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Carta Aos Romanos - Karl Barth
Carta Aos Romanos - Karl Barth
aos
Romanos
de Karl Bart
por Koller Anders
Carta
aos
Romanos
de Karl Bart
por Koller Anders
Segundo a
Quinta Edição Alemã
(impressão de 1967)
1ª Parte
CAPÍTULOS DE I À VII
São Paulo
2008
Copyright Fonte Editorial Comércio de Livros Religiosos Ltda
ISBN: 85-86671-03-7
Proibida a reprodução total ou parcial desta obra, de qualquer forma
ou meio eletrônico e mecânico, inclusive através de processos
xerográficos,
sem permissão expressa da editora.
Querida Eline:
Você sugeriu que eu escrevesse alguma coisa, por exemplo, algo sobre
teologia. Eu respondi-lhe que não valeria a pena e expliquei porque.
Porém, assim como as palavras são frutos de pensamento, elas são se-
mentes de futuras ações e, quiçá, de novas idéias. E as suas palavras de filha
amiga, levaram-me a enfrentar a tarefa de registrar ruminações minhas sobre o
estudo da Epístola aos Romanos, de Karl Barth.
Por que a carta aos Romanos, e logo de Karl Barth?
Novamente o fruto das palavras: Você me disse que achava difícil “de-
glutir” Paulo; e Barth disse que ficou radioso quando descobriu o grande após-
tolo dos gentios na Epístola.
Preciso contar-lhe primeiramente como conheci Barth: foi nos idos quan-
do Jorge Cesar Mota era meu pastor; ele gostava de citar Barth em seus ser-
mões, e era grande a celeuma! E este seu pai, ingênuo ancião da Igreja, nem
sabia quem era o tal Barth.
Não me foi difícil descobrir que os outros também não sabiam. Alguns
nem lhe soletravam certo o nome e os outros diziam que era um ecumenista. Já
os doutores citavam passagens mas, inquiridos mais de perto — não para inves-
tigação mas para minha instrução — deixaram patente que falavam de oitiva
ou, quando muito, haviam lido comentários de segunda mão ou até da enésima.
Fui a Livraria Ederle — que é especializada em obras teológicas católi-
cas sem fechar as prateleiras a obras dos “Irmãos Separados”, e encontrei refe-
rências a Barth:
Uma brochura (talvez umas cinqüenta páginas) intitulada, se não me en-
gano, “CARTA A UM PASTOR DA ALEMANHA ORIENTAL”. Que adorável
bilhete como diria, talvez, Otoniel Mota. Pareceu-me tão penetrante, divinamente
inspirada e inspiradora, tão bíblica que, no meu entender, poderia ser o (67 livro
da Bíblia, a ser inserido entre a carta aos Hebreus e a epístola de Tiago...
1
Explicações Preliminares
2
Explicações Preliminares
performed his task with great skill. He has combined fidelity to the text with a
considerable freedom of presentation and that is surely the mark of a good
translator. Though a translation, however skillfully made, must be in some degree
a transformation of the original, yet I feel certain that those who think and
speak in English will have before them what I wished to say”.
E assim fica explicado porque não mandei a você simplesmente, a tra-
dução inglesa.
Barth publicou a lª edição em 1918; a 2ª edição, totalmente revista, saiu
em 1920. A terceira foi, praticamente, cópia da segunda e saiu a lume em 1922.
O mesmo aconteceu com a 4ª edição (1924) mas no seu prefácio dessa edição
o Autor confessa que muita coisa deveria ser re-escrita e pontos obscuros deve-
riam ser esclarecidos; “mas não vejo, ainda, como resolver essas passagens
mais difíceis, por isso, mais uma vez, preciso mandar o livro sem modificá-lo”.
Finalmente, em 1926, saiu a 5ª edição, revista, que foi repetida pela 6ª e
última em 1928, todavia com reimpressões posteriores.
Para melhor caracterizar o Autor vou tentar traduzir os seus prefácios à 1ª
, 5ª e 6ª, edições, esta última da versão inglesa. Dos outros prefácios, para com-
preender melhor o Autor, valeria a pena ler o da 2ª edição, onde Barth explica aos
leitores porque refundiu totalmente a primeira edição e, em seguida, entra em
acres e irônicas críticas de caráter polêmico com os adversários e até com os que
lhe batem palmas. Revela-se um pugnador agressivo em plena exuberância; tinha
então 35 anos; diz que ele é um teólogo, escrevendo para teólogos...
Eu disse mais atrás que “tentaria” traduzir.
E por que somente TENTAR? Em primeiro lugar por que não sou teólo-
go; nunca fui nem pretendo vir a ser! Em segundo lugar porque o original é em
alemão; e em terceiro porque Barth é quase intraduzível. Faz jogos de palavras
e de idéias que não teriam sentido em português e cria expressões simples com
significados sutis que exigem circunlóquios extensos para serem explicados.
Como traduzir, por exemplo, “das Da-sem und Wie-sein”, ou então, como atri-
buir significação precisa, correta, ao título que o Autor dá à exegese de todo o
capitulo XIV e metade do capítulo XV, da Epístola: “Die Krisis des freien
Lebensversuchs”?
O prefácio da tradução inglesa aponta algumas das dificuldades típicas
encontradas por aquele “colegiado de tradutores” que, além de sua natural com-
petência, contava com a possibilidade de recorrer diretamente ao Autor, sem-
pre que tivesse dúvidas. Isto é, por si só, bastante para confirmar que sequer
poderia pretender apresentar uma tradução.
Todavia, o que você vai ler é a expressão mais fiel do que entendi; onde
me pareceu que a exposição talvez ficasse mais compreensível com observa-
3
Explicações Preliminares
Maio,1977
4
PREFÁCIO - KARL BARTH E SUA “CARTA”
1
Veja, além dos comentários de Barth e Lutero, os de João Calvino, J. A. Bengel, Charles
Hodge, Robert Haldane, D. G. Barnhouse, C. H. Dodd, E. Kaseman, M.Lloyd-Jones,
C. E. B. Cranfield, Douglas Moo, entre outros que marcaram e/ou têm tido uma longa
influência de determinados círculos.
2
Cf. Eugene F. Peterson, Take and Read (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1996), 79.
5
Prefácio - Karl Barth e sua “Carta”
3
Cf. Clifford Green, “Karl Barth’s Life and Theology” em Karl Barth: Theologian of
Freedom, ed. Clifford Green (Minneapolis, MN: Fortress Press, 1991), 16.
4
Barth afirma, por exemplo, que um tempo virá em que “os dogmas marxistas agora em
decadência irão se reavivar como verdades, no tempo em que a igreja socialista se
levantará em um mundo tornado socialista”. A frase foi eliminada pelo próprio Barth
das edições subseqüentes. Veja o comentário de Eberhard Jüngel sobre essa frase em
Karl Barih:
A Theological Legacy (Philadelphia, PA: Westminster, 1986), 96ss. No tempo em
que trabalhou como pastor em Safenwil, Barth foi responsável pela organização de três
sindicatos de trabalhadores e dava palestras sobre direitos trabalhistas. Minha opinião
é, no entanto, que o Rõmerbrief demonstra que Barth já percebia, naqueles tempos da
revolução russa, os inevitáveis futuros descaminhos do marxismo.
5
O documento em questão ficou conhecido como o “manifesto dos intelectuais ale-
mães” e foi assinado por vários professores de Barth, como Adolf von Harnack, Wilhelm
Herrmann, Hermann Gunkel e até mesmo Adolf Schlatter.
6
É importante notar que o próprio Barth afirmou posteriormente ter-se distanciado cada
vez mais de Kïerkegaard. Cf. Karl Barth, “A Thank You and a Bow: Kierkegaard’s
Reveilie” in Canadian Journal of Theology XI (1965), 4ss.; e Karl Barth. “Kierkegaard
and the Theologians” in Canadian Journal of Theology, XIII (1967), 64-65.
6
Prefácio - Karl Barth e sua “Carta”
7
Sobre Schweitzer veja, por exemplo, Charles R. Joy, “A Modern Man’s Quest for the
HoIy Graal” in Albert Schwitzer: An Anrhology, ed. Charles R. Joy (New York, NY:
Harper & Brothers, 1947), xix-xxviii; e Frederick Franck, Days with Albert Schweitzer
(New York, NY: Henry Holt & Co., 1959).
8
Sobre a busca do Jesus histórico, confira, por exemplo, Harvey K. McArthur, In Search
of the Historical Jesus (New York, NY: Clarles Scribner’s Sons. 1969); e Ben
Witherington III, The Jesus Quest (Downers Grove, IL: Intervarsity Press, 1995).
7
Prefácio - Karl Barth e sua “Carta”
8
Prefácio - Karl Barth e sua “Carta”
entra em firme divergência com Emil Brunner. Esta terceira fase do pensamento
barthiano foi marcada também pelo confronto com o nazismo que levaria Barth
a perder sua cátedra e a ser expulso da Alemanha em 1935, e a fixar-se para o
resto de seus dias em Basiléia, sua cidade natal. Barth opôs-se à neutralidade
suíça e deu seu apoio às forças aliadas. Acima de tudo, Barth opunha-se à associa-
ção do Fuhrer, do destino glorioso da Alemanha e da raça e da cultura teutônicas
com os propósitos e a revelação divinas. Em Basiléia, após o término da 2ª
grande guerra, teve início a quarta e mais importante fase da teologia de Barth.
E nesta época que Barth escreveu a maior parte da Dogmática Eclesiástica,
além de vários títulos menores de grande popularidade. À medida em que tra-
balhava nesta sua obra-prima, a Dogmática Eclesiástica, Barth acentuava de
modo implícito a descontinuidade de sua produção com seu trabalho da segunda
fase, da teologia da crise, da Carta aos Romanos. Muitos críticos têm sugerido
que o tipo de teologia que Barth desenvolveu na Eclesiástica não é consistente
com a Carta aos Romanos e sua insistência na absoluta alteridade divina, e não
teria sido legitimada pelo autor do Rõmerbrief. Barth, todavia, nunca aceitou
que tivesse havido uma total ruptura em seu pensamento, e via a Eclesiástica
em grande parte como o desenvolvimento natural da teologia apresentada no
Romerbrief em que o único ponto-de-contato entre o Criador e suas criaturas é
Jesus Cristo. Percebe-se que a intenção de Barth passou a ser um trabalho de
reconstrução da tradição protestante reformada conservadora, um empreendi-
mento que recebeu o epíteto de “neo-ortodoxia”, ainda que o termo tenha sido
sempre rechaçado pelo próprio Barth. É possível destacar ainda uma quinta e
última fase do pensamento barthiano, fase esta que marca o final da caminhada
progressiva de Barth em direção de uma posição cada vez mais evangelical e
que teve início após sua aposentadoria, tempo em que viajou a diversos países,
inclusive os Estados Unidos, aumentando consideravelmente sua influência nos
círculos teológicos mais conservadores, precisamente quando sua influência
nos círculos mais progressistas e neo-liberais gradualmente desaparecia.
Evidentemente, muitas idéias barthianas são ambíguas e questionáveis.
Como acontece com toda mente genial, Barth cometeu alguns excessos e deu-
se o direito de fomentar algumas “heresias”. Ainda que alguns se esforcem,
parece-me quase impossível duvidar, por exemplo, do universalismo de Barth.9
9
O universalismo de Barth não se restringe ao aspecto soteriológico, isto é, a rejeição do
chamado “terceiro ponto” do calvinismo do século XVII e a adoção da doutrina
arminiana correlata, mas abrange o aspecto escatológico, trazendo Barth para a com-
panhia de muitos liberais e de defensores da apocatástase sugerida por Orígenes (ca.
185-254) ainda no terceiro século da era cristã.
9
Prefácio - Karl Barth e sua “Carta”
10
G C. Berkouwer é um dos mais influentes teólogos reformados do século XX. Profes-
sor da Free University de Amsterdam, Berkouwer produziu uma coleção de estudos
dogmáticos de 18 volumes. Além de ocupar-se com outros temas, era também um
especialista em Karl Barth, sobre quem escreveu três livros, dois deles tendo-se torna-
do clássicos dos estudos barthianos, a saber, Karl Barth (1936) e The Triumph of Grace
in the Theology of Karl Barth (1954).
10
Prefácio - Karl Barth e sua “Carta”
biográfico,12 nem avaliação crítica demorada, O objetivo deste texto é tão so-
mente estimular o leitor ao estudo da obra que tem agora em suas mãos, mos-
trando a sua importância na história da teologia, apontando para as controvér-
sias que o livro gerou e continua gerando, bem como para o caráter singular e a
importância de seu autor para o estudo teológico. Para o leitor ávido de mais
informações sobre Karl Barth, recomendamos que aguarde os futuros lança-
mentos desta editora, pois entre eles serão oferecidas obras críticas sobre o
sistemata do amor livre divino, bem como outros títulos do teólogo da Basiléia.
11
Para este fim, sugiro a leitura de David Mueller, Karl Barth (Peabody, MA: Hendrickson,
1972); ou Colin Brown, Karl Barth and the Cristian Message (Chicago, IL: Intervarsity
Press, 1969); ou ainda Hans Urs von Balthazar, The Theology of Karl Barth, trans.
John Drury (New York, NY: Holt, Rinehart and Winston, 1971)
12
A melhor biografia de Karl Barth é a de Eberhard Busch, Karl Barth: His Life from
Letters and Autobiographical Texts, trans. John Bowden (Grand Rapids, MI: Eerdmans,
1994).
11
PREFÁCIO DO AUTOR À 1ª EDIÇÃO
Paulo falou aos seus contemporâneos como filho de sua época. Porém,
a verdade muito mais importante é que como profeta e apóstolo do reino de
Deus, ele fala a todos os homens de todos os tempos.
As diferenças entre outrora e hoje, lá e aqui, devem ser observadas com
o único objetivo de constatar que essas diferenças não têm o mínimo significa-
do na essência das coisas. O método histórico-crítico aplicado ao estudo da
Bíblia, prepara a mente o que é sempre útil; porém, se eu fora constrangido a
optar entre esse método e a arcaica doutrina da inspiração eu, decididamente,
escolheria por esta, pois ela é, de direito, maior, mais profunda e mais impor-
tante; porque a inspiração visa ao próprio processo do entendimento sem o que
toda e qualquer estruturação do raciocínio se torna vã.
Sinto-me feliz por não precisar escolher entre essas duas formas. No
entanto apliquei toda a minha atenção para observar os fatos através da histó-
ria, no espírito da Bíblia, que é o Espírito Eterno.
O que outrora foi sério, ainda hoje o é. E o que modernamente é sério e
não mero acaso ou extravagância, está, também, diretamente integrado com o
que, em tempos remotos, foi importante.
Nossas perguntas, se é que nos entendemos bem, são as perguntas de
Paulo e, as suas respostas — se a sua luz nos brilhar, são as nossas respostas.
13
Prefácio do Autor à 1ª Edição
14
PREFÁCIO DO AUTOR À 5ª EDIÇÃO
Teria eu, ao escrever o livro, dito tanto a ponto de fazer arder as ore-
lhas das gentes? Ou teria eu dito aquilo que depois da guerra e especial-
mente na Alemanha estava, por assim dizer, no ar, e que foi agradável a
certos senhores do mundo de nossos dias, para que eu fosse castigado, a
ponto de ser erigido em moda bastante em voga e, ainda mais, fosse puni-
do com o surgimento de um verdadeiro “Barthianismo” qual o
“Ritchlianismo” no tempo de Bismark? Parece até que tudo o que escrevi
contra a presunção humana — e por demais humana — sobretudo sobre a
vanglória religiosa, sua causa, sua roupagem, seu efeito, aplica-se agora a
mim mesmo, quando na realidade, ao escrever o livro, tencionei nadar
contra a correnteza; bater contra portas cerradas; não fazer favor a quem
quer que fosse, ou a muito poucos. Será que me enganei? Quem conhece
os seus contemporâneos e quem conhece bem a si mesmo? Não é para
ficar ressabiado ao ver quais os livros teológicos que têm, junto com o
nosso, repercussão semelhante? Acaso me equivoquei a respeito do mun-
do e de mim mesmo, tendo sido o servo do público como mau teólogo,
NOLENS VOLENS e engana-se porventura o leitor amigo que toma por
espiritual aquilo que para Paulo, Lutero e Calvino seria apenas um produ-
to dos tempos e para Nietzsche, Kirkegaard e Cohen, seria apenas
decocção? Se este for o caso, não me resta senão reconhecer o juízo que
de mim se faz pelo próprio sucesso da obra, que é de conhecimento públi-
co. E por que não seria esta a interpretação verdadeira?
Mas se não for assim, então nem eu nem o livro a merecemos.
15
Prefácio do Autor à 5ª Edição
16
Prefácio do Autor à 5ª Edição
Sim, Deus precisa ...! E um tal DOMINI CANIS gostaria de ser; oxalá
pudesse eu conquistar para a “ordem” todos os meus leitores! Crítica mais perfeita
do que esta não posso imaginar para meus livros. Mas também nenhuma outra mais
crítica! Pois quem pode acrescentar um côvado à sua estatura? E assim, também
visto deste lado, o “sucesso” é de fato um julgamento ao qual estamos sujeitos.
É preciso ter em mente esses dois significados da problemática realida-
de. Eu desejo que justamente o meu leitor perceba comigo o rigor e a bondade
que nos levam, juntos, a considerar que temos um Senhor.
17
Prefácio do Autor à 5ª Edição
Para aqueles que não querem deixar de ser a Igreja Militante do século
20, não será possível contornar qualquer ameaça ou aflição semelhante à que
pesou sobre os cristãos protestantes e teólogos do século 16. Quanto a mim, é
bastante lembrar-me da dialética do conceito de “sucesso” para sentir uma for-
ma dessa aflição. MONITI DISCAMUS!
Era o que eu queria dizer antes de soltar o livro desta vez.
Munster, Westphalia
fevereiro, 1926
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PREFÁCIO DO AUTOR À 6ª EDIÇÃO
(Traduzido da versão inglesa)
19
Prefácio do Autor à 6ª Edição
queiram notar que a segunda obra, bem como os outros livros meus, são adita-
mento ao primeiro trabalho.
Outro dia apareceu a seguinte nota, em Neuendettelsau: “De Karl Barth,
pode-se dizer que ele está deslizando para a posição de um homem de ontem”.
(Die Freimund* de 8 de novembro de 1928). Sim, sem dúvida! Os mortos an-
dam depressa, mas os teólogos bem sucedidos, ainda mais depressa. (Ver pre-
fácio da 5ª edição). Como poderia eu ter escrito este livro se eu não fosse, tanto
em teoria como em prática, um homem “pré-parado” antes de ser um “homem
de hoje”?
Será que eu trato (conforme me acusam) o “tempo” e a “história” tão
levianamente a ponto de magoar-me quando me dizem que meu dia tem um
entardecer e que se tornará ontem, transato? Assim avisado tenho, contudo, a
alegria de ainda fazer algumas correções e ajuntar algumas explicações; contente
por poder rogar aos meus leitores amigos, ainda que achem (e talvez com razão)
que fora melhor que eu não fizesse correções, que não escrevam o meu obituá-
rio antes de que se prove que aquilo que escrevi está esgotado e que o ontem
existente SUB-SPECIE AETERNI também se manifestou no tempo devido.
Munster, Westfalia
1º Domingo do Advento, 1928
* “Boca-livre”
20
AB EXTRA, AD REM
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Ab Extra, Ad Rem
22
Ab Extra, Ad Rem
23
Ab Extra, Ad Rem
24
APRESENTAÇÃO
— Capítulo I —
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Capítulo I
Introdução (1 - 17)
Paulo a seus Leitores (1, 1 - 7)
27
1, 1-3 Paulo a seus Leitores
28
Paulo a seus Leitores 1, 3-4
29
1, 3-4 Paulo a seus Leitores
nhecido de Deus, não deve ser confundido com esse mundo desconhecido,
ainda que seja identificado ou identificável com a vida de Jesus.
À medida que o nosso mundo [temporal] for tocado pelo outro mundo
[de Deus] através de Jesus, deixa ele de ser histórico, temporal, material, dire-
tamente perceptível: Jesus é “poderosamente estabelecido como Filho de Deus,
pelo Espírito Santo, através da sua ressurreição de entre os mortos”.
Este estabelecimento de Jesus é o seu verdadeiro significado e como tal
não pode ser verificado historicamente.
Jesus, como o Cristo, o Messias, é o final dos tempos. Ele só pode ser
entendido [compreendido], como paradoxo— (Kierkegaard), como vencedor
— (Blunhardt), como pré-história. (Overbeck).
Jesus, como Cristo, é o plano desconhecido que corta o nosso, perpen-
dicularmente, vindo do alto.
Do ponto de vista histórico, Cristo só pode ser entendido como proble-
ma, um mito; ele traz o universo do Pai, do qual nada conhecemos, nem pode-
mos vir a conhecer, através da história.
A ressurreição de entre os mortos, porém, é o ponto de inflexão, de
mudança de rumo. É o ponto estabelecido de cima e visível de baixo. A ressur-
reição é a revelação, o descobrimento de Jesus, como Cristo, e nele o apareci-
mento e o conhecimento de Deus; a origem da necessidade de dar a honra a
Deus e de contar com o desconhecido e invisível em Jesus, dando-lhe as cre-
denciais de Consumador dos tempos, Paradoxal, Pré-histórico, Vencedor.
Na ressurreição o novo mundo do Espírito Santo toca o velho mundo
carnal qual tangente roçando o círculo, não o tocando mas tangenciando ape-
nas; chega ao ponto de tangência como o limite entre os dois mundos.
A ressurreição é o acontecimento fundamental que ocorreu ante as por-
tas de Jerusalém, no ano 30, conquanto aí teve lugar, foi descoberta e ficou
conhecida; neste sentido, é pois fato histórico. Todavia, como essa ocorrência,
o seu desconhecimento, o seu reconhecimento, a sua necessidade, não foram
os seus elementos determinantes, mas estes elementos estavam [e estão] na
ressurreição, em si mesma; ela já não pode mais ser considerada qual mera
ocorrência histórica, porém, à medida que Jesus se revela e é reconhecido como
o Messias, ele é “investido como Filho de Deus”, ainda antes da Páscoa, tão
certamente quanto depois dela.
Esta é a significação de Jesus: a investidura do Filho do Homem como
Filho de Deus.
O que Jesus é afora desta investidura tem apenas a importância ou
a irrelevância de todas as coisas temporais, materiais e humanas, em si
mesmas.
30
Paulo a seus Leitores 1, 4-6
31
1, 6-7 Paulo a seus Leitores
Comentários: 1, 1-7
32
Paulo a seus Leitores
33
1, 8-10 Questões de Fôro Pessoal (8 a 15)
V. 8 Antes de tudo dou graças a meu Deus, através de Jesus Cristo, pois em
todo o mundo fala-se da vossa fé.
Vs. 9 e 10 Pois o Deus a quem eu honro em meu espírito, visto que anuncio o
evangelho de seu filho, é minha testemunha como sem cessar intercedo
34
Questões de Fôro Pessoal 1, 9-10
por vós em minha adoração, não sem rogar que, enfim, me seja concedido,
pela vontade de Deus, ir ter convosco.
35
1, 11-13 Questões de Fôro Pessoal
Esse anseio tem sua razão de ser. Peregrinos que se encontram na estra-
da que leva a Deus, têm sobre o que trocar idéias. Um pode significar algo para
o outro, não porque assim o queira; não, exatamente, por sua riqueza interior,
não pelo que seja, mas por aquilo que não é; por sua pobreza, por seu suspirar
e por sua esperança; por sua vagarosidade e por sua pressa; por tudo que, em
seu ser, aponta para outro ser que esta além do horizonte e acima de suas forças.
Um apóstolo não é um homem positivo, mas negativo. Em torno dele
vê-se a vacuidade. [A pobreza de espírito, a fome e sede de justiça, a ânsia pela
paz, o anseio pelo consolo, a fraqueza na fé, o reconhecimento de que só Cristo
pode redimir e salvar].
É na vacuidade de seu próprio ser que o Apóstolo significa algo aos
outros e reparte misericórdia. É assim que ele fortalece os demais na obediên-
cia, na perseverança e na adoração.
O Espírito distribui graça por ele, justamente porque ele nada tem de si,
de positivo, que possa ter algum valor. E neste processo o distribuidor se trans-
forma em receptáculo; quanto mais dá, mais recebe e quanto mais for receben-
do mais terá para dar.
Entre cristãos não é apropriado perguntar se “vem de ti ou vem de mim”,
pois não vem nem de ti nem de mim, porque nada temos.
É bastante que acima de nós, atrás de nós, além de nós, exista a fé, a
mensagem da fé, o conteúdo da fé, a fidelidade de Deus, que consola o superior
e o principiante nas suas tentações e fraquezas, tanto externas como internas.
O desejo que os cristãos acaso tenham de, em uníssono, baterem às por-
tas do Reino dos Céus a fim de iniciarem um movimento comum sob a direção
do Santo Espírito é legítimo, conquanto também seja certo que essa conformi-
dade seja vazia e irrelevante.
V. 1 3 Deveis porém saber irmãos, que já muitas vezes tencionei chegar até vós
para que também entre vós, como entre os demais gentios, eu produza
frutos, mas até aqui fui impedido de fazê-lo.
36
Questões de Fôro Pessoal 1, 13-15
siado grande o número de localidades que não tiveram ainda o início da prega-
ção que Roma já recebeu. Conseqüentemente o trabalho a que o Apóstolo foi
destinado — o trabalho de sua vida — (de semear em terra virgem) (15, 20-22)
o levou sempre a outras paragens.
Permanecia, porém, o veemente desejo e a viva intenção de colher tam-
bém onde não semeara e de trabalhar onde outros já haviam trabalhado. Até
agora, pela vontade de Deus (1, 10) o desejo ainda não pôde ser satisfeito.
Comentários: 1, 8-15
37
1, 15-16 O Tema da Epístola (16 e 17)
38
O Tema da Epístola 1, 16
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1, 16 O Tema da Epístola
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O Tema da Epístola 1, 16
homem que se nega a si mesmo, que se anula em sua soberba pretensão e sua
vontade egoísta e vaidosa, para dar lugar a Deus], teria conteúdo [ainda que
fátuo]; em vez de côncavo seria convexo [isto é, em vez de fazer convergir e
concentrar a mensagem recebida a dispersaria]; em vez de negativo, seria posi-
tivo; em vez de ser a expressão da sua própria insuficiência, toda voltada para a
esperança na promessa do evangelho, teria a pretensão da auto-suficiência, de
mostrar-se intrinsecamente rico em qualidades.
Nestas condições deixariam os cristãos de ser uma comunidade cristã
para serem uma cristandade compromissada com a oscilante realidade mundi-
al, de aquém ressurreição [portanto sem o Cristo vivo, ressurrecto]. Tal cristan-
dade, praticando com o mundo um pacífico e cômodo MODUS-VIVENDI,
não pode ter parte com o Poder de Deus.
Semelhante evangelho de maneira nenhuma estaria livre da concorrência
com o mundo e, competindo, não estaria em posição vantajosa, antes estaria
em grande embaraço e aperto pois as filosofias e religiões do mundo, forjadas,
urdidas ou criadas aquém ressurreição, foram desenvolvidas a gosto do homem
[de forma semelhante à confecção das imagens e o culto idólatra] deturpando o
evangelho com o objetivo de acomodá-lo ao gosto do presente século [criando
ilusões e desvirtuando a imagem do próprio Deus que deixa de ser espiritual
para ter a imagem e a semelhança do homem e o evangelho deixa de ser Poder,
para ser movimento; e os cristãos deixam de ser sal e luz, e portanto a minoria
do caminho estreito, para serem massa num pseudo evangelho chamado social,
ecumênico, tolerante e, sobretudo, tolerável e tolerado pelo mundo].
Haveria, então, razões suficientes para ter vergonha do evangelho!
Paulo, porém, refere-se ao “Poder” do Deus desconhecido: “O que olho
algum viu, nenhum ouvido ouviu, o que jamais chegou ao coração humano”. E
por isso que ele não se envergonha do evangelho.
O “poder de Deus” é poder “para a salvação”. O homem, neste mundo,
está em cativeiro. Nenhuma luz adicional encontraremos se nos aprofundarmos
na conscientização de nossas limitações humanas, antes, sentir-nos-emos cada
vez mais distantes de Deus; ficaremos mais compenetrados da enormidade de
nossa queda (1, 18; 5, 12) e as suas seqüelas serão cada vez maiores (1, 24; 5,
12) do que, sequer nos permitiremos sonhar.
É que o homem é agora [após a queda e aquém da ressurreição] o seu
próprio senhor. A sua unidade com Deus foi tão profundamente destruída, dila-
cerada, que o reatamento dessa união é absolutamente inimaginável para o ho-
mem. A sua condição de criatura é o seu grilhão; seu pecado, a sua culpa; sua
morte, o seu destino. Seu mundo é um caos disforme que flutua ao léu sob a
ação de forças naturais, anímicas e algumas outras. Sua vida é uma aparência.
41
1, 16 O Tema da Epístola
42
O Tema da Epístola 1, 16
43
1, 16 O Tema da Epístola
isso não pode ser apreendido senão pela fé e, portanto, para ser aceito é preciso
que se creia nele. A única alternativa à sua aceitação pela fé. é a sua rejeição].
O evangelho manifesta a seriedade de sua presença em nossa vida im-
pondo a opção entre o caminho da fé e a escandalização. [Ou a pessoa aceita o
evangelho, crendo nele, ou se escandaliza com a verdade que apresenta, consi-
derando-o absoluta loucura em sua pretensão de ser o único caminho para a
redenção, situando-o, quando muito, como uma possibilidade, uma interpreta-
ção e quiçá, até uma verdade entre muitas outras alternativas, filosofias, cren-
ças e religiões].
Aquele que não estiver à altura da contradição, que não se conformar com
ela, [que não estiver pronto a perseverar na esperança da boa nova qual o evange-
lho a apresenta, não quiser esvaziar-se a si mesmo para dar lugar à plenitude de
Deus] para esse, o evangelho será motivo de escândalo. Todavia, a todos os que
não fugirem da evidência da contradição [antes perseverarem na aceitação da
graça paradoxal e inaudita, e estiverem prontos para morrer para a vida material
(a fim de ganharem a vida espiritual), de se esvaziarem completamente (para se
encherem dos dons do espírito), que nada pretenderem, nem mesmo ousarem
desejar herdar a vida eterna ou se locupletar de dons celestiais, que não imagina-
rem uma transação de vacuidade calculada para dar lugar ao preenchimento que
viria qual recompensa, os que voltarem suas vistas, sinceramente, para a Cruz e a
Ressurreição] para esses tais abrir-se-á o caminho da fé.
A fé é o respeito ante o incógnito divino, e o amor a Deus, com plena
consciência da diferença qualitativa entre Deus e os homens; Deus, e o mundo.
Fé é a confirmação da ressurreição como ponto de retorno do mundo [ao con-
sentimento], ao SIM contido dentro do NÃO divino. A fé é a estacada arrasado-
ra perante Deus, em Cristo Jesus.
Todo aquele que reconhece que os limites do mundo estão demarcados
por uma verdade que o contradiz; todo aquele que vê a sua própria limitação
marcada pela vontade divina que contraria sua própria vontade; quem acaricia
o espinho que esse cerceamento representa em seu ser e seu modo de ser, ainda
que isto lhe seja extremamente difícil, por conhecer demasiadamente bem a
extensão dessa contradição e que, embora por essas razões todas tenha anseios
de escapar dela, obriga-se a viver com ela (Overbeck) e que, em resumo, se
confessa sujeito a essa contradição, vencendo a si mesmo ao ponto de nela [e
por dai apoiar e orientar a sua vida, — esse tal crê!
Quem confia em Deus — em Deus mesmo e somente em Deus isto é,
quem reconhecer a fidelidade de Deus na própria contradição que essa fidelidade
impõe e pela qual somos deslocados [somos feitos estrangeiros] da existência e
do modo de ser deste mundo, quem corresponder a essa fidelidade divina com
44
O Tema da Epístola 1, 16
a sua própria fidelidade, quem ficar com Deus, a despeito de todos os “ainda
que” e “apesar de” [que as contingências da vida possam trazer], este CRÊ!
E o crente encontra no Evangelho o “Poder de Deus” para a salvação, os
raios precursores da eterna bem-aventurança, e o ânimo de colocar-se em guar-
da, de sentinela!
Mas o encontro, a descoberta, do Poder de Deus, exige a escolha (a
opção) livre e contínua, de cada instante, entre o escândalo e a fé. Todavia, no
que concerne à fé, o calor da descoberta, a pujança da convicção, o grau de
entendimento e a cultura alcançada são mera roupagem [de ocorrências] deste
lado [de aquém ressurreição] e por isso marcos irrelevantes do fenômeno.
Sendo marcos do acontecimento da fé não são grandezas positivas,
porém, grandezas negativas com relação a outras positivas, quais etapas de
trabalho de desentulho pelo qual desocupamos a praça “deste lado” para receber
o “além”.
É por isso que a fé não é, jamais, idêntica à “religiosidade” ainda que
esta seja a mais fina, a mais pura, pois a religiosidade é um marco da fé, e como
tal anula outras realidades do mundo e junto com estas, notoriamente, a si mes-
ma. A fé, porém, vive por si própria, porque vive de Deus! Este e o CENTRUM
PAULINUM. (Bengel).
Todo indivíduo pode e deve crer. Com o direito de opção [a crer e a
escandalizar-se] estão “o judeu e o grego”.
O evangelho questiona a existência e o modo de ser do mundo e, conse-
qüentemente, de cada ser humano; tão certo quanto a profunda problemática de
nossa vida é uma condição geral, assim, também a contradição divina em Cris-
to faz-se sentir individualmente, em cada pessoa. O “judeu”, o homem religio-
so, o homem de igreja, é o primeiro a ser chamado a fazer a opção pois ele está
na linha divisória, lá onde deveria ser vislumbrada a linha de interseção (1. 4)
do plano deste mundo com o da nova dimensão [e nessa interseção, o seu ponto
de destaque — a ressurreição de Jesus], (2, 17-20; 3, 1-2; 9,4-5; 10, 14-15). O
fato de ser o judeu o primeiro a escolher [a decidir] não representa primazia ou
superioridade. [O judeu deveria ser o primeiro a reconhecer o Salvador, o Cris-
to, em Jesus, por lhe terem sido confiados os oráculos divinos a fim de que se
desempenhasse da incumbência de nação sacerdotal, isto é, de povo escolhido
para servir a Deus endireitando as veredas para o advento de Emanuel, que é
Deus conosco; foi às portas de Jerusalém que ocorreram os marcos materiais
da ressurreição que é a investidura espiritual de Jesus como Filho Unigênito de
Deus, O “judeu” (ou o crente que conhece a Bíblia, que assiste aos cultos, que
trabalha na Igreja) foi devidamente instruído na lei, teve conhecimento da sã
doutrina, sabe qual a vontade de Deus, a ponto de arvorar-se em mestre, guia de
45
1, 17 O Tema da Epístola
cegos e luz nas trevas; tem pois obrigação de achegar-se primeiro a seu Senhor
e Redentor.
Os judeus tiveram a voz de seus profetas e os crentes de hoje têm a graça
de Jesus revelada nas Escrituras Sagradas. Esta é a vantagem de uns e outros. Os
judeus tiveram o testemunho dos patriarcas e profetas e da própria linhagem de
Cristo, segundo a carne; os crentes de hoje, herdando as mesmas provas antigas,
receberam o dom maior de serem o novo Israel de Deus, nação eleita pela adoção
através de Jesus Cristo. Os ‘judeus” que não confessam a Cristo como seu Salva-
dor por não aceitarem a ressurreição, por nela não crerem, e os gentios que ou-
vindo o convite de Jesus não o aceitarem por não se conformarem com a renúncia
que impõe, pela contradição que representa, ao renegarem a opção da fé, optam
pelo escândalo, não com maior degradação, porém primeiramente!].
A pergunta “se é religioso, ou não”, já não tem mais razão de ser, e da
outra interrogação: “Se é eclesiástico ou mundano”, nem se fala. [Se é clérigo
ou leigo].
A possibilidade de ouvir o evangelho é igual para todos e assim também
a responsabilidade de anunciá-lo para que seja efetivamente ouvido e se cum-
pra a promessa feita aos que em o ouvindo, o aceitarem.
O que se revela no evangelho é o grande, o universal mistério da justiça
de Deus, que pesa sobre todo homem seja qual for sua categoria, posição ou
nível. A harmonia de Deus em si mesmo [do seu amor e da sua justiça tão
insistentemente procurada por judeus e gregos, por todo mundo, vem à luz e é
exaltada em Cristo Jesus.
O que o homem entende por Deus aquém da ressurreição, é caracteristi-
camente a negação de Deus. E um Deus que não redime a sua criatura; que
permite o livre curso da injustiça humana; que não se confessa ser nosso Deus.
[Ora] um Deus que seja a confirmação máxima do que o mundo é e de
como o mundo é, — é simplesmente insuportável; é “NÃO — DEUS”, a des-
peito dos mais altos atributos com que o adornemos.
O clamor revoltoso dos que se insurgem contra tal Deus está mais perto
da verdade do que as artificialidades levantadas pelos que o querem justificar.
É somente pela carência de coisa melhor e pela falta de coragem de ir
até o desespero, que o ateísmo não se generalizado lado de cada ressurreição.
Porém, em Cristo, Deus fala; fustiga o NÃO-DEUS das mentiras deste
mundo e confirma a si mesmo ao negar-nos quais somos e ao rejeitar o mundo,
qual é.
Ele dá-se a conhecer como Deus, Deus além da nossa queda, além do
tempo, da matéria e dos homens: como libertador dos cativos e assim, em seu
conjunto, como Criador.
46
O Tema da Epístola 1, 17
Ele se declara nosso Deus enquanto cria e resguarda a distância que vai
de nós a ele; ele se compadece de nós convidando [provocando] a nossa crise e
trazendo-nos a juízo. Ele garante a nossa salvação querendo ser Deus e ser
reconhecido como Deus, em Cristo. Ele nos justifica, justificando-se a si mes-
mo. [Submetendo-se, ele mesmo, à sua justiça].
“Pela fidelidade” revela-se a nós a justiça de Deus: pela sua fidelidade
para conosco. O verdadeiro Deus não se esqueceu do homem. O criador não
abandonou a criatura.
Tenha o mistério sido “silenciado” desde os tempos “remotos”, e que
ainda continue oculto (16, 26); que sempre, de novo, o homem considere o
NÃO-DEUS mais suportável que a contradição divina [em Cristo]; que nos
pareça impossível a revelação do irrevelável ante o qual só a irreflexão não
recua assustada [desalentada]; permanece, todavia, a fidelidade de Deus para
com o homem. Permanece a mais profunda coincidência [a congruência] entre
a vontade de Deus e o anseio que o homem, depois de liberto, aninha no mais
recôndito de seu ser: Esperamos um novo céu e uma nova terra onde habite a
Justiça! A este nosso anseio é dada a resposta divina quando a última interrogação
humana acorda em nós. [Quando ouvimos a boa nova, vinda do lado de Deus;
quando estiverem fora de circulação todas as moedas falsas, cunhadas pela
nossa pretensão, nosso egoísmo, nossa auto-suficiência, nossa arrogância].
E porque estamos empenhados nesta esperança, nisto reconhecemos a
fidelidade de Deus.
À fé revela-se o que Deus revela por sua fidelidade. Aqueles que pres-
cindiram da comunicação direta, recebem-na; àqueles que ousam arriscar-se
com Deus [que entregam a própria sorte em suas mãos, sem indagar sobre a
natureza de Deus] fala Deus como ele é; aos que tomam sobre si o fardo do
divino NÃO, ele suporta com o divino SIM, que é infinitamente maior. Os que
sofrem a contradição, sem dela fugir, são sobrecarregados, mas aliviados; aqueles
que perseveram na esperança, nela mesmo reconhecem que estão autorizados a
tê-la: que podem e devem esperar pela fidelidade de Deus.
Neles cumpre-se a profecia: “O justo viverá pela fidelidade”. (Hab. 2, 4).
O “justo” é o cativo que se transformou em sentinela. E o atalaia no
umbral da realidade divina. Não há outra justiça que a do homem atemorizado
e esperançoso que se submete à justiça de Deus. Ele viverá: ele traz em si a
candidatura à vida verdadeira, desde o momento quando reconheceu a futilida-
de desta vida, e passou a ter nela, sempre presente, o reflexo da outra, da verda-
deira; dentro do efêmero passou a ter a vista voltada para o eterno!
A grande impossibilidade anunciou-lhe o objetivo e o término dos pe-
quenos impossíveis. Ele viverá da fidelidade de Deus.
47
1, 17 O Tema da Epístola
Comentários: 1, 16-17
48
A Noite [As Trevas] (18-32) 1, 18
A NOITE
49
1, 18 Origem da Noite
50
Origem da Noite 1, 18
torna-se o seu caruncho secreto, e a negação [de si mesmo] passa a ser exata-
mente o que se entende por ela [segundo o mundo]. No lugar do Deus Santo
entroniza-se o Destino, a matéria, o universo, o acaso, “ANANKE” [a personi-
ficação do destino, ou fado]. É então, um sinal de bom senso quando evitamos
chamar de Deus ao NÃO-DEUS da incredulidade, (1, 17). Mas a última conse-
qüência da ira divina é aquilo que identificamos como sendo Deus sem crer na
ressurreição.
O Deus que, em contradição a seu nome, confirma a existência e o modo
de ser do mundo, também é Deus: Deus em sua ira; Deus que nos traz sofri-
mento; Deus que já não pode deixar de se afastar de nós; que só pode dizer
NÃO e, por isso é, por todos os retos, chamado Deus, sob reservas, pois a ira de
Deus não pode ser a sua última palavra, sua verdadeira revelação final.
O NÃO-DEUS não pode ser chamado, verdadeiramente Deus mas na
verdade, é sempre com Deus que nos deparamos. [É Deus que diz NÃO ao
pecador, e ao manifestar o seu NÃO, ele é verdadeiramente DEUS; este Deus
que diz NÃO, e ao dizer o seu NÃO confirma a existência da abominação do
mundo é, todavia, diferente do deus criado pelo homem, à sua própria imagem
e semelhança e que confirma a existência e o modo de ser do mundo com o seu
consentimento, a permissividade complacente, o livre curso dado a abominação,
(sem levantar-lhe o sinal do NÃO DIVINO). Todavia, o Deus que diz NÃO e
que manifesta a sua ira sobre os homens que procedem segundo os ditames de
seu próprio coração (e seu deus), é também o Deus de Amor que mandou o seu
filho unigênito ao mundo para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha
a vida eterna. Contudo, seja qual for a nossa posição pessoal, na problemática
de nossa existência, deparamo-nos sempre com Deus, ainda que nossos cami-
nhos não sejam os seus caminhos e nossos pensamentos sejam rasteiros].
Também a incredulidade depara-se com Deus, porém a incredulidade
não penetra na verdade de Deus que lhe é oculta [pois não crê, e a verdade, que
não é material, somente pode ser vista com os olhos da fé] e se despedaça em
Deus como Faraó. (9, 15-18).
Segundo Zuendel: “Todo o impedimento e dano à vida criada por Deus,
a história conjunta da queda e do cerceamento da vida das criaturas, inclusive a
punição com a morte, é uma reação de Deus”. Entretanto precisamos acrescen-
tar que somente pereceremos dessa reação se não tomarmos conhecimento dela
para dela nos apropriarmos. O mundo todo é vestígio de Deus; entretanto, se
em vez de optarmos pela fé preferirmos “o escândalo” acharemos unicamente
o rastro da ira de Deus.
A ira de Deus é a justiça de Deus revelada ao incréu. De Deus não se
zomba: a sua ira é a justiça fora de Cristo e sem Cristo.
51
1, 18 Origem da Noite
O que quer dizer “fora de Cristo” e “sem Cristo”? “A ira de Deus revela-
se contra toda a impiedade e insubordinação dos homens”. Estas são as marcas
características de nossa relação com Deus aquém da ressurreição.
É desrespeitoso! [O nosso procedimento]. Pretendemos saber o que dize-
mos quando enunciamos a palavra “Deus”! Atribuímos-lhe a posição mais alta
de nosso mundo e, em assim fazendo, colocamo-lo, fundamentalmente, na
mesma linha em que estamos, nós e as coisas materiais; achamos que ele “precisa
de alguém” e que podemos ordenar as nossas relações com ele como arranja-
mos qualquer outro relacionamento. Enfiamo-nos para junto dele sem maiores
reservas [o Autor usa expressão equivalente a “insolentemente” ou “atrevida-
mente”, e penso que “sem maiores reservas” fica em melhor harmonia com o
contexto] e, assim procedendo, o projetamos para nosso nível (o Autor diz “para
nossa proximidade”). Permitimo-nos uma espécie de familiarização com ele e
habituamo-nos a contar com ele [para todas as coisas] como se o relacionamen-
to com Deus fosse coisa vulgar [e não especialíssima, da criatura com o Cria-
dor, relacionamento que só Jesus Cristo tornou possível, como nosso media-
dor, intercessor e advogado, em nome de quem nós nos aproximamos de Deus].
Levamos o nosso atrevimento ao ponto de nos arvorarmos em seus familiares.
seus benfeitores, seus administradores [mordomos fiéis], seus corretores.
Confundimos a eternidade com a temporalidade.
Esta é a nossa falta de respeito no relacionamento com Deus.
Secretamente, nesse nosso modo de proceder, somos nós os Senhores.
Para nós não se trata de Deus porém das nossas necessidades [de nossos dese-
jos e conveniências] pelas quais queremos que Deus se oriente.
Além de tudo isso, a nossa petulância pede ainda que nos seja dado a
conhecer um “super-mundo” e que tenhamos acesso a ele. Pedimos uma moti-
vação profunda, um louvor ou uma recompensa, vinda do além.
Porfiamos por colocar Deus sobre o trono do mundo quando na realidade
estamos entronizando a nós mesmos. “Crendo” nele, estamos apenas preocupados
com a nossa justificação, honrando-nos a nós mesmos e tirando proveito próprio.
Nossa religiosidade consiste na solene confirmação que fazemos a nós mesmos e
ao mundo de que, piedosamente, nos poupamos da contradição. [Arvoramo-nos
em servos fiéis; procuramos promover o reino de Deus sobre a terra, não por amor
ao reino mas para ganharmos a recompensa de Deus. Ou então queremos Deus do
nosso lado para abençoar e fazer prosperar o nosso negócio ainda que seja a ruína
de nosso concorrente; gostamos de religião cômoda, tolerante para com o mundo e
tolerável para ele, e classificamos o nosso comodismo como piedade religiosa].
Sob todos os sinais de piedade e enternecimento, na realidade, rebelamo-nos contra
Deus, confundindo o nosso tempo finito com a eternidade de Deus. [Por querermos
52
Origem da Noite 1, 18
53
1, 19 Origem da Noite
Vs. 19-21 A idéia de Deus lhes é conhecida, Deus a deu ao conhecimento deles
pois as coisas invisíveis estão manifestas, desde a criação do mundo, nas
suas obras, se forem observadas sensatamente, (e este é Justamente o seu
Poder Eterno, a sua divindade!) que não haja desculpa, porém, a despeito
do conhecimento que tiveram de Deus eles não lhe tributaram honra nem
lhe renderam gratidão, antes, esvaziou-se o seu pensamento e obscureceu-
se-lhes o coração insensato.
54
Origem da Noite 1, 20
mos ante a sua face quer como acusadores, quer como queixosos, arrazoando
com ele conforme o fazemos com nossos semelhantes.
A problemática de nossa existência e de nosso ser, a vaidade e a incerte-
za de tudo o que é e o que somos, está sempre diante de nós como um livro
didático, aberto.
O que são as obras de Deus em suas formas as mais enigmáticas (um
jardim zoológico, por exemplo) se não perguntas que não têm respostas diretas
e das quais só Deus, Deus mesmo, é a resposta?
O NÃO divino que aponta à nossa limitação e, nela, para a nossa saída
dela, pode ser percebido e compreendido pela contemplação sensata, calma,
objetiva e sem religiosidade preconcebida, das obras de Deus, desde a criação
do mundo.
Nada e ninguém, senão nós mesmos, pode impedir que a idéia de Deus
nos faça entrar na mais salutar das crises que, na realidade, começa a manifes-
tar-se desde o momento quando nos dispomos a ver sensatamente.
A invisibilidade de Deus foi sempre fato inquestionável para todos obser-
vadores sábios e está em absoluta correspondência [congruência] com o evange-
lho da ressurreição, o eterno Poder e a Divindade de Deus. Exatamente isto: nada
podemos saber a respeito de Deus; não somos Deus; o Senhor deve ser temido.
Esta é a sua preeminência sobre todas as divindades e é isto que o aponta como
Deus, Redentor e Criador. (1, 16).
A linha divisória entre a temporalidade e a eternidade, entre o mundo
presente e o futuro, corta, efetivamente, toda a história; ela foi anunciada há
muito (1, 2); ela sempre poderia ter sido vista, [que sempre esteve patente aos
olhos que quiseram ver].
A ira de Deus não se revela irremediavelmente sobre os homens que
estão sob seu julgamento, pois eles podem reconhecer e amar seu Juiz, “Para
que não tenham desculpas” quando não vêem e não ouvem, pois acontece com
olhos que podem ver e ouvidos que podem ouvir. Indesculpável é sua impieda-
de porquanto as obras de Deus, “sensatamente contempladas”, falam do seu
Poder Eterno e protestam, de antemão, contra a submissão ao conhecido NÃO-
DEUS, ao qual o Deus verdadeiro é equiparado pelas forças espirituais, mate-
riais e outras deste mundo.
Também a sua rebeldia é indesculpável pois a realidade “sensatamente
observada” testemunha a “eterna divindade” de Deus e protesta, também de
antemão, contra a arrogância religiosa que, no torvelinho de sua aventura, fala
em Deus e pensa em si mesma.
Se tivermos encapsulado a verdade de Deus e, assim, atraído sobre nós
a sua ira, não foi porque não tivemos outra alternativa pois “Deus, em quem
55
1, 21 Origem da Noite
vivemos, nos movemos e existimos não está longe de cada um de nós” (Atos
17, 27-28). Portanto, no que concerne a Deus, a situação poderia ser diferente.
Porém, “a despeito de seu conhecimento de Deus”...
O conhecimento de Deus que nos é dado com um simples relance de
olhos sobre a inexplicabilidade, a imperfeição e a insignificância de nossa vida,
não foi levado a proveito.
A invisibilidade de Deus parece-nos menos suportável que a tão duvi-
dosa visibilidade daquilo que gostamos de designar por Deus.
Da pressuposição eterna e fundamental do Criador faz-se uma “coisa”
em si, acima e ao lado das demais coisas; da viva abstração de toda materialidade,
criamos uma coisa concreta, ainda que seja a coisa mais sublime entre todas.
Do Espírito, criamos um espírito; do Não Aproximável (e por isso tão próximo
de nós) fazemos o objeto eternamente incerto de nossas experiências.
Em vez de vermos a luz na sua luz que é a luz eterna que ninguém pode
apagar, fazemo-la apenas uma luz entre outras ainda que a reputemos a maior,
a mais fantástica, sobrenatural; achamos lógico acender a nossa luz nessa luz
sobrenatural e, com a mesma lógica procuramos a luz nas coisas concretas que
nos cercam.
Onde fica, pois, a tributação da honra que lhe devemos quando Deus já
não é mais o Desconhecido? Onde a gratidão que lhe pertence quando, para
nós, ele já não é mais do que aquilo que nós mesmos somos?
Prometeu tem o direito de insurgir-se contra Zeus, o “NÃO-DEUS” que
usurpa o lugar de Deus.
Conseqüentemente, a luz que há em nós são trevas e a ira de Deus sobre
nós é inevitável. “Esvaziou-se o seu pensamento e obscureceu-se o seu coração
insensato”, e a nossa limitação é verdadeiro emprisionamento e o NÃO divino
significa realmente NÃO, para nós.
Insensatamente senta-se o homem sobre si mesmo e enfrenta as absur-
das e ativas forças do mundo [absurdas porque não têm sentido, são nulas e
vãs] pois a nossa vida só tem sentido e é sensata quando voltada, orientada para
o Deus verdadeiro.
Esta orientação para Deus, este relacionamento, precisa ser estabeleci-
do para que a nossa mente e nosso coração, contemplando com sensatez, sejam
quebrantados com a lembrança da eternidade — [ou, em outras palavras, para
que a lembrança da eternidade de Deus, proclamada por suas obras, seja perce-
bida por nós, invada nossa mente e nosso coração, e nos oriente, nos aproxime
do Deus eterno, em Cristo Jesus.]
Outra relação com Deus que não aquela do caminho de Jó, não existe.
Se não houver o rompimento [da casca externa, criada pela nossa resistência
56
Origem da Noite 1, 18-21
Comentários: 1, 18-21
57
1, 18-21 Origem da Noite
58
A Atuação da Noite (1, 22-32) 1, 22
59
1, 22 A Atuação da Noite
60
A Atuação da Noite 1, 22-24
vista no espelho, porém ainda menos perfeita — ou melhor, inferior a ele mes-
mo, pelas distorções que o espelho naturalmente produz, desencadeando uma
degenerescência progressiva entre a imagem e a inspiração].
61
1, 24 A Atuação da Noite
62
A Atuação da Noite 1, 24
o mais, o muito mais que existe. Mas não é assim o falso encontro com Deus,
ou o encontro com o NÃO-DEUS; deste encontro sai o homem cheio de con-
vencimento, pleno de gozo, repleto, satisfeito, jactancloso. Será preciso
exemplificar os encontros desse teor, que por aí polulam sob os mais variados
nomes, protestantes, católicos, espíritas e “espiritualistas”, macumbeiros e
quejandos, “curadores” e “curandeiros”, recebedores de “Espírito Santo” e de
espíritos, milagreiros, videntes, iogas...?].
Desse suposto encontro com Deus brotam por deduções mediatas e por
ilações, divindades imaginárias, poderes, principados, potestades (8, 38) que
mudam o colorido e obscurecem a luz do Deus verdadeiro. (Em nenhuma parte
do mundo existe maior número de “comunicações indiretas” que no romântico
reino da “comunicação direta” India!).
É sempre onde a distância qualitativa entre o homem e [o grande] fim [a
tradução inglesa diz “entre o homem e o ômega], é negligenciada — (essa
distância que fundamenta [que solidariza] o homem) — é aí que se instala o
fetichismo, com o endeusamento de “aves, quadrúpedes e vermes”, acabando e
começando com a “figura do homem corruptível” (“a pessoa”, “a criança”, “a
mulher”) e nas respectivas criações “materiais espirituais”. (Família, Povo,
Estado, Igreja, Pátria, etc.) Aí vive o deus [deste mundo] e o Deus que habita
além de tudo “isso” e “aquilo” é abandonado.
É assim que se criam os ídolos e o “NÃO-DEUS”.
“É por isso que Deus os abandonou”. Essa troca do Deus verdadeiro
pelo NÃO-DEUS cria o seu próprio castigo pois o esquecimento do Deus ver-
dadeiro dá lugar à sua ira contra os que o esqueceram (1, 18). A empreitada da
criação do NÃO-DEUS tira vingança de Si mesma, com o seu próprio êxito. As
forças naturais e anímicas [ou espirituais] que foram idolatradas são, agora,
deuses, e reinam em nosso ambiente como Júpiter e Marte, Isis e Osiris, Cibele
e Atis. A nossa atividade e nosso procedimento passam a ser regulados por
aquilo que queremos; portanto, forçosamente alcançaremos o alvo que nos pro-
pusemos, a saber: que todas as imagens e semelhanças, cujos significados ig-
noramos, se transformem em objetivo, conteúdo e fim. E o homem torna-se
escravo e joguete das coisas [da matéria], de toda natureza e cultura ciência]
pois ele ignorou que Deus é o Senhor de todas as coisas e tem o poder de
sustentá-las e suprimi-las. Já agora não tem o homem alguém superior que o
proteja das coisas e criaturas que ele mesmo elevou ao ponto mais alto acima
dele, e a impureza de seu relacionamento com Deus, lança a sua vida na imun-
dície. Se Deus foi destituído de sua glória pelo homem, [por força maior] perde
o homem a sua. Junto com o interior envergonha-se o exterior; com a alma,
também o corpo, pois o homem é uma unidade.
63
1, 24-25 A Atuação da Noite
64
A Atuação da Noite 1, 25-27
65
1, 27-28 A Atuação da Noite
Vs. 28-31 Há ainda um detalhe importante, real e final dessa situação, que
precisa ser analisado: até mesmo no relacionamento errado com Deus, existe
um “resto” de “observação sensata” uma última sensação de advertência,
mostrando o mistério de Deus que se opõe à arrogância religiosa. [Atrás, e
para além do procedimento desarvorado do homem que modela sua con-
duta no deus que erigiu para si e ao qual atribui grosseira ou subrepticiamente
suas qualidades e seus vícios e os recopia diluindo uns e ampliando os
66
A Atuação da Noite 1, 28-32
outros, existe ainda para o homem uma certa percepção da glória do Deus
verdadeiro que lhe diz NÃO!].
67
1, 32 A Atuação da Noite
Esta é a sabedoria da noite que a si mesma faz néscia. (1. 22). Louca é
ela porquanto se coloca firmemente num ponto de vista superficial das coisas
humanas, que os fatos continuada e reiteradamente desdizem e negam. Todavia
esta sabedoria vê aonde leva o caminho da insubmissão do homem, e seu alvo
não lhe está oculto. Ela conhece a origem de sua noite e a sua ação, todavia não
ousa gritar-lhe: PARE!
A surpreendente queixa da fraqueza da existência terrena e a quase in-
compreensível queixa da pecaminosidade da raça acompanham sempre o ca-
minho do homem que esqueceu o seu Criador.
[Mas os que assim se queixam e lamentam] continuam com os olhos
voltados para baixo, para o chão, e amam, desejam promovem, confirmam,
acham bom o que aí edificaram, e defendem essa obra, acirradamente, contra
todo o protesto justo que se lhe oponha.
Por que será tão difícil lembrar-se o homem do que esqueceu, quando o
resultado desse esquecimento e tão claro, quando é tão evidente que a nossa
perambulação pela “Noite” leva a morte?!
Comentários: 1, 22-32
68
A Atuação da Noite 1, 22-32
69
1, 22-32 A Atuação da Noite
70
A Atuação da Noite 1, 22-32
71
Capítulo II
A RETIDÃO HUMANA
•O Juiz - Vs. 1 a 13
•O Julgamento - Vs. 14 a 29
73
2, 1 O Juiz
74
O Juiz 2, 1
[Não seria ilícito esperar que] pelo poder do evangelho já há tanto tem-
po anunciado e pregado, se houvesse reunido um grupo, ainda que minúsculo,
que fosse qual ilha de bem-aventurados no meio de um mar de desdita?
Não existe a possibilidade plausível de alguém tributar honra ao Deus
desconhecido de Abraão, Isac e Jacó, sendo, conseqüentemente, admissível
que aquele [que assim proceder] seja forçosamente subtraído do jugo da ira de
Deus?
Não se abriria uma exceção possível, para urna pessoa que se inserisse
sinceramente na crise divina de nossa existência e de nosso modo de ser e que,
dessa maneira, tomasse posição ao lado de Deus na crítica ao mundo e que, por
isso, lhe fosse concedido o privilégio de sair das trevas para a luz?
Ou será que o círculo “causa-e-efeito” do afastamento [de Deus] e que-
da, distintivo característico do homem e do mundo, como tais, deverá permane-
cer fechado para sempre?
Vs. 1-2 Por isso não tens desculpa, ó homem, quem quer que sejas, quando
julgas. Porquanto, enquanto julgas aos outros, julgas a ti mesmo, pois
procedes de maneira idêntica aos que julgas naquilo que julgas. Sabemos,
porém, que o juízo de Deus é verdadeiro, contra os que assim procedem.
75
2, 1 O Juiz
cia, posição e expansão, são sempre oriundos do homem e. como tais, estão
eivados de irreverência [impiedade] e insubmissão [perversão].
O reino do mundo nunca é [ou será] o reino de Deus e ninguém se
excetua; ninguém é dispensado e ninguém é desculpado: não existem “felizes
aquinhoados”.
“Enquanto julgas aos outros julgas a ti mesmo”.
Quando tu te colocas em um ponto de vista, tu te pões, a ti mesmo, em
erro. Enquanto dizes “eu”, ou “nós” ou “é isto”, estás trocando a glória do
incorruptível pela imagem do corruptível (1, 23). [Quando o homem se encastela
em seu próprio “eu” e afirma em seu nome e no de seus semelhantes, ser “isto”
ou “aquilo” o certo ou o que Deus aprova, quando o homem se arvora, quer
jactanciosamente, quer em estudada (quiçá obediente) humildade, a ser juiz de
seus iguais para, distanciando-se deles, ser mais perfeito, mais puro, mais sábio
perante Deus, do que os outros, coloca-se em erro e sob as trevas da ira e indig-
nação de Deus, pois serve o NÃO-DEUS deste mundo erigindo a sua própria
pessoa em imagem de Deus; tal homem não vai a Deus, mas o traz para junto de
si, para seu nível, para sua perecibilidade, sua corruptibilidade, que trocou pela
incorruptibilidade de Deus].
Enquanto tu te dispões a tributar honra ao Deus desconhecido, como se
estivesses realizando algo possível, enclausuras novamente a verdade. Reivin-
dicas temor e humildade como propriedades tuas [para teu benefício] e te tor-
naste, por isso, — irreverente e insubmisso.
Tu te desembaraças do peso do mundo sob o anteparo [o biombo] de
teus pontos de vista e dos teus modos de ver e, por isso mesmo, o mundo
passa a pesar mais sobre ti que sobre os outros. [Quando o homem cria para si
uma capa religiosa alardeando a sua religiosidade, sua espiritualidade, sua fé,
longe de encontrar a paz de Deus, que é diferente daquela que o mundo ofe-
rece (João, 14, 27), detém-se semi-anestesiado com suas próprias esperan-
ças, enquanto, em torno dele e sobre ele, se avolumam os desenganos, as
incertezas, as atemorizações sem fim; e sobre tal homem o mundo pesa mais
que sobre os que pecam sem lei.]
Tu te separas dos teus irmãos como conhecedor dos mistérios de Deus;
talvez [até o faças] com a melhor das intenções de os ajudar depois de os haveres
ultrapassado [ou de assim pensares]; por isso mesmo nada sabes dos mistérios
de Deus [pois se soubesses não seguirias esse caminho] antes, és o menos indica-
do para auxiliar o teu próximo. Tu vês a alheia estultícia como estultícia alheia,
enquanto a tua própria clama aos céus [sem que o percebas. (Mat. 7, 35)].
Também o dizer-se “NÃO” [às coisas do mundo]. à penetração no para-
doxo da vida, à submissão ao juízo de Deus, tudo isto nada é enquanto for
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O Juiz 2, 1
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2, 1 O Juiz
das religiões transcorrem [isto é, têm seu começo e seu fim] neste mundo. A
chamada “história da redenção” é, apenas, a contínua crise de toda a história e
não uma história especial ao lado da História [ou paralela a ela].
Também não há santos entre os ímpios [não são santos, os homens de
Deus], pois é exatamente quando alguém quer ser santo que o deixa de ser.
São exatamente os protestos, a crítica, a acusação que os pretensos san-
tos lançam contra o mundo, em vez de se enquadrarem em suas próprias
verberações, que os colocam, inevitavelmente, na mesma fila dos ímpios.
As acusações [que os pretensos homens de Deus fazem contra o mun-
do], vêm do próprio mundo; do perigo, e não do socorro. Estas falam da vida,
mas não são a vida; elas são qual luz artificial nas trevas, mas não o amanhecer,
o raiar do sol!
Essas considerações aplicam-se [a qualquer homem de Deus], também
a Paulo, o profeta e apóstolo do reino de Deus; valem tanto para Jeremias,
como para Lutero, Kierkegaard e Blumhardt [e por que não mencionar também
Barth e seu “pretenso” interpretador?].
Vale para São Francisco [e por mais justa razão] que de longe ultrapas-
sou a Jesus em “amor”, “infantilidade” [inocência] e “austeridade” e que por-
tanto subsiste, essencialmente como acusador; e isto para nada dizer da
aniquilante santidade de Tolstoi. [O A. quer destacar o fato extremamente sério
que o homem que pretende elevar-se para ser santo, ainda que fosse um Paulo
ou um Jeremias (que foi o profeta consagrado às nações desde o ventre de sua
mãe (Jer. 1, 5), ou seja um vulto histórico como Lutero, ou contemporâneo do
autor como Kierkegaard ou Blumhardt, tal homem deixará de ser santo e sepa-
rado para Deus desde o momento quando em seu coração se aninhar a idéia de
ser perfeito, santo, pois no mais profundo do ser, tal idéia viceja com intenção
da preeminência entre os demais homens, seus próximos. E isto é tão mais
vigoroso num santo da categoria de São Francisco que a tradição orna com
qualidades sobremaneira excelentes, “superiores” às do próprio Senhor Jesus,
realçando o “amor” todo peculiar e lendário que nimba o Santo, (amor que se
estende até mesmo aos animais), a sua inocência que atinge as raias da ingenui-
dade pueril, e que é também descrito como senhor de uma austeridade que, no
romantismo imaginativo, excederia à do próprio Salvador. Com tantos atribu-
tos será tanto maior juiz e, conseqüentemente, maior escravo do pecado!
Todavia, assim como essa imaginada santidade beata, fanática, pouco
esclarecida, é seguida e adotada para quebrar, anular, ignorar a distância que
separa o homem do verdadeiro Deus, assim também (e talvez mais ainda, se-
gundo o Autor,) o é a santidade de elite a que se arrogam os intelectuais e
teóricos do status de Tolstoi].
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2, 2-3 O Juiz
para se justificarem, para nele e com ele se protegerem perante Deus, e também
não se servirão dele para bombardear os outros com suas acusações].
Eles sabem que a Justiça de Deus é segundo a verdade e quem há que
possa resistir quando aferido com a escala da verdade divina? Quando, como e
onde seria possível que alguém. alguma [idéia] ou coisa permanecesse de pé,
sob tal julgamento?
Vs. 3-5 Acaso entendes, ó homem, que tu com o teu julgamento, praticando as
mesmas coisas, fosses, logo tu, livrar-te do julgamento de Deus? Ou não
entendes a riqueza de sua bondade, a sua contenção e a sua paciência?
Não percebes que a bondade de Deus quer levar-te ao arrependimento?
Porém, com tua dureza e teu coração impenitente amontoas para ti uni
tesouro de ira, para o dia da ira e da revelação do justo juízo de Deus.
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O Juiz 2, 3-4
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2, 4 O Juiz
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O Juiz 2, 4-5
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2, 4-5 O Juiz
por isso mesmo, é fingido, hipócrita e “farisaico” isto é. estribado em leis, pre-
ceitos, doutrinas e dogmas; orientado pelo que há de comer e beber, pela guar-
da de dias, por encaixes eclesiásticos, por uma série de “pode” e “não pode”.
Esta classe de gente é para o A., sempre no meu entender, a classe que
mais retém a verdade com a injustiça e por isso, mais forte, maior, é a ira de
Deus contra ela; portanto, mais extremado, mais odiado é este inimigo].
Ele é o justo [segundo o seu próprio critério], já condenado, e ele não se
deve surpreender se subitamente for tornado público o que ele de fato é. [Luc.
12,2-31].
Vs. 6-11 Porque a medida com que os homens são medidos, não é deste
mundo. É a medida eterna como eterno é Deus: a medida é o próprio Deus!
Deus reiteradamente procura sinceridade [fidelidade] no homem. Fide-
lidade a si, somente. Para nos edificar, ele nos anula primeiro; dá-nos a vida,
nô-la tirando e nos redime, transformando-nos, ao som da última trombeta.
[Parece-me que são dois os sentidos que o A. quer dar: para que o crente seja
edificado em Deus, é necessário que lhe seja fiel e sinta pessoalmente a absolu-
ta nulidade humana; para ser firmado em Cristo, é necessário que se negue a si
mesmo; para ganhar a vida precisa perdê-la primeiro. É preciso que a pessoa se
esvazie de todos os atributos que tenha ou que pense ter, mesmo os mais subli-
mes e apurados, aqueles que a sociedade, a igreja, a família mais enaltecem e
admiram. E nesta aproximação a Deus, é preciso que o crente seja genuíno,
sincero. E a sinceridade que Deus busca! O segundo sentido é escatológico. A
redenção vem com o encontro paradoxal com Deus, mas a transformação vem
no final dos tempos. Será quando soar a última trombeta. O homem destruído
será restabelecido; o morto viverá; o remido transformar-se-á].
É disto que se trata.
Perante este Deus comparecerá também o justo; o crente. Comparece-
rão perante o Deus que retribuirá a cada um segundo as suas obras; com glória,
honra, incorruptibilidade e vida eterna aos que com perseverança buscam a
Deus conforme o testemunharem suas boas obras. Porém, com ira e indignação
aos que com mente servil e desobedientes à verdade, seguem a rebeldia. [Há
aqui urna consideração a fazer, e que está implícita em todo o contexto do que
até aqui foi apresentado: a salvação — o que chamamos a “vida eterna”, é pela
graça de Deus e somente pela graça. Nada pode o homem fazer para alcançá-la
ou ganhá-la, se não crer. (Atos 16, 31).
No entanto, o Senhor, justo juiz recompensará (II Tim. 4. 8) a cada um
segundo as suas obras com maior ou menor galardão. Está porém implícito
que, para receber o galardão, terá o crente fiel recebido, primeiramente, a graça
da vida eterna].
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2, 6-7 O Juiz
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O Juiz 2, 8-4
rebeldia. O que o homem faz com “boa intenção” pode ser um ato profunda-
mente reprovável perante Deus.
Esta segunda alternativa, (a do “milagre terrível”) [também] não é “di-
retamente” perceptível aos homens; ela vem de Deus, e só de Deus e ninguém
está livre de incorrer nesse erro.
Novamente estão na mesma linha, judeus e gregos; homens do mundo e
homens da igreja: estão todos sujeitos ao mesmo risco. Nunca, e de forma algu-
ma, está a justiça humana segura do valor de seus feitos e empreendimentos,
aos olhos elo “comprador” divino. [Deus vê os corações e julga segundo a
verdade; as obras humanas, feitas “para o bem” podem, eventualmente, ter
motivação maligna, egoísmo, ou qualquer outro objetivo pessoal; por isso está
a retidão humana sempre sob a ameaça de ser invalidada pela justiça divina;
ainda que ou, quiçá, especialmente quando o objetivo haja sido, justamente, a
obtenção dessa aceitação].
A rebeldia e o destemor a Deus serão sempre exatamente o que são,
mesmo que tomem formas altamente sofisticadas e refinadas ou se acobertem
naquilo que, material e psicologicamente, chamamos “fé”.
O juiz [supremo] não abrirá mão de julgar também o “justo”: ele julga;
ele próprio e só ele!
“Porque Deus não faz acepção de pessoas”.
As coisas que historicamente ou espiritualmente aparentam realçar ou
favorecer uma pessoa com relação ao restante da humanidade, são somente a
atitude, a máscara, o papel assumido por essa pessoa no teatro da vida.
É a máscara que faz alguém parecer importante entre seus semelhantes.
Não há dúvida de que isso tem certo valor, em si, mas não significa preeminên-
cia eterna; não é nada que transponha a crise das coisas perecíveis (corruptí-
veis) e que alcance a incorruptibilidade.
A medida (a escala) com que Deus mede não é deste mundo; ele não
atenta à máscara; para Ele o justo não está, [só por ser assim considerado], no rol
dos justos, pois Deus o vê qual ele realmente é. Quiçá como abençoado [servo
perdoado] em busca do imperecível ou, também pode acontecer, como amaldiço-
ado rebelde, examinado e exposto [à condenação].
Homem é homem; Deus é Deus!
O que resta, pois, da atraente segurança do farisaísmo?
Vs. 12 e 13 Os que pecaram sem lei, também perecerão sem lei. E aqueles que
pecaram à face da lei serão julgados segundo a lei. Porque perante Deus
não são justos os ouvintes da lei mas os que a praticam.
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2, 12-13 O Juiz
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O Juiz 2, 12-13
idéia de que o homem tenha algum direito [algum mérito para a salvação] para
que desapareça o último sinal [mesmo o mais remoto] de uma realidade humana,
ou de uma contribuição material, “eles SERAO DECLARADOS justos” (2, 6).
Eles acolheram, neste mundo de injustiça, a candidatura da justiça do
mundo vindouro; no tempo do entrechoque, do escândalo, optaram pela busca
da eternidade.
A sua justiça consiste no fato de que sempre, e reiteradamente, entre-
gam a sua retidão humana a Deus, a quem ela pertence: a retidão destes tais
consiste, portanto, na renuncia fundamental [e total] da retidão própria.
Onde a lei encontra tais praticantes, onde a revelação encontra seme-
lhante fé, aí está Cristo, “o fim da lei, para a justificação de todo aquele que crê”
(10,4-5).
Então vem ao nosso conhecimento aquele que nos conheceu primeiro.
O juiz, porém, permanece como juiz, até que venham o novo céu e a nova terra.
Comentários: 2, 1-13
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2, 14 O Julgamento
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O Julgamento 2, 14
revelação e, por isso, não guardam memória dela e, [logicamente], não fazem qual-
quer esforço por conservá-la. Pode-se até considerá-los adormecidos pois não mos-
tram qualquer inquietação ou intranqüilidade [com relação à sua situação] por for-
ça de algum cismar próprio, alguma recordação ou alguma observação de terceiros.
Poderíamos, [com propriedade], considerá-los como incrédulos porquan-
to não manifestam qualquer assombro, [qualquer interesse], qualquer respeito
ou confrangimento para com o que está acima deles. Poderíamos, até, considerá-
los injustos, pois aprovam e acompanham o procedimento normal do mundo.
De fato, de maneira alguma poderíamos dirigir-nos a eles como aos ha-
bitantes das margens do canal da revelação.
Porém, pode acontecer que gentios, que não têm a lei, “pratiquem o que
a lei ordena”.
Ora, sendo Deus o juiz, “praticar a lei” é algo diferente de “ter” ou “ou-
vir” alei(2, 13).
Praticar a lei, quer dizer “estar diante de Deus”.
[Na prática da lei] tem lugar a revelação; Deus fala; e a conseqüência da
revelação são o temor e a humildade, aliás, resultantes naturais da posição em
que o homem se encontra.
Então, dá-se a justiça (ou a retidão) que vem de Deus.
Todavia, a revelação vem de Deus.
Ela não fluirá, necessariamente, no leito do canal [que pode estar] vazio.
Ela pode correr por ele mas pode, também, buscar outro traçado, rasgar novo
caminho.
A revelação não está atada, não está condicionada às impressões antigas
que acaso tenham sido deixadas outrora; ela é livre; portanto é erro supor que
os gentios [que não tiveram acesso às bordas do canal ou que não o buscam]
estejam adormecidos, ou são incrédulos e injustos. Também eles podem ser
tementes a Deus e por ele escolhidos sem que os outros [os que habitam junto
ao canal] o percebam. [Aliás], a fé, como tal, está sempre envolta em mistério.
[Em discrição].
Os gentios sentem [ou podem sentir] desassossego, estremecimento, o
temor que os habitantes do canal não vêm nem entendem. Porém, Deus vê, e os
compreende. A justiça de Deus, há muito, abriu-lhes [o caminho] mas a retidão
humana ainda os observa de soslaio, desconfiada.
Eles praticam a lei em “seu estado natural”. Na sua natural jovialidade e
no seu risonho mundanismo, na singela e despretenciosa objetividade de seus
afazeres. Deus os conhece, e eles, [os gentios, os homens afastados da igreja],
por sua vez, também o reconhecem; e [conseqüentemente] não ficam sem a
visão da corruptibilidade de tudo quanto é humano; e também não deixam de
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2, 14 O Julgamento
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2, 15-16 O Julgamento
“Eles são lei para si mesmos”. Se essa lei se expressa ou não em termos
da religiosidade e experiências espirituais, não vem ao caso, pois Deus pode
conceder e de fato concede, também isto aos gentios.
”Estes tais apresentam as obras exigidas pela lei gravadas em seus cora-
ções”. Eles comparecem ao tribunal divino; entram em julgamento; e o que
justifica o homem perante Deus “encontra-se neles”.
De que forma?
Toda resposta positiva: “Assim,” [desta ou daquela maneira] seria ina-
dequada [para explicar] a obra que o gentio justificado apresenta a Deus e com
a qual encontra o beneplácito divino.
Tivera a justiça humana que pronunciar-se, e o gentio seria,
indubitavelmente, condenado.
Aquilo que a justiça humana acaso encontrasse a favor dele não seria
(nem foi) o que o justificou perante Deus.
É no fim, na extremidade [desesperada] da justiça humana que se encon-
tra, possivelmente, a justificação do homem perante Deus; é quando o homem
se sente completamente perdido; quando ruíram por terra todas as suas ilusões
morais e religiosas; quando ele abandona todas as esperanças depositadas nes-
ta terra e neste céu; [quando, para ele, sua retidão não tem qualquer mérito].
Além, para além de toda intuição, de toda objetividade; para além de
tudo aquilo que os possuidores da lei acaso ainda lhe concedam (um “bom
cerne” [bom nome, boa família] um “certo idealismo”, “bases religiosas”) além
de tudo que o europeu médio preza (posição, maturidade, raça, personalidade,
agudeza de espírito, caráter), (além de tudo isso) está o que o gentio tem para
apresentar a Deus e que Deus pagará com a vida eterna (2, 6).
Na realidade, talvez não [haja no gentio assim justificado] mais do que
resquício de religiosidade, (algo inconsciente, extra-eclesiástico). Quiçá exista
nele o homem desnudo (Dostoiewski) no seu último estádio; pode ser que ele
tenha apenas uma derradeira e grande carência, perplexidade, pobreza. Talvez
na hora extrema [quando a morte se apresentar] ele manifeste apenas espanto
ante o mistério, ou indignada revolta contra a condição de nossa existência, ou,
ainda, o amargo silêncio do ator que, contra seu querer, é forçado a abandonar
o palco.
Pode também acontecer que o gentio [em julgamento] tenha coisas mais
agradáveis, mais bonitas: não vem ao caso. [O que importa] é que no céu há
regozijo, há alegria por um pecador que se arrepende, — [que faz penitência,
segundo o original]. É um regozijo maior do que por noventa e nove justos que
não precisam de arrependimento.
O que é arrependimento? [“Penitência” escreve o Autor].
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O Julgamento 2, 16
Não é o ato final, mais elevado, mais sublime, mais fino, da justiça (re-
tidão) humana, para Deus, porém é o primeiro ato da justiça divina, por parte
do homem: é o ato básico! É a obra inserida em seus corações [corações dos
gentios], por Deus. E por ser de Deus, e não dos homens, é vista com alegria
nos céus: é o homem lançando seus olhos para Deus e para Deus somente:
olhar que, também, somente Deus vê.
“Pelo que suas consciências e seus pensamentos mútuos de acusação e
de desculpa são testemunhas”.
Quem há [entre os gentios] que ouça a voz da consciência? Como fala-
ria ela aos que estão sem lei e sem Deus? Quem, [entre eles] poderia perceber o
significado da dialética que fala de Deus e da fatalidade, [da história da reden-
ção e da escatologia,] da fatalidade e da culpa, de culpa e expiação, de expiação
e Deus?
Mas Deus vê; ele ouve também a voz que foi silenciada [no instante
extremo]; ele entende [avalia e aceita] aquilo que foi apenas vislumbrado; “ele
considera o destino [o fado]. em seu conjunto” (Gellert). Para ele testemunham
todos os fatos que não podem testemunhar, humanamente, para os juízes deste
mundo. Ele sabe aquilo que não sabemos; daí a, [para nós], incrível e incom-
preensível possibilidade de aqueles que estão sem lei, comparecerem no tribu-
nal, sem lei, e serem justificados.
Porque, “no dia em que Deus julgar os segredos dos homens, por Jesus
Cristo” os gentios apresentarão suas obras e serão aceitos.
Donde vem a possibilidade de serem acolhidos por Deus aqueles que
estão sem ele?
Como desconsiderar o critério [aparentemente lógico e válido] de sepa-
rar os homens entre religiosos e irreligiosos; morais e imorais; como substituir
essa classificação dos homens, feita segundo um corte transversal da lei, pela
aplicação de um critério segundo uma seção longitudinal, descobrindo-se ao
longo dela — e nas maiores profundezas [onde estão submersos os homens
sem lei, afastados de Deus] possibilidades inúmeras [para o acesso ao rio da
vida]?
Isto se dá “de acordo com o meu evangelho”.
É a luz que raia no dia novo da raça humana, na hora da ressurreição; é
o dia de Jesus Cristo que traz essa luz.
É esse dia que traz a metamorfose do temporal [efêmero, passageiro]
em eterno [incorruptível, imperecível], e o dia em que se revela o que está
escondido e se anuncia que somos vistos por Deus. Isto significa crise: confir-
mação e negação; morte e vida; um começo e um fim; um término e um início;
consumação e renovação!
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2, 19-21 O Julgamento
lei), também aos outros: aos cegos que perambulam nas trevas, aos ignorantes
e aos pequeninos. Gostarias de promover a lei; propagá-la, espalhá-la estendê-
la para que muitos tivessem posse dela.
Por força do que és e tens, sentes-te pressionado para agir, instalado
como cooperador de Deus.
Mas “tu, que aos outros ensinas, não ensinas a ti mesmo?”
Para que alguém tenha uma missão a cumprir é necessário haver alguém
que lha tenha confiado. Quem quiser ensinar, precisa estar preparado para isso.
Para distribuir é preciso ter o que repartir.
O que significa ter a lei, se ela não for posta em prática, e quando Deus
não se revela a tais possuidores?
O que significa a impressão [a noção] da revelação, se ela não prosse-
gue, [se permanece apenas na forma remota de primeira impressão]?
O que significa ter o olhar voltado para onde Deus estaria, se ele já não
mais está ali?
Que vantagem terá alguém na hora do julgamento, por ter morado à
beira do leito do rio [onde fluiria a água da vida] se o canal está seco? (Não se
poderia ter dado o caso de as águas terem sido cortadas?)
[Pessoas piedosas, crentes, devotas, podem atribuir-se prerrogativas de
detentoras do conhecimento da lei divina, da graça de Deus, do entendimento
da revelação de Deus em Cristo Jesus, segundo seus próprios conceitos ou pre-
conceitos, sem na realidade se abeberarem da água da vida; o rio da vida, para
estes, já não flui no canal que eles elegeram; talvez um dia lá estivesse o rio de
águas fulgentes, mas o seu leito foi assoreado com os detritos das presunções
humanas; as águas estagnaram e o baixio do canal é leito árido ou várzea ape-
nas úmida, quiçá umedecida pelos resquícios, pela lembrança, pela memória
das águas que, um dia, ali fluíram.
O curso d’água foi bloqueado, não pelo Deus invisível, mas pelo ho-
mem que reteve a verdade divina com a sua presunção, pela qual ainda fala em
conhecimento e revelação.]
Quem és tu? O que tens? Donde vens? O que espalhas e derramas, pois,
em torno de ti e por todos os lados? O que é este “espírito novo” que queres
implantar em todos?
A tua impressão da revelação, a invasão que sentiste [em tua alma], teu
entusiasmo, tudo isto é carnal, é deste mundo.
Acaso, com teu religioso mundanismo, terias menos a temer da ira de
Deus do que os outros? Não é essa [tua] religiosidade o aprisionamento da
verdade, a permuta do imperecível com a figura do perecível, ocorrendo no teu
caso [na qualidade de judeu] de maneira idêntica à do outro [do gentio]?
100
O Julgamento 2, 22-33
O que és tu, se Deus não for por ti? O que és, se ele não encontrar em ti,
no recôndito do teu coração, a [boa] obra? (A oração do Coletor de Impostos, a
súplica do Filho Pródigo, o clamor da viúva perante o juiz iníquo?)
Então o teu “fazer” será o que ele é: tua legalidade, um furto (quem não
furta?); tua pureza, um adultério (quando teria a sexualidade sido pura?), tua
religiosidade, vã presunção (pois qual o religioso que não se aproxima [presun-
çosamente] de Deus?).
Adiantaria diferençar entre os degraus mais altos e mais baixos da vida,
no tribunal de Deus?
Se à tua vida faltar a justificação que só Deus mesmo pode dar, então
falta-te toda e qualquer justificação.
Se não tiveres mais que a tua impressão de revelação, para apresentar a
Deus, então nada tens para apresentar-lhe.
Se evocas para ti, apenas a tua fé, então nada tens a evocar. “Glorias-te
da lei, e desonras a Deus, transgredindo-a”.
Se Deus não for por ti, tudo será contra ti. Se Deus não for por ti, tam-
bém não podes ser por ele; o mundo tem vista penetrante e não deixará valer a
tua pretensa superioridade; ele logo te reconhecerá como carne de sua carne e
osso de seus ossos.
Se tu mesmo fores reprovável não podes agir, trabalhar, instruir em nome
de Deus. A tua posição se inverte e não podes achar que isto seja uma injustiça:
Querendo ser missionário, se não houveres sido enviado, fazes o contrário,
pois onde se fala de lei, o mundo espera que a lei seja cumprida; onde houver
menção de revelação o mundo a procura [e quer vê-la efetivada].
O mundo crê com longânima paciência em todas as exigências novas e
mais altas que os “filhos de Deus” [o original não tem as aspas] em seu meio,
levantarem e, de maneira nenhuma seria indiferente a realidades [que se lhe
apresentassem] mas, será insensível a coisas ilusórias e vãs.
Se o mundo sentir-se ludibriado, iludido pelos “vocacionados” e “ilumi-
nados”, se lhe parecer que, ainda uma vez, apenas lhe exibiram aldeias e povo-
ados de Potenquim, se nada houver [nessa pretensa revelação] que seja novo,
diferente, convincente [real], então, após uma curta admiração, ele se afasta do
estranho elenco teatral, pois não são [esses tais filhos de Deus] a verdadeira
igreja do verdadeiro Deus; e então o mundo sente-se refortalecido e justificado.
[A expressão “Aldeia de Potenquim” refere-se à farsa praticada pelo
príncipe russo Potenkin (1787) favorito de Catarina II; para impressionar uma
comitiva de embaixadores austríacos, franceses e ingleses, com o pretenso grande
progresso que o país estaria tendo naquele reinado, levou-os em excursão pelo
sul havendo, porém, previamente, mandado embelezar as aldeias do percurso,
101
2, 23-25 O Julgamento
enchendo-as com gente especialmente contratada para passear pelas ruas apa-
rentando bem estar e satisfação. Mandou, também, montar painéis e armações
pintadas, à distância, para fingir novas vilas e povoados que brotavam como
cogumelos, por toda região. (Apud nota semelhante na tradução inglesa)].
O mundo sente a verdade por instinto natural, e não se deixa levar por
engodos; é por isso que se recusa a seguir o Deus dos “religiosos”.
Deus é apenas uma ideologia quando os homens tomam emprestado os
pontos de vista divinos, porém sem Deus, quando Deus deixa de ser, ele, a
única fonte de todo bem e o homem passa a ser ou fazer algo com Deus [ser seu
representante e cooperador] ainda que [esta co-participação] seja motivada pe-
las mais finas e mais nobres intenções.
A objeção [do mundo] a Deus, o seu protesto contra ele, é plenamente
justificável quando todos canais estiverem vazios. — [Quando as fontes da
vida, a pregação, a proclamação, o testemunho, forem formais ou pessoais,
ainda que coerentes, eloqüentes, altissonantes, porém rasteiros em
espiritualidade, destituídos da unção divina].
Onde estão, porém, os cooperadores de Deus?
“Por causa de vós o nome de Deus é blasfemado entre os gentios”. (Isaías
52, 5)... “e o meu nome é blasfemado incessantemente”.
São, pois os eleitos, os “filhos de Deus”, [as aspas não estão no original]
que retêm o reino de Deus [fazendo-se eles mesmos cooperadores de Deus.
Não deveria de essa possibilidade [de nos transformarmos em filhos da
ira] deixar-nos profundamente preocupados, toda vez que formos tentados a
fazer da profecia [da redenção], destinada aos que esperam [no Senhor] e se
apressam [a ir ao seu encontro], a quintessência da retidão humana?
“Se fores um transgressor da lei, a tua circuncisão será como
incircuncisão”.
Então, inapelavelmente, entrará o relativismo e a noção de revelação que
têm os “filhos de Deus” [e transgressores da lei] transforma-se em valor humano,
mundano; um valor ao lado de outros valores. A pretensão a ter vantagem abso-
luta [pela sua condição de filhos de Deus] com relação às demais pessoas, desa-
parece. A religiosidade [a devoção], a sua moralidade e a sua posição com rela-
ção ao mundo são grandezas que vão e que vêm. [São valores espirituais e morais
que flutuam por falta de um seguro padrão de referência]. A sua história eclesiás-
tica torna-se profana e cabe no refrão: “O genuíno anel provavelmente
foi...perdido”. [Parece-me que o A. faz alusão à expressão folclórica ou lendária-
épica alemã, onde um anel de grande valor foi, inexplicavelmente, perdido].
Pois, onde Deus que julga e “paga” (2, 6) não encontra valor real, os
pretensos valores humanos não podem significar muita coisa.
102
O Julgamento 2, 25
103
2, 25-26 O Julgamento
por terem vida limpa, conduta reta, serem piedosos, crentes professos,
freqüentadores regulares da igreja, cooperadores do seu sustento e manutenção.
A eucaristia — a Santa Ceia — é pois um sacramento. Fonte de graça
para quem, dela participando, discernir o alcance do sacrifício de Cristo; e fon-
te de condenação para quem transformar em efêmero o que é eterno, em huma-
no o que é divino.
Se Zwinglio e os seus companheiros liberais viram, ou viam, no sacra-
mento, apenas a lembrança material, embora fidelíssima, do sacrifício da cruz,
então parece evidente à luz da exposição do Autor (e do ensino bíblico (1
Cor. II, 23-29) ) que eles a esse respeito, retêm ou retiveram a verdade com a
sua justiça e estão ou estavam sob a ira de Deus].
A cratera em torno da qual estão assentados os santos [segundo seu
próprio juízo], está extinta. A forma sagrada, de sagrado, só guarda a formali-
dade e nenhum esforço de espiritualização poderá impedir o progressivo esva-
ziamento dessa santidade. A circuncisão fica, de fato, igual à incircuncisão; a fé
se iguala à descrença; bem-aventurança se iguala à impiedade.
Desta maneira, a retidão humana é atacada em sua própria casa, [pois
são os legalistas, os defensores da lei e promotores de sua própria justificação,
que são recusados, como transgressores da lei, no tribunal de Cristo, que julga
segundo o que está oculto nos corações]; esta justiça (retidão) está sujeita a
enganar-se [corre esse risco], não somente em relação aos gentios que estão de
fora (2, 14-16) mas também em relação a eles próprios [os que conhecem a lei,
os crentes, os de dentro da casa dos justos].
Semelhante retidão humana entra trôpega (cambaleante) no tribunal di-
vino, pois não há reivindicação ou direito humano por cuja força aquilo que
seja humano deixe de ser deste mundo. [E o que é humano não subsiste perante
Deus].
104
O Julgamento 2, 26-29
ele poderá ser rompido, o seu efeito inexorável poderá ser suspenso, anulado,
junto com a própria causa, pela incompreensível comiseração divina. E claro
que a justiça humana, em si mesma, é presunção e não produz qualquer justifi-
cação no mundo; porém, poderá haver uma justiça de Deus, para Deus.
Não há círculos [agremiações, grupos, associações, irmandades visíveis
de Santos, de privilegiados, de heróis, super-homens, favorecidos e justos, cri-
ados e estabelecidos em conseqüência da posse da lei ou de impressão ou no-
ção da revelação; nem como resultado de boas intenções, conduta moral e par-
ticipação de sacramento.
Todavia, (embora não existam privilegiados) dentro do ambiente mate-
rialista [do mundo poderá existir um “homem novo” criado por Deus e na con-
formidade da sua vontade. [Diremos então que a incircuncisão conta como
circuncisão? Concluiremos que a impiedade é [na realidade “paga” por Deus
com a vida eterna como sendo piedade? A irreverência e a rebeldia são escritu-
radas nos livros divinos como sendo reverência e humildade? O mundo perdi-
do é declarado livre e salvo no tribunal divino? Dar-se-á o caso de que a fé seja
reconhecida por Deus como a verdadeira fé, mas seja por ele enfeixada junto
com a incredulidade para que ele possa ter misericórdia de todos? (11, 32).
Trata-se de uma incompreensível irrupção do próprio Deus, do Deus
desconhecido, no conjunto das coisas do mundo nosso conhecido.
É a impossível possibilidade do mundo novo que vem, sem que qual-
quer mérito a justifique, sem qualquer base aparente, sem que, do lado huma-
no, possa ser feita a mínima coisa a favor ou contra o seu advento.
É a hipótese impossível para os homens, porém possível para Deus.
Deus ajusta as contas pela sua própria escala. Ele conduz os que, aqui,
são incrédulos, à meta da lei [à justifição]; fá-lo à luz da sua comunidade, e
deixa no mundo [sem justificação], os crentes desleixados.
Deus passa por sobre as coisas conhecidas, visíveis e materiais, para
julgar em secreto, de acordo com a sua justiça.
Deus é o espírito que habita ou deixa de habitar nos corações, indepen-
dentemente do que se haveria (ou se haverá) de esperar pelo que estiver ou não
estiver soletrado nas lousas humanas. [Nas tábuas das leis humanas.
Deus recompensa o que quer. Ele próprio, e só ele.
O que diremos a favor ou contra isso? Acaso Deus, não tem razão? Aca-
so conhecemos algum juízo melhor que pudéssemos contrapor ao dele?
Não é Deus a verdade eterna de nossa vida, trazendo-a à crise da decisão?
O que queremos, com as “nossas” verdades?
A honra de Deus luzirá [e iluminará os corações e a justiça de Deus
revelar-se-á; por isso é que a pragmática de sua ação é tão inescrutável e inau-
105
2, 26-29 O Julgamento
dita. [Porque Deus julga segundo os corações; a mente dos que verdadeiramen-
te honram a Deus será aclarada e Deus os julgará pelo que guardarem no mais
íntimo de seu ser].
Deus não subsiste, [não depende] da razão que lhe atribuímos; ele é
Deus em seu próprio direito. Deus não é uma base ao lado de outras, nem é a
resposta que nós mesmos seríamos capazes de dar; daí o seu irrompimento
inesperado e sem razão aparente, e o seu julgamento segundo seus próprios
juízos.
Há uma possibilidade [uma ocasião] para o homem salvar-se da ira de
Deus: é quando toda pretensão humana é anulada, abatida, por Deus; quando
Deus dá o seu NÃO, como resposta definitiva; quando a ira de Deus se torna
inevitável; [isto é:] quando Deus é reconhecido [e aceito] como Deus! E lá,
onde e quando começa a história entre Deus e o ser humano. É lá, onde e
quando o homem se atreve a erguer-se do pó, [unicamente] para amar esse
Deus imperscrutável. (Isto não é uma receita para a bem-aventurança, mas é a
eterna base para sua constatação).
E por isto — [por estar a possibilidade de escapar o homem da ira de
Deus, lá onde e quando o mortal se levanta para amar a Deus], que se trata de
Jesus Cristo, [que foi Emanuel, Deus conosco].
Comentários: 2, 14-29
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O Julgamento 2, 14-29
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2, 14-29 O Julgamento
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O Julgamento 2, 14-29
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Capítulo III
A JUSTIÇA DIVINA
(A RETIDÃO DE DEUS)
Conforme mencionado no Cap. II o A. dá àquele Capítulo e ao III os
títulos de Justiça dos homens e Justiça de Deus.
Havendo “traduzido” o título do 2º Capítulo como Retidão Humana,
por coerência, deveríamos intitular o 3º com “Retidão Divina”. Aparentemente
qualquer dessas formas poderia ser empregada todavia, parece ser mais ade-
quado o título Justiça Divina usando no texto, e em cada caso, a expressão que
se afigurar como a mais própria.
O A. subdivide o capítulo em três partes:
• A lei - Vs. 1 a 20
• Jesus - Vs. 21 a 26
• Somente pela fé - Vs. 27 a 30
A primeira parte consiste de uma exposição impressionante da situação
desesperadora do homem perante a lei. Essa lei divina é incomparavelmente mais
dura que a DURA LEX, SED LEX romana porquanto esta, embora pudesse, por
vezes, ter sido feita para servir aos desígnios de déspotas e tiranos, reis e senhores
de um estado totalitário, era, todavia, susceptível de ser cumprida pelos súditos
de todas as camadas sociais, ainda que fosse por servilismo, por submissão, por
pavor ou por fingimento, para salvar aparências, o que era, na realidade o objeti-
vo da lei, como sói acontecer com toda lei cívica: resguardar e fazer respeitar o
que a sociedade em cada época e em cada lugar, considera ser “o bom costume”.
Ora, não é assim com a lei divina, pois o homem é julgado não pela
aparente prática da lei mas pelo que está aninhado no recesso mais íntimo de
seu coração. E esta lei exige tudo; não se contenta com setores ou parcelas:
“Amarás o senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda tua alma e de todo o
teu entendimento (ou força) (Mat. 22, 37 e Deut. 6, 5). Ninguém tem desculpa,
e nada serve como pretexto; a relatividade humana está inserida no critério
absoluto da exigência total: todo o teu coração; toda a tua alma; todo o teu
entendimento, ou a tua força. Se o coração for grande ou pequeno, se a força
111
3, 1-30 A Justiça Divina
que houver for fraqueza, se o entendimento for minúsculo, se a alma for tímida,
tristonha, que importa? Não é a grandeza do amor em relação ao que outros, de
coração mais nobre, de alma corajosa, de entendimento superior e de forças
hercúleas, acaso tenham ou possam ter; mas é o máximo que cada um, dentro
de suas condições, pode dar. E, o supremo juiz firma a sua sentença, segundo a
lei, pelo que houver no íntimo de cada um de nós. Não há subterfúgio, porque
Deus vê em secreto. (Mat. 6, 6)
Quem há que possa satisfazer a exigência dessa lei? — Sempre nos
faltará alguma coisa e haveremos de nos retirar tristes pois a simples idéia de,
por nossas qualidades, a podermos cumprir, já é incriminativa pois envolve ou
implica o conceito do nosso valor, e endeusamento do “não-Deus”, como sen-
do digno do verdadeiro Deus, e ocupante do seu trono.
Não há esperanças, pois! Segundo a lei o homem está perdido.
Na segunda parte o A. apresenta o Jesus de Nazaré. O filho do homem,
O Homem Jesus; o nosso irmão mais velho. O Jesus que é o Cristo; o Messias
prometido; que é Emanuel, Deus conosco! O Homem que cumpriu a lei; que
sofreu o nosso castigo, expiando-o com seu sangue. O Cristo que, em si, nos
reconcilia com Deus.
O Cristo que nos liberta da ação da lei, mediante a opção pela fé.
* * *
* * *
112
A Lei 3, 1-20
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3, 1-20 A Lei
114
A Lei 3, 1
perecível e, portanto, parte integrante da retidão humana, sendo aceito por Deus,
se mistura inextricavelmente com a justiça divina, O que Deus aceita por válido,
deixa de ser humano para ser divino].
[E porque Deus é fiel] a impressão da revelação deixada na história não
é tirada, não é apagada, não é anulada pelo julgamento [divino] por menos que
dela se glorie a retidão humana, por menos que dela possa a retidão humana
tirar para si segurança e descanso; antes é ela (a impressão da revelação) confir-
mada e fortalecida pois, na supressão radical de todas as realidades históricas e
psíquicas, na relatividade geral dos seus degraus e suas antinomias, permanece
e sobressai a sua significação verdadeira, eterna.
”O que tem pois o judeu, ainda, de especial?” [quais são as suas vanta-
gens, se é que tem alguma?
Em seriedade, existiria algo de especial [alguém poderia ter vantagens]
se tudo [e todos] estão sob a ira de Deus, e se não existe salvação e paz prepa-
rada [e reservada] para este ou aquele, em particular? (E, mais ainda), se não há
qualquer exceção?
Existem acaso, na história, pontos altos que sejam mais que grandes
vagas, em mar transitório, de sombras apenas mais densas que outras?
Existe alguma relação entre o que é perceptível, histórica e psicologica-
mente, como sendo a impressão da revelação, e a revelação do próprio “Deus
Desconhecido”?
Acaso existe alguma relação entre os varões ilustres que passaram [ou
passam] pelo mundo com a perseverança dos vocacionados e iluminados, que
se sobressaem como heróis e profetas [que se agigantam] como homens de boa
vontade, sim, existe alguma relação entre toda essa gente e o Reino de Deus
que está por vir e no qual tudo se fará de novo?
Por trás dessas perguntas está a outra, de ordem geral, que indaga da
relação existente entre o que sabemos ser verdadeiro (por experiência própria
ou de terceiros) e o conteúdo eterno de todos os eventos.
115
3, 2 A Lei
116
A Lei 3, 2-3
ou alheia, são constrangidas a se calarem ante o que não conhecem, são teste-
munhas que este “não-conhecimento” pode, como tal, tornar-se objeto de seu
conhecimento. Enquanto se lembrarem do impossível, testificam que Deus é a
possibilidade impossível [aos homens]; que Deus é a possibilidade ao seu al-
cance, não como uma possibilidade entre outras, porém como [a grande, a única]
possibilidade do que é [humanamente] impossível.
Pela manifestação de Deus que [tais homens] têm e guardam, eles são as
testemunhas palpáveis do impalpável: eles atestam que para este mundo inca-
paz de receber a salvação, há salvação.
Não faz diferença se o que eles têm e guardam é Moisés ou João Batista;
Platão ou o socialismo; ou ainda, a mera prática diária de vida morigerada: é
vocação. Esse “possuir” e “guardar” é promessa, é parábola; é porta aberta e é
oferta para conhecimentos mais profundos. A posição especial que reivindi-
cam, sua demanda para serem ouvidos especialmente, não são necessariamente
uma arrogância enquanto lhes forem confiadas, de fato, manifestações de Deus.
[O A. refere-se, algumas vezes, à vida como parábola e à sua capaci-
dade de, por vezes assumir determinados aspectos de paralelismo e seme-
lhanças; nas Sagradas Escrituras as parábolas não são apenas analogias de
raciocínio mas também um provérbio, um dito notável e, ainda, emblema e
protótipo visível.
Parece-me que o A. quer dizer que há justos que esperam em Deus, quer
sejam judeus, que se orientam pela lei de Moisés, gentios filósofos, materialis-
tas modernos ou simples plebeus (ou “burgueses”) que apenas entendem ser de
seu dever guardar a devida decência na vida cotidiana.
Tais praticantes estão na direção certa para fazerem de suas vidas (e
talvez façam) semelhança viva, uma parábola do fato de que Deus não abando-
na a humanidade, porém é-lhe fiel. (Uma parábola da fidelidade de Deus).
É de notar que o A. põe no mesmo redil, judeus e gregos; socialistas e
simples homens do povo, implicando o que está dito mais atrás sobre os que,
não tendo a lei, a praticam segundo as suas próprias luzes].
“Ainda que alguns hajam traído essa confiança, acaso a sua infidelidade
suprimirá a fidelidade de Deus?”
Soterrado e escondido está, pois, o sentido verdadeiro de nossa vida. [O
reconhecimento da fidelidade de Deus e a nossa fidelidade a ele só]
Continua irreconhecido dos homens o Deus desconhecido; infrutífe-
ras as pegadas de sua fidelidade, — [os sinais que testemunham sua glória e
seu poder]; permanecem inaproveitadas a sua promessa e a sua oferta. [Ofer-
ta de reconciliação e promessa de redenção]. Mas a constatação desse fato
ainda não vem ao caso, [para Deus]. Para Ele, o desvirtuamento da confiança
117
3, 3-4 A Lei
118
A Lei 3, 4
119
3, 5-8 A Lei
Permanece, pois, a vantagem, o especial (3, 1) que o judeu [já] não tem
mas recebeu: [O sacramento do pacto com Deus — “Eu vos serei por Deus, e
vós me sereis por povo” (Lev. 26, 12 e II Cor. 6, 16) como sinal sacramental,
visível, dessa graça. (Gal. 6, 15].
Vs. 5 a 8 Mas o que diremos se a nossa rebeldia [nossa injustiça] traz a lume
a justiça de Deus? Não é, [não seria] então, Deus injusto ao aplicar a sua
ira? (Falo segundo a lógica humana).
Impossível! Como então, julga ele o mundo?
Se eu pudesse justificar-me porque, para a glória de Deus, a sua verda-
de teria sido engrandecida pela minha mentira, como se justificaria o fato
de eu ser julgado como pecador?
Verdadeiramente, não acontece segundo as palavras que alguns
aleivosamente nos atribuem: “pratiquemos o mal para que daí venha o bem!”
Os que assim falam, reforçam a sua condenação.
120
A Lei 3, 5-6
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3, 6-7 A Lei
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A Lei 3, 7-8
123
3, 7-8 A Lei
O que fazemos jamais [foi] é [ou será] obra divina, e o bem que de
nossas obras houver, acaso, sido obtido, nunca veio de nós.
Se nos enganamos a respeito disto então é porque, por nossa aparente
penetração [invasão] na soberania divina, perdemos a noção da distância que
medeia entre nós e Deus. [entre o que é humano e o que é divino].
Não somos Deus, nem soberanos. O mal é o mal a despeito do bem que
Deus pode fazer surgir [mesmo que seja através desse mal ou apesar dele].
A loucura da história humana é loucura, a despeito da sabedoria que
Deus puser nela [para benefício dos homens, segundo a graça divina].
A infidelidade é infidelidade, a despeito da fidelidade de Deus, que não
se deixa influenciar pela conduta humana.
Também o mundo continua sendo mundo, a despeito da misericórdia
com que Deus o envolve e suporta.
Quando toleramos a nossa conduta, quando achamos valor nela, e a
apoiamos, [quando achamos que nosso procedimento está certo e que merece
a aprovação de Deus], estamos aprovando o mundo como ele é; não estamos
honrando a Deus, Todo-Poderoso, porém reforçamos a nossa condenação, já
por demais evidente, e confirmamos a Justiça da ira de Deus. A arrogância
com a qual, então, nos colocamos ao lado de Deus, pensando [ou pretenden-
do] até que fazemos [ou podemos fazer] alguma coisa por ele, rouba-nos a
única oportunidade de nos lançarmos nos braços de Deus, seja para a graça,
seja para o castigo: esta entrega é a única possibilidade de salvação que nos
resta.
Se pretendermos fugir do julgamento com a desculpa da fatalidade,
essa própria desculpa nos levará a juízo, pois a apelação a Deus [mediante
pretextos humanos] a favor do nosso passado, presente e futuro, é idolatria e
ateísmo; nada mais é que rebeldia e impiedade (1, 18) que tornam inevitável
a ira divina.
Vs. 9-18 O que se conclui? Temos alguma vantagem? De modo nenhum, antes
prevalece a acusação que fizemos; judeus e gregos estão sob pecado, con-
forme está escrito:
“Não há justo, nem sequer um; não há quem entenda; não há quem
busque a Deus! Todos se extraviaram e se tornaram inúteis. Não há quem
faça o bem, não há um sequer.
A garganta deles é um sepulcro aberto; com as línguas tecem engano,
peçonha de víboras há em seus lábios; a sua boca está cheia de maldição
e amargura.
124
A Lei 3, 9-10
Os seus pés são velozes para derramar sangue e nos seus caminhos há
destruição e miséria; e não conheceram o caminho da paz. Não há temor
de Deus diante de seus olhos
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3, 9-10 A Lei
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A Lei 3, 10-11
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3, 11-12 A Lei
Onde está quem busca verdadeiramente a Deus? quem o invoca senão na hora
da angústia?
Parece que isto nos conta a história: “Não há quem busque a Deus e não
há quem entenda”!
Há, porém, que destacar a aceitação da graça, que é coisa diversa da
busca de Deus. Adão, desde que pecou, foge de Deus, mas pela graça, o ho-
mem renascido do espírito é, mediante a fé, reconduzido a Deus.
É a graça que salva, a despeito de nosso desconhecimento e de nosso
desinteresse, e mais que desinteresse, nossa absoluta incapacidade de, genui-
namente, buscar a Deus.
Qualquer que seja o angulo ou o ponto de vista em que nos colocarmos,
a questão se resolve pelo que, de secreto, houver em nosso coração...]
Pode-se, porventura, considerar alguém como tendo “entendimento de Deus”
como sendo pessoa que busque a Deus, pelas qualidades pessoais de seu caráter,
quando essas qualidades forem as mais dignas de consideração e as mais respeitá-
veis, como por exemplo, uma conduta naturalmente sadia, autêntica, original, agra-
dável, idealista, de vontade forte, amorável, espiritual, singela, inteligente, nobre?
[Será que alguém que tenha personalidade e obras as mais dignas que
pudermos imaginar, não tenha, também, entendimento de Deus e o busque?]
Não! “Todos se desviaram; à uma se fizeram inúteis. Não há quem faça
o bem.Não há um sequer.”
Quem sabe existiria alguém (ou alguns) com qualidades ainda mais no-
táveis, mais dignas, [que talvez nem nos ocorresse mencionar ou que ignorás-
semos], qualidades e aptidões espirituais ou carnais, íntimas ou exteriores, cons-
cientes ou inconscientes, atuantes ou passivas. teóricas ou práticas que garan-
tissem ao seu possível portador (ou seus portadores) o entendimento de Deus, e
a motivação para buscá-lo?
Ainda uma vez não: pois, “a garganta deles é sepulcro aberto; com a
língua urdem engano, veneno de víbora está em seus lábios; têm a boca cheia
de maldição e de amargura”.
— Isto é o que, afinal, se pode esperar dos pensamentos e das palavras
humanas.
“Os seus pés são velozes para derramar sangue. nos seus caminhos há
destruição e miséria; não conheceram o caminho da paz”.
—É o que se pode dizer dos feitos e das obras dos homens.
“Não há temor de Deus diante da história”:
—É o que a história nos mostra e ensina.
O verdadeiro temor do Senhor, como tal, neste mundo, jamais será visí-
vel, palpável, nunca será “materialmente”, objetivamente real.
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A Lei 3, 12-18
129
3, 12-18 A Lei
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A Lei 3, 18-19
Eis que o mais jovem de seus visitantes, Eliu, toma-se de ira sagrada:
repreende a Jó; acusa-o de falta de entendimento. Defende e justifica a Deus
dizendo que ele faz sofrer para produzir o bem. Lembra o quão majestoso é Deus.
Eliu fala em linguagem humana, porém fala do Deus Desconhecido deste
mundo e acusa seus três amigos idosos cujas palavras considera rasteiras, hu-
manas e, portanto, não chegam aos céus. (Retêm a verdade com a sua própria
retidão, por isso suscitam a ira de Deus (42, 7)). Com seu discurso Eliu prepara
o caminho para que Jó entenda e, só então Deus intervém e interpela Jó: o que
sabia, ele Jó? “Acaso quem usa de censuras, contenderá com o Todo-Poderoso?”
(Cap. 38).
“Quem assim argüi a Deus, que responda”. (Cap. 40).
E Jó respondeu humilde: “Sou indigno; que te responderia eu? Ponho a
mão na minha boca. Uma vez falei, e não replicarei; aliás, duas vezes, porém
não prosseguirei”.
Mas Deus não aceitou o súdito servil; não aceitou o escravo: “Cinge
agora os teus lombos como HOMEM; eu te perguntarei e tu me responderás”
(40, 7)... E Jó respondeu: “Eu te conhecia, só de ouvir, mas agora os meus
olhos te vêem. Por isso me abomino e me arrependo no pó e na cinza”.
...E o Senhor aceitou a oração de Jó; oração de intercessão pelos seus
três “amigos retos”!
Não seria o livro de Jó uma parábola de retidão humana e da justiça
divina conforme a lei, segundo a exegese que até aqui acompanhamos (e inter-
pretamos?)]
Vs. 19 e 20 Porém sabemos que: o que a Lei diz, para os que seguem a Lei o
diz. Para que toda boca seja silenciada e todos sejam culpáveis perante
Deus; pois ninguém será justificado perante ele pelas obras da Lei, pelo
que é carnal, pois a Lei, em si, serve apenas para trazer o conhecimento
do pecado.
131
3, 19 A Lei
São eles, [os que têm a lei], que menos que qualquer outra pessoa po-
dem ignorar qual a situação entre Deus e os homens e são os que menos podem
incorrer no engano de supor segundo alguns (eles próprios, por exemplo) que,
à vista de suas vantagens “espirituais” [ou psicológicas] estejam garantidos e
sejam desculpáveis perante Deus (2, 1); são estes tais os que menos podem
negar, “pela lógica humana”, que Deus é Deus. (3, 5). São eles os que menos
podem fugir da tensão e da inquietude, da falta de paz, da constante incerteza e
infirmeza de suas bases, da dúvida [a que está sujeito o homem quando coloca-
do na presença de Deus, ou, no dizer literal do Autor] cm que Deus coloca o
homem.
Pois é justamente a fé, quando for genuína fé no verdadeiro Deus, que é
vacuidade; é a verdadeira fé que se curva perante o que nunca haveremos de
ser, ou haveremos de ter ou que poderemos fazer; que se curva [e se humilha]
perante quem jamais será mundo ou homem, [a quem jamais será parte do
mundo ou igual ao homem], a não ser que o fosse na supressão do mundo que
ora conhecemos, na redenção, na ressurreição de tudo quanto aqui e agora co-
nhecemos por humanidade e mundo.
Acabamos de ouvir a voz da lei, da religião e da piedade (3, 10-18).
O canal vazio fala da água que não o percorre; a seta direcional da estra-
da aponta para o local que não é aquele onde a seta está fincada. A gravação (a
“cunhagem”, 2, 20) fala de um sinete que não está onde a cunhagem foi feita,
mas aí deixou apenas a sua forma negativa em baixo relevo.
É a própria história — não a crônica escandalosa do mundo, porém o
registro dos pontos altos da história humana que se acusa.
[São os próprios pontos altos, as ações sublimes, que a história registra
que mostram como a seqüência dos pensamentos, palavras e obras do homem
estão abaixo do padrão divino não só abaixo mas fora dele e até contra ele; é
por isso que a própria história se acusa; os que falam da lei, já não têm a men-
sagem e por isso são qual o canal seco, qual o molde vazio, negativo do sinete
que deixou o decalque mas que aí não está; são qual o marco da estrada que se
refere a uma localização que não é a dele].
“Para que toda boca se cale, e todos sejam culpáveis perante Deus”.
O judeu (o homem de igreja) goza de uma posição especial (3, 1). Ele
pode “saber” que “nada sabemos” de Deus. Ele pode “fazer alto” [pode parar]
perante o que nenhum olho viu, nenhum ouvido ouviu; perante o que não en-
trou em qualquer coração humano. Ele pode temer a Deus.
[Esta é a vantagem da religião, do homem que pertence à igreja, que
conhece a Palavra de Deus, que sabe qual a posição, qual a situação do homem
perante Deus; ele sabe a distância que o separa de Deus; ele pode temer a Deus].
132
A Lei 3, 19-20
133
3, 20 A Lei
O vivente do Salmista (Sal. 143) pode ser também o mortal de Jó (Jó, 9);
é o ser humano entre o nascimento e a morte, preso na luta pela existência,
comendo, bebendo e, acima de tudo, dormindo; ora libertando (aos outros) ora
libertando-se, é o homem temporal, o homem histórico, o homem carnal. Este
homem não é justo perante Deus.
A carne significa a mais radical insuficiência [do homem] da criatura
perante o criador.
Carnal, quer dizer impureza; significa progredir em círculo fechado;
significa apenas humanidade.
Carnal significa, por si mesmo, desqualificação e o que é carnal é
inqualificável mundanismo até mesmo quando medido por padrões humanos.
Nada que seja carne ou se chame carnal, encontra justificação perante
Deus, pois as obras da lei que Deus inscreve no coração dos homens (2, 15)
falam contra e não a favor do homem carnal. Tais obras não proporcionam nem
segurança, nem paz, nem desculpa. Elas são o desmantelamento, não a edificação
da justiça humana.
Observadas do nosso ponto de vista na esfera carnal, humana, tais obras
são negação e não [asseguram qualquer] posição.
[Se algum valor tiverem, este ser-lhes-á atribuído por Deus]. Somente
vistas por Deus (e só por ele julgadas) podem nossas obras conter algo de apre-
ciável, de útil, de notável.
Ao ser humano, segundo o conhecemos, não resta nenhum amparo, ne-
nhum abrigo, nenhum repouso, nem nas mais recônditas profundezas ou na
mais rasa superfície de seu ser, pois Deus certamente julga o secreto dos ho-
mens (2, 16) a saber, aquilo que só dele é e pode ser conhecido.
Nada há, em todas [e na totalidade das] obras humanas, que possa ser
propício a Deus que retribui a cada um “segundo as suas obras” (2, 6).
O que o homem considera “reto” (ou justo) “e “de valor”, se-lo-á [para
o mundo], segundo a carne, mas será “sem mérito” e “injustiça” perante Deus.
Porém o que Deus considera “justo” [e reto], e paga segundo a sua avaliação,
como tal, não é carnal; portanto já não é nossa propriedade [foi apreçado e
pago por Deus] e não pode ser considerado como grandeza e peso válidos [para
nós ou em nosso benefício] neste mundo.
Só Deus é a resposta. Ele é o auxilio na aflição que nos acomete [e que
nos está preparada] pela distância que nos separa de Deus.
Tem razão o lamento: “Meu espírito está atribulado em mim; meu cora-
ção está abalado. Rememoro os dias passados e medito sobre todas as tuas
palavras; estendi a ti as minhas mãos e meu coração anseia por ti qual terra
árida pela chuva” (Sal. 143, 4-6); e também perfeitamente compreensível é a
134
A Lei 3, 20
queixa: “Quando ele passa por mim, não o vejo; quando ele se metamorfoseia,
quem o trará de volta à sua forma primitiva? Ou quem lhe dirá: O que fizeste?
Perante ele são humilhados os poderosos sobre a terra. Quem pois sou eu para
que me escute e perceba as minhas palavras? Ainda que eu esteja certo, mesmo
assim ele não me ouvirá e só posso dirigir-lhe súplicas como a um juiz que me
julga. E ainda que o invoque e ele me ouça, não posso crer que ele tenha escu-
tado a minha voz. Não me aniquilará ele nas trevas’? Repetidas vezes feriu-me
com chagas; quem sabe a razão? Não me deixa tomar fôlego; enche-me de
amargura; é mais forte que minha força. Quem resistirá ao seu julgamento?
Pois quando, para mim, sou reto, então a minha boca me condenará
como um “sem Deus”. Quando eu me considero irrepreensível, revelo-me fal-
so; ainda que eu me julgue piedoso, minha alma o ignora e sabe apenas que a
minha vida será ceifada. (Jó, 9, 11-21 (apud) LXX).
É no mais profundo suspirar e gemer, e no lamento mais sentido, que
precisa tomar posição quem se ativer à lei e encarar a religião e a piedade com
seriedade, pois saberá que aquilo que o homem fez verdadeiramente em Deus,
a obra da lei, aquilo mesmo é o seu tribunal permanente.
“Pois a lei, em si, serve apenas para trazer o conhecimento do pecado”.
Perguntávamos: “Qual pois a vantagem do judeu?” (3, 1). Aí está a res-
posta: ele tem a lei; a impressão da revelação; vivência; religião; piedade; vi-
são, perspectiva; postura bíblica. [Entre esses dons] é a dádiva da lei que deve-
ria arrancar, os que a possuem, de todo e qualquer sentimentalismo, do roman-
tismo, para colocá-los ante a brecha aberta que existe entre a criatura e o Cria-
dor; entre o que é carnal e o que é espiritual. É a lei que os acusa e os declara
pecadores; é a lei [que os esvazia] que lhes tira tudo o que possuem e os entre-
ga, [quais são em si mesmos, sem máscaras, sem disfarces, sem desculpas e
sem justificações, sem roupagens que os enfeitem], a Deus, para receberem ou
a condenação, ou misericórdia.
Se isto acontece (se o praticante da lei, assim se entrega ao arbítrio divi-
no) e se o homem ouve a voz da lei, se também entende a si mesmo nas suas
peculiaridades [suas “vantagens”], nas suas experiências e em sua piedade, então,
tendo ouvido e entendido o pronunciamento (o veredito) da história, ele ouve
também a verdade final, a verdade que redime e reconcilia, a verdade de além
da morte.
É com vistas a tal “ouvir” e “entender” que podemos dizer: há pontos
altos na história que podem ser encontrados onde ela testemunha contra si mes-
ma com espanto e horror.
[Parece-me que o Autor quer dizer que a história só é realmente sublime
quando dá lugar a que venha o reino de Deus e isto só ocorre quando (e toda
135
3, 20 A Lei
vez que) abstraindo da sua jactância e pretensão, se expõe à luz que vem de
Deus, revelando a hediondez da crônica dos feitos humanos. Quando isto aconte-
ce, a história sobrepuja a si mesma].
A revelação só é verdade eterna quando é testemunha da revelação, e
não Impressão por ela causada.
[Ainda uma vez, parece-me, quer o Autor deixar bem patente que toda
valorização própria que o homem queira dar às coisas espirituais, toda conotação
de aptidão, valor pessoal, atributos e dons, mesmo as graças e bênçãos recebi-
das, desqualificam a “retidão” humana perante Deus.
Se alguém crê que recebeu a revelação, atribui a si vantagens que Deus
considera ilícitas. São retenções da verdade pela mentira. O homem que teme a
Deus não se gloria da revelação. Não diz “Estou Salvo”. Não proclama “DEUS
ME ACEITOU”. Antes, aceita o testemunho da graça, pela fé, e confia na re-
denção que Cristo pode dar; é ele (Cristo) que guarda a fé; e pela fé, podemos
confiar em Deus e então, sim, dizer: “Eu sei em quem tenho crido, que é pode-
roso para guardar o meu tesouro, até o dia final” (II Tim. 1, 12). Ele é Poderoso,
não eu!].
Os fiéis que perseveram em Deus, perseveram no Reino de Deus so-
mente se, e enquanto, perseverarem [em sua fé e sua esperança] sem preocupa-
ção da religiosidade, [isto é, sem pretenderem atribuir a sua perseverança à sua
religiosidade e piedade ou, vice-versa, achando que são crentes fiéis porque
perseveram].
Esta perseverança contém, de fato, o teor da eternidade, se ela for um
testemunho radical da incerteza do crente (em si mesmo).
[Sempre a insistência do Autor no combate à jactância pessoal fonte do
cancelamento de todo dom espiritual].
Toda a existência e modo de ser [dos homens e do mundo] participa
realmente da existência verdadeira quando reconhece [a sua posição negativa],
o seu “NÃO-SER”.
O único possível relacionamento positivo entre o “aqui” e o “além” se
dá olhando-se para Deus — o Juiz e se evidencia no reconhecimento da distân-
cia que medeia entre nós e Deus, o que traduz a única possibilidade da presença
de Deus no mundo pois é à luz desta crise geral e básica que se compreende a
Deus, em toda sua majestade. Aí estão a vantagem do judeu e o valor da circun-
cisão, [ou, parafraseando, a vantagem do crente e o valor do batismo ...].
Deus é, então, reconhecido como o Deus Desconhecido. Como aquele
que declara justificados os que estão sem Deus, (4, 5); como aquele que acorda
os que estão mortos e se dirige aos que não são como se fossem (4, 17); como
aquele em quem podemos crer esperando contra a esperança (4, 18).
136
Jesus 3, 21
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3, 21 Jesus
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Jesus 3, 21
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3, 21-22 Jesus
Este é o SIM que Deus anuncia. [É o SIM que sua palavra — “o verbo
que se fez carne”, traz aos homens]. É o “SIM” que Deus convalida na rei-
vindicação: [Não terás outros Deuses diante de mim; eu sou o Senhor teu Deus...].
Esta é a reivindicação duradoura; a que é válida para sempre, a derradei-
ra; a reivindicação decisiva apresentada ao mundo.
Para além das limitações da muralha que nos encerra e perante a qual
nos achamos, é sempre ele — [a sua palavra] o conteúdo de sua sentença.
Quanto mais conscientes estivermos da agudeza e da insuperabilidade
da Palavra de Deus, tanto mais clara e vigorosamente falará Deus conosco de
sua justiça e do seu reino.
Quanto mais as coisas humanas, tudo o que for nosso tanto nosso bem
quanto nosso mal, nossa fé e nossa incredulidade — se tornarem transparentes
como o cristal, tão mais certamente somos vistos e reconhecidos por Deus,
quais somos; então estamos mais ao alcance de seu domínio, e mais sob a ação
do seu poder.
[CRISTO é a verdadeira “Palavra de Deus” que jamais passará e que
permanecerá para além dos céus e da terra (Mat. 24, 35; 1 Ped. 1, 25 etc.).
CRISTO é o “Verbo” a palavra de Deus. Quanto melhor compreendermos
esta palavra, mais claramente entenderemos a Deus e mais fortemente nos
falará ele; é certo que também mais expostos estaremos à sua lei e à sua
justiça; todavia, não obstante essa exposição, esse desnudamento de nosso
ser, quiçá por isso mesmo mais fortemente ressoará em nossos corações o
SIM da aceitação divina, que anula os efeitos do NÃO inapelável dado ao
pecado.
Deus, através de Cristo Jesus, proclama o seu SIM, não obstante o NÃO
que nos falava, outrora, tão fortemente através da lei].
A justiça de Deus, [a sua retidão e fidelidade ao homem], é esse
“NÃO OBSTANTE”, pelo qual [a despeito de nossa injustiça e precária
retidão humana] Deus se declara nosso Deus e nos conta entre os seus.
É um “NÃO OBSTANTE” incompreensível, sem fundamento, que sub-
siste apenas por si mesmo porque é fundamentado por Deus (e somente por
Deus), expurgado de todos os “Por Quês” pois a vontade de Deus não conhece
o “Porque”. Deus quer porque quer.
Justiça de Deus é perdão. E este fato constitui alteração fundamental
no relacionamento entre Deus e o homem; significa que a irreverência e a
impiedade aos homens, e a conseqüente situação do mundo, não são leva-
das em conta por Deus, antes são tidas por ele como fatos irrelevantes que
não lhe impedem de chamar-nos propriedade dele para que, de fato, lhe
pertençamos.
140
Jesus 3, 21-22
141
3, 22 Jesus
Que Deus é reto [e justo] “está manifesto”. E esse fato é o nosso “de
onde” e “de lá” e “agora porém”.
Triunfa a misericórdia divina que nos foi dada.
Subsiste o paradoxo absoluto que é a relação positiva entre o homem e
Deus, e este é o teor, o conteúdo, do evangelho (1, 1 e 16) que aqui se anuncia
com temor e tremor sob o mais inescapável sentimento de absoluta necessida-
de. (Sob o sentimento do cumprimento de um dever do qual não podemos esca-
par). Sob o impulso da mais indisfarçável pressão, [anunciamos] o eterno, como
evento.
[É a fidelidade de Deus revelando-se aos homens que é a origem, o “de
onde” da nossa noção de altos valores morais e éticos — superiores aos do
mundo — e que nos leva, por renovação constante, a jamais nos conformarmos
com o que convencionamos identificar como o “presente século”. É “de lá”, da
revelação divina, que nos vem a “saudade” do lar eterno; o anseio por paz, por
equidade, por justiça, por segurança; é “de lá” que fios advém a perspectiva de
pureza, da verdade, da vida.
Também é “de lá” que chega ao nosso conhecimento o “NÃO” divino à
fatuidade humana e o anúncio da ira de Deus sobre os que retêm a verdade de
Deus com a injustiça de sua pretensa retidão; todavia, também é através dessa
mesma revelação da justiça de Deus, em Jesus Cristo, que sabemos que “ago-
ra” é a hora aceitável; vemos que nossos pecados podem ser e são, vermelhos
como escarlate, “porém”, purificados pelo sangue expiatório e propiciatório de
Jesus, o Cristo — poderão tornar-se e se tornam, mais alvos que a branca lã. (Is.
1, 18) — E o eterno “convite da graça”; é “de lá” que nos provém não só a vida
abundante mas também o entendimento dos fatos que hão de sobrevir na con-
sumação dos séculos].
Anunciamos o Deus desconhecido, o Senhor do céu e da terra, que não
habita em templos erguidos por mãos humanas, que de ninguém tem mister,
pois é ele quem a todos dá a vida, a respiração, e tudo o mais.
Anunciamos o que por ele é dado aos homens, e lhes é concedido para
que o busquem, pois não está longe de cada um de nós; é nele, em quem vive-
mos, nos movemos e existimos e [ainda mais do que isso,] é ele que está tam-
bém para além de nossa vida, nossa agitação, nossa existência de modo que ele
permanece fiel a despeito [de nossa decrepitude], de nossa degenerescência (de
nossa morte].
É justamente por isso, porque permanece imutável e fiel para sempre,
que proclamamos que ele não pode ser representado por qualquer semelhança
humana, nem comparado a figuras (representações) e descobertas da arte [e
ciência] dos homens; que “agora” Deus, já não mais considera os tempos de
142
Jesus 3, 22
nossa ignorância, “porém” manda pregar aos homens de toda e qualquer condi-
ção que se arrependam [e pratiquem obras dignas desse arrependimento].
Anunciamos a aurora do dia em que Deus julgará o mundo dos homens,
com justiça — com a sua justiça! (Atos 17, 23-3 1).
[Agora] se manifesta a justiça de Deus. Já não podemos raciocinar sem
ela. Aquilo que nos foi dado não pode ser analisado fora da luz dessa premissa.
Não podemos mais partir de qualquer outro lugar. (Essa premissa, [a manifes-
tação da justiça de Deus] é o ponto de partida).
Já não podemos ouvir o ressoar do “NÃO” divino, se não como contido
[subjugado e dominado] pelo divino “SIM”.
Agora ouvimos através da voz da impiedade e rebeldia humanas, o eco
mais profundo do perdão que vem do alto; e o clamor da teimosia humana
torna-se apenas audível, atenuado que está pela serena harmonia do “porém”,
do “não obstante”, de Deus.
Não mais? — Sim; não mais, se, pela fé, aceitarmos o que nos foi manifesto!
Se crermos, veremos o homem anulado por Deus. [Isto é, o homem
deste mundo suprimido em sua arrogância, sua pretensão, para dar lugar à nova
criatura, nascida em Jesus Cristo] e por isso restabelecida com Deus.
Vemos o homem [deste século] rodeado, limitado, cercado, mas esse
cerceamento, esta limitação é também, para o homem, o princípio e o fim, [o
“alfa” e o “ômega”; é nele que se inicia a história da queda e termina a realidade
da redenção].
Vemos o homem julgado, mas também justificado; vemos o contra-sen-
so e também o senso da história; vemos a verdade despedaçar os grilhões que a
retiam; além do “carnal” humano, vemos o violento advento da salvação. Me-
diante o colapso das mais altas expectativas e esperanças humanas — [e nesse
colapso] — vemos a persistente fidelidade de Deus.
É desta revelação, deste aparecimento, dessa manifestação [de Deus]
que viemos, da qual tomamos conhecimento, e da qual procedemos. E dela que
falamos e é para ela que queremos chamar a atenção, onde quer que existam
olhos e ouvidos para ver e ouvir.
Esta revelação da justiça de Deus é “testemunhada pela lei e pelos pro-
fetas”. Ela foi anunciada “há muito” (1, 2). Abraão viu o dia quando Deus
julgará o mundo; também Moisés e os profetas; também Jó e os Salmistas.
Temos ao redor de nós uma nuvem de testemunhas que estiveram todas
elas sob a luz desse dia, pois o sentido de todos os tempos leras e épocas] está
voltado diretamente a Deus, [e, portanto, ao grande dia do Senhor].
A justiça de Deus é o cumprimento de toda a profecia. E o sentido da
religião, das esperanças, anseios, lutas e da perseverança dos homens; e este
143
3, 22 Jesus
sentido será tanto mais certo quanto mais genuína for a expectativa, [mais con-
fiante a esperança, mais humilde a luta e mais firme a perseverança].
A justiça de Deus é o fundamento, o conteúdo de todo ser, de toda exis-
tência, e isto se torna mais claro, mais perceptível, quando o homem entra cm
julgamento perante Deus; [quando o ser humano percebe a sua atitude e posi-
ção] perante o “NÃO” divino.
A justiça de Deus (por ele revelada) dá sentido à história, especialmente
observável quando a história faz apreciação crítica dela mesma. [Quando a
história relata e registra a sua escravização trágica à corrupção humana, justa-
mente por serem atos da humanidade o seu assunto)].
A justiça divina é a redenção de toda criação e mui especialmente daquelas
criaturas que, cientes da sua própria limitação, lançam o olhar para além de si mes-
mas [sonhando com os páramos celestiais do reino de Deus].
Onde houver a noção da revelação de Deus — (e onde não existe essa
noção?) — aí haverá sempre testemunho, referência ao Deus desconhecido,
ainda que essa noção se oculte ou se revista com práticas [de todo abomináveis,
vindas de desvairada superstição] ditadas pelo mais perigoso respeito à igno-
rância (Atos 17, 22-23). Já não o disseram, também “alguns dos vossos poe-
tas”? (Atos 17, 28).
Onde há experiência, há também o testemunho de possível conheci-
mento, de entendimento.
Não anunciamos novidades mas a verdade essencial [que existe] desde
toda a antiguidade; o incorruptível do qual as coisas corruptíveis são [meras
semelhanças]; quais parábolas.
Agora, porém, trata-se daquilo que as parábolas falam; do que as teste-
munhas testificam; do que os olhos vêem, do que já está perante eles e os ouvi-
dos ouvem; do que já se fala; do que verdadeiramente, se crê. Trata-se daquilo
que, na Igreja de Deus, sempre foi crido por todos e em toda parte. A justiça de
Deus declara-se “por sua fidelidade em Jesus Cristo”.
Fidelidade de Deus é aquela perseverança divina por fora da qual surgem
sempre de novo,[em toda parte e em todos os tempos,] em inúmeros pontos da
história, as oportunidades do aparecimento de testemunhas da justiça divina.
Jesus de Nazaré é, entre todos esses muitos pontos, aquele no qual todos
os demais, no seu sentido conjunto, são reconhecidos como o “fio carmesim”
da história. [A “tão grande nuvem de testemunhas que nos rodeia” entre os
meandros intricados da história do mundo, falando-nos do sangue remissor].
Cristo é o conteúdo desse entendimento. [Ele é o caminho]. Ele é a
própria justiça de Deus.
Jesus Cristo e a fidelidade de Deus, dão testemunho, um do outro.
144
Jesus 3, 22
O poder oculto da lei e dos profetas, é o Cristo que vem até nós, na
pessoa de Jesus.
O sentido de toda religião é a redenção, a mudança dos tempos, a
ressurreição, o Deus invisível que, em Jesus, nos constrange a parar em
silêncio.
O valor intrínseco de todos acontecimentos humanos está no per-
dão, sob cuja égide tais acontecimentos se encontram, conforme foi anun-
ciado e materializado por Jesus.
145
3, 22 Jesus
É exatamente por isto, [por esta renúncia], que se cumprem nele as mais
altas possibilidades do desenvolvimento humano, conforme a seu respeito está
escrito na Lei e nos Profetas.
146
Jesus 3, 22
É por isto que Deus o exaltou; nisto reconhece-se nele o Cristo; ele se
torna a luz das coisas derradeiras, que brilha sobre todos e sobre tudo.
Nele — [em Jesus, o Cristo], vemos a fidelidade de Deus, até nas
profundezas do inferno. O Messias é o fim do homem, e é justamente aí que
Deus é fiel.
O novo dia da justiça de Deus, raiará com o dia da supressão do homem,
“para todos os que crêem”.
Este é o frutífero “porém”: a visão do “novo dia” é e permanece indire-
ta; a revelação em Jesus Cristo é um fato paradoxal, por mais geral que seja a
validade do seu conteúdo.
Que as promessas da fidelidade de Deus se realizam em Cristo; que
Jesus é o Cristo a quem se referem todas as profecias e que, justamente por
isso, Jesus é o Cristo, pois nele aparece [nele se revela] a fidelidade de Deus em
sua forma a mais recôndita, a mais secreta — tudo isso não é, e jamais será,
evidente. Não se trata de um fato psicológico, histórico, cósmico ou natural,
nem mesmo no seu mais absoluto superlativo. Trata-se de uma verdade, de uma
realidade, que não é perceptível diretamente, nem pelo desvendamento do des-
conhecido, nem imergindo em oração, nem pelo desenvolvimento de ocultas
forças espirituais; com semelhantes processos, esta realidade torna-se ainda
menos acessível. Ela não pode ser transferida [de uma pessoa a outra], aprendi-
da ou alcançada pelo trabalho. Não fora assim, ela já não teria validade univer-
sal; não seria a justiça de Deus para o mundo, nem a salvação para todos.
[Esta realidade é perceptível pela fé, e somente pela fé]. [Ter fé e crer];
fé é a própria fidelidade de Deus, ainda e sempre reiteradamente escondida por
traz e por sobre todas as afirmações, intenções e conquistas humanas perante
Deus. Por isso a fé jamais é integral, completa, pronta; nunca é dada, assegura-
da, garantida. Do ponto de vista psicológico a fé é um salto no incerto, no
escuro, no espaço vazio.
Não é a carne nem o sangue quem nô-la revela. (Mat. 16, 17). Nenhuma
pessoa pode dizê-lo a outra pessoa, nem a si mesma, O que ouvi ontem, preciso
ouvir de novo hoje, e terei que ouvi-lo novamente amanhã. O revelador é sem-
pre o Pai de Jesus que está no céu. Somente ele!
[A fé vem pela pregação (ou pelo ouvir) (Rom. 10, 17) e tem sua ori-
gem, inspiração e sustentáculo em Jesus Cristo que é o autor e consumador da
fé (Heb. 12, 2). Todavia, CRISTO nos é revelado única e exclusivamente por
Deus Pai, que nô-lo enviou (João 3, 16).
Cristo só é “apropriado” pelos homens, mediante fé, pois ele é a per-
sonificação da fidelidade de Deus e como tal, não é perceptível por deduções,
demonstrações, filosofia, dialética, ou qualquer outro recurso humano, nem
147
3, 22 Jesus
148
Jesus 3, 22
Vs. 22-24 Porque não há distinção, pois todos pecaram e carentes estão da
glória de Deus, sendo justificados gratuitamente, por sua graça, mediante
a redenção que há em Cristo Jesus.
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3, 22 Jesus
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Jesus 3, 22
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Jesus 3, 24
terística pura do ser humano, que o homem é posto nas mãos misericordiosas
de Deus.
“Sendo justificados gratuitamente pela sua graça”.
Que estamos na presença de Deus nos é comprovado quando nada mais
podemos ouvir além da palavra do JUIZ com a qual ele confirma a si mesmo
(Heb. 1, 3) e com a qual ele sustenta todas as coisas; quando o nosso ouvir nada
mais pode ser que fé em Deus; fé que ele é, porque é.
Enquanto existirem outras razões, outros motivos [outras vozes e outras
palavras] que não a fé, então não estamos [verdadeiramente] perante Deus.
É justamente por isso que temos que voltar até às origens, para antes [do
tempo quando começaram a surgir as nossas] diferenças humanas.
Deus “declara”. Ele declara sua justiça como sendo a verdade [que de
fato é] por trás e por sobre toda a justiça e injustiça humanas.
Ele declara que nos aceita e que lhe pertencemos. Ele declara que nós,
seus inimigos, somos seus filhos amados.
[As diferenças entre os homens são irrelevantes para Deus:
e ficam para trás ou, no dizer do Autor conforme registrado pela tradução
inglesa, “é como se tais diferenças nunca houvessem existido”, pois Deus
declara que a sua justiça é a verdade, aquém e além da justiça e da injustiça
humanas].
Deus declara a sua deliberação de exigir a sua justiça mediante a com-
pleta renovação dos céus e da terra.
Esta declaração é forense: sem causa e sem sentido [aparentes]; é uma
declaração fundamentada exclusivamente em Deus mesmo; ela é CREATIO
EX NIHILO. [É uma afirmação que em nada se estriba e que não é nem
justificada nem compreensível, pois foi originada exclusivamente pela vontade
do Criador].
É criação do nada, todavia é criação. É a criação de uma justiça verda-
deiramente divina em nós, neste mundo, pois quando Deus fala, acontece!
Esta criação é uma criação nova: (“Um novo céu e uma nova terra”).
Não é apenas um rebento novo da velha evolução criativa na qual
estamos e permaneceremos até o fim de nossos dias, [e que existirá até o fim
do mundo].
Não se trata de novo derrame ou de desdobramento da antiga criação.
153
3, 24 Jesus
Entre esta criação nova e a antiga, está o término de nossos dias, o fim
desta humanidade e desta terra.
Este “algo” novo, [criado do nada por Deus], pertence a outra ordem;
uma ordem nova que não é a das coisas que conhecemos, pois não sai delas mas
é (e foi) criada por Deus.
Esta criação nova [um novo céu e uma nova terra] não se alinha [nem se
compara] com a criação [o céu e a terra] que conhecemos e se comparássemos
esta criação nova com a existente, a nova nada seria pois a carne e o sangue não
podem herdar o Reino de Deus; [para o advento do Reino de Deus] é preciso
que o mortal se revista da imortalidade e o corruptível da incorruptibilidade.
O revestimento de que tratamos acima é obra divina e não de homens;
por isso o mortal e o corruptível estão e permanecem no aguardo dessa mudan-
ça radical de suas propriedades que virá na transformação divinal que se pro-
cessará no dia da ressurreição dos mortos. (1 Cor. 15, 50-57).
“Esperamos por um novo céu e uma nova terra”.
É por isso que a justiça de Deus, em nós e no mundo, não é justiça
humana nem entra em concorrência com esta justiça, pois “a vossa vida está
oculta com Cristo, em Deus” (Col. 3, 3). Se não estiver oculta não é vida! O
Reino de Deus ainda não despontou na terra nem mesmo uma mínima parcela
dele. Anunciado, sim! Mas não “chegado” nem mesmo do modo o mais subli-
me; porém, “vindo próximo”.
O Reino de Deus precisa ser aceito pela fé, conforme revelado por Jesus.
Anunciado e próximo, [o Reino de Deus] é a nova terra e não a extensão
[o prolongamento] da velha.
A “nossa” justiça somente pode ser real e permanente na medida que for
a justiça de Deus. Nova terra é e permanece sendo somente a eterna, em cujo
reflexo agora e aqui estamos.
[Pelo contexto geral, concluo que o Autor quer dizer que a nossa justiça
só pode ser genuína, duradoura, válida, se abrirmos mão dela para nos entre-
garmos inteiramente a Deus; isto é, se de nossa parte não nos arvorarmos a
fazer justiça e a julgar mas, sem qualquer pretensão, preconceito ou pré-julga-
mento, nos apresentarmos quais somos perante Deus, o Deus desconhecido do
qual nos acercamos somente quando o fazemos em nome de Jesus, pois de
outra forma seria (ou será) sacrílega a nossa pretensão; será néscia e, se tentar-
mos fazê-la, teremos que reconhecer semelhantemente a Jó, que falávamos do
que não entendíamos, abominando-nos então a nós mesmos, e arrependendo-
nos da nossa estultícia no pó e na cinza. (Jó, 42, 3 e 6).
Esta justiça de Deus só e perceptível pela fé, pois ela pertence ao Reino
de Deus, que está próximo mas ainda não é!].
154
Jesus 3, 24
155
3, 24 Jesus
“Santificado seja o teu nome! Venha o teu reino! Tua vontade seja feita na terra.
como no céu!”
O Filho do Homem, anuncia a morte do homem; proclama a Deus como
o primeiro e o último.
E o eco responde como inambígua testemunha daquilo que é proclama-
do: “Ele fala com Poder” [“Nunca homem algum falou como este
Homem”]...“Está fora de si”; “Desencaminha o povo”; “É companheiro de
publicanos e pecadores”...
[Em Cristo Jesus há o horror da confrontação pessoal do homem com
Deus. Há o escândalo da anulação de todas as vantagens humanas tão engenho-
samente arquitetadas e tão duramente defendidas até que alcançássemos o es-
calão dos homens justos e retos; há o escândalo da nivelação rasa de todos os
homens (nem há, ao menos, inversão de valores para que alguns, ainda que
fossem os outros, pudessem galgar posições perante Deus e os homens); o que
há é tábua rasa: todos pecaram!
Há também redenção, restauração, salvação. Há dia novo e novo nome.
Há nova luz, não consumível, eterna e divina.
Em Jesus de Nazaré há o homem; o filho do homem, que traz espanto e
horror; que revoluciona os costumes, desencaminha o povo, faz amizade e con-
cede honra a gente desprezível: “Louco”! É assim que o vêem os homens “de
bem”, justos aos seus próprios olhos; os homens instruídos na lei, que a anun-
ciam e que nela se gloriam; os “sábios” e favorecidos que interpretam os orácu-
los divinos que um dia foram confiados a seus ancestrais, (e que não percebem
que o canal secou; que nele já não flui a água da vida). Para todos esses, o Jesus
de Nazaré é loucura, escárnio e escândalo. Mas nesse Jesus há também o Cris-
to! O unigênito de Deus; o cordeiro pascoal que tira o pecado do mundo. Há o
ungido do Pai Celeste. E para aqueles que o vêem com temor e tremor, que o
aceitam pela fé, com coração contrito e humilhado, a despeito do escândalo, a
despeito da imposição do “NÃO”, para esses, “Nunca homem algum falou
assim como este homem”; para esses ele “é o Cristo, o filho do Deus vivo!]
Jesus de Nazaré é uma possibilidade entre outras, mas é uma possibilidade
que traz em si todos os sintomas do impossível. Este é o Cristo, segundo a carne:
uma história dentro da história; um fato material dentro do mundo da matéria;
uma expressão transitória dentro da temporalidade; uma vida humana, dentro da
espécie humana. Mas é uma história cheia de significado [transcendental]; é
“matéria” que revela o princípio e o fim; é vida transitória plena de revelações da
eternidade; é vida humana em que Deus fala exuberantemente.
Na mundanalidade desse fragmento de mundo destaca-se [desprende-
se] (para olhos que vejam e ouvidos que ouçam!) algo deste mundo, que lhe dá
156
Jesus 3, 24
novo esplendor, que resplende nas trevas da noite: “Glória a Deus nas alturas e
paz na terra aos homens de boa vontade!”
É o próprio Deus que quer atrair o mundo a si; que quer criar um novo
céu e uma nova terra.
Agora vemos a figura monstruosa deste nosso mundo: estátua forjada
em ouro e prata, bronze, ferro e argila, mui luzente, alta e forte; de aspecto
terrificante.
Porém, na vida oculta de Jesus podemos divisar a pedra que se despren-
de e que rolará para despedaçar os pés de barro e pulverizar a estátua sem
interferência de mão humana e o vento espalhará a poeira como a moinha, na
eira. “Mas a pedra que feriu a estátua transformou-se em grande montanha que
encheu a terra”. (Dan. 2, 24-35).
Satanás caiu dos céus como relâmpago; seu reino terminou. O reino de
Deus vem, tão certo quanto seus prenúncios já aí estão: “Os cegos vêem; os
cochos andam; os leprosos são limpos; os surdos ouvem; os mortos ressusci-
tam; aos pobres anuncia-se-lhes o evangelho”! “Bem-aventurado aquele que
não se escandalizar em mim”.
[Bem-aventurado] aquele que através da mundanalidade deste fragmento
de mundo, através da “vida de Jesus”, vislumbra a redenção que vem, e ouve a
voz criadora de Deus, [bem-aventurado] quem, a partir de então, não espera
senão por esta redenção e por esta voz. (Mat. 11, 1-4 (e 5-6)].
Bem-aventurado aquele que crê nisto que só pela fé pode ser apropria-
do; pela fé que há em Cristo Jesus.
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3, 24-25 (e 26) Jesus
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Jesus 3, 25
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3, 25-26 Jesus
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Jesus 3, 25-26
Estamos pois, aqui, já sob o reflexo das coisas do porvir. Não sem per-
plexidade, mas também não desesperançados; feridos de Deus; contudo, du-
rante a crise, sob o seu poder restaurador.
“É por isso que temos que abrigar-nos sob as asas da galinha, não sain-
do a voar atrevidamente, confiados em nossa própria fé, pois certamente o ga-
vião depressa nos devoraria”. (Lutero).
“Para a prova de sua justiça.”
Perdão dos pecados houve sempre e por toda a parte; também por toda
parte e sempre foram usufruídas as riquezas da bondade divina, de sua paciên-
cia e da contenção da ira de Deus. (2, 4). Sempre e por toda parte os feridos por
Deus foram, também, por ele curados. Todavia, foi através de Jesus que nossos
olhos se abriram para que víssemos que assim é. Foi nele que a justiça de Deus
tornou-se patente aos nossos olhos.
É através de Jesus que ficamos em situação de ver a história (“os pecados de
antigamente”) sob o ponto de vista divino, isto é, à luz de sua misericórdia que tudo
suprime e dissolve. É através de Jesus que ficamos sabendo o que é essa misericórdia:
o fim [do homem velho] e o novo começo de todas as coisas. [Para o gênero humano
é a volta ao “status” de Adão, antes de pecar; é a volta ao Edén, a volta ao lar; porém,
também como para o primeiro Adão, é o novo homem chamado a optar constante-
mente, que é a característica distintiva de sua imagem e semelhança com Deus].
Esta misericórdia quer levar-nos ao arrependimento: sabemo-lo! (2, 4;
6, 2 e seguintes).
Somente através de Jesus pode-se compreender a justiça de Deus e é
através dele que se vê claramente que essa justiça exerce o seu domínio e im-
põe a sua ordem sobre os homens e a história.
Pela premissa que recebemos de Jesus já não vemos, por toda parte e
sempre, somente o homem carnal, o pecado (com a lei, 3, 20), porém, além e
acima, vemos o juiz que julga e absolve, porquanto ele encontra no secreto dos
homens (2, 16) a motivação da fé.
Ele é justo e é o justificador dos que ousam dar o salto [da fé], para o vazio.
Se crermos em Jesus, então cremos na realidade e na universalidade da
fidelidade de Deus.
Se crermos em Jesus, manifesta-se para nós a “impossível possibilida-
de” da justiça de Deus e da nossa justificação por ele.
É desta pressuposição que vemos a nós mesmos e nos aproximamos das
pessoas.
É por esta pressuposição que ousamos confiar (e crer) em nós e nos
outros, enquanto que, sem ela, (sem a crença em Jesus), em ninguém podemos
confiar ou crer; nem em nós mesmos.
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3, 27-28 Somente pela Fé
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Somente pela Fé 3, 27
Isto essa posição crítica não admite e, partindo dela, não se pode entender, ou
aceitar, que coisas, acontecimentos e até seres humanos possam receber ou preten-
der ter atribuições e méritos divinos ou divinais; que se confundam coisas tempo-
rais com a eternidade; que se alcandorem eventos materiais, irrompendo, emer-
gindo neste mundo como partes do mundo celestial; (e o mundo no qual irrompem
essas pretensões é o mundo ao qual pertencemos segundo a nossa esfera e ao qual
pertencem todos os homens em todas as camadas da sociedade, desde as socieda-
des mais primitivas, atrasadas e incultas, até às do mais alto coturno).
Esta visão crítica, vinda da retidão de Deus, não aceita a pretensão de
quem quer que seja, de estar “além”, porquanto os que assim se situam nada
mais são, (se forem alguma coisa), que uma porção apenas ligeiramente me-
lhorada dos que estão “aquém”. O que essa visão crítica não considera válido
são as ilegítimas imanências de toda espécie que pretendem tomar a posição de
transcendentais e radicais. Essa visão crítica não compartilha do estabeleci-
mento do relativismo entre os homens e Deus: divindades que, de alguma for-
ma, surgem com características humanas no seu modo de ser e agir, e
humanitarismos que se apresentam com características divinas! Toda essa gama
de atitudes [que vai de um a outro extremo] precisa tirar a máscara e consentir
na revelação de sua verdadeira natureza, pois quem não se situar nem sob o
“NÃO” nem sob o “SIM” de Deus, quem não estiver no caminho que leva da
reconciliação (pelo sangue” 3, 25) para a redenção, da cruz para a ressurreição,
isto é, quem não tiver coração contrito e tomar o divino, o próprio, o eterno
como sendo material, imaginário, passageiro, esse tal, precisa morrer em Cristo.
Precisa morrer em Cristo o homem que escolhe para si o materialismo,
lendas e fábulas ou a transitoriedade do mundo; o homem que se esquece que
nada tem que não tivesse recebido e precisasse de receber novamente de Deus;
o homem que quer safar-se do paradoxo da fé; o homem que já não quer, ou
que ainda não quer, abrir mão de sua confiança na sabedoria, na ciência, nas
coisas certas e palpáveis do mundo, e do conforto que este oferece, para depen-
der exclusivamente da graça de Deus.
Precisa morrer em Cristo o homem que tenha qualquer outro pretexto
para se apoiar, que não seja “esperança” (4, 18; 5, 2; 15, 17).
Não existe qualquer possibilidade de se fazerem valer perante Deus,
grandezas humanas, como não podemos alegar a posse de grandezas divinas
perante os homens.
Não é possível projetar o eterno na temporalidade e vice-versa. Não é
possível transferir grandezas justificadoras do homem, segundo a conjuntura
humana, para a justiça divina, como não é possível transferir a justificação do
homem por Deus, em benefício do homem na conjuntura do mundo.
163
3, 27 Somente pela Fé
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Somente pela Fé 3, 27
*
Poeta alemão, nascido em lar Luterano e convertido ao Catolicismo nos seus últimos
anos de vida; escreveu muitos hinos e as máximas ou provérbios místicos a que o
Autor se refere.
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3, 27 Somente pela Fé
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Somente pela Fé 3, 27-28
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3, 28 Somente pela Fé
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Somente pela Fé 3, 28
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3, 29 Somente pela Fé
Entre nós e Deus estará sempre o “Dia da Cruz”, é o dia que une mas
também estabelece a separação; é o dia cheio de promessas e pleno de adver-
tências.
O paradoxo da fé nunca pode ser contornado e jamais suprimido, SOLA
FIDE. somente pela fé. comparece o homem perante Deus e é por ele movi-
mentado: a fidelidade de Deus, justamente por ser essa fidelidade, somente
pode ser aceita pela fé; [somente pode ser crida]. Mais que isso, seria menos!
Esta é a nova contabilidade, segundo o critério de Jesus.
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Somente pela Fé 3, 29-30
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3, 30 Somente pela Fé
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Somente pela Fé 3, 30
Comentários: 3, 1-30
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3, 1-30 Somente pela Fé
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3, 1-30 Somente pela Fé
revelada tanto nas tormentas como nas calmarias; à luz do sol, à luz
da lua, ao brilho das estrelas e na escuridão da noite. Na regularidade
das estações e na harmonia universal; na planta que brota e no relâm-
pago que estilhaça e fulmina.
A voz de Deus!
Para os “homens que sabem ver” Deus fala “claramente desde o
princípio do mundo”.
Esta verdade também foi vista por Sócrates, registrada por Platão,
e foi outrora, meio milênio antes, proclamada com mais graça, mais
sabedoria e mais unção pelo Salmista bíblico:
176
Capítulo IV
A VOZ DA HISTÓRIA
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3, 31 Fé é Milagre
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Fé é Milagre 3, 31
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3, 31 Fé é Milagre
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Fé é Milagre 4, 1-2
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4, 1-2 Fé é Milagre
recebeu o chamado divino: “Sai de tua terra e da tua parentela, e da casa de teu
pai, para a terra que eu te mostrarei”.
E Abraão foi; levou consigo a mulher jovem e bela e o sobrinho ambicioso.
Homem decidido, corajoso e confiante em Deus, entrou para a história
do mundo como o pai dos povos semíticos e, para a história da redenção, como
o herói da fé.
Homem extraordinário no mundo, e perante Deus; nobre no trato com
os homens, generoso com os amigos, leal à humanidade, fiel a Deus, tornou-se
o protótipo do homem reto e justo segundo o mundo e, mais do que isto, justi-
ficado por Deus, mediante a fé, — a sua personalidade entrou para a história e
venceu os séculos sem que a traça e a ferrugem corroessem sua reputação.
É com este homem de invulgar estrutura que o A. confronta Jesus, o
carpinteiro de Nazaré.
Homem para homem; igual por igual, para ver o que subsiste de um ou
de outro lado. Qual dos dois será engrandecido e qual diminuído? Humana-
mente, historicamente, a posição de Abraão está definitivamente formada e ser-
virá de pedra de toque para a avaliação de Jesus.
E o que resulta?
Resulta a evidência do Cristo ressurrecto; do Cristo, Emanuel, Deus
conosco; do Cristo autor e consumador da fé. Resulta na evidência do Cristo, o
cumprimento da promessa feita a Abraão.
Sem o Cristo que o confronto evidencia, a ressurreição seria bruxaria; a
história da redenção seria fábula; a promessa feita a Abraão seria uma farsa;
Abraã? não seria o herói da fé, mas o otário da fé!
É este confronto que destaca com nitidez a divindade de Cristo, a sua
mensagem que vem desde a cruz, e o seu Poder que vem pela ressurreição].
Se neste confronto com Cristo prevalecesse o classicismo de Abraão, seu
indubitável peso, calibre e valor; subsistisse a positividade de “nosso pai” segun-
do a carne, que foi primus inter-pares no mundo carnal, então, a negação [que
Cristo impõe — ...“negue-se o homem a si mesmo” ...]; a depreciação e a supres-
são dos pretensos valores humanos [apresentados na existência, nas posses e nas
obras peculiares ao mundo], seriam apenas relativas, sem valor decisivo, crítico;
[A mensagem que vem da cruz e da ressurreição] não teria poder resolutivo.
Jesus não seria o Cristo se vultos como Abraão, Jeremias, Sócrates,
Gruenewald, Lutero, Kierkegaard, Dostoiewski, confrontados com Jesus, pre-
valecessem definitivamente como figuras da longínqua história, e não fossem,
antes, unificados nele mediante a supressão de suas posições individuais pela
proclamação da negação da cruz que, ao suprimí-las, também as alicerça e
fundamenta.
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Fé é Milagre 4, 1-2
É disto que se trata: Jesus revela-se o Cristo por meio da luz que dele
irradia; por essa luz ser a mesma, no Antigo Testamento, na história da religião
e na revelação da verdade; ser a mesma luz que brilha no milagre do Natal. Ele
é a luz para a qual se volvem os olhares de toda a natureza e de toda a história;
a luz para a qual se dirigem todas as criaturas, visíveis e invisíveis, na esperan-
ça do cumprimento dos dias de sua espera.
“O Antigo Testamento — no sentido comum desse qualificativo, não
precedeu a Cristo porém, Cristo viveu nele, ou melhor, o Antigo Testamento foi
sua vida pré-histórica; foi, por assim dizer, a testemunha, a imagem direta que
acompanhou essa vida”. (Overbeck).
(...“Antes de Abraão ter sido, eu sou!”)
É isto o que dizemos de Abraão, e agora temos que o demonstrar; [te-
mos que prová-lo].
Se Abraão foi justificado pelas obras, então basta-lhe isso para que se
glorie.
As “obras” de Abraão são manifestas; as suas palavras e seus atos mos-
tram-nos a conduta, a orientação e a consciência de um homem justo. Esse seu
modo de proceder está muito além e muito acima da escuridão em que está
imerso o mundo pagão que o rodeia; ele exibe uma religiosidade mais consci-
ente, moral mais pura e o resultado valoroso de uma fé heróica.
Como haveremos de interpretar esses fatos que, assim, chegam a nosso
conhecimento?
Podemos ser levados a concluir da impressão de “retidão” que temos
de Abraão e de pessoas semelhantes a ele, que Deus também as julgará de
maneira análoga à nossa, uma conclusão que de maneira nenhuma parece ser
desarrazoada. Todavia, se isto acontecer, se as obras de Abraão, de que temos
notícia, forem declaradas como justificadas, então estaremos diante de obras
humanas, do “ter” e do “possuir” do mundo, devidamente justificadas e que,
portanto, já não precisam de justificação futura; ora, isto contraria as nossas
verificações anteriores (3, 29 e 27-31), sobre a incerteza e a dúvida a que
ficam sujeitas as obras e tudo quanto tiver conteúdo humano, ante a revelação
divina.
Todavia, a voz da história proclama a fama de Abraão como homem de
caráter, herói e personalidade brilhante. Portanto, [se por tais feitos e caracte-
rísticas foi justificado por Deus], nos pontos que o celebrizaram [e foram sufi-
cientes para granjear-lhe a justificação divina], a justiça de Deus é idêntica à
justiça humana. Logo, se existirem alguns casos em que as duas justiças se
equivalem, [se igualem], por que não haveria muitos outros que admitissem
essa congruência?
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4, 2 Fé é Milagre
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Fé é Milagre 4, 2-5
personalidade e de seus pares) “mas não perante Deus”, pois o que lhe serve
para “gloriar-se perante Deus” será: o arrependimento sincero de seu coração
penitente (2, 4); a sua obra conforme for aceita e “paga”, [retribuída], por Deus
(2, 6); o “judeu que o é em secreto” e a “circuncisão que está no coração” —
(2, 29). Isto está [escriturado] em livro diferente; isto é impossível ao homem
em si e por isso está oculto aos olhos humanos; para os homens, isto somente é
possível se vier de Deus e, por isso, somente pode ser visto por Deus. [O arre-
pendimento não vem por iniciativa ou obra humana; é graça divina, e só Deus
o pode ver e julgar].
E ainda mais: quanto mais claramente as coisas humanas, possíveis e
visíveis testificarem as coisas [divinas], impossíveis e invisíveis, maior é a evi-
dência de que são apenas coisas humanas.
O classicismo do homem clássico não resulta de sua natureza criativa,
nem é produto de seu humanismo, mas se baseia no julgamento sob qual está,
e na limitação dessa criatividade, visível em cada um. O classicismo está no
fato de que o homem tem consciência da precariedade de sua criatividade, sua
relatividade, e sua supressividade; por isso, não se gloria nele. A sua grandeza
real, positiva, e absoluta, deixa de ser ambígua, somente quando vista por Deus,
pois é somente nele que ela se fundamenta.
Porém, se aquilo que se proclamar de um homem como Abraão, não for
a justificação divina ou, se a justificação divina de tal homem não for manifes-
ta, então ele também está sob crise: a crise que todo homem enfrenta no cami-
nho que leva da morte [e pela morte], para a vida; e o valor desse homem (a
possibilidade de firmar este valor na presente vida) repousa no paradoxo, no
milagre, da fé.
Não se contornará o “caminho” — “a senda da morte” — [que leva à
vida] apontado por Jesus.
[Resumindo, talvez pudéssemos dizer que: o caráter e as obras de Abraão
(e de todos os verdadeiros servos de Deus) são tanto mais humanos quanto
mais poderosamente testificam a justificação divina; todavia, por serem huma-
nos, lançam Abraão e todos os verdadeiros servos, na crise que é de todo ser
humano: precisa morrer, para nascer de novo (João 3, 3-5)].
Vs. 3 a 5 O que diz, pois, a Escritura? Abraão creu em Deus, e isto lhe foi
atribuído por justiça. Ora, a Abraão, varão de obras, aquilo que seria
legítima retribuição não lhe pode ser atribuído como graça, porém como
pagamento devido; todavia, a Abraão, varão sem obras, que apenas crê
naquele que justifica o ímpio, a sua fé lhe é imputada por justiça.
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4, 2-5 Fé é Milagre
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Fé é Milagre 4, 3
ritual se orienta para Deus e, recebendo dele certeza e segurança, toma a forma
de fé.
A convicção que Abraão teve de que a palavra de Deus tem poder
operante, representa o impossível. [O absurdo do ponto de vista humano].
A certeza de que Deus se dirige às coisas que não são como se já fos-
sem, (4, 21) é o milagre.
A convicção de que a Deus cabe a honra (“Doxa”) (4, 20) contraria a
nossa opinião (“doxa”) e constitui o paradoxo. Esta convicção é a fé.
[O A. usa as palavras gregas “Doxa” louvor, e “doxa” opinião, fazendo
calembures com “paradoxo”, o que está além da nossa opinião, o que ultrapas-
sa o “bom senso”].
“Abraão creu”. Este é o fato pelo qual ele é o que é; este fato é a fonte
oculta de onde emanam as suas propaladas “obras” (4, 2). Todavia ele é o que é
como crente no poder daquilo que ele não é pois, naquilo que ele é — (o religi-
oso esclarecido, o herói ético, espiritual, etc.) — desponta vigorosamente a
revelação de sua fé e esta, sim, mostra o que ele não é: [mostra] o milagre; a
nova terra; Deus!
— Se afastares a linha da morte da fé que Abraão revelou (isto é, se
ignorares a supressão do ser humano mediante sua fundamentação em Deus),
certamente a esvaziarás de todo seu conteúdo e ela submergirá, como simples
atributo humano, na subjetividade, relatividade e dubiedade de todos os atos
(ações e atitudes) dos homens.
Se a vida de Abraão não estiver fundamentada em sua morte então ele
deixa de ser Abraão.
[Parece que o A. quer referir-se ao novo Abraão, pai de muitas nações,
conforme ele foi “crismado” por Deus (Gen.l7, 5)].
Abraão não creu apenas. Ele creu em Deus! (Gen. 15, 6). É isto o que
diz a Escritura.
“E isto lhe foi atribuído por justiça”.
Portanto, já na narrativa do Gênesis, encontra-se o conceito marcante de
uma atribuição, de uma escrituração divina a favor do homem (3, 28).
[Evidentemente, trata-se do lançamento no “Haver” da conta “do ho-
mem”, de uma parcela que este não ganhou (nem ganha com a “obra de suas
mãos”, com o “suor de seu rosto” ou com seus dotes intelectuais, morais e
espirituais, porém, é uma grandeza que lhe é creditada única e exclusivamente
pela graça de Deus, que se revela por sua fidelidade mediante a fé que, ainda
esta, é dom divino...].
Aquilo que, como empreendimento humano, seria impossível ou seria
uma adulteração (2,3), é possível e é justificado, como obra de Deus, a saber:
187
4, 3-4 Fé é Milagre
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Fé é Milagre 4, 4-5
189
4, 5 Fé é Milagre
por quanto, jamais será o homem julgado pela hediondez de seu pecado [ou por
suas más qualidades]. O julgamento, em última instância, será mesmo, e sem-
pre, pela fé que, novamente contra toda aparência, é visível em tudo e por tudo,
ainda uma vez lhe atribuindo melhor justificação do que lhe é concedida por
aqueles que o consideram “por demais” justificado [ou condenado] segundo a
censura deles.
Em ambos os casos a avaliação tem sempre presente o fato de que a
justiça de Deus é imputada segundo o seu juízo e seu beneplácito (2, 6) e que
Deus não faz distinção de pessoas nem olha para as suas máscaras (2, 11),
porém, julga pelo que o homem abriga, em secreto, no seu coração (2, 16).
Este modo de julgar considera a fé porque vê com olhos crentes e sabe
o que a fé significa:
Esta avaliação está familiarizada com a fé, porque ela também crê, e
crendo sabe distinguir a fé que há nas pessoas e que as leva para além do que
efetivamente são; é nesta região [do invisível] que a avaliação procura ver o que
cada crente é por aquilo que ele não é; esta é a razão pela qual, quem tem fé —
[fé real, viva, genuína, pura] se surpreende ao tomar conhecimento [ou ciência]
de que a sua fé lhe foi imputada por justiça, e isto em sua forma a mais severa,
acompanhado sempre de um “apesar de” e, jamais de um “por isso”; sempre
como ato de perdão e nunca confirmação daquilo que ele é.
[Um julgamento feito por aquilo que a pessoa não é, à luz do raciocínio
humano, apenas é compreensível se aquilo que o réu não for, constituir sua
culpa, ou em se tratando de eufemismo, expressar o que ele realmente é, por
antítese. Mas Deus julga por aquilo que o homem efetivamente não é; pelo
invisível; para o mundo isto é um paradoxo, um escândalo, uma loucura. Só a
fidelidade de Deus e a sua misericórdia poderiam explicar tal procedimento se
necessário fosse explicar um ato divino.
Deus vê no pecador o filho adotivo, remido em Jesus Cristo, filiação a
que ele, pecador, está livre a candidatar — se segundo os decretos eternos do
próprio Deus].
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Fé é Milagre 4, 5
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4, 5-8 Fé é Milagre
tida na declaração que Deus fez à antiga serpente: “A semente da mulher ferirá
a tua cabeça” — (Gên. 3, 15).
A raça desenvolveu-se, e a corrupção foi geral; vieram as águas do dilú-
vio, houve a confusão de línguas e houve a vocação de Abraão, “Tu serás uma
benção” e “em ti serão benditas todas as famílias da terra. (Gên. 12, 2 e 3).
Que mérito haveria sem Cristo? Que benção para as famílias da terra,
sem ressurreição? É por isto que Abraão, se quisera gloriar-se, haveria de fazê-
lo no sangue de Jesus Cristo, de cujo advento é o primeiro marco que, todavia,
não ficou imóvel a beira da estrada, onde foi implantado mas, pela fé, transpor-
tou-se ao longo da mui longa “fita carmesim” que atravessa a história,
testificando a fidelidade de Deus, pela sua fé: esta fé “lhe foi imputada por
justiça” e a lição que sobressai é esta: quem tiver de gloriar-se, glorie-se no
Senhor” (Jer. 9, 23-24; I Cor. I,31; II Cor. 10-17).
Textualmente, o original diz o seguinte: “Seu SIM, sua positividade não
podem ser entendidos por si mesmos, se fizermos abstração do grande NÃO do
instante da última trombeta; antes pelo contrário: a justificação de que ele pode
gloriar-se, e que lhe foi atribuída no Gênesis, é “testemunha como um retrato”
(uma imagem) da vida de Cristo etc. (Das “abbildende Zeugnis” des Lebens
des Christus — as aspas estão no original — (pág. 99, IN FINE)).
A versão inglesa diz: “Esta grande afirmação positiva não pode ser en-
tendida isoladamente, mas somente no contexto da negação da última trombe-
ta. Quando se afirma no livro do Gênesis que Abraão tem uma justificação de
que pode gloriar-se, isto deve ser entendido como o modelo que aponta à vida
de Cristo”, etc.
Ora, o A. não diz que Abraão tem do que gloriar-se (antes diz o contrá-
rio) e o Gênesis também não diz isso que, segundo me parece, a versão inglesa
sustenta.
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Fé é Milagre 4, 6-8
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4, 8 Fé é Milagre
ele possa gozar (das bênçãos) da vida e justificação, é o engano que deve desa-
parecer de seus lábios.
Ele quer e tenta abafar seus pecados, sua iniqüidade e sua transgressão,
que são justamente o contraste [o oposto, a antítese] de sua piedade e de tudo o
que esta piedade testifica. Ele quer fazer calar a impiedade [gritante] de seu
coração (que é a inevitável resultante de toda divinização do homem, [do culto
que o homem presta a si mesmo] ). [Com seu lamento constante] ele quer apa-
gar o pecado; quer perdoar-se a si mesmo [quer merecer o perdão e quer justi-
ficar-se]; na plenitude de sua experiência [e na sua vida amplamente piedosa]
ele mesmo quer perdoar o seu pecado. [Quer ser Deus e Senhor; quer tomar o
seu julgamento em suas próprias mãos; flagelando-se, quer justificar-se; em se
acusando, quer merecer perdão; quer fazer valer a sua conduta geral de “servo
bom e fiel” para com ela, agora, pagar e apagar o pecado que lhe pesa com o
peso da própria mão divina e lhe angustia o coração]. É nessa tentativa que [ele
sente que] precisa morrer.
[Somente morrendo, somente abdicando de si mesmo, somente reco-
nhecendo o seu nenhum valor, é que poderá renascer, viver, ter paz com Deus,
com o próximo e consigo mesmo!].
Comprimido entre a verdade divina e a fraude de seu coração clama, em
dores corporais, por todo o dia. (Clama ele mesmo, de seu sofrimento pessoal
sob o peso da mão de Deus que já não lhe permite viver mais; clama e geme a
sua alma, criada por Deus [para ser pura e livrei e que já não pode subsistir sob
o guante da sua mentira.
Ele [o Salmista] geme na angústia do emudecido Zacarias e do cegado
Saulo.
E esse aiar se prolonga e persiste até que ele se apresente ao cativeiro e,
como cativo de Deus, abra mão de toda pretensa glória. [Até que abdique de
todos os seus supostos méritos]. Sofre e geme até se convencer que a justiça
divina da qual queria apoderar-se, é impossível aos homens; que essa justiça é
um inexorável NÃO a toda retidão humana, [que o homem nada é e nada tem
perante Deus], que a justiça divina é o julgamento a que inevitavelmente estará
sujeito todo o erro, [todo o engano, todo o ludíbrio, todo o engodo] de caráter
religioso.
[O pecador que assim suspira e chora percebe, com tremor e temor, a
linha da extinção de sua vida, em Deus; ele reconhece e já não esconde o seu
pecado; e confessa: “... então tu me perdoaste”!].
— Então respondeu-lhe o Senhor desde um redemoinho. E qual é
esta resposta? Acaso aponta ela a um degrau mais elevado no caminho
da vida inteira?
194
Fé é Milagre 4, 8
195
4, 1-8 Fé é Milagre
Comentários: 4, 1-8
196
Fé é Começo 4, 9
197
4, 9-10 Fé é Começo
198
Fé é Começo 4, 9-10
Ora a circuncisão não foi reconhecida por Deus como meritória de qual-
quer atribuição de justificação e ela não mereceu um parecer divino, especial.
[A versão inglesa diz nem é a circuncisão que faz (de Abraão) o que ele é”].
A sua circuncisão não é um milagre, porém um acessório visível, na
aparência do mundo religioso. Enquanto essa justificação estiver representada
e encerrada na circuncisão ela é justificação religiosa [porém somente religio-
sa] e nada tem a ver com a justificação que lhe foi atribuída, imputada, por
Deus e da qual lemos no Gênesis.
“Manifestamente não ao já circunciso, porém ao ainda incircunciso”,
que a fé foi imputada por justiça.
A justificação pela fé somente pode ser aceita como sendo imputada a
Abraão ainda incircunciso, o que aliás, está de acordo com a cronologia histó-
rica. [A graça da imputação de justiça pela fé está narrada em Gên. 15, 6, e o
concerto da circuncisão aparece no capítulo 17, verso 10] e, segundo a lei, a
justificação seria pela circuncisão.
Quando Abraão foi chamado [vocacionado] por Deus, ele não era, ain-
da, nem piedoso, nem patriarca, nem teocrata.
O vocacionamento dos homens por Deus, precede aos contrastes [das
situações humanas], entre a circuncisão e a incircuncisão, a religiosidade e a
irreligiosidade, entre o pertencer e o não pertencer a uma Igreja, e essa prece-
dência se verifica, não raro, até cronologicamente. [Deus chama o homem in-
dependentemente, e mesmo antes, de ele haver cumprido ou se submetido às
formalidades religiosas (batismo, profissão de fé, etc.)].
A fé que encontramos em Abraão [e que lhe foi imputada por justiça]
ainda não é religião nem o fenômeno histórico espiritual da crença [ou da conver-
são]. A fé é o fator inicial [e a condição preparatória, preliminar] das manifesta-
ções [exteriores que tornam públicos os frutos da fé]; ela é a origem comum de
todos eles, porém não é nem religiosa nem irreligiosa; nem santa, nem profana,
contudo, é sempre ambas essas coisas, tem as duas posições, simultaneamente.
A vocação de Abraão e a sua fé, são, no Gênesis, puro início, começo;
coisa preestabelecida.
Do ponto de vista histórico-religioso, Abraão ainda não é um judeu,
porém um gentio; para a história da redenção, ele é um ímpio, (4, 5), um morto
(5, 12): ainda não é o preclaro pai do histórico povo de Deus que mais tarde
veio a ser.
O mundo é mundo e nele está Abraão, também.
Parece-nos, pois, que agora podemos compreender o que significa a
referida “imputação”. Se a justificação religiosa que Abraão poderia ter pela
circuncisão está fora de cogitação, não só cronologicamente mas também pelas
199
4, 9-10 Fé é Começo
circunstâncias em que ele se encontra, então ele não tem com que velar sua
nudez perante o Criador, senão com o que estiver além do fenômeno religioso,
o que só Deus vê e tem valor perante ele porque vem dele: a fé.
É-lhe atribuído, imputado, (4, 5) somente aquilo que tem: a sua fé; é por
ela que Abraão ouve o que nenhum ouvido ouviu.
Mas se o texto do Gênesis evidencia que a justificação vem apenas pelo
que é invisível em Abraão, pela sua fé, então é também evidente que ela emana
de Deus, que é obra divina [que é de sua essência, de seu ser e de sua proprie-
dade], e que nada tem a ver com o ambiente estreito e fechado do mundo [e
com o que dele procede ou nele se faz]; portanto, também nada tem a ver com
“religião” pois também esta, em sua realidade histórica, nem é premissa nem é
condição essencial para um relacionamento positivo entre Deus e os homens.
Este relacionamento parte de Deus — que é a sua origem, [seu primeiro movi-
mento, motivado exclusivamente pela fidelidade divina que, encontrando a fé]
é a premissa da realidade histórica da religião (e também do seu oposto!); [Deus
é quem convida, vocaciona, chama: “Vinde a mim” É em resposta a esse convi-
te que o homem — independentemente das luzes que tiver em seu coração (ou
seu intelecto) sem condicionamentos de instrução, cultura, ignorância, riqueza,
pobreza, filosofia, religião — chega à religião, aceitando-a, ou a rejeita como
incrédulo, ateu].
Vale, pois, a bem-aventurança do homem piedoso (4, 4—8) e, na verda-
de, também a do impiedoso (4, 9) porque a bem-aventurança vem pela fé e não
pela crença [ou, segundo a tradução inglesa “a bem-aventurança vem pela fé, e
não pela ortodoxia”].
Nada, se não a fé [e somente a fé] é imputado por Deus como justiça, e
isto, tanto ao homem piedoso como ao ímpio.
Vs. 11 e 12 E ele recebeu o sinal da circuncisão como selo da justiça de sua fé,
quando ainda estava na incircuncisão, para que fosse pai de todos os que
crêem, estando ainda na incircuncisão, afim de que isto, também a eles,
seja imputado por justiça; e para que fosse também a eles, circuncisão
enquanto estes, não somente como descendentes do povo da circuncisão,
também andarem segundo as pisadas da fé que teve nosso pai Abraão, na
incircuncisão.
200
Fé é Começo 4, 11
201
4, 11 Fé é Começo
202
Fé é Começo 4, 11
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4, 11-12 Fé é Começo
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Fé é Começo 4, 12
Comentários: 4,9-12
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4, 9-12 Fé é Começo
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Fé é Criação 4, 13
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4, 13 Fé é Criação
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Fé é Criação 4, 13
209
4, 14 Fé é Criação
210
Fé é Criação 4, 14
É certo que a fé tem sempre o seu lado “legal”. Ela pode ser um aconteci-
mento, uma situação. Todavia, no seu aspecto legal ou visível; na sua conjuntu-
ra histórico-espiritual, como um evento imaginável ou uma situação atingível;
ou ainda como uma “possibilidade possível”, a fé redunda vazia, despojada de
sua dinâmica, e destituída da certeza que, de outra forma, a caracteriza.
A fé fica “esvaziada” se Abraão e seus filhos forem o que são por força
da lei.
A fé é o firme fundamento se ela representar o passo eterno para o total-
mente invisível, sendo ela, também, invisível.
A fé será negada [esvaziada, aniquilada] em seu sentido espiritual,
por toda situação ou por todo evento visível que a acompanhar; por todo
meio temporal, por todo pragmatismo, e por todo e qualquer método que
sejam prescritos [para seu nascimento ou seu crescimento e empregados
para esse fim].
A fé somente vale por fé se for o passo à frente que vem de Deus e que
só Deus torna possível e compreende. A fé somente terá poder criador quando
ela for a luz da luz não gerada; a fé somente será viva, quando for a vida que
vem da morte; a fé somente será positiva se o ser humano, por ela, for funda-
mentado na insondabilidade de Deus. Somente então é a fé imputada por justi-
ça e o homem será o destinatário [o receptáculo] da promessa divina.
Fora dessa qualificação divina da revelação que a humanidade possa
encontrar na lei, mesmo a fé mais profunda, a mais ardente, a mais séria, não
passa de simples descrença; e quando a fé é negada, anulada, invalidada, tam-
bém cessa o cumprimento da promessa, pois esta somente pode ser recebida
pela fé e mediante a fé.
[Suprimida a fé resulta, IPSO-FACTO, suprimida a promessa, pois a
fidelidade de Deus se manifesta através da fé. É por isso, que em Hebreus 11, 6
se diz que sem fé e impossível agradar a Deus, pois é necessário que aquele que
se quiser aproximar dele, creia que ele existe].
A promessa que Abraão recebeu é indescritível, está além de toda per-
cepção, de todas as possibilidades humanas e de toda realidade. Nada conhece-
mos do mundo abençoado e tornado bom por Deus; a soberania do homem
sobre tal mundo não é, sequer, um objetivo historicamente imaginável; é o
Messias que tem essa soberania não é um homem segundo os que conhecemos.
[É por isso tudo, que a promessa feita a Abraão é inteiramente inverossímil,
totalmente inviável, do ponto de vista humano].
A graça da criação, como a graça da redenção, não é uma dádiva que
venha junto com outras dádivas; ela é a relação invisível na qual estão todas as
dádivas [divinas], e o seu reconhecimento é sempre, e sobretudo, dialético.
211
4, 14-15 Fé é Criação
[A promessa feita a Abraão não encontra apoio lógico nos fatos materi-
ais, visíveis e, por isso mesmo, só pode ser aceita, assimilada, apropriada, pela
fé; Abraão creu sem nada saber ou entender do mundo transformado pela graça
divina e de como iria herdar esse mundo que foge inteiramente do domínio dos
homens.
No entanto, diz o Autor que a fé é poder criador e esta graça, justamente
por estar fundamentada na fé é, semelhantemente a própria fé, imponderável,
imaterial, invisível aos olhos do mundo e só é reconhecível na dialética, isto é,
pela busca da verdade e sua aceitação mediante o confronto da própria fé com
a promessa, e vice-versa. O diálogo, a “racionalização”, faz-se entre a promes-
sa e a fé].
Na narrativa bíblica, a história de Abraão apresenta a fé e a promessa na
mais alta “negatividade positiva” de sua oposição mútua, pois a promessa é
inteiramente incongruente com a situação de Abrão e com os eventos e situa-
ções criadas [posteriormente] na história da esperança de Israel.
[É por isso que afirmamos que] se a promessa não for recebida pela fé,
jamais será recebida. Sem fé, a promessa não passará de uma proposição “mítico-
escatológica”, semelhante a todas as demais proposições religiosas que exis-
tem por aí.
Não há experiência, não há êxtase, não há exorcismo, nem olho, nem
ouvido, nem coração, que possa agarrar a promessa, [retê-la, beneficiar-se dela
ou entendê-la] se ela não for assimilada pela fé.
Se formos herdeiros pela lei estamos, realmente, deserdados; estamos
excluídos da candidatura à herança prometida, não somos Abraão, nem filhos
de Abraão!
V. 15 Pois a lei, sem a fé, não traz ao homem a promessa de Deus, porém, a sua
ira. Todavia, assim como a lei não é decisiva, também não o é a sua trans-
gressão.
212
Fé é Criação 4, 15
213
4, 15 Fé é Criação
214
Fé é Criação 4, 15
215
4, 15-16 Fé é Criação
216
Fé é Criação 4, 16-17
V. 16 a 17a É por isso que dizemos: os herdeiros são os que o são, mediante a
fé, o que de outro modo se diz: Pela graça; e a promessa é válida para toda
descendência de Abraão, não somente para quem o é pela lei, mas também
para quem o é pela fé, pois todos temos a Abraão por pai, como está escri-
to: constituir-te-ei pai de muitas nações.
“Por isso, pela fé”. Sabemos o que dizemos. Nem existe qualquer outra
possibilidade, se não dizê-lo.
A lei, a história, a religião de Israel é a forma dentro da qual esse povo
pode ser aspirante, candidato à herança divina, porém não é uma força criadora
que lhe garanta o gozo dessa herança.
Se a conjuntura da história, da lei, da religião, representar alguma força,
esta será terrena, do mundo; [será na realidade] uma reação [uma força em
sentido contrário] que, na verdade, impossibilita a co-participação na herança
de Abraão.
A certeza de ser contado entre os filhos de Abraão, a realidade do ato
criador que “das pedras pode suscitar filhos a Abraão”, não está nas “possíveis
possibilidades” da lei mas na “impossível possibilidade” da fé.
“O que, de outro modo, se diz: pela graça; e a promessa é valida para
toda descendência de Abraão”.
Mais uma vez, ante a ponderação sobre o que transforma Abrão em Abraão
(4, 1), [Abrão, “pai da altura”, para Abraão, “pai de uma multidão” — Ver Gen.
17, 5] somos levados para além das coisas visíveis e chegamos ao primeiro rela-
cionamento, original, que não só fundamenta a alma de Abraão e torna possível a
sua existência histórica, como vai para além de sua história e de sua alma.
217
4, 16-17 Fé é Criação
É pela graça que Abrão é Abraão. É pela graça que a lei tem significa-
ção; que a história tem sentido: e que a religião é uma verdade.
Pela graça, porém, quer dizer à luz da linha da morte, que é o limite
absoluto de toda visibilidade humana, (e justamente como tal, é a linha da vida,
vinda de Deus); é o último NÃO, que também é SIM; é o último julgamento
que, só ele, pode ser também a justificação.
Quando este relacionamento ocorre [(o primeiro relacionamento entre o
homem e Deus, e que vai além de toda a realidade humana)] então revela-se a
finalidade da moldura histórico—psicológica de “Abraão” e “Israel”: a lei é
estabelecida (3, 31). Falamos de Abraão, e temos que falar em Cristo. Falamos da
fé que Abraão teve, e temos que falar na crise universal do “aquém” e do “além”,
anunciada em Cristo. Falamos dos filhos de Abraão e temos de falar de todos
aqueles que, atingidos por essa crise, participam da ressurreição de Cristo Jesus.
São herdeiros os que o são, não pela lei, mas pela fé; não são herdeiros
por força dos acontecimentos histórico-espirituais, porém pela graça, pois está
claro que a co-participação dessa herança não está ligada à filiação de um “tronco
de Abraão” constituído segundo a lei, [como se fora a filiação a alguma
agremiação ou a um clube], nem está a co-participação dessa herança condicio-
nada à participação de um Israel histórico, ou de alguma cultura ou tradição,
com direitos adquiridos por transferências sucessivas [de títulos, de qualidades
ou mesmo de genes da raça].
Com semelhante limitação de “herdeiros”, a herança seria mais que du-
vidosa. (4, 14-15).
Como destinatário da promessa “mediante a fé”, o próprio Abraão fica
fora de todos os círculos de delimitação histórica e assim também a sua semen-
te, a saber: a geração dos que crêem. Mas entre esta geração podem estar tam-
bém aqueles que são seus filhos segundo a lei [e segundo a carne] e [todos
juntos] podem aspirar ao reino do Messias e à bênção de Deus.
O relacionamento que houve originalmente entre Abraão e Deus pode
ocorrer também entre Deus e os homens dos diferentes círculos de delimitação
histórica, pois Deus é, também, o Deus dos judeus (3, 20); mas não somente
dos judeus! Para testemunhar a revelação Deus pode, em sua fidelidade, con-
duzir os homens às [mais variadas] conjunturas psico-históricas [ou histórico-
espirituais].
Mas se a suscitação [e a validação] de filhos de Abraão for pela fé, se os
filhos de Abraão forem criados [e reconhecidos] pela fé somente, então desapa-
rece toda forma de sectarismo, desde o mais grosseiro, até o mais refinado.
A palavra que foi dirigida a Abraão “pela graça”, e que foi por ele ou-
vida “mediante a fé”, não tolera, por princípio, nenhuma restrição esotérica
218
Fé é Criação 4, 16-17
Comentários: 4, 13-17a
219
4, 13-17 Fé é Criação
220
Da Utilidade da História 4, 17
V. 17 (segunda parte) Abraão é pai de todos nós, perante Deus, em quem creu:
O qual vivifïca os mortos e fala como sendo.
221
4, 17 Da Utilidade da História
222
Da Utilidade da História 4, 17
223
4, 17-18 Da Utilidade da História
o “aqui” e o “além”; Deus é a negação absoluta e por isso é “o lado de lá” tanto
do “aquém” como do “além”; ele é a negação da negação, o que significa o
“além” para o “aquém” e vice-versa. Ele significa a morte da nossa morte e a
aniquilação da nossa aniquilação. Ele “vivifica” ele “fala” e “nele vivem todos”.
A fé que teve Abraão é justamente este Deus e a transformação de todas
as coisas, nele. (“Eu vi um novo céu e uma nova terra”); ele é a luz (da luz não
gerada) de que a história do Gênesis nos fala; o Logos de toda história.
224
Da Utilidade da História 4, 19-20
225
4, 20 Da Utilidade da História
V. 21 Ele estava perfeitamente convicto disto: Deus tem poder para cumprir o
que promete.
226
Da Utilidade da História 4, 21-22
“Pelo que”!
Por isto: porque a sua fé, é fé perante Deus (4, 17 segunda parte).
Esta fé não é apenas um traço do caráter de Abraão, mas constitui o seu
todo; é ela que o configura e o delimita. Ela é o milagre absoluto que confirma
e anula a sua personalidade. Ela é o puro início; a criação original.
Foi-lhe imputada por justiça, porque sua fé não se origina de um acon-
tecimento histórico, e também não do que nela não acontece.
É por isso que Deus a qualifica para a justificação e é ainda por isto que
Abraão unicamente pela fé, tem parte com Deus na negação da negação e na
morte da morte; é por isto que a sua fé brilha com o fulgor da luz não gerada,
sem que esse brilho seja diminuído [ou prejudicado] pela experiência histórica,
material, que Abraão viveu.
V. 23 a 25 O que está escrito não concerne somente a ele mas diz também
respeito a nós, a quem também deverá ser atribuído: a nós, os que cremos
naquele que acordou o nosso Senhor Jesus, de entre os mortos, e que aí foi
entregue por causa de nossa queda e ressuscitado para a nossa justificação.
227
4, 23-24 Da Utilidade da História
228
Da Utilidade da História 4, 23-24
229
4, 23-24 Da Utilidade da História
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Da Utilidade da História 4, 24-25
Comentários: 4, 17-25
231
4, 17-25 Da Utilidade da História
232
Da Utilidade da História 4, 17-25
233
Capítulo V
235
5, 1 O Novo Homem
passagem. Segundo Lietzmann, esse engano pode ter sido cometido pelo próprio
Tércio (16, 22) a quem Paulo ditou a carta. [Lietzmann foi teólogo evangélico,
alemão, falecido em 1942. Lecionou “História Eclesiástica” e notabilizou-se, entre
outras coisas, por suas pesquisas filológicas)].
“Portanto, justificados pela fé”, — “a noite já vai longe e o dia está
prestes a raiar” (13, 12). [A tradução de Almeida diz: “A noite é passada e o dia
é chegado”].
Se contarmos com a nossa fé [se ela realmente existir], então precisa-
mos incluir [com o “eu”, com o “velho” homem deste mundo], também o “novo”
homem, a quem o “nós” se refere pela fé: é o novo homem do “Dia do Senhor”,
que ainda não raiou, mas esta próximo.
Pela fé adquirimos o “status” dos que foram declarados justificados pe-
rante Deus. Já não somos somente aquilo que efetivamente somos [neste mun-
do], mas também, [ainda pela fé], aquilo que “não somos”.
A fé é o predicado cujo sujeito é o homem “novo”.
Este homem “novo” é caracterizado pelo “interminável sofrimento”
(Kierkegaard) que é apenas perceptível como a vacuidade que invade a vida
cotidiana e faz com que esse homem novo seja visto por todos, e em toda parte,
como negação. E justamente por isso ele, também sempre e em toda parte, dá
testemunho deste homem novo.
Visto da parte do mundo, ele poderia ser comparado ao ponto “zero” de
uma hipérbole, de onde os ramos se afastam até o infinito, e onde se encontram:
o começo e fim.
Não sou “eu” o sujeito desse predicado, pois ele é tudo quanto está
além, tudo quanto é radicalmente diferente e até em oposição a mim; no entan-
to, sou o sujeito dele pela identidade que a fé estabelece entre mim — o “sujei-
to” de cá, e o “sujeito” de lá.
O homem “novo” [e eu também], nasce sob o signo da morte e da res-
surreição de Cristo (4, 25), e no conhecimento de Deus que vivifica os mortos
e que fala ao que não é, como já sendo (4, 17); (é por isso que eu, “junto” com
o homem “novo”) nascemos de cima (João, 3, 3).
A rigor, não serei mais “o mesmo” que sou, mas essa inaudita identidade
com o homem “novo” é verdadeira pelo poder da Palavra de Deus.
[Deus fala ao homem “novo”, (a mim) que ainda não o sou, como já o
sendo].
Somente sou aquilo que (não!) sou, pela Fé!
Se o arrojo da fé, [a ousadia de crer nas coisas divinas que são absurdas
à luz dos critérios humanos] desaparecer ou falhar por um só instante, se a
atitude de confiança se transformarem dúvida, [se momentaneamente eu tomar
236
O Novo Homem 5, 1
uma posição como se eu nunca houvesse aceitado o paradoxo da fé] então essa
identidade que o relacionamento pela fé impõe entre o sujeito que sou e aquele
que não sou — mas venho [ou viria] a ser pela fé, deixa de existir, e as conside-
rações que se tecerem a respeito não passam de especulação religiosa, híbrida.
— [Quiçá. hibridismo resultante da arrogância humana de um lado, e da espe-
culação filosófica sobre a promessa divina, de outro].
Posto em termos dialéticos, a identidade entre o homem “velho” e o
homem “novo” só pode existir sob a ponderação de que o homem não é Deus.
Precisamos vigiar-nos atentamente desde o instante em que nos atreve-
mos a contar com nossa fé. [Para que não caiamos na tentação de atribuir al-
gum mérito a nós mesmos...].
A passagem pela “porta estreita” [que é a morte da presente vida e o
novo nascimento para a “nova” vida] deve ser encarada como possibilidade e
necessidade muito estranhas. É preciso que tenhamos sempre em mente que o
caminho angusto é quase inacessível; que a ordem [de entrar pela porta estrei-
ta] é altamente incompreensível; e que as forças que temos em nós hão de
parecer-nos inteiramente insuficientes para darmos um só passo para além da
exígua cancela; que há de parecer-nos extremamente perigoso avançar por essa
senda apertada.
A caracterização da escolha [entre as portas larga e estreita] como sim-
ples questão de usos e costumes, de comodidade e de bom senso, como se
tratássemos de coisa natural, é mentira pura; é a maldição original, o germe do
veneno quase impossível de erradicar, que existe em toda ou quase toda
dogmática, pregação e trabalho pastoral; que existe nos pronunciamentos reli-
giosos das mais variadas espécies.
A verdade de que somos novas criaturas, para nós, está exclusivamente
em seu ponto de partida. [Entendo que o A. quer dizer que estamos sempre e
somente no estado inicial, no nascedouro da nova criatura, sem podermos pre-
tender ter qualquer vivência, qualquer experiência, qualquer conhecimento
pessoal dessa nova condição].
Este ponto de partida significa, para nós, o fim de tudo o que é perceptí-
vel, e de todo o entendimento. Somente no fim do homem “velho” pode ser
percebido o começo do homem “novo”; o sentido e a realidade da ressurreição
de Cristo somente podem ser entendidos junto à cruz.
Sempre, e acima de tudo, apenas podemos crer, e crer reiteradamente;
podemos mesmo, acreditar que cremos sem crermos realmente.
Não existe maneira de se fazer uma delimitação, uma determinação de
natureza material, histórico-psicológica, entre os que crêem e os que não crê-
em. Aparentemente, visivelmente, ambos estão com as mãos vazias.
237
5, 1-2 O Novo Homem
238
O Novo Homem 5, 1
239
5, 1-2 O Novo Homem
porém, é que pela fé, ele espera somente em Deus e esta é a razão, a base, de
sua paz com ele.
A meio caminho, entre o sentimento humano e a realidade divina, está o
sentido e o poder da “paz com Deus” que gozam os justificados pela fé.
Onde, pois?
Justamente aí onde a consciência do que Deus é, em Cristo, se torna em
linha crítica que determina a posição do homem, para a esquerda ou para a
direita: “Por nosso Senhor Jesus Cristo”.
É indiscutível que esta paz só pode ser fundamentada, e verdadeira, em
Deus. É obra de Deus, em nós realizada, completada, com a crucificação e
ressurreição de Cristo. Portanto, não é a conseqüência de uma experiência pas-
sada ou de um impulso humano. Se a fé [tiver em seu teor, ou] for também
experiência ou impulso humano, ela não será tida como justiça perante Deus, e
não poderá proporcionar o relacionamento objetivo entre nós e Deus.
Fé é o poder invisível que nos anula [para reconciliar-nos com Deus] —
para nos transformar em “Filhos de Deus”. Fé é o ponto de inflexão [de mudan-
ça de rumo] que nos leva da vida [deste mundo] para a morte, a fim de que
vivamos em Cristo.
V. 2 Por ele também temos entrada, pela fé, a esta graça, na qual estamos
firmes, e nos gloriamos na esperança da glória de Deus.
240
O Novo Homem 5, 2
241
5, 2 O Novo Homem
Vs. 3-5 Não somente isto — gloriamo-nos também nas aflições, porque sabemos
que: a aflição gera a perseverança, a perseverança traz a experiência e a
experiência produz a esperança; ora, a esperança não envergonha, pois o
amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que
nos foi outorgado.
242
O Novo Homem 5, 3
243
5, 3 O Novo Homem
244
O Novo Homem 5, 4
245
5, 4 O Novo Homem
246
O Novo Homem 5, 5
247
5, 5 O Novo Homem
É por isto que ele [o Espírito Santo] foi “outorgado” por Deus, como
antecipação a todas realidades humanas, porém para nós, [no mundo], apenas é
compreensível, perceptível, naquilo que não é material.
O Espírito Santo, fundamento eficaz da vida santificada, não nos foi
dado pela natureza; porém agora, por ele, temos o amor a Deus em nossos
corações”. (Hofmann).
Existe, pois, um “eu”, um “nós”, um coração humano, que Deus pode
amar. Dentro da contingência que Deus oferece ao homem, suprimindo-o para
o estabelecer, está a realidade dita da revelação de Deus por seus atributos invi-
síveis (1, 20) os quais o homem tanto gosta de obnubilar e que, efetivamente,
com tanta leviandade obscurece.
Dentro dessa contingência o homem pode encontrar, como Jó, no abso-
luto “Não” que vem ao encontro de sua existência, o “SIM” final de Deus.
Seguindo o gesto do quadro “O BATISTA”, de Gruenewald, que aponta para o
mais profundo terror da morte, pode o ser humano encontrar a promessa de
salvação plena, do gozo da mais alta espiritualidade, da vida eterna.
O amor a Deus é o impossível; é o amor da criatura ao seu Criador; [mas
é também] o amor do condenado a seu juiz; do vencido e mortificado, a seu
inimigo; da vítima a seu algoz.
Este amor se manifesta apenas porque no juiz, no inimigo, no algoz,
está Deus e, ainda mais impossível do que a existência desse amor a Deus, é
não o amar!
A âncora de nossa esperança se firma no fato absolutamente real de que
é impossível não amar a Deus, realidade que o homem não pode chamar a si, da
qual não pode apropriar-se, mas ela lhe é dada sempre de novo, derramada de
cima.
A âncora de nossa esperança está firmada nesse invisível, que é o nosso
amor a Deus (e que não existiria se ele não nos houvesse amado primeiro!) (5, 8).
Este amor a Deus é a constante duradoura em nossa perseverança; é o
que vale em nossa valia; é o elemento esperançoso de nossa esperança.
[A tradução inglesa, para a frase “o que vale em nossa valia” escreve “o
que é provado em nossa provação”... (“which is proved in our probation”).
Embora eu entenda que não foi isto que o A. disse, parece-me que a afirmação
é perfeitamente cabível].
É na força [deste amor a Deus], que a esperança não envergonha [não
confunde, não desampara ao que espera, nem o deixa descoberto]; é por ela que
nos gloriamos da esperança; e das tribulações.
“Como haveria de a esperança da glória de Deus ser acompanhada de
vergonha, depois [do amor de Deus] ser posto em nosso caminho?” (Hofmann).
248
O Novo Homem 5, 6
V. 6 Porque Cristo, quando ainda éramos fracos, morreu a seu tempo pelos
ímpios.
A paz da “nova criatura” com Deus (5, 1) está acima de qualquer enten-
dimento; e não só esta paz, mas também o seu amor ao que é inescrutável, a sua
esperança fundada nesse amor e a glória de que goza por ter essa esperança.
O homem “novo” vive pela fé, pois vive do Espírito Santo, que lhe foi
dado mediante a fé. Portanto, ele vive do Cristo que morre e cuja vida se revela
exclusivamente pela ressurreição — a fonte donde jorra a fé (5, 10); todavia,
essa vida foi de OBEDIÊNCIA PASSIVA, culminando com a morte na cruz.
A doutrina do MUNUS TRIPLEX [Cristo como Profeta, Sacerdote e Rei
— apud tradução inglesa] entolda e enfraquece a concepção centralizadora
neotestamentária. Não há qualquer outra coisa, segunda ou terceira, que possa
prevalecer ao lado deste único e exclusivo sentido da vida de Cristo, a saber: sua
morte na cruz. [Nenhum outro aspecto pode ser considerado independentemente,
ou posto em pé de igualdade ou em paralelismo com essa morte]: nem a persona-
lidade de Jesus ou a “Idéia de Cristo”; nem o “Sermão da Montanha” ou as curas
milagrosas; nem o amor fraternal, nem sua confiança em Deus, nem sua prega-
ção do arrependimento e sua mensagem do perdão; nem seu ataque ao formalismo
religioso de seu tempo, nem o apelo ao discipulado da pobreza [renúncia]; nem
os aspectos sociais ou pessoais, imediatos ou escatológicos, de seu evangelho.
Nenhum destes aspectos tem luz própria, pois todos brilham refletindo
a luz que vem de sua morte.
Não há uma só linha dos [evangelhos] sinópticos que pudesse ser enten-
dida sem a cruz.
O Reino de Deus é o reino que começa exatamente do outro lado da cruz.
Portanto, começa do outro lado de todas as possibilidades humanas, tais como “reli-
gião”, ou “vida”, conservantismo e radicalismo, física ou meta-fisica, alegria ou sofri-
mento do mundo, amor ou responsabilidade humana, atitude ativa ou passiva na vida.
[Além da cruz] é além de tudo “isso e aquilo”, de tudo [o que o homem
possa criar ou imaginar].
A carreira de Jesus foi uma revista, uma passagem ao longo de todas
essas possibilidades humanas, [como um comandante inspeciona as tropas per-
filadas]. Foi como uma saudação a todas coisas deste mundo, sujeitas a morte,
passando ao lado delas; foi um distanciamento de todas possíveis negações e
posições do mundo, de suas teses e antíteses, de toda agitação e de todo repou-
so humanos — exceto da morte!
A vida de Jesus brilha por força desse “não envolvimento”, desse afas-
tamento, e as coisas do mundo refletem esse brilho, revelando sua relatividade,
249
5, 6 O Novo Homem
— suas fraquezas e também as suas riquezas. É nessa luz refletida que os ho-
mens são reconhecíveis como criaturas de Deus e como os que aguardam sua
obra redentora.
São reconhecíveis como pequenos e grandes; como importantes e insig-
nificantes, perecíveis e imperecíveis. Reconhecíveis na unidade vindoura com
o seu respectivo contraste com o seu “Sim” e o seu “Não”, contraste este que
não é, se não, a unidade com o invisível tornado visível SUB SPECIE MORTIS
por Deus. (3, 30).
É deste “reconhecimento” [ou conhecimento] que vive o “novo” ho-
mem. Ele vive da vida que só nos pode ser perceptível como a morte de nossa
vida; mas vive na medida que esta vida invisível se torna visível para nós, na
morte de Cristo.
Cristo morreu “por nós”. “Por nós” quer dizer à medida que sua morte
for o “princípio de reconhecimento” de nossa morte; à medida que, na morte de
Cristo, o Deus invisível se torna visível para nós; à medida que a morte de
Cristo passa a ser o ponto de nossa filiação a Deus, [a nossa reconciliação]
(3, 25 e 5, 9).
“Por nós” se, como criaturas transviadas, [porém agora] amando o Cri-
ador, formos recambiados a ele pela morte da cruz; “por nós”, à medida que,
nessa morte, o paradoxo da justiça de Deus (a identidade entre sua ira santa e
sua graciosa misericórdia) se tornar verdadeiro para nós.
Permanece, pois, o fato que o “homem novo” é criado em oposição [e a
despeito] de todo e qualquer conteúdo humano, e da eventual superioridade ou
prioridade desse conteúdo.
Nunca foi, e jamais será, o teor da vida humana [que influirá na criação
do “homem novo”], pois, em sua essência, este é a negação crítica de tudo o
que é humano.
As mais sublimes experiências religiosas (ou outras que se lhes pare-
çam), que possamos ter em Jesus, mesmo em Jesus crucificado, pertencem ao
mundo das coisas pelas quais Jesus passou de largo no seu caminho para a
morte, e não podem ser confundidas com a realidade que fundamenta a criação
da nova criatura.
O que Cristo fez, fê-lo, de fora a fora, sem nós, como homens deste
mundo. Por isso os quadrantes da terra e as gerações afastadas (temporalmente
falando!) ausentes à cena da cruz, não se ressentem de qualquer restrição ou
discriminação à sua inclusão do coletivo “nós” pois essa participação não se
restringe a quaisquer determinados setores ou circunscrições históricas.
Aqueles que não conheceram a Cristo segundo a carne que não têm em
suas vidas qualquer experiência concreta, [semelhante à dos que estiveram ao
250
O Novo Homem 5, 6-8
Vs. 7 e 8 Dificilmente alguém morrerá por um justo, todavia, poderá ser que
pelo bom alguém se anime a morrer. Mas Deus prova o seu amor para
conosco pelo fato de haver Cristo morrido por nós, sendo nós ainda
pecadores.
251
5, 7 O Novo Homem
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O Novo Homem 5, 8-11
Com esta morte, “Deus comprova o seu amor para conosco”. Ela é a
mais radical supressão e, nesta supressão, é a síntese e o fundamento de todos
os valores da vida.
Na morte de Cristo o homem se confronta com o Deus “inteiramente
diferente” do ser humano. [Não exatamente o oposto, a antítese do homem, não
uma espécie de “antimatéria”, nem um “alter-ego” mas um ser diferente; não
comparável ao homem. “Anderheit” em alemão; “Othemess” em inglês].
Essa diferença não é relativa, mas absoluta; todavia, é também na morte
de Cristo que o ser humano encontra o elo que o une inseparavelmente a Deus,
e assegura a sua comunhão com ele. Essa morte é o desvendamento da possibi-
lidade final da ira divina e, por isso, a revelação da misericórdia de Deus. Ela
apresenta ao homem o problema “Deus” em seu sentido mais agudo e inevitá-
vel, e oferece também a solução. Eis aqui “Emanuel”, Deus conosco. E Deus
testemunhou “o seu amor para conosco, quando éramos ainda pecadores”.
Portanto, estávamos totalmente fora de nossa capacidade de receber;
ainda não tínhamos qualquer receptividade que nos permitisse participar do
amor de Deus, nem possibilidade de nos tornarmos amoráveis a ele: antes, é
lógico que não tivéssemos (como não tínhamos) condições de receber essa
participação; não tínhamos ouvidos para ouvir nem olhos para ver.
Deus porém, nos prova aquilo que não nos poderia ser provado. Ele se
dirige a nós dentro de uma condição, um contexto, uma característica, quiçá
numa ambiência, que não é nossa, da qual não fazemos parte: AMORE NON
PROVOCATUS SPONTE NOS PRIOR DILEXIT. (“Sem ser levado por nosso
amor, Deus nos amou primeiro” - Calvino).
Portanto, a glória de Deus (5, 2) pressuposta na morte de Cristo, não é
apenas um “objeto” novo, mas também um novo “sujeito”.
[Não é apenas mais um complemento, mas também um novo agente].
Este novo “sujeito” é o “homem novo” que pela fé (e somente pela fé),
se identifica comigo, o pecador!
Este “novo” homem sabe, com superabundante certeza, que é amado
por Deus, em Cristo.
Vs. 9 a 11 Logo, muito mais agora, sendo justificados pelo seu sangue, sere-
mos por ele salvos da ira. Porquanto, se como inimigos fomos reconcilia-
dos com Deus pela morte de seu Filho, muito mais, estando já reconcilia-
dos, seremos salvos pela sua vida; e não somente como tais, porém como
aqueles que se gloriam em Deus, por intermédio de nosso Senhor Jesus
Cristo, por quem, agora, alcançamos a reconciliação.
253
5, 9-11 O Novo Homem
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O Novo Homem 5, 9-11
Enquanto formos qualquer outra coisa que não “nós” [quer dizer, o ho-
mem velho e o homem novo], enquanto não crermos, enquanto a morte de
Cristo não lançar a sua luz sobre a nossa vida, estamos neste mundo e somos
participantes dele; não temos parte na paz com Deus, não fomos tocados pela
plena reconciliação e não participamos dela.
Tudo quanto nós mesmos vemos, sabemos e tocamos, pertence a este
mundo; não existe uma ponte “material-espiritual “ que interligue as velhas
possibilidades da vida com as novas. [Uma ponte pela qual possamos, por nos-
sos méritos, transpor a linha divisória entre o “aquém” e o “além”].
Enquanto formos “nós” apenas no conceito deste mundo [quando o “nós”
não se referir ao “eu” de “aquém” unificado, restabelecido, também no “eu” de
“além”], somos e permanecemos inimigos de Deus, inclinados pela nossa pró-
pria natureza a odiar a ele e ao nosso próximo e de maneira nenhuma somos
cidadãos e herdeiros do Reino dos Céus, porém pertencemos à casa dos que se
opõem a ele e o destróem.
Quando a criatura entra para a luz da morte de Jesus, surge a “nova
criatura” e, inevitavelmente, o “eu” do “homem velho” entra na penumbra.
É por isto que se justifica para a classificação do novo sujeito a
predicação: (Nós) somos novas criaturas! Porém, sempre dialeticamente,
indiretamente, fundados somente na fé: “Por seu sangue, somos justifica-
dos”; como “inimigos” somos “reconciliados com Deus pela morte de seu
Filho” e nem por um só instante pode essa pressuposição dialética emude-
cer-se, petrificar-se, em realidade material. Ela vale e subsiste pela fé, (e
somente pela fé, no temor do Senhor e à luz da ressurreição) somos, temos,
podemos e voltamos!
A redenção se aproxima “seremos salvos da ira” que agora e aqui ainda
pesa sobre nós, pois a vida que vem à luz pela morte de Cristo, é a salvação
daqueles que, por essa morte, são reconciliados com Deus.
Estar reconciliado significa poder esperar em Deus. Como não nos ha-
veríamos de gloriar desta esperança, por nosso Senhor Jesus Cristo?
“Ao louvarmos a Deus como o nosso Deus, abre-se-nos a fonte de todos
os bens imagináveis e desejáveis, pois Deus não é somente o maior dos bens,
porém o seu teor e a plenitude do ‘BEM’. Porém, ele só se torna nosso Deus,
por Cristo”. (Calvino).
“Quando o homem tem Deus novamente, ele tem a plenitude da vida e
da espiritualidade”.(Fr. Barth).
Ele tem?
Sim, ele tem, porque pela morte de Cristo, o presente do homem é o
futuro de Deus. SPES ERIT RES — “Esta esperança é possuir”. (Bengel).
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5, 12-21 O Mundo Novo
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O Mundo Novo 5, 12
indivíduo em questão está sujeito, dentro da situação geral, mas não representa
qualquer alteração na característica fundamental desta situação.
Pecado é poder no mundo que conhecemos, no mundo dos homens, e
não depende da forma pela qual se manifeste no indivíduo. Porém o pecado
tem poder no mundo porque ele representa um determinado relacionamento do
homem com Deus.
É em Deus que o pecado consegue sua existência como poder, e poder
mundial.
Pecado é um assalto a Deus. Este assalto se perpetra sempre na ousada
transposição da “linha da morte” que foi traçada ante nós (1, 18 e seguintes); na
ébria obliteração da distância que medeia entre Deus e nós, no olvido de sua
invisibilidade, no endeusamento do ser humano. Este assalto a Deus se dá quando
erigimos o Deus deste mundo, o “NÃO-DEUS” para nosso Deus, na romântica
suposição de que poderemos ter acesso direto a Deus, sem passar — como
ímpios e rebeldes que somos — pela porta estreita da morte.
Portanto, em seu sentido histórico, visível, é pecado desfazer, diminuir
ou atenuar o nosso relacionamento com Deus conforme é caracterizado, no
presente século, pela “morte”.
Todavia, [o reconhecimento de que é pecado ignorar o relacionamento
do homem com Deus caracterizado pela morte,1 pode remeter esse sentido
perceptível do pecado a outra forma, esta subjetiva, invisível, não “histórica”.
Considerando que nossa vida é delimitada pela morte que nos separa de
Deus, conquanto Deus mesmo não seja a morte mas a vida do dia vindouro, [e
se, conforme analisado mais acima, o pecado consiste em nossa aproximação
indevida a Deus,], então pode parecer-nos lógico que podemos (ou devamos)
inverter a conjuntura, afastando-nos mais de Deus.
[Esta segunda atitude pode não ser patenteada, exibida pela nossa práti-
ca religiosa, pelo nosso culto ou pelo nosso procedimento, todavia] o assalto a
Deus também se dá quando quebramos nossa unidade com ele; quando cria-
mos para nós uma “conveniente” autonomia, quando rompemos os laços espi-
rituais que unem o homem e o mundo a Deus: que unem as criaturas ao Criador.
É um assalto a Deus ignorar a origem do homem e do mundo e situar o
homem ao lado de Deus ou fora dele. Este assalto é a “sabedoria” da antiga serpente:
“Acaso foi assim que Deus disse?” E um assalto que vem desde a origem [do homem].
É o assalto no qual o ser humano se afasta, se separa de Deus como
fonte de sua vida, de uma forma sorrateira, “não filial”, não singela [sincera e
pura]; uma forma imprópria, improcedente. [E o pecado original].
É pois evidente que “pecado” não é somente aquela primeira manifesta-
ção visível que desde a primeira queda, abundantemente (5, 20) avança por
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5, 12 O Mundo Novo
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O Mundo Novo 5, 12
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5, 12 O Mundo Novo
seja fracionada e desdobrada em toda sua problemática; que o seu mundo se esfa-
cele na multiplicidade dos humanismos, da temporalidade e materialidade, mal e
apressadamente aglutinados, se tanto, sobre panos de fundo — pessimistas ou oti-
mistas. Tudo isto é agora inevitável para que, dependendo de como optar, possa o
homem antever um mundo não visível, um “segundo” mundo, a “nova” terra!
É inevitável que a vida humana seja cortada, perturbada e finalmente
aniquilada, pela dúvida, limitação, sofrimento e finalmente a morte, ao longo
da “linha crítica”.
Reina o pecado? Então vive a morte e não nós. (5, 21 e 7, 10)
Se é o pecado quem dá as ordens, é também ele quem paga: o salário do
pecado é a morte. (6, 23).
A existência que o pecado transformou em inanimada, dura, sem senti-
do, não tem um só ponto que não aponte claramente ao juízo [de Deus] — à
limitação do homem.
O final de todas as coisas ergue-se abruptamente, fechando o horizonte
da vida. Não há um ponto, sequer, da nossa existência que não aponte ao pínca-
ro “de onde Adão caiu”. (Lutero).
Não há nada “relativo” que em sua perdida (porém inextinguível) rela-
ção, não aponte ao “absoluto” que, na realidade, estabelece sua relatividade;
não há aparência de morte que, como tal, não testifique a nossa participação da
vida, em Deus, e que não dê testemunho de que o relacionamento de Deus
conosco não foi destruído pelo pecado.
É inevitável que da morte surja a pergunta sobre a vida e sobre Deus, e
é impossível que, pelo próprio amor à vida, não ponderemos sobre a morte.
Não pode passar desapercebido o dedo levantado que, desde a cruz de
Cristo, nos adverte de que o mundo do pecado só pode ser ultrapassado no
ponto onde ele foi alcançado.
Portanto, pelo pecado veio a morte; a morte como crise; como ruptura
de nossa vida; a morte como elemento de conhecimento da nossa miséria e da
nossa esperança.
A morte é ao mesmo tempo, o reverso do pecado invisível e da justiça
invisível.
[Esta foi a segunda advertência].
“Através de um só homem” — tudo isso?
Quem é este um? Adão?
Sim, Adão como agente daquele pecado invisível, e que, caindo, deu
entrada ao pecado no mundo.
Porém, trata-se deste Adão, não em seu carente, seu inexistente relacio-
namento histórico, porém em sua relação não histórica com Cristo.
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5, 12 O Mundo Novo
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O Mundo Novo 5, 12
crer, sem nenhuma exceção — (e por predestinação) seja salvo; todavia, o que
não crer, (pela mesma predestinação) já está condenado.
De outra forma, como seria Deus justo? Como seria ele o Deus de amor?
Como explicar o mandamento: “Ide e pregai”? Não seria a idéia (ou doutrina) da
predestinação, nos moldes restritos da Confissão de FÉ de Westminster, uma
limitação à obra redentora de Cristo, na cruze, em última análise, até a sua anula-
ção, pois por que haveria de Jesus Cristo morrer na cruz, se uma parte do mundo
já estava separada por Deus, para a vida eterna, e outra para a perdição eterna?
Onde ficaria a verdadeira imagem e semelhança do homem com Deus, tão
soberana e soberbamente definida ainda no jardim do Éden, quando ao homem foi
dada a oportunidade (esta sim:), de ser igual a Deus (sua imagem e semelhança “em
espírito”, é claro) com o livre direito à escolha?
É com esta opção, que Barth denomina “CRISE”, que o homem se defron-
ta ante a “porta larga” e a “porta estreita” dos dois caminhos da predestinação:
a perdição e a redenção. Mas não acontece MANU MILITARIS; não é por
decreto; é por opção. O decreto existe desde a eternidade e é um só; não há dois
decretos; nem há um anterior e outro posterior, um a suplementar o outro, coisa
tão comum entre certos legisladores apressados: (não prevêm tudo “de come-
ço” e precisam emitir depois, atos, instruções, portarias, regulamentações, de-
cretos e novas leis para justificar e possibilitar a aplicação das primeiras
Segundo este “único” decreto não há dois livros “previamente” prepara-
dos, contendo as listas dos que hão de se salvar e dos que estão condenados.
Não há um “livro da vida” e um “livro da morte”.
Todavia alguns nomes (poucos ou talvez muitos) poderão ser apagados
do “livro da vida” (Apoc. 3, 5) e, por isso, os seus nomes não constarão dele,
“no fim”. (Apoc. 21, 27).
A tradução inglesa do trecho que vai da referência (1, 18) até a referên-
cia (I Cor. 15, 45 e seguintes) é um pouco mais suscinta e pode ser útil para
lançar luz sobre o tema.
Ela escreve:
“Esta disposição ativa é explicada, todavia não é explicada — pela divina
predestinação dos homens à destruição e que segue a divina eleição em Cristo,
como a sombra segue a luz. A queda não é causada pela transgressão de Adão,
mas a transgressão foi, presumivelmente, sua primeira operação manifesta.
Neste contexto, a venerável doutrina reformada do “Supralapsarianismo”
se torna inteligível. Segundo ela, a predestinação para a rejeição antecede a
queda “histórica”.
Designar e definir a sombra em que estamos pelo nome de Adão, somente
é legítimo na medida em que ele fez primeiro o que todos nós fazemos. Por
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5, 12 O Mundo Novo
Vs. 13 e 14 Porque antes da lei já havia pecado no mundo; mas o pecado não
é levado em conta, quando não há lei. Entretanto a morte reinou desde
Adão até Moisés, mesmo sobre aqueles que não pecaram segundo o mode-
lo de Adão o qual, contudo, prefigura aquele que haveria de vir
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5, 13 O Mundo Novo
[Os olhos que vêem são os nossos próprios, porque têm perante eles a
lei, e sabem ver; sabemos distinguir entre o bem e o mal porque adquirimos
conhecimento; este é o significado da declaração: “Eis que o homem se tornou
como um de nós”; adquiriu conhecimento para discernir entre o que é bom e
mau, entre o bem e o mal que pratica (ainda que não o queira). A tragédia deste
conhecimento tem o seu ápice na linha crítica da morte, quando o nosso “co-
nhecimento”, longe de nos mostrar a luz que nos poderia guiar, derrama sobre
nós um rio de fogo de desespero, aflição, tormento. No dizer trágico de Lutero,
“o homem está perdido”. — A não ser que receba a justificação, pela fé...].
Porque o homem conhece o que seja pecado, este pesa sobre os seus
ombros. [É o peso da] culpa, a sobrecarga da responsabilidade.
Então o pecado acha uma alavanca, um capital operacional (7, 8 e 11), e
começa a agir. Ele entra com o Poder; passa a ser altamente notável, grande
evento histórico. E é justamente o homem que tem a lei, (o homem que “foi
despertado”), o homem que está fascinado por Deus e que nele espera, que está
voltado para Deus, o homem religioso, sim, é justamente tal homem que é o
pecador para quem o pecado é o mais visível. — (7, 7 e seguintes; 7, 14 e
seguintes).
O “mal de José” [quiçá presunção], irrompe agora entre as pessoas inte-
ressadas na religião e não na massa dos indiferentes; entre sacerdotes e seus
amigos e não entre falcatrueiros e réprobos; na Igreja; e não no cinema; nas
Faculdades de Teologia, e não no ateísmo dos estudantes de medicina; entre os
“ativistas” religioso-sociais e não entre os capitalistas e militaristas; aparece
em livros como este é não em literatura profana.
O povo de Israel é arruinado em sua lei, em sua eleição e vocação, num
desfalecimento e sofrimento que os moabitas e filisteus jamais padeceram.
Foi isto o que aconteceu a Adão, por quem o pecado entrou no mundo;
foi possível porque ele tinha uma lei: a advertência de não tocar na árvore do
bem e do mal. Ele se tornou pecador, sacrificando a sua relação especial com
Deus.
[Aqui vem à tona uma pergunta que pode parecer ímpia — (e o que é
que procede do homem, que não seja ímpio?) — Todavia, pode ser uma obje-
ção natural: por que foi a árvore da ciência do bem e do mal posta à disposição
do homem, dando-lhe a oportunidade de desobedecer?
A resposta é: para que o homem tivesse o privilégio de optar. Esta é a
qualidade que distingue o ser humano (criado à imagem e semelhança de Deus),
dos demais seres viventes da terra e o põe numa categoria apenas um pouco
menor que a dos anjos. (Sal. 8, 5 — Heb. 2, 7). O homem foi criado livre por
Deus; para exercer sua liberdade precisava (e precisa) ter entre o que optar.
270
O Mundo Novo 5, 13
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5, 13-14 O Mundo Novo
mesmas daquela outra parte que, adormecida, não a tem (ou não a teria). Uns e
outros têm as mesmas qualidades de criaturas; sofrem do mesmo cerceamento
e das mesmas limitações. Uns e outros se defrontam com os mesmos enigmas
do nascimento e da morte a qual impera sobre todos e, em sua severidade, faz
supor a existência de um pecado anterior, maior do que a nossa queda histórica,
visível.
Essa queda pré-existente, invisível, à qual a nossa conjuntura mortal
aponta, não pode ser identificada com os acontecimentos e as ocorrências que,
em nossa vida terrena, lamentamos e profligamos como pecado.
Também “os que dormem” vislumbram a existência desse pecado invi-
sível, primevo, para além da origem de seus sonhos: pecado que, inicialmente,
afastou a criatura do seu Criador — pressentimento este que bem se demonstra
na expressão hipocrática de suas faces.
[Face “hipocrática” é a face do ser humano perante a morte — Hipócrates,
Prognóstico II — Apud versão inglesa].
Todavia, também os que dormem são levados a sério por Deus; também
eles são responsabilizados e estão debaixo da ira de Deus, ainda que esta esteja
oculta. O fato de não estarem sujeitos à lei geral de Israel e, portanto, o fato de
não haverem pecado segundo o modelo histórico de Adão nem segundo a espé-
cie do erro de Israel, não lhes da paz, nem os isenta de culpa. Também eles se
defrontam com a crise da eleição e da rejeição, da justificação e da danação,
mesmo que, historicamente, sejam inculpáveis [como de fato o são].
[Justamente porque também aqueles que (aparentemente) sem lei, estão
sob o império da lei da morte, é que se confirma a pré-existência de um pecado
maior, gerador da desobediência dos nossos primeiros pais e de toda a raça que,
com lei ou sem lei, têem a inclinação terrena, natural, de voltar as costas a
Deus, para fazer-se igual a Deus].
A diferença entre “os que estão sem lei” e aqueles que “sob a lei devem
morrer”, é apenas relativa, pois “para Deus não há acepção de pessoas” e, por-
tanto, “todos os que pecaram sem lei, também sem lei perecerão; e todos os que
com lei pecaram, serão julgados mediante a lei”. (2, 11-12).
O pecado que entrou no mundo “por Adão” é PODER e é SUPER-
PODER que não pode, de forma alguma, ser identificado com o pecado histó-
rico de Adão, ou com os pecados mais ou menos semelhantes da multidão de
seus seguidores.
A soberania visível da morte aponta à soberania invisível do pecado,
mesmo onde o pecado não se tenha revelado em ocorrência visível.
Um rei não é eleito por seus súditos e eles não têem meios de decidir,
individualmente, se aceitam ou não a sua suserania; o rei sobe ao trono por
272
O Mundo Novo 5, 14
direito de herança e domina “pela graça de Deus” (ou com seu desfavor...) —
Somente a revolução, a derruba da “dinastia”, a reviravolta [o retomo, a inver-
são] da ordem dominante podem modificar a situação.
Ora, a entrada do pecado no mundo, em Adão, deve ser entendida como
obra de sua soberania. [Isto é, o pecado se valeu de seu Poder para entrar no
mundo].
Todavia, Adão “é a prefigura daquele que haveria de vir”; essa
prefiguração de Adão, é na qualidade de pecador, no pleno sentido do cometi-
mento deste pecado invisível, não histórico, [que antecedeu o pecado “históri-
co”, visível, conhecido, de estender a mão ao fruto da árvore da ciência do bem
e do mal, e provar dele].
A sombra em que Adão se acha é testemunha da luz que vem de Cristo
e nos mostra qual a significação e a natureza dessa luz.
A pragmática invisível deste mundo é igual à do mundo vindouro com o
“sinal” trocado. “O segredo de Adão é o segredo do Messias” (um dito rabínico).
É o segredo do homem inapelavelmente separado, afastado de Deus, que está
concomitantemente, ligado indissoluvelmente a Deus para que não se perca;
este segredo se oculta na dualidade de Adão e Cristo porém, se revela na sua
unidade. Ambos estão rigorosamente sobre a linha divisória entre o pecado e a
justificação, entre a vida e a morte. Adão aponta para traz e Cristo para frente.
Os dois estão inexorável e absolutamente separados pelo contraste do que neles
se confronta e inseparavelmente unidos na origem desse contraste: na
predestinação divina para a eleição ou para a rejeição.
O primeiro e o segundo “Adão” estão inseparavelmente unidos porque
o pecado e a morte do primeiro, e a justificação e a vida do segundo, abrangem
a totalidade da vida humana e da humanidade em todas dimensões;
inseparavelmente unidos, por que o “sim” de um, é o “não” do outro e o “não”
de um é o “sim” do outro. O primeiro é a “pré-figuração” (o tipo), é interroga-
ção e é profecia; o segundo é o modelo, a resposta e o cumprimento. Isto é tão
certo quanto é inevitável que sejam opostos os caminhos que partem de Cristo
e Adão; isto é tão certo quanto a justificação e a vida em Deus estão em oposi-
ção e são infinitamente superiores ao pecado e à morte (embora isto seja uma
maneira imprópria de dizê-lo [porquanto justificação e vida em Deus não são
comparáveis com o pecado e a morte] ); isto é tão certo, quanto é certo que a
aparente polaridade do contraste entre Adão e Cristo desaparece à luz do ins-
tante crítico (“quando uma morte devora a outra” — Lutero).
De Adão a Cristo é o caminho de Deus para os homens e entre os ho-
mens. Sobre este assunto há mais para dizer. [Antes que tiremos a conclusão da
analogia do final da exegese do versículo 12].
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5, 15-17 O Mundo Novo
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O Mundo Novo 5, 15
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5, 15-16 O Mundo Novo
é um mundo que não tem saída, senão na própria muralha que o cerca; que só
encontra conhecimento na ignorância, e esperança no desespero. É o mundo
que aguarda o Juízo Final com a supressão de todas as coisas e enquanto espera
sofre os horrores do seu presente estado.
A esta situação calamitosa se opõe o relacionamento do homem com
Deus, em Cristo.
Quer designemos este relacionamento como justificação [1, 14; 3,21 (e
3, 24 – 28) ] quer o identifiquemos como obediência (5, 19) ou misericórdia, é
sempre evidente que se trata da graça de Deus, manifestada por sua dádiva na
graça que houve [e que há] em Jesus Cristo, na ação invisível de Deus, promo-
vendo a positividade deste novo relacionamento; trata-se da obra divina, da
atividade de Deus para com o homem e para com o mundo. Deus não permane-
ce impassível ante a usurpação; Deus não abandona o homem; não o considera
perdido porque caiu; antes o reivindica para si; Deus é misericordioso e mara-
vilhoso: é ele o Deus que perdoa e que dá: é dele que vem “a graça que a muitos
cumulou de riquezas”. É Deus quem toma a iniciativa e estabelece o relaciona-
mento positivo entre Deus e cada homem, em Cristo, e traz para o “mundo de
Cristo”, o “SIM” divino.
Eis, agora, Deus como Criador e Redentor; como o doador da vida e de
toda dádiva perfeita.
Em Jesus Cristo torna-se visível a realidade invisível: que Deus não
deixa de dizer-nos “SIM”.
O mundo para o qual Deus se volta ativa e positivamente, é o mun-
do da vida. É o mundo onde a transitoriedade, as limitações, a pequenês,
perdem o seu sentido terreno, para mostrarem o relacionamento existente
entre a origem e o alvo; para mostrarem o sentido e a realidade da existên-
cia. É o mundo onde todas as interrogações já foram respondidas; é o
mundo onde o conteúdo eterno é perceptível nas coisas passageiras e o
homem vê o resplendor divino e, já agora, nas penúltimas obras, goza da
Paz de Deus.
É este o mundo que se desvenda, indescritível e pleno de esperanças,
ao “novo homem” postado sobre a soleira do umbral eterno; revela-se na
unidade da esperança final, na esperança da clareza e da paz que vêm de
Deus; e, sendo esperança, é, desde já, realidade espiritual. (5, 11).
É assim que se situa a balança dialética entre a queda e o perdão; e por
que força de lógica não haveria de estar acessível, e até muito próxima, a pos-
sibilidade de suprimir a aparente simetria deste contraste mediante um passo à
frente para, (“com mais certeza”), conhecer o seu verdadeiro sentido? E por
que não dar esse passo?
276
O Mundo Novo 5, 16-17
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5, 17-18 O Mundo Novo
De outra parte, porém, esta sentença de Deus que condena e elege, tem
outro significado.
Ela significa que aquilo que veio ao mundo pela dádiva de Deus, por meio
deste “um justo”, o segundo Adão, Cristo Jesus, não é nada menos do que a “PLE-
NITUDE DA GRAÇA”, a “dádiva da Justificação” que pode ser aceita, acolhida,
recebida por todos os homens, para que sejam eles próprios, reis, em vida.
Para que o homem passe a ser “nova” criatura é ele transportado para a
verdadeira vida, pela morte de Cristo. (6, 4-5). É a revolução contra a lei invisí-
vel do mundo que se evidencia pela morte.
Este lado do julgamento significa a reabilitação do homem; a sua liber-
tação fundamental da violência do pecado que o subjuga; significa a ordem da
justiça divina debaixo da qual Cristo nos coloca.
[Este segundo lado do julgamento divino] significa nada mais e nada
menos do que a herança do mundo prometida a Abraão e à sua descendência
segundo a fé (4, 13); significa que o homem já não precisa estar sujeito às
cadeias do cosmos porém, o próprio cosmos, liberto, estará a seus pés. Signifi-
ca que o homem, feito escravo de todas as coisas, pelo pecado, foi transforma-
do em senhor delas todas, pela morte de Cristo; significa que foi destruído o
aprisionamento causal, que fez da criatura mero elo de imensa cadeia; agora,
como indivíduo, pela graça em Cristo, (que veio para apagar1 a transgressão de
muitos) o homem está sob a lei da liberdade que, como sua nova e inalienável
característica, é idêntica à lei da vida que caracteriza o reino de Deus. (5, 18).
Significa ainda que, fundado em Deus, está o homem livre do pecado e, portan-
to, livre e acima da morte. Na sua imortalidade o homem encontra o livre obje-
tivo de sua vida; na liberdade deste objetivo, a liberdade de sua vontade, quer
seja vencedor ou vencido, pois tudo o que é passageiro, efêmero, perecível, é
apenas parábola do que é imperecível, eterno.
Como sua vontade liberta, o homem se reencontra e, dentro dele, encon-
tra a incomensurável e absoluta grandeza de sua realeza, o verdadeiro valor da
vida — a vida eterna.
O fato de que aqueles que recebem a superabundância da graça “reina-
rão” (2, 13; 3, 30 e 5, 20) lembra-nos imediatamente que a identificação do
homem “velho” com o “novo” ainda está por se efetivar, a qualquer instante,
neste mundo; que a sentença de libertação apenas nos foi anunciada, e portan-
to, não significa uma libertação histórica, atual. Isto é assim porque, também
sob este aspecto, o homem está apenas na soleira da entrada do Reino de Deus
que é o reino dos livres e dos libertos. Mas, ainda sob este aspecto, o homem aí
postado está pleno de esperança e, nesta esperança, ele não está, de todo, priva-
do do gozo antecipado daquilo que espera.
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O Mundo Novo 5, 18-19
Vs. 18 e 19 É neste sentido que se diz: assim como pela queda deste um, veio a
morte para todos, assim também, pela justificação deste outro, veio, para
todos, a vida, porquanto, assim como pela desobediência de um muitos
pecaram, também pela obediência de um, muitos serão justificados.
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5, 19 O Mundo Novo
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O Mundo Novo 5, 20-21
Vs. 20 e 21 Sobreveio a lei para que avultasse a ofensa; mas onde abundou o
pecado, superabundou a graça, a fim de que, como o pecado reinou, sobe-
rano, pela morte, assim também a graça reinasse, soberanamente, pela
justiça, para a vida eterna, mediante Jesus Cri sto, nosso Senhor:
281
5, 20 O Mundo Novo
quem sabe não teríamos até mesmo, calcado algumas evidências que acaso
surgissem?
[Vimos que o “novo” mundo se opõe vitoriosamente ao “velho”; que a
pragmática deste novo mundo está baseada na vontade soberana de Deus; vi-
mos que a lei, não é uma terceira grandeza mas é a pedra de toque pela qual
distinguimos a separação dos únicos dois caminhos que temos à nossa disposi-
ção, na vida; todavia, não é a lei que traz a religiosidade? Onde, pois, colocare-
mos o homem religioso no contexto do ingresso ao mundo “novo”?]
Não teria o nosso relacionamento com Deus, “em Adão” ou “em Cristo”,
o seu lado subjetivo, humano?
Ao lado das possibilidades invisíveis de sobrepujar o homem “velho”
pelo “novo”, conforme acabamos de ver, não existiria [quiçá também em Cris-
to, e justamente nele] uma outra possibilidade visível neste mundo, e que se
expressasse na forma de religião?
Entre Adão e Cristo, não existiria um “terceiro”, — [uma incursão no
terreno religioso] — Moisés, ou seu irmão Arão, (5, 13-14) — um profeta ou
um sacerdote, [ou ambos]?
Não há, para o crente, para o homem pleno de esperança e amor, para o
homem temente a Deus, um meio de, por sua fidelidade, postar-se também na
soleira do reino de Deus? Não poderia ser concedida semelhante graça ao ho-
mem alerta que aguarda, que corre, que ouve, que vê, que está ativo e pronto
para dar o passo ousado, para frente; que é fiel no pouco; que medita; que
trabalha “na causa”, que ora? Não poderia ser concedida à pessoa que é aben-
çoada por Deus neste mundo e que se entrega entusiasticamente a sua obra, o
privilégio de ficar na “soleira”, junto com os que estão às portas do reino de
Deus mediante a justificação pela fé? E, se não, para que serve a religião na
história do mundo? Na verdade, onde houver religião já não deveria estar trans-
posta a soleira da entrada ao “novo mundo”?
Já não deveria estar, [pela religião — a mais pura, a mais sublime, a
mais perfeita] claramente definida a posição das “conchas” da ofensa e da jus-
tificação, na balança dialética, sob o vigor de uma sadia humanização divina ou
divinização humana, que a religião proporcionasse?
Ao homem (tão santamente) religioso, não poderia ter sido dado, desde
já, pura e simplesmente, um pedacinho só, que fosse, do “novo” mundo?
Dizemos isto com muita seriedade!
É certo que o relacionamento com Deus tem também o seu lado humano,
subjetivo, histórico.
Jamais será por demais apreciado e reconhecido que existem homens
religiosos [piedosos]; que o caráter formado pela religião, o pensamento
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O Mundo Novo 5, 20
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5, 20 O Mundo Novo
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O Mundo Novo 5, 20
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5, 20-21 O Mundo Novo
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O Mundo Novo 5, 20-21
Cristo nascido em Atenas, não teríamos a garantia tão régia da soberania da gra-
ça” (Zahn), pois o pecado precisa abundar, para que a graça seja super-abundan-
te; para que, “como o pecado reinou, soberano, pela morte, assim também a gra-
ça reine, soberanamente, pela justiça, para a vida eterna”.
O “novo” mundo, sobre cuja soleira estamos como “novas” criaturas, é
o Reino de Deus; é o seu Domínio, e a esfera de seu poder. Aqui é somente
Deus quem elege, quer, cria e redime.
Foi para tornar bem evidente a legitimidade do movimento que, desde
Adão, vai para Cristo, que, associando e confrontando igual em igual, coloca-
mos a possibilidade religiosa como a derradeira e a maior delas, sobre este
denominador comum: “a soberania do pecado, pela morte”, para então con-
frontarmos o “todo igual” com o seu “totalmente diferente” e oposto na graça,
que “reina soberanamente, pela justiça, para a vida eterna, mediante Jesus Cristo,
nosso Senhor”.
Graça não é graça quando o agraciado não estiver justificado.
Justificação não é justificação, se ela não for imputada ao pecador.
Vida não é vida, se não for a vida que surge da morte.
Deus não seria Deus, se não significasse o fim do homem.
Vimos o velho mundo como um círculo fechado, contínuo, sem bre-
chas, por onde pudéssemos escapulir. E por isso que compreendemos à luz que
vem da ressurreição de Cristo entre os mortos, qual (a força) e o sentido do dia
que se aproxima: o dia da “nova” criatura e da “nova” terra.
[“Ora, vem, Senhor Jesus!.”]
Comentários: 5, 1-21
1. Pelo extenso tratamento que o A. dispensou ao tema, pareceu-me
mais conveniente deixar para o fim um comentário que me ocorreu
ao interpretar o pensamento de Barth sobre o “pecado original”.
Talvez pudéssemos sintetizar o seu pensamento sobre este assun-
to como segue:
A origem do pecado, a fonte de todo o mal, e que se paga com a
morte, não é, precisamente, a exteriorização da rebeldia do homem, mas
a sua primeira inclinação de voltar as costas a Deus.
Essa inclinação não é material e, por isso, não se transmite por
herança física, mas é espiritual e teve lugar “em Adão” em quem essa
inclinação está “a disposição” do ser humano, da mesma maneira que
a reconciliação com Deus está, permanentemente “a disposição” dos
homens.
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5, 1-21 O Mundo Novo
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Capítulo VI
A GRAÇA
“Que mais diremos?” Numa relação dialética rigorosa vemos juntos, Adão
e Cristo, mundo velho e mundo novo, a soberania da morte e a soberania da
graça; uma em oposição à outra, garantindo-se e se legitimando nessa polarização.
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6, 1 O Poder da Ressurreição
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O Poder da Ressurreição 6, 1
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6, 1-2 O Poder da Ressurreição
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O Poder da Ressurreição 6, 3
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6, 2-5 O Poder da Ressurreição
Vs. 3 a 5 Acaso não percebeis que se fomos batizados em Cristo Jesus, fomos
batizados em sua morte? Fomos, pois sepultados com ele pelo batismo da
morte para que, assim como Cristo foi ressuscitado entre os mortos, pela
glória do Pai, também nós andemos em novidade de vida. Porquanto, se
formos aparentados com ele na semelhança de sua morte, (a sabe, em
nossa morte), também o seremos na ressurreição.
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O Poder da Ressurreição 6, 3
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6, 3 O Poder da Ressurreição
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O Poder da Ressurreição 6, 3
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6, 3-4 O Poder da Ressurreição
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O Poder da Ressurreição 6, 4
última trombeta, qual um risco em diagonal que tudo cancela e invalida, atra-
vessa o “SIM” e o “NÃO” de nossa existência; risca a vida e a morte; anula o
“tudo” e o “nada”; elimina herança e deserdamento, proclamação e silêncio,
preservação e destruição. A anulação, esse risco em diagonal, atinge todas as
obras e todas as expectativas humanas [de forma absolutamente radical].
Este radicalismo é uma possibilidade impossível aos homens que, toda-
via, se confirma e é testemunhada pelo poder da ressurreição daquele que foi
despertado de entre os mortos pela glória do Pai.
A energia e a seriedade desta negação [de todas as negações do mundo]
vêm do sepultamento que Cristo preparou para os homens [deste mundo], cri-
ando o homem novo, invisível, [expressão da] plenitude da reconciliação (5,
10-11), mediante a supressão de nossa existência em Adão e a instalação da
nossa nova existência em Cristo.
[A tradução inglesa diz: “A energia e a seriedade da verdadeira negação
— de sermos sepultados — são demonstradas e ratificadas na ressurreição. A
verdade da redenção que Cristo realizou é proclamada pela criação do homem
novo (5, 10-11); pela nossa existência nele, a nossa existência em Adão é, ma-
nifestamente, suprimida].
A ressurreição, caracterizada pela conceituação [que aqui ficou
estabelecida] do que seja a morte [da qual ressuscitamos com Cristo], é absolu-
tamente diferente de tudo quanto existe entre a humanidade aquém da linha da
morte e é inteiramente independente, autônoma, de tudo quanto o presente
mundo tem ou oferece.
É o poder da ressurreição que provê o conteúdo divino que existe na
vida do homem renascido e que preenche a vacuidade que a morte de Cristo
suscita. [Esta vacuidade a que o A. se refere não é a aflição emocional que o
drama da cruz pode suscitar (e efetivamente suscita) nas pessoas de tempera-
mento emotivo e em certos tipos de misticismo mas é o sentimento de nulidade,
de insuficiência absoluta, que a criatura sente, e da qual se compenetra, no
momento crítico de seu encontro com Deus.
Não é precisamente o apelo patético do poeta: “Morri, morri, na Cruz por
ti, que fazes tu por mim?” que desperta o sentimento de carência, mas é a opção
— novamente e sempre a opção — que o homem tem de fazer entre o paradoxo
que a fé representa e que tanto escandaliza o mundo e, como única alternativa, a
rejeição da fé como preço do apaziguamento da crítica mundana. Esta é a problemá-
tica da existência e a crise que esvazia o conteúdo material da vida que vivemos
“em Adão” a cujos valores e interesses, como homens terrenos, nos apegamos
com tanto carinho. Contudo, o despojamento, a privação que a opção da Cruz
impõe ao homem velho não se transfere ao homem novo, antes é exatamente esta
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6, 4 O Poder da Ressurreição
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O Poder da Ressurreição 6, 4-5
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6, 5 O Poder da Ressurreição
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O Poder da Ressurreição 6, 5-7
Vs. 6 e 7 Sabemos isto: Nosso homem velho foi crucificado com Cristo para
que fosse suprimido o corpo do pecado, para que não precisássemos mais
servir o pecado. Porquanto, quem morreu foi declarado livre do pecado.
[Ou, segundo Almeida: “Sabendo isto, que foi crucificado com ele o
nosso velho homem, para que o corpo do pecado seja destruído e não sirvamos
o pecado como escravos; porquanto, quem morreu, justificado está do pecado”].
“Sabemos isto”. Se entendermos o sinal do batismo, entendemos a nós
mesmos e sabemos o que Deus sabe de nós. “Ele conhece a nossa estrutura, e
sabe que somos pó”. (Sal. 103, 14).
Vemos a nossa união com Cristo na semelhança da morte na cruz com a
nossa fraqueza, com nossa relatividade, e com a profundidade de nossa crise
(6, 3-5). Esta introspecção transforma-se em visão panorâmica.
Mediante o conhecimento de nossa união com Cristo temos o ponto de
partida para a “psicologia da graça”, que exclui toda análise direta (a análise
não dialética), e que representa o que não está contido no teor da psique huma-
na e comprova sua eficácia suprimindo a psicologia do pecado.
À medida que nos reconhecemos unidos com Cristo [que nos identifica-
mos com ele] vemos o que, [de outra formal, é invisível: vemos a misericórdia
de Deus; vemo-nos, a nós mesmos, como seus filhos; vemos a nossa fatalidade
ficando para traz, desaparecendo; vemos a anulação da “certeza de nossa anu-
lação” pelo pecado; vemos o poder superior do “homem novo”.
“O nosso ‘homem velho’ é o ‘Adão’ decaído, qual ele reaparece em todo
‘EGO’ humano, que vem ao mundo sob o domínio da potestade do ‘amor a si
mesmo’ que surgiu com o primeiro pecado” (Godet).
303
6, 6-7 O Poder da Ressurreição
304
O Poder da Ressurreição 6, 6
de [alguma coisa dinâmica] uma ave em pleno vôo: um movimento que não
aparece em determinada fotografia nem em qualquer delas [porém está em seu
conjunto]. [Assim, comparando-se as posições sucessivas, pode-se observar o
movimento que leva ao “X”].
Em primeiro lugar, fica fixado distintamente o homem do pecado sob a
inexorabilidade do “NÃO” que emerge do “SIM” divino. Em seguida, na se-
gunda pose, eu sou, inescapavelmente, obrigado a me identificar com esse ho-
mem do pecado; eu mesmo sou caracterizado, definido por aquele com quem
me defronto como ante um espelho, na morte de Cristo. Numa terceira posição
sou constrangido a subscrever, eu mesmo, a sentença da crucificação deste “ho-
mem velho”, “porque Cristo veio a nós e ressuscitou por nós, seres humanos,
tais quais somos e, por isso, porque ele ressuscitou, ficamos envelhecidos, an-
tiquados, obsoletos” (Schlatter). Então, em quarto lugar, cria-se “aquela” dis-
tância entre um “eu” novo e este “homem velho” e, com ela, surge a misteriosa
possibilidade de eu me colocar em oposição a mim, como se eu já não fosse
mais idêntico a mim mesmo, como se “eu” já não fosse mais o “antigo eu”.
Finalmente, em uma quinta posição, estabelece-se a minha identidade com um
homem invisível, novo, pré-estabelecido como sendo o objetivo, o alvo, o sen-
tido de todo esse acontecimento (e que, contudo, não é um “acontecimento”).
“Para que fosse suprimido o corpo do pecado”. Corpo quer dizer tam-
bém “vida”, “pecaminosidade”, “pessoa”, “indivíduo”, “escravo”.
O pecado tem corpo, isto é, ele tem existência concreta, esfera de influência,
base de ação, tem substrato. O pecado tem existencialidade, expansão,
autosuficiência, substância e atividade no mundo temporal das coisas e dos homens.
Como “corpo”, o pecado é constantemente visível, “histórico”, real. É
por isto que foi feita a pergunta se haveremos de continuar vivendo em pecado,
isto é, se podemos continuar a viver querendo essa materialização do pecado e
participando dela (6, 1).
Este “corpo do pecado” é o “meu corpo”, a minha existência temporal —
material e — humana com a qual estou inseparável, indissoluvelmente unificado.
Enquanto eu viver no corpo, portanto, enquanto eu for quem sou, sou
também pecador, e a minha permanência no pecado, (6, 1) a minha vida nele
(6, 2) é, basicamente, natural e necessária.
— [“Enquanto... enquanto”]: E justamente à eliminação desta condição
contemporizadora que se visa na crucificação do “homem velho”: visa-se à
supressão deste “corpo” com o seu inerente condicionamento temporal —
material e — humano. Contudo, é por isto, e nisto, que sou o “homem velho”
pois, enquanto vivo no corpo, estou indistinguível — e inextricavelmente unido
com ele.
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6, 6 O Poder da Ressurreição
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O Poder da Ressurreição 6, 7
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6, 7-11 O Poder da Ressurreição
Vs. 8 a 11 Se morremos com Cristo cremos que também viveremos com Ele.
Sabemos que Cristo , havendo ressuscitado entre os mortos, não morre
mais; a morte já não tem poder sobre ele, pois sua morte foi a morte para
o pecado, que ocorreu uma vez por todas. Sua vida, porém, é vida para
Deus. Assim, considerai-vos, a vós, também mortos para o pecado e vivos
para Deus, em Cristo Jesus.
“Se morremos com Cristo cremos que também viveremos com ele”.
Está na própria consistência da coisa que a prova da afirmação de que
nos é impossível permanecer no pecado (6, 1) ressalta do profundo significado
que o “morrer em Cristo” tem para o homem do pecado [para o homem velho];
a prova de que é impossível permanecer no pecado está na vigorosa negação
que a morte de Cristo significa e além da qual estamos como bem-aventurados,
[como contemplados pela graça de Deus].
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O Poder da Ressurreição 6, 8-11
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6, 8-9 O Poder da Ressurreição
mais ser desfeito e que, mais do que essa irreversibilidade, sequer permite que
o ser [assim reconciliado com Deus], volva os olhos para traz.
— Em que cremos, pois, se a nossa fé, à luz do momento crítico, à luz da
cruz de Cristo, não for apenas aparência, mas realidade; não for apenas vacui-
dade, porém fidelidade divina?
— Cremos que Cristo morreu em nosso lugar e, portanto, nós morre-
mos com ele. Cremos em nossa identidade com o “homem novo” que surge
além da morte na cruz; cremos em nossa existência eterna, baseados no
conhecimento que temos da morte, sabendo que nossa vida está fundamenta-
da em Deus, pela ressurreição. Cremos que “viveremos com Ele”! Cremos
também em nós mesmos, como sendo o “sujeito” invisível deste “FUTURUM
RESSURRECTIONIS”.
Esta fé, com todos os entraves que lhe são inerentes, com todas as reser-
vas e com todos os sinais de interrogação e exclamação que comporta, é a
“nossa”fé!
Esta nossa fé, inteiramente estranha à psicologia usual, é justamente o
que torna impossível admitir a existência do pecado junto com a graça. “Se
crês, tens”! se cremos estamos desvinculados do pecado.
“Sabemos que Cristo, havendo ressuscitado de entre os mortos, não morre
mais; “a morte já não tem poder sobre ele”.
Fé é a ousadia de sabermos o que [Deus sabe e, por isso, também a de
ignorarmos o que ele ignora. Deus sabe todas as coisas dos céus e da terra:
deste cosmos imenso do qual o nosso sistema solar é um átomo ou melhor nem
é sequer, um átomo do pó; Deus conhece as leis físicas e psicológicas; morais e
espirituais; tudo ele sabe e conhece, pois tudo e a todos Ele criou; é a obra
maravilhosa, perfeita, e do agrado do próprio Deus. Dela não conhecemos nem
um “dx de dx”; nem diferencial de diferencial; NADA conhecemos. O que quer
o A. dizer, pois? Entendo que, ele se refere ao conhecimento de nós mesmos:
atrevemo-nos, pela fé, a conhecer de nós o que Deus conhece; a nossa insufici-
ência perante Ele; a distância intransponível que nos separa de Deus; a nossa
situação não apenas lastimável mas totalmente perdida pela suserania do peca-
do em nossa vida e pela nossa sujeição irrecorrível à lei da morte. E isto o que
ousamos saber, juntamente com Deus e “ousamos” apenas pela fé; nunca dire-
tamente, pois de outra forma seria arrogância nossa, a manifestação da milenar
tendência da raça de se comparar com Deus, de se igualar a ele.
Todavia, mediante nossa reconciliação com Deus, em Jesus Cristo, Ele
nos perdoou cabalmente; transformou nossos pecados, vermelhos como o
escarlate, na alvura da mais branca lã; perdoou, transformou, esqueceu! (Heb.
10, 17). “De nenhum modo me lembrarei de seus pecados”. Ainda pela fé,
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O Poder da Ressurreição 6, 9
reconciliado com Deus, o homem “ousa” ignorar os seus pecados, como Deus,
SPONTE SUA, resolveu ignorá-los e de fato os ignora].
A ousadia consiste no fato de que, humanamente, essa possibilidade
nem sequer entra em cogitação; essa possibilidade apenas é admissível porque
ela constitui o substrato de todas as possibilidades humanas; porque é a possi-
bilidade que resta ao homem junto a Deus e em Deus, depois de todas as outras
possibilidades se haverem esgotado.
Crer significa parar, calar, adorar, ignorar. [Pela fé], a diferença qualita-
tiva entre Deus e os homens torna-se inconfundível.
Pela fé, a resposta, a refutação de Deus ao mundo temporal, ao mundo
material e dos homens, passa a ser um juízo necessário e inevitável e a morte a
única (sim, a única!) parábola [semelhança] do Reino dos Céus.
Este é o sentido visível da “vida de Jesus”: Jesus, o Médico e Salvador;
Jesus, o Profeta; Jesus, o Messias; Jesus, o Filho do Eterno Pai.
Tudo isto [a resposta e a refutação de Deus ao mundo, a parábola da
morte de Cristo na cruz, o sentido visível da “Vida de Jesus”, sim, tudo isto] se
percebe com crescente nitidez no desempenho de “Jesus, o Crucificado”.
É evidente que tudo isto não foi imaginado, nem pode ser interpretado,
como resultante de obras, recursos ou possibilidades humanas.
O sentido visível da fé cristã é o conhecimento e reconhecimento de que
a lei e a condição imposta a todo ser humano é a linha da morte que atravessa a
vida de Jesus; é o reconhecimento de que morremos com Cristo e, portanto,
somos ignorantes para com Deus; o reconhecimento de que, perante ele, pode-
mos apenas parar, calar e adorar.
Este sentido peculiar, visível, da vida de Jesus, que só pode ser definido
e descrito pela supressão de todas as possibilidades humanas, estabelece
declaradamente um ponto central invisível do qual irradia esta crise — [a da
supressão de todas as possibilidades humanas]: é um “impossível” — [uma
“pedra de toque”], pelo qual todas as possibilidades humanas são medidas e
aferidas. É este ponto que dá a diretriz a todas as análises, e as concentra.
A Jesus sofredor, passivo, se contrapõe, manifestamente, um Jesus
batalhador, dinâmico, ativo: o proclamador da destruição do Templo e do mun-
do dos homens; aquele que, voltando sobre as nuvens do céu, traz o reino de
seu Pai; o Crucificado, Ressurrecto.
O sentido visível da vida de Jesus não pode ser apreendido sem a mani-
festação e a contemplação da glória de Deus, que se consumou em Jesus, no
despertamento de Cristo de entre os mortos.
O juízo que Cristo toma sobre si, é justificação; a morte que ele padece,
é vida; o “NAO” que ele anuncia, é “SIM”; a reação para com Deus, que Cristo
desencadeia, é a redenção.
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6, 9 O Poder da Ressurreição
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O Poder da Ressurreição 6, 9
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6, 9 O Poder da Ressurreição
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6, 11 O Poder da Ressurreição
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O Poder da Ressurreição 6, 1-11
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6, 1-11 O Poder da Ressurreição
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O Poder da Obediência 6, 12-23
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6, 12-13 O Poder da Obediência
Vs. 12-14 Assim, não reine o pecado que habita em vosso corpo, de maneira
que obedeçais às suas paixões; não ofereçais os vossos membros quais
instrumentos para a iniqüidade do pecado porém, ponde-vos à disposição
de Deus, como ressurrectos de entre os mortos, e oferecei os vossos mem-
bros a Deus quais instrumentos da justiça! Porque o pecado não terá do-
mínio sobre vós, pois não estais debaixo da lei, e sim, da graça.
“Assim, não reine o pecado que habita em vosso corpo mortal, de ma-
neira que obedeçais às suas paixões”.
A graça é o poder da obediência; ela é teoria e prática, percepção (en-
tendimento) e ação. A graça é um “indicativo” que, por assim dizer, traz consi-
go um categórico imperativo: ela é uma convocação, uma exigência, um man-
damento, que tem a força de uma determinação decisiva, que não pode deixar
de ser obedecida.
A graça contém a vontade de Deus, não como uma coisa secundária,
suplementar, adicional, mas a contém intrinsecamente.
A graça é o conhecimento do que Deus quer; ela é idêntica ao “querer”
da vontade de Deus, porque ela é o Poder da Ressurreição. A graça é o reconhe-
cimento da verdade de que o homem é conhecido por Deus; é mediante a graça
que o ser humano toma conhecimento de sua existência em Deus, essa existên-
cia que Deus evidencia, que Deus dirige, e que repousa nele; a existência que
está além de todos os predicados humanos e de todo o conteúdo que a presente
vida possa ter; é a existência criada por Deus e que se revela à medida que a
criatura nela ingressa. Trata-se do “homem novo”, do ser criado e redimido por
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O Poder da Obediência 6, 12-14
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6, 12 O Poder da Obediência
eu ainda for o indivíduo comum, delimitado, cerceado por minha grotesca ca-
sualidade e peculiaridade; enquanto eu ainda estiver encerrado entre os aconte-
cimentos extremos do nascimento e da morte, enleado nas contingências mate-
riais deste cosmos enigmático, a ponto de me confundir com ele.
Este corpo, não pode ser um corpo “naturalmente puro”, isto é, sem
pecado; se assim fôra, então o que é mortal e corruptível ter-se-ia revestido da
vida e da incorruptibilidade. Porém, enquanto o corpo [deste século não for
sepultado para ressuscitar em corpo espiritual e] não estiver revestido da glória
celestial, ele se caracterizará como o corpo do pecado. Mas esta caracterização
não nos autoriza a permanecer no dualismo da graça e do pecado, numa
contraposição entre o “SIM” e o “NÃO” pois a caracterização do corpo como
mortal e pecaminoso ficou suspensa com a crucificação do “homem velho” (6,
6), ela foi posta em dúvida, foi atacada, foi “fechada”, “de modo que já não
somos mais obrigados a servir ao pecado”.
O “homem velho” constitui um EGO indissolúvel e indistinguível junto
ao corpo caracterizado como pecaminoso; porém o que vale para esse “homem
velho”, já não vale para mim, que recebi a graça; não vale para mim, que morri
com Cristo. Não posso pois, [como redimido], reconhecer o domínio do peca-
do que habita em meu corpo mortal, nem admitir a sua soberania no ambiente
onde este meu corpo exerce a sua atividade, portanto, também não posso acei-
tar que o pecado o caracterize.
O pecado também é ameaçado, posto em dúvida, basicamente destrona-
do, porque Cristo é a minha esperança, mediante a crucificação do homem
velho, pela qual o meu corpo passa a participar da imortalidade e da ausência
de pecado que caracteriza o “homem novo”.
Este meu corpo não constitui, para mim, um domínio indisputado do
pecado, nem mesmo a base de onde o pecado possa operar, porém e arena onde
o pecado precisa lutar.
O combatente que luta contra o pecado e contra sua soberania sobre mim
e sobre o meu corpo mortal, que luta contra o domínio do pecado na conjuntura
da vida e sobre a história; o batalhador que se bate contra o império do pecado
sobre todo o reino dos objetivos finitos, inclusive sobre os do meu mundo exteri-
or — (sim, justamente exterior, pois, existencialmente falando, o que há que seja
“exterior” que não seja, também, “interior”?) — este lutador, sou eu!
Sou eu, que não posso aceitar nem reconhecer o pecado e sua domina-
ção; sou eu que não o posso justificar, nem admitir: eu, como aquele que rece-
beu a graça; eu, a “nova criatura”.
Eu sou o revolucionário que põe este reinado em dúvida. Portanto,
não posso ser espectador; não posso ser neutro entre a graça e o pecado. Não
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O Poder da Obediência 6, 12
posso ver o pecado como uma possibilidade ao lado da graça, se não como
sendo uma possibilidade que a “impossível” possibilidade da graça torna “im-
possível” para mim.
É explicável que o pecado, sendo uma possibilidade humana, exista até
onde nossa observação possa alcançar; não seria explicável, porém, que eu
contasse com essa possibilidade como sendo minha.
É explicável que o pecado habite em meu corpo mortal, mas não seria
explicável que eu fizesse “um arranjo” com ele; que eu, com ele, estabelecesse
uma sorte de compromisso, um MODUS VIVENDI.
É explicável que as “paixões” do meu corpo mortal sejam realidade,
que sejam a característica impetuosa, a irrupção da pecaminosidade e mortali-
dade do meu corpo — Todas elas: minha fome e minha necessidade de dormir;
minha sexualidade e minha ânsia de auto-afirmação; meu temperamento e mi-
nhas originalidades; a voracidade do meu desejo de saber, a exibição de minha
arte, a agitação cega de minha força de vontade e por fim, e acima de tudo, por
certo, a minha “necessidade religiosa”, mais todas as “paixões” da “camarada-
gem” que envolvem todo o macro-cosmos e que se revelam pelo seu
arraigamento na temporalidade, na casualidade, na materialidade da minha exis-
tência cósmica; elas vêm à tona por sua incansável implicação na corruptibilidade
do meu corpo; elas se manifestam como a força vital da minha pecaminosidade.
A realidade da vivência dessas paixões, é por demais evidente. Todavia, não
seria explicável se eu, — aquele que recebeu a graça — atribuísse essas carac-
terísticas a mim mesmo; se eu ignorasse a relatividade dessa realidade e lhe
atribuísse uma transcendentalidade; [se eu atribuísse à realidade material de
minhas paixões (ou de uma delas) o valor de manifestação divina]; inexplicável
seria se eu considerasse [alguma ou algumas dei minhas paixões, meta-
fisicamente, de ordem hipostática e, assim procedendo, eu as respeitasse, as
consagrasse, as declarasse santas, as transfigurasse religiosamente [as subli-
masse]. Seria inexplicável que eu contrapusesse à minha vida, como “nova
criatura”, o meu presente corpo mortal como se este valesse alguma coisa que
não o NADA — “aquilo que não existe”.
Seria inexplicável se eu esquecesse que tudo quanto é finito, é apenas
analogia (uma parábola); se eu esquecesse do salutar estremecimento provoca-
do pelo abismo que, até o final de meus dias, separa aquele que sou daquele que
[ainda] não sou. Seria inexplicável se eu procurasse uma linha contínua, inteiriça,
que não houvesse sido quebrada pela negação básica, e a descobrisse [algures],
entre a naturalidade de Deus e a minha própria.
[Entendo que o A. nesta última proposição quer referir-se à impossibili-
dade de uma pessoa remida por Deus procurar um meio de receber a graça
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6, 12-13 O Poder da Obediência
divina diretamente, isto é, sem ser através da morte em Cristo, pois não há
outro modo de chegar a Deus; esta morte, portanto, quebra a linha natural da
ligação direta da criatura com o Criador e do Criador com a criatura, porque ela
anula toda a pretensão humana de ter, em si, qualidades suficientes para chegar
a Deus ou para recebê-lo. A criatura que houver recebido a graça divina sabe
que é assim e portanto lhe é impossível procurar essa ligação. Já não acontece
assim com o “homem velho”; a tendência natural da criatura não redimida é
procurar essa ligação com Deus através de suas qualidades ou possibilidades
— penitência, caridade, nirvana, transe, religião, racionalização — todavia,
será sempre em forma hipostática, atribuindo valor divino às coisas humanas,
ou em forma de humanização de Deus, conferindo-lhe qualidades finitas. Será
sempre uma das múltiplas expressões do pecado básico: “Sereis iguais a Deus.”].
Seria também inexplicável se eu, sem ter a graça, me esforçasse e me
preocupasse em ter conduta que se opusesse às paixões do meu corpo mortal.
Como beneficiários da graça, recebemos o “dom da justificação” (5,
17); [Na tradução de Almeida, o “dom da justiça].
Seria desabrida estultícia não utilizar essa força, no combate. [Não usar
esta arma de ataque, apud versão inglesa]. “Seremos reis, em vida” (5, 17);
seria uma loucura entregarmo-nos à escravidão da morte [quando podemos
reinar, em vida].
[Todavia], “note bem: os santos também têm más paixões na carne, pai-
xões que eles não obedecem”. (Lutero).
“Não ofereçais os vossos membros quais instrumentos para a iniqüida-
de do pecado, porém, ponde-vos à disposição de Deus, como ressurrectos de
entre os mortos”.
A oportunidade e a possibilidade da vida visível, neste mundo, é sempre
e reiteradamente [a submissão ao pecado], colocando os nossos membros à sua
disposição.
Os “membros” do ser humano são o seu organismo psico-físico e a sua
existência cósmica na totalidade de suas causas e seus efeitos e, como tais, são
utilizados como “armas da rebeldia”, — como instrumentos, naquele levante
pelo qual o homem retém, cativa, a verdade e se identifica com DEUS (1, 18).
Na suposta liberdade desta revolta de escravos [o rebelde, o ser humano] cai no
cativeiro do pecado ao qual é obrigado a entregar tudo o que é seu.
Esta possibilidade visível, porém, é anulada pelo poder invisível da obe-
diência da criatura que recebe a graça. [Portanto] existencialmente falando, tu
que recebeste a graça não estás sujeito à possibilidade de cair [ou recair] no
cativeiro do pecado; tu [já] não és cativo, não és prisioneiro. Teus membros não
foram destinados, nem têm aptidões para construir a torre de Babel! Não os
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O Poder da Obediência 6, 13
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6, 13-14 O Poder da Obediência
divina e pela realidade criativa do perdão, esse perdão que Deus nos concede
“não obstante” [o que somos] e pelo qual ele se revela a nós, aceita-nos e nos
toma para si, a fim de que o nosso corpo mortal, em toda sua dubiedade, sua
desvalia, glorifique a Deus, seja um vaso de honra e arma da retidão divina.
Como seria isto possível, senão tornando possível o que é impossível?
Quem, que não tenha vindo da morte para vida, poderia sequer perceber
essa exigência?
Pois é justamente disto que se trata: porque [ninguém pode humana-
mente compreender como este corpo mortal e sem valor pode ser transformado
em vaso de honra e que] a graça irrompe através da carapaça do misticismo e da
moral e o seu indicativo [a realidade da sua presença] impõe-se ao ser humano
como imperativo, como sendo a condição SINE QUA NON para que o impos-
sível se torne possível. (6, 19).
“O pecado não terá domínio sobre vós, pois não estais debaixo da lei, e
sim da graça”.
A graça é o poder da obediência porque ela é o poder que vem da ressur-
reição; é por força da graça que nós nos reconhecemos como o “sujeito” do
FUTURUM RESSURRECTIONIS. A graça é a força pela qual ousamos reco-
nhecer o nosso “ser” como sendo o “ser” do “homem novo”.
É pelo poder da graça que conseguimos inverter o curso de nossa exis-
tência, tirando-a da vida para a morte e dela para a nova vida.
Quem recebeu a graça está à disposição de Deus e os seus membros
estão prontos a cumprir a vontade divina.
A pessoa não deve ser considerada como religiosa, mas como quem rece-
beu a graça de Deus. Portanto, não pode ser considerada em termos da lei, (sob a
qual provavelmente está), nem pela experiência divina que acaso tenha “experi-
mentado”, de alguma forma, em seu entendimento (ou em sua convicção religio-
sa nem pelo seu comportamento que pode mostrar sinais do “invisível”, (impres-
sões deixadas, preservadas, testemunhando um encontro com a graça).
Não se pode, nem mesmo, considerar ou cogitar, se essa pessoa (que rece-
beu a graça) habita ou não às margens do canal por onde a água viva pode fluir.
O poder da obediência que sobrepuja o pecado, não está [em qualquer
das mais variadas possibilidades humanas], nem resulta de decisão, ou de incli-
nação, de comoção (por mais sublime que fosse); não resulta de entusiasmo,
nem mesmo de transformação.
É bem provável que a pessoa que recebeu a graça tenha tido alguma (ou
algumas) ou, ainda, um pouco de todas essas experiências. Ela terá uma reli-
gião e pertencerá, até mesmo, ao rol de alguma igreja; ela crerá “nisto” e “na-
quilo”; terá também vida de oração e comportamento ético-religioso, corres-
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O Poder da Obediência 6, 14
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6, 14 O Poder da Obediência
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Diz o A. que não é assim. Estar sob a graça divina não significa haver ultrapas-
sado a luta terrena e estar livre de aflições e também não significa que não nos
seja lícito esperar por consolo na hora do sofrimento: portanto, nem é otimismo
nem pessimismo. Estar sob a graça divina é gozar desta graça aqui, no mundo
terreno, onde a criatura não tem outra alternativa a não ser a de obedecer a
alguém: ao mundo ou a Deus. É nesta alternativa crítica que a criatura renascida
para Deus, em Cristo Jesus, encontra na graça divina o poder para obedecer a
Deus].
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6, 15-16 O Poder da Obediência
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O Poder da Obediência 6, 16
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6, 16 O Poder da Obediência
Ter a graça divina não significa, por assim dizer, “ser isto” ou “não ser
aquilo” (estar passivamente parado, ou agir ativamente), fazer isto ou deixar de
fazer aquilo. Ter a graça divina significa submeter à refutação de Deus, inteira-
mente, existencialmente, tudo o que somos ou não somos; tudo o que fazemos
ou deixamos de fazer. Ter a graça divina significa “prestar obediência” a essa
refutação, e nos “oferecermos” para seu “servo”.
Ter a graça divina dessa maneira, está além de todas nossas possibilidades
humanas e só acontece como a impossível possibilidade de Deus. É a liberdade
que Deus toma, em nós; ele toma essa liberdade, porém a toma em nós; somos
nós que recebemos a graça. O nosso “ego”, atacado pela graça, não pode esqui-
var-se deste ataque mas, também, não pode permanecer como espectador, quiçá
para ver como o ataque terminará; antes, ele precisa também atacar, à medida
que a criatura terrena morre, — (é crucificada — 6, 6) — para, ressurgindo,
descobrir a sua unidade com aquele que apresenta ao mundo a refutação divina.
[Quando recebemos a graça de Deus, abrem-se-nos os olhos, e passamos
a ver no pecado, o império, o reino, que não pode subsistir; passamos pois a
lutar contra esse reino (e contra nós mesmos) sabendo que, pela própria sobera-
nia do pecado neste mundo, teremos de morrer para pagar-lhe o tributo devido;
todavia, não morreremos em pecado, porém para o pecado, em Jesus Cristo, e
ressurgiremos dessa morte para contemplar o nosso Redentor, “face a face”,
“de graça salvos”, descobrindo a nossa união indissolúvel com Cristo Jesus].
O teor da refutação divina está no fato de que não somos nós [cidadãos
do mundo dos homens] que nos apresentamos como sendo a “nova criatura”,
mas é o indivíduo criado e redimido por Deus, que se apresenta como a realida-
de de nossa nova existência e nosso modo de ser e, mediante essa nova realida-
de, a presente existência [se desvanece, desaparece no passado], é mentirosa.
A nossa presente existência é atacada [pelo nosso “ALTER EGO”] em
Deus. É por isto que [o Apóstolo diz], “sois servos dele”, Sois seus servos,
existencialmente, e não podereis ser outra coisa; sois servos (escravos) e existis
para obedecer; sois servos de Deus, porquanto existis para obedecer ao “NÃO”
divino que se levanta contra o pecado e contra vós [naquilo que sois idênticos
ao homem da queda]. Já não tendes mais em vossa consciência, condições para
dizer “SIM” ao pecado [a menos que queirais servir ao pecado pois, de qual-
quer maneira], “sois servos”: ou sereis servos do pecado, para a morte ou, da
obediência, para a justificação.
Examinemos, agora, como tanto para o pecado quanto para a graça, se
trata de uma questão existencial em que todavia, uma exclui a outra e ambas
excluem a possibilidade de uma posição intermediária. [Tanto o pecado quanto
a graça são absolutamente dominadores e exclusivistas]. Verificaremos que o
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O Poder da Obediência 6, 16
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6, 16 O Poder da Obediência
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O Poder da Obediência 6, 16
Vs. 17-19 Mas graças a Deus porque, outrora escravos do pecado, viestes a
obedecer de coração à forma de doutrina a que fostes entre que e, unia vez
libertados do pecado, fostes feitos servos da justiça.
Falo como homem, com vistas à fraqueza da vossa carne! Pois, assim
como pusestes os vossos membros quais instrumentos à disposição da impu-
reza e da iniqüidade, para criar a iniqüidade, ponde agora os vossos mem-
bros quais instrumentos da justiça, à sua disposição para criar a santificação.
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6, 18-19 O Poder da Obediência
então, falamos “como homens”, por analogias; que aquilo que dizemos pela fé,
deve ser ouvido segundo a fé. Não pode deixar de estar presente, e bem vivo,
em nossa mente o fato de que a graça divina precisa ser proclamada e aceita
como graça, isto é, como o real fundamento invisível do homem, em Deus.
Esta advertência pode ser convenientemente apreciada pelo seguinte:
“Pois assim como oferecestes os vossos membros para instrumentos da impu-
reza e para o que é contrário à lei, fomentando o seu desrespeito, assim, agora,
oferecei os vossos membros para instrumentos da justiça, para criar a
santificação”.
Estais sob o império da graça!
Graça é a supressão do pecado que habita em vosso corpo; agora, os
membros do vosso corpo estão à disposição da graça e não do pecado. Agora é
a graça que determina o destino do homem mortal. É pela graça que Deus toma
partido a favor do homem, e não por causa do pecado.
Graça significa que Deus conta com a existência do ser humano em sua
totalidade, reivindicando-a para si.
Graça é o poder de Deus sobre o homem uno e indivisível; é a verdade
divina para o indivíduo em toda a extensão de seu ser e da sua existência, justa-
mente por ser, (e na medida que for), a sua crise radical.
A graça não pode aquietar-se, acalmar-se; não pode calar, nem transigir,
nem mesmo ante a parede cru que separa o invisível do visível, o infinito do
finito.
A graça não pode abandonar a presente vida visível, ao pecado, para
distanciar-se, para encastelar-se na vida do além, na vida da nova criatura,
justificada por Deus. Isto é exatamente o que a graça não faz, pois seria a ad-
missão do dualismo, da existência paralela e simultânea da graça e do pecado,
cuja supressão a graça não só assegura, mas efetiva.
A graça promove o desenvolvimento da vida material, o seu amadureci-
mento, e exige que ela se renda à retidão, a cujo serviço os seus membros
precisam permanecer, pois o conteúdo do “FUTURUM RESSURRECTIONIS”
da pessoa que recebeu a graça divina, consiste em que “aquilo que é mortal se
revista da imortalidade”.
A graça divina não seria graça se ela fosse simplesmente algo a ser con-
trastado com o conteúdo de nossa vida material, segundo a sua determinação
pelo pecado.
Não há promessa de um melhor porvir que possa conter o apelo ínti-
mo, o ataque, a crise a que está sujeita a nossa vida deste mundo, a vida de
“nossos membros”, a vida que vivemos temporalmente no reino da matéria e
dos homens, quando Deus nos manifesta a sua graça porque, então, a nossa
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O Poder da Obediência 6, 19
vida terrena é posta em dúvida pela vida melhor do além; então esta nossa
vida material torna-se questionável quer seja pela evidente ausência de Deus,
quer seja pela insistência divina, pressionando, batendo à nossa porta, inva-
dindo o nosso coração.
[Todavia, se as alusões e referências a um mundo melhor não conse-
guem anestesiar o mais íntimo de nosso ser ante a manifestação da graça divi-
na], também não o consegue nenhum extremado fatalismo. Já não viveremos
nesta “terrível” existência, nem mais nos entregaremos a ela, pois estaremos
em posição radicalmente oposta. Esta oposição é de tal natureza que, na pró-
pria mundaneidade de nossa vida material, vemos a promessa divina e, no
deserdamento [que pela nossa oposição, o mundo nos impõe], encontramos [e
confirmamos] a nossa esperança [em Deus].
A manifestação da graça divina é o testemunho de que o “além” [a cri-
atura na sua nova vida, depois de redimida por Deus] se reporta ao “aquém” [à
nossa vida terrena], e que este “aquém” se relaciona com o “além”, não nos
sendo possível reconhecer ou discernir qualquer separação entre um e outro.
A graça, a invisível verdade, não pode senão estender suas mãos para,
na sua possibilidade que nos parece impossível, amparar esta criatura que em
seu comportamento, na expressão de sua vontade e em seus empreendimentos,
foi e será caracterizada pelo pecado até o final de seus dias [sobre a terra].
A graça [por seus efeitos em nossa vida] quer ser realmente vista, ouvi-
da, sentida; ela quer revelar-se e quer ser observada, pois a própria ressurreição
de Cristo de entre os mortos, é a revelação e a manifestação da invisível graça
divina (historicamente na periferia do imaterial, e imaterialmente na cercadura
do que é histórico) (6, 9). Portanto eu, [reconciliado com Deus], como nova
criatura, não sou SOMENTE aquele que não sou mas, TAMBÉM aquele que
não sou. (5,1 e 5,9 a 11).
[O A. usa aqui uma redação essencialmente dialética valendo-se dos
recursos que a composição tipográfica alemã permite, para influir na ênfase e
na entonação da frase o que, em parte talvez tenha sido alcançado mediante o
emprego de caracteres maiúsculos.
Entendo que o A. quer dizer que a criatura, reconciliada com Deus é,
concomitantemente, a “nova” e também a “velha” criatura. Ela apenas é “aque-
le que ela não é”, na esperança e pela fé, mas não está isolada do mundo; ela
não é EXCLUSIVAMENTE “aquele” porém é TAMBÉM “aquele” porquanto
continua presa ao “corpo desta morte” embora tenha morrido para o pecado,
em Cristo Jesus].
Graça divina quer dizer: “Seja feita a tua vontade, na terra como nos
céus”! [Esta posição da criatura, desejando que a vontade de Deus seja feita na
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6, 19 O Poder da Obediência
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O Poder da Obediência 6, 19
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6, 19 O Poder da Obediência
de mais ao que o A. acaba de expor do que ao que se segue ao “ponto”, com que
ele separa os dois períodos no mesmo parágrafo.
Entendo que o A. quer referir-se à graça divina, ao “FUTURUM
RESSURRECTIONIS”, que não se mede em tempo assinalado materialmente
que é a vida abundante, plena, que Deus concede aos remidos, por Cristo Jesus,
tanto aqui neste mundo, como na vida de além. (“Eu vim para que tivésseis
vida, e a tivésseis abundantemente” (João 10, 10 — seg. parte) ). “PORÉM”
aqui gozamos dessa vida, pela graça, mediante a fé, como em espelho. “POR-
TANTO”, também pela graça mediante a fé, em nosso espírito, já não damos
mais lugar ao pecado em cujo reino o nosso corpo mortal ainda peregrina; e
porque o homem aqui peregrina, Deus, em sua fidelidade divina, lhe dá a graça
da justificação, sempre mediante a fé; (Abrão creu, e isso lhe foi imputado por
justiça”. (Tiago 2, 23).
A velha criatura — quando, pela fé, aceitou a Cristo como seu Salvador,
— foi crucificada e morreu com ele, e nele; “PORÉM” continua, ainda por
algum tempo “forasteira aqui, em terra estranha” ligada ao “corpo desta morte”
(7, 24), cativa das contingências do reino do pecado.
“PORTANTO” Deus, SPONTE SUA, concede à alma crente, contrita e
humilhada (Sal. 51, 17) a graça de ser reconduzida, ainda no presente século, à
gloriosa condição “pré-adâmica” de “Filho”, pela remissão em Jesus Cristo.
Daí, o “POREM” que pesa de maneira multiforme sobre toda criatura e
o “PORTANTO” que está à disposição de toda pessoa que “quiser vir” de volta
ao lar paterno, para receber o alívio divino. Este binário é conjugado e não
antípoda; todavia é invisível ao mundo, pois vem de Deus, e parece paradoxal
quando exposto em linguajar humano; por isso, ele só pode ser compreendido
e assimilado pela fé. Daí, segundo a minha interpretação, o desafio do Autor:
“Entenda quem puder”...]
Seria coisa maravilhosa se o linguajar humano tivesse, para este assun-
to, palavras que não fossem ambíguas, que não fossem [sujeitas às distorções]
humanas, que fossem claras!
Ora, este “imperativo” [“desejai”... e oferecei”...] (semelhantemente ao
“indicativo” de 6, 18) é, também, “segundo os homens” e não há dúvida de que
a limitação, o cerceamento, que o “POREM” subentende, não é definitivo, nem
absoluto, nem real; [é apenas maneira de expressar uma verdade divina em
linguagem humana — é uma analogia].
Este imperativo demanda do ser humano aquilo que [segundo a nossa
conceituação], não pode ser exigido dele. Ele exige que rejeitemos [e façamos]
tudo quando a nova “qualificação” da vida revoga e impõe. Esta conduta nova
precisa ser reconhecida imediatamente (em nossos membros!) no que a exigência
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O Poder da Obediência 6, 19-23
difere daquilo que ocorreu com Cristo e na páscoa, pois os fatos não foram
claramente inteligíveis, havendo ficado aberta a possibilidade de opção entre o
escândalo e a fé.
É a isto que se chama “falar segundo os homens”: exigir dos homens,
por meio da parábola do discurso direto, aquilo que somente é compreensível
como inerente ao “ser”, ao “ter” e ao “agir” de Deus.
Quando isto não for considerado, quando a condição “como homem”
deste imperativo, que tanto impulsiona como detém, for ignorada; quando, es-
quecendo essa condicionalidade, olvidamos que a força para obedecer esse
imperativo [vem do poder da ressurreição e] é o Poder de Deus, então estamos
no meio das prolepses do moralismo religioso, envolvidos nas mais selvagens
ilusões do romantismo; no meio das doces substituições e misturas da justiça
divina com toda sorte de retidão humana; confundimos a redenção em Cristo
com todas as formas de salvação que os homens inventam; e achamos que, de
qualquer forma, haveremos de gozar da vida eterna.
A ambigüidade que oprime todo discurso sobre a graça provém de nos-
so esquecimento de que “precisamos morrer” [para alcançá-la], (e quando, onde
ou por quem é esta lembrança levada, seriamente em consideração?).
Se tivermos de falar a respeito da graça divina, se formos constrangidos
a fazê-lo por algum motivo razoavelmente justificável, então precisamos, evi-
dentemente (sabendo o que fazemos!), falar “segundo os homens” deixando a
última palavra, a palavra decisiva, a palavra envolvente, à própria graça.
É à graça que cabe dar a palavra que diz respeito à santificação de nosso
corpo mortal para transformá-lo em instrumento da justiça, pois há sempre o
risco de que tal palavra, em nossos lábios, seja mera banalidade ou fantasia. É
esta palavra final que torna impossível o pecado; ela é o juízo de Deus para a
justificação; ela é o Poder de Deus para o perdão: é a palavra criativa de Deus!
Graça é a crise da morte para a vida. É por isto que a graça divina com
relação ao pecado é, simultaneamente, a exigência absoluta e o absoluto poder
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6, 20-21 O Poder da Obediência
da obediência; é também por isto que não pode existir tensão ou polarização
entre graça e pecado, nem pode haver equilíbrio, soluções intermediárias, com-
posições ou compensações entre este e aquela. É ainda por isto que, como
“beneficiários da graça”, não podemos considerar nem admitir que a graça e o
pecado possam coexistir, isto é, sejam possibilidades que possam situar-se lado
a lado, [ainda que por oposição]. É por esta razão que o Evangelho de Cristo é
o desassossego, o estremecimento [que o homem do pecado sente] ante o ata-
que [soberano] da graça que, por assim dizer, a tudo põe em dúvida.
Por isto, nada há mais destituído de sentido do que fazer-se do Evange-
lho de Cristo uma religião, pois isto o transforma numa possibilidade humana
ao lado de outras quaisquer; esta tentativa, ensaiada mais conscientemente pela
teologia protestante depois de Schleiermacher, é uma traição a Cristo.
A pessoa que recebeu a graça divina passa, necessariamente, a ter parti-
do. Ela se encontra envolvida na luta de vida e morte na qual não há paz, nem
trégua nem acordos.
[Fora desta posição definida] os homens parecem seguir o seu caminho
no crepúsculo de certa indiferença ou neutralidade, agindo e sofrendo, vivendo e
vividos, semeando e ceifando. Porém, que colheita é esta? Qual é o produto do
seu lidar? O que significam as experiências, os seus traços característicos, os
costumes, as palavras, os feitos e as obras nas quais eles reconhecem, apenas, a si
mesmos, como interlocutores? O que significam os movimentos, as conjunturas
e as leis de sua história, e para onde os levam o seu “progresso” e o seu “desen-
volvimento”? Qual é o seu alvo, o “fim” em vista, o ponto terminal, a meta, o seu
objetivo? O que se procura, realmente, no interminável preenchimento daquilo
que a humanidade aspira e, de certa forma, alcança? Sabe o homem o que isso
significa? [Os frutos do seu labutar] cresceram todos juntos; como tem o homem
condições de saber quais são bons e quais não o são? Eles são inerradicáveis;
vicejaram juntos, um ao lado do outro, e um por entre o outro, e se parecem como
o joio e o trigo. Estão juntos e se assemelham, tanto o que produz a impureza e a
maldade como o que produz a santificação (6, 19). Quem há de julgar, ou que
norma se aplicará para saber se isto ou aquilo que o homem produz e realiza
pelos “membros” do seu corpo mortal, pertence “para cá” ou “para lá”? Quem há
de decidir se é este ou se é aquele testemunho do espírito finito da criatura, que é
o certo? Quem diz qual a atitude, entre as muitas que a vida possibilita, que é boa
ou má? Se esta ou aquela constituição espiritual é iníqua, ou santa? Se um deter-
minado ato histórico pertence a este ou àquele lado?
Acaso não pode, também, acontecer que tudo que uma pessoa fizer,
disser, pensar ou produzir pertença, em sua totalidade, exclusivamente ao joio,
ou então, só ao trigo?
346
O Poder da Obediência 6, 20-21
Acaso existe alguma “iniqüidade” visível que não possa, nunca, [em
nenhuma hipótese] ser tida como sendo “santificação” ou, então, existe alguma
“santificação” perceptível que, de forma alguma, possa ser confundida com
iniqüidade?
É evidente que não possuímos o “Codex”, [não temos em nossas mãos a
“Pedra Roseta” — conforme registra a tradução inglesa] para decifrar inequi-
vocamente a escrita secreta do conteúdo da vida humana.
É claro que nada sabemos sobre a ceifa que Deus, o Senhor da seara,
recolherá aos seus celeiros, juntando aos seus frutos o produto da semeadura de
nossa vida.
Se não sabemos o que ceifamos, como haveremos de saber o que seme-
amos? E se não sabemos o que significa a nossa produção, como haveremos de
saber o que significa a nossa existência? Se não conhecemos a nossa meta, o
nosso fim, como haveremos de conhecer a nossa origem, o nosso começo?
É mais do que acaso, ou capricho, quando o ser humano encontra a sua
classificação no “SIM” ou em o “NÃO” [de Deus] e neles se reconhece como
ímpio ou como santificado, seguindo o seu caminho para achar o seu destino
final no céu ou no inferno? E será por acaso que os “bons ficam sempre melho-
res e os maus sempre piores”? (Harnack).
O que significa “bom” e “mau”?
Neste crepúsculo [de interrogações vagas e imprecisas] está, manifesta-
mente, o reino da tensão, da polaridade, da alogenia e dualidade; é aqui que o
“SIM” e o “NÃO” se opõem como sendo de igual necessidade e de igual valor;
[é nesta penumbra que o “Sim” e o Não”] se parecem igualmente divinos (toda-
via, não nos iludamos com a aparente “necessidade” dessa igualdade nem com
esta “identidade divina”!). É neste reino de interrogações [mescla de filosofia e
teologia], que a sabedoria [humana] atinge o seu ponto alto, oscilando suave-
mente, sem atrito, de um lado para outro, entre o “SIM” e o “NÃO”, descobrin-
do entre eles, o equilíbrio, a compreensão, o acomodamento.
Porém, a justiça de Deus, em Jesus Cristo, é a posse do conhecimento
que invade esse crepúsculo e aí mesmo incendeia a existência humana. É pela
revelação e pela contemplação (do Deus desconhecido) que o homem toma
ciência de que é conhecido por Deus e que foi criado por ele. Esta ciência vem
daquele SER que o homem não é; daquele SER com o qual o homem não tem
relação de continuidade, do qual o homem está separado [como por grande
abismo] sem caminho para o contornar ou ponte para o transpor. Esta ciência
vem daquele SER que só pode ser compreendido como a origem verdadeira,
genuína, da criatura humana e que se manifesta e se revela como NOSSO PAI.
Ele é quem torna possível aquilo que é impossível.
347
6, 20-21 O Poder da Obediência
348
O Poder da Obediência 6, 22-23
349
6, 23 O Poder da Obediência
ciência da separação existente [entre ela e Deus] e não percebe que o único e
inequívoco meio de sair do abismo [que a separa da vida] — é aceitar a “nova
ordem” [que a graça oferece].
Aqueles que assim vivem, iluminados por essa luz mortiça, buscam uma
moral, tentam fazer um rol dos que são pecadores e dos que são justos; farão
uma tábua do que é proibido e permitido, pois os objetivos da vida impõem
sempre a criação de uma ética, como sendo inexorável necessidade; e cada
tentativa [de produzir esse padrão moral] deveria ser a última, a final. No entan-
to, falham todas, uma após outra, pois é somente mediante o conhecimento de
Deus que se atinge a plenitude do valor ético. É então que se percebe nitida-
mente o que sejam “pecadores” e “justos”.
Porém, é pelo “Poder da Obediência” que percebemos a grande possibi-
lidade do impossível, e nos apropriamos dela.
350
O Poder da Obediência 6, 1-23
351
6, 1-23 O Poder da Obediência
“— Queres ir andando,
alegre para o céu,
Ignorando todo
escuro e denso véu?
— Abre o coração
e deixa Cristo entrar,
E o sol, em ti, raiar!”
352
Capítulo VII
LIBERDADE
Neste capítulo o Autor analisa a absoluta liberdade que Deus tem para
julgar e perdoar a criatura humana; para aplicar a ira divina e para dispensar a
sua graça. Esta independência é um atributo da soberania do Criador, que não
depende do homem nem se deixa influenciar por atitudes humanas, porém age
na criatura conforme lhe aprouver na sua infinita sabedoria, sua incomensurá-
vel misericórdia, sua absoluta justiça. Essa é, segundo o A., a LIBERDADE de
Deus para agir em nós.
Dentro dessa liberdade divina, independentemente de nossa condição
carnal, Deus nos revela a sua santa lei, a fim de que saibamos querer o bem.
Esse aprendizado da lei divina emana da graça de Deus e se exercita no
relacionamento entre a criatura e o Criador: aquela busca, pelos processos ao
alcance de sua materialidade, um meio de se achegar diretamente a Deus, quer
seja erigindo “Torres de Babel” quer sejam filosofias, religiões, obras pias,
renúncias; todas falham e ficam aquém de seu desideratum; todas são, na me-
lhor das hipóteses, obras perecíveis e efêmeras, quando não claramente
claudicantes, acintosas a Deus, pecaminosas, dignas da ira divina. Deus, porém
“apesar” da nossa pecaminosidade, usa de sua liberdade em nós, proporcionan-
do a religação da criatura com o Criador através de Jesus Cristo, o único medi-
ador entre Deus e os homens. Essa mediação se faz pela fé; a fé é gerada pela
fidelidade de Deus; a fidelidade de Deus se faz patente pelo conhecimento da
lei. O conhecimento da lei é o arcabouço da religião; por isso a religião é a mais
excelente atividade do homem; nela, a criatura se depara com a super-abundan-
te graça divina, porque nela toma ciência da abundância do pecado.
É por isto que os subtemas do capítulo versam, diretamente, sobre a
RELIGIÃO.
Em sua exegese, o A. divide o capítulo em três subtópicos:
• O Limite da Religião - Vs. 1 a 6
• O Sentido da Religião - Vs. 7 a 13
• A Realidade da Religião - Vs. 14 a 25
353
7, 1-25 O Limite da Religião
354
O Limite da Religião 7, 1-6
355
7, 1 O Limite da Religião
356
O Limite da Religião 7, 1
357
7, 1-4 O Limite da Religião
que, por sua vez, retrata com grande maestria, o próprio Torquemada, o feroz
“defensor da fé”.
Para melhor compreender o pensamento do A., ou para apreciar com
maior justeza o seu raciocínio, talvez seja interessante lembrar que Blumhardt
(Johannes Cristoph) tornou-se célebre na segunda metade do século XIX, pri-
meiramente por suas “expulsões de demônios” (ver nota de rodapé da trad.
inglesa, página 312); mais tarde celebrizou-se como teólogo (quiçá de tendên-
cia socialista) e a sua influência sobre Barth pode ser observada pela abundân-
cia de citações que, dele, o A. faz. (Parece-me que Barth o cita, aqui, como
protótipo do religioso objetivo). Finalmente diz o A. — aplicando o exemplo a
si mesmo — que procurando, em sua religiosidade, emular Blumhardt, ele cer-
tamente apenas conseguiria (ou conseguiu) ficar nas pegadas de Brand. Trata-
se do personagem de um poema de Ibsen, conforme bem o diz a tradução ingle-
sa. Esse poema trai um certo misticismo do mundo cristão, com vistas à im-
plantação de um cristianismo mais profundo, mediante a pregação da
genuinidade e inteireza de coração.
“Como haveria eu de me proteger (a mim!) contra a mui justificada
suspeita de que eu poderia ser muito mais “negativo” que “positivo”?
“Não percebeis” que justamente neste cerceamento das possibilidades
da religião, com o seu “sim” e o seu “não”, abre-se a porta para a preponderân-
cia ao “SIM” que não me diz respeito — que não se refere ao homem “enquan-
to ele viver” mas é dirigido ao “homem novo”, à “nova criatura” que veio, da
morte, para a vida?
Vs. 2-4 Ora, a mulher casada está ligada ao marido pela lei, enquanto ele
viver; mas, se ele morrer ficará desobrigada da lei conjugal. De sorte que
se ela se unir a outro homem enquanto o marido for vivo, será considerada
adúltera; porém morrendo o marido, estará livre dessa lei.
Assim também vós, meus irmãos, fostes arrancados, pela morte, da
vida em que domina a lei, a saber pela morte do corpo de Cristo, afim de
que fôsseis unidos a outro, isto é, àquele que ressurgiu dos mortos, para
que constituíssemos fruto para Deus.
358
O Limite da Religião 7, 2-4
A prescrição das coisas que são válidas nesta vida, depende da morte.
Assim, estando vivo, o marido caracteriza sua mulher como sua esposa
e a obriga para com ele; se na vigência dessa condição ela se unir a outro ho-
mem, será considerada infiel e adúltera. Porém, com a morte do marido fica a
esposa livre [da primitiva obrigação legal] e, se então ela se unir a outro ho-
mem, já não será tida por infiel ou adúltera. Portanto, na legítima ordenança da
lei moral do matrimônio [cada cônjuge] está preso à contingência da sobrevi-
vência da outra parte contraente. [Paulo baseia seus exemplos materiais na prá-
tica legal da época.
Dentro desta ordem estabelecida, as partes tem de sujeitar-se à condição
do trato conjugal sem outra opção; todavia, é a própria ordem existente que
libera a parte sobrevivente quando um dos cônjuges falecer, ficando o remanes-
cente livre para, inclusive, optar por outra ligação matrimonial.
A morte representa pois, no caso figurado, a criação de situação inteira-
mente nova, radicalmente diferente. Aliás, representa um retorno do sobrevi-
vente a seu estado anterior ao do contrato que o ligou ao cônjuge falecido.
Esta foi a analogia [a parábola].
Agora, vejamos a aplicação: “Assim, também vós fostes libertados da
lei, pela morte do corpo de Cristo”.
Sim, sois vós que recebestes a graça, que estais sujeitos ao jugo e à
libertação que a morte encerra. Sois vós a criatura que é sujeita a lei, enquanto
viver; porém, apenas “enquanto viver”.
Enquanto estiverdes enquadrados na ordem que “precisa” existir no re-
lacionamento entre Deus e os homens e tiverdes as possibilidades peculiares à
humanidade, inclusive a da religião, que é a mais importante de todas; enquan-
to estiverdes de baixo do pecado, e portanto sujeitos à lei, estareis cerceados,
acorrentados, aprisionados pela problemática da religião e estareis
inarredavelmente comprometidos com ela, (como a esposa está comprometida
com seu marido, enquanto ele não morrer).
Todavia, (assim como a mulher fica desobrigada de seus compromissos
e deveres com o marido, quando ele morrer), quando vós nessa ordem
estabelecida não fordes quais nela realmente sois, mas estiverdes debaixo da
graça e já não precisardes ficar sujeitos à lei, quando estiverdes fora dessa ordem
que “precisa” existir no relacionamento entre Deus e os homens, então estareis
livres das peias que vos cerceavam, libertos, abertos para receber e gozar da
unidade existencial eterna, para a essencialidade, a claridade e a plenitude da
possibilidade que vem de Deus, e que está além da problemática religiosa.
Acaso estais, a um só tempo, cercados e desimpedidos, atados e soltos, pri-
sioneiros e livres? Ou estais transformados, convertidos, postos em nova direção?
359
7, 4 O Limite da Religião
Sim. Tudo isto acontece pela graça de Cristo pois, assimilando a Cristo
sois assimilados pela sua morte — ceifados pela morte com o seu corpo material.
Todas as possibilidades humanas, inclusive religiosa, são rendidas e ofe-
recidas a Deus no alto do Gólgota.
Morre aquele que estava sujeito à lei (Gál. 4, 4), o Cristo que, com todo
o Israel reto e piedoso de seu tempo, se submeteu ao batismo do arrependimen-
to ministrado por João; ele, o Profeta, o Sábio, o Mestre, o Amigo da humani-
dade, o Messias Rei, morre, para que viva o Filho de Deus.
Com a morte do Cristo, segundo a lei, cumpriu-se a mais sublime, a
última possibilidade humana: a possibilidade de ser uma pessoa crente, piedo-
sa, espiritual, votada à oração. E o cumprimento desta possibilidade se dá me-
diante a sua total extinção porquanto, no Gólgota, também a pessoa religiosa
— a despeito de tudo que ela seja, quanto tenha, ou faça — ao próprio Deus, e
somente a Deus, tributa honra, louvor e glória.
Juntamente com o corpo humano de Cristo, também nós morremos para
a lei, e somos arrancados, pela morte, da vida onde a lei impera.
Vista desde a cruz, a religião, como realidade histórico-espiritual, na
forma desta ou daquela conduta humana, visível, é algo que deve ser removido.
(Col. 2, 14). [As ordenanças foram removidas, encravadas por Cristo, na cruz...].
A criatura humana não comparece perante Deus como criatura religio-
sa, nem em qualquer outra qualidade ou qualificação humana, porém mediante
aquela natureza divina com a qual também Cristo se apresentou ao Pai, quando
sua “percepção religiosa” o levou ao reconhecimento de que estava abandona-
do por Deus.
É na cruz, na morte de Cristo, que se patenteia a anulação da criatura —
(justamente da criatura religiosa) e, também da cruz, da morte de Cristo, rece-
bemos a certeza da reconciliação, do perdão, da justificação e da redenção.
Da morte, a vida! A morte quer dizer “esta” morte. Portanto, enquanto
vivermos, enquanto formos quais aqui somos (7, 1), sujeitos à lei, envolvidos
na problemática da religião e arrolados no seu jogo promissor e perigoso de
“sim” e “não”, na total ambigüidade da história e das experiências religiosas,
nada podemos fazer para sair dessa situação, como também não pode a mulher
casar-se com outro homem enquanto estiver vivo seu marido.
Porém, se estivermos mortos com Cristo, sepultados com ele, se, vistos
desde a cruz, já não pertencermos a este mundo mas “formos o que não so-
mos”, isto é, se houvermos, realmente, sido arrancados do jugo da lei, então já
não estamos presos às possibilidades [restritas] que a religião oferece, nem às
suas exigências; então já estamos livres de toda e qualquer imposição humana
e, assim como a esposa mediante a morte do marido se libertou dos laços que a
360
O Limite da Religião 7, 4-6
prendiam a ele, assim como a viúva ficou livre para se unir a outro marido,
também nós [pela morte com Cristo] obtivemos a liberdade para seguir o cami-
nho onde não há dualismo:
“Para pertencermos a outro, àquele que ressurgiu dos mortos, para que
frutifiquemos para Deus”.
Este “outro” é o que fica em contraste àquilo que representa o ponto
máximo das possibilidades humanas.
(O “outro” é o Cristo ressurrecto; é aquele que atingiu o máximo das
possibilidades humanas, aquele que cumpriu a lei], e que é representado no
“corpo vivo”, [humano], de Jesus, o qual preencheu e cumpriu os preceitos e
feitos humanos que a religião exige, colocando-nos, portanto, além deles, ti-
rando os grilhões que nos atavam, abrindo as cadeias que nos seguravam, des-
cerrando as algemas e nos libertando!
Por esta libertação, vemos, nele o “Poder da Obediência”, o “Poder da
Ressurreição”.
Nesta limpeza de fronteiras é necessário que primeiramente fique claro
para nós o que é a liberdade de Deus na qual se fundamenta a dádiva da graça,
considerando o fato de que a graça está para a religião assim como a vida está
para a morte.
Não será como pessoas religiosas que haveremos de conseguir [cumprir
ou] obedecer a estranha ordem de, na qualidade de “libertos do pecado”, e
como “servos de Deus” santificarmos os nossos frutos por meio dos nossos
pensamentos, nosso querer e nossas obras (6, 22); esses frutos, que Deus jun-
tará em seus celeiros, somente poderão ser produzidos por aqueles que rece-
beram a graça divina da paz que está acima de todo entendimento; são frutos
supernos que só aqueles que vieram da morte para a vida, podem produzir.
Eis que Paulo ousa dirigir-se aos que, como ele próprio, “conhecem a
lei” (7, 1) — (e a conhecem muito bem) tratando-os por “meus irmãos” e escre-
vendo-lhes como a pessoas que também conhecem a invisível fundamentação
em Deus que há na passagem de Cristo da crucificação para a ressurreição, e
que está além do limite das possibilidades conhecidas da religião.
361
7, 5 O Limite da Religião
362
O Limite da Religião 7, 5-6
363
7, 5-6 O Limite da Religião
364
O Limite da Religião 7, 6
365
7, 6 O Limite da Religião
Todavia, falar deste modo é falar muito além do [modo e tom] que convém aos
lábios e ouvidos humanos; falamos movidos pela verdade que nos atinge, qual
flecha desferida da outra margem do rio que nós [como criaturas deste mundo]
não haveremos de pisar. É a verdade que vem do outro lado da divisa que não
podemos transpor; todavia, de lá ela nos fala e ai de nós se nos calarmos e não
proclamarmos o que precisa ser dito, se não falarmos daquilo cuja invisibilidade,
apenas, pressentimos!
Contudo, o dizemos! Dizê-mo-lo como prisioneiros, todavia livres; como
cegos, porém vendo; como os que morrem, e eis que vivemos. Ora, não somos
nós que o dizemos: CRISTO é o cumprimento e o fim da lei; é o limite extremo
da religião.
“Mortos para aquilo que nos mantinha presos”.
O limite da religião, a sua fronteira extrema., é a linha da morte; ela
separa o campo das possibilidades humanas daquilo que [só] é possível a Deus;
é nessa linha que se faz a distinção entre a carne e o espírito; entre temporalidade
e a eternidade.
Somente saímos do âmbito da lei na medida em que somos golpeados
pela espada aguda e pesada da morte, isto é, na medida em que o poder e o
significado da cruz, como sinal da justiça e da graça de Deus, projetarem sua
sombra sobre nós.
O que nos mantinha presos ao jugo da lei era o desejo de esquecer que
temos de morrer, era o anseio de nos esquivarmos do “MEMENTO MORI”! (E
isto tentávamos na mais profunda e mais ativa religiosidade) considerando que
nosso desejo fosse límpido, íntegro, retilíneo, quando na realidade, e por isso
mesmo, era turvo, roto, tortuoso.
É no âmbito desse anseio que viceja a religião, na qualidade de última
possibilidade humana. Quem está livre dela?
Acaso não é evidente que a característica mais própria da realidade his-
tórico-espiritual [do mundo], a mais profunda, a última, é sempre este desejo
atrevido, indestrutível e vulgar, de não morrer, que encontramos por toda parte,
também no homem religioso, e principalmente nele?
Ainda bem que a religião tem de morrer. É em Deus que nos libertamos
dela.
[A tradução inglesa diz: “Os homens agarram-se à religião com tenaci-
dade burguesa, supondo ser ela a última palavra da alma e do sentimento,
indestrutível e imortal”.]
Ainda bem que por toda parte, e acima de tudo, vemos a religião cerceada
— radicalmente cerceada — e posta em dúvida. Vemos a sombra da morte
pairando sempre sobre este anseio indestrutível [de fugir dela] quer o admitamos
366
O Limite da Religião 7, 6
367
7, 6 O Limite da Religião
“De modo que somos, agora, servos segundo o novo sentido do Espírito
e não no antigo sentido da letra”.
Santificai-vos! Sede servos de Deus! É assim que ordena o imperativo
da graça (6, 22).
No “antigo sentido da letra”, esta ordem significaria uma nova modali-
dade religiosa, talvez mais perfeita, mais apurada; porém, segundo “o novo
sentido do espírito”, ela significa o que estávamos tentando demonstrar: a pos-
sibilidade que começa exatamente do outro lado da linha limite de todas as
possibilidades religiosas do mundo, novas e velhas — lá onde terminam as
possibilidades humanas e começa a possibilidade de Deus.
Procuramos entender a limitação da religião; é ela uma grandeza nega-
tiva? Sim! — todavia ela tem também o seu lado positivo: o próprio Espírito
intercede por nós sobremaneira, com gemidos inexprimíveis. (8, 26).
Comentários: 7, 1-6
368
O Limite da Religião 7, 1-6
porém é o Deus que criou o céu e a terra, o Deus em quem nos move-
mos, existimos e vivemos: (Atos 17. 23-28).
Quais são os nossos próprios critérios a respeito desses pontos? Aca-
so apressamo-nos e nos esforçamos em cumprir os “preceitos” da nossa
fé, no espírito da letra “do ensinamento bíblico”, para cumprir o nosso
dever, sem considerar que a força da obediência procede da graça divi-
na? Acaso falamos da ressurreição e nos apegamos a ela, como a algo
distante (que ocorreu há 2.000 anos) sem considerar seriamente que pre-
cisamos de morrer com Cristo para ressuscitarmos com ele? (Necessário
nos é nascer de novo...) Acaso estamos insistindo em nos apresentar dire-
tamente a Deus, esquecendo que só por intermédio de Cristo é que pode-
mos achegar-nos a ele? Finalmente, não são, acaso, estas as modalidades
dominantes da religião que o mundo pratica? E nós?
O interesse imediato, o egoísmo e o egocentrismo religioso levam
o crente a “forçar a mão”; a se aproximar do trono da graça e a arrebatá-
lo para si; a se apropriar com violência do reino dos céus; todavia,
não com violência sobre seus apetites sobre a cobiça de toda espécie,
sempre presente, mas com violência perante Deus. (“Dá-me a parte
que me pertence”.). É assim que a criatura religiosa estende as suas
mãos para tomar o que não lhe pertence e tocar no que não lhe com-
pete; quer chegar a Deus e se esquece do Mediador; em sua conduta
ignora o sacrifício de Cristo, embora o louve com os lábios. Ainda
que tal religião se diga cristã, nela se ignora a Cristo e se olvida a
ressurreição; nessa religião não há obediência, porque a obediência
vem do Poder da Ressurreição e nela não há Deus porque o Deus que
o homem adora para alcançar a graça, para conquistar o Reino dos
Céus, para fazer jus à atenção divina (nem falaremos sequer do Deus
que buscamos para nossas vitórias no mundo), esse Deus, não é o
“Deus Desconhecido” de que Paulo falou aos atenienses...
2. Seria perigosa a atividade religiosa? Sim, humanamente falando; por-
que sendo a religião a mais alta possibilidade do homem, neste mun-
do, é também nela e por ela, que o ser humano corre o risco de se
exceder até o máximo do pecado. Todavia, onde pecado pode ser ex-
tremamente abundante, a graça é, efetivamente superabundante.
A religião é também perigosa, porque é nela que aprendemos que
o salário do pecado é a morte; é perigosa, segundo o mundo, porque
ela desestabiliza a criatura; leva-a à porta dos mais altos céus, en-
quanto lhe mostra que os pés continuam presos nos atoleiros do mun-
do; é perigosa porque evidencia que o homem nada pode fazer em
369
7, 7 A Significação (o sentido) da Religião
seu próprio benefício; que nada valem suas lutas, seus ais, seus sacri-
fícios, suas obras, suas renúncias, se não renunciar a si mesmo; a
religião é, humanamente, perigosa, porque questiona o ser e o ter da
criatura humana e põe a nu a infelicidade de quem pratica o mal que
não quer, e não consegue fazer o bem que deseja: é por tudo isto que
tantos são os pensadores ilustres e ignaros plebeus que dela fogem e
a combatem. Todavia, é também na religião que a criatura aprende
que há um Remidor, um Salvador, um Mediador. Esta é a sublime
realidade da religião que se supera a si mesma quando o ser humano,
por ela, vê a fidelidade de Deus e aceita a Cristo pela fé.
V. 7 (primeira parte) O que queremos, pois, dizer? Que a própria lei seja o
pecado? — Impossível!
370
A Significação (o sentido) da Religião 7, 7
conquista dessa graça; é um esforço sublime, porém apenas válido como rotei-
ro, caminho, marco, seta indicadora do rumo que a criatura precisa seguir para
se entregar incondicionalmente a Jesus Cristo; a religião só terá valor humano
(talvez reconhecido por Deus, ou talvez não), na medida que contiver os atribu-
tos de testemunho acima referidos, sem nada mais pretender [perante os ho-
mens e perante Deus].
Para a transposição do “abismo” que existe entre o “aquém” e o “além”
não há um caminho gradativo, uma escada que pudesse ser galgada de degrau
em degrau, ou ainda, uma rampa que pudéssemos seguir com passo seguro,
avançando paulatinamente.
O abismo se abre abruptamente e para nós é o intransponível início de
um além totalmente diferente, pois mesmo se as mais famosas experiências da
graça coroassem sucessivas e constantes atividades religiosas, seriam [ou são]
parte deste mundo, estão do lado de cá do abismo, [e em nada se assemelham
com o que está além]. [Quando vier o que é perfeito, o que é em parte, desapa-
recerá].
A graça, na qualidade de primeira possibilidade divina — isto é (“a
servidão segundo o novo sentido do espírito”) — veio ao encontro da lei, que é
a última possibilidade humana — (“a servidão segundo o antigo sentido da
letra”)— (7, 6) com um categórico “NÃO”! — em toda sua extensão. [A graça
é o encerramento da lei].
O que significa para nós a enorme distância que separa a graça da Reli-
gião? O que significa o fato de corrermos, neste mundo, em paralelo [junto] com
a religião embora nela seja absolutamente intransponível o hiato que nos separa
da graça? Por que, [em nossa vida terrena], estamos tão próximos da religião e
tão longe da graça? Por que temos tanta afinidade com a religião e estamos em
estado de inimizade permanente com Deus [a própria fonte da graça]?
Como haveremos de interpretar e compreender o relacionamento do
homem com Deus pela religião que acompanha o ser humano durante toda sua
vida (7, 1) quando ela está separada, dissociada do relacionamento da criatura
com seu Criador por meio desta negativa radical [com que a graça vem ao
encontro da lei]?
“É a lei pecado”? A confirmação (a resposta afirmativa) desta pergunta
parece querer impor-se à força e nós mesmos [neste trabalho], por diversas
vezes quase a adotamos, quando reiteradamente procuramos deslindar o senti-
do das duas possibilidades extremas e opostas que a lei representa para o ser
humano.
Por que não dizer [desde logo] o que está evidente, embora seja um
tanto surpreendente [e até chocante]? Dizer que exatamente a religião — a
371
7, 7 A Significação (o sentido) da Religião
372
A Significação (o sentido) da Religião 7, 7
este trecho, desde a referência a Marcion, até ao “idealismo vazio”, como sen-
do um trecho intraduzível que, no entanto, colocam aproximadamente assim:
373
7, 7 A Significação (o sentido) da Religião
V. 7 (Segunda parte) Eu não teria experiência do pecado se não fora pela lei;
pois eu nada saberia da cobiça se a lei não dissesse. Não cobiçarás!
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chegou muito mais longe na sua atividade religiosa do que o mundo gentílico,
do que o mundo indiferente à religião]; [havendo avançado tanto], a sua im-
pressionante queda vertical, em toda sua nitidez, pode servir-nos como adver-
tência contra a aproximação indevida a um alcantil ainda mais íngreme e mais
agudo, que separa de Deus tudo o que é humano, todo conteúdo e todas as
realidades do mundo. (3, 1-20).
Se acaso me é lícito exercer a cobiça na singeleza da minha naturali-
dade como criatura enquanto eu nada conhecer senão esta minha cobiçosa
natureza, já não posso mais valer-me desta ignorância para minha própria
justificação quando me desdobro para conhecer algo mais do que aquilo que
me toca naturalmente. Quando eu houver avançado decididamente até o limi-
te extremo, onde minha existência terrena é argüida e posta em dúvida pela
possibilidade divina, então já estou quebrantado; já não mais me sinto justifi-
cado, não sou inocente! Agora a religião, esta “cobiça” que, de certa forma,
sobrepuja todos os desejos, descerra os lábios para proclamar: Não deveis
cobiçar coisa alguma!
A eternidade de Deus, quando atribuída às coisas passageiras do mun-
do, as torna pecaminosas da mesma forma que se torna em pecado a
temporalidade humana comparada à eternidade divina, porquanto este relacio-
namento do homem com Deus e vice-versa, é obra do ser humano em sua
queda e não é obra de Deus, de Deus, somente.
De que maneira se dá, como ocorre, como se desenrola, com que nitidez
se pode observar esta crise da “vitalidade” humana este contraste entre a possi-
bilidade extrema da criatura e as possibilidades divinas, são questões de desen-
volvimento histórico que agora não nos interessam. Investigamos apenas o sig-
nificado básico do fenômeno religioso ao lado das demais experiências da vida;
indagamos a respeito do sentido da religião.
[Como resposta], encontramos que através da religião o pecado se torna
uma realidade visível em nossa existência, e que é na religião que a criatura
manifesta a sua revolta de escravo, contra Deus.
Agora compete-nos indagar sobre o sentido da liberdade de Deus e da
nossa liberdade; como esta se manifesta além da realidade e da visibilidade do
pecado [que a religião nos revela].
Vs. 8-11 Mas o pecado, fazendo da lei um meio, despertou em mim toda sorte
de concupicências. Porquanto, se tirarmos a lei, está morto o pecado, ou-
trora eu vivia sem lei, porém, chegando o mandamento, entrou o pecado
na minha vida; eu, todavia morri.
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[A Bíblia não nos diz que Deus criou o homem para ser seu igual, po-
rém, fê-lo à sua imagem e semelhança. (Anotemos desde logo que Deus é Es-
pírito e, portanto, essa semelhança — semelhança e não igualdade — terá sido
espiritual). Apenas para melhor conceituação da significação de semelhança,
lembremos que dois triângulos podem ser semelhantes e, contudo, bastante
diferentes entre si: um pode ser infinitamente pequeno e outro infinitamente
grande... Semelhança não é congruência; ser semelhante não é ser idêntico, não
é ser cópia ou réplica fiel.
Para o entendimento dos comentários do A. sobre os versículos 8 e 9
será conveniente ter em mente a advertência que ele faz quando afirma que ao
tratar da mitologia, para desmascará-la, é mister empregar palavreado mitoló-
gico; é o seu ponto de vista. Portanto, é de esperar que, quando Barth analisa
aquele aspecto do pecado que transforma Deus em ente mitológico, o seu
linguajar tenha esta forma mediante a qual visa a mostrar a hedionda impropri-
edade da humanização de Deus; é um método expositivo, característica notória
de seu estilo, que choca pelo absurdo.
Ora, como argumenta o Autor?
— Afirma que Deus estaria usando (ou teria usado) de piedosa ocultação
da verdade “nua e crua” de que o homem é simplesmente homem e nada mais,
não lhe contando a verdade por pena, piedosamente, qual médico que esconde
ao paciente sem esperanças, a verdadeira situação de seu estado físico.
Seria este um Deus algo comparável aos deuses da mitologia grega,
onde um cria o risco e o outro, generosamente, desvenda aos olhos dos interes-
sados, o perigo iminente. É Circe advertindo Odisseu para que não se deixe
enganar pelo canto mavioso das sereias. Deus seria, assim: teria, quiçá, poupa-
do piedosamente o “seu segundo” do conhecimento “da posição” que desde a
eternidade estaria escondida no próprio Deus, “bondosamente” nada contando
dessa situação que, para desgraça do gênero humano, “a serpente” veio revelar.
Acaso teria Deus, deliberada ou casualmente, feito caso omisso do de-
creto eterno da predestinação de duplo efeito?
Parece que o A. considera tão clara a evidência dos fatos (pois escreve
para teólogos) que não se dá, sequer, o cuidado de reiterar que fala “por parábola”.
Acaso não é absolutamente certo que jamais o homem se considerou
igual a Deus? Não foi justamente esta diferença, esta desigualdade (esta distân-
cia, ainda que não houvesse distanciamento), que serviu de ponto de apoio para
a bem sucedida empresa da “serpente”, para induzir Eva e Adão à queda? “Sereis
(então) iguais a Deus”!
Também é certo que o Deus que a Bíblia nos apresenta é justo e reto em
todos os seus caminhos e não se deixa levar de respeitos humanos. Todavia,
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ela nos fala da comunicação direta ainda não perdida, da comunicação que não
tem nenhuma conotação religiosa.
Neste estado de comunhão direta vive o ser humano: não este ou aquele,
mas o ser que Deus criou a sua própria imagem e semelhança, na qual também
o restaurará: esta união jamais e nenhures “foi” e nunca e em parte alguma
“será”. Dela viemos e para ela iremos! [O ser criado à imagem e semelhança de
Deus não “foi” nem “será”: “é”!].
Esta união é feitura e obra exclusiva de Deus; ela é o relacionamento
que Deus tem conosco, que o pecado não destruiu. O que Marcion descreveu
“como, por assim dizer”, sendo “terra estranha”, é a nossa pátria; pátria que
não podemos esquecer; pátria cuja realidade, proximidade e glória o Evange-
lho nos revela com as candentes palavras Perdão e Ressurreição, Amor, Deus!
— e onde a perplexidade e a promessa se fundem e desaparecem porque para
além, para onde essas palavras apontam, não há lei nem religião (4, 15).
Aquilo que no mundo, em nossa vida e na história, possa parecer-nos
como natural e relativamente inocente e puro, conforme a passagem 5, 13
claramente o admite, pode ser, para nós, tomado com a devida simplicidade e
necessária prudência, um significativo e esperançoso relance da vida de onde
viemos e para onde vamos. [Da vida e para a vida sem pecado, pois o pecado
não é levado em conta onde não há lei].
“Porém, sobrevindo o mandamento, entrou o pecado na vida; eu, po-
rém, morri”.
“O mandamento veio”; veio porque tinha de vir para o ser humano que,
com seu conhecimento do bem e do mal, da eleição e da rejeição, do sim e do
não, tornou-se “qual Deus” e se fez participante do segredo divino, ficando
obrigado a suportar essa condição. [“Iguais a Deus” apenas no conhecimento
do Bem e do Mal].
O eterno “agora” da criatura, foi pulverizado e espalhado por todos os
ventos; já não temos conhecimento de era alguma, — (mesmo dos evos mais
remotos) — para a qual não houvesse sobrevindo a lei.
O relacionamento do homem com Deus vem de uma predisposição di-
vina para com a disposição humana; sendo esta disposição originada por uma
predisposição divina, ela destrói todas as demais disposições humanas. [Em
decorrência do conhecimento que o homem adquiriu sobre o que é o “bem” e o
“mal”], concientizou-se da terrível realidade de seu desconhecimento de Deus
e tomou ciência do fato de que é apenas criatura e um ser inteiramente diferente
do Criador. Então surgiu-lhe a monstruosa possibilidade do gesto de adoração
ao Deus desconhecido, gesto que lança sobre todas as demais possibilidades
humanas a luz fatal da impossibilidade.
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7, 9-10 A Significação (o sentido) da Religião
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A Significação (o sentido) da Religião 7, 10
Isto se dá, exatamente, com o homem religioso; aliás, é uma peculiaridade dele:
“E então exclamei: Ai de mim que pereço! Eis que vi o Rei, o Senhor Jeová,
com os meus próprios olhos. (Isa. 6, 5). [A tradução de Almeida, escreve: “Es-
tou perdido!... os meus olhos viram o Rei, o Senhor dos Exércitos”!]
Desta visão e deste desfalecimento ninguém pode fugir.
“Então aconteceu que justamente o mandamento, que visava a vida, me
proporcionou a morte”. “Pois o pecado obteve um meio pelo mandamento,
enganou-me e me matou”.
O paradoxal em nossa queda é que a possibilidade mediante a qual o
pecado destruiu a nossa união com Deus, — [a comunicação direta do Éden] —
é agora, na vida do relacionamento indireto com Deus e dominada pelo pecado,
a nossa maior, a mais premente necessidade: é a ânsia de tocar a linha da morte;
é a busca do conhecimento do mal e do bem; é a emergência, o aparecimento, do
contraste entre Deus, como Deus, e o ser humano, como homem.
[Em outras palavras, talvez pudéssemos dizer que o maior absurdo de
nossa queda, é que justamente a aspiração que a motivou, — o desejo de ser-
mos iguais a Deus, é agora o que temos absoluta necessidade de recuperar].
Se procurarmos identificar a força que, entre as contingências humanas,
materiais e passageiras do mundo, nos impele em busca da vida em união [ou
comunhão direta] com Deus, essa vida que foi perdida e que ansiamos por
recuperar, veremos que [essa força] é o mandamento; é a lei. É a nossa capaci-
dade religiosa; é o cumprimento, a plena realização de nossa negação decisiva,
final, crítica: é a lembrança e a consideração de que “temos de morrer”.
Acaso existe algum outro meio pelo qual possamos perceber o invisível
(1, 20) para, como homens sensatos, sabermos o que se pode conhecer de Deus,
sem que seja pelo caminho estreito e apertado da morte?
Onde poderíamos e quereríamos ficar (agora e neste mundo onde, de
qualquer maneira, teremos que estar) se não na beira desta linha “de onde Adão
caiu” (Lutero), já que não podemos estar além dela?
Onde haveremos de procurar estar, se não naquela posição arrojada e
privilegiada onde encontramos o “Jesus histórico”, Abraão, Jó, todos os profetas
e apóstolos, lá no limite extremo das possibilidades humanas onde o homem, o
ser humano por excelência, está verdadeiramente à máxima distância de sua
união ou comunhão direta] com Deus? — (Deus, Deus meu, por que me aban-
donaste?). Onde haveremos de estar se não lá onde a problemática da existência
se torna sobremaneira pesada, [onde a sua sobrecarga é sentida ao máximo]?
O que mais poderemos ser honestamente, se não criaturas religiosas,
penitenciando-nos no pó e na cinza para, porfiando com temor e tremor, na
esperança da graça, em verdade, esboçar [sempre] o gesto de adoração?!
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poderia fazer e, desta maneira nos livrarmos, pelo menos em parte, da maldição
e da miséria da mediação [em nossa ligação com Deus, que a religião nos impõe]?
Não seria forte a tentação de nos libertarmos dessa possibilidade [ou
atividade]?
Não seria razoável procurar diminuir ou evitar até certo ponto, os efei-
tos desta possibilidade que é apenas humana, que é tanto relativa quanto alter-
nativa, própria à existência neste mundo, e que a ninguém sobrecarrega mais
do que à criatura religiosa?
— “Impossível”!, respondemos.
Custe o que custar, temos de suportar este fardo. Temos de sorver o
cálice até a última gota. O bom não deixa de ser bom [nem o bem deixa de ser
o bem] pelo fato de não ser a coisa simples ou fácil, por não ser o que está
diretamente à mão, por não ser o logicamente aceitável, nem deixa de ser bom
(ou o bem) porque, indubitavelmente, nos conduz à porta da morte. Temos de
tomar sobre nós o paradoxo cabal da situação da criatura neste mundo, e que
consiste nisto: quando tomamos consciência do que somos e qual é a nossa
situação neste mundo, quando nos confrontamos com a problemática desta vida,
o mandamento de Deus vem a nosso encontro e nos conduz, passo a passo, à
nossa última e maior possibilidade [leva-nos à religião]; então, suspirando, des-
falecendo, implorando, clamando, estendemos as mãos súplices ao grande des-
conhecido, ao SIM invisível, oculto dentro do “NÃO” que nos aprisionou; so-
mos obrigados a reconhecer que todo esse suspirar, esse desfalecer, esse implo-
rar, esse clamar, não nos justifica, não nos redime, não nos salva, antes, com o
nosso aiar, nossa súplica, nosso desfalecimento, nosso clamor, apenas confir-
mamos e comprovamos que somos criaturas humanas — [apenas criaturas e
nada mais]!
Preciso obedecer à cobiça [ao desejo] que está acima de todas as cobi-
ças, ao desejo de voltar à vida de ligação [comunhão] direta com Deus, que foi
perdida e, enquanto eu o escuto [e o acalento], este desejo qualifica todos os
desejos [do meu coração] — também a si mesmo, e não em último lugar —
como pecaminosos. “Desde que, mediante a lei, eu sei em que termos me en-
contro perante Deus, estou em temor e sobressalto, em interrogação e medo,
qualquer que seja o meu caminho: assusta-me o farfalhar da folha e me apavora
o trovão; estou sempre preocupado [solícito pela minha vida, pelo que hei de
fazer, comer ou vestir ...]. Estou constantemente em angústia, pensando que
Deus pode vir por traz e ferir-me com uma dava”. (Lutero).
[Eis a situação cruciante da criatura humana, na religião].
Para alcançar a “semelhança com Deus”, para usufruir do “instante eter-
no” que é o ponto central visado por todas minhas atividades preciso, a despeito
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7, 13 A Significação (o sentido) da Religião
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A Significação (o sentido) da Religião 7, 13
lei, essa servidão segundo a nova lei do Espírito, pela qual já olhávamos para
além dos limites da religião (7, 6), é de todo impossível à criatura humana, neste
mundo.
Comentários: 7, 7-13
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7, 14-25 A Realidade da Religião
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A Realidade da Religião 7, 14-25
do” apresentando-os como “obras de Deus que acompanham todos os atos hu-
manos qual música divina” (Schleiermacher), a religião propriamente dita, a
religião ativa, combativa, devidamente lastrada, não estética (isto é, sem preo-
cupação com o artístico, o belo, o agradável aos sentidos], a religião não retó-
rica, não devota, a religião qual a retrata o Salmo 39 ( “tu és a minha esperança
livra-me desvia de mim o teu olhar para que eu tome alento”!], ou [então a
religião] de Jó, de Lutero, de Kierkegaard, a religião de Paulo — tal religião
reagirá tenazmente, sempre e de novo contra a religiosidade inócua e insossa
[do romantismo].
Esta religião vigorosa não pretende ser o coroamento do ser humano ou
a expressão de sua plena realização antes, se sente como sendo algo perturbador,
como sendo uma atividade perigosa; ela traz a sensação de estar fechando com-
pletamente o círculo da humanidade e de, concomitantemente, o estar abrindo
subrepticiamente.
[Entendo que o A. quer dizer que a religião vigorosa, a religião que tem
consciência da posição da criatura perante Deus, na realidade envolve e enfecha
todas as possibilidades humanas, todavia também as anula, as esvazia do valor
que possam pretender ter perante Deus e dessa forma prepara o caminho para a
graça de Deus, que testifica].
A religião vigorosa, [não totalmente dominada pelos interesses pesso-
ais, não beata nem carola, nem mística, mas submissa ao Senhor Jesus e nele
confiante] põe em dúvida e questiona toda a atividade humana e a totalidade
dos acontecimentos na história do mundo, eventos esses a que se contrapõe e
que considera como incompreensíveis, insuportáveis, inaceitáveis. A religião
está longe de ser o lugar saudável onde se encontra o bem estar do homem mas
é o ponto onde se revela e se reconhece a nossa enfermidade; nela não está a
harmonia mas aí se entrechocam as desarmonias de todas as coisas; nela a
cultura não encontra fundamento antes é posta na mais profunda dúvida junto
com a sua companheira, a incultura. A religião viva e vigorosa sabe que todas
criaturas no mundo, nos instantes de apreciação honesta, fazem dela exatamen-
te este juízo.
401
7, 14-17 A Realidade da Religião
Vs. 14-17 (Primeira constatação): Pois eu sei muito bem que a lei vem do
Espírito; eu, porém, sou carnal, vendido ao pecado. Portanto o que
faço, isto não reconheço; pois não faço o que quero mas o que odeio,
isso faço. Enquanto, porém, faço o que não quero, confirmo a lei como
sendo justa; porém não sou eu que faço tal coisa, mas o pecado que
está em mim.
402
A Realidade da Religião 7, 14
403
7, 14-15 A Realidade da Religião
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A Realidade da Religião 7, 15
fosse, seria a expressão que procuro para exprimir com propriedade a minha
grande ansiedade e imensa esperança? Acaso posso falar de outra forma se não
de maneira que uma palavra suprima e cancele a outra?
Será que me situo melhor pelos meus atos e obras?
Acaso a minha infidelidade nas coisas grandes constitui um sucedâneo
válido à minha infidelidade nas coisas pequeninas, ou vice-versa? (Seria assim
— de infidelidade em infidelidade — que eu supriria aquilo que me falta e pelo
que anseio?)
Acaso algum pensador, poeta, estadista ou artista, que mereça ser leva-
do a sério, realizou alguma obra que lhe satisfizesse plenamente, na qual ele se
considerasse plenamente realizado?
Não é verdade que precisamos sempre [e por vezes] dolorosa e saudosa-
mente, mas inescapavelmente, de nos despedir em definitivo de tudo quanto
tivermos realizado, ou feito? (E ai de nós se nos demorarmos demais nessa
despedida...) [Ai de nós se apreçarmos ou prezarmos excessivamente as nossas
obras e nos dermos por satisfeitos com o que houvermos realizado!]
E quando meus pensamentos, minhas palavras e obras se perdem nessas
divagações, acaso encontrarei no mar undoso dos meus sentimentos ou no “cal-
deirão de bruxas” de minha capacidade subconsciente, algum sucedâneo que
substitua aquilo que conscientemente me falta?
Não! — Somente os irrecuperáveis acreditam no valor perene de seus
sentimentos!
Em nada que eu realize ou fale, nem em sua generalidade, nem em qual-
quer detalhe especial, reconheço como sendo minha produção aquilo que eu
produzir, antes, vejo em tudo produtos que me são estranhos e hostis e que,
para meu desgosto, prontamente se levantam contra mim e testificam a minha
insuficiência.
Eu não entendo tais obras e feitos, nem os aprecio e quero; antes quisera
renegá-los quando me fixam quais monstrengos repelentes.
Eis que conhecemos em parte e sabemos em parte (I Cor. 13, 9). Por isso
não reconheço [não sei] o que faço. Aquilo que quero não faço, porém o que
odeio, isso faço.
Quem sou eu, porém, — aquele que fica despedaçado entre este “não
fazer o que quer” e o “fazer o que não quer”?
“Enquanto, porém, faço o que não quero, confirmo a lei como sendo justa”.
Dizíamos: “Aquilo que odeio, isso faço”.
Parece, pois, haver um ponto comum entre mim e aquilo, incompreensí-
vel, inaproximável e intransferível, que vem do Espírito: é a minha aversão, o
meu protesto contra minha vida qual ela o é; o desassossego com que acompa-
405
7, 15-17 A Realidade da Religião
nho minha própria passagem pelo mundo; o fato de eu não querer aquilo que
pratico.
Não estarei [quando mais não seja] ao menos por força dessa minha
negação, em harmonia comigo mesmo? Acaso não sou praticante da lei, pelo
menos na medida em que tenho profunda consciência da minha pecaminosidade
e me oponho a ela, decididamente?
Não posso, ao menos me acalmar [me consolar, justamente] pelo fato de
estar tão inquieto?
“Quando sentires, em ti, a luta entre a carne e o espírito e freqüentemente
fizeres o que não queres, é sinal de que tens um coração crente. — Enquanto
esta luta persistir no íntimo de uma pessoa, o pecado, ali, não reina; e porque a
criatura luta contra o pecado e não o quer, o pecado não lhe é atribuído”. (Joh.
Arnd).
Frases perigosas essas. Quem não conhece esse subterfúgio da dialética
pietista ou a rósea suavidade crepuscular do compromisso, do apaziguamento e
da resignação que mansa, mui mansamente, tinge o horizonte após toda sorte
de tempestades de consciência, sempre quando nos deparamos com semelhan-
tes lutas?
“Porém não sou eu que faço tal coisa, mas o pecado que existe em mim”.
O que significa, pois, que eu odeie aquilo que faço e que proteste contra
mim mesmo? Evidentemente apenas isto: que estou abrindo o valo que me
separa de mim mesmo.
Seria isto, um começo promissor?
Será assim que encontrarei a resposta à pergunta: “Quem sou, se Deus
existe”?
Eu, — aquele que “faz estas coisas” e cujos feitos e obras [também] eu
(o outro “eu”) observo com acerbo desgosto — [esse primeiro “eu”] evidente-
mente não é o que há de subsistir ante aquela pergunta.
Todavia, poderia o outro “eu”, [o segundo], aquele que se aflige, o
protestador, estar à altura da pergunta?
Quem é este outro eu? Acaso não é ele esse nobre observador impoten-
te, esse coitado expatriado que nada mais pode fazer do que menear a cabeça
para dizer “Não” ao que o outro faz, enquanto este outro continua agindo e
fazendo o que bem quer, até mesmo em nome daquele que o desaprova?
Servir-me-ia, acaso, de justificação o fato de que na realidade “não faço”
aquilo que faço; que “não mando” em minha casa; que é um outro que aí “faz e
acontece”, sob meu protesto; que é um outro que (na minha casa) “pensa, fala,
sente e negocia, enquanto “eu” somente cedo “a praça” e o nome [a razão soci-
al] para realizar aquilo com que nada tenho a ver?
406
A Realidade da Religião 7, 17-20
Contudo, o que mais significa esta justificação [que alego], esta minha
concordância com a lei, se não o juízo que faço de mim mesmo, admitindo que
o pecado existe em mim? E semelhante julgamento acaso garantirá um seguro
ponto de apoio para os meus pés?
Quem me garante que “aquele eu” que faz aquilo que lhe apraz, e “este
outro” que não quer aquilo que aquele faz, não sejam, basicamente, idênticos?
Quem sabe se a minha sanhuda oposição contra mim mesmo, não é mais do
que bravata do estilo do “Barão de Muenchhausen” [celebre personagem, “con-
tador de lorotas” da literatura alemã] que se desenvolve [em torno do meu ego]
dentro das quatro paredes da “casa do pecado”?
Na realidade, a religião não fala nunca, em lugar algum, daquele “eu”
que de fato existe além do pecado que habita em mim. A religião fala apenas da
dupla personalidade segundo a qual, constantemente, mediante uma faço o que
não quero e, mediante outra não quero o que faço.
A religião fala-nos apenas da discordância que há entre aquilo que o ser
humano sabe [que deve fazer] e aquilo que ele pratica; ela nos fala unicamente
de uma só realidade: a realidade do pecado.
Vs. 18-20 (Segunda constatação): Porquanto eu sei que o bem não habita
em mim, isto é, na minha carne; eu consigo querer o bem mas não está
em mim realizar o que é reto, pois não faço o bem que quero, mas o
mal, que não quero, não sou eu quem o faz, porém o pecado que habita
em mim.
“Eu sei que o bem não habita em mim, isto é, na minha carne”.
Esta é a segunda constatação que o homem religioso faz, e ela resulta
diretamente da primeira. [Que a lei vem do Espírito, mas o homem é carnal...]
Aqui, ainda uma vez, nos deparamos com a situação especial em que se
encontram aqueles que anunciam o evangelho (3, 1-20): eles podem e precisam
saber [e reconhecer que em nós, — e neles — não existe bem nenhum]; logo
eles! Nem tampouco a revelação de Deus em Jesus Cristo se faz sem a iniciação
da criatura neste terrível segredo e isto porque a revelação de Jesus Cristo é a
revelação de todas as revelações!
“O mui caro Paulo bem que gostaria de não estar em pecado; eu e outros
muitos estimaríamos, também, do pecado estar isentos; mas não pode ser as-
sim; caímos em pecado e o exsudamos por todos os poros; levantamo-nos de
novo, martirizamo-nos e nos debatemos com ele dia e noite sem descanso.
Porém, enquanto estivermos ligados a esta carne, enquanto carregarmos este
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7, 18-20 A Realidade da Religião
mal cheiroso invólucro atado ao nosso pescoço, a luta não há de cessar, nem
poderemos ensurdecê-la, por mais que nos esforcemos para conseguí-lo. O antigo
Adão também quer ter a sua vida até que chegue à sepultura. Em resumo: o
Reino de Deus é um reino peculiar: nenhum santo pode aqui dizer outra coisa
se não: — Oh Deus, Todo-Poderoso, eu me confesso um pobre pecador; não
me imputes a antiga culpa!...
“Não é cristão quem não tem pecado nem sente culpa, e se encontrares
um tal, esse é um Anticristo e não um verdadeiro cristão. Portanto, o Reino de
Cristo está onde há pecado, por entre o qual existe. Cristo destacou o pecado na
Casa de Davi”. (Lutero)
Este “porém” [eu, “todavia”] (7, 14) não representa uma ressalva, uma
atenuante, uma concessão a favor do homem religioso com respeito ao que ele
sabe de si mesmo, pois a expressão “em minha carne” não é condescendência
que se lhe faz, antes é reforço à acusação [à desqualificação] que ele, justamen-
te o homem religioso, precisa levantar contra si mesmo.
“Sou carnal”! é o que isto quer dizer.
Lembremo-nos o que “a carne” significa (3, 20): mundanalidade
desqualificada; (vista justamente pela criatura religiosa), “carne” é a definitiva
e inqualificável mundanalidade, “carne” quer dizer relatividade, nulidade, con-
tra-senso, falta de sentido. Isto tudo, é o que sou! É claro que esta afirmação
[esta autoconceituação, ou autocrítica] não pode vir do argentário, do gozador,
do déspota. (Como poderiam tais pessoas sentir isso? O que tais caracteres
sabem de si mesmo talvez seja um raio de luz da misericórdia divina, que é
maior do que sua ira!) Semelhante afirmação, tal juízo a respeito de si mesmo,
[tal autocrítica], porém, há de vir de quem é devotado a Deus; do homem reto,
com genuína experiência religiosa: do profeta, do apóstolo, do reformador, para
quem a unidade da santidade e misericórdia divinas se tomou uma questão
existencial, pessoal.
“Por que me chamas bom? Não há ninguém bom, senão só Deus”! (Marc.
10, 18); e isto, é Jesus quem o diz!
Portanto, a afirmação de que “Deus e ‘o homem que sou’ não vão jun-
tos” [não se coadunam] e que se tornou clara para nós imediatamente quando
tomamos conhecimento do que é espiritual (7, 14), não foi deduzida sob um
impulso pessimista, antes o que então concluímos por experiência se confirma
pela própria lógica. Este conhecimento do ser humano se baseia, exclusiva-
mente, no conhecimento de Deus. [O homem sabe que não é bom, em virtude
de seu conhecimento de Deus].
“Porquanto eu consigo querer o bem, mas não consigo realizar o que é
reto, pois não faço o bem que prefiro mas o mal, que não quero, esse pratico”.
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A Realidade da Religião 7, 18-20
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7, 19-20 A Realidade da Religião
410
A Realidade da Religião 7, 20-23
(7, 16 -17) possa justificar-me, antes, pela segunda vez se confirma a minha
própria conclusão a meu respeito: não sou eu que faço.
Excluído e premido contra a parede, preciso assistir ao que acontece, de
fato, em minha própria casa.
De que adianta o apelo, o meu apego, ao bem, se não para confessar que
o pecado habita em mim? Sim, ele habita, e é ele quem faz e realiza. Porém, o
fato de ser o pecado quem pratica o mal, não me serve de desculpa; antes, é
minha autocondenação pois, que bases tenho para dizer que o “eu” que não
quer, e o outro “eu” que faz, não sejam os dois o mesmo “eu”?
A realidade — e também a realidade religiosa, — conhece apenas um
ser, e este sou eu. Este “eu”, todos o sabemos, vive querendo o bem sem o
realizar, ou praticando o mal sem o querer, dentro das quatro paredes do solar
do pecado. O pecado (deste “ser”) é, em resumo, a realidade de que nos dá
notícia a experiência religiosa.
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7, 21 A Realidade da Religião
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A Realidade da Religião 7, 21-23
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7, 21-23 A Realidade da Religião
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A Realidade da Religião 7, 24-25
pelo outro] deixe aberta a possibilidade, ainda que tênue, porém visível, do
mais radical retorno [daquele que foi expulso].
Vs. 24-25 (primeira parte) Desventurado homem que sou! Quem me arran-
cará do corpo desta morte? — Graças a Deus por Jesus Cristo, nosso
Senhor!
415
7, 25 A Realidade da Religião
“Graças a Deus”; por Jesus Cristo, nosso Senhor, eu “não sou” o ho-
mem infeliz que sou. [Ele me livra do “corpo desta morte”!]
Vs. 25 (segunda parte) Portanto, esta é a situação: eu, como uma única e uma
só pessoa, sirvo a lei de Deus com a mente, porém a lei do pecado com a
carne.
[Ou, segundo a tradução de Almeida: “De maneira que eu, de mim mes-
mo, com a mente, sou escravo da lei de Deus, mas, segundo a carne, da lei do
pecado”].
“Infeliz homem que sou.” Temos que suportar todo o peso deste “eu sou”.
Não se pode alijar esta carga. Em verdade Paulo não estava se referindo à sua
condição de “antes da conversão”. O que significaria “antes” em se tratando da
conversão e da supressão da criatura em sua totalidade?
Porém Paulo se referiu — e isto também segundo o consenso dos
Reformadores, mas incompreensível aos que lerem com os óculos dos pietistas
da nova teologia — a seu passado, seu presente e seu futuro. Esta realidade
refere-se à realidade de seu ser de “antes” e de “após” [à sua experiência no
caminho de] Damasco. É a mesma e una pessoa, bipartida por força da lei de
Deus e que, por força dessa mesma lei, não pode ser dois; a criatura é apanhada
em um dualismo que é a sua própria refutação; e despedaçada em Deus sem,
todavia, poder esquecê-lo.
Sabemos agora, afinal, o que é a liberdade de Deus, o que é a sua graça?
Comentários: 7, 14-25
416
A Realidade da Religião 7, 14-25
417
Carta
aos
Romanos
de Karl Bart
por Koller Anders
Segundo a
Quinta Edição Alemã
(impressão de 1967)
2ª Parte
CAPÍTULOS DE VIII À XVI
QUALIS AB INCEPTO
421
Qualis Ab Incepto
422
Qualis Ab Incepto
maio, 1979
423
Capítulo VIII
O ESPÍRITO
425
8, 1 A Decisão
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A Decisão 8, 1
427
8, 1-2 A Decisão
excelência deste [meu “ALTER” EGO], totalmente outro, o qual não sou (po-
rém, paradoxalmente, é conhecido por mim).
Assim relativizados, absorvidos, vistos e reconhecidos, não nos atinge a
sentença de morte que pesa sobre toda carne e, mui especialmente, sobre o
homem religioso pois é assim relativizados, vistos, absorvidos e reconhecidos
que percebemos o “som que vem dos céus e, qual impetuoso vento, invade toda
casa” (Atos 2, 2). É o som que vem da Cidade Santa, — a Nova Jerusalém,
descendo do céu, da parte de Deus (Apoc. 21, 2). Estamos “em Cristo Jesus”!
Estar em Cristo Jesus significa ser co-participante da supressão do “ho-
mem velho”, operada por Jesus como o Cristo, pela qual esta velha criatura foi
estabelecida como “homem novo”.
Este “homem novo” veio da morte para a vida. Ora, se formos co-parti-
cipantes da fundamentação, do estabelecimento do “homem novo”, então a
sentença de morte que pesa sobre o homem velho já não nos alcança mais, pois
ela já foi cumprida.
“Pois a lei do Espírito da vida em Cristo Jesus te libertou da lei do peca-
do e da morte”.
Existe uma possibilidade que está acima de todas as outras e que, por isto,
não é uma possibilidade ao lado das demais porém está ligada a todas elas qual
denominador comum, de certa forma (e mal comparando), de maneira análoga à
presença do pecado do qual, todavia, é a negação e cujo lugar proeminente passa
a ocupar. Existe também a dádiva que foi feita uma única vez e que, por sua
singularidade, parece jamais ter sido dada aos homens. Existe, ainda, a lei supre-
ma mediante cuja constituição subsistem e são anuladas todas demais leis.
Essa possibilidade superior, essa dádiva singular, essa lei suprema é o
ESPÍRITO.
Referimo-nos ao Espírito porém, podemos falar a respeito dele? Verda-
deiramente, não; não podemos porque, embora possuamos vocabulário abun-
dante para descrever as muitas possibilidades humanas, não temos uma palavra
sequer para esta “impossível possibilidade” de nossa vida.
Então por que não nos calamos, por que não silenciamos a respeito dele?
Isto é o que [aparentemente] deveríamos fazer; todavia, é necessário que nos
lembremos que tanto o comprometemos com o nosso falar pouco, silenciando,
quanto falando sobre ele, pois o Espírito é a PALAVRA, e portanto será anun-
ciado de uma ou de outra forma.
Quer não podendo falar sem poder calar ou, tendo de falar quando pen-
samos dever silenciar — qualquer que seja nossa atitude, estamos sempre em
extremo aperto perante o Espírito e desse aperto não há saída. Cuidemos pois,
para que o nosso falar e o nosso calar sejam em tempo certo e não olvidemos
428
A Decisão 8, 2
que, se acaso nos conduzimos acertadamente, não fomos nós que soubemos
quando devêramos falar ou calar (nem mesmo nós, como pessoas religiosas)
mas foi o Espírito que falou ou calou conforme foi oportuno.
Temos o Espírito. Quem se houver encontrado com a existencialidade
do Espírito encontrou a sua própria existencialidade em Deus. Não podemos,
nem queremos negar ou esconder e obscurecer que ouvimos o som dos céus
“qual vento impetuoso” [de que fala Atos, 2,2] ou negar que vimos a Nova
Jerusalém, que tomamos a eterna decisão e que estamos “em Cristo Jesus”.
Porém o que significa “ouvir”, “ver”, “estar”?
Se começarmos a acentuar as nossas vantagens e os nossos méritos raci-
ocinando e discorrendo em termos de “nós” mesmos, ou daquilo que “temos”
ou “possuímos” [dizendo que ouvimos a manifestação do Espírito e que o “te-
mos” em nossa vida”], então ingressamos e nos assentamos nos arraiais [do
ensino e da prática] da religião. Nem podemos pretender estar falando do Espí-
rito [ou dele tratando] quando o colocamos em conotação. ou o relacionamos
com as nossas próprias pessoas — [nós o ouvimos, e o recebemos...] — ou
quando [quisermos mostrar a nossa riqueza espiritual dizendo que] o temos em
nossa vida. Contudo, precisamos contar que o temos e é certo que se não anun-
ciamos que o recebemos, todavia pensamos e, se não pensamos, pelo menos
sentimos pois, de fato, RECEBEMOS O ESPÍRITO!
Ainda que nos seja defeso proclamar que recebemos o Espírito, na ver-
dade o anunciamos de uma ou de outra forma. Todavia, precisamos saber que
isto não nos é licito [pois esta posse não depende de nós, não é conquista nossa,
não o recebemos como prêmio ou recompensa]. Por isso, ao pensarmos “nós”
[ou “eu”] precisamos lembrar sempre que não somos nós [que o recebemos
segundo o que somos no mundo; semelhantemente], precisamos manter per-
manentemente presente em nossa mente que se temos o Espírito (não o recebe-
mos como posse que enriqueça o nosso cabedal de conhecimentos ou o nosso
rol de virtudes, antes) é como não o tendo recebido [pois a sua própria existên-
cia em nós evidencia que nada temos. De certa forma, mitologicamente falan-
do, esta nossa anulação absoluta é semelhante ao “buraco negro estelar” que
tudo absorve a anula, e que o físico Jean Emile Charon considera como a pos-
sível sede do Espírito...].
Quem sabe, se, ao falarmos assim de “nós” como não sendo “nós mes-
mos” e ao discorrermos sobre o que “temos”, como “não tendo”, a verdade se
imponha pelo que é defeso e então esse “nós” e esse “ter” sejam devidamente
qualificados [por Deus] e, virtualmente, encerrem em si todo o “nós” — [toda
a individualidade] — e todo o “ter” — (toda a posse) humana, sem todavia
deixarmos de submeter ambas essas formas à crítica e de as pormos em dúvida.
429
8, 2 A Decisão
Pode então acontecer que nós (não como nós mesmos), já não sejamos
mais uns quaisquer, porém os representantes e as primícias da comunidade dos
espíritos na unidade do Espírito; [pode acontecer] que o nosso “ter” [então] não
seja apenas certeza psico-histórica porém (na forma de nosso “não ter”!) seja a
eterna destinação do ser humano, seja o nosso ser em Jesus Cristo e não apenas
a existência de uma comunidade.
Talvez então aconteça que os outros, os muitos, ao redor de nós, (em
função daquilo que “não somos” e “não temos”), cessem de ser “os outros”, os
que nada têm, e nos ouçam falar em suas próprias línguas dos grandes feitos de
Deus. (Atos 2, 11).
Contudo [nesta graça de assim testemunhar do Espírito], o nosso receio
de o renegar é incomparavelmente maior do que o temor de nos envolvermos
na dubiedade de uma posição religiosa.
[Talvez possamos concluir desta observação do A. que o testemunho
vivo que acaso damos ao dom do Espírito Santo, proclamando as grandezas de
Deus tão eloqüentemente que todos os povos, nações e tribos as possam enten-
der como se as anunciássemos em suas próprias línguas, é também uma apa-
rente atividade religiosa todavia, vinda do Espírito, vinda de além da linha ex-
trema das possibilidades humanas; porém se cairmos na tentação de, nesse tes-
temunho, introduzir a “nossa” própria eficiência e a grandiosidade dos dons
que “temos”, estaremos dando largas ao fluxo do pecado, efetivamente rene-
gando o Espírito; já não estaremos “apenas” (se assim pudéssemos dizer) retendo
a verdade com a nossa injustiça, mas blasfemando contra o Espírito Santo.
(Mar. 3, 29)].
Contaremos com o Espírito. Sim, contamos com ele como se fora um
fator, um motivo, um agente eficaz, uma causa [uma influência material em
nossa vida]. No entanto sabemos que não é assim pois [temos ciência de que o
Espírito] é “ACTUS PURUS”; que é genuína realidade [mas não é
materialidade]; é evento incontestável que não tem começo nem fim; não tem
limitações nem condicionalidade; não está sujeito à temporalidade nem ocupa
lugar no espaço; sabemos que o Espírito não é comparável a qualquer outra
coisa; não é efeito nem causa.
Todavia, dá-se o paradoxo: o Espírito passa a ser [segundo nossa com-
preensão] alguma coisa a par de outras coisas; o intangível torna-se tangível; o
impossível passa a ser possível; o invisível fica visível e o desconhecido vem a
ser conhecido.
O que há de paradoxal no [procedimento nosso com relação ao] Espírito
é que, embora ele somente possa ser descrito em termos negativos [“não tem
início nem fim”, “não é visível”, “não ocupa lugar no espaço”...] somos
430
A Decisão 8, 2
431
8, 2-3 A Decisão
Vs. 3 e 4 Porquanto aconteceu aquilo que foi impossível à lei; aquilo para o
que ela se mostrou fraca demais por causa da resistência da carne: Deus
mandou seu próprio Filho, na semelhança da carne dominada pelo peca-
do, para destruição do pecado e, assim, pronunciou a sentença de morte
do pecado no meio da carne, afim de que a justiça da lei fosse cumprida
em nós que não andamos segundo a carne, porém segundo o Espírito.
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A Decisão 8, 3
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8, 3 A Decisão
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A Decisão 8, 3
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8, 3 A Decisão
Ora, Deus mandou o seu Filho “na semelhança da carne dominada pelo
pecado”. Portanto, não o enviou para comunicar a inocência da vida paradisíaca;
nem poderia a missão [de Jesus Cristo] ter semelhante aspecto edênico, pois ele
veio justamente por causa do pecado”. Se Deus o houvesse mandado como
confirmação [ou demonstração] franca e aberta de sua divindade, então Cristo
não seria para o mundo o que ele efetivamente é: não seria o ponto de conver-
são [a transformação divina, o evento que originou a mudança de sentido que
se opera na vida da criatura]; não seria a resposta e a justiça de Deus [à eterna
pergunta humana e à sua inerente pecaminosidade]. [Fôra diferente a missão de
Cristo], ele não seria o “totalmente outro” Deus que se opõe à totalidade do
reino humano e o suprime, mas seria, neste reino, uma segunda grandeza [ou,
apenas, mais uma grandeza ao lado de outras]; seria uma das [inúmeras] reali-
dades rudes e prosaicas que coroam de espumas as altas ideologias e ilusões
deste mundo.
Na verdade, o fato [de Deus ter enviado o seu Filho Unigênito ao mun-
do] é tão extremamente diferente daquilo que existe [e que é normal entre a
humanidade], que a nada pode ser comparado; é um fenômeno que apenas
pode ser considerado como sendo sem paralelo, sem nada que lhe fique a par
ou semelhante; não pode ser imaginado ou tido como um segundo evento [si-
milar a algo que já tenha ocorrido], nem mesmo como um acontecimento mai-
or, ou mais sublime, em comparação com quaisquer outros fatos que possam
ocorrer na história. Este acontecimento é, por assim dizer, a superlativa verda-
de da realidade em todas as suas mais altas manifestações e, por isso mesmo,
não é nenhuma das realidades especiais [ou não] que sejam abordáveis direta-
mente. “Este é o artifício divino” (Kierkegaard).
[Escrevi “artifício” acompanhando a versão inglesa para conservar cer-
ta fidelidade à expressão que Barth transcreve com a palavra “Hinterlist” que
significa “astúcia”, “manha” e até “perfídia”. Pessoalmente, preferiria escrever
“processo” divino; todavia, assim escrevendo talvez eu não expressasse o pen-
samento de Kierkegaard conforme o A. o registrou embora me pareça que nem
mesmo a expressão abrandada segundo os tradutores ingleses é adequada para
identificar atributo divino a menos que, retoricamente, usássemos palavra de
significação rasteira, chá, quiçá “mitológica” para realçar, por contraste, a li-
berdade da ação divina].
Esta realidade divina só pode ser entendida pela revelação de Deus e ja-
mais como sendo realidade especial, diretamente abordável [Cristo é a Verdade!].
Precatemo-nos pois do cúmulo do disparatado clangor clerical segundo
o qual “a certeza de que Cristo é Jesus pode ser vista nele, direta e imedia-
tamente”.
436
A Decisão 8, 3
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8, 3 A Decisão
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A Decisão 8, 3
figuras] desde as mais elevadas até as mais absurdas, por cujas peças no final,
cada um cai à sua própria maneira.
[O original diz “praça de jogos” e não “mosaico” e a tradução inglesa
escreve que a vida de Jesus é qual “praça de jogos onde os homens podem
exercitar o seu engenho propondo toda sorte de idéias ou noções, nobres e
absurdas, todavia é praça coberta de pedras nas quais cada um tropeçará à sua
própria moda”]
Tem que ser assim. O tropeço que todos encontramos na vida de Jesus,
uns aqui outros acolá, não é a blasfêmia mas a pretensão de nos podermos
haver com ele, falar dele e ouvir dele sem nos escandalizarmos. [Para “trope-
ço” o A. usa no original o mesmo substantivo que para “escândalo” (Aergerniss),
isto é, aquilo que irrita, atrapalha,incomoda].
Porquanto Deus enviou o seu Filho na “semelhança” da carne domi-
nada pelo pecado e “assim pronunciou a sentença de morte ao pecado, entre
a carne”.
É assim que se comprova a filiação divina de Jesus Cristo, a saber: a
carnalidade dominada pelo pecado passou a ser mera semelhança, uma parábo-
la. A humanidade, a mundanalidade, a história, aquilo que é natural, se revelam
quais realmente são: apenas transparências, figuras, testemunhas de Deus, coi-
sas relativas perante o Criador; isto, porém, não significa que sejam pouca coi-
sa ou nada pois, [como semelhanças e parábolas, os homens e o mundo] pode-
rão ter mais e maiores características do eterno e incomparável, do que possa
ter a carnalidade real, absoluta e opaca tomada na ilusória legitimidade do mundo
não referido a Deus e, portanto, sem ser suprimido por Ele.
Porquanto a carnalidade foi suprimida em Cristo; o que é material ficou
destituído de sua qualidade intrínseca para que o ser humano seja reconduzido
a Deus, seu Criador; a profunda confusão e a transitoriedade sob as quais a
criatura geme tornaram-se evidentes e, nessa evidência, revelaram-se também
a esperança e a redenção pelas quais espera. A grandeza, a importância e o
brilho do ser humano são julgados em Cristo e, por isto, salva-se a sua destinação
como criatura de Deus.
Foi por essa razão que Deus enviou o seu Filho para o meio da carnalidade
dominada pelo pecado para que, justamente aí, (e onde mais haveria de ser?) o
pecado e a rebelião dos homens contra Deus fossem julgados e abatidos; que
fosse exterminada à pretensão humana de ser mais do que semelhança apenas;
que o falso “absoluto”, a efetiva dissolução e a maldição da morte [que reinam
na carne dominada] pelo pecado, fossem postos de lado, [suprimidos].
Esta condenação do pecado que habita na carne se cumpre mostrando o
que a carnalidade realmente é: uma semelhança [uma parábola] do Espírito
439
8, 3 A Decisão
440
A Decisão 8, 3-4
441
8, 5-9 A Decisão
nidade: problema levantado pela religião e que ela, mesmo em sua expressão
mais elevada, só pode exacerbar, porém jamais resolver; sentença sobre o peca-
do, cumprida em Cristo (isto é, aplicada a Cristo.). É a revelação da justiça
divina (5, 16 e 18), sempre procurada e nunca alcançada pela religião.
442
A Decisão 8, 5-9
sua justifïcação; em seu NÃO e por isso em seu SIM; em sua morte e, portanto,
em sua vida. O Espírito é o significado e o sentido existencial; ele faz e cria o
sentido. (“He makes and creates sense”.) Com o Espírito a existência passa a
ter sentido. (“With Him sense enters into existence and existence into sense”.)
“O Espírito não tem parceiro nem oponente pois ele é, ao mesmo tem-
po, conflito e conquista; ele é ditador vitorioso que não admite paz se esta
representar equilíbrio, síntese, tolerância. Espírito significa “ou um” “ou ou-
tro”, em que toda a antítese já está destruída pela vitória do “um” sobre o “ou-
tro”. Espírito significa aquela eleição onde não existe a possibilidade de rejei-
ção. O Espírito não admite qualquer outra possibilidade que já não tenha sido
excluída, vencida, elidida”.
É possível que algumas das expressões de Barth (e também dos tradutores
ingleses) nos pareçam impróprias ou, pelo menos um tanto obscuras, confusas.
Talvez seja da natureza do assunto: como falaremos com palavras perecíveis
das coisas que são eternas? Como discursaremos sobre o Espírito que jamais
homem algum viu? Que predicados lhe atribuiremos? Como o definiremos?
Também pode acontecer que, para nós, um pouco dessa dureza e pe-
numbra esteja na dialética anglo-saxônica quando não, e quiçá muito provavel-
mente, na insuficiência da “interpretação”.
Sem nos esquecermos da substância contida na exposição original do A.
(e sem dispensar as luzes que a tradução inglesa aduz), talvez pudéssemos “re-
interpretar” mais livremente esta primeira parte da exegese que Barth faz dos
Vs. 5 a 9, (sem falsear o seu pensamento), servindo-nos da semântica mais em
conformidade com a nossa lexicologia, como segue:
Na conformidade da decisão tomada por Deus, desde a eternidade, perten-
ce ao Espírito Santo — à terceira pessoa da Trindade divina e UNA — o munus
de trazer ao conhecimento dos homens o fato de que Deus se interessa pela
criatura humana e se compraz nela; é o Espírito Santo que assim nos inspira e,
concomitantemente, nos conduz a Cristo. Conduz? Assim dizemos com impro-
priedade porque não somos levados forçadamente aos pés da cruz. A nossa
rendição a Cristo não é compulsória; se nos entregamos a ele para estarmos
firmemente nele, fazemo-lo no Espírito e pelo Espírito, porém de maneira nenhu-
ma porque o Espírito nos houvesse escolhido de antemão, e nos empurrasse ao
encontro do Salvador. Entregamo-nos pela nossa livre opção. Entregamo-nos?
Escolhemos? Novamente não, pois também não está em nós saber como escolher
e optar perante Deus. Todavia, podemos optar pela fé e rejeitá-la, não em virtu-
de ou em conseqüência de aptidões nossas mas unicamente pela graça de Deus.
Esta graça foi dada por Deus, uma vez e por todo sempre, a todos homens; é a
fonte da vida, perene, que jorra para sempre; quem quiser pode dela beber.
443
8, 5-9 A Decisão
Nesta livre escolha está o mistério divino de nossa criação como espiri-
tuais, feitos à imagem e semelhança de Deus, e também o mistério da eleição.
Deus criou o homem livre e dentro de sua absoluta fidelidade ELE res-
peita essa liberdade. Diríamos em linguagem mais atualizada que Deus respei-
ta os “direitos humanos”. Respeita, mas não aprova indistintamente; por isso,
na predestinação da criatura humana existem as duas saídas finais,
diametralmente opostas: há a porta larga e a estreita. A predestinação é esta:
quem aceita já está salvo; quem não aceita já está condenado. É nisto que con-
siste a anulação de uma alternativa mediante a opção por outra já determinada
e isto, tanto para a justificação como para a condenação.
É pela inspiração do Divino Espírito que “sentimos saudades da vida Edênica”
e (por assim dizer) vislumbramos a graça divina; é assim que a nossa existencialidade
toma o seu verdadeiro sentido — aquele para o qual Deus nos criou.
Todavia, o Espírito Santo é o próprio Deus, como o é Jesus Cristo —
que é Deus conosco — e o é Deus Pai, o criador dos céus e da terra. Deus está
nos céus; não se deixa levar por conveniências humanas; é reto e justo. Nada há
que se lhe compare, nem no cimo da torre de Babel, nem no mais humilde pó
da terra, pois o relativo não subsiste ante o absoluto nem pode ser comparado a
ele: o Espírito é! (“Eu sou o que sou.”).
Porque o Espírito é absoluto nele e perante ele as antinomias, as
contraposições, as alternâncias e as alternativas desaparecem e a criatura hu-
mana que pela fé e mediante a graça de Deus tiver o Espírito de Cristo e nele
estiver, já não sofre condenação (8, 1) pois é o Espírito em quem está (aquele
que o tiver) que revela — ele mesmo — a redenção e nele não há contradição
mesmo porque a única outra possibilidade foi peremptoriamente cancelada,
derrotada, suprimida por ele].
Esta outra possibilidade já não existente é o ser humano segundo a carne.
Carnalidade é a decisão atual [do presente século] na qual [e segundo a
qual] Deus está contra o homem e o homem contra Deus. Por isso, e em
contraposição ao Espírito, a carnalidade só é por nós conhecida como sendo a
“carne dominada pelo pecado” (8, 3). Carnalidade quer dizer estar longe de
Cristo; é não ter perguntas e, portanto, não obter respostas. Tudo quanto foi
dito mais atrás sobre o Espírito aplica-se com o sinal trocado à carnalidade.
Carnalidade é ausência de sentido [a tradução inglesa escreve:
“Carnalidade é falta de senso” (“non-sense”), introduzindo uma certa duplicidade
no sentido, perfeitamente permissível tanto em inglês quanto no original para
“sense” e “Sinn”, respectivamente; no entanto parece-me que só em alguns
casos poderemos, com propriedade, escrever “senso” conforme, aliás, escreve-
mos logo adiante].
444
A Decisão 8, 5-9
445
8, 5-10 A Decisão
V. 10 Se, porém, Cristo estiver em vós o corpo está morto por causa do pecado
condenado, porém o Espírito vive por causa da justiça que foi imputada.
446
A Decisão 8, 10
riência religiosa. Essa condição [“de Cristo em vós”], basicamente antecede to-
dos esses atos [ou ações] e é também, basicamente, a permanente negação deles.
A condição [“Cristo em vós”] foi criada pela fidelidade de Deus (3, 21)
com o envio de seu Filho (8, 3); ser obediente à fidelidade de Deus (1,5) signi-
fica curvar-se [sujeitar-se, submeter-se] à condição que, independentemente de
nossa submissão e de nossa obediência, foi estabelecida e dada para nossa li-
berdade.
Assim como “o pecado que habita em mim” (7, 17 e 20) é a pressuposi-
ção [a condição inicial] da minha rebelião contra Deus independentemente da
ação ou inação humana que possa ocorrer posteriormente, assim também “Cristo
em nós” é a [condição inicial a] pressuposição divina [de nossa eleição] qual-
quer que seja a ação ou a inação humana que venha depois.
“Cristo em nós” é a Palavra de Deus que nos foi dirigida; é a pergunta e a
resposta divina: é a interrogação, porque leva a nossa existência e o nosso modo
de ser à morte; e é a resposta porque nos conduz dessa morte para a [nova] vida.
[A Palavra de Deus que assim nos guia] é o caminho em toda parte acessível [e
visível] para aqueles que sabem ver (1, 20), isto é: Cristo revela o caminho inscre-
vendo-se em expressiva exclusividade e existencialidade entre os eventos históri-
cos do mundo, neles se destacando como o ponto ao qual todos eles se referem e
do qual são vistos. É deste ponto de referência que o pecado é condenado e que a
justiça é imputada; é dessa condição de “Cristo em nós” que o ser humano recebe
a motivação para sua liberdade e dela toma a iniciativa.
“Cristo em nós” não é a conseqüência de suposição nossa ou da apreen-
são da Palavra de Deus que nos foi dirigida. “Cristo em nós” é uma condição
que nos é imposta e que se origina do processo de julgamento e justificação,
como condição essencial e determinante.
[A tradução inglesa escreve: “Cristo em nós” não é jamais, o processo
pelo qual apreendemos a palavra divina dirigida a nós e, portanto, nunca deve
ser identificado como “nossa” percepção].
“O corpo está morto por causa do pecado porém o Espírito é vida por
causa da justificação”.
Cristo é a nossa liberdade; ele é o passo que transpõe o limite da vida
humana, e dá origem à inversão do seu sentido; ele representa a emergência —
[o surgimento] da nova e verdadeira realidade.
A eternidade foi resolvida [decidida, estabelecida] em Cristo; a carne é
somente carne, o mundo apenas mundo, e o ser humano não é mais do que ser
humano enquanto o pecado for pecado.
A existência da criatura humana neste mundo, tanto em seus estágios
mais altos como nos mais baixos, precisa desaparecer e morrer em Deus. Não
447
8, 10 A Decisão
há e não pode haver qualquer saída para o suspirar do homem [mesmo] que
este alcance o ponto mais alto da religião profética, apostólica e reformada (7,
24). O “corpo” da criatura, a totalidade de seu “Eu sou”, — tanto no passado,
como no presente e no futuro — [tudo somado] “está morto por causa do peca-
do”. A terra volta à terra e o pó ao pó; as ilusões vão às ilusões.
A decisão eterna, porém, o juízo eterno, pertence à terra já alcançada, da
liberdade, da justificação, da vida, da eternidade.
Somente estando redimida pode a criatura humana entender a sua
irredimibilidade; somente justificada pode compreender sua pecaminosidade; so-
mente estando viva percebe sua morte. Só em Deus pode o homem esfacelar-se.
Não fôra o homem mais livre do que todas as possibilidades humanas,
como haveria de compreender o limite, o sentido e a realidade da mais alta
possibilidade humana como sendo uma prisão?
Não estivesse já salva a criatura que suspira pela redenção, não estivesse
já redimida, como haveria de suspirar?
A vida do Espírito se inflama à mesma chama da luz que revela a morte
do corpo pois esta morte provém do pecado condenado em Cristo e a vida
provém da justificação alcançada [também] em Cristo. Ambas as contingênci-
as ocorrem conjuntamente, uma reconhecível e mensurável pela outra, porém a
segunda predomina qualitativamente e em eternidade, superando e suprimindo
a primeira; esta é a liberdade do ser humano em Cristo.
A verdade existe e não é sem razões que ela é tão amarga.
O Espírito existe e não é sem razão que suspiramos pela redenção do
corpo desta morte.
Cristo ressurgiu, e portanto há razão para que tudo o que não seja [eter-
namente] existencial seja dado à morte, em sua morte.
[“Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”.]
Comentários: 8, 1-10
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A Decisão 8, 1-10
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8, 1-10 e 11 A Verdade
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A Verdade 8, 11
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8, 11 A Verdade
é e conviver com ela, sujeitando-nos ao seu ataque roaz e usufruindo sua inces-
sante bênção (Sal. 139, 1-12) porquanto “Cristo em nós”, como julgamento e
justificação (8, 10), é a VERDADE, é o Espírito que habita em nós e, de Cristo,
não há fuga nem esconderijo.
“O Espírito daquele que acordou Jesus de entre os mortos” é o Espírito
que habita em vós.
Quem passa a se relacionar com Cristo, relaciona-se com Deus, o Deus
desconhecido, o Deus que está em secreto, que é Santo, que habita na luz, onde
ninguém tem acesso. A vida que dele procede está acima do bem e do mal; seu
SIM está acima de todo “sim” e todo “não”; o seu além está acima do além e do
aquém. (4, 17).
É por isto que a verdade não se mantém e não cai conosco; nem conosco
vive ou morre. Não fica com razão quando acertamos [ou por acertarmos] nem
a perde quando erramos. Não triunfa em nossas vitórias, nem fica subjugada
mediante nossas derrotas. Esta é a razão pela qual a verdade vive a sua vida tão
poderosamente; é por isto que a verdade tanto é a morte que paira sobre o berço
como é o alento de vida que respira sobre o túmulo. É por isto que a verdade
tanto pode ser a condenação de um São Francisco de Assis como o perdão de
um Cesar Bórgia. É por isto que ela expulsa do trono os poderosos e eleva os
humildes; é por isto que a verdade pode mudar todo “sim” humano em NÃO e
todo “não” em SIM. É por isso que a verdade está ante nós, quer subamos aos
céus quer façamos nosso leito nas profundezas do inferno.
É nesta infinita superioridade sobre tudo o que é humano que a verdade
é nossa esperança, nosso inquebrantável relacionamento com Deus, nossa por-
ção imortal.
Não existe esperança apaziguadora, não há relacionamento estático com
Deus, nem tem o ser humano [como homem], algo que seja imortal; porém,
aquele que acordou Cristo Jesus de entre os mortos, também vivificará os vos-
sos corpos mortais por causa do seu Espírito que habita em vós.
“O corpo morto por causa do pecado e o Espírito vivificado por causa
da ressurreição” (8, 10), eis o contraste que surge da ressurreição e do conheci-
mento de Deus; todavia, surge para ser suprimido, vencido logo a seguir sob a
ação dessa mesma luz; enquanto o cone de luz que vem do projetor desenha e
define o contorno do objeto, também o bombardeia certeiramente e aquela “ou-
tra coisa”, secundária [a criatura material que se antepõe à luz], deixa de existir.
O mesmo Deus que acorda Cristo Jesus de entre os mortos e assim revela a
preponderância do infinito sobre o finito, também vivificará vossos corpos mortais.
Essa confrontação do finito, na forma de “outra coisa” meramente se-
cundária, com o infinito, só pode ter lugar a título de analogia, como parábola.
452
A Verdade 8, 11
Somente como parábola podemos ver na morte de nosso corpo, a vida do Espí-
rito em nós.
Em invisível realidade, aquilo que é finito não se opõe ao infinito
mas é, por assim dizer, suprimido por ele e, por isso mesmo, confirmado
nele de tal forma que a própria supressão (ou revogação) do que é finito [da
criatura segundo este mundo], constitui a sua fundamentação, [a sua razão
de existir].
Conseqüentemente, em sua realidade invisível, o nosso corpo não é uma
segunda coisa, uma “outra coisa” ao lado do Espírito de Deus que habita em
nós, porém ele é, ainda “por assim dizer”, o espírito da persistente mortalidade
de nosso corpo e portanto, (e no mesmo modo de dizer), a nossa vida incessan-
te. Em sua invisível realidade, — (e isto distingue o Evangelho da Ressurrei-
ção, radicalmente, de toda e qualquer forma de panteísmo, espiritualismo e
materialismo [e também das manifestações ruidosas do mais remoto até o mais
moderno “avivamentalismo”] ), o anunciado despertamento de nosso corpo no
passado. presente e futuro, só pode ocorrer dentro da negação total [do indiví-
duo] e do envolvimento completo do “FUTURUM RESSURRECTIONIS”:
“Ele fará viver”. [Ele vivificará!]
Portanto devemos nos afastar o mais possível de todo entusiasmo que a
aparência [de termos o Espírito de Deus] possa despertar em nós, como se fora
a afirmação de que se poderia alcançar visão (ou intuição) superior do
despertamento, [que o Espírito Santo opera] por meio de condicionamento psí-
quico. [Novamente, atenção, senhores avivalistas. A versão inglesa escreve as-
sim: “Devemos, portanto, dissociar-nos de toda espécie de crença entusiasta de
que aqui estamos na presença de reivindicação de alguma ordem superior —
(intuição), alcançável por algum estado peculiar da alma.]
O quanto mais friamente falarmos da vivificação pelo Espírito, melhor
será. A pressão psíquica que a menção dessa vivificação produz já é, por si só,
bastante obscurecedora; por isso devemos afastar como enganosas as especula-
ções de caráter “filosófico — natural”, que procuram demonstrar a existência
de espiritualidade corporal, visível, real, principalmente aquelas que vão de
Oetinger até Beck, e de Rothe até Steiner (e que timidamente aparecem tam-
bém na primeira edição do “Der Roemer Brief”.) — ousados ensaios que con-
duzem ao erro; [tais especulações] falsificam, esvaziam e desvalorizam o depo-
imento [da vivificação]. [A versão inglesa escreve “falsificam o Evangelho”.
Em outras palavras, o recebimento do Espírito Santo é a aceitação do Cristo
ressurrecto em nosso coração, sem ostentações, sem manifestações especiais
exotéricas ou esotéricas, sem outra exteriorização se não aquela da oferta de
nossos dons carnais a Deus como instrumentos de justiça (6. 13 e 19) e isto,
453
8, 11 A Verdade
com temor e tremor ante a graça divina, tendo por fruto a santificação e, no
final, a vida eterna (6, 22)].
A proclamação da vivificação pelo Espírito, [ou a própria vivificação] é
por si mesma [suficientemente] digna de crédito e todo e qualquer esforço que
seja feito para comprová-la a torna suspeita, duvidosa, a desacredita porque
esse esforço se origina de nossa própria incredulidade.
“Corpo” significa a totalidade de nosso ser carnal, conforme existente
neste mundo temporal das coisas e da humanidade. “Corpo” quer dizer “eu
mesmo”, rodeado de todas possibilidades imagináveis que de alguma forma
me são apresentadas. Esta qualificação do meu corpo eu faço mediante o meu
conhecimento de Deus, confrontando minha condição atual com a original.
Este confronto anula, suprime, revoga todos meus predicados [naturais], inclu-
sive minha própria identidade. Nenhuma substância pode resistir a esta anula-
ção, nenhuma; nem a derradeira, a mais elevada ou a mais profunda das reali-
dades pode opor-se à peremptoriedade dessa negação, [pois ela resulta do meu
conhecimento de Deus].
Também a morte natural é, dentro desta anulação total, apenas e so-
mente uma parábola; juntamente com a morte estão todos os atos de nossa
vida que, de certa forma, são pequenas (ou maiores) antecipações da morte e
acompanham o seu caminho, quer sejam exteriorizados ou não, na forma de
mortificações, auto humilhações, renúncias, autoflagelações e espiri-
tualizações. Tais atos [e atitudes], sem dúvida, vislumbram o mistério porém,
depressa se afastam [daquilo que o mistério poderia revelar], transformando-
se em exercícios de cultura espiritual e corporal, processo que a humanidade
tem adotado em todos tempos para salvar a vida deste corpo que não pode ser
salvo da morte.
Não nos é possível deixar de incluir nas “antecipações” da morte natural
as várias derivações para o asceticismo [cláustro, vida monástica, etc.], algu-
mas mais severas outras mais brandas; são métodos que o mundo adota, formas
variadas e por demais comuns, que são postos sob dúvida radical mediante o
conhecimento [do que seja a vontade] de Deus. Portanto, mesmo a semelhança
intencional da morte natural — [a antecipação do sofrimento da morte — a
repressão a vida — nas várias formas referidas pelo A.] é apenas parábola; é a
invasão explosiva do infinito na ordem das coisas que têm somente o conceito
do finito. Esta invasão se dá porque somos capazes de [por assim dizer] criar o
infinito pela conceituação que lhe atribuímos, isto é, imaginando a eternidade
com as qualidades das coisas que são visíveis para, a seguir, aplicar a essa
visualização o [rótulo ou o] timbre do invisível, de sorte que criamos para nós
uma finitude “quase” infinita. Este “infinito” [assim criado por nós] de maneira
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A Verdade 8, 11
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8, 11-13 A Verdade
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A Verdade 8, 11-13
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8, 12 A Verdade
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A Verdade 8, 12-13
de tarde amena que em alguma ocasião de nossa vida houvesse de surgir após a
tempestade; há somente a orientação que o próprio Deus, e exclusivamente ele,
dá ao ser humano: a perplexidade, a ameaça, a promessa, a insegurança e a
ulterior segurança final que, como reflexo da luz não criada envolve, por todos
os lados, as coisas criadas, anunciando o fim e também o começo da criatura,
transformando o interminável dessossego em interminável paz. Esta orientação
divina [qual roteiro de santificação], faz-nos sair de amenos abrigos ou incô-
modos esconderijos e nos compele à fé, para crermos em nossa redenção ou
nossa condenação, pois o tema da redenção somente pode ser abordado pela fé
por queda e “a paz de Deus que excede a todo entendimento”.
“Porquanto, se viverdes segundo a carne caminhais para a morte e, se
pelo Espírito deixardes morrer a empresa da carne, caminhareis para a vida”.
Todos desdobramentos da vitalidade humana, desde as suas formas in-
feriores até às mais altas, toda plenificação das nossas possibilidades, tanto as
negativas quanto as positivas, tudo quanto quer dizer “vida” com sentido bioló-
gico, é “segundo a carne” e está na sombra da morte. [Tudo isso] já começa a
morrer no instante de seu nascimento; é suprimido, [revogado] no mesmo mo-
mento em que é estabelecido; é condenado em sua retidão. [Todas manifesta-
ções de nossa vida terrena] estão na temporalidade e portanto têm o seu futuro
pelo que, já agora, estão no passado.
Morta está a palavra no instante em que anunciada ou escrita; morta está
a natureza quando entra em existência, vinda da não-existência”. Morta está a
história quando acontece aquilo que, evidentemente, não poderia acontecer.
Morto e anulado é todo movimento que chega a merecer essa designação.
Morta e liquidada está a personalidade no instante em que se reconhece,
ou é reconhecida pelos outros, como tal.
Se [acaso] pudermos, se precisarmos, se conseguirmos “viver” hoje ou
sempre “segundo a carne”, então convém que não nos esqueçamos que estamos
cavalgando um corcel que galopa sobre as espumas do mar: que estamos cor-
rendo ao encalço da morte!
Não podemos deixar de ver a mão de Deus levantada contra o que faze-
mos, ainda que nos seja permitida e até ordenada a fruição da realização plena,
sadia, retilínea, vigorosa, aperfeiçoada, da inclinação de nossa vitalidade, de
nosso “Eros”, tanto em seu sentido negativo quanto positivo, em todas suas
componentes, desde as mais rasas até as mais altas.
Embora a justificação que está imanente em nossa conduta (e que, eviden-
temente, poderia ser também condenação), seja o vapor, a eletricidade [a força
motriz] que nos impulsiona e que nos leva a realizar tudo quanto fazemos
— nosso respirar e até nossa prece, — não podemos deixar de perceber a última
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8, 13 A Verdade
e abrangente restrição que está aposta não apenas ao que nos é proibido mas
acompanha, principalmente, o que nos é facultado e até ordenado.
Não podemos ignorar que será milagre se entre o que fizermos acaso
existir algum fruto do Espírito (Gal. 5, 22), algum fruto da luz (Efe. 5, 9) ou
alguma obra justificada por Deus.
[Esta conclusão de que será apenas por genuíno milagre que faremos
algo que seja aprovável por Deus vem do fato de que] a ética [aquilo que é
moral], se baseia exclusivamente na límpida vontade de Deus e jamais [pode
ser tida] como direito imanente à vontade humana [ou à nossa própria força de
vontade], por maior que ela seja. É por isto que, uma vez conhecida a vontade
de Deus, ela se manifesta na forma de crítica radical a tudo quanto fazemos,
fizemos ou faremos, tanto individualmente quanto coletivamente na sociedade.
Essa crítica jamais tem o aspecto de justificação e confirmação como também
nunca será contestação ou refutação ao que somos, pois “a inescrutável idéia de
liberdade afasta todas as configurações positivas” (Kant).
[A tradução inglesa transcreve assim o pensamento de Kant: “A idéia de
liberdade está além de nossa investigação porque ela barra o caminho a toda
representação positiva”].
Todavia não poderemos deixar de observar a mão que se levanta de fato
contra a totalidade das obras humanas; nem podemos olvidar de que é pelo
Espírito que devem cessar toda lide, todos negócios, práticas e ocupações do
“corpo”. Não se trata porém, de substituir a ética normal, positiva, por outra
negativa, de fuga ao mundo, de indiferença, de asceticismo, de revolução, ou
de espera [de contemporização?]; nem é o caso de adotar a ética de suposta
recuperação da perdida inocência paradisíaca, embora semelhante prática pos-
sa ser permitida e, aqui ou acolá, até ordenada como sendo uma parábola ex-
pressa no exercício e na montagem dessa semelhança.
Não podemos deixar de prestar atenção à solapação do edifício de nossa
existência, com todas as construções que lhe apusermos e superpusemos, ou
não constatar que treme violentamente o solo sobre o qual se erguem as santas
colunas dos pioneiros, dos primitivos cristãos e também dos homens da nature-
za e dos nobres anarquistas que, ao lado de Stinnes, Ludendorff e Hoelz, pro-
movem, felizes, os seus interesses.
[Parece que ao mencionar “homens da natureza” o A. se refere ao “natu-
ralismo” o que se confirmaria se o Hoelz citado logo após por Amo Holz, o
naturalista alemão dos fins do século XIX e começo do XX; os “nobres anar-
quistas” seriam aqueles que, semelhantemente ao General Ludendorff em 1920,
pretendem e pregam a destruição das instituições vigentes visando à implanta-
ção de ordem melhor.
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A Verdade 8, 13-17
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8, 14 A Verdade
Vs. 14 a 17 Porquanto aqueles que são movidos pelo Espírito de Deus, esses
são filhos de Deus. Porquanto não recebestes espírito de servidão, sob o
qual novamente serviríeis, em temor porém o espírito de filiação, no qual
exclamamos Aba Pai! O próprio Espírito é testemunha junto a nosso espí-
rito de que somos filhos de Deus. Se somos filhos, somos também herdei-
ros. Somos herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo, tão certo quanto
sofrendo com ele, com ele seremos glorificados.
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A Verdade 8, 14-15
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8, 14-15 A Verdade
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A Verdade 8, 14-15
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8, 14-17 A Verdade
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A Verdade 8, 17
recebido o que nenhum coração humano recebeu — o que, contudo, não po-
demos negar, porquanto, estando no abismo, os altos vieram ao nosso encon-
tro; no pecado, fomos justificados; na morte encontramos a vida, e em nós
vive o próprio Cristo.
É isto o que Cristo preparou para aqueles que o amam?! Quem pode
enfileirar-se entre os que amam a Deus e para os quais ele preparou [tudo] isto?
[Todavia] já estamos nessa fileira e já ousamos exclamar [Aba! Pai!]!
[Portanto,] existe um “ver” e um “ouvir” que elimina todas perguntas (e
não nos estamos referindo a uma experiência, [a evento material em nossa vida]
); [este “ver” e “ouvir”] é apenas memento da decisão já tomada.
Sofrimento, culpa, destino, em sua interminável e tétrica realidade huma-
na, que se revela nas mui duvidosas expressões faciais e nas biografias dos
indivíduos, na loucura de nossas aldeias, na tirania banal de nossas mais primiti-
vas necessidades e na ingenuidade ideológica de nossa ciência e nossa consciên-
cia, no espanto do nascimento e da morte, no enigma da natureza que nos fala
desde qualquer casca de árvore ou de um fragmento de rocha, na futilidade dos
ciclos da história universal, na quadratura do círculo e no par de paralelas que
nunca se cortam; em tudo isto existe uma luz, uma voz. Quem houver, ainda
que por uma só vez, visto essa luz ou ouvido essa voz, — não psicológica,
sociológica, histórica ou cientificamente, nem por nobreza ou por
academicidade, de forma ponderada e meditada, sem envolvimento [emocional]
pessoal, mas também não piedosamente, ou por algum iluminamento religioso,
— porém existencialmente, esse tal não pergunta mais, porém ouve e vê!
Essa existencialidade há de ser genuína; jamais poderia ser existência
sorrateira ou astutamente condicionada para apresentação de um todo harmo-
nioso e providencial.
Existencial significa plena seriedade; significa ter sido arremessado da
sela ao chão; existencialmente quer dizer ter ouvido e visto sem qualquer pro-
blemática, de maneira desinteressante e inevitável, incontornável, sem qual-
quer possibilidade de salvação. [Existencialmente quer dizer] ouvir e ver com
os ouvidos e olhos de Ivan Karamazov.
— O que?
—A si mesmo!
— Como aquele que crê, ama e espera?
— Não! Mil vezes não! Porém [ouve e vê] a si mesmo em face ao total-
mente impossível, ante a absoluta contradição; decididamente não se considera
digno de ser justificado por Deus e jamais pensará que poderia ser entronizado
em algum conceito divino. Vê-se em confronto com a total realidade de sua
existência [no mundo] sofredor, subjugado, perguntando sem alcançar resposta;
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8, 17 A Verdade
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A Verdade 8, 17-25
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8, 18-25 A Verdade
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A Verdade 8, 18
uma fagulhasinha; porém da glória do além, que devemos esperar, faz um mar
infinito, uma enorme fogueira”. (Lutero)
O sentido desta maneira chocante de olhar as coisas humanas requer
explicação. É evidente que aqui não se trata de aprofundamento ou de exaltação
exagerada do modo usual de ver as coisas, nem de intencionalmente ignorar,
atenuar ou dar sentido consolador ao sofrimento neste mundo — (algo como a
apresentação de compensações [ou a sugestão da existência de recompensas]
na harmonia do além). Semelhante interpretação não suportaria, sequer, uma
simples dor de dente, para não mencionar considerações mais sérias sobre o
nascimento, a doença e a morte, a fome e a guerra, os destinos de pessoas e
povos [coisas que ocorrem] a todo instante e durante toda nossa existência
humana, com brutal e fria realidade. Por trás do menor ai e, principalmente, por
trás das grandes tormentas de nossa vida está chamejante a problemática [a
ambigüidade] de sua finitude. Como iremos ao encontro dela? “Curto-
circuitante” e mentiroso é todo consolo e toda resposta que procurarmos dar
pois dela procedemos e dela não nos livraremos, nem mesmo pensando na
existência de infindável harmonia divina, além de nosso mundo, porquanto o
infindável que pudermos imaginar, se mede segundo a nossa finitude e, portan-
to, é ele mesmo, infindável finitude. A harmonia que postulamos é relativa à
nossa desarmonia; é a “Fata Morgana” [a miragem] de nossa peregrinação pelo
deserto. Aquele Deus de quem esperamos a paga e a compensação, em um
“além” melhor é o NÃO-DEUS; é o Deus deste mundo, criado à imagem e
semelhança do homem e, portanto, sujeito à nossa crítica e até mesmo a ser
negado quando for enfrentado por algum Ivan Karamazov.
Todavia, a problemática de nossa finitude caminha para solução absolu-
ta e não relativa e está acima de nosso pensamento: ela se dirige ao Deus Verda-
deiro, ao Deus Desconhecido; ela busca o seu consolo perante aquele para quem
os sofrimentos do tempo presente “não pesam na balança” porque o seu conso-
lo é o além que excede a tudo quanto é incomensurável neste mundo.
Para sermos consolados precisamos, em primeiro lugar, admitir que não
temos consolação; se quisermos oferecer consolo, precisamos reconhecer que
estamos todos fartos de consoladores. [A tradução inglesa escreve que “preci-
samos reconhecer que nosso consolo é vão”.].
“Por isto precisa o Espírito Santo ser Mestre-Escola e mandar o confor-
to para dentro de nosso coração”. (Lutero).
O consolo vem mediante a adoção de nova forma de contabilidade para
nossa vida. (Já fizemos uso dessa expressão tão fria em outra parte desta obra
(3, 28 e 4, 3) chamando atenção ao fato de que nessa nova escrita não se trata de
maneira alguma, de introduzir conceitos que, de certa forma, pudessem ser
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8, 18 A Verdade
472
A Verdade 8, 18
pergunta e da resposta que nos vêm da cruz, temos nossa origem no AGORA
absoluto e presente; se Deus, aqui, manifestamente conta conosco e, assim, nos
põe em condições de [podermos] contar com ele.
[Parece-me que poderíamos interpretar o pensamento do A. dizendo que,
para a criatura humana entender que o tempo presente testifica a eternidade é
preciso que ela haja passado da morte para a vida; que ela se tenha confrontado
com Deus no instante crítico de sua aceitação de Cristo; que tenha visto e reco-
nhecido a obra de Deus na morte e ressurreição de Jesus e assim se haja con-
vencido da questionabilidade de sua existência, de seu sofrimento e sua conde-
nação final e haja, também, visto na morte e na ressurreição de Jesus a resposta
divina que consiste na justificação e vida eterna que Deus assegura a todo aque-
le que crê].
Vemos o transcorrer da nossa vida à sombra do Dia de Jesus Cristo, que
ainda não raiou mas está infinitamente próximo. Vemos o desenrolar do tempo
à sombra do “momento presente”; vemos as coisas humanas tomarem o seu
curso à sombra de Deus. Se formos guiados pelo Espírito (8, 14) precisamos
exclamar Aba! Pai! (8, 15); precisamos legitimar-nos como filhos, ou melhor.
Somos legitimados como filhos de Deus (8, 16) e, portanto, herdeiros de sua
glória. (8, 17).
E agora, novamente a questão: nesta conjuntura de nossa vida temporal,
como fica o imenso e incontornável problema do sofrimento? Evidentemente
ele não impede nem mesmo perturba o nosso acesso à glória de Deus, que se
abre no instante crítico, nem poderia, para tanto, “pesar na balança”; e não
pode mesmo influir porque é justamente o sofrimento — o sofrimento consci-
ente — que, no Espírito e por Cristo Jesus, constitui o portal do conhecimento
e da redenção. (E se não assim, onde é que Deus conta conosco? Onde se justi-
fica ele, perante nós? Onde nos ensina, o seu Espírito, a clamar Aba! Pai!?
Onde se evidência que a temporalidade é a negação da eternidade? Onde se
choca o ser humano com a limitação que lhe é imposta? Onde é que se demons-
tra o testemunho e o poder do Espírito, se não na obra de Deus pela qual nos faz
co-participantes do sofrimento — quer dizer — estabelece a nossa afinidade, o
nosso parentesco com Cristo (6, 5) e assim nos acolhe [e recolhe] na invisível
liberdade e glória da nova criatura?)
Os sofrimentos “do presente século” não pesam na balança porque eles
já foram pesados em Jesus Cristo; porque eles nem são significativos para nos-
sa presente vida, a não ser como sinal de suas limitações, ou melhor [eles mos-
tram o limite, a barreira extrema, onde se dá] a supressão do sofrimento pela
vida eterna, pois o tempo no qual vivemos e sofremos, o tempo presente, é o
tempo em que se nos revela a glória de Deus, justamente no sofrimento.
473
8, 18 A Verdade
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A Verdade 8, 18-19
Esse tal se sentirá como se estivesse acordando de sonho cujas nuvens flutuan-
tes ainda o envolvessem. Essas nuvens também se dissiparão: então será dia
claro” (Nietzsche).
Cegos e mudos, por isso mesmo vendo e falando; sem perguntas e sem
respostas e justamente por isso, perguntando e respondendo; sofrendo e, assim,
triunfando: é assim que os filhos de Deus reconhecem e amam seu Pai, pois “a
sua glória será revelada neles”. SERÁ; esta é a grande carência. [A tradução
inglesa escreve que “esta é a nossa grande miséria”], mas é, também, a esperança
infinitamente maior. Mais uma vez, o FUTURUM RESSURRECTIONIS nos
lembra que em tudo [dito aqui] falamos de possibilidade divina e não humana.
“Pois a atenção da criação aguarda a revelação dos filhos de Deus”.
Tudo o que é temporal, toda criação e todas coisas testificam que, verdadei-
ramente, o tempo em que vivemos é a ocasião do “agora” divino; que este tempo
traz em seu bojo um futuro eterno, vivo, que ainda não veio à luz. Esta é a verdade
da qual tudo o que é temporal, toda criação e todas coisas dão testemunho.
Para onde há de a criatura humana, na sua inextinguível preocupação a
respeito de si mesma ou em sua insaciável aspiração por aquilo que ela não é,
volver os olhos sem encontrar outros, igualmente ansiosos, quando não ainda
mais ansiosos, a lhe interrogarem?
Nem por um instante, sequer, pode a criatura duvidar que está num mundo
onde todos sofrem.
Se a criatura sofrer por ter consciência de um mundo interior, invisível,
que ela pressente ao menos como problema em dura oposição ao mundo exte-
rior, totalmente outro, estranho, diferente, — vendo [esses dois mundos] sepa-
rados porém lado a lado e um contra o outro, — sentindo que o mundo exterior,
por demais conspícuo, vem complicadamente, prepotente, ameaçador, hostil
ao seu encontro, ela não pode ignorar por muito tempo que, também lá fora,
não existe imediação; [não existe a ligação direta com Deus]. [A tradução in-
glesa escreve que “não imaginaremos, por muito, que a Paz de nossa união
direta com Deus esteja na harmonia do mundo exterior”.]
O mundo exterior é um cosmos de fatos reais, mediações, limitações e
[sobretudo, essencialmente] questionável.
Acaso não é evidente que o quanto mais problemático o homem se tor-
nar perante si mesmo, mais duramente ele se chocará com o sofrimento, — a
realidade fundamental de sua vida — e tanto mais difícil lhe será, sob a persis-
tente influência cristã, aliviar o “espinho da carne” e, quem sabe, assim esque-
cer que ele é o ser humano que está sob sombra [da morte]?
Não é, também, evidente que [quanto mais preocupada a pessoa estiver
com a sua própria incerteza], maior atenção prestará ao mundo que a rodeia,
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8, 19 A Verdade
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A Verdade 8, 19-20
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A Verdade 8, 20-22
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8, 22-23 A Verdade
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A Verdade 8, 23
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A Verdade 8, 23-25
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8, 24-25 A Verdade
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A Verdade 8, 24-27
perseverarmos “como se” víssemos o que, de fato, não vemos, “como se”, con-
templássemos o invisível.
É a esperança que acaba com este enigma; é ela que suprime o “como se”.
[Pela esperança] vemos “de verdade”; vemos existencialmente aquilo
que, contudo, não vemos. É por isso que perseveramos. Se apenas vermos o
que enxergamos materialmente não haveremos de perseverar [na esperança]
pois, bem ou mal humorados nos contentaríamos com o que existe. [Com aqui-
lo que é].
Somente a invisível esperança que temos em Deus, em Cristo, no Espí-
rito, explica o fato de não nos conformarmos com a realidade, o fato de não
haver harmonia [ou sintonia] possível entre o nosso ser e aquilo que existe [ao
redor de nós]. Somente esta esperança invisível explica porque fica subjacente
em nós uma “espera oculta” por aquilo que “não é” e que nos confronta
existencialmente.
Nada mais podemos desejar ser (se é que nos entendemos corretamente)
do que pessoas que se contentam em saber, pelos gemidos da criação e seus
próprios, que nada podemos pedir que seja maior ou melhor do que a cruz, na
qual nos é revelado que Deus é Deus e que precisamos ser servos que esperam
por seu Senhor.
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8, 24-27 A Verdade
486
A Verdade 8, 26
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8, 11-27 A Verdade
Comentários: 8, 11-27
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A Verdade 8, 11-27
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8, 28-30 O Amor
tura, não como imposição, nem como predestinação seletiva, mas na forma de
predestinação de possibilidade.
Em seu relacionamento com a criatura humana Deus se revela inteira-
mente a favor dela e por força e graça dessa favorabilidade nenhuma outra
força ou poder, qualquer que seja sua forma, sua natureza, sua origem e seu
sentido, poderá separar-nos do Amor de Cristo.
É disto que o A. trata nas páginas seguintes.
Vs. 28-30 Pois sabemos que Deus permite que todas as coisas conjuntamente
operem para o bem daqueles que o amam, aqueles que por sua delibera-
ção foram chamados para isso. Por quanto, aqueles que ele conheceu, a
estes também destinou a serem conformes à imagem de seu Filho (a fim de
que este seja o primogênito entre muitos irmãos!). Porém, a estes que para
isto destinou, a estes também chamou; e aos que chamou, a estes também
declarou justificados. Mas aos que justificou fez também participantes de
sua glória.
490
O Amor 8, 28
491
8, 28 O Amor
A pessoa pode, efetivamente, estar consciente das flechas que estão cra-
vadas em seu corpo; do veneno que sua alma tem de sorver; dos horrores que
lhe são enviados. (Jó 6, 4). A criatura pode, realmente, saber que ela tem de
viver em luta constante e que os seus dias são quais os de um jornaleiro (Jó 7,
1); ela pode mesmo exclamar: “Acaso sou mar, ou algum monstro marinho,
para que assim me vigies?” (Jó 7, 12). O homem pode, de fato, encontrar em
seu caminho um opositor para o qual não encontre árbitro ou juiz... “que levan-
te sua mão sobre ambos” [e faça prevalecer a justiça], (Jó 9, 33); pode ser que
o seu caminho lhe seja [subitamente] ocultado e [suas saídas] estejam cercadas
por todos os lados (Jó 3, 23).
Sim, tudo isto pode ser tão forte, tão eficaz, tão real e, por isso, tão
[claramente vindo] da mão de Deus que a criatura nada mais possa ver, nem
saber ou querer, ou tomar a sério e ter por válido, [que nada mais lhe reste]
senão submeter-se a Deus. Todavia, não se trata de rendição resignada, fatalis-
ta, ou que [ao menos] contasse com o consolo da religião, porém será uma
submissão existencial, acompanhada do inexprimível gemido do Espírito (8,
26): “Eu sei que meu Redentor vive!” (Jó 19, 29).
É assim que a criatura ama a Deus. Não antes nem depois do instante
[crítico] que “não é”, [o instante que não está cronologicamente situado na
escala de nosso tempo], e que, todavia, é o sentido e significado de todos mo-
mentos de nosso tempo. “MAGNA ET INCOMPREHENSIBILIS RES EST,
AMARE DEUM NEMPE HILARI PECTORE ET GRATO COMPLECTI PER
OMNIA VOLUNTATEM DIVINAM, ETIAM TUM CUM DAMNAT ET
MORTIFICAT”. (Melanchton).
[Sim, grande e incompreensível coisa é, amar a Deus, sem dúvidas, com
o peito tomado de alegria e gratidão pela totalidade da vontade divina, inclusi-
ve pela condenação e mortificação ou,] melhor entendendo: quando tiver lugar
o amor a Deus, a possibilidade religiosa (conscientemente ou não) passa a ser
acontecimento temporal. [Todavia], para caracterizar a temporalidade [a natu-
reza efêmera] da religião, não é necessário que ela seja acompanhada dos fenô-
menos (tipicamente transitórios) — a profecia, o dom de línguas, sabedoria —
que nela, por vezes se manifestam, tão certo quanto, no Livro de Jó, não são
importantes os excelentes discursos proferidos pelos seus amigos.
O que importa é a resposta de Deus que ali está; é a presença de Cristo;
é o derramamento do Santo Espírito. É o caminho “inexplicável” (I Cor. 12,
31) de Deus para os homens e dos homens para Deus.
[A tradução de Almeida escreve: “Procurai, com zelo os melhores dons
e eu passo a mostrar-vos ainda um caminho, sobremodo excelente”; e o Após-
tolo apresenta um hino de louvor à caridade, ao amor].
492
O Amor 8, 28
É o caminho que foi aberto, que pode ser palmilhado e pelo qual a cria-
tura entra em contato com a sua carência, [com o que lhe falta] e com a sua
liberdade; ao longo dele se dá a fundamentação existencial da personalidade e
a revelação do sentido eterno de todas as possibilidades do ser humano. [Esta
revelação, todavia, se completa] no “além” daquilo que fica suprimido; quando
o menino for homem; quando contemplarmos de face a face e não mais através
da imagem obscura do espelho; quando já não conhecermos somente “em par-
te” mas totalmente, conforme somos conhecidos... (I Cor. 13, 8-12).
O amor a Deus — ÁGAPE [o festim de caridade e amor dos antigos
cristãos] diferencia-se de tudo e todo EROS religioso pela relampejante espada
da morte e da eternidade; o amor a Deus proclama que a Nova Criatura está
perante Deus, esse Deus que não pode ser atraído por baladas e canções de
amor como Baal e seus iguais.
Este é o amor que jamais acaba (I Cor. 13, 8) e que permanece junta-
mente com a fé e a esperança: “Estes três, porém o maior destes é o amor”,
porque ele é o acontecimento existencial presente tanto na fé quanto na espe-
rança, (como a “consubstanciação energética” da fé (Cal. 5, 6) — (Almeida
registra... “mas a fé atua pelo amor” e a tradução inglesa escreve “a fé opera
pelo amor”]. O caminho inexplicável (sobretudo excelente (I Cor. 12,31 2ª par-
te)], o caminho do Amor (I Cor. 13, 13), é única, total e exclusivamente, obra de
Deus. CARNI CONTRARIA VOLUPTATE SPONSUS SPONSAM SUAM
AFFICIT CHRISTUS, NEMPE POST AMPLEXUS, AMPLEXUS VERO IPSI
MORS ET INFERNUS SUNT. (Lutero).
[A estes ele] permite que todas as coisas operem conjuntamente para o bem”.
O amor a Deus é humildade tão consciente de si mesma, humildade que
sabe tão bem o que quer, que já não formula determinadas perguntas, nem
levanta determinadas reivindicações. Este amor, por ser anseio tão veemente, já
provou o sabor do cumprimento e, por isto, não pode mais ser mitigado, [muito
menos] extinto.
Este amor é paz suficientemente profunda para, simultaneamente, abri-
gar a maior calma e a mais alta inquietação. Este amor é tão grande expectativa
pela Redenção, que não necessita de esperar por acontecimentos, cumprimen-
tos [de profecias e promessas divinas], e livramentos.
Este amor, inconscientemente, tem conhecimento de Deus e, conscien-
temente, ignora a vaidade de nossa existência.
No amor a Deus está o ponto invisível e eterno onde já se realizou ple-
namente a conversão de todas as coisas.
Jó, em seu desarrazoado clamor à vista do obumbramento de Deus, “fa-
lou retamente perante mim”, e por isso o Senhor o recebe e lhe concede “em
493
8, 28 O Amor
dobro, tudo quanto antes possuíra”, (Jó 42, 7-10), pois ao contrário de seus
amigos por demais religiosos ele venceu o “ponto morto” e chegou ao “ponto
vivo” onde o ser humano e seu mundo, não só ultrapassaram a noite, como
estão sob o reflexo do glorioso dia vindouro, quando Deus deixa de ser o Gran-
de-Desconhecido para se tornar o Grande-Conhecido, quando o misterioso
Universo se revelará como criação de Deus. “Pois todas as coisas operam con-
juntamente para o bem daqueles que amam a Deus”.
Esse bem é a contemplação do Redentor e da Redenção; é alcance da
vida que está além da morte; é o princípio da expectativa que já não é mais
expectativa; é o “não-conhecimento” de Deus que é o mais alto conhecimento;
é saber o que é o pecado, a morte, satanás e o inferno, que é o supremo desco-
nhecimento.
O bem é o amor de Deus à criatura humana que, miserável e nua, apenas
está ainda vestida na presença de Deus mas, por isso mesmo, está ricamente
trajada.
Tudo precisa operar conjuntamente para que aqueles a quem Deus ama
sejam participantes desse bem; tudo precisa cooperar na construção desse bem.
Tudo, quer dizer a totalmente inconstrutível visibilidade do mundo, [sua
materialidade] e também a igualmente inedificável invisibilidade de Deus; o
lamento da criação e as trevas da ira divina; a incurável dubiedade dos tempos
e a incerteza da eternidade que se lhe opõe.
Aquele que ama a Deus está onde as duas negações [a realidade do
mundo e a invisibilidade de Deus] se manifestam mais agudamente e se contra-
põem, uma apontando à outra e se cancelando mutuamente. Quem ama a Deus
está na posição onde, por trás dele, acima dele e nele mesmo, se vê superimposta
a nova condição: Jesus Cristo, a ressurreição e a vida.
Bem-aventurada é a descoberta de que Deus habita na luz inacessível e,
igualmente bem-aventurada é a outra, de que toda a carne é como a erva e toda
a glória humana como a flor do campo! Se uma dessas descobertas se der em
Espírito e Verdade, a outra ocorrerá semelhantemente, e ambas operarão con-
juntamente, conduzidas pelo único Deus, cuja majestade é, aqui e no além, [e
em toda parte] o [divino] SIM que está contido no próprio não de Deus.
O amor a Deus leva a criatura a observar tanto o lado de lá quanto o lado
de cá do grande mistério como um conjunto único e, além de todas dubiedades
e tensões, em tudo, vê esta verdade única: que Deus, o Livre, o Justo, o Santo,
o que Vive, reconhece a nós, os cativos, OS pecadores, os condenados, os mor-
tos, como sendo seus!
No inconsciente conhecimento e consciente desconhecimento a que o
amor a Deus dá lugar, manifesta-se a primitiva unidade entre o visível e o
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O Amor 8, 28
invisível; entre o céu e a terra; entre o ser humano e Deus. Também a dualidade
conforme aqui a conhecemos e que teremos de [suportar e] reconhecer até o
final de nossos dias, proclama a sua unidade, que é a nossa esperança: a glória
dos filhos de Deus.
É assim que Deus recompensa aos que o amam.
— Quem são estes, porém?
— “Aqueles que são chamados segundo sua deliberação”.
Portanto, nem estes, nem aqueles, nem tampouco, todos.
A pergunta: “Quais são os que amam a Deus?” não pode ser posta
quantitativamente.
O amor a Deus não é [dom que possa ser] concedido; isto [não aconte-
ceu, não acontece e] jamais acontecerá em parte alguma; ele não está à mão e
não se o pode apanhar, nem para o indivíduo nem coletivamente; ele não pode
ser conquistado nem herdado, nem existe nas pessoas como se fora proprieda-
de de alguém.
[Paralelamente é preciso entender que] na realidade, e na forma mais
séria de seu significado, não há “cristão”; o que existe é a eterna possibilidade,
sempre presente e igualmente acessível a todos, de se tornarem cristãos. Sem-
pre, e por toda parte, Deus, o próprio Deus, se antepõe ao ser humano, neste
mundo.
Foi Deus quem primeiramente amou a criatura humana; foi Deus quem
rasgou, quem abriu o abismo à direita e à esquerda de cada pessoa, tirando-lhe
todas as demais alternativas de forma a restar-lhe esta uma só: amar novamente
aquele que acentua as antonomias da duplicidade e as faz operar “conjunta-
mente” para que ao ser humano não passem de todo desapercebidas a
inambigüidade e a oculta unidade dessa duplicidade. Assim Deus edifica o que
[de outra formal não seria edificável nem aqui nem no além.
“De acordo com a sua decisão”, aqueles que o amam são chamados a
executar a obra para a qual ninguém pode chamar outra pessoa, nem mesmo
oferecer-se.
E quando foi que alguém que amasse a Deus entendeu de outra forma?
Quem há que, (amando a Deus), acaso se glorie de dar a volta à chave e abrir a
porta realizando a plenitude da negação da negação; que se glorie de haver
vencido o caminho estreito entre os abismos que o ladeiam; que haja trocado o
sinal daquilo que não é edificável tanto no aquém como no além e tenha, assim,
conseguido e efetivado a conversão de todas as coisas? Que a “certeza cristã”
que, felizmente, subsiste apenas na presunção dos teólogos, tenha a desfaçatez
de citar, de mencionar os paradoxos absolutos do governo divino do mundo e a
confiança dos homens em Deus, como fatos religiosos, contando com eles ou,
495
8, 28 O Amor
pelo menos, fazendo-os soar como se fossem moedas verdadeiras. (E não im-
porta que essa atitude seja o resultado de um genuíno embaraço ou que ela seja
tomada como recurso de retórica ou ainda por astúcia apologética, para
contraexibir [pretensos] valores. [A verdade é que] quem realmente ama a Deus
sabe que este amor não é “uma coisa”, uma façanha heróica desta ou daquela
pessoa; não é um porto no qual, finalmente, possamos ancorar depois de longa
viagem. [Quem sente o amor a Deus] sabe que ele não é um “Bem” cuja posse
o cristão de alguma maneira possa ostentar de direito ante quem quer que seja;
sabe também que este sentimento é, unicamente e sempre, dom e obra de Deus,
e a conseqüência da vocação [do chamamento] que tem por base a decisão
divina tomada desde antes de todos os tempos e também antes de todo instante
de nosso tempo. “Dando-lhes tu, eles o recolhem; abres a tua mão, e enchem-se
de bens. Escondes teu rosto e ficam perturbados; se lhes tiras a respiração,
morrem e voltam para o seu pó”. (Sal. 104, 28-29).
Somente em Deus, passa a dualidade a ser unidade.
Quando se manifesta o amor a Deus, então também Deus se manifesta
[ou melhor, então o ser humano adquire [ou assume) condições de sentir a
manifestação de Deus] e esta sua manifestação jamais se estende pelo tempo,
de forma que ela não pode tornar-se um “bem”, uma posse, (para quem quer
que seja]. Esta manifestação é (repetimos) de novo e sempre, trabalho próprio
de Deus e dádiva exclusivamente sua, porquanto só em Deus pode a “vida” ser
morte e a “morte” vida; somente ele revela a criação no Cosmos e só ele revela
que ele mesmo é o Redentor.
Somente Deus cria a existencialidade da conversão do conhecimento
não redimido, tirando-o da vaidade do mundo para o livre conhecimento. [Em
outras palavras, só Deus dá vida à conversão que tira a criatura, não redimida,
da vaidade do mundo e a restaura no livre conhecimento da verdade].
Somente Deus produz a conversão de nosso conhecimento irredimido
[e portanto cativo do pecado], em conhecimento livre.
Estes, pois, são os que amam a Deus; que para isso foram chamados
pelo próprio Deus e por ele só. Como poderiam amar a Deus se houvessem
encontrado a seu próprio ver, respostas mais satisfatórias, mais aquietantes?
“Porquanto aos que conheceu a estes também destinou a serem confor-
mes a imagem de seu Filho (a fim de que este seja o primogênito) entre muitos
irmãos. Porém a estes que para isto destinou, a estes também chamou”.
São identificados como “chamados” [vocacionalmente], aqueles que
amam a Deus; “chamados” evidentemente em contraposição aos “não-chama-
dos”, aqueles que pretendem [pensam] ou aparentam amar a Deus, porém não
o amam.
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O Amor 8, 29-30
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8, 29-30 O Amor
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O Amor 8, 29-30
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8, 29-32 O Amor
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O Amor 8, 31-32
Vs. 31 e 32 Que diremos, pois, à vista dessas coisas? Se Deus é por nós, quem
será contra nós?Aquele que não poupou o seu próprio Filho, antes, por
todos nós o entregou, como não nos dará também, com ele, graciosamen-
te, todas as coisas?
“Que diremos, pois, à vista dessas coisas?” — [o que diremos pois] para
esclarecer, interpretar e completar aquilo que o próprio Deus diz aos que o
amam, aquilo que só Deus pode afirmar lá onde ele quer que o procuremos e
onde ele se dá a conhecer?
Acaso [poderíamos juntar algo ao que Deus diz, sem obscurecer-lhe o
sentido?] Poderíamos acrescentar alguma coisa que não fosse senão um peque-
no comentário, [não importa se] reiterando ou negando o que Deus disse?
Ora, calar sobre o que o amor [a Deus] conhece [e traz ao nosso conhe-
cimento] tem o mesmo efeito obscurecedor que falar a seu respeito; erramos
igualmente, quer falemos quer silenciemos mas estaremos certos em ambos os
casos se Deus nos justificar— (literalmente, “se Deus nos der razão”).
“Se Deus é por nós, quem será contra nós?”
“SI DEUS PRO NOBIS, QUIS CONTRA NOS?” Se soubéssemos de-
clinar e entender devidamente o pronome [em sua forma] NOS e NOBIS, então
também saberíamos conjugar corretamente o nome DEUS fazendo desse subs-
tantivo um verbo que significaria DEUS DIXIT ET DICTUM EST; então a
preposição CONTRA, envergonhada, diminuiria [progressivamente] para se
tornar, finalmente “INFRA NOS conforme, alias, acontecerá — aliás, tem de
acontecer. Amém”! (Lutero) . “Deus por nós” é o que se diz aos que amam a
Deus. “Deus por nós”, é coisa nunca dantes ouvida; significa que o reino dos
contrastes [das antinomias] já passou. Significa que foram vencidas as trevas
do mundo visto por Deus e, também, as trevas em que o mundo via a Deus.
[As duplas trevas foram desfeitas pelo nascimento do Homem Novo (em
Cristo) que já não apresenta as trevas da retenção da verdade com sua própria
justiça e não está à sombra do NÃO divino à injustiça humana. Todavia, o Ho-
mem Velho, (em Adão)] é precipitado na dualidade dessas trevas e, eventualmen-
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8, 31-32 O Amor
502
O Amor 8, 33-39
todas as coisas. Quando somente Deus permanece, ele se torna o nosso verda-
deiro Deus vivo; então surge, para nós, a esperança de sua glória. Ali está Deus
— o Deus a quem nunca conhecemos se não como nosso opositor, como quem
está contra nós — [e que, agora e aqui] é o “Deus por nós”.
O Cristo entregue, o Cristo que tudo nos tira [que nos leva à renúncia de
todas as possibilidades do mundo], deixando-nos apenas a existencialidade de
Deus é, [realmente] o “Deus por nós” (8, 31) e “nós”, ao lado de Deus; temos
de ousar o assalto a esta posição incapturável que, todavia, já caiu! O Cristo
que foi entregue é o Espírito, a Verdade, o incansável braço de Deus. Se sofrer-
mos com ele, como não haveremos de ser, também, glorificados com ele? (8,
17). Se morrermos com ele, como não haveremos, também, de viver com ele?
(6, 8). Se Deus nos entregou, juntamente com ele, ao tribunal que está sobre
todos [que a todos julga], como não nos concederá também, em toda graça, que
todas as coisas concorram conjuntamente para o nosso bem?! (8, 28).
“Em toda graça!” — Não podemos falar, mas também não podemos
deixar de falar da aurora que vimos!
— Este assalto que aqui é feito à fortaleza “Deus por nós” acaso pode
ser confirmado?
(A tradução inglesa escreve: Podemos agora, afinal, anunciar que assal-
tamos e ocupamos a fortaleza “Deus por nós”?
Embora esta maneira de traduzir possa estar implícita no contexto geral
parece-me que, pela posição em que a frase está e pela maneira de escrever do
Autor, ele quer referir-se à idéia geral contida nos versículos 33 a 39 nos quais
503
8, 33-39 O Amor
se afirma vigorosamente que “Deus é por nós”. [A tradução literal da frase, que
segue imediatamente à transcrição dos versículos é: [Pode a posição “Deus por
nós” aqui assaltada, ser confirmada?)].
[O A. prossegue, respondendo sua pergunta:]
— Não; ela precisa ser renunciada imediatamente pois sabemos que
este território é propriedade de Deus; é território no qual nada temos a procurar,
nem agora, nem no passado, nem no futuro. [Entenda-se: O “assalto” precisa
ser renunciado].
Acusação se levantará sempre, — a todo tempo, em todo sentido e con-
tra todas pessoas.
O que mais pode a criatura humana ser perante Deus senão acusada?
Somos condenados ao sermos medidos em Jesus Cristo e “entregues”
juntamente com ele.
Estamos separados [infinitamente distanciados] do amor de Cristo por-
quanto a minúscula fagulha do nosso amor é incomensuravelmente pequena
ante o brilho do amor a Deus que Cristo revela em sua morte. Aberta esta porta
e expostos a esta luz, quem poderia ser justificado? [É insignificantemente peque-
no o nosso amor] quando contrastamos a divindade, a glória e o eterno porvir
que vemos, cremos e experimentamos em Cristo, com a miséria da vida que
temos de viver em sua brutal realidade.
“Em tudo isto somos vitoriosos!
“Somos”? Acaso “nós”? Nós que de uma ou outra forma nos converte-
mos, ou que procedemos desta ou daquela maneira ou que, de alguma forma
fomos convencidos, entusiasmados ou adequadamente orientados?
Ora, sejamos honestos, comedidos e objetivos. Não falemos apressada-
mente, nem em voz tão alta e com tanta certeza; também não seja, aquilo que
dizemos, mera repetição, mas falemos baseados em nossa própria observação.
Olhemos a enorme diferença entre [o que Cristo revela em sua morte e]
a nossa experiência, ou a de outros. É mesmo possível que — HORRIBILE
DICTU —, a experiência dos outros esteja, até, menos distante que a nossa...
Todavia, para uns e outros, e sem fim a diferença entre o instante eterno
no qual abordamos [assaltamos] a posição “Deus por nós”, e todos demais
momentos tanto anteriores como posteriores, nos quais “ainda” ou “de novo”
(e há muito tempo) estamos do lado de fora, vangloriando-nos de uma vitória
que, o quanto possamos perceber, é uma derrota.
Todavia, não podemos desistir desse assalto porquanto o “amor a Deus”
por parte daqueles que para isto foram chamados pelo próprio Deus e que são
destinados e conhecidos por ele (8, 29-30), caiu nos braços [ou no coração] do
encolerizado juiz da criatura deste mundo. Cristo — o HOMEM NOVO que eu
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O Espírito 8, 33-39
não sou — implantou seus pés onde não posso estar. A ele se diz o que eu não
posso dizer. Ele não é apenas aquele que morreu, mas nele se completa a con-
versão [a mudança, a transformação] de todas as coisas; ele é aquele que res-
surgiu e, nesta qualidade, está em meu lugar à direita de Deus e intercede por
mim. Ele percebe que eu, o pecador, estou justificado; que minha prisão é mi-
nha liberdade e que minha máxima aflição na morte é a vitória da vida.
Eu sei que ninguém e nada me poderá separar do amor de Cristo —
(amor, esse, do qual nada sei).
Consideramos monstruosas as intermináveis finitudes, sua realidade e
a inevitabilidade dos contrastes que elas criam entre o “saber” e o “não-sa-
ber”, entre a morte e a vida, entre o ser humano e o ser divino, entre o passa-
do, o presente, o futuro, e o FUTURUM AETERNUM (do outro lado); entre
o que é visível e o invisível no além, entre o relativo e o absoluto, entre a terra
e o céu.
Todavia [essas terríveis e infindáveis antinomias] são, perante Deus e
em Deus, a negação da negatividade, cuja imposição é suprimida e a criatura se
encontra em paz, adotada como “filho”, redimida e liberta de todas antinomias,
una em Deus. Porquanto o amor de Deus, em Jesus Cristo, é a unidade [ou a
unificação] do amor de Deus ao ser humano e o amor do ser humano a Deus.
Nessa união está a vitória de nosso amor; nela se realiza a “irrealizável” identi-
ficação.
Todavia, precisamos voltar imediatamente ao fato de que, de forma al-
guma somos nós que realizamos esta identificação; nem, sequer, a podemos
considerar como realizável. Baste-nos saber que é desta união que viemos e
para ela vamos.
[Jesus Cristo, ontem, hoje e para sempre.]
1. Ao tratar da obra de Deus junto aos homens, Barth diz repetidas vezes
que Deus se justifica perante os homens e conta com eles; todavia o
A. não entra em minúcias sobre estes aspectos específicos do relaci-
onamento de Deus com o ser humano. (Deve ser porque escreve para
teólogos!)
Por que precisa Deus justificar-se? Acaso não disse ele a Moisés,
“Eu sou o que SOU”!? É certo que a seguir Deus abrandou a sua
maneira de se identificar: “Dirás que quem te enviou é ‘o Deus de
nossos pais, o Deus de Abraão’... “(Exo. 3, 14-15).
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8, 1-39 O Espírito
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O Espírito 8, 1-39
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Capítulo IX
A TRIBULAÇÃO DA IGREJA
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9, 1-5 Solidariedade
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Solidariedade 9, 5
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9, 5 Solidariedade
É certo, diz o A., que o texto como doxologia independente poderia ser
admitido porém ele não concorda com Juelicher que diz ser esta a única inter-
pretação cabível, e faz notar que Lietzmann, embora também aceite a hipótese
de que se trate de doxologia independente do texto, é mais prudente com res-
peito à possibilidade de existirem outras interpretações plausíveis.
Para que a passagem possa ser tida como doxologia independente, diz o
A., é necessário aceitar a sua redação como assindetonia inteiramente estranha
ao estilo de Paulo e também totalmente descabida no texto.
Em vista desta série de dificuldades e anomalias que as três versões
admitidas apresentam, Barth conclui que, provavelmente, a forma do texto que
chegou até nós resultou de erro de transcrição, que pode ter ocorrido por confu-
são com o texto em II Cor. 11, 31 ou sob a influência dele; portanto ele prefere
acompanhar a conjetura levantada por Wettstein há mais de 200 anos, redigin-
do conforme está transcrito no início do capítulo.
O A. junta mais algumas razões para justificar a sua posição:
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Solidariedade 9, 1
515
9, 1 Solidariedade
vigorosa e mais adequada a seu ser, pois não falamos das degenerescências
religiosas, porém da plenitude da Igreja ideal.
— Dissemos “frente ao evangelho” como se houvesse contraposição de
“ponto por ponto”? Pode, aqui dar-se o caso de uma parte pretender ter razão
perante a outra, que não a tenha?
— Sim, sem dúvida!
A Igreja enfrenta o Evangelho na qualidade de corporificadora
[materializadora] das derradeiras possibilidades humanas deste lado (aquém)
da “impossível possibilidade” de Deus.
É na Igreja que se escancara o abismo [que separa a criatura do Cria-
dor], como em nenhuma outra parte; aqui irrompe a enfermidade da criatura
em Deus, porquanto a Igreja é o lugar onde, deste lado do abismo, a eternidade
revelada é prontamente transformada em temporalidade, em realidade materi-
al, em coisa corriqueira ou usual; o relâmpago celeste é logo transformado em
fogareiro de combustão lenta; o deserdamento é o desnudamento [da criatura,
em Deus e por Deus] são encarados pela Igreja como ganho e proveito. O des-
canso [que a criatura deveria gozar] em Deus, é considerado como desconforto
e a inquietação [que o ser humano deveria sentir com respeito às coisas divinas]
desaparece no sossego [que a Igreja sugere].
Na Igreja, o “mundo do além” é transformado em mundo metafísico
que “existe” além daquele que conhecemos e que, por isso, passa a ser tido
como simples prolongamento do nosso.
A Igreja é o lugar onde se sabe e se “tem” toda sorte de coisas de Deus
e, conseqüentemente, é aí que dele nada se sabe ou tem. Na Igreja Deus é, de
alguma forma, desvinculado do PRINCÍPIO e do FIM que desconhecemos, e
empurrado para o centro, nosso conhecido, a fim de que não precisemos de nos
lembrar, a cada instante, de que é necessário morrer para alcançar sabedoria;
antes pelo contrário: a Igreja apresenta a fé, o amor e a esperança, a nossa
filiação a Deus e o Reino de Deus como se fossem “coisas” que se poderiam
ter, ser, esperar ou obter pelo nosso esforço.
A Igreja é a tentativa mais ou menos geral e enérgica de humanizar
aquilo que é divino; é o esforço para temporalizar, materializar, mundanalizar;
[a Igreja procura] transformar [o que é divino] em alguma coisa prática e o faz
para o bem da humanidade que não pode viver sem Deus mas, também, não
pode conviver com o Deus Vivo. (Ver “O Grande Inquisidor”!)
Em resumo: [a Igreja] tenta transformar o caminho incompreensível e
inevitável, [a senda apertada e difícil, a via do paradoxo da fé,] em vereda que
possa ser entendida. Neste particular a Igreja Católica [a Romana e também a
Ortodoxa] teve bem melhor sucesso que o Protestantismo o qual padece com-
516
Solidariedade 9, 1
parativamente mais ante o fato de que o ser humano não alcança aquilo que,
como membro da Igreja, ele tanto aspira.
(Humanamente falando), o que a Pessoa procura na Igreja é a sua “en-
trada” no céu, e esta entrada a Igreja não pode dar.
A missão da Igreja é mostrar o definitivo NÃO de Deus a tudo quanto é
do mundo, nele está, ou dele tem origem; é testificar a salvação que há em
Cristo Jesus. Porém a salvação propriamente dita, a dádiva da reconciliação
com Deus, a “entrada” no Paraíso, é graça divina operada EXCLUSIVAMEN-
TE pelo Espírito Santo.
Quanto mais fiel a Igreja for à verdade evangélica mais alto ela falará do
NÃO divino e mais claramente apontará à cruz da renúncia, do sofrimento, da
vergonha, da dor e da aflição; mais fortemente proclamará a absoluta necessi-
dade de o homem perder a sua vida para ganhá-la. Tal Igreja não opiará o povo,
antes o despertará, o sacudirá, até que cada um clame “Deus meu!, Deus meu!”.
[Dentro da dialética irônica do A. é certo que, no acalento dos que dor-
mem, as Igrejas “menos” evangélicas têm maior êxito do que as que diligenciam
obedecer aos preceitos bíblicos.]
Ainda falando humanamente, não podemos deixar de dizer que a Igreja
visível é o Corpo de Cristo; que entre aqueles que nela ingressam, que a ela se
ligam, há os que buscam a Deus para adorá-lo em Espírito e Verdade; há os que
esperam e desejam o antigo estado de filhos de Deus, a sua volta ao lar; todavia,
não visam necessariamente a sua “entrada” no céu, mas amam a Deus. Já não
confiam em seus dotes, seus bens materiais, seu saber, seu estofo moral, sua
espiritualidade, sua fé; não buscam nem pedem recompensa, porque sabem que
nada merecem. Contudo, vivem em esperança, pela fé. Crêem que Deus é po-
deroso para os salvar. Confiam no sacrifício expiatório de Cristo; esperam em
Deus!
[A seguir o A. afirma que há oposição constante e perene entre a Igreja
e o Evangelho: Diz que a Igreja nega o Evangelho e que o Evangelho suprime
a Igreja.
É evidente que Barth não quer dizer que a Igreja desaparecerá ou deve
desaparecer; tal interpretação é inteiramente inadmissível ante as afirmações
feitas em capítulos anteriores onde Barth declara, inclusive, que a existência da
Igreja é essencial à religião que é, por sua vez, a mais sublime de todas as
atividades humanas.
Também é certo que neste contexto, quando Barth fala da Igreja, ele não
se refere às agremiações de caráter eclesiástico pretensamente paralelas ao Cris-
tianismo — (Judaísmo, Maometanismo, etc.) — nem a conventículos seme-
lhantes ao Mormonismo, por exemplo, nem ao Espiritismo ou alguma forma de
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9, 1 Solidariedade
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Solidariedade 9, 1
de onde caiu; que com temor e tremor espera pela coroa da vida; que humilde e
crente confia na fidelidade de Deus. (Apoc. caps. 2 e 3).
É pois evidente que a oposição entre Igreja e Evangelho é de fora a fora
e que, basicamente, ela é interminável. Sim, senhores, neste assunto um lado
tem razão e outro está errado.
O Evangelho é a revogação da Igreja e a Igreja é a revogação do
Evangelho.
— Porém, quem se contrapõe a quem?
— Os antagonistas são a criatura humana e Deus!
Não se trata de homem contra homem; não é Saulo ou Paulo contra os
demais fariseus! Não é o pregador do Evangelho contra o membro da Igreja.
Estas contraposições não são infinitas mas altamente finitas. Nos lábios huma-
nos não há pregação pura do Evangelho que não seja “eclesiástica”.
O evangelista como tal, é também membro da Igreja, sofre de sua afli-
ção e participa de sua culpa.
O incógnito divino continua por mais clara que seja a nossa pregação do
Evangelho, porquanto ninguém pode de direito [e com propriedade] falar sobre
Deus, ainda que o fizesse com línguas de fogo. Nem podemos ser diferentes:
todo aparato [de que nos servimos] para erigir manter e ordenar o relacionamento
[humano] com Deus é eclesiástico e [é claro que em nossa pregação] tudo faze-
mos para tornar compreensível o “incompreensível” caminho [da salvação].
(Acaso haverá algum homem de Igreja que não proceda dessa maneira?).
Se não mostrarmos a eternidade na semelhança das coisas efêmeras, (se
não acharmos analogias para ilustrar nosso discurso), então estamos servindo à
Igreja e não estamos pregando o Evangelho (e quem, senão só Deus, pode
livrar-nos dessa possibilidade tão altamente provável?).
[Entendo que o A. quer dizer que se intentarmos falar de Deus e sobre
Deus em termos metafísicos, transcendentais ou filosóficos, sem recorrer a com-
parações e ao estabelecimento de paralelos com fenômenos do mundo tempo-
ral estaremos, talvez, exaltando a cultura, a sublimidade da Igreja ou promo-
vendo sua mística mas, não estaremos entregando a mensagem de Deus a nos-
sos ouvintes.
Barth afirma que a própria pregação, em suas variadas facetas, é qual
parábola dos diferentes aspectos da verdade divina, pois:]
A sistemática inevitavelmente eloqüente que empregamos quando pre-
tendemos fundamentar e disciplinar nosso discurso é qual parábola da inque-
brantável unidade da verdade;
O fato de ninguém conseguir falar seriamente a respeito de Deus sem
com isso envolver sua própria pessoa e comprometer-se a si mesmo (fato que
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9, 1 Solidariedade
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Solidariedade 9, 1-2
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9, 2-3 Solidariedade
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Solidariedade 9, 3
trazer aos seus ouvintes a resposta que Deus tem para dar e dá através da
instrumentalidade da Igreja. [Isto é, aquela Igreja que se assenta sobre a pedra
fundamental que é Cristo, o Filho do Deus Vivo, contra a qual não prevalecerão
as portas do inferno].
Todavia o Pregador sabe que a Igreja, sendo constituída por membros ainda
sujeitos ao “corpo desta morte”, está em natural oposição ao próprio Evangelho
conforme bem o comprovam as discórdias entre os irmãos; o Pregador sabe que
não é a “mudança de denominação” nem mesmo a troca de confissão religiosa que
modifica a criatura, que a cura espiritualmente, que a salva e a conduz para a vida
eterna. Esta graça é dada por Deus, e Deus somente! [Isto evidentemente, não sig-
nifica que aqueles que se convertem a Cristo devam ficar onde estão, que não pre-
cisem “mudar” de Igreja; isto dependerá da conjuntura de cada caso e a divina
inspiração do Espírito Santo mostrará o caminho a seguir. Saulo não foi desobedi-
ente à visão celestial; deixou o farisaísmo e entregou-se ao Cristianismo e, para
isso, teve de afastar-se da sinagoga dos judeus, fundando as inúmeras Igrejas Cris-
tãs que o registro dos atos apostólicos e as cartas de Paulo bem revelam.
Quem realmente se converte, muda de rumo em sua vida; não mais se
afasta de Deus mas vai ao seu encontro no caminho para a cruz; esta conversão,
esta mudança de rumo exige novos caminhos e o converso abandonará a aveni-
da larga, plana, alegre, do comodismo, para seguir a vereda estreita e difícil da
renúncia. Mudará de Igreja? Talvez sim e talvez não. Quem houver passado da
morte para a vida buscará aquele redil onde melhor possa praticar o bem que
deseja e quer; onde, no seu entender, melhor possa louvar e adorar a Deus em
Espírito e em Verdade; ele terá que decidir por si mesmo, perante Deus e optar!
Esta é a sua responsabilidade (e também o seu privilégio) como criatura feita à
imagem e semelhança de Deus!].
[O Profeta não apenas se solidariza com a Igreja mas] se dirigirá oportu-
namente e com absoluta seriedade a todos quantos lhe pareçam haver descuida-
do demais das coisas eternas para chamá-los aos fatos, [para convidá-los a par-
ticipar da Igreja], embora o faça com certa dose de humor pois sabe que sua
advertência não é mais do que parábola; todavia, ele está também totalmente
isento da loucura de pretender ensinar novos caminhos [fora da Igreja]; ele não
tem a mínima inclinação de se colocar na posição de detrator ou inimigo da
Igreja, ainda que o estímulo e o convite a ir até tais conseqüências o pressionem
clara e veementemente; isto porque o ato de deixar a Igreja ou o Sacerdócio [o
Ministério] tem ainda menos sentido lógico do que o suicídio.
O Profeta não entrará num bote salva-vidas para fugir da inevitável ca-
tástrofe que ameaça a Igreja mas permanecerá, agradecido ou não, no seu pos-
to, seja este na Casa de Máquinas ou na Ponte de Comando.
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9, 3 Solidariedade
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Solidariedade 9, 4-5
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9, 4-5 Solidariedade
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a Igreja não o tem. Como objeção do próprio Deus à Igreja, não deveria ser
ignorada levianamente a objeção que os inimigos da Igreja levantam quando
dizem que o “canal” está vazio, e que a posse da Filiação, das Alianças, da Lei,
do Culto Divino, das Promessas, dos Patriarcas, do Cristo segundo a carne e do
próprio Deus, não pode ser considerada como existencial [como real e objeti-
va] embora de todas essas coisas a Igreja se glorie e não sem razão. Quando
esse leão rugir, quem há que não tema? Deus, como Deus, cessa a solidariedade
entre Paulo e os Fariseus e se inicia o protesto, o contraste.
Vista por Deus, como Deus, a Igreja está extinta desde agora, “Ouvis o sinal?”
Comentários: 9, 1-5
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9, 6 O Deus de Jacó
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O Deus de Jacó 9, 6
também o Apóstolo estaria junto com os muitos que se queixam dizendo “que
a palavra de Deus falhou”, e por isso se põem a [imaginar e] meditar sobre
como poderão ser salvos. [Estivera] em tal situação, o Apóstolo responsabiliza-
ria a degenerescência humana pelos inconfundíveis sintomas da evidente en-
fermidade crônica da Igreja e tomaria as medidas apropriadas e mais ou menos
decisivas para debelar o mal.
Todavia isto lhe é defeso pelo inextrincável paradoxo da verdade, O
tema da Igreja é, realmente, a Palavra de Deus, a palavra do fim e do começo,
[do alfa e do ômega]. É a palavra do Criador, do Redentor, do juízo e da justifi-
cação; esta Palavra de Deus é ouvida por ouvidos humanos e enunciada por
lábios também humanos, porquanto a Igreja é sempre e reiteradamente a comu-
nidade formada por pessoas que ouvem e anunciam a Palavra de Deus. Dessa
conjuntura resulta que os ouvidos e lábios humanos hão de sempre e necessari-
amente falhar quando se tratar [do discernimento e da proclamação] da palavra
infalível de Deus; o ser humano precisa ouvir e anunciar sempre a verdade de
Deus que, todavia, assim ouvida e anunciada já não é a verdade divina. Daí
resulta que o tema da Igreja é tão [absolutamente] verdadeiro que jamais será
VERDADEIRO a menos que [...] aconteça o milagre! Esta é a sua tribulação.
[Parece-me que fazendo jogo de palavras conforme é de seu estilo, o A.
quer dizer que a Igreja não pode, pelas contingências da temporalidade que a
reveste, anunciar a Palavra de Deus com “palavras dos céus”, porém o faz com
terminologia humana e entendimento humano procurando (por assim dizer)
TRANSMITIR a inspiração que recebe, embora essa “retransmissão” seja im-
perfeita.
A Igreja que tiver Cristo por alicerce não é detentora da verdade porque
ela não detém Cristo em si mesma, porém ela é a fonte onde brota, ou melhor,
onde pode e deve brotar a água viva, porque a água da vida somente jorrará
enquanto e na medida em que Cristo for, de fato, alicerce; contudo, mesmo estan-
do fundamentada em Cristo, a água que através dela jorra traz consigo algumas
das características materiais — humanas — que deturpam a verdade eterna de
modo que a mensagem da Igreja, sendo da Igreja, já não é a verdade de Deus; no
entanto o mister, o assunto, o tema de tal Igreja é a própria Verdade, (é Deus!); é
de Deus que a Igreja fala, por isso não fala “exatamente” a Verdade mas fala da
Verdade; se a Igreja revelasse (ou se revelar) a mensagem que tem para entregar
com absoluta fidelidade ao “original”, ela já não estaria (ou não estará) falando
do Deus de Abraão, Isac e Jacó, do Deus dos Profetas e dos Apóstolos, do Deus
Desconhecido, mas de UM Deus, quiçá do Não — Deus deste mundo.
Esta é a deficiência que atinge a Igreja e, paradoxalmente, será sentida
tanto mais agudamente quanto mais firmemente ela se assentar na rocha que os
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9, 6 O Deus de Jacó
“edificadores rejeitaram” por que não quiseram ou não tiveram coragem para
assimilar o escândalo da fé.
Esta é a TRIBULAÇÃO DA IGREJA!
No entanto dá-se o milagre da graça; o Espírito intercede por nós e vem
ao nosso encontro e pela instrumentalidade da Igreja (todavia não somente pela
Igreja) nos leva aos pés da cruz.
Esta é a COROA DA IGREJA! ...]
A Igreja se esfacela na rocha que a fundamenta; ela morre naquele de
quem ela vive. O “bem-aventurado” e, também, “terrível” tema da Igreja é a
Palavra de Deus na qual se efetiva o relacionamento entre o homem e Deus [...
e o verbo se fez carne ...] para que Deus seja verdadeiro e todo homem menti-
roso (3, 4).
[E como poderia alguém falar a própria verdade de Deus?]
Neste tema divide-se a Igreja sempre de novo em Igreja de Esaú e Igreja
de Jacó. Naquela o milagre não acontece e por isso todo falar e ouvir de Deus
apenas revela que o homem é mentiroso, enquanto nesta acontece o milagre e a
Verdade de Deus é visível [acima e] por sobre a mentira humana.
É evidente que estas duas Igrejas jamais e em parte alguma aparecem
[como duas organizações] em oposição entre si. A Igreja de Esaú é a única que
[na realidade desde mundo] é, basicamente possível, visível e conhecida, [seja
ela] Jerusalém, Roma, Wittemberg, Genebra ou de qualquer um de todos luga-
res santos do passado, do futuro [ou atuais]; em todas essas Igrejas, sem exce-
ção, se encontrarão erros, as degenerescências tomam vulto e nelas ocorrem
reformas e cismas.
[De outra parte] a Igreja de Jacó, também basicamente, é a Igreja im-
possível, invisível, desconhecida; é a Igreja sem dimensões e sem cerceamento,
sem sede e sem nome, sem história, sem congregação e sem excomunhões; ao
redor dela está a livre graça de Deus, vocação e eleição, a unidade e o todo,
princípio e fim.
Tratamos da Igreja de Esaú porque somente dela podemos falar; mas
não nos podemos ocupar dela sem imediatamente nos lembrarmos que o seu
[verdadeiro] tema é o da Igreja de Jacó.
Em toda sua dubiedade, Esaú vive de Jacó e subsiste somente porque
não é e enquanto ele próprio não for Jacó.
Como não podemos contornar esta realidade, a [contínua] queda, a pe-
rene degenerescência e a eventual recuperação da Igreja de Esaú passam a ter,
para nós, interesse apenas secundário e não nos podemos animar a perder com
ela uma palavra sequer, a não ser em conexão com sua própria aflição — a
aflição que fustiga suas virtudes e não a que procede de seus vícios.
530
O Deus de Jacó 9, 6-7
Vs. 6 (segunda parte) a 9 Porquanto não por eles descenderem todos de Israel,
são eles Israel; nem por serem descendentes de Abraão são todos filhos de
Deus. Antes: em Isaque a tua descendência terá o seu nome! isto é: os
filhos segundo a carne, como tais, não são filhos de Deus, mas são os
filhos da promessa que são considerados como descendência de Abraão e
de Deus. Porque a palavra da promessa é esta: “Ao tempo eu virei e Sara
terá um filho”.
531
9, 6-8 O Deus de Jacó
uma vez precisamos dizer: o milagre acontece! Então estes são, invisivelmente, a
Igreja de Jacó; possuem a promessa de Abraão (4, 16), são filhos de Deus (8, 16)!
São mesmo? São aquilo que seu nome diz? E por que não seriam? Por que
não o seriam todos eles desde os mais categorizados até os mais de baixo? Quais,
deles todos, não seriam testemunhas e sinais da lei e dos profetas (3, 21)?
“Em Cristo”, todos eles, sem exceção, são Filhos de Deus.
Porém, “em Cristo” quer dizer na medida em que se der o milagre; na
medida em que a livre graça, vocação e eleição de Deus assim o quer; na medi-
da em que houver compreensão (entendimento) de Deus.
(Parece-me que a versão inglesa inverteu o sentido desta última frase,
escrevendo “na medida em que forem conhecidos por Deus”. O original escre-
ve: “SOFERN ERKENTNISS GOTTES STATT FINDET”. Ao pé da letra pa-
rece-me que seria “CONQUANTO O CONHECIMENTO (A NOÇÃO, A
COMPREENSÃO) DE DEUS (SE REALIZE (OU) TENHA LUGAR.
Daí a interpretação adotada que me parece ser mais coerente com as
idéias gerais do Autor e também mais bíblica].
(Se não houver compreensão de Deus] se não for pelo milagre, pela
eleição divina, então não é “em Cristo”! Portanto nunca e jamais enquanto
forem “descendência de Israel” ou “tronco de Abraão”; nunca e jamais por
força da eventual máxima plenitude da Igreja de Esaú ainda que ela atingisse o
ápice, à culminância do desenvolvimento religioso da humanidade.
De Deus e somente de Deus procede a possibilidade de que a palavra
infalível que eles [os que estão na Igreja] ousam ouvir e da qual se atrevem
falar, seja uma palavra abençoada.
Acaso não é motivo de aflição se esta for a situação da Igreja com rela-
ção ao seu próprio tema? E esta aflição que, de uma ou outra forma, constitui a
base de todas atribulações da Igreja, inclusive daquelas vindas de fora; é por
isso que ela não é reconhecida [pelo mundo]; [é por causa desta aflição básica]
que são infrutíferas, tanto a nossa eventual teima em sustentar a situação [a
Igreja] existente, quanto a tentativa de reformá-la ou de criar novas condições
[ou novas organizações eclesiásticas].
“Em Isaque será chamada a tua descendência” (ou segundo a redação
do A., “em Isaque a tua descendência terá o seu nome]. (Gen. 21, 12).
Isto é, os filhos segundo a carne, como tais, não são Filhos de Deus, mas
são os filhos da promessa que são assim considerados.
Portanto todos os que “descendem de Israel” e que representam aqueles
que a Deus levantam mãos postas em oração, estão dentro da crise da duplicidade
da Igreja ou, por outras palavras: [estão sob] a dupla predestinação; para eles
subsiste a dupla possibilidade que se fixa e se desloca em Deus, somente. Como
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O Deus de Jacó 9, 6-8
533
9, 8-9 O Deus de Jacó
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O Deus de Jacó 9, 9
promessa divina, Parece-me que isto é assim porque não se trata de decisão
simples; não se cogita nem mesmo de alguma decisão extremamente importan-
te ao nível das coisas mais sérias do mundo, mas da única decisão que a criatura
humana precisa tomar ante o seu Criador. Não é questão aleatória “mui simples
de entender” e “fácil de explicar” como pretende certa “teologia para crian-
ças”. Trata-se de assunto crítico e decisivo a ser resolvido, quiçá em oportuni-
dade única, e que é um só: Jesus Cristo! Se esta questão for considerada casual,
simples, talvez vulgar e até repetitiva ou mesmo rotineira, ou se ela apresentar
alternativas e variantes segundo critérios humanos, se a verdade for retida pela
injustiça dos homens, então a plataforma de opção se amplia mas ela perde o
seu significado real; será a decisão por alguma verdade secundária, de caráter
transitório, que poderá proporcionar ao suposto crente a paz enganosa, passa-
geira, tão do gosto do mundo e, talvez, também do agrado de não poucos mem-
bros das variadas confissões religiosas, inclusive “cristãs”, que vão desde os
praticantes do mais “moderno” protestantismo até o mais “ultramontano” cato-
licismo, para não mencionar seitas pretensamente evangélicas ou cristãs, cujo
leque se estende desde as mais ingênuas até as mais satânicas e desde as mais
exóticas até as mais solenes.
A decisão fácil, casual, fortuita, invalida e anula a promessa de Deus aos
homens ou melhor, não diz respeito a essa promessa pois não se relaciona com
o DEUS DESCONHECIDO de Abraão, Isaque e Jacó cuja verdade a Igreja
proclama (ou deve proclamar), antes serve ao NÃO-DEUS cuja “verdade” o
mundo gosta de ouvir.
É por isto que a Igreja não pode, em instante algum, desejar que esta
aresta aguda da linha de decisão se alargue, que se transforme em plataforma
ampla e firme, tão caracteristicamente — mas também de forma tão caricata —
definida no antigo e tolerante aforismo: “Todas as religiões, sendo sinceras, são
iguais perante Deus”! Esta é a falácia da tolerância religiosa].
Esperança [posta em algo] visível, não seria esperança (8, 24); a suposta
presença direta da verdade divina, não é a Verdade Divina. A Igreja que ousa
ouvir a Palavra de Deus com ouvidos humanos e dela falar com humanos lábi-
os VIVE da promessa porém, tanto a criatura como tudo quanto é humano
precisam MORRER nessa mesma promessa a fim de que vivam para Deus.
A Igreja — e principalmente ela — não pode esquivar-se dessa morte
pois justamente a Igreja que perece [que morre em Cristo], é a que verdadeira-
mente vive da promessa, isto é, vive à luz do eterno cumprimento que vem de
além da vida e da morte.
Toda Igreja que triunfa desta ou daquela forma, [aleatoriamente] e que
por isso é tida por viva. “tem o nome de que está viva, mas eis que está morta”.
535
9, 9-13 O Deus de Jacó
536
O Deus de Jacó 9, 10-13
A resposta:
“Para que prevalecesse a determinação por Deus que é segundo a elei-
ção e a decisão se dá não por obras, mas pela vocação”.
Portanto é porque, havendo a descendência de Abraão travado relações
com Deus e porque Deus é Deus, ele sempre e reiteradamente se confirma
como Deus; [reiterou] que ele, ele mesmo e somente ele, é quem elege e conde-
na, eleva e faz cair, dá a vida e a tira.
De que outra maneira haveremos de reconhecer esse Deus, senão nesta
sua sabedoria? [Como poderíamos sequer vislumbrar] esse Deus totalmente
diferente que não está ligado a qualquer característica humana, nem de modo
independente nem relativamente e que não pode ser contrastado com coisa al-
guma? Como haveria de se tornar visível para nós o Deus Invisível e como
haveríamos de conhecer o Deus Desconhecido senão nesta segunda condição
de sua liberdade? E de que outra forma poderia efetivar-se o tema da Igreja
senão mediante a contínua reiteração de sua crise?
A própria descendência de Abraão, oprimida por Deus, nada mais pode
aspirar nem querer senão que “a determinação de Deus, segundo a eleição,
prevaleça”, que Deus tenha razão e a detenha em sua irrestrita liberdade.
Deus é glorificado com o júbilo dos eleitos [ou salvos] e também com o
ranger de dentes dos condenados porque na incontornável doutrina da eterna
dupla predestinação “não se trata da limitação quantitativa mas de descrição
[especificação] qualitativa da ação divina” (Kuehl), [A tradução inglesa escre-
ve “definição” divina]. Não há modo de ser, posse ou ação humana, nem obra
alguma que, nessa qualidade, seja preterida ou preferida; ninguém, na
temporalidade, pode consolar-se com a eleição e ninguém tem de estar consci-
ente da condenação eterna. Antes, o que esta doutrina ensina é a fundamenta-
ção eterna da criatura humana e que nesta fundamentação “a decisão é dada por
aquele que chama”; ensina que Deus é verdadeiramente o Deus dessa criatura,
O que o ensinamento da dupla predestinação assinala é o paradoxo; no contras-
te da eleição e da rejeição o seu entendimento é equívoco.
É a descendência de Abraão — (e também a Igreja) — que procura
entender [esse paradoxo]. “Deus não te ajuda por tua causa, mas por ele mes-
mo” (Schlatter). Se for diferente então, absolutamente, não é ele quem te ajuda;
tal auxílio não vem de Deus.
Deus conduz a sua causa na Igreja e por ser sua a causa, ela [a Igreja]
não sossobrará. [O A. diz, literalmente, “ela não pode sossobrar”]. É justamen-
te por isto que haveremos de tomar muito cuidado ao desfazer da “causa em
que estamos”, [ao detratar a Igreja] porquanto ao conduzir a sua causa Deus,
em todo caso, arrebatará a nossa (como “nossa”!), de nossas mãos; permitirá
537
9, 13 O Deus de Esaú
ou não que se dê o milagre. [É Deus somente que] confirma seu Israel (como
seu!) e rejeita aos que o são apenas de nome; conduz à luz um povo que o serve
e envolve em trevas a outro que apenas pretende servi-lo; dá a herança a seus
filhos e a tira dos estranhos; aos que chamou abençoa com sua presença e com
sua ausência castiga os que não chamou; faz derradeiros dos que no mundo são
primeiros e dos que aqui são os últimos ele faz primeiros: tudo isto sendo ele
Deus, o Desconhecido e sendo seus o Reino, o Poder e a Glória.
“Porquanto amei a Jacó mas odiei a Esaú”. Recordamos que esta é uma
descrição da conduta de Deus. (Mal. 1, 2-3); é uma descrição da qualidade do
procedimento divino: procedimento livre, régio, soberano, incondicional; [humana-
mente] sem razão de ser. Só nesta forma podemos entender e honrar a Deus pois ele
somente é compreendido pela criatura deste mundo e por ela considerado digno de
honra, como o Deus que elege e rejeita, que ama e odeia, que faz viver e faz morrer.
O paradoxo de que a eternidade se torna temporal sem, todavia, ser tem-
poral, constitui a tribulação da Igreja e é, também, a revelação de Deus. [Este
paradoxo] está no enigma e na parábola do amado Jacó e do odiado Esaú; [está]
no segredo da eterna dupla predestinação. E por isso que a predestinação é o
segredo do ser humano e não desta ou daquela pessoa. Ela não separa uns dos
outros [ela não discrimina entre as pessoas] mas é o mais profundo elemento da
generalização da espécie humana. [A tradução inglesa escreve que os homens
“não são separados, mas unidos pela predestinação”.]
Ante a predestinação estão todos na mesma linha; tanto. Jacó quanto
Esaú se defrontam com ela durante toda sua temporalidade. Com ela defronta-
se Esaú no eterno instante da revelação e também Jacó. Jacó é o Esaú invisível
e Esaú o visível Jacó.
A formulação reformada da doutrina da predestinação fixando a eleição
e a condenação na unidade psicológica do indivíduo, e quantitativamente em
[número de] eleitos e condenados é mitologificante. Paulo não quis dizer isso
nem poderia pensar assim pois nele, de fora a fora está focalizado o interesse de
Deus pelo indivíduo e jamais o interesse do indivíduo por Deus [como seria o
caso se a aproximação da criatura humana a Deus fosse, de alguma forma,
originada pela predestinação].
[A tradução inglesa escreve assim: “Quando os Reformadores aplica-
ram a doutrina da eleição e rejeição (predestinação) à unidade psicológica des-
te ou daquele indivíduo e quando se referiram quantitativamente aos “eleitos” e
“condenados” eles estavam, conforme agora se pode ver, falando mitologica-
mente. Paulo não pensava nem quantitativamente nem psicologicamente por-
quanto a sua ênfase está posta, totalmente, no interesse de Deus pelo indivíduo
e não no interesse do indivíduo em Deus].
538
O Deus de Esaú 9, 13
Vs. 14 a 18 O que diremos pois? Não é isto uma iniqüidade da parte de Deus?
[Almeida escreve “injustiça divina”].
Impossível! Porquanto ele disse a Moisés: Compadecer-me-ei de quem
me compadecer e terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia.
Portanto é assim: não vem do querer e do correr da criatura humana
mas do Deus que se apiada. Porquanto a Escritura diz a Faraó: Foi por
isto que te levantei, para em ti evidenciar o meu Poder e para que o meu
nome seja proclamado em toda terra.
É pois, assim: ele tem misericórdia de quem quer e obstina a quem lhe apraz.
539
9, 14-18 O Deus de Esaú
Quem é o Deus que assim nos fala, em cujas mãos é tão terrível cair, que
lida com os seus dessa maneira e lhes prepara semelhante aflição?
Quem é o Deus tão superno, que faz maravilhas, que não pode ser co-
nhecido e em quem não pode ser crido senão pelo milagre da revelação e na
transformação (pela mudança) da rejeição em eleição?
Quem é o Deus que sempre se faz encontrável e que, por isso mesmo,
quer ser sempre procurado? [quem é esse Deus] que por toda eternidade é o
Deus de Jacó e, por isso mesmo é, a todo tempo, o Deus de Esaú?
[Quem é] o Deus que de maneira tão absolutamente superlativa é, ele
mesmo, a verdade a ponto de a criatura deste mundo não poder ter “certeza”
dele?
Quem há que não estremeça [ante essas considerações]?
EST ENIM PRAEDESTINATIO DEI VERE LABYRINTHUS, UNDE
HOMINIS INGENIUM NULLO MODO SE EXPLICARE QUEAT - (Calvino).
Acaso não é evidente que este pensamento (de Calvino), sobre o qual
nenhuma Igreja digna desse nome pode deixar de ponderar, é um ataque ao
princípio fundamental de toda Igreja? Não é claro que ante a realidade desse
Deus [que assim elege e rejeita] todas nossas abstrações ético-religiosas ruem
por terra como se fossem esferas equilibradas sobre hastes pontiagudas, como
casas e árvores representadas em pinturas futuristas?
Acaso não são por demais compreensíveis as objeções que em todos os
tempos o açodamento e o curto-fôlego eclesiástico-religioso levantam à doutri-
na da predestinação em nome da altamente ameaçada criatura humana? [Aca-
so] não é inevitável que do mais alto e mais destemido pináculo da fé humana
sempre e sempre ressoe de novo a estulta pergunta (3, 5), se Deus não seria, ele
próprio, “iníquo? Se ele não seria um demônio malévolo e caprichoso que nos
faz parvos, a todos, um perturbador das normas da justiça [do direito] a que ele
próprio deveria estar sujeito?
Há algo mais revoltante aos homens do que esta potestade, majestosa-
mente misteriosa, inescrutável, inacessível, intocável, que só ela é livre, só ela
poderosa? Não estaríamos todos inclinados a clamar espontaneamente que se-
melhante ENTE não pode, não deve ser Deus?
É certo que a Igreja não compreenderá [a natureza da] sua tribulação e
não poderá transformar-se enquanto a ameaça dessa interrogação [sobre a ini-
qüidade de Deus], [ou a formulação] dessa queixa e dessa acusação não for
entendida em sua inteireza.
Sem chegar a esta pergunta, sem nos conscientizarmos da falência ca-
tastrófica de tudo quanto a criatura possa pensar sobre Deus e “fazer” por ele,
não há conhecimento de Deus, nem consolo, nem socorro.
540
O Deus de Esaú 9, 14-15
[A tradução inglesa escreve: “Em qualquer caso temos que admitir que
enquanto a Igreja não reconhecer quão ameaçadora é a possibilidade dessas
perguntas, dessas queixas e acusações, ela nem entenderá sua própria atribulação
nem alcançará a transformação de sua miséria. É precisamente na possibilida-
de de semelhante interrogação que se revela a extrema impropriedade de toda
noção que os homens têm de Deus e de tudo quanto podem fazer por ele. Não
há conhecimento de Deus, nem consolo nem esperança, fora da catástrofe à
qual essa possibilidade dirige nossa atenção].
Um Deus contra o qual não se levantasse esse clamor, não seria Deus.
A este respeito cumpre notar que a característica da proclamação do Evange-
lho de Cristo, tanto no Antigo como Novo Testamento consiste no destaque
dessa objeção e nisto o Evangelho difere de outras mensagens, mais baratas e
agradáveis.
Quando o assunto é tratado com seriedade, sobressai o escândalo da
predestinação e o Deus de Esaú tem a palavra.
Estas são coisas que Nietzche, em sua selvagem oposição a Deus, pare-
ce ter entendido melhor do que os irrefletidos crentes “diretos”, [quiçá os que
se consideram em ligação direta e íntima comunhão com Deus-Pai] que ousam
incriminá-lo por isso. Porquanto [está escrito]: “A Jacó amei, mas odiei a Esaú”.
“Isto está em conformidade com outros episódios semelhantes, como [por exem-
plo], a coluna de nuvem que se pois entre exércitos de Faraó e Israel, e era
escuridade para aqueles e luz para estes. Estas passagens têm dois lados: para
aqueles que crêem, que confiam no amor de Deus, elas têm um sentido amorável,
suave; porém aos que prefeririam poder contar com suas próprias obras elas
são, francamente, qual nuvem tenebrosa.
“Quanto mais duras essas proposições forem consideradas por alguém,
tanto mais está essa pessoa absorvida por sua própria justiça; porém quanto
melhor aceitarmos esse ensino, mais plenamente repousa nosso coração na graça
divina”. (Steinhofer).
A objeção [de que Deus é iníquo] é impossível por mais pertinente [mais
verossímil] que pareça; por mais profunda que seja sua penetração na realidade
[segundo o critério humano]. Esta objeção apenas pode ser levantada para ime-
diatamente ruir sobre si mesma e assim, nesta emergência e pronta submersão,
evidenciar que Deus é “aquele que é”: o Deus de Esaú, por ser o Deus de Jacó;
ele é o Deus que gera a aflição porque traz o socorro; é o Deus que rejeita
porque elege.
Justamente por isso a crise não pode ser contornada nem se pode querer
afastar o escândalo da coluna de nuvem de dois efeitos.
Tratemos agora de como suportar esta crise.
541
9, 15-16 O Deus de Esaú
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O Deus de Esaú 9, 15-16
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9, 16-18 O Deus de Esaú
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O Deus de Esaú 9, 17-18
545
9, 18-21 O Deus de Esaú
Vs. 19 a 21 (Um episódio [uma digressão]). Sendo assim, o que tem ele a
censurar pois quem haveria de resistir à sua vontade?
Ó homem! Quem és tu que queres replicar a Deus? Acaso pode a obra
feita perguntar ao mestre: por que me fizeste assim? Acaso não tem o olei-
ro poder sobre a argila para, da mesma massa, fazer um vaso para adorno
e outro para a imundícia?
546
O Deus de Esaú 9, 19-21
“Neste caso, o que tem ele a censurar, pois quem haveria de resistir à sua
vontade?”
(Almeida escreve: “Do que se queixa ele?”]
Já conhecemos esta aproximação, [este tipo de conversa] (3, 8; 6, 1
e 6, 15)
[Ora], nenhuma ação humana contribui para o triunfo, para a vitória de
Deus; [qualquer que seja nossa reação ou nossa atitude, ela não constituirá nem
empecilho, nem contribuirá para a promoção dos desígnios de Deus].
Concluir-se-ia, pois, que ante a absoluta liberdade de Deus e conside-
rando que só ele é Todo-Poderoso e, mais ainda, que o ser humano não tem
qualquer responsabilidade e, [finalmente], como o pecado é sobrepujado pela
universalidade da graça divina, então a criatura humana pode praticar, livre-
mente, tanto o bem quanto o mal?
Esta conclusão surge infalivelmente sempre que se meditar seriamente
sobre a eternidade ou sobre o pensamento de Deus, todavia, quando esta inda-
gação surgir precisamos conduzir-nos com tremor e temor porque estaremos
fitando a sarça ardente, estaremos próximos de Deus; contudo a Igreja não
pode deixar de levar essa indagação a sério por considerações de ordem huma-
na pois, de outra forma, [as pessoas que tomarem essa objeção por válida]
poderão ser conduzidas à loucura, à imoralidade, ao crime e ao suicídio. [Se a
Igreja objetar a essa indagação,] colocará em jogo a sua própria existência como
fator [de moderação e de sal da terra] na sociedade e no mundo.
As coisas mais absurdas que podem acontecer e têm ocorrido no con-
texto da proclamação evangélica, justamente nos seus pontos mais altos, não
testificam contra a verdade [anunciada] mas contra a criatura humana que não
consegue suportá-la. Naturalmente (quando dizemos “criatura humana”)
referimo-nos a todos os homens e não a uma ou outra pessoa que em virtude de
sua força ou sua fraqueza tenha sentido no próprio corpo, de maneira clara e
especial, quão insuportável é a verdade; (portanto, não é apenas contra
Nietzsche), porém e contra a sociedade e contra o mundo cujas organizações
parecem esfacelar-se [ou desconjuntar-se] quando a ordem divina acaso se apro-
xima delas. O desfecho do “Idiota” de Dostoiewski ou o fim de um Hoelderlin
ou Nietzsche, a inevitável catástrofe de todos “BATIZADORES” (Muck-
Lamberty!), apenas tornam consternadamente claro que a criatura, em sua pre-
sumida opulência, sua sanidade [e saúde], sua retidão, precisa morrer, [precisa
desaparecer] perante a verdade.
As pessoas [que sentem o problema da eternidade de forma crucialmente
pessoal] são quais parábolas [para observação e ensino] indicando aos demais
que talvez tenham sido poupados de tão grande tentação e conseqüente queda,
547
9, 19-21 O Deus de Esaú
o quanto a criatura está enferma [e fraca] perante Deus, embora esse resguardo,
provavelmente, não contribua para a celebridade deles.
[A tradução inglesa escreve: Os sofrimentos de tais pessoas, em todo caso,
mostram quão grande é a enfermidade de que os homens sofrem nas mãos de Deus].
[Em nota de rodapé a Edição Inglesa explica que... “Muck-Lamberty”
foi um escândalo religioso que surgiu entre “Movimento de Juventude” na Ale-
manha de após a primeira guerra mundial.
Hoelderlin foi poeta alemão que faleceu sofrendo das faculdades men-
tais, em estado de infantilismo, (apud Delta-Larousse).
Nietzsche terminou seus dias, também, transtornado mentalmente e sen-
tindo extrema solidão].
O que acontece com tais pessoas é prova inconfundível de quanto a
criatura humana está enferma em Deus. Todavia não é o caso de fugir da doen-
ça (de que todos sofremos) por medo dos sintomas; [afinal], as mais pavorosas
aberrações e os destinos trágicos de uns poucos ou de muitos, nada mais são do
que sintomas. Não é o caso de contornar a aludida objeção ou de não meditar
seriamente sobre o pensamento de Deus.
Apenas podemos praticar efetivamente o amor ao próximo mediante o
amor a Deus, mas este amor a Deus não nos permite calar a respeito do temor
que a ele devemos, nem por medo dos homens nem para lhes sermos agradáveis.
Parece-nos que agora entendemos o perigo que representa a restrição
[... “neste caso, o que tem ele a censurar?”].
Vemos esse perigo porque fracassamos e sempre fracassaremos de novo
se quisermos falar da liberdade, do poder e da graça de Deus de tal maneira que
de nosso discurso resulte um maior e melhor conhecimento de Deus e não uma
erupção [violenta] de nossa própria prepotência.
E porque é notório que fracassamos sempre [quando queremos arrazoar
a respeito da liberdade, do poder e da graça de Deus nos têrmos da objeção
formulada], não nos podemos conformar com o sacrifício que a via indireta da
verdade sempre exige: a renúncia a toda argumentação lógica e insubmissa.
Esta renúncia se impõe mais fortemente justamente quando meditamos sobre
os pensamentos de Deus com seriedade absoluta.
Fica, portanto, fundamentalmente assentado que a objeção levantada
não corresponde à verdade e, por isso, deve ser rejeitada.
Vamos, porém, elaborar essa rejeição, mais uma vez. ([Para as anteriores
ver] 3, 5s; 6, Is; e 6, l5s). “Ó homem! Quem és tu que queres replicar a Deus?”
O homem! Com isto já está dito o que se poderia dizer contra essa objeção
que ignora a infinita diferença qualitativa que existe entre Deus e os homens.
Essa crítica ajuíza entre o Criador e a criatura como se fosse entre coisas iguais;
548
O Deus de Esaú 9, 19
549
9, 20-21 O Deus de Esaú
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O Deus de Esaú 9, 21-23
vaso de flores quanto um urino] — (que a liberdade do artista para decidir entre
este e aquele produto não se prende a concatenações de causa e efeito,) — do
ponto de vista da “matéria prima” e do “produto” continua faltando a explica-
ção do “por que” de cada decisão.
Assim, o homem e Deus. Deus está perante o homem como ORIGEM e
não CAUSA. Se o homem for justo, ele o é para Deus; se pecar, peca contra
Deus. Se o homem viver, vive na participação da vida divina e se morrer é
porque a criatura precisa morrer em Deus!
Na sua existência e no seu modo de ser a criatura não é apenas condici-
onada mas, juntamente com tudo [ou todas as coisas] que a condicionam (e que
esse conjunto fosse um “Deus”), a criatura é (ou seria) um ser criado.
A parábola [a analogia] do “Artífice e da Obra” ou do “Oleiro e do
Barro”, naturalmente não se estende a este “CRIAR”; todavia, aponta para ele.
A criatura humana está perante Deus como a realidade ante o irreal; como o
“SER” ante o “NÃO SER”.
Qualquer argumentação sobre a justiça e sobre a liberdade da criatura
pode, quando muito, adiar o enfoque do problema da origem, da justiça e da
liberdade de Deus; o problema do começo e do fim, da criação e da redenção. A
ponderação sobre a predestinação significa a renúncia fundamental dessa
procrastinação e ela se impõe forçosamente quando Deus é reconhecido como
DEUS perante todo o SER, o TER e o AGIR da criatura humana.
Deus precisa ser compreendido como o Deus de Jacó E o Deus de Esaú;
de outra forma não ficaria claro como, em toda temporalidade, ele é o Deus de
Esaú e, na eternidade, é o Deus de Jacó.
Como porém, se imporia mais vigorosamente a idéia da responsabi-
lidade individual do ser humano (que a objeção (9, 19) teme ou deseja), do que
pela “assim chamada” relatividade (correlação!) do ser humano perante Deus?
551
9, 22-23 O Deus de Esaú
552
O Deus de Esaú 9, 22-29
Ante a aflição que Deus preparou para Jacó, Moisés, Elias, não se pode,
em verdade, deixar de considerar que do ponto de vista humano, os seus
opositores Esaú, Faraó, Acab, escolheram a melhor parte. [Todavia], este Deus
é o escudo, o grandiosíssimo galardão, eternamente. [Gen. 15, 1].
Mas, se o processo da revelação deste Deus único partir sempre daquilo
que é temporal para o eterno, da rejeição para a eleição, de Esaú para Jacó, de
Faraó para Moisés? Se a existência dos “Vasos da ira” (que todos somos na
temporalidade) for a expressão da contenção e tolerância divinas, (3, 25-26), se
for o véu da grande longanimidade (2, 4) e paciência de Deus, atrás do qual a
existência dos “vasos de misericórdia” (que todos somos na eternidade!) está
apenas encoberta mas não perdida? E se a pessoa de Esaú, votado à perdição (à
qual também Jacó pertence!), tiver de suportar sempre a ira de Deus apenas
como substituto para que a pessoa de Jacó, que foi preparada para a glória (à
qual também Esaú pertence!), tenha acesso à justificação de Deus, que existe
oculta na ira e dela emerge? Incompreensível e temível é este processo da reve-
lação que tudo abrange e tudo suprime! Incompreensível e temível é este
ocultamento do verdadeiro SER, atrás da [própria] existência! Incompreensí-
vel e acima de qualquer imaginação é este irrompimento da justificação divina
através de toda injustiça e retidão humana!
Mas... se for assim? Se este processo for conforme a vontade de Deus
para conosco? Então, onde fica a nossa pergunta infantil, mitológica, sobre a
razão de Deus querer esta dualidade?
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9, 24-29 O Deus de Esaú
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A Tribulação da Igreja 9, 1-29
Comentários: 9, 1-29
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9, 1-29 A Tribulação da Igreja
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A Tribulação da Igreja 9, 1-29
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Capítulo X
A CULPA DA IGREJA
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A Crise do Conhecimento 9, 30
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9, 30 A Crise do Conhecimento
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A Crise do Conhecimento 9, 30
mas também sem horizontes mais amplos, [situação essa] que a leva a ansiar
por alguma luta, alguma oposição, chegando quase a suspirar, saudosa, por
uma pequena perseguição [para sacudir os fiéis, afastar os adesistas e oportu-
nistas] e se livrar da proximidade incômoda [daqueles que estão a seu lado,
assim postos por Deus, sem serem da Igreja].
Acaso não está a Igreja (mais ou menos) nessa situação desde os tempos
dos apologistas?
[A apologética como defesa do cristianismo contra os ataques de seus
inimigos “hereges”, ateus ou seculares, surgiu e celebrizou-se nos tempos de
Tertuliano, por volta do ano 200].
Todavia, olhos mais penetrantes postados à janela da Igreja vêem mais
do que isto — [do que a preocupação da Igreja em sondar a reação de seus
ouvintes e, quiçá, defender a posição de seus fiéis] — pois percebem, (se tiverem
a acuidade necessária para compreender o que se pode vislumbrar apenas indi-
retamente), que a Igreja não poderá salvar sua situação e sua existência peculi-
ar, colocando o mundo no banco dos réus por causa de seu empedernimento no
pecado e então avançar contra ele com bordunas e alfinetadas.
Tais observadores terão percebido com horror o que está claramente
descrito em 2, 14-29: “Gentios que não têm a lei praticam, em sua condição
natural, o que a lei exige”. Eles não correm empós a justificação porque já a
alcançaram; não aceitam ensino [não entram para a Igreja] porque já receberam
ensinamento; não têm interesse nas coisas religiosas porque, de há muito, Deus
se interessou por eles. Não se interessam pela “nossa” Palavra de Deus porque
já de há muito eles a ouviram sem nossa intervenção, pois ela mesma se anunciou.
Os filhos deste mundo, os ímpios, [o A. escreve os “não-santos”], os
incrédulos, na total nudez de sua miséria e, talvez, também na total inteireza de
sua alegria não admitem que os transformemos em objetos de nossa pregação e
de nosso zelo pelas almas, de nossa evangelização, de nosso trabalho missioná-
rio, de nossa apologética, de nossa atividade salvacionista; tampouco se sujei-
tam a ser objeto de nosso amor, porquanto foram procurados e encontrados
pela misericórdia divina muito antes de em nós haver despertado a comiseração
por eles; já estão à luz da ressurreição divina e já participam do “poder” da
ressurreição e da obediência; já sentiram o temor perante a eternidade e, confi-
antes nela em esperança, já entregaram a sua existência nas mãos de Deus! É
claro que julgando segundo a retidão humana, tal possibilidade pode ser refuta-
da com argumentos bem evidentes: quem ignora que os gentios [os não cren-
tes] são, visível e realmente, apenas pobres pagãos?
Todavia, trata-se aqui daquilo que só se pode perceber com os olhos do
Salvador; trata-se da impossível, invisível e inaudita possibilidade que Deus
563
9, 30 A Crise do Conhecimento
564
A Crise do Conhecimento 9, 30-31
565
9, 31 A Crise do Conhecimento
[que é a Igreja] ser a [expressão da] fé que justifica [a criatura] perante Deus?
Não é muito mais provável que [justamente] a mais alta religiosidade seja con-
fundida como predicado da fé e que [na pretensão de ser a própria fé] constitua
a ilusão [a que nos referimos]?
Se existir uma religião superior a todas, ou se quisermos definir o mode-
lo do mais perfeito relacionamento do ser humano com Deus, onde encontrarí-
amos tal excelência senão na religiosidade dos profetas de Israel ou nos canto-
res dos Salmos pois, uns e outros jamais foram superados em sua expressão
religiosa, nem mesmo pela “religião de Jesus” — se é que podemos falar em
“religião” do Mestre. (E isto para nem sequer mencionarmos [o quanto a reli-
gião dos grandes vultos da história bíblica excede e supera em valor o tipo de
religiosidade encontrado na] história das religiões cristãs).
(Contudo, a religião dos profetas e cantores bíblicos também não alcan-
çou a justificação...)
Seja como for: ainda que existisse [ou exista] religião que estivesse [ou
esteja] em harmonia com a justificação divina, a criatura humana não alcança a
“lei da justificação” pois esta lei só pode ser atingida no instante do Milagre
Absoluto, e este milagre vem pela fé; [não chegamos a esse instante porque por
ele houvéssemos diligenciado mediante nosso correr, vigiar e agir] pois FE ou
é milagre ou então não é FÉ.
A Palavra de Deus ouvida por ouvidos humanos e proclamada por lábi-
os de homens somente é [realmente] a Palavra de Deus, quando o milagre acon-
tece. Se não for assim é obra [ou palavra] humana como outra qualquer.
A Igreja é a de Jacó unicamente se o milagre se der; de outra forma ela
é a Igreja de Esaú e apenas isto.
Este milagre não pode ser “almejado”, nem alcançado, nem apresenta-
do mas é, a todo instante, o novo e imprevisível acontecimento divino entre os
homens.
Poderíamos, contudo, perguntar: por que não? Por que não podemos
correr ao encalço do milagre da fé, que a Igreja prega? Por que resulta sempre
sendo [mera] ilusão aquilo que a Igreja tanto busca?
[“Por que não?”] (A resposta:) “Porque esta procura não vem da fé,
porém das obras”.
Somente chegamos à fé “partindo da fé” e pela fé.
Ter fé significa temer e amar a Deus sobre todas as coisas; [significa
aceitá-lo] qual é e não conforme pensamos que seja. Ter fé significa a nossa
sujeição ao indefectível julgamento que a situação geral entre a criatura humana
e Deus exige. Todavia esse julgamento subsiste porque não nos podemos apro-
priar de Deus, não podemos perseguí-lo (caçá-lo) porque Deus é e permanece
566
A Crise do Conhecimento 9, 31-32
sendo para nós por assim dizer — o [“totalmente”] outro, o estranho, o desco-
nhecido, o inabordável. Esta “perseguição”, portanto, não pode ser originada
pela fé, e por isto ela não atinge o seu objetivo, que é a própria fé. A “persegui-
ção” que a Igreja pratica vem “das obras”. As “obras” são o relacionamento da
criatura humana com um Deus conforme ela o supõe e que não é, necessaria-
mente, o Deus que opera maravilhas [ou milagres].
As obras são a “carta magna” do ser humano pela qual ele não reconhe-
ce o julgamento da situação geral entre os homens e Deus; “cartas” em que esse
julgamento não é reconhecido em sua inteireza, — (o que dá na mesma coisa).
Os homens correm em busca da justiça de Deus, da fé e da realização do
milagre através das lacunas da lei e assim esperam poder sentir, alcançar e
mostrar essa justiça. Isto é o que não dá resultado. A Igreja somente poderia
chegar à fé se ela começasse com a [própria] fé: com a fé no Deus desconheci-
do; no Deus vivo.
A Igreja poderia alcançar a justificação no julgamento se ela se subme-
tesse inteiramente ao julgamento; ela não precisaria de morrer se ela não [se
apegasse e] lutasse tão tenazmente por seu feudo. Ela ouviria e proclamaria a
Palavra de Deus se não tivesse pretensão de se engrandecer com a Palavra e não
se preocupasse com os possíveis resultados mas cuidasse [de ser fiel] à verdade
da mensagem.
A Igreja poderia ser a sede do conhecimento se ela quisesse ser a sede
da adoração do Deus incompreensível ante o qual nenhuma carne é justa. Se
ela fosse suficientemente humilde para novamente compreender [reconhecer e
aceitar] a comunidade dos santos como a solidariedade entre os pecadores cons-
cientes do perdão, abandonando, — por isso — toda convulsiva criação de
novas comunidades [religiosas], [novas seitas, novas denominações]; se ela fosse
suficientemente humilde para não se deixar superar por um Kant na prudente
defesa da limitação humana e para suportar com moderação a humilhação [que
lhe impõe] o racionalismo; se a Igreja, [nesta atitude geral] amasse e obedeces-
se a Deus, tal Igreja seria suficientemente corajosa para, ao avaliar e considerar
o seu tema, [a sua missão,] ter ousadia e força para renunciar os [seus próprios]
anseios [de sucesso], abrir mão de seus êxitos e da exibição de seus alvos.
[Para que a Igreja possa candidatar-se a ser a sede do conhecimento de
Deus], é preciso que ela cultive a comunhão com Deus mediante rigorosa críti-
ca a todas experiências religiosas vazias; é preciso que ela não se arreceie de
confrontar a religião com o relativismo de todas religiões; que ela observe o
homem religioso [o beato] — (esta teimosa espécie do gênero humano!) — em
incansável confronto com os gentios, os publicanos, os espartanos, os imperia-
listas, os capitalistas e outros tipos pouco simpáticos (por exemplo, os socialistas
567
9, 32 A Crise do Conhecimento
não religiosos [ateus]) e que são, todavia, justificados por Deus. É preciso que
a Igreja volte sua total objetividade [à pregação da mensagem] do Deus desco-
nhecido, do Deus vivo, do Deus livre; que a Igreja se concentre totalmente na
pregação da cruz. Tal Igreja poderia, de maneira invisível e inaudita, ser a Igre-
ja de Jacó, a Igreja da fé, a Igreja da justificação divina; de fato a Igreja assim
[também] é e foi através de todos os tempos.
Contudo, para ser assim a Igreja precisa ter a ousadia de começar pela
“escuridão” da fé (Lutero) o que, também por todos os séculos que passaram, a
Igreja não tem tido a coragem de fazer.
[A Igreja tem preferido] orientar sua atividade pelas obras, (para aqui-
lo e naquilo) que podemos ver; o que a Igreja diz ser sua fé em nenhuma
hipótese se assemelha com [o paradigma da fé apresentado em] Hebreus, li.
A Igreja não ama a solidão do deserto; mesmo quando ela prega sobre isto,
não é disto que ela realmente trata; mesmo quando ela, aparentemente, se
detém em solidão e no ermo, ela desveste sua solitude de todo espanto verda-
deiro, de todo perigo real. A Igreja não pratica o jejum daqueles que foram
privados da presença do noivo, antes procura e sabe como consolar-se da
terrível vacuidade de toda história da Igreja, recorrendo a toda sorte de ro-
mântico sentimentalismo.
A Igreja não quer ser estrangeira no mundo: ela não pode esperar pela
cidade que tem fundamento — [cujo fundamento é Deus]. A Igreja não se con-
forma em se deter naquele ponto inicial do cristianismo — na paixão do Cristo
abandonado — quando os ponteiros [do relógio do tempo] ainda não marca-
vam a ressurreição, pois ela tem muita pressa, está sedenta e faminta por coisas
positivas, [ela anseia] pelo júbilo do festim nupcial.
A despeito de todas suas derrotas e seus reveses a Igreja não quer recuar
das perdidas obras exteriores para o centro do fortim, mas quer avançar sem-
pre. [Porém, avançar] para onde? Sem dúvida avançar na direção do ser huma-
no que assim, quem sabe, poderia livrar-se do julgamento [divino]. E o avanço
para o que é diretamente constatável, para o que e visível, compreensível, ime-
diato, manejável.
A FÉ segundo o capítulo 11 da Epístola aos Hebreus parece-lhe por
demais desumana, descaridosa, [não amorável], perigosa, não psicológica, não
prática. A mensagem alegre deve ser inteiramente direta; se possível, deve ser
divertida; deve ser algo de positivo e que possa ser assim considerada mesmo
sem fé e sem Deus.
Todavia se a Igreja, em contraposição à “impossível” possibilidade de
permanecer fiel ao seu verdadeiro tema (o que poderia envolver o risco de sua
ruína) [perante o mundo], optar pela “possível” possibilidade de concentrar o
568
A Crise do Conhecimento 9, 32-33
569
9, 32-33 A Crise do Conhecimento
pode ser conhecida indiretamente. [Em Jesus Cristo] Deus se oculta definitiva-
mente para ser revelado apenas mediante a fé.
[Em Jesus Cristo] Deus revela o seu interminável amor, enquanto dá a
conhecer a sua liberdade, o milagre, o seu reino, de forma absolutamente ine-
quívoca. [O original diz “na mais cortante inambiguidade”].
Quem for da verdade, aqui, [em Jesus Cristo,] ouvirá sua voz. Porém,
quem é da verdade? Quem vê Deus qual ele é? Quem há que não tenha milha-
res de pretextos para desviar-se dele?
Não toleramos a verdade e seria milagre se a suportássemos; [todavia, se
este milagre se desse] ele nos salvaria do sofrimento que a situação de criaturas
nos impõe. [Porém] se o milagre não puder acontecer por não estarmos abertos à
verdade, por não estarmos prontos para ela, então a verdade, pela lógica que lhe
é imanente, se transforma para nós em julgamento. Então a criatura, no paroxis-
mo de sua carreira ao encalço do alvo final, que ela designa como Fé, Justifica-
ção, Amor, Deus, ela se despedaça [fica confundida] porque neste Sião, neste céu
terreno, [Deus] estabeleceu a realidade de que ELE é o Eterno que, pela graça,
permite que se o encontre onde ele for procurado como o ETERNO.
Somente aquele que crê não se despedaçará neste tropeço e neste escân-
dalo. Quem porém não crer mas “correr ao encalço”, (9, 31), esse necessaria-
mente colherá apenas nozes chochas; esse tal será qual o homem que dispara
para dentro de beco sem saída.
Irrompe, então, a crise do conhecimento, a catástrofe da religião; o
desnudamente e a vergonha a que fatalmente estão sujeitos todos os empreen-
dimentos irrealizáveis, aparecem inevitavelmente!
A Igreja de Esaú é e permanece sendo a que precisa sacrificar o Cristo o
qual, contudo, é a sua única esperança. Nem pode ser de outra maneira quando
a criatura não reconhece alegremente — e [ainda] quer inverter — a norma
divina, segundo a qual é Deus que nos elege [nos escolhe] e não somos nós que
o escolhemos.
[Deus nos escolheu e nos escolhe pela sua fidelidade à qual apenas pode-
mos corresponder com nossa fé; se diligenciarmos, se nos empenharmos por atin-
gir a graça de Deus, se corrermos ao encalço da vida eterna, se procurarmos a fé,
então não estaremos porfiando por entrar pela porta estreita da renúncia e de nosso
auto-esvaziamento mas estaremos correndo empós uma lei de justificação por for-
ça de nossas obras e não alcançaremos a justificação mas seremos confundidos!
Se dissermos, “façamos o mal, pois então será mais abundante a graça
de Deus”, ou se não nos preocuparmos com nossa vida espiritual “porque Deus
salva a quem quer” então no primeiro caso, estaremos confiando em nossas
obras que, nesta hipótese, são declaradamente negativas; na segunda atitude
570
A Crise do Conhecimento 9, 32-33 e 10, 1-3
571
10, 2 A Crise do Conhecimento
tão fáceis, nem para nós nem para os outros, aceitando o convite implícito nes-
sa censura ou incriminação, abandonando a Igreja assim qualificada e supor-
tando as eventuais conseqüências; sequer pensamos nisso!
Quando falamos da Igreja, falamos de nós mesmos e o fazemos antes de
nos dirigirmos aos outros e ainda uma vez [será essa crítica endereçada] a nós.
Talvez sejamos mais eclesiásticos que os igrejeiros; francamente, “VERE
VERBUM DEI, SI VENIT, VENIT CONTRA SENSUM ET VOTUM
NOSTRUM. NON SINIT STARE SENSUM NOSTRUM ETIAM IN IIS,
QUAE SUNT SANCTISSIMA, SED DESTRUIT AC ERADICAT AC
DISSIPAT OMNIA”. (Lutero).
Todavia [o pregoeiro] não tem culpa de ser assim, de ser a Igreja a maior
atingida. O mensageiro — [o pregador, o pastor, o homem de Igreja] — tem de
fazer valer a Palavra de Deus tanto na Igreja quanto contra ela e não é respon-
sável pelo fato de a Igreja também ser atingida. [Ele seria, sim, culpado perante
Deus e os homens se tergiversasse, se concedesse contemporizações, se procu-
rasse apresentar mensagem atenuada, suavizada, alentadora, ao gosto do mun-
do ...]. Quando prega é o próprio pregador [o primeiro e] o maior atingido!
Nas lides de Deus é completamente impossível haver partido contra parti-
do, pessoa contra pessoa, um lado [ou uma parte] criticando e tendo razão e o
outro sendo criticado e estando errado. No relacionamento com Deus o acusador
e o acusado podem sempre e indiferentemente, substituir-se mutuamente.
Todos aqueles que levam o incontornável problema da Igreja a sério
tanto são acusados como acusadores.
“Pois eu lhes dou testemunho de que têm zelo por Deus”.
Em segundo lugar, poderíamos tranqüilamente [ignorar ou] negar a acu-
sação de que não fazemos justiça ao sentimento religioso e à obra da Igreja
porquanto não só estamos em perfeitas condições de fazer justiça à posição
histórica e psicológica da Igreja, como nos comprometemos a defendê-la pe-
rante o fórum do mundo, pelo menos tão bem quanto o fazem seus mais con-
vincentes advogados. Reconhecemos — uma vez por todas — o seu “zelo por
Deus”. Porém em se tratando de assunto divino, a troca de gentilezas não tem
cabimento. Portanto, para nós não se trata de galopar, de disparar em busca da
lei de justificação (9, 31), [quiçá] montando “animais” mais velozes [como por
exemplo] tendo maior piedade [ou mais devoção], vivendo experiências [espi-
rituais] mais profundas, tendo mais confiança em Deus, ou [mostrando] mais
amor fraternal. Não se trata da ridícula discussão sobre quem “tem mais” isto
ou aquilo, [sobre quem é mais crente, melhor membro da Igreja], se este ou
aquele consegue sobrepujar algum outro em intensidade espiritual, vida interi-
or, paz, entusiasmo, amor, esperança.
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A Crise do Conhecimento 10, 2
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10, 3 A Crise do Conhecimento
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A Crise do Conhecimento 10, 3
Comentários: 9, 30 - 10, 3
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9, 30 - 3; 4 A Luz nas Trevas
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A Luz nas Trevas 9, 30 - 10, 3; 4 e 5
pode alegar que se acha em contingência fatal, mas precisa assumir, ela mesma,
a responsabilidade de seu procedimento.
A luz brilha nas trevas!
Precisamos compreender isto perfeitamente para que tomemos consci-
ência inequívoca e ardente de que a aflição da IgreJa é a sua culpa e, mais
ainda, para que nesta realidade percebamos com clareza o correlacionamento
que existe entre a tribulação e a esperança da Igreja.
A impossível possibilidade divina está ao alcance da Igreja e a luz eter-
na, que emana da luz não gerada, a ilumina. A questão resume-se em saber se a
Igreja tem olhos para ver isto.
Vs. 4 e 5 Porquanto o objetivo da lei é Cristo, para a justiça de todo aquele que
crê. Pois Moisés descreve a justiça que vem da lei com as palavras: o
homem que fizer estas coisas, por elas viverá.
577
10, 4 A Luz nas Trevas
o que significa estar ativa na lei da justiça; se ao menos soubesse o que significa
despertar e viver religião que seja sinal e testemunho; se ela correspondesse ao
último anseio do ser humano resolvendo todos os legítimos penúltimos anseios
peculiares à criatura.
No decurso [e no desenvolvimento] de seu próprio programa, — [no
processo de comunicação da mensagem da redenção] — a Igreja deveria depa-
rar-se com a verdade, a liberdade e a justiça de Deus.
A impossível possibilidade do surgimento do HOMEM DA FÉ dá-se
somente, — este é o caso de Israel, e da Igreja, quando a possível possibilidade
da pessoa religiosa, da adoração “de Deus” e do relacionamento que existe
entre o temporal e o eterno, forem devidamente entendidos como o limite, [o
extremo] da possibilidade humana; quando forem percebidos como aquilo que
está além do [nosso] mundo, como pressuposição, como o centro visual [sobre
o qual estão postos os olhos da fé].
Devoção verdadeiramente séria, ou justiça [ou retidão] humana também
verdadeiramente séria, ou Igreja verdadeiramente séria, de maneira alguma pode
subsistir por si só, (conforme se pode verificar em cada página do Livro dos
Salmos!); qualquer dessas coisas necessariamente apontará para além de si
mesma, pois em todas elas está implícito que nada mais são do que impressão
humana, pontos intermediários, marcos de estrada, aviso e negação. Qualquer
delas, forçosamente, — (ainda uma vez, se forem realmente sérias e se soube-
rem o que significam!) acende o rastilho de pólvora que fará explodir os pago-
des, todos pagodes que acaso estavam (ou estejam ainda) a seu derredor.
[A tradução inglesa escreve: “Se a Igreja for consciente de si mesma e
séria, acenderá o estopim que fará explodir toda edificação sagrada que os ho-
mens já levantaram ou ainda poderão levantar em seu redor].
Se a lei for tomada a sério cessa toda paz, toda segurança, todo descanço
que não sejam a segurança, o descanço e a paz inerentes ao instante eterno da
revelação de Deus.
Cessa então toda “corrida ao encalço” da justiça; cessa toda procura que
seja qualquer outra coisa que não busca de entendimento (10, 2). Cessa todo
desejo de estabelecer “a própria justiça” (10, 3). CESSA! e sabemos o que
dizemos com isto: acontece o milagre; [dá-se] o relacionamento existencial do
homem com Deus e que jamais se realiza na temporalidade: acontece. A fé crê;
Deus fala. Isto é devoção séria; Igreja séria!
Todavia, isto está ao alcance da possibilidade humana (na qualidade de
impossível possibilidade) onde a Igreja estiver; onde se tratar da penúltima
possibilidade humana, isto é, onde existir a possibilidade religiosa.
Também a Igreja de Esaú, a única que conhecemos, vive da possibilida-
de da Igreja de Jacó!
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A Luz nas Trevas 10, 5
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10, 5-8 A Luz nas Trevas
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A Luz nas Trevas 10, 6-7
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10, 6-7 A Luz nas Trevas
Públicas, nas salas de juri; presença da Igreja nas escolas, nos quartéis, nas ceri-
mônias e festas do governo, tudo isso que a Igreja faz com o evidente intuito de
engrandecer-se, de ganhar e assegurar prestígio ou de comprovar seu status, e
que governados e governantes aceitam por conveniência política ou fato consu-
mado, quando não por sorrateiro interesse eleiçoeiro — uns iludem (ou pensam
iludir) os outros — e todos tomam o nome de Deus em vão ...].
[A Igreja realmente séria, na presença de Deus,] deixa de concordar
pressurosa e solicita com toda sorte de duvidosas aspirações de seus leigos;
deixa de recorrer a demagógicos artifícios teológicos e deixa de exercitar (e de
por em prática) a habilidade de colocar-se sempre em cena, de acomodar-se ao
“espírito da época” e de acompanhar o fluxo e o refluxo das “mentalidades”
[em evidência]: o romantismo, o liberalismo, o nacionalismo, o socialismo, [ou
o que quer que seja,] pois é disto que cuida [a Igreja de Esaú].
[Ao apresentar-se a Deus, em seriedade,] a Igreja saberá [ou sabe] que
não se pode “encenar” a Cristo, nem “trazê-lo do céu” ou “tirá-lo de entre os
mortos”. Ela saberá [ou sabe] que de forma alguma Cristo é o exaltado, o trans-
figurado, o ideal, mas é o Homem Novo; por isso o Natal não é a nossa muito
conhecida e querida festa da bem-conhecida “mãe” e tão conhecida “criancinha”.
Semelhantemente a Sexta-Feira Santa não é motivo para nos preocuparmos
ainda mais com nosso sofrimento o que aliás, não deixamos de fazer; a Páscoa
não é alegoria de nossa vida vitoriosa [de nossa vitória sobre a morte] e da
realização triunfante de nossas aspirações [por mais nobres, mais elevadas e até
sublimes que sejam] — (por exemplo, o socialismo ou a restauração da Alema-
nha!) — [Lembrar que o A. escreveu sob a influência da hecatombe de 1918].
A ascenção não é um símbolo de nosso idealismo que vai até os céus, e o fogo
do Pentecostes nada tem a ver com nossos artifícios de “pular fogueiras”, por
mais entusiásticos e genuínos que fossem.
A Igreja, (inclusive toda possível igrejola que por amor à sua sobrevi-
vência nem quizesse ser Igreja,) assim posta com seriedade na presença de
Deus seria (ou será) o lugar onde, em contraste com toda sorte de outros locais
[ou instituições], a distância própria (porém nunca medida!) que vai “dos mais
altos céus” ao “mais profundo dos abismos” é percebida, estabelecida, e res-
guardada para, finalmente, ser expressa em palavras; tal Igreja seria (ou será) o
local onde, com ou sem incenso, já não é preciso silenciar, porquanto a ocasião
própria de calar ou de falar — (até mesmo de clamar!) — perante Deus se
impõe automaticamente quando e onde a criatura percebe a alegre nova, a pala-
vra positiva de Deus; é assim por que, quando e onde isto acontecer, (ao contrá-
rio do que se dá com todo bem-intencionado sentimentalismo e moralismo), a
criatura percebe a palavra altamente negativa da cruz — e somente esta!
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A Luz nas Trevas 10, 6-7
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10, 6-8 A Luz nas Trevas
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A Luz nas Trevas 10, 8
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10, 9-11 A Luz nas Trevas
Senhor; se jamais quisermos estar com as mãos vazias para agarrar aquilo que,
na realidade, somente mãos vazias podem segurar; se já temos as velas pandas
ao vento e as mãos postas no leme antes de sabermos para onde navegaremos;
se já iniciamos a construção da torre ou se já declaramos a guerra sem que
tenhamos orçado o custo das obras ou contado nossas tropas. — então não
podemos alegar que aquilo que deixamos de fazer foi impossível; [não pode-
mos dizer que nossa falha foi por motivo de força maior; que não estava em
nós, como criaturas humanas que somos, atender e prover o que se impôs,
finalmente, como elemento fundamental].
[Não podemos alegar que aquilo que deixamos de fazer foi o impos-
sível] pois mesmo o impossível, como tal, esta próximo de nós, à nossa dispo-
sição; impõe-se a nós, quer irromper por nossas portas a dentro: é mais possível
do que tudo quanto consideramos possível e viável: a luz brilha nas trevas!
Vs. 9 a 11 Porquanto se com tua boca confessares a Jesus como teu senhor e
creres em teu coração que Deus o acordou dos mortos, serás salvo. Pois a
fé que está no coração conduz à justiça e a confissão da boca conduz à
salvação. Ora, a Escritura diz: Todo aquele que nele crer não será enver-
gonhado! (Isa. 28, 16).
“O homem que estas coisas praticar, por elas viverá” (10, 5), é o que diz
Moisés a respeito da justiça [que vem segundo a lei].
Agora vejamos o que significa “praticar” [ou fazer] “estas coisas”.
Outra vez, [e sempre de novo] surge o FUTURUM AETERNUM como
promessa: SERAS salvo (!); não SERÁ confundido”; poderíamos juntar tam-
bém: “SERÁ a Igreja de Jacó.”
Qual é a condição que a Igreja tem para “praticar” a lei de maneira a
fazer jus à promessa?
A resposta; “Se confessares a Jesus como senhor e creres que Deus o
acordou de entre os mortos” serás salvo e, ainda: “Todo aquele que nele crer”,
não será confundido.
Portanto, a condição está nestas três proposições: Jesus o Senhor, a Res-
surreição e a Fé. É a mesma condição que Moisés já havia estabelecido; nada
mais do que a exigência de nos sujeitarmos à justiça de Deus, conforme sempre
o Soubemos e de cujo cumprimento sempre nos esquivamos (10, 3).
Não há outra palavra senão esta que Israel encontra em seu coração e
nos seus lábios, eternamente pronta, eternamente próxima, se Israel souber o
que significa ser “Israel” e quando a Igreja souber tomar a si mesma a sério
(10, 6-8).
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A Luz nas Trevas 10, 9-11
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10, 12-15 A Luz nas Trevas
Vs. 12 a 15 Pois não há diferença entre judeu e grego: o mesmo Senhor está
acima de todos, rico para os que o invocam, porque todo aquele que invo-
car o nome do Senhor será salvo. Porém, como poderiam invocá-lo se não
cressem nele? E como poderão crer nele se dele não tiverem ouvido? Mas
como poderiam ouvir sem pregador? E de que maneira se poderia anunciá-
lo sem ser enviado? Conforme está escrito: Quão oportuna é a aproxima-
ção dos pés daqueles que trazem boas novas! [Comparar com a tradução
de Almeida, notadamente quanto às formas verbais].
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A Luz nas Trevas 10, 12-15
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10, 12-15 A Luz nas Trevas
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10, 16-17 A Luz nas Trevas
Não há dúvidas quanto ao brilho da luz nas trevas mas, sim, se justa-
mente a Igreja — a descendência de Abraão — vê essa luz.
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A Luz nas Trevas 10, 16-17
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10, 16-17 A Luz nas Trevas
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10, 16-17 A Luz nas Trevas
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A Luz nas Trevas 10, 16-18
V. 18 Porém, digo eu, não haveriam de ouvir? Sim, francamente: por todo
mundo se propagou o seu eco e as suas palavras até os confins da terra!
(Sal. 19, 4).
Deveria a Igreja ser desculpada, [sua culpa ignorada ou, pelo menos,
explicada e portanto justificada] mediante a alegação de que ela “ainda não
ouviu”, como se nem sequer fora possível ela já ter ouvido?! Como se a “Pala-
vra de Cristo” a [revelação de Deus] fosse alguma novidade da qual se poderia
ter ou deixar de ter notícia; fosse carisma, [dádiva divina, privilégio] de gente
[de outra parte] que mora algures, em algum recanto do mundo, ou mesmo em
outra rua? Como se alguém pudesse afirmar que se trata de tema absolutamente
novo? Como se existisse no mundo coisa mais divulgada, [mais anunciada,
propagada, de conhecimento mais generalizado] do que [a existência do Deus
criador do universo, que é] o “Deus Desconhecido”?!
[Que a Igreja pudesse ser desculpada] como se conhecesse outras solu-
ções [ou alternativas que melhor resolvessem o problema de nossa vida e por
isso nos levasse a ignorar a “Palavra de Cristo”] quando, na realidade apenas
sabemos “que assim não pode continuar”?!
[Poderia a Igreja ser desculpada] como se teríamos informação mais
segura se acaso hoje descesse um anjo do céu e, batendo na mesa, em voz
tonitroante nos dissesse isso mesmo que reiteradamente temos ouvido?!
Não! [já] ouvimos [a Palavra de Cristo] e estamos perfeitamente enqua-
drados; é-nos impossível pretender que não a tenhamos ouvido.
[A tradução inglesa escreve assim a exegese do versículo 18: E possível
retirar a culpa da Igreja dizendo que ela não ouviu, não ouviu ainda? A PALAVRA
597
10, 19-20 A Luz nas Trevas
DE CRISTO seria então uma novidade que alguns teriam ouvido e outros não.
Seria uma dádiva dispensada aos que moram em algum canto especial do mundo,
em alguma outra rua. Então existiria mais algum conhecimento que não temos
ainda. Haveria mais alguma coisa que pudéssemos conhecer se um anjo descesse
do céu hoje, golpeasse a mesa e anunciasse a novidade em voz de trovão. Mas
não é assim. Quem quer que sejamos, ouvimos a PALAVRA DE CRISTO e
estamos em foco. Descobrir que não a ouvimos é, para nós, objetivamente
impossível”].
Vs. 19 e 20 Mas, digo, não teria Israel entendido? Já o disse Moisés: Farei
com que tenhais ciúmes de um povo que não é povo e provocarei vossa ira
contra um povo sem entendimento.
E Isaías atreveu-se a ir mais longe e disse: Permiti que me encontras-
sem aqueles que não me procuravam e revelei-me aos que não pergunta-
vam por mim. (Deut. 32, 21 e Isa. 65, 1).
598
A Luz nas Trevas 10, 21 e 10, 4-21
V. 21 De Israel, porém, ele disse: Durante o dia todo estendo a minha mão a
um povo desobediente e contradizente. (Isaías 65, 2).
Comentários: 10,4-21
599
10, 4-21 A Luz nas Trevas
600
Capítulo XI
A ESPERANÇA DA IGREJA
601
11, 1-2 A Unidade de Deus
Deus é um só, no tempo e no espaço. Para Filo (Philo) Deus não pode
ter “qualidades” pois qualquer atributo que se lhe desse o restringiria, o limitaria
e o materializaria. Para Barth é preciso usar de analogias humanas para explicar
Deus; e Deus, que é absolutamente ABSCONDITUS, revela-se aos homens
que sabem ver, ouvir e entender, mostrando sua glória, sua majestade, sua retidão,
sua liberdade, sua perfeição, sua severidade, sua justiça, sua bondade, sua
compassividade, de multiformes maneiras ao alcance do entendimento humano.
Revela-se na grandeza das leis que regem o Universo desde o átomo ao
macro-cosmos; revela-se em sua santa Palavra; na vocação de homens e mu-
lheres fiéis a seu nome; na dádiva de seu Filho Unigênito; revela-se na dupla
predestinação do homem: sua rejeição e sua Eleição.
Rejeitando e elegendo a todos encerra na culpa para que vejam a malda-
de de seus caminhos, se convertam e voltem ao Senhor, cujo perdão é maior,
mais forte, mais poderoso do que todo um universo de pecado.
O mesmo e único Deus que provoca a aflição, que expõe a culpa e que
castiga rejeitando, é o Deus que elege para a vida eterna. Esta é a primeira parte
da Esperança da Igreja.
602
A Unidade de Deus 11, 1-2
embora conhecendo a Deus — por amor aos homens — não o quer reconhecer
e, assim, prefere mandar matar o Cristo para não dar livre curso à Palavra de
Deus, [para não permitir que Deus fale aos que “não são” como se fossem]?
Teria Deus aberto inutilmente os seus braços a seu povo? 510, 21). Aca-
so acontece o que é inacreditável e Deus seja traído sempre de novo na própria
Igreja — [e qual a Igreja que não o trai] — deixando de ser servido justamente
por aqueles que pretendem servi-lo? [Traído por aqueles que] em sua [pretensa]
adoração negam e desmentem com toda a arte e força a seu alcance que Deus é
Deus. Onde haverá pois, ainda, esperança? Como se poderá progredir em qual-
quer direção, partindo de semelhante ponto morto? Haverá alguma esperança
para criaturas que trucidaram e sepultaram a esperança com suas próprias mãos?
Há alguma esperança para Judas Escariotes? Na verdade, esta pergunta precisa
ser feita, por mais amarga e por mais opressiva que seja; jamais pode ser esque-
cida; se houver alguma esperança ela precisa permanecer presente como fogo
consumidor de todas esperanças ilusórias.
“Teria Deus abandonado seu povo?” Sem o pano de fundo desta per-
gunta, a esperança não seria esperança.
Como porém, haveria aqui alguma esperança? [Contudo] de onde toma-
ríamos ânimo para responder com um “IMPOSSÍVEL”! a essa pergunta tão
aniquilantemente próxima? Com certeza não seria de algum argumento que
mais uma vez falasse a favor da criatura humana; certamente não seria de algu-
ma outra possibilidade disponível ou ambicionada semelhante às que a Igreja
oferece. Portanto [o ânimo para afirmar esse “IMPOSSÍVEL”!] não virá nem
de uma Igreja melhorada [quiçá reformada ou em constante reformação] nem
de alguma nova Igreja.
A possibilidade alternativa que os homens e a Igreja de fato têm — e
cuja negligência é sua culpa — é a invisível possibilidade divina; toda esperan-
ça que fundamentarmos em coisas humanas, visíveis, [ainda que sejam as] mais
aperfeiçoadas, aumentará essa culpa automaticamente e jamais a suprimirá.
Este “IMPOSSÍVEL!” só pode ser baseado no próprio impossível, isto é, só
pode ser firmado em Deus.
Fundamentamos (este “IMPOSSÍVEL!”) quando encabeçamos a nossa
argumentação com este esclarecimento: “Pois também eu sou israelita, do tron-
co de Abraão, da tribo de Benjamin”. (Ver também 9, 1-5 e 10, 1).
Também eu sou o Grande Inquisidor, o traidor, o recalcitrante e desobe-
diente; sou aquele que, sob o pretexto de servir a Deus e aos homens e de salvar
os homens para Deus a todo custo, [como] o multidotado, ouviu e entendeu
integralmente [isto é, ficou absolutamente inteirado] do que se trata e que, no
entanto, utilizou e se serviu de tudo quanto entendeu e ouviu para esconder de
603
11, 1 A Unidade de Deus
si mesmo e dos outros que aqui se trata [exclusivamente] de dar honra a Deus [e
a Deus somente].
Quem quer que sejamos [ou pretendamos ser,] deponhamos as armas
pois [na realidade,] somos a “Igreja” e tudo quanto lhe diz respeito. Promove-
mos a mais duvidosa atividade e exibimos a mais suspeita marca deste ou da-
quele empreendimento religioso (ainda que seja [ou que fosse] a mais privativa
e pessoal das religiões!). Somos pois,judeus, católicos, luteranos, ou reforma-
dos [presbiterianos] (e fazem-se insistentes advertências para que não passe-
mos de uma confissão [da nossa] para outra). Estamos ou nos arrolamos sob
toda sorte de chancelas ou de cátedras. (É igualmente bastante [é sempre mui-
to,] tanto o que se pode dizer contra leigos e teólogos ou contra sacerdotes e
professores!) Rolamos sobre os trilhos de alguma antiga e grande comunidade
cristã ou, quando isto não pode ser, sobre os de alguma seita nova e pequena e
então pretendemos conhecer a tragédia ou o humor de toda essa existência,
suas lutas, seus frutos, sua sobrevivência, sua expectativa e sua movimentação.
Compreendemos o que Kierkegaard tem a dizer contra semelhante ati-
tude e lhe damos razão. Suspiramos [e gememos] todo dia sobre este “eu tam-
bém” mas o fazemos mais pela honra e poder que ele representa do que pela
Ignomínia e fraqueza que estejam [ou possam estar] subentendidas; esperamos
não esquecer a problemática que ele sintetiza e pretendemos dela dar testemu-
nho em cada palavra que proferirmos e em cada passo que dermos.
Sabemos que o “eu também” não é inevitável apenas humanamente mas
também, e principalmente, é inevitável por parte de Deus.
A possibilidade divina só pode ser entendida (e apreendida) na catástro-
fe da maior possibilidade humana (e isto qualquer que seja a atitude, [a aparên-
cia, a posição — o “Gestalt”] da Igreja); não há outra forma [de entender a
possibilidade divina] senão através do mais radical “APESAR DE”! (E onde se
revela com maior clareza do que na Igreja que entre Deus e a criatura humana
existe unicamente este “apesar de” [que segundo a percepção humana expressa
a “tolerância” divina?]
O homem, [por si] não pode ser justificado por Deus.
Não nos libertamos do judaísmo senão como judeus, nem do farisaísmo
senão como fariseus e nem da teologia senão como teólogos. [Em outras pala-
vras não nos libertamos da Igreja se não permanecendo na Igreja].
É justamente por causa de sua particular aflição, por sua culpa e porque
a Igreja, humanamente falando, não tem esperança é que ela tem a ESPERAN-
ÇA, em Deus!
“Deus não baniu o seu povo que ele reconheceu” [ou, segundo Almeida,
“Deus não rejeitou o seu povo, a quem de antemão ele conheceu”].
604
A Unidade de Deus 11, 1-2
Isto não é anunciado por quem está seguro na praia, nem é do barco que,
feliz, se afasta dos destroços do naufrágio, [nem tampouco] do bote salva-vidas
que se aproxima transbordante de socorros! Isto é proclamado do alto da pró-
pria nau que sossobra.
Isto significa que pecar contra Deus, negá-lo e traí-lo, são atos de quem
sabe que é parte integrante da Igreja [e que portanto] também ele é Igreja e tudo
quanto ela representa. Se alguém não souber isto, se alguém acaso tiver para si
solução melhor do que a Igreja [sofredora] e seus lamentos, ou se assim o
perceber e seguir, ou se escolher para si alguma pequena trilha particular para
contornar a perplexidade da Igreja esquivando-se [dessa confissão] de que “tam-
bém eu sou”, então tal pessoa de maneira nenhuma conhece a aflição que Deus,
como Deus, preparou para a criatura humana, nem tampouco a culpa pela qual
o homem está aprisionado na presença de Deus. Portanto, tal indivíduo tam-
bém está excluído] da esperança que consiste naquilo que se anuncia e se evi-
dencia dolorosamente na Igreja, a saber: que a nossa aflição vem de Deus e que
somos culpados perante ele. [Portanto, ele só, pode salvar-nos!]
Como é, pois?
Se é Deus que estende os seus braços todo o dia, a um povo desobediente
e contradizente (10, 21)— e levamos isto tão extremamente a sério, a ponto de
nem sequer procurarmos [(diligenciarmos por)] pertencer a esse povo, pois sabe-
mos que a ele pertencemos [e dele fazemos parte] existencialmente e em qual
quer hipótese, — então, [por ser a Deus que desobedecemos] por ser ele o Deus
inconquistável em quem [e contra quem] nos despedaçamos, —justamente por
ser este o Deus, há para esse povo desobediente, [para a Igreja] e existe para nós
a insuperável, a vitoriosa esperança. Se é Deus que estende suas mãos para nós, o
que pode significar a nossa desobediência, por mais satânica que fosse [ou que
seja]? O que pode significar nossa contradição e que [força anuladora] representa
o ponto morto a que chegamos? Qual é [ante os braços de Deus que se estendem
para nós] o alcance [sobre nosso destino final] do trucidamento e do sepultamen-
to da esperança, que perpetramos? O que representa a traição a Cristo, que prati-
camos? “O Grande Inquisidor” recebe sobre os lábios exangues e nonagenários o
beijo do Cristo [que ele resolvera matar]. “Esta foi a sua única resposta”.
É esta resposta única e total que constitui a esperança da Igreja. Esta
compaixão eterna fundamenta-se exclusivamente em Deus; ela não pode, por
assim dizer, ser deduzida racionalmente [pois não é demonstrável logicamente],
porquanto ela excede a todo pensamento [e a todo entendimento humano].
O conhecimento que o ser humano tem de Deus, não o salva mas o traz
a julgamento; todavia, o conhecimento que Deus tem da criatura a salva e a
eleva. [O A. faz jogo de palavras dizendo, aproximadamente, que o conheci-
605
11, 2 A Unidade de Deus
E o que lhe diz a palavra de Deus? — “Guardei para mim sete mil ho-
mens que não dobraram seus joelhos diante da ignomínia de Baal”. Assim tam-
bém ao tempo de agora existe um remanescente pela eleição da graça. Porém,
por ser pela graça, não é por obras pois do contrário a graça já não seria graça.
“Senhor, teus profetas eles mataram, teus altares destroçaram, e somen-
te eu sobrei e atentam contra minha vida”.
606
A Unidade de Deus 11, 3-4
607
11, 4 A Unidade de Deus
“Reservei para mim sete mil pessoas que não dobraram seus joelhos
diante a ignomínia de Baal” (I Reis 19, 18).
Esta é a outra face que Elias não vê. Como haveria ele de ver isto, por
mais agudeza que tivesse para as sutilezas da Igreja?
Na realidade [esta reserva] não é algo como um rio subterrâneo, escon-
dido, mas é o outro lado, — o lado ou a página — completamente diferente; [é
um “aspecto diferente” da Igreja].
Os sete mil não são 7.000 numéricos, por mais paradoxal e chocante
que esta afirmação pareça em face ao texto. (“Não é parte ínfima da população
do país” (Juelicher) ); não é comunidade de “minoria silenciosa” que Elias
pudesse ter encontrado aqui e ali, os conhecesse e pudesse até nomeá-los. Ele
tem razão quando diz, “eu fiquei só”!
O profeta, como tal, está — por assim dizer — sempre só e [é sempre
visto ou tido como] “original”. O QUANTUM de sua alma solitária não pode
ser multiplicado nem diminuído.
Não se trata de 7.000 indivíduos mas de uma totalidade de SETE MI-
LHARES constituindo avassaladora multidão que, invisivelmente, defende o
solitário profeta; são apenas sete mil na minoria que desaparece mas represen-
tam, invisivelmente, a totalidade do povo de Israel, na sua qualidade [individu-
al] de objetos da eleição em meio da rejeição, semelhante à Igreja de Jacó por
entre a Igreja de Esaú. Assim estão os sete mil em pé perante Deus, mas unica-
mente perante Deus: seu povo, que ele não rejeitou!
Por isso diz a Palavra de Deus que ele não deixa de conhecer [e reconhecer]
os seus. [Todavia], (não que existam alguns que acaso o conheçam!), pois a graça
de Deus é infinita. (Não que os sete mil sejam agraciados!), pois a unidade de
Deus triunfa na imprevisível [e incompreensível] problemática da história da Igreja;
(não que existam tantos ou tantos que gozem de alguma paz consigo mesmos!).
[Esta Palavra de Deus] fala [de maravilha], de milagre; fala de eleição e
de Deus! Portanto, não fala de Assis (São Francisco) ou de Boll; não fala de
algum Oásis no deserto (o que aliás, Francisco de Assis e Boll (de Blumhardt)
nunca foram, sequer ao mínimo, nem mesmo nos seus momentos mais produ-
tivos! [Blumhardt — ver nota na exegese de 8, 23]).
Este deserto não tem oásis! É certo que a qualidade invisível da eleição
se torna visível ali e acolá, nesta e naquela pessoa, contudo, mesmo quando
invisível ela é maravilha, [milagre] e revelação.
A ilha da verdade é submarina, conforme constatamos mais atrás (8, 18).
Eu, eu retive para mim sete mil pessoas! Deus quer reservar, unicamente
para si a razão e a salvação. Ele tem a razão e ele salva! [Deus reserva para si
mesmo, o direito e a razão para salvar a criatura humana].
608
A Unidade de Deus 11, 5-6
Elias não está só e a totalidade de Israel não foi rejeitada, pois aqui Deus
entra em cena; justamente aqui, onde termina toda esperança humana, porque
Deus, em sua ira, esperou apenas pelo clamor do solitário Elias para provar a
esse solitário e a todo Israel que ELE é misericordioso.
“Assim, também, no tempo de agora existe um remanescente pela elei-
ção da graça. Porém, por ser pela graça, não é pelas obras pois, do contrário, a
graça já não seria graça”.
A relação da Igreja com o seu tema é a da temporalidade com a eternida-
de; do homem com Deus. Isto liquida a Igreja; [a tradução inglesa escreve “isto
destroniza a Igreja”]; todavia, talvez também a justifique. Dizemos “talvez”
[porque a justificação pode ocorrer] se no juízo e na supressão definitiva que
esse relacionamento significa [a Igreja] sentir a própria palavra divina; se a
criatura, sentindo sua profunda humilhação, sua fraqueza e seu despedaçamento,
tomar consciência do Poder de Deus, [isto é], quando, no instante eterno da
revelação, se rompe o véu da temporalidade e Cristo, o Senhor, se inclina para
o homem. Que isto acontece, aconteceu e acontecerá, — que este acontecimen-
to é a verdade — isto é o que anunciamos como a boa nova da salvação, [como
o Evangelho]. Na medida que isto acontece, Elias não está só; e a Igreja, (a
totalidade da Igreja e toda Igreja), não está rejeitada.
“No tempo de agora” a Igreja de Jacó já está entre a Igreja de Esaú; está,
para os olhos que vêem, para os ouvidos que ouvem, para os corações atentos,
onde o amor a Deus foi derramado pelo Espírito Santo; está em palavras que
são mais do que palavras; está na disposição de muitos a fazer a vontade de
Deus.
Quem são estes muitos? Aqui também não se trata de 7.000 que sejam
contáveis mas de um remanescente que, se considerado quantitativamente, está
em vias de desaparecer e nem sequer pode ser considerado; podemos afogar-
nos novamente na ilha da verdade que emerge do mar pois toda vez que pé
desajeitado tentar pisá-la ela de novo se cobre com a avassaladora caudal.
Trata-se novamente da “Eleição da Graça” que diz respeito a todos po-
rém a qual ninguém tem direito; ela se manifesta, mas não como a salvação
desta ou daquela pessoa, de sicrano ou beltrano. Tais pessoas, nas quais acaso
se podem perceber os pensamentos de Deus (acima de todos!), subsistem ape-
nas pela graça; [é pela graça] que são o que são e unicamente pela graça podem
ser percebidos (vistos) em sua qualidade divina. Graça (misericórdia para to-
dos,) é também o que, pela graça, neles se pode perceber.
Portanto, este remanescente não pode ser procurado onde se destacam e
realçam coisas humanas, em fatos [e ocasiões] notáveis, como tempos [anos,
dias, semanas] de perdão, movimentos, [com alvos específicos, campanhas],
609
11, 5-6 A Unidade de Deus
avivamentos, reformas e coisas semelhantes; — tudo isto são obras! [Se isto
valesse,] então graça não seria GRAÇA. Se, porém, o remanescente for
encontrável nessas obras, somente o será na medida em que Deus também se
revelar nelas, isto é, na medida em que nas ondas desses movimentos e desen-
volvimentos humanos existir a [verdadeira] obediência (10, 16). Todavia, e
com certeza, não será somente aí — por mais que se escandalize toda observa-
ção direta — que se encontrará o remanescente fiel; ([aliás,] com certeza não
será encontrado em tais movimentos, se aí for procurado!); antes poderá achar-
se nas partes baixas da curva sim, talvez justamente aí, [na anti-crista, no fundo
do vale] onde nem se pensa em obras segundo o critério e o gosto dos historia-
dores eclesiásticos; lá onde é notório que todo tempo é apenas intervalo, [onde
o tempo que passa tem apenas o significado de lapsos secundários da nossa
vida e da história do mundo] e onde somente Deus abre os olhos [dos homens]
para que eles o vejam; onde somente Deus pode revelar-se e dar-se a conhecer
entre a miséria e a perdição humanas. [O A. diz textualmente “onde somente
Deus pode re-encontrar-se e se reconhecer entre a miséria e perdição huma-
nas”. Entendo que Barth quer dizer que somente pela infinita misericórdia de
Deus pode ele reconhecer na criatura perdida aquela que ele criou à sua ima-
gem e semelhança e aceitá-la conforme está; somente por ser ele o Deus de
infinita misericórdia e incomensurável amor, pode ele ver na criatura decaída
aquela que ele visitava à tarde, no Jardim do Éden!].
É o conhecimento que Deus toma, [ou tem] dos homens que decide e
isto, quer a curva da história da Igreja se incline para cima, quer se oriente para
baixo; ou então, quer sejam bárbaros teutões ou piedosos religiosos do século
19 o objeto de sua consideração.
Deus não rejeitou o seu povo, porque ele o reconheceu. [Segundo a
tradução de Almeida, “a quem de antemão conheceu”]. (11, 2).
A criatura humana é eleita pela graça; esta é a mensagem humilhante
[para quem confia em seus próprios méritos, quiçá para a Igreja] e por isto é a
boa nova da justificação e salvação do “remanescente existente” cuja luz brilha
“agora” por entre a miséria e a culpa da Igreja, cuja esperança está unicamente
no fato de que Deus se justifica “agora” e agora vindica a sua propriedade.
Esta esperança da Igreja é tão certa quanto Deus “agora “ se revela em
Cristo como aquele que é nossa aflição e de quem ficamos devedores.
[A versão inglesa escreve: “A única esperança da Igreja é que Deus
deveria [ou haveria de] agora justificar-se e dar testemunho de sua própria uni-
dade. Esta é, na realidade, a esperança da Igreja porque em Cristo Deus se
revela agora como a causa de nossa tribulação e de nossa culpa”.
Entendo que Barth quer dizer que:
610
A Unidade de Deus 11, 6 e 7-10
Vs. 7 a 10 Como fica pois? O que Israel procurou não alcançou, porém o
obtêm os eleitos. Os demais são endurecidos, conforme está escrito: Deus
deu-lhes espírito de profundo sono, olhos que não vêem e ouvidos que não
ouvem, até o dia de hoje. E Davi diz: Sua mesa lhes seja por armadilha,
por tropeço, aborrecimento e punição. Trevosos sejam seus olhos para que
não vejam e que encurves suas costas para sempre!
[A tradução de Almeida, registra: “O que diremos, pois? O que Israel
busca, isso não conseguiu; mas a eleição o alcançou; e os mais foram endureci-
dos, como está escrito: Deus lhes deu espírito de entorpecimento, olhos para
não ver e ouvidos para não ouvir, até ao dia de hoje. E diz Davi: Torne-se-lhes
a mesa em laço e armadilha, em tropeço e punição; escureçam-se-lhes os olhos
para que não vejam e fiquem para sempre encurvadas suas costas”.]
611
11, 6-10 A Unidade de Deus
612
A Unidade de Deus 11, 7-10
serão fonte de inspiração a menos que o sejam na forma de impulso para a vida
eterna e, assim mesmo, como escândalo. Eles estão ali e acolá mas, com certe-
za, não onde se clama “EIS AQUI”! Eles têm este ou aquele nome que não é
aquele pelo qual são chamados. Eles são conhecidos como os desconhecidos.
Eles emergem para desaparecerem novamente. Sua Eleição e sua “realização”
não alcançam amplitude [repercussão] histórica, nem nas edificantes estórias
da vida nem em abençoada influência na história da Igreja.
[A tradução inglesa escreve assim: “Eles emergem apenas a fim de que
possam ser submersos. A sua eleição e o êxito com que “ALCANÇAM” não
são coisas que possam ser descritas em livros devotos nem a sua “influência”
pode ser estabelecida nas páginas da história da Igreja”].
O que neles acaso pode merecer alguma menção (e dimensão) histórica
certamente não é a sua eleição nem aquilo que OBTÊM; portanto a Igreja não
pode reconhecer nestes portadores de sua própria esperança mais do que a ili-
mitada liberdade de Deus, sua invisibilidade e secretividade e, nelas, a sua gra-
ça; e somente nesta graça, a Esperança da própria Igreja.
Nos eleitos a Igreja pode, também, aprender que “Israel não alcança o
que busca”.
“Os demais, porém, foram endurecidos”.
A luz brilha nas trevas, sem ser sobrepujada! Porém, é nas trevas! De-
sesperança é desesperança e “ponto morto” é ponto morto; não há continuidade
entre a alma de um e de outro, entre os portadores da esperança e aqueles a
quem ela é trazida: rio há transferência não há “contágio”; não há influência
daqueles sobre estes. A interligação [entre uns e outros] faz-se somente em
Deus. Também os eleitos somente ALCANÇARÃO “em Deus” aquilo que pro-
curarão em vão se não o obtiverem de Deus. Eles dão testemunho de Deus mas
não são nem sementeira divina nem grão ou coisa parecida para os demais. (O
Jesus dos “sinópticos” enviou os seus discípulos para anunciar o Reino de Deus,
mas não para o estabelecer! (Mat. 10, 7)). [Todavia aqueles que dão testemu-
nho de Deus], os Eleitos, estão sempre [reiterada e continuadamente] expostos
ao único e grande risco, ao perigo mortal, de se olvidarem de Deus, [de o omi-
tirem], deixando, assim, de ser suas testemunhas e passando a identificar-se
total e absolutamente com os “outros” e, empedernidos como estes, ficarem
completamente obturados à possibilidade [da graça] divina. [Ver o que está
dito expressamente em Mat. 10, 28].
Disto tudo resta que não há esperança se Deus não operar o milagre —
(e é milagre de Deus que se proclama [no Evangelho]).
É desta maneira que a Igreja precisa compreender qual é e o que é a sua
esperança.
613
11, 7-10 A Unidade de Deus
Como única verdade visível, resta esta que deve ser inscrita nos umbrais
de cada porta de Igreja, no frontispício de cada livro de sermões, na primeira
página de cada livro religioso: “Os demais foram empedernidos”.
Assim como os Eleitos, também os DEMAIS não são quantidade numé-
rica. Se Deus não for reconhecido como Deus, os “demais” são todos, porquan-
to Deus quer ser conhecido através de si mesmo; é por isto que aparecem os
eleitos e também a exclusão dos “demais” que incluem os eleitos quando estes,
na sua existencialidade [sua vida, sua atitude e sua conduta perante os homens
e Deus] deixarem de testificar [a eleição].
[Esta última parte é expressa com conotação ligeiramente diferente na
versão inglesa que, todavia, parece ter certa riqueza de sentido. Ela diz: “En-
quanto Deus não for reconhecido (ou reconhecível todos são “os demais”, e o
são através d’Ele. Deus precisa ser conhecido por si mesmo. Daí procede a
inclusão dos “eleitos” e a exclusão dos “demais”, aos quais os eleitos perten-
cem na medida em que sua existência não for a sua eleição].
Toda a aflição da Igreja de Esaú consiste em que Deus a feriu com “um
espírito de sonolência”; com “olhos que não vêem” e “ouvidos que não ou-
vem”; que da parte de Deus a “sua mesa” e todo seu procedimento têm de lhe
ser por laço”, por armadilha, por castigo e por escândalo e que Deus “lhe encurva
o dorso” sob a lei que não serve para justificação e salvação e contudo não pode
ser evitada.
Todavia este [mesmo] Deus, que tão desapiedadamente diz NÃO en-
quanto proclama sua misericórdia; que tão inexoravelmente exclui [rejeita]
enquanto a todos atrai a si; que fica assim tão oculto e que se anuncia justamen-
te como o Deus recôndito quando menciona o seu nome, — ELE é a esperança
da Igreja. ELE é esta esperança pela sua Unidade, sua Identidade, sua Graça e
sua Verdade. É assim e de nenhuma outra forma, que ELE é o nosso pai em
Jesus Cristo, o que foi crucificado e que ressurgiu.
Donde advirá tanta esperança à Igreja para assentar a sua esperança nes-
te Deus?
[De que outro lugar viria senão da cruz?]
614
Uma Palavra aos de Fora 11, 11-10
Uma palavra aos de Fora é uma palavra de advertência aos que não são
Israel; que não são Igreja. É uma palavra aos pobres de espírito que não têm de
que e de quem gloriar-se. Talvez percebam a glória de Deus manifesta no Univer-
so mas não acolhem a mensagem que a Igreja quer entregar-lhes; talvez até zom-
bem dela e, com certeza, conservam-se na atitude de quem observa à distância.
É uma palavra aos que não conhecem a lei, embora em suas consciênci-
as sejam lei para si mesmos e se admoestem entre si.
Percebem a aflição e o fracasso da Igreja que baldadamente busca uma
justificação que nem sequer o mundo reconhece e que eles, de fora, não enten-
dem; no entanto a alcançam de Deus.
615
11, 11 Uma Palavra aos de Fora
Vs. 11 Digo pois: acaso tropeçaram para que caíssem? Impossível! Porém por
sua queda tem lugar a salvação dos gentios — para torná-los ciumentos.
616
Uma Palavra aos de Fora 11, 11
talvez com menos dolo, se pudesse deduzir dessa passagem que a salvação dos
gentios veio em conseqüência da queda de Israel; ou então em outras palavras,
que a salvação das pessoas de fora da Igreja resulta do fracasso da Igreja.
Ora, tais interpretações estariam em desacordo com o ensino bíblico
geral e os evangelhos em particular. (Apenas a título de referência, ver João 3,
16 ss e João 5, 24). Ver também a exegese de 10, 16-21.
Como haveremos de entender a passagem?
Talvez seja isto: Israel não foi induzido ao tropeço, nem levado à queda.
A missão dada à Nação Eleita foi testificar a graça divina; preparar o caminho
para a vinda do Senhor em quem seriam (foram e são) benditas todas as nações
da terra. Os planos de Deus não são frustrados pela conduta humana (2, 11;
Deut. 10, 17; Atos 10, 34 e seguintes; Gal. 2, 2); a missão de “nação sacerdotal”
teria de cumprir-se e foi cumprida quer fosse com o coração dócil e leal de um
Jó, um Moisés ou um João (o Evangelista) e tantos outros, ou fosse com a dura
cerviz de um Jonas, um Faraó, ou de um recalcitrante Saulo.
Israel foi de dura cerviz: Jacó lutou com o anjo do Senhor; o povo do
deserto quis voltar às panelas de carne do Egito e se serviu do primeiro pretexto
que lhes pareceu razoável para fundir o seu bezerro de ouro; a nação constitu-
ída preferiu um rei vistoso à liderança do Deus “invisível” de Samuel; adora-
ram nos “Altos”, aos astros visíveis e abandonaram o Altíssimo que talvez lhes
parecesse por demais remoto e, pior do que isto, imaterial. Perseguiram os pro-
fetas e se encastelaram em sua própria retidão e justiça; decoraram a lei, vive-
ram sua forma, sua letra, porém não praticaram seu espírito; alardeavam o cum-
primento do primeiro grande mandamento e prevaricavam no segundo, seme-
lhante ao primeiro. Negaram ao Cristo a ponto de chamarem o seu sangue so-
bre eles e sobre seus filhos.
Mas teria sido Israel que assim procedeu? Ou foram eles como porção
representativa da humanidade — nação, Igreja, autoridade eclesiástica, poder
civil — o mundo dos homens naquilo que tinha e tem de mais tipicamente
representativo?
Na história da rebeldia contra Deus, assim como em sua culminância na
crucificação, mesclaram-se sempre os reis, os governados e a soldadesca; o
povo, da plebe ao Sumo Sacerdote.
Acaso essa infame culminância de endurecimento, a rebeldia, seria res-
trita à responsabilidade daqueles que no tempo histórico da crucificação se
achavam em Jerusalém?
Se assim fora, então a ressurreição seria, também, só para as mulheres
que encontraram o sepulcro vazio ou, quando muito, do pugilo de pessoas que
viveram os poucos dias que mediaram entre a ressurreição e a ascenção.
617
11, 11 Uma Palavra aos de Fora
Mas não é assim; a graça não tem data histórica, nem lugar geográfico,
nem raça, tribo ou nação e também não os tem a transgressão.
O mundo todo transgrediu — transgride e transgridirá — ontem, hoje e
sempre e nele estão incluídos cada indivíduo, todos os governos e a Igreja (to-
das as Igrejas) e os seus membros.
Todavia, governos e povo não têm a missão específica de testemunhar e
anunciar a graça de Deus conforme compete à Igreja e a seus fiéis. É por isso
que a transgressão da Igreja, a transgressão de Israel, dá oportunidade à salva-
ção dos gentios, dos que estão de fora, daqueles que não conhecem a lei.
Como? Por que?
Porque os que estão sem lei, (quando têm olhos para ver e entendimento
para compreender), percebem que Deus não opera segundo critérios humanos
e por acepção de pessoas; que Deus não se deixa levar por engodos, nem pro-
messas, nem sacrifícios, nem ritos, nem iniciação esotérica ou outra qualquer;
Deus não julga pelo louvor, ou pela devoção, ou pela liturgia; nem por flagelação,
ou renúncias ou obediência a alguma lei, ou seita, ou denominação. Deus julga
e justifica na conformidade de sua eleição eterna pelo que encontra no íntimo
de cada pessoa. É pela rejeição divina à pretensa retidão humana que os “gen-
tios quiçá mais vazios em si mesmos, vislumbram mais prontamente a Graça
Divina. Talvez possamos parafrasear o v. 11(s), escrevendo que o testemunho
da fidelidade (longanimidade) de Deus com a Igreja deu lugar à conversão das
“pessoas de fora” e a conversão destas levou (ou leva) a Igreja à plena renúncia
de sua própria retidão.
Vejamos, porém, o que o A. tem a dizer.]
“Tropeçaram para que caíssem? — Impossível”!
Do outro lado, frente à Igreja, — de cada Igreja — vemos os pagãos, (os
gentios), os “outros”, enquanto a Igreja continua razoavelmente segura de si
mesma; consideramos esses “outros” em sua relativa irreligiosidade e, em rela-
ção à Igreja que nos está próxima, como aqueles que “não ouvem” e “não
falam” conforme ouvimos e falamos; eles são observadores não comprometi-
dos e testemunhas das tentações e fracassos da Igreja. Não há dúvida de que
eles vêem o insucesso da Igreja: o mundo o vê e também a Igreja já o viu — há
muito — embora, talvez, tenha silenciado a respeito da existência de um fracassar
contínuo, um tropeçar, um correr de encontro a algum obstáculo invisível.
Acaso não é certo que se nós mesmos formos apenas sofrivelmente sa-
dios, se ainda não houvermos sido contagiados pelo romantismo, não podere-
mos assistir uma missa católica sem a sensação profunda que “assim não vai” e
isto, se nosso sentimento não se expressar muito mais vigorosamente, nos ter-
mos do catecismo de Heidelberg?
618
Uma Palavra aos de Fora 11, 11
619
11, 11 Uma Palavra aos de Fora
efetiva a filiação do mundo (9, 22-23); por isto (a aflição da Igreja) não é a
“última realidade”, [a sua situação final e definitiva]; não se trata de fato
metafísico ao lado da retidão ou da glória divina, mas é a manifestação tempo-
ral desta glória e da nuvem da ira divina que encobre a esperança da Igreja; é a
manifestação do desejo divino de ajudar a todos.
“A sua ira dura um instante e a sua misericórdia a vida inteira”. (Sal,
30, 5). A condenação somente existe como sombra projetada pela luz da elei-
ção. Para a criatura deste mundo o NÃO divino é simplesmente o inevitável
retorno do reverso para o anverso, para o SIM de Deus. Esaú somente é Esaú
na medida em que ele não for Jacó. O empedernimento invisível de Faraó
testifica o mesmo poder divino do qual dá testemunho a invisível vocação de
Moisés.
Aquele que recebe a revelação divina precisa, por si mesmo, tomar a
posição de quem recebeu essa revelação e nela põe a sua esperança, a despeito
de toda [conscientização] de culpa e [conseqüente] aflição que [tal revelação]
traz consigo.
[A tradução inglesa escreve: “Aquele que recebe a revelação de Deus
precisa submeter-se à tribulação e à culpa que a sua posição implica, para que
ele mesmo seja o guardião da revelação e da esperança que tem”].
Primeiro vem Israel: a Igreja. Em sua falha, em sua catástrofre, nasce o
segundo. “Por sua queda tem lugar a salvação dos gentios: onde afluiu o peca-
do, transbordou a graça”. (5, 20).
Eleição é a inaudita forma real e possível de salvar a criatura do inevitá-
vel fado da condenação.
Unicamente mediante a reversão do NÃO de Deus pode subsistir o seu
SIM. Jacó é Jacó porque ele não é Esaú. Não há vocação de Moisés que não
tenha sido [ou não seja] também a vocação de um incuravelmente empedernido
Faraó. É assim que pela transgressão da Igreja acontece a salvação dos gentios.
Porém, como acontece? — Pela garantia da graça divina acima de toda
injustiça humana.
A “injustiça humana” dos gentios, que clama aos céus, se opõe menos à
justiça divina, que a retidão humana” da Igreja.
Esta posição relativa (e negativa) dos gentios em oposição à Igreja é o
momento (o “impulso”) frutífero da gentilidade. É por isto e em nenhuma outra
forma que os gentios são justificados com relação à Igreja. Enquanto Deus quer
sempre mostrar (e mostra) à Igreja que unicamente ele é Todo-Poderoso [so-
mente ele é Onipotente] e, enquanto a obra humana da Igreja se esfacela sem-
pre de novo em Deus, volve-se a página em favor daqueles que estão de fora;
enquanto a Igreja crucifica a Cristo vem a salvação dos gentios.
620
Uma Palavra aos de Fora 11, 11-15
Vs. 12 a 15 Ora, se sua queda for riqueza para o mundo e seu esvaziamento
riqueza para os gentios, quanto mais o será a sua plenitude Digo-o a vós
gentios! Justamente na medida em que eu sou o apóstolo dos gentios tenho
por honra em meu ministério despertar os ciúmes nos que são da minha
carne e assim salvar alguns deles. Porquanto, se a sua condenação dá
lugar à adoção do mundo, a sua aceitação não será, se não, a vida dentre
os mortos.
“Ora, se a sua queda [sua transgressão] for riqueza para o mundo e seu
esvaziamento [seu desapossamento, seu abatimento] for riqueza para os genti-
os, quanto mais será a sua plenitude” [sua aceitação, seu restabelecimento, sua
completa e cabal realização].
Há plenitude de esperança em investir contra a realidade divina [esbar-
rar, tropeçar nela], ser aniquilado em Deus, ter de morrer nele.
621
11, 12 Uma Palavra aos de Fora
622
Uma Palavra aos de Fora 11, 12-14
humana tem fim e o cabedal humano acaba. Não acontece assim com a plenitu-
de de Deus; a positividade que substitui a negatividade, não tem fim.
[Ora,] o fim da Igreja é o começo da plenitude de Deus que não só é
infinita mas é eterna e, portanto, não é apenas a delimitação das coisas finitas
que se lhe opõem à Igreja, mas também a sua supressão, mediante o que não há
mais “eleitos e condenados”, “gentios e judeus”, “gente DE FORA e DE
DENTRO”, porque agora todos são UM em Cristo.
Se o sentido negativo que a supressão final da Igreja representa (que é
o que a cruz de Cristo significa!), for a expressão do ato divino mediante o
qual Deus se liberta de toda e qualquer restrição humana, [isto é], se isto
significa a possibilidade e a realidade da eleição pela graça e da adoção da
criatura humana como filho, [por Deus], se significar o lampejo do instante
eterno dentro da temporalidade, então o seu sentido positivo (que é o que a
ressurreição de Cristo significa!), será a própria Luz Eterna; será a eternidade
com sua absoluta ausência de tempo, a vida [da criatura] ressurrecta, a reden-
ção que aconteceu e que acontece; será a exclusão da possibilidade de rejei-
ção por força da eleição.
Os que [“de fora”] observam a Igreja e seu insucesso, tomem nota de
que as últimas coisas terão lugar quando a Igreja chegar ao seu fim, (11, 15 e 1
Cor. 15, 26— a supressão da morte!; que tomem nota de que esse esvaziamen-
to(!), prepara o advento de [total] preenchimento, (e este ainda mais salutar!).
Somente se poderia afirmar que a Igreja “está liquidada “ com extremo
temor e tremor ou antes, isto não se pode afirmar de maneira alguma, pois
quem suportará saber o que será então?
“Digo isto a vós, gentios: exatamente na medida em que sou apóstolo
dos gentios vejo a dignificação do meu ministério nos ciúmes que eu despertar
naqueles que são do meu sangue, para salvar alguns deles”.
[A tradução de Almeida escreve: “Dirijo-me a vós outros que sois gen-
tios! Visto pois que eu sou apóstolo dos gentios, glorifico o meu ministério para
ver se de algum modo posso despertar à emulação os de meu povo e salvar
alguns deles”].
Justamente aqueles que “estão de fora” precisam ouvir tudo isto e pon-
derar a respeito. Eles são justificados através da aflição e da culpa da Igreja. O
instante da rejeição dos que “estão dentro” é o momento da salvação dos que
“estão fora”.
[A realidade de] que a glória pertence exclusivamente a Deus, é a sentença
que condena Israel e salva os gentios; a estes em sua total nudez que quase
nunca é justificável e quase nunca pode ser atenuada; a estes, em sua quase
inqualificável mundanalidade; a estes que não tem a seu favor qualquer motivo
623
11, 13-15 Uma Palavra aos de Fora
sério para merecerem a justificação pois é de esperar que para esse fim não
fossem incensar as extremas fraquezas humanas.
Paulo é o apóstolo dos gentios porque ele vê o Evangelho dirigido exa-
tamente a eles cuja nudez e fraqueza são para ele analogia do desnudamento e
da pobreza de toda criatura que, pondo-se perante Deus, é por ele justificada
em contraposição a essa outra criatura que [sentindo-se] na sadia plenitude de
sua própria retidão, todavia, não está na presença de Deus e não pode ser
justificada por ele.
É justamente isto que prende Paulo a Israel e o traz sempre de volta a
seu povo; é por isto que ele se sente constrangido a iniciar a sua pregação [para
onde quer que vá] primeiramente com Israel, conforme Lucas bem o descreve
com segurança e propriedade [no Livro de Atos].
A nudez em que está o gentio e que significa a sua predisposição para
Deus em contraste com a plenitude de Israel, não pode, por isso mesmo, ser
outra coisa que não essencialmente a condição em que a criatura, (e também
Israel), se encontra em relação a Deus; este é o ponto onde, deixando para trás
sua própria justiça que é seu tribunal, entra em consideração, também para
Israel, o divino PORÉM do perdão.
Por outro lado onde se poderia vir a saber que o perdão é o “sentido”
que está além da nudez humana, [além da pobreza] dos filhos do mundo — se
não lá onde, na criação, está a mais alta e última possibilidade humana?
Onde toma a criatura ciência de sua posição em Deus [e perante Deus],
se não na religião?
Onde, jamais, ouviu o mundo de fato, a pregação do perdão se não na
Igreja, essa Igreja capitulante, [a Igreja dos fracassos, segundo a vêem os que
estão “de fora”?]
[A versão inglesa escreve: “Como se pode compreender o perdão como
sendo o que está além da nudez humana dos filhos do mundo se o sentido total da
vida terrena não for percebido na sua última e suprema possibilidade, — a religi-
osa? O perdão não pode ser pregado ao mundo se não pela capitulação da Igreja”.]
De uma parte o mundo é o espelho no qual a Igreja precisa mirar-se para
contemplar sua humilhação e, também, a plenitude de sua promessa; de outra
parte, unicamente na Igreja pode o mundo ver a sua relação com Deus.
Lembremo-nos porém que neste espelhamento recíproco, Igreja e Mundo não
devem ser tomados como grandezas históricas mas, sim, dialéticas.
Igreja e mundo são mantidos unidos, [juntos] pela infinita diferença
qualitativa entre Deus e o homem, que estabelece um vínculo qual grampo de
aço e que, ali significa a rejeição e aqui a eleição. Este vínculo torna, por assim
dizer, impossível dissociar a humanidade para formar os dois respectivos grupos.
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Uma Palavra aos de Fora 11, 13-15
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11, 15-18 Uma Palavra aos de Fora
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Uma Palavra aos de Fora 11, 16-18
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11, 16-18 Uma Palavra aos de Fora
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Uma Palavra aos de Fora 11, 17-18
Uma coisa é tão espantosa quanto a outra, mas é exatamente disto que se
trata: Deus não se deixa achar por aqueles que o buscam mas torna-se achável
por aqueles que não o procuram (10, 20). [Não há nada que possa justificar a
idéia “torna-te achável e Deus te achará” — antes os que isto praticam ou ensi-
nam, buscam a justificação de forma (por assim dizer) ainda pior que Israel (ou
a Igreja), pois tentam buscá-la e alcançá-la como que por subterfúgio, por astú-
cia, talvez “manhosamente”; contra tais levanta-se a ira de Deus! ...]
[Isto se dá assim] porque Deus é Deus e quer manifestar-se e de fato se
manifesta — como Deus a ambos [os que o procuram e os que não o buscam].
Ele é a raiz santa da árvore e, cortado dele, nem o broto legítimo pode crescer;
enxertado nele, mesmo o rebento selvagem pode medrar. Não como se a vara
bravia, o gentio, o “de fora”, tivesse qualquer vantagem sobre a vara legítima,
sobre o judeu, sobre o “de dentro” [mas porque tira o sustento da “raiz santa”].
A arrogância (ou altivez) dos “de fora” que, em seu suposto progresso
livre e selvagem olham a Igreja vendo-a de cima [tratando-a com superiorida-
de] é sempre mais absurda do que seria a atitude inversa.
Se, perante Deus, a nudez dos que estão de fora não for pior do que a
dos outros, ela de maneira nenhuma será melhor do que a respeitável retidão
humana daqueles que “estão dentro”. Entendamos bem: na nudez em que a
criatura se torna aceitável a Deus, na inocência infantil ou na lamúria que lhe
dá condição para receber a justificação divina, a ser salva por Deus, a criatura
está unicamente perante Deus e não recebe [a justificação e a redenção, não
goza da aceitação de Deus] por sua “gentilidade” por sua rejeição a Igreja, ou
por suas características de filho do “presente século” mas, única e exclusiva-
mente, pela misericórdia de Deus. A sua nudez é apenas analogia da nudez
aceita por Deus!
Nenhuma “naturalidade original” (inata) da criatura humana, nem a sim-
plicidade ou retilineidade proletária, nem tampouco o muito louvado e muito
defendido discurso “antiteológico do religioso “leigo”, nem qualquer outra
consciência de fraqueza, subconsciência ou inconsciência, como também não a
consciência eclesiástica, podem justificar a criatura humana perante Deus
O que se passa na criatura humana desde os exercícios [piedosos] num
mosteiro Beneditino até [as práticas quiçá demagógicas] no círculo ideológico
da vulgar casa Social-Democrata são degraus de uma escada.
Ninguém, jamais, pôde gloriar-se de ter a pobreza de Espírito daqueles
que são absolutamente estranhos à Igreja, os tais que Jesus louvou como “bem
aventurados” e [cuja “pobreza”] justifica os gentios perante Deus, porque eles
nunca existiram. O fato de a possibilidade do perdão divino existir para os que
estão fora enquanto declaradamente não está ao alcance dos que estão dentro,
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11, 18-22 Uma Palavra aos de Fora
somente pode ser considerado e respeitado por aqueles, como maravilha, [mi-
lagre] nunca porém, como seu direito ou seu privilégio, nem podem eles tomar
esta realidade como vantagem sua.
“Mas ainda que te levantes acima deles, não és tu que suportas a raiz,
mas a raiz a ti”.
Isto quer dizer que se tu acaso preferes ser ateu, observador [de fora],
esteta, liberal, socialista, naturalista, ou que quer que seja de que te glories em
ser, qualquer que seja o nome que dês à tua atitude de consciente autoctonia ou
“autonomia” com relação a Deus, [dando lugar à razão ou ao livre arbítrio] em
nada se altera a tua situação e não podes deixar de elevar-te acima da Igreja,
mesmo porque, tu mesmo, já há muito pertences a alguma igrejinha! Isto não
faz a mínima diferença no fato de que tu, — na melhor das hipóteses — (ape-
nas) tenhas razão naquilo que ela — a Igreja — não a tem e que vivas da possi-
bilidade que a Igreja torna impossível [dentro dela]. Sim, (na melhor das hipó-
teses!) estás dentro do SIM que tem de ser o não para a Igreja. Portanto vives
daquilo que está além da tua possibilidade e da sua impossibilidade; vives da-
quilo que está além do teu direito e além do seu erro, daquilo que está além do
teu “SIM” e do “NÃO” da Igreja.
É a raiz que te suporta”. Seria mania de grandeza pensar que pudesse ser
o contrário: que tu em tua autenticidade, tua pureza, tua honestidade, tua apti-
dão laical, pudesses ser a própria raiz, a fonte da divindade! Então,
[aparentemente]poderias livrar-te da Igreja e de sua aflição; todavia, daquilo
que ameaça e julga a Igreja, tu não te livras. Aquilo que tu és, somente o és na
medida em que esta mesma coisa [esta aflição e culpa] agora te livra de tua
[própria] exaltação!
Quem se colocar acima desta libertação coloca-se com a Igreja, na mesma
aflição e culpa; esse tal já não está mais “fora” mas já há muito tão “dentro” ou
muito mais dentro, [do que os que estão na Igreja,] um ramo cortado — (também
os ramos de oliveira brava podem ser quebrados!) — de maneira idêntica ao que
acontece [ou pode acontecer] aos ramos aos quais ele quer sobrepor-se.
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Uma Palavra aos de Fora 11, 20-22
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11, 21-22 Uma Palavra aos de Fora
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Uma Palavra aos de Fora 11, 23-24
Aqueles “de fora” que são realmente eleitos, não darão semelhante senha.
(A tradução inglesa diz: “Leigos que exibem o fato de o serem e homens
do mundo que se mostram satisfeitos com sua mundanalidade constituem — se
isto fora possível — ameaça maior do que a pretensão de um clero arrogante.
O genuíno eleito que está fora da Igreja evita a linguagem de vitória”.)
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11, 11-24 e 25-36 O Alvo
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O Alvo 11, 25-27
Vs. 25 a 27 Porquanto eu gostaria, irmãos, que este mistério não vos passasse
desapercebido — e vos emocionásseis em vossos eventuais pensamentos:
o endurecimento veio parcialmente sobre Israel, até o advento da plenitu-
de para os gentios. E nestas circunstâncias todo Israel será salvo, confor-
me está escrito: O Libertador virá de Sião e suprimirá as impiedades de
Jacó e esta será a aliança com ele, estabelecida por mim: eu retirarei os
seus pecados.
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11, 25 O Alvo
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O Alvo 11, 25
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11, 25 O Alvo
que assim se revela ao homem (se dá a conhecer) como o único Deus, como o
que está além [do outro lado] da culpa e da aflição; [dá-se a conhecer como] o
alvo [da criatura neste mundo e, quiçá no além].
O mesmo Deus que elege Saul, condena esse Saul para eleger Davi. Por
que? Porque ele é Deus! “Minha alma está calada perante Deus, que é meu
auxílio” [Sal. 62, 1]. É justamente esta obra inaudita que é divina. Obra ordena-
da [mandada] e mansa [silenciosa, calma, pacífica] em vista da qual se pode e
se precisa ter esperança [porque ela se impõe drasticamente].
Fora essa obra menos inaudita não seria divina e à criatura humana res-
taria algo mais do que permanecer silenciosa e ter esperança.
Velado e oculto fez-se Deus aos olhos de Israel; fez-se desconhecido e
impossível para eles.
A criatura (na sua qualidade de ser humano) não pode conhecer a Deus;
os homens não [o] verão com os olhos que vêem nem [o] ouvirão com ouvidos
que ouvem; “é inútil todo o humano querer e buscar; inúteis são as ponderações
e os anseios dos homens. O ponto decisivo se perde [sempre] e precisa ser
perdido. A criatura não chega ao arrependimento, nem deve chegar a ele, por
causa do arrependimento verdadeiro e, “mesmo que tentem abocanhá-lo, como
o cão à mosca, ele foge sempre”. (Lutero).
Isto é o endurecimento e esta é a situação da Igreja de Esaú.
Justamente porque a opressão de Israel é tão grande, porque ela é inter-
minável, ela tem um verdadeiro ALÉM, um fim real em Deus — o próprio
Deus — que é o ALÉM de todo ALÉM; o fim de tudo quanto é “infindável”.
O “endurecimento” é, em primeiro lugar, apenas parcial, apenas relativo,
porque procede de Deus. Existem sempre sete mil eleitos (11, 14), invisíveis, que
já foram consolados na opressão e dela salvos, os quais se opõem à totalidade dos
corrompidos. A alta muralha que sempre e por toda parte separa o ser humano de
Deus, torna-se transparente (quando o milagre acontece e, portanto, nunca e em
lugar algum [separa os homens de Deus]: o Senhor conhece os seus!
Em segundo lugar, o “endurecimento” não é mais do que uma condição
temporária da criatura.
A eternidade sendo manifestamente o limite da temporalidade, é tam-
bém o fim deste “endurecimento”. A eternidade é a origem de onde a
temporalidade procede e é também o alvo para onde ela segue. O fim é o alvo
do “endurecimento” e a possibilidade escatológica da “entrada da plenitude
para os gentios”. (II, 12 e 13).
Esta possibilidade [escatológica] divina precisa, manifestamente, ser
precedida pela exaustão [total] das possibilidades humanas (isto é, quando já
não houver mais “endurecimento”; a morte do “homem velho” precisa preceder
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O Alvo 11, 25-26
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11, 26 O Alvo
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O Alvo 11, 26-27
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11, 28-32 O Alvo
*
[Em nota de rodapé o A. diz que “já não pode” concordar com a supressão desse
AGORA; diz ele que esse advérbio pertence a este lugar por força de tensão escatológica
quase insuportável pois para o ENTÃO do v. 30 este segundo AGORA do v. 31 é
surpreendente. A R.S.V. suprime o segundo AGORA mas anota que escritos antigos o
incluem. A Versão Sinodal Francesa escreve, “por sua vez”].
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O Alvo 11, 27-32
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11, 28 O Alvo
da Igreja, anuncia o caminho indireto; ele aparece ante nós em visível pobreza,
evidentemente abandonado e sem proteção. Ele não é obstáculo. Nele se faz
conhecida a situação entre Deus e o homem conforme ela é, pois nele a justiça
forense de Deus está revelada em toda sua glória. Tendo Deus resolvido revelar
sua glória e sua misericórdia neste ‘outro homem’ segue-se que aqueles que
personificam o propósito e a realização da Igreja, deste lado da barreira, preci-
sam estar como os INIMIGOS DO EVANGELHO — POR AMOR (por causa)
DE VOS. O pecado precisa abundar para que a graça superabunde”.
Embora a versão inglesa apresente o tema de forma ligeiramente dife-
rente da que me parece estar no original, a idéia geral é a mesma. Todavia, pelo
contexto e considerações feitas nos últimos três capítulos, parece-me que, em
síntese, podemos dizer: Deus se serve do próprio empedernimento dos homens
para falar-lhes; porém Deus não necessita desse endurecimento nem os endure-
ce por isso, mas consente nele; todavia se Deus “endurecer” alguém, conforme
o fez com Faraó, fá-lo em seu Poder, sua Sabedoria, sua Graça e sua Justiça; fá-
lo porque Deus é Deus. Não compete a nós, — seres humanos — perguntar por
que, como e quando.
O que parece certo é que Deus se agrada da fé singela, simples, sem pre-
tensões a méritos e a recompensas; sem vantagens de qualquer espécie. Deus
retribuirá a cada um segundo suas obras, mas para nossa salvação — para “agra-
dar a Deus” — de nada valem elas, nem NOSSA ascendência, NOSSA grei,
NOSSO saber, nem mesmo a fé tem algum valor quando por ela nos candidatarmos
à justificação divina, pois então já não será singela e simples. Este é, todavia, o
risco do Homem de Igreja, clérigo ou leigo: a Presunção. E o “gentio” que, —
sendo prudente, “sabendo ver” — não se apegando às coisas do mundo e não
tendo do que gloriar-se, sabendo que não tem do que se valer, que está desarmado
e desprotegido, que é ignorante perante o Altíssimo, é este homem que, apesar de
estar fora da Igreja, se entrega, se abandona totalmente às mãos de Deus — por
não ter outro recurso, — pela graça encontra a salvação. Nesta divina justificação
forense do ímpio, o homem da Igreja vê — (e quem está em melhor condição de
ver que ele?) — quão grandes coisas Deus faz aos que têm o coração contrito, aos
pobres de Espírito, aos mansos e humildes de coração e vendo, quiçá, se esvazi-
ará a si mesmo e dará azo à entrada do Rei da Glória, em seu coração.]
Será então necessário ser GENTIO para alcançar o Reino dos céus ou
será somente pelo exemplo dele que o CRENTE aceitará VERDADEIRAMEN-
TE a Cristo?
Não, pois Deus não se deixa levar de respeitos humanos; se assim fôra
Deus não seria o Deus dos judeus e TAMBÉM dos gentios mas somente o Deus
dos gentios. Porém Deus é Deus para ambos. Todavia, a sua revelação é pri-
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O Alvo 11, 28
meiramente para o judeu, para Israel, para o homem de Igreja, se este não se
materializar como Esaú, quiçá procurando valer-se do seu direito nato de
primogenitura; não se ensoberbecer como Faraó, confiando em seus bens ma-
teriais e seu poderio real; não buscar para si uma lei de justificação conforme o
“moço de qualidade” da parábola de Jesus, mas amar a Deus sobre todas as
coisas — de todo seu coração, com todo seu entendimento, com todas as suas
forças — e ao próximo como a si mesmo. É por isto que Deus tem falado e fala
aos homens, de muitas maneiras, também pelo endurecimento de parte dos
homens da Igreja (e de alguns “de fora”), pelo tempo que lhe aprouver, para
que também aqueles que não pertencem à Igreja percebam que se Deus não
poupa aos que protestam e pretextam adorá-lo na exteriorização do culto, mui-
to menos poupará a eles que nem isto fazem; e os que são da Igreja verão
(também, se forem prudentes) — que se Deus usa de misericórdia para com
aqueles que não confessam ostensivamente o seu Santo Nome, tanto mais se
compadecerá deles, que o confessam e porfiam por servi-lo.
[Resumindo: De graça somos salvos, mediante a fé; isto, porém, é dádi-
va de Deus].
Todavia, onde estaria a gentilidade que não fosse solidária e una com
Israel, nessa abundância do pecado, nesta “inimizade” [com Deus]?
[As considerações que mais acima foram feitas a respeito de Israel e da
gentilidade, sobre a oposição existente entre os que estão “dentro” e os que
estão “fora” da Igreja, foram segundo o ponto de vista humano]. Do ponto de
vista da invisível pragmática divina, porém, o Evangelho de Cristo e a Igreja,
— (a indigna mensageira da Palavra de Deus) — de forma alguma podem estar
em oposição, pois o Evangelho não é senão a revelação da eleição que é exclu-
sivamente pela graça e isto diz respeito de modo muito especial aos inimigos de
Deus. (5, 10).
Ora, desde que aqueles que não são justificáveis, que não são salváveis,
[isto é, aqueles assim considerados por serem gentios] têm, [todavia] a promes-
sa divina [e apesar da] totalidade de sua desobediência nela estão inteiramente
sob a misericórdia de Deus, precisam [agora] honrá-lo (“por causa dos Patriar-
cas”,) [isto é,] pela fé que teve Abraão, o gentio — [a saber, o Abraão de antes
da circuncisão], é [portanto] evidente que estes tais estão agora “dentro” da
Igreja — sim, justamente eles são os “amados de Deus”; o [antigo depositário
da Promessa] que como homem religioso [busca para si uma lei de justificação
e] se opõe a Deus, fica agora “sacrificado” e abandonado dentro da Igreja, [mas
na realidade fora dela], dando lugar à justificação forense dos gentios.
A Igreja é, portanto, a comunidade dos que buscam o perdão e que, por
isso, são santos; dos perdidos que, por serem tais, são salvos; dos que estão
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11, 28 O Alvo
morrendo e, por isso, são vivificados. É assim que na aflição e na culpa deste
homem da Igreja, — neste homem que conhece, que trabalha, que ora, — reú-
ne-se e se concentra a mais excelente esperança do mundo, a esperança da
inaudita justificação e da salvação de tudo quanto a criatura humana empreen-
de e realiza sem saber o que faz.
Ele mesmo, o homem religioso, é então o gentio.
Na extremidade de todo caminho que [pretende] levar diretamente a Deus
chega a mensagem do caminho indireto que dá testemunho da catástrofe da reti-
dão humana e testifica a ressurreição; como vaso da ira, mostra o vaso da graça.
[Perguntávamos mais atrás onde estaria a gentilidade que não estivesse
(espiritualmente) unida a Israel. Agora dizemos:]. Onde estaria Israel se, nesta
situação espiritual não estivesse, de fato, ligado à gentilidade?
Se Israel ousasse colocar-se [decisiva e realmente] no campo da eleição
de seus patriarcas; se a Igreja ousasse ser sustentada e impelida somente pela fé
que Abraão teve e assim se sacrificasse, assim abrisse mão de si mesma, des-
cesse, [do pedestal] para, humilde e verdadeiramente tratar [de seu tema] com
seriedade, quão grande se tornaria ela no mesmo instante. Grande porque já
não seria grande [segundo o mundo]; grande, unicamente pela misericórdia
divina.
“A dispensação da misericórdia e a vocação de Deus são irrevogáveis”.
“Acaso a vossa infidelidade suspenderá a fidelidade de Deus?”
(3, 3). “A palavra de Deus não falha” (9, 6). “Deus não rejeitou o seu povo” (11, 2).
Mais verdadeiro do que a razão que têm os “de fora” sobre os de dentro,
mais verdadeiro do que a falta de razão em que estão os “de dentro” com rela-
ção aos de fora, mais verdadeiro do que toda pragmática invisível que pareceu
resultar dessa oposição entre a Igreja e o mundo, é sempre o tema [o assunto]
da Igreja. [Este tema] é a invisível pragmática de que SOMENTE DEUS ATRI-
BUI E RETIRA A RAZÃO E A CULPA; é o tema da LIBERDADE DE DEUS,
que é o julgamento e também o alento da Igreja e que significa a sua terrível
purificação mas também a sua plena realização. É a verdade na qual a verdade
é DEUS, e nada mais.
A dispensação da graça e a vocação divina são confirmadas pela rejei-
ção dos eleitos da mesma maneira que, em contraposição, [esses dons] não
podem ser comprovados senão pela eleição dos rejeitados pois, invisivelmente,
uns e outros são a mesma coisa em Deus.
[A tradução inglesa escreve: “A rejeição dos eleitos não destrói seus
dons e sua vocação que são tão confirmados por essa rejeição quanto pela elei-
ção dos réprobos. Ambas essas operações são, invisivelmente, uma e a mesma
coisa em Deus”.]
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O Alvo 11, 28-31
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11, 28-32 O Alvo
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O Alvo 11, 32-36
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11, 33-36 O Alvo
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O Alvo 11, 33-36
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11, 33-36 O Alvo
Evangelho é a Palavra de Deus posta na língua dos homens e pelo seu Poder,
sua Pureza, sua Origem Divina, redime e santifica aquilo que usar. É a graça e
o milagre da inspiração divina].
Por que será que o “empréstimo” que Paulo faz se parece tão mais como
sendo original, até mesmo na planície das coisas históricas? [Todavia, aqui
cabe esta observação:] De que outra maneira mais significativa poderia Paulo
terminar este Capítulo, do que nesta forma tão altissonante, [até mesmo] atroa-
dora e que suscita tanta esperança, dizendo [com o vigor da inspiração divina e
com a certeza da fé] aquilo que outros também sabem?
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O Alvo 11, 25-36
modo de ser com relação à religiosidade dos “fiéis” e então são, tam-
bém eles, candidatos à poda do tronco ao qual foram enxertados; esta
é a catástrofe que paira sobre a Igreja e da qual ela se liberta morren-
do como “velha criatura” e ressurgindo em Cristo.
É por isto que a Igreja fala de Deus e anuncia a “Boa Nova”, pois
ela efetivamente encontrou, — vale dizer, recebeu — a revelação de
Deus, Todavia, a “nova criatura” somente pode existir ressurgindo
em Cristo; ele é a sede da Revelação.
A Parte “endurecida” da Igreja pode ver nos “de fora” a ação da
graça divina; é uma das maneiras pelas quais Deus fala e, vendo e
compreendendo os caminhos de Deus ela pode esvaziar-se a si mes-
ma, humilhar-se e dar glória a Deus; então poderá acontecer o mila-
gre, cessar o endurecimento e a Igreja toda voltar à singeleza e pureza
de sua tarefa; ela estará então em condições legítimas de levar aos de
fora a mensagem da salvação, de que é portadora mas não sede; então
a Igreja pode, deve e efetivamente será a missionária para os gentios.
Todavia a Igreja não pode — e ninguém pode — dizer que está do
lado da razão, pois só Deus a tem; pretender estar “a seu lado” é
jactância, é arrogância humana; é querer ser igual a Deus. O que po-
demos fazer é confiar na graça e esperar que Deus nos tome quais
somos, não porque o mereçamos mas pela mediação de Jesus Cristo.
Alguns de nós talvez possam parafrasear o grande Apóstolo dizendo:
“Combati o bom combate” porém, “sou o que sou pela graça de Deus”.
É por tudo isto que ninguém pode pretender “descrer” da Igreja;
seria requintada vaidade e absurda exibição de superioridade; equi-
valeria a afirmar que encontrou por seu tirocínio, sua acuidade, seu
entendimento, um caminho mais excelente fora dos caminhos mais
apertados estabelecidos por Deus; seria a expressão existencial do
endurecimento que “vem de Deus” e vem dele por ser ele a pedra de
toque que afere a nossa atitude.
2. “Deus a todos encerrou na desobediência para que de todos tenha com-
paixão”. Não entendamos daí que, para se mostrar misericordioso, Deus
nos fez, a todos, maus. Antes parece ser assim: não há quem faça o
bem, nem sequer um, justo. (3, 9-18). Em sua pecaminosidade os ho-
mens se excedem uns aos outros contudo, para usar de misericórdia
com todos, a todos Deus encerrou (incluiu) na mesma desobediência.
3. Na exegese do v. 28 Barth afirma que tudo quanto o ser humano
empreende (ou inventa) para se proteger de Deus, encontra-se acu-
mulado na Igreja.
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11, 25-36 O Alvo
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Capítulos XII a XV (1ªparte)
A GRANDE PERTURBAÇÃO
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12, 1 a 15, 13 A Grande Perturbação
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A Grande Perturbação 12, 1 a 15, 13
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12, 1-2 O Problema da Ética
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O Problema da Ética 12, 1-2
natureza e cultura, vida que também aqueles que proferem semelhante discurso
precisam alimentar [intelectualmente] a cada instante, vivendo — por assim di-
zer — da mão para a boca, [precariedade] em que, na realidade, sobrevivem de
uma ou outra forma.
O surgimento [o aparecimento e a conscientização] da questão ética con-
firma e assegura a existência [a validade] dos conceitos dispendidos e encareci-
dos neste discurso [isto é, em tudo o que foi escrito neste livro,] comprovando
que o refrão cansativamente repetido — “DEUS MESMO, SOMENTE DEUS!”
— não é “coisa” divina, não designa algum idealismo com o qual nos deparásse-
mos, mas é a expressão da inescrutável relação em que, como criaturas humanas,
nos achamos com [ou perante] Deus. Estes conceitos e estas fórmulas [ou “frases
feitas”], em sua abstração, na sua exteriorização em maneira não caracteristica-
mente humana e portanto estranha ao mundo, [parecendo até ingênuas, quando
não irritantes, a alguns,] são tiradas do modo de SER, TER e AGIR da criatura em
sua movimentação no mundo e sob a tensão em que nele ela se encontra.
Não pode haver erro maior do que supor que esses conceitos pudessem ser
formulados (e deduzidos) independentemente do ambiente em que vivemos e que
não fossem relacionados com as coisas concretas de nossa vida cotidiana. Por isto,
a quem quiser bem compreender a “Epístola aos Romanos”, recomendamos insis-
tentemente que leia toda sorte de literatura mundana, notadamente os jornais.
Cogitar, pensar seriamente, é meditar sobre-a vida e, por isso e nisso, é
meditar sobre Deus. Cogitando sobre a vida o pensamento precisa percorrer
intricados caminhos e vagar pelas mais remotas paragens, pois a vida transcor-
re em mobilidade e tensão caleidoscópicas, A vida não é simples, nem direta
nem definida; inequívocas, objetivas, singelas, são apenas algumas suas apa-
rências superficiais mas nunca e em nenhum lugar, a sua profundeza e a sua
conjuntura. Nunca é simples a realidade de cuja existência a aparência fala.
Todavia, é justamente no pensamento dialético que a meditação atinge sua meta,
inquirindo sobre a profundeza, sobre a conjuntura e sobre a realidade da vida,
para então entender o seu objetivo [o seu fim], para entender o que a vida signi-
fica e ter condições de lhe dar sentido.
Se [os caminhos que o pensamento precisa percorrer] fossem diretos,
menos truncados [ou menos tortuosos], se fossem mais facilmente perceptíveis
em seu conjunto, isto seria a prova mais segura, [então seria evidente] que tais
caminhos estariam passando ao largo da vida, [isto é, estariam ignorando a
crise em que a vida está].
Não é o raciocínio “complicado” que é ortodoxo mas o mui célebre
pensamento “simples” que sempre anseia por conhecer aquilo que [ainda] não
conhece. É por isso que a cogitação genuína não pode ter a retilineidade
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12, 1 O Problema da Ética
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O Problema da Ética 12, 1
origem invisível, a sua pura proposição inicial que, justamente em seu isola-
mento [do mundo], dá plenitude e sentido a tudo quanto é material. [O proble-
ma da Ética] recorda-nos da verdade de Deus que, mesmo no mais elevado “ato
de pensamento” jamais é elemento conhecido e lógico.
Paradoxalmente, são justamente as reivindicações e os acontecimentos
cotidianos que ocorrem e se desenvolvem ao redor e junto ao “ato de pensa-
mento” que nos ensinam que o “discurso sobre Deus” não se faz por causa do
discurso mas pela vontade de Deus. Assim como a meditação sobre Deus per-
turba todo SER, TER e AGIR dos homens, o problema da ética tem de pertur-
bar a dissertação que sobre ela se faz, ressaltando o tema para o suprimir, a fim
de lhe dar sentido e objetividade; matando-o, para que viva. É por isto que
“EXORTO-VOS, IRMÃOS!”
Consenti em serdes interrompidos [quebrados e descontinuados em vos-
sos pensamentos,] vós que pensais comigo, que sois meus companheiros de
peregrinação, que adorais comigo, para que vossos pensamentos sejam [agora
de] meditação sobre Deus; permiti que sejais interrompidos em vossa dialética
para que ela continue sendo dialética; que o vosso conhecimento sobre Deus
seja interrompido para ser o que [na verdade] deve significar: a grande e salutar
perturbação e interrupção que Deus prepara, em Cristo Jesus, para a criatura
humana, a fim de chamá-la de volta para o lar, na paz de seu Reino!
“Pelas misericórdias de Deus” eu vos exorto. Portanto, aqui não se abre
novo livro; nem mesmo se vira a página. Aqui não se recomenda alguma “prá-
tica” ao lado da teoria, antes se afirma que exatamente a “teoria” da qual proce-
demos é a TEORIA DA PRÁTICA. Falamos das misericórdias de Deus. Da
graça, da ressurreição, do perdão, do Espírito, da eleição, da fé; [são] multiformes
e variegadas refrações, sempre da mesma luz, a luz não gerada.
Em qualquer dessas manifestações apresenta-se sempre a questão funda-
mental da ética vazada na pergunta: “Como viveremos?” Ou então, “o que fare-
mos?” Não é por mera curiosidade que nos pomos a investigar sobre problemas
remotos nem é nossa meditação que nos leva inevitavelmente a isso. Há algo
mais que nos induz a voltar sempre nosso olhar a esse ponto invisível, a essa luz
à qual ninguém pode chegar. Contudo, o nosso ponto de partida é sempre o
local onde estamos: Roma no primeiro século (1, 18) e todos os demais lugares
em todos os tempos; [é desse ponto de partida] que seguimos os emaranhados
caminhos de nossa meditação a que o próprio mundo nos Incentiva pois é nele
que temos de agir e fazer valer nossa vontade, [aceitando ou rejeitando e tole-
rando ou combatendo seus processos, sua filosofia e sua pragmática]; portanto
é o próprio mundo a causa imediata de nossa cogitação sobre aquilo que ele é,
[o que significa] e sobre o que faremos ou como viveremos nele.
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12, 1 O Problema da Ética
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O Problema da Ética 12, 1
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12, 1 O Problema da Ética
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Não há engano mais absurdo do que esperar (ou temer) que a graça
pudesse transformar-se em leito de repouso para “teóricos” e místicos (6, 15-
16). Semelhantemente, na defesa do homem com justa razão preocupado com
sua vida (moral!), não há tentativa mais traiçoeira do que, sob o pretexto de
evitar esse engano do luteranismo, preferir fundamentar a ética em conceitos
orientados para objetivos deste mundo, em bens e em ideais, em vez de tomar
como referência o conceito da negação decisiva de todas finalidades de origem
humana pensando, antes, no perdão do pecado [que é a graça de Deus].
Não há degradação mais tola do que a atitude de alguns recém-conversos
que, na ânsia de se lançarem ao encalço da graça, a tornam suspeita fazendo do
“agraciamento” [divino] e da atividade humana coisas distintas entre si; pas-
sam por cima da graça, para irem, além dela, até ao que se pode designar por
“tentar a vida”. Semelhante procedimento é a forma mais segura de devolver
“ao corpo” os “direitos” que [segundo a natureza humana] lhe são próprios.
Fora da graça não há qualquer forma ou maneira de despertar verdadei-
ro dessossego ético na criatura e o ataque absoluto que contra essa criatura é
desferido — e que constitui o sentido de toda ética, — somente pode ser desfe-
chado se o ponto de vista da graça for mantido firmemente em todas instâncias,
“como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus: vosso culto objetivo a ele”.
À vista da situação geral [do relacionamento] existente entre Deus e os
homens, que sentido pode ter esta definição de ação ética primária, [básica,
inicial] de um “culto objetivo” [racional] a Deus? Isto já foi identificado mais
atrás (6, 19 e 22) como “santificação”. Agora [porém,] é preciso definir este
conceito com maior exatidão.
Santificar alguma coisa é separá-la para Deus, coloca-la à sua disposi-
ção, apresentá-la e oferecê-la a ele, pô-la à sua disposição conforme se define
com mais rigor no “conceito” de “sacrifício” — [holocausto].
Esta exortação, (feita em forma de rogativa) com fundamento nas mise-
ricórdias de Deus, diz que o CORPO, isto é, o sentido da existência [terrena],
sua aparência e sua historicidade devem ser apresentados [a Deus] e postos à
[sua] disposição como SACRIFICIO. Sacrifício quer dizer renuncia, abdica-
ção; oferta feita incondicionalmente a favor de Deus.
Se a própria pessoa for o objeto dessa renuncia, dessa abdicação, dessa
oferta, então o seu sacrifício não pode ser senão o absoluto reconhecimento da
questionabilidade e do confisco que Deus manda a seu encontro de todos os
lados; é o sacrifício que a pessoa tem de fazer (permanentemente) no seu sem-
pre renovado e nunca cabalmente realizado retorno à misericórdia e à liberdade
de Deus; é o SACRIFÍCIO cuja dureza e grandeza melhor esclarecemos e apre-
endemos meditando sobre a dupla predestinação, conforme capítulos IX a XI.
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podermos traçar a [eventual] linha divisória que nos separasse dele; a este mun-
do também pertenceria um [hipotético] corpo astral, por simples questão de
lógica. [Possível referência aos gênios de fogo os quais povoariam o universo
segundo algumas religiões ocultistas].
O mundo [que a passagem menciona] é aquele no qual o ser humano,
(com todas suas possíveis e imagináveis projeções mundanas e “intermundiais”)
continua sendo criatura humana.
Este mundo tem determinada “postura”, determinado esquema e tem
uma lei básica que se expressa na tendência de seguir a luz (criada!), de buscar
a vida e a plenitude; busca o testemunho e portanto o que é testificado; em
resumo: este mundo segue a própria criatura, [e esta criatura, para o mundo e
segundo o mundo — e pela própria lei natural do mundo — completa-se e se
realiza plenamente e idealmente em sua materialidade absoluta, nas suas
multiformes manifestações].
Esse esforço para assegurar prazer, posse, sucesso, saber, poderio, ra-
zão, para chegar a ambicionada e [supostamente] atingível plenitude imagina-
da, deve ser a obra do misterioso centro deste cosmos na medida em que o
homem for genial. (Convém aqui lembrar que a origem etimológica de “geni-
al” sugere a idéia de casamento, [núpcias,] e gênio — ou “genius” — é o “que-
rido EGO”). [Mais adiante Barth faz analogias entre “genial” e o que, em por-
tuguês, poderíamos escrever “genital”, do latim “genialis”].
Talvez não erremos muito se identificarmos “a condição do mundo pre-
sente”, intrinsecamente, com o esquema de EROS. Esta característica carrega-
mos todos em todas nossas atividades diárias e elas nos acompanharão até o
fim do mundo [ou individualmente, até o final de nossos dias terrenos]. Não
tenhamos a ilusão de que existam [ou possam existir] atividades éticas que não
estejam entremeadas dessa condição, que estejam livres dessas roupagens, isto
é, não existem [sentimentos nobres quais] amor, probidade, pureza, coragem,
etc., que não contenham a forma deste mundo e não sejam eróticas.
Assim como não existe um pensamento puro em forma de ação, tam-
bém não existe intenção [querer ou desejo] pura. [A tradução inglesa escreve
“também não existe um puro ato de vontade”]
Assim como todo ato de pensamento — como tal é suposição [opinião,
ou julgamento], todo ato da vontade — também como tal — é libido e cobiça.
Todavia, não subestimemos nossa situação, [ou melhor, não sejamos
pessimistas]. Se não há sequer uma única pessoa que não traia [ou que em seus
sentimentos e conduta, negue] a característica deste mundo, também não há um
sequer que a carregue sem já estar, justamente por isso, às voltas com o princí-
pio fundamental da ética [com a grande perturbação que fala] do sacrifício
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— (e isto também pode, em dado momento ser a mais alta confirmação da vida,
o seu (mais significativo] desdobramento!); então será o fim do mundo, a res-
surreição dos mortos; e a criatura agirá eticamente. A ética de uma atitude está
naquilo que a ilumina [e não da luz que dela acaso se esparge], porquanto neste
assunto temos razões para não nos expressarmos senão em forma negativa.
[Falamos em termos de negação, de abstenção, de renúncia, do] sobrepujamento
do indivíduo porquanto a conformação [que a ética divina impõe] não se dá
segundo o presente século mas é segundo o mundo transformado.
Não ha nenhuma conduta que, em si mesma, não esteja na conformida-
de deste mundo embora existam ações que QUASE contenham em si o caráter
do protesto divino contra o grande erro. Também não existe procedimento que
em seu modo de ser acaso seja conforme a transformação deste mundo, embora
existam atitudes que são tão extraordinariamente transparentes [cristalinas,
puras] que QUASE deixam transparecer a luz do dia vindouro.
Portanto, resta que toda conduta humana é somente (por que dizemos
“somente”?) analogia, [semelhança, parábola] e testifica a conduta divina que,
por ser divina somente (e por que dizemos outra vez “somente”?) pode ser
apropriada na eternidade e jamais na presente temporalidade. É poeira levantada
pela caravana em marcha — apenas poeira — que [todavia] testifica a existên-
cia da caravana; é a cratera deixada pela granada que explodiu e que nos fala de
explosão que houve; é depressão na encosta da montanha que apenas nos fala
do lugar onde a elevação deixou de existir. Assim também as mais peregrinas
de nossas atitudes, as atividades mais amplas e de maior alcance, são sempre e
insistentemente recomendadas como prova [da obra] do Espírito Santo e de seu
poder [para nos levar] a produzir “obras e realidades” que sejam recomendadas
e desejáveis. Se daí, por força das circunstâncias, surgirem novas ações positi-
vas, novos pontos de vista — novos direitos, novas forças motrizes (aplicadas à
antiga carroçaria do mundo) — e estas coisas aparecem imediatamente! —
então essas [decantadas] atitudes e atividades não são conformes ao mundo em
sua transformação mas, na realidade, gravitam em torno das coisas materiais e
estão inteiramente em conformidade com o comportamento deste mundo.
A criatura que se engaja nos mais sublimes feitos e realidades tanto
pode ser aquela sempre vitoriosa como esta outra, do sofrimento; pode ser a
pessoa no pleno gozo de seus êxitos ou a outra no duro curtimento da tragédia;
tanto pode ser a que progride de ânimo alegre como a que regride melancolica-
mente; tanto pode ser quem de tudo tira vantagem e proveito, como quem cons-
tantemente abre mão, abdica, renuncia.
[Neste engajamento, qualquer que seja a personalidade do indivíduo
embalado em suas próprias cogitações de alto coturno,] ele permanece totalmente
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Vs. 3 (primeira parte) Assim, com fundamento na graça que me foi concedida
digo a cada um de vós que não queira elevar-se em sua mente, o que não
tem sentido, mas cuide ser moderado.
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amado. “Francamente, Deus não é egoísta mas ele é o EGO infinito que não
pode ser modificado para te agradar, porém tu precisas modificar-te para agra-
dar a ele... Assim como a flecha desferida pelo flecheiro exímio não pode parar
antes de atingir seu alvo, assim a criatura humana não encontra descanso, se-
não em Deus...; tão logo eu tente, em minha vida, dar expressão ao que afirmo,
isto é, quando procuro pôr o Cristianismo em termos práticos, então faço ex-
plodir a vida e o escândalo assoma.” (Kierkegaard).
Somente quem já esteve exposto à grande perturbação, está em condi-
ções de receber a exortação e, também, de exortar (12, 1). É nesta condição que
Paulo fala (1, 1); a graça que lhe foi dada, (tanto nesta passagem como em 5, 2),
é o fato paradoxal de seu apostolado, [que se evidência em] sua situação pecu-
liar como “mensageiro especialmente ordenado [ou comissionado] para o cum-
primento da mais alta missão” (Kierkegaard).
Paulo dirige-se aos romanos como gente igual a ele, isto é, como gente
que também experimentou a grande perturbação que Paulo traz constantemen-
te à lembrança deles, em sua carta. É por isto que toda a Epístola aos Romanos,
é uma exortação.
Que Deus é Deus, constitui a base [ou o pressuposto] da ética e as pro-
posições éticas somente são éticas, como enunciação deste fundamento que
[todavia] nunca é de antemão conhecido e nunca pode ser considerado como
[licença ou] permissão [ou base] para progressos rotineiros, quiçá diários, nem
para que se assumam presunçosamente posições mais avançadas [ou mais ou-
sadas]. O fato de que Deus é Deus faz-se conhecer [e impõe o seu reconheci-
mento] por si mesmo; é ele mesmo que urge a que se tomem novas posições e
dão compasso para o desenvolvimento normal.
[Entendo que o Autor quer dizer que não se pode partir do conceito de
que Deus é Deus, para estabelecer uma norma de “prática diária da ética”,
nem para o aperfeiçoamento progressivo de nossa conduta e, muito menos
(se assim podemos dizer), tomar esse conceito como motivação e justificação
para inovar métodos de trabalho, técnicas de evangelização, exercícios de
aprimoramento espiritual, etc. O conhecimento de Deus é o reconhecimento
de que só Deus é Deus, é revelação que está à disposição dos que têm olhos
para ver e ouvidos para ouvir, desde o princípio do mundo (1, 20); é revelação
que está em Cristo Jesus (Heb. 1); todos são convidados, porém o convite, a
revelação, vem de Deus (Mat. 11, 25 ss). Quem ouvir o apelo do Espírito
Santo em seu coração e não for desobediente à visão celestial, esse achará
descanso para sua alma; terá a Deus por seu Deus; a Jesus Cristo por seu
Salvador; ao Espírito Santo por seu Consolador. Esse tal viverá pela fé e ofere-
cerá os seus dotes, dons e pendores naturais a Deus em sacrifício espontâneo,
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natural, lógico — seu culto racional. Haverá progresso diário? Haverá neces-
sidade ou oportunidade de tomar novas posições? — Vivamos pela nossa fé e
o restante a fidelidade de Deus proverá!].
Quem há [suficientemente] competente para discorrer sobre ética e ou-
vir essa discussão? Quem pode, em primeira e última instância dizer a alguém
ou aceitar que alguém lhe diga “que não DEVE ELEVAR-SE EM SUA MEN-
TE” (porque) “ISTO NÃO TEM SENTIDO”?
Sabemos qual [e o que] é esta elevação [esta presunção e auto-
promoção]; sabêmo-lo bem, mas nunca “bem demais”. (12, 1). Mal acaba-
mos de apear [quer seja de quixotesco rocinante ou de fogoso corcel] ei-nos
já com o pé no estribo de outra montaria; mal acabamos de ser tirados de uma
situação-difícil e eis que já estamos às voltas com nova causa; ainda não
acabamos de ser instruídos e já estamos a ensinar. Acabamos de nos desiludir
com a história ou com a psicologia e já estamos criando novo ídolo, [talvez
agora] bíblico, quiçá na forma de “deus vivo” ou, quem sabe, na “sabedoria
da morte”.
Quem há que observe quão freqüentemente erra? Parece mesmo que,
para nossa vergonha, precisamos estar sempre em alguma dessas alturas, [des-
sas excelências humanas]; precisamos estar, conforme vimos, em alguma Igre-
ja, pois ela surge onde se fala e se ouve falar a respeito de Deus, onde se trata
daquilo que, da parte de Deus, há para dizer sobre a nossa vida (9, 6). Que
Igreja é essa? É infinita a possibilidade de que se trate da Igreja em que a cria-
tura humana “quer estar no alto”. Portanto, aquilo que nos deveria ser dito e
que deveríamos ouvir sobre a nossa vida, da parte de Deus, será dito e ouvido,
sempre, impropriamente e, pior do que isto, soará (para nós) cada vez mais
apropriado e “mais essencial”.
O fim desta Igreja — o fim de todos os “ALTOS”, com seus Baalim e
Astartes — é a Igreja invisível, a Igreja de Jacó.
Precisamos, portanto, entender imediatamente e com muita clareza que
também a exortação para que cada um “cuide de ser ponderado” não visa à
possível justificação humana de alguma conduta espiritual, mas ao instante eterno
quando estivermos abatidos e sem justificação perante Deus, para [então] ser-
mos enaltecidos e justificados por ele. Por isso, não é supérflua essa exortação,
(ou, em outras palavras: não se trata apenas de ser moderado, modesto, humil-
de em nossas atitudes cotidianas ou ocasionais mas também no momento críti-
co e decisivo quando nos defrontarmos com Deus: que sejam “poucas as nos-
sas razões”, quiçá nenhuma; que, se nos for possível, não falemos sequer uma
vez; melhor fora que nunca houvéssemos tentado — que, pelo menos — não
mais tentássemos cavalgar em grandes paradas...]
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“O TODO”. —), porém são indivíduos; cada um é [de per si] a NOVA CRIATU-
RA. (1 Cor. 12, 12-13). Este UM “O CORPO DE CRISTO”, é que vem ao nosso
encontro na comunidade dos crentes, dentro do problema dos outros.
[Talvez pudéssemos dizer, na tentativa de interpretar o pensamento do
Autor, que no problema do tratamento ético-cristão, que devemos dispensar
“aos outros”, na comunidade cristã, nos deparamos com a unidade do Corpo de
Cristo]. Lembramo-nos de que o “Corpo de Cristo” é o Cristo crucificado (7, 4)
e imediatamente ressalta a agudeza crítica (decisiva) do conceito do indivíduo
como preposição inicial da ética.
Se o Cristo crucificado for o “objetivo da fé que Deus consignou a cada
um” (e a cada um na sua singularidade) então, com fundamento na graça (que
faz morrer para vivificar), recebemos diferentes dons; trata-se pois, para cada
indivíduo, (e precisamente em sua individualidade) de se “revestir do Senhor
Jesus Cristo” (13, 14); trata-se da “Nova Criatura” que está sempre ao lado
desse indivíduo, com o dedo erguido [em exortação] que, em sua personalidade
diferente, faz lembrar daquele totalmente diferente — [do mestre, Redentor e
Senhor].
A Congregação é comunidade e comunidade é unidade; é a unidade dos
homens [entre si] e deles, no insondável Deus, que é Senhor sobre a vida e a
morte. Quando isto acontecer — quando os homens forem “um” como Cristo
em Deus Pai, e Deus em Cristo, .— [João 17, 11-21], então para cada pessoa,
em sua individualidade, já não haverá mais lugar para o titanismo — [para a
vaidade, para a jactância e para a pretensão de ser semelhante a Deus]. Estará
excluída a idéia de ganhar as alturas; haverá o “sentido da moderação”, isto é,
cada um considerará que no “Alto Monte” só Deus pode estar e isto, por assim
dizer, constitui a palavra de ordem para o procedimento ético.
É nessa lembrança [daquele que é totalmente diferente], que se impõe a
mudança, no sentido do procedimento do ser humano e de sua absoluta
materialidade; é como se fora mediante uma ordem necessária, [imperiosa] e
impossível de desobedecer.
Esta mudança não pode ser [ordenada ou] incentivada por qualquer
maioria, nem por “imposição” ou necessidade [de qualquer outra natureza que
não pelo poder da ressurreição], nem por autoridade histórica [ou por força da
tradição], nem por organismo eclesial ou eclesiástico místico ou inter-mundial,
porquanto é a lembrança de Cristo crucificado que muda o procedimento ético
secundário, fazendo-o cuidadosamente moderado e o ligando à ética funda-
mental [do oferecimento do corpo em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus],
participando, assim, juntamente com [a dignificação da] ética primária, do po-
der e da dignidade da origem básica, [que é Jesus Cristo].
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exortar; quem distribui esmolas, que o faça com liberalidade; quem preside,
que ponha nisso todo seu zelo; quem exerce a misericórdia, o faça com alegria.”].
Como comunidade, a Congregação é constituída por Cristo, o individu-
al, a unidade; isto significa que a unidade dos diferentes dons se fundamenta na
sujeição da criatura, em sua total materialidade, a Deus e não o contrário. A
suposta “virtude da tolerância”, de cuja prática, — na verdade — nem todos
estamos livres, precisa, na melhor das hipóteses, ser considerada como [sim-
ples] meio de defesa do homem contra a perturbação divina. Aquele UM no
qual somos unidade, é a própria intolerância. Ele quer dominar; ele quer ven-
cer; ele quer tudo!
Ele é a perturbação do “dia da família” [quiçá do dia da reunião da
família conforme se faz, por exemplo, no “dia das mães”, ou no “dia de Na-
tal”]; ele é a perturbação de toda “Paz na Igreja”, de tudo quanto seja coletivo [e
também da paz individual, segundo o mundo nô-la dá], e isto é assim porque
ELE é a paz que está por cima de todo alheamento, — todo acidentalismo e
todas facções.
[Talvez, dizendo “acidentalismo”, o Autor queira referir-se a desuniões,
rompimentos, separações, “altos e baixos” da vida].
A exortação ética — [o encargo ético] não pode ser para que “cada um
cuide do que é seu”, porém, que “cada um cuide da unidade”!
[A maneira de Barth expor a unidade da Congregação, em Cristo, e o
conceito de que cada membro deve visar não propriamente à excelência de seu
dom, mas a unidade do todo, é posta assim, na tradução inglesa: “Como Con-
gregação (‘Fellowship’) a comunidade é constituída por Cristo, o UNO, o
INDIVIDUO. Isto quer dizer que a unidade somente pode ser estabelecida na
diversidade mediante a submissão a Deus e pela completa correspondência
daquilo que é particular com o seu propósito final.
“Não há dúvidas de que a tolerância é uma virtude sem a qual nenhum
de nós pode viver, mas, apesar disso, precisamos ao menos entender que, a
rigor, ela destrói a Congregação porquanto ela é a atitude mediante a qual se
rejeita a perturbação divina. Aquele em quem, verdadeiramente, estamos uni-
dos é, ele mesmo, a grande intolerância. Ele quer governar, quer ser vitorioso,
ele quer ser — tudo. É ele quem perturba toda reunião familiar, todo esquema
de união da cristandade, toda cooperação humana. Ele assim perturba porque
ele é a PAZ que está acima de todo alheamento, de toda brecha e facção. A
máxima ‘a cada um o seu’ jamais pode conduzir a procedimento ético; a máxi-
ma verdadeira é ‘a cada um a unidade’”.
Entendo que o Autor quer dizer que Cristo, UNO e INDIVIDUALMEN-
TE (isto é, ELE, em sua unicidade, e para cada um, individualmente) é o centro
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— e que sacerdotes. [Na tipificação dessa Congregação] nem sequer se fala nas
necessidades humanas mas exclusiva e unicamente da exigência de Deus, à
qual todos precisam submeter-se. Nessa Congregação cada um segue sua traje-
tória [segue “o dever” que lhe foi traçado] como o projétil que sai do cano da
arma. Cada um tem permissão para seguir esse curso; precisa e pode fazê-lo
porque cada um tem um objetivo — O OBJETIVO.Nessa Congregação nin-
guém faz obra parcial; nela não há disciplinas — [matérias separadas], nem
tarefas pois cada um, ao fazer sua parte, faz aquela única parte que é o todo.
Talvez seja como “arauto da Palavra Profética”. Precavemo-nos com
razão de tudo quanto vem a nosso encontro com ares de profecia e, também, de
quem tem pretensões a ser representante do “totalmente outro”. Estamos dolo-
rosamente habituados a ver toda pretensão ruir por si mesma, o “totalmente
outro” ser comprometido por algo totalmente diferente e o objetivo da
santificação ser por demais material. Todavia, [e a despeito das “desilusões”
que os pretensos profetas nos têm causado] permanece [em nós] o anseio de
que venha alguém que nos mostre, realmente, o “totalmente outro”, em cuja
identidade não podemos penetrar.
Se “acaso” existir uma única pessoa que tenha submetido aquilo que é
propriamente seu, — o dom que recebeu — à “eventual” possibilidade” da
graça, que fale segundo a medida da fé, que dê, realmente, a Deus o que é de
Deus de tal maneira que, através dela, Deus possa falar como se ela não existis-
se; se tal pessoa for a UNIDADE, então a sua profecia é a única alternativa ética
e a par dela não há outra; esta profecia não necessitará de suplementação nem
“contrapeso” porque em vista de sua unicidade significar, de fato, unidade,
significa também que ela é suficiente por si e que o hibridismo da singularidade
está excluído, [isto é, não existe em tal pessoa]. [Onde o original escreve o
“hibridismo da unidade” e que interpretamos da forma acima, a tradução ingle-
sa escreve “a arrogância da particularidade”].
“Talvez” alguém “tenha o dom para prestar serviço”, [tenha vocação]
para ajudar [nas coisas] práticas.
Paradoxalmente, é possível que a ajuda [o auxílio, a atividade de servir,
a ministração de serviços] seja a única possibilidade ética [efetiva na criatura
humana] e talvez só a tenha, sem qualquer jaça, aquele que é único [a saber, —
Jesus Cristo].
Temos motivos para reservas ante a idéia de SERVIR!, AJUDAR!, ser
PRATICO. Ela sempre nos faz pensar em Marta, que não se interessava em
ouvir porém, sim, em “SERVIR”. Mas a idéia sempre implícita [na ética cristã]
de que é preciso ajudar as pessoas, subsiste [e prevalece] como certa, [apesar
dessa reação justificável].
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lugar para, se possível for, sem tumultuação e, por isso, de maneira sistemática,
determinar as limitações que foram postas aos homens e, incansavelmente, es-
tabelecer o que significa essa “palavra humana” para cada pessoa, palavra que
está sempre presente [evidente ou], subjacente, a eles se apondo; [neste afã]
quer também verificar o que a questão divina significa para as criaturas huma-
nas, questão essa que elas mesmas levantam em sua limitação; finalmente, em
quarto lugar, [o apego à teologia subsiste] para admoestar insistentemente a
todo aquele que quiser seguir a carreira ministerial [o sacerdócio santo], que se
precavenha contra as desilusões [ou que se prepare para elas], que não espere
por “segurança” nem confie no “ministério humano”; que ouça a premente
advertência e abandone a “objetividade” como “teologia prática”.
Também a teologia, notoriarnente, poderia ser não apenas uma mas a
única alternativa ética e o indivíduo que agisse “como professor”, para ensinar,
poderia ser verdadeiramente a UNIDADE. — “Talvez” algum “como prega-
dor”, como quem exorta, consola e convida. Aqui pensa-se especialmente no
Pastor. — O “Pastor”, como única possibilidade ética? Quem não se admira
disso? Mas o que há nisso para se pasmar? Seria de admirar [e pasmar] se o
ternário [o assunto] imposto [ao pastorado] fosse, por exemplo, psicologia,
moral, história sagrada, finalidades comunitárias, tradição da Igreja, ou deter-
minadas experiências na vida.
Na realidade não é assim; [o tema real do Pastor] é a perplexidade que
Deus prepara aos homens e a promessa que ele faz.
“Talvez” exista particularmente um que, sob temor e tremor, se tenha
confrontado com o tema [peculiar ao pastorado], a quem o assunto se torna tão
extraordinariamente importante que já não pode optar por outra coisa; e se tal
pessoa estiver convencida de que o tópico da pregação tem de estar em torno da
cruz, da ressurreição e do arrependimento, então a [sua] pregação será a única
ética possível; então se tratará de fato da pregação para exortação, consolo e
convite. Este tal, na diversidade que lhe coube em sua singularidade, é UM [em
Cristo], vocacionado como Pastor, justificado, eleito e agradável a Deus.
“Quem distribuir, o faça com simplicidade; quem estiver investido de autori-
dade, que a desempenhe com esmero; quem exercer misericórdia, seja com alegria”.
A demonstração, portanto. vai além “do falar” das diversas testemu-
nhas. para atingir também aquilo que a pessoa faz.
Por que [se menciona] justamente REPARTIR, AUTORIDADE. MISE-
RICÓRDIA?
Graça significa, evidentemente, que coisa mais bem-aventurada é dar
do que receber. Significa ainda que uma “autoridade” algo imponente, respei-
tável, também entra em cena.
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12, 8 A Base Fundamental
É claro que GRAÇA significa ter coração aberto e não mesquinho, fechado.
Na Congregação a comunidade é constituída pelos indivíduos que estão
informados [da existência de diferentes dons, todos operando e cooperando para
a UNIDADE e, portanto], operando [e desenvolvendo] declaradamente estes dons.
As “funções particulares” sugerem uma perturbação que vem da parte
de Deus; sem esta perturbação, muito provavelmente a criatura humana não se
desempenharia das funções citadas [segundo a ética cristã]; não cuidaria de
repartir, não se esmeraria no exercício da autoridade e nem sequer cogitaria de
ser misericordiosa. Não está no ser humano suportar [ou arcar com] o brilho de
semelhante conduta ainda que pudesse satisfazer as exigências impostas, —
porquanto tal procedimento, além de ser inteiramente questionável do ponto de
vista do mundo, exige o sobrepujamento do próprio “eu”.
Onde houver quem se sacrifique (12, 1) aí haverá o testemunho oral da
ética cristã o qual induzirá o correspondente comportamento e este, por sua
vez, levará à aceitação das “tarefas” impostas pela dispensação da graça divina.
Contudo, é preciso lembrar — não que essas diferentes funções, [os diversos
“ofícios” e dons em sua multiforme aparência e manifestação] existem pois a
sua realidade é evidente! — porém, [sim, é preciso lembrar] que todas elas são
UMA só; que as peculiaridades e particularidades diversas conduzem à mesma
realidade; que tudo quanto a pessoa fizer [no desempenho e na aplicação do
dom que recebeu] ela o faz unicamente para a glória de Deus e que, portanto,
não está dando largas à “boa natureza” de seu coração; é preciso lembrar que
todas funções [e todos dons] estão debaixo da cruz!
É nestas circunstâncias que REPARTIR se faz com “simplicidade”, com
aquela liberdade interior que não transforma o ato de dar em cerimônia solene,
que amargura o ato de receber; antes, tanto o dar como o receber,
concomitantemente, testificam a insondável simplicidade de Deus.
Também é nestas circunstâncias que a “autoridade”, — que na sua de-
terminação decisiva existe naturalmente e não precisa de se firmar como tal, —
é exercida com esmero.
Então a misericórdia será exercida com alegria porquanto a pessoa só
pode considerar — e nesta consideração lembrará, quiçá, com alguma melan-
colia [que, todavia, leva ao júbilo da gratidão] — que também ela, em seu
próprio abandono, precisa da misericórdia de Deus. É desta maneira e de ne-
nhuma outra, que todas as possíveis atividades humanas adquirem a qualidade
ética, isto é, tornam-se éticas à sombra da possibilidade escatológica; mas en-
tão, tornam-se imediatamente impositivas e sempre particularizantes.
— Quer isto dizer que a ética se baseia na organização da Congregação,
como comunidade?
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A Base Fundamental 12, 3-8
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12, 3-8 A Base Fundamental
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12, 9-15 Possibilidades Positivas
confronto com o amor de Deus; assim exacerbamos a aflição que este contraste
gera o que dá origem a perseguição, possivelmente acirrando os ânimos e re-
crudescendo o ódio contra nós. Todavia, “venha daí o galardão ou a galé, van-
tagem ou dano, não há retroceder”; é o amor de Cristo que nos constrange!
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Possibilidades Positivas 12, 9-15
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12, 9 Possibilidades Positivas
estiver considerando e não em seu teor propriamente dito — (que traz sempre a
forma deste mundo). Há ainda (outra razão para essa aparente falta de precisão):
a possibilidade de que existam obras impostas pelos mandamentos da primeira
Tábua da Lei, que entrem em conflito com as imposições normais da segunda.
[Entendo que o Autor quer dizer que Deus poderia exigir para sua adoração e
seu serviço (que é do que trata a primeira parte dos dez mandamentos) ações e
atitudes que estejam em desacordo com os preceitos éticos secundários, como
poderia, eventualmente, ser considerado o caso do extermínio dos sacerdotes
de Baal. A versão inglesa traduz assim: “A possibilidade de que Deus possa, de
quando em vez, ser honrado com comportamento humano que contradiga os
mandamentos da segunda Tábua da Lei precisa ser mantida em aberto”].
“O amor seja sincero.” [“seja sem hipocrisia”, registra Almeida]. Ao
lado de Eros está a maior possibilidade ética positiva, como essência da “se-
gunda” Tábua da Lei, a quintessência do comportamento “relativamente” es-
tranho segundo o “mundo em sua presente condição”. [Esta possibilidade posi-
tiva] é AGAPE, o amor como amor do ser humano ao ser humano; AGAPE
como amor do ser humano a Deus é a grande obra invisível da primeira Tábua;
é a obra viva de quem está sob a graça divina, seguindo aquilo que “adoração”
significa no comportamento ético primário (5, 5 e 8, 28 s), [Este amor sincero
do homem a Deus, essência dos primeiros quatro mandamentos do decálogo e
que foi sintetizado por Jesus Cristo como o “primeiro grande mandamento”
(Mat. 22, 37), não é carnal e portanto não está sob a égide de Eros, mas é
derramado pelo Espírito Santo em nossos corações; este “ágape” é o amor
mediante o qual e pelo qual todas as coisas concorrem para o nosso bem].
Tocando a esfera das coisas perceptíveis, [materiais], é necessário [é pre-
ciso], que a conduta ética primária tenha prosseguimento; que a demonstração
em louvor a Deus, começada e sempre a recomeçar, mediante a adoração, seja
traduzida em conduta ética secundária; [seja manifesta] no amor ao próximo. Isto
é tão certo quanto o é que a graça é a graça do Deus recôndito e que, por isso —
para dizê-lo com simplicidade — ela é a perturbação da vitalidade humana se-
gundo a conhecemos; é tão certo quanto a realidade de que esta perturbação tem
lugar no encontro do “pretenso” indivíduo deste mundo, com o OUTRO com
aquele que é UNO, o real, em toda sua majestosa inescrutabilidade; finalmente, é
tão certo quanto o fato de que a pessoa se depara com este “UM” e “OUTRO”
quando se confronta com a enigmática realidade do “próximo”.
Adoração significa amor a Deus; — (significa a orientação existencial da
atividade humana segundo a imperscrutável majestade de Deus!) [Isto se dá] na
medida em que nos preocuparmos efetivamente em dispensar a quem [de outra
forma] nos seria absolutamente indiferente, trato que corresponda a esse amor;
700
Possibilidades Positivas 12, 9
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12, 9 Possibilidades Positivas
(12, 3-8), não foi estatuído que se organizasse a Congregação ou que se seguis-
se a teologia, a profecia, etc. Estas possibilidades relativas existem e assim
também o amor [ao próximo] na qualidade de maior possibilidade relativa [ao
alcance do ser humano], possibilidade essa na qual se manifesta expressiva-
mente a perturbação que Deus traz aos homens. Todavia, é preciso lembrar do
significado especial, característico e crítico do amor como a mais alta possibi-
lidade positiva na esfera da graça: ele deve conduzir-se na plenitude de sua
significação; ser realmente digno do nome (emprestado!) que traz: ÁGAPE;
ser realmente ética positiva; ser verdadeiramente um protesto na correnteza em
que, como seres humanos, se encontram as pessoas.
Isto jamais e em parte alguma será entendido por si mesmo pois, onde é
que existe amor humano diferente daquele ao qual os homens, por sua origem
não se deveriam submeter, isto é, [onde existe no mundo amor que não seja] na
forma de Eros? Onde se encontraria adoração a Deus que não contenha, tam-
bém, um pouco de adoração desse Deus conhecido dos homens? Quando [ou
onde] seria o nosso amor humano [ao próximo e a Deus] totalmente puro, neu-
tro, [desinteressado], totalmente livre das distorções deste mundo e das cobiças
que o dominam, inteiramente livre do desejo de ver, de criar, de estabelecer e
estruturar, de possuir?
Eros não é sincero; Eros é hipocrisia; como função biológica ele oscila
com excessiva rapidez entre o ardor e a frialdade. ÁGAPE, porém, é sincero; é
por isso que jamais se acaba mas participa da eternidade. [I Cor. 13, 8].
O amor como graça, lembra-nos que é a questão divina do Deus recôn-
dito que é posta em nosso caminho na realidade de nosso próximo e que a
nossa conduta para com ele, em todas as circunstâncias, deve ser em honra e
glória a Deus, que a pureza de nossa conduta para com nosso próximo não
pode estar em nosso relacionamento mútuo mas na sua reformulação constan-
te, na incessante renovação de suas bases; não se trata de alcançar determinado
resultado (porquanto a objetivação de resultados, por mais louváveis que se-
jam, é sempre a meta de Eros!); [lembra-nos que nessa reformulação de nossa
conduta] o sentido é sempre o do sacrifício que deve ser apresentado na pureza
de quem obedece e no respeito ante aquele que o pode aceitar ou rejeitar.
O amor somente será sincero se, — e na medida em que, — a ética se
voltar da segunda Tábua da Lei, para a primeira, do comportamento secundário
ao primário. [Este retorno fundamenta a ética secundária mediante ] a sua rela-
ção com a origem!
Quando a ética secundária se volta verdadeiramente à origem atesta que
no amor ao próximo não busca especificamente o outro, a quem dispensa esse
amor, mas busca o único, a este serve e nele pensa, praticando o amor conforme
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gozando, quiçá, o sabor do respeito ético, este não será para ela um instante,
um momento; será a sensação ou, quem sabe, a realidade da eternidade].
“Ardei em espírito” — Então também o espírito oferece possibilidades
de procedimento ético?
— Sim, no mesmo sentido que o amor. E nesta mesma direção que apon-
tam todos conceitos éticos aqui referidos; voltam-se a uma perturbação plena
de promessa, a uma grandeza invisível que está por trás e que invade a vida dos
homens.
“Espírito”, aqui, evidentemente significa a motivação ou orientação sub-
jetiva, interior, da conduta humana, em contraste com a atitude ulterior, objeti-
va, externa.
Para expressar a fundamentação psicológica da atitude humana no rela-
cionamento com Deus, [a que o texto se refere], talvez, em lugar de “espírito”
pudéssemos dizer “consciência” ou “convicção”. Todavia, [qualquer que seja o
nome que lhe dermos], é evidente que Paulo não quer dizer que o Espírito a
todo instante nos impele, (conforme pretende Juelicher), porquanto, o que é
“espírito”? Acaso é “aquilo” que a todo momento nos conduz? Acaso é a tepi-
dez, ou o calor, ou a efervescência, ou a incandescência que conhecemos como
“consciência” e “convicção”? Nada disso fica fora do esquema de Eros e isto os
outros também sabem.
“Ardei em espírito”
Quando, acaso (a todo instante?!) por intuição e por necessidade interi-
or, a motivação decisiva, direta, indiscutível, [verdadeiramente arder] então, na
medida do valor da causa em questão, o golpe será tão extremamente forte que
vós mesmos vos anulareis; então essa energia egocêntrica e consumidora que
gastais para saber se é de um espírito que se trata, ou se do vosso espírito, ou se
é do Espírito,já não tem razão de ser. Então, “seja a honraria ou seja o suplício,
não vacile”. (Zwinglio).
É certo; também este instante não será [apenas] um instante.
“Servi à temporalidade”! É a contraposição à exortação anterior. Acaso
não é a temporalidade, com suas tarefas diretamente a mão [devidamente] qua-
lificada no instante da grande “perturbação” que vem de Deus? Acaso é a
temporalidade (a história!) outra coisa que o Espírito falando objetivamente de
fora? Acaso não é igualmente possível, — e até necessário — deixar que a ética
seja motivada total e completamente pela “temporalidade”?
Sim, porém todos servem à temporalidade! Se a nossa temporalidade —
a temporalidade qualificada, o tempo presente, (8, 18 a 13, 11) — tem signifi-
cado especial pelo qual podemos e devemos orientar-nos, é questão sempre
aberta. Por isso, servi À TEMPORALIDADE!
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Possibilidades Positivas 12, 12
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12, 12-13 Possibilidades Positivas
e não nos estamos referindo à oração como adoração [que é básica, que é pri-
mária] que conhecemos como a ética primeira que fundamenta e precede todo
procedimento ético [entre os homens].
O que nos resta sob a incomensurável pressão de nossa posição como
seres humanos perante Deus, senão apelar a ele, clamar como os Salmistas e
como clamaram a Deus todos os demais que viram as coisas quais elas real-
mente são? [O que mais nos resta senão] nos submetermos a ele, agradecendo-
lhe porque ele é Deus (porém jamais sem espanto [sem temor]! ), a ele implo-
rando que seja e continue sendo nosso Deus?!
[O ato da oração] se destaca de forma estranha e nunca vista pelo mun-
do a dentro, passando quase a constituir uma invasão da analogia, na ação ab-
soluta. Porém, qual outro ato humano penetraria mais profundamente na pro-
blemática de todos os demais atos?
Pelo livro de Heiler [“A Oração”, de F. Heiler] vê-se consternadamente,
quão profano é o “mundo da oração” e, nela, quão próximos ficamos do absur-
do total.
“Orar como convém, não sabemos” (8, 26). E pela permanência na ora-
ção, que ela se torna ética. “Permanecei”! Não se trata na acumulação da quan-
tidade de nossas preces, nem no refinamento de sua qualidade, mas da perma-
nência, da orientação e da continuidade da prece, como oração.
O objetivo é Deus; [é em Deus que pensamos]; é ele quem procuramos,
e ele quer que oremos. E neste sentido e nesta orientação que precisamos bus-
car o significado da intercessão que, em suspiros [e gemidos] inexprimíveis,
por nós faz o Espírito — que não é o nosso (8, 27).
“Participai naquilo que se fizer pelos santos. Praticai a hospitalidade”!
A forma profundamente direta e concreta [objetiva] de todas essas “recomen-
dações” éticas é bem patente nestas duas exortações, à luz da situação histórica
de então. Na primeira delas trata-se da participação na coleta mencionada com
enigmática ênfase nos capítulos 8 e 9 de II Cor., para a Igreja em Jerusalém. Na
segunda, a referência é aos irmãos na fé que viajam para Roma ou passam pela
cidade. O que há de comum às duas exortações é que elas encerram um aspecto
estranho — (ao mundo de Roma e, por que não também ao nosso?) — um
aspecto não natural, que apenas se torna “próximo” [compreensível], pela uni-
dade da comunidade distante [incompreensível] do ponto de vista humano; por
isso, precisa ser analisado mais detalhadamente.
É evidente que tanto aqui como na segunda carta aos Coríntios, Paulo
mostra pouco interesse pela grandeza material, pelo valor das ofertas, o que é
justamente a única [ou, pelo menos aparentemente a maior] motivação nas
manifestações de caridade, mais modernas. A ênfase de Paulo está na forma
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Possibilidades Positivas 12, 14-15
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12, 15 Possibilidades Positivas
seus pontos extremos, tornam-se de tal maneira duvidosas que passam a apontar,
para além delas mesmas, ao seu sentido parabólico: há um rir que é vida e um
chorar que é morte; portanto, é perigoso adotar posições estóicas e morais; é
perigoso querer ensinar, convencer, [doutrinar]; são perigosas todas abordagens
feitas por contrastes materiais. Poderia então acontecer que fôssemos encontra-
dos lutando contra Deus, conforme aconteceu com Micail quando viu Davi dan-
çando frente à Arca da Aliança, [II Sam. 6, 16 ss] ou conforme os amigos de Jó
[quando procuravam admoestá-lo] em sua lamentação.
O protesto que aqui deve ser levantado [contra o mundo] está, surpreen-
dentemente, na confirmação da pessoa no maior êxtase de sua alegria ou no
extremo de sua dor. A ética precisa, neste caso, assimilar aquela paradoxal
irreconhecibilidade do Filho de Deus, na “semelhança da carne dominada pelo
pecado”. (8. 3).
Quem é livre, precisa submeter-se livremente; o sábio precisa sabia-
mente ignorar, porquanto o protesto contra a “condição do presente mundo”
consiste, necessariamente, em permitir que o “outro” esqueça de que ele é “o
outro” para nós e que veja [perceba ou sinta] — (por si mesmo!) — que em sua
mais profunda comoção ele é, para nós, testemunha daquele UM.
Há um “acompanhamento” à alegria e à tristeza da criatura dilacerada e
impelida de um lado a outro por Eros — o mentiroso — que anuncia a verdade
e a misericórdia de Deus. Por isso “alegrai-vos com os que se alegram e chorai
com os que choram!”
O quanto todas possibilidades éticas são sujeitas a uma crise derradeira
se evidencia nesta exortação, em que não se dá a expressa decisão crítica e cujo
enunciado tanto pode referir-se a maior das frivolidades, como a Jesus Cristo
entre os pecadores; pela insegurança em que esta observação nos coloca, ela
nos remete, com renovado senso de exigência, de todo procedimento ético se-
cundário à ética primária e, por ela, para além dela, à sua primeira origem—
[Deus.].
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Possibilidades Positivas 12, 9-15
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12, 16-20 Possibilidades Negativas
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Possibilidades Negativas 12, 16-20
Vs. 16 a 20 Refleti entre vós sobre a mesma coisa, não cogitando do que está
no alto mas consentindo em serdes conduzidos às coisas que são de baixo.
Não segui as vossas eventuais presunções! A ninguém tomeis mal com
mal! Meditai sobre aquilo que seja bom à vista de todos.
Naquilo que depender de vós, tende paz com todos!
Não fazei justiça a vós mesmos, amados, antes daí lugar à ira de
Deus! Pois está escrito: “É a mim que compete estabelecer justiça, eu
recompensarei! diz o Senhor Porém, se teu inimigo tiver forme, dá-lhe de
comer! Se tiver sede, dá-lhe de beber! Pois fazendo isto amontoarás
carvões incandescentes sobre a sua cabeça”. [Conferir com a tradução
de Almeida].
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alternativa para o mal mas é o seu julgamento e sua supressão; o BEM é a justifi-
cação do homem por Deus, é a impossível possibilidade da salvação do mal:
“Porque perguntas acercado que é bom’? Bom só existe um”. (Mat. 19, 17).
A regra [natural] de nosso relacionamento com os outros, ainda que o
designemos como sendo amorável, é a da retribuição do mal com o mal, isto é,
não vemos no outro o um, (o Bom!); não só deixamos de ver o “Bom”, em
nosso semelhante (2, 9) mas vamos além, deixando bem claro para ele que ele
é aquele que de fato é [para o mundo: a velha criatura!].
Insistindo em ver nosso próximo no seu aspecto visível qual ele mesmo
se apresenta consideramo-lo, em princípio, perdido para o bem, ainda que nele
vejamos toda sorte de coisas boas. Esta nossa insistência é a “retribuição com o
mal!”
Muito antes de entrarmos em choque com nosso semelhante pelos en-
trechoques “naturais” da vida — nos quais recorremos a todos os meios que
estiverem a nosso alcance, e que são todos maus, — pela nossa persistência em
não ver nele aquilo que [neste mundo e como velha criatura] ele de fato não é,
já lhe estamos tornando mal por mal. [Por outras palavras, vemos em nosso
próximo apenas o mal e lhe devolvemos o que nele achamos, não vendo nele o
bem.], porquanto não conseguimos ver nele aquilo que ele não é; esta nossa
incapacidade de ver é a obra do mal praticada por nós; é a ação da massa inerte
que nos domina [e nos faz andar sempre na mesma direção para longe de Deus!].
Esta é a “linha reta” que, [sem desvios e] sem exceções, seguimos.
Todavia, ainda que não possamos quebrar e interromper definitivamen-
te essa linha, podemos trincá-la, — fendê-la; podemos, quiçá, abrir brechas
nesse nosso procedimento, lembrando que, embora nossa maneira de proceder
com relação ao mal que insistimos ver em nosso semelhante, não seja de todo
injusta, nela estamos confirmando e ratificando a existência do mesmo mal em
nós, da mesma forma que vendo o bem que no outro existe e reconhecendo o
UM que há nele — [que ele representa] — estamos testificando a nossa própria
justificação. Em seriedade, isto é, em seriedade ética, não podemos sustentar a
“retribuição do mal com o mal”.
Perante ninguém e nunca mais enfaticamente do que perante a máxima
malignidade do “outro”, se torna mais significativa a nossa justificação [por
Deus!].
Na medida em que esta conscientização crítica, [decisiva], se tornar per-
ceptível mediante a “não-retribuição”, a “não insistência” [em ver o outro qual
ele realmente é neste mundo], quando tentarmos fazer aquilo que, aparente-
mente, só pode significar [covardia e] fraqueza, quando realmente ignorarmos
o “mal” do outro, quando nossa conduta representar estranho desvio da “linha
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12, 17 Possibilidades Negativas
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Possibilidades Negativas 12, 17
proclama [ou representa]. A própria ação profética, por vezes em tão profundo
desencontro com a sociedade a que se dirige precisa, em ULTIMA RATIO
estar em harmonia com a verdade reconhecida por todos. [Quiçá, embora não
aceita e até combatida precisa ser — e é — confessadamente ou intimamente
reconhecida como sendo “o bom”]. Conseqüentemente, podemos abrir mão da
aprovação de “muitos”, porém em nenhum instante sequer, da “aprovação”
[(do consenso)] de todos.
A “aprovação de todos” é o critério pelo qual precisa ser medido todo
comportamento visível que não seja usual; [a este critério] sujeitam-se os he-
róis, os guias carismáticos, os pregadores de novas doutrinas, os ascetas, os
pietistas; julgados por este critério, consideram-se tratados com eqüidade todos
os “grandes personagens”, todos os super-homens, todos os artistas e todos os
gênios excepcionais, qualquer que seja o seu ramo; portanto, não existe moral
[ou ética] especial [ou diferente da usual] para aqueles que sobressaem [na
sociedade ou entre seus pares] e conseqüentemente também não existe ética
separada para os que forem [simplesmente] normais! Por isso, qualquer proce-
dimento que admirarmos por sua ética, ou mesmo que apenas reconheçamos
como sendo ético, (por exemplo, a ação de algum profeta!), torna-se, para nós,
força constrangedora da qual não podemos escapar mediante justificações cap-
ciosas ou de simples fuga, dizendo, (por exemplo): “Mas isso era Lutero!”
Basicamente a conduta humana somente deixa de ser normal [usual ou
comum], quando se relaciona com Deus e por isso mesmo ela é absolutamente
normal no seu relacionamento com as demais pessoas (pois a invisibilidade do
todo proporciona o corretivo necessário!) “sem cogitar do que está no alto” e
sem seguir “eventuais presunções” (12, 6), desta maneira anunciando o mundo
vindouro que é a verdade do “UM” em todos!
“Naquilo que depender de vós tende paz com todos!”
Manter a paz pode ser demonstração perfeitamente pertinente, própria.
Pode significar que a criatura é de tal maneira contida e mantida em cheque por
Deus que ela não tem alento para contragolpear, por mais justos e mais bem
aplicados que seus golpes fossem.
Ora. o correlacionamento humano é sempre mal conduzido e, por si
mesmo, gera constantemente a discórdia e está sempre predisposto a distri-
buir golpes à esquerda e à direita; também o nosso semelhante não faz jus a
qualquer reivindicação de paz porque (por assim dizer), ele nos provoca em
todas suas atitudes na qualidade de corporificação [materiaiização] do
“homem” que conhecemos bem demais, sempre em novas modalidades cada
qual mais irritante — em sua ignorância crassa, sua obstinação e sua absoluta
desagradabilidade.
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12, 18 Possibilidades Negativas
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Possibilidades Negativas 12, 18-19
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12, 19 Possibilidades Negativas
tiver sede, dá-lhe de beber! Pois fazendo isto amontoarás carvões incandescentes
sobre sua cabeça”. (Prov. 25, 21-22).
Detenhamo-nos mais uma vez sobre o significado [o conceito] da pala-
vra INIMIGO. Evidentemente é na pessoa do “inimigo” que mais e melhor se
patenteia o que nos é defeso fazer.
O “inimigo”, conforme já vimos em 12, 14, é o OUTRO em sua forma a
mais estranha — [a mais misteriosa].
Segundo o nosso ponto de vista a respeito dessa ordem [de preservar a
paz], parece ser mais do que lógico que não precisamos mantê-la porquanto
todo o atro enigma [da maldade e da repulsa que nos inspira nosso semelhante,
conforme o vemos longe de Deus], parece aglomerar-se em nosso inimigo;
todas observações que foram abafadas e todas opiniões pessimistas a seu res-
peito, aparentemente se confirmam e nos parece ser completamente impossível
recuar do conflito em virtude do relacionamento biológico existente entre nós e
nosso antagonista no instante em que ele se opõe a nós como nosso “inimigo”,
seja pessoal ou nacional; por questão de princípios ou por classe social; por-
quanto, quem é o inimigo?
— Sabiam-no os cantores dos Salmos. Verdadeiramente, [o inimigo é]
não só o concorrente, o opositor, o adversário vil, o opressor, mas também,
para meu horror, aquele que ante meus olhos, deliberadamente, busca a injusti-
ça, que me faz ver o maligno no homem que conheço (12, 17) e que me põe em
vias de retribuir mal com mal.
Com toda razão Lutero vê seu inimigo no Papa de Roma e não apenas
um inimigo mas o arquimaligno em ação. E plenamente justificável o lamento
do Salmista quando vê o “inimigo” surgir qual grandeza quase absoluta peran-
te Deus, a quem clama por [justiça e] retribuição.
É o inimigo que abre os meus olhos para que eu veja o que secretamente
sempre me irrita em meu semelhante; ele o mostra a mim, como sendo o “mal”;
ele me mostra que, realmente, o “mal” é inerente à criatura humana e a acom-
panha até o fim da vida, no mundo; é através de nosso inimigo que percebemos
que o mal segue o seu curso naturalmente, sem impedimento, sem contenção,
sem reação e sem oposição nem interior nem exterior. E o inimigo que desperta
em mim o tumultuoso clamor por justiça que seja superior, que seja
compensadora, vingativa, (e que não encontro); é o clamor pedindo um juiz
que julgue sobre nós dois (e que, todavia, está ausente).
Quem há que me ponha em maior crise do que este inimigo? O que devo
fazer quando eu tiver a experiência elementar, mas avassaladora para mim, que
toda justiça “retribuidora”, está excluída? O que devo fazer quando me conven-
cer que tudo quanto eu poderia fazer contra meu inimigo é [também] o mal, e
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Possibilidades Negativas 12, 19
está igualmente sujeito às sanções daquela justiça superior [pela qual tanto cla-
mo e] de cuja falta eu me ressinto tão dolorosamente?
Indubitavelmente aqui está, inquietantemente perto, a última e maior
tentação de titanismo, a tentação de fazer justiça com minhas próprias mãos, de
aceitar por minha conta (e risco) a luta pelo Direito, de colocar:me no lugar de
Deus Invisível, tornando-me o INIMIGO do inimigo e o TITA para os Titãs.
Se eu o fizer, quem me julgará? Acaso não estou oprimido [e angustia-
do], perguntando quem me fará justiça? Trata-se de avançar apenas uns poucos
passos além da pergunta [absolutamente] legítima sobre o que devo fazer. Que
mais devo, pois, fazer à vista do inimigo, senão assumir o lugar do Deus ausen-
te e, por meio de palavras e atos, com o poder das leis e das armas, servindo-me
de todo poderio ofensivo e defensivo do mundo, julgar o inimigo [com todo
rigor] e castigá-lo com todo rancor?
Se a criatura humana realmente pode e deve tomar medidas objetivas de
justiça, então a luta pelo Direito é inevitável. Se tivermos de tomar a justiça em
nossas mãos, então não teremos força moral para rejeitar o pensamento [os
conceitos] de Tirpitz, pois nossos argumentos estarão condenados ao fracasso,
desde suas bases.
Todavia, não é assim; a própria perturbação, vinda da parte de Deus,
que a criatura sente, põe [seriamente] em dúvida que ela deva e possa cuidar de
fazer justiça por si mesma. Todavia nada nos impede a que o tentemos porém,
é absolutamente certo que não poderemos realizar tal intento sem cair no
titanismo e sem empunhar o cetro de Deus; não podemos ignorar que se assim
procedermos estaremos nos colocando, cheios de rancor, ao lado de Deus no
campo de domínio da ira divina.
Este é o segredo de nosso inimigo; também ele, na essência de seu pro-
cedimento, está estendendo a mão para asir o cetro divino; também ele, de
alguma maneira, deixou que lhe passasse desapercebida a existência de justiça
mais alta; também ele chegou à fronteira da interrogação sobre o que deveria
fazer e foi impelido [ou compelido por sua própria maneira de ver] a avançar e
fazer justiça por suas próprias mãos. Mesmo o pior de nossos inimigos jamais
deixou de pensar subjetivamente que estava aplicando a “sua” justiça com ob-
jetividade; é justamente nessa maneira de agir que ele fere nossa consciência de
justiça; esta é a injustiça que ele pratica ante nossos próprios olhos e é desta
maneira que ele se torna réu perante Deus e os homens.
É por isso que, ao se deparar comigo, [meu inimigo] me afronta com
seu ardente zelo por Deus, zelo que o traiu pela cobiça de seu coração. (1, 24).
Acaso posso assumir a mesma atitude? Posso, também eu, tomar a defe-
sa do que é justo, em minhas mãos?
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12, 19-20 Possibilidades Negativas
— Repetimos ainda uma vez: eu posso tentar fazê-lo e, talvez, até precise
tentá-lo. Como haveria eu de encontrar outra possibilidade senão a de enfrentar o
Titã, titânicamente? Apenas não posso, depois, admirar-me se eu tiver de reco-
nhecer no meu próprio destino titânico, trágico, apavorante e digno de compai-
xão, que também eu. na intenção de fazer justiça direta, apenas cometi injustiça.
É na intenção de estabelecer a justiça mais alta, que a renegamos “por-
quanto a ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade e perversão dos
homens” (1, 18), impiedade para com meu inimigo e impiedade para comigo
mesmo, se eu quiser ser inimigo de meu inimigo.
Esta é a situação crítica do militarismo que, de passagem, atinge tam-
bém, e de cheio, o pacifismo.
Quem há que dê lugar à ira de Deus e não à ira humana? Quem cuida
para que a ação humana seja eliminada e suprimida pela superior ação divina?
Quem há que se esforce para que na dialética da vida (que se torna particular-
mente viva para nós através de nosso inimigo), nada mais reste senão a indaga-
ção [o clamor], pela justiça objetiva?
É isto o que nosso inimigo tem a nos dizer [na qualidade de nosso pró-
ximo e mensageiro de Deus]. Ele apenas desfaz a última ilusão de que a justiça
de Deus poderia ser, para nós — criaturas humanas — algo diferente daquilo
que se pode fazer [exclusiva e necessariamente] no contexto do mal; ele expõe
essa ilusão, mostrando-nos que ela é estranha, remota e invisível; nele transparece
a absoluta impossibilidade de que essa ilusão se torne verdadeira; no inimigo
apenas vemos a justiça de Deus, manifesta em sua ira e o próprio Deus em sua
qualidade absoluta de DEUS ABSCONDITUS.
Que posso fazer contra o inimigo, senão abster-me de toda e qualquer
retribuição, voltando-me à total abstenção e, em vez de lhe dar as respostas
[que seriam cabíveis], formular apenas perguntas, desistindo de todas ações
para ficar — apenas — nas respectivas pressuposições?
Que gestos devo fazer, [que atitudes tomar], — desde que me é vedado
contragolpear, — senão obedecer esta ordem [absolutamente absurda], totalmen-
te impossível, pouco prática, de maneira alguma [lógica ou] racional, que diz:
“Se teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer! Se tiver sede, dá-lhe de beber.”?
[Ora] esta atitude somente pode significar — e de forma muitíssimo
extraordinária — que ouvi este UM extremamente camuflado, na pessoa de
meu inimigo — meu próximo; que entendi a imprescindível necessidade de dar
a honra [e a glória] somente a Deus. “E a mim que compete estabelecer a justi-
ça, eu recompensarei, diz o Senhor!”
Como testemunho deste “a mim.” e deste “eu.”, como demonstração de
que a justiça vem de Deus e de Deus somente, conforme o reconhecemos justa-
728
Possibilidades Negativas 12, 20
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12, 16-20 Possibilidades Negativas
SOLI DEO GLORIA parece ser para Barth a chave para a interpre-
tação do preceito de que devemos consentir nas coisas que são humil-
des. A primeira vista essa interpretação pode parecer-nos estranha como
soa estranhamente a redação que o Autor dá à passagem de 12, 16, par-
ticularmente se a confrontarmos com a tradução de Almeida. Escreve
Barth: “Refleti (vós) sobre a mesma coisa, não cogitando do que está no
alto”, mas consentindo que sejais levados a pensar e cuidar das coisas
humildes! O que tem isso a ver com a glória que só a Deus é devida?
Todavia, se acaso nos foi difícil aceitar prontamente a forma pouco
familiar da redação de Barth, a introdução do conceito SOLI DEO GLO-
RIA torna a sua maneira de escrever não apenas aceitável mas profun-
damente significativa; aliás esse conceito não se aplica unicamente ao
versículo 16, mas aos quatro versículos aqui analisados como “Possibi-
lidades Negativas” da ética cristã.
Quando cuidamos das coisas soberbas, quando dermos asas à presun-
ção humana, quando nos imaginamos vitoriosos, dominando os horizon-
tes quais altaneiras águias, quando segundo nosso modo de ver — somos
sábios e prudentes, estamos na realidade construindo a nossa “Torre de
Babel” com todo esmero de que somos capazes e nisto não nos falece
nem inteligência, nem sabedoria, nem prudência e, do ponto de vista do
“presente século”, podemos sentir-nos orgulhosos de nossos feitos; estamos
nos aproximando mais e mais de Deus: de sua sabedoria, dominando a
matéria e devassando o Universo; de sua grandeza penetrando nos misté-
rios da alma e da própria geração da vida; de sua graça, dispensando tole-
rância que chega às raias da conivência com o mal; da sua pureza, com
nosso puritanismo; da sua santidade, pela nossa sacrossanta religião!
Enquanto assim subimos, enquanto somos glorificados pelos homens
que vêem nossas obras quais as exibimos estamos verdadeiramente,
novamente — e sempre — enfeitiçados, fascinados, irresistivelmente
atraídos — e traídos — pelo eloqüente e traiçoeiro discurso da Serpen-
te: “Sereis iguais a Deus”.
É por isto que o Cristianismo vê “com desconfiança”, com reservas e
quiçá, até com crítica, tudo quanto fala da grandeza humana, até mesmo
de sua religiosidade quando nestes “altos montes” colocamos nossa espe-
rança e nossa confiança. É por isto que a “sadia piedade popular evangé-
lica” perde o lugar ao sofredor “homem russo” — quiçá conforme retrata-
do por Tolstoi e Dostoievski — e este, — agora talvez exaltado por Marx
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Possibilidades Negativas 12, 16-20
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12, 21 a 13, 7 A Grande Possibilidade Negativa
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A Grande Possibilidade Negativa 12, 21 a 13, 7
Vs. 12. 21 a 13, 7 Não te deixes vencer do mal, mas vence o mal com o bem!
Toda pessoa sujeite-se às autoridades governamentais pois não há
autoridade que não venha de Deus e os que presentemente a detêm foram
instalados por Deus. Portanto, quem se sublevar contra as autoridades se
opõe à disposição divina. Tais insubordinados, porém, trazem justiça so-
bre si mesmos porque os que dispõem do poder não representam qualquer
susto para os que praticam o bem mas, sim, para os que fazem o mal.
Portanto, se não queres temer a autoridade, faze o bem e encontrarás até
o reconhecimento dela porque ela é serva de Deus, para teu bem. Se, po-
rém, fizeres o mal, então teme pois não traz a espada para aparentar: ela
é serva de Deus para dar cumprimento da ira de Deus contra aqueles que
promovem o mal. Daí a obrigação de nos sujeitarmos — não apenas por
causa da ira mas — por causa da consciência. E por isso que pagais os
impostos: elas [as autoridades) são sacerdotes de Deus investidos para
este único fim
Pagai a todos o que deverdes. A quem imposto, imposto; a quem direi-
tos alfandegários, alfândega; a quem temo!; temor; a quem honra, honra.
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12, 21 a 13, 7 A Grande Possibilidade Negativa
Ora, é certo que o instante em que nos recordamos de Deus [ou em que
com ele nos encontramos], apenas pode ser considerado “eterno” na qualificação
que esse encontro lhe dá; todavia, dentro de nossa temporalidade será sempre
um acidente temporal, com épocas anteriores e posteriores a ele, isto é, ficará
situado entre um passado e um futuro. Semelhantemente, a decisão ética [ou
espiritual] que tomarmos na vida apenas poderá ser “absoluta” na medida em
que se referir a algum evento que já foi suprimido ou que jamais poderá ser
suprimido. [De outra forma será apreciada em termos de coisa passageira —
vale dizer — relativa e já não poderá pretender ser absoluta].
Também é certo que a “descoberta” do UM no outro somente pode
acontecer quando este outro for perfeitamente [identificado], determinado na
realidade concreta da multitude de indivíduos, quando essa realidade repre-
sentar para o indivíduo em particular o grande enigma ético que ele tem de
solucionar.
[Acontece porém que] quando o indivíduo quer renovar os seus pensa-
mentos (12, 2), quando procura meditar seriamente sobre Deus, a ele subme-
tendo as suas ponderações, reconduzindo-as à “origem”, prontamente se lhe
deparam [inúmeras] qualificações do tempo, as decisões críticas “eternas” e
“absolutas”já especificadas e o relacionamento ético da criatura já plenamente
resolvido; o grande enigma lhe é apresentado, já decifrado.
Existe [no mundo] uma pletora de “realidades éticas”, não apenas aque-
las baseadas nos tumultuários experimentos pessoais [isolados e casuais], po-
rém, muito além do mero acaso ou capricho, superabundam as [pressuposi-
ções, afirmações, qualificações e decisões] que procedem das superiores posi-
ções [ou razões] das altas esferas de objetivos específicos — Estado, Direito,
Sociedade, Igreja — que dão à multitude de indivíduos a configuração de tota-
lidade e [que pretendem já haver resolvido o problema ético]; pretendem já
conhecer a resposta à pergunta sobre o que devemos fazer. Com grande desem-
baraço e baseados em argumentos dos mais plausíveis, apresentam a “realida-
de” de suas soluções ou respostas e não apenas “provam” essa realidade como
afirmam que elas representam a ordem e o caminho a seguir que buscávamos
desnecessariamente (por já terem sido encontrados — por eles).
[Estas organizações humanas que não vêem razões para que nos morti-
fiquemos em sacrifício vivo — porquanto não vêem qualquer necessidade de
transformação, antes entendem que já estão impondo a ética de que Deus se
agrada (12, 1-2) ou então, porque simplesmente revogaram a “ética divina” e
implantaram a sua própria — estas organizações são “as autoridades instituí-
das”]; elas exigem reconhecimento e obediência e temos de nos avir com elas,
quer queiramos reconhecê-las e obedecê-las, quer as queiramos rejeitar.
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A Grande Possibilidade Negativa 12, 21 a 13, 7
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12, 21 A Grande Possibilidade Negativa
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A Grande Possibilidade Negativa 12, 21
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12, 21 A Grande Possibilidade Negativa
Todavia, quando e onde a justiça de muitos — por maior que fosse o seu
número — seria a justiça desse “UM”? Onde e quando não foi esse direito “dos
muitos” obtido com subterfúgios ou, simplesmente, usurpado? Qual a legalida-
de que não seja ilegal em sua origem? Qual a autoridade que não estabelece
essa sua autoridade, na tirania?
Existem deficiências na ordem estabelecida que claramente indicam ser
ela má e, no indomável impulso pela liberdade, bons e maus refugam as alge-
mas que o “sistema”, quiçá com muito boas intenções, quer aplicar; de certa
forma percebemos que as razões dos muitos são quiméricas e que este tolhimento
que nos impõem não é justificável.
O conhecimento do mal que existe na ordem estabelecida, do mal que
subsiste nela e que ela sustenta, gera o revolucionário, a pessoa que pensa li-
vrar-se do mal e se dispõe a combatê-lo e a extirpá-lo, isto é, dispõe-se a remo-
ver a situação existente que vê como sendo a corporificação da injustiça para,
em seu lugar, erigir ordem nova e justa.
É um plano, por si mesmo, convincente, ao qual dificilmente podere-
mos negar nossa colaboração, aliás, em coerência com nossa notória conduta
anterior, quando nos foi difícil não dar largas à inimizade ao nosso inimigo ou,
quando entramos em conflito com nosso semelhante (12, 19).
Contudo, é precisamente ao revolucionário que precisa ser dito que,
quando ele se entrega a essa cogitação ele está sendo “vencido pelo mal”. (Não
se trata aqui do revolucionário que recorre ao mais do que proibido derrama-
mento de sangue. Aliás, a atividade revolucionária não se inicia com a violên-
cia sanguinária mas pelos secretos e venenosos ressentimentos contra o siste-
ma” existente que alguns tanto mais cultivam e saboreiam quanto mais abomi-
nam a violência!).
O revolucionário se esquece de que ele não é o “UM”; ele se esquece de
que ele não é o “sujeito” [o autor, o agente] dessa liberdade pela qual tanto
anseia; ele não é o Cristo que se defronta com o inquisidor mas é o próprio
inquisidor com quem Cristo se defronta.
O revolucionário faz, também, uma reivindicação que lhe é defesa: faz
da justiça (do direito) um objeto. Também ele, com “sua razão” passa por
cima de seus semelhantes; também ele usurpa uma posição que não é dele,
que não lhe deu respeito. Também ele visa a instalar uma legalidade que é
ilegal em sua origem, uma autoridade que não tardará muito a revelar seu
verdadeiro caráter tirano — conforme com terror o verificamos no bolchevismo
e que poderíamos mostrar em acontecimentos muito mais espirituais — [por
exemplo, no fanatismo da própria Igreja, tão bem exemplificado na “Grande
Inquisição”].
738
A Grande Possibilidade Negativa 12, 21
Qual o ser humano que teria [ou tem o direito de apresentar ou represen-
tar algo NOVO, novos tempos, — mundo novo ou até, algum “novo espírito”?
Acaso as coisas novas não se originam das coisas existentes, na medida em que
vão sendo armadas pelos homens? E essa “coisa nova” não passa a ser coisa já
existente no mesmo instante em que é engendrada?
Quem há que, ao criar o que é NOVO não esteja ele próprio (ele!) crian-
do o MAL? Acaso a coisa antiga que ele considera como sendo o mal e quer
substituir, não foi também inventada como coisa nova e, por isso mesmo, é ela
o mal?
O Revolucionário é mais “vencido pelo mal” do que o Conservador e
isto porque, com sua negação, ele se coloca terrivelmente próximo de Deus.
[Ele quer tomar o lugar de Deus, quer fazer a justiça por suas próprias mãos...].
Esta é a sua tragédia; o mal não é resposta [ou solução] para o mal. A consciên-
cia ferida pela ordem existente não se restabelece com a destruição dessa or-
dem; “Vence o mal com o bem!”
O que mais pode significar e indicar esta possibilidade que nos resta [de
vencer o mal com o bem] senão o fim, a supressão, de todo triunfo pessoal,
quer seja na ordem estabelecida, quer seja na revolução? E de que forma have-
ria isto de se realizar senão em misteriosa abstenção — [em “não-agir”] justa-
mente onde e quando, como seres humanos, sentimos o mais forte apelo à ação?
O Revolucionário engana-se; a revolução que ele quer é a possibilidade
impossível [para ele], pois é a implantação do Reino de Deus que se faz medi-
ante o perdão dos pecados e a ressurreição dos mortos. Esta é a resposta à
ofensa que caracteriza a ordem existente; [esta é] a verdadeira revolução e seu
vencedor é Jesus Cristo! Todavia, o revolucionário faz outra revolução, [aquela
em que só ele — aliás o próprio mal — pode ser vencedor!]. Ele faz a revolução
segundo a alternativa [que lhe é] possível, a revolução do ódio, da insatisfação,
do levante e da destruição. Esta revolução não é melhor, porém pior do que a
satisfação, a saciedade, a segurança e a conformação que se lhe opõem na or-
dem estabelecida porque na prevalência desta Deus é melhor compreendido
embora seja também pior seguido.
O Revolucionário imagina a revolução que estabeleça a ordem verda-
deira e faz a outra, que é a verdadeira reação. (Aliás, dá-se o mesmo, [MUTATIS
MUTANDIS] com o legalista que, também ele vencido pelo mal imagina im-
por a legalidade da qual resulte a verdadeira revolução — [aquela da qual só
Cristo é o vencedor] — no entanto instiga a outra preparando o caminho para a
revolta do ódio e da destruição).
Aquilo que o homem quer é sempre julgado por aquilo que ele faz
(7, 15 e 9).
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12, 21 a 13, 1 A Grande Possibilidade Negativa
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A Grande Possibilidade Negativa 13, 1
[e se enfraquece com seus próprios erros] sem tirar qualquer benefício das
falhas da situação derrubada — [das quais é feita “tábua rasa” pois, “afinal”, foi
por causa delas que se admitiu a revolução!].
É por isto que a capacidade de resistência [ou melhor, de sobrevivência]
da situação deposta não se quebra com a vitória da revolução porém subsiste
tomando novas formas e se tornando, assim, ainda mais perigosa [quiçá fomen-
tando, em seu rancor, nova revolução ...].
Enquanto a “ordem deposta” tende a se reorganizar e fortalecer, a ten-
dência da revolução segue em sentido contrário pois suas energias se diluem;
[ante as tarefas que a nova situação lhe impõe o prestígio se desgasta no atrito
constante dos interesses em choque] e a ação revolucionária se torna inócua.
Embora, na prática, a revolução sempre se proponha a ser “o julgamen-
to” da situação que ela combateu, na realidade ela jamais chega a essa situação
como rebelde, pois no instante em que a rebelião vencer, o revoltoso muda de
posição; deixa de ser rebelde para ser “ordem estabelecida”. (Lembremo-nos
do que] a luta em que o rebelde imprudentemente se mete é o conflito entre a
ordem divina e a ordem existente, [conflito esse do qual o revolucionário passa
a participar “do lado de cá” a partir do momento em que a rebelião passar a
dominar a situação].
Se o revolucionário “alçar as mãos, em ânimo tranqüilo, aos céus para
trazer à terra os seus ETERNOS DIREITOS que estão desfraldados lá no alto,
inalienáveis e intocáveis como as próprias estrelas”, (Schiller) então ele com-
prova com excelente propriedade que “o poder absoluto tem limites” todavia, o
seu gesto confiante para os céus de maneira alguma fixará esse limite pois,
ainda que pelo julgamento da História e segundo sua sentença [na temporalidade]
o rebelde tiver absoluta e plena razão, ele esta absolutamente errado segundo o
juízo de Deus.
Isto se comprova pelos resultados [de todas revoluções de que a História
dá notícia]: “A situação original, natural, antiga], volta sempre quando o ho-
mem se opõe a seu semelhante”.
A interrogação que Deus apresenta à “ordem existente”, o seu julga-
mento e a sua sentença — [que podem dar a essa ordem o sentido da verdadeira
revolução] — ficam necessariamente [prejudicados]. suspensos. [pospostos]
quando os homens passam a agir no lugar de Deus (isto é, quando a Rebelião
ou a Legalidade, cada uma a seu modo. quer mudar a situação existente, qual
quer que seja a modalidade ou a organização em que subsista, procurando in-
verter sua qualificação. Todavia, somente a invisível ação que vem de Deus
pode modificar — e efetivamente mudar — a qualificação dos indivíduos e das
organizações. Por força dessa misteriosa operação divina aquilo que a iniciativa
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13, 1 A Grande Possibilidade Negativa
A sua supressão pela ordem divina [ou a sua transformação], pode ser
representada colocando-se o sinal negativo na frente do parêntese.
- (+ a + b + c + d + ...)
É evidente que a mais cabal das revoluções mesmo que seja a mais ab-
solutamente radical em seu sentido histórico — [por exemplo as modernas re-
voluções culturais] —jamais pode ter o efeito abrangente e definitivo desse
sinal negativo aposto ao parêntese, [pois não poderá modificar todas as coisas
de forma definitiva e total], conforme é o caso do poder divino; [o que a revo-
lução, talvez, possa fazer] será, quando muito, mudar as características peculi-
ares de grupos isolados, o que poderíamos indicar matematicamente trocando
os sinais individuais dos termos.
- a, - b, - c, - d. - ...
- (- a, - b, - c, - d. - ...)
(+ a + b + c + d + ...)
Portanto, podemos dizer que, assim como nesse polinômio o sinal nega-
tivo do parêntese recambia, de fato, os sinais de todos termos individuais às
742
A Grande Possibilidade Negativa 13, 1
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13, 1 A Grande Possibilidade Negativa
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A Grande Possibilidade Negativa 13, 1-2
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13, 1-2 A Grande Possibilidade Negativa
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A Grande Possibilidade Negativa 13, 2-4
Autor deixa bem patente que a revolução, uma vez implantada, uma vez vitori-
osa, passa a ser, IPSO FACTO, ordem estabelecida].
Por trás da ordem existente — (que também pode ser a ordem recém-
instalada) — está Deus, ele, o Juiz e a Justiça!
A oposição — (e existe também oposição da direita.), é a oposição con-
tra Deus.
Vencido pelo mal o homem se entrega à esfera onde o mal passa a ser o
tribunal do próprio mal e então, já não pode, sequer, admirar-se de seu destino.
“Porque os que dispõem do poder não representam qualquer susto para
os que praticam o bem mas, sim, para os que fazem o mal. Portanto, se não
queres temer a autoridade, faze o bem e encontrarás até o reconhecimento dela
porque ela é serva de Deus para teu bem”.
O revolucionário [ou a revolta] toma alento quando a pessoa sente ferida
sua consciência de justiça; quando a pressão que “os muitos”, — o Estado, a
Igreja, a Sociedade, — exercem sobre os indivíduos, se lhe afigura como sendo o
MAL; quando [no indivíduo ou em parcela maior ou menor da sociedade], surge
o horror ante esse super-poder da justiça que [sempre] leva a palma da vitória, na
ordem existente. Todavia, até que ponto se justifica esse horror? Evidentemente
não o é na medida em que nosso procedimento está [ou estiver] no mesmo plano
de ação daqueles que enfeixam o poder em suas mãos, daqueles que estão “exer-
cendo a justiça” mas, sê-lo-á na medida em que opusermos ao mal o próprio mal
abrigado em nossos pensamentos, palavras e atos: quando opusermos a quem
designamos como autoridade, aquilo que classificamos como liberdade; quando
opusermos à legalidade, a ilegalidade; à ordem relativa, a relativa desordem; ao
antiquado, a novidade; quando à dureza respondermos com dureza!
Nesta selva humana, a única que conhecemos e em que atacamos e feri-
mos nossos semelhantes, precisamos estar prontos a receber golpes e a sermos
atacados e feridos; nela se sucedem as pressões e contrapressões quais as espirais
de uma rosca sem fim. E nessa arena que “os que detém o poder” precisam
suscitar o “horror” do revolucionário, dar motivo perene ao desapontamento; à
irritação, à preocupação, ao temor, ao amargor e à resistência — [porquanto o
revolucionário representa “tudo isto” à autoridade]. Este horror é compreensível,
pois ele nada mais é do que o temor que a criatura sente ante sua própria malda-
de, que envolve e abrange toda sua conduta: é o medo de sua própria existência.
[Em outras palavras, este horror] é o pavor do juízo divino sob qual está toda
criatura, tanto na ordem existente como na rebelião que contra ela se levanta.
Este horror [ou pavor] é o resultado do mau procedimento humano pos-
to sob a luz do julgamento divino; e qual seria a conduta humana que não fosse
[ou não seja] má?
747
13, 3-4 A Grande Possibilidade Negativa
Todavia, é para isto que a autoridade foi “instituída”. É por isto que ela
não representa qualquer “susto” para quem procede bem. E como poderia ser
diferente? As autoridades não tem poder onde se faz o bem.
O pensamento é livre mas a liberdade da obra invisível do UM em nós
todos é totalmente diferente; nesta liberdade a criatura [a saber, a “nova criatu-
ra”] não se rebela pois, contra o que se revoltaria ela? Ela não pratica o mal
[“simplesmente”] porque não é subjugada por ele; não é atacável porque não
ataca; não é vulnerável porque não fere. Ela não está lá onde o mal passa a ser
o tribunal do próprio mal e por isto não está sujeita à fatalidade, pois já foi
julgada por Deus e justificada por ele! O que seria a boa obra [dessa nova
criatura] senão esta sua permanência no campo eterno da justiça e da justifica-
ção? No seu modo de ver, o BEM é a supressão da criatura “conforme o presen-
te século”; é a sua fundamentação em Deus; é a abstenção em todas as ações
[de protesto ou de aplicação da justiça a que o “filho deste século” seja instiga-
do por seu romantismo — seu idealismo—, seu zelo ou seu sentimento de
justiça, renúncia essa] pela qual toda conduta e obra se volta à sua origem [em
Deus]. Este “bom procedimento”, que jamais se materializa, não representa
qualquer susto [ou motivo de receio], nem às autoridades nem à rebelião [ou à
anarquia!]; antes pelo contrário: enquanto a pessoa fizer o bem está ela livre
das convulsões que, inevitavelmente, assediam aos que se envolvem nessa luta
de Prometeu, contra (ou a favor!) da ordem existente.
[Quem pratica o BEM], verdadeiramente antevê o final [da providência
divina], além das coisas antepenúltimas que pode [ou poderia] fazer, agindo na
esfera do mal e assim, se torna cada vez menos visível, menos audível, de me-
nor dimensão. [menos perceptível nesse ambiente do qual se afasta]: ele se
liberta de todas emoções, de todas extroversões e de toda sua inquebrantabilidade
— [quiçá de toda dureza de sua cerviz]. Quem assim procede], já não é mais
um deus iracundo em luta com outros deuses mas, torna-se imparcial e encon-
tra até o reconhecimento da autoridade que, sem qualquer suspeita [de, tam-
bém ela, não ser aceitai, se compraz com o cidadão notavelmente pacífico con-
forme lhe parece ser a criatura cujo comportamento, na realidade, significa
apenas a aceitação da justiça de Deus — pela qual [como homem deste século]
tanto tem (ou teria) a opor a essa autoridade — e que, no entanto, prefere silen-
ciar [para dar lugar à ira de Deus!].
É por isto que semelhante indivíduo será de fato um “bom cidadão”
(ainda que por ironia!), pois renuncia a toda parcialidade [todo partidarismo] e
todo romantismo [ou, talvez quixotismo]; tendo ficado, ele mesmo, liberto dos
ídolos [políticos], tal cidadão já não precisa persistir no protesto contra eles:
não precisa preocupar-se permanentemente com a evidente insuficiência das
748
A Grande Possibilidade Negativa 13, 3-4
soluções atuais, da ordem estabelecida e dos meios que a Sociedade (ou a na-
ção ou o Estado) adota.
[Quem pratica o bem] não ignora que a sombra de julgamento que por
toda parte vê, é a sombra da retidão; tal pessoa também não deixa de perceber
o verdadeiro sentido de testemunho e de parábola que caracteriza todas tentati-
vas de purificar a conduta humana.
Contudo, essas tentativas são quase um “PARE!”, bradado ao despotis-
mo humano que, no mínimo, lembra ao sacrifício racional que devemos ofere-
cer a Deus com nossos corpos físicos — (12, 1).
[Nessas tentativas de corrigir a conduta humana] pede-se a obediência
que tem alguma semelhança com a graça divina. [Nessas tentativas] parece
que, de certa forma, a soberania do “UM” se contrapõe ao Eros [à paixão] do
indivíduo e a majestade da comunidade se contrapõe à destruição e à convulsão
das massas; à luta geral pela sobrevivência se contrapõe a sublimidade da paz!
[Quem se sujeita à autoridade] sabe que são extremamente duvidosas
todas tentativas [de consertar a sociedade ou de aperfeiçoar a ordem existente,
pela revolução e] disto não tem a mínima ilusão, ainda que “algumas delas
quase funcionem”. Quem se sujeita às autoridades jamais verá nessas tentativas
qualquer degrau de ascensão [ao bem] antes perseverará [e persistirá] em ver o
bem exclusivamente na incomensurável superioridade de Deus e, — por maio-
res que sejam os sucessos dessas tentativas, — ele verá sempre a negatividade
que representam, não necessariamente naquilo que realizam [ou deixam de re-
alizar] mas naquilo que se propõem a fazer. Todavia, tal pessoa terá, em tudo
isso, a paciência, a visão e o bom senso — (que semelhantes situações permi-
tem, ou melhor, exigem) — de ver o BEM entre o mal e de reconhecer nessas
tentativas a silhueta da configuração de uma situação superior que se lhe opõe,
meditando seriamente nisto e até participando desse protesto como prática e
demonstração que não se pode deixar de fazer.
Assim é que a “autoridade constituída [modernamente, talvez, pudésse-
mos dizer “o sistema”] é “ministro de Deus”. (Todavia, para aqueles que essa
autoridade não inquieta, [não incomoda], não disciplina, [para esses tais] o
“ministro de Deus” passa a ser a Revolução).
A “autoridade constituída” á ministro de Deus no sentido de que, uma
vez reconhecida a negatividade de todas as coisas, estas passam a refletir o
aspecto positivo da realidade imaterial, isto é, de Deus. Então as convulsões
revolucionárias podem ceder o lugar às meditações calmas sobre a Justiça e a
injustiça. Dizemos “calmas” porque as afirmações e queixas [feitas contra o
poder constituído] já não têm razão de ser quando analisamos conscientemente
as razões que estão por trás da luta do BEM contra o MAL. O universalismo e
749
13, 3-4 A Grande Possibilidade Negativa
o humanitarismo honestos [sérios], sabem que nessa luta não se trata do com-
bate entre o Reino de Deus e o Anticristo, — [pois sabem que] sempre onde [e
quando] os homens interagem com seus semelhantes ou se opõem a eles, —
seja no Estado, na Igreja ou na Sociedade, — certamente eles se enfrentarão
[uns com os outros] em seu peculiar tabuleiro de xadrez. (Assim, por exemplo,
a política só é possível [quando a pessoa que se dedicar a ela a considerar]
como jogo de oposições, quando for evidente que não se trata — nem é possí-
vel que se tratasse — de direitos objetivos, quando desaparece o tom absoluto
das teses e contrateses para dar lugar a um tom “relativo-moderado” ou, quiçá,
algo como “relativo-radical”, sem tomar em consideração as reais possibilida-
des [e necessidades] humanas). Contudo, não esqueçamos, nem por um só ins-
tante, que o BEM não é “uma coisa” como, por exemplo, a “moderação”, que a
criatura pudesse transformar em BEM; o “bem é para nos, sempre e de novo, a
indagação que a conscientização crítica e decisiva daquilo que Deus [realmen-
te] é para nós, torna inevitável; é a conscientização de que a ‘sujeição’ somente
contribui para nosso bem na medida em que ela liberta a comunidade de todo
romantismo afastando a idéia de que Deus tem assento na ordem rotineira exis-
tente. [Essa indagação, na realidade, jamais será respondida — segundo este
mundo — e] a pergunta sobre o que é o bom procedimento continua sempre em
aberto.”
[A tradução inglesa escreve: “Para nós o bem há de, sempre, implicar
em indagação. Sujeição, portanto, somente serve ao bem na medida em que
liberta a sociedade humana do romantismo e separa Deus da vida rotineira;
somente na medida em que deixa ‘o bem’ como ‘questão aberta’ mas, de modo
muito vívido, expõe a grande negação e torna inevitável a lembrança crítica”].
(Por outro lado é claro que, muito longe de aqui encontrarem sua confir-
mação, os revolucionários devem tomar a ocasião para meditar sobre o que
aqui foi dito, confrontando tudo com os seus próprios pontos de vista).
“Se, porém, fizeres o mal, então teme, pois não traz a espada para apa-
rentar. Ela [a autoridade] é serva de Deus para dar cumprimento da ira de Deus
contra aqueles que promovem o mal”.
Podemos ignorar a advertência contra a prática do mal e não nos enga-
naremos se admitirmos que constantemente a ignoramos, pois todo passo que
neste mundo dermos está sob a sombra do mal, até mesmo a objetividade [ou a
seriedade] com que acaso praticamos o bem no meio do mal ou então, até no
paciente trabalho de reforma a que porventura nos dediquemos, abstendo-nos
da revolução e nos retraindo; nada disso nos livrará da sombra do mal pois a
totalidade de nossa conduta se completa na aceitação da ordem existente ou na
sua rejeição e de uma ou outra forma, já estamos em erro.
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A Grande Possibilidade Negativa 13, 3-4
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13, 4-5 A Grande Possibilidade Negativa
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A Grande Possibilidade Negativa 13, 6-7
Acaso quereis destruir esta ordem estabelecida que fala tão eloqüente-
mente de outra ordem, totalmente diferente? [Evidentemente] NÃO, porém:
“Pagai a todos o que deverdes. A quem imposto, imposto; a quem direi-
tos alfandegários, alfândega; a quem temor, temor; a quem honra, honra.”
É exigência banal e destituída de qualquer interesse: fazei aquilo que, de
qualquer maneira, já fazeis! [Essa exigência] deixa-nos “insatisfeitos” e nova-
mente às voltas com nossas indagações sobre os direitos da ordem existente e
da revolução. Talvez precise ser assim. Além de todas coisas interessantes e
grandiosas que poderíamos realizar, espera-nos a grande possibilidade negati-
va de Deus. Talvez na prática (naquilo que sabemos) não possamos fazer me-
lhor demonstração a favor [daquilo que devemos fazer] do que fazendo aquilo
que, naturalmente, fazemos mesmo!
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12, 21 a 13, 7 A Grande Possibilidade Positiva
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A Grande Possibilidade Positiva 13, 8-14
sabemos “em quem temos crido!” Quando? Acaso foi no caminho de Damas-
co? Foi na casa de “um certo Judas?” Foi no ministério de Ananias? Foi no
apedrejamento de Estevão ou, quem sabe, aos pés de Gamaliel?
Sim, acaso foi naquele transe amargo ou, nesta experiência gloriosa?
Foi na oração fervorosa da mãe crente ou talvez, na sábia aula da Escola Domi-
nical? Foi aquele sermão inspirado, aquele hino ou aquela passagem?
— OBRA E GRAÇA do Espírito Santo, que somente Deus conhece;
Assim é e será o Grande Dia do Senhor — “EIS QUE VEM COM AS
NUVENS!” Quando? Só Deus o sabe.
O que nos importa é não recalcitrar. O que sabemos é que AGORA é o
tempo aceitável: “Eis que estou à porta e bato”
Vejamos o que Barth diz.
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13, 8 A Grande Possibilidade Positiva
mente para a análise sem entrar em qualquer cogitação sobre este aspecto do
assunto, porque na língua alemã o trecho parece não deixar margem a dúvidas:
“Não ficar devendo” é expressão idiomática alemã que significa “responder a
cada agressão com reação igual e contrária”; significa aquilo que, entre nós,
mais vulgarmente se traduz pela expressão “responder à altura” ou, “dar o tro-
co na hora” ou ainda “não levar desaforo para casa”. Conseqüentemente, “ficar
devendo” significa que a resposta não pôde ser dada na ocasião da ofensa e
pretendemos dá-la quando a oportunidade se apresentar; é o equivalente a “dei-
xe estar, que você me paga...”
O que Paulo está dizendo é que não devemos cultivar a vingança, o
ódio, a raiva, a ira; não devemos ameaçar nem “respirar ameaças”; nada deve-
mos retribuir senão o amor mútuo.
Repetimos pois: vejamos o que Barth tem a dizer.]
Podemos expressar isto de outra forma, dizendo: Não resistais. Não
busqueis a decisão no terreiro do mal, pela negação (ou renegação.). Não entreis
em transgressão!
Este é o sentido de todas aquelas estranhas possibilidades de “não-agir”
que designamos como “possibilidades negativas” (12, 16-20) e que, finalmente,
reunimos como a “Grande Possibilidade Negativa”. (12, 2 1-13, 7).
EXCEPTO quer dizer que volvamos “meia-volta”; abramos uma brecha
em nossa muralha e, evidentemente, saiamos da demonstração pela abstenção
e enveredemos na demonstração pela AÇÃO; voltemos às “possibilidades PO-
SITIVAS” (12, 9-15): EXCEPTO o amor mútuo! O AMOR, devemos retribuir
a TODOS. Em hipótese alguma nos é permitido alegar que não praticamos o
amor mútuo porque vivemos à sombra do Reino do Mal dizendo que, por isso,
somente podemos testificar o mundo vindouro pelo nosso retraimento. O amor
mútuo deve e precisa ser praticado neste mundo sombrio porquanto este amor
— [ÁGAPE, na terminologia do Autor em outra passagem] não está sob a lei
do mal.
O protesto contra este mundo deve ser levantado pela prática do “amor
mútuo”; portanto deve ser apresentado e não abandonado.
Lembremo-nos bem: procedimento ético — positivo é aquele em que
não nos conformamos com a condição do mundo presente (12, 2). (“Ética po-
sitiva consiste em querer fazer aquilo que tem conotação negativa para a condi-
ção existente no mundo em que vivemos e não consta de seu programa ‘lança o
seu protesto sobre o grande erro”; e... “somente pode ser encontrada naquilo
que Deus quer e faz!” [12, 9-IS]. É nesta sua forma totalmente [imaterial],
invisível, que a ética positiva testifica a originalidade de Deus [e de sua mani-
festação que, a nós, parece tão estranha].
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A Grande Possibilidade Positiva 13, 8
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13, 8 A Grande Possibilidade Positiva
vemos [esse amor] como “derramamento do Espírito Santo” (5, 5), isto é, como
a realidade mediante a qual os homens conhecem a Deus, tomam posse dele e
se apegam a ele como o Deus Desconhecido, o Deus Recôndito, como o último
SIM no derradeiro NÃO de toda vida observável concreta”].
Amor é a apresentação existencial da criatura humana a Deus; é o toque
da liberdade de Deus e, justamente neste toque, é o fundamento de sua
personalização e “individualização”, se assim pudermos dizer).
O AMOR é “o caminho sobremodo excelente” (I Cor. 12, 31); é o senti-
do de todos caminhos que são compreensíveis para nós e o seu ponto culmi-
nante: é a possibilidade do homem religioso, como possibilidade divina e por
isso, na medida que isso se dá, é o “cumprimento da lei”.
[A versão inglesa escreve: “O amor é, por isso, a impossibilidade religi-
osa humana — quando for apreendido como a possibilidade divina. Em outras
palavras, o amor é o CUMPRIMENTO DA LEI].
O que significa isto quando verificamos que todo esse arrazoado cai por
terra ao ser confrontado com a nossa existência, com a vida que temos de viver
em sua singularidade e realidade, quando verificamos que no clímax de nosso
discurso sobre Deus ele mesmo nos perturba com a interrogação sobre “o que
devemos, pois, fazer?”.
O que significa isto tudo se, mediante essa pergunta Deus novamente se
encobre e se antepõe a nós como “o Deus Desconhecido?” (12, 1).
— A resposta é esta: quem ama a seu semelhante põe objetivamente em
prática a “Grande Possibilidade Positiva”, porquanto esse tal segue o caminho
incompreensível [sobremodo excelente]: amarás o teu próximo como a ti mes-
mo. (Lev. 19, 18).
“Amarás o teu próximo.” Na realidade do próximo confrontamo-nos
afinal — e no mais alto grau — com a inescrutável problemática da existência.
É no próximo que nos deparamos com o enigma da natureza original: é
nele que vemos a realidade do ser humano; nele nos confrontamos com nossa
própria criatura [como em espelho]; as suas peculiaridades nos lembram as
nossas próprias; nele vemos a nossa perdição, o nosso pecado e a nossa morte.
É no confronto com o próximo que precisamos decidir [o que Deus
representa para nós, isto é, se é mero produto de investigação intelectual, quiçá
de imaginação ou sentimentalismo, ou se é real]; precisamos decidir se a “impos-
sível possibilidade” divina — que está além de todas possibilidades humanas e
com a qual nos encontramos sempre novamente em nosso discurso sobre Deus
— não é apenas fantasma metafísico; se acaso não estávamos delirando quando
confirmamos a “pressuposição psicológica” do derramamento do amor divino
em nossos corações; se acaso não estávamos cegos quando “vimos” a Deus no
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A Grande Possibilidade Positiva 13, 11
intervalo — [desse pequeno lapso de tempo que decorre entre o momento que
acaba de passar e o momento que chega] — minúsculo interregno nos tempos.
Analogia [ou parábola] do instante eterno é todo instante de tempo referido ao
passado e futuro que, como todo momento do tempo presente, contém subjacente
em si a revelação do “segredo da temporalidade” e pode, por tanto, transfor-
mar-se no instante QUALIFICADO [da revelação]. [Logo], fazei isto reconhe-
cendo o momento presente!”
[É no conhecimento do “Momento Presente” que se alcança a sabedoria
para o exercício da incompreensível obra do amor ao próximo].
É somente quando compreendemos e apreendemos o instante em que
vivemos, em sua significação transcendental, quando [pela nossa compreensão
e mediante a graça divina] percebemos o “invisível AGORA!” da revelação no
lapso de tempo presente que separa o tempo anterior do tempo vindouro, quan-
do este “instante eterno” da revelação qualifica o passado e o futuro, somente
então acontece a incompreensível obra do Amor; então “a vida e as lides do
amor [ao próximo] tornam-se realidade (Kierkegaard); a fé que vê, [sente e
aceita] esta revelação é o cumprimento da lei, e a obra humana [que se manifes-
ta nesse Amor] provém do mais alto conhecimento.
Quem ama ao próximo foi [movido,] tocado pela LIBERDADE DE DEUS.
O retorno central [básico], final, da temporalidade para a eternidade,
esse relacionamento [que assim se estabelece entre o temporal] com o que é
eterno e que somente pode acontecer por milagre, dá-se quando a Grande Pos-
sibilidade Positiva se transforma em mandamento.
[A tradução inglesa escreve assim: “A ação humana do amor, por conse-
guinte, nasce da sabedoria suprema porquanto quem ama foi tocado pela liber-
dade de Deus. Portanto, quando dizemos que o amor, como a grande possibili-
dade positiva se toma em mandamento estamos presumindo este relaciona-
mento derradeiro e central do tempo com a eternidade — na realidade, estamos
presumindo que o amor é um milagre”].
Apenas podemos fazer o que fazemos, conhecendo o INSTANTE, por
isso nunca “já o fizemos” pois, quando já se fez alguma coisa “nesse” conheci-
mento?
Apenas podemos fazer o que fazemos como testificação da vitória que
aconteceu, acontece e acontecerá em Cristo; apenas com vistas ao nascimento
da pessoa dentro da individualidade; é apenas no aguardo do FIM, (fim do
mundo da temporalidade, das coisas e dos homens) que está [na realidade], o
começo — o princípio [do novo céu e da nova terra!].
O amor não causa mal ao próximo e é o cumprimento da lei — [e o cum-
primento de tudo quanto nos é defeso fazer!] — por que se mantém
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13, 11-12 A Grande Possibilidade Positiva
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A Grande Possibilidade Positiva 13, 11-12
Não há crença que não precise ser lembrada da REVELAÇÃO; não existe
obra que não tenha de ser lembrada de que lhe é necessário ter o respectivo co-
nhecimento [ou saber]; nem há pessoa alguma que não necessite de ser lembrada
da LIBERDADE de Deus. Enquanto esta lembrança não ocorrer — (e quando
“JÁ” teria ela ocorrido?) — todos estão adormecidos: TODOS, isto é. o Apósto-
lo. o Santo e também aquele que ama [o próximo]; estão todos irremissivelmente
entregues à temporalidade, todos jazem, quais seixos rolados, no fundo da “cor-
renteza do tempo” cujas vagas incansavelmente chegam e fogem céleres.
Ninguém é repelido de suas obras para que se abstenha ou se retraia e
ninguém que esteja retraído é impelido a tomar a iniciativa ou a agir. [Todavia],
cada um faz o que não deve e deixa de fazer o que deve; é por isto que o tempo
QUALIFICADO, o tempo do retorno e da arremetida, o tempo para a atitude
ou o procedimento ético-positivo, é o tempo que “ainda está para ser” e, en-
quanto ele não acontece, [enquanto ainda não for chegada a oportunidade para
o instante eterno], todos os tempos diferem entre si e cada instante particulari-
zado difere à sua maneira desse momento ETERNO que, no entanto, é igual-
mente estranho a todos.
Há tempos próximos e outros remotos; tempos de noite e tempos do
romper da alva; tempo de dormir e tempo de acordar; existem estes e aqueles
— uns são e outros não são, porém, há tempo CRONOLOGICAMENTE qua-
lificado: HOJE. “Hoje, se ouvirdes sua voz, não endureçais os vossos cora-
ções!” Também há tempo oposto: os dias quando “a Palavra do Senhor era mui
rara e as visões não eram freqüentes”. (I Sam. 3, l[e Heb. 3, 7-8; Sal. 95, 7-8] ).
“Agora nossa salvação está mais próxima que outrora, quando nos tor-
namos crentes”.
Sempre subsiste a tensão entre o tempo de “OUTRORA” — quando ain-
da estávamos descansados, [descuidados] e agora, o tempo presente, — quando
nos achamos sob a incomodativa lembrança daquilo que não somos; existe sem-
pre a tensão entre os tempos da revelação “já” encontrada, das obras “já” realiza-
das, de quando “já” havíamos reconhecido a Deus, e os tempos da meditação, da
expectativa e da introspecção na efetivação real do “já” que apenas SUPOMOS
como existente, [pois este “já” somente se dará na segunda vinda, isto é], no
INSTANTE ETERNO do retorno glorioso de Nosso Senhor Jesus Cristo no final
dos tempos: na realização do Juízo Final, com a presença de Jesus Cristo. [O
original emprega o galicismo “parúsia”. A tradução inglesa escreve: “Existe sem-
pre certa tensão entre ‘então’, quando levávamos existência calmosa e o ‘agora’
de nossa conturbada lembrança da não-existência. Há sempre certa tensão entre
‘os tempos da revelação’ que ‘já’ ocorreu, — as obras que ‘já’ foram feitas, Deus
que ‘já’ conhecemos, — e a nossa expectativa pela realização daquilo que ‘já’
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— O que aconteceu?
— É evidente que por entre as muitas palavras, interrogações, conceitos
e análises que surgiram e submergiram teremos, todos, vislumbrado, — pres-
sentido, [adivinhado], notado ou, talvez, até visto à distância — algum ponto
onde pudéssemos estabelecer-nos e dele viver.
Esse ponto que assim divisamos — próximo ou remoto, — pelas carac-
terísticas que o acompanham, foi por nos freqüentemente designado como a
LIBERDADE DE DEUS.
Ora, considerando que o discurso de Paulo na Epístola aos Romanos
abertamente nos incentiva [ou melhor, nos incitai a empreender uma determi-
nada conduta — [a viver uma vida que se amolde, se sujeite e siga a diretriz
que, embora com impropriedade relativa, poderíamos dizer ser condizente com
a liberdade de Deus] e que se exerce mediante a liberdade que cada pessoa tem
de adotar ou deixar de adotar o “procedimento Paulino”, designamo-lo como a
“Livre Mordomia da Vida”. “Livre” porque tal procedimento parece resultar da
descoberta da liberdade de Deus corno sendo a resposta prática e direta à gran-
de perturbação que nos vem da parte de Deus, e que assim nos constrange
[todavia não obriga].
— Quem há que ouse viver segundo essa liberdade de Deus, se nem
mesmo nos atrevemos a imaginá-la?
— Esta é a questão que a Carta aos Romanos nos apresenta.
[A tradução inglesa escreve: “Onde está o homem — pergunta a Carta
aos Romanos — que se atreverá não só a pensar na liberdade mas a, de fato,
viver sob sua direção?”].
Viver “Paulinamente” é viver livre; é estar oprimido por Deus, de todos
os lados, mas é, também, saber que se está por ele guardado em todos sentidos,
é ser constantemente lembrado da morte mas, continuamente encaminhado para
a vida; é ser desalojado do aconchego das acomodações e libertado dos com-
promissos e do enclausuramento das coisas triviais para, [galgando os patama-
res de horizontes mais amplos], consciente e em abundante vida, contemplar a
eternidade. [Viver “Paulinamente”] é ver a clareza do perdão dos pecados, ven-
do nesse perdão [concedido exclusivamente por Deus em sua plena liberdade]
a incomparável diretriz de nosso procedimento ético; é viver fundamentalmen-
te abalado, temendo todas grandezas relativas, tudo quanto [no mundo] tem
algum valor, isto é, temendo todos valores reais, estabelecendo porém, relacio-
namento objetivo com todos eles. Viver “Paulinamente” é estar firmemente
acorrentado a Deus, gozando, por isso mesmo, da maior tranqüilidade com
respeito a todas indagações, a todas exigências e a todos mandamentos que não
emanem diretamente de Deus, é ser completamente independente de todas
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14, 1 a 15, 13 A Crise da Livre Mordomia da Vida
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haver compreendido e apreendido] não passa de mero bronze que soa e címbalo
que tine.
No desfecho da Carta aos Romanos, (de maneira algo semelhante aos
epílogos dos romances de Dostoiewski) somos novamente postos ante a Impe-
netrável problemática da vida — (também da vida dos cristãos e de suas comu-
nidades!).
Não achamos saída (ou solução) para essa problemática e temos de re-
começar sempre [do mesmo ponto de partida], — vendo e sofrendo a aflição
que nossa meditação sobre Deus gerou [e gera]. Ainda uma vez temos de nos
defrontar com a realidade de nosso semelhante e que se expressa na Grande
Tribulação. — o problema ético que o próximo representa.
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14, 1-4 A Crise da Livre Mordomia da Vida
motor — [quiçá o elemento catalítico que provoca a reação, o levedo que fer-
menta a massa, o propulsor dos outros] mas então, será também, e com toda
certeza, o seu freio, [o elemento moderador].
Até ao “Paulinista” genuíno — (de passagem, note-se que se nem mes-
mo Paulo foi sempre [“Paulinista”] genuíno, o que diremos de nós?!) — falta o
necessário empenho e capacidade suficiente para se diferençar dos outros, mes-
mo quando estes, mui zelosamente, teimam em ser diferentes dele; tal
“Paulinista” não se apresenta [ou não se apresentaria] como acusador ou
fustigador dos demais, antes procura [ou procuraria] participar de seus pontos
de vista, indagando a respeito dos mesmos. O genuíno “Paulinista”, muito an-
tes dos “outros” despertarem, já foi o seu próprio opositor.
O genuíno “Paulinista” está convicto de que podem existir inúmeras
alternativas éticas divergentes dos moldes “Paulinos” todavia, as leva a todas,
[indiferentemente aos seus eventuais possíveis méritos], tão pouco a sério que
evita escrupulosamente acentuar as incompatibilidades [que as caracterizam] e
até mesmo prefere não defini-las. Se ele o fizesse estaria perdido porquanto a
sua posição não é moldada segundo determinado ponto de vista [isto é, a sua
ética não resulta de dedução ou erudição filosófica] e ai dele se consentir em
ser levado a essa arena onde a cada ponto, honradamente, se contrapõe outro
ponto [igualmente erudito e, quiçá, lógico], séria, — e solidamente — alicerçado.
O verdadeiro “Paulinista”] é ainda mais reservado que os filósofos socráticos
porquanto ele nem sequer procura despertar no seu interlocutor qualquer dúvi-
da sobre a certeza de sua convicção; para o “Paulinista” verdadeiro, o outro
deve seguir o seu caminho até o — fim (porquanto a pressuposição [da existên-
cia] do UM no outro é absolutamente fundamental.
A [ética da] livre mordomia da vida não se impõe [às demais formas de
comportamento humano] esgrimindo sucessivamente contra cada convicção,
mas reconhecendo o objetivo comum a todas elas.
Aquele que é FORTE está muito longe de praticar a “tolerância” que
abandona cada um a suas próprias convicções mas está também igualmente
distante da “intolerância” que procura extirpar do outro as convicções que
acaso tenha. Quem é FORTE aprecia a seriedade dos diferentes caminhos [e
procedimentos éticos] humanos, porém apenas na medida em que considera,
[analisa e vê] a crise da qual todos procedem; até mesmo o seu modo peculiar
de agir tem sua origem no fato de que ele não olvida essa crise, antes medita
sobre ela.
Tal pessoa tem razão apenas na medida em que não a pretende ter. Ela
age conforme deve — [conforme lhe é pertinente, isto é,] socraticamente, [qui-
çá reservadamente] desvendando [abrindo, arejando, ventilando] todas formas
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14, 5-12 A Crise da Livre Mordomia da Vida
considera [e conclui] que “o navio navega bem melhor em mar aberto todavia,
se preciso for, também pode singrar em canais estreitos”. (Bengel).
Entendendo o FORTE melhor o que se dá com o FRACO do que aquilo
que se dá com ele mesmo, seria o caso de estender as situações isoladas a
conjunturas mais amplas, generalizando-as talvez: “Ele agradece a Deus, nis-
so”. Esta referência a Deus é que decide sobre o valor ou o desvalor do proce-
dimento humano; ela é a balança na qual se deita o rigor do rigorismo e tam-
bém a liberdade dos livres. “A criatura humana, em sua oscilante constituição
espiritual, está na inteira dependência do gesto divino sem se atrever a mover,
sequer, um dedo. Esta é a lei básica de nossa existência”. (Calvino).
Todavia, a aplicação dessa regra, por sua própria natureza, é invisível
aos outros.
O que faremos se os “FRACOS” pretenderem afirmar a existência de
Deus por seu fanatismo e, mui especialmente, se for absolutamente claro para
nós que seu relacionamento com Deus se fundamenta em processo idólatra?
(Contudo, ao ponderarmos sobre isto precisamos lembrar-nos de que] é possí-
vel que nessa “afirmação” dos FRACOS eles tenham Deus em suas mentes,
que o teor do seu procedimento — realmente — faça sentido e tenha significa-
ção e pode, até mesmo, ter o sentido de demonstração necessária e conveniente
em honra a Deus, conquanto nem se pode admitir que para Deus o “comer” —
[que “alguns” entendem ser sinal de fortitude cristã”] — seja mais agradável
do que o “não-comer” [que os fracos defendem].
É a consideração sobre a “predestinação — da qual o fraco sequer tem
noção— que estimula [e ensina] ao forte a se colocar na mesma fila dos FRACOS.
Vs. 7 a 12 Agora uma observação básica: Porquanto nenhum de nós vive para
si mesmo e ninguém morre para si mesmo. Pois se vivemos, para o Senhor
vivemos e quando morremos, para o Senhor morremos. Por tanto, quer
vivamos quer morramos, somos do Senhor Foi por isto que Cristo morreu
e tornou a viver: afim de que seja Senhor sobre os mortos e sobre os vivos.
Tu, pois, o que acusas em teu irmão? Pois todos compareceremos perante
o tribunal de Deus, conforme está escrito: Tão verdadeiramente quanto
vivo, diz o Senhor perante mim se dobrará todo joelho e toda língua me
confessará! Portanto, cada um de nós precisará prestar contas de si mesmo.
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A Crise da Livre Mordomia da Vida 14, 7-12
referida a Deus, [vida] que está sob o julgamento e ante a promessa de Deus;
esta vida é caracterizada pela morte mas é também qualificada pela esperança
da vida eterna, mediante a morte de Cristo. E isto o que a crise da “livre mordo-
mia da vida” e do “rigorismo”, representa; [a crise é uma só pois] tanto a “liber-
dade” como o “rigorismo”, evidentemente, objetivam a vida. Porém a VIDA,
na vida, está na liberdade de Deus o que para nós, é a morte, pois somente
vivemos para o Senhor.
Acaso esta destinação da livre mordomia da vida seria menos crítica
[menos decisiva, quiçá mais complacente] do que para os “RIGORISTAS”
porque os primeiros objetivam conscientemente a vida eterna enquanto para
estes o conceito de “vida” que procuram ainda não foi acrisolado [isto é, ainda]
está contaminado pela desconfiança de que se trata apenas de vida biológica?
Contudo, a “consciência” (dos FORTES) acaso não é também vida bio-
lógica? Como poderia [ainda que fosse] o mais poderoso [o mais forte, o supre-
mo] “ato de pensamento” ter latente em si a segurança e a justificação para a
criatura humana, [qualidades essas] que justificassem a superioridade [desse
“ato de pensamento”] sobre os demais? [E o que podemos nós reconhecer e
fazer valer como “ato de pensamento”?].
Somente o Senhor é a segurança da promessa. [Ele só é o avalista!] “Se
o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os que a constroem”.
Acontece porém que, em todas circunstâncias, o Senhor é também o
juiz e nossa esperança somente é viva, mediante a morte de Cristo.
Inversamente, “ninguém morre para si”. Quando morremos, para o Se-
nhor morremos”. Não há morte em si; só há morte referida a Deus; é a morte
que nos cerceia e enquanto assim nos cerca e prende, dá-nos saída para Deus;
esta é a morte daquilo que designamos vida e que é qualificada pela ressurrei-
ção de Cristo como o sinal de nossa adoção [por Deus, como filhos seus].
Também esta morte está no teor da crise, tanto para o “Rigorismo” como
para a “Livre Mordomia da Vida” pois ambos esses procedimentos, cada um a
seu modo, têm a morte em mira.
Porém, a MORTE na morte, está na liberdade de Deus, o que para nós é
a vida, pois somente morremos para o Senhor.
Aqui, novamente, precisa o FRACO purificar-se da desconfiança de
que nessa negação relativa, nessa supressão, nesse debate que consubstancia
sua mordomia de vida, se trate simplesmente de morte biológica, enquanto o
FORTE, com circunspecção e maior tranqüilidade, sabe que a morte que temos
de buscar é aquela qualificada pela ressurreição e nenhuma outra; todavia,
nem pôr isso a referência à realidade da morte é menos crítica para ele por-
quanto o que mais pode ela fazer valer, se não um determinado conhecimento
783
14, 7-12 A Crise da Livre Mordomia da Vida
que tem a expressão de simples analogia (ou parábola) ante sua efetiva morte
biológica?
De que maneira poderia a nossa meditação sobre as coisas eternas justi-
ficar-nos e de que forma a nossa aceitação da reconciliação mediante a morte
nos reconciliará com Deus?
Somente o Senhor é o fiador da ressurreição. “Quando o Senhor não
guarda a casa, em vão vigiam as sentinelas”. Todavia [ainda uma vez], em
qualquer circunstância o Senhor é também o juiz; e o sentido da cruz, sob o
qual todos estamos, somente é dado pela ressurreição de Cristo. Por isso, “quer
vivamos quer morramos, somos do Senhor. Foi por isto que Cristo morreu e
tornou a viver: a fim de que seja Senhor sobre mortos e sobre vivos”.
Ser forte significa reconhecer a Deus em Cristo mas, isto, na crise derra-
deira e inevitável de nossa vida e de nossa morte, nesse ponto onde nada mais
existe senão a misericórdia de Deus. Ser FORTE significa temer e amar a Deus
sobre todas as coisas, conforme ele vem ao nosso pensamento na mais alta
categoria dialética: como o SENHOR.
Se estivermos cientes [e conscientizados] de que “para o Senhor vive-
mos”, então reconhecemos que não podemos pretender obter qualquer justifi-
cação — (por exemplo a auto-justificação) — pelo nosso SIM nem pelo nosso
NAO, ao lado da justificação que só Deus pode dar, [ou que pudesse ser igual
ou semelhante a essa].
Nem nossa vida, nem nossa morte; nem nosso SIM, nem nosso NÃO;
nem o “Rigorismo” nem a “Livre Mordomia da Vida” fazem jús à justificação
divina; isto não o sabe o FRACO e é o que constitui a sua fraqueza; por isso
mesmo o FORTE precisa sabê-lo tanto melhor e portanto, na hora de agir, quando
chega a ocasião de curvar-se (e render-se) ante o mistério divino, não pode
esperar pelo FRACO porém, compete-lhe dar o primeiro passo, o passo da
humildade, sabendo que nada sabemos, porque sabemos que Deus o sabe!
“O que condenas, pois?” Ou então, perguntando muito mais objetiva-
mente: “O que desprezas tu? Aquele que desprezas é “teu IRMÃO!”
Não há qualquer razão (ou pretexto) para destruir a comunidade e exis-
tem inúmeras [ou todas] para a manter e preservar.
“Para o Senhor” é a grande verdade crítica sob a qual. como criaturas
humanas, estamos no mundo. (Esta verdade não diz respeito a FRACOS ou
FORTES mas a todos, reunidos em Cristo que está perante Deus, como nosso
IRMÃO!) Esta verdade crítica aponta a uma só coisa: “Todos compareceremos
perante o tribunal divino”.
Acabamos de ouvir que o SENHOR é o Juiz sobre vivos e mortos. Pre-
cisamos examinar isto sob todos aspectos.
784
A Crise da Livre Mordomia da Vida 14, 7-12
785
14, 7-12 A Crise da Livre Mordomia da Vida
Vs. 13 a 15 Por isso não nos acusemos mais mutuamente porém comprovai
vossa aptidão para julgar não ofendendo nem escandalizando o irmão.
Porquanto eu bem sei, e estou firmemente convencido no Senhor, que nada
786
A Crise da Livre Mordomia da Vida 14, 7-15
é impuro em si mesmo e que [as coisas] somente são impuras para quem
assim [as] considera. Se, porém, por teu comer teu irmão ficar em cons-
trangimento, então já não procedes na conformidade do amor Não destru-
as por teu comer aquele por quem Cristo morreu.
787
14, 13-15 A Crise da Livre Mordomia da Vida
788
A Crise da Livre Mordomia da Vida 14, 13-15
789
14, 13-15 A Crise da Livre Mordomia da Vida
790
A Crise da Livre Mordomia da Vida 14, 13-18
Vs. 16 a 18 Vosso bem não deve ser blasfemado porquanto o Reino de Deus
não consiste no comer e no beber mas na, justificação, na paz e na alegria,
no Santo Espírito. Quem assim serve a Cristo é agradável a Deus e aceito
pelos homens.
Estamos ante a barreira eril que se contrapõe à força dos fortes: a crise
daquilo que designamos como “nossa liberdade”.
Alegramo-nos com a liberdade que temos [para administrar nossa vida]
considerando-a o próprio “BEM”; todavia ela somente será o “BEM” se for a
vivência do Reino de Deus.
Está isto claro?
[Para facilitar — ou, quiçá, encaminhar a análise do problema no intuito
de esclarecê-lo vamos propor algumas questões, fazer certas indagações:]
Acaso esta liberdade de consciência de que tanto nos regozijamos é ape-
nas a liberdade que Deus toma e deve ter em nosso procedimento — quer quan-
do agimos ou quando deixamos de agir [no caso do exemplo objeto do discurso
de Paulo, — quer quando comemos quer quando não comemos], ou trata-se da
liberdade que, em seu nome, gostaríamos de ter?
791
14, 16-18 A Crise da Livre Mordomia da Vida
Sabemos que o valor de nossa liberdade está no fato de que nela Deus
demonstra a sua liberdade, ou entendemos que nossa liberdade tem algum va-
lor intrínseco?
Quando demonstramos nossa fortidão acaso é alguma expressão de “jus-
tificação”, paz e alegria, ou é a demonstração de nossa força “pelo comer e pelo
beber”?
Podemos fazer o que devemos, ou devemos fazer o que podemos?
Estamos interessados na “autonomia” da verdade [como um todo], ou
buscamos meios para implantar “a verdade que conhecemos”?
Se [nestas alternativas todas] a nossa posição se identificar com a se-
gunda hipótese então o nosso BEM já foi blasfemado por nós mesmos e aban-
donado à blasfêmia dos outros de pleno direito.
Quão duvidoso, quão comicamente presunçoso — ou melhor quão hi-
pócrita e perigoso se parece subitamente o “Paulinismo” quando ele fica sujei-
to a esse grande equívoco (conforme sem dúvida acontece no protestantismo
moderno (!)) [e que consiste na idéia da] justificação da criatura humana medi-
ante o conhecimento do mistério de Deus.
Para chegar a tal conclusão não seria necessário perlustrar a Epístola aos
Romanos. Se este tema fosse tudo o que a Epístola contivesse (e qual o “Paulinista”
que esteja — ainda que por um só momento — a salvo do perigo de agir como se
isso fora, realmente, tudo!), quanta razão não teria então o coro dos “fracos” com
as incriminações que desde sempre levantam contra a Carta!? Quão certo estaria
o “Grande Inquisidor” em suas ponderações [(então)] verdadeiramente bem fun-
damentadas contra a liberdade que Cristo trouxe! Teriam então razão todos esses
vastos exércitos de moralistas, pedagogos, psicólogos, sociólogos, todos os que
analisam o mundo pela história, todos os que estão seguros de que são retos e
práticos [objetivos] e todos os que se interessam pelo bom senso geral! De um só
golpe, teriam todos absoluta razão; subitamente a profunda insensatez [de toda
essa gente] nos pareceria desculpável pela sua inocuidade, ou melhor, nos pare-
ceria bem fundamentada e justificada. Teríamos então urgente necessidade de
nos sujeitarmos a qualquer lei que estivesse mais prontamente a nosso alcance;
havendo avançado longe demais em nosso exame, poderá parecer-nos mui agra-
dável voltar aos braços maternais da Igreja Católica.
[Talvez seja conveniente abrir aqui um parêntese para ventilar e procu-
rar entender o que o Autor quer que se torne realmente “claro”.
Primeiramente, o que “devemos e podemos fazer” e o — que “devemos
fazer se pudermos”?
Os sentidos usuais que damos a esses verbos não parecem definir com
precisão as alternativas em vista. Parece-me porém que ao afirmarmos que
792
A Crise da Livre Mordomia da Vida 14, 16-18
“podemos fazer o que devemos” estamos dizendo que sabemos qual o nosso
dever mas somos livres para cumpri-lo segundo os ditames de nossa consciên-
cia, segundo a expressão e a opção de nossa vontade. Todavia, na expressão de
que “devemos fazer o que podemos” estamos nos submetendo à obediência de
disposições superiores na qual não deixa de haver certa dose de oportunismo e
porção maior ou menor de acomodação.
Em seguida, o que é o mistério de Deus em torno de cujo conhecimento
o protestantismo procura (ou procurava quando Barth escreveu) encontrar a
justificação da criatura?
Talvez a expressão “justificação” não tenha (ou não deveria ter) aqui o
sentido total da justificação de Deus que é segundo a fé, mas o sentido de justi-
ficação da conduta do “crente”, quiçá “Paulinista”, perante os seus irmãos;
trata-se, talvez, de lhe dar a devida razão do ponto de vista humano, embora
essa aceitação possa, implicitamente, ser estendida à justificação divina.
Se assim entendermos a “justificação” que o Autor diz ser inerente ao
protestantismo de seu tempo, talvez ainda encontremos amplos vestígios dessa
característica no protestantismo de hoje; (e seriam somente vestígios?). Então é
evidente que o “mistério de Deus” é a liberdade de consciência consoante o
ensinamento da Epistola aos Romanos, liberdade essa que desde os primórdios
do cristianismo todos os leguleios e os legalistas religiosos — de qualquer de-
nominação ou seita, — sempre reprovaram e lamentaram, sendo seu modelo
exteriotipado no “Grande Inquisidor”.
Todavia, essa liberdade tem também a sua barreira: “Que não seja blas-
femado o vosso ‘BEM!. Tudo posso, mas nem tudo me convém!” A minha
liberdade de consciência dá-me o direito de “comer e de beber” mas me dá
também o direito de deixar de comer e de beber. Esta negação não é uma ordem
peremptória, uma lei “dos Medos e dos Persas”, mas é a lei do amor; se eu
constranger meu irmão, se eu o escandalizar, quer bebendo ou comendo, quer
me abstendo de o fazer, já não estou mais agindo segundo a lei do amor. É por
isto que o dilema é terrível; é por isto que (para minha comodidade, meu “apa-
ziguamento”), seria melhor apegar-me a qualquer “lei” que esteja a mão, lei
que me proíba a fazer isto e aquilo e me imponha critérios definitivos, circuns-
tanciados, para minha conduta; se isto me traz a paz, então melhor me fora
entregar-me aos braços da chamada Santa Madre Igreja Católica” que resolve
meus problemas temporais (temporariamente, é certo), com seu confessioná-
rio, com suas penitências e, a médio prazo, com o purgatório e as intercessões
da “Igreja”].
Todavia, é a própria justiça de Deus que nos leva a esta crise [isto é, à
crise da delimitação da liberdade dentro de nossa liberdade]. Se esta crise não
793
14, 16-23 A Crise da Livre Mordomia da Vida
Vs. 19 a 23 Assim, aspiremos pela paz e pela edificação mútua. Não destruas a
obra de Deus por amor à comida. Tudo é limpo mas, quem come provo-
cando escândalo procede do maligno. E melhor não comer carne nem
beber vinho nem fazer coisa alguma que escandalize teu irmão. Tens fé?
Tem-na em ti mesmo, perante Deus! Bem-aventurado aquele que não pre-
cisa condenar-se naquilo que faz. Porém, quem come duvidando é conde-
nado à morte ao fazê-lo, porquanto este tal não procede conforme a fé e,
tudo quanto não for pela fé é pecado.
794
A Crise da Livre Mordomia da Vida 14, 19-23
seja o sol do teu procedimento ético [de tua moralidade]. Sim; mas há outras
condições: a consciência independente, em Deus; a PAZ é a paz de Deus que
está acima do melhor critério humano; a PAZ na liberdade, que é também a
liberdade do próximo e, finalmente, não há paz sem edificação mútua.
Agora, pois, prossiga no teu caminho!
“Não destruas por causa da comida, a obra de Deus!”
Vemos o “BEM”, o que é divino, em perigo; vemos como a humanidade
sofre e reconhecemos a necessidade de atacar, de oferecer holocausto e de fa-
zer alguma coisa. Verdadeiramente não é para a afirmação ou confirmação de
sua própria liberdade que alguém há de destruir a obra de Deus. Sim, pois
“TUDO é PURO”. Tudo! Este [tudo] é o ponto final de todo arrebatamento
moral; é a terminação básica, fundamental, de todo procedimento direto [a sa-
ber, é o fim, é o termino de toda ação humana que tem determinado fim em
vista como por exemplo alguma renúncia, abstinência, a reformação da vida;
este tudo] é a proclamação da liberdade de consciência de todos! [Este “tudo”
confirma que] o protestantismo está irrestritamente certo.
Todavia há uma segunda consideração: [o “comer de tudo”] “procede
do malígno para quem come escandalizando seu irmão”.
Isto quer dizer que se o meu próximo está em aflição, eu a aumento
usando da minha liberdade [de comer]; que ele está em tentação e eu estou a
empurrá-lo mais para dentro dela; que ele deveria seguir o seu caminho sem se
desviar [e sem se distrair de seu objetivo] e eu o detenho.
Posso fazer isso? [Se de fato posso, o que — como possibilidade — é evi-
dente] preciso realmente “QUERER FAZER” o que posso? Posso desprezar a ação
direta, (objetiva, a ação de comer), isto é, posso deixar de a praticar? (Ou então,
ainda) baseado em minha liberdade de consciência, posso passar ao largo daquele
que caiu nas mãos dos salteadores [isto é, posso deixar de atender a meu irmão que
está em aflição e “comer” (ou proceder) conforme estou convicto que seria “legal-
mente” aceitável por Deus, tendo em vista que sou “realmente” FORTE?].
Vamos adiante: “E melhor não comer carne nem beber vinho nem fazer
coisa alguma que escandalize teu irmão”. O Santo Espírito é o direito objetivo
e não o direito que tenho.
Vês as pedras que apontam no meio da correnteza? Não te demores
sobre nenhuma delas senão o tempo necessário para nelas apoiares o pé para o
passo seguinte pois só dessa forma chegarás à outra margem!
“Tens fé?” Sim, [é bom] que a tenhas; porém, “tem-na para ti mesmo” e
“perante Deus!”
Podes crer apenas por ti mesmo e perante Deus. Estás inteiramente a sós
com Deus, em tua fé, inteiramente preso a ele e lançado sobre ele; ninguém
795
15, 1-6 e 16, 25-27 A Crise da Livre Mordomia da Vida
mais é teu juiz nem teu Salvador e, “bem-aventurado é aquele que não precisa
condenar-se naquilo que faz!”
Está perfeitamente certo: porém, também aqui há uma segunda considera-
ção: é coisa terrível estar assim a sós com Deus; saber que só ELE é o “Bem”; que
não se pode zombar de Deus que tudo exige de nós e tudo suprime [e anula pela
nossa total imodéstia, nossa presunçosa liberdade de consciência e nosso
“Titanismo”]. Nesta proximidade de Deus chegamos todos à duvida se naquilo
que fazemos resta alguma coisa que se firme na fé pois o risco de que muito
pouco ou mesmo nada reste é muito grande e está infinitamente próximo de cada
um de nós e... “quem come duvidando é condenado à morte ao fazê-lo, porque
este tal não procede conforme a fé e tudo quanto não for pela fé é pecado”.
Quem há, então, que seja justificado? Quem ousa dizer: tenho fé? Quem
se atreve a assumir a responsabilidade [de responder à perguntai por si mesmo
ou pelos outros? Quem há que se atreva a jactar-se de sua independência e
liberdade (neste terreno)?
Portanto, nesta tétrica incerteza, apega-te a este único fio: Deus! E quem
haverá de apegar-se [a Deus] se não for sustentado?
796
A Crise da Livre Mordomia da Vida 15, 1-6 e 16, 25-27
797
15, 16, 25-27 A Crise da Livre Mordomia da Vida
798
A Crise da Livre Mordomia da Vida 15, 25-27
Somos “FORTES”. O que nos torna “fortes” procede da crise que, sem
esmorecer. irrompe sempre de novo em nossa fortidão: não buscamos outro
caminho senão aquele que segue no meio de dois precipícios; não queremos
outra passagem para transpor a correnteza senão aquela onde podemos apoiar o
pé por um momento apenas; não queremos outro repouso senão Deus. Todavia,
a crise subsiste: tudo quanto for auto-afirmação; liberalidade; conquistas econô-
micas, políticas e intelectuais; direitos; reivindicação de nossa crença ou fé; —
[sim, tudo isto nada tem a ver com a nossa fortitude. Se a nossa Livre Mordomia
da Vida, secretamente, tiver tal objetivo, então é melhor que passemos ao arrai-
al dos “Rigoristas”, dos “fracos”, pois é destas coisas que eles cuidam. Porém,
o que nos resta então? Visivelmente, nada. Apenas podemos concluir que, na
qualidade “dos que sabem”, dos “prudentes”, “como aqueles que são livres”,
também nós somos fracos; apenas podemos igualar-nos a eles. Conseqüente-
mente, será tanto melhor para nós quanto menos desprezarmos quem quer que
seja; quanto menos nos destacarmos; quanto mais deixarmos de liderar.
“Temos o dever de suportar as fraquezas dos destituídos”. Acaso só apa-
rentemente? Apenas por condescendência ou dissimuladamente, estando inti-
mamente satisfeitos com nossa fortitude e nossa liberdade?
— Não. Isto não seria “suportar”. O Novo Testamento não nos propõe
papéis teatrais. Este “suportar” é absolutamente existencial: é ser, realmente.
fraco com os fracos porquanto estes não se consideram fracos antes, para eles,
a sua fraqueza consiste no fato de que supõem que suas forças estão se desen-
volvendo; a nós compete carregar [ou suportar] aquilo que eles não podem ou
não querem carregar. Trata-se de toda aquela sobrecarga do dessossego que
Deus prepara para os homens. Temos de ser aqueles que sabem que não nos
podemos desnvencilhar dessa carga, nem pelo rigorismo nem pela liberdade de
799
15, 1-6 A Crise da Livre Mordomia da Vida
800
A Crise da Livre Mordomia da Vida 15, 1-13
procura adiantar-se, [não se apressa para isso]; [o “FORTE”] espera mas não
dorme; não critica, pois vê-se em situação por demais crítica para se atrever a
tanto, todavia, tem esperança; ele não educa [não se atreve a ensinar] mas ora,
(isto é, intercede) e, enquanto ora, efetivamente educa. [O FORTE] não avança
por sobre os outros, antes dá-lhes lugar. [O FORTE] não tem uma posição espe-
cífica para estar e onde possa ser encontrado, mas está em todo lugar [onde possa
servir desinteressadamente, sem oprimir o próximo de maneira alguma e, sem
proveito para si mesmo].
“Porquanto também o Cristo não viveu para agradar a si mesmo”.
Lembremo-nos de tudo quanto de Deus está revelado e oculto em Cristo
(ver Capítulos III e VIII). É disso que aqui se trata.
Também na ética, é assim; [em Cristo se oculta e também se revela a
ética divina]. “Ele não clamará nem se exaltará e sua voz não será ouvida nas
ruas.” É por isto — [por que se trata da ética divina] — que as coisas não
acontecem conforme, [do ponto de vista humano] possa parecer natural ou
lógico. Não acabará de quebrar a cana partida nem apagará o pavio que fume-
ga”, (Isa. 42, 2-3); “não teve por usurpação ser igual a Deus” (Filip. 2, 6). O
Reino de Deus que ele proclama é realmente a liberdade de Deus por isso, sua
vida inteira é sacrifício, renúncia e retirada constante. “Os insultos daqueles
que te injuriam caíram sobre mim” (Sal. 69, 9). E assim que ele passa como o
Grande Sofredor [o Grande Varão de Dores.], (Isa. 53!), através da história da
antiga aliança; para nós, ele é o CRUCIFICADO!
“Isto foi escrito para nosso ensino”. Esta figura é plena de perseveran-
ça” e de “consolo” e é muito mais do que figura porquanto o Deus da perseve-
rança e do consolo está por trás e não apenas ensina mas nos concede aquilo
que é incompreensível dando-nos, a despeito de sermos humanos, a despeito
de nossa total heterogeneidade e nossa desarmonia, a possibilidade de sermos
“do mesmo parecer” e que, por entre os choques dos múltiplos pensamentos
tomemos uma e mesma coisa [que é o UM] para o centro de nossas cogitações
e que, na dissonância das vozes dos membros da comunidade percebamos a
comunhão; “que com um só animo e em uníssono, louvemos a Deus — Pai de
nosso Senhor Jesus Cristo”.
801
14, 1 a 15, 13 A Crise da Livre Mordomia da Vida
está escrito: por isso, entre os gentios confessarei e cantarei ao teu nome!
e, em outro lugar; alegrai-vos, vós gentios, com o seu povo! e, outra vez:
todos os gentios, louvai ao Senhor e o louvem todos os povos! Novamente
diz Isaías: Haverá uma raiz em Jessé e por aquele que se levanta para
reinar sobre os gentios, por esse os povos esperarão. (Sal. 18, 50; Deut.
32, 43; Sal. 117; Isa. 11, 10).
O Deus da esperança vos preencha de abundante alegria e paz na fé
afim de que vos enriqueçais na esperança e no poder do Santo Espírito.
1. Diz Barth que ousar crer significa ser inteiramente livre sem reconhe-
cer qualquer espécie de restrição, senão a “grande restrição divina”.
Que restrição é essa?
Dentro do contexto da exegese de 14, 1 — 15, 13 parece tratar-se
da liberdade de restringir a nossa liberdade de usar da liberdade que
Deus nos dá, ao procedimento ético que não escandalize nosso irmão.
802
A Crise da Livre Mordomia da Vida 14, 1 a 15, 13
803
Capítulos XV (2ª parte) e XVI
O APÓSTOLO E A COMUNIDADE
805
15, 14 O Apóstolo e a Comunidade
Vs. 15 e 16 Em parte vos escrevi com um pouco mais de ousadia para vos
lembrar por força da graça que me foi concedida por Deus para ministração
do seu Evangelho como pregador de Cristo Jesus aos gentios afim de
constituirem oferta aceitável e santficada pelo Espírito Santo.
806
O Apóstolo e a Comunidade 15, 14-16
nossa cogitação tudo quanto não for resposta definitiva, restrita, precisa, exata?
[E preciso ser necessariamente ou uma coisa ou outra, a vertente norte ou a
vertente sul, a leste ou a oeste, sem que jamais os filetes que do divisor escor-
rem se encontrem e sejam algum dia ou de alguma forma, iguais, sem que
sejam. desde agora. equipotenciais!].
Acaso é forçoso rejeitar todos os caminhos amistosos, pacíficos, práti-
cos, históricos, e psicologicamente esclarecedores [pelo simples fato de serem]
caminhos intermediários?
A adesão a essa linha divisória tão pronunciada, (a permanência no “gume
do cutelo”), é [assim tão absolutamente] obrigatória?
Respondemos: Certamente não! Estamos longe de querer afirmar que a
ética, as possibilidades e os métodos que são também visíveis na “Carta aos
Romanos”, sejam normais mesmo porque, em toda seriedade apenas podemos
prevenir [a todos] contra a adoção de [outros] “caminhos, éticas, e métodos”
[que sejam considerados] “normais” [pelo mundo].
Repetimos ainda uma vez que também o “Paulinismo”, no fim, condena
a si mesmo [e só pode condenar-se] porquanto mesmo o mais escarpado divisor
de águas que ele configurar e em toda vasta série de possibilidades que apre-
senta, não é mais do que simples analogia.
[Talvez seja conveniente lembrar aqui que o “Paulinismo” que o A. consi-
dera não é obra de Paulo e muito menos obra divina ou ensinamento inspirado da
Palavra de Deus, mas é a interpretação dada pelos crentes, — (particularmente
por aqueles que se julgam fortes) — às palavras ao ensino e a exortação do gran-
de Apóstolo dos gentios, este sim, divinamente inspirado pelo Espírito Santo].
Todavia, também sabemos avaliar [e apreciar] as demais possíveis situ-
ações, “mais relativas” e menos prejudiciais; sabemos o que significam e que
frutos podem produzir. Temos as condições e a aptidão necessárias para convi-
ver com católicos e também para travar relações com pessoas “do pensamento
positivo”, ou então [e até simultaneamente com] a alta cultura protestante; com
os teólogos da Liga das Nações [quiçá modernamente, das Nações Unidas, ou
do Conselho Mundial de Igrejas (e de quem não?)] e dizer-lhes o que tanto
anseiam por ouvir e o que tanto os acalma: tendes razão! porém sob a inquie-
tante condição suplementar de que “também não a tendes”.
É aqui que se inicia nosso discurso “em parte com um pouco mais de
ousadia” [e começa a manifestar-se nosso] premente interesse em que não seja-
mos silenciados.
[Não valeria a pena seguir pelo difícil caminho das opções decisivas] se
ao falarmos sobre Deus [isto é, se em nossa teologia, nossa pregação e nosso
testemunho] apenas pretendêssemos consolar-nos e nos ajudar [ou nos animar,
807
15, 14-16 O Apóstolo e a Comunidade
808
O Apóstolo e a Comunidade 15, 15-16
porquanto isto seria o final de todas as coisas — o que não nos devemos atrever
a tomar em nossas mãos.
Contudo, ao lado dessas considerações ordeiras, regulares [quiçá prag-
máticas], “burguesas”, existe a possibilidade absolutamente excepcional, fora
de ordem, irregular, — a possibilidade “revolucionária” de cometer infração.
(Aliás esta possibilidade inesperada e surpreendente não existe propriamente
ao lado das alternativas normais mas — com nuanças de tragi-comédia, —
esperamos que exista [subjacente] no bojo de todas alternativas regulares. Esta
“infração” é, [na realidade a “ousadia” dai teologia que a Carta aos Romanos
comete, em seu discurso sobre Deus.
[Esta “infração”] se dá entre todas demais alternativas possíveis [e como
um caso todo especial] “por força da graça que me foi concedida por Deus, na
ministração do seu Evangelho como pregador de Cristo Jesus aos gentios a fim
de constituírem oferta aceitável e santificada pelo Espírito Santo”.
É [portanto], caso excepcional, não regular, quer dizer, é “um caso revo-
lucionário”.
Ora, também aqui se trata apenas de analogia! Sempre apenas parábola.
A teologia trata da graça do “Momento Absoluto” servindo-se da dialética
voraz do “tempo” e da “eternidade” com a qual as demais ciências souberam
colocar-se em segurança — com mais ou menos sorte, pois esta dialética ame-
açou a todos. Na conta que esta dialética abre, figura o seu posto, que — aliás
— não é posto nenhum pois a impossível possibilidade divina ameaça desfazer
a conta a todo e qualquer momento. Este posto, [lembrando sempre que estamos
analisando o teor da “Carta aos Romanos,] é o serviço sacerdotal, [é o ministé-
rio] prestado aos gentios, ao qual [o Apóstolo] está votado, dirigindo-se a de-
terminados indivíduos — visíveis, historicamente existentes, concretos, — a
fim de ensinar-lhes que cada um deles é o um que está invisível e desnudo
perante Deus. [Isto é Teologia].
Este ensinamento se destina ao gentio, isto é, ao gentio que há no próprio
gentio e também naquele que não é gentio. O que interessa nesse ensino é, exclu-
sivamente, a pessoa na medida em que ela pode e deve ser trazida a Deus, como
“sacrifício”; [interessa] exclusivamente a santificação da [pessoa] pelo Espírito
Santo, o rompimento de suas algemas, sua redenção, sua liberdade em Deus.
É um empreendimento que, absolutamente, não é prático e que está to-
talmente fora de [qualquer] conceituação religiosa porque trata do aspecto usu-
al e objetivo de todos anseios e do sentido (que vai além!) de toda religião.
Com a maior previdência [possível] e com a mais alta consciência dos
resultados, a teologia precisa, todavia, proceder sem a mínima intenção [de
qualquer espécie] e não pode aceitar qualquer resultado eventual, como tal; até
809
15, 15-16 O Apóstolo e a Comunidade
Vs. 17 a 21 Tenho pois minha glória em Cristo Jesus, a sabe, perante Deus.
Porquanto não me disporia a falar de coisas que Cristo não houvesse
realizado por meu intermédio, para trazer os gentios à obediência, por
palavras e obras, por força de sinais e maravilhas, pelo poder do Espírito
810
O Apóstolo e a Comunidade 15, 15-21
811
15, 17-21 O Apóstolo e a Comunidade
812
O Apóstolo e a Comunidade 15, 22-23
Vs. 22 a 29 Por isso fui reiteradamente impedido de ir até vós, agora porém,
que não tenho campo nestas paragens e porque há muitos anos tenho pe-
dido para ir ter convosco e seguir viagem para Espanha, espero ver-vos de
passagem e encontrar entre vós companheiros para seguir até lá, — de-
pois de eu me haver recreado um pouco convosco. Contudo, agora viajo
para Jerusalém.
As igrejas de Macedônia e Acáia deliberaram enviar um auxílio em
beneficio dos necessitados entre os santos de Jerusalém. Elas o resolve-
ram e lhes devem isso pois se os gentios receberam o auxílio deles nas
coisas espirituais, são seus devedores para lhes servir também nas coisas
exteriores. Quando eu houver resolvido isto e lhes houver entregue com
segurança o produto [da coleta] então irei à Espanha passando por vós
para que quando eu aí chegai; seja na plenitude da graça de Cristo.
Vs. 30 a 33 Admoesto-vos porém, irmãos, por nosso Senhor Jesus Cristo e pelo
amor do Espírito Santo, que batalheis ao meu lado, orando por mim a
Deus para que eu seja salvo dos infiéis da Judéia e que meu ministério seja
813
15, 22-23 e 16, 1-16 O Apóstolo e a Comunidade
bem aceito pelos santos de Jerusalém, para que então eu chegue a vós com
alegria e, se Deus assim quiser recobre ânimo convosco.
O Deus da paz seja com todos vós. Amém.
814
O Apóstolo e a Comunidade 16, 1-16
815
16, 17-20 O Apóstolo e a Comunidade
816
O Apóstolo e a Comunidade 16, 21-24
817
15, 14-23 e 16, 1-24 O Apóstolo e a Comunidade
818
O Apóstolo e a Comunidade 15, 14-23 e 16, 1-24
819
15, 14-23 e 16, 1-24 O Apóstolo e a Comunidade
820
...e, demais disto, minha filha, atente:
“Não há limite para fazer livros,
e o muito estudar enfado é da carne.
(Eclesiastes).
maio, 1981
821
ÍNDICES
823
CITAÇÕES BÍBLICAS
ÍNDICE 1
CHAVE:
18: 384; (10) 534; (17-19) 207
Indica: Citaçao do cap. 18 na pág. 384 e dos respectivos versículos, (10)
na pág. 534 e (17-19) na pág. 207.
Citações sucessivas de um mesmo capítulo são separadas por; e páginas
sucessivas de uma mesma citação são separadas por vírgula; s e ss indicam
“seguinte” e “seguintes” (em todos os índices).
Índice 1A
GÊNESIS 7: (2) 526
Cap. 11: (26) 508 9: (16) 545
3: (13) 393; (15) 192; (17) 508; 13: (14) 39
(22) 268 16: (3) 396
12: (1-3) 220; (2-3) 192; (7) 220 19: (17) 599
13: (4) 127; (16) 220 20: (13-27) 761
15: (1) 553; (1 ss) 220; (5) 224; 25: (17-21) 158; (22) 158
(6) 149; 187; 199; 210 33: (16-20) 543; (21-23) 544
17: (5) 187; 217; 219; (10) 199;
(17) 225; LEVÍTICO
18: 384; (10) 534; (17-19) 207 Cap. 16: (14-15) 158
21: (12) 532 18: (5) 579, 581; (15) 579
22: (18) 203 19: (18) 758
25: (23) 536 26: (12) 120
28: (17) 62
32: (25) 539; (36) 531 NÚMEROS
Cap. 7: (89) 158
ÊXODO
Cap. 3: (2) 259; (6 e 11) 62; (13-15) DEUTERONÔMIO
497; (14) 39; (14-15) 505 Cap. 3: (25) 725
4: (24-26) 552 5: (17) 761
825
Citações Bíblicas
6: (5) 111, 503; (13) 506 42: (3) 154; (6) 154; (7) 131; (7-
10: (17) 617 10) 494
18: (4) 628
30: (14) 585
32: (12-14) 580; (21) 598; (43) SALMOS
802 Cap. 5: (10) 129
8: (5) 270
JOSUÉ 10: (7) 129
Cap. 10: (12) 138 14: (1-3) 129; (7) 641
18: (50) 802
I SAMUEL 19: (1-4) 176; (4) 597
Cap. 3: (1) 765; (9) 364 22: (5-6) 247
4: (4) 158 25: (20) 247
12: (22) 606 30: (5) 620
32: 196; (1-5) 193
II SAMLEL 36: (2) 129
Cap. 6: (2) 158 (16ss) 710 39: 401
44: (22) 503
I REIS 51: 114; (4-6) 119; (10) 73; (17)
Cap. 19: (9-14) 556; (10) 607; (14) 344
607; (18) 608 62: (1) 638 (10-13) 85
69: (9) 801
II REIS 80: (1-2) 158
Cap. 22: 528 82: (6) 435
23: 528 86: (11) 600
90: (9) 762
JÓ 95: (7-8) 766
Cap. 3: (23) 492 103: (14) 303
6: (4) 492 104: (28-29) 496
7: (1) 492; (12) 492 106: (20) 62
9: 134; (2-3) 133; (11-21) 135; 116: (10-14) 119; (13-14) 119
(33) 492 117: 802
139: (1-12) 452; (12) 245
14: (4) 129 140: (4) 129
19: (29) 492 143: 134; (2) 133
23: 130
31: 130 PROVÉRBIOS
38: 131 Cap. 3: (4) 722
40: 131 (4) 133; (6) 81; (7) 131 24: (12) 85
41: (11) 651 25: (21-22) 726
826
Índice 1A
ECLESIASTES AMÓS
Cap. 12: (12-13) 821 Cap. 7: 219
ISAÍAS HABACUQUE
Cap. 1: (9) 554; (18) 142 Cap. 2: (1-3) 43; (4) 38, 47, 149
6: (5) 391
8: (14) 569 MALAQUIAS
10: (22-32) 554 Cap. 1: (2-3) 538
11: (6-9) 510; (10) 802
27: (9) 641 MATEUS
28: (16) 569, 586 Cap. 3: (5-9) 220; (9) 205
29: (16) 550 4: (6-7) 440; (10) 386, 506
40: 641; (13) 651 5: 227; (11-12) 24; (17ss) 581;
42: (2-3) 801 (39) 93
45: (9) 550; (23) 651 6: (6) 112
49: (4) 285 7: (1) 786; (35) 76
52: (5) 102; (13 ss) 580; (15) 9: (2) 315; (5) 315
811 10: (7) 613; (28) 613; (34ss) 689
53: 580; 801; (1) 594; (4) 398; 11: (1-4) 157; (5-6) 157; (25ss)
(5) 398; (10-11) 286 679
55: (11) 118 12: (30) 108
59: (7-8) 129; (20) 635; 641 16: (17) 147; (19) 172
64: (7) 550
65: (1) 598; (2) 599 17: (5) 174; (26) 174
18: (7) 791; (18) 172
JEREMIAS 19: (16ss) 670; (17) 721
Cap. 1: (6) 79 22: (37) 111; 700
7: (4) 77 24: (5) 313; (35) 140
9: (23-24) 192 25: (14-30) 114; (35-45) 729;
20: (7) 403 (37ss) 543
31: (10) 633 26: (63-68) 174
27: (39-43) 438
DANIEL 28: (19) 207
Cap. 2: (24-35) 157
MARCOS
OSÉAS Cap. 1: (11) 442
Cap. 2: (1) 554; (23) 554 3: (29) 430
8: (34) 48; 96
JOEL 10: (17-22) 103; (18) 408
Cap. 2: (32) 589 12: (28-31) 431, 648; (30) 666;
827
Citações Bíblicas
828
Índice 1A
GÁLATAS
Cap. 1: (11-12) 812; (16-17) 812 HEBREUS
2: (2) 617; (9) 812 Cap. 1: 679; (1) 174; (3) 153
4: (4) 284, 360, 422; (9) 316 2: (7) 270
5: (5) 145; (6) 493; (22) 460 3: (7-8) 765
6: (7-8) 97; (15) 120; (17) 301 10: (17) 310
11: 568; (5) 127; (6) 211
EFÉSIOS 12: (2) 147
Cap. 1: 227 13: (13) 450
2: (12) 514
3: (1) 403 (4) 403; (20) 798; I PEDRO
(20-21) 798 Cap. 1: (25) 140
4: (1) 403; (30) 431 3: (18) 314; (19) 251
5: (9) 460; (16) 471; (32) 636
TIAGO
FILIPENSES Cap. 2: (23) 344
Cap. 1: (15-18) 108 4: (14) 762
2: (5-11) 174; (6) 801; (6-7)
440 I JOÃO
3: (10) 301, 497; (20) 300 Cap. 5: (13-20) 174
COLOSSENSES JUDAS
Cap. 1: (13) 441; (24) 301 Cap. 1: (24-25) 798
2: (14) 360 (único)
3: (3) 154, 300; (24) 698
II TESSALONICENSES APOCALIPSE
Cap. 1: (12) 513 Cap. 1: (6) 338
2: (7) 636 2: 519; (9) 560
3: 519; (5) 267, 339; (20) 591
II TIMÓTEO 5: (11-13) 174
Cap. 1: (8) 403; (12) 136 7: 207
4: (8) 84; 349 20: (11ss) 80
21: 207; (1) 138; (2) 428;
TITO (22-24) 639; (27) 267
Cap. 1: (15) 790 22: (17) 149
829
CITAÇÕES BÍBLICAS
EPÍSTOLAS AOS ROMANOS
ÍNDICE 1B
831
Citações Bíblicas - Epístola aos Romanos
832
Índice 1B
833
Citações Bíblicas - Epístola aos Romanos
834
Índice 1B
835
ÍNDICE DE NOMES
ÍNDICE 2
837
Índice de Nomes
Gruenewald 182, 203, 223, 248 Lutero 15, 28, 43, 50, 59, 78s, 103,
141, 149, 161, 182, 215, 223, 244,
H 258, 264, 270, 273, 285, 293, 298,
Harnack 347, 716, 797, 799 324, 393, 397, 407, (416, it 1),
Hegel 219 423, 432, 440, 445, 446, 450, 458,
Heiler, Fr. 485, 708 462,. 465, 471, 474ss, 490, 501,
Heráclito 258 528, 568, 606, 638, 647, 649, 650,
Hiller, Ph. Fr. 160 664, 701, 703, 709, 726
Hoelz 460
Hoffmann 248, 403, 513, 796s M
Holderlin (Hoelderlin) 547 Marcion 372, 374, 389, 799
Holz, Arno 460 Marco Aurélio 651
Holtzmann, H. 297 Martensen 214, (219, item 1)
Huss, João 239 Marx 20, 23, 730
Melanchton 492
J Merechkowski 238
Jean Emile Charon 429 Miguel Ângelo 385, 388
Juelicher 274, 514, 525, 608, 632, 648, Mota, Jorge Cesar 1, 153
698, 705s, 735, 777 Mota, Otoniel 1
Mozart 672
K Muck Lamberty 547
Kant 413, 460s, 567, 575, 592, 722 Mueller, Johannes 372s
Kierkegaard 15, 27, 30, 43, 78, 148,
180, 182, 214, 219, 236, 392, 401, N
421, 433, 436s, 526, 604, 607, Nietzsche 15, 152, 215, 221, 229, 475,
679, 684, 692, 722, 759, 760, 763 477, 479, 541, 547, 640, 674, 737
Kuehl 239, 357, 364, 513, 577, 781,
798 O
Kutter 239, 339, 607 Oetinger 453, 805
Orígenes 797
L Overbeck 30, 44, 151, 165, 183, 215,
Lao Tse 394 (219, item 1), 252, 313, 392, 414,
Lenine 465, 674, 731 421, 692
Lessing 413
Lhotzky 372 P
Lichtenberg 413 Platão 54, 117, 176, 223, 434, 451
Lietzmann 236, 247, 265, 328, 451, Plotino 175
513s, 628, 648, 698, 796s, 815 Polícarpo 798
Ludendorff 460, 674 Poradowski, Miguel 21ss
838
Índice 2
839
ÍNDICE GERAL REMISSIVO
ÍNDICE 3
841
Índice Geral Remissivo
Conselho Mundial de Igrejas 807, 664s 619ss, 622s, 631, 541, 650s, (ver
“Creatio ex nihilo” 153 Predestinação
Crer 44 Elias 127, 556, 606s, 731
Criação do homem 175 Enoque 127
Crise 34, 40, 47, 122, 136, 161, 172, Epístola aos Romanos 2ss, 38, 648ss,
185, 233, 331 659, 677s, 679, 715, 735, 744, 772,
775, 779, 787, 792, 797s, 805s, 815
D Epístola de S.João (I) 701
Daniel 127 Eros 66, 657, 671, 699s, 706, 710, 760
Davi 127 Esaú 285, 556, (ver Igreja de Esaú)
Decisão 425 Escândalo 44, 49, 80, 89, 148, 151,
Desator (e ator) 172 155, 160
Deus 28, 29, 46, 50s, 52, 56, 97, 106, Escatologia 61(in fine), 85, 95, 137,
114, 118, 122, 124, 170s, 186s, (in fine), 154, 241, 365, 388, 527,
197, 223s, 370s, 389s, 432, 463, 579s, 590, 694, 764s
514, 541, 808, 817 Escravo 63, 77, 131
Deus de Esaú 539 Escrituração 80
Deus de Jacó 527 Esperança 32, 241, 298, 276, 482, 646,
Desconhecido, O 39, 54, 180, 221s 707
Deus (Relacionamento com) 51, 55, Esperança da Igreja 605, 610s, 613 (in
63, 66s fine), 626s, 636
Deus (Unidade de) 602 Espírito 425ss, 428s, 441ss, 450, 452,
Dia de Jesus Cristo 145, 147, 155s, 463, 482, 485ss, 668, 706
235s, 287, 365, 464, 473, 483, 494, Espírito Santo 30, 247s, 404
512, 527, 634, 647, 656, 673, 676, Espiritismo 334
755 Espiritualismo 453
Direito das Pessoas 737s, 749s, 789 Essência do cristianismo 648
Direitos Humanos 711 Ética 251 (in fine)s, 349, 460s, 464,
“Disangelho”10 506, 655, 657ss, 673, 695, 602, 807
Dogmática (de Barth) 10, 19, 89 (com. Ética cristã 718s, 720, 730 (ver 657,
1), 422s in fine)
Dor 507 Ética divina 722 (in fine)s, 801
Doxa 187 Ética negativa 713
Dualismo 274, 291, 340s, 347s Ética positiva 997s, 756s
Ética primária 657 (in fine), 668
E Ética problema da 657, 678 (comen-
Ecumenismo 22s, 41, 689, 790 tários)
Editorial 31 Ética secundária 657 (in fine), 690s
Ego 121, 248, 343 Evangelho 29, 38ss, 55, 75, 79, 96,
Eleição 32, 48 (com. 1), 82, 200, 266s, 142, 258, 346, 389, 541, 790
490ss, 534ss, 570, 609s, 612ss, Evangelho social 525
842
Índice 3
843
Índice Geral Remissivo
I Inovação 19
Idealismo 65, 94, 583, 744 Inquisidor, O Grande 307, 602ss, 737,
Ideologia 100, 113, 805 715, 792
Idolatria 24, 32, 38, 41, 49, 51ss, 65s, Instante Crítico 31s, 35, 44s, 164, 168,
124, 169 180, 191, 195, 217, 257, 292, 310,
Ídolo 51, 58, 62, 68, 423 472, 610, 623, 647, 762, 766s, 769,
Igreja 17, 90, 149s, 199ss, 206, 270, 802
515, 518, 521, 527, 529ss, a 545, Intelectualismo 658s, 606s
571, 573, 575s, 578, 581s, 584ss, Interrogação divina 390
589, 594ss, 597, 599ss, 601ss, 612, Interrogação sobre Deus 42, 264
620s, 625s, 632, 637, 640, 643, Intolerância 333s
645, 652, 663, 680s, 690, 737 Introdução 27
Igreja (Aflição da) 531, 544, 555 Ira divina 50, 55s, 63, 74, 77, 79, 83,
Igreja (Alvo da) 635s, 642s, 647 86, 89 (com. 2), 96, 114, 139, 142,
Igreja Congregação dos Santos 690s 191, 253, 328, 334, 353, 553, 787
Igreja (Coroa da) 530 Irmãos Morávios 239
Igreja Crise do Conhecimento 559ss Isaías 107 (com. 2), 129, 598
Igreja (Culpa da) 559, 597 Israel (História de) 207s, 212, 217s,
Igreja (de Esau de) 531, 570, 578, 597, 230s
614
Igreja (Esperança da) 17, 601, 611ss, J
618ss, 623, 626, 636 Jacó 285, 553 (ver “Igreja de Jacó”)
Igreja de Jacó 531, 594, 639 (in fine), Jeremias 77, 107, 182, 410
680 Jesus 137
(Igreja) Luz nas Trevas 559, 576, 592, Jesus Cristo 433s, 437s, 585s
602, 613 Jesus Deus 174
Igreja (Palavras aos de fora da) 616s, Jesus Filho de Deus 249, 284, 331,
629, 632s 433, 764
Igreja Reformada 516s, 584 Jesus histórico 29s, 112, 159, 249, 284,
Igreja (Tributação da) 511, 536 311, 764, 777
Igreja (Unidade da) 602ss, 607, 609s Jesus homem 29, 112, 145s, 148, 156,
Imaculada Conceição (Dogma da) 268 161, 174
Imagens 41, 61 Jesus nosso Senhor 29, 54
Imanência 163s, 171, 180, 214 Jesus o Cristo 30, 39, 112, 145s, 174,
Imediação 263ss, 284s, 323, 339s, 350, 433
355s, 371s, 376, 386, 388s, 433s, Jesus Profeta 249
497, 520ss, 525 Jesus Sacerdote 249
Impostos 753 Jesus Rei 249
Índia 63 Jesus (o verbo) 385, 524
Indivíduo 173, 180, 758, 762s Jó 28, 50, 54, 129s, 143, 159, 246s,
Inimigo 726s, 733s 262, 391, 401, 469, 472, 492, 498
844
Índice 3
845
Índice Geral Remissivo
846
Índice 3
Pecado 161, 179, 190, 193s, 260, 269s, Profeta 83s, 89 (com), 115, 143, 249,
280, 281s, 374, 381, 398, 400s, 435 282, 376, 381, 408
Pecado original 263s, 265 (in fine), Professor 692
287ss, 291s, 306s, 390s Profissão de fé 199, 203, 295
Pedro 172 Promessa (de Eleição) 534, 668
Perdão 42, 81s, 96, 140, 142 (in fine), Propiciação 143, 158
145, 146 (in fine), 161, 293, 307, Protestantismo 16, 18, 23, 69s, 103,
329, 331, 337, 339, 346, 348, 361, 149s, 169, 217, 334s, 345, 351, 516,
389 632, 649, 656, 667, 683, 766s, 772s,
Perturbação 655s, 661, 667 778, 792ss, 794 (in fine)s, 800, 807
Pessimismo 126, 130, 152, 243s, 328s, Protesto 756
355s, 477 Próximo 683s, 695, 700s, 703, 708s,
Pietismo 164s, 240, 392, 433, 465, 727s, 757s, 800s
525, 715s Psicologia 74, 78s, 86, 98s, 118, 129,
Poder da obediência 319s, 326 (in 147, 149, 175, 195s, 303, 399s,
fine), 328, 333 (in fine), 337s, 345, 436, 463s, 481, 785
350, 352, 360s
Q
Poder da ressurreição 289, 292, 299,
Qualificação (por Deus) 666s, 741
316, 328, 336, 345, 350, 361
Qualis ab Incepto 416s
Poder de Deus 39, 45, 50, 55, 58, 141,
Queda (de Adão) 41,88, 143, 151, 275,
345
280, 281 (in fine), 386, 390s
Policarpo 798
Questões de fôro pessoal 34
Ponto central 48, 149, 249, 257
Ponto crítico 40, 53 R
Possibilidade negativa, A grande 732ss Racional, Culto 667
Possibilidade positiva, A grande 755ss Racionalismo 432s, 575
Possibilidades negativas 712ss Radicalismo 128
Possibilidades positivas 697ss Reacionário 136, 756
Predestinação 10, 70, 90, 190, 219, Recompensa 52, 58
266, 273, 277, 280, 336s, 375, Reconciliação 157, 163
378s, 381, 383, 385s, 389s, 497, Recordação 98s, 137, 175 (com 3)
532s, 536s, 546s, 550s, 554s, 573s, Redenção 139, 143, 157, 161, 163,
577, 579, 591s, 602, 632, 667, 717, 168, 196, 224s, 263, 296, 307s,
781, 785 344, 360, 621
Prédica 160, 339, 520, 525, 562s, 692s Reforma (Religiosa) 126, 498, 528,
Prefácios de Barth 14ss, 16ss, 20s 632, 778s
Prefácio Geral 6ss Reformadores 330, 408, 416
Pregador 407 Reino das sombras 751
Prerrogativas 629s Reino de Deus (Expressões do) 31s, 35,
Profecia 28, 143, 150, 273, 433, 458s, 39, 75s, 92, 113, 115, 131, 136s,
522s, 566 138s, 150, 154, 159, 217s, 241s,
847
Índice Geral Remissivo
257331s, 336, 342, 438, 461, 515s, Revolução 734ss, 744ss, 754s
565, 591, 614, 677, 682s, 713s, Riquezas 84ss
724s, 737, 763, 766, 777s, 791, 801s Ritos 295s
Reino do Mal 756 Romantismo 60s, 77s, 135s, 214s, 238,
Religião 16, 31s, 39s, 45s, 49, 52, 54s, 254, 261, 215s, 298s, 334s, 338s,
61, 64s, 76s, 81, 83, 85s, 89, 92s, 345s, 400s, 412s, 433s, 451s, 523s,
94s, 100s, 125s, 128s, 131, 135s, 547s, 566s, 618s, 682s
138s, 143s, 145s, 147s, 150s, Russianismo 339s, 715s
164ss, 170s, 180, 194s, 197s,
201ss, 212ss, 281ss, 284s, 290s, S
293s, 301s, 327s, 330s, 333s, 337, Sábado 69
345, 350s, 353ss, 387, 391s, 394, Sabedoria (Apócrifo) 550
400s, 411s, 430s, 432s, 441s, 446s, Sabedoria humana 412s
465s, 482s, 501s, 533s, 565s, 611s, Sacerdotes 690s, 752s
624s, 661s, 785s, 810 Sacramento 103, 116, 119s, 201s, 294s
Religião (limite da) 355 Sacrifício 249s, 667s
Reliião profética 777s Salmista 129, 143
Religião (realidade da) 400 Salmos 566, 726
Religião (significação da) 145, 376 Salomão 28, 54
Religiosidade 45, 102, 281s, 322s, Salvação 87s, 106, 113, 117s, 123s,
325s, 327ss, 345s 143s, 150s, 244s, 307s, 622, 763s
Religioso social 269s, 525, 567s, 733s, Salvação universal 614s
778s Sangue 157s, 163s, 169s, 191s
Reminiscência do Éden 175 (com 3) Santa Ceia 102s
Renúncia 163ss, 182s, 194s, 202s, Santidade divina 53s, 240s
204s, 223s, 295s, 330s Santidade humana 31s, 39s, 58s, 68s,
Resposta de Deus 295s, 330s 77s, 89, 103, 202s
Ressurreição 30s, 34, 41, 50, 141, 145, Santificação 341s, 345s, 348s, 667s,
178, 191, 223, 231, 234, 354, 361, 684s, 712, 767s (vos “Nova Cria-
368, 389, 662, 714 tura”)
Retidão divina 73, 113, 121s, 139ss São Francisco 78, 107, 357
(ver “Justiça Divina”) Satanás 709, 730, 790
Retidão humana 73, 85ss, 89, 93s, Satanás, Sinagoga de 560
102ss, 114s, 126s, 129s, 135s, Secreto 73, 95s, 108s, 114, 127s
163s, 188s, 269s, 341s, 345ss Semelhança 34s, 50, 62, 91s, 114,
Revelação 29s, 49s, 87s, 90, 98s, 114s, 131s, 144s, 162s, 183s, 200s, 252,
118s, 131, 134s, 138s, 193s, 146s, 265s, 300, 311, 323s, 339s, 344s
197s, 200s, 340ss, 347s, 375, 433s, Septuaginta (LXX) 119, 135, 158, 193
439s, 514s, 532s, 537s, 551s, 562s, Ser Humano 41
578, 605s, 636s, 639s, 653ss Servir 692
Revolta 53 Sião 641
848
Índice 3
U
T Unidade 688
Tábuas da lei 700, 702, 714 Universalidade 144ss
Temas centrais 48, 249
Temas da Epístola 813 (ver “Centrum
Paulinum”) V
Tema da Igreja 535, 627, 641, 646 Verbo (Palavra) 140, 148ss, 155s,
Temor do Senhor 128s, 131, 437 159ss, 195, 207
Templo (Purificação do) 643 Verdade 135, 142, 145s, 155, 172, 179,
Tempo aceitável 591 186, 218, 450s, 570s, 577
Temporalidade 706ss, 711s Vida 146, 154, 794
Tempos 765s Virgem (Mãe) 69, 421s
Teocracia 737 Vocação 79, 99, 107, 117
Teodicéia 243, 469s Vontade divina 35, 107, 209
Teologia 16, 98s, 363s, 386, 498s, Voz (de Deus) 54, 82, 119, 139, 159,
648s, 692s, 696s (com it 5), 679s, 176, 209, 233
809s
Teologia moderna (1925) 346, 437ss, W
631s, 667ss, 716ss, 767, 777, 790ss Wittenberg 779
Teosofia 214s
Testamento (Antigo) 28, 149, 158, 183, Z
193, 208, 218, 374, 526, 641, 650 Zacarias 194
849
ÍNDICE GERAL PROGRESSIVO
ÍNDICE 4
Capítulo I .................................................................................................................. 27
Paulo a seus Leitores (1, 1 - 7) ..................................................................... 27
Comentários: 1, 1-7 .......................................................................................... 32
Questões de Fôro Pessoal (1, 8-15) ............................................................ 34
Comentários: 1, 8-15 ........................................................................................ 37
O Tema da Epístola (1, 16-17)...................................................................... 38
Comentários: 1, 16-17 ...................................................................................... 48
A Noite .................................................................................................................. 49
A Origem (1, 18 - 21) ...................................................................................... 49
Comentários: 1, 18-21 ...................................................................................... 57
A Atuação da Noite (1, 22 - 32) ................................................................... 59
Comentários: 1, 22-32 ...................................................................................... 68
Capítulo II ................................................................................................................ 73
O Juiz (2, 1-13) .................................................................................................. 73
Comentários: 2, 1-13 ........................................................................................ 89
O Julgamento (2, 14-29) ................................................................................. 90
Comentários: 2, 14-29 .................................................................................... 106
851
Índice Geral Progressivo
852
Índice 4
2ª Parte
QUALIS AB INCEPTO .......................................................................................... 421
853
Índice Geral Progressivo
854