas tem também outra linha na qual se inscreve a pertença intrínseca da morte à
vida: é o emprazamento: a vida está emprazada com a morte.

b.   A vida tem duração, futurição e emprazamento; são três dimensões irredutíveis cuja unidade física é aquilo que
confere o perfil exato à realidade da vida.

c.    Isso não significa que o homem não possa ter uma vivência da morte em “pré”, e que esta vivência não desempenhe
um papel importante na vida.

d.   O único que significa é que a questão da morte é mais ampla; aqui vamos tratá-la desde três pontos de vista
distintos:

=    Primeiro, em que consistem as estruturas do emprazamento, quer dizer, em que consiste ter que morrer.

=    Segundo, em que consiste a vivência do emprazamento, quer dizer, como o homem num ato vital pode afrontar a
morte desde a vida.

=    Terceiro, qual é a estrutura física da morte, quer dizer, o que é fisicamente morrer.

 
 
 
 

B.  A estrutura do emprazamento da vida com a morte (ter que morrer).


 
 
 

1.     A questão

a.    A vida e o homem estão emprazados com a morte.

b.   O emprazamento, com independência da futurição, é uma estrutura real e física da vida.

c.    Isto o expressa bem a linguagem popular ao responder à pergunta “o que faz você” com a expressão “vamos
levando, enquanto sigamos vivendo”.

d.   Sobre este “enquanto sigamos vivendo” há que perguntar-se:

=    O que é “seguir vivendo”?.

=    Qual é o caráter desse “enquanto”?.

=    O que se segue daí para a unidade interna da vida?

 
 

2.     Seguir vivendo é “conseguir-se” (autodefinir-se sequencialmente).

a.    Seguir vivendo enquanto “seguir” vivendo: caráter sequencial da vida (duração e intercorrência da vida).
=    Negativamente, seguir vivendo enquanto seguir significa que a vida não cessa, que a vida não tem cesuras, isto é,
que a vida dura; é a duração da vida.

=    Positivamente, seguir vivendo enquanto seguir significa que o homem vai passando duma situação a outra porque as
situações são intercorrentes; é a intercorrência da vida.

b.   Seguir vivendo enquanto seguir “vivendo”: caráter vital da sequência: a vida como auto-possessão em auto-
definição seqüencial.

=    Na sua duração e intercorrência, a vida humana tem uma unidade radical que é auto-possesão em “auto-definição”.

#   A duração e intercorrência da vida humana leva consigo uma ratificação ou uma retificação ou uma integração ou
uma ampliação ou um abandono daquilo que se quer ser (da auto-definição).

#   É que a vida (durante e intercorrente) é auto-definição da figura que se quer ter.

=    Esta autodefinição não é meramente intencional, mas física, porque autodefinição não é apenas auto-projeção, mas
auto-realização.

#   A autodefinição seria algo meramente intencional se fosse apenas auto-projeção, isto é, se nela não houvesse mais do
que a idéia de si mesmo na forma da idéia daquilo que se quer ser.

#   Mas a autodefinição é física, porque daquilo que na realidade se trata é de pôr em marcha a idéia daquilo que se quis
ser: a autodefinição é auto-realização.

#   Autodefinição é a forma humana de vida, isto é, a forma que tem o homem de auto-possessão; por isso é vida quanto
o homem faz.

+   Viver não é sem mais aquilo que o homem faz; isso é o argumento da vida.

+   Aquilo que há de vida no argumento é aquilo que há de auto-possessão definitória.

+   Por isso, não há escisão entre o argumento da vida e a vida enquanto tal.

=    A auto-possessão em auto-definição não é auto-consciência.

#   Pela pendente da auto-possessão como auto-consciência escorregou a filosofia do século XIX e de começos do
século XX.

#   Mas a autoconsciência é incapaz de dar auto-possessão, porque a consciência por si mesma não têm substantividade
alguma; é apenas o caráter dalguns atos que o homem executa.

#   A estrutura é a inversa:

+   Porque o homem se auto-possui, a sua autopossessão é autoconsciente, já que essa autopossessão é intelectiva-
senciente.

+   Com efeito, toda intelecção-senciente é eo ipso auto-consciente como vimos no Curso de Filosofia da Intelecção
Humana.

c.    Em definitiva: “seguir vivendo” consiste nessa forma de radical auto-possessão na decorrência.

=    Seguir vivendo não é simplesmente que a vida seja sequencial (“seguir” vivendo), mas viver em sequência (seguir
“vivendo”).

=    Quando se diz “ao longo da vida”, o que se quer dizer é “a vida tomada ao longo”.

=    É preciso agora precisar mais esse caráter positivo de viver sequencial que tem o seguir vivendo.

d.   O que o homem faz ao seguir vivendo é “auto-con-seguir-se” (a consecução de si mesmo).


=    A vida humana é “caminho” e o homem vivente é “itinerante”.

#   Se o seguir vivendo é viver em seqüência, o traçado da vida não tem o caráter de mera “trajetória”; a vida tem um
“caminho” que consiste em viver em seqüência.

+   O caminho se diferencia da mera trajetória em que o caminho conduz “desde” um ponto de partida “para” algo.

+   Os corpos que se movem no espaço têm trajetória, mas não caminho.

#   A vida, pelo contrário, é constitutivamente “caminho”, e por isso viver em seqüência é ser constitutivamente
“itinerante” (viator).

#   Sumus in via, estamos constitutivamente em caráter de itinerante ou de caminho.

#   É preciso, portanto, dizer agora “para quê” vai dirigida a vida como caminho (sem o qual não haveria caminho, mas
pura trajetória).

=    O único “para” do caminho da vida é “si mesmo”.

#   Como viver é autopossuir-se em autodefinição, o único “para” da vida como caminho é “si mesmo”.

#   O “para” da vida é sempre e só o eu mesmo como figura de realidade em auto-realização física.

=    Por isso, quanto subjaz ao viver em seqüência e quanto confere à vida o caráter de caminho, é o fato de que o
homem, ao seguir vivendo, faz algo mais profundo que o puro continuar vivendo; o que faz é auto-conseguir-se, a
consecução de si mesmo.

=    Aqui aparece claramente, mais uma vez, que o homem não é hypokeímenon (sujeito), mas hyperkeímenon (supra-
jeito).

#   O homem não é um sub-jectum sobre o qual vão passando as vicissitudes da vida, como pensa ARISTÓTELES, e
com ele tantos...

#   O homem, no mais minúsculo ato vital, está constitutivamente “sobre si” para auto-definir-se nesse ato.

#   Por isso, em todo ato vital há um projeto, e todo projeto é uma reversão ao “si mesmo”.

#   Em definitiva, o caráter de futurição da vida consiste em ter que inserir o irreal, aquilo com que o homem está sobre
si, na realidade de si mesmo.

#   Todo projeto tem um caráter de constitutiva “tentação” não por acaso, mas porque tem os seus “tentáculos” na
realidade.

#   O homem está constitutivamente sobre si, e, ao aceitar o projeto, está fundando a realização de si mesmo.

#   Este caráter de realização incoativa ou aceitada é essencial à autopossessão: a auto-possessão é realização dum
projeto de determinada figura de realidade.

#   O mero fato de aceitar algo é mais do que ter uma pura intenção; é uma física decisão intelectual de realização.

#   O homem não está em sua vida como um hypokeímenon que a suporta, mas como uma realidade que está sobre si
mesma e que tem que realizar-se.

 
 

3.     O caráter do “enquanto” sigamos vivendo: provisoriedade da autoconsecução seqüencial.

 
a.    O decurso vital consiste em ir realizando-se numa figura determinada conforme ao que em cada instante o homem
quer ser efetivamente.

b.   Mas viver em seqüência, seguir vivendo, precisamente porque é seguir vivendo para si mesmo, significa que
nenhuma autodefinição passa de ser “provisória”.

=    Seguir vivendo significa a possibilidade de mudar minha definição, quer que essa mudança venha imposta pelas
coisas, quer por minha própria decisão.

=    Seguir vivendo expressa a estrutura interna da definição do homem como autopossessão, a abertura de sua
autodefinição para outra autodefinição.

=    Seguir vivendo não é mera futurição, nem é mera duração incessante, mas é o caráter interno duma definição
sempre aberta e mais ou menos “indeterminada”.

=    Indeterminada justamente “enquanto” se siga vivendo.

c.    O que o “enquanto” expressa positivamente é a indeterminação e provisoriedade da auto-definição do homem no


seu seguir vivendo.

=    Significa que, enquanto haja coisas, o homem terá que definir-se perante elas, e que essa definição poderá e terá que
mudar em alguma medida a sua anterior definição.

=    O homem se define em cada instante em forma de auto-possessão, e cada ato vital é “definitório” mas sem ser
“definitivo”.

=    O que significa o “enquanto” é que nenhuma definição “enquanto” se siga vivendo é definitiva, mas
constitutivamente provisória e indeterminada.

=    O “enquanto” envolve a essência positiva da provisoriedade, o “por enquanto”.

=    Que a definição da vida seja definitória, mas nunca definitiva, nisso consiste a provisoriedade como caráter positivo
do “enquanto”.

=    A unidade de articulação entre o caráter definitório da vida e a sua provisoriedade é o que constitui a contingência
essencial da vida e do homem incurso nela.

#   O homem é duplamente contingente:

+   É contingente porque não tem em si mesmo a razão da sua existência.

+   É contingente porque a sua essência não prefigura de maneira unívoca qual seja a sua exaustiva definição.

#   Em definitiva, é o caráter que o homem tem, não de existência sem essência (como pretendem os existencialismos),
mas de essência aberta.

d.   Conclusão

=    “Enquanto sigamos vivendo” significa que nos vamos conseguindo provisoriamente: viver em seqüência
(conseguir-se) e enquanto (provisoriamente) são dois momentos do emprazamento.

=    Mas falta um terceiro momento para completar a estrutura do emprazamento: é o momento de totalidade que tem a
vida.

 
 

4.     A unidade interna da vida

 
a.    A vida é autopossessão, e viver em seqüência é viver encaminhado para si mesmo.

b.   A vida, portanto, tem uma unidade de duplo caráter essencialmente vinculado.

=    Por um lado, a unidade da vida que lhe vem conferida pelo vivente mesmo, já que é o “mesmo” vivente o que vai
incurso no emprazamento enquanto siga vivendo.

=    Por outro lado, a unidade da vida que provém de que a estrutura da decorrência seja uma estrutura que esteja
terminada ou que o estará.

#   Só nesta segunda dimensão a vida tem um caráter total.

#   Que isto tenha que ocorrer inexoravelmente procede da estrutura mesma do homem.

c.    A estrutura formal do emprazamento da vida do homem com a morte pertence à estrutura formal do vivente
humano.

=    A unidade da vida enquanto finita e decorrente provém do caráter animal do vivente humano.

#   A finitude da vida humana, o “terminar” do estar físico do homem na realidade provém do caráter “animal” do
vivente humano.

+   O homem se caracteriza por um estar físico na realidade, que é a dimensão radical da inteligência senciente, do
sentimento afetante e da vontade tendente.

+   Estar na realidade não é uma ação, mas uma pura atualidade.

+   Por isso, o estar na realidade em si mesmo e por si mesmo não começa nem termina.

+   O que começa e termina são as coisas em que estar na realidade.

+   Portanto, esse começar e terminar do estar na realidade provém do caráter animal (senciente, afetante, tendente) do
homem (inteligente, sentimental, volente).

#   A “decorrência” da vida humana também procede do caráter “animal” do vivente humano.

+   Por ser o homem senciente, afetante e tendente, as situações são fisicamente insustentáveis, porque o animal é,
entanto que estrutura, constitutivamente insustentável.

+   Daí que a decorrência da vida humana procede do caráter animal das estruturas do vivente humano.

=    O momento da morte

#   Como viver em seqüência é conseguir-se provisoriamente, a finitude da vida decorrente significa que chegará um
ponto dessa decorrência que será o último.

#   Esse momento último fará que a figura con-seguida (a auto-definição obtida) seja não só definitória, mas definitiva.

#   Esse momento da figura de auto-definição definitória “e” definitiva é justamente o momento da morte.

#   A morte, como fato natural, é uma decomposição da substantividade humana e uma cessação da decorrência vital.

#   Mas é algo que pertence à estrutura formal do vivente humano: é aquele ato que positivamente lança o homem desde
a provisoriedade ao definitivo.

#   Essa é a estrutura formal e concreta da vida emprazada com a morte.

=    Viver sequencial e morte


#   Viver em seqüência, em definitiva, é ir realizando aquilo que em termos de pergunta intencional se expressa no “o
que vai ser de mim?”.

#   Morrer é “o que tem sido definitivamente de mim”.

#   Daí que a morte pertença à vida não só dum modo negativo (deixar de viver), mas dum modo positivo (a figura
definitiva da autodefinição do vivente humano).

+   O emprazamento da vida com a morte é o emprazamento da vida para a definição definitiva de si mesmo.

+   Não é questão de futurição; é uma estrutura física.

+   No seu decurso durativo e futurendo, a vida tem constitutivamente um argumento; mas o que esse argumento tem de
vida é a definição do vivente, isto é, a maneira como o vivente se realiza nesse argumento.

+   Emprazado para o definitivo, cessa o argumento e não fica senão o que argui.

#   Daí o caráter “tremendo” que tem a morte dentro da vida do homem.

d.   O caráter “tremendo” da morte dentro da vida do homem: a morte em solidão absoluta.

=    Personeidade, personalidade, pessoa.

#   Personeidade.

+   O vivente humano é personeidade desde o plasma germinal: é seu próprio “de seu”, é sua própria realidade, é
suidade.

+   E é personeidade em virtude da sua inteligência que apreende tudo (também a si mesmo) como real, fazendo assim
que o homem não pertença a ninguém mais que a si próprio.

#   Personalidade

+   Mas, por ser senciente a inteligência humana, o vivente humano inexoravelmente tem que ir plasmando a sua
personeidade definitoriamente em definições sucessivas.

+   Estas definições sucessivas são as que vão constituindo a personalidade do vivente humano, que é a figura concreta
da sua personeidade.

#   Pessoa: o vivente humano é pessoa, que consiste na articulação unitária da personeidade e da personalidade.

=    Duas dimensões da implantação no mundo da pessoa humana.

#   O homem enquanto pessoa não forma parte de nada, mas se define a si mesmo frente a tudo (é absoluto).

+   Tudo pode afetar ao estar do homem na realidade; mas o estar mesmo do homem na realidade não pertence como
ingrediente a nenhuma coisa.

+   O começo da filosofia de HEGEL, falando do “tudo” (das Ganze), é falso tratando-se das pessoas enquanto pessoas.

+   O que constitui o caráter de pessoa é não formar parte de nada, mas definir-se a si mesmo frente a tudo, inclusive
frente ao divino.

#   Por outro lado, o homem enquanto realidade finita é constitutivamente respectivo, antes de tudo a si mesmo; mas
também às demais pessoas e às coisas (é relativamente absoluto).

=    Assim o homem faz a sua personalidade frente e desde as coisas, os demais homens e ele mesmo enquanto
realidade.
#   Daí que, na sua personalidade, que o homem auto-define autopossuindo-se, estão implicadas as coisas, as demais
pessoas e ele mesmo.

#   Em cada uma das situações da vida, o homem se autodefine desde a situação que lhe criam as coisas, as pessoas e ele
mesmo.

#   Mas, em ordem à realização da sua realidade, da figura que ele mesmo tem querido realizar, não tanto se vê a si
mesmo desde as coisas, quanto vê as coisas desde si mesmo.

#   Na sua respectividade o homem está com as coisas e com as demais pessoas; mas está com elas enquanto define a
sua própria personalidade.

=    Por isso o homem morre em solidão absoluta e radical.

#   Quando a sua personalidade se converte em definitiva, o homem fica absolutamente só consigo mesmo, com a
realidade pessoal de si mesmo que tem definido de modo definitivo.

#   Esta solidão não é isolamento, porque as coisas e os demais homens estão formalmente inclusos na respectividade
consigo mesmo.

#   É solidão, porque fica só em versão a respeito de si mesmo, a respeito do seu caráter de personalidade definitória e
definitiva.

=    Por isso o emprazamento da vida é o emprazamento ou o caminho para a solidão consigo mesmo.

#   Vive-se entre as demais pessoas e entre as coisas, mas se morre só.

#   O homem se vê abocado a ter uma personalidade definitória, emprazada na sua hora a ser definitiva.

#   Daí que, desde o emprazamento, o homem pode pré-viver a hora e a forma da sua morte.

 
 
 
 

C.  A vivência da morte em “pré”


 
 
 

1.     Vivência negativa da morte em “pré”

a.    O homem em muitos momentos da sua vida, por exemplo quando criança, não tem vivência prévia da morte.

b.   Aos poucos vai adquirindo essa vivência da morte.

=    Porque vê que os demais homens morrem, e porque lhe dizem que ele mesmo morrerá.

=    Não demora em compreender que essa possibilidade desvelada a ele pelos demais, encontra-se inexoravelmente
apoiada nas suas próprias estruturas corpóreas.

c.    Mas isto não significa sem mais uma pré-vivência positiva da morte; sabe que morrerá, mas vive esquecido da
morte; aguarda passivamente a hora da morte, sem preocupar-se dela.

d.   Saber da morte, mas viver sem contar com ela, é a vivência negativa da morte.

 
 
2.     Vivência positiva da morte em “pré”

a     Na medida que a vida discorre, o homem pode afrontar positivamente a morte, pode aguardá-la positivamente.

b.   Este afrontamento positivo da morte pode ter caracteres muito distintos.

=    Pode ser o medo a morrer.

#   Chegado o momento da morte, a não ser que seja súbita, não há ninguém que não tenha tido medo à morte.

#   O homem, porém, pode pôr em jogo mecanismos de superação desse medo à morte.

#   O curioso mecanismo de superação que pôs em jogo o mundo grego foi a tese de EPICURO: não há razão para ter
medo:

+   Primeiro, porque ninguém sente o momento de morrer.

+   Segundo, porque nada vai ocorrer depois da morte, já que aos deuses lhes tem sem cuidado o que fazem os homens.

=    Pode-se sentir também repugnância perante a morte.

=    Pode-se sentir inclusive revolta frente à morte.

=    Pode, pelo contrário, ser aceitada a morte com resignação; foi a atitude dos estóicos:

#   A morte é inexorável e está exigida pela estrutura da razão universal.

#   Portanto, nada tem de anormal ou de violenta.

=    O homem pode ter também alegria de morrer.

=    Pode até desejar morrer.

=    Pode-se inclusive chegar a entregar a vida.

#   Ninguém efetua o ato positivo de vir à vida.

#   Alguns, porém, executam o ato positivo de entregá-la.

c.    Nenhum deste modos de vivência positiva da morte em “pré” é exclusivo: em maior ou menor grau vão envoltos
quase todos na vivência positiva prévia da morte.

=    Por muito que o homem pense na morte, tem também que esquecê-la; por muito que aguarde a morte, conta também
com que não venha.

=    Quando a vê vir, aguarda-a com essa singular mescla de medo, repugnância, aceitação, alegria, desejo, e
possivelmente entrega.

 
 
 
 

D.  A morte real e física


 
 
 
1.     Unidade substantiva do vivente humano.

a.    O homem é um vivente humano-animal-vegetativo.

=    A estrutura vital humana é unitariamente vegetativo-animal-humana.

=    Essa estrutura emerge do mais vegetativo da sua realidade, expande-se em multidão de tendências e caracteres
sencientes (animais) até chegar a ter que estar na realidade (o humano).

=    Por isso, todo ato vital humano é ato unitário da estrutura unitária vegetativo-animal-humana do homem.

b.   O sistema substantivo humano é psico-corpóreo ou corpóreo-psíquico.

=    A psique (subsistema psíquico) é desde si mesma corpórea; o corpo (subsistema corpóreo) é desde si mesmo
psíquico.

=    Se a psique não fosse corpórea desde si mesma, seria “espírito”.

#   Não é o caso da psique humana.

#   Daí que o problema das estruturas radicais do homem não é um problema de espírito-matéria, mas de
substantividade psico-corpórea ou corpóreo-psíquica.

=    Esta unidade substantiva é a que faz que a psique seja corpórea desde si mesma e que o corpo seja psíquico desde si
mesmo.

=    Nessa substantividade única está a unidade do homem, unidade que é de índole estrutural.

 
 

2.     A resposta à pergunta “o que é morrer” não pode dar-se senão desde a resposta à pergunta “o que é viver”, “o que é
o vivente”.

a.    Desde a dimensão física, é obvio que a morte é a destruição da configuração física das moléculas do organismo.

b.   Isto pode acontecer de vários modos.

=    Por acidente.

=    Por doença (já que, por razão das suas estruturas, o homem não pode não ter doenças).

=    Por puro desgaste interno das células (disto não temos ainda experiência).

c.    Para que haja morte, não basta a morte funcional; é necessária a morte estrutural.

=    A desestruturação em que consiste o aspecto físico da morte pode ser apenas de caráter funcional; há mortes
funcionais das que se pode voltar à vida.

=    Para que haja morte física irreversível, a desestruturação em que consiste o aspecto físico da morte há de ser
desestruturação essencial do corpo: desaparecimento das estruturas animais.

d.   Assim, morrer é primariamente um fenômeno físico e não metafísico.

=    Ao morrer, quem vai embora é o corpo, a vida vegetativa-animal.


=    Morrer não consiste em que a psique se despeça do corpo, mas em que o corpo se despede da psique.

=    Morrer consiste em que ficamos sem a vida, porque a vida vegetativo-animal “vai embora”.

=    Quando isto acontece, a substantividade humana inteira deixa de existir”.

[3]
 Hoje se ouve dizer: “A beleza salvará o mundo”. Efetivamente, a única salvação do mundo é Jesus Cristo; e Jesus
Cristo não é só a Verdade e o Bem, mas também a Beleza. Ele é a Verdade porque é a atualidade plenária e definitiva
de Deus na inteligência do homem. Ele é a Beleza porque é a atualidade plenária e definitiva de Deus no sentimento do
homem. Ele é o Bem porque é a atualidade plenária e definitiva de Deus na vontade do homem. Deus tem querido
salvar o mundo através da pregação, do kérygma de Jesus Cristo. A Igreja, até agora tem falado muito do momento
intelectivo e volitivo da pregação de Jesus Cristo: da pregação veritativa (momento intelectivo: anúncio
do kérygma com palavras) e da pregação operativa (momento volitivo: anúncio do kérygma com obras = testemunho).
Urge redescubrir o momento sentimentante da pregação de Jesus Cristo: a pregação estética do kérygma, o anúncio
estético da Beleza que é Jesus Cristo. Este redescobrimento atuado do kérygma não só verdadeiro e bom, mas também
belo salvará o mundo no terceiro milênio. Será a revalorização da cinderela das virtudes teologais, que é a esperança, à
qual o Papa João Paulo II tem associado expressamente a entrada no terceiro milênio. Não basta entregar-se
pessoalmente à pessoa de Jesus Cristo enquanto Verdade (Fé) e enquanto Bem (Caridade). É necessário também
entregar-se pessoalmente à pessoa de Jesus Cristo enquanto Beleza (Esperança), quer dizer, enquanto atualidade
temperante definitiva e plenária de Deus, enquanto fruição plena da Realidade de Deus.

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