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O

SUPREMO PROPÓSITO DE DEUS


Exposição sobre Efésios 1:1-23

D. M. LLOYD- JONES

PUBLICAÇÕES EVANGÉLICAS SELECIONADAS Caixa Postal


1287 01059-970 - São Paulo - S.P.

Título original:

God’s Ultimate Purpose

Editora:

The Banner of Truth Trust

Primeira edição em inglês:

1978

Copyright:

Lady E. Catherwood

Tradução do inglês:

Odayr Olivetti

Revisão:

Antonio Poccinelli Capa:

Ailton Oliveira Lopes

Primeira edição em português:

1996
Impressão:

Imprensa da Fé

PREFÁCIO

Este volume consiste de sermões pregados nos domingos de manhã no curso do


meu ministério regular na Capela de Westminster, Londres, durante 1954 - 1955.
Alguns leitores podem estar curiosos quanto a por que eles não apareceram no
Registro de Westminster (“The Westminster Record”) e por que foram
precedidos, na forma de livro, por meus sermões sobre Efésios, capítulo 2, sob o
título God’s Way of Reconciliation, e sobre o capítulo 5:18 até o fim
desta mesma Epístola, que apareceram sob os títulos Life in the Spirit”, The
Christian Warfare e The Christian Soldier. 1

A explicação é que eu achei que os temas tratados naqueles volumes eram de


relevância mais imediata. Rendi-me também à pressão que foi exercida sobre
mim por aqueles que achavam que havia urgente necessidade de orientação
baseada nas Escrituras sobre as questões gerais da paz entre as nações, do
problema do racismo e dos crescentes problemas na área das relações
entre maridos e esposas, pais e filhos, senhores e servos, e também
sobre problemas criados pelas seitas, pelas religiões orientais e pelo
novo interesse pelo oculto.

Estou pronto a confessar que, ao adotar este procedimento, bem pode ser que me
pese a culpa de permitir que o meu coração pastoral governasse o meu
entendimento teológico, e especialmente o meu entendimento do invariável
método do apóstolo Paulo. A minha única defesa é que naqueles outros volumes
eu salientei repetidamente que só se pode entender o ensino à luz da
grande doutrina que o apóstolo formula neste primeiro capítulo. E agora espero
fazer plena reparação neste volume, e, “querendo Deus”, nos futuros volumes
sobre os capítulos 3, 4 e 5:1-18.

O nosso mundo está num estado de completa confusão e, que pena, dá-se o
mesmo com a Igreja Cristã e com muitos cristãos individuais. Será ocioso
chamar pessoas para ouvir-nos, se nós mesmos estivermos inseguros quanto ao
que queremos dizer com as expressões “cristão” e “Igreja Cristã”. Neste
primeiro capítulo desta Epístola aos Efésios, o apóstolo trata dessas mesmas
questões de maneira a mais sublime, fazendo-nos lembrar desde o início
que fomos abençoados “com todas as bênçãos espirituais nos lugares celestiais
em Cristo”. Ele prossegue, dizendo que essa verdade se refere aos crentes judeus
e gentios, que o poder da ressurreição está operando em cada um de nós e na
Igreja, que é o Seu corpo. A Epístola aos Efésios é a mais “mística” das
Epístolas de Paulo, e em nenhum outro lugar a sua mente inspirada se eleva a
maiores alturas. Não há maior privilégio na vida do que ser chamado para expor
o que Thomas Carlyle denominou “infinidades e imensidões”! Só posso orar e
esperar que Deus abençoe os meus indignos esforços, e use-os para ajudar
muitos a se elevarem à altura da nossa “alta”ou “soberana vocação em Cristo
Jesus” e libertar aqueles cujas vidas até aqui estão “presas a frivolidades e
misérias”.

Devo agradecer à Srta. Jane Ritchie, que bondosamente fez a transcrição do


original, e também, como sempre, à Sra. E. Burney, ao Sr. S.M. Houghton e à
minha esposa pela costumeira ajuda e encorajamento que me deram.

Londres, agosto de 1978 D.M.Lloyd-Jones

ÍNDICE

30. Sabedoria e Revelação...................................................335

O SUPREMO PROPÓSITO DE DEUS

Efésios 1: 1-23

1. Paulo, apóstolo de Jesus Cristo, pela vontade de Deus, aos santos que estão
em Efeso, e fiéis em Cristo Jesus.

2. A vós graça, e paz da parte de Deus nosso Pai e da do Senhor Jesus Cristo.

3. Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o qual nos abençoou
com todas as bênçãos espirituais nos lugares celestiais em Cristo;

4. Como também nos elegeu nele antes da fundação do mundo, para que
fôssemos santos e irrepreensíveis diante dele em caridade;

5. E nos predstinou para filhos de adoção por Jesus Cristo, para si mesmo,
segundo o beneplácito de sua vontade,
6. Para louvor e glória da sua graça, pela qual nos fez agradáveis a si no
Amado.

7. Em quem temos a redenção pelo seu sangue, a remissão das ofensas,


segundo as riquezas da sua graça

8. Que ele fez abundar para conosco em toda a sabedoria e prudência;

9. Descobrindo-nos o mistério da sua vontade, segundo o seu beneplácito, que


propusera em si mesmo,

10. De tornar a congregar em Cristo todas as coisas, na dispen-sação da


plenitude dos tempos, tanto as que estão nos céus como as que estão na terra;

11. Nele, digo, em quem também fomos feitos herança, haven-do sido
predestinados, conforme o propósito daquele que

faz todas as coisas, segundo o conselho da sua vontade;

12. Com o fim de sermos para louvor da sua glória, nós, os que primeiro
esperamos em Cristo;

13. Em quem também vós estais, depois que ouvistes a palavra da verdade, o
evangelho da vossa salvação; e, tendo nele também crido, fostes selados com o
Espírito Santo da promessa.

14. O qual é o penhor da nossa herança, para redenção da possessão de Deus,


para louvor da sua glória.

15. Pelo que, ouvindo eu também a fé que entre vós há no Senhor Jesus, e a
vossa caridade para com todos os santos,

16. Não cesso da dar graças a Deus por vós lembrando-me de vós nas minhas
orações;

17. Para que o Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória, vos dê em
seu conhecimento o espírito de sabedoria e de revelação;

18. Tendo iluminados os olhos do vosso entendimento, para que saibais qual
seja a esperança da sua vocação, e quais as riquezas da glória da sua herança nos
santos;

19. E qual a sobreexcelente grandeza do seu poder sobre nós, os que cremos,
segundo a operação da força do seu poder,

20. Que manifestou em Cristo, ressuscitando-o dos mortos, e pondo-o à sua


direita nos céus.

21. Acima de todo o principado, e poder, e potestade, e domínio, e de todo o


nome que se nomeia, não só neste século, mas também no vindouro;

22. E sujeitou todas as coisas a seus pés, e sobre todas as coisas o constituiu
como cabeça da igreja,

23. Que é o seu corpo, a plenitude daquele que cumpre tudo em todos.

INTRODUÇÃO

“Paulo, apóstolo de Jesus Cristo, pela vontade de Deus, aos santos que estão
em Efeso, e fiéis em Cristo Jesus.’’ - Efésios 1:1

Ao abordarmos esta Epístola, confesso francamente que o faço com considerável


arrojo. É muito difícil falar dela de maneira comedida por causa da sua grandeza
e da sua sublimidade. Muitos tentaram descrevê-la. Um escritor a descreveu
como “a coroa e clímax da teologia paulina”. Outro disse que ela é “a
destilada essência da religião cristã, o mais autorizado e o mais
consumado compêndio da nossa santa fé cristã”. Que linguagem! E de
maneira nenhuma é exagerada.

Longe de mim querer competir com os que assim tem procurado descrever esta
Epístola, mas me parece que qualquer descrição geral que dela se faça deve
observar de modo especial certas palavras que lhe são características, e que o
apóstolo usa mais vezes nela, talvez, do que em qualquer outra Epístola. O
apóstolo fica maravilhado ante o mistério, as glórias e as riquezas do método
de redenção de Deus em Cristo. Como eu mostrarei, estas são as palavras que ele
usa com muita freqüência - a glória disso, o mistério e as riquezas do método de
redenção de Deus em Cristo!

Outra maneira pela qual se pode expor a característica peculiar desta grande
Epístola é mostrar que esta é uma carta na qual o apóstolo olha para a salvação
cristã da vantajosa posição dos “lugares celestiais”. Em todas as suas Epístolas
ele expõe e explica o caminho da salvação; ele trata de doutrinas específicas, e
de discussões ou controvérsias que tinham surgido nas igrejas. Mas o
peculiar traço e característica da Epístola aos Efésios é que aqui o
apóstolo parece estar como ele mesmo diz, nos “lugares celestiais”, e
dessa posição especial ele está contemplando o grandioso panorama da salvação
e da redenção. O resultado é que nesta Epístola há muito pouca controvérsia; e
isso porque o seu grande interesse foi dar aos Efésios, e a outros aos quais a
carta é dirigida, uma visão panorâ-

mica desta maravilhosa e gloriosa obra de Deus em Jesus Cristo, nosso Senhor.

Da Epístola aos Romanos Lutero diz: “ela é o documento mais importante do


Novo Testamento, o evangelho em sua expressão mais pura”, e em muitos
aspectos eu concordo que não existe exposição mais pura e mais clara do
evangelho do que na Epístola aos Romanos. Aceitando isso como certo, eu me
aventuro a acrescentar que, se a Epístola aos Romanos é a expressão mais pura
do evangelho, a Epístola aos Efésios é a expressão mais sublime e
mais majestosa dele. Aqui o ponto de vista é mais amplo e maior. Há declarações
e passagens nesta Epístola que realmente frustram qualquer tentativa de
descrição. O grande apóstolo empilha epíteto sobre epíteto, adjetivo sobre
adjetivo, e ainda assim não consegue expressar-se adequadamente. Há passagens
no cápitulo primeiro, e outras no capítulo 3, especialmente mais para o fim dele,
em que o apóstolo é transportado acima e além de si próprio, e se perde e
se abandona numa explosão de adoração, louvor e ação de graças. Reitero, pois,
que em toda a extensão das Escrituras não há nada que seja mais sublime do que
esta Epístola aos Efésios.

Comecemos procurando ter uma visão geral dela, pois só poderemos captar e
entender verdadeiramente as particularidades se fizermos uma firme tomada do
conjunto todo e da exposição geral. Por outro lado, aqueles que imaginam que ao
fazerem uma tosca divisão da mensagem desta Epístola de acordo com os
capítulos terão tratado dela adequadamente, exibem a sua ignorância. É quando
passamos aos detalhes que descobrimos a riqueza; um sumário da sua mensagem
é muito útil como começo, porém é quando chegamos às declarações
particulares e às palavras individuais que encontramos a glória real exposta à
nossa maravilhosa contemplação.
O tema geral da Epístola é proposto logo no seu primeiro versículo. Isso é
característico do apóstolo; ele não pôde refrear-se, e parte imediatamente para o
seu tema. “Paulo, apóstolo Jesus Cristo, pela vontade de Deus” - aí está! O tema
da Epístola, primeiramente e acima de tudo, é Deus - Deus o Pai. “A vós graça, e
paz da parte de Deus nosso Pai e da do Senhor Jesus Cristo. Bendito o Deus e
Pai de nosso Senhor Jesus Cristo.” O apóstolo Paulo sempre começa dessa
maneira, e é assim que todo cristão deve começar. Esse é o tema que domina
tudo o mais. Nunca houve perigo de que

Paulo se esquecesse disso, pois mais que ninguém ele sabia que tudo é de Deus e
por Deus, e que a Ele se deve dar glória para todo o sempre.

A Bíblia é o livro de Deus, é uma revelação de Deus, e o nosso pensamento


sempre deve começar com Deus. Grande parte do problema da Igreja hoje deve-
se ao fato de que somos muito subjetivos, muito interessados em nós mesmos,
muito egocêntricos. Esse é o erro peculiar ao presente século. Tendo-nos
esquecido de Deus, e havendo—nos tornado tão interessados em nós mesmos,
tornamo--nos miseráveis e infelizes, e passamos o tempo em “frivolidades
e misérias”. Do princípio ao fim, a mensagem da Bíblia tem o propósito de
levar-nos de volta a Deus, humilhar-nos diante de Deus e habilitar-nos a ver a
nossa verdadeira relação com Ele. E esse é o grande tema desta Epístola; ela nos
põe face a face com Deus, com o que Deus é e com o que Deus fez e faz; toda
ela salienta a glória e a grandeza de Deus - Deus, o Eterno, Deus sempiterno,
Deus sobre todos - e a indescritível glória de Deus. Este tema grandioso aparece
constantemente nas diversas frases que o apóstolo emprega. Aqui vão exemplos
- “E nos predestinou para filhos de adoção por Jesus Cristo, para si mesmo,
segundo o beneplácito da sua vontade”; “descobrindo-nos o mistério da sua
vontade, segundo o seu beneplácito, que propusera em si mesmo”; “em quem
também fomos feitos herança (ou “obtivemos uma herança”-VA
inglesa), havendo sido predestinados, conforme o propósito daquele que
faz todas as coisas, segundo o conselho da sua vontade”. Deus, o eterno e
sempiterno Deus, auto-suficiente em Si mesmo, de eternidade a eternidade, que
não necessita da ajuda de ninguém, vivo, que habita em Sua glória duradoura,
absoluta e eterna, é o grande tema desta Epístola. Não devemos começar
examinando a nós mesmos e as nossas necessidades microscopicamente;
devemos começar com Deus, e esquecer-nos de nós. Nesta Epístola somos como
que levados pela mão do apóstolo, e nos é dito que nos vai ser dada a
oportunidade de ver a glória e a majestade de Deus. Ao aproximar-nos deste
estudo, parece-me ouvir a voz que na antigüidade veio a Moisés, provinda da
sarça ardente, dizendo: “Tira os teus sapatos de teus pés; porque o lugar em que
estás é terra santa”. Estamos na presença de Deus e Sua glória; portanto,
devemos caminhar com cautela e com humildade.

Não somente isso, porém; estamos de imediato diante da soberania de Deus.


Pensem nos termos que constantemente vemos

perpassar pelas páginas das Escrituras, as grandes palavras e expressões da


verdadeira doutrina e teologia cristã. Quão pouco nos falam acerca da glória, da
grandeza, da majestade e da soberania de Deus! Os nossos antepassados
deleitavam-se com essas expressões; estas eram as expressões dos reformadores
protestantes, dos puritanos e dos pactuários. Eles tinham prazer em passar o
tempo contemplando os atributos de Deus.

Notem como o apóstolo chega de imediato a este ponto. “Paulo, apóstolo de


Jesus Cristo, pela vontade de Deus” - não por sua própria vontade! Paulo não se
chamou a si mesmo, e a Igreja não o chamou; foi Deus quem o chamou. Ele é o
apóstolo pela vontade de Deus. Ele expõe isso muito explicitamente na
Epístola aos Gálatas, onde diz: “... quando aprouve a Deus, que desde o ventre
de minha mãe me separou”. Há sempre ênfase à soberania de Deus, e quando
estivermos avançando em nosso estudo desta Epístola, a veremos sobressair em
toda a sua glória em toda parte. Foi Deus que escolheu em Cristo todo aquele
que é cristão; foi Deus que nos predestinou. Faz parte do propósito de Deus que
sejamos salvos. Jamais haveria salvação alguma, se Deus não a planejasse e não
a pusesse em execução. Foi Deus que “amou ao mundo de tal maneira”; foi Deus
que “enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei”. É tudo de Deus e
de acordo com o Seu propósito. É “segundo o conselho da sua vontade” que
todas estas coisas aconteceram.

Toda esta Epístola nos diz que sempre devemos contemplar a salvação desta
maneira. Não devemos partir de nós e depois ascender a Deus; devemos partir da
soberania de Deus, Deus sobre todos, e depois descer a nós. Ao caminharmos
através da Epístola, veremos que não somente a salvação é inteiramente de Deus
em geral; também é de Deus em particular. Vejam, por exemplo, o grande tema
que Paulo desenvolve no capítulo 3. A tarefa especial que lhe fora confiada
como apóstolo é: “demonstrar a todos qual seja a dispensação do mistério, que
desde os séculos esteve oculto em Deus, que tudo criou” (“por Jesus Cristo”,
VA). O mistério é que os gentios sejam co-herdeiros com Jesus. Foi esse o
“mistério” que noutras eras não foi dado a conhecer aos filhos dos homens, e
agora é revelado aos Seus santos apóstolos e profetas pelo Espírito.

Deus domina todas as coisas; o fator tempo em particular. Quando vocês lêem o
Velho Testamento, alguma vez perguntaram por que foi que todos aqueles
séculos tiveram que passar antes que de

fato o Filho de Deus viesse? Por que foi que tão longo tempo somente os
israelitas, os judeus, tiveram os oráculos de Deus e o entendimento de que há
somente um Deus vivo e verdadeiro? A resposta é que é Deus quem decide o
tempo em que tudo deve acontecer, e assim Ele revela esta verdade que até aqui
tinha sido secreta. Este fato é apenas outra ilustração da soberania de Deus. Ele
determina o tempo para que as coisas todas aconteçam. Deus é sobre todos,
dominando sobre todos, e marcando o tempo de cada acontecimento, em Sua
infinita sabedoria. Numa época como esta, não sei de nenhuma outra coisa que
seja mais consoladora e que dê mais segurança do que saber que o Senhor
continua reinando, que Ele continua sendo o soberano Senhor do universo, e
que, apesar de que “se amotinam as gentes, e os povos imaginam coisas
vãs”, Ele estabeleceu o seu Filho sobre o Seu santo monte de Sião (Salmo

2). Virá o dia em que todos os Seus inimigos lamberão o pó, virão a ser o estrado
dos Seus pés e serão humilhados diante dEle, e Cristo será “tudo em todos”.
Dessa maneira a soberania de Deus é ressaltada na introdução desta Epístola e
repetida até o fim dela, porque é uma das doutrinas cardinais, sem a qual
realmente não entendemos a nossa fé cristã.

Depois, tendo dito isso, o apóstolo passa a tratar do mistério de Deus, Sua
grandeza e a majestade da Sua soberania. A palavra “mistério” é utilizada seis
vezes nesta Epístola aos Efésios, mais vezes, portanto, do que em suas outras
Epístolas. Assim, estou justificado em dizer que este é um dos mais importantes
temas desta Epístola, o mistério dos procedimentos de Deus com relação a nós, o
mistério da Sua vontade. Nós o vemos neste capítulo primeiro - “Descobrindo-
nos o mistério da sua vontade, segundo o seu beneplácito, que propusera em si
mesmo”. Pergunto se sempre compreendemos isso como deveríamos. É de
temer-se que, às vezes, os cristãos abordam estas grandes verdades como se as
compreendessem com o seu próprio entendimento. Jamais pensemos assim. Se
você começar a imaginar que pode entender a mente e a vontade de Deus, estará
condenado ao fracasso, pois há mistérios aos quais nenhuma mente humana pode
fazer frente. “Grande é o mistério da piedade”; ninguém o pode entender. E se
você tentar entender os procedimentos de Deus com respeito ao homem e ao
mundo, garanto-lhe que você se verá tão confuso que sentirá acabrunhado e
infeliz. Na verdade você poderá acabar quase perdendo a fé e tendo um
sentimento de rancor contra Deus. “O mistério da sua vontade”! Ele é

infinito e eterno, e nós somos finitos e pecadores, e não podemos ver nem
entender.

Se você se sentir tentado a dizer que Deus não é justo, aconselho-o a, com Jó,
pôr a mão na boca, e tratar de compreender de quem você está falando.
Certamente, fazer objeção ao mistério é quase negar que sequer somos cristãos.
Haverá algo mais maravilhoso, mais encantador, mais glorioso para o cristão do
que contemplar os mistérios de Deus? Espero que ao aproximarmos
destes grandes temas, você já esteja cheio de um sentimento de
divina expectação, e aspire a adentrá-los cada vez mais. Um dos aspectos mais
maravilhosos da vida cristã é que nela você está sempre avançando. Você pensa
que já o conhece todo, e então dobra uma esquina e de repente vê algo que não
conhecia, e vai adiante, sempre adiante. É por isso que o apóstolo escreve acerca
das “riquezas da sua graça”; é o glorioso mistério que a Ele aprouve revelar-nos
por Seu Santo Espírito. Mas não permita Deus que alguma vez imaginemos que
seremos capazes de entender isso tudo no sentido de abarcá-lo totalmente. Meu
interesse não é somente aumentar o nosso conhecimento intelectual de Deus, e
sim desvendar “o mistério” dos Seus caminhos, a fim de que possamos vê-lo
e adorar o Senhor, e confessar a nossa ignorância, pequenez e fragilidade, e Lhe
agradecer o mistério da Sua santa vontade.

O próximo tema é a graça de Deus; e esta palavra é utilizada treze vezes nesta
Epístola. O apóstolo a fica sempre repetindo. No versículo dois ele a coloca na
frase inicial: “A vós graça, e paz da parte de Deus nosso Pai e da do Senhor
Jesus Cristo”. Este é o tema que, acima de tudo mais, é desenvolvido nesta
Epístola - a estupenda graça de Deus para com o homem pecador,
providenciando para ele salvação e redenção. “A graça de Deus”; sim, e
abundante em particular - “as riquezas da sua graça”. Essa idéia acha-se
aqui mais do que em qualquer outro lugar - “as riquezas da sua graça”! “Bendito
o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o qual nos abençoou com toda as
benção espirituais nos lugares celestiais em Cristo. “Nesta Epístola nos é dado
um vislumbre das riquezas, da abundância, da superabundância da graça de Deus
para conosco; e se não estivermos ansiosos por um exame e investigação com
a mais ávida antecipação possível, é duvidoso se somos cristãos. A maioria das
pessoas se interessa por valores e riquezas; gostamos de ir a museus e a outros
lugares onde se guardam e se armazenam coisas preciosas, gostamos de ver jóias
e pérolas; ficamos em filas e

pagamos pelo direito de ver tais valores e riquezas. Gabamo-nos disso como
indivíduos e como nações. Repito, pois, que o supremo objetivo desta Epístola é
fazer-nos entrar e olhar, e ter um vislumbre das riquezas, das superabundantes
riquezas da graça de Deus. Tudo começa com Deus, Deus o Pai, que é sobre
todos.

Mas tendo dito isso, paseemos para o que invariavelmente vem em seguida em
todas as Epístolas deste apóstolo, na verdade o que sempre vem em segundo
lugar em toda a Bíblia - o Senhor Jesus Cristo. “A vós graça, e paz da parte de
Deus nosso Pai e da do Senhor Jesus Cristo”. Vocês notaram quantas vezes
ocorre o nome, o nome que era tão caro e bendito para o apóstolo? “O apóstolo
de Jesus Cristo”, “A vós graça, e paz de nosso Senhor Jesus Cristo, o qual nos
abençoou com todas as bênçãos espirituais nos lugares celestiais em Cristo”, e
assim continua. No versículo primeiro Paulo nos diz logo de início que ele é um
“apóstolo de Jesus Cristo”. Soa quase ridículo ter que dizê-lo, e, todavia, é
essencial salientar que não há evangelho nem salvação fora de Jesus Cristo. É
necessário porque há pessoas que falam de cristianismo sem Cristo. Falam
em perdão, mas o nome de Cristo não é mencionado, pregam sobre o amor de
Deus, porém em sua opinião o Senhor Jesus Cristo não é essencial. Não é assim
com o apóstolo Paulo; não há evangelho, não há salvação sem o Senhor Jesus
Cristo. O evangelho é especialmente acerca dEle. Todos os propósitos
misericordiosos de Deus são levados a efeito por Cristo, em Cristo, mediante
Cristo, do princípio ao fim. Tudo o que Deus, em Sua vontade soberana, por
Sua infinita graça, e segundo as riquezas da Sua misericórdia e do mistério da
Sua vontade - tudo o que Deus se propôs realizar e realizou para a nossa
salvação, Ele o fez em Cristo. Em Cristo “habita corporalmente toda a plenitude
da divindade”; nEle Deus entesourou todas as riquezas da Sua graça e sabedoria.
Tudo, desde o início até o fim, é nosso Senhor Jesus Cristo e por meio dEle.
Somo chamados e escolhidos “em Cristo” antes da fundação do mundo,
somos reconciliados com Deus pelo “sangue de Cristo”. “Em quem temos a
redenção pelo seu sangue, a remissão das ofensas, segundo as riquezas da sua
graça”. (VA: “...pelo seu sangue, o perdão dos pecados...”).

Todos nós estamos interessados no perdão, mas como sou perdoado? Será
porque eu me arrependi ou tenho vivido uma vida virtuosa que Deus me vê e me
perdoa? Digo com reverência que
nem mesmo o Deus todo-poderoso poderia perdoar o meu pecado simplesmente
com base nesses termos. Há unicamente um modo pelo qual Deus nos perdoa; é
porque Ele enviou Seu Filho unigênito do céu à terra, e à agonia, à vergonha e à
morte na cruz: “Em quem temos a redenção pelo seu sangue”. Não há
cristianismo sem “o sangue de Cristo”. É central, absolutamente essencial. Sem
Ele não há nada. Não somente a Pessoa de Cristo, todavia em particular a Sua
morte, o Seu sangue derramado, o Seu sacrifício expiatório e substitutivo! É
dessa maneira, e somente dessa maneira, que somos redimidos. Nesta Epístola
Cristo é exposto como absolutamente essencial. Veremos isso quando entrarmos
em detalhes. Ele está em toda parte, tem que estar. Somos escolhidos nEle,
chamados por Ele, salvos pelo Seu sangue. Ele é a Cabeça da Igreja, como
nos lembra o capítulo primeiro. Ele está “acima de todo o principado, e poder, e
potestade, e domínio, e de todo o nome que se nomeia, não só neste século, mas
também no vindouro”. Ele é a “cabeça da igreja, que é o seu corpo, a plenitude
daquele que cumpre tudo em todos”; e Ele está à mão direita de Deus, com toda
a autoridade e poder no céu e na terra. Jesus, o nosso Senhor, é supremo; Ele é
o Filho de Deus, o Salvador do mundo. Esse vai ser o nosso tema. Você está
começando a ansiar por isso - por vê-lO, contemplá-lO em Sua Pessoa, em Seus
ofícios, em Sua obra, em tudo o que Ele é e pode ser para nós?

Então, em particular, como já estive antecipando, o tema do grande propósito de


Deus em Cristo é o tema prático desta Epístola. Vemo-lo no versículo 10: “De
tornar a congregar em Cristo todas as coisas, na dispensação da plenitude dos
tempos, tanto as que estão nos céus como as que estão na terra”. Vemos aí o
propósito de Deus. O apóstolo prossegue e nos diz que este propósito sempre
foi necessário por causa do pecado. No capítulo 2 veremos que ele nos fala
acerca dos problemas que importunam a mente e o coração do homem, e de
como sua causa é o fato de que “o príncipe das potestades de ar, do espírito que
agora opera nos filhos da desobediência”, está dominando o homem decaído. Ele
nos diz que o plano de redenção é necessário por causa da Queda do homem,
e como isso foi precedido pela queda daquele brilhante espírito angélico
chamado diabo, ou satanás, que se tornou “o deus deste mundo”, “o príncipe das
potestades do ar”. Seu poder terrível é a causa da inimizade, do estado e da ruína
que caracterizam a vida da raça humana. O mundo moderno está dividido em
facções rivais; o

mundo antigo estava na mesma situação. Não há nada de novo nisso, é tudo
resultado do pecado e do ódio do diabo a Deus. E resultado do fato de que o
homem perdeu sua verdadeira relação com Deus. O homem se põe como Deus, e
com isso causa todo o transtorno e confusão no mundo. Mas nos é exposto
como, no princípio, ainda no Paraíso, Deus anunciou o Seu plano e começou
a pô-lo em prática.

O Velho Testamento é um relato de como Deus começou a pô-lo em ação.


Primeiramente Ele separou para Si um povo, os hebreus, mais tarde conhecidos
como judeus. Na história deles vemos o início do Seu propósito de redenção. Do
burburinho da humanidade Deus formou um povo para Si. Chamou um
homem chamado Abraão e fez dele uma nação. Aí temos o começo de
algo novo. Mas depois houve grande rivalidade entre os judeus e os gentios, e
assim, um dos importantes temas desta Epístola é mostrar como Deus tratou
dessa questão. O grande tema aqui é que Ele Se revelou, não somente aos
judeus, mas também aos gentios; “a parede de separação que estava no meio” se
foi; Deus criou “dos dois um”. Há uma nova criação aí; algo novo foi trazido à
existência; a isto se chama Igreja; e esta obra de Deus prossegue crescentemente,
diz o apóstolo, até que, quando chegar a plenitude dos tempos, Deus executará o
Seu plano completo, e tudo quanto se opõe a Ele será destruído. Todas as coisas
serão reunidas e feitas uma só em Cristo. Este é um dos importantes temas desta
Epístola. A princípio somente os judeus, depois os judeus e os gentios, e depois
todas as coisas. E tudo isso será feito “em Cristo e por ele”, (cf. Ef. 2:13,18.)

Isso, por sua vez, leva a outro tema importante, a Igreja. O propósito de Deus se
vê muito clara e objetivamente na Igreja e por meio dela, o Seu grande propósito
de unir todas as nações em Cristo. Nela se vêem indivíduos diferentes, de
nacionalidades diferentes, procedentes de diferentes partes do mundo, com
experiências diferentes, diferentes na aparência, diferentes psicologicamente e
em todos os aspectos concebíveis; todavia, são todos um só “em Cristo Jesus”. É
isso que Deus está fazendo, até que finalmente haja “novos céus e nova terra, em
que habita a justiça” (2 Pedro 3:13), e Jesus reine “de costa a costa, até que as
luas não tenham mais crescente nem minguante”.

Não há nada mais enaltecedor e maravilhoso do que ver a

Igreja sob essa luz e, portanto, ver a importância, o privilégio e a


responsabilidade de ser membro dessa Igreja. É por isso que devemos viver a
vida cristã; e assim, no capítulo 4 e até o fim da carta, Paulo dá ênfase ao
comportamento ético que se espera dos cristãos porque eles são o que são, e
porque esse é o plano de Deus, e eles devem manifestar a Sua graça na sua vida
diária e no seu modo de viver.
Tivemos aí, pois, uma breve vista dos grandes temas desta Epístola. Permita-me
fazer um sumário deles, de maneira simples e prática. Por que estou chamando a
sua atenção para tudo isso? E porque estou profundamente convencido de que a
nossa maior necessidade é conhecer estas verdades. Todos nós precisamos
rever esta gloriosa revelação, e livrar-nos da nossa mórbida preocupação com
nós mesmos. Se apenas nos víssemos como somos retratados nesta Epístola; se
apenas nos apercebêssemos, como o apóstolo o expressa em sua oração nos
versículos 17-19, de que devemos saber “qual seja a esperança da nossa vocação,
e quais as riquezas da glória da sua herança nos santos; e qual a
sobreexcelente grandeza do seu poder sobre nós, os que cremos, segundo a
operação da força do seu poder”, que diferença isso faria! Acaso você é um
cristão acabrunhado, infeliz, achando que a luta é demais para você? Você está a
ponto de ceder e desistir? O que você necessita é conhecer o poder que está
operando vigorosamente por você, o mesmo poder que ressuscitou Cristo dentre
os mortos. Se tão-somente soubéssemos o que significa sermos “cheios de toda
a plenitude de Deus”, deixaríamos de ser fracos e de afligir-nos, deixaríamos de
apresentar um quadro tão lamentável da vida cristã aos que vivem conosco e ao
redor de nós. O que necessitamos primordialmente não é uma experiência, é,
sim, compreender o que somos e quem somos, o que Deus em Cristo fez e como
Ele nos abençoou. Não nos apercebemos dos nossos privilégios.

A nossa maior necessidade ainda é a necessidade de entendimento. A nossa


oração por nós mesmos deve ser a oração que o apóstolo fez por aquelas
pessoas, que “os olhos do (nosso) entendimento” sejam “iluminados”. E disso
que precisamos. Nesta Epístola “as abundantes riquezas” da graça de Deus são
expostas diante de nós. Vejamo-las, tomemos posse delas e desfrutemo-
las. Acima de tudo, e especialmente numa época como esta, quão vital é que
tenhamos um novo e robusto entendimento do grande plano e

propósito de Deus para o mundo. Com conferências internacionais sendo


realizadas quase na soleira da nossa porta, com todo o mundo perguntando qual
será o futuro e quais serão as conseqüências dos nossos problemas atuais, com os
homens perplexos e desanimados, quão privilegiados somos por podermos pôr-
nos de pé e olhar esta revelação, e ver o plano e o propósito de Deus por trás e
além disso tudo. Plano e propósito que não serão realizados por meio de
estadistas, mas por meio de pessoas como nós. O mundo ignora isto e dá risada e
zomba; no entanto, com o apóstolo, nós sabemos com certeza que “todo o
principado, e poder, e potestade, e domínio, e ... todo o nome que se nomeia, não
só neste século, mas também no vindouro” foi posto debaixo dos pés de Cristo.
O Senhor Jesus Cristo foi rejeitado por este mundo quando Ele veio, os homens
O repudiaram como a “um qualquer”, um “carpinteiro”; contudo Ele era o Filho
de Deus e o Salvador do mundo, o Rei dos reis, o Senhor dos senhores, Aquele
diante de quem se dobrará “todo o joelho dos que estão nos céus, e na terra, e
debaixo da terra” (Filipenses 2:10). Graças sejam dadas a Deus pelo glorioso
evangelho de Jesus Cristo, e pelas “riquezas da sua graça”!

“SANTOS ... E FIÉIS EM CRISTO

JESUS”

“Paulo, apóstolo de Jesus Cristo, pela vontade de Deus, aos santos que estão
em Efeso, e fiéis em Cristo Jesus.’’ — Efésios 1:1

Como vimos, quando o apóstolo começa a sua carta, ele mergulha


imediatamente no meio de grandes e profundas verdades. Suponho que todos
nós, em graus variáveis, devemos declarar-nos culpados da tendência de
considerar as instruções das Epístolas do Novo Testamento como send o mais ou
menos formais. Inclinamo--nos a achar que as instruções são mais ou menos
desnecessárias, e que podemos saltar por cima delas para podermos chegar
depressa à grande mensagem que se lhe segue. Nas leituras da
meninice queríamos chegar logo ao coração da história, e muitas e muitas vezes
ficávamos impacientes com todos os preliminares; queríamos a vibração e o fim
da história. Esse hábito tende a persistir, de modo que, quando chegamos às
Epístolas do Novo Testamento, achamos que os versículos preliminares e as
saudações não são importantes e não têm nenhuma ligação com a verdade e com
a doutrina. Assim, tendemos a lê-las muito rapidamente e a precipitar-nos ao
que consideramos como o ensino essencial. Mas, isso é um engano profundo,
não somente com relação às Escrituras, como também com relação a qualquer
coisa que valha a pena ler. E sempre bom dar atenção àquilo que o escritor no
início julga necessário e importante, pois é óbvio que ele não o teria introduzido
se não tivesse algum objetivo em mente. Se isso é verdade em geral, é
verdade particularmente quantos a estas Epístolas do Novo Testamento, porque
nestas saudações preliminares vemos aspectos da verdade que são vitais e
essenciais.

Aqui, no versículo primeiro desta Epístola, temos um notável exemplo disso,


pois o apóstolo nem consegue dirigir-se aos efésios sem ao mesmo tempo
presenteá-los aos efésios (e a nós) com uma extraordinária descrição e definição
do que significa ser cristão.

Chamo a atenção para este fato porque muitas vezes as pessoas interpretam mal
o ensino das Epístolas do Novo Testamento é dirigido única e exclusivamente a
cristãos, a crentes no Senhor Jesus Cristo. É completamente errôneo e herético
tomar o ensino de qualquer das Epístolas do Novo Testamento e aplicá-lo ao
mundo em geral. O ensino é dirigido a pessoas particulares, e aqui o
apóstolo não nos deixa em nenhuma dúvida quanto às pessoas às quais ele está
escrevendo. Ele se dirige a elas e imediatamente as descreve.

Também é preciso ficar claro para nós o fato de que o apóstolo estava
escrevendo o que se pode descrever como uma carta geral. A Versão Revista
inglesa não diz: “aos santos que estão em Éfeso”. A palavra “Éfeso” é omitida, e
isso nos faz lembrar que nalguns dos manuscritos antigos as palavras “em Éfeso”
não estão incluídas. Os manuscritos mais antigos não contêm as palavras “em
Éfeso”, mas elas se encontram noutros manuscritos antigos. Contudo, as
autoridades concordam em dizer que o que realmente aconteceu foi que o
apóstolo escreveu uma espécie de carta circular a várias igrejas, e que o seu
amanuense provavelmente deixou um espaço em branco para que se pudesse
inserir o nome de alguma igreja em particular. Esta carta à igreja de Éfeso foi
também a outras igrejas da Província da Ásia, e é provável que a descrição
tradicional, “A carta para os efésios” tenha surgido do fato de que o exemplar
original foi para a igreja de Éfeso.

Permitam-me ressaltar também que esta carta não foi destinada a alguns cristãos
incomuns e excepcionais, não é uma carta dirigida a algum grande erudito ou
teólogo, não é uma carta dirigida a professores, não é uma carta dirigida a
eruditos especializados no estudo das Escrituras. Não é uma carta para
especialistas, porém para membros de igreja comuns. Esta é, sob todos os pontos
de vista, uma observação muito importante, e pela seguinte razão, que tudo o que
o apóstolo diz aqui acerca dos cristãos e membros das igrejas deve, portanto, ser
verdade a nosso respeito. Toda a elevada doutrina que temos nesta Epístola é
algo que eu e vocês fomos destinados a receber. A Epístola aos Efésios - talvez a
realização máxima da vida do apóstolo e dos seus escritos - é uma
Epístola destinada a pessoas como nós. O objetivo é que membros comuns de
igreja, de todas as igrejas, tomem posse desta doutrina e as entendam e se
regozijem nelas. Não são apenas para certas pessoas especiais e cultas; são para
cada um de nós e para todos nós.
Voltando-nos, pois, para a descrição que o apóstolo faz do

cristão, de todo cristão, temos aqui o que se pode chamar o mínimo irredutível
do que constitui um cristão. No corpo desta carta diz o apóstolo que ele está
desejoso de que essas pessoas aprendam mais verdades, verdades mais
profundas e mais elevadas. Daí ele ora no sentido de que os olhos do seu
entendimento sejam iluminados: “Para que o Deus de nosso Senhor Jesus Cristo,
o Pai da glória, vos dê em seu conhecimento o espírito de sabedoria e de
revelação; tendo iluminados os olhos do vosso entendimento”. Esse é o objetivo
supremo, mas antes de chegar a isso ele lhes lembra o que já são e o que já
sabem. Esta descrição do cristão é uma descrição dos cristãos efésios daquele
tempo. Eles nunca seriam membros da Igreja, nunca seriam destinatários desta
carta, se estas coisas não fossem próprias deles. Vemo-nos, pois, confrontados
aqui pelo que o Novo Testamento ensina que é o mínimo irredutível do que
constitui um cristão.

Estou dando ênfase a isso porque me parece que a necessidade primária da Igreja
na presente hora é compreender exatamente o que significa ser cristão. Como foi
que os cristãos primitivos, que eram apenas um punhado de gente, tiveram tão
profundo impacto sobre o mundo pagão em que viviam? Foi porque eles eram o
que eram. Não foi a sua organização, foi a qualidade da sua vida, foi o poder que
eles possuíam porque eram cristãos verdadeiros. Foi desse modo que o
cristianismo venceu o mundo antigo, e cada vez me convenço mais de que essa é
a única maneira pela qual o cristianismo pode influenciar verdadeiramente o
mundo moderno. A falta de influência da Igreja Cristã no mundo em geral hoje,
em minha opinião, deve-se unicamente a uma coisa, a saber (Deus nos perdoe!),
que somos muito diferentes da descrição dos cristãos que vemos no Novo
Testamento. Se, portanto, estamos preocupados com o estado em que a Igreja se
encontra, se sentimos o peso dos homens e mulheres que estão fora da igreja e
que, em sua miséria e aflição, estão se precipitando para a sua própria destruição,
a primeira coisa que temos que fazer é examinarmos, e descobrir até que ponto
nos amoldamos a este modelo e a esta descrição. O apóstolo descreve o cristão
com três expressões. A primeira é “santos”. “Paulo, apóstolo de Jesus Cristo,
pela vontade de Deus, aos santos...” - aos santos de Efeso, aos santos de
Laodicéia, aos santos de todas as outras igrejas locais, pequenas ou grandes. A
primeira coisa a dizer do cristão é que ele é santo. Receio que isso soe um tanto
estranho para alguns de nós. Temos a tendência de dizer: “Bem,

eu sou cristão, mas estou longe de ser santo”. Tememos fazer tal afirmação; de
algum modo tememos esta designação particular; e, contudo, o Novo Testamento
se dirige a nós como a “santos”. Portanto, precisamos descobrir porque o
apóstolo usa essa palavra, e o que se quer dizer com “santo”, em seu sentido
neotestamentário.

A primeira coisa que o termo significa é que somos pessoas separadas. Esse é o
significado radical da palavra que o apóstolo emprega aqui, e como outros
escritores bíblicos a utilizam. Primariamente significa separado, posto à parte.
Uma boa ilustração desse sentido vê-se no capítulo 19 de Atos dos Apóstolos,
onde lemos que, quando surgiram certas dificuldades e oposições, o
apóstolo separou os discípulos e então começou a reunir-se com eles na escola
de Tirano (versículo 9), e se pôs a ensiná-los e a edificá-los na fé; ele os separou.
Essa é a significação essencial da palavra “santo”, e a Igreja é um agrupamento
de santos. A Igreja não é uma instituição, é primordialmente uma reunião, um
encontro de santos. A ilustração perfeita é a dos filhos de Israel na antiga
dispensação. Eles eram um povo separado por Deus, foram tirados do
mundo, foi-lhes conferida por Deus uma certa singularidade, eram “povo de
Deus”. São descritos como “a geração eleita, o sacerdócio real, a nação santa, o
povo adquirido” ou “peculiar” (1 Pedro 2:9) - povo para ser uma possessão e um
interesse especiais de Deus. Esjsa é a definição dos filhos de Israel no Velho
Testamento (e.g., Êxodo 19:5,6; Deuteronômio 7:6). Num sentido eles eram uma
nação entre muitas outras, e, todavia, eram diferentes; eles tinham certos direitos
que outras nações não tinham, haviam recebido de Deus certas revelações da
Palavra de Deus a que Paulo se refere como “os oráculos de Deus”. Noutras
palavras, eles eram um povo separado, no mundo mas não no mundo, postos à
parte de maneira peculiar por Deus; quer dizer, eles eram “santos”. Assim, o
cristão é primariamente alguém que é segregado do mundo.

O apóstolo diz precisamente a mesma coisa no início da sua carta aos Gálatas -
“Graça e paz da parte de Deus Pai e da de nosso Senhor Jesus Cristo. O qual se
deu a si mesmo por nossos pecados, para nos livrar do presente século mau,
segundo a vontade de Deus nosso Pai”. Fomos libertados do mundo, separados
do mundo. O cristão hoje, como os filhos de Israel da antigüidade, embora
esteja no mundo, não é do mundo; é homem como os outros, e, todavia, é muito
diferente. Isso é uma verdade básica, primária. O cristão não é semelhante a
ninguém mais; ele é separado, posto à parte, único.

Ele sobressai, ele foi chamado por Deus, foi separado do mundo, separado para
Deus. Seria isso óbvio acerca do cristão atual? A separação não significa apenas
que freqüentamos dominicalmente um local de culto, enquanto que muita gente
não o faz. Isso é uma parte muito importante; no entanto não é a parte vital, por
que essa freqüência pode ser resultado de simples costume ou hábito, ou pode
ser simples parte de roda social. A questão é: somos verdadeiramente separados
como pessoas, somos essencialmente diferentes do mundo?

Não significa somente que fomos postos à parte num sentido externo; significa
que fomos postos à parte porque fomos purificados interiormente. Esse é o real
sentido da palavra “santo”. Instinti-vamente pensamos num santo como uma
pessoa pura. Isso está certo, e devemos captar este segundo elemento do sentido
desta palavra. Um santo é alguém que foi purificado de muitas maneiras. Ele foi
purificado da culpa do seu pecado, purificado daquilo que o exclui da presença
de Deus. Se ser santo significa que você foi tirado do mundo e levado à presença
de Deus, não estaria^ claro que aconteceu algo que o habilitou a ir à presença de
Deus? É o pecado que separa de Deus o homem; daí, antes de alguém poder ser
separado para Deus, precisa ser purificado da culpa do pecado. Assim, essa é a
primeira coisa que caracteriza o cristão; ele foi purificado, como nos lembra o
apóstolo, pelo sangue de Cristo, “Em quem temos a redenção pelo seu sangue, a
remissão das ofensas, segundo as riquezas da sua graça”.

Mas a purificação não pára nesse ponto. O santo é alguém que também foi
purificado da corrupção do pecado. Não se trata de uma purificação externa
apenas; também é interna, porque o pecado afeta o ser completo. Um santo é
alguém que foi purificado daquilo que corrompe a sua mente e o seu coração, as
suas ações, e tudo mais. Ele é purificado exteriormente, ele é purificado
interiormente; ele se tornou, como a Bíblia lhe chama, uma pessoa “santa”.
Ao Monte Sião a Bíblia se refere como “o monte santo”, e os vasos que eram
utilizados no templo eram chamados “vasos santos”. Significa que eles foram
purificados e postos à parte, e não eram utilizados para nenhuma outra coisa;
eram “santos ao Senhor”. É isso que se quer dizer com “santo”; um santo é
alguém que foi purificado e separado, e é “santo ao Senhor”. Antes de ser
aplicado ao cristão, esse termo era aplicado originariamente aos filhos de Israel.
“Vós sois uma nação santa, um povo peculiar”, um povo para ser

propriedade particular de Deus.

Nesta altura faço dois comentários práticos. O primeiro é que estas observações
se aplicam a todos os cristãos - aos santos de Éfeso, aos santos do mundo inteiro,
aos fiéis de toda parte. Devemos aprender uma vez por todas a desfazer-nos da
falsa dicotomia que o catolicismo romano introduziu neste ponto. Ele destaca
certas pessoas e lhes chama “santos”. Não há nada de errado em pagar tributo a
quem é proeminente; entretanto não é isso que os romanistas fazem. Eles
chamam aquelas pessoas especiais de “santos”, e somente aquelas. Mas isso é
errôneo e não é bíblico. Todo cristão é santo; você não pode ser cristão sem ser
santo; e não pode ser santo e cristão sem ser separado deste mundo num sentido
radical. Você não pode mais pertencer a ele, você está nele mas não é dele;
há uma separação que se deu em sua mente, em sua perspectiva, em seu coração,
em sua conversação, em seu comportamento. Você é uma pessoa essencialmente
diferente; o cristão não é uma pessoa do mundo, não é governado pelo mundo e
sua mentalidade e perspectiva. Devemos examinar-nos e descobrir se
correspondemos a esta descrição. Porventura não é certo que a multidão de
homens e mulheres que vivem ao redor de nós e por perto (muitos deles infelizes
e inquietos acerca de si e de suas vidas) não vêm falar conosco e fazer-nos
perguntas, não correm para nós em sua angústia, porque não nos acham em nada
diferentes deles, porque não há nada em torno de nós que dê a idéia de que
somos essencialmente diferentes? Aceitamos a falsa idéia de que somente
certos cristãos são santos, não nos apercebemos de que o propósito é que todo
cristão seja separado do mundo.

É justamente aqui que devemos ver toda a maravilha e todo o milagre da fé


cristã. Recordem o tipo de cidade que Éfeso era. Leiam o capítulo 19 de Atos
dos Apóstolos e verão que era uma grande cidade, e próspera, mas
completamente pagã. Seus habitantes adoravam uma deusa chamada Diana, e
eles gritavam “Grande é Diana dos efésios”. Orgulhavam-se de si e da sua deusa.
Não somente isso, havia também muita prática de feitiçaria, magia e coisas do
gênero. O apóstolo visitou a cidade, e tudo o que encontrou foi um grupo de
doze homens que eram discípulos de João Batista, porém estes não tinham
entendimento muito seguro da verdade. Vocês poderiam imaginar coisa mais
desanimadora? Quando o apóstolo passeou pela cidade de Éfeso, viu-a quase
completamente pagã, cheia de arrogância e orgulho, repleta de seitas e de

tudo quanto se opõe a Deus. Que esperança havia de que o cristianismo


florescesse num lugar como esse? Mas Paulo pregou e foi usado pelo Espírito; a
igreja foi estabelecida, aqueles santos vieram à existência, e mais tarde Éfeso
tornou-se a sede do trabalho do Apóstolo João. Precisamos lembrar-nos de que o
evangelho não é ensino humano; é “o poder de Deus para salvação de todo
aquele que crê”, e quando ele entra numa cidade, como fez na pessoa
do apóstolo Paulo, cheio do Espírito Santo nada é impossível.
Você é um cristão que se sente sem esperança acerca de um marido, ou de uma
esposa, ou filho, ou algum outro parente? Você acha que, por causa do
intelectualismo deles, ou da instrução que receberam, ou do ambiente em que
vivem, não há absolutamente nenhuma esperança de que sejam convertidos, e
que nem se pode tentar consegui-lo? Lembre-se dos santos de Éfeso, sim, e de
Corinto e da Galácia. O evangelho é o poder de Deus; ele realizou
feitos poderosos, e continua sendo o mesmo. Ele pode pegar o indivíduo mais
destituído de qualquer esperança, e fazer dele'um santo. Essa é a função
primordial, a coisa pela qual Deus o enviou.

Pois bem, passemos à segunda expressão - “fiéis”. Devemos ser cuidadosos


quanto ao significado desse termo. Num sentido, é uma tradução um tanto
infeliz, porque, mais uma vez, temos a tendência de lhe atribuir, não a
significação primária, e sim um sentido secundário. Essencialmente, a palavra
“fiel” significa “que exerce fé”. Para ilustrar isso, considerem o caso do apóstolo
Tomé, e de como se recusou a crer no testemunho dos seus
condiscípulos quando, após sua ausência, retornou a eles e estes lhe disseram
que o Senhor tinha aparecido entre eles. Tomé disse que não acreditaria se não
visse o sinal dos cravos e não pusesse o dedo nas feridas. Então o Senhor
apareceu de repente e Se mostrou a Tomé e lhe disse que fizesse o que tinha dito.
Tomé caiu a Seus pés e exclamou: “Senhor meu, e Deus meu!” Mas procurem
lembrar como o nosso Senhor o repreendeu gentilmente e lhe disse: “Porque me
viste, Tomé, crestes; bem-aventurados os que não viram e creram” .
E acrescentou: “Não sejas incrédulo, mas crente”. A palavra traduzida em João
20:27 por “crente” é a mesma que traduzida por “fiéis” em nosso texto. Significa
“estar cheio de fé” , exercer fé. O apóstolo escreve a estes cristãos de Éfeso
como a crentes, a pessoas que exercem a fé; eles são cristãos porque são crentes.

Aqui também há algo fundamental, primário e vital. Você não

pode ser cristão sem ter certa crença; o que nos faz cristãos é que cremos em
certas coisas. Voltemos ao capítulo 19 de Atos dos Apóstolos. O que nos é dito
(versículos 1 e 2) é que Paulo encontrou certos discípulos, porém não ficou
satisfeito quanto a eles, pelo que lhes perguntou: “Recebestes vós já o Espírito
Santo quando crestes? E eles responderam: “Nós nem ouvimos que haja Espírito
Santo”. “Em que sois batizados então?”, perguntou-lhes, e eles responderam:
“No batismo de João”. Então lhes disse Paulo: “Certamente João batizou com o
batismo do arrependimento, dizendo ao povo que cresse no que após ele havia de
vir, isto é, em Jesus Cristo”. Tendo ouvido isso, foram batizados em nome
do Senhor Jesus.

Nesse incidente nos é dito claramente o que é que nos faz cristãos. O cristão não
é meramente um bom homem, um homem bondoso, um homem que gosta de ser
membro de uma igreja cristã, um homem vagamente interessado em elevação
moral e no idealismo. Certos homens hoje descritos como cristãos
proeminentes crêem tão-somente no que se chama “reverência pela vida”;
mas isso não está de acordo com o ensino do Novo Testamento. O cristão é
alguém que crê em certas verdades específicas; e a essência da sua crença
centraliza-se na Pessoa do nosso Senhor Jesus Cristo. O cristão, o santo, é “cheio
de fé”. Em quem e em quê? Fé no Senhor Jesus Cristo. Ele crê que Jesus de
Nazaré é o Filho unigênito de Deus. Ele é cheio de fé na encarnação, crê que a
Palavra eterna, “o Verbo foi feito carne e habitou entre nós”, que o Filho eterno
veio em natureza humana a este mundo, crê no nascimento virginal, e que, por
Seus milagres, Jesus tornou manifesto que Ele é o Filho de Deus. __

Os santos de Éfeso criam nestas verdades; e Paulo foi capacitado a realizar


milagres especiais em Éfeso como prova delas. Eles não criam superficialmente;
sabiam no que criam. No entanto, acima de tudo, criam que Cristo Jesus veio a
este mundo “para provar a morte por todo homem”, criam no fato de que é pelo
Seu sangue que Ele nos salva, que Ele sofreu o castigo merecido pelos nossos
pecados, e morreu sofrendo a nossa morte, para reconciliar-nos com Deus - “Em
quem temos a redenção pelo seu sangue, a remissão das ofensas, segundo as
riquezas da sua graça”. Eles eram cheios de fé nestas coisas. Criam firmemente
que Ele tinha ressuscitado dentre os mortos. Não tinham simplesmente uma vaga
crença em que Jesus persiste, mas tinham plena certeza de que Ele ressus-

citou dentre os mortos e Se manifestou a muitos discípulos, e por último a este


homem, Paulo. Também eram cheios de fé na Pessoa do Espírito Santo. Criam
que o Espírito Santo fora enviado no dia de Pentecoste, que “a promessa do Pai”
tinha vindo, e que Ele podia ser recebido, e que os crentes sabiam que O tinham
recebido. Eles eram cheios de fé nestas coisas. E nós, somos “fiéis”? Somos
cheios de fé? A questão vital não é se somos membros de igrejas locais, porém
se somos cheios de fé nestas coisas. Sabemos em quem temos crido?
Conhecemos a doutrina cristã? Entendemos o caminho da salvação como vem
exposto nas Escrituras? Devemos estar “sempre preparados para responder a
qualquer que vos pedir a razão da esperança que há em vós”, diz Pedro,
confirmando Paulo.
Há ainda mais um sentido desta palavra “fiéis”, o sentido geralmente dado.
Significa que guardamos a fé, que mantemos a fé, que somos constantes na fé,
leais à fé, e que, com Paulo, estamos prontos a defender a fé e a lutar
ardorosamente por ela. Significa que se pode contar conosco, que se pode
confiar em nós porque conhecemos a fé, e porque cremos e confiamos no que ele
significa. Não nos esqueçamos deste sentido secundário, que devemos ser
pessoas nas quais as outras podem acreditar e confiar. Não devemos ser como os
que são “levados por todo vento de doutrina” e cuja fé pode ser abalada pela
leitura de um artigo ou livro escrito por algum dignitário da Igreja que nega a
deidade de Cristo, ou o nascimento virginal e muitas outras doutrinas essenciais.
Temos que ser fiéis, confiáveis, dignos de crédito; sabemos no que cremos,
e estamos firmes com os apóstolos e outros numa sólida linha de defesa da fé
contra todos os adversários.

Mesmo que nos sobrevenha terrível perseguição, não devemos acovardar-nos. A


muitos daqueles cristãos primitivos se dizia que se eles persistissem em dizer
que “Jesus é Senhor”, seriam mortos. Contudo, eles continuavam dizendo que
“Jesus é Senhor”. Embora eu e vocês talvez não sejamos tentados deste modo
particular, há cristãos noutras partes do mundo atual que têm que encarar
a possibilidade de perder o trabalho ou o emprego ou a sua posição profissional,
ou de serem separados das suas famílias, lançados na prisão, surrados ou
baleados ou mutilados de algum modo terrível, simplesmente por causa da sua
lealdade e esta fé. Eles estão firmes, são “cheios de fé”; pode-se confiar e
descansar no fato de que eles resistirão até o último momento, e nunca vacilarão
nem se acovardarão. Nem eu nem vocês, pelo menos no presente, temos que

enfrentar perseguição aberta, mas temos que enfrentar escárnio e zombaria, e


muitas vezes nos fazem estranhos e esquisitos. Eu e vocês temos que ser fiéis,
aconteça o que acontecer, não importa quanto riso, mofa e zombaria tenhamos de
enfrentar. Seja qual for o preço - financeiro, profissional - temos que ser fiéis,
fidedignos, confiáveis, resistindo a todo custo, venha o que vier. O cristão
é assim; ele sabe no que crê; e prefere morrer a negar a Cristo.

__ Depois, finalmente, há esta frase grandiosa, “em Cristo Jesus”. É sumamente


importante compreendermos o que ela significa, e ela está ligada a “santos” bem
como a “fiéis”. Eles são santos em Cristo Jesus, são fiéis em Cristo Jesus. Esta
frase, como veremos repetidamente à medida que percorrermos esta Epístola, é
uma das grandes declarações características do Novo Testamento. Significa que
o cristão é alguém que, não somente crê em Cristo, mas também, num sentido
real, está “em Cristo”. Pertence a Ele, está unido a Ele, está ligado a Ele. Vejam a
ilustração neotestamentária do corpo. “Vós sois o corpo de Cristo”, declara
Paulo aos coríntios, “e seus membros em particular”. No capítulo 4 desta
Epístola aos Efésios ele faz uso da mesma analogia. Diz ele que os cristãos, que
formam a Igreja, são edificados como um corpo. Diz ele: Antes, seguindo a
verdade em amor, cresçamos em tudo naquele que é a cabeça, Cristo. Do qual
todo corpo, bem ajustado, e ligado pelo auxílio de todas as juntas, segundo a
justa operação de cada parte, faz o aumento do corpo, para sua edificação em
amor” (versículos 15 e 16). Portanto, ser cristão significa, não somente que você
é crente em Cristo, exteriormente a Ele; você é crente porque está ligado a Ele,
você está “nele”.

Vemos a mesma idéia no capítulo 5 de Romanos, onde Paulo elabora uma grande
analogia e um contraste. Diz ele que todos nós estávamos originalmente em
Adão. Adão não foi somente o primeiro homem, foi também o representante de
toda a raça humana. Todo aquele que nasceu neste mundo estava em Adão,
era uma parte de Adão, estava ligado a Adão, resultando em que a ação praticada
por Adão teve conseqüências em todos. Contudo, o apóstolo continua e
argumenta no sentido de que, assim como todos nós estávamos “em Adão”,
agora estamos - os que somos cristãos -“em Cristo”. Como “em Adão”, assim
“em Cristo”. Tudo o que o Senhor Jesus Cristo fez passa a ser verdade quanto a
nós.

Também no capítulo 6 de Romanos Paulo desenvolve o tema e

afirma que quando Cristo foi crucificado, nós fomos crucificados com Ele;
quando Ele morreu, nós morremos com Ele; quando Ele foi sepultado, nós
fomos sepultados com Ele; quando Ele ressuscitou, nós ressuscitamos com Ele.
Ele está sentado nos lugares celestiais. No capítulo 2 da Epístola aos Efésios
Paulo diz: “Deus nos ressuscitou juntamente com ele e nos fez assentar nos
lugares celestiais em Cristo Jesus”. Estamos sentados nos lugares celestiais com
Cristo neste momento porque estamos “em Cristo”. Que verdade tremenda,
estonteante, irresistível - sou parte de Cristo, pertenço a Ele, sou membro do
corpo de Cristo! Não sou meu, fui “comprado (adquirido) por preço”. Estou em
Cristo. Ele é a cabeça, eu sou um dos membros. Há uma união vital, orgânica,
mística entre nós. Todas as bênçãos que gozamos como cristãos nos vêm porque
estamos em Cristo. “E todos nós recebemos também da sua plenitude, e graça
por graça” (João 1:16). “Eu sou a videira verdadeira”, diz o nosso Senhor, “vós
as varas”.
Tudo isso é para você, se você é cristão. Não fale da sua fraqueza ou desamparo;
Ele é a Vida, e você está ligado à Vida, você faz parte da Vida, você é um ramo
da Videira, “em Cristo”. Voltaremos a isso, mas vamos apossar-nos disso em
princípio agora. Meditemos nisso, e permitam-me animá-los a fazê-
lo concluindo com dois breves comentários. Por que vocês acham que, ao
descrever o cristão, o apóstolo coloca estas três coisas na seguinte ordem -
“santos”, “fiéis”, “em Cristo”? A resposta é muito simples. A primeira coisa e a
mais evidente acerca do cristão sempre deve ser o fato de que ele é “santo”. O
apóstolo tinha em mira a cidade de Éfeso; ele viu o que lhe parecia um oásis
no deserto de riquezas, paganismo, feitiçaria e vida libertina. Sobressaindo no
deserto, este verdejante oásis - a Igreja, os santos. Essa é uma boa maneira de ver
o cristão . Quem quer que olhe para o mundo deve impressionar-se logo com o
fato de que há nele certas pessoas que sobressaem e que são completamente
diferentes porque são “santas”. Essa é primeira impressão que devemos causar;
todos - vizinhos, amigos, colegas e companheiros de trabalho - devem saber que
somos cristãos. Isso deve ser óbvio, deve sobressair porque somos o que somos,
por causa destas coisas que nos caracterizam. Lemos a respeito do nosso bendito
Senhor que Ele “não pôde esconder-se” (Marcos 7:24), e isso deve ser verdade a
nosso respeito neste sentido; deve ser impossível esconder o fato. Mas não quer
dizer que eu prego e imponho o meu cristianismo aos

outros, tornando-me uma pessoa molesta. Trata-se antes de uma qualidade que
recende santidade, algo que é cheio de graça e de encanto, uma tênue
semelhança com o Senhor. Deve ser evidente e óbvio que somos um povo
separado, um povo diferente, porque somos um povo santo.

A seguir notemos a importância de se manter intacta a relação entre ser santo e


ser fiel, a relação entre a santidade e ser crente no Senhor Jesus Cristo. Estas
coisas nunca devem ser separadas. Por mais que possamos iludir-nos, isso de
cristão teórico não existe. É possível sustentar a doutrina da fé na sala de aulas,
dar um assentimento intelectual a estas coisas, porém isso não faz de nós
cristãos. Daí Paulo coloca “santos” antes de “fiéis”. Disse o Dr. William Temple:
“Ninguém é crente, se não é santo, e ninguém é santo, se não é crente”. Estas
duas coisas jamais devem ser separadas, nunca se deve abrir uma lacuna entre a
justificação e a santificação. Se você é cristão você está em Cristo, e em Cristo o
que acontece é que Ele “para nós foi feito por Deus sabedoria, e justiça, e
santificação, e redenção” (1 Coríntios 1:30). Você não pode, você não
deve tentar dividir Cristo. É falsa a doutrina que diz que você pode
ser justificado sem ser santificado. É impossível; você é “santo” antes de ser
“fiel”. Você foi separado. É por isso que você crê. Estas coisas estão entrelaçadas
indissoluvelmente. Não permita Deus que as separemos ou que as dividamos,
jamais! A santidade é uma característica de todos os cristãos e, se não somos
santos, a nossa profissão de fé em Cristo não tem valor. Você não pode ser
crente sem ser santo, e não pode ser santo, neste sentido neotestamentário, sem
ser crente. “Portanto, o que Deus ajuntou não o separe o homem”.

GRAÇA, PAZ, GLÓRIA

“A vós graça, e paz da parte de Deus nosso Pai e da do Senhor Jesus Cristo.” -
Efésios 1:2

No versículo 2, que ainda faz parte das saudações do apóstolo à igreja de Éfeso e
de toda parte, ele passa a falar-nos dos benefícios que devemos estar gozando
por sermos cristãos. Ele o faz com palavras que de uma forma ou de outra se
vêem no começo de muitas Epístolas do Novo Testamento - “A vós graça, e
paz”. Era costume entre os antigos saudarem uns aos outros dessa maneira
quando se encontravam, e a saudação favorita que um judeu fazia a outro era,
“Paz, paz seja com você”. “Paz” era o termo preferido dos judeus. O apóstolo,
porém, não diz apenas isso, vai além. Ele toma o termo conhecido e o eleva a
uma nova esfera, à esfera cristã. Assim, a expressão de cumprimento e saudação
cristã é muito mais grandiosa, mais ampla e mais profunda do que a saudação
mais ou menos formal com a qual os homens costumavam saudar-se uns aos
outros.

Dou ênfase a esta questão porque a considero de grande importância. O apóstolo


não usa tais palavras solta e ligeiramente e sem pensar; não é uma simples
fórmula que ele usa automaticamente no início de uma carta; as palavras estão
carregadas de profunda significação. Quando ele emprega estas palavras e
expressa este desejo quanto aos efésios, o que ele quer é que eles experimentem
todas as infindáveis riquezas que se pode achar no evangelho do nosso Senhor
Jesus Cristo. Noutras palavras, quando analisarmos este versículo, veremos que
ele contém algumas das verdades mais profundas da nossa fé, e que os seus
termos são da mais profunda importância.

Faço breve digressão para assinalar que, quando lemos a Bíblia, nada é mais
importante do que examinar cada palavra e questionar o seu significado. Como é
fácil fazer leitura bíblica diária de certa porção, seguida talvez por uma certa
oração! Se o seu maior interesse é simplesmente ler uma certa porção cada dia,
poderá muito bem saltar por cima de palavras como estas, destas profundezas da
nossa fé. Aqui, logo no início, nesta saudação preliminar, o

apóstolo mergulha imediatamente no fundo da verdade e doutrina mais profunda


que se pode achar em qualquer parte das Escrituras. Ou, para expor o ponto de
maneira diferente, este versículo é uma espécie de prelúdio da Epístola toda. É
característico das grandes peças musicais, de certos tipos de música em
particular, terem um prelúdio. O musicista começa compondo o corpo maior da
obra, que pode ter vários movimentos ou atos, cada qual com o seu
tema. Depois, tendo concluído a obra, ele retoma ao princípio e compõe um
prelúdio, no qual reúne os principais motivos ou temas que emergiram no corpo
da obra. Ele faz isso atirando uma sugestão, talvez em poucos compassos, para
aguçar o seu apetite e para que você possa ter uma idéia daquilo que ele vai
desenvolver no corpo principal da obra.

É minha opinião que este versículo dois é o prelúdio de toda esta Epístola; nele
se insinuam todos os seus temas principais. Mais tarde vamos penetrá-los mais
minuciosamente, mas vejamo-los logo no início - “graça” e “paz”. “A vós graça,
e paz da parte de Deus nosso Pai e da do Senhor Jesus Cristo.” Não há outras
duas palavras em tudo quanto compõe a nossa fé que sejam mais importantes
do que as palavras “graça” e “paz”. Todavia, com que superficialidade tendemos
a soltá-las das nossas línguas sem parar para considerar o que elas significam. A
graça é o começo da nossa fé; a paz é o fim da nossa fé. A graça é o manancial, a
fonte, a origem. É aquele local particular da montanha do qual o caudaloso rio
que vocês vêem rolando para o mar começa a sua carreira; sem ela não haveria
nada. A graça é a origem, a procedência e a fonte de tudo o que há na vida cristã.
Entretanto, que significa a vida cristã, que é que ela foi destinada a produzir? A
resposta é “paz”. Portanto, aí temos a fonte e o estuário levando ao mar, o
começo e o fim, a iniciação e o propósito a que tudo visa e se destina. É
essencial, pois, que levemos em nossas mentes estas duas palavras, porquanto
dentro da elipse formada pela graça e pela paz tudo está incluído.

Que é graça? É um termo notoriamente difícil de definir. Essencialmente, graça


significa “favor imerecido”, favor que você não merece, favor que você recebe
mas ao qual não faz jus, ao qual não tem absolutamente nenhum direito, e do
qual você é totalmente indigno e imerecedor. Podemos chamá-la amor
condescendente -amor que desce, ou que baixa. Ou podemos chamá-la
bondade benéfica. Todas estas expressões são descritivas do que se quer dizer
com este termo extraordinário que é colocado constantemente
diante de nós no Novo Testamento, com esta admirável e maravilhosa palavra
“graça”. Não admira que Philip Doddridge vivia a contemplá-la, como ele nos
diz nas seguintes palavras -

Graça! É som encantador;

Que harmonia de se ouvir!

É uma das palavras mais belas em todas as línguas.

Com relação a “paz”, o perigo sempre presente é dar a essa palavra uma
conotação, ou ligar a ela um sentido que fica muito aquém do seu significado
completo. “Paz” não é mera cessação da guerra, repousa e tranqüilidade, porém
significa muito mais. O perigo constante com relação a “paz” é pensar nela
apenas como ausência de coisas tais como agitação ou discórdia ou conflito.
Pode muito bem ser que, porque as nações do mundo pensam em paz naqueles
termos, nunca tivemos paz verdadeira. A paz de que falam os livros de história é
mera cessação da guerra; mas na Bíblia “paz” não significa apenas que você
parou de contender; vai além disso. É interessante que o verdadeiro significado
radical da palavra grega traduzida por “paz” é “união”, “união após separação”,
uma re-união, uma reconciliação depois de uma contenda e de um conflito.

A palavra tem seu lugar na expressão “oferta de paz”, como uma oferta
apresentada por um homem que faz uma proposta de paz. Ele propõe uma união,
uma aproximação, uma reconciliação. Noutras palavras, duas pessoas que
brigaram e estiveram em conflito depuseram suas armas, olharam-se e apertaram
as mãos. Uniram-se, houve uma reconciliação; onde antes havia contenda
e separação, agora há aproximação e união. Esta idéia é exposta no capítulo 2 da
nossa Epístola, onde lemos: “De ambos os povos fez um; e, derribando a parede
de separação que estava no meio...” (versículo 14). As duas partes foram
aproximadas, a parede de separação que estava no meio desapareceu, e por um
só Espírito se juntaram a um só Senhor. Esse é o sentido de “paz”.

“A vós graça, e paz da parte de Deus nosso Pai e da do Senhor Jesus Cristo.” Aí
temos a graça no começo e a paz no fim; todavia não terminamos. No momento
em que você se defronta com tal declaração, é levado a fazer uma pergunta. Por
que é que o apóstolo deseja isso para esses efésios? A resposta a essa pergunta,
como já

estive dizendo, é a totalidade da doutrina cristã. Devemos aprender a ler as


Escrituras; e, ao fazermos isso, não há nada que seja mais importante do que
fazer perguntas sobre elas.

Por que precisamos de graça e paz? Por que é que o apóstolo quer que as
conheçamos? Por que ele usa esses termos, e não outros? A resposta nos leva
imediatamente às verdades cristãs fundamentais. Ao desejar-nos graça e paz, ele
nos está dizendo a verdade acerca de nós mesmos, ele nos está dizendo o que
necessitamos. Necessitamos da graça que nos leve à paz porque o homem é o
que é em conseqüência da Queda e do pecado. O que isso significa em detalhe é
exposto plenamente pelo apóstolo no capítulo dois. O homem em pecado está
em inimizade com Deus. O homem por natureza, como nasce neste mundo,
odeia a Deus. Não somente está separado de Deus, mas luta contra Deus, é um
inimigo de Deus; tudo nele é, por natureza, completamente oposto a Deus. Essa
é a verdade acerca do homem, e o resultado é que o homem, nessa condição, está
combatendo a Deus, está pelejando contra Ele e O está odiando. Em seu estado
natural, o homem está pronto a crer em qualquer afirmação de jornal de que
alguém provou que Deus não existe. O homem pula diante de declarações desse
tipo e se deleita nelas porque ele odeia a Deus. Está num estado de inimizade
contra Deus.

Além disso, uma vez que o homem está nessa relação com Deus, também está
num estado de inimizade contra si próprio. Ele não está somente engajado nesta
guerra contra um Deus que está fora dele; mas também está travando uma guerra
consigo mesmo. Aí está a real tragédia do homem decaído; ele não acredita no
que estou dizendo, porém esta é certamente a verdade a respeito dele. O homem
está num estado de conflito interno, e ele não sabe por quê. Ele quer fazer certas
coisas, entretanto algo dentro lhe diz que é errado fazer essas coisas. Ele tem
dentro de si algo que chamamos consciência. Embora pense que pode ser
perfeitamente feliz, faça o que fizer, e embora possa silenciar os outros, não
consegue silenciar esse monitor interno. O homem está num estado de
guerra interna; ele não sabe a razão disso, mas sabe que é assim.

Nas Escrituras, contudo, nos é dito exatamente por que a situação é essa. O
homem foi feito de tal maneira por Deus que só pode estar em paz consigo
mesmo quando está em paz com Deus. Nunca houve o propósito de que o
homem fosse um deus, mas ele está

sempre tentando endeusar-se. Ele estabelece os seus desejos como as regras e as


leis da sua vida, e, no entanto, é sempre caracterizado por confusão, ou coisa
pior. Há algo nele próprio que nega as suas reivindicações; e por isso ele está
sempre em briga e conflito consigo mesmo. Ele nada sabe da paz real; ele não
tem paz com Deus, não tem paz no seu interior. E, pior ainda, por causa disso
tudo, ele está num estado de beligerância com todos os outros. Desafortuna-
damente para cada indivíduo, cada um dos demais também quer ser um deus.
Devido ao pecado, todos nós somos autocentralizados, egocêntricos, ficamos
voltados para nós mesmos, firmados neste ego que colocamos num pedestal e
que julgamos tão maravilhoso e tão superior a todos os outros. Mas cada um dos
demais está fazendo a mesma coisa, e assim há uma guerra entre
deuses. Alegamos que estamos certos e que todos os demais estão
errados. Inevitavelmente, o resultado é confusão, discórdia e infelicidade entre
homem e homem. Assim é que^ começamos a ver por que o apóstolo ora para
que tenhamos paz. E por causa da triste condição do homem, da vida do homem
em conseqüência do pecado e do seu afastamento de Deus. Ele está num estado
de des-unidade dentro de si e fora, num estado de infelicidade, num estado
de angústia.

Mas nem aí a coisa pára; o homem trouxe tudo isso sobre si próprio por sua
desobediência a Deus. Ele não consegue fugir disso. Ele tem procurado propor
todas as explicações concebíveis da sua condição, porém nenhuma delas é
adequada. Ele tentou explicar isso com a teoria da evolução, e, com base nesse
modo de ver e nesse ensino, agora o homem deveria estar emancipado e deveria
haver paz; mas a paz não veio. O homem tenta explicar o seu quinhão de outras
maneiras; entretanto não consegue. O homem trouxe todo este mal sobre si
próprio por causa do seu desejo de ser deus. Prova-o o fato de que ele não gosta
de ser corrigido, e na verdade detesta toda a idéia de lei. Ele a ridiculariza, e
considera a lei um insulto; não reconhece a necessidade de ser mantido na linha
pela lei, e se ofende com a sua interferência.

Mas a grande mensagem da Bíblia é que, embora o homem tenha caído em


pecado e se tenha metido neste estado de angústia, Deus ainda Se interessa por
ele, e Deus interveio e interferiu. Deu leis e diretrizes, mas, invariavelmente, o
homem as tem rejeitado. É Deus que nomeia governos e magistrados, para
manter o pecado dentro de limites; porém o homem sempre luta contra toda
ordem

imposta de fora. Ele gosta disso e, com essa atitude, mostra o seu terrível ódio a
Deus e sua inimizade contra Deus. O homem sempre rejeitou o que Deus
providenciou para ele e, assim, há somente uma conclusão a que se pode chegar
com relação ao homem: o homem merece sobejamente o destino que ele mesmo
trouxe sobre si. De fato, podemos ir além e dizer que o homem merece coisa
pior; merece ser punido. O homem não é somente um infrator que merece
punição; também é louco. Ele rejeita a lei de Deus e não quer dar-lhe ouvidos, e,
portanto, merece castigo, merece condenação. Não há desculpa para o homem;
ele pecou deliberadamente e caiu no princípio, e ainda rejeita deliberadamente a
direção divina. Não há argumentos que se lhe possa oferecer. Dê-lhe a Bíblia, e
ele ri dela. Embora vejamos na Bíblia que os homens que se ajustaram a ela
encontraram felicidade e paz, os homens a rejeitam; apesar de estar claro que, se
todas as pessoas do mundo fossem verdadeiramente cristãs a maior parte dos
problemas desapareceria, o homem continua rejeitando o cristianismo. Criaturas
desse naipe não merecem nada, senão castigo e o inferno. Essa é a condição do
homem, em conseqüência da sua queda no pecado.

Pois bem, é justamente neste ponto que a maravilhosa mensagem do evangelho


entra. Toda a mensagem do evangelho é introduzida pela palavra “graça”. Graça
significa que, apesar de tudo o que estive dizendo sobre o homem, Deus ainda
olha para ele com favor. Vocês não entenderão o significado da palavra “graça”,
se não aceitarem plenamente o que eu disse sobre o homem em pecado. Esse
erro explica porque o conceito moderno sobre graça é tão superficial e
inadequado. É porque o homem tem um conceito inadequado do pecado que ele
tem um conceito inadequado da graça de Deus. Se vocês quiserem dimensionar a
graça, precisarão dimensionar a profundidade do pecado. A graça é aquilo que
diz ao homem que, apesar de tudo o que o caracteriza, Deus olha para ele com
favor. E completamente imerecida, o homem não lhe faz jus; mas esta é a
mensagem da expressão, “A vós graça”. É ação de Deus a que não temos direito,
que não merecemos, é um amor condescendente. Quando o homem não merecia
nada, senão ser eliminado da existência, Deus olhou para ele com graça e
misericórdia e o tratou em conformidade com Sua graça e misericórdia. Assim,
esta palavra singular “graça”, no início da Epístola, introduz o evangelho todo.

Este é o grande tema das Escrituras, em todas as suas partes.

Por exemplo, Paulo escreve em Romanos, capítulo 5: “Cristo morreu por nós,
sendo nós ainda pecadores. Logo muito mais agora, sendo justificados pelo seu
sangue, seremos por ele salvos da ira. Porque se nós, sendo inimigos, fomos
reconciliados com Deus pela morte de seu Filho, muito mais, estando já
reconciliados, seremos salvos pela sua vida”. Diz ele que éramos não
somente pecadores, mas inimigos; não somente havíamos caído, distanciando-
nos de Deus, e Lhe tínhamos desobedecido, e nos vimos nesta desgraça, mas,
além disso, há esta inimizade, este ódio, este antagonismo no espírito. O
evangelho assevera que, a despeito da nossa inimizade contra Deus, Ele deu Seu
Filho por nós e para a nossa salvação. O que Ele fez foi estabelecer a paz. No
capítulo dois desta Epístola lemos que Ele nos reconciliou conSigo e
nos introduziu num estado de união com Ele. Seu olhar para nós, com Sua graça,
redundou em paz, e em paz perfeita. A graça de Deus em ação desfaz
completamente tudo quanto descrevemos como resultante do pecado.

Primeiramente e acima de tudo, ele dá paz com Deus: “Sendo pois justificados
pela fé, temos paz com Deus” (Romanos 5:1). Fomos reconciliados com Deus; a
inimizade entre nós e Deus foi-se, graças ao que Deus fez por Sua graça. Mas o
resultado da graça não é somente paz com Deus”; ela dá ao homem paz
interior. Ela capacita o homem, pela primeira vez em sua vida, a dar resposta a
uma consciência acusadora; ela capacita o homem, pela primeira vez em sua
vida, a ter descanso na mente e no coração. Pela primeira vez o homem pode
viver consigo mesmo, e pode saber que tudo está bem. O conflito acabou, neste
sentido fundamental, e ele entende pela primeira vez a causa de todos os seus
problemas. Ele enxerga um modo de sobrepor-se a todas as suas dificuldades,
e vislumbra a vitória final que o espera em Cristo.

Isso, por sua vez, leva-o a um estado de paz com as outras pessoas. Trataremos
disso em detalhe mais adiante, porém ei-lo aqui em resumo, logo no início. No
momento em que um homem se torna cristão, nada continua o mesmo, e
ninguém continua sendo o mesmo para ele. A pessoa que antes ele odiava, agora
ele vê como uma vítima do pecado e de satanás, e ele começa a ter pena
dela. Conhecendo a graça de Deus e experimentando esta nova paz que lhe foi
dada, seu ex-inimigo passou a ser alguém por quem ele ora. Começa a pôr em
ação a injunção do seu Senhor, que diz: “Amai a vossos inimigos e orai pelos
que vos maltratam”. A inimizade é

abolida pela nova visão. Ele agora deseja ser reconciliado e estar em paz.

Mas a esta paz com Deus, paz interior e paz com os outros, as Escrituras
prosseguem dizendo que se acrescenta algo chamado “paz de Deus”. Significa
que, aconteça o que acontecer ao seu redor e por perto, vocês tem dentro de si “a
paz de Deus que excede todo entendimento” e que guarda “os vossos corações e
os vossos sentimentos em Cristo Jesus” (Filipenses 4:7). Deus não somente
lhes deu paz, mas providenciou a preservação da paz. Vocês estão guarnecidos
de um poder e de uma Pessoa que os manterá em paz. Muitas coisas podem
acontecer-lhes, vocês serão vítimas da tentação para pecar e poderão ficar sem
saber o que fazer, porém esta paz de Deus que excede todo o entendimento
estará de guarda, protegendo os seus corações e as suas mentes, São esses alguns
dos elementos da paz à qual a graça de Deus leva, não obstante o que estou
desejoso de ressaltar acima de tudo mais é que tudo isso nos vem como resultado
da graça de Deus. “A vós graça, e paz da parte de Deus.” Não merecemos nada,
nem sequer o desejamos, nem podemos obtê-lo; mas Deus no-lo dá. É tudo pela
graça, uma dádiva inteiramente gratuita de Deus.

Agora devemos fazer uma segunda pergunta: como é que tudo isso nos
acontece? A resposta é dada imediatamente nas duas palavras: “nosso Pai”. “A
vós graça e paz da parte de Deus nosso Pai.” A graça logo muda toda a nossa
atitude para com Deus porque mudou todo o nosso conceito de Deus. Para o
cristão, Deus é “nosso Pai”. Para o cristão, Deus não é apenas um X filosófica à
distância, sobre quem ele fala e argumenta inteligentemente em seus livros
filosóficos; Deus não é tão-somente uma grande força, um grandioso poder num
céu distante; Ele é o Pai, o meu Pai, o nosso Pai. Toda a relação entre o homem e
Deus foi inteiramente renovada e mudada. Deus não é mais um terrível e distante
legislador esperando para punir-nos; Ele continua sendo legislador, mas também
é “meu Pai”.

Devemos, porém, ser cautelosos quanto às armadilhas que nos cercam. Em que
sentido Deus é meu Pai? “Deus”, dirá alguém, “é o pai de todos os homens.” É
verdade que há um sentido em que Deus é o Pai de todos os homens. Paulo,
pregando aos atenienses, afirma que Deus é nosso Pai nesse sentido, que todos
somos “sua geração” (Atos 17:28). Isso se refere a Deus em Sua relação
conosco como Criador. O autor da Epístola aos Hebreus escreve de
maneira semelhante quando descreve Deus como o “Pai dos espíritos”

(Hebreus 12:9). Deus é o Pai de todos os espíritos como Aquele que os fez,
como o seu Criador, e nesse sentido Ele é o progenitor dos espíritos de todos os
homens. Mas quando Paulo diz aqui “nosso Pai”, não está falando naquele
sentido geral. Deus é Pai não somente no sentido geral, mas no sentido particular
é “nosso Pai”. Todos os homens tendo pecado, caíram e perderam aquela
relação inicial, e, portanto, o nosso Senhor pôde dizer a certos judeus: “Vós
tendes por pai ao diabo” (João 8:44). Evidentemente, eles não eram filhos de
Deus.
Assim, o apóstolo aqui não está simplesmente descrevendo Deus em termos
gerais de paternidade, em termos da criação. Há um novo elemento, o qual é
introduzido com a próxima palavra: “A vós graça, e paz da parte de Deus nosso
Pai e da do Senhor Jesus Cristo”. Esta é a “differentia”* do cristianismo, o
elemento que muda tudo. É o Senhor Jesus Cristo. Para que não fique nenhuma
incerteza ou confusão, notemos o que Paulo diz nesta mesma saudação: “A vós
graça, e paz da parte de Deus nosso Pai e da do Senhor Jesus Cristo”. A graça e a
paz vêm igualmente do Senhor Jesus Cristo e do Pai. Esta é uma doutrina vital.
Isso de um cristianismo sem o Senhor Jesus Cristo não existe; não há nenhuma
benção de Deus ao homem no sentido cristão, exceto no Senhor Jesus Cristo e
por intermédio dEle. Qualquer coisa que se declare cristianismo sem ter Cristo
no começo, no meio e no fim, é uma negação do cristianismo, dêem vocês a isso
o nome que quiserem. Sem Cristo não há cristianismo; Ele é tudo.

Quem é esta Pessoa que o apóstolo liga com Deus o Pai? Observem os termos
empregados. Ele é o Senhor, isto é, Jeová.2 3 A palavra traduzida por “Senhor” é
a palavra que os judeus empregavam na antiga dispensação para “Deus”. Era o
maior de todos os nomes, o nome que era tão sagrado que eles nem se atreviam a

usá-lo. “Jeová” é o nome de Deus, do Deus da Aliança. O nome Jeová é


empregado com referência ao Pai; e também é reivindicação do cristão para
Jesus de Nazaré. Este é aquele que nos Evangelhos é descrito como Jesus de
Nazaré, mas Paulo não hesita em dizer que Ele é Deus. O apóstolo O coloca ao
lado de Deus, como igual a Deus, é co-eterno com Deus. Ele pode ser colocado
ali sem nenhuma irreverência, Ele pode ser colocado ali sem que se incorra em
nenhuma blasfêmia. Ele pode ser colocado ali, ao lado do nosso Deus vivo e
verdadeiro, o Pai. Ele é o eterno Filho de Deus, um com Deus desde a
eternidade.

Mas Ele é também Jesus. Significa que Ele é também verdadeiramente homem.
Nasceu em Belém, e o nome que Lhe foi dado é “Jesus”. Ele veio a ser um
menino no templo - Jesus de Nazaré. Ele foi um carpinteiro, Filho de José e
Maria, e lemos a respeito dos Seus irmãos. Ele é o homem que começou a pregar
com a idade de trinta anos, Jesus, o operador de milagres.

No versículo seguinte, porém, nos é dito algo mais sobre Ele: “Bendito o Deus e
Pai de nosso Senhor Jesus Cristo”. Ele é o Senhor, Ele é Jeová, Ele é Deus, mas
Deus é também o Seu Deus, e Deus é Seu Pai. Este é um grande mistério. Ele
mesmo disse, pouco antes do fim da Sua vida terrena: “Eu subo para meu Pai e
vosso Pai, meu Deus e vosso Deus” (João 20:17). Ele já dissera: “O Pai é maior
do que eu”; todavia, Ele é Jeová, porém é também Jesus - o Deus-homem. A
assombrosa doutrina da encarnação está aí, no versículo dois. Cristo é a segunda
Pessoa da Trindade santa e bendita, que, em Seu condescendente amor, desceu
para reconciliar-nos com Deus. Ele próprio é o Senhor Jeová. Ele é também
“o primogênito entre muitos irmãos”. Ele é o Senhor Jeová que Se tomou
“Jesus”, tomando sobre Si a nossa natureza, tomando sobre Si os nossos
problemas, e mesmo as nossas fraquezas, e finalmente

os nossos pecados. Ele foi às mais tenebrosas profundezas, ao ponto de sentir-Se


abandonado por Deus quando sofreu o castigo que nos cabia. Isso é “graça”, o
condescendente amor de Deus. “Deus amou o mundo de tal maneira que deu o
seu Filho unigênito.”

A próxima palavra é “Cristo” - o Senhor Jesus Cristo. Ele é o Salvador, o


Unigênito, o Messias, Aquele que foi enviado para redimir a humanidade. Ele
desceu da glória e entrou neste mundo, mas desceu a um ponto ainda mais baixo.
Ele não Se envergonhou de vestir a “semelhança da carne do pecado”. Ele sofreu
a nossa punição na cruz, Seu sangue foi derramado por nós, e nós
fomos reconciliados com Deus e temos “paz com Deus”. Ainda
mais maravilhoso, porém, tendo assumido a nossa natureza, Ele nos dá então a
Sua natureza. Pois Cristo não nos dá somente o perdão, Ele nos dá um novo
nascimento, e nos tornamos “filhos de Deus”. “O Filho de Deus tornou-Se Filho
do homem, para que os filhos dos homens se tornassem filhos de Deus”, como
João Calvino disse uma vez. Significa que não somente temos paz com Deus e
com os outros, mas também gozamos o favor de Deus porque somos filhos de
Deus em Cristo. Deus, que é Seu Deus e Seu Pai, tornou-Se nosso Deus e nosso
Pai. Por isso o apóstolo pôde dizer, incluindo-nos, a nós que somos cristãos, com
ele: “A vós graça, e paz da parte de Deus nosso Pai e da do Senhor Jesus Cristo”.
A suprema honra, a maior dádiva da graça de Deus a nós, é que nos
tornamos “filhos de Deus” e que nesta qualidade passaremos a eternidade
na presença de nosso Pai. A “graça”, totalmente imerecida, leva à paz, à filiação
e, finalmente, à glória eterna.

A ALIANÇA ETERNA
“NOS ELEGEU NELE”
10
“PELO SEU SANGUE”
TODAS AS COISAS REUNIDAS EM CRISTO
“OUVISTES, CRESTES, CONFIASTES”
EXPERIÊNCIAS REAIS E FALSAS
PROVAS DA PROFISSÃO DE FÉ CRISTÃ
SABEDORIA E REVELAÇÃO
“A SOBREEXCELENTE GRANDEZA DO SEU PODER”
“A IGREJA QUE É O SEU CORPO”
RECONCILIAÇÃO: O MÉTODO DE DEUS
O PECADO ORIGINAL
A MENSAGEM CRISTÃ PARA O MUNDO
NOS LUGARES CELESTIAIS
PELA GRAÇA POR MEIO DA FÉ
15
18
21
ORANDO NO ESPÍRITO
CIDADANIA CELESTIAL
HABITAÇÃO DE DEUS
O CRESCIMENTO DA IGREJA
“O MISTÉRIO DE CRISTO”
“A MULTIFORME SABEDORIA DE DEUS”
ORANDO AO PAI
CRISTO NO CORAÇÃO
“ALICERÇADOS EM AMOR”
“LARGURA, COMPRIMENTO, ALTURA, PROFUNDIDADE”
Devemos falar conosco mesmos dessa maneira, e apli
A GRANDIOSA DOXOLOGIA
GUARDANDO A UNIDADE DO ESPÍRITO
AYIVAMENTO
UMA SÓ FÉ
“UM... CADA UM”
APÓSTOLOS, PROFETAS, EVANGELISTAS, PASTORES E MESTRES
NÃO MAIS MENINOS
CRESCENDO
VIDA VAZIA - A VIDA SEM CRISTO
O PECADO NUM MUNDO PAGÃO
OUVINDO A CRISTO E APRENDENDO A CRISTO
QUANDO NÃO ORAR, MAS AGIR
JUSTIÇA, SANTIDADE E VERDADE
“DEIXAI A MENTIRA”
COMO COMUNICAR-NOS COM OS NOSSOS SEMELHANTES
“IMITADORES DE DEUS”
MALES QUE NEM SE DEVE MENCIONAR ENTRE OS SANTOS
FILHOS DA LUZ
AGRADÁVEL AO SENHOR
ANDANDO PRUDENTEMENTE
VIDA NO ESPIRITO
NOVA VIDA NO ESPÍRITO
Essa é a maneira de abordar este versículo particu
CASAMENTO
Aí estão, pois, como as vejo, as principais deduçõ
Por que o Senhor faz tudo isso? Por que morreu pel
Dá-se exatamente a mesma coisa na relação matrimon
O LAR
Contudo, repito: a punição, a disciplina, jamais d
TRABALHO
condição de escravidão - e coloca tudo num context
O COMBATE CRISTÃO
O INIMIGO
AS CILADAS DO DIABO
SEITAS
“FILOSOFIAS E VÃS SUTILEZAS”
O FÍSICO, O PSICOLÓGICO E O ESPIRITUAL
INVESTIDAS CONTRA A SEGURANÇA (2)
TENTAÇÃO E PECADO
O EGO
O COMBATE CRISTÃO
QUEM COMBATE?
EXERCÍCIO
“CONFIE EM DEUS E
TODA A ARMADURA DE DEUS
A ESCRITURA DA VERDADE
VESTINDO A COURAÇA
MOBILIDADE
A ESPADA DO ESPÍRITO
O SOLDADO CRISTÃO

1
Os quatro livros aí mencionados já foram publicados em português pela PES, com os seguintes títulos
e nas seguintes datas: Reconciliação: O Método de Deus (1995), Vida no Espírito (1991),
O Combate Cristão (1991), e O Soldado Cristão (1996). Nota do tradutor.

2
“Diferença. Em latim no original. Nota do tradutor.

3
No hebraico, puramente consonantal, os chamados massoretas introduziram sinais representativos
dos sons vocálicos, que eram memorizados pelos hebreus. Para isso criaram um extraordinário
sistema para representar, não somente os sons vocálicos, mas também a cadência, o ritmo etc. Eles
utilizaram os sinais vocálicos da palavra “Adonai” (“Senhor”) - ocasionalmente a palavra
“elohim” (“Deus”) e os usavam com as consoantes do nome inefável, impronunciável do Deus da
Aliança. Assim, o hábito de não se pronunciar o Nome foi preservado.

Ao se chegar ao Nome, as vogais de Adonai levavam o leitor a ler “Senhor”, e não o Nome inefável de
Deus. Os primeiros tradutores modernos desconheciam esse fato e leram a palavra como se as
consoantes e os sinais vocálicos pertencessem a uma só palavra - ao Nome inefável. Daí surgiu uma
palavra inexistente no hebraico - Jeová. As versões modernas evitam essa palavra. Algumas usam o
termo Senhor ou SENHOR. Contudo, dado o uso generalizado do termo “Jeová”, não faz mal utilizá-
lo pcasionalmente, pois, para o leitor comum fica simples o entendimento, e o leitor erudito sabe do
que se trata. Nota do tradutor.
A ALIANÇA ETERNA

“Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o qual nos abençoou com
todas as bênçãos espirituais nos lugares celestiais em Cristo.” - Efésios 1:3

Aqui, mais uma vez, temos uma das gloriosas e estonteantes declarações que se
acham tão profusamente nos escritos do apóstolo Paulo. Talvez nada seja mais
característico do seu estilo como escritor do que a freqüência com que ele parece
expor o evangelho completo numa frase ou versículo. Ele nunca se cansa de
fazer isso; ele sempre diz a mesma coisa de muitas maneiras diferentes. Esta
é uma das suas, até mesmo das suas, mais gloriosas declarações.

Portanto devemos abordá-la com cuidado e com oração. O perigo, quando


consideramos tal declaração, é ficarmos tão encantados e arrebatados pelo
próprio som das palavras e pelo arranjo delas, que nos contentamos com o efeito
passageiro e nunca nos damos o trabalho de analisá-la e, com isso, descobrir o
que exatamente ele diz. Podemos contentar-nos com um efeito puramente geral e
estético, perdendo conseqüentemente a tremenda riqueza do seu conteúdo.
Devemos, pois, ser extraordinariamente cuidadosos, para analisá-la, questioná-la
e descobrir exatamente o significado e o conteúdo de cada palavra. E devemos
fazê-lo à luz do ensino das escrituras como um todo.

A primeira coisa que temos de fazer é observar o contexto. Primeiramente, no


versículo primeiro, o apóstolo lembra aos efésios quem eles são, e o que eles
são. Depois, no versículo 2, ele eleva uma oração por eles, e lhes faz lembrar-se
das coisas que eles podem gozar e devem procurar gozar - “A vós graça, e paz
da parte de Deus nosso Pai e da do Senhor Jesus Cristo”. Tendo feito isso, agora
ele está interessado em lembrá-los de como foi que eles se tornaram o que são e
de como lhes é possível gozar estas inestimáveis bênçãos da graça e da paz. Essa
é a conexão; e de novo devemos salientar o fato de que esta saudação preliminar
não é mera formalidade; está repleta da lógica que sempre caracteriza Paulo,
o apóstolo.

Tendo-os feito lembrar-se de que são “santos”, são “fiéis” e

estão “em Cristo”, e, como resultado disso, devem estar gozando graça e paz da
parte do Senhor Jesus Cristo, ele agora passa a mostrar, neste versículo três,
como isso tudo é possível. Há um sentido em que se pode dizer verdadeiramente
que este versículo três é o centro da Epístola inteira. Acima de tudo mais, o
apóstolo está interessado em fazer isto. Ele deseja que estes cristãos cheguem ao
entendimento e à percepção de quem e do que eles são, e das grandes bênçãos
para as quais eles estão abertos. Noutras palavras, o tema é o plano da salvação,
e o caminho da salvação, este tremendo processo que nos coloca no caminho
onde estamos e aponta para Deus e para as coisas que Deus tem preparado para
nós. Paulo faz isso porque ele deseja que estes cristãos efésios e outros
entrem na sua herança para poderem gozar a vida cristã com devem, e
para viverem suas vidas para o louvor e a glória de Deus. E, naturalmente, a
mesma coisa se aplica a nós. Quer o saibamos quer não, o nosso maior problema
como cristãos hoje continua sendo a falta de entendimento e de conhecimento
das doutrinas das Escrituras. É a nossa carência fatal nesse ponto que explica
tantos fracassos em nossa vida cristã . A nossa principal necessidade, segundo
este apóstolo, é que “os olhos do nosso entendimento” sejam
abertos amplamente, não apenas para que gozemos a vida cristã e
as experiências que ela nos propicia, mas a fim de que entendamos o privilégio e
as possibilidades da nossa alta “vocação”. Quanto maior for o nosso
entendimento, mais experimentaremos estas riquezas.

Falta de conhecimento sempre foi o maior problema do povo de Deus. Essa foi a
mensagem do profeta Oséias no Velho Testamento. Diz ele que o povo de Deus
daquele tempo estava morrendo por “falta de conhecimento” (4:6). Foi sempre
esse o problema dos israelitas. Eles não se davam conta de quem eram e do que
eram, e porque eram o que eram. Se tão-somente tivessem sabido estas coisas,
nunca teriam se afastado de Deus, nunca teriam se voltado para os ídolos, nunca
teriam procurado ser como as outras nações. Sempre houve esta falta de
conhecimento. O Novo Testamento está repleto do mesmo ensino.

Portanto, devemos estudar atentamente este versículo, porque aí o apóstolo nos


apresenta este conhecimento, esta doutrina que leva ao entendimento do que
somos. Podemos fazê-lo em termos dos princípios salientados abaixo, e na
ordem em que são apresentados pelo apóstolo.

A primeira proposição é que a percepção da verdade concernente à nossa


redenção sempre leva ao louvor. Este irrompe logo na palavra “Bendito”. O
apóstolo parece alguém que está conduzindo um grande coral e orquestra. Essa
verdade Haendel parece ter compreendido muito bem; é a característica dos
seus corais mais grandiosos. Pensem no que se salienta no prelúdio de “Digno é
o Cordeiro”. O apóstolo começa com essa mesma tremenda explosão de louvor e
aclamação - “Bendito o Deus”, “Louvado seja Deus”. Ele sempre faz isso.
Examinem todas as suas Epístolas, e verão que é assim. A primeira coisa,
sempre, é louvor e ação de graças, e isso porque ele entendeu a doutrina; em
conseqüência da sua contemplação da doutrina, ele louva a Deus.

Certamente, o louvor e ação de graças devem ser sempre as grandes


características da vida cristã. Vejam por exemplo, o livro de Atos dos Apóstolos.
Já se disse que esse livro é o livro mais lírico do mundo. A despeito de toda
perseguição que aqueles cristãos primitivos tiveram que suportar, de toda a
dureza e de todas as dificuldades que tiveram de enfrentar, eles se distinguiam
por um espírito de louvor e ação de graças. Eram pessoas que se mostravam
emocionadas com um sentimento de paz, de alegria e de felicidade que nunca
tinham experimentado antes. A mesma nota se vê também em toda parte nas
Epístolas do Novo Testamento -“Regozijai-vos no Senhor”, “Regozijai-vos
sempre no Senhor”. Até mesmo no livro de Apocalipse, que retrata provações e
tribulações que o povo de Deus há de enfrentar sem sombra de dúvida, esta nota
de triunfo e louvor percorre todas as suas partes. Esta é a característica peculiar e
suprema do povo de Deus, dos cristãos.

O louvor é simplesmente inevitável, à luz do que já vimos nesta Epístola. Se


verdadeiramente captamos o que significam “graça” e “paz”, não podemos senão
louvar a Deus. Portanto, antes de passar a qualquer outro ponto, sugiro que não
existe prova mais verdadeira da nossa profissão de fé cristã do que descobrir
quão proeminente é esta nota de louvor e ação de graças em nossas vidas. Será
que é algo que se vê emanando dos nossos corações e da nossa experiência como
invariavelmente ocorria com o apóstolo Paulo? Estaria constantemente
irrompendo em nós e se manifestando em nossas vidas? Não estou me referindo
ao uso loquaz de certas palavras. Há certos cristãos que, quando vocês se
encontram com eles, ficam repetindo a frase “Glória ao Senhor” para darem
a impressão de que são cristãos jubilosos. Mas não há nada de

loquacidade fácil na linguagem do apóstolo. Não há nada de formal ou


superficial; ela vem das profundezas do coração; é algo sentido no coração.

Certamente todos concordarão que é impossível ler o Novo Testamento sem ver
que esta deve ser a realidade suprema na vida cristã. Tem que ser assim,
necessariamente, porque se o evangelho é verdadeiro quando diz que Deus
enviou Seu Filho ao mundo para fazer por nós as coisas que estamos
considerando, então é de se esperar que os cristãos sejam inteiramente diferentes
dos incrédulos; esperar-se-á que eles vivam numa relação com
Deus completament e evidente para todos, e acima de tudo mais, que apresentem
esta qualidade de alegria. Até os católicos romanos, cuja doutrina e cujo ensino
em geral tendem a ser depressivos e opor-se à certeza da salvação, antes de
“canonizarem” alguém estabelecem como um elemento essencial absoluto, esta
qualidade de alegria e de louvor. Nesse ponto eles estão absolutamente certos - o
louvor deve ser a característica de todos os “santos”, de todos os cristãos. Dai,
vemos esta constante exortação no Novo Testamento a louvarmos a Deus e a
elevemos ações de graças. É isso que nos diferencia do mundo. O mundo é
deveras mísero e infeliz; vive cheio de maldições e de queixas. Entretanto o
louvor, a ação de graças e o contentamento marcam o cristão e mostram que ele
não é mais “do mundo”.

O louvor distingue o cristão particularmente em sua oração e em seu culto a


Deus. Os manuais sobre a vida devocional que têm sido escritos através dos
séculos, independentemente dos credos denominacionais, concordam que o
ponto máximo de todo culto e de toda oração, são a adoração, o louvor e ação de
graças. Porventura não pesa sobre nós alguma culpa nesse ponto? Não
reconhecemos uma grave deficiência e carência quando consideramos
isso? Temos prazer em estar simplesmente na presença de Deus “no culto, na
adoração”? Sabemos o que é emocionar-nos constantemente e clamar, “Bendito
o nosso Deus e Pai”, e atribuir a Deus todo o louvor e exaltação e glória? Esse é
o ponto mais alto do nosso crescimento na graça, a medida de todo cristianismo
verdadeiro. E quando eu e vocês “ficamos perdidos de encanto, amor e louvor”
que realmente estamos funcionando como Deus quer que funcionemos em
Cristo.

O louvor é realmente o principal objetivo de todos os atos públicos de culto.


Todos nós devemos examinar-nos neste ponto.

Temos que lembrar-nos que o propósito primordial do culto é dar louvor e graças
a Deus. O culto deve ser da mente e do coração. Não significa apenas repetir
certas frases mecanicamente; significa o coração irromper em fervente louvor a
Deus. Não devemos vir à casa de Deus simplesmente para buscar bênçãos e
desejando várias coisas para nós, ou mesmo simplesmente para ouvir sermões;
devemos vir para servir e adorar a Deus. “Bendito o Deus e Pai” sempre deve ser
o ponto de partida, o ponto mais alto.

Observemos, porém, que o louvor, a adoração e o culto devem ser atribuídos à


Trindade santa e bendita. ‘Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o
qual nos abençoou com todas as bênção espirituais.” As bênçãos vêm por
intermédio do Espírito Santo. O louvor, o serviço e a adoração, na verdade, todo
o culto deve ser oferecido e atribuído às três Pessoas benditas. O apóstolo
Paulo jamais deixa de fazer isso. Ele se deleita em mencionar o Pai e o Filho e o
Espírito Santo. A posição cristã é sempre e inevitavelmente trinitária. O culto
cristão terá que ser trinitário, se é que há de ser culto verdadeiro; não há
contestação, nem opção quanto a isso. Se temos o correto conceito bíblico da
salvação, então as três Pessoas da Trindade santa e bendita sempre e
invariavelmente haverão de estar presentes.

Muitas vezes as pessoas se detêm numa só Pessoa. Alguns se detêm na Pessoa


do pai; falam acerca do Pai e do culto a Deus e do perdão que se pode obter de
Deus; no entanto, em toda sua prosa e conversa, o Senhor Jesus Cristo não é nem
mencionado. Algumas outras pessoas se detêm única e inteiramente no Senhor
Jesus Cristo. Concentram-se tanto nEle que pouco se ouve sobre o Pai e sobre o
Espírito Santo. Há outros cuja conversação só parece girar em torno da obra do
Espírito Santo, e eles parecem estar interessados unicamente nas manifestações
espirituais. Há esse constante perigo de esquecer-nos de que, como cristãos,
temos de, necessariamente, prestar culto às três Pessoas da Trindade santa e
bendita. O cristianismo é trinitário e sua origem e em sua continuidade.

Ora, não devemos somente ter o cuidado de verificar que as três Pessoas estejam
em nossas mentes e em nosso culto, mas também devemos ser igualmente
cuidadosos quanto à ordem em que elas nos são apresentadas nas Escrituras - o
Pai, o Filho, O Espírito Santo. Existe o que os nossos antepassados
denominavam “economia divina” ou ordem na questão da nossa salvação entre
as próprias Pessoas benditas; e assim devemos preservar sempre essa

ordem. Devemos prestar culto ao Pai mediante o Filho, pelo Espírito Santo.
Muitos cristãos evangélicos, em particular, parecem elevar todas as suas orações
ao Filho, e há outros que esquecem completamente o Filho, porém os dois erros
não formam uma coisa certa. Por isso notamos aqui, no começo desta Epístola,
que o apóstolo não somente louva, mas louva as três Pessoas benditas, e atribui a
Elas ação de graças e glória, nessa ordem invariável.

O segundo princípio é que Deus seja louvado. O meu primeiro princípio foi que
a verdadeira compreensão da natureza da salvação leva ao louvor. Agora
passamos a considerar porque as benditas Pessoas da Trindade santa devem ser
louvadas dessa maneira. Há muitas respostas a essa questão, todavia
devemos concentrar-nos na que o apóstolo salienta especialmente
neste versículo. Deus deve ser louvado porque Ele é o que Ele é. A característica
suprema ou o supremo atributo de Deus é a bem--aventurança. E indescritível,
mas se há uma qualidade, um atributo de Deus que faz de Deus Deus (falo com
reverência), se há uma coisa que faz de Deus Deus mais do que qualquer outra
coisa, é a bem-aventurança. E Deus deve ser louvado. Devemos dizer “Bendito
seja Deus” por causa do que Deus é e do que Ele faz.

Deus deve ser louvado também porque Ele nos tem abençoado: “Bendito o Deus
e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o qual nos abençoou com todas as bênçãos
espirituais”. Contudo, antes de chegarmos a isso, observamos que o apóstolo foi
adiante para algo mais. Deus deve ser louvado, e deve ser louvado por causa
da maneira pela qual Ele nos abençoa. Já fiz alusão a isso quando lembrei a
vocês a importância da nossa relação com as três Pessoas da Trindade santa e
bendita. Noutras palavras, a grandeza acentuada neste versículo é o
planejamento de nossa salvação; e não somente o planejamento, mas a maneira
pela qual foi planejada, a maneira pela qual Deus efetua a salvação. Mais uma
vez, pergunto se não devemos reconhecer-nos culpados da tendência de
negligenciar e ignorar isso? Quantas vezes já nos sentamos e
tentamos contemplar, em seqüência à leitura das Escrituras, o planejamento da
salvação, o modo como Ele elaborou o Seu plano e como Ele o pôs em
operação? A nossa salvação vem inteiramente de Deus; entretanto, por causa da
nossa mórbida preocupação com nós mesmos e com o nosso estado, o nosso
temperamento e as nossas condições, inclinamo-nos a falar da salvação somente
em termos de

nós mesmos e do que acontece conosco. Naturalmente, isso é de vital


importância, pois o verdadeiro cristianismo é experimental. Não há tal coisa
como um cristianismo que não seja experimental; contudo não é só experiência.
Na verdade, é a extensão do nosso entendimento que, em última análise,
determina a nossa experiência. Passamos tanto tempo tomando nosso pulso
espiritual e falando de nós mesmos e dos nossos sentimentos e condições, que
mal chegamos a ter um pequeno entendimento do plano daquilo que Deus tem
feito. Não obstante, geralmente o apóstolo começa com isso, como também o faz
a Bíblia.

Chamo a atenção para essa questão, não por estar animado por algum interesse
acadêmico ou teórico, mas porque nos privamos de muitas glórias e riquezas da
graça quando deixamos de dar-nos ao trabalho de entender essas coisas e de
enfrentar o ensino das Escrituras. Tendemos a tomar um capítulo por vez;
passamos adiante, e não paramos para analisar e compreender o que ele nos diz.
Alguns até chegam a tentar escusar-se dizendo que não estão interessados em
teologia e doutrina. Em vez disso, querem ser cristãos “práticos” e desfrutar o
cristianismo. Mas quão terrivelmente errôneo é isso! As Escrituras nos dão este
ensino; o apóstolo Paulo escreveu estas cartas para que pessoas como nós
pudessem entender estas coisas. Alguns daqueles a quem Paulo escreveu eram
escravos que não tinham recebido instrução secundária, nem mêsmo
primária. Muitas vezes dizemos que não temos tempo para ler - que vergonha
para nós, povo cristão! - quando a verdade é que não nos damos ao trabalho de
ler e entender a doutrina cristã. Mas é essencial que o façamos, se realmente
desejamos prestar culto a Deus. Se não há louvor na vida cristã de alguém, é
porque ele ignora estas coisas. Se desejamos louvar a Deus, temos que examinar
a verdade e dar expansão às nossas almas quando nos defrontamos com ela. Se
queremos dizer de coração “Bendito seja Deus”, temos que saber algo sobre
como Ele planejou esta grande salvação.

O grande plano de Deus é sugerido neste versículo. Houve a realização de um


grande conselho eterno entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo. O próximo
versículo nos diz quando ele foi realizado: “Como também nos elegeu nele antes
da fundação do mundo, para que fôssemos santos e irrepreensíveis diante dele
em amor”. Compreendemos que a nossa salvação foi planejada antes do
mundo ter sido planejado e criado? E a percepção deste fato que faz com que a
pessoa fique na ponta dos pé e grite louvores a Deus - “nos

elegeu nele antes da fundação do mundo”. As três benditas Pessoas no conselho


eterno estavam preocupadas conosco - o Pai, o Filho e o Espírito Santo. No
capítulo primeiro do livro de Gênesis lemos que Deus disse, “Façamos o homem
à nossa imagem”, mas, graças a Deus, aquele conselho não considerou somente
a criação do homem, porém, foi adiante e considerou também a salvação
do homem. As três Pessoas reuniram-Se em conferência (falo com reverência,
em termos das Escrituras) e a planejaram. Descartemo--nos da idéia de que a
salvação foi um pensamento que surgiu posteriormente na mente de Deus. Não
foi um pensamento que ocorreu a Deus depois que o homem caiu em pecado -
foi algo planejado “antes da fundação do mundo”. Diz-nos o apóstolo que a
obra foi dividida entre as três benditas Pessoas, cada Uma concordando em
desempenhar tarefas específicas. Foi isso que levou os teólogos antigos a
falarem em “Trindade econômica”. As três benditas Pessoas da Trindade
dividiram a obra - o Pai planejou, o Filho a pôs em operação e o Espírito Santo a
aplica.

Isso é exposto com clareza em nosso capítulo. Os versículos 4 a 6 nos falam da


parte do Pai; os versículos 7 a 12 nos falam da parte do Filho; os versículos 13 e
14 nos falam da parte do Espírito Santo - e notem que em cada caso conclui-se a
descrição com a frase: “para louvor e glória da sua graça”, ou palavras similares.
O conselho divino considerou tudo “antes da fundação do mundo”, e a obra foi
dividida e planejada dessa maneira. O Pai tem o Seu propósito, o Filho Se dispõe
voluntariamente a levá-lo a efeito, e veio e o fez, e do Espírito Santo se afirma
que Ele estava pronto a aplicá-lo.

Todavia, antes de afastar-nos deste ponto, devo acrescentar que o que realmente
aconteceu naquele conselho eterno foi que Deus redigiu uma grande aliança,
chamada aliança da graça, ou aliança da redenção. Por que o fez? Permitam-me
fazer uma pergunta a modo de resposta. Por que é que o apóstolo diz: “Bendito o
Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo”? Há quem diga que a resposta é que
ele quer que nós saibamos a espécie de Pai que Deus é. Concordo com isso.
Lembro-me de um velho pregador que uma vez disse que se dissessem a certas
pessoas que Deus é Pai, elas ficariam horrorizadas e alarmadas. Há algumas
pessoas, disse ele, para as quais o termo “pai” se refere a um ébrio que gasta
todo o dinheiro da família e vem para casa bêbado. Essa é a idéia que elas tem de
um pai; é o único pai que elas já conheceram. Por isso Deus

em Sua bondade e a fim de podermos saber que tipo de Pai Ele é, diz: Eu sou o
Pai do Senhor Jesus Cristo. O Filho é igual ao Pai; mas mesmo isso não vai
suficientemente longe; há muito mais do que isso aqui nesta passagem.

Esta nova descrição de Deus é uma das declarações mais importantes do Novo
Testamento. Voltem ao Velho Testamento, e verão Deus descrito como “o Deus
de Abraão, de Isaque e de Jacó”. Deus também Se refere a Si mesmo como “o
Deus de Israel”, entretanto agora temos “o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus
Cristo”. A finalidade disto é ensinar-nos que todas as bênçãos que nos
vêm, vêm-nos do Senhor Jesus Cristo e por intermédio dEle, e como parte
daquela aliança feita entre as três benditas Pessoas antes da fundação do mundo.
Mesmo as bênçãos vindas aos santos do Velho Testamento, vieram-lhes todas
por meio do Senhor Jesus Cristo. Antes da fundação do mundo, Deus viu o que
ia acontecer com o homem. Ele viu a Queda, e o pecado do homem que teria que
ser enfrentado, e ali o plano foi feito, e foi feito um acordo entre o Pai e o Filho.
O Pai deu um povo ao Filho, e o Filho voluntariamente Se fez responsável por
esse povo perante Deus. Acordou fazer certas coisas por ele, e Deus o Pai, de
Sua parte acordou fazer outras coisas. Deus o Pai disse que concederia perdão,
reconciliação, restauração, nova vida e uma nova natureza a todos os que
pertencessem ao Seu Filho. A condição era que o Filho viesse ao
mundo, tomasse sobre Si a natureza e o pecado da humanidade, sofresse
a punição do pecado, assumisse o lugar dos homens, sofresse por eles e os
representasse. Essa foi a aliança, esse foi o acordo feito, acordo feito “antes da
fundação do mundo”. Deus pôde falar com Adão sobre isso no Jardim do Éden,
quando lhe disse: “A semente da mulher ferirá a cabeça da serpente”. Isso foi
planejado antes da criação, e ali mesmo Deus começou a anunciá-lo.

Mais tarde foram feitos alguns arranjos subsidiários. Foram feitas alianças com
Noé, com Abraão, com Moisés. Estas não são a aliança original, feita com o
Filho. Eram alianças temporárias, mas todas essas alianças subsidiárias apontam
para esta grande aliança. Os tipos e as ofertas e sacrifícios cerimoniais, todos
apontavam para Cristo. “A lei nos serviu de aio, para nos conduzir a Cristo” e à
Sua grande oferta. A lei dada a Moisés não anula a aliança feita com Abraão,
porém essa, por sua vez, aponta para a grande aliança feita com o próprio Filho
na eternidade.

Assim é que começamos a ver por que Paulo diz: “O Deus e Pai

de nosso Senhor Jesus Cristo”. Antes de haver tempo, e antes de haver mundo,
Deus viu a nossa situação desesperadora e entrou nesse acordo com Seu Filho.
Fez um juramento, assinou-o, empenhou-Se numa aliança, comprometeu-Se. É
tudo em Cristo. Ele é o nosso Representante, Ele é o nosso Mediador, Ele é o
nosso Fiador - todas as bênçãos vêm nEle e por meio dEle. Quem pode
compreender o que isso tudo significou para o Pai, o que isso tudo significou
para o Filho, o quer isso tudo significou para o Espírito Santo? Contudo o
evangelho é isso, e é somente quando entendermos algo destas coisas que
começaremos a louvar a Deus.

Vejam a matéria desta maneira: aqui estamos eu e vocês, miseráveis vermes


neste mundo, miseráveis vermes com a nossa arrogância, com o nosso orgulho e
com a nossa pavorosa ignorância. Não merecemos nada, senão sermos
eliminados da face da terra. Mas o que aconteceu foi que, antes da fundação do
mundo, este Deus bendito, estas três benditas Pessoas, nos
consideraram, consideraram a nossa condição, consideraram o que
aconteceria conosco, e a conseqüência foi que estas três Pessoas, Deus, que
o homem jamais viu, condescenderam em considerar-nos e planejaram um meio
pelo qual fôssemos perdoados e redimidos. O Filho disse: deixarei esta glória
por algum tempo, habitarei no ventre de uma mulher, nascerei como um bebê,
serei pobre, sofrerei insultos no mundo, até deixarei que Me cravem numa cruz e
que cuspam em Meu rosto. Ele Se ofereceu voluntariamente para fazer isso
tudo por nós, e neste momento esta bendita segunda Pessoa da Trindade está
assentada à mão direita de Deus para nos representar, a mim e a vocês. Ele
desceu à terra e fez tudo isso, ressuscitou e ascendeu ao céu; e tudo isso foi
planejado “antes”,de haver mundo, e por mim e por você.

Você continuará dizendo que não se interessa por teologia? Continuará dizendo
que não tem tempo para interessar-se por doutrina? Você jamais começará a
louvar a Deus ou a servi-10 ou a adorá-10, enquanto não começar a aperceber-se
de algo do que Ele fez por você. “Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus
Cristo.” Estamos na aliança; e agora vamos tentar estudar algumas das
conseqüências daquela aliança.

“TODAS AS BÊNÇÃOS ESPIRITUAIS NOS LUGARES CELESTIAIS”

‘‘Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o qual nos abençoou com
todas as bênçãos espirituais nos lugares celestiais em Cristo.” - Efésios 1:3

Ao atentarmos de novo para este grande versículo, passamos a uma consideração


do caráter das bênçãos que gozamos como cristãos. É óbvio que o apóstolo
sentia grande prazer com as próprias expressões e palavras; estas sempre
parecem fazê-lo exclamar em adoração e ação de graças. Mais uma vez, temos
que ter o cuidado de tomar estas bênçãos na ordem certa. O apóstolo começa
com o louvor a Deus, e então passa à aliança do propósito eterno; e só depois de
fazer isso é que ele desce, por assim dizer, ao nosso nível e se põe a tratar das
bênçãos que concretamente desfrutamos.

A ordem é de extrema importância. Por causa do nosso miserável subjetivismo,


sempre temos a tendência de concentrar-nos logo nas bênçãos; sempre queremos
algo para nós mesmos. Contudo, o apóstolo insiste em que comecemos com
Deus, e com o culto que Lhe devemos. Não devemos precipitar-nos à presença
de Deus na oração nem em qualquer outro aspecto; sempre devemos
começar pela compreensão de quem Deus é. Que se pensaria de uma pessoa que
tentasse precipitar-se para dentro do Palácio de Buckingham para ver a rainha da
Inglaterra, recusando-se a considerar as questões de etiqueta? Tal aproximação
seria considerada insultuosa, e, todavia, todos nós temos a tendência de agir
dessa maneira com relação ao Todo-Poderoso, devido ao nosso grande interesse
em obter uma bênção. Mas o apóstolo insiste na ordem certa e apropriada; e
devemos considerar a natureza das bênçãos só depois que tivermos cultuado a
Deus e louvado Seu nome, e depois que tivermos compreendido o que Deus fez
a fim de que nos possibilitasse recebermos bênçãos. A verdade é que é só
quando adotamos esta ordem apostólica que realmente começamos a gozar as
bênçãos. Certamente eu posso testificar, após muitos anos de experiência
pastoral, que as pessoas que me dão a impressão de que são

sumamente infelizes em sua vida espiritual são as que estão sempre pensando em
si mesmas e em suas bênçãos, seu temperamento, seus estados e condições. Para
se receber bênçãos é preciso contemplar a Deus; e quanto mais O cultuarmos,
mais gozaremos Suas bênçãos. Isso é muito prático. O homem prático não é o
que corre atrás de bênçãos, porém o que considera a Fonte das bênçãos e se
mantém em contato com essa Fonte.

A primeira coisa que se deve observar é a maneira pela qual nos vêm essas
bênçãos. Elas nos vêm “em Cristo”. Embora essa expressão esteja no fim do
versículo, ela é vital: “Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o qual
nos abençoou com todas as bênçãos espirituais nos lugares celestiais em Cristo”.
Se vocês deixarem de lado “em Cristo”, nunca terão bênção nenhuma.
Naturalmente, isso é axial e central em conexão com a totalidade da nossa fé
cristã. Toda bênção que gozamos como cristãos nos vem por meio do Senhor
Jesus Cristo. Deus tem bênçãos para todas as espécies e condições de homens. O
Sermão do Monte, por exemplo, ministra-nos o ensino do nosso Senhor segundo
o qual Deus “faz que o seu sol se levante sobre maus e bons” (Mateus 5:45).
Há certas bênçãos comuns e gerais que são desfrutadas pela humanidade toda.
Há o que se chama “graça comum”, entretanto não é disso que o apóstolo está
tratando aqui. Aqui ele está tratando da graça particular, da graça especial, das
bênçãos desfrutadas unicamente pelo povo cristão. O mau como o bom, o justo
como o injusto, gozam bênçãos comuns, mas ninguém senão os cristãos gozam
estas bênçãos especiais. Muitas vezes as pessoas tropeçam nesta verdade,
todavia a distinção é traçada claramente nas Escrituras. Os ímpios podem gozar
muitas bênçãos neste mundo, e as suas bênçãos lhes vêm de Deus de modo geral,
porém eles nada sabem das bênçãos mencionadas neste versículo. Paulo está
escrevendo aqui a cristãos, e o seu interesse é que eles entendam e tomem para si
as bênçãos e os privilégios que lhe são possíveis como cristãos, e assim ele
acentua que todas essas bênçãos vêm no Senhor Jesus Cristo e por intermédio
dEle, e unicamente nEle e por meio dEle. Você não pode ser cristão sem estar
“em Cristo”. Cristo é o princípio, como também o fim, Ele é o Alfa, como
também o Ômega; não há bênçãos para os cristãos fora de Cristo.

Também devemos salientar que as bênçãos vêm exclusivamente no Senhor Jesus


Cristo e por intermédio dEle. Ele não tem nenhum

assistente - “Nenhum outro nome há, dado entre os homens, pelo qual devamos
ser salvos”, diz Pedro em Atos 4:12. Uma tradução alternativa disso é, “não há
um segundo nome”. O Senhor Jesus Cristo não tem necessidade de nenhum
assistente, de nenhum suplemento. Toda e qualquer bênção está nEle, nem uma
única bênção vem de outro lugar. Ele é o único canal; há “um só mediador entre
Deus e os homens, Jesus Cristo homem” (1 Timóteo 2: 5). Portanto, toda a
conversa sobre um “Congresso Mundial das Crenças”, ou toda defesa de um
ecletismo no qual, das diversas religiões do mundo você pode escolher a melhor,
é uma negação do cristianismo. No momento em que você acrescenta algum
nome ao nome do Senhor Jesus Cristo você O está diminuindo. Ao mesmo
tempo, você está se iludindo. Esta grande mensagem que, dentre todos
os apóstolos, foi confiada a Paulo, dá ênfase a esta particularidade, a esta
exclusividade, a esta intolerância para com quaisquer outras sugestões ou
acréscimos.

Vê-se esta ênfase talvez mais claramente ainda, telvez, na Epístola aos
Colossenses: “Foi do agrado do Pai que toda plenitude nele (no Senhor Jesus
Cristo) habitasse” (Colossenses 1:19). É tudo nEle. No fim deste capítulo desta
Epístola aos Efésios lemos também : “E sujeitou todas as coisas a seus pés, e
sobre todas as coisas o constituiu como cabeça da igreja, que é o seu corpo, a
plenitude daquele que cumpre tudo em todos” (vers. 22-23). Paulo não se
contenta em dizer isso uma vez. Ele o diz de novo no capítulo dois da
Epístola aos Colossenses: “Em quem estão escondidos todos os tesouros
da sabedoria e do conhecimento” (versículo 3). Não se pode acrescentar nada a
isso; todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento estão em Cristo, toda a
plenitude da deidade está nEle. “Nele habita corporalmente toda a plenitude da
divindade” (Colossenses 2:9). Cristo é o único Mediador de todas as bênçãos, o
único e exclusivo canal por meio do qual elas vêm. Repito e saliento isto porque
sei em meu coração e por minha experiência, como o sei pela experiência de
outros, quão propensos nós somos a esquecê-lo, como nos inclinamos a ir à
presença de Deus em oração sem compreender a absoluta necessidade de ir em
Cristo e mediante Cristo.

O apóstolo João expõe a mesma verdade quando, referindo-se a si mesmo e aos


seus colegas de apostolado, ele diz: “Vimos a sua glória, como a glória do
unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade. ... E todos nós recebemos também
da sua plenitude, e graça por (ou sobre) graça” (João 1:14-16). Noutras palavras,
o cristão é

o que é porque se uniu ao Senhor Jesus Cristo. Quer dizer, ele, como vimos no
primeiro versículo, está “em Cristo Jesus”. A vida completa para cada uma das
partes do corpo, vem da Cabeça; é a nossa união mística com Ele, a nossa
misteriosa relação com Ele, que explica o que somos. O cristão é um participante
da vida do Filho de Deus. A vida completa vem dEle, e nós simplesmente a
haurimos dEle. “De Ti bebemos, Manancial”. Os nosso hinos, como também as
Escrituras, afirmam esta verdade muitas vezes; os santos dos séculos se
aperceberam dela. Não há nada tão importante quanto a nossa relação com o
Senhor Jesus Cristo. E por isso que Paulo fica nos lembrando isso; e não
devemos esquecê-lo jamais. Sem Ele, ainda estamos “em nossos pecados”.
Todas as bênçãos que desfrutamos, todo bem que realizamos ou
experimentamos, tudo vem dEle. “Toda idéia de santidade é unicamente dEle”,
do Senhor Jesus Cristo.

A segunda verdade acerca destas bênçãos, o apóstolo continua a ressaltar, é que


elas são “espirituais”. “Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o
qual nos abençoou com toda sorte de bênçãos espirituais.” Este é um acréscimo
importante, uma qualificação essencial. Estas bênçãos vêm de Cristo, mas
também vêm por meio do Espírito; são bênçãos mediadas a nós da parte
de Deus, por meio de Cristo, via1 o Espírito Santo. É pelo Espírito Santo que
elas passam a ser nossas. Mais uma vez, não podemos senão fazer uma pausa,
cheios de encanto e de admiração, face a perfeição deste glorioso plano de
salvação levado a efeito pela “Trindade econômica”, o Pai, o Filho e o Espírito
Santo, para a nossa redenção.

Mas a obra específica de aplicar a nós a salvação que há em Cristo é realizada


pelo e o Espírito Santo. Seu propósito e função é glorificar o Senhor Jesus
Cristo, e o que Ele faz é possibilitar que recebamos tudo o que Ele fez por nós e
tudo o que Ele nos torna possível. Daí, uma boa maneira de examinar a vida do
cristão nesse mundo é observar o Senhor Jesus Cristo quando esteve na
terra. Embora sendo Ele o eterno Filho de Deus, Ele veio e assumiu a natureza
humana. Tendo decidido viver nesse mundo como homem, Ele não fez uso das
prerrogativas da sua deidade para salvar-nos, mas viveu a Sua vida entre os
homens. Portanto, foi necessário que

Ele recebesse o Espírito Santo, e no Evangelho Segundo João nos é dito que
“não lhe dá Deus o Espírito por medida” (3:34). Em Seu batismo, quando nosso
Senhor estava dando início ao Seu ministério público, o Espírito Santo desceu
sobre Ele para habilitá-10 e ungi-10 para Sua grande tarefa. Isso era necessário,
porque Ele estava vivendo nesse mundo como homem.

Pois bem, a estupenda verdade ensinada aqui é que, como o Espírito encheu Sua
vida e O habilitou a viver como se descreve nos Evangelhos, a mesma coisa nos
é possível, por intermédio dEle. O mesmo Espírito Santo que habitou nEle habita
em nós, cristãos, e não somente isso, Ele nos traz a vida do próprio Cristo e dela
nos enche.

Assim é que as bênçãos que gozamos como cristãos são, todas elas, bênçãos no
Espírito Santo e por intermédio dEle. Esse é o tipo de vida, essa é a qualidade de
vida que se espera que vivamos como cristãos diz o apóstolo João, num
notável versículo de sua Primeira Epístola, que “qual ele é, somos nós também
neste mundo” (4:17). Não é nosso propósito aqui agora desenvolver isto em
detalhe; mas sabemos que o Espírito nos vem vivificar. Pensem em Cristo
em toda Sua plenitude, e pensem no pecador em seu pecado - “mortos em
ofensas e pecados”. Como pode tal pessoa vir a ser espiritual? O Espírito Santo
vem e nos vivifica. “E vos vivificou estando vós mortos em ofensas e pecados”
(Efésios 2:1). Ele começa esse processo de iluminação, Ele começa a dar-nos
capacidade para penetrar nas coisas espirituais.

O homem, por natureza, não se interessa pelas coisas espirituais; estas lhe
parecem estranhamente remotas. Ele está interessado na vida deste mundo, nas
coisas que se pode ver, tocar, sentir e manipular; porém quando você começa a
falar com ele sobre a alma e sobre as coisas do espirito, ele realmente não sabe
do que você está falando. Isso porque ele está morto, e a sua vida é
governada pelo “príncipe das potestades do ar”. Ele está interessado em
casas, cavalos, cães, animais, móveis, prazeres de vários tipos, e negócios e
grandes realizações; todavia, comece a falar com ele sobre a comunhão com
Deus e a vida do Espírito, e ele de imediato se vê numa esfera completamente
estranha. E permanecerá nessas condições enquanto o Espírito Santo não
começar a vivificá-lo e a colocar um princípio espiritual em sua vida. Ele
necessita mente espiritual, perspectiva espiritual e entendimento espiritual; e o
Espírito lhe dá essas bênçãos na regeneração. Essas são as bênçãos

preliminares que nos vêm por meio do Espírito para preparar-nos para
recebermos a plenitude que está em Cristo. Ele então passa a convencer-nos do
pecado, a fazer-nos ver algo da nossa total vacuidade e miséria. Ele nos faz ver
quão espantoso é que não tivéssemos nenhum interesse por Deus, que para nós
as coisas da eternidade fossem tão completamente remotas, e que essas
coisas grandiosas do Espírito nos parecessem tão aborrecidas e sem atrativos.
Ele nos faz ver a enormidade do nosso pecado.

A seguir, o Espírito Santo nos leva gradativamente a contemplar o Senhor Jesus


Cristo e a Sua obra perfeita em nosso favor. Ele nos dá o dom da fé pela graça.
“Pela graça sois salvos, por meio da fé” (Efésios 2:8). O Espírito cria fé dentro
de nós. “O homem natural não compreende as coisas do Espírito de Deus,
porque lhe parecem loucura; e não pode entendê-las, porque elas se
discernem espiritualmente” (ICoríntios 2:14). Por isso o Espírito nos capacita a
exercer esse dom da fé, e assim passamos a crer no Senhor Jesus Cristo. São
estas as partes daquele misterioso processo que leva à nossa união com Cristo, e
que são descritas como novo nascimento, o ato pelo qual somos ligados a Cristo
como o ramo está ligado à videira. Depois o Espírito Santo nos conduz, nos guia
e nos mantém nesta união, de modo que somos capacitados progressivamente
a receber a plenitude de Cristo, e “graça sobre graça”, “graça após graça”. Desse
modo somos “transformados de glória em glória”, e assim prossegue a obra em
nós. Isso não é teoria; é fato, é verdade. É o que acontece conosco, na qualidade
de cristãos; esse é o método divino de salvação. Esse método está em operação
nos cristãos que estão no mundo hoje. Tudo nos vem por meio de Cristo, e
como resultado desta obra do Espírito Santo. São estas as bênçãos “espirituais”,
as bênçãos do Espírito Santo que nos vêm porque o Espírito Santo habita dentro
de nós. Os nossos corpos são “o templo do Espírito Santo”, que habita em nós
(ICoríntios 6:19).

Devemos a seguir passar a examinar o caráter real destas bênçãos. A primeira


coisa que o apóstolo nos diz a respeito delas é que estão “nos lugares celestiais”.
“Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o qual nos abençoou com
todas as bênçãos espirituais nos lugares celestiais em Cristo.” Quando vocês
lêem esta Epístola aos Efésios, vocês param para considerar essa expressão -
“nos lugares celestiais”? Vocês acham que a eloqüência de Paulo o conduziu ao
exagero? Se acham, vocês não se deram conta
de que estas definições são sólidas, são palavras que precisam ser analisadas
ponto por ponto. Cada uma das expressões está cheia de significado. As bênçãos
que gozam estão “nos lugares celestiais”. Não há dúvida de que nessa expressão
o apóstolo tem em mente o contraste que já vimos na maneira pela qual ele
descreve Deus como “O Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo”, e não como
“O Deus de Abraão, e de Isaque, e de Jacó”. Paulo nos lembra que, assim como
a aliança e o representante são diferentes, assim também as bênçãos são
diferentes.

No Velho Testamento as bênçãos vinham em boa parte, na verdade na maior


parte, no sentido material e temporal. Naquele tempo se avaliava se um homem
era abençoado ou não pelo número de cabeças de gado que tinha, pelo número
de ovelhas e cabras, e pela extensão das terras que possuía. O método pelo qual
Deus tratava os homens nos tempos do Velho Testamento era mais
pictórico. Frequentemente agia de maneira visível. Naquele tempo Ele ensinava
as pessoas como se faz com as crianças, e assim lhes dava bênçãos externas
óbvias que, sendo mormente terrenas, podiam ser vistas na terra. Mas, quando
adentramos o Novo Testamento, entramos num domínio inteiramente diverso.
Aqui as bênçãos são “nos lugares celestiais”. Devemos buscar estas bênçãos, não
tanto aqui na terra, mas “nos lugares celestiais”, além do alcance da vista.

É evidente que aqui nos defrontamos face a face com um princípio


neotestamentário muito importante. Permitam-me declará-lo categoricamente: a
fé cristã é franca e abertamente de outra esfera. Exponho o tema ousadamente
porque sei que este princípio não é popular hoje, quando a ênfase é ao “aqui e
agora”. Isso explica a atual apostasia que grassa na Igreja, como foi o evangelho
social tão apregoado na parte inicial deste século e em fins do século passado. O
ensino era que o cristianismo é uma coisa que endireita as condições sociais, e
que trata dos problemas políticos no “aqui e agora”. O homem moderno, dizia-
nos, não está interessado num conceito extra-mundo. Mas, gostemos ou não, o
fato é que as bênçãos que gozamos em Cristo estão nos lugares celestiais”.

Contudo, devemos entender que isso não significa uma coisa completa e
exclusivamente extraterrenal. Não significa que devemos tornar-nos
automaticamente monges ou eremitas ou anacoretas; mas significa, sim, que nós
temos que ter uma correta visão deste mundo e da nossa relação com ele. O
cristão, segundo o Novo Testamento, está numa posição muito estranha e
maravilhosa; ele
continua neste mundo, porém realmente não lhe pertence. Este mesmo apóstolo,
escrevendo aos Filipenses, diz: “A nossa cidade está nos céus”, ou, como James
Moffatt o traduziu, “Somos uma colônia dos céus” (3:20). A nossa verdadeira
cidadania está nos céus. O apóstolo emprega com freqüência esta idéia de
cidadania, e afirma que não pertencemos a nenhuma cidade ou estado
terrestre. Simplesmente residimos aqui, longe do lar; a nossa cidadania não
é aqui; mas nos céus. Um conhecido hino expõe isso muito bem -

Sou estrangeiro aqui,

O céu é o meu lar.

O apóstolo Pedro igualmente expressa a mesma idéia, Quando escreve:


“Amados, peço-vos, como a peregrinos e forasteiros, que vos abstenhais das
concupiscências carnais” (1 Pedro 2:11). Somps simplesmente “peregrinos e
forasteiros” neste mundo; não pertencemos a ele. Os cristãos são como pessoas
que estão viajando, de férias; e devem lembrar-se do país do qual saíram, o
domínio a qual pertencem. Esse é o ensino de todo o Novo Testamento. O cristão
é alguém que está passando por este mundo. Não significa que ele o despreze,
porquanto o mundo é de Deus, e devemos ver os sinais da obra da mão de Deus
no mundo. Devemos fruir a criação, devemos fruir toda a beleza e toda
manifestação da obra realizada por Deus. “Os ceus manifestam a glória de
Deus”, e, dentre todas as pessoas, os cristãos devem aperceber-se disso e
desfrutá-lo. Não obstante, nós, como cristãos, sabemos que, embora este mundo
seja de Deus, como de fato é, não deixa de ser um mundo decaído; sabemos que
o pecado penetrou nele e, portanto, apesar deste mundo continuar sendo de
Deus, pode ser perigoso para nós. Portanto, jamais devemos “conformar-nos”
com a sua perspectiva, com a sua mente e com a sua mentalidade. A mente e a
perspectiva do mundo estão sob o domínio do “príncipe das potestades do ar, do
espírito que agora opera nos filhos da desobediência”. Noutras palavras,
o cristão olha para este mundo de maneira inteiramente diferente do não cristão.
Ele o vê como o mundo do seu Pai, um mundo de glória e de encanto. Não é o
mundo dos jornais de domingo; é um mundo que pertence a Deus. O cristão não
se amolda a ele, todavia “se transforma pela renovação da sua mente”. ,

É muito difícil transpor isso tudo para a linguagem, mas é o que os escritores do
Novo Testamento ficam dizendo e repetindo.

Houve tempo em que o apóstolo passou por grande dificuldade neste mundo,
porém ele diz: “A nossa leve e momentânea tribulação produz para nós um peso
eterno de glória mui excelente” (2 Coríntios 4:17). E “Se a nossa casa terrestre
deste tabemáculo se desfizer, temos de Deus um edifício, uma casa não feita por
mãos, eterna, nos céus” (2 Coríntios 5:1). Isso é típico do seu conceito extra--
mundo. De novo, na Epístola aos Colossenses ele diz: “Pensai nas coisas que são
de cima, e não nas que são da terra” (VA: “ponde o vosso afeto...”) (3:2). A
relação do cristão com este mundo consiste em que ele compreende que este
mundo é de Deus e que ele pode gozá-lo e gozar tudo o que Deus lhe dá nele e
por meio dele; mas ele nunca põe o seu afeto nele. Por essa razão, a atitude do
cristão para com as coisas deste mundo, e para com as discussões e disputas que
lavram entre os homens e as mulheres, é sempre uma atitude de desapego.

Ouvi recentemente duas declarações que ilustram o meu ponto. Ouvi um homem
dizer que não pode entender como um cristão pode ser um conservador
(politicamente). Mas ouvi outro dizer que realmente não entende como é
possível algum cristão ser um socialista. O fato é que os dois estavam errados;
toda tentativa de igualar o ensino do Novo Testamento ao de qualquer dos
partidos políticos, ou de algum outro tipo de partido, é fazer violência ao ensino
de Cristo. O cristão, por definição, não se entusiasma com essas coisas; ele as
toma de leve, porque o céu é o seu lar. Ele é um cidadão do céu, e as suas
bênçãos estão lá, não na terra. Embora receba, como recebe, muitas bênçãos
temporais enquanto está aqui na terra, as verdadeiras bênçãos estão nos lugares
celestiais em Cristo Jesus. Regozijar-se neste ensino, ou decepcionar-se e não
gostar desta religião extraterrena, depende da idéia que você faz de si próprio e
da sua alma. Se você se vê pelo que você é realmente, a saber, um viajor
passando por este mundo, você não somente não se queixará desta perspectiva
extra-mundo, mas também dará graças a Deus por ela, e saberá algo sobre a
herança “incorruptível, incontaminável, e que se não pode murchar, guardada
nos céus para vós que mediante a fé estais guardados na virtude de Deus para a
salvação, já prestes para se revelar no último tempo” (1 Pedro 1:4-6).

A próxima palavra que chama a nossa atenção é a palavra “todas” - nos


abençoou com “todas as bênçãos espirituais”. Que palavra pequena, e, todavia,
que poderosa! Ela inclui tudo o que

podemos necessitar. Diz Pedro, no capítulo primeiro da sua Segunda Epístola,


que “tudo o que diz respeito à vida e à piedade” nos é propiciado, e que
grandíssimas e preciosas promessas” nos são dadas por Deus. Não se pode
conceber nada mais grandioso. As bênçãos que nos cabe gozar nesta vida, todas
as bênçãos de Deus em Cristo pelo Espírito concebíveis, são descritas de
maneira maravilhosa por Paulo nesta Epístola aos Efésios. Começam com
o perdão e vão até “toda a plenitude de Deus”. O perdão é mencionado no
versículo 7 (YA) do capítulo primeiro, e “toda a plenitude de Deus” no capítulo
3, versículo 19. Que bênçãos! Perdão significa que o seu passado foi riscado e
lançado ao mar do esquecimento de Deus - “Quanto está longe o Oriente do
Ocidente” (Salmo 103:12). Deus nos reconciliou conSigo. Já nos damos bem
com Ele, e nos aproximamos dEle, não mais com temor covarde, mas com santa
ousadia e, não obstante, com santo temor. Depois chegamos ao grande termo
“adoção”. “E nos predestinou para filhos de adoção por Jesus Cristo, para si
mesmo.” Não somos apenas perdoados e depois deixados na mesma situação;
somos introduzidos na família de Deus. Esse é o grande tema do capítulo dois -
“...vós, que antes estáveis longe, já pelo sangue de Cristo chegastes perto”
(versículo 13). Éramos estrangeiros e forasteiros, estávamos fora da comunidade
de Israel, porém agora nos tornamos “concidadãos dos santos, e da família de
Deus” (versículo 19). É como se um sujo e miserável moleque de rua, em trapos
e farrapos, fosse tomado pela mão e levado para dentro de um palácio, fosse
lavado e adotado como filho, tornando-se membro da família. E, resultante disso
tudo, gozamos comunhão com Deus, com o Pai e com o Filho mediante o
Espírito. “E a vida eterna é esta: que te conheçam, a ti só, por único Deus
verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste” (João 17:3). Acrescente-se a isso o
tema da santificação progressiva, o qual significa que você não somente parece
limpo, e sim que você está limpo. Você não somente foi vestidos com a roupa
sem manchas da justiça de Cristo, mas Ele está agindo dentro de você, e fazendo
que você se conforme cada vez mais com Ele, até que finalmente venha a tomar-
se “imaculado e irrepreensível” (2 Pedro 3:14).

Ao mesmo tempo, Ele dará a você poder para resistir ao pecado e a satanás. No
último capítulo desta Epístola são-nos dadas instruções espirituais - “Tomai toda
armadura de Deus” (6:13). A armadura nos é dada gratuitamente, porém em
acréscimo nos é dada

a força de Cristo para usá-la. “Fortalecei-vos no Senhor e na força do seu poder”


(6:10). Ao mesmo tempo, podemos gozar paz com Deus - paz interior, paz com
os outros - e felicidade, e “gozo inefável e glorioso” (1 Pedro 1:8), consolo na
aflição, amparo na provação. Não podemos esgotar a lista destas bênçãos “nos
lugares celestiais”, mas devemos concluir com esta: “para que sejais cheios de
toda a plenitude de Deus” (Efésios 3:19).
Essas são algumas das bênçãos, das bênçãos espirituais que estão em Cristo para
nós. Alguém poderá perguntar se tudo isso é válido para nós hoje, e se essas
coisas não estão destinadas somente a pessoas muito excepcionais. A resposta é
que elas se destinam a todos os cristãos - a mim e a vocês. Paulo diz: “Bendito o
Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o qual nos abençoou”. Ele não está
dizendo que Deus pretende abençoar-nos no futuro; o que era necessário para a
obtenção destas bênçãos foi feito uma vez por todas; já aconteceu.

Para quando será o gozo de todas essas grandes, ricas e estupendas bênçãos? A
resposta é: aqui e agora! Evidentemente, tudo isso nos vem de maneira
progressiva, pois, se “a plenitude da divindade” entrasse em nós repentinamente,
racharíamos e arrebentaríamos. Por isso ela nos vem aos poucos,
progressivamente. “Em quem também vós estais, depois que ouvistes a palavra
da verdade, o evangelho da vossa salvação; e, tendo nele também crido,
fostes selados com o Espírito Santo da promessa. O qual é o penhor da nossa
herança para a redenção da possessão de Deus, para louvor da sua glória”
(versículos 13 e 14). Ele nos dá ai uma prelibação de algo vindouro, a primeira
entrega parcial de uma grande herança. Recebemos muito aqui e agora, no
entanto as coisas que desfrutamos agora são apenas o começo, a sombra. O
nosso recebimento aumentará e se desenvolverá, até que, final e
conclusivamente, receberemos tudo em sua gloriosa e bem-aventurada plenitude,
e o gozaremos para todo o sempre. “Amados”, digo eu com João, em sua
Primeira Epístola, “agora somos filhos de Deus, e ainda não é manifestado o que
havemos de ser. Mas sabemos que, quando ele se manifestar, seremos
semelhantes a ele; porque assim como é o veremos” (3:2). Já somos filhos de
Deus e, portanto, devemos estar desfrutando estas coisas, comendo algo das
primícias. Você as está desfrutando? Deus já nos tem dado muitas bênçãos; e
estas vão aumentando, até quando raiar o dia bendito em que a
“possessão” adquirida será finalmente redimida, e seremos conduzidos à Sua

gloriosa presença. Então, para usar as palavras do hino, nós O “contemplaremos


e contemplaremos”, e gozaremos uma eternidade face a face com Deus. Lá não
haverá pecado, nada que cause ofensa; gozaremos a presença de Deus para todo
o sempre. “Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o qual nos
abençoou com todas as bênçãos espirituais nos lugares celestiais.”

“NOS LUGARES CELESTIAIS”

“Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o qual nos abençoou
com todas as bênçãos espirituais nos lugares celestiais em Cristo.” - Efésios 1:3

Já temos visto que muitos erram em todo o seu pensamento sobre o cristianismo
porque partem de um ponto de vista errado. Eles têm uma concepção
materialista do cristianismo, e não se dão conta de que a fé cristã é positivamente
extra-mundo. A conseqüência é que eles ficam constantemente em dificuldade.
Há muitos que dizem que não podem ser cristãos por causa do estado do mundo
e das coisas que estão acontecendo nele. O argumento deles é que, se Deus é
amor, que promete abençoar todo aquele que O buscar, os cristãos não deveriam
sofrer - não deveriam adoecer ou sofrer adversidade. Temos aí um claro exemplo
daqueles mal-entendidos resultantes da não percepção de que as bênçãos
advindas ao cristão são “espirituais” e estão “nos lugares celestiais”.

Mas devemos examinar este assunto de maneira mais minuciosa. Nem nesta
Epístola, nem em qualquer outro lugar, o apóstolo sobe a maiores alturas do que
neste versículo particular, onde ele nos eleva aos “mais altos céus” e nos mostra
o ponto de vista cristão em sua maior glória e majestade. De muitas maneiras a
expressão “nos lugares celestiais” é a chave desta Epístola, em particular,
onde ela ocorre não menos que cinco vezes. Acha-se neste versículo 3, e também
no versículo 20 deste capítulo primeiro, onde Paulo escreve sobre o fato de
Cristo estar assentado à mão direita de Deus nos lugares celestiais. Alguns
comentaristas não gostam da palavra “lugares”, pois acham que ela tende a
localizar o conceito. Contudo, não basta dizer “celestiais”. Vê-se a mesma
expressão também no capítulo 2, versículo 6, e no versículo 10 do capítulo 3. A
última referência é no versículo 12 do capítulo 6, na declaração: “Não temos que
lutar contra a carne e o sangue, mas sim contra os principados, contra as
potestades, contra os príncipes das trevas deste século, contra as hostes
espirituais da maldade, nos lugares celestiais”. É óbvio que o apóstolo não
repetiria esta frase, se ela não tivesse um significado real e profundo; e ela é,
repito, uma das

apresentações mais gloriosas da verdade cristã. Se tão-somente pudéssemos


enxergar como nós estamos em Cristo nos lugares celestiais, isso faria uma
revolução em nossas vidas, e mudaria toda a nossa maneira de ver.

Ao empregar a frase “nos lugares celestiais”, o apóstolo emprega uma expressão


descritiva quejera muito popular no século primeiro. Era uma concepção judaica
típica. Ele faz uso da mesma idéia na Segunda Epístola aos Coríntiòs, capítulo
12, onde nos dá um pouco de biografia, e no versículo 2 diz: conheço um
homem em Cristo que há catorze anos (se no corpo não sei, se fora do corpo não
sei: Deus o sabe) foi arrebatado até o terceiro céu”. A expressão “terceiro céu” é
exatamente idêntica a “lugares celestiais”, nos termos em que é empregada nesta
Epístola aos Efésios. Segundo essa concepção, o primeiro céu é o que se pode
descrever como o céu atmosférico, onde ficam as nuvens. O segundo céu pode
ser descrito como o céu estelar; é aquela parte das regiões superiores onde estão
colocados o sol, a lua e as estrelas. Essa parte está muito mais distante de nós do
que as nuvens ou o céu atmosférico, e os números astronômicos utilizados pelos
cientistas lembram-nos que os céus estelares estão a uma tremenda distância de
nós.

Contudo, há um “terceiro céu”, que não se trata do céu atmosférico nem do céu
estelar. Trata-se da esfera em que Deus, de maneira muito especial, manifesta a
Sua presença e a Sua glória. É também o lugar em que o Senhor Jesus Cristo, em
Seu corpo ressurreto, habita. Além disso, é o lugar em que os “principados
e potestades” aos quais o apóstolo se refere no capítulo 3 têm a sua habitação; na
verdade, é o lugar a respeito do qual lemos no capítulo 5 de Apocalipse, onde a
glória de Deus se manifesta. Lemos ali a respeito de Cristo em Seu corpo
glorificado, “um Cordeiro, como havendo sido morto”, dos brilhantes espíritos
angélicos, dos animais e dos “vinte e quatro anciãos”. Todos esses
dignitários angélicos e poderes têm sua habitação ali. E, ainda mais maravilhoso
e glorioso, ali também estão “os espíritos dos justos aperfeiçoados”. Os que
morreram no Senhor, “em Cristo”, estão ali com Cristo neste momento. Estão
nos “lugares celestiais”, no “terceiro céu”, naquele domínio em que Deus
manifesta algo da Sua glória eterna.

Agora podemos passar a considerar o sentido da expressão “nos lugares


celestiais” à luz destas cinco referências a ela nesta Epístola aos Efésios. O
Senhor Jesus Cristo, ressurreto dentre os mortos, já

está naquele domínio em Seu corpo glorificado, como disso nos faz lembrar o
versículo 20. O que, portanto, o apóstolo está dizendo é que tudo o que temos, e
tudo o que gozamos como cristãos, vem de Cristo, que está naquela esfera, e por
meio dEle. Mais que isso, pelo novo nascimento, por nossa regeneração, somos
ligados ao Senhor Jesus Cristo, e nos tornemos partícipes de Sua vida e de todas
as bênçãos que dEle vêm. O ensino do apóstolo é que nos estamos “em Cristo”.
Somos parte de Cristo; estamos tão ligados a Ele por esta união orgânica mista
que tudo quanto lhe seja próprio, nos é próprio espiritualmente. Assim como Ele
está nos lugares celestiais, assim também nós estamos nos lugares celestiais. As
bênçãos que gozamos como cristãos são bênçãos “nos lugares celestiais”
porque elas fluem de Cristo que lá está.

É minha opinião que aqui vemos mais claramente do que em qualquer outro
lugar a profunda mudança a que alguém se sujeita por tornar-se cristão. Não se
trata de uma mudança superficial, não é apenas que vestimos uma roupa de
respeitabilidade ou decência ou moralidade, não é um melhoramento na
superfície ou uma mudança temporal. É tão profunda como o fato de que somos
tomados de um reino e colocados em outro. Assim como Deus tirou o
Senhor Jesus Cristo do túmulo, e dentre os mortos, e O colocou à Sua
mão direita nos lugares celestiais, assim o apóstolo ensina que a mudança pela
qual passamos em nosso novo nascimento e regeneração leva a esta
correspondente mudança em nós. É a fim de que os cristãos efésios possam
entender isso mais completamente que Paulo ora por eles: para que “tendo
iluminados os olhos do vosso entendimento... saibais qual seja a esperança da
sua vocação, e quais as riquezas da glória da sua herança nos santos; e qual a
sobreexcelente grandeza do seu poder sobre nós, os que cremos, segundo
a operação da força de seu poder, que manifestou em Cristo, ressuscitando-o dos
mortos, e pondo-o à sua direita nos céus” (VA: “nos lugares celestiais”). Essa, e
nada menos que essa, é a verdade acerca do cristão. Dada a limitação das nossas
capacidades, em conseqüência da nossa condição finita e do nosso pecado,
achamos muito difícil apossar-nos destas coisas; mas tudo o que esta
Epístola aos Efésios procura fazer é concitar-nos a lutar para que tomemos posse
delas, a orar pedindo iluminação para podermos entender.

A dificuldade surge pelo fato de que o cristão é, necessariamente, num certo


sentido, dois homens em um ao mesmo tempo. E

óbvio (não é?) que os cristãos simplesmente não podem entender nada destas
questões. O apóstolo expõe isso claramente no capítulo 2 da Primeira Epístola
aos Coríntios, onde ele descreve a diferença entre o homem “natural” e o
“espiritual”. Ele escreve: “O que é espiritual discerne bem tudo, e ele de
ninguém é discernido”. “Discernir” (VA: julgar) significa entender. O cristão, diz
Paulo, entende todas as coisas, mas ele mesmo não é entendido por ninguém. Ele
é, por definição, um homem que o incrédulo não tem a mínima possibilidade de
entender. Portanto, um dos melhores testes que podemos aplicar a nós mesmos é
descobrir se as pessoas acham difícil entender-nos porque somos cristãos. Se a
afirmação de Paulo é verdadeira, o cristão deve ser um enigma para todos os não
cristãos”. Aquele que não é cristão acha que há algo estranho quanto ao cristão;
este não é como os outros, é diferente. É como tem que ser, por definição,
porque o cristão tem esta vida celestial e pertence a este domínio celestial.
Entretanto, ele não somente escapa ao entendimento do não cristão: num sentido
é certo dizer que ele próprio não pode entender a si mesmo. Ele tornou-se
um problema para si próprio, por causa dessa nova natureza que há nele.. “Vivo,
não mais eu, mas Cristo vive em mim” (Gálatas 2:20). Eu sou eu e não sou eu.

Analisemos isto um pouco mais. O cristão tem duas naturezas. Num sentido ele
ainda é um homem natural. O que por nascimento ele herdou de seus
antepassados, ele ainda possui. Ele ainda está neste mundo e nesta vida, como
todos os demais. Ele tem que viver, tem que ganhar a vida e fazer várias coisas
da mesma maneira que os outros. Ele ainda vive a vida secular, a vida “normal”,
a vida vivida em termos do intelecto e do entendimento. Ele estuda
vários assuntos e, como todos os demais interessa-se pelas condições políticas e
sociais; ele tem que comprar e vender como todos os outros. Ele pode estudar
artes, pode interessar-se por música. Essa é a sua vida “normal”, sua vida
secular, sua mentalidade, coisas que ele compartilha com os não cristãos. Na
verdade, podemos ir além e dizer que ele ainda experimenta falhas em vários
aspectos; ele tem consciência do pecado. Por vezes ele se olha e indaga se é
diferente das outras pessoas; parece idêntico a elas. Ele falha, faz coisas que não
devia fazer, ainda se sente culpado do pecado. Continua parecido com o homem
natural. Se vocês tiverem apenas uma idéia superficial do cristão, poderão muito
bem chegar à conclusão de que na verdade não há diferença alguma entre ele e
qualquer outra

pessoa. Mas isso não está certo, pois essa não é toda a verdade sobre ele. Em
acréscimo a tudo isso, há outra natureza, há uma outra coisa que ocorre; e é esta
outra coisa que faz do cristão um enigma para os outros e para si mesmo. Num
sentido ele é um homem natural, porém ao mesmo tempo é um homem
espiritual. O apóstolo contrasta o homem natural com o homem
espiritual, porque o que há de grande acerca do cristão é que ele tem
esta natureza espiritual adicional. Esta é a característica principal, e é o fator
dominante em sua vida. O cristão, mesmo na pior condição, sabe que é diferente
do incrédulo.

Expondo isso em sua expressão mais baixa, o cristão continua sendo culpado de
pecado, mas o cristão não aprecia o pecado como apreciava, e como os outros
apreciam. Há algo diferente até quanto ao seu pecado, graças a este princípio
espiritual que há nele, a esta natureza espiritual, a esta consciência de uma nova
vida, de uma vida que pertence a uma ordem diferente e a uma esfera diferente.
E muito difícil expor isto em palavras; há algo evasivo nisso tudo e, todavia, há
algo que o cristão sabe. É essencialmente subjetivo, embora resulte da fé na
verdade objetiva. Noutras palavras, a menos que você sinta que é cristão, fica
uma dúvida se você o é. A menos que lhe tenha acontecido algo
existencialmente, experimentalmente, a menos que lhe tenha acontecido algo na
esfera da sua sensibilidade, você não é cristão.

Muitos no presente correm o perigo de considerar a fé de maneira tão puramente


objetiva que pode tornar-se antibíblica. Eles dão toda a sua ênfase à subscrição
de certos credos e à aceitação de certas formulações da verdade. Mas isso pode
não passar de assentimento intelectual. Ser cristão significa que Deus, mediante
o Espírito, está operando em sua alma, deu-lhe um novo nascimento e colocou
dentro de você um princípio da vida celestial. E você tem que saber disso. Só
você pode sabê-lo. Você, necessariamente, tem consciência deste algo mais,
desta diferença, deste poder que está agindo em você, deste elemento
perturbador, como se pode provar. Você, necessariamente, tem consciência até de
um novo conflito em sua vida. A pessoa não cristã é somente uma pessoa; a
pessoa cristã é duas. Para usar a terminologia escrituristica, o não cristão não é
nada senão o “velho homem”. O cristão, porém, tem também um “novo
homem”. E entre o novo homem e o velho não há acordo; há uma tensão entre o
velho homem e o novo, e há conflito - “A carne cobiça contra o Espirito, e o
Espirito contra a carne” (Gálatas

5:17). O próprio estágio inferior da verdadeira experiência cristã é aquele estágio


no qual você está cônscio justamente desse conflito. Você ainda não sabe o que é
ser “cheio da plenitude de Deus”; você sabe pouco, se é que sabe algo, de uma
comunhão pessoal e direta com Cristo; mas sabe que há algo em você que o
inquieta, sabe que há, por assim dizer, outra pessoa em você, que há um conflito,
que há quase que esta personalidade dual, esta dualidade por assim dizer. Estou
tentando comunicar o fato da consciência que o cristão tem das duas naturezas.
Ele está cônscio das duas naturezas porque ele está “em Cristo”, e Cristo está
“nos lugares celestiais”. Ele recebeu esta vida de Cristo, e tudo o que ele tem
deriva de Cristo; e isso é tão diferente de tudo mais, que o cristão tem
consciência de que tem duas naturezas.

Pois bem, não é só certo dizer que o cristão tem duas naturezas; também tem
dois interesses, porque vive em dois mundos. O cristão é cidadão de dois
mundos ao mesmo tempo. Pertence a este mundo, tem nele a sua existência; e,
contudo, sabe que pertence a outro mundo tão definidamente como a este. Isso é
conseqüência inevitável do fato de que ele tem duas naturezas. Daí dizer o
apóstolo que o cristão é alguém que foi transferido “da potestade das trevas
para o reino do Filho do seu amor” (Colossenses 1:13) - ele foi transferido,
transportado, e recebeu uma nova posição. E essa mudança é, num sentido,
paralela a que se deu com o próprio Cristo. Deus manifestou o Seu poder quando
ressuscitou a Cristo dentre os mortos e O colocou à Sua direita nos lugares
celestiais. Com efeito, algo similar aconteceu com todos os cristãos. Não
ficamos onde estáva-mos, fomos transportados, fomos transferidos de um lugar,
de um domínio para outro, de um reino para outro, de um mundo para outro.
Este é um elemento vital da experiência total do cristão.

Não significa que o cristão sai do mundo. Historicamente muitos cristãos caíram
nesse erro, e diziam: visto que sou cristão não pertenço ao Estado. Há cristãos
que dizem que não se deve votar nas eleições parlamentares, e que não se deve
ter nenhum interesse pelas atividades do mundo. Mas isso não se harmoniza com
o ensino das Escrituras, pois o cristão ainda é cidadão deste mundo e pertence à
esfera secular. Ele sabe que este mundo é de Deus, e que nele Deus tem um
propósito para ele. Ele sabe que é cidadão do país a que pertence, e está ciente de
que tem as suas responsabilidades. A verdade é que, desde que é cristão, terá que
ser um

cidadão melhor do que ninguém no território. No entanto, ele não para aí, ele
sabe que também é cidadão de outro reino, de um reino que não se pode ver, um
reino que não é deste mundo. Todavia, ele está neste mundo, e o outro reino
colide com ele. O cristão sabe que pertence a ambos os reinos. Assim, isto vem a
ser um teste da nossa profissão de fé como cristãos. Sabemos das exigências que
a nossa terra natal nos faz, e também sabemos das exigências do reino celestial.
Nosso desejo é não transgredir as leis da terra, e maior ainda é o nosso desejo de
não ofender o “Rei eterno, imortal, invisível” (1 Timóteo 1:17, VA, ARA) que
habita aquele outro reino e que é o Senhor.

O apóstolo prossegue e diz, porém, que não somente pertencemos àquele


domínio celestial; no versículo 6 do capítulo 2 de Efésios ele faz uma declaração
que soa tão espantosa quanto impossível. Diz ele que Deus “nos ressuscitou
juntamente com ele e nos fez assentar nos lugares celestiais, em Cristo Jesus”.
Significa nada menos que eu e você, em Cristo, estamos assentados neste
momento em lugares celestiais. Estamos lá; ele não está dizendo que vamos estar
lá, e sim, que estamos lá. Mas como se pode conciliar isso com o fato de que
ainda estamos neste mundo limitado pelo tempo, com toda a sua confusão e
contradição? Como podem estas duas coisas ser verdadeiras ao mesmo tempo? A
principio soa paradoxal; e, contudo, é gloriosamente verdadeiro quanto ao
cristão. Espiritualmente estou neste momento no céu, “em Cristo”, num sentido
como sempre estarei; mas o meu corpo continua vivendo na terra, ainda
sou deste mundo limitado pelo tempo, O meu espírito foi redimido em Cristo,
como sempre redimido será; porém o meu corpo ainda não foi redimido, e eu,
com todos os outros cristãos, estou “esperando a adoção, a saber, a redenção do
nosso corpo” (Romanos 8:23). Ou, como Paulo o expressa, escrevendo aos
Filipenses, a nossa situação neste mundo limitado pelo tempo é que “a nossa
cidade está nos céus, donde também esperamos o Salvador, o Senhor Jesus
Cristo, que transformará o nosso corpo abatido, para ser conforme o seu corpo
glorioso, segundo o seu eficaz poder de sujeitar também a si todas as coisas”
(3:20-21). Em meu espírito já estou lá, mas ainda estou na terra na carne e no
corpo.

O aspecto glorioso desta verdade é que, devido eu estar “em Cristo”, o meu
corpo vai ser emancipado; a adoção, a redenção dos nossos corpos vai acontecer;
virá o dia em que eu estarei nos lugares celestiais, não somente em meu espírito,
mas também em meu

corpo. Isso é absolutamente certo. Seremos transformados, os nossos corpos


serão glorificados, e estaremos sem nenhum pecado, culpa ou ruga ou mancha.
Em espírito e no corpo estaremos com Ele e O veremos como Ele é; na
totalidade do nosso ser e das nossas personalidades estaremos naqueles lugares
celestiais.

A dedução que tiramos do ensino do apóstolo foi exposta per-feitamente por


Augustus Toplady, quando escreveu:

Mais felizes, mas não mais seguros,

Os espíritos glorificados no céu.

“Os espíritos glorificados no céu”, os cristãos que partiram e estão com Cristo
são mais felizes do que nós. Isso porque nós, que ainda estamos nesta vida,
estamos “sobrecarregados”, e, por isso, “gememos, desejando ser revestidos da
nossa habitação, que é do céu” (2 Coríntios 5:2). Os cristãos que partiram, já não
têm que combater o pecado na carne, e no mundo; disso eles estão
completamente livres; isso acabou, no que se refere a eles; porém
nós continuamos na carne, no corpo, continuamos lutando, continuamos
gemendo. Porque partiram, eles são “mais felizes”; mas não estão mais seguros.
Não estão “em Cristo” mais do que nós. Eles estão lá agora porque estavam “em
Cristo” quando estavam aqui; nós, mesmo agora, estamos “em Cristo” e estamos
assentados espiritualmente junto com eles nos lugares celestiais - com eles e
com Cristo, neste exato momento. Como nos lembra o autor da Epístola aos
Hebreus, “não chegastes ao monte palpável, aceso em fogo, e à escuridão, e às
trevas, e à tempestade, e ao sonido da trombeta, e à voz das palavras, a qual os
que a ouviram pediram que se lhes não falasse mais, porque não podiam suportar
o que se lhes mandava: se até um animal tocar o monte será apedrejado. E tão
terrível era a visão que Moisés disse: estou assombrado, e tremendo.
Mas chegaste ao monte de Sião, e à cidade do Deus vivo, à Jerusalém celestial, e
aos muitos milhares de anjos; à universal assembléia e Igreja dos primogênitos,
que estão inscritos nos céus, e a Deus, o juiz de todos, e aos espíritos dos justos
aperfeiçoados; e a Jesus, o Mediador duma Nova Aliança, e ao sangue da
aspersão, que fala melhor do que o de Abel” (Hebreus 12:18-24). Estamos lá
agora em nossos espíritos; estaremos finalmente lá em nossos corpos também.

Isso nos leva à percepção de que o cristão não somente tem

duas naturezas, e duas existências, mas também, necessariamente, tem duas


perspectivas. O cristão vê a vida e o mundo, e num sentido os vê como todo o
mundo os vê; todavia, ao mesmo tempo ele os vê diferentemente. Como cristãos
não olhamos para as coisas como o mundo olha, mas o fazemos como pessoas
pertencentes aos domínios celestiais; vemos tudo diferentemente, vemos tudo do
ponto de vista espiritual. Os homens e as mulheres não cristãos consideram o
estado em que o mundo se encontra, as guerras e os tumultos, a causa de todas
essas coisas e a possibilidade de outra guerra mundial. Consideram as sugestões
quanto ao que se pode fazer, e se é certo ou errado ter exércitos e engajá-los na
luta. Estas coisas requerem atenção. O cristão como cidadão deste domínio
visível, tem que chegar a decisões, e tem que ser capaz de dar os motivos das
suas decisões.

Com relação à Igreja Cristã, num sentido ela não tem nada a ver com os
problemas do mundo, e não deve gastar muito tempo com eles. A tarefa
primordial da Igreja é apresentar a perspectiva, o ponto de vista espiritual. Ela vê
a causa de todos os problemas de maneira inteiramente diversa. A visão
mundana enxerga a causa da guerra como uma questão de “equilíbrio do poder”
entre as nações e em termos de como lidar com isso de maneira a mais
eficiente. Isso está certo, dentro dos seus limites; porém não é esse o problema
fundamental que, como Paulo nos ensina no último capítulo desta Epístola,
consiste em que “não temos que lutar contra a carne e o sangue, mas sim contra
os principados, contra as potestades, contra os príncipes das trevas deste século,
contra as hostes espirituais da maldade, nos lugares celestiais” (6:12). O cristão
sabe que o mundo está como está devido ao pecado, devido ao diabo; ele
vê todas as coisas com uma nova perspectiva e com um novo entendimento. Ele
sabe que estas coisas são apenas a manifestação do poder satânico; e que, em
última análise, o conflito deste mundo é um conflito espiritual, não um conflito
material. Os problemas do mundo não são meramente resultantes da colisão de
concepções materiais apenas; são produzidos pelos poderes do inferno e
de satanás lutando contra o poder de Deus. Em contraste com a visão que o
mundo tem, a visão do cristão é muito mais profunda. O cristão não vê as coisas
meramente ao nível horizontal; ele as vê perpendicularmente também. Para ele
há sempre este elemento básico - “sub specie aeternitatis” 2

Ele sabe, ademais, que a única maneira de lidar com estes problemas só pode ser
espiritual. O cristão sabe que Deus tem duas maneiras de tratar destes problemas
que resultaram das atividades do diabo, da queda do homem e do pecado. A
primeira é que Deus restringe o mal, e o faz de muitas maneiras. Primeiro o fez,
em parte, dividindo o mundo em países e estabelecendo limites para cada um
deles. Isso Ele fez ordenando que houvesse reis e chefes de Estado, magistrados
e autoridades. Nunca nos esqueçamos de que as potestades que existem foram
ordenadas por Deus (Romanos 13:1). Foi Deus que ordenou os governos e os
sistemas de governo. É por isso que o cristão é exortado a honrar o rei,
os senhores e todos os que estão revestidos de autoridade. Dessa maneira Deus
mantém o mal dentro de certos limites, restringindo o mal. Ele faz isso por meio
dos governos, pelo uso dos estadistas, das conferências internacionais e pelo uso
de diversos outros meios. No entanto, eles são somente negativos,
simplesmente restringem o mal. A força policial pode impedir que um
homem faça certas coisas más, porém, nenhuma força policial pode transformar
alguém num homem bom. O mesmo aplica-se também aos governos. Também se
aplica esta verdade à cultura, à educação e a tudo quanto esteja destinado a
melhorar os costumes e a tornar a vida ordeira, harmoniosa e agradável. Todas
essas agências fazem parte do mecanismo de Deus para refrear o pecado e as
suas manifestações e conseqüências. Entretanto, elas são negativas. Um homem
altamente civilizado nunca fará certas coisas; mas isso não significa
necessariamente que ele é um bom homem. E certo que a cultura não faz dele
um homem espiritual.

Mas existe este outro aspecto positivo: Deus trata dos problemas do mundo de
maneira positiva e curativa, a saber, em Cristo e por meio de Cristo e Sua grande
obra de salvação. Ele tira um homem deste “presente mundo mau” em espírito, e
o coloca dentro do reino de Cristo. Coloca dentro dele um novo princípio que
não somente lhe tira a disposição para pecar, mas também lhe dá amor
à santidade. O homem se torna positivamente bom e passa a ter “fome e sede de
justiça”. Ele se torna semelhante ao Senhor Jesus Cristo. Há um novo reino
dentro “dos reinos deste mundo”; é o reino de Deus. Essa é a única cura. O reino
de Deus finalmente vai ser tão grande que o pecado será destruído e banido, e
não mais existirá. O cristão, e somente ele, vê o plano e o propósito de Deus. Os
estadistas do mundo, os não cristãos, na melhor das hipóteses nada sabem

a respeito; eles só vêem a situação em termos do visível e daquilo que está


diretamente diante deles.

Estas duas maneiras de ver também são inteiramente diversas com respeito ao
futuro. O incrédulo liga a sua fé às conferências, e imagina que se tão-somente
os homens pudessem ter uma Conferência de Mesa Redonda e acordassem
nunca mais fazer uso da bomba atômica ou da bomba de hidrogênio, o mundo se
tornaria mais ou menos perfeito. Mas, ao que parece, isso nunca se efetuará. Ele
não pode ir além da sua visão horizontal, ele nada sabe deste elemento espiritual
superior. Ele a credita na perfectibilidade do homem e na evolução de toda a raça
humana. Ele acredita que o homem ficará cada vez melhor, à medida que se
torne mais instruído, e que finalmente abolirá a guerra.

Ora, infelizmente isso nunca acontecerá por causa deste elemento espiritual em
conflito. Conquanto o homem tenha pecado em sua natureza, ele não somente
será culpado do pecado individualmente, mas também numa escala nacional e
mundial. Porque a mente de uma multidão seria diferente da mente de um
indivíduo? Graças a Deus, há outra mensagem; e a maior tragédia do mundo
é que a Igreja, em vez de pregar a sua verdadeira mensagem, está pregando uma
mensagem terrena, humana, carnal. Não teria a Igreja algo melhor para pregar do
que apelar para os estadistas para que resolvam os problemas? Isso é realmente
uma negação da fé cristã, e revela uma abismai ignorância dos “lugares
celestiais”. Como cristãos, temos outra maneira de ver, temos algo inteiramente
diverso. As preleções sobre a temperança nunca tornarão sóbrios os homens,
nem as estatísticas das perdas de guerra porão fim à guerra. Sabemos que o
problema é espiritual, e que a solução tem que ser igualmente espiritual. Como é
de satanás que basicamente vêm os maus desejos, as paixões e as cobiças, assim
é de Cristo, e dEle somente, mediante o Espírito, que vem o poder para
sobrepujá-los. E Ele virá não somente para o indivíduo, graças a Deus, Ele virá
para o mundo todo. O cristão sabe que Cristo, que agora está nos lugares
celestiais, voltará a este mundo em forma visível, cavalgando as nuvens do céu e
rodeado pelos santos anjos e pelos santos que já estão com Ele; e os que
estiverem na terra quando Ele vier serão transformados e serão elevados aos ares
para encontrar-se com Ele, e estarão todos “sempre com o Senhor”. Ele
derrotará os Seus inimigos, e banirá o pecado e o mal. Seu reino se estenderá “de
mar a mar” (Salmos 72:8; Zacarias 9:10), e Ele será aclamado

como o Senhor por todas as coisas “que estão nos céus, e na terra, e debaixo da
terra” (Filipenses 2:10).

Isso é otimismo cristão, e significa que sabemos que somente Cristo pode
vencer, e vencerá. Você está “nos lugares celestiais”, você está ciente das duas
naturezas que há em você, está ciente de que pertence a duas esferas? Tem você
esta nova visão espiritual da guerra e da paz e dos problemas do mundo? Você vê
tudo pela perspectiva do céu, de Deus e do Senhor Jesus Cristo, assentado com
Ele nos lugares celestiais? Bendito seja o nome de Deus!

1
Em latim no original. Nota do tradutor.

2
“Com a visão da eternidade.” Nota do tradutor.
“NOS ELEGEU NELE”

“Como também nos elegeu nele antes da fundação do mundo, para que
fôssemos santos e irrepreensíveis diante dele em amor."

-Efésios 1:4

Este versículo obviamente liga-se ao anterior; a expressão “como também” no-lo


diz. “Bendito o Deus e pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o qual nos abençoou
com todas as bênçãos espirituais nos lugares celestiais em Cristo; como também
nos elegeu nele antes da fundação do mundo, para que fôssemos santos e
irrepreensíveis diante dele em amor.”

Aqui o apóstolo começa a explicar-nos como todas as bênçãos espirituais vêm a


ser nossas. O versículo anterior o fizera de maneira mais geral. Mas alguém
poderá dizer: “Esta é uma grande declaração, e maravilhosa e estupenda; porém,
nós estamos aqui na terra, e temos consciência de pecado e de fracassos: como
haveríamos então de liga-nos a tão imensos tesouros da graça? Como poderia um
cristão gozar uma só bênção que seja?” O apóstolo começa a responder essa
pergunta neste versículo mostrando o que foi feito por Deus para que estejamos
ligados a todas estas abundantes riquezas da Sua graça: “como também”! Diz ele
que estas bênçãos nos vêm do modo que são descritas desde o princípio
deste versículo 4 até o fim do versículo 14. A expressão “como também” é a
introdução da exposição inteira. Já indicamos num estudo anterior como se pode
dividir convenientemente esta exposição em três partes principais: do versículo 4
ao versículo 6 nos é dito o que o Pai fez; do versículo 7 ao versículo 12 temos a
obra realizada pelo Filho; e nos versículos 13 e 14 temos a obra realizada pelo
Espírito Santo.

Ao abordarmos esta grande exposição, vejamos qualquer pessoa cristã, a nós


mesmos inclusive, e perguntemos: o que é que explica como qualquer pessoa,
antes incrédula, agora esteja gozando estas bênçãos estupendas? Que é que leva
a pessoa a tornar-se cristã e a gozar as riquezas da graça de Deus? Sem dúvida,
grande número de pessoas imediatamente diriam que o cristão é uma pessoa que
recebe bênçãos por crer no Senhor Jesus Cristo. Notem,

porém, que não é essa a primeira coisa que o apóstolo diz; ele não diz que
gozamos estas bênçãos porque cremos no Senhor, ou porque tomamos uma
decisão, ou porque nos entregamos a Ele, ou porque O aceitamos como nosso
Salvador pessoal. Isso está envolvido, é claro; mas Paulo não começa desse
modo. Nem tampouco parte ele da obra realizada pelo Senhor Jesus
Cristo. Provavelmente, muitos colocariam isso em primeiro lugar. Eles diriam
que tudo isso se nos tornou possível graças ao que o Senhor Jesus Cristo fez por
nós quando veio a este mundo - em Sua vida, morte e ressurreição - e ao que Ele
continua fazendo. Entretanto, nem isso o apóstolo põe em primeiro lugar. Na
verdade observamos que ele não parte de nada do que aconteceu no tempo neste
mundo. Ele vai direto à eternidade, antes da fundação do mundo, antes
da fundação do mundo; e parte daquilo que foi feito por Deus o Pai.

E um pensamento estonteante, mas inteiramente coerente com todo o ensino


bíblico. É justamente aqui que nos inclinamos a desviar-nos. Mesmo com a
Bíblia aberta diante de nós, sempre temos a tendência de basear nossas idéias
doutrinárias em nossos próprios pensamentos e não na Bíblia. A Bíblia sempre
parte de Deus o Pai; e nós não devemos partir de nenhum outro lugar, ou
de ninguém mais. A Bíblia é, afinal, a revelação do misericordioso propósito de
Deus para com um mundo marcado pela presença do homem pecador; ela
reivindica essa qualidade, e a revelação está em todos os livros que a compõem.
Isso explica a sua extraordinária unidade. Seu tema dominante é o que Deus fez,
o que Deus prometeu fazer, o que Deus começou a fazer, o que Ele tem
feito concretamente, o que Ele vai fazer, e o assombroso resultado disso tudo. E
é precisamente isso que o apóstolo está fazendo nesta parte da nossa Epístola.
Ele não está dando expressão às suas próprias teorias ou idéias, mas, sim, está
escrevendo sobre o que Deus lhe tinha revelado. No capítulo 3 da sua Segunda
Epístola, Pedro coloca os escritos do apóstolo Paulo no mesmo nível das
Escrituras Sagradas do Velho Testamento (versículos 15 e 16). Noutras palavras
ele acreditava que eles foram inspirados da mesma maneira como as antigas
Escrituras tinham sido inspiradas - “os homens santos de Deus falaram
inspirados pelo Espírito Santo” (2 Pedro 1:21). Assim, o ensino do apóstolo aqui
está em óbvia conformidade com todo o ensino bíblico.

O ensino é que aqueles que gozam estas bênçãos espirituais nos lugares
celestiais em Cristo gozam-nas porque foram escolhi-

dos por Deus para isso: “Como também nos elegeu nele antes da fundação do
mundo”. Essa é a explicação da coisa toda; daí o apóstolo começar aí. Todas as
bênçãos e todos os benefícios que desfrutamos têm essa origem, vêm dessa
fonte. O homem, por natureza, rebela-se contra Deus. Isso como conseqüência
da Queda. Tendo dado ouvidos à sugestão do diabo, e tendo caído e se afastado
de Deus , está debaixo da “ira de Deus”. Como é que alguma pessoa pode sair
desse lamaçal? A resposta é que Deus escolheu essa pessoa para ser libertada
dali para a salvação. Essa é a afirmação categórica do apóstolo.

Aqui nos deparamos face a face com um grande e profundamente misterioso


assunto. Em última análise, há somente duas explicações possíveis para uma
afirmação tão estonteante. A primeira é que fomos escolhidos por Deus
simplesmente como resultado de Sua satisfação, do Seu bom prazer, ou, para
usar a fraseologia escrituristica, “segundo o beneplácito de sua vontade”, e
inteiramente independente de toda e qualquer coisa que tenhamos feito, dito ou
pensado. De fato ele vai além e afirma que nós fomos escolhidos por Deus pelo
beneplácito de Sua vontade, apesar de nós mesmos, apesar do fato de que
éramos inimigos de Deus, estranhos a Ele, e até O odiávamos. A explicação
alternativa é que o apóstolo está dizendo que os cristãos - que os que gozam
estas bênçãos - foram escolhidos por Deus antes da fundação do mundo porque
Deus, com o Seu pré-conhecimento1 perfeito, viu que eles exerceriam a fé, com
o que se diferenciam dos que não exercem a fé. Noutras palavras (segundo este
conceito), Deus escolhe aqueles que já por si escolheram ser cristãos, aqueles
que decidiram crer no Senhor Jesus Cristo e buscaram a salvação. Não existe
uma terceira possibilidade.

A questão com que nos defrontamos aqui é, portanto, esta: como encarar isso?
Coloco a questão dessa maneira pela seguinte razão, que muitíssimos cristãos
hoje simplesmente não encaram a questão.

Alguns, na verdade, nem sequer acreditam em encará-la, e outras a evitam por


ser difícil e misteriosa. Ao que me parece, existem muitos cristãos hoje em dia
que se dizem crentes na inspiração das Escrituras mas que, não obstante,
deliberadamente evitam grandes porções das Escrituras porque são difíceis.
Todavia se vocês crêem que, em sua totalidade, as Escrituras são a palavra de
Deus, tal atitude é pecaminosa; é nosso dever encarar as Escrituras. Uma
vantagem de pregar sobre todo um livro da Bíblia, como estamos nos propondo a
fazer, é que isso nos compele a encarar cada uma das suas declarações, venha o
que vier, e postar-nos diante de cada uma e examiná-la, e permitir que ela nos
fale. De fato, é interessante observar que não poucas vezes têm ocorrido que
certos mestres da Bíblia, bem conhecidos, nunca encaram certas Epístolas em
suas exposições porque há nelas dificuldades que eles resolveram evitar.
Ao abordarmos este grande mistério, nada é mais importante do que adotarmos a
abordagem certa. Isso envolve, primeiramente e acima de tudo, o espírito com
que nos aproximamos das Escrituras. Esta grande declaração do apóstolo foi
rejeitada por alguns simplesmente porque ela foi abordada com espírito
errôneo. Permitam-me admitir francamente que os proponentes dos
dois conceitos que lhes apresentei foram igualmente culpados neste aspecto. Não
se deve abordar esta questão com espírito argumentativo, nem com espírito
partidário. Jamais deverá ser abordada com paixão ou com dogmatismo; é um
assunto que deve ser abordado com reverência, e com sentimento de adoração.
Cada vez mais eu concordo com os que dizem que há um sentido em que
as Escrituras sempre deveriam ser lidas de joelhos. Se nos dermos conta de que é
Deus que está falando conosco, certamente diremos que é desse modo que
devemos aproximar-nos delas. Contudo, quantas vezes estas grandes e gloriosas
declarações são discutidas e debatidas com paixão, acrimônia e ira. Estamos
pisando terra santa aqui, e temos que tirar os sapatos. Se não abordarmos este
mistério com esse espírito, é certo que jamais começaremos a entendê-lo.
Temos aí a Palavra de Deus, e não simplesmente a opinião do apóstolo Paulo. A
alta crítica, assim chamada, evadiu-se desta dificuldade dizendo que é
simplesmente a teologia de Paulo. Se você adotar essa idéia e ficar destacando e
escolhendo o que vai crer das Escrituras, poderá facilmente manufaturar um
pequeno evangelho por sua conta. Mas ele não será o evangelho do Novo
Testamento, não

será o “evangelho de Deus” (1 Tessalonicenses 2:2). Eu parto da suposição de


que todo este Livro é a Palavra de Deus, e de que esta declaração particular traz
consigo autoridade divina.

Decorre disso, portanto, que esta é uma declaração que não deve ser abordada
primariamente em termos do nosso entendimento. Devemos dizer como George
Rawson, autor de hinos -

Não poderei jamais as grandes altitudes e as profundidades de Deus


alcançar com asas terrenais.

Quão apropriados são esses versos, ao abordarmos este assunto! Se imaginarmos


que sobre as asas do nosso minúsculo entendimento podemos subir a uma
verdade desta natureza, só estamos pondo à mostra a nossa estupenda ignorância
do caráter da verdade. Aqui estamos face a face com algo presente no coração
e na mente de Deus. Asas terrenas nunca nos levarão a estas alturas. Trata-se
aqui, além de tudo o mais, de um grande mistério; por isso estas sublimes
verdades são apresentadas nas Escrituras unicamente aos crentes, e a ninguém
mais. Não é algo que possa ser considerado pelo incrédulo; ele não tem a
mínima possibilidade de sequer começar a entendê-lo, pois toda a sua atitude
para com Deus é errônea. A dificuldade essencial do incrédulo é que o seu
coração é mau com relação a Deus. “Disse o néscio no seu coração: não
há Deus” (Salmo 14:1), e porque o seu coração é mau, ele não pode entender. O
apóstolo está escrevendo aqui “aos santos que estão em Éfeso”, a pessoas que
pertencem a Deus e que são as únicas que estão em condições de receber tal
verdade; e o mesmo se aplica a nós.

Outra observação preliminar que é necessária quando nos aproximamos do nosso


tema, é que é bom abordar tal verdade em termos das nossas experiências como
cristãos. Em vez de abordá-la de um ponto de vista teórico, e de considerá-la
como um problema acadêmico muito interessante, que se acha na linha
fronteiriça entre a teologia e a filosofia, devemos abordá-la dizendo a nós
mesmos algo semelhante a isto: “Aqui estou eu nesta casa de Deus, enquanto
milhares de pessoas não estão aqui, mas estão em seus leitos lendo os jornais de
domingo, ou talvez ouvindo rádio. Por que sou

diferente, que é que me fez diferente, por que estou interessado nestas coisas, por
que me incomodo com elas - por que sou cristão?” Considere seriamente o que
foi que o separou daqueles outros, o que foi que o colocou numa categoria
diferente. E quando você estiver de joelhos, orando a Deus, procure examinar-se
e pergunte a si mesmo o que foi que o levou a orar. Pergunte a si mesmo se o
desejo de orar vem somente de si próprio, ou de alguma outra coisa. Aborde esta
profunda indagação intelectualmente, e com o entendimento, como também do
ponto de vista da experiência.

Tendo estas considerações preliminares em mente, observemos o que a Bíblia


diz realmente sobre “nos elegeu nele”. A minha primeira observação é que é uma
afirmação, não um argumento. A Bíblia nunca argumenta acerca destas
doutrinas, simplesmente as coloca diante de nós; faz uma afirmação e a deixa ali,
como tal. Isso é muito significativo, porque a Bíblia argumenta e apresenta
razões em muitos pontos; mas quando faz afirmações específicas como as que se
acham em nosso texto, ela nunca as apresenta na forma de argumento.

De fato devemos ir mais longe; podemos dizer, em segundo lugar, que não
somente a Bíblia não argumenta conosco sobre estas doutrinas, porém nos
desaprova e nos repreende quando começamos a argumentar porque não as
entendemos. O apóstolo expõe isso claramente na Epístola aos Romanos: “Dir-
me-ás então: porque se queixa ele ainda? Porquanto, quem resiste à sua
vontade?” (9:9). Tomem nota da resposta do apóstolo: “Mas, ó homem, quem és
tu que a Deus replicas?” Ele não tenta dirigir uma discussão e desenvolvê-la e
explicá-la, como poderia fazer; simplesmente diz: “Mas, ó homem, quem és tu
que a Deus replicas?” Noutras palavras, o apóstolo nos está dizendo que
devemos iniciar dando-nos conta de quem e do que Deus é, que devemos
compreender de quem estamos falando. E ele prossegue e nos lembra que a
nossa relação com o Deus de quem estamos falando é a mesma relação que há
entre um bloco de barro e um oleiro. Trate de compreender, diz ele, antes de
fazer perguntas e apresentar argumentos baseados em sua falta de entendimento,
que você está pressupondo que a sua pequena mente é capaz de entender o que
Deus faz. Trate de compreender que na verdade você está insinuando que,
mesmo sendo simples criatura, mesquinha e desprezível tantas vezes em
suas relações humanas, você, que deu ouvidos ao diabo e trouxe a ruína

sobre si próprio - trate de compreender que você está tendo a pretensão de que a
sua mente anã pode entender a mente infinita e inescrutável do Deus eterno. Não
somente a Bíblia não argumenta; também nos repreende por nossa arrogância em
trazer as nossas dificuldades e pô-las contra o que Deus revelou.

Em terceiro lugar, observamos que a Bíblia não responde as nossas perguntas


sobre este assunto, não nos dá uma explicação filosófica completa. Há reais
dificuldades em torno desta matéria -certamente que há! - porque é procedente
de Deus; e a Bíblia não pretende dar uma resposta detalhada ou uma explicação
filosófica. Ela faz a sua afirmação e a deixa como tal, e nós devemos responder
da mesma maneira que o apóstolo o faz, e dizer: “Grande é o mistério da
piedade” (1 Timóteo 3:16). Não podemos começar a entender o mistério das
duas naturezas em uma Pessoa, não podemos entender a verdade das três
Pessoas em uma deidade. Estas coisas estão numa esfera que está além do
entendimento; e assim é a doutrina que nos diz que Deus nos escolhe. As nossas
mentes são muito pequenas; e não somente pequenas, também são pecaminosas
e perversas. Mesmo como cristãos não conseguimos pensar claramente; é por
isso que sempre houve heresias, através dos séculos.

Um quarto princípio, que é útil neste contexto, é notar que a Bíblia nos dá várias
afirmações desse tipo, todas elas paralelas à afirmação que consta no versículo
que estamos examinando. Uma das declarações mais completas sobre este
assunto acha-se no capítulo 6 do Evangelho de Segundo João. Talvez se possa
dizer que o Evangelho Segundo João apresenta esta doutrina mais claramente do
que qualquer outro livro das Escrituras. Leiam todo o capítulo 6, depois leiam o
capítulo 15, e depois leiam o capítulo 17 de João, com o seu registro da oração
sacerdotal de nosso Senhor, e vocês verão precisamente esta verdade exposta de
maneira muito vigorosa. Dou ênfase a isso porque há muitos que repetem como
papagaio o que ouviram ou leram em livros, no sentido de que esta doutrina só
aparece nos escritos do apóstolo Paulo. Naturalmente Paulo a declara
frequentemente. Vejam, por exemplo, a Segunda Epístola aos Tessalonicenses,
capítulo 2: “Devemos sempre dar graças... por vos ter Deus elegido desde o
princípio para a salvação, em santificação do Espírito, e fé da verdade; para o
que pelo nosso evangelho vos chamou, para alcançardes a glória de nosso
Senhor Jesus Cristo” (versículos 13 e 14). Que declaração significativa! “Por

vos ter Deus elegido para a salvação em (por meio da) santificação do Espírito.”
Ele separou você pelo Espírito para você crer na verdade. Você foi escolhido, foi
posto à parte, pelo Espírito, a fim de que pudesse crer na verdade. Você não foi
separado porque crê nela, mas para que pudesse crer.

Vemos o apóstolo Pedro dizer a mesma coisa em sua Primeira Epístola, capítulo
primeiro, versículo 2: “Eleitos segundo o pré--conhecimento de Deus o Pai,
mediante a santificação do Espírito, para obediência e aspersão do sangue de
Jesus Cristo” (VA). De novo, a separação vem antes da obediência e da fé na
verdade. Há incontáveis outras passagens similares que dão suporte a
esta declaração diretamente.

Há, além disso, outras afirmações que mostram a mesma coisa indiretamente.
Vejam os dois primeiros versículos do capítulo 2 desta Epístola: “E vos
vivificou, estando vós mortos em ofensas e pecados. Em que noutro tempo
andaste segundo o curso deste mundo, segundo o príncipe das potestades do ar, o
espírito que agora opera nos filhos da desobediência”. Notem as declarações
“mortos em ofensas e pecados”, e “vos vivificou”. Na primeira Epístola
aos Coríntios, capítulo 2, versículo 14 lemos: “ora o homem natural não
compreende as coisas do espírito de Deus porque lhe parecem loucura; e não
pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente”. O ensino de Paulo
é que nós cremos nestas coisas porque “não recebemos o espírito do mundo, mas
o Espírito que provém de Deus, para que pudéssemos conhecer o que nos é dado
gratuitamente por Deus” (ICoríntios 2:12). Os príncipes deste mundo
não reconheceram Cristo, diz-nos Paulo, porque eram homens naturais. Muitos
deles eram grandes homens, homens capazes, porém não O reconheceram, “pois,
se o tivessem conhecido, não teriam crucificado o Senhor da glória”. “Mas” diz
Paulo, “Deus no-las revelou (certas coisas) pelo seu Espírito; porque o Espírito
penetra todas as coisas, ainda as profundezas de Deus” (1 Coríntios 2:8-
10). Cremos por uma única razão, a saber, graças a obra realizada pelo Espírito
Santo em nós.

No capítulo 4 da Segunda Epístola aos Coríntios vemos a mesma verdade: “Mas


se ainda o nosso evangelho está encoberto, para os que se perdem está
encoberto. Nos quais o deus deste século cegou os entendimentos dos
incrédulos, para que não lhes resplandeça a luz do evangelho da glória de Cristo,
que é a imagem de Deus. Porque não nos pregamos a nós mesmos, mas a Cristo
Jesus

o Senhor; e nós mesmos somos vossos servos por amor de Jesus. Porque Deus,
que disse que das travas resplandeça a luz, é quem resplandeceu em nossos
corações, para a iluminação do conhecimento da glória de Deus, na face de Jesus
Cristo” (versículos 3-6). Aí está a resposta á pergunta sobre como se origina a fé.
O deus deste mundo cega os homens e os torna incapazes de crer; o único Deus
vivo e verdadeiro brilha em nossos corações, e nós cremos. A doutrina da
regeneração é outra maneira de dizer a mesma coisa. Podemos expô-la assim: se
afirmarmos que nos tornamos regenerados porque já criamos, teremos que
mostrar por que precisamos ser regenerados, afinal de contas. O propósito e
objeto da regeneração é habilitar-nos a receber esta nova faculdade, esta
capacidade para receber a verdade de Deus. A doutrina da regeneração
tem muita coisa para dizer acerca da eleição e desta doutrina da escolha divina.
Na verdade, vou longe a ponto de dizer que sempre se deve abordar esta doutrina
em termos da doutrina da regeneração, que ensina que eu necessito de uma nova
natureza antes de poder começar a entender estas coisas.

Tendo feito lembrar a vocês essas declarações das Escrituras, permitam-me


colocar mais algumas considerações para o seu estudo e meditação. Não estaria
claro, não seria óbvio, que nenhum homem jamais teria produzido esta doutrina
por sua própria mente? É a ultima coisa em que o homem teria pensado.
Admitamos que é a pura verdade que nenhum de nós, por natureza, gosta
desta doutrina, porque achamos que é um insulto contra nós. O homem natural
odeia esta doutrina mais do que qualquer outra. Todos nós conhecemos algo
desse ódio. O homem jamais teria pensado nela; ela jamais teria entrado no
sistema de pensamento vital da Igreja, se ela não se encontrasse nas Escrituras.
Outro modo de expor o assunto é dizer que não há doutrina que mostre com
tanta clareza a real natureza do pecado, e as conseqüências do pecado, como
esta declaração particular. Pois, na realidade, ela assevera que nós estamos em
tal situação com relação ao pecado, que nos vemos completamente desvalidos, e
totalmente incapazes de fazer qualquer coisa por nós mesmos, no que se refere a
salvação. Foi isso que o pecado fez com o homem, esse é o abismo ao qual o
pecado levou o homem; ele está de fato alienado de Deus! Dizem as Escrituras
que a “inclinação da carne (a inclinação natural) é inimizade contra
Deus” (Romanos 8:7), que o homem, entregue a si mesmo, é um estranho, um
inimigo em sua mente, pelas obras iníquas, e totalmente oposto

a Deus. Essa é a real descrição do pecado.

Mas notem agora que este aspecto da verdade não tem nada a ver com a
evangelização. Há os que argumentam que esta doutrina da eleição e escolha
divina não dá nenhum lugar à evangelização, à pregação do evangelho, à
insistência com as pessoas para que se arrependam e creiam, e ao uso de
argumentos e de persuasão na obra evangelística. No entanto aqui não há
contradição, como não há em dizer que, uma vez que é Deus que dá a colheita do
cereal no outono, o agricultor não tem necessidade de arar, gradar e
semear; sendo que a resposta a isso é que Deus ordenou ambas as coisas. Deus
escolheu chamar as pessoas por meio da evangelização e da pregação da Palavra.
Ele ordenou o meio, como também o fim.

Finalmente, toda vez que vocês se virem confrontados por uma declaração das
Escrituras que acham difícil e os deixam perplexos, uma boa regra é consultar a
experiência e a interpretação dos que viveram antes de nós. Devemos agradecer
a Deus por poder fazê-lo. A Igreja Cristã tem ensinado através dos séculos o que
o apóstolo está dizendo aqui, a saber que Deus escolheu os cristãos, a despeito
do que eles eram, não por causa de algum mérito que Ele tivesse previsto neles,
mas porque Ele foi movido unicamente por Sua misericórdia e compaixão. Antes
de alguém ser tentado a desdenhar esta doutrina com um gesto de mão, achando
que tudo é muito simples, permitam-me lembrar-lhes os nomes de alguns
que aceitavam esta interpretação.

Há o grande Agostinho, que sobressai, talvez, entre Paulo e a Reforma, como o


astro mais brilhante da Igreja Cristã. Depois há Tomás de Aquino, que os
católicos romanos chamam de Santo Tomás de Aquino, autor de um compêndio
de teologia cristã, a Summa Theologica. O próximo nome que me vem é o de
Martinho Lutero, depois João Calvino, depois Ulrico Zwinglio, depois João
Knox, da Escócia. Depois chegamos aos Trinta e Nove Artigos da Igreja
da Inglaterra, a seguir à Confissão de Westminster, do século
dezessete, confissão na qual todas as igrejas presbiterianas afirmam basear o seu
ensino como padrão subsidiário. Pensem então nos grandes nomes pertencentes
à grande tradição puritana - John Owen, Thomas Goodwin e muitos outros.
Quando chegamos ao século dezoito, temos George Whitefield, talvez o maior
evangelista que a Igreja Cristã conheceu, desde Paulo. Na América, houve
Jonathan Edwards, que é quase universalmente considerado como o
maior teólogo filosófico que os Estados Unidos produziram. Quanto ao

século dezenove, devemos mencionar o grande Charles Haddon Spurgeon.


Todos estes homens sustentavam a doutrina paulina.

Devemos dar atenção também à história dos homens que deram início à várias
sociedades missionárias estrangeiras, como a Sociedade Missionária da Igreja
(anglicana) e a Sociedade Missionária de Londres, e certamente a Sociedade
Bíblica Britânica e Estrangeira. A verdade pura e simples é que os homens que
deram início a essas sociedades missionárias tinham a mesma opinião.
Os maiores evangelistas que o mundo conheceu, os maiores promotores que a
Igreja conheceu, tinham esta opinião específica. Realmente é certo que, com
apenas algumas exceções, o conceito universal da Igreja Cristã, até o princípio
do século dezessete, era este.

Embora tenha havido oposição a este conceito no século dezessete, ela veio a ser
muito conhecida por meio de João Wesley e dos seus seguidores e do seu ensino
arminiano no século dezoito. Também é conhecido que, quando a Alta Crítica da
Bíblia conquistou a aceitação geral e popularidade no final do século dezenove,
o conceito mais antigo retirou-se mais ainda para os fundos. Com o advento do
que se conhece como liberalismo ou modernismo, o ensino da eleição de Deus e
da escolha do Seu povo na eternidade desapareceu quase que completamente.
Certamente isso é de grande significação.

Há pois, alguns fatos que devemos ter em mente, antes de começarmos a


argumentar e a fazer afirmações radicais. Contudo, é preciso que entendamos
claramente o fato de que não somos salvos pelo conceito que tenhamos sobre
esta questão. Como já expliquei, há dois conceitos possíveis. Um é que Deus nos
escolheu apesar de nós; o outro é que Deus nos escolheu porque previu que nós
exerceríamos a fé. Mas eu reitero que o conceito que você tenha sobre esta
questão não determina a sua salvação. Não somos salvos por nosso entendimento
destas coisas, mas sim, por uma confiança singela, como de criança, uma fé
absoluta e confiante no Senhor Jesus Cristo e em Sua obra em nosso favor. O
conceito que tenhamos afeta o nosso entendimento, a nossa apreensão
intelectual; todavia, graças a Deus, não é isso que nos salva. Podemos
estar certos de que João Wesley está no céu, como certos podemos estar de que
Jonathan Edwards e George Whitefield estão lá.

Ora, alguém poderá dizer que, se a doutrina que defendemos não determina a
nossa salvação, doutrina é coisa que não importa.

Mas essa dedução é falsa. Esta declaração acerca da escolha feita por Deus está
aqui nas Escrituras e, portanto, deve ser considerada. Paulo a coloca primeiro a
fim de mostrar como nos tornamos cristãos e gozamos as bênçãos cristãs, e
como eu disse, embora o entendimento que tenhamos dela não determine a nossa
salvação, ela é de grande importância. Ela tem relação com a soberania de Deus
e com a majestade de Deus e, na verdade, é da maior importância do ponto de
vista do nosso entendimento do amor de Deus. Vemos aí o amor de Deus em seu
ponto mais elevado. Além disso, é à luz desta doutrina que vemos com maior
clareza a certeza do plano da salvação. Se o plano da salvação dependesse
do homem, certamente fracassaria; porém, se é de Deus do princípio ao fim, é
infalível. Nenhuma outra coisa pode dar-me senso de segurança. Não há
nenhuma doutrina que seja tão consoladora como esta: a minha segurança
depende do fato de que sou o que sou única e inteiramente pela graça de Deus.

Seja qual for a autoridade que eu possa ter como pregador, não é resultado de
qualquer decisão da minha parte. Foi a mão de Deus que me tomou, me tirou e
me separou para esta obra. Sou o que sou pela graça de Deus; e a Ele dou toda a
glória. Se eu tivesse que acreditar que meu futuro depende de mim e das minhas
decisões, eu tremeria de medo; mas, graças a Deus que eu sei que estou em Suas
mãos, e que “Aquele que começou a boa obra” em mim levará avante a obra.
Apesar de mim mesmo, e do que eu fui e sou, o Senhor não deixará que eu me
perca; “a Seu propósito Ele não renunciará”. É porque eu sei que antes do
princípio do tempo, antes da fundação do mundo, Ele olhou para mim, viu-me e
me escolheu, e em Sua mente deu-me a Cristo - é porque eu sei disso que, com
o apóstolo Paulo posso dizer que “nem a morte, nem a vida, nem os anjos nem
os principados, nem as potestades, nem o presente, nem o porvir, nem a altura,
nem a profundidade, nem alguma outra criatura nos poderá separar do amor de
Deus, que está em Cristo Jesus nosso Senhor” (Romanos 8:38-39). É por isso
que toda esta matéria importa; disso dependem o meu senso de segurança e
a minha alegria. Apesar do fato de que o meu entendimento desta verdade não
determina a minha salvação, determina, sim, a minha experiência da alegria da
salvação, e o meu senso de segurança e a minha certeza. Encare esta gloriosa
verdade de joelhos, coloque-a no contexto geral das Escrituras, lembre-se dos
nomes dos homens que eu mencionei e peça a Deus que lhe dê iluminação e
entendi-

mento pelo Espírito para que esta declaração especial traga a você, à sua alma, à
sua mente, ao seu coração e à sua experiência o recebimento parcial e crescente
das abundantes riquezas da Sua graça.

“SANTOS E IRREPREENSÍVEIS DIANTE DELE EM AMOR”

“Como também nos elegeu nele antes da fundação do mundo, para que
fôssemos santos e irrepreensíveis diante dele em amor.”

- Efésios 1:4

Antes de passarmos a tratar do restante do versículo 4, devemos notar que o


apóstolo tem o cuidado de dizer-nos que é “em Cristo” que fomos escolhidos;
não fomos apenas escolhidos, mas fomos escolhidos em Cristo. Deus nos
separou; do mundo da humanidade Deus nos escolheu para sermos os herdeiros
de grandes bênçãos; e tudo isso no Senhor Jesus Cristo e por intermédio dEle.
Não há melhor exposição da passagem que estamos examinando do que a que se
acha no capítulo 17 do Evangelho Segundo João, onde temos o que comumente
se conhece como a oração sacerdotal do nosso Senhor. Ali vemos o nosso
Senhor fazer declarações concernentes a Si mesmo, declarações como estas: “...
lhe deste poder sobre toda a carne, para que dê a vida eterna a todos quantos lhe
deste” (versículo 2). O ensino aí é que o Pai deu essas pessoas ao Filho. Ou
vejam o versículo 6: “Manifestei o teu nome aos homens que do mundo me
deste: eram teus, e tu mos deste, e guardaram a tua palavra”. Essas pessoas -
pessoas cristãs, que incluem a mim e vocês - pertenciam a Deus antes de
pertencerem ao Filho. Primariamente, a nossa posição não depende de nada
do que fazemos; nem primariamente da ação do Filho. A ação primária é a de
Deus o Pai, que escolheu para Si um povo, de toda a humanidade, antes da
fundação do mundo, e depois o presenteou, deu esse povo que Ele escolhera ao
Filho, para que o Filho o redimisse e fizesse tudo quanto era necessário para
reconciliá-lo com Ele. Esse é o ensino dado pessoalmente por Jesus Cristo. Ele
veio a este mundo e realizou a obra que Lhe competia realizar em favor de todas
as pessoas que Lhe foram dadas pelo Pai. Assim, Ele prossegue e diz: “Eu rogo
por eles; não rogo pelo mundo, mas por aqueles que me deste, porque são teus”
(versículo 9). Mas é de vital

importância que nos lembremos de que tudo isso é feito “nele”. O apóstolo
repete continuamente a verdade segundo a qual não há absolutamente nada que
seja dado ao cristão independentemente do Senhor Jesus Cristo; não há nenhuma
relação com Deus que seja verdadeira e salvadora, exceto a que é no Filho de
Deus e por meio dEle. “Há um só Deus, e um só Mediador entre Deus e os
homens, Jesus Cristo homem” (ITimóteo 2:5).

Tendo estabelecido estas verdades, podemos passar agora ao restante desta


grande declaração : “Como também nos elegeu nele antes da fundação do
mundo, para que fôssemos santos e irrepreensíveis diante dele em amor”. Aqui
vemos que cada frase, quase cada palavra, requer a mais cuidadosa e séria
consideração. Cada uma das declarações está carregada de verdade, de
verdade vital, de verdade da máxima importância. Portanto, passar às pressas por
estas grandes e momentosas declarações é tolice; é real e verdadeiramente
pecaminoso.

É nos dito que fomos escolhidos “para que fôssemos santos e irrepreensíveis
diante dele em amor”. Aqui, de novo, o apóstolo nos propicia uma das mais
extraordinárias sinopses do evangelho todo. Ele quer dizer que é propósito de
Deus em Cristo para o Seu povo desfazer, remover e retificar completamente os
efeitos do pecado e da queda do homem. O objetivo de Deus na salvação é
retificar completamente os resultados e as conseqüências daquele evento terrível
e sumamente desastroso. Isso está claro nas Escrituras. Lemos, por exemplo, no
capítulo 3 da Primeira Epístola de João: “Para isto o Filho de Deus se
manifestou: para desfazer as obras do diabo”(versículo 8). A queda foi obra do
diabo. Que tolos os que pensam que podem escolher e pegar porções da Bíblia e
rejeitar outros a seu bel-prazer! A Bíblia é um todo, e não há esperanças de que
venhamos a entender o evangelho do Novo Testamento a menos que aceitemos
os primeiros capítulos do livro de Gênesis, com a sua narrativa da queda do
homem em pecado. Aqui, nestes versículos do capítulo primeiro da Epístola aos
Efésios, o apóstolo passa a mostrar que a obra do diabo está sendo destruída e
desfeita, de modo que aquelas pessoas que Deus o Pai deu ao Filho
ficarão inteiramente livre de todos os efeitos e conseqüências daquele
evento tremendamente trágico denominado “A Queda”. Diz o apóstolo que o
propósito de Deus na escolha que fez na eleição é que sejamos “santos e
irrepreensíveis”. Ele diz três coisas: que devemos ser

“santos e irrepreensíveis”, “diante dele”, “em amor”. A primeira proposição


consiste de dois elementos - “santos e irrepreensíveis” - e estes são,
evidentemente, elementos mutuamente correspondentes. O apóstolo nunca atira
palavras desconsideradamente. Ele usa duas palavras que descrevem a mesma
coisa, mas focalizando dois aspectos diferentes. Ambas se referem à
santificação. Alguns acham que o apóstolo estava se referindo à justificação;
mas, obviamente, não é assim; as palavras se referem à santificação,
não meramente à nossa posição, porém à nossa condição interna, à nossa
santificação. Acredito que o apóstolo utilizou os dois termos porque desejava
expor a doutrina em sua plenitude. No capítulo 5 da Epístola ele usa a expressão
“santa e irrepreensível” (versículo 27). Podemos mostrar a diferença que há entre
as duas palavras da seguinte maneira: “santidade” denota um estado de pureza
interior ou interna; “irrepreensível” refere-se a uma condição exterior ou externa
de pureza. Santidade é o termo maior e mais forte, porque se ocupa da condição
interior; mas a condição exterior também é importante. A figura comunicada é a
do fruto sem manchas, sem a mínima porção de decadência incipiente, sem
putrefação nenhuma; é fruto perfeito, inteiro. O mesmo apóstolo expõe essa
idéia no capítulo 5 desta Epístola, onde ele afirma que o propósito supremo de
Cristo para a Igreja é, não somente que ela seja santa, mas também esteja “sem
mácula, nem ruga, nem coisa semelhante” (versículo 27). A Igreja deve ser
irrepreensível (ou sem culpa), como também pura; ela deve ser perfeita por fora
e por dentro.

Outra maneira de colocar a diferença é dizer que “santidade” é positiva, ao passo


que “irrepreensível” ou “sem defeito” é negativa. Vocês são positivamente
santos, entretanto isso significa negativamente que há ausência de corrupção. E é
bom ver o assunto de ambas as maneiras. Na prática, àquilo que aqui se dá o
segundo lugar, é dado o primeiro lugar. Damos atenção ao aspecto externo, e não
parece que haja nisso algo que seja obviamente errado; todavia o fato de que a
pessoa em foco possa parecer irrepreensível e inculpável por fora não garante
que seja a mesma coisa por dentro. Negativamente por fora não tem defeito,
porém positivamente pode não passar no teste.

Os dois termos, tomados juntos, significam uma pureza essencial ou um estado


plenamente saudável, ou inteireza. Significam vida real e verdadeira, ser
verdadeiro e real sem nada que o macule ou prejudique, uma harmonia perfeita
na qual cada parte cumpre a

função para. a qual foi designada. Em perfeita harmonia, todas as coisas


trabalham juntas. Vista a questão negativamente, significa que o pecado, em
todos os seus efeitos e aspectos está inteiramente ausente. A santidade, em seu
caráter supremo, é um atributo essencial de Deus. O próprio Deus disse: “Sede
santos porque eu sou santo”. Isso é inconcebível para nós, mas nos é dito que
“Deus é luz, e não há nele trevas nenhumas” (1 João 1:5).
Positivamente, podemos dizer que a santidade é luz, negativamente, que nela
não há trevas. Além desse ponto não podemos ir; significa essencialmente um
ser perfeito, uma perfeição absoluta, o “Pai das luzes, em quem não há mudança
nem sombra de variação” (Tiago 1:17). Deus é absoluta luz e glória e perfeição;
Ele é absolutamente puro, sem sequer qualquer suspeita da presença de uma liga
redutora ou de qualquer mistura; e o assombroso que nos é dito aqui é que
Deus nos escolheu em Cristo para nos tornarmos como Ele. Esse é o plano e
propósito de Deus para nós; esse é o nosso destino, sermos semelhantes a Deus,
“santos e irrepreensíveis”.

Pois bem, devemos passar à segunda expressão, “santos e irrepreensíveis diante


dele”. Eis ai de novo uma frase por sobre a qual podemos facilmente deslizar,
considerando-a de pequena significação. Mas significa que estamos na presença
de Deus, realmente diante dEle; nós comparecemos ante Ele. É outra maneira
de dizer que estamos em comunhão com Ele, que temos companheirismo com
Ele. De novo deixemos que o apóstolo João exponha o apóstolo Paulo. Não é
que ele exponha a verdade mais claramente, todavia, que eles se complementam
um ao outro. O objetivo de João ao escrever a sua Primeira Epístola é descrito
do seguinte modo: “O que vimos e ouvimos isso vos anunciamos, para que
também tenhais comunhão conosco; e a nossa comunhão é com o Pai, e com o
seu Filho Jesus Cristo”. E então prossegue, dizendo : “Estas coisas vos escrevo
para que o vosso gozo se cumpra. E esta é a mensagem que dele ouvimos, e vos
anunciamos: que Deus é luz, e não há nele trevas nenhumas” (1:3-5). Noutras
palavras, “diante dele”, no sentido em que Paulo usa a expressão, significa que o
objetivo e propósito da nossa vocação e eleição é que andemos com Deus; não
somente que entremos numa consciente comunhão com Deus, mas que andemos
e permaneçamos nessa comunhão, ou, como João o expressa, que andemos na
luz com Deus.

Uma interessante luz e lançada sobre esta matéria numa decla-


ração feita acerca de Abraão no capítulo dezessete do livro de Gênesis, onde se
nos diz que quando Abraão tinha noventa e nove anos de idade, apareceu-lhe o
Senhor e lhe disse: “Eu sou o Deus Todo-poderoso, anda em minha presença e sê
perfeito”. Foi um convite que Deus fez a Abraão para que desse um passeio com
Ele. E o que se quer dizer com salvação; é realmente o fim e objetivo dela. No
princípio o homem tinha sido criado por Deus e fora colocado num jardim. Ali
ele viveu uma vida de perfeita comunhão com Deus. Ele vivia com Deus,
conversava com Deus, “andava” com Deus. Esta é uma frase que se vê
ocasionalmente no Velho Testamento. “E andou Enoque com Deus.”
Naturalmente, para fazer isso o homem tem que ser perfeito porque Deus é
perfeito. “Andarão dois juntos, se não estiverem de acordo?” (Amos 3:3). Não se
pode misturar luz e trevas, certo e errado, mal e bem. Anda r diante de Deus e
ser perfeito estão inevitavelmente juntos por causa da natureza de Deus.

A terceira expressão é “em amor” - “para que fossemos santos e irrepreensíveis


diante dele em amor”. Os comentaristas têm tomado muito tempo com esta
frase, e o seu principal interesse é quanto a que parte ela pertence exatamente.
Isso aparece na Versão Revisada Americana (e igualmente na ARA), que coloca
“em amor” com “predestinou”, que pertence ao versículo seguinte.
Outros sustentam que essa expressão deve vir ligada à palavra “elegeu” -“Como
também nos elegeu nele em amor, antes da fundação do mundo, para que
fôssemos santos e irrepreensíveis diante dele”. Mas, aqui, na versão Autorizada
inglesa (como na ARC), ela vem ligada a “santos e irrepreensíveis diante dele”
(em amor). Não se pode decidir qual das três posições é correta sobre bases
lingüísticas. Não é uma questão relacionada com o sentido preciso das
palavras. Ela deve ser resolvida sobre bases teológicas ou
doutrinárias; pessoalmente, não hesito em asseverar que o que se vê na
Versão Autorizada está certo. Ela pertence precisamente a esta definição
de santidade, pois a própria expressão “diante de Deus” é uma definição de
santidade. Elas dizem a mesma coisa, segundo diferentes pontos de vista.

Permitam-me explicar o ponto. Não há dúvida de que a essência da santidade é o


amor. Na Epístola aos Romanos Paulo afirma que “o cumprimento da lei é o
amor” (13:10). Só concebemos fielmente a santidade quando o fazemos em
termos do amor. O amor é o oposto da inimizade, o oposto do ódio, o oposto da
contenda.

O apóstolo está dizendo que, como resultado do fato de Deus ter nos escolhido, o
que acontece é que o pecado é removido, o obstáculo entre nós e Deus é
removido, e assim podemos comparecer perante Ele. E não somente isso, mas
comparecemos à presença de Deus “em amor”. Só pensar em comparecer à
presença de Deus como o nosso juiz é algo terrível! A grandiosa realização feita
a nosso favor em nossa salvação é que comparecemos perante Deus “em amor”.

Este é o maior resultado da anulação dos efeitos da Queda. Como vimos, a


condição do homem é por natureza exatamente o oposto desta santidade e amor.
É inimizade contra Deus; sua mente não se sujeita à lei de Deus, e na verdade
não pode sujeitar-se. Muitos discutem esta asseveração e alegam que conhecem
pessoas que não são cristãs, porém, crêem em Deus e adoram a Deus.
Mas quando nos damos ao trabalho de verificar a espécie de deus que elas
adoram, vemos que não é o Deus das Escrituras. É o deus da filosofia, um deus
que elas idealizaram em suas mentes. Elas tiraram de Deus, como Ele é revelado
nas Escrituras, tudo o que não lhes agrada. Elas não acreditam na ira, não
acreditam no juízo, não acreditam na justiça ou no ensino sobre o derramamento
do sangue de Cristo, e na morte na cruz. Rejeitam a essência da
revelação bíblica, e com isso mostram que são pessoas que odeiam a Deus. “A
mente carnal é inimizade contra Deus” (Romanos 8:7, VA). Quando o homem
caiu, começou a odiar a Deus e, como resultado da Queda, o homem se opõe a
Deus e está em inimizade contra Ele. Contudo, como resultado da salvação em
Cristo, o homem comparece perante Deus “em amor”.

E, pois, errado ligar as palavras “em amor” ao próximo versículo, ou à palavra


“elegeu” como se elas fossem uma descrição de Deus. Elas são uma descrição de
nós. Se somos cristãos, amamos a Deus e nEle temos prazer. A santidade do
homem que está em Cristo, do homem cristão, não é uma conformidade
mecânica com a lei, nem tampouco é mera moralidade. Uma pessoa pode ser de
boa moral sem amar a santidade. Moralidade é qualidade negativa - significa não
cometer pecado. Mas isso não é santidade. Santidade é algo positivo, é
essencialmente uma questão de amar. O cristão ama a santidade e comparece
perante Deus porque é “santo em amor”. Ele tem “fome e sede de justiça”,
deleita-se na lei de Deus. Ele não obedece como dever; como João, em sua
Primeira Epístola, capitulo 5, versículo 3, ele diz: “Os seus mandamentos não
são

pesados”. Isso constitui um dos melhores testes para vivermos a vida cristã?
Gostamos da vida cristã? Queremos ser mais parecidos com Cristo, cada dia?
São estes os testes, e eles são provas de amor. Realmente, a lei de Deus nos
chama para amarmos. O nosso Senhor ensinou isto certa ocasião, quando um dia
alguns homens aproximaram-se dEle, tentando apanhá-10 mediante perguntas.
Perguntaram-Lhe: “Qual é o primeiro de todos os mandamentos?” Sua resposta
foi que o primeiro de todos os mandamentos é: “Amarás ao Senhor teu Deus de
todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento, e de todas
as tuas forças: este é o primeiro mandamento. E o segundo, semelhante a este, é:
amarás ao teu próximo como a ti mesmo. Não há outro mandamento maior do
que estes” (Marcos 12:28-31) Todo o objetivo da lei de Deus é primeiro o amor,
sua relação com Deus, e depois sua relação com o seu semelhante. É tudo uma
questão de amor.

Portanto, devemos ser “santos e irrepreensíveis diante dele em amor”, amando a


Deus, amando os nossos semelhantes, amando a lei de Deus, tendo prazer nela, e
não meramente nos conformando mecanicamente com um padrão moral. O
ensino do apóstolo é que o fim e objetivo supremo da nossa escolha parte de
Deus, da nossa eleição, é que nos tornemos pessoas com aquele caráter.
Naturalmente, não alcançaremos essa perfeição nesta existência, neste mundo;
essa é a meta suprema. A vontade de Deus quanto a nós é a perfeição absoluta, e
nós, cristãos, finalmente estaremos diante dEle “sem defeito e inculpáveis”,
“sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante”. Não haverá quem possa lançar
acusação contra nós. Seremos semelhantes ao nosso Senhor. Mas não nos
esqueçamos de que, embora só atinjamos perfeitamente o alvo no mundo
vindouro, o processo já começou neste mundo. O princípio está em nós aqui e
agora; a semente já foi implantada em nós. E isso que o apóstolo João nos ensina
no capítulo 3 da sua Primeira Epístola. A realidade em foco já está em nós em
embrião; em sua essência “a semente permanece” em nós (versículo 9). O autor
da Epístola aos Hebreus expressa a mesma verdade no capítulo 3 da sua
Epístola, onde escreve: “Pelo que, irmãos santos, participantes da
vocação celestial...” (versículo 1). O cristão é participante da vocação
celestial. Fomos santificados, o que significa que somos santos, e mesmo aqui e
agora este princípio de santidade está em nós. Já somos “participantes da
natureza divina”, e a natureza divina é santa. Esta santidade essencial está em
nós, e crescerá e se desenvolverá até

que finalmente estejamos em condições de perfeição absoluta, na presença de


Deus. Este, diz-nos o apóstolo, é o objetivo supremo da escolha que Deus fez de
nós.

Nesta altura faço uma pergunta: causa-nos surpresa que seja esta a primeira coisa
que o apóstolo nos diz? Esperávamos alguma outra coisa, como por exemplo,
que Deus nos escolheu para que fôssemos perdoados? Não é o que Paulo coloca
primeiro; em vez disso, ele escreve, “para que fôssemos santos e
irrepreensíveis diante dele em amor”. Fazendo assim o apóstolo está sendo
coerente com todo o ensino bíblico. Porque é que isso deve vir em primeiro
lugar? A resposta é que é plano de Deus, é propósito de Deus. “Esta é a vontade
de Deus, a vossa santificação” (1 Tessalonicenses 4:3). O desejo de Deus quanto
a nós é, primeiro, que sejamos santos, e depois, a nossa felicidade ou alguma
outra coisa. Sermos santos vem em primeiro lugar porque Deus é santo.

Lembrem-se também de que nós estamos “em Cristo”. O que nos faz cristãos é
que estamos em Cristo; não somente porque fomos perdoados, embora isso seja
essencial. E se estamos “em Cristo”, só temos que ser santos porque Ele é
“santo, inocente, imaculado, separado dos pecadores” (Hebreus 7:26).

À luz disso tudo, há certas deduções essenciais que são da máxima importância.
Primária e essencialmente, salvação significa estar na relação correta com Deus -
nada menos do que isso. Não se deve pensar na salvação primariamente em
termos da felicidade nem em termos das leis, nem da moralidade. Não se deve
pensar nela, única ou primariamente, em termos do perdão. Não devemos pensar
na salvação em termos da ajuda que Cristo vai nos dar, para orientação ou
qualquer outra coisa. Primeiramente, salvação significa estar na relação correta
com Deus. É preciso que seja assim porque a essência do pecado é a separação
de Deus. Isto nos leva a condições miseráveis e a tornar-nos escravos do diabo;
mas o problema primordial é a perda da relação com Deus. Portanto, esta deve
ser a primeira coisa da salvação; e se alguma vez pensamos em nossa salvação
em quaisquer termos que não os da nossa reconciliação com Deus e de estarmos
de bem com Deus, interpretamos mal o ensino bíblico sobre a salvação.

Em segundo lugar, visto que a nossa salvação se refere essencialmente à nossa


relação com Deus, temos de pensar nela sempre e necessariamente, do principio
ao fim, em termos da santidade. Daí, o apóstolo a coloca em primeiro lugar; tudo
na salvação visa a esse

fim e leva a esse fim. Disso eu deduzo que não há nada que seja tão errado, e que
seja uma interpretação tão falsa das Escrituras, como separar a justificação da
santificação. As Escrituras ensinam que, primordialmente, a salvação envolve
uma correta relação com Deus; daí sempre se deve pensar na salvação, do
começo ao fim, em termos da santidade. E pois, completamente errado o homem
dizer que ele tem a justificação mas que ainda não entrou na santificação. Você
não pode estar justificado diante de Deus e depois decidir ser santificado. Não
existe nada mais perigoso e antibíblico do que a divisão ou separação
completamente ilógica destas duas coisas. A santidade é o princípio e o fim da
salvação; e a salvação, em sua totalidade, visa levar-nos a esse fim.

Por isso devemos começar sempre pela santidade, como fazem as Escrituras, e,
portanto, a pregação da santidade é parte essencial da evangelização. Dou ênfase
a este ponto porque existem certas idéias completamente diferentes acerca da
evangelização, algumas das quais de fato dizem exatamente o oposto. Há alguns
que afirmam que na evangelização o pregador não trata da santificação. Seu
único objetivo é “conseguir conversões”; depois é que se pode levá-los à
santidade. Todavia, que é a salvação? Ser salvo é estar corretamente relacionado
com Deus, e isso é santidade. O propósito geral da evangelização é,
primordialmente, dizer aos homens o que o pecado fez com eles, dizer-lhes por
que eles são o que são, isto é, que estão separados de Deus. É dizer-lhes que o
que eles necessitam acima de tudo mais, não é que os façamos sentir-se
felizes, porém, que os reconduzamos à correta relação com Deus, que é “luz, e
não há nele trevas nenhumas”. Mas isso significa pregar santidade. Separar estas
duas coisas, parece-me, é negar um ensino bíblico essencial. Temos que começar
pela santidade, e continuar com ela; porque ela é o fim para o qual fomos
escolhidos e libertados. Nunca devemos pensar que a santidade é algo em
que podemos decidir entrar; se você não é santo, não é cristão. Estas coisas são
próprias uma da outra. Cristo “para nós foi feito por Deus sabedoria, e justiça, e
santificação, e redenção”. Não podemos dividir Cristo ou selecionar porções
dEle; ou você está em Cristo, no Cristo completo, ou não está “nele”. E se você
está “nele”, você é “santo”.

Além disso, visto que fomos escolhidos para a santidade, temos que ser santos, e
o seremos. Esta é uma declaração impressionante; no entanto, é necessariamente
verdadeira, à luz desta

declaração do apóstolo. De acordo com Paulo, não fomos escolhidos com a


possibilidade da santidade, mas para a concretização da santidade. Deus não nos
escolheu antes da fundação do mundo a fim de criar para nós a possibilidade da
santidade; Ele nos escolheu para a santidade. É o que Ele Se propôs a fazer para
nós; não possibilidade e sim realização. Faço, pois, esta solene asseveração, que
os que não valorizam esta verdade e não mostram sinais de santidade em suas
vidas, não são escolhidos, não são cristãos. Ser “escolhido” e ser “santo” são
inseparáveis. Por mais doutrina que o homem saiba, por mais que ele propugne
pela eleição e predestinação, se nele não houver este elemento de santidade, ele
não é escolhido. É possível ser intelectualmente ortodoxo e ainda assim não
ser cristão. O homem que foi escolhido foi escolhido para a santidade; e se não
há evidências de santidade na vida dele, isso é prova de que ele nunca foi
escolhido. Estes são pensamentos solenes e, todavia, são inevitáveis à luz desta
declaração das Escrituras.

Meu comentário final é que o ensino segundo o qual a escolha que Deus fez de
nós é somente “em Cristo” ou por causa de Cristo, longe de levar ao chamado
antinomismo, isto é, ao relaxamento na vida e no modo de viver, é o maior
incentivo à santidade. Muitos têm procurado argumentar que a doutrina sobre os
escolhidos leva os homens a dizerem “Se eu sou escolhido, tudo está bem,
não importa o que eu faça ou deixe de fazer”. Mas a coisa não funciona desse
jeito. Na verdade é precisamente o oposto que se dá, pela seguinte razão: uma
vez que o propósito de Deus é que sejamos santos, esse propósito será levado a
efeito. Significa que se Deus escolheu você para a salvação, Deus o fará santo.
Se você tolamente não quiser ser dirigido por Deus e atraído por Seu amor,
Ele empregará outro meio para torná-lo santo, visto que o escolheu. Esta verdade
é indicada pelo que lemos no capítulo 12 da Epístola aos Hebreus: “A quem o
Senhor ama, ele corrige” (versículo 6, VA). O homem que não está sendo
corrigido é um bastardo; não é filho de Deus. Que declaração momentosa! Deus,
que escolheu você para a santidade, vai torná-lo santo; e se a pregação do
evangelho não o fizer, Deus tem outros meios e métodos. Ele pode abater
você pela doença, pode arruinar os seus negócios. Deus o tornará santo porque o
escolheu para a santidade. O antinomismo é um absurdo. Se você foi escolhido
por Deus para a santidade e para ser irrepreensível, Ele o levará àquela condição;
se você O desafiar, bem, então, coisas terríveis poderão acontecer com você.

Paulo explica isso também no capítulo 11 da Primeira Epístola aos Coríntios,


onde, falando sobre a Ceia do Senhor, diz ele que, porque certos cristãos não
examinam a si mesmos, há entre eles “muitos fracos e doentes, e muitos que
dormem”, alguns até estão mortos. Posto que eles não quiseram julgar-se a si
mesmos, Deus os tinha corrigido. Nós estamos nas mãos de Deus, e fomos
chamados para a santidade. E Ele quer que sejamos santos; Ele nos fará
santos. Mas isso não funciona só dessa maneira, funciona também do seguinte
modo. Se você crer que este ensino é verdadeiro, e se compreender o seu
significado, a sua própria mente estará operando a pleno vapor em direção à
santidade. Se eu sei que fui chamado para a santidade, significa que não tenho
tempo a perder. O apóstolo João salienta isso dizendo que “qualquer que nele
tem esta esperança purifica-se a si mesmo, como também ele é puro” (1 João
3:3). Não há o que promova a santidade como esta grande doutrina, esta verdade
preciosa, que nos diz que, porquanto, fomos escolhidos por Deus, vamos estar
com Ele, e vamos ser semelhantes a Ele. Não há tempo a perder; temos que pôr-
nos de pé e agir. De modo algum posso dizer: “Eu fui escolhido, e, portanto,
posso fazer o que eu quiser, e serei perdoado”. A coisa funciona na direção
oposta. O nosso sentimento de honra está envolvido, o desejo de agradar
está envolvido. Tudo fala em favor da santidade. Seja o que for que tenhamos
esperado, isto vem em primeiro lugar: “Como também nos elegeu nele ... para
que fôssemos santos e irrepreensíveis diante dele em amor”. Você sabe que está
vivendo na presença de Deus, e que está andando com Ele na luz? Você O ama?
Você sabe que vai estar com Ele? “Bem-aventurados os limpos de coração;
porque eles verão a Deus.”

ADOÇÃO

“E nos predestinou para filhos de adoção por Jesus Cristo, para si mesmo,
segundo o beneplácito de sua vontade.”

-Efésios 1:4

A palavra inicial deste versículo lembra-nos a sua íntima relação com o que a
antecede, onde vimos que o propósito da salvação é destruir a obra do diabo e
restaurar-nos, colocando-nos numa condição em que possamos estar de novo
diante de Deus, santo e irrepreensíveis em amor, e ter comunhão com Ele como
Adão tinha antes da Queda. Mas a coisa não pára aí. Neste versículo 5 o apóstolo
nos leva a algo ainda mais glorioso. É como se estivéssemos subindo as escadas
de uma alta e maravilhosa torre. Chegamos a uma espécie de plataforma e temos
uma vista gloriosa, parecendo impossível existir algo mais grandioso. Poder-se-
ia pensar que não se poderia acrescentar mais nada à declaração anterior; no
entanto o apóstolo lhe acrescenta algo, e o faz porque sente que não nos
tinha falado tudo sobre “as abundantes riquezas” da graça de Deus. Por isso
prossegue, e nos fala de mais uma verdade, a saber, que Deus “nos predestinou
para filhos de adoção”. Não somente estamos diante de Deus, estamos diante
dEle como Seus filhos, como Seus filhos adotivos.

Há aqui também algo que é verdadeiramente estonteante em sua glória. Como é


importante que vejamos devagar essas declarações, em vez de passarmos
rapidamente por cima delas superficialmente, como se faz tantas vezes. Cada
declaração aqui tem a sua própria mensagem individual; e se havemos de
valorizá-las plenamente e regozijar-nos nelas, temos que deter-nos, analisar e
examinar cada verdade, contemplá-la e deixar que a sua rica mensagem penetre
nossas mentes e os nossos corações. Devemos estar vigilantes contra o perigo de
contentar-nos com um mero conhecimento da letra das Escrituras, deixando de
descobrir os seus princípios e as suas doutrinas. Uma análise superficial dos
livros da Bíblia será finalmente inútil, a menos que nos apercebamos
do riquíssimo conteúdo destas declarações individuais. A verdade é que se
fizermos uma análise completa de qualquer destas Epístolas

do Novo Testamento, obteremos uma boa compreensão dos principais elementos


da verdade cristã. Além disso, captar o ensino de uma Epístola ajuda-nos a ir
adiante, e assim nos capacitamos a entender o ensino da Bíblia inteira. E
verdadeiramente assombroso notar que encontramos aqui muitas das doutrinas
primordiais e essenciais da fé cristã, logo na introdução da Epístola aos Efésios.

A declaração específica da qual estamos prestes a tratar não é meramente uma


repetição do que o apóstolo estivera dizendo; é algo novo, algo adicional.
Notemos dois pontos relacionados com a tradução. A Versão Autorizada (do rei
Tiago) diz assim: “Tendo nos predestinados para a adoção de crianças2 por Jesus
Cristo”. Este é um daqueles casos em que infelizmente a Versão Autorizada não
é tão boa como a tradução da Versão Inglesa Revista (“ERV”), que diz: “Tendo-
nos preordenado para adoção como filhos”. A palavra aí é “filhos”, e não
“crianças” como vem na Versão Autorizada. A Versão Padrão Revista
Americana (“ARS V”) igualmente diz “filhos”; mas, ainda mais espantosamente,
vemos que a Versão Padrão Revista (“RSV”) que é tão popular no presente,
deixa fora o termo “adoção”, sem motivo algum. Quando ela traduz
precisamente a mesma palavra no capítulo 8 da Epístola aos Romanos e no
capítulo 4 da Epístola aos Gálatas, usa o termo “adoção”, mas aqui, em Efésios,
ela o omite. Isso nos lembra a importância de usar e manusear todas estas novas
versões modernas muito cuidadosa e judiciosamente.

A próxima questão que deve prender a nossa atenção é ver que o apóstolo
introduz uma novas expressão. No versículo anterior ele dissera: “Como também
nos elegeu”; porém agora ele escreve em termos de que Deus “nos predestinou”.
Tratar-se-ia apenas de uma distinção, sem qualquer diferença? A resposta é que
não é isso. O apóstolo não está simplesmente se repetindo, empregando
uma ligeira variação; está realmente dizendo algo novo, algo diferente. Há uma
importante diferença entre “elegeu” e “predestinou”. “Predestinar” significa
determinar de antemão, declarar de antemão. Com esta expressão o apóstolo
quer dizer que este foi o plano supremo de Deus; refere-se ao plano
propriamente dito. “Eleger” ou “escolher”, por outro lado, salienta o meio ou o
método ou o modo pelo qual esse plano foi posto em operação e foi executado.

A diferença existente entre as duas é a diferença que existe entre a coisa


predeterminada, idealizada e proposta na mente de Deus, e sua execução.
Somos, pois, confrontados pela estonteante declaração de que, “antes da
fundação do mundo”, foi plano e propósito de Deus que certos membros da
decaída raça de Adão - que tinha caído e ficado separados dEle, e que haviam
ficado em desarmonia com Ele em suas mentes, e que estavam sob a Sua ira e
nada mereciam senão a perdição - se tornassem Seus filhos. Esse é o plano e o
propósito de Deus na redenção. Já vimos que o apóstolo expõe estas coisas numa
certa ordem definida, e sempre que pensemos na salvação e na redenção
devemos manter agudamente em nossas mentes que a decisão ou determinação
original de Deus foi que certos membros daquela raça decaída estivessem em
Sua presença como Seus filhos. Para levar a efeito essa determinação,
obviamente era essencial que Deus “elegesse” e selecionasse certas pessoas que
seriam levadas àquele destino glorioso. É igualmente óbvio que certas coisas
tinham que ser feitas com aquelas pessoas para adequá-las e prepará-las para o
seu destino. E o que tinha de ser feito era que, como vimos, elas fossem feitas
“santas e irrepreensíveis em amor”. Vemos assim a íntima e lógica relação entre
estas coisas. Há o propósito original e, a fim de que esse propósito viesse a
cumprir-se era preciso que fossem tomadas e feitas santas certas pessoas por que,
sem serem santas, não teriam a mínima possibilidade de manter-se na presença
de Deus.

Noutras palavras, podemos ter nessa declaração adicional no versículo cinco


uma percepção maior da razão pela qual o apóstolo afirma que fomos escolhidos
para a santidade - “para que fôssemos santos e irrepreensíveis diante dele em
amor”. Paulo coloca primeiro a santidade porque está pensando em nossa
filiação, em nosso destino final e supremo. Conquanto seja muito importante
que tenhamos em mente cada uma destas verdades separadamente e de modo
ordenado, não devemos pensar nelas exageradamente em termos de seqüência no
tempo, ou de seqüência cronológica, porque todas estas coisas estavam na mente
de Deus ao mesmo tempo. Deus vê o fim e o princípio; e não se trata aí de uma
disposição cronológica, mas sim, de uma disposição lógica - a predeterminação
original, a eleição original para a filiação.
Mas alguém poderá perguntar: “Se essa é a ordem lógica, por que Paulo põe
“eleição” e “santidade” antes de “predestinação”? A resposta é que, do ponto de
vista da experiência, “eleição” e

“santidade” vêm antes da adoção como filhos. O apóstolo estava escrevendo


uma carta pastoral a certo número de cristãos, muitos dos quais eram escravos e
servos, para que pudessem firmar sua fé. Por isso escreve de maneira que lhes
seja o mais útil possível. Portanto, um modo simples de provar que você é filho
de Deus, e se você tem mente espiritual, é perguntar a si mesmo se tudo isso
lhe parece perda de tempo, ou se você vê nisso a coisa mais maravilhosa e mais
gloriosa que já viu em toda a sua vida. Paulo nos põe aqui face a face com a
realidade estupenda que o Deus todo-pode-roso planejou e fez para nós. Quando
você examina o esquema e o plano, você sente prazer? Uma criança sempre se
delicia em olhar o plano e o propósito do seu pai; e eu e você temos o privilégio
de, mediante as Escrituras, ter um vislumbre do plano de Deus. Se isso não
significa nada para você, quer dizer que você é um homem “natural”, não um
homem “espiritual”. Como diz o apóstolo, “O homem natural não compreende
as coisas do Espírito de Deus, porque lhe parecem loucura”; ele não vê nada
nelas, e elas o aborrecem completamente. Que é que estas coisas significam
para você? Elas foram escritas para pessoas muito simples, e o propósito em
vista é que as captemos, as entendamos e nos regozijemos nelas.

A seguir passaremos a examinar este termo central, “adoção”. “E nos


predestinou para filhos de adoção.” “Adoção” é um termo sumamente
interessante. O apóstolo é o único escritor do Novo Testamento que o emprega, e
há apenas uma pequena dúvida de que ele o tenha tomado do direito romano. É
um termo, uma idéia, da qual os judeus nada sabiam. Não fazia parte do seu
sistema legal, mas era um termo utilizado pelos romanos. Ora, o apóstolo
Paulo era cidadão romano e tinha vivido nessa atmosfera; por isso emprega
naturalmente este termo. Sob a lei romana era assegurado ao filho adotivo o
direito ao nome e aos bens da pessoa por quem fora adotado. No momento em
que uma criança era adotada por uma pessoa, aquela criança tinha o direito legal
e absoluto de fazer tais reivindicações. Por outro lado, a lei romana garantia à
pessoa que adotava uma criança todos os direitos e privilégios de pai.
Funcionava pelas duas maneiras.

Obviamente o apóstolo usa o termo com o fím de comunicar a idéia específica


do lugar ou status de filho. É um termo puramente forense ou legal. É importante
que captemos isso, porque não poderemos penetrar o privilégio da nossa posição
de filhos de Deus, se

não entendermos o que significa adoção. É um termo que salienta relação e


posição, e também salienta categoria e distinção. Estamos familiarizados com
certas categorias da sociedade, certas distinções, que conferem privilégios
atendendo à posição ou à categoria ou ao status da pessoa. Esse termo do Novo
testamento incorpora este sentido. E um termo legal que define lugar ou status,
categoria, privilégio e posição. Sua ênfase não é tanto à natureza da
criança como à sua categoria . É evidente que a natureza é muito importante;
entretanto não é isso que o termo adoção acentua.

Permitam-me ilustrar o ponto. Se você disser que alguém é filho adotivo, estará
dizendo que ele não tem relação de sangue com determinado homem e
determinada mulher. Ele não tem uma ligação natural com eles, mas foi adotado
legalmente por eles; ocupa o lugar de filho deles, embora não participe de fato
da sua natureza. É essa distinção que o apóstolo emprega aqui, e obviamente é
uma distinção importante. A natureza do cristão como novo homem em Cristo,
como filho, é determinada, não pela adoção, e sim pela regeneração. Tornamo-
nos filhos de Deus porque nascemos de novo, porque nos tornamos
“participantes da natureza divina”, porque o Espírito Santo entra em nós, porque
nascemos de cima, porque somos uma nova criação. Recebendo isso, nós nos
tornamos filhos de Deus. Mas isso não é comunicado pelo termo “adoção”,
termo que não coloca ênfase na natureza que temos em comum,
porém, inteiramente no lugar legal ocupado, na categoria, na posição, assim
como nos privilégios provenientes dessa posição. Noutras palavras, pode-se
definir adoção como proclamação da nova criatura em sua relação com Deus
como Seu filho. Pela adoção, então, nos tornamos filhos de Deus, e nos são
apresentados e dados os privilégios pertinentes à categoria de membros da
família de Deus.

De novo alguém poderá perguntar: “Por que o apóstolo introduz este termo, e
qual é exatamente a diferença entre ele e a regeneração; por que ele diferencia e
distingue entre eles?” A resposta nos é dada no capítulo 4 da Epístola aos
Gálatas, versículos 1 a 5. O argumento do apóstolo corre assim: “Digo, pois, que
todo o tempo que o herdeiro é menino em nada difere do servo, ainda que
seja senhor de tudo; mas está debaixo de tutores e curadores até ao tempo
determinado pelo pai. Assim também nós, quando éramos meninos, estávamos
reduzidos à servidão debaixo dos primeiros rudimentos do mundo, vindo, porém,
a plenitude dos tempos, Deus
enviou Seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei... a fim de recebermos a
adoção de filhos”. Observem a distinção que Paulo traça. Um menino nasce de
seus pais e tem em si a natureza de seus pais; e por causa disso ele é, num
sentido, “senhor de tudo”. Mas, enquanto ainda é criança, ele é pouco diferente
de um servo. Na verdade, ainda está sob tutores, serviçais que podem corrigi-lo
e puni-lo, e que podem ensiná-lo. Eles parecem superiores a ele e, como criança,
ele pode ter esse tutor ou esse servo especial. Ele é um verdadeiro filho; não é
filho adotivo, porém, não tem idade. Mas a “adoção” significa que quando a
criança chega à maioridade, é feita uma declaração concernente ao seu status e à
sua posição como herdeiro ou herdeira. Não é agora mais filho do que
antes, entretanto há igualmente uma diferença. O filho agora ocupa um certo
lugar, e a sua relação com os que o dirigiam e com os mestres tornou-se
diferente. Agora eles o tratam de “senhor”. Num sentido fundamental, a sua
relação com os seus pais não mudou; no que se refere a seu sangue e à sua
natureza, permanece exatamente o que era. Todavia, do ponto de vista da
categoria e da posição legal, ele está numa posição diferente.

Agora podemos^ ver por que o apóstolo usa este termo em particular, “adoção”.
É como se ele não se contentasse em dizer que nos tornamos filhos de Deus pelo
segundo nascimento, ele quer que nos demos conta do lugar que ocupamos, e de
quais são a nossa categoria e os nossos privilégios. Aí está por que é tão
difícil entender a razão dos responsáveis pela tradução dada na Versão Padrão
Revista (“RSV”) deixarem de fora o termo. O entendimento teológico e o
entendimento espiritual evidentemente são tão importantes na obra de tradução
como a proficiência lingüística, e são comprovadamente mais importantes.

Passemos então a considerar algo dos privilégios da nossa posição como filhos
de Deus. Que possamos gozá-los é a finalidade principal e suprema da redenção.
Não há nada que lhe seja mais elevado. A nossa adoção é a mais elevada
expressão do próprio amor de Deus. Falo cautelosamente e com reverência
quando afirmo que esta declaração apostólica e as declarações paralelas que se
encontram no capítulo 8 de Romanos e no capitulo 4 da Epístola aos Gálatas são
a mais elevada expressão do amor onipotente de Deus. Não existe nada mais
elevado, como o deixa claro a maneira pela qual o apóstolo João o expõe: “Vede
quão grande amor nos

tem concedido o Pai: que fôssemos chamados filhos de Deus” (1 João 3:1). Não
há nada no mundo que lhe seja comparável. O mundo está muito interessado em
grandeza e louvor, está muito interessado nos grandes homens. Ele louva os
grandes homens e os honra efusivamente.. Ele fala em posições privilegiadas e
em status, categoria, honorabilidade. Mas tudo o que o mundo conhece
neste sentido é decadente e transitório. “Mudança vejo em tudo, e corrupção.”
As honras do mundo são decadentes, só duram enquanto você está nesta vida e
neste mundo. Você não pode levá-las consigo através da morte e da tumba. O
modo de ser deste mundo é passageiro. O que o nosso Senhor disse acerca destas
coisas e de tais pessoas foi: “Em verdade vos digo que já receberam o seu
galardão” (Mateus 6:5). Que desfrutem o máximo que puderem disso enquanto
estiverem neste mundo.

Vejam o rico e Lázaro; que contraste! O rico tem tudo o que o mundo pode dar -
alimento, bebida, honra e posição. Mas na morte ele vê que não tem nada,
enquanto que o pobre Lázaro, o mendigo que jazia à sua porta neste mundo,
cheio de chagas, tem tudo no outro mundo. O mundo presente nada sabe da
verdadeira honra e da riqueza verdadeira. Não as entende nem as aprecia. Diga a
um homem do mundo que ele pode tornar-se uma criança, um filho de Deus, e
nada significará para ele. Ele não está interessado no que ele chama castelos no
ar, e não os entende. O mundo não compreendeu o Filho de Deus quando Ele
esteve aqui; repudiou-O vendo nEle apenas o carpinteiro; não viu glória
nenhuma nEle. Todavia os Seus fiéis discípulos O entenderam, e diziam com
João “Vimos a sua glória, como a glória do unigênito do Pai, cheio de graça e
de verdade” (João 1:14). Eles viram refulgir a glória apesar de Ele ter assumido
a forma de servo. Esta glória continuou a transparecer; e eles a viam. Alguns
deles a viram no Monte da Transfiguração, e a viram noutros lugares. E a glória
que pela adoção é dada aos filhos de Deus é semelhante àquela glória. Como diz
o escritor de hinos:

Este mundo tenebroso a desconhece.

O mundo não conhece os seus verdadeiros grandes homens, os seus reais heróis.
Os nossos livros de história indicam que os homens aos quais o mundo dá
recompensas, geralmente não têm valor, no sentido espiritual, ao passo que os
homens verdadeiramente grandes foram objetos de riso, foram ridicularizados
em

seus dias e em sua geração.

A glória que Deus dá é invisível, mas é real, porque é dada por Ele. Permitam-
me mencionar algumas das suas manifestações nos privilégios que nos são dados
como filhos adotados por Deus. O primeiro é que levamos o nome de Deus;
somos filhos de Deus, somos membros da Sua família. Paulo nos lembra isso no
final do capítulo 2 desta Epístola - somos “da família de Deus”. Você
está acabrunhado, você se sente ignorado, você está desanimado com o fato de
que o mundo não o conhece? Você acha que não é importante, e que não importa
o que os homens lhe façam? Deixe que eles o desprezem, o rejeitem e o
ignorem, bem como a tudo o que você faz; ignore-os, e cante com Horatius
Bonar:

Os homens não te ouvem, não te amam, não te louvam;

O Mestre te elogia - o que, então, são os homens ?

Você é filho de Deus; o nome de Deus está sobre você, o “novo nome” de Cristo,
na expressão do livro de Apocalipse. Seu novo nome é escrito em você, e se
você se sentir desprezado e estiver acabrunhado, junte-se ao escritor de hinos na
oração:

Teu novo nome escreve em meu coração,

O Teu nome de amor, o Teu melhor nome.

Seu novo nome já está lá; Deus mesmo o escreveu porque Ele adotou você. Você
tem direito legal a ele, pode reivindicá-lo. Assim, alce o seu coração e obedeça à
exortação de John Cennick:

Filhos do celeste Rei,

Peregrinando, cantai suavemente.

Erga a cabeça, você tem a glória da qual o mundo nada sabe, glória que jamais
se desvanecerá. É indestrutível e imaculada.

O estupendo dom de amor contemplemos,

Dom que o Pai nos concedeu - A nós, filhos dos homens, pecadores -Chamar-
nos filhos de Deus!

O próximo aspecto que temos de compreender é que nos é dado


o Espírito do próprio Filho de Deus, do Filho unigênito. Paulo expõe isso de
maneia gloriosa também em Gálatas, capítulo 4, versículos 4 a 6: “Mas vindo a
plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a
lei, para remir os que estavam debaixo da lei, a fim de recebermos a adoção de
filhos. E, porque sois filhos, Deus enviou aos nossos corações o Espírito de seu
Filho, que clama: aba, Pai”. Devido sermos filhos, temos este privilégio, que
Deus enviou aos nossos corações o mesmo Espírito que estava em Seu Filho
unigênito. Quando o Senhor Jesus Cristo estava neste mundo como homem, foi-
Lhe dado o Espírito Santo. E-nos dito que “não lhe dá Deus o espírito por
medida” (João 3:34). Ele foi habilitado a fazer o que fez pelo Espírito, e nos é
dito que, desde que somos filhos, Deus põe em nós o mesmo Espírito que estava
em Seu Filho unigênito. Que privilégio! Estamos no mesmo mundo e sujeitos à
mesma contradição dos pecadores. Em Sua vida terrena Ele foi mal
compreendido pelo povo, foi tentado em todos os pontos como nós, porém sem
pecado. Tudo quanto nós temos de suportar, Ele suportou, e passou triunfalmente
por tudo. Foi o Espírito que O capacitou a isso, e o mesmo Espírito está em nós.
Ele tinha que orar como nós; Ele dependia deste poder como nós. Ele Se
determinou a viver como homem, e o fez dessa maneira.

Pois bem, dado sermos filhos, somos “herdeiros de Deus e co-herdeiros com
Cristo” (Romanos 8:17, ARA). Se você está interessado em honras e posses,
veja que, devido você ser filho de Deus, é um herdeiro de Deus. A adoção
confere o direito legal à propriedade. Somos “herdeiros de Deus e co-herdeiros
com Cristo”. “Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino
dos céus”; “Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra” (Mateus
5:3,5).

Além disso, temos uma definida e segura esperança da consumação da nossa


redenção final. Paulo nos garante isso em Romanos, capítulo 8, versículo 23: “E
não só ela, mas nós mesmos, que temos as primícias do Espírito, também
gememos em nós mesmos, esperando a adoção, a saber, a redenção do nosso
corpo”. Noutras palavras, o argumento é que, visto que sou filho de Deus, posso
estar seguro de que virá o dia em que até o meu corpo será redimido. O meu
espírito, a minha alma, já foi redimida, mas o meu corpo é ainda corpo do
pecado. Ainda não foi redimido, contudo o será, e tenho certeza disso porque sou
filho de Deus. A minha filiação é uma garantia absoluta da bênção. Isso garante,
por sua vez, a

vinda do dia em que todos estaremos gozando o que se chama “a gloriosa


liberdade dos filhos de Deus”, quando nos “novos céus e nova terra, em que
habita a justiça” estaremos livres do pecado e de tudo o que possa nos
contaminar (2 Pedro 3:13). Tudo é seguro e certo porque Deus é meu Pai e eu
sou Seu filho. E é porque Ele é meu Pai e eu sou Seu filho que eu sei que “até
mesmo os cabelos da minha cabeça estão todos contados” (Mateus 10:30), que
nada me pode acontecer à parte de Deus. Sei que nem o inferno nem qualquer
outro poder serão capazes de separar-me do amor de Cristo. Sou Seu filho, e Ele
nunca me abandonará. Não pode fazê-lo. Tenho a garantia de que, embora tudo
se oponha a mim neste mundo, prosseguirei firmemente; Ele me conduzirá
adiante, porque sou Sua criança, Seu filho.

Escrevendo aos Coríntios, o apóstolo vai além e diz: “Não sabeis vós que os
santos hão de julgar o mundo?”, e logo acrescenta: “Não sabeis vós que havemos
de julgar os anjos?” (1 Coríntios 6:2-3). Fomos destinados a julgar os anjos
porque somos filhos de Deus. Somos superiores aos anjos. Eles são apenas
“espíritos ministradores”. Haverá um dia em que estaremos julgando os anjos de
Deus em todo o seu brilho e pureza. Seremos elevados a esse nível porque
somos filhos de Deus. Esse é o grande argumento do capítulo 2 da Epístola aos
Hebreus. Cristo foi feito por algum tempo um pouco menor do que os anjos; mas
Deus nos elevou a um nível mais alto que o dos anjos. Você se apercebe destes
privilégios? Se nos apercebêssemos, nunca seriamos culpados de um espírito
de escravidão e temor. Teríamos em nós este “Espírito de adoção”? Clamamos
“Aba, Pai”? Acaso compreendemos estas coisas e nos regozijamos nelas? Esse é
o teste pelo qual se prova se somos guiados pelo Espírito. “Porque todos os que
são guiados pelo Espírito de Deus”, afirma Paulo em Romanos 8:14, “estes são
filhos de Deus”.

Façamos uma pausa e meditemos nestas coisas. Despertemo--nos para a


percepção, mediante o Espírito, do que significam a adoção e as coisas dela
decorrentes. Gastemos menos tempo com os jornais e com toda a conversa sobre
honras do mundo. Encaremos estas coisas; elas dizem respeito a nós. Nós, na
qualidade de cristãos, fomos predestinados para a adoção de filhos por Jesus
Cristo para Deus Pai. Louvado seja Deus por ter olhado para nós,
míseros pecadores condenados, e por nos haver exaltado a uma glória
tão indescritivelmente sublime.

1
Prefiro “pré-conhecimento” a “presciência” (ARA, ARC, Bíblia de Jerusalém etc.), porque,
mormente nos tempos atuais, o leitor desavisado pode associar o termo “presciência” com a idéia de
ciência , e não de conhecimento. Aliás, entre os sentidos de “presciência” consta o de “ciência inata”
(Aurélio), “ciência do futuro” (Juca Filho), “ciência do porvir” (Caldas Aulete). Grego: prognosis.
Nota do tradutor.

2
“Children” no original, termo que primariamente significa “crianças” e secundariamente “filhos”.
Nota do tradutor.
10
SUPERIOR A ADÃO

“E nos predestinou para filhos de adoção por Jesus Cristo, para si mesmo,
segundo o beneplácito de sua vontade, para louvor e glória da sua graça, pela
qual nos fez agradáveis a si no Amado. ” - Efésios 1:4

Devemos lembrar-nos de que nos versículos 4, 5 e 6, o apóstolo está interessado


em mostrar a parte que o Pai desempenha nesta grande redenção que usufruímos.
Ele irá adiante para mostrar a parte desempenhada pelo Filho e,
subsequentemente a parte desempenhada pelo Espírito Santo; mas começa pelo
Pai, “o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo”, e já vimos que isso inclui a
nossa adoção como filhos de Deus e todos os privilégios que nos vêm como
resultado disso. No entanto, não podemos abandonar este grande assunto neste
ponto, porque no momento em que o examinamos atentamente vemos que certos
princípios estão incluídos nesta declaração, princípios que são de vital
importância para aposição cristã e que, se os negligenciarmos ou os entendermos
mal, poderemos provavelmente estar militando contra o nosso bem-estar. Como
cristãos, ainda estamos neste mundo, e estamos cercados de inimigos e de
antagonistas. O fato de que nos tornamos cristãos não significa que tudo vai ser
simples e claro, que não teremos dificuldades e que não haverá mais riscos e
armadilhas em nosso caminho.

Não se pode ler o Novo Testamento sem que veja que logo no início da história
da Igreja os erros começaram a insinuar-se, começaram a surgir heresias, e
alguns se desviaram em sua doutrina e entenderam mal certos aspectos da
verdade. Pode-se dizer, na verdade, que, em sua maior parte, as Epístolas do
Novo Testamento foram escritas para corrigir os mal-entendidos e os erros; e é
por isso mesmo que nós estamos considerando estas coisas. Ainda estamos na
mesma situação. O nosso interesse nestas coisas não é meramente teórico. Isso
mesmo o apóstolo nos faz lembrar na Primeira Epístola aos Coríntios, capítulo
15, versículo 33, dizendo que “as más conversações corrompem os bons
costumes”, com o que ele quer dizer que, se nos desviarmos em nossa doutrina, a
nossa vida acabará por desviar-se também. Não podemos separar o que o homem
crê do que ele é. Por essa razão a doutrina é vitalmente
importante. Certas pessoas dizem ignorantemente: “Não acredito em doutrina;
acredito no Senhor Jesus Cristo, sou salvo, sou cristão e nada mais importa”.
Falar desse jeito é cortejar desastre, e por esta razão: o próprio Novo Testamento
nos adverte desse perigo. Temos que nos guardar do perigo de sermos “levados
em roda por todo o vento de doutrina”, pois, se a sua doutrina se desviar, logo a
sua vida sofrerá também. É, pois, necessário que estudemos as doutrinas para
nos protegermos de certos ensinos errôneos e heréticos que são tão numerosos e
comuns no mundo atual como o foram nos dias da Igreja Primitiva.

Passemos então a estudar um pouco mais a afirmação categórica do apóstolo,


que é que Deus “nos predestinou para filhos de adoção por Jesus Cristo, para si
mesmo, segundo o beneplácito de sua vontade”. Consideremos primeiro a luz
que essa afirmação lança sobre o ensino tão comum hoje acerca da fraternidade
universal do homem.

É corrente a idéia de que Deus é o Pai de todos, que, portanto, todos são filhos
de Deus, e aquilo que o evangelho ressalta muito - especialmente na
apresentação que os evangélicos fazem dele - a respeito da necessidade da morte
de Cristo na cruz, é completamente desnecessário e não passa de um tipo de
legalismo judaico. O ensino de que falo assevera que os judeus, como muitos
outros povos primitivos, acreditavam que os deuses tinham de ser aplacados por
meio de sofrimentos; mas, naturalmente, isso tudo não tem a mínima relação
com o único Deus vivo e verdadeiro, que é amor. Os propugnadores desses
ensinos afirmam que, se tão-somente entendêssemos apropriadamente o ensino
do Novo Testamento, saberíamos que Deus é nosso Pai e que Ele é o Pai de
todos os homens. Não há necessidade de se falar em conversão e regeneração e
novo nascimento, e de se fizer que a cruz é absolutamente vital e central. Todos
são filhos de Deus, argumentam eles, e Deus é um Pai amoroso. Considerar o
pecado com demasiada seriedade é mórbido e nada saudável, e não passa de
restos do legalismo judaico. Se pecarmos, nosso Pai nos perdoará gratuita e
imediatamente. Não precisamos incomodar-nos com essas coisas; pois, sendo
todos os homens filhos de Deus, todos vão para o céu. Todas as advertências
acerca do inferno, do castigo, da retribuição, dizem eles, devem ser banidas de
nossas mentes e da nossa terminologia. Devemos livrar-nos, uma vez por todas,
das idéias legalistas que especialmente o apóstolo Paulo inseriu enganosamente
no original e primitivo evangelho de Cristo, sendo este nada mais que a
elaboração do tema único segundo o qual Deus é nosso Pai e que Deus ama
todos os homens.
Os que sustentam tais idéias não se limitam meramente a fazer

declarações; tentam comprovar pelas Escrituras o que eles dizem. Eles assinalam
que o próprio apóstolo Paulo, pregando sobre Deus aos atenienses, disse:
“Somos também sua geração”; e então eles perguntam: “Isso não é suficiente?”
Além disso, dizem eles, lemos na Epístola aos Hebreus, capítulo 12, versículo 9:
“Não nos sujeitaremos muito mais ao Pai dos espíritos, para vivermos?” Aí,
dizem eles, está uma afirmação de que Deus é o Pai de todos os espíritos, dos
espíritos de todos os homens. Depois nos é dito na Epístola de Tiago, capítulo
primeiro, que Deus é o “Pai das luzes”, o que significa que Ele é o Pai da luz que
há em todo homem. Eles lançam diante de nós essas afirmações e nos desafiam a
contestá-las.

Contestamos dizendo que, certamente, ninguém pode ler a Bíblia, ainda que de
modo superficial, sem ver claramente que ela ensina que há uma divisão
fundamental e central da humanidade em dois grupos. Há os que pertencem a
Deus, e há os que não pertencem a Deus, existem pessoas que são de Deus, e
pessoas que estão fora da Sua aliança, existem os bons e os maus, os salvos e os
perdidos, os que vão para a bem-aventurança eterna, e os que vão para a
perdição eterna.

Essa divisão começa com Abel e Caim, continua com os que foram salvos do
Dilúvio na arca e os que se perderam - a família de Noé e todo o resto do mundo.
Depois vemos essa divisão em Abraão e todos os seus descendentes, em
distinção de todas as outras nações. Vemo-la no ensino concernente ao caminho
largo e ao caminho estreito, e também a vemos numa variedade de metáforas.
Essa divisão percorre nitidamente todas as Escrituras, até que no livro de
Apocalipse vemos os que estão dentro da cidade celestial, em contraste com os
que estão fora, com os cães e com os destinados à perdição. Como, porém,
conciliar isso com as declarações anteriormente citadas de Atos, capítulo 17, e
de outras passagens? A resposta, como já vimos anteriormente, é que Deus é
o Pai de todos os homens no sentido de que Ele é o Criador de todos os homens.
Ele é o originador da humanidade toda; e quando nos é dito que todos nós somos
“sua geração”, quer dizer que todos nós somos produto da Sua obra, da Sua
atividade; somos todos produto da Sua criação. E é nesse sentido que Ele é “o
Pai dos espíritos”.

Mas não vamos ficar nisso; há declarações específicas das Escrituras que
expõem a divisão ainda mais fortemente. Deus, no Velho Testamento, diz
repetidamente dos filhos de Israel: “Israel é meu filho” (e.g., Êxodo 4:22). Ele
não descreve outros povos como Seus filhos. Vejam depois a declaração que
temos nesta mesma Epístola, onde Paulo diz: “Entre os quais todos nós também
antes andávamos nos desejos da

nossa carne, fazendo a vontade da carne e dos pensamentos; e éramos por


natureza filhos da ira, como os outros também” (2:3). Éramos filhos da ira por
natureza, diz o apóstolo. O Senhor nos dá pessoalmente o mesmo ensino quando,
numa discussão com os escribas e fariseus, Ele se refere aos Seus antagonistas
como filhos do diabo. Diz ele: “Vós tendes por pai ao diabo”. E mais: “Se Deus
fosse o vosso Pai, certamente me amaríeis” (João 8:42,44). Vocês não podem
dizer, é o que praticamente Ele está dizendo, que Deus é seu Pai, porque vocês
estão provando que Deus não é seu Pai. Como filhos do diabo, vocês
são semelhantes ao pai de vocês, e pertencem ao seu pai. Se vocês fossem filhos
de Deus, vocês Me amariam. Entretanto vocês não Me amam e, portanto, não
são filhos de Deus. Vem então aquela declaração específica no Evangelho
Segundo João, capítulo primeiro, versículo 12: “Veio para o que era seu, e os
seus não o receberam. Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de
serem feitos filhos de Deus”. Êvidente-mente, eles não eram filhos de Deus
como eram, porém a alguns foram dados o direito e autoridade de tornar-se
filhos de Deus em decorrência de haverem recebido o Senhor Jesus Cristo.
Obviamente, o argumento é que, se eles não O receberam, não são filhos de
Deus, e não têm direito de chamar-se e de considerar-se Seus filhos, como
tampouco têm autoridade para isso.

Há também a declaração que consta em Romanos 8:14: “Todos os que são


guiados pelo Espírito de Deus, esses são filhos de Deus”. Tais declarações são
certamente suficientes para o trato desta questão. E aqui, no texto que estamos
considerando agora, ele está presente de maneira muito explícita. O Pai nos
predestinou; é essencial que nos lembremos de que o apóstolo está escrevendo
unicamente para os cristãos. Ele está escrevendo somente para os membros das
igrejas, não uma carta geral para o mundo. Todo o seu objetivo é mostrar aos
cristãos que eles não pertencem mais ao mundo. São um “povo santo”, o povo
que fora “chamado para a santidade”, irrepreensível, para estar “diante dele em
amor”. Não estão mais “mortos em ofensas e pecados”, não são mais “filhos da
ira”, como os outros também”. São pessoas especiais, que se tornaram cristãs; e
é somente dessas pessoas que ele declara que foram predestinadas “para filhos
de adoção”.
Portanto, vemos claramente que não há nada que mais contradiga o claro ensino
das Escrituras, do princípio ao fim, do que a idéia de que Deus é Pai universal de
todos, que todos são Seus filhos, e que finalmente todos vão para o céu. Na
verdade, não hesito em asseverar que não existe ensino que seja, de maneira
final, tão prejudicial às nossas

almas e à salvação delas como este ensino acerca da paternidade universal de


Deus. Se Deus fosse o Pai de todos nesse sentido, o Senhor Jesus Cristo jamais
teria vindo a este mundo. Por isso, quando avaliarmos as nossas almas e as dos
outros, rejeitemos com repulsa essas noções pervertidas, e façamos tudo o que
pudermos para libertar outros das garras de tal ensino.

Positivamente, e em segundo lugar, podemos dizer que toda a ênfase desta


passagem é que só nos tornamos filhos no Senhor Jesus Cristo e por meio dEle.
Ele também é indispensável : “Como também nos elegeu nele antes da fundação
do mundo, para que fôssemos santos e irrepreensíveis diante dele em amor”. E
ainda: “E nos predestinou para filhos de adoção por Jesus Cristo, para si mesmo,
segundo o beneplácito de sua vontade, para louvor e glória da sua graça, pela
qual nos fez agradáveis a si no Amado.” À luz destas palavras é quase
inconcebível que alguém alguma vez se extravie com relação a este assunto.
Há somente uma explicação do fato de que muitos se extraviam; é o poder do
diabo! O apóstolo fica repetindo estas declarações a respeito do Senhor Jesus
Cristo. Ele vai repetindo as suas ênfases, “nele”, “por ele”, “por meio dele”, “no
Amado”; e faz isso porque está ansioso para mostrar que é somente em Cristo
que nos tornamos filhos de Deus. O ensino errôneo acaba com a necessidade de
Cristo, porque alega que, por nossa própria criação e por nosso próprio ser,
somos todos filhos de Deus.

Temos de compreender que unicamente “a todos quantos o receberam” é que o


Senhor Jesus Cristo dá o direito, a autoridade, de se tornarem filhos de Deus.
Disse o Senhor: “Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida. Ninguém vem ao Pai,
senão por mim” (João 14:6). Ele é absolutamente indispensável. Se Ele não
tivesse vindo do céu, nenhum de nós jamais nos tornaríamos filhos de Deus,
teríamos permanecido “filhos da ira”. É só como resultado de tudo o que
começou na encarnação, no nascimento em Belém, em tudo o que Ele fez e foi,
em tudo o que Ele ainda é e faz - é só como resultado desses acontecimentos que
nos tomamos filhos de Deus. Se não vemos que a encarnação é uma necessidade
absoluta, que a obediência à lei tinha que ser efetuada, que Ele precisava sofrer e
morrer, que Ele tinha que levar sobre Si os nossos pecados, que fazer a expiação,
e reconciliar-nos com Deus - se não compreendemos e não vemos que tudo isso
era absolutamente indispensável antes de podermos tornar-nos filhos de Deus,
ainda estamos em nossos pecados, estamos agasalhando uma ilusão, e no dia
final, quando formos para a frente imaginando que somos filhos, ver-nos-emos

confrontados com as palavras: “Nunca vos conheci: apartai-vos de mim, vós que
praticais a iniqüidade” (Mateus 7:23).

O apóstolo faz cuidadoso uso das palavras. Notem que, quanto à nossa
santidade, ele afirma que estamos “nele”, mas, quanto à adoção, ele diz “por
Jesus Cristo”. É em decorrência da minha união com Cristo, ou por meio da obra
realizada por Cristo que eu recebo a adoção e me torno filho de Deus. Noutras
palavras “por meio de” ou “por” ressalta a obra que Cristo realizou, as coisas
que Ele teve que fazer antes de eu vir a ser filho.

Devemos salvaguardar esta doutrina pela seguinte consideração: conquanto nos


regozijemos no fato de que somos filhos de Deus - os filhos de Deus em Cristo
Jesus - temos que traçar clara distinção entre a Sua filiação e a nossa, para que
não nos desviemos doutra maneira. Somos “filhos de Deus”, mas não do mesmo
modo como o Senhor Jesus Cristo é o Filho de Deus. Ele é o Filho de Deus por
geração eterna; somos filhos de Deus por adoção. Foi por causa dessa distinção
que o nosso Senhor, no fim da Sua vida terrena, disse a um dos Seus
discípulos: “Subo para meu Pai e vosso Pai, para meu Deus e vosso Deus”
(João 20:17). Ele não disse: “Subo para o nosso Pai e o nosso Deus”. A
nossa filiação é derivada, nós a derivamos dEle; isso porque fomos
adotados “nele”.

Para expormos esta verdade ainda mais explicitamente, precisamos ver com
clareza que não somos deuses; não nos tornamos divinos, nesse sentido. Apesar
de ser verdade que somos participantes da natureza divina, continuamos sendo
seres humanos. O Senhor Jesus Cristo é a “Substância da Substância eterna”,
“Verdadeiro Deus de Verdadeiro Deus”. 1 Ele é essencialmente diferente de nós;
todavia fomos adotados e introduzidos na família. É impossível compreender
isso; mas é importante que o reconheçamos, porque às vezes certas pessoas
que têm ensinado erroneamente que cristãos se tornam deuses, se
tornam divinos. Não há ensino disso nas Escrituras. O lugar que ocupamos,
a nossa posição, a nossa classe é de filhos adotivos. Há um sentido em
que podemos chamar o Senhor Jesus Cristo nosso Irmão, porém, devemos fazê-
lo com cautela. Ele é eternamente o Filho de Deus que assumiu a natureza
humana. Nós somos humanos, adotados como membros da família de Deus, e
recebemos os privilégios, a posição e o status próprios da filiação.

Outro ponto que deve receber a nossa atenção é a pergunta: a quem

pertence esta filiação? Diz o apóstolo Paulo: “E nos predestinou para filhos de
adoção por Jesus Cristo, para si mesmo”. Aplica-se a todos os cristãos, ou
somente a alguns cristãos? Levanto esta questão porque há um ensino de que
nem todos os cristãos se tornam filhos de Deus, que essa adoção só se refere a
alguns. Diz este ensino que todos os cristãos são “crianças” de Deus, mas
somente certos cristãos especiais se tornam “filhos de Deus”. Há alguns anos foi
dada notoriedade a esse ensino por certas pessoas que se arrogavam um grau de
santidade incomum, uma peculiar profundidade de instrução doutrinária.
Elas alegavam que tinham avançado mais que os outros cristãos e que, portanto,
tinham direito de separar-se dos outros por causa da profundidade do seu
conhecimento doutrinário. O ensino delas era que, enquanto que todos os
cristãos são crianças,2 nem todos os cristãos se tornam filhos. Iam além e
ensinavam que somente os filhos terão parte na “primeira ressurreição”.
Somente eles têm direito de estar “com Cristo” As crianças (a prole cristã em
geral, diziam aquelas pessoas, não estarão com Cristo, serão deixadas na terra;
mas os filhos estarão com Cristo sempre, e gozarão Sua glória de maneira
excepcional. Trata-se de um ensino que separa os cristãos em “crianças” e
“filhos”.

As bases deste ensino errôneo eram como segue. Seus propugnadores diziam que
na Versão Revista Inglesa (“RV”) a tradução de Mateus capítulo 5, versículo 9
diz: “Bem-aventurados os pacificadores porque serão chamados/í7/zíw de
Deus”. Depois, no versículo 45 de Mateus capítulo 5, é dito aos cristãos que
amem os seus inimigos, “para que sejais filhos do vosso Pai que está no céu”.
Igualmente em Lucas 20:36 nos é dito que os cristãos “são filhos de Deus, sendo
filhos da ressurreição”.3 Também alegam que nos capítulos 3 e 4 de Gálatas
há diferença entre os santos do Velho Testamento e os filhos do Novo,
que somente estes últimos são chamados filhos no sentido mais elevado. À luz
do ensino das Escrituras propriamente dita, aquela doutrina é totalmente falsa.
Realmente não temos necessidade de ir além deste versículo 5 deste capítulo
primeiro da Epístola aos Efésios: “E nos predestinou para filhos de adoção”. O
apóstolo está claramente se referindo a si próprio e a todos os cristãos aos quais
estava escrevendo, membros das igrejas de Éfeso e Colossos e a várias outras
igrejas às quais esta carta
circular estava sendo enviada. Ele não diz: “predestinou a certo número dentre
nós”, “predestinou a uns poucos elementos seletos dentre nós”, para adoção de
filhos por Jesus Cristo para si mesmo”. O que ele diz é “E nos predestinou” - a
todos os cristãos, sem nenhuma divisão, sem nenhuma distinção.

E não somente isso, nas Escrituras, particularmente nas Epístolas, os termos


“crianças” e “filhos” são sempre usados um pelo outro. Não há exemplo mais
perfeito disso do que no capítulo 8 da Epístola aos Romanos, onde o apóstolo
trata da questão da filiação. Diz ele: “Não recebeste o espírito de escravidão para
outra vez estardes em temor, mas recebestes o espírito de adoção de filhos, pelo
qual clamamos: Aba, Pai” (versículo 15). E continua: “O mesmo espírito
testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus” (versículo 16). É
evidente que ele está escrevendo acerca das pessoas que ele tinha acabado de
descrever como “filhos”. Mas aí ele lhes chama “crianças” (“progênie”): E, se
nós somos filhos (VA, “children”, crianças, prole), somos logo
herdeiros também, herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo”. No
mesmo parágrafo, como parte de um só argumento, ele usa os termos “filhos”
e “crianças”, um pelo outro.4

Há, no entanto, uma declaração mais notável ainda no capítulo 3 da Epístola aos
Gálatas, versículo 26, na tradução da Versão Revisada Inglesa: “Pois todos vós
sois filhos de Deus, pela fé em Cristo Jesus”. Todos filhos de Deus pela fé! E de
novo em Gálatas, e capítulo 4: “Pelo que já não és mais servo, mas filho; e se
filho, 5 logo também herdeiro de Deus por meio de Cristo”. Exatamente o
mesmo é o argumento da Epístola aos Romanos, onde Paulo usa a palavra
“criança”.

Mas talvez a prova final do erro total do referido ensino seja a que se acha nos
escritos do apóstolo João. No Evangelho e nas suas Epístolas, ele nunca emprega
a palavra “filhos”; sempre usa a palavra “crianças”. Às vezes a Versão
Autorizada traz “filhos”, porém é um erro. A palavra que João usa no original é
sempre “crianças”. Claramente se vê que o apóstolo João estava ciente da
distinção à qual o falso ensino de que falamos dá tanta ênfase.

Como o diabo é astuto! Ele vem como anjo de luz e traça divisões e distinções
que não se vêem nas Escrituras. Ele confunde os cristãos e os ilude, levando-os a
imaginar que eles têm algo superior, algo esotérico, algo que só é entendido
pelos poucos especiais e que não
se pode ensinar à maioria dos cristãos porque não estão preparados para recebê-
lo. Quão importante é que leiamos com cuidadosa atenção as Escrituras! “E nos
predestinou para filhos de adoção”. Todos os cristãos são filhos de Deus;
compartilham os mesmos privilégios na terra, e gozarão os mesmos privilégios
no céu, e por toda a eternidade. Não existe nenhuma dessas graduações. Graças a
Deus, todos nós somos, pela graça de Deus em Cristo, filhos de Deus na mesma
posição privilegiada.

Finalmente, ao sai destas questões de heresia e de falso ensino, permitam-me


concluir com algo que alegrará os nossos corações, espero, e nos habilitará a ver
quão maravilhosa é essa declaração. Coloco-o na forma de uma proposição. A
redenção não fica só no desfazer os efeitos da Queda e do pecado; vai além!
Começo dizendo que na passagem em foco nos é dito que Cristo e a Sua obra
têm o propósito de desfazer os efeitos da Queda e do pecado. Mas Paulo nos diz
ali que Deus foi além disso dando-nos em Cristo esta adoção como filhos.
Algo do significado disso vem à luz na comparação que o apóstolo faz
no capítulo 5 da Epístola aos Romanos, onde ele usa as expressões “em Adão” e
“em Cristo”. Somos todos por natureza descendentes de Adão. Adão foi criado
perfeito e em estado de inocência. Foi colocado no Paraíso, no Jardim do Éden, e
foi capacitado a gozar comunhão com Deus. Todavia, ele ainda era apenas
criatura. Certamente era o senhor da criação, porém na alta posição que ocupava
e em sua perfeição, nunca foi mais do que isso. Mas em Cristo estamos numa
posição diferente. Como o apóstolo nos diz no capítulo 15 da Primeira
Epístola aos Coríntios: “O primeiro homem, da terra, é terreno; o
segundo homem, o Senhor, é do céu. Adão era perfeito, Adão era inocente,
Adão foi feito à imagem e semelhança de Deus, entretanto nunca foi
“participante da natureza divina”. Como já vimos, esse privilégio não nos
faz deuses; mas isso não faz diferença para nós. Fomos colocados numa nova
relação com Deus que nem mesmo Adão gozou.

Os cristãos estão “em Cristo”. Nesta qualidade, fomos elevados a um nível mais
alto que o de Adão. Embora perfeito, Adão estava sujeito a cair e fracassar;
todavia - e o digo com reverência e para a glória de Deus - os que estão “em
Cristo” jamais poderão cair definitivamente, jamais se perderão. “Ninguém as
arrebatará da minha mão” (João 10:2829). Cristo, em Sua obra, não somente
desfez os trágicos resultados da Queda, não somente riscou os nossos pecados;
Ele promoveu a nossa posição. “Onde o pecado abundou, superabundou a
graça”, declara Paulo em Romanos 5:20. Isaac Watts, numa grandiosa estrofe
lamentavelmente muitas vezes deixada fora de seu hino que começa com as
palavras, “Jesus reinará onde quer que o sol...”, diz:

Não haverá mais a morte e maldição

Onde Ele mostra o Seu poder de cura.

Eis que as tribos de Adão se gloriarão Em mais bênçãos que as que seu pai
perdeu.

Essa é a exposição da verdade concernente a nós. Em Cristo não somente as


bênçãos que Adão perdeu são restabelecidas para nós, mas nos são dadas muito
mais; nesta nova relação com Deus que usufruímos em Cristo, ocupamos uma
posição mais elevada que a de Adão. A bênção, a promessa de filiação, não é só
para os pacificadores, não é só para os que se empenham estrênuos em sua vida
cristã. Não permita Deus que eu induza alguém ao pecado, mas permitam-me
dizer o seguinte, firmado na autoridade da Palavra de Deus: mesmo que
você tenha caído em grave pecado em sua vida pregressa, agora, como crente em
Cristo, você é progênie de Deus, é filho de Deus adotado para esta nova relação,
é-lhe dada nova categoria, novo status, nova posição, você é elevado a um nível
até mais alto do que o de Adão antes dá Queda. E embora a verdade seja que
nesta vida, neste mundo, só gozamos alguns dos privilégios, honras e bênçãos
ligados à nova posição, sabemos que todos eles são apenas as “primícias”, são
apenas o “antegozo”. “O dia de glória breve virá”, quando O veremos “como
ele é”, e, sendo “semelhantes a ele”, entraremos no gozo de todas as
prerrogativas e de todos os privilégios da nossa filiação celestial. Esta é e sempre
será a verdade pertinente a todos os cristãos, a todos os que pertencem a Cristo, e
a todos os que estão “nele”.

11
A GLÓRIA DE DEUS

“Para louvor e glória da sua graça, pela qual nos fez agradáveis a si no
amado.” -Efésios 1:6

Deus fez por nós tudo o que estivemos considerando, e tudo o que o apóstolo
passa a dizer-nos, “segundo o beneplácito de sua vontade” (versículo 5). Ele não
foi movido a fazer isso tudo por algo existente em nós; é tudo inteiramente dEle
próprio. A salvação não é segundo o desejo ou pedido do homem. A salvação
não é uma resposta de Deus a algo existente no homem; é inteiramente de Deus.
Ele foi movido por Sua graça, misericórdia e compaixão. O apóstolo estivera
dando ênfase a esta verdade; e agora ele passa a dar-nos a razão pela qual Deus
agiu dessa maneira. Aqui temos o grande motivo que está por trás da redenção, o
propósito supremo na mente e na sabedoria de Deus, que leva a todas as bênçãos
resultantes deste grande propósito de salvação. O motivo supremo é “para louvor
e glória da sua graça”. É tudo para a glória de Deus.

Mas o que é espantoso, na verdade quase incrível, é que Deus teve o propósito
de revelar essa glória em nós e por meio de nós. Fomos escolhidos para sermos
santos, e para filhos de adoção, para que fôssemos “para louvor e glória da sua
graça”. Notem como todas estas declarações são inter-relacionadas, e como
todas elas, separadamente e juntas, destinam-se ao “louvor e glória da
sua graça”. O apóstolo nos mostra como devemos considerar-nos a nós mesmos
à luz disso tudo, e como devemos reagir a tudo isso. Não existe prova mais
completa da nossa profissão de fé cristã do que a nossa atitude para com estas
coisas. Acaso corresponde aos termos que as Escrituras sempre usam quando
fazem referência a algum aspecto do plano de redenção? A Bíblia sempre se
refere ao advento do Filho de Deus a este mundo em termos emocionantes.
Os profetas do Velho Testamento sobem às maiores alturas quando profetizam a
vinda do Filho de Deus a este mundo. Pensem, por exemplo, como Isaias escreve
sobre isso e sobe às maiores culmi-nâncias no capítulo 40 do seu livro.

Dá-se o mesmo com todos os escritores proféticos. O Novo Testamento retoma o


tema, e especialmente naquelas passagens

gloriosas que tratam da vinda de Cristo ao mundo. “Grande é o mistério da


piedade”, diz Paulo. Ele sempre irrompe em louvor e ação de graças quando
contempla a glória de Deus em nossa redenção. É o que há de mais espantoso já
sucedido ou por suceder neste mundo. A vinda do Filho de Deus do céu a este
mundo, na Bíblia é sempre um tema para louvor e glória e ação de graças.
Pergunto, pois, se é essa a nossa reação a tal fato. Seria esse o seu efeito
sobre nós? Como seres humanos, todos tendemos a mostrar as nossas reações, os
nossos entusiasmos. Basta vocês passarem por um campo de futebol numa tarde
de sábado6 e ouvirão o povo expressar-se de maneira muito definida. A mesma
coisa acontece quando as pessoas ouvem uma peça ou quando vêem algo que
lhes agrada. Quando lêem um livro que lhes agrada, sentem necessidade de falar
e conversar com alguém sobre ele. Porventura nós, cristãos, fazemos o mesmo
com relação ao advento do Filho de Deus a este mundo? As vezes tenho receio
de que a maioria das pessoas que estão fora da igreja hoje se negue a ouvir o
evangelho principalmente porque não lhe damos a impressão de que este é o fato
mais maravilhoso que já aconteceu. Não cantamos Seus louvores e nem
engrandecemos a graça e a glória de Deus como devíamos. Por isso o povo
fica indiferente. Neste versículo o apóstolo nos lembra que toda a atmosfera da
igreja deve ser de louvor: “Para louvor e glória da sua graça, pela qual nos fez
agradáveis a si no Amado”. Passemos, pois, a procurar descobrir o que é que
evoca este louvor e adoração e ação de graças.

A primeira e maior verdade concernente à salvação é que é uma revelação da


glória de Deus - “para louvor e glória da sua graça”, ou, se o preferirem, “Para o
louvor da sua glória como se manifesta em sua graça e por meio desta”. Esta é a
principal razão para o louvor. É quase impossível dizer algo sobre “a glória de
Deus” porque a nossa linguagem, a nossa terminologia, as nossas palavras são
completamente inadequadas para transmitir algum sentido verdadeiro dela. No
entanto, podemos dizer que “a glória de Deus” é a natureza essencial de Deus; é
o que faz de Deus Deus. É nos dito no capítulo primeiro da Epístola aos
Hebreus, versículo 3, que o Senhor Jesus Cristo não somente é “a expressa
imagem” da Pessoa

de Deus, mas também a refulgência, o resplendor da glória de Deus. Se há um


termo que descreve Deus mais que qualquer outro é o termo “glória”. Inclui
beleza, majestade, ou melhor ainda, esplendor. Inclui também a idéia de
grandeza, poder e eternidade. Todos esses termos estão incluídos neste termo
único, “glória”. Não podemos ir além disto. Este fulgo resplendente é sugerido
na expressão utilizada pelo apóstolo João em sua Primeira Epístola: “Deus é luz,
e não há nele trevas nenhuma” (1:5). A primeira e maior verdade acerca da
salvação é que ela nos revela a glória de Deus, a majestade, o esplendor de Deus.
No Velho Testamento vemos que esse é o termo sempre utilizado para comunicar
a presença imediata de Deus. No Primeiro livro de Reis, capítulo 8, lemos que a
glória do Senhor encheu o templo, e em muitos lugares se nos diz que a glória de
Deus sempre habitava o átrio interior, no recesso do tabernáculo, como também
do templo. Havia lá os querubins que ficavam por cima do assento da
misericórdia (propiciatório) e da arca da aliança, e havia a glória da Shekinah.7
É nos dito que mesmo o sumo sacerdote só podia entrar uma vez por ano no
lugar santíssimo, e então, não sem sangue. Isso porque a glória de Deus habitava
ali. Isso nos dá uma idéia da glória transcendental de Deus, e notamos que ela é
geralmente associada à concepção da nossa salvação. A glória e o assento da
misericórdia acham-se juntos no mesmo lugar santo, no recesso interior,
no “lugar santíssimo”.

Geralmente a glória de Deus é mencionada em conexão com as ações de Deus


para com o homem na salvação, de algum modo. É sumamente interessante
rastrear esse fato através do Velho Testamento. É deveras surpreendente que a
primeira vez que o encontramos é imediatamente após o homem haver caído em
pecado. Antes disso somos informados de que Deus tinha comunhão com
o homem e o homem com Deus, no Paraíso. Tudo era perfeito, mas o homem
deu ouvidos ao diabo e, como punição por sua rebelião e por ser pecado, ele foi
expulso do Jardim. Que lástima! Depois nos é dito que no extremo leste do
Jardim Deus colocou querubins e uma espada flamejante para impedir que o
homem voltasse ao Paraíso e tivesse acesso à Arvore da Vida. Devemos entender
que a espada flamejante e os querubins são uma manifestação da glória

de Deus. A glória de Deus leva ao castigo do homem pecador, e o mantém em


seu lugar, antes de revelar-lhe um meio para o perdão e para a reconciliação.
Lemos que Abraão recebeu um vislumbre desse “meio” em Gênesis, capítulo 15.
Semelhantemente, lemos que os filhos de Israel quando jornadeavam do Egito
para Canaã, foram guiados por uma coluna de nuvem de dia e por uma coluna de
fogo de noite. Foi um exemplo das manifestações que Deus fazia da Sua glória
ao Seu povo, em conexão com a sua libertação.

Recordamos também a descrição que Isaias faz do que aconteceu quando ele foi
chamado para o seu ofício profético. Foi-lhe dada a visão de um templo que “o
séquito” do Senhor enchia, e ele diz: “E os umbrais das portas se moveram com
a voz do que clamava, e a casa se encheu de fumo” (Isaias 6:1-4). A glória do
Senhor manifestou-se a ele, e ele disse: “Sou um homem de lábios impuros”; a
experiência o deixou completamente humilde.

Mas é quando chegamos ao Novo Testamento que vemos este elemento com
maior clareza. No lírico anúncio da encarnação feito aos pastores quando eles
guardavam os seus rebanhos de noite, vemos que de súbito se ouviu uma
multidão dos exércitos celestiais que louvavam e diziam: “Glória a Deus nas
alturas, paz na terra, boa vontade para com os homens”. Observem a ordem.
Nasceu o Salvador, o Menino, na manjedoura da estrebaria de Belém; entretanto
o responso dos exércitos celestiais foi: “Glória a Deus nas alturas”, e só depois
disso, “paz na terra, boa vontade para com os homens”. No momento em que se
menciona a salvação, a glória de Deus é que fica mais proeminente. A salvação a
revela mais que qualquer outra coisa, e não admira que Paulo escreva a
Timóteo dizendo que o que lhe fora confiado é “o evangelho da glória do Deus
bendito”. Escrevendo aos Coríntios, ele diz: “Deus, que

disse que das trevas resplandecesse a luz, é quem resplandeceu em nossos


corações, para iluminação do conhecimento da glória de Deus, na face de Jesus
Cristo” (2 Coríntios 4:6). Quando o Filho de Deus veio a este mundo, acima de
tudo o mais, Ele estava revelando a glória de Deus. “E vimos a sua glória” (João
1:14).

E dessa maneira que devemos pensar em nossa salvação. Será que ela nos enche
de um sentimento de encanto, louvor e admiração? Compreendemos que fomos
chamados “para louvor e glória da sua graça”? Assim como o principal elemento
do pecado é que não damos a Deus a glória devida a Seu nome, assim o
principal quanto à salvação deve ser que ela nos leva à percepção da glória

de Deus. A nossa idéia de pecado extraviou-se. Inclinamo-nos a considerar


certas ações como pecaminosas, e quando dizemos que pecamos, queremos
apenas dizer que fizemos algo errado e que estamos sofrendo as conseqüências
disso. Tudo isso é verdade sobre o pecado, porém a real essência do pecado é
que não estamos dando a Deus a glória que Lhe é devida. Originariamente o
homem foi feito para glorificar a Deus. “O fim principal do homem é glorificar a
Deus e gozá-10 para sempre”, como no-lo faz lembrar o Breve Catecismo; e o
caráter odioso do pecado é que ele não tem como glorificar a Deus. De igual
modo, quando pensamos na salvação, não devemos fazê-lo, em primeira
instância, em termos da nossa libertação de pecados particulares, nem mesmo da
nossa condenação. Ela inclui isso, é claro, mas o principal acerca da salvação é
que por meio dela nos é revelada a glória de Deus, a glória do Seu amor e da Sua
graça que nos alcançaram onde nós estávamos. O nosso pensamento acerca da
salvação sempre deve ser, primordialmente, em termos da glória de Deus. Com
base escriturística, esta deve ser a nossa principal crítica a toda evangelização
que simplesmente salienta os grandes benefícios que recebemos, e a nossa
libertação em vários aspectos, e que nunca mencione a glória de Deus revelada
nisso tudo.

Devemos ressaltar que a nossa salvação é a maior e mais elevada manifestação


da glória de Deus. A glória de Deus se manifesta em tudo quanto Deus faz. Vê-
se na natureza - “Os céus proclamam a glória de Deus” (Salmo 19:1, ARA). Não
vemos esta glória porque estamos cegos em conseqüência do pecado. Olhamos
para os céus e pensamos nas estrelas em termos da visão à distância que
os cientistas têm. Mas o salmista vê a glória de Deus. Deus fez os astros e os
colocou em ordem; colocou os planetas em suas órbitas. As estações do ano
também dão testemunho da Sua glória. Todavia o homem em pecado não vê
isso; ele “adora a criatura e não o criador”. A glória de Deus manifesta-se nas
flores, na verdade em todas as coisas da criação; são obras das “suas mãos”
(Salmo 8); mas o homem em pecado está cego para as manifestações da glória
de Deus.

Vê-se igualmente a glória de Deus na história. Examinada profundamente, vê-se


que Deus exerce o Seu domínio sobre ela. Os homens falam dos seus planos e
ambições, e das suas guerras; contudo é evidente o domínio de Deus sobre estas
coisas todas. Os fatos da história estão sob a mão todo-poderosa de Deus. Vê-se
isso

de maneira particularmente clara na história registrada no Velho Testamento em


casos tais como o Dilúvio, a libertação do jugo do Egito, a divisão do Mar
Vermelho, a divisão das águas do Rio Jordão, e especialmente na dádiva da lei
de Deus no Monte Sinai.

Mas o que estou acentuando é que em nossa redenção no Senhor Jesus Cristo,
vemos a glória de Deus em seu auge. Em primeiro lugar , é na redenção que
vemos mais plenamente a sabedoria de Deus. Vê-se isso, repito, na natureza e na
história, porém para vê-lo em sua glória genuína vocês terão que vê-lo “na face
de Jesus Cristo”.

Nada, senão a sabedoria de Deus, poderia engrandecer a nossa salvação. Temos


notado as condições do homem em todas as suas dificuldades resultantes do
pecado. Os livros de história nos dizem o que o mundo tem feito a respeito. O
homem planejou os seus esquemas destinados a produzir as suas utopias, confiou
na educação, na política e em intermináveis outros remédios; no entanto
tudo acabou em fracasso, como o prova o estado em que se encontra o mundo
moderno. A sabedoria do homem sempre “dá em nada”, conforme Paulo lembra
a igreja de Corinto (1 Coríntios 2:6, VA). Repito: nada, senão a sabedoria de
Deus poderia engendrar a nossa salvação. Pode se vê-la no juízo sobre o mundo
mediante o dilúvio. Se víssemos as coisas pelo entendimento cristão, toda vez
que ouvíssemos o estrugir do trovão louvaríamos a Deus, ouvindo nesse estrugir
uma manifestação de Seu poder. Ora, tudo isso não é nada, comparado com Seu
poder na redenção. Seu poder derrotando satanás e reduzindo a nada toda a sua
obra, por um lado, e todas as bênção positivas que recebemos, por outro lado,
ensinam a mesma lição. Daí Paulo dizer no versículo 18 do capítulo que
estamos estudando: “Tendo iluminado os olhos do vosso entendimento, para que
saibais qual seja a esperança da sua vocação, e quais as riquezas da glória da sua
herança nos santos; e qual a sobreexcelente grandeza do seu poder sobre nós, os
que cremos, segundo a operação da força do seu poder, que manifestou em
Cristo, ressuscitando-o dos mortos, e pondo-o à sua direita nos céus”. Para remi-
nos Deus teve que agir face ao poder de satanás e face ao poder da morte. Ele
agiu, e os dominou e os venceu, como também dominou e venceu tudo quanto se
opunha ao nosso bem-estar.

A glória de Deus é igualmente revelada em Sua santidade e em Sua justiça. A lei


antiga, dada por meio de Moisés, tinha revelado a santidade, a retidão e a justiça
de Deus, e a Sua visão do pecado, e

a Sua condenação do pecado; mas, para uma plena manifestação da santidade e


da justiça de Deus, temos que correr para o Calvário. Há somente uma resposta à
pergunta quanto a por que Cristo tinha que morrer - a santidade de Deus! Tal é a
santidade de Deus que Ele não poderia fazer algo salvadoramente pelo pecador
sem fazer algo com o pecado; nada menos que a morte de Seu Filho poderia
satisfazer as santas exigências deste Deus justo. Assim, na cruz Ele O
“propôs para propiciação pela fé no seu sangue, para demonstrar a sua justiça”
(Romanos 3:25 e 26).

Acima de tudo mais, porém, a glória de Deus nos foi revelada em Sua graça.
Deve surgir em nossas mentes a questão sobre por que, em vista da nossa
rebelião, arrogância e pecado, Deus faria algo pelo nosso bem. A resposta acha-
se em Sua graça; e vocês nada saberão disso, enquanto não o virem “na face de
Jesus Cristo” e na graça que dela flui. Foi em vista disso que Samuel
Davies bradou em seu grandioso hino:

Maravilhoso Deus, todas as coisas que fazes Inigualáveis são, e divinais;

Mas as fulgentes glórias da Tua graça Resplendent sem rival, e muito mais!

Aí se vê o Seu amor, e a glória desse amor.

Ainda mais assombroso, em certo sentido, é o fato, ao qual já fiz alusão, de que a
glória de Deus deve revelar-se finalmente em nós e por meio de nós. Deus nos
escolheu para a santidade, predestinou-nos para filhos de adoção, com essa
finalidade. Fazendo de nós Seus filhos, fazendo-nos santos, Deus revela a glória
da Sua santidade. Notem como Paulo expõe isso no capítulo 3, versículo 10,
desta Epístola: “Para que agora, pela igreja, a multiforme sabedoria de Deus seja
conhecida dos principados e potestades nos céus”. O apóstolo Pedro diz, à sua
maneira: “para as quais coisas os anjos desejam bem atentar”. Eles não
entendem bem o assunto, mas “atentam bem” para ele. “Todas as minhas coisas
são tuas, e as tuas coisas são minhas”, diz o nossos Senhor ao Pai no
Evangelho Segundo João, capítulo 17; “e nisso sou glorificado” (versículo
10). Diz Ele também: “Assim resplandeça a vossa luz diante dos homens, para
que vejam as vossas boas obras e glorifiquem a vosso Pai, que está nos céus”
(Mateus 5:16). Fomos chamados “para louvor e glória da sua graça”. Devemos
viver e conduzir-nos de tal

maneira que quando os homens e as mulheres nos virem eles sejam compelidos a
dizer: “Que Deus glorioso! Nada pode explicar essas pessoas, salvo a glória de
Deus onipotente”.

Como devemos ver a nós mesmos à luz destas verdades todas? Eis a resposta do
apóstolo: fomos chamados. Sabemos que Ele “nos fez agradáveis a si no
Amado”. Desafortunadamente, a Versão Revista Inglesa (“ERV”) e a Versão
Padrão Revista (“RSV”) (como também a ARA) perderam completamente o
rumo em sua tradução aqui. Dizem elas: “Para louvor da glória da sua graça (da
sua gloriosa graça) que ele nos concedeu gratuitamente no Amado”. A tradução
da Versão Autorizada diz: “nos fez aceitos no Amado”. Essa tradução chega
mais perto do que o apóstolo escreveu, mas mesmo aí não aparece o verdadeiro
sentido. A palavra que o apóstolo usou aqui é a mesma utilizada no Evangelho
Segundo Lucas, capítulo primeiro, 28: “E, entrando o anjo aonde ela estava,
disse: salve, agraciada; o Senhor é contigo: bendita és tu entre as mulheres” (VA:
”... Salve, tu que és altamente favorecida...”). A referida palavra é a que significa
“altamente favorecida”. Portanto, devemos traduzi-la exatamente da mesma
maneira nesta Epístola, e dizer: “Para o louvor da glória da sua graça, sabemos
que ele nos favoreceu altamente no Amado”. Certamente é esse o sentido que
o apóstolo estava interessado em comunicar! Com relação a nós ele usa á mesma
palavra que o arcanjo acerca da virgem Maria: “Salve tu que és altamente
favorecida”. Significa que, dentre todas as mulheres, Deus escolheu Maria para
que por ela nascesse o Seu Filho. Ela fora criada para isso, para que o Filho de
Deus nascesse do seu ventre.

O apóstolo fala de maneira semelhante a nosso respeito. Ele já nos dissera que
fomos predestinados para a adoção como filhos. Todavia é até mais grandioso do
que isto! Não somente fomos feitos filhos de Deus, mas Cristo vem estar dentro
de nós - “Cristo em vós, esperança da glória” (Colossenses 1:27). Como Ele
estivera fisicamente em Maria, assim Ele está espiritualmente em cada um de
nós, que somos filhos de Deus. “O Santo, que de tí há de nascer, será chamado
Filho de Deus” (Lucas 1:35). Sim, e visto que somos participantes da natureza
divina, Cristo, por assim dizer, nasceu em nós, e assim como Maria, somos
“altamente favorecidos”. Deus nos elegeu, não sabemos por que, mas sabemos,
sim, que isto significa que somos “altamente favorecidos”. Deus, em Sua infinita
sabedoria, e em Seu infinito amor, graça e misericórdia, antes da fundação

do mundo, decidiu que eu e você fôssemos “altamente favorecidos”, e que por


Sua graça, não somente fôssemos redimidos dos estragos e das conseqüências do
pecado, e fôssemos adotados para sermos da Sua família, porém também que em
nós o Seu Filho viesse habitar, e os nossos corpos se tornassem “templo do
Espírito Santo”. Este é o conceito que o apóstolo tinha do cristão; e é
como deveríamos pensar habitualmente de nós mesmos enquanto peregrinamos
neste mundo.

Por que sou o que sou como cristão? Há somente uma resposta: porque fui
“altamente favorecido” pela graça de Deus. A Ele dou toda a glória - “Aquele
que se gloria, glorie-se no Senhor” (1 Coríntios 1:31). Seria assim que você vê a
sua salvação? Você está dando a Deus toda a glória, ou está reservando um
pouco para você? Você anda dizendo que é a sua fé que o salva? Se é o que faz,
você o está fazendo em detrimento a glória de Deus. A glória é inteiramente dEle
- “para o louvor da glória da sua graça, pela qual ele nos favoreceu altamente no
Amado”.

12
“NO AMADO”

“Para louvor e glória da sua graça, pela qual nos fez agradáveis a si no
amado.” - Efésios 1:6

Agora precisamos examinar as duas últimas palavras deste versículo 6 - “no


Amado”. Elas constituem um destes magníficos sumários do evangelho. Como
vimos, o apóstolo salienta que sempre devemos pensar no evangelho em termos
da glória de Deus. É tudo “para louvor e glória da sua graça” Ele nos faz
lembrar também, especialmente neste versículo 6, os extraordinários privilégios
que gozamos por sermos aceitos (altamente favorecidos) “no Amado”. Então o
apóstolo passa a dizer-nos como Deus manifestou a Sua glória em nossa
salvação; é “no Amado”. Cada bênção de Deus que o homem goze é sempre no
Senhor Jesus Cristo e por intermédio dEle. Noutras palavras, temos o direito de
dizer que a glória de Deus se revela suprema, final e mais completamente
no Senhor Jesus Cristo e por meio dEle.

Observamos de novo a referência do apóstolo ao nosso Senhor. Notamos


anteriormente a maneira pela qual o apóstolo fica repetindo o nome do Senhor
Jesus Cristo. Ele O menciona duas vezes no versículo primeiro, chamando-se a
si mesmo “apóstolo de Jesus Cristo” e referindo-se aos santos como “fiéis em
Cristo Jesus”. Ele O menciona uma vez no versículo 2: “A vós graça, e paz, da
parte de Deus nosso Pai e da do Senhor Jesus Cristo”. É óbvio que nada dava ao
apóstolo maior prazer do que referir-se ao nome do Senhor. Vemos o nome duas
vezes no versículo 3: “Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o qual
nos abençoou com todas as bênçãos espirituais nos lugares celestiais em Cristo”.
Paulo nunca O deixa só; constantemente introduz o nome. Depois O menciona
de novo no versículo 4: “Como também nos elegeu nele antes da fundação do
mundo, para que fôssemos santos e irrepreensíveis diante dele em amor”. Ele
parece temer que nós O esqueçamos ou O deixemos fora do nosso pensamento.
Mais uma vez, vemos o nome no versículo 5: “E nos predestinou para filhos de
adoção por Jesus Cristo, para si mesmo, segundo o beneplácito de sua vontade”.
E depois, subitamente, no fim do versículo 6, em

vez de dizer “para o louvor da glória da sua graça, pela qual nos fez aceitos no
Senhor Jesus Cristo” (VA), ele diz, “pela qual nos fez aceitos no Amado”.

Devemos indagar por que o apóstolo variou os termos. Podemos ter toda a
certeza de que não foi acidental. Ele está escrevendo sob a inspiração do Espírito
Santo, de modo que nada que ele faz é acidental. Ele estivera usando as
expressões “Jesus Cristo”, “O Senhor Jesus Cristo” e “Cristo”, mas de repente
fala “no Amado”. Por quê? Ao passarmos a considerar isto, lembremo-nos de
que quando lemos as Escrituras nunca devemos considerar coisa alguma como
ponto pacífico; devemos estar sempre vivos e alertas, e sempre prontos a fazer
perguntas. Quão facilmente podemos perder as grandes bênçãos que se acham
logo na introdução de uma Epístola como esta, simplesmente por passar
ligeiramente pelos termos, como se eles não fossem importantes! O apóstolo
diz deliberadamente “no Amado”, e não “no Senhor Jesus Cristo”, nem “em
Jesus Cristo”, nem “em Cristo”. Ele o faz, opino eu, porque está interessado em
assinalar toda a sua força e intensidade - o que, afinal de contas, é o que há de
mais maravilhoso acerca desta grande salvação. É glorioso e maravilhoso eu e
vocês sermos feitos santos; é igualmente maravilhpso que, pela adoção, sejamos
transformados em filhos de Deus. É quase incrível, mas não obstante, é verdade
que é por meio de pessoas como nós que Deus vai finalmente mostrar aos
“principados e potestades nos lugares celestiais” a Sua multiforme sabedoria; é
pela Igreja que Ele planeja manifestar a glória da Sua sabedoria. Entretanto o
mais maravilhoso acerca desta salvação é o modo pelo qual Deus fez tudo isso.
Ele o fez, diz o apóstolo, chegando ao ponto culminante do seu clímax:
“no Amado”.

Observemos a sua ênfase. Esta é a chave que nos introduz em todo o mistério da
encarnação, e de tudo quanto Deus fez em Seu Filho. É “no Amado”. A primeira
mensagem que esta frase nos transmite é acerca da Pessoa do Senhor Jesus
Cristo. É a maneira pela qual Paulo nos lembra que Jesus Cristo é o Amado
Filho de Deus, “O Filho unigênito” de Deus. É isso que torna o cristianismo e
a salvação contida nele, único, separado e diferente de tudo mais. Ele não é o
registro das tentativas feitas pelo homem para subir a Deus e para encontrar
Deus; é o registro do que Deus fez, especialmente do que fez por meio de Seu
Filho unigênito. “O Amado” é a

expressão sempre utilizada para dar ênfase a esta verdade. Vemo-la, por
exemplo, em conexão com o batismo do nosso Senhor. Veio uma voz do céu que
dizia: “Este é o meu filho amado, em quem me comprazo: escutai-o” (Mateus
17:5). Cada vez que, por assim dizer, o véu do céu é recuado um pouco, e é dado
ao homem um vislumbre da glória eterna mediante o Filho, a expressão
empregada é essa.

O Senhor mesmo também usou o termo “amado” em Sua parábola sobre os


lavradores maus. Ele mostra em Sua história como o senhor tinha enviado vários
servos à sua vinha para ver que os lavradores fizessem o trabalho bem feito,
adverti-los, etc. Mas eles os mataram a todos. Então o senhor disse consigo
mesmo: “Mandarei o meu filho amado, talvez que, vendo-o, o respeitem”
(Mateus 21:37; cf. Lucas 20:13). O nosso Senhor usa a expressão descrevendo-
Se a Si próprio nessa parábola, sabendo que é a expressão que o Seu Pai celeste
habitual e caracteristicamente usa a Seu respeito - “o Amado”. Tudo isso acentua
o fato de que nossa redenção foi elaborada e efetuada mediante o unigênito Filho
de Deus. Vimos que nos tornamos filhos por adoção, porém que Ele é filho
por geração eterna. Ele é um com o Pai, uma só substância, indivisivelmente. O
Filho unigênito do Pai, gerado eternamente pelo Pai - um com o Pai,
indivisivelmente, inseparavelmente. O termo “amado” comunica-nos isso tudo; e
é evidente que o apóstolo o usou deliberadamente a fim de assinalar esse aspecto
da verdade e dar-lhe ênfase. “O Amado” não é outra coisa que não a
Substância da Substância eterna - Deus, o Filho eterno.

Vimos também que, como resultado de havermos sido feitos santos, e da nossa
adoção como filhos, devemos viver “para o louvor da glória de Deus”. E o
mundo deve ver algo da glória de Deus em nós e por meio de nós. Mas a glória
de Deus se manifestou em sua plenitude e intensidade na Pessoa de Seu Filho, “o
Amado”. O autor da Epístola aos Hebreus expressa-o com as
palavras: “Havendo Deus antigamente falado muitas vezes, e de
muitas maneiras, aos pais pelos profetas, a nós falou-nos nestes últimos dias pelo
Filho, a quem constituiu herdeiro de tudo, por quem fez também o mundo. O
qual, sendo o resplendor da sua glória, e a expressa imagem da sua pessoa, e
sustentando todas as coisas, pela palavra do seu poder, havendo feito por si
mesmo a purificação dos nossos pecados, assentou-se à destra da majestade nas
alturas” (1:1-3). O nosso Senhor é “o resplendor da glória de Deus”, é
a “expressa imagem da Pessoa de Deus”. Portanto, o que nos é dito

aqui é que a nossa redenção foi realizada, e foi possibilitada, porque Deus
enviou a este mundo o Seu Filho amado, o resplendor da Sua glória e a expressa
imagem da Sua Pessoa, o fulgor, a reful-gência da glória, da majestade e do
resplendor de Deus.

Do mesmo modo, o apóstolo João, no prólogo do seu Evangelho, no versículo


14, diz: “Vimos a sua glória, como a glória do unigênito do Pai, cheio de graça e
de verdade”. “Vimos a sua glória.” Embora tenha vindo na semelhança da carne
pecaminosa; embora tenha Se humilhado e assumido a forma de servo,
vimos algo do esplendor da glória. Ele e outros o tinham visto no Monte da
Transfiguração, e noutros lugares, e o tinham visto após a ressurreição do
Senhor.

Assim, quando considerarmos a grande declaração destes versículos, e quando


pensarmos na glória de Deus como esta se manifestou na redenção dos homens,
nunca nos esqueçamos de que este é o ponto máximo da manifestação daquela
glória, que Deus mesmo veio, na Pessoa do Filho, do Amado, dAquele em
Quem “habita corporalmente toda a plenitude da divindade”. No homem Jesus
vemos “o Verbo feito carne”. Tudo isso nos é comunicado pela expressão “o
Amado”. Contudo, o Filho não é apenas o “unigênito”, nem somente “a expressa
imagem” da Pessoa de Deus, e o “resplendor da sua glória”; graças a esta
relação, Ele é Aquele que o Pai ama desde toda a eternidade. Deus nos ama, não
porém desse modo. Nunca houve um começo do amor do Pai por Seu Filho. Ele
é “o Amado”, o Ser à parte, Aquele que sempre usufruiu a totalidade do amor de
Deus, Aquele em Quem todo o amor e toda a afeição de Deus estão
centralizados, e em Quem eles permanecem. Não há nenhum termo que expresse
com tanta perfeição, e tão completamente, a relação entre o Pai e o Filho como
esta expressão “o Amado”. Por isso quando pensarmos no bebê de Belém,
quando pensarmos no significado da encarnação, lembremo-nos de quem foi que
Deus enviou - Seu Filho, “o Amado”; Aquele que é amado eternamente. Foi Ele
que veio ao mundo para salvar-nos.

Agora, entretanto, vamos examinar esta expressão como uma medida do amor
do Pai para conosco. O apóstolo estivera acentuando, como a Bíblia toda
acentua, que a nossa salvação é resultado do amor, da graça e da misericórdia de
Deus, Mas, se realmente conhecêssemos o amor de Deus, haveríamos de
compreender algo da verdade acerca da Sua Pessoa. Os que dizem que crêem no
amor

de Deus sem crerem no Senhor Jesus Cristo, estão simplesmente manifestando a


sua ignorância do amor de Deus. Há pessoas que são estultas ao ponto de
dizerem que não podem crer no nascimento virginal e na encarnação, que não
podem crer na expiação e na punição do pecado, por causa da sua fé no amor de
Deus. No entanto, com isso elas estão meramente manifestando a sua ignorância
fundamental do amor de Deus. Para ter algum conhecimento do amor de Deus, a
pessoa precisa ter algum entendimento do que aconteceu no Filho de Deus e com
Ele, com “o Amado”. É nEle que verdadeiramente temos a medida do amor de
Deus. Já o fato de que Deus O enviou a este mundo, é em sí estupendo. Não
podemos conceber estas coisas; as nossas mentes são pequenas demais,
e vacilam em face desta idéia. Não podemos conceber a eternidade, presos como
estamos à noção de tempo. Nós somos finitos, nossas mentes são finitas, e assim,
todo o nosso pensamento é limitado. É nos difícil captar a idéia de que nunca
houve início para Deus O Pai, Deus o Filho e Deus o Espírito Santo, que Eles
existem de eternidade a eternidade.

O fato é que o Senhor Jesus Cristo, o Filho, estava no seio do Pai desde toda a
eternidade. Essa é a expressão empregada pelo apóstolo João no prólogo do
Evangelho que ele escreveu: “O Filho unigênito, que está no seio do Pai, é quem
o revelou” (ARA). Ele esteve eternamente no seio do Pai, gozando pura e
perfeita bem--aventurança, o amor, a santidade, a glória do céu e da eternidade;
e a verdade estupenda que nos é dita quanto à nossa salvação é que “vindo a
plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho” (Gálatas 4:4), enviou-0 daquela
glória, do céu e do fulgor, esplendor e magnificência daquela realidade; enviou-0
ao mundo.

O Pai O enviou. “Deus amou o mundo de tal maneira que deu o Seu Filho
unigênito” (João 3:16). É somente à luz desse fato que começamos a avaliar o
eterno amor de Deus. Foi Seu Filho bem--amado, Seu filho unigênito, que Deus
enviou com essa missão terrível, e a um povo terrível. A semelhança do pai de
que fala a parábola sobre os lavradores maus, Deus, o Pai eterno, envia
Seu Filho, Seu único Filho. Ele tinha enviado os Seus profetas e outros líderes,
todavia eles tinham sido rejeitados e a sua mensagem tinha sido ignorada; mas
agora chegou o tempo em que o Pai eterno diz: enviarei Meu Filho, Meu Filho
amado, eu O enviarei a eles.

Ademais, se é que havemos de ter algum conceito sobre o amor de Deus, temos
qije ler os quatro Evangelhos, e em nossas mentes e

em nossa imaginação precisamos pensar em Deus, o Pai, olhando do alto para


nós e observando e vigiando o que estava acontecendo com o Seu amado Filho.
Certamente todos os pais têm alguma experiência disso. Eles enviam os filhos às
jornadas da vida, e os observam, mantêm os olhos postos neles, vêem a
aproximação dos temporais e das provações, e os observam com interesse, com
amor, às vezes tremendo por eles, cheios de temos por eles. Multipliquem isso
pelo infinito, e ainda não poderão conceber o que significou para o Pai eterno
enviar o Seu Filho ao mar de pecado e de iniqüidade neste mundo. Tal é o amor
de Deus. Ele vê os homens insultando o Seu Filho, vê-os rir-se dEle, vê os
homens apanharem pedras para atirar nEle, no Seu bem-amado Filho. O Deus
que do nada fez o mundo, e que poderia dar cabo dele num instante, o Deus para
quem nada é impossível, olha e vê o mundo recusar o Seu “Amado”, persegui-lO
e feri-lO. Aí temos certa medida do amor de Deus. Quando vocês lerem essa
história nos quatro Evangelhos, lembrem-se de que é sobre “o Amado” que
vocês estarão lendo, e que o Pai está sempre vendo Seu Bem-amado e o
tratamento que o mundo Lhe dá.
Apressemo-nos, porém, ao que há de mais estupendo. Vemo--ÍO subir
cambaleando ao Calvário, vemo-10 cravado num madeiro. E o Pai continua
vendo isso tudo. O Amado finalmente é rejeitado, desprezado pelos homens,
cuspido, açoitado, odiado, ultrajado, cravado no madeiro. Não podemos
conceber a agonia, o sofrimento, a vergonha nisso envolvidos. O Pai olha para o
Seu bem-amado Filho enquanto Ele suporta a contradição dos pecadores contra
Si mesmo. Essa é a medida do amor de Deus. Como o apóstolo Paulo expressa
no capítulo 8 da Epístola aos Romanos, Ele “nem mesmo a seu próprio Filho
poupou, antes o entregou por todos nós”. Ele não poupou o Amado, apesar de
amá-10 com aquele amor eterno desde toda a eternidade, e com toda a
intensidade do Seu divino ser; apesar de ser Ele “o Amado”, Seu Pai não
O poupou. Não Lhe poupou nenhum sofrimento. O Senhor “fez cair sobre ele a
iniqüidade de nós todos”; Ele O feriu, Ele O afligiu com os açoites que nós
merecíamos. E a razão pela qual Ele não lhe poupou nenhum sofrimento foi que
eu e vocês pudéssemos ser perdoados.

Teu único Filho não poupaste, Mas pelo mundo mau O deste

De graça, com aquele ser bendito Tudo entregaste.

Se vocês quiserem ter algum conhecimento do amor de Deus, deverão começar


com esta expressão, “o Amado”. É deste “Amado” que Paulo afirma que Deus
“o fez pecado por nós; para que nele fôssemos feitos justiça de Deus” (2
Coríntios 5:21). Ele fez do Seu Bem-amado uma oferta pelo pecado a nosso
favor, para que nEle fôssemos feitos justiça de Deus.

Agora examinemos essa expressão por um momento, como sendo a medida do


amor do Filho. Nós a estivemos examinando como medida do amor do Pai;
examinemo-la agora pelo outro lado. Não devemos compará-Los, seria um erro e
uma tolice. E, todavia, há uma diferença entre um pai e um filho, e o Senhor
Jesus Cristo é o Filho de Deus, eternamente, e filiação é filiação para Ele
também. Assim, podemos examinar o amor do Filho e o que a consecução
da nossa salvação significou para Ele. Tentem pensar por um momento no auto-
esvaziamento que ocorreu na encarnação em termos da expressão “o Amado”.
Aquele que estivera no seio do Pai desde toda a eternidade, gozando pura e
perfeita bem-aventurança, decide deixá-lo por algum tempo. Aquele por meio de
quem todas as coisas subsistem, a Palavra eterna, o Verbo de Deus, a
expressa imagem da Pessoa de Deus, humilha-Se a Si mesmo, despe-Se
da insígnia, dos sinais da Sua glória eterna, e diz: “Eis-Me aqui, envia-Me”.
Dispôs-Se voluntariamente a tornar-Se homem, assumir a natureza humana, a
pôr de lado as prerrogativas da Sua posição e da Sua singular relação com o Pai.
E esteve no ventre da virgem. Foi “o Amado” que esteve lá, passando por todo o
processo de desenvolvimento como embrião. E inimaginável, é difícil de aceitar;
mas é verdade. Chegou depois a hora em que Ele nasceu numa estrebaria e, por
falta de berço, foi colocado numa manjedoura.

Quem é esse desvalido infante? É “o Amado” - Aquele sobre quem o amor de


Deus é derramado desde toda a eternidade. Agora Ele tem experiência da
fraqueza e do desamparo. Sigam a história toda - o sofrimento, a incompreensão,
“a contradição dos pecadores”. Ele passou dezoito anos aparentemente
desconhecido. Na verdade até os trinta anos de idade. Aquele que tinha
experimentado toda a plenitude de Deus diretamente em amor, agora
Se humilhou e Se colocou em tal situação que Ele sabe o que é estar

só, sentir-Se abandonado e encontrar-Se face a face com a contradição dos


pecadores. Aquele que criou todas as coisas está sofrendo nas mãos das mesmas
pessoas que Ele criou. Essa é a medida do Seu amor. Vejam o desprezo e a
perseguição que se seguiram. Não podemos entender o que tudo isso significou
para Ele, exceto à luz desta expressão , “o Amado”. Quão alegres deveríamos
ficar porque o apóstolo não disse aqui, “no Senhor Jesus Cristo”, mas,
“no Amado”!

A enormidade do paradoxo deste amor, a realidade que não há mente humana


que possa abarcar, é que, quando vocês se põem aos pés da cruz, vocês ouvem
estas palavras: “Deus meu, Deus meu, porque me desamparaste?” Todos os
outros O tinham abandonado, Seus discípulos O tinham deixado, mas agora Ele
clama: “Deus meu, Deus meu, por que (tu) me desamparaste?” Aquele que lança
este brado é “o Amado”. Aquele que Se aquecera ao calor do amor eterno desde
a eternidade, sem interrupção. Ele chega ao ponto de perder a visão da face e do
sorriso do Seu Pai. E Ele experimentou isso por mim e por vocês. Se Ele tivesse
recuado, não seriamos salvos, não seriamos perdoados, não seriamos cristãos,
não seriamos filhos do segundo nascimento. O “Amado” desceu até a ignomínia
e morreu. Seu corpo foi posto num sepulcro e rolaram uma pedra para fechar-lhe
a abertura. Ele desceu ao inferno - “o Amado” . Ele desceu “às partes mais
baixas da terra”. Ele, que tinha feito todas as coisas do nada. E foi por nós, e pela
nossa salvação. Somente quando compreendemos quem é que está sofrendo
dessa maneira é que compreenderemos a profundidade e a intensidade do Seu
amor para conosco.
O nosso pensamento final é que esta expressão, “o Amado”, fala-nos da nossa
relação com Deus. Até aqui falamos da Sua relação com Deus; vejamos agora a
expressão no sentido da nossa relação com Deus. Subamos com o apóstolo,
degrau após degrau, à medida que ele sobe essa tremenda escada. Fomos
chamados, fomos escolhidos para a santidade, para a filiação, para o louvor
da glória de Deus - si, e mais alto ainda, como esta palavra nos lembra. E para
sermos amados por Deus como igualmente o Seu Filho foi amado por Ele. Será
que fui longe demais? Estaria exagerando? Será que de repente dei rédeas à
imaginação? Estarei ultrapassando as Escrituras? Respondo citando as palavras
do próprio Filho em Sua oração sacerdotal registrada em João capítulo 17,
versículo 23:

“Eu neles, e tu em mim, para que eles sejam perfeitos em unidade, para que o
mundo conheça que tu me enviaste a mim” - e então, e o mais estonteante - “e
que os tens amado a eles como me tens amado a mim”. Isso vai além da filiação;
de fato, significa uma intimidade de comunhão com Deus que compartimos com
o Filho. Não é apenas uma questão de grau ou de posição, não é meramente que
fomos adotados legalmente: o Pai agora nos ama como sempre amou o Filho. É
estonteante e estupendo!

O apóstolo não diz isso somente aqui, mas o diz noutros lugares também. Na
Epístola aos Colossenses ele faz um apelo quanto à conduta ética, à moralidade e
ao comportamento, e eis como ele o coloca: “Revesti-vos, pois, como eleitos de
Deus, santos e amados, de entranhas de misericórdia” (3:2). Notem como ele nos
descreve: “Revesti-vos, pois, como eleitos de Deus”, “santos” - mas ainda mais
maravilhoso, “amados”. Somos os amados de Deus. É o ponto apical da nossa
salvação e redenção, que o Cristo que desceu da glória à terra e foi ao Hades,
ressuscitou e nos levou para o alto conSigo. Ele nos colocou numa posição na
qual somos amados como Ele é amado, “santos, e amados”. Paulo diz a mesma
coisa na Segunda Epístola aos Tessalonicenses: “Mas devemos sempre
dar graças a Deus por vós, irmãos amados do Senhor” (2:13). Não somos
somente irmãos, somos amados, “amados do Senhor”, “por (nos) ter elegido
desde o princípio para a salvação, em santificação do Espírito, e fé da verdade”.

Vocês estão persuadidos, estão satisfeitos? Percebem que essa é a elevação


máxima da salvação? É porque tudo o que temos é “no Amado” que nos
tornamos “os amados” de Deus. Deus ama o cristão como ama o Filho;
compartilhamos este amor, nada menos. Porventura vocês nunca se sentiram
tentados a pensar que Deus não é justo com vocês, que Deus os está tratando
com muita dureza e sem bondade? Nunca mais dêem guarida a esse pensamento.
Quer vocês entendam o que lhes está acontecendo quer não, esta é a verdade
concernente a vocês. Em Cristo, e porque Ele é “o Amado”, vocês também são
os amados de Deus. Somos “irmãos amados do Senhor”.

“O Filho de Deus tornou-Se Filho do Homem,” disse Calvino, “para que os


filhos dos homens fossem feitos filhos de Deus.” Sim, e eu acrescento: “amados
de Deus,” porque estamos “no Amado”.

REDENÇÃO

“Em quem temos a redenção pelo seu sangue, a remissão das ofensas, segundo
as riquezas da sua graça." - Efésios 1:7

Temos aí outro exemplo das magníficas declarações que aparecem profusamente


neste capítulo primeiro da Epístola aos Efésios; uma declaração que em si
resume toda a essência e conteúdo do evangelho cristão e da fé cristã. Há um
sentido em que uma pessoa sente que quando lê um versículo como este, não há
necessidade de nada mais. E, todavia, a história da Igreja mostra que todas as
declarações como esta requerem exposição. É assim porque, apesar de sermos
cristãos, ainda não somos perfeitos. Somos propensos e estamos sujeitos ao erro,
e nos inclinamos para a heresia; e a história da doutrina da Igreja mostra
abundantemente que é com relação a tais declarações que com freqüência tem
havido maior confusão na mente e no coração do povo cristão. Absolutamente
não é de admirar, pois estamos aqui face a face com o coração do evangelho, e,
portanto, podemos antecipar que o grande adversário das nossas almas, “o
acusador dos irmãos”, o inimigo de Deus, o diabo, estará mais ávido por
confundir-nos e obscurecer a nossa mente e o nosso entendimento neste ponto do
que em qualquer outro. É, pois, essencial que examinemos e analisemos a
afirmação de Paulo, e que captemos o seu significado, porque ela nos coloca
face a face com o ponto nevrálgico e o centro da fé cristã.

Naturalmente devemos começar examinando o contexto. As palavras “em quem”


desafiam-nos a fazê-lo. Obviamente se referem Àquele que fora descrito no fim
do versículo anterior como “o Amado”. O apóstolo nos dissera que Deus “nos
fez agradáveis a si no Amado”. “Em quem”, diz ele agora, “temos a redenção.”
Observemos igualmente que estas palavras nos levam a um ponto de transição
nesta declaração preliminar e na parte introdutória da Epístola. Já nos lembramos
que nas Escrituras a obra de salvação é dividida entre as três Pessoas da Trindade
santa, o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Nos versículos 3 a 6 estivemos
considerando a obra realizada pelo Pai, o grandioso propósito do Pai, o plano
eternos de Deus, aquilo que Deus projetou antes da fundação do mundo quanto

a nós. Seu propósito era que “fôssemos santos e irrepreensíveis diante dele em
amor”, que recebêssemos “a adoção de filhos”, por Jesus Cristo, para Si mesmo,
“para louvor e glória da sua graça”, e para que nos tornássemos “os amados” no
“amado”.

Mas agora passamos a considerar como esse propósito foi levado a efeito no
Filho e por intermédio dEle. Assim, desde o princípio deste versículo 7 até o fim
do versículo 12 estaremos considerando a obra particular do Filho na economia
da redenção. Depois, nos versículos 13 e 14 estudaremos a obra do Espírito
Santo neste grande plano e propósito. Foi-nos dado o grande quadro descritivo
do supremo objetivo de Deus com relação a nós; e vislumbramos a nossa
exaltada posição de filiação, e a sua exigência de que estejamos na presença de
Deus santos, sem culpa, sem defeito e sem mancha. Entretanto, ainda estamos na
terra, ainda falíveis e ainda pecadores; e a questão que se levanta em
nossos corações é: como podemos ser levados a um estado e a uma condição tão
exaltados?

E evidente que muita coisa precisa ser feita antes de podermos ser levados a tal
posição. O grande obstáculo para chegarmos lá é o pecado; o pecado em geral e
os pecados em particular. São os nossos pecados que se interpõem entre nós e
Deus, como nos lembra o profeta Isaías, quando diz: “Eis que a mão do Senhor
não está encolhida, para que não possa salvar; nem o seu ouvido agravado, para
não poder ouvir. Mas as vossas iniqüidades fazem divisão entre vós e o nosso
Deus”, os nossos pecados se interpõem entre nós e o nosso Deus (59:1-2).
Portanto, antes de sequer podermos chegar à posição predestinada que Deus
planejou para nós, algo terá que ser feito acerca deste problema do nosso pecado
e dos nossos pecados. Foi para realizar esta obra especial e peculiar que o Filho
de Deus veio a este mundo. Deus em toda a Sua eterna sabedoria e pré-
conhecimento, e segundo o Seu propósito, idealizou um meio pelo qual o
homem poderia ser reconciliado com Ele. E o meio é o que está esboçado aqui: o
obstáculo foi removido, o problema foi resolvido.

Há um meio para o homem se erguer À habitação sublime:

Uma oferenda e um sacrifício,


Do Espírito o poder,

Um Advogado com Deus.

Quando atentamos para a exposição do apóstolo, notamos que a primeira coisa


que ele nos diz é que este obstáculo que se interpõe entre nós e Deus e que
precisa ser removido antes de podermos ser reconciliados com Deus, recebeu o
devido tratamento em Cristo “Em quem” - este “Amado” de quem ele estivera
falando e que tão freqüentemente menciona! Não devemos presumir que, uma
vez que ele deu ênfase a isso tantas vezes, não há necessidade de lhe darmos
ênfase de novo, porquanto é justamente neste ponto que tantas pessoas tropeçam
com respeito à questão da salvação. Certamente, no que se refere à minha
experiência pastoral, nenhum problema é levantado com tanta freqüência como
este. Vocês perguntam a alguém: “Você acha que é cristão?”, e a resposta
freqüentemente é: “Bem, estou tentando ser”, ou: “Estou tentando tornar-me
um cristão”. Esse modo de dizer é uma clara indicação de que esta primeira
declaração na Epístola relacionada com o plano de salvação nunca foi entendida.

Por isso, permitam-me expô-la claramente mais uma vez. No cerne e no centro
do evangelho ergue-se a verdade segundo a qual não há salvação fora do Senhor
Jesus Cristo. “O cristianismo é Cristo”. Qualquer coisa que se apresente como
cristianismo, mas que não insista na absoluta e essencial necessidade de Cristo,
não é cristianismo. Se Ele não for o coração, a alma e o centro, o princípio e o
fim do que é oferecido como salvação, não é a salvação cristã, seja lá o que for.

Em primeiro lugar, vamos expor negativamente que não nos salvamos a nós
mesmos e não podemos fazê-lo. Ou, coloquemos a questão de outra forma, nós
mesmos não podemos fazer-nos cristãos. Poder-se-ia pensar que, após quase dois
mil anos de cristianismo no mundo, seria desnecessário fazer tal afirmação.
Todavia, assevero que é mais indispensável do que nunca. Se você
continua pensando em termos de fazer-se cristão, ou de tentar ser cristão, com
isso está indicando claramente que você está no caminho errado; e, enquanto
estiver nesse caminho, você nunca será cristão. A primeira coisa de que temos de
nos aperceber e que temos de entender, é que nenhum homem jamais se fez
cristão a si próprio; que ninguém jamais pode, por si mesmo, fazer-se cristão.
Todos os esforços que acaso façamos - jejuar, labutar e orar - não farão nenhuma
diferença, na verdade podem ser um grande obstáculo. Essa foi, é claro, a
experiência do próprio apóstolo Paulo. Ele estivera tentando reconciliar-se com
Deus; e a sua grande descoberta
no caminho de Damasco foi que isso era a própria essência do erro, e que tudo
aquilo em que se gloriava não passava de “esterco” e “refugo”. Essa é a história
dos grandes santos. Foi a compreensão dessa verdade que levou à Reforma
Protestante. Foi o que revolucionou a vida de Martinho Lutero, João Calvino,
João Knox, e de todos os grandes líderes da Igreja verdadeira, inclusive João
Wesley e todos os demais, até os dias atuais. O ponto nevrálgico da declaração
em foco, “Em quem temos a redenção”, consiste em dizer-nos que nunca
poderemos fazer-nos cristãos por nós mesmos, e que tentarmos fazer-nos cristãos
é mostrar que não entendemos nem sequer o primeiro passo do caminho da
salvação.

Além disso, o fato é que o Senhor Jesus Cristo não veio a este mundo para dizer-
nos o que temos de fazer para tornar-nos cristãos. Há alguns que pensam que
podem colocar-se em boas relações com Deus sem sequer mencionarem Cristo.
Mas há outros que acreditam que o Seu principal propósito ao vir ao mundo foi
ensinar-nos, instruir-nos e dar-nos estímulo e exemplo quanto ao que temos
de fazer para sermos salvos. Todavia isso é igualmente errado. O que Ele nos
manda fazer é até mais impossível do que a lei dada por Moisés. O Sermão do
Monte, exposição que o Senhor fez dos Dez Mandamentos, mostra quão
completamente impossível é a quem quer que seja, com seu próprio poder,
guardar os Dez Mandamentos. O Senhor não veio para dizer-nos o que temos de
fazer para salvar-nos; Ele veio para salvar-nos. Veio fazer algo por nós, agir em
nosso favor. Essa é a verdadeira essência do evangelho. “Em quem.” E nEle que
temos salvação. “O Filho do homem veio buscar e salvar o que se havia perdido”
(Lucas 19:10). É Ele, e o que Ele fez em nosso favor, que constitui a nossa
salvação.

Outros entendem que o nosso Senhor veio a fim de dizer-nos que Deus estava
pronto a nos perdoar. Dizem eles: há muitas declarações no Velho Testamento
que nos dizem que Deus é Pai; que Deus é amor e está pronto a perdoar. Elas nos
dizem que Ele é “abundante em benignidade”, “piedoso e misericordioso”,
“Como um pai se compadece de seus filhos, assim o Senhor se
compadece...’’etc. Pois bem, continuam eles, tudo isso foi revelado no Velho
Testamento. Deus tinha anunciado à nação de Israel, e por intermédio dela ao
mundo, que Ele era um Deus que estava pronto a perdoar pecados. Mas a
humanidade acha difícil aceitar esse ensino e acreditar nele. Por isso, continuam
eles, Deus decidiu mandar Seu filho para que quando as pessoas O vissem e O
ouvissem, e contemplas-
sem as Suas obras, acreditassem que Deus é amor, e que Ele está pronto a
perdoar. Eles argumentam que Ele fez isso na parábola do filho pródigo, e assim
por diante.

Mas nem aí eles param. Eles dizem que Deus foi até mais longe que isso; até
mesmo à cruz. Ele enviou Seu Filho; e o que vocês realmente vêem na cruz do
Calvário é uma grande e gloriosa demonstração do amor de Deus e da prontidão
de Deus para perdoar. Eles afirmam que a coisa funciona desta maneira:
Deus enviou Seu Filho ao mundo, porém o mundo não O reconheceu,
na verdade o mundo O crucificou, mas da própria cruz Deus nos diz: “Estou
pronto a perdoar-lhes até isso”. “Tal é o meu amor’” diz Deus ao mundo, “que,
apesar de vocês terem crucificado o Meu único Filho, até isso lhes perdoarei!”
Para essas pessoas, a morte do Senhor na cruz é a suprema declaração de que
Deus está pronto a perdoar.

No entretanto, não é isso que o apóstolo nos diz aqui. Sua declaração não é no
sentido de que o Senhor Jesus Cristo veio ao mundo para proclamar que Deus
está pronto a perdoar, ou que Deus é um Deus perdoador. E que a cruz de Cristo
é o modo pelo qual Deus torna possível o perdão. A mensagem não é que Deus
está disposto a perdoar o fato do Calvário, mas que Deus perdoa por meio do
Calvário. É o que Deus fez no Calvário que produz o perdão para nós. O
Calvário não é meramente uma proclamação ou um anúncio do amor de Deus e
da Sua prontidão para perdoar; é Deus mediante o que Ele fez em Cristo e por
meio dEle na cruz do Calvário, criando um meio pelo qual Ele pode reconciliar-
nos conSigo.

O apóstolo afirma isso muitas vezes. Ele não diz que Deus estava em Cristo
anunciando ou fazendo uma proclamação de reconciliação e perdão. O que ele
diz é: “Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo” (2 Coríntios
5:19). E em Cristo que Deus reconcilia conSigo o mundo. “Em quem temos a
redenção.” A redenção é em Cristo. Ele não é o mero anúncio dela; Ele é a
redenção, Ele próprio. “Deus estava em Cristo” - “reconciliando consigo o
mundo”. O apóstolo vai adiante e diz: “Aquele que não conheceu pecado, o fez
pecado por nós; para que nele fossemos feitos justiça de Deus” (versículo 21).
Cristo foi feito “pecado por nós”. Os nosso pecados foram lançados sobre Ele. E
é como resultado dessa ação que Deus nos reconciliou conSigo.

Isso é vital. Se o Senhor Jesus Cristo é meramente uma declaração de que Deus
está pronto a perdoar, Ele é apenas uma das
diversas declarações semelhantes; e se você tivesse entendimento suficiente,
poderia ser salvo pelo ensino do Velho Testamento, mesmo sem a vinda de
Cristo. Ele seria simplesmente o desenvolvimento de uma declaração já feita.
Contudo, não é essa a doutrina cristã da salvação e da redenção. A doutrina da
salvação e da redenção é esta - que Cristo, pessoalmente, é a redenção. A
nossa salvação está nEle; como vemos Paulo afirmar no capítulo 2, “ele é a
nossa paz, o qual de ambos os povos fez um, e nos reconciliou”. Ele! O Senhor
Jesus Cristo! Não há como exagerar na repetição disso, nunca se pode exagerar
na ênfase a essa verdade. Coloco o ponto na forma de perguntas: você acredita,
você sabe que os seus pecados estão perdoados? Você sabe que Deus o perdoou?
Se sabe, faço-lhe mais esta pergunta: como Deus o perdoa? Permita-me fazer-lhe
outra pergunta, ainda mais penetrante: você acredita, você vê, e você sabe que é
por causa do que aconteceu em Cristo, e por causa disso somente, que Deus o
perdoou? Quando você pensa em si próprio e no perdão dos seus pecados, você
pensa unicamente em termos do fato de que Deus é amor, que Ele é bom,
misericordioso e compassivo? Cristo é meramente a maior declaração do amor e
da compaixão de Deus jamais feita, ou Ele meramente fez a maior declaração a
respeito? Ou você vê e sabe, e põe sua confiança unicamente no fato de que o
que aconteceu em Cristo é o modo como Deus perdoa? Essa é a questão. “Em
quem temos a redenção pelo seu sangue.” Ele não é tão-somente um pregador ou
um mestre; Ele é a salvação. Paulo resume tudo também numa
grande declaração que consta na Primeira Epístola aos Coríntios: “Mas vós sois
dele, em Jesus Cristo, o qual para nós foi feito por Deus sabedoria, e justiça, e
santificação, e redenção” (1:30). Ser salvo é estar em Cristo; não simplesmente
crer no Seu ensino, mas estar nEle, e ser participante da Sua vida, da Sua morte,
do Seu sepultamento, da Sua ressurreição, da Sua ascensão. “Em quem temos a
redenção pelo seu sangue.”

Não devemos deter-nos na afirmação de que nossa salvação é em Cristo, pois


nos é dito em particular que Ele nos redimiu. “Em quem temos a redenção pelo
seu sangue.” Encontramos aqui um termo deveras importante, redenção. E
quando o examinarmos e o analisarmos, veremos com maior clareza ainda a
importância absoluta do que estive dizendo. Esta é a palavra utilizada em todo
o Novo Testamento com vistas à nossa salvação. Já citei um exemplo disso - “o
qual para nós foi feito por Deus sabedoria, e justiça, e

santificação e redenção” (1 Coríntios 1:30). Vê-se também na Primeira Epístola


de Paulo a Timóteo “O qual se deu a si mesmo em preço de redenção por todos”
(2:6); e ainda, na Epístola a Tito: O qual se deu a si mesmo por nós para nos
remir de toda a iniqüidade, e purificar para si um povo seu especial, zeloso de
boas obras” (2:14). O apóstolo Pedro faz uso precisamente da mesma
expressão: “Sabendo que não foi com coisas corruptíveis, como prata e ouro, que
fostes resgatados da vossa vã maneira de viver que por tradição recebestes de
vossos pais, mas com o precioso sangue de Cristo, como de um cordeiro
imaculado e incontaminado” (1 Pedro 1:18-19)

Como este termo é vital, devemos ter claro entendimento do seu significado no
Velho e no Novo Testamentos. Significa “libertação pelo pagamento de um
resgate”. Uma coisa é redimida (ou remida, ou resgatada) pelo pagamento de um
preço estipulado. Isso é ilustrado de muitas maneiras no Velho Testamento. Por
exemplo, se um homem se havia tornado escravo por ter sido capturado
ou dominado por outro, podia ser “remido” por seu parente mais próximo, se
este pudesse pagar o preço exigido. O mesmo se aplicava a quem fosse
aprisionado. Podia ser solto se o parente pagasse o preço adequado. É dessa
maneira que o termo é empregado no Velho Testamento. E é empregado do
mesmo modo no Novo Testamento; é o termo utilizado acerca da libertação de
um escravo. O escravo poderia ser libertado por alguém que pagasse certo
preço para comprá-lo. O escravo podia ser comprado no mercado ou no lugar da
escravidão. Essa é a essência do sentido do termo “redenção”. E como esse é o
termo empregado para explicar a doutrina da salvação, deve ser interpretado em
conformidade com o seu significado neo e veterotestamentário.

O nosso Senhor Jesus Cristo confirma esse uso do termo. Numa declaração
sumamente importante que se vê no Evangelho Segundo Mateus, lemos que o
nosso Senhor disse: “Bem como o Filho do homem não veio para ser servido,
mas para servir, e para dar sua vida em resgate de muitos” (20:28). Ele disse aos
Seus seguidores que não tinha vindo ao mundo para que eles O servissem,
porém para que Ele os servisse. Ele tinha vindo para fazer por eles algo que
nenhum deles poderia fazer, a saber, “dar a sua vida em resgate de muitos”.

Portanto, o ensino é que toda a humanidade acha-se em estado de escravidão, em


conseqüência do pecado. Somos mantidos como

escravos e como servos, e não podemos libertar-nos. Num certo sentido, a


história do Velho Testamento é a história da humanidade, especialmente da
nação escolhida, tentando pôr-se livre da escravidão pela guarda de lei, mas
falhando completamente nisso, pois “Não há um justo, nem um sequer”, “todo
mundo é condenável diante de Deus” (Romanos 3:10,19). O mundo todo acha-se
em estado de escravidão sob o pecado e satanás; está sob o domínio de satanás.
Esse é o termo utilizado. Estamos na escravidão da lei, a qual nos condena,
tendo-nos dito que, se pudéssemos guardá-la e honrá-la, seriamos salvos. Suas
exigências, suas penalidades, são simples e claras, porém não há homem algum,
nem grupo algum de homens que possa pagar o preço das suas exigências. Esse
é o ensino fundamental da Bíblia toda: todos nós estamos por natureza “debaixo
da lei” e em estado de condenação.

Em verdade, no Senhor Jesus aconteceu algo novo. Ele veio a este mundo para
redimir-nos. Veio para pagar o preço do resgate que nos poria em liberdade, para
fazer o depósito que asseguraria a nossa emancipação. O termo “redenção” não
pode ser explicado em nenhum outro sentido, pois este é o seu significado
característico em toda parte das Escrituras. O resultado que a nós se nos diz
é este: “Não sois de vós mesmos, porque fostes comprados por bom preço” (1
Coríntios 6:19-20). Portanto, diz Paulo, o cristão é “servo”, “escravo” do Senhor
Jesus Cristo. O apóstolo sempre se descreve a si mesmo dessa maneira. O que
ele diz acerca de si próprio é praticamente o seguinte: “Sou escravo de Cristo; eu
era escravo de satanás, mas Cristo me comprou no mercado. Por isso agora sou
escravo de Cristo, sou Sua propriedade, pertenço a Ele”. Como cristãos, não
somos de nós mesmos, porque fomos redimidos, fomos comprados, fomos
adquiridos. Notem como a questão é expressa no livro de Apocalipse: “Digno és
(o Cordeiro de Deus) de tomar o livro, e de abrir os seus selos”, cantavam os
santos glorifi-cados. Por quê? “Porque foste morto, e com o teu sangue
compraste para Deus” - nos redimiste para Deus (Apocalipse 5:9). É em
Cristo que somos salvos; e o que Ele fez para salvar-nos foi que Ele
nos comprou, Ele nos redimiu.

O termo “redenção” ou “resgate” ainda é empregado ocasionalmente. Pessoas


que se vêem em dificuldade financeira às vezes vão a uma casa de penhores e
deixam ali algo como depósito para poderem receber certa quantia por
empréstimo. Depois, quando desejem ter de volta o que lhes pertence, voltam lá
e pagam o preço

do penhor para resgatá-lo. Assim nos salva o Senhor Jesus Cristo, redimindo-
nos, resgatando-nos pagando o preço necessário para a nossa libertação.

Outra questão que devemos considerar é o preço exato que foi pago para
redimir-nos, e o apóstolo não nos deixa na ignorância sobre isso: “Em quem
temos a redenção pelo seu sangue”. “Seu sangue”! Aqui está o centro
propriamente dito, o coração da doutrina da nossa salvação. Quando você leu
essa declaração você notou que o apóstolo diz especificamente: “Em quem
temos a redenção pelo seu sangue”? Por que não disse “por sua morte”?
Muitos fazem objeção a essa verdade; dizem que não podem suportar
essa “teologia do sangue”. Se fosse “por sua morte” não se oporiam tanto.
Acham eles que as palavras do apóstolo são demasiadamente materialistas e se
assemelham a sacrifícios cruentos de povos primitivos. Daí devemos salientar de
novo o fato de que o apóstolo, no uso que faz dos termos, sempre o faz
deliberadamente. A minha opinião é que ele dá deliberadamente ênfase no
sangue porque o que sucedeu na morte de nosso Senhor só pode ser entendido
em termos da linguagem sacrificial do Velho Testamento.

Há muitos outros exemplos e ilustrações desta linguagem característica no Novo


Testamento no que diz respeito à nossa redenção. Vejam, por exemplo, Romanos
3:25: “Ao qual Deus propôs para propiciação pela fé no seu sangue”. Vê-se a
mesma coisa no capítulo 2 desta Epístola aos Efésios: “Mas agora em
Cristo Jesus, vós, que antes estáveis longe, já pelo sangue de Cristo chegastes
perto” (versículo 13). E também se vê isso diversas vezes no capítulo 9 da
Epístola aos Hebreus. O versículo 12 diz: “Nem por sangue de bodes e bezerros,
mas por seu próprio sangue, entrou uma vez no santuário, havendo efetuado uma
eterna redenção”. No capítulo 10 o mesmo autor escreve: “Tendo, pois, irmãos,
ousadia para entrar no santuário, pelo sangue de Jesus” (versículo
19). Recordemos ainda o que o apóstolo Pedro escreve: “Sabendo que não foi
com coisas corruptíveis, como prata ou ouro, que fostes resgatados... mas com o
precioso sangue de Cristo” (1 Pedro 1:18

19). Similarmente, o apóstolo João escreve: “... o sangue de Jesus Cristo, seu
Filho, nos purifica de todo o pecado” (1:7). É o sangue que purifica. É sempre o
“sangue”. Também no livro de Apocalipse vemos a mesma ênfase: “Àquele que
nos ama, e em seu sangue nos lavou dos nossos pecados” (1:5).

Não é simplesmente a morte de Cristo, porém em particular “o

sangue de Cristo”. Isso é para mostrar-nos que o Senhor Jesus Cristo fez em
nosso favor pela Sua morte está em harmonia com toda a doutrina do Velho
Testamento quanto ao valor dos sacrifícios. O nosso Senhor declarou
pessoalmente: “Não vim para destruir (a lei), mas para cumprir” (Mateus 5:17
VA). Diz Ele que o céu e a terra não hão de passar, enquanto não se cumprir todo
jota e todo til da lei (versículo 18). Ele veio para cumprir a lei. Após a Sua
ressurreição, Ele diz: “São estas as palavras que vos disse estando
ainda convosco: que convinha que se cumprisse tudo o que de mim estava
escrito na lei de Moisés, e nos profetas, e nos salmos” (Lucas 24:44). Os
sacrifícios e ofertas do Velho Testamento apontam para Cristo; eles têm o seu
sentido em Cristo; o que eles ensinam sempre tem relação com Ele. O ensino é
que a intenção e o objetivo dos sacrifícios consistem em propiciar a Deus. O
sangue de touros e de bodes e do cordeiro pascal era derramado para propiciar a
Deus, para que houvesse reconciliação com Deus. Tudo foi feito para propiciar,
para aplacar a Deus.

No entanto, notamos que a propiciação era sempre assegurada como resultado da


expiação da culpa. O pecado tinha que ser punido porque levava culpa consigo.
Nos tempos do Velho Testamento os pecados eram colocados sobre os animais
pela imposição das mãos do sumo sacerdote, e depois os animais eram mortos; e
assim era expiada a culpa. Uma prova disso era que, no dia da
expiação, aspergia-se o sangue no assento da misericórdia (propiciatório).
Deus o aceitava e perdoava os pecados. Deus é propiciado como resultado da
ação de cancelar, de apagar e de expiar o pecado. O que foi feito satisfaz a Deus
e, portanto, Ele perdoa; Ele é propiciado como resultado da expiação.

Observem que a expiação sempre foi realizado de maneira vicária. O que quero
dizer é que a culpa era transferida para alguma outra coisa, para um animal; este
morria vicariamente. O resultado de tais ofertas pelo pecado sempre era produzir
absolvição e perdão do ofensor que desse modo sofrerá em seu substituto e por
meio dele. Esse é o ensino do Velho Testamento.

Ora, todos os sacrifícios e ofertas de animais no Velho Testamento eram apenas


uma fraca semelhança, uma predição do que Cristo pôde e quis fazer uma vez
por todas. No capítulo 9 da Epístola aos Hebreus nos é dada plena explicação
disso tudo. É-nos dito que o sangue de touros e de bodes, e as cinzas de uma
novilha, eram apenas figuras, cobriam pecados apenas provisoriamente; e

não podiam limpar a consciência, não podiam purificar o coração. Todavia


Cristo veio, ofereceu-Se a Si mesmo, levou o Seu próprio sangue para o
santuário celestial e o colocou sobre o altar celestial. É Seu sangue que assegura
o nosso perdão, uma vez por todas. Ele o fez “uma vez para sempre”. É a
aspersão do Seu sangue que obtém este perdão, e por esta boa razão, que “sem
derramamento de sangue não há remissão” (de pecados) (Hebreus: 9:22).
Agora começamos a ver por que o apóstolo fala acerca do sangue de Cristo, e
não simplesmente acerca da morte de Cristo. A mera imolação do animal não era
suficiente; o sangue do animal tinha que ser levado e aspergido sobre o assento
da misericórdia antes de Deus ser propiciado. Diz-nos o autor da Epístola aos
Hebreus que, de igual maneira, Cristo levou o Seu sangue e o aspergiu
no santuário celestial, com a conseqüência de que somos perdoados por Deus. O
ensino específico referente à nossa salvação pode, portanto, ser exposto da
seguinte maneira: somos salvos em Cristo, e somente por Cristo; não por Seu
ensino, mas pelo que Ele fez, pelo que Ele realizou, e pelo que Deus fez em
Cristo e por intermédio dEle. Ele nos resgatou, Ele pagou o preço da nossa
redenção, e esse preço foi o Seu precioso sangue. Ele Se deu por nós. O apóstolo
Paulo resume tudo assim: “Porque primeiramente vos entreguei o que também
recebi: que Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras” (1
Coríntios 15:3).

Em certo sentido, só estive expondo essa afirmação. O ensino da Bíblia, em toda


parte, é que Deus tomou os meus pecados e os de vocês e os lançou sobre o Seu
amado Filho. No Velho Testamento, como já lhes fiz lembrar, o sumo sacerdote
colocava suas mãos sobre a cabeça do animal que devia ser morto. Ao fazê-lo
transferia os pecados e a culpa do povo para aquele animal. O animal era morto,
o sangue era aspergido, e Deus perdoava. Foi o que aconteceu em Cristo. Ele
(Deus) “fez cair sobre ele (sobre o Filho) a iniqüidade de nós todos”. “Eis o
Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” disse João Batista (João 1:29).
Ele é o Cordeiro Pascal, “o Cordeiro que foi morto desde a fundação do mundo”
(Apocalipse 13:8). Estas expressões são bíblicas. Cristo morreu pelos
nossos pecados; morreu como nosso substituto. “Ele deu sua vida em resgate de
muitos.” “Pelas suas pisaduras fomos sarados.”

“Se isso está claro para você, nunca mais fale em tentar tornar-se cristão, ou
tentar fazer de si mesmo um cristão, ou que você é cristão porque está levando
vida virtuosa e não comete certos

pecados. Unicamente a Sua morte, o Seu sangue salva você. Pode salvá-lo e o
salvará. Embora você tenha pecado até as profundezas do inferno até este
momento, se você confiar nesta mensagem, será perdoado. Esse é o caminho da
salvação; você deve confiar única, completa, exclusiva e inteiramente no fato de
que Cristo é o Cordeiro de Deus sobre quem os seus pecados foram lançados.
Ele pagou o preço do seu resgate. Ele o libertou da lei, do inferno, da morte e do
sepulcro, e o reconciliou com Deus. Você não pertence mais a si próprio, foi
“comprado por bom preço”. Foi redimido pelo “precioso sangue de Cristo”. Não
há nada no céu nem na terra que se compare com isto, que eu posso dizer: “O
Filho de Deus... me amou, e se entregou a si mesmo por mim” (Gálatas 2:20),
deu Sua vida como resgate por mim. Seu sangue foi derramado para que
eu pudesse ser perdoado.

Ah , as riquezas da graça! Ah, a abundância do Seu amor! Aí e somente aí, é que


verdadeiramente vemos e contemplamos aquele “amor divino, tão admirável!”
Mova-se, vá até a cruz; ponha-se lá e contemple-a . “Avalie” a cruz com Isaac
Watts:

De Sua cabeça, mãos e pés Tristeza e amor escorrem; vê!

Fique lá até ver o que você nunca teve nem nunca terá, um vestígio da justiça,
que toda a sua bondade é como “trapo de imun-dícia” (Isaías 64:6). Veja, porém,
os seus pecados lançados sobre Cristo, e veja-0 pagando o preço da aquisição, da
sua redenção, da sua salvação. Caia a Seus pés, adore-O, louve-O, entregue-se a
Ele, dizendo:

Divino amor, tão admirável!

Requer minha alma, minha vida, meu tudo.

1
Credo Niceno. Nota do Tradutor.

2
Complementando nota anterior: “Children” significa etimologicamente “pro-gênie”, “prole”;
literalmente, (do) ventre.

Nas três passagens aí citadas, onde a Revised Version diz “sons” a Authorized Version diz
“children”. Notas do tradutor.

Authorized Version: “son” , as duas vezes no versículo; grego: yios

5
Tekna. Notas do tradutor.

6
Na Inglaterra os jogos de futebol são geralmente realizados aos sábados à tarde.

7
Palavra hebraica que salienta a permanente presença ou habitação de Deus com Sua glória. Nota do
Tradutor.
“PELO SEU SANGUE”

“Em quem temos a redenção pelo seu sangue, a remissão das ofensas, segundo
as riquezas da sua graça.” - Efésios 1:7

Voltamos para essa declaração crucial para descobrir nela e dela extrair mais
algumas riquezas da graça de Deus. Ao fazê-lo, gostaria de oferecer-lhes uma
observação geral. Quando examinamos uma declaração como essa, lembremos
da importância das particularidades. Ora, sempre o grande perigo na leitura
dessa declaração está em examiná-la somente de maneira geral, e considerar as
palavras específicas e as declarações precisas como sendo mais ou menos
importantes. Esse é um modo falso de interpretar a passagem em foco e qualquer
outra. As particularidades são da maior importância, as minúcias são
impregnadas de significado, como já vimos quando consideramos o termo
“sangue”. O apóstolo diz “pelo seu sangue”, não “por sua morte”. Toda palavra é
importante, é significativa e tem sentido; e é nosso dever observar exatamente
o que o apóstolo diz; não o que achamos que ele devia dizer, mas o que ele de
fato diz, para que por seu intermédio derivemos real benefício. Há os que
imaginam que podem tratar da introdução que o apóstolo faz da Epístola num só
discurso. Contudo, isso é fazer mau uso dela e perder a rica doutrina e verdade
que ela contém. Toda particularidade deve receber seu devido peso e sua
devida ênfase.

Temos que retornar à palavra “redenção”, porque o apóstolo nos força a fazê-lo:
“Em quem temos a redenção pelo seu sangue, a remissão das ofensas”(ou, “o
perdão dos pecados , VA). Quando a examinamos em nosso estudo anterior,
estivemos interessados mais no fato de que nos ensinou algo acerca do método
da redenção e vimos que este consiste no pagamento do preço de um resgate.
Mas agora devemos examinar este vocábulo mais do ponto de vista do que ele
nos traz, do que ele nos dá e do que ele faz por nós. É em conseqüência do
pagamento do preço do resgate que há alguns resultados para nós. Primeiro,
somos redimidos e recebemos o “perdão dos pecados”. Pelo que, devemos
considerar a expressão,

“o perdão dos pecados”, como nos falando algo sobre a redenção. Pois bem, aqui
devemos ter o cuidado de aplicar o princípio de interpretação de que falei. Se
vocês lerem superficialmente a declaração de Paulo, poderão chegar à conclusão
de que ele está dizendo que a redenção consiste no perdão de pecados e é
equivalente a esse perdão. Isso virtualmente faria o apóstolo dizer: “Em
quem temos a redenção pelo seu sangue (precisamente), o perdão dos pecados”.
Entretanto não é o que ele diz; e há bons motivos para que ele não o faça.
Provavelmente muitos de nós se vêem lendo ou citando esse versículo daquela
maneira. Como espero mostrar, há um sentido em que isso está certo; mas há
outro sentido em que está errado, por ser incompleto.

“Redenção”, como o termo é empregado nas Escrituras, é uma palavra maior do


que frequentemente se supõe, e é um erro restringi-la ao perdão dos pecados.
Vejam, por exemplo a maneira pela qual Paulo a emprega na Epístola aos
Romanos, capítulo 8, versículo 23, onde ele diz: “...nós mesmos... também
gememos em nós mesmos, esperando a redenção, a saber a redenção do nosso
corpo”. Ou vejam-na na Primeira Epístola aos Coríntios, capítulo
primeiro, versículo 30; “Mas vós sois dele, em Jesus Cristo, o qual para nós foi
feito por Deus sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção”. E evidente que
em ambos os casos “redenção” não pode ser igualada ao “perdão dos pecados”.
Notem a seqüência dos termos na segunda citação. A sabedoria de Deus para nós
é justiça, santificação, e então redenção. Mas “o perdão dos pecados” vem no
começo, na expressão “justiça”, e o termo “redenção” é acrescentado à
série, depois de santificação”. Noutras palavras, a redenção, neste versículo em
particular, deve ser considerada como abrangendo a totalidade da nossa
salvação; e, evidentemente, o apóstolo está pensando em termos da nossa
glorificação final. Não seremos “redimidos” definitivamente enquanto nossos
corpos não forem redimidos. Todavia os nossos corpos ainda não foram
redimidos. Portanto, podemos dizer que fomos redimidos e que ainda teremos
que ser redimidos. Eu não estarei plenamente redimido enquanto o meu corpo
não for transformado e o pecado não for tirado inteiramente dele. “A lei
do pecado que opera em meus membros” tem que ser eliminada, e só então a
minha redenção estará completa. Vemos, pois, que o termo “redenção” não é
equivalente nem deve ser igualado à expressão “o perdão dos pecados”.

Sendo assim, obviamente nos vemos confrontados pela ques-

tão: então, por que o apóstolo introduz neste ponto “o perdão dos pecados”, se
esta expressão não é um modo de definir redenção? É justamente aí que vemos
algo que é de vital importância, não somente para a experiência desta salvação,
mas também para que as nossas mentes a entendam. A razão pela qual o apóstolo
acrescenta essa frase concernente ao perdão dos pecados nesta altura, só pode ser
a seguinte: ele tinha empregado o termo “redenção”; e depois prossegue dizendo
que o primeiro elemento da redenção é “o perdão dos pecados”. A redenção vai
finalmente dar na glorificação do meu corpo, porém começa com o perdão dos
pecados. Esta é a preliminar essencial da santificação, e também da glorificação.
Portanto, devemos partir do perdão, e dar-lhe ênfase. É o primeiro passo vital, a
chave que abre a porta para tudo o que se segue.

É essencial que compreendamos que o primeiro problema com relação ao


homem e à sua salvação é o problema da culpa do nosso pecado. Mas este
aspecto da verdade sofre forte aversão por parte de muitos que só se interessam
pelo problema do pecado porque desejam ver-se livres do poder do pecado. Não
é de admirar, é claro, porque o pecado sempre leva a um estado miserável;
e ninguém quer sofrer essa miséria. Assim, naturalmente, todos nós lutamos para
libertar-nos dessa condição miserável; todos nós queremos ser felizes; e se
chegamos a ver que o pecado é causa de infelicidade, vemos igualmente que a
libertação do poder do pecado e a capacidade de dominar o pecado são o
caminho direto para a felicidade. O resultado é que, pregar a Cristo como Aquele
que nos habilita a suplantar o poder do pecado, sempre é popular. As pessoas
estão sempre dispostas a crer ou a aceitar um Jesus, ou um Cristo, que as faça
felizes; que resolva o problema da tentação e da desgraça dos pecados. Assim é
que, enquanto Ele é oferecido como Aquele que nos ajuda a viver, e a ser felizes,
não se Lhe faz ofensa alguma.

Contudo, o evangelho não começa nesse ponto, embora talvez gostássemos que
começasse aí. Pela mesma razão, muita gente prefere ouvir pregar sobre a
ressurreição, e não sobre a cruz; e essa pregação é popular hoje. Virtualmente
não há mal na pregação que dá ênfase à ressurreição e a um Cristo vivo
oferecido como amigo, ou como Alguém que cura o corpo, ou que pode guiar-
nos e resolver os nossos problemas para nós de diversas maneiras. Mas
nada disso será possível, se não se começar com a cruz de Cristo, Sua

morte, Seu “sangue”. Aí, no entanto, imediatamente entra em cena “a ofensa” ou


“o escândalo da cruz”. A “pedra de tropeço” para o homem natural é sempre este
Salvador crucificado; este Salvador cujo “sangue” é essencial. Mas. Gostemos
ou não, é o que sempre vem em primeiro lugar nas Escrituras. E essencial e vital
que façamos isso.

Todos nós, por natureza, temos aversão pela idéia de perdão dos pecados porque
não nos agrada pensar que precisamos de perdão. Não gostamos que nos digam
que somos pecadores, e não gostamos de palavras como “justificação”. Dizemos:
“Isso é legalismo”. Não nos interessa a justiça, a retidão; queremos felicidade,
queremos ter poder em nossas vidas, queremos qualquer coisa que nos dê
alegria. Todavia, antes de podermos experimentar essas coisas, temos que
humilhar-nos até o pó. Não gostamos do arrependimento, porque é penoso, e
porque significa que temos de encarar a nós mesmos, examinar-nos e ver-nos
como realmente somos. Mas nesta passagem de imediato o apóstolo nos faz
lembrar que não poderemos experimentar libertação do poder do
pecado enquanto não formos, primeiramente, libertados da culpa do pecado. A
redenção vem primeiro, e começa com o perdão dos pecados. Não hesito em
asseverar que, se você não compreende que os seus pecados têm que ser
perdoados, você não é cristão. Talvez você diga, porém: “Mas estou cônscio de
que Cristo nos está ajudando”. Replico afirmando que Cristo não poderá ajudá-
lo, e não o ajudará, enquanto o problema da sua culpa não for tratado.
Atualmente há muitos que usam o nome de Cristo psicologicamente;
todavia, mesmo que as experiências psicológicas sejam reais e benéficas, não
devemos desviar-nos do ensino escriturístico. Nas Escrituras, a primeira coisa é
o perdão dos pecados; e todas as experiências devem ser examinadas à luz dessa
verdade.

Lembro-me de um amigo, um médico, que uma vez me falou da dificuldade que


teve com um seu amigo e colega de profissão. Desafortunadamente, o casamento
deste estava com sérios problemas. Ele e sua mulher não eram cristãos; mas, em
sua dificuldade e angústia, tudo indo mal, eles procuraram o meu amigo, que
era cristão. Ele me escreveu sobre isso, dizendo: “Senti que não podia ajudá-
los”. A dificuldade que sentia, disse ele, era que eles não podiam compreender
que a questão da culpa estava dentro do seu problema. Eles queriam ajuda e a
procuraram porque tinham a idéia de que, de um modo ou de outro, o
cristianismo pode ajudar a

pessoa quando sua vida entra em dificuldade e em confusão. Eles estavam


prontos a crer num Cristo que pudesse ajudá-los naquele ponto em particular;
entretanto como o meu amigo era um cristão verdadeiro, tinha falado com ele
sobre a necessidade do perdão e sobre a culpa. “Mas”, disse ele, “parece que eles
não entenderam a minha linguagem”.

Essa é a situação de muitos. Nossa réplica pode ser exposta da seguinte maneira:
a necessidade fundamental do homem é a necessidade que ele tem de Deus.
Tudo o que vai mal na vida neste mundo, vai mal porque não estamos bem
relacionados com Deus. O de que necessitamos, acima de tudo, é a redenção que
somente Ele pode propiciar, a qual nos reconciliará com Ele. Não podemos ser
abençoados por Deus, se não estivermos bem relacionados com Ele. A ira de
Deus está sobre “todos os filhos da desobediência” Como todas as bênçãos vêm
de Deus, a primeira coisa de que necessito é reconciliação com Ele, e não
poderei ser reconciliado com Ele enquanto a questão dos meus pecados, e da
minha culpa por causa deles, não for tratada devidamente. Daí, toda vez que
a Bíblia fala acerca da redenção, sempre começa com o perdão dos pecados.

Yê-se um excelente exemplo deste princípio na Epístola de Paulo aos Romanos,


capítulo 5, versículo 10, onde ele argumenta: “Porque se nós, sendo inimigos,
fomos reconciliados com Deus pela morte de seu Filho, muito mais, estando já
reconciliados, seremos salvos pela sua vida”. O Cristo vivo nos ajuda, graças a
Deus. Ele é o nosso companheiro, o nosso auxílio, a nossa força, o nosso poder;
pela vida de Cristo estamos sendo salvos. Observem, porém, que antes de
acontecer isso, fomos salvos por Sua morte. Sua vida não nos aproveita,
enquanto primeiro não somos, por Sua morte, libertos e salvos da nossa culpa
por causa dos nossos pecados. Paulo diz também no capítulo 8 da mesma
Epístola aos Romanos, versículo 32: “Aquele que nem mesmo a seu próprio
Filho poupou, antes o entregou por todos nós, como nos não dará também com
ele todas as coisas?” (ou, "... como não nos dará gratuitamente com ele todas as
coisas?”, VA). Ele não nos dará “gratuitamente com ele todas as coisas”
enquanto primeiramente não formos salvos por Sua morte. Não há erro mais
sutil do que o de passar por alto a necessidade do perdão dos pecados e de só
interessar-nos pelas bênçãos dadas pelo Cristo ressurreto.

Li numa revista evangélica, há alguns anos, um artigo de

primeira página sobre o tema: A mensagem do evangelho. O que me interessou


muito observar foi que a morte do Senhor Jesus Cristo literalmente não foi
sequer mencionada. Ele foi retratado como Salvador, mas unicamente como o
Senhor redivivo, ressurreto. Segundo aquela mensagem, é a vida de Cristo que
nos liberta: a cruz não foi mencionada. Não houve menção da morte do
nosso Senhor, e menos ainda do Seu sangue. A cruz foi deixada de lado.
O escritor foi direto ao Senhor redivivo e ressurreto. A morte
expiatória, sacrificial, substitutiva estava ausente do artigo. Entretanto a verdade
ensinada nas Escrituras não é isso. Vou mais longe; isso não é salvação. Primeiro
precisamos ser reconciliados com Deus. O primeiro passo na redenção é o
perdão dos pecados; e se você não reconhecer a sua culpa, nunca obterá a ajuda
que está procurando. A primeira necessidade de todo pecador não é de ajuda e
poder para vencer o pecado e a tentação, e sim que os seus pecados passados
recebam o devido tratamento e que ele seja liberto da condenação e da ira de
Deus que está sobre ele. Por isso o apóstolo, deveras deliberadamente, quando
menciona a palavra “redenção” e nos ajuda a ter algum discernimento quanto a
ela, põe primeiro o que é primeiro, a saber, “o perdão dos pecados”. Somos
pecadores perdidos, condenados, culpados por natureza; e a primeira coisa
da qual todos nós necessitamos é sermos libertados da ira de Deus. Noutras
palavras, o apóstolo introduz neste ponto a doutrina cristã do perdão. Ele não
somente afirma que isso tem que vir primeiro, mas também que ele está muito
interessado em que saibamos o que ela significa.

De modo geral, as idéias hodiernas acerca do perdão são inadequadas, porque


sempre pensamos nele em termos de nós mesmos, e do que pensamos e fazemos.
Portanto, a primeira coisa que devemos acentuar é que o perdão não é coisa
simples ou fácil, mas extremamente difícil. Essa verdade tende a causar-nos
surpresa, porque geralmente temos idéias frouxas e sentimentais a respeito. Por
exemplo, alguém nos fez algum mal. Muito bem, nós o perdoamos, não ligamos
para aquilo e fingimos que não o percebemos. Tudo fica bem; não há nenhum
problema. Mas, segundo a Bíblia (falo com reverência), o perdão dos pecados
foi um tremendo problema para o todo-poderoso Deus. Não hesito em
asseverar que o perdão dos nossos pecados é o único problema com o qual Deus
Se defrontou. A idéia de Deus como um Pai indulgente que apenas diz: “Tudo
bem, meu filho, volte, está tudo bem”, é

completamente antibíblica. Há os que ensinam que na parábola do filho pródigo


se vê toda a doutrina da salvação. Não é assim porém; e nunca houve a intenção
de que fosse. Essa parábola tem o propósito de ensinar uma só coisa, a saber, que
Deus estava pronto a perdoar publicamos e pecadores, bem como fariseus.
Nunca houve a intenção de que essa parábola fosse uma exposição completa
do método de salvação, pois o mesmo Cristo que a proferiu, também disse que
tinha que ir a Jerusalém para “dar a sua vida em resgate de muitos”.

O perdão dos pecados constituiu um problema tão grande que nada, senão o
derramamento do sangue de Cristo, poderia resolvê-lo. Deus não poderia perdoar
pecados simplesmente dizendo uma palavra. Para Ele foi simples criar o mundo
pelo “fiat” da Sua Palavra: “Haja luz”. Perguntamos com reverência: por que
Deus não disse: “Sejam perdoados os homens?” A resposta é que não foi desse
modo que entrou o perdão. E isso porque - digo-o de novo com reverência -
Deus não poderia fazê-lo. “Deus é luz, e não há nele trevas nenhumas” (1 João
1:5). Deus é eternamente justo, reto e santo; não pode contradizer-Se. Havia
somente um meio pelo qual Deus poderia perdoar o pecado. “Nenhum outro bem
havia, que suficiente fosse para pagar o preço do pecado.” Somente “pelo sangue
de Cristo” esse perdão se torna possível. Pensem na força e no poder de Deus.
Vemos o Seu poder na neve e na geada, e podemos ler sobre ele em muitos
lugares das Escrituras, por exemplo, no Salmo 147. Pelo poder da Sua palavra
Deus governa a natureza e a criação, e as nações do mundo são para Ele “como o
pó miúdo das balanças” (Isaías 40:15). Mas quando surgiu o problema do
perdão dos pecados da humanidade, foi necessário que o Filho de Deus saísse do
palácio da realeza celestial e viesse à terra, nascesse como uma criança, sofresse
a contradição dos homens contra Ele, fosse levado à morte e derramasse o Seu
sangue. Era a única maneira. Tal a dificuldade levantada pelo problema do
perdão dos pecados!

Outra verdade aqui sugerida é que o modo como Deus perdoa os pecados é
completo. Não é apenas uma questão de dominar os nossos pecados e
transgressões. Os pecados não podem ser tratados dessa maneira. Antes que
Deus pudesse perdoar os nossos pecados, Ele tinha que tratá-los de maneira
completa. O versículo que estamos considerando poderia ser traduzido assim:
“Em quem temos a redenção pelo seu sangue, o perdão dos nossos delitos”. A
palavra

“delito” sugere violação da lei, transgressão da lei. Observem então que a


maneira pela qual Deus perdoa é primeiramente algo que põe à mostra o pecado.
A nossa tendência é sempre acobertá-lo, para podermos ser felizes. Mas a
primeira coisa que Deus faz é pô-lo à mostra, desmascará-lo, defini-lo, assinalá-
lo. Essa era a real função da lei. O pecado existia, como Paulo argumenta no
capítulo 5 da Epístola aos Romanos, desde o momento em que Adão caiu.
Todavia ele argumenta ademais: “o pecado não é imputado, não havendo
lei”(versículo 13) A lei foi destinada a definir o pecado e a fazer-nos plenamente
conscientes dele pela imputação. Mas em nenhum lugar nos é dada consciência
do pecado como na cruz de Cristo e pelo Seu sangue. Antes de sermos
perdoados, temos que compreender algo da enormidade do pecado, e é na cruz
que o fazemos. Vemo-lo como algo tão terrível, tão horrível, como tal afronta a
Deus que torna necessária a cruz. Portanto, a cruz nos condena, antes de fazer-
nos livres. É por isso que ela é um “escândalo” para o homem natural. A cruz faz
que nos vejamos como vermes, como pecadores miseráveis e culposos. E
quando o homem realmente se vê face a face com Deus e com a santa lei
de Deus, ele percebe o que realmente é. “Vil e cheio de pecado eu sou” diz
Charles Wesley, e diz bem. “Em mim, isto é, na minha came, não habita bem
algum ...Miserável homem que eu sou!” (Romanos 7:18,24). Essa é a linguagem
das pessoas que enxergam a culpa do seu pecado à luz da cruz de Cristo. O
pecado é tão terrível, tão sórdido e tão vil que nada pode tratá-lo
satisfatoriamente, senão o sangue de Cristo. E foi o que aconteceu na cruz. Não é
um remendo, uma cobertura do gecado; não é Deus dizendo: “Não se preocupe;
está tudo bem”. É Deus mostrando-nos o pecado como ele é, realmente o
trazendo à luz, e depois o tratando devidamente.

Também não podemos dizer que o modo como Deus trata o pecado é
absolutamente justo. Como é importante essa verdade! O apóstolo dá forte
ênfase a ela em sua Epístola aos Romanos, capítulo 3. Versículos 24, 25 e 26:
“Sendo justificados gratuitamente pela Sua graça, pela redenção que há em
Cristo Jesus, ao qual Deus propôs para propiciação pela fé no seu sangue, para
demonstrar sua justiça pela remissão dos pecados dantes cometidos, sob a
paciência de Deus; para demonstração da sua justiça neste tempo presente, para
que ele seja justo e justificador daquele que tem fé em Jesus”. Essa é a maneira
de Paulo dizer que o método pelo qual Deus trata o pecado é estritamente justo.
Perdoar um pecador ou

pecados às vezes pode ser injusto. Podemos fazer grande dano e grande injustiça
a uma pessoa, se perdoarmos o seu pecado muito ligeiramente e com muita
facilidade; podemos encorajá-la a continuar agindo mal. Deus, porém, não
perdoa o pecado de um modo que permite que a pessoa continue pecando,
confiando em que o amor de Deus acerte tudo. Isso não seria justo. Tudo o que
Deus faz só pode ser justo, reto, santo e coerente com o Seu caráter. E o
Seu modo de perdoar os pecados pelo sangue de Cristo explica-se simplesmente
porque Deus em Cristo puniu o pecado. O pecado merece punição. Deus disse
que puniria o pecado e que a punição significaria morte. Assim, se Deus voltasse
atrás nisso, Ele não mais seria reto e justo. A maneira pela qual Deus perdoa é
dando o devido tratamento ao pecado, golpeando-o e dando-lhe a punição
que merece, a punição condigna. E foi o que Ele fez em Cristo na cruz. Quando
Deus perdoa os meus pecados pelo sangue de Cristo, Ele declara a Sua retidão e
justiça. Ele continua sendo justo e , ao mesmo tempo, o justificador da minha
pessoa como crente em Cristo. Essa é a doutrina bíblica do perdão dos pecados.
Isso mostra a dificuldade do problema e completude do tratamento que Deus
lhe dá, e também que a solução é justa e reta. Deus nos perdoa, porque, e
somente porque, o nosso pecado foi punido, e a nossa culpa foi expiada.
Mas, graças a Deus, podemos ir adiante e dizer que o perdão dos pecados,
adquiridos pelo sangue de Cristo e por seu intermédio, é tão completo que leva a
um total restabelecimento do ofensor no favor de Deus. Visto que Deus tratou
com o pecado da maneira explicada nas Escrituras, somos perdoados
absolutamente e uma vez por todas. O perdão é definitivo. Somos reconciliados
completamente com Deus pela morte de Seu Filho. “Deus estava em
Cristo reconciliando consigo o mundo, não lhes imputando os seus pecados.”
“Àquele que não conheceu pecado, o fez pecado por nós; para que nele fôssemos
feitos justiça de Deus” (2 Conntios 5:1921). Deus tratou dos nossos pecados de
maneira tão completa em Cristo, e por Seu sangue, que Ele os pôs para fora uma
vez para sempre, e nunca mais os tornará a ver.

O ensino do Velho Testamento acerca do bode expiatório era uma prefiguração


dessa verdade. Como Levítico, capítulo 16 descreve, o sumo sacerdote tomava
um bode, punha sobre ele as suas mãos, colocando assim os pecados de Israel
sobre ele; e depois o bode era levado para o deserto para nunca mais ser visto. E
como

Deus Se descarta do pecado. Lemos no Salmo 103: “Quanto está longe o oriente
do ocidente, assim afasta de nós as nossas transgressões” (versículo 12). Não
poderia ser para mais longe. Deus fez uma promessa específica nesse sentido
quando, por meio de Jeremias, fez a promessa da nova aliança: “Nunca mais me
lembrarei dos seus pecados” (Jeremias 31:34; Hebreus 10:17). Que
coisa espantosa! De tal maneira Deus tratou dos nossos pecados que Ele os
tomou e os lançou nas profundezas do mar do Seu esquecimento. Um
esquecimento eterno. Os nossos pecados, em Cristo, são perdoados absoluta,
final e completamente; para que não se vejam nunca mais.

Só Deus poderia fazer isso. Eu e vocês dizemos que perdoamos as pessoas, mas
achamos difícil esquecer. A glória da doutrina do perdão dos pecados nas
Escrituras é que Deus não somente perdoa, mas também esquece. “Nunca mais
me lembrarei dos seus pecados.”

Notemos, finalmente, que o apóstolo diz: “Em quem temos a redenção pelo seu
sangue, o perdão dos pecados”. Ele não diz que poderíamos tê-lo; diz que o
temos; é uma posse atual. É algo que já desfrutamos aqui e agora. “Sendo pois
justificados pela fé, temos paz com Deus”, diz Paulo. Ser cristão verdadeiro é
saber que os seus pecados já estão perdoados. Pode-se expor a doutrina
assim: Deus lançou sobre o Senhor Jesus Cristo todos os nossos pecados, todos
os pecados já cometidos por nós, todos os pecados que viermos a cometer. Todos
eles foram lançados sobre Ele, foram todos punidos e tratados devidamente na
cruz. Quando caímos em pecado, Deus não precisa fazer algo novo, já fez tudo
em Cristo. O quer Ele faz é aplicar a nós agora o remédio da cruz. Quando um
homem crê no Senhor Jesus Cristo não é necessária uma nova ação da parte de
Deus; Ele simplesmente aplica ao homem o que foi feito uma vez por todas no
Calvário; e, caso ele torne a cair em pecado, é “o sangue de Jesus Cristo, o Filho
de Deus” que vai purificá-lo de todo pecado e injustiça. Essa é a maneira, a
única. A nossa salvação está baseada numa transação já realizada
completamente. É por isso que o apóstolo dá ênfase ao “sangue de Cristo”.
Cristo morreu uma vez para sempre. Não há necessidade, diz a Epístola aos
Hebreus, de que Ele repita o sacrifício; isso aconteceu uma vez por todas.

Essa é a situação de todo cristão verdadeiro no presente momento. Se


continuamos dizendo que não somos bastante bons para chamar-nos cristãos,
simplesmente significa que não entende-

tnos o primeiro princípio da salvação. Se dizemos que estamos tentando fazer-


nos cristãos por nós mesmos, nunca vimos a verdade. Cristão é aquele que
compreende que foi reconciliado com Deus pelo sangue de Jesus Cristo. Quando
ainda era pecador, quando ainda era inimigo e estava em desarmonia em sua
mente, quando estava indo direto para o inferno, precisamente nesse tempo a
obra de salvação foi realizada pela morte, pelo “sangue” de Cristo. É cristão
aquele que crê nisso e que sabe que os seus pecados foram perdoados gratuita,
inteira e completamente, uma vez para sempre, no sangue de Cristo e por
intermédio dEle. Ele se regozija no fato, e diz: “Tenho a redenção pelo seu
sangue”. O perdão dos pecados leva à justificação e à justiça, à santificação e à
glorificação por vir, e a todas as demais bênçãos, “segundo as riquezas da sua
graça”.

Você sabe que tem a redenção? Você sabe que os seus pecados estão perdoados?
Olhe para Ele; permaneça junto à cruz até saber desta verdade bendita, até vê-la
e regozijar-se nela, e possa dizer: “Estou reconciliado; tenho paz com Deus, por
meio de nosso Senhor Jesus Cristo, seu Filho”.

“AS RIQUEZAS DA SUA GRAÇA”

“Em quem temos a redenção pelo seu sangue, a remissão das ofensas, segundo
as riquezas da sua graça.” - Efésios 1:7
Passamos agora a tratar da última frase deste versículo -“Segundo as riquezas da
sua graça”. Há muitas maneiras de considerar e estudar as Escrituras; é preciso
que fique claro, a esta altura, que sou seguidor e exponente de um método em
particular. Considero as Escrituras e estas grandes declarações nelas
contidas como comparáveis a uma grande galeria de arte onde há
pinturas famosas penduradas nas paredes. Há pessoas que, quando visitam tal
lugar, compram um catalogo do guia à porta, e com o catálogo em mãos
percorrem a galeria. Elas notam que o Item número 1 é uma pintura de Van
Dyck, digamos; e dizem: “Ah, este é um Van Dyck”. Depois passam depressa ao
Item número 2, talvez um retrato feito por Rembrandt. “Ah”, dizem elas, “este é
um Rembrandt, um quadro famoso. “Movem-se depois, passando por outros
itens mais, da mesma maneira. Admito que esse é um possível modo de ver os
tesouros de uma galeria de arte; e, todavia, tenho a impressão de que quando tais
pessoas acabam de passar por todas as salas da galeria e dizem: “Bem, já
“fizemos” a Galeria Nacional, vamos agora à Galeria Tate”, 1 a verdade é que
elas nunca viram de fato nenhuma dessas galerias ou seus tesouros. Dá-se o
mesmo com relação às Escrituras. Há os que percorrem este capítulo primeiro
desta Epístola aos Efésios mais ou menos da maneira que descrevi, e acham
que o “fizeram”. Certamente melhor será ficar, se necessário, horas diante deste
capítulo que nos foi dado por Deus por meio do Seu Espírito, contemplá-lo e
procurar descobrir as suas riquezas, tanto em geral como em seus pormenores.
As Escrituras visam alimentar as nossas almas, enriquecer as nossas mentes e
comover os nossos corações; e, se havemos de ter essas experiências, temos que
demorar-nos nestas coisas, bebê-las e tomar da sua plenitude.

Permaneçamos, pois, e examinemos esta declaração particular:

“segundo as riquezas da sua graça”. Certamente todo cristão verdadeiro há de


querer deter-se aqui. Por certo o apóstolo, quando escreveu sob a inspiração do
Espírito, esperava que as pessoas às quais escreveu meditassem nesta frase,
orassem sobre ela e pensassem a respeito, até os seus corações serem arrebatados
por ela, como indubitavelmente o coração do apóstolo o foi quando a
escreveu. Comecemos observando a maneira pela qual o apóstolo chega a esta
declaração particular. Primeiro ele nos lembra que o método ou modo da nossa
salvação é pelo pagamento de um resgate. A seguir ele nos diz que a primeira
coisa que temos de compreender e apreciar como resultado do nosso livramento
é “o perdão dos pecados”. Mas ele não pode deixar-nos aí. Que é que torna
possível isso tudo? Que é que nos dá esta salvação mediante resgate, este perdão
dos pecados usufruído por nós? A resposta, como sempre, é: “as riquezas da sua
graça”!

Num sentido o apóstolo já o tinha dito. Ele o dá a entender logo no versículo


primeiro; e o deixa implícito do começo ao fim. Ele próprio é apóstolo “pela
vontade de Deus”, o que é apenas outro modo de dizer “pela graça de Deus”;
pois se Deus não fosse Deus da graça, nunca teria desejado tal coisa para tal
homem. Mas, quando ele se refere a isso de novo, notamos certa mudança. No
versículo 6, por exemplo, o apóstolo usa o termo “graça” - “Para louvor e glória
da sua graça” (ou “Para louvor da glória da sua graça”, VA). Entretanto aqui ele
fala das “riquezas da sua graça”. “Graça”, como ele pensa a respeito no versículo
6, é uma das manifestações da glória de Deus, é uma das facetas do esplendor
eterno que refulge sobre nós. Tudo em Deus é glorioso. Sua glória manifesta-se
numa infinita variedade de maneiras; a graça é uma delas, e uma das
mais notáveis. Assim, como no versículo 6 lemos sobre a “glória da sua graça”,
aqui há esta mudança para “as riquezas da sua graça”. Porque a mudança? Por
esta razão: no versículo 6, como parte da declaração completa, dos versículos 3 a
6, o apóstolo estava vendo a salvação do ângulo ou do ponto de vista
direcionado para Deus. E lá, naturalmente, o que lhe causa impacto acima de
tudo mais é a glória do Deus da graça. Mas aqui ele começa pensando em nós
e no perdão dos nossos pecados; ele está vendo a salvação pelo aspecto
direcionado para o homem. Quando se vê a “graça” do lado voltado para o
homem, sempre nos há de transmitir esta idéia de riquezas. Pelo que o apóstolo
introduz “riquezas” neste ponto.

Esta é uma das declarações mais características do apóstolo. Na verdade, é a sua


declaração favorita. No capítulo 2, versículo 4, ele diz: “Mas Deus, qucé
riquíssimo em misericórdia, pelo seu muito amor com que nos amou...’’Depois,
no versículo 7 deste capítulo, ele diz: “Para mostrar nos séculos vindouros as
abundantes riquezas da sua graça, pela sua benignidade para conosco em
Cristo Jesus”. E ainda, no capítulo 3, versículo 8, ele diz: “A mim, o mínimo de
todos os santos, me foi dada esta graça de anunciar entre os gentios, por meio do
evangelho, as riquezas incompreensíveis (ou “insondáveis”, VA e ARA) de
Cristo”. Este tema, é óbvio, enchia a mente e o coração deste grande apóstolo.
Era algo que arrebatava o seu coração. Como Philip Doddridge nos assegura,
a graça era para ele “um som encantador, harmonioso de se ouvir”. Arrebatava o
seu coração e comovia todo o seu ser. Ele nunca menciona “graça” sem entrar
numa espécie de êxtase. A palavra sempre provoca os seus superlativos. De tal
modo ele o cativara, o maravilhara e o comovera que ele mal podia controlar-se.
Esse júbilo não é surpreendente, em vista da coisa maravilhosa que tinha
sucedido a Paulo no caminho de Damasco. Ele nunca deixou de admirar-se de
que aquele que tinha sido um perseguidor e um blasfemo, e uma pessoa
injuriosa, que insultara a Pessoa de Cristo; aquele que tinha pensado consigo
mesmo que devia fazer muitas coisas contra o nome de Jesus de Nazaré; aquele
que fora um fariseu cheio de si, orgulhoso, satisfeito consigo mesmo, cheio de
jactância e presunção ao contemplar a sua abundante justiça própria - que ele,
dentre todos os homens, fosse perdoado e, além disso, fosse chamado para ser
apóstolo, fosse feito pregador do evangelho e fosse enviado aos gentios como
emissário especial do Senhor - que ele, dentre todos os homens fosse objeto da
graça de Deus, era um fato verdadeiramente espantoso, e sempre que olhava para
si mesmo, admirava-se.

O apóstolo parece perguntar a si mesmo: “Será possível? Ainda sou Saulo de


Tarso? Ainda sou o mesmo homem? E se sou, que é que explica o que eu sou
agora?” E havia uma só resposta - “Sou o que sou pela graça de Deus”. “As
riquezas da sua graça”! O maior desejo da sua vida era que todos pudessem
conhecer essa realidade, que todos experimentassem as riquezas da graça de
Deus. No capítulo 3 desta Epístola, versículo 8, ele descreve o seu
chamamento: “A mim, o mínimo de todos os santos, me foi dada esta graça
de anunciar entre os gentios, por meio do evangelho, as insondáveis

riquezas de Cristo”. A “graça” que fez dele um pregador através dos continentes
e dos mares; fê-lo pregar dia e noite, com clamor e lágrimas; era a força mais
vital da sua vida. Era isso que o “constrangia” e o levava a dizer: “Ai de mim, se
não anunciar o evangelho!” Pensar nessas riquezas da graça o impulsionava,
como também pensar na ignorância dos homens e das mulheres concernente a
elas. Essa foi a sua principal razão para escrever esta Epístola aos Efésios.

Paulo diz aos efésios que lhes está escrevendo porque eles estão constantemente
em sua mente, e que está sempre orando por eles - “tendo iluminados os olhos do
vosso entendimento, para que saibais... quais as riquezas da glória...”. Uma
declaração similar ocorre no capítulo 3, onde ele diz: “Por causa disto me ponho
de joelhos perante o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, do qual toda a família nos
céus e na terra toma o nome, para que, segundo as riquezas da sua glória, vos
conceda que sejais corroborados com poder pelo seu Espírito no homem
interior”, sendo o propósito do apóstolo que eles conhecessem “o amor de
Cristo, que excede todo o entendimento”, em sua largura e comprimento, em sua
altura e profundidade. Noutras palavras, ele quer que eles conheçam “as riquezas
da graça de Deus”.

Faço algumas perguntas neste ponto: conhecemos individualmente as riquezas


da graça de Deus? Temos alguma experiência delas? Estamos cientes delas? Não
estou perguntando se todos nós lemos a Epístola aos Efésios; estou perguntando
se conhecemos individualmente as riquezas da graça de Deus. Submetamo-nos
aos seguintes testes: conhecer as riquezas da graça de Deus, invariavelmente
leva ao mesmo resultado, em alguma medida, como foi no caso de Paulo. Isso
nos faz cantar, faz-nos louvar a Deus, faz com que nos alegremos “com gozo
inefável e glorioso” (1 Pedro 1:8). Foi porque conhecia estas riquezas que o
apóstolo escreve sobre elas, ora sobre elas, entra em êxtase sobre elas, e produz
os seus superlativos. “Que posso dizer?”, parece perguntar, “como
posso expressar o que tudo isso significa?”

Notem os verbos e os adjetivos de Paulo. Diz ele que Deus “derramou


abundantemente” a graça sobre nós (ARA); fala das riquezas da Sua graça; fala
das “insondáveis riquezas de Cristo”. A linguagem parece inadequada, a coisa
mesma é tão avassaladora! E isso não se limita ao apóstolo. Vê-se a mesma
exuberância nos hinos cristãos. João Wesley traduziu um hino do Conde
Zinzendorf,

e nele vemos a expressão, “misericórdia sem limites”. Não há limite, não há fim
para isso. Seu irmão Charles escreve similarmente -

Mercê completa, imensa e franca,

Pois, ó meu Deus, me descobriu!

E Isaac Watts concorda quando escreve: “Quando avalio a maravilhosa cruz”.


Ele não diz meramente que olha para a cruz; ele permanece ali e a “avalia”; fica
parado lá, trespassado por ela. Essa é a reação característica de todos os santos
de todas as eras, independentemente de quaisquer diferenças naturais que acaso
se achem neles.

Insisto na questão sobre se realmente conhecemos estas “riquezas” da graça e da


glória. Cada vez me convenço mais do que é a nossa falha nesse ponto que
explica muitos dos nossos problemas, dificuldades e fracassos. Muitas vezes as
nossas vidas como cristãos estão “presas a depressões e angústias”. Quão
diferentes somos das pessoas do Novo Testamento! Onde está a nota de vitória,
de alegria, de louvor e de ação de graças? Os nossos corações comovem-se e se
encantam arrebatados? Não é que eu esteja interessado em sentimentos ou
êxtases como tais, mas eu assevero que ninguém pode apreciar o tesouro e as
riquezas da graça de Deus sem reagir com assombro. Um dos mais delicados e
sensíveis testes da nossa profissão de fé cristã é a proporção em que
ficamos extasiados com as riquezas da graça de Deus - “Divino amor,
tão admirável! Requer minha alma, minha vida, meu tudo”. Temos sabido
apreciar estas riquezas? É porque muitos de nós não o temos feito que estamos
constantemente murmurando e nos queixando de que não conseguimos ver isto
ou entender aquilo. Isso explica também porque muitos vivem aflitos e parecem
aflitos, razão pela qual nunca atraem uma alma para Cristo.

Ao passarmos a investigar estas riquezas, só não posso indicar certos aspectos ou


itens, confiante em que a visão deles nos levará à reflexão, à meditação e à
contemplação crescentes, até nos vermos “perdidos de amor, encanto e louvor”.

Como podemos tentar avaliar e computar este grande tesouro? Em certo sentido,
estamos ensaiando uma tarefa impossível, porque o próprio apóstolo disse:
“...conhecer o amor de Cristo, que excede todo o entendimento”. Mas o fato de
não podermos jamais penetrá-lo e compreendê-lo plenamente não significa que
não devemos

examiná-lo. Tratemos de ir tão longe quanto pudermos no presente, e daí


prosseguir enquanto um dia seguir outro, até já não existir o tempo. Acredito que
passaremos a nossa eternidade dessa maneira. Assim é o céu, parece-me. A
glória da eternidade consistirá das nossas descobertas de novos aspectos destas
riquezas, e do nosso ingresso em mais outras apreciações maravilhosas da glória
da graça de Deus.

O primeiro teste, sugiro, é descobrir a dignidade e o valor de algo sabendo o


preço que foi pago por isso. E um bom teste para uma pintura, uma gravura ou
qualquer obra de arte. Como é avaliada? Qual o preço pago para sua aquisição?
Já estudamos esse assunto, porém não permita Deus que sejamos tão mecânicos
em nosso modo de pensar que digamos que, porque o estudamos uma vez, não
temos necessidade de mencioná-lo nunca mais. Jamais deveria haver um culto
ou uma reunião de cristãos em que não se mencionasse o precioso sangue de
Cristo: “Em quem temos a redenção pelo seu sangue”. Não consigo entender os
cristãos que ficam em casa domingo à noite, dizendo: “Ah, não precisamos ir
ao culto à noite; já sabemos tudo sobre a mensagem evangelística”. Você sabe
“tudo” sobre o sangue de Cristo? Você acha que realmente sabe tanto sobre isso
que não pode aprender nada de novo a respeito? O cristão que não recebe nada
num culto evangelístico está, para dizer o mínimo, numa condição nada
saudável. Se o seu coração não bate mais rápido toda vez que você ouve falar
do “sangue de Cristo”, você não é como o apóstolo Paulo. Vêem-se as riquezas
da graça de Deus no preço que foi pago para a nossa redenção - “Em quem
temos a redenção pelo seu sangue”. Não ouro nem prata nem platina, nem
qualquer dos metais mais preciosos do mundo; mas o sangue do Filho de Deus, a
vida do Senhor vertida, dAquele “por quem foram feitas todas as coisas, e por
quem todas as coisas subsistem”. Essa é uma maneira de avaliar “as riquezas da
graça de Deus”.

A segunda maneira de apreciar as riquezas é notar a munificência pela qual Deus


nos dá essas riquezas. Essa já é em si uma expressão da grandiosidade das
riquezas. Temos “a redenção pelo seu sangue... segundo as riquezas da sua
graça”. Tudo o que temos não é resultado dos nossos pedidos a Deus; é dado
gratuitamente por Deus. Se você vai a uma pessoa rica e lhe pede uma dádiva, e
ele, tendo considerado o pedido, diz: “Muito bem, eu lhe darei o que pede”, você
lhe fica muito grato, e com razão. Isso

prova que a pessoa é generosa. Mas quando pensamos nesta grande salvação,
todas as dádivas menores empalidecem em sua significação. Deus não nos
perdoa porque Lhe pedimos que nos perdoe. Deus não enviou Seu Filho ao
mundo porque o mundo ficou clamando a Ele que o fizesse. Na salvação nada
nos é dado por Deus como resposta a um pedido nosso, absolutamente nada!
Tudo vem inteira e absolutamente de Deus. Ele no-lo dá sem que Lho peça-mos;
Ele no-lo derrama sem que haja pedido algum. E, na verdade, apesar de nós,
apesar de sermos inimigos, alheios e rebeldes, apesar de Lhe darmos as costas. E
apesar de tudo o que somos e de tudo o que fizemos que Deus nos deu “as
riquezas da sua graça”. DEle é a iniciativa, como também o ato de dar.

Depois devemos ir adiante e compreender que o apóstolo está salientando que


Deus nos dará tudo isso, não se lamentando, mas com uma liberalidade e
generosidade que frustra toda tentativa de descrição. Tiago nos dá uma idéia
disto no capítulo primeiro da sua Epístola, quando nos diz que, se a algum de
nós falta sabedoria, que a peça a Deus que dá “liberalmente, e o não lança em
rosto”. Se posso dizê-lo com reverência, Deus não pode dar de nenhum
outro modo. Deus não dá reclamando; Sua natureza torna isso impossível. Deus
só pode ser liberal. Posto que Ele é Deus, só pode agir de uma maneira, com
superabundância, “sem empecilho ou obstáculo” ou limite. Como já vimos, o
apóstolo Paulo, no capítulo 3 de Efésios, afirma que a maneira como Deus dá
“excede todo o entendimento”. Ali ele fala em medidas, em largura e
comprimento, altura e profundidade. Como vivemos no tempo, pensamos
na imensidão em termos de medidas. Nós a medimos com o auxílio
de telescópios, teodolitos e outros instrumentos. Por isso o apóstolo, por assim
dizer, convida-nos a trazer todos os nossos instrumentos e meios para com eles
tentarmos medir o amor e a bondade de Deus para conosco. No entanto, ele nos
assegura que tudo isso é fútil. Vá tão longe quanto puder, e ainda não terá nem
começado; “excede todo o entendimento”. O amor e a graça de Deus são um
“mar sem fim”. Você pode pensar que vê o outro lado, e se lança às águas,
só para descobrir que um horizonte cede lugar a outro, e a outro, e a outro; é
interminável, um abismo imenso, “excede todo o entendimento”. “As riquezas
da sua graça” são tão grandes, grandiosas e profundas como o próprio Deus,
pois, quando Deus preparou a nossa salvação, Ele deu-Se em Seu Filho. Assim,
“as riquezas da graça de Deus” são realmente o próprio Deus. Ele entesourou
todas as Suas

riquezas de sabedoria e graça no Filho; tudo está em Cristo. A medida das


riquezas da graça é a medida da Pessoa de Deus. Por isso podemos dizer, em
nosso linguajar fraco e inadequado, que as riquezas da graça de Deus são
insondáveis. Como William Cowper nos lembra num dos seus hinos:

Em fundas e insondáveis minas De infalível habilidade Seus belos planos


guarda, e aciona Sua soberana e boa vontade.

Toda vez que exploramos as palavras, os caminhos e as obras de Deus, vemo-nos


num espaçoso e “rico lugar” (VA; NVI, em projeto: “lugar de fartura”), como
nos lembra o salmista (Salmo 66:12). As riquezas da graça de Deus são
inexauríveis, e embora os santos de todos os séculos tenham estado bebendo
dessa fonte, ela continua borbulhante na superfície. Não importa qual seja a sua
necessidade ou o seu problema; não há nada que alguma vez aflija o coração
humano ou a vida humana, pelo que já não tenha sido feita provisão. Jesus “tudo
faz bem ” (Marcos 7:37). Quem vier a mim, disse Cristo, nunca tornará a ter
sede (João 4:14). Sede, nunca, jamais! Ele é todo-suficiente, e todos os que vêm
a Ele ficam plenamente satisfeitos.

Devemos a seguir examinar alguns dos pormenores destas riquezas da graça de


Deus. Primeiramente há o que o apóstolo já tinha mencionado - perdão gratuito,
perdão sem nenhum pagamento. Ele não exige nada. Seu convite é “O vós, todos
os que tendes sede, vinde às águas, e os que não tendes dinheiro, vinde e
comprai... sem dinheiro e sem preço” (Isaías 55:1). Há alguns que se
sentem infelizes em sua vida espiritual porque não compreenderam essa primeira
verdade. Ainda estão tentando trazer alguma espécie de dinheiro, algum tipo de
pagamento. Dizem eles: “Ainda não sou suficientemente bom, mas estou
tentando ser”. Só se pode dizer uma coisa a uma pessoa dessas - a salvação é
“sem dinheiro e sem preço” - nem um centavo, nem um tostão! Nada se requer
como pagamento e nada se receberá. É tudo pelas “riquezas da sua graça”. Não
há maior insulto à pessoa que lhe está dando um presente pela generosidade do
seu coração do que enfiar a mão no seu bolso e dizer: “Gostaria de dar-lhe algo
pelo que você me está dando”. E

todos nós temos insultado a Deus Todo-poderoso tentando oferecer-Lhe algo.


Tratem de compreender que a salvação é resultante das “riquezas da sua graça”:

Assim como estou, sem nada alegar,

Senão que o Teu sangue deste por mim,

E que me atraíste para buscar-Te O Cordeiro de Deus, eu venho a Ti.

Nada trago em minha mão;

Só Tua cruz minh’alma abraça;

Busco, nu, vestes de Ti;

Mísero, busco Tua graça;

Imundo, à fonte já corro:

Lava-me, Senhor, ou morro!

Essa é a linguagem do cristão.

Ainda, o perdão de Deus é um perdão completo. Isso é ainda mais maravilhoso.


Quando Deus perdoa os nossos pecados, Ele não deixa nada para trás. Não há
reserva alguma, não há condições. Ele não diz: “Pois bem, vou perdoar você sob
condições”- nunca! “Eu perdoo você”, diz Deus, “porque o meu Filho sofreu o
castigo que você deveria receber por seus pecados.” Ele nos justifica gratuita
e completamente; os nosso pecados passados estão perdoados, os nossos pecados
atuais estão perdoados, os nossos pecados futuros já receberam o devido
tratamento. Ah, “as riquezas da sua graça”! Se pertencemos a Seu Filho, o livro
da lei de Deus é posto de lado; esse livro fiscal nunca mais será apresentado, no
que se refere a nós. Fomos justificados uma vez para sempre. Perdão completo!

Mais que isso, é uma completa reconciliação com Deus. Se você crê no Senhor
Jesus Cristo, se você crê que Ele morreu pelos seus pecados e levou sobre Si o
castigo que cabia a você, se você põe somente nEle a sua confiança, proclamo a
você, com autoridade, que você goza completa reconciliação com Deus. Agora
não há nada entre você e Deus porque Cristo morreu por você. Você
foi plenamente restabelecido à comunhão com Deus, e foi habilitado a desfrutar
tanto quanto Adão desfrutava antes da Queda. Sim, e até mais, porque você está
“em Cristo”! Você está gozando esta plena comunhão com Deus? Quando você
busca a Deus em oração, você vai com um espírito acovardado, hesitante e cheio
de dúvida? Ou

vai ciente de que o caminho para Deus está amplamente aberto, graças ao sangue
de Jesus? Esse é o ensino das Escrituras, e constitui um dos aspectos das
“riquezas da sua graça”.

Receio que muitos de nós são como o filho pródigo. Em desespero, voltamos
para casa, e cremos em certas coisas. Mas como era inadequada a idéia, a
concepção, que o pródigo tinha do amor do seu pai. Ele foi com temor e tremor,
dizendo: “Já não sou digno de ser chamado teu filho; faze-me como um dos teus
jornaleiros”. Do que é que você está falando?”, diz o pai, noutras palavras.
“Tragam a melhor roupa, tragam o anel, e vão matar o bezerro cevado.” Esse é o
modo de Deus. E plena reconciliação; é como se o pródigo nunca tivesse feito
nada errado, como se nunca tivesse insultado o pai antes de sair de casa, como se
nunca tivesse saído de casa. Tudo é esquecido e banido; a reconciliação é
completa. Esta é agora a nossa relação com Deus em Cristo Jesus. Se confiamos
em Cristo, estamos reconciliados plenamente.

Todavia, as riquezas da graça de Deus vão até além disso! Não somente isso é
uma verdade a nosso respeito, mas também podemos saber que é verdade.
Podemos ter conhecimento disso, e segurança disso, e certeza quanto a isso aqui
e agora. Já seria uma coisa magnífica e maravilhosa se Deus nos tivesse
reconciliado com Ele em Cristo, e não nos tivesse dito que o fizera. Seria algo
maravilhoso se todos nós, quando morrêssemos, tivéssemos a súbita surpresa de
que, apesar de sentirmos todos que, através das nossas vidas, tínhamos pecado
tanto contra Deus que Ele não poderia perdoar-nos, e, em conseqüência, nos
sentíamos acabrunhados e infelizes, todavia Deus já nos tinha perdoado, e isso
desde o início em que cremos em Seu Filho. Seria maravilhoso; porém Deus
não nos trata dessa maneira. Segundo as riquezas da Sua graça, Ele não somente
nos perdoa, mas também nos diz que o fez. Podemos ter “inteira certeza de fé” e
da esperança, mesmo enquanto estamos neste mundo. Regozijamo-nos em que,
“sendo justificados pela fé, temos paz com Deus”. É um pobre cristão aquele que
não sabe que os seus pecados estão perdoados. Não temos direito de ficar sem
a certeza da salvação; é nosso direito de nascimento. Deus no-la dá; faz parte do
Seu propósito a nosso respeito; é um aspecto da supera-bundância que Ele nos
dá “segundo as riquezas da sua graça”.

Pensem depois em nossa filiação e na “adoção” a que já nos referimos.


Considerem-nas de novo, e não digam tolamente: “Já fizemos serviço completo
com a adoção”. Voltem e contemplem

essa verdade até se verem firmes sobre os seus pés louvando a Deus. Lembrem-
se, então, mais uma vez, do que significa estar “em Cristo”. E ainda outra vez
considerem o dom do Espírito Santo e o fato de que fomos “selados” pelo
Espírito de Deus até o tempo da “redenção da possessão de Deus”, por Ele
adquirida. Assegurem-se de que vocês conhecem algo do poder do Espírito
Santo agindo em vocês. O apóstolo orou no sentido de que esses efésios
tivessem aquele conhecimento. Ele desejava que eles conhecessem
“a sobreexcelente grandeza do seu poder sobre nós, os que cremos” (1:19). Deus
não nos salva e perdoa os nossos pecados, e depois nos deixa entregues a nós
mesmos para combatermos o mundo, a carne e o diabo. Ele nos deu o dom do
Espírito. Pelo Espírito Cristo habita em nós, e Ele “é poderoso para fazer (por
nós) tudo muito mais abundante além daquilo que pedimos ou pensamos”
(3:20). Quando você estiver inclinado a sentir-se oprimido pelo diabo,
pelo mundo e pela carne, lembre-se do poder que ressuscitou a Cristo dentre os
mortos e que agora opera em você “segundo a riqueza da sua graça”.

Prossiga depois e lembre-se do que Paulo diz no capítulo 2 sobre o acesso que
temos à presença de Deus como resultado das “riquezas da sua graça”. “Porque
por ele (Cristo) ambos temos acesso ao Pai em um mesmo Espírito” (versículo
18). “Céu” significa estar na presença de Deus e fruí-10 sem empecilho ou
obstáculo ou restrição; e o apóstolo nos lembra que, segundo as riquezas da
graça de Deus, é-nos dada uma prelibação daquela bênção aqui neste mundo.
Temos acesso ao Pai por Cristo, mediante o Espírito. Você conhece a Deus?
Você está fruindo a Deus? Você está desfrutando uma Vida de comunhão com
Deus? Você sabe que a intenção de Deus é que você tenha essa alegria? Você não
deve contentar-se com menos que isso. Você deve crer nestas palavras, deve crer
na mensagem. Não espere por um sentimento especial; tome a Palavra de Deus
como é, e aja com base nela. Deus nos possibilitou isso; e nos cabe receber
destas riquezas.

O apóstolo escreve também sobre Cristo “habitar em nossos corações pela fé”.
Na verdade, ele vai adiante e diz algo ainda mais estupendo. Devemos “conhecer
o amor de Cristo que excede todo entendimento, para que (nós sejamos) cheios
de toda a plenitude de Deus” (3:17-19). Com Charles Wesley, não há nada que
possamos dizer neste ponto, exceto “Quem poderá explorar Seus
estranhos desígnios?”, mas nós devemos conhecê-los, experimentá-los e

desfrutá-los mais e mais. A plenitude de Deus! Cristo em nossos corações pela


fé! Manifestações espirituais do Filho de Deus, as vezes em que Ele vem a você,
e você sabe que Ele está aí! Não significa que você O vê a olhos nus, mas, sim,
que você “sabe e sente” que Ele está presente. Tudo isso nos é oferecido
“segundo as riquezas da sua graça”. Não é surpreendente que John Cennick
em seu hino nos exorte, dizendo -

Filhos do celeste Rei Indo, cantai suavemente.

Isaac Watts nos encoraja a isso lembrando-nos que o “fruto celestial” pode
desenvolver-se neste solo terrenal em que vivemos. Eis como ele o expressa:

Os filhos da graça já viram A glória cá embaixo iniciada;

Fruto celestial mesmo aqui Pode crescer da fé e esperança.

O Monte Sião sacros dulçores Dá-nos, antes de aos campos celestiais


chegarmos,

Ou de andarmos pelas ruas de ouro da Cidade.

Seu rosto lá contemplaremos Sem nunca, nunca mais pecar;

Dos rios que manam da Sua graça Vamos beber prazer infindo.
Então iremos entoar canções,

E toda lágrima secará:

Vamos pela terra de Emanuel A mundos mais belos, nas alturas.

É no presente mundo, diz o apóstolo, que nos cabe provar as “primícias” da


grande colheita, e antegozar a grande festa que Deus preparou, em toda a sua
plenitude, no céu.

Pense ainda na armadura de que Paulo fala no último capítulo desta Epístola.
Somos supridos de todo o necessário para habilitarmos a permanecer firmes no
dia mau contra as astutas ciladas de satanás; cada parte de nós é coberta
completamente.

São assim “as riquezas da graça de Deus”. E, naturalmente, tudo isso leva à
alegria, à paz e ao amor. Também leva a um sentimento de certeza e segurança; e
isso tudo, lembremo-nos , é simplesmente com referência à nossa vida neste
mundo e no tempo. Ergam os olhos e vejam, à nossa espera, “a esperança da sua
vocação” e “as riquezas da glória da sua herança nos santos”, a
“herança incorruptível, incontaminável, e que se não pode murchar, guardada
nos céus para nós”, que estamos em Cristo. Tudo está preparado, e tudo faz parte
das “riquezas da sua graça”. Nós O veremos como Ele é, estaremos com Ele,
reinaremos com Ele, nós O fruiremos, seremos semelhantes a Ele e senhores do
universo com Ele. Quando nos voltamos para Deus em arrependimento e fé, não
o fazemos como servos, pois somos adotados como filhos! E a nós nos
cabe gozar tudo quanto o coração e o amor do Pai preparou para nós. É isso que
nos é oferecido em Cristo Jesus, segundo as riquezas da graça de Deus.

Ao contemplarmos tudo isso, que nos resta dizer, senão,

Assim como estou, sem nada alegar,

Senão que o Teu sangue deste por mim,

E que me traíste para buscar-Te,

O Cordeiro de Deus, eu venho a Ti.

Assim como estou, sem mesmo esperar Minh'alma livrar de algum borrão,
A Ti, cujo sangue pode limpar-me,

Ó Cordeiro de Deus, eu venho a Ti.

Assim como estou, cego, pobre e febril;

Visão e riquezas e cura mental,

Sim, para achar tudo o que eu preciso,

Ó Cordeiro de Deus, eu venho a Ti.

Mísero pobretão! Levante-se, e em seus trapos e em sua penúria vá ao Senhor e


comece a receber as riquezas da Sua graça. Acredite nEle quando Ele lhe diz que
tudo isso e infinitamente mais estão disponíveis agora. Estenda a mão e receba
toda essa bênção, e logo estará regozijando-se, cheio de assombro ante as
“riquezas da sua graça”.

“O MISTÉRIO DA SUA VONTADE”

“Que ele derramou abundantemente (ARA) para conosco em toda a sabedoria e


prudência; descobrindo-nos o mistério da sua vontade, segundo o seu
beneplácito, que propusera em si mesmo.”

-Efésios 1:8-9

Aqui o apóstolo dá continuidade à declaração que iniciara no começo do


versículo 3. O texto que vai do versículo 3 ao fim do versículo 14 é só uma
grande afirmação dividida em suas partes componentes; constitui, pois, somente
uma grande declaração. A expressão na qual, na tradução da Versão Autorizada
inglesa (que, na de Almeida), lembra-nos que o que temos diante de nós é
uma continuação do mesmo tema. Cada declaração particular contribui com algo
de novo e vivo e, todavia, cada uma delas está relacionada com todas as demais,
e todas se juntam num grande pronunciamento concernente ao método de
salvação planejado por Deus. Ao descrevê-lo, o apóstolo tinha feito uso dos seus
superlativos, mas agora vemos que até eles deixam de cumprir os seus
desejos; ele tem que acrescentar algo. Eis como o faz: “Em quem temos
a redenção pelo seu sangue, a remissão das ofensas (ou o “perdão dos pecados”),
segundo as riquezas da sua graça, que ele derramou abundantemente para
conosco”. As riquezas tornaram-se abundantes! Assim, é a esse aspecto das
riquezas da graça de Deus que vamos dar atenção agora.

Para entendermos estes dois versículos, devemos ter bem claro em nossas
mentes exatamente o que o apóstolo está dizendo, e isso envolve um estudo da
fraseologia exata das duas declarações. A Versão Autorizada inglesa diz: “Na
qual ele foi abundante para conosco”, porém em geral se concorda que essa
tradução não é muito boa. É melhor traduzir: “A qual ele tornou abundante
para conosco” (semelhante à Versão de Almeida: “que ele fez abundar” (ARC);
“que Deus derramou abundantemente” (ARA). Esta é preferível porque “na qual
ele foi abundante para conosco” dirige a atenção para Deus, ao passo que nesta
altura o apóstolo está desejoso de concentrar-se nas “riquezas da sua graça, que
ele tornou abundante para conosco”. Ele está dando ênfase à maneira pela qual

a graça de Deus, em suas riquezas, tornou-se abundante para conosco.

Depois há o problema adicional quanto a decidir qual a relação da frase “em toda
a sabedoria e prudência”. Tem havido muito desacordo sobre isso. Na Versão
Autorizada (“AV”) e na Versão Revista Inglesa (“ERV”) as palavras “em toda a
sabedoria e prudência” estão no versículo 8 e estão ligadas a Deus tornando
abundante a Sua graça para conosco. Mas na Versão Padrão Revista
inglesa (“RSV”) há uma diferença. Nela essas palavras são colocadas
no versículo nove, e a tradução diz: “A graça que ele prodigalizou para nós. Pois
ele nos fez conhecidç, em toda a sabedoria e discernimento, o mistério da sua
vontade”. É claro que, em última análise, vem a dar na mesma; entretanto, se se
trata de uma descrição de como a graça de Deus se torna abundante para
conosco, devemos colocar “sabedoria e prudência” no versículo 8, e não no 9, e
tomá-los em conexão com a graça de Deus.

Há três maneiras pelas quais podemos tratar desta questão. Podemos dizer que
Deus, no exercício da Sua sabedoria e prudência, foi abundante para conosco em
graça. Ou podemos dizer que Deus nos tornou conhecido, em toda a sabedoria e
prudência, o mistério da Sua vontade. É como entende a Versão Padrão
Revista Inglesa (“RSV”). Mas me parece que a melhor maneira, a sugerida pela
Versão Autorizada e Revista inglesa (“ARV”), é simplesmente mudar a primeira
parte do versículo 8 para: “A qual (referindo-se à graça), juntamente com toda a
sabedoria e prudência, ele tornou abundante para conosco”. Eu argumento no
sentido de que se deve entender dessa maneira porque não acho certo atribuir
“toda a sabedoria e prudência” a Deus, pela seguinte razão: como Deus é
sabedoria absoluta não temos direito de dizer que Deus faz algo “em toda a
sabedoria”. De um homem podemos falar que ele faz coisas “em toda a
sabedoria”, porém Deus é sabedoria essencial e, portanto, não Lhe podemos
aplicar tal expressão. É falta de reverência.

Com maior razão quanto à palavra “prudência”. Em parte alguma de toda a gama
das Escrituras se atribui “prudência” a Deus. Pode se usar o termo com
referência aos homens, mas é impróprio com relação à Deus, cujos caminhos são
perfeitos, e que é sabedoria absoluta e eterna. Por isso afirmo que devemos
considerar a “sabedoria” e a “prudência” como aplicada a nós, e que Paulo
está dizendo que elas nos vêm como resultado da operação da graça de Deus.

O que o apóstolo está dizendo é, pois, que as riquezas da graça de Deus para
conosco não ficaram restritas à questão do perdão, mas foram tão abundantes
que nos trouxeram algo mais, a saber, a sabedoria e a prudência, que são
absolutamente necessárias para que se possa ter algum conhecimento do mistério
da vontade de Deus e do Seu propósito eterno em nosso Senhor e Salvador
Jesus Cristo.

Essa é, então, a terceira grande declaração que o apóstolo faz concernente às


coisas que Deus fez com relação à nós - Ele nos escolheu; Ele nos predestinou;
Ele nos tornou conhecido o mistério da Sua vontade. Há uma seqüência definida
aqui, como se nos diz no versículo 9: “Descobrindo-nos (Deus) o mistério da sua
vontade, segundo o seu beneplácito, que propusera em si mesmo.”
Deus propusera em Si mesmo, antes da fundação do mundo, este
grande esquema de redenção e de salvação; é algo que se originou inteiramente
na mente e no coração de Deus. Ele o propusera em Si mesmo. E o que
propusera é este “beneplácito”, esta “boa vontade para com os homens”da qual
os anjos falaram aos pastores: “Paz na terra, boa vontade para com os homens”.

Contudo, diz o apóstolo, Deus não somente propôs e planejou a salvação;


revelou-a também; é um mistério que Ele tornou conhecido. E, ainda mais
maravilhoso - e esta é a mensagem particular destes dois versículos - Deus fez
também algo que nos possibilita saber isso, apreendê-lo e recebê-lo. Esta é a
maneira pela qual “as riquezas da graça de Deus” tornaram-se “abundantes para
conosco”. Fê-lo “em toda a sabedoria e prudência”, para que
pudéssemos penetrar e entender o mistério da vontade de Deus e do Seu
propósito misericordioso.
Este é, pois, o tema, e é um tema particularmente importante no presente,
porquanto aqui o apóstolo está manejando e tratando toda a questão da nossa
abordagem da salvação cristã. Esta questão está provocando muita discussão
atualmente, como aconteceu com muita freqüência na história da Igreja. É uma
particular causa de tropeço para o homem moderno, que tem muita coisa para
dizer acerca do lugar que a mente, a razão e o entendimento humanos ocupam
com relação à fé. Há muitos que rejeitam a fé cristã porque não a
podem entender; dizem eles que ela é irracional, que ela não se encaixa
nas categorias do pensamento normalmente utilizadas, e assim por diante. Isso
lhes parece boa e suficiente razão para rejeitá-la e alegar que ela não tem nada
para comunicar ao homem moderno.

Portanto, essa questão é crucial, e de vital importância em relação à pregação do


evangelho e à evangelização. Ela determina toda a nossa maneira de abordar
esses pontos, particularmente com respeito aos nossos métodos. A pergunta é:
como a pessoa passa a ter conhecimento da grande salvação que está em Cristo,
e a ter entendimento do poderoso e eterno propósito de Deus? Para respondê-la
não podemos fazer nada melhor do que examinar com atenção os termos
utilizados pelo apóstolo.

O primeiro é “mistério” - “Que ele derramou abundantemente para conosco em


toda a sabedoria e prudência; descobrindo-nos o mistério da sua vontade”.
“Mistério” é um termo muito importante nas Epístolas de Paulo. Mas de modo
algum está restrito aos seus escritos; é um termo vital em todo o Novo
Testamento. Mesmo o nosso Senhor fez uso dele em Seu discurso registrado no
capítulo 13 do Evangelho Segundo Mateus, e nas passagens paralelas, como em
Marcos, capítulo 4. O Senhor estava explicando aos discípulos o Seu método de
ensinar o mistério, ou a verdade, concernente ao reino de Deus por meio de
parábolas. Os discípulos são conseguiam entender isso, todavia o Senhor
explicou-lhes: “A vós vos é dado conhecer os mistérios do reino dos céus, mas a
eles não lhes é dado” (Mateus 13:11). O ensino concernente ao reino dos céus
é um mistério; e Ele o faz conhecido somente aos discípulos. Embora os fariseus
e outros estivessem por perto e ouvissem as mesmas palavras, quando Ele
proferiu as Suas parábolas, eles não as entenderam e se retiraram levando uma
impressão errada. Isso tudo por causa do mistério do Reino, diz o nosso Senhor.

O apóstolo Paulo emprega o termo no capítulo 16 da Epístola aos Romanos:


“Ora, àquele que é poderoso para vos confirmar segundo o meu evangelho e a
pregação de Jesus Cristo, conforme a revelação do mistério que desde tempos
eternos esteve oculto. Mas que se manifestou agora, e se notificou pelas
Escrituras dos profetas, segundo o mandamento do Deus eterno, a todas as
nações para obediência da fé” (versículos 25 e 26). Vemo-lo também na primeira
Epístola aos Coríntios, capítulo 2: “Todavia falamos sabedoria entre os perfeitos;
não porém a sabedoria deste mundo, nem dos príncipes desse mundo que se
aniquilam; mas falamos a sabedoria de Deus oculta em mistério, a qual Deus
ordenou antes dos séculos para a nossa glória” (versículos 6 e 7).

O apóstolo utiliza a palavra de novo no capítulo 3 desta

Epístola aos Efésios, onde ele fala da dispensação da graça de Deus, que para
convosco me foi dada; como me foi este mistério manifestado pela revelação
como acima em pouco vos escrevi; pelo que, quando ledes, podeis perceber a
minha compreensão do mistério de Cristo, o qual noutros séculos não foi
manifestado aos filhos dos homens...” (versículos 2 a 5). O apóstolo se
repete freqüentemente, como todo bom mestre faz, especialmente um mestre do
evangelho, que tem algo que vale a pena repetir. Vemos ainda a palavra na
Primeira Epístola a Timóteo, capítulo 3: “Grande é o mistério da piedade”
(versículo 16). É patente que se trata de um termo chave; e, se não entendermos
o seu significado, certamente nos perderemos nesta questão de como um homem
se torna cristão, e quanto à relação da razão com a fé, e da mente com a
salvação.

O termo “mistério”, como empregado no Novo Testamento, não significa uma


espécie de segredo místico, só revelado a uns poucos iniciados e
deliberadamente guardado e mantido longe de todos os demais, como era
característico das “religiões de mistério” tão comuns no tempo de Paulo. Os
homens tinham que ir aos templos e passar por certos procedimentos cúlticos,
antes de se iniciarem para o conhecimento do mistério. Era um segredo guardado
zelosamente e que se limitava a certos filósofos e a pessoas excepcionais; nunca
era dado às pessoas comuns. Há certas seitas e sociedades secretas atualmente
que evidentemente se baseiam nessas idéias. Suas reuniões são feitas a portas
cerradas, e o candidato se compromete a nunca divulgar o segredo, e lhe é dado
um sinal ou uma senha pela qual ele pode reconhecer os seus companheiros de
devoção. Isso é a própria antítese do cristianismo, o qual proclama, prega, expõe,
anuncia a sua mensagem e deseja que todos a conheçam. Portanto, o termo
mistério como empregado no Novo Testamento, não denota algum segredo
místico guardado cuidadosamente e ao qual somente os iniciados são admitidos.
Mais importante ainda, porém, é o fato de que quando esta verdade é descrita
como um mistério, não quer dizer que se trata de algo vago, nebuloso e
indefinido. Esse é, talvez, o principal ponto que se deve salientar hoje, pois há
uma escola de pensamento que ensina que a fé cristã nunca pode ser exposta em
proposições. O cristianismo, ensinam os seguidores dessa escola, é
essencialmente um “encontro” que se dá num “momento existencial”, quando
o evangelho fala ao homem e se dirige a ele, e acontece algo com o homem que
nunca pode ser impresso no papel ou exposto com frias

palavras. Daí dizerem eles que a Bíblia é um livro falível porque são somente
tentativas de homens para expor e explicar a experiência vital que tiveram no
momento do encontro. Isso, sustentam eles, é muito diferente de chamar as
pessoas à fé em certas proposições. Dizem eles: “A verdade nunca pode ser
exposta proposicionalmente” porque é um mistério. Noutras palavras, eles
definem mistério como algo incompreensível, algo que o homem não pode expor
ou expressar, e eles acrescentam que qualquer tentativa para fazê-lo o deprecia e
o invalida.

É de grande importância que compreendamos que não é esse o sentido de


mistério, nem tampouco aquele conceito que dele sempre aparece com aspecto
intelectual e teológico; esse conquistou certa popularidade num movimento cujo
lema afirma que “Religião é captada, não ensinada”. Religião, alega-se, é coisa
do espírito, algo indefinível, algo que não se pode expor em frias palavras;
você simplesmente a “capta” de outros. Não se deve expor a religião numa
confissão de fé ou nalguma declaração tipo credo. Tentar fazê-lo é ser
racionalista. Você encontra pessoas que a têm, você não pode explicar
exatamente o que é, mas sabe que elas a possuem, e você a capta, e assim ela se
propaga de uns aos outros.

Tais asserções fazem completa violência ao que o Novo Testamento quer dizer
com o termo “mistério”, e subvertem inteiramente a fé cristã. No entanto,
certamente dão excelente base para outro movimento ecumênico de sucesso. A
única esperança de se ter um movimento ecumênico de sucesso é dizer que se
pode evitar descer às particularidades, e que não se deve insistir em coisa
alguma. Desde que de algum modo creiamos em Cristo, somos todos um, e se
tem em vista uma igreja mundial que inclua todas as pessoas religiosas. Como
uma publicação religiosa, agora defunta, disse por ocasião de uma grande
campanha evangelística a alguns anos: “Tenhamos tréguas teológicas durante a
campanha”! Contudo, toda essa conversa baseia-se na idéia de que a verdade
cristã é misteriosa no sentido de que é incompreensível para o intelecto humano,
que nunca pode ser entendida ou exposta em proposições e que a única coisa que
importa é que todos nos devemos crer vagamente em Cristo.

Positivamente, a palavra mistério no Novo Testamento não significa algo que é


incompreensível para a mente humana, mas é antes algo que a mente humana
desassistida não pode descobrir. Essa é a diferença vital. Diz a definição errônea
que é sempre

incompreensível. A segunda definição afirma que a mente humana, por seu


próprio empenho ou esforço, nunca pode chegar a ele, porém, quando capacitada
a fazê-lo começa a compreendê-lo. E um mistério no sentido de que o homem,
com a sua mente e o seu intelecto decaídos e desassistidos, nunca pode descobri-
lo e chegar a ele; mas quando lhe é revelado ele pode entendê-lo. O
apóstolo Paulo refere-se a ele como “sabedoria de Deus” e “sabedoria oculta”.
Diz ele que “nenhum dos príncipes deste mundo conheceu”, porque eles
procuravam entendê-lo com sua mente desassistida. “Mas”, diz o apóstolo,
“Deus nô-las revelou pelo seu Espírito; porque o Espírito penetra todas as coisas,
ainda as profundezas de Deus. “Não recebemos o espírito do mundo”, prossegue
ele, “mas o Espírito que provém de Deus, para que pudéssemos conhecer o que
nos é dado gratuitamente por Deus” (1 Coríntios 2:7-12). Nós podemos saber
estas coisas; elas se nos tornaram compreensíveis como resultado da operação do
Espírito Santo.

Falando dessa maneira, o apóstolo está apenas repetindo o que o nosso Senhor
tinha dito antes dele. No capítulo 11 do Evangelho Segundo Mateus lemos que o
nosso Senhor dirigiu-Se a Seu Pai e disse: “Graças te dou, o Pai, Senhor do céu e
da terra, que ocultastes estas coisas aos sábios e entendidos, e as revelastes aos
pequeninos. Sim ó Pai, porque assim te aprouve” (versículos 25 e 26).
Deus esconde dos “sábios e entendidos”a verdade; e esta continua sendo um
mistério para eles; não, porém, para os “pequeninos”. Deus a revela aos
“pequeninos” para que eles a desfrutem. Noutras palavras, o termo “mistério”
significa que esta grande verdade concernente a vontade de Deus e ao Seu
propósito de salvação só pode ser recebida quando Deus a faz conhecida e a
revela. E diz o apóstolo que ele o fez. “Que ele derramou abundantemente
para conosco em toda a sabedoria e prudência, descobrindo-nos o mistério da
sua vontade.”

Portanto, “mistério”, não é algo inerente e essencialmente incompreensível para


a mente humana, mas é antes algo que constitui um segredo que está fora do
alcance da mente humana natural, algo que Deus revelou e desdobrou para os
que crêem. Todo ensino no Novo Testamento gira em torno disto, que os crentes
em Cristo penetraram o segredo, tiveram o mistério revelado a eles. A
verdade salvífica deixou de ser um mistério para o cristão; só é mistério para o
não cristão. Para o cristão é um segredo aberto, porque aprouve a

Deus, em Sua graça e bondade, desdobrá-lo e revelá-lo a ele.

Sendo assim, devemos, em segundo lugar, ir adiante e perguntar: é, pois, certo


dizer que, visto que Deus fez esta revelação do mistério de Sua vontade em
Cristo, quem quiser pode recebê-lo e entendê-lo? Resultará disso que, desde que
Deus o revelou em Cristo, qualquer pessoa pode vir ao Novo Testamento e o
pode ler, aplicar a sua mente e o seu intelecto a ele, e então pode descobrir a
mensagem? A resposta é exatamente o que o apóstolo está salientando aqui, e ela
nos leva às palavras “sabedoria e prudência”. Partamos das proposições que
constam na Primeira Epístola aos Coríntios, capítulos 1 e 2: “O homem natural
não compreende as coisas do Espírito de Deus” e, “não são muitos os sábios,
nem muitos os nobres que são chamados”. A verdade estava sendo
apresentada àqueles intelectuais gregos, mas eles não podiam vê-la. Os
homens vêm ao Novo Testamento com toda habilidade, entendimento e preparo
que têm, porém não enxergam a verdade. Nunca poderão enxergá-la, sem o
Espírito Santo. O Espírito Santo, e a Sua operação em nós, são absolutamente
essenciais antes de podermos receber a verdade e começar a entendê-la. A
“sabedoria” é necessária, e sabedoria significa conhecimento e entendimento.
Noutras palavras, a melhor exposição dos dois versículos que estamos
examinando acha-se nos dois primeiros capítulos da Primeira Epístola de Paulo
aos Coríntios. A grande busca que os gregos faziam era de sabedoria; a grande
busca feita por todos os filósofos é de conhecimento e entendimento; eles tentam
achar Deus e entendê-10 e ao mundo, mas “o mundo não conheceu a Deus pela
sua sabedoria”. A sabedoria do mundo não é suficiente. Entretanto, diz Paulo,
nós “falamos a sabedoria de Deus”.

É preciso que Deus nos dê entendimento também. Escrevendo aos Coríntios


nessa mesma primeira Epístola, no capítulo 3, o apóstolo diz algo de crucial
importância: “Se alguém dentre vós se tem por sábio neste mundo, faça-se louco
para ser sábio” (versículo 18). Noutras palavras, se você quiser entender e
penetrar esta sabedoria de Deus, terá que se tornar como criança. Terá que
renunciar à sabedoria terrena e à confiança nos poderes e faculdades
humanas; terá que se tornar louco; terá que dizer: “Eu não sei nada, as
minhas habilidades de nada valem aqui; tornei-me como uma criança pequena”.
“Em verdade vos digo que, se não vos converterdes e não vos fizerdes como
meninos, de modo algum entrareis no reino

dos céus” (Mateus 18:3). A glória do evangelho diz o apóstolo, é que Deus, em
Sua graça, nô-lo revelou. Sua graça foi tão abundante para conosco que podemos
dizer: “Nós temos a mente de Cristo” (1 Coríntios 2:16). Assim o apóstolo
termina a sua argumentação. Mas observem que ele diz também no capítulo 2 de
sua Primeira Epístola aos Coríntios: “O que é espiritual discerne bem tudo, e
ele de ninguém é discernido” (versículo 15). O cristão entende, porém o
incrédulo não o entende. E então Paulo faz uma pergunta: “Quem conheceu a
mente do Senhor, para que possa instruí-lo?” Sua resposta é que, conquanto
ninguém possa instruir Deus, não obstante, “nós temos a mente de Cristo”, e a
temos por causa das riquezas da graça de Deus que “foi abundante para conosco
em toda a sabedoria”. Ele nos deu poder para entender e compreender.

Mas recebemos não somente “toda a sabedoria”, como também “prudência”.


Esta palavra “prudência”, como empregada aqui no Novo Testamento, não tem o
sentido que normalmente atribuímos à palavra “prudência”. Poderemos ver isso
examinando alguns outros exemplos do uso da mesma palavra no Novo
Testamento. Quando Simão Pedro fez a sua grande confissão de fé em Cesaréia
de Filipe, ficou surpreso quando nosso Senhor lhe disse que Ele tinha que sofrer
a morte na cruz. Disse Pedro: “Senhor, tem compaixão de ti; de modo nenhum te
acontecerá isso”. Mas o nosso Senhor voltou-Se para ele e disse: “Para trás de
mim, satanás, porque não compreendes as coisas que são de Deus” (VA: “...pois
não gostas das coisas que são de Deus”). Quer dizer, Pedro não as apreciava, não
as entendia.

Vejam mais uma ilustração na Epístola aos Romanos, capítulo 8, versículo 5:


“Os que são segundo a carne inclinam-se para as coisas da carne; mas os que são
segundo o espírito, (inclinam-se) para as coisas do espirito” (VA e ARA: “...
segundo o Espírito, ...do Espírito”). Inclinam-se traduz a mesma palavra grega
que estamos estudando, e o sentido é que as “coisas carnais” constituem o
interesse dos homens que estão “na carne”; essa é a esfera que os atrai, é onde
vivem as suas inclinações, onde vivem em suas mentes; as coisas deste mundo
constituem o seu gozo. Ou vejam ainda Colossenses, capítulo 3, versículo 2:
“Ponde o vosso afeto nas coisas que são de cima” (VA). Ponde o vosso afeto
traduz a mesma palavra que em nosso texto vem traduzida por “prudência”.
Essas ilustrações ajudam nos a entender o sentido do termo “prudência”.
Significa um estado mental que inclui os afetos, bem

como a mente. Assim, pode se traduzir por “perspicácia” - “Em toda a sabedoria
e perspicácia”. Significa “discernimento espiritual”, a capacidade de discernir a
excelência das coisas de Deus, e de ter um correspondente afeto para com elas.
Portanto, as riquezas da graça de Deus tornaram-se abundantes para conosco,
não somente na sabedoria que me dá entendimento; toda a minha alma é
envolvida, o homem integral. Estão incluídos os meus afetos, o meu interesse, o
meu amor; todo o meu ser é conclamado; e eu o desejo de todo meu ser.

Sendo essa a doutrina, tiro as seguintes conclusões: se esta é a verdade, então os


progressos do conhecimento e da ciência, os progressos dos séculos, não fazem a
mínima diferença na questão da verdade espiritual, e são completamente
irrelevantes onde o que interessa é essa verdade.

Recentemente vi uma declaração que mostra quão necessário é chamar a atenção


para isto hoje. Eu estava lendo a resenha de um livro na qual o resenhista visou
os que se deleitam em elogiar a teologia dos séculos 16 e 17, e também certos
escritores católico--romanos mais antigos. Eis o que ele escreveu: “Estou menos
certo do que já estive, porém, de que as categorias daqueles grandes dias sejam
apropriadas para uma discussão dos problemas levantados para o nosso
pensamento pelos neofisicistas”. O que ele quis dizer é que há pouco valor em
ler e estudar as grandes teologias do passado, pois elas não podem ajudar-nos
agora. Enfrentamos os grandes problemas levantados por novas ciências, como a
física atômica, e pelos progressos atuais no conhecimento, no pensamento, e em
nosso entendimento do cosmos e da natureza do universo. O resenhista
asseverou que de nada vale retornarmos aos escritores antigos, pois é óbvio que
temos de possuir algo novo antes de podermos entender a verdade e o método de
Deus com relação ao homem e ao plano da salvação na hora presente. Há novos
problemas, alegou ele, por causa dos progressos feitos pelas mentes dos homens.
Mas isso é simplesmente uma completa negação do que o apóstolo ensina nestes
dois versículos que estamos considerando, e, na verdade, de todo o Novo
Testamento. A mente humana, em suas melhores condições, quer no primeiro
século quer no século vinte, nunca é adequada. Para o homem natural a
verdade permanece sempre um mistério. Era um mistério há quase dois mil anos;
é igualmente um mistério hoje. A nova astrofísica não faz a

mínima diferença. Nosso interesse é Deus, o homem, o pecado; e a divisão do


átomo é completamente irrelevante nessa esfera. Dizer que a era dos
neofisicistas exige uma nova espécie de verdade e entendimento é negar a base
mesma da fé cristã.

Em segundo lugar, as Escrituras, e somente elas, devem ser a nossa única e final
autoridade quanto a todas estas questões. A modernidade não faz absolutamente
nenhuma diferença. A revelação acha-se na Bíblia, e ali permanece sem mudar e
imutável. Não há nada adicional no século vinte, e nunca haverá. Deus revelou
o mistério; portanto, falar em mente moderna e em homem moderno é negar as
Escrituras. Nunca haverá, nunca poderá haver algum progresso sobre o qual
tenha havido revelação. Vivemos sobre “o fundamento dos apóstolos e profetas”,
e não podemos ir além deles.

Em terceiro lugar, a obra de Espírito Santo é absolutamente essencial ao


entendimento das Escrituras. O que quer que um homem seja, e por maior que
seja a sua capacidade natural, se ele não for iluminado pelo Espírito Santo , não
entenderá e não poderá entender as Escrituras . A verdade que elas revelam é
“discernida espiritualmente”.

Por último - e com prazer o digo! - visto que se trata do método de Deus, há
esperança para todos, de que o entendam. Como é algo que é revelado por Deus
e que Ele nos habilita a entender dando nos “sabedoria” e “prudência”, haja
intelecto ou não, não faz diferença vital. O entendimento dado por Deus
mediante o Espírito Santo está á disposição de todos. Torno a lembrar-lhes o que
o apóstolo diz aos Coríntios: “Não são muitos os sábios segundo a carne, nem
muitos os poderosos, nem muitos os nobres que são chamados”. “Deus escolheu
as coisas loucas”, as fracas, as vis, as desprezíveis, “as que não são; para
aniquilar as que são; para que nenhuma carne se glorie perante ele” (1 Coríntios
1:26-29). Não é o poder do intelecto que faz o cristão; a salvação é espiritual; é
tudo dado por Deus. Ele nos dá a sabedoria e a prudência, como também a
verdade. Estamos todos no mesmo nível, e, portanto, não devemos gloriar-nos
em nada e em ninguém, exceto no Senhor.

Diga-se de passagem que esta verdade é toda a base da atividade missionária. É


por causa disso que você pode ir ao coração da África Central e visitar uma tribo
de pessoas que não sabem ler e escrever, e sem instrução. Você pode pregar o
evangelho com a mesma confiança como o prega na sociedade ocidental, porque
Deus
pode iluminá-las por intermédio do Espírito Santo . Muitos dos cristãos
primitivos eram escravos; “aos pobres é anunciado o evangelho”. Através dos
séculos tem sido assim. Graças a Deus por isso. Se fosse de outro modo, os
homens bem dotados intelectualmente teriam grande vantagem sobre os outros;
mas neste ponto somos todos iguais. “Não há um justo, nem um sequer.” “O
mundo não conheceu a Deus pela sua sabedoria”. “Aprouve a Deus salvar
os crentes pela loucura da pregação” (1 Coríntios 1:21). Quão gratos devemos
ser a Deus por Ele ter derramado abundantemente sobre nós as riquezas da Sua
graça para conosco “em toda a sabedoria e prudência”; descobrindo-nos o
mistério da Sua vontade, segundo o seu beneplácito, que propusera em si
mesmo”! Juntemo-nos ao apóstolo Paulo, dizendo: “Ó profundidade das
riquezas, tanto da sabedoria, como da ciência de Deus! Quão insondáveis são os
seus juízos, e quão inescrutáveis os seus caminhos!” (Romanos 11:33). Quem,
senão Deus, poderia engendrar tal plano de salvação, um tão perfeito plano de
salvação? “Porque dele, e por ele, e para ele são todas as coisas; glória pois a ele
eternamente. Amém!”

1
“The National Gallery of London”, Trafalgar Square, Londres; “The Tate Gallery”, Millbank,
Londres. Nota do tradutor.
TODAS AS COISAS REUNIDAS EM CRISTO

“De tornar a congregar em Cristo todas as coisas, na dispensação da plenitude


dos tempos, tanto as que estão nos céus como as que estão na terra.” - Efésios
1:10

Esse versículo explica a natureza do mistério que a Deus aprouve revelar-nos.


Não hesito em asseverar que nesse versículo temos a chave para o entendimento
do principal propósito prático desta Epístola aos Efésios. E essa a mensagem que
o apóstolo está muito interessado em expor. Ao mesmo tempo, naturalmente, ele
estava desejoso de dizer-lhes todas as coisas que já consideramos; mas o traço
peculiar desta Epístola é que se destina a ser uma exposição desse tema em
particular. De fato podemos ir adiante e dizer que esse versículo mostra qual é o
tema central de toda a Bíblia. Do ponto de vista da concepção do pensamento e
da categoria do significado, não há nada maior. Não quero dizer que é maior do
ponto de vista da nossa experiência; nesse aspecto não é maior do que
o versículo 7 - “Temos a redenção pelo seu sangue, a remissão das ofensas (ou,
“o perdão dos pecados), segundo as riquezas da sua graça”. Entretanto, visto do
ponto de vista do intelecto, como um conceito poderoso, devemos dizer que é
superior ao versículo 7, porque no versículo 10 somos elevados direto aos céus e
nos vemos contemplando o propósito final de Deus com relação a este mundo.
Não há nada mais elevado que isso, nada que esteja além do propósito final de
Deus. É maior e mais grandioso que nossa salvação pessoal. Nesse versículo
somos transportados acima da questão da nossa salvação pessoal e somos
introduzidos na esfera das realidades supérrimas - do grande, compreensivo,
final e supremo propósito de Deus. A mente humana não pode contemplar algo
mais grandioso. Deus não nos dá maior privilégio do que o de permitir que
vejamos isso a fundo,

Como é maravilhoso poder fazê-lo, em vista do presente estado e condição do


mundo! Vemos as nações rasgadas e divididas;

vemos tumultos; sabemos de certas possibilidades terríveis. Para todas as


pessoas que pensam, a grande pergunta é: que é que há de errado com o mundo,
e que se pode fazer a respeito? Para mim, a maior tragédia da hora presente é
que muitos “líderes” cristãos, quando tentam lidar com esta situação do mundo,
concentram-se no que eles acham que os estadistas deveriam fazer para resolver
as crises que se repetem e impedir certos perigos. Eles expõem as suas opiniões
e dão o seu conselho. Mas nem eu nem eles estamos em condições de aconselhar
os estadistas. Essa é a tarefa especial dos estadistas; e quanto mais estadistas
cristãos tivermos, melhor. Como cristão, tenho os meus pensamentos e as minhas
idéias acerca dessas coisas, porém, elas não têm autoridade nenhuma sobre
os pensamentos alheios, sejam de quem forem.

Ainda que não seja qualificado para aconselhar estadistas, eu fui comissionado
para expor as Escrituras. Não sei o que vai acontecer neste mundo; ninguém
sabe. Não sei se haverá paz ou guerra, e se será tempo perdido tentar mexer
nesse assunto. Mas me proponho a tratar de um assunto que conheço, que
pertence a uma esfera muito mais ampla, e estou pronto para fazê-lo com a
autoridade que Deus me dá. O futuro imediato poderá trazer guerra ou paz;
não sei; todavia sei algo a respeito do futuro distante. Este é um dos pontos nos
quais o cristão e o não cristão se diferenciam e estão separados um do outro. O
cristão está interessado no futuro distante e no plano de Deus, e ele sabe que a
história terá fim de uma certa maneira. Há muitos que acreditam que é possível
cristianizar o mundo, e que o principal dever da pregação é procurar persuadir
as pessoas a aplicarem o ensino cristão às atividades do mundo. Mas esperar
comportamento cristão de pessoas não cristãs indica uma colossal ignorância
sobre o pecado e os meios de que se serve como são revelados na Bíblia. Não é
essa a mensagem revelada aqui e, na verdade, em parte nenhuma da Bíblia. O
que nos é dito aqui é algo que vai acontecer apesar do que os homens e as nações
façam ou deixem de fazer, pois é plano de Deus, e é absolutamente certo.
Se você entende estas coisas, esse entendimento o habilita a ver a presente crise
mundial e a permanecer calmo; você sabe que o supremo Deus é infalível.

Talvez a melhor maneira de abordar a crucial declaração deste versículo 10 seja,


de novo, tomar as palavras que o apóstolo usa, porque, se não tivermos claro
entendimento do significado das

palavras, a nossa compreensão do ensino será inevitavelmente errônea. A


primeira palavra que vamos considerar é “dispensação” - “De tomar a congregar
em Cristo todas as coisas, na dispensação da plenitude dos tempos...”A que maus
tratos essa palavra tem sido submetida! Tem sofrido tal abuso e tem sido tão mal
interpretada que quase dá medo de usá-la. Há pessoas que dividem a Bíblia
em tantas dispensações que o que resta é confusão. As autoridades concordam
que “dispensação” tem dois sentidos principais, e o termo é empregado três
vezes nesta Epístola. É utilizado no versículo 2 do capítulo 3, onde Paulo diz:
“Se é que tendes ouvido a dispensação da graça de Deus, que para convosco me
foi dada; como me foi este mistério manifestado pela revelação”. Acha-se
também no versículo 9 do mesmo capítulo: “E demonstrar a todos qual seja a
dispensação (VA: “a comunhão”) do mistério, que desde os séculos esteve oculto
em Deus que tudo criou” (VA: “que tudo criou por Jesus Cristo”). A palavra
traduzida por “comunhão” (VA) é a mesma palavra grega traduzida por
“dispensação” no texto que estamos estudando. Ainda a mesma palavra é
empregada pelo apóstolo na Primeira Epístola aos Coríntios, capítulo 9,
versículo 17. Falando de si mesmo como pregador, ele diz: “Se o faço de boa
mente, terei prêmio; mas, se me dá má vontade, apenas uma dispensação me é
confiada”. (O termo “apenas” (ARC) não consta nem na VA, nem em ARA, nem
no texto grego.)

Como poderemos saber qual dos dois sentidos adotar? Tudo depende de se você
a considera do ponto de vista de uma pessoa que exerce autoridade ou do ponto
de vista de uma pessoa que está sob autoridade. Se você considera a palavra do
primeiro ponto de vista, significa um plano, um esquema, uma economia; se a
considera do segundo, significa ofício, mordomia, administração. É certamente
claro que o primeiro significado aplica-se aqui, no versículo 10; ao passo que no
versículo 2 do capítulo 3 é óbvio que se aplica o segundo significado, sendo a
referência a ofício - “Se é que tendes ouvido a dispensação da graça de Deus,
que para convosco me foi dada”. Era sua obra, seu ofício. Uma mordomia, uma
administração lhe fora dada, diz ele. Mas no versículo 9 do capítulo 3 é
igualmente claro que o termo “dispensação” significa “plano” - “E demonstrar a
todos qual seja a dispensação do mistério, que desde os séculos esteve oculto em
Deus”. Aqui no versículo 10 do capítulo primeiro o termo é obviamente aplicado
a Deus, Aquele que exerce autoridade e, portanto, significa plano,

esquema, economia. O apóstolo está dizendo que nos foi dado este
conhecimento, esta penetração no grande plano de Deus. O mistério que foi
revelado é que Deus tem um grande esquema, uma “economia” com relação a
este mundo, e que Ele o está pondo em operação.

A segunda expressão que se deve considerar é “plenitude dos tempos” - “na


dispensação da plenitude dos tempos”. Aqui o apóstolo nos diz quando este
grande plano de Deus será posto em operação, quando este grande propósito que
estava na mente de Deus desde a eternidade vai se cumprir realmente. O
apóstolo emprega a mesma expressão na Epístola aos Gálatas, no versículo 4
do capítulo 4. Referindo-se à vinda do nosso Senhor ao mundo, ele diz: “Mas
vindo a plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher,
nascido sob a lei, para remir os que estavam sob a lei, a fim de recebermos a
adoção de filhos”. A extensão total do tempo foi dividida pela vinda do Senhor
Jesus Cristo a este mundo. É a essa divisão que o Novo Testamento dá ênfase.
Os tempos nos quais vivemos são chamados “últimos tempos”, “últimos dias”.
Os profetas do Velho Testamento escreveram acerca dos “últimos tempos”, e dos
“últimos dias”; e todos eles se referiam aos tempos posteriores à vinda do
Senhor Jesus Cristo a este mundo. Ele veio na “plenitude dos tempos”. Tudo
estivera levando a isso, agora a “plenitude” chegou, e tudo o que vem depois é
mencionado como “os últimos tempos”.

Consideremos dois exemplos desse uso. Na Primeira Epístola aos Coríntios, no


capítulo 10, diz o apóstolo: “Ora, tudo isso lhes sobreveio” - isto é, aos israelitas
- “como figuras, e estão escritas para aviso nosso, para quem já são chegados os
fins dos séculos” (VA: “os fins do mundo” - versículo 11). No momento em que
o Senhor Jesus Cristo entrou neste mundo, “os fins do mundo” começaram. “Os
fins do mundo”, diz o apóstolo, já chegaram para nós. O autor da Epístola aos
Hebreus faz igual afirmação. “Havendo Deus antigamente falado muitas vezes, e
de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, falou-nos nestes últimos dias pelo
(Seu) Filho” (1:1).

Estes exemplos ajudam-nos a entender o sentido da expressão “plenitude dos


tempos”. O clímax das eras aconteceu na Encarnação. O tempo foi dividido uma
vez por todas por aquele evento. Na “plenitude dos tempos” Cristo veio. Por isso
aqui o apóstolo nos ensina que o grande plano de Deus começou a entrar em
operação no nascimento do Senhor Jesus Cristo. O que está acontecendo ná

presente hora é que este grande plano de Deus está sendo levado a efeito - “na
plenitude dos tempos”, nestes “últimos dias”, “nos fins do mundo” - e continuará
até for completado finalmente. Deus nos propiciou este conhecimento por meio
da “sabedoria” e do “discernimento”, da “prudência” que Ele nos deu. Podemos
ver que este grande plano original de Deus foi posto em operação neste mundo
pela vinda de Cristo, que ele está tendo prosseguimento e que continuará até ser
realizado completamente por Sua volta a este mundo.

Outra coisa que se nos diz é que este grande plano está sendo levado a efeito no
Senhor Jesus Cristo e por meio dEle. Paulo escreve: “De tornar a congregar em
Cristo todas as coisas, na dispensação da plenitude dos tempos, tanto as que
estão nos céus como as que estão na terra, nele” (VA). O apóstolo deu-se ao
trabalho de repetir isso, e, não se satisfazendo em dizer “em Cristo”, teve que
acrescentar “nele”. Já tivemos ocasião de salientar isso diversas vezes. E sempre
Cristo; o apóstolo fica mencionando reiteradamente o Seu nome; e o faz porque
é tudo em Cristo. O apóstolo Lhe prestava culto e adoração, e ele parece estar
nos dizendo: jamais mencionarei demasiadas vezes o Seu nome, pois tudo é
nEle. Portanto, a Ele demos toda a glória e todo o crédito - sim, a “Ele”. A
mesma nota ocorre em Colossenses, capítulo primeiro, versículo 20:
“por ele...por meio dele”. Cristo é central, é essencial, e o que quer que se chame
cristianismo e não vá repetindo o nome bendito, em última análise é uma
negação do cristianismo.

O plano é “tornar a congregar em Cristo todas as coisas”, e agora passamos a


considerar a sua natureza. Aí está o vigor e o centro da mensagem, como se vê
na Versão Autorizada inglesa (“AV”): “para que unisse todas as coisas em
Cristo”. A Versão Revista inglesa (“RV”) diz: “resumir (ou “somar”) todas as
coisas em Cristo”. A Versão Revista Padrão inglesa (“RSV”) diz: “unir todas as
coisas nele”; (ARA: “fazer convergir nele...todas as coisas”). É de se notar que
as três versões inglesas acima citadas (como também ARA), por alguma razão,
omitiram uma expressão muito importante, qual seja, “de novo”(implícita na
ARC: “tomar a congregar”). A palavra aqui empregada pelo apóstolo, e
traduzida por “resumir” ou “somar”, “unir” (“convergir”), “congregar”, no
grego é uma palavra composta que se inicia com a preposição “ana”,
que significa “de novo”. Todavia as referidas traduções a deixaram de lado. O
Grimm-Thayer Lexicon diz corretamente que ela significa

“congregar de novo”, para Si mesmo. A excelente tradução que A. S. Way fez


das Epístolas de Paulo e da Epístola aos Hebreus põe isso às claras, traduzindo
assim o versículo: “Pois o Seu propósito era re-unir todas as coisas...fazendo-as
todas uma só nele”. Congregar “de novo”; não meramente unir, mas re-unir! Não
resumir ou somar apenas, mas resumir ou somar de novo! Esta expressão
“de novo” revela o significado. Sem dúvida, aquelas outras
traduções consideram, essa idéia um ponto pacífico, porém, é algo que precisa
ser ressaltado, porquanto é só quando reparamos nisso que chegamos à doutrina
do apóstolo. A palavra utilizada por Paulo traz também a idéia de “pôr na
frente”. Não gosto da expressão; é uma gíria que depressa vai ganhando
aceitação; mas essa idéia está presente no significado da raiz da palavra que o
apóstolo empregou. Ele está dizendo que Deus vai “tornar a pôr à frente” todas
as coisas em Cristo.

Isso nos leva a considerar o que significa e o que inclui a expressão “todas as
coisas”, pois a dispensação, o plano, o propósito que está sendo levado a cabo na
hora presente e que começou com a Encarnação, é que Deus reconcilie em Cristo
todas as coisas. Isso é logo ampliado ou explicado pela frase “tanto as que estão
nos céus como as que estão na terra”. “Todas as coisas” haverão de ser re-unidas
em Cristo.

Várias idéias têm sido apresentadas para explicar essa expressão. Alguns não
hesitam em dizer que significa absolutamente todas as coisas em toda parte. Um
segundo grupo não vai tão longe, mas afirma que deverá ocorrer uma redenção
universal de todos os seres dotados de inteligência. Os desse grupo não hesitam
em dizer que tanto os homens bons como os maus, os anjos maus, e o próprio
diabo, vão ser redimidos e salvos - todos serão restabelecidos em sua relação
com Deus. Esse é o chamado universalismo; e é pena, porém está se tornando
cada vez mais popular atualmente. Segundo outro conceito, a expressão “coisas
no céu e na terra” refere-se aos judeus e aos gentios. Seu ensino é que os judeus
pertencem ao reino dos céus e ocupam posição especial; e que os gentios
pertencem à terra. Essa é uma das extravagâncias que se vêem em certa escola
de interpretação que traça uma distinção entre o reino dos céus e o reino de
Deus, apesar do fato de que essas expressões são empregadas uma pela outra nas
Escrituras. Essa escola de pensamento traças uma aguda divisão entre judeu e
gentio, e ensina que os judeus terão um lugar especial no reino de Deus.

Estarão em nível mais alto que os outros, pertencem aos céus, ao passo que os
restantes salvos pertencem à terra. Por isso os seguidores dessa escola explicam
“céu” e “terra” em termos de “judeu” e “gentio”. Outros dizem que a expressão
“todas as coisas” é uma referência a todos quantos pertencem a Deus, a todos os
remidos. “As coisas dos céus e as coisas da terra” dizem eles, referem-se
aos cristãos que já deixaram este mundo e estão na glória; já estão no céu, de
modo que “estão nos céus”, enquanto outros estarão vivendo na terra quando do
regresso de Cristo; são eles que “estão na terra”. Assim a expressão “tanto as que
estão nos céus como as que estão na terra” significa os remidos que já foram
para a glória e os remidos restantes, ou seja a totalidade dos remidos.

Certamente não podemos aceitar aquelas duas idéias universalistas, porque se as


aceitamos, significa que nos vemos contradizendo o claro ensino das Escrituras
naquelas passagens em que há clara divisão entre salvos e os não salvos, os bons
e os maus, os remidos e os perdidos. A despeito dos argumentos baseados
na idéia filosófica do amor de Deus, as Escrituras traçam a distinção definitiva
entre a salvação eterna e a destruição eterna. Não há um vestígio sequer de
evidência nas Escrituras que mostre que os anjos caídos estão de algum modo
incluídos no esquema da redenção. Por isso, rejeitamos aqueles dois primeiros
conceitos. Como já vimos, também devemos rejeitar o conceito que considera as
palavras de Paulo descritivas de judeu e gentio, porque o mesmo apóstolo ensina
aos colossenses que “não há grego nem judeu, circuncisão nem incircuncisão,
bárbaro, cita, servo ou livre” (3:11). Todas essas distinções, nesta questão da
salvação, foram-se, a parede da separação que estava no meio foi derrubada.
Todos os que estão no reino são um, e sempre serão. Há somente uma salvação -
pelo sangue de Cristo - e ninguém pode entrar no reino, senão pela fé em Cristo.
Este é o ensino universal das Escrituras. Por isso rejeitamos aquela exposição.

Aplica-se a mesma verdade à quarta possibilidade, a saber, que a linguagem de


Paulo é descritiva da totalidade dos remidos. A expressão “todas as coisas nos
céus e na terra” certamente inclui essa totalidade, mas não vai suficientemente
longe. Isso é mostrado com clareza pela passagem paralela do capítulo primeiro
da Epístola aos Colossenses (versículo 20). Opino, pois, que “as coisas que estão
nos céus” incluem os anjos bons, preservados em seu estado original, e que “as
coisas que estão na terra” incluem, não somente

os remidos que estarão na terra quando Cristo voltar, e sim também, em


acréscimo, o universo criado, incluindo a terra, os animais e as feras.

A chave disso tudo está na breve expressão “de novo”. O plano de Deus,
segundo o apóstolo Paulo, é re-unir todas as coisas em Cristo, congregá-las e
juntá-las de novo, trazê-las de volta, levar para diante, mais uma vez, todas as
coisas em Cristo. A expressão sugere imediatamente que as coisas já estiveram
outrora numa condição perfeita, entretanto não estão mais naquela condição.
Mas estarão de novo. Serão “re-unidas”.

Originariamente, todas as coisas estavam num perfeito estado de harmonia sob o


nosso Senhor Jesus Cristo, como nos é dito no capítulo primeiro da Epístola aos
Colossenses, versículos 15-19: “O qual (referindo-se ao Senhor Jesus) é imagem
do Deus invisível, o primogênito de toda a criação; porque nele foram criadas
todas as coisas que há nos céus e na terra, visíveis e invisíveis, sejam
tronos, sejam dominações, sejam principados, sejam potestades: tudo foi criado
por ele e para ele. E ele é antes de todas as coisas, e todas as coisas subsistem
por ele. E ele é a cabeça do corpo, da igreja: é o princípio e o primogênito dentre
os mortos, para que em tudo tenha a preeminência. Porque foi do agrado do Pai
que toda a plenitude nele habitasse”.
Aí temos um relato da condição original da criação. No versículo 10 do capítulo
2 de Colossenses lemos: “Também nele (em Cristo) estais aperfeiçoados. Ele é o
cabeça de todo principado e potestade”(ARA).1 Termos como “principado” e
“potestade”, “tronos” e “dominações” sempre se referem aos seres angélicos, aos
poderes angélicos, aos grandes poderes dos céus. Por isso o que se nos diz é que
o Senhor Jesus Cristo era o cabeça de todos esses poderes, como também era o
cabeça do universo. Tudo quanto foi feito e criado, foi feito e criado nEle, por
Ele, por meio dEle e para Ele; não somente o mundo e os animais, mas todos os
anjos, os tronos, os principados e as potestades. Além disso, havia
perfeita harmonia em todos esses domínios. O Senhor Jesus Cristo estava

sobre todos - sobre os anjos, sobre todas as potestades, autoridades e


dominações; e também sobre o mundo, os animais e o fruto da terra. O homem
foi feito senhor da criação, sobre todos os animais e sobre a natureza inanimada.
Todos eram absolutamente perfeitos e estavam num estado de inteira harmonia e
unidade. Tudo funcionava harmoniosamente, descendo do grande Cabeça, e tudo
agia ascendendo de volta ao Cabeça Supremo, o Senhor Jesus Cristo. Mas, que
lástima! A unidade e a harmonia não tiveram continuidade; e a presente situação
do mundo deve-se a esse fato. A harmonia foi destruída. Primeiro houve uma
revolta, uma rebelião, no próprio céu. O diabo rebelou-se e caiu, e grande
número de anjos o seguiu e caiu com ele. Imediatamente houve discórdia,
mesmo no céu. Há uma declaração muito significativa no livro de Apocalipse,
capítulo 12, que lança grande luz sobre o assunto que estamos considerando. No
versículo 7 daquele capítulo lemos: “E houve batalha no céu”. Discórdia no céu!
Guerra no céu! “Miguel e os seus anjos batalhavam contra o dragão, e batalhava
o dragão e os seus anjos.” Mas a discórdia não se restringiu ao céu. O anjo
caído, a saber, o diabo, satanás, veio, tentou o homem, e este caiu.
A conseqüência foi discórdia entre os homens - contendas,
brigas, desentendimento, guerra, derramamento de sangue, assassinatos, ciúmes,
inveja, e tudo quanto se lhe seguiu.

Lembremo-nos, porém, de que até a própria criação sofreu as conseqüências do


pecado. Paulo, no capítulo 8 da sua Epístola aos Romanos, afirma que “a criação
ficou sujeita à vaidade, não por sua vontade, mas por causa do que a sujeitou, na
esperança ...” (20). Quando o homem caiu, a terra foi amaldiçoada, e daí
por diante a história da criação sempre foi, “A natureza vermelha nos dentes e
nas garras”, espinhos e cardos, problemas, enfermidades, pestilências. A
harmonia deixou de existir; a perfeição original desvaneceu-se e desapareceu.
Essa é a situação do mundo, em conseqüência da queda dos anjos, da qual
decorreu a queda do homem.

Agora estamos em condições de ver a doutrina deste versículo que estamos


estudando. O segredo místico que nós, como cristão, temos permissão para
compartir é que Deus finalmente restabelecerá a harmonia original, e re-unirá
todas as coisas em Cristo. Cristo está sobre todos, e a antiga harmonia será
restabelecida. E nos é dito como isso vai acontecer. Com relação aos homens já
observamos

que isso acontece como resultado da redenção mediante o sangue de Cristo. A


reconciliação com Deus, e a reconciliação de uns com os outros é pelo Seu
sangue, por Sua graça. Ele “fez a paz”, “a parede de separação que estava no
meio” foi retirada. A velha inimizade, juntamente com todas as divisões, foi
abolida. Essa, diga-se de passagem, é mais uma razão para rejeitarmos a idéia de
uma perpétua distinção entre os gentios e os judeus em Cristo.

Tenhamos o cuidado de observar que estas bênçãos aplicam-se unicamente aos


que crêem no Senhor Jesus Cristo. Não se promete harmonia aos outros; estes
são enviados para a “destruição eterna”; mas eles estarão fora do cosmos, por
assim dizer; estarão fora da harmonia e não a perturbarão, eternamente. Quanto
aos anjos caídos, é evidente que não há esperanças para eles. Estão reservados
“em prisões eternas” nas trevas, até vir a sua condenação final (2 Pedro 2:4,
Judas 6). Satanás também será lançado no “lago de fogo”, onde ele e os seus
seguidores serão atormentados para sempre (Apocalipse 20:10). Quanto aos
anjos bons, as Escrituras nos ensinam que eles entram no bom propósito de
Deus. No livro de Apocalipse, capítulo 5, é-nos dito que não somente os santos
e remidos cantam os louvores do Cordeiro que uma vez foi morto, mas também
os anjos - “milhões de milhões e milhares de milhares” - e os animais e os
anciãos se juntarão aos santos no mesmo coro. Isso faz parte da harmonia que
vai ser restaurada.

A mesma idéia aparece na Epístola aos Hebreus, capítulo 12, onde se nos diz
que, como cristãos, já chegamos “ao monte de Sião, e a cidade do Deus vivo, à
Jerusalém celestial, e aos muitos milhares de anjos; à universal assembléia e
igreja dos primogênitos, que estão inscritos nos céus, e a Deus, o juiz de todos, e
aos espíritos dos justos aperfeiçoados...”. “Muitos milhares de anjos”? Eles são
parte integrante da harmonia; não é que eles são redimidos (eles jamais caíram),
porém estão sob a chefia de Cristo e O adoram e Lhe prestam serviço. Eles estão
conosco agora, e estarão conosco participando da glória eterna.
A terra também está envolvida. Diz-nos o apóstolo Pedro, em sua Segunda
Epístola, capítulo 3, que virá o dia em que haverá destruição da presente terra e
do mundo pelo fogo: “Os elementos, ardendo, se desfarão”. O mal e o pecado
serão queimados e eliminados do universo, e haverá “novos céus e nova terra,
em que habita a justiça” (versículos 12 e 13). O apóstolo Paulo, igualmente, no
capítulo 8 da Epístola aos Romanos, diz-nos que “toda a criação

geme e está juntamente com dores de parto até agora”. Ela está esperando “a
manifestação dos filhos de Deus”. A criação será envolvida na restauração de
todas as coisas: ela “será libertada da servidão da corrupção, para a liberdade da
glória dos filhos de Deus” (versículos 19-21). O autor da Epístola aos Hebreus se
lhes junta e diz, em seu capítulo 2: “Porque não foi aos anjos que sujeitou
o mundo futuro, de que falamos. Mas em certo lugar testificou alguém dizendo:
que é o homem, para que dele te lembres? Ou o filho do homem, para que o
visites? Tu o fizeste um pouco menor do que os anjos, de glória e de honra o
coroaste, e o constituíste sobre as obras de tuas mãos: todas as coisas lhe
sujeitaste debaixo dos pés. Ora, visto que lhe sujeitou todas as coisas, nada
deixou que lhe não esteja sujeito. Mas agora ainda não vemos que todas
as coisas lhe estejam sujeitas; vemos, porém, coroado de glória e de honra
aquele Jesus que fora feito um pouco menor do que os anjos, por causa da paixão
da morte”.

Cristo nos representa e nós estamos nEle, e assim vamos ser de novo elevados à
posição de “senhores da criação”, e todas as coisas serão colocadas sob nós. A
antiga harmonia original será restabelecida. Isaías fala disso profeticamente. Ele
viu que viria o dia em que “morará o lobo com o cordeiro, e o leopardo com
o cabrito se deitará, o bezerro e o filho do leão e a nédia ovelha viverão juntos, e
um menino pequeno os guiará. A vaca e a ursa pastarão juntas, e seus filhos
juntos se deitarão; e o leão comerá palha como o boi. E brincará a criança de
peito sobre a toca do áspide, e o já desmamado meterá a sua mão na cova do
basilisco. Não se fará mal nem dano algum em todo o monte da minha santidade,
porque a terra se encherá do conhecimento do Senhor, como as águas cobrem o
mar” (Isaías 11:6-9).

A harmonia perfeita que será restabelecida será harmonia no homem e entre os


homens. Harmonia na terra e na criação animal! Harmonia no céu, e tudo sob
este bendito Senhor Jesus Cristo, que será o Cabeça de todos! Todas as coisas
voltarão a estar unidas nEle. E, maravilha das maravilhas, maravilhoso acima de
comparação, quando tudo isso acontecer, nunca mais será desfeito. Tudo
estará re-unido nEle por toda a eternidade. Essa é a mensagem; esse é o plano de
Deus. Esse é o mistério que nos foi revelado.

Mais uma vez devo fazer algumas perguntas. Você conhece estas coisas? Está
disposto a dedicar tempo a estas coisas - a ouvidas ou a ler sobre elas? Você sabe
que estas coisas são tão maravi-

lhosas que jamais ouvirá nada mais grandioso, nem neste mundo nem no mundo
por vir? Você se dá conta de que tem parte nestas coisas? Como eu disse no
início, não sei se está para haver outra guerra mundial ou não; mas, haja guerra
ou não, como cristãos estamos neste plano de Deus. Não se poderá inventar
bomba nenhuma, não se poderá cultivar e usar bactérias, não se poderá pôr em
uso armas químicas ou gases que possam fazer a mínima diferença para estas
coisas. Esse é o plano de Deus, como nos é revelado nas Escrituras, e o plano de
Deus será levado a cabo; e se eu e você estamos em Cristo, estamos envolvidos
nesse plano. Fomos destinados a ser elevados e restaurados ao que o homem
estava destinado a ser. Seremos “senhores da criação”. “Não sabeis vós que os
santos hão de julgar o mundo... (e) os anjos?”, diz Paulo aos Coríntios (1
Coríntios 6:2-3). Tratemos de decidir-nos a passar menos tempo lendo jornal e
mais tempo lendo a Bíblia.

Não permita Deus que façamos mau uso das Escrituras reduzindo-as ao nível das
nossas idéias ou dos eventos contemporâneos. Tenha em vista o propósito
supremo, o grande e glorioso propósito de Deus. Não seja exageradamente
particular em sua interpretação histórica contemporânea, não desperdice o seu
tempo em tentativas de fixar “tempos e estações”. O que importa é o plano de
Deus, o esquema eterno de Deus, esta “dispensação”, esta “economia”, este
propósito de que fazemos parte e que está sendo efetuado desde o princípio da
“plenitude dos tempos”. Pense na restauração final daquela gloriosa harmonia
vindoura, quando com todo o nosso ser louvaremos “o Cordeiro que foi morto”.
Viva por essa gloriosa restauração. O Cordeiro nos redimiu. Cantemos: “Ao que
está assentado sobre o trono, e ao Cordeiro, sejam dadas ações de graças, e
honra, e glória, e poder para sempre” (Apocalipse 5:13). Venham guerras,
venham pestes, seja solto o inferno “nada nos poderá separar do amor de Deus,
que está em Cristo Jesus nosso Senhor!” Essa é a mensagem cristã para hoje. Dê
graças a Deus por ela, e regozije-se nela.

“NÓS... TAMBÉM VÓS”


“Nele, digo, em quem também fomos feitos herança, havendo sido
predestinados, conforme o propósito daquele que faz todas as coisas, segundo o
conselho da sua vontade; com o fim de sermos para louvor da sua glória, nós,
os que primeiro esperamos em Cristo; em quem também vós estais, depois que
ouviste a palavra da verdade, o evangelho da vossa salvação; e, tendo nele
também crido, fostes selados com o Espírito Santo da promessa. 0 qual é o
penhor da nossa herança, para redenção da possessão de Deus, para louvor da
sua glória.” - Efésios 1:11-14

Evidentemente, não se pode tratar da declaração completa contida nestes


versículos numa só ocasião; mas, antes de considerarmos as declarações
separadamente, é bom tratar da declaração como um todo. É só quando temos
claro entendimento do tema geral, e o captamos, que podemos apreciar e fruir
verdadeiramente as particularidades. Aqui estamos focalizando o fim da grande
sentença que, como vimos, inicia-se no princípio do versículo 3 e vai até o fim
do versículo 14. Essa sentença é, seguramente, uma das maiores da Bíblia
inteira. É óbvio que ela não termina no versículo 10, porque o apóstolo continua
e diz: “Nele, digo, em quem também”. “Quem” refere-se a alguém já
mencionado e “também” nos fala de algo adicional. É importante que tenhamos
em nossas mentes a sentença toda quando consideramos alguma parte dela.

O apóstolo, lembremo-nos, está desdobrando o grande e eterno propósito de


Deus. Esse é declarado, em sua essência, no versículo 10. O mundo se interessa
pela política e pelas manchetes dos jornais; mas aqui estamos olhando para algo
que vai além disso tudo, algo que está desdobrando e continuará a desdobrar-se,
aconteça o que acontecer ao nível do mundo. Não estamos dizendo que o que
acontece no nível inferior não tem nenhuma importância, porém o plano de Deus
é imensamente maior e mais grandioso. Também, o plano de Deus é certo, bem
como a sua realização, ao passo que os planejamentos do mundo são incertos. O
apóstolo nos dissera que Deus, por Seu Espírito Santo, deu-nos a “sabedoria” e
a “prudência” sem as quais estas coisas permaneceriam obscuras para

nós e pareceriam totalmente distantes da vida. Todavia, uma vez iluminados,


tudo fica claro para nós, pois vemos que Deus está levando a efeito o Seu plano
e que nós e todo o nosso destino eterno estão envolvidos nele. Tendo-nos dito
que o plano é o restabelecimento da harmonia, o apóstolo prossegue e diz-nos
algo sobre a maneira pela qual Deus o está efetuando. Esse é o tema que agora
ele toma no versículo 11. Temos examinado o plano em geral; agora ele nos leva
aos pormenores.
O próprio fato de que Paulo estava escrevendo esta carta aos cristãos efésios era
em si uma prova de que o plano estava sendo executado. Era um fato espantoso
que um homem como Saulo de Tarso, “hebreu de hebreus”, escrevesse uma carta
aos efésios gentios. Ele faz isso porque fazê-lo é uma parte do desdobramento,
da realização deste grande plano de Deus. A grande ilustração que o mundo vira
até então da execução do plano de Deus de re-fazer todas as coisas, é o que se
deve ver na Igreja Cristã, e esse é o grande tema desta Epístola particular. Ela é
uma das chamadas “Epístolas sobre a Igreja”, e nela o apóstolo nos propicia o
seu mais rico ensino relacionado com a natureza e o caráter da Igreja Cristã.
A Igreja é uma ilustração, a suprema ilustração, de muitas maneiras, no tempo,
do plano gigantesco e cósmico de Deus de restaurar a harmonia em todos os
domínios e esferas.

Não podemos senão notar de passagem a maneira interessante pela qual Paulo
expõe os seus temas. Nada é tão absorventemente interessante como observar a
sua mente em ação. Todo escritor tem as suas características particulares, o seu
estilo particular. Todo aquele que está familiarizado com o Novo Testamento
imediatamente pode dizer se um dado parágrafo vem de Pedro ou de Paulo ou de
João. E as características do apóstolo Paulo como escritor podem ser vistas com
muita clareza nos versículos que estamos examinando. Vêem-se nos próprios
termos que ele introduz. Paulo nunca se contenta em, dizer uma coisa uma só
vez; tem que repeti-la. Aqui o vemos dizer; “Em quem também fomos feitos
herança” (VA; “...Obtivemos herança”). Mas ele não se satisfaz com a afirmação
de que nós fomos feitos herança; diz-nos como foi que isso aconteceu -
“havendo sido predestinados, conforme o propósito daquele que faz todas as
coisas, segundo o conselho da sua vontade”. Ele já tinha utilizado expressões
similares, contudo está disposto a continuar a utilizá-las.

Chamo a atenção para este ponto, e lhe dou ênfase, por esta boa razão, que esse
desenvolvimento é uma boa maneira de provar a nossa apreciação da fé cristã.
Paulo não pode dizer estas coisas sem espantar-se e admirar-se. Seu interesse por
elas não era meramente intelectual; ele não era apenas mestre; era
pregador, evangelista, pastor. Ele não pode considerar estas coisas de
maneira simplesmente desligada e objetiva. Por isso, quando diz: “fomos feitos
herança”, fica tão admirado com esse fato que parece indagar como foi que nos
aconteceu, e nos dá a única explicação possível, a saber, que foi “segundo o
conselho da vontade de Deus”. Uma palavra parece incendiá-lo, e ele vê nela
todo o panorama da salvação.
Naturalmente, os pedantes consideram isso um mau estilo. O apóstolo, dizem,
não era um bom estilista literário; ele não tinha um estilo castiço e polido; ele
enfeita, multiplica adjetivos; é repetitivo, amontoa epítetos sobre epítetos. As
autoridades o acusam do uso de “anacolutos”, o que significa que, tendo iniciado
uma linha de argumentação, permite que uma palavra o afaste, e ele se vê
tão arrebatado e posto em fogo por ela que interpõe louvores a Deus. Parece
esquecer o que ia dizer, e depois retoma àquele ponto. As vezes, porém, ele não
volta, e deixa inacabada a sentença. O que estou sugerindo é que os seus
“anacolutos” são uma indicação da sua espiritualidade. Ele não era um mero
litterateur,2 um mercenário; escrever não era o seu ganha-pão. Ele era um
evangelista, um apóstolo de Cristo e gostava de escrever a respeito de Cristo e
das coisas de Cristo. A sintaxe e a composição de sentenças, não eram o seu
principal interesse. A verdade era o objeto do seu interesse; e nestes versículos
ele a despeja sobre nós.

Estes catorze versículos, como já lhes fiz lembrar, são a introdução da Epístola
toda, e esta pode ser comparada com uma espécie de abertura que, numa ópera
ou numa sinfonia, apresenta os diversos temas. O apóstolo nos lembra o fato de
que Deus está executando este grande plano de re-unir, de levar para diante em
Cristo todo o cosmos, e agora ele começa a dizer-nos como Deus está fazendo
isso. Notem, primeiro, duas frases, uma no começo do versículo 11 e a outra no
começo do versículo 13. “Em quem também obtivemos uma herança”(VA), e
“Em quem também vós”.

Nestas duas frases Paulo nos mostra o início da execução deste grande plano.
Naturalmente, é preciso que esteja claro para nós qual a exata referência de
“Nós”, a quem ele se refere no versículo 11, e de “Vós”, no versículo 13. Há os
que dizem que “Nós” é apenas uma espécie de “Nós” editorial; que o apóstolo
está se referindo a si mesmo, mas, em vez de dizer “Eu”, diz “Nós”. Há outros
que dizem que “Nós” inclui judeus e gentios, todos os cristãos,
independentemente das suas origens. No entanto, certamente ambas as idéias são
insustentáveis.

Em minha opinião, “Nós” está em contraste com “Também vós” - Nós e Vós.
Está bem claro que “Vós”, no versículo 13, é uma referência aos gentios, aqui
representados pelos efésios e pelas diversas outras igrejas às quais esta carta
provavelmente foi enviada. Por isso devemos insistir em dizer que “Nós”, aqui é
uma referência aos judeus. Há mais um argumento, o qual põe um fecho nesta
exposição. Notamos que, concernente a este “Nós”, ele diz no versículo 12:
“Com o fim de sermos para louvor da sua glória, nós, os que primeiro esperamos
em Cristo” (ARC, semelhante à Versão Autorizada inglesa). A Versão Revisada
inglesa (“ERV”) diz: “Nós, que anteriormente havíamos esperado em Cristo”
(semelhante a ARA). Isso prova que “Nós”, aqui, é uma referência aos judeus.
Se vocês tomarem o texto como o vemos na Versão Autorizada, onde temos. “Os
que primeiro confiamos em Cristo”, a ênfase é ao fato de que os judeus creram
em Cristo cronologicamente antes de os gentios terem começado a fazê-lo. Eles
creram primeiro, e então os outros os seguiram. O nosso Senhor dissera aos Seus
apóstolos que eles deveriam ser Suas testemunhas “tanto em Jerusalém como em
toda a Judéia e Samaria, e até os confins da terra” (Atos 1:8). Historicamente, o
fato é que os judeus foram os primeiros cristãos. Ou, tomando a Versão Revista
inglesa, que diz: “Nós, que anteriormente havíamos esperado em Cristo”, a
referência é ao fato de que em toda a dispensação do Velho Testamento, os
judeus esperavam a vinda do Messias. De qualquer forma, ainda é
uma referência aos judeus.

A ênfase dada pelo apóstolo recai em “Nós” e em “Vós” -Nós, judeus, Vós,
gentios - em vista do assombroso fato de que eles foram aproximados, foram
feitos um em Cristo. “Em quem também obtivemos herança ... também vós” -
nós estamos juntos nisso. Este, como já sugeri, não é somente o grande tema
desta Epístola particular; é o tema de todo o Novo Testamento e,
particularmente, das

Epístolas neotestamentárias. É preeminentemente o tema desta Epístola em


especial. Vê-se isto mais explicitamente no capítulo 2. Paulo o repete muitas
vezes, e não se cansa de fazê-lo. No capítulo 3 ele afirma que lhe fora confiada a
dispensação para revelar a verdade, “o mistério de Cristo, o qual noutros séculos
não foi manifestado aos filhos dos homens, como agora tem sido revelado”.
Deus agora o revelou “pelo Espírito aos seus santos apóstolos e profetas; a saber,
que os gentios são co-herdeiros, e de um mesmo corpo” (versículos 2-6).

O apóstolo nunca deixou de admirar-se e de emocionar-se com isso. Assim, no


capítulo 4 ele torna a dizer a mesma coisa. Recordamos também a frase
interessante que ele emprega quando escreve aos Romanos, onde lhes diz que o
que o deixava mais ufanoso era ser ele o “apóstolo dos gentios”. “Glorificarei o
meu ministério”, diz ele (Romanos 11:13). Isso produzira uma revolução na sua
vida. Sabemos que judeus estreito, preconceituoso e nacionalista ele fora, e
como se orgulhava da sua nacionalidade. Isso o tornara intolerante, e para ele os
gentios não passavam de cães, de profanos. Mas agora ele é o “apóstolo dos
gentios”. E nesta Epístola aos gentios efésios, ele tem que salientar este fato
maravilhoso que Deus fez acontecer. O grande plano de Deus já está em
operação; ele faz parte desse plano, como também os efésios!

Paulo começa a sua Epístola aos Romanos com a mesma nota: por Cristo
“recebemos a graça e o apostolado, para a obediência da fé entre todas as
gentes” (1:5). De novo: “Um mesmo é o Senhor de todos, rico para com todos os
que o invocam” (Romanos 10:12), venham estes de onde vierem. Ainda, na
Epístola aos Gálatas: “Não há judeu nem grego; não há servo nem livre; não há
macho nem fêmea” (3:28). Foram-se as mais antigas divisões, e perpetuar
tais distinções é uma negação do evangelho de Jesus Cristo. Esse é o ensino, e
essa é a glória dele. Esta foi uma coisa assombrosa que aconteceu. Na mesma
Epístola aos Gálatas ele diz: “Se sois de Cristo (quer judeus quer gentios), então
sois descendência deAbraão, e herdeiros conforme a promessa” (3:29). Temos
que livrar-nos de todas as idéias carnais, materialistas, nacionais. Tudo isso
acabou; o que vale aos olhos de Deus é a semente espiritual em Abraão e
em Cristo. Existe uma nova nação, que consiste do povo de Deus; nós, cristãos,
somos o povo de Deus. Este é o novo caminho, o grande tema do Novo
Testamento, da nova dispensação; tudo mais foi abolido. Foi propósito de Deus
usar temporariamente os judeus; mas

agora Ele tem algo maior e mais grandioso, que inclui tanto os judeus como os
gentios.

Esse é o argumento do apóstolo. Se formos à sua Epístola aos Colossenses, nós o


veremos lá; nós o veremos em toda parte. Talvez seja certo dizer que naquela
peça de autobiografia que consta no capítulo 3 da Epístola aos Filipenses o
apóstolo expressa a matéria com maior clareza (versículos 4-14). Ele se condena
pelo que fora e ridiculariza todo o seu antigo e louco orgulho e
jactância. Contudo, o que é realmente importante é ter claro entendimento sobre
como isso foi feito, como foi que Deus o fez acontecer. O apóstolo no-lo diz de
maneira particularmente interessante e arrebatadora; e nos fica ainda mais
interessante quando nos lembramos de como o mundo é, com todos os seus
entrechoques, conflitos, divisões e tensões. A luz da verdade bíblica e tendo o
mundo como pano de fundo, quão maravilhoso é contemplar este plano de Deus
desenrolado pelo apóstolo! Ao mesmo tempo é particularmente interessante
observar que o caminho de Deus em Cristo é tão diferente daquilo que
freqüentemente passa por cristianismo na hora presente, com toda a sua ênfase à
aplicação política e social do evangelho.
O meio pelo qual Deus restaura a harmonia e a unidade é produzir cristãos, e
portanto Paulo nos diz algumas coisas acerca do cristão. Ele nos oferece uma
descrição perfeita do cristianismo e, segundo o meu entendimento, diz-nos cinco
coisas a respeito dele.

A primeira coisa é que o que faz de nós cristãos é que estamos “em Cristo”. Não
há esperança de unidade fora do cristianismo. Nunca haverá verdadeira unidade
entre os homens, enquanto os homens não forem cristãos. Não se pode conceber
duradoura unidade e harmonia, não há esperança de restauração de acordo com
o que Deus fez originariamente, exceto quando os homens são transformados em
cristãos. E só somos cristãos quando estamos “em Cristo”.

Em segundo lugar, há certas coisas que verdadeiramente nos caracterizam como


cristãos porque estamos “em Cristo”. Paulo nos diz quais são.

Em terceiro lugar, numa exposição que mostra tanto o lado de Deus como o do
homem, Paulo nos dá uma explicação da maneira pela qual passamos a
participar destas bênçãos.

Em quarto lugar, ele nos mostra a garantia do fato de que temos estas bênçãos, e,
ainda mais importante, a garantia do fato de que

nunca as perderemos. O Espírito Santo é o Selo até a “redenção da possessão de


Deus”. De uma só vez e ao mesmo tempo Ele a sela para nós e nos diz que já
estamos no plano.

Em quinto lugar, e finalmente, o apóstolo ressalta que o supremo objetivo de


todas as coisas é a glória de Deus - “para louvor da sua glória” (versículos 12,
14).

A primeira coisa, então, é que o que reconcilia os judeus e os gentios - e a única


coisa que os reconcilia - é que se tornem cristãos, “em Cristo”. Ser cristão é estar
numa nova relação com Cristo, é estar “em Cristo”. Não é que você tenha
nascido num determinado país, ou que seus pais ou avós eram cristãos.
Cristianismo significa estar “em Cristo”. Noutras palavras, Deus reconcilia os
homens introduzindo-os numa nova relação; é pura questão de relações. Todas as
dificuldades do mundo, entre as nações, entre os indivíduos, brotam de um
fracasso nalgum ponto da esfera das relações.

Jamais haverá ilustração mais perfeita disso tudo do que esta extraordinária
descrição de judeus e gentios. Entre eles havia aquela parede de separação no
meio; o judeu se via de certa maneira, e o mesmo fazia o gentio. No entanto as
relações entre eles eram tão más porque cada um fazia de si e da sua posição um
deus, e havia um conflito entre os seus respectivos deuses. O judeu orgulhava-se
de pertencer ao povo de Deus e de possuir a lei. A lei divina tinha sido dada à
sua nação. Os judeus não paravam para indagar se eles guardavam a lei, se eles a
honravam; isso não importava, o importante era possuir a lei. Os gentios nunca
tiveram a lei; não lhes fora dada. Os judeus desprezavam todos os que esta-vam
fora da comunidade de Israel considerando-os como cães, “sem Deus no
mundo”.

Mas esse tipo de atitude não se restringia aos judeus. Era igualmente
característica dos gentios, dos gregos, por exemplo. Os gregos tinham uma
grande herança de cultura e de capacidade intelectual; e tinha havido um período
espantosamente florescente na história da mente humana quando os principais
filósofos gregos -Platão, Sócrates, Aristóteles, e outros - examinaram a fundo
os problemas da vida e elaboraram as suas teorias e traçaram os seus planos para
a Utopia. Nenhum outro povo tinha feito isso; eles eram uma raça à parte, um
povo único. Os judeus e todos os demais eram para eles bárbaros. Assim se
orgulhava o grego de sua superioridade.

Dessa maneira judeus e gregos entrevam em choque e se combatiam, como


sempre fizeram, e como continuam fazendo no mundo moderno. Era essa, pois, a
situação; havia essa divisão da humanidade, essa “parede de separação que
estava no meio”, entre eles. Hoje falamos de “cortinas” - de ferro, de bambu -
mas elas são, na realidade, paredes que foram construídas cuidadosamente por
ambos os lados. Cada qual cuida de manter a parede do seu lado. Essa é a
verdade quanto à vida do mundo atual, com todos os seus conflitos, divisões e
infelicidades.

A maneira cristã é a única de lidar com tal situação. Isto, porém, não significa
como tanta gente ensina, que o que é necessário é aplicar o ensino de Cristo aos
problemas modernos, e que o dever da Igreja é dizer às pessoas como portar-se
de maneira cristã e como aplicar os princípios cristãos. Não é esse o ensino de
Paulo. Não há maior heresia, em certo sentido, do que esperar, conduta cristã de
pessoas não cristãs. Por que deveriam portar-se de maneira cristã? Elas não
concordam com o ensino cristão e não o aceitam. Ninguém pode viver a vida
cristã sem primeiro tornar-se cristão. O apóstolo deixa isso bem claro no capítulo
2 da nossa Epístola, onde ele diz: “Não vem das obras, para que ninguém se
glorie. Porque somos feitura sua, criados em Cristo Jesus para as boas
obras” (versículos 9-10). Temos que ser “criados em Cristo”, antes de podermos
fazer boas obras; temos que estar vivos, antes de podermos agir. Um morto não
pode agir, e todos os que não estão em Cristo estão “mortos em ofensas e
pecados”. Eles não podem pôr em execução o ensino cristão, e nunca o fizeram.

Dou ênfase a isso porque às vezes é uma pedra de tropeço para os cristãos fracos
na fé, e certamente é uma pedra de tropeço para muitos que estão fora da igreja.
A dificuldade se apresenta da seguinte maneira: alguém nos diz: não posso crer
no seu cristianismo; ele tem sido pregado e ensinado durante quase dois mil
anos, e, todavia, veja o mundo! “Se a sua mensagem é certa” dizem muitos,
“então, por que o mundo não está melhor do que é?” A resposta é que o
cristianismo verdadeiro nunca afirmou que o mundo se tornaria cada vez melhor
dessa maneira, pois ele não é um ensino que deve ser aplicado pelos homens
como eles são. Só funciona quando os homens estão juntos “em Cristo”, numa
nova relação.

Vejamos como foi que isso aconteceu. Que foi que aproximou Paulo e os
efésios? Que foi que levou o judeu e o gentio a dobrar juntos os seus joelhos
diante de Deus e orar em um só espírito?

Cristo é a resposta. Cristo veio, viveu, ensinou, morreu e ressuscitou pelo judeu
e pelo gentio igualmente, pois o judeu não tinha guardado a lei mais do que o
gentio, e foi condenado pela mesma lei da qual se orgulhava. Quando Paulo,
judeu, enxergou o verdadeiro significado da lei e o seu caráter espiritual, e
enxergou principalmente o significado da cruz, ele viu que “todo mundo
era condenável diante de Deus”, que “não há um justo, nem um sequer”. O judeu
não era melhor que o gentio. “Todos pecaram e destituídos estão da glória de
Deus” (Romanos 3:9-23). O judeu não é superior ao grego; o grego não é
superior ao judeu. Todos eles rastejam no pó, no mais completo fracasso, e são
todos pecadores aos olhos de um Deus santo. Estão todos unidos na
condenação e no pecado. Arranca-se o orgulho de ambos, e eles são
esmagados no solo. Não há nada do que um deles possa gabar-se contra o outro;
a situação deles é de igual desamparo.

Mas então o evangelho prossegue e lhes diz que ambos podem ser redimidos e
reconciliados com Deus e um com o outro pelo sangue de Cristo. Unicamente
porque Cristo Se fez responsável pela culpa e pelo fracasso deles, e morreu por
eles, é que eles podem ter esta reconciliação; e ambos a recebem exatamente da
mesma maneira. Não é a lei que aproxima alguém dessa reconciliação; não é a
filosofia que o faz; é Cristo que introduz a ambos. Eles são iguais em todos os
pontos. Ambos também necessitam igualmente de força e poder para levar
adiante esta nova vida na qual foram introduzidos; por isso é dado a eles o
mesmo Espírito Santo, é-lhes dada a mesma nova natureza. Cristo está neles e
eles estão em Cristo . É tudo “nele”, e tudo provém dEle, e todos eles desfrutam
essa bênção juntos. Foram criados de novo, nasceram de novo, “em Cristo”. “Em
que nós...em quem vós...” (Efésios 1:11, 13).

Em grande parte a Igreja está desperdiçando o seu tempo falando em política e


imaginando que, se você der às pessoas a ética cristã e concitá-las a praticá-las,
os problemas do mundo serão resolvidos. Não se pode fazer isso: a regeneração
é essencial. Deus torna a produzir esta harmonia final pela regeneração, por uma
nova criação, novos homens num mundo novo - “novos céus e novâ terra, em
que habita a justiça”. Esse é o método de Deus. Somente quando estivermos
todos “em Cristo” é que poderemos ser reconciliados. Tornamo-nos membros de
maneira diversificada do Seu corpo. “Vós sois o corpo de Cristo, e seus
membros em particular”, pelo que o olho não diz ao pé, “Não tenho necessidade
de ti”, nem

a mão fala desse modo a qualquer outra parte do corpo. Todas são essenciais (1
Coríntios 12:14-27). Essa é a descrição. Todos um -não em Cristo como mestre,
mas vital, espiritual e misticamente membros do Seu corpo reunidos nEle pelo
Espírito Santo.

A segunda questão que temos de considerar é o que nos qualifica


verdadeiramente como cristão por estarmos “em Cristo”. Paulo expõe isso de
maneira muito interessante dizendo: “Em quem também nós obtivemos uma
herança”. E isso que vem expresso na Versão Autorizada inglesa, mas aVersão
Revista inglesa (“ERV”) (à semelhança de Almeida) diz: “Em quem também
fomos feitos herança”. Assim é que as duas versões diferem nesse ponto.
A Versão Padrão Revista (“RSV”) é lamentavelmente fraca, tendo simplesmente
a palavra “designados”, e assim perde o rico sentido da palavra que o apóstolo
utilizou. De fato ele usou uma palavra muito interessante e antiga, e este é o
único lugar em que ela é empregada no Novo Testamento. É uma palavra que
traz o sentido e comunica a idéia de uma herança obtida lançando-se ou tirando-
se a sorte. A diferença das traduções que se acham nas versões Autorizada
(“AV”) e Revistas (“ERV” e “RSV”) deve-se ao fato de que a palavra foi
utilizada na voz passiva; foi por se impressionarem com isso que os revisores
usaram a palavra “herança” em vez de “patrimônio”. Posto que a bênção descrita
não é resultado de algo que fizemos - na verdade somos passivos - eles
traduziram “feitos uma herança”. Mas certamente estavam errados. Se se
tivessem lembrado do contexto, em vez de concentrar-se unicamente na palavra,
nunca teriam caído nesse erro. Uma tradução melhor seria, “fomos feitos
proprietários, ou herdeiros por sorteio”; ou “foi-nos doada uma herança por
sorteio”.

Insisto nisso, e digo que aVersão Autorizada inglesa está muito mais perto da
verdade. E pela seguinte razão: no versículo 14 o apóstolo fala definida e
explicitamente sobre herança - “O qual é o penhor da nossa herança, para
redenção da possessão de Deus” (VA: “para redenção da possessão adquirida”).
E evidente que é certo dizer que os cristãos são herança de Deus. Paulo mesmo
diz isso no versículo 18, porém aqui ele não está salientando essa verdade, mas
antes a nossa herança. O que ele diz aqui é que o judeu e o gentio são feitos um,
não somente porque tiveram os seus pecados perdoados da mesma maneira,
como também eles são juntamente herdeiros da mesma herança. “Nós”
obtivemos uma parte dela, diz Paulo, e “vós” obtivestes uma parte; estamos
nisso juntos,

somos “co-herdeiros”.

Parece claro que é isso que o apóstolo está dizendo aqui. Como já lhes fiz
lembrar no capítulo 3 ele diz que a mensagem especial a ele confiada era que os
gentios deveriam ser “co-herdeiros, e de um mesmo corpo”. De fato ele diz a
mesma coisa no capítulo 2, versículos 12 e 13 - “Que naquele tempo estáveis
sem Cristo, separados da comunidade de Israel, e estranhos aos concertos da
promessa, não tendo esperança, e sem Deus no mundo. Mas agora em
Cristo Jesus, vós, que antes estáveis longe, já pelo sangue de Cristo chegastes
perto” e vos tornaste membros da “família de Deus” (versículo 19). Agora eles
estão na mesma família.

Em Cristo , o judeu e o gentio não somente estão juntos e são co-herdeiros; ainda
mais maravilhoso, são co-herdeiros com Cristo. Essa é a declaração que o
apóstolo faz em sua Epístola aos Romanos , capítulo 8, versículo 17 - “E, se nós
somos filhos, somos logo herdeiros também, herdeiros de Deus e (portanto) co-
herdeiros de Cristo” (ou, “com Cristo” - VA e ARA). Estamos “nEle”,
pertencemos a Ele, e, portanto, somos co-herdeiros com Ele - co-herdeiros uns
com os outros e co-herdeiros com Ele. Tudo é e está em Cristo.
Se captássemos isso como devíamos, não somente seriamos o povo mais feliz na
face da terra, mas também nos regozijaríamos “com gozo inefável e glorioso”.
Isso porque, com Paulo, compreenderíamos que temos interesse em tudo isso,
temos parte nisso; pertencemos ao povo que vai participar disso. Virá o grande
dia em que o pecado e o mal serão destruídos, e o diabo será lançado no lago da
perdição. Esta harmonia perfeita será então restabelecida na totalidade do
cosmos. Essa é a bênção que vem a quem está “em Cristo”, ao cristão. Ele é
herdeiro da bênção completa; ele vai ser um herdeiro dela. E assim será com
todos os seus conservos cristãos. Aguardemo-lo juntos, pois.

Em última análise, significa ver a Deus. Significa estar com Cristo e usufruir a
Sua glória. Significa reinar com Cristo: se sofrer-mos com Ele, também
reinaremos com Ele. O reino de Deus e do Seu Cristo vem; e nada poderá detê-
lo. E é certo que nós, que estamos “em Cristo”, estaremos lá. Será naquela nova
terra e sob os novos céus, e gozaremos o Paraíso, e comeremos os seus frutos
celestiais. Passaremos a eternidade fazendo isso. Vamos “julgar os
homens”, vamos “julgar os anjos”, porque estamos “em Cristo”. Com Ele
desfrutaremos aquele estado eternamente bem-aventurado que jamais terá fim.

Os homens e as mulheres que crêem nesta verdade, e que sabem que esta
verdade lhes diz respeito, não se interessam demais por este mundo e pelo que
nele acontece. As nações entram em conflito porque desejam dilatar os seus
impérios, ou tomar alguma porção de terra. Dá-se o mesmo com os indivíduos.
Assim é por causa do seu senso de valores. As pessoas lutam por dinheiro,
por posição, por popularidade, por qualquer coisa. Isso é o resultado do seu
espírito possessivo, do seu egoísmo, da sua cobiça. Essas são as únicas coisas
com as quais se preocupam e que valorizam; e tão logo vêem as coisas dessa
maneira, continuarão brigando e lutando por elas, não importa quão instruídas e
culturalmente avançadas elas sejam. Se servir aos seus propósitos adotar
princípios cristãos, elas os adotarão; há nações que muitas vezes usaram o
cristianismo para estender impérios! Contudo isso não é cristianismo. A
essência da posição do cristão é que ele enxergou a herança
“incorruptível, incontaminável, e que se não pode murchar, guardada nos
céus” por Deus, para aqueles que estão em Cristo Jesus. O homem que não teve
mais que um vislumbre dessas coisas passa de leve por esta vida e seus
interesses. Ele pensa “nas coisas que são de cima, e não nas que são da terra”
(Colossenses 3:2), e sabe que todos quantos fizeram isso são co-herdeiros com
ele. Desapareceram pois, a luta, a briga e a parede de separação que estava no
meio. Somos todos um, buscamos as mesmas coisas. A única harmonia que este
mundo conhecerá é a harmonia produzida nos homens e nas mulheres, e por
meio dos homens e mulheres que em Cristo fixaram o seu pensamento nas coisas
que são de cima. “Em quem também obtivemos herança; em quem também
vós...”

Nas palavras de John Newton -

Do mundo os fugazes prazeres Com toda a sua poupa fenecem.

Alegria e tesouros perenes Somente os filhos de Sião conhecem.

Ah! Que alegria estar entre os remidos! Que alegria saber que, ainda que
sejamos despojados de todas as coisas aqui, a nossa herança final está garantida,
a salvo e segura! Você tem parte nela? Foi-lhe dada uma “porção”? Foi dada,
afirma Paulo, a todos os que estão “em Cristo”, a todos quantos têm sua
esperança nEle posta.

“O CONSELHO DA SUA VONTADE”

“Nele, digo, em quem também fomos feitos herança, havendo sido


predestinados, conforme o propósito daquele que faz todas as coisas, segundo o
conselho da sua vontade; com o fim de sermos para louvor da sua glória, nós,
os que primeiro esperamos em Cristo; em quem também vós estais, depois que
ouvistes a palavra da verdade, o evangelho da vossa salvação; e, tendo nele
também crido, fostes selados com o Espírito Santo da promessa. O qual é
o penhor da nossa herança, para redenção da possessão de Deus, para louvor
da sua glória.” - Efésios 1:11-14

Continuamos a nossa discussão sobre a grande declaração do apóstolo. Ele tinha


anunciado que o grande segredo que Deus revelou concernente ao Seu propósito
é que na era presente, e em Cristo, Ele reuniu as partes discordantes, as partes
separadas, em que o pecado dividiu o mundo e o cosmos todo. Deus está
restabelecendo a harmonia original, no céu e na terra, e Ele o está fazendo em
nosso Senhor Jesus Cristo e por meio dEle. Na dispensação da plenitude dos
tempos é Seu propósito “tornar a congregar em Cristo todas as coisas... tanto as
que estão nos céus como as que estão na terra” (Efésios 1:10. A VA inclui neste
versículo “nele”). Nestes versículos estamos considerando as maneiras pelas
quais Deus está fazendo isso, e já demos atenção à primeira e, na verdade em
muitos sentidos, a principal, a saber, a formação e o crescimento da Igreja Cristã.
A Igreja é o novo Israel. O Israel espiritual, a verdadeira semente de Abraão, e
ela consiste de judeus e gentios. Mas a unidade é estabelecida, como vimos,
tornando cristãs pessoas de diferentes povos, e o apóstolo incidentalmente diz-
nos várias coisas acerca do cristão. Já consideramos duas delas.

Agora passamos a considerar, em terceiro lugar, a maneira pela qual tudo isso
nos aconteceu, como foi que isso veio a ser uma realidade com relação a nós,
conhecendo-nos a nós mesmos como nos conhecemos. Como é que alguém se
torna cristão? Como é que alguém entra nesta posição na qual ele está “em
Cristo” e é “co--herdeiro” com Cristo? Afortunadamente o apóstolo trata
desse assunto também. Ele não se contenta em dizer que isso é verdade

quanto a nós; ele nos diz como isso aconteceu. E ele o faz, por certo, porque era
algo que nunca deixara de causar-lhe admiração. Conforme avançamos, veremos
Paulo usando diversos termos que já encontramos. Vimo-los nos versículos 4 e
5. Estão incluídos certos grandes termos e frases que se encontram em toda a
extensão do Novo Testamento, termos absolutamente essenciais a um verdadeiro
e supremo entendimento do evangelho: “Em quem também obtivemos herança,
havendo sidos predestinados, conforme o propósito daquele que faz todas as
coisas, segundo o conselho da sua vontade”. Nos versículos 4 e 5 lemos: “Como
também nos elegeu nele antes da fundação do mundo, para que fôssemos santos
e irrepreensíveis diante dele em amor; a nos predestinou para filhos de adoção
por Jesus Cristo, para si mesmo”. Eis os termos. Estamos aqui face a face com
elevada doutrina, com algumas das grandes profundidades da fé cristã e da
mensagem cristã. Alguém poderá perguntar: por que o apóstolo repete esses
termos aqui, tendo-os usado já nos versículos 4 e 5? A explicação não somente é
simples, como também é importante. Nos versículos 4 e 5 o apóstolo
estava tomando uma vista geral do propósito de Deus, vendo-o, por assim dizer,
do ponto de vista eterno. Agora ele não o está examinando de modo geral,
apenas, mas também em sua aplicação particular a nós. Lá era o grande esquema
propriamente dito; aqui é o esquema aplicado a nós. Todavia ele continua a usar
os mesmos termos que tinha usado lá. Eles servem não somente para o
pensamento, mas também para a aplicação.

Muitos cristãos nunca estudam esses termos, nunca se demoram neles, nunca
voltam a eles em suas mentes. Permitam-me provar essa afirmação fazendo uma
pergunta. Quantas vezes você ouviu alguém passar lentamente, termo por termo,
por esse grande capítulo? Ou quantas vezes você o leu dessa maneira? Não
corremos o risco de evitar esses grandes termos por certas associações que eles
têm? Isso é uma coisa sobre a qual nós, como cristãos, precisamos ser muito
cautelosos na hora presente, porquanto alguns aspectos da verdade do Novo
Testamento simplesmente não estão sendo considerados por causa de certo
elemento de controvérsia ligado a eles. É grande o número de cristãos que
ignoram totalmente a verdade profética, por exemplo, porque a sua atitude para
com ela é determinada pelo fato de que ela leva à argumentação e contenda
sobre várias teorias. Eles imaginam que assumir essa posição é sábio e seguro.
Mas o que de fato estão fazendo é ignorar

deliberadamente a Palavra de Deus; estão deliberadamente deixando de lado


certos aspectos e elementos da verdade revelada. Deus quer que estudemos e
encaremos tudo em Sua Palavra, seja difícil ou simples, esteja ou não envolvido
em controvérsia. Dizer “paz a qualquer preço”, às custas da verdade de Deus
revelada, certamente é um insulto a Deus. Estas questões devem ser
enfrentadas, quer seja a verdade concernente à profecia, quer seja a
verdade concernente a estes elevados pontos doutrinários que o apóstolo coloca
diante de nós nestes versículos, como já o fizera nos versículos 4 e 5.

Como, então devemos abordar a verdade? Primeiramente, sem preconceito.


Todos nós partimos de preconceitos; assumimos posições e, tendo-as assumido,
argumentamos a favor delas e as defendemos. Dizemos: “Eu sempre disse isso;
meus pais o diziam antes de mim; sempre fui ensinado a crer nisso; portanto
permaneço...” E assim acontece muitas vezes que nunca estudamos o ensino das
Escrituras a respeito destas questões. Talvez nunca tenhamos lido um livro sobre
o assunto, nem tenhamos considerado o que a respeito disseram e ensinaram os
que Deus chamou e designou como líderes da Igreja através dos séculos.
Partimos de um preconceito e nos apegamos a ele, e achamos que ele faz
parte da nossa personalidade. Temos que defendê-lo! As nossas mentes ficam tão
estreitas e fechadas que nem conseguimos considerar a questão. Certamente é
desnecessário assinalar que essa atitude é totalmente anticristã. Nada está mais
distante da posição cristã. Essa era a atitude dos fariseus, e por isso odiavam o
nosso Senhor e o Seu ensino. Foi essa mesma atitude que esteve em oposição
aos apóstolos por onde quer que pregassem. Esta nova teoria, esta nova idéia e
ensino ofendia os preconceitos das pessoas. Dê-nos Deus graça para livrar-nos
dos preconceitos a que estamos propensos, e a que estamos sujeitos em
conseqüência do pecado.

A segunda questão que eu gostaria de salientar é que devemos submeter-nos e a


nossa mente inteiramente às Escrituras. Devemos fazer um esforço positivo para
assegurar que busquemos as Escrituras como se não soubéssemos nada, e que
deixemos que as Escrituras nos falem, em vez de as lermos através de nossos
pensamentos. Esta é uma coisa extremamente difícil para todos nós, porque
todos nós temos noções preconcebidas que tendem a tornar-se óculos pelos quais
vemos as Escrituras. Mas devemos

submeter-nos às Escrituras.

Saliento isso negativamente dizendo que não devemos abordar estas questões em
termos da filosofia. Todos nós tendemos a começar de idéias próprias ou
herdadas quanto ao que Deus deveria fazer, e ao que é correto que Deus faça, e
se Deus não Se porta daquela maneira, podemos até imputar injustiça a Ele. Isso
é filosofia; é um exemplo do filósofo pondo a sua mente contra a revelação de
Deus. Não há nada que seja mais perigoso. Por se comportarem dessa maneira,
muitas pessoas mostram que são por demais anticristãs. Elas dizem: “Não posso
entender essa idéia de encarnação - duas naturezas em uma pessoa” - e assim a
rejeitam. A insistência no entendimento faz parte da filosofia. Não podem
entender a expi-ação, dizem tais pessoas, e por isso não crêem nela. Muitos
que rejeitam o evangelho, rejeitam-no simplesmente porque não conseguem
entendê-lo. Tecnicamente não são filósofos; não obstante, falam filosoficamente.

Acentuo, pois, que é de vital importância que submetamos as nossas mentes às


Escrituras e sua revelação, e que deixemos de pensar filosoficamente. Noutras
palavras, temos que dar-nos conta de que nos vemos face a face com algo que
não fomos destinados a entender antes de crermos. Lembramos como o apóstolo
trata da situação do homem que levanta sua objeção desta maneira: o apóstolo
simplesmente replica dizendo: “Mas, ó homem, quem és tu, que a Deus
replicas?” (Romanos 9:20). Esta verdade não é para ser entendida, diz
efetivamente Paulo, é para ser recebida. Foi isso que o próprio Deus nos disse, e
se você imagina que pode entender e abranger a mente do Senhor, está
simplesmente pondo à mostra o fato de que toda a sua idéia sobre Deus está
errada. Esse é, em última análise, o problema de todos os incrédulos; seu
pensamento sobre Deus é totalmente errado. “Quem conheceu a mente
do Senhor, ou quem foi seu conselheiro?” Essa é a pergunta feita por Isaias
(40:13, VA), e citada no Novo Testamento (Romanos 11:34). Aqui deparamos
com o mistério da mente eterna de Deus ; e ela é tão elevada, acha-se tão acima
de nós, que nem sequer devemos começar a tentar entendê-la. Devemos
aproximar-nos humildemente dela, observá-la e recebê-la. Se você tentar obter
um entendimento conclusivo destas questões, ou s e você espera ser capaz de
conciliar intelectualmente certas coisas, você não somente estará condenado ao
fracasso, mas também será culpado de tentar fazer uma coisa que o apóstolo
reprova da maneira mais forte e mais clara no

capítulo 9 da Epístola aos Romanos. Mais outras censuras acham-se no capítulo


2 da sua Primeira Epístola aos Coríntios, como por exemplo: “O homem natural
não compreende as coisas do Espírito de Deus”.

Agora somos capazes de abordar estas grandes questões de maneira correta. As


palavras do nosso texto comunicam uma verdade destinada unicamente aos
cristãos; não é uma verdade que deva ser pregada num culto de evangelização. É
uma verdade para os filhos, para os que gozam intimidade; para aqueles a quem
foi dado o Espírito Santo, que ilumina as mentes e dá entendimento. Não é para
o homem natural, que não entende parte alguma da salvação, e ainda menos esta.
Mas é uma verdade que os filhos de Deus, através dos séculos, sempre acharam
assaz consoladora, animadora e reconfortante. A maneira certa de abordá-la é
lembrando que o elemento dominante nestas questões é sempre a glória de Deus.
“Com o fim de sermos para louvor da sua glória, nós os que primeiro esperamos
em Cristo”; e mais: “O qual é o penhor da nossa herança, para redenção da
possessão adquirida, para louvor da sua glória”. A perícope começa com estas
palavras: “Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo”. Vocês devem
começar aí e terminar aí. Vemos também o mesmo ponto no versículo 6:
“Para louvor e glória da sua graça, pela qual nos fez agradáveis a si no amado”.

Em todos os conceitos da salvação, o lugar dado neles à glória de Deus fornece a


prova suprema. A prova de que o conceito é verdadeiramente bíblico é que ele
atribui toda a glória a Deus. Nenhuma glória deve ser reservada para nós, nem
para qualquer outro ser. O apóstolo fica repetindo isso - “para a glória de
Deus”, “glória da sua graça”, “para louvor da sua glória”. Noutro lugar
ele escreve: “Mas vós sois dele, em Jesus Cristo, o qual para nós foi feito por
Deus sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção; para que, como está escrito:
aquele que se gloria, glorie-se no Senhor” (1 Coríntios 1:30-31). A idéia que
tenho da maneira pela qual me tornei cristão terá que satisfazer a prova de que
ela promove a glória de Deus e ministra a ela. A salvação nos vem apesar de nós
mesmos; nós não somos nada. Não somos cristãos por causa do nosso caráter
especial ou por causa de algo que tenhamos feito. E tudo de Deus. O apóstolo dá
ênfase a isso no capítulo 2 desta Epístola, quando escreve: “Porque pela graça
sois salvos, por meio da fé; e
isso não vem de vós; é dom de Deus. Não vem das obras para que ninguém se
glorie” (versículo 8). É preciso que não haja nenhuma glorificação própria;
ninguém deve gloriar-se em si mesmo.

Este ensino não está restrito à Epístola aos Efésios; acha-se em toda parte nas
Escrituras. É um tema grandioso que percorre todo o Novo Testamento, talvez
com maior clareza no Evangelho Segundo João. Este aspecto particular da
verdade acha-se de maneira a mais clara nos lábios do nosso bendito Senhor e
Salvador, como se vê nos capítulos 6 e 10 do Evangelho Segundo João. Vê-se
igualmente no capítulo 17, na oração sacerdotal. Mas é igualmente certo dizer
que essa é a doutrina que também sobressai no Velho Testamento. Somente ela
explica porque Israel foi a raça escolhida, por que os judeus foram o povo
escolhido. Não foi por coisa alguma que houvesse neles. A verdade é que, como
alguém disse - e eu acredito que há forte justificação para esse dito - Deus os
escolheu a fim de mostrar que, se Ele pudesse fazer algo daquela gente, poderia
fazê-lo de qualquer outra. Considerem a história que se vê no Velho Testamento;
não há nada que seja tão miserável e sem esperança. Sua salvação era de Deus, e
Deus diz isso, e o diz especificamente a eles. Ele lhes fala clara e repetidamente
que os tinha escolhido, não porque houvesse algo de meritório neles, porém
por amor do Seu nome, e para que se manifestasse a Sua glória. Toda a história
do Velho Testamento, da vocação de Abraão em diante, é de Deus. “De todas as
famílias da terra a vós somente conheci”, diz Ele por meio do profeta Amós
(Amós 3:2). .

Esse é o aspecto da verdade que cobre todos os demais, mas Paulo o divide em
suas partes componentes. A primeira coisa que ele nos diz é que Deus planejara
tudo isso segundo o Seu “propósito”. “Nele, digo, em quem também fomos
feitos herança, havendo sido predestinados segundo o propósito daquele...” Esta
palavra “propósito” acentua o fato de que a idéia original, o pensamento em seu
início, é algo que teve Deus por seu autor. O Deus eterno engendrou o propósito
de restabelecer esta unidade, esta harmonia, e isso em termos de certas pessoas,
“antes da fundação do mundo”. Mas depois o apóstolo acrescenta algo a isso,
dizendo: “conforme o propósito daquele que faz todas as coisas, segundo o
conselho da sua vontade”. Esta frase sumamente importante, “o conselho da
sua vontade”, é acrescentada parece-me, para salvaguardar a idéia prévia de que
o propósito é inteira e unicamente de Deus; razão pela qual o apóstolo já dissera
a mesma coisa. Ele o fizera no versículo

5: “E nos predestinou para filhos de adoção por Jesus Cristo, para si mesmo,
segundo o beneplácito de sua vontade”. Também no versículo 9: “Descobrindo-
nos o mistério da sua vontade, segundo o seu beneplácito, que propusera em si
mesmo”. A repetição é o modo de dizer do apóstolo que este propósito
concebido por Deus não foi sugerido a Deus por ninguém. Torno a citar a
pergunta do capítulo 14 de Isaias: “Quem guiou o Espírito do Senhor? E
que conselheiro o ensinou?” (versículo 13). É tudo “conforme o conselho da
vontade de Deus”.

Ninguém sugeriu a Deus que seria bom fazer isto ou aquilo. Não somente não
foi sugerido por ninguém, mas nem mesmo foi sugerido a Deus, como alguns
supõem, em razão do Seu pré--conhecimento, pelo qual Ele viu que certas
pessoas iam pensar e fazer certas coisas, em conseqüência do que os Seus
pensamentos foram determinados. Tal idéia é uma completa negação daquilo
que o apóstolo ensina na passagem que estamos estudando. É tudo de acordo
com o conselho da Sua vontade. Ele pensou conSigo mesmo, ele deliberou e
meditou conSigo mesmo. Todo o plano da salvação, do começo ao fim, é
exclusivamente de Deus, com coisa alguma vinda de fora. Tudo se origina em
Deus, tudo provém de Deus. Eu disse no princípio que estávamos considerando
uma elevada doutrina. Não existe nada que seja mais glorioso que isto, que tenha
sido do agrado de Deus revelar-nos estas coisas. E por isso que constantemente
devemos dar graças a Deus pela Bíblia e seus ensinamentos, que ressaltam a
aplicação do grande plano de Deus a mim e a vocês.

Não estamos estudando uma verdade abstrata. Antes da existência do tempo,


antes da criação do mundo, Deus Se propôs, conforme o conselho da Sua
vontade, restabelecer a harmonia na totalidade do cosmos; e, em particular, foi
Seu propósito que eu e vocês tivéssemos parte e lugar nele - “Em quem também
obtivemos uma herança” (VA). Temos esta parte e este lugar porque Deus nos
predestinou para isso conforme o propósito ao qual Se propôs, conforme o
conselho da Sua vontade. O resultado é que eu e vocês estamos participando
disto, e temos provado o dom celestial. Eu e vocês sabemos algo das “primícias”
da bênção e glória sempiterna. Eu e vocês somos o que somos porque Deus Se
propôs, conforme o conselho da Sua vontade, que estivéssemos nesse plano e
partilhássemos dele.

“Predestinado” significa “predeterminado”. Que poderá ser mais

grandioso e mais estonteante do que o fato de que Deus pensou em mim, pensou
em vocês, no conselho da Sua vontade?! Ele não somente concebeu o plano; viu-
nos nele. “Nós”, diz Paulo - “nós judeus, que primeiro confiamos em Cristo,
fomos predestinados, e vocês, gentios, também têm parte nesta herança. Deus
predestinou que tanto nós como vocês, judeus e gentios, estivéssemos nisso. Não
estamos só na mente e no coração de Deus; sempre estivemos ali. Estamos ali
agora porque estávamos ali antes da fundação do mundo.”

E Deus que executa este propósito. Esta é a verdade mais admirável e mais
consoladora e fortalecedora que podemos conhecer. Ela é toda a base da minha
segurança no presente momento; é também a garantia do meu futuro. Foi Deus
que me colocou onde estou, e “aquele que em vós começou a boa obra a
aperfeiçoará até ao dia de Jesus Cristo” (Filipenses 1:6). Estou neste plano de
Deus, e sou o que sou, apesar do meu pecado, apesar de toda a verdade a meu
respeito, apesar do fato de que, com os outros, eu estava morto em ofensas e
pecados”. “Havendo sido predestinados, conforme o propósito daquele que fez
todas as coisas, segundo o conselho da sua vontade.”

Contudo, não devemos pensar nisso somente num sentido pessoal, Este
propósito concebido na mente eterna de Deus, além da referência particular a
mim e a vocês, também tem em vista a “plenitude dos judeus”. Esta constituirá o
grande reino, o povo, a família de Deus, reunida daquela maneira, e sendo
reunida através dos séculos. Esse é o plano de Deus.

Ao descrever como este plano vê o cumprimento concreta-mente, como ele de


fato nos alcança, como ele começa a operar, o apóstolo faz uso da palavra “faz”
(efetua, executa) - “Em quem também obtivemos herança, havendo sido
predestinados, conforme o propósito daquele que faz todas as coisas, segundo o
conselho da sua vontade.” Essa é a maneira pela qual o apóstolo afirma que
Deus não é só inteiramente responsável pela iniciação e pela concepção do
propósito, mas é igualmente responsável pela sua execução. Isso também é da
própria essência do ensino da Bíblia. É na verdade, de muitas maneiras, toda a
história da Bíblia. Quando o homem caiu, Deus imediatamente revelou o Seu
propósito. O homem tinha dado ouvidos ao diabo, tinha pecado, tinha caído;
e com isso arrastou toda a humanidade na queda com ele. A própria terra tinha
sido amaldiçoada, e a harmonia do cosmos de Deus

havia dado lugar a conflitos e problemas.

Deus anunciou o Seu plano, o Seu propósito, dizendo que a semente da mulher
esmagaria a cabeça da serpente. Quando lemos o Velho Testamento, vemos Deus
executando o Seu plano. Ele é o trabalhador, aquele que faz todas as coisas.
“Somos feitura sua.” Nada vem de nós - “Não vem das obras para que ninguém
se glorie” (Efésios 2:9). Quando lemos a história, vemos Deus produzindo o
Dilúvio, porém, salvando um remanescente, apenas uma família - oito almas,
Noé e sua família. Foi Ele que lhes disse o que fazer para salvar-se; Ele os
colocou na arca. Mais tarde chegamos à vocação de Abraão. Tudo isso faz parte
da execução do grande propósito de Deus. Ele estava preparando tudo para a
vinda do Seu Filho, o Messias, em quem o plano se centralizava. Mas a
preparação era necessária; e esta era inteiramente obra de Deus. Ele olhou para
Abraão em suas circunvizinhanças pagãs, e o chamou dentre elas. Esse foi outro
passo vital na execução do plano. Ele fez daquele homem uma nação. Em
seguida vieram os patriarcas e os seus descendentes, os filhos de Israel. Logo os
vemos como escravos no Egito, e numa situação aparentemente desesperadora.
Todavia Deus os livra do Egito e os conduz à Canaã. Constantemente pecam e
se desviam, e Ele lhes envia profetas para admoestá-los. Finalmente são levados
para o cativeiro na Babilônia; mas Ele traz de volta à Canaã um remanescente.
Se o plano tivesse dependido dos judeus, teria fracassado. Contudo era o próprio
Deus que o estava executando.

Depois, “vindo a plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho, nascido de
mulher, nascido sob a lei...a fim de recebermos a adoção de filhos” (Gálatas 4:4-
5). Deus está executando agora o Seu plano por intermédio do Seu Filho. O
Filho veio para efetuar a nossa salvação. Ele obedeceu à lei, fez manifestações
da Sua glória, e levou sobre Si os pecados do Seu povo em Seu corpo no
madeiro, fazendo com isso expiação pelos nossos pecados. Depois ressurgiu do
túmulo, subiu ao céu e enviou o Espírito Santo. E tudo obra de Deus; é Deus
levando a efeito o Seu propósito em todas as coisas, “segundo o conselho da sua
vontade”. E isso está sendo efetuado em nós também. Não fosse assim, nenhum
de nós seria cristão. Ele nos desperta, nos convence do pecado, nos regenera e
nos dá o Espírito Santo para habitar em nós.

Mas alguém poderá perguntar: que dizer da injunção: “Operai a vossa salvação
com temor e tremor”? A resposta é “Deus é o que

opera em vós tanto o querer como o efetuar, segundo a sua boa vontade”
(Filipenses 2:13). Foi Deus que nos deu “o Espírito (que) penetra todas as coisas,
ainda as profundezas de Deus” (1 Coríntios 2:10), se não, jamais entenderíamos
estas coisas. Do começo ao fim, Deus está efetuando o Seu grande esquema e
propósito. No capítulo 8 de Romanos, o apóstolo diz, no versículo 28:
“Sabemos que todas as coisas contribuem juntamente para o bem daqueles que
amam a Deus, daqueles que são chamados por seu decreto” (VA: “...todas as
coisas trabalham juntas (cooperam) ... daqueles que são chamados segundo o seu
propósito”). Notamos aí os mesmos termos - “propósito”, “chamados”,
“trabalhar” ou “efetuar”. E então Paulo continua: “Porque os que dantes
conheceu também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho;
a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos. E aos que predestinou a
estes também chamou; e aos que chamou a estes também justificou; e aos que
justificou a estes também glorificou”. É Deus que efetua toda essa obra, desde o
começo até o fim - “Ele”! “Ele”! “Ele”!

Mas isso não é o fim da história; é só o começo. Essa parte nos explica por que e
como nos tornamos cristãos. Explica por que nos interessamos por estas coisas e
gostamos do culto público, e por que não continuamos tendo uma vida mundana
como tantos outros fazem. Não há nada de excepcional em nós; não é que nós
somos diferentes ou melhores do que os outros por natureza. Não
somos melhores do que o mundo, precisamente como Jacó não era melhor do
que Esaú. De fato, pode muito bem ser que o contrário foi a verdade. Como
homem natural, Esaú parece que foi um tipo muito melhor, mais cavalheiro e
mais agradável do que Jacó. A salvação não se baseia em coisa alguma que haja
em nós. É fruto do propósito de Deus , “segundo o conselho da sua vontade”. É a
execução feita por Ele daquilo que Ele predestinou, predeterminou.

Ainda iremos considerar os meios que Deus usou para realizar essa obra, o modo
como Deus a efetua, e o que Ele requer de nós na execução do Seu grande e
glorioso propósito. Mas, como era nosso dever, começamos onde o apóstolo
começa, porque o que sempre deve estar em proeminência é a glória de Deus.
“Com o fim de sermos para louvor da sua glória, nós, os que primeiro
esperamos em Cristo.”

1
Quando a referência é a Cristo como cabeça da Igreja (Seu corpo), a tradução deve ser “Cristo, a
cabeça”, como em Colossenses 1:18, quando a referência é a Cristo como Chefe (sem a ligação
orgânica que há entre Ele e a Igreja), a tradução deve ser “Cristo é o cabeça”, como faz ARA em
Colossenses 2:10. Nota do tradutor.

2
Literato; pessoa que se ocupa de literatura. Em francês no original. Nota do tradutor.
“OUVISTES, CRESTES, CONFIASTES”

“Nele, digo, em quem também fomos feitos herança, havendo sido


predestinados, conforme o propósito daquele que faz todas as coisas, segundo o
conselho da sua vontade; com o fim de sermos para louvor da sua glória, nós,
os que primeiro esperamos em Cristo; em quem também vós estais, depois que
ouvistes a palavra da verdade, o evangelho da vossa salvação; e, tendo nele
também cri-do, fostes selados com o Espírito Santo da promessa. O qual é
o penhor da nossa herança, para redenção da possessão de Deus, para louvor
da sua glória.” - Efésios 1:11-14

Já vimos que somos cristãos porque Deus executa Seu plano, e faz isso usando
meios. Nestes versículos nos é dito exatamente quais os meios de que Ele faz
uso a fim de colocar-nos “em Cristo”, a fim de fazer-nos herdeiros da herança
que Deus preparou para nós em nosso bendito Senhor e Salvador. No versículo
13 Paulo diz: “Em quem também vós crestes, depois que ouvistes a palavra da
verdade, o evangelho da vossa salvação”. 1 Estas palavras descrevem os meios
que Deus sempre usa para tornar-nos cristãos. No livro de Atos dos Apóstolos
vemos isso claramente na prática. O Senhor Jesus Cristo, a Cabeça da Igreja, a
quem fora confiada esta obra, deixou apenas um punhado de pessoas na terra,
quando ascendeu ao céu. Parecia totalmente impossível que este grande esquema
de Deus fosse levado a efeito por um simples punhado de pessoas - e que
pessoas! Mas aconteceu! Foi dito aos apóstolos que esperassem em Jerusalém
até que o Espírito Santo viesse sobre eles, e depois partissem', como testemunhas
de Cristo. Eles deviam ir pregar a Palavra. E foram, como consta no livro de
Atos dos Apóstolos. Assim é que Ele nos torna cristãos. Foi dessa maneira, e por
intermédio da “palavra da verdade, o evangelho da nossa salvação”.

O apóstolo dá-lhe o nome de “palavra da verdade”. Mas não significa


simplesmente palavra verdadeira. É palavra verdadeira, é claro, porém Paulo não
fala da verdade indiscriminadamente. Ele se refere a uma verdade particular,
através e por meio da qual recebemos a nossa salvação - “a palavra da verdade, o
evangelho da vossa salvação”. É uma palavra que comunica determinada
verdade que, quando a enxergamos, vem à nós como a maior boa nova que
jamais conhecemos. É a boa nova concernente ao Senhor Jesus Cristo, a notícia
concernente à Sua Pessoa e à Sua obra - quem Ele é e o que realizou. Essa é a
boa nova, nenhuma outra coisa o é, e ninguém pode tornar-se cristão sem esta
“palavra da verdade”.

Colocando o ponto negativamente, significa que você não se torna cristão


simplesmente por ter uma experiência ou por ter em seu íntimo um sentimento
diferente do que tinha antes. Muitos acham que é isso que nos torna cristãos. Por
terem agora uma nova espécie de vida, pensam que são necessariamente cristãos.
Mas talvez não seja assim. Você não pode ser cristão sem a verdade, sem o
“evangelho da vossa salvação”. Isso é fundamental. Constantemente estamos
lendo nos jornais a respeito de pessoas que são elogiadas e aclamadas como “os
maiores cristãos do século”, mas que, às vezes, não crêem em nada, exceto no
que chamam “reverência pela vida”. Não crêem na “palavra da verdade”, não
crêem na Palavra de Deus; sua posição não está na dependência da Pessoa de
Cristo e Sua obra. Muitos há que pensam nos cristãos como pessoas que “têm
vida virtuosa”, fazendo grande sacrifício para ajudar os outros e praticar boas
obras. Todavia esse pensamento é equivocado; isso de ser cristão sem essa
“palavra da verdade” não existe. É dessa maneira que Deus faz cristãos; é pela
“palavra da verdade”, pelo evangelho da nossa salvação.

Há neste mundo muitos instrumentos que nos podem propiciar experiências e


bons sentimentos, e que podem fazer-nos felizes e levar-nos a praticar muitos
atos de bondade. Muitas seitas podem produzir esses resultados. O nosso
argumento cristão contra as seitas não é que elas não levam a bons resultados,
mas, sim, que elas não se baseiam na verdade, pois não apresentam a palavra
da verdade. Certamente produzem resultados. Seria ridículo negar que muitas
seitas têm feito benefícios. Há pessoas que testificam que, desde que passaram a
seguir uma certa seita, sua vida foi transformada. Agora são felizes, ao passo que
antes eram infelizes; perderam as suas preocupações; livraram-se de certos
sofrimentos;

sentem-se completamente bem em todos os aspectos, e sua vida está repleta de


alegria e felicidade. Por isso temos que insistir em que é “a palavra da verdade”
que Deus utiliza. É por intermédio do “evangelho da nossa salvação”; é por
intermédio da mensagem transmitida aos apóstolos, e que estes foram
capacitados a transmitir a nós. É unicamente isso que nos faz cristãos.

Podemos e devemos declarar dogmaticamente este ponto. Pensem numa pessoa


que até aqui tem sido inteiramente ímpia e irreligiosa, completamente indiferente
quanto às questões religiosas, e vivendo no pecado. De repente essa pessoa
descobre um novo interesse, começa a sentir que, afinal de contas, há algo na
religião. Começa a pensar que a religião a ajudará, e alguém lhe diz que tudo o
que ela tem que fazer é crer em Deus. Ela aceita isso e começa a ler a Bíblia, a
orar e a cultuar a Deus como ela acha melhor. Ela se sente bem em fazer isso.
Agora ela é uma pessoa religiosa e tem essa elevada intenção de servir a Deus e
agradá-lO, e de viver para a glória de Deus.

Pois bem, não hesito em asseverar que, se a experiência dessa pessoa pára nesse
ponto, ela não é cristã no verdadeiro sentido do termo. O cristão é alguém que
compreende que toda a sua posição depende unicamente da Pessoa e obra do
nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo . A “palavra da verdade”, “o evangelho da
nossa salvação” é essencial. A pessoa que acabo de descrever está exatamente na
mesma situação dos judeus do Velho Testamento. Estes criam em Deus,
tentavam agradar a Deus, guardar os Seus mandamentos e servi-lO. Muitas
vezes se sacrificavam bastante para fazê-lo. Essa era a situação dos fariseus.
Jejuavam duas vezes por semana e davam o dízimo dos seus bens aos pobres;
adoravam a Deus e viviam para Ele conforme o seu modo de pensar. Mas não
eram cristãos, e foram grandes oponentes do Senhor Jesus Cristo.

O que nos diferencia dos não cristãos é que confiamos inteiramente nesta
“palavra da verdade”, neste “evangelho da nossa salvação”. A boa nova não
consiste em dizer que se deve servir a Deus e agradá-10. A boa nova consiste em
falar do que Deus fez por nós em Cristo. O evangelho é isso; é esta salvação que
é acessível graças ao que o Senhor Jesus Cristo fez. Daí decorre que lemos sobre
o apóstolo Paulo exortando o jovem Timóteo a “pregar a palavra”. Ele não lhe
diz que simplesmente exorte as pessoas a servirem a Deus ou a terem vida
melhor ou a buscarem certa experiência. Sua exortação é: “Que pregue a
palavra”, “faze a obra dum

evangelista” (2 Timóteo 4:2,5). A respeito de cristãos comuns, lemos em Atos


que eles “iam por toda parte, anunciando a palavra” (8:4).

Mas devemos ter o cuidado de comunicar todo o conteúdo desta palavra


“verdade” pois o cristianismo pode ser utilizado falsamente como um
instrumento psicológico. Além disso, há muitos que parecem pensar que são
cristãos, e jamais conheceram certos aspectos desta “palavra da verdade”. No
entanto, está bem claro no Novo Testamento que há um mínimo irredutível que
se considera essencial. No capítulo primeiro da Primeira Epístola
aos Tessalonicenses é nos dada uma notável sinopse desta “palavra da verdade”.
O apóstolo Paulo não se demorou muito em Tessalônica, mas ficou lá o
suficiente para dar-lhes a verdade essencial, e então os faz lembrar-se destes
dizeres: “Eles mesmos anunciam de nós qual a entrada que tivemos para
convosco, e como dos ídolos vos convertestes a Deus para servi o Deus vivo e
verdadeiro. E esperar dos céus a seu Filho, a quem ressuscitou dos mortos, a
saber, Jesus, que nos livra da ira futura”. Não podemos ser cristãos sem
convicção do pecado. Ser cristão significa que compreendemos que somos
culpados diante de Deus e que estamos sob a ira de Deus. O apóstolo tinha
pregado essa mesma mensagem aos cultos filósofos de Atenas, e lhes tinha dito
que Deus “tem determinado um dia em que com justiça há de julgar o mundo”,
por meio de Jesus Cristo (Atos 17:31).

Por natureza estamos todos sob a ira de Deus, somos todos pecadores; portanto,
antes de começarmos a buscar um sentimento feliz ou uma “experiência”, temos
que aperceber-nos da nossa perigosa situação. Estamos condenados pela lei de
Deus, estamos debaixo da Sua ira, corremos perigo de perdição eterna.
Precisamos ser libertados da “ira futura”. A boa nova da salvação é que podemos
ser libertados da ira por vir porque o Senhor Jesus Cristo levou sobre Si a ira por
amor de nós. O apóstolo Paulo, escrevendo aos coríntios, esclarece que a sua
obra como pregador era proclamar que “tudo provém de Deus que nos
reconciliou consigo mesmo por Jesus Cristo, e nos deu o ministério da
reconciliação; isto é, Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo”.
Mas, para evitar mal-entendidos, ele desenvolve esse tema em detalhe para os
seus leitores, e acrescenta: “não lhes imputando os seus pecados; e pôs em nós
(os pregadores) a palavra da reconciliação. De sorte que somos embaixadores da
parte de Cristo, como se Deus por nós

rogasse. Rogamo-vos pois da parte de Cristo que vos reconcilieis com Deus.
Àquele que não conheceu pecado, o fez pecado por nós; para que nele fôssemos
feitos justiça de Deus” (2 Coríntios 5:18-21). A boa nova é que Deus fez tudo em
Cristo, Ele nos livrou da ira vindoura, Ele nos reconciliou conSigo. Ele nos
preparou para esta herança e fez de nós Seus filhos. Tudo isso é resultado do
fato de que Deus tomou os nossos pecados, colocou-os sobre o Seu Filho e os
puniu e os tratou ali. Dessa maneira Ele nos perdoa e nos dá todos estes
benefícios. Essa é a mensagem da salvação. Essa é a “palavra da verdade”. Não
é suficiente que nos perguntemos a nós mesmos se cremos em Deus, e tentamos
servir a Deus, agradá-10 e viver uma vida virtuosa. Compreendemos o que Deus
fez por nós em Cristo? Chegou a nós esta “palavra da verdade”? Dou-me
conta de que toda a minha posição se baseia nesta palavra da verdade,
no evangelho, nas boas novas de salvação?
Há outra declaração desta verdade, feita por este mesmo apóstolo, em sua
Primeira Epístola a Timóteo, onde ele afirma que Deus “quer que todos os
homens se salvem” (2:4). Notem, porém, que ele tem todo o cuidado de
acrescentar imediatamente que essa declaração significa “vir ao conhecimento da
verdade”. Não basta ser capaz de dizer: “Estou tendo uma vida modificada, sou
um homem diferente, sou melhor do que era”. A questão vital é: você tem
conhecimento da verdade? Você sabe em que crê? Você pode dar a “razão da
esperança que há em vós? Diz o apóstolo Pedro que devemos estar preparados o
tempo todo para dar a razão da esperança que há em nos “com mansidão e
temor” (1 Pedro 3:15). Portanto, o cristão é alguém que tem conhecimento da
verdade, e da Palavra da verdade, e sabe que tudo lhe veio mediante
aquela Palavra. Deus realiza esta obra em nós através e por intermédio
da Palavra.

Todavia, nem mesmo a só proclamação da Palavra é suficiente. Não podemos ler


o livro de Atos dos Apóstolos sem encontrarmos prova disso. Vemos os
apóstolos pregando o evangelho a um grupo de pessoas. Pode ser Pedro, ou pode
ser Paulo que está pregando esta “palavra da verdade”, “o evangelho da
salvação”. Mas o resultado varia; alguns crêem, porém começam a regozijar-se;
outros ficam furiosos, empreendem perseguição e dizem: “Estes que
têm alvoroçado o mundo, chegaram também aqui” (17:6). Às vezes os apóstolos
eram apedrejados; os homens tentavam matá-los. Ambas

as partes, crentes e incrédulos, tinham ouvido a mesma palavra; por isso é óbvio
que não é apenas uma questão de apresentar a mensagem. Isso tem que ser feito
porque a palavra da verdade é essencial; mas a mera apresentação da palavra da
verdade, em si e por si, não realiza a obra. O fator adicional e essencial é a obra
realizada pelo Espírito Santo.

A aplicação d a verdade da Palavra é feita pelo Espírito. Isso se vê claramente


numa declaração feita pelo apóstolo no capítulo primeiro da Primeira Epístola
aos Tessalonicenses. O apóstolo diz, no versículo 5: “O nosso evangelho não foi
a vós somente em palavras, mas também em poder, e no Espírito Santo, e em
muita certeza”. Obviamente, essa é uma declaração vital, e ele a salienta em
todos os seus escritos. No capítulo 2 desta Epístola aos Efésios ele a coloca
assim: “E vos vivificou, estando vós mortos em ofensas e pecados” (versículo 1).
Ele a repete no versículo 4: “Mas Deus, que é riquíssimo em misericórdia, pelo
seu muito amor com que nos amou, estando nós ainda mortos em nossas ofensas,
nos vivificou juntamente com Cristo”. Essa é a obra realizada pelo Espírito.
A obra do Espírito é uma parte essencial da doutrina cristã. A mensagem, o
evangelho da salvação, é pregada a todo tipo de gente, e uma oferta geral de
salvação é feita a todos os homens, mas nem todos a aceitam. O que determina a
diferença é a obra do Espírito Santo, que leva a palavra com “poder” e “com
muita certeza” aos que se tornam crentes. Temos outra declaração clássica
desta verdade vital no capítulo 2 da Primeira Epístola aos Coríntios, onde Paulo
fala sobre o “mistério” confiado a ele para que o pregasse. Diz ele então: “A qual
sabedoria nenhum dos príncipes deste mundo conheceu; porque, se a
conhecessem, nunca crucificariam ao Senhor da glória” (versículo 8). Os
príncipes deste mundo não conheceram a verdade, não reconheceram a Cristo.
Como então pode alguém tornar-se cristão? Como estes coríntios se
tornaram cristãos? A resposta é: “Deus no-las revelou (Suas verdades) pelo seu
Espírito; porque o Espírito penetra todas as coisas, ainda as profundezas de
Deus”. “Mas nós não recebemos o espírito do mundo”, continua ele, “mas o
Espírito que vem de Deus, para que pudéssemos conhecer o que nos é dado
gratuitamente por Deus” (versículo 12). Ninguém pode crer no Senhor Jesus
Cristo independentemente da ação do Espírito Santo. Em 1 Coríntios Paulo
o expõem categoricamente assim: “Ninguém pode dizer que Jesus é o Senhor,
senão pelo Espírito Santo” (12:3). Sem a operação do

Espírito Santo, não há quem possa fazê-lo. Para o homem natural essas coisas
são loucura. “O homem natural não compreende as coisas do Espírito de Deus,
porque lhe parecem loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem
espiritualmente” (1 Coríntios 2:14). Nenhum homem, como o homem é por
natureza, e em conseqüência do pecado, tem possibilidade de crer no evangelho.
A obra do Espírito Santo é absolutamente essencial. Com relação a isso o Senhor
proferiu as seguintes palavras, registradas no capítulo 11 do Evangelho Segundo
Mateus: “Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, que ocultaste estas
coisas aos sábios e entendidos, e as revelaste aos pequeninos”. E prossegue,
dizendo que só há uma explicação dessa ação, a saber: “Sim, ó Pai, porque assim
te aprouve” (versículos 25-26). Não há explicação senão esta, que o Pai teve esse
propósito, “segundo o conselho da sua vontade”. Não podemos entender isso,
mas sabemos que é a verdade. Não nos fizemos cristãos; não é coisa alguma que
haja em nós - “Sou o que sou pela graça de Deus” - e esta verdade refere-se a
todos os cristãos. Isso não é para ser entendido, e sim, para ser cri do e para
ser admirado.

Há uma ilustração particularmente interessante deste assunto na narrativa dada


em Atos, capítulo 16, de como o evangelho chegou pela primeira vez ao
continente europeu, numa cidade chamada Filipos. O apóstolo soube que
algumas mulheres costumavam fazer reunião de oração nas tardes de sábado à
margem de um rio, fora do muro da cidade. Assim, ele e os seus
companheiros saíram, foram à pequena reunião de oração, sentaram-se entre
as mulheres e lhes falaram. Proferiram esta “palavra da verdade”; e nos é dito
que uma mulher chamada Lídia foi convertida. Ela creu na verdade e veio a ser o
primeiro vulto cristão da Europa. Como, porém, Lídia veio a crer na realidade?
A resposta é dada no versículo 14 daquele capítulo, com as palavras: “...e o
Senhor lhe abriu o coração para que estivesse atenta ao que Paulo dizia”. Por
natureza, os corações de todos nós estão fechados e trancados para a verdade,
para esta mensagem do evangelho. Somente a Palavra pode abri-los ou amolecê-
los. Para que aconteça isso, a operação do Espírito Santo é absolutamente vital e
essencial. William Cowper lembra-nos isso num hino:

Sopra o Espírito na Palavra E traz à luz a verdade.

Trata-se de uma operação dual. O Espírito está na Palavra, mas precisa estar em
meu coração também, e abri-lo, para que eu possa receber a Palavra. É o Espírito
que nos vivifica; é o Espírito que nos dá vida, tirando-nos da morte do pecado na
qual todos estamos por natureza; é o Espírito que nos dá a faculdade da fé; é o
Espírito que nos dá um novo princípio de vida que torna possíveis todas
estas coisas. Há um resumo disso tudo no capítulo 2 desta Epístola aos Efésios,
versículo 8: “Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de
vós; é dom de Deus”. A fé é dom de Deus. Pelo Espírito Deus nos capacita a
crer. Sem esta operação do Espírito, permanecemos mortos para a Palavra, e não
a “vemos”. Mas quando o Espírito sopra na Palavra, Ele traz à luz a verdade.
Vemo-la, e por isso cremos nela.

Isso nos leva ao terceiro e último passo no que diz respeito àquilo que eu e vocês
temos que fazer. Sem que o saibamos, o Espírito esteve operando e, como
resultado disso, acontecem três coisas. Ouvimos a Palavra, cremos nela,
confiamos ou esperamos nela. As três palavras que o apóstolo emprega aqui,
nesta Epístola são: “Em quem também vós crestes (ou confiastes ou
esperastes), depois que ouvistes a palavra da verdade, o evangelho da
vossa salvação; e, tendo nele também crido, fostes selados com o Espírito Santo
da promessa”. Devemos entender claramente que Deus, mediante o Espírito
Santo, não opera ou age em nós mecanicamente. Deus não força a nossa
vontade; Deus não compele ninguém a crer contra a vontade no evangelho. Não
é essa a Sua maneira de agir. Não somos tratados como autômatos. O que
acontece é que Deus persuade a vontade; Ele torna atraente a verdade para nós.
Assim é que homem nenhum jamais creu no evangelho contra a sua vontade;
foi-lhe dado vê-lo de tal maneira que ele o deseja, admira-o, gosta dele.

Essa é a verdade com relação à nossa experiência. Houve tempo em que não
víamos nada destas coisas, mas agora elas se tornaram tudo para nós. A
diferença é explicada pelo fato de que há uma mudança em nós resultante da
operação mediante o Espírito Santo em nós. A verdade que nos parecia coisa
aborrecível, nada interessante e sem atrativo, de repente se torna a coisa mais
maravilhosa que ouvimos em toda a nossa vida. É a mesma verdade, e pode ser
que a tenhamos ouvido do mesmo pregador. O fato é que somos diferentes,
agora temos em nós um novo princípio ou dispo-

sição que nos capacita a exercer a fé e nos dá a capacidade de compreender e


entender. Foi-nos dada uma “unção” pelo Espírito Santo, como diz o apóstolo
João (1 João 2:20,27). Nunca se deve entender esta operação de Deus sobre nós
e em nós como se Deus macetasse as nossas vontades, forçando-nos ou
compelindo-nos. Ele nos conduz ao arrependimento. Ele nos leva à fé pela
operação do Espírito Santo, revelando-nos a Palavra e abrindo os
nossos corações para a receberem; e o resultado é que, como crianças recém-
nascidas, não há nada que mais desejemos do que o “leite racional, não
falsificado” (1 Pedro 2:2; VA: “o genuíno leite da palavra”). Esta nova
faculdade, este novo princípio de vida, faz toda a diferença.

Tendo-nos tornado possível agir, Deus nos chama à ação. A palavra é pregada e
nós a ouvimos. Mas ouvir não é suficiente. Não somente devemos ouvir esta
Palavra; temos que crer nela. E o homem que verdadeiramente a ouve, crê nela.
Ele passou a ver-se como pecador, passou a ver a lei de Deus o condenando;
agora ele tem alguma concepção sobre a santidade de Deus; e compreende que
tem de comparecer perante Deus no juízo. E assim ele fica preocupado e
alarmado com a sua situação. Que é que ele pode fazer? Ele ouve esta mensagem
que fala de Cristo morrendo pelos pecados e diz: “Ai está exatamente o de que
necessito; quero esta mensagem; creio nela, apesar de não compreendê-la
plenamente”. Portanto, tendo-a ouvido, ele crê; e percebe que o seu dever é crer,
porque todos são chamados ao arrependimento e à fé.

O último termo usado pelo apóstolo é traduzido pela Versão Autorizada (inglesa)
por “confiastes”. Na Versão Revista (inglesa) e nalgumas outras versões é
traduzido por “esperastes”. Essa tradução é igualmente boa porque as duas
palavras significam praticamente a mesma coisa, a saber, que colocamos a nossa
esperança, a nossa fé pessoal, a nossa confiança, em todos os aspectos,
no Senhor Jesus Cristo. É isso que nos torna cristãos. Por isso o apóstolo diz
aqui, acerca dos judeus, “com o fim de sermos para louvor da sua glória, nós, os
que primeiro esperamos em Cristo”; ou, noutras palavras, nós, judeus, que fomos
os primeiros a compreender que Cristo é a nossa única esperança e a nossa única
fonte de confiança, a única base de nossa certeza. O apóstolo
prossegue, dizendo: “Em quem também vós confiastes”. A palavra confiastes foi
acrescentada, e nem ela nem a palavra esperastes (ARC: “estais”) estão no
original. “Em quem também vós (obtivestes uma herança)

depois que ouvistes a palavra da verdade, o evangelho da vossa salvação.” Eles


igualmente haviam firmado a sua fé pessoal, a sua confiança e a sua esperança
no Senhor Jesus Cristo, e nEle somente. Esta é a melhor definição de um cristão
que podemos encontrar.

O cristão é alguém que centraliza toda a sua esperança no Senhor Jesus Cristo.
Quando ele pensa em seu passado e olha retrospectivamente, é-lhe dada paz com
relação a isso, não simplesmente porque ele crê que Deus é um Deus de amor
que está pronto a perdoar; não, é-lhe dada paz acerca do seu passado porque
ele sabe que os seus pecados passados foram lançados sobre o Senhor Jesus
Cristo em Sua morte na cruz do Calvário. Ele sabe que Cristo os levou sobre Si e
os eliminou. É unicamente este fato que lhe dá fé segura, esperança e confiança
quando recorda o seu passado; nada menos do que isso. Sem isso, ele não teria
segura esperança, não seria cristão. Com relação ao presente, ele está ciente da
sua fraqueza, está ciente da sua indignidade, está ciente do terrível poder
do pecado e da tentação em seu interior; mas, ainda assim, ele tem
esta esperança, fé e confiança. Sempre com base na verdade, isto é, no Senhor
Jesus Cristo e Sua obra -

Senhor, de Ti careço; fica perto, à mão!

Quando estás perto, perde a força a tentação.

e -

Tendo à mão Tua bênção, não temo o inimigo.

Tais são as expressões da sua confiança, com relação ao presente. E quando ele
olha para o futuro, essa confiança permanece inabalável. Ele não sabe o que vai
acontecer, ele está no mesmo mundo de todos os demais; poderão vir guerras,
poderão vir pestes, o diabo certamente estará presente, a tentação e o pecado não
mudarão, o mundo não mudará, nada mudará, e, além, disso, ele é fraco;
como pode, pois, encarar e enfrentar tudo isso? Ele sabe que Aquele que está
com ele “nunca o abandonará nem o desamparará”. E então, acima de tudo o
mais - a morte! É certo que ela vem, e tem que ser enfrentada. Mas ele continua
feliz, cheio de esperança, confiança e certeza. Aquele que tem estado com ele na
vida, estará com ele na morte. “Não te deixarei, nem te desampararei” (Hebreus
13:5). Por isso ele pode dizer com Paulo: “Estou certo de que, nem a morte, nem
a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as potestades, nem o presente,
nem o porvir, nem a altura, nem a profundidade,

nem alguma outra criatura nos poderá separar do amor de Deus, que está em
Cristo Jesus nosso Senhor” (Romanos 8:38-39). Seria Cristo a base de toda a sua
esperança, confiança e fé? Se não é, você não tem direito de dizer-se cristão.
Contudo, se você pode dizer:

Minha esperança é baseada em nada menos Que o sangue de Jesus e Sua


justiça;

Não ouso confiar na mais rica disposição Mas de todo me apóio no nome de
Jesus:

Em Cristo , afirme Rocha, é que me firmo; Qualquer outro terreno é areia


movediça.

Nesse caso, você é cristão de verdade, e Deus o abençoará.

“SELADOS COM O ESPÍRITO”

“Em quem também confiastes, depois que ouvistes a palavra da verdade, o


evangelho da vossa salvação; e, tendo nele também crido, fostes selados com o
Espírito Santo da promessa.”

- Efésios 1:13

Nestas palavras nos vemos face a face com mais outro acréscimo a esta série de
extraordinárias declarações que o apóstolo vem fazendo com respeito à nossa
posição e à nossa herança no Senhor e Salvador Jesus Cristo. Já observamos
como a sua fórmula para a introdução de alguma bênção adicional é a expressão
“Em quem também vós...”. Ele dissera no versículo 7: “Em quem temos
a redenção”, depois no versículo 11, continua dizendo: “Em quem também
obtivemos uma herança” (VA). Mas agora temos algo que nos leva ainda mais
longe: “Em quem também, depois que crestes, fostes selados com o Espírito
Santo da promessa” (VA). E espantosa a maneira pela qual, nesta grande
declaração que, como vimos, vai do início do versículo 3 ao fim do versículo 14,
o apóstolo parece estar empilhando uma glória sobre outra à medida que nos
desvenda as bênçãos que são nossas como frutos das riquezas da graça de Deus.
Deus de fato as tornou abundantes para conosco. Aquele algo mais que o
apóstolo quer apresentar-nos é, “depois que crestes, fostes selados com o
Espírito Santo da promessa”. Aqui ele nos apresenta, de maneira explícita, pela
primeira vez neste capítulo, o Espírito Santo. Evidentemente, como notamos, o
Espírito estava envolvido em tudo o que encontramos até aqui. Não podemos
estar cientes da nossa necessidade de redenção, sem o Espírito Santo;
na verdade, não podemos crer, sem a operação do Espírito Santo. Mas aqui Ele é
mencionado explicitamente, o Seu nome propriamente dito é introduzido, e
somos postos face a face com certos aspectos vitais do ensino do Novo
Testamento concernente ao Espírito Santo e Sua obra. É, pois, um acréscimo
importante, e é lamentável que, quando esta carta foi dividida em versículos, não
foi iniciado um novo versículo neste ponto; pois este é um novo assunto, e
isso deveria ser salientado daquela maneira.

Esta declaração adicional é particularmente importante do ponto de vista


experimental. O apóstolo nos estivera lembrando tudo o que é verdadeiro com
relação ao evangelho, e tudo o que nos é dado nele. Aqui, porém, ele nos faz
plenamente conscientes da verdade e nos faz lembrar a maneira pela qual
podemos certificar-nos destas coisas e usufruir algo da sua glória e da sua
grandeza, mesmo enquanto ainda estamos neste mundo limitado pelo tempo.

Estou cada vez mais persuadido de que é o nosso malogro quanto a entendermos
esta precisa declaração que explica tanta letargia entre nós cristãos na hora
presente. Pelo menos chego a afirmar que todo cristão que não esteja
experimentando a alegria da salvação acha-se nessas condições em grande parte
por não compreender a verdade ensinada neste versículo particular das
Escrituras, pois nele nos vemos face a face com a maneira pela qual podemos
penetrar na plenitude que deveríamos estar experimentando em
Cristo. “Regozijai-vos no Senhor”, e regozijar-nos sempre, é uma parte essencial
do propósito de Deus quanto a nós em Cristo. O nosso Senhor, no fim da Sua
vida terrena, não somente disse, “A minha paz vos dou”; disse também; “o meu
gozo” (ou “a minha alegria”) (João 15:11). Essa é a herança do cristão. O povo
cristão deveria estar cheio de alegria, paz e felicidade. Não somente isso,
mas também, se sentimos que somos ineficientes como cristãos e que a nossa
utilidade não é muito evidente, então opino que, de novo, deve-se isso ao mesmo
fato, a saber, a nossa incapacidade de compreender o que se quer dizer com o
selo de Deus aplicado aos Seus pelo “Espírito Santo da promessa”. Além disso,
esta é uma das doutrinas mais vitais do Novo Testamento com respeito ao aviva-
mento e ao despertamento dentro da Igreja Cristã.

O selo é um assunto que tem causado muita controvérsia. Não é um assunto


fácil, portanto, não obstante, devemos enfrentá-lo. E o melhor modo de fazê-lo é
adotar o nosso método anterior e examinar os termos que o apóstolo emprega:
“Em quem também, depois que crestes, fostes selados com o Espírito Santo da
promessa”.

Tomemos primeiro o termo “selo” em seu sentido comum, em seu uso habitual
entre os homens. O termo tem três sentidos principais. Primeiro, o selo autentica
ou veicula autoridade. Dois homens fazem um acordo; pode ser a venda de uma
casa ou o acerto de um negócio, ou alguma outra coisa nessa área. Concordaram
nos termos a serem lavrados, mas, como sabemos, esse documento não

será realmente válido, e nem um nem outro ficarão satisfeitos com ele, enquanto
não for “assinado e selado”. Mesmo à assinatura é preciso acrescentar o selo.
Isso torna o acordo mais autêntico, mais absoluto - “assinado e selado”.
Portanto, um selo é aquilo que transmite autoridade, ou estabelece a
autenticidade, a validade, a veracidade de um documento ou de uma declaração.

Outro sentido ligado ao “selo” é que ele é um sinal de propriedade. Usa-se


freqüentemente no caso de animais; o proprietário ou o homem que compra os
animais põe a sua marca ou o seu selo neles para indicar que lhe pertencem. A
mesma coisa se faz com a posse de propriedades, ou, de novo, com documentos.
Isso indica que uma coisa, seja qual for, pertence por direito de propriedade
à pessoa que faz uso desse selo particular. O selo tem uma imagem especial que
pertence unicamente a uma pessoa, e, portanto, quando você vê aquele selo ou
aquela imagem nalguma coisa, você sabe que é propriedade ou posse de uma
determinada pessoa.

Além disso, o selo também é utilizado com fins de segurança. Se você deseja
que uma encomenda chegue bem ao seu destino, pelo correio ou pelo trem, você
não somente a embala e amarra bem, mas também lacra e carimba os nós com
um selo. Se de algum modo o selo for rompido ou estragado, quer dizer que
alguém violou a encomenda. Há um exemplo disso no Novo
Testamento. Quando nosso Senhor foi sepultado, as autoridades romanas e
os judeus ficaram preocupados com o que os Seus seguidores poderiam fazer
com Seu corpo, pelo que rolaram uma pedra sobre a boca do sepulcro e depois o
selaram, por segurança.

Vemos, pois, que há três principais sentidos do termo “selo” -autenticidade e


autoridade; propriedade; e garantia e segurança - e estes significados nos
ajudarão a entender o que quer dizer “selados com o Espírito Santo da
promessa”.

Faremos bem em prestar atenção no uso escriturístico de “selo”, pois termos


dessa espécie geralmente têm o mesmo sentido e a mesma conotação em todas
as partes da Palavra. Observemos dois importantes exemplos de “selo”. No
capítulo 3 do Evangelho Segundo João, lemos: “Aquele que aceitou o seu
testemunho colocou o seu selo de que Deus é verdadeiro” (versículo 33,VA).
Esta é simplesmente outra maneira de dizer que quando um homem crê
no evangelho e o aceita, ele está, por assim dizer, expressando o seu acordo e
autenticando que este é realmente a verdade de Deus, e que o que Deus diz é
verdadeiro. É uma declaração ousada, uma

figura ousada, mas aí está! Seu oposto (embora a palavra “selo” não seja
empregada concretamente) acha-se na Primeira Epístola de João: “Quem a Deus
não crê mentiroso o fez: porquanto não creu no testemunho que Deus de seu
Filho deu” (5:10). Crer no evangelho é colocar o seu selo nele e dizer que ele é
verdadeiro; não crer é virtualmente dizer que Deus é mentiroso.

Mas há um uso ainda mais importante de “selo”, e este se acha no capítulo 6 do


Evangelho Segundo João, onde nos é oferecida uma narrativa que mostra o
nosso Senhor alimentando os cinco mil. Feito isso, Ele colocou os Seus
discípulos num barco e lhes disse que atravessassem o mar; quanto a Ele, subiu a
um monte para orar. Mais tarde, à noite, juntou-Se a eles, e chegaram do outro
lado do lago. Muitas outras pessoas também tinham tomado barcos e cruzado, e
seguiam o nosso Senhor, que Se voltou para elas e disse: “Trabalhai, não pela
comida que perece, mas pela comida que permanece para a vida eterna, a qual o
Filho do homem vos dará; porque a este o Pai, Deus, selou” (versículo 27).
Nessa passagem o nosso Senhor estava dizendo às pessoas que elas deviam ouvi-
lO porque o Pai O havia selado. Não entenderam essas palavras e perguntaram
ao Senhor que obras de Deus elas deviam praticar. Respondeu-lhes o Senhor,
dizendo: “A obra de Deus é esta: que creiais naquele que ele enviou”.
Replicaram Seus ouvintes: “Que sinal, pois, fazes tu, para que o vejamos e
creiamos em ti? Que operas tu?” Que provas nos dás de que és o Filho de Deus,
o Salvador, o Messias? E acrescentaram: “Nossos pais comeram o maná
no deserto, como está escrito: deu-lhes a comer o pão do céu”. Quando Moisés
estava conduzindo o nosso povo no deserto, deu aos nossos antepassados maná
do céu como um sinal; que sinal nos dás? Em certo sentido, o nosso Senhor já
tinha respondido essas perguntas quando disse que Ele tinha sido “selado”, isto
é, autenticado por Deus. Efetivamente Ele diz: Deus mostrou claramente que Eu
Sou o Seu Filho, que Eu, o Filho do homem, sou o Filho de Deus; isso
Ele mostrou selando-Me, dando-Me autoridade, autenticando as
Minhas reivindicações, estabelecendo o Meu ministério e ungindo-Me como o
Messias.

De que modo Deus tinha selado o Senhor Jesus vê-se em toda parte nos
Evangelhos. Deus O tinha selado por ocasião do Seu batismo, enviando sobre
Ele o Espírito Santo em forma de pomba. O Evangelho Segundo João diz-nos
que “não lhe dá Deus o Espírito por medida” (3:34). O Espírito foi enviado sobre
Ele em toda a

Sua plenitude. Embora continuando a ser o Filho de Deus, eterno e igual ao Pai,
Ele Se havia limitado a Si próprio, tinha vindo na forma de servo; e para poder
realizar a Sua obra como o Salvador. Necessitava do poder do Espírito Santo.
Por isso o Espírito Lhe foi dado, não por medida, mas em toda a Sua plenitude.
Foi desse modo que Deus pôs nEle o Seu selo.

Além disso, “eis que uma voz do céu dizia: este é o meu Filho amado, em quem
me comprazo” (Mateus 3:17). Ouviu-se essa voz em três ocasiões, autenticando-
O, selando-O, proclamando que ele é o Filho de Deus, o Messias, o Libertador.
Foi devido Ele ser revestido de poder por Deus, mediante o Espírito Santo, que o
nosso bendito Senhor pôde falar e realizar Suas obras poderosas. Disse Ele: “As
palavras que eu vos digo não as digo de mim mesmo, mas o Pai, que está em
mim, é quem faz as obras” (João 14:10).

Portanto, no que se refere às obras, Ele afirma que está realizando as obras que o
Pai Lhe confiara para realizar. Essa foi a Sua autenticação, e essa se manifestou
em Sua capacidade de expor as Escrituras, embora nunca tenha recebido
instrução para isso. Pessoas que O ouviram disseram: “Nunca homem algum
falou assim como este homem” (João 7:46), pois Ele falava na plenitude
do poder do Espírito. A mesma verdade aplica-se às Suas obras. Ele pôde dizer:
“Se não credes em mim, crede nas obras” (João 10:38). As obras eram Sua
autenticação. Foi esse o argumento que Ele usou no caso de João Batista, que
tinha ficado na incerteza quanto a Ele: “Os cegos vêem, os coxos andam, os
leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e aos pobres
anuncia-se o evangelho” (Lucas 7:22). São essas as coisas que os profetas
haviam dito que o Messias faria; portanto, o fato de que Ele as estava fazendo é
o selo de que Ele era o Messias.

O bispo Westcott resume muito bem o “aquele que o Pai selou” dizendo que
significa “solenemente separado para a incumbência de (uma) responsabilidade,
e autenticado por sinais inteligíveis”. O Pai autenticara o Filho mediante sinais
inteligíveis -os milagres, as obras, as palavras, tudo quanto Lhe diz
respeito. Tendo recebido o Espírito Santo em toda a Sua plenitude, Ele
fora “selado”, fora autenticado.

Vimos, pois, o sentido do termo como se vê no uso comum e também nas


Escrituras; e vimos que em ambos os casos coincide. Quanto ao nosso Senhor, é-
nos dito que foi feita uma declaração dizendo: “Este é o meu Filho amado”, e
que essa foi confirmada por

Suas obras e por Suas palavras. O que quer que os homens Lhe façam, Ele está
credenciado, autenticado como o Filho de Deus e como o Salvador, e ainda que o
inferno seja solto contra Ele, o propósito de Deus será levado a efeito nEle e por
meio dEle. “A este o Pai, Deus, o selou.”

Isso certamente é de grande utilidade quando passamos a considerar o sentido


desse termo com relação a nós. Obviamente deve significar para nós o que
significou para o Senhor. Significa que podemos ser autenticados, que pode ser
estabelecido por sinais inteligíveis que realmente somos filhos de Deus,
herdeiros de Deus e co-herdeiros com o nosso bendito Senhor e Salvador Jesus
Cristo.

Pois bem, para chegarmos ao significado do termo “selo” com ainda maior
clareza, consideremos quando se dá a aplicação do selo. Onde é que a selagem
entra na vida e na experiência do cristão? Tem-se visto que essa é uma questão
interessante e, na verdade, para alguns, um problema. A Versão Autorizada
inglesa diz: “Em quem também vós, depois que crestes, fostes selados com o
Espírito Santo da promessa”. A Versão Revista inglesa (“ERV”) diz: “Em quem
tendo também crido...”; e a Versão Padrão Revista (“RSV”): “também vós, que
crestes nele...”. Portanto, a questão que se levanta é qual tradução está correta.
Quando ocorre esta selagem com o Espírito Santo? Será no momento em que a
pessoa passa a crer, ou depois? A Versão Autorizada, que não é só tradução mas
também exposição, claramente indica que se trata de algo que se segue ao crer,
que é diferente, separado e distinto do crer, e que não faz parte do crer. Somos,
pois, confrontados pela questão: este selo do Espírito Santo é uma experiência
distinta e separada na vida cristã, ou é algo que acontece inevitavelmente com
todos os cristãos, de maneira que não se pode ser cristão sem este selo?

O ensino comum que prevalece atualmente, em especial nos círculos


evangélicos, é que a segunda alternativa é a correta. Segundo esse ensino, a
selagem com o Espírito é algo que acontece imediata e inevitável e
inexoravelmente com todos os que crêem. Mas eu não posso aceitar isso, e para
consubstanciar a minha opinião, menciono o ensino do puritano do século
dezessete, Thomas Goodwin, e, menos extensamente, a do seu contemporâneo
John Owen; também o ensino de Charles Simeon, de Cambridge, há
dois séculos, e de Charles Hodge, de Princeton, E.U.A , em seu comentário desta
Epístola em fins do século dezenove. Esses mestres

traçam aguda distinção entre crer (o ato de fé) e a selagem com o Espírito Santo.
Eles asseveram que as Escrituras ensinam que, conquanto seja verdade que
ninguém pode crer sem a influência do Espírito Santo, não obstante, não é a
mesma coisa que ser selado com o Espírito, e que o ser selado com o Espírito
nem sempre acontece imediatamente quando a pessoa crê. Eles ensinam que
pode haver um grande intervalo, que é possível a pessoa crer, e, portanto, ter o
Espírito Santo, e ainda não conhecer o selo com o Espírito. É certamente óbvio
que os piedosos homens que nos legaram a Versão Autorizada sustentavam essa
idéia, porque introduziram deliberadamente a palavra “depois”.

Geralmente se concorda que a Epístola não diz: “Em quem também vós, crendo,
estais selados com o Espírito Santo”. O verbo está no passado; não é “como
crieis” ou “quando crieis”; é no mínimo, “tendo crido”. A Versão Revista (RV)
sugere o passado, “tendo também crido, fostes selados com o Espírito Santo da
promessa”; minha opinião é que mesmo a frase “tendo crido” sugere que
estas duas coisas não são idênticas e que o selo não acompanha imediatamente o
ato de crer. O que torna isso tão importante é que se supõe que o selo com o
Espírito, ou o batismo com o Espírito, é algo que todos os cristãos têm que ter
necessariamente experimentado. Sustenta-se, pois que não é algo que ocorre na
esfera da consciência ou na esfera da experiência, e sim, algo que acontece com
todos os cristãos inconscientemente. Daí não o buscam. E a conseqüência de não
o buscarem é que nunca o experimentam; e, em conseqüência, vivem num estado
de fide-ismo ou crede-ismo, dizendo a si mesmos que eles têm que ter recebido
isso, e portanto, o têm. E assim continuam a viver sem jamais experimentar o
que foi experimentado pelos cristãos do Novo Testamento e também por muitos
outros cristãos na subseqüente história da Igreja Cristã.

Por isso eu afirmo que este “selados com o Espírito” é algo subseqüente ao crer,
algo adicional ao crer, e dou suporte à minha alegação lembrando-lhes algumas
declarações das Escrituras. Primeiro vou ao capítulo 14 do Evangelho Segundo
João. Ali o nosso Senhor Se dirige aos Seus discípulos crentes. Ele traça
aguda distinção entre eles e o mundo, e lhes diz que o Espírito Santo lhes será
dado como outro Consolador porque eles pertencem a Deus. Diz Ele que o
mundo não pode recebê-10, mas que eles estão prestes a recebê-lO. A distinção é
entre crentes e não crentes. No capítulo 16 Ele acrescenta: “Digo-vos a verdade,
que vos convém

que eu vá; porque, se eu não for, o Consolador não virá a vós”. Sua vinda é uma
grande bênção, à qual deverão estar aguardando. Deveriam alegrar-se, diz Ele,
que Ele vá ao Pai, porque assim esta bênção lhes virá. Ele está falando com
crentes; mas lhes diz que eles vão receber uma bênção adicional. Passando aos
dois primeiros capítulos do livro de Atos, vemos, que o ensino é ainda
mais claro. O nosso Senhor está falando com homens sobre os quais Ele já tinha
“soprado” o Espírito Santo, e aos quais Ele dissera: “Recebei o Espírito Santo”
(João 20:22); todavia, lemos em Atos, capítulo primeiro, “E, estando com eles,
determinou-lhes que não se ausentassem de Jerusalém, mas que esperassem a
promessa do Pai, que (disse Ele) de mim ouvistes. Porque, na verdade, João
batizou com água, mas vós sereis batizados com o Espírito Santo, não
muito depois destes dias” (versículos 4 e 5). Eles já criam nEle plenamente; Ele
já tinha soprado o Espírito sobre eles; contudo, diz a eles que esperem. Eles
tinham necessidade de mais alguma coisa. E no capítulo 2 de Atos temos uma
narrativa de como veio a bênção; exatamente o que o nosso Senhor tinha
prometido aconteceu dez dias depois. É evidente que os discípulos já eram
crentes nEle antes disso. E absurdo sugerir que eles não eram crentes antes do
dia de Pentecoste. Eram plenamente crentes no Senhor Jesus Cristo. Ele lhes
expusera a doutrina da expiação e eles a entenderam após a Sua ressurreição. Ele
soprara sobre eles o Espírito. Eles sabiam que ele era o Filho de Deus. Tomé
fizera a sua confissão “Senhor meu, e Deus meu!” Contudo, eles ainda não
tinham recebido o Espírito Santo. No Pentecoste é que eles foram “selados”; foi
ali que lhes foi dada a autenticação; e foi ali que começou o glorioso
ministério deles.

No capítulo 8 do livro de Atos dos Apóstolos vemos que Filipe evangelizou os


samaritanos, resultando daí que muitos samaritanos creram no evangelho. É-nos
dito explicitamente que, tendo ouvido esta mensagem, eles creram: “Mas, como
cressem em Filipe, que lhes pregava acerca do reino de Deus, e do nome de
Jesus Cristo, se batizavam, tanto homens como mulheres” (versículo 12).
Eles creram no Senhor Jesus Cristo, e Filipe ficou satisfeito com o que fizeram,
pelo que os batizou. Todavia no versículo 16 lemos: “Porque sobre nenhum deles
tinha ainda descido (o Espírito Santo); mas somente eram batizados em nome do
Senhor Jesus”. Depois Pedro e João desceram de Jerusalém a Samaria e, “tendo
descido, oraram por eles para que recebessem o Espírito Santo. (Porque sobre

nenhum deles tinha ainda descido; mas somente eram batizados em nome do
Senhor Jesus). Então lhes impuseram as mãos, e receberam o Espírito Santo”. Já
eram crentes, já tinham crido no Senhor Jesus Cristo. Não poderiam tê-lo feito se
o Espírito Santo não operasse neles e não lhes abrisse os corações e as mentes.
Mas o “selo” ainda não lhes tinha sido dado. Houve um intervalo. Como é
errôneo dizer que a pessoa crê e imediatamente é selada pelo
Espírito! Certamente não foi o que aconteceu com estes samaritanos,
como tampouco acontecera com os apóstolos.

No capítulo 9 do livro de Atos dos Apóstolos temos o relato da conversão de


Saulo de Tarso. Ele creu no Senhor Jesus Cristo como resultado do que lhe
aconteceu no caminho de Damasco; contudo não foi senão três dias depois que
ele recebeu o Espírito Santo e dEle foi cheio, graças ao ministério de Ananias.

No capítulo 15 do livro de Atos temos um acontecimento similar. O apóstolo


Pedro está se defendendo por ter recebido Comélio e sua família na Igreja Cristã
e por batizar gentios. Diz o registro: “E havendo grande contenda, levantou-se
Pedro e disse-lhes: varões irmãos, bem sabeis que já há muito tempo Deus me
elegeu dentre vós, para que os gentios ouvissem da minha boca a palavra do
evangelho, e cressem. E Deus, que conhece os corações, lhes deu testemunho
(autenticou-os), dando-lhes o Espírito Santo, assim como também a nós”. Deus
lhes tinha dado testemunho, Deus estabelecera o fato de que eles tinham crido e
verdadeiramente eram Seus dando-lhes o Espírito Santo. Ele “selou-os”

Outro exemplo deste selo vê-se no capítulo 19 do livros de Atos. Paulo chegou a
Efeso, “e achando alguns discípulos, disse-lhes” - segundo a Versão Autorizada
(inglesa) - “Recebestes o Espírito desde quando crestes?” (versículo 2). Mas
aVersão Revista (“RV”) e a Versão Padrão Revista (“RSV”) oferecem uma
tradução que diz: “Recebestes o Espírito Santo quando crestes?” (semelhante ao
que diz Almeida). Não pode haver dúvida de que esta última é a tradução
correta. Muitos acham que isso estabelece e prova que crer e receber o Espírito
Santo são atos sincrônicos. Eles lamentam que a Versão Autorizada tem levado
muitos a pensarem que é possível alguém crer e não receber o Espírito Santo
senão mais tarde.

No entanto, isso não resolve o nosso problema; de fato eu afirmo que, longe de
apoiar a idéia de que o recebimento do Espírito Santo sempre acompanha
imediatamente o ato de crer, esta

correta tradução de Atos capítulo 19, versículo 2 faz exatamente o oposto.


Confesso que uma vez caí em erro nesta questão. O opúsculo que traz o meu
nome intitulado Cristo, a nossa santificação (“Christ our sanctification”), inclui
o argumento segundo o qual, se tão-somente seguirmos a Versão Revista, e não a
Versão Autorizada, veremos que não há intervalo algum entre o crer e o selar.
Confesso meu erro de antes. Realmente caí nesse erro porque estava preocupado
em mostrar que a santificação não é uma experiência que se recebe após a
justificação. Isso eu ainda afirmo. Mas naquele tempo eu estava enganado
quanto ao “selo”, como passo a demonstrar.

Quando o apóstolo perguntou aos “discípulos”, “Recebestes o Espírito Santo


quando crestes?”, a implicação certamente é óbvia. E que os homens podem crer
sem receberem o Espírito Santo. Se as duas coisas acontecessem inevitavelmente
juntas, seria uma pergunta desnecessária, e o apóstolo simplesmente perguntaria
se eles eram crentes. Entretanto não é isso que o apóstolo lhes pergunta. Sua
pergunta é: “Recebestes o Espírito Santo quando crestes?” Noutras palavras,
quando ele falou com aqueles homens, logo viu que eles não tinham o selo do
Espírito Santo , que eles não tinham recebido o Espírito Santo. Por isso lhes diz
efetivamente: olhem, vocês se dizem crentes, mas receberam o Espírito Santo
quando creram? Receberam-nO, vocês que se dizem crentes? Meu parecer, pois,
é que a tradução correta de fato indica claramente que há distinção entre as duas
coisas. Cremos, e, naturalmente, só podemos crer graças à operação do Espírito,
mas pode ser que ainda não tenhamos recebido o selo do Espírito.

Os eventos subseqüentes nesta narrativa acerca de Paulo e os “discípulos” de


Éfeso esclarecem ainda mais o assunto. O apóstolo começa a examiná-los, e
indaga: “Em que sois batizados então?” E eles disseram: “No batismo de João”.
“Mas Paulo disse: certamente João batizou com o batismo do arrependimento,
dizendo ao povo que cresse no que após ele havia de vir, isto é, em Jesus Cristo.
E os que ouviram foram batizados em nome do Senhor Jesus” (versículos 4-5).
Paulo jamais os teria batizado, se eles não tivessem crido. Eles creram e
aceitaram o que Paulo disse, e assim foram batizados. O que quer que tenham
sido antes, agora evidentemente eram crentes, Mas então lemos: “E impondo-
lhes as mãos, veio sobre eles o Espírito Santo; e falavam línguas e profetizavam”
(versículo 6). Eles tinham crido, porém ainda lhes faltava o “selo do Espírito”.
Só foram selados quando Paulo lhes impôs as mãos. Certamente este

incidente prova que os homens que nos legaram a Versão Autorizada estavam
interpretando Efésios capítulo 1, versículo 13 corretamente. Eles estavam
teologicamente certos ao dizerem: “Em quem também vós, depois que crestes,
fostes selados com o Espírito Santo da promessa”. Houve um intervalo entre o
seu ato de crer e o ato de serem selados, como foi no caso do próprio Paulo e de
todos os apóstolos, como foi no caso dos samaritanos, como foi no caso dos
discípulos de Éfeso.

Contudo, deixemos claro que, embora eu esteja acentuando que há uma distinção
entre estas duas coisas, e que sempre há um intervalo - que o ser selado não
acontece imediata e automaticamente no ato de crer - eu não gostaria que
entendessem que estou dizendo que sempre tem que haver um longo intervalo
entre ambos. Pode ser um intervalo muito curto, tão curto que pode fazer parecer
que crer e ser selado são simultâneos; mas há sempre um intervalo. Primeiro o
crer, depois o selo. Unicamente os crentes são selados; e você pode ser um crente
e não ter sido selado; as duas coisas não são idênticas. Crer é que nos torna
filhos de Deus, que nos une a Cristo; ser selado com o Espírito Santo é que
autentica esse fato. O selo não nos faz cristãos, porém autentica o fato, como faz
o selo em geral.

A NATUREZA DA SELAGEM (1)

“Em quem, depois que crestes, fostes selados com o Espírito Santo da
promessa.” - Efésios 1:13

Devemos apegar-nos mais de perto a esta importante declaração porque, como


sugeri, é uma das mais vitais declarações para nós cristãos na hora presente. Se
me pedissem um diagnóstico do que há de errado com a Igreja Cristã hoje, e de
qual tem sido o seu principal problema já por vários anos, eu diria que é a sua
incapacidade de entender esta declaração. Visto que, por certos motivos, temos
interpretado mal o ensino dos apóstolos, falta à Igreja poder vital em sua
qualidade de testemunha, e ela tem recorrido a meios e métodos nem sempre
coerentes com o ensino das Escrituras. O mundo deixou de interessar-se pelo
cristianismo porque os cristãos não têm manifestado a vida cristã como esta
deveria ser vivida. A história da Igreja Cristã através dos séculos mostra que
todos os avivamentos foram resultantes de um despertamento da Igreja no seio
do povo de Deus. O avivamento começa na Igreja e se espalha para fora. Uma
igreja sem vitalidade e moribunda nunca realiza nada de duradouro, mas quando
acontece alguma coisa na Igreja, o mundo fica sabendo; sua curiosidade é
despertada e, como no dia de Pentecoste, ele começa a perguntar que é que
certos fenômenos significam. É assim a história de todos os avivamentos; é
como Deus age. Primeiro Ele aviva a Igreja e o Seu povo.

Para estarmos firmes nessas coisas, primeiro temos que estabelecer a nossa
doutrina, pois, se não estivermos satisfeitos quanto à doutrina, nunca haverá a
probabilidade de a experimentarmos. E é porque tantos sustentam uma doutrina
errônea quanto a esta questão do selo do Espírito, que lhes falta a experiência
disso. Observo, primeiramente, que o apóstolo nos dá frutuosa sugestão
quando afirma que os crentes efésios tinham sido “selados com o Espírito Santo
da promessa”. Ele não diz apenas: “Fostes selados com o Espírito Santo”, porém
se refere especificamente ao “Espírito Santo da promessa”. Realmente o que o
apóstolo disse foi: “Fostes

selados com aquele Espírito daquela promessa que é santa”. Essa é a tradução
exata. Ele repete a palavra “aquele(a)” - “aquele Espírito daquela promessa que é
santa”. Evidentemente, ele focaliza a nossa atenção em “aquela promessa”, no
Espírito Santo daquela promessa; o que significa: “Fostes selados com aquele
Espírito Santo que fora prometido”, o Espírito em relação a quem certas
promessas tinham sido feitas. É simples provar que em todas as Escrituras
há esta promessa concernente à vinda e à dádiva do Espírito Santo daquela
maneira particular que aconteceu em Jerusalém, no dia de Pentecoste.
Consideremos algumas das passagens que indicam isso.
Na profecia de Isaías há muitas referências ao dia em que o Espírito Santo seria
derramado. Pode-se dizer isso principalmente do capítulo 40 até o fim. O povo
foi ensinado a aguardar esse evento. Na profecia de Ezequiel vê-se também de
maneira notável, especialmente nos capítulos 36 e 37, com promessas do
Espírito vivificante. Deus tirará o coração “de pedra” da “casa de Israel” e lhe
dará “corações de carne”; derramará Seu Espírito sobre eles. Mas talvez o
exemplo mais notável seja o que nos é dado no capítulo 2 do profeta Joel. Foi
essa a passagem que o apóstolo Pedro citou e expôs no dia de Pentecoste,
imediatamente depois que ele e os seus colegas de apostolado foram batizados
com o Espírito Santo. Ao ser interrogado, e ao ouvir a insinuação de que ele e
os seus companheiros estavam bêbados, Pedro ouviu o povo dizer: “Estão cheios
de mosto”, e começou ele a falar, dizendo: “Estes homens não estão
embriagados, como vós pensais, sendo a terceira hora do dia. Mas isto é o que
foi dito pelo profeta Joel”. Então expôs o ensino de Joel ao povo. A profecia
dizia: “Nos últimos dias acontecerá, diz Deus, que do meu Espírito derramarei
sobre toda a carne; e os vossos filhos e as vossas filhas profetizarão, os
vossos mancebos terão visões, e os vossos velhos sonharão sonhos”, e assim por
diante. “Esse é o Espírito da promessa”, diz o apóstolo; Deus fez o que tinha
prometido por meio dos profetas naqueles tempos antigos. Esse é o sentido da
expressão: “O Espírito da promessa”.

Voltando do Velho Testamento para o Novo, temos a mesma evidência. Essa era
a essência da pregação de João Batista. Esta era a mensagem de João: “Eu, na
verdade, batizo-vos com água, mas eis que vem aquele que é mais poderoso do
que eu, a quem eu não sou digno de desatar a correia das alparcas; esse vos
batizará com o Espírito Santo e com fogo. Ele tem a pá na sua mão, e limpará a
sua

eira, e ajuntará o trigo no seu celeiro, mas queimará a palha com fogo que nunca
se apaga” (Lucas 3:16-17). Ele contrasta “Eu, na verdade batizo-vos com água”,
com “Esse vos batizará com o Espírito Santo e com fogo. Essa é a promessa. O
precursor do Messias chama a atenção para a diferença” que há entre o seu
ministério e o do nosso Senhor em termos da vinda do Espírito: “Esse vos
batizará com o Espírito Santo e com fogo”.

O nosso Senhor ensinou a mesma mensagem. Vejam, por exemplo, a declaração


que se acha no capítulo 11 do Evangelho Segundo Lucas, especialmente no
versículo 13, que diz: “Se vós, sendo maus, sabeis dar boas dádivas aos vossos
filhos, quanto mais dará o Pai celestial o Espírito Santo àqueles que Iho
pedirem?” Isso nos ensina o nosso Senhor concernente à dádiva do Espírito
Santo pelo Pai; e notem que isso está no contexto da importunação pela oração.
Há aqueles que, sobre bases dispensacionalistas, afirmam que isso não se aplica
a nós. Eles excluem de nós completamente muito do ensino do Senhor como
vem registrado nos Evangelhos. Segundo eles, o Sermão do Monte não se aplica
a nós. Era para os judeus daquele tempo, e se aplicarão de novo, numa era
vindoura. Mas, certamente, isso é totalmente inaceitável. O ensino do
nosso Senhor é para todos nós. Ele disse aos Seus apóstolos, quando estava para
deixá-los, que eles deveriam ensinar e pregar todas as coisas que Ele tinha dito;
“E”, disse Ele, “eis que estou convosco todos os dias, até à consumação dos
séculos”. Ele deu a eles o Espírito para capacitá-los a obedecer Seus
mandamentos. E entre os ensinos que lhes deu está, “Quanto mais dará o Pai
celestial o Espírito Santo àqueles que Iho pedirem?” (Lucas 11:13).

Há mais uma declaração significativa no capítulo 7 do Evangelho Segundo João,


versículos 37 a 39, que trata diretamente desta matéria, e especialmente o
comentário feito por João. “No último dia, o grande dia da festa, Jesus pôs-se em
pé, e clamou, dizendo: “Se alguém tem sede, venha a mim e beba. Quem crê em
mim, como diz a Escritura, rios de água viva correrão do seu ventre.” Então vem
o comentário de João: “E isso disse ele do Espírito que haviam de receber os que
nele cressem; porque o Espírito Santo ainda não fora dado, por ainda Jesus não
ter sido glorificado”. Temos aí, mais uma vez , um claro ensino quanto a este
“Espírito Santo da promessa”. “Os que crêem em mim” - e não outros -
diz Cristo, vão recebê-10. E João nos lembra que esta profecia diz respeito a algo
que aconteceria no futuro.

Passando, então, ao capítulo 14 do Evangelho Segundo João, já vimos que essa


passagem faz parte das evidências sobre esta questão. O nosso Senhor estava
prestes a encarar a morte e a deixar os discípulos. Eles estavam abatidos, seus
corações estavam inquietos, e eles achavam que a vida seria impossível sem Ele.
Mas Ele lhes diz: “Não se turbe o vosso coração; credes em Deus, crede
também em mim” (versículo 1), e depois, prosseguindo, diz-lhes: “Eu rogarei ao
Pai, e ele vos dará outro Consolador” (versículo 16). Noutras palavras, Ele lhes
promete que o Espírito Santo virá. Os capítulos 14,15 e 16 do Evangelho
Segundo João estão cheios de promessas concernentes à vinda do Espírito Santo
e ao que Ele irá fazer aos crentes verdadeiros e por eles.

Finalmente chegamos então à crucial declaração registrada no capítulo primeiro


do livro de Atos, à qual já nos referimos (versículos 4-8). O Senhor lhes ordenou
que não saíssem de Jerusalém, porém aguardassem a promessa do Pai, “O
Espírito Santo da promessa”, bênção sobre a qual João Batista e Ele, o Senhor,
tinham ensinado. Nessa passagem, após a Sua ressurreição , Ele a está
prometendo mais uma vez, e de novo a contrasta com o batismo de João. Depois,
para rematar tudo, no capítulo 2 de Atos, no versículo 33, vemos a importante
declaração feita pelo apóstolo Pedro depois do grandioso acontecimento que se
dera com ele e com os outros apóstolos: “De sorte que, exaltado pela destra de
Deus, e tendo recebido do Pai a promessa do Espírito Santo, derramou isto
que vós agora vedes e ouvis”. Disse Pedro que o Espírito Santo, prometido havia
muito tempo, fora afinal dado ao Filho em vista da Sua obra perfeita, e o Filho O
tinha derramado. O Espírito Santo que fora prometido tinha sido dado
efetivamente. Minha derradeira citação é Gálatas capítulo 3, versículo 14: “Para
que a bênção de Abraão chegasse aos gentios por Jesus Cristo, e para que pela fé
nós recebamos a promessa do Espírito”. Todas estas passagens indicam que esta
é, indubitavelmente, a explicação do que o apóstolo quer dizer com “o Espírito
Santo da promessa”.

Então, em que sentido se pode dizer que o Espírito Santo não foi dado antes do
dia de Pentecoste? Evidentemente não significa que o Espírito Santo não tinha
sido dado de forma alguma, ou em nenhum sentido, até o dia de Pentecoste. Não
pode ser isso, porque vemos que mesmo os homens da dispensação do Velho
Testamento tinham o Espírito. O que Davi mais temia, depois que cometeu
os terríveis pecados de adultério e homicídio, vê-se em sua oração:

“Não retires de mim o teu Espírito Santo” (Salmo 51:11). O Espírito Santo
estava em Davi; ele foi o homem que foi porque o Espírito Santo estava nele.
Perder o Espírito era a coisa que ele temia acima de tudo mais. Fizesse Deus
com ele o que fosse para puni-lo, ele roga a Deus que não retire o Seu Espírito.
O Espírito Santo estava em todos os santos do Velho Testamento - em Abraão,
Isaque, Jacó, e em todos os eleitos de Deus. Foi o Espírito neles que fez deles
o que eles foram. Eles eram filhos da fé; e, como Paulo nos diz, nós, como
cristãos, somos todos filhos de Abraão porque somos filhos da fé. Abraão,
Isaque, Jacó, Davi e os demais estavam no reino de Deus. Nenhum homem pode
estar no reino de Deus a não ser que seja filho de Deus; e não pode ser filho de
Deus sem o Espírito. O Espírito estava em todos esses homens. A nossa posição
é que estamos compartindo com eles, fomos feitos co-herdeiros com eles
destas bênçãos de Deus.

Nesse sentido os discípulos do nosso Senhor tinham recebido o Espírito muito


antes do dia de Pentecoste. Eram crentes; e num certo aposento o nosso Senhor
tinha soprado sobre eles, dizendo: “Recebei o Espírito Santo”. Isso foi antes do
dia de Pentecoste (João 20:22). Eles não somente haviam crido, mas também
tinham sido capacitados a realizar certas grandes obras, e, contudo, Ele
ainda lhes promete o Espírito Santo. A esses mesmos homens sobre os quais
naquela ocasião soprara o Espírito Ele diz: Vós recebereis isto, “sereis batizados
com o Espírito Santo; não muito depois destes dias” (Atos 1:5). E isso aconteceu
no Pentecoste.

Portanto, a interpretação da declaração que consta em João capítulo 7 versículo


39: “O Espírito Santo ainda não fora dado, por ainda Jesus não ter sido
glorificado”, é que o Espírito Santo ainda não fora dado desta maneira particular.
Já tinha sido dado das outras maneiras, porém não desta. Esta é uma bênção
particular que ainda não tinha chegado; eles tinham tido outras bênçãos, eram
crentes, e é como crentes que eles receberiam esta bênção adicional. Assim,
evidentemente, esta “promessa do Pai” é uma dádiva especial do Espírito Santo
que tinha sido prometida através dos séculos, e finalmente pelo próprio Senhor, e
mais, pelo Senhor ressurreto. E o Pentecoste viu o seu cumprimento.

Ao definirmos esse cumprimento, devemos começar com várias negativas.


Somos levados a fazê-lo por causa do entendimento errôneo desse assunto. Fazer
declarações positivas não é suficiente;

é preciso que sejamos negativos primeiro, para corrigir o que consideramos falso
ensino. Evidentemente, pois, este selo com o Espírito prometido não significa a
obra do Espírito Santo na regeneração, ou no arrependimento, ou na fé. Que os
apóstolos não eram regenerados antes do dia de Pentecoste, é uma idéia
impossível. Como vimos, é evidente que eles tinham nascido de novo antes
daquele dia, e que tinham recebido o Espírito Santo. Eles criam no
Senhor, tinham se arrependido, tinham recebido nova vida.

Mas talvez alguém argumente que isso foi antes do Pentecoste e que desde o
Pentecoste estas duas coisas acontecem juntas. A resposta a essa alegação é dada
pelo caso dos samaritanos, no capítulo 8 do livro de Atos, os quais tinham crido
no evangelho como resultado da pregação de Filipe. Eles tinham crido no Senhor
Jesus Cristo - o que não se pode fazer sem o Espírito Santo - eles
tinham exercido a fé, tinham nascido de novo, tinham se arrependido e crido e
tinham sido batizados; entretanto ainda não tinham recebido o Espírito no
sentido de “selo”. E isso não se aplica só aos samaritanos, mas também ao
próprio Paulo, e igualmente aos discípulos efésios no capítulo 19 de Atos.

Segundo, o cumprimento não se refere à unção que nos é dada pelo Espírito
Santo para o nosso entendimento espiritual. Que a unção provém do Espírito
Santo Paulo deixa mais que claro em sua Primeira Epístola aos Coríntios,
capítulo 2. Os príncipes deste mundo não reconheceram o nosso Senhor e não
creram nEle. Mas nós O reconhecemos e cremos nEle porque o Espírito, que
revela todas as coisas, até as profundezas de Deus, capacitou-nos, a nós, crentes,
a fazê-lo. “Vós tendes a unção do Santo”, diz João em sua Primeira Epístola
(2:20,27). É evidente que este selo com o Espírito não se aplica aí, porque
podemos ter essa unção e entendimento espiritual e ainda não conhecer este selo,
como está provado no último capítulo do Evangelho Segundo Lucas, onde lemos
que o nosso bendito Senhor e Salvador, tendo ressuscitado dos mortos, conduziu
os Seus discípulos através das Escrituras - os Salmos, os Profetas e Moisés - e
lhes mostrou a verdade concernente a Ele próprio. Eles a receberam; e não
poderiam recebê-la sem a iluminação do Espírito Santo; mas ainda não tinham
recebido a bênção especial que lhes veio no dia de Pentecoste.

Terceiro, e particularmente importante, o selo com o Espírito não é santificação.


Acreditar que é tem sido o principal erro com relação a este assunto. Que o selo
do Espírito não significa

santificação pode-se provar pelo fato de que não há brecha ou intervalo entre a
justificação e a santificação. O ensino das Escrituras é que no momento em que a
pessoa “nasce de novo”, sua santificação começa, ou deve começar. O processo
de fazê-la santa e de separá-la para Deus já começou. Não há maior erro do que
ensinar que você pode receber a sua justificação pela fé e depois a
santificação pela fé. A santificação não é uma experiência, nem um dom que
se recebe; é uma obra realizada pelo Espírito Santo no coração, obra que começa
no momento da regeneração. Portanto, este selo com o Espírito Santo não pode
ser a santificação; na verdade, nada tem que ver com ela, num sentido direto. E
algo completamente distinto e separado.

O que ajuda a entender este ponto é o fato de que, ao descrever este selo, o
apóstolo se refere a ele como algo que aconteceu no passado - “Em quem, depois
que crestes, fostes selados”. Mas a santificação não é uma coisa que acontece
uma vez por todas; é um processo que prossegue crescentemente e se desenvolve
mais e mais. Os gálatas estavam em condições muito pobres, quanto
à santificação; todavia, Paulo afirma que eles tinham recebido o Espírito neste
sentido de “selo”. A mesma coisa aplica-se à Igreja de Corínto, e de maneira
ainda mais extraordinária. O selo é uma experiência, algo que Deus nos faz, e
nós ficamos sabendo quando acontece. Não se pode dizer isso acerca da
santificação, que é uma obra que Deus realiza nas profundezas da alma,
convencendo do pecado, levando a melhores desejos. É uma obra que vai
avante firme e progressivamente, começando no momento do nosso
novo nascimento. Contudo, está claro que pode haver, e geralmente há, um
intervalo entre o ato de crer e o selo. Logo, o selo com o Espírito e a santificação
não são a mesma coisa.

Vou mais longe ainda e digo que o selo com o Espírito não é nem mesmo uma
manifestação do fruto do Espírito . “O fruto de Espírito é amor, gozo, paz,
longanimidade, benignidade”. Afirmo que se pode manifestar tal fruto sem
necessariamente haver conhecimento do “selo do Espírito”, pois a produção
desse fruto faz parte da obra do Espírito dentro de nós, obra que prossegue firme
e constantemente no processo de santificação. O fruto não aparece de repente; é
o resultado de um processo, é um desenvolvimento gradual, um
amadurecimento. Há os que desenvolvem e mostram o fruto do Espírito, mas
não podem dizer que conhecem o “selo do Espírito”.

Uma vez mais, negativamente, o selo do Espírito não significa “certeza” da


salvação resultante da nossa fé na Palavra ou de argumentos extraídos da
Palavra. O ensino comum concernente à certeza da salvação é que a maneira
pela qual se dá certeza às pessoas é levá-las às Escrituras e depois perguntar-
lhes: “Vocês crêem que esta é a Palavra de Deus?” Se elas dizem que crêem,
mostra-se a elas que as Escrituras dizem: “Quem crê tem a vida eterna”,
com muitas outras passagens, como por exemplo, “Quem crê nele não
é condenado”; “Deu a amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho
unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida
eterna” (João 3:16,18). Depois lhes perguntam: “Vocês crêem nEIe?” Se crêem,
tornam a dizer-lhes: “A Palavra afirma que se vocês crêem nEle, vocês têm a
vida eterna”. Assim, se elas crêem, só podem ter a vida eterna, e isso se torna a
base da sua certeza de salvação. Esta é deduzida daquela forma das
Escrituras. Mas isso não é o selo do Espírito, embora seja certo, dentro dos
seus limites.

Outro tipo de certeza é a que se obtém mediante argumentação baseada na


Primeira Epístola de João, uma Epístola muito interessada na questão da certeza
da salvação. Conforme João, há vários testes que se pode aplicar neste sentido.
Por exemplo, “Nós sabemos que passamos da morte para a vida, porque amamos
os irmãos” (3:14). Outro é que sabemos se somos cristãos se “guardamos os seus
mandamentos”, e se cremos no Senhor Jesus Cristo, e assim por diante. Se
podemos dizer sinceramente que amamos os que pertencem a Deus e preferimos
a companhia deles à de qualquer outro, devemos ser cristãos. E se chegarmos a
uma similar resposta satisfatória às outras perguntas, podemos estar certos de
que somos cristãos verdadeiros, sejam quais forem as dúvidas que acaso surjam
em nossos corações. Estes testes da Primeira Epístola de João são mais
completos e melhores do que os que se baseiam objetivamente na Bíblia. Mas os
dois tipos de testes, tomados juntos, dão fortes bases para a certeza. E, contudo,
estou sugerindo que o selo do Espírito é mais do que o que temos considerado
até aqui. É uma forma de certeza mais forte e mais elevada. Inclui as bênçãos
mencionadas, mas vai além delas. É o Espírito em nós que nos capacita a fazer o
que já descrevi; no entanto, o selo do Espírito é algo adicional a isso, e é algo
que nos é feito pelo Espírito.

Minha última negativa consiste em dizer que o selo não é a plenitude do


Espírito, pois mais adiante, na Epístola aos Efésios,

veremos que o apóstolo dá um mandamento, faz uma exortação, na qual diz:


“Enchei-vos do Espírito”, o que significa “Ide-vos enchendo do Espírito” (5:18).
Portanto, isso é algo que eu e vocês podemos controlar. Se entristecermos o
Espírito ou extinguirmos o Espírito, não seremos cheios do Espírito. De qualquer
forma, é algo que deve ser um estado ou uma condição perpétua; devemos “ir
nos enchendo” do Espírito. Mas, na passagem que estamos estudando,
ao descrever este “selo”, o apóstolo se refere a algo que aconteceu no passado.
“Fostes selados”, diz ele, sabem que aconteceu isso; e, além disso, foi algo feito
a vocês, não algo que vocês fazem. Por isso é minha opinião que devemos traçar
uma distinção entre o selo do Espírito e a “plenitude do Espírito”, ou “sermos
cheios do Espírito”.

Não é de admirar que sejamos propensos a confundir-nos acerca destas questões;


é tudo devido a limitação da nossa linguagem humana; e às vezes parece que as
expressões são utilizadas de maneira intercambiável. Permitam-me ilustrar o que
quero dizer. No capítulo primeiro de Atos o Senhor prometeu aos discípulos
que eles seriam “batizados com o Espírito Santo não muito depois destes dias”,
porém, quando passamos ao capítulo 2, aos grandes eventos do dia de
Pentecoste, vemos que o cumprimento da promessa é descrito, não como
“batizados com o Espírito”, mas como sendo “cheios” do Espírito Santo. O que
aconteceu lá foi o cumprimento do que o nosso Senhor profetizara como, “Sereis
batizados com o Espírito Santo”. Todavia, a palavra “batizados” não é
empregada no capítulo 2; a palavra empregada é “cheios”. Evidentemente,
as expressões são utilizadas intercambiavelmente.

Ao que parece, a explicação é que o batismo com o Espírito Santo é a primeira


experiência da plenitude do Espírito; é o Espírito derramado sobre nós nessa
plenitude excepcional. A primeira vez que alguma coisa notável acontece, é
sempre única. Aconteceu com os apóstolos, aconteceu com Cornélio, aconteceu
com os samaritanos, aconteceu com os efésios, aconteceu com os gálatas, e vem
acontecendo com os cristãos através dos séculos, como mostrarei.

A opinião que dou, pois, é que o “batismo com o Espírito” é o mesmo que “selo
com o Espírito”. Mas alguém poderá perguntar: “Então, por que usar duas
expressões diferentes?” Se o que se quer dizer é batismo, por que não dizer
batismo? Na verdade, por que

Pneumatologia (Pneumatology), que é um de uma série sobre teologia bíblica e


que é excelente em muitos aspectos, quando se trata da doutrina do selo do
Espírito Santo tem o arrojado título “O Selo do Espírito, não experimental”. Isso
é característico do ensino sobre esse assunto durante o século atual, e, na
verdade, desde meados do século passado. Grande ênfase também é dada ao fato
de que o batismo do Espírito Santo ou o batismo com o Espírito Santo não
é nada experimental.

Isso é pertinente à nossa discussão sobre este assunto. O livro a que me referi
declara categoricamente: “Não há nenhuma experiência ou sentimento em
relação ao batismo do Espírito”. A explicação do motivo pelo qual esse escritor
diz uma coisa dessas é muito simples. Ele acha que tem que dizer isso em vista
do que se acha na Primeira Epístola aos Coríntios, capítulo 12, versículo 13,
onde Paulo diz: “Pois todos nós fomos batizados em um Espírito formando
um corpo”. Essa, alegam eles, é obviamente uma referência ao batismo do
Espírito Santo; e daí eles concluem que o batismo do Espírito Santo
evidentemente se refere à ação de Deus na qual Ele nos incorpora no corpo de
Cristo. É, pois, uma ação de Deus que se aplica a todos os crentes, na qual eles
são inconscientemente incorporados no corpo de Cristo. O argumento se baseia
no fato de que sucede que a palavra “batismo” é utilizada neste versículo
particular.
Uma real dificuldade surge neste assunto em conexão com a palavra “batismo”.
Pressupõe-se que onde quer que as palavras “Espírito” e “batismo” se achem
numa mesma declaração, o sentido deve ser sempre o mesmo, e assim se conclui
que o batismo do Espírito significa a nossa incorporação em Cristo, o que é
um evento inteiramente alheio à consciência e à esfera da experiência da pessoa.
A falácia aqui certamente se deve à incapacidade de compreender que a palavra
“batizar” é empregada de muitas maneiras diferentes nas Escrituras. De um
modo ou de outro, esta palavra “batismo” parece ter um efeito hipnótico sobre
nós e sobre as nossas mentes e o nosso pensamento. Vejam, por exemplo,
uma declaração feita pelo nosso bendito Senhor: “Importa, porém, que (eu) seja
batizado com um certo batismo; e como me angustio até que venha a cumprir-
se!” (Lucas 12:50). É óbvio que o nosso Senhor não estava se referindo à água
do batismo; isso já lhe havia sucedido. Ele não estava dizendo que ia ser
rebatizado nesse sentido. Ele estava se referindo à Sua provação e à Sua morte
que se avizinhavam. Isso é comparável ao que muitas vezes se diz a um

soldado que pela primeira vez participa de fato de uma batalha. O que se diz é
que com isso ele recebe um batismo de fogo. Há muitos usos especiais e
diferentes com relação a esta palavra “batismo”, e a declaração de 1 Coríntios
12:13 é apenas um deles. Somos colocados nos domínios de Cristo pelo Espírito
Santo, e em Seu corpo, que é a Igreja. Todos os cristãos são desse modo feitos
membros em particular do corpo de Cristo. Mas não se segue que esse é o
único sentido possível da expressão “batizados com o Espírito Santo”.

Este é um ponto vital, e a razão disso é que, se é certo dizer que este selar com o
Espírito Santo é algo que se dá fora da esfera da nossa consciência, e que é
inteiramente não experimental, então, num sentido, é algo acerca do qual não
devemos preocupar-nos muito, e certamente é algo que de modo algum atende
ao propósito do apóstolo aqui em Efésios 1:13, onde o seu interesse é dar-
nos certeza concernente à nossa herança.

Um modo de demonstrar que não é esse o sentido do selo em Efésios 1:13 é


lembrar que o apóstolo já tinha tratado do tema sobre estarmos em Cristo e na
Igreja neste mesmo capítulo. Ele começara dizendo: “Bendito o Deus e Pai de
nosso Senhor Jesus Cristo, o qual nos abençoou com todas as bênçãos espirituais
nos lugares celestiais em Cristo; como também nos elegeu nele antes da
fundação do mundo”. O termo “predestinação”, que consideramos no versículo 5
e de novo no versículo 11 - “em quem também obtivemos herança, sendo
predestinados conforme o propósito daquele...” - igualmente acentua o mesmo
aspecto. Mas aqui o apóstolo volta-se para o aspecto experimental, dizendo-nos
que nós, judeus e gentios, somos herdeiros juntos. Certamente ele retorna aqui a
algo que já dissera, pois está nos falando de uma bênção adicional, acima e além
do que tinha mencionado previamente. O ensino, porém, ao qual eu estou me
opondo aqui, não somente faz do apóstolo culpado de tautologia, mas também
sugiro que é uma interpretação inteiramente antibíblica do selar com o Espírito.

Pertence a terreno comum a afirmação de que o selo com o Espírito e o batismo


com o Espírito são a mesma coisa. E nos dito no capítulo primeiro do livro de
Atos: “E, estando com eles, determinou-lhes que não se ausentassem de
Jerusalém, mas que esperassem a promessa do Pai, que (disse ele) de mim
ouvistes. Porque, na verdade, João batizou com água, mas vós sereis
batizados com o Espírito Santo, não muito depois destes dias”. Essa é
uma declaração categórica. O que o nosso Senhor prometeu aconteceu

no dia de Pentecoste, em Jerusalém, como nos é dito no capítulo 2 do livro de


Atos. Todavia, a despeito da narrativa do evento que ali se deu, pedem-me que
eu acredite que não é experimental, que não levou a sentimentos nem a qualquer
coisa pertencente à esfera da consciência. Tal sugestão é quase inimaginável. O
batismo, dizem-me, é algo que Deus me faz e do qual não tenho consciência.
Sou membro do corpo de Cristo, mas isso nada tem a ver com os sentimentos; é
algo não experimental. Não tenho ciência de que algo esteja acontecendo, é uma
ação que Deus assume. Isso se harmoniza com o relato do que aconteceu no dia
de Pentecoste em Jerusalém? Poderia algo não experimental e alheio à esfera da
consciência afetar tanto as pessoas, a ponto de transeuntes dizerem:
“Estes homens estão cheios de mosto”? Isso explicaria a maneira pela qual os
apóstolos falaram noutras línguas, quando Pedro pregou com poder, autoridade e
ousadia? Quão escravos podemos tornar-nos em nosso uso dos termos! E como
nos privamos das bênçãos de Deus, em conseqüência disso! Temos tanto medo
de excessos, temos tanto medo de ser rotulados desta ou daquela maneira,
que afirmamos que o batismo do Espírito é algo inconsciente, não
é experimental, um acontecimento que não afeta os sentimentos do homem.

Esse argumento é completamente anti-escriturístico. Não consciente! Os


apóstolos eram homens que pareciam estar cheios de vinho novo; achavam-se
num estado de êxtase. Estavam se regozijando, estavam louvando a Deus;
estavam comovidos, seus corações estavam cheios de encantamento;
experimentaram coisas que nunca tinham sentido nem conhecido antes. Estavam
transformados, e tão diferentes que mal poderiam ser reconhecidos como os
mesmos Pedro, Tiago, João e todos os demais como eram antes. Não
experimental! Nada poderia ser mais experimental; é o cúmulo da experiência
cristã. Isso não é verdade somente com relação ao que lemos no capítulo 2 de
Atos; vê-se a mesma coisa nos samaritanos, em Atos capítulo 8, e também no
caso do próprio apóstolo Paulo. Ele tinha crido em Cristo no caminho de
Damasco, porém foi três dias mais tarde, quando visitado por Ananias, que
se deu o seu batismo com o Espírito. É igualmente claro que o que aconteceu
com Cornélio e sua família foi altamente experimental, como vem explicado
concludentemente no capítulo 15 de Atos. E, por causa da sua crucial
importância, vemo-lo registrado assim: “E Deus, que conhece os corações, lhes
deu testemunho, dando-lhes o

Espírito Santo, assim como também a nós” (versículo 8). Como Pedro soube
disso tudo, se o batismo do Espírito Santo é algo que se dá fora da esfera da
consciência e que não passa de uma ação pela qual Deus nos incorpora
individualmente no corpo de Cristo? Como Pedro pôde dizer que aqueles gentios
tinham-se tornado cristãos? Pedro era judeu, e um judeu muito rígido; foi preciso
que houvesse uma visão do céu no terraço de uma casa de Jope para convencê-lo
de que ele devia receber gentios na Igreja Cristã. E sabemos que mesmo depois
daquela visão ele ficou em dúvida sobre a posição dos gentios na Igreja, e Paulo
teve que resistir-lhe na cara em Antioquia. Contudo, Pedro diz: (como eu poderia
recusá-los, depois que) “Deus que conhece os corações, lhes deu
testemunho, dando-lhes o Espírito Santo, assim como também a nós?” É
óbvio que houve evidência externa tangível, suficiente para convencer
o apóstolo vacilante. Todavia, isso é descrito como não “experimental”. Pedro
pôde ver que aqueles homens foram cheios do Espírito Santo, foram batizados
com o Espírito Santo, assim como ele e os outros tinham sido batizados no dia
de Pentecoste. Quando temos este “selo do Espírito”, ficamos sabendo disso, e
os outros também ficam sabendo. E a mais elevada, a mais grandiosa experiência
que o cristão pode ter neste mundo. “Deus lhes deu testemunho”. Ele colocou
neles o Seu selo, diz efetivamente Pedro, pelo que eu os recebi na Igreja. Quem
era eu para negar-me a batizá-los com água, quando Deus já os tinha batizado
com o Espírito Santo de maneira tão óbvia para todos? Nada, senão algumas
claras manifestações externas poderia convencer o apóstolo.

Vê-se a mesma verdade no capítulo 19 de Atos. Paulo percebeu que aos


“discípulos” ali mencionados faltava algo em sua experiência, e que eles não
tinham recebido o Espírito Santo; daí sua pergunta a eles: “Recebestes o Espírito
Santo quando crestes?” Paulo não teria percebido isso, se não fosse algo
experimental. E similarmente ocorre em toda parte no livro de Atos dos
Apóstolos.

Uma das provas mais convincentes da minha alegação acha-se na pergunta feita
por Paulo aos gálatas, no capítulo 3 da sua Epístola a eles: “Recebestes o
Espírito pelas obras da lei ou pela pregação da fé?” (versículo 2). Tinham eles
recebido este batismo com o Espírito Santo pelas obras da lei ou pela pregação
da fé? Como alguém poderia responder essa pergunta, se fosse algo alheio
aos domínios da experiência? Como eu poderia saber se recebi ou não o Espírito,
se não fosse algo experimental? Todas essas citações das

Escrituras contradizem claramente a desafortunada interpretação que apareceu


em fins do século passado e que, daí em diante, parece um pesadelo sobre a
interpretação.

Mas se retrocedermos na história da Igreja para antes daquele tempo, veremos


uma grande riqueza na exposição sobre o nosso tema presente. Já citei os nomes
de Thomas Goodwin e John Owen, puritanos; também os de Charles Hodge e
Charles Simeon. Também posso reivindicar o apoio de João Wesley e de
George Whitefield. O selo com o Espírito ou o batismo com o Espírito
é claramente experimental e existencial.

Passando agora a considerar o que esta experiência é exatamente, vemos a


melhor resposta na Epístola de Paulo aos Romanos, capítulo 8, onde lemos: “O
mesmo Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus”
(versículo 16), ou a declaração paralela, no capítulo 4 da Epístola aos Gálatas, já
citado: “E porque sois filhos, Deus enviou aos nosso corações o Espírito de seu
Filho, que clama: Aba, Pai” (versículo 6). Lembremo-nos do
argumento registrado no capítulo 4 da Epístola aos Gálatas. “O herdeiro” -
o jovem que é herdeiro de uma propriedade - “enquanto é criança, em nada
difere de um servo, embora seja senhor de tudo, mas está sob tutores e sob
curadores até ao tempo determinado pelo Pai” (versículos 1 e 2, VA). Essa é uma
declaração acerca da qual não pode haver desacordo. Conquanto o menino seja
de fato o herdeiro de uma grande propriedade, por ser ainda apenas um menino,
não administra a propriedade, e não tem consciência da sua importância e
dignidade e de tudo o que lhe pertence. Ele precisa ficar muito tempo debaixo de
tutores e servos. Realmente acontece muitas vezes que o menino que talvez seja
herdeiro de uma grande herdade é maltratado por tutores e servos, e punido por
eles. Ele é virtualmente como um servo; na verdade pode às vezes
achar preferível ser servo, porque eles parecem dominá-lo.

Nada disso afeta a sua posição real, nada disso afeta a sua relação; contudo até
aqui, essa é a sua experiência. É pura questão de experiência, não de posição ou
status. “Assim também nós”, diz Paulo, “quando éramos meninos, estávamos
reduzidos à servidão, debaixo dos primeiros rudimentos do mundo, mas, vindo a
plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a
lei, para remir os que estavam debaixo da lei, a fim de recebermos a adoção de
filhos” (versículos 3-5). Mesmo então éramos

filhos, porém éramos mantidos debaixo da lei. Mas agora Cristo veio, e
recebemos a adoção de filhos; “E, porque sois filhos, Deus enviou aos seus
corações o Espírito de seu Filho, que clama: Aba, Pai”. Agora vocês começam a
“experimentar” o que eram antes, sem o saber de fato.

Examinando mais minuciosamente o argumento presente em, Gaiatas capítulo 4,


vemos que a palavra traduzida por “que clama” é muito interessante. A palavra
grega traduzida por “que clama” é extremamente antiga. Seu sentido original é
“o crocitar do corvo”. Era utilizada para expressar qualquer tipo de clamor ou
grito elementar saído do coração, algo nem sempre caracterizado por dignidade
ou felicidade de expressão; vai muito mais fundo! E o grito do coração da
criança, grito resultante de uma relação, o grito de uma criança pleiteando com o
pai.

É muito interessante e proveitoso notar que esta mesma palavra é empregada em


relação ao nosso Senhor. No capítulo 14 do Evangelho Segundo Marcos vemos
que o nosso Senhor empregou esta mesma expressão quando estava no jardim do
Getsêmani, e orou dizendo: “Aba, Pai, todas as coisas te são possíveis; afasta de
mim este cálice; não seja porém o que eu quero, mas o que tu queres” (versículo
36). O nosso Senhor em sua terrível agonia, suando gotas de sangue, mostra
percepção da Sua relação filial com Seu Pai de maneira extraordinária. Ele não
diz somente “Pai”; diz “Aba, Pai”, expressão de carinhoso afeto em que são
postos juntos o aramaico e o grego. Este grito era o grito instintivo de um filho
que tem ciência da sua relação com o Pai; Ele apela: “Aba, Pai, se é possível...”
(cf. Mateus 26:39). Assim é que o apóstolo nos diz no capítulo 4 de Gálatas que,
como resultado da obra realizada por Cristo e deste batismo do Espírito, também
nos é dado o Espírito que estava em Cristo, e Ele nos faz gritar também: “Aba,
Pai”. Passamos a estar certos de que Deus é nosso Pai, conhecemo-lO como Pai.
Já não cremos apenas teoricamente em Deus como Pai; este é o grito do coração,
grito elementar, instintivo, que brota das profundezas. É resultado do selo do
Espírito.

Podemos dar maior explicação dizendo que a bênção peculiar dada ao cristão o
diferencia dos santos do Velho Testamento. Esse é o real argumento do capítulo
4 de Gálatas. Os santos do Velho Testamento, Abraão, Isaque, Jacó, Davi - todos
eles - eram filhos de Deus como nós. Se não entendermos bem isso, ficaremos
confusos em todos os pontos. Mas Paulo, na Epístola aos Gálatas, argumenta

assim: “Se sois de Cristo, então sois descendência de Abraão, e herdeiros


conforme a promessa” (3:29). Quando esses gentios se tornaram cristãos,
tornaram-se sementes de Abraão, e co-herdeiros das promessas de Deus com
Abraão e com todos os judeus crentes.

Similarmente, na Epístola aos Efésios o apóstolo afirma que a mensagem que lhe
fora confiada era anunciar que os gentios seriam “co-herdeiros” com aqueles
judeus que já pertenciam ao reino de Deus. Portanto, podemos ver que diferença
o selo do Espírito faz, da seguinte maneira: os santos que estavam sob a
dispensação do Velho Testamento, e também os apóstolos, como crentes e filhos
de Deus antes do dia de Pentecoste, não somente eram crentes, mas também
filhos de Deus. Até aqui, porém, eles eram como servos, estavam sob tutores,
faltava-lhes a verdadeira compreensão da sua posição, não podiam clamar “Aba,
Pai”. Eles criam que Deus era seu Pai, mas não gritavam das profundezas de seu
ser, “Aba, Pai”. Entretanto, uma vez batizados com o Espírito, tendo vindo o
“selo”, eles clamaram: “Aba, Pai”, porque Deus tinha derramado em
seus corações este Espírito de adoção, o Espírito do Seu Filho.

Esta experiência é que constitui o significado de selar com o Espírito, ou do


batismo com o Espírito. Isso aconteceu com os apóstolos no dia de Pentecoste,
em Jerusalém. Eles já tinham crido no nosso Senhor e em Sua salvação, mas
agora estavam cheios de entusiasmo e de regozijo, “com gozo inefável e
glorioso”. Apesar disso, muitos mestres evangélicos nos dizem que isso não é
experimental! Desse modo, em nosso medo dos excessos de que alguns que se
arrogam esta experiência podem ser culpados, muitas vezes nos tornamos
culpados de “apagar o Espírito”, e de privar-nos das mais picas bênçãos.

É, pois, esse o significado da promessa do Espírito feita pelo Pai. E “o Espírito


de adoção”, “o Espírito de filiação”; não o fato de que somos filhos, porém a
nossa percepção disso. Noutras palavras, este selo é a direta certeza que o
Espírito Santo nos dá da nossa relação com Deus em Jesus Cristo. Já vimos que
há dois outros tipos de certeza que são bons, são excelentes, até onde eles podem
ir - a certeza obtida da argumentação objetiva baseada em declarações das
Escrituras, e também o fundamento mais subjetivo da certeza deduzida dos
chamados testes da vida que se acham na Primeira Epístola de João. Mas nos é
possível conhecer e ter uma certeza que transcende aquelas, a saber, a que é dada
pelo selo do Espírito. “O mesmo Espírito testifica com o nosso espírito que

somos filhos de Deus” (Romanos 8:16). Este é um testemunho direto e imediato


que o Espírito Santo nos dá. Já não é algo que eu tiro das Escrituras por meu
raciocínio; não é o resultado de uma lógica espiritual ou de uma dedução; é algo
direto e imediato. Não significa que ouvimos alguma voz audível, ou que temos
alguma visão. Geralmente vem como resultado da ação do Espírito
iluminando certas declarações das Escrituras, certas promessas, certas
palavras de segurança. Ele as traz a mim com poder, e elas me falam, e eu passo
a ter certeza delas. Estas coisas tornam-se luminosamente claras para mim, e eu
passo a ter tanta certeza de que sou filho de Deus como a que tenho de que estou
vivo. É algo que nos acontece de tal maneira que, não somente cremos em geral
que todos os cristãos são filhos de Deus, mas também o Espírito Santo me diz
em particular que eu sou filho de Deus.

Permitam-me agora dar-lhes algumas citações que expõem esta verdade de


maneira a mais comovente. Comecemos com Thomas Goodwin, que escreve:
“Há uma luz que vem e se apodera da alma do homem e lhe assegura de que
Deus é dele e ele é de Deus, e de que Deus o ama desde toda a eternidade”. “É
uma luz”, diz ele ainda, “que transcende a luz da fé comum.” É mais do que a fé
que você tem nas Escrituras e em todos os argumentos que você possa deduzir.
Goodwin prossegue e diz: “E o segundo bem, depois do céu; você não obtém
mais nada, não poderá obter nada mais, enquanto não chegar lá”. É, noutras
palavras, a maior e mais grandiosa experiência que o cristão pode ter neste
mundov Há somente uma coisa que está acima dela, a saber, o próprio céu. E a fé
elevada e posta acima da sua distinção comum e do seu alcance comum. E
o amor eletivo de Deus colocando-se como algo familiar para a alma.

Ouçam agora João Wesley: “É algo imediato e direto, não o resultado de


reflexão ou argumentação”. Notem que ele dá ênfase ao mesmo fato de que se
trata de algo imediato e direto salientado por Goodwin. A bênção não é o
resultado de reflexão ou argumentação. Wesley passa então a fazer esta
extraordinária declaração: “Pode haver o antegozo de alegria, de paz, de amor, e
não ilusório, mas vindo realmente de Deus, muito antes de termos o
testemunho em nós mesmos”. Noutras palavras, você pode experimentar a
obra geral do Espírito muito antes disto acontecer com você, antes de o Espírito
de Deus “testemunhar com os nossos espíritos” que temos redenção no sangue
de Jesus. Segundo o ensino de Wesley, você pode ser um bom cristão, e pode ter
experimentado as operações do

Espírito de muitas maneiras, incluindo até o antegozo de alegria, paz e amor da


parte do próprio Deus, muito antes de você ter este testemunho direto do
Espírito, esta experiência irresistível.

Você foi “selado” com o Espírito? Não estou perguntando se você é crente no
Senhor Jesus Cristo; não estou nem mesmo perguntando se você tem o tipo de
certeza que se baseia no primeiro e no segundo fundamento; estou perguntando
se você conhece algo da experiência de ser tomado poderosamente em sua alma
pelo testemunho direto do Espírito.

A fim de ajudá-lo nesse exame de si mesmo, permita-me citar as experiências de


alguns grandes homens de Deus no passado. Aqui vai uma experiência descrita
por John Flavel, puritano que viveu há uns trezentos anos - “Assim, seguindo
seu caminho, seus pensamentos começaram a avolumar-se e a subir cada vez
mais alto, como as águas da visão de Ezequiel, até que finalmente se tornaram
antegozos das alegrias celestiais, e tal plena certeza do seu interesse nisso, que
ele perdeu completamente a visão e a percepção deste mundo e de todos os
interesses deste mundo, e por algumas horas não sabia mais onde estava, como
se estivesse em profundo sono em seu leito”. Chegando exausto a certa fonte,
“sentou-se, lavou-se, desejando ardentemente que, se fosse do agrado de Deus,
que esse podia ser o lugar de sua partida deste mundo. Aos seus olhos a morte
tinha o rosto mais amigável que ele já contemplara, exceto o rosto de Jesus
Cristo, que tinha realizado isso, e, embora acreditasse que estava morrendo, não
podia lembrar-se de ter tido um só pensamento sobre sua querida esposa ou
filhos ou qualquer preocupação terrena. Chegando à sua hospedaria, a influência
continuou, banindo o sono. Ele se sentiu cada vez mais transbordante da alegria
do Senhor, e ficou parecendo um habitante doutro mundo. Muitos anos depois
ele ainda dizia que aquele dia fora um dos dias do céu, e dizia que por aquela
experiência ele entendeu mais da luz do céu do que por todos os livros que ele
tinha lido ou pelos descobrimentos que a respeito agasalhara”.

Essa é uma excelente narrativa da selagem do Espírito, deste antegozo do céu.


Jonathan Edwards descreve a mesma experiência como segue - “Uma vez,
quando eu cavalgava pelas florestas para benefício da minha saúde em 1737,
tendo apeado do meu cavalo num lugar retirado, como sempre eu fazia, para
buscar contemplação divina e oração, tive uma extraordinária visão da glória do
Filho de Deus

como Mediador entre Deus e o homem, e Sua maravilhosa, grande, plena, pura e
suave graça e amor, e de Sua terna e gentil condescendência. Esta graça que se
mostrou tão tranqüila e suave, mostrou-se também grandiosa, acima dos céus. A
Pessoa de Cristo pareceu-me inefavelmente excelente, com uma excelência
grande o suficiente para tragar todo pensamento e concepção, o que durou,
quanto posso julgar, perto de uma hora, e me manteve a maior parte do
tempo numa torrente de lágrimas e chorando alto”.

Que contraste com o ensino tão popular hoje que diz que o selo não é
experimental, que é tudo pela fé! Jonathan Edwards continua o seu relato: “Senti
um ardor na alma, desejando ser não sei como expressá-lo doutra maneira,
esvaziado e aniquilado; jazer no pó para ser cheio unicamente de Cristo; amá-10
com um amor santo e puro; confiar nEle; viver apoiado nEle; servi-10 e segui-
10, ser santificado perfeitamente e tornado puro com uma pureza divina
e celestial”.

Tenhamos em mente que Jonathan Edwards foi um dos maiores filósofos desde
Sócrates, Platão e Aristóteles.

Vejamos agora um homem muito diferente, D.L. Moody, que não era filósofo
nem um grande intelecto. Ele escreve: “Comecei a clamar como nunca antes. A
fome disso aumentou. Eu realmente senti que não quereria mais viver se não
pudesse ter poder para o serviço. Continuei clamando o tempo todo, que Deus
me enchesse com o Espírito. Bem, um dia, na cidade de Nova Iorque, ah,
que dia, nem posso descrevê-lo. Raramente me refiro a isso, é uma experiência
quase sagrada demais para se mencionar. Só posso dizer que Deus Se revelou a
mim, e de tal maneira experimentei o Seu amor que tive de pedir-Lhe que
detivesse a Sua mão”.

Ou tomemos as palavras do grande pregador batista galês Christmas Evans,


quando ele descreve uma experiência que teve quando viajava cruzando um
trecho de montanha certo dia. Ele estivera num estado de sequidão e sem vida
durante vários anos em conseqüência de haver dado crédito ao ensino conhecido
como sandemanianismo 2 - similar ao ensino do “Tome-o pela fé” - mas agora,
tendo começado a orar a Deus rogando-Lhe que tivesse misericórdia dele, ele
diz:

“Tendo começado em nome de Jesus, senti como se estivessem sendo soltos os


meus grilhões, a velha dureza fosse amolecendo e, como eu pensava, as
montanhas de gelo e neve se dissolvendo e se fundindo dentro de mim. Isso
gerou em minha alma confiança na promessa do Espírito Santo. Senti toda a
minha mente aliviada de uma grande escravidão. As lágrimas correram
copiosamente, e fui constrangido a clamar em alta voz pelas misericordiosas
visitas de Deus devolvendo à minha alma a alegria da salvação, e que
Ele tornasse a visitar as igrejas de Anglesey que estavam sob os meus cuidados”.

As palavras seguintes são do eloqüente George Whitefield, talvez o maior


pregador da Inglaterra:

“Logo depois disso eu vi e senti que estava livre de um fardo que me oprimia
pesadamente; o espírito de tristeza me foi tirado, e eu soube o que é regozijar-me
verdadeiramente em Deus, meu Salvador, e por algum tempo não pude evitar
cantar salmos onde quer que eu estivesse. Mas a minha alegria tornou-se
gradativamente mais serena e, bendito seja Deus, permanece e cresce em
minha alma sempre, daí em diante, salvo alguns intervalos casuais.
Assim terminaram os dias da minha tristeza. Após uma longa noite de deserção e
tentação, a Estrela da Manhã raiou em meu coração. Agora o Espírito de Deus
tomou posse da minha alma e, como humildemente espero, selou-me para o dia
da redenção”.

Ele era crente havia algum tempo antes disso, porém agora ele estava selado com
o Espírito. Ele continua, dizendo: “Meus amigos ficaram surpresos ao me verem
parecer tão alegre e portar-me tão alegremente, depois de muitas informações
que tinham recebido a meu respeito”.

Ouçam ainda as palavras do seu amigo João Wesley, descrevendo a famosa


experiência que teve na Rua Aldersgate, em Londres, em 24 de maio de 1738.
Lembrem-se também de que ele se tornara verdadeiro crente na justificação pela
fé desde março do mesmo ano. Ele escreve:

“Senti meu coração estranhamente aquecido, senti que confiava em Cristo,


unicamente em Cristo, para a salvação, e me foi dada a certeza de que ele tinha
removido os meus pecados, sim, os meus, e me salvara da lei do pecado e da
morte”.

Ele já cria antes, mas agora passou a ter certeza, foi-lhe dada esta experiência
direta, imediata, irresistível, experiência e testemunho dados pelo Espírito, o selo
do Espírito, e ele sentiu essas

coisas. Depois dessa experiência o seu ministério foi transformado.

É quase inacreditável que alguém possa dizer que a “selagem com o Espírito”
não é experimental, e assim privar-se de tais experiências. O seu coração foi
arrebatado? Você teve essa irresistível experiência do amor de Deus? Examine-
se cada um a si mesmo.

1
Efésios 1:13, cf. Versão Autorizada (inglesa). Nota do tradutor.

2
De Robert Sandeman (1718-71). As seitas sandemanianas são semelhantes às seitas glassitas, cujo
fundador foi John Glass, ministro dissidente da Igreja da Escócia. Robert Sandeman era genro de
John Glass. Nota do tradutor.
EXPERIÊNCIAS REAIS E FALSAS

“Em quem também vós, depois que crestes, fostes selados com aquele Espírito
da promessa.” - Efésios 1:13

Há um sentido em que eu, de minha parte, não me preocupo com a terminologia


quanto ao “selar” com o Espírito ou ao “batismo” com o Espírito. Para mim é
muito lamentável que muitos se preocupem tanto com a terminologia,
especialmente com a palavra “batismo”, que deixam de considerar a questão
real. Essa questão é: porventura sabemos se fomos selados com o Espírito
Santo? A questão que deve estar acima de tudo mais em nossas mentes não é a
da terminologia, e sim a questão sobre se temos o “Espírito de adoção”, se
realmente clamamos “Aba, Pai” das profundezas dos nossos corações. A
terminologia tem o seu lugar, e é importante que tenhamos idéias claras em
nossas mentes; mas é a experiência propriamente dita que mais importa. Por isso
vamos continuar com a nossa descrição desta bênção para esclarecer ainda mais
a verdade.

O primeiro resultado da selagem com o Espírito é a imediata, direta e bendita


certeza de que somos filhos de Deus, “herdeiros de Deus e co-herdeiros com
Cristo”. É com isso que o apóstolo está principalmente preocupado aqui. Ele está
escrevendo acerca de uma herança que judeus e gentios receberam juntos em
Cristo; e ele diz que essa herança é selada para nós pelo Espírito da promessa.
No entanto, há outros resultados decorrentes ao mesmo tempo. Um deles é
mencionado pelo apóstolo na Epístola aos Romanos, capítulo 5, onde ele diz: “A
experiência (produz) a esperança. E a esperança não traz confusão, porquanto o
amor de Deus está derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos
foi dado” (versículo 5). Notem a expressão “o amor de Deus está derramado em
nossos corações”. E comparável à expressão empregada no capítulo 2 de Atos
acerca do Espírito Santo sendo “derramado”. É exatamente a mesma idéia; não
se trata de algo vago e indefinido, mas o amor de Deus é “derramado” em nossos
corações para que transbordemos deste amor de Deus. O selo do Espírito leva a
este derramamento do amor de Deus em nossos corações. Assim devemos
perguntar a nós

mesmos se o conhecemos e o experimentamos. A questão não é se cremos no


amor de Deus, e sim se este amor foi “derramado” dentro de nós pelo Espírito
Santo. Devemos ter o cuidado de não reduzir esses termos à medida das nossas
experiências.

Outro resultado deste selo é descrito pelo apóstolo Pedro quando, escrevendo aos
cristãos em sua Primeira Epístola, no capítulo 1, ele os trata como “estrangeiros
dispersos”. Mas, apesar de os não conhecer, pode dizer-lhes: “Ao qual (a Jesus
Cristo), não o havendo visto, amais; no qual, não o vendo agora, mas crendo, vos
alegrais com gozo inefável e glorioso” (versículo 8). A relação deles com
o Senhor Jesus Cristo é que eles O amam e se regozijam nEle com “gozo
inefável e glorioso”. Esse é outro resultado deste selo. Será certo supor, como
fazem muitos, que esta é a experiência normal, costumeira, de todo os cristãos?

Neste estágio alguém poderá muito bem inquirir acerca dos dons espirituais, pois
pelo capítulo 2 do livro de Atos se vê claramente que aqueles que naquela
ocasião foram batizados pelo Espírito receberam certos dons; falavam em outras
línguas, e evidentemente houve outras manifestações. Está claro que no dia de
Pentecoste e subsequentemente esta selagem com o Espírito foi
acompanhada por dons. Isso apareceu nas várias passagens que já
examinamos. Por isso é válido que se faça essa indagação sobre se, portanto,
toda vez que uma pessoa é selada com o Espírito, decorre que necessariamente
ela tem alguns desses dons especiais. Afortunadamente, é-nos dada resposta a
essa questão no capítulo 12 da Primeira Epístola de Paulo aos Coríntios, onde o
ensino é que o Espírito Santo é o Senhor desses dons, e que Ele os dispensa e
distribui à Sua conveniência. A este homem Ele dá um dom, àquele, outro. Não
têm todos os mesmos dons, não têm todos um certo dom particular. Paulo faz a
indagação: “Falam todos em línguas?” “Interpretam todos?” “Todos operam
milagres?” E é claro que não. Há muitos dons, e o apóstolo dá uma lista deles -
“sabedoria”, “socorros”, “discernimento”, etc.

Houve dificuldade na igreja de Corínto por causa disso, pois toda a igreja ficara
dividida em grupos e facções quanto à posse de dons especiais. Uns eram mais
espetaculares que outros, e os homens que tinham os dons espetaculares
desprezavam os que tinham os menos espetaculares. Por isso Paulo ministra o
seu ensino concernente à Igreja como “corpo”; mas a sua maior ênfase é que a

concessão de dons é prerrogativa do Espírito Santo. Ele pode dar e negar dons,
como quer e como Lhe apraz.

É interessante observar que quando lemos a história da Igreja Cristã,


especialmente em termos desta doutrina da selagem com o Espírito Santo, vemos
que muitos destes dons concedidos no princípio não parece que foram
concedidos nas subseqüentes épocas da Igreja Cristã. Isso fica bem claro quando
recordamos as experiências dos grandes homens aos quais nos temos referido e
que viveram em diferentes séculos e lugares, e que diferiam muito em seus dons
naturais. Nenhum deles jamais “falou em línguas”; entretanto tinham outros
dons notáveis. Alguns tinham o dom de discernimento, outros o de ensino.
Wesley tinha o seu admirável dom de “administração” e organização. Mas nem
um só deles parece ter tido o dom de milagres. Todavia, evidentemente eles
tinham o selo do Espírito.

Assim, é importante que diferenciemos entre o selo propriamente dito e os dons


que podem acompanhá-lo ou não. A verdade central concernente à selagem com
o Espírito é que sela a herança para nós, dá a certeza da filiação e o “Espírito de
adoção” pelo qual clamamos “Aba, Pai”. Desafortunadamente, muitos ficam
confusos nesta questão do selo por causa da confusão a respeito de toda
a questão dos dons. Muitos receiam até meramente considerá-lo porque
conhecem pessoas que alegam ter recebido esta selagem com o Espírito, contudo
elas insistem nalgum dom particular como prova. Mas as Escrituras mesmas,
como vimos, não nos dão o direito de pressupor quaisquer dons particulares em
conexão com o selo do Espírito. Pode haver e não haver dons. Geralmente
há algum dom, porém o elemento vital é a certeza - imediata e direta -de que
somos filhos de Deus. Portanto, eu não pergunto de você fala em línguas ou não;
o que lhe pergunto mais uma vez é se o amor de Deus foi derramado em seu
coração. Você se regozija em Cristo com “gozo inefável e glorioso”? Você
recebeu um testemunho direto dado pelo Espírito, de que você é filho de Deus
e herdeiro da bem-aventurança eterna?

Certamente é só à luz disso que podemos entender o sentido da frase que foi
empregada pelo nosso Senhor quando Ele falou com os discípulos pouco antes
da Sua morte. Disse Ele: “Digo-vos a verdade, que vos convém que eu vá;
porque, se eu não for, o Consolador não virá a vós; mas, se eu for, enviar-vo-lo-
ei” (João 16:7). O Filho de Deus estava entre os discípulos e lhes dizia que não
deixassem que os seus corações se turbassem porque Ele

estava para deixá-los, de fato lhes dizia que para eles era uma boa coisa que Ele
partisse. E quase incrível que isso pudesse acontecer. Ele era o Filho de Deus,
com todo o conhecimento; Ele os estivera ensinando, e sempre estivera lá para
aconselhá-los quanto ao que fazer e ao que não fazer, e podendo dar-lhes poder
para pregar e expulsar demônios. Mas agora Ele se vai, e ainda diz: “Para vocês
é bom que eu vá”.

Há unicamente uma explicação adequada dessa espantosa declaração, e é a


verdade concernente à selagem com o Espírito. O fato é que depois do
Pentecoste aqueles discípulos tinham mais certeza quanto a Ele do que quando
podiam vê-10 com os seus próprios olhos. Tinham mais certeza quanto a Ele e
quanto à veracidade da Sua doutrina. Não somente passaram a ter
entendimento mais completo, mas agora estavam cheios do Seu Espírito e do
Seu amor. E o que se tem em mira é que estamos na mesma situação, numa
situação melhor do que se vivêssemos quando o nosso Senhor esteve na terra nos
dias da Sua carne. Por isso, a pergunta que devemos fazer a nós mesmos é:
temos esse entendimento, temos esse seguro conhecimento da nossa filiação,
temos o amor de Deus derramado em nossos corações?

Para ser ainda mais explícito e claro, consideremos várias questões que são
levantadas quando se prega esta doutrina. Lembro-lhes que esta doutrina não é
nova. Considerá-la como tendo se originado neste presente século indica a
medida da ignorância do movimento evangélico moderno. Nós a vimos no
ensino dos puritanos do século dezessete. João Wesley disse muitas vezes que
ele acreditava que Deus tinha levantado os metodistas em grande parte para
pregarem esta doutrina especial da certeza. Ele cria tão intensamente nesta
verdade que, a princípio, tendia a dizer que se você não tem esta certeza, você
não é cristão. Mais tarde ele modificou isso, dizendo de si próprio que antes da
sua experiência na Rua Aldersgate, em maio de 1738, ele tinha a fé própria de
um servo, não de um filho.

A primeira pergunta que geralmente se faz é: qual a relação da experiência da


conversão com esta selagem com o Espírito? Argumenta-se que quando um
homem é convertido lhe é dado repouso de alma: “Justificados pela fé, temos
paz com Deus” (Romanos 5:1). Ora, alguém poderá perguntar: que diferença há
entre isso e a selagem com o Espírito? Quando um homem tem este repouso

decorrente da justificação, ele sabe que os seus pecados estão perdoados, e lhe é
dado um sentimento de paz e tranqüilidade. Daí, não seria a mesma coisa? A
resposta é que a “selagem com Espírito” vai muito além daquilo que se
experimenta na conversão. O homem que é justificado pela fé crê na Palavra e
crê no ensino da Palavra, e em decorrência disso ele tem este sentimento de
repouso e de satisfação. Contudo, isso muitas vezes pode ser provado e sofrer
abalo, e ele será levado de volta à Palavra e terá que extrair os argumentos
escriturísticos para silenciar suas dúvidas. Mas, como vimos, quando ocorre a
selagem com o Espírito, já não há argumentação. E assim porque nesse caso há
uma certeza direta, é o Espírito mesmo que dá testemunho com o nosso espírito
de maneira inequívoca.

Há uma bela ilustração deste aspecto da verdade nas obra do piedoso, do


“celestial” Dr. Richard Sibbes, outro dos grandes puritanos de há 300 anos. Diz o
Dr. Sibbes que a diferença entre a experiência da conversão e o “selo” pode ser
exposta assim: é como uma criança que, tendo sido travessa e desobediente, tem
um sentimento de culpa e se sente infeliz, e corre para os braços do pai. O pai a
recebe, mas não lhe sorri muito. Esta é a maneira pela qual o pai a repreende e a
castiga por sua desobediência; todavia, a criança, em sua volta ao pai, obtém
certa satisfação quando está com seu pai. Isso pode durar algum tempo. Então
chega o dia em que os dois estão caminhando juntos por uma estrada, e a criança
se aproxima do pai e lhe toca. O pai continua simplesmente a olhar para ela;
mas após algum tempo o pai toma a criança, levanta-a, acaricia-a em seus
braços, e derrama o seu amor sobre ela. Essa é a diferença! Sem a selagem com
o Espírito você pode saber que os seus pecados estão perdoados; não, porém,
desta maneira segura e especial. Isso vai além da experiência inicial do perdão: é
Deus, se podemos expressá-lo assim, acariciando-nos e despejando Seu amor
sobre nós, engolfando-nos. Observamos esse elemento no caso das experiências
que já citei. Sempre houve um elemento irresistível. Mesmo um homem de físico
poderoso como D. L. Moody sentiu o seu corpo quase estourar sob a grandeza da
experiência do amor de Deus, e clamou a Deus que parasse. Temia que a glória
da experiência realmente o matasse. Essa é a diferença entre as
duas experiências.

Outra pergunta que quase invariavelmente se faz é sobre a relação do selo com a
santificação. Muitos se confundem acerca do

selo do Espírito por causa dessa infeliz confusão dele com a santificação. Alguns
tendem a evitar totalmente esta doutrina da selagem com o Espírito porque as
únicas pessoas que eles conhecem que a mencionam também acreditam na
doutrina da completa erradicação do pecado nesta vida. É verdade que até sobre
João Wesley pesa a culpa dessa confusão em seu ensino sobre o “perfeito amor”
e sobre o que ele denominava “santidade escriturística”. A resposta a essa
pergunta é que não há conexão entre a selagem com o Espírito e a santificação.

Nesta parte da Epístola aos Efésios, o apóstolo não está ensinando a doutrina da
santificação; ele ainda não passou a fazê-lo. O que o apóstolo está fazendo do
versículo 1 ao versículo 14 é dizermos o que Deus nos fez em Cristo. Ele nos
está mostrando a nossa posição em Cristo como filhos e herdeiros.
Posteriormente ele tratará da santificação. Paulo afirma que a selagem
acontecera com os efésios; portanto, não pode ser algo contínuo. Contudo a
santificação é contínua.

Aventuro-me a comparar a relação entre esta experiência de selagem e a


santificação com a relação que há entre as chuvas e o sol para fazerem germinar
o que foi plantado na terra. Pensem num agricultor que arou sua terra, passou-lhe
a grade, semeou-a, cobriu as sementes, e se foi. Muitos dias frios, secos, sem
chuva passaram e ele não vê germinação. Então ele fica a perguntar-se se há
vida naquelas sementes, porque não vê nenhuma mostra de crescimento. Passado
algum tempo, porém, um pequeno sinal de crescimento começa a aparecer no
terreno. Ele o observa dia após dia, e começa a duvidar de se terá alguma
colheita. Mas então, de repente, há uma aguaceiro seguido de forte calor do sol;
e o cereal brota quase visivelmente. Vem depois outra chuvarada, e a coisa fica
mais maravilhosa ainda. A mim me parece ser essa a relação existente entre o
selo e a santificação. Desde o momento em que o agricultor semeou a semente, a
vida estava lá e o processo de crescimento havia começado. De igual maneira,
no momento em que um homem nasce de novo, a santificação já começou.

A santificação não é uma experiência que se recebe, é o desenvolvimento da vida


de Deus na alma, e esta começa no momento do novo nascimento. É assim
porque você não pode ter em seu ser a vida de Deus sem a atividade dessa vida.
Mas, conquanto isso seja verdade, o processo pode parecer quiescente por algum
tempo. Daí então é concedida esta experiência do selo e, à semelhança da

chuva'e do sol sobre a terra, ela tem marcante efeito sobre a santificação da
pessoa. Não é santificação, mas tem um inevitável efeito sobre a mesma. Não há
vida na chuva; a vida está na semente; porém a chuva e o sol promovem e
estimulam grandemente o florescimento da semente; é similar o que acontece
com esta experiência.

Podemos dizer que a selagem com o Espírito promove a santificação, mas não a
garante necessariamente. Não é a mesma coisa. Decorre disso, pois, que é
possível que um homem que teve esta admirável experiência da selagem com o
Espírito venha a ser um apóstata. Isso tem acontecido com freqüência. Ele ainda
se lembra do que lhe aconteceu; não consegue desfazer-se disso. Há homens que
lhes dirão, relatando a experiência que tiveram, que esse conhecimento foi, por
vezes, a única coisa que os impediu de suicidar-se. Eles tinham esse
conhecimento, apesar de todos os argumentos pareceram contraditá-lo. O selo
não garante a continuidade de uma vida santificada. O poeta William Cowper
ajuda-nos neste ponto. Diz ele -

Onde está aquela aventura que tive,

Quando encontrei o Senhor?

Onde está a visão revigorante De Jesus e Sua Palavra?

Trata-se de algo aqui que se pode recordar do passado; é uma experiência.

Mais uma pergunta freqüentemente feita da seguinte maneira: na declaração


citada de John Flavel, diz ele que durante a maior parte do dia ele não sabia onde
estava; estava fruindo de tal maneira a visitação de Deus que, em êxtase, até se
esqueceu da mulher e dos filhos. Será, pois, certo dizer que não somos selados
com o Espírito enquanto não tivermos uma experiência tão dominadora
como aquela? A resposta é que a intensidade da experiência pode
variar consideravelmente. A experiência mesma é inconfundível, mas
a intensidade varia, como se dá com a intensidade de qualquer experiência. A
nossa apreciação da música varia. Muitos são os que apreciam a música, todavia
nem sempre com o mesmo grau de intensidade. Nem sempre a nossa apreciação
da beleza das flores é a mesma. Posso gostar de flores, mas pode ser que eu não
possa dizer: “O desabrochar da mais singela flor inspira-me pensamentos

que se aprofundam tanto que por vezes me provocam lágrimas”. Não sou um
Wordsworth; entretanto sou capaz de apreciar a beleza das flores. A intensidade
pode variar, mas não se deve entender isso como significando que às vezes a
experiência pode ser duvidosa. É sempre definida e inconfundível; isso é
inquestionável! Se você tiver que persuadir-se sobre ela, você não a conhece. É
da essência do selo que ele é inconfundível quando dado, porquanto é ação
de Deus.

Isso, por sua vez, levanta a questão do lugar que as emoções ocupam nesta
experiência. Muitos se preocupam com isso. Os cristãos modernos parecem ter
mais medo das emoções do que qualquer outra coisa. Deve-se isso ao fato de que
não fazem distinção entre emoção e emocionalismo. Devido temerem o
emocionalismo, temem as emoções. Há alguns que vão tão longe que chegam
a gabar-se de que não há emoção na experiência cristã. Gostam quando as
pessoas não mostram nenhuma emoção em sua conversão. Desse modo podemos
ser levados a extraviar-nos por pensamentos confusos. Há uma real diferença
entre emoção e emocionalismo. Seria concebível que alguém possa saber
diretamente de Deus que ele é filho de Deus, e contudo não sentir nada, não
sentir nenhuma emoção? Jamais houve homem que por natureza fosse mais
impassível e infenso às emoções do que João Wesley. Ele era um típico mestre
na lógica, um tanto pretensioso e pedante, que desconfiava de toda tendência
para excessos; todavia, na reunião que houve na Rua Aldersgate o seu coração
foi “estranhamente aquecido”.

“Mas”, dirá alguém, “que dizer dos excessos, do fanatismo, e dos diversos
fenômenos que às vezes são relatados? Você não estaria tendendo a encorajar a
desordem? Nos relatos dos aviva-mentos muitas vezes há informações sobre
fenômenos estranhos; acaso tudo isso faz parte deste selo?” Em resposta
devemos salientar que visitar Deus uma alma é a experiência mais empolgante
que se pode conhecer; e, portanto, não é surpreendente que às vezes a estrutura
física não lhe possa resistir. Podemos lembrar-nos do caso de Moody, que se
sentiu a ponto de cair em colapso físico; não é surpreendente se, às vezes,
quando o Espírito de Deus visita as pessoas com grande poder, elas percam seu
autocontrole por algum tempo. Isso não deveria perturbar-nos. Mas se ainda
ocorrer isso, o melhor caminho será ler um grande livro de Jonathan
Edwards intitulado Sobre a Natureza dos Afetos Religiosos (On the Nature of the
Religious Affections). Jonathan Edwards passou pelo grande

avivamento de Northampton, na Nova Inglaterra, em 1735 e depois. Houve


muitos fenômenos estranhos ligados àquele avivamento; algumas pessoas se
inquietaram com isso, e perguntaram: “Isso seria uma verdadeira obra do
Espírito, ou uma falsificação?” Jonathan Edwards respondeu a perguntas como
essa naquele alentado volume. A essência do seu argumento consiste em
demonstrar que absolutamente não é surpreendente que, caso o Espírito de
Deus entre na alma de um homem com poder, coisas incomuns aconteçam, e que
o seu equilíbrio fique transtornado temporariamente. Isso não justifica os
excessos, porém ajuda a explicá-los. Assim, não temos necessidade de temer
esse elemento. Devemos lembrarmos também de que em época de avivamento o
diabo deseja produzir falsificações e causar confusão. Ele atrai a atenção das
pessoas para os fenômenos, para as experiências, para a agitação; e sempre há
gente que só procura essas coisas.
Surge, pois, a questão sobre como podemos dizer qual a diferença entre o real e
o falso. Há certas provas que sempre podem ser aplicadas. A verdadeira emoção
produzida pelo Espírito Santo sempre leva à humildade, à reverência, a um santo
amor a Deus. Alguém pode cantar ou dançar por algum tempo; mas isso
não persiste. E temporário, e se deve à fraqueza do corpo; no entanto, o que é
permanente, e o que prova genuinidade, é que o homem fica tomado por um
sentimento de temor. Ele esteve perto da majestade de Deus, e necessariamente
se humilha. Isso aparece claramente nas narrativas da experiência de vários dos
grandes homens de Deus que eu citei. Eles raramente falavam sobre isso; não
havia jactância. O que acontecera com eles era quase sagrado demais para ser
mencionado. Isso leva à humildade, ao amor de Deus, a um regozijar-se em
Cristo com um “gozo inefável e glorioso”. Só pode ser assim, porque é a
revelação de algo da “largura, e o comprimento, e a altura, e a profundidade, e
conhecer o amor de Cristo que excede todo o entendimento” (Efésios 3:18-19).
E impossível alguém ter sequer um vislumbre de tal experiência, sem se
comover até às profundezas do seu ser. Contudo, a pessoa se humilha e, ao
mesmo tempo, enche-se de um sentimento de temor, de reverência e
de admiração.

Ninguém jamais conheceu mais destas coisas do que o próprio apóstolo Paulo.
Como cristãos, não podemos ler as suas cartas sem ficarmos comovidos. A
emoção parece perspassá-las e apanhar-nos

também. Portanto, ela se torna uma prova do nosso conhecimento dessas coisas.
Já o nome do Senhor Jesus Cristo sempre comovia o grande apóstolo, e às vezes
parece fazê-lo esquecer o seu argumento e a sua lógica por algum tempo. Ele
irrompe repetidamente num hino de louvor e ação de graças; contudo, notamos o
seu auto--rebaixamento. Com todo o seu amor inflamado e apaixonado, sempre
há reverência. Os dois elementos estão sempre presentes no mesmo homem. Ele
sabia o que é ser arrebatado ao terceiro céu e, todavia, dá-nos o seu ensino
incomparável, caracterizado pelo equilíbrio, sabedoria, e entendimento. Sejamos
cautelosos, pois, para que não suceda que por nosso medo de agitação, de
emocionalismo, de estranho entusiasmo e de alguns fenômenos esquisitos,
venhamos a ser culpados de “extinguir o Espírito”, e, com isso, privar outros
destas bênçãos maravilhosas que Deus tem para todo o seu povo. A pergunta
para cada um de nós é: o amor de Deus foi derramado em meu coração? Sei
acima de todo argumento, acima de ter que convencer-me, que sou filho de Deus
e co-herdeiro com Jesus Cristo? É a esse resultado que o selo do Espírito leva.
PROBLEMAS E DIFICULDADES CONCERNENTES À SELAGEM

“Em quem também vós, depois que crestes, fostes selados com aquele Espírito
da promessa.” - Efésios 1:13

Todos quantos já escreveram sobre esta experiência da sela-gem com o Espírito


concordam que é muito difícil descrevê-la com palavras. Há algo com ela que
frustra a sua descrição, como se pode ilustrar com o livro de Apocalipse: “Quem
tem ouvidos ouça o que o Espírito diz à igrejas. A quem vencer darei eu a comer
do maná escondido, e dar-lhe-ei uma pedra branca, e na pedra um novo
nome escrito, o qual ninguém conhece senão aquele que o recebe” (2:17). Há
quase um segredo aí. Mas qualquer homem que o tenha conhecido, mesmo na
mais ligeira e tênue medida, concordará que não há nada que ele jamais
conheceu que de algum modo lhe seja comparável. As verdades em que ele já
cria, que ele aceitava e nas quais punha a sua confiança, subitamente se tornam
luminosas e límpidas, com uma claridade celeste e divina. No amor, mesmo no
amor humano, há sempre um elemento que não pode ser posto em palavras.
Muito mais com esta experiência, porque é uma experiência do amor de Deus e,
em resposta, do nosso amor partindo para Ele! Nós O amamos porque Ele nos
amou primeiro, e há algo que é quase inexprimível com relação a esta
experiência. Todavia, é a coisa mais real que nos pode suceder.

Temos tratado deste assunto amplamente porque, pelo Novo Testamento e pela
longa história da Igreja Cristã, parece muitíssimo claro que não existe nada que
seja tão essencial, do ponto de vista do testemunho cristão, como esta
experiência do selo. É possível testemunhar de maneira mecânica, mas isso tem
muito pouco valor; somente os que conhecem esta experiência do selo são
testemunhas realmente eficientes. Foi por isso que o nosso Senhor disse aos
Seus discípulos que ficassem em Jerusalém até recebê-lo. Não é somente a mais
elevada experiência que o cristão pode ter; é o meio de fazer de nós cristãos
efetivos, de tornar-nos vivos e radiantes. Prova-se isso em todos os períodos de
avivamento e despertamento.

Mas há certas dificuldades com relação a esta questão, das quais devemos tratar.
A questão mais importante é: todos os cristãos primitivos tiveram esta
experiência? Paulo parece estar dizendo que todos os membros da igreja em
Éfeso e das outras igrejas às quais esta carta-circular foi enviada tinham sido
selados pelo Espírito: “Em quem também vós , depois que crestes, fostes selados
com o Espírito Santo da promessa”. Se é esse o caso, argumenta-se, não
se aplicaria a mesma coisa atualmente? Então, como se pode dizer que é possível
ser cristão sem se conhecer o selo do Espírito?

De muitas maneiras esta é a questão mais importante com respeito a este ensino.
Acrescento que é também uma questão extremamente difícil; e eu posso apenas
sugerir que, para mim é, de qualquer forma, uma resposta adequada e suficiente.
A declaração desta passagem é uma das muitas declarações similares e
comparáveis que encontramos nas Epístolas do Novo Testamento. Vejam, por
exemplo, a declaração que consta no capítulo 5 da Epístola de Paulo aos
Romanos, onde lemos que “a esperança não traz confusão, porquanto o amor de
Deus está derramado em nosso corações pelo Espírito Santo que nos foi dado”
(versículo 5). Nessa passagem Paulo parece estar dizendo que o amor de Deus
foi derramado em toda a sua profusão no coração de todos os cristãos.
Assim, podemos muito bem perguntar se isso aconteceu com todos os cristãos
primitivos. E se é assim, por que não acontece com todos os cristãos agora? Ou
se afirma que acontece com todos? A questão não é se sentimos alguns
ocasionais vislumbres do amor de Deus, mas se esse amor foi derramado em
nossos corações até eles se transbordarem. Este versículo é, pois, um versículo
comparável. Também na Primeira Epístola de Pedro temos uma declaração,
que já citamos: “Ao qual (a Jesus Cristo), não o havendo visto, amais; no qual,
não o vendo agora, mas crendo, vos alegrais com gozo inefável e glorioso”
(versículo 8). Isso seria verdade com relação a nós? Pedro faz o que parece ser
uma declaração universal acerca de todos os cristãos. Há outras declarações
semelhantes que poderíamos citar. Parecem universais e aplicáveis a todos os
cristãos aos quais as cartas foram enviadas.

Qual será, então, a explicação, e como conciliar tais declarações com a nossa
alegação de que o selo não se aplica a todos os cristãos? Pois bem, é óbvio que o
apóstolo não conhecia todos e cada um dos membros da igreja de Efeso e das
outras igrejas, a de Roma inclusive. O apóstolo Pedro, como é demonstrado

claramente, não conhecia as pessoas para as quais estava escrevendo; ele as trata
como “estrangeiros dispersos no Ponto, Galácia, Capadócia, Ásia e Bitínia”. Mas
ele tinha ciência de que havia cristãos em certos lugares; e lhes escreve uma
carta-circular geral. Certamente ele não tinha um detalhado conhecimento de
cada membro individual ao escrever-lhes esta carta geral. Logo, podemos tirar a
conclusão de que em todas estas declarações universais e gerais os escritores
estão tratando de algo que eles consideram como norma ou padrão. Não estão
dizendo que essa experiência é necessariamente real com relação a cada cristão
individual. Quando escrevem uma carta geral a uma igreja, escrevem na
suposição de que os seus membros são o que todo cristão deveria ser; e se
dirigem a eles considerando-os tais. Pedro obviamente está fazendo isso, e
apesar de saber que havia variações na experiências dos membros das igrejas ele
lhes escreve em geral, dizendo: “Ao qual, não o havendo visto, amais; no qual,
não o vendo agora, mas crendo, vos alegrais com gozo inefável e glorioso”. Ele
está claramente proclamando o que constitui a norma ou padrão para todo
cristão verdadeiro. Esta é uma parte da resposta.

Contudo, podemos ir além e sugerir que é concebível, na verdade é até provável,


que a muitos daqueles cristãos primitivos fora concedida esta experiência. Tome-
se o evento descrito no capítulo 2 de Atos dos Apóstolos. Evidentemente aquele
evento foi único, não somente por ser aquela a primeira ocasião; foi também
excepcional em sua extensão e intensidade. Não quero dizer que aconteceu uma
vez por todas, e que nunca mais se repetiu. Dizer isto é um grande erro. Só estou
sugerindo que no princípio foi mais intenso do que subseqüentemente. Pois não
somente vemos repetições do que aconteceu no dia de Pentecoste nos capítulos
posteriores de Âtos dos Apóstolos, mas também o relato de cada grande aviva-
mento ocorrido na história da Igreja é mais ou menos uma exata repetição do que
aconteceu no princípio. Toda vez que temos um grande avivamento, vemos
grande número de pessoas, talvez centenas de uma vez, tendo esta extraordinária
experiência, que só parece vir a uma pessoa ocasional, aqui e ali, uma vez ou
outra, nas épocas em que a Igreja se acha em períodos de declínio e
letargia. Quando há um avivamento, a bênção é derramada prodigamente, às
vezes cobrindo ampla área, e grande número de pessoas dão testemunho da
experiência. De fato se tem assinalado muitas vezes que pode acontecer mais
num único dia de avivamento do que em

cem anos sem avivamento. Não que nas épocas mais comuns a Igreja deixe de
ser cristã. Nesses períodos o Espírito Santo está realizado a Sua obra mais
regular, e os que recebem esta experiência são mais ou menos excepcionais;
todavia em tempo de avivamento a experiência vivida propaga-se mais.

Foi esse, mais evidentemente, o caso por ocasião da inauguração da Igreja


Cristã. Deus estava estabelecendo o padrão, por assim dizer, aquilo que deveria
ser a norma ou modelo para a Igreja toda. É como se Deus dissesse: “É isto que
eu prometo fazer, isto é um exemplo do que é possível a você. Faço isso para
encorajar você a procurá-lo”. Assim, é possível que em todas aquelas igrejas
primitivas, quando foram fundadas esta selagem com o Espírito tenha sido dada
a todas. Certamente vemos isso acontecendo com um grande número no dia de
Pentecoste; vemo-lo acontecendo com certos samaritanos como resultado da
visita de Pedro e João; vemo-lo acontecendo com o apóstolo Paulo; e na casa de
Cornélio; vemos Paulo transmitindo a mesma bênção aos doze discípulos que ele
encontrou em Efeso. Essa parece ser a norma e o padrão dos tempos do Novo
Testamento.

Portanto, para explicar por que Paulo aqui escreve desta maneira aos Efésios,
temos o direito de dar uma outra destas duas explicações - ou que todos os
cristãos tinham de fato recebido esta bênção porque pertenciam à Igreja
Primitiva, no princípio, ou que os apóstolos estavam falando em termos gerais
sobre a norma e o padrão, e não em termos de cada membro individual da Igreja.

Nossa próxima pergunta é ainda mais relevante para nós, e ainda mais prática: a
experiência que venho descrevendo destina-se a todos os cristãos? “Notei”,
alguém poderá dizer, “que você deu ênfase ao que aconteceu nos tempos
apostólicos e ao que acontece em tempos de avivamento; e também que os
indivíduos cujas experiências foram citadas eram homens proeminentes, como
Whitefield, Wesley, Jonathan Edwards e D.L. Moody”. Muitos deduzem
disso que a experiência é só para pessoas importantes, e não para os cristãos
“comuns”. Mas essa é uma dedução inteiramente falsa, como prontamente se
pode mostrar pelas Escrituras. Quando o apóstolo Pedro pregou no dia de
Pentecoste, no poder do Espírito, os homens clamaram: “O que faremos, varões
irmãos?” Pedro respondeu: “Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em
nome de Jesus Cristo (do Senhor Jesus Cristo ), para perdão dos pecados;

e recebereis o dom do Espírito Santo; porque a promessa vos diz respeito a vós,
a vossos filhos, e a todos os que estão longe: a tantos quantos Deus nosso Senhor
chamar” (versículos 38 e 39). Não há limite, não há distinção; não se destina
somente aos apóstolos ou a proeminentes servos de Deus; destina-se a todo o
povo cristão. Deus é o pai de todos os cristãos exatamente da mesma maneira.
Ele é o pai do cristão mais humilde precisamente da mesma maneira como o é
do mais ilustre servo na Igreja. A história subseqüente da Igreja confirma isso
abundantemente. Já vimos que parece ter sido esse o caso na Igreja do Novo
Testamento: “Os estrangeiros dispersos” aos quais Pedro escreveu regozijavam-
se em Cristo com “gozo inefável e glorioso”.

Na subseqüente história da Igreja vocês verão que pessoas de cujos nomes nunca
se tinha ouvido falar experimentaram o selo do Espírito. Foi o que se deu nos
dias do despertamento evangélico há duzentos anos. Algumas das primeiras
igrejas metodistas não recebiam como membro da igreja o homem que não
tivesse plena certeza. Essa pode ser uma condição excessiva, porém certamente
é um erro admissível, e prova a espiritualidade dos líderes daquelas igrejas.
Contudo, repito, esta experiência visa a todos nós; e tenhamos sempre em mente
que ela nem sempre está presente com a mesma intensidade.

A analogia do selo em lacre ajuda aqui. As vezes, quando uma pessoa usa um
selo vê que o impresso no lacre se enxerga com clareza; mas às vezes é tão fraco
e indistinto que mal se pode entender. No entanto, distinto ou indistinto, está lá;
e deve estar. Não devemos insistir em que todos tenham a profunda e comovente
experiência de um homem como Jonathan Edwards, que nos conta que a sua
percepção da glória e do amor de Deus veio sobre ele em ondas e com tal
intensidade que ele ficou suando, embora a temperatura ambiente estivesse
baixa. E vocês verão que um homem como Charles G. Finney, embora tão
diferente teologicamente, descreve a mesma experiência quase exatamente com
a mesma terminologia. Conquanto não precise ser de tanta intensidade, repito
que é um direito de nascimento de todos os cristãos estarem
absolutamente certos e seguros da salvação - “Porque sois filhos, Deus enviou
aos vossos corações o Espírito de seu Filho, que clama: Aba, Pai” (Gálatas 4:6).
Para usar uma analogia humana: pode haver um filho não muito normal ou não
plenamente desenvolvido numa família, mas é tão filho do pai e da mãe quanto
os membros da família

altamente inteligentes. O que importa é a filiação; portanto, todo cristão deve


conhecer esta selagem com o Espírito. Resta ainda a pergunta que muitos fazem:
devemos buscar este selo? Sem hesitação, a minha resposta é que é mais que
certo que devemos fazê-lo. E, como devemos ser cautelosos quanto à maneira de
buscá-lo, é prudente começar com uma negativa. Não há nada no
cristianismo contemporâneo que seja tão perigoso e antibíblico, quanto o
ensino segundo o qual, com relação a todas e cada uma ds bênçãos da
vida cristã, tudo o que temos de fazer é “tomá-las pela fé”, sem preocupar-nos
com os sentimentos. Ensina-se isso quanto à conversão, à santificação, à certeza
e à cura física. Terríveis tragédias tem acontecido em cada uma dessas esferas
em conseqüência desse ensino. Permitam-me dar-lhes alguns exemplos. __

O bem dotado Andrew Murray, da África do Sul, já falecido, em certo período


era um grande crente no que chamam cura pela fé; e ele a ensinava da maneira
que nós criticamos. Se um cristão ficava doente, devia ler as Escrituras e
acreditar que o seu ensino é que a vontade de Deus quanto ao cristão é que ele
esteja sempre gozando boa saúde. Depois ele devia ir a Deus e dizer-Lhe que
cria nas Escrituras e nesse ensino particular, e então pedir-Lhe a cura. Mas
o ponto vital era que ele, ajoelhado em oração, devia levantar-se crendo que
tinha sido curado. O fato de não sentir-se melhor não fazia nenhuma diferença;
ele tinha que tomar a sua cura pela fé e continuar vivendo como se estivesse
perfeitamente bem. Entretanto chegou a hora em que Andrew Murray deixou de
crer desse modo, e a sua biografia explica como foi que isso aconteceu. Seu
sobrinho predileto teve um mal do peito, provavelmente tuberculose.
Andrew Murray devia partir para uma série de pregações em certa parte
da África do Sul e o sobrinho estava desejoso de acompanhá-lo; porém as suas
condições de saúde não lhe permitiam ir. Os dois homens acreditavam no mesmo
ensino acerca da cura pela fé, e ambos ajoelharam-se para pedir a Deus a cura.
Levantaram-se crentes em que o jovem fora curado. Fizeram as malas e
viajaram. Mas, pouco depois que partiram, o jovem morreu.

Tenhamos, pois, claro em nossas mentes que não recebemos esta bênção dessa
maneira e sem levar em conta os sentimentos; quando formos selados com o
Espírito Santo de Deus, teremos conhecimento disso. Não é para ser aceito pela
fé, sentimentos à parte. Você deve continuar pedindo a bênção até obtê-la, até
você saber que a tem. O ensino do “Tome-o pela fé”, creio eu, é res-

ponsável por grande parte do indesejável estado atual da Igreja Cristã. Muitos
passam a vida cristã inteira desse modo, dizendo: “Não nos preocupamos com
nossos sentimentos, nós o tomamos pela fé” resultando disso que eles nunca
chegam a ter nenhuma experiência. Vivem baseados no que eles mesmos
sugerem a si próprios, numa espécie de auto-sugestão ou coueismo.* Mas
quando Deus abençoa a alma, a alma fica sabendo disso. Quando Deus revela o
Seu coração de amor a você, o seu coração se derrete com a experiência. Os
apóstolos e outros que foram cheios do Espírito Santo no dia de Pentecoste
ficaram radiantes, arrebatados acima e além de si mesmos, e falaram com
espantosa autoridade e segurança; e todos os que os viram e os ouviram ficaram
admirados e perguntaram: “Que quer isto dizer?” (Atos 2:12). Tenhamos
cuidado, para não suceder que nos privemos de algumas das mais ricas bênçãos
de Deus. Quando Deus o selar com o Espírito, você saberá. Não terá que “Tomá-
lo pela fé” independentemente dos seus sentimentos e das suas condições
pessoais, e continuar dizendo: “Devo tê-lo, porque eu creio, tomei a palavra de
Deus para isso”. Você não terá que pesuadir-se; a persuasão será feita pelo
Espírito Santo, e você conhecerá algo desse regozijo com “gozo inefável
e glorioso”.

Não estou sugerindo, porém, que devemos ser condescendentes com o que às
vezes denominam “reuniões de espera”. Há um sentido em que os que deram
início a tais reuniões estavam certos; em todo caso, eles compreendiam que tal
plano de ação era algo experimental. Mas erraram quando passaram a dizer:
“Vamos reunir-nos e esperar até obtermos a bênção que buscamos”.
Costumavam esperar dias e às vezes semanas resultando em que de vez em
quando certos resultados infelizes tendiam a ocorrer. Isso era mais ou menos
inevitável, pois eles criavam certas condições psicológicas. Se as pessoas ficam
esperando dessa maneira, sem comer nem beber, e numa atmosfera tensa, há
sempre um inimigo por perto, pronto a produzir falsificação. E há sempre a
nossa própria psicologia, o poder de persuasão, e o perigo de as pessoas
entrarem num falso êxtase. Esse perigo ganhava especial realidade quando eles
diziam: “Não sairei do edifício enquanto não obtiver a bênção”. Alem disso, há o
perigo muito real de se esquecerem do
’ De Émile Coué (1857-1926), chamado “apóstolo da auto-sugestão como método de cura”. Natural de
Troyes, França. Nota do tradutor.

senhorio do Espírito e da soberania de Deus. É Ele quem decide quando dar esta
bênção. É Ele quem decide a quem dá-la. Não podemos mandar nisso, e nunca
devemos adotar a atitude de dizer: “Vou cumprir as condições e esperar até
acontecer”. Isso é antibíblico; não é o método de Deus. É certo que o Senhor
disse aos discípulos que esperassem em Jerusalém até o dia de Pentecoste, pois
Ele tinha determinado aquele dia em particular, como já havia revelado aos
santos do Velho Testamento; porém isso não estabelece precedente para as
“reuniões de espera”.

Então, que é que devemos fazer? Permitam-me resumir a resposta: examinem as


Escrituras, examinem as Escrituras em busca das promessas, das “grandíssimas e
preciosas promessas” de que fala o apóstolo Pedro (2 Pedro 1:4). Procurem
compreender o que Deus tenciona que vocês tenham, e o que Ele lhes oferece.
No capítulo 3 da nossa Epístola aos Efésios Paulo declara que está orando por
seus amigos: “Para que, segundo as riquezas da sua glória, vos conceda que
sejais corroborados com poder pelo seu Espírito no homem interior; para que
Cristo habite pela fé nos vossos corações; a fim de, estando arraigados e
fundados em amor, poderdes perfei-tamente compreender, com todos os santos,
qual seja a largura, e o comprimento, e a altura, e a profundidade, e conhecer o
amor de Cristo, que excede todo o entendimento” (versículos 16-19). O
propósito é que eu e vocês conheçamos algo desse amor de Cristo que excede
todo o entendimento. Vocês o conhecem? O propósito é que vocês o conheçam.
Por isso digo: leiam as Escrituras, e quando lerem as Escrituras digam: “Isso foi
destinado a mim, eu fui destinado a saber que Cristo me ama dessa maneira.
Creio em Seu amor, mas nunca o conheci, nunca o experimentei; todavia fui
destinado a conhecê-lo”. Depois continue e diga: “É meu dever ter esta bênção; é
meu dever conhecê-la”. Isso o incentivará a orar.

O próximo princípio é assegurar-nos de que estamos buscando a coisa certa. Não


devemos procurar experiências e fenômenos como tais. Devemos buscar o
Senhor, buscar conhecê-10 e Seu amor. E quase um ultraje a Ele buscar Suas
bênçãos e não buscá-10. Ele fez tudo isso por nós a fim de que O conheçamos, o
único Deus verdadeiro e a Jesus Cristo, a quem Ele enviou. Busquem-nO
busquem o conhecimento dEle, busquem a Sua justiça, busquem a Sua
santidade. Busquem todas essas coisas e jamais vocês se desviarão. Mas se vocês
buscarem êxtase, visões e sentimentos, provavelmente os terão; eles, porém,
serão uma falsificação. Busquem a Deus, e vocês

não poderão errar.

O próximo passo é que façamos tudo o que pudermos para preparar o caminho.
“Mortificai, pois, os vossos membros, que estão sobre a terra” ( Colossenses
3:5). Temos que ser purificados e purificar-nos a nós mesmos, se é que este
Hóspede amoroso deve entrar. “Mortificai, pois, os vossos membros.” Livrem-se
do pecado, purifiquem os seus corações; livrem-se, diz Paulo, “De toda
a imundícia da carne e do espírito” (2 Coríntios 7:1). “Vós de duplo ânimo,
purificai os corações”, diz Tiago (4:8). Vejam então o conselho de Pedro no
capítulo Primeira da sua Segunda Epístola : “Acrescentai à vossa fé a virtude”
etc. (versículos 5-8). O homem que deixa de agir assim é cego, diz Pedro; não vê
nada ao longe, e não se dá conta de que foi feita a “purificação de seus antigos
pecados” (versículo 9). Mas se vocês praticarem aquelas coisas farão “cada vez
mais firme” a sua “vocação e eleição” e lhes “será amplamente concedida a
entrada no reino eterno de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo” (versículos 10
e 11). Devemos concentrar-nos em “Fazer cada vez mais firme” a nossa
“vocação e eleição” .

Depois, positivamente, cabe-nos pôr em prática as virtudes que o apóstolo Pedro


menciona em detalhe: “Acrescentai à vossa fé a virtude, e à virtude o
conhecimento (ARA), e ao conhecimento temperança, e à temperança paciência,
e à paciência piedade, e à piedade amor fraternal; e ao amor fraternal caridade
(amor)”. Pedro nos exorta a praticarmos essas coisas. Ele não diz meramente:
“Vão a uma reunião e esperem pela bênção, ou recebam-na pela fé”. Temos que
“suprir a nossa fé”, preenchê-la com essas outras coisas. Temos que trabalhar
nisso - “Operai a vossa salvação com temor e tremor” (Filipenses 2:12).

Se vocês lerem as vidas dos grandes homens de Deus cujas experiências citei,
verão que todos eles seguiram essas injunções. Todos eles eram homens que se
empenhavam na leitura das Escrituras e em entendê-las; purificavam suas vidas
pelo auto-exame e pela mortificação da carne. Quando lerem as biografias de
Whitefield, Wesley, Jonathan Edwards, John Fletcher, de Madeley, e
outros, vocês verão que todos eles se dedicavam a exercícios espirituais, não
tomavam nada “pela fé”, nem se persuadiam a si mesmos de que tinham que
receber a bênção; dedicavam-se a buscar a Deus. Naturalmente, tudo isso leva
invariavelmente à oração. E preciso orar por esta bênção. Gosto da palavra de
Thomas Goodwin aqui: “Requeste-0 pela bênção”. Ele diz: “Requeste-0 pela
benção”. Ou

como diz Isaías: “Não lhe dê descanso” (62:7) .

Não conheço melhor oração para elevar a Deus do que a que se vê num dos
hinos de William Williams, galês, escritor de hinos, hino que foi assim
traduzido:

Fala, rogo-Te bom Jesus,

Ah, com Tuas suaves palavras Sopra em meu turbado espírito Paz que a terra
nunca dá;

Todas as vozes do mundo,

Todo mal provocador Tua terna voz subjuga e serenidade impõe.

Salvador, dize que és meu,

Dá-me certeza cabal;

Bane todo o meu sombrio pensar; dúvida e temor acalma.

Ah, minha alma anseia agora Tua voz divina ouvir,


E a aflição e o desespero Desapareçam de mim.

Esse é o caminho! Faça a Deus esse tipo de oração até que Ele a responda.
“Salvador, dize que és meu, dá-me certeza cabal.” Ele já lhe atendeu esse
pedido? Ele já lhe sussurrou, já lhe falou? Ore rogando a Sua bênção, busque-a,
busque-a com avidez, com fome, com sede. Mantenha-se orando até que a sua
oração seja respondida. Noutras palavras, tome tempo. Tome tempo! Não
somente “tome tempo para ser santo”, mas também para buscar a selagem com o
Espírito. Persevere, não cesse nunca; e um dia a sua experiência será:

À.v vezes uma luz surpreende O cristão enquanto canta;

É o Senhor que Se levanta Cura em Suas asas trazendo.

Isso muito bem pode acontecer quando você menos espera. As vidas e os
testemunhos dos santos através dos séculos concordam em dizer que Deus tende
a fazer isso por nós em ocasiões especiais.

Às vezes, quando a pessoa tem que passar por uma grande provação, Deus lhe dá
esta bênção pouco antes de chegar a provação. Como é bondoso o nosso Deus!
Que Pai amantíssimo! Quando Ele sabe que algo está para acontecer com você,
algo que o provará até as profundezas do seu ser, Ele lhe concede esta bem-
aventurada certeza, para que você passe triunfantemente pela provação.
Isso pode acontecer após um período de aparente abandono. Ãs vezes, depois de
um período em que a figueira não floresce e todas as árvores estão desnudas,
quando tudo deu errado, de repente irrompe a luz, e Ele fala e sussurra o Seu
amor por nós, e nos dá “a pedra branca” com “o nome novo”, e nos alimenta
com o “maná escondido”.

Muitos cristãos só conheceram isto momentos antes de morrer; e eles


concordaram em dizer que foi a ignorância deles que os impediu de o receberem
mais cedo. Não o tinham buscado como deviam. Eram bons homens, tinham
vivido a vida cristã, tinham até sido usados por Deus; mas nunca tinham ouvido
a Sua “terna voz”; Ele nunca tinha sussurrado em seus corações. Seu desejo da
bênção fora por demais espasmódico; nunca tinham ansiado por ela, nem
a tinham buscado como deviam. Contudo, estando face a face com o fim,
buscaram-na com nova intensidade, e Ele os ouviu e lhes falou. Houve muitos
cristãos assim. Deus lhes concedeu esta bendita certeza direta pouco antes de os
levar para Si para sempre.
Por isso torno a dizer a você: busque esta bênção. Não se satisfaça com nada
menos. Deus já lhe falou que você é Seu filho? Falou-lhe, não com voz audível,
mas, num sentido, de maneira real? Você conheceu esta iluminação, este poder
persuasivo? Você já sabe o que é ser elevado acima e além de si próprio? Se não,
busque-o, clame a Ele dizendo: “Fala, rogo-Te bom Jesus”, e “Requeste-O pela
bênção”, e persevere, até que Ele fale com você.

“O PENHOR DA NOSSA HERANÇA”

“O qual é o penhor da nossa herança, para redenção das possessão de Deus,


para louvor da sua glória.” - Efésios 1:14

Esta declaração é, obviamente, uma continuação do que o apóstolo dissera no


versículo 13, especialmente com relação à selagem com o Espírito Santo da
promessa. Não somente uma continuação, mas também um acréscimo àquela
declaração e à declaração completa que o apóstolo faz desde o começo da
Epístola.

Vimos que a selagem com o Espírito é a certeza excepcional que Deus dá ao Seu
povo; é “o Espírito testificando com o nosso espírito que somos filhos de Deus”.
No entanto, o apóstolo em seu desejo de fortalecer, consolar e edificar os efésios,
percebe que não deve abandonar o assunto ali, porque há outro aspecto da
verdade, que, do ponto de vista experimental e existencial, é, em certo sentido,
mais precioso ainda. Ele trata disso no versículo 14. A conexão é como segue:
“... depois que crestes, fostes selados com aquele Espírito Santo da promessa,
que é o penhor da nossa herança até a redenção da possessão adquirida” (VA).

É uma infelicidade que a Versão Autorizada (inglesa) e algumas outras versões


dizem o qual, em vez de quem, porque é ao próprio Espírito Santo que o
apóstolo está fazendo referência. (Almeida diz, o qual, mas está claro que se
refere ao Espírito Santo).

Digo enfaticamente que o apóstolo não está se repetindo aqui, ou dizendo de


novo a mesma coisa de maneira diferente. Não se trata de tautologia; ele
realmente está acrescentando algo à verdade, está dando mais um passo, e ainda
com o objetivo e propósito de ajudar-nos a ver algo mais da glória da nossa
posição em Cristo Jesus. É tudo “para louvor da sua glória”. Esta é outra faceta,
outro vislumbre, outro ângulo de visão daquela glória que reside em nosso
bendito Senhor e Salvador.
É interessante observar como o apóstolo quase invariavelmente interliga estas
duas coisas - o selo e o penhor. Ele faz isso na Segunda Epístola aos Coríntios,
onde ele diz: “Mas o que nos confirma convosco em Cristo, e o que nos ungiu, é
Deus, o qual

também nos selou e deu o penhor do Espírito em nossos corações” (1:21-22).


Paulo faz praticamente a mesma coisa - embora não use realmente a expressão
referente ao selo - também no capítulo 5 dessa mesma Segunda Epístola aos
Coríntios, onde ele diz: “Ora, quem para isto mesmo nos preparou foi Deus, o
qual nos deu também o penhor do Espírito” (versículo 5). Somente
quando entendemos este tipo de doutrina é que podemos ser
preparados verdadeiramente. Todo o propósito da doutrina não é meramente dar-
nos entendimento ou satisfação intelectual, mas preparar-nos, firmar-nos, fazer
de nós cristãos sólidos, inabaláveis, dar-nos um alicerce tal que nada nos faça
estremecer. E certamente esta é a nossa maior necessidade na hora presente.
Como cristãos, precisamos estar preparados e precisamos aprender a pensar em
nós mesmos, não tanto em termos de experiências particulares, como em termos
de toda a nossa posição e da grandeza daquilo que Deus planejou e tencionou
para nós.

Começamos, pois, estudando o sentido deste termo penhor -“o qual é o penhor
da nossa herança”. É um termo empregado freqüentemente com relação a
transações comerciais, embora não seja usado tão comumente hoje como dantes.
Houve tempo em que era um termo muito comum em todas as transações de
compra e venda, e geralmente se concorda que, nesse caso, ele tinha
dois sentidos. Um deles significava que eram uma espécie de fiança, de garantia.
Um homem que comprasse um lote de terra, por exemplo, e não tivesse dinheiro
para pagá-lo à vista; o costume era que, como prometesse pagar em data
posterior, dava à outra pessoa algo como fiança e garantia de que finalmente
pagaria o preço total.

Mas há um sentido mais rico deste termo, a saber, que não somente se trata de
uma fiança ou garantia, porém também de um pagamento parcial, de fato uma
pequena parte do preço total. Há uma diferença sutil, mas real, neste ponto. Você
pode dar como garantia algo que não é da mesma natureza da aquisição feita.
Por exemplo, na compra de um lote de terra você pode dar uma garantia em
dinheiro; é uma fiança, uma garantia, entretanto não um penhor. O que é peculiar
no penhor é que é uma fiança ou garantia da mesma espécie e da mesma
natureza do objeto de aquisição. Por exemplo, no caso da transferência de
dinheiro, se você der uma parte do dinheiro, será um penhor, além de ser uma
fiança; ao passo que, se você der uma peça de vestuário ou de mobília como
garan-

tia, será uma garantia, porém não um penhor. A característica do penhor é que é
um pagamento parcial, o primeiro pagamento em espécie da mesma espécie do
que está sendo adquirido. É vital para o verdadeiro entendimento desta doutrina
que compreendamos que o penhor é o primeiro pagamento do total, uma garantia
de que se seguirá o restante, e nesse sentido é uma fiança. Mas há outra também
diferença entre fiança e penhor. Se você der uma garantia para cobrir uma
transação, quando você fizer realmente o pagamento, o que você dera em
garantia lhe será devolvido. Os termos “fiança”, “garantia” e “caução”
significam a mesma coisa. Você deixa o seu depósito, porém quando chega a
hora e você faz o seu pagamento, o seu depósito ou a sua garantia lhe é
devolvida. Mas isso não acontece no caso do penhor (no sentido dado pelo
autor). A razão é que o penhor é uma parte ou porção do total, e, portanto, não
lhe é devolvida quando o restante é pago.

Vejamos uma ilustração simples: imagine que você deve à alguém uma libra.
Você pode dar uma garantia por essa dívida; por exemplo, pode dar um livro
como garantia. Depois, quando você pagar o seu débito, terá de volta o seu livro.
Todavia, se em vez de dar um livro como garantia der um penhor, digamos um
xelim, então, quando você acertar as contas com o homem que lhe fez
o empréstimo, você não terá de volta o xelim, e como lhe deve uma libra (20
xelins), simplesmente completará o pagamento dando-lhe dezenove xelins. Isso
porque o seu penhor era de fato uma parte do todo. Assim, se havemos de auferir
pleno benefício do ensino do apóstolo aqui temos que apegar-nos a essa idéia.

Um defeito de algumas traduções populares modernas das Escrituras, é que elas


omitiram completamente esse ponto. A tradução que se vê na Versão Revista
Padrão (“RSV”), por exemplo, não somente é fraca, é também totalmente
inadequada. Ela o traduz assim: “O qual é a garantia da nossa herança até nós
obtermos posse dela”. Isso está certo, é claro; é uma garantia; mas a
palavra empregada por Paulo tem conteúdo muito mais completo. Isso me move
a dizer que devemos ser cautelosos em nosso uso dessas traduções modernas. A
estrita precisão na linguagem não é tudo. Um preconceito pode influir, e é
interessante notar como homens que podem ser versados no manejo das
palavras, quando se pode usar uma ou duas ou três palavras, frequentemente
escolhem uma palavra deveras correta, palavra a qual falta a plenitude de
significado dado por uma das outras palavras. O ponto de vista dos tradutores é

importante, bem como a sua habilidade técnica. Já encontramos diversos casos


nessa parte da Epístola aos Efésios nos quais os tradutores da Versão Revista
Padrão parecem quase deleitar-se em usar a palavra mais fraca, quando poderiam
usar a mais grandiosa e mais elevada. “Garantia” aqui é mais fraca que
“penhor”.

O “penhor”, então, é algo dado “por conta”. A palavra “até” esclarece ainda mais
o ponto - “O qual é o penhor da nossa herança até...”, até o que? “Até a redenção
da possessão adquirida”. Notem de novo a colocação feita pela Versão Revista
Padrão: “o qual é a garantia da nossa herança até nós obtermos posse dela”. Isso,
de novo, é legítimo, é possível; mas a sua ênfase está em ‘‘obtermos”. A Versão
Autorizada diz: “até a redenção da possessão adquirida”. A palavra “redenção” é
omitida na Versão Revista Padrão. A Versão Revista (inglesa) (“ERV”) é
ligeiramente diferente da Versão Autorizada, e traduz assim: “o qual é um
penhor da nossa herança, para a redenção”. Ela mantém a palavra “redenção” e
também a palavra “penhor”. E continua: “penhor da nossa herança, para a
redenção da possessão de Deus” (semelhante à Versão de Almeida, Revista e
Corrigida). Ora, “Deus” não é mencionado na Versão Autorizada. A referência a
Deus na verdade não se acha no original; os revisores fizeram interpretação
nesse ponto, como o uso de itálicos o demonstram (tanto na VA com em ARC).

Quanto à palavra “redenção”, vemos que ela está no grego, no original; o que
torna muito mais significativa a sua omissão por parte dos tradutores da “RSV”.
Está claro que “a consumação final do plano de Deus” é o significado dessa
palavra aqui. Vemos o mesmo sentido na Primeira Epístola aos Coríntios,
capítulo 1, versículo 30, onde o apóstolo diz: “...em Jesus Cristo, o qual para nós
foi feito por Deus sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção”. Nessa
passagem alguns pensam em “redenção” somente em termos do perdão de
pecados; porém em diversas passagens ela tem escopo mais amplo. As vezes
significa “perdão”; mas o contexto geralmente esclarece o sentido. Obviamente,
como vem empregada em 1 Coríntios capítulo 1, versículo 30, “redenção”
significa “consumação final”, o fim, o propósito completo de Deus cumprido
em sua total emancipação e libertação.

Como vimos anteriormente, a palavra que o apóstolo empregou é um termo


muito especial e técnico. “Redenção” significa libertação por meio do
pagamento de um preço de resgate, e no sentido cristão significa o preço de
resgate do sangue de Cristo que

foi pago por nossa redenção e libertação final. Assim, o apóstolo está dizendo
aqui que a bênção a nós trazida pelo Espírito Santo, e em particular o selo, é um
pagamento parcial que nos é dado até recebermos em toda a sua plenitude o que
Cristo adquiriu para nós com o Seu precioso sangue. A palavra “obter”
(“Acquire”), da “RSV”, introduz uma idéia alheia à ênfase do apóstolo.

Ao considerarmos a redação da Versão Revista Inglesa - “O qual é o penhor da


nossa herança até a redenção da possessão de Deus” - vemo-nos confrontados
por duas possibilidades. Podemos examinar as palavras, ou do ponto de vista de
Deus, ou do ponto de vista humano. É plano de Deus reunir um povo - a
plenitude dos gentios, a plenitude dos judeus. Ele está realizando isso, pois
lemos: “Conhecidas de Deus são todas as suas obras” (Atos 15:18,VA);
“o fundamento de Deus fica firme, tendo este selo: o Senhor conhece os que são
seus” (2 Timóteo 2:19). Deus tem Seu plano perfeito para redimir um dado
número de almas, e “redenção”, no aspecto voltado para Deus, refere-se ao
tempo em que todas elas terão sido reunidas em segurança. Elas são a possessão
de Deus. “A porção do Senhor é o Seu povo” (Deuteronômio 32:9). É evidente
que os tradutores da Versão Revista Inglesa adotaram este conceito sobre
o assunto. Esse é, indubitavelmente, o conceito que o apóstolo apresenta no
versículo 18 deste capítulo. Ele ora para que os olhos do nosso entendimento
sejam iluminados, “para que saibamos qual seja a esperança da sua vocação, e
quais as riquezas da glória da sua herança nos santos”. Aí temos uma descrição
dos santos como uma herança de Deus, um patrimônio de Deus. Portanto, este é
um conceito legítimo sobre esta frase.

Não obstante, parece-me que aVersão Autorizada é melhor neste caso. A maneira
de decidir a questão não é unicamente em termos de lingüística, mas também em
termos do contexto e da doutrina. Neste ponto o apóstolo está interessado em dar
conforto, consolo e segurança aos seus leitores, pelo que opino que ele está
examinando esta matéria do ponto d vista humano, e não do lado de Deus. Ele
está dizendo que Deus nos fez um pagamento parcial da nossa herança, até
recebermos a totalidade. A tradução da Versão Autorizada encaixa-se natural e
confortavelmente no contexto inteiro. Alternativamente, faz pouca diferença,
porque o dia em que entrarmos plenamente em nossa herança é o dia em que
toda a possessão de Deus em Seu povo também estará completa.

Agora podemos passar à mensagem, à doutrina comunicada pelo termo


“penhor”. A primeira questão é quanto a diferença entre o selo e o penhor. O selo
é aquilo que me assegura que sou um herdeiro; dá-me segurança quanto à minha
relação com a herança. O penhor é aquilo que dá segurança quanto à coisa
mesma; dá-me o usufruto de uma real porção dela e, portanto, aumenta a minha
certeza de que receberei tudo finalmente. Há uma óbvia diferença entre ambos.

O ensino do apóstolo é, pois, que o Espírito Santo me foi dado, e que Ele,
testificando com o meu espírito, garantiu-me que sou filho de Deus. Deus me
disse, “Tu és meu filho”, e, mediante a selagem, deu-me prova cabal de que está
peculiarmente interessado em mim em Cristo; mas Ele deu-me também este
penhor da minha herança.

Examinemos o penhor primeiro como uma garantia. A melhor maneira de ver o


Espírito Santo como a garantia da minha herança é examinar a matéria da
maneira pela qual o apóstolo a expõe em alguns versículos do capítulo 8 da
Epístola aos Romanos. Vejam, por exemplo, o versículo 11: “E, se o Espírito
daquele que dos mortos ressuscitou a Jesus habita em vós, aquele que dos
mortos ressuscitou a Jesus também vivificará os vossos corpos mortais, pelo seu
Espírito que em vós habita”. Notem o argumento do apóstolo no contexto deste
versículo. Ele explica que em espírito já fomos redimidos, estamos mortos para a
lei, mortos para o pecado; estamos “em Cristo”, fomos ressuscitados com Ele.
Mas o pecado permanece em nosso corpo mortal, e por vezes ficamos
desanimados por causa da nossa luta contra ele. O conforto e o encorajamento
que o apóstolo nos dá vê-se no versículo recém-citado. O fato de que o Espírito
habita em nós é um penhor, uma garantia do que ainda acontecerá conosco
completa e perfeitamente. Vem o dia em que os nosso corpos serão inteiramente
libertados do pecado, sendo que a garantia da sua bênção é a presença do
Espírito dentro dos nosso corpos. Visto que o Espírito está em mim, sei que o
meu corpo está destinado a ser finalmente libertado da presença do pecado.

Vemos a mesma idéia no versículo 23 deste mesmo capítulo 8, onde, depois de


referir-se à criação, Paulo diz: “E não só ela (a criação toda), mas nós mesmos,
que temos as primícias do Espírito, também gememos em nós mesmos,
esperando a adoção, saber, a redenção do nosso corpo”. A presença do Espírito
em nós é uma garantia da “adoção, da redenção do nosso corpo”, o que há de vir,

a despeito de todo o gemer de que podemos estar cônscios no presente.

Vê-se a mesma idéia na Segunda Epístola de Paulo aos Coríntios, capítulo 5,


versículos 1 a 5: “Sabemos que, se a nossa casa terrestre deste tabernáculo se
desfizer, temos de Deus um edifício, uma casa não feita por mãos, eterna, nos
céus. E por isso também gememos (no corpo), desejando ser revestidos da nossa
habitação, que é do céu; se, todavia, estando vestidos, não formos achados nus.
Porque também nós, os que estamos neste tabernáculo, gememos carregados” -
do pecado no corpo, do pecado na carne, da lei dos membros - não porque
queremos ser despidos, mas revestidos, para que o mortal seja absorvido pela
vida. Ora, quem para isto mesmo nos preparou foi Deus, o qual nos deu também
o penhor do Espírito”. O Espírito em mim é um penhor, uma garantia de que,
embora eu esteja gemendo agora, serei libertado e revestido daquela habitação
que é do céu, verdadeiramente “um edifício de Deus”.

Examinemos agora o outro aspecto do assunto. O Espírito Santo em nós não é


somente uma garantia; é também um pagamento parcial da nossa herança. O
apóstolo nos comunica isto por meio do termo “primícias”. É uma referência a
um antigo costume que havia entre as comunidades agrícolas. Na época da
colheita o agricultor saía e colhia certa quantidade da sua lavoura. Levava essa
parte colhida para casa, e, tendo-a transformado em farinha, dizia à esposa:
“Asse isto para experimentarmos uma parte do que virá”. Ele não tinha colhido
ainda a totalidade da produção, mas apenas uma parte, as primícias, os primeiros
frutos. Tendo semeado a semente na primavera, e tendo esperado durante os
meses de verão, finalmente chegou a época da colheita, e ele está desejoso de
provar um pouco da colheita. O Espírito, e Sua obra em nós, especialmente
o selo, são as primícias da grande colheita que nos aguarda. Ou podemos pensar
nisso como um “antegozo”. As “primícias” são um espécime, e, ao tomarmos
parte delas, temos um antegozo do que virá, algo para estimular o nosso apetite,
algo que nos dá prazer e arrebata os nossos corações.

Noutras palavras, o ensino do apóstolo é que o Espírito Santo em nós dá-nos o


que nós, como cristãos, deveríamos estar desfrutando - um antegozo do céu! A
nossa participação, juntos, no culto público deveria ser um antegozo do céu.
Quando nos reunimos para considerar estas coisas, para falar sobre elas e para
considerá-las, estamos tendo um antegozo do céu. O culto público deveria ser

uma colheita das primícias, um exemplar daquilo que será a nossa parte no céu.
Estas Epístolas do Novo Testamento nos concitam constantemente a olhar para o
futuro, para o gozo no céu. Pouco sabemos do que significa isso, e as Escrituras
nos falam pouco a respeito, porém com certeza podemos dizer que as duas
principais bênçãos do céu serão ver o nosso bendito Senhor e Salvador, e tornar-
nos semelhantes a Ele. “Bem aventurados os limpos de coração; porque eles
verão a Deus” (Mateus 5:8). “Amados, agora somos filhos de Deus, e ainda não
é manifestado o que havemos de ser. Mas sabemos que, quando ele se
manifestar, seremos semelhantes a ele; porque assim é como o veremos” (1 João
3:2). Ver o nosso bendito Senhor e Salvador face a face, ver a Deus; isso
está além da nossa compreensão, e não conseguimos captá-lo porque
é sumamente glorioso. No entanto, no céu veremos a Deus, e fitaremos o rosto
do nosso bendito Salvador, que morreu por nós. Tudo o que temos no presente,
mesmo as nossas experiências mais altas, são as primícias; são apenas o
antegozo da bem-aventurança.

A ênfase do apóstolo é no sentido de que devemos fruir as primícias e o


antegozo agora: “Nós mesmos, que temos as primícias do Espírito” (Romanos
8:23). E alhures ele nos dá uma idéia do que isso significa. Na Segunda Epístola
aos Coríntios, capítulo 3, versículos 17 e 18, ele escreve: “Ora, o Senhor é o
Espírito; e onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade. Mas todos nós, com
cara descoberta, refletindo como um espelho a glória do Senhor,
somos transformados de glória em glória na mesma imagem, como pelo Espírito
do Senhor”. Isso é para acontecer agora! Ainda não o vemos face a face, porém
O vemos com o rosto descoberto, refletindo como um espelho. Agora só vemos
um reflexo mas pelo Espírito vemos um reflexo da glória do Senhor.

Paulo diz praticamente a mesma coisa na Primeira Epístola aos Coríntios,


capítulo 13, versículo 12, onde lemos: “Porque agora vemos por espelho em
enigma, mas então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então
conhecerei como também sou conhecido”. Agora vemos “por um espelho
obscuramente” (VA), vemos um “mistério num enigna”, como alguém traduziu.
Ainda não vemos claramente; estamos vendo a glória, todavia somente de
modo obscuro, como num espelho. A face do espelho não é suficientemente
polida para captar plenamente a glória; há elementos de distorção e de
imprecisão; mas então, “face a face”! Mas, graças a Deus que o que vejo agora é
uma parte da glória eterna; é um

primeiro pagamento, as primícias, um antegozo, um penhor. Não é somente uma


garantia; é uma parte da realidade mesma. Estamos penetrando na glória em
certa medida, mesmo agora. Esse é o ensino do apóstolo. A glória começa aqui,
imperfeitamente e em pequenas porções; não obstante, é real, é parte integrante
da glória, quanto posso resistir e suportar enquanto ainda estou na carne.
O segundo aspecto é que nos tornaremos semelhantes ao nosso Senhor, e
compartilharemos Sua vida. Ser semelhante a Ele significa perfeição, perfeição
absoluta, sem mancha, sem mácula, sem ruga nem coisa semelhante. Judas, na
admirável palavra de bênção do final da sua Epístola, diz: “Ora, àquele que é
poderoso para vos guardar de tropeçar e apresentar-nos irrepreensíveis com
alegria, perante a sua glória...”. É nos dada uma idéia disso na descrição feita no
livro de Apocalipse: “Mas, quanto aos tímidos, e aos incrédulos, e aos
fornicários, e aos feiticeiros, e aos idólatras, e a todos os mentirosos, a sua parte
será no lago que arde com fogo e enxofre; o que é a segunda morte” (21:8).
Esses não estarão no céu, mas fora dele. No mesmo capítulo lemos mais: “E não
entrará nela (na cidade santa) coisa alguma que contamine, e cometa abominação
e mentira; mas só os que estão inscritos no livro da vida do Cordeiro” ( versículo
27). Ainda, no capítulo 22 do mesmo livro, o ultimo capítulo da Bíblia lemos:
“Quem é injusto, faça injustiça ainda; e quem está sujo, suje-se ainda”. Isso é o
inferno - fora do céu! (versículo 11). “E quem é justo, faça justiça ainda; e quem
é santo, seja santificado ainda”. Isso é o céu! Vejam os versículos 14 e
15: “Bem-aventurados aqueles que guardam os seus mandamentos, para que
tenha direito à árvore da vida1 e possam entrar na cidade pelas portas. Ficarão de
fora os cães e os feiticeiros, e os que se prostituem, e os homicidas, e os
idólatras, e qualquer que ama e comete a mentira”. “Coisa alguma que
contamine” entrará na cidade santa; é pureza completa e absoluta. É o que
gozaremos quando O virmos como Ele é e formos feitos semelhantes a Ele.
Contudo, até disso também nos é prometido um antegozo nesta vida, neste
mundo, pois o Espírito Santo é o penhor da nossa herança. Cabe-nos conhecer
algo sobre a alegria da santidade, sobre o ódio ao pecado, e abominar o mundo e
todos os seus caminhos, todos os seus desejos e tudo o que ele representa.
Devemos aprender a odiar o pecado

como Cristo o odiou, e a gostar da santidade, da pureza e da justiça. Você sabe o


que é gostar da santidade, achar que os Seus mandamentos “não são pesados” (1
João 5:3), ter prazer na lei do Senhor, amá-la pelo que ela é? Temos que ter
antegozo desse estado.

Ademais, o amor é uma grande característica do céu. Quando O virmos O


amaremos plenamente; mas devemos começar a amá--ÍO aqui. Paulo ora pelos
efésios no capítulo 3 da sua Epístola, para que, “corroborados com poder pelo
seu Espírito no homem interior”, comecem a conhecer algo da “largura, e o
comprimento, e a altura, e a profundidade, e conhecer o amor de Cristo, que
excede todo o entendimento, para que (eles sejam) cheios de toda a plenitude de
Deus”. Você ama a Deus? No céu você o amará absolutamente. Você começou a
amá-lO aqui? O propósito é que o façamos; e se temos as primícias o faremos:
procuraremos conhecer o Seu amor por nós, amá-10 e amar-nos uns aos outros.
No céu todos nos amaremos uns aos outros; todavia isso deve começar aqui.
Se temos em nós as primícias do Espírito, começaremos a amar-nos uns aos
outros porque pertencemos a Cristo.

Aplica-se o mesmo à alegria. A alegria do céu é pura. Isso é descrito nos


capítulos finais do livro de Apocalipse: “E Deus limpará de seus olhos toda a
lágrima; e não haverá mais morte, nem pranto, nem clamor, nem dor; porque já
as primeiras coisas são passadas” (21:4). Alegria pura! Mas isso também precisa
começar aqui .”0 reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça, e paz, e
alegria no Espírito Santo” (Romanos 14:17). “Ao qual, não o havendo visto,
amais; no qual, não o vendo agora, mas crendo, vos alegrais com gozo inefável e
glorioso” (1 Pedro 1:8) - agora! Se o Espírito Santo está em nós, conheceremos
algo desta alegria. Por isso o apóstolo insiste repetidamente com os Filipenses:
“Regozijai-vos sempre no Senhor; outra vez digo, regozijai-vos” (4:1). Também
havemos de conhecer algo da “paz de Deus, que excede todo o entendimento”
(Filipenses 4:7). O céu é paz perfeita e perfeita bem-aventurança, e devemos
conhecer algo acerca disso aqui. Sejam quais forem as circunstâncias nas quais
nos encontraremos, podemos estar em paz - abatidos ou com abundância, na
escassez, na necessidade, ou com fartura e abundância, devemos estar sempre
gozando esta perfeita paz de Deus.

Acolham bem, pois, a doutrina veiculada pelo termo “penhor”. Mediante o


Espírito Santo em nós como penhor, cabe-nos começar a gozar o céu mesmo
aqui. “Frutos celestiais em solo terrenal, da fé

Filhos do celeste Rei,

Peregrinando cantai...

Vamos para o lar, adeus,

Como andaram nosso pais;

Felizes já estão, e logo Sua felicidade veremos.

Não vemos nada disso, porém Deus, em Sua infinita graça, bondade e
compaixão deu-nos um antegozo. Nós o estamos fruindo? Você O conhece?
Você O vê com o rosto descoberto, como num espelho? Sua glória já foi revelada
a você? Você conhece algo do Seu amor, e você O ama? Você conhece a alegria
da santidade, da pureza e da santificação? E você está gozando “a paz de Deus,
que excede todo o entendimento”? “O qual (o Espírito Santo) é o penhor da
nossa herança, até a redenção da possessão adquirida.”

1
Versão Autorizada (inglesa); cf. Almeida, Revista e Corrigida, margem. Nota do tradutor.
PROVAS DA PROFISSÃO DE FÉ CRISTÃ

“Pelo que, ouvindo eu também a fé que entre vós há no Senhor Jesus, e o vosso
amor para com todos os santos, não cesso de dar graças a Deus por vós,
lembrando-me de vós nas minhas orações.”

- Efésios 1:15-16

Completamos o nosso estudo da grande declaração que começou no versículo 3,


indo sem interrupção até o fim do versículo 14. E uma das mais vigorosas
declarações de fé cristã que se acham nas Escrituras, se não a mais vigorosa de
todas. Havendo completado a sua declaração, o apóstolo se dirige agora, por
assim dizer, a estes efésios a quem está escrevendo, e também às outras igrejas,
para aplicar o que acaba de dizer.

Não devemos esquecer que esta é uma Epístola pastoral, e que o seu propósito
era eminentemente prático. Não se deve pensar no apóstolo como sendo um
teólogo que se assenta para escrever uma dissertação teológica; seu objetivo era
ajudar os cristãos, fortalecê-los e animá-los em sua vida cristã diária. Este é o
jeito apostólico de fazê-lo; os apóstolos acreditavam que a melhor maneira
de ajudar os cristãos era ensinar-lhes as grandes doutrinas da fé cristã e depois
aplicar a doutrina a eles.

Portanto, neste ponto, o apóstolo parece sugerir que até aí ele e os seus leitores
estiveram examinando o cristianismo em sua essência. Ele se regozijara no fato
de que o cristianismo é para os gentios, bem como para os judeus, sendo ambos
co-participantes de Cristo e das primícias da grande colheita vindoura. Ele está
particularmente interessado em que os crentes efésios a quem ele está
escrevendo se apercebam de que são participantes destas bênçãos; e assim
ele começa a sua nova seção com um enfático “portanto” ou “pelo
que”, expressão que age como elo entre o precedente e o subseqüente. Visto que
tudo o que ele estivera escrevendo é verdade quanto aos cristãos de Éfeso, ele
lhes diz que ora por eles constantemente e

sem cessar - “Pelo que, ouvindo eu também a fé que entre vós há no Senhor
Jesus, e o vosso amor para com todos os santos, não cesso de dar graças a Deus
por vós, lembrando-me de vós nas minhas orações”.
Depois o apóstolo passa a indicar a natureza exata da sua oração. Observem que,
como sempre deveria ocorrer com a oração cristã, há dois aspectos em sua
oração. Primeiramente, ele não cessa de dar graças por eles. Agradece a Deus o
fato de que eles estão na vida cristã; o fato de que eles foram feitos co-herdeiros
com os judeus no grande e glorioso reino vindouro de Deus. Eles foram selados,
têm o poder do Espírito, e estão aguardando o tempo da “redenção da possessão
adquirida”. Sua ação de graças é significativa porque é parte essencial da vida
cristã. Não há quem possa ser verdadeiramente cristão e que não se regozije
porque outros também se tornaram cristãos. Nada deveria alegrar mais o coração
do crente do que saber que há outros que se acham em igual posição e gozando
as mesmas bênçãos. Por isso o apóstolo dá o seu constante louvor e ação de
graças a Deus; e então, e somente então, ele começa a fazer as suas petições, que
se acham no trecho que vai do versículo 17 ao fim do capítulo.

É bom que tenhamos em mente a estrutura geral do capítulo. O apóstolo começa


com a declaração doutrinária que já estudamos. Em seguida, ele dá graças a
Deus porque os efésios estão envolvidos em todas as bênçãos mencionadas por
ele, e delas participam. Então, por causa disso, ele ora constantemente por eles,
rogando que o seu entendimento da fé cresça e se desenvolva, e que a
experimentem cada vez mais. Com isso ele nos dá um excelente sumário daquilo
que a nossa vida cristã deveria ser. Deveríamos penetrar mais profundamente no
entendimento e na experiência real das grandes e gloriosas coisas que o apóstolo
já descrevera.

Ao passarmos pela última parte do capítulo, vemos que o apóstolo começa


dando graças a Deus pelos cristãos efésios. Mas, como é que ele sabe que eles
são cristãos? Ele nos diz que ouvira certas coisas a respeito deles: “Pelo que,
ouvindo eu também a fé que entre vós há no Senhor Jesus, e o vosso amor para
com todos os santos...”. Alguns acham que há um problema levantado pelo
uso que o apóstolo faz da palavra “ouvindo”, porque lemos no livro de Atos,
capítulo 19, que foi Paulo o primeiro a levar o evangelho a Éfeso e a pregar aos
seus cidadãos, e que os que foram convertidos,

o foram em grande parte como fruto do seu ministério. Pode se resolver a


aparente contradição assinalando que o que Paulo ouviu não foi somente que
eles tinham entrado na vida cristã, mas perse-veravam nela. Continuavam
exercendo a sua fé; não tinha sido apenas uma emoção passageira que viera e se
fora; eles continuaram crendo, continuaram sendo cristãos. Tendo ouvido essa
notícia, Paulo dá graças a Deus por ela. Não somente isso, provavelmente
havia muitos que entraram naquela igreja desde quando Paulo estiveram em
Efeso, e ele ouvira falar desses novos convertidos. E se, como sugerimos antes,
esta é, provavelmente, uma carta circular que incluía igrejas que o apóstolo
nunca visitou, podemos entender por que ele diz que tinha ouvido a respeito da
sua fé. Está claro que ele tem razões para saber que as pessoas às quais está
escrevendo continuam na vida cristã.

No entanto, o que foi exatamente que Paulo ouviu sobre estes cristãos? Que é
que dá ao apóstolo esta definida certeza concernente a eles? Que é que ele tem
em mente quando, de joelhos, na presença de Deus, dá graças por eles? Isso é
importante porque nos supre de provas que podemos aplicar a nós mesmos.
Como sabemos se somos cristãos? E os outros, como podem saber que somos
cristãos? Que bases temos para dar graças a seus por sermos cristãos e para dar
graças a Deus por outros cristãos? O simples fato de que um homem pode dizer
que é cristão não prova que é: a história da Igreja Cristã no transcurso dos
séculos prova que essa é, talvez uma das maiores falácias em que podemos cair.
Por vezes pessoas que se diziam cristãs foram os maiores inimigos da fé cristã.
O simples fato de pensarmos que somos cristãos não basta; o fato de outras
pessoas talvez dizerem que somos cristãos não basta. É preciso haver alguma
prova. Se havemos de ter certeza real e sólida, temos que ter algumas provas
válidas para aplicar; e afortunadamente para nós, o apóstolo no-las fornece aqui.

Há muitas dessas provas próprias para o cristão no Novo Testamento.


Indubitavelmente, a Primeira Epístola de João foi escrita com o propósito
específico de que possamos provar-nos a nós mesmos para vermos se estamos na
fé. O apóstolo Paulo exorta os corín-tios dizendo: “Examinai-vos a vós mesmos,
se permaneceis na fé; provai-vos a vós mesmos” (2 Coríntios 13:5). E há muitas
outras exortações similares nas Epístolas do Novo Testamento. Mas aqui
o apóstolo reduz todas as provas a duas. Podemos estar certos de que, ao fazê-lo,
suas provas podem ser consideradas cabais e definitivas.

Não precisamos preocupar-nos em aplicar todas as provas a nós mesmos; tudo o


de que necessitamos é aplicar as duas provas aqui sugeridas por este homem de
Deus. Se passarmos nestas duas provas, poderemos ficar contentes com nós
mesmos. Você pode fazer as outras provas a seu bel-prazer, porém se quiser
centralizá-las todas no mesmo foco, aqui estão as provas que deverá aplicar.
O que quer que com verdade se possa dizer de nós, será irrelevante se não
passarmos nestas duas provas. Digo isso baseado na autoridade do apóstolo. Ele
nos dá os fundamentos da sua certeza e da sua segurança com relação a estas
pessoas; e notamos que essas duas provas acham-se em toda parte no Novo
Testamento. Uma delas refere-se principalmente à nossa fé; a outra,
principalmente à nossa prática. Mais uma vez, temos aqui a fé e as obras; elas
andam juntas, e jamais devem ser separadas. São indissoluvelmente unidas; e de
nada vale ter uma sem a outra.

Este é um tema constante em todo o Novo Testamento. Vejam, por exemplo, o


capítulo 13 da Primeira Epístola aos Coríntios, onde o apóstolo afirma que é
inútil um homem dizer que tem fé, ou que pode falar nas línguas dos homens e
dos anjos, ou que tem certos dons extraordinários, se lhe falta amor. A Epístola
de Tiago diz igualmente que “a fé sem obras é morta” (2:20). Sem obras, a fé,
assim chamada, não passa de uma crença intelectual. A prova da verdadeira fé é
que ela se mostra em ação. Aqui o apóstolo nos confronta com estas duas coisas
juntas - “Pelo que, ouvindo eu também a fé que entre vós há no Senhor Jesus, e o
vosso amor para com todos os santos...” De todas as muitas coisas que o
apóstolo tinha ouvido a respeito dos efésios, e das diversas provas que podem ser
aplicadas, diz ele que estas duas coisas o habilitam a dar graças a Deus por eles
sem dificuldade.

O primeiro fato concernente a eles é a sua “fé no Senhor Jesus” (cf. a VA), ou,
como se poderia traduzir, “a fé que entre vós há” (como na Versão de Almeida).
Refere-se à sua fé individual, pessoal no Senhor Jesus. Naturalmente, isso é o
que há de mais vital; é o que podemos chamar a differentia * da fé cristã. Esta é
a prova central, vital, segura. Não devemos colocar na primeira posição a
nossa maneira de viver; não devemos colocar na primeira posição a
nossa conduta e o nosso comportamento. Existe no mundo muita gente boa,
muitas pessoas bondosas, muitas pessoas de boa moral, muitas
’ Diferença. Em latim no original. Nota do tradutor.

pessoas benévolas que não são cristãs. Muitas nem mesmo se dizem cristãs; de
fato, podem ser opositoras à fé cristã. Mas, quanto à vida e ao modo de viver, são
boas pessoas. Evidentemente, pois, não é este o ponto no qual devemos começar.

Também devemos indicar que não é o homem de idéias nobres que importa, nem
o seu idealismo; um conceito vago, geral, benevolente, idealista não significa
que o homem é cristão. É preciso dar ênfase a isso no presente por causa da
confusão que existe a respeito. Dificilmente se pode ler uma notícia obituária
acerca de um grande homem nos jornais sem que haja alguma confusão. O tipo
de observação que geralmente se faz sobre um homem que morreu é que ele não
era cristão, porém era um grande homem, um homem que fazia muitos
benefícios e que tinha muitas idéias nobres com relação à vida; depois, para
resumir tudo, acrescentam: “Não podemos dizer que ele foi formalmente cristão,
mas ...” O que eles querem dizer é que, embora ele não dissesse que era cristão,
e não fosse membro de igreja e não subscrevesse os credos cristãos, não
obstante era cristão. Ninguém poderia ter tido uma vida tão maravilhosa sem ser
cristão. Noutras palavras, a vida, ou as idéias, ou a nobreza de caráter de um
homem, ou a sua preocupação com a elevação da raça ou com o melhoramento
da vida em geral, determinam se ele é cristão. A característica peculiar dos dias
atuais é esta completa confusão sobre os primeiros princípios e sobre as
definições primordiais; e, que pena, essa não é apenas a verdade em
termos gerais, mas até com relação ao segmento mais
fundamentalmente evangélico da Igreja Cristã! Os referenciais estão ficando
cada vez menos distintos, e o clamor hoje é; “Não se preocupem com definições.
Se um homem se diz cristão, ele é cristão; trabalhemos juntos”.

Contudo, devemos ir até mais longe. Tampouco devemos começar perguntando


se a pessoa crê em Deus. Não é essa a prova verdadeira, pois há muitos no
mundo que crêem em Deus e não são cristãos. Os judeus, que deram morte ao
Filho de Deus, criam em Deus. Atualmente, os judeus ortodoxos, que podem
opor-se fortemente ao cristianismo, crêem em Deus. Os maometanos e
outros são crentes em Deus. Daí a ênfase do apóstolo: “a vossa fé no Senhor
Jesus”. Ele, esta bendita Pessoa, tem que estar no centro. Esta prova inclui todas
as provas. Se um homem crê no Senhor Jesus, necessariamente crê em Deus, e
as suas idéias gerais só podem ser corretas. Esta prova é totalmente abrangente.
Por isso o

apóstolo não se preocupa muito com as outras provas, mas vem logo ao centro.
Ao que lhe parece, ele agiu com base no princípio frequentemente empregado na
esfera da química. Um químico que está tentando identificar uma substância
conta com diversas provas que se pode aplicar, entretanto, se ele tem pressa, não
se dá ao trabalho de utilizar todas as provas possíveis; imediatamente aplica a
prova cabal e definitiva. Na esfera do cristianismo a prova definitiva é o próprio
Senhor Jesus Cristo, pelo que diz o apóstolo: “a vossa fé no Senhor Jesus”.

O cristão é alguém em cuja vida e em cuja perspectiva global o Senhor Jesus


Cristo ocupa o lugar central. Ele vê tudo em Cristo. Começa com Ele, e com Ele
termina. Jesus Cristo veio a ser o fator controlador em toda parte. Há muitas
pessoas religiosas e muitos movimentos religiosos hoje em dia que são muito
ativos e zelosos, e que conquistam os seus convertidos, assim chamados, mas
muitas vezes Jesus Cristo não é mencionado por eles. Eles falam sobre “Vir a
Deus”, “Ouvir a Deus”, etc., sem que Cristo seja mencionado. Isso, por
definição, não é cristianismo, por melhor que eles pareçam e por mais religiosos
que sejam. O cristão é alguém que vê e acha tudo em seu Senhor e Salvador
Jesus Cristo.

Vejamos como o apóstolo, em muitos lugares dos seus escritos, salienta esta
verdade. Na Epístola aos Filipenses ele adverte os seus leitores contra certos
judaizantes que percorriam as igrejas dizendo: “Sim, é certo crer em Jesus
Cristo, mas também você precisa ser circuncidado”, você precisa tornar-se judeu,
em acréscimo, por assim dizer. O apóstolo responde a esse ensino com esta
asseveração: “Porque a circuncisão somos nós, que servimos a Deus em espírito,
e nos gloriamos em Jesus Cristo, e não confiamos na carne” (3:3). Termos fé no
Senhor Jesus significa que vemos todas as coisas nEle, vemos que ele é nosso
tudo em tudo. Se um homem me diz que tem fé no Senhor Jesus, com isso me
diz que não tem fé em si mesmo, que ele passou a ver que a sua própria justiça
não passa de refugio, é trapo imundo, é inútil e indigna. Ele não tem confiança
na carne, não tem confiança em si mesmo; ele confia total e inteiramente no
Senhor Jesus Cristo e em Sua obra a favor dele. Ter fé no Senhor Jesus significa
que você confia nEle completa, inteira e absolutamente. Significa que você crê
que Ele veio a este mundo para salvar você e que é Ele mesmo que o salva.

Dou ênfase a isto porque há alguns que parecem pensar que ter fé no Senhor
Jesus significa que você acredita que Ele veio a este

mundo para dizer-lhe que Deus o ama e que Deus perdoa os seus pecados. Mas,
como eu entendo o Novo Testamento, não é essa a fé no Senhor Jesus. Aquelas
pessoas ensinam que a cruz é apenas uma declaração do fato de que Deus está
pronto a perdoar-nos, que até está pronto a perdoar a própria cruz. Todavia, se
fosse assim, o Senhor Jesus não seria o Salvador; simplesmente estaria
anunciando que Deus perdoa e que a salvação é possível. Contudo, o
Novo Testamento nos diz que o Senhor. Jesus é, pessoalmente, o Salvador, que
Ele veio ao mundo para salvar-nos. É Ele, e o que Ele fez por nós, que
constituem o meio da nossa salvação. É isso que significa “fé no Senhor Jesus”.
Noutras palavras, significa que se ele não viesse não haveria salvação. Mas, de
acordo com o outro ensino, Deus ainda perdoaria e nos daria esta mensagem de
maneira lancinante e comovente. Dizem eles que Deus está fazendo isso pela
manifestação de Seu amor na cruz, quando perdoou os que O mataram, e com
isso anunciaram o amor de Deus. No entanto, não é isso que o Novo Testamento
quer dizer quando declara que Ele é o nosso Salvador. Ele assevera que nEle
“temos a redenção pelo seu sangue, a remissão das ofensas”. A fé no Senhor
significa, pois, que eu lanço minha inteira esperança sobre Ele e sobre o que Ele
fez a meu favor; significa que eu não tenho nenhuma confiança em minha vida,
em meus atos, nem nos de ninguém mais; que eu compreendo que sou um
pecador perdido e sem esperança, e que só sou salvo “graças ao sangue e à
justiça de Jesus”. Um hino escrito pelo conde Zinzendorf e traduzido do alemão
por João Wesley expõem essa verdade perfeitamente -

Jesus, Teu sangue e Tua justiça São meu adorno e minha veste;

No mundo atroz, com tal peliça,

Minha cabeça eu ergo alegre.

É com essa veste que ousarei levantar-me no grande dia vindouro. Fé no Senhor
Jesus significa que não tenho interesse por nenhuma outra coisa, e não ponho a
minha confiança em parte alguma, senão nEle e em Seu sangue e em Sua justiça,
a qual me é dada.

Mas eu devo chamar a atenção pela maneira pela qual o apóstolo expõe este
assunto. Observem que ele diz “fé no Senhor Jesus”. Sempre devemos prestar
atenção em cada termo empregado

pelo apóstolo. Ele estava escrevendo sob a inspiração do Espírito Santo, e por
isso ele nunca faz coisa alguma ao acaso ou acidentalmente. Quando varia as
suas expressões e os seus termos, tem boa razão para fazê-lo. Já vimos que ele
fez uso deste nome umas quinze vezes neste capítulo. Referiu-se a Ele como
“Cristo Jesus”, como “Jesus Cristo”, como “o Senhor Jesus Cristo”, etc.; mas
aqui ele diz deliberadamente: “fé no Senhor Jesus”. Não fé em Jesus Cristo,
não fé no Senhor Jesus Cristo, não fé em Jesus, mas “fé no Senhor Jesus”. No
versículo 17 temos a expressão “o Deus de nosso Senhor Jesus Cristo” - a
expressão completa; mas aqui, “o Senhor Jesus”. A explicação deve ser que,
como ele está aplicando a prova definitiva, usa os elementos puramente
essenciais, o mínimo. Seu objetivo imediato é chamar a atenção para a Pessoa.
Sua tese é que o Salvador é Alguém do qual posso dizer ao mesmo tempo que
Ele é o Senhor, e também Jesus. Ele é Deus, Ele é homem. A expressão é
totalmente inclusiva; entre “Senhor” e “Jesus” tudo está incluído.
Senhor e Jesus são os dois pólos, os extremos que incluem tudo. O Salvador do
cristão é o Senhor da glória, a substância da substância eterna, a segunda Pessoa
da bendita e santa Trindade, o Filho eterno; todavia, Jesus também. “Chamarás o
seu nome Jesus” (Mateus 1:21). Este Senhor é o bebê em Sua completa
debilidade, Aquele que desceu e Se rebaixou tanto, o homem, Aquele que
foi para a cruz, Aquele que foi sepultado, Aquele que ressuscitou. Tudo está
incluído ali em “Senhor Jesus”.

Já nos maravilhamos diversas vezes face a estas verdades estonteantes nos


catorze primeiros versículos, mas hoje, mais que nunca é necessário repeti-las
constantemente. Só é cristão quem crê que Jesus de Nazaré é o Filho eterno de
Deus. O cristão crê na encarnação, no nascimento virginal e no milagre
envolvido nesse nascimento; crê na geração eterna do Filho, dedica a Ele
nada menos que a expressão - o Senhor! Noutro lugar vemos o apóstolo referir-
se a Ele como “o grande Deus e nosso Senhor Jesus Cristo” (Tito 2:13). Tal é
Aquele em quem unicamente se fixa a nossa fé.

O apóstolo, defendendo o mesmo ponto na Primeira Epístola aos Coríntios, diz


no capítulo 12: “Ninguém pode dizer que Jesus é o Senhor, senão pelo Espírito
Santo” (versículo 3). O homem natural não crê nisso; os príncipes deste mundo
não O reconhecem, “porque se (O) conhecessem, nunca crucificariam o Senhor
da glória” (1 Coríntios 2:8). Pensavam que ele era homem somente, um
carpinteiro, Jesus; não se aperceberam de que ele era o Senhor.

Na expressão, “Senhor Jesus”, temos o “mistério da piedade”, a saber, que Deus


“se manifestou em carne” (1 Timóteo 3:16), juntamente com tudo o mais que se
seguiu ao nascimento em Belém. Daí usar o apóstolo estas expressões; ele está
exatamente desejoso de focalizar a atenção na Pessoa como tal.

Naturalmente, se uma pessoa crer nisso, não terá nenhuma dificuldade em crer
nos milagres realizados pelo Senhor Jesus. Quando Deus está na terra, o crente
espera o sobrenatural e o miraculoso; e assim não tropeça nas narrativas dos
milagres, nem tenta explicá-los psicologicamente. O Senhor Jesus é Aquele em
quem repousa a minha fé. Não posso salvar-me; homem nenhum pode salvar-
me; mas o Senhor Jesus pode. Essa é a fé que caracteriza o cristão; e nada menos
que isso pode satisfazê-lo. Somente Deus pode salvá-lo, Deus em carne, o
Senhor Jesus. Crer no Senhor Jesus diz-me porque Ele veio e explica o que Ele
fez. Quando contemplo tal Pessoa e considero por que o Filho de Deus veio, vejo
que há somente uma resposta: “Vindo a plenitude dos tempos, Deus enviou
seu filho, nascido de mulher, nascido sob a lei, para remir os que esta-vam
debaixo da lei” (Gálatas 4:4-5). Ele viveu como homem, e “em tudo foi tentado,
mas sem pecado” (Hebreus 4:15). Ele é verdadeiramente Jesus, o homem, e em
nada foi poupado nesse aspecto. Veio para prestar obediência à lei de Deus, e o
fez. Veio para levar sobre Si a penalidade que a lei impõe ao pecado, e o fez.
Jesus é o Crucificado. Ele era o Senhor que foi crucificado. Filho de Deus, Deus
o Filho, morreu por mim e por meus pecados. Está tudo incluído aqui, nesta
Epístola aos Efésios.

Finalmente devemos ressaltar que não se pode separar o Senhor e Jesus. A


Pessoa é una e indivisível. Ele é sempre o Senhor. Não há isso de “vir a Jesus”.
Num sentido, o homem não pode nem vir a Cristo. Só pode vir ao Senhor Jesus.
Se esta doutrina está certa, o homem não pode aceitá-10 somente como Salvador
e, mais tarde, talvez, aceitá-10 como Senhor, pois Ele é sempre o Senhor.
Aquele que morreu pelos nosso pecados é o Senhor. E Ele morreu pelos nosso
pecados porque o pecado está sob a ira de Deus; é transgressão contra a lei, é
inimizade contra Deus, e assim tem que ser punido. Se eu digo que necessito de
um Salvador, é porque eu necessito de um Salvador que me salve do pecado,
estando incluída a libertação do poder do pecado e de tudo quanto se relaciona
com o pecado. Se tenho uma concepção verdadeira do pecado, não posso
somente pedir que eu seja perdoado. Também devo desejar

ser libertado do poder e da corrupção do pecado. Não podemos crer “em Jesus”
omitindo “o Senhor”. Cremos numa pessoa indivisível. Nele há duas naturezas
em uma só Pessoa; e quando cremos nEle, cremos nEle como o Senhor da glória
e o Senhor da nossa vida. Quando cremos nEle, cremos que Ele morreu pelo
nossos pecados, que Ele nos comprou, adquiriu-nos, resgatou-nos. Quando
cremos nisso, nós nos entregamos a Ele. Não “vimos a Jesus”, não cremos em
Jesus; vimos ao Senhor Jesus, cremos nEle como Ele é.

O apóstolo é sempre cuidadoso nesta questão. Por exemplo, vemos isso escrito
na Epístola aos Colossenses: “Como, pois, recebestes o Senhor Jesus Cristo,
assim também andai nele”. Não podemos recebê-lO como coisa alguma, senão
como o Senhor, e, portanto, o Senhor da nossa vida. Você tem esta fé no Senhor
Jesus? Você descansa sua fé unicamente nEle como Aquele que morreu para
expiar as suas transgressões? Você pode dizer:

“Em Cristo a sólida Rocha, permaneço;


Toda outra base é areia movediça?”

Você está completamente comprometido com Ele? Sua fé é inteira, completa,


exclusivamente nEle, o Deus-homem, o Senhor Jesus?

Passemos agora ao segundo aspecto, que é, “e o vosso amor para com todos os
santos”. Um segue o outro como a noite segue o dia. Como eu já disse, este é o
argumento da Primeira Epístola de João. Na verdade é o argumento que se vê em
todas as partes do Novo Testamento. O apóstolo Pedro tendo lembrado aos
destinatários da sua Primeira Epístola que eles tinham purificado as suas almas
na obediência à verdade mediante o Espírito para o amor fraternal não fingido,
imediatamente passa a dizer: “Amai-vos ardentemente uns aos outros com um
coração puro” (1:22). Por natureza nos odiamos uns aos outros, como o apóstolo
no-lo relembra. “Porque também nós éramos noutro tempo
insensatos, desobedientes, extraviados, servindo a várias concupiscências
e deleites, vivendo em malícia e inveja, odiosos, odiando-nos uns aos outros”
(Tito 3:3) - o homem em seu estado natural, não redimido! Mas Paulo soube que
os cristãos de Efeso amam todos os irmãos; e por isso sabe que alguma coisa
acontecera com eles.

Além disso, o homem natural, o não cristão, o homem que não nasceu de novo,
não tem o mínimo interesse pelos cristãos. Geral-

mente não gosta deles, porque os acha insípidos e desinteressantes, e acha que
eles têm mente estreita. São essas as expressões que ele usa a respeito dos
cristãos, e certamente não gostaria de passar horas na presença de uma pessoa
desse tipo. Ele percebe que não há nenhuma afinidade, nenhuma comunhão de
interesses. Segue-se, pois, que quando se pode dizer de um homem que ele ama
os santos, você pode estar certo de que a esse homem foi dada uma nova
natureza, de que ele nasceu de novo. Isso é algo completamente inevitável. Os
semelhantes se atraem: “Aves de igual plumagem voam juntas”. “O sangue é
mais denso do que a água”. 1 Estamos prontos a perdoar em pessoas relacionadas
conosco por laços de sangue coisas que não perdoaríamos noutras pessoas,
porque somos do mesmo sangue; pertencemo-nos mutuamente, há
esta comunhão de interesses. Por isso, quando nos vemos começando a ter esses
sentimentos acerca dos cristãos, acerca dos santos, temos uma prova de que só
podemos ser um deles. Há comunhão de interesses, e sentimos que pertencemos
à mesma família. Esta é a verdade imutável acerca do cristão. Paulo tinha ouvido
que estes efésios amavam os santos; gostavam de estar com eles, gostavam de
passar o tempo com eles; eles eram as pessoas das quais eles gostavam mais do
que de quaisquer outras.

Às vezes dou graças a Deus por esta prova, quando satanás me ataca, quando ele
me pressiona duramente com as suas acusações e me empurra para um beco sem
saída. Nessas ocasiões, alegra-me poder rebatê-lo com este argumento, e dizer-
lhe: “Bem, o que quer que seja, prefiro passar o meu tempo na companhia do
mais humilde cristão do que na do maior homem da terra, que não seja cristão”.
O diabo não tem resposta para isso; é uma das provas finais da salvação. Ou,
exponhamos a matéria de maneira diferente: é uma prova de que o Espírito
Santo está em nós. Não podemos amar verdadeiramente, se o Espírito Santo não
estiver residindo dentro de nós. É Ele que produz o amor, especialmente o
amor dedicado a todos os santos. Portanto, se amamos os santos, é prova de que
o Espírito Santo está em nós. O apóstolo já se referira ao Espírito Santo como
“selo”, “penhor”, e como aquele que habita em nós; e amar os irmãos, amar os
santos, é prova disso. O apóstolo

João, no capítulo 3 da sua Primeira Epístola, diz: “E o seu mandamento é este:


que creiamos no nome de seu Filho Jesus Cristo, e nos amemos uns aos outros”
(versículo 23).

Demais disso, podemos asseverar que, se amamos todos os santos, é prova do


fato de que amamos também a Deus. Isso funciona da seguinte maneira: eu os
amo porque eles estão na mesma relação com Deus em que eu estou; são pessoas
que foram escolhidas e separadas do mundo, que foram transferidas do reino das
trevas para o reino do amado Filho de Deus. Eu e estas pessoas estamos andando
por este mundo de pecado rumo ao céu, e vou passar a eternidade com elas.
Todos nós contemplamos tal prospectiva gloriosa juntos, graças ao admirável
amor de Deus. Eu não o mereço; elas não o merecem; juntemo-nos, pois, no
louvor a Deus. Se as amo, por certo amo a Deus, pois Ele fez delas o que elas
são, e fez de mim o que eu sou; por isso juntos podemos atribuir a glória a Ele.
Paulo não tinha necessidade de dar todos os pormenores; ele declara uma coisa
que cobre tudo mais. Se você ama os irmãos, se você ama os santos, isso garante
todas estas outras coisas. E uma prova totalmente inclusiva.

Notem que o apóstolo declara que soubera do amor deles “para com todos os
santos”. Não só amavam aqueles dos quais já gostavam; mas todos os santos.
Não só os inteligentes, não só os cultos, não só os agradáveis, não só os que
pertenciam a determinada camada social - não, todos os santos. O cristão sempre
tem uma nova prova para cada um e para cada coisa. Quando se encontra com
alguém pela primeira vez, ele não repara na roupa dele, não repara na sua
aparência externa geral. Essa é a maneira carnal de avaliar as pessoas. Ele não
fica a perguntar-se: de onde ele veio? Que escola freqüentou? Qual é seu saldo
bancário? Já não são essas as suas perguntas e as suas provas. Ele só se interessa
por uma coisa agora: ele é filho de Deus? Ele é meu irmão em Cristo?
Somos parentes?

Conta-se uma boa história relacionada com Philip Henry, pai do comendador
Matthew Henry. Ele e certa jovem se apaixonaram. Ela pertencia a um círculo
social mais “alto” do que o dele, mas se tornara cristã e, portanto, a questão de
posição social deixara de ter valor para ela, ou não constituía nenhum tipo de
obstáculo para o casamento deles. Seus pais, porém, não gostaram e, discutindo
com ela, perguntaram: “Esse homem, Philip Henry, de onde veio?”, a que ela
deu a imortal resposta: “Não sei de onde ele veio, mas sei

para onde vai”. Amamos os santos porque sabemos para onde eles vão. Juntos
caminham para Sião. Pertencemos ao mesmo Pai, à mesma casa, à mesma
família; vamos indo para o mesmo lar, e sabemos disso. Alguns de nós são muito
difíceis, muito molestos e muito indignos; entretanto, graças a Deus, visto que
somos filhos de Deus, estamos viajando juntos para o nosso lar celestial; e
sabemos que virá o dia em que todos os nosso defeitos, manchas, máculas e
rugas desaparecerão, e, todos juntos, seremos glorificados e aperfeiçoados,
gozando a mesma eternidade gloriosa.

São essas as duas provas cabais e definitivas de toda a profissão do cristianismo,


que podemos aplicar-nos uns aos outros. Lembremos a ordem em que o apóstolo
as coloca. Ele não coloca o “amor para com todos os santos” antes da “fé no
Senhor Jesus”. Mas isso está sendo feito hoje em dia, em larga escala. Dizem-
nos que “não nos preocupemos com definições”, que a teologia não importa, que
aquilo em que a pessoa crê é irrelevante, que devemos amar a todos os que se
dizem cristãos. Todavia essa não é a ordem apostólica. O apóstolo jamais se
interessou por sentimentos vagos. “A fé no Senhor Jesus” tem que vir em
primeiro lugar; então, e somente então, mas definitivamente então, “o amor para
com todos os santos”. E ninguém é santo, a menos que tenha fé no Senhor Jesus.
Coloquem ambos na ordem certa, mantenha-nos na ordem certa, e depois
insistam em ambos. O primeiro mandamento para o cristão não é que nos
amemos uns aos outros, e sim que creiamos no Senhor Jesus. É nos dito acerca
dos primeiros discípulos que eles “perseveravam na doutrina dos apóstolos, e na
comunhão, e no partir do pão, e nas orações” (Atos 2:42). Hoje se coloca a
comunhão em primeiro, e a doutrina é quase considerada como um empecilho e
um obstáculo. Por essa razão, na atualidade a Igreja está nas perigosas condições
em que se acha. Ela se afastou da ordem apostólica - fé no Senhor Jesus
primeiro, doutrina primeiro; e depois “amor para com todos os santos”.

“O PAI DA GLÓRIA”

“Pelo que, ouvindo eu também a fé que entre vós há no Senhor Jesus, e o vosso
amor para com todos os santos, não cesso de dar graças a Deus por vós,
lembrando-me de vós nas minhas orações; para que o Deus de nosso Senhor
Jesus Cristo, o Pai da glória, vos dê em seu conhecimento o espírito de
sabedoria e de revelação

- Efésios 1:15-17

Aqui o apóstolo diz aos cristãos efésios que está orando por eles, que não cessa
de dar graças a Deus por eles, fazendo menção deles em suas orações a Deus. Já
observamos que a sua oração se divide, como toda oração sempre deveria
dividir-se, em ação de graças, que inclui adoração e culto geral, e depois petição.
Agora vamos considerar como o apóstolo faz as suas petições a Deus. Temos
aqui uma grande lição objetiva neste aspecto. Talvez não haja nenhum outro
aspecto da nossa vida cristã que tantas vezes levante problemas nas mentes da
pessoas como a oração. E é certo que seja assim, porque a oração é, afinal de
contas, a mais elevada atividade da alma humana.

Estou certo de que todo pregador concordará que a pregação é relativamente


simples, comparada com a oração, porque quando alguém prega, está falando
aos homens, mas quando alguém ora, está falando a Deus. Muitos acham difícil
concentrar-se, outros acham difícil saber o que falar e como formular as suas
petições, e assim por diante. No momento em que vocês levarem a sério a
oração, começarão a aprender algo sobre o seu caráter profundo. Naturalmente,
os que “dizem as suas orações” mecanicamente, não sentem nenhuma
dificuldade; tudo parece tão simples! Apenas repetem a oração “Pai Nosso” e
fazem algumas petições, e imaginam que já oraram. Contudo, uma pessoa assim
nem começou a orar. Assim que vocês começarem a encarar o que realmente
acontece na oração, inevitavelmente verão que ela é a atividade mais profunda
na qual se engajaram. Quão pouco temos orado! Quão pouco sabemos sobre a
oração! Não é de se admirar que os discípulos se voltassem para ele um dia e
dissessem: “Senhor, ensina-nos a orar como também João ensinou aos seus
discípulos” (Lucas 11:1). Mas

provavelmente naquele momento eles não estavam pensando em João e seus


discípulos; eles estiveram observando o seu Senhor e como Ele repetidamente Se
retirava para orar. Não hesito em asseverar que, se vocês nunca sentiram algo do
que aqueles discípulos sentiram, e fizeram aquela petição, é certo que vocês
jamais oraram em sua vida. Se vocês nunca sentiram dificuldade, é porque
jamais compreenderam o que a oração envolve.

Portanto, ao encararmos toda esta questão da oração, não podemos, não podemos
fazer nada melhor do que observar alguns dos grandes modelos e exemplos que
temos nas Escrituras com tanta abundância. Entre tais exemplos, certamente não
há nenhum maior do que o próprio apóstolo Paulo. Observemo-lo quando ele
ora. Afortunadamente, não somente aqui, neste capítulo, porém também noutros
lugares, ele nos diz como ora, e nos diz algo do que a oração significa para ele.
Vejamo-lo e notemos tudo o que ele diz, observemos cada uma das suas
palavras.

É fácil ler uma declaração como a que estamos estudando e supor que não passa
de certo número de palavras sem muita significação. Felizmente o apóstolo se dá
ao trabalho de contar-nos exatamente o que ele diz na oração e por que ora como
ora; e, se tivermos êxito em captar a essência do seu ensino, este fará todos
os manuais sobre oração parecerem totalmente desnecessários. Há os que se
interessam pela questão da postura: devemos ajoelhar-nos? Devemos ficar de
pé? Devemos prostrar-nos? Os manuais sobre oração geralmente tratam dessas
questões, e também do tempo que se deve passar em oração, da ordem das
nossas petições, e assim por diante. Concedo que, dentro de certos limites, há
lugar para tais coisas; mas, quando lemos a literatura sobre a questão da oração,
e sobre as vidas dos santos, vemos que esse tipo de abordagem tende a
caracterizar o que podemos descrever como o conceito católico--romano sobre o
culto. Por outro lado, o conceito protestante, certamente o conceito mais
espiritual, dá muito menos atenção a esses detalhes, pois quando estamos bem no
centro, e preocupados com os princípios fundamentais, estas outras coisas
tendem a cuidar de si mesmas.

A primeira coisa que observamos é que o apóstolo ora a Deus o Pai. Ele não ora
ao Senhor Jesus Cristo, não ora ao Espírito Santo. Não devemos dar exagerada
atenção a esta questão, apesar de ter tomado a atenção de teólogos e expositores,
e com razão. Certa-

mente é um assunto sobre o qual não podemos falar em termos finais, pois é um
grande mistério. O próprio Senhor nos ensinou que a vida eterna é “conhecer o
Deus único e verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste” (João 17:3). Ao
cristão é possível ter comunhão com o Pai e com Seu Filho Jesus Cristo, e não
somente mediante o Espírito Santo, mas também com o Espírito, como
John Owen e outros ensinaram. Não obstante, é interessante observar que a
Bíblia, geralmente falando, ensina-nos a dirigir as nossas orações a Deus o Pai.

Faço uma pausa na argumentação por uma única razão, a saber, que muitos
cristãos parecem pensar que a marca por excelência da espiritualidade é orar ao
Senhor Jesus Cristo. Mas quando recorremos às Escrituras, descobrimos que
realmente não é assim, e que, como na passagem que estamos estudando,
normalmente as orações são elevadas ao Pai. O Senhor Jesus Cristo é o
Mediador, não é o fim; Ele é que nos leva ao Pai. Vamos ao Pai por
intermédio dEle; Ele é o grande Sumo Sacerdote; é o nosso representante.
Normalmente não oramos a Ele, mas ao Pai, em nome do Senhor Jesus Cristo,
mediante o Senhor Jesus Cristo, confiantes no Senhor Jesus Cristo. Como o
apóstolo Pedro nos faz lembrar, tudo o que Ele fez destina-se a levar-nos a Deus,
não a Ele. Não devemos dar demasiada importância a isso, porém, é importante
que o observemos porque há um inimigo por perto que está sempre pronto a
fazer com que nos extraviemos; e a persuadir-nos a dar falsa ênfase a
certas questões.

Às vezes penso que, talvez, o maior perigo que confronta os evangélicos na


presente hora (e falo com reverência) é dar tanta ênfase à Pessoa do Filho que
nos esquecemos do Pai. Falhamos, não compreendendo que o Filho veio para
glorificar o Pai e levarmos a Ele. Neste aspecto somos frequentemente mal
guiados pelos hinos, em muitos doa quais são elevadas orações ao Senhor
Jesus Cristo, e ao Espírito Santo. Um exercício proveitoso é comparar
os hinários com as Escrituras neste ponto. O apóstolo Paulo, especificamente,
como vemos aqui e em toda parte nesta e noutras Epístolas, eleva a sua oração a
Deus o Pai.

A segunda questão que observamos é a maneira pela qual o apóstolo ora ao Pai.
Prestemos bastante atenção nos seus termos e perguntemos a nós mesmos por
que ele diz certas coisas e expressa seus pensamentos como o faz. Á melhor
maneira de tirar proveito da leitura das Escrituras e formular perguntas das
Escrituras, é

tomar cuidadosamente cada frase e perguntar: “Por que ele disse isto, por que
disse aquilo?” A primeira coisa que observamos é que o apóstolo faz pausas para
lembrar-se de certas coisas. Ele está escrevendo aos cristãos efésios e procura
faze-los lembrar-se das riquezas da graça de Deus e do seu regozijo pelo fato de
que eles a experimentaram. Ele deseja dar graças a Deus por eles, mas antes faz
uma pausa para lembrar-se do que vai fazer. Em particular, lembra-se dAquele a
Quem vai falar. Este é um ponto de vital importância quanto à oração; na
verdade estou disposto a asseverar que é a chave de toda a questão da oração.
Vou além, e sugiro que, em última análise, todas as dificuldades relacionadas
com a oração surgem porque não fazemos o que o apóstolo
invariavelmente fazia. Ele não se põe de joelhos nem fica de pé - não toma esta
ou aquela postura - ele começa imediatamente. Ele pára, faz pausa, recorda,
medita, fala primeiro consigo mesmo, e procura lembrar-se do que ele está
prestes a fazer. Lembra-se dAquele a Quem ele vai falar. Se todos nós
fizéssemos o mesmo, começaríamos a orar verdadeiramente, talvez pela primeira
vez.

Todos nós somos propensos a ser criaturas dos extremos; tendemos a oscilar de
um extremo a outro; e assim há dois excessos comuns em relação à oração. Um
deles é adotar o conceito litúrgico da oração, que concentra a atenção na beleza
do culto, na beleza da linguagem das frases, na beleza das palavras e da dicção,
no equilíbrio e na perfeição das formas, disposições e cerimônias. Isso se aplica
ao tipo católico de culto, seja romano, ortodoxo ou anglicano. Pode ser muito
bonito; mas certamente, falando em termos gerais, tende a ser distante; há tanta
ênfase à beleza, à grandeza e à sublimidade que de algum modo sente-se que
Deus está muito longe, à distância, e em torno disso há uma sensação de
irrealidade. Pode estar bem próximo da perfeição do ponto de vista estético ou
artístico, contudo não sugere um ato vivo de culto.

O perigo que surge é que muitos de nos, em reação ao tipo litúrgico de culto,
correm para o outro extremo e consideram a oração apenas como uma série de
petições telegráficas, sem nada de adoração, culto ou louvor. De fato, alguns
parecem pensar que isso é sinal de grande espiritualidade. Acham que têm tanta
familiaridade com Deus e se sentem tão seguros da sua posição diante dEle, que
podem correr para a Sua presença, e levar uma ou duas sentenças de petição, e
terminar. Mas certamente ambos os extremos são errôneos; e no modelo e
exemplo dado pelo grande apóstolo vemos
que ele invariavelmente combina o que é bom e certo nos dois métodos
extremos. Os dois elementos estão sempre presentes, e ele invariavelmente os
coloca na ordem certa. Ninguém sabia orar melhor do que este apóstolo; e não
houve ninguém que tenha obtido maior abundância de respostas às suas orações.
Ele ora com confiança, com acesso ousado, e com certeza; e, todavia, o
outro elemento de culto e adoração, estava sempre lá e sempre vinha
em primeiro lugar.

Todos nós só temos que sentir-nos culpados quando nos examinamos à luz do
ensino e dos métodos do apóstolo. Paramos de pensar, de recordar, e de lembrar
a nós mesmos o que de fato estamos fazendo quando oramos. Eu, pessoalmente,
estou pronto a admitir que muitas vezes falho nesse aspecto. Um dia,
recentemente, quis dar graças a Deus em certa questão; mas na ocasião eu
também tinha em mãos uma responsabilidade que requeria urgente atenção. Eu
estava a ponto de elevar uma apressada palavra em ação de graças a Deus para
poder atender à tarefa urgente; todavia, percebendo o que estava acontecendo, de
repente disse a mim mesmo: “Não é essa a maneira de agradecer algo a Deus;
você se dá conta de quem é Aquele a quem você está prestes a dar graças?” É
preciso pôr tudo de lado quando você se dirige a Ele; tudo, todos, todas as
coisas, por mais urgentes que sejam. Em que se comparam com Ele? Pare! Faça
uma pausa! Espere! Recorde! Trate de aperceber-se do que está fazendo.

Portanto, ouçamos o apóstolo quando ele se lembra de certas coisas concernentes


a Deus, antes de proferir uma palavra. Ele ora, ele diz: “Ao Deus de nosso
Senhor Jesus Cristo”. Por que é que ele começa as suas palavras acerca da
oração dessa maneira? Porque ele não diz, “Vou orar”, e descreve a sua petição?
A resposta é que ele diz deliberadamente que não está orando a um Deus
desconhecido. Ele não está, como diz certo poema, “agradecendo a
quantos deuses haja, sua alma indomável”. Não! Ele está indo à presença
de Deus, que lhe é conhecido, o Deus que Se fez conhecido, o Deus que Se
revelou a Paulo, não de maneira incerta.

No Velho Testamento vemos que o salmista e outros oravam ao “Deus de


Abraão, de Isaque e de Jacó”. É-nos difícil compreender o que tal frase
significava para um santo do Velho Testamento. Ele tinha visto algo do poder e
da majestade de Deus numa tempestade tonitruante ou numa praga ou na vitória
sobre algum inimigo. Deus tinha manifestado o Seu poder e tinha dado aos
judeus
alguma concepção da Sua grandeza. Tinha uma tendência de temer aproximar-se
de Deus. Mas então se lembravam de que este Deus era o Deus de Abraão, o
Deus de Isaque, o Deus de Jacó, o Deus de seus pais, o Deus de Israel. E isso os
fazia sentir que estavam orando a um Deus que eles conheciam.

Isso constitui uma parte essencial do ensino do Velho Testamento. O israelita


piedoso conhecia a Deus, seu Criador, como o Deus da aliança, e como o Deus
cumpridor da aliança. Quando com temor e o tremor ia à presença do Deus de
Abraão, de Isaque e de Jacó, o que efetivamente dizia era: “Ó Deus, venho a Ti
compreendendo que Te revelaste aos meus pais, que disseste certas coisas, que
fizeste uma aliança com meu povo, povo ao qual eu tenho o privilégio de
pertencer, e, portanto, a aliança é comigo”. Deus fez uma aliança com Abraão
prometendo que em sua semente seriam “benditas todas as nações da terra”, e
que abençoaria particularmente a sua semente. Ele tinha garantido, tinha
prometido com juramento, e o tinha confirmado com juramento. “As
promessas foram feitas a Abraão e à sua semente” (Gálatas 3:16, VA), e
essas pessoas pertenciam àquela semente pelo que iam à presença de Deus na
confiança e no poder da Sua promessa: “O Deus de nossos pais”, “o Deus de
Abraão, e o Temor de Isaque” (Gênesis 31:42). “O Deus de Jacó”, o Deus de
Peniel. Eles iam à Sua presença com confiança, conhecendo-0 da maneira pela
qual Ele Se revelara.

Contudo, o apóstolo não ora ao “Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó”; ele ora
ao “Deus de nosso Senhor Jesus Cristo”; e faz isso porque há uma nova aliança.
Deus agora fez uma aliança com o homem na Pessoa do nosso Senhor e
Salvador Jesus Cristo. Esta é a “aliança da graça”, a “aliança da redenção”
aparecendo numa nova forma. Na essência, é a mesma aliança antiga, mas agora
é na Pessoa do Filho, o segundo Adão, o novo homem. O representante da raça
humana é o Senhor Jesus Cristo, e Deus fez aliança com Ele por Seu povo.
Assim, quando Paulo se lembra de que está orando ao “Deus de nosso Senhor
Jesus Cristo”, ele se lembra de que está orando ao Deus da nossa salvação, ao
Deus que originou e ocasionou todas as coisas que estivemos considerando do
versículo 3 ao versículo 14 do presente capítulo. Ele está orando ao Deus
que, antes da fundação do mundo, escolheu-nos e elegeu-nos, e planejou Seu
glorioso propósito em Cristo para a nossa final e completa salvação. Que
diferença faz para a oração quando você começa a orar dessa maneira! Você não
vai mais à presença de Deus com

incerteza, ou com dúvidas e indagações se Ele vai recebê-lo; você se lembra e


compreende que está orando porque Ele lhe fez algo e o atraiu para si em “nosso
Senhor Jesus Cristo” e por meio dEle. Você compreende que está se
aproximando do “Deus de paz, que pelo sangue do concerto eterno tornou a
trazer dos mortos a nosso Senhor Jesus Cristo, grande pastor das ovelhas”
(Hebreus 13:20).

Paulo, porém, vai mais longe, pois as suas palavras nos lembram que Deus é de
fato o Deus do Senhor Jesus Cristo. Porventura compreendemos o que isso
significa? Na eternidade Deus o Pai não era o Deus de Deus o Filho, embora a
relação do Pai e do Filho tenha existido eternamente. Mas quando o Senhor
Jesus Cristo veio a terra e Se fez “semelhante aos homens”, assumindo a
“semelhança da carne do pecado”, agora buscava o Pai como homem, e assim
Deus tornou-Se o Seu Deus. Desse modo Ele podia falar em “meu Pai e vosso
Pai, meu Deus e vosso Deus” (João 20:17). O Deus a quem busco, é com efeito
o que Paulo diz, é o Deus de Jesus, meu Senhor, é o Deus do Senhor Jesus
Cristo. Nos quatro Evangelhos lemos que o Senhor Jesus Cristo às vezes “se
levantava antes do alvorecer” e subia a um monte para orar. E eu, diz o apóstolo,
estou orando ao mesmo Deus a quem Ele orava.

O Senhor Jesus confiava em Deus para todas as coisas; era Deus que O
sustentava. Disse ele: “As palavras que eu vos digo não as digo de mim mesmo”
(João 14:10). O Pai Lhe tinha dado tanto as palavras como as obras que as
acompanhavam. Nada é tão óbvio acerca da vida do nosso Senhor como a sua
total confiança em Deus o Pai. Ele recebia força e poder dEle, na verdade toda a
sustentação de que necessitava. Assim é que Paulo declara que está orando
ao Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, o Deus que O sustentava, o Deus que
nunca O abandonou. Até mesmo o terrível momento do grito do sentimento de
abandono na cruz foi imediatamente seguido por “Em tuas mãos entrego o meu
espírito” (Lucas 23:46). Foi Deus que O ressuscitou dos mortos, que não O
abandonou no inferno nem permitiu que Sua alma visse corrupção (Salmo 16:10;
Atos 2:27). Este é o Deus a quem estou orando, diz Paulo, “o Deus de nosso
Senhor Jesus Cristo”. Mas ainda além disso, Ele é o Deus em cuja presença o
Senhor Jesus Cristo está neste momento, o Deus em cuja presença Ele é o nosso
Advogado e Intercessor. Ele está assentado a mão direita cio Pai, “vivendo
sempre para interceder por (nós)” (Hebreus 7:25). À luz disso tudo, podemos ir
com segurança ao “Deus de nosso Senhor Jesus Cristo”.

Podemos resumir o que acima foi dito dizendo que o nosso Deus é o Deus no
qual não se pode pensar com real acerto separadamente do Senhor Jesus Cristo,
porque não podemos conhecer a Deus sem Jesus Cristo. “Deus nunca foi visto
por alguém. O Filho unigênito que está no seio do Pai, este o fez conhecer” (ou
“este o tornou conhecido”, VA) (João 1:18). É com base nessa declaração que eu
vou a Deus, ao Deus que foi revelado por Cristo; é Cristo que me leva a Deus,
foi Cristo que morreu para que eu pudesse ter acesso a Ele. Chego à Sua
presença unicamente de um modo, como diz o autor da Epístola aos Hebreus:
“Tendo, pois, irmãos, ousadia para entrar no santuário pelo sangue de Jesus...”
(Hebreus 10:19). Só sou admitido à presença de Deus pela vida, morte e
ressurreição do Senhor Jesus. Aproximo-me do Deus que enviou Seu Filho
para salvar-me e que entesourou nEle todos os tesouros da sabedoria e da graça.
As riquezas da graça que eu gozo me vem do Deus de nosso Senhor Jesus Cristo.
Noutras palavras, eu me aproximo do Deus que me prometeu todas estas coisas
em Seu Filho; comprometeu-Se a elas em Seu Filho; fez aliança com o Filho.
Jeová foi quem outorgou a aliança e a cumpre, e Ele jamais quebrará a Sua
palavra. E Ele me disse estas coisas em Seu Filho - já não nos profetas, já não
em partes ou tipos, mas em Seu Filho (Hebreus 1:1-3). Daí dizer o apóstolo no
capítulo 3 desta Epístola: “No qual temos ousadia e acesso com confiança, pela
nossa fé nele” (versículo 12). Sempre que oramos a Deus devemos lembrar-nos
destas coisas, devemos aproximar-nos dEle, na plena certeza da esperança,
por causa do Senhor Jesus Cristo; e nunca devemos deixar de parar e de recordar
isso, e de lembrar-nos disso tudo, como invariavelmente o apóstolo fazia, antes
de começarmos a falar em oração.

Mas o apóstolo acrescenta ainda mais; ele descreve o Deus de nosso Senhor
Jesus Cristo como “o Pai da glória”. Este acréscimo tem preocupado os
comentadores. Alguns tentaram explicá-lo dizendo que significa e deve ser lido,
“o Deus da glória, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo”. No entanto isso é fazer
violência à língua grega. As duas frases são separadas e distintas, como as
temos na versão inglesa, a Versão Autorizada (e em Almeida).

Permitam-me tentar expor estas palavras, com temor e tremor. Quem sou eu,
para falar sobre tais palavras? Ao abordá-las, é bom que nos lembremos das
palavras ditas a Moisés, junto da sarça ardente: “Tira os teus sapatos de teus pés,
porque o lugar em que tu

estás é santo” (Êxodo 3:5). “O Pai da glória”! Não pode haver dúvida que isto
significa, em parte, que Deus é em Si mesmo a origem e a incorporação de toda
a glória. Há muitas frases semelhantes a essa nas Escrituras. A respeito de Deus
lemos no capítulo 12 da Epístola aos Hebreus, que ele é “O Pai dos espíritos”
(versículo 9). Sobre Ele também lemos na Epístola de Tiago, que Ele é “O pai
das luzes, em quem não há mudança nem sombra de variação” (1:17). No
livro do profeta Isaías Deus é descrito como “o Pai eterno” ou “Pai
da eternidade” (9:6). Assim, “o Pai da glória” significa a origem, a fonte de toda
a glória. Quanto à “glória”, que podemos dizer? As palavras nos falham
completamente. Glória é Deus. Glória é a suma de todas as excelências,
perfeições e atributos do Senhor Deus Todo--poderoso. E por isso que às vezes
se faz referência a Ele nas Escrituras como “a glória”. A característica suprema
de Deus é glória. Ele o é em Si mesmo. Sua essência é gloriosa. Esta é
indescritível, é perfeição absoluta. Assim, só podemos ficar extasiados diante
desta expressão: “o Pai da glória”.

Quando Estevão estava sendo julgado e falava ao Sinédrio, somos informados


por seu discurso, no capítulo 7 de Atos, de que ele lhes lembrou a história dos
filhos de Israel e disse: “O Deus da glória apareceu a nosso pai Abraão”
(versículo 2). O Deus da glória! O Deus glorioso! Ele os estava fazendo lembrar-
se de que a glória de Deus é inefável e indescritível. Ele “habita na luz
inacessível”, “a quem nenhum dos homens viu nem pode ver” (1 Timóteo 6:16).
E esse é Aquele de quem nos aproximamos em oração.

Além disso, tudo quanto Deus faz é manifestação da Sua glória. Recordemos
como Paulo terminou a sua descrição do plano de salvação com as palavras:
“Para louvor da sua glória”, no versículo

14. Tudo quanto Deus faz é manifestação da Sua glória. Na Epístola aos
Romanos diz Paulo que Cristo foi ressuscitado dos mortos “pela glória do Pai”
(6:4). Cada ato Seu é uma manifestação da Sua glória. “Os céus manifestam a
glória de Deus” (Salmo 19:1). Acaso vocês vêem a glória de Deus no sol, na lua
e nas estrelas, no firmamento, nas flores, em toda a criação? Todos eles
manifestam a glória de Deus. Tudo o que Deus faz é glorioso, perfeito em
sua beleza e em todos os outros aspectos. Falo com reverência quando digo que
a maior realização do Senhor Jesus Cristo foi manifestar a glória de Deus. Em
Sua oração sacerdotal, registrada no capítulo 17 do Evangelho Segundo João,
Ele o diz de várias maneiras. E quando Ele descreve Sua segunda vinda, as
palavras que emprega são:

“Porque o Filho do homem virá na glória do seu Pai com os seus anjos” (Mateus
16:27). Tudo o que Ele fez visava a glorificar Seu Pai. Deus, e a glória de Deus,
são o fim, o término da salvação.
Mas a expressão de Paulo também pode ser legitimamente lida como “O Pai
glorioso”. É um hebraísmo, uma forma de expressão que se acha frequentemente
na língua hebraica. Vejam como exemplo disso a declaração de Paulo de que lhe
foi dado o privilégio de pregar o “glorioso evangelho do Deus bendito” (1
Timóteo 1:11 VA). Estou citando a frase como se acha na Versão
Autorizada (inglesa). Todavia uma tradução melhor seria: “o evangelho da
glória do Deus bendito”(como na versão de Almeida) - não “o
glorioso evangelho”, mas “o evangelho da glória”. Portanto, no caso de “o Pai da
glória”, podemos ler “o glorioso Pai”. Nesse caso significa que Deus o Pai não
somente é glorioso, e a fonte de toda a glória, e a suma de toda a glória, Ele
próprio também está disposto a manifestar e infundir essa glória. Ele é o Pai, e,
como Pai, Ele dá, Ele gera, Ele transfere glória. Deus não guarda a Sua glória
para Si, se posso me expressar assim; Ele a manifesta, a infunde. Ele o fez com o
Filho, e assim vemos o nosso Senhor dizer no capítulo 17 do Evangelho
Segundo João: “E agora, glorifica-me tu, ó Pai, junto de ti mesmo, com aquela
glória que tinha contigo antes que o mundo existisse” (versículo 5). Ele tinha
posto de lado essa glória com vistas ao propósito da encarnação, e agora Ele
pede que possa tê-la de novo. E o Pai Lha deu. Há também a Sua oração
registrada no capítulo 12 do Evangelho Segundo João: “Pai, glorifica o teu
nome” (João 12:28).

O apóstolo Pedro escreve: “E por ele credes em Deus, que o ressuscitou dos
mortos e lhe deu glória, para que a vossa fé e esperança estivessem em Deus” (1
Pedro 1:21). O Pai glorificou o Filho quando Este estava na terra. E ele deu-Lhe
poder para realizar milagres, deu-Lhe palavras para dizer, capacitou-0 a ressurgir
dos mortos; glorificou-0 em Sua morte, glorificou-0 na ressurreição. Ele é o Pai
glorioso, o Pai que dá Sua glória ao Filho. Este é um pensamento que nos
desnorteia por causa da sua imensidão, porém é certo dizer que, posto que ele dá
a Sua glória ao Filho, está pronto a dá-la também a nós. Estamos no Filho
porque Ele é o nosso Senhor Jesus Cristo. Ele é a Cabeça, como Paulo diz no fim
do capítulo que estamos estudando, e nós somos membros do Seu corpo.
Portanto, a glória que está nEle torna-se nossa; e vamos ao Pai, que nos está
dando esta glória. Esperamos nEle, desejamos

conhecer mais da Sua glória. Paulo está prestes a orar para que estes efésios
tenham “o espírito de sabedoria e revelação” no conhecimento desta glória, a fim
de que, sendo aberto os olhos de seu entendimento, eles possam ver esta glória e
recebê-la plenamente. Deus é o nosso Pai, e Ele manifestará a Sua glória a nós.
Termino citando de novo o que se registra que Cristo diz no capítulo 17 do
Evangelho Segundo João: “Pai, aqueles que me deste quero que, onde eu estiver,
também eles estejam comigo, para que vejam a minha glória que me deste”
(versículo 24). Quando vamos em oração à presença de Deus, devemos fazê-lo
esperando alguma revelação desta glória. “Mas todos nós, com cara descoberta,
refletindo como um espelho a glória do Senhor, somos transformados de glória
em glória na mesma imagem, como pelo Espírito do Senhor” (2 Coríntios 3:18).
O processo da nossa glorificação já começou; finalmente será aperfeiçoado, e
seremos glorificados também em nossos corpos, bem como em nossos espíritos.
Estaremos na presença do Pai da glória, e O veremos.

Nunca voltemos a tentar orar sem nos lembrarmos de que vamos falar ao “Pai da
glória”. Não precisamos ficar aterrorizados; devemos ir com reverência e santo
temor por causa de Seu caráter glorioso; mas, ao mesmo tempo, podemos ir com
confiança e certeza, porque Ele é o Deus do nosso Senhor Jesus Cristo, e, nEle e
por meio dEle, o nosso Pai. Por isso podemos orar: “Pai nosso, que estás nos
céus, santificado seja o teu nome”. E, se começarmos dessa maneira, não
poderemos errar.

O CRISTÃO E O SEU CONHECIMENTO DE DEUS

“Pelo que, ouvindo eu também a fé que entre vós há no Senhor Jesus, e o vosso
amor para com todos os santos, não cesso de dar graças a Deus por vós,
lembrando-me de vós nas minhas orações; para que o Deus de nosso Senhor
Jesus Cristo, o Pai da glória, vos dê em seu conhecimento o espírito de
sabedoria e de revelação.”

- Efésios 1:15-17

Passamos agora à petição que de fato o apóstolo faz e que está registrada no
versículo 17: “Para que o Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória, vos
dê em seu conhecimento o espírito de sabedoria e de revelação”. A petição
continua até o fim do capítulo, mas pode ser dividida em duas partes,
principalmente. Há primeiro uma petição geral, e depois Paulo se volta para
certos pontos particulares. Portanto, comecemos examinando a petição
geral. Evidentemente, esta e muito importante, e deve vir em primeiro lugar
porque domina tudo o que vem a seguir.

Esta petição é deveras notável, especialmente em vista do que o apóstolo já nos


tinha dito acerca destes cristãos efésios. Eles tinham crido no Senhor Jesus
Cristo e haviam posto nEle a sua confiança: “Em quem também vós crestes,
depois que ouvistes a palavra da verdade, o evangelho da vossa salvação” (VA).
Eles e entregaram a Ele; mas, ainda mais, foram “selados com o Espírito Santo
da promessa”, e ele sabe que eles, igualmente por meio do Espírito Santo, têm
um “penhor da herança” que estão destinados a receber. Todavia, mesmo assim,
aqui vemos que Paulo não está plenamente satisfeito com a condição deles.
Poderíamos pensar que não havia necessidade de orar por pessoas que tinham
experimentado tão grandes bênçãos. Mas o apóstolo ora, e com urgência; ele não
cessa de orar por eles, e eleva petições especiais a favor deles. E o que ele faz
pelos efésios, faz por todos os outros cristãos a quem ele escreve as suas cartas.
Ora por todos os que se tornaram cristãos, por todos os que ele mesmo tinha
estabelecido nas igrejas. Ele

tinha um grande coração pastoral, e se preocupava profundamente com eles. Ele


ora por eles porque há muito mais bênçãos à disposição deles; e ele deseja que
eles conheçam mais e mais das infindáveis riquezas da graça de Deus.

A conversão não é o fim, é apenas o começo; é só o primeiro passo. E


comparável ao nascimento. O nascimento de uma criança não é o fim, é o
começo da sua vidaj e a regeneração e conversão é como sua reprodução
fotográfica. E porque ele sabe disso e está ciente das tremendas possibilidades
que se acham à espera destas pessoas, que o apóstolo ora por elas. À espera delas
há possibilidades em todos os aspectos concebíveis, e, como alguém que cresceu
tanto na graça, como alguém que já galgou os píncaros da vida espiritual, o
apóstolo está desejoso de que eles tenham um vislumbre das vistas gloriosas que
ele próprio estava desfrutando das culminâncias dessa vida, o panorama que se
estendia diante dele, e as novas cumieiras que continuavam aparecendo. Já perto
do fim da sua vida, ele diz sobre si próprio à igreja de Filipos; “Não julgo que o
haja alcançado” (3:13); e acrescenta: “Esquecendo-me das coisas que atrás
ficam, e avançando, prossigo”. Não permita Deus que alguém pare ou se fixe
apenas no começo, simplesmente com os primeiros princípios do evangelho de
Cristo.

As orações apostólicas são sumamente importantes porque nelas nos são dados
claros retratos da vida cristã, em sua altura e em sua profundidade, em seu
comprimento e em sua largura; nelas vemos algo da glória da vida à qual fomos
trazidos pela admirável graça e amor de Deus.
Uma prova da nossa situação na vida cristã é se a petição feita pelo apóstolo nos
chega como uma surpresa. Digo isso porque o ensino popular, durante muitos
anos, vem sendo que a vida cristã pode ser dividida em duas seções. Primeiro,
dizem-nos que as pessoas precisam ser salvas; precisam ser libertadas da culpa e
da pena do pecado. Essa é a tarefa da evangelização. Eles concordam que esse é
apenas o começo e que há um segundo passo. O passo subseqüente que uma
pessoa como as acima descritas deve dar, dizem eles, é ser libertada do poder, da
tirania e da escravidão do pecado. Ou, para usar outra terminologia, eles dizem
que a nossa primeira necessidade é a justificação, e depois tudo o que resta é a
santificação. Assim, o convertido deve agora ser introduzido na doutrina
da santificação. Portanto, tudo o que devemos pedir em oração a favor de
pessoas nessas condições é que elas sejam santificadas.

Naturalmente, tudo isso está certo, mas o que estou interessado em salientar é
que não é por isso que o apóstolo ora a favor dos efésios. Ele ora no sentido de
que Deus lhes dê “em seu conhecimento o espírito de sabedoria e de revelação”.
A significação disso para nós é que a maioria dos nossos problemas na vida
cristã surgem do fato de que as nossas idéias são muito centralizadas no homem,
muito subjetivas. Partimos do homem e suas necessidades, em vez de partirmos
de Deus. O homem necessita de perdão e, então, de libertação do pecado, a fim
de não ser infeliz numa vida de fracassos. Ficamos obcecados com o homem e
suas necessidades e com o que se pode fazer pelo homem. Contudo a
abordagem do apóstolo é inteiramente diversa. O nosso conceito da salvação não
deve ser antropocêntrico; sempre deve ser teocêntrico. Essa é a característica
particular do ensino do apóstolo. Temos visto que ele começa no versículo 3 com
“Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo”. Assim, quando ele chega à
sua petição por estes efésios, não é tanto pela santificação deles, nem pela sua
felicidade, nem pela sua alegria, mas para que tenham “em seu conhecimento o
espírito de sabedoria e de revelação”. É isso que ele apresenta em primeiro lugar.

Não há nada de excepcional nisso, da parte do apóstolo. Sua oração pelos


cristãos filipenses é no sentido de que o amor deles cresça, e de que eles cresçam
no conhecimento e no entendimento espiritual. Na Epístola aos Colossenses a
sua petição continua sendo a mesma. O interesse do apóstolo pelos seus recém-
converti-dos sempre foi que viessem a conhecer a Deus. Ele não
pensa primordialmente em termos de estados e condições subjetivas, mas da
relação total deles com o Deus todo-poderoso. Corremos o grave perigo de
esquecermos isso e desenvolvermos uma ênfase falsa. Devemos seguir sempre o
modelo apostólico e pôr as coisas na ordem certa. Mais adiante nesta Epístola o
apóstolo diz muita coisa a respeito da santificação; entretanto ele não começa a
partir desse tema. Ele fala muito em felicidade e alegria, mas tampouco
começa daí. Ele começa onde devemos começar sempre, a saber, da necessidade
de conhecer cada vez mais a Deus.

Por isso, a primeira petição é no sentido de que os efésios tenham “em seu
conhecimento” este “espírito de sabedoria e de revelação”.

Ao considerarmos o que isso significa, a primeira coisa neces-

sária é que tenhamos claro entendimento quanto à referência da palavra seu,


mencionada na passagem em foco. Há alguns que acham que ela se refere ao
Senhor Jesus Cristo. Mas, considerando isso completamente errado, sugiro que
é, evidentemente, uma referência a Deus o Pai. Certamente todo o contexto
indica isso; pois o apóstolo prossegue logo para indicar que a primeira parte
desse conhecimento é que devemos saber “qual seja a esperança da
sua vocação”. É certo que isso define a questão, pois, como já vimos, é Deus o
Pai que nos chama, nos escolhe e nos predestina. Aplica-se a mesma coisa às
“riquezas da glória da sua herança nos santos; e qual a sobreexcelente grandeza
do seu poder sobre nós”. Estas cláusulas se referem claramente a Deus o Pai.
“Seu poder sobre nós, os que cremos”, que o apóstolo deseja que conheçamos, é,
ele nos diz, “segundo a operação da força do seu poder, que manifestou
em Cristo”, o que só pode ser uma referência a Deus o Pai. Assim,
o conhecimento que o apóstolo deseja que tenhamos é primordial
e essencialmente um conhecimento de Deus, o Pai eterno.

Naturalmente, como o apóstolo esclarece em toda parte nesta Epístola, e como o


Novo Testamento esclarece em toda parte, este conhecimento só no é possível no
Senhor Jesus Cristo e por intermédio dEle. Logo, há um sentido em que não
podemos separá-los. O conhecimento que devemos ter, como o nosso Senhor diz
em Sua oração sacerdotal, é um conhecimento do Pai e do Filho. “E a
vida eterna é esta: que te conheçam, a ti só, por único Deus verdadeiro, e a Jesus
Cristo, a quem enviaste” (João 17:3). Em sua Segunda Epístola aos Coríntios o
apóstolo escreve: “Deus, que disse que das trevas resplandecesse a luz, é quem
resplandeceu em nossos corações, para iluminação do conhecimento da glória de
Deus, na face de Jesus Cristo” (4:6). É o conhecimento da glória de Deus,
deste Pai da glória a quem ele está orando, que necessitamos, e este se acha “na
face de Jesus Cristo”. “Deus nunca foi visto por alguém. O Filho unigênito, que
está no seio do Pai, este o fez conhecer” (João 1:18). Este conhecimento é
mediado e só nos é possível, em nosso bendito Salvador e por meio dEle, mas,
em termos finais e supremos, é o conhecimento do próprio Deus.

Aqui estamos face a face com os pontos mais altos do alcance da fé e vida cristã,
e quando os contemplamos só podemos dizer: “Quem é suficiente para estas
coisas?” O conhecimento de Deus é que o apóstolo pediu em oração para todos
aqueles cristãos recém--convertidos de Éfeso. É a oração de que necessitam
todos os

cristãos, sempre e em todos os tempos. A nossa necessidade suprema é conhecer


a Deus. Como disse o nosso Senhor em Sua oração sacerdotal: “Pai justo, o
mundo não te conheceu; mas eu te conheci, e estes conheceram que tu me
enviaste” (João 17:25).

O termo “conhecimento” é muito forte, muito poderoso. Não tem o sentido de


um conhecimento ligeiro, superficial. Existe esse tipo de conhecimento, é claro,
porém o termo empregado pelo apóstolo transmite as idéias de conhecimento
exato e preciso, conhecimento certo, e também conhecimento experimental.
É conhecimento profundo. Ele não podia ter usado vocábulo mais forte; significa
o conhecimento mais completo em que podemos pensar. Sua oração em favor
destas pessoas é no sentido de que elas cheguem a esse conhecimento de Deus.
Elas ainda estavam na terra, e muitas delas provavelmente eram escravas, como
não era incomum nos primeiros séculos. Eram pessoas comuns,
talvez ignorantes, sem instrução e iletradas; mas isso não faz diferença. O que
ele pede em oração é que elas cheguem a este pleno conhecimento, este
conhecimento plenamente global, este conhecimento apurado, preciso, exato,
experimental dAquele que ele acabara de descrever não somente como “o Deus
de nosso Senhor Jesus Cristo”, mas também como o inefável “Pai da glória”.

Ao passarmos a analisar este conceito, devemos começar salientando


negativamente que o apóstolo não está orando para que tenhamos um
conhecimento de Deus unicamente intelectual ou teórico. Existe esse tipo de
conhecimento, e é sumamente importante. Deus Se revelou para que pudéssemos
conhecê-10 nesse sentido. Ele o fez na natureza, Ele o fez na história, ele o fez
na providência. No entanto, além disso, Ele o fez na dádiva dos Dez
Mandamentos e da Lei Moral para instruírem as pessoas quanto à natureza do
ser e do caráter de Deus. As dificuldades do homem sempre se devem à sua
ignorância de Deus. Por isso Deus nos deu este conhecimento geral de Si
mesmo. Mas não é essa a espécie de conhecimento que o apóstolo tem em mente
aqui. É vital que saibamos algo sobre os atributos de Deus. No período da vida
religiosa da Inglaterra conhecido como a era dos puritanos, vemos que muitos
dos grandes pregadores puritanos expunham constantemente os atributos de
Deus - Sua eternidade, Sua onipresença, Sua onisciência, etc. Tal pregação é
muito importante, contudo, esse conhecimento é o que se pode denominar
teórico ou intelectual, ideativo ou proposicional. Pois bem, enquanto que,
certamente, o apóstolo inclui essa espécie

de conhecimento em sua oração, ele vai além.

Para expor o assunto com outras palavras, quando Paulo escreve sobre
chegarmos ao conhecimento de Deus, ele quer dizer mais do que o
conhecimento que devemos ter de diversas coisas acerca de Deus. Há uma boa
razão para isso, como Tiago explica em sua Epístola, quando diz: “Também os
demônios o crêem, e estremecem” (2:19). Os demônios têm esse tipo de
conhecimento de Deus. Não são ignorantes no que se refere à grandeza, ao poder
e à majestade de Deus. Eles crêem em Deus nesse sentido, mas
esse conhecimento de Deus não é salvífico porque leva a nada mais que tremor.
Assim, devemos ressaltar que o conhecimento que o apóstolo tem em mente não
se detém no conhecimento de certas coisas próprias de Deus. Precisamos
conhecer tais coisas; precisamos saber que ele é o “Criador dos confins da terra”,
que Ele é o “Juiz de toda a terra, que ele é todo-poderoso e eterno. É a nossa
ignorância dessas verdades concernentes a Deus que explica tanta
superficialidade e vacilação em nossa vida cristã. Não há “temor de Deus diante
de seus olhos”, ainda é verdade a respeito de muitos. Não somos homens e
mulheres piedosos como foram os nossos pais. Tratemos de dar atenção às
palavras do apóstolo.

Outra coisa, Paulo não está se referindo somente ao conhecimento das bênçãos
que Deus dá. Ele irá tratar dessas bênçãos mais adiante, como veremos em sua
tríplice petição, a saber, que os efésios conheçam em particular qual a esperança
da vocação de Deus, quais as riquezas da glória da sua herança nos santos, e qual
a sobreexcelente grandeza do Seu poder sobre nós os que cremos. Todavia, ele
não chegou a isso ainda, e ainda está orando num sentido mais geral. O que
temos aqui é estonteante e espantoso. Ele está interessado em que tenhamos um
conhecimento imediato de Deus, uma real comunhão com Deus. Para usar a
expressão teológica corrente, ele está interessado em que tenhamos um
“encontro” com Deus. Ele se refere a um conhecimento pessoal e íntimo. Seja
o que for que pensemos de certas tendências modernas do ensino teológico, ao
menos devemos concordar que esta reiterada ênfase sobre a idéia de um encontro
divino-humano, uma reunião com Deus, este “momento existencial” em que
Deus está ali e eu aqui, a relação “Tu-eu” e “eu-Tu”, é boa. O conhecimento que
Paulo tem em mente não é mera teoria, mera noção; não é algo abstrato
ou acadêmico; é um encontro real, imediato, pessoal. Ele está orando acerca do
verdadeiro conhecimento de Deus.

É quase impossível colocar esta verdade em palavras, mas significa que é


preciso que Deus seja real para nós, e que estejamos cônscios dEle e cônscios da
Sua presença. Não peço desculpas por perguntar se você já conheceu isto. Deus é
real para você ? Quando você se ajoelha e ora, você sabe que Deus está ali,
percebe a Sua presença? É isso que o apóstolo tem em mente; ele deseja
que venhamos a saber e a compreender algo da glória de Deus. Daí salientar ele
que está orando ao “Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória”. Você já
sentiu e percebeu algo da glória de Deus? Você já conheceu algo do que Jacó
sentiu quando disse: “Na verdade o Senhor está neste lugar...”, e “Quão terrível é
este lugar! Este não é outro lugar senão a casa de Deus; e esta é a porta
dos céus”? (Gênesis 28: 16-17). Significa que sabemos e compreendemos algo
do amor de Deus, como também da glória de Deus. A glória nos enche de um
sentimento de pavor e “santo temor”, porém o amor nos devolve a segurança.

Torno a salientar que isso não é somente uma crença geral no amor de Deus;
significa que começamos a saber algo do amor de Deus, e a experimentá-lo
direta e pessoalmente. “Conhecer” uma pessoa significa algo que vai além de um
contato casual. Somos propensos a dizer: “Conheço Fulano de Tal”, quando o
qüe realmente queremos dizer é: “Uma vez eu fui apresentado a ele e lhe disse
algumas palavras”, ou: “Ele é meu conhecido”. Mas isso não é conhecer
realmente uma pessoa. O termo “conhecimento”, como empregado pelo apóstolo
aqui e noutras partes das Escrituras, significa um conhecimento íntimo. Isso é
evidente quando o termo é empregado com referência ao conhecimento que
Deus tem de nós. Deus diz dos filhos de Israel, por meio do profeta Amós: “De
todas as famílias da terra a vós somente conheci” (3:2). E óbvio que
não significa que Deus não saiba da existência das outras, pois Deus conhece
todas as famílias da terra. Conheci, neste contexto, significa conheci num sentido
especial, pessoal, imediato, particular; significa que Ele tivera um interesse
especial pelos filhos de Israel. Portanto, o apóstolo estava orando para que estes
efésios conhecessem pessoalmente o amor de Deus por eles, e sentissem
também esse amor.
Significa ter comunhão com Deus num sentido real e verdadeiro. Esse é o
sentido da declaração que já citamos: “E a vida eterna é esta: que te conheçam a
ti só, por único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste” (João 17:3).
Os judeus tinham

conhecimento acerca dEle; tinham sido instruídos na lei e conheciam as suas


Escrituras; mas isso não é suficiente; “vida eterna” significa “conhecer a Deus” e
“conhecer a Jesus Cristo ”. Vemos o apóstolo João expressando este mesmo
desejo quanto aos cristãos aos quais escreveu a sua Primeira Epístola e aos quais
ele chama “filhinhos”. Diz ele: “Estas coisas vos escrevemos, para que o vosso
gozo se cumpra”(ou: “para que a vossa alegria seja completa”, 1:4, VA, cf.
ARA). Ele também explica como isso pode vir a acontecer, dizendo: “...isso vos
anunciamos, para que também tenhais comunhão conosco”. A comunhão com os
apóstolos, entretanto, não é tudo, pelo que ele acrescenta: “e a nossa comunhão é
com o Pai, e com seu Filho Jesus Cristo”. Comunhão significa
amizade, intimidade, co-participação, uma participação da mesma vida. Essa é a
conotação desta grande palavra “conhecimento”.

Se se perguntar como podemos saber se temos este conhecimento, a resposta é


que qualquer pessoa que tenha algum conhecimento deste assunto tem um senso
de privilégio, um senso de maravilha, um senso de louvor e de glória. Chegar a
esse conhecimento de Deus é o que o cristianismo significa realmente.
Algumas ilustrações e exemplos das Escrituras ajudarão a explicar a matéria. Foi
isso que Jó quis dizer quando exclamou: “Ah, se eu soubesse onde o poderia
achar!” (23:3), VA e ARA). Ele não tinha perdido o seu conhecimento teórico de
Deus; não tinha deixado de saber algo sobre os atributos e sobre as obras de
Deus. Não era isso que Jó estava procurando. Ele tinha experimentado amizade e
comunhão com Deus, mas por algum tempo tinha perdido isso. O que ele estava
procurando era a Pessoa mesma, o contato direto com Deus. Isso fica mais claro
posteriormente, quando o Senhor Se manifestou e Se revelou a ele, e Jó disse:
“Com o ouvir dos meus ouvidos ouvi, mas agora te vêem os meus olhos” (42:5).
O contraste é entre “o ouvir dos meus ouvidos” e “mas agora...” Pensar em Deus
em geral tinha levado Jó a muito falar e argiiir, todavia quando ele sente a
presença de Deus, põe a mão na boca e se arrepende no pó e na cinza
(40:4; 42:6).

Moisés expressa a mesma idéia em muitas ocasiões. Deus lhe tinha dado a
grande e importante tarefa de conduzir os filhos de Israel para Canaã, e ele, o
homem mais manso, consciente da sua incapacidade, diz: “Se a tua presença não
for conosco, não nos faças subir daqui”. Moisés, porém, não ficou satisfeito
mesmo quando Deus prometeu aquilo. E levantando-se com grande ousadia,

voltou-se para Deus e disse: “Rogo-te que me mostres a tua glória” (Êxodo
33:12-21). Você já sentiu esse desejo? O apóstolo está orando no sentido de que
estes efésios comecem a ter fome e sede disso, compreendam que tudo o que
lhes acontecera tinha a finalidade de levá-los a ver e a conhecer a glória de Deus,
este Pai da glória.

“Rogo-te que me mostres a tua glória.” O salmista expressa a mesma idéia no


Salmo 42: “Como o cervo brama pelas correntes das águas, assim suspira a
minha alma por ti, ó Deus! A minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo”
(versículos 1 e 2). Ele não estava pensando no Deus da teologia, por assim dizer,
no Deus dos compêndios, no Deus das proposições, mas no “Deus vivo”, no
Deus pessoal. Sua alma tinha sede do Deus vivo; suspirava por
esse conhecimento “como o cervo brama pelas correntes das águas”. Este é um
conhecimento direto de Deus, não indireto; não é um conhecimento acerca de, e
sim um conhecimento pessoal, imediato. É o tipo de experiência de que fala
Isaías no capítulo 6 da sua profecia, quando diz: “Eu vi ao Senhor assentado
sobre um alto e sublime trono; e o seu séquito enchia o templo”. A casa encheu-
se de fumo e os umbrais das portas se moveram. Foi um vislumbre da glória de
Deus. Vendo-a, ele diz: “Sou um homem de lábios impuros”: “Ai de mim!” Ele
esteve na presença da glória, percebeu-a, sentiu-a (versículos 1 a 8). Este é um
verdadeiro conhecimento de Deus.

O nosso bendito Senhor ensinou a mesma verdade; vemos, por exemplo, no


capítulo 11 do Evangelho Segundo Mateus: “Todas as coisas me foram entregues
por meu Pai: e ninguém conhece o Filho, senão o Pai; e ninguém conhece o Pai,
senão o Filho, e aquele a quem o Filho o quiser revelar” (versículo 27). O nosso
Senhor veio para dar-nos salvação, o que em última instância significa
que conhecemos a Deus. Ele expõe isso outra vez, quando diz: “Se alguém me
ama, guardará a minha palavra, e meu Pai o amará, e viremos para ele, e faremos
nele morada” (João 14:23). Isso é cristianismo verdadeiro, “A vida de Deus na
alma do homem”, como Henry Scougal denominou o seu famoso livro; o Pai e o
Filho vindo e fazendo morada em nós. Ou retornemos à oração sacerdotal
de Cristo. Ele ora “para que o mundo conheça que tu me enviaste a mim, e que
os tens amado a eles como me tens amado a mim” (João 17:23). Esse é o
conhecimento que Paulo deseja para estes cristãos efésios.
O apóstolo ora também para que os cristãos efésios tenham “o

espírito de sabedoria e de revelação”, que cheguem a esse conhecimento de


Deus. Isto é algo que ultrapassa a fé, vai além da confiança, além até da selagem
com o Espírito. A diferença é que na selagem como Espírito nos é dado saber
que Lhe pertencemos; o Espírito Santo “testifica com o nosso espírito que somos
filhos de Deus” (Romanos 8:16). “Tu és o meu filho.” Haveria alguma coisa que
seja superior a isso? Sim: conhecer a Deus! Esse é o ponto culminante, o
“summum bonum”. É maravilhoso saber que pertenço a Deus; é um privilégio, é
uma bênção infinitamente maior conhecer a Deus. Esse é o conhecimento que o
apóstolo deseja para estes cristão efésios.

É também um conhecimento destinado a todos os cristãos. O perigo de certos


tipos de “cultivo da alma” surge neste ponto. A igreja católica romana, e todo
ensino católico não hesitam em negar o que tenho asseverado. Esse ensino
divide os cristãos em dois grupos, “os religiosos” e “os leigos”. “Os religiosos”
são os especialistas da vida religiosa - os místicos, os santos, os que
abandonaram o mundo e se segregaram da sociedade, dedicando-se unicamente
à oração, à meditação, à mortificação do corpo e à contemplação. Estes, e
somente estes, de acordo com o ensino católico, podem alcançar tal
conhecimento. O homem engajado nos negócios ou nos lidares comuns da vida,
o cristão comum, não pode alcançar este conhecimento. Mas, de acordo com o
ensino das Escrituras, isso é uma grande heresia. Não permita Deus que nenhum
de nós sucumba à ela! De nada precisamos além desta oração do apóstolo pelos
efésios para refutá-la. Ele está fazendo esta oração por todos os membros da
igreja de Efeso. Ele não está orando pelos apóstolos, nem pelos presbíteros, nem
pelos cristãos excepcionais chamados “santos”. Ele está orando por eles todos,
para que todos eles tenham “em seu conhecimento o espírito de sabedoria e de
revelação”.

O cumprimento desta oração é a peculiar promessa da nova aliança. Mediante o


profeta Jeremias, Deus fez a promessa de uma nova aliança que Ele faria, como
vem registada no capítulo 31 da profecia de Jeremias. Essa promessa é citada
duas vezes na Epístola aos Hebreus, nos capítulos 8 e 10. A promessa, a predição
do que aconteceria sob a Nova Aliança quando Cristo tivesse realizado a Sua
obra de salvação, diz: “E não ensinará cada um ao seu próximo, nem cada um ao
seu irmão, dizendo: conhece o Senhor; porque todos me conhecerão, desde o
menor até ao maior” (Hebreus 8:11).
Sua característica é: “Todos me conhecerão”. Na citação do profeta Joel, feita
pelo apóstolo Pedro em seu sermão no dia de Pentecoste, também vemos o
seguinte: “E nos últimos dias acontecerá, diz Deus, que do meu Espírito
derramarei sobre toda a carne; e os vosso filhos e as vossas filhas profetizarão, e
os vossos mancebos terão visões, e os vossos velhos sonharão sonhos; e também
do meu Espírito derramarei sobre os meus servos e minhas servas naqueles dias,
e profetizarão” (Atos 2: 17-18). Notem as expressões: “do meu Espírito
derramarei sobre toda a carne”; “todos me conhecerão, desde o menor deles até
ao maior”.

Este conhecimento está à disposição de todos. Graças a Deus, a história da Igreja


através dos séculos confirma isso. Não é questão de entendimento intelectual,
não depende das circunstâncias e condições. Somente duas coisas governam isto,
a saber, a compreensão de que é possível e, depois, o desejo de tê-lo. “Bem
aventurados os que tem fome e sede de justiça, porque eles serão fartos”; “Bem
aventurados os limpos de coração, porque eles verão a Deus” (Mateus 5:6,8).

Você conhece a Deus? Não estou perguntando se você crê em coisas a respeito
dEle; mas você O encontrou? Você se viu com certeza em Sua presença? Ele fala
com você, e você sabe que fala com Ele? A Prática da Presença de Deus (The
Practice of the Presence of God), de autoria do irmão Lawrence, diz-nos que
isso é possível na cozinha, quando você está lavando os pratos e fazendo as
tarefas mais insignificantes. Não importa onde você está, contanto que você
saiba que isso é possível, que Cristo morreu para torná-lo possível. Ele morreu
“para levar-nos a Deus”, e a este conhecimento. Acaso sua comunhão é “Com o
Pai e com o seu Filho Jesus Cristo”? Oxalá conheçamos a Deus! Comece a
clamar com Jó: “Ah, se eu soubesse que o poderia achar!”, e logo você se verá
com desejo, com fome de conhecê-10. A pergunta mais vital que se deve fazer
acerca de todos os que se dizem cristãos é esta: eles têm em sua alma sede de
Deus? É este o anseio deles? Há algo acerca deles que lhe diga que eles estão
sempre esperando pela próxima manifestação pessoal de Deus? A vida deles está
centralizada nEle? Podem eles dizer com Paulo que se esquecem de tudo o que
houve no passado? Eles vão avante mais e mais para poderem conhecê--10, e
para que o conhecimento dEle aumente até finalmente ultrapassar a morte e o
túmulo, e eles possam aquecer-se eternamente ao “brilho do sol do seu rosto”?
“Para que eu possa conhecê-lo!”

1
Alguns ditados correspondentes: “Dize-me com quem andas, e te direi quem és”; “Farinha do mesmo
saco ...”; “O sangue fala mais alto...”. Nota do tradutor.
SABEDORIA E REVELAÇÃO

“Pelo que, ouvindo eu também a fé que entre vós há no Senhor Jesus, e o vosso
amor para com todos os santos, não cesso de dar graças a Deus por vós,
lembrando-me de vós nas minhas orações; para que o Deus de nosso Senhor
Jesus Cristo, o Pai da glória, vos dê em seu conhecimento o espírito de
sabedoria e de revelação”

- Efésios 1:15-17

A grande questão que agora se nos levanta é: como pode o homem vir a
conhecer a Deus? Jó colocou essa questão uma vez por todas quando perguntou:
“Pode o homem, por sua pesquisa, achar a Deus?” (11:7; cf. VA e ARA). A
resposta é dada no versículo que mostra o conteúdo da oração do apóstolo.
Precisamos do “espírito de sabedoria e de revelação”; esse é o segredo!
Devemos ter o cuidado de observar que o apóstolo não está orando aqui no
sentido de que estes efésios tenham um espírito geral de sabedoria; ele não está
orando para que eles se tornem sábios, ou que as suas ações e as suas atividades
sejam caracterizadas pela sabedoria. Esse tipo de sabedoria é excelente, e todos
nós devemos procurar tornar-nos sábios nesse sentido. Mas Paulo não está
orando no sentido de que toda a conduta deles na vida, e todas as suas relações
sejam governadas por esse tipo de sabedoria e entendimento. Antes, sua oração é
no sentido de que eles tenham em abundância o próprio Espírito Santo, o único
meio pelo qual podemos ter sabedoria e entendimento espiritual. Noutras
palavras, concordo com os que dizem que a palavra espírito aqui deveria ser
escrita com inicial maiúscula. Vocês verão em muitos lugares nas Escrituras, na
Versão Autorizada (inglesa) e em diversas outras traduções, que, embora a
referência seja claramente ao Espírito Santo, é empregada inicial
minúscula. Geralmente se pode decidir isso em termos do contexto; e, neste caso
particular, a oração e petição é certamente no sentido de que eles tenham em
abundância o Espírito Santo, o Espírito que dá e traz sabedoria, o Espírito que,
só Ele, pode revelar-nos coisas. Noutras palavras, mais uma vez o apóstolo está
dando ênfase à obra peculiar do Espírito Santo.

Isso nos lembra de novo a maneira pela qual o apóstolo nos

mostra que a obra da salvação é dividida entre as três Pessoas da Trindade santa
e bendita. Nada é mais “admirável”, para usar o termo empregado por Isaac
Watts (“amazing”), do que o fato de que as três Pessoas da Trindade santa e
bendita estão envolvidas juntas na obra de resgatar-nos e redimir-nos deste
“presente mundo mau” e preparar-nos para a glória eterna. Desde o versículo
13 Paulo nos vem lembrando que a obra peculiar, especial do Espírito Santo é
selar-nos e ser o nosso “penhor” até à redenção da possessão adquirida. Agora
ele nos lembra outra obra do Espírito, sem a qual jamais poderíamos conhecer a
salvação. Quer dizer, a obra peculiar do Espírito Santo consiste em aplicar-nos a
redenção que foi planejada pelo Pai e posta em ação e efetuada pelo Filho.

Nada proclama de maneira final e com tanta clareza se a pessoa tem a idéia certa
sobre si como pecadora, e a idéia certa sobre a salvação, como a sua consciência
da sua necessidade do poder do Espírito Santo, e da sua ativa e constante
dependência dEle. A atitude da pessoa para com o ensino bíblico referente ao
Espírito Santo proclama claramente se ela tem idéias corretas sobre a doutrina
do homem, a doutrina do pecado, a doutrina do Senhor Jesus Cristo, a doutrina
da redenção - na verdade a totalidade da doutrina da redenção. Isso porque não
há doutrina que nos mestre tão claramente o nosso completo desamparo de
desesperança como este singular ensino concernente à obra do Espírito Santo na
aplicação da redenção a nós.

O fim, a meta, é levar-nos a conhecer a Deus. Deus fez o homem; Ele o fez à Sua
imagem e semelhança, e o homem foi destinado a viver uma vida em
correspondência com Deus, a estar em comunhão com Deus. A criação do
homem foi uma expressão do amor de Deus. Deus como amor dá-Se a si mesmo,
Seu amor externa-se; e o homem foi feito para ser recipiente desse amor
e corresponder a ele. Contudo veio o pecado e separou de Deus o homem;
alienou-o, rompeu a comunicação. O homem tornou-se um fugitivo errante;
tornou-se um estranho para Deus e não O “conheceu” mais. Todo o fim e
objetivo da redenção é levar o homem de volta a esse conhecimento. O ensino da
Bíblia é que somente o Espírito Santo pode levar-nos de volta a esse
conhecimento de Deus e Seus caminhos. Por isso o apóstolo ora, “Para que o
Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória, vos dê em seu conhecimento
o espírito de sabedoria e de revelação”. Ele ora rogando que o Espírito Santo
faça isso porque só Ele pode fazê-10. Passemos a

Primeiramente opino que se trata de um simples fato. O homem, por natureza,


não conhece a Deus. Declaro isso como uma asseveração, como algo que
realmente não necessita de demonstração. Podemos provar o ponto fazendo duas
perguntas simples: você conhece a Deus? Algum homem, por natureza, conhece
a Deus? De capa a capa a Bíblia responde que não, e a nossa experiência
a confirma e a consubstancia completamente. Isso explica por que as pessoas
acham tão difícil orar. Se você não consegue orar uma hora, por que não
consegue? Você pode falar facilmente com seus vizinhos e amigos durante uma
hora, na verdade, durante horas. Então, porque é difícil falar com Deus durante
uma hora? Há somente uma resposta; é porque não O conhecemos. Não O
conhecemos suficientemente, e não estamos cônscios de que estamos em Sua
presença. Isso é um simples fato.

Mas podemos ir adiante e dizer que o homem, entregue a si mesmo, por todos os
esforços que faça, jamais pode chegar ao conhecimento de Deus. Pela pesquisa,
pela capacidade natural, pela confiança em sua sabedoria e em seu
entendimento, os homens nunca poderão achar a Deus. Essa é a proposição
absoluta firmada pelo apóstolo Paulo na Primeira Epístola aos Coríntios, na
memorável declaração: “O mundo não conheceu a Deus pela sua sabedoria”
(1:21). Essa tentativa de encontrar Deus tem sido a grande busca da humanidade
desde o princípio. Os filósofos gregos tinham tentado isso. Há no homem um
senso inato da consciência de que Deus existe; todo homem tem isso. O ateu,
assim chamado, tem isso, e está simplesmente tentando argumentar contra esse
fato, está tentando montar defesas contra algo em que ele, em sua mente,
não quer crer, porém que algo dentro dele continua afirmando. A pesquisa
arqueológica mostra que todas as tribos mais primitivas do mundo têm senso de
um Deus supremo, de um Ser supremo que está por trás de todas as coisas. É um
sentimento universal da humanidade. Por isso o homem tem procurado satisfazer
este sentimento de anseio, esta consciência que ele tem; e em geral faz isso
utilizando a sua mente. Tudo quanto procuramos descobrir nesta vida o fazemos
por meio das nossas mentes. As descobertas científicas resultam do uso da
mente. Você coloca a sua hipótese ou suposição ou teoria; e depois a submete à
prova por meio das suas experiências. Na esfera do mundo esse procedimento é
perfeitamente correto

e freqüentemente adequado. Pois bem, isso é sabedoria humana; é o método do


homem. Ele sonda os mistérios, faz o seu trabalho de pesquisa, busca e continua
pesquisando; ele utiliza as suas faculdades, especialmente a sua capacidade
mental. Mas o fato é que, na tentativa de conhecer a Deus, e de achar Deus, esse
afã e esses esforços mostram-se vãos: “O mundo não conheceu a Deus pela sua
sabedoria”.

Concordo com aqueles que ensinam que Deus determinou a hora particular em
que enviaria Seu Filho ao mundo de tal maneira que seria dada à filosofia grega
a sua oportunidade, e ela faria o máximo para levar a humanidade a este
conhecimento de Deus, falhando nisso completamente. Este é um puro fato da
história. Deus permitiu que os filósofos gregos tivessem a sua ocasião, antes
de enviar Seu Filho a este mundo. Ele dispôs tudo aquilo primeiro, a fim de que
se pudesse fazer esta afirmação: “O mundo não conheceu a Deus pela sua
sabedoria”. Ficou provado da maneira mais positiva que o homem, nas alturas da
sua capacidade, é tão desvali-do como uma criança pequena, quando
confrontado pelo conhecimento infundido aos crentes efésios pelo Espírito. A
situação é essa, daí as razões que o apóstolo passa a dar no capítulo 2 da
Primeira Epístola aos Coríntios.

O melhor comentário deste versículo 17 do capítulo primeiro da Epístola aos


Efésios é o capítulo 2 da Primeira Epístola aos Coríntios. Lá o apóstolo
desenvolve num capítulo aquilo que aqui ele coloca numa frase. O homem não
conhece a Deus e, em si e por si, nunca pode chegar ao conhecimento de Deus
porque esse conhecimento é “sabedoria oculta em mistério” (1 Coríntios
2:7). Ela se ocupa das “profundezas de Deus”, do abismo insondável
da personalidade eterna de Deus, da imensidão do ser eterno de Deus e Seus
caminhos, que são “inescrutáveis” (Romanos 11:33). A mente do homem é
demasiado pequena, demasiado limitada para sondar tais profundezas. Não estou
insultando o homem, mas estou simplesmente dizendo que Deus é infinitamente
grande e está acima de nós e além de nós, e a mente humana é pequena demais
para poder captar estas “infinidades e imensidades”, na expressão de
Thomas Carlyle.

No entanto, essa não é a única dificuldade, e num sentido não é a maior. O real
problema está no fato de que “Deus é Espírito, e importa que os que o adoram o
adorem em espírito e em verdade” (João 4:24). Toda verdade concernente a Deus
é de caráter

espiritual, e quando o homem natural encontra a luz do mundo eterno, sua


alardeada habilidade parece até ridícula, decorrendo daí que todos nós somos
postos no mesmo nível. Nada é mais glorioso nem mais animador acerca da
mensagem cristã e do método cristão de salvação do que o fato de que as
divisões e distinções humanas são totalmente irrelevantes. Esta é a única esfera
em que isso é verdadeiro. Com relação às coisas de Deus, habilidade ou falta
de habilidade natural é completamente insignificante. Graças a Deus que é
assim. Se fosse doutro modo, os inteligentes e dotados de intelecto levariam
vantagem sobre os outros; ademais, não haveria por que enviar missionários às
partes do mundo em que o povo ainda não recebeu instrução; na verdade, o
empreendimento missionário seria impossível. Se é preciso que os homens
tenham poder mental, instrução, entendimento e capacidade para exercer e usar
as suas faculdades para poderem tornar-se cristãos, seria ridículo pregar o
evangelho a pessoas ignorantes e iletradas. Além disso, é um fato que, enquanto
muitos homens de grande intelecto não crêem no evangelho, é possível a um
homem da África Central, que nunca teve um dia de instrução escolar, crer no
evangelho e apreendê-lo. A explicação é que este conhecimento é de caráter
espiritual; é conhecimento de Deus que é “Espírito”, e que só pode ser conhecido
de maneira espiritual.

Uma verdade básica é que o homem, em conseqüência do pecado, não é mais


espiritual; ele se tornou carnal, ou, para usar a expressão de Paulo, tornou-se
homem “natural” (1 Coríntios 2:14). Todo conhecimento, de acordo com o
argumento do apóstolo em 1 Coríntios, capítulo 2, requer certas afinidades ou
certa correspondência. Diz ele: “Qual dos homens sabe as coisas do homem,
senão o espírito do homem, que nele está?” (versículo 11); noutras palavras, um
homem entende outro porque ambos são homens e têm o mesmo espírito, em
sentido natural. Você precisa ser músico para entender música, você precisa ter
certa faculdade poética, se é que a poesia lhe deva falar algo. Você não pode
chegar ao conhecimento nestes domínios, se não houver algum tipo de
correspondência básica. Você pode ser um gênio, mas se lhe faltar
sensibilidade poética, a poesia será uma tolice para você. Em todos os domínios
e departamentos do pensamento e do conhecimento é preciso que haja alguma
aptidão, algo que responda e corresponda ao objeto que você está desejoso de
conhecer. Por causa desta exigência, o homem, nesta questão do conhecimento
de Deus, está completa-

mente desamparado e desvalido. Não importa quão grande seja a sua mente, ou o
seu entendimento, o homem, por natureza, não é mais espiritual; é “carnal”,
“vendido sob o pecado”. A faculdade espiritual com a qual ele foi criado
originalmente atrofiou-se, e não pode ser mais exercitada. Seja o que for que o
homem faça, por mais que ele tente elevar-se e estimular a sua mente, ele não
pode produzir a necessária faculdade e afinidade para chegar ao conhecimento
de Deus. Estas coisas, diz o apóstolo noutra frase, “se discernem
espiritualmente” (versículo 14). Sem a faculdade espiritual, você não as pode
discernir. Daí, as coisas de Deus são loucura para o homem natural, e ele não vê
nada nelas. Falta-lhe esta capacidade ou faculdade essencial.
Portanto, devemos começar vendo claramente que, sem o Espírito Santo, o
homem jamais poderá chegar a este conhecimento de Deus. É a função peculiar
do Espírito Santo levar-nos a este conhecimento. Isso contraria toda a nossa
maneira normal de ver a verdade e o conhecimento. E inteiramente diferente. O
nosso Senhor expôs isso uma vez por todas com as palavras: “Se não
vos converterdes e não vos fizerdes como meninos, de modo algum entrareis no
reino dos céus” (Mateus 18:3). Essa é uma verdade universal. Seja a pessoa
quem for, qualquer que seja a sua habilidade ou a sua cultura ou a sua instrução,
ela tem que descer e tornar-se como criança; tem que compreender o seu
completo desamparo, a sua ruína total. Acima de tudo, ela tem que admitir a sua
completa incapacidade de conhecer a Deus, apesar dos seus poderes intelectuais.
Se não o fizer ou negar-se a fazê-lo, nunca terá este conhecimento. Foi a
Nicodemos, mestre em Israel, homem de intelecto e de cultura, que o nosso
Senhor disse: “Não te maravilhes de te ter dito: necessário vos é nascer de novo”
(João 3:7). Nesta esfera nenhum homem pode partir de onde está, tem que
retroceder a outro princípio; tem que fazer uma saída completamente
nova. “Necessário vos é nascer de novo”, porque esta é uma esfera inteiramente
diferente. É a esfera do Espírito, e ninguém pode entrar nesta esfera por sua
própria força e habilidade. Todos nós temos que entrar neste reino da mesma
maneira. Não há vários caminhos para entrar; há apenas um, o caminho do
arrependimento, envolvendo completa admissão de fracasso e total bancarrota.
Sem o Espírito Santo, o conhecimento de Deus é impossível; e Ele foi enviado
para dar-nos este conhecimento.

O apóstolo passa a dizer-nos que o Espírito nos dá este conhecimento de duas


maneiras principais. Primeiro Ele nos dá a sabedoria necessária: “Para que o
Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória, vos dê em seu conhecimento
o espírito de sabedoria". Sabedoria, como o termo é empregado aqui, não
significa um espírito geral de sabedoria. Significa “conhecimento”. Na Bíblia
geralmente a palavra sabedoria vale por conhecimento, como, por exemplo, no
livro de Provérbios: “O temor do Senhor é o princípio da sabedoria” (9:10). Não
significa o que normalmente queremos dizer com sabedoria, a saber, o resultado
ou a conseqüência do conhecimento. Podemos expor o assunto assim: o que o
apóstolo está pedindo em oração para os efésios é que eles tenham
o conhecimento que nos torna sábios para a salvação. “Sabedoria” eqüivale a
conhecimento, informação, entendimento.

Esta sabedoria ou conhecimento era o que os gregos procuravam; eles eram


“cientistas naturais” neste sentido. Eles achavam que havia muito que aprender,
muito em que eles eram ignorantes; assim se puseram a acumular conhecimento.
A presente geração a que pertencemos é tipicamente grega em sua perspectiva.
Deleita-se com as enciclopédias, deseja saber um pouco de tudo. Faz perguntas e
lê livros porque acha que essa é a maneira de construir um mundo perfeito e o
tipo certo de vida. O homem alega que quer conhecimento. A isso a Bíblia diz:
se você quer conhecimento, se você quer sabedoria, se você quer verdadeiro
entendimento, há somente um lugar no qual você pode achá-lo: ei-lo aqui!
Segundo a Bíblia, a sabedoria começa com “o temor do Senhor”. Só se
acha esperando no Senhor e buscando nEle o conhecimento de
que necessitamos. O Espírito Santo nos ajuda a obter este conhecimento dando-
nos a faculdade indispensável para o entendimento da mensagem bíblica.

A grande questão é: que é que realmente necessito conhecer a fim de viver como
devo neste mundo? Seria melhor começar com um curso de leitura da história, a
longa história da humanidade, e dizer: “Pois bem, onde é que os homens erraram
no passado, onde cometeram seus enganos? Se eu tão-somente puder descobrir
isso, saberei o que evitar e o que não fazer”. Muitos pensam que é esse
o caminho. Outros discordam e dizem: “Não! Tudo o que você precisa é
examinar-se, fazer-se psicólogo e analisar a sua mente e os seus motivos”. É por
esta razão que a psicologia está na moda no presente século. Em geral a teoria é
que precisamos ter um conhecimento

especial de nós mesmos; por isso nos sondamos a nós mesmos e analisamos a
nossa mente inconsciente, assim chamada, registramos os nossos sonhos e os
analisamos, e permitimos que psicanalistas nos examinem enquanto ficamos
passivamente deitados em seus sofás num estado de “associação livre”. Este,
pensamos, é o meio de chegarmos ao verdadeiro conhecimento e entendimento.

Mas a Bíblia diz “não” a tudo isso, e nos garante que o conhecimento de que
necessitamos é de diferente ordem; é um conhecimento ao qual somente o
Espírito Santo pode levar-nos. É um conhecimento do próprio Deus. Devemos
começar desse conhecimento de Deus, o Autor e Criador de todas as coisas.
Antes de eu começar a analisar-me ou de deixar que os outros o façam, eu
deveria perguntar: quem sou eu, de onde venho, como posso explicar o meu
próprio ser? Essas perguntas me levam de volta a Deus. Eu vejo a natureza e a
criação, e tudo me sugere Deus. Mas não posso achá-lO ali. Vejo ali os sinais dos
Seus dedos, mas é a Ele que eu quero. Como posso achá-10? “Ah, se eu
soubesse onde achá-lO” (Jó 23:3, VA). Essa é a questão! Examino a história,
examino a providência, examino a mim mesmo, examino tudo, em toda parte,
e, contudo, não posso achá-10. Onde posso encontrar Deus? Há somente uma
solução: devo esperar em Deus; e Deus haverá de falar-me sobre Si. Isso é
revelação; e é função do Espírito Santo dar-nos esta revelação.

Somente assim descobrimos a verdade sobre Deus, sobre o caráter de Deus,


sobre o ser de Deus, sobre Deus mesmo, Deus como Deus. Vimos que os
maiores filósofos não puderam chegar a Ele, mas, graças a Deus, aprouve a Deus
falar-nos sobre Si. Ele nos deu a sabedoria, o conhecimento de que necessitamos
sobre Ele e Seus bondosos propósitos. Onde você poderia desvendar o plano de
redenção, fora da Sua revelação? Como poderia o homem saber que Deus tem
coração de amor e que olha para o homem em pecado com olhos piedosos?
Como poderia o homem ter descoberto isso? Ele não pôde fazê-lo; falhou, a
despeito de todas as alturas filosóficas atingidas pelos pensadores gregos. Deus
teve que revelá-lo; o conhecimento e a sabedoria são dados unicamente por
meio de Espírito Santo.

Permitam-me ilustrar o ponto: vejam o Senhor Jesus Cristo. Como homem


natural, você olha para Ele e pode dizer: “Que fenômeno extraordinário! É
espantoso que um carpinteiro que nunca recebeu treinamento intelectual nas
escolas, nem como fariseu nem

com filósofo, possa ter proferido aquelas incomparáveis pérolas de sabedoria.


Que fenômeno admirável!” Tente entende-10, tente analisá-10 - você não
conseguirá. Você poderá tentar fazê-lo dizendo com os biólogos que Ele é uma
espécie de “mutante” lançado inexplicavelmente por um desses estranhos
truques da natureza, que Ele não se enquadra nas regras do desenvolvimento e
evolução gradativa da humanidade. Você poderá olhar o Senhor Jesus
Cristo com toda a sua sabedoria humana no auge, e não começará a entendê-10.
Mas quando você se submeter à revelação receberá uma revelação que, em certa
medida, o habilitará a entendê-10. Há duas naturezas na Pessoa de Jesus. Ele é o
Nazareno, o carpinteiro, o filho de Maria; mais que isso, porém, Ele é o Filho
eterno de Deus! Duas naturezas, uma Pessoa! Você recebe um fato, e também
a explicação desse fato. Mas essa sabedoria só pode obter por meio do Espírito
Santo.

Olhando para Jesus e analisando-O você nunca O verá e nunca virá a


conhecê-10, bem como as bênçãos que Ele veio dar, porque as categorias que
você utiliza não são suficientemente grandes. Torno a citar as palavras do
apóstolo Paulo em 1 Coríntios 2:7-8 -“Mas falamos a sabedoria de Deus oculta
em mistério...a qual nenhum dos príncipes deste mundo conheceu; porque, se a
conhecessem, nunca crucificariam ao Senhor da glória”. Eles não
tinham conhecimento de que Ele era “o Senhor da glória”; somente enxergavam
a estrutura humana, o homem. Não conseguiam ver o outro aspecto, não
conseguiam chegar ao verdadeiro conhecimento dEle, por mais que tentassem.
Este conhecimento é dado pelo Espírito Santo - “Deus nos revelou (isto) pelo
seu Espírito; porque o Espírito penetra todas as coisas, ainda as profundezas de
Deus” (1 Coríntios 2:10). Ele abre os nossos olhos para o mistério da
encarnação, das duas naturezas numa só Pessoa - sem mistura nem confusão, e,
contudo, uma só Pessoa. E então nos leva a ver o caminho da salvação.

Suba com a sua mente natural ao seu ponto mais alto e olhe para a cruz do
Calvário. Que é que você vê lá? O máximo que você pode ver é a morte de um
mártir, a morte de alguém de alma pura, a morte de uma pessoa honesta que, em
vez de retratar-Se ou retirar o Seu ensino, preferiu sofrer a morte. O homem
natural, com a mente e a capacidade humanas em seu mais alto nível, não pode
ver nada mais que isso na cruz. Ele não consegue enxergar o “amor
tão admirável, divino”. Essa “maravilhosa” e gloriosa verdade só é

vista pelos olhos que foram iluminados pelo Espírito Santo. Unicamente o
Espírito Santo pode habilitar-nos a entender que Deus “fez cair sobre ele a
iniqüidade de nós todos” (Isaías 53:6). O mundo ri-se disso e o ridiculariza. É
natural que o faça, diz Paulo, pois “o homem natural não compreende as coisas
do Espírito de Deus”. Não as compreende porque “elas se discernem
espiritualmente”. O homem natural nem começa a entendê-las; ele não se
conhece a si mesmo, não conhece o pecado, não conhece o amor de Deus,
e assim, como pode entendê-las? Somente o Espírito Santo pode propiciar este
conhecimento, e ele o faz. Nem mesmo os discípulos entenderam o Calvário e o
seu propósito, senão depois da ressurreição, a despeito do fato de que tinham
passado três anos olhando o Filho de Deus nos olhos e ouvindo todas as Suas
palavras. Eles não puderam receber isso, não puderam entendê-lo. Você terá que
ter esta iluminação dada pelo Espírito Santo, e este conhecimento infundido,
antes de poder ver isso. Deus revela a verdade concernente a Si próprio; se Ele
não o fizesse, seriamos deixados nas trevas mais densas. Por isso Paulo ora no
sentido de que os crente efésios tenham o Espírito de sabedoria, o Espírito que
dá a sabedoria, o conhecimento.

Este conhecimento a princípio foi dado por meio dos apóstolos e profetas. Daí
dizer Paulo no fim do capítulo 2 que a Igreja Cristã foi edificada sobre “o
fundamento dos apóstolos e dos profetas” (versículo 20). A verdade veio por
meio deles, da sua prédica e do seu ensino. Mas logo foi dada noutra forma, no
que chamamos Novo Testamento, nos Evangelhos, no livro de Atos, nas
Epístolas e no livro de Apocalipse. Este conhecimento já tinha sido dado de
forma parcial por meio do Velho Testamento. Os escritores dos livros
que constituem o Velho Testamento não estavam apenas expressando as suas
idéias sobre a vida. Conforme o apóstolo Pedro, em sua Segunda Epístola,
capítulo primeiro, “nenhuma profecia da Escritura é de particular interpretação”.
Ele quer dizer que as profecias não eram simplesmente uma interpretação que os
homens faziam da vida, sua visão pessoal do mundo e do que acontece nele.
Nada disso, diz ele, mas, antes, “homens santos de Deus falaram
movidos (inspirados, conduzidos) pelo Espírito Santo” (versículos 20 e 21), (cf.
VA(inglesa), ARC e ARA). Foi o Espírito Santo que lhes deu o que eles viram. E
que os guiou quando o escreveram: “Toda Escritura é inspirada por Deus e útil
para o ensino, para a repreensão”, diz igualmente o apóstolo Paulo (2Timóteo
3:16). As Escrituras não

são fruto de pesquisa feita pelo homem, mas sim, da revelação e inspiração de
Deus. O Espírito de sabedoria opera agora mediante esta Palavra que se acha na
Bíblia e nos leva a este conhecimento.

O apóstolo fala também do “Espírito dz revelação”. Obviamente isso implica


que temos necessidade de um novo conhecimento ou entendimento, como já
vimos. Esse já foi dado, e, portanto, devemos rejeitar os ensinos de indivíduos
ou igrejas que aleguem ter recebido nova revelação além e acima do que temos
nas Escrituras. Geralmente falando, essa é uma alegação feita pela igreja
católica romana. Ela afirma que recebeu ulterior revelação, quer através
da tradição passada pelos apóstolos, quer decorrente da sua interpretação das
Escrituras. Há indivíduos que fazem a mesma alegação. Mas não é o que quer
dizer “revelação”, como o apóstolo emprega o termo aqui, pois disso ele já tinha
tratado sob “sabedoria”. “Revelação” deve-se entender aqui da seguinte maneira:
a capacidade humana de entender verdade espiritual, em conseqüência da
Queda foi tão prejudicada que, mesmo quando vocês colocam esta sabedoria que
Deus nos deu mediante o Espírito Santo diante dos olhos do homem, ele não a
pode ver nem compreender. A extensão da queda do homem é tão grande e
ampla que nenhum homem, pelo exercício da sua vontade ou do seu
entendimento , pode salvar-se ou tornar-se cristão . Repetidamente acentuei o
argumento de Primeiro Coríntios 2:14 acerca do homem natural. Como,
então, alguém poderá vir a entender essas coisas? A resposta é: “Nós temos a
mente de Cristo” (1 Coríntios 2:16). O homem necessita que o Espírito Santo
torne clara esta revelação para ele. O Espírito Santo já inspirou e guiou homens
santos para porem este conhecimento em forma escrita, todavia, para podermos
“vê-lo” e recebê-lo , algo mais é necessário; é preciso que o Espírito opere
também em nós. É preciso que Ele abra os nossos olhos para que vejamos o que
está diante de nós. Isso não requer demonstração. O apóstolo Paulo nos diz, na
Segunda Epístola aos Coríntios, capítulo 3, que a maioria dos judeus estava em
tristes condições, suas mentes esta-vam cegas, e havia um véu sobre os seus
olhos. Eles liam as Escrituras do Velho Testamento todos os sábados, mas não
conseguiam discernir o significado. Liam a Palavra de Deus, porém não
podiam entendê-la. “Se ainda o nosso evangelho está encoberto” diz Paulo no
capítulo 4 dessa mesma Epístola, “para os que se perdem está encoberto, nos
quais o deus deste século cegou os entendimentos

dos incrédulos, para que não lhes resplandeça a luz do evangelho, a glória de
Cristo que é a imagem de Deus.”

Esta verdade é ilustrada perfeitamente pela história acerca de William Pitt, o


Jovem, e seu amigo William Wilbeforce, pioneiro no movimento pró abolição da
escravatura, era um excelente cristão que foi convertido com a idade de vinte e
seis anos pela leitura de um livro de Philip Doddridge intitulado Surgimento e
Progresso da Religião na Alma (The Rise and Progress of Religion in the
Soul). Era um cristão ativo. Também era membro do Parlamento, e amigo de
William Pitt, o Jovem, seu conhecido desde os dias da universidade. Pitt como
muitos outros estadistas, era um cristão formal e ia à igreja nas ocasiões
especiais, mas realmente não tinha nenhum entendimento das coisas espirituais.
Eles eram grandes amigos, e Wilberforce estava preocupado e ansioso quanto à
alma de William Pitt. Orava por ele, e estava especialmente desejoso de que ele
fosse em sua companhia ouvir um pregador de Londres chamado Richard Cecil,
homem muito espiritual e que pregava mensagens espirituais. Wilberforce
costumava ouvi-lo regularmente, e a doutrina pregada lhe causava prazer.
Frequentemente pedia a Pitt que o acompanhasse, mas Pitt tinha sempre uma
desculpa ou outra. Entretanto, afinal Pitt prometeu ir, e um dia foram juntos
ouvir Richard Cecil. Wilberforce sentiu que nunca tinha ouvido Richard
Cecil expor a verdade de Deus de maneira mais maravilhosa e cheia do Espírito.
Seu coração foi arrebatado pela verdade; era o céu para ele. Não pôde deixar de
ficar curioso sobre o que estaria acontecendo com o seu amigo. Finalmente
terminou o culto e eles saíram juntos. Pouco antes de deixarem o edifício,
William Pitt voltou-se para Wilberforce e disse: “Sabe, Wilberforce, fiz o
máximo para concentrar-me com todas as minhas forças no que o homem
estava dizendo, mas não tenho a menor idéia do que ele estava falando”.

Essa é uma história verdadeira, e quão verdadeira continua sendo quanto a


muitos! Do ponto de vista da capacidade pura e simples, William Pitt era maior
que Wilberforce. Tinha uma grande mente, um grande intelecto; mas a verdade
de Deus exposta por Richard Cecil não significava absolutamente nada para ele,
porquanto os seus olhos não tinham sido abertos pelo Espírito. A verdade
significava tudo para Wilberforce e nada para Pitt. Pitt não tinha recebido “o
espírito de revelação”.

Paulo ora no sentido de que os cristãos efésios tenham “o espirito de sabedoria e


de revelação”. Eles já eram cristãos, mas

estavam só no começo, eram crianças em Cristo. Havia tanta coisa que eles
ainda não tinham visto. Uma das experiências mais emocionantes que o cristão
tem é ler a Bíblia toda, ano após ano, e de repente, ao ler uma passagem que já
lera muitas vezes antes, encontrar algo que sobressai e lhe fala admiravelmente.
Ele estivera cego para isso. É isso que torna possível a pregação ano após ano.
O Espírito Santo dá aos pregadores novas revelações da verdade. Elas sempre
estiveram lá, mas o pregador é levado a vê-las de maneira progressiva por este
“espírito de revelação”. Sem este Espírito de revelação o pregador fracassa e se
torna uma ruína de idéias. Dependendo dEle mais que nunca. A verdade é tão
grande, e a minha mente é tão pequena! Mas o Espírito de revelação nos dá
entendimento.

Estivemos considerando uma das doutrinas da fé cristã. Os reformadores


protestantes costumavam dizer aos ouvintes que há uma dupla ação do Espírito
Santo. Há o “Testimonium Spiritus Externus” 1 - o Espírito que está na Palavra,
digamos, o Espírito que inspirou os homens que produziram a Palavra. Isso é
essencial. Mas não basta. Antes de eu saber que esta é a Palavra de Deus e a
verdade de Deus, antes de eu poder ler a Bíblia e descobrir saúde e alimento para
a minha alma, algo adicional é necessário - o “Testimonium Spiritus Internus”. 2
- O Espírito na Palavra; o Espírito no leitor! E sem o Espírito nele, homem
nenhum será capaz de entender o sentido da Palavra. As duas operações são
absolutamente essenciais.

Noutras palavras, vimos que o apóstolo ora pelos crentes efésios no sentido de
que o Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória, lhes dê “o Espírito de
sabedoria” (Testimonium Spiritus Externos) e “o Espírito de revelação”, a
capacidade de vê-la e recebê-la, de ter prazer nela e alegrar-se nela
(Testimonium Spiritus Internus). Que provisão perfeita para os pecadores
condenados, cegos, desamparados e indignos! E tudo dado gratuitamente
mediante o Espírito Santo de Deus! Quão perfeita salvação! “Tudo
quanto necessito, em ti achar!”

Glória seja a Deus o Pai, Glória seja a Deus o Filho, Glória seja a Deus o
Espírito -Grande Jeová, Três em Um! Glória, glória, Enquanto infindas eras
rolam!

“A ESPERANÇA DA SUA VOCAÇÃO”

“Tendo iluminado os olhos do vosso entendimento, para que saibais qual seja a
esperança da sua vocação - Efésios 1:18

Havendo considerado o que descrevemos como a petição geral e totalmente


inclusiva que o apóstolo dez pelos efésios, passemos agora às particularidades.
Este é, invariavelmente o método do apóstolo: primeiro a exposição do todo,
depois se passa às partes. Vemos que ele está interessado em que eles entendam
três coisas em particular. Cada uma delas é introduzida pela palavra “qual”
(“quais”). Ele ora rogando que eles venham a conhecer “qual seja a esperança da
sua vocação”, “quais as riquezas da glória da sua herança nos santos” e “qual a
sobreexcelente grandeza do seu poder sobre nós, os que cremos”.

Mas o apóstolo não pode começar a tratar destas particularidades sem de novo
fazer-nos lembrar um princípio vital. Ele ora: “Tendo iluminados os olhos do
vosso entendimento, para que saibais” essas três coisas. À primeira vista,
podemos achar que ele já disse tudo isso quando disse que necessitamos do
“Espírito de sabedoria e de revelação”. Contudo este não é um caso de
tautologia; o apóstolo não está se repetindo. Ele lhes está dizendo, efetivamente:
eu lhes disse que o que é supremo, central, é conhecer a Deus; mas eu quero que
vocês conheçam estas verdades subsidiárias também, estas particularidades; e,
no entanto, devo dizer-lhes de novo e lembrar-lhes que vocês só poderão recebê-
las na medida em que o seu entendimento seja iluminado pelo Espírito Santo. A
Versão Autorizada (como ARC) emprega a palavra entendimento neste
ponto, porém algumas outras versões (como ARA) dizem: “iluminados os olhos
do vosso coração”. A variação depende de quais manuscritos originais o
tradutor adota como sendo os melhores. Mas, de qualquer forma, não há
contradição. Na Bíblia, muitas vezes o “entendimento” e o “coração” são
considerados idênticos. De acordo com o uso bíblico, o termo coração não
significa somente emoções; significa também o centro da personalidade, a fonte
do nosso ser e da

nossa atividade. Portanto, o apóstolo está orando para que, num sentido total -
não meramente de maneira intelectual, ou acadêmica, ou teórica - venhamos a
conhecer estas coisas. Ele está orando no sentido de que, com a totalidade do
nosso ser, venhamos a conhecer estas verdades e reagir bem a elas.

A melhor maneira de entender esta oração é compreender mais uma vez que o
apóstolo está contrastando a condição do homem natural com a do homem
espiritual. Mais adiante, no capítulo 4, ele mostrará o que todos nós somos por
natureza, e demonstrará a necessidade de termos iluminados os olhos do nosso
entendimento. Diz ele: “E digo isto, e testifico no Senhor, para que não andeis
mais como andam também os outros gentios, na vaidade do seu
sentido. Entenebrecidos no entendimento, separados da vida de Deus
pela ignorância que há neles, pela dureza do seu coração; os quais, havendo
perdido todo o sentimento, se entregaram à dissolução, para com avidez
cometerem toda a impureza” (versículos 17-19). A frase operativa aqui é,
“Entenebrecidos no entendimento”, sendo a conseqüência que eles estão
“separados da vida de Deus”, na “ignorância” e “andam...na vaidade do seu
sentido”(VA: “...da sua mente”). Significa que o de que todos nós necessitamos
não é de uma nova faculdade, pois todos nós temos a faculdade da mente e do
entendimento, no sentido natural. O que há de trágico quanto ao homem não é
tanto que ele tenha perdido uma faculdade, mas que, em conseqüência do pecado
e da Queda, ele não pode usar e exercitar apropriadamente as suas faculdades.
Falando sobre os pagãos, sobre os gentios incrédulos, Paulo afirma que o
entendimento deles está “entenebrecido”. Eles têm entendimento, porém está
obscure-cido.

Vejamos uma ilustração simples. Há certas pessoas que ficaram cegas, que não
conseguem ver nem a luz. Seu problema não é que perderam os olhos; ainda os
têm. O problema pode ser que há algo errado com o cristalino dos seus olhos.
Mas isso não significa que o cristalino desapareceu, e sim, que cresceu uma
película sobre ele, uma opacidade que leva o nome de catarata. O cristalino está
lá como quando essas pessoas enxergavam normalmente, mas, porque se
desenvolveu essa opacidade, elas não conseguem ver. Os olhos se tornaram
“entenebrecidos”, obscurecidos; um véu os cobriu, e assim já não podem receber
a luz que vem de fora. O estado da mente do homem como ele é por natureza e
“em pecado”,

é comparável a olhos defeituosos. A pessoa cega não precisa de novos olhos;


precisa é que a opacidade, o véu, a névoa que se desenvolveu em seu cristalino
seja removida. No momento em que ocorrer isso, ela será capaz de apreciar a luz
e de ver as coisas como antes. Ora, essa é a condição do homem em pecado; ele
tem um entendimento natural, ele tem a faculdade, a capacidade, mas não pode
usá-la em questões espirituais. Está cega, obscurecida, este véu veio sobre ela,
vedou-se a lente; e embora a gloriosa luz da revelação de Deus esteja ali
brilhando diante dele nas Escrituras, e de fato mesmo na natureza, ele não
consegue enxergar. Portanto, é necessário que estes “olhos do entendimento”
sejam iluminados, que a opacidade, o véu, seja tirado para que os olhos
espirituais funcionem como funcionavam na criação original do homem.

A minha ilustração ajuda dentro dos seus limites. Todavia devemos acrescentar
outra verdade ensinada nas Escrituras, a saber, que o problema do homem não é
só que o seu entendimento ficou entenebrecido, mas também, por causa disso,
ele carece de poder. É como se os olhos, por não estarem sendo utilizados,
se atrofiassem; o próprio nervo ótico, por assim dizer, perdeu o seu poder. Assim
o homem necessita de uma operação dual; necessita da remoção da opacidade, e
também da restauração da energia e da força do seu nervo ótico espiritual.

O Espírito Santo atende a ambas estas necessidades, e somente Ele o faz. Vimos
que grandes homens do mundo, quando confrontados pela verdade espiritual,
não podem ver nada. Não há propósito nem sentido em levar um cego para ver
um belo cenário; ele simplesmente não o pode ver. E ali está! “Os olhos do nosso
entendimento” precisam ser iluminados para podermos apreciar verdades
espirituais.

Também devemos ter o cuidado de lembrar que esta é uma oração que Paulo faz
em favor de cristãos. Ele está orando aqui por aqueles que já estão em “Cristo
Jesus”, que são co-herdeiros com os santos, e que já foram selados com o
Espírito Santo. Deste fato deduzimos os seguintes princípios: primeiro, que,
enquanto estivermos nesta vida e neste mundo, sempre teremos necessidade da
obra iluminadora do Espírito Santo. Nunca estaremos numa situação em que não
teremos mais essa necessidade. Enquanto estivermos aqui, e cercados de
fraquezas, e num mundo pecaminoso, tendo na verdade um princípio do pecado
que ainda resta em nós, necessitaremos desta operação iluminadora do Espírito
Santo. Certamente

todos nós sabemos disso por experiência. Por mais que tenhamos aprendido, por
maior que seja o nosso entendimento das Escrituras, se começarmos a desviar-
nos em nosso viver diário, veremos que a Palavra não nos fala como falava. Esta
é uma lei invariável. Jamais poderemos ter feriado espiritual. Nunca poderemos
viver de uma reserva que tenhamos acumulado. Como foi com o maná no
deserto, assim o entendimento espiritual tem que ser coletado novamente cada
dia. Se não nos dermos conta da nossa dependência do Espírito Santo, a Palavra
não nos falará. Se lermos a Palavra de Deus sem orar pedindo iluminação,
provavelmente colheremos bem pouco dela. Jamais devemos apartar-nos da
consciência desta dependência do poder e da iluminação do Espírito. A “unção
do Santo”, de que fala o apóstolo João, é necessária sempre e crescentemente
(1 João 2:20,27).

O segundo princípio que deduzimos é, obviamente, que esse conhecimento


espiritual é progressivo. Paulo agradece a Deus que os efésios já conheciam
muito; e, contudo, ele deseja que eles cresçam no conhecimento; de fato ele fica
repetindo as suas petições. Na grande oração registrada no capítulo 3 desta
Epístola ele ora praticamente pela mesma coisa. Somos apenas pequenas
crianças chapinhando na praia do grande e poderoso oceano da verdade; e não há
nada que seja tão trágico quanto o tipo de cristão que dá a impressão de que “já
chegou”. Isso geralmente resulta de se pensar na vida cristã unicamente em
termos da experiência do perdão, da santificação, etc. Isso faz a pessoa pensar
que já “chegou”, que terminou, que já tem tudo! Mas essa idéia é inteiramente
contrária ao ensino do Novo Testamento, onde a descrição é mais a de
um crescimento e desenvolvimento progressivo, e de um entendimento sempre
crescente.

Dizem-nos as Escrituras que começamos como crianças em Cristo. Depois


começamos a crescer e a armazenar conhecimento; e isto prossegue e continua
crescendo. Às vezes podemos pensar tolamente que conhecemos tudo, e então,
subitamente, algo inteiramente novo se abre diante da contemplação extasiada.
Continuamos a aprender; vamos “de glória em glória”, “esquecendo-nos
das coisas que atrás ficam”, prosseguimos avante como fez Paulo, sempre
desejosos de aprender mais e conhecer mais. Tal é a vida cristã normal.

Portanto, isso constitui o que me parece uma boa prova de toda a nossa posição
cristã. O nosso conhecimento espiritual seria maior
hoje do que há um ano? Olhando para, digamos, os passados dez anos de vida
cristã, você pode dizer que o seu conhecimento espiritual é maior do que era?
Não estou perguntando se você tem maior conhecimento da letra das Escrituras,
como você pode ter crescente conhecimento de Shakespeare; não estou
perguntando se você memorizou um grande número de versículos bíblicos.
Estou perguntando se o seu conhecimento e entendimento espiritual cresceram.
A sua compreensão da verdade é mais profunda? Você realmente sente que está
sempre sendo levado para a frente, como que de aposento em aposento numa
grande mansão, e descobrindo novos tesouros de sabedoria e conhecimento?
Essa é a prova. Paulo orou no sentido de que os efésios tivessem cada vez maior
conhecimento e entendimento da verdade.

O terceiro princípio que deduzimos é que devemos estar orando por esta
iluminação dos olhos do nosso entendimento. Isso também pode ser exposto na
forma de pergunta. Porventura oramos dia após dia a Deus, ao Deus de nosso
Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória, rogando que ilumine os olhos do nosso
entendimento? Essa deve ser a nossa oração constante e diária. Sempre devemos
prefaciar a nossa leitura da Palavra, orando pela nossa iluminação. O constante
desejo das nossas vidas deve ser que “cresçamos na graça e no conhecimento do
Senhor”. O problema com muitos de nós é que nunca nos despertamos para esta
compreensão. Parece que pensamos que já “chegamos”, que já “sabemos”.
Sabemos mais do que os teólogos liberais, do que os modernistas, do que os
não cristãos; assim, parece que pensamos que abarcamos todo o conhecimento
cristão. O fato é que não passamos de principiantes, de crianças, estamos
meramente no começo. Devemos empenhar-nos em ir adiante rumo à perfeição.
Estaríamos interessados na doutrina cristã? Vemos realmente a sua importância,
ou a achamos coisa aborrecível e insípida? Estaríamos sempre em busca de algo
que nos agite e nos entretenha? Nós nos damos conta de que, tendo sido salvos,
chamados e colocados em Cristo, o que Deus deseja é que cresçamos em nosso
entendimento da verdade e da doutrina, que devemos ocupar-nos mais disso do
que de qualquer outra coisa, que os “olhos do nosso entendimento”, a nossa
compreensão, sejam iluminados com esse fim?

Tendo isso em mente - e quão vitalmente importante é isso! -passamos à


primeira das três coisas que o apóstolo queria que estes

efésios soubessem, a saber, “qual seja a esperança da sua vocação”. Tem havido
considerável disputa quanto ao sentido da palavra “ esperança” nesta declaração.
Alguns dizem que significa as coisas pelas quais esperamos. Mas não pode estar
certo, pois é dessas coisas que Paulo trata na segunda petição, concernente ao
conhecimento das “riqueza da glória da sua herança nos santos”. Às
vezes “esperança” significa isso nas Escrituras, mas aqui não. Certamente o
apóstolo está se referindo à nossa esperança propriamente dita. Ele se refere à
nossa percepção de que fomos chamados para estas coisas e por estas coisas.
Noutras palavras, mais uma vez a referência é à certeza da salvação.

A próxima palavra que se nos depara é “vocação”- “para que saibais qual seja a
esperança da sua vocação”. Esta palavra nos apresenta de imediato uma grande
questão teológica, um grande princípio teológico, uma importante matéria de
doutrina. Submetamo-nos a uma prova, mais uma vez. Tenho acentuado que não
há nada mais importante do que os olhos do nosso entendimento ficarem
iluminados. Os seus “olhos” foram tão iluminados que, como cristão, digamos,
já há um bom número de anos, você entende este termo “vocação”? A intenção é
que o entendamos. Mas, que é esta “vocação” a que o apóstolo se refere?
Provavelmente você já leu esta Epístola aos Efésios muitas vezes, mas você sabe
o significado deste termo? Temos ai um grande termo do Novo Testamento,
um termo que infelizmente ouvimos muito poucas vezes nos tempos atuais,
porém um termo que antes era considerado importante, especialmente entre os
evangélicos.

Nossos pais costumavam ensinar, acertadamente, que há dois chamados ou duas


“vocações” nas Escrituras. Há um chamado geral, e um particular. Lemos, por
exemplo, no capítulo 17 do livro de Atos, que o apóstolo, pregando aos
atenienses disse: “Deus, não tendo em conta os tempos da ignorância, anuncia
agora a todos os homens, e em todo lugar, que se arrependam”. Ai o chamado
é geral. O evangelho de Jesus Cristo lança um chamamento geral a toda a
humanidade, para que todos se arrependam e creiam no evangelho. O evangelho
deve ser pregado a todas as criaturas em todos os lugares, no mundo inteiro; e
elas devem ser “chamadas” para se arrependerem e crerem. Obviamente, o
apóstolo não pode estar se referindo a esse uso neste ponto, porque esta não é
uma carta geral dirigida ao mundo, e sim uma carta especial escrita para
cristãos. Ele está elevando esta oração especial em favor daqueles que já

criam no Senhor Jesus Cristo. Portanto, esta é uma referência a outro tipo de
chamado que se acha nas Escrituras.

Há um chamado especial, ou , para usar o termo que de fato os nosso pais


usavam, há uma “vocação” ou “chamada eficaz”. O chamado geral de Deus nem
sempre é eficaz. Muitos que ouviram o chamado geral finalmente se verão no
inferno. Há os que estão vivendo em pecado e se gabam disso, e que podem
dizer-lhes exatamente o que significa o evangelho. Eles têm um
conhecimento intelectual e geral dele. Ouviram o chamado geral, mas não lhe
responderam como deviam; não foi “eficaz” no caso deles. Contudo, há um tipo
de chamado ou vocação que é eficaz. E o que o apóstolo expõe com tanta clareza
no capítulo 8 da Epístola aos Romanos, com estas palavras: “Sabemos que todas
as coisas contribuem juntamente para o bem daqueles que amam a Deus,
daqueles que são chamados por seu decreto” ( ou “segundo o seu propósito”, VA
e ARA). Os “chamados” neste caso não podem relacionar-se com o chamado
geral, porque os que ouviram e não o atenderam não “amam a Deus” e portanto
não foram “chamados segundo o seu propósito”. Os “chamados” aos quais o
apóstolo se refere nessa passagem e aos quais unicamente se aplica a grande
promessa, ele define mais adiante quando prossegue, dizendo: “Porque os que
dantes conheceu também os predestinou para serem conformes à imagem de
seu Filho; a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos. E aos que
predestinou a estes também chamou; e aos que chamou a estes também
justificou; e aos que justificou a estes também glorifi-cou” (Romanos 8:28-31).
Isso se refere a uma vocação eficaz. As pessoas chamadas neste sentido foram
justificadas e, além disso, foram glorificadas; mas isso não se aplica ao homem
do mundo que recebeu o chamado geral para arrepender-se e crer.

Portanto, o que temos em Efésios 1:18 não é um chamado gefal, é o chamado


eficaz ou especial. Podemos expor o ponto da seguinte maneira: Deus, mediante
o evangelho e pelo Espírito Santo, envia este chamado geral ao mundo todo, mas
chama algumas pessoas em particular, e nenhum homem é cristão, a menos
que tenha sido chamado neste sentido especial. Os “chamados” são os cristão; os
cristão são os “chamados”. São aqueles em quem a Palavra foi tornada eficaz;
ela chegou a eles com poder, e veio como uma ordem que lhes foi irresistível, e
prontamente responderam a ela com todo o seu ser. A petição do apóstolo é que
eles conheçam a esperança desta vocação. “Fostes chamados”, diz ele noutro

lugar, “com uma vocação celeste.” Noutro lugar ele diz que os cristãos foram
chamados com “uma santa vocação”, (cf. 2 Timóteo 1:9 e Hebreus 3:1). O que
ele deseja que conheçamos é a esperança desta vocação, a segurança, a certeza
dela. Você tem certeza da sua salvação? Para empregar as palavras de Pedro,
você tem feito “cada vez mais firme a sua vocação e eleição”? (2 Pedro 1:10).
Esse é o segredo de uma vida cristã feliz. O inimigo está aí, o diabo
ataca sugerindo dúvidas e incertezas; o pecado nos perturba e nos faz pensar que
talvez nunca tenhamos sido cristãos. Você está seguro da esperança da sua
vocação?

Isso é da própria essência da posição protestante e evangélica. Os católicos


romanos não gostam da doutrina da certeza da salvação e a denunciam. Eles não
querem que tenhamos certeza pessoal; a nossa certeza deve estar na igreja com a
qual nos comprometemos. Não só isso, mas temos que passar pelo purgatório,
dizem eles, antes de chegarmos ao repouso prometido. Tudo é incerto; e tudo
depende da igreja, e das orações da igreja, de acender velas, do pagamento de
dinheiro pelas indulgências, e da obra de supererrogação dos santos. Toda a
posição romana é incerta e precária. Todavia a essência do protestantismo, como
Martinho Lutero descobriu para sua grande e eterna alegria, é que o cristão
individual pode conhecer a sua salvação como certa e segura; ele pode desafiar
todos os demônios, o inferno e o próprio satanás, o cristão conhece o Cristo em
quem ele crê; sua esperança é segura; sua vocação e eleição são seguras.

Segurança e certeza devem ser a possessão de todos os cristãos. A negação disso


não se limita aos católicos romanos. Certas escolas modernas também o
rejeitam. A escola bartiana de pensamento que, em sua rejeição do velho
liberalismo, parece assemelhar-se à posição evangélica; é, não obstante,
radicalmente diferente, e particularmente por esta razão: ela não gosta de
segurança. Ela ensina que o cristão nunca pode ter certeza. Mas, conforme a
oração do apóstolo, o cristão deve conhecer a esperança da sua vocação, deve
estar absolutamente seguro dela.

O primeiro passo para chegarmos a esta segurança, é que os olhos do nosso


entendimento sejam iluminados. Também vimos que uma parte da resposta acha-
se na doutrina completa da selagem do Espírito, cujo propósito, como vimos
quando estudamos o versículo 13, é levar-nos a esta segurança. Entretanto isso
não é tudo. De

outro modo o apóstolo não estaria orando desta maneira pelos crentes efésios.
Ele simplesmente diria: graças a Deus que vocês têm segurança; vocês foram
selados com o Espírito, e não precisam de mais nada. Mas o que ele diz é, com
efeito: eu sei que vocês foram selados com o Espírito, porém ainda oro para que
os olhos do seu entendimento sejam iluminados, e para que conheçam qual é
a esperança da sua vocação - a vocação pela qual Deus os chama.

A distinção parece que é como segue: a selagem com o Espírito, como vimos, é
mormente subjetiva, é algo que sucede na esfera da experiência e que, em certo
sentido, não pode ser exposto com palavras; que é o Espírito dando testemunho
com o meu espírito diretamente, que eu sou o filho de Deus. Mas, graças a Deus,
esta não é a única base da segurança, pois, se formos depender da
nossa consciência, poderemos ver-nos um dia num estado de grande dúvida.
Você pode ter tido a selagem com o Espírito e, todavia, em conseqüência de
alguma queda em pecado, ou em razão das circunstâncias, doença ou alguma
fraqueza da carne, o diabo pode bombardeá-lo tanto, a ponto de abalar a sua
confiança. Ele é como um leão a rugir, como nos lembra o apóstolo Pedro, e ele
pode vir atacar-nos com tal poder que todo o seu universo fica abalado, e você
pode ser tentado a dizer: “O que eu tive deve ter sido uma experiência falsa, e eu
devo estar me iludindo”. Se você confiar só no subjetivo, poderá ver-se em
condições miseráveis. Por isso o apóstolo está grandemente interessado em que
conheçamos outras bases da segurança a e tenhamos outra base mais para toda a
nossa posição. Ele está se referindo agora a algo objetivo, e os olhos do nosso
entendimento precisam ser iluminados para o recebermos. E algo que vem pela
mente e depois age em todo o nosso ser. Não é teórico, mas começa pela mente;
é essencialmente uma questão de entendimento. Nosso entendimento já não está
obscurecido, tomamo-nos despertos para a verdade espiritual; e a nossa
segurança e certeza baseiam-se nesse entendimento.

O primeiro ingrediente, o primeiro fator essencial dessa segurança, dessa


esperança, é que cheguemos a um maior e mais profundo conhecimento do Deus
que nos chamou. Notem que o apóstolo tem todo o cuidado de dizer: “Para que
saibais qual seja a esperança da sua vocação”. Para termos uma segura
esperança, para termos uma profunda certeza, precisamos buscar o
conhecimento mais profundo do Deus que nos chamou. Nada pode dar-me
maior esperança e segurança do que o meu conhecimento do caráter de

Deus. “Não ouso confiar na mais suave disposição”, como nos lembra o hino,
porque as disposições são mutáveis, mas em Deus eu posso confiar sempre.
Deus é eterno, Deus é imutável, Deus é sempiterno; Deus nunca muda o Seu
propósito. Não há maior conforto ou consolo do que este. Deus nunca inicia uma
obra sem terminá-la. Sobre mim e você pesa a culpa de fazermos isso
constantemente. Ficamos cheios de emoção, entusiasmo e animação com certos
projetos, e os outros, vendo-nos, ficam espantados com o nosso entusiasmo, com
a nossa energia e com os nossos esforços, e acabam se sentindo como não tendo
feito nada. No entanto, com muita freqüência, no prazo de seis meses o quadro é
inteiramente outro. Perdemos o entusiasmo e o interesse, e voltamos a ser
cristãos frouxos e formais. Mas com Deus nunca acontece isso. Deus
é eternamente o mesmo, é “o Pai das luzes, em quem não há mudança nem
sombra de variação” (Tiago 1:17). Não há maior conforto ou base de segurança.
Pois bem, foi este Deus eterno e imutável que me chamou; e com outro hino nos
lembra:

Coisas futuras e coisas de agora,

Nada que há embaixo, nada que há em cima,

Podem levá-10 a evadir Seu propósito Ou minha alma cortar do Seu amor.

Depois também devemos compreender que toda a nossa posição repousa na


aliança de Deus. Os olhos do nosso entendimento terão que ser iluminados para
podermos conhecer algo da aliança de Deus. Deus fez uma aliança - aliança da
redenção, aliança da salvação - com Seu Filho antes da fundação do mundo. E
visto que é Sua aliança, é uma aliança eterna. Deus é Jeová, o Deus que cumpre
a aliança; Aquele que diz: “Eu sou o que sou”. Deus deu a Seu Filho um povo
que Ele deve redimir. O Filho entrou na aliança prometendo fazê-lo. O Senhor
Jesus Cristo é a Cabeça de uma nova humanidade, é o nosso representante, Ele é
o nosso Chefe Federal, e somos representados por Ele. A aliança entre o Pai e o
Filho é uma aliança eterna. Esta aliança foi revelada aos homens e foi
repetida. Esta promessa de redenção foi feita a Adão, a Abraão, foi
repetida também a Moisés, depois a Davi, e ensinada constantemente
nos escritos dos profetas que Deus levantou e enviou aos filhos de Israel. Quanto
mais entendermos a verdade sobre a aliança divina da redenção, maior será a
nossa segurança. Temos ainda a grande

verdade ensinada no capítulo 6 da Epístola aos Hebreus, nos versículos 13-20.


Deus fez até juramento para ajudar-nos. Não precisava fazê-lo, mas o fez para
Abraão. “Confirmou” a sua promessa com um juramento. Ele “jurou por si
mesmo”. Não havia ninguém maior por quem jurar, e assim Deus “jurou por si
mesmo” que o Seu propósito não mudaria. Ele a subscreveu, garantiu-a, fê-la
absolutamente segura e inviolável. O juramento de Deus! Você estudou isso na
Palavra? Passou tempo meditando nisso? O autor da Epístola aos Hebreus sugere
que os cristãos hebreus que tenham sido muito diligentes “servindo aos santos”
em outras questões práticas, tinham sido negligentes neste aspecto, pelo que ele
os exorta a mostrarem “o mesmo cuidado até o fim, para a completa certeza da
esperança” (Hebreus 6:11). Retornem à aliança, estudem o juramento de
Deus, procurem compreender a sua relevância para vocês e sejam iluminados
acerca dessa matéria. Esta é a matéria de tornar segura a sua esperança.

A seguir, pensem no poder de Deus. Apenas menciono isso no momento porque


o apóstolo vai tratar disso em particular em sua terceira petição na passagem em
foco. Mas podemos estar certos de que nada poderá impedir o propósito de
Deus, nada poderá frustrar o plano de Deus. É absolutamente certo porque o
poder do Deus Todo-poderoso está por trás dele.

Devemos compreender também que o “chamado” de Deus faz parte do Sec'


plano. Embora contendo muitas partes, Deus vê esse plano como um todo, e,
portanto, se estamos nesse plano, o fim conclusivo é absolutamente certo para
nós. A lógica dessa afirmação é demonstrada por Paulo no capítulo 8 de
Romanos, versículos 29-31: “Porque os que dantes conheceu também os
predestinou para serem conformes à imagem do seu Filho; a fim de que ele seja
o primogênito entre muitos irmãos. E aos que predestinou a estes também
chamou; e aos que chamou a estes também justificou; e aos que justificou a estes
também glorificou”. E em seguida ele pergunta: “Que diremos pois a estas
coisas?”, e responde: “Se Deus é por nós, quem será contra nós?” A lógica é
inexorável; é a base da nossa certeza concernente a esta bendita esperança.
Noutras palavras, se eu fui chamado eficazmente, estou certo de que chegarei
ao fim glorioso. Se na mente de Deus eu sou chamado, já estou “glori-ficado”. É
tão certo assim! Quando Deus começa uma obra sempre a termina. “Aquele que
em vós começou a boa obra a aperfeiçoará até ao dia de Jesus Cristo” (Filipenses
1:6) .Nada pode detê-la. A

aliança é somente uma, o plano é somente um; se um elo estiver presente, todos
os outros elos terão que seguir-se. “Ninguém as arrebatará da minha mão”, diz o
nosso Senhor (João 10:28). Isso está claro para você? Você vai freqüentemente
ao capítulo 8 da Epístola aos Romanos, e o lê e ora e diz: “Acaso isso é
verdadeiro a meu respeito; eu fui chamado logo estou justificado, logo já fui
glorifica-do em Cristo? Quando o diabo o ataca, você lhe responde citando estas
Escrituras? Foi o que o nosso Senhor fez quando foi tentado pelo diabo. Ele
tinha este entendimento, e respondeu ao diabo citando as Escrituras. Isso
constitui uma parte do que significa termos os olhos do nosso entendimento
iluminados.

Finalmente, precisamos entender a doutrina subjacente ao que já nos aconteceu.


Uma das maiores e mais práticas bases da segurança é a doutrina do novo
nascimento ou da regeneração. Se nasci de Deus, do Espírito, não posso cair; é
impossível. Isso de “cair da graça” não existe. É completamente inconcebível e
impossível que o Deus eterno implante em nós a semente da vida eterna e
depois permita que alguma coisa a destrua. A idéia de que um dia podermos
nascer de novo, depois pecar e perder a nossa vida eterna, e depois nascer de
novo, e assim oscilar entre as duas posições, baseia-se numa completa
ignorância da doutrina da regeneração. Os que a subscrevem precisam ter
iluminados os olhos do seu entendimento. Segundo o ensino bíblico, se
simplesmente sou cristão, estou “em Cristo”, estou unido a Cristo, estou ligado a
Cristo. Eu estava “em Adão”, e agora estou “em Cristo”. Estou ligado a Ele por
elos indissolúveis. No momento em que estendermos esta doutrina, a nossa
esperança será certa e segura. Você não pode estar em Cristo e fora de Cristo;
você não pode estar “em Cristo” um dia, e fora de Cristo no dia seguinte; se você
está “em Cristo” nunca mais poderá estar fora de Cristo outra vez. Ou você está
em por toda a eternidade, ou fora por toda a eternidade. Devemos captar e
conhecer esta doutrina da nossa bendita união, da nossa união mística com
Cristo. Ele é a Cabeça, como Paulo vai desenvolver o ponto no fim deste
capítulo, e nós somos o corpo; nós estamos “nele” e pertencemos a Ele e
estamos ligados a Ele.

Torno a perguntar: estas coisas significam tudo para você? Essa é a prova da
nossa espiritualidade, a prova do nosso crescimento na graça.

Permitam-me aplicar a minha prova indagando se podemos dizer com


sinceridade e com confiança -

Minha esperança é construída em nada menos Que o sangue de Jesus e Sua


justiça;

Não ouso confiar na mais suave disposição Mas de todo me apóio no nome de
Jesus:

Em Cristo, afirme Rocha, é que me firmo,

Qualquer outro terreno é arreia movediça.

E pergunto se você pode continuar a recitar esse hino, mesmo quando as nuvens
são negras e tudo parece ir contra você, e dizer -

Quando as trevas encobrem Sua amável face,


Eu repouso em Sua imutável graça;

Em todo o tempestuoso escarcel Minha âncora se fixa dentro do véu.

Mas, acima de tudo, você pode juntar-se ao escritor do hino em sua estrofe final?
-

Seu juramento, Sua aliança, e Seu sangue Me firmam na torrente avassaladora:

Quando tudo o que me cerca desaparece,

Ele é então toda a minha esperança e o meu esteio.

Em Cristo, afirme Rocha, é que me firmo,

Qualquer outro terreno é areia movediça.

Você conhece “a esperança da sua vocação”? Você tornou “mais firme a sua
vocação e eleição”? Você está repousando em “Seu juramento, Sua aliança, e
Seu sangue”, em Sua imutabilidade, quer você O veja quer não, quer você O
sinta quer não? Você pode descansar na verdade concernente a Ele, a qual, em
Sua graça, Ele nos revelou em Sua Palavra por meio do Espírito Santo, e que
Ele nos capacita a captar e apreender pela iluminação dos olhos do nosso
entendimento? Busque-a! Você foi destinado a regozijar-se, a ter uma firme
esperança que nada pode abalar. Você pode tê-la dessa maneira.
t

“AS RIQUEZAS DA GLÓRIA DA SUA HERANÇA NOS SANTOS”

“Tendo iluminado os olhos do vosso entendimento, para que saibais qual seja a
esperança da sua vocação, e quais as riquezas da glória da sua herança nos
santos.” - Efésios 1:18

Passamos agora a examinar a segunda metade desta declaração - “e quais as


riquezas da glória da sua herança nos santos”. Esta é a segunda das três petições
específicas que o apóstolo eleva em favor dos cristãos efésios e, como a
primeira, é introduzida pela palavra “quais”(“qual), Devemos ter em mente, ao
examiná-la, que, como a primeira petição, esta só pode ser entendida pelos que
têm “iluminado os olhos do seu entendimento”. Ela é ígualmente coberta
pela oração geral, para que tenham o Espírito de sabedoria e de revelação. Sem
isso, não seremos capazes de ver estas coisas.

Há duas idéias principais com respeito a esta segunda petição. Alguns sustentam
que ela se refere a uma herança pertencente a Deus, à herança de Deus nos
santos. A declaração do Velho Testamento de que “a porção do Senhor é o seu
povo” empresta algum colorido àquela idéia sobre o assunto (Deuteronômio
32:9), e há frases no Novo Testamento que significam praticamente a
mesma coisa. O apóstolo Pedro, em sua Primeira Epístola, diz aos cristãos: “Vós
sois a geração eleita, o sacerdócio real, a nação santa, o povo adquirido” (VA
“...um povo peculiar”). A expressão “povo peculiar”, como se vê na Versão
Autorizada (inglesa), realmente significa “um povo para possessão pessoal de
Deus”. Por isso há os que dizem que na passagem de Efésios a referência é à
soma total do povo de Deus quando for redimido finalmente. Deus está
chamando do presente mundo mau um povo para Si; Ele o está chamando dentre
judeus e gentios. Virá o dia em que a “plenitude dos gentios” terá sido reunida, e
igualmente em que “todo o Israel” terá sido salvo. Isso constituirá a totalidade do
povo de Deus. Aqueles expositores alegam que, nesta expressão, o apóstolo está
olhando para o futuro, para aquele dia, e está orando no sentido de que estes

efésios, e todos nós, como cristãos, possamos vir a conhecer a sobreexcelente


grandeza da herança de Deus nos santos, em Seu povo. Noutras palavras, a
petição é que tenhamos uma pálida concepção da magnitude desta gloriosa
companhia dos remidos aos quais pertencemos e entre os quais vamos passar a
eternidade. Essa é certamente uma explicação possível.

A outra idéia é de que o apóstolo está orando para que os olhos do nosso
entendimento sejam iluminados a fim de que venhamos a conhecer o caráter da
herança para a qual vamos indo, a herança que Deus está preparando para nós.
Esta é a mesma idéia expressa por Paulo na Primeira Epístola aos Coríntios: “As
coisas que o olho não viu, e o ouvido não ouviu, e não subiram ao coração
do homem, são as que Deus preparou para os que o amam” (2:9). O apóstolo
está orando no sentido de que venhamos a ver mais e mais daquilo que nos
aguarda, e que tenhamos mais freqüentes vislumbres disso. Ele não quer que
estas coisas sejam algo distante e estranho para nós. Seu desejo é que não nos
limitemos a olhar as Escrituras e às especificações do documento de posse, mas
que pela fé tenhamos vislumbres ocasionais da herança propriamente dita, e, por
assim dizer , estejamos com Moisés no alto do Monte Nebo contemplando a
terra prometida da nossa herança.
Ambas as explicações são possíveis, e não nos é possível dizer dogmática nem
categoricamente que uma está certa e a outra está errada. É questão de
preferência pessoal, e, quanto a mim, não hesito em adotar a segunda idéia,
como fizemos quando expusemos os versículos 11 e 13. Isso porque não me
agrada a idéia de que Deus tenha uma herança. Tudo pertence a Deus; o universo
inteiro é de Deus. Por isso me parece impróprio empregar a expressão
“herança de Deus” neste sentido. Por outro lado, nada pode ser mais apropriado
do que examinar isso do outro ponto de vista que também se ajusta ao argumento
deste capítulo primeiro. Paulo afirma que nós não somente cremos, mas também
fomos “selados com o Espírito Santo da promessa, o qual é o penhor da nossa
herança, até a redenção da possessão adquirida” (VA). A possessão foi adquirida
para nós pelo sangue de Cristo; já somos herdeiros, porém ainda estamos neste
mundo. Contudo Deus nos dá o penhor do Espírito, dá-nos uma prelibação, até
entrarmos nesta possessão adquirida, até a nossa redenção final. Assim o termo
“herança” neste versículo 18 aponta na mesma direção.

Do ponto de vista prático, faz pouca diferença qual das duas

explicações adotamos, pois em ambos os casos a oração é para que venhamos a


conhecer algo daquele glorioso estado para o qual estamos indo, e para o qual
Deus nos está preparando, quando, com todos os remidos, estaremos reunidos
em segurança e gozaremos por toda a eternidade os benefícios desta grande
salvação.

Tendo assim definido o sentido exato da oração, permitam-me fazer outra


pergunta: por que devemos considerar isso? Na verdade, é certo fazê-lo? A
questão surge porque toda esta idéia e ênfase causa desagrado nos dias atuais. Há
muitos que dizem: “Isto é típico do seu cristianismo. Aqui estamos nós neste
conturbado mundo moderno, com tudo o que temos experimentado neste século
vinte, com suas duas guerras horríveis, com a discórdia, o tumulto e a incerteza,
e a terrível possibilidade doutra guerra mundial, e com todas as possibilidades do
uso da energia atômica e, todavia, você nos concita a tomar tempo tentando
vislumbrar a eternidade e a vida após a morte. Você deveria estar instando com
as pessoas a fazerem o máximo para tentar deter a fabricação de armamentos,
e protestar contra a fabricação de armas atômicas. Por que você não dirige apelos
aos governos do mundo, e não estimula toda a Igreja Cristã a pôr fim nessas
desgraças? O seu “castelo no ar” não é somente inútil; significa que você está
abandonando o seu dever. Você está muito longe da vida, está dando as costas às
dificuldades. Não seria hora de a Igreja entrar na vida política e tentar
construir um mundo melhor?

Esse é o argumento. O cristianismo, diz ele, é o ópio do povo, uma espécie de


“conto para dar ânimo” e fazer as pessoas se sentirem momentaneamente mais
felizes, para levá-las a sentir-se bem persuadindo-as a voltarem as costas para a
realidade e viverem da imaginação e da fantasia nalgum Elísio imaginário. O
homem moderno não gosta desta idéia de contemplar o mundo invisível e eterno,
desta ênfase ao outro mundo, justamente à realidade a respeito da qual o
apóstolo está orando aqui.

A oposição ao que estou pregando não se restringe ao mundo de fora, ou aos


comunistas. Há muitos na igreja que sustentam a mesma idéia. Há alguns hinos
que nos dizem que não devemos ser motivados pelo temor do inferno ou pelo
desejo de recompensa e de glória; devemos ser altruístas e crer no cristianismo
por amor dele próprio. Essa idéia começou a popularizar-se lá pelos fins
do século passado, e há muitas expressões dela no presente século.

Repete-se constantemente a história de uma anciã de um país do Oriente Médio,


que um dia foi vista caminhando e levando dois baldes. Um deles tinha fogo,
outro água. Um homem a deteve e lhe perguntou o que fazia com aqueles dois
baldes. Ela respondeu que estava levando o fogo para queimar o céu, e a água
para inundar o inferno. Isso é considerado excelente. Ainda existem muitos que
se opõe à proeminência que damos à pregação da salvação pessoal. Dizem eles
que não devemos pensar em nós mesmos e em nossos problemas; devemos estar
interessados no estado da sociedade e nas condições sociais. A maldição da
posição evangélica, dizem eles, sempre foi que é demasiado pessoal,
egocêntrica, estreita e egoísta.

Para responder não precisamos de nada mais que o nosso texto. O apóstolo Paulo
ora de um modo que refuta diretamente toda essa prosa. Ele ora no sentida de
que saibamos “qual seja a esperança da sua vocação, e quais as riquezas da
glória da sua herança nos santos”. Mas, fora as palavras do apóstolo, não há nada
mais fátuo como crítica desta visão do mundo além recomendada nas Escrituras,
do que o argumento particular que acabei de esboçar. Só a história já por si o
prova, sem nenhuma dúvida. Os maiores benfeitores que este mundo já
conheceu, os homens que fizeram o maior bem a este mundo, foram os que mais
ênfase deram à importância de se “ver o invisível”. Basta ler o capítulo 11 da
Epístola aos Hebreus para achar prova disso. Temos ali uma lista, ou digamos
uma galeria, dos maiores benfeitores que este mundo já conheceu; é por isso que
eles sobressaem na história. E todos eles eram pessoas que, como nos é dito,
tinham os seus olhos fixos não tanto neste mundo como no vindouro. Não
significa que eles ignoravam este mundo. Não eram monges ou anacoretas
vivendo em mosteiros ou no deserto; não subscreviam o falso ensino católico-
romano sobre o ascetismo que tanto diaboliza essa questão toda. A alternativa
para o conceito popular que esta sendo advogado hoje não é o monasticismo. Os
“heróis da fé” que constam no capítulo 11 de Hebreus tinham seu ponto de
partida no mundo invisível, e depois, à luz desse, eles se aplicam ao mundo
presente.

Mas essa verdade não se aplica somente aos grandes personagens das Escrituras,
e sim também a todo o curso da história. Os hospitais, por exemplo, foram
iniciados pelos santos. Sempre houve homens que, tendo uma idéia verdadeira
do homem e da vida à luz da eternidade, sempre se preocuparam com o
sofrimento

humano. O homem que forma os seus conceitos com base numa visão deste
mundo, geralmente vive para si e pouco se interessa pelo seu próximo. Foram
homens espirituais que geralmente introduziram as maiores reformas. Hospitais,
educação e cultura, leis trabalhistas e coisas semelhantes surgiram graças aos
esforços de santos, geralmente pessoas evangélicas que se interessavam
em saber quais “as riquezas da glória da herança de Deus nos santos”. Isso é
verdade a respeito dos santos católico-romanos mais evangélicos, bem como dos
santos protestantes, mas particularmente destes últimos. Ninguém foi mais
preocupado com um viver próprio e decente neste mundo do que João Calvino.
A história desse homem e de como ele reformou a vida em Genebra
inspirou muitos outros que copiaram as suas idéias, e isso tem constituído
a grande força motriz da história da democracia.

Vê-se isso na Inglaterra, na história dos puritanos, que lançaram os alicerces da


grandeza deste país. Os puritanos, liderados politicamente pelo grande Oliver
Cromwell, eram todos homens que viviam à luz do invisível. Ninguém tinha
mais consciência do invisível do que Oliver Cromwell, ou ninguém desejava
mais que ele ter os olhos do seu entendimento iluminados para poder conhecer
a esperança da vocação de Deus e as riquezas desta glória. Ele era um homem
que tinha marcante perspectiva do mundo além, mas isso não significa que ele
negligenciava este mundo; ele foi um grande reformador, um grande benfeitor da
gente comum, e assim foram todos os seus coadjutores.
Se vocês lerem a história dos séculos dezoito e dezenove, encontrarão um
modelo semelhante. Mesmo historiadores seculares admitem que o
Despertamento Evangélico do século dezoito sem dúvida salvou a Inglaterra de
uma revolução parecida com a Revolução Francesa; e isso porque os líderes
daquele avivamento, tendo visto o verdadeiro sentido da vida à luz da
eternidade, procuraram melhorar a vida neste mundo. Noutras palavras, sempre
foi dos avivamentos espirituais que os maiores melhoramentos seculares vieram.

Vindo para mais perto do nosso tempo, é um simples fato da história que os
sindicatos vieram a existir em grande parte como resultado das atividades de
homens que tinham sido salvos por este evangelho, e que começaram a ver que
os trabalhadores não deviam viver como animais na embriaguez, no vício e na
ignorância. Muitas vezes se diz popularmente que o sindicalismo deve mais ao

metodismo do que a Marx . As coisas das quais os homens se gabam e falam


muito hoje em dia vieram das mentes e das vidas de homens que
compreenderam a importância do mundo vindouro e da vida na eternidade. De
fato, não hesito em asseverar que é quando os homens se esquecem do mundo
por vir que as coisas vão mal neste mundo. Soa bastante prático dizer que
devemos concentrarmos na política e nas questões sociais; entretanto, se o
fizermos sem tomar conhecimento do mundo futuro, se não pusermos as
nossas atividades no contexto da eternidade, sempre veremos degenerar-se este
mundo.

Durante os recém passados trinta ou quarenta anos, a ênfase tem recaído neste
mundo, e a pregação sobre o céu e a glória tem sido impopular. Mas, vejam
como este mundo está hoje; veja o que está acontecendo nele e com ele. Quando
os homens se esquecem do mundo por vir e se concentram unicamente na
presente vida, este mundo se torna uma espécie de inferno em vida, com a
confusão, a ilegalidade, a imoralidade e o vício desenvolvendo-se a pleno vapor.
Somente os homens que têm uma visão completa da vida é que realmente sabem
viver neste mundo. O único homem que realmente respeita a vida neste mundo é
o que sabe que este mundo é apenas a antecâmara do mundo vindouro. É
somente o homem que sabe que é filho de Deus, e que sabe que este mundo
pertence a Deus, que realmente se preocupa com a decência neste
mundo. Assim, se vocês quiserem ter uma vida plena e gratificante neste mundo,
terão que começar compreendendo que a estrada real rumo a tal vida é levar em
consideração o mundo para o qual vamos indo, é meditar “nas riquezas da glória
da sua herança nos santos”.
Foi necessário tomar tempo respondendo aquele argumento fátuo e tolo. Mas,
positivamente, por que devemos examinar estas coisas? Por que devo preocupar-
me em saber algo sobre “as riquezas da glória da sua herança nos santos”? Uma
resposta suficiente é o conforto que nos traz. É à luz disso que o apóstolo pode
desenvolver o seu grande argumento na Epístola aos Romanos, capítulo 8. Diz
ele: “Para mim tenho por certo que as aflições deste tempo presente não são para
comparar com a glória que em vós há de ser revelada” (versículo 18). Essa é a
conclusão do argumento. Os cristãos de Roma estavam passando por um período
duro e difícil, e o apóstolo não tem consolo para oferecer-lhes, senão essas
palavras. Ele admite que as coisas eram más e penosas. O cristianismo

sempre é realista; nunca pretende que não há nada errado, nem defende a idéia
de que se deve sorrir e dizer que está tudo bem. Antes, ele diz com o apóstolo,
nos versículos 19-23 desse mesmo capítulo 8: “Nós mesmos, que temos as
primícias do Espírito, também gememos em nós mesmos”. O cristão não é um
simplório que dá um sorriso fátuo e finge que não há nada errado; ele nunca
tem problema e vive cantando “e agora sou sempre feliz”. Essa é a posição, não
do cristianismo, e sim de uma falsa psicologia. Acima de todos os demais
homens, o cristão sabe que mundo terrível é este; mas também sabe que está
apenas “esperando a adoção, a saber, a redenção do nosso corpo” (Romanos
8:23). E isso que o capacita a proferir a asseveração do versículo 18. O apóstolo
diz a mesma coisa aos coríntios, na Segundo Epístola: “A nossa leve e
momentânea tribulação produz para nós um peso eterno de glória mui excelente”
(4:17). É o “peso eterno da glória mui excelente” que nos dá o conforto e,
portanto, o encorajamento e o estímulo para a luta neste mundo. Haveria algo
mais encorajador, mais estimulante?

Observem o apóstolo enquanto ele desenvolve o seu argumento no capítulo 15


da Primeira Epístola aos Coríntios. Ele argumenta que, se não há ressurreição
dentre os mortos, e se esta vida é a única, e a morte é o fim da história, então a
única conclusão que se pode tirar é: “Comamos e bebamos, que amanhã
morreremos” (versículo 32). Se não há outra vida, porque me empenhei em
lutar contra “as bestas” de Éfeso? (versículo 32), etc. Não há nada que tanto nos
anime para a vida cristã, não há maior estímulo para prosseguirmos nela, do que
saber algo das “riquezas da sua herança nos santos”. Quanto mais eu as
conhecer, mais encorajado serei a abandonar o pecado, a mortificar ay carne e a
preparar-me para aquilo que Deus tem à minha espera. E o maior incentivo à
santidade e ao viver santo; não há nada que se lhe compare. “E qualquer que
nele tem essa esperança purifica-se a si mesmo, como também ele é puro”, como
diz o apóstolo João (1 João 3:3). A falta da verdadeira santidade escriturística
hoje certamente se deve ao fato de que não passamos tempo suficiente
meditando na glória que nos espera. Esta contemplação da glória é a estrada real
para a santidade.

No entanto há um argumento que define a questão uma vez por todas. É o que
nos é dito acerca do nosso bendito Senhor. O autor da Epístola aos Hebreus o
expõe assim, no capítulo 12: “Olhando para Jesus, autor e consumador da fé”
(versículo 2). É o que deve-

mos fazer. Temos que fazer uma corrida. Ela exige que “deixemos todo o
embaraço e o pecado que tão de perto nos rodeia, olhando para Jesus, autor e
consumador da fé”. Mas o autor tem o cuidado de acrescentar: “O qual pelo
gozo que lhe estava proposto” - à luz do gozo que Lhe estava proposto, por
causa do gozo que Lhe estava proposto - “suportou a cruz, desprezando a
afronta”. Essa era a verdade concernente ao nosso bendito Senhor e Salvador
Jesus Cristo quando estava neste mundo. Não desprezou fixar os olhos
na “recompensa”. Desde que Ele estava com os olhos postos no gozo da glória
que O aguardava, passou por tudo, até a cruel morte na cruz; isso O ajudou a
prosseguir. E no capítulo 17 do Evangelho Segundo João, como já vimos, Ele
ora no sentido de que tenha de novo aquela glória que Ele compartia com o Pai
antes da fundação do mundo.

Opor-se à petição do apóstolo que deseja que conheçamos estas coisas, não
somente é anti-espiritual, mas também é inteiramente antibíblico. O apóstolo de
fato declara isso na forma de mandamento na Epístola aos Colossenses : “Pensai
nas coisas que são de cima, e não nas que são da terra”. (3:2). A comparação é
com a agulha da bússola. Devemos colocar os nosso afetos, mantê-los em ordem
e resolutamente fixos “nas coisas que são de cima, e não nas que são da terra”.

Livremo-nos, pois, da falsa espiritualidade que se orgulha de que é


extraordinariamente pura porque não está interessada nem no céu nem no
inferno. Não se interessar pelo céu é ser diferente do Senhor Jesus Cristo; é ser
diferente dos apóstolos; é ser diferente dos maiores santos, das melhores pessoas
que este mundo conheceu. Quanto tempo vocês passam pensando no céu?
Quantas vezes vocês o contemplam? Vocês têm os olhos do seu
entendimento iluminados para conhecer estas coisas? Não hesito em
asseverar que quanto mais espirituais formos, mais pensaremos no céu.
Quanto mais perto estivermos de Cristo, mais meditaremos na glória que Ele
preparou para nós. Esta é uma invariável e infalível prova da verdadeira
espiritualidade.

Isso me leva ao derradeiro ponto, e eu pergunto: que coisas são estas que
devemos conhecer? Somente o Espírito Santo pode torná-las claras para nós.
Muitos de nós temos que concordar com Richard Baxter quando ele diz: “o meu
conhecimento daquela vida é pequeno, os olhos da fé são obscuros”. Afinal de
contas, quão pouco

sabemos destas coisas! Muitos ficam em dificuldade nesta questão. Como pastor,
frequentemente me fazem esta pergunta: “Por que não sabemos mais acerca do
céu e da vida para onde vamos? Por que não nos é dito mais a respeito? Dou
uma resposta bem simples. É que a glória é tão maravilhosa, tão magnífica, tão
perfeita, que a nossa linguagem humana é incapaz de transmitir uma idéia fiel
dela. A glória é tal que, se se fizesse uma tentativa para descrevê-la, visto que o
pecado rebaixou tanto a cunhagem do nosso linguajar, teríamos concepções
indignas dela. Tentar descrevê-la seria diminuí-la. Por isso, em Sua misericórdia,
Deus não nos disse muita coisa a respeito. Concentremo-nos, porém, no que nos
foi dito.

O apóstolo fala das “riquezas da glória” - ele amontoa superlativo sobre


superlativo. Não existe coisa alguma superior à glória, e, todavia, ele fala das
riquezas da glória. Isso nos dá uma concepção desta glória transcendental que
ultrapassa até o alcance da nossa imaginação. Tudo o que nos pode ser dito é: “as
riquezas da sua glória”. Por isso, não se preocupem! O céu é infinitamente
mais maravilhoso do que eu e vocês podemos imaginar. Está inteiramente fora
do alcance de todas as nossas categorias; mas algumas coisas nos são ditas. A
parte central da glória é que estaremos com Ele. “Não se turbe o vosso coração;
credes em Deus, credes também em mim.”... “Vou preparar-vos lugar. E, se eu
for, e vos preparar lugar, virei outra vez e vos levarei para mim mesmo, para que
onde eu estiver estejais vós também” (João 14:1-3). Isso é suficiente - estar com
Ele! Também é como Paulo vê a morte. Ele já não se preocupava com a morte,
porque para ele a morte era “estar com Cristo, e isto é ainda muito melhor” (cf.
Filipenses 1:23).

Depois, também, o nosso Senhor, em Sua oração sacerdotal, ora fazendo uma
petição muito especial a Seu Pai: “Pai, aqueles que me deste quero que, onde eu
estiver, também eles estejam comigo, para que vejam a minha glória que me
deste: porque tu me hás amado antes da criação do mundo” (João 17:24). Sua
maior oração por nós é que O vejamos como Ele é, e em Sua glória. Não há
nada superior a isso! Assim João também escreve em sua Primeira Epístola:
“Ainda não é manifestado o que havemos de ser. Mas sabemos que, quando ele
se manifestar, seremos semelhantes a ele; porque assim como é o veremos” (1
João 3:2). Quando chegarmos a esta glória, os nosso próprios corpos serão
transformados. “(Cristo) transformará o nosso corpo abatido, para ser conforme
o seu corpo glorioso”, o corpo da Sua glorificação (Filipenses 3:21). Seremos

perfeitos e estaremos completos, “sem mácula, nem ruga, nem coisa


semelhante”. Nós sabemos disso!

Ao apóstolo Paulo, no caminho de Damasco, foi dado um vislumbre desta glória.


Não admira, pois, que ele escrevera aos efésios falando das “riquezas da glória”,
porque ali no caminho de Damasco, ele viu o rosto do Senhor ressurreto; e foi
tão resplandente e glorioso que ele ficou cego. A luz era mais brilhante que o sol
ao meio-dia, e foi uma manifestação da glória do Senhor. Paulo nunca se
esqueceu disso. Como poderia? Mas ele também nos fala de uma ocasião em sua
vida, uns catorze anos antes de ele escrever a respeito, em que ele foi elevado ao
terceiro céu, “arrebatado ao paraíso”. Enquanto esteve lá, “ouviu palavras
inefáveis, de que ao homem não é lícito falar” (2 Coríntios 12:3-4). Foi uma
prelibação desta glória, e do céu. Ele nunca esqueceu isso também. Não
é surpresa, pois, que ele fale de “um peso eterno de glória mui excelente”.

Depois, no capítulo 21 do livro de Apocalipse, a glória é toda descrita em


linguagem simbólica. A cidade celestial era “ouro puro, semelhante a vidro
puro” (versículo 18). Não havia templo ali, porque o próprio Deus lá está. Não
havia nem sol, nem lua; não havia estrelas, porque no meio dela o Cordeiro era a
luz da cidade. A “face de Jesus Cristo” irradia-se e ilumina tudo. Nós
habitaremos lá, em Sua gloriosa presença.

Isso é algo do que Paulo quer dizer quando fala em “tendo iluminados os olhos
do vosso entendimento, para que saibais quais as riquezas da glória da sua
herança nos santos”. É para a cidade celestial que eu e vocês vamos indo. O
apóstolo Pedro a seu modo o expressa com as palavras: “Bendito o Deus e Pai de
nosso Senhor Jesus Cristo, que, segundo a sua grande misericórdia, nos gerou
de novo para uma viva esperança, pela ressurreição de Jesus Cristo, dentre os
mortos, para uma herança incorruptível, incontaminável, e que se não pode
murchar, guardada nos céus para vós” (1 Pedro 1:3-4). Notem o que ele diz: é
“incorruptível”. Não há nada pecaminoso ali, nada que seja indigno.
“Incorruptível, incontaminável, e que se não pode murchar.” Não podemos
imaginar isso; estamos acostumados com um mundo de pecado, e com a morte e
a decadência. Que belas flores! Mas, olhem para elas amanhã ou depois. Vocês
as lançam ao monturo. Há decadência e corrupção em tudo quanto é deste
mundo. Aplica-se o mesmo às nossas estruturas físicas. Estamos sujeitos à
doença, ao envelhecimento, e assim por

diante. Todavia não lá - “incorruptível, incontaminável, e que se não pode


murchar”! Não haverá tristeza ali, nem lágrimas, nem pecado, nem separação,
nem coisa alguma que nos faça infelizes e nos deprima. “As riquezas da glória
da sua herança”!

Mas isso é só para “os santos”. “Nada que contamine” entra na cidade santa; fora
ficam os cães, os adúlteros, os idólatras, os mentirosos, e tudo o que é
abominável. O que venho tentando descrever é somente para os santos. O Senhor
Jesus Cristo fala similarmente em Mateus 25: “Vinde, benditos de meu Pai,
possuí por herança o reino que vos está preparado desde a fundação do mundo”
(versículo 34). Foi preparado somente para “os santos”; para os que amam
os Seus pequeninos, e os visitam na prisão e os alimentam e os vestem, etc. O
Reino foi preparado para eles, e para eles somente, antes da fundação do mundo.
Paulo declara que lhe fora ordenado chamar pessoas “das trevas para a luz, e do
poder de satanás para Deus, para que recebessem o perdão dos pecados e
herança entre os que são santificados pela fé em mim (Cristo)” (Atos 26:18, cf.
VA).

Daí se chega a isto: enquanto estamos nesta vida e neste mundo, um grande
processo de separação e de joeiramento está ocorrendo. Deus lança Sua mão e
apreende os que deverão ir para esta glória, para esta herança; eles são
“chamados santos”. Os santos são aqueles que foram separados e postos à parte
para Deus pelo Espírito Santo. O resultado é que eles creram no evangelho
da salvação em Jesus Cristo, e Este crucificado. Confiam nEle e em Sua obra
perfeita, e somente nisso. Todos nós neste momento, ou somos santos, ou somos
ímpios.^ Esta glória da qual estivemos falando é somente para os santos. É para
eles; e ninguém nem coisa alguma podem tirá-la deles. “Nem a morte, nem a
vida, nem os anjos, nem os principados, nem as potestades, nem o presente,
nem o porvir, nem a altura, nem a profundidade, nem alguma outra criatura nos
poderá separar do amor de Deus, que está em Cristo Jesus nosso Senhor”
(Romanos 8:38-39).
Se você é santo, se você faz parte do povo de Deus, você está indo para esta
glória da qual estive falando, e nada pode impedir que isso aconteça. Você sabe
se você é santo? Tem certeza de que faz parte do povo de Deus? Certifique-se
disso. Depois, tendo-se certificado, demore-se sobre isto, aplique a isto a sua
mente, leia as Escrituras, sonde-as, confie-as à memória, repita-as para si
próprio diariamente. Diga a si próprio: “É para isso que eu fui destinado, essa é a
herança que foi preparada para mim, é assim que eu vou

passar a minha eternidade”. Quanto tempo você passa fazendo isso? Oremos
rogando para nós o que o apóstolo rogou para os efésios . Oremos a Deus por
Seu Espírito para que “ilumine os olhos do nosso entendimento”, para que estas
coisas se tornem reais para nós, e assim não passaremos o nosso tempo pensando
neste mundo e nesta vida passageira, mas, antes, naquilo que certamente virá
e que é tão glorioso! “As riquezas da glória da sua herança nos santos.”

“Pensai”, ponde o vosso afeto, o desejo do vosso coração, no Senhor e nas coisas
que Ele preparou para aqueles que O amam. “O dia final de glória vem
chegando.” Há a nossa espera uma glória que “o olho não viu nem o ouvido
ouviu”, que nunca penetrou o coração do homem nem na imaginação.
Procuremos conhecer estas coisas; contemplemo-las; vivamos à luz delas. E
então, como homens que as viram, tenhamos a nossa vida neste mundo vivendo-
a em seu nível máximo, falando aos outros deste Deus glorioso e do que Ele faz
por todos os que nEle confiam, e ajudando da melhor maneira que pudermos,
andemos “fazendo o bem” neste mundo fugaz e limitado pelo tempo, como o
nosso bendito Senhor fez quando estava aqui.

1
Testemunho externo do Espírito. Nota do tradutor.

2
’’ Testemunho interno do Espírito. Idem.
“A SOBREEXCELENTE GRANDEZA DO SEU PODER”

“E qual a sobreexcelente grandeza do seu poder sobre nós, os que cremos,


segundo a operação da força do seu poder, que manifestou em Cristo,
ressuscitando-o dos mortos, e pondo-o à sua direita nos céus. Acima de todo o
principado, e poder, e potestade, e domínio, e de todo o nome que se nomeia,
não só neste século, mas também no vindouro; e sujeitou todas as coisas a seus
pés, e sobre todas as coisas o constituiu como cabeça da igreja, que é o seu
corpo, a plenitude daquele que cumpre tudo em todos.”

- Efésios 1:19-23

Chegamos à terceira petição particular do apóstolo em favor dos cristãos efésios,


e vemos que, como se deu com as outras duas, é introduzida pela palavra qual
(“quais”). Mais uma vez devemos ser cuidadosos na interpretação. A Bíblia de
Scofield, assim chamada, introduz estas três petições com o seguinte título geral:
“Oração por conhecimento e poder”. Sugere com isso que o apóstolo
está pedindo duas coisas para estes efésios: primeiro, que tenham
certo conhecimento, e depois, que tenham poder. Minha opinião é que essa
interpretação é errônea e grave. O apóstolo, aqui, não está orando tanto para que
seja dado poder aos efésios, como que conheçam o poder de Deus que já está
operando neles. É evidente que as duas coisas são inteiramente diversas, como é
demonstrado por todo o contexto. O objetivo desta seção da Epístola, como já
vimos repetidamente, é dar segurança e certeza a fim de que os cristãos
verdadeiros tenham confiança; assim, parece claro que o apóstolo está dando
ênfase ao poder de Deus nos santos, e não ao poder que Deus dá aos santos.

Isso imediatamente levanta um problema fundamental de teologia e doutrina; na


verdade levanta dois possíveis conceitos sobre a salvação cristã. É interessante
observar que conceitos diferentes sobre a salvação geralmente são determinados
por esta questão de poder. Um conceito é que a salvação é resultado de algo que
eu

faço, e mais o poder que nos é dado por Deus. Eu, mais o poder de Deus! É
concedido que eu não posso realizar a salvação sem o poder ou a ajuda que Deus
me dá, mas esta concepção da salvação é que Deus me ajuda e me habilita a
chegar a ela. O outro conceito é que a salvação é resultado do poder de Deus em
ação - em mim e por meu intermédio, e é este conceito que devemos tomar
desta passagem particular.

Neste ponto aVersão Padrão Revista inglesa (“RSV”) é útil. Em vez de dizer:
“qual a extraordinária grandeza do seu poder para conosco que cremos” (VA),
diz “Qual a imensurável grandeza do seu poder em nós, que cremos”. O apóstolo
está dando ênfase ao poder de Deus em nós. Naturalmente é certo dizer que
Deus nos dá força e poder; e necessitamos desse poder constantemente; e em seu
lugar e contexto isso deve ser ensinado. Mas aqui o grande objetivo que o
apóstolo tem em mente é fazer com que os efésios vejam e compreendam, e nós
com eles, a grandeza do poder de Deus em nós, o que Ele está realizando em
nós. O resultado seria que os nossos temores se desvaneceriam, e teríamos nova
confiança e segurança com respeito a nossa salvação. Na verdade, esta é, em
última instância, a base final da segurança, tanto objetiva como subjetiva -
aquela levando a esta.

É fascinante observar a maneira pela qual o apóstolo maneja o seu material e


elabora o seu argumento. Ele nos deixou clara a natureza do chamado e como
este se funde no caráter de Deus. Depois ele nos deu um vislumbre da glória
transcendental para a qual fomos destinados. E agora ele acentua o poder de
Deus agindo em nós. Parece-me que a lógica na seqüência destas três petições é
como segue: com o seu grande coração pastoral, o apóstolo está preocupado com
estes efésios. Ele sabe que eles tinham crido, que eles confiavam no Senhor
Jesus, e que tinham sido selados com o Espírito Santo; não obstante, ele ora sem
cessar por eles, e ora no sentido de que eles penetrem as profundezas do
entendimento, do conhecimento e da compreensão da vida cristã e suas
possibilidades. Por isso fez as duas primeiras petições, e esta terceira é
inevitável.

É inevitável porque ninguém pode ter qualquer concepção dessa herança, dessa
glória, para a qual vamos indo, sem imediatamente tomar consciência de certas
coisas. A própria grandeza da glória por um lado, e o nosso estado e condição
em pecado por outro, tendem a criar dúvidas dentro de nós. Ouvimos ou lemos
as

descrições das realidades invisíveis e eternas - o “peso eterno de glória mui


excelente” para o qual estamos indo - e, tendo-as completado, inclinamo-nos a
voltar-nos e a dizer a nós mesmos: mas, certamente isso tudo não é possível para
mim! Certamente não estou apto para tal glória, e nunca estarei! Contrastamo-
nos a nós mesmos, e o que sabemos que somos, com o brilho da glória de Deus.
Vamos ao capítulo 21 do livro de Apocalipse e lemos sobre o Cordeio no meio, e
sobre toda a glória, e sobre o fato de que fora ficam os cães (22:15) e tudo o que
é mau, e dizemos: certamente isso tudo é impossível para nós, é demasiado
maravilhoso, é demasiado glorioso! Com toda a probabilidade essa é a nossa
reação imediata. Ou podemos dizer a nós mesmos: como poderei tornar-me apto
para tal glória? Se eu passar o resto da minha vida não fazendo outra coisa senão
cultivando e nutrindo o meu ser espiritual, alguma vez chegaria a ser apto?

São tais sentimentos que têm levado muitos a se fazerem monges, a segregar-se
do mundo e a entregar-se a santa meditação, à oração e ao jejum. Esses
pensamentos são quase inevitáveis para quem quer que leve a sério estas coisas.
E então eu começo a pensar em minha desobediência, em minha fraqueza, em
meu egoísmo e em minha propensão para pecar. Digo a mim mesmo: “Uma
coisa é quando estou na casa de Deus e ouço estas coisas, ver como
são maravilhosas, e divisá-las e determinar-me a fazer algo sobre elas; porém
depois eu sei que muitas vezes tive tais pensamentos e sentimentos, mas falhei
em pô-los em prática. Deliberadamente me determinei e decidi buscar estas
coisas com todo o meu ser; todavia sou tão desobediente e indigno de confiança!
Não posso confiar em mim mesmo, em meus sentimentos, em meu
temperamento, em minha disposição, em minhas resoluções. Essa é a espécie de
criatura que eu sou; e você me confronta com essa glória, essa herança, essa
pureza, essa perfeição inefável! É impossível”.

Depois passo a considerar o meu frágil corpo, com as sementes da decadência


que nele estão; sei que ele está sujeito a enfermidades; e acho quase impossível
acreditar-me e imaginar-me gozando um estado de glória. E depois, em
acréscimo a tudo isso, há a vida como a conhecemos neste mundo, com suas
circunstâncias variáveis; aí está o mundo e sua influência sobre nós, os amigos e
outros instigando-nos e atraindo-nos para o pecado; aí está a nossa preocupação
com as coisas terrenas, negócios e atividades, e a necessidade de viver de molde
a podermos sustentar a nós mesmos e as

nossas famílias! Todas estas coisas, as pressões da vida e das circunstâncias,


conspiram para me tornar impossível achar tempo para preparar-me para essa
glória.

Finalmente, atrás disso tudo, sabemos que somos confrontados por um poderoso
adversário, um inimigo por demais astuto, o diabo, “bramando como leão,
buscando a quem possa tragar”, confrontando-nos em cada esquina, “o acusador
dos irmãos”, que conhece todas as nossas fraquezas e que, com a sua astúcia,
está sempre nos instigando, nos atraindo e nos induzindo ao pecado, ao fracasso
e à indolência. Além disso, vemos que entre nós e aquela glória está a realidade
da morte, o temível espectro, “o último inimigo”, e o poder da morte e do
sepulcro. Não poderemos entrar na glória prometida sem passar pela morte; e
sabemos que muitos santos tremiam quando pensavam na dissolução do corpo,
na passagem pelo “vale da sombra da morte”, e na travessia do último rio.

São esses os pensamentos que povoam nossas mentes, e eles vêm com
especialidade aos que vêem mais claramente “as riquezas da glória da sua
herança nos santos”. E por causa disso que pago meu modesto tributo à grandeza
do coração pastoral do apóstolo e ao trabalho da sua mente majestosa. Ele nos
leva adiante, passo a passo. Ele sabe que se captarmos o sentido das outras duas
coisas pelas quais ele tinha orado, teremos urgente necessidade de mais esta
petição. Ele trata de todos os nossos problemas e dificuldades. Por isso ele ora
também para que saibamos “qual a sobreexcelente grandeza do seu poder sobre
nós, os que cremos, segundo a operação da força do seu poder, que manifestou
em Cristo, ressuscitando-o dos mortos, e pondo-o à sua direita nos céus”. Se
vocês acharam que me demorei demais no vestíbulo deste texto, por assim dizer,
minha resposta é que o simples vestíbulo é mais maravilhoso que os mais
grandiosos palácios do homem. Estamos prestes a entrar num dos aposentos
mais sublimes do palácio, onde “as abundantes riquezas” da graça de Deus estão
armazenadas. O apóstolo está pronto a falar-nos da extraordinária grandeza do
poder que Deus está exercendo nos crentes.

Digo que Paulo está pronto a tratar disso, mas então a glória transcendente dos
seus pensamentos parece levá-lo para longe do seu objetivo e propósito de
ajudar-nos, direto à glória eterna; contudo é só uma aparente digressão, pois ele
nos vem de volta no versículo primeiro do capítulo 2. Seu tema é a grandeza do
poder de

Deus para conosco, ou em nós, os que cremos. Ao descrever esse poder, ele
menciona a ressurreição do Senhor Jesus Cristo dentre os mortos, e a colocação
dEle na mais alta posição de poder. O apóstolo nos diz como Ele foi feito Cabeça
da Igreja. Dessa maneira nos é dada, por assim dizer, a doutrina completa da
Igreja num pequenino estojo. Mas, tendo feito isso, Paulo retorna ao seu tema
predominante no versículo primeiro do capítulo 2 da Epístola.

Seu tema pode ser dividido em duas partes principais: primeiro, a grandeza do
poder propriamente dito, segundo, como podemos estar certos e seguros de que
esse grande poder está operando em nós.

Podemos abordar a primeira parte de maneira muito conveniente, talvez, na


forma de algumas proposições. A primeira é que a salvação é uma demonstração
do poder de Deus em nós. Estou cada vez mais convencido de que o maior
problema com aqueles de nós que passam tanto da sua vida cristã nos “baixios e
nas misérias” da dúvida, da incerteza e da hesitação, é que eles realmente nunca
se firmaram neste grande princípio fundamental. Nosso ponto de partida sempre
deve ser: “Sou o que sou pela graça de Deus”, e pelo poder de Deus. O cristão é
fruto da operação de Deus, nada menos, nada mais. Ninguém pode fazer-se
cristão; só Deus faz cristãos. Esse é o real sentido desta terceira petição.

Consideremos, porém, várias declarações de apoio que se encontram noutras


partes das Escrituras. “Não me envergonho do evangelho de Cristo”, diz o
apóstolo na Epístola aos Romanos. Seu motivo para dizê-lo é: “pois é o poder de
Deus para salvação de todo aquele que crê” (Romanos 1:16). Diz ele também:
“Pregamos a Cristo crucificado”, porque está seguro de que Cristo é “poder
de Deus, e sabedoria de Deus” (1 Coríntios 1:23-24). Aos olhos de Paulo a
pregação não tem valor, a não ser que seja em “demonstração do Espírito e de
poder”! O nosso evangelho não foi a vós somente em palavras, mas também em
poder, e no Espírito Santo, e em muita certeza” (1 Tessalonicenses 1:5). Os
cristãos, ele nos diz, são feitura de Deus (Efésios 2:10). Esta verdade é
fundamental para um entendimento da posição cristã. De novo, ao escrever
aos filipenses, ele diz: “Aquele que em vós começou a boa obra a aperfeiçoará
até ao dia de Jesus Cristo” (Filipenses 1:6). Ainda na mesma Epístola vemos:
“Deus é o que opera em vós tanto o querer como o efetuar, segundo a sua boa
vontade” (2:13). Referindo-se à

sua própria pregação, diz o apóstolo: “Para isto também trabalho, combatendo
segundo a sua eficácia, que opera em mim poderosamente (Colossenses 1:29).

No entanto, talvez nenhuma expressão do que é que nos faz cristãos mostre esta
idéia com tanta clareza como a declaração de Paulo de que o cristão é “nova
criatura” (VA: “nova criação”) (2 Coríntios 5:17). Não é nada menos que isso.
Não é apenas membro de igreja, não é apenas um bom homem, não é apenas
alguém que tomou uma decisão. Uma pessoa pode fazer tudo isso, e ainda
não ser cristã. O cristão é alguém que foi criado de novo; e há somente Um que
pode criar, a saber, Deus. Requer-se o poder de Deus para se fazer um cristão.
Que idéias indignas muitas vezes temos do cristianismo e do que é ser cristão!
Pensamos muito em termos de nós mesmos, e do que fazemos, do que
decidimos, do que assumimos e do que nos propomos fazer. Certamente temos
muito a fazer, mas todo o ensino do Novo Testamento salienta acima de tudo
mais que não podemos fazer nada enquanto Deus não faz primeiro algo em nós.
“E vos vivificou, estando vós mortos em ofensas e pecados” (Efésios 2:1).
Estamos todos mortos por natureza, e ninguém poderá fazer coisa alguma
enquanto não for vivificado, ressuscitado, trazido à vida, criado de novo.
Segundo o Novo Testamento, nenhuma categoria é adequada para descrever o
que somos em Cristo, exceto este conceito do novo nascimento, da regeneração;
e nenhum homem pode dar nascimento a si próprio. O poder de Deus é o
princípio e o fim da salvação; é tudo dEle e do Seu poder.

O segundo princípio lembra-nos a grandeza do poder de Deus. Ao descrevê-lo, o


apóstolo empilha superlativo em cima de superlativo, pois a linguagem humana
é totalmente inadequada para a tarefa. Ele ora no sentido de que os efésios
conheçam “a sobreexcelente grandeza” (VA: “a excessiva grandeza”); não
a grandeza, mas a excessiva grandeza. A palavra empregada pelo apóstolo
poderia igualmente ser traduzida por “transcendente”. O poder de Deus não
somente transcende o nosso poder de expressão; transcende o nosso poder de
compreensão! Vejam todos os dicionários do mundo, esgotem todos os
vocabulários, e quando os juntar todos, ainda não terão começado a descrever a
grandeza do poder de Deus. O apóstolo emprega as melhores expressões
disponíveis, a “transcendente” grandeza, a “excessiva” grandeza,
a “sobreexcelente” grandeza, não são suficientemente específicas para ele. Ele
lhes acrescenta algo, dizendo: “segundo a operação da

força do seu poder”.

Devemos analisar esta nova frase, pois é uma das mais grandiosas que o próprio
Paulo utilizou. Devemos conhecer “a sobreexcelente grandeza do seu poder
sobre nós, os que cremos, segundo a operação da força do seu poder”. Uma
palavra melhor do que “operação” seria “energia”. Energia é uma palavra
muito mais forte porque dá a impressão de algo eficaz. Não se trata de um mero
poder estático ou potencial; energia é poder que foi liberado e está de fato em
ação. E poder cinético, poder manifesto, a energia agindo e permeando tudo.
Depois vejam esta segunda palavra, força, que significa força de maneira muito
especial. A palavra de Paulo sugere uma força que domina, que prevalece, que
vence, uma força que, levantando-se contra a resistência, a sobrepuja. É o tipo de
força que pode “arrasar” toda alta montanha e pode “exaltar” todo o vale; não há
nada que lhe possa resistir. O apóstolo está descrevendo este poder de Deus
como “a energia do poder” de Deus, para Quem nada é impossível.

A terceira expressão que aparece na Versão Autorizada como “força” realmente


eqüivale a “poder” (como diz Almeida); o poder essencial de Deus, Sua energia
inerente. Mais uma vez devemos assinalar que o apóstolo não está empregando
palavras ao acaso, mas há uma definida graduação do uso delas. Primeiro ele
fala de energia, de poder em ação; depois ele diz que essa energia vem de uma
força irresistível que, por sua vez, provém do oceano do poder de Deus, da
eternidade do ilimitado poder de Deus.

Uma similar descrição do poder de Deus é feita por Isaias, no capítulo 40 da sua
profecia. Ele o expressa fazendo uma série de perguntas: a quem podemos
assemelhar Deus? Com quem podemos compará-10? E, tendo dito que todas as
comparações são inúteis, prossegue e diz: “Ele é o que está assentado sobre o
globo da terra” (versículo 22). Ele contrasta Deus com os ídolos, contrasta-
0 com os poderes políticos e governamentais, com príncipes e governadores e
homens de sabedoria; mas isso tudo nada é, comparado com o poder de Deus.
Não há quem lhe possa dar conselho, nem coisa alguma; Ele é tudo em Si e por
Si; Ele é sempiterno de energia, força e poder.

O apóstolo Paulo está asseverando que esta energia e força do poder de Deus
atua em nós e sobrepuja todos os obstáculos de resistência. Para expô-lo com
diferente linguagem, podemos dizer que o apóstolo está dizendo a estes cristãos
efésios que ele está

orando no sentido de que eles conheçam “a eficácia da força do seu poder”; ou


de que conheçam “a energia da força do seu poder” para com eles.
Entretanto toda a linguagem é totalmente inadequada para comunicar tal
verdade. A criação de um cristão é resultado da manifestação do poder de Deus
em ação. Você já se deu conta de que isso é verdade a seu respeito? Você
compreende que é o que é porque este eterno e ilimitado poder de Deus agiu
energeticamente em você? E que continua agindo, e continuará a fazê-lo?
Quando falamos da “energia da força do poder” do poder de Deus, as nossas
mentes giram confusas face à estupenda magnificência e majestade disso tudo.
Por isso o apóstolo prossegue para ajudar-nos com uma ilustração. A energia da
força do poder de Deus já se havia manifestado de maneira objetiva na
ressurreição do Senhor Jesus Cristo dentre os mortos: “Que manifestou em
Cristo, ressuscitando-o dos mortos, e pondo-o à sua direita nos céus, acima de
todo o principado, e poder” etc. Bem que podemos perguntar a esta altura: por
que o apóstolo escolhe esta ilustração particular? Por que ele demonstra o poder
de Deus pela ressurreição de Cristo e não pela Criação? A Criação foi uma
notável manifestação do poder de Deus, pois Lhe bastou dizer, “Haja luz” e
“houve luz” (Gênesis 1:3). Seu simples “fiat”, Sua Palavra, foi suficiente; e Ele
fez tudo do nada. Ou, por que o apóstolo não usou a comparação do poder
e força que Deus exerceu na providência? Todos estes globos em suas órbitas
nos céus são mantidos e sustentados pelo poder de Deus; tudo é ordenado por
Ele. O mundo entraria em colapso se Deus deixasse de sustentá-lo e mantê-lo em
ação por Seu poder providencial. Todas as coisas funcionam, e funcionam juntas,
porque Deus as fez assim. Ele não as fez apenas, e as largou; Ele continua
a energizá-las. O poder de Deus se manifesta na providência e em toda a
ordenação da vida do mundo. Ou, por que Paulo não se referiu ao poder de Deus
manifesto nalguns dos grandes julgamentos da história? Haveria algo que mais
significativamente mostre o poder de Deus do que o dilúvio, quando as janelas
dos céus foram abertas e as montanhas foram cobertas pelas águas? Ou, por que
o apóstolo não usou a destruição de Sodoma e Gomorra, ou os extraordinários
milagres relacionados com o êxodo de Israel do Egito para Canaã - a divisão das
águas do Mar Vermelho, a divisão das águas do Jordão? Por que é que ele não
escolhe algum desses eventos, ou de outros similares, mas, em vez disso, a
ressurreição do Senhor Jesus Cristo dentre os mortos?

O apóstolo escolhe a ressurreição de Cristo, creio eu, porque é uma


demonstração objetiva do poder de Deus. Ele a escolhe também porque é uma
perfeita analogia do que nos aconteceu espiritualmente. Também ajuda a
apresentar a doutrina da nossa união mística com Cristo, e a mostrar que quando
Cristo foi ressuscitado, nós fomos ressuscitados com Ele, e estamos assentados
com Ele, precisamente agora, nos lugares celestiais (2:6). Mas, além disso tudo,
creio que ele faz essa escolha porque é a prova, acima de todas as outras provas,
do fato de que todos os obstáculos e empecilhos e inimigos postos em nosso
caminho serão sobrepujados. A ressurreição do Senhor Jesus Cristo dentre os
mortos é prova positiva e absoluta de que até o “último inimigo” foi vencido e
derrotado.

O apóstolo Pedro, no primeiro sermão pregado sob os auspícios da Igreja Cristã,


no dia de Pentecoste, em Jerusalém, diz: “Ao qual Deus ressuscitou, soltas as
ânsias da morte, pois não era possível que fosse retido por ela” (Atos 2:24).
Temos que compreender que, em acréscimo a toda a nossa fraqueza,
pecaminosidade e desobediência, o nosso último inimigo é a morte. Não
conseguimos compreender a grandeza do poder de Deus em nós porque nunca
compreendemos bem o poder da morte. A Bíblia dá constante testemunho do
poder da morte. A morte domina todos os homens; homem nenhum pode escapar
dela, por mais poderoso que seja. Como o apóstolo diz na Epístola aos Romanos:
“A morte passou a todos os homens” (5:12). Não admira que os escritores do
Velho Testamento se refiram tão frequentemente a ela e ao seu terrível poder.
Eles temiam e tremiam quando pensavam neste poder que estava à espera deles.
A morte e o túmulo são para todos.

Ademais, o poder da morte e do Hades é o poder exercido pelo próprio satanás.


E por isso que o autor da Epístola aos Hebreus se gloria no fato de que nosso
Senhor Jesus Cristo veio, viveu e morreu “para que pela morte aniquilasse o que
tinha o império da morte, isto é, o diabo; e livrasse todos os que, com medo
da morte, estavam por toda a vida sujeitos à servidão” (Hebreus 2:1415).

Assim o apóstolo nos faz lembrar que, ressuscitando ao Senhor Jesus Cristo da
morte e do túmulo, Deus nos fez esta demonstração e manifestação de que o
último inimigo foi vencido. “O último inimigo que há de ser aniquilado é a
morte”; mas Cristo já venceu a morte. “O aguilhão da morte é o pecado, e a
força do pecado é a lei. Todavia, graças a Deus que nos dá a vitória por nosso
Senhor Jesus

Cristo” (1 Coríntios 15:26, 56-57). A morte, o inferno e satanás foram vencidos,


e podemos dizer triunfantemente: “Onde está, ó morte, o teu aguilhão? Onde
está, ó inferno, a tua vitória?” (1 Coríntios 15:55).

Só se pode tirar uma conclusão disso: seja o que for que se possa dizer com
verdade da nossa experiência, seja qual for a verdade sobre o mundo e suas
trevas, seja qual for a verdade a respeito das sementes da decadência, da
enfermidade e da morte em nossos corpos, e por maior que seja o poder do
ultimo inimigo, podemos estar certos e confiantes nisto, que nada pode impedir o
cumprimento do propósito de Deus com relação a nós. Não há força que possa
frustrá-10; não há poder ou influência que possa competir com Ele; não
possibilidade de que haja um antagonista que O iguale. Os inimigos mais
poderosos, o diabo, a morte e o inferno, já foram subjugados, e a ressurreição de
Cristo é a prova disso.

Temos assim uma prova positiva de que não há nada que seja “difícil demais
para o Senhor”, e de que “Para Deus nada é impossível”. Portanto, se pensamos
na glória, na perfeição, na maravilha e no encanto do que nos espera, e depois
nos sentimos tão indignos e tão fracos que ficamos sem esperança de usufruí-lo,
aqui está a resposta. O Deus que está agindo em nós nos manterá
enquantç estivermos aqui, e nos fará aptos para a indescritível glória futura.
É Ele que está fazendo isso, não nós. “Para ele nada é impossível”, nada pode
resistir-Lhe de maneira final. Assim, podemos dizer com Paulo: “Estou certo de
que, nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as
potestades, nem o presente, nem o porvir, nem a altura, nem a profundidade, nem
alguma outra criatura nos poderá separar do amor de Deus, que está em Cristo
Jesus nosso Senhor!” (Romanos 8:38-39), e então cantar com Augustus Toplady:

A obra que Sua graça começou,

Seu forte braço, eu sei, completará;

Sua promessa é Sim e Amém,

E Ele jamais voltou atrás.

' Coisas futuras e coisas de agora,

Nada que há embaixo, nada que há em cima, Podem levá-10 a evadir Seu
propósito Ou minha alma cortar do Seu amor.

Você se dá conta da extraordinária grandeza do Seu poder em você? Você se dá


conta da energia da força do Seu poder que já está agindo em você? E você
compreende que, uma vez que começou, continuará, e continuará até você se
achar “santo e irrepreensível, sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante”
na presença de Deus na glória?

“SOBRE NÓS OS QUE CREMOS”

“E qual a sobreexcelente grandeza do seu poder sobre nós, os que cremos,


segundo a operação da força do seu poder, que manifestou em Cristo,
ressuscitando-o dos mortos, e pondo-o à sua direita nos céus.” - Efésios 1:19-20

Ao continuarmos o nosso estudo desta terceira petição, eu gostaria de lembrar-


lhes de novo que é sumamente importante que compreendamos que o apóstolo
está orando aqui, não para que os efésios tenham mais poder, e sim para que
venham a conhecer a grandeza do poder que já está atuando neles.

Primeiramente, tenhamos claro em nossas mentes o que exatamente ele quer que
compreendamos e experimentemos deste poder de Deus extraordinariamente
grande em nós. Há os que dizem que o que o apóstolo tinha em mente era
simplesmente a nossa ressurreição futura, e que ele não estava interessado em
nada mais. Eles sustentam que Paulo estava dizendo mais ou menos o seguinte
aos efésios: muito bem, eu estabeleci o fato de que vocês são herdeiros de Deus,
e lhes propiciei um vislumbre da herança para a qual vocês estão indo, e agora
quero que vocês saibam que nem mesmo a morte pode tirar-lhes isso, porque o
poder de Deus O habilitará a ressuscitá-los dentre os mortos, assim como Ele
ressuscitou Seu Filho dentre os mortos. Eles afirmam que isso é tudo, e que se
trata exclusivamente de uma referência à nossa ressurreição no último dia e à
nossa entrada na glória eterna. Será? Ele inclui isso, é claro, porém eu afirmo
que ele não está se referindo somente ao clímax dos eventos que se dará na
“consumação final”, mas também à totalidade da vida cristã, do começo ao fim.

Há várias maneiras pelas quais podemos estabelecer o ponto em questão. Em


primeiro lugar, pareceria estranho, ou incongruente, que o apóstolo estivesse
orando com tanta urgência no sentido de que os efésios estivessem confiantes no
poder de Deus só com vistas à ressurreição final deles. Não é algo muito
apropriado para se fazer por pessoas que ele parece ansioso para encorajar no
presente. Isso é consubstanciado pelo uso da expressão que na
Versão Autorizada (inglesa) é traduzida por “segundo a” - “e qual a exces-

siva grandeza do seu poder para conosco, que cremos, segundo a operação da
sua poderosa energia que ele pôs em ação em Cristo quando o ressuscitou dos
mortos”. O significado destas duas palavras, “segundo a”, é a chave para a nossa
interpretação. Porventura elas se referem aos “que crêem”, expressão que as
precedeu imediatamente, ou, por assim dizer, fez uma pausa enquanto escrevia
“para conosco, que cremos” e antes de prosseguir dizendo, “segundo a sua
poderosa energia que ele pôs em ação em Cristo”? Qual o sentido de “segundo
a”? A resposta dada no Léxico de Grimm-Thayer é que “segundo a” realmente
significa “em conseqüência de” ou “em virtude de”, ou “por meio de”, ou “por
causa de”, “decorrente de”, “devido a”. São essas as palavras que eles sugerem
como melhor tradução do que “segundo a”. Portanto, poderíamos ler o texto
assim: “qual a excessiva grandeza do seu poder em nós, que cremos, em
conseqüência da (em virtude da) operação da sua poderosa energia, a energia da
força do seu poder”. Noutras palavras, o apóstolo está explicando como nós
passamos a crer. Cremos em virtude do Seu poder, cremos em conseqüência do
Seu poder, cremos “por meio do”, “por causa do”, “devido ao” Seu poder.

Para que ninguém pense que nos estamos apoiando unicamente num léxico,
permitam-me aduzir algumas declarações e passagens paralelas nas quais a
mesma palavra é empregada exatamente da mesma maneira. Várias delas acham-
se neste capítulo primeiro da Epístola, começando no versículo 5 onde lemos: “E
nos predestinou para filhos de adoção por Jesus Cristo, para si mesmo, segundo
o beneplácito de sua vontade”. Isso claramente significa: “como conseqüência
do beneplácito de sua vontade”. E de novo, no versículo 7: “Em quem temos a
redenção pelo seu sangue, a remissão das ofensas, segundo as riquezas da sua
graça”, isto é, “em virtude das”, “como resultado das”, “em conseqüência
das” riquezas da Sua graça. Ainda no versículo 9 vemos: “Descobrindo-nos o
mistério da sua vontade, segundo o seu beneplácito, que propusera em si
mesmo”. Em cada caso o sentido é “como resultado de”, “em conseqüência de”,
“em virtude de”. O mesmo sentido se vê no versículo 11: “Nele, digo, em quem
também fomos feitos herança, havendo sido predestinados, conforme o propósito
daquele que faz todas as coisas, segundo o conselho da sua vontade”.

Esse ponto é de tão crucial importância que eu não me desculpo por procurar
mais exemplos e ilustrações. Vejam o capítulo 3, versículo 7, desta Epístola.
Referindo-se ao evangelho de Cristo,

diz o apóstolo: “Do qual fui feito ministro, pelo dom da graça de Deus, que me
foi dado segundo a operação do seu poder”. O apóstolo foi feito ministro “em
virtude do”, “em conseqüência do” dom da graça de Deus. Foi isso que o
produziu, foi sua causa. Mas vejam o versículo 10 desse mesmo capítulo, onde
Paulo diz: “Para que agora, pela igreja, a multiforme sabedoria de Deus seja
conhecida dos principados e potestades nos céus”. E então, no versículo 16, ele
ora: “Para que, segundo as riquezas da sua glória, vos conceda...” Depois, no
versículo 20: “Ora, àquele que é poderoso para fazer tudo muito mais
abundantemente além daquilo que pedimos ou pensamos, segundo o poder que
em nós opera”. Evidentemente significa “em virtude de”, “em conseqüência de”;
e não tem outro sentido nessa passagem. A mesma palavra é empregada
exatamente da mesma maneira em todos esses casos. Vejam mais um
exemplo na Epístola aos Filipenses, onde o apóstolo diz: “Porque sei que disto
me resultará salvação, pela vossa oração e pelo socorro do Espírito de Jesus
Cristo, segundo a minha intensa expectação e esperança” (1:19-20).
Talvez o exemplo mais notável seja o que se acha no fim do capítulo 3 dessa
mesma Epístola aos Filipenses, onde Paulo diz: “Mas a nossa cidade está nos
céus, donde também esperamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo, que
transformará o nosso corpo abatido, para ser conforme o seu corpo glorioso,
segundo o seu eficaz poder de sujeitar também a si todas as coisas”. Nesse
exemplo “segundo o” não nos diz muito, porém se lermos “em virtude do seu
eficaz poder”, “como resultado do seu eficaz poder”, o significado se abrirá
perfeitamente. Outros exemplos mais acham-se em Filipenses 4:19; no capítulo
1 de Colossenses, versículos 11 e 29; na Segunda Epístola aos Tessalonicenses,
capítulo 1, versículo 12; e capítulo 2, versículo 9; também 2 Timóteo 1:8, Tito
1:3, Hebreus 2:4, 1 Pedro 1:3 e 2 Pedro 2:15.

Aduzi todas estas provas com o fim de definir a matéria de maneira


incontestável. O apóstolo está tratando aqui da vida cristã do começo ao fim, e
está dizendo que devemos conhecer a extraordinária grandeza do poder de Deus
para nós, desde o momento em que cremos no Senhor Jesus Cristo. O nosso
simples ato de crer é resultado deste poder de Deus. A totalidade da vida cristã, e
não somente a nossa ressurreição no fim, é resultado do poder de Deus em nós.
Não somos cristãos, e nem poderemos ser cristãos sem esta poderosa operação
do poder de Deus.

Mas, naturalmente, não temos necessidade de basear a nossa exposição somente


no sentido das palavras e na gramática, pois a própria passagem que estamos
estudando esclarece bem o sentido. Já indicamos que o apóstolo continua com
este mesmo tema no capítulo 2. Ele faz uma interrupção porque, ilustrando este
poder em termos do ato pelo qual Deus ressuscitou o nosso Senhor dentre os
mortos, ele fez digressão por um momento; porém volta ao seu tema no capítulo
2, versículo primeiro, com estas palavras: “E vos vivificou, estando vós mortos
em ofensas e pecados, em que noutro temo andastes”. Mais adiante, no versículo
4, ele diz: “Mas Deus, que é riquíssimo em misericórdia, pelo seu muito amor
com que nos amou, estando nós ainda mortos em nossas ofensas, nos vivificou
juntamente com Cristo”. Essa é uma óbvia referência à manifestação do poder de
Deus. Portanto, é evidente que o apóstolo não está se referindo à ressurreição
vindoura, e sim, à ressurreição espiritual que já ocorreu em nós. Ele está falando
acerca de nós como crentes, e nós somos crentes porque este poder de Deus
já agiu em nós dessa maneira. Assim, de todos os pontos de vista - da gramática,
da linguagem, do contexto, e de tudo o mais - evidentemente o apóstolo está
interessado aqui em que conheçamos a extraordinária grandeza deste poder, do
começo ao fim de nossa vida cristã.
Agora, no entanto, se levanta a questão sobre se todos nós vivemos à luz desta
verdade. Levanto a questão porque muitos de nós tendemos a pôr a descoberto o
que realmente cremos acerca dessas coisas em nossa conversação comum. Há
um jeito muito simples de mostrar e provar se compreendemos isto ou não. Se
realmente “conheçemos” aquilo pelo que o apóstolo está orando, sempre
daremos a impressão de que ficamos surpresos ante o fato de que somos
cristãos! Isso se evidenciará em nosso louvor e em nossas ações de graças. Isso
será feito com sentimento de “encanto, amor e louvor” e admiração, e em nossa
atitude de atribuir tudo a Deus sem reivindicar nada para nós mesmos.
Satisfaremos a exigência do apóstolo, quando ele diz: “Aquele que se gloria,
glorie-se no Senhor” (1 Coríntios 1:31).

Acaso compreendemos que o simples fato de crermos no evangelho é em virtude


do poder de Deus que atua em nós? Fico perguntando isso porque há uma forte
tendência de se falar de maneira superficial sobre “crer”, como se fosse algo
fácil, que

qualquer pessoa que se disponha a “crer” pode fazê-lo. Com que leviandade e
verbosidade muitos falam em crer no Senhor Jesus Cristo, ou de crer no
evangelho! Há muita prosa acerca da nossa necessidade de poder depois que nos
tornamos cristãos. Mas como é raro ouvir-se algo sobre a necessidade de poder
antes de nos tornarmos cristãos! Há muita ênfase ao crer e à “decisão”, e se
sugere que quem quiser tornar-se cristão pode realizá-lo facilmente.

Parece-me que há duas principais explicações dessa idéia superficial, na verdade


falsa, do que é crer. A primeira deve-se a uma espantosa incapacidade da nossa
parte de compreender as conseqüências do pecado e da queda do homem. Não
entendemos o efeito devastador da queda de Adão sobre toda a raça humana.
A segunda é a nossa incapacidade de compreender o que está envolvido no
“novo nascimento”, ou na “regeneração”; não compreendemos a grandeza da
transformação que aqueles termos descrevem, e do que eles incluem, e por que a
regeneração é sempre necessária. Estas são a causa de todo uso chocho da
palavra “crer” e da tendência de dizer que o homem natural é capaz de crer, mas
que, como crente, ele necessita de muito poder.

Não há escusa para isso porque o ensino bíblico concernente ao homem natural
deveria proteger-nos de tal erro. Esse ensino acha-se no Velho Testamento, bem
como no Novo. “Pode o etíope mudar a sua pele, ou o leopardo as suas
manchas?” (Jeremias 13:23). Só isso já deveria ser suficiente para provar o
ponto. Depois há as declarações que citei várias vezes por causa da sua
importância crucial, nos capítulos 1 e 2 da Primeira Epístola aos Coríntios,
especialmente no versículo 14 do capítulo 2: “O homem natural não compreende
as coisas do Espírito de Deus, porque lhes parecem loucura; e não pode entendê-
las, porque elas se discernem espiritualmente”.

O ensino do apóstolo é que o fato de alguém crer no evangelho é um grande


milagre que só pode ser explicado adequadamente em termos da transcendente
grandeza do poder de Deus; requer a energia da força do poder de Deus levar
alguém a crer no evangelho cristão e a aceitar a fé cristã. Cremos em virtude
deste tremendo poder.

Para tornar isso mais simples e mais claro, vejamos algumas das coisas que têm
que ser sobrepujadas antes de qualquer de nós poder ser cristão. Não me refiro a
um frouxo assentimento intelectual a certo número de proposições, mas a uma fé
viva e verdadeira.

Paulo equaciona o crer com o nascer de novo, como faz o apóstolo João na sua
Primeira Epístola. O verdadeiro crente é alguém que “nasceu de novo”, não o
homem que pode dizer “sim” hoje e “não” amanhã. Por que é necessário este
poder de Deus para que o homem possa crer nesse sentido verdadeiro? Vê-se a
resposta considerando alguns dos efeitos da Queda e do pecado sobre a
raça humana.

Considerem da seguinte maneira o que a Queda fez com a mente do homem: eis
aí um homem “nascido em pecado, formado em iniqüidade”, nascido “filho da
ira, como os outros também”, num mundo onde o evangelho é apregoado pela
Igreja Cristã. Qual a relação da mensagem com o homem? Dizem-nos as
Escrituras que o seu “entendimento está entenebrecido”, que a sua mente está
num estado de trevas, em conseqüência do pecado. Não significa meramente que
ele é ignorante. Ele é ignorante, é claro, e desconhece a mensagem do
evangelho. Contudo, não é ignorante só nesse aspecto; há algo muito pior.
Mesmo que vocês ponham o evangelho diante dele, ele não consegue vê-lo. “Se
ainda o nosso evangelho está encoberto, para os que se perdem está encoberto.
Nos quais o deus deste século cegou os entendimentos dos incrédulos” (2
Coríntios 4:3-4). “O véu está posto sobre o coração dejes” (2 Coríntios 3:15), diz
o apóstolo sobre os judeus incrédulos. É por isso que Paulo já tinha orado
rogando que os efésios tivessem “em seu conhecimento o Espírito de sabedoria e
de revelação”. Meramente colocar o evangelho diante de um homem não basta; é
preciso que se faça algo no homem. O Espírito está na Palavra; mas o Espírito
precisa estar no homem também, e sem isso ele não consegue ver a verdade.
Estas coisas “se discernem espiritualmente”, declara Paulo aos
coríntios (ICoríntios 2:14). Quando o homem caiu, não somente foi separado de
Deus; sua faculdade espiritual ficou paralisada. Sua mente está obscurecida e
embotada, todo o seu entendimento está entenebrecido, faltam-lhe a habilidade e
a capacidade.

Mas isso não é o fim da história, quanto à mente do homem. Ele vive num
mundo no qual falsos conceitos são ensinados e recomendados por grandes
nomes. Tais conceitos são anunciados com grande publicidade; e ele, como
homem do mundo e filho do seu tempo, é inteiramente induzido a predispor-se a
favor deles. A verdade de Deus é ridicularizada, criticada, escarnecida e
rejeitada. Todo o preconceito da vida do mundo ao seu redor e acerca dele é
contra o evangelho; e isso tem um tremendo efeito sobre o homem. Todos

nós sabemos da tendência que as pessoas comuns têm de acreditar no que lêem
nos jornais, especialmente quando eles publicam os conceitos de pessoas
influentes como filósofos e cientistas, a respeito da Bíblia. Tudo isso influencia
muitíssimo a mente e o pensamento do homem quando este se defronta com o
evangelho. Todavia, dão-nos a impressão de que crer no evangelho é coisa muito
simples!

Entretanto há algo até muito pior do que isso. Considerem o estado do coração
do homem natural. A primeira coisa que a Bíblia diz sobre o coração do homem
é que, em conseqüência da Queda, o homem é orgulhoso. O apóstolo usa
constantemente a palavra “gabar-se”, muitas vezes traduzida por “gloriar-se” na
Versão Autorizada (inglesa) (como também na Versão de Almeida). “Não
permita Deus que eu me glorie” significa “Não permita Deus que eu me gabe”.
Não há nada tão característico do homem decaído como o gabar-se, ou gloriar-
se, o seu orgulho, e especialmente o seu orgulho do intelecto! Essa é a última
cidadela. Não é de admirar, pois a mente do homem é o seu dom supremo. É o
que mais o separa de todos os animais - a sua mente, a sua razão, a sua
capacidade de pensar e de olhar objetivamente para si mesmo. Temos a
autoridade do nosso Senhor para dizer que as pessoas mais difíceis de convencer
da verdade são os “sábios e entendidos”. Diz ele: “Graças te dou, ó Pai, Senhor
do céu e da terra, que ocultaste estas coisas aos sábios e entendidos, e as
revelaste aos pequeninos. Sim, ó Pai, porque assim te aprouve” (Mateus
11:25,26). É ele, de novo, que diz: “Em verdade vos digo que, se não vos
converterdes e não vos fizerdes como meninos, de modo algum entrareis no
reino dos céus” (Mateus 18:3). Esta exigência de semelhança com as crianças é
por causa do orgulho do intelecto. O homem natural sempre acha que tornar-
se cristão é tornar-se tolo, que o cristão “tornou-se um fraco”, um emocionalista,
e jogou fora a sua mente, a sua razão e a lógica. A idéia é que se você ainda crê
na “velha história”, você não está à altura dos tempos, você não é leitor, não é
pensador, não está em dia com a cultura. Essa atitude se baseia no orgulho do
homem, principalmente em seu orgulho do intelecto e do entendimento. Ele não
pretende ser considerado um tolo! Ele quer estar à altura dos tempos, estar
sempre “atualizado”.

Também nos é dito que o coração do homem decaído esta “endurecido”. Quer
dizer que o homem não somente está num estado de pecado, ele também se
deleita e se gloria nele. Como o apóstolo

diz em Romanos 1:32: “eles não somente as fazem (pecados terríveis), mas
também consentem aos que as fazem” (VA: “...mas também têm prazer naqueles
que as fazem”). E mais: “Do céu se manifesta a ira de Deus sobre toda a
impiedade e injustiça dos homens, que detêm a verdade em injustiça”, diz o
apóstolo em Romanos 1:18. Deliberadamente rebaixam a verdade porque os
seus corações estão endurecidos. Se se sentem premidos por alguma convicção,
procuram abafá-la e pisoteá-la, usam camuflagem e todas as espécies de
resistência. Resistem à força da verdade com esforço e com violência.

No capítulo 17 da profecia de Jeremias lemos, no versículo 9: “Enganoso é o


coração, mais do que todas as coisas, e perverso”. Significa que o homem em
pecado está sempre enganando a si próprio, e num sentido não pode deixar de
fazê-lo, porque o seu coração é enganoso, retorcido e perverso; há nele um
mecanismo que por vezes faz o homem voltar-se contra si, contra o seu
melhor juízo. Isso explica o processo de racionalização dos nosso pecados, e a
nossa habilidade para explicá-los satisfatoriamente para nós. Isso explica
também os nossos esforços para persuadir-nos de que somos melhores do que
realmente somos, e de que, se fizermos certa soma de bem isso de algum modo
compensará o mal que fizermos. O caráter “enganoso” do coração faz a pessoa
pensar que Deus pode ser comprado por uma oferta como os judeus do tempo de
Jeremias imaginavam. Quão enganosos, quão completamente insinceros são os
nosso corações! Todos nos “vestimos de aparências”, e sabemos que estamos
fazendo isso; e, contudo, o fazemos.
Mas, segundo Jeremias, o coração não é somente “enganoso”, mais do que todas
as coisas; “também é “perverso” (VA: “desespe-radamente corrupto”). Essa
declaração é verdadeira quanto à pessoa mais respeitável que já nasceu; é
verdadeira sobre pessoas que podem ser altamente religiosas. Há dentro de nós
um princípio mau que se deleita no pecado. “A condenação é esta: que a luz
veio ao mundo, e os homens amaram mais as trevas do que a luz, porque as suas
obras eram más” (João 3:19). Os homens se regozijam na iniqüidade, escrevem
sobre ela, fazem pilhérias sobre ela, conversam sobre ela. Gabam-se das suas
práticas más, amam-nas, contemplam-nas com gosto, porque os seus corações
são “deses-peradamente corruptos”. Isso faz parte da descrição do
coração natural, não regenerado, e do homem em pecado em conseqüência da
Queda. E a tal pessoa que o evangelho vem com a sua mensa-

gem sobre a santidade, a luz e a verdade acerca de Deus. O evangelho a convoca


a abandonar o mundo e o seu pecado, e a seguir a Cristo, “o qual não cometeu
pecado, nem na sua boca se achou engano” (1 Pedro 2:22). Crer é fácil? Não
podemos senão repetir a estrofe do conhecido hino de Thomas Binney:

Ah, como posso eu, cuja esfera nativa E obscura, e cuja mente ê fosca,

Diante do Inefável aparecer,

E com o desnudo espirito suportar A incriada luz?

Ah, mas isso não é tudo! O coração do homem, segundo as Escrituras, é, em


conseqüência da Queda e do pecado, até culpado de odiar a Deus. A mente
natural, pecaminosa, não se contenta com um desinteresse intelectual que não
acredita na Bíblia e rejeita a revelação a respeito de Deus; ela odeia Deus. “A
mente carnal (natural) é inimizade contra Deus, e não é sujeita à lei de Deus,
nem na verdade o pode ser” (Romanos 8:7, VA). Não há como questionar
a veracidade dessa asserção. Estamos todos alienados da vida de Deus, diz Paulo
no capítulo 4 desta Epístola aos Efésios; e isso porque Deus é completa e
inteiramente diferente do que somos e do que gostamos.

Portanto, a situação do homem em pecado é que a sua faculdade espiritual está


obscurecida. Sua mente está obscurecida e coberta por um véu de pecado e
incredulidade; ele é dominado pela mente e pelas maneiras do mundo; seu
coração é desesperadamente iníquo e enganoso, endurecido, orgulhoso,
implacável; mas, acima de tudo, ele abriga um ódio ativo a Deus, uma inimizade
profundamente arraigada contra Deus. Como isso é óbvio neste
mundo moderno! Como os homens estão prontos a crer em qualquer teoria que
pretenda anular com suas explicações o ato da criação; aceitam com avidez uma
pura e simples teoria como a da evolução, que está sendo cada vez mais
desacreditada com bases científicas e filosóficas. Eles agem assim porque todo
aquele ensino é contra Deus. Este ódio e esta inimizade do homem em pecado
contra o Senhor Deus Todo-poderoso não se vê só nos jornais, porém até mesmo
em obras culturais. O homem está fazendo o máximo que pode para descartar-se
de Deus e explicar o cosmo sem Ele. Ele vem fazendo isso, e especialmente
durante os 100 anos recém-passados, com todas as

suas forças.

Ao mesmo tempo, a vontade do homem está paralisada. Há defeito até na


vontade do homem. O pecado afetou a totalidade do homem. A nossa
incapacidade de apreciar o poder de Deus em nosso próprio ato de crer deve-se à
nossa incapacidade de compreender o efeito devastador da Queda. Ela estragou e
deformou a imagem de Deus em nós, com as inevitáveis conseqüências de
que as nossas mentes e as nossas vontades se tornaram corrompidas.

À luz disso tudo, ainda lhes é possível dizer que o homem decaído poderá crer
facilmente no evangelho, se ele se decidir a fazê-lo? Será ele capaz de crer nele?
Certamente há somente uma resposta a essa pergunta: está nas palavras: “Qual a
transcendente grandeza do seu poder para conosco, que cremos em virtude da
sua poderosa energia que opera em nós”. Levar uma única alma a crer em Deus e
em Cristo exige “a transcendente grandeza da força do poder eterno de Deus”; e
sem isso estamos total e completamente perdidos. “Pela graça de Deus (e
somente por Sua graça) sou o que sou” (1 Coríntios 15:10). Por que eu creio
neste evangelho? Por que não sou hoje como tantos milhões no mundo? Por que
me interesso pela Bíblia? Por que eu creio nela? Há somente uma resposta.
É pela graça de Deus, que opera em mim poderosamente. Ele começou a obra,
Ele a continuará, Ele a terminará; e eu estarei diante dEle perfeito, inteiro,
completo, e lançarei a minha coroa diante dEle, “perdido em encanto, amor e
louvor”.

SEU PODER DO COMEÇO AO FIM

“E qual a sobreexcelente grandeza do seu poder sobre nós, os que cremos,


segundo a operação da força do seu poder, que manifestou em Cristo,
ressuscitando-o dos mortos, e pondo-o à sua direita nos céus.” - Efésios 1:19-20

Eis a mais urgente questão prática para todos os cristãos: estarí-amos cientes do
fato de que o poder onipotente de Deus está agindo em nós? Compreenderíamos
que somos que somos única e inteiramente pela graça e pelo poder de Deus?
Damo-nos conta em nossas vidas e experiências pessoais de que é este
extraordinariamente grande poder de Deus que explica tudo o que ocorre na vida
cristã? Volto a insistir nestas perguntas porque estou convencido de que
o principal problema da maioria de nós é a nossa incapacidade de perceber a
grandeza da salvação a que fomos levados, e que todos desfrutamos. Não se
pode ler o Novo Testamento, e especialmente o livro mais lírico, que
denominamos livro de Atos dos Apóstolos, e também as Epístolas, observando a
sua terminologia, sem perceber que havia uma qualidade jubilosa, de fato
emocionante, quanto aos cristãos primitivos, os cristãos do Novo Testamento .
Vê-se isso claramente na Epístola aos Filipenses, o que num sentido é um
grandioso refrão sobre o tema do regozijo: “Regozijai-vos sempre no Senhor;
outra vez digo, regozijai-vos” (4:4).

Regozijo é o tema do Novo Testamento todo. O propósito é que o cristão seja


uma pessoa que se regozija. E, todavia, se formos sinceros, teremos que admitir
que muitíssimas vezes não damos a impressão de regozijo, e sim de depressão.
Damos a impressão de que ser cristão é levar um grande fardo nos ombros e ter
infindáveis preocupações, aborrecimentos e ansiedades. De fato, o
mundo caricaturiza o cristão dessa maneira pelo que somos tão frequentemente.
“Zombar dos prazeres e viver dias laboriosos” demasiadamente é a idéia do que
a vida cristã é e significa. Indubitavelmente deve-se isso ao fato de que por
alguma razão não nos damos conta da grandeza da nossa salvação. Não nos
apercebemos da grandeza do que aconteceu conosco; ou da grandeza do que nos
está acontecendo, o processo pelo qual estamos passando

agora mesmo. E não compreendemos a grandeza da perfeição para a qual


estamos indo e para a qual estamos sendo preparados.

Isso leva, não somente à falta de regozijo, mas também à ausência de um


sentimento de encanto. Não se pode ler estas Epístolas de Paulo sem sentir
constantemente que ele se admirava consigo próprio. Vejam uma notável
declaração dele na Epístola aos Gaiatas: “Vivo, não mais eu...” (2:20). Paulo não
pode entender a si próprio. Ele se tornou um enigma e um problema para ele
próprio. Este assombro face a si próprio deve-se à sua compreensão do tremendo
feito que Deus está realizando nele. Nós deveríamos ficar igualmente espantados
com nós mesmos, e deveríamos pôr-nos de pé, olhar para nós mesmos e dizer:
“Será possível? Será verdade a meu respeito? Todavia não eu, mas Cristo vive
em mim”. Essa é uma das melhores provas da nossa profissão de fé cristã.

E devido nos faltar esse elemento que - para tomar emprestada a linguagem do
apóstolo - não “resplandecemos como astros (como luzes) no mundo, no meio de
uma geração corrompida e perversa” (Filipenses 2:15). De um modo ou de outro,
não captamos a idéia desta poderosa ação de Deus na salvação. Muitas e muitas
vezes só pensamos nela em termos de perdão. Pensamos na vida cristã apenas
como uma questão de saber que estamos perdoados, e então viver a vida cristã o
melhor que pudermos. Omitimos o drama, a grandeza e a grandiosidade disso
tudo, e especialmente este poder que o apóstolo está desejoso de que os efésios
conheçam. Concebemos a vida cristã em termos que não postulam como
necessidade absoluta “a excessiva grandeza do poder” do onipotente Deus.
Contudo a vida cristã é isso.

Ao que parece, falta-nos esta concepção até quando consideramos o próprio


Senhor nosso. Não compreendemos a grandeza do que aconteceu quando Ele, o
Filho de Deus, veio à terra. Porventura pensamos habitualmente nesse evento em
termos do capítulo 2 da Epístola aos Filipenses, versículos 5-9 - “De sorte que
haja em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, que, sendo
em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus. Mas aniquilou-se a
si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens; e,
achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo, sendo obediente ate à
morte, e morte de cruz. Pelo que também Deus o exaltou soberanamente, e lhe
deu um nome que é sobre todo o nome”? Essa é a medida da salvação e do
poder que estava envolvido em Cristo e em Sua obra. Parece que esquece-

mos que, quando Ele morreu na cruz, ofereceu-Se, como se nos diz na Epístola
aos Hebreus, “pelo Espírito eterno” (9:14). Ficamos tão familiarizados com os
fatos acerca da cruz e da morte do Senhor que parece que perdemos o senso do
poder que estava envolvido ali. E quando chegamos à ressurreição do Senhor
Jesus Cristo, acaso compreendemos que ela foi a mais grandiosa manifestação
da energia da força do poder de Deus que o mundo já conheceu? Segundo as
Escrituras, nada senão o onipotente poder de Deus poderia ressuscitá-lO dentre
os mortos e exaltá-lO à alta posição na qual Ele está neste momento, à direita de
Deus. Esquecemos que Ele foi “declarado Filho de Deus em poder...pela
ressurreição dos mortos” (Romanos 1:4). Parece que nos falta essa idéia de
poder em todos os aspectos da vida cristã. E um milagre que exista um
único cristão no mundo, ou que alguma vez tenha existido. Por natureza nenhum
de nós creria ou poderia crer no evangelho; nada, senão o poder de Deus, pode
fazer-nos crentes.

Mas é também por esse mesmíssimo poder que continuamos na vida cristã.
Requer-se o mesmo poder que nos capacitou a crer, para capacitar-nos a
simplesmente continuar na vida cristã. Não seriamos capazes de resistir uma
hora sequer na vida cristã, não fora este poder que está agindo em nós. Isso é
verdade, apesar do fato de que temos em nós um novo princípio de vida, bem
como uma nova mente e uma nova perspectiva. E quando pensarmos
na perfeição à qual fomos destinados, deveria ser óbvio que, sem este poder de
Deus, a nossa situação seria completamente sem esperança, se não tivéssemos
nada senão a nossa própria força e poder.

Não há dificuldade em mostrar que o que o apóstolo ensina aqui, nesta Epístola,
é fartamente confirmado por outras declarações que constam nas Escrituras.
Fazemos isso, porque esta questão é vital para o nosso gozo da vida cristã. Se
não conhecemos este poder, mais cedo ou mais tarde ficaremos deprimidos e
infelizes, e começaremos a indagar se afinal somos cristãos; e depois
começaremos a indagar se poderemos continuar e por fim chegar à glória. O
diabo logo nos desencorajaria completamente.

No capítulo 3 desta Epístola o apóstolo diz: “Ora, àquele que é poderoso para
fazer tudo muito mais abundantemente além daquilo que pedimos ou pensamos,
segundo o poder que em nós opera...” (versículo 20). Ou vejam a declaração que
há na Segunda Epístola aos Coríntios, capítulo 5: “Porque sabemos que, se a
nossa casa

terrestre deste tabernáculo se desfizer, temos de Deus um edifício, uma casa não
feita por mãos, eterna, nos céus” (versículo 1). Caso morrêssemos ou fôssemos
mortos, tudo estaria bem; isso nós sabemos! Depois ele prossegue e diz: “Quem
para isto mesmo nos preparou foi Deus” (versículo 5). Fomos produzidos, fomos
feitos, fomos modelados, fomos formados por Deus, pelo poder de Deus para
este destino. Essa é a nossa esperança, aquilo em que descansamos, a base da
nossa segurança.

Depois há a declaração registrada na Epístola de Paulo aos Filipenses: “Operai a


vossa salvação com temor e tremor; porque Deus é o que opera em vós tanto o
querer como o efetuar, segundo a sua boa vontade” (Filipenses 2:12-13). No
capítulo 3 da mesma Epístola o apóstolo nos diz que o seu maior desejo era,
“conhecê-lo e à virtude (poder) da sua ressurreição” (versículo 10). Ele
desejava conhecer mais e mais deste mesmo poder de Deus que se manifestou na
ressurreição de Cristo. Esse mesmo poder está atuando agora nos crentes. O
apóstolo Paulo, que dera largos passos em seu progresso na vida cristã, deseja
conhecer acima de tudo mais o poder da ressurreição do seu Senhor. Diz ele:
“Não que já a tenha alcançado”; mas deseja alcançá-la. Por isso esquece as
coisas que atrás ficam, sua conversão inicial, sua primeira experiência,
e prossegue “para o alvo, pelo prêmio da soberana vocação de Deus em Cristo
Jesus”. Essa é a sua oração por si e por todos os outros crentes.

Há ainda a notável declaração disso tudo no último capítulo da Epístola aos


Hebreus: “Ora, o Deus de paz, que pelo sangue do concerto eterno tornou a
trazer dos mortos a nosso Senhor Jesus Cristo, grande pastor das ovelhas, vos
aperfeiçoe em toda a boa obra, para fazerdes a sua vontade, operando em vós o
que perante ele é agradável” (13:20-21). Aquele que deseja agir naqueles
cristãos hebreus é “o Deus de paz, que tornou a trazer dos mortos a nosso Senhor
Jesus Cristo”. E uma exata repetição do que vimos na passagem que estamos
estudando em Efésios, capítulo 1, versículo

20. Somente Ele pode “aperfeiçoar-nos em toda a boa obra”.

Mas vejam mais um exemplo, tomado do apóstolo Pedro. Diz ele que como
cristãos fomos gerados de novo “para uma viva esperança, pela ressurreição de
Jesus Cristo, dentre os mortos, para uma herança incorruptível, incontaminável,
e que se não pode murchar, guardada nos céus para vós, que mediante a fé estais
guardados na virtude de Deus para a salvação já prestes para se revelar no último

tempo” (1 Pedro 1:3-5). Somos pelo poder de Deus; e sem isso não poderíamos
resistir. Pedro escreve também na sua Segunda Epístola: “Visto como o seu
divino poder nos deu tudo o que diz respeito à vida e piedade” (1:3). O Seu
“divino poder” deu tudo.

De igual maneira, o apóstolo João, escrevendo como ancião, próximo do fim da


vida, para encorajar os cristãos que ele ia deixar para trás neste mundo cruel, e
que estavam sendo um tanto abalados por falso ensino, falsa maneira de viver e
falsas práticas, diz: “Maior é o que está em vós do que o que está no mundo”
(4:4). É unicamente o poder de Deus que pode segurar-nos e sustentar-nos, até
chegarmos à glória.

Depois também podemos ver a bênção que consta no fim da Epístola de Judas:
“Ora, àquele que é poderoso para vos guardar de tropeçar, e apresentar-vos
irrepreensíveis, com alegria, perante a sua glória...”. E Ele não somente pode
guardar-nos, impedindo que caiamos, mas efetivamente o está fazendo.

Acima de tudo, no entanto, vamos às palavras do nosso bendito Senhor. Já à


sombra da cruz Ele ora ao Seu Pai, e eis a Sua oração: “E eu já não estou mais
no mundo; mas eles estão no mundo, e eu vou para ti. Pai santo, guarda em teu
nome aqueles que me deste, para que sejam um, assim como nós” (João 17:11).
Diz Ele: “Não peço que os tires do mundo, mas que os livres do mal” (VA:
“...que os guardes do maligno). Seu etemo coração de amor pensa neste pequeno
grupo de crentes que Ele está prestes a deixar neste mundo mau, pecaminoso, e a
Sua petição é: “Pai, guarda-os”, pois se o Pai não os guardar, eles estarão
perdidos.

Por que este poder é essencial? Por que é importante que conheçamos este
excessivamente grande poder que está operando em nós? Há duas respostas
principais, uma negativa, outra positiva. A primeira é que devemos conhecer e
compreender este poder por causa do poder das forças que se põe contra nós. O
cristão nesta vida e neste mundo é como o seu Senhor antes dele; e há
certas coisas que ele tem que enfrentar. Ele tem que travar uma constante guerra
contra a mente e a perspectiva do mundo. Receio que muitos de nós não estão
cientes do sutil poder do mundanismo - de tudo aquilo pelo que o mundo luta.
Permitam-me citar de novo o apóstolo João: “Não ameis o mundo, nem o que no
mundo há. Se alguém ama o mundo, o amor do Pai não está nele - a
concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida” (1
João

2:15-16).

Nada é tão perigoso para a alma, por causa da sua sutileza, como o mundanismo
com que nos deparamos a cada passo. Você começa isso com os seus jornais de
manhã. Eles não se limitam a importantes notícias internacionais ou nacionais, a
matérias de urgência e de crise, ou a ameaças de guerra, porém
constantemente em suas notícias e opiniões sugerem luxúria, desejo e tudo o que
se opõe aos mandamentos de Deus. A mesma influência perniciosa vê-se na
interminável sucessão de livros e filmes de maneira muito sedutora e atraente.
Depois há o que o apóstolo descreve como “soberba da vida”, tudo o que é
representado pela “vida social”, assim chamada, orgulho dos antepassados e de
classe, e a pompa e a exibição exteriores. É tão agradável e tão encantador para
o homem natural, e tanta gente boa participa nisso! Esta é certamente a maior
luta que a Igreja Cristã tem que empreender na hora presente. Houve um
rebaixamento dos padrões morais em toda parte. Temos nos desviado para muito
longe dos dias do puritanismo. A linha entre a Igreja e o mundo é quase
invisível, e o povo de Deus não sobressai mais em sua singularidade como
outrora. O Novo Testamento está cheio de advertências acerca deste tremendo e
sutil poder do mundo, que quer arrastar-nos para longe do Cristo em quem
cremos, que quer fazer com que O neguemos na prática e quer reduzir-nos ao
estado descrito pelas palavras: “Tendo aparência de piedade, mas negando a
eficácia dela” (2 Timóteo 3:5).

Não temos, porém, que lutar somente contra o mundo, mas também contra a
carne. “Carne” nem sempre significa pecado grosseiro; pode aparecer na forma
de letargia e ociosidade. Como é fácil sentir-nos indispostos, física ou
intelectualmente, para ler a Bíblia! Você sente um impulso para ler a Bíblia, mas
diz: “Estou cansado, tive um dia pesado no escritório, minha mente não está boa
para isso, e não é direito ler as Escrituras quando não se está nas melhores
condições; por isso vou ler o jornal agora, mais tarde lerei as Escrituras, quando
me sentir renovado e melhor”. O resultado é que você vai dormir sem ter lido as
Escrituras. Temos que travar uma constante batalha contra a letargia e a
preguiça, e contra a igualmente sutil tentação para a procrastinação. São
instrumentos que o diabo usa para estorvar o nosso progresso.

Depois há a luta contra as condições físicas, como saúde enferma. Se vocês


lerem as vidas dos santos, verão que os homens que mais realizaram neste
mundo muitas vezes eram homens que foram

obrigados a lutar muito contra alguma fraqueza ou doença física. Contem


quantos livros estão sob o nome de João Calvino, por exemplo. Todos aqueles
comentários das Escrituras, e outras obras, foram produzidos por um homem que
foi um mártir a vida inteira, padecendo asma e indigestão crônica, e que morreu
com a idade de 55 anos. Mas nós temos a tendência de fazer das nossas
fraquezas físicas uma desculpa. Tudo isso mostra que, se não fosse o poder
de Deus, nunca faríamos coisa alguma, não resistiríamos nem por um momento,
estaríamos arruinados.
Considerem a seguir a força dos hábitos. Vocês entraram na vida cristã sabendo
da regeneração e tendo a experiência dela. Vocês se regozijaram com a
declaração de que “as coisas velhas já passaram; eis que tudo se fez novo” (2
Coríntios 5:17). Mas o novo convertido logo descobre que estas coisas não
significam exatamente o que ele pensava que significavam. É o seu
entendimento que está em falta, encorajado, talvez, por uma falsa evangelização.
Ele começa a ver que há certos hábitos de há muito arraigados nele e que são
muito difíceis de romper. Os hábitos tendem a persistir, e a velha natureza não é
aniquilada. Ela continua ali, e ele tem que lidar com ela. Recebemos ordem para
mortificar “as obras do corpo” (Romanos 8:13). Os maus hábitos não
desaparecem todos subitamente da nossa vida. Deus, em Sua graça, pode
remover alguns deles, e às vezes o faz, porém deixa outros. A força do hábito é
um poder terrível, tão grande que não há nada, exceto o poder de Deus, que
possa livrar-nos e preservar-nos contra ele. Apesar de termos uma nova mente,
uma nova perspectiva e um desejo de viver a nova vida, certos hábitos tendem a
impedir-nos. Somente o poder de Deus pode habilitar-nos a vencê-los.

Depois há o diabo. Às vezes penso que a nossa falha em não nos darmos conta
da extraordinária grandeza do poder de Deus deve-se ao fato de que nunca nos
damos conta do poder do diabo. Quão pouco falamos sobre ele! E, contudo, no
Novo Testamento as suas atividades são mencionadas enfaticamente! Se tão-
somente compreendêssemos algo do poder do diabo, faríamos esta oração
que Paulo elevou em favor dos efésios, no sentido de que “os nossos olhos
fossem abertos para vermos a grandeza do poder de Deus” em nós. A Bíblia
ensina que o poder do diabo só vem em segundo lugar depois do de Deus. O
poder do diabo mostra-se terrivelmente claro na história de Adão e Eva. Ambos
eram perfeitos. O homem foi feito à imagem e semelhança de Deus; estava em
comunhão

com Deus, falava com Deus, conhecia a Deus. Além disso, ele estava no Paraíso
- ambiente perfeito. Ele nunca tinha pecado, e não havia nele nada que o
arrastasse para baixo - nenhuma cobiça, nenhuma corrupção. Fora dada a ele
uma justiça original; ele se mantinha íntegro, e na verdade era um reflexo de
Deus. E, apesar disso, ele caiu; e caiu por causa do poder e da astúcia do
diabo. Todavia, muitos cristãos consideram o diabo quase como uma criatura de
brinquedo, e podem até negar a sua existência. Por isso eles não se dão conta da
sua necessidade deste poder de Deus. Adão, o homem perfeito, foi derrotado e
derrubado por este inimigo poderoso. Judas nos diz em sua Epístola que o poder
do diabo é tão grande que até o arcanjo Miguel, quando contendia com ele
acerca do corpo de Moisés, “não ousou pronunciar juízo de maldição contra ele;
mas disse: o Senhor te repreenda” (versículo 9). O arcanjo sabia do poder do
diabo. O apóstolo Pedro escreve: “O diabo, vosso adversário, anda em derredor,
bramando como leão, buscando a quem possa tragar” (1 Pedro 5:8). Porventura
sabemos disso, como o apóstolo Paulo sabia, e como ele no-lo faz lembrar
no versículo 12 do capítulo 6 desta Epístola aos Efésios: “Não temos que lutar
contra a carne e o sangue, mas sim contra os principados, e potestades, contra os
príncipes das trevas deste século, contra as hostes espirituais da maldade, nos
lugares celestiais”? Por causa destas coisas precisamos ser iluminados com
relação ao poder de Deus operante em nós. Nenhuma outra coisa pode capacitar-
nos a resistir contra as ciladas do diabo.

Até aqui estivemos examinando o nosso problema negativamente. O lado


positivo é que somos chamados para guardar os mandamentos de Deus. Cristo
nos chama para guardarmos os Seus mandamentos. O propósito a nosso respeito
é que honremos os Dez Mandamentos e a Lei Moral de Deus - “Para que a
justiça da lei se cumprisse em nós, que não andamos segundo a carne, mas
segundo o espírito” (Romanos 8:4). Somos chamados para obedecer a essa Lei
Moral de Deus; somos chamados para viver de acordo com o ensino do Sermão
do Monte; somos chamados para tomar a cruz e seguir a Cristo no “caminho
estreito”, e viver como Ele viveu. É essa a nossa vocação. “Sede vós perfeitos,
como é perfeito o vosso Pai que está nos céus” (Mateus 5:48). O capítulo 13 da
Primeira Epístola de Paulo aos Coríntios também é uma descrição do que fomos
destinados a ser. Não fomos destinados simplesmente a crer

que os nossos pecados estão perdoados, e então procurar algum poder de Deus
para viver uma vida virtuosa.

É quando compreendemos a natureza da nossa elevada vocação que começamos


a entender o capítulo 7 da Epístola aos Romanos: “O querer está em mim, mas
não consigo realizar o bem. Porque não faço o bem que quero, mas o mal que
não quero esse faço. Miserável homem que eu sou!” (versículos 18,24).
Somente então nos vemos cantando de coração, não meramente com os lábios, o
hino de Augustus Toplady -

O labor de minhas mãos Não pode cumprir Tua lei;

Nem meu incansável zelo,


Nem meu incessante choro Podem pecado expiar;

Só Tu salvas, Tu somente.

Devemos entender claramente o que o apóstolo está pedindo em oração para os


efésios. Não é que percebam a sua necessidade de poder, e então que o peçam a
Deus; ele ora no sentido de que eles compreendam que este poder está neles. O
conceito sobre o cristão que o retrata como alguém que pode ter vivido anos
sem este poder de Deus, e de repente chega a perceber a sua necessidade e
procura seu atendimento e o obtém, é um conceito antibíblico. Você não poderá
ser cristão nem por um momento, se o poder de Deus não o sustentar.

Permitam-me sugerir um paralelo. Muitos parecem pensar na criação natural


nestes termos: acreditam que Deus criou o mundo no princípio, e depois (para
usar a velha ilustração), como faz o fabricante de relógios com um relógio, tendo
feito o mundo, deu-lhe corda e o deixou continuar funcionando por si. Mas isso
não é verdade. Segundo o ensino da Bíblia, Deus fez este mundo e o sustenta
todos os momentos. Se Deus retirasse o Seu poder, o mundo entraria em colapso
imediatamente; é o Espírito de Deus que dá vida, existência e sustento, a todas as
coisas. Dá-se precisamente o mesmo na nova criação. É uma falácia completa
pensar que Deus cria um homem novo, e depois o deixa entregue a si mesmo; e
que esse homem, quarenta ou cinqüenta anos mais tarde, talvez se dê conta da
sua necessidade de poder e o peça. Ele não poderia resistir por um momento, não
fosse este poder de Deus que

nele está. É a nossa compreensão disso que varia; entretanto, desde o momento
em que Deus põe Sua mão sobre um homem e o leva ao novo nascimento e à
nova vida, Ele continua a exercer este poder nele.

O modo como o Seu poder opera em nós é exposto pelas palavras de Paulo aos
filipenses, quando ele diz: “Deus é o que opera em nós tanto o querer como o
efetuar” (Filipenses 2:13). O poder de Deus se manifesta e opera em nós por
meio da Palavra escrita e por meio do Espírito Santo. Ele opera em minha
personalidade, afeta a minha vontade, e cria desejos e anseios dentro de mim.
Repentinamente sinto o desejo de ler a Palavra, ou de orar a Deus. E resultado da
operação de Deus o Espírito Santo gerando uma oração, ou me estimulando a
alguma outra atividade. Ele está constantemente estimulando a minha vontade e
me dando poder para agir. Como Isaac Watts nos lembra, “O Seu poder subjuga
os nosso pecados”. Ele está operando em nós constantemente; o seu Espírito
“sopra sobre a Palavra” e ilumina o nosso entendimento, que, por sua vez,
enternece os nosso corações e estimula as nossas vontades. O que precisamos
compreender é que Deus está operando, e que às vezes, mesmo quando não
sabemos disso, Ele está operando. Além disso, se ignorarmos os Seus impulsos,
as Suas solicitações e a Sua direção, de repente poderemos ver-nos castigados
por Deus. Então nos despertaremos para o fato de que nos esquecemos dEle e da
nossa necessidade da Sua força e poder; e voltaremos para Ele e começaremos a
orar pedindo perdão e forças. Esse é outro aspecto da operação de Deus em nós.
“Horrenda coisa é cair nas mãos do Deus vivo” (Hebreus 10:31). Se vocês são
filhos, diz o autor da Epístola aos Hebreus, estejam preparados para castigos. Se
vocês têm em si a vida de Deus, se Ele começou em vocês a “boa obra”, Ele
não desistirá, Ele a levará à perfeição. Se vocês não se deixarem levar por Ele,
serão levados à força; se recusarem ser induzidos e atraídos, serão castigados.
Deus quer o nosso aperfeiçoamento, e Ele não Se deterá por nada menos que
isso. A obra continuará, o poder de Deus continuará sendo exercido em nós até
ficarmos sem defeito; até que nos tornemos todos uma “igreja gloriosa, sem
mácula, nem ruga, nem coisa semelhante”. Ele quer que sejamos santos e sem
mancha em Sua presença.

Poderia haver algo mais importante para nós do que conhecer isso tudo?
Estamos nas mãos de Deus, e Ele está operando em nós. Ele nos deu poder para
crer, Ele está agindo em nós agora,

modelando-nos, amoldando-nos, aperfeiçoando-nos. Não podemos fugir disso;


estamos em Suas mãos, e ele continuará realizando a obra. Bendito seja o Seu
nome!

Ah, se pudéssemos conhecer isto mais e mais, e compreender o alto privilégio da


nossa vocação, a maravilha, o milagre desta nova vida que nos vem, toda ela, de
Deus e por Deus. O meu conforto, a minha consolação, a minha força, a minha
segurança, é saber que Deus está agindo em mim; e que Ele nunca cessará de
agir em mim, até quando eu estiver diante dEle na glória.
“A IGREJA QUE É O SEU CORPO”

“E sujeitou todas as coisas a seus pés, e sobre todas as coisas o constituiu como
cabeça da igreja, que é o seu corpo, a plenitude daquele que cumpre tudo em
todos.” - Efésios 1:22-23

Tendo estudado o poder de Deus em geral, passamos agora a mais esta


declaração concernente a Ele. Se vocês lerem esta passagem apressadamente,
poderão chegar à conclusão de que do versículo 20 ao fim do capítulo o que
ocorre é uma digressão. O apóstolo está orando no sentido de que possamos
conhecer a extraordinária grandeza do poder de Deus para conosco, os que
cremos, mas parece que ele é afastado do seu tema ao descrever esse poder. Diz
ele que esse é o poder que Deus pôs em ação quando ressuscitou Cristo dentre os
mortos. Depois ele passa a descrever a posição do Senhor Jesus Cristo
ressurreto, Sua exaltação, Seu poder e Sua relação com a Igreja. Ao que parece,
ele se afastou do seu tema por breve tempo, somente para retomá-lo no versículo
primeiro do próximo capítulo. Todavia o fato é que, naturalmente, não é esse
o caso. Há um sentido em que estes versículos são uma ligeira digressão, mas, se
os examinarmos bem, veremos que Paulo ainda está tratando da matéria que tem
em mãos. Ele quer que compreendamos a grandeza do poder que está agindo em
nós, e que saibamos como funciona. A minha opinião é que esse é o assunto de
que ele trata nos dois últimos versículos deste capítulo. E ele o faz em termos do
conceito, ou seja, da doutrina da Igreja como “o corpo de Cristo”.

Estamos encarando nesta passagem uma das grandes doutrinas do Novo


Testamento - a doutrina da Igreja Cristã. Não há figura que ele use com tanta
freqüência para dar-nos uma idéia da doutrina da Igreja, como esta figura ou
metáfora da Igreja como “o corpo” de Cristo. O apóstolo faz uso dela em suas
Epístolas aos Romanos e aos Coríntios muito explicitamente, e por
insinuação noutras Epístolas também. Não causa surpresa que o apóstolo ore tão
fervorosamente no sentido de que tenhamos o “Espírito de sabedoria e de
revelação”; não causa surpresa que ele repita a petição e diga que precisamos ter
“iluminados os olhos do nosso

entendimento”, pois esta é, indubitavelmente, uma das mais elevadas e sublimes


doutrinas e, portanto, uma das mais difíceis de entender. O próprio apóstolo, no
capítulo 5 desta Epístola ao Efésios, refere-se a esta doutrina como um “grande
mistério”, e, por definição, mistério é algo que não se pode entender facilmente.
Somente quando somos iluminados pelo Espírito Santo podemos entendê-lo.

A difícil natureza da doutrina, porém, não deve ser usada como desculpa para
não estudá-la. Muitos são culpados desta falta, e dizem que não têm nem tempo
nem capacidade para estudá-la. Mas, é bom assinalar que estas Epístolas do
Novo Testamento foram escritas para homens e mulheres como nós; na verdade,
foram escritas a pessoas às quais faltavam muitas das vantagens que temos.
Parece claro que, na maioria, os membros da Igreja Primitiva eram escravos,
sem nenhuma instrução escolar no sentido moderno. Quando o apóstolo
escreveu esta carta para eles, seu propósito era que eles a lessem e a
entendessem; sua intenção era que eles se apegassem a ela. Ele sabia que eles
não poderiam fazê-lo somente por suas capacidades naturais, porém sabia que
qualquer que seja iluminado pelo Espírito Santo, não somente fica ansioso
por entendê-la, mas também pode entender e compreender que é seu dever fazê-
lo. Não há nada mais desanimador acerca da Igreja moderna, nada mais culposo,
do que a sua falha em não apegar-se a estas grandes verdades do Novo
Testamento. Hoje em dia há muita prosa sobre simplicidade, alguns dizendo que
“não podem incomodar-se com doutrina”. Dá-se também muita ênfase ao canto;
no entanto, a igreja não é lugar para entretenimento, ou onde as pessoas se
assentam e ouvem ou cânticos ou experiências de outros, isso acoplado a uma
breve, leve e agradável mensagem. Se devemos crescer, se devemos subir às
alturas da nossa “soberana vocação em Cristo Jesus”, e se devemos ser cristãos
viris neste trágico mundo moderno, precisamos encarar estas grandes e gloriosas
doutrinas, e assim exercitar as nossas mentes, o nosso entendimento e todos os
nossos sentidos, para que comecemos a ter uma vaga concepção de nós mesmos
neste grande cenário e contexto do corpo de Cristo.

Comecemos então a considerar o que o apóstolo tem para dizer acerca da Igreja.
É evidente que o apóstolo sabia da dificuldade de transmitir esta verdade. Por
isso ele varia as suas comparações e metáforas. De todas as suas figuras, reitero,
a mais comum é a da

Igreja como o corpo de Cristo. Mas não é a única. Vemos no capítulo 2 que ele
compara a Igreja com um edifício. Jesus Cristo, diz ele, é “a principal pedra da
esquina”, e os apóstolo e profetas são o fundamento. Contudo ele também
compara a Igreja com uma casa, com uma família. Os crente são a “família de
Deus”. Ele também a compara com um grande império. Sendo prisioneiro em
Roma, naturalmente parece ter-lhe ocorrido que a Igreja Cristã é, em muitos
aspectos, como o Império Romano. Há uma grande sede central da autoridade,
mas tem o seu povo espalhado pelo mundo inteiro, e diversos oficiais que
governam o Império. Mais adiante, no capítulo 5, ele compara a Igreja com uma
esposa, e afirma que a relação entre Cristo e a Igreja é semelhante à que existe
entre o esposo e sua esposa. Recordemos também como o nosso Senhor, no
capítulo 15 do Evangelho Segundo João, compara a Igreja com uma videira
e seus ramos.

Todas essas figuras visam habilitar-nos a termos algum entendimento da nossa


relação com o Senhor Jesus Cristo, e, especialmente nos dois versículos aos
quais estamos dando atenção agora, a entendermos como o extraordinário poder
que há nEle vem para dentro de nós e nos capacita a viver a vida cristã e a obter
a certeza de que vamos desfrutar a “possessão adquirida”. Esse é o contexto dos
nossos versículos. Por isso não devemos considerar a doutrina da Igreja de
maneira teórica ou acadêmica ou abstrata. Estamos interessados nela, como
devemos estar neste contexto, com o fim de podermos ver como é que este
“extraordinariamente grande poder de Deus”, como é que “a energia da força do
poder de Deus” realmente opera em nós.

A maneira de compreender a verdade acerca desse poder, diz-nos o apóstolo, é


compreender a nossa relação com o Senhor Jesus Cristo; e o melhor modo de
compreender isso é pela figura da Igreja como o Seu corpo. Alguns princípios
emergem logo de início. O primeiro - um princípio comum a todas as ilustrações
e metáforas -é que estamos “ligados” a Cristo, estamos “unidos” a Cristo.
De maneira igualmente clara, a analogia acentua que estamos unidos e ligados a
Cristo, não de maneira mecânica ou frouxa, e sim de maneira orgânica e vital, da
maneira mais penetrante. Naturalmente, isso pertence à própria essência desta
doutrina. Considerem isso em termos de um corpo humano. De um determinado
ponto de vista, um corpo é uma coleção de várias partes - dedos dos pés e das
mãos, braços, pernas, etc. Mas a verdade essencial acerca do

corpo é que ele não é um certo número de partes soltas que de um modo ou de
outro se ligaram ou se juntaram umas às outras. A maravilha do corpo é que
todas as suas partes são realmente uma, que elas estão numa unidade orgânica,
essencial e vital. Para fazer uma colocação nua e crua, os meus dedos não estão
ligados à palma da minha mão frouxamente, não estão simplesmente atados a
ela; há uma conexão viva, há uma conexão vital, há um sentido em que não se
pode dizer onde exatamente a palma termina e os dedos começam. São partes
integrantes uns dos outros - os dedos e a palma; a conexão é íntima, orgânica,
vital, vivida; Este é o primeiro princípio essencial a que devemos apegar-nos, se
é que havemos de captar a doutrina sobre a Igreja. Todas as figuras e analogias
sugerem isso; mas é particularmente claro na analogia do corpo.

Não devemos forçar, porém me parece que temos direito de dizer que, assim
como as partes do meu corpo se desenvolveram de uma célula original da qual
todos começamos, nesse sentido cada um de nós é verdadeiramente membro da
Igreja Cristã, e verdadeiramente nasceu de novo, é um rebento de Cristo, algo
que se desenvolveu a partir de Cristo. Nós somos provenientes dEle;
não estamos apenas frouxamente ligados a Ele. Esta é a idéia vital da Igreja. Na
Primeira Epístola aos Coríntios o apóstolo diz-nos que isso acontece assim:
“Pois todos nós fomos batizados em um Espírito formando um corpo” (VA:
“Pois todos nós fomos batizados por um só Espírito em um corpo”) (12:13).
Trata-se de uma unidade espiritual, de uma unidade mística; e, portanto, é algo
indissolúvel, porquanto é vital e orgânico.

Certas verdades subsidiárias emergem disso. Fica patente que é uma unidade que
nós mesmos não podemos produzir. Estamos de volta a este princípio
fundamental, segundo o qual tudo é resultado da ação e do poder de Deus. É
unicamente a obra do Espírito Santo que faz de nós cristãos. Para expor o ponto
doutra forma, vemos que esta relação do crente com Cristo não é algo
espasmódico; não é algo que pode existir hoje e não existir amanhã. Não é algo
que depende da nossa concentração ou da nossa fidelidade. Como é obra do
Espírito, e realizada por Ele a Seu modo, é permanente. Você não pode entrar e
sair do corpo de Cristo. Isso de “cair da graça” não existe. Você pode desviar-se,
pode ser excluída da comunhão da igreja visível; mas, se você está no corpo de
Cristo, está no corpo de Cristo, e permanecerá no corpo de Cristo. A união

é orgânica, vital, espiritual.

O segundo princípio particularmente salientado pelo apóstolo aqui é que o


Senhor Jesus Cristo é a cabeça da Igreja. Diz ele que Deus “sujeitou todas as
coisas a seus pés, e sobre todas as coisas o constituiu como cabeça da igreja, que
é o seu corpo, a plenitude daquele que cumpre tudo em todos”. Esta declaração é
notoriamente difícil expor, e são muitas as diferentes opiniões sobre a
sua interpretação exata. Comecemos tecendo considerações sobre aquilo de que
podemos ter certeza. Paulo declara que o Senhor Jesus Cristo é “a cabeça da
igreja”, “a cabeça do corpo”. Nesta passagem ele não está pensando
primariamente na autoridade ou no governo. Naturalmente, é verdade que, como
Cabeça da Igreja, Cristo é a única autoridade, e não devemos reconhecer
nenhuma outra. Não há chefe da Igreja, exceto o Senhor Jesus Cristo; e é da
essência da posição reformada que afirmemos essa verdade. Não reconhecemos
nenhum ser humano como chefe da Igreja; somente Cristo é o Rei e o Chefe da
Igreja.

Mas não é a isso que o apóstolo está dando ênfase nesta altura; ele está
interessado em dizer que, como Cabeça da Igreja, Cristo é a origem e o centro da
vida da Igreja. A analogia do corpo mostra isso com muita clareza. No corpo a
cabeça é a origem e o centro da energia ou poder. O corpo deriva a sua energia
vital da cabeça. Nada oferece maior prova da divina inspiração das Escrituras
do que a maneira pela qual o apóstolo Paulo e outros foram levados a usar esta
analogia. Eles não possuíam o conhecimento que agora temos de anatomia e
fisiologia; porém a analogia é perfeita, em termos dessas ciências. Não há
nenhuma parte do corpo que não seja controlada pelos nervos e pelo sistema
nervoso. A vida de cada músculo e de cada parte lhes é transmitida pela energia
e força nervosa. E, em última análise, todos os nervos podem ser rastreados de
volta ao cérebro, situado na cabeça. Esta constitui o centro e a origem, pelo que é
ela que controla a energia nervosa do corpo todo e de cada parte e partícula do
sistema. Quando o apóstolo declara que Cristo é a Cabeça da Igreja, ele fala
nesse sentido. Não temos vida fora dEle; toda a energia e todo o poder provêm
dEle. Para expor negativamente o ponto, podemos dizer que, como cristãos, não
temos vida independente. Ele é a Videira, nós somos os ramos; os ramos nunca
existiriam sem a videira. Tudo vem do Senhor. Diz o apóstolo João: “Todos nós
recebemos também da sua plenitude, e graça por graça” (João 1:16). A vida do
corpo todo e todas as partes

individuais vêm da cabeça, e é isso que particularmente quer dizer a afirmação


de que Cristo é a Cabeça da Igreja.

Outra dedução óbvia é que a mesma vida se acha em cada parte e porção do
corpo; e é isso que dá unidade ao corpo. O corpo humano é uma unidade simples
graças a esta conexão íntima, graças a esta inter-relação. Nenhuma parte do
corpo tem existência independente; todas as partes estão interligadas umas às
outras por causa deste princípio de unidade orgânica. Num tempo como
este, quando tanto se fala da unidade da Igreja e de uma igreja
mundial, lembremo-nos de que a unidade concebida em termos de mera junção
de organizações externas é completamente anti-escriturística. Amalgamar
diversas denominações não pode produzir unidade espiritual. Têm sido feitas
muitas tentativas nesse sentido, entretanto nunca tiveram êxito real, e nunca
terão. Mas, tenham ou não êxito em termos de organização, não o terão
espiritualmente. É o Espírito Santo que faz ey constitui a unidade; é a vida e
energia comum que nos faz um. É esta qualidade vivida e essencial presente no
sistema nervoso, e no sangue que corre por todo o corpo humano, que explica a
unidade do corpo. Precisamente o mesmo princípio prevalece na vida da Igreja
Cristã. Que certo número de pessoas se reunam numa conferência e concordem
em dizer que, por amor da unidade, não darão ênfase ao nascimento virginal, ou
à teoria da expiação vicária, ou à fé nos milagres, ou a diversas outras doutrinas,
não pode produzir a unidade da qual fala o apóstolo. A única unidade é a
unidade no Espírito, uma unidade feita pelo Espírito, ditada pelo Espírito,
sustentada e mantida pelo Espírito. E como Ele é o Espírito da verdade, e Ele
revelou essa verdade como a temos no Novo Testamento, a unidade só pode
resultar da aceitação dessa verdade, e não pode ser produzida por algum
denominador comum forjado por eclesiásticos astutos.

A nossa terceira dedução é tirada da declaração, “da igreja, que é o seu corpo, a
plenitude daquele que cumpre tudo em todos”. Estas palavras dizem-nos que
Cristo enche com a Sua própria vida o corpo. Dizem-nos as Escrituras que no
Senhor Jesus Cristo habita “corporalmente toda a plenitude da divindade”
(Colossenses 2:9), e na passagem que estamos estudando nos é dito que da
mesma maneira, e pela mesma analogia, a plenitude do Filho está na Igreja que é
o Seu corpo.

Mais uma vez é útil a analogia do corpo humano. Há um sentido em que cada
parte do meu corpo está cheia da minha vida e de

mim. Minha vida e meu ser estão em cada parte do meu corpo; na verdade, no
momento em que eu deixar de existir, cada membro individual do meu corpo
morrerá. Se eu cortar o nervo principal, ou o suprimento de sangue, por
exemplo, a um dedo, este logo deixará de ser parte do meu corpo. A totalidade
da minha vida está em cada parte singular. Essa é a assombrosa declaração feita
aqui acerca da Igreja Cristã, e acerca de nós mesmos como membros da Igreja
Cristã. Sua “plenitude” está nela, em nós. Toda a vida da videira está no ramo.
Está toda ali, num sentido, embora noutro sentido, naturalmente, ela não esteja
toda ali. Mas neste sentido orgânico, vital, está toda ali. Portanto, como cristãos,
devemos compreender que, embora estejamos bem conscientes da nossa
fraqueza, e da força do pecado dentro e fora de nós, e da força do mundo, da
carne e do diabo - devemos compreender que todos os atributos, poderes
e graças do Senhor Jesus Cristo estão em nós, como membros que somos do Seu
corpo. Toda a Sua vida está em nós; fomos feitos “participantes da natureza
divina” (2 Pedro 1:4). Ele é a fonte de todo o poder em nós, que somos membros
do Seu corpo. Ele nos dá a energia necessária para desempenharmos as nossas
funções individuais.

O corpo é um, e, todavia, consiste de diversos membros ou partes individuais.


Como Paulo diz em 1 Coríntios: “Vós sois o corpo de Cristo, e seus membros
em particular” (12:27). No corpo humano, como ele assinala, a mão tem uma
função e o pé tem outra; o nariz, os olhos, os ouvidos e as diversas partes do
corpo têm os seus respectivos papéis para desempenhar. Há os
“membros nobres” e os “menos dignos” (ARA), porém todos eles são essenciais
e trabalham juntos para a finalidade comum do funcionamento próprio do corpo
todo. Mas o que temos de lembrar principalmente é que, como membros do
corpo místico de Cristo, e tendo os nossos papéis individuais para desempenhar,
a energia e o poder que exercemos, tudo vem de Cristo. Ele deixou isto bem
claro, quando disse: “Sem mim nada podeis fazer”. Podemos ser muito ativos
e ocupados; todavia isso não é necessariamente realizar a Sua obra. O apóstolo
Paulo adverte particularmente os pregadores no capítulo 3 da Primeira Epístola
aos Coríntios, de que alguns, ao erigirem um edifício, usam “madeira, feno,
palha” (versículo 12). Ele pode ter toda a aparência de um bom edifício, mas,
quando provado pelo fogo, será totalmente queimado e destruído. A obra de
valor, a obra que dura, é a obra que Ele, e somente Ele, nos habilita a realizar, à

Sua maneira e usando os materiais que Ele fornece. Sem Ele, não podemos fazer
nada; mas com Ele, todas as coisas são possíveis. Por isso podemos dizer com
Paulo: “Posso todas as coisas naquele que me fortalece” (Filipenses 4:13).

Tudo isso está implícito na idéia de que o Senhor Jesus Cristo é a Cabeça da
Igreja; e assim, quando contemplamos a vida e todas as suas dificuldades, e
quando somos tentados por satanás a achar que tudo é impossível, e que não
podemos ir adiante porque somos tão fracos e as dificuldades são frustrantes,
devemos lembrar-nos dessa verdade e dizer: sou um pequeno membro do corpo
de Cristo, sou insignificante, mas sou membro do corpo de Cristo; estou “nEle”
e, portanto, o que quer que se possa dizer com verdade sobre mim pessoalmente,
a vida da Cabeça está em mim, estou relacionado com aquele centro nervoso,
estou em contato com Ele, Sua energia vital está em mim. O apóstolo ora nos
sentido de que os efésios, e nós com eles, venhamos a entender isso. Ele quer
que tenhamos “iluminados os olhos do nosso entendimento”, e conheçamos
“a extraordinária grandeza do seu poder para conosco, os que cremos”. Por isso
não devemos pensar em Cristo como uma espécie de grande casa de força à qual
podemos estar ocasionalmente ligados, e às vezes desligados, como que por um
interruptor. Estamos sempre “nEle”, somos membros do Seu corpo, Ele é a
Cabeça e nós somos os Seus membros, e há esta conexão vital, indissolúvel,
entre nós. Quando os nosso olhos são abertos para esta verdade, podemos tomar
novo ânimo, reassumir a nossa tarefa e dizer: em Cristo não posso falhar, não
devo falhar, Ele não permitirá que eu falhe.

Quase hesito em mencionar o próximo grande princípio ensinado aqui na frase:


“da igreja, que é o seu corpo, a plenitude daquele que cumpre tudo em todos”.
Há pouco vimos que uma interpretação de “...a plenitude daquele que cumpre
tudo em todos” é que a Sua plenitude está na Igreja, no Seu corpo. Contudo,
eu concordo com aqueles que dizem que essa frase também significa que há um
sentido em que nós, como a Igreja, somos a Sua plenitude. Mas, procuremos
entender claramente o que isso significa. O Senhor Jesus Cristo como o eterno
Filho de Deus, é eternamente auto-suficiente e independente, e não tem
necessidade de nós. No entanto, quando pensamos no Senhor Jesus Cristo como
o Mediador, como o Deus-homem, como Aquele que veio realizar a redenção e
apresentar Seu povo a Seu Pai, então, nesse sentido, Ele está ligado ao corpo e
necessita dele. A cabeça sozinha não é completa.

A cabeça necessita do corpo, e não se pode pensar numa cabeça sem corpo.
Assim, o corpo e a cabeça são uma só realidade, neste sentido místico. Nessa
qualidade, nós, cristãos, somos parte da “plenitude” do Senhor Jesus Cristo.

Esta é a admirável concepção neotestamentária da Igreja, e desde quando o


Senhor Jesus Cristo ascendeu e retornou ao céu, este Seu corpo, a Igreja, está
sendo aperfeiçoado. Pensem num bebê recém-nascido. Num sentido a criança é
perfeita; mas ela pode crescer e desenvolver-se, e chegará a certa maturidade. A
mesma coisa com a Igreja Cristã. Da Ascensão ao Segundo Advento, o corpo de
Cristo cresce e se desenvolve; e virá o dia em que ela estará completa e será
perfeita. Então a “plenitude” dos gentios se cumprirá, e a plenitude de Israel
também terá sido salva. Então o corpo estará inteiro e completo e terá atingido a
sua plenitude. Portanto, devo pensar em mim, cristão humilde, indigno e
insignificante como sou, como alguém que é essencial e vital para a “plenitude”
do corpo místico de Cristo. Que idéia maravilhosa! À medida que captarmos
essa idéia, receberemos forças para não pecar. Ele nos capacitará a ver o pecado
sob nova luz. Um membro deste corpo continuará em pecado? Impossível! Não
há método que leve tão diretamente à santidade e à santificação como o
entendimento desta doutrina neotestamentária da Igreja como o corpo de Cristo.
Somos parte da “sua plenitude”, da Sua totalidade mística como o Mediador,
como Aquele que foi dado à Igreja por Deus para ser a sua Cabeça.

Prossigamos, porém, para algumas conclusões. Uma das mais gloriosas é que,
em vista do fato de que a Igreja é o corpo de Cristo, e de que ele é a Cabeça,
estamos autorizados a dizer que o que é verdade a respeito de Cristo, é verdade a
nosso respeito. A mais clara exposição disso vê-se nos capítulos 5 e 6 da
Epístola aos Romanos. Assim como todos nós estávamos “em Adão”, assim
todos os que cremos no Senhor, agora estamos “em Cristo”. Adão pecou, e todos
nós pecamos com ele. Estávamos em Adão, por assim dizer, estávamos nos
lombos de Adão, e quando ele agia, agia por nós todos como a nossa cabeça e
como o nosso representante. Somos responsáveis pelo pecado de Adão; isto é,
pelo pecado original. Mas devemos ver o outro lado. Agora estamos “em Cristo;
Ele é a Cabeça do corpo do qual fazemos parte. O que quer que a Cabeça faça, o
corpo todo faz também. Portanto, fomos “crucificados com Cristo”. Quando Ele
foi crucificado, eu fui crucificado; o meu velho

homem, o homem que eu era em Adão, foi crucificado. Eu, o homem que nasceu
em pecado, morri com Cristo. Nesse sentido eu estou tão morto como Ele esteve.
Estou “morto para o pecado”, “morto para a lei”. Ambos os aspectos estão
liquidados. Crucificado com Ele, morto com Ele, sepultado com Ele! Mas, eis
um fato glorioso, o que o apóstolo declara enfaticamente é que eu
também ressuscitei com Ele. Exatamente como o poder de Deus
ressuscitou Cristo dentre os mortos, também me ressuscitou com Ele. O apóstolo
argumenta na Epístola aos Colossenses: “Portanto, se já ressuscitastes com
Cristo ... pensai nas coisas que são de cima, e não nas que são da terra” (3:1-2).
Em Romanos 6:11 ele o expõe assim: “Assim também vós considerai-vos como
mortos para o pecado, mas vivos para Deus”.

Tudo isso decorre inevitavelmente da verdade concernente à Igreja como o corpo


de Cristo. No capítulo 2 desta Epístola aos Efésios o apóstolo nos diz
concretamente que já estamos “sentados em lugares celestiais” com o Senhor
Jesus Cristo - “Estando nós ainda mortos em nossas ofensas, nos vivificou
juntamente com Cristo (pela graça sois salvos), e nos ressuscitou juntamente
com ele e nos fez assentar nos lugares celestiais, em Cristo Jesus” (versículos 5-
6). Já estamos ali por causa da nossa união mística com Ele. Desde que Ele é a
Cabeça, e nós somos o corpo, o que é verdade sobre Ele é verdade sobre nós.
Você crê nesta verdade? Você está vivendo com santa consciência disso? E para
você o pensamento mais jubiloso que jamais teve? Pois é verdade. Não é mera
teoria, é fato. Já estamos “em Cristo” em todos esses aspectos. Já terminamos
com a lei, a qual condena. Já terminamos com a morte, que leva definitivamente
à perdição, à “segunda morte”, assim chamada. Não temos nenhuma relação com
ela porque estamos em Cristo, ressurretos com Ele, e sentados com Ele nos
lugares celestiais.

Isso nos leva a um pensamento final. Muitos cristãos freqüentemente ficam


perplexos e em dificuldade quanto à relação da operação do Senhor em nós com
o que nós fazemos. A doutrina do “permanecer em Cristo” os deixa confusos, e
isso geralmente é representado como algo inteiramente passivo e em termos de
“Deixa a coisa andar e deixe com Deus”. Opino que esta analogia, esta metáfora
da Igreja como o corpo de Cristo, há de livrar-nos dessa confusão e habilitar-nos
a ver a relação existente entre a Sua ação e a nossa. A declaração de Paulo no
capítulo 2 da Epístola aos Filipenses põe isso às claras: “Operai a vossa salvação
com temor e

tremor; porque Deus é o que opera em vós tanto o querer como o efetuar”
(versículo 12-13). O sentido absolutamente não é que, se queremos ter vitória em
nossa vida, devemos parar de agir; o erro que cometemos é que agimos demais,
somos demasiado ativos. Não devemos fazer nada, senão olhar para o Senhor, e
Ele o fará por nós! Essa é a teoria! Mas Paulo dá uma ordem específica, dizendo-
nos que devemos agir, e fazê-lo com “temor e tremor”. E acrescenta: “Porque
Deus é o que opera em nós tanto o querer como o efetuar”.

Como podemos conciliar ambas as afirmações? Retornemos à ilustração do


corpo humano. Pensem num músculo, ou num grupo de músculos do braço. Em
cada músculo há vida e poder supridos, como já vimos, pelo nervo que vai até
ele. Originariamente vêm de um centro que há no cérebro do qual o nervo que
vai àquele músculo deriva o seu poder e a sua força. O músculo não está isolado,
não pode fazer nada por si mesmo; porém é vivo porque recebe energia e vida do
cérebro por meio daquele nervo. Em seu estado normal ele fica relaxado e mole.
Nesse estado ele pode fazer pouca coisa, se é que pode fazer algo; não pode
capacitar você a levantar pesos, por exemplo. Para que o músculo, ou o grupo de
músculos, possa ter valor ou ajudar-nos, terão que ser exercitados e
desenvolvidos. Se deixarmos de exercitá-los e desenvolvê-los, e
simplesmente esperarmos por algum súbito aumento de força, ficaremos
tristemente decepcionados. Para desenvolver um músculo é preciso exercitá-lo.
E quanto mais exercitarmos o músculo, maior serão a energia e o poder de que
será suprido. Estas duas coisas operam juntas e ao mesmo tempo. Não devemos
dizer que tudo vem do cérebro, nem que tudo está no músculo; o músculo faz
uso do poder que recebe do cérebro através do nervo. O cérebro age através do
músculo desenvolvido.

Isso ilustra a verdade vital acerca da nossa vida e luta cristã, acerca do nosso
desenvolvimento, acerca do nosso crescimento em santidade e santificação. As
duas escolas de pensamento que estão nos extremos opostos estão patentemente
erradas em seu ensino e em suas conclusões. Os que afirmam que os crentes
fazem tudo na vida cristã estão errados; e os que dizem que os crentes não têm
que fazer nada, exceto “olhar para Cristo” e “esperar que Ele o faça” estão
igualmente errados. Visto que a Igreja é o corpo de Cristo, e todas as partes e
porções singulares estão vitalmente ligadas a Ele como a vida de todas elas, todo
cristão tem em si este poder. Mas

temos que exercitar o poder; e ao exercitarmos o poder, inevitavelmente


recebemos mais poder. Portanto, se você se sente fracassado e derrotado, não ore
rogando que obtenha força e poder; “resista ao diabo” e “mortifique os seus
membros que estão na terra”. Não espere que o Senhor Jesus Cristo tire de você
as suas cobiças e paixões; não espere que Ele faça tudo por você enquanto você
simplesmente “permanece” nEle. Exercite o poder que há em você. Como
cristão, a vida de Cristo está em você; aperceba-se disso, e comece a usá-la e a
exercitá-la. Faça uso dos seus músculos espirituais, mortifique os membros do
seu corpo que têm sido usados como instrumentos do pecado; faça tudo o que
puder, com todas as suas forças; e quando você estiver fazendo isso, maior poder
e energia fluirá para dentro de você.

O que vale para a fisiologia do corpo é igualmente válido espiritualmente. O


modo de receber mais poder é usar e exercitar o poder que você tem. Como
cristão, você não está sem vida, você esta ligado à Cabeça. A energia nervosa
espiritual está nela. Você diz: “os meus músculos estão flácidos”, e eu replico:
“Exercite-os”. Similarmente, não fique esperando por uma súbita bênção
de santificação, faça tudo o que puder, e a bênção virá. Você terá consciência de
maior poder, e o Senhor Se revelará a você na força e na maravilha do Seu poder.

Nunca nos esqueçamos de que “a energia da força do poder de Deus” está em


nós por causa do nosso relacionamento com o Senhor Jesus Cristo, que é a
Cabeça do corpo, do qual somos partes. Não há escusa para o pecado, não há
escusa para o fracasso; a energia está ali, e eu devo usá-la, devo exercer as
minhas faculdades, e então verei que há infinitamente mais energia
disponível. Prosseguirei “de força em força”, “de glória em glória”, até
finalmente, com todos os outros cristãos, chegar à condição de homem perfeito,
à medida da estatura da plenitude de Cristo. Queira Deus, pelo Espírito Santo, de
tal maneira iluminar “os olhos do nosso entendimento” que venhamos a saber de
fato que somos membros do Seu corpo!

A CONSUMAÇÃO FINAL

“E qual a sobreexcelente grandeza do seu poder sobre nós, os que cremos,


segundo a operação da força do seu poder, que manifestou em Cristo,
ressuscitando-o dos mortos, e pondo-o à sua direita nos céus, acima de todo o
principado, e poder, e potestade, e domínio, e de todo o nome que se nomeia,
não só neste século, mas também no vindouro; e sujeitou todas as coisas a seus
pés, e sobre todas as coisas o constituiu como cabeça da igreja, que é o seu
corpo, a plenitude daquele que cumpre tudo em todos

-Efésios 1:19-23

Levamos a uma conclusão o nosso estudo da mensagem desta nobre e


comovente declaração, e na verdade deste capítulo, em muitos aspectos o mais
grandioso que o apóstolo escreveu. Ele ora sem cessar, rogando que estes efésios
conheçam o “extraordinariamente grande poder de Deus, a energia da força do
poder de Deus” que está agindo neles. Ele ora urgentemente, porque não há
nada que seja tão fortalecedor da fé, nada que tanto nos habilite a prosseguir na
vida cristã e na luta cristã, como a compreensão destas coisas.

A maneira de desfrutar rica experiência na vida cristã, segundo o meu


entendimento do Novo Testamento, é captar o ensino do Novo Testamento, a
verdade do Novo Testamento. Noutras palavras, o caminho para uma rica
experiência subjetiva e, em primeira instância, um mais claro entendimento
objetivo da verdade. As pessoas que negligenciam a doutrina raramente têm
grandes experiências. A estrada real que conduz à experiência é a verdade,
e concentrar-nos unicamente na experiência, em geral é ter uma vida cristã que
se passa presa “aos baixios e misérias”.

A palavra final do apóstolo Paulo é que devemos conhecer a sobreexcelente


grandeza do poder de Deus para conosco, como crentes que somos. Temos de
compreender que a energia de que necessitamos nos vem de Cristo e mediante
Cristo, a Cabeça do corpo, e que todos os acessórios de que necessitamos estão
em Cristo, e que Deus os colocou nEle e nEle os entesourou. Acima de
tudo mais, pois, devemos conhecer a verdade concernente a Ele. Por isso

vemos que o apóstolo encerra com a palavra sobre a glória e a pre-eminência de


Cristo. Já vimos como Paulo fica repetindo o bendito nome, ao conduzir-nos
através do capítulo. O apóstolo começa com Ele. Quem é Paulo? É um “apóstolo
de Jesus Cristo”. Depois ele passa a “Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor
Jesus Cristo”. Como ele se regozijava e se gloriava no nome que está acima de
todo outro nome! Oxalá aprendamos a fazer o mesmo, ao passarmos a considerar
o que o apóstolo nos diz.

Primeiro examinemos a descrição propriamente dita. Diz-nos o apóstolo que, se


havemos de entender este poder que está agindo em nós, devemos vê-lo como é
ilustrado no que Deus fez em Cristo, no poder que “manifestou em Cristo,
ressuscitando-o dos mortos”. Que demonstração de poder foi esse! Quando todas
as forças do mal e do inferno, quando a morte e o sepulcro estavam
tentando retê-10, Ele foi ressuscitado pelo poder de Deus. A morte não
pôde retê-10, o sepulcro não pôde retê-10. “Ele rompeu os laços da morte.” Ele
Se levantou triunfante sobre o sepulcro. Mas não foi só isso! O apóstolo não
somente declara que Deus “o ressuscitou dos mortos”, mas também que O
colocou “à sua direita nos céus”. E o nosso bendito Senhor ali está neste
momento. Ser colocado à direita do hospedeiro em qualquer recepção é sempre
sinal de honra, e às vezes de autoridade. Assim é um jantar, ou um banquete, ou
em qualquer ocasião importante, cívica ou social. E este é o lugar de honra dado
ao Senhor Jesus Cristo por Seu Pai. “O mais elevado lugar de que o céu dispõe é
dEle, e de pleno direito.” A direita é sempre o lugar de autoridade, e o apóstolo
nos garante que Deus ressuscitou Seu Filho dentre os mortos e O colocou numa
posição de autoridade. Temos uma declaração semelhante, paralela a esta, no
capítulo 2 da Epístola aos Filipenses: “Pelo que também Deus o exaltou
soberanamente, e lhe deu um nome que é sobre todo o nome” (Filipenses 2:9).
Numa posição mais elevada, nem maior honra poderia ser dada ao nosso Senhor
Jesus Cristo.

Mas o apóstolo ainda não terminou. Ele continua com a sua descrição da glória e
da honra dadas ao Filho. Deus O colocou “à sua direita nos céus, acima de todo
o principado, e poder, e potestade, e domínio, e de todo o nome que se nomeia,
não só neste século, mas também no vindouro”. Os eruditos comentadores, como
é seu costume, quando chegam a esta passagem, passam muito tempo tentando
descobrir a quem se referem os termos “principado”,

“poder”, “potestade”, e “domínio”. O apóstolo estaria pensando nos anjos maus


ou nos anjos bons? Essa é a questão que eles discutem. O que certamente está
bem claro é que Cristo foi colocado numa posição de autoridade e de honra
acima de todos os poderes. Há poderes maus que exercem domínio neste mundo
- “não temos que lutar contra a carne e o sangue, mas sim contra os
principados, contra as potestades, contra os príncipes das trevas deste
século, contra as hostes espirituais da maldade, nos lugares celestiais” (Efésios
6:12). O mundo está como está hoje por causa deste principados e potestades,
destes poderes espirituais invisíveis. Cristo é maior do que eles em poder,
dignidade, majestade e posição.

No entanto, eu afirmo que o apóstolo não se refere somente a tais poderes, mas
também aos anjos bons, os anjos bem-aventurados. Ele foi colocado acima deles
todos. Uma perfeita descrição disso acha-se no capítulo primeiro da Epístola aos
Hebreus, onde o autor descreve algo da grandeza dos anjos e do seu poder, e
depois conclui dizendo que, afinal de contas, eles são apenas
“espíritos ministradores” (versículo 14). Eles não são iguais ao Filho; falta-lhes a
Sua singularidade. Deus não disse a nenhum deles: “Tu és meu Filho, hoje te
gerei” (Hebreus 1:5). Essa linguagem está reservada unicamente para o Seu
Filho. O meu parecer é, pois, que o apóstolo nos está dizendo que o Filho de
Deus, o nosso Senhor Jesus Cristo, é elevado e exaltado até mesmo acima dos
arcanjos Gabriel e Miguel, os servos especiais de Deus. Ele está acima
deles todos, Ele está à direita de Deus, compartindo o trono com Seu Pai, muito
acima de todo o principado, e poder, e potestade, e domínio. Tal é a medida do
poder de Deus que se mostra no Senhor Jesus Cristo. O Pai não somente O
ressuscitou dentre os mortos e do túmulo, como também O elevou e O colocou
no lugar de suprema honra e autoridade, à Sua direita.

Mas Paulo ainda acrescenta algo a isso, e diz: “E sujeitou todas as coisas a seus
pé”. Todas as coisas estão em sujeição ao Senhor Jesus Cristo. Ele é Senhor
sobre cada uma delas. Ou, vejam-no mais positivamente: “e sobre todas as coisas
o constituiu como cabeça”. Deus fez do Seu Filho o Dominador sobre todas as
coisas, o universo material inclusive. Ele “dá asas ao anjo, guia o pardal”.
Quando Deus fez o mundo, não o fez, como alguns ensinam, como o fabricante
de relógios faz um, dá-lhe corda e o deixa. O universo é sustentado ativamente
por Deus, e Ele passou ao Filho essa autoridade. Ele é o Dominador, o Cabeça
sobre todas as coisas. Ele dirige
“os astros em suas órbitas”, o oceano em seu movimento, o vento e a chuva, o
furacão e a tempestade, a luz do sol, tudo. Toda forma de vida está em Suas
mãos, Ele é “cabeça sobre todas as coisas”.

Contudo, isto não se aplica somente ao universo material; também se aplica ao


universo moral e ao universo espiritual. Deus O fez o Cabeça sobre todas as
coisas; deu-Lhe esta dignidade . O Criador do universo, o Artífice, o Dominador
do cosmo, entregou a Ele o controle de tudo, em toda parte.

E muito importante que compreendamos algumas verdades relacionadas, em


particular com respeito a esta descrição da glória de Cristo. Primeiro, precisamos
compreender que as honras de Cristo já pertencem a Ele. Há muitos que se
mostram tão desejosos de acentuar a glória da futura manifestação visível do
reino e do reinado de Cristo que se tornam culpados, embora inconscientemente,
de subtrair-Lhe o que já Lhe é próprio. Passam tanto tempo olhando para o
futuro que se esquecem do presente, e subestimam completamente a posição
atual do Senhor e do Seu povo. A atitude deles é no sentido de que não temos
que fazer coisa alguma, senão esperar pela glória vindoura e viver o melhor que
pudermos no presente, à luz dessa esperança. Já demos ênfase à glória que virá,
à bendita esperança da qual devemos “pensar”; mas não devemos fazê-lo em
detrimento da percepção do que é real neste momento. Deus já fez estas coisas
em Cristo. Ele já O ressuscitou dentre os mortos, já O colocou à Sua direita nos
lugares celestiais, muito acima dos outros poderes, colocou sob Seus pés todas as
coisas, e O fez Cabeça de todas as coisas. E devido a tantas vezes
esquecermos isso, que ficamos tão temerosos, alarmados e aterrorizados, e
nos pomos a abrigar temores de que o reino de Cristo talvez venha a
ser derrotado neste mundo. Somos como Uza, o homem que pôs a mão na arca
de Deus para segurá-la num certo carro, há muitíssimo tempo! (2 Samuel 6:6-8).
O Senhor Jesus Cristo já deu a resposta a esses temores e pressentimentos,
dizendo: “É-me dado todo o poder no céu e na terra” (Mateus 28:18). Já Lhe
tinha sido dado este poder quando Ele confiou Sua missão aos Seus discípulos,
para que saíssem para pregar às nações e fazer discípulos. Ele afirmou que tinha
essa autoridade e poder, e que estaria com eles até à consumação dos séculos.
Ele tinha poder então, e o tem neste momento. Ele exerce domínio sobre a
história. Ele era “um Cordeiro como havendo sido morto”, o único que foi
bastante forte para tomar o livro selado com sete selos, que João viu em sua
visão, desatar os selos e

abrir o livro da história (Apocalipse 5:1-6). O Senhor Jesus Cristo é o Senhor da


história; Ele já é o Senhor da história. Ele não está ausente da história; a história
não está se desenrolando sem Ele; Ele a domina neste momento. Ela está em
Suas mãos, e Ele a está desdobrando. Paulo diz aos coríntios: “Porque convém
que reine até que haja posto a todos os inimigos debaixo de seus pés” (1
Coríntios 15:25). Não deixem que pensamentos acerca da vindoura manifestação
visível do reino os privem da percepção do fato de que o Senhor Jesus Cristo
está reinando agora. Ele foi glorificado, a coroa está sobre a Sua fronte; Ele é o
Rei neste momento. Ele virá de maneira visível; todavia é Rei agora, tão
certamente como será então. Oxalá “sejam iluminados os olhos do nosso
entendimento” para que conheçamos isso.

O autor da Epístola aos Hebreus dá expressão a esta gloriosa verdade com estas
palavras: “Todas as coisas lhe sujeitaste debaixo dos pés. Ora, visto que lhe
sujeitou todas as coisas, nada deixou que lhe não esteja sujeito. Mas agora ainda
não vemos que todas as coisas lhe estejam sujeitas; vemos, porém, coroado de
glória e de honra aquele Jesus que fora feito um pouco menor do que os
anjos, por causa da paixão da morte” (2:8-9).

Esta honra e esta glória Lhe foram dadas por causa do que Ele fez enquanto na
terra. No capítulo 2 da Epístola aos Filipenses isso é mostrado com clareza pelo
uso que o apóstolo faz da expressão, “pelo que”, no versículo 9. Foi porque
Cristo não teve por usurpação ser igual a Deus, mas esvaziou-Se a Si mesmo e
desceu e Se humilhou, até à morte na cruz, que “Deus o exaltou
soberanamente”. Foi porque Ele Se humilhou e Se rebaixou tanto, e sofreu tanto
para redimir-nos e resgatar-nos, que Deus O colocou à Sua direita.

Permitam-me repetir, porém, que o aspecto mais precioso desta declaração é que
toda esta honra e dignidade Lhe foi dada como Mediador, como o Deus-homem.
Ele está à direita de Deus não somente como o Filho eterno. Como o Filho
eterno já estava ali antes da fundação do mundo, Ele estava ali desde a
eternidade. Ele era um com o Pai, coigual, coeterno. Ele sempre participou
da glória com o Pai. Mas aqui lemos que Deus O ressuscitou e O exaltou ao Seu
trono. As duas declarações se conciliam pelo fato de que o apóstolo aqui está
escrevendo acerca de Cristo como Filho do homem, como o Deus-homem.
Pensem de novo nas palavras de Paulo aos filipenses: “Pelo que também Deus o
exaltou soberanamente, e lhe deu um nome que é sobre todo o nome; para que ao

nome de Jesus se dobre todo o joelho” ( 2:9-10). Ele não diz, ao nome do
Senhor, e sim, “ao nome de Jesus”. É como “Jesus”, como “o Filho do homem”,
que Ele foi exaltado. Significa que a natureza humana foi elevada àquela
transcendental altura da glória.

O propósito do apóstolo aqui, como insistimos em acentuar, é muito prático. Sua


Epístola não é uma dissertação teórica. Seu desejo é ajudar os cristãos, e ele lhes
diz que eles devem compreender que o poder que está neles deve ser avaliado
pelo fato de que Deus assumiu a natureza humana em Jesus e a elevou nEle e
com Ele à direita de Deus; e ali está agora com toda a autoridade e poder.
Que pensamento estonteante! Aquele que está à direita de Deus, muito acima de
todo principado, e poder, e potestade, e domínio, Aquele sob cujos pés todas as
coisas estão em sujeição, e a quem todo o poder e toda a autoridade foram dados,
é Aquele que uma vez foi um bebê, deitado dependentemente numa manjedoura
de Belém! Ele é o menino que aos doze anos de idade argumentava com
os doutores da lei no templo. Ele é o carpinteiro de Nazaré. Ele é o jovem que
começou a pregar com a idade de trinta anos. Ele é Aquele que sabia o que era
estar fraco e cansado, e que uma vez assentou-Se ao lado de um poço, por volta
do meio dia, porque estava cansado, e não pudera acompanhar os Seus
discípulos quando eles foram comprar provisões. Ele é Aquele que dormiu de
pura fadiga num barco. Ele é Aquele que foi crucificado em grande fraqueza,
e aparentemente derrotado por homens cruéis e suas maquinações. É Ele, Jesus,
que assim foi exaltado! E assim que se mede a extraordinária grandeza do poder
de Deus. Quando Se fez homem, quando assumiu a nossa natureza humana, Ele
foi feito semelhante aos Seus irmãos. Tornou-Se sujeito à tentação, sujeito às
fragilidades da carne; e é nEle que a natureza humana foi agora elevada às
alturas e está à direita de Deus. Essa é a medida do poder de Deus.

E Ele está do Pai ao lado,

O Homem de Amor, o Crucificado.

Devemos salientar ainda que Deus Lhe deu todo este poder e honra e dignidade
pelo bem da Igreja. Como é que nós, cristãos, podemos ficar tão calados? Por
que não ficamos embevecidos “de encanto, amor e louvor”? “Deus o ressuscitou
dos mortos, e o colocou à sua mão direita...e pôs todas as coisas debaixo dos
seus pés, e

fez dele cabeça sobre todas as coisas para a igreja” (VA). Quer dizer, “por amor
da igreja”, Ele exerceu autoridade e poder no interesse da Igreja, a fim de que
finalmente redimisse o Seu povo e o apresentasse sem defeito a Deus. Não
somente por amor de Si, não somente para que Ele voltasse a participar da plena
glória de Seu Pai, não somente para que exercesse este grande poder sobre o
cosmo e o fruísse; mas também por amor de nós, “pela igreja, que é o seu
corpo”!

Que é que isso significa para nós e quanto a nós? Podemos responder com
algumas proposições simples. Por causa da doutrina da Igreja como o corpo de
Cristo, por que eu estou nEle e sou membro do Seu corpo místico - quase temo
dizê-lo, mas é a verdade! -o que é verdade a respeito dEle é verdade sobre mim,
e é verdade a respeito de todos nós, cristãos. Deus deu tudo a Ele por amor
da “igreja”, que é o Seu corpo, a plenitude daquele que cumpre tudo em todos”.
Ah! O privilégio de ser cristão! Ah! A honra de ser cristão! Vemos grandes
personagens do mundo rivalizando uns com os outros por algum símbolo ou
título de honra, por alguma alta posição, ou para estar perto de alguma
personalidade notável. Eles estão dispostos a pagar grandes quantias por tal
honra, e a fazer grandes sacrifícios para consegui-la. Entretanto, todos os
cristãos, sejam quem forem, e por mais insignificantes que sejam no
mundo, visto que estão “em Cristo”, estão, sem exceção, participando
da exaltada posição do Senhor na glória. Isso é de fato verdade quanto a nós
agora, como o apóstolo nos diz no capítulo 2 - “E nos ressuscitou juntamente
com ele e nos fez assentar nos lugares celestiais, em Cristo Jesus” (versículo 6).
Não se pode separar do corpo a cabeça, ou do corpo o tronco, pelo que, o que
vale para a cabeça, vale para o corpo todo. Assim como a nossa cabeça está na
glória, assim também o Seu corpo está ali - misticamente, espiritualmente!

Não satisfaz ao apóstolo que os efésios compreendam que isso é verdade a


respeito deles posicionalmente enquanto ainda neste mundo; é, no entanto, para
ser verdade quanto a eles absolutamente e de fato. Isto é demonstrado
claramente na Epístola aos Hebreus, onde os cristãos são descritos como
“herdeiros da salvação” (1:14,VA). O escritor continua: “Porque não foi aos
anjos que sujeitou o mundo futuro, de que falamos” (2:5). Os herdeiros
desses domínios não são os anjos, mas os que são filhos de Deus, o que
é demonstrado por uma citação do salmo 8: “Que é o homem, para que dele te
lembres? Ou o filho homem para que o visites? Tu o

fizeste um pouco menor do que os anjos, de glória e de honra o coroaste, e o


constituíste sobre as obras de tuas mãos: todas as coisas lhe sujeitaste debaixo
dos pés. Ora, visto que lhe sujeitou todas as coisas, nada deixou que lhe não
esteja sujeito. Mas agora ainda não vemos que todas as coisas lhe sejam sujeitas”
(2:6-8). Ainda não é certo, a respeito do homem, que “todas as coisas lhe
estejam sujeitas”, mas estarão! É-nos dito que, uma vez que podemos dizer com
certeza: “Vemos, porém, coroado de glória e de honra...Jesus” (versículo 9), e
uma vez que estamos “nele”, esta dignidade ainda haverá de corresponder a nós.

De maneira semelhante Paulo, na Primeira Epístola aos Coríntios, diz: “Não


sabeis vós que os santos hão de julgar o mundo...que havemos de julgar os
anjos?” (6:2-3). O nosso Senhor mesmo disse que, assim como Seu Pai deu-Lhe
partilhar Seu trono com Ele, assim também nós, como vencedores, havemos de
partilhar o trono de Cristo com Cristo (Apocalipse 3:21). Seremos “senhores da
criação” no sentido pleno. Reinaremos com Cristo. Participaremos da Sua
supremacia. Como membros do Seu corpo, nada poderá impedir que isso
aconteça.

Mas mesmo no presente a nossa posição é maravilhosa. O apóstolo ainda na


Primeira Epístola aos Coríntios, depois de repreender os seus leitores por se
gabarem de Paulo, Apoio, Cefas, ou algum outro nome, escreve: “Tudo é vosso;
seja Paulo, seja Apoio (ARA), seja Cefas, seja o mundo, seja a vida, seja a
morte, seja o presente, seja o futuro, tudo é vosso, e vós de Cristo, e Cristo de
Deus” (3:2123). E essa verdade nos diz respeito também, por causa da
nossa relação com Cristo.

Também devemos dizer uma palavra sobre a segurança da nossa posição. “Vós,
temerosos santos, renovai vossa coragem”, diz um hino. Outro hino dá as bases
sobre as quais se pode fazer essa exortação:

Confia teus pesares E sendas às Suas mãos,

À Sua firme verdade E a Seu terno cuidado;

Ele manda nos céus e na terra:

Mostra às nuvens o seu curso;

Ventos, mares Lhe obedecem;

Ele dirigirá teus pés errantes,

Ele preparará o teu caminho.


Quando você sentir sua fraqueza e sua inépcia, e quando tomar consciência das
forças que se opõem contra você, lembre-se de que Ele, a Cabeça do corpo ao
qual você pertence, está à direita de Deus, de que toda a autoridade e todo o
poder estão em Suas mãos, dominando o universo e o cosmo, de que Ele é o
Cabeça1 sobre todas as coisas. Ele tem poder para dirigir todas as coisas, o vento
e a tempestade, a chuva e a luz do sol; Ele pode ordenar todas as coisas, e o está
fazendo - por você!

Isso, por sua vez, leva-me a dizer uma palavra sobre o mistério da nossa posição.
“Se você afirma”, dirá alguém, “que tudo isso é verdade, e que estou relacionado
com Cristo dessa maneira, por que é que sempre tenho que sofrer, por que é que
vivo adoecendo, por que me visitam calamidades, por que as minhas colheitas
são arruinadas pelos temporais? Por que deve morrer alguém que me é caro, por
que não estou gozando vida perfeita, sem problemas?” A resposta é dada pelo
mistério da nossa posição “em Cristo”. Não o entendemos plenamente, mas
sabemos que os nossos sofrimentos fazem parte do processo da nossa
santificação. “O Senhor corrige o que ama” (Hebreus 12:6). Não é que Ele não
possa impedir que aconteçam estas coisas, Ele prefere não impedi-las; seria ruim
para nós se Ele o fizesse. Por causa dos efeitos do pecado e das suas operações
dentro de nós, Ele tem que disciplinar-nos; Ele sabe o que é melhor para nós. Há
ocasiões em que precisamos do sol, há ocasiões em que colhemos benefícios da
tempestade. O salmista pôde dizer: “Antes de ser afligido (eu) andava errado” e
“Foi-me bom ter sido afligido” (Salmo 119:67,71).

O cristão, às vezes, examinando retrospectivamente a sua vida, tem dado graças


a Deus por alguma perda, ou doença, ou tristeza; esses males o ajudaram no
cultivo da sua alma e no seu desenvolvimento espiritual. Deus sabe melhor do
que nós o que é bom para nós; Seu coração é amor, e nós estamos em Seus mãos.
O que devemos fazer é lembrar sempre que nada nos pode acontecer sem
que Ele esteja conosco, e que “todas as coisas contribuem juntamente para o bem
daqueles que amam a Deus” (Romanos 8:28). Deus está interessado em nossa
santidade, em nossa felicidade suprema e eterna; Ele ordena todas as coisas para
o nosso bem. Descansemos em Seu amor e na força do Seu poder.

À luz desta elevada doutrina, a nossa posição é certa e segura. A segurança e


perseverança final dos santos estão fora de dúvida porque somos membros do
corpo de Cristo, e Ele está à direita de Deus, no lugar de absoluta autoridade,
poder e domínio. Nada pode ser mais certo do que isto: “Convém que reine até
que haja posto a todos os inimigos debaixo de seus pés” (1 Coríntios 15:25).
Nada poderá impedi-lO, pois Ele é o Senhor de todos. Ele derrotou o diabo
quando estava na terra; Ele o destroçou na cruz. O diabo está sob controle, e será
lançado no lago da perdição eterna. Tão certamente como o Senhor Jesus Cristo
Se levantou do túmulo, nós também seremos levantados do túmulo. E
ressuscitaremos sem corrupção; seremos sem defeito e inculpáveis. O fato de
que a Cabeça ressuscitou é uma garantia de que o corpo ressuscitará. Já
ressuscitamos espiritualmènte; depois ressuscitaremos física, material,
corporalmente. Nada poderá impedir isso. Com Paulo podemos dizer: “Estou
certo de que, nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem
as potestades, nem o presente, nem o porvir, nem a altura, nem a profundidade,
nem alguma outra criatura nos poderá separar do amor de Deus, que está em
Cristo Jesus nosso Senhor!” (Romanos 8:38-39). Ele está acima de todos os
poderes criados, muito acima deles todos. Ele é o Cabeça do universo, e eu
Lhe pertenço. Nem o diabo, nem o inferno, nem força, nenhum poder, podem
arrancar-nos das Suas mãos. NEle estamos a salvo, estamos seguros; o nosso
destino final é seguro e certo.

Vocês, cristãos, sabem destas coisas? Vivem à luz delas e no seu poder?
Entendem agora por que Paulo orou por estes efésios, e por todos os outros que
deviam receber esta carta circular, com tanta constância e persistência? Ele ora
no sentido de que “os olhos do seu entendimento sejam iluminados”. Ele deseja
que eles conheçam “a esperança da sua vocação”, que estejam seguros
dela. Também é preciso que eles conheçam “a esperança da sua vocação”, que
estejam seguros dela. Também é preciso que eles conheçam algo das
“abundantes riquezas da sua graça” e da Sua “herança nos santos”. Vocês têm
saboreado as primícias? Têm desfrutado a prelibação? Estão desapontados
porque eu falei tão pouco de política ou das condições sociais ou da arte
moderna e do teatro e da cultura? Vocês só pensam neste “presente mundo mau”,
ou sabem algo acerca do mundo vindouro? Vocês já tiveram vislumbres
do mundo por vir, e anseiam receber mais? Vocês provaram da colheita que virá?
Esta arrebata o seu coração e estimula o seu apetite? Estas

coisas são reais para vocês? Fraco e derrotado santo, você não sabe que todo este
poder de Deus está em você? Isso porque você está “em Cristo” e Sua vida flui
para dentro de você. Procure compreender esta verdade. Creia nela. Confie nela.
Procure agir baseado nela. E ela virá a você com ainda maior força. Façamos por
nós mesmos a oração do apóstolo: “Tendo iluminados os olhos do vosso
entendimento, para que saibais qual seja a esperança da sua vocação, e quais as
riquezas da glória da sua herança nos santos; e qual a sobreexcelente grandeza
do seu poder sobre nós, os que cremos, segundo a operação da força do seu
poder, que manifestou em Cristo, ressuscitando-o dos mortos, e pondo-o à sua
direita nos céus, acima de todo o principado, e poder, e potestade, e domínio, e
de todo o nome que se nomeia, não só neste século, mas também no vindouro; e
sujeitou todas as coisas a seus pés, e sobre todas as coisas o constituiu como
cabeça da igreja, que é o seu corpo, a plenitude daquele que cumpre tudo em
todos”. Queira Deus, por Seu Espírito, abrir os nossos olhos para estas coisas,
para que vejamos a grandeza da nossa herança, e nos demoremos nela
até podermos dizer confiantemente com o apóstolo: “A nossa leve e momentânea
tribulação produz para nós um peso eterno de glória mui excelente” (2 Cor 4:17).

Aqui no corpo confinado,

De Cristo ausente eu vagueio,

Mas toda noite mudo a tenda,

Um dia mais perto do lar.

“Estar com Cristo.,.é muito melhor”!

O SUPREMO PROPÓSITO DE DEUS

Quando a história espiritual do século XX for escrita será indispensável fazer


menção não somente da influência extensa do ministério do Dr. Lloyd-Jones, na
Capela de Westminster (1938-1968), mas também do fato marcante que
subseqüentemente os volumes publicados dos seus sermões expositivos sobre o
Novo Testamento tiveram uma circulação sem precedentes por tal material no
presente século.

O SUPREMO PROPÓSITO DE DEUS, embora possua as mesmas


características gerais que os outros volumes já publicados (dasérie)
provavelmente desperte uma atenção especial. Isso porque os sermões sobre este
primeiro capítulo de Efésios, iniciados na Capela de Westminster aos domingos
de manhã no outono de 1954, evidenciam ser o ponto inicial do tratamento
prolongado que o autor deu a vários livros do Novo Testamento. Naquela data
Dr. Lloyd--Jones já tinha 25 anos de ministério pastoral, e suas convicções sobre
como se deve ensinar as Escrituras estavam plenamente amadurecidas. Os
sermões sobre Efésios foram, portanto, num sentido, um novo ponto de partida.
A séria sobre Romanos viria a seguir em 1955.

A parte de toda a sua significação no ministério do Dr. Lloyd--Jones, Efésios,


capítulo um, sempre será importantíssimo em qualquer consideração do Novo
Testamento. Como escreve o autor no seu Prefácio “A Epístola aos Efésios é a
mais “mística” das Epístolas de Paulo, e em nenhum outro lugar ele atinge
maiores alturas. Não há privilégio maior na vida do que ser chamado para expor
o que Thomas Carlyle chamou de “infinidades e imensidades”.

PUBLICAÇÕES EVANGÉLICAS SELECIONADAS Rua 24 de maio, 116 -


3o andar - salas 14-17 01041-000 - São Paulo - SP

Cristo é a Cabeça da Igreja (relação vital, orgânica); Cristo é o Cabeça de todas


as coisas, da Igreja inclusive (relação de senhorio soberano). Nota do tradutor.
RECONCILIAÇÃO: O MÉTODO DE DEUS
(Exposição sobre Efésios 2)

D. M. LLOYD-JONES

PUBLICAÇÕES EVANGÉLICAS SELECIONADAS

Caixa Postal 1287 01059-970-São Paulo- SP

Título original:

God's Way of Reconciliation

Editora:

The Banner of Truth Trust

Primeira edição em inglês:

1972 (Evangelical Press)

Copyright:

Lady E. Catherwood

Tradução do inglês:

Odayr Olivetti

Revisão:

Antonio Poccinelli Capa:

Ailton Oliveira Lopes

Primeira edição em português:

1995
Impressão:

Imprensa da Fé

ÍNDICE

PREFÁCIO

Este volume consiste de sermões pregados em sucessivas manhãs dominicais na


Capela de Westminster, Londres. Noutras palavras, não se trata de um
comentário como tal, porém, como deve acontecer com todos os sermões, é uma
exegese, é uma homilética e é aplicação. Seu objetivo não é apenas dar
informação e levar ao entendimento, mas também expor um pouco da glória e do
aspecto comovente da verdade.

O título pareceu completamente inevitável. Numa época de confusão, tumulto,


divisões e guerras violentas, e, ao mesmo tempo, de uma indolente crença num
falso e superficial idealismo que afirma que os homens e as nações podem viver
em harmonia, paz e concórdia, graças ao apelo dirigido ao que há de melhor no
homem, mais que nunca a mensagem deste capítulo dois da Epístola de Paulo
aos Efésios é necessária.

Aqui vemos claramente exposto e firmado o método divino de reconcilação - o


único método. O texto em apreço trata dos mais profundos e inspiradores temas
da Bíblia. Mostra-nos a desesperadora necessidade do homem e nos desvenda a
glória da graça de Deus, a maravilha da cruz de Cristo, a destruição dos muros
divisórios e a reconciliação de judeus e gentios, e de todos os demais que crêem
no Senhor Jesus Cristo, no reino de Deus.

Não sei de nenhum outro capítulo da Bíblia que exponha com tanta clareza e
perfeição, ao mesmo tempo, a mensagem evangelística essencial para o
incrédulo e a posição e os privilégios do crente.

Aí está a única esperança para o indivíduo e para o mundo, e, ao desvendar o


apóstolo o plano eterno de Deus, não podemos senão entusiasmar-nos com a
gloriosa perspectiva que aguarda todos quantos se tomaram “concidadãos dos
santos, e da família de Deus”.

janeiro de 1972
Estes sermões foram originalmente impressos na “Westminster Record”, mês a
mês, e agora foram adaptados para a publicação em livro por minha esposa. A
ela, e ao Dr. Frank Crossley Morgan que tem insistido comigo que eu faça o que
venho fazendo há uns dez anos, estou profundamente agradecido.

D. M. Lloyd-Jones

INTRODUÇÃO

“E vos vivificou, estando vós mortos em ofensas e pecados. ”

- Efésios 2:1

Ao começarmos a estudar o capítulo dois desta grande Epístola, há certas coisas


das quais devemos lembrar-nos, se é que havemos de estudá-lo de maneira
inteligente e proveitosa. Surge logo, por exemplo, a questão da relação deste
capítulo com o imediatamente anterior. Originariamente, quando esta carta foi
escrita, não foi dividida em capítulos, mas, para conveniência do povo cristão, e
para habilitar-nos a entender melhor sua mensagem, foram adotadas e
introduzidas estas divisões em capítulos, e sem dúvida são de grande valor. Não
se pode duvidar de que aqui a divisão foi feita no ponto certo. Chegamos ao
fim de uma certa exposição no último versículo do capítulo primeiro, e aqui o
apóstolo toma um aspecto diferente da questão. Todavia, é evidente que há uma
ligação entre os dois, porque ele começa com a palavra “e” - “E vos vivificou...”.
É óbvio, pois, que o apóstolo está se referindo a algo que ele já tinha dito, e a um
assunto que ele vai continuar. Noutras palavras, se é que devemos entender
corretamente este grande capítulo, temos que lembrar-nos da sua localização e
do seu cenário de fundo.

Estas Epístolas do No vo Testamento geralmente estão construídas em torno de


um argumento central, e, a grosso modo, a primeira metade de cada Epístola é
dedicada a essa tese central. É possível dividir de modo geral todas as Epístolas
dessa maneira; a primeira parte é doutrinária, a segunda é mais prática. Na seção
doutrinária há sempre um argumento, que é desenvolvido. As vezes é um
argumento que se mantém constante. Quando vamos estudar as Escrituras, é
muito importante, pois, que façamos duas coisas. Devemos captar o argumento
em geral; e, tendo feito isso, passamos às particularidades. Ambas estas coisas
são importantes, tão importantes que podem ser consideradas como riscos que
sempre confrontam todo explanador ou expositor das Escrituras. Há aqueles que
esquecem totalmente as generalidades e só se preocupam com as
particularidades, e que, portanto, tendem a perder o caminho; e há aqueles que
simplesmente se interessam pelo geral, e nunca realmente descem ao particular.
Ora, as duas coisas, digo eu, são de grande importância. Temos que ter em
nossas mentes uma firme

compreensão do argumento geral, mas também devemos seguir o apóstolo


quando ele o desenvolve em todos os seus detalhes. Portanto, aqui somos
levados a lembrar o que ele nos estivera ensinando no capítulo primeiro. Não
temos a mínima possibilidade de entender o argumento deste capítulo dois, se
não tivermos claro entendimento do primeiro.

Permitam-me recordá-lo brevemente para vocês. O ponto importante que o


apóstolo expõe nesta Epístola, o seu tema central em certo sentido, é o tema que
ele anuncia no versículo dez do capítulo primeiro: “De tomar a congregar em
Cristo todas as coisas, na dispensação da plenitude dos tempos, tanto as que
estão nos céus como as que estão na terra”. Bem, está fora de questão que este é
o tema da Epístola. Essa é a questão principal que o apóstolo estava desejoso de
tornar clara para estes efésios e para outros. No entanto, naturalmente, ele não se
detém nesta declaração isolada. Ele prossegue, para mostrar-nos como Deus
o está fazendo.

A primeira coi sa que ele nos vai recordando é que é plano de Deus e que é
atividade de Deus. Ele começa dizendo: “Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor
Jesus Cristo, o qual nos abençoou...’’.Esse é o ponto de partida. Estamos
interessados em algo que Deus fez. Aqui não estamos interessados na atividade
humana, estamos olhando para algo que o Senhor Deus todo-poderoso fez
acontecer. Este é Seu plano, trazer e reunir, pôr novamente sob a liderança em
Cristo todas as coisas. Isso logo nos lança de volta à doutrina da Queda - onde a
divisão se introduziu, onde as coisas se desencaminharam. O plano e propósito
de Deus é tornar a reunir em Cristo todas as coisas. É Seu plano, e é Deus que
opera ativamente nele. E algo que Deus está fazendo acontecer. Não faço pausa
em cada ponto para acentuar a extrema relevância disso tudo para a nossa
situação presente, não somente como cristãos, mas também como cidadãos deste
mundo. O que está sendo esquecido por uma imensa maioria é que o fato
realmente importante no mundo atual é a atividade de Deus - o que Deus está
fazendo, não o que os homens estão fazendo. Naturalmente, os homens estão
fazendo coisas, e está bem que as façam. Não estou tentando diminuir a
importância do trabalho dos estadistas e de todas essas coisas; entretanto, de
acordo com o apóstolo, o que se deve entender acima de tudo mais é o que Deus
está fazendo. Há esta história invisível por trás da história visível, e a invisível é
muito mais importante. Há esta história espiritual que, por assim dizer,
está subjacente a toda história secular, e à luz da qual a história secular se torna
relativamente sem importância.

Pois bem, tudo isso faz parte do plano de Deus e é resultado da Sua atividade. O
apóstolo nos faz lembrar que isso é algo que Deus planejou “antes da fundação
do mundo”. Temos aqui o alicerce mesmo da nossa fé. Nada é contingente
quanto ao plano de Deus. O que Deus está fazendo não depende do homem, nem
mesmo da resposta do homem depende; em última instância, é tudo de Deus. Se
o plano de Deus dependesse da nossa resposta, então eu estaria sem nenhuma
esperança. Basta que vocês leiam a história da Igreja para verem que,
provavelmente, a Igreja Cristã não teria durado mais que um século, se
dependesse do homem. Mas estas coisas não dependem do homem;
dependem de Deus. Ele planejou tudo antes da fundação do mundo, e, portanto,
é absolutamente seguro e certo.

O que Paulo nos lembra a seguir é que se deve tudo inteiramente à graça, ao
amor, à misericórdia e à compaixão de Deus: inteiramente pela graça. Lembro-
lhes estas coisas porque, quando passarmos aexaminar este capítulo dois,
veremos que o apóstolo continua a repetir-se. Tudo é “para o louvor da glória da
sua graça”(VA). Ele o dissera no capítulo primeiro, versículo 6, e de novo no
versículo 12 - “com o fim de sermos para louvor da sua glória, nós os que
primeiro esperamos em Cristo”, e mais uma vez, no versículo 14 - “o qual é o
penhor da nossa herança, para a redenção da possessão adquirida, para louvor
da sua glória”. É tudo resultado da graça de Deus - o próprio fato de que nos
sentamos juntos numa igreja cristã, que comemoramos a morte de Cristo, que
nos pomos a considerar esta grande salvação. E tudo resultado da graça sublime
e abundante, das riquezas da Sua graça. Devemos apegar-nos a estes temas e
mantê-los em nossas mentes.

Isso nos leva ao ponto subseqüente, que apenas mencionei: que é tudo no Senhor
Jesus Cristo e por meio dEle. Isso de salvação sem Cristo no centro não existe.
Não devemos dar ouvidos aos que dizem como Deus os abençoa, se Cristo não
estiver no ponto central. Eles podem pensar que as suas orações estão sendo
respondidas, que eles estão sendo guiados em muitas outras coisas semelhantes;
mas, de acordo com este argumento apostólico, Deus não trata conosco,
exceto em Jesus Cristo. Todas as bênçãos vêm nEle, por meio dEle e por
Ele. Gostaria de lembrá-los de que, nos catorze primeiros versículos do capítulo
primeiro, o apóstolo se refere ao Senhor Jesus Cristo quinze vezes. Ele sabe
como estamos prontos a esquecê-10, e como estamos prontos a pensar que
podemos resolver algumas coisas diretamente com Deus. Nada é tão trágico na
história da humanidade como o fato de que, apesar de Deus haver exposto mais
que claramente a cruz diante de nós,

damos-lhe as costas e parece que pensamos que Deus pode abençoarmos sem
ela. Mas não nos abençoa. “Em quem temos a redenção pelo seu sangue, a
remissão das ofensas.” O Seu propósito é “tornar a congregar em Cristo todas as
coisas, na dispensação da plenitude dos tempos, tanto as que estão nos céus
como as que estão na terra”. Tudo deve centralizar-se em Cristo; e se Ele não é
absolutamente central para nós, não temos nenhum direito ao nome cristão.
Como é vital que tenhamos clara compreensão destas coisas!

E então, numa frase memorável, o apóstolo nos dissera o que Deus fez por nós e
nos oferece em nosso Senhor e Salvador e por meio dEle. Eis o que ele diz: “O
qual nos abençoou com todas as bênçãos espirituais nos lugares celestiais em
Cristo”, Lembremo-nos destas coisas. Obtivemos perdão - “o perdão dos
pecados”(l:7, VA). Essa é a primeira coisa que todos nós necessitamos. Sem ela,
todos estaríamos desamparados, porém a recebemos - a remissão dos pecados e
o perdão. Não somente isso - a adoção, a filiação, a condição de herdeiros, uma
herança maravilhosa, “co-herdeiros com Cristo”; sim, e Deus selou tudo
isso para nós pelo Espírito Santo. Ele quer que estejamos certos e seguros disso
tudo, e quer que saibamos que estamos em união com Cristo - que estamos “em
Cristo”. São essas as bênçãos. “O qual nos abençoou com todas as bênçãos
espirituais nos lugares celestiais em Cristo.” Aqui estamos, nesta terra, mas
estamos também nos lugares celestiais -verdade que veremos o apóstolo
desenvolver neste capítulo dois. Ora, todas as bênçãos que estamos gozando são
espirituais. Por vezes, a porção do cristão neste mundo é difícil; ele está cercado
de problemas, provações e tribulações; contudo, é abençoado “com todas as
bênçãos espirituais nos lugares celestiais”. E se ele se der conta disso
e permanecer ali, e puser os seus afetos nas coisas de cima, não nas da terra, irá
regozijar-se com alegria indescritível e cheia de glória.

Aí está um sumário da grande declaração do apóstolo nos dez primeiros


versículos daquele capítulo primeiro. Mas depois, mais para o fim do capítulo,
ele muda para outra coisa. Ele salienta a importância de entendermos estas
coisas, e de sermos claros a respeito delas. Diz ele a estes efésios: “Pelo que,
ouvindo eu também a fé que entre vós há no Senhor Jesus, e o vosso amor para
com todos os santos” - ele ouvira acerca deles, e se regozija nisso -“não cesso de
dar graças a Deus por vós”. Todavia, não se detém nessa ação de graças a Deus
por eles; faz menção deles em suas orações, e eis aquilo pelo que ele pede em
oração para eles: que recebam “em seu conhecimento o espírito de sabedoria

e revelação”. Ele ora para que os olhos de seu entendimento sejam iluminados,
para que venham a saber certas coisas. Eles tinham sido introduzidos nesta
esfera, ele lhes diz, porém, se realmente hão de usufruir a vida cristã, se hão de
vivê-la plenamente, se hão de funcionar como povo de Deus aqui na terra,
precisam ter este entendimento espiritual de certas coisas. Quais? A grandeza
desta salvação, e a sua glória: “Para que saibais qual seja a esperança da sua
vocação”. Mas então ele prossegue, dizendo que deseja que saibam também da
certeza disso: “e quais as riquezas da glória da sua herança nos santos”.
Vocês vêem que o apóstolo não está meramente escrevendo um tratado
de teologia. Em toda a linha, o seu objetivo é muito prático, muito pastoral. Ele
quer ajudar estas pessoas, quer que elas se regozijem em tudo isso. Muito bem,
diz ele, esta é a maneira de fazê-lo. Não comece olhando para si mesmo, mas
olhe mais longe, para estas coisas grandiosas e gloriosas: a esperança da sua
vocação; as riquezas da glória da sua herança nos santos; e então esta outra
maravilha: - “a sobreexcelente grandeza do seu poder sobre nós, os que cremos”.
Temos consciência da debilidade, temos consciência das dificuldades, vemos a
oposição que há contra nós, o mundo organizado em pecado, a malignidade
dos homens, o diabo, o inferno, tudo quanto está contra nós. Sei disso,
diz efetivamente Paulo; por isso, a única coisaque vocês devem saber é
esta “sobreexcelente grandeza do seu poder sobre nós, os que cremos”. Se tão-
somente soubessem isso! Eles tinham que ter iluminados os olhos do seu
entendimento para fazer isso, pelo que ele ora no sentido de que se lhes
iluminem os olhos.

Ele não somente ora por eles dessa maneira, porém, de imediato passa a dar-lhes
alguma instrução a respeito. Ele lhes diz que o poder que opera neles é o mesmo
poder que ressuscitou a Cristo “dentre os mortos” e que O colocou à direita de
Deus nos céus, “acima de todo o principado, e poder, e potestade, e domínio, e
de todo o nome que se nomeia, não só neste século, mas também no vindouro”.
É esse o poder que opera em nós! Não seriamos crentes, não fora esse poder
operando em nós: “a sobreexcelente grandeza de seu poder sobre nós, os
que cremos, segundo a ...”. Nós cremos “segundo a” operação do Seu grande
poder, quer dizer, em virtude da, como resultado da operação do Seu grande
poder.

Depois ele desenvolve o ponto em termos da Igreja, e mostra que somos


membros do corpo de Cristo, e que o poder da Cabeça propagate por todo o
corpo. Não somos indivíduos isolados, frouxamente ligados a uma igreja,
vagamente relacionados com Cristo. Não, nós

somos membros do Seu corpo, da Sua carne e dos Seus ossos; trata-se de uma
unidade orgânica. Assim, o poder de Cristo está em nós; pertencemos a Ele,
estamos nEle, e Ele está em nós. o apóstolo está desejoso de que eles saibam que
nada pode frustrar o propósito de Deus, nada pode resistir a Deus. Estas coisas
são valores absolutos e certos. O que eu e você temos que compreender é que é
justamente esse poder que está operando em nós, e que, se afinal somos cristãos,
é porque esse poder já começou a operar em nós.

O apóstolo já lembrara a estes efésios que isso já tinha acontecido com eles. São
dois os seus temas, e agora ele os desenvolve juntos e ao mesmo tempo: esta
grande idéia ser tudo reunido em Cristo, e do poder de Deus que o efetua. Ele
fizera a mesma coisa no capítulo primeiro, da seguinte maneira: diz ele no
versículo 11: “em quem também obtivemos herança” (VA); depois, no versículo
13, “em quem também crestes” - em quem vós também tendes herança. Ele já
estabelecera lá o seu tema: este grande propósito de Deus já está sendo posto em
ação. Nunca houve nada que o deixasse mais surpreso do que o fato de ser
ele, dentre todos os homens, “o apóstolo dos gentios”. Aqui ele está escrevendo
uma Epístola aos efésios, que eram gentios - ele, que era hebreu de hebreus, da
tribo de Benjamim, fariseu, instruído aos pés de Gamaliel, um dos nacionalistas
mais apaixonados que o mundo conheceu - aqui está ele, este fervoroso judeu,
escrevendo realmente a pessoas que tinham sido gentios pagãos, e se dirigindo a
elas como iguais, regozijando-se com elas por estarem compartilhando a
mesma experiência. Como é que isso viera a acontecer? Há somente
uma resposta: é o poder de Deus. Ele já tinha exposto o seu tema desse
modo nos versículos 11 a 14 do capítulo primeiro. Agora, porém, no capítulo 2,
ele passa a desenvolvê-lo em detalhe. O propósito do capítulo primeiro fora
fazer uma grande declaração geral. Mas ele nunca para nisso. Ele agora diz, com
efeito: vamos adiante e vejamos concreta-mente na prática o que Deus fez. Vocês
se tornaram co-herdeiros, “em quem também vós estais, depois que ouvistes a
palavra da verdade, o evangelho da vossa salvação; e, tendo nele também crido,
fostes selados com o Espírito Santo da promessa, o qual é o penhor da nossa
herança (a herança que temos juntos), para redenção da possessão adquirida”.
No entanto, isto é tão estonteante que temos que compreender como chegou a
acontecer. Assim, no capítulo dois o apóstolo nos diz em detalhe como foi que os
judeus e os gentios se tornaram um, como foi que Deus conseguiu reunir em
Cristo estes elementos completamente

antagônicos. Seu modo de fazê-lo é expresso assim: quais eram os obstáculos


para esta união em Cristo? Quais os fatores que separavam judeus e gentios?
Qual a tarefa, se posso dizê-lo assim, com a qual se defrontou Deus em Seu
desejo de reuní-los? Diz o apóstolo que havia duas dificuldades principais.

A primeira era quanto ao estado e às condições dessas pessoas, por natureza. É


do que trata o apóstolo nos versículos 1 a 10 deste capítulo; as condições
lamentáveis, o estado pecaminoso destes efésios, antes da sua conversão. Antes
de se tornarem co-herdeiros com os judeus, com os judeus cristãos, no reino,
estas condições, este estado de pecado, tinham que receber tratamento. “E vos
vivificou, estando vós mortos em ofensas e pecados.” Foi necessário tratar disso.

Mas havia também outra questão, um obstáculo muito sério, a relação dos
gentios com a lei, com a lei de Deus. A lei de Deus só fora dada aos judeus;
nunca foi dada aos gentios. Foi algo que Deus deu somente aos judeus e a
ninguém mais. E, naturalmente, isso logo levantou uma enorme parede de
separação. Aqui estavam os judeus, sob a lei; ali estavam os gentios, os cães, os
fora da lei, estranhos à comunidade de Israel, sem esperança e sem Deus no
mundo. Ora, isso era um tremendo problema, e na segunda metade do capítulo,
do versículo 11 ao fim, o apóstolo passa a mostrar-nos como Deus tratou desta
segunda dificuldade que consistia em vencer o obstáculo da lei. Foi o que Deus
fez, afirma Paulo; Ele venceu esses dois obstáculos. Ele fez “dos dois um novo
homem”, sobrepujou todas as dificuldades; nada ficou sem ser tratado.

Entretanto, vocês notam que imediatamente ele nos faz lembrar da maneira
como foi feito isso, E aqui ele retorna aos seus grandes temas e aos seus grandes
princípios esboçados no capítulo primeiro. Vocês notam que ele começa dizendo:
“E (ele) vos vivificou” - Deus! É Deus o tempo todo, do começo ao fim; foi
Deus que venceu os obstáculos, foi Deus que nos reuniu. E de novo nos lembra
imediatamente - não se atrasa um segundo sequer - que é em Cristo que Deus fez
essas coisas; sim, e pelo sangue da Sua cruz - repete-se tudo. Como estes
apóstolos se repetem, e vão adiante dizendo a mesma coisa! Por quê? Porque é
questão crucial, porque sem isso não hásalvação, e porque somos
constantemente propensos a esquecer estas coisas. Persistimos em introduzir a
nossa justiça própria e os nossos méritos, e continuamos perguntando: bem, não
há nada que eu deva fazer? Desejamos tanto fazer algo e justificar-nos a nós
mesmos. Não, é o que Paulo diz, é tudo em Cristo, e tudo pelo sangue da Sua
cruz. O problema o requer

necessariamente; nenhuma outra coisa poderia fazê-lo. Ele nunca teria vindo à
terra, nunca teria morrido, se houvesse outra maneira. E tudo em Cristo. E vocês
ainda verão que ele continua salientando que é tudo pela graça. Note-se que está
entre parêntesis - “estando nós ainda mortos em nossas ofensas, nos vivificou
juntamente com Cristo” - e então, entre parêntesis “(pela graça sois salvos)”.
“Você não escapará disso”, diz efetivamente Paulo. “Não deixarei que você vá
embora com a sua constante afirmação do seu ser pessoal, dos seus méritos e dos
seus poderes. Livre-se disso tudo; vocêjamais se gloriaránisto.enquantonão vir
que é tudo pela graça: “pela graça sois salvos”. E ele prossegue, desenvolvendo
e repetindo o tema.

Mas o que ele quer acentuar acima de tudo, no contexto imediato, é que nada
menos que o grande poder de Deus poderia fazê-lo. E nisso que este capítulo se
liga imediatamente ao fim do capítulo anterior, onde ele estivera falando acerca
deste grande poder de Deus, que se manifestou em Cristo, ressuscitando-0 dentre
os mortos e colocando-0 à Sua direita naquela posição de suprema exaltação.
Então, “e vos vivificou” -Ele fez isso com vocês em Cristo, porque vocês
pertencem a Ele, vocês estão nEle, vocês são membros do Seu corpo, e nada,
senão o poder de Deus, poderia fazê-lo.

Assim, como eu o entendo aqui, o apóstolo parece perguntar: estamos


entendendo claramente isso? Isso nos deixa felizes? Entendemos que nada,
senão este soberano poder de Deus, que se manifestou na ressurreição e na
exaltação do nosso Senhor, nada senão isso, nada menos que isso, poderia fazer-
nos cristãos? Porventura entendemos estas questões de forma que não somente
vemos que Deus fez algo, mas também que Ele tinha que fazer algo, porquanto
as nossa condições eram tais que nada menos que isso poderia ser sufuciente
para nós?

O apóstolo parece estar fazendo estas perguntas. Estamos cientes disso?


Compreendemos isso? Ou, colocando a questão noutra forma, podemos
expressá-la dessa maneira: compreendemos o que significa a salvação? Se não
compreendem, diz o apóstolo, considerem estas coisas: primeiro, considerem o
que nós éramos antes de Deus começar a agirem nós; considerem as condições
do homem antes de Deus visitá-lo misericordiosamente para salvação. Se não
tivermos claro entendimento disso, jamais compreenderemos por que era
essencial o poder de Deus. E, finalmente, - não há questão acerca disso - o que é
doloroso com relação às pessoas que se acham em dificuldade quanto à
salvação é que elas nunca entenderam a doutrina bíblica sobre o pecado. Sempre

o maior problema é uma conceituação errônea do pecado. Muitos dizem que se


você simplesmente juntar forças e empenhar-se, se tão-somente viver
virtuosamente, e assim por diante, você agradará a Deus e Ele ficará satisfeito. O
verdadeiro problema com tais pessoas é que elas não entendem o significado da
palavra pecado. Elas pensam que podem salvar-se a si mesmas. Nunca
enxergaram a necessidade que têm deste grande poder de Deus. Isto se deve
inteiramente ao fato de que elas nunca se viram como de fato são.

Pois bem, o apóstolo começa com isso - esse é o tema dos versículos 1 a 3 deste
capítulo dois: “E vos vivificou, estando vós mortos em ofensas e pecados, em
que noutro tempo andastes segundo o curso deste mundo, segundo o príncipe das
potestades do ar, do espírito que agora opera nos filhos da desobediência. Entre
os quais todos nós também antes andávamos nos desejos de nossacarne, fazendo
a vontade da carne e dos pensamentos; e éramos por natureza filhos da ira,
como os outros também”. O homem em pecado é isso, isso é o que todos
nós ainda seriamos, se Deus nos tivesse deixado entregues a nós mesmos. É o
que são todos os não cristãos. E o argumento do apóstolo é este: se você quer
conhecer a grandeza do poder de Deus, você tçm que compreender a
profundidade do pecado, tem que compreender o problema com o qual Deus Se
defrontou, tem que compreender o problema com o qual você se defronta. O
apóstolo quer mostrar-nos este poder. Diz ele que primeiro temos que descer, e
que só nos aperceberemos da altura a que fomos elevados se nos apercebermos
da profundidade em que tínhamos afundado. Esse é o primeiro ponto.

O segundo, naturalmente, segue-se daí. Ele vai adiante para mostrar-nos o que
Deus fez por nós. Esse é o tema dos versículos 4 a 7: “Mas Deus, que é
riquíssimo em misericórdia... estando nós ainda mortos em nossas ofensas” -
estávamos no fundo daquela sepultura, como Cristo esteve na sepultura - Deus,
quando ainda estávamos lá, graças à Sua riquíssima misericórdia, pelo Seu muito
amor com que nos amou, “estando nós ainda mortos em nossas ofensas, nos
vivificou juntamente com Cristo... e nos ressuscitou juntamente com ele e nos
fez assentar nos lugares celestiais, em Cristo Jesus”. E é somente
quando entendermos e captarmos algo sobre isso, que compreenderemos
a grandeza do poder de Deus. Muitos há que pensam na salvação e
no cristianismo em termos de um pouco de moralidade e decência. Que insulto
ao cristão! - como se o cristão fosse apenas um indivíduo bondoso, agradável e
inofensivo. Nada disso! O cristão é alguém que passou por uma tremenda
transformação. Houve nele esta ação dinâmi-

ca. Ele foi levantado, ressuscitado; ele está nos lugares celestiais. Este é o poder
de Deus! E se você pensar no seu cristianismo nestes termos, verá que nada,
senão o poder de Deus, poderia fazê-lo. O apóstolo coloca o ponto diante de nós
em detalhe, e temos que considerá-lo.

Depois ele passa ao terceiro ponto, que nunca lhe é possível deixar fora. Nesta
altura você diz a si mesmo: “Isto tudo seria verdade? Eu estava realmente assim,
morto em ofensas e pecados, andando de acordo com o curso deste mundo,
dominado pelo príncipe das potestades do ar, vivendo para as paixões da carne e
da mente, filho da ira e desobediente? Eu estive nesta situação? Seria verdade
que agora estou em Cristo, nos lugares celestiais? Seria verdade que Deus fez
tudo isso e me transferiu daquela situação para esta? Por que Ele o fez?"
Há somente um resposta: é tudo segundo as riquezas da Sua graça, para que nos
séculos vindouros Ele pudesse mostrar as abundantes riquezas da Sua “graça
pela sua benignidade para conosco em Cristo Jesus, porque pela graça sois
salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus. Não vem das
obras, para que ninguém se glorie; porque somos feitura sua...”. Agora vocês
vêem a argumentação do apóstolo. Vocês vêem como este capítulo é seqüência
do capítulo primeiro.

Contudo, antes de prosseguirmos, reflitamos em certos pontos. Não estaria bem


claro que só quando nos apercebermos destas coisas é que louvaremos a Deus
como devemos? Pensem no Salmo 103: “Bendize, ó minha alma, ao Senhor, e
tudo o que há em mim bendiga o seu santo nome”. Essa é a norma para o cristão:
todo cristão deve ser assim, deve estar bendizendo continuamente a Deus. Por
que será que existem tantos que não o fazem? Hásó umarespostapara
essapergunta: é porque não compreendemos o que Deus fez por nós; é porque
não sabemos o que é o pecado; porque não compreendemos o que nós éramos e
o que Deus fez por nós, e como o fez e por que o fez. Se compreendêssemos
estas coisas, não poderíamos deixar de louvar a Deus. E porque não
compreendemos estas coisas que é tão fraco o sentimento de maravilha em nossa
vida cristã. Para mim, nada é mais chocante que a facilidade com que muitos
falam destas coisas, e a maneira como eles as tomam como líquidas e certas. Não
há nada que faça tanta falta na vida cristã atual como um certo sentimento
de maravilha. Leiam as Epístolas deste homem, leiam as Epístolas dos outros, e
observem como, ao mencionarem esta grande salvação, eles param e começam a
louvar. Estão cheios de maravilha, de admiração, de espanto. Você está surpreso
consigo mesmo? Você está maravilhado

consigo mesmo? Para você é algo espantoso você estar fazendo este tipo de
leitura? Está você interessado nestas coisas - isto lhe causa admiração? Se você
compreendesse a verdade, causaria. A incompreensão destas coisas é que explica
a nossa perda e a nossa falta de sentimento de maravilha e adoração.

É isso que explica a nossa falta de amor a Deus. Você está preocupado com a
frieza do seu coração? Estou certo de que está, como todos nós devemos estar.
Acaso não é de causar espanto, que nos aproximemos da Ceia do Senhor,
comamos o pão e bebamos o vinho, e fiquemos tão impassíveis que os nossos
corações não transbordem de amor a Deus? Por que não transbordam de amor?
Porque não nos damos conta do amor de Deus. Se você quer amar a Deus, não
tente pôr em ação alguma coisa dentro de você; trate de aperceber-se do Seu
amor, e ore no sentido de que os olhos do seu entendimento sejam iluminados,
para que você possa dar-se conta do poço do qual foi tirado, das profundezas nas
quais você tinha afundado, daquela situação terrível, precária e perigosa em que
se achava, e do que Deus fez por você, por Sua graça, em Cristo. Essa é a
maneira de compreender isso. “Nós o amamos a ele porque ele nos amou
primeiro”, declara João, e o argumento é o mesmo (1 João 4:19). O
entendimento destas coisas é essencial para que se tenha sentimento de
maravilha, de amor e de louvor.

Passemos, porém, a algo ainda mais prático. A razão pela qual não nos damos
conta destas coisas é que não sentimos como devíamos o peso do fardo das
outras pessoas. Os cristãos não passam de um punhado no mundo atual. As
grandes multidões estão fora de Cristo, estão fora da Igreja, vivendo na
impiedade e sem religião, e num terrível estado de pecado. Estamos preocupados
com elas? As suas condições pesam em nós? Temos senso de missão quanto aos
nossos concidadãos em nosso país? As condições em que se acham as multidões
de outros países, envoltas em trevas morais, são um peso sobre nós?
Estamos interessados nos empreendimentos missionários? Pensamos
nestas coisas? Sentimos o peso delas? Oramos a Deus a respeito?
Estamos perguntando: “Que posso fazer? Como posso ajudar? Que
contribuição posso fazer?” Se não, só há uma explicação - nunca chegamos
a compreender a verdade acerca dos que se acham num estado de
pecado. Apenas nos irritamos por causa deles, ficamos incomodados com
eles. Mas isso não basta; temos que preocupar-nos com as almas, temos
que preocupar-nos com o pecado. Temos que ver os pecadores como eles são,
filhos da ira, prisioneiros do inferno, vê-los nesta degradação, nesta corrupção
que o apóstolo descreve. Se tão-somente enxergássemos isso,

os nossos corações correriam para eles; nós os veríamos como nosso Senhor os
vê - e o Seu grande coração transbordava de compaixão por eles. A pobreza do
nosso zelo missionário e evangelístico deve-se inteiramente a isto: não temos
enxergado de verdade a situação dos de fora - o que eles são, o que poderiam ser,
e o que Cristo fez.

O terceiro ponto que a palavra do apóstolo nos dá a conhecer é que, se apenas


enxergássemos verdadeiramente estas coisas, isso também dominaria a nossa
evangelização. O problema com toda òvangeliza-ção falsa é que não começa
com doutrina, não começa pela percepção das condições do homem. Toda
evangelização carnal, feita pelo homem, é resultante de um inadequado
entendimento do que o apóstolo nos ensina nos dez primeiros versículos deste
capítulo dois da Epístola aos Efésios. Se eu e você simplesmente nos déssemos
conta de que todo homem ainda pecador é dominado absolutamente pelo
“príncipe das potestades do ar, do espírito que agora opera nos filhos da
desobediência”, se tão-somente soubéssemos que tal homem ainda é realmente
filho da ira e está morto em ofensas e pecados, compreenderíamos que
unicamente um poder pode lidar com esse indivíduo, o poder de Deus, o poder
do Espírito Santo. E assim poríamos a nossa confiança, não em organizações
feitas pelo homem, porém, no poder de Deus, na oração que se apega a Deus e
roga por avivamento e por um derramamento do Espírito. Perceberíamos que
nenhuma outra coisa pode fazê-lo. Podemos mudar superficialmente os homens,
podemos conseguir homens para o nosso lado e para o nosso partido, podemos
persuadi-los a unir-se à igreja, mas nunca poderemos ressuscitar os
espiritualmente mortos; só Deus pode fazê-lo. A percepção destas verdades
determinaria e dirigiria necessariamente toda a nossa ação evangelística.

Vocês vêem, então, porque é que o apóstolo se preocupa tanto com estas coisas,
porque é que ele ora por estes efésios, para que sejam iluminados os olhos do seu
entendimento. Vocês vêem que a doutrina que ele nos apresenta afeta a
totalidade da nossa vida cristã. Afeta-me individualmente, afeta a minha vida de
oração, o meu louvor, os meus atos de culto, o meu amor, a minha relação com
Deus, a minha relação com outras pessoas - tudo é dominado e dirigido por esta
doutrina. O apóstolo expôs tudo isso em princípio no capítulo primeiro.
Sim, todavia, ele afirma que você não deve vê-lo apenas em princípio; você deve
entendê-lo e captá-lo em detalhe. Por isso ele nos leva aos detalhes, e começa a
fazê-lo neste capítulo dois. E eu e você devemos fazer o mesmo. Devemos
contemplar os homens em pecado até ficarmos horrorizados, até ficarmos
alarmados, até que nos aflijamos por eles, até

que oremos por eles, até que, tendo compreendido a maravilha da nossa
libertação daquele estado terrível, nos percamos num arrebatado sentimento de
maravilha, de amor e de louvor.

Essa é a introdução deste capítulo dois da Epístola de Paulo aos Efésios.São os


prolegômenos essenciais. Não há sentido em correr para os detalhes sem esse
cenário de fundo. E devemos considerar os detalhes, não simplesmente para que
possamos ir examinando prazerosamente estes grandes versículos, mas porque a
totalidade da nossa vida cristã está envolvida aqui, e temos que entender estas
coisas. Portanto, confiemo-nos aDeus e oremos para que os olhos do nosso
entendimento sejam iluminados, paraque vejamos econheçamos estas coisas,
paraque vejamos o grande plano e propósito de Deus sendo levado a
efeito; vejamos que somente Ele pode fazê-lo. Dediquemo-nos, pois, a uma nova
consideração destas coisas, para que verdadeiramente sejamos “para louvor da
glória da sua graça”, e sejamos de ajuda prática e imediatapara os nossos
semelhantes, homens e mulheres, que ainda são “filhos da ira”, perdidos,
sentenciados e condenados em pecado.

O HOMEM EM PECADO

“E vos vivificou, estando vós mortos em ofensas e pecados, em que noutro tempo
andastes segundo o curso deste mundo, segundo o príncipe das potestades do ar,
do espírito que agora opera nos filhos da desobediência, entre os quais todos
nós também antes andávamos nos desejos da nossa carne, fazendo a vontade da
carne e dos pensamentos; e éramos por natureza filhos da ira, como os outros
também. ” - Efésios 2:1-3

Com estas palavras o apóstolo está interessado em mostrar aos cristãos efésios, e
a todos outros cristãos a quem ele estava escrevendo, e portanto a nós, a
grandeza e a glória da salvação cristã. Estes efésios já tinham crido no
evangelho. Paulo já tinha dado graças a Deus pela fé que eles tinham no Senhor
Jesus e pelo seu amor para com todos os santos. Eles tinham sido selados com o
Espírito Santo e tinham em si o penhor da herança. E, contudo, o apóstolo ora
para que os olhos do entendimento deles sejam iluminados. Eles estão apenas no
começo, são simples crianças. Ele quer que eles captem algo da amplitude,
da grandeza e da majestade desta maravilhosa salvação. E, sujeitos como ainda
estão à tentação, e vivendo num mundo contraditório e cercados de paganismo e
de oposição em diversas formas, o apóstolo está particularmente desejoso de que
eles tenham claro entendimento da grandeza do poder de Deus para com os que
crêem. E seguramente essa é uma coisa que necessitamos saber e da qual
devemos estar certos na vida cristã. Nada é mais vital do que termos claro
conhecimento acerca do poder de Deus que se manifesta nesta salvação cristã.

O apóstolo escreve com o fim de ajudá-los nesse aspecto. Ele não somente ora
por eles, mas também os instrui. E as duas coisas devem andar sempre juntas.
Ele ora para que os olhos do seu entendimento sejam iluminados pelo Espírito
Santo. Isso é absolutamente vital. Sem o entendimento que só o Espírito Santo
pode nos dar, palavras como as que vamos considerar, obviamente serão
completamente sem sentido para nós. Além disso, provavelmente as odiaremos e
as acharemos pessimistas e mórbidas. Diz o homem, por natureza, que o que ele
quer é algo que o alegre, não uma terrível análise da natureza humana como esta,
que é tão deprimente. Noutras palavras, sem que tenhamos mente

espiritual, não podemos ter esperança de entendê-las. Por isso o apóstolo coloca
isso em primeiro lugar. Primeiro vem a sua oração. Depois, havendo orado, ele
coloca diante dos efésios o conhecimento e a instrução.

Como podemos ter uma verdadeira concepção da grandeza do poder de Deus na


sal vação? Este é um tema que se repete constantemente nas cartas do apóstolo
Paulo. Vejam a magnífica declaração em Romanos 1:16, “não me envergonho do
evangelho de Cristo”. Porquê? Porque “é o poder de Deus para salvação de todo
aquele que crê”. O poder! Como medi-lo? O apóstolo nos dá as medidas precisas
aqui.

A primeira medida é a profundidade do pecado da qual fomos levantados.


Noutras palavras, afim de medir a grandeza deste poder, primeiro você tem que
ir ao fundo, e depois tem que subir. O homem jamais começa ao nível do chão,
por assim dizer. Não começamos neutros, não começamos numa espécie de
estado indeterminado, nem bom nem mau. Não, nós começamos nas
profundezas de um poço. Primeiro somos levantados e retirados de lá; e depois
somos elevados diretamente para os próprios céus. Assim, o apóstolo começa
onde nós devemos começar. A salvação chega a nós onde estamos; não
onde gostaríamos de estar, nem como gostaríamos de pensar em nós idealis-
ticamente. O evangelho de Jesus Cristo é totalmente realista, e ele começa
conosco exatamente onde estamos, e esse lugar é o fundo de um poço de
corrupção.

O argumento do apóstolo é que nunca teremos uma adequada concepção da


grandeza desta salvação, a menos que compreendamos alguma coisa do que
éramos antes de sermos tomados por esse grande poder, a menos que
compreendamos o que seriamos ainda, se Deus não interferisse nas nossas vidas
e não nos tivesse resgatado. Noutras palavras, temos que compreender a
profundidade do pecado, o que o pecado significa realmente e o que ele fez com
a raça humana. Temos que começar com isto porque é um fato - não porque é
uma teoria, e sim, porque é um fato. A Bíblia é um livro de fatos; é um livro que
se interessa por nós como somos; é histórico. Devemos começar com fatos,
gostemos ou não. Se quisermos ser honestos em nosso raciocínio, teremos que
encarar fatos, e aqui está o primeiro deles.

Permitam-me mostrar-lhes como é absolutamente vital que comecemos aqui.


Nenhum homem jamais terá uma verdadeira concepção do ensino bíblico sobre
a redenção, se não tiver claro entendimento da doutrinabíblica do pecado. E aí
está por que tanta gente hoje é tão frouxa

e vaga em suas idéias de redenção. A idéia comum é que o nosso Senhor é uma
espécie de amigo a quem podemos recorrer quando estamos em dificuldades,
como se isso fosse tudo. Ele é isso - graças a Deus porque é! Mas isso não é a
redenção em sua inteireza, nem em sua essência. Vocês não poderão começar a
medir a redenção, enquanto não compreenderem algo do que a Bíblia nos ensina
acerca do homem em pecado e de todo o efeito do pecado sobre o homem. Ou
deixem-me expressá-lo de outro modo. Vocês não terão a mínima possibilidade
de entender a doutrina da encarnação, se não entenderem esta doutrina do
pecado. Diz-nos a Bíblia que o homem estava em tais condições que
era necessária a vinda da Segunda Pessoa da Trindade santa e bendita dos céus à
terra. Ele teve que descer, assumir a natureza humana e nascer como um bebê.
Isso era absolutamente essencial antes de se poder redimir o homem. Por quê?
Por causa do pecado, da natureza do pecado. Portanto, vocês vêem, vocês não
poderão entender a encarnação, se não tiverem claro entendimento sobre o
pecado. De igual modo, vejam a cruz no Calvário. Que é ela? Que significa?
Que nos diz? Que está acontecendo ali? Torno a dizer que vocês não terão a
mínima possibilidade de entender a morte de nosso Senhor e o que Ele fez na
cruz, se não entenderem claramente esta doutrina do pecado. O caráter
completamente vago das idéias de muitos sobre a morte de nosso Senhor deve-se
inteiramente a isto. Não gostam da doutrina da substituição; não gostam da
doutrina do sofrimento penal. Isso porque nunca entendem o problema. Porque
não começam com o homem em pecado. Estas são as grandes doutrinas
cardinais da fé cristã, e não podem ser entendidas, a não ser à luz da terrível
condição do homem em pecado.

Deixem-me, porém, ser ainda mais prático. Talvez alguém diga: ah, bem, você
fala acerca das suas doutrinas. Não estou interessado em doutrinas, não sou um
dos seus teólogos, sou um frio homem do mundo, homem de negócio, e quero
saber algo sobre a vida e como viver. Muito bem, enfrentemos esse caso. Estou
asseverando que vocês não poderão entender a vida como esta é neste mundo
neste momento, se não entenderem esta doutrina do pecado. Vou além, a minha
opinião é que, sem isto, vocês não poderão entender a totalidade da história
humana, com todas as suas guerras, seus conflitos, suas conquistas, suas
calamidades, e tudo o que ela registra. Afirmo que não há explicação
adequada, salvo na doutrina bíblica do pecado. Só se pode entender
verdadeiramente a história do mundo à luz desta grande doutrina do homem,
do homem decaído e em pecado. Leiam os seus livros sobre a filosofia
da história, e verão que eles andam às tontas. Não sabem interpretar os

fatos, não conseguem dar uma explicação adequada; todas as suas idéias são
completamente falsificadas pela história. Isto porque eles nunca se apercebem de
que o ponto de partida é a condição pecaminosa do homem decaído.

São essas, pois, algumas das razões pelas quais devemos considerar esta matéria.
Há, em última análise, somente duas explicações propostas quanto a por que o
homem é como é e por que o mundo é como é hoje, e por que ele sempre foi o
que foi. Há o ensino bíblico; e há todos os outros ensinos não bíblicos.
Contrariamente ao ensino bíblico, há o ensino popular atual, segundo o qual o
homem é o que é, e as coisas são o que são porque o homem não teve tempo
suficiente ainda para avançar até a perfeição. Outrora ele era um animal, é o que
nos dizem, e isso há não muito tempo. Milhões de anos não são nada, e há
apenas alguns milhões de anos o homem era um animal. Habitava nas florestas,
trepava nas árvores, e assim por diante. Não se pode esperar que de repente
se torne perfeito, dizem eles. Ele está se desfazendo desses vestígios e relíquias
animalescos, porém, ainda não o fez completamente. Ele o está fazendo
progressivamente, é certo, mas é preciso dar-lhe tempo. Noutras palavras, o
problema da humanidade é simplesmente problema de tempo. Tais pensadores
não têm muito conforto para dar aos que estamos vivos agora, porque eles dizem
que em muitos bilhões de anos por vir, provavelmente o homem conseguirá
chegar à perfeição. E tudo uma questão de tempo, uma questão de
conhecimento, uma questão de crescimento e instrução, e assim por diante.
Agora, ou vocês crêem nisso, ou nalguma variante disso, ou então crêem no que
a Bíblia diz acerca do homem. Aqui nos é dito exatamente em que consiste
o conceito bíblico.

As diferenças entre o conceito bíblico e todos aqueles outros conceitos são os


seguintes: este conceito bíblico é realista. Todos aqueles outros conceitos não
encaram os fatos, suprimem certo número de fatos. São muito agradáveis e
favoráveis; querem fazer-nos pensar bem de nós e do homem, pelo que dizem:
dêem uma oportunidade ao homem; ele nunca teve uma chance completa ou uma
oportunidade certa, mas dêem tempo a ele, etc. Por outro lado, a Bíblia, com
realismo total, vem a nós e nos afirma que o homem é tolo, que o homem
trouxe calamidade para si mesmo, que é porque o homem é, como Paulo
se expressa aqui, “um filho da desobediência”, que ele é o que é e o seu mundo é
o que é. Ela assevera que não há escusa para o homem, que ele tem de admiti-lo,
que ele tem que encará-lo, e que não há esperança para

ele enquanto não o fizer. Isso se chama arrependimento. Ela é realista. E se não
houvesse outra razão para crer na Bíblia, e para crer que a Bíblia é a Palavra de
Deus, esta seria suficiente para mim; ela me diz o que eu sei que é a completa
verdade acerca de mim mesmo. E não sei doutra coisa que o faça. Os seus
romances não o fazem - eles dizem o que me agrada e não me levam apensar
com muito rigor sobre mim mesmo. Eles tentam levantar o meu moral, tratam-
me psicologicamente; no entanto, o que eles dizem não é verdade. Unicamente o
conceito bíblico é realista.

Não somente isso, é também radical, desce às profundezas. Não enfrenta apenas
certos aspectos do problema do homem em geral e do indivíduo; enfrenta todos
eles. Embora penoso, o processo toma o seu bisturi, por assim dizer, e se põe a
dissecar até o câncer ficar exposto. É radical. E é por isso que, às vezes, é
extremamente difícil não nos impacientarmos com o que o mundo está sempre
tão pronto a acreditar. O mundo, com as suas idéias e filosofias, está apenas
medicando sintomas, administrando os seus barbitúricos num sentido espiritual,
e os seus anódinos, as suas aspirinas, etc.; e porque a nossa dor é aliviada por
algum tempo, achamos que estamos bem, mas o estado de saúde nunca foi
diagnosticado, nunca foi posto às claras; não é enfrentado. O mundo não gosta
de nada que seja desagradável; tem medo disso, e assim não o enfrenta. Nunca é
radical. Todavia, como veremos, a Bíblia é muito radical.

Depois, a última coisa que eu gostaria de dizer em geral a respeito disso é que
este conceito bíblico é, ao mesmo tempo, mais pessimista e otimista que todos os
outros conceitos. O homem sempre foi atrás de alguma utopia, sempre tem feito
isso, através dos séculos. Mas nunca chega lá. Portanto, tudo isso é final e
completamente pessimista. Só existe um conceito verdadeiramente otimista da
vida, e é aquele que nos diz que, apesar de estar o homem nas profundezas do
pecado, o poder de Deus pode vir, pode segurá-lo e pode elevá-lo às alturas, e
que isto foi feito em Jesus Cristo, o nosso Senhor.

Tivemos um visão geral desta situação. Mas partamos agora para os detalhes,
para o ensino específico. Nestes três versículos o apóstolo faz um sumário de
modo o mais admirável, e talvez o mais perfeito da Bíblia toda - um sumário da
doutrina bíblica, do conceito escriturístico sobre o homem em pecado. Ele diz
quatro coisas a respeito disso. Em primeiro lugar, ele descreve o estado do
homem em pecado. Em segundo lugar, ele nos dá uma explicação deste estado e
nos explica por que o homem se acha neste estado. Em terceiro lugar, ele nos diz
a que

esse estado e condição leva na prática. E em quarto lugar, ele nos diz como Deus
vê o homem nesse estado. Seria essa a minha análise destes três versículos. Em
resumo: as condições; por que o homem está nestas condições; quais os
resultados práticos por estar ele nessas condições; e o que Deus pensa disso.
Tudo isso está neste três versículos.

Comecemos a nossa consideração destas questões partindo do estado do homem


em pecado. Qual é ele? Eis a resposta: “E vos vivificou, estando vós mortos”.
Agora, os tradutores acrescentaram aqui uma palavra que não está no original. O
original diz: “Estando vós mortos”, pode-se notar nalgumas versões (e.g., ARC)
que a palavra “vivificou” vem impressa em itálicos, o que significa que os
tradutores a acrescentaram (e fizeram bem) para nos ajudar a fazer uma leitura
mai s fluente. Mas Paulo estava impregnado do seu assunto, e diz: “E
estando vós mortos” - não “em” ofensas e pecados, porém, mortos “em razão”
deles ou “por causa” deles, que é uma tradução ainda melhor. A palavra vital,
todavia, é a palavra “mortos”. “Estando vós mortos” (“Vós estáveis mortos”,
VA), declara Paulo. Que é que ele quer dizer? Bem, é óbvio que ele está falando
de uma condição de morte espiritual, não de morte fatual, física, pois ele
prossegue e diz imediatamente: “em que noutro tempo andastes” e em que
“todos nós também antes andávamos”. Noutras palavras, o ensino do apóstolo é
que a vida para o não cristão é uma morte viva. Ele está morto espiritualmente.
Vou repetindo as expressões porque são vitais. Vocês notam como é forte
o termo. Não existe nenhum termo mais forte que “morte”. Como é categórico!
Depois de se dizer que um homem está morto, não há mais o que dizer. Não é
“quase morto”; ele está morto de fato; não é que ele esteja “desesperadamente
mal”, está “morto”. Não há vida nenhuma ali. Pois bem, a palavra é do apóstolo,
não minha, palavra utilizada em toda parte nas Escrituras; e é a palavra utilizada
acerca do homem que se acha num estado de pecado, antes do poder de Deus
para a salvação no evangelho vir a ele e lhe fazer algo. Ele está morto!

Que significa isso? Suponho que a melhor maneira de definir a morte é dizer que
é exatamente o oposto e a antítese da vida. Então, que é a vida? Bem, na Bíblia a
vida é sempre descrita e definida em termos da nossa relação com Deus. Vejam
as palavras do nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo em João 17:3: “E a vida
eterna é esta: que te conheçam, a ti só, por único Deus verdadeiro, e a Jesus
Cristo, a quem enviaste”. Isso é vida! Que é a morte? O oposto disso. Deus é o
Autor da vida - “Aquele que tem , ele só, a vida e a imortalidade”. Ele é a

fonte da vida, o mantenedor da vida. Deus é Vida e dá vida, e fora de Deus não
há vida. Portanto, podemos definir a vida como segue: a vida é conhecer a Deus,
estar em relação com Deus, ter prazer em Deus, corresponder-se com Deus, ser
semelhante a Deus, compartir a vida de Deus e ser abençoado por Deus.
Segundo a Bíblia, a vida é isso. Portanto, ao definirmos a morte, devemos defini-
la como o oposto daquilo tudo. E quando o fizermos, veremos de um relance que
o que Paulo diz sobre o não cristão não é nada menos que a pura verdade. Ele
está morto, é o que Paulo diz: Estando vós mortos” (“Vós estáveis mortos”, VA);
e os não cristãos ainda estão mortos. Que é que ele quer dizer? Ele quer dizer
que eles são ignorantes de Deus; não conhecem a Deus. Mais adiante, neste
capítulo, o apóstolo expressa isso claramente. Aqui ele diz que aquelas pessoas,
antes da sua conversão, estavam exatamente nessa condição. No versículo 12 diz
ele que “naquele tempo estáveis sem Cristo, separados da comunidade de Israel,
e estranhos aos concertos da promessa, não tendo esperança, e sem Deus...”.
“Vós estáveis sem Deus”; não O conheciam. Estavam separados da vida de
Deus, sem comunhão com Deus. Ah, vocês podem ter falado sobre Deus, mas
Deus era uma espécie de termo filosófico para vocês, era algum Ser
imaginário nalgum lugar qualquer, apenas Alguém sobre quem conversar.
Vocês não O conheciam, não se correspondiam com Ele; vocês estavam fora da
Sua vida.

Você conhece a Deus? Não pergunto: você fala sobre Deus? Pergunto, sim: Deus
é real para você? Você O conhece? “A vida eterna é esta: que te conheçam...”.
Você pode dizer, “Meu Deus”?

Obviamente, a segunda verdade acerca desta condição é que esse homem é


também ignorante das coisas espirituais e da vida espiritual. O apóstolo fala
disso ao escrever aos romanos, no capítulo 8, dizendo: “Os que são segundo a
carne inclinam-se para as coisas da carne; mas os que são segundo o Espírito
para as coisas do Espírito”. Interpretando, significa que os que são segundo
acarne não são cristãos, interessam-se pelas coisas que condizem com acarne,
não se interessam pelas coisas do Espírito. E isto, naturalmente, é puro e duro
fato. O incrédulo nada sabe destas coisas, e não quer saber delas. Não
se interessa por elas e as acha terrivelmente tediosas. O não cristão acha a Bíblia
muito enfadonha, e as exposições sobre a Bíblia muito enfadonhas. Ele não acha
enfadonhos os filmes, os jornais, os romances; mas essas coisas ele acha
enfadonhas. Não gosta das conversas sobre a alma, sobre a vida, sobre a morte,
sobre o céu, sobre Deus e sobre o Senhor Jesus Cristo. Não pode evitá-lo, porém
simplesmente não vê nada

nestas coisas, e não se interessapor elas. O seu interesse está nos homens e em
sua aparência, e no que eles têm falado e dito; o mundo e os seus interesses
exercem tremenda atração sobre ele. A situação é perfeita-mente simples: estas
outras coisas são espirituais, são de Deus, e aquele tipo de homem não vê nada
nelas. Por quê? Porque ele está “morto”, e não tem nenhuma vida espiritual. A
lei das afinidades é certa. Os semelhantes se atraem, “pássaros de penas iguais
voam juntos” - gente do mesmo tipo andajunto. Nasce acriança, e ela quer leite;
a suanatureza o requer, mas um objeto inanimado não. Essa é a segunda verdade
acerca do homem em pecado.

No entanto, ele não somente não gosta destas coisas, vamos adiante e
expressemos o ponto como as Escrituras o expressam; ele até as
odeia. Literalmente as odeia, não somente porque lhe são enfadonhas,
porém, também porque, de algum modo, ele sente que o fato de não gostar
delas o condena. E ele não gosta de sentir isso. Naturalmente ele se dispõe a ter
alguma espécie de religião, mas contanto que a possa controlar, controlar o que
se diz, e coisas como essas. Ah, sim, tem que haver um limite de tempo nas
coisas de Deus; não, contudo, nas coisas do mundo. Esse é o ódio que ele tem de
Deus. “A inclinação da carne”, afirma Paulo, “é inimizade contra Deus, pois não
é sujeita à lei de Deus, nem, em verdade, o pode ser” (Romanos 8:7).

Devemos ir mais longe. Obviamente, este tipo de pessoa é diferente de Deus e


não participa da vida de Deus. Noutras palavras, para usar um termo bíblico,
esse tipo de vida é corrupto. É corrupção. Deus é santo, e todos os que são
semelhantes a Deus também são santos. “Sede santos”, diz Ele, “porque eu sou
santo.” Mas as pessoas desse tipo estão mortas, estão fora da Sua vida, são
corruptas. São essencialmente más. Deleitam-se nas coisas más, lambem os
beiços por elas, porque a sua natureza é má. Não há justiça nessas pessoas, não
há verdade nelas. Acreditam em mentiras, e elas mesmas são
mentirosas, “odiosos, odiando-nos uns aos outros”, diz a Bíblia (Tito 3:3). Esse
é o homem em pecado - morto, fora da vida de Deus.

O que as segue, é claro, é que esse tipo de vida não é abençoado por Deus e,
portanto, é infeliz. A vida do homem em pecado é infeliz. Se você contestar isso,
só há uma coisa para dizer-lhe, e é que você não é cristão. Se você não concorda
que a vida ímpia, que a vida do mundo, é infeliz, e que a única vida feliz é a vida
cristã, você está simplesmente proclamando que não é cristão. Desejar este tipo
de vida, esse tipo de existência, é simplesmente proclamar que você não tem
natureza

espiritual. A verdade acerca dessa vida é que ela é miserável, infeliz. Olhem por
baixo da superfície, e a verão clamar a vocês. O modo de ser do mundo, com
todas as suas mudanças, suas constantes mudanças, é uma proclamação de que
aqueles que o seguem são profundamente infelizes. É por isso que eles vivem
mudando. Cansam-se de tudo, estão sempre em busca de algo novo. Estão
sempre em busca de emoções, e correm atrás delas. Por quê? Porque lhes é
intolerável passar algumas horas a sós consigo mesmos. Acham a sua própria
companhia tão miserável que passam a vida fugindo de si mesmos. Essa é a
extensão da miséria de uma vida de pecado: não hárecursos nem reservas,
porque eles estão fora da vida de Deus. Esse é o homem em pecado. Ele
está morto.

Na verdade o apóstolo resume tudo perfeitamente numa declaração do capítulo


seis da Epístola aos Romanos, versículo onze; diz ele: “.. .considerai-vos como
mortos para o pecado, mas vivos para Deus.. Antes vocês não estavam vivos
para Deus; agora, como cristãos, estão. Vocês se dão conta que o homem em
pecado está morto neste sentido? Dão-se conta de que é o que vocês eram por
natureza? Vocês não vêem que é assim que se avalia a salvação? É o que nós
todos éramos, declara Paulo. E os que estão em pecado ainda estão naquela
situação. Vocês não têm compaixão dos incrédulos? Vocês oram alguma vez por
eles? Vocês estão fazendo tudo o que podem para levar-lhes este evangelho,
seja neste país ou noutro? Essa é a condição deles. Pobres infelizes!
Mortos! Fora da vida de Deus!

Apresso-me a uma segunda questão. A segunda verdade que Paulo nos diz sobre
essas pessoas é que elas são governadas por este mundo: “Em que noutro tempo
andastes segundo o curso deste mundo”. Que declaração! “O curso deste
mundo”! A palavra que de fato eleusoufoi era, “a era deste mundo”. Que é que
ele quer dizer com isso? Penso que ele quer dizer que essa espécie de vida é vida
sob o controle, a perspectiva e a mentalidade do presente mundo - o “presente
século mau”, como lhe chamam as Escrituras (Gálatas 1:4). Ora, a
dificuldade quanto ao homem em pecado é que ele é levado, é controlado,
é absolutamente governado por esse tipo de vida e por esse tipo de perspectiva.
Isso é uma coisa que a Bíblia ensina do começo ao fim. De acordo com a Bíblia,
o mundo está sempre contra Deus.

Que é “o mundo”, no sentido bíblico? É a perspectiva, a mentalidade e a


organização da vida - à parte de Deus. E o que se quer dizer

com a expressão “o mundo” não se trata do universo físico, das montanhas, dos
rios, etc. O mundo é uma mentalidade, uma perspectiva, um conceito de vida
sem Deus. Deus é excluído; é o próprio homem concebendo e organizando a
vida, e controlando a vida. Essa mentalidade é que é descrita como “o mundo”.
Paulo o expressou uma vez por todas neste mesmo capítulo que estamos
considerando. Vejam de novo o versículo 12: “Portanto”, diz ele, “lembrai-vos
de... que naquele tempo estáveis sem Cristo, separados da comunidade de Israel,
e estranhos aos concertos da promessa, não tendo esperança, e sem Deus no
mundo”. Estar sem Deus é “estar no mundo”. E estar no mundo é ser governado
pela perspectiva e pela mentalidade do mundo. O apóstolo diz a mesma coisa em
Romanos 12: 2: “E não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos
pela renovação do vosso entendimento...”, Como cristão, diz o apóstolo, não se
amolde a este mundo, com a sua mentalidade e a sua perspectiva; você está
noutra esfera. “Transforme-se”, “renove a sua mente” para condizer com
aquele novo mundo. Ou vejam o que o apóstolo João diz, muito
explicitamente: “Não ameis o mundo, nem o que no mundo há... a
concupiscência da carne, concupiscência dos olhos e a soberba da vida” (1 João
2:15-17). O mundo é isso. Não amem o mundo, diz com efeito João, vocês não
lhe pertencem, ele é completamente oposto a Deus. Não amem o mundo!

Aqui a afirmação do apóstolo é que o não cristão é simplesmente governado e


controlado pelo mundo, sua mente, sua perspectiva, sua mentalidade. Não
conheço nada que seja mais triste quanto ao homem em pecado do que
justamente isso. Vocês vêem isso tudo em seus jornais. Acaso não é triste ver a
maneira com que certas pessoas são inteiramente governadas pelo que outras
pessoas pensam, dizem e fazem? Elas lamentam por nós, cristãos. Dizem elas:
“Imaginem, eles se prenderem a esse Livro, aqueles cristãos estreitos e
infelizes!” Assim fala o homem do mundo de mente aberta, assim chamado.
Como é astuto o diabo em persuadir as pessoas disso! Pois a pequena vida delas
é inteiramente governada pela organização do mundo. Elas pensam como o
mundo. Tomam as suas opiniões pré-fabricadas do seu jornal favorito. Até a sua
aparência é controlada pelo mundo e suas modas, que sempre mudam. Todas
elas se conformam, isso tem que ser feito; não se atrevem a desobedecer: têm
medo das conseqüências. Isso é tirania, é controle absoluto - roupa, estilo de
penteado, tudo controlado absolutamente. A mente do mundo! Não há tempo
para desenvolver a questão sobre a sutil, quase daibólica influência muitas vezes
demonstrada em suas modas sensuais. Esta era é dominada pelo sexo. Isso
transparece em toda

parte-fotografias, quadros e cartazes que o sugerem. Muitíssimas vidas estão


sendo controladas e governadas por isso, todas as suas opiniões, sua linguagem,
o modo como gastam o seu dinheiro, o que desejam, aonde vão, onde passam as
suas férias; é tudo controlado, governado completamente. Certamente isso tudo
nunca foi mais evidente que no mundo atual. Quando as pessoas falam tão
levianamente sobre a sua emancipação, dão uma clara prova do fato de que elas
são governadas, dominadas e controladas por este mundo, pela mente do mundo,
pelaera da propaganda, pela era da publicidade, pela opinião das massas,
pelo indivíduo massificado sem saber. Não é trágico? Mas o homem em pecado
é isso. Está espiritualmente morto porque é controlado pela mente do mundo.

Não somente isso, mas o apóstolo vai adiante para dizer-nos que, por sua vez,
isso é controlado por um princípio mau que há na vida. Ouçamo-lo colocá-lo
desta forma: “Em que noutro tempo andastes segundo o curso deste mundo,
segundo o príncipe das potestades do ar, do espírito que agora opera nos filhos
da desobediência”. A palavra “espírito” aqui significa princípio; há um princípio
mau que, diz ele, está operando neste mundo. E essa palavra “operar” é forte. Há
nela, uma energia, uma força, um poder. Não há nada mais patético do
que pensar numa vida de pecado como uma vida passiva ou negativa. O fato é
que existe este poderoso princípio do mal em ação neste mundo, e é somente o
homem que crê na Bíblia e teve a sua mente e seu entendimento iluminados pelo
Espírito Santo que pode ver isso. Vocês imaginam que tudo o que vêem na vida
hoje simplesmente sucede de qualquer maneira, de alguma forma? Vocês não
conseguem ver quão organizado é, quão uniforme, quão astuto, quão parecido
em todas as suas partes? Há um princípio do mal em operação. Numa era
obscura como esta, damos graças a Deus por toda e qualquer indicação de
melhoramento. Refiro-me ao fato de que houve certos filósofos que foram
suficientemente sinceros para dizer-nos que a última guerra mundial os
convenceu disso. Pensem num homem como o finado Dr. Joad. Ele eraum ateu,
um incrédulo, antes da guerra. Depois passou a crer na realidade de Deus, e nos
diz por quê. Disse ele que a segunda guerra mundial o convenceu de que, em
todo caso, a Bíblia estava certa nisto, que há um princípio do mal em ação. Disse
ele que não podia explicar a guerra de nenhum outro modo; ele pôde ver que não
se tratava de acidente ou de algo negativo, porém, que havia um poder
demoníaco em ação, o “espírito que agora opera nos filhos da desobediência”.
Cabe-nos como povo cristão,

reconhecer que essa pobre gente que está sem Deus no mundo está sendo
dominada e controlada por esse princípio mau.

Mas ainda precisamos dar mais um passo para trás. Diz o apóstolo que esse
princípio mau é governado pelo diabo e por todos os seus poderes: “Em que
noutro tempo andastes segundo o curso deste mundo, segundo o príncipe das
potestades do ar”. Que declaração! Entretanto, certamente, dirá alguma pessoa
sofisticada, você não está querendo dizer que ainda acredita no diabo! A resposta
é simples: acredito no diabo porque tenho que acreditar. Tenho que acreditar,
não apenas porque ele está aí - isso basta para mim - mas eu acredito porque não
posso explicar a vida sem ele. E é porque o diabo é ignorado que o mundo é
como é. O diabo é tão astuto que ele domina o homem e, ao mesmo tempo, o
persuade de que ele não está sendo dominado. O homem até pensa que está se
emancipando ao dar as costas à Bíblia. O diabo é também chamado “o deus
deste mundo”. O Senhor Jesus Cristo chamou-o “o príncipe deste mundo”.
Referência é feita a ele como “Belzebu, príncipe dos demônios”. E é ele que está
dominando tudo. Ele odeia Deus. Ele era um anjo que fora criado perfeito por
Deus, um anjo refulgente. Levantou-se contra Deus porque queria ser Deus;
e odeia a Deus, e o seu único objetivo é estragar a criação de Deus e arruinar o
mundo de Deus. Por isso veio ao mundo e enganou Eva e Adão, e daí em diante
é o que vem fazendo. Ele domina a vida do homem. Todos nós estamos, por
natureza, sob o domínio de satanás. Ele tem as suas forças, os seus poderes; ele é
“o príncipe”. Do quê? “Das potestades do ar.” Vocês notam como Paulo se
expressou sobre isso no capítulo seis desta Epístola, versículo doze: “Não temos
que lutar contra a carne e o sangue”. Se vocês pensam que o problema com
que se defrontam os estadistas hoje é apenas lidar com outros
homens semelhantes a eles, vocês são tragicamente ignorantes
politicamente, para não dizer espiritualmente. Se vocês pensam que é apenas
questão de personalidades, um homem ou outro, como Hitler ou Stalin,
vocês ainda não começaram a entender o ponto. “Não temos que lutar contra a
carne e o sangue, mas sim, contra os principados, contra as potestades, contra os
príncipes das trevas deste século” - isto é, as potestades do ar, trevas - “contra as
hostes espirituais da maldade, nos lugares celestiais.”

Diz-nos a Bíblia que existem estes poderes invisíveis, e o diabo é “o príncipe das
potestades do ar”. Pode-se interpretar a palavra “ar” destas duas maneiras: pode-
se dizer príncipe das potestades das trevas, ou príncipe das potestades invisíveis.
Não são poderes terrestres,

pertecem a outra esfera, são etéreos, por assim dizer, são espirituais. Não têm
corpos, mas têm existência real. E a tragédia do homem é que, porque não pode
ver os espíritos do mal, não acredita neles. Como não pode ver o Espírito Santo,
não crê no Espírito S an to. Como não pode ver a Deus, não crê em Deus. Não se
dá conta de que está numa esfera espiritual. Isso é porque ele está morto. É por
isso que ele está sem entendimento espiritual. “O príncipe das potestades!” Ah, o
poder do mal. O não cristão é absolutamente dominado e controlado por
esses poderes, e está morto às mãos deles.

Nós também, que somos cristãos, ainda somos confrontados por eles. É isso que
o apóstolo diz no capítulo seis desta Epístola. Como cristãos, temos que lutar
contra este poder. “Cristão, não procure repouso ainda; fora com os sonhos de
comodidade!” E me parece que muitos cristãos estão sonhando com
comodidade, e estão pensando e sonhando com um tipo de salvação em que não
há conflito e luta. Neste mundo, nunca! Há estes poderes do mal, as potestades
do ar, com toda a sua sutileza e malignidade, com toda a sua esperteza e as
transformações do seu chefe “em anjo de luz” para poder derrubar-nos. E isso
que nos está confrontando. O admirável é algum de nós
simplesmente permanecer nesta vida cristã. Somos confrontados por aquele que
não hesitou em chegar ao Filho de Deus e tentá-10 e dizer-Lhe com
absoluta confiança: “Se tu és o Filho de Deus”. Foi ele que
repetidamente derrotou os patriarcas e os santos do Velho Testamento. Cada um
deles caiu uma e outra vez diante dele. E ele se opõe a nós com todo o seu poder,
força e energia, com todos os batalhões que ele comanda, com o princípio mau
que ele introduziu em toda perspectiva e mentalidade do mundo. Está organizado
em forma visível, porém ele próprio é invisível; e está em toda parte.

Como resistimos ainda? Há somente uma resposta. E graças à “sobreexcelente


grandeza do seu poder sobre nós, os cremos”. O Deus que nos salva é o Deus
que nos guarda, e sem Ele não resistiríamos um segundo. Portanto, a glória só
tem que ser inteiramente de Deus. “E (ele) vos vivificou, estando vós mortos.”
Tomara que os nossos olhos sejam abertos e enxerguemos o problema e
avaliemos a sua profundidade; e então saberemos que este Poder que nos
sustenta nunca nos deixará nem nos abandonará!
O PECADO ORIGINAL

“E vos vivificou, estando vós mortos em ofensas e pecados, em que noutro tempo
andastes segundo o curso deste mundo, segundo o príncipe das potestades do ar,
do espírito que agora opera nos filhos da desobediência, entre os quais todos
nós também antes andávamos nos desejos da nossa carne, fazendo a vontade da
carne e dos pensamentos; e éramos por natureza filhos da ira, como os outros
também.” - Efésios 2:1-3

Em nossos estudos anteriores vimos que o primeiro princípio do apóstolo é que


não poderemos entender a grandeza do poder da salvação de Deus enquanto não
compreendermos que, por natureza, o homem está espitirualmente morto. Além
disso, temos que captar o fato de que ele é governado por este mundo e pela
mente deste mundo, que é governado pelo princípio do mal que está operando
neste mundo e que, por sua vez, é governado pelo “príncipe das potestades do
ar”, aquele grande chefe, o diabo, satanás, o deus deste mundo, que exerce
controle sobre todos os poderes e forças que dirigem e governam os homens
e determinam o tipo de vida que o homem leva neste mundo. Esse é o estado, a
condição.

Como é vital que compreendamos isto! Vital não somente do ponto de vista do
entendimento do evangelho, mas certamente, num sentido muito prático,
absolutamente essencial para o entendimento dos tempos nos quais vivemos,
internacionalmente e também num sentido nacional. Nada é tão fátuo como a
idéia de que a doutrina cristã é afastada da vida. Não existe nada mais prático, e
o mundo está hoje em suas atuais condições de desordem porque os homens não
querem reconhecer a veracidade daquilo que a Bíblia ensina sobre o homem.
Observem a situação industrial, e mesmo a financeira. Qual é o problema? Bem,
o que nos dizem é que a produção não é tão alta como deveria ser. Porque não é?
Essa é a questão. Por que não estamos produzindo mais? Ê a resposta é,
obviamente, que não estamos produzindo mais porque o homem se encontra
num estado de pecado. Vocês notam que digo “o homem”, não “os homens”.
Digo “o homem” para incluir todos os homens. Não estamos produzindo quanto
deveríamos produzir porque os empregadores e os empregados estão ampliando
cada vez mais a sua

idéia quanto à extensão do fim de semana. Isto aplica-se a todos. Se um homem


tem direito de alargar o seu fim de semana, o outro tem igual direito. E todos,
porque se acham em pecado e egoísmo, como vou mostrar-lhes, estão agindo
assim. Daí o nosso maior problema no momento. “Donde vêm as guerras e
pelejas entre vós?”, pergunta Tiago, e responde asuaprópriapergunta. Elas vêm
“dos vossos deleites, que nos vossos membros guerreiam” (4:1). E a tragédia é
que o mundo e os seus líderes e os seus estadistas, porque não reconhecem o
ensino das Escrituras, acham que podem explicar isso noutros termos.
Os diversos grupos se culpam uns aos outros, e os diversos países se culpam uns
aos outros, não percebendo que todos eles estão juntos no pecado; e enquanto
estiverem em pecado e forem egocêntricos e egoístas, só terão em conta a si
mesmos, e o mundo continuará com seus problemas. Assim vocês vêem que esta
doutrina bíblica do pecado é a coisa mais prática do mundo; e, não obstante, as
pessoas a deixam de lado com desdém, e é pena, porém nisto se incluem até
mesmos os cristãos. Quão distante do ensino bíblico
estáacomuníssimaidéiadequeocristianismo é simplesmente uma coleção de
numerosas máximas de moral, e que você deve ir à igreja aos domingos apenas
para receber algum encorajamento, para que lhe digam qual é o seu dever e que
você é bom se o pratica, e nada mais. Isso nem é o começo do estudo do
verdadeiro problema. Antes de podermos ter a mínima possibilidade de
compreender a verdadeira natureza do problema, temos de entender o que é
o homem no estado de pecado. Só então veremos claramente que nada, senão a
renovação espiritual e a ação do Espírito Santo, têm possibilidade de lidar com a
situação e de nos livrar em todos os aspectos. É por estas razões, pois, que
estamos considerando este ensino.

Portanto, havendo examinado o homem em seu verdadeiro estado e condição,


chegamos ao segundo ponto, que é a explicação da sua condição. Por que o
homem se acha nessas condições? O que o levou a isso? Qual a explicação? O
apóstolo responde com uma série de expressões epalavras que eleusanestes três
versículos. Vamos examiná-las. A primeira expressão importante é: “filhos da
desobediência”. “Em que noutro tempo”, diz ele, “andastes segundo o curso
deste mundo, segundo o príncipe das potestades do ar, do espírito que
agora opera nos filhos da desobediência.” Que expressão significativa
e importante! Que significa? Não significa apenas crianças ou
filhos desobedientes. Esta é uma expressão bíblica deveras característica. Vocês
encontrarão expressões semelhantes em muitos lugares. Vocês

recordam como um dia o nosso Senhor voltou-Se para os judeus e lhes disse:
“Vós tendes por pai o diabo, e quereis satisfazer os desejos de vosso pai” (João
8:44). Também se lembram de como, no Velho Testamento, muitas vezes vêem
que certos ímpios são tratados como “filhos de Belial”, ou por outra expressão
semelhante. Devemos, pois, considerar a expressão como dizendo que a
desobediência é a origem deste caráter distintivo. Somos filhos da desobediência
no sentido de que é a desobediência que nos leva a sermos exatamente o que
somos. Pois bem, é isso que o apóstolo está ressaltando aqui.

É sempre esse o ponto essencial da explicação bíblica sobre por que o homem é
assim. O problema primário, essencial, é a desobediência. Foi isso que levou a
todos os nossos problemas e desgraças. Noutras palavras, trata-se da nossa
relação com Deus. E vocês notam que a ênfase é que o pecado não é meramente
negativo, não é meramente ausência de qualidades, não é meramente ausência de
alguma coisa; é positivo, é ativo, á deliberado. É des-obediência, é fuga da
obediência, é questionar o direito que Deus tem de exercer o comando sobre nós,
noutras palavras, é rebelião. E é isso que Bíblia nos diz sobre o homem,
do começo ao fim. O homem não é simplesmente uma pobre criatura que nunca
teve chance e para com quem, portanto, vocês devem ser muito compassivos e
muito tolerantes. Essa é a idéia moderna, vocês sabem. A doutrina bíblica do
pecado saiu realmente do pensamento dos homens háuns sessenta ou setenta
anos, e apsicologiaentrou em seu lugar. Épor isso que a disciplina e a punição
desapareceram. A idéia agora é que, na verdade, todos nós somos,
essencialmente, muito bons, e o problema é que nunca nos foi dada uma chance.
O que necessitamos, dizem, é encorajamento. Não acreditamos na lei e nas
sanções morais. Isso é considerado duro e cruel. O resultado disso tudo é a
bancarrota da disciplina em todos os departamentos da vida-no lar, naescola, nas
ruas, na indústria, no comércio, em toda parte. Vocês vêem como esta doutrina é
vital! A Bíblia ensina que os nossos problemas decorrem todos da desobediência
inicial; que o homem é um rebelde contra Deus e deliberadamente se rebela
contra Deus. E, naturalmente, isso tudo provém do seu amor próprio. É a auto-
afirmação do homem, o posicionamento do homem contra Deus, o seu desejo de
ser deus.

Isto se desenvolve ao longo de três linhas principais. Obviamente, a primeira é


que o homem nega a sua condição de criatura. Ele se opõe a isso. O homem não
gosta da idéia de que ele é uma criatura feita e criada por Deus. Ele acha que esta
idéia de ser ele uma criatura é um insulto a ele, algo que o diminui e que diminui
a suagrandeza e glória essencial.

Ele não gosta da idéia de que há alguém acima dele, mesmo Deus. Ele gosta de
pensar que o homem é supremo, está acima de todas as coisas, e pode olhar de
cima para todas as coisas. Esse é o coração e o cerne da objeção do homem a
Deus e da sua oposição a Deus, O homem se ofende por natureza com a idéia de
que existe algo ou alguém que ele não pode abarcar com a sua mente; e quando
se lhe diz que ele é tão-somente uma criatura e que a sua atitude para com o
Criador, o Senhor Deus Todo--poderoso, deveria ser a de humilhar-se e cair
sobre o seu rosto diante de Deus, ele se opõe a isso. Acha que é um insulto, e
afirma que não é uma criatura, e que além dele não existe nada. Daí vocês têm o
ateísmo do homem moderno, a sua objeção a Deus e a sua negação de Deus.
Isso tudo surge do fato de que ele se opõe a esta idéia de que ele é uma
criatura, de que ele é alguém que Deus fez, criou e modelou para Si.

Outra maneira pela qual isto se manifesta - e obviamente decorre da primeira - é


que o homem sempre quer afirmar a sua auto-suficiência pessoal. Ele acredita
que ele próprio é suficiente. E evidente que a Bíblia diz exatamente o oposto -
que não somente o homem foi feito por Deus e para Deus, mas também que ele
é dependente de Deus, e que só pode ser feliz quando está em harmonia com
Deus e quando obedece a Deus. Toda a concepção bíblica do homem é que,
assim, ele se acha num estado de completa dependência de Deus e que o seu
bem-estar depende da sua compreensão disso e de praticá-lo. Todavia, é claro
que isso contraria o que o homem sempre achou de si mesmo. Ele sempre achou
que é auto-suficiente, que tem os poderes necessários e que só precisa pô-los em
exercício para fazer um mundo perfeito e uma vida perfeita para si. Ele se acha
competente para comandar os seus interesses da maneira certa, e que não
necessita nem de ajuda nem de assistência.

Por isso não há nada que ofenda tanto o homem natural como o evangelho que
lhe diz que ele é salvo unicamente pela graça de Deus, que ele, como um
mendigo, tem que aceitar como uma dádiva gratuita. Diz ele: não afundei tanto
assim, não sou perfeito, talvez, mas não sou um mendigo, há algo que eu possa
fazer e que sou capaz de fazer. É a doutrina da graça que o homem odeia mais
que tudo. Essa é “a ofensa” ou “o escândalo da cruz”; e isso continua existindo
porque o homem acredita em sua auto-suficiência, em sua capacidade, em seu
poder inerente. Essa é uma expressão da sua desobediência. Ele não quer aceitar
a graça, não quer acreditar nela, rebela-se contra ela e luta contra ela.

Ou talvez possamos explicar isso da seguinte maneira: é a afirma-

ção que o homem faz da sua autonomia, da sua independência de Deus. O


homem autônomo é o que se pensa do homem que todos os modos pode gerir
todos os seus interesses e que não precisa de ajuda nem de assistênci a de parte
alguma, nem mesmo de Deus! O homem autônomo, o homem auto-suficiente, o
homem autodeterminativo, o homem independente, o homem como deus, o
homem como o senhor do universo, o homem no trono e sobre um pedestal!

Certamente todos hão de reconhecer que isso nada mais é que uma descrição do
homem como ele é fora da fé cristã. Ele é completamente desobediente, e se
orgulha disso com arrogância. Ele promove a sua personalidade e a sua auto-
suficiência. E essencial forçar a questão a esse ponto. A desobediência, como eu
disse, é ativa, ativa até igualar-se à inimizade. Se não compreendermos isso, é
sinal que ainda não entendemos esta doutrina. Portanto, deixem-me interpretar o
que o apóstolo diz aqui com o que ele diz na Epístola aos Romanos, capítulo
oito, versículo sete: “A inclinação da carne”, diz ele, “é inimizade contra Deus,
pois não é sujeita à lei de Deus, nem, em verdade, o pode ser”. Que declaração!
E que importante adendo! O homem desobedece porque está em inimizade
contra Deus; odeia a Deus. Ah, mas, vocês dirão, conheço muitos que não são
cristãos, porém que dizem que crêem em Deus. Não, não crêem! Crêem numa
ficção, num produto da sua imaginação; eles não crêem em Deus. Se cressem em
Deus, creriam em Seu Cristo, como o nosso Senhor mesmo argumenta em João
8:30-45. Mas não crêem. Crêem simplesmente no que eles pensam e
imaginam que Deus é, no deus que eles próprios fabricaram. Isso não é Deus!
“A inclinação da carne é inimizade contra Deus, pois não é sujeita à lei de Deus,
nem, em verdade, o pode ser.”

Isso é importante, nesse sentido, que mostra que o homem, em conseqüência do


pecado, em conseqüência de ser ele dominado pelo diabo e pelo princípio que
este introduziu, e pela mente deste mundo, acha-se em tal estado e condição que
ele não pode obedecer a Deus. É isso que o grande Martinho Lutero chamava
“escravidão da vontade”. Contudo, para o homem em pecado e para o homem
moderno, que doutrina odiosa! “A escravidão da vontade!” A minha vontade é
livre, diz o homem. O homem gosta de pensar que é absolutamente livre
para escolher o que quiser, que ele pode escolher servir a Deus, se o desejar; que
pode escolher ser cristão, se assim for o seu desejo. A afirmação da vontade do
homem, do livre-arbítrio, é a ordem do dia. Mas a Bíblia fala em “filhos da
desobediência”; e “Vós tendes por pai o diabo, e quereis satisfazer os desejos de
vosso pai”. Diz o nosso Senhor que você é

incapaz. O homem natural não é sujeito “à lei de Deus, nem, em verdade, o pode
ser” - ele é incapaz disso. Desde a queda de Adão, isso de livre-arbítrio, de
vontade livre quanto a obedecer a Deus, não existe. Adão tinha livre-arbítrio;
nunca mais ninguém o teve. A liberdade de vontade perdeu-se na Queda; nesta o
homem passou a ser escravo do pecado e a estar sob o domínio do diabo. Sua
vontade está presa. “Se ainda o nosso evangelho está encoberto”, diz o apóstolo
aos coríntios (2 Coríntios 4:3 e 4) “para os que se perdem está encoberto. Nos
quais o deus deste século cegou os entendimentos dos incrédulos”, para que não
creiam no glorioso evangelho de Cristo. O diabo não os deixa crer. “O valente
guarda, armado, a sua casa, em segurança...” (Lucas 11:21). Essa é a condição do
homem sob o domínio do diabo; ele não é livre. Não é livre para não pecar.
“Filhos da desobediência”! “Nem, em verdade, o pode ser”! E incapaz disso. Tal
a profundidade em que o homem afundou em pecado. E, contudo, é aí que entra
o paradoxo, por assim dizer. Apesar disso, tudo o que o homem faz, ele o faz
deliberadamente. Ele quer pecar, gosta de pecar, gloria-se em pecar. Não exerce
negativamente a sua vontade para pecar; o que ele não pode fazer é querer o bem
positivo, o bem espiritual. É incapaz disso, e aí está porque ele precisa “nascer
de novo” e ter nova natureza. Mas ele pode querer o mal, e sente prazer em
praticá-lo. O que ele não percebe é que ele se tornou incapaz de querer o bem e
de querer alguma coisa que esteja direcionada para a salvação. Ele não é livre
para isso. Filhos da desobediência, a prole da desobediência, a progênie da
desobediência! Há no universo uma mente má, e nós somos seu fruto. Esse é o
ensino bíblico. Acaso não é extraordinário que alguém que tem
entendimento nestas questões possa discutir isso por um momento que seja? O
mundo atual está simplesmente demonstrando e provando esta verdade.
Os homens e as mulheres são escravos do diabo, estão sob a escravidão
do diabo; estão sob o poder e domínio de satanás.

Basta para a primeira expressão, mas examinemos a segunda. Esta se acha no


fim do versículo três: “e éramos por natureza filhos da ira, como os outros
também”. Destaco as palavras “por natureza”. Esta, obviamente, é uma
expressão sumamente importante. É isso que explica por que somos filhos da
desobediência e por que temos esta atitude particular com relação a Deus. O
apóstolo a usa primariamente aqui, na explicação do seu ensino de que estamos
“sob a ira de Deus”. Estamos sob a ira de Deus, diz ele, “por natureza”. Espero
tratar disso mais adiante. Agora quero mostrar que a expressão significa algo
mais

que aquilo. Somos o que somos, em todos os aspectos, “por natureza”. Se vocês
preferirem outra tradução, poderiam usar em seu lugar a expressão “por
nascimento”, “e éramos por nascimento filhos da ira, como os outros também”.
Noutras palavras, o ensino aqui é o mesmo ensino da Bíblia toda concernente ao
homem em pecado, ensino segundo o qual nascemos neste mundo com uma
natureza desobediente. Não nascemos com equilíbrio justo, com a possibilidade
de ir por este ou aquele caminho. Nascemos com forte inclinação unilateral.
Davi o expressa memoravel-mente no Salmo cinqüenta e um, versículo cinco:
“Eis que em iniqüidade fui formado, e em pecado me concebeu minha mãe”.
Que profunda peça de auto-análise e de psicologia! Se vocês querem psicologia,
vão às Escrituras. Aí está um homem, Davi, examinando-se. Tinham-no feito
lembrar-se do que ele fizera, o adultério e o homicídio que se lhe seguiu. Ele é
despertado e se examina a si mesmo, e parece estar dizendo a si próprio: como
pude fazer isso? Como pode alguém fazer tal coisa? Que é que torna um homem
capaz disso? Que será? E, diz ele: há somente uma resposta, e é tão profunda
como isto: em iniqüidade fui formado - “formado” em iniqüidade - e “em pecado
me concebeu minha mãe”.

Esta doutrina não é popular hoje. O homem em pecado jamais gostou dela. O
que ele gosta de dizer, naturalmente, é que todos nós nascemos neutros. Vejam
aquela criança, quão maravilhosa e perfeita! Bem, porque é que elapeca quando
cresce? Ora, dizem eles, vocês vêem aqui qual é o problema; é o mundo
pecaminoso ao qual ela vem: ela vê coisas más, vê maus hábitos, e aos poucos
vai sendo influenciada por eles. Dizem eles que com a criança tudo está bem,
mas com o ambiente não. Se tão-somente a criança fosse colocada num mundo
perfeito, ela permaneceria perfeita; entretanto, vem a um mundo imperfeito e vê
e pega hábitos, ouve falar e vê as coisas que as pessoas fazem, e gradativamente
assimila essas coisas e as pratica. E tudo questão de ambiente, mau exemplo, má
influência. Não, diz a Bíblia, não é não. Essa criança foi formada em iniqüidade,
e foi concebida e nasceu em pecado. Quando vimos a este mundo, a nossa
natureza já está corrompida. Herdamos uma natureza pecaminosa dos nossos
antepassados e dos nossos pais; começamos com isso. As tendências e os desejos
estão todos ali, e tudo o que o mundo faz é dar-nos um canal de escoamento. Há
dentro de nós umarebelião, um desejo de ter as coisas proibidas. Isso aparece
logo no início. É uma das primeiras coisas que manifestamos, todos nós. Por
quê? Bem, “por natureza”.

Noutras palavras, o defeito central surge neste ponto da seguinte maneira:


inclinamo-nos a pensar no pecado em termos de atos específicos da vontade; e
daí nos inclinamos a estar cegos para o fato de que somos pecadores
independentemente das nossas ações, de que o pecado está em nós e é parte
integrante da nossa natureza. Devemos livrar-nos da idéia de que tudo está bem
conosco enquanto não chega a tentação e caímos. Isso é verdade quanto a um
pecado, uma ação pecaminosa. Neste caso, eu exerci a minha vontade e fiz o que
não devia! Mas essa explicação não é completa. A real questão é esta: o que foi
que me levou a essa ação? A resposta é que foi “algo” que está dentro de mim.
Vejam as palavras do nosso Senhor, que falou disso uma vez por todas: “O
que contamina o homem não é o que entra na boca, mas o que sai da boca, isso é
o que contamina o homem... Porque do coração procedem os maus pensamentos,
mortes, adultérios, prostituição...” e tudo o mais (Mateus 15:11,19). A
dificuldade está no coração do homem. É esta natureza decaída, pecaminosa. E o
que Paulo chama, no capítulo sete de Romanos, “a lei do pecado que está nos
meus membros”; “em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum”. Ela é
corrupta, é má, por natureza. “Somos por natureza filhos da ira, como os outros
também.” Isso é de vital importância. Se a outra teoria estiver certa e o
homem nasce mais ou menos neutro, e se os seus problemas forem causados
pelo fato de que as coisas más ou um mau ambiente o levam a extraviar-
se, então, tudo o que você terá que fazer é tratar do ambiente. E essa tem sido a
filosofia dominante nos últimos sessenta a setenta anos. Tem-se considerado o
problema como sendo um problema de educação, de moradia e de melhoria
econômica, quase exclusivamente. Só tínhamos que dar ao homem as condições
certas, e dar-lhe o ambiente certo e o conhecimento adequado, e ele estaria
totalmente bem. No entanto, hoje em dia, seguramente, temos que começar a
compreender que a verdade não é essa, que isso não funciona. Vocês podem dar
ao homem as condições mais ideais, e ele irá mal. Foi no Paraíso que o homem
caiu! E se o homem, em suas perfeitas condições originais, pôde cair em pecado,
quanto mais o homem já decaído! Este é um princípio que por si mesmo se
demonstra em todas as relações humanas, em toda parte. E uma lástima, mas o
problema e a tragédia estão em um nível muito profundo. A Bíblia não está
sozinha neste ensino. Shakespeare o expôs de maneira memorável: “O defeito,
caro Brutus, não está em nossas estrelas, mas em nós, que somos desprezíveis”.
“Por natureza”! Começamos com isso, com uma tendência para o mal, tendo a
vontade em escravidão, sob o domínio de satanás, com cobiças e maus desejos,

como veremos, já ali e esperando por uma oportunidade para demonstrar-se e


manifestar-se.

Passamos a seguir à palavra muito importante “todos”. “Em que noutro tempo
andastes segundo o curso deste mundo, segundo o príncipe das potestades do ar,
do espírito que agora opera nos filhos da desbediência. Entre os quais todos nós
também antes andávamos nos desejos da nossa carne, fazendo a vontade da
carne e dos pensamentos; e éramos por natureza filhos da ira” - e de novo ele o
diz- “como os outros também.” Ou, se vocês preferirem outra tradução - “como
o restante da humanidade”. “Todos”, é universal. Ora, isso é uma coisa
impressionante. Este ponto era muito apropriado para o argumento particular do
apóstolo precisamente aqui. Seu tema é, vocês se lembram, como Deus
em Cristo, na plenitude dos tempos, vai reunir todas as coisas em Cristo, “tanto
as que estão nos céus como as que estão na terra”. E diz o apóstolo que Ele já
começou a fazê-lo, No capítulo primeiro, versículo onze, ele afirma que alguns
que são judeus creram no evangelho e estão no reino. Ele prossegue, dizendo
que alguns que eram gentios também obtiveram herança. Aqui ele retoma o
ponto - “E vos vivificou”. Ele fez a mesma coisa com vocês, gentios. Mas seu
grande desejo é que ninguém pense que ele está dizendo estas coisas somente
acerca dos gentios. Não, “todos” nós andávamos nos desejos da nossa carne,
“todos” nós éramos filhos da ira, como os outros também. O que ele diz aqui
sobre o homem em pecado é verdade com relação ao judeu, como também
com relação ao gentio.

Como era difícil para o judeu acreditar nisso! Durante séculos ele tinha
acreditado que estava completamente separado: o judeu! Fora estavam os cães,
os gentios, os estrangeiros. Estes estavam fora da “comunidade de Israel”. O
judeu era filho de Deus, estava a salvo porque era judeu. Ele era totalmente justo
e melhor do que todos os outros que eram pecadores, os cães dos gentios, os
quais estavam fora. Como lhe era difícil aceitar uma doutrina que afirma que ele
era tão pecador como o gentio! Essa era a pedra de tropeço para o judeu; ele
não gostava disso. E esta classificação da humanidade ainda se vê em diferentes
formas e moldes. No entanto, aqui o apóstolo diz, “não somente os gentios”, mas
“também os judeus”. E vocês notam que até a si mesmo ele inclui. Tendo
começado com “vós”, agora diz “nós”. Essa é a verdade a respeito de Paulo, o
apóstolo! É inimaginável, não é? Mas essa fora a tragédia da sua vida antes da
sua conversão. Como Saulo de Tarso, ele estava satisfeito com a sua vida;
“segundo ajustiça que há

na lei, irrepreensível” (Filipenses 3:6). E (em Romanos, capítulo 7) ele nos conta
como foi que veio a enxergar o seu erro. Foi quando ele entendeu a lei, que
dizia: “Não cobiçarás”. Então “reviveu o pecado, e eu morri”. Quando se deu
conta de que a lei dizia “você não pode desejar”, “você não pode cobiçar”, ele
viu o real significado da lei e viu que ele era um terrível pecador. Escrevendo a
Timóteo, ele diz: “Esta é uma palavra fiel, e digna de toda aceitação, que Cristo
Jesus veio ao mundo, para salvar os pecadores, dos quais eu sou o principal”
(1 Timóteo 1:15). Ele se considera o principal dos pecadores. “Todos
nós também antes andávamos nos desejos da nossa carne...”.

Esta é a verdade com referência a “todos”. Todavia, as pessoas ainda são muito
lerdas para ver isso. Dizem elas: veja esta descrição do pecado que você faz
naqueles três versículos. E claro, diz o homem, que eu posso ver muito bem que
isso se aplica a certas pessoas. Eu ando pelas ruas e vejo aquele pobre bêbado, e
aquela mulher decaída. Vejo pecado em seus trapos e em seus vícios. Você está
totalmente certo no que diz com relação a tais pessoas e quando fala de uma
natureza má e das luxúrias da carne, das luxúrias da mente, e assim por diante.
Concordo plenamente com você. Mas nós não somos daquele tipo de
gente. Porventura não existe gente boa, de boa moral, e decente, gente íntegra e
religiosa? Você está falando isso dessa gente? A resposta do apóstolo Paulo é
“todos”, “como os outros também”; toda a humanidade, sem uma única
excessão. Todos fomos formados em iniqüidade, concebidos em pecado.
“Todos” nós temos esta natureza pecaminosa.

O erro fatal é pensar no pecado sempre em termos de atos e ações, e não em


termos de natureza e de disposição. O erro está em pensar nele em termos de
coisas particulares em vez de pensar nele, como devíamos, em termos de nossa
relação com Deus. Vocês querem saber o que é o pecado? Eu lhes direi. Pecado é
exatamente o oposto da atitude e da vida que se enquadram em , “Amarás ao
Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todas as tuas
forças, e de todo o teu entendimento”. Se você não está fazendo isso, você é um
pecador. Não importa quão respeitável você seja; se você não está vivendo
inteiramente para a glória de Deus, você é um pecador. E quanto mais
você imaginar que é perfeito em si mesmo e independentemente de sua relação
com Deus, maior será o seu pecado. É por isso que qualquer um que leia o Novo
Testamento objetivamente poderá ver claramente que os fariseus dos tempos do
nosso Senhor eram maiores pecadores (se se pode empregar tais termos) do que
os publicanos e os pecadores declarados. Por quê? Porque eles se davam por
satisfeitos consigo

mesmos, porque eram auto-suficientes. O cúmulo do pecado é a pessoa não


sentir necessidade da graça de Deus. Não existe pecado maior do que esse.
Infinitamente pior do que cometer algum pecado da carne é você achar que é
independente de Deus, ou achar que Cristo jamais precisou morrer na cruz do
Calvário. Não há maior pecado do que esse. A auto-suficiência final, a auto-
satisfação final e a justiça própria, é o pecado dos pecados; é o cúmulo do
pecado, porque é pecado espiritual. Assim, quando você chega a compreender
isso, passa a compreender que o apóstolo não está exagerando quando diz “todos
nós”, “como os outros também”.

Esse é o homem em pecado, e é verdade universal. Há somente uma explicação


adequada disso. E a que nos é dada no começo do livro de Gênesis. É a doutrina
bíblica da Queda e do pecado original. Não se pode compreender o mundo
moderno à parte da doutrina do pecado original. Tudo aconteceu da seguinte
maneira: um homem, Adão, o representante da humanidade, pecou, rebelou-se e
caiu. E as conseqüências passaram a toda a sua progênie. Eu os desafio a
explicarem a universalidade do pecado em quaisquer outros termos.
Simplesmente não se pode fazer isso. Todas as outras teorias caem por terra. E
por isso que temos que crer nos primeiros capítulos de Gênesis, se é que
devemos crer no Novo Testamento. Sem isso não se pode ter uma verdadeira
doutrina da salvação. As duas coisas vão juntas, como Paulo o prova no
capítulo cinco da Epístola aos Romanos e de novo, e exatamente da
mesma maneira, no capítulo quinze da Primeira Epístola aos Coríntios. Esse é o
problema do homem; e é por isso que o homem é como é. Adão caiu, Adão
pecou; e o resultado é que toda a semente de Adão nasce em corrupção, com
uma natureza corrupta. É universal, acontece em toda parte. E isso que
“estabelece o parentesco do mundo inteiro”; é isso que torna absurdas todas as
suas “cortinas”, todas as suas barreiras de cor e todas as suas filosofias. Nisso o
mundo inteiro é um só. Todos nós estamos em pecado, somos filhos da
desobediência, herdeiros de uma natureza decaída que se expressa e se manifesta
da maneira como iremos considerar - “nos desejos da nossa carne, fazendo a
vontade da carne e dos pensamentos”, estando, pois, sob a ira de Deus e
completamente desamparados.

Deixo o assunto nesta altura, porque estou pregando com a suposição de que me
estou dirigindo a cristãos. Mas se eu estivesse pregando isto a um auditório
misto, não pararia aí, não me atreveria a parar aí. Eu continuaria, dizendo: “Mas,
quando estávamos nesta situação, em Sua

infinita graça e amor e misericórdia, Deus nos vivificou”. Nada menos que isso
podeira fazê-lo. Que outra coisa mais poderia tratar do homem em tais
condições? Nada menos que o soberano poder de Deus - o poder que, como
Paulo dissera ao final do capítulo primeiro, fez o Senhor Jesus ressuscitar dentre
os mortos e O elevou e O colocou “à sua direita nos céus, acima de todo o
principado, e poder, e potestade, e domínio, e de todo o nome que se nomeia”.
Nada menos que o poder de Deus pode resgatar e redimir e salvar o homem.
Entretanto, Ele o fez em Cristo. E nós, que somos cristãos, fomos levantados
daquela terrível condição em que estivéramos outrora, unicamente por causa da
Sua maravilhosa graça.

A VIDA SEM DEUS

“E vos vivificou, estando vós mortos em ofensas e pecados, em que noutro tempo
andastes segundo o curso deste mundo, segundo o príncipe das potestades do ar,
do espírito que agora opera nos filhos da desobediência, entre os quais todos
nós também antes andávamosnos desejos da nossa carne, fazendo a vontade
da carne e dos pensamentos; e éramos por natureza filhos da ira, como os
outros também. ” - Efésios 2:1-3

Ao voltarmos a considerar esta tremenda e sumamente vital declaração,


lembramo-nos de que o apóstolo a introduz com o fim de assinalar a grande idéia
que ele tinha começado a expor no capítulo anterior, a saber, que nós, como povo
de Deus, devemos compreender “a sobreexcelente grandeza do seu poder sobre
nós, os que cremos”. Diz ele que o que necessitamos fazer é avaliar este grande
poder. A maneira de fazê-lo, diz ele, é dar-nos conta primeiramente da
profundidade da qual Deus teve que levantar-nos, e depois considerar a altura
à qual nos levou. Quando entendermos a profundidade e a altura, teremos algum
concepção da sobreexcelente grandeza do poder de Deus.

Assim, primeiro o apóstolo descreve o nosso estado e condição em pecado, o


que nós éramos antes de apoderar-se de nós este poder. A segunda coisa que ele
faz é dar-nos uma explicação de como nós entramos naquele estado. Aí ele nos
apresenta a grande doutrina do pecado original.

Agora ele chega ao terceiro ponto, a verdadeira maneira pela qual tudo isso se
mostra e se manifesta na prática, em nosso viver comum. Ao tratar disso, ele
nos apresenta incidentalmente este terceiro grande poder contra o qual nós temos
que lutar nesta vida terrenal. Ele já tinha tratado do mundo e do diabo; agora vai
tratar da carne. Temos um conflito contra o mundo, a carne e o diabo - e agora
vamos examinar este conflito com a carne. O homem em pecado, segundo o
apóstolo, está levando uma vida dominada pelas “concupiscências da carne”.
Isso porque ele nasce com uma natureza corrupta, resultante do pecado original,
por sua vez resultante daquela transgressão e rebelião original do homem contra
Deus, o que produziu a Queda. Noutras palavras,
vemo-nos aqui, nestes três versículos, no centro mesmo das maiores profundezas
da doutrina cristã; e Paulo nos faz lembrá-las a fim de capacitar-nos a ver a
grandeza, não somente do poder de Deus, e sim também do Seu amor e da Sua
graça e da Sua misericórdia. O espantoso é Ele ter sequer olhado para tais
pessoas ou sequer preocupar-Se conosco!

Vejamos, pois, estas coisas. A vidado homem, no estado de pecado e fora da


graça, é, de acordo com o apóstolo, uma vida de ofensas e pecados-“E vos
vivificou, estando vós mortos em ofensas e pecados”. Isso resume tudo. pode-se
resumir a vida do mundo inteiro hoje com essas duas palavras “ofensas” e
“pecados”. Que é que elas significam? E óbvio que o apóstolo está pensando em
nuanças de significado aqui; do contrário, ele não teria utilizado as duas
palavras. Ele o fez deliberadamente.

Que é uma ofensa (ou um delito)? É uma transgressão externa. De fato o sentido
radical da palavra é de algo que se aparta do verdadeiro e do íntegro. O homem
foi criado com o propósito de ser ele íntegro, verdadeiro, justo e santo; ele se
apartou disso, afastou-se disso, não é mais íntegro. E como algo inclinado ou
caindo ao chão; saiu da sua posição verdadeira, da posição perpendicular. __

Que é que ele quer dizer com a palavra “pecados”? E um termo muito amplo e
compreensivo. Inclui todas as manifestações do pecado considerado como um
princípio interior. E isso que ele quer dizer com o termo “pecados”. Os pecados
são as manifestações externas deste princípio interior chamado pecado e que
estivemos considerando. Há em cada um de nós este princípio corrupto, e este se
manifesta no que chamamos pecados. Temos, pois, aqui, uma definição muito
compreensiva da vida do homem fora da graça divina- uma queda do
verdadeiro, do certo, do íntegro e do justo, e todas as manifestações externas
deste princípio mau que há dentro de nós. E isso que se quer dizer com ofensas e
pecados. E, de acordo com o apóstolo, esta é a vida do homem separado da graça
de Deus; é como ele “anda”, diz o apóstolo. Vocês notam como ele o expressa:
“em que noutro tempo andastes”. E depois, noutra frase: “Entre os quais todos
nós também antes andávamos nos desejos da nossa carne”. O que ele quer dizer
por “conversação”, como geralmente se dá no caso da Versão Atualizada
(inglesa), não é “conversa”, mas “maneira de viver”. Vocês recordam do que o
apóstolo diz no fim do capítulo três da Epístola aos Filipenses: “A nossa
conversação está nos céus”(VA). Não significaconversa ou fala. É um termo que
se usava
nos séculos dezesseis e dezessete para expressar um modo ou maneira geral de
vida.

Essa é a descrição das nossas ações. Contudo, afinal de contas, as ações sempre
expressam alguma outra coisa. Há um ditado que efetivamente diz, “como um
homem pensa, assim ele é”. Examinem a conduta e o comportamento de um
homem e, se fizerem um exame fidedigno, descobrirão a sua filosofia. Todos nós
expressamos as nossas idéias da vida segundo a maneira pela qual vivemos. Isso
é exatamente real quanto ao homem em pecado, diz o apóstolo. O que vocês
vêem são as ofensas e os pecados. Sim, mas o que é que leva às ofensas e
pecados? Ele tem sua resposta para nós. Tudo se deve a esta natureza corrupta,
o que ele explica com as palavras: “Entre os quais todos nós também
antes andávamos nos desej os da nossa carne, fazendo a vontade da carne e
dos pensamentos”.

Essa é a declaração que vamos considerar agora. Essa é a vida do homem sem a
graça de Deus em Jesus Cristo. Ela está corrompida. É uma vida vivida nos
desejos da carne. E o que o apóstolo salienta e que, portanto, eu estou desejoso
de salientar, é: esta verdade se refere a todos os homens, sem exceção. E verdade
universal, válida para toda a humanidade; não se refere apenas a certas pessoas,
porém, a todas: “todos nós também antes andávamos nos desejos da nossa
carne...e éramos por natureza filhos da ira, como os outros também”.
Devemos apegar-nos com firmeza a esta idéia da universalidade das condições
do homem. Todos os homens estão, por natureza, vivendo uma vida que
é segundo os desejos da carne.

Examinemos esta grande declaração. Vocês notam o desenvolvimento


extraordinariamente lógico da declaração do apóstolo. As ofensas e os pecados
resultam deste “desejo da carne”. Mas essa é uma expressão geral, pelo que o
apóstolo a subdivide. Os desejos da carne se manifestam ao longo de duas linhas
principais - “os desejos da carne” e “os desejos dos pensamentos”(ou “da
mente”). O problema fundamental é que estamos vivendo “nos desejos” (ou “nas
concupiscên-cias”) da carne; e isso se manifesta em nossa obediência aos
“desejos da mente” e aos “desejos da carne”.

Que significa o termo carne? É um termo muito importante no Novo


Testamento, e é igualmente importante que entendamos claramente o que ele
significa. Há sistemas de teologia que erram principalmente porque nunca
entenderam direito este termo escriturístico “carne”. Vocês notam que este termo
é utilizado duas vezes neste versículo

três: “Entre os quais todos nós também antes andávamos nos desejos da nossa
carne, fazendo a vontade da carne e dos pensamentos”. É de imediato evidente
que a palavra “carne” é empregada aí pelo apóstolo em dois diferentes sentidos,
doutro modo ele estaria sendo repeticioso. Emprega “carne” primeiro num
sentido geral, e depois num sentido particular. Assim, é muito importante
sabermos a conotação precisa cada vez que ele emprega o termo.

Esta palavra “carne” é empregada nas Escrituras de quatro principais maneiras,


duas gerais e duas particulares. O que quero dizer é: a palavra “carne”às vezes é
usada nas Escrituras para representar toda a humanidade. Vejam uma frase como
a seguinte: “Toda carne é erva e toda a sua beleza como as flores do campo”
(Isaías 40:6). Carne aí é empregada para abranger a humanidade inteira, “toda
carne”. Essa é uma das maneiras, e muito geral. Todavia, às vezes é empregada
também para descrever a cobertura dos nossos ossos. De que consiste o
corpo humano? Bem, há o esqueleto, a estrutura que consiste de ossos etc.
Mas não se vêem os ossos porque estão cobertos do que chamamos carne -
músculos, gordura, ligamentos etc. Pois o termo “carne” às vezes é utilizado
desse modo. Jó diz: “Em minha carne verei a Deus” (19:26), e aí ele quer dizer
realmente “no corpo”. Esses são os dois sentidos gerais.

No entanto, há dois outros sentidos que são mais particulares e mais espirituais
em sua conotação. E estes são importantes para o nosso propósito no momento.
O primeiro é de novo moderadamente geral, ou tem um sentido moderadamente
amplo. “Carne” é empregada pelo apóstolo para indicar algo que é a completa
antítese do Espírito, do Espírito Santo. Há um perfeito exemplo disso em Gálatas
5:17: “Porque a carne cobiça contra o Espírito (com E maiúsculo), e o Espírito
contra a carne: e estes opõem-se um ao outro”, Ali ele está empregando o
termo “carne” num sentido espiritual amplo; representa tudo que, no homem, é
oposto à ação, ao poder e à influência do Espírito Santo. Ora, isto
é tremendamente importante, e, portanto, deixem-me oferecer-lhes
mais definições a respeito. Carne, neste sentido, significa a natureza
humana num estado de pecado, o homem em pecado. Ou vejam uma
definição ainda mais compreensiva de “carne”. É a completa natureza do
homem sem a graça renovadora de Cristo; assim, abrange a alma e as
faculdades morais e intelectuais, bem como o corpo. Carne, neste sentido
amplo, geral, espiritual, é o homem em pecado, o homem todo, sem a graça
de Cristo. Inclui, portanto, o meu corpo e as suas funções, a minha mente,
os meus afetos, o meu tudo; o homem total, a totalidade do homem num estado
de pecado.

Mas finalmente o apóstolo usa este termo “carne” num sentido espiritual mais
restrito, referindo-se somente ao que se pode denominar a parte sensorial da
nossa natureza, ao corpo, á parte animal da natureza e às manifestações dessa
porção animal. E importante que tenhamos estas quatro definições claramente
em nossas mentes, e especialmente as duas últimas, as que têm referência
espiritual - o homem todo em pecado e, secundariamente, aparte animal do
homem em pecado, aparte corporal do homem, a parte sensorial, sensual do
homem em pecado.

E importante entender isso com clareza porque temos esta palavra “carne” duas
vezes neste versículo três, com o apóstolo usando-a em dois diferentes sentidos.
Bem, alguém dirá, isso não seria embaralhado e confuso? Como posso saber em
que sentido ele a está usando em dado ponto? A resposta é muito simples. Se
você levar em consideração o contexto, jamais errará. Esteja atento ao contexto,
e o contexto o fará acertar. Veja, por exemplo, este caso aqui: “Entre os quais
todos nós também antes andávamos nos desejos da nossa carne” - aí está
a realidade toda, o homem completo; particularmente, ele diz: “fazendo a
vontade da carne e dos pensamentos”. Agora, neste segundo exemplo, “carne” é
o oposto de “pensamentos” ou “mente”, não sendo mais o homem todo. Que é,
então? Bem, é unicamente a parte corporal do homem, a parte animal da
natureza humana. Vê-se que o contexto dá a resposta. Na primeira vez, carne é
geral; na segunda, é particular, o oposto da mente, do intelecto, da parte superior.
Desse modo, carne em geral cobre os desejos do corpo e os desejos da mente.
Sempre devemos ser cautelosos, observando estas distinções, quando lemos
estas Epístolas.

O que o apóstolo está dizendo é que o homem vive sua vida de ofensas e
pecados porque é governado e dominado pelos desejos da carne - carne no
sentido geral. Mas o que quer dizer ele com desejos? Novamente temos um
termo muito importante, trata-se de um forte desejo (ou cobiça). E de fato o
termo não significa mais que isso. O forte desejo pode ser bom ou mau. Há, por
exemplo, uma bem conhecida declaração feita pelo nosso Senhor durante a
última Ceia com os seus discípulos, quando disse: “Desejei muito comer
convosco esta páscoa, antes que padeça” (Lucas 22:15). O termo traduzido por
“desejei muito” é exatamente o que foi empregado no texto que
estamos focalizando. O sentido geral é, pois, forte desejo. Todavia, de novo
é evidente que se vocês prestarem atenção ao contexto, saberão se se trata

de um bom ou mau desejo. Falando de modo geral, nas Escrituras o termo se


refere a uma forte e urgente cobiça de algo vedado ou proibido.

Agora, então, havendo entendido as nossas definições básicas, podemos ver o


homem em pecado, podemos ver os não cristãos, podemos ver o que nós
mesmos éramos antes de Deus, em Sua infinita graça, havemos apreendido,
haver nos despertado ehaver nos dado nova vida. Esse é o quadro descritivo do
homem natural, dominado por fortes e urgentes cobiças de coisas que se opõem
a Deus e às Suas santas leis. O apóstolo, porém, tão desejoso está de que
captemos isto com clareza, que não se detém numa declaração geral. Ele quer
que vejamos quão completa é essa corrupção; quer que vejamos e
compreendamos como ela afeta o homem todo e cada uma de suas partes.
Quando Adão caiu, caiu o homem completo; não apenas o seu corpo, mas tudo
em Adão caiu, a sua mente, os seus afetos, a sua vontade; o homem em sua
totalidade caiu. Esta é a razão pela qual tantos, em seus sistemas teológicos,
se perdem - porque não compreendem isso; relacionam o termo unicamente com
a parte sensorial da natureza humana e, portanto, toda a sua perspectiva só pode
ser errada. Pensam que podem escolher a salvação, quase pensam que podem
salvar-se a si mesmos, que podem sandficar--se, e assim por diante. Nunca se
deram conta da totalidade da queda do homem em pecado. O homem todo está
envolvido.

O apóstolo no-lo mostra fazendo aqui estas duas importantes subdivisões. Vocês
percebem como é importante captar isso. Todos nós nos referimos às vezes a
certas pessoas como sendo elas pecadoras. E quando dizemos isso, pensamos em
certa classe de pessoas - pensamos em bêbados, assassinos, adúlteros etc. Por
outro lado, há gente boa, pessoas excelentes, que nunca se fizeram culpadas
dessas coisas, e nós nunca sonharíamos em dizer que tais pessoas vivem segundo
os desejos da carne. “Desejos da carne”, dizemos, “é claro que lemos sobre
eles no jornal. Lá estão, as pessoas que enchem os tribunais com os seus
casos de divórcio.” Os desejos dacarne! Mas o ensino do apóstolo é que
todos nós, sem uma só exceção, vivemos por natureza nos desejos da carne. Não
há uma única exceção, desde que Adão caiu. A humanidade inteira vive nos
desejos da carne. Vejamos como o apóstolo demonstra essa verdade.

Primeiramente ele se refere aos “desejos da carne”. Que é que ele quer dizer
com desejos aqui? A palavra que ele emprega é diferente de “forte desejo”
(cobiça). Desejo é uma ordem, uma ordem categórica. Vou além, desejo é ter
uma vontade imperiosa que nos incita à ação, que

nos leva à ação. Lembro que uma vez ouvi uma expressão utilizada por uma mãe
a respeito das suas filhas, A pobre mulher não fora muito favorecida com os bens
deste mundo e, contudo, viu certa ocasião as filhas muito bem vestidas, como as
demais jovens. Nós sabíamos que ela realmente não tinha como propiciar-lhes
aquele luxo. Algumas pessoas fizeram observações a respeito e perguntaram
como acontecera. A resposta da senhora foi: “Elas tinham que ter isso”. Tinham
que tê-lo! - sem qualquer argumento. Ela de fato não podia dar-lhes
aquilo, porém as filhas tinham que tê-lo! Isso é desejo, esta ordem imperiosa
que vem e à qual não se resiste. As cobiças da carne manifestam-se nos desejos
da carne. Aqui apalavra carne se refere ao corpo, à parte animal da nossa
natureza.

Em que o apóstolo está pensando? Está pensando em fome, sede, sono, desejo de
prazer, desejo de felicidade, desejo de satisfação, sexo, desejo de atrair e de ser
atraente. Ora, todas estas coisas constituemparte essencial da nossa natureza e
estrutura corporal, animal. Há esse lado do homem, e Deus o fez. Portanto, em si
mesmo, é essencialmente bom -a fome, o desejo de comer, de beber, de folgar,
dormir e repousar, o desejo de alegria, felicidade e prazer, o desejo sexual, o
desejo de ser atraente. Vocês vêem esses desejos em toda a criação animal,
nos animais e nas aves. Estão igualmente no homem. E não há nada de
errado nisso. O homem foi feito assim por Deus, e por Ele foi dotado
destes vários instintos, qualidades, faculdades e propensões. São bons,
todos eles. Quando Deus fez o homem, em acréscimo ao restante da
criação, olhou tudo, o homem inclusive, “e viu que era muito bom”.

Bem, de que é que o apóstolo está falando? Está descrevendo o homem em


pecado. Como o pecado se mostra? Mostra-se assim: estas coisas que em si
mesmas são retas e boas, de repente assumem o controle, tornam-se imperiosas
em suas exigências, começam a reclamar direitos e impelir-nos. Estou
empregando um termo técnico aqui; os psicólogos falam de “impulsos” que se
manifestam em toda a vida e existência da pessoa enferma, e é um bom termo. E
um impulso, um poder, uma força. V ocês vêem o impulso do jogador de golfe, e
a energia, a força que ele emprega; bem, estas coisas começam a impelir-nos,
a impulsionar-nos. Existe um bom termo escriturístico, ainda melhor do que
aquele; a Bíblia fala em “apetite desordenado” (ARA: “paixão lasciva”). Não há
nada errado em você ter fome, mas se você vive para comer, está errado. Se o
desejo por comida o estiver dominando, você estará padecendo de desejos da
carne, e isso é uma manifestação das cobiças da carne. Comer! Beber! Hoje o
povo gosta de falar e escrever
*

a respeito disso. Fulano é um “connaisseur” , pode dar-lhes a idade exata da


garrafa, sabe tudo sobre a vindima! É meticuloso acerca do que bebe com cada
prato! Esse é um desejo da carne. Vocês vêem, o homem não está meramente
bebendo para matar a sede, ou nem mesmo por prazer; não, ele foi mais longe,
aquilo passou a ser um desejo da carne. E isto se aplica ao sono. Todos
precisamos dormir, mas existe isso de ser glutão de sono, e nesse ponto passou a
ser um desejo da carne, e pode arruinar o homem. Igualmente com o prazer: tudo
certo com o prazer, não há nada de errado com o prazer. Mas quando o prazer
começa a dominar e a tornar-se tão importante que você se dispõe a brigar
com outros acerca dele, então é um desejo da carne. Precisaria dizer
alguma coisa sobre o sexo? Deus ordenou o sexo - porém Deus nunca ordenou a
prática do sexo pelo sexo e a moderna sexomania. Deus nunca ordenou o tipo de
coisa que está saltando e brilhando aos nossos olhos todos os dias nos jornais.
Não foi isso que Deus fez; isso é o homem arrancar a sexualidade do seu quadro
próprio, isolá-la, pintá-la, publicá-la em cartazes, resultando em que o sexo
passou a dominar a vida. Os desejos da carne! E exatamente a mesma coisa com
o desejo de atrair, que em si mesmo pode ser plenamente inocente. Não há nada
errado em toda gente desejar parecer bela e atraente; entretanto, quando você
começa a ter toda a sua mente centralizada nisso, e quando você vive para
isso, pensa nisso e fala disso, e gasta com isso muito dinheiro, passou a ser um
desejo da carne.

Eu poderia continuar ilustrando o tema interminavelmente. Desenvolvam vocês


mesmos estas coisas. Aí vocês têm os desejos da carne. Estas coisas estão em
nós, estão aí, foram postas aí por Deus; todavia se destinam a ser subordinadas, a
ser mantidas em ordem. A nós cabe estar no comando. O que aconteceu com o
homem é que estas coisas assumiram o comando; tomaram uma posição de
autoridade e nos estão impulsionando e estão nos pressionando. Todos nós
sabemos tudo sobre isso - as solicitações, os desejos que até podem fazer o
homem tremer! O poder disso tudo! “Os desejos da carne”!

Mas esperem, não terminamos ainda. Essa é somente uma subdivisão das
cobiças da carne. Todos estarão dispostos a concordar com o que eu disse até
aqui. “Sim, naturalmente”, dizem, “olhem para eles,
Expert, conhecedor. Em francês no original. Nota do tradutor.

vejam, que horrível!” Mas meu caro amigo, agora vou mostrar-lhe que, por mais
respeitável que você possa ter sido toda a sua vida, você é igualmente culpado de
viver “nos desejos da carne”; pois estes não se manifestam somente por meio
dos desejos do corpo, e sim, também, vocês percebem, por meio dos “desejos da
mente”. Nesse ponto um homem como Charles G. Finney erra em sua teologia.
Ele não reconhece esta verdade. Ele limita tudo ao que eu estive dizendo, e não
percebe que a mesma verdade se aplica à mente, ao intelecto e ao
entendimento, como ao outro aspecto.

Comecemos definindo a palavra “mente”. Abrange todo o processo de


pensamento; e inclui aparte emocional, afetiva, bem como aparte puramente
intelectual; todo o processo de pensamento - porque o pensamento não é
puramente intelectual. Todos nós pensamos emocionalmente, até certo ponto.
Mesmo o cientista faz isso; é por isso que ele tem os seus preconceitos. Todos
nós pensamos com a totalidade do homem, intelecto e afetos. Os desejos da
mente são, pois, como os desejos do corpo, uma expressão das cobiças da carne.
Como isto se mostra? Posso dar-lhes uma definição geral em termos como estes:
tudo o que tende a controlar, absorver e governar a sua atenção e a sua atividade
é desejo da mente, uma espécie de cobiça da mente. Haveria alguém que precise
ser convencido acerca disso? Haveria alguém que não compreenda que ele tem
tanta dificuldade com sua mente como com seu corpo? Todos nós sabemos das
cobiças do corpo, mas teríamos compreendido a verdade acerca das cobiças da
mente, e como a mente pode arrastar-nos - todo este poder e energia que nela se
exercem?

Consideremos algumas ilustrações. Acho muito difícil sugerir uma classificação.


Tomemos as cobiças da mente em seu nível mais baixo. Ciúme, inveja, malícia,
orgulho, ódio, ira, crueldade; que é que são? Nada mais são do que a
manifestação dos desejos da mente - cada um deles. E vocês vêem entrar aí o
fator cobiça. Vocês não viram gente literalmente estalando de raiva, tremendo de
paixão, com ira e furor? Vocês já viram a malícia e a inveja? Nada as detém -
“Matando Kruger com a sua boca”, como diz o poeta. Todas estas coisas são
manifestações dos desejos da mente. Gente que nunca se embriagou ou que
nunca cometeu adultério, muitas vezes se faz culpada destas coisas!
São manifestações das cobiças da carne. E outra maneira como isto se vê comum
e proeminentemente hoje em dia é no que as Escrituras denominam “parvoíces”
e “chocarrices” - o desejo de ser esperto e de dizer coisas inteligentes, e de fazer
rir. Como isso se tornou comum na vida! Gente que nem sonharia em fazer
aquelas outras coisas, vive para

este tipo de coisa, para exibir vivacidade, verbosidade, esperteza. É um “desejo


da mente”, uma cobiça da mente; é igualmente cobiça, como a outra. Aí está, no
seu nível mais baixo.

Examinemo-lo agora no nível um pouco mais elevado. Vejam a ambição. Que


força impulsora tem! É um poder tão grande como a cobiça do corpo na parte
animal da nossa natureza. A cobiça de riqueza; o desejo de posição; o desejo de
determinado “status” social; o desejo de ser importante na vida; o desejo de
poder; o desejo de sucesso! Mantenham os olhos abertos, mantenham os ouvidos
atentos, leiam as biografias e as autobiografias, e verão que as vidas de alguns
dos homens mais respeitáveis que o mundo já viu foram cheias desta espécie de
cobiça. A ambição, governando e impulsionando; homens gastando
fortunas, nada os detendo em seu afã por um nome ou por reputação. É um
“desej o da mente”, é uma verdadeira expressão da cobiça. Ou vejam
outro exemplo, o anseio por algo novo. Vocês recordam daquela
esclarecedora frase sobre os atenienses no capítulo dezessete de Atos, onde nos é
dito que “todos os atenienses e estrangeiros residentes, de nenhuma outra coisa
se ocupavam, senão de dizer e ouvir novidade”. Desejo da mente! A inquietação
do homem moderno! - sempre em busca de uma nova emoção, uma nova
agitação-e, talvez, se manifestando particularmente nos mexericos. “Você ouviu
esta?” - e logo entra em ação o tal poder; aquele que falajá está sendo impelido
pelo desejo; sabe algo que outro não sabe. “Você ouviu esta?” Nada mais é que
cobiça, e o mundo inteiro está imerso nisso; é ostensivo, até nos círculos
cristãos. Os mexericos e as conversas governadas pelo desejo de ser importante;
sabemos algo que algum outro não sabe, e ficamos alegres com o fato. E cobiça.
Daí a tão freqüente denúncia do mexerico e desse tipo de conversa no
Novo Testamento. E exatamente do mesmo modo vemos isso na conversa
dos vivaldinos, e nos argumentos e nos debates! Não sei o que vocês
sentem enquanto vou passando esta lista terrível, porém, quando eu
estava preparando este sermão, enchi-me de repulsa e de ódio a mim
mesmo. Olhei para trás e pensei nas horas que desperdicei com mera conversa e
argumentação. E tudo com um só fim em mira: simplesmente vencer em meu
caso e mostrar quão vivo eu era. Os outros participantes da discussões e eu
mesmo alegaríamos, suponho, que nós estávamos interessados na verdade, mas
muitas vezes não estávamos; era puro prazer em argumentar, discutir, criticar e
exibir inteligência. E cobiça, é desejo da mente. Depois, pensem nisso em termos
de leitura - leitura de livros, quero dizer, e de periódicos, etc. Com muita
freqüência isto se torna cobiça e, em vez de pensar, meditar e orar, lemos. Uma
das

tragédias do mundo moderno é que a leitura veio a ser um substituto do


pensamento, no caso da imensa maioria do povo. Nesse ponto, é um desejo, uma
cobiça; tomou-se uma doença.

Vocês têm conhecimento disso? Eu poderia falar-lhes muito a respeito. Este é um


dos meios pelos quais isto se mostra. A leitura é uma coisa excelente; nunca
teremos demasiado conhecimento, e devemos ler para termos maior
entendimento e para melhorarmos as nossas mentes. Contudo, vocês sabem, ela
se torna uma cobiça, desta maneira: você começou a ler um livro, e então, de
repente, ouve falar doutro livro e o adquire também. Ainda não acabou de ler o
primeiro, mas começa a ler o segundo. Depois aparece um terceiro, e você passa
a ler três livros! Bem, neste caso é uma cobiça. Você não está mais no controle, a
coisa o dominou, arrastou você, capturou você. E isso pode acontecer em todos
os níveis. Tenho visto gente ler romances exatamente do modo como outras
pessoas tomam drogas. Lembro-me do caso de uma pobre mulher que se podia
ver andando em volta da sua casa com um romance na mão. Mesmo enquanto
cozinhava, continuava lendo o seu romance. Pode parecer algo que faz rir, mas
fico a pensar se não é caso de chorar. Não vejo diferença, em princípio (sem
levar em conta as conseqüências sociais) entre isso e tomar drogas e beber
bebida alcoólica, ou entregar-se a alguma cobiça do corpo. Não vejo diferença
nenhuma; é igualmente cobiça, porém, é um desejo da mente, não do corpo.
Manifesta-se de algum modo. Depois vocês podem pensar nisso em termos das
pessoas com os seus passatempos, com os seus jogos e com os seus
interesses. Estas coisas são inocentes. Tudo bem com um passatempo, tudo
bem com um jogo desportivo; mas se você vive para isso, não está certo; tornou-
se um desejo da mente.

Passemos ao nível mais alto de todos: a cobiça do conhecimento, a cobiça da


cultura! Literatura, arte, música, teatro, filosofia, todas estas coisas entram. São
boas, porém não se você vive para elas, se elas o dominam, se se tornaram um
compulsão em sua vida, compulsão que você não pode controlar. E não seria esta
a verdade acerca de algumas das pessoas mais respeitáveis do país? Refiro-me
aos que dizem: “Bem, por certo o evangelho da salvação, da conversão e da
regeneração dá certo na zona leste de Londres, mas não na zona oeste; é bom
para os que vivem nas sarjetas e são adúlteros e outras coisas mais, porém eu
nunca fiz... Lá estão eles, e podem estar ocupando altas posições acadêmicas nas
universidades. Dizem eles: “Certamente eu não precisa passar por esse
renascimento de que você está falando!” A resposta é: “Você precisa,
porqueéumacriaturamarcadaporcobiçascomoqualqueroutra

pessoa”. E não importa se a cobiça está na mente, no intelecto, ou se está na


parte animal, é exatamente a mesma coisa, e é igualmente oposta a Deus. E aí
está esta cobiça, esta busca de mais conhecimento pelo conhecimento, e de
entendimento; é penetrante, e percorre a totalidade da vida. Não existe uma
pessoa viva que não seja culpada desta cobiça da carne. Esse é o homem em
pecado. O pecado é assim tão intenso, profundo e penetrante.

Vocês percebem a importância disso tudo. Posso imaginar certa espécie de gente
dizendo a si mesma o seguinte: “Bem, por certo isso é muito interessante se a
gente está interessado nesse tipo de coisa, mas, afinal, a Inglaterra está passando
por época de crise no momento; e o mundo inteiro, e o seu futuro, está na mais
precária situação. Por que você não fala algo sobre isso? Causará surpresa a
vocês se eu disser que estou pregando sobre isso o tempo todo? “Como você
comprova isso?”, dirá alguém. A minha resposta é que se comprovará quando
você entender esta doutrina do pecado e enxergar a extrema futilidade
e fatuidade de só confiar na ação política. Os políticos pensam que este tipo de
situação pode ser resolvida implorando aos homens e às mulheres que se
disciplinem voluntariamente. Devemos comer menos, devemos fumar menos,
devemos importar menos, disciplinando-nos pessoalmente, devemos dar mais
duro no trabalho. Já fizeram esse apelo, mas não parece que tenha sido atendido;
por isso eles aumentaram a taxa das compras. Dizem eles que isso funcionará.
Não obstante, não está funcionando. Por quê? Porque eles nunca se aperceberam
do sentido dapalavracoè/pa. Os homens simplesmente não podem atender porque
são levados por seus impulsos, são cativos. Cobiça é força, é poder. Aumenta-se
o preço, mas eles continuarão a comprar; poderão moderar o vício de fumar por
uma semana ou duas depois de se fazer um orçamento, mas os estatísticos nos
mostram que após algumas semanas tudo volta ao nível anterior. E isso
continuará sendo assim. Por quê? Porque o homem é impulsionado por desejos,
por cobiças. Não consegue impor disciplina a si mesmo.

Posso prová-lo. Se estivermos em meio a uma terrível guerra e de fato nos


virmos lutando pelas nossas vidas, então vocês verão os homens comendo
menos, bebendo menos e se disciplinando de várias maneiras, até certo ponto.
Mas vocês vêem o que acontece; um instinto maior leva de roldão os instintos
menores. O instinto e o desejo de autoconservação põem fora as outras cobiças -
todavia ainda é uma cobiça. Assim é que, no momento em que a crise passa, os
homens caem exatamente onde

estavam antes. Toda a falácia do pensamento meramente político baseia-se na


incapacidade de captar a doutrina bíblica do pecado. Não basta dizer aos homens
o que é certo e o que é errado; eles nada podem fazer porque são escravos e
vítimas das cobiças, das paixões e dos desejos que os dominam.

Há somente uma coisa que pode lidar com esse tipo de situação. É aque
mencionei no começo. E “a sobreexcelente grandeza do seu poder sobre nós, os
que cremos”. É o que Thomas Chalmers chamava “o poder expulsivo de um
novo afeto”. Assim, se vocês estão pensando simplesmente neste país e numa
crise em particular, o rumo certo para encontrar-se a resposta acha-se nesta
passagem das Escrituras. Mas, além e acima disso, se vocês estão pensando,
como deviam, no fim da sua vida neste mundo e no fim do mundo, em Deus, no
juízo e na eternidade, bem, então, vocês têm que continuar pensando nisso;
porque naquele estado de cobiça vocês não poderão subsistir diante de Deus
e não poderão fruí-IO. É preciso que vocês sejam libertos deste domínio da
cobiça da carne, que se manifesta nos desejos do corpo e nos desejos da mente.
E é somente o poder de Deus no Senhor Jesus Cristo, mediante o Espírito Santo,
que nos pode libertar. No entanto, bendito seja Deus, que pode, que o faz, que o
fará. Pecado! - ah, as profundezas, a imundície, a fealdade, o poder disso tudo!
Há somente um abrigo seguro, e este é estar sempre olhando para Ele, recebendo
da Sua plenitude, confiando na força do Seu poder. Aí, pois, estamos a salvo.

A IRA DE DEUS

“Entre os quais todos nós também antes andávamos nos desejos da nossa carne,
fazendo a vontade da carne e dos pensamentos; e éramos por natureza filhos da
ira, como os outros também. ”

- Efésios 2:3

Passamos agora a examinar a declaração final do apóstolo acerca do homem em


pecado; e é que ele está sob a ira de Deus. Noutras palavras, Paulo fala do
pecado, como o pecado afeta a posição do homem diante de Deus. Ele mostra o
que Deus diz, pensa e faz quanto ao homem nas condições que já consideramos:
não se pode contestar de modo algum que este é o aspecto mais importante do
assunto. Os aspectos anteriores são vitalmente importantes, mas não há nada que
seja tão importante como isto. E porque tão constantemente nos esquecemos
desta verdade que o mundo está como está hoje - e de fato a Igreja está como
está. Somos tão autocentralizados e tão preocupados conosco mesmos
que deixamos de lembrar que a coisa mais importante, acima de todas as demais,
é o modo como Deus vê tudo isso. Esse é o assunto de que temos de tratar agora.

O apóstolo se expressa desta maneira: diz ele que todos nós “éramos por
natureza filhos da ira, como os outros também”. Temos aqui uma afirmação
dupla. E não há dúvida de que estas duas questões que somos compelidos a
examinar juntas são dois dos assuntos mais difíceis e complexos de toda a gama
e ramo da doutrina bíblica. E por isso que com freqüência elas têm levado à
grande incompreensão e constituem assuntos que muitas vezes as pessoas, em
sua ignorância, não somente deixam de entender, porém também repelem
ferozmente. Não há, talvez, assunto que tenha levado mais vezes pessoas a
falarem - conquanto inconscientemente - de maneira blasfema, do queprecisa-
mente esta matéria que agora vamos considerar. O apóstolo diz duas coisas: que
estamos todos sob a ira de Deus; e, em segundo lugar, que estamos todos sob a
ira de Deus por natureza.

Por que devemos examinar estas coisas? Pode bem ser que alguém faça essa
pergunta. Por que despendei nosso tempo com um assunto

como este, que é um assunto difícil? Existem muitas outras coisas que no
presente são interessantes e atraem a atenção. Por que não tratar delas? E, em
todo caso, no meio de todos os problemas com os quais o mundo se defronta, por
que dar atenção a algo como este assunto?

Bem, para que não haja alguém que fique agasalhando tal idéia e seja provocado
a fazer tal pergunta, permitam-me aventar certas razões pelas quais nos convém
considerar esta matéria. A primeira é que faz parte das Escrituras. Está nesta
passagem da Bíblia e, como veremos, está em toda parte na Bíblia. E se
considerarmos a Bíblia como a Palavra de Deus, e como a nossa autoridade em
todas as questões de fé e de conduta, não podemos selecionar e escolher aqui e
ali; temos que tomá-la como é e considerar cada uma das suas partes e porções.

Em segundo lugar, devemos fazê-lo porque, depois de tudo, o que nos é dito aqui
é uma questão de fato. Não é uma teoria, é uma declaração de fato. Se a doutrina
bíblica da ira de Deus é verdadeira, é o fato mais importante que nos confronta, a
cada um de nós, neste momento; infinitamente mais importante que qualquer
conferência internacional que se realize, infinitamente mais importante que
a questão se haverá uma terceira guerra mundial ou não. Se esta doutrina é
verdadeira, estamos todos envolvidos nela, e dela depende o nosso destino
eterno. E em toda parte a Bíblia declara que ela é um fato.

Outra razão para considerá-la é que todo o argumento do apóstolo é que nunca
poderemos entender o amor de Deus, enquanto não entendermos esta doutrina.
É o meio pelo qual avaliamos o amor de Deus. Fala-se muito hoje sobre o amor
de Deus e, contudo, se verdadeiramente amássemos a Deus, nós o
expressaríamos, nós o demonstraríamos. Amar aDeus não é meramente falar
sobre isso; amar a Deus, como Ele mesmo assinala constantemente em Sua
Palavra, é cumprir os Seus mandamentos e viver para a Sua glória. Aqui o
argumento é que realmente não poderemos entender o amor de Deus, se não o
virmos à luz desta outra doutrina que agora estamos considerando. Assim,
desse ponto de vista, é essencial que o façamos.

Deixem-me expressá-lo desta maneira: o meu parecer é que jamais poderemos


entender verdadeiramente por que foi que o Senhor Jesus Cristo, o eterno Filho
de Deus, teve que vir a este mundo, se não entendermos esta doutrina da ira de
Deus e do juízo de Deus. Como cristãos, cremos que o Filho de Deus veio a este
mundo, que Ele deixou de lado a insígnia da Sua glória eterna, nasceu como uma
criança em Belém e suportou tudo quanto suportou, porque isso era essencial
para a nossa salvação. Mas a questão é: por que era essencial para a nossa

salvação? Por que teve que acontecer tudo isso, antes de podermos ser salvos?
Desafio a quem quer que queira responder à questão adequadamente sem levar
em conta esta doutrina do juízo de Deus e da ira de Deus. Esta se torna ainda
mais comprovadamente verdadeira quando examinamos a grande doutrina da
cruz e da morte do nosso bendito Senhor e Salvador. Por que Cristo morreu? Por
que teve que morrer? Se dizemos que somos salvos por Seu sangue, por que
somos salvos por Seu sangue? Por que foi essencial que Ele morresse naquela
cruz e fosse sepultado e ressuscitasse antes de podermos ser salvos? Há
somente uma resposta adequada a estas perguntas, e essa é esta doutrina da ira
de Deus. A morte de nosso Senhor não é absolutamente necessária, se
esta doutrina não é verdadeira. Assim, vocês vêem, é um assunto vital
para considerarmos.

Finalmente, faço uma colocação de forma muito prática. Esta doutrina é


essencial do ponto de vista de uma verdadeira evangelização. Por que é que
tantas pessoas não crêem no Senhor Jesus Cristo? Por que não são cristãs e
membros da Igreja Cristã? Por que o Senhor Jesus Cristo nem sequer entra em
seus planos? Em última análise, há só uma resposta a essas perguntas: não crêem
nEle porque nunca viram nenhuma necessidade dEle. E nunca viram
nenhuma necessidade dEle porque nunca se deram conta de que são pecadoras.
E nunca se deram conta de que são pecadoras porque nunca compreenderam a
verdade acerca da santidade de Deus e da retidão e justiça de Deus; nunca
aprenderam nada acerca de Deus como o Juiz eterno e acerca da ira de Deus
contra o pecado do homem. Daí vocês vêem que esta doutrina é essecial à
evangelização. Se realmente cremos na salvação e na nossa absoluta necessidade
do Senhor Jesus Cristo, temos que começar com esta doutrina. Aí estão, pois, as
razões para que as consideremos. O apóstolo no-las dá; eu simplesmente as estou
repetindo.

Agora examinemos as duas afirmações propriamente ditas. A primeira coisa que


o apóstolo diz é que todos os que nascem neste mundo estão sob a ira de Deus.
Diz ele que todos nós “éramos filhos da ira, como os outros também”; éramos
todos filhos da ira, como o restante da humanidade-é o que significa a expressão
“como os outros também”. Aqui enfrentamos face a face esta tremenda doutrina
que eu sei muito bem que não somente não é popular no presente, mas é
até odiada e detestada. As pessoas mal podem controlar-se, quando falam sobre
ela. Durante bom número de anos, a idéia moderna é, em geral, que

Deus é um Deus de amor e que só devemos pensar em Deus em termos de amor.


Falar sobre a ira de Deus, é o que nos dizem, é totalmente incompatível com
toda idéia de Deus como um Deus de amor. Eis como o ponto é colocado: dizem
eles que, naturalmente, essa idéia da ira de Deus provém da antiga idéia de Deus
como uma espécie de Deus tribal. O problema é que ainda há certos cristãos que
acreditam nisso em referência ao Deus do Velho Testamento, que não era nada
senão um Deus tribal, segundo eles. Os deuses da mitologia eram todos desse
tipo e dessa espécie; exibiam sua ira e seu furor; todavia, naturalmente, sabemos
agora, pelo Novo Testamento e por Jesus, que isso é completamente errado e
completamente falso. Não mais cremos no Deus do Velho Testamento, cremos
no Deus do Novo Testamento, no Deus e Pai de nosso Senhor e Salvador Jesus
Cristo. Vocês conhecem bem o argumento. De fato, alguns vão mais longe e
dizem que foi só no século passado que realmente nos tornamos suficientemente
esclarecidos para entender estas questões, e que até o princípio do presente
século o povo ainda cria na ira de Deus e, portanto, tinha uma concepção
completamente falsa de Deus. Lembro-me de haver lido um livro repassado
de erudição em que o autor afirmou que esta idéia da ira de Deus não era mais
que uma espécie de projeção no caráter de Deus da noção do pai vitoriano típico
do pai austero e repressivo, o qual se impunha forçosa-mente aos filhos e os
disciplinava severamente e os castigava. A sua opinião era que as pessoas
simplesmente levavam esta idéia e a projetavam em Deus. Ora, isso, sustentava
ele, nada era senão um
pouco depsicologiafalsadaqualjánoslibertamos,eagorasabemosqueaidéia de ira
num Deus de amor é conceito auto-contraditório,

Haveria resposta a tais alegações? Permitam-me pôr fora de ação um mal-


entendido preliminar. Há algumas pessoas que interpretam completamente mal o
termo ira. Pensam em iracomouma manifestação descontrolada de raiva. Não
podem pensar em ira sem ligá-la à idéia de alguém tremendo de furor e roxo de
raiva, alguém que perdeu o domínio próprio, que fala violentamente e age
violentamente. Ora, essa é uma idéia completamente falsa e errônea do
significado de ira. O homem pecador, é verdade, às vezes manifesta a sua ira
dessa maneira, entretanto, nada disso entra no termo como é empregado na
Bíblia com referência a Deus. A ira não é nada mais nada menos que a
manifestação de indignação baseada na justiça. Na verdade, podemos ir além
e asseverar que a ira de Deus, de acordo com o ensinamento bíblico, não é nada
senão o outro lado do amor de Deus. É o corolário inevitável da rejeição do amor
de Deus. Deus é Deus de amor, porém, é também e

igualmente Deus de justiça e retidão; e se o amor de Deus é desdenhado e


rejeitado, nada mais resta, senão a justiça, a retidão e a ira de Deus.

Demonstremos agora a alegação de que esta doutrina é ensinada em toda parte


nas Escrituras. No Velho Testamento pode ser vista bem no começo. Quando o
homem caiu no Jardim do Éden, Deus o visitou, falou com ele e pronunciou
julgamento sobre ele. Expulsou-o do jardim, e às portas do jardim, ao leste, Ele
colocou os querubins e a espada flamejante. Qual o significado da espada
flamejante? Significa justamente que ela é a espada dajustiça de Deus, é a espada
da ira e da punição, punindo o homem pelo seu pecado e tornando impossível a
ele retornar e comer da árvore da vida a fim de viver para sempre. Lá, bem no
início, está uma manifestação do justo juízo de Deus e da Sua ira contra
o pecado. Isto se vê do começo ao fim, no Velho Testamento: na história do
Dilúvio, na história de Sodoma e Gomorra e nas várias punições impostas aos
filhos de Israel, quer como nação, quer como indivíduos. O Velho Testamento
está repleto disso. Deus deu a Sua lei e declarou que se os homens a quebrassem,
Ele os puniria - Sua ira é isso. E quando eles a quebraram, Ele os puniu. Puniu
indivíduos, puniu a nação, puniu até o Seu povo escolhido. Puniu-os e derramou
a Sua ira sobre eles levantando o exército dos caldeus que invadiu, saqueou
Jerusalém e os levou cativos paraBabilônia. Estafoi uma manifestação da ira e
do justo juízo de Deus. Vê-se isso em toda parte do Velho Testamento;
vocês realmente não podem crer no Velho Testamento, se não aceitam
esta doutrina da ira de Deus.

Passando ao Novo Testamento, apesar de tudo que os críticos modernos querem


fazer-nos crer, a doutrina está presente ali também, em toda parte. O primeiro
pregador do Novo Testamento foi João Batista. Que é que ele dizia? Dizia: “Fugi
da ira vindoura”; “Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado, fugi da ira
vindoura”. Os fariseus vieram para ser batizados por João, e ele os fitou e lhes
disse: “Quem vos ensinou a fugir da ira futura?” (Mateus 3:7). Foi essa a
mensagem que ele destacou. Na verdade era a mensagem do próprio Senhor
Jesus Cristo. Mas, e aí está a coisa mais surpreendente, vemo-la no
versículo geralmente citado como a suprema declaração de Deus como Deus
de amor-João 3:16: “Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho
unigênito”. Por que O deu? A resposta é: “para que todo aquele que nele crê não
pereça, mas tenha a vida eterna”. A alternativa da vida eterna é perecer. E é João
3:16 que ensina isso. Entretanto, o versículo trinta e seis desse capítulo três de
João é mais claro ainda: “Aquele que crê no Filho de Deus tem a vida eterna;
mas aquele que não crê no Filho

não verá a vida, mas a ira de Deus sobre ele permanece”. Noutras palavras, todos
os homens estão sob a ira de Deus, e se não cremos no Filho de Deus, a ira de
Deus permanece sobre nós. Que é que pode ser mais claro ou mais explícito? Aí
está, no Evangelho Segundo João, o apóstolo do amor.

O apóstolo Paulo ensina a mesma verdade de maneira igualmente clara.


Pregando em Atenas, diz ele que Deus “tem determinado um dia em que com
justiça há de julgar o mundo, por meio do varão que destinou”. Julgamento! A
ira de Deus! Em Romanos 1:18, lemos: “Porque do céu se manifesta a ira de
Deus (já foi revelada) sobre toda a impiedade e injustiça dos homens”. Paulo não
tem evangelho sem isso; é por causa da ira de Deus que ele está pregando o
evangelho. Nesta Epístola aos Efésios, que estamos considerando, no capítulo
cinco, versículo seis, vocês têm a mesma coisa: “Ninguém vos engane
com palavras vãs”, diz Paulo; “porque por estas coisas vem a ira de Deus sobre
os filhos da desobediência”! Ainda, fazendo um sumário do seu evangelho aos
tessalonicenses, na Primeira Epístola, no capítulo primeiro e no último versículo,
Paulo afirma que os tessalonicenses foram convertidos a Cristo e O aguardavam
dos céus - para quê? - bem, diz ele, porque Ele “nos livrou da ira por vir”(VA).

Pode-se achar a mesma idéia na Epístola aos Hebreus, em vários lugares. E se


vocês forem direto ao livro de Apocalipse, a verão ali numa frase deveras
notável. E uma frase acerca da “ira do Cordeiro”. Isso parece contraditório,
paradoxal. Vocês pensam num cordeiro em termos de inocência e de
inofensividade. E, todavia, aí está esta frase densa, “a ira do Cordeiro”. O
Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo é que haverá de julgar o mundo
com justiça. Fica, pois, mais que evidente que a idéia de que amor e ira são
incompatíveis é uma total negação do claro ensino das Escrituras. De fato, vou
longe a ponto de dizer que, a menos que comecemos com esta idéia da ira de
Deus contra o pecado, não teremos a mínima possibilidade de entender a
compaixão de Deus, não poderemos entender o amor de Deus. Somente quando
compreendo a ira de Deus contra o pecado é que compreendo o pleno
significado da Sua atitude em providenciar um meio de salvação dela. Se não
entendo isto, certamente não entendo aquilo, e toda a minha fala sobre o amor
de Deus é mero e leviano sentimentalismo que, na verdade, é uma negação da
grande doutrina bíblica do amor de Deus.

O ensino do apóstolo é, pois, que, enquanto não crermos no Senhor Jesus Cristo,
estamos sob aira de Deus. E a ira de Deus é uma expressão do Seu ódio ao
pecado, uma expressão dapunição do pecado. Uma clara

afirmação neste sentido é que, se morrermos em nossos pecados, iremos para o


castigo eterno. Esse é o ensino das Escrituras. A ira de Deus contra o pecado
manifesta-se finalmente no inferno, onde os homens e as mulheres continuam
fora da vida de Deus, em miséria e angústia, escravos dos seus próprios desejos e
cobiças, egoístas e egocêntricos. O ensino do apóstolo é que essa é a situação de
todos que não são cristãos. Estão sob a ira de Deus nesta vida, continuarão sob a
ira de Deus na vida por vir. Essa é a situação do pecador, de acordo com as
Escrituras. Se vocês fizerem objeção à idéia, estarão fazendo objeção às
Escrituras, estarão estabelecendo algumaidéiafilosóficaprópriade vocês,
contrária ao claro ensino das Escrituras. Não estarão discutindo comigo; estarão discutindo
com as Escrituras. Vocês estarão discutindo com estes santos apóstolos. Estarão
discutindo com o próprio Filho de Deus.
Se você crê que a Bíblia é divinamente inspirada, não poderá dizer: “Mas eu não
entendo”. Não se lhe pede que entenda. Eu não entendo isso, não tenho
apretensão de entendê-lo. Contudo, parto desta base, que a minha mente não só é
finita, é pecaminosa, porém, além disso, eu não tenho a mínima possibilidade de
entender plenamente a natureza de Deus, e a justiça e a santidade de Deus. Se
vamos basear tudo em nosso entendimento, bem podemos desistir agora mesmo.
Pois aBíblianos diz que “o homem natural” e a “mente natural” não podem
entender as coisas do Espírito de Deus (ver 1 Coríntios, capítulo 2). Foi o desejo
de entender que levou à Queda. O orgulho e arrogância intelectual é o primeiro e
o último pecado. O dever da pregação não é pedir ao povo que entenda; a tarefa
confiada ao pregador é a de proclamar a mensagem. E a mensagem é que todos
estão sob a ira de Deus, até crerem no Senhor Jesus Cristo. Mas de fato devemos
dar mais um passo ainda.

Isso nos leva à segunda questão. Diz o apóstolo que todos nós estamos nestas
condições por natureza - “e éramos por natureza filhos da ira, como os outros
também”. Que é que significa a expressão por natureza ? Já mostramos num
estudo anterior desta série que ela só tem um sentido, que é, “por nascimento”.
Todos nós éramos por nosso próprio nascimento filhos da ira, como os outros
também. Notem que o apóstolo não diz “nos tornamos” filhos da ira por causa da
nossa natureza; diz ele que “éramos”. Noutras palavras, em harmonia com
a Bíblia toda, o apóstolo não ensina que nascemos neste mundo num estado de
inocência e num estado de neutralidade, e que depois, porque pecamos, nós nos
tornamos pecadores e passamos a estar debaixo da ira de Deus. Não é o que ele
diz; ele diz exatamente o oposto. O que diz

é que nascemos neste mundo sob a ira de Deus; desde o momento do nosso
nascimento estamos sob a ira de Deus. Não é apenas uma coisa que nos vai
acontecer, tampouco é algo que só resulta das nossas ações. Há quem ensine
isso, mas é flagrante negação, não somente do ensino desta passagem, porém,
como veremos, do ensino apresentado em toda parte nas Escrituras. O apóstolo
não está dizendo que estamos sob a ira de Deus somente por causa da nossa
natureza ou da manifestação da nossa natureza. Ele afirma que estamos nesta
situação “por nascimento”.

Então, que significa isso? Pode-se ver a resposta no capítulo cinco da Epístola
aos Romanos, onde é feita uma argumentação minuciosa e completa, do
versículo doze ao fim do capítulo. Qual é o argumento? Façamos um sumário
dele. Naquele capítulo, a grande verdade que o apóstolo está interessado em
provar é que a nossa relação, como crentes, com o Senhor Jesus Cristo, é
exatamente análoga à nossa relação anterior com Adão. Ele fica repetindo a
comparação, indo e vindo. Fala sobre o que era verdade a respeito de nós em
Adão, e depois mostra o que é verdade a respeito de nós agora, em Jesus Cristo.
Ele começa, no versículo doze, dizendo: “Pelo que, por um homem entrou o
pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim também a morte passou a todos
os homens por isso que* todos pecaram”, e assim continua. Qualquer leitura
atenta e despreconcebida desse argumento, que é básico para a doutrina paulina
da segurança, compelir-nos-á a vermos que, através dele todo, o apóstolo nos diz
que a nossa relação com Adão era idêntica à nossa presente relação com Cristo.
Portanto, se crermos que somos o que somos em Cristo por causa do que Deus
nos imputou em Cristo, também temos que crer exatamente da mesma maneirana
verdade correlata, quanto ao que nos foi imputado em Adão. Esse é o argumento.
Entretanto o apóstolo não se contenta com uma afirmação meramente geral a
respeito, também o faz em particular. Permitam-me destacar os versículos
pertinentes. Vejam o versículo doze: “Pelo que, como por um homem entrou o
pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim também a morte passou a todos
os homens por isso que todos pecaram”. A punição do pecado é a morte. Adão
pecou,

“por isso que” - locução pouco usada hoje em dia no sentido de “porque”. Cf. ARA, in loco:
“porque”. Nota do tradutor.

e lhe sobreveio a morte, sim, porém não somente a Adão - sobreveio a todos os
homens. Como conseqüência de um só pecado de Adão, a morte passou a todos
os homens. Por quê? A últimaparte do versículo explica: “todos pecaram” em
Adão. Essa é a afirmação que mais adiante exporemos.

Vejam a seguir os versículos treze e catorze desse capítulo. Paulo introduz uma
afirmação num parêntese, começando no versículo treze: “Porque até à lei estava
o pecado no mundo, mas o pecado não é imputado, não havendo lei. No entanto
a morte reinou desde Adão até Moisés, até sobre aqueles que não pecaram à
semelhança da trangressão de Adão”. Estaria você tentado a dizer: que significa
isso tudo? Não posso acompanhá-lo, quero um simples evangelho de conforto. É
assim que nos inclinamos a falar, nós que pensamos que porque vivemos
no século vinte somos grandemente superiores a todas as gerações que viveram
antes de nós. Orgulhamo-nos de que somos tão cultos e intelectuais e capazes de
entender grandes coisas, ao passo que as gerações anteriores eram primitivas.
Não percebemos, porém, que o apóstolo Paulo escreveu estas palavras apessoas
que viveram quase dois mil anos atrás, e que ele tencionava que elas as
entendessem. Não estava escrevendo a grandes filósofos; estava escrevendo a
simples cristãos, muitos dos quais eram apenas escravos, e outros eram soldados
da casa de César; e ele tencionava que aquelas pessoas entendessem estas coisas.
Vergonha para nós, cristãos modernos, que precisamos ser mimados e que só
queremos algo agradável, fácil e simples. Se você não aceita esta doutrina, então,
é a Palavra de Deus que você está rejeitando.

Pergunto outra vez: que é que isto significa? Diz Paulo que até à lei o pecado
estava no mundo. A lei foi dada por intermédio de Moisés, vocês se lembram;
todavia houve aquele longo intervalo entre Adão e Moisés, provavelmente pelo
menos um período de quase dois mil e quinhentos anos. Pois bem, durante todo
aquele longo período o pecado estava no mundo, mas, diz ele, o pecado não é
imputado quando não há lei. Noutras palavras, se não há uma lei para definir o
pecado, o pecado não é dado a conhecer ao homem. Cabe à lei dar a entender o
pecado à mente, ao coração e à consciência do homem. Se, por exemplo,
não houvesse leis sobre estacionamento e trânsito, eu e você
poderíamos continuar a praticar coisas errôneas e más, porém, se não houvesse
lei sobre estas questões, não poderíamos ser punidos. É o que ele está dizendo,
“o pecado não é imputado, não havendo lei”. “No entanto”, diz ele, “a morte
reinou desde Adão até Moisés”. Eis o problema: embora a lei não tenha sido
dada até o tempo de Moisés, não obstante,

de Adão a Moisés as pessoas morreram. Todos os que nasceram no mundo


morreram. Por que morreram? Que foi que causou a morte daquelas pessoas,
apesar de não haver lei imputando o pecado naquele período? A resposta do
apóstolo é que há somenteuma explicação; todos eles morreram porque foram
envolvidos no pecado de Adão. Não há outra explicação. A única razão pela qual
a morte reinou de Adão até Moisés é que aquele único pecado de Adão trouxe a
morte a toda a sua posteridade. Noutras palavras, nascemos “por natureza filhos
da ira”.

Notem então o ponto subseqüente, que é mais extraordinário ainda. Diz ele que a
morte reinou de Adão a Moisés, “até sobre aqueles que não pecaram à
semelhança da transgressão de Adão”. Que é que isso pode significar? Significa
que a morte reinou até sobre as pessoas que realmente não cometeram um ato de
pecado como fez Adão quando caiu. Quem eram? E há só umarespostapossível:
eram crianças que morreram na infância. Todos os outros homens pecaram.
Todos os que viveram, desde Adão, cometeram atos deliberados de pecado. Os
únicos que não pecaram à semelhança da transgressão de Adão, que não
pecaram deliberadamente, são as crianças demasiado novas para exercerem a
sua vontade por serem incapazes de usar a consciência. A morte reinou,
diz Paulo, de Adão aMoisés, até mesmo sobre as crianças pequenas.
Porque estas morrem? Há somente umaresposta. Morrem porque a
transgressão de Adão as envolve. “A morte reinou desde Adão até Moisés, até
sobre aqueles que não pecaram à semelhança de Adão.”

Contudo, passando ao versículo quinze, lemos: “Mas não é assim o dom gratuito
como a ofensa. Porque, se pela ofensa de um morreram muitos”, Aí está de
novo. Depois ele volta a atenção para o outro lado, acerca de Jesus Cristo. No
versículo dezesseis temos: “E não foi assim o dom como a ofensa, por um só que
pecou”. E então: “Porque o juízo veio de uma só ofensa, na verdade, para
condenação, mas o dom gratuito veio de muitas ofensas parajustificação”. O
juízo, acondenação, foi por um só; o pecado de Adão trouxe isto sobre toda a
humanidade. Entretanto, inversamente, diz ele, muitos pecados são perdoados
segundo a justiça de Um, Jesus Cristo. Depois, mais uma vez, no
versículo dezoito: “Pois assim como por uma só ofensa veio o juízo sobre
todos os homens para condenação”. Não seria tão explícito quanto
possível? “Assim como por uma só ofensa veio o juízo sobre todos os homens” -
sem exceção - “para condenação.” Nascemos “filhos da ira”. E finalmente, no
versículo dezenove: “Porque, como pela desobediência de um só homem, muitos
foram feitos pecadores”. Eu, vocês e toda a humanidade fomos feitos, ou, como
diz uma tradução mais precisa,

“constituídos” pecadores por aquele pecado de Adão. Esse é o ensino. Todos nós
somos “por natureza filhos da ira, como os outros também”.

Ah, dirá você, não entendo isso, não posso compreender isso, parece-me quase
imoral. Claro que você não o entende. Quem pode entender tais coisas? Não é
questão de entendimento, a questão é se você crê nas Escrituras ou não. Pois o
apóstolo diz exatamente a mesma coisa em 1 Coríntios, capítulo 15, aquele
grande e maravilhoso capítulo que se lê nos funerais. “Porque, assim como todos
morrem em Adão, assim também todos serão vivificados em Cristo”, e assim por
diante. É precisamente o mesmo argumento. É a base da fé crista. Quer
entendamos quer não, é a verdade. Você tem que explicar a universalidade
do pecado; tem que explicar a universalidade da morte, e especialmente a morte
de crianças. E esta é a resposta bíblica. Adão era toda a humanidade e
representava a humanidade toda. Ele foi o nosso cabeça federal. Assim como o
Senhor Jesus Cristo é o representante de todos os que são salvos, assim como a
Sua justiça nos é imputada, igualmente Adão foi o nosso representante e o seu
pecado nos é imputado. Nele nós caímos, nele e por causa da sua ação sofremos
a condenação eterna. Exatamente da mesma maneira, os que crêem em Cristo
são redimidos por Ele, são salvos nEle e são justificados nEle, por causa da Sua
ação a nosso favor. Esse é o argumento. Se você crê por um lado, acerca de
Cristo, terá que crer por outro, acerca de Adão. Se negar este, estará
virtualmente negando aquele.

Portanto, sejamos cautelosos. Não existe nada mais trágico do que o modo como
muitos cristãos introduzem as relíquias das suas filosofias e do seu entendimento
pessoal na fé cristã. Muitos que afirmam que crêem na Bíblia, e que reconhecem
a sua autoridade, rejeitam-na neste ponto porque não gostam da doutrina, ou
porque não conseguem conciliar certas questões. Mas a conciliação aí está,
diante de nós. Apesar de estarmos mortos em ofensas e pecados, odiosos e
odiando uns aos outros, corrompidos pelo pecado, pecadores na prática, vivendo
em delitos e pecados e sob a ira de Deus, e absolutamente desamparados e sem
esperança, o mesmo Deus contra quem pecamos, o mesmo Deus que ofendemos,
providenciou o caminho da libertação para nós. Ele o fez na Pessoa do Seu bem-
amado Filho, que Ele não poupou do sofrimento, da agonia e do opróbio do
Calvário e daquela morte cruel. Ele nos ofereceu e nos provê o caminho da
completa libertação e reconciliação conSigo, a despeito do fato de que o nosso
pecado em Adão, os nossos próprios pecados, e o nosso estado pecaminoso só

merecem a Sua ira eterna. Esse é o amor de Deus! Esse é o “admirável amor,
divinal”! Deus fez por nós, que nada merecemos senão a ira eterna, o que nós
mesmos jamais conseguiríamos fazer.

Queira Deus, em Sua graça, habilitar-nos a receber estas coisas, para que
possamos considerar o próximo versículo com o seu glorioso “mas”. Apesar de
ser verdade quanto a nós tudo o que estivemos considerando, “Deus, que é
riquíssimo em misericórdia, pelo seu muito amor com que nos amou, estando
nós ainda mortos em nossas ofensas, nos vivificou juntamente com Cristo”.
Bendito seja o nome de Deus!
A MENSAGEM CRISTÃ PARA O MUNDO

“Mas Deus ...” - Efésios 2:4

Agora passamos a examinar duas palavras maravilhosas - “Mas Deus”.


Obviamente estas palavras sugerem uma conexão com algo que as antecedeu. A
palavra “mas” é uma conjunção e, contudo, sempre sugere contraste, e aqui
temos a conexão e o contraste. Vejam estas palavras no seu contexto: “E vos
vivificou, estando vós mortos em ofensas e pecados, em que noutro tempo
andastes segundo o curso deste mundo, segundo o príncipe das potestades do ar,
do espírito que agora opera nos filhos da desobediência. Entre os quais todos nós
também antes andávamos nos desejos da nossa carne, fazendo a vontade da
carne e dos pensamentos; e éramos por natureza filhos da ira, como os
outros também. Mas Deus..,”. ■

Com estas duas palavras chegamos à introdução da mensagem cristã, a


mensagem peculiar e específicaque a fé cristã tem para oferecer-nos. Num
sentido, estas duas palavras contêm, em si e por si, a totalidade do evangelho. O
evangelho nos fala do que Deus fez, da intervenção de Deus; é algo que vem
inteiramente de fora de nós e exibe para nós aquela maravilhosa, espantosa e
assombrosa obra de Deus que o apóstolo vai descrever e definir nos versículos
seguintes.

Veremos agora estas palavras somente de maneira geral. Faço isso por diversas
razões. Uma é que o próprio texto nos impele a fazê-lo, mas há também certas
razões especiais. Uma acusação frequentemente lançada contra a mensagem
cristã, especialmente contra a modalidade evangélica dessa mensagem, é que ela
é distante da vida, que é irrelevante para as circunstâncias imediatas nas quais os
homens e as mulheres se acham. Noutras palavras, há, da parte de alguns,
uma objeção ao método expositivo de pregar o evangelho; é que esta
nunca parece enfrentar de fato as realidades da situação na qual os homens e as
mulheres se vêem dia a dia, e que é irrelevante para toda a situação mundial em
que nos achamos. Desejo, pois, mostrar que esta acusação

é inteiramente infundada; e mais, que a idéia de que o dever da pregação é


apenas fazer referências tópicas aos eventos contemporâneos é, na verdade, num
sentido, abandonar completamente a mensagem cristã. Eu iria mais longe, ao
ponto de dizer que não há nada que realmente possa lidar com a situação
contemporânea, salvo as Escrituras, quando as suas doutrinas são entendidas,
recebidas com fé e aplicadas.

E o que me proponho a fazer agora. Quero mostrar a relevância do evangelho


num dia como o Domingo da Rememoração, quando, quase instintivamente, e
por certo em conseqüência do que está acontecendo no mundo em que vivemos,
as nossas mentes são compelidas a encarar a situação geral e a pensar nela, além
das nossas situações particulares. E afirmando, como afirmo, que o evangelho
trata com a totalidade do homem e com a totalidade da sua vida neste mundo, é
importante que vejamos o que ele tem para dizer sobre a situação em que nos
achamos, e o que ele pretende fazer a respeito. Notem que o que eu
estou ressaltando é a importância absoluta do método. Os que não pensam
de maneira bíblica e cristã, e são muitos, acreditam que a tarefa da Igreja Cristã
em dias como os atuais é, por exemplo, anunciar temas como, “A Conferência de
Genebra - Possibilidades”, e depois dizer o que achamos que os estadistas
deviam fazer. Isso, ao que me parece, é inteiramente falso e contrário ao método
bíblico. O método bíblico é, antes, expor a verdade de Deus, e depois mostrar a
relevância disso para qualquer situação. Vocês não partem da situação, terminam
com ela. Desde o início a Bíblia nos convida a parar de olhar ao nível
horizontal, por assim dizer, a parar de olhar meramente para o mundo e para
os homens; convida-nos, logo no começo, a elevar os olhos e olhar para Deus.
Noutras palavras, toda a argumentação apresentada naBíblia, do princípio ao
fim, é que não nos será possível entender a vida, o homem e o mundo, enquanto
não virmos tudo à luz da verdade acerca de Deus, e nesse contexto. Portanto,
devemos começar com a verdade de Deus, e só então passar à situação imediata.

Procuremos mostrar como éfeito isso, ecomo isso éfeito naprópria passagem que
estamos considerando. Já consideramos em detalhe os três primeiros versículos
deste capítulo, e o fizemos para que nos víssemos como somos por natureza e
como o mundo é por natureza. Vocês não poderão começar a resolver os
problemas da humanidade enquanto não souberem a verdade acerca do homem.
Quão fútil é tentar fazê-lo sem isso. Vocês têm que começar com o caráter, a
natureza, o ser do homem. Em vez de começar com conferências e
discursos internacionais sobre eventos contemporâneos, necessitamos ir muito

mais a fundo e perguntar: pois bem, que tipo de criatura é o homem?


Obviamente, todas as nossas conclusões e todas as nossas propostas vão ser
governadas pela resposta a essa pergunta. Se o homem de fato é essencialmente
uma boa criatura que só necessita de um pouco mais de instrução, de
conhecimento e de informação, é óbvio que o tratamento será relativamente
simples. Mas se é verdade o que o apóstolo Paulo diz aqui sobre o homem como
ele é por natureza, e sem Cristo, então é igualmente óbvio que esse processo de
tratamento será inteiramente vão, e tentar realizá-lo será pura perda de tempo.

Temos que começar com esta doutrina. Qual é a verdade sobre o homem em
pecado? Que é que caracteriza o homem quando está em pecado, sem a graça de
Deus? Já examinamos esta matéria. O homem está morto espiritualmente; é
governado pelo diabo, que opera mediante poderosas forças a seu comando que,
por sua vez, produzem e dominam a mente e a perspectiva do mundo. Essa é a
situação do homem. E o resultado é que o homem, dominado por esse mau
poder, leva uma vida de ofensas e pecados; na verdade, ele nasceu de tal
maneira, por ser descendente de Adão, que a sua própria natureza é decaída. Ele
começa com uma natureza corrompida. E, finalmente, ele está sob a ira de
Deus. Essa é a declaração do apóstolo nos três primeiros versículos.

Qual será então a relevância disso tudo para a presente situação? Que é que isso
nos diz, face a toda a situação mundial na época atual? E evidente que
facilmente se pode deduzir várias coisas deste ensino.

A primeira é que aqui nos é dada a única explicação adequada da razão da


ocorrência de coisas como as guerras. Por que as temos? Por que o homem
comete essa loucura cabal? Por que será que os homens se matam uns aos
outros, e até se gloriam da guerra? Por que será? Qual a explicação? Há somente
uma resposta; é porque o homem é como o apóstolo o descreve. E este ensino
não é só do apóstolo Paulo. Vocês recordam como Tiago se expressa a respeito
no capítulo quatro da sua Epístola: “De onde vêm as guerras e pelejas entre
vós?” - e responde: “dos vossos deleites, que nos vossos membros guerreiam”.
Essa é a causa da guerra. É o homem em sua condição decaída. Agora,
a compreensão desta verdade, deste fato, é absolutamente vital para nós, como
ponto de partida. Esta é a verdade quanto às nações, quanto às classes, quanto
aos indivíduos. Certamente nada é tão esclarecedor e contraditório como a forma
pela qual os homens pensam quando pensam em nações, e a forma inteiramente
diversa quando pensam em indivíduos. Pouco vale falar eloqüentemente sobre o
caráter sagrado dos

contratos internacionais, quando vocês estão lidando com gente que rompe os
seus contratos matrimoniais e outros contratos pessoais, pois as nações
consistem de indivíduos. A nação não é algo abstrato, e não temos direito de
esperar de uma nação uma conduta que não vemos no indivíduo. Todas estas
coisas têm que ser vistas em conjunto.

Este é um princípio que atua na sociedade inteira, do fundo ao topo, do indivíduo


à nação, ao continente, ao mundo todo. De acordo com a Bíblia, a explicação do
estado do mundo é que o homem é governado por estes desejos da carne e da
mente. Ele não está muito interessado em se uma coisa é certa ou não; está
interessado no fato de que ele a quer, gosta dela e tem que tê-la. Naturalmente
recuamos aterrorizados quando uma nação se porta dessa maneira. Quando
Hitler invade e anexa a Áustria, ficamos horrorizados. Sim, as pessoas que
fazem as mesmas coisas em sua vida pessoal, ficam horrorizadas. Fazem a
mesma coisa no que se refere à esposa alheia; fazem a mesma coisa no que se
refere ao cargo ou posição ou ocupação de outrem. E exatamente a mesma coisa.
Aí está, pois, o princípio. E esta cobiça, que governa a humanidade. “Andastes
segundo o curso deste mundo”, diz o apóstolo. “Andávamos nos desejos da
nossa carne, fazendo a vontade da carne e dos pensamentos”, “da mente”.
Portanto, a primeira dedução é que aqui, e somente aqui, temos adequada
explicação e entendimento da razão pela qual as coisas são como são.

Á segunda dedução segue-se logicamente. E que, enquanto o homem continuar


sendo governado dessa maneira, o mundo continuará sendo como é. Certamente
isso é óbvio. Se o estado do homem foi responsável pela história do passado, é
óbvio que, enquanto o homem não mudar, a história do futuro não mudará. Aqui
nos confrontamos e entramos em colisão com o otimismo do homem natural,
que está sempre tão seguro e confiante em que, de um modo ou de outro, em
nossa geração consertaremos tudo. Ele acha que, ao passo que todas as gerações
que nos antecederam falharam, estamos numa situação diferente, numa situação
superior. Temos boa educação e somos instruídos; temos conhecimento, ao passo
que el as não o tinham; progredimos tanto que só temos que ter sucesso; vamos
ter sucesso. No entanto, se vocês crêem nesta doutrina bíblica do homem em
pecado, hão de logo ver que isso é uma falácia fatal. Se os nossos problemas são
devidos às cobiças que há na humanidade em pecado e que dominam os homens,
enquanto elas permanecerem haverá guerras. Sobre isso temos ensino
específico que nos vem de nosso bendito Senhor, que disse: “Haverá guerras
e rumores de guerras”. Disse Ele também: “Como aconteceu nos dias de

Noé, assim será também nos dias do Filho do homem”; “Como também da
mesma maneira aconteceu nos dias de Ló” - em Sodoma - “assim será” (Lucas
17:26-30). Desse modo o nosso Senhor via a história.
Se captarmos este ensino, ficaremos livres, uma vez por todas, do falso
entusiasmo e das falsas esperanças dos homens que realmente acreditam que,
introduzindo alguma nova organização, pode-se banir a guerra e eliminá-la para
sempre. A resposta da Bíblia é que não se pode fazer isso enquanto o homem não
nascer de novo. Isso é deprimente? Contesto dizendo que, se é deprimente ou
não, não deve ser essa a nossa preocupação; o que deve constituir a nossa
preocupação é conhecer a verdade. O homem moderno se diz realista. Ele se
opõe ao cristianismo porque, segundo ele, o cristianismo não enfrenta os fatos.
Não é realista, diz ele; é sempre “castelos no ar”, e vocês vão para os seus
templos e lá se fecham, e não encaram os fatos da vida. Contudo, quando lhe
damos os fatos, ele contesta sobre o fundamento de que eles são deprimentes. Os
otimistas políticos e filosóficos é que não são realistas; as pessoas que nunca
encararam os fatos acerca do homem em pecado é que estão fechando os olhos e
dando as costas para a realidade. A Bíblia enfrenta isso tudo; tem uma visão
realista da vida neste mundo e somente ela a tem.

Examinemos agora o ensino direto, específico do evangelho. Que é que a


mensagem cristã tem para dizer acerca deste estado e desta condição, cuja
explicação estivemos considerando? A resposta é que ela diz: “Mas Deus”. Essa
é a mensagem. Que significa? A maneira mais conveniente de analisar esta
matéria é colocá-la primeiro em termos negativos, depois em termos positivos.
Lamento ter que começar outra vez com um argumento negativo. Devo fazê-lo
porque não poucos se esquecem destes aspectos negativos, e assim transmitem
mensagens que não têm a mínima possibilidade de ser consideradas cristãs.
E, contudo, costumam ser transmitidas em nome do cristianismo e da
Igreja Cristã. Estou profundamente convencido de que o que está
mantendo grande número de pessoas longe de Cristo e da salvação, e da
Igreja Cristã, é esta terrível confusão da qual a própria Igreja foi, e é,
tão culpada. Muitos estão fora da igreja hoje porque na primeira guerra mundial
muitas vezes a Igreja Cristã se tornou uma espécie de escritório de recrutamento.
Os homens se escandalizaram- e num sentido tiveram razão em escandalizar-se.
Existem certas coisas que nunca deveriam ser confundidas. Notemos algumas
delas.

Que é esta mensagem cristã? Iniciamos dizendo que ela não é um

grande apelo em prol do patriotismo. A mensagem cristã não é isso. A


mensagem cristã não denuncia o patriotismo, nem afirma que há algo de errado
nele. Merece dó quem não ama o seu país, a sua nação. Não há nada nas
Escrituras contra isso. Foi Deus que dividiu as nações e definiu os seus limites e
a sua habitação. E da vontade de Deus que existam nações. Mas não éda vontade
deDeus que existanacionalismo, um nacionalismo agressivo. Não há nada de
errado em um homem honrar o seu país e alegrar-se nele; porém é
completamente anti-cristão dizer: “Estou com o meu país, esteja ele certo ou
errado”. Isso é sempre um erro, um erro fatal; é a completa negação do ensino
das Escrituras. Vejam o grande apóstolo que escreveu esta Epístola aos Efésios.
Aí está um homem que era judeu, e se alguma vez houve um homem
orgulhoso da sua nacionalidade, foi o apóstolo Paulo - “Hebreu de hebreus,
da tribo de Benjamim...”. Houve tempo em que ele era um nacionalista rígido e
desprezava os demais. Os gentios eram cães, estavam fora do pacto das bênçãos.
Mas aquilo em que ele se gloria nesta Epístola, vocês recordam, é esta, “em que
vós também confiastes” (VA). Os gentios entraram, foram feitos “co-herdeiros”
com os judeus, a parede de separação que estava no meio foi derrubada. “Não há
grego, nem judeu, circuncisão, nem incircuncisão, bárbaro, cita, servo ou livre;
mas Cristo é tudo em todos” (Colossenses 3:11). Essa é a posição cristã.
“Mas Deus...”. Aí está o meio de se derrubar o espírito nacionalista que leva à
guerra. Acreditar que estamos sempre certos e que todos os outros estão errados
é tão errôneo nas nações como o é nos indivíduos. E sempre errôneo. A
mensagem cristã não é simplesmente um apelo a favor do patriotismo. E se o
cristianismo for retratado dessa forma, será uma negação, uma máscara da
mensagem, e será enganoso aos olhos e ouvidos dos que o ouvirem.

Mas, em segundo lugar, a mensagem cristã não é apenas um apelo para a


coragem, ou para o heroísmo, ou para a manifestação de um grande espírito de
sacrifício próprio. Falemos disso com clareza. O cristianismo não condena a
coragem, não condena o sacrifício próprio, nem o heroísmo. Estas qualidades,
estas virtudes não são especificamente cristãs. São virtudes pagãs, e eram
ensinadas, inculcadas, admiradas e elogiadas antes da vinda do Senhor Jesus
Cristo a este mundo. A coragem era a virtude suprema, de acordo com os
filósofos pagãos gregos; era a quintessência do estoicismo. E por isso
consideravam a mansidão, a mansidão ensinadapela fé cristã, como fraqueza.
Não havia nenhum vocábulo para mansidão na filosofia grega pagã.
Coragem, força, poder - essas eram as coisas em que eles acreditavam. E por
isso

que, vocês se lembram, Paulo nos diz que a pregação da cruz era “loucura para
os gregos”. Que alguém que foi crucificado em fraqueza deva ser o nosso
Salvador, e deva ser o caminho para a salvação, para eles era absurdo e ridículo.
Eles não davam nenhum valor à mansidão e à humildade; a coragem, a força e o
heroísmo eram as grandes virtudes. E, pois, muito importante que
compreendamos que não faz parte da mensagem cristã exortar o povo à
coragem, ao heroísmo e ao sacrifício próprio. Não há nada de especificamente
cristão nessas idéias. O cristianismo não as condena, mas não é essa amensagem
cristã. E o ponto que estou acentuando aqui é que quando isso foi apresentado
como sendo a mensagem cristã, confundiu as pessoas e levou apropria
divisão que o evangelho se destinava a curar.

Pois bem, passemos à terceira questão. Há muitas pessoas que parecem pensar
que a mensagem cristã consiste simplesmente em apelar para que o mundo
ponha em prática os princípios cristãos. Isso éapenas a posição pacifista, assim
chamada. Ora, dizem eles, vocês, cristãos, estão sempre pregando sobre
salvação pessoal e sobre doutrinas e tudo mais; por que não fazem algo acerca
das guerras? Muito bem, dizemos nós, que é que vocês querem que façamos? O
que vocês têm que fazer, replicam eles, é dizer às pessoas que pratiquem o
Sermão do Monte. Por que não lhes dizem que voltem a outra face e amem uns
aos outros e assim por diante? Então se daria fim às guerras. Vocês têm a
solução; tão- somente façam as pessoas porem em ação os princípios do
ensino de Cristo. Qual é a resposta para isso? A resposta é o ensino dos
três primeiros versículos deste capítulo dois da Epístola de Paulo aos Efésios.
Vocês podem pregar o Sermão do Monte a pessoas que estão mortas “em ofensas
e pecados” até ficarem exaustos e nem vocês nem elas ficarão mais sábios. Elas
não conseguem praticá-lo. Não querem fazê-lo. São “inimigos e estranhos em
suas mentes”. São governadas por “cobiças”. Fazem “a vontade da carne e dos
pensamentos”. É isso que as governa e as dirige. Como podem praticar o Sermão
do Monte?

Há somente uma esperança para o homem em pecado, Paulo declara - “Mas


Deus”. Os homens precisam ser regenerados; precisam receber uma nova
natureza antes de poderem entender o Sermão do Monte, sem falar em poderem
começar a pô-lo em prática. Assim, será um arremedo da mensagem cristã falar
dela como se fosse apenas um apelo dirigido aos homens para que se levantem e
sigam a Cristo com as suas próprias forças, e ponham em ação princípios
cristãos de ensino. E um simulacro do evangelho, da mesma forma que o é a
pregação do patriotismo e do imperialismo. E igualmente não cristão. E de fato
uma

perigosa heresi a, a antiga heresia pelagiana, porque não compreende que o


homem, sendo o que é em pecado, absolutamente não pode executar tal ensino.
Esperar conduta cristã depessoas ainda não cristãs, é perigosa heresia. Vocês
vêem quão importante é o nosso ensino, e como é essencial que falemos com
clareza sobre a fiel aplicação da mensagem cristã ao mundo moderno. É por isso
que não gastamos o nosso tempo falando sobre conferências internacionais e
sobre política e relações internacionais, ou sobre conflitos industriais, ou
pregando sempre sobre a questão do pacifismo e contra a guerra nuclear. Fazê-lo
seria simples perda de tempo - embora provavelmente atraísse publicidade. O
que é necessário é quecomecemos com este princípio fundamental, a doutrina do
homem em pecado, em sua condição de morto, em sua desesperança, em seu
desamparo completo.

Para resumir até aqui, o princípio negativo é que amensagem cristã, o evangelho
cristão, não tem nenhuma mensagem direta para o mundo, exceto dizer que o
mundo, como é, está sob a ira de Deus, isto é, está sob condenação, e que todos
os que morrerem neste estado irão para a perdição. A única mensagem da fé
cristã para o mundo incrédulo, em primeiro lugar, é simplesmente acerca do
juízo, um apelo para o arrependimento, e dar-lhes a segurança de que, se se
arrependerem e forem convertidos a Cristo, serão libertos. Portanto, a Igreja, a fé
cristã, não tem nenhuma outra mensagem para o mundo fora dessa.

Mas a Bíblia ensina também, com bastante simplicidade e clareza, que,


conquanto seja essa a mensagem de Deus para o mundo incrédulo, Deus, não
obstante, fez algo com relação a esse mundo incrédulo. Eis o que Ele fez em
primeiro lugar: colocou um comando sobre o poder do pecado e do mal. Ele o
fez da seguinte maneira: como já lhes fiz lembrar, Ele dividiu os povos do
mundo em nações. Não somente isso, Ele ordenou que houvesse Estados e
governos. Ele ordenou “as potestades que há”. “As potestades que há”, diz Paulo
em Romanos, capítulo 13, “foram ordenadas por Deus”; seja rei ou imperador
ou presidente de uma república, “as potestades que há foram ordenadas
por Deus”. Foi Deus que ordenou os magistrados e lhes deu a espada do poder.
Por que? Simplesmente para manter as manifestações do mal dentro de limites e
sob controle. Pois, se não tivesse feito isso, se aos desejos que agem em todos
nós por natureza e pela herança de Adão fosse permitido se manifestarem
ilimitada e descontroladamente, o mundo seria um inferno e há muito se teria
lançado na perdição e se teria destruído a si mesmo. Deus pôs um limite nisso.
Pôs um limite até para

o mal e o mantém dentro dele, e o restringe. Realmente o apóstolo, numa


declaração deveras extraordinária, registrada em Romanos (capítulo 1, versículos
18ss.), prova o ponto dizendo que, às vezes, para Seus fins e propósitos, Deus
retira parcialmente essa restrição. Diz ele que Deus “os entregou a um
sentimento perverso”. Há tempos e ocasiões em que Deus parece afrouxar a
restrição que Ele impôs ao pecado e ao mal a fim de que o vejamos em todo o
seu horror. Pode bem ser que estejamos vivendo um tal período. Mas é isso que a
Bíblia nos diz sobre o que Deus faz diretamente quanto ao homem em pecado;
Ele controla as manifestações de sua natureza torpe, má e decaída. Essa é a
mensagem geral.

Todavia, qual é a mensagem particular! E isso que o apóstolo está interessado


em salientar acima de tudo neste parágrafo imediato. A mensagem para
indivíduos é que podemos ser libertos do presente mundo mau, que podemos
escapar da condenação que certamente virá sobre este mundo. Essa é a
mensagem que o apóstolo pregava. E uma mensagem para indivíduos. Ela não
diz que o mundo pode ser endireitado se tão-somente pusermos em prática o
ensino cristão; não se trata de um apelo para que as pessoas se reformem e façam
isto ou aquilo. Não, é uma mensagem que afirma que, como resultado do que
Deus fez em Jesus Cristo, Seu Filho, o nosso Senhor e Salvador, nós, que
estávamos na própria tessitura desse mundo pecaminoso, condenado, podemos
ser libertos dele - “O qual se deu a si mesmo por nossos pecados”, diz ele aos
gálatas, “para nos livrar do presente século mau”. O mundo está condenado, o
mundo vai ser destruído e punido, o diabo e todas as suas forças vão para a
perdição, e todos os que pertencem a esse reino sofrerão a mesma punição. No
entanto, individualmente, a mensagem do evangelho aos homens e mulheres é
que eles não necessitam ter participação nisso. Vocês podem ser tirados disso -
“do reino das trevas”, do poder de satanás, para Deus. Essa é a mensagem para
homens e mulheres individuais. O mundo continuará como está, mas vocês
podem ser libertos dele, podem ser retirados dele.

Não somente isso; também podemos ser introduzidos num reino que não é deste
mundo e tornar-nos seus cidadãos. A medida que percorrermos este capítulo,
veremos Paulo elaborar bem as suas próprias palavras. O que é maravilhoso, diz
ele, é que vocês, gentios, estão em Cristo, e, graças ao Seu sangue, se tornaram
concidadãos dos santos; tomaram-se cidadãos do reino de Deus, do reino de
Cristo, do reino da luz, do reino dos céus - um reino que não é deste mundo,
reino inabalável, reino imutável. Esse é o reino no qual entramos.

Esta é a notícia mais emocionante que umapessoapoderiareceber.


Atualmente somos cidadãos deste país, nossa terra natal, e estamos todos
envolvidos no que acontece com este país. Se este país entrar em guerra, todos
nós estaremos envolvidos. Não escapamos das bombas na última guerra mais
que qualquer outra pessoa por sermos cristãos. Estamos todos envolvidos, somos
cidadãos deste mundo ecompartimos o destino deste mundo. Mas, graças a Deus,
eis aqui algo diferente. Conquanto continuemos sendo cidadãos deste mundo,
nós nos tornamos cidadãos doutro reino, deste outro reino que foi aberto para
nós por Cristo - um reino espiritual, reino que não é deste mundo, eterno
nos céus com Deus. Esse é o ensino desta mensagem. “Mas Deus...”.

A doutrina se desenvolve naprática da seguinte maneira: se eu creio nesta


mensagem, doravante não vou fixar as minhas esperanças, nem pousar os meus
afetos de modo final em nada deste mundo. O homem natural faz isso, é claro;
ele prende as suas esperanças a este mundo e sua mente, sua perspectiva, seus
estadistas, sua mentalidade, seus prazeres, suas alegrias. Ele vive para este
mundo, e nele são centralizadas todas as suas esperanças, e nele estão todos os
seus afetos. O cristão não é assim. O cristão, havendo sido levado a ver que este
mundo está fadado à ruína, que está sob a ira de Deus, fugiu da “ira futura”. Ele
creu no evangelho, entrou neste outro reino, e agora as suas esperanças e
seus afetos estão postos lá, não aqui. O cristão é alguém que, para usar uma frase
das Escrituras, sabe que é apenas “um estrangeiro e peregrino” neste mundo. E
mero viajor, já não vive para o mundo; ele não e enganado pelo mundo, vê além
dele. É apenas alguém que está em viagem, um viajor, e, como o coloca Tiago
(capítulo 4), o cristão é alguém que se deu conta de que não passa de “um
vapor”, um sopro. Por isso não considera permanente este mundo; não faz os
seus planos e diz, agora vou fazer isto ou aquilo. Nada disso! Em vez disso, ele
diz: “Se o Senhor quiser...”; tudo sob Deus, e o cristão compreende como tudo
aqui é contingente. Ele não põe mais a sua fé e os seus afetos neste mundo.

Todavia, mais maravilhoso ainda! O cristão não é apanhado de surpresa por


coisa alguma que aconteça neste mundo, Por isso eu disse anteriormente que
não conheço nada que seja tão relevante para as circunstâncias deste mundo
como este evangelho. O cristão nunca fica surpreso com as coisas que
acontecem no mundo. Ele está preparado paratudo, estápreparadoparaqualquer
coisa, Não se surpreende quando irrompe uma guerra. Naturalmente o não
cristão, especialmente o idealista, fica muito surpreso. Ele de fato cria, no fim da
primeira guerra

mundial, que a Liga das Nações ia abolir a guerra para sempre. Havia muitos que
acreditavam que o Pacto de Locarno, de 1925, finalmente ia fazer isso, e
estavam muito alegres. Estavam confiantes em que nunca mais haveria uma
guerra como a de 1914 - 18. E quando começou a guerra de 1939, eles não
sabiam como explicar o fato. Mas o verdadeiro cristão, sabedor de que o homem
é uma criatura governada por cobiças, e que acobiça sempre produz guerra, sabia
muitíssimo bem que nenhum Pacto de Locarno nem qualquer outra coisa poderia
abolir ou eliminar a guerra. Sabia que a guerra poderia surgir a qualquer tempo,
e quando ela veio ele não ficou surpreso. Como o Salmo 112 o expressa
no versículo sete: “Não temerá maus rumores; o seu coração está
firme, confiando no Senhor”. Crendo como cremos nesta doutrina bíblica
do homem em pecado, jamais devemos surpreender-nos com o que acontece no
mundo. Vocês estão surpresos com todos os assassinatos, roubos, violência,
assaltos, mentira, ódio, carnalidade e sexualismo? Vocês se surpreendem quando
vêem os seus jornais? Não deveria acontecer isso, se vocês são cristãos.
Deveriam esperar isso. O homem em pecado necessariamente se comporta desse
modo; não pode conter-se, ele vive, anda em ofensas e pecados. Ele o faz
individualmente, e o faz em grupos; portanto, haverá conflitos e
desentendimentos industriais, e haverá guerras. Ah, quepessimismo!-exclamará
alguém. Eu digo: não, que realismo! Encarem isso, estejam preparados para isso,
não esperem nada melhor de um mundo como este; é um mundo
decaído, pecaminoso, ímpio, mau; e, enquanto o homem continuar em pecado, é
assim que será. E hoje é como nos dias de Sodoma e Gomorra, e como na época
do Dilúvio!

Mas, graças a Deus, ainda não terminei. Continuo e digo que o cristão é alguém
que, compreendendo que vive em tal mundo, e que, não tendo nenhuma ilusão
acerca dele, não obstante sabe que está ligado a um Poder que o habilita, não
somente a suportar o que quer que lhe venha num mundo como este, porém, de
fato o capacita a ser “mais que vencedor” sobre essa realidade toda. Ele não
apenas o suporta passivamente, não meramente o tolera, não somente o
“aguenta” e exercita a sua coragem. Não, isso é estoicismo, é paganismo. O
cristão, estando em Cristo, o cristão, sabendo algo do que o apóstolo chama
“a sobreexcelente grandeza do seu poder sobre nós, os que cremos”,
é fortalecido, é habilitado a suportar; seu coração não fraqueja, ele não
é derrotado, de fato é capaz de regozijar-se nas tribulações. Que o mundo faça
com ele o pior, que o inferno seja solto, ele é mantido firme. “Esta é a vitória que
vence o mundo, a nossa fé” (1 João 5:4). Assim é que,

se as coisas se tornarem realmente impossíveis, o cristão tem recursos, ainda terá


conforto e consolações, ele ainda tem um poder que os incrédulos ignoram.

Finalmente, o cristão está absolutamente seguro e certo de que, façam o mundo e


os homens o que fizerem, ele está a salvo nas mãos de Deus. “Com confiança
ousamos dizer”, dizem as Escrituras: “O Senhor é o meu ajudador, e não temerei
o que me possa fazer o homem” (Hebreus 13:6). Na verdade ele sabe que o
homem, em sua malignidade, pode insultá-lo, pode perseguí-lo, pode arruiná-lo,
pode até destruir o seu corpo; mas também sabe que nada jamais será capaz de
separá-lo “do amor de Deus, que está em Cristo Jesus nosso Senhor”
(Romanos 8:39). Ele sabe que, seja o que for que aconteça neste mundo
limitado pelo tempo, ele é filho de Deus, herdeiro da glória. Verdadeiramente
ele sabe que virá o dia em que este presente mundo pecaminoso será resgatado
inteiramente, e haverá “novos céus e nova terra em que habita a justiça” (2 Pedro
3:13). O cristão pode olhar para o futuro e ver que, num glorioso dia no porvir,
quando o seu corpo será renovado e glorificado, quando o seu corpo não mais
será fraco, não mais estará sujeito à doença, à velhice, a nenhum mal, quando
será um corpo glorificado como o de Cristo ressurreto - ele sabe que, neste
corpo glorificado, andará na face desta mesma terra, na qual o mal, o pecado e
toda infâmia serão eliminados pelo fogo de Deus. Habitará num mundo perfeito,
do qual o Cordeiro, o Filho de Deus, é aLuz e o Sol, o Esplendor e a Glória, e o
desfrutará para todo sempre. E isso que a mensagem cristã, a fé cristã tem para
dizer a este vil, perplexo, infeliz, confuso e frustrado mundo moderno. Tudo vem
destas doutrinas essenciais que só podem ser aprendidas neste Livro, que é a
Palavra de Deus. Aí está o mundo! - “Mas Deus...”.

EM CRISTO JESUS

“Mas Deus, que é riquíssimo em misericórdia, pelo seu muito amor com que nos
amou, estando nós ainda mortos em nossas ofensas, nos vivificou, juntamente
com Cristo (pela graça sois salvos), e nos ressuscitou juntamente com ele e nos
fez assentar nos lugares celestiais, em Cristo Jesus; para mostrar nos séculos
vindouros as abundantes riquezas de sua graça pela sua benignidade
para conosco em Cristo Jesus. ” - Efésios 2:4-7

Já examinamos esta majestosa e emocionante declaração de maneira mais ou


menos geral. Observamos como o apóstolo a introduz, e especialmente a palavra
Mas, que introduz o ponto de transição do desamparo e desespero do homem em
pecado para a esperança e consolação do evangelho. Esta é a única esperança;
fora dela não há absolutamente nenhuma esperança. Quando nos vemos numa
condição inteiramente perdida e perigosa, de repente nos chega esta
mensagem, inesperada e surpreendentemente, de uma esfera diferente, que
nos impulsiona a levantar os nossos rostos. Além disso, a suagrande ênfase é que
foi Deus que fez isso. Foi quando estávamos mortos e não podíamos fazer nada,
que Deus fez o que somente Ele podia fazer. É o poder de Deus. Vemos também
aí, com muita clareza, o contraste entre Deus e nós: Ele é rico em misericórdia,
tem grande amor por nós, Sua graça é sobremodo rica, e a Sua disposição para
conosco é sempre bondosa e benigna.

Mas o apóstolo não se contenta em meramente introduzir o evangelho e em


meramente pintar estes contrastes extraordinários e maravilhosos. Também está
desejoso de que tenhamos clara idéia do feito grandioso que Deus realizou por
nós. Que é que pode ser mais maravilhoso do que o modo como, ao vermos
como somos em pecado, reagimos a este bendito “Mas”? Todavia, não devemos
ficar simplesmente admirados e espantados, devemos aprender e
compreender exatamente o que Deus fez por nós. Por isso o apóstolo expõe isso
diante de nós em detalhe. Há um sentido em que podemos dizer acertada
e verdadeiramente que temos aqui uma das declarações mais profundas com
respeito à condição e à situação do cristão que se pode achar em qualquer parte
das Escrituras. O que aconteceu é que, “estando nós

ainda mortos em nossas ofensas, nos vivificou juntamente com Cristo (pela
graça sois salvos), e nos ressuscitou juntamente com ele e nos fez assentar nos
lugares celestiais em Cristo Jesus”.

Pois bem, há, obviamente, algumas observações preliminares que se deve fazer
sobre uma declaração como essa. A primeira que me sinto constrangido a fazer é
que isto é cristianismo verdadeiro; essa é a própria essência do cristianismo, e
nada menos que isso. O que estas palavras descrevem é o centro vital de toda
essa matéria. É o que Deus fez para nós e por nós, e não primariamente algo que
tenhamos feito. Noutras palavras, o cristianismo não significa apenas que eu e
vocês tomamos uma decisão. Naturalmente isso está incluído, mas não é
a essência do cristianismo. As pessoas podem decidir parar de fazer certas coisas
e começar a fazer outras; isso não é cristianismo. As pessoas podem acreditar
que Deus lhes perdoa os seus pecados; porém, isso, em si, não é cristianismo. A
essência do cristianismo é a verdade que temos aqui - e este é o fato real, e nada
menos que isso é o fato real.

Gostaria de acentuar também que isto é verdade quanto a todos os cristãos. Mais
adiante veremos que aqui nos defrontamos com o maravilhoso ensino e doutrina
acerca da união do cristão com o Senhor Jesus Cristo. Com efeito, há certas
escolas de pensamento cristão que têm feito grande dano neste ponto, dando-nos
a impressão de que se trata de algo a que somente certos cristãos chegam, de que
se você realmente se entregar ao cultivo da vida cristã, poderá esperar chegar
finalmente a esta união com Cristo. É óbvio que eles pensam que existem
muitos cristãos que ainda não ocupam esta posição e que precisam ser
exortados e concitados e estimulados a lutar até alcançarem essa condição.
Ora, isso está inteiramente errado, é inteiramente falso. Você não pode
ser cristão, de modo nenhum, sem a verdade que estamos examinando agora; é
esta verdade que nos faz cristãos; sem ela não estamos na posição cristã
absolutamente.

Portanto, é importante que entendamos imediatamente que de fato estamos


tratando aqui de algo que é básico e fundamental e primordial. Ao mesmo
tempo, naturalmente, a doutrina é tão gloriosa e grandiosa que inclui a totalidade
da vida cristã. A vida cristã é um todo, e você tem, por assim dizer, o todo no
início, e depois passa a apropriar-se de suas várias partes e a entendê-lo cada vez
mais. Isto é cristianismo, que “estando nós ainda mortos em nossas ofensas,
Deus nos vivificou juntamente com Cristo (pela graça sois salvos), e nos
ressuscitou juntamente com ele e nos fez assentar nos lugares celestiais em
Cristo Jesus”. Que acontece, pergunto, quando nos examinamos à luz dessa

declaração? Poderíamos dizer que sempre pensamos a nosso respeito como


cristãos nestes termos? Seria como eu penso de mim como cristão? Ou ainda me
inclino a pensar em mim como cristão nos termos daquilo que estou tentando
fazer, lutando para fazer, e daquilo em que estou tentando me tornar ou que estou
tentando fazer de mim mesmo? Ora, isto é evidentemente básico, porque toda
ênfase do apóstolo aqui é que a coisa primordial, a primeira coisa, é esta que
Deus faz para nós, não primariamente o que eu e você fazemos pessoalmente.

Há duas maneiras de examinar esta grande declaração. Há alguns que têm uma
idéia puramente objetiva dela. Pensam nela exclusivamente em termos da nossa
situação, ou da nossa posição, na presença de Deus. O que quero dizer é que eles
pensam nela como sendo algo que, num sentido, já é verdade a nosso respeito
em Cristo, mas não é verdade a nosso respeito na prática. Consideram esta como
uma declaração do fato de que após a morte ressuscitaremos e participaremos da
vida da glória que está à espera de todos os que estão em Cristo Jesus.
Afirmam que a verdade é que o Senhor Jesus Cristo já ressuscitou dos mortos;
Ele foi vivificado quando estava morto na sepultura, foi ressuscitado, apareceu a
certas testemunhas, subiu ao céu e está na glória, nos lugares celestiais. Pois
bem, dizem eles, isso aconteceu com Ele, e, se crermos nEle, acontecerá
conosco. Eles afirmam que essa verdade quanto a nós é pela fé agora, porém
realmente só pela fé. Não é real em nós agora, é inteiramente real nEle, mas se
tornará real em nós no futuro. Pois é isso que eu considero uma idéia puramente
objetiva desta declaração. E, naturalmente, como declaração, está perfeitamente
certa, exceto que não vai suficientemente longe. Tudo isso é verdade quanto a
nós. Chegará a hora em que todos nós, cristãos, seremos ressuscitados, a menos
que o nosso Senhor volte antes de morrermos. Os nossos corpos serão
transformados e glorificados; e nós viveremos e reinaremos com Ele, e
entraremos em Sua glória e dela participaremos com Ele. Isso é perfeitamente
verdadeiro.

No entanto, me parece que interpretar esta declaração unicamente dessa maneira


é interpretá-la de maneira gravemente errônea. E isso eu posso provar. Há dois
argumentos que a tornam uma interpretação completamente inadequada. O
primeiro é que todo o contexto aqui é experimental. O apóstolo não está tão
interessado em lembrar a estes efésios algo que lhes irá acontecer; o seu grande
interesse aqui é lembrá-los do que já lhes aconteceu, e da sua posição atual. E
importante que sempre levemos conosco o contexto. O interesse do apóstolo,
mostrado

em toda esta declaração, é que podemos conhecer “a sobreexcelente grandeza do


seu poder sobre nós, os que cremos, segundo a operação da força do seu poder,
que manifestou em Cristo, ressuscitando-o dentre os mortos”. Noutras palavras,
ele está orando no sentido de que estes efésios tenham os olhos do seu
entendimento iluminados de tal modo que possam saber o que Deus está fazendo
por eles agorav nesse exato momento, não alguma coisa que Ele vai fazer no
futuro. É importante termos claro entendimento sobre a morte, para que
percamos o medo da morte, para que estejamos tão certos da ressurreição e da
nossa glorificação que possamos sorrir em face da morte; está certo, entretanto
não é isso que o apóstolo está ensinando aqui. Ele está interessado em que eles
apreciem agora, em meio a todas as suas dificuldades, aquilo que é a concreta
verdade a respeito deles.

Contudo, há uma prova mais forte, parece-me, no versículo cinco. Diz o apóstolo
que, “estando nós ainda mortos em nossas ofensas, nos vivificou com Cristo”, e
então, entre parêntesis, “(pela graça sois salvos)”. Ele diz, noutras palavras: o
que estou falando é sobre a sua salvação neste momento. “Pela graça sois
salvos” significa “pela graça vós jáfostes salvos”. Esse é o tempo verbal, “fostes
salvos”. Evidentemente é algo experimental. É algo subjetivo, não puramente
objetivo. A tragédia é que muitas vezes as pessoas colocam estas coisas
como elementos opostos, ao passo que, na realidade, as Escrituras
sempre mostram que ambas as coisas devem andar juntas. Há um lado
objetivo da minha salvação, mas, graças a Deus, há também um lado
subjetivo. Eum erro ensinar, como o moderno movimento bartiano tende a
ensinar, que tudo é objetivo, que tudo está em Cristo e que em mim não
há absolutamente nada. Isso me parece um grave erro, porque as
Escrituras, felizmente para nós, sempre acentuam o experimental, o pessoal,
o subjetivo, o que eu desfruto aqui e agora. Minha salvação não está completa e
exclusivamente em Cristo; uma vez que eu estou em Cristo, ela está em mim
também.

É isso que o apóstolo está desejoso de que entendamos. Noutras palavras, esta
realidade deve ser interpretada espiritual e objetivamente, deve ser entendida
experimentalmente. O que Deus fez por nós espiritualmente, diz o apóstolo, é
comparável ao que Ele fez ao Senhor Jesus Cristo no sentido físico quando O
ressuscitou dentre os mortos e O levou para Si para que Ele Se assentasse nos
lugares celestiais. Devemos retornar ao fim do capítulo primeiro. O poder que
está operando para conosco e em nós, os que cremos, é o mesmo poder que Deus
“manifestou em Cristo, ressuscitando-o dentre os mortos, e

pondo-o à sua direita nos céus, acima de todo o principado, e poder, e potestade,
e domínio, e de todo nome que se nomeia, não só neste século, mas também no
vindouro; e sujeitou todas as coisas a seus pés, e sobre todas as coisas o
constituiu como cabeça da igreja, que é o seu corpo, a plenitude daquele que
cumpre tudo em todos”. Agora, diz Paulo, quero que vocês saibam que
exatamente o mesmo poder que fez isso está operando em vocês espiritualmente.
Isso, então, nos capacita a dizer tudo o que aconteceu conosco, se somos
cristãos, aconteceu por esse mesmo poder de Deus. Todos os tempos verbais que
o apóstolo emprega justamente nestas palavras que estamos estudando estão no
passado; ele não diz que Deus vai nos ressuscitar, vai nos vivificar, vai fazer-
nos sentar nos lugares celestiais; ele afirma que Ele já o fez, que
quando estávamos mortos Ele nos vi vificou. E o tempo aoristo, o passado, é
algo que se completou, e uma vez por todas já foi feito. Assim é que temos que
dizer de nós mesmos, como cristãos, que fomos vivificados,
fomos ressuscitados, e estamos sentados nos lugares celestiais.
Ou, talvez, numa colocação melhor, possamos dizer - e seguramente é o que o
apóstolo tinha em mente - que a situação do cristão é exatamente o oposto da
situação do não cristão. O não cristão é alguém que está morto em ofensas e
pecados, está sendo levado de acordo com o curso deste mundo, de acordo com
o príncipe das potestades do ar, do espírito que agora opera nos filhos da
desobediência; ele vive segundo os desejos da carne, fazendo a vontade da carne
e damente; ele está, por natureza, sob a ira de Deus. Esse é o não cristão. E o
cristão, que é? O exato oposto disso - vivificado; vivo; ressurreto; sentado nos
lugares celestiais; inteiramente diferente, contraste completo. O “mas” assina-a
em toda parte este aspecto de contraste. E, obviamente, não poderemos entender
verdadeiramente a nossa posição como cristãos, se não compreendermos que é
um completo contraste com o que éramos antes. Vocês vêem como, na
interpretação das Escrituras, é importante tomar tudo em seu contexto. Temos
que ter claro entendimento acerca do nosso estado em pecado porque, se não,
jamais teremos claro entendimento acerca do nosso estado na graça e na
salvação.

Se essa é a verdade acerca de nós como cristãos agora, há duas importantes


questões que devem ocupar a nossa atenção. Eis a primeira: como foi que tudo
isso nos aconteceu? Como foi que isso passou a ser verdade a meu respeito
como cristão? O apóstolo responde: é “juntamente com Cristo”. Vocês notam sua
ênfase constantemente repetida? - “quando estávamos mortos em pecados,
vivificou-nos junto com

Cristo, ressuscitou-nos juntos e nos fez sentar juntos nos lugares celestiais em
Cristo Jesus” (VA). Aqui sem dúvida nos vemos face a face com uma das mais
grandiosas e mais maravilhosas doutrinas cristãs, uma das mais gloriosas, fora
de toda e qualquer contestação. Trata-se do ensino completo das Escrituras com
respeito à nossa união com Cristo. É um ensino que vocês encontrarão em
muitos lugares. Remeto-os ao capítulo cinco da Epístola aos Romanos, que, de
muitas maneiras, é a mais extensa exposição da doutrina. Mas igualmente ela
pode ser encontrada no capítulo seis da Epístola aos Romanos. Também
se encontraem 1 Coríntios, capítulo 15, o grandioso capítulo freqüentemente lido
nos funerais; todavia igualmente se vê em 2 Coríntios, capítulo 5. Similarmente
o ensino se acha naquelas belas palavras do fim do capítulo dois daEpístola aos
Gálatas- “Já estou crucificado com Cristo; e vivo, não mais eu, mas Cristo vive
em mim; e a vida que agora vivo na carne, vivo-a na fé do Filho de Deus, o qual
me amou, e se entregou a si mesmo por mim”. Esta é a coisa mais maravilhosa e
mais espantosa, e, para mim, é sempre uma questão que me causa grande
surpresa que esta bendita doutrina receba tão pouca atenção. Por uma outra razão
o povo cristão parece temê-la. Não tenho dúvida que é principalmente pela razão
que já dei, que o ensino católico (seja romano ou anglicano ou de qualquer outro
tipo) sempre propenso a dar a impressão de que esta é uma realização final do
místico, a meta suprema do maior santo, mas nada tem a ver com o resto de nós,
cristãos comuns. A nossa réplica é que, de acordo com este ensino, em Efésios,
capítulo 2 e noutros lugares, vocês não são cristãos enquanto não estiverem
unido a Cristo e “nele”. Esta doutrina da nossa união com Cristo não deveria vir
no fim da doutrina cristã, deveria vir no início, onde o apóstolo a coloca.

Que significa estarmos unidos a Cristo? Esta expressão é empregada em dois


sentidos. O primeiro é o que se pode chamar sentido federal, ou, noutras
palavras, sentido pactuai. Esse é o sentido do capítulo cinco de Romanos,
versículos 12-21. Adão foi constituído e considerado por Deus como o chefe e o
representante da raça humana; ele foi o chefe federal, o representante federal, o
cabeça pactuai. Deus fez uma aliança com Adão, fez um acordo com ele, fez
certas declarações a ele quanto ao que Ele pretendia fazer, e assim por diante.
Pois bem, esse é o primeiro sentido em que é ensinada esta doutrina da união.
E, portanto, o que se diz acerca do Senhor Jesus Cristo é que Ele é nosso Chefe
Federal, nosso Representante. Adão, o nosso representante, rebelou-se contra
Deus; pecou e foi punido, e certas conseqüências se seguiram. Mas devido Adão
ser o nosso representante e o nosso chefe

ou cabeça, o que aconteceu com Adão aconteceu por isso com toda a sua
posteridade e conosco,

Ora, esse é um aspecto da questão, e muito importante. Conhecemos algo sobre


isso na vida e no viver comum. O embaixador deste país num país estrangeiro
representa todo o país, e se envolve em ações nas quais nos envolvemos,
queiramos ou não. Como cidadãos deste país nós todos sofremos as
conseqüências de resoluções que foram tomadas, até mesmo antes de nascermos.
Vocês não podem abstrair-se de sua nação, estão federalmente envolvidos nas
atividades da sua nação, e o que o líder ou o representante oficial de uma nação
faz impõe-se a todos os cidadãos dessa nação. Muito bem, essa é a verdade com
relação a Adão. Também é a verdade com relação ao Senhor Jesus Cristo. Adão
foi o primeiro homem; Jesus Cristo é o segundo homem. Vocês têm o primeiro
Adão; vocês têm o último Adão. Agora, de acordo com este ensino, Jesus Cristo
é o representante desta nova humanidade; e, portanto, o queEle fez e o que Ele
sofreu é algo que se aplica à totalidade desta nova raça que veio a existir nEle.
Dessa maneira, deve-se pensar na união do crente com Cristo em termos desse
sentido federal.

Mas a coisa não fica nisso. Há outro aspecto da união, que podemos chamar
místico ou vital. E algo que o nosso Senhor ensinou pessoalmente, nas famosas
palavras do capítulo quinze do Evangelho Segundo João, onde Ele diz: “Eu sou a
videira verdadeira, vós as varas”. A união entre as varas e a videira não é
mecânica, é vital e orgânica. Estão unidas; a mesma seiva, a mesma vida no
tronco e nos ramos. Contudo, essa não foi a única ilustração utilizada. No final
do capítulo primeiro desta Epístola Paulo diz que a união entre o cristão e o
Senhor Jesus Cristo é comparável à união das diversas partes do corpo com o
corpo todo, e especialmente com a cabeça. Pois bem, qualquer dos meus dedos é
parte vital do meu corpo. Não foi simplesmente amarrado nele; há uma
união viva, orgânica, vital. O sangue que corre através da minha cabeça,
corre através dos meus dedos. Isso indica uma espécie de unidade
interna essencial, e não uma união meramente federal ou legal ou pactuai. Há, de
fato, mais uma ilustração empregada nesta Epístola aos Efésios, no capítulo
cinco, onde se nos diz que a união entre a Igreja e Cristo, e, portanto, entre todo
membro da Igreja e Cristo é comparável à união entre um marido e sua esposa -
“ambos serão uma só carne”. Essa união é mística. Essa é a união entre Cristo e
a Igreja.

Todas estas bênçãos que usufruímos tornaram-se nossas porque estamos ligados
a Cristo dessa maneira dupla - de maneira forense, federal, pactuai, porém
também desta maneira vital e viva. Podemos

afirmar, pois, que o que aconteceu com Cristo aconteceu conosco. Este é o
mistério e amaravilha danossa salvação, e é a realidade mais gloriosa que jamais
podemos contemplar. O Filho de Deus, a Segunda Pessoa da Deidade eterna,
desceu do céu à terra; assumiu a nossa natureza humana, compartilhou da
natureza humana; e como resultado da Sua obra, nós, seres humanos,
compartilhamos da Sua vida e estamos nEle, e somos participantes de todos os
benefícios que dEle vêm. Meus amigos, eu os fiz lembrar-se logo no princípio, e
devo repeti-lo, que o cristianismo é isso, e nada menos que isso. E se não
compreendemos isso, eu pergunto: que é o nosso cristianismo? Isto não é algo a
que você chega, é algo com que você começa. Você não obtém nenhum
benefício de Cristo, a não ser em termos da sua união com Ele - “todos nós
recebemos também da sua plenitude”, diz João, “e graça por graça” (João 1:16).
Ora, neste ponto, o apóstolo está primariamente interessado em salientar o
aspecto positivo disso tudo, e não o negativo. Ele tratará do aspecto negativo um
pouco mais adiante, neste capítulo. Mas, necessariamente, é preciso ter em
mente o negativo também. No entanto, o que o apóstolo está primariamente
interessado em salientar é que, ao passo que estávamos mortos, agora estamos
vivos. A pergunta que surge de imediato é: como é que isto pode acontecer? Algo
precisa acontecer antes que nós, que estamos mortos e sob a ira de Deus,
possamos passar a estar vivos. Não posso auferir nenhum benefício, de espécie
alguma, enquanto não se faça algo para satisfazer a ira de Deus, pois não
apenas estou morto e não apenas sou uma criatura de desejos e domínios
pelo deus deste mundo, eu estou sob a ira de Deus - “éramos por natureza filhos
da ira, como os outros também”. E, graças a Deus que alguma coisa aconteceu!
Cristo tomou sobre Si a nossa natureza, levou sobre Si os nossos pecados, foi ao
local de punição; a ira de Deus foi derramada sobre Ele. Esse é todo o
significado da Sua morte na cruz, é o pecado sendo punido, é a ira de Deus se
manifestando contra o pecado. E se não vemos isso na cruz do Calvário, estamos
olhando para aquela cruz sem os olhos do Novo Testamento. Há nesse terrível
aspecto da cruz, e nós nunca devemos esquecê-lo. Jamais devemos esquecer o
brado de desamparo: “Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?”
Isso aconteceu porque Ele estava experimentando a ira de Deus contra o pecado,
nada menos que isso. Mas aqui o apóstolo está muito mais interessado em
acentuar o aspecto positivo. Cristo não somente morreu e foi sepultado; Ele
ressuscitou. Deus agiu “resuscitando-o dentre os mortos, e pondo-o à sua direita
nos céus, acima de todo o principado, e

poder, e potestade, e domínio, e de todo o nome que se nomeia”. Tudo isso


envolveu uma vivificação, uma ressurreição e uma exaltação. E a mesmacoisa,
diz o apóstolo, é verdade anosso respeito, porque estamos em Cristo - “nos
vivificou juntamente com ele”. Isto aconteceu com todo aquele que é cristão. E
ação de Deus. Certamente isto não requer nenhuma demonstração. O homem
que está morto em pecados e sob a ira de Deus, que pode fazer? Nada. Deus o
faz para ele, Deus o vivifica. Como Ele vivificou o corpo morto do Seu Filho no
túmulo, assim Ele nos vivificou espiritualmente.

Que é que significa “vivificar”? Significa “tornar vivo”, significa “infundir


vida”. Então, a primeira coisa que é verdadeira quanto ao cristão é que ele
chegou ao fim da sua morte - estávamos mortos em ofensas e pecados, não
tínhamos nascido espiritualmente. Não há nenhuma centelha divina em ninguém
que nasceu neste mundo; todos os nascidos neste mundo, porque são filhos de
Adão, nascem mortos, nascem mortos espiritualmente.
Todaessaidéiadeumacentelhadivina remanescente no homem é uma contradição,
não somente nesta passagem das Escrituras, mas de todas as Escrituras. A
situação de todos os que nascem neste mundo é a de um morto. A comparação
utilizada para ilustrar este fato é o corpo morto do Senhor Jesus Cristo, sepultado
numa tumba e com uma pedra rolada sobre a boca da tumba. Esta é, po.s,
a primeira verdade positiva. Cheguei ao fim da minha morte. Não mais estou
morto em ofensas e pecados, não mais estou morto espiritualmente. Por quê?
Porque morri com Cristo; morri com Cristo para a lei de Deus e para a ira de
Deus.

Ora, o cristão é alguém que tem que afirmar esta verdade. O princípio do
cristianismo é dizer: “Portanto agora nenhuma condenação há para os que estão
em Cristo Jesus” (Romanos 8:1). O cristão não é alguém que está esperando ser
perdoado; não é alguém que espera que finalmente será capaz de satisfazer as
exigências da lei e de estar na presença de Deus. Se é um cristão que entende o
cristianismo, ele diz: já estou lá, não estou mais morto, estou vivo, fui vivificado,
vida me foi dada. E o primeiro aspecto importante dessa declaração é o negativo,
que afirma que não estou mais morto. Deixei de ser morto; estou morto para o
pecado, estou morto para a lei, estou morto para a ira de Deus. “Portanto agora
nenhuma condenação há.” Você pode dizer isso? É a declaração que todo cristão
deveria ser capaz de fazer. E se você não tem essa segurança, é simplesmente
porque você não entende as Escrituras. As Escrituras fazem esta asserção
definida: não sou cristão, não posso ser cristão sem estar em Cristo. Segue-se
que, se estou em Cristo, o que

é verdade a respeito dEle é também verdade a meu respeito. Ele morreu uma vez
para o pecado, e eu, nEle, morri uma vez para o pecado. Quando o Senhor Jesus
Cristo morreu naquela cruz no Monte Calvário, eu estava morrendo com Ele tão
definida e certamente (e ainda mais) como sou responsável pelas ações da Grã-
Bretanha, por exemplo, na China, no último século, quando a sua gente
introduziu lá, vergonhosamente o comércio do ópio. Embora eu não o tenha feito
pessoalmente, embora tenha sido feito antes de eu nascer, sou responsável
porque sou britânico, e me sinto responsável e sinto vergonha. Exatamente da
mesma maneira, quando Cristo morreu na cruz e sofreu a ira de Deus contra
o pecado, eu estava participando nisso; eu estava nEle, eu estava morrendo com
Ele. Estou morto para a lei, estou morto para a ira de Deus, eu posso dizer com
Augustus Toplady:
Os terrores da lei, os terrores de Deus Comigo nada têm, nada podem fazer-me;

A obediência e o sangue do meu Salvador Escondem da visão as minhas


transgressões.

Mais que isso, porém, Ele nos viviflcou, Ele nos tornou vivos; e se você está
vivo, não está mais morto. Uma coisa ou outra - você não pode esperar tornar-se
vivo; ou está vivo ou está morto. Você está espiritualmente morto, ou está
espiritualmente vivo?

Mas examinemos o caso mais profundamente. Quer dizer que Deus colocou um
novo espírito de vida em mim. “A lei do Espírito de vida, em Cristo Jesus, me
livrou da lei do pecado e da morte.” “A lei do Espírito de vida, em Cristo” está
no cristão. Isto é o oposto da morte e da inércia. Antes de entrar em nós este
espírito de vida em Cristo Jesus, estávamos mortos em ofensas e pecados, e
sujeitos a um espírito muito diferente - “o príncipe das potestades do ar, o
espírito que agora opera nos filhos da desobediência”. Todavia a verdade já não
é essa. Há um novo espírito de vida.

Que é “vivificação”? Vivificação é regeneração, e nenhuma outra coisa. Quando


o apóstolo diz aqui, “Vos vivificou”, ele quer dizer, Ele vos regenerou; Ele vos
deu nova vida, nascestes de novo, fostes criados de novo, vós vos tomastes
participantes da natureza divina. Que é regeneração? Não posso pensar numa
definição melhor do que esta: regeneração é um ato de Deus pelo qual um novo
princípio de vida é implantado no homem, e a disposição dominante da alma é
tornada santa. Isso é regeneração. Significa que Deus, por Sua ação poderosa,

põe nova disposição em minha alma. Notem que digo “disposição”, não
faculdades; o de que necessita o homem não são faculdades; necessita é de uma
nova disposição. Qual a diferença, vocês perguntarão, entre faculdades e
disposição? Pode-se dizer que é algo assirm a disposição é aquilo que determina
a tendênciae ouso das faculdades. Éa disposição que governa e organiza o uso
das faculdades, que faz de um homem um músico, de outro um poeta e de outro
alguma outra coisa. Assim, a diferença entre o pecador e o cristão, entre o
incrédulo e o crente, não é que o crente, o cristão, tem certas faculdades que
faltam ao outro. Não, o que acontece é que esta nova disposição dada ao cristão
dirige as suas faculdades de maneira inteiramente diversa. Não lhe é dado um
novo cérebro, não lhe é dadaumanova inteligência, ou alguma outracoisa.
Ele sempre teve essas coisas; são seus servos, seus instrumentos,
seus “membros”, como lhes chama Paulo no capítulo seis de Romanos; o que é
novo é uma nova tendência, uma nova disposição. Ele mudou de direção, há
agora um novo poder agindo nele e guiando as suas faculdades.

E isso que faz de um homem um cristão. Há nele este princípio de vida, há esta
nova disposição. E esta afeta o homem todo; afeta a sua mente, afeta o seu
coração, afeta a sua vontade. É algo que sucede instantaneamente ao homem,
não gradativamente. O nascimento é repentino, o nascimento é instantâneo, não
é um processo gradual. Lá estava o homem, em dado momento morto, no
momento seguinte vivo. Ele foi vi vificado; esta disposição, este princípio de
vida penetrou nele. E, obviamente, é algo que acontece no nosso subconsciente.
O nosso Senhor deixou isso claro (não deixou?) paraNicodemos naquela
famosa declaração: “O vento assopra onde quer, e ouves a sua voz, mas
não sabes de onde vem, nem para onde vai; assim é todo aquele que énascido do
Espírito”. E secreto, não se pode ver nem entender, não é possível explicá-lo
plenamente; tudo o que se sabe é que aconteceu. “Eu era cego, e agora vejo” (VA
e ARA). Não entendo isso, não posso explicar, nem fisiologicamente, nem
anatomicamente, nem de nenhuma outra maneira; tudo o que eu sei é que eu era
cego, não podia ver, mas agora posso ver. Eu estava morto, agora estou vivo. É
secreto, é misterioso, é miraculoso, é maravilhoso, é incompreensível; porém
conheço os efeitos, aprecio osresultados, estou ciente do fato de que isso
aconteceu. Então, que será? É um ato criador de Deus. É por isso que vocês
vêem este apóstolo e outros se referindo muitas vezes a esse fato como uma nova
criação - “Se alguém está em Cristo, nova criatura é (nova criação); as coisas
velhas já passaram; eis que tudo se fez novo”. Sim,

ele tem os mesmos olhos, olha para as mesmas coisas para as quais olhava antes,
contudo não as vê como costumava vê-las. O pobre ébrio tinha olhos e podia
olhar para um bar, e via certas coisas; ele continua tendo olhos, continua vendo o
mesmo bar, e, todavia, não é a mesma coisa, é inteiramente diferente. Ele está
olhando para a mesma coisa, mas vê uma coisa absolutamente diferente. Por
quê? - não foi o bar que mudou. Ele mudou, ou melhor, foi mudado. Um novo
homem, umanova disposição, um novo princípio dominante, nova vida!

Você está vivo? Deus colocou em você este princípio de vida? Precisamente
como você é neste momento, você sabe se isto aconteceu com você, que há esta
diferença essencial entre você e o homem do mundo? Terei que entrar nesse
assunto em detalhe mais adiante. Mas este é o começo de tudo. Veja aquela
criança que acabou de nascer. Ela não pode raciocinar, não pode pensar, não
pode dar conta de si, dos seus gostos e do que lhe desagrada; não obstante, ela
manifesta vida: está viva, e tão viva como sempre estará. O seu entendimento e
tudo mais se desenvolverão, mas ela está viva e mostrando que está.
Vivificados! Estávamos mortos, sem vida, não podíamos mover-nos
espiritualmente, não tínhamos apetite espiritual, não tínhamos apreensão
nem entendimento, espiritualmente. No entanto, se somos cristãos, isso não é
mais verdade; fomos vivificados juntamente com Cristo, o princípio de vida
entrou, fomos regenerados. Não há cristianismo sem isso. Meramente crer que
você está perdoado não é suficiente. Cristianismo é isto: crer e saber que, devido
estarmos unidos a Cri sto, algo da Sua vida está em nós como resultado desta
união vital e indissolúvel, desta conexão íntima, mística. A vida da Cabeça passa
pelos membros - “vós sois o corpo de Cristo, e seus membros em particular” (1
Coríntios 12:27). Você tem consciente percepção dEle? Você sabe que Ele
está em você e você nEle? Você pode dizer: “Eu vivo, não mais eu, mas Cristo
vive em mim”? Você tem vida? Você foi vivificado? Este é o começo do
cristianismo. Não há cristianismo sem isso. Não é que eu e você não devemos
estar lutando. Claro que devemos lutar, estudar, jejuar, suar e orar. Temos que
fazer estas coisas; mas isso é algo que vem na seqüência. A primeira coisa é este
conhecimento da vida. Porventura você tem consciência de um princípio que
está agindo dentro de você, por assim dizer, a despeito de você mesmo,
influenciando você, moldando você, guiando você, convencendo-o (do pecado),
levando você avante? Você está ciente de que é possesso? - se posso dizê-
lo assim, sob o risco de ser mal entendido. O cristão é um homem possesso;

este princípio de vida entrou nele, esta nova disposição o possui. Ele tem
consciência de uma ação que se efetua dentro dele. “Vivificados juntamente com
Cristo”! Que coisa tremenda! É algo objetivo; porém, graças a Deus, também é
subjetivo. Não é uma coisa que está totalmente nEle e que me deixa onde eu
estava. Nada disso! Deus começou em mim uma boa obra, e eu a conheço. Ele
colocou esta nova vida em mim - em miml Nasci de novo e estou em união com
Cristo.

Queira Deus, por Seu Espírito, iluminar os olhos do nosso entendimento, para
que comecemos a compreender esta estupenda operação do poder de Deus em
nós.

RESSUSCITADOS COM CRISTO

“Mas Deus, que é riquíssimo em misericórdia, pelo seu muito amor com que nos
amou, estando nós ainda mortos em nossas ofensas, nos vivificou, juntamente
com Cristo (pela graça sois salvos), e nos ressuscitou juntamente com ele e nos
fez assentar nos lugares celestiais, em Cristo Jesus; para mostrar nos séculos
vindouros as abundantes riquezas da sua graça pela sua benignidade
para conosco em Cristo Jesus. ” - Efésios 2:4-7

Continuamos o nosso estudo desta declaração do que Deus fez para nós em
nosso desamparo e desesperança nos termos da sua descrição nos três primeiros
versículos deste capítulo. Certamente não existe exposição mais maravilhosa
nem mais extraordinária da verdade concernente ao cristão do que a que se acha
nestes versículos! Portanto, devemos admitir, todos nós, ao lermos os sete
primeiros versículos deste capítulo, que os nossos problemas, na maioria, são
resultantes do fato de que pesa sobre nós a culpa de um duplo fracasso: por um
lado, falhamos em não perceber a profundidade do pecado e, por outro lado,
falhamos em não perceber a grandeza, a altura e a glória da nossa salvação.
Muitíssimas vezes nos contentamos em pensar em nossa salvação meramente
em termos do perdão dos pecados. Não que queiramos depreciar isso, pois não
há nada mais maravilhoso nem mais glorioso. O meu ponto é que parar nisso
certamente é trágico. E na verdade eu acredito que, em grande parte, deve-se
toda a condição e estado da Igreja hoje ao fato de que falhamos nesses dois
pontos. É porque nunca nos demos conta da profundidade do abismo do qual
fomos tirados pela graça de Deus que não o agradecemos a Deus como
devíamos. E depois há a nossa falha em não percebermos as grandes altitudes às
quais Ele nos elevou. É disso que o apóstolo está tratando agora. Ele nos está
falando acerca do livramento, da salvação. Aqui, naturalmente, o apóstolo não
está muito interessado na maneira pela qual somos salvos. Nesta altura ele não
está interessado na evangelização; essa é algo que já aconteceu; ele
está escrevendo a pessoas que já são cristãs, e ele quer que elas percebam
e entendam qual é realmente a verdade concernente a elas como pesso as cristãs.
Ele quer que elas conheçam “a sobreexcelente grandeza do seu poder sobre nós,
os que cremos”, pelo que ele faz uma exposição a respeito.

Já vimos que o que nos faz cristãos é a nossa união com Cristo. Esta doutrina da
nossa união com Cristo é absolutamente vital. A primeira coisa a que ela leva é a
regeneração, como já vimos.

Agora devemos dar o segundo passo, porque a Epístola não se limita a dizer-nos
que fomos vivificados juntamente com Cristo, mas diz também que Deus “nos
ressuscitou juntamente com ele”. Devemos ter sempre em mente, ao tratarmos
deste ensino, que o apóstolo está elaborando uma comparação aqui. O seu
argumento é que o que espiritualmente é verdade quanto a nós é similar ao que
aconteceu com o nosso Senhor fisicamente, quando Ele foi ressuscitado dentre
os mortos. Ele levou os nossos pecados em Seu corpo no madeiro, morreu, Seu
corpo sem vida foi descido, foi sepultado num túmulo, a pedra foi rolada sobre o
túmulo - não há dúvida sobre isso; é um fato. Ele foi morto, literalmente morreu
pelos nossos pecados. Entretanto na manhã do terceiro dia Ele ressurgiu, Ele foi
ressuscitado dentre os mortos. E o apóstolo desenvolve tudo isso em termos da
nossa experiência. Portanto, tenhamos em mente o que aconteceu com o nosso
Senhor. Lá esteve Ele, por aquele período, morto e numa sepultura, no reino
dos mortos. Mas Ele saiu do estado e lugar dos mortos. As vestes fúnebres foram
deixadas no túmulo, porém Ele não estava lá. Vocês recordam a maneira
pictórica pela qual os evangelistas nos descrevem isso, e a surpresa das mulheres
e de outros que foram ao sepulcro. Foram para ver o corpo na sepultura, mas não
havia corpo algum, somente as vestes fúnebres. Ele ressuscitou, foi tirado, não
estava mais morto, não estava mais na sepultura. Ele agora estava noutro reino,
estava vivo, tomado dentre os mortos. E Ele apareceu, vocês se lembram, a
pessoas escolhidas durante quarenta dias; em várias ocasiões e de várias
maneiras Ele Se manifestou às testemunhas escolhidas; e depois subiu ao céu.

São esses os fatos que devemos ter em mente. A nossa salvação, segundo o
apóstolo, é comparável a isso, nada menos que isso. Houve completa mudança
no reino em que o nosso Senhor estava: morto, no túmulo; vivo, manifestando-
Se, e de uma nova maneira. Ora, essa é a verdade, diz o apóstolo, acerca de
todos os que são verdadeiramente cristãos. Nada menos que isso. Fomos
ressuscitados juntamente com Cristo. Graças à nossa união com Ele, o que
aconteceu com Ele aconteceu conosco - não, como ele assinala aqui, no sentido
físico, todavia no sentido espiritual. Acontecerá também no sentido físico;
isso virá, mas o que ele quer que os crentes efésios entendam agora é
que, espiritualmente, precisamente o mesmo poder (como ele tinha argumentado
no final do capítulo primeiro) que ressuscitou o Senhor Jesus

Cristo está agindo agora em nós, os que cremos, e está realizando esta obra
maravilhosa em nós.

Então, o que é que isso nos diz acerca do cristão? Que é que isto nos diz como
verdade a respeito de nós? Podemos considerar a questão do modo como
consideramos a declaração acerca do nosso Senhor. Podemos considerar este
“ressuscitar juntamente” primeiro de maneira negativa. Logo que o nosso
Senhor ressuscitou dentre os mortos, certas coisas deixaram de ser verdadeiras a
respeito dEIe. E exatamente a mesma coisa se pode dizer do cristão. Há certos
fatores negativos que são de tremenda importância. E talvez a melhor maneira de
expor tudo isso seja em termos do capítulo seis da Epístola aos Romanos,
porque ali vocês têm realmente um amplo comentário sobre esta frase
que estamos considerando. Em todas estas Epístolas vocês têm a mesma doutrina
essencial. Algumas delas desenvolvem um ponto minuciosamente, outras o
fazem com outro ponto, mas a doutrina essencial é a mesma em cada uma delas.
E é por isso que o melhor comentário sobre qualquer Epístola do apóstolo Paulo
sempre será ler as suas outras Epístolas - e se vocês não o fizerem, mais cedo ou
mais tarde perderão o rumo. E outro ponto que defendo é este: se vocês
estudarem de fato qualquer destas Epístolas cuidadosamente, exaustivamente, e
tomarem tempo nisso, cobrirão toda gama da doutrina cristã; ao passo que,
se rasparem de leve a superfície delas, não terão uma verdadeira
concepção sobre o ensino do apóstolo. Vejamos agora como ele desenvolve
isso tudo no capítulo seis da Epístola aos Romanos.

Eis o que, evidentemente, sepode dizer acerca do cristão. Ocristão, por definição,
não está mais morto espiritualmente. Não está mais num túmulo espiritual.
Estava! - estávamos todos mortos em ofensas e pecados. Estávamos mortos,
estávamos num túmulo espiritual. Mas, como cristãos, saímos disso. Como
Cristo saiu do túmulo, nós também saímos do túmulo, e estamos fora dele.
Deixamos para trás as vestes fúnebres, e nada mais. Não estamos mais naquele
reino, não pertencemos mais àquela esfera, a nossa condição é inteiramente
nova. Ora, este é apenas outro modo de dizer que toda esta questão de
regeneração e salvação constitui a mudança mais profunda possível; e tornar-se
cristão é a experiência mais profunda, o fato mais profundo de todo o
universo. Não é nada menos que a diferença existente entre a morte e a vida,
entre estar num túmulo e andar em liberdade e sem amarras pelo mundo.

No entanto, o que é que isso significa concretamente naprática? Diz o apóstolo


que há certas coisas a que nós, como cristãos, devemos

apegar-nos tenazmente. Aqui estão algumas das negativas. O fato de que não
estamos mais mortos e de que não estamos mais no túmulo é uma prova
categórica de que não estamos mais sob a ira de Deus, e não mais estamos sob
condenação. O apóstolo o expressa de maneira muito interessante no último
versículo do capítulo quatro da Epístola aos Romanos. Referindo-se ao nosso
Senhor, ele diz: “O qual por nossos pecados foi entregue, e ressuscitou para
nossa justificação”. Isso quer dizer que a morte do nosso Senhor foi por causa
das nossas ofensas. Ele morreu porque levou sobre Si as nossas ofensas; tomou
sobre Si os nossos pecados e as nossas transgressões, e como o castigo era a
morte, Ele morreu. Mas, como saber se Deus ficou satisfeito com essa oferenda?
A resposta é a ressurreição! “Por nossos pecados foi entregue, e ressuscitou para
nossa justificação”! O ressurgimento de Cristo dos domínios damortee do
sepulcro, o Seu reaparecimento, éprova absoluta de que Deus está satisfeito por
ter sido o pecado punido verdadeiramente. Evidentemente, pois, isso se aplica a
nós com igual força. E o apóstolo prossegue, paraconcluiro argumento logo no
versículo seguinte, o versículo primeiro do capítulo cinco. “Sendo pois” - vocês
vêem a lógica! “Sendo pois justificados pela fé, temos paz com Deus, por nosso
Senhor Jesus Cristo.” Fomos ressuscitados dentre os mortos com Ele e, portanto,
fomos justificados e, conseqüentemente, não estamos mais sob a ira de Deus. Ele
o expressacom mais força aindano versículo primeiro do capítulo oito: “Portanto
agora nenhuma condenação hápara os que estão em Cristo Jesus”. Nenhuma
condenação! A condenação leva à morte; mas não estamos mais mortos,
ressuscitamos; portanto, não há condenação. Vocês recordam o contraste. Que
éramos? Mortos. Não somente estávamos “mortos em ofensas e pecados”,
todavia também éramos “por natureza filhos da ira, como os outros
também”. Todos quantos nascemos neste mundo, nascemos sob a ira de Deus,
sob condenação. Mas não estamos mais nessa situação; ressuscitamos dentre os
mortos, demos fim à morte: “portanto agora nenhuma condenação há para os que
estão em Cristo Jesus”.

Todo cristão deve saber essa verdade, e todo cristão deve gozar essa segurança.
Porquê? Porque você está em Cristo, não por causa de alguma coisa existente em
você. Por causa da sua união com Cristo, porque você foi ressuscitado com Ele.
O primeiro fator básico da segurança é que cremos nisto; aceitamos isto pelafé,
reconhecemos a sua veracidade. Fui introduzido em Cristo, fui ligado a Cristo; e,
portanto, quando Ele ressuscitou e deixou aquela esfera, eu também a deixei.
“Por nossos pecados foi entregue, e ressuscitou para nossa justificação”! Você se

conta de que não está mais sob a ira de Deus? Você se dá conta de que, portanto,
não há nenhuma condenação para você? Você se dá conta de que o castigo foi
imposto e sofrido, e que você não mais tem por que temer o castigo vindouro?
Essa é a primeira dedução de Paulo.

Depois ele passa à outra. Diz ele que, porque não estamos mais mortos, e sim,
vivos, também estamos mortos para a lei, Não estamos “debaixo da lei, mas
debaixo da graça”, diz ele. E no capítulo sete da Epístola aos Romanos ele
elabora o ponto empregando uma comparação. Diz ele que uma mulher,
enquanto o seu marido não morrer, estará presa a ele e por ele, e não poderá
casar-se com outro homem sem se fazer adúltera. Contudo, quando o marido
morre, ela está livre para casar-se outra vez; não está mais presa àquele marido e
por ele. Diz o apóstolo que exatamente essa é a nossa relação com a lei, como
cristãos. Todos nós nascemos “debaixo da lei”. A lei de Deus nos enfrenta, nos
desafia e nos condenaporcausado nosso fracasso; e Deus nos trata pela lei.
Mas, se estamos em Cristo, não mais estamos debaixo da lei, porém debaixo da
graça. Não significa, é claro, que não temos mais que guardar a lei moral, mas
sim, que a nossa relação com Deus não é mais uma relação legal, judicial; é uma
relação pessoal, de pai e filho. Naturalmente o pai, se for um bom pai, verá que o
filho seja disciplinado e obedeça a certas leis, todavi a a relação mudou. O
homem em pecado está em desarmonia com Deus e é tratado por Ele de maneira
puramente legal. Contudo os que estão “em Cristo” foram retirados daquela
esfera. A lei executou a suapuniçãoplenae completa
enaextensãoplenaecompletano Senhor Jesus Cristo e, se estamos nEle, a lei não
tem mais exigências quanto a nós, nesse sentido. Não estou mais debaixo da lei,
estou debaixo da graça. Essa é a segunda dedução. E que coisa tremenda é
compreendermos que estamos numa relação totalmente nova com Deus. Isso
vem à tona, como veremos adiante, em certos aspectos práticos.

Há, porém, uma afirmação mais extraordinária. Diz o apóstolo que, porque
ressuscitamos com Cristo, agora estamos “mortos para o pecado", No versículo
dois do capítulo seis de Romanos o apóstolo responde a pergunta que ele tinha
feito no versículo primeiro - “Que diremos, pois? Permaneceremos no pecado
para que seja a graça mais abundante?” - dizendo: “De modo nenhum. Como
viveremos no pecado, nós os que para ele morremos?” (ARA). Uma vez que
ressuscitamos com Cristo, estamos mortos para o pecado. Diz ele ainda,
no versículo seis: “Sabendo isto, que o nosso homem velho foi com
ele crucificado, para que o corpo do pecado seja desfeito, para que não sirvamos
mais ao pecado”. Pois bem, esta é, evidentemente, uma

afirmação muito importante e vital. Que é que significa? Está claro que não
significa que somos perfeitos, que estamos sem pecado e que nunca mais vamos
pecar. Sabemos que isso não é verdade. “Se dissermos que não temos pecado,
enganamo-nos a nós mesmos, e não há verdade em nós”, diz o apóstolo João, em
sua Primeira Epístola, capítulo primeiro. Então, que significa? Em que sentido é
certo dizer que o cristão está morto para o pecado? É certo neste sentido: antes
de nos tornarmos cristãos estamos “mortos em ofensas e pecados”; mas como
cristãos, isso já não é verdade quanto a nós. Antes pertencíamos ao reino
do pecado, aos domínios do pecado, e estávamos sob o poder do pecado. Éramos
controlados pelas cobiças da carne, que se manifestavam como desejos da carne
e da mente. A nossa vida era pecaminosa, éramos controlados pelo pecado,
dominados pelo pecado, governados de várias maneiras por estas cobiças e
paixões da mente e do corpo. Ora, isso não é mais verdade a nosso respeito.
Estamos mortos para aquele reino do pecado, não estamos mais lá, fomos
retirados. “O pecado não terá domínio sobre vós”, diz o apóstolo em Romanos,
capítulo 6. Não mais andamos em ofensas e pecados, como costumávamos fazer.
Outrora estávamos mortos em ofensas e pecados, como os outros
também; “Entre os quais todos nós também antes andávamos” daquela
maneira. Mas, já não é essa a verdade sobre o cristão. Ele não gasta mais o
seu tempo lá, não anda lá, não vive lá; não pertence mais àquela esfera, foi tirado
daquela esfera. Repito que isso não significa que ele é perfeito; porém não
pertence mais àquela esfera. É como alguém que se muda de um país para outro,
é como alguém que está seguindo os trâmites para a sua naturalização; há
completa mudança em sua posição, em sua relação com o Estado. E essa é a
verdade quanto ao cristão. Ele não serve mais ao pecado. Ou, para fazer uso da
ilustração do apóstolo outra vez, ele não é mais servo do pecado. Antes ele era
um consumado escravo. Gostemos ou não, o fato acerca de toda e qualquer
pessoa não regenerada é que é escrava do pecado, governada por um princípio
mau. Todavia, não é mais esse o caso, com referência ao cristão. Não mais
somos escravos do pecado, fomos retirados disso. É verdade que, em
nossa insensatez, aindapodemos dar ouvidos ao diabo, aindapodemos rendermos
à tentação, ainda podemos obedecer a um impulso pecaminoso, mas isso não
significa que somos escravos do pecado. Não somos mais controlados por ele.
Esse é o princípio, e é nesse sentido que estamos mortos para o pecado. “Aquele
que está morto está livre do pecado” (VA).

Morremos com Cristo, fomos ressuscitados com Ele e nãoperten-

cemos mais àquele singular reino do pecado, da lei e da morte. Se vocês


examinarem as suas experiências como cristãos, verão que isso é verdade. É algo
deveras extraordinário e maravilhoso. Há muitos membros do povo de Deus que
não percebem isso porque não conseguem traçar a distinção entre uma tentação e
um pecado. Visto que há maus pensamentos que se insinuaram em suas mentes,
pensam que ainda estão na esfera do pecado. Não estão. Aqueles pensamentos
vêm de fora. Naturalmente ainda há tendências pecaminosas deixadas no corpo,
e todavia se percebe que a atitude da pessoa é inteiramente diferente. Talvez eu
possa expressar isto com uma ilustração. Vocês ouviram a respeito
daconquistado Canadá em 1759 e dafamosabatalha de Quebeque, com o general
Wolfe contra o general francês Montcalm. Houve uma só batalha e uma grande
vitória, a batalha de Quebeque. E como resultado dessa batalha única, o Canadá
passou a ser uma possessão britânica. Mas, se vocês continuarem lendo a
história, verão que os britânicos tiveram que continuar lutando no Canadá
durante um bom número de anos. Restavam bolsões de resistências, porém o
Canadá não era mais francês, era britânico. Contudo, o fato de que tinha deixado
de ser francês e se tornara britânico não significa que não houvesse
mais nenhuma luta ou nenhum conflito. Havia; mas aquela única
batalha decisiva mudou toda a situação e o direito de posse. Ora, a situação
do cristão é um tanto parecida com essa. Ele não está mais sob o pecado; ele está
morto para o pecado, na questão de posição, domínio e controle. Ele foi retirado,
ele está nesta nova vida com o seu Senhor e Salvador.

Talvez possamos fazer uma colocação ainda melhor deste ponto da seguinte
maneira: diz o apóstolo, no versículo seis do capítulo seis de Romanos:
“Sabendo isto, que o nosso homem velho foi com ele crucificado”, com Cristo.
Esta tradução é melhor do que a da VA, que diz: “Sabendo que o nosso velho
homem está crucificado com Cristo”. Sabemos disso, diz o apóstolo. Como
cristãos, essa é a verdade a nosso respeito. Que significa? Que é o velho homem?
A resposta se acha no capítulo cinco. O velho homem é o homem adâmico, o
homem que estava em Adão. Vocês recordam a comparação. Todos nós
estávamos em Adão, éramos descendentes lineares de Adão, e estávamos nele.
E mais, ele era o nosso chefe e representante federal; mas não somente isso,
estávamos presos a ele pelos laços de carne, sangue e descendência; há a mesma
união dupla, federal e vital - todos nós estávamos em Adão. E cada um de nós
que nasceu neste mundo nasceu filho de Adão. Temos natureza adâmica, nossa
posição diante de Deus é a de Adão. Adão caiu, e nós caímos com ele.
Conseqüentemente, estávamos sob a ira de Deus,

sujeitos às cobiças e sob o controle e o domínio do pecado e de satanás


exatamente como Adão estava. O homem velho é isso, o homem adâmico.
Entretanto, nós morremos com Cristo, e quando morremos com Cristo, o velho
homem morreu também. Como cristão, não estou mais em Adão, estou em
Cristo. Sou membro de uma nova humanidade. Cristo é “as primícias de muitos
irmãos” (cf. Romanos 8:29 e 1 Coríntios 15:20). Eu estou nEle. Que significa
isso? Significa - e que verdade gloriosa! - que Deus não me vê mais como
alguém que está em Adão. Ele me vê como alguém que estáem Cristo. Sou um
novo homem. Sou a mesma personalidade, é evidente, mas eu sei que sou um
homem novo, diferente. Minha situação, minha condição pessoal, minha
posição, tudo é absolutamente diferente. Não pertenço mais àquela
velha humanidade. Ainda estou na carne, porém, sou membro de uma
nova humanidade. E o que Paulo quer dizer quando afirma que o nosso
velho homem foi crucificado com Cristo. Como eu disse, não estou mais sob a
ira de Deus, não estou mais sob a lei de Deus; não estou mais sob o domínio do
pecado, não estou mais sob o domínio de satanás. Isso porque não sou mais um
homem adâmico. O cristão não deve contentar-se em dizer menos que isso. Essa
é a verdade simples, primária, acerca do cristão: ele está “em Cristo”, não “em
Adão”. O velho homem que eu era desapareceu, e desapareceu para sempre.
Agora notem que eu estou dizendo “o velho homem”. Não estou dizendo que o
pecado que está no corpo e na carne desapareceu; estou simplesmente dizendo
que, como o ente que estava em Adão, não estou mais lá; agora sou um ente em
Cristo. Esse é o lado negativo da verdade e do fato de que fomos “ressuscitados
juntamente com Cristo”.

Examinemos agora o positivo, É acoisamais espantosaque há. Que contraste!


Estamos compartindo a vida de Cristo e, portanto, vamos nos tornando
semelhantes a Cristo. Como cristãos, somos basicamente diferente do que
éramos. Uso os termos avisadamente. Somos fundamental e essencialmente
diferentes. Em quais aspectos? Observem a colocação que Paulo faz em
Romanos 6:11: “Assim também vós considerai-vos como mortos para o pecado,
mas vivos para Deus em Cristo Jesus nosso Senhor”. Aí está o aspecto positivo.
Tendo ressuscitado em Cristo, agora estou vivo para Deus. Antes não estava;
antes eu estava morto em ofensas e pecados, e vocês se lembram do que
vimos que a definição desse termo morto foi que eu estava morto para
Deus. Essa é a terrível tragédia de todos os homens naturais que não se tornaram
cristãos; estão mortos para Deus. Vi vem como se não exi s tisse

Deus; não estão cônscios de Deus, não têm uma relação viva com Deus. Vivem
neste mundo como se Deus não existisse. Eles estão absolutamente mortos para
Deus. Mas, tendo sido ressuscitados com Cristo, estamos “vivos para Deus”. E
esse é o fato máximo que você poderá saber sobre si mesmo, que você está vivo
para Deus, em harmonia com o Eterno, e foi despertado para uma realidade
infinita e absoluta.
Vocês viram aquela flor? Lá está ela, de noite, fechada; vem o sol e, de repente,
ela começa a abrir-se e a receber vida do glorioso sol. É o que acontece com o
cristão. Ele está “vivo para Deus”. Que significa? Significa que temos uma
atitude inteiramente nova paracom Deus. Não estamos mais em inimizade contra
Deus. O apóstolo continua no capítulo oito da Epístola aos Romanos, dizendo
que a mente natural, o homem natural, está em inimizade contra Deus. De fato
veremos, nesta Epístola aos Efésios que estamos estudando, que Paulo diz mais
adiante que nós éramos “estranhos e inimigos no entendimento pelas
nossas obras más” (cf. Colossenses 1:21). E quanta verdade há nisso!
Mas, quanto ao cristão, já não é verdade. O cristão não está mais em inim
izade contra Deus. Ele quer bem a Deus. Não tem mais a sensação de que Deus é
um monstro terrível que se põe contra nós, esperando para esmagarmos,
condenar-nos, destruir-nos. Não, ele passou a conhecer Deus, e a saber que Deus
é amor, misericórdia, bondade e compaixão. Ele não foge mais de Deus e não
tenta esconder-se entre as árvores, como fez Adão, evitando a Deus a todo custo.
É isso que o homem natural ainda faz; o homem natural faz o que pode para
evitar a Deus. É por isso que ele odeia a idéia da morte. A morte é, para ele, o
inimigo mais terrível. Por quê? Porque ela significa que ele terá que comparecer
à presença de Deus. Nem sempre ele põe esse temor em palavras, porém o sente
nos ossos. Ele sabe que essa é a verdade, e a odeia por essa mesma
razão. Significa postar-se diante de Deus. É por isso que ele não freqüenta
um local de culto, é por isso que ele não lê a Bíblia, é por isso que ele não gosta
de funerais - Deus! A morte leva-o para perto de Deus, e ele odeia isso; fica
aterrorizado e, por isso, evita a Deus.

O cristão, no entanto, não é assim. “Assim como o cervo brama pelas correntes
de águas, assim suspira minha alma por ti, ó Deus! A minha alma tem sede de
Deus, do Deus vivo; quando entrarei e me apresentarei ante a face de Deus?”
(Salmo 42:1-2). Que mudança! Mudança da morte para a vida. Mudança
absoluta. Mudança essencial. Haverá mudança maior do que esta, que agora a
pessoa queira bem o Ser que antes temia com tremor e terror? Deus Se torna o
nosso Pai. E o maior desejo do cristão verdadeiro é chegar mais perto de Deus.
Você

pode dizer com sinceridade que o que mais deseja neste momento é conhecer
melhor a Deus e aperceber-se de Sua presença? Se pode, você é cristão. Se não,
será melhor reexaminar os seus fundamentos; pois, quando um homem está em
Cristo, ele tem nova natureza, e esta nova natureza clama por Deus. O nosso
Senhor costumava levantar-Se muito antes do alvorecer para orar a Seu Pai;
costumava passar a noite orando. Seu Pai! Ele queria a Sua presença, tinha
prazer na comunhão. E essa é a característica do cristão, ele está “vivo para
Deus”. Pensemos nas ilustrações óbvias. E como um instrumento elétrico:
desligado está morto; ligando-se, torna-se vivo. O microfone recebe a minha
voz. Por quê? - porque está vivo para mim. Mas, se o desligarem, estará morto. E
como era o homem, não estava vivo para Deus; todavia agora está vivo para
Deus, é sensível a Deus, deseja a Deus, ama a Deus, busca a Deus. “Ah,
soubesse eu onde encontrá-lo!”, é o seu clamor. Não pode ver a Deus como
gostaria, não O conhece bastante bem. Está “vivo para Deus”.

Contudo não somente está vivo para Deus, ele anda “em novidade de vida”. Que
frase maravilhosa! E o completo contraste, vocês vêem, com a morte. O apóstolo
diz isso de novo no capítulo quatro desta Epístola aos Efésios, desta maneira: ele
fala sobre o “novo homem, que segundo Deus é criado em verdadeirajustiça e
santidade”. Qual é então a verdade a respeito do cristão? E que ele não está mais
andando em ofensas e pecados, está vivendo esta vida inteiramente nova, não
mais governado pela carne e seus desejos, mas governado por esta nova maneira
de ver. Como isto se manifesta? Permitam-me resumir o ponto. Manifesta-se em
sua mente, manifesta-se em seu coração, manifesta-se em sua vontade. Esse é o
modo de dizer se você é cristão ou não. O cristão é alguém que, havendo
ressuscitado com Cristo, anda em novidade de vida. E o homem vive com sua
mente, seu coração e sua vontade.

O cristão tem mente nova. Que é isso? Paulo diz, no capítulo doze da Epístola
aos Romanos: “Não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela
renovação do vosso entendimento” ou “da vossa mente” (VA e ARA). E o
cristão tem mente nova, que se manifesta das seguintes maneiras: ele vê tudo de
maneira diferente. Não pensa mais em termos do tempo, começa a pensar em
termos da eternidade, A vida do incrédulo está inteiramente presa ao tempo, ele
nunca vai além, nem quer ir, pois tem medo, Pensar naquele “desconhecido país
de cujas fronteiras nenhum viajor retorna” o inquieta. Não, ele não está
interessado na eternidade. Mas o cristão está. O cristão vê que esta vida
é temporária, limitada pelo tempo. Eternidade! - sua mente começa a

atuar em função dessa realidade. E agora ele não pensa somente em termos do
corpo e de uma alma racional, também começa a pensar em termos do espírito.
Como pensa o não cristão? Bem, o “mundo do seu pensamento” é limitado por
este mundo e seu conhecimento, sua cultura, sua arte, seus negócios, seus
prazeres e outras coisas semelhantes. Coloquem nisso tudo o que quiserem - não
quero deixar nada fora - coloquem tudo o de que vocês dispõem nisso, mas ainda
lhes digo que é uma vida e uma perspectiva inteiramente limitadas pelo corpo e
pela alma racional, e nada que vá além disso. Entretanto o cristão não para
aí. Ele se dá conta de que há nele o que se chama espírito, há nele aquilo que o
torna consciente do fato de que ele pertence a outro domínio e a outra esfera, e
ele se põe a viver mais e mais nessa esfera, e cada vez menos na outra. Não é
somente o tempo, não é somente o material; é a eternidade, é o espiritual, é o
perene. Ele é elevado a uma “esfera de pensamento” inteiramente nova. E agora
julga todas as coisas à luz dessa nova esfera. Tem um novo padrão de valores,
avalia as coisas de maneira totalmen te diferente. O que ele quer saber agora,
sobre qualquer coisa, não é que tipo de proveito ele pode tirar disso, que tipo de
prazer lhe trará; mas, antes, que valor tem para a sua alma. E como isso afeta a
sua relação com a eternidade. Como toca em sua relação com Deus e com Jesus
Cristo. Ele vê tudo de maneira diferente e tem um padrão de valores totalmente
novo, porque tem esta mente renovada em Cristo. Ele anda em novidade de vida.

Outra coisa óbvia é que ele se interessa pela Bíblia como nunca antes. Antes ele
punha todos os outros livros adi ante daBíblia; agora ele põe a Bíblia adiante de
todos os outros livros. Ele compreende que a Bíblia é o único livro que o leva a
Deus e a uma crescente participação na vida de Deus. Sua mente começa a atuar
com base no Livro; este lhe fala, ele sente prazer nele, gloria-se nele, emociona-
se com ele.

Ele vê também que passa cada vez mais tempo em meditação. Que arte perdida,
a arte da meditação! Todavia o cristão medita. Ele pára para pensar, põe de lado
os jornais, desliga o rádio e o televisor, não fica o tempo todo correndo atrás de
algum entretenimento; ele se assenta repousadamente e pensa em si, em Deus, na
glória e na eternidade. Tem mente nova. Vocês vêem que completo oposto ele é
do homem natural? Uma coisa que o homem natural nunca faz é meditar. Ele faz
tudo o que pode para evitá-lo, e o mundo se afana em satisfazê-lo; o mundo
sabe do que ele gosta e o ajuda a fugir de si mesmo e de todas estas
coisas maravilhosas.

Considerem depois as manifestações do novo coração. Este

homem tem desejos inteiramente novos. Eis o que o nosso Senhor diz sobre ele:
“Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos”.
O seu maior desejo agora não é de ter mais prazer e satisfação momentânea; é de
justiça, de verdadeira santidade. Ele diz com Davi: “Cria em mim, ó Deus, um
coração puro, e renova em mim um espírito reto”. Esse é o seu maior desejo. O
maior desejo do cristão verdadeiro é estar limpo por dentro, ser puro, ser santo,
ser justo, ter um coração que esteja livre do pecado. E ele se entristece por causa
do pecado. Agora ele não considera a dor que se segue ao pecado como
um aborrecimento e um problema. Não o considera como o
inevitável concomitante do prazer e das práticas ilícitas. Não, agora ele
compreende que opecadonão émeramenteuma ofensa à lei, porém uma ofensa a
Deus que tanto o amou e enviou o Seu Filho unigênito para morrer por ele.
Como você considera os seus pecados e os seus fracassos? Qual é a primeira
coisa que vem à sua mente quando você peca? É o medo do castigo? Se é, você
ainda está debaixo da lei em seu pensamento. Se, antes, é o sentimento de que
você entristeceu Aquele que o ama, então o seu pensamento é cristão. Os desejos
são absolutamente novos; não são mais os desejos da carne e daquela mente
pecaminosa; são desejos, os desejos do próprio Cristo, de ser agradável aos olhos
de Seu Pai.

O novo homem também tem o desejo de orar. Não quero deixar ninguém
deprimido, mas se você tem a nova vida, desejará orar como nunca antes. Será
seu anelo ter tal intimidade com Deus que desejará falar com Ele mais do que
com qualquer outro. Você sabe dos começos dessa experiência? Isto é
essencialmente verdade quanto ao cristão. Oração! Depois, igualmente, ele
deseja comunhão com os santos. “Nós sabemos que passamos da morte para a
vida”, diz João, “porque amamos os irmãos” (1 João 3:14). Os irmãos, seus
conservos em Cristo, a família de Deus, as pessoas que estão interessadas nestas
coisas, estas são as pessoas que amamos e que tanto queremos. E, naturalmente,
outra coisa é um real interesse pelas almas dos que estão fora destas coisas. Você
não pode ser cristão sem ter esse interesse. Eles estão mortos em ofensas e
pecados; são criaturas presas às cobiças - eles não sabem disso, mas nós
sabemos; e eles estão sob a ira de Deus. O nosso Senhor tinha grande compaixão
das pessoas; Ele as via “como ovelhas sem pastor”; e, necessariamente, o cristão
tem que conhecer algo desse sentimento. Aí está o coração transformado.

A seguir, uma palavra sobre a vontade. O cristão exerce a sua vontade numa
nova direção. Ele quer agradar a Cristo e agradar a Deus. O que ele pergunta
agora não é: do que eu gosto? O que eu quero? -

porém, o que é próprio de alguém que pertence a Cristo? Qual é a vontade de


Deus quanto a mim? São estas as coisas que ele deseja agora. A vontade,
negativa e positivamente, é inteiramente renovada.
Fomos “ressuscitados juntamente com ele”. Por isso, somos diferentes na mente,
no coração e na vontade.

Podemos resumir tudo isso fazendo algumas perguntas simples. Você foi
ressuscitado? Você foi ressuscitado juntamente com Cristo? Você está vivo para
Deus? Você tem consciência de Deus? Você conhece aDeus? Você O deseja?
Estas questões são vitais. “Considerai-vos como mortos para o pecado, mas
vivos para Deus em Cristo Jesus.” E se estão, esta é a exortação do apóstolo:
“Apresentai-vos a Deus, como vivos dentre os mortos, e os vossos membros (as
vossas faculdades) a Deus, como instrumentos de justiça”. O cristão é alguém
que ressuscitou com Cristo do domínio do pecado e da morte para uma nova
vida na qual ele está “vivo para Deus”.
NOS LUGARES CELESTIAIS

“Mas Deus, que é riquíssimo em misericórdia, pelo seu muito amor com que nos
amou, estando nós ainda mortos em nossas ofensas, nos vivificou, juntamente
com Cristo (pela graça sois salvos), e nos ressuscitou juntamente com ele e nos
fez assentar nos lugares celestiais, em Cristo Jesus; para mostrar nos séculos
vindouros as abundantes riquezas da sua graça pela sua benignidade
para conosco em Cristo Jesus. ” - Efésios 2:4-7

Expondo o que esta grande declaração fala acerca de nós mesmos como cristãos,
vimos que fomos vivificados para uma nova vida e ressuscitados com o Senhor
Jesus para a nova vida.

Mas a história não termina aí. Vai além. Deus não somente nos vivificou e
ressuscitou com Cristo, Ele “nos fez assentar nos lugares celestiais, em Cristo
Jesus". Pois o nosso Senhor, depois de ressuscitar dentre os mortos, não
permaneceu indefinidamente na terra. Ascendeu ao céu, e está assentado à mão
direita de Deus na glória. Portanto, o apóstolo prossegue e afirma que isso
aconteceu também ao crente. E, naturalmente, tem que acontecer com o crente.
Digo que tem que acontecer ao crente por esta razão, que a doutrina da nossa
união com Cristo insiste nisso. Como fomos vivificados com Ele, segue-se
necessariamente que todas as outras coisas que aconteceram com Ele
deverão acontecer espiritualmente conosco. Portanto, por necessidade,
fomos levados a assentar-nos com Ele nos lugares celestiais.

Outra coisa que devemos ter em mente é que todas estas afirmações feitas pelo
apóstolo estão no pretérito. Ele não está dizendo que estas coisas nos vão
acontecer; elas aconteceram. Vocês notam que ele fala com clareza - “pela graça
sois (ou estais) salvos”, “fostes salvos”. Do mesmo modo “fostes vivificados”,
“fostes ressuscitados”, “estais” assentados. É algo que já se realizou. Não é uma
profecia, não é uma predição, não é a apresentação de uma esperança de algo
que vai acontecer. O verdadeiro ponto em que o apóstolo está interessado é
que estes efésios percebam que isto é verdade quanto a eles. Ele diz: quero que
os olhos do seu entendimento sejam iluminados para que vocês possam saber
que esta mudançajá ocorreu, já é algo que constitui um fato concreto. Tem que
ser assim, reitero, por causa da nossa união com o nosso Senhor.

O ponto subseqüente que é comum às três afirmações é o seguinte: vimos que a


vivificação e a ressurreição juntamente com Cristo tiveram que ser consideradas
objetiva e subjetivamente. Tiveram que ser consideradas como acontecendo em
Cristo como o nosso Cabeça e Representante; e tiveram que ser consideradas
também em termos da nossa união mística com Ele. À luz disso, encaremos esta
poderosa declaração. Em parte alguma há declaração mais maravilhosa acerca
do cristão do que a que temos na frase que estamos examinando neste momento.
E a verdade suprema, aglóriamais sublime, a realidade mais inapreciável que
verdadeiramente se aplica a nós como povo de Deus. Estamos assentados “nos
lugares celestiais, em Cristo Jesus” (ou “com Cristo Jesus”), agora; estamos
neste momento nessa posição,

Que é que isso significa? Talvez o melhor plano seja começar considerando a
expressão traduzida por “lugares celestiais”. Vê-se a mesma expressão no
capítulo primeiro, versículo três; “Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus
Cristo, o qual nos abençoou com todas as bênçãos espirituais nos lugares
celestiais em Cristo”. Uma tradução melhor é “nos mais altos céus”. “Lugares” é
realmente uma palavra acrescentada pelos tradutores, na verdade um acréscimo
infeliz porque não comunica plenamente a idéia que estava na mente do
apóstolo. Localiza-a demais, Os mais altos céus! Que se quer dizer com
a expressão “os mais altos céus”? E a mesma coisa que o apóstolo tem em mente
quando, num notável trecho de autobiografia que temos na Segunda Epístola aos
Coríntios, no capítulo doze, ele nos diz, no versículo dois, que conhecera um
homem, fazia catorze anos, que fora “arrebatado ao terceiro céu”. Era como se
pensava naqueles tempos. O primeiro céu era a atmosfera, as nuvens, etc., que
vemos; o segundo céu eram os domínios das estrelas, da lua e do sol; e o terceiro
céu era o lugar onde Deus manifesta especialmente a Sua presença e a Sua
glória, o lugar em que o Senhor Jesus Cristo, no Seu corpo glorificado,
habita agora. Esse é o terceiro céu. Sempre que temos a expressão
“lugares celestiais”, ou “os mais altos céus”, ela geralmente tem esse sentido e
conotação. Assim, essa é a esfera na qual fomos introduzidos como resultado da
nossa regeneração. Como resultado da nossa regeneração, pertencemos ao
terceiro céu, aos mais altos céus, a esse lugar onde a glória e a presença de Deus
se manifestam desta maneira maravilhosa e esplêndida. Que é que isso significa
concretamente na prática para nós? Para responder esta pergunta precisamos
expor a nossa passagem.

Ao fazê-lo , devemos ter em mente que nestes versículos, quatro, cinco, seis e
sete, temos o contraste com o que tivemos nos versículos
- Ill -

um, dois e três. Estávamos lá - mas Deus! Ele nos elevou a uma posição
inteiramente nova e diferente. Esse é o contraste, o qual se manifesta, como
vimos, com simplicidade e naturalidade. Estando mortos, foi nos dada vida. O
oposto de estar espiritualmente morto é ser regenerado. O oposto de uma vida de
pecado e de estar sob condenação é ser justificado pela fé, não estar mais sob
condenação, viver esta nova vida para Deus. É exatamente como este terceiro
passo, descrito como “assentados nos lugares celestiais em Cristo Jesus”.

Mais uma vez, para descobrirmos o significado das palavras do apóstolo,


devemos começar com as nossas negativas, porque não são somente importantes
e interessantes, mas também são realmente essenciais. Lemos que o cristão está
“assentado com Cristo nos mais altos céus”. A primeira coisa que estas palavras
significam é que o cristão não pertence mais a este mundo. Que afirmação!
Antes ele pertencia inteiramente a este mundo. “E vos vivificou, estando vós
mortos em ofensas e pecados, em que noutro tempo andastes.” Como?
“Segundo o curso deste mundo.” Ele estava preso ao mundo em todos os
aspectos - em sua mente e perspectiva e entendimento, em seus prazeres, em
suas esperanças, em seus desejos. O não cristão está inteiramente
confinado neste mundo. Isso não se aplica apenas aos culpados de
grosseiras manifestações do pecado, não se aplica apenas aos que vivem para
o prazer e nada mais, às criaturas presas às cobiças físicas, carnais; aplica-se
igualmente aos que são governados pelas cobiças da mente, e aos maiores
filósofos. Eles não podem ir além dos limites deste mundo, nada sabem do além,
estão inteiramente circunscritos a este mundo. Por isso o apóstolo afirma que o
homem natural, o não regenerado, é homem do mundo, pertence total, completa
e absolutamente a este mundo. E nosso dever de cristãos restabelecer o uso desta
expressão, que, lamentavelmente, parece ter caído fora de uso e da qual não se
ouve tanto como se ouvia no passado. Costumava-se descrever os seres humanos
como “cristãos” e “homens do mundo”. Ora essa é a descrição exata
do incrédulo - ele é homem “do” mundo, está inteiramente confinado nele. Mas
o cristão não é mais assim. Não anda mais segundo o curso deste mundo, não
pertence mais a esta esfera. O cristão não pode ser homem do mundo, porque
você não pode estar ao mesmo tempo no mundo e fora dele. Uma coisa ou outra.
E a verdade acerca do cristão é que ele foi tirado “do mundo”.

O apóstolo tira muito desta idéia. Escrevendo aos gálatas, capítulo primeiro,
versículo 4, ele diz, referindo-se à nossa salvação, que Cristo
“se deu a si mesmo por nossos pecados, para nos livrar do presente século mau”.
Seu argumento é que Ele faz isso agora. Não é uma referência à morte e àpartida
deste mundo. O cristão é liberto do presente século mau agora. Ele ainda está
nele, porém não é mais dele; não está mais preso por ele, sua perspectiva não é
mais determinada por ele. O apóstolo João é igualmente categórico sobre isto e
igualmente se regozija com isto, como todos nós deveríamos regozijar-nos -
“Esta é a vitória que vence o mundo...” (1 João 5:4). Uma diferença entre o
não cristão (o incrédulo) e o cristão é que o não cristão é dominado pelo mundo,
é absolutamente controlado por ele. Não há necessidade de demonstrar isso; o
modo como o povo vive é prova absoluta disso. Tudo vem retratado nos jornais.
Os não cristãos são totalmente controlados por “o que você tem que fazer”, e por
“o que todo o mundo faz”. Controlado pelo mundo! Por outro lado, o cristão tem
vitória sobre o mundo. Que contraste! Ele foi tirado desta esfera.

Vê-se esta ênfase em toda parte nas Escrituras. Vocês notaram o que nos é dito
acerca daqueles filhos da fé, aqueles homens de fé em Hebreus, capítulo 11 ?
Isso é sempre verdade a respeito deles. Eis o que lemos: eles “confessaram que
eram estrangeiros e peregrinos na terra”. Essa era a situação deles, apesar de
ainda estarem neste mundo. Vocês recordam que nos é dito que os patriarcas
Abraão, Isaque e Jacó habitavam em tendas, em tabernáculos. Por quê? - bem, a
sua idéia era imprimir neles e em todos os demais que eles eram apenas
residentes temporários (essa é a expressão empregada), estrangeiros e
peregrinos, viajores, tão-somente de passagem por este mundo. Este não era o
seu lugar de habitação permanente, eles estavam em marcha, em movimento.
“Aqui”, diziam eles, “não temos cidade permanente, mas estamos em busca da
que é do porvir”; “estrangeiros e peregrinos na terra”. E vocês recordarão como
o apóstolo Pedro, conclamando as pessoas às quais estava escrevendo a terem
uma vida digna da sua alta vocação em Cristo, faz esta colocação: “Amados”,
diz ele, “peço-vos como peregrinos e forasteiros, que vos abstenhais das
concupiscências carnais que combatem contra a alma; tendo o vosso viver
honesto entre os gentios; para que, naquilo em que falam mal de vós, como
de malfeitores, glorifiquem aDeus no dia da visitação, pelas boas obras que em
vós observem” (1 Pedro 2:11-12). Notem os termos do apelo: “Amados, peço-
vos, como a peregrinos e forasteiros”; isto é, vocês não pertencem a este mundo!
Compreendam isso! Na verdade, esta idéia é um dos termos mais importantes de
todas as Escrituras. Assim que o homem se toma cristão, uma das primeiras
coisas de que toma consciência

é que ele foi separado do mundo. Antes lhe pertencia, era da sua própria
essência; agora ele está ciente da separação, foi tirado dele, não lhe pertence
mais. Tornou-se estranho a ele em sua mente, em sua perspectiva, em seus
gostos, em tudo. Naturalmente o mundo ainda pode tentá-lo, mas ele está
cônscio de que está fora dele. Estava nele, agora está fora dele. E se ele for
bastante tolo para olhar de novo para o mundo e para deixar-se seduzir por ele,
bem, estará simplesmente contradizendo o que lhe aconteceu. Uma vez que
estamos nos mais altos céus com Cristo, não pertencemos mais a este mundo.
“Não ameis o mundo”, diz João, “nem o que no mundo há” (1 João 2:15). Essa é
a primeira negativa.

Eis a segunda: visto que estamos nos mais altos céus com Cristo, não estamos
mais sob o domínio de satanás, e não estamos mais no reino de satanás.
Estávamos lá outrora - “em que noutro tempo andastes segundo o curso deste
mundo, segundo o príncipe das potestades do ar, do espírito que agora opera nos
filhos da desobediência, entre os quais todos nós também antes andávamos”. E
nisso que estávamos, vítimas e vassalos de satanás; não somente dominados pela
mente do mundo, mas dominados por aquele que controla a mente do
mundo. Estávamos no reino de satanás, sob o poder de satanás, sob o domínio de
satanás. Essa é a situação do incrédulo. O mundo ri disso e o ridiculariza. Causa
espanto ao mundo que haja quem acredite na existência do diabo, e com isso o
mundo prova que está sob o domínio do diabo. É tão completamente insensato e
cego que nem sequer tem consciência disso. “Se ainda o nosso evangelho está
encoberto”, diz Paulo, “para os que se perdem está encoberto...” (2 Coríntios
4:3). Tais pessoas pensam que não são cristãs porque são cultas e
inteligentes demais. A verdade sobre elas, naturalmente, é que elas foram
golpeadas pelo diabo e tão cegadas por ele que não conseguem ver.
Estão inteiramente sob o seu domínio. Mas quando alguém se torna cristão e é
transferido para os mais altos céus, isso já não é verdade a seu respeito. Esse é
precisamente o argumento de Paulo ao dirigir-se a Agripa, a Festo e aos que com
ele estavam, quando ele compareceu diante deles como prisioneiro (Atos 26:18).
Disse ele que quando Cristo lhe aparecera no caminho de Damasco e lhe dera
Sua grande comissão, Ele dissera: vou enviá-lo ao povo e aos gentios, “para lhes
abrires os olhos, e das trevas os converteres à luz, e do poder de satanás a
Deus...”. Esse é o dever da pregação, diz o Senhor ressurreto a Paulo, essa é a
Minha comissão a você; estas pessoas estão sob o poder de satanás, estou
enviando você para pregar-lhes o evangelho, a fim de que elas sejam tiradas de
sob o

poder de satanás e trazidas para Deus. - Que transferência! - para fora do seu
domínio! João diz a mesma coisa em sua Primeira Epístola: “Sabemos que
somos de Deus, e que todo mundo está no maligno” (5:19). O mundo inteiro está
nos laços do maligno, porém nós não estamos; somos de Deus, estamos
inteiramente afastados dali. O mesmo apóstolo afirma que o maligno “não nos
toca”. Antes não só nos tocava, dominava-nos; mas agora estamos tão afastados
do seu reino, domínio e poder que ele não pode tocar-nos. Ele pode rugir, pode
seduzir-nos, mas não pode tocar-nos. Ou ainda vejam como o apóstolo se
expressa sobre o assunto escrevendo aos colossenses. Diz ele que o cristão
é alguém que, entre outras coisas, foi transferido do reino das trevas para o reino
do amado Filho de Deus. Estou convencido de que, se nós, que somos cristãos,
percebêssemos que não estamos mais sob o domínio de satanás, que ele não tem
nenhuma autoridade sobre nós, que não precisaremos ter medo dele se
compreendermos quem e o que somos, isso revolucionaria as nossas vidas. Esta
é a verdade concernente a nós. Estamos nos mais altos céus, não nos domínios
de satanás. E nesta esfera celestial, estamos fora do domínio e do reino de
satanás e do mal.

A terceira negativa é a seguinte: posto que estamos nos mais altos céus, não
estamos mais sob a ira de Deus sobrevinda ao mundo inteiro. Vocês se lembram
da coisa final que o apóstolo disse acerca do incrédulo: “Éramos por natureza
filhos da ira” - como que dizendo, pertencemos à esfera da ira - “como os outros
também”. Todavia agora Deus agiu sobre nós e nos ressuscitou juntamente com
Cristo, e não pertencemos mais àquela esfera, pertencemos à esfera dos mais
altos céus. Esta é a coisa mais tremenda e estonteante que há. Este mundo
em que nos achamos é um mundo condenado, é um mundo sob julgamento. Não
há nada que seja exposto mais claramente nas Escrituras, do começo ao fim, do
que isso. Vai haver um julgamento deste mundo, e este mundo com todo o mal
nele existente, em sua própria constituição, além das pessoas a ele pertencentes,
vai ser julgado, e a ira de Deus se derramará sobre ele. Haverá um terrível
julgamento e uma destruição medonha. Fracas prefigurações disso foram o
Dilúvio, a destruição de Sodoma e Gomorra, os diversos cativeiros dos filhos de
Israel, a destruição de Jerusalém em 70 A.D. Tudo isso dá uma pálida idéia da
ruína e da desgraça que esmagarão o mundo e todos os que se opõem a Deus,
sob a ira de Deus. O cristão é tirado disso tudo; ele já passou da morte, e
do juízo, para a vida. Nada disso o tocará, nada disso o afetará, nem lhe
fará dano algum, ele não precisa temer em nenhum sentido; ele já está fora dessa
esfera porque está nos mais altos céus com Cristo. Aí estão, pois, as

negativas. Examinemos agora os aspectos positivos, os quais são gloriosos.


A primeira coisa que é uma verdade quanto a nós, no aspecto positivo é que
pertencemos ao reino de Deus. Agora pertencemos a uma esfera celestial. Isto é
real, é um fato. Não é que eu vou pertencer a ela, já estou lá. Vejam como
algumas passagens das Escrituras nos descrevem isso. Vocês se lembram de
como Paulo o expressa, escrevendo aos filipenses? Ele está falando a respeito de
pessoas que não obedecem a verdade, pessoas cujo deus é o seu ventre, que se
deleitam em sua vergonha, e coisas que tais, “cujo fim”, diz ele, “é a
perdição”. “Mas”, diz ele, “a nossa cidade está nos céus”, ou seja, a
nossa cidadania está nos céus. Não está aqui, não somos mais cidadãos da esfera
do mundo, a nossa cidadania está nos céus; ou, como alguém o traduziu, somos
“uma colônia do céu”. Aquela é a nossa pátria, este mundo é apenas uma
colônia. Não pertencemos àquilo que está condenado à destruição. Os reinos
deste mundo e tudo o que lhes pertence desaparecerão, mas nós, que
pertencemos a Deus, permaneceremos para sempre. É, pois, certo dizer a nosso
respeito que o céu é realmente agora o nosso lar. Sei que neste século é costume
caçoar de hinos que dizem: “Aqui não passo de estrangeiro; o céu é o meu lar”.
Entretanto, essa é a verdade quanto a nós, cristãos; a nossa cidadania está no céu.
E não conheço melhor maneira de submeter-nos à prova, a nós e à
nossa profissão de fé, do que questionarmos a nós mesmos sobre este
ponto. Você está ciente, você tem no seu íntimo consciência de que é estrangeiro
neste mundo? Você se sente alienado dele? Tem consciência de uma diferença
existente em você mesmo? Sente que pertence a outra esfera, que você está
simplesmente passando por este mundo? A nossa cidadania, de que nos
orgulhamos, de que nos ufanamos, é essa cidadania. A nossa cidadania, o nosso
viver real, está no céu. Tornem a ver as palavras de Colossenses: o Pai “nos tirou
da potestade das trevas, e nos transportou para o reino do Filho do seu amor”
(1:13).

No entanto, eu suponho que não existe declaração mais gloriosa desta verdade
do que aque se acha naEpístola aos Colossenses, de novo, no capítulo três.
Ouçam esta assombrosa afirmação acerca do cristão -“Porque já estais mortos, e
a vossa vida está escondida com Cristo em Deus”. Essa é a verdade a respeito de
você, Se você é cristão, isto só pode ser verdade a seu respeito, você não tem
como evadir-se disto, porque você está em Cristo.Você está morto. O homem
adâmico, o homem que você era, está literalmente morto, e sua vida está
escondida com Cristo em Deus. Você pertence a uma esfera
completamente diferente e a um reino completamente diferente. Cristãos, vocês
sabem
disso? Estão cientes disso? Essa é a questão vital, esta percepção de que são
doutro lugar, estrangeiros e peregrinos na terra - estamos longe de casa, estamos
longe de casa apenas por algum tempo, para cumprirmos o propósito de Deus;
mas o nosso lar, a nossa pátria, a nossa cidadania, é lá no céu. Essa é a
comunidade a que pertencemos.

A segunda verdade segue-se necessariamente. Estamos sob o domínio do


Espírito Santo', não estamos mais sob o domínio daquele espírito maligno, mas,
sim, sob o domínio do Espírito Santo: “...operai a vossa salvação com temor e
tremor”, diz Paulo, “porque Deus é o que opera em vós tanto o querer como o
efetuar... Ele o faz mediante o Seu Santo Espírito. Que é um cristão? A resposta
de Paulo, escrevendo aos romanos, é: “Porque todos os que são guiados pelo
Espírito de Deus esses são filhos de Deus”. Guiados pelo Espírito; não mais
guiados pela mente do mundo, não mais guiados pelo espírito maligno que age
nos filhos da desobediência; não mais guiados, e com a vida toda
governada, pelo que vocês vêem as outras pessoas fazerem, pela publicidade
epelas coisas fulgurantes do mundo. Não, isso é mau. Guiados pelo Espírito
de Deus - porque filhos de Deus,

Não vejo como uma pessoa tem direito de dizer-se cristã se não tem ciência das
influências celestiais em sua vida. “No amor celestial permanecendo, não temerá
mudança o meu coração”. Vocês têm conhecimento disso? Vocês têm
experiência do amor celestial a guiá--los,aconquistá-loseafal ar com vocês?
MentalidadecelestiallÉtriste, porém tenho ouvido crentes evangélicos brincarem
sobre isso e dizerem a respeito de outros: “Eles se tornaram tão celestiais em sua
mentalidade que não têm utilidade nenhuma na terra”. E se julga inteligente essa
afirmação! Que tragédia! Não há como tornar-nos exageradamente celestiais em
nossa mentalidade. O problema com todos nós é que não somos suficientemente
celestiais em nossa mente, não sabemos disso o bastante, não ficamos lá o
suficiente. Não nos damos conta do que é certo a nosso respeito, os olhos do
nosso entendimento não foram iluminados. O cristão é, necessariamente, um
homem de mentalidade celestial, a vida de Deus penetrou nele, e suamente
mudou, como vimos. Ele costumava ser governado pelos desejos, pelas cobiças
da mente e da carne. Já não é mais governado por essas coisas - elas o tentam,
o experimentam; mas não é dominado por elas porque há esta outra influência.
Ele está consciente dela, ele a conhece. O Espírito de Deus trata com ele,
trabalha nele, move-o, e o atrai e o arrasta daqueles poderes para este.

Contudo isso leva a uma terceira questão, ainda mais maravilhosa.


A característica principal dos mais altos céus é que este constitui a esfera na qual
Deus, de maneira peculiar e especial, Se manifesta e manifesta a Sua presença e
a Sua glória. E isso que faz do céu, céu. Se vocês quiserem prova disso, leiam o
livro de Apocalipse, particularmente os capítulos quatro e cinco. João, vocês se
lembram, viu uma porta aberta no céu e teve uma visão. A primeira coisa que ele
viu foi a glória de Deus. Essa é a característica dos mais altos céus. Portanto, eis
o que significa a declaração que estamos examinando: estamos nos mais altos
céus, e isso significa que estamos numa esfera em que nos achamos perto
de Deus. Antes, estávamos mortos em ofensas e pecados, no túmulo
deste mundo, longe de Deus, estranhos a Ele, alienados e inimigos em
nossas mentes, não O conhecendo; agora, nos mais altos céus, estamos perto
de Deus. Daí o apóstolo Tiago pode escrever: “Chegai-vos a Deus, e ele se
chegará a vós” (4:8). Ah, dirá alguém, ser-me-á possível chegar-me a Deus?
Poderei chegar perto de Deus? Naturalmente! E, por esta razão, diz o autor da
Epístola aos Hebreus: “Visto que temos um grande sumo sacerdote, Jesus, Filho
de Deus, que penetrou nos céus, retenhamos firmemente a nossa confissão”. Mas
não somente isso, “Cheguemos pois com confiança ao trono da graça, para que
possamos alcançar misericórdia e achar graça, a fim de sermos ajudados em
tempo oportuno” (4:14-16). Sim, é possível.

Permitam-me expressá-lo com mais clareza, como com mais clareza essa mesma
Epístola aos Hebreus o expressa no capítulo 10, versículos dezenove e vinte. Aí
está uma prova de que estamos nos mais altos céus e perto de Deus: “Tendo pois,
irmãos”, diz o texto, “ousadia para entrar no santuário” - no lugar santíssimo, no
“santo dos santos”, podemos entrar ali - “pelo sangue de Jesus, pelo novo e vivo
caminho que ele nos consagrou, pelo véu, isto é, pela sua carne, e tendo um
grande sumo sacerdote sobre a casa de Deus, cheguemo-nos com
verdadeiro coração, com inteira certeza de fé...”. Poderão vocês encontrar
uma declaração mais explícita que essa? O cristão está habilitado a entrar
no lugar santíssimo, ou seja, a chegar à propria presença de Deus, onde se vê a
glória da Shekinah - a glória da presença de Deus. Ou escutem esta outra
majestosa declaração a seu respeito, no capítulo doze da Epístola aos Hebreus.
Onde estamos, quando nos reunimos como cristãos na igreja? Onde estamos? Ao
pé do Monte Sinai? Chegamos a um lugar de exigências morais, leis e
condenação? Chegamos a um lugar onde apenas expressamos comiseração uns
aos outros, lamentamos pelos nossos pecados e falhas, baixamos a cabeça e
achamos que não há esperança para nós? Se você vem com essa disposição, você
não é
cristão. Não! Nós chegamos “ao monte de Sião, e àcidade do Deus vivo, à
Jerusalém celestial, e aos muitos milhares de anjos; à universal assembléia e
igreja dos primogênitos, que estão inscritos nos céus, e a Deus, o juiz de todos, e
aos espíritos dos justos aperfeiçoados; e a Jesus, o Mediador de uma Nova
Aliança, e ao sangue da aspersão, que fala melhor do que o de Abel”. É aonde
viemos; não estamos indo para lá, estamos lá agora. Como cristão, você já
chegou lá. Aí é onde estamos -na Jerusalém celestial. Estamos nos mais altos
céus, com inumeráveis anjos; não os vemos, mas eles estão aí, nós estamos
naquela esfera, estamos sentados lá com Cristo. E aonde você chegou; aperceba-
se disso, e viva de acordo. Chegando-nos a Deus, entramos no
“lugar santíssimo”, e temos comunhão com Deus. E você? Você conhece
a Deus? Torno a perguntar: você está gozando comunhão com Ele? Você é capaz
de achá-10? Pode aproximar-se dEle e saber que Ele está ali? Deveria, se é que
você está nos mais altos céus. Aperceba-se da sua posição, e viva de acordo.

No entanto, há mais uma coisa. Desde de que estamos nos mais altos céus, já
conhecemos algo da vida do céu mesmo neste mundo. E isso também é algo
essencial e vital. Uma vez que somos cristãos, uma vez que estamos com Cristo
nos mais altos céus, já gozamos algo da vida do céu, agora mesmo. O apóstolo
fala noutro lugar sobre participar das primícias; fala sobre um antegozo; a grande
colheita ainda não chegou, porém os primeiros frutos estão disponíveis, podemos
tê-los em nossas mãos, podemos partilhar deles. Em Israel havia uma festa das
primícias, vocês recordam, justamente para lembrar aquele povo isto, e a
nós também. O antegozo! E vislumbres da glória! Não é dado a muitos de nós
sermos elevados ao terceiro céu, como aconteceu com o apóstolo Paulo. Eu não
tive essa experiência; mas, mesmo assim, deveríamos saber algo da glória,
deveríamos ter tido um ocasional vislumbre. Deveríamos ter ouvido
ocasionalmente algo da música; deveríamos ter uma sensação da vida que se
vive lá. Isaac Watts estava certo disto; eis como o expressa em seus versos:

Os que da graça vivem enxergaram O começo da glória neste mundo;

Frutos celestiais em chão terrenal Da esperança e da fé podem crescer.

O começo é aqui. “Os que da graça vivem enxergaram o começo da glórianeste


mundo.” Você tem conhecimento disso? Jáo experimentou? Você sentiu algumas
vezes que o que está experimentando não é terra, e sim, céu, e certo antegozo da
glória? Isso tem que ser verdade
quanto aos que se assentam com Cristo na glória.

Uma palavra final. A palavra “assentar-se” é fascinante e, obviamente, é de


grande importância. E empregada acerca do nosso Senhor com relação à Sua
ressurreição e ascenção. Permítam-me fazer uma citação de Hebreus 1:3: “O
qual, sendo o resplendor da sua glória, e a expressa imagem da sua pessoa, e
sustentando todas as coisas pela palavra do seu poder, havendo feito por si
mesmo a purificação dos nossos pecados, assentou-se à destra da majestade nas
alturas”. Lemos também no versículo treze: “E a qual dos anjos disse jamais:
assenta-te à minha destra até que ponha a teus inimigos por escabelo de
teus pés?” E de novo no capítulo dez dessa mesma Epístola, versículos doze e
treze: “Mas este (Cristo), havendo oferecido para sempre um único sacrifício
pelos pecados, está assentado à destra de Deus, daqui em diante esperando até
que os seus inimigos sejam postos por escabelo de seus pés”. Foi isso que Lhe
aconteceu. Tendo feito tudo o que foi dito, Ele assentou-Se, esperando,
aguardando, até que Seus inimigos sejam postos por escabelo de Seus pés. E
nEle, estamos assentados com Ele nos lugares celestiais. Significa que Ele
completou a obra, e assim assentou-Se. Assentar-se é sinal de completamento.
Quando um homem termina a sua tarefa, assenta-se. E Cristo assentou-Se. Que
outra coisa significa isso? Não mais trabalho, mas descanso. Todavia, ainda mais
importante, vitória! - “daqui em diante esperando até que os seus inimigos sejam
postos por escabelo de seus pés”. Um sinal de vitória! Ele Se assenta vitorioso. E
eu e você estamos em Cristo, e estamos assentados com Ele nos lugares
celestiais. A Suaobrade redenção já está completa, vocês não precisam de mais
nada, tudo está feito - aos que Ele chamou, também os justificou, e aos que Ele
justificou, também os glorificou.

Se você está em Cristo, está eternamente salvo, completo. Mas você goza o
descanso? Você compreende que estas coisas são verdadeiras? Regozija-se
nestas coisas? Você ainda está tentando fazer-se cristão? Se está, está entendendo
mal toda a sua situação, está negando o que aconteceu com você. Descanse na
obra de Cristo e por Ele concluída - goze o descanso da fé! “Portanto resta ainda
um repouso para o povo de Deus” (Hebreus 4:9). Seja o nosso objetivo entrar
nesse repouso, diz a Palavra, simplesmente nos dando conta de que Ele já
fez tudo. Tomara, irmãos, que especialmente nos demos conta da vitória! -pois
ainda estamos na carne, e ainda há o mundo, a carne e o diabo
para combatermos. Somos mortais medrosos, esmorecemos e trememos, e

nos alarmamos, e o diabo pode aterrorizar-nos. Temos que aprender a crer na


veracidade da vitória.

Ah, queira Deus iluminar os olhos do nosso entendimento, mediante o Seu


Espírito, para que possamos conhecer “a sobreexcelente grandeza do seu poder
sobre nós, os que cremos”, para que compreendamos tudo quanto é verdade a
nosso respeito! “Filhinhos, sois de Deus”, diz João, “e já os tendes vencido;
porque maior é o que está em vós do que o que está no mundo” (I João 4:4). Se
tão-somente compreendêssemos esta verdade a respeito de nós, entenderíamos o
que Tiago quer dizer quando escreve: “Resisti ao diabo, e ele fugirá de
vós” (4:7). O diabo! Aquele que não hesitou em levantar-se contra Deus
na eternidade e que arrastou consigo outros anjos; aquele que é tão poderoso
que, quando se aproximou de Adão eEva em sua perfeição e inocência, arrastou-
os e os fez cair! E, todavia, a Palavra diz a mim e a vocês: “Resisti ao diabo, e
ele fugirá de vós” - não porque ele tem medo de vocês, mas porque tem medo
dAquele em quem vocês vivem e que está com vocês, Aquele que subjugou o
diabo, dominou-o e finalmente o derrotou. O apóstolo Pedro faz a seguinte
colocação: “O diabo, vosso adversário, anda em derredor, bramando como leão,
buscando a quem possa tragar”. Que fazer? Correr e esconder-se? Nada disso! -
vocês vêem essafera se lançando violentamente contra vocês, o diabo,
satanás, este poder infernal, e que é que vocês fazem? “Ao qual resisti firmes na
fé.” E se o fizerem, ele não será capaz de tocá-los. “Eles o venceram pelo sangue
do Cordeiro e pela palavra do seu testemunho” (Apocalipse 12:11). Povo cristão,
visto que estamos assentados com Cristo nos lugares celestiais, o apóstolo Paulo
pode dizer a nosso respeito o seguinte, em Romanos 6:14: “O pecado não terá
domínio sobre vós, pois não estais debaixo da lei, mas debaixo da graça”.

Você sabe que está nos mais altos céus? Tem ciência da separação? Tem ciência
da Presença? Você pode chegar perto de Deus e saber que Ele está com você e
você com Ele, e que todos os seus temores são levados embora? Você vê e ouve,
às vezes, algo da glória celestial e sua música e sua alegria? Você alguma vez vê
“as glórias eternais refulgindo ao longe para revigorar seu débil esforço? Tendo
em vista a vida em sua pior expressão, você pode dizer: “A nossa leve e
momentânea tribula-ção produz para nós um peso eterno de glória mui
excelente; não atentando nós nas coisas que se vêem, mas nas que não se vêem;
porque as que se vêem são temporais, e as que não se vêem são
eternas”? “Pensai nas coisas que são de cima, e não nas coisas que são da
terra” (2 Coríntios 4:17-18; Colossenses 3:2).

AS SUBLIMES RIQUEZAS DA SUA GRAÇA


“Para mostrar nos séculos vindouros as abundantes riquezas da sua graça pela
sua benignidade para conosco em Cristo Jesus.” - Efésios 2:7

Estas são as últimas palavras da grande declaração que começa no versículo 4 -


“Mas Deus, que é riquíssimo em misericórdia, pelo seu muito amor com que nos
amou, estando nós ainda mortos em nossas ofensas, nos vivificou, juntamente
com Cristo (pela graça sois salvos) e, nos ressuscitou juntamente com ele e nos
fez assentar nos lugares celestiais, em Cristo Jesus; para mostrar nos séculos
vindouros as abundantes riquezas da sua graça pela sua benignidade para
conosco em Cristo Jesus”.

O apóstolo, vocês recordam, nos esti vera lembrando o que Deus fez por nós em
nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo e por meio dEle. Quando estávamos
naquele desesperador estado de pecado, Deus interveio, Deus agiu, e nos
vivificou juntamente com Cristo. Ressuscitou-nos juntamente com Ele em
novidade de vida e nos fez assentar juntamente com Ele nos lugares celestiais.
Mas agora surge a questão, por que Deus fez tudo isso? Qual foi o Seu motivo?
Que levou Deus a fazer tudo isso por criaturas como nós? A resposta é dada no
versículo sete, e é introduzida pela palavra para, logo no início: para mostrar
(ou para que mostrasse). Ele fez tudo isso “para”, “a fim de”, “com a intenção
de”, “com o objeto, ou com o objetivo de”... Esta palavra para (ou para que) é,
pois, tremendamente importante, e é vital considerarmos juntos o que o apóstolo
nos fala aqui concernente a este grande propósito.

Como é importante que estudemos as Escrituras com muita atenção e que


observemos exatamente o que elas dizem, porque com muita facilidade podemos
entendê-las mal, como de fato fazemos muitas vezes. Aqui, penso eu, ao
considerarmos este versículo, provavelmente sentiremos, ao menos em certa
medida, que o nosso conceito do cristianismo, o nosso conceito da Igreja, o
nosso conceito de nós

mesmos como cristãos, é defeituoso e inadequado, que de fato a nossa


concepção geral da salvação tende a ser inadequada. Já vimos isso quando
estudamos aqueles três grandes passos da nossa salvação, e quando vimos o que
já é certo a nosso respeito como cristãos porque estamos em Cristo. Certamente
achamos que nunca tínhamos compreendido verdadeiramente como devíamos o
significado da regeneração; que nunca tínhamos captado plenamente a verdade
de que a justificação foi realizada completamente, nem captado a verdade sobre
a nossa posição e o nosso estado na presença de Deus. Ainda mais,
talvez, quando estudamos aquela afirmação de que estamos assentados
nos lugares celestiais em Cristo Jesus, vimos como falhamos - e falhamos de
maneira deveras lamentável - em não perceber que esta é a verdade a nosso
respeito neste momento presente. Noutras palavras, cada vez mais meparece que
a maioria das nossas dificuldades na vida cristã surge do fato de que nós sempre
partimos de nós mesmos e vivemos demais na esfera do sentimento e do
subjetivo.

Falemos com clareza. Argumentei sobre esse ponto desde o começo do capítulo,
e isso ainda faz parte da essência do que terei de dizer ao expor o versículo sete.
Graças a Deus, há um elemento subjetivo na salvação; graças a Deus por todo
sentimento, por toda experiência, por tudo o de que temos consciência de nós
mesmos. Se não temos consciência deste elemento subjetivo, a nossa situação,
ao que me parece, é muito incerta. Por outro lado, não há nada que seja tão
fatal para o nosso bem estar como pensar unicamente dessa maneira subjetiva e
deixar de captar com as nossas mentes e com nosso entendimento esta
apresentação objetiva da verdade que temos nesta parte de Efésios e na maioria
das Epístolas do Novo Testamento. O que quero dizer é que, se tão-somente
tivéssemos esta genuína concepção escriturística de nós mesmos como somos
como cristãos e membros do corpo de Cristo neste momento, a maior parte das
coisas que nos entristecem se desprenderia de imediato de nós
completamente. Estas coisas passariam a parecer-nos triviais, pequeninas e
insignificantes.

Isto é uma coisa que se pode ilustrar da seguinte maneira: o melhor modo de
livrar-nos de coisas pequenas é olhar para as grandes. Vejam, por exemplo, as
interessantes estatísticas que foram preparadas, penso, pelas autoridades médicas
de Barcelona, Espanha, durante a Guerra Civil Espanhola, pouco antes da
segunda guerra mundial. São muito interessantes. Um determinado número de
pessoas estiveram recebendo

várias formas de tratamento psicoterapêutico e psicológico; mas no momento em


que irrompeu a Guerra Civil e afetou Barcelona agudamente, o número
diminuiu, reduzindo-se a quase nada. Qual foi a causa disso?Foi que
apreocupação maior eliminou as preocupações menores. E a mesma coisa
certamente aconteceu na Inglaterra durante a última guerra. Quando de repente
surgiu a crise e os maridos e os filhos tiveram que partir para a guerra, muitos se
esqueceram dos seus pesares e das suas dores. Estas coisas, que tinham sido tão
proeminentes em suas vidas e que tinham significado muito para aquelas
pessoas, foram esquecidas repentinamente, pois um temor maior eliminara os
temores menores; a crise maior tinha tornado as outras coisas tão triviais que
realmente passaram a ser completamente irrelevantes. Estamos
familiarizados com fatos como esses.

Pois bem, tudo isso acontece igualmente na vida cristã. Em nossas vidas somos
perturbados por isto e aquilo, e nos inclinamos a resmungar e a queixar-nos;
ficamos a indagar por que Deus nos trata dessa maneira e por que permite que
nos aconteçam certas coisas. O antídoto para isso tudo é ver-nos objetivamente
como realmente somos no propósito de Deus. E se tão-somente fizéssemos isso,
todas as nossas dificuldades desapareceriam. Ou permitam-me expressar-me
deste modo: se tão-somente nós tivéssemos uma pequena concepção da glória
que nos espera e para a qual vamos, essa percepção transformaria a nossa
visão da nossa vida neste mundo e das coisas que nos sucedem neste
mundo. Essa é a espécie de tratamento que o apóstolo nos aplica neste
versículo sete. Esta é a cura do egocentrismo e do interesse próprio que
acabam levando à introspecção, a sentimentos mórbidos e a diversas formas
de dificuldade. O que se tem que fazer- e aí está por que o apóstolo escreve esta
carta e por que todas as cartas do Novo Testamento foram escritas - é conseguir
que tais pessoas levantem a cabeça e se vejam objetivamente no grande
propósito e plano de Deus.

Examinemos, então, este versículo desta maneira: por que Deus fez tudo issol
Por que foi que Ele interferiu? Por que nos vivificou, nos ressuscitou e nos fez
assentar nos lugares celestiais com Cristo? A resposta, diz o apóstolo, é que isto
faz parte do Seu plano grandioso e do Seu grandioso propósito - “para”, “a fim
de...”. Façamos o estudo na forma de uma série de proposições.

Eis a primeira: o principal fim, propósito e objetivo da salvação éa glória de


Deus. Por isso Ele fez o que fez - “Para mostrar (para Deus mesmo mostrar) nos
séculos vindouro,; as abundantes riquezas da sua

graça pela sua benignidade para conosco em Cristo Jesus”. Deus fez tudo isso,
diz Paulo, para apresentar um grandioso espetáculo a todas as eras vindouras,
não somente neste mundo mas também no mundo por vir. Deus vai fazer uma
grande demonstração, vai manifestar a Sua glória. Vocês podem notar que é isso
que o apóstolo coloca em primeiro lugar. Essa é a principal razão por que Deus
fez tudo isso, diz ele. Agora, surge imediatamente a questão: será que
normalmente pensamos em coisas como essa? Não seria verdade que, quanto à
maioria de nós, fazemos exatamente o oposto? Partimos de nós mesmos;
epensamos na salvação como algo para nós, algo de que necessitamos, algo
que queremos, algo em que nós estamos interessados. Sempre somos subjetivos,
sempre começamos a partir de nós mesmos. Mas o que temos de aprender é que
o primeiro objetivo e intenção da salvação - não me entendam mal - não tem a
ver conosco, porém com a glória de Deus. Esse é o ensino das Escrituras todas,
do começo ao fim. Noutras palavras, não devemos nem começar com os nossos
pecados, e sim com o pecado. Temos que aprender a ver todas as coisas mais
historicamente. É extremamente difícil, não é? É dificílimo para qualquer
geração ter uma visão histórica, porque estamos no mundo num momento
particular e há diversos problemas - ouvimos as notícias pelo rádio, vemos
as manchetes nos jornais - e estamos tão mergulhados neles que nos inclinamos a
não ver nada mais. É extremamente difícil dar-nos conta de que havia seres
humanos neste mundo hácem anos, e que eles tinham problemas e dificuldades,
não é? Mais difícil ainda é compreender que há mil anos havia neste mundo
seres humanos que nunca pensaram em nós. Achamo-nos tão importantes, e
pensamos que o nosso tempo neste mundo, o nosso pequenino setor, constitui a
totalidade da história. Entretanto, os que viveram antes de nós pensavam a
mesma coisa; e podemos estar certos de que daqui a cem anos e, se o nosso
Senhor não voltar antes, daqui a mil anos, as gerações então existentes na terra
nunca dedicarão sequer um pensamento a nós. Mas como nos é difícil aperceber-
nos disso! E, contudo, é justamente isso que temos de fazer. Temos que aprender
a ver a nós mesmos e a ver todo o problema do homem, toda acrise da história e
especialmente todo o tema da salvação, desta maneira objetiva, desta maneira
histórica.

Eis o que estou querendo dizer: em vez de começar comigo, com os meus
pecados e com os meus problemas pessoais, tenho que começar a pensar em
termos do pecado, de todo o problema do homem e de todo o problema do mal
neste mundo. Pois somente quando eu fizer isso é que começarei a ver o que o
apóstolo quer dizer quando afirma que o

primeiro intento e objetivo da salvação é a glória de Deus. É-nos muito difícil


compreender o que o pecado e a Queda significaram para Deus. Pecado é aquilo
que se opõe completamente a Deus e, portanto, o que aconteceu como resultado
do pecado e da Queda, e todas as suas conseqüências no mundo e entre os
homens, é (se reverentemente o posso dizer) uma tremenda questão aos olhos de
Deus. Mas nós persistimos em pensar em todo este problema em termos de
pecados particulares, nesta coisa particular que me mantém deprimido, e
nos pecados que colocamos numa lista - vocês sabem deles, embriaguez, jogo
etc. Para nós o problema todo é esse; transformamos o problema do pecado mais
ou menos num problema social. Ou é um problema social, ou é o problema da
nossa felicidade pessoal. Não gostamos de sentir remorso e arrependimento,
porque é doloroso. Assim reduzimos todo o grande problema do pecado a essas
diminutas proporções e dimensões. No entanto, aBíblianão faz isso! A Bíblia vê
o pecado como uma agressão a Deus. O diabo veio à frente e quis impor-se
contra Deus, levantou-se contra a majestade, a soberania e a glória de Deus.
Ele disputou isso, quis colocar-se no mínimo como um deus rival. E quando viu
Deus criando o mundo e criando o homem, e viu Deus olhando o que tinha feito
e dizendo que tudo estava “muito bom” e que mostrou prazer nisso, o diabo
determinou-se a arruinar o que Deus criara. Assim o diabo entrou em ação no
mundo. Qual era o seu objetivo? Vocês pensam que o objetivo do diabo era
simplesmente persuadir Eva e Adão a fazerem apenas uma determinada coisa?
Naturalmente que não! O diabo só tinha uma coisa em mente - desacreditar a
glória, a majestade e a grandeza de Deus. Pouco se importava com o que ia
acontecer com Adão e Eva. O diabo pouco se interessapor mim e por vocês
como pessoas. Para ele não somos pessoas, somos algo que lhe serve de penhor,
somos simples objetos que ele pode usar no grande jogo. E, todavia, pensamos
nestas coisas em termos de nós mesmos! O diabo nos vê com desprezo,
como fez com Adão e Eva. Ele os bajulou e os adulou porque sabia que era
essa a maneira de fazer deles uma espécie de penhor. Não tinha
nenhum interessepor eles como tais. Seu único objetivo era desacreditar a
glória, a majestade é a grandeza de Deus. Era inutilizar a obra que
Deus realizara, era inutilizaromundode Deus; era ridicularizar a obra criadora de
Deus. Seu desejo era levantar-se, dirigir-se a todos os anjos e dizer: Deus tem as
suas pretenções, diz Ele que fez o mundo perfeito, mas olhem, vejam o Seu
mundo perfeito!

É assim que se deve ver o problema do pecado. A Queda é uma coisa terrível aos
olhos de Deus. Não é primariamente um problema social.

É muito mais crucial aos olhos de Deus. Naturalmente há nisso um problema


social. O pecado levanta muitos problemas sociais, porém eles são subprodutos,
não são aquilo que faz do pecado, pecado. Se posso dizê-lo assim, Deus jamais
teria enviado Seu Filho do céu aterra e à cruz do Calvário para solucionar um
problema social. O problema para Deus era a Sua glória, a Sua majestade, a Sua
grandeza sempiterna. Isso fora questionado e posto em dúvida pelo diabo e por
todos os que lhe pertencem. E que é a salvação? O propósito e objetivo da
salvação é, em primeira instância, vindicar a Deus, é Deus tornar de novo
manifesta a verdade concernente à Si próprio. O diabo é descrito nas Escrituras
como “mentiroso e pai da mentira”; e o apóstolo João nos diz no capítulo três da
sua Primeira Epístola que Deus enviou o Seu Filho a este mundo a fim de
destruir as obras do diabo. Esse é o primeiro objetivo, que o caráter de Deus seja
vindicado. Naturalmente, num sentido terminante, o diabo não afetou nem
poderia afetar o ser, a natureza e o caráter de Deus, mas aos olhos dos seres
criados ele poderia, e certamente o fez. Ele teve sucesso no caso de todos os
anjos que caíram; ele teve sucesso no caso de Adão e Eva, e de toda a sua
posteridade. E o problema no mundo hoje é a atitude do homem para com Deus.
Assim, Deus iniciou este grande movimento de redenção e de salvação,
primariamente com o fim de tornar a declarar, manifestar e vindicar a Sua glória,
a Sua grandeza e a verdade a Seu respeito. Por que o fez, então? Ele o fez
“para mostrar (manifestar) nos séculos vindouros as abundantes riquezas da sua
graça pela sua benignidade para conosco em Cristo Jesus”.

Vocês pensavam na salvação dessa maneira? Uma pergunta que é bom fazer é:
por que Deus enviou Seu Filho? Não permita Deus que nos limitemos a dar uma
resposta sentimental, subjetiva, deixando de ver queDeus enviou SeuFilho afim
de vindicar-Se. Essa é a maior teodicéia de todos os séculos; Deus está Se
vindicando e está declarando e mostrando a verdade a Seu respeito.

Passemos agora à segunda proposição. A salvação vindica a grandeza e o


caráter de Deus de maneira especial e de um modo como nenhuma outra coisa o
faz. Não há dúvida sobre isso. Neste movimento de salvação e redenção,
aprendemos certas coisas que doutro modo nunca aprenderíamos. Isso pode soar
como uma afirmação atrevida, porém eu me aventuro a fazê-la. Muitos têm feito
a pergunta - ninguém pode respondê-la, mas é uma pergunta que muitos têm
feito, na verdade todos nós a temos feito - por que o Deus todo-
poderoso permitiu a Queda? Por que permitiu que o homem caísse em pecado?
A

resposta cabal é reconhecer que não sabemos, e não devemos inquirir a respeito
porque isso está além de nós. Mas, de qualquer forma, podemos saber e dizer
isto: se Deus não tivesse permitido a possibilidade do mal e da Queda, o homem
não seria inteiramente livre, e, portanto, não seria inteiramente perfeito. O
homem, como Deus o fez, tinha realmente livre-arbítrio. Ele o perdeu por ter
caído em pecado, todavia originalmente o tinha; e o livre-arbítrio era parte
integrante da perfeição do homem. Contudo, seja qual for a explicação, é
evidente que Deus teve domínio sobre isso de tal modo que, mediante a
redenção, Ele manifestou certos atributos do Seu santo ser, da Sua natureza e do
Seu caráter que doutra maneira nunca poderiam ser conhecidos, mas que
agora certamente são muito conhecidos.

O apóstolo já tinha mencionado alguns deles. Ouçam-no: “Deus, que é


riquíssimo em misericórdia”. Seria possível ter a mesma concepção da riqueza
de Deus em misericórdia, se o homem não tivesse caído em pecado como caiu?
E por este meio que Deus manifesta a perenidade da Sua misericórdia.
“Riquíssimo em misericórdia”! Depois, “Pelo seu muito amor com que nos
amou”. Com toda a certeza o homem conheceu algo sobre o amor de Deus antes
de cair; Adão conheceu o amor de Deus. Contudo, pergunto se o amor de Deus
seria conhecido como agora é, se não houvesse a Queda e o movimento
de redenção. Deus o está mostrando, Ele o está manifestando, há uma revelação
do Seu amor como seguramente seria inconcebível sem isso. Então o apóstolo
passa à sua seguinte grande expressão: “Estando nós ainda mortos em nossas
ofensas, nos vivificou juntamente com Cristo (pela graça...” - aí está - “pela
graça sois salvos), e nos ressuscitou juntamente com ele e nos fez assentar nos
lugares celestiais, em Cristo Jesus; para mostrar nos séculos vindouros as
abundantes riquezas da sua graça”. Não há nada que nos habilite a ter tal
entendimento da extensão da graça de Deus como isto o faz. É a sua suprema
avaliação; e nada pode mostrá-la como isto no-la mostra. Vem então o termo
final, “benigni-dade” - “pela sua benignidade”, com o Seu olhar benigno.
Adão conheceu algo da benignidade de Deus, mas eu concordo com Isaac Watts
quando ele afirma em seu hino - “Nele (em Cristo) as tribos de Adão ostentam
mais bênçãos do que as que seu pai perdeu”. Digo reverentemente, sopesando as
minhas palavras, que em Cristo conhecemos algo de Deus que Adão, em seu
estado de inocência, não conheceu, e que, em certo sentido, Adão não poderia
conhecer. Pode ser especulação, porém me parece que as Escrituras ensinam que
Deus mostrou estas coisas aqui de maneira única e de um modo como nunca
mostrou em parte alguma.

Mas, o que talvez seja muito importante para nós é a terceira proposição: toda
esta manifestação e vindicação do caráter, do ser, da grandeza e da glória de
Deus dá-se mediante a Igreja. Deus realiza este feito tremendo por nosso
intermédio e através de nós, em primeira instância. Examinem de novo o ponto.
Deus fez isso tudo “para mostrar nos séculos vindouros as abundantes riquezas
da sua graça pela sua benignidade para conosco em Cristo Jesus”. Este é para
mim o pensamento mais avassalador que podemos captar, que o
poderoso, eterno, sempiterno Deus está Se vindicando, a Si, à Sua santa
natureza e ao Seu santo ser, mediante algo que Ele faz em nós, conosco, e por
meio de nós. Isto é cristianismo, este é o significado da nossa condição
de membros da Igreja, isto é o que significa ser cristão; nada menos que
isto! Aqui somos retirados do nosso estado e dos nossos caprichos subjetivos, e
das nossas condições transitórias, e nos vemos de repente neste grande plano da
eternidade que Deus trouxe à luz e pôs em execução como resultado da queda do
homem em pecado.

Examinemos esta gloriosa concepção. O apóstolo no-la ensina claramente neste


versículo. Ele a expõe mais clara e explicitamente ainda no versículo dez do
capítulo três desta Epístola. O apóstolo está descrevendo este grande mistério
outrora oculto, mas agora revelado. Para quê? Para “demonstrar a todos qual seja
a dispensação do mistério que desde os séculos esteve oculto em Deus, que tudo
criou por meio de Jesus Cristo” (versículo 9). E então, no versículo dez: “para
que”

- a mesma idéia; este é o objetivo, esta é a intenção, este é o propósito

- “para que agora, pela igreja, a multiforme sabedoria de Deus seja conhecida
dos principados e potestades nos céus”. Essa é a idéia. Deus está usando a Igreja,
e vai usar a Igreja nos séculos futuros, a fim de fazer uma demonstração e uma
exibição da Sua estupenda e eterna sabedoria aos principados e potestades nos
lugares celestiais.

Esse é o modo de pensar em nós mesmos como cristãos e como membros


dalgreja Cristã. Deus está Se vindicando, aSi mesmo e ao Seu caráter, por meu
intermédio e pelo seu, por meio de pessoas como nós, por meio de toda a Igreja
congregada em Cristo e separada do mundo. Ele vai colocar-nos em exibição,
por assim dizer; será uma exibição gloriosa. Ele já está fazendo isso, mas vai
continuar a fazê-lo nas eras vindouras, e na consumação Deus vai fazer a Sua
última grande exibição, e todos esses principados e potestades serão convidados
a comparecer. A cortina correrá e Deus dirá: olhem para eles! “Para que agora,
pela igreja, a multiforme sabedoria de Deus seja conhecida dos principados e
potestades nos céus”! Eu e vocês estamos sendo preparados para isso.

Vocês lêem sobre artistas preparando seus quadros e as suas pinturas para
exposição, e sobre como eles dão os seus toques finais - como a moldura deve
estar direita, deve ser colocada naposição certa, a luz deve vir do ângulo correto,
e assim por diante. Bem, todos nós sabemos disso; temos visto pessoas
preparando cavalos para exposição de eqüinos; ou frutas e verduras para
exposições de horticultura - a seleção, o preparo. Pois bem, é isso que está
acontecendo comigo e com vocês. Essa é a significação do culto público e da
pregação - é apenas uma parte disso. A exposição, a exibição, a manifestação
vem! E o que há de espantoso e admirável é que é por meio de pessoas como
nós, e como resultado do que Ele está fazendo conosco, fez conosco e fará
conosco, que Deus vai vindicar Sua sabedoria eterna, Sua majestade, Sua glória
e todos os atributos da Sua santa Pessoa aos principados e às potestades nos
céus.

Parece-me que isso vem perfeitamente expresso no capítulo sete do livro de


Apocalipse. João teve a sua visão - “Olhei, e eis aqui uma multidão, a qual
ninguém podia contar, de todas as nações, e tribos, e povos, e línguas, que
estavam diante do trono, e perante o Cordeiro, traj ando vestidos brancos e com
palmas nas suas mãos; e chamavam com grande voz, dizendo: Salvação ao nosso
Deus, que está assentado no trono, e ao Cordeiro”. João viu estas pessoas usando
vestes brancas e com palmas nas mãos, entoando louvores a Deus e dizendo:
“Salvação ao nosso Deus, que está assentado no trono”. Mas o que
particularmente me agrada é a pergunta feita pelo ancião que estava perto de
João. “Quem são estes?” - perguntou ele - “Estes que estão vestidos de vestidos
brancos, quem são, e de onde vieram?” Estes que aqui se acham com palmas nas
mãos, cantando louvores a Deus, quem são? Será essa a pergunta que os
principados e potestades nos lugares celestiais farão. A cortina será descerrada e
lá estaremos nós com as nossas vestes brancas e com as palmas em nossas mãos,
e os principados e potestades perguntarão - Quem são estes? Que são eles? Que
fenômeno é este? Que pessoas são estas? De onde vêm? E a resposta será que
são pessoas cristãs - são cristãos de todos os séculos, de todas as nações,
tribos, países e cores congregados através dos séculos pelo poder da redenção de
Cristo, todos finalmente juntos, reunidos ali na glória. “Quem são estes?” De
onde vieram? Que são eles? E a resposta é: estes são os remidos pela sabedoria,
poder, glória, amor e graça de Deus. “Pela igreja”! Eu e vocês! Miseráveis
criaturas que somos, com nossas dores e sofrimentos, com as nossas “caxumbas
e sarampos da alma”, e os nossos questionamentos e interrogações, e a nossa
indagação: “Por que Deus faz isso e aquilo?” Rogo-lhes, olhem para o céu,
elevem a sua

mente, fazendo-a penetrar na glória. Que vergonha para nós, cristãos, por nosso
infeliz subjetivismo, por nossa incapacidade de compreender quem somos, o que
somos, o que está acontecendo conosco e o que Deus está fazendo em nós e
através de nós! A intenção da salvação é que tudo isso seja feito para vindicação
do caráter e da glória de Deus.

A proposição subseqüente ajuda-nos a ver como Deus o faz mediante a Igreja.


Não precisamos demorar-nos neste ponto, visto que já o consideramos em parte.
Lá estamos nós, que somos da Igreja, com vestes brancas, com palmas, na glória,
na presença de Deus. Como chegamos lá? Como foi que isso aconteceu? A
primeira coisa que nos deixa maravilhados é que Deus nos viu a todos como
éramos e como estávamos, “mortos em ofensas e pecados, andando segundo o
curso deste mundo, segundo o príncipe das potestades do ar, do espírito
que agora opera nos filhos da desobediência; entre os quais todos nós também
antes andávamos nos desejos da nossa carne, fazendo a vontade da carne e dos
pensamentos; e éramos por natureza filhos da ira, como os outros também”.
Como pôde Ele sequer olhar para nós ? Não merecíamos nada senão a
retribuição por nossos pecados, a punição, o inferno. Se você acha que merece
coisa melhor, você não sabe que é pecador, você nada sabe, e eu temo por você,
quanto à graça de Deus. Miseráveis, vis, torpes, desprezíveis e rebeldes - e Ele
olhou para nós! Que grandiosa manifestação do Seu ser e da Sua santa natureza !
Nós somos uma demonstração disso. Se Ele não tivesse olhado para nós, ainda
estaríamos em nossos pecados e indo para a perdição. Mas lá estamos nós, na
glória, porque Ele teve misericórdia de nós, teve pena de nós.

Não somente isso, Ele projetou e planejou um modo de libertar-nos. Ele mesmo
produziu o método de salvação. O homem não o pediu, o homem não o queria, o
homem não sabia do que necessitava, o homem não foi consultado, não deu nem
uma única sugestão. A salvação é inteiramente de Deus, do princípio ao fim.
Essa é toda a tese de Paulo: “Pela graça sois salvos”, “fostes salvos”, e nada
mais ! Que manifestação do ser e do caráter de Deus !

Outra maravilha é Deus ter-nos feito o que fez, ter feito de nós o que fez, anós
que já fomos vivificados, ter Ele colocado em nós um princípio de vida
espiritual, em nós que estávamos completa, absoluta e desespe-radamente
mortos. Ele pôs nova vida em nós, a Sua própria vida em nós; Ele nos
ressuscitou juntamente com Cristo, estamos vivos para Ele, temos os novos
interesses e a nova perspectiva, estamos assentados nos

lugares celestiais. Ele já nos fez isso tudo, porém quando estivermos na glória,
de vestes brancas e com palmas, seremos absolutamente perfeitos, sem mancha,
nem ruga, nem qualquer outra coisa semelhante. Não haverá nem suspeita de
culpa; a mais poderosa lente de aumento não achará nada de errado em nós e
sobre nós; seremos absolutamente íntegros e completos, purificados de todos os
vestígios do pecado. Não é surpreendente a pergunta do ancião, “Quem são
estes?” Como se tornaram assim? O que é esta brancura imaculada, esta glória?
É tão-somente a manifestação do caráter e do ser de Deus. Mediante a Igreja Ele
o faz dessa maneira especial.

Isso me leva à derradeira proposição, que é simplesmente uma questão muito


prática. Que devemos pensar de nós mesmos, à luz disso tudo! Por certo é óbvio.
Se você sequer pensa na sua bondade, significa que você nunca enxergou esta
verdade. Se você se julga cristão e bom membro da igreja porque tem vivido
uma vida virtuosa e nunca fez mal a ninguém, e porque dedica boa parte do seu
tempo a praticar estas coisas, você está apenas me dizendo que nunca entendeu
este ensino. Se você pode achar em si próprio alguma coisa que pode deixá-lo
satisfeito neste momento, você nunca viu de fato esta verdade, que Deus fez isso
tudo com o propósito de que agora seja conhecida dos principados e potestades a
Sua multiforme sabedoria nos lugares celestiais, para mostrar as sublimes
riquezas da Sua graça. Se você acha que tem algum pleito para apresentar em
seu favor ao trono da graça e da misericórdia, qualquer coisa que não seja o
nome de Jesus Cristo, você nunca enxergou a verdade, simplesmente está cego.
Nosso único pensamento deve ser:

“A aliança da misericórdia sou devedor,

Só à misericórdia entôo louvor”.

“Pela graça de Deus sou o que sou,

Nada em minhas mãos levando vou”.

Nada vejo de bom em mim; “Em mim, isto é, naminha carne, não habita bem
algum”; não tenho nada que me recomende, não tenho nada do que me gabar. Eu
não sou nada; Ele é tudo, DEUS! A Sua graça em Cristo Jesus! Se você enxergar
esta verdade, então inevitavelmente você pensará dessa forma.

Disso decorre que também devemos conduzir-nos de uma deter-

minada maneira. “Qualquer que nele tem esta esperança purifica-se a si mesmo,
como também ele é puro” (1 João 3:3). O homem que se viu como membro da
Igreja e do corpo de Cristo da maneira que estamos considerando, não vai querer
mais ficar tão perto quanto puder do mundo, nem vai considerar o cristianismo
estreito por condenar certas coisas. Nem por um momento! Se tão-somente
pudéssemos ver aqueles que conhecemos e que agora estão além do véu,
daríamos adeus a maioria das coisas deste mundo. Todo aquele que vê isto, todo
aquele que tem esta esperança, purifica-se a si mesmo, assim como Ele é
puro. Se vocês sabem que vão ser absolutamente puros e sem mancha,
bem, avante! “Alimpai as mãos, pecadores; e, vós de duplo ânimo, purificai os
corações” (Tiago 4:8). Estes são os apelos do Novo Testamento. Fiquem tão
longe do mundo quanto puderem. “Apressa-te da graça para a glória.”

A outra coisa que vejo aqui é a absoluta certeza de todas estas coisas, a
segurança disso tudo. Se a minha confiança na minha salvação cabal e final e na
minha perfeição última se baseasse em mim, na minha energia, no meu zelo e
nos meus propósitos e desejos, sei que nunca chegarialá.
Aminhasegurançasebaseianisto, que Deus, o Deus infinito e eterno, está
vindicando a Sua reputação eterna por meu intermédio. E se Ele tivesse
começado a salvar-me e depois deixasse a obra por fazer ou inacabada, e eu
merecidamente chegasse ao inferno, o diabo teria a maior alegria que lhe fosse
possível. Ele diria: há um ser que Deus começou a salvar, todavia deu em nada.
É impossível, isso não pode acontecer; não existe idéia mais monstruosa do que
a idéia de que você pode cair da graça, que você pode nascer de novo e depois
ser condenado eternamente. O caráter de Deus está envolvido! E impossível.
Seu objetivo não é meramente salvar-me, é vindicar o Seu ser e a Sua natureza,
eeu estou sendo utilizado paraessefim. O fim é absolutamente certo, porque o
caráter de Deus está envolvido nisso. “Aquele que em vós começou a boa obra a
aperfeiçoará até o dia de Jesus Cristo” (Filipenses 1:6).

A última palavra é óbvia. O privilégio de todas estas coisasl O privilégio de ser


usado por Deus desta maneira para vindicar o Seu caráter eterno e glorioso! Por
que estou nisto? Por que terá Ele olhado para mim? Como diz o ancião, “Quem
são estes?”, assim eu pergunto: quem sou eu? Vocês recordam Davi fazendo essa
pergunta quando Deus lhe deu um vislumbre de onde ele entrava neste grande
plano, “Quem sou eu, ou o que é a minha casa, para que me fosse concedida tal
honra?” (cf. 2 Crônicas 2:6). E nós, não nos sentimos como tendo que dizer isso?

Quem sou eu, e o que sou eu, para que Deus sequer olhasse para mim e me
escolhesse para fazer parte do Seu plano e do Seu propósito, para vindicar Sua
Pessoa, Sua grandeza, Sua glória, Sua sabedoria, Seu amor, Sua misericórdia,
Suacompaixão perante os principados e as potestades nos lugares celestiais?

Povo cristão, pense cada um em si dessa forma, e siga para a glória.

MEDIANTE CRISTO JESUS *

“Para mostrar nos séculos vindouros as abundantes riquezas da sua graça pela
sua benignidade para conosco em Cristo Jesus. ” - Efésios 2:7

Devemos ver mais uma vez esta magnífica declaração que começa no versículo
quatro. Jamais o faremos demasiadas vezes. “Mas Deus, que é riquíssimo em
misericórdia, pelo seu muito amor com que nos amou, estando nós ainda mortos
em nossas ofensas, nos vivificou juntamente com ele e nos fez assentar nos
lugares celestiais, em Cristo Jesus; para mostrar nos séculos vindouros as
abundantes riquezas da sua graça pela sua benignidade para conosco em Cristo
Jesus.”

Quero considerar agora as três últimas palavras em particular: “em Cristo Jesus”
(ou “por intermédio de Cristo Jesus”, VA). Pois aí vocês têm o evangelho todo e,
particularmente, toda a essência da mensagem do Natal.

O apóstolo esti vera explicando que, ao fazer o que fez por nós como cristãos,
Deus estava manifestando a glória do Seu ser e dos Seus procedimentos. Mas no
versículo sete ele vai adiante e nos diz que Deus está manifestando a Sua glória e
as maravilhas da Sua graça, não somente pelo que Ele fez e fará em nós, por
nosso intermédio e sobre nós, porém ainda mais pelo modo como o fez - “em sua
benignidade para conosco por intermédio de Cristo Jesus”

Paulo jamais poderia deixar isso de fora. Receio que muitos de nós poderiam
deixá-lo fora, e o deixem, mas Paulo nunca se esquece dessa verdade. Este
nome! - vocês o vêem em toda parte, em todas as suas Epístolas. Observem-nas,
leiam-nas e vejam como ele o vive repetindo - o nome de Jesus Cristo. Se houve
algum homem que poderia utilizar-se e apropriar-se das palavras do conhecido
hino: “Suave soa o nome de Jesus aos ouvidos do crente verdadeiro”, é o
apóstolo Paulo. Notem como ele o repete nesta passagem o tempo todo: “nele”;
“juntamente
Este sermão foi pregado no domingo anterior ao Natal.
com Cristo”; nos lugares celestiais “em Cristo Jesus”. E, tendo usado o nome
tantas vezes, vocês pensariam que ele poderia terminar dizendo: “para mostarnos
séculos vindouros as abundantes riquezas da sua graça em sua benignidade para
conosco”. Mas ele tem que dizê-lo novamente - “em sua benignidade para
conosco por intermédio de Cristo Jesus”. Aqui chegamos ao ponto no qual, de
todos eles, podemos realmente começar a avaliar as sublimes riquezas da graça
de Deus. Alguns gostariam de traduzir as palavras desta maneira: “... as
incomensuráveis riquezas ou, nas palavras que o apóstolo emprega no
capítulo seguinte, versículo oito: “as insondáveis riquezas” (ARA).

No entanto, antes de examinar estas expressões, deixem-me salientar um ponto.


E por intermédio de Cristo que auferimos todo e qualquer benfício. Não é
espantoso que sej a necessário dizer isto, e dar-lhe ênfase? Que imensidão de
homens e mulheres ainda pensam nas bênçãos que vêm de Deus,
independentemente de Cristo Jesus! Há milhares no mundo atual que se julgam
adoradores de Deus e querem ser abençoados por Deus, e acreditam em ser
abençoados por Deus, e têm a capacidade de falar sobre isso sem mencionar
Cristo Jesus. Falam sobre oração a Deus, falam em receber bênçãos de Deus, em
ser curados por Deus, em ser guiados por Deus, mas não mencionam o nome de
Jesus Cristo. O apóstolo estava ciente desse perigo, pelo que nunca perde
a oportunidade de dizer, “por intermédio de Cristo Jesus”. Toda a essência do
cristianismo consiste em que Deus trata com o homem e abençoa o homem
unicamente em Cristo Jesus e por meio de Cristo Jesus. Tudo nos vem de Deus
por intermédio de Cristo.

Seria uma tarefa simples provar isto mediante incontáveis citações, mas
tomemos apenas as palavras do nosso Senhor: “Eu sou o caminho, e a verdade e
a vida; ninguém vem ao Pai, senão por mim”(João 14:6). Certamente isso
deveria ser suficiente. Não podemos orar sem Ele; oramos em Seu nome, oramos
por amor do Seu nome. Nada podemos alegar em nosso favor senão Cristo.
Como podemos aproximar-nos de Deus sem Ele? Como poderia chegar alguma
coisa a nós sem Ele? João, vocês se lembram, no prólogo do seu Evangelho, faz
exatamente a mesma colocação. Referindo-se ao Senhor Jesus Cristo, ele diz:
“E todos nós recebemos também da sua plenitude, e graça por graça”. É tudo em
nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo e por intermédio dEle. “Deus estava em
Cristo (Deus, por intermédio de Cristo estava) reconciliando consigo o mundo”
(2 Coríntios 5:19). E assim que Ele reconcilia o mundo; e todas as bênçãos de
Deus nos vêm e fluem para
nós por intermédio dEle. Ele é a “cabeça da igreja, que é o seu corpo, a plenitude
daquele que cumpre tudo em todos” (Efésios 1:22-23). A Igreja é o Seu corpo.
Auferimos toda a nossa vida, toda bênção, todo poder e a nossa própria
preservação do fato de que somos Seus membros. Ele é a Cabeça, e, portanto,
gozamos todas as bênçãos que temos, por intermédio de Cristo Jesus. Poderei
supor, pois, que todos nós temos claro entendimento disto, que (como Paulo o
expressa noutro lugar) estamos inteiramente “encerrados” para Cristo? (Gálatas
3:23). A própria lei foi o preceptor, o pedagogo, para trazer-nos a Cristo,
para encerrar-nos para Cristo, para fazer-nos ver que não podemos conhecer a
Deus nem receber nenhuma bênção de Deus exceto em Cristo Jesus e por meio
dEle. Ele é o único canal, o único e exclusivo Mediador entre Deus e o homem.
Em todo lugar é - “por intermédio de Cristo Jesus”.

Do que eu quero advertí-los particularmente agora, e com ênfase, é a maneira


pela qual Deus fez tudo isso por intermédio de Cristo Jesus. E é que aqui que
vemos muito especialmente algo do caráter insondável, do caráter
incomensurável das riquezas da graça de Deus. Aqui estamos vendo a questão
do lado de Deus. Já a estivemos examinando do nosso lado, mas agora, repito, a
estamos examinando do lado de Deus. O modo como fazemos uma coisa é,
muitas vezes, muito mais significativo do que aquilo que fazemos. E isso é
verdade acerca da maneira pela qual Deus abençoa a humanidade por intermédio
do Senhor Jesus Cristo. Já é algo maravilhoso, é algo espantoso, e indicativo das
sublimes riquezas da graça de Deus que Ele sequer nos abençoasse.
Imaginemos que Deus nos abençoasse, por assim dizer, diretamente dos céus,
que Ele olhasse para nós e fizesse certas coisas por nós, como de fato
faz normalmente nas obras da providência. Isso é em si maravilhoso, pois não
merecemos coisa alguma. Estudamos o nosso caráter nos três primeiros
versículos. Não hácomo exagerar o que há de mau no homem em pecado. Ele é
uma vil criatura, tão vil quanto se possa imaginar; porém, a despeito disso, Deus
olha para nós e nos abençoa. Ele “faz que o seu sol se levante sobre maus e bons,
e a chuva desça sobre justos e injustos” (Mateus 5:45).

O simples fato de que Ele olha para nós já indica insondáveis riquezas da Sua
graça. Mas temos algo aqui que vai além, pois nos é possível, às vezes, fazer
uma amabilidade a outras pessoas sem sacrificar-nos nem um pouco. Um
multimilionário vêumapessoapaupérrima. Não a conhece, não tem nenhum
interesse por ela, e até pode achar que é uma ofensa a si mesmo olhar para tal
pessoa. Seria uma atitude
excelente, generosaenobre este multimilionário dar um presente àquela pessoa,
especialmente se ela o tiver ofendido de algum modo. Suponhamos que ele lhe
dê mil libras! E uma ajuda muito generosa, todavia realmente nadacusta ao
multimilionário; mal notaquedeu alguma coisa. Em si, é uma grande
generosidade; é uma grande bondade, especialmente se aquela pessoa pobre fez
alguma coisa indigna ou má com relação ao homem rico. Aquele ato de dar é em
si maravilhoso. Mas quanto aumentaria o valor daquele ato se o milionário
fizesse concreta-mente um sacrifício pessoal para ajudar o homem! Noutras
palavras a avaliação final das nossas ações devem ser pelo que elas nos
custam. Nem por um momento quero diminuir a importância da generosidade; é
excelente em seu lugar, porém quando envolve sofrimento pessoal ou perda
pessoal para ajudar outrem, a sua importância torna-se imensamente maior.

Pois bem, é algo semelhante a isso que estamos considerando aqui. Falo com
cautela e com reverência, mas me parece que é quando examinamos isto por este
aspecto que realmente começamos a ter uma noção da medida das
incomensuráveis riquezas da graça de Deus. Tal afirmação é paradoxal, e,
todavia, transmite verdadeiro significado. Nunca seremos capazes de fazer uma
avaliação disto; está além desta possibilidade; a realidade é tão maravilhosa que
as medidas do homem são totalmente inadequadas; e, contudo, as Escrituras nos
exortam a fazer um esforço. Prossigamos, vamos tão longe quanto nos
seja possível. Parece-me que, nesta passagem, é o que o apóstolo nos
está exortando a fazer. Ele ora no sentido de que os olhos do nosso entendimento
sejam iluminados para que possamos tentar medir o imensurável e tentemos
escalar estas alturas, cujas culminânciasjamais poderão ser alcançadas. Estamos
tentando medir, computar, avaliar o que Deus realmente fez. É como Ele vai
manifestar as sublimes riquezas da Sua graça em todas aquelas eras futuras “pela
sua benignidade para conosco”. Sim, mas - o modo como Ele o fez - “por
intermédio de Cristo Jesus”!

Que é que isso significa? Falo cautelosamente por esta razão, que obviamente
estamos penetrando o mistério, não somente do amor de Deus, mas também o
mistério do ser de Deus. E aqui que temos que parar de entender e, portanto,
temos que “tiras os sapatos dos pés” (Êxodo 3:5). Entretanto observemos o que
dizem as Escrituras. Se vocês querem medir as insondáveis riquezas, ou as
sublimes riquezas da graça de Deus em Cristo Jesus, poderão começar vendo o
problema do ponto

de vista do Pai. Eis a questão: Deus pode sofrer? Deus sofre? Os teólogos têm
discutido esta grande e importante questão: “A Passibilidade ou a
Impassibilidade de Deus”; Deus é passível ou impassível? Um tema tremendo!
Nunca poderemos resolver isso, nunca poderemos delimitá-lo. Neste ponto as
nossas mentes começam a vacilar, e nos pomos a especular. Não o entendemos, e
obviamente não fomos destinados a entendê-lo, em parte por causa das nossas
condições finitas e, mais ainda, por causa das nossas condições pecaminosas. E,
todavia, por outro lado, parece que temos de ter o cuidado de não
ignorar declarações escriturísticas, ou, ademais, que não as diminuamos.
Há certas coisas expostas nas Escrituras que devemos estudar e considerar, e nas
quais devemos pensar e meditar, com o maior cuidado possível. De qualquer
forma, isto seguramente podemos dizer, que o que Deus fez por nós mediante
Cristo Jesus não foi feito sem nenhum custo para Deus.

Examinemos a matéria do ponto de vista de Deus como Pai. Estes são os termos
empregados: “Vindo a plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho, nascido de
mulher, nascido sob a lei” (Gálatas 4:4). Estou interessado no “envio”. Ah, vocês
poderão dizer, isto é um antropomorfismo, isto é, uma condescendência para
com a nossa incapacidade humana, Deus apresentar-Se dessa maneira. Sim, mas
há uma verdade na apresentação, houve um ato de enviar. O Filho, o
Senhor Jesus Cristo, estava no seio do Pai desde toda a eternidade,
permanecendo etemamente com Deus, co-igual e co-eterno. Deus o Pai O
envia. Não entendo plenamente o que isso significou para Deus, porém sei
que há o propósito de quepensemos nisso nestes termos humanos, que Deus O
enviou. E aí é que fazemos a pergunta: que é que isso significou para Deus o
Pai? E por intermédio de Cristo Jesus que Ele vai mostrar as insondáveis
riquezas da Sua graça, é mediante esta ação que todos os principados e
potestades, nos lugares celestiais, irão admirar a multiforme sabedoria de Deus;
não somente o que eles verão na Igrej a, mas também no modo como Deus
trouxe a Igreja à existência, “por intermédio de Cristo Jesus”.

Vejam alguns outros termos. “Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu
Filho unigênito” (João 3:16). Que palavra de peso! -Ele “deu”! Deu Seu Filho
unigênito! Pois bem, nós estamos familiarizados com estes termos. Falamos de
pessoas que dão a vida pelo seu país, falamos de pais que entregam seus filhos
para a obra missionária no exterior; eles os dão, eles os enviam, eles os deixam
partir. Dar - mas quanto custa! Estes são os termos empregados com relação a
Deus. Contudo, vejam outra expressão, mais extraordinária ainda: “Aquele

que nem a seu próprio Filho poupou, antes o entregou por todos nós, como nos
não dará também com ele todas as coisas?” (Romanos 8:32). Examinem essa
grande declaração e notem os termos: Ele não O “poupou”. Deus é passível ou
impassível? Que significa a palavra “poupar”? Deus o Pai sabia o que era
necessário antes de se poder elaborar o método da salvação, sabia o que era
necessário antes de Ele poder ser “justo e justificador daquele que crê em Jesus”
(Romanos 3:26). Ele sabia o que isso envolveria para o Filho em sofrimento, e
Ele não O poupou, mas O entregou a tudo quanto aquela morte
significava, aquela morte cruel, angustiosa. Ele sabia disso tudo. Ele não O
poupou, Ele O entregou, por todos nós. Pois bem, estes são os termos com
os quais temos que lutar quando consideramos esta grande questão
da passibilidade de Deus. Mas há outros. “Àquele que não conheceu pecado, o
fez pecado por nós; para que nele fôssemos feitos justiça de Deus” (2 Coríntios
5:21). Deus o Pai, de Seu próprio Filho fez pecado

- não pecador, fez com que Ele fosse pecado, com o qual Ele ia tratar

- por nós, para que nEle fôssemos feitos justiça de Deus. E isso naturalmente
indica retrospectivamente algumas das extraordinárias afirmações registradas no
capítulo cinqüenta e três do livro do profeta Isaías: “O Senhor fez cair sobre ele
a iniqüidade de nós todos”. O Senhor fez isso sem nenhum sentimento? Deus o
fez sem nada sofrer? É um grande mistério.

Mas, se realmente queremos entender o que aconteceu naquele primeiro Natal,


quando Cristo nasceu em Belém, temos que olhar a fundo estas coisas. Tomamos
estas coisas como certas e líquidas, com demasiada facilidade. “Deus enviou seu
Filho; João 3:16; todos nós sabemos disso.” Sabemos? Será que sabemos alguma
coisa sobre isso?, pergunto. Falamos tão levianamente sobre o amor de Deus.
Alguma vez consideramos o que aquilo significou para Deus? “Deus fez cair
sobre ele a iniqüidade de nós todos.” “Agradou ao Pai” - lemos também -“Ao
Senhor agradou o moê-lo”; foi do Seu agrado; não que isso O agradasse, mas foi
do Seu agrado, foi Sua vontade, que Ele O moesse. Ele moeu Seu próprio Filho
por nós. Aí vocês apanham certa medida das sublimes riquezas da Sua graça. Ele
O fez “enfermar”. Em verdade, Deus fez o Seu unigênito Filho enfermar, a fim
de que eu e vocês nos tomássemos Seus filhos, e para que desfrutássemos das
abundantes riquezas da sua graça. No entanto, vocês não começarão a medir
essa graça divina enquanto não considerarem estas cinco palavras,
“por intermédio de Cristo Jesus”. Foi como Deus o fez. Aí temos apenas
um vislumbre disso, do ponto de vista do Pai, o evento propriamente dito
quando ocorreu, como foi e é em Deus. As insondáveis riquezas da Sua graça!
Quem pode avaliar tal realidade? Quem a pode entender? Esse é o nosso
evangelho, que Deus o Pai enviou Seu Filho e O deu, e fez cair sobre Ele a
iniqüidade de nós todos. “Por intermédio de Cristo Jesus”!

Mas vamos examinar o assunto por um momento do ponto de vista do Filho,


Aquele que veio e com quem tudo isso aconteceu. Aqui denovo estamos
envolvidos no que Carlyle costumava chamar “infini-dades e imensidades”, que
nos espantam e nos deixam o cérebro estupefato. Como podemos avaliar isto?
Bem, o apóstolo nos ensina algo sobre isso, particularmente em sua carta aos
filipenses, capítulo dois, versículos 5-11. Sabemos que visava ao Filho: há
Aquele que estava na glória eterna, no seio do Pai, sendo Ele co-igual e co-
eterno e participando da glória de Deus em toda a sua plenitude - na ‘ forma
de Deus”. Vocês sabem o que a sua salvação significou inevitavelmente para o
Filho? Significou a Sua decisão de não apegar-Se aos privilégios e sinais daquela
glória eterna. “Que, sendo na forma de Deus, não considerou roubo ser igual a
Deus”, diz a Versão Autorizada (inglesa), ou, segundo uma tradução mais
precisa, Ele não considerou essa igualdade como um prêmio ou uma presa a que
aferrar-Se a todo custo. Ele não disse ao Pai: não vou deixar tudo isso para trás
para salvar aquela gente que se rebelou contra Ti. Desejo ajudá-la e fazer o que
puder por ela, mas isso não; não posso por de lado, mesmo temporariamente,
as insígnias da Minha glória, as marcas da Minha deidade eterna; não
posso fazer isso. Estou disposto afazer qualquer coisa, porém isso eu não
posso fazer. Ele disse exatamente o oposto! Ele “não teve por usurpação o
ser igual a Deus”. Não considerou as insígnias da Sua deidade como uma presa a
que apegar-se, a que agarrar-Se. Ele decidiu deliberadamente que as poria de
lado temporariamente. Não pôs de lado a deidade - nem poderia fazê-lo - Ele não
pôs de lado a Sua deidade, mas sim, os sinais da Sua deidade.

Então, tomada a primeira decisão, inicial, seguiu-se a segunda, e


necessariamente. “Ele se fez sem reputação” (VA), Ele Se destituiu de honra.
Quão superiora Versão Autorizada (“Authorized Version”) é aqui à Versão
Revista (“Revised Version”. Essa idêntica a ARA) e outras, que dizem: “a si
mesmo se esvaziou”! Não, Ele não Se esvaziou, não Se esvaziou, absolutamente.
Ele “se fez” - permanecendo ainda o que era - “sem reputação”. Não há
nenhuma “kenosis” no sentido de um esvaziamento da Sua deidade, pois isso é
impossível. O que há é algo muito mais maravilhoso. É que Ele decidiu fazer-Se
sem
reputação, destituir-Se daSuahonra. Embora sendo ainda o eterno Filho de Deus,
desceu à terra, nasceu como criança e viveu como homem. Continuava sendo o
mesmo, mas Se fez sem reputação. Lemos histórias de grandes reis vestindo
roupas andrajosas e se metendo em trabalho braçal. Ninguém os conhecia,
ninguém os reconhecia. Que acontecera? O rei se fizera sem reputação,
disfarçando-se de homem comum e não levando consigo os atavios e as insígnias
dasuarealeza; noutras palavras, ele se fizera sem reputação. Ou vocês podem
pensar nisso em termos de um rei viajando incógnito. Foi exatamente o que
aconteceu na encarnação. Foi o que aconteceu quando o Filho de Deus desceu à
terra para habitar entre os homens. Apesar de continuar sendo o que sempre foi,
veio como homem e tomou sobre Si a forma de servo.

Aí estamos começando a avaliar as sublimes riquezas da graça de Deus. Foi isso


que a minha salvação e a de vocês significou e custou. Estamos interessados nas
sublimes riquezas da Sua graça, e estamos avaliando parte delas. Como é fácil
sentimentalizar o tema do bebê de Belém! Todavia, quando vocês olharem para
Ele, retrocedam, retrocedam penetrando a eternidade, considerem o que
significou para Ele vir para cá, e o que estava envolvido nisso! Como é vital que
sejamos teológicos e doutrinários em todo o nosso pensamento concernente
a Ele! Pensem com a mente, e só então sintam com o coração. Não comecem
com o coração, comecem com a cabeça, com a mente, com o entendimento. O
apóstolo já tinha orado para que os olhos do nosso entendimento fossem
iluminados! Vocês são cristãos, diz ele, mas terão percebido o que aconteceu, o
que estava envolvido, o que significou? “Ele se fez sem reputação.”
Inicialmente, Ele teve que chegar àquelas duas decisões, antes que pudesse
realizar-seaencamação. Eentão es tase realizou. Assim Ele veio e nasceu do
ventre de uma virgem - num estábulo, numa pequena localidade chamada Belém.
Assumira a natureza humana. Como eu disse, Ele não Se esvaziara da deidade
para tomar-Se homem. Continuando ainda como verdadeiro Deus de verdadeiro
Deus, Ele assumiu a t A 1 2 natureza humana. Assim e que agora Ele era
realmente homem, como

também realmente Deus. E ali O vemos na manjedoura.

Conforme entendo esta declaração do apóstolo, em tudo isso Deus estava


mostrando “as sublimes riquezas da sua graça”, e estava causando admiração aos
principados e potestades e anjos nos lugares celestiais - imagino que quando os
anj os olhavam por sobre as muralhas do céu, diziam algo como o seguinte:
Quem é este frágil, desvalido Filho de humilde jovem hebréia?

Eis o que diziam: “Quem é este?” Vocês se lembram de que, na pregação


anterior, vimos que estas mesmas potestades fitarão a Igreja glorificada e gente
como nós, com as nossas vestes brancas e com palmas nas mãos, e dirão: “Quem
são estes?” Entretanto em Belém a pergunta era:

Quem é este frágil, desvalido Filho de humilde jovem hebréia?

Há uma resposta, e somente uma: “É o Senhor, o rei da glória”. Esta é a


estupenda história do primeiro Natal. Ou deixemos que Charles Wesley responda
a pergunta. Contemplando aquela manjedoura, que vemos? Segundo Charles
Wesley:

Na carne velado, vede Deus;

Salve! Eis encarnada a Deidade!

Que paradoxos! Aí estão as duas medidas; aí estão as “incomensu-ráveis


riquezas da graça de Deus”; aí estão as sublimes riquezas, as insondáveis
riquezas - “Na carne velado” (aí está um extremo). “Vede Deus” (aí está o outro
extremo). Vocês podem medir estas grandezas? “Salve, eis encarnado” (sim, Ele
é uma criança, Ele é um bebê, Ele está chorando como qualquer outra criança;
ei-lO encarnado, ei-10 na carne -mas) “aDeidade”(aí está o outro extremo). As
imensuráveis riquezas da graça de Deus! Foi “por intermédio de Cristo Jesus”,
foi pelo envio do Seu próprio Filho a este mundo dessa maneira que Deus
nos abençoou o mostrou a Sua benignidade para conosco.

Depois, avancemos mais e vejamos Sua vida. Vocês já pararam para pensar e
meditar nisso? Como deve ter sido para o eterno Filho de Deus, viver num
mundo como este, um mundo de pecado? Vocês têm às vezes um sentimento de
completo desgosto quando andam pelas ruas
*

de Londres e vêem certas manifestações de pecado? A feiura, a sujeira, a


animalidade disso tudo? Certamente lhes enoja o estômago e vocês se revoltam -
e não há nada de errado em se sentirem assim, pois a coisa é hedionda, é terrível.
Mas multipliquem isso por milhões, pelo infinito, e tentem entender como deve
ter sido para o Filho de Deus viver e habitar num mundo como este, e ter que
mesclar-Se com a nossa raça decaída - Aquele que é descrito como “amigo de
publicanos e pecadores”. Isto constitui uma parte da graça de Deus “por
intermédio de Cristo Jesus”. Aí é onde vocês vêem “as insondáveis riquezas da
sua graça”. Ele “suportou tais contradições dos pecadores contra si mesmo”
(Hebreus 12:3) durante trinta e três anos. E quando esteve na terra, nunca teve
casa própria. “As raposas têm covis, e as aves dos céus ninhos”, diz Ele, “mas o
Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça” (Lucas 9:58). E depois essa
outra declaração no Evangelho Segundo João: “Cada um foi para sua casa. Jesus,
porém, foi para o Monte das Oliveiras” (João 7:53; 8:1). Nunca teve casa, nunca
possuiu um lar. Aquele por meio de quem todas as coisas foram feitas e sem
o qual nada do que foi feito se fez, não tinha onde pousar Sua cabeça, não teve
um lar que fosse Seu mesmo. “Por intermédio de Cristo Jesus”! Pensem ainda
em toda conspiração feita contra Ele, em como O esbofetearam, cuspiram em
Seu rosto, e pensem no interrogatório, nas tentativas de fazê-10 cometer erro.

Essas coisas são fatos, e devemos concentrar-nos nos fatos, devemos ir direto de
volta aos fatos. Não somos salvos por uma filosofia, nem por alguma bela idéia,
nem por alguma fantasia maravilhosa, nem por alguma concepção poética. Não,
estas coisas são fatos literais, duros, sólidos. Ele desceu à terra e passou por tudo
isso por nós e pela nossa salvação. E tudo fato literal! Vej am-nO no Jardim do
Getsêmani suando em agonia “grandes gotas de sangue”. “As insondáveis
riquezas da sua graça, por intermédio de Cristo Jesus.” E depois a cruz - a dor e
o sofrimento! “Não podemos saber, não podemos dizer, que dores Ele teve que
sofrer!” Mas sabemos que Ele esteve lá, outra vez em agonia. Ele bradou:
“Tenho sede”. E depois, acima de todos os outros sofrimentos, o sentimento de
abandono - “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” “As sublimes
riquezas da sua graça em sua benig-nidade para conosco, por intermédio de
Cristo Jesus”. Suportar o esmagador fardo do pecado do mundo; suportar a ira
do Seu santo Pai;
Ah, se fosse só Londres! Nota do tradutor.

ser feito pecado! Essa é a medida. E quando Ele estava sofrendo estas coisas
todas, continuava sendo o eterno Filho de Deus, bem como Filho do homem.
Sofrimento como o dEle não podemos imaginar; porém Ele sofreu o suficiente
para cumprir plenamente a pena imposta ao pecado. É “por intermédio de Cristo
Jesus” que nos vêm as bênçãos.

Ele morre, eles O levam e O sepultam num túmulo. Vocês recordam como Pedro
falou perfeitamente sobre isso em seu discurso a certos judeus incrédulos,
quando disse: “Matastes o Príncipe da vida” - o que significa, o Autor da vida
(cf. ARA). Aí vocês têm de novo a medida absoluta: morte (“matastes”) - vida
(“o Autor da vida”). O Autor da vida foi morto. Aí está a medida das sublimes
riquezas da graça de Deus. Eles O mataram, fizeram baixar o Seu corpo e O
sepultaram num túmulo, e sobre este rolaram uma pedra. Essa é a medida de
todos esses fatos. Então Deus O ressuscitou, como Paulo nos diz aqui, tirou-O
dentre os mortos, levou-0 para o céu, e O glorificou e O exaltou. Aí está o
movimento completo, da glória da eternidade à terra e ao túmulo, e então de
volta à glória. Essa é a medida das “sublimes riquezas da sua graça”.

O ponto visado pelo apóstolo é que Deus fez isso tudo com a finalidade de
mostrar a todas as eras futuras a Sua glória e grandeza, e especialmente as
sublimes riquezas da Sua graça. E permitam que se torne a salientar, para
mostrá-las não somente aos homens. E de fato um tema pertimente aos homens,
mas não somente a eles; é o que deixa os anjos extasiados. Um hino que às vezes
cantamos expressa perfeita mente esta verdade:

Anjos dos páramos da glória,

Voai por sobre toda a terra.

Vós que cantastes a Criação,

O Natal hoje proclamai!

Os anjos que cantaram na manhã da criação cantaram outra vez na manhã do


nascimento do Messias. Nunca o céu tinha visto uma coisa como esta. Nunca o
céu tinha visto um tema como este, como este evento estupendo. O bebê que
nasceu, que eles conheciam como o Senhor, o Filho unigênito do Pai, Aquele por
meio de quem tudo foi criado, está deitado como um frágil bebê numa
manjedoura. Não admira que eles tenham cantado e saudado o nascimento do
Messias. E eles continuam admirados, pois o apóstolo Pedro nos diz, em sua
Primeira Epístola, que

não somente os profetas, na antiga dispensação, tinham profetizado estas coisas,


a saber, os sofrimentos de Cristo e a glória que se lhes seguiria; coisas que os
deixaram surpresos e admirados, porém que também é verdade que “para as
quais coisas os anjos desejam bem atentar” (1:12). Que afirmação espantosa!
Estas “coisas” são “os sofrimentos que a Cristo haviam de vir, e a glória que se
lhes havia de seguir”, omovimento completo, que inclui a encarnação, a vida,
amorte expiatória, o sepultamento, a ressurreição, a glorificação - “para as quais
coisas”, diz Pedro, “os anjos desejam bem atentar”. Ele emprega aqui uma
palavra muito interessante. Essa palavra “desejam” significa desejo muito
intenso e desejo muito forte. Ela inclui de fato mais uma idéia, a de que eles se
debruçaram para vê-las. “As quais coisas os anjos estão se debruçando para ver
bem”! A encarnação do Filho! A morte do Autor da vida! O sepultamento do
Criador! É a coisa mais assombrosa. Os anjos estão admirados, e eles adoram e
louvam a Deus quando vêem esta manifestação, esta exposição, esta exibição
das sublimes riquezas da Sua graça. O que os espanta não é somente o fato de
que pecadores miseráveis, rebeldes, como eu e vocês, tenham sido vivificados,
recebendo nova vida, tenham sido ressuscitados e habilitados para viver
para Deus, e que, finalmente, sejam glorificados e passem a eternidade em Sua
presença - algo espantoso, e eles ficam maravilhados com isso -mas quando eles
consideram o método pelo qual Deus fez isso tudo, até o poder de expressão
deles falha e se torna inadequado. É algo que supera tudo, Deus amar o mundo
de tal maneira, ao ponto de dar, até à vergonhosa e cruel morte de cruz, o Seu
Filho unigênito, para que todo aquele que nEle crê - sem obras nem mérito - não
pereça, mas tenha a vida eterna. “Para mostrar nos séculos vindouros as sublimes
riquezas da sua graça em sua benignidade para conosco, por intermédio de
Cristo Jesus”.

1
Expressão presente no Credo Niceno (125 A. D.). Nota do tradutor.

2
Com inicial minúscula, para advertir os que pensam que Cristo é um Ser (homem) diferente em Sua
humanidade do comum dos mortais; que a Sua natureza humana é na verdade super-humana. Nota
do tradutor.
PELA GRAÇA POR MEIO DA FÉ

“Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós, é dom de
Deus. Não vem das obras, para que ninguém se glorie; porque somos feitura
sua, criados em Cristo Jesus para as boas obras, as quais Deus preparou para
que andássemos nelas”.

- Efésios 2:8-10

Nestes três versículos o apóstolo resume a grande argumentação que ele nos
transmite nos sete primeiros versículos deste capítulo. Ele a traz toda a um
centro focal. Imagino que, em certos aspectos, podemos dizer que em parte
alguma desta Epístola se vê declaração mais importante que esta. Naturalmente,
tudo vem prenhe de doutrina, como temos visto; mas, certamente, do nosso
ponto de vista, e para que se tenha verdadeiro e claro entendimento do que é que
nos faz cristãos, não há nada que seja mais importante do que essa declaração
particular. E, portanto, é óbvio que é igualmente importante no sentido prático.

Aqui está, seguramente, uma declaração que precisa ser aceita como
determinante em toda obra de evangelização. De igual modo, ela deve
determinar toda a nossa prática da vida cristã, porque a crença e a prática são
inseparáveis. Não se pode separar terminantemente o conceito que a pessoa tem
destas coisas, do seu relacionamento integral com elas. Por isso digo que nesta
passagem estamos face a face com uma das declarações mais cruciais de todas as
Escrituras, e obviamente é por isso que o apóstolo a expõe desta forma especial.
Por essa mesma razão também, ele já tinha orado, no capítulo primeiro, para que
os olhos do nosso entendimento fossem iluminados. Jamais poderemos repetir
isso em demasia. Esta grande Epístola, talvez a maior de todas em
alguns sentidos, impregnada de profunda teologia e de afirmações
doutrinárias, foi, não obstante, escrita primordialmente com o objetivo de ajudar
as pessoas de maneira prática e pastoral. Noutras palavras, não devemos pensar
que ela é, primeiramente e acima de tudo, uma tentativa da parte do apóstolo, de
escrever um tratado teológico. O apóstolo não era um teólogo profissional -
pergunto se deveria existir tal coisa. O apóstolo era pregador e evangelista. Tal
homem, é evidente, tem que ser teólogo - se não o for, não poderá ser um
verdadeiro evangelista - no entanto não se tratava de uma questão profissional. A
abordagem do apóstolo não
é acadêmica, não é teórica; ele estava interessado em ajudar aqueles crentes a
viverem a vida cristã. Foi por isso que lhes escreveu. Mas ele sabia que ninguém
pode viver esta vida cristã se primeiro não tiver um verdadeiro entendimento do
que é que afinal nos faz cristãos. Portanto, quando Paulo lhes escreve, ele parte
desta grande doutrina, e depois passa à sua aplicação.

É o que ele faz aqui, em sua oração por eles, no sentido de que os olhos do seu
entendimento sejam iluminados, para que eles possam conhecer a esperança da
vocação de Deus, as riquezas da glória da Sua herançanos santos e, talvez mais
importante que tudo mais, aimensurável grandeza do Seu poder para conosco, os
que cremos. Essa era a dificuldade daqueles crentes; não se davam conta desse
poder. E é esta a nossa dificuldade - a nossa incapacidade de perceber a
imensurável grandeza do poder de Deus em nós, os que cremos. Assim ele
procurou revelá-la, expô-la e colocá-la claramente diante deles. Ele a
tinha exposto em detalhe: a descrição negativa nos versículos 1 a 3; a
positiva nos versículos 4 a 7. Feito isso ele diz: agora, então, tudo vem a
dar nisto... Vocês podem notar que ele começa com a palavra “Porque”. “Porque
pela graça sois salvos.” É uma continuação; ele retrocede ao que estivera
dizendo, e depois o coloca mais uma vez de um modo que não nos deixará
esquecê-lo nunca mais.

E uma descrição do que significa realmente ser cristão. Cada vez me convenço
mais de que a maior parte dos nossos problemas na vida cristã surge nesse ponto.
Pois, se não estivermos certos no começo, estaremos errados em toda parte. E,
visto que muitos ainda estão confusos nesse primeiro passo, estão sempre cheios
de problemas, dificuldades e perguntas, e não podem entender isto, e não
conseguem ver aquilo. É porque nunca entenderam bem o alicerce.

Bem, aí está para nós - e, como eu disse, não há declaração mais clara sobre isso
em parte alguma das Escrituras.

Então, porque a confusão? Muitas vezes a confusão aparece porque as pessoas


transformam estas grandes declarações do apóstolo em matéria de controvérsia.
E o fazem porque insistem em introduzir a sua filosofia, com o que me refiro às
suas idéias pessoais. Em vez de tomarem as claras afirmações do apóstolo, elas
dizem: mas eu não consigo ver isto. Se é assim, então não entendo como Deus
pode ser um Deus de amor. Noutras palavras, essas pessoas começam a filosofar
e, naturalmente, no momento em que vocês começarem a fazer isso, estarão
fadados a ter dificuldades. Ou aceitamos as Escrituras como nosso único
fundamento, ou não. Muitos dizem que as aceitam, mas logo

vêm com a sua incapacidade de entender. No momento em que vocês fizerem


isso, terão abandonado as Escrituras e estarão introduzindo a sua capacidade
pessoal, o seu entendimento, e as suas teorias e idéias pessoais. Esse tem sido
constantemente o problema, especialmente com este três versículos que estamos
considerando. O que me proponho a fazer, portanto, é simplesmente colocar
estas afirmações diante de vocês, e pedir-lhes que as considerem e que meditem
sobre elas. Aqui está o fundamento completo da nossaposição como cristãos. E
aqui que se nos diz com exatidão como foi que nos tornamos cristãos.

Que é que o apóstolo diz? Diz ele que somos cristãos inteiramente como
resultado da graça de Deus. Ora, certamente ninguém pode contestar isso.
“Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós, é dom de
Deus.” Notem o método do apóstolo aqui. A declaração toda está em três
versículos e, em certo sentido, podemos tomar os três versículos como nossas
divisões e subtítulos. Primeiro ele faz uma declaração positiva no versículo 8.
Coloca a seguir uma negativa, no versículo 9; e o propósito danegativa é reforçar
a positiva. Está apenas dizendo a mesma coisa negativamente. E depois,
no versículo 10, ele parece combinar as duas, a positiva e a negativa.

Examinemos primeiro a declaração positiva. Sua asserção feita positivamente é


que nós somos cristãos inteira e unicamente como resultado da graça de Deus.
Lembremo-nos mais uma vez de que “graça” significa favor imerecido. E uma
ação que brota inteiramente do caráter misericordioso de Deus. Assim, a
proposição fundamental é que a salvação é algo inteiramente procedente da parte
de Deus. O que é mais importante ainda é que ela não somente vem da parte de
Deus, porém nos vem apesar de nós mesmos - favor “imerecido”.
Noutras palavras, não é a resposta de Deus a alguma coisa que haja em nós.
Há muitos, no entanto, que parecem pensar que é - que a salvação é a resposta de
Deus a algo existente em nós. Mas a palavra “graça” exclui isso. É apesar de
nós. Como vimos, o apóstolo mostra-se muito ansioso para dizer isso. Obsevem
o modo interessante como ele, por assim dizer, introduziu-o sutilmente no
versículo cinco. Ele se interrompeu, quebrou a simetria da sua exposição, e se
fez culpado de grave defeito, do ponto de vista do estilo literário. Contudo, ele
não estava preocupado com isso. Ouçam-no: “Estando nós ainda mortos em
nossas ofensas, nos vivificou juntamente com Cristo”, e então, em vez de dar o
passo seguinte - parênteses “(pela graça sois salvos)”. Aqui ele o expressa um
pouco mais explicitamente. A salvação não é, em nenhum sentido,
a resposta de Deus a algo existente em nós. Não é algo de que nalgum sentido
tenhamos merecimento ou mérito. Toda a essência do ensino neste ponto, e em
toda parte do Novo Testamento, é que não temos nenhum tipo ou nenhuma
espécie de direito à salvação, e que toda a glória da salvação é que, apesar de
nada merecermos, senão a punição, o inferno e o banimento da presença de Deus
por toda a eternidade, não obstante Deus, por Seu amor, Suagraça e Sua
maravilhosa misericórdia, concedeu-nos esta salvação. Pois bem, esse é todo o
ensino do termo “graça”.

Não precisamos demorar-nos aqui, porque já estivemos tratando disso nos sete
versículos anteriores. Qual é o objetivo desses versículos? Não será apenas
mostrar-nos essa mesma verdade negativa e positivamente? Qual é o objetivo
dessa horrível descrição do homem como ele é por natureza em conseqüência do
pecado nos três primeiros versículos, senão justamente mostrar que o homem,
como ele é, não merece nada, exceto a retribuição aos seus pecados? Ele é por
natureza filho da ira, e não somente por natureza, mas também por conduta, por
seu comportamento, por sua atitude em geral para com Deus - vivendo segundo
o curso deste mundo, governado pelo príncipe das potestades do ar. Esse é o tipo
de criatura que ele é; morto em ofensas e pecados, criatura cheia de cobiças,
cobiças da carne, “fazendo a vontade da carne e dos pensamentos”. Não existe
descrição mais horrorosa do que essa. Não se pode imaginar um estado pior do
que esse. Uma criatura como essa merece alguma coisa? Tem algum direito
diante de Deus? Poderá ir à frente com alguma causa ou demanda para defender?
Todo o ponto visado pelo apóstolo é que tal criatura não merece nada das mãos
de Deus, senão a retribuição aos seus pecados. E depois ele desenvolve o seu
argumento com o seu grande contraste - “mas Deus” - que já consideramos em
detalhe. E o propósito disso, seguramente, é exaltar a graça e a misericórdia de
Deus, e mostrar que, onde o homem não merece absolutamente nada, Deus não
somente lhe dá, e lhe dá liberalmente, mas faz chover sobre ele “as imensuráveis
riquezas da sua graça”.

Esse é, pois, o primeiro princípio: que somos cristãos única, total e


exclusivamente por causa da graça de Deus. Referi-me ao versículo cinco porque
é extremamente inportante nesta argumentação. Notem como o apóstolo o
inseriu ali, fê-lo escorregar para dentro, por assim dizer, insinuou-o. Por quê?
Observem o contexto. Diz ele que foi exatamente “quando estávamos mortos em
pecados” que Deus nos vivificou. E então, imediatamente - “(pela graça sois
salvos)”. Se você
não enxergar o princípio nesse ponto, não o enxergará em lugar nenhum. O que
ele estava dizendo é que estávamos mortos, isto é, absolutamente sem vida;
portanto, sem nenhuma capacidade. E aprimeira coisa que nos era necessária, era
que nos fosse dada vida, que fôssemos vivificados. E diz ele que foi exatamente
isso que Deus fez conosco. Pelo que diz ele: vocês não conseguem ver isso? E
pela graça que vocês são salvos. Portanto, ele o coloca nesse ponto em particular
obviamente por essa razão. É a única conclusão que se pode deduzir. Criaturas
que estavam espiritualmente mortas, agora estão vivas - como aconteceu? Pode
um morto voltar a viver por si mesmo? Impossível. Há uma única resposta: “Pela
graça sois salvos”. Chegamos, pois, a esta inevitável conclusão: somos cristãos
neste momento única e inteiramente pela graça de Deus.

O apóstolo nunca se cansava de dizer isso. Que mais poderia ele dizer? Quando
ele olhava para trás.paraoblásfemoSaulo de Tarso, que odiava a Cristo e a Igreja
Cristã e fazia o máximo que podia para exterminar o cristianismo, respirando
ameaças e morte; quando olhava para trás e via isso, e depois olhava para si
mesmo como ele agora era, que poderia ele dizer, senão isto: “Sou o que sou
pela graça de Deus”? E devo confessar que ultrapassa a minha capacidade de
entender como algum cristão ou alguma cristã, ao olhar para si, possa dizer
coisa diferente. Se quando você dobra os joelhos diante de Deus não se der conta
de que é “devedor à misericórdia, única e exclusivamente”, confesso que não
entendo você. Há alguma coisa tragicamente defeituosa, ou no seu sentimento de
pecado, ou na suacapacidade de percepção da grandeza do amor de Deus. Este é
o tema sempre presente no Novo Testamento, a razão pela qual os santos dos
séculos sempre louvaram o Senhor Jesus Cristo. Eles vêem que quando estavam
em total desesperança, verdadeiramente mortos, e eram vis e
repugnantes, “odiosos, odiando-nos uns aos outros”, como diz Paulo escrevendo
a Tito (3:3). Deus olhou para eles. Foi “quando éramos ainda pecadores”, mais,
foi “quando éramos inimigos” que fomos reconciliados com Deus pela morte do
Seu Filho - inimigos; alienados em nossas mentes, completamente opostos. Não
seria certo que temos que ver que é pela graça, e somente pela graça, que somos
cristãos? E totalmente imerecido, é somente como resultado da bondade de
Deus.

A segunda proposição, como indiquei, é colocada em forma negativa pelo


apóstolo. Diz ele que o fato de que somos cristãos não nos dá base nenhuma
parajactância. Essa é a forma negativa da primeira proposição. A primeira é que
somos cristãos única e inteiramente como
resultado da graça de Deus. Portanto, em segundo lugar, temos que dizer que o
fato de sermos cristãos não nos dá nenhuma base para gabar-nos. O apóstolo faz
a colocação disso com duas declarações. A primeira é: “isto não vem de vós”;
não satisfeito com isso, o apóstolo se expressa mais explicitamente com estas
palavras: “para que ninguém se glorie”. Aí temos duas declarações vitalmente
importantes. Certamente nada poderia ser mais forte: “Não vem de vós”; “para
que ninguém se glorie”. Este sempre deve ser o teste decisivo do nosso conceito
da salvação e do que nos faz cristãos. Examinemo-nos por um momento. Qual a
idéia que você faz de si mesmo como cristão? Como foi que você se tornou
cristão? De que depende? Que é que está no fundo? Qual a razão? Essa é a
questão decisiva e, segundo o apóstolo, o teste vital. A sua idéia de como você se
tornou cristão lhe dá alguma base para orgulhar-se de si mesmo, para gabar-se?
Essa sua idéia reflete de alguma forma algum mérito a seu favor? Se reflete,
segundo esta declaração apóstolica não hesito em dizê-lo você não é cristão.
“Não vem de vós; para que ninguém se glorie”. No capítulo três da Epístola aos
Romanos o apóstolo se expressa com mais clareza ainda, com uma pergunta.
Aí está diz ele, o plano divino de salvação, e depois, no versículo 27, pergunta:
“Onde está logo a jactância?” Ele responde, dizendo: “É excluída”, é posta para
fora, e a porta é fechada sobre ela; não há lugar para ela aqui.

Não admira que o apóstolo Paulo tenha tanto gosto em colocar a questão dessa
maneira em especial, porque, antes da sua conversão, antes de se tornar cristão,
ele bem sabiao que erajactar-se. Nuncahouve uma pessoa tão satisfeita consigo
ou mais segura de si do que Saulo de Tarso. Tinha orgulho próprio em todos os
aspectos - orgulhava-se de sua nacionalidade, da tribo em que nascera em Israel,
de haver sido criado como fariseu e de haver sentado aos pés de Gamaliel,
orgulhava-se de sua religião, da sua moralidade, do seu conhecimento. Ele nos
fala disso tudo no capítulo três da Epístola aos Filipenses. Ele costumava jactar-
se. Levantava-se e dizia coisas semelhantes a estas: quem pode contestar isto?
Aqui estou, um bom homem, de boa moral, religioso. Observem-me nos meus
deveres religiosos, observem o meu viver, observem-me em todos os aspectos;
tenho-me dedicado a esta vida piedosa e santa, e estou satisfazendo a Deus. Essa
era a sua atitude. Gabava-se. Achava que era um homem de tanto valor e que
tinha vivido de tal maneira que podia orgulhar-se disso. Essa era uma das
suas grandes palavras. Mas chegou a ver que uma das maiores
diferenças resultantes do fato de haver-se tornado cristão foi que tudo isso foi

jogado fora e passou a ser irrelevante. Por isso acostumou-se a usar linguagem
forte. Olhando para trás, para tudo aquilo de que tanto se jactara, ele diz: “É
escória e perda!” Não se contenta em dizer que tudo aquilo era mal; é vil, é sujo,
é nojento. Jactância? Foi excluída! Entretanto o apóstolo conhece tão bem o
perigo neste ponto que não se contenta com uma declaração geral; ele indica
particularmente dois aspectos nos quais somos propensos à jactância.

O primeiro é esta questão de obras. “Pela graça sois salvos, e isto não vem de
vós, é dom de Deus. Não vem das obras, para que ninguém se glorie”. E sempre
com relação às obras que somos mais propensos a jactar-nos. É nesse ponto que
o diabo nos tenta de maneira a mais sutil. Obras! Essa era a razão pela qual os
fariseus eram os maiores inimigos de Jesus Cristo; não porque fossem meros
faladores, mas porque realmente faziam coisas. Quando aquele fariseu disse
(Lucas 18:12) -“Jejuo duas vezes na semana”, estava falando a verdade; quando
ele disse: “ dou os dízimos de tudo quanto possuo”, estava sendo rigorosamente
exato. Os fariseus não falavam apenas, faziam realmente estas coisas. E é por
isso que eles ficaram tão aborrecidos com a pregação do Filho de Deus e foram
grandemente responsáveis pela Sua crucifixão. Seria ir longe demais dizer que é
sempre mais difícil converter uma pessoa boa do que uma pessoa má? Penso que
a história da Igreja prova isso. Os maiores opositores da religião evangélica
sempre têm sido gente boa e religiosa. Alguns dos mais cruéis perseguidores de
que fala a história da Igrej a pertenciam a essa classe. Os santos sempre
sofreram mais profundamente nas mãos de gente boa, de bom nível
moral, religiosa. Por quê? Por causa das boas obras. O evangelho bíblico
sempre denuncia a confiança nas boas obras, o orgulho pelas boas obras e
a jactância acerca das boas obras, e aquelas pessoas não aguentam isso. Toda a
sua posição foi edificada sobre isso - o que elas são, o que elas fizeram e o que
elas estão sempre fazendo. Isso constitui toda a posição delas e, se vocês lhes
tirarem isso, elas ficarão sem nada. Por isso elas odeiam a pregação realmente
bíblica, e a combaterão até não poderem mais. O evangelho faz de nós
mendigos. Ele nos condena, a todos e a cada um de nós. Não há diferença, Paulo
afirma em toda parte, não há diferença entre o gentio, que está fora da
comunidade, e o judeu religioso, aos olhos de Deus - “Não há um justo, nem um
sequer”. Assim, é preciso que as obras desapareçam, que não nos gabemos
delas. Mas nós temos a tendência de gabar-nos delas - o nosso viver virtuoso, as
nossas boas ações, as nossas observâncias religiosas, a nossa freqüência aos
cultos (e particularmente quando vimos de manhã bem cedo),

e assim por diante. São estas coisas, as nossas atividades religiosas, que nos
fazem cristãos. É esse o argumento.
No entanto o apóstolo desmascara e denuncia tudo isso, e o faz com muita
simplicidade, da seguinte maneira: diz ele que falar sobre as obras é voltar ao
jugo da lei. Se você pensa, diz ele, que é a sua vida virtuosa que faz de você um
cristão, está tomando a ficar debaixo da lei. Mas é inútil fazê-lo, diz ele, por esta
razão. Se você tornar a colocar-se debaixo da lei, estará condenando a si próprio,
pois “nenhuma came será justificada diante dele pelas obras da lei, porque pela
lei vem o conhecimento do pecado”, Se você quiser tentar justificar-se por
sua vida e por suas obras, você estará indo direto para a condenação, porque as
melhores obras do homem não são suficientemente boas aos olhos de Deus.
Todos fomos condenados pela lei - “Todos pecaram e destituídos estão da glória
de Deus”. “Não há um justo, nem um sequer”. Portanto, não sejam tolos, diz
Paulo; não se apartem da graça, pois fazê-lo é ir para a condenação. As obras de
homem nenhum serão suficientes para justificá-lo aos olhos de Deus. Que tolice,
então, tornar a ficar debaixo das obras!

Mas não somente isso, no versículo dez ele explica que fazer isso é fazer o
contrário do que se deve. Tais pessoas pensam que pelas suas boas obras elas se
fazem cristãs, ao passo que, diz Paulo, é exatamente o contrário. “Somos feitura
sua, criados em Cristo Jesus para as boas obras, as quais Deus preparou para que
andássemos nelas.” A tragédia é que as pessoas pensam que, se tão-somente
fizeren certas coisas e evitarem outras, e tiverem uma vida virtuosa, e saírem
para ajudar outras pessoas, dessa maneira se tornarão cristãs. Que cegueira!, diz
Paulo. Esta é a maneira de ver as boas obras: Deus nos faz cristãos para
que pratiquemos boas obras. Não é uma questão de as boas obras levarem ao
cristianismo, e sim de o cristianismo levar às boas obras. É exatamente o oposto
daquilo em que as pessoas tendem a crer. Portanto, não há nada que seja tão
completa contradição da verdadeira posição cristã como essa tendência que
temos de jactar-nos e de pensar que, porque somos o que somos e fazemos o que
fazemos, tornamo-nos cristãos. Não; Deus faz cristãos, e depois eles vão praticar
as suas boas obras. A jactância é excluída. “Onde está logo a jactância? É
excluída. Por qual lei? Das obras? Não; mas pela lei da fé.” Vemos que as obras
são excluídas na questão de alguém se tornar cristão. Não devemos jactarmos
das nossas obras. Se de alguma forma mostrarmos que achamos que temos
bondade, ou se estivermos confiantes em alguma coisa que fizemos, estaremos
negando a graça de Deus. Isto é o oposto do cristianismo.

Contudo, a lástima é que não são somente as obras e as ações que tendem a
insinuar-se. Existe algo mais - a fé! A fé tende a introduzir-se e afazer com que
nos jactemos. Há uma grande controvérsia acerca deste versículo - “Porque pela
graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus”. A
grande questão é, a que se refere a palavra “isto”? E há duas escolas de opinião.
“Porque pela graça sois salvos, por meio da fé, e isto (a fé) não vem de vós, é
dom de Deus”, diz uma escola. Mas, de acordo com a outra escola, a palavra
“isto” não se refere à “fé”, e sim à “graça”, mencionada no início da
frase: “Porque pela graça sois salvos, por meio da fé, e isto (esta posição
na graça) não vem de vós, é dom de Deus”. Seria possível resolver a disputa?
Não. Não é questão de gramática, não é questão de língua. Vocês verão que,
como usualmente acontece, as grandes autoridades estão divididas entre as duas
escolas, e é muito interessante, quase divertido, notar os lados aos quais elas
pertencem. Por exemplo, se eu perguntasse qual era a opinião de Calvino sobre
isso, estou certo de que vocês logo responderiam que Calvino dizia que “isto” se
refere à fé, e não à graça. Mas a verdade é que Calvino disse exatamente o
oposto, que “isto” se refere à “graça” e não à “fé”. E uma questão que não se
pode resolver. E há um sentido em que realmente isso não tem a
mínima importância, porque no fim dá no mesmo. Noutras palavras, o
importante é não recair nas “obras”.

Mas há muitos que fazem isso. Transformam a sua fé numa espécie de obras. Na
verdade, existe muito ensino evangelístico popular atualmente que afirma que a
diferença que o Novo Testamento faz pode ser expressa desta maneira: no Velho
Testamento Deus olhava para o povo e dizia: aqui está aMinha lei, aqui estão os
DezMandamentos; guardem-nos, e Eu os perdoarei e vocês serão salvos. Mas,
esse ensino continua e diz: não é assim agora. Deus pôs tudo isso de lado, não
existe mais lei, Deus simplesmente nos diz: “Creiam no Senhor Jesus Cristo”, e
vocês serão salvos. Noutras palavras, o que dizem os que tal coisa ensinam
é que, crendo no Senhor Jesus Cristo, a pessoa se salva. Todavia isso
é transformar a fé em obras, porque isso eqüivale a dizer que a nossa ação é que
nos salva. Mas o apóstolo diz: “Não vem de vós”. Se “isto” se refere à fé ou à
graça, não importa; “sois salvos”, diz Paulo, “pela graça, e isto não vem de vós”.
Se é a minha fé que me salva, eu mesmo me salvei; porém Paulo afirma que isso
não vem de você. De modo que jamais devo falar da minha fé de molde a fazê-la
vir “de mim mesmo”. E não é só isso. Se me tornei cristão dessa maneira,
certamente isso também me dá base para jactar-me, para gloriar-me; mas Paulo
diz:

“Não de obras, para que ninguém se glorie”. A minha jactância tem que ser
excluída totalmente.
Portanto, quando pensamos na fé, temos que ter o cuidado de examiná-la à luz
do que foi dito. A fé não é a causa da salvação. Cristo é a causa da salvação. A
graça de Deus no Senhor Jesus Cristo é a causa da salvação, e jamais devo falar
de um modo que apresente a fé como acausa da salvação. Então, o que é a fé? A
fé é apenas o instrumento pelo qual a salvação chega a mim. “Pela graça sois
salvos, por meio da fé.” A fé é o canal, é o instrumento através do qual esta
salvação, que é da graça de Deus, vem a mim. Sou salvo pela graça, “por meio
da fé”. A fé é simplesmente o meio através do qual a graça de Deus, que
traz salvação, entra em minha vida. Portanto, devemos ser sempre extremamente
cautelosos, jamais dizendo que é a nossa fé que nos salva. A fé não salva, crença
não salva, Cristo salva - Cristo e a Sua obra acabada. Não a minha crença, não a
minha fé, não o meu entendimento, nada que eu faça - “não vem de vós”, “a
jactância é excluída”, “pela graça, por meio da fé”.

Certamente o que a passagem que inclui os três primeiros versículos deste


capítulo tem por objetivo é mostrar que nenhuma outra posição é possível. Como
pode alguém que está “morto” em ofensas e pecados salvar-se? Como pode
alguém que é “estranho e inimigo no entendimento”, cujo coração está “em
inimizade contra Deus” (pois é o que as Escrituras nos falam acerca do homem
natural), como pode tal pessoa fazer alguma coisa que seja meritória? É
impossível. A primeira coisa que acontece conosco, diz-nos o apóstolo nos
versículos 4 a 7, é que fomos “vivificados”. Nova vida foi introduzida em nós.
Por quê? porque sem vida não podemos fazer coisa alguma. A primeira coisa
que o pecador necessita é vida. Ele não pode pedir vida, pois está morto. Deus
lhe dá vida, e o pecador prova que a tem crendo no evangelho. A vivificação é o
primeiro passo. E a primeira coisa que acontece. Eu não peçoparaservivificado.
Se eu pedissepara ser vivificado, não precisaria ser vivificado, já teria vida. No
entanto, estou morto, e estou em inimizade contra Deus e a Ele me oponho, não
tenho entendimento, tenho ódio. Mas Deus me dá vida. Ele me vivificou
juntamente com Cristo. Portanto, a jactância é inteiramente excluída gloriar-me
das obras, gloriar-me até da fé. Isso tem que ser excluído. A salvação
é inteiramente de Deus.

Isso nos leva ao último princípio, que resumo da seguinte maneira: o fato de
sermos cristãos é totalmente resultante da obra de Deus. O

real problema de muitos de nós é que a nossa concepção do que é que nos faz
cristãos é demasiado fraca, demasiado pobre; é a nossa incapacidade de perceber
a grandeza do que significa ser cristão. Paulo diz: “Somos feitura sua”! É Deus
que fez algo, é Deus que está operando; somos Sua feitura. Não trabalho nosso,
mas Seu trabalho. Portanto, digo de novo, não é a nossa vida virtuosa, não são os
nossos esforços todos e a esperança de por fim sermos cristãos, que nos torna
cristãos. Mas permitam-me ir mais longe. Não é a nossa decisão, o nosso
“decidir-nos por Cristo”, que nos faz cristãos; isso é obra nossa. A decisão entra
nisso, porém não é a nossa decisão que nos faz cristãos. Paulo afirmaque
somos feitura Sua. E assim vocês vêem quão gravemente o nosso
pensamento leviano e nosso falar leviano representam mal o cristianismo!
Lembro-me de um homem muito bom - sim, um bom cristão - cujo modo de dar
testemunho era sempre este: “Eu me decidi por Cristo há trinta anos, e nunca me
arrependi”. Era a sua maneira de expressá-lo. Não é esse o modo como Paulo
descreve o tornar-se cristão. “Somos feitura sua”! Essa é a ênfase. Não algo em
que tomei parte ativa, não algo que decidi, mas algo que Deus fez por mim.
Aquele homem faria melhor se se expressasse assim: há trinta anos eu estava
morto em ofensas e pecados, porém Deus começou a fazer algo em mim; tomei
consciência de que Deus estava lidando comigo; senti que Deus me esmagava;
senti as mãos de Deus me refazendo. E assim que Paulo expressa o fato; não, eu
me decidi, não, eu tive parte ativa na entrada no cristianismo, não, eu
decidi seguir a Cristo, não, absolutamente. Isto tem seu papel, mas depois.

Somos feitura Sua. O cristão é alguém em quem Deus operou. E vocês podem
observar que tipo de trabalho é, segundo Paulo. Não é nada menos que uma
criação. “Criados em Cristo Jesus para as boas obras.” O apóstolo gostava muito
de dizer isso. Ouçam-no dizê-lo aos filipenses: “Tendo por certo isto mesmo, que
aquele que em vós começou a boa obra a aperfeiçoará até o dia de Jesus Cristo”
(1:6). DEUS! Ele começou uma boa obra em você! E obra de Deus! Ele veio
quando você estava morto e o vivificou, pôs vida em você. É isso que faz de um
homem um cristão. Não as suas boas obras, não a sua decisão, mas a
determinação de Deus concernente a você posta em prática.

É aqui que vemos como as nossas idéias, em relação ao que o cristão é, estão
desesperadamente aquém do ensino bíblico. O cristão é uma nova criação. Não é
apenas um bom homem, ou um homem que melhorou um pouco; é um novo
homem, “criado em Cristo Jesus”. Ele foi introduzido em Cristo, e a vida de
Cristo penetrou nele. Somos

“participantes da natureza divina” (2 Pedro 1:4). “Participantes da natureza


divina”! Que é um cristão? Um bom homem, um homem de boa moral, um
homem que crê em certas coisas? Sim, mas infinitamente mais! Ele é um novo
homem, a vida de Deus entrou em sua alma -“criado em Cristo”, “feitura de
Deus”! Você já tinha compreendido que é isso que faz de você um cristão ? Não
é freqüentar um local de culto. Não é cumprir certos deveres. Todas estas coisas
são excelentes, porém nunca nos tomam cristãos (podem tornar-nos fariseus!).
Quem faz cristãos é Deus, e Ele o faz da seguinte maneira: Ele criou todas as
coisas do nada no princípio, e Ele vem ao homem e o faz de novo e lhe dá
nova natureza e faz dele um novo homem. O cristão é “uma nova criação”, nada
menos que isso.

Se você está interessado em obras, diz Paulo, vou dizer-lhe qual é o tipo de obras
nas quais Deus está interessado. Não são aquelas miseráveis obras que você
pode fazer como uma criatura por natureza em pecado. E uma nova classe de
obras - “criados em Cristo Jesus para as boas obras, as quais Deus preparou para
que andássemos nelas” - as boas obras de Deus\ Que quer dizer ele? Ele quer
dizer que o nosso problema é não somente que a nossa idéia do cristianismo é
inadequada, a nossa idéia de boas obras é ainda mais inadequada. Ponham no
papel as boas obras que as pessoas pensam que são bastante boas para fazê-
las cristãs. Juntem-nas e ponham no papel todas aquelas coisas em que elas estão
confiando, Ponham-nas no papel, e depois levem-nas a Deus e digam: é isso que
tenho feito. Quecoisaridícula!-émonstruosa. Vejam o que elas estão fazendo.
Essas não são as obras em que Deus está interessado. Em que consistem as boas
obras de Deus? Bem, o Sermão do Monte e a vida de Jesus Cristo dão a resposta.
Não se trata apenas de um pouco de bondade e moralidade negativas, talvez
fazer ocasionalmente alguma benevolência e valorizar muito isso. Não, amor
desinteressado! “De sorte que haja em vós o mesmo sentimento que
houve também em Cristo Jesus, que, sendo em forma de Deus, não teve
por usurpação ser igual a Deus, mas se fez sem nenhuma reputação e
tomou sobre si a forma de servo e se fez semelhante aos homens; e, achado
na forma de homem humilhou-se a si mesmo, sendo obediente até a morte e
morte de cruz” - dando-Se por outros sem pensar no preço. Essas são as boas
obras de Deus. “Amar a Deus de todo coração e alma e mente e forças, e ao
nosso próximo como a nós mesmos”! Não apenas lhe fazendo uma ocasional boa
ação, mas amando-o como a si mesmo! Esquecer-se a si próprio em seu interesse
por ele! S ão essas as boas obras de Deus e foi para essas boas obras que Ele nos
criou.

Segundo esta definição, cristão é aquele que foi feito de novo conforme a
imagem e modelo do Filho de Deus. E o que o apóstolo diz no capítulo quatro
destaEpístola, no versículo 24, nestes termos: “E vos revistais do novo homem
que segundo Deus é criado em verdadeira justiça e santidade”. Não um pouco de
bondade, mas santidade verdadeira, “a santidade da verdade”, e total e absoluta
justiça! E já no capítulo primeiro Paulo o tinha dito no versículo quatro:
“Como também nos elegeu nele antes da fundação do mundo, para que
fôssemos santos e irrepreensíveis diante dele em amor”. Escrevendo aos
romanos, ele diz: “Os que dantes conheceu também os predestinou para serem
conformes à imagem de seu Filho”\ Que é um cristão? Simplesmente um bom
homem? Alguém que é só um pouco melhor do que qualquer outra pessoa?
Absolutamente não! Ele é como Cristo! Conforme à imagem do Filho de Deus!
Como pode um homem que está morto em ofensas e pecados ressurgir e chegar a
isso? É impossível. “Pela graça sois salvos”; “não vem de vós”; “para que
ninguém se glorie”. Ninguém pode alcançar isto, ninguém pode elevar-se a isto.
É obra de Deus, e só de Deus. O cristão é alguém que se espera seja semelhante
a Cristo. Ele tem dentro de si a vida de Cristo. “Vivo, não mais eu, mas Cristo
vive em mim.” Que é cristianismo? É “Cristo em vós, a esperança da glória”;
“Feitos segundo a imagem do Filho de Deus”. Graças a Deus é de graça! Se não
fosse de graça, não teríamos esperança, estaríamos todos arruinados, estaríamos
condenados. Todavia, desde que é de graça, desde que é obra de Deus, desde que
eu sou feitura de Deus, eu sei que, apesar de mim mesmo, apesar do pecado
que ainda resta em mim, serei aperfeiçoado e me tornarei perfeito. Se isso fosse
deixado conosco, não haveria nenhuma esperança para nós. Quem somos nós
para enfrentar o mundo, a carne e o diabo? Mas, graças a Deus é “pela graça”.
Somos feitura Sua. Estamos em Suas mãos - e se Ele começou boa obra em nós,
continuará com essa obra até completá-la. Se você não se render pronta e
voluntariamente, Ele o castigará, tirará as suas arestas, com o cinzel as aparará
para esculpí-lo. Se você está no plano de Deus, Ele o fará segundo a imagem de
Cristo. Ele continuará a Sua boa obra até remover toda “mácula e ruga e coisa
semelhante”, e você estará na presença de Deus, “santo e irrepreensível” e “com
grande alegria”.

Graças a Deus não são as obras; graças a Deus não é a minha fé; graças a Deus
não é nada de que eu possa me gloriar. “Longe esteja de mim gloriar-me, a não
ser na cruz de nosso ienhor Jesus Cristo, pela qual o mundo está crucificado para
mim e eu para o mundo” (Gálatas 6:14). “Pela graça, por meio da fé”!

13
FEITURA DE DEUS
“Porque somos feitura sua, criados em Cristo Jesus para as boas obras, as
quais Deus preparou para que andássemos nelas. ”

-Efésios 2:10

Temos visto de relance esta grande afirmação quando a tomamos em seu


contexto, com relação aos dois versículos anteriores, os versículos 8 e 9. Estes
três versículos juntos, como vimos, são uma declaração composta, pelo que,
antes de chegarmos a este versículo especificamente, foi certo examiná-lo como
parte do argumento que o apóstolo colocou diante de nós nos três versículos
juntos, O argumento é que a nossa salvação é inteiramente de graça; ela resulta
da graça de Deus. Não hájactância; é excluída completamente. Também não
devemos gloriarmos da nossa fé, não devemos tornar a nossa fé em “obras”.
“Somos salvos pela graça, por meio da fé.” A fé é o instrumento, o canal, não
a causa determinante. Pois esse é o grande argumento, vocês recordam, que é
tudo pela graça e de graça. O apóstolo o expressa de maneira negativa e positiva.
E no versículo dez ele expõe o que, de muitas maneiras, é o seu argumento final.
Ele afirma que é inteiramente de graça; não vem de vós, é dom de Deus; não de
obras, para que ninguém se glorie, “porque somos feitura sua” - qualquer outro
conceito é impossível, é totalmente inadequado e ridículo. E de fato, diz ele,
isto se pode fixar definitivamente pelo fato de que as boas obras que devemos
realizar como cristãos são obras que já antes foram ordenadas para que andemos
nelas. Mesmo as boas obras que praticamos como cristãos foram de antemão
preparadas para que andássemos nelas. Até aqui, pois, examinamos esta
declaração de maneira geral e, mormente, negativa.

Contudo, é uma declaração tão profunda e gloriosa que seria um grande erro
deixá-la aqui. Ela faz parte de um argumento, mas também é uma declaração em
si mesma, uma declaração positiva, e uma das mais importantes e vitais que já
pudemos ver. Aqui nos é dada uma das definições que Paulo faz do que significa
ser cristão. E não existe, suponho, nenhuma declaração mais elevada a respeito
deste assunto do que justamente esta, que somos feitura de Deus. Essa é a
verdade acerca de nós todos como cristãos, e essa é a verdade acerca da Igreja
Cristã.

Cabe a nós aprender a pensar em nós mesmos desse modo; e somente quando o
fizermos é que funcionaremos verdadeiramente como cristãos,

Cada vez mais me parece que todas as nossas dificuldades provêm realmente da
nossa incapacidade de compreender a verdade a nosso respeito e a nossa situação
como cristãos. A nossa dificuldade central -e éumacoisaespantosade se ver-é
anossa incapacidade inicial de obter o conceito verdadeiro destas questões.
Somos em demasia criaturas presas à tradição. Começamos com idéias erradas -
o homem sempre começa com uma concepção errada do cristianismo.
Persistimos em pensar nele em termos de bondade, de prática do bem ou algo
semelhante; é extremamente difícil desfazer-nos dessa idéia. No entanto, isso é
algo que fica desesperadamente aquém do grande conceito neotestamentário.
Estes cristãos do Novo Testamento estão sendo constantemente exortados a
aperceber-se do privilégio da sua posição. Embora não passando de um punhado
de gente numa grande sociedade pagã, sempre lhes é dito que se regozijem, que
considerem o seu destino maravilhoso; sempre se lhes faz lembrar o que eles
são, e lhes é dito que levantem a cabeça e avancem triunfantemente. Tudo isso é
feito, é claro, à luz do que o Novo Testamento expõe como sendo a
verdadeira doutrina concernente ao cristão.

Essa matéria pode ser colocada na forma de perguntas. Somos dominados por
um senso de privilégio e por um sentimento de alegria? Qual é o nosso
entendimento do que seja um cristão? Qual é o nosso conceito da Igreja? Não é
verdade que, geralmente falando, sempre nos inclinamos a pensar nela
meramente em termos humanos? Temos a tendência de pensar na Igreja de Deus
como um instituição e sociedade humana, pensamos nela em termos das
atividades dos homens e do que os homens estão fazendo e não estão fazendo, e
de comissões e reuniões e organizações ecoisas parecidas. Indubitavelmente,
todas estas coisas fazem parte dela, e são essenciais, mas não constituem a
Igreja. Não é isso que faz da Igreja a Igreja. E também é exatamente a mesma
coisa quanto ao cristão individual. Estamos confiantes, temos segurança, quando
pensamos em nós mesmos e consideramos a vida cristã com-pleta e tudo o
quepertence a essa vida? Pensamos nela unicamente em termos de nós mesmos e
do que fazemos e pretendemos fazer, ou nos vemos como parte de um
grande processo? Compreendemos que temos o privilégio de ser introduzidos
num grande projeto, num grande plano? Ora, essa é a idéia e a perspectiva que
o apóstolo está colocando diante de nós nesta passagem, de maneira
positiva. Passemos imediatamente, pois, àconsideração dos termos que ele
emprega.

A primeira proposição de Paulo é esta: somosfeitura de Deus. Essa é a primeira


coisa que temos de compreender acerca de nós mesmos como cristãos.
Negativamente, como já vimos, isso não significa que nós nos fazemos cristãos
por nós mesmos. Não somos o que somos como resultado de algo que nós
tenhamos feito. Absolutamente nada! - a jactância é excluída. “Não de obras.”
“Não de vós.” Mas não paramos na negativa, temos que ir adiante e examinar
tudo isso positivamente, como estamos fazendo. Somos feitura de Deus. Esse é
o significado da expressão. Somos, por assim dizer, uma coisa da Sua fabricação.
Para mim este é um pensamento sumamente notável e emocionante, que somos
algo que está sendo feito e modelado por Deus. Podemos pensar nisto
individualmente a nosso respeito como cristãos; e devemos pensar nisto como
uma verdade relativa à Igreja toda. Permitam-me colocar mais uma vez a
questão em forma de perguntas. Pensamos habitualmente em nós desse modo? E
pena, porém não seria verdade que muitos de nós persistimos de algum modo em
pensar em Deus como sendo Ele inteiramente passivo? A nossa idéia de Deus é
que Ele está no céu, inteiramente passivo e esperando que nos
aproximemos dEle. Pensamos: naturalmente, se eu buscar a Deus, Ele me
ouvirá, me responderá, me abençoará. Mas, dessa maneira, sempre pensamos
na atividade real como sendo da nossa parte. Deus tem uma grande casa
do tesouro, um grande armazém; Ele tem grandiosos presentes para dar, sim,
mas não faz nada a respeito, apenas espera até que nós façamos algo, e então,
quando entramos em ação, Deus responde.

Examinemo-nos de novo à luz disso. Porventura não temos a tendência de


pensar dessa maneira? Eu me decido por Cristo e, portanto, estou justificado.
Posso ficar nisso anos e anos. Então eu decido que quero ser santificado, e assim
solicito isso também, e Deus me atende. Mas Deus é passivo o tempo todo; é a
minha atividade que importa, o que eu decido, o que eu faço. Tudo isso,
naturalmente, é completamente contrário ao ensino do apóstolo, que nos lembra,
e dá tremenda ênfase ao fato, que o cristianismo é totalmente resultante da
atividade de Deus. “Somos feitura sua.”

Deus éo artífice. Deus é que age. E assombroso que alguém possa ter caído no
erro específico que acabei de esboçar, porque a Bíblia não é senão o registro da
atividade de Deus. Como é possível que alguém possa ler a Bíblia, começando
com as palavras, “No princípio... Deus”, possa depois pensar que a coisa toda é
atividade do homem? Em toda parte é Deus quem age. Ele fez o homem, Ele fez
o mundo. O homem pecou - Deus foi em busca dele. Foi Deus quem chamou
Abraão; foi

Deus quem criou os reis; foi Deus quem chamou os profetas; foi Deus quem deu
a lei; foi Deus quem deu as instruções para a construção do tabemáculo e do
templo; e foi Deus quem, na plenitude dos tempos, enviou Seu Filho. É feitura
de Deus, atividade de Deus, do princípio ao fim. E contudo, até nós, que somos
cristãos, somos propensos a esquecer isso, e muitas vezes somos propensos a
pensar em nossa vida cristã, e no fato de sermos cristãos, em termos de algo que
nós fizemos, ou de algo que nós alcançamos. Mesmo tendo começado
damaneiracerta, inclinamo--nos a deixar que, com o tempo, a outra idéia se
insinue. Insistimos em pensar que Deus é mais ou menos passivo e simplesmente
está pronto a reagir favoravelmente ao que fazemos e ao que desejamos. Mas
o próprio termo que o apóstolo utiliza aqui deveria impossibilitar
esses pensamentos. Deus é o artífice. Deus é Quem está modelando a obra. E um
maravilhoso quadro que representa Deus como uma espécie de Artesão, uma
espécie de Artífice. O quadro nos convida a pensar em Deus como numa grande
oficina, e nos impulsiona a observá-lO dando forma, modelando e trazendo à
existência alguma coisa.

Pois bem, este é o ensino bíblico característico com relação aDeus. Vejam a
descrição que as Escrituras nos dão de Deus como Oleiro. Vocês as vêem no
Velho Testamento, vocês as vêem no Novo Testamento. Este mesmo apóstolo,
escrevendo aos romanos, emprega essa metáfora. Aí está um pouco de barro; o
artífice, o oleiro, vem e apanha essa massa de barro informe, e se põe a trabalhar
nele: Ele o faz girar e vai tirando as arestas e as pontas; ele tem certos tomos de
modelagem, e o coloca num deles. Ele vai modelando, vai fazendo algum tipo
de vaso; essa é a descrição que nos é dada - o oleiro e o barro, e essa
é precisamente a idéia do apóstolo aqui, que Deus é o Oleiro, e nós somos o
barro que está sendo formado e modelado. A obra é Sua, não nossa. Ele é o
Oleiro, o Artesão, que está produzindo uma peça de arte.

Na verdade o apóstolo usa outro termo que é ainda mais explícito. “Somos
feitura sua, criados em Cristo Jesus.” Naturalmente isso nos leva direto de volta
à idéia original da criação. “No princípio criou Deus os céus e a terra.” Que é
criação? A idéia mesma, a idéia essencial da criação, é que algo é feito do nada;
não existia, mas foi trazido à existência. E precisamente esse o modo como o
apóstolo pensa no cristão. Portanto, devemos dar adeus para sempre a todas as
idéias de melhoramento, e especialmente de automelhoramento. O fato
mais importante acerca do cristão é que ele é uma nova criação, uma
nova criatura. Deus, o Criador, Deus o Oleiro, Deus o grande Artífice, Deus o
Autor de grandes realizações, Deus o Artesão, trouxe à existência algo

ern rainha vida, algo que não estava lá antes - é isso que faz de mim um cristão.
Eu não seria cristão sem isso. Assim é que, naturalmente, falar em nações cristãs
e dizer que alguém é cristão porque pertence à uma nação cristã é simplesmente
uma gritante negação de todo o ensino bíblico. É ação de Deus, ação específica,
uma nova criação. O Deus que no princípio (como Paulo o expressa em 2
Coríntios 4:6) “disse que das trevas resplandecesse a luz”, esse mesmo Deus, de
igual modo, “resplandeceu em nossos corações, para iluminação do
conhecimento da glória de Deus, na face de Jesus Cristo”. É isso que significa
ser cristão. Nada menos que isso! Como se pode expressar essa verdade mais
claramente? O que me interessa não é simplesmente que tenhamos a idéia certa,
porém que todos nós venhamos a ver que não existe maior falsificação do
cristianismo do que a idéia de que somos cristãos por causa de alguma coisa que
nós somos, ou de alguma coisa que nós fazemos. Temos que dar-nos conta de
que somos feitura do grande Artífice, do grande Artesão. Não existe nada mais
maravilhoso do que isto, que eu, assim como sou, sou algo que foi trazido à
existência, algo que foi modelado por Deus, que sou como barro nas mãos do
oleiro. Quando penso em minha vida cristã neste mundo, devo parar de
pensar nela simplesmente em termos do que faço e do que estou fazendo,
mas, antes, devo pensar nela em termos do que Ele está fazendo comigo,
que estou nas mãos do Autor de grandes realizações, do grande Criador, e
que Ele está trabalhando em mim e sobre mim. Essa é a concepção e esse é o
ensino do apóstolo nesta passagem.

Consideremos agora a questão em pouco mais em detalhe, porque, quanto mais


entendermos esta verdade em detalhe, mais admiração e emoção nos causará.
Como Deus realiza esta obra? A primeira coisa que devemos ressaltar é que Ele
o faz no Senhor Jesus Cristo e por meio dEle: “criados em Cristo Jesus”! É
sempre assim. Já o vimos nos versículos 4 a 7, onde nos foi dito que fomos
vivificados com Ele, ressuscitados juntamente com Ele, que Deus nos fez
assentar com Ele nos lugares celestiais. Noutras palavras, Deus nos faz cristãos
aplicando a nós, passando para nós, aquilo que Ele fez por nós em Cristo.
Portanto, é tudo em Cristo. E nEle, em Sua Pessoa. É “da sua plenitude
que recebemos, egraçapor graça” (cf. João 1:16). Recebemos os benefícios da
Sua morte, recebemos os benefícios da Sua vida; recebemos a Sua própria vida.
Todo bem nos vem de Cristo. É assim que Deus o faz. Ele enviou Seu Filho, e
então Ele nos leva ao Seu Filho. Ou, para usar outra expressão, Ele forma o
Senhor Jesus Cristo em nós. E isso que Ele está

fazendo: Ele está formando Cristo em nós. “Meus filhinhos”, diz Paulo aos
gálatas (4:19), “por quem de novo sinto as dores de parto, até que Cristo seja
formado em vós.” Essa é a idéia neotestamentária do que é ser cristão. Euma
grande concepção mística, umaconcepção vi tal. Neste ponto nós estamos
totalmente fora do domínio das nossas pequenas obras e decências e
moralidades. Cristo está sendo formado em mim!

Como será que Deus faz isso? Vejam por um momento os meios que Deus
emprega para formar Cristo em nós. Tomem a minha ilustração da oficina ou da
fábrica. Vocês podem ir a uma loja e ver ali um artigo já pronto para a venda,
uma bela taça, um belo vaso, ou lá o que seja. Como esse artigo veio a existir?
Talvez vocês tenham tido a feliz ocasião de ser levados a visitar a fábrica. Vocês
já foram a uma fábrica de vidro ou a um lugar semelhante? Lembro-me de haver
visitado uma em Veneza, e lá vimos os homens fazendo realmente as
coisas maravilhosas que tínhamos visto prontas. Ficamos admirados
quando vimos o comecinho. Bem, é algo parecido que temos que pensar
agora. Como Deus produz este artigo concluído, o cristão? Vão à oficina, e
lá vocês verão exatamente como é feito. E isto que esta Epístola nos diz.

A primeira coisa da qual nos tornamos cônscios é a obra do Espírito Santo.


Vocês certamente observaram a notável ordem que se vê nas Escrituras - Deus o
Pai, Deus o Filho, Deus o Espírito Santo. O Pai planeja a salvação; Ele envia o
Filho para efetuá-la; e então Ele e o Filho enviam o Espírito para que a aplique.
Deus age em nós e Deus faz de nós cristãos, e nos modela segundo a imagem de
Cristo, ou forma Cristo em nós, primariamente pela obra do Espírito Santo. “Não
sabeis que o vosso corpo é o templo do Espírito Santo?”, diz o
apóstolo escrevendo aos coríntios (1 Coríntios 6:19). O Espírito Santo está
em nós se somos cristãos; não podemos ser cristãos sem termos o Espírito Santo
em nós. E Ele age em nós. Mais adiante consideraremos como exatamente Ele o
faz. No momento apenas estou lhes apresentando os meios que Deus emprega.
Há esta constante atividade do Espírito Santo nos cristãos individuais, em grupos
de cristãos, na Igreja. O Espírito Santo está na Igreja, e Ele está agindo e Ele está
realizando a obra de Deus; Deus está agindo por meio dEle.

Depois, o meio subseqüente que devemos mencionar é a Palavra, as Escrituras.


Vocês recordam a grande oração sacerdotal do nosso Senhor, na qual Ele diz:
“Santifica-os na tua verdade, a tua palavra é a verdade” (VA). Como nascemos
de novo? Segundo a Epístola de Tiago, somos gerados “pela palavra da verdade”
(1:18). Pedro diz: “Sendo de novo gerados, não de semente corruptível, mas de

incorruptível, pela palavra de Deus, viva, e que permanece para sempre” (1


Pedro 1:23). Deus se utiliza da Palavra para dar-nos vida. A Palavra é pregada e
aPalavra se torna vida para nós. Há nela uma semente de vida, e Deus introduz a
vida em nós mediante a introdução daPalavra em nós. Tem-se a mesma idéia no
capítulo cinco desta Epístola aos Efésios, onde o apóstolo nos fala sobre “a
lavagem da água, pela palavra”. Quando pensamos neste processo que Deus está
levando a efeito em nós, temos que pensar nesta Palavra. É aí que entra
a importânciada leitura das Escrituras. Elas são o meio que o próprio
Deus utiliza. Deus poderia realizar esta obra sem utilizar-se de meios,
mas escolheu esta maneira de agir. Por isso Ele deu o Espírito Santo a
estes escritores, para dar-lhes entendimento, para abrir-lhes as mentes para
a verdade, e para habilitá-los a transmitir a verdade. E o Espírito os dirigiu e os
guiou. Tudo visando a este grande fim - Deus, como o Artífice, produzir cristãos
e aperfeiçoar cristãos! Quão tremendamente importante é aPalavra!

Não somente isso, porém; também a pregação da Palavra. Vocês verão no


capítulo quatro desta Epístola aos Efésios que Paulo faz esta colocação: “E deu
dons aos homens. E ele mesmo deu uns para apóstolos, e outros para profetas, e
outros para evangelistas, e outros para pastores e mestres”. Para quê? - para o
“aperfeiçoamento dos santos, para a obra do ministério, para a edificação do
corpo de Cristo; até que todos cheguemos à unidade da fé, e ao conhecimento do
Filho de Deus, a varão perfeito, à medida da estatura completa de Cristo”.
Vocês entendem isso? Vocês vêem o que está acontecendo na fábrica onde estão
sendo feitos os cristãos? Olhem os bancos, olhem os tornos. O que é que vocês
vêem ali? Apóstolos, profetas, pastores, mestres, pregadores - todos colocados
ali por Deus, e Ele está realizando a Sua grande obra com eles e por meio deles.
Ele está usando todos estes homens para modelar cristãos, esta é a idéia
neotestamentária do cristianismo! - não alguém hesitando em seu leito domingo
de manhã sobre se vai ou não a um local de culto: ou se vai ler a Bíblia, ou se vai
orar. A obra não é nossa\ “não vem de vós”. Deus está fazendo isto, e é desta
maneira que Ele o faz. E Deus quem chama homens para pregarem o evangelho.
A pregação não é uma profissão - que lástima, muitas vezes é como se fosse,
mas então não tem valor. É Deus quem chama homens e quem os coloca em seus
diferentes ofícios. Ele planejou tudo. O projeto é Seu, o desenho é Seu, e tudo
está sendo posto em execução. A pregação e o ensino, os dons que Deus dá aos
homens, e os dons que Deus dá àlgreja, constituem todos eles parte do processo.
Nenhum deles é dado em

atenção aos que os recebem; são dados simplesmente para que Deus faça uso
deles, a fim de levar avante o Seu grande propósito.
Que mais? Vemos outro elemento posto diante de nós no capítulo doze da
Epístola aos Hebreus. Circunstâncias e disciplina. Qual será o ensino do capítulo
doze de Hebreus? Estes cristãos hebreus estavam tendendo a murmurar e
queixar-se porque estavam passando por provações, dificuldades e tribulações; e
o argumento que lhes é apresentado é que tudo isso está acontecendo com eles
porque eles são filhos. “O Senhor corrige a quem ama”! (ARA). O autor faz uso
de uma ilustração. Vej am os nossos pais terrenos, diz ele. Eles nos corrigem;
porém por que nos corrigem? Porque estão preocupados com o nosso bem-estar,
porque estão preocupados com o nosso desenvolvimento. O bom pai castiga
o filho, não simplesmente para aliviar as suas emoções contidas, mas porque isso
é do mais alto interesse do filho, porque ele ama o filho, porque ele está
pensando no futuro do filho. E o argumento do autor é que Deus, como nosso
Pai, faz exatamente a mesma coisa conosco. Não significa que toda vez que algo
vai mal conosco necessariamente estamos sendo castigados por Deus. Estamos
vivendo num mundo de pecado, estamos vivendo num mundo no qual as causas
secundárias operam, e com muita freqüência as nossas doenças, enfermidades
e provações nos acontecem meramente como resultado de causas secundárias;
entretanto há nas Escrituras ensino muito claro e explícito, segundo o qual Deus
castiga os Seus filhos. Ele o faz com a finalidade de aperfeiçoá-los. Noutras
palavras, se não dermos ouvidos ao ensino das Escrituras, se não o aceitarmos
positivamente, se Deus começou a operar em nós e a formar-nos e a modelar-
nos, Ele produzirá o resultado final mediante este outro método. Este pode
incluir correção, castigo -o uso que o oleiro faz do torno sugere isto, certos
ângulos têm que ser removidos, eé preciso eliminar certas arestas. Deus nos
coloca no torno, por assim dizer. Ou, para usar a mesma ilustração deste capítulo
doze de Hebreus, Ele nos coloca num ginásio, Ele faz que passemos por
ditos exercícios para podermos ser perfeitos. Sua intenção é que nos
desenvolvamos. Na verdade, eu gostaria de remetê-los ao capítulo onze
da Primeira Epístola aos Coríntios, com referência à Ceia do Senhor, onde o
apóstolo nos ensina muito explicitamente que alguns membros da igreja de
Corinto estavam doentes e fracos simplesmente por causa do pecado deles e da
sua recusa a julgar-se, examinar-se e corrigir-se a si mesmos. Deus estava
lidando com eles por meio das doenças. E o apóstolo acrescenta: “e (há) muitos
que dormem”. Grande mistério, esse, mas é evidente que o ensino é que alguns
podem até morrer, porque

isso faz parte do método de Deus tratar com eles. Não entendemos isso
plenamente, porém aí está o ensino. E tudo o que me interessa neste momento é
que vejamos que isso faz parte do processo que se segue na grande fábrica. Se
houver resistência desta massa de barro, se houver alguma dureza, se houver
alguma dificuldade, Deus tem o Seu método, Ele tem a Sua maquinaria, Ele tem
a Sua maneira de agir. Ele está produzindo um artigo perfeito e usa todos estes
diversos meios e métodos. Somos feitura Sua!

Se são esses os meios que Deus usa, qual é a obra propriamente ditai O que é
que, concretamente, Ele faz conosco? O que é que Ele faz em nós? De novo
simplesmente destaco certas coisas que são da maior importância. Uma das
primeiras coisas das quais o homem toma consciência quando Deus começa a
agir nele é que ele fica inquieto, torna-se convicto do seu pecado. Olhe para o
passado, para a sua experiência pessoal, e estou certo de que você verá que essa
é a verdade. Você estava levando a sua vida de certa maneira e seguindo certo
rumo. Milhares de outras pessoas estavam fazendo a mesma coisa. Subitamente
(ou gradativamente, não importa), você tomou consciência de certa inquietação.
De um modo ou de outro, deixou de ser feliz como era. Questões começaram a
surgir em sua mente. Note que não digo que você se sentou e disse de si para si:
“Agora estou começando a pensar”. Nada disso - surgiram perguntas em sua
mente. Não foi assim? Donde elas vieram? Vieram de Deus. Isso é obra do
Espírito Santo - a convicção de pecado. O homem é detido. Sente que tem
deparar, fica inquieto; não entende o que se passa, fica aborrecido; de fato
procura safar-se disso. Talvez se entregue à bebida, ou mergulhe no trabalho, em
qualquer coisa, para livrar-se dessa inquietação. Mas aí está, algo está
acontecendo com ele. Deus está em perseguição do homem. Como diz o poeta;

Do Senhor eu fugia

nas veredas das noites, nas veredas dos dias;

Do Senhor eu fugia

pelos portais dos anos;

Do Senhor eu fugia

nos secretos labirintos da minha mente.

Mas do glorioso Caçador Celestial não há como fugir.

Vocês sabem do que eu estou falando? Feitura Sua! Convicção de pecado!


Inquietações! Estas curiosas interferências e interrupções, este senso de que
estamos sendo tratados mediante estas coisas. Ninguém pode ser cristão sem ter
algum conhecimento disso tudo. Se, de alguma forma e em alguma medida, você
não entende o sentimento do salmista no Salmo 139, quando ele brada: “Para
onde fugirei da tua presença?”, você simplesmente não é cristão. O próprio
sentimento de resistência a Deus é uma prova de que Deus está tratando com
você e fazendo algo com você. Essa é sempre a primeira coisa - inquietação,
convicção de pecado, ser detido, ser contido, ser levado a pensar, perguntas,
inquirições. Todas estas coisas constituem obra de Deus por meio do
Espírito Santo. É como Ele começa quando de início pega essa amorfa massa
de barro. Ele pega o barro; esse é o primeiro passo. Antes de levá-lo ao torno,
antes de aparar quaisquer porções, antes de começar a alisá-lo e poli-lo, o
primeiro passo é tão-somente pegá-lo. Deus pegou você? Ou você continua a
cargo de si mesmo? Se você continua a cargo de si mesmo, manipulando a si
próprio e tentando fazer de si próprio alguma coisa, você não é cristão. A
primeira verdade acerca do cristão é que ele está ciente de que Deus o agarrou. O
Oleiro pegou o barro.

O passo seguinte é uma iluminação da mente para ver a verdade. Que processo
maravilhoso! Um homem para quem estas expressões não significavam nada,
embora as tenha ouvido a vida toda, de repente começa a ver algo nelas. As
vezes ele lia a Bíblia, e ficava aborrecido com ela; agora ele vê que ela é uma
Palavra viva, e a deseja ler. Isso é Deus; Deus no Espírito agindo no homem e
abrindo cada vez mais a sua mente para a percepção e o entendimento da
verdade. E Ele que está fazendo isso - introduzindo o pensamento; a luz e o
poder do Espírito, Deus abrindo as coisas, a Palavra se abrindo diante de nós; os
nossos olhos, o nosso entendimento, sendo iluminados. E então, por sua vez, isso
leva a um desejo da verdade, e à sede da verdade. “Desejai”, diz Pedro, “como
crianças recém-nascidas, o genuíno leite da palavra...” (VA). Como você pode
desejá-lo, se não nasceu? - se não tem vida espiritual? Mas se você tem vida o
desejará, como a criança deseja leite. E, ainda mais importante, alegrar-se na
verdade, regozijar-se na verdade, ter prazer na verdade. Isto é obra de Deus, é
como Deus faz todas estas coisas.

E, por sua vez, essa verdade leva a isto, que ficamos cientes da nossa nova
natureza, que Deus implantou em nós, o novo princípio de vida. Apesar de nós
mesmos, vemos que temos uma nova perspectiva. Digo de novo que podemos
não gostar disso, porém é um fato. Vejo que

não sou mais o que era. Posso dizer a mim mesmo: quisera Deus eu nunca
tivesse ouvido isso, para que eu pudesse sair com os meus companheiros como
antes! Todavia, não consigo. Eu posso forçar-me a ir, mas não me sinto feliz com
eles, vejo que sou diferente. Tenho nova perspectiva, nova maneira de ver; tenho
novos desejos; e tenho novas capacidades. Somos feitura Sua! Ele é o Oleiro, e
nós somos o barro. E o que o apóstolo nos ensina aqui.

Permitam-me dizer uma palavra sobre o propósito. Há, naturalmente, um


propósito definido. “Criados em Cristo Jesus para as boas obras, as quais Deus
de antemão ordenou (ou preparou) para que andássemos nelas” (VA; cf. ARA).
Ora, é coisa extraordinária esta, que há um propósito para o cristão, e Deus
planejou e projetou tudo a respeito. Qual será? E que nos moldemos à vida do
nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Devemos viver neste mundo e nesta
existência como Ele viveu. Como eu já disse, cabe-nos viver o Sermão do
Monte. Temos que pôr em ação a instrução ética destas Epístolas do
Novo Testamento - “amar uns aos outros”, não ter “torpezas” ou “conversação
torpe” em nossas bocas e evitar “parvoíces e chocarrices” ou “conversas tolas” e
“pilhérias” - a grande moda atual! “Sede pois imitadores de Deus, como filhos
amados; e andai em amor, como também Cristo vos amou, e se entregou a si
mesmo por nós, em oferta e sacrifício a Deus, em cheiro suave. Mas a
prostituição, e toda a impureza e avareza, nem ainda se nomeie entre vós, como
convém a santos; nem torpezas, nem parvoíces, nem chocarrices, que não
convêm, mas antes ações de graças.” Essa classe de vida! Fomos formados
para isso. Para isso é que somos modelados. Esse é o projeto, essa é a
fôrma, esse é o molde, essa é a imagem. Deus nos está fazendo para isso.

E tudo isso está nesta vida. Vocês gostariam de saber qual é propósito
culminante? Isto é um processo. Vocês não se tomam perfeitos num instante. A
santificação é um processo, e Deus nos leva através desse processo pelos meios
que j á indiquei .Vocês querem saber o resultado disso tudo? Bem, este é o fim
pinacular, que valerá para nós na glória, na eternidade, quando a obra realmente
estará terminada. O Senhor deu os apóstolos e os outros ministérios para “o
aperfeiçoamento dos santos, para a obra do ministério...até que todos
cheguemos à unidade da fé, e ao conhecimento do Filho de Deus, a varão
perfeito, à medida da estatura completa de Cristo”. Esse vai ser o fim. Eu e
vocês, tão certo como somos cristãos neste momento, estamos avançando com o
fim de chegar “à medida da estatura da plenitude de Cristo” (VA,

ARA). Ouçam a afirmação de Paulo, no capítulo cinco, acerca da Igreja em


geral: “Para a santificar, purificando-a com a lavagem da água, pela palavra, para
apresentar a si mesmo como igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa
semelhante, mas santa e irrepreensível”. Povo cristão, estamos nesse processo
tão certamente como somos cristãos. Deus nos pegou, Ele nos está modelando, e
vai continuar a operar em nós e conosco até que cheguemos a isto - “sem
mácula, nem ruga, nem coisa semelhante”. Não restará defeito, todo vestígio do
mal terá desaparecido, e seremos inteiramente perfeitos. Esse é o propósito,
esse é o modelo.

A única outra coisa que eu diria é que, à luz desta doutrina, é absolutamente
certo que chegaremos àperfeição. “Aquele que em vós começou aboa obra a
aperfeiçoará até ao dia de Jesus Cristo” (Filipenses 1:6). Nada que seja de fora
de nós poderá impedí-lo j amais; nada que seja de dentro de nós poderá impedi-
lo jamais. Deus nunca inicia uma obra para entregá-la meio-completa. Isso é
totalmente incompatível com a Sua majestade e a Sua glória. Quando Deus
começa, continua. Se Deus pegou você e começou a modelá-lo conforme a
imagem de Cristo, amigo cristão, tão certo como o sol está brilhando nos céus,
Ele dará prosseguimento a essa obra até você atingir “a medida da estatura da
plenitude de Cristo”. Ele dará continuidade a ela até que não haja “mácula, nem
ruga, nem coisa semelhante”, nenhum defeito, e você possa estar diante
dEle perfeito e completo, exultante de alegria. Que doutrina gloriosa! Sim, mas
em certos aspectos, que doutrina terrificante! Se você é cristão e de alguma
forma resiste à vontade de Deus quanto a você, estej a preparado para o que lhe
virá. Esteja preparado para a correção, para o castigo. Estej a preparado, talvez,
paraum tratamento duro e severo - porque Ele vai aperfeiçoar você. Ele firmou o
Seu amor em você, e você está nas mãos dEle. Em Sua fábrica não há refugos. A
obra de Deus é sempre perfeita, e é sempre completa. Que bendita base de
segurança! - a despeito daminha desobediência, da minha pecaminosidade e
daminha imperfeição. A minha única esperança é que estou em Suas mãos,
que Ele é o Oleiro e eu sou o barro, e que eu sei que Ele fará que se cumpra a
Sua perfeita vontade. Se dependesse de mim, ou de qualquer de nós, de há muito
que a coisa toda seria um completo fracasso. Contudo, somos feitura Sua!

Concluo deixando com vocês três ou quatro perguntas como testes. Isso está
acontecendo com vocês? Vocês podem dizer que são feitura de Deus? Vocês têm
aquele sentimento subjetivo de que Deus está tratando com vocês? Vocês têm
consciência da Presença e das mãos?

Têm consciência de que estão sendo amoldados e modelados? Vocês concordam


com esta doutrina, ou estão em conflito com ela? Esse é um teste muito bom.
Vocês estão desejando o genuíno leite da Palavra como crianças recém-nascidas?
Não obstante, o melhor teste é: vocês estão desejando a santidade? “Criados em
Cristo Jesus para as boas obras, que Deus de antemão ordenou para que
andássemos nelas.” Isto faz parte do Seu plano. Se vocês não desejam ser santos,
não vejo que tenham direito de pensar que são cristãos. Faz parte do propósito
de Deus que sejamos preparados para as boas obras. Se vocês pensam que, do
plano de salvação, podem apropriar-se somente do perdão, vocês entenderam
completamente mal oplano. Quando Deus olhou para vocês e os amou e
começou a agir em vocês para fazer de cada um de vocês um cristão, Ele já tinha
preparado as obras que vocês deveriam viver e realizar. Isso de justificação sem
santificação não existe. Se não há nenhum princípio de santificação em vocês,
vocês não estão justificados. Não se iludam, não se deixem conduzir mal. Não há
isso de fé sem obras. “A fé sem as obras é morta.” A prova da fé são as obras.
Não há valor nenhum numa profissão de fé cristã, se não for acompanhada
pelo desejo de ser semelhante a Cristo, pelo desejo de livrar-se do pecado, pelo
desejo de obter santidade positiva. Segundo este versículo, isto é essencial.
“Somos feitura sua, criados (por Ele) em Cristo Jesus para boas obras.” Ele nos
está fazendo para isso. Deus opera em nós para conseguir este resultado.
Portanto, o teste final quanto a se Deus está atuando em nós é ver se desejamos
ser cada vez mais como Cristo, santo e puro, separado do mundo e do pecado,
famintos e sedentos de justiça, para que agrademos a Deus que assim começou a
agir em nós.

OS JUDEUS E OS GENTIOS

“Portanto, lembrai-vos de que vós noutro tempo éreis gentios na carne, e


chamados incircuncisão pelos que na carne se chamam circuncisão feita pela
mão dos homens. ” - Efésios 2:11

Este versículo é o começo de uma declaração que tem continuidade no versículo


doze: “Que naquele tempo estáveis sem Cristo, separados da comunidade de
Israel, e estranhos aos concertos da promessa, não tendo esperança, e sem Deus
no mundo”. Mas agora chamo a atenção para o versículo onze somente.

Chegamos aqui a uma nova seção da declaração que o apóstolo Paulo faz neste
capítulo dois desta Epístola. Há uma definida interrupção aqui, e o apóstolo toma
uma nova idéia e um novo pensamento. É importante, pois, que tenhamos claro
em nossas mentes o seu argumento e o que ele pretende fazer.
O grande objetivo da Epístola é explicar e expor o grandioso propósito de Deus
durante a presente era. Vem na forma de sumário no versículo dez do capítulo
primeiro - assim, Deus se propusera “tornar a congregar em Cristo todas as
coisas, na dispensação da plenitude dos tempos, tanto as que estão nos céus
como as que estão na terra”. Esse é o grande propósito de Deus durante a
presente dispensação, o grandioso propósito de Deus em nosso Senhor e
Salvador Jesus Cristo. Cristo veio a este mundo - falando em termos do Seu
supremo objetivo - a fim de reunir, de colocar de novo sob o Seu comando todas
as coisas, tanto as do céu como as da terra. O apóstolo está interess ado em
explicar e expor isso aos membros da igreja de Efeso e às outras igrejas às
quais esta carta deveria ser enviada. Vimos também que o apóstolo logo passa a
dizer que este propósito de Deus, grandioso e final, j á está sendo posto em
operação, que a própria Igreja é uma ilustração dessa verdade, no sentido de que
os efésios, juntamente com outros gentios, tinham sido introduzidos na Igrej a,
como os judeus. Tendo dito isso, o apóstolo passa a dizer a estes efésios que a
coisa mais importante para eles era que tivessem iluminados os olhos do seu
entendimento.

Paulo quer que os efésios conheçam particularmente “a sobreexcelente grandeza


do poder de Deus para com eles”. Portanto neste segundo capítulo (da Epístola)
ele expõe e demonstra para eles

esse grande poder. Ele ilustra para eles o que está querendo dizer. É admirável, é
espantoso, que estes efésios, estes gentios, sejam membros da Igreja Cristã, lado
a lado com os judeus. E só existe uma coisa que tornou isso possível, esta
sobreexcelente grandeza do poder de Deus. É o mesmo poder que Deus
manifestou ressuscitando o Senhor Jesus Cristo dentre os mortos.

Como isso é demonstrado? Desta maneira: havia dois obstáculos principais entre
estes e sua vinda para Deus, a fim de serem cristãos e membros da Igreja. O
primeiro obstáculo era o seu estado e condição em pecado. O apóstolo trata
disso nos dez primeiros versículos deste capítulo. Já estivemos tratando disso,
não o olvidemos. Ele os faz lembrar-se do que eles eram. Mas agora são cristãos.
Que foi que os mudou, que foi que os trouxe daquilo para isto? Há só uma
resposta: é o poder de Deus - nada menos que isso. Lá estava aquele
terrível obstáculo - e continua sendo o grande obstáculo entre todos os homens e
Deus - a morte do pecado. Nada, senão o poder de Deus, poderia ter lidado com
tal situação.
No entanto, havia um segundo obstáculo, mais uma coisa que se interpunha
entre estes gentios e a qualidade de membros da Igreja de Cristo e o
conhecimento de Deus. Que seria? Era a sua posição, ou o seu “status”, na
economia de Deus, e especialmente em termos da sua relação com a lei de Deus.
É a esse assunto que o apóstolo se dedica neste versículo onze, continuando até o
versículo doze do capítulo três.

Aí está, obviamente, outra questão vitalmente importante. Como esse primeiro


obstáculo ainda opera, assim também este segundo obstáculo continua operando.
Portanto, não estamos empenhados num estudo acadêmico, puramente objetivo,
de algo que era real há dois mil anos. É real hoje como então. As Escrituras são
sempre relevantes e contemporâneas, elas falam de nós e de todos os demais.
Daí então, é de vital interesse que entendamos o ensino do apóstolo neste ponto.

Proponho-me a tratar disso apenas de maneira geral no momento, pois quero


fazer uma introdução geral da seção toda. O apóstolo está desejoso de que estes
efésios captem e apreendam verdadeiramente quão tremenda coisa era eles se
tomarem cristãos e serem membros da Igreja Cristã. O segundo meio de que se
utilizou para conseguir que eles enxergassem isso é o seguinte: “... lembrai-vos”,
diz ele, “de que vós noutro tempo” - e em seguida vem a descrição. E assim que
ele a introduz. Será somente quando eles se lembrarem disso, e somente quando
se derem conta de qual é a verdade a seu respeito, que eles

poderão realmente começar a entender a grandeza do poder de Deus. Vocês


jamais poderão aperceber-se da grandiosidade do poder de Deus, enquanto não
se aperceberem da grandiosidade dos obstáculos que aquele poder venceu. Há
muitos hoje que não vêem nada na salvação cristã, que não ficam admirados face
a ela, e que pensam que, provavelmente, Paulo era um psicopata, porque ele
entrava em êxtase quando contemplava as glórias da salvação. Eles não vêem
nada disso; para eles não há no cristianismo nada que cause admiração, que
cause espanto. Por quê? Porque nunca se deram conta do problema, porque
ignoram o pecado e nada sabem da ira de Deus. Não se dão conta da natureza
destes obstáculos e dificuldades. O apóstolo tinha consciência disso; e ele
quer que os efésios também a tenham. O seu método para essa finalidade
é lembrá-los do que eles eram e fazê-los ver como Deus venceu este segundo
obstáculo. Isto, num sentido, é tão esplêndido e maravilhoso como o modo pelo
qual Ele venceu o primeiro.

Qual é o segundo obstáculo? Permitam-me expressá-lo assim: naqueles tempos


antigos o mundo estava dividido em dois principais grupos, judeus e gentios. A
divisão parecia absoluta, e qualquer conversa sobre reconciliação parecia
descomunal e impossível. Judeu e gentio! Os judeus e os “cães”! Mas, por outro
lado, os gentios tinham a sua classificação, particularmente os gregos. Para eles
o mundo todo estava dividido em gregos e bárbaros - o povo inteligente, os
filósofos, os gregos, de um lado; os ignorantes, os iletrados, os bárbaros de
outro. Essa era a situação, e parecia completamente impossível que estes
dois segmentos, estes segmentos em conflito e que se desprezavam um ao outro
tão fortemente, se juntassem e se reconciliassem, muito menos que fossem vistos
ajoelhar-se juntos, cultuando e adorando o mesmo Deus e o mesmo Senhor.
Todavia aconteceu, diz Paulo. O espantoso é que isso é verdade. Estes efésios
foram introduzidos e igualmente são membros da Igreja. Este é o fato espantoso
que nada menos que “a sobreexcelente grandeza do poder de Deus” poderia
fazer acontecer.

Pois bem, essa é a mensagem. A maneira pela qual o apóstolo a expressa é


extremamente interessante. Vejam o versículo onze, que estamos considerando.
E onde ele introduz o assunto. Vocês notaram o modo como ele o faz? Pessoas
há que com freqüência acham este versículo difícil, e o é até que se veja
exatamente o que ele significa. Na primeira leitura parece impossível. Vejam-no
de novo: “Portanto, (vós efésios), lembrai-vos de que vós noutro tempo éreis
gentios na carne” - e então esta longa declaração, “e chamados incircuncisão
pelos que na carne se chamam circuncisão feita pela mão dos homens”.

Significa isto: Paulo começa fazendo-os lembrar-se de que de fato eles eram
“gentios na carne”. Era um simples fato da história, um fato literal, sólido, que
como gentios eles não tinham sido circuncidados. Portanto, eram “gentios na
carne”. “Na carne” aqui não é um contraste com “no espírito”, porque, se fosse,
o apóstolo pareceria estar dizendo: é verdade que vocês eram gentios na carne,
porém, naturalmente, no espírito vocês estavam bem. Não é nada disso que ele
quer dizer. Eis o que ele quer dizer: é um duro fato de que vocês eram gentios na
carne; não tinham a marca, o sinal, o símbolo de serem judeus - vocês
não tinham sido circuncidados. Mas ele não abandona o ponto aí. Poderia fazê-
lo, entretanto sai numa espécie de digressão que termina no fim do versículo, e
depois volta ao ponto de origem, no princípio do versículo 12. Mas a digressão
vem carregada de interesse. “Portanto, lembrai-vos de que vós noutro tempo
éreis gentios na carne”, éreis chamados incircuncisão pelos que a si mesmos se
intitulavam ou se chamavam circuncisão, circuncisão na carne, feitapelas mãos.
A dificuldade era que os judeus se haviam agarrado a isso, que era realmente um
fato, e o tinham transformado num problema. Visto que tinham entendido
mal oensino das suas próprias Escrituras, passaram apensarqueaúnicacoisa que
realmente importava era o sinal na carne. Estavam considerando isso de maneira
material, carnal, e para eles nada importava, senão a circuncisão qua *
circuncisão. Para eles isso era tudo, era da máxima importância, e nada mais
importava. Eles tinham entendido errada-mente o propósito todo, até mesmo a
circuncisão propriamente dita; com isso criaram esta grande barreira, este grande
obstáculo no mundo antigo. O apóstolo faz a sua colocação com estas palavras:
vocês eram gentios na carne. Sim, e por aquelas pessoas que se diziam A
Circuncisão vocês eram apelidados e descritos como A Incircuncisão. Os que
falam somente em termos da carne e daquilo que é feito pelas mãos dos homens,
pensando unicamente nesse nível, põem-se à parte e dizem: “Nós somos A
Circuncisão, e aqueles outros são A Incircuncisão".

Este é um ponto muito importante que vocês devem observar quando lêem as
Epístolas do Novo Testamento. Vejam, por exemplo, o que Paulo escreve aos
filipenses (3:3): “A circuncisão somos nós” -nós, os cristãos! - “que servimos a
Deus em espírito, e nos gloriamos em Jesus Cristo, e não confiamos na carne”. E
exatamente o mesmo ponto. Noutras palavras, para termos um verdadeiro
entendimento
Porque, como. Em latim no original. Nota do tradutor.

destas Epístolas paulinas, temos que entender o ponto que ele está defendendo
neste versículo. Não somente era um fato e uma verdade que os gentios não
tinham sido circuncidados; desafortunadamente, os judeus tinham exagerado
esse fato, e tinham feito daquilo uma parede de separação que parecia
completamente irremovível.

Pois bem, essa pequena exposição é vital para ter-se entendimento de tudo o que
temos para dizer. Havia dois aspectos deste segundo obstáculo que Deus tinha
que vencer antes de os efésios poderem tornar-se cristãos. Primeiramente havia a
atitude dos judeus para com os gentios. E depois, em segundo lugar, havia a
atitude de Deus para com os gentios. A atitude de Deus tinha que manifestar-se
porque, afinal de contas, eles não tinham sido circuncidados, não eram da
semente de Abraão. Mas, antes de passarmos aisso, temos que examinar esta
atitude judaica, esta “circuncisão e incircuncisão”, esta divisão. Há, creio eu, um
elemento próximo do sarcasmo na maneira pela qual o apóstolo se expressa -
“éreis...chamados incircuncisão pelos que na carne se chamam (ou se intitulam)
circuncisão feita pela mão dos homens". Vocês podem observar a ênfase que ele
dá. O grande ponto que ele defende é que Deus venceu este obstáculo duplo.
Ambas estas dificuldades foram sobrepujadas por Cristo e pelo que Ele fez. A
atitude do judeu para com o gentio foi corrigida, se o judeu se tornou cristão; e
a atitude de Deus para com eles também mudou. Assim, toda a questão da lei foi
solucionada por nosso Senhor e Salvador. Esse é o argumento real e concreto do
apóstolo.

Permitam-me agora mostrar-lhes a relevância disso tudo hoje, porque continua


sendo verdadeiro. Estamos vivendo numa era e num tempo em que há muito
pensamento e muita concentração precisamente sobre este problema. O mundo
está cheio de divisões e conflitos. Todos nós sabemos destes fatos; vemo-los
entre nações - a tensão entre os Estados Árabes e Israel, entre o Oriente e o
Ocidente, e todas as diversas subdivisões e ramificações. Divisões! - a Cortina
de Ferro1, a Cortina de Bambu, e assim por diante! Contudo, essa verdade não
diz respeito somente à esfera das nações e das relações internacionais; aplica-
se igualmente ao que ocorre dentro das nações: classes, grupos e várias outras
divisões. O mundo, em certo sentido, está repleto desta coisa toda. Assim como
o mundo antigo estava dividido da maneira que vimos, assim também o mundo
moderno está dividido desses vários modos. E

acontece a mesma coisa com a Igreja Cristã: seitas, denominações, grupos e


divisões, e barreiras. Que pena! E tudo isso está ocupando muito pensamento e
muita atenção no presente. Fala-se disso interminavel-mente, escreve-se
interminavelmente sobre isso. Todo mundo está preocupado em conseguir
entendimento, em obter unidade, e em tratar desse problema nestas diversas
esferas. E, todavia, não pareceria que grande parte dessa conversa, desses
escritos e dessas atividades é completamente vã e inútil? Parece não levar a
nada; e a questão é: por quê? A resposta está no que Paulo ensina nesta
passagem; pois a sua afirmação aqui, como em toda a sua Epístola, é que a única
unidade digna de que dela se fale só é possível sob certas condições. A Igrej a
Primitiva, que consistia de judeus e gentios, foi a demonstração da
verdadeira unidade. Eles foram aproximados e reunidos, dirigiam-se juntos
em oração ao mesmo Pai graças ao Espírito, estavam na mesma Igrej a,
eram concidadãos, na verdade eram membros da mesma família. Esse é o único
caminho, e todo e qualquer outro caminho que se tente não levará a nada. Para
mim, uma das maiores tragédias da hora presente, especialmente na esfera da
Igreja, é que a maior parte do tempo parece que é tomada pelos líderes para
apregação sobre unidade, em vez de pregarem o evangelho, o qual, unicamente,
pode produzir unidade. O tempo é gasto com falas e conferências,
interminavelmente - conferências nas quais eles “averíguam as suas
dificludades”. Jamais se conseguirá unidade dessa maneira. Unicamente o
evangelho produzirá unidade. E enquanto houver desacordo sobre o evangelho,
será desperdício de fôlego e de energia falar sobre qualquer outro caminho para a
unidade. Essa é a mensagem desta seção, como eu a vejo; e não se aplica
somente à Igreja, mas também se aplica ao mundo de fora.

Qual é o ensino, então? Permitam-me resumi-lo da seguinte maneira: o apóstolo


queria fazer-nos ver que existem duas questões principais que terão que ser
consideradas antes de haver alguma esperança de unidade e de solução dos
problemas e dificuldades. Quais são? __ A primeira é que temos de compreender
a causa da dificuldade. É preciso afirmar isso constante e interminavelmente nos
dias atuais! Muito do que debalde se fala e se escreve sobre unidade e
entendimento hoje deve-se inteiramente a uma só coisa, a saber, que os que o
fazem nunca encararam acausada dificuldade. Épreciso ter o diagnóstico
antes de fazer o tratamento. Quem se apressa a fazer tratamento sem saber
com segurança qual é o diagnóstico, simplesmente não sabe o que
faz. Positivamente está se arriscando. Medicar os sintomas ignorando a

doença, a causa em suas raízes, é pura loucura. É porque as pessoas


simplesmente não reconhecem a causa como esta passagem a ensina, que todas
as suas tentativas são comprovadamente inúteis.

Aqui o apóstolo fala sobre a causa, sobre a moléstia. Vejam este caso dos judeus,
como ele o coloca no versículo onze. Podemos expressá-lo da seguinte forma,
como um postulado: a divisão do mundo antigo era devida a uma só coisa, e essa
era que as diferenças tinham-se tornado barreiras, as diferenças tinham-se
tornado uma “parede de separação que estava no meio”. As diferenças existem, e
menosprezá-las é tolice. As diferenças são fatos. E mesmo quando se tem
verdadeira unidade, permanecem as diferenças. Todavia a tragédia é que os
homens exageram as diferenças e as transformam em barreiras, em
obstáculos, em “cortinas”, em paredes de separação no meio. Era exatamente o
que aqueles judeus estiveram fazendo. A ordenação de Deus era que houvesse
judeus e gentios. Deus é que tinha formado a nação dos judeus. Havia uma real
diferença. Os judeus eram circuncisos, os outros não. Mas isso não era para ser
uma barreira. Deus não criou uma nação para não se importar com as outras; Ele
criou a nação dos judeus para falar por meio deles ao mundo inteiro. Entretanto
o judeu o tinha entendido erroneamente. Ele transformara essa diferença numa
barreira, mantinha-se separado e desprezava os demais. A Circuncisão -
A Incircuncisão!

Como isto se desenvolve e a que leva? Segundo o apóstolo, parece que o faz da
seguinte maneira: primeiramente leva ao orgulho. É certamente um fato que o
problema em foco é causado pelo orgulho, pelo ego. Esta é a causa fundamental
de toda divisão, de toda barreira, de todo obstáculo. Essa é a causa de todas as
barreiras de separação que se interpõem. E acausa basilar de tudo quanto divide
as pessoas. O orgulho e o ego! O orgulho cega, o orgulho é um espírito poderoso
que nos dirige, nos subjuga e nos domina. Sob a influência do orgulho a pessoa
não pensa direito, toma-se preconceituosa. Não é capaz de ver coisa
alguma como verdadeiramente é. O preconceito é uma das maiores maldições da
vida, e geralmente tem a sua base e as suas raízes no orgulho. Tem o poder de
cegar completamente a gente. Como funciona? Primeiramente impede-nos de
ver os dois lados de uma questão. Para quem é governado pelo preconceito, não
existe um segundo lado, há somente um, não há outro. Ele está completamente
cego. Ora, essa era a atitude do judeu: “A Circuncisão”, “A Incircuncisão”! Ele
não admitia os gentios, ele voltava as costaspara eles. Não seria essa a essência
de todas as contendas?

Depois, outro modo de funcionar do preconceito é este: sempre nos leva a ter um
falso conceito de nós mesmos. O preconceito, e o orgulho que leva ao
preconceito, não somente impedem a pessoa de ver que há outro lado; também
produzem nela um conceito próprio inteiramente falso. Dessa maneira, o
preconceito sempre exagera o que há de verdade a seu respeito. Era uma
ordenança de Deus que o judeu fosse circunci-dado, porém o judeu exagerava
isso ao ponto de dizer que só haviauma verdadeiranação na terra, anação judaica.
Os outros povos eram “cães”. Ele exagerava o que era verdade a seu respeito.
Ele pensava que simplesmente porque era judeu, necessariamente estava em
boas relações com Deus, e não precisava de mais nada. Por isso os
judeus crucificaram o Filho de Deus, porque Ele lhes mostrou que isso não
era verdade.

Outra coisa que o preconceito faz é tomar-nos incapazes de ver e perceber que o
que quer que sejamos, e o que quer que tenhamos, não se devem a nós, mas foi
Deus quem nos deu. Os judeus tinham esquecido completamente que a
circuncisão era um dom de Deus. “Somos descendência de Abraão, e nunca
servimos a ninguém” (João 8:33), disseram os judeus a Cristo certa ocasião.
Pobres tolos cegos! Como se pudessem responder por si! Todos nós tendemos a
fazer a mesma coisa. Vejam como os homens se gabam da sua capacidade.
Que direito tem o homem de gabar-se da sua capacidade? Foi ele que
a produziu? Foi ele que a gerou? Não, ele nasceu com ela, foi-lhe dadapor Deus.
Todos estes dons nos são dados por Deus. Um homem se orgulha da sua
aparência. Ele é responsável por tê-la? Ele a produziu? Não obstante, é isso que
o orgulho faz, como vocês vêem. Exagera o que temos, e afirma que nós o
produzimos. E não se apercebe, com humildade, de que é tudo dado por Deus e
vem das Suas generosas mãos. São estas as sementes da desunião, da guerra e do
derramamento de sangue.

Ademais, o preconceito faz que tenhamos um falso conceito dos outros. Visto
que nos faz exagerar o que temos, faz-nos também diminuir o que eles têm.
Vocês o reconhecem atuando em sua própria vida, não reconhecem? Como
sempre aumentamos o que é do nosso lado e tiramos do outro! Relutamos em
reconhecera bondade quando ela está nos outros: não queremos reconhecê-la. E
porque não queremos, não a reconhecemos. De fato, subtraímos, tiramos até não
deixar nada. O judeu estava convencido de que não havia nada de valor nos
gentios; nem lhes pareciam humanos; eram “cães”. Exatamente da mesma
maneira o grego, com a sua cultura, considerava os outros como bárbaros,

iletrados. O preconceito não se limita a diminuir e a subtrair os valores alheios,


mas também passa a desprezar os outros. Pensem nas “castas inferiores e fora da
lei”, de Kipling, em expressões como “não britânico”, “forasteiros”,
“Herrenvolk” v “nativos”. Aí vocês têm a fonte de muitas contendas e
dificuldades. É porque essamentalidade foi tão propensa e predominar no século
passado que o mundo se defronta com tantos problemas hoje, e particularmente
este nosso país, talvez. Mas é a mesma coisa com os indivíduos. É o que se dá
com todos os que se deixam governar pelo orgulho e pelo ego. É como se
desenvolve e funciona - exagero do que nos é lisonjeiro, diminuição e desprezo
dos outros. “Chamados incircuncisão pelos que na carne se chamam
(se intitulam) circuncisão feita pela mão dos homens”! Não admira que Paulo
tenha sido um tanto sarcástico. Ele queria ridicularizar a coisa, e assim a retratou
dessa maneira, para que todos vissem como é horrível e torpe.

Ora, existe uma segunda grande causa de divisão, a saber, um errôneo juízo de
valores. Tendo já feito referência a isto em princípio, permitam-me agora dar-
lhes os detalhes. Toda a tragédia do judeu, naquele tempo, foi que ele omitiu o
ponto essencial. Faltou-lhe um real juízo de valores. Ele achava que o que
importava era a circuncisão. O que Paulo e outros tinham para ensinar-lhes era
que o que importa é a circuncisão do espírito; que a pessoa pode ser circuncidada
na carne e, ao mesmo tempo, estar condenada e perdida; que o homem que está
em boas relações com Deus é o que foi circuncidado no espírito; e que isso é tão
possível para o gentio como para o judeu. Mas o judeu tinha parado na carne;
seu senso de valores estava errado, ele tinha interpretado mal a circuncisão. A
circuncisão era meramente um sinal externo de um estado interno, espiritual. Era
o que a circuncisão fora destinada a ser, porém, o judeu tinha ficado cego para
isso.

Notem as duas coisas que Paulo acentua: “na carne”, e “feita pela mão dos
homens”. “Incircuncisão pelos que na carne se chamam circuncisão feita pela
mão dos homens.” Com a expressão “a carne” aqui, ele se refere à ênfase dada
às aparências, às exterioridades e àquilo que é puramente físico. Nacionalidade!
E puramente da carne. E um cabal acidente nascer numa nação, e não noutra.
Certamente é um fato a existência de diferentes nações e nacionalidades; mas
nós nos
Povo ou nação superior. Em alemão no original. Nota do tradutor.

inclinamos a fazer exatamente o que os judeus fizeram, transformamos estas


coisas em barreiras. Porque sucedeu que eu nasci em determinada nação, essa é
a nação. Outro homem diz exatamente a mesma coisa acerca da sua nação. Isso é
tomar uma coisa que é legítima na carne, entretanto exagerá-la até se tornar algo
tremendo. Nacionalidade! As pessoas lutam por isso, dão a vida por isso, matam
outras pessoas por isso. Nacionalidade! Nascimento! Família! Sangue! Como
exageramos e inflamos estas coisas! Como desprezamos outras pessoas! Como
estas coisas criam barreiras! O povo atribui mais significação à
simples linhagem dos homens do que ao seu espírito, à sua alma, ao seu
caráter, ao seu entendimento. Aquelas coisas são barreiras literais na
vida; muitos são postos no ostracismo por esses motivos. A cor da pele!
Pura questão da carne, mas é o tipo de coisa que leva àquela horrível
frase -“castas inferiores e fora da lei”. Que lástima! A alma, a mente, o espírito,
não são levados em consideração. A avaliação é puramente em termos da carne.
Capacidade, dinheiro, escola e instrução, posição na vida - são as coisas que têm
causado divisões, disputas, miséria e infelicidade no mundo atual, e todas elas
pertencem à carne.

Desafortunadamente, quando se chega aos domínios da religião, vê-se a mesma


coisa. Nada causa tanta divisão como a concentração em meras exterioridad.es
da religião. Os que mais perseguiram o nosso Senhor e que finalmente foram
responsáveis por Sua morte foram os saduceus e os fariseus. Por quê? Porque só
estavam interessados nas exterioridades, nas formas, nas cerimônias e nos
rituais, ignorando completamente o espírito. E ainda continua sendo assim.
Concentração nas formas, em belos cultos, liturgias, cerimônias, vestes e coisas
desse tipo relacionadas com o culto de Deus estão dividindo as pessoas.
É simplesmente a velha prática dos judeus repetida na sua forma moderna; o que
pertence à carne é agarrado até vir a ser uma barreira.

Vejam, porém, por um momento a outra frase. Não somente “a carne”, mas
também “feita pela mão dos homens”, diz Paulo, isto é, puramente humana.
Quais são as coisas que estão causando divisão na Igreja hoje? Por que não nos
sentamos todos juntos à mesa da comunhão? Ah, diz um, você não pode vir à
mesa e comer do pão e beber do vinho se não foi confirmado, se certas mãos não
foram impostas sobre a sua cabeça. “Feita pela mão dos homens”, vocês vêem!
Não importa se a pessoa nasceu de novo e tem em si o Espírito de Deus e se
está vivendo como um santo a vida cristã. Não participará porque ela não foi

confirmada.* Que valor há em falar em unidade e em re-união, que vale ter


grandes conferências e dar-lhes grande publicidade, se os próprios líderes de tais
conferências ainda agem em termos dessas barreiras? É irreal, quase chego a
dizer que é desonesto. Mas outros dizem: você não virá à mesa se não foi
batizado de um modo particular. É o modo como você foi batizado que importa,
e você é excluído da mesa do Senhor simplesmente por causa da quantidade de
água com a qual foi batizado. “Feita pela mão dos homens”! E há outros círculos
que não o admitirão à participação do pão e do vinho por causa de detalhes e
minúcias semelhantes. É uma repetição da maneira de ver dos escribas,
dos fariseus, dos saduceus e dos doutores da lei. Estas coisas
pertencem meramente à periferia. Estamos dispostos a conceder que haja
diferenças de opinião sobre estas questões, porém elas jamais deveriam
chegar ao centro, jamais deveriam tornar-se barreiras, jamais deveriam interpor-
se como paredes de separação. Nunca se recuse a vir à mesa do Senhor com
outra pessoa por nenhuma dessas razões.

Vocês verão tradições similares também em questões de governo e ordem da


Igreja. Há os que são muito mais leais à tradição de sua denominação particular
do que ao Senhor Jesus Cristo. É geralmente por acidente que eles pertencem à
denominação, é simplesmente porque os seus pais pertenciam a ela, e porque
foram criados nela; mas lutam por ela, brigam por causa dela. Isso vem a ser a
coisa importante e vital. De algum modo, Cristo e a Sua verdade são
inteiramente esquecidos e não são mencionados. “Feita pela mão dos homens”,
tradições humanas, lealdade a formas, tradicionalismo! São estas as coisas que
levam a separações e desuniões.

São estas, pois, as causas. Qual a cura? O apóstolo a expõe claramente aqui.
Unicamente Cristo pode curar, e a razão disso é que
é necessáriaumamudançadocoração. Não basta apenas apelar para aboa vontade,
para a bondade, para o amigável e para a fraternidade. Simplesmente não
funciona, e não funcionará; de fato nunca funcionou. Tampouco é suficiente
apenas apelar em geral para que os homens e as mulheres apliquem o ensino de
Cristo. Esse é o apelo popular hoje. Venham, dizem eles, vamos tomar e aplicar
os ensinamentos de Cristo. Alguns pensam que, se você fizesse isso, se este país
fizesse isso, de algum modo até a guerra seria banida e não haveria mais
problema. A resposta
Certamente isto se aplica à profissão de fé feita por adultos batizados na infância, como também ao
batismo de adultos. Nota do tradutor.

a isso é, de novo, que não é verdade, simplesmente não é fato. Já foi tentado. Foi
tentado nas escolas onde não acreditam mais na disciplina. Foi tentado nas
prisões, onde também ninguém mais crê realmente na disciplina. E vocês vêem
os resultados, vocês vêem o aumento da barbárie e do destemor de Deus. Mais
importante que isso, porém, é algo que vai contra as Escrituras, não é bíblico,
não é ensino de Deus, ensino que mostra que, enquanto o homem não vier estar
“sob a graça”, terá que ser mantido “sob a lei”. A natureza humana é má e
sempre se expressará, pelo que você tem de refreá-la, você tem que dominá-
la. Quando há feras selvagens em volta de você, você tem que estar preparado
para enfrentá-las. A idéia de que, se você for falar suavemente com pessoas que
têm a mentalidade de Hitler elas lhes darão ouvidos e deixarão de ser agressivas,
é quase patética e fátua demais, nem merecendo consideração.

Não, há somente um método, o método de Cristo. Ele nos diz a verdade sobre
nós. Ele faz que nos encaremos a nós mesmos. Face a face com Ele, vejo a
minha total inutilidade, a minha indignidade, a minha miséria. Quando
contemplo a face de Cristo, vejo que não tenho nada do que me gabar. Esqueço
tudo o que tenho exagerado, todas as coisas em que tenho confiado. Aqui não
sou nada, sou um mendigo. Cristo faz--rae ver a verdade sobre mim. Você jamais
conseguirá unidade entre os homens, enquanto eles não virem a verdade acerca
deles próprios. Ele faz-me ver também que a mesma coisa vale realmente para
todos os outros; que vale para aquela outra pessoa de quem não gosto, e vale
para a outra nação; que somos todos iguais, que somos um no pecado, um
no fracasso; que estamos todos debaixo da ira de Deus; que as coisas
cuja importância nós temos exagerado são trivialidades. “Não há um justo, nem
um sequer”; somos todos réus condenados diante de um Deus santo. Ele a todos
nos humilha até ao pó. Ele já demoliu a maior parte das diferenças.

Depois Ele nos mostra que todos nós necessitamos da mesma graça, da mesma
misericórdia, do mesmo amor, E juntos recebemos estas bênçãos e todos juntos
as compartilhamos. Prestamos culto à mesma Pessoa e nos regozijamos na
mesma salvação. Tendo compreendido isso tudo, daí em diante a minha lealdade
não é a mim, e sim a Ele; e a do outro homem não é a si, mas a Ele. Assim nos
esquecemos um do outro e não mais somos desconfiados, invejosos e
contenciosos; vamos juntos a Ele, e juntos entoamos o Seu louvor.

Esse é o método segundo o qual Cristo o faz. Não é a aplicação do espírito de


Cristo feita pelo homem. E a colocação do Espírito de Cristo

dentro do homem. O homem não regenerado é incapaz de aplicar o princípio e o


espírito de Cristo; ele nem quer fazê-lo. Um homem pode persuadir-se por algum
tempo de que deseja fazê-lo, porém, outros não querem, e então vêm divisões,
distinções e guerras. Há uma única esperança - que homens e mulheres nasçam
de novo, que sejam reconciliados pelo sangue de Cristo, que Deus os perdoe, que
Deus lhes dê nova natureza e novo coração, e implante neles um novo Espírito.
E ao compartirem este Espírito, eles Lhe prestarão culto e O louvarão e
se gloriarão nEle; agora eles já não se gloriam em si mesmos, nem em
suas nações, nem em coisa alguma, a não ser no fato de que o Senhor
Jesus Cristo foi crucificado por eles, e que por Ele eles foram crucificados para o
mundo e o mundo foi crucificado para eles.

Esta é a única base da unidade. Não a organização, nem nenhuma outra coisa,
mas a humildade do novo homem em Cristo, a vida dominada por Cristo, a vida
centralizada em Cristo. Eis o que derruba todas as paredes interpostas: “de
ambos os povos fez um” em Cristo. Queira Deus abrir os nossos olhos para isto
em todas as nossas relações pessoais. Queira Deus abrir os olhos da Igreja para
isto. Que o mundo veja que só há uma esperança de paz verdadeira, vir reunir-se
aos pés do Príncipe da paz, o Rei da justiça.

1
Esta obra, no original inglês, foi publicada em 1972 (Ia edição). Nola do tradutor.
15
SEM CRISTO

“Que naquele tempo estáveis sem Cristo, separados da comunidade de Israel, e


estranhos aos concertos da promessa, não tendo esperança, e sem Deus no
mundo.” - Efésios 2:12

Passamos agora, neste versículo doze, a ver e estudar em detalhe o segundo


aspecto deste problema, a saber, como foi possível que estes efésios, que eram
gentios, incircuncisos - como foi possível que eles fossem introduzidos na Igreja
Cristã e unidos aos cristãos judeus para formarem um novo corpo, a Igreja
Cristã? Essa é a questão da qual o apóstolo trata aqui. A distinção entrejudeu e
gentio era deveras real. Não devemos menosprezá-la, nem diminuí-la, nem tratá-
la como algo de somenos importância. Afinal de contas, foi Deus mesmo que
introduziu o sinal da circuncisão. Foi Deus que mandou Abraão circuncidar-se
e circuncidar os seus filhos, e que isso fosse feito perpetuamente. Portanto, não
devemos subestimar essa distinção entre judeus e gentios. Mas, embora
reconheçamos a distinção, devemos ter claro entendimento do que ela significa e
o que representa. Foi nesse ponto que os judeus se extraviaram. Para eles o sinal
externo, sozinho, significava tudo. Era algo na carne, era algo externo. Este
homem é circunciso? Então ele está bem, ele pertence ao povo de Deus. É
incircunciso? Então ele está mal e não tem esperança nenhuma. Eles tinham
entendido de maneira totalmente errônea o objetivo, o propósito e o espírito
da circuncisão.

O apóstolo trata dessa questão em muitas das suas Epístolas. Ele o faz, por
exemplo, de maneira particularmente clara, na Epístola aos Romanos, capítulo
dois, versículos vinte e oito e vinte e nove, onde ele diz: “Porque não é judeu o
que o é exteriormente, nem é circuncisão a que o é exteriormente na carne. Mas
é judeu o que o é no interior, e circuncisão a que é do coração, no espírito, não
na letra; cujo louvor não provém dos homens, mas de Deus”. Noutras palavras,
os judeus tinham sido totalmente incapazes de ver que todo o objetivo disso era
algo espiritual na mente de Deus. O apóstolo estava muito preocupado com isso.
Alguns, quando ouvem quenão existe mais circuncisão e incircun-cisão, judeu e
gentio, e assim por diante, mostram-se propensos a dizer: bem, então não
precisamos dar atenção a estas coisas. Alguns cristãos
têm sido bastante tolos para dizer que, uma vez que somos cristãos, não
necessitamos do Velho Testamento. Todavia, isso, diz ainda o apóstolo na
Epístola aos Romanos, está completamente errado. “Qual é logo a vantagem do
judeu? Ou qual a utilidade da circuncisão?” E ele replica: “Muita, em toda a
maneira, porque, primeiramente, as palavras de Deus lhes foram confiadas”.
Depois, no capítulo nove da Epístola aos Romanos, ele torna a desenvolver o
mesmo argumento. Ele fala da sua grande tristeza e dor no coração - “Porque eu
mesmo poderia desejar ser separado de Cristo, por amor de meus irmãos, que
são meus parentes segundo a carne; que são israelitas”. Que é que ele quer dizer?
Ele prossegue para dar aresposta: “dos quais é a adoção de filhos, e a glória, e os
concertos, e a lei, e o culto, e as promessas; dos quais são os pais, e dos quais é
Cristo segundo a carne, o qual é sobre todos, Deus bendito etemamente”. Havia
um propósito e objetivo muito real na distinção entre judeu e gentio. Não era
como os judeus o interpretavam, que o faziam erroneamente, mas lá estava o
fato, e era extremamente importante. Aqui, agora, neste versículo doze de
Efésios, capítulo dois, Paulo nos dá o verdadeiro conceito da matéria em foco.
No versículo onze ele nos dá o falso conceito da circuncisão; no versículo doze
ele nos dá o verdadeiro conceito da circuncisão e da falta dela.

O apóstolo apresenta o seu ensino de maneira interessante, extraordinária e, à


primeira vista, surpreendente. Eis como ele o expressa: “Que naquele tempo
estáveis sem Cristo”. Ora, esse é um modo estranho de dizê-lo - “sem Cristo ”.
Pode-se traduzir como “separados de Cristo”, “fora de Cristo”, “não em
comunhão com Cristo”, “não em relação com Cristo”, ou até “vivendo
separadamente de Cristo”. Depois de haver feito a sua colocação em termos
gerais, ele vai adiante para expressar-se a respeito mediante cinco pontos
diferentes: “separados da comunidade de Israel”, “estranhos aos concertos da
promessa”, “não tendo esperança”, “sem Deus”, “no mundo”.

Isto certamente exige nossa cuidadosa atenção. Obviamente Paulo está se


referindo à situação que prevalecia antes de Cristo, sob a antiga dispensação,
sob o Velho Testamento. O mundo estava dividido entre judeus e gentios,
aqueles que, como judeus, tinham sido circuncidados, e os incircuncisos, os
gentios, as outras nações. Todavia, vocês podem reparar que ele se refere aos
gentios daquele tempo e naquela condição nestes termos: “sem Cristo”, “fora de
Cristo”. Aqui ele está se referindo a uma situação que imperava antes da vinda
do Senhor Jesus Cristo ao mundo; entretanto, ele o diz em termos de estar “em
Cristo”,
ou “fora de Cristo”, em termos de viver separadamente de Cristo. Por que é que
o apóstolo descreve esse estado de coisas em termos de uma relação com Cristo?
Naturalmente, num sentido, arespostaé que ele está fazendo algo que é obrigado
a fazer, e se não entendemos e não captamos claramente o que ele está fazendo
nesta passagem, só sepode pensar que temos lido o Velho Testamento em vão.
Aqui ele está fazendo um repasso geral do Velho Testamento. Que é que o
caracteriza? A resposta é: “a comunidade de Israel”; “os concertos da promessa”;
a esperança que Deus dera ao povo; a relação deste com Deus; sua separação
do mundo. Este é o sumário da condição e da situação dos israelitas sob
a dispensação do Velho Testamento. Todas as outras nações estavam fora destas
bênçãos e, todavia, a descrição que ele faz é em termos de estar “em Cristo”, ou
“fora de Cristo”.

Como devemos entender isto? A resposta é que tudo o que Deus fez aos judeus e
por eles sob a antiga dispensação foi feito na expectação de Cristo. Tudo no
Velho Testamento olha para o futuro, para Cristo. Nunca devemos examinar
aquelas coisas em si e de si. Tudo quanto Deus fez àqueles judeus, àqueles
israelitas, Ele o fez como preparação para a vinda do Senhor Jesus Cristo. O
apóstolo o expressa numa frase em Gálatas 3:23 desta maneira: diz ele que o
propósito de Deus foi manter-nos “encerrados para aquela fé que se havia de
manifestar”; “a lei nos serviu de aio para nos conduzir a Cristo”, nunca foi seu
propósito fazer coisa alguma em si e de si. Foi aí que os judeus erraram.
Eles pensavam que a lei era alguma coisa em si mesma, e que eles foram salvos
porque possuíam alei, ao passo que os outros não. Não, dizPaulo, alei éonosso
preceptor, o nosso aio, para levar-nos aCristo. Opropósito de todas aquelas
coisas era encerrar-nos para aquela fé que se havia de manifestar.

Podemos ver o ponto mais ou menos assim: Deus fez o homem à Sua imagem, e
o homem vivia em harmonia e em comunhão com Deus. Mas, ele pecou e caiu,
apartando-se de Deus. Que lástima! Depois que ele deu nascimento à sua
progênie, a terra encheu-se de gente, e até ao tempo do chamamento de Abraão o
mundo inteiro e todos os seus povos e nações estavam numa mesma relação com
Deus. Não houve nenhuma divisão importante até à vocação de Abraão. Já havia
uma espécie de divisão entre a linhagem de Caim e a de Sete, contudo Deus
tratava igualmente todas as nações e todos os povos, até quando Abraão
foi chamado. Então Deus fez algo novo. Ele disse a Abraão que ia fazer
dele uma nação, que dos seus lombos surgiria uma grande nação, um
povo especial e peculiar pertencente ao própr: o Senhor Deus. Ele ia criar uma
nova nação, uma nação especial. Ia separá-la de todos os outros povos e
manteria uma peculiar relação com essa nação especial. Essa é a formação de
Israel, essa é a gênese da comunidade de Israel, o povo de Deus. Depois Ele fez
certas alianças com esse povo. Fez-lhe certas promessas. Comprometeu-Se com
ele. Ele separou este homem, Abraão, e lhe disse: “Em ti e em tua semente serão
abençoadas todas as famílias da terra”. Deus fez aliança com Abraão,
comprometeu-Se com ele, fez um juramento - esse é o significado das alianças.
Estas promessas foram repetidas muitas vezes - a grande e única aliança repetida
em várias formas - a Isaquee a Jacó, a Moisés no Sinai, e ainda a Davi, e
pregadas pelos profetas. É isso que se quer dizer com estas expressões,
“a comunidade de Israel”, “os concertos da promessa”, e assim por diante. Todas
tinham em vista a futura vinda do Messias, o grande Libertador. Noutras
palavras, o que temos que compreender é que agora Deus via o mundo e o seu
povo de duas maneiras: via o povo da aliança de um modo; via os demais povos
de outro modo. E o povo da aliança era conhecido pelo sinal e pela marca da
circuncisão. Todo menino nascido em Israel tinha que ser circuncidado no oitavo
dia porque pertencia ao povo da aliança, à nação de Israel, ao povo de Deus. De
um lado está o povo de Deus; do outro estão os gentios.

É isso que o apóstolo está lembrando aos efésios, e este é o seu objetivo ao fazê-
lo: ele quer que eles se apercebam da grandeza da sua salvação. Quer que
compreendam que o fato de agora se haverem tornado concidadãos, co-herdeiros
com os santos e da família de Deus, é a coisa mais assombrosa que poderia
acontecer. A única maneira pela qual eles poderão entender isto é
experimentando algo da “sobreexce-lente grandeza do poder de Deus sobre nós,
os que cremos”. Não é somente o poder que nos ressuscita da morte no pecado, é
um poder que sobrepuja esta tremenda questão de como os que estão fora da
relação pactuai, da aliança, poderão ser introduzidos. Assim, ele prossegue,
para explicar-lhes e expor-lhes isso. Ninguémjamais se regozijará em
Cristo como deve, se não compreender qual era a sua situação antes de se
tomar cristão. O problema com todos os cristãos professos que não se regozijam
em Cristo é que eles nunca se deram conta do que eles eram em pecado. Não
ajuda nada dizer-lhe que você deve ser “sempre positivo”; você tem que partir do
que há de negativo em você. Se você não se der conta do que você era antes de
ser tomado por Deus, jamais O louvará como deve. Por isso Paulo desce a
minúcias. Há muitos que nunca viram qualquer necessidade de Cristo. Por quê?
Porque estão satisfeitos consigo e pensam que tudo está bem com eles como eles
são. Esse é o
problema. Paulo está desejoso de que os seus leitores entendam esta questão. Ele
orou no sentido de que Deus abrisse “os olhos de seu entendimento”, para que
pudessem entendê-la. Vocês estavam longe, diz ele, mas agora “pelo sangue de
Cristo chegastes perto” - você seria capaz de ver o que Deus fez? Você não
consegue ver a medida do Seu amor, da Sua graça e misericórdia, e do Seu
ilimitado poder?

Esse é o argumento. Vamos adiante, com o fim de aplicá-lo a nós. Vocês


conhecem com o seu coração, como também com a sua cabeça, o maravilhoso
amor de Deus? Ficam emocionados quando pensam nele e o imaginam?
Enchem-se de um sentimento de maravilha, de amor e de louvor? Se não se
sentem assim é porque vocês ainda não compreenderam o que Deus fez por
vocês em Cristo. Entende-se isto examinando o que significa não ser cristão -
“sem Cristo”, estar “fora de Cristo”. Noutras palavras, o primeiro princípio que
firmamos é que a única coisa que importa nesta vida e neste mundo é estar
relacionado com Deus em Cristo. Não há nada mais terrível que se possa dizer
a qualquer pessoa do que esta - “sem Cristo”, “vivendo separadamente de
Cristo”. Quando o apóstolo procurou uma expressão pela qual mostrar àquelas
pessoas quão longe elas estavam, e a total desesperança da sua situação, foi esta
que ele escolheu: “sem Cristo”. “Vivendo separadamente de Cristo.” “Sem estar
em vivida relação com Cristo.” Não há nada pior do que isso. Mas, por outro
lado, não há nada mais maravilhoso do que estar “em Cristo”. Estas são as
expressões do Novo Testamento - “em Cristo”, “fora de Cristo”.

São essas as duas únicas posições que importam. Todos estamos, ou “em
Cristo”, ou “fora de Cristo”. Você sabe exatamente onde está? Isto não é teoria, é
fato real, é experiência. E o que vai determinar o nosso destino eterno. É porque
ignoram o que é estar “fora de Cristo” que milhões de pessoas no mundo atual
passam o domingo de manhã lendo os jornais e o lixo dos tribunais, em vez de
investigarem a Palavra de Deus. Não se apercebem de como é terrível a sua
situação por estarem “fora de Cristo”. Por isso Paulo lhes diz em detalhe o que
significa isso com as cinco expressões já mencionadas. Elas podem ser
classificadas em duas divisões.

Primeiro consideremos: o que significa estar sem Cristo quanto à nossa relação
com Deus. Aqui o apóstolo diz duas coisas, as duas primeiras das cinco
expressões. A primeira é que nós estamos num estado e numa condição de
“separados da comunidade de Israel”. A
referência é àuma agremiação de cidadãos ou de pessoas definidamente
constituídas numa comunidade política. No mínimo significa certo número de
pessoas definidamente constituídas numa comunidade. É algo separado e
distinto, algo que pode ser reconhecido. Portanto, o que nos é dito é que Deus,
da maneira que indiquei, formou uma comunidade para Ele. Este é o método de
salvação estabelecido por Deus; Ele forma um povo, uma comunidade. Ele
separa as pessoas e Se mantém numa relação especial com elas. Uma descrição
minuciosa disso tudo é dada no capítulo dezenove do livro de Êxodo. O apóstolo
Pedro o cita em sua Primeira Epístola, capítulo dois, versículos nove e dez. Deus
reuniu aquelas pessoas antes de lhes dar os Dez Mandamentos, e lhes
disse: “Sereis a minha propriedade peculiar”, “Vós sois a geração eleita,
o sacerdócio real, a nação santa, o povo adquirido.” Ele separou esse povo para
Si e o apartou de todos os demais. Mas não ficou nisso. Fez isso porque tinha um
interesse especial por ele. E um povo que constitui a Sua “propriedade peculiar”.
Assim, bem mais tarde, por meio do profeta Amós, Deus disse a respeito da
nação de Israel: “De todas as famílias da terra a vós somente conheci” (Amós
3:2). Obviamente, isso não significa que Ele não tomava conhecimento de todas
as outras. Certamente que tomava. “Conhecer” nas Escrituras significa ter
interesse pessoal e especial por, estar preocupado com, importar-se com, ver com
os olhos de um pai e com amorosa contemplação. “De todas as famílias da terra
a vós somente conheci” - a referência é a Israel. Deus via todas as nações, porém
não as conhecia, não tinha esse interesse especial por elas; elas estavam fora da
comunidade de Israel, eram estranhos. De fato, a palavra empregada por Paulo
aqui é muito interessante. Aqui se lê “(estáveis) separados”; a tradução deveria
ser “tendo-se feito separados”, ou “tendo-se tomados separados”. Noutras
palavras, nunca houve o propósito de que alguém estivesse nessa situação; é
tudo conseqüência da Queda, conseqüência do pecado. O homem separou-se,
passou a estar fora do interesse peculiar de Deus.

Então a primeira coisa que significa estar “sem Cristo” é que você está fora
daquele círculo no qual Deus está peculiarmente interessado. Você não pertence
ao povo da aliança. Você é tão-somente um de uma grande multidão nalgum
lugar; não há este interesse especial, este especial objeto de interesse.
“Separados da comunidade de Israel.” Hoje é a Igreja Cristã que corresponde à
comunidade de Israel. A coisa mais terrível acerca do não cristão é que ele está
fora daquele círculo e não pertence ao povo de Deus. Você está separado da
comunidade de Israel? Você se sente estranho num culto cristão? Você se
pergunta: do
que é que esse homem está falando? Que será isso tudo? Não lhe parece muito
prático, não é como uma pregação sobre conferências internacionais, sobre a
fabricação de armas atômicas ou sobre questões políticas correntes. Não é
relevante, é obsoleto. É alheio a você, é-lhe estranho? Ou você sente que lhe diz
respeito? É uma coisa terrível a pessoa sentir-se um forasteiro, um intruso, sentir
que não tem parte nestas coisas, que de algum modo elas nada têm a ver consigo.
Você está dentro? Você ama os irmãos na fé? Você tem parte nestas coisas? É
terrível estar “fora de Cristo”, “separado da comunidade de Israel”.

O que a seguir o apóstolo nos diz é que os gentios eram “estranhos ao concerto
da promessa”, ou “às alianças da promessa” (ARA). Já lhes fiz lembrar as
alianças feitas por Deus. Deus tomou Abraão. Não porque houvesse algo de
peculiarmente bom em Abraão; ele era um pagão entre outros pagãos. Deus o
chamou e lhe disse: Eu pus Meus olhos em você, vou abençoar você, empenho-
Me pessoalmente com você. Como nos lernbra o autor daEpístola aos Hebreus,
Deus o fez com juramento (6:13-18). Empenhou-Se e fez um juramento, para a
segurança de Abraão e sua semente. As promessas de Deus! Leiam o
Velho Testamento e as verão uma após outra. Deus chama homens, separa-
os, dá-lhes uma revelação, uma visão, dirige-Se a eles, envia-lhes uma palavra. E
o que os mantém em marcha. Este foi o segredo do povo descrito no capítulo
onze da Epístola aos Hebreus - as promessas. Deus olhava para os do Seu povo e
lhes dizia: não se preocupem; deixem que as outras nações os invejem e tentem
destruí-los; deixem que os homens se levantem contra vocês; não importa; vocês
são o Meu povo, nunca os deixarei desaparecer, “Não te deixarei, nem te
desampararei” (Hebreus 13:5); apegue-se à palavra da minha aliança e às
Minhas promessas, olhem para o futuro, para o seu cumprimento.

As promessas da aliança! Mas os efésios lhes eram estranhos. As nações


gentílicas nada sabiam delas. Enquanto que o povo peculiar de Deus, os judeus,
recebia estas grandes mensagens e se regozijava nelas, os outros absolutamente
não as conheciam - eram estranhos, absolutamente estranhos, nada tinham
ouvido dessas promessas, não sabiam nada a respeito, e não estavam
interessados nelas. Essa continua sendo a verdade sobre todos os que estão “fora
de Cristo”, sobre os que não estão ligados vitalmente a Cristo. Podem ler
aBíblia, e não se comovem. Podem ver estas “grandíssimas e preciosas
promessas” (2 Pedro 1:4), e ainda indagam: a quem se aplica isso? Que se pode
dizer a respeito? São estranhos, são como estrangeiros, não entendem a língua.
Acaso a Bíblia lhe diz algo? É-lhe inteligível? Você acha que ela não passa de
palavras sem nexo, de jargão? Ou lhe diz algo, diz-lhe palavras que o levantam e
o firmam sobre os seus pés e o levam a louvar a Deus? Você é estranho às
alianças da promessa, ou sabe que elas estão falando com você e que você é
membro da agremiação, que Deus Se dirige a você quando você lê a Sua Santa
Palavra? Que coisa terrível é estar “fora dq Cristo”, não estarem vivida relação
com Cristo, ser estranho às alianças da promessa!

Vamos adiante e consideremos a segunda divisão: as inevitáveis conseqüências


de estar “fora de Cristo”. O apóstolo menciona três. A primeira é que a pessoa
está sem esperança. Certamente esta é uma das declarações mais terríveis das
Escrituras, senão a mais terrível. “Não tendo esperança”! Não existe nada pior.
“Enquanto há vida há esperança”; sim, porém quando a esperança se vai, nada
mais resta. A esperança é a última que morre, mas quando morre a esperança,
“retoma o caos” - como diz Otelo . Contudo, quem está sem Cristo está
sem esperança.

Isto significa, primeiramente, que ele não tem nenhuma esperança nesta vida.
Vocês já tinham percebido que sem Cristo não hánenhuma esperança nesta vida,
neste mundo? - absolutamente nenhuma! Será exagero? Em resposta eu lhes
peço que considerem as declarações dos pensadores mais profundos que o
mundo conheceu, e verão que, invariavelmente, eles são pessimistas. As maiores
obras de Shakespeare são tragédias. Todas as religiões, fora a fé cristã, são
profundamente pessimistas. O único consolo que lhe dão é que chegará o
tempo em que você escapará deste mundo; poderá ter que passar por uma
série de reencarnações - mas aqui não há esperança, você terá que livrar-se dele
e, de um modo ou de outro, perder-se nalgum nirvana. Elas não dão esperança
alguma ao homem neste mundo. É a carne, o corpo, dizem elas, que causa todos
os nossos problemas, e não há esperançapara você enquanto estiver no corpo.
Por isso você tem que sair deste mundo. O hinduísmo, o budismo e todo o resto
são completam ente sem esperança. São produtos de pensamento profundo sem a
revelação; e todas elas são totalmente destituídas de esperança. Isso é algo que
vocês verão em todas as grandes filosofias, em todas as grandes religiões. Vê-lo-
ão em toda grande literatura. Já notaram que os nossos maiores poetas são 1

pessimistas? Wordsworth nos diz que ouvia a “dolente e triste música da


humanidade”. Naturalmente, se vocês estiverem voejando de salão de baile em
salão de baile e de cinema em cinema, não a ouvirão, porque há tanto barulho
que não a podem ouvir; porém, o poeta senta-se, põe-se à escuta e medita, e o
que ouve? - Que a vida é maravilhosa? - Não, o que ele ouve é a “dolente e triste
música da humanidade”. “A vida é real, a vida é séria.” Não é um vertiginoso
rodar de prazer após prazer. Não se vê esperança nesta vida e neste mundo.

Tudo isso nos vem habilmente resumido no livro de Eclesiastes, onde o autor
diz: “Vaidade das vaidades! é tudo vaidade”. Isso não é dito de maneira
superficial, num momento de decepção; é a conclusão a que chegou um
profundo pensador que tentara todas as possibilidades, considerara todas as
coisas que se nos oferecem, e viu que todas elas juntas não chegam a nada. “O
que foi, isso é o que há de ser; e o que se fez, isso se tornará a fazer; de modo
que nada há novo debaixo do sol” (1:9). Não há esperança para o mundo, ele não
vai ficar cada vez melhor. Todo o fútil idealismo dos últimos séculos é
totalmente condenado por todas as grandes expressões do pensamento dos
séculos - e, naturalmente, está totalmente desacreditado hoje pelos fatos e
eventos. Sem Cristo não há esperança nesta vida e neste mundo. “Vaidade
de vaidades! é tudo vaidade!”, pode-se escrever rotulando todas essas coisas.
Não somente não há esperança de que as coisas melhorem, também não há
esperança de que o próprio homem melhore. Ele não é nada melhor do que era
sob a dispensação do Velho Testamento. Continua cometendo os mesmos
pecados, continua culpado das mesmas faltas; não há prova de que houve
progresso espiritual do homem. O homem é tão podre hoje como quando caiu no
jardim do Éden. Além disso, não há o que ver no futuro. Todos estamos
envelhecendo, as nossas energias vão fenecendo, a morte virá, inevitavelmente.
Façam vocês o que fizerem, não se livrarão dela. Essa é a vida sem
Cristo. Deixemos que Shakespeare, com seu jeito inimitável, resuma o
ponto para nós. Já no período final da sua vida, ele o expressou
perfeitamente num dos seus últimos dramas, A Tempestade (“The Tempest”).

Aí torres envoltas em nuvens,

Os suntuosos palácios,

Os templos solenes E o próprio globo grandioso,

Sim, todo o universal legado se dissolverá,

E, como esta frágil pompa esmaecida,

Nem mesmo um vapor deixará atrás:

E o que somos,
Como feitos de sonhos, e um sono cerca A nossa curta vida,

É assim a vida sem Cristo. Nenhuma esperança! Absolutamente nenhuma! Isso


não é pessimismo, é realismo, é encarar os fatos. Não há esperança neste mundo,
ele não está ficando melhor. Vejam os jornais, vejam os fatos: o homem não está
melhorando, e nada o espera senão a morte. As torres envoltas em nuvens, os
suntuosos palácios, o próprio globo grandioso - tudo vai dissolver-se.

Assim como não há esperança nesta vida, neste mundo, certamente não há
nenhuma esperança além desta vida para quem está fora de Cristo. Amorte é
apenas o fim da jornada para ele. Como Horácio Bonar diz em seu hino:
“Falecem os homens cercados de trevas, sem uma esperança que alegre
suatumba”. Eles olham parao futuro, mas o que vêem? Nada! Não conseguem
ver através da morte, não têm “a fé que vê através da morte”. Que é que existe
além da morte? Eles não sabem. Ou dizem que não há nada, ou que há um
tormento, ou uma série dereencamações. Não sabem; e quando chegam ao fim,
deixam tudo, caem os palácios e as torres, e o que fica? - Nada! Sem esperança!
Essa é a vida sem Cristo. Esta é a vida que estão tendo milhões neste país hoje,
milhões que nos julgam tolos porque nos assentamos para ouvir o velho
evangelho nas igrejas. Eles pensam que têm vida e liberdade - todavia eis a
sua situação: “não tendo esperança”!

Mas, pior ainda: “sem Deus”! Que é que Paulo quer dizer com isso? Refere-se
obviamente a uma vida sem nenhuma experiência subjetiva de Deus. Deus
continua existindo, porém essas pessoas não o sabem, não têm consciência disso;
e não O fruem! Permitam-me fazer um sumário disso nos seguintes termos: eles
não conhecem a Deus enão estão em comunhão com Deus; portanto, eles estão
sem a ajuda, a paz e a alegria que vêm mediante o conhecimento de Deus e a fé
nEle. O mundo deles estáenterrado em colapso, tudo vai indo mal e eles se
vêem sós. Em seu completo isolamento e desolação, eles não têm nada,
porque não conhecem a Deus. Os cristãos também têm problemas nesta
vida, ocorrem acidentes, as coisas vão mal; quanto às circunstâncias, o
cristão pode ser idêntico a outro homem. Mas há esta grande diferença: o
outro está sem Deus; o cristão tem Deus e conhece a Deus.

Quão diferente do salmista é esse outro homem sem Deus! O salmista, vocês
recordam, disse isto: “Quando meu pai e minha mãe me

desampararem, o Senhor me recolherá” (Salmo 27:10). Seu pai e sua mãe o


deixaram, amigos e companheiros foram-se todos, tudo se foi. Está bem, diz o
salmista, “quando meu pai e minha mãe me desampararem”, mesmo então, “o
Senhor me recolherá”. Ouçam-no ainda: “Eu me deitei e dormi” - ele estava
cercado de inimigos nessa altura - “Eu me deitei e dormi; acordei” - por quê? -
“porque o Senhor me sustentou” (Salmo 3:5). Ouçam-no noutra ocasião: “Das
profundezas a ti clamo, ó Senhor” (Salmo 130:1). Ele estava num fosso horrível,
e tudo parecia ter-se ido; mas olhou para o alto, Deus continuava lá;
“Das profundezas clamei ao Senhor”. “O Senhor é o meu pastor, nada
me faltará.” “Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, tu
estás comigo; a tua vara e o teu cajado me consolam” (Salmo 23:1,4). Não posso
ver mais nada, mas ainda vejo a Ti. O outro homem não conhece isso; ele está
“sem Deus”. “O Senhor é a minha luz e a minha salvação; a quem temerei? O
Senhor é a força da minha vida; de quem me recearei?” (Salmo 27:1). Com
Deus! - não “sem Deus”. Ouçam-no, porém, dizê-lo também numa admirável
declaração: “Desde o fim da terra clamarei a ti, quando o meu coração estiver
desmaiado; leva-me para a rocha que é mais alta do que eu” (Salmo 61:2). Aí
está ele, quase afundando num oceano de dificuldades, com inimigos e tudo mais
contra ele; ele clama a Deus: “Leva-me para a rocha que é mais alta do que
eu”, sabendo que ali estará seguro. No entanto, esse outro homem nada
sabe disso, está sem Cristo e, portanto, está sem Deus. Que diferença do apóstolo
Paulo, que diz: “Ninguém me assistiu na minha primeira defesa, antes todos me
desampararam. Que isto lhes não seja imputado. Mas o Senhor me assistiu e
fortaleceu-me” (2 Timóteo 4:16-17). Paulo estava em julgamento, todos os seus
amigos o tinham abandonado: “ninguém me assistiu, todos me desampararam”.
“Mas o Senhor me assistiu e fortaleceu-me.” Também escreve da prisão a
Timóteo, quando tudo estava contra ele, e diz: “Mas não me envergonho;
porque sei em quem eu tenho crido, e estou certo de que é poderoso, para
guardar o meu depósito até àquele dia” (2 Timóteo 1:12). Ouçam o autor
da Epístola aos Hebreus citar o Velho Testamento: “O Senhor é o meu ajudador,
e não temerei o que me possa fazer o homem”. Por quê? Porque Deus disse:
“Não te deixarei, nem te desampararei” (Hebreus 13:5-6).

Contudo, esse outro homem não sabe disso; ele é deixado entregue a si mesmo
quando o seu mundo cai por terra e tudo vai mal. Ele não somente está “sem
esperança”, mas também está “sem Deus”, e não pode olhar para o futuro, para o
dia em que, segundo o livro de

Apocalipse, “Deus limpará de seus olhos toda a lágrima”, e não mais haverá
tristeza, nem suspiros, nem pranto. O homem sem Cristo não conhece essas
coisas. Quão diferente é o nosso Senhor! Ouçam o Senhor dizer pessoalmente:
“Eis que chega a hora, e já se aproxima, em que vós sereis dispersos cada um
para suaparte, e me deixareis só; mas não estou só, porque o Pai está comigo”
(João 16:32). Ele não estava “sem Deus”. Deus estava com Ele quando todos O
tinham abandonado e fugido. “Mas não estou só, o Pai está comigo.”

Que coisa terrível é estar “sem esperança” e “sem Deus” “no mundo” - pertencer
a este mundo passageiro que está debaixo da ira de Deus, debaixo da
condenação, e que deverá ser destruído. “O mundo passa, e a sua
concupiscência; mas aquele que faz a vontade de Deus permanece para sempre”
(1 João 2:17).

Essas palavras vêm a alguém que está “sem Cristo”? Se vêm, você se dáconta de
onde está? Você está fora dacomunidade, fora do interesse especial de Deus,
você não conta com promessas que o sustentem, com “nenhuma esperança”,
você está “sem Deus”, “no mundo”! Se você vê isso, e se você compreende o
que significa, há só uma coisa para você fazer - fugir para Cristo. Outrora os
efésios tinham estado naquela situação - “Mas agora em Cristo Jesus, vós, que
antes estáveis longe, já pelo sangue de Cristo chegastes perto”. Você não precisa
continuar sendo um forasteiro. Não precisa continuar e achar que estas coisas
não lhe dizem respeito. Deus está falando com você. CreianEle, ouça-O,
aja baseado no que Ele diz, vá a Ele, confesse a Ele tudo quanto sej a
verdade quanto a você, e se lance sobre o Seu amor e graça e misericórdia
e compaixão. E Ele o receberá e lhe dirá que enviou Seu Filho para morrer e
derramar Seu sangue por você, para que você se tornasse “concidadão dos santos
e da família de Deus”. Você verá que passou a ter nova vida e nova esperança,
conhecerá a Deus e saberá que Ele nunca o deixa nem o desampara. Fuja para
Ele.

Se você está ali, regozije-se nEIe. Estar “em Cristo”! Não há nada que sobrepuje
isso. É o céu na terra. E o antegozo da bem-aventurança eterna.

16
CHEGASTES PERTO

“Mas agora em Cristo Jesus, vós, que antes estáveis longe, já pelo sangue de
Cristo chegastes perto. ” - Efésios 2:13
Evidentemente, estas palavras dão prosseguimento à declaração que começa no
versículo onze. Ao mesmo tempo são, por assim dizer, o complemento dessa
declaração, que já foi estudada. O apóstolo está expondo aqui a grandeza desta
salvação cristã. Ele quer que compreendamos que ela é tão grandiosa que nada
menos que o poder de Deus a poderia realizar. Esse é o argumento geral. O poder
que nos toma cristãos é precisamente o mesmo poder que tomou Jesus dentre os
mortos, mostrou-0 na ressurreição gloriosa e depois O elevou às alturas,
aos lugares celestiais, onde Ele está assentado à direita do poder de Deus. Esse é
o tema. Não devemos ignorar a floresta por causa das árvores. As árvores são
gloriosas, mas a floresta é mais, e é melhor. A medida que avançarmos,
mantenhamos as duas coisas juntas em nossas mentes.

E sobre “a sobreexcelente grandeza do Seu poder sobre nós, os que cremos” que
o apóstolo está escrevendo, e é o que ele quer que compreendamos.
Necessitaremos do auxílio do Espírito Santo para compreendê-lo, porque as
nossas mentes são por demais pequenas, fracas e inadequadas. Oramos, pois,
como Paulo fez pelos efésios, no sentido de que sejam “iluminados os olhos do
nosso entendimento”, para que realmente possamos conhecer essa verdade. O
apóstolo escreve a sua carta com o fim de ajudar-nos nisso. Duas coisas, diz
ele, são essenciais, se queremos entender a grandeza da salvação cristã: a
primeira é a percepção da nossa condição sem esse entendimento; e a segunda é
a percepção da nossa condição resultante disso. Anteriormente examinamos a
nossa condição sem a salvação, nos termos da descrição feita no versículo doze
deste capítulo. “Naquele tempo estáveis sem Cristo, separados da comunidade de
Israel, e estranhos aos concertos (ou alianças) dapromessa, não tendo
esperança, e sem Deus no mundo.” Somente quando compreendermos isto,
em primeiro lugar, é queperceberemos quão maravilhoso é que alguém
seja cristão. Afinal de contas, o admirável é - não que muitos não são cristãos; o
admirável é que alguém seja cristão. Nada explica isso, a não ser o poder de
Deus em Cristo. Somente captamos isso quando nos

damos conta do que o homem é por natureza, quando nos damos conta do que
ele é em conseqüência do pecado. Mas devemos ir muito além. Se nos cabe
medir este grande poder, não devemos limitar-nos a medir a profundidade da
qual fomos levantados e tirados, entretanto também devemos medir a altura à
qual fomos elevados e exaltados.

Aí estão os dois polos que representam os extremos nos quais todos os cristãos
se acharam: primeiramente, fora de Cristo; depois, em Cristo. É o que o apóstolo
está expondo aqui, no versículo treze. Tendo dado o aspecto negativo, passa
agora aexpor o positivo. Vocês recordam que nos dez primeiros versículos ele
estivera fazendo exatamente a mesma coisa, porém de um ângulo diferente. Lá a
sua preocupação era com a condição espiritual real e concreta - mortos em
ofensas e pecados - e em mostrar como fôramos elevados às alturas. Aqui, como
vimos, ele o expõe mormente em função da lei, e em termos do nosso nível
e posição aos olhos de Deus e em Sua presença. Mais uma vez assevero que é
essencial que compreendamos os dois lados.

Para todos os que têm alguma experiência pastoral, nada é mais claro do que o
fato de que, quando os que se sentem infelizes acerca da sua salvação, não têm
segurança e não têm alegria em sua vida cristã, a causa geralmente está numa
destas duas coisas, ou, com muita freqüência, nas duas juntamente. Eles estão
nessas condições, ou porque nunca se tornaram verdadeiramente convictos do
pecado, porque nunca enxergaram realmente a sua situação de desesperança, ou
então porque nunca enxergaram a sua verdadeira posição como cristãos e as
alturas às quais foram elevados. Assim, as duas coisas sempre devem ser
tomadas juntas. E no Novo Testamento sempre estão juntas-e
invariavelmente são tomadas na ordem acima indicada: primeiro o elemento
negativo; depois o positivo. Já vimos isso neste capítulo.

O apóstolo sempre parte do negativo. Vocês recordam como, quando ele estava a
caminho de Jerusalém e estava se despedindo dos presbíteros desta mesma igreja
de Efeso numa grande e lírica ocasião -ele não tivera tempo de ir a Efeso, pelo
que pedira aos presbíteros que viessem encontrar-se com ele. Encontraram-se em
Mileto, e, num dos mais comoventes trechos da literatura que conheço, o
apóstolo fala, dizendo efetivamente; gostaria de lembrar-lhes como, quando
estava com vocês, não cessei, noite e dia, de dar-lhes com lágrimas o
meu testemunho do evangelho e de pregá-lo. E o que ele pregava?
“O arrependimento para com Deus e a fé em nosso Senhor Jesus Cristo” (Atos
20:21, VA e ARA). Vocês nunca verão o apóstolo dizer que , primeiro as pessoas
vêm a Cristo e depois se arrependem. Impossível

vê-lo fazer isso, porque ele sempre pregava primeiro o arrependimento. E é o


que ele está fazendo aqui: aí está o que vocês eram, aí está o que vocês são. E
somente quando captarmos o negativo e o positivo é que verdadeiramente
apreciaremos esta grande salvação e nos regozijaremos nela como devemos.

Permitam-me fazer uma pergunta simples e óbvia neste ponto. Compreendemos


a grandeza da nossa salvação? Ou deixem que eu faça uma pergunta mais
sensível e delicada. Você se regozija em sua salvação? Neste momento você se
ufana mais de ser cristão do que de qualquer outra coisa em sua vida? Não hesito
em dizer que, se não nos ufanamos disso e não nos gloriamos mais nisso do que
em qualquer outra coisa, então, para dizer o mínimo, o nosso entendimento do
que é ser cristão é gravemente defeituoso. Quando um homem vê isso de
verdade, só tem uma coisa para dizer, e é o que o apóstolo diz: “Longe esteja
de mim gloriar-me, a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo” (Gálatas
6:14). Se verdadeiramente o enxergamos, veremos que é tudo. Não há nada que
se lhe compare. Portanto, esse é um teste muito bom para vermos se realmente
entendemos estas coisas ou não. Percebemos o nosso privilégio? Percebemos a
glória da nossa posição neste momento, como cristãos? Ajudemo-nos uns aos
outros a chegarmos a esse lugar.

Temos considerado o negativo; vejamos agora o positivo. Aqui está ele numa
frase - também aqui o apóstolo segue o seu método invariável. Primeiro ele
declara o seu tema geral numa só sentença; depois ele o parte e o toma
fragmento por fragmento. É o que ele faz no restante do capítulo. Neste
versículo treze mais uma vez nos vemos face a face com um dos mais gloriosos
sumários que o apóstolo faz, da fé cristã em geral. Está tudo aí nesse único
versículo. As vezes sinto que se eu pudesse dizer isto como deveria e como o
Espírito Santo pode habilitar-nos a dizê-lo, não haveria necessidade de dizer
mais nada. Ei-lo: “Mas agora em Cristo Jesus, vós, que antes estáveis longe,
jápelo sangue de Cristo chegastes perto”.

Isso é o evangelho completo. Mas vamos sondá-lo; aí está a essência própria da


mensagem cristã. No momento o tomarei como um todo e o examinarei de
maneira geral; depois, querendo Deus, seguiremos o apóstolo à medida que ele
mesmo o vai partindo em suas diversas partes componentes. A divisão do
assunto é inevitável. Há três coisas aqui. A primeira é o contraste entre o que
éramos e o que somos; a segunda é o que somos; e a terceira é como nos
tornamos o que somos.

Primeiramente, o contraste entre o que éramos e o que somos.

O apóstolo o expressa em sua maneira usual - mas! Primeiro mostra o quadro


sombrio, dá-nos o negativo, e nos força a tomarplenaconsciência dele. Depois de
fazer isso, diz, “Mas”! Vocês se lembram do outro notável exemplo disso que
tivemos no versículo quatro. Depois de nos fazer aquele pavoroso relato a nosso
respeito, como estávamos mortos em ofensas e pecados, de repente ele diz, “Mas
Deus, que é riquíssimo em misericórdia, pelo seu muito amor com que nos
amou...”. Aqui de novo ele o faz. Estes “mas”, estes benditos “mas”, nunca
serão repetidos com mais freqüência do que deveria. O evangelho todo
entra aqui. “Mas agora”! - vocês vêem a diferença. Tudo está na palavra “mas”.
Contudo, ele acrescenta estes outros termos: “agora”, “antes”. A palavra “mas”
mostra contraste; “agora” contrasta-se com “depois”, “anteriormente”, “tempos
passados”, “às vezes”. Estas são grandes palavras do apóstolo, os seus
contrastes. E qual seria o efeito dessas palavras? Você pode dizer se é cristão ou
não apenas respondendo esta pergunta: você acha, às vezes, que a maior palavra
que há em toda a língua da humanidade é a palavra masl Se não pensa assim, o
seu entendimento sobre o cristianismo é muito defeituoso. Lá estava você! Mas -
e imediatamente você levanta a cabeça e se põe a cantar; abriu-se uma janela,
brilhou uma luz, desapareceu a escuridão. “Mas agora”! Que nos diz essa
expressão? É o “mas” da esperança, o “mas” do alívio, o “mas” que afirma que
há um fim para o desespero, para as trevas, para a tristeza, que nem tudo está
perdido, que Deus ainda está conosco. Levantamos as nossas cabeças. “O povo
que andava em trevas viu uma grande luz.” “Deus, que disse que das trevas
resplandecesse a luz, é quem resplandeceu em nossos corações, para iluminação
do conhecimento da glória de Deus, na face de Jesus Cristo” (Isaías 9:2; 2
Coríntios 4:6). E o que temos aqui, noutra linguagem.

Quero acentuar especialmente que estas palavras assinalam de maneira


surpreendente a agudeza do contraste, a afirmação de como é completa a
separação, da categoria absoluta da diferença. Isto é ressaltado em toda parte no
Novo Testamento. A diferença entre o cristão e o não cristão é uma diferença
absoluta, um contraste completo. Éclaro, édefinido, é distinto. Jamais deveria
haver qualquer dificuldade em falar se somos cristãos ou não. O contraste entre o
cristão e o não cristão é tão extremo e tão definido como isto: “agora” -
“depois”;
o “mas”;adiferençacompleta;amudançaextraordinária.Nãohánuanças de
diferença entre ser “não cristão” e ser “cristão”. Não é você vir do preto ao
branco através de vários matizes de cinza, e não poder dizer onde você está - o
preto começando a ser afetado por um pouco de

branco, e depois um pouco mais, e um pouco mais, e por fim você diz: ah, isto é
branco! Não é nada disso. Isso é totalmente falso; isso é um completo contraste
com o que o apóstolo está ensinando aqui. É preto ou branco, diz ele, e não há
estágios intermediários quase imperceptíveis. Não é como aquelas sutis
mudanças de cor do espectro, onde não se pode dizer em que dado ponto termina
uma cor e começa outra. Absolutamente não. Este contraste é claro e definido.

Muitos estão em dificuldades quanto à sua posição como cristãos porque nunca
entenderam o ensino das Escrituras sobre este assunto. O contraste entre o não
cristão e o cristão é verdade válida para todos. Digo isso porque posso imaginar
alguém dizendo: ah, espere um minuto, naturalmente posso entender o contraste
em sua forma extrema como ali o apóstolo o coloca, porquanto, afinal de contas,
ele estava escrevendo acerca daqueles efésios que nem sequer criam em Deus,
que eram pagãos, em pleno mundo, vivendo a vida típica de um pagão -
e, naturalmente, quando um pagão desses passa a ser cristão, o
contraste, obviamente, é extremo e espantoso. E os que assim pensam
prosseguem dizendo que ainda é o mesmo nos dias atuais. Alguns que se
tornaram cristãos tinham sido ébrios, maridos espancadores e quase assassinos -
não podiam ter sido mais ímpios. Claro, quando alguém assim se torna cristão,
tem-se este assustador contraste, e você está justificado em ressaltar o seu “mas”,
e em dizer “agora” e “depois”, “tempos passados”, “anteriormente”, e assim por
diante. Todavia, dizem eles, certamente isso não se aplica aos que foram criados
de boa e respeitável maneira, num país cristão, pessoas que eram enviadas à
Escola Dominical quando crianças e eram levadas aos cultos pelos seus pais, e
que nunca praticaram nenhuma dessas coisas violentas, torpes e extremas. Por
certo essas pessoas apenas “cresceram” no cristianismo e nelas a mudança é
quase imperceptível. Certamente, argumentam eles, você não dá ênfase a este
contraste extremo no caso dessas pessoas - pode-se aplicar-se aos pagãos e aos
de fora, não porém, por certo, a alguém que foi belamente criado num país
cristão. A minha réplica é que é tão extremo o contraste no caso daqueles como
no outro; que a diferença entre não cristão e cristão é sempre igualmente grande.

O que decide se somos ou não cristãos não é nem o que fazemos nem o que
somos: é a nossa relação com Deus. “Chegastes perto”, “fostes aproximados”
(VA e ARA), diz Paulo. Ele não diz “progredistes”, ou “melhorastes”, ou “agora
estais vivendo uma vida melhor”. Não, o que faz de você um cristão é que “Vós,
que antes estáveis longe, fostes aproximados”; estais perto de Deus, ao passo que

anteriormente estáveis longe de Deus. Assim, deve-se traçar a distinção e a


diferença, não em termos da nossa moralidade ou da nossa conduta ou do nosso
comportamento, e sim, em termos de nossa relação com Deus.

Permitam-me apresentar-lhes uma ilustração para mostrar o que quero dizer. É


questão de relação, digo eu, não primariamente de condição moral da pessoa - o
que vem depois. Vejam o ponto deste modo. Considerem o estado civil. Pense
num homem que se casou ontem. Vocês podem dizer dele o seguinte, não
podem? - “Até ontem ele era solteiro, agora é casado”. Pois bem, quando vocês
estão pensando narelação especial que se estabelece com o casamento,
estará inteiramente fora de foco e será um completo disperdício de fôlego indicar
as diversas coisas que verdadeiramente o descreviam. Vocês podem dizer-me
que ele bebia demais ou que vivia jogando. Nas não estou interessado nesse
ponto; quero saber se o homem era casado ou não. Se você está pensando no
estado civil e na vida matrimonial, é pura irrelevância falar-me da vida moral do
homem ou da sua conduta ou do seu comportamento. A questão vital é que ele
não era casado, porém agora é. Todas aquelas outras coisas nesse ponto e nesse
contexto são irrelevantes.

Ora, é exatamente a mesma coisa em toda esta questão de ser cristão. Não estou
realmente interessado em saber se você vivia nas sarjetas da vida ou nas
vivendas mais respeitáveis. As únicas perguntas que faço são: você está perto de
Deus? Você conhece a Deus? Você entrou nos “santos dos santos”, “no lugar
santíssimo”? Essa é a questão; as outras são irrelevantes. Quanto à
respeitabilidade, à bondade, à moralidade e à ética, você pode ser um exemplo
de todas as virtudes e, todavia, não conhecer a Deus. Fazendo-se o julgamento
por meio desse teste de relações pessoais, segundo as Escrituras não há diferença
entre o mais vil e torpe pecador, de um lado, e o mais respeitável pecador, do
outro. “Todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus.” “Não há um justo,
nem um sequer.” Todos eles estão fora da porta, não têm entrada na sala de
audiências, na presença do Monarca, a porta se lhes fecha e ficam fora. Mas
você dirá: ah, eles são diferentes; vejam a roupa que usam, não se vestem igual!
Digo que não me interessa. A única pergunta que faço é: eles estão fora da porta,
ou dentro?

Invariavelmente, o problema nesta questão é que, em vez de a considerarem em


termos desta relação pessoal com Deus, as pessoas insistem em considerá-las em
termos de bondade e comportamento.

Lembro-me de alguém que me disse uma vez (e uso a ilustração porque penso
que aplica muito bem o ponto): sabe, às vezes quase chego a desejar ter tido uma
vida suja, violenta e extremamente pecaminosa. Por quê?, perguntei. Bem,
respondeu ela, para que eu pudesse experimentar esta grande mudança que tais
pessoas experimentam quando se convertem. Vocês vêem a falácia e o
entendimento errôneo? Essapessoa estava vendo a questão inteiramente em
termos de conduta e comportamento, negativamente. Se ela a tivesse visto
somente em termos de conhecer a Deus e de regozijar-se nEle, teria visto que
não havia diferença entre ela e o mais torpe e vil pecador. O teste é positivo. Este
“mas”, “agora” - “anteriormente”, “tempos passados”, este contraste extremo!
Jamais devemos dar-lhe demasiada ênfase.

Movamo-nos para o segundo princípio, que é considerar o que somos como


cristãos. Servirá para salientar ainda mais o contraste, enquanto temos em mente
a mensagem do versículo doze. Paulo coloca isso com estas palavras
maravilhosas: “fostes aproximados”! “Postes aproximados” é, naturalmente, o
contraste com “separados”, “estranhos”, “sem Deus”, “fora de Cristo”, não
vivendo nesta vivida relação com Cristo. Mas agora, “fostes aproximados”! Essa
é toda a verdade acerca do cristão. Obviamente o apóstolo tinha em mente
uma ilustração. Ele estava pensando no templo. O templo de Jerusalém
era dividido em diferentes lugares ou pátios. O mais importante era o
“lugar santíssimo”, o santuário mais secreto, onde a presença de Deus
se revelava na glória da Shekinah2 sobre o assento da misericórdia . E no “lugar
santíssimo”, a real presença de Deus, somente um homem tinha permissão de
entrar. Erao sumo sacerdote, e só entravauma vez por ano. Havia então os átrios
ou pátios. O pátio mais distante do santuário era chamado “Pátio dos Gentios”.
Eram os que ficavam mais longe de Deus! Nem entrar no “Pátio do Povo” lhes
era permitido, o “Pátio dos Judeus”. Aos judeus comuns não era permitido entrar
no lugar destinado aos sacerdotes, e nem estes podiam entrar onde o sumo
sacerdote entrava. Entretanto no lugar mais distante estavam os gentios,
os forasteiros. Mais para o fim deste capítulo o apóstolo vai desenvolver

este ponto mais minuciosamente. Mas aqui já se vê, nessa forma particular. O
que ele diz é que os que estavam mais longe foram introduzidos, foram
aproximados, de maneira sumamente admirável tiveram entrada, por assim dizer,
no lugar santíssimo. Esta é a verdade referente a todos quantos são cristãos, e é a
esta verdade que devemos dar ênfase. O não cristão está sem Deus, sem Cristo;
não tem acesso, não tem conhecimento, não tem entrada.

Qual é a verdade quanto ao cristão? A primeira verdade referente ao cristão é,


não que ele teve alguma experiência, mas sim, que ele foi aproximado, tem esta
entrada, este acesso, e pode entrar na presença de Deus. E, naturalmente, pode
fazê-lo na companhia de todos os outros que estão fazendo a mesma coisa.
Assim é que Paulo dá seguimento a este outro contraste. Antes, os judeus eram
um povo separado. Eles podiam achegar-se a Deus com as suas ofertas
queimadas e os seus sacrifícios, por intermédio do seu sacerdócio. Os gentios
não podiam. No entanto agora os gentios podem, não somente entrar à presença
de Deus, mas também podem fazê-lo com os judeus que se tornaram cristãos -
todos eles entram juntos. O apóstolo tornará a dizer isso mais adiante, com as
seguintes palavras: “Por ele (Cristo) ambos temos acesso ao Pai em um mesmo
Espírito”. __

Mas agora estou interessado numa visão geral disto. E a coisa mais maravilhosa
da vida. Vejam-na assim: vocês se lembram do que aconteceu quando Adão e
Eva pecaram no jardim do Éden, no Paraíso? Foram expulsos do jardim, e lá no
extremo oriental do jardim, junto à porta, Deus pôs “a espada flamejante, e
querubins”. Para quê? Para proibir a reentrada do homem e da mulher no
Paraíso, no j ardim do Éden. Esse é o efeito da Queda e do pecado. O homem é
mantido fora da presença de Deus. “Sem Cristo”! “Sem Deus no mundo”! E
“sem esperança”! E não pode voltar por causa da espada flamejante e
dos querubins. “Mas agora, em Cristo Jesus”, a porta está aberta, e o homem, a
despeito da Queda e do pecado e da vergonha, e de toda a verdade sobre ele,
pode voltar a entrar, tem acesso à presença de Deus. Foi reconciliado com Deus,
foi restabelecido no favor de Deus, a inimizade foi removida, a ira de Deus
contra ele foi apaziguada e satisfeita. Houve uma substituição - uma expiação;
eles foram postos juntos de novo; o homem foi aproximado, foi introduzido na
sala de audiências, foi apresentado ao Rei da glória. 3

Ou podemos dizê-lo desta maneira: no versículo anterior Paulo estivera dizendo


que todos os não cristãos são estranhos às alianças da promessa. Ele se referia à
grande e única aliança que Deus repetiu em diversas ocasiões com ênfases
ligeiramente diferentes. Deus empenhou-Se, Deus compactuou com o homem,
Deus disse: “Farei isto; farei uma nova aliança”. O que Paulo está dizendo nesta
passagem é que os gentios, embora estivessem tão longe, foram introduzidos
na aliança e agora estão começando a gozar as plenas bênçãos da nova aliança
de Deus com o homem, em nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo e por meio
dEle. Que bênçãos são essas? Há uma perfeita descrição da nova aliança no
capítulo oito da Epístola aos Hebreus (versículos 1012). É citação de Jeremias,
capítulo 31: “Este é o concerto que depois daqueles dias farei com a casa de
Israel, diz o Senhor; porei as minhas leis no seu entendimento, e em seu coração
as escreverei: e eu lhes serei por Deus, e eles me serão por povo; e não ensinará
cada um ao seu próximo, nem cada um ao seu irmão, dizendo: conhece o
Senhor; porque todos me conhecerão, desde o menor deles até ao maior. Porque
serei misericordioso para com suas iniqüidades, e de seus pecados e de
suas prevaricações não me lembrarei mais”. Essa é a Nova Aliança. Quando o
homem não é cristão, é estranho a essa aliança. Que é ser cristão? E isto - ser
aproximado, ser introduzido na aliança, poder ouvir: “Tudo isso aplica-se a
você”.

Repassemos o significado disso tudo. Significa que nós conhecemos a Deus!


Isso é cristianismo, conhecer a Deus! Você pode ser religioso, saber certas coisas
a respeito de Deus, crer em certas coisas acerca de Deus, estar interessado em
Deus, ler livros sobre Deus e ouvir preleções e argumentos acerca de Deus.
Todavia, pode não ser cristão. Ser cristão é conhecer a Deus. Diz a Nova
Aliança: “Não ensinará cada um ao seu próximo, nem cada um ao seu irmão,
dizendo: conhece o Senhor; porque todos me conhecerão, desde o menor deles
até ao maior” - tanto o menor como o maior. Conhecer a Deus! “Eu lhes
serei por Deus, e eles me serão por povo.” E isso que significa tornar-se cristão.
Antes vocês não eram povo, estavam separados da comunidade de Israel (do
povo de Deus), e eram estranhos às alianças, estavam sem Deus no mundo; mas
agora vocês foram aproximados, estão com o povo de Deus, conhecem a Deus.

Que mais? Agora, porque conhecemos a Deus, chegamos com confiança ao


trono da graça. Este é, de novo, o argumento da Epístola aos Hebreus (4:16),
onde lemos: “Cheguemos pois com confiança ao trono da graça, para que
possamos alcançar nrsericórdia e achar graça,

a fim de sermos ajudados em tempo oportuno”. Você foi aproximado, chegou


perto! Quando você se ajoelhapara orar, ora com confiança, com ousadia? Sabe
que está indo ao trono da graça? E você sabe que receberá misericórdia? E que
obterá graça em sua ajuda? Essa é a posição do homem que foi aproximado: ele
está perto, está na sala de audiências. Ouçam o que diz o autor da Epístola aos
Hebreus, no versículo dezenove do capítulo dez: “Tendo pois, irmãos, ousadia
para entrar no santuário, pelo sangue de Jesus, pelo novo e vivo caminho que ele
nos consagrou, pelo véu, isto é pela sua carne, e tendo um grande sacerdote
sobre a casa de Deus, cheguemo-nos com verdadeiro coração, em inteira certeza
de fé, tendo os corações purificados da má consciência, e o corpo lavado com
água limpa”. É isso que significa ser cristão. “Antes” - “mas agora fostes
aproximados”! “Entrar no santuário” (“no lugar santíssimo”)! Você está lá, tem
ido lá, sabe o caminho? O cristão é alguém que pode entrar na presença de Deus,
pode entrar no “lugar santíssimo”; não há nada que o detenha.
Que mais? Chegamo-nos à Sua presença em inteira certeza de fé. Que terrível
coisa é estarmos de joelhos, encher-nos de dúvidas e incertezas, e dizermos: não
sei bem se tenho direito ou não - posso fazer petições a Deus?-não tenho direito,
sou pecador, fiz isto, fiz aquilo. Isso não é orar. Orar é entrar no “lugar
santíssimo”, na plena segurança da fé, conhecendo a Deus e sabendo qual é a
Sua relação com você e qual a Sua atitude para com você “pelo sangue de
Jesus”.

Vejam a verdade também no prólogo do Evangelho Segundo João. Diz ele que
“a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder (a autoridade) de serem feitos
filhos de Deus”. Entendemos bem isso? -que o cristão é alguém que não somente
tem acesso à presença de Deus, mas que O conhece como Seu Pai? Cristo lhe
deu autoridade para ser filho de Deus. Foi adotado. E embora esteja indo à
presença do Deus eterno e santo, vai com a confiança de filho. Tem autoridade,
a autoridade do Senhor Jesus Cristo, para dizer que é filho, e não há porteiro que
possaproibi-lo, não há inimigo quepossa fazê-lo recuar. Ele tem o seu certificado
de nascimento nas mãos e diz: vou ver meu Pai. “Aproximados”! Ele sabe que é
filho de Deus não somente por ter nas mãos o certificado-o certificado é a
Palavra de Deus, as Escrituras; tem outra forma de certeza também. “Porque não
recebestes o espírito de escravidão, para outra vez estardes em temor, mas
recebestes o espírito de adoção de filhos, pelo qual clamamos: Aba, Pai”, afirma
Paulo em Romanos (8:15). Essa é a posição do cristão. Ele não ora a um
Deus distante, nem está preocupado com formas, aparências e beleza de

linguagem. Ele vai como um filho a seu Pai. “Aba, Pai”! Conhece a Deus como
seu Pai, tem espírito filial, todo o seu coração busca a Deus, e ele sabe que o
coração de Deus está aberto para ele. Isto é cristianismo verdadeiro. Será
surpreendente que o apóstolo dê ênfase ao contraste entre o que estas pessoas
eram e o que são agora?

E, naturalmente, visto que o cristão sabe que Deus é seu Pai e que é filho de
Deus ele sabe que Deus o ama. Ele sabe que “até mesmo os cabelos da sua
cabeça estão todos contados” (Mateus 10:30). Ele sabe que Deus tem interesse
pessoal por ele, que nada lhe pode suceder independentemente de Deus; que,
embora sendo Deus tão grande e eterno em Sua majestade, em Seu poder, em
Sua glória e em Sua energia, Ele é um Pai interessado em cada um dos Seus
filhos, sabe tudo a nosso respeito e se preocupa com o nosso bem-estar. O cristão
sabe que ali, à direita de Deus, está Aquele que veio do céu à terra e se
identificou conosco, tomou o Seu lugar ao nosso lado, tomou sobre Si o
nosso pecado e morreu pelos nossos pecados. Assim, o cristão vai à presença de
Deus sabendo essas coisas. É o que significa “fostes aproximados”.

No capítulo quatro da Epístola de Tiago, versículo oito, há esta declaração


extraordinária: “Chegai-vos a Deus, e ele se chegará a vós”. Mas como posso
chegar-me a Deus se não sei o caminho? Como posso chegar-me a Deus se não
sei que estou na aliança, que não sou mais estranho, que não estou mais
separado, que não estou mais fora e longe? A única maneirapela qual podemos
chegar-nos a Deus é a que o apóstolo coloca no fim deste glorioso versículo, cuja
consideração completa devemos deixar para mais tarde. Há somente um
caminho pelo qual chegar-nos a Deus, há somente um caminho pelo qual entrar
no “lugar santíssimo”: “pelo sangue de Jesus”. “Mas agora em Cristo Jesus,
vós, que antes estáveis longe, já pelo sangue” - o sangue! - “de Cristo chegastes
perto.” O sangue do cordeiro na verga e nos batentes das portas das casas dos
israelitas no Egito salvou-os e os poupou; e o único sinal procurado em todos os
que querem aproximar-se de Deus e chegar-se a Ele é a marca deixada pelo
sangue do Filho de Deus. Essa marca está em você? Se está, você tem livre
entrada (e ninguém pode impedido) no “lugar santíssimo”, na própria presença
de Deus. Você está ali? Foi para lá? Você ora com confiança e certeza? Você
conhece a Deus? Você está gozando comunhão com Ele?

Ser habilitado a “chegar perto de Deus” é experimentar todas as bênçãos da


Nova Aliança em Jesus Cristo.

O SANGUE DE CRISTO

“Mas agora em Cristo Jesus, vós, que antes estáveis longe, já pelo sangue de
Cristo chegastes perto.” - Efésios 2:13

O problema conosco, povo cristão, é que sempre deixamos de compreender


agrandeza da nossa salvação. Essa a razão pela qual foram escritas as Epístolas
do Novo Testamento. Foram escritas para cristãos, e foram necessárias porque
aqueles cristãos, como nós, estando ainda na carne e sujeitos às tentações e
provações inevitáveis num mundo dominado pelo pecado, estavam sempre se
vendo como distantes de Cristo e não compreendendo o que exatamente os
caracterizava em Cristo Jesus. E os apóstolos se dispuseram afazê-los ver isso.
Esse é o único meio pelo qual podemos chegar a entender a grandeza
desta salvação; e à medida que formos entendendo, seremos levados a alegrar-
nos e regozij ar-nos, a louvar a Deus e dar-Lhe graças; e a uma segurança e
confiança em Cristo que nada poderá abalar. Mas, para chegarmos a isso, temos
de compreender duas coisas: temos de ver o que éramos sem Cristo; e então,
temos de compreender o que agora nos caracteriza verdadeiramente por estarmos
no Senhor Jesus Cristo.

Temos aqui o lado positivo desta grande dimensão do amor e do poder de Deus
para conosco em Cristo. Vimos que há três coisas aqui, e agora passamos à
terceira e última delas.

A terceira é, pois, a seguinte: como é que tudo isso acontece, como ocorre essa
grande mudança, o que é que nos dá o direito de dizer: “antes... longe” e
“agora...aproximados” - o que é que nos traz para “perto de Deus O apóstolo
trata disso na parte final deste versículo: “Mas agora em Cristo Jesus, vós, que
antes estáveis longe, já pelo sangue de Cristo chegastes perto”. “Pelo sangue de
Cristo.” Aí está a declaração que sempre se vê, em toda parte, no Novo
Testamento, neste contexto. Já a vimos. O apóstolojános tinhafalado no capítulo
primeiro, versículo sete - “em quem (em Cristo) temos a redenção pelo
seu sangue, a remissão das ofensas, segundo as riquezas da sua graça” - e vai
sempre repetindo isso. E continuará a repeti-lo. O restante deste capítulo é, num
sentido, simplesmente um desenvolvimento e uma exposição deste versículo
treze. Ele o expõe em detalhe e fica repetindo as suas frases. É a história
completa do Novo Testamento, é o coração

da men sagem cristã e da fé cristã. Como é que se faz para que cheguemos perto
de Deus? A única resposta é: “em Cristo Jesus”, e especialmente “em” ou “pelo
seu sangue”.

Eis aí o alicerce da fé cristã. Se isto não estiver claro para nós, não poderemos
estar certos em lugar nenhum. Digam os críticos o que quiserem, esta é
certamente a mensagem do Novo Testamento. Em Cristo Jesus, e pelo Seu
sangue. O nosso evangelho é um evangelho de sangue; o sangue é o alicerce;
sem ele não há nada. Portanto, temos que penetrar isto a fundo e dar ênfase às
coisas que o apóstolo está com tanta preocupação em salientar ao escrever aos
efésios.

Como chegamos perto de Deus? Que direito temos de buscar a face de Deus e de
chegar perto dEle? Bem, começamos com negativas. Primeiramente e acima de
tudo, não é pelo que eu sou por natureza. Não é por causa de alguma bondade
existente em mim. Meu direito de ir a Deus não se baseia no fato de que eu vivo
uma vida virtuosa ou tente viver uma vida virtuosa, ou que tenho boa
moralidade. Não é mediante isso que se chega a Deus; não é isso que me leva
para perto de Deus. Há muita gente de boa moral no mundo que nem sequer está
interessada em Deus; e mesmo que estivesse interessada em Deus, a sua
moralidade, sozinha, nunca seria suficiente. Não precisamos demorar-nos nisto,
o apóstolo já o tinha salientado nos versículos anteriores: “não vem das obras”!
Assim é que, se nalgum sentido estamos pondo a confiança em nós mesmos e
em nossa bondade e em nossa moralidade, estamos negando o evangelho. Não
há maior negação da fé cristã do que pensar que porque você é uma boa pessoa
tem direito de chegar a Deus em oração. Isso é uma completa e absoluta negação
disso tudo. Se fosse verdade, Cristo nunca teria precisado vir ao mundo - menos
ainda teria precisado morrer na cruz do Calvário. E, contudo, penso que
vocês concordarão que é essencial dar ênfase a isto. Muitíssimos são os que vão
à presença de Deus exatamente como o fariseu descrito pelo nosso Senhor na
figura do fariseu e do publicano que foram orar no templo (Lucas 18:9-14). O
fariseu foi direto à frente, ficou de pé e disse: “Ó Deus, graças te dou, porque
não sou como os demais homens, roubadores, injustos e adúlteros; nem ainda
como este publicano. Jejuo duas vezes na semana, e dou os dízimos de tudo
quanto possuo”. Esse homem, diz o nosso Senhor, não vai para casa justificado;
não foi ouvido por Deus, não está perto de Deus. Há um sentido em que
ninguém está mais longe de Deus do que o homem que pensa que a sua bondade
tem algum valor, por pequeno que seja, na presença daquele fogo ardente,
daquele fogo consumidor, a santidade de Deus.

Em segundo lugar, o nosso direito de chegar a Deus não é pelas boas obras que
fazemos aos outros. Muitos são os que tomam essa posição. Dizem eles: bem, é
claro que admito que não sou perfeito, mas, afinal de contas, estou tentando
chegar a isso, estou tentando compensar isso fazendo o bem; estou envolvido em
atividades filantrópicas, procuro ajudar os outros, saio do meu caminho para
fazê-lo. Vocês concordarão que existe aí um grande grupo de pessoas. Admitem
que não têm nada do que se gabar, são suficientemente sinceros para conhecer
que há dentro delas coisas feias, torpes e vis. Ah, sim, dizem elas, porém,
certamente, se procuramos compensar isso e fazer expiação por isto mediante a
prática de boas obras, isso nos dará admissão à presença de Deus. Aí estão os
idealistas, os benfeitores públicos, os que falam em “reverência pela vida” e em
fazer o bem. As vezes fazem grandes sacrifícios; podem renunciar a uma
importante profissão, podem sacrificar as comodidades do lar e ir a distantes
partes do mundo. Certamente estão fazendo um grande benefício, mas, se
pensam que esse benefício que fazem é o que lhes garante admissão a Deus e os
faz aceitáveis a Deus, estão negando o evangelho, exatamente como o primeiro
grupo.

Todavia vou mais longe ainda. Nem porque somos religiosos e temos interesse
nos cultos e em Deus é que chegamos perto de Deus. Aqui está algo que está
num plano mais elevado que o das pretensões anteriores. As outras duas só vêem
o ego. Mas aqui se trata de alguém que realmente se preocupa com religião e
com a relação com Deus. Ele desej a cultuar a Deus. No entanto, se ele põe a sua
confiança unicamente em suas práticas religiosas, de nada lhe valerão. E
contudo, de novo, vocês concordarão que há muitíssimos que pertencem a esse
grupo. Freqüentam cultos, valorizam a ordem. Podem sacrificar-se para
fazer isso e se levantam muito cedo porque acham que há algum mérito especial
nisso. Fazem isto e aquilo, observam formas e seguem o ritual, e confiam nessas
coisas como sendo elas o meio de aproximação. Mas até isso é uma negação da
mensagem cristã. O apóstolo Paulo era um homem altamente religioso antes da
sua conversão. Martinho Lutero era um homem altamente religi oso antes da su a
conversão. João Wesl ey era um homem altamente religioso antes da sua
conversão. Você pode jejuar, suar e orar, porém isso pode ser o maior obstáculo
para chegar “perto de Deus”. Não é esse o caminho.

E, finalmente, nesta parte sobre as negativas, eu gostaria de assinalar que o


caminho para chegar perto de Deus não é o do misticismo. Isso também precisa
ser ressaltado porque o misticismo, em

suas várias formas, está sempre conosco. Nem sempre se vê em sua forma
clássica, ensinada e praticada na Idade Média, especialmente no período final da
Idade Média, por alguns dos grandes mestres da vida mística, assim chamada, e
aindapraticadapor muitos que seguem aquele ensino na igreja católica romana e
em vários outros ramos da Igreja Cristã. Mas o misticismo, em diversas formas
sutis, sempre tende a estar conosco. (Há, naturalmente, um verdadeiro
misticismo cristão evangélico, porém, estou falando de algo que é geralmente
considerado como misticismo.) Pois bem, o misticismo se baseia na alegação de
que o caminho para aproximar-se de Deus é você olhar para dentro de si mesmo.
Provavelmente o místico concordaria com tudo o que eu disse até aqui em
minhas negativas. Se você quer conhecer a Deus, diz o místico, se você quiser
chegar perto de Deus, terá que voltar-se para si próprio e ver-se interiormente;
terá que aprofundar-se em si mesmo. Deus, diz o místico, está dentro de você.
Assim, é preciso que você se feche para todas as exterioridades e para todas as
atividades externas e que, por assim dizer, mergulhe em Deus. E esse, diz ele, é o
caminho pelo qual se chega perto de Deus. O caminho da renúncia, o caminho
da contemplação, o caminho do repouso, o caminho do deixar ir-se,
da descontração, e simplesmente submergir-se no fundamento da existência,
imergir-se em Deus!

Por outro lado, talvez possamos caracterizar o misticismo do seguinte modo: a


essência desse ensino é que a pessoa pode realmente aproximar-se de Deus,
encontrar Deus e chegar perto dEle diretamente, sem nenhum mediador. Isso
assume diversas formas populares. Há gente, por exemplo, que o ensina dizendo:
se você tem problema na vida, se não sabe bem o que fazer consigo ou o que
fazer nas circunstâncias em que se acha, é muito simples o que fazer. Comece
ouvindo a Deus, aí mesmo onde está e como está; você não precisa fazer nada
mais; você se assenta, relaxa e ouve a Deus. Você só tem que deixar a coisa
andar, digamos assim, e dessa maneira, nesse estado de descontração,
apenas espere por Deus, e Deus falará com você; você pode chegar a
Ele diretamente. Mas, dirá alguém, onde entra Cristo? Isso, dizem
esses místicos, é algo que vem depois. A primeira coisa que você tem que fazer é
chegar a Deus, é entrar em contato com Deus, e depois lhe será ensinado como
vir a Cristo. Ensina-se especificamente que, sem sequer mencionar o nome de
Cristo, qualquer pessoa, sempre que o quiser, pode chegar perto de Deus e
estabelecer contato imediato com Ele. Assim eles pretendem “levar as pessoas a
Deus primeiro”, asseverando que, se o desejarem muito, poderão levá-las depois
a Cristo. Entretanto,

naturalmente, é obvio que isso é uma total negação daquilo que o apóstolo
ensina napassagem que estamos estudando. Somos aproximados. Como? “Em
Cristo Jesus”, “pelo sangue de Cristo”.

Como posso entrar à presença de Deus? Uma coisa é clara: não posso fazê-lo por
mim mesmo, por nenhum dos meios que indiquei. Sej a eu ativo ou passivo, seja
eu altamente religioso ou não, seja o que for que eu faça, nunca conseguirei
chegar por mim mesmo à presença de Deus. Totalmente correto, diz o apóstolo;
a verdade a seu respeito é que, em Cristo Jesus, os que antes estavam longe,
agora foram aproximados. E uma coisa que lhe foi feita] você foi aproximado,
trazido para perto. Não é atividade sua, é de Outro, é algo que foi feito para
você, que aconteceu a você. Porque isso é verdade, naturalmente isso é
evangelho. Ouçam o apóstolo Paulo dizê-lo quando escreve aos coríntios:
“Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo” (2 Coríntios 5:19). Não
é o mundo que se reconcilia com Deus. Não é essa a mensagem. A nova
mensagem é que, ao passo que os homens tinham falhado completamente, Deus
estava em Cristo reconciliando conSigo o mundo. Ou vejam as palavras do
Senhor Jesus Cristo. Não é assustador que nós, tendo nossas Bíblias abertas
diante de nós, podemos continuar tentando encontrar Deus e chegar perto dEIe
pelos meios que estive indicando, quando o próprio Filho de Deus disse: “Eu sou
o caminho, a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai, senão por mim”? Dava para
pensar que isso seria suficiente, uma vez por todas. É a afirmação mais
categórica que se poderia imaginar. “Ninguém vem ao Pai, senão por mim.”
E, todavia, aí estão os que dizem: vou na força da minha bondade, vou sentar-
me, vou relaxar, e verei Deus falar comigo. E Cristo nem é mencionado, nem
parece necessário!

E isso é tido e havido como cristianismo. Porventura não é de admirar que


acristandade esteja como está, que as nossas igrejas estejam como estão, que não
estejamos experimentando a presença de Deus e um poderoso avivamento e
despertamento? Esquecer o Filho e achar que Ele não é necessário é insultá-10; é
negar afirmações específicas do apóstolo e do próprio Filho de Deus. Não há
meio de chegar perto de Deus, exceto no Filho de Deus e por intermédio dEIe, o
nosso bendito Senhor e Salvador Jesus Cristo. “Há um só Deus, e um só
Mediador (somente um!) entre Deus e os homens, Jesus Cristo homem”
(1 Timóteo 2:5). Portanto, o ensino é que nenhum homem chega perto de Deus, a
não ser que estejaem Cristo. O apóstolo já expusera isso. E tudo “em Cristo”.
Falemos com clareza: se eu não estou em Cristo, nunca

estive perto de Deus. A única maneira pela qual posso estar perto de Deus é
estando em Cristo; nEle eu estou perto de Deus, fui aproximado a Deus. Mas,
em particular, “pelo Seu sangue”! É o que o apóstolo salienta. Ele não se
contenta em dizer apenas: “Mas agora em Cristo Jesus, vós, que antes estáveis
longe fostes aproximados”. Sente a necessidade de incluir: “pelo sangue de
Cristo”. Isso é absolutamente essencial. Sei que esta “teologia do sangue” é
odiosa para muitos hoje em dia. Não gostam dela, odeiam-na, abominam-na.
Lembro-me muito bem como, há uns doi s anos, pouco mai s pouco menos, fui
chamado para ajudar numa discussão que estava havendo entre um homem de
negócio que se tornara cristão, e um profissional não cristão. Era uma
grande discussão, e eis que ouvi o profissional não cristão dizer ao apresentar o
seu argumento: naturalmente, tenho grande respeito por meu amigo aqui, é um
bom homem; posso ver o que lhe aconteceu: tudo bem, ele se dedica muito a
fazer o bem, e eu concordo com isso; porém você sabe, disse ele, o que não
agüento é esse sangue, esse negócio estrondoso de que ele fica falando. O
sangue de Cristo! Gente há que se refere a isso como “esta carnificina”, “este
revolver-se no sangue”. Façamos tudo para viver uma vida virtuosa, dizem,
prestemos culto a Deus, mas você tem que ficar arrastando este sangue
perpetuamente? Parece-lhes um escândalo, parece-lhes algo odioso. E, todavia, o
apóstolo sai da sua rota para introduzir esse assunto. É “pelo sangue de Cristo”.
E o sangue de Cristo significa a morte de Cristo, o derramamento da vida.

Noutras palavras, somos aproximados em Cristo Jesus; não primariamente por


Seu ensino, porém. Ele ensinava. Ensinava os homens a viverem - vejam o
Sermão do Monte - mas se Ele tivesse ficado só nisso, eu estaria tão longe de
Deus quanto é possível ao homem estar. O Senhor Jesus Cristo, com o Seu
ensino e com as Suas palavras sobre como devo viver, não me leva para perto de
Deus. Num sentido, leva-me para mais longe. Os fariseus - em sua interpretação
da lei -pensavam que realmente chegavam perto de Deus pela observância da lei.
Entretanto quando Cristo expôs o verdadeiro significado da lei, eles começaram
a ver que estavam muito longe de Deus. Quando você percebe que Deus Se
interessa tanto por um desejo como por um ato, tanto por um motivo como por
uma ação, que o olhar é tão mal como o ato aos olhos de Deus, você percebe que
o ensino de Cristo condena você completamente. Cristo não me leva a Deus
ensinando-me a viver. Menos ainda dando-me um exemplo para seguir. Seja
como for que me sinta quanto a mim, quando olho para Ele quero esconder-me,
envergonhado. As vidas dos Seus servos são mais que suficientes para que eu

sinta quão pobre é a minha vida. Quando leio as vidas dos santos, vejo como são
pobres e imperfeitos os meus esforços. Mas quando olho para o Filho de Deus!
Há os que falam sobre a “imitação de Cristo”, e sobre como vão seguir a Cristo;
porém nunca sabem o que estão dizendo. Cristo nos condena completamente.
Quem pode segui-10? Não há quem possa segui-10; é impossível; Ele é por
demais exaltado. Não é o Seu exemplo que me aproxima de Deus.

Tampouco me aproxima simplesmente me dizendo que Deus é amor. Pois bem,


este, suponho, é o mais popular erro de entendimento do evangelho hoje. O povo
diz: o que Jesus Cristo faz é isto - e é assim que Ele nos leva a Deus - Ele nos diz
que Deus é amor. Tudo o que realmente todos nós necessitamos é assegurar-nos
de que Deus é amor. E a única coisa de que os homens e as mulheres necessitam,
dizem; eles têm uma idéia errônea de Deus; se tão-somente soubessem que Deus
é um Deus de amor, correriam para a Sua presença e passariam o resto das suas
vidas ali. Que fatal maneira de subestimar o pecado e os efeitos da Queda! Será
que os homens se interessariam mais por Deus se soubessem que Ele é um Deus
de amor? Claro que não! Quereriam negociar. Diriam: ah, bem, se Deus é um
Deus de amor, posso fazer o que quiser, o amor de Deus me perdoará. E é
justamente o que dizem. Portanto, o Senhor Jesus Cristo não nos leva para perto
de Deus simplesmente dizendo-nos que Deus é um Deus de amor e que Ele está
pronto a perdoar. O Velho Testamento já nos dissera isso: “Assim como um
pai se compadece dos seus filhos...” e assim por diante. O Velho Testamento está
repleto do amor de Deus. Teve sucesso? Não. Nunca teve, e nunca terá. Não é
esse o caminho.

Há somente um meio pelo qual mesmo Cristo pode me levar para perto de Deus,
e esse ê - pelo Seu sangue, por Sua morte; pelo Seu corpo partido, pelo Seu
sangue derramado, pela Sua vida vertida. Por isso Ele instituiu a Ceia do Senhor
com o pão partido e o vinho derramado, como uma perpétua rememoração do
fato de que a Sua morte é o único caminho para Deus. Vemos aí o prodigioso
pré-conhe-cimento (apresciência) de Deus em Cristo. Sabendo quão prontos
estão os homens a cair no erro e na heresia, Ele estabeleceu, impôs e ordenou a
Ceia do Senhor - pão, vinho; pão partido, vinho derramado - para ser uma
perpétua pregação do fato de que esse é o único caminho para a presença de
Deus. O véu é o Seu corpo - tinha que ser rasgado. A morte de Cristo! É somente
pela morte de Cristo, pelo sangue de Cristo, que o ser humano pode ser levado
para perto de Deus.

Como pode a morte de Cristo realizar essa obra? Há duas principai s idéias aqui.
Vou expô-las resumidamente a vocês. A primeira é a que comumente é chamada
“expiação”. O sangue de Cristo faz expiação por nossos pecados. Vocês se
lembram da momentosa declaração feita por João Batista no início do ministério
do nosso Senhor? “Eis”, disse João, vejam, “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o
pecado do mundo” (João 1:29). Aí está, numa única frase. O Senhor Jesus
Cristo, que é Ele? E o Cordeiro, o Cordeiro pascal, o Cordeiro do sacrifício. Ele
é Aquele em quem se resumem todo o cerimonial e todo o ritual do
Velho Testamento. O Cordeiro de Deus, o Cordeiro providenciado por Deus -
não os cordeiros providenciados pelos homens. Por que era necessário um
cordeiro? Por que devia haver um sacrifício? A resposta é que “o salário do
pecado é a morte” (Romanos 6:23). Deus decretou e declarou que o homem,
pecando, morreria. E, portanto, o salário do pecado é a morte. E Deus
igualmente estabeleceu e decretou que isso só poderia ser coberto com uma
morte sacrificial e expiatória. Assim é que lemos: “Sem derramamento de
sangue não há remissão” de pecados (Hebreus 9:22). A punição dada por Deus
pelo pecado é a morte espiritual, a separação de Deus por toda a eternidade.
Gostemos ou não, é um fato. A lei não desculpa a ignorância da lei. Você não
concordar com a lei não faz nenhuma diferença quando enfrenta acusação no
tribunal. E assim é a lei de Deus. “O salário do pecado é a morte.” E todos nós
somos pecadores. E a pena tem que ser cumprida - de outra forma Deus deixa de
ser justo, deixa de ser reto e santo. Então, por que Cristo veio ao mundo? Veio,
diz o autor da Epístola aos Hebreus, para que “provasse a morte por todos”
(Hebreus 2:9). Veio, diz Pedro, por esta razão: levar “ele mesmo em seu corpo os
nossos pecados sobre o madeiro, para que, mortos para os pecados, pudéssemos
viver para a justiça” (1 Pedro 2:24). Foi por isso que Ele veio. Que aconteceu na
cruz? “Aquele que não conheceu pecado, (Deus) o fez pecado por nós”, declara
Paulo; “para que nele fôssemos feitos justiça de Deus” (2 Coríntios 5:21). “Deus
estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, não lhes imputando os seus
pecados.” Deus toma os meus pecados - Ele tomou os meus pecados, eu diria, e
os imputou a Jesus Cristo; Deus os colocou sobre Ele; tomou a minha dívida e a
colocou sobre Ele; exigiu dEle a penalidade; e esta foi cumprida. Esse é o
método de salvação determinado por Deus - em Cristo e pela morte de Cristo.
Por que Cristo morreu? A resposta é que “Deus fez cair sobre ele a iniqüidade de
nós todos”; é que “pelas suas pisaduras fomos sarados”. Deus O feriu para que
nós não fôssemos feridos. Por isso Ele morreu, por isso o Seu sangue

foi derramado. Este é o único meio de expiar pecado; a expiação jamais se


realizaria de outro modo. Pedro desembainhou a espada, certa ocasião, para
defender o nosso Senhor. Embainhe a sua espada, Pedro, disse noutras palavras
Cristo; você não sabe que eu poderia dar ordens a doze legiões de anjos, e eu
poderia ser levado para o céu sem nenhum sofrimento? Mas eu vim para sofrer e
assim cumprir as Escrituras (Mateus 26:51-54). Ele “manifestou o firme
propósito de ir a Jerusalém” (Lucas 9:51). Ele podia ter escapado disso tudo.
Mas, então, se Ele escapasse disso tudo, eu e vocês morreríamos em nossos
pecados. Ele tinha que morrer; é o método de Deus para dar-nos perdão. Pelo
Seu sangue! Por Sua vida vertida! Agora vocês vêem por que Paulo teve
que introduzir essa verdade. Sem isto não há perdão. Sem isto eu não
posso aproximar-me de Deus; a expiação é absolutamente indispensável. Antes
de eu poder chegar perto de Deus, algo tem que ser feito acerca dos meus
pecados. Eu nada posso fazer a respeito; eles estão condenados pela lei de Deus,
e essa lei tem que ser satisfeita; e Cristo a satisfez. Ele cumpriu perfeitamente a
lei; Ele sofreu a punição exigida pela lei. O obstáculo da lei de Deus foi
removido. Agora o caminho está livre, a barreira do meu pecado foi tirada do
caminho. Isso é expiação.
Contudo o sangue de Cristo faz uma segunda coisa. E esta é vitalmente
importante em nosso contexto. Paulo afirma que estávamos “separados da
comunidade de Israel” e que éramos “estranhos às alianças da promessa” - à
aliança! Deus fez uma aliança com o homem, como vimos quando consideramos
a Nova Aliança. Leiam o capítulo oito da Epístola aos Hebreus, e ali verão os
termos completos da Nova Aliança. “Porei as minhas leis no seu entendimento, e
em seu coração as escreverei; e eu lhes serei por Deus, e eles me serão por povo;
e não ensinará cada um ao seu próximo... dizendo: Conhece o Senhor;
porque todos me conhecerão, desde o menor deles até o maior...e de
seus pecados e de suas prevaricações não me lembrarei mais.” Essa é a Nova
Aliança. Estes efésios eram estranhos a isso tudo. Mas agora foram aproximados
pelo sangue de Cristo.

Como isto acontece? Eis a explicação: toda aliança era ratificada e selada com
sangue. Ao lerem o Velho Testamento vocês verão isso em toda parte. Quando
Deus fazia uma aliança com o homem, ela era sempre ratificada e selada com
sangue. Um animal era morto e o seu sangue era esparzido sobre o documento.
De fato verão que o templo foi santificado e consagrado da mesma maneira - os
vasos do templo, os livros e o livro da lei. Verão que os sacerdotes eram
separados pelo sangue esparzido sobre eles. Verão que quando um leproso era
purificado, colocavam

sangue sobre ele. Esse é o método de Deus, o método para firmar e selar esses
atos. Toda aliança de Deus é ratificada e selada por meio da aspersão de sangue.
E a Nova Aliança foi ratificada da mesma maneira, desta vez pelo sangue de
Jesus Cristo. Não mais “o sangue de touros e bodes, e a cinza de uma novilha
esparzida sobre os imundos” (Hebreus 9:13). É o sangue de Cristo. Ele ratificou
a Nova Aliança. Ouçam as expressões utilizadas, especialmente naEpístola aos
Hebreus. Lemos que Jesus é “o Mediador da Nova Aliança” (VA). Verão
isso claramente no capítulo doze. Igualmente no capítulo treze lemos acerca do
“Deus de paz, que pelo sangue do concerto (aliança) eterno tornou a trazer dos
mortos a nosso Senhor Jesus Cristo, grande pastor das ovelhas” (versículo 20). O
sangue da aliança eterna! Certamente vocês notaram como o Senhor Jesus
Cristo, quando instituiu a Ceia do Senhor, tomou o cálice, depois de cear, e
disse: “Este cálice é o Novo Testamento no meu sangue” (Lucas 22:20) - a “nova
aliança no meu sangue”. Notaram como Paulo lembra isso aoscoríntios,em 1
Coríntios, capítulo 11: “Semelhantemente também, depois de cear, tomou
o cálice, dizendo: Este cálice é a nova aliança no meu sangue; fazei isto, todas as
vezes que beberdes, em memória de mim”. São esses os termos. A aliança é
ratificada com sangue. Noutras palavras, a Nova Aliança entre Deus e o homem
não seria segura para nós, se o sangue de Cristo não fosse esparzido sobre ela.
Esse é o selo que a garante. Levar os nossos pecados não seria suficiente. Antes
de eu poder chegar perto de Deus e de ser aproximado dEle, tenho que ser um
beneficiário, sob a Nova Aliança; e Cristo é o Mediador da Nova Aliança. É Ele
que Se põe entre Deus e o homem. Ele é o Árbitro que nos reúne. É aquele
que estende as mãos para Deus, de um lado, e para nós, de outro. Ele é Deus; Ele
é homem; sim, ele é Mediador completo. Portanto, é por meio do sangue da
aliança que eu posso chegar perto de Deus.

Alguém poderá dizer nesta altura: ouvi tudo o que você disse, mas me vejo tão
grande pecador que, quando começo a orar, aflijo-me com isso; como posso
chegar perto de Deus? A resposta é que você precisa crer neste ensino,
aperceber-se do que ele diz e chegar-se a Deus com ousadia, pelo sangue de
Jesus. A primeira coisa que é preciso que se faça é ouvir o que diz o sangue de
Cristo. Alguma vez lhe ocorreu que o sangue de Cristo fala? Não se lembra do
que nos é dito em Hebreus 12:22-24: que chegamos à Jerusalém celestial, ao
Monte Sião, etc., “e a Jesus, o Mediador de uma Nova Aliança”, e finalmente,
“ao sangue da aspersão, que fala melhor do que o de Ábel”? Sangue fala. O de
Abel

falou. Que disse? Ouçam Gênesis 4:10. Deus Se dirigiu a Caim, depois que este
assassinara Abel, e disse: “Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama a
mim desde a terra”. O sangue de Abel derramado estava clamando a Deus por
vingança. E assim que fala o sangue de Abel. Fala de juízo, fala de vingança,
fala de maldição, a maldição que caiu sobre Caim. Mas o sangue de Jesus “fala
melhor do que o de Abel”. Que fala? Fala de perdão, de expiação, fala de paz
com Deus. Está clamando e bradando para você: “Eu morri, você pode viver. A
pena foi cumprida; você está livre.” Você ouve o sangue de Jesus? Ele está
falando, e fala coisas melhores do que as que o sangue de Abel fala. Ouça o
sangue de Cristo, que lhe fala que Ele provou a morte por você e sofreu a
pena imposta a você, que a lei de Deus foi satisfeita e que o caminho para
a presença de Deus está livre.

Ou vejam o ponto de uma segunda maneira. Ouçam isto, em Hebreus 9:14:


“Quanto mais o sangue de Cristo, que pelo Espírito eterno se ofereceu a si
mesmo imaculado a Deus, purificará as vossas consciências das obras mortas,
para servirdes ao Deus vivo?” E, de novo, Hebreus 10:22: “Cheguemo-nos com
verdadeiro coração, em inteira certeza de fé, tendo os corações purificados da má
consciência, e o corpo lavado com água limpa”. Que quer isso dizer? Quer dizer
que quando você se põe de joelhos diante de Deus e a sua consciência o acusa e
você se lembra do que é e do que fez e ressuscita os seus pecados, você deve
voltar-se para si mesmo e dizer: fui aspergido com o sangue de Cristo, você não
pode me condenar; “Portanto agora nenhuma condenação há para os que estão
em Cristo Jesus”. Responda. Tenha a sua consciência aspergida pelo sangue de
Cristo, e ela será purificada de todas as suas obras mortas.

Entendo, você dirá, vejo agora como posso ir à presença de Deus porque vejo
que os meus pecados receberam o devido tratamento. Estou, pois, na presença de
Deus. Mas, o que será de mim se eu tomar a cair em pecado, o que será de mim
se eu fizer algum mal? Aí está, na Primeira Epístola de João, a sua resposta: “Se
andarmos na luz, como ele na luz está, temos comunhão uns com os outros, e o
sangue de Jesus Cristo, seu Filho, nos purifica de todo o pecado” (1:7). Você
pecará; mas o sangue de Cristo ainda o purificará do seu pecado. Você foi
trazido para perto de Deus, você está andando em comunhão com Ele, mas
cai empecado. Você pensa: estou acabado, é o fim, pequei contra a luz.
Não! Volte! O sangue de Cristo ainda tem poder, limpará você de todo pecado e
de toda mácula, você pode continuar andando com Deus, gozando da comunhão
com Ele. “Vós, que antes estáveis longe, já pelo sangue de Cristo fostes
aproximados.”

Quero fazer-lhe uma pergunta. Você foi aproximado? Posso dizer-lhe, com muita
simplicidade, como saber se foi ou não. Se você ainda fala em ser
suficientemente bom, você não foi aproximado, não chegou perto. Se você ainda
confia em si mesmo de algum modo, ainda está longe. Se você fala que ainda
não é suficientemente bom, também não chegou perto - porque enquanto você
continuar falando que não é suficientemente bom, você estará dizendo que acha
que pode tornar-se suficientemente bom. Todavia não pode. Nunca estará mais
perto que agora. Nunca! Se vivesse mil anos, não chegaria mais perto. J amais
você será suficientemente bom para vir à presença de Deus. Assim, se
você ainda está dizendo: ah, isso é maravilhoso, mas eu não sou bom o bastante,
sou pecador, significa que você não chegou perto. O único que é trazido para
perto é aquele que diz: sei que sou pecador, sei dos meus pecados do passado, sei
que ainda tenho uma natureza pecaminosa; porém, embora eu saiba disso, sei
que estou na presença de Deus, porque estou em Cristo. Ouvi a voz do sangue de
Jesus, e ele me falou de perdão, de reconciliação, de expiação, de Deus estar
satisfeito, de Deus ser “justo e justificador daquele que tem fé em Jesus”
(Romanos 3:26). Foi feita a aspersão do sangue sobre a minha consciência.
Ainda que o inferno me denuncie, sei que Deus me aceita; estou confiante
unica, completa e inteiramente em Jesus Cristo, e Ele crucificado. “Seu sangue
limpa o mais imundo, seu sangue vale para mim.” Unicamente em Seus méritos
sei que tenho acesso a Deus e que Deus me recebe, que fui “aproximado pelo
sangue de Cristo”. Tenhamos, pois, “ousadia para entrar no lugar santíssimo,
pelo sangue de Jesus”; mas ainda “com reverência e santo temor”. Ousadia,
confiança, entretanto sempre lembrando que “o nosso Deus é fogo consumidor”.
Não voluvelmente, não levianamente, não com desatenção, não com petulância,
não tem-pestuosamente, não carnalmente. “Com reverência e santo temor” -
todavia sabendo, tendo certeza, com segurança, porque eu entro à presença de
Deus “pelo sangue de Jesus”.

1
Título de um drama de Shakespeare e nome do seu principal personagem. Nota do tradutor.

2
Hebraico, “aquele que habita”. Implicitamente, “a glória daquele que habita”. Nota do tradutor.

Tradicionalmente, “propiciatório”. Idem.

É interessante o original inglês, que salienta a formação etimológica da palavra atonement. Houve
“an at-one-ment” - “an atonement”. “At-one-ment” - ato de ficar no lugar de alguém. Expiação
substitutiva. Nota do tradutor.
18

ELE É A NOSSA PAZ

“Porque ele é a nossa paz, o qual de ambos os povos fez um; e, derrubando a
parede de separação que estava no meio, na sua carne desfez a inimizade, isto é,
a lei dos mandamentos, que consistia em ordenanças, para criar em si mesmo
dos dois um novo homem, fazendo a paz, e pela cruz reconciliar ambos com
Deus em um corpo, matando com ela as inimizades.” - Efésios 2:14-16

Temos aqui mais uma daquelas grandes declarações, majestosas e amplamente


abrangentes, que com tanta regularidade e constância vemos conforme
avançamos neste capítulo. Faz parte do parágrafo que começa no versículo onze
e vai até o capítulo três. E também é importante, ao chegarmos a este novo passo
dado pelo apóstolo, que tenhamos o argumento geral em nossas mentes. Vocês
nunca poderão ver realmente as partes do argumento do apóstolo se não tiverem
ao mesmo tempo o todo em mente. Não há sentido, não há
verdadeira subsistência de uma parte fora do todo. Refresquemos, pois,
nossa memória.

O apóstolo está demonstrando “a sobreexcelente grandeza do poder de Deus


sobre nós, os que cremos”. É isso que ele quer que estes efésios saibam. Ele ora
no sentido de que os olhos do seu entendimento sejam abertos para que possam
conhecer e captar esta verdade. Não se trata de um conhecimento humano
comum; não é algo que se enquadre na mesma categoria dahistória ou da
filosofia ou coisa semelhante; é um tipo e espécie especial de conhecimento. E
só pode ser captado e apreendido quando somos iluminados pelo Espírito Santo.
Por isso o apóstolo começa com essa oração. Para alguém cuja mente não
esteja iluminada pelo Espírito Santo, todo este argumento é
completamente irrelevante. E essa é a situação do mundo e a atitude de todos os
não cristãos. Eles dizem que querem algo prático, algo relevante. Isso por causa
da sua cegueira, pois, se tivessem olhos para ver, veriam que somente isto é
relevante. Mas o apóstolo orou para que os crentes efésios pudessem conhecer,
em particular, “a sobreexcelente grandeza do poder de Deus sobre nós, os que
cremos”. E ele o demonstra, vocês recordam, de duas maneiras principais.
Primeiro ele mostra que eles estavam mortos em ofensas e pecados; e nada pode
ressuscitar os
mortos, senão o poder do Criador. Somente Deus pode ressuscitar os mortos - e
Ele ressuscitou estas pessoas da morte espiritual, com Cristo, parauma novidade
de vida; elas até estão assentadas com Ele nos lugares celestiais.

No entanto, havia um segundo fato, adivisão do mundo antigo entre judeus e


gentios. Antes de pessoas como estes efésios, que eram gentios, pagãos,
poderem tornar-se membros da Igreja, de um modo ou de outro Deus tinha que
tratar dessa divisão radical. E o assunto do qual o apóstolo está tratando nestes
versículos, começando com o versículo onze, é como Deus fez isso. A
declaração geral é que noutro tempo eles eram gentios na carne, estavam “sem
Cristo, separados da comunidade de Israel e estranhos às alianças da promessa,
não tendo esperança, e sem Deus no mundo; mas agora em Cristo Jesus, vós, que
antes estáveis longe, já pelo sangue de Cristo chegastes perto”. Essa é a
declaração, essa é a proposição, esse é o fato espantoso. __

O apóstolo sentiu, porém, que não bastava apenas ficar nisso. E algo tão
maravilhoso, tão estupendo, que ele teve que dividi-lo, fragmentá-lo, em suas
partes componentes, a fim de que eles vissem de maneira mais pormenorizada
como essa realidade estonteante veio a existir.

Ele começa esta exposição detalhada no versículo 14 com a extraordinária


afirmação: “Ele (Cristo) é a nossa paz”. “Porque Ele é a nossa paz” - o “porque”
fazendo ligação com o que vem antes. Ele está desenvolvendo um argumento,
está continuando o tema. “Porque ele é a nossa paz” - Aquele por cujo sangue
fomos trazidos para perto é a nossa paz. Pois bem, essa é uma das coisas mais
gloriosas ditas acerca do Senhor Jesus Cristo em qualquer lugar. De todos os
termos e títulos aplicados a Ele, nenhum é mais maravilhoso do que este. Ele é a
nossa paz. Esta concepção é utilizada com freqüência, no Velho Testamento e no
Novo, com relação a toda esta questão da salvação. Não há expressão mais bela
do que a que se vê naEpístola aos Hebreus, capítulo treze, versículo vinte: “Ora
o Deus de paz, que pelo sangue do concerto eterno tomou a trazer dos mortos a
nosso Senhor Jesus Cristo, grande pastor de ovelhas, vos aperfeiçoe em toda a
boa obra, para fazerdes a sua vontade, operando em vós o que perante ele é
agradável em Cristo Jesus”. Aí está! Deus é “o Deus de paz”. Esse é um modo
muito bom de pensar na salvação; somos salvos, somos cristãos,
simplesmente porque Deus é “Deus de paz”. Realmente é tudo resultado disso.

Mas a mensagem da Bíblia é que Deus é Deus de paz, e produz e faz a paz, em
Seu Filho unigênito, o nosso Senhor e Salvador Jesus
Cristo, e por intermédio dEle. 0 resultado é que vocês vêem que o Senhor é
descrito nesses termos em todo o Velho Testamento, na profecia. Vocês vêem,
por exemplo, um homem como Jacó, no fim da sua vida longae cheia de
mudanças, abençoando os seus filhos e as várias tribos que iriam desenvolver-se
daqueles filhos; e quando ele chega a Judá, diz: “O cetro não se arredará de Judá,
até que venha Silo”. Que é Siló? Siló é paz, o Autor da paz, o Príncipe da paz. A
Jacó foi dado ver isso. Não o entendeu plenamente, porém a estes homens,
inspirados pelo Espírito Santo, fora dado certo entendimento do grande
propósito de Deus, e Jacó tinha visto que era de Judá que Siló viria. Siló! “Ele
é a nossa paz.” DELE se diz ainda que não somente é “o Rei de Justiça”, mas é
também “o Príncipe da Paz”. São títulos atribuídos a Ele. Permitam-me lembrar-
lhes também que quando, finalmente, na plenitude dos tempos, o Filho de Deus
nasceu, pastores que vigiavam os seus rebanhos durante a noite ouviram um
grandioso hino entoado por anjos. Sua mensagem era: “Glória a Deus nas
alturas, paznaterra, boavontade para com os homens”. E por toda parte é assim.
“Ele é a nossa paz.” Esta é a essência mesma da salvação. O apóstolo se
expressa desse modo a fim de nos mostrar mais ainda quão admirável e
espantosa é a nossa salvação. Devo lembrar-lhes de novo que esse é o grande
tema, a espécie de “leit motif ”* que segue paralelamente o grande, o grandioso
“motif ” central propriamente dito. O apóstolo queria que estes efésios se dessem
conta da natureza gloriosa da sua salvação. Isto ele expõe de diversas maneiras
nos versículo 1 a 13, eaqui.no versículo 14, dá mais um passo. Como vimos, no
versículo 1 a 10 o apóstolo nos mostra que é o pecado que causa a morte.
Somente quando compreendemos verdadeiramente a natureza do pecado é que
compreendemos verdadeiramente a natureza da salvação. É por isso que não há
nada que seja tão antibíblico e tão tolo como dizer: só quero o positivo. Não
se preocupe com o negativo, não fale muito sobre o pecado; queremos saber do
amor de Deus e do positivo. Contudo você jamais o saberá, se não compreender
o negativo. O apóstolo salienta esta verdade constantemente. Para medir o amor
de Deus você primeiro tem que descer antes de subir. Você não parte do nível em
que está e daí sobe; temos que ser tirados de um calabouço, de um poço horrível;
e se você não tiver idéia da medida dessa profundidade, só medirá a metade do
amor de Deus.
Tema característico que se repete constantemente numa partitura. Em francês no original. Nota do
tradutor.

Nos dez primeiros versículos o apóstolo nos mostra que Deus tem que vencer o
pecado, pois este leva à morte espiritual.
Feito isso, ele prossegue e nos mostra, nos versículos 11 e 13, como o pecado
sempre leva à separação - separação entre os judeus e os gentios, “chamados
incircuncisão pelos que na carne se chamam circuncisão feita pela mão dos
homens”. Separação! Separados da comunidade de Israel e estranhos às alianças
da promessa! O pecado separa o homem do homem, como também de Deus.

Mas neste versículo catorze o apóstolo nos mostra que o pecado não se detém na
ação de separar os homens, vai além; o pecado põe os homens em inimizade; e
não somente em inimizade uns com os outros, porém também com Deus. Isso é
o cúmulo do pecado, o aspecto deveras horrível do pecado; é onde se vê a
extrema fealdade do pecado. O pecado não somente separa os homens de Deus e
uns dos outros, produz um estado de inimizade contra Deus e de uns contra os
outros. Por isso o grande problema atual é o problema da paz. Essa é a razão
das conferências que se realizam. Essa é a grande preocupação de todo o mundo
- não haveria um jeito de banir a guerra, de reconciliar os homens, de estabelecer
uma paz durável, segura e permanente? Como poderão os homens ser
reconciliados? Sabemos destas divisões, destes conflitos, no mundo inteiro, nas
nações, em grupos dentro das nações, como também entre nação e nação. O
mundo todo parece estar num estado de luta e inimizade. Por quê? E aí que
vocês vêem a relevância das Escrituras. E é neste ponto que se vê como é difícil
às vezes ser paciente, como cristão. E, contudo, temos que ser pacientes. Vemos
o mundo e os seus homens, os seus grandes homens, assim
chamados, visivelmente perdendo tempo tentando o impossível. Às vezes é
difícil ser paciente. Mais difícil ainda quando a gente vê homens, mesmo
na Igreja Cristã, entendendo e interpretando de forma completamente errada as
Escrituras e, por assim dizer, levantando-se diante do mundo e dizendo: vocês só
têm que fazer o que lhe dizemos, e a paz que procuram e esperam logo será uma
realidade. Isso é trágico; não passa de pura incapacidade de entender declarações
como a que estamos considerando.

O pecado é a causa do problema; ele põe o homem em inimizade contra Deus, e


põe o homem em inimizade contra o homem. A explicação é muito simples. O
pecado é essencialmente orgulho, ego. Evidentemente devemos voltar ao livro
de Gênesis. Os que pensam que podem eliminar os primeiros capítulos de
Gênesis e continuar tendo um evangelho cristão, estão apenas exibindo a
suaignorância. Ali vocês têm

a explicação fundamental daquilo que prevalece hoje. A causa radical de toda a


inimizade é o orgulho do homem; o homem interessado em si mesmo, o homem
querendo impor-se como um ser autônomo, até mesmo face a Deus, e pronto a
dar ouvidos às perguntas: “É assim que Deus disse?” Quem é Deus para dizer-
lhe o que você pode ou não pode fazer? Homem, disse satanás, você não percebe
como você é grande, como é poderoso. Deus o está mantendo como escravo, e o
está usando como servo. Por que você não se levanta sobre os seus próprios pés,
por que não faz afirmação do seu ser, por que não se firma em sua dignidade e
não exige os seus direitos? Não se rebaixe, levante-se! E ele se levantou. Não
quero ser paradoxal, mas foi porque o homem se levantou que ele caiu. Pôs-se
numa posição que nunca fora planejada para ele; tentou ficar numa posição que
não podia manter; e isso levou à Queda e a todas as suas terríveis conseqüências.
Tudo devido ao orgulho, ao interesse próprio, àpreocupação consigo mesmo.
Ohomem quer bancar deus. Julga-se autônomo, julga que tem direitos; fala dos
seus direitos e das suas exigências. Isso é simples manifestação de interesse
próprio, de autogratificação, de amor próprio e de louvor próprio. Ele está
sempre se voltando para si mesmo e girando em torno de si. Ele é o centro.
Sim, mas, desafortunadamente, todos os homens estão fazendo a mesma coisa.
Aí é que entra o problema. Se somente eu existisse, não haveria problema,
porém todos os outros “eu” são exatamente como eu. O resultado é que o mundo
está povoado de deuses, todos afirmando o seu ser pessoal, exigindo os mesmos
direitos e alegando as mesmas coisas. E os choques são inevitáveis. É uma
guerra de falsos deuses. E todos se juntam na inimizade contra Deus; não
significa, no entanto, que todos estejam de acordo entre si. Não! Acaso vocês
não vêem como este é o modelo de todos os problemas do mundo atual? Temos
aí os operários se unindo contra os patrões; e os patrões contra os operários.
Mas, isso significaria que eles estão muito felizes, em harmoniauns com os
outros e todos se ajudando mutuamente e se sacrificando uns pelos
outros? Naturalmente que não! Eles se dividem - operário contra operário, patrão
contra patrão, com rivalidade, competição, ciúme e inveja. O problema existe em
toda parte. A humanidade se une em inimizade contra Deus, todavia está cheia
de lutas sangüinárias - o homem contra o homem, bem como o homem contra
Deus.

Essa é a única explicação adequada acerca do mundo como ele é hoje. E a


suprema tragédia é que o mundo não vê isso', nem começou a vê-lo. E isso
porque ele parte da suposição de que, seja qual for a explicação, não tem relação
com Deus. Somos espertos demais para crer

em Deus; começamos excluindo Deus. Não pode ser assim. Seja o que for, não é
religioso. Não tem a mínima ligação com Deus e com Cristo. Agora somos
adultos, não somos mais crianças, de modo que não se trata disso, isso nem deve
ser levado em conta. Por isso tentamos encontrar alguma outra explicação e cura.
Mas o fracasso terrível é evidente por todos os lados. E, necessariamente,
continuará assim, enquanto o homem não enxergar a explicação verdadeira. Ele
não vê que é devido estar em más relações com Deus que ele está em más
relações com os seus semelhantes.

O Senhor Jesus Cristo fala disso com muita clareza e uma vez por todas. Alguém
aproximou-se dEle um dia e disse: “Mestre, qual é o grande mandamento na
lei?” E esta foi a Sua resposta: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu
coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu pensamento. Este é o primeiro e
grande mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: amarás o teu próximo
como a ti mesmo” (Mateus 22:36-39). Pois bem, o importante aí é observar a
ordem: primeiro, a relação com Deus; segundo, a relação do homem com o seu
semelhante, homem ou mulher. Toda a tragédia do mundo moderno deve-se ao
fato de que o primeiro é inteiramente descartado, e os homens pensam
que podem começar do segundo. Contudo você não pode fazê-lo, porque deve
amar o seu próximo como a si mesmo, deve amar o seu próximo como você se
ama a si mesmo. Portanto, o problema é: como devo amar a mim mesmo? E,
segundo a Bíblia, eu nunca amarei a mim mesmo da maneira certa enquanto eu
não me vir a mim mesmo como estou na minha relação com Deus. Portanto, não
tenho a mínima possibilidade de cumprir o segundo mandamento, a não ser que
já esteja esclarecido quanto ao primeiro. E impossível. E o homem hoje, não
reconhecendo a Deus, não começando com Deus, e não se submetendo a Deus,
está tentando reconciliar-se com o seu semelhante. E, naturalmente, não
está tendo sucesso, e nunca terá. Ele está violando a lei da sua própria natureza.
Ele foi feito por Deus, foi feito para Deus; e ele não se verá verdadeiramente a si
próprio, e não verá verdadeiramente nenhuma outra pessoa, enquanto não se veja
e não veja os outros à luz da lei de Deus, face a face com Deus.

É isso que está por trás da declaração aqui: “Ele é a nossa paz”. Somente Cristo é
a nossa paz. Sem Ele não há paz. O mundo pode continuar a desenvolver-se
intelectualmente e em todos os outros aspectos, pode aumentar o seu
conhecimento da ciência, da sociologia, da psicologia e de tudo mais, pode
multiplicar as suas instituições, pode

instruir-nos neste e naquele aspectos, porém isso não levará a nada, porque o
problema nunca poderá ser solucionado, exceto em nosso Senhor e Salvador
Jesus Cristo, e por meio dEle. É quase incrível que seja necessário dizer isso.
Mas é. A história prova isso cabalmente. O século vinte deveria ter sido o melhor
e o mais grandioso século que o mundo já conheceu, conforme e entendimento
humano. Vejam-no, porém. É um dos piores, um dos mais aterradores. Isso é
muito deprimente, dirá alguém, não devo estar tão deprimido assim. A resposta é
que não é questão de depressão, é questão de encarar os fatos. Se você está
realmente preocupado com o problema do homem e do mundo, como está com o
seu próprio problema, terá que enfrentá-lo radicalmente. E aí estão os fatos. Se
você tentar partir do segundo mandamento, isso levará ao desastre, porque o
homem não é meramente intelecto, não é meramente um ser social. Segundo as
Escrituras, há um princípio mau atuando nele; ele está infeccionado pelo pecado,
espiritualmente está mal de saúde. E antes de começar a instruí-lo, você terá de
curá-lo. Ele precisade nova vida. O apóstolo o diz em termos de uma declaração
geral que, é claro, é totalmente consoante com o cristianismo - “Ele (e somente
Ele) é a nossa paz”.

Ora, isso significa várias coisas. Primeiramente e acima de tudo, significa que
Ele, pessoalmente, é a nossa paz. O que quero dizer com isso é que o Senhor
Jesus Cristo não somente faz a paz - Ele faz a paz, como espero demonstrar-lhes
- mas Ele mesmo é a paz. Ele é a nossa paz. O que é simplesmente outra maneira
de dizer que nós temos que estar em Cristo, antes de podermos gozar as bênçãos
de Deus como o Deus da paz. Somente quando estivermos relacionados com
Cristo, somente quando estivermos incorporados em Cristo, ou, para usar
uma expressão bíblica, enxertados em Cristo, somente quando formos membros
de Cristo e partes do Seu corpo, participando da vida de Cristo e haurindo da
vida de Cristo - somente quando tudo isso for real em nós é que realmente
gozaremos as bênçãos da paz. Mais uma vez, quando compreendermos isso,
veremos a indescritível superficialidade de muitacoisaque se diz nos dias atuais.
Não quero que me entendam mal, nem quero faltar com o respeito para com os
chamados pacifistas, todavia o real problema com aquele ensino é a sua falta de
entendimento teológico, e a sua incapacidade de compreender o problema do
pecado. E isso não se aplica somente ao caso deles, mas também atoda
conversa leviana dos homens e mulheres que dizem que o problema é
muito simples, que tudo que é preciso fazer é convidar o povo para reunir-se e
falar-lhe agradavelmente, terminando tudo com um aperto de mãos, e

tudo estará bem, Houve estadistas que acreditavam sincera e genuinamente que
se tão-somente pudessem reunir-se com Hitler ao redor de uma mesa e conversar
com ele, toda a coisa seria resolvida. “A paz em nosso tempo”, diziam eles, “nós
nos reunimos com eles, fizemos um acordo de cavalheiros.” No entanto, não
demorou muito, e eles descobriram que o homem cujas mãos eles tinham
apertado não era um cavalheiro. E esse continua sendo o problema. Quão
superficial, quão patético, pensarem ainda os homens que mediante frases feitas
podem resolver os problemas do pecado do homem. Não, “Ele é a nossa
paz”; Ele, o eterno Filho de Deus, que teve que nascer como uma criança
em Belém. É isso que foi essencial para solucionar este problema. E, todavia,
eles dizem que simplesmente sendo bom, agradável e amistoso, e falando através
de uma mesa, podem acertar tudo. Se fosse tão simples assim, a encarnação
jamais precisaria ter ocorrido, a morte na cruz nunca teria acontecido; mas, antes
de poder haver paz, estas coisas tiveram que acontecer. Ele mesmo, a Pessoa
bendita, é a nossa paz. E é somente quando entendemos algo desta mística
doutrina do cristão como membro do corpo de Cristo é que verdadeiramente
participamos dessa paz e a usufruímos.

Entretanto Ele também faz a paz, diz o apóstolo. Este é um ponto sobre o qual
devemos ter claro entendimento. Como Cristo faz a paz? Devemos interpretar
isso escrituristicamente, não sentimentalmente. Notem os termos: “Ele é a nossa
paz”; e depois, Ele fez a paz-fazendo a paz”. Que é que significa isso? A
interpretação superficial, sentimental dos textos a que me referi, parece entender
que o processo é o seguinte: o Senhor Jesus Cristo nos ensina a fazer a paz.
Dizem tais intérpretes: “Você lê as Escrituras e depois, no espírito das
Escrituras, e daquilo que você entendeu das Escrituras, procure o seu
inimigo, ponha em prática o ensino, e você o ganhará”. O argumento, ao
nível internacional, é que, se uma só nação simplesmente se
desarmasse completamente, o efeito que causaria sobre todas as outras nações
seria tão estonteante que nunca mais quereriam outra guerra.

Uma vez ouvi um homem falar numa reunião, creio que uns trinta e cinco
minutos, e que nesse espaço de tempo nos conduziu, assim pensou ele, através
de toda a Epístola dos Efésios sem nenhuma dificuldade! Disse-nos que a sua
mensagem era deleitavelmente simples. Era um pacifista muito conhecido e que
tinha sofrido bastante pelo seu pacifismo; homem honesto, homem sincero, um
bom homem. O que ele entendia do nosso texto (Efésios 2:14-16) era que ele
simplesmente consistia numa questão de aplicar o ensino de Cristo e o espírito
cristão.

O clímax do seu discurso foi uma história que ele nos contou e que, para ele,
provava inteiramente o ponto. Disse ele que fazia parte do corpo diretivo de uma
escola para meninas, escola pública, e ele nos contou que vários colegas de
direção sentiam-se mal com o fato de haver punições e recompensas na escola.
As crianças que procediam mal eram punidas de várias maneiras, e ele e outros
achavam que esse não era o método de Cristo, não era o método cristão. Não
devia haver nenhuma punição, nenhuma disciplina nesse sentido; em vez disso,
as crianças deveriam ser convidadas a agir como adultos, deveriam revestir-se de
dignidade, e deveria ser-lhes dito que no futuro seriam tratadas como adultos, e
que os inspetores e inspetoras de alunos confiariam nelas. Assim, disse ele, após
muitos anos, eles persuadiram os seus colegas da junta diretora e o corpo
docente a concordarem nisso, e naquela escola em especial todas as formas de
punição foram abolidas. Disse ele: alguns dos nossos amigos, naturalmente,
tinham profetizado que isso levaria ao desastre, mas vocês sabem, continuou ele,
no mesmo ano em que fizemos isso, o número de admissões em Oxford e
Cambridge foi mais alto do que nunca antes. É isso que acontece, disse ele,
quando se põe em prática o amor de Cristo. Aí está! Tão simples! Simplesmente
aplicar o ensino. Faça isso individualmente, faça-o em comunidades, em grupos
e em classes; faça-o entre países, e nunca mais haverá problema algum!

Que perversão das Escrituras! Seria realmente necessário que o Filho de Deus
deixasse as cortes celestiais se a resposta fosse essa? A morte de cruz seria
necessária, se a solução fosse apenas uma questão de aplicar algum ensino? Não
é o que nos é dito aqui. Ele, Cristo, fez a paz. Não é que Ele me manda fazer algo
- Ele faz isso, é certo, mas eu só posso fazer o que Ele me diz porque Ele fez
algo primeiro. Ele fez a paz. Ele é a nossa paz. Ele é o Príncipe da paz. E o Deus
de paz que faz apaz. Não é primariamente os homens aplicarem certo ensino, é
algo fundamental feito por Deus em Cristo que produz uma situação
inteiramente nova. E por isso que não me canso de dizer que o dever da
Igreja Cristã não consiste meramente em dar conselho aos estadistas e a outros, e
em dizer-lhes como solucionar os seus problemas; pois não poderá haver paz
entre os homens enquanto os homens não se tornarem cristãos. É impossível. Por
isso o evangelho é necessário, por isso Cristo veio. Não se pode aplicar a não
cristãos um ensino destinado aos cristãos. Fazê-lo é uma rematada heresia. Estas
Epístolas não foram escritas para o mundo, foram escritas para os cristãos.
Temos que nascer de novo, temos que ser criados de novo, antes de ser possível
que isso se aplique a nós. Cristo faz a paz. Essa é a proposição fundamental. Ele
é a nossa

O apóstolo nos diz nestes versículos como Cristo traz à existência a paz. Para
que haja paz verdadeira, duas coisas são indispensáveis. E preciso que os
homens sejam reconciliados com Deus, e que sejam reconciliados uns com os
outros. O apóstolo dá atenção a ambos os problemas. Ele parte da reconciliação
dos homens uns com os outros. Ele procede assim, entendo eu, porque o que
predominava em sua mente naquela hora era o seguinte: ele estava olhando para
a Igreja Cristã e nela via judeus e gentios. Assim ele inicia com o fato concreto
da Igreja. Ali, juntos, louvando a Deus, estão homens que antes eram
inimigos mordazes. Que foi que os juntou? Paulo começacom essa questão e
dela trata nos versículos 14 e 15. Depois, no versículo 16, ele mostra
como ambos juntos foram trazidos a Deus e como foi abolida a inimizade
entre eles e Deus.

Como, então, Cristo reconcilia os homens uns com os outros? Como Ele
aproxima uns aos outros em amor? Como Ele destrói a inimizade que há entre os
homens? Primeiro Paulo o coloca negativamente. Diz ele que Cristo derrubou “a
parede de separação que estava no meio”, entre nós. Neste ponto permitam-me
indicar que a Versão Autorizada, e na verdade a Versão Revista (inglesas), não
são tão boas como deviam ser. Sem dúvida, a Versão Revista Padrão é melhor.
Eis a tradução da Versão Autorizada e (com ligeira variação apenas) da Versão
Revista: “Ele é a nossa paz, o qual de ambos fez um e derrubou a parede de
separação que estava no meio, entre nós, tendo abolido em sua carne a
inimizade, até (essa palavra é acrescentada, não está no original, e vem impressa
em itálicos), até a lei dos mandamentos”. Não está muito bom, e é melhor
entendê-lo assim: “Derrubou a parede divisória de hostilidade (ou de inimizade)
abolindo a lei dos mandamentos” (tradução semelhante à de Almeida). Ele
derrubou a parede de separação (de inimizade) que estava no meio. Como? -
abolindo a lei dos mandamentos nas ordenanças. Essa é a melhor maneira de ver
isso. Então, que significa? Que é que uniu o judeu e o gentio na Igreja Cristã? A
resposta é que o Senhor Jesus Cristo desfez a inimizade. Havia no meio uma
espécie de parede de separação entre eles. Havia uma parede divisória entre eles,
no meio. O apóstolo está usando aqui, como figura, algo que era característico
do templo. No templo vimos que o Pátio dos Gentios era o mais distante. Os
gentios não tinham permissão para entrar no Pátio do Povo, dos judeus. Havia
uma parede que os separava, uma parede de separação, no meio. De fato, aquele
velho templo estava cheio

de divisões. Havia, além do Pátio dos Sacerdotes, o Lugar Santo, e depois o


“santo dos santos”, o Lugar Santíssimo, no qual ninguém tinha a permissão de
entrar, exceto o sumo sacerdote, uma vez por ano. Era um lugar cheio de
divisões. Mas em Cristo, diz o apóstolo Paulo, as divisões foram arrasadas,
foram derrubadas, foram postas abaixo, e o caminho para o Lugar Santíssimo
está livre. Contudo aqui ele está particularmente interessado no fato de que a
primeira divisão, entre os gentios e os judeus, a inimizade, desapareceu.

Mas por que lhe chama inimizade? Porque, afinal de contas, foi Deus que
determinou os detalhes concernentes à construção do templo, foi Deus que deu a
lei aos filhos de Israel. E, contudo, Paulo afirma que foi essa lei dos
mandamentos contida nas ordenanças que realmente produziu a inimizade. Esse
é um ponto muito importante e muito sutil, e é aí que vemos exatamente o que o
pecado faz ao homem. Como já vimos, Deus tinha dividido a raça humana em
dois grupos. Deus criou para Si um povo especial descendente de Abraão. São os
judeus, a comunidade de Israel, o povo de Deus. Os judeus estavam
realmente separados de todos os outros povos, e o propósito era que
estivessem separados mesmo. Deus lhes deu leis especiais, estas “leis dos
mandamentos nas ordenanças”, como Paulo as descreve. Ele se refere à
lei cerimonial, à lei acerca das ofertas queimadas e dos sacrifícios, das ofertas de
cereal, e de todas as outras sobre as quais lemos no livro de Levítico e noutros
lugares. Deus as determinou. Eram esses os meios pelos quais os filhos de Israel
deviam aproximar-se de Deus e ser abençoados por Ele; e, se não os
observassem, Deus não Se encontraria com eles, e não os abençoaria. Deus lhes
deu a lei. Não deviam comer certos tipos de animais, e assim por diante. Eram,
todas elas, leis de Deus, a lei cerimonial, a lei dos mandamentos nas ordenanças,
em preceitos. Bem, vocês dirão, se é assim, onde entra a
inimizade? Precisamente onde entra o pecado. Deus dividiu o mundo em
dois grupos, e deu estes mandamentos. Mas não o fez para criar inimizade; fez
isso para que os filhos de Israel dessem testemunho dEle, das Suas santas leis e
do caminho da salvação. No entanto, por causa do princípio do pecado, do ego e
do egoísmo, eles interpretaram o ato de Deus de tal modo que diziam: nós, e
somente nós, somos o povo de Deus, e estes outros são cães, mal chegam a ser
seres humanos.

Os judeus tornaram o mandamento de Deus uma parede intermediária de


separação; fizeram dele um objeto de ódio e de inimizade. E os gentios olhavam
e diziam: quem são esses judeus? Que alegações são essas que eles fazem a seu
favor? E assim os odiaram. E

o judeu odiava o gentio. Mas não era essa a intenção de Deus. A lei fazia parte
da revelação de Deus, fazia parte do plano de salvação feito por Deus. Entretanto
o homem em pecado transforma os próprios dons de Deus em causas de
inimizade. É assim que as paredes intermediárias entram. Não se trata de um
ponto puramente acadêmico. O mundo atual está cheio dessas divisões. Vejam os
dons que Deus dá aos homens. Todos eles são manifestações da Sua
generosidade e bondade. Ele dá o dom da inteligência e do entendimento, dá
perspicácia a certos homens, e eles prosperam e têm sucesso. Ele derrama
chuvas de dons destas várias formas. Mas, pergunto, todos os homens se
ajoelham e agradecem a Deus os dons da Sua graça aos homens? Será que
atribuem com humildade a glória e a honra a Ele e lhe dão graças, sendo que é
Ele quem dá “toda a boa dádiva e todo o dom perfeito”? Sabemos muito bem
que não o fazem. Eles estão fazendo o que o judeu e o gentio fizeram. O homem
dotado de inteligência diz: naturalmente, eu tenho cérebro, tenho entendimento.
Vejam aquele outro sujeito, ele não sabe nada. E assim o despreza. E o outro
homem olha para ele e diz: quem é ele? Quem ele pensa que é? Inimizade! E
tudo por causa dos dons de Deus. Dá-se o mesmo com todos os dons que Deus
dá. São dons de Deus, são maravilhosos, e se nós todos compreendêssemos isso
e fôssemos humildes, todos nós os desfrutaríamos juntos. O homem sem
talento diria: que maravilha esse homem! Que coisa esplêndida Deus tê-
lo dotado de tal capacidade! Todavia não é assim; estas coisas levam à inveja e à
rivalidade, à inimizade, ao ódio, à malícia, à crueldade, ao escárnio e a tudo o
que só serve para envenenar a vida.

Não haverá paz enquanto isso tudo não for derrubado. Cristo, diz o apóstolo
aqui, derrubou tudo isso, nesta questão de religião, e o fez uma vez por todas,
pois “Ele aboliu a lei dos mandamentos contida nas ordenanças Foi como Ele
fez. O que significa que agora o método de Deus não é mais o de ofertas
queimadas, sacrifícios e coisas que só eram peculiares e especiais para o judeu.
É mediante Cristo, e somente mediante Cristo. Assim, aquilo que tinha levado à
inimizade, à inveja e à rivalidade, foi eliminado por Cristo. A causa da inimizade
foi removida. E quando os homens vêem isso em Cristo, a inimizade desaparece.
O judeu que realmente entende a doutrina de Cristo, não se separa mais em
termos da lei cerimonial. Ele diz: isso terminou em Cristo; portanto, agora estou
na mesma posição do gentio. E o gentio também vê que não existe mais essa
peculiar distinção entre ele e o judeu, e que o caminho é em Cristo, tanto para ele
como para o judeu. Assim eles vêm juntos a Deus da mesma maneira, em nosso
Senhor e

Salvador Jesus Cristo e por intermédio dEle.

Vocês vêem o ponto ao qual chegamos agora. Cristo derrubou a parede de


separação que estava no meio, a inimizade. E aqui está como Ele o fez: “O fim
da lei é Cristo para justiça de todo aquele que crê” (Romanos 10:4). Já não há
necessidade do cerimonial e do ritual do judeu; isso foi extinto. Cristo é o
cumprimento disso tudo. Aquelas coisas eram apenas tipos que apontavam para
Ele. Os homens nunca devem deter-se nelas, elas deveriam levá-los a Ele. Mas
Ele pos um fim nelas. Dessa maneira, em toda esta questão de acesso a Deus, a
velha distinção, originariamente feita pelo próprio Deus, foi abolida pelo próprio
Deus em Cristo, e agora o caminho está livre, tanto para o gentio como para o
judeu, para virem à presença de Deus. Eles poderão vir, não mediante um
sacerdócio terreno, humano, não com ofertas e sacrifícios materiais, e sim
mediante o único e exclusivo Mediador entre Deus e os homens - o homem
Cristo Jesus, que pelo sacrifício da Sua vida e pelo Seu precioso sangue
derrubou a parede intermediária de separação. E será somente quando os homens
aprenderem essa verdade que serão libertos da inimizade.

FAZER A PAZ:

O MÉTODO DE CRISTO

“Para criar em si mesmo dos dois um novo homem, fazendo a paz. ” - Efésios
2:15

Ao passarmos a considerar esta declaração particular, devemos lembrar-nos de


que ela faz parte do grande argumento que o apóstolo desenvolve nestes
versículos. Ele está falando do admirável fenômeno apresentado pela Igreja
Cristã, e vê ali como membros e companheiros -judeus e gentios, pessoas que
tinham pertencido àquela comunidade de Israel junto com os que até então
haviam estado separados dela e tinham sido estranhos às alianças da promessa. E
o que ele está fazendo aqui é explicar como foi que isso aconteceu. Foi o poder
de Deus que o fez. Nenhuma outra coisa poderiajuntar judeu e gentio em atos
comuns de culto. Efoi esse opoder que ressuscitou Cristo dentre os mortos,
nada menos que isso! É isso que o apóstolo está expondo, e o faz em detalhe. O
argumento é sutil; em toda a extensão das Escrituras não há argumento mais
cerradamente entretecido do que nesta seção particular. Cada frase é importante,
cada palavra é significativa, se havemos de compreender a vigorosa declaração e
apreciar plenamente a sua riqueza e glória. Ele acrescenta declaração a
declaração, e cada uma delas segue a outra com extraordinária precisão lógica. A
mente do grande apóstolo revela-se aqui de maneira deveras admirável. A coisa
estava bem clara para ele, e ficará clara para nós, se nos dermos ao trabalho de
examinar estas frases uma por uma e observarmos a conexão entre cada uma
delas e a precedente, e como cada uma leva à subseqüente. Mas, em
acréscimo, precisamos da iluminação que somente o Espírito Santo pode dar.
Por isso o apóstolo, antes de aventurar-se a esta emocionante demonstração da
maravilhosa graça de Deus, tinha orado por estes efésios que iam ler a carta, no
sentido de que “os olhos do seu entendimento” fossem iluminados. Sem isso,
nada podemos fazer. Portanto, um teste muito bom para ver se o Espírito Santo
iluminou os olhos do nosso entendimento é verificar se estamos seguindo o
argumento conforme avançamos. Mais, estaríamos nos alegrando nele, vibrando
com ele, percebendo que estamos olhando para a coisa mais assombrosa do
mundo?

Aqui está a essência do argumento; Cristo é a nossa paz. “Ele é a nossa paz” -
tudo está nEle. E também é verdade que Ele faz a paz: “Para criar em si mesmo
dos dois um novo homem, fazendo a paz”. Ele é a paz; Ele faz a paz. E vimos
que o apóstolo nos diz que o Senhor Jesus Cristo faz a paz entre homem e
homem, e entre o homem e Deus. Ele é a paz em todos os aspectos. O apóstolo
os coloca naquela ordem, homem e homem primeiro, e depois, no versículo 16,
que estudaremos mais adiante, ele mostra como ambos são reconciliados e
unidos num só corpo para Deus. A ordem, naturalmente, é interessante.
Teologicamente a ordem é inversa, porém o apóstolo está falando num
sentido prático e pastoral. Ele parte do fato concreto da Igreja, com judeus
e gentios juntos e de joelhos prestando culto de igual maneira; ele parte daí, de
homem e homem, e depois mostra como ambos vão juntos a Deus. No momento
estamos vendo o modo como Ele reconcilia o homem com o homem. Diz-nos o
apóstolo que isto é feito de duas maneiras: primeiro, negativamente, e depois,
positivamente. Já consideramos o aspecto negativo, expresso nas palavras: Ele
“desfez alei dos mandamentos, que consistia em ordenanças”. Ele já removeu a
parede intermediária de separação - a inimizade - que estava entre judeu
e gentio.

Pois bem, isto é somente negativo, e não é tudo; na verdade, não é suficiente.
Este é o ponto que estou desejoso de salientar agora. Só abolir as paredes
intermediárias de separação não produz paz. Essa é a tragédia de grande parte
do pensamento atual, parece-me, que tanta gente não tenha uma verdadeira
concepção da paz. A paz, segundo as Escrituras, não
significameramenteacessação de hostilidades. Tampouco significa meramente a
prevenção de hostilidades de fato. Mas, pela maneira como se fala de “paz”
correntemente hoje, é óbvio que é isso que muitos querem dizer com o termo
paz. Considera-se a paz apenas como uma condição na qual não ocorre conflito
real. A paz vem a ser mera ausência de guerra. Essa pode ser a idéia que o
homem tem de paz; não é a idéia que Deus tem. Não é essa a noção bíblica de
paz. Meramente deixar de lutar não é paz, meramente prevenir hostilidades
futuras não é paz. Vocês vêem quão dolorosamente o evangelho está sendo
mal usado, mal interpretado, mal apresentado hoje pelos que ensinam que apenas
temos que aplicar “o ensino de Cristo” à situação internacional para resolver o
problema da tensão mundial. Descobriremos mais outras razões para dizer isso à
medida que avançarmos. Deus não Se contenta com mera ausência de inimizade
visível e agressiva e da manifestação dessa inimizade. Quando Deus faz apaz,
faz algo interno, algo vital. Não

satisfaz a Deus que os homens tão-somente não se agarrem pela garganta; a idéia
que Deus tem da paz é que as pessoas se abracem e demonstrem verdadeiro
amor mútuo. Isso é paz cristã, nada menos que isso. Não apenas que não lutemos
uns contra os outros, e sim que nos amemos uns aos outros, que haja união e
unidade, que realmente nos tomemos um e nos amemos uns aos outros como nos
amamos a nós mesmos. Essa é a verdade ressaltada neste trecho particular da
argumentação que agora estamos estudando. Deve-se pensar na paz em
termos de coração, de atitude; é questão de unidade e amor essencial,
vital, interior. O que Paulo nos diz é que Cristo produziu essa paz. Como o
fez? Eis a resposta: “Para criar em si mesmo dos dois um novo homem, fazendo
a paz”.

O apóstolo introduz aqui a profunda doutrina neotestamentária da Igrej a Cristã,


da natureza da Igrej a Cristã. O novo homem, o novo corpo é a Igreja. O meio
pelo qual Deus faz a paz consiste em formar, fazer, trazer à existência a Igreja
Cristã; portanto, qualquer tentativa de entender o modo cristão dapaz tem que
introduzir imediatamente a idéia da Igreja. Ou considerem isto da seguinte
maneira: segundo este argumento, a paz entre os homens só é possível quando
todos eles pertencem ao corpo de Cristo e são cristãos. Assim está
patentemente claro que não é uma coisa que se possa aplicar às nações. Portanto,
pregar a mensagem cristã como se esta fosse algo que pode ser aplicado
às nações e pelas nações não cristãs, que não pensam em termos cristãos e não
pertencem ao corpo de Cristo, é rematada heresia e uma completa negação do
ensino do apóstolo. E, contudo, é exatamente isso que andam fazendo. Há os que
dizem que tudo que os estadistas e as nações têm que fazer é aplicar este ensino.
Ninguém pode aplicar este ensino, a não ser o cristão, e ninguém vai aplicá-lo,
exceto o cristão. De fato, como vou mostrar, até os cristãos são muito falhos na
sua aplicação. Mas este ensino requer, pressupõe, um caráter cristão.
Observemos agora como o apóstolo expõe o tema.

Vocês vêem a imediata relevância disso tudo, como tudo isso é importante. Não
é uma doutrina e teologia árida. O que está mais agudamente nas mentes dos
homens hoj e é o desej o de paz - porém eles precisam vê-la de maneira certa.
Entretanto, fora esta aplicação geral, não conheço nada que seja mais edificante,
nada que sej a tão fortalecedor da fé, nada, portanto, que seja tão confortante
como a percepção da verdade daquilo que o apóstolo nos diz aqui. A Igrej a, diz
ele, é umanova criação: “Para fazer em si mesmo dos dois um novo homem”
(VA). Ora,

a palavra “fazer” aí é demasiado fraca. A palavra significa “criar” -“criar em Si


mesmo” (como em Almeida). Uma criação! Um hino muito conhecido expressa
bem isso:

Da Igreja o alicerce E Cristo, o seu Senhor;

E Sua nova criação Pela água e pela palavra.

Essa é a verdade: a Igreja é algo absolutamente novo, algo que foi trazido à
existência, algo que não existia antes. É comparável ao que aconteceu no
princípio, quando Deus criou os céus e a terra. Não existia nada antes de Deus os
criar. Criação significa trazer à existência algo que antes não havia, algo não
existente; é fazer algo do nada.

Essa é a frase empregada aqui. Suas implicações nesta questão de produzir a paz
são óbvias. Como Deus faz a paz entre judeu e gentio? Não é por uma
modificação do que havia antes; tampouco por um melhoramento daquilo que
existia antes. Deus não toma simplesmente um judeu e lhe faz algo, e não toma
um gentio e apenas lhe faz algo, e com isso os congrega. Nada disso! E uma
coisa inteiramente nova. Criação! Pois bem, isto é vital para a situação toda.
Quando somos introduzidos na Igreja Cristã, nós entramos como novas
criações, entramos em algo que é inteiramente novo. Há um sentido em que
ela não tem relação com nada do que existia antes.

Permitam-me ilustrar isso. Não se deve conceber a Igreja como uma coalizão de
vários partidos. Não, é a abolição de algo velho e a criação de algo inteiramente
novo. Ou permitam que eu use outra ilustração. O ponto que precisa ser ilustrado
aqui vê-se claramente na diferença entre os Estados Unidos da América e o
Reino Unido, semelhantemente na diferença entre os Estados Unidos da
América e a Comunidade Britânica de Nações. No Reino Unido ou na
Comunidade Britânica de Nações há uma associação de várias nações,
nacionalidades, povos e tribos. Todos eles pertencem à mesma comunidade,
mas continuam como nações separadas - a suanacionalidade não é demolida, não
é destruída. Elas permanecem como nações separadas, porém, por certas razões,
decidiram trabalhar juntas. Essa é a verdadeira característica da Comunidade
Britânica de Nações, outrora mantida pelo poder da força, agora mantida em
união por interesses comuns e propósitos comuns. A idéia de nacionalidade
individual permanece, mas voluntariamente entram num associação. É, portanto,
uma associação que pode

ser desfeita porque não deixaram de existir estes elementos particulares. Dá-se o
mesmo com o Reino Unido - ingleses, galeses, escoceses e irlandeses. A
nacionalidade não foi abolida, ainda está presente, todavia eles decidiram
trabalhar juntos e fazer certas coisas em comum. Mas nos Estados Unidos da
América a situação é muito diferente. Os Estados Unidos da América não são
uma união de nações, não é uma junção de distintas nações. Noutras palavras,
houve homens que foram para aquele país, homens procedentes de diversos
países da Europa e doutros lugares e, para serem verdadeiros cidadãos dos
Estados Unidos, tiveram que por fim ao seu passado. Formou-se uma nova
nação. Não é uma junção de alemães, suecos, finlandeses, noruegueses, ingleses,
franceses, italianos, gregos e outros. Absolutamente não! Eles fazem o máximo
que podem, e com razão, para esquecer tudo isso. São americanos; deram cabo
do antigo alinhamento, dos velhos laços nacionais. Passou a existir umanova
nação. Pois bem, esse é o tipo de coisa que temos na passagem em foco. A Igreja
não é uma espécie de coalizão de judeus e gentios; passou a existir algo
absolutamente novo, algo que simplesmente não existia antes. Criação! - “para
criar em si mesmo dos dois um novo homem”. Este é um princípio sumamente
importante.

Passemos agora à segunda proposição. A Igreja forma-se em Cristo. “Para criar


em si mesmo dos dois um novo homem, fazendo a paz.” Em Cristo forma-se a
Igreja; acontece como resultado da sua relação com Ele. Já vimos algo sobre isso
no capítulo primeiro. Também o vimos insinuado e sugerido nos dez primeiros
versículos deste capítulo. Mas aqui está mais uma vez. A Igreja é o corpo de
Cristo, e Ele é a Cabeça, dEle a Igreja recebe a sua própria vida, o seu sustento,
o seu poder, tudo. “Para criar em si mesmo dos dois um novo homem.”
Como Ele o faz? Como membros da Igrej a somos membros do corpo de
Cristo. Em 1 Coríntios 12:27 Paulo o coloca desta maneira: “Vós sois o corpo de
Cristo, e seus membros em particular”. Somos todos membros particulares,
individuais deste corpo único. Há uma unidade essencial num corpo. O corpo
não é uma junção de partes, não é apenas uma leve interligação de dedos, mãos,
antebraços, braços, pernas pés e dedos. Nada disso! O corpo é um todo orgânico,
uma unidade vital com partes individuais: porém o todo é maior do que a soma
das suas partes. Aí de novo vocês têm a mesma idéia. Não se pensa num dedo
isoladamente; é sempre parte do todo. Assim Cristo criou “em si mesmo dos
dois...”; é tudo “em si mesmo”. Portanto, temos que captar esta idéia da
Igreja como o corpo de Cristo, com Cristo como a Cabeça, e da unidade

orgânica de todas as partes, cada qual fornecendo algo, como o apóstolo nos dirá
mais adiante, no capítulo quatro.

Assim passo à terceira proposição, que é: a Igreja, como resultado do acima


exposto, é um novo homem: “para criar em si mesmo dos dois um novo homem”.
Aqui ele não está usando a expressão “novo homem” no sentido em que a usa
noutros lugares quando fala sobre o novo e o velho homem no cristão individual.
Aqui, o novo homem, o corpo, é a Igreja, que consiste destas várias partes, tudo
como uma representação do corpo de Cristo. De fato podemos chamar-lhe de
nova humanidade. E, ao que me parece, essa é a melhor maneira de vê-lo. Em
Jesus Cristo, e como resultado da Sua obra perfeita, algo inteiramente novo
passou a existir. Que é? Uma nova humanidade! Podemos pensar na Igreja não
somente como um corpo, mas também como uma humanidade. A comparação e
o contraste que de imediato nos vêm expontaneamente resumem-se nisto:
outrora todos nós estávamos em Adão. Todos nós éramos um em Adão, a
humanidade toda estava em Adão, de modo que tudo o que Adão fez, a
humanidade todafez. “Assim como todos morrem em Adão” - é a afirmação (1
Coríntios 15:22). Estávamos todos em Adão, ele era a cabeça e o representante
de toda a raça humana. Haviaumaunidade; ahumanidade eraum corpo em
Adão. Adão era a cabeça dessa humanidade que consistia de Adão e
sua semente.

Agora, o que aconteceu foi isto, e é aí que o encorajamento, a fortaleza e a


consolação do evangelho entram. Como cristão, acabei completa e
absolutamente com aquela velha humanidade. Não pertenço mais a Adão. O
velho homem foi crucificado com Cristo. O velho homem morreu. Cristo é o
segundo homem. Cristo é o último Adão. O primeiro Adão! O segundo Adão! O
iniciador de uma humanidade, a qual agiu mal, caiu em pecado e fracassou; o
Iniciador da nova humanidade, que nunca poderá fracassar porque está nEle! O
Segundo Homem! Paulo refere-se a Ele noutro lugar como “o primogênito entre
muitos irmãos” (Romanos 8:29). É precisamente a mesma idéia!
Quando olhamos para os cristãos, quando olhamos para a Igreja Cristã,
estamos olhando para uma nova raça, para uma nova humanidade,
totalmente diferente da velha humanidade. Não é que a velha humanidade
foi tomada e melhorada um pouco. E uma nova criação, é uma nova humanidade
proveniente de Cristo, como a outra humanidade proveio de Adão. É
absolutamente nova, é uma “nova criação”; nenhuma outra expressão é
adequada.

Chega-se a isto: em nosso novo nascimento, em nossa regeneração, em nosso


“nascer de novo”, nascemos nesta nova raça, neste novo corpo, nesta nova
família. É assim que Cristo faz a paz. Ele não produz um conglomerado de
pessoas diferentes; ele produz um novo povo, uma nova família, uma nova casa
paterna, uma nova raça. O apóstolo explica isso na parte final do capítulo; mas
aqui já vem o princípio. Aí está como Cristo faz a paz. Persuadir as nações a não
entrarem em conflito umas com as outras não é paz neste sentido. Só se faz a paz
pelo método de Deus, pelo método de Cristo, quando todos pertencemos à
mesma família, temos em nós o mesmo sangue, por assim dizer, somos membros
da mesma humanidade, membros do mesmo corpo, nesta vivida e vital relação
com Deus. Essa é a única paz de que se ocupa o Novo Testamento. Como é
ridiculo, pois, a Igreja dizer aos estadistas: tudo o que vocês têm a fazer é aplicar
o nosso ensino, e com isso vocês produzirão paz entre as nações. Isso é uma total
negação da doutrina da Igreja. E uma negação da doutrina da regeneração. E, na
verdade, uma apresentação completamente falsa do ensino do nosso bendito
Senhor.

Aí está, pois, o argumento como tal; porém há certas coisas que devemos
salientar. Por exemplo, o velho homem é excluído inteiramente. Isso decorre
necessariamente de tudo o que estivemos dizendo. O judeu, como judeu, foi
posto fora, como também o gentio foi posto fora, em Cristo. Se vocês acreditam
nesta nova criação, têm que compreender que tudo mais foi eliminado, foi posto
de lado inteiramente. “Não há judeu nem grego...porque todos vós sois um em
Cristo Jesus” (Gálatas 3:28). Outro princípio óbvio é que nada do que
pertencia ao velho estado tem valor ou relevância no novo estado. Se isso
nos parece alarmante, só temos que ler o que Paulo diz em Gálatas 6:15: “Em
Cristo Jesus nem a circuncisão nem a incircuncisão têm virtude alguma”. Que
tremenda declaração! Em Cristo Jesus a circuncisão é irrelevante, “nada vale”
(VA). Mas a incircuncisão é igualmente irrelevante, também “nada vale”. Em
Cristo Jesus, na esfera da Igreja, nesta questão de relação com Deus e paz entre
os homens, há somente uma coisa que importa - uma nova criação. Assim é que
o judeu se foi, o gentio se foi; tudo o que pertencia ao judeu, tudo o que
pertencia ao gentio - é tudo irrelevante daí em diante. O que importa é anova
criatura. Não existe pensamento mais fortalecedor ou mais consolador do
que esse. Isso me diz que toda a realidade da minha velha vida não importa mais.
Os pecados que outrora cometi foram enfrentados e vencidos, e não mais
importam. Pesam tão pouco quanto a circuncisão e a incircuncisão. Se estou em
Cristo, sou uma nova criatura. O velho

homem recebeu o devido trato, está morto, desapareceu. “Portanto agora


nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus.” “Eu fui crucificado
com Cristo.” Estou morto! “Não mais eu, mas Cristo vive em mim.” É o que esta
verdade significa. Que doutrina gloriosa, que bendita doutrina! Cristão, você
ainda é bastante tolo para dar ouvidos ao diabo quando ele faz você olhar para
trás, para a sua vida antiga? Não

0 faça, rejeite-o, resista a ele, diga-lhe que tudo se acabou, que o velho homem
que antes você era está morto, e que você não tem mais nada a ver com ele. O
que há é algo absoluta e inteiramente novo.

Um terceiro princípio é que todos nós somos iguais nesta nova relação porque
todos nós nos tornamos algo novo. Como Cristo forma a Igreja, como o judeu e
o gentio andam juntos? Não é porque o gentio se fez judeu ou prosélito do
judaísmo. Havia muitos na Igreja Primitiva que achavam que era isso. Todavia
não é esse o caminho; não é que o gentio se tornou judeu, que ele teve que
sujeitar-se à circuncisão e cumprir todo o cerimonial. Contudo, por outro lado, o
judeu não tem que se tornar gentio. A glória deste caminho é que o velho homem
é inteiramente excluído. Não é uma modificação do gentio e uma modificação
do judeu; não é uma reunião em torno de uma mesa de conferência e os dois
lados opostos concordarem em ceder algo e em buscarem um meio termo numa
base de cinqüenta por cento de concessões mútuas. Absolutamente não! Algo
absolutamente novo é trazido à existência. O judeu não se tornou gentio, o
gentio não se tornou judeu. E um novo homem, uma nova criação.

O nosso quarto princípio leva-nos mais longe ainda. A unidade deste novo corpo
ê uma unidade absoluta. Uso a expressão avisadamente. Não existe isso de um
segmento judaico da Igreja Cristã. Não existe isso de um segmento gentílico da
Igreja Cristã. E isso nunca existirá. O velho homem foi eliminado. O próprio
Senhor Jesus Cristo esclareceu isso uma vez por todas com uma declaração
sumamente importante, deste ponto de vista, em Mateus, capítulo 21, versículo
43. Dirigindo-Se aos judeus, disse Ele: “Portanto, eu vos digo que o reino de
Deus vos será tirado, e será dado a uma nação que dê os seus frutos”. Essa nova
nação é a Igreja. Os judeus, na qualidade de judeus, deixaram de ser o povo
especial de Deus. Há uma nova nação. Ej amais haverá um segmento judaico na
Igreja, numa posição diferente do segmento gentílico. Tudo isso acabou. Essa é a
afirmação feita pelo próprio Senhor. Vocês recordam como o apóstolo Pedro diz
a mesma coisa em

1 Pedro 2:9 e 10: “Vós”, diz ele (usando sobre a Igreja, composta por judeus e
gentios, as mesmas palavras que Deus dissera à nação de Israel

pouco antes da dádiva da lei), “Vós” (a Igreja) sois a geração eleita, o sacerdócio
real, a nação santa, o povo adquirido” (“um povo peculiar”, VA). Essa é a nova
nação. E não é uma mistura de judeu e gentio, mas um novo homem; o judeu
acabou, o gentio acabou, uma nova criatura. Não há mais, diz Paulo, judeu nem
gentio, bárbaro, cita, escravo nem livre, homem nem mulher. Graças a Deus tudo
isso acabou, há tão-somente um novo homem, em Cristo Jesus.

O modo como Ele faz a paz pode ser expresso finalmente da seguinte maneira:
eu e você temos paz e gozamos paz um com o outro, e há paz na Igreja, somente
se compreendemos e praticamos os princípios que acabamos de enunciar. Em
última análise, há somente dois grandes princípios. Temos que parar de pensar
em nós mesmos da maneira antiga e nos velhos termos, em todos os aspectos.
Como cristãos, como membros da Igreja, temos que parar de pensar uns
nos outros em termos de nacionalidade. Politicamente ainda fazemos isso. Na
Igreja Cristã temos que deixar de fazê-lo. Temos que esquecer tudo isso. Temos
que deixar de pensar nas pessoas em termos do seu nascimento natural, ou em
termos de sua capacidade. Todas estas coisas dividem: nacionalidade,
nascimento, educação, casta, todas estas coisas dividem. Na Igreja e como
cristãos, não devemos pensar mais em nós mesmos nestes termos, porque no
momento em que começarmos a introduzir essas categorias, não haverá mais
paz; haverá divisão, separação, inimizade. Não somente isso, não devemos nem
mesmo pensar mais uns nos outros em termos da nossa vida e do nosso
comportamento anteriores - a nossa anterior bondade ou maldade, a nossa
anterior moralidade ou imoralidade. Isso não importa, não pesa na Igreja.
Na Igreja Cristã o homem altamente respeitável não deve olhar para outro e
dizer: lembro bem o que ele era, lembro de onde ele veio; terá esse homem igual
direito na Igrej a? Isso é apropria antítese da paz. É a atitude do irmão mais
velho condenada pelo nosso Senhor na parábola do Filho Pródigo. Todas essas
categorias foram-se.

Irei mais longe. Na Igreja Cristã, até a sua religião anterior você esquece. Não
importa se você era muito religioso ou não, a questão é se você é cristão agora.
Você pode ter sido muito devoto; não importa - é possível ser devoto sem ser
cristão. Tudo isso acabou. Os velhos termos e categorias não se aplicam mais, e
na esfera da Igreja você não faz mais nenhuma daquelas perguntas acercade um
homem. Você simplesmente olha para ele e vê nele as marcas de Cristo. Talvez
vocês se lembrem da imortal história relacionada com o velho Philip Henry, pai
do comentador

Matthew Henry. Philip Henry, quando jovem, enamorou-se de uma senhorinh a


pertencente a uma posição muito mais elevada que a dele na vida. Ela também se
enamorou dele. Então houve a questão sobre como conseguir o consentimento
dos pais dela. Eles perguntaram à filha: “Esse homem, esse Philip Henry, de
onde veio?” E ela respondeu: “Não sei de onde veio, mas sei para onde vai”.
Esse é o ponto. Não é de onde ele vem que importa. Para onde ele vai? Estaria
ele destinado à glória, a Deus, à eternidade na presença de Cristo? Pertence ele
a Cristo? Essa é a questão que importa. Nada mais importa nessa esfera, pois no
momento em que você introduzir outras considerações, introduzirá divisões.

Assim faço uma colocação positiva, da seguinte maneira: sempre devemos


pensar em nós e conceituar-nos desta nova maneira. Sempre! O fracasso nestas
duas coisas sempre leva à dificuldade. Há notáveis ilustrações disto no próprio
Novo Testamento. Vocês se lembram de como o nosso Senhor pegou os seus
mais chegados apóstolos e discípulos discutindo um dia? Sobre o que discutiam?
Qual deles seria maior no reino! E Ele voltou-Se para eles e disse: vocês
não entendem; no Meu reino as coisas são absolutamente diferentes dos reinos
do mundo. Nos reinos do mundo os grandes homens são servidos por outros
homens; no Meu reino a grandeza consiste em servir. “O Filho do homem”, diz
Ele, “não veio para ser servido, mas para servir, e para dar a sua vida em resgate
de muitos”. “E, qualquer que entre vós quiser ser o primeiro, seja vosso servo”
(Mateus 20:27-28). Inversão total; porém eles não o compreenderam.

Há um relato de algo similar no capítulo seis do livro de Atos dos Apóstolos,


quando a Igreja mal tinha acabado de nascer. Eis o que lemos: “Ora, naqueles
dias, crescendo o número dos discípulos, houve uma murmuração dos gregos
contra os hebreus, porque as suas viúvas eram desprezadas no ministério
cotidiano” (ARA: “...na distribuição diária”). Essas pessoas eram convertidas,
estavam salvas e tinham-se tornado cristãs, mas não tinham aprendido esta lição.
Gregos, hebreus! Não é justo, diziam; estavam se dividindo em termos de
diferenças culturais, e a paz logo se fora.

Outra notável ilustração acha-se em Atos, capítulo 15: “E alguns dias depois
disse Paulo a Barnabé” - Barnabé era um bom homem, vocês se lembram, “o
filho da consolação”; ele e Paulo tinham viajado juntos - “disse Paulo a Barnabé:
tornemos a visitar nossos irmãos por todas as cidades em que já anunciamos a
palavra do Senhor, para ver como estão. E Barnabé aconselhava que tomassem
consigo a João,

chamado Marcos. Mas a Paulo parecia razoável que não tomassem consigo
aquele que desde a Panfília se tinha apartado deles e não os acompanhou naquela
obra”. João Marcos tinha desertado numa viagem anterior, e Paulo dizia: não,
não está direito levá-lo. “E tal contenda houve entre eles, que se apartaram um
do outro. Barnabé, levando consigo a Marcos, navegou para Chipre. E Paulo,
tendo escolhido a Silas, partiu, encomendado pelos irmãos à graça de Deus.” Por
que foi que Barnabé quis que João Marcos fosse com eles? - vocês
pensarão. Eles eram parentes! E este excelente e nobre cristão, Barnabé,
esquecendo por um momento a doutrina, disse: vamos levar Marcos conosco. E
a sua única razão para isso era que Marcos era seu parente. Na Igreja Cristã você
deve esquecer isso. Você não deve levar seu parente consigo se ele já falhou e se
há alguém melhor; não dê preferência a um homem porque pertence à sua
família. Não, nem judeu nem gentio; o velho homem se foi. Trata-se de algo
novo! Não arraste para dentro as suas relações familiares. Quantas vezes se faz
isso! Vejo-o com muita freqüência. Um homem é chamado por Deus para iniciar
uma obra, homem indubitavelmente chamado por Deus, e depois, quando
se aproxima da morte, nomeia ao seu filho como o seu sucessor. As vezes pode
estar certo; muitíssimas vezes pode estar errado, e vocês verão a obra começar a
decair e a definhar, e finalmente acaba morrendo. Por quê? Porque o filho não
fora realmente chamado por Deus. É muito natural, concordo, porém não é
cristão. Paulo e Barnabé se separaram porque a questão das relações de família
entrou em cena.

Este perigo de deixar que o passado se intrometa vê-se em toda parte. Lembram-
se de como Paulo teve que resistir a Pedro na cara por causa desta mesma
questão? Certas pessoas tinham descido de Jerusalém, certos judeus, e disseram
a Pedro: você não deve comer com os gentios. Pedro lhes deu ouvidos, e surgiu
uma divisão. Todo o esforço dos judaizantes se baseava nisso. Eles diziam: você
sabe que não basta crer em Cristo, você tem que ser circuncidado também. E
com isso eles causavam divisão. Eles não compreendiam que o antigo se fora.
A circuncisão não tem mais importância. Jánãoimportao judeu <j«ajudeu - o
judeu porque judeu.

De muitas maneiras, a mais perfeita ilustração do que estou tentando dizer acha-
se na Primeira Epístola aos Coríntios. A igreja de Corinto estava em grande
dificuldade, e Paulo teve que escrever-lhe uma carta. Havia divisões
pecaminosas, primeiramente quanto a homens. “Eu sou de Paulo. Eu sou de
Apoio. Eu sou de Cefas.” Qual é o melhor pregador? Qual o mais eloqüente? De
qual deles você gosta?

Servindo, seguindo homens; colocando homens adiante de Cristo! Isso é o velho


homem, é a carnalidade, é o que o mundo faz. Não deve acontecer isso na Igreja
Cristã. Que mais? Moviam ações legais uns contra os outros; havia certas
disputas, e as levavam aos tribunais públicos. O apóstolo Paulo diz: “Vocês não
estão agindo como cristãos.” Se vocês tivessem alguma idéia do que é a Igreja,
nomeariam o mais humilde membro da igreja como juiz e árbitro. Você levaria a
sua causa a ele, e se ele decidisse contra você, você diria: eu me
submeto; alegra-me fazê-lo por amor ao corpo de Cristo. Isso é o novo! Que
mais? Os irmãos fortes e os fracos! A questão é tratada em 1 Coríntios,
capítulo 8. O irmão forte dicernia melhor a verdade do que o outro, e
eles brigavam por isso. O irmão forte desprezava o fraco, e com isso o
fazia tropeçar. Paulo diz: não destruam com a sua comida o irmão por
quem Cristo morreu. Apercebam-se da nova relação. Vocês são irmãos
em Cristo, renunciem à sua comida por amor da paz e da concórdia, e
pela felicidade cristã. “Pelo que, se o manjar escandalizar a meu irmão, nunca
mais comerei carne, para que meu irmão não se escandalize” (1 Coríntios 8:13).
De fato, em Corinto se dividiam até sobre a questão dos dons espirituais. Os que
tinham dons ruidosos, espetaculares, gabavam-se disso e desprezavem os outros;
o olho dizia ao pé: “Não tenho necessidade de ti”, e assim por diante. Tudo
porque não tinham compreendido a doutrina da Igreja como o corpo de Cristo.
Falhar nisso sempre leva a divisão.

Mencionei há pouco que bens materiais não deveriam entrar nesta esfera. Tiago
trata disso, vocês se lembram, no capítulo dois da sua Epístola. Diz ele: naigreja,
em sua assembléia, se entrar um homem com um grande anel de ouro, não o
conduza à frente porque ele é rico; e se entrar outro em andrajos, não lhe diga:
você, sente-se lá atrás. Não faça esse tipo de coisa na igreja, diz Tiago; não
reconhecemos essas distinções, não avaliamos os homens por suas roupas ou
seus penduricalhos. Você deve ver a alma, a relação com Deus e com Cristo; e aí
todos são um. “As coisas velhas já passaram, eis que tudo se fez novo.”

Para resumir a questão com uma palavra positiva, vamos a Colossenses 3:15.
Paulo estivera lidando com brigas e disputas. Eis o que convém lembrar, diz ele:
“E apaz de Deus (ou apaz de Cristo), para a qual também fostes chamados em
um corpo, domine em vossos corações”. Você sabe o que ele quer dizer com a
frase, “A paz de Cristo domine em vossos corações”? Quer dizer: a paz de Cristo
aja como mediador; a paz de Cristo aj a como árbitro entre vocês (cf. ARA).
Todos vocês, com as suas posições rivais e as suas diferenças, digam: “A paz

de Cristo decida isto. Não vou decidir; não é questão de direitos meus, de
exigências minhas; estou disposto a concordar com qualquer coisa que promova
a paz de Cristo entre nós, bem como a paz de Cristo em meu coração”. Nomeiem
a paz como árbitro, diz Paulo, e a paz reinará entre vocês.

Somos chamados a um corpo. “Para criar em si mesmo dos dois um novo


homem, fazendo assim a paz.” Esse é o único caminho. E como sei que estou em
Cristo, e olho para outro e sei que ele está em Cristo, que eu posso perdoar e
esquecer, posso juntar as mãos e humilhar-me com ele. Somos todos um em
Cristo, e vamos passar juntos a nossa eternidade na glória. Quando nos
lembrarmos disso, e somente quando soubermos de fato que isso nos caracteriza
verdadeiramente, é que poderá haver uma paz verdadeira, real, duradoura.

Bendito seja Deus pela nova criação em Cristo Jesus!

20

O ÚNICO MEDIADOR

“E pela cruz reconciliar ambos com Deus em um corpo, matando com ela as
inimizades.” - Efésios 2:16

Com essas emocionantes e gloriosas palavras, o apóstolo continua a sua grande


declaração sobre o método de Deus para reconciliar os homens, e ele mostra
como é removido ainda outro obstáculo a esse resultado desejado. Os efésios,
pagãos como eram, gentios, não somente estavam separados dos judeus, da
comunidade de Israel, também estavam separados de Deus. E, obviamente, não
poderá haver verdadeira unidade entre homem e homem enquanto não houver
esta outra unidade; porque a divisão original em judeu e gentio era totalmente
em termos de relação com Deus. Por isso o apóstolo agora passa a mostrar como
também esta segunda questão foi tratada, e da mesma maneira como antes, pelo
nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Mas vocês podem notar que o apóstolo
expressa isso de maneira muito interessante. Em vez de simplesmente expor
como os pagãos efésios foram reconciliados com Deus, ele diz: “E pela cruz
reconciliar ambos com Deus em um corpo, matando com ela as inimizades” -
ambos, judeus e gentios. Depois ele nos mostra exatamente como isso foi feito.

O ensino aqui é fundamental e vital, especialmente com relação a toda esta


questão de unidade e paz. Em sua forma geral, podemos expressá-la assim: todas
as divisões, separações e contendas insignificantes e secundárias devem-se em
última instância ao fato de que todos os homens estão separados de Deus. Pois
bem, essa é uma proposição fundamental e universal. O mundo está repleto de
divisões e distinções, países, nações, blocos, grupos, cortinas, um lado e
outro; dentro danação, classes, grupos industriais, capital e trabalho, senhor
ou empregador e empregado, etc.; e ainda, dentro desses grupos,
divisões, rivalidades, invejas. O mundo está repleto de divisões e
separações. Todavia, segundo o ensino das Escrituras, o que é realmente
significativo é que estas divisões de menor importância e secundárias,
divisões, separações e contendas de terceira, quinta, décima categoria, são
causadas por uma única coisa, a saber, que todos os homens estão separados de
Deus e em más relações com Ele.

Essaé a tese geral daBíblia. Não haveriaproblemanenhumna vida

se o homem não tivesse rebelado contra Deus e não tivesse caído e se afastado
de Deus.Todos os problemas são devido a isso. Inversamente, portanto, temos
direito de dizer que a unidade entre os homens só é possível quando os homens
forem reconciliados com Deus. A importância dessa afirmação é óbvia. Há os
que falam levianamente sobre a aplicação do ensino cristão aos problemas, e os
que nos dizem que é tudo muito simples. Mas, conforme este ensino é
impossível, enquanto os homens e as mulheres não forem reconciliados com
Deus. É pura perda de energia, de fôlego e de tempo tentar conseguir
comportamento cristão dos que não são cristãos. Eles não têm condições de
reagir de acordo. A pessoa tem que estar de bem com Deus antes de poder estar
de bem com os seus semelhantes. Lembro-lhes como o nosso Senhor
respondeu quando Lhe perguntaram qual é o primeiro e grande mandamento.
A resposta foi: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua
alma, e de todo o teu pensamento”; e depois: “E o segundo, semelhante a este, é:
amarás o teu próximo como a ti mesmo”. Entretanto você não conseguirá
praticar o segundo enquanto não praticar o primeiro. Este é um princípio básico,
fundamental.

Vejamos como o apóstolo desenvolve isto. Num sentido ele está passando a um
novo tema. Noutro sentido ele está dando continuidade ao que vinha expondo. O
fato é que ambos são inseparáveis. Por isso ele os liga com a palavra “e”, que
realmente significa neste versículo “em acréscimo”. Que é que o apóstolo está
dizendo? Talvez, a melhor maneira de abordar o assunto seja examinar esta
grande palavra “reconciliar” - “E pela cruz reconciliar ambos com Deus”. A
palavra que de fato o apóstolo empregou e que é traduzida por “reconciliar” é
muito interessante. Só se acha num outro lugar na Bíblia, e esse é
Colossenses 1:20 e 21. Ali ele usa a mesma palavra - porém em nenhum outro
lugar. A palavra “reconciliar” vocês encontram em muitas passagens na Versão
Autorizada (inglesa; como também em Almeida). Vê-la-ão em Romanos 5:10.
Vê-la-ão em 2 Coríntios 5:18,19 e 20. No entanto, em todos esses casos a
palavra utilizada pelo apóstolo não é a mesma que ele utilizou aqui. A raiz é a
mesma; num sentido o significado essencial é o mesmo, mas aqui ele usou uma
palavra muito especial, ele acrescentou um prefixo que não usa noutros lugares.
Portanto, ao expormos isto, devemos tomar a palavra como ele a usou, o prefixo
inclusive.

Que é, pois, que significa a palavra “reconciliar”? Permitam-me opinar que ela
inclui as seguintes idéias e concepções: primeiramente significa a mudança de
uma relação hostil para uma relação

amistosa. Esse é o sentido mais simples, o sentido básico. Contudo, significa


mais. Em segundo lugar, não significa apenas amizade após um afastamento, um
mero desfazer do afastamento inamistoso. Não é apenas levar pessoas que
passavam umas pelas outras sem olhar-se a falar-se outra vez.
Significamais;significarealmentepôrjunto de novo, re-unir, religar. A palavra tem
esse sentido. Em terceiro lugar, a palavra acentua também o completamento da
ação. Significa que a inimizade é eliminada tão completamente que a amizade
toma o lugar. E a ênfase aqui está no caráter completo da ação. Não é remendar
uma desarmonia. Não é fazer uma concessão, o tipo de coisas que tantas vezes
acontece quando uma conferênciajá se alongou dias e dias, e chegou-se aum
beco sem saída, e alguém de repente tem uma idéia brilhante e sugere
a introdução de uma palavra ou fórmula especial, o que só serve para remendar o
problema no momento. Não é isso. E uma ação completa, produz amizade e
concórdia completa onde antes havia hostilidade.

Mas, em quarto lugar, também significa isto: não é meramente que os dois
envolvidos num problema ou numa disputa ou numa contenda decidam entrar
em acordo. Esta palavra utilizada pelo apóstolo implica que é uma das partes que
toma a iniciativa da ação, e que é a parte superior ou mais elevada que o faz.
Um componente dessa palavra indica uma ação que vem de cima. E a palavra
grega “kata”; ela sugere uma ação descendente, que vem de cima. Não é que as
duas partes se juntem como que voluntariamente; é uma delas trazendo a outra a
esta posição de completa amizade e concórdia. E, finalmente, em quinto lugar, a
palavra tem o sentido de restabelecimento de algo que havia antes. Pois bem, a
nossa palavra “reconciliar” (inglês: “reconcile”), que é uma transliteração da
palavra latina, ela própria sugere isso. Reconciliar! Antes eles estavam
conciliados, agora estão re-conciliados, trazidos de volta para onde estavam. A
palavra tem todos esses sentidos, e é especialmente este último ponto que é
introduzido pelo prefixo especial que se vê na palavra utilizada aqui pelo
apóstolo, o prefixo apo, um trazer de volta, o prefixo re. A isso é que se dá
ênfase aqui.

Qual é, então, o ensino do apóstolo? Permitam-me dizê-lo com alguns


princípios. A primeira verdade aqui ensinada é que o pecado separa de Deus.
Todos os nossos problemas são, em última instância, causados pelo fato de que
não entendemos claramente o pecado. O apóstolo já dissera isso no versículo 12,
e o repete aqui. Não há como exagerar a repetição disso. “Que naquele tempo
estáveis sem Cristo, separados da comunidade de Israel, e estranhos aos
concertos da

promessa, não tendo esperança, e sem Deus no mundo”. O contrário disso é, “ser
aproximado”, ser trazido para perto. O que há de terrível no pecado, justamente
o que somos propensos a esquecer, é que o pecado não é uma mera transgressão
da lei - é isso; que o pecado não é só desobediência - é i sso; que o pecado não é
só errar o alvo - ê isso; a coisa mais pavorosa quanto ao pecado, e mais
devastadora, é que ele significa romper a comunhão com Deus. Quer dizer que
somos cortados, extirpados de Deus, que ficamos fora da relação com Deus, que
ficamos sem Deus. Ora, é isso que o apóstolo salienta aqui. Todavia nem
aí termina. O pecado produz também inimizade entre o homem e Deus. E essa é,
segundo este ensino em toda parte, a condição do homem em pecado. Isso
aconteceu no princípio da história. Deus fez o homem para Si, e o homem estava
em comunhão com Deus. Oh, se tão-somente fixássemos essa idéia como
devíamos! Fomos feitos para Deus, fomos destinados a Deus; nunca fomos feitos
para o mundo, para a carne e para o diabo. O homem foi fetio para Deus, foi
destinado a viver em comunhão com Deus, foi destinado a fruir Deus. E essa era
a sua condição original. Mas a lástima foi que o pecado entrou; e o que há
de terrível quanto ao pecado não é simplesmente que Adão e Eva comeram o
fruto proibido - isso é verdade, foi uma ação praticada, foi rebelião, foi
arrogância, foi uma infração do mandamento de Deus e desprezo da Sua lei -
porém o terrível foi que rompeu a comunhão. O homem estava andando com
Deus e, de repente, deu-Lhe as costas. É isso que há de mais temível no pecado.
Portanto, o problema é esse, é isso que precisa ser endireitado. Não é apenas
uma questão de sermos perdoados por ações particulares. Não é esse o único
problema. O problema básico é: como se pode restabelecer essa comunhão?
Como é possível recuperá-la? ^

É justamente neste ponto que muitos erram em seu pensamento sobre estas
coisas. Isso porque não entendem o significado da morte de Cristo, e da cruz, e
porque não vêem sentido numa celebração da Ceia. Dizem eles: certamente não
há grande problema; quando uma criança faz algo errado, o pai a perdoa e fica
tudo bem; não é assim com Deus? Se eu confessar os meus pecados, se eu disser
que sinto muito, Deus não me perdoará? E a resposta do Novo Testamento é que
não é tão simples assim. Se fosse, o Senhor Jesus Cristo nunca teria vindo ao
mundo; certamente nunca teria ido para a cruz. Não, o problema é problema
de comunhão, é o problema de como se pode restabelecer a comunhão. E isso
não é importante só em nossa entrada inicial na vida cristã; não há nada que seja
mais vitalmente importante para os cristãos em todos os

estágios. Quanto mais cedo começarmos a pensar nos pecados, não


simplesmente em termos de más ações, e sim, em termos de nossa relação com
Deus, melhores cristãos seremos.

Tudo isso é exposto perfeitamente na Primeira Epístola de João, no capítulo


primeiro. Ali vocês têm uma descrição. Cristão é aquele que está em comunhão
com Deus e anda com Deus. “A nossa comunhão é com o Pai, e com seu Filho
Jesus Cristo”, diz João. Diz ele que os apóstolos estão nesta comunhão e que eles
querem que outros a gozem também. Mas então vem a pergunta: como isso é
possível? “Deus é luz, e não há nele trevas nenhumas”; e eu sou pecador e estou
sempre caindo em pecado. No momento em que eu caio em pecado, eu quebro a
minha comunhão com Deus. Não é só que essa ação pecaminosa é má;
estou insultando o meu Companheiro. Estou fazendo na presença do Deus santo,
que é luz, algo que para Ele é odioso e detestável. Como podemos andar em
comunhão? É como João o expressa. Estou dando ênfase a isto por esta boa
razão, que, em minha experiência pessoal e em minha experiência como pastor,
não há descoberta mais importante que o cristão possa fazer em sua batalha
contra o pecado, contra os pecados particulares, do que justamente esta verdade.
O que sempre digo às pessoas é: pare de orar acerca daquela coisa particular que
o leva a cair; faça a oração positiva; pense nisso em termos da sua comunhão
com Deus. Não pense meramente em termos da sua queda e daquela
coisa particular; dê as costas a isso, comece a pensar em si como
companheiro de Deus e de Cristo, e diga: agora estou com Ele e não devo fazer
em Sua presença nada que O desagrade e que O fira. Pense
positivamente! Lembre-se de que Cristo está sempre com você, e então você
passará a odiar aquilo que o faz cair, e aquilo se tornará inimaginável.
Entretanto é isso que nos inclinamos a deixar de fazer, não é? Esquecemos que
o que há de terrível no pecado é que ele é uma violação da comunhão e que nos
separa de Deus. O termo “reconciliação” de imediato nos põe face a face com o
fato de que ficamos fora da comunhão e necessitamos ser restaurados para que
voltemos a gozar a comunhão.

Quando Deus chamou Abraão e formou a nação de Israel, Ele já estava dando
um grande passo para que se efetuasse a reconciliação. O mundo todo tinha
pecado em Adão e tinha caído, afastando-se de Deus e, assim, todos estávamos
separados de Deus. O homem não fez nada a respeito, e não poderia fazer. Mas
Deus fez, Deus agiu. Das massas da humanidade Ele formou uma nova nação
para Si, um povo para ser Sua propriedade peculiar, um povo com o qual Ele
poderia ter comunhão e o qual poderia ter comunhão com Ele, uma nova nação,
uma

nova criação. Essa é a comunidade de Israel. E o restante estava fora dessa


comunidade, ainda sem comunhão com Ele. O Seu povo estava em comunhão
com Ele, o restante não. Ora, se não captamos esta verdade, há um sentido em
que não entendemos nada do Velho Testamento. Esta história constitui a soma e
a substância do Velho Testamento, a história da formação do povo de Deus -
Deus formando este povo peculiar para Si - e da relação entre eles. Todavia,
desafortu-nadamente, isso não foi suficiente, pois o apóstolo nos diz aqui que
os judeus, como os gentios, necessitavam ser reconciliados com Deus. Tanto os
judeus como os efésios precisavam de reconciliação. Porquê? O Novo
Testamento dá a resposta. Todos os sacrifícios levíticos, as ofertas queimadas e
os sacrifícios, a morte do cordeiro pascal e do cordeiro diário e a apresentação
do sangue, e todo o restante deste cerimonial rico e complexo, realmente não
foram suficientes; tudo isso era apenas uma sombra de algo que viria, era apenas
umacobertura sobre os pecados dos homens. “Porque é impossível que o sangue
dos touros e dos bodes tire o pecado” (Hebreus 10:4): cobria o pecado,
porém realmente não atingia o problema. Era suficiente para a ocasião. Mas,
de acordo com este mesmo apóstolo Paulo, no capítulo três da Epístola
aos Romanos, era necessário que Deus justificasse aquele tratamento dado aos
pecados, e Ele o justificou na cruz do Calvário. Ele teve que justificar-Se para a
remissão dos pecados passados, e Ele e o fez na cruz.

No entanto, o problema não era só esse. E pena, mas judeus precisavam ser
reconciliados por esta razão também, que eles tinham entendido tão inteiramente
mal o que Deus tinha feito em Abraão, e na nação, que eles achavam que o
simples fato de que eram descendentes físicos de Abraão os salvava. João
Batista sabia disso, porque, quando começou a pregar àqueles judeus, ele disse:
“Não presumais, de vós mesmos, dizendo: temos por pai a Abraão; porque eu
vos digo que, mesmo destas pedras Deus pode suscitar filhos a Abraão” (Mateus
3:9). Mas era o que diziam. Certa ocasião o Senhor Jesus Cristo disse a eles: “Se
vós permanecerdes na minha pal avra, verdadeiramente sereis meus discípulos; e
conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”. Eles, porém, se ofenderam e
disseram: “Somos descendência de Abraão, e jamais fomos escravos de alguém;
como dizes tu: sereis livres?” (João 8:33, VA e ARA). Os judeus tinham
entendido tudo errado; pensavam que devido serem judeus estavam em boas
relações com Deus, mas com isso trouxeram condenação sobre si. Precisavam
ser reconciliados. E além do mais, como vimos em ocasião anterior, a atitude
deles para com os gentios era terrivelmente pecaminosa. Eles os consideravam
como

cães, desprezavam-nos como forasteiros. Por estas diversas razões eles


precisavam ser reconciliados com Deus.

Isso nos leva ao próximo princípio, que é que o judeu e o gentio são
reconciliados com Deus exatamente da mesma maneira, não diferentemente. “E
pela cruz reconciliar ambos com Deus em um corpo” - esse é o ponto, essa é a
ênfase aqui. Ora, “um corpo” não se refere ao corpo físico do Senhor Jesus
Cristo. “Um corpo” é a Igreja. Assim, o que ele ensina é que os judeus e gentios
são reconciliados com Deus exatamente da mesma maneira; não há mais
diferença alguma entre eles. Há somente um modo de ser reconciliado com
Deus. “Há um só Deus, e um só Mediador entre Deus e os homens, Jesus
Cristo homem” (1 Timóteo 2:5). Não há caminhos diferentes rumo ao reino de
Deus para o judeu e o gentio; há somente um caminho, e este é, de novo, “um
corpo”. A razão pela qual dou ênfase a isso é que há um ensino muito popular,
porém que, à luz deste versículo e doutros, parece-me terrivelmente,
perigosamente antibíblico e que afirma que agora, durante esta dispensação, é
em Cristo e por Sua graça e Sua morte que os homens são salvos, mas que no
futuro os judeus serão salvos pela observância da lei. A eles será pregado, não o
evangelho da graça de Deus, e sim o “evangelho do reino”, e a lei, e eles
guardarão a lei e entrarão no reino pela guarda da lei. Digo de novo,
deliberadamente, que isso é uma negação do fato de que há um só modo pelo
qual o homem pode ser reconciliado com Deus, a saber, mediante Jesus Cristo, e
Este crucificado. Não há acesso à presença de Deus, exceto por intermédio do
único Mediador; “reconciliar ambos com Deus em um corpo”, e é este o único
corpo, o único caminho. E neste úniço corpo, a Igreja; e homem nenhum jamais
foi nem jamais será reconciliado com Deus, a não ser por este meio. Abraão e os
santos do Velho Testamento, todos aqueles cujos pecados foram cobertos, estão
realmente reconciliados com Deus em Cristo. Nas gerações futuras todos serão
reconciliados da mesma maneira. É pela graça de Deus, e unicamente pela graça
de Deus, que todo e qualquer homem pode ser salvo.

Assim, passo ao próximo princípio, que expresso da seguinte maneira: a


reconciliação é realizada e produzida pelo Senhor Jesus Cristo. Para Ele
“reconciliar”, VA; “E para que Ele” - Ele, o Senhor Jesus - “reconciliasse ambos
com Deus em um corpo”. Ele! Ah, se todos pudéssemos entender isso
claramente! Não há esperança para o homem fora de Cristo. Ele veio ao mundo
porque Ele é o único caminho.

Nenhum homem, torno a dizê-lo, nunca pôde nem poderá salvar-se por seus
próprios esforços e lutas, não importa o que lhe preguem. Tampouco a lei pode
salvá-lo; como Paulo diz: “O que era impossível à lei, visto como estava
enfermapelacarne...” (Romanos 8:3). Cristo tinhaque vir. “Deus estava em Cristo
reconciliando consigo o mundo”, e não há outro caminho. Aqui o apóstolo dá
ênfase ao Senhor Jesus Cristo. Foi Deus que O enviou, mas foi Cristo que, com a
Sua vinda e com toda a Sua obediência ativa e passiva, o realizou. “Ele é a nossa
paz”, e somente Ele é a nossa paz. Digo e repito que, se não atribuirmos todo o
louvor, toda a honra e toda a glória ao Senhor Jesus Cristo, não somos cristãos. E
Sua ação\ é ação de Deus em Cristo e por meio dEle. O homem está morto em
ofensas e pecados, é um inimigo e estranho em sua mente pelas suas más obras;
ele odeia a Deus; não faz nada realmente bom, e não é capaz de fazê-lo. Como
seria possível a reconciliação? Encontramos a resposta na definição da palavra: é
uma ação do alto, é um movimento da parte de Deus, do Deus contra quem nos
rebelamos e a quem demos as costas. E Ele que inicia o grande movimento. Ele
o começou no Velho Testamento. Ele o continua no Novo; é perfeito. É Sua
ação. E tudo em Jesus Cristo. E tudo a graça de Deus em Cristo. “Deus estava
em Cristo reconciliando consigo o mundo.” Essa é a mensagem.

Mas, em particular se vê que o apóstolo afirma que foi ‘‘pela cruz “E pela cruz
reconciliar ambos com Deus em um corpo.” Volta a chamar a atenção de vocês
para a maneira pela qual o apóstolo vai repetindo estas coisas. “Mas agora em
Cristo Jesus”, dissera ele no versículo treze, “vós, que antes estáveis longe, já
pelo sangue de Cristo chegastes perto.” Aqui ele não se restringe a dizer para
“reconciliar ambos com Deus em um corpo”; ele inclui - “pela cruz”. Ele
introduz isto porque tem que introduzi-lo. Não háreconciliação sem acruz.Eque é
que a cruz significa? A passagem paralela de Colossenses 1:20 o
diz perfeitamente: “Havendo por ele feito a paz pelo sangue de sua cruz”. É a
morte, a vida entregue abnegadamente, o sangue derramado, a vida vertida. E
como Deus faz a paz, é como Cristo faz a paz, é como se concretiza a
reconciliação.

Não há possibilidade de reconciliação sem a morte do Senhor Jesus Cristo na


cruz do Calvário. Por quê? Bem, aí está o último ponto: “...matando com ela a
inimizade” - com ela, nela, por meio dela. Chegamos aqui à questão que o povo
gosta de levantar. Por que foi indispensável amorte de Cristo na cruz, e como é
que elanos reconcilia? Vocês verão estranhas respostas dadas a essas perguntas,
respostas que

me parecem incapazes de reconciliar-se com a declaração do apóstolo. Alguns


dizem que o que acontece é que “Deus perdoa a cruz”; que homens cruéis levam
o nosso Senhor à morte, porém, Deus lhes perdoa até isso. Dizem eles que todos
nós estávamos lá. “Você estavalá quando crucificaram o meu Senhor?” Sim, eles
respondem, você estava, você estava num dos grupos - o soldado, o fariseu, ou
um deles, e você o crucificou; ah, mas esta é a mensagem: Deus perdoa até isso.
Mas isso não é fazer a paz pela cruz. Isso é fazer a paz apesar da cruz, o que
é exatamente o oposto. Contudo, o que o apóstolo ensina em toda parte é que
Deus, Cristo, faz a paz pela cruz, através, por meio da cruz. Outra explicação
dada é que Deus sempre produz o bem, mesmo do mal. José, em seus dias, viu
isso. José disse aos seus irmãos: “Vós bem intentastes o mal contra mim, porém
Deus o tomou em bem...”; vocês me venderam maldosamente, vocês intentaram
algum mal; ah, sim, mas Deus o tomou em bem, e Ele sempre faz isso. A
suprema ilustração disso, dizem eles, é que até o mal da cruz Deus tornou em
bem. Os homens praticaram má ação, entretanto Deus a tornou em algo
maravilhoso. Será isso salvarmos e reconciliar-nos pela cruz? Não! Torno a dizer
que isso é apenas uma maneira de dizer que Ele nos salva apesar da cruz. Isso
não é salvar pelo sangue da cruz. Isso não é fazer a paz pelo sangue da cruz -
através ou por meio do sangue da cruz. Ainda outros dizem que significa
que, quando eu contemplo Cristo ali, morrendo inocentemente na cruz, o meu
coração se quebranta ao compreender eu a pecaminosidade e a enormidade disso
tudo. Mas isso tampouco resolve, porque também não é fazer a paz pelo sangue
da cruz. Segundo Paulo, isso aconteceu, isso foi realizado; não é algo que só
acontece quando eu me dou conta do que aconteceu na cruz; foi feito uma vez
por todas, a ação foi completa, no Calvário - “Deus estava em Cristo
reconciliando consigo o mundo”. Ele o fez uma vez para sempre. É uma coisa
muito mais profunda do que qualquer dessas explicações.

O ensino verdadeiro é que, antes de ser possível a reconciliação, algo tem que
acontecer da parte de Deus, bem como da nossa parte. O pecado trouxe
inimizade entre ohomem eDeus. Deus odeia o pecado. A ira de Deus manifesta-
se contra o pecado. E antes que possa haver reconciliação, antes que Deus possa
abençoar de novo, esta inimizade terá que ser removida pelo sangue da cruz. Por
que ele menciona o sangue, por que a cruz, por que a morte? Porque essa é a
explicação de todo o ensino do Velho Testamento acerca dos sacrifícios. Esse foi
o método de Deus, foi Deus que ordenou isso tudo como figura daquilo

que seria feito em Cristo. Não era assim que o faziam? Tomavam o animal e
punham as mãos sobre a suacabeça. Que é que significava isso? Eles estavam
transferindo simbolicamente os seus pecados e os pecados do povo ao animal.
Depois o animal era morto e o seu sangue era derramado; e o sangue era
apresentado como oferta; o animal era oferecido como um sacrifício. Esse é o
ensino. E é precisamente esse o ensino do Novo Testamento acerca da morte de
Cristo na cruz. “Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, não lhes
imputando os seus pecados.” Por que não? Porque Ele imputou os pecados
do mundo aEle\ Deus tomou os meus pecados e os seus e os colocou sobre a
cabeça de Cristo, e então, na qualidade de Cordeiro de Deus, Ele O matou. Não
lhes imputando os seus pecados! Porque “Aquele que não conheceu pecado, o
fez pecado por nós; para que nele fôssemos feitos justiça de Deus” (2 Coríntios
5:21). Pelo sangue da Sua cruz! Pela cruz Ele o fez! A inimizade - a inimizade
contra Deus foi posta sobre Cristo e ali foi eliminada. Ele a matou ali. Esse é o
ensino. Esse é o significado do grito de desamparo: “Meu Deus, meu Deus, por
que me desampa-raste?” Visto que o sangue de Cristo, o sangue do Cordeiro de
Deus, foi derramado sobre o Calvário, o caminho da reconciliação está livre.
A inimizade foi removida, e Deus pode olhar para o homem com benig-nidade e
está pronto a abençoá-lo, a recebê-lo e a restaurá-lo. Os judeus precisavam disso,
os gentios precisavam disso, e, juntos em Cristo, eles o receberam. Em Cristo,
pelo Seu sangue, eles podem entrar juntos no “Lugar Santíssimo”. Que
evangelho maravilhoso, que declaração estupenda! Que aconteceu no Calvário?
Cristo foi morto. Sim, mas por Sua morte Ele matou a inimizade! Ele fez dos
principados e potestades um espetáculo público, cravou na cruz a lei, e o homem
foi reconciliado com Deus. Todos são reconciliados da mesma maneira, em
Cristo. Seja você judeu ou gentio, bárbaro ou cita, escravo ou livre, homem
ou mulher, bom ou mau, alto ou baixo, você terá que vir dessa maneira. Cristo
morreu pela Igreja. Ou, como diz o apóstolo Paulo em seu discurso de despedida
aos presbíteros da igreja de Efeso: “...a igreja de Deus, que ele resgatou com seu
próprio sangue” (Atos 20:28). Um corpo! O único modo de reconciliar Deus
com o homem, e o homem com Deus, é pela cruz, pela morte de Cristo, que
mata a inimizade, que remove todos os pecados. “O sangue de Jesus Cristo, seu
Filho, nos purifica de todo o pecado.”
21
PAZ COM DEUS

“E, vindo, ele evangelizou a paz, e vós que estáveis longe, e aos que estavam
perto. ” - Efésios 2:17

O apóstolo, neste versículo particular, dá mais um passo adiante em sua grande


declaração concernente à salvação. Sua tese é: Deus em Cristo reuniu na Igreja
os judeus e os gentios, fazendo deles um corpo e assim os reconciliando conSigo
pela morte do nosso Senhor na cruz. Ele nos disse como o Senhor Jesus Cristo,
por Sua morte na cruz, derrubou a parede intermediária de separação. Foi no
Calvário que a parede de separação que estava no meio foi derrubada uma vez
por todas. Na cruz; nem antes, nem depois. O véu do templo não foi rasgado
antes que o nosso Senhor morresse na cruz. É a cruz que realiza isso. O
nosso Senhor não o fez por Seu ensino nem por Seus milagres. Foi no
momento da Sua morte que o véu foi rasgado. A lei dos mandamentos
nas ordenanças foi abolida. Não somente isso, Ele fez também “dos dois
um novo homem”; uma grande unidade é possibilitada. E finalmente ele nos
disse como foi que pela morte de Cristo na cruz Deus reconciliou desse modo o
judeu e o gentio conSigo.

Mas, obviamente, isso não é suficiente só por si. Pensem na humanidade em


pecado. Deus enviou Seu Filho para abrir um caminho de salvação. O Filho fez
tudo o que Ele foi enviado para fazer. Ele obedeceu ao Pai em todas as coisas;
Ele cumpriu a lei positivamente, ativamente; Ele sofreu, passivamente, a punição
dos nossos pecados em Seu corpo na cruz. Temos salientado isso tudo - e o
repito porque precisa ser repetido, porque é comum pregarem sobre a cruz sem
sequer mencionarem a imputação e a punição dos pecados.
Contudo, aprofundamo-nos nisso e o examinamos em detalhe.

Mas agora surge a questão: como é que tudo isso que foi feito e que foi
preparado chega a nós? o versículo que estamos focalizando agora responde
essa pergunta. “E, vindo, ele evangelizou a paz, a vós que estáveis longe e aos
que estavam perto.” Noutras palavras, tendo aberto o caminho e a possibilidade,
o Senhor agora nos vem e nos diz que Ele, tendo feito o que fez, proclama-o,
anuncia esta boa notícia, que a paz entre o homem e Deus, paz da qual o homem
angustiosamente

necessita, é obtenível.

Há muito desacordo sobre o que significa exatamente o nosso versículo, e o que


ele diz exatamente. Ele se refere ao Senhor Jesus Cristo. Ele é Aquele que fez
todas as coisas que estivemos considerando, para “pela cruz reconciliar ambos
com Deus em um corpo, matando com ela as inimizades”; e, “vindo ele
evangelizou a paz, avós que estáveis longe, e, aos que estavam perto”. O Senhor
Jesus Cristo é Aquele de quem Paulo está falando; é Sua ação. Os dois
conceitos possíveis são os seguintes:

Primeiro, há os que dizem que este versículo é uma referência ao que o nosso
bendito Senhor fez enquanto esteve neste mundo. As palavras que temos que
considerar são: “vindo, ele evangelizou apaz”. Que significa este “vindo”? Um
grupo gostaria de fazer-nos acreditar que é uma referência à encarnação, à
primeira vinda de nosso Senhor, e ao Seu ministério terreno, descrito nas páginas
dos quatro Evangelhos. O segundo conceito é o que afirma que esta é uma
referência à pregação do Senhor Jesus Cristo por intermédio dos apóstolos; não à
Sua pregação feita pessoalmente por Ele, mas à Sua pregação mediante a
Igreja, mediante os apóstolos - o que aconteceu depois da Sua morte,
ressurreição e ascensão e subseqüente envio do Espírito Santo sobre a Igreja no
dia de Pentecoste.

Embora sej a um ponto interessante, não é, felizmente, uma questão vital, num
sentido final. Contudo, é de interesse e, portanto, devemos vê-lo de passagem.
Há certas considerações que, ao que me parece, militam fortemente contra o
primeiro conceito. Lendo os Evangelhos, vocês verão que o ministério do nosso
Senhor limitou-se aos judeus. Ele dizia de Si que não tinha sido enviado “senão
às ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mateus 15:24). Ele disse especificamente
aos Seus discípulos: “Não ireis pelo caminho das gentes” - dos gentios (Mateus
10:5). O Seu ministério estava limitado aos judeus. Vocês recordam o incidente
da mulher siro-fenícia. Quando ela veio pedir uma bênção para a sua filha, a
resposta dEle foi: “Não convém tomar o pão dos filhos e lançá-lo aos
cachorrinhos” (Marcos 7:27). Essa era a Sua atitude em toda parte. Todavia, não
é tão simples assim, porque vemos que ocasionalmente em Seu ensino Ele
mostrava que realmente viera para todos, tanto para os judeus como para os
gentios. Creio que há uma insinuação disso mesmo na grande declaração de
Lucas 4:18, com a Sua citação de Isaías, capítulo 61, onde se vê que Ele estava
pregando um evangelho para todos os povos, especialmente na seqüência do
Seu discurso. Ele disse também, certa ocasião: “Ainda tenho outras ovelhas

que não são deste aprisco” (João 10:16) - clara referência aos gentios. E depois
vocês se lembram de que, embora tenha recusado o pedido de André e Filipe que
fosse ver os gregos que tinham vindo e disseram: “Queríamos ver a Jesus”, não
obstante Ele continuou e disse: “E eu, quando for levantado da terra, todos
atrairei amim” (João 12:21,32). Foi uma clara predição de que Ele ia fazer algo,
mediante Sua morte, que abriria a porta de entrada até para os gregos, para os
gentios, para os que estavam “longe”. Parece-me, pois, que um bom exame dos
quatro Evangelhos leva-nos à conclusão de que, conquanto o nosso Senhor tenha
limitado deliberadamente o Seu ministério e o dos Seus discípulos aos judeus
durante a Sua vida na terra, Ele deu ocasionais indicações de que haveria algo
mais amplo e maior depois que Ele realizasse na cruz a obra que fora enviado
para realizar.

Minha decisão é, pois, que, no geral, a segunda interpretação é melhor; que o


que o apóstolo está realmente dizendo aqui é que Cristo, por meio dos apóstolos,
por meio dos Seus servos, pregou este evangelho de paz com Deus, o qual Ele
tornou possível com a obra perfeita que Ele realizou na cruz. Há um sentido em
que Ele nunca poderia ter feito isso durante a Sua vida na terra porque os
homens não poderiam entender o significado da cruz; mesmo os apóstolos
não puderam, sempre tropeçavam nisso. Era necessário que a obra
fosse consumada, que Ele ressuscitasse, que o Espírito Santo fosse dado,
antes de poder acontecer isto. E assim aconteceu. Vocês podem notar que
o primeiro versículo do livro de Atos diz-nos que o escritor, Lucas, lembra a
Teófilo “tudo o que Jesus começou a fazer”. Agora lhe vai falar acerca das coisas
que Jesus continuou a fazer. E é esse o significado do livro de Atos - é o registro
dos atos do Senhor ressurreto por meio da Igreja. V ocês recordam como Pedro e
João, tendo curado o homem junto à Porta Formosa do templo, disseram: “... por
que olhais tanto para nós, como se por nossa própria virtude ou santidade
fizéssemos andar este homem...pela fé no seu nome fez o seu nome fortalecer a
este que vedes e conheceis” - referindo-se a Cristo - “fortalecer a este...”. “Em
nome de Jesus Cristo, o Nazareno”; quem o faz é Ele, por assim dizer, mediante
os apóstolos. Isto é algo que todos nós devemos conhecer bem. Escrevendo aos
coríntios, diz o apóstolo Paulo: “Somos embaixadores da parte de
Cristo...Rogamo-vos pois da parte de Cristo que vos reconcilieis com Deus”. E,
naturalmente, há o tremendo fato de que foi Pedro que disse, no dia de
Pentecoste: “A promessa vos diz respeito (falando primeiramente aos judeus e
aos prosélitos), a vossos filhos, e

a todos os que estão longe”. Aí está o primeiro grande, inequívoco e explícito


pronunciamento de que de fato o evangelho é para ser pregado a todos. E eu
afirmo que o próximo versículo desta nossa seção, a saber, o versículo 18, onde
o apóstolo imediatamente se refere aos Espírito Santo, é uma confirmação disso.
A afirmação que ele faz no versículo dezessete o faz logo pensar no Espírito, e
isso o leva à sua próxima afirmação. Mas, para mim, a prova conclusiva e final
vê-se claramente em I Timóteo 3:16, onde o apóstolo lança uma declaração
extraordinária. Diz ele: “Sem dúvida alguma grande é o mistério da piedade:
Deus se manifestou em carne, foi justificado em espírito, visto dos
anjos, pregado aos gentios, crido no mundo, e recebido na glória”. Vocês podem
notar a seqüência. “Pregado aos gentios” vem depois não somente de “foi
justificado em espírito”, mas também de “visto dos anjos”, o que, para mim, é
uma inequívoca referência à Sua morte na cruz. Há, pois, um sentido em que é
evidente que essa era a seqüência na mente do grande apóstolo.

Então, essa é mais ou menos a mecânica do nosso texto, interessante e


importante, e digna de mais amplo estudo. Todavia o importante é que o apóstolo
está asseverando um fato. Tenha ou não começado com o Senhor em Seu
ministério terreno, o fato é que a mensagem cristã é uma proclamação a judeus e
gentios, a gentios e judeus, de que o caminho da paz com Deus foi aberto por
Jesus Cristo, e Ele crucificado. Essa é a mensagem. E a isso que o apóstolo está
desejoso de que estes efésios se apeguem. E é com isso que ele quer que eles
fiquem admirados, admirados de ser isso possível, de que tenha acontecido, e de
que Cristo assim o esteja pregando, oferecendo-Se a eles, expondo-o diante deles
e convidando-os a agir com base nisso. E essa continua sendo a mensagem que a
Igreja Cristã deve pregar; essa é a sua mensagem ao mundo atual. Portanto, o
nosso dever é descobrir o ensino, a doutrina, desta tremenda declaração. É uma
das mais gloriosas de todas as Escrituras. “E, vindo, ele evangelizou a paz, a vós
que estáveis longe, e aos que estavam perto.”

Qual é o ensino? Vamos resumi-lo da seguinte maneira: obviamente, a primeira


grande afirmação é que a necessiadade fundamental do homem é paz com Deus.
Essa é a paz que o nosso Senhor prega, a paz com Deus. Temos aí, vocês vêem,
uma continuação da afirmação do versículo anterior. “E pela cruz reconciliar
ambos com Deus em um corpo, matando com ela as inimizades.” Depois ele
prossegue, no próximo versículo, dizendo: “Porque por ele temos acesso ao Pai
em um mesmo Espírito”. A paz é essa, pois. Aqui não é tanto a paz entre
gentios e judeus; essa fora consumada, agora apaz é com Deus, da qual ambos
necessitam. E por isso que eu gosta daquela outra tradução que diz: “E veio e
pregou a paz a vós, que estáveis longe, e pregou paz a eles, que estavam perto”.
Os judeus necessitavam da paz, tanto como os outros.

E digo de novo que a declaração fundamental é que a suprema e primordial


necessidade do homem é a necessidade de paz com Deus. O homem, perdida a
sua relação com Deus, o homem em pecado, vive inquieto e miseravelmente
infeliz. Há uma exposição maravilhosa disso tudo no capítulo cinqüenta e sete do
livro do profeta Isaías. Não tenho dúvida de que o apóstolo tinha em mente essa
passagem quando escreveu estas palavras. Ela diz: “Paz, paz, para os que estão
longe, e para os que estão perto, diz o Senhor” (versículo 19). Mas então
o profeta continua e diz: “Os ímpios são como o mar bravo que senão
pode aquietar, e cujas águas lançam de si lama elodo”. Aí está afigura, aí está a
explicação - “como o mar bravo”. Todos nós conhecemos bem essa figura do
mar bravio, inquieto. Por que o mar está sempre inquieto, sempre em
movimento? Por que as ondas? Por que o fluxo e refluxo? Os cientistas dizem
que é porque sempre agem sobre o mar duas forças opostas. A primeira delas é a
Lua. A Lua controla em parte as mudanças e os movimentos do mar. Há, por
outro lado, a força magnéticado centro da Terra, uma tremenda atração
magnética. De um lado, a atração e a influência da Lua, e doutro lado, a
influência oposta das forças magnéticas do centro da Terra. E o resultado é que o
mar está em constante movimento; temos as ondas e vagas, e o fluxo e refluxo; e
ocasionalmente ocorre um vendaval que sopra sobre o mar e eleva as ondas
em vagalhões, e temos uma terrível tempestade. “Os ímpios são como o
mar bravo que se não pode aquietar, e cujas águas lançam de si lama e
lodo.” Vocês já andaram pela praia depois de uma tormenta, e viram a lama,
a sujeira, os pedaços de madeirae outras coisas lançadas pelas águas? São os
restos de embarcações e de suas cargas, a sujeira e a lama que ficam na praia
após um tempestade. Que descrição perfeita! Bem, diz Isaías (e é o que está na
mente do apóstolo aqui), é como são os ímpios.

É a figura do homem sem Deus, inquieto como o mar revolto. Qual a causa
disso? A explicação, no sentido espiritual, é a mesma das condições do mar.
Tudo começou no Éden. O homem foi feito por Deus e foi colocado no Paraíso.
Não havia movimento nenhum, nenhuma inquietação no Paraíso, pois somente
uma coisa atuava sobre o homem - Deus! Deus fez o homem à Sua imagem, o
homem estava em correspondência, em comunhão com Deus, fruía Deus, e a sua
vida era
uma vida de inalterada paz e bem-aventurança. Não havia infelicidade, não havia
problema, não havia dificuldade, não havia ansiedade. O homem estava num
estado de inocência e de completa paz, quietude e liberdade. No entanto, o
homem caiu. Deu ouvidos a outra força, a outro poder, e ao lhe dar ouvidos,
ficou sujeito a esse poder. O poder do diabo, o poder do mal, o poder do inferno
começou a atuar sobre ele, e daquele momento em diante a vida do homem foi
de inquietude e conflito. O homem, fora da relação com Deus, é exatamente
como ornar. Continua havendo nele uma rememoração, uma lembrança, da sua
retidão original. Ele não sabe disso, ele não pode dizer nada a respeito; ele
não acredita na Bíblia, não acredita na teologia; não obstante, é um fato.

Há no homem um fator chamado consciência. Ah, quantos não há que gostariam


que não houvesse consciência! Contudo eles a têm, e ela vai lhes falando e os vai
segurando; é uma influência em sua vida. Que é ela? É a lembrança, a
reminiscência da sua retidão original. No fundo do coração o homem sabe que
foi feito para algo melhor. Ele tem senso de justiça, do certo e do errado, do bem
e do mal. Vou além, ele tem até senso de Deus. Não gosta, mas tem; e isso o
perturba. Esse é um lado - a força que vem de cima. Entretanto, há outra força
que o puxa na direção oposta-anaturezahumanadecaída, acobiça, a paixão, o
desejo, o ciüme, a inveja, todas estas coisas feias e horríveis. O apóstolo
fala disso uma vez por todas na capítulo sete de Romanos: “Porque, segundo o
homem interior, tenho prazer na lei de Deus; mas vejo nos meus membros outra
lei, que batalha contra a lei do meu entendimento, e me prende debaixo da lei do
pecado que está nos meus membros”. As duas são antagônicas, e o resultado é
que o homem fica inquieto e como as ondas do mar, do mar inquieto, que não
tem descanso. E então, ocasionalmente, vêm os temporais. Refiro-me a alguma
furiosa investida do diabo! Há sempre um ligeiro movimento no ar, todavia nem
sempre dizemos que é uma ventania. Quando o movimento aumenta, toma-
se ventania, vendaval. O diabo está sempre aí, a perturbar-nos, porém
há ocasiões em que ele faz uma furiosa investida, e sofremos um
ataque violento, somos jogados para lá e para cá, e somos lançados
violentamente, como uma tempestade no mar. O diabo e as suas forças
parecem incontroláveis, e as nossas vidas ficam tão turbulentas e agitadas
como o mar na mais violenta tempestade. E não só isso - as
circunstâncias também! Vêm as guerras, vem a enfermidade, um ente querido
cai doente, algo vai mal, e toda anossa vida se transtorna. Não sabemos
onde estamos; abalam-se as nossas bases, como dizemos. Tudo vai rolando para
lá e para cá, como o mar. Vocês vêem como a descrição é perfeita.
Esse é o homem que não tem relação com Deus, o homem resultante da Queda.
Não tem paz, vive inquieto.

Naturalmente, a conseqüência disso tudo é que o homem nunca está satisfeito.


Não há nada que caracterize tanto a vida pecaminosa como a sua inquietude.
Acaso vocês não vêem isso no mundo atual? O mundo alguma vez esteve tão
inquieto como no presente? Vejam a moderna mania de lazer. A que se deve? A
inquietude! As pessoas dizem: vamos sair, vamos fazer alguma coisa; não
podemos agüentar só ficar em casa; isso nos fará enlouquecer. Vamos sair,
vamos esquecer tudo, vamos fugir de tudo. Lazer! Estão tentando livrar-se da
inquietude! Uma nova emoção, um ansioso desejo de algo novo! Escapismo é
o termo usado para isso hoje, e o mundo se enquadrano fato. O mundo
está emocionalmente agitado, e está procurando agitar-se mais ainda. Tem que
receber estímulo na forma de bebidas ou de diversão. Tem que ter algo que
mantenha a coisa andando. É tudo expressão dessa inquietude fundamental,
desse desassossego, dessa falta de paz, dessa falta de tranqüilidade mental. O
homem em pecado não conhece a paz mental, não conhece a paz do coração. E
instável, diz Tiago, como as ondas do mar. Tem mentalidade dupla - isto puxa,
aquilo puxa; sente que devia ser melhor, mas gosta de alguma coisa má; e se vê
puxado de dois lados. Sua vida e seus caminhos são de fato como as inquietas
ondas do mar. Sem nada que o satisfaça!

A analogia é perfeita, não é? Ah, a lama e a sujeira lançadas por tudo isso!
Milhões passam o domingo lendo sobre isso. A lama e a sujeira! Está em todos
os jornais, em toda parte, nas conversas do povo; está se tomando por demais
óbvio. A respeitabilidade está desaparecendo, o pecado está se tornando
escancarado outra vez. A tempestade soprou durante algum tempo, e a lama e a
sujeira estão ficando cada vez mais evidentes. O homem em pecado é isso - sem
paz, sem sossego, sem tranqüilidade; como as ondas revoltas do mar, a sua vida
espirra lama, sujeira e coisas nojentas. O horror e a fealdade disso tudo! E a
tragédia é que, em sua ignorância e cegueira, o homem não percebe nada
disso. Ele não sabe, não entende; acha que os seus problemas são causados pelas
circunstâncias, ou pelo ambiente, ele está sempre em busca de paz e procurando
ter repouso. Mas não consegue; esforça-se quanto pode, e falha.Tudo isso indica
o fato de que a suprema necessidade do homem, a necessidade fundamental do
homem, é a necessidade de paz e repouso, mente serena, coração tranqüilo.

Passemos, porém, ao segundo ponto. A paz é a necessidade de


todos os homens, não somente de alguns. “E, vindo, ele evangelizou a paz, a vós
que estáveis longe, e aos que estavam perto.” Os judeus precisavam da
mensagem tanto como os gentios que estavam longe, e exatamente da mesma
maneira que eles. Pois bem, essa é a grande tese do apóstolo aqui. Ele tem que
estabelecer que os judeus necessitam da mensagem tanto como os gentios. No
entanto, os judeus não conseguiam ver isso. Esse era o seu problema.
Naturalmente os gentios podiam precisar disso! - embora os judeus não
gostassem nem disso, porque achavam que Deus não Se interessava por nenhum
povo, exceto eles próprios. Mas eles certamente não precisavam! Por isso os
fariseus odiavam tanto o nosso Senhor. A pregação do nosso Senhor fazia
os fariseus acharem que até eles eram pecadores, e não gostavam disso. Eles
diziam: somos piedosos, somos religiosos, somos boas pessoas, temos a lei! E
assim o apóstolo Paulo teve que escrever os capítulos dois e três da Epístola aos
Romanos só para mostrar-lhes que eles necessitavam da mensagem de paz tanto
como os gentios. Os judeus achavam que, porque tinham a lei, isso de algum
modo significava que eles a haviam cumprido; que, porque sabiam que havia
uma lei, isso os colocava em boas relações com a lei. E por isso Paulo tem que
dizer: “Pela lei vem o conhecimento do pecado”; elanão os livra dele, não
faz mais que dar conhecimento, mas eles não conseguiam ver isso. Achavam que
os seus privilégios - e eles tinham privilégios, como Paulo mostra - salvavam-
nos automaticamente. Eles tinham os oráculos de Deus, as Escrituras do Velho
Testamento; a lei fora dada a eles, os pais lhes pertenciam, e assim por diante.
Isso era verdade. Todaviaposto que punham a sua confiança nesses privilégios e
em sua posse deles, eles estavam fora do reino. Mas não enxergavem isso.
Assim, a mensagem tem que vir a eles como tem que vir a todos os outros. Não
obstante continua sendo um problema para muitos. Há muitos que pensam que o
evangelho, numa forma evangelística, precisa ser pregado a certas pessoas,
porém não a todas. Acham que certamente isso não é necessário para os que
foram criados em lares cristãos e que, em sua juventude, eram levados à Escola
Dominical e sempre freqüentavam um local de culto. Você não precisa pregar-
lhes evangelisticamente, dizem eles; certamente eles já estão lá, já chegaram
perto. Os que dizem isso não conseguem ver que os que estão perto precisam da
mesma mensagem da qual precisam os que estão longe. Mas precisam, diz Paulo
-“evangelizou os que estavam longe e os que estavam perto”.

Observem ainda que longe e perto são distinções relativas, não são distinções
absolutas. Permitam-me oferecer-lhes uma ilustração.

Vejam o caso de dois vultos que figuram no Novo Testamento, um o apóstolo


Paulo, e outro o carcereiro de Filipos.Considerem-nos a ambos. Vejam Paulo,
hebreu de hebreus, educado como fariseu, sentara-se aos pés de Gamaliel,
conhece a lei e nela tem prazer. Ele serve a Deus, pensa ele, com consciência
pura. Um bom homem, homem de boa moral, homem religioso! Do outro lado, o
carcereiro de Filipos, gentio, sujeito violento, homem pronto a cometer suicídio
quando as coisas vão mal. Olhando para esses dois homens, que é que vocês
dizem deles? Alguém diráinstintivamente: o apóstolo Paulo está muito perto do
reino de Deus; o carcereiro de Filipos está muito longe. E, contudo, o
próprio apóstolo nos diz que, na realidade, os dois homens tinham
idêntica necessidade, que ele tinha tanta necessidade da paz do evangelho
como aquele carcereiro. “Esta é uma palavra fiel, e digna de toda a
aceitação”, diz ele, “que Cristo Jesus veio ao mundo, para salvar os pecadores” -
gente como o carcereiro de Filipos e como os membros da igreja de Corinto, que
eram adúlteros, fornicadores, mal vistos até pela humanidade, a escória da
sociedade? Não, não; não somente eles, Cristo Jesus veio para salvar os
pecadores - “dos quais eu sou o principal”! Porventura não parece monstruoso,
não parece ridículo que este jovem piedoso, este bom fariseu, esteja na mesma
situação do carcereiro de Filipos? Contudo ele diz que é isso mesmo. Não havia
diferença alguma, pois “Não há um justo, nem um sequer”, estamos todos na
mesma situação. E continua sendo assim hoje.

Falemos com clareza sobre isso. Há alguns que obviamente se acham tão longe
quanto é possível estar do reino de Deus. As pessoas às quais me referi há
pouco, cuja idéia de felicidade consiste em embebedar-se e tornar-se piores que
animais, pessoas que vivem em sentinas de vício e iniqüidade sem jamais terem
um pensamento sobre Deus ou sobre moralidade, porém que só vivem de acordo
com a sua natureza animal, estão, vocês costumam dizer, tão longe do reino
de Deus quanto é possível conceber. Mas há outros que são amáveis, pacíficos,
respeitáveis, que nunca praticam males visíveis aos outros, que odeiam essas
coisas, procuram fazer o bem, empreendem luta moral, trabalham pela elevação
da raça, estão cheios de boas obras, de boas ações, de boas realizações, de
interesses e trabalhos intelectuais, que se interessam pelas coisas da mente etc.,
que freqüentam um local de culto, que são membros de igreja, talvez. A primeira
vista, e superficialmente, as duas posições perecem diametralmente opostas, e a
tendência geral é dizer que elas não têm nada em comum.

Todavia, o propósito geral do evangelho é dizer que, diante de

Deus, elas são idênticas e precisam exatamente da mesma mensagem. O segundo


tipo precisa da mensagem de paz tanto como o primeiro. Paz aos que
estavamperto, como também aos que estavam longe! Aqueles parecem estar às
portas do reino, mas não estão no reino. E no momento em que vocês se puserem
a analisar isso, verão como é verdade. Os seus intelectualistas, os seus moralistas
e os seus idealistas vivem tão inquietos como os outros, e igualmente infelizes.
Não conseguem achar paz, mais do que as outras pessoas. Claro, talvez não
lancem tanta lama e tanta sujeira. O que é óbvio no caso delas não é alguma
prática nojenta, porém os restos do naufrágio são igualmente óbvios. Não é lama
e imundície, talvez sejam pedaços de madeira ou restos de enfeites ou
algo parecido. No caso dos infelizes que levam a vida nas sarjetas, a coisa
é óbvia, é aberta, é visível; todos podem vê-la. A condição do
bêbado cambaleante ou do homem violento é óbvia, todos podem vê-la. Mas
o fato de vocês não poderem ver muito movimento na superfície da vida dos
outros não significa que não haja nenhum movimento. Posso demonstrar que há
um tremendo movimento ali. Por baixo da superfície aparentemente calma e lisa,
há uma revolta em ação, há uma tremenda violência. Como posso saber disso?
Desta maneira: a grande moléstia da humanidade, particularmente do homem
civilizado, é a chamada neurose. As neuroses, dizem-nos, são causadas por
repressões. Que é uma repressão? Algo que você mantém em baixo, que você
não deixa vir à tona, você não parte para a embriaguez ou o adultério. Não,
todavia a luta está ali, a fúria interior, a tempestade, uma verdadeira torrente
de luxúri a e paixões, mantidas por baixo, por assim dizer, nas ali estão.
Não hárepouso, não hápaz. Repressões e neuroses! -manifestando-se talvez em
úlceras gástricas, transparecendo na insônia e na dependência de soníferos. Essa
é a doença do homem moderno e da civilização. As pessoas do primeiro grupo
que descrevi nunca têm que tomar essas drogas; a inquietude toma forma
diferente nelas; as outras se reprimem, e a natureza protesta. A luta é tão grande
que os nervos não agüentam, e assim essas drogas se tornam necessárias. As
duas posições são realmente idênticas. O importante não são os sintomas de uma
doença, e sim a doença propriamente dita; assim vocês vêem que aquelas
pessoas que parecem estar tão perto do reino, que são tão agradáveis e
bondosas, e que estão sempre falando de elevação moral e estão sempre
tentando melhorar a condição do homem e lutam em prol da cultura, são
tão inquietas e doentias como o pecador violento e patente. Elas necessitam de
paz, tanto quanto esse violento.

Mas talvez eu possa provar o meu ponto mais conclusivamente se

lhes peço que examinem experimentalmente os dois tipos, as duas classes. O


teste sobre a nossa situação, como disse quando expus o meu primeiro princípio,
é se conhecemos a Deus. Não é se você acredita em coisas concernentes a Deus.
Não há paz se não há conhecimento de Deus. Aquela boa pessoa das suas
relações, pessoa culta, intelectual, altamente moral, pessoa que pode estar
sempre lendo livros, teologia, e talvez a Bíblia, pode não ter nenhum
conhecimento de Deus. Por isso é inquieta e infeliz. Ela não pode ver a Deus,
está sempre investigando, pesquisando, indo ouvir boas preleções, esperando que
algo vá acontecer; porém, não o possuem. Não o têm mais do que qualquer
outra pessoa. O teste é esse. Tais indivíduos estão atormentados por
algum pecado passado. Têm medo de morrer. Não sabem onde estão, não sabem
que os seus pecados foram perdoados. Não sabem o que os espera no futuro. Não
têm a fé que sustenta no transe da morte, não têm certeza do céu, não sabem que
são filhos de Deus; e o resultado é que vivem inquietos, sentem-se mal e
infelizes. Acaso estou esclarecendo o meu princípio? Não é esse o problema com
eles? Acham-se tão perto e, todavia, tão longe! “Longe” e “perto”, como eu
disse, são termos relativos. A pergunta importante é: você está no reino? E se
você compreender que a pergunta importante é essa, você compreenderá
que, afinal, estar perto não dá nenhuma vantagem sobre estar longe.

Posso oferecer-lhes uma ilustração quase ridícula? Você quer sair, e entra numa
fila de ônibus. O ônibus chega, e você está, digamos, no décimo lugar da fila. As
pessoas começam a entrar no ônibus. Você diz: “Ótimo, eu vou entrar”. O nono
passageiro entra, e o motorista diz: “Ninguém mais, lotado.” Ajudaria em
alguma coisa você ter sido o próximo, se ainda houvesse lugar? O fato é que
você está fora do ônibus, e o fato de você ser o próximo na fila não o ajuda. Ou,
a mesma coisa com alguém que vai pegar um trem, e justo no momento em que
ele vai mostrar o bilhete na entrada da plataforma de embarque, ouve-se o
apito e o trem parte. Diz ele: quase o peguei! - mas isso o ajuda?
Essas ilustrações podem ser divertidas, porém espero que os que se riem façam a
si mesmos esta pergunta solene: “Estou dentro do reino, ou apenas perto?” Pode
ser que você estej a à porta de entrada há muitos anos. Você seria incapaz de ver
que isso não o ajudará? Pergunto: você está dentro? Você conhece a Deus? Você
sabe que os seus pecados estão perdoados? E quando você vai orar a Deus
quando tem algum problema, você sabe que O vê e que você está falando com
Ele? Você tem acesso com confiança e ousadia? Você entra pelo sangue de Jesus
no “Lugar Santíssimo”? Essa, digo eu, é a questão, e não há outra. Tão perto e,

contudo, tão longe! Estar uma polegada fora do reino não é nenhuma vantagem
sobre o homem que está a mil milhas de distância. “Paz aos que estavam longe,
e, aos que estavam perto.” Todos têm necessidade da paz. “Os ímpios, diz o meu
Deus, não têm paz.” “Todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus.” Ou,
como Agostinho o diz finalmente em sua experiência pessoal: “Tu nos fizeste
para Ti, e os nossos corações não descansam enquanto não acham repouso em
Ti”. Intelectualistas morais, vocês têm repouso? Está tudo tranqüilo por dentro,
há paz em sua alma, e paz entre vocês e Deus? Esta é a necessidade de todos.

Isso me leva ao derradeiro princípio, que é: Cristo, e somente Cristo, oferece e é


capaz de dar esta paz a todos os que vêem a necessidade dela. E nisso que o
apóstolo se gloria. Cristo o fez e abriu o caminho. Nenhum homem pode achar a
Deus procurando-O. Nenhum homem pode reconciliar-se com Deus. Todavia,
como vimos, Cristo fez a paz entre o homem e Deus pelo sangue da Sua cruz.
Foi ali que Ele aboliu a inimizade, e o fez tomando-a sobre Si. Não somente os
pecados vis, torpes, patentes, flagrantes, mas também os pecados de
justiça própria, de presunção, de arrogância, de moralismo, como se isso
fosse espiritualidade. Ele tomou isso tudo sobre Si. “Levando ele mesmo em seu
corpo os nossos pecados sobre o madeiro, para que, mortos para os pecados,
pudéssemos viver para a justiça; e pelas suas feridas fostes sarados” (1 Pedro
2:24). Foi por causa disso que Ele pôde dizer: “Deixo-vos a paz, a minha paz vos
dou; não vo-la dou como o mundo a dá. Não se turbe o vosso coração, nem se
atemorize” (João 14:27). Você já recebeu a Sua paz? Ele o reconcilia com Deus;
e a paz de Deus, que excede todo o entendimento, poderá guardar o seu coração
e a sua mente, se tão-somente você for a Ele. “Não estejais inquietos por
coisa alguma-, antes as vossas petições sejam em tudo conhecidas diante
de Deus pela oração e súplica, com ação de graças. E a paz de Deus, que excede
todo entendimento, guardará os vossos corações e os vossos sentimentos em
Cristo Jesus” (Filipenses 4:6-7). Leve tudo a Ele. Cristo abriu o caminho para
você ir aDeus com as suas dificuldades, com os seus problemas, sejam quais
forem.

Quanta vez a paz perdemos,

Quanta dor temos em vão,

Tudo porque não levamos Tudo a Deus em oração.

E o caminho está livre para você agir assim também, pois Cristo o abriu.
Opecado foi removido, a inimizade, o antagonismo, foi destruído, e você pode ir
confiantemente à presença de Deus.
E tendo levado a Ele os seus problemas e dificuldades, deixe-os com Ele, deixe-
os lá. “Tu conservarás em paz aquele cuja mente está firme em ti” (Isaías 26:3).
Firme no Senhor! - você tem ampla, franca e aberta entrada, pelo sangue de
Jesus Cristo. Entre, olhe para Ele, tenha firme a sua mente nEle, e você
começará a gozar a Sua bem-aventurada paz. Cristo nos dá paz com Deus, paz
com os outros, paz interior. “Ele veio e pregou a paz aos que estavam longe e aos
que estavam perto.” Alguém que tem vivido como que nas próprias mandíbulas
do inferno pode ler estas palavras. Meu amigo, você pode ter esta paz, agora.
Mas se a sua situação é de quem sempre esteve interessado e sempre
esteve muito perto, você também pode tê-la, agora. Vocês podem tê-lajuntos. É
dádiva inteiramente gratuita de Deus, mediante Jesus Cristo, o nosso Senhor.
Você j á a tem? Regozija-se nela? A paz que Jesus Cristo oferece pode ser sua
agora e para todo o sempre.

22
ACESSO AO PAI

“Porque por ele ambos temos acesso ao Pai em um mesmo Espírito.’’ - Efésios
2:18

Aqui, nesta declaração, o apóstolo chega ao grande clímax da sua persuasiva


argumentação que começa no versículo onze deste capítulo dois da sua Epístola.
Não há nada que a supere; é o pico mais alto, o apogeu. Esta é a quintessência da
fé cristã e da posição cristã. Não há dúvida, pois, de que estamos contemplando
e considerando uma das mais grandiosas e gloriosas declarações em toda a
extensão das Escrituras. Para mim foi uma experiência emocionante dar estes
passos com o apóstolo, um por um. Cada vez subimos mais alto, mais alto, mais
alto. Mas, por fim, chegamos ao topo, estamos no ponto culminante, chegamos
ao grande planalto, e ali ficamos olhando, olhando e contemplando com
admiração e assombro as alturas a que fomos trazidos. Na verdade, para mim, a
declaração que temos diante de nós não somente é estupenda, é estonteante. “Por
ele ambos temos acesso ao Pai - acesso! - em um mesmo Espírito” (ou, “por um
mesmo Espírito”, VA).

A nossa principal dificuldade, e toda a dificuldade da Igreja, é que não


compreendemos o significado de uma declaração como essa. Se
a compreendêssemos, a Igreja Cristã passaria por uma revolução. Seriamos
“tomados de um sentimento de maravilha, amor e louvor”. Compreenderíamos
que a coisa mais maravilhosa, mais extraordinária que jamais pode acontecer a
alguém neste mundo é ele tornar-se cristão. Se tão-somente cada membro da
Igreja, cada cristão da Igreja, compreendesse a verdadecontidanessadeclaração, a
Igrejaficaria tão diferente que dificilmente a reconheceríamos. Ora, quão
diferente é a Igreja daquilo que vemos aqui! Quantos pensam no cristianismo e
na Igreja Cristã simplesmente como um lugar que eles freqüentam de vez
em quando, e isso de maneira perfuntória, hesitante, duvidando se o farão ou
não, e por puro dever; ou como um lugar em que eles podem por em prática
certos dons que eles têm, e estar ocupados - uma espécie de clube, uma
instituição, uma sociedade humana. Que contraste com o que temos aqui! Isto é
cristianismo, é isto que faz de alguém um cristão. A Igreja Cristã consiste
realmente de pessoas que compreendem que todo o objetivo e propósito de todas
as coisrs é este - acesso ao Pai por um

mesmo Espírito. Temos que meditar nisto, temos que deter-nos nisto, temos que
aprofundar-nos nisto, temos que dedicar tempo a isto; pois, como tentarei
mostrar a vocês, encontramos reunidas neste único versículo as coisas mais
estupendas que já nos foram ditas ou que já compreendemos acerca de nós
mesmos.

Há certas coisas que sobressaem na superfície deste versículo. Por exemplo,


somos logo levados por este versículo a estar face a face com o mistério da
Trindade Santa e bendita. Por Ele (o Filho, o Senhor Jesus Cristo) ambos temos
acesso ao Pai em (ou por) um mesmo Espírito (o Espírito Santo, corretamente
grafado com inicial maiúscula em todas as versões porque é uma referência ao
Espírito Santo). Aí está um dos grandes versículos trinitários das Escrituras, e
nos detemos por um momento diante deste mistério inefável. Pergunto: damo-
nos conta, como devíamos, de que, num sentido, a doutrina da Trindade
constitui a essência da fé cristã? É a doutrina que, dentre todas as outras,
diferencia a fé cristã de toda e qualquer outra fé. Cremos em um só Deus.
E, contudo, asseveramos que o Deus único são três Pessoas, o Pai e o Filho e o
Espírito Santo. Um grande e inescrutável mistério! Não o entendemos, nós o
asseveramos. É-nos ensinado aqui, é-nos ensinado noutros lugares das
Escrituras. A Bíblia ensina claramente que o Senhor Jesus Cristo é
verdadeiramente Deus, e igualmente que o Espírito Santo é verdadeiramente
Deus, e, todavia, diz ela que há somente um Deus: Deus é um só, e há somente
um Deus, que subsiste em três Pessoas. Não me peçam que explique isso. Mas
vocês não começarão a entender a Bíblia, não terão a mínima possibilidade de
entender a fé cristã, se não o aceitarem, se não crerem nisso, se não se inclinarem
diante disso, e se não se humilharem e disserem: eu Te presto culto, eu Te adoro,
eu Te louvo, ó “Grande Jeová, Três em Um”. É, pois, vital que nós,
como cristãos, nos lembremos disso constantemente. E quando o fizermos,
os nossos cultos se encherão de reverência, de adoração, de um sentimento de
temor, de um sentimento de glória e de louvor, louvor verdadeiro. Sempre que
oramos, sempre que nos reunimos para adoração, estamos prestando culto a este
Deus Triúno. Não podemos conceber a glória, a majestade e a grandeza dessa
realidade, porém devemos tentar fazê-lo. Devemos preparar os nossos espíritos,
devemos meditar, devemos ponderar nesta verdade, devemos sondar as
Escrituras em sua busca, devemos vê-la; e, tendo-a reconhecido, como a
reconheceram os homens a respeito de quem nós lemos nas Escrituras, os quais
chegaram perto de Deus, tiraremos os calçados dos nossos pés, sentiremos que

Permitam-me passar a uma segunda observação. As três Pessoas da trindade


santa e bendita interessam-Se por nós e estão empenhadas, as três juntas, em
nossa salvação. Agora vocês vêem o que eu quero dizer quando afirmo que este
versículo é estonteante. E isso exatamente que ele diz, que as três Pessoas,
eternas em Sua glória, em Sua santidade e em Seu poder, as três Pessoas da
Trindade santa e bendita estão interessadas em você, que você seja cristão, e
estão interessadas em sua salvação, e estão levando a efeito a sua salvação.
O mundo fala em honrarias, e está interessado em honrarias, em privilégios, em
conseguir admissão a clubes e posições e em que as pessoas sejam apresentadas
a grandes personalidades. Eis aqui um fato: as três Pessoas daTrindade estão
interessadas em você, e fizeram algo pela.sw<3 salvação! Que seria, se todos os
cristãos se dessem conta disso!

Como estão empenhadas em nossa salvação? Esta Epístola nos esteve dizendo
isso. O apóstolo ocupou quase todo o capítulo primeiro para dizer-nos que foi o
Pai que planejou e deu início à salvação. Vocês se lembram da frase várias vezes
repetidas, “segundo o mistério da sua vontade” ou semelhante, “segundo o
beneplácito de sua vontade”, “segundo o seu beneplácito, que propusera em si
mesmo, de tornar a congregar em Cristo todas as coisas, na dispensação da
plenitude dos tempos”. O Pai “faz todas as coisas, segundo o conselho da
sua vontade”. Os teólogos costumavam falar em “Trindade Econômica”, ou
“Economia da Trindade”. Esta grande obra, esta grandiosa tarefa de salvação foi
dividida entre as três Pessoas. O Pai concebeu e planejou a salvação. Ele a
imaginou, projetou-a, decidiu sobre ela, determinou-a. O Deus eterno e
sempiterno! E Seu plano e Seu propósito. Nunca apresentemos a fé cristã e
aposição cristã quanto à salvação como se esta fosse algo que o Filho teve que
arrancar do Pai. Foi o Pai que enviou o Filho. Vocês notam, na oração sacerdotal,
no capítulo dezessete do Evangelho Segundo João, com que clareza o nosso
Senhor diz: “Eu glorifiquei-te na terra, tendo consumado a obra que (Tu) me
deste a fazer”; Ele veio “para que dê a vida eterna a todos quantos lhe
deste”; “eram teus, e tu mos deste”. Todas essas referências são ao Pai. O Pai é
Quem concebe, inicia e põe em movimento este grande e glorioso plano e
método de salvação.

Então o Filho ofereceu-Se voluntariamente para realizar a obra. Não se


questiona que se realizou um grande concilio na eternidade, antes do início do
tempo, como nos dizem as Escrituras: “antes da fundação

do mundo”. Tudo o que aconteceu foi conhecido antes e foi previsto. O Pai
concebeu o plano e o Filho ofereceu-Se voluntariamente para vir executar o
plano. O Pai deu-Lhe as pessoas, o Pai deu-Lhe uma obra para realizar, e Ele
veio e arealizou. E ali, pouco antes da cruz, Elepôde dizer que a tinha realizado.
Conhecemos bem os grandes fatos; mas não nos esquecemos. Lembremo-nos
constantemente do que essa obra envolveu para o Filho que, embora sendo
“igual a Deus”, “não teve por usurpação o ser igual a Deus”, contudo,
“humilhou-se, fazendo-se indigno de honra”. Ele veio dessa maneira tão
humilde; Ele soube o que é ser pobre e sofrer privações e pobreza; Ele Se
misturava com as pessoas comuns e teve uma vida comum. Poderíamos
conceber o que isso significou para Ele? Sofreu contra Si próprio “a contradição
dos pecadores”; suportou a ruindade, o despeito e a inveja deles. No entanto,
acima e além de tudo, Ele levou sobre Si os nossos pecados, suportou que por
nós Ele fosse feito pecado pelo Pai, embora Ele não conhecesse pecado;
suportou que fosse lançada sobre Ele a iniqüidade de nós todos; foipara acruz,
para levar “em seu corpo os nossos pecados sobre o madeiro”. Foi o que Ele fez.
Cumpriu a lei ativamente, viveu sob a lei como homem, “nascido de mulher,
nascido sob a lei”, colocou-Se deliberadamente sob ela, por Seu querer foi
batizado por João Batista, identificando-Se com o pecador e com tudo o que está
envoi vido nisso, e morreu e foi sepultado. O Príncipe, o Autor da vida, morreu
e foi colocado num túmulo; mas ressuscitou. Aí estão os fatos magníficos. Essa é
a parte do Filho - procedente do seio do Pai, procedente da eternidade. Ele estava
no princípio com Deus, nada foi feito sem Ele; porém Ele deixa a glória, põe-na
de lado - “Tenro, Ele deixa de lado a Sua glória” - e leva avante a Sua grande
tarefa. Por Ele, mediante Ele, este Filho bendito! Essa é a obra realizada pelo
Filho.
Há então a obra realizada pelo Espírito Santo. E Ele que a leva a cabo em nós,
pessoa por pessoa. Essa é a Sua obra. Vocês notam que o Filho Se subordina
voluntariamente ao Pai. E o Espírito Santo Se subordina ao Filho e ao Pai. São
co-iguais, são co-etemos, e são iguais em todos os aspectos; e, contudo, por
causa da nossa salvação, há esta subordinação do Filho ao Pai, e do Espírito
Santo ao Filho e ao Pai juntos. E o Espírito S anto vem e aplica a obra redentora.
Aplica-a a mim, aplica-a a você. E Ele que nos faz participantes de Cristo; é Ele
que nos leva a ver a nossa necessidade e todas as outras coisas que espero
considerar mais adiante; é Ele que aplica a grande redenção que foi levada a
efeito pelo Filho. E o faz não somente ao indivíduo, mas também o faz à
Igreja. Ele edifica a Igreja, Ele enche a Igreja com a Sua vida e com a Sua

presença. Essa é a obra realizada pelo Espírito Santo. Ele “não falará de si
mesmo”. Ele falará simplesmente de Cristo. “Ele me glorificará”, diz o Senhor; e
Ele o fez, e ainda o faz.

Assim, logo na superfície deste versículo, temos estas duas tremendas


afirmações: que estamos olhando para as três Pessoas da Trindade bendita;
porém, ainda mais admirável e espantoso, que as três Pessoas estão interessadas
em nós e estão preocupadas com a nossa salvação, e atuaram para que a nossa
salvação viesse a ocorrer.

Devemos refletir antes de deixarmos estas magníficas questões. Primeiro, o


problema do pecado, o meu e o seu, foi e é tão grande que exigiu essa atuação.
Não há nada mais que me surpreenda e que me cause mais espanto quanto a
muitos, mesmo dentro da Igreja, do que a maneira como eles não gostam da
doutrina do pecado, e indagam: por que é que você tem que estar sempre dando
ênfase ao pecado? Eis a resposta: o pecado é um problema tão grande que foi
necessária a ação das três Pessoas da Trindade santa e bendita para enfrentá-lo.
Essa é a única explicação. O pecado é um problema tão profundo que
envolveu tudo isso. Não é um problema simples; não é um problema do qual
Deus poderia tratar com simplicidade porque Ele é Deus e porque Ele é
amor. Não! O pecado é um problema tão profundo que, por causa dele, reuniu-se
um concilio antes dos tempos, e o Filho teve que vir ao mundo, vindo da
eternidade, e teve que passar por tudo aquilo que estive descrevendo. E disso que
o pecado necessita. Também necessita da presença do Espírito Santo na Igreja.
Ou, para dizê-lo doutro modo, a salvação não é apenas uma questão de virmos a
compreender que Deus é amor e, então, que Deus nos perdoa. Muitas vezes se
faz uma apresentação errônea disso, como se a única coisa que foi destinada a
realizar-se na cruz foi uma demonstração de que Deus é amor, e que o único
problema é que nos façamos saber a nós mesmos que Deus é amor. Não é esse
o ensino napassagem que estamos focalizando. Aqui aênfase é ao sangue de
Cristo, à Sua carne, ao Seu corpo, à Sua cruz, à Sua morte. Não, a salvação não é
apenas uma questão de compreender que Deus é amor, e de receber perdão: a
salvação é algo que envolve estas atividades especiais das três Pessoas: nenhum
poder menor poderia efetuá-la. “Outro bem suficiente não havia para pagar o
preço do pecado”. Estava envolvido um preço; uma retidão, umajustiçade Deus
estava envolvida. Tinha que haver a cruz, era o único caminho. Assim o apóstolo
nos está mostrando aqui algo da real natureza da salvação.

Mas eu suponho que, de todas as coisas, amais estonteante é captar e


compreender, se pudermos, o assombroso fato de que as três Pessoas

da Trindade santa e bendita nos amaram tanto que fizeram tudo isso por nós.
Auto-subsistentes, existindo eternamente naquela inefável unidade e glória e,
contudo, preocupados conosco! O Pai Eterno tem Seus olhos postos em você,
conhece você, interessa-Se por você. O Filho de Deus amou tanto você que Se
deu por você. E o Espírito Santo o ama tanto que vem para dentro de você para
aplicar-lhe e levar a cabo tudo isso. Se você não concorda comigo que esta é a
coisa mais estupenda que jamais ouvirá no tempo ou na eternidade, bem então eu
perco as esperanças com você. Haverá alguma coisa que supere isto? - que
a Palavra me diz que estas três Pessoas não somente me amaram tanto, porém
também que agiram desta maneira para que eu pudesse ser redimido? Se tão-
somente compreendêssemos isso como devíamos, o seu efeito sobre nós seria
tremendo, revolucionaria toda a nossa concepção do cristianismo. Não
pensaríamos nele em termos de dever ou de outra coisa qualquer, não
pensaríamos nele em termos de glória, de privilégio e de curiosidade. O
cristianismo seria a coisa mais emocionante do mundo para nós. Teríamos nele a
nossa constante alegria, e diríamos com Paulo: “Longe esteja de mim gloriar-me,
a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo”. Seriamos tomados de um
permanente sentimento de “maravilha, amor e louvor”.

No entanto, passemos a uma terceira proposição. Vemos que aqui somos postos
face a face com a doutrina da Trindade, é-nos dito que as três Pessoas da
Trindade estão interessadas em nós e em nossa salvação e a estão levando a
efeito em nós. E depois nos é dito que o fim da salvação, a meta suprema da
salvação, o objetivo da salvação, é que conheçamos a Deus como o nosso Pai.
“Porque por ele ambos temos acesso ao Pai em um mesmo Espírito.” Pois bem,
esse é o principal fim e objetivo da salvação. E o que o apóstolo está
especialmente interessado em ressaltar aqui, o fato de virem todos os cristãos
juntos ao Pai. Os judeus e os gentios vêm juntos, como um só corpo e como um
só espírito, à Sua presença. Esse é o clímax. O apóstolo já nos estivera falando
sobre como o Senhor Jesus Cristo removeu as barreiras, os obstáculos e os
empecilhos entre o gentio e o judeu, como Ele removeu esta comum inimizade
entre mim e Deus, e de fato ele foi mais longe, ao ponto de nos dizer no
versículo dezesseis que Ele reconcilia a ambos, o judeu e o gentio, com Deus
“pela cruz em um corpo, matando com ela as inimizades”. Bem, dirá alguém,
certamente você não pode ir além disso. Haverá alguma coisa que supere a
reconciliação? Há! E por isso que eu disse que este versículo dezoito é o clímax.
A reconciliação é

maravilhosa. Mas isto é mais prodigioso e maravilhoso. A reconciliação não é o


fim. Além da reconciliação, temos o acesso ao Pai. Você pode, em certo sentido,
reconciliar-se com pessoas e ainda não ter muita intimidade com elas. Você pode
deixar de estar em inimizade; as barreiras, os empecilhos e os obstáculos podem
ter sido removidos; todavia isso não é tudo, há mais esta outra coisa.

O apóstolo, parece-me, diz-nos três coisas aqui. A primeira é que temos acesso
por um só Espírito ao Pai. Pois bem, a palavra “acesso” é importante e
interessante. Também pode ser traduzida pela palavra “aproximação”, ou melhor
ainda, penso eu, pela palavra “apresentação”: “Porque por ele ambos temos
apresentação ao Pai por um mesmo Espírito.” Significa que a relação foi
restabelecida, aquela relação amigável com Deus com a qual somos aceitáveis a
Ele e temos certeza de que Ele tem boa disposição para conosco. Ora, o
importante para compreender-se aqui é que o Senhor Jesus Cristo não Se limita
a preparar ou abrir o caminho para isto. Ele de fato o efetua, de fato o produz. É
Ele que nos apresenta ao Pai, que nos leva, nos toma pela mão e nos guia até a
Sua presença. Meu desejo é salientar o fato de que este é realmente o grande fim
e objetivo da salvação. E suponho que nunca houve uma época em que fosse
necessário salientar isto mais do que a época atual. Nós todos nos tornamos tão
subjetivos, e estamos tão interessados em nossos temperamentos, estados
mentais, sentimentos e condições que, quando damos os nossos testemunhos,
dizemos que o que a salvação nos fez foi fazer-nos felizes, ou foi eliminar isto
ou aquilo; e aí paramos. Contudo, o grande objetivo da salvação é levar-nos
à presença de Deus - nada menos que isso, nada que esteja abaixo disso.

Certamente vocês notam como o S enhor disse esta mesma coisa no versículo
três do capítulo dezessete de João: “E a vida eterna é esta” - as pessoas dizem:
recebi a vida eterna, estou salvo, tenho a vida eterna. Sim, mas o que é a vida
eterna? Não é apenas que você não é mais o que era; inclui isso, entretanto isso é
relativamente pouco. A grande realidade é a seguinte - “A vida eterna é esta: que
te conheçam, a ti só, por único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem
enviaste”. Ou então ouçam-nOemHebreus 10:19: “Tendo pois, irmãos,
ousadiapara entrar no santuário, pelo sangue de Jesus” - foi o que o sangue de
Jesus fez, habilitou-me a entrar no “santuário”, no “lugar santíssimo”.
Vocês vêem a figura, vocês captam a idéia que está na mente de Paulo. Sob
o cerimonial do Velho Testamento as pessoas comuns não tinham permissão para
entrar no “lugar santo”, menos ainda no “lugar santíssimo”. Ao lugar santo
somente os sacerdotes tinham permissão para ir. Mas

nem os sacerdotes tinham permissão de entrar no lugar santíssimo. Somente um


homem tinha permissão para entrar ali, o sumo sacerdote, e só uma vez por ano,
e então “não sem sangue” (Hebreus 9:7). Entrava uma vez por ano. E isso era
uma coisa tão tremenda que, enquanto ele estava lá, fora da vista, o povo,
apreensivo, ficava esperando o seu retomo.

No Velho Testamento lemos minuciosa descrição dos tipos de paramentos e


vestes que os sacerdotes e o sumo sacerdote deviam usar; e no caso do sumo
sacerdote se vê que nas bordas do seu grande manto era fixadas campainhas.
Você já se perguntou qual o propósito das campainhas e das romãs? Qual era o
seu objetivo? Simplesmente este: o povo sabia que era uma coisa tremenda e
estupenda alguém entrar no “lugar santíssimo” e na presença de Deus. “Quem
dentre nós habitará com o fogo consumidor?”, pergunta Isaías. “Deus é fogo
consumidor” (Isaías 33:14; Hebreus 12:29), tal é a Sua santidade que tudo tende
a encolher-se e a evitar a Sua presença. O sumo sacerdote entra uma vez por ano
para representar o povo e fazer uma oferta pelos pecados do povo. A questão é:
ele vai sair vivo? E como se alegrava o povo ao ouvir o tilintar das campainhas
nas bordas do manto do sumo-sacerdote! Sabiam todos então que ele continuava
vivo, que o seu sacrifício - a oferta que ele apresentara, o sangue que levara -
fora suficiente, que Deus o aceitara e que os pecados deles tinham sido
perdoados. Quando o sumo sacerdote ia saindo eles ouviam o tilintar das
campainhas cada vez mais forte. Ele estivera no “lugar santíssimo”.

Mas o que nos diz a passagem que estamos estudando é que mediante Cristo,
pelo Espírito Santo, nós mesmos podemos entrar no “lugar santíssimo”. Temos
acesso ao Pai: não mais ficamos no pátio externo, não mais entre os sacerdotes,
apenas; o “véu” foi rasgado, podemos entrar lá diretamente. Pedro diz a mesma
coisa em 1 Pedro 3:18: “porque também Cristo padeceu uma vez pelos pecados,
o justo pelos injustos...”. Por quê? Para que eu não vá para o inferno? Para
que eu seja feliz? Para que eu não caia mais nalgum pecado particular?
Tudo perfeitamente verdadeiro; porém não é o que Pedro diz; o que ele diz é
isto: “Cristo padeceu uma vez pelos pecados, o justo pelos injustos, para levar-
nos a Deus”. “Estas coisas vos escrevemos”, diz João, já ancião e próximo do
fim da vida, “para que também tenhais comunhão conosco; e a nossa comunhão
(como apóstolos) é com o Pai, e com o seu Filho Jesus Cristo.” Este, meus
amigos, é o grande fim e objetivo da salvação, que entremos na presença de
Deus e tenhamos comunhão com Ele. Não estamos m ai s longe, fomos trazidos
para perto, estamos dentro,

estamos face a face com Ele, temos comunhão com Deus. Conhecer a Deus, e a
Jesus Cristo, a quem Ele enviou! Você tem acesso, vocêdeu--se conta dele? Você
está exercendo o seu direito a ele?

Passemos, porém, à segunda ênfase. A segunda coisa que ele nos diz é que
temos acesso ao Pai, Agora notem a mudança do termo. O que ele diz no
versículo dezesseis é: para Ele (Cristo) “pela cruz reconciliar ambos com Deus
em um corpo”. Por que ele não diz então, “Porque por ele ambos temos acesso a
Deus em um mesmo Espírito”? Ele mudou de termo, ele diz: “ao Pai”. Não é por
acidente. Ele o faz deliberadamente. Por quê? Aqui de novo está algo que é
estonteante em sua imensidão, e irresistível, se tão-somente nos dermos conta
disso, que Deus em Cristo e pelo Espírito Se torna nosso Pai. Por isso o nosso
Senhor, quando nos deu a Sua oração modelo, ensinou-nos a dizer: “Pai
nosso, que estás nos céus”. Por isso também o Senhor Jesus Cristo,
quando falava com a mulher samaritana sobre a adoração, usou o mesmo
termo. Ela, com as suas idéias indoutas sobre adoração, fala “neste monte” e “em
Jerusalém”. Mas o nosso Senhor muda todo o curso da conversação, eleva-a e
diz: “O Pai procura a tais que assim o adorem”; “Deus é Espírito, e importa que
os que o adoram o adorem em espírito e em verdade”; são essas as pessoas que o
Pai procura para que O adorem. Ou vejam ainda como Cristo o expressa em João
14:6: “Eu sou o caminho, e a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai, senão por
mim”. Há pessoas que talvez tenham crido em Deus, todavia elas jamais
conhecerão a Deus como Pai, exceto em Jesus Cristo e pelo Espírito. “Ninguém
vem ao Pai, senão por mim.” E ouçam Pedro dizê-lo também em sua Primeira
Epístola: “E, se invocais por Pai aquele que sem acepção de pessoas...” (1:17). E
o Pai que invocamos. E, de novo, João diz: “A nossa comunhão é com o Pai” -
não, “com Deus”, “com o Pai”; ele usa a palavra Pai aqui. Este é, obviamente, o
ensino de todo o Novo Testamento, e é também o que distingue a posição cristã.
O cristão é alguém que foi introduzido na mesma relação com Deus que o
Senhor Jesus Cristo tem com Ele como Filho do homem. Isso é
cristianismo, isso é salvação. Vocês notam como Ele ora. “Pai”, diz Ele, “é
chegada a hora”, e também, “Pai justo”, e “Pai santo”. Não um Deus
distante, mas Pai! Assim é que compreendemos - e é isto que significa - que
Ele está pronto a receber-nos e a ouvir-nos.

Saber isso é saber que Deus tem amoroso interesse por nós. “Nós conhecemos, e
cremos no amor que Deus nos tem”, diz ainda João em I João 4:16, e nós
confiamos nisso, descansamos nisso. “Nós conhecemos, e cremos no amor que
Deus nos tem”; é o que você dirá quando

se der conta de que veio ao Pai. Se você conhece a Deus como seu Pai, você
sabe que até os cabelos da sua cabeça estão todos contados. Você sabe? O Pai - é
ao Pai que estamos vindo. Você notaram aquela declaração sumamente
admirável do nosso Senhor em Sua oração sacerdotal, registrada em João 17:23?
Imagino que, de todas as declarações concernentes ao cristão, nenhuma supera
esta: “Eu neles, e tu em mim, para que eles sejam perfeitos em unidade, e para
que o mundo conheça que tu me enviaste a mim, e que os tem amado a eles
como me tens amado a mim”. Se somos verdadeiramente cristãos, e se viemos
ao Pai, sabemos que Deus nos ama como ama a Seu próprio Filho.
Logo, sabemos que Ele nunca nos deixará nem nos abandonará. Logo,
sabemos que o que quer que aconteça, por baixo sempre estão os braços do
Eterno.

Isso me leva ao terceiro e último ponto, a saber, que temos este acesso. “Através
dele, ambos temos acesso ao Pai por um só Espírito”(VA). Nós o temos, diz
Paulo. Posso colocá-lo na forma de várias perguntas? Temos isto? Fazemos uso
do acesso? Descansamos nele? Gozamos a paz dele resultante? Você sabe que
Deus o ama? Você sabe que Ele realmente ama você? Você O conhece como seu
Pai? Você de fato sabe que “todas as coisas contribuem juntamente para o
bem daqueles que amam a Deus”? Mas, venha, deixe-me levá-lo a um
ponto mais alto e fazer-lhe esta pergunta: você sabe o que é estar no
“lugar santíssimo”? Temos acesso, apresentação, pelo Espírito ao Pai.
Somos levados por Cristo, pelo Seu sangue, para dentro do “lugar
santíssimo”, por meio do Espírito Santo. Isso é verdade sobre você? Você
conheceu, sentiu, percebeu a presença de Deus? Foi isso que Cristo veio fazer,
diz o apóstolo. E um avanço com relação à reconciliação, vocês vêem. Não é
meramente perdão, não é meramente que a inimizade se foi. Temos acesso,
temos direito de entrar. Vocês se aproximam de Deus na plena certeza da fé?
Vocês dão ouvidos à exortação da Epístola aos Hebreus quando diz:
“Cheguemos, pois, com confiança ao trono da graça”? (Hebreus 4:16). Vocês
vão a Deus com o instinto, a segurança e a confiançacom que uma criança vai a
seu pai? E ao Pai que estamos indo, diz o apóstolo. Vocês sabem como se porta
uma criança. Ela está em dificuldade, tem o seu pequeno problema, alguma coisa
a está afligindo tremendamente, e ela corre para o seu pai ou para a sua mãe. Ela
fala aos pais sobre o que a aflige, conta tudo, confiante em que eles poderão
dar um jeito naquilo, e então se alegra. Esse é o tipo de coisa que o apóstolo quer
comunicar. “Se não vos converterdes e não vos tomardes como crianças, de
modo algum entrareis no reino dos céus”, diz o nosso

Senhor (Mateus 18:3, ARA). E então, nós vamos instintivamente a Deus como
ao nosso Pai? Levamos a Ele as nossas preocupações e os nossos problemas,
aborrecimentos e ansiedades? Vamos com essas coisas a Ele e, como a criança,
havendo-Lhe falado tudo sobre elas, nós as deixamos com Deus, confiantes e
certos de que Ele tratará delas todas e que, portanto, podemos gozar a Sua paz,
que excede todo o entendimento?

Acaso posso resumir tudo com uma pergunta final? Estamos desfrutando de
Deus? “Qual é o fim principal do homem?”, indaga a primeira pergunta do Breve
Catecismo da Assembléia de Westminster. E eis a resposta dada: “O fim
principal do homem é glorificar a Deus e gozá-lO para sempre”. E, em
conformidade com o apóstolo nesta passagem, o gozo começa agora, nesta
existência, neste mundo. Não temos que esperar até irmos para o céu. O
propósito quanto a nós é que fruamos a Deus aqui na terra, conheçamo-lO como
nosso Pai, e descansemos neste conhecimento, desfrutemos o conhecimento
e fruamos ao próprio Deus na comunhão com Ele.

Isso é apenas o começo do que este versículo nos fala. Ele nos assegura que o
amor de Deus por nós é tão grande que as três Pessoas da Trindade tomaram
parte no processo de tratar conosco, de tal maneira e por tais meios que eu e
você, perdidos, condenados e sem esperança, pudéssemos, mesmo enquanto
formos deixados neste mundo de pecado e dor, gozar o companheirismo do Pai,
andar com Ele com amizade e em comunhão, e desfrutá-10. Cada vez mais
devemos olhar para a frente, para vê-10 como Ele é, sem nenhum véu que O
esconda dos nossos olhos, e havemos de fruí-10 em plenitude por toda a
eternidade. Desfrutamos de Deus? É totalmente possível, é livre, mediante
Cristo e pelo Espírito Santo.

SENHOR, ENSINA-NOS A ORAR

“Porque por ele ambos temos acesso ao Pai em um mesmo Espírito.” - Efésios
2:18

Continuamos o nosso estudo deste grande e maravilhoso versículo, maior do que


o qual, certamente, não há nenhum em toda a extensão das Escrituras. Elenos
põe face a face com a mais exaltada e sublime verdade que o ser humano j amais
pode confrontar. Não há doutrina mais elevada do que a doutrina da Trindade
santa e bendita. E aqui estamos face a face com ela. Mas ainda mais notável é a
declaração de que as três Pessoas daTrindade santa e bendita estão preocupadas
conosco e atuaram e estão atuando em tudo o que se relaciona com a nossa
salvação. Entretanto, acima de tudo, lembro a vocês que o fim da salvação é
levar-nos a Deus como o nosso Pai. Este é o propósito da salvação, este é o
grande fim e objetivo disso tudo; e a nossa concepção do cristianismo - inclusive
a salvação - estará incompleta e imperfeita, se não compreendermos que foi
designado, acima de tudo mais, a levar-nos a Deus, a dar-nos “acesso ao Pai”.

Mas surge logo a questão sobre como ter esse acesso. Sendo esse o fim, a meta e
o objetivo da nossa salvação, a grande pergunta é: como chegar ali? Noutras
palavras, somos aqui postos face a face com a grande questão da oração. Não me
proponho tratar da questão da oração em sua inteireza ou em sua plenitude. Só
estou interessado em tratar desse assunto na medida em que ele é tratado neste
versículo particular, que centraliza a nossa atenção no ponto mais importante
concernente à oração, a saber, o nosso conhecimento de como obtemos acesso, o
meio de “chegar perto de Deus”.

Ao abordarmos o assunto, permitam-me repetir certas perguntas que já fiz. São


óbvias. Conhecemos a Deus? Conhecemos a Deus como Pai? As nossas orações
são reais para nós? Gozamos liberdade na oração? Ou talvez a pergunta mais
penetrante de todas, penso eu às vezes, seja esta: temos confiança em nossas
orações? Gosto de expressá-lo desse modo por esta razão, que todos nós
sabemos por experiência o que é orar quando estamos em alguma dificuldade,
com algum problema, ou com alguma crise em nossas vidas; quando não

sabemos o que fazer e jáesgotamos todo o nosso raciocínio. Que lástima! Já


consultamos outros, já os ouvimos, já lemos a Bíblia, e ainda não chegamos
perto da solução. Por isso dizemos: j á não me resta fazer nada, senão orar. Mas
mesmo então nos sentimos inseguros. Não temos real confiança em nossas
orações e elas parecem mais ou menos inúteis. E naturalmente tais orações são
de fato inúteis; porque se não temos verdadeira confiança nelas, não são orações
reais, como penso que este versículo nos mostrará claramente. E importante,
pois, que comecemos com estas questões preliminares. “Nós temos acesso”, diz
Paulo, “ao Pai” - “nós” referindo-se a todos os cristãos, e não somente
aos apóstolos. Ele está falando acerca destes efésios, pessoas que até
muito recentemente tinham sido pagãs, tinham estado fora de Cristo, sem Deus,
sem esperança no mundo, estranhas forasteiras, longe, separadas em suas
mentes. “Mas agora”, diz Paulo, “nós” - eu e vocês, e todos os que são cristãos -
“temos acesso (apresentação, entrada) ao Pai”, diretamente ao Pai. Esta é uma
coisa na qual o apóstolo se regozij a mais do que em muitas outras. Ele a repete
muitas vezes nesta Epístola, como o faz em todas as suas outras Epístolas. No
próximo capítulo ele diz, por exemplo: “Por causa disto me ponho de joelhos
perante o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo”, e a seguir ora por eles.

Não há nada que seja mais importante do que isso. Como estamos usufruindo os
benefícios de nossa fé cristã? Este é o melhor ponto para ser submetido a prova:
se o nosso cristianismo não nos ajuda quando estamos em dificuldades, então,
para dizer o mínimo, ele é muito defeituoso. Se ele não nos ajuda, não nos dá
suporte e não faz toda a diferença do mundo para nós nos nossos momentos de
crise, que valor tem? Há outras coisas que parecem maravilhosas quando o sol
está brilhando e tudo vai bem; o mundo e suas idéias parecem completamente
satisfatórios então. E quando tudo parece estar contra nós que chega a hora da
prova. E quando tudo parece estar contra nós, parece “levar-nos ao desespero”, a
pergunta é: podemos prosseguir e dizer, “Sei que a porta está aberta e que Ele
ouvirá minha oração”? essa é a questão. “Não veio sobre vós tentação”, diz o
apóstolo Paulo aos coríntios, “senão humana; mas fiel é Deus, que vos não
deixará tentar acima do que podeis, antes com a tentação dará também o
escape...” (1 Coríntios 10:13). Sabemos disso? Nossas orações são eficientes,
eficazes? Temos confiança nelas? Você sente, depois de orar, que a carga
foi aliviada? Quando você vai aDeus em oração, deixa realmente a questão com
Ele? A criança e seu pai são a ilustração perfeita deste ponto. O pequenino em
dificuldade vai ao pai e logo se sente feliz porque tem a

sensação, a confiança e a consciência de que o pai é capaz de tratar da coi sa


toda, e assim ele se descontrai, sossega e toma a alegrar-se. É como se espera
que sejamos para com Deus; nós temos acesso ao Pai. Estamos fazendo uso
desse acesso? Sabemos o que é entrar lá? Estamos tirando proveito da
apresentação que nos recomenda?

Essa é, inevitavelmente, a questão com a qual temos que nos defrontar quando
consideramos esta grande declaração. Há muitos que deixam de gozar os
benefícios da salvação; há muitos que não se aproveitam deste acesso ao Pai e
para os quais, portanto, a oração não é real, pela razão que ignoram ou nunca
captaram claramente o ensino deste versículo particular. Todavia, temos aqui a
chave da verdadeira oração. Eles falham porque, ou o ignoram completamente,
ou porque nunca o compreenderam em sua plenitude e, portanto, nunca
agiram firmados nesse ensino. Oração não é matéria simples; não há
maior falácia do que pensar que a oração é coisa simples. Há muitos
que contrastam a oração com o ensino, com a doutrina, com a teologia.
Sua atitude é: não posso incomodar-me com doutrina etc., mas a oração é tudo
para mim; não importa o que você crê, o que importa é orar a Deus. Ora, isso, é
claro, é uma completa negação do ensino deste versículo.

Este versículo nos mostra com muita clareza, não somente que a oração não é
tão simples assim, mas também que a oração está baseada no ensino, num
entendimento verdadeiro. Vejamos isso da seguinte maneira: vocês recordam
como os discípulos certa ocasião foram ao nosso Senhor e disseram: “Senhor,
ensina-nos a orar, como também João ensinou aos seus discípulos” (Lucas 11:1).
Você já se sentiu assim? Atrevo-me a dizer que, se você nunca sentiu
necessidade de que lhe ensinassem a orar, é porque você nunca orou. Precisamos
que nos ensinem a orar. Aqueles discípulos tinham observado o seu
Senhor, viram-nO levantar-Se muito antes do alvorecer, subir ao monte
para orar, viram-nO orando horas seguidas, às vezes a noite inteira. Cada
um dizia aos seus companheiros: como é que Ele faz isso? - pois eu vejo que
cinco minutos parecem uma eternidade. Não consigo orar cinco minutos, e Ele
fica orando horas. Cono é que Ele faz isso? “Senhor, ensina-nos a orar.” Eles
estavam certos: precisamos que nos ensinem a orar.

Certamente vocês se lembram também de que o nosso Senhor, falando com a


mulher samaritana, disse a ela algo semelhante, quando elafalou levianamente
sobre a adoração. Disse ela: vocês, judeus, dizem que é em Jerusalém que se
deve adorar; nossos pais diziam que vocês deviam adorar neste monte - como se
ela soubesse tudo sobre adoração
e oração. E o nosso Senhor lhe disse: “A hora vem, em que nem neste monte
nem em Jerusalém adorareis o Pai. Vós adorais o que não sabeis; nós (os judeus)
adoramos o que sabemos porque a salvação vem dos judeus... Deus é Espírito, e
importa que os que o adoram o adorem em espírito e verdade” (João 4:20-24). O
problema dos samaritanos era que a idéia que faziam de Deus era errada. Eles O
localizavam num certo monte e, na verdade, muitos judeus eram culpados do
mesmo erro, pois localizavam Deus no templo. Mas o nosso Senhor diz: vocês
não podem adorar com essas idéias erradas, “Deus é Espírito, e importa que os
que o adoram o adorem em espírito e verdade”. Temos que saber
certas verdades, antes de podermos adorar a Deus. E no momento em que
digo isso, vejo como é inevitável que grande parte do que chamamos orar
e orações é necessariamente inútil. Com muita freqüência nos apressamos a
recorrer à oração porque estamos desesperados e, por assim dizer, quase
dispostos a, nas palavras do poema, clamar a “todo e qualquer deus que exista”.
Não conhecemos a Deus a quem oramos. Portanto, o ensino é essencial à oração,
porque eu preciso saber a quem eu estou orando, e preciso saber como entrar à
Sua santa presença. Pois bem, é exatamente desse assunto que este versículo
trata.

Há duas coisas absolutamente essenciais à oração, de acordo com o ensino do


apóstolo neste ponto. Há duas verdades que devemos captar, duas doutrinas a
que nos apegar - “Por ele”; “em um mesmo Espírito”. Ou, “por meio dele”;
“pelo Espírito” (VA). Esse é o ensino do apóstolo - não só nesta passagem,
porém é o ensino de todas as Escrituras. Oração a Deus não existe, a menos que
tenhamos claro entendimento destas duas doutrinas, destes dois princípios.
Ambos são essenciais; não um ou outro, mas os dois, e os dois semprejuntos.
Quero ressaltar isso porque há muita confusão a respeito. Existem os que
não hesitam em ensinar que toda essa questão de aproximar-nos de Deus, e de
orar a Deus, é uma coisa supremamente simples efácil. Segundo eles, não há
necessidade de nenhum ensino, todavia você pode chegar pronta e diretamente à
presença de Deus, como você está. Indagam eles: você está com algum
problema? Está em dificuldade quanto ao seu futuro? Está precisando de
orientação? - e assim por diante. Bem, dizem eles, é tudo perfeitamente simples.
Tudo o que você necessita é sentar-se numa cadeira, relaxar e pôr-se a ou vir a
Deus; é simples assim; nada mais é necessário. Deus está esperando para falar
com você, e tudo o que você tem que fazer é, por assim dizer, largar as
ferramentas e ouvi-10. Você tem contato imediato com Deus, você chega
diretamente à presença de
Deus, e nada mais é necessário. Essa é a crença deles e, na verdade, é um ensino
muito comum. É a espécie de coisa que todos nós nos inclinamos a pressupor e a
tomar como líquida e certa. Contudo, se o ensino de apóstolo Paulo neste
versículo particular está certo, então aquele ensino não somente é errôneo, é
perigosamente errôneo, é tragicamente errôneo.

Mas existem outros que tendem a desviar-se num ponto diferente. Eles dão
ênfase a um destes dois princípios e deixam de lado o outro. Dão ênfase à
doutrina correta concernente ao Senhor Jesus Cristo, à Sua obra expiatória etc.,
tudo certinho, porém negligenciam a necessidade absoluta da operação do
Espírito Santo. E, segundo o ensino de Paulo, a oração deles é igualmente inútil.
Você pode ser inteiramente ortodoxo e, ao mesmo tempo, estar espiritualmente
morto. Você pode dizer todas as coisas certas, e ainda não conhecer a Deus e não
ter confiança nas orações que você faz. E pena, mas eu tenho conhecido gente
assim. Pessoas certamente ortodoxas, entretanto não conheciam aDeus, nunca se
aperceberam da vital importância desta doutrina do Espírito nesta questão de
oração. E assim as suas orações eram mecânicas, corretas, porém inúteis.

Por outro lado, há aqueles que colocam toda a sua ênfase no Espírito Santo e
ignoram completamente o nosso Senhor e Suas obras. Este é o perigo peculiar a
todos os místicos. Os místicos descobriram que há um ensino muito definido a
respeito do Espírito Santo. Descobriram, e estão muito certos, que o cristianismo
é algo vivo, vital, real. Dizem eles: toda esta ortodoxia é boa a seu modo, mas
muitos são ortodoxos, porém completamente mortos. O grande valor do
cristianismo é que ele é vivo. Vejam , por exemplo, o caso de George Fox, o
primeiro quaere, o verdadeiro fundador da Sociedade dos Amigos. Essa era a sua
grande mensagem. Ele costumava olhar para os lugares de culto do seu
tempo, há 300 anos, e dizia: vejam estas pessoas; dizem todas as coisas
certas, mas observem as suas vidas; falem com elas e verão que estão
mortas. Ele dizia que o grande valor do cristianismo é que ele leva a gente a
um vivo conhecimento de Deus; é algo interior, um poder, uma luz interior. Até
certo ponto ele estava salientando uma verdade vital. A obra do Espírito Santo é
absolutamente essencial. No entanto a tragédia do movimento posterior dos
quaeres - não estou falando de George Fox neste ponto, pois ele ensinava a
doutrina verdadeira - a tragédia é que nos séculos subseqüentes o movimento
quaere inclinou-se a colocar sua exclusiva ênfase no Espírito, e tem ignorado e
esquecido a doutrina concernente ao nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo.
Segundo o ensino
do apóstolo nesta passagem, isso é igualmente errôneo. Todo ensino que passa
por alto o Senhor Jesus Cristo é necessariamente errôneo. “Por meio dEle - pelo
Espírito Santo.” Os dois são essenciais.

Devo dar mais um passo e dizer que não somente estes dois princípios são
absolutamente essenciais, mas também nada mais deve ser-lhes acrescentado
jamais. Isso é tudo, é exclusivo. A minha razão para dizer isso é que o ensino
católico - do catolicismo romano e doutras formas de catolicismo que imitam o
romanismo sem crerem no papa -é dado a fazer acréscimos. A igreja católica
romana coloca ao lado do Senhor Jesus Cristo e do Espírito Santo a virgem
Maria. Ela é introduzida como medianeira ~ como um mediador adicional, como
um meio adicional, como alguém que é de importância vital em nossa vinda
a Deus. Todavia, acrescentar qualquer coisa ou qualquer pessoa ao Senhor Jesus
Cristo e ao Espírito Santo, não é somente negar as Escrituras, é também desviar-
se tragicamente em toda a questão de oração. E um erro, é uma negação do
ensino bíblico, orar à virgem Maria, ou aos “santos” que viveram no passado -
“santos” dos quais se afirma que eram tão piedosos que podiam exercer a função
daquilo que os católicos chamam de “supererrogação” - eles têm tal abundância
ou excesso de justiça ou retidão que podem dar um pouco disso à nós, e com isso
podem ajudarmos ! Não devemos acrescentar nada e ninguém àquilo que é
claramente indicado na passagem que estamos estudando. “Por meio dele
ambos temos acesso por um Espírito ao Pai.” Assim vocês vêem a
importância do ensino. Vocês vêem o que o nosso Senhor quis dizer quando
afirmou, “Em espírito e em verdade”. Vocês vêem como é vital que, antes
de começarmos a falar em oração, devemos parar e pensar, e deixar-nos guiar
pelo claro ensino das Escrituras, como estamos prestes a fazer. Vamos olhar
agora a estes dois princípios separadamente.

A primeira coisa é “Por meio dele”. É o que o apóstolo coloca em primeiro


lugar aqui, e é o que ele coloca em primeiro lugar em toda parte. Esta é,
naturalmente, uma referência ao nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Ainda é
necessário acentuar isso, e tornar a dizer que não há acesso a Deus, exceto em
nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo e por meio dEle. “Eu sou o caminho, a
verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai, senão por mim” (João 14:6). E, contudo,
muitos correm à presença de Deus e acham que Ele é seu Pai, sem sequer
mencionar o Senhor Jesus Cristo, apesar da Sua afirmação clara e explícita. Ou
ouçam também este apóstolo dizê-lo em 1 Timóteo 2:5-6: “Porque há um só
Deus, e um só Mediador (e é isso mesmo que ele quer dizer) - um só Deus, e um

Mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo homem, o qual se deu a si
mesmo em preço de redenção por todos...”. O que poderia ser mais claro? Ou
ainda: “Ninguém pode pôr outro fundamento, além do que já está posto, o qual é
Jesus Cristo” (1 Coríntios 3:11). Ou vejam de novo aquela grande passagem do
capítulo dez da Epístola aos Hebreus: “Tendo pois, irmãos, ousadia para entrar
no santuário, pelo sangue de Jesus” (versículo 19) - o único caminho. Não pelo
sangue de touros e bodes, nem por meio de algum sacerdócio humano e terreno.
Isso, diz o autor, argumentando minuciosamente, era obviamente inadequado
e insuficiente. O próprio fato de que eles tinham que repetir dia após dia as suas
ministrações era uma prova de que não era suficiente. O fato de que o sumo
sacerdote tinha que continuar indo ao santuário ao “lugar santíssimo”, todos os
anos, para fazer uma nova rememoração dos pecados, é prova suficiente de que
não podia fazê-lo de maneira final e plena. “Mas este, havendo oferecido um
único sacrifício pelos pecados, está assentado para sempre à destra de Deus...” O
ensino poderia ser mais claro? Poderia haver algo mais explícito? E, contudo,
quão óbvio e evidente é que todo este ensino está sendo passado por alto, e
homens e mulheres há que falam em ter contato com Deus, e em conhecer
aDeus, e em serem abençoados e guiados por Deus, sem sequer mencionarem o
nome do Senhor Jesus Cristo, como se Ele nunca tivesse estado no mundo, e
como se Ele nunca tivesse morrido na cruz. Vocês acham que eu estou
defendendo um ponto desnecessariamente? Peço a cada um de vocês que
consulte a sua própria experiência, ouça o que está sendo dito e leiam o que está
sendo escrito. Vocês se lembram, quando oram a Deus, de que sem o Senhor
Jesus Cristo vocês não poderiam ter nenhum acesso?

Permitam-me procurar deixar isto mais claro e mais simples. Háum versículo na
Primeira Epístola de Pedro que me parece demonstrá-lo muito explicitamente.
Ele reúne em si o grande ensino deste capítulo dois da Epístola aos Efésios.
Pedro o coloca desta maneira: “Porque também Cristo padeceu uma vez pelos
pecados, o justo pelos injustos, para levar-nos aDeus; mortificado, na verdade,
nacarne, mas vivificado pelo Espírito” (3:18). (Ou “morto” ou “tendo sido
morto” (ARA e VA)). Aí está, parece-me, uma perfeita declaração desta
doutrina. Cristo, vocês notam, “padeceu uma vez pelos pecados, o justo
pelos injustos” - com que fim e objetivo? “Levar-nos a Deus”; “tendo sido morto
na carne, mas vivificado pelo Espírito.” Ou também vocês verão o apóstolo, em
Romanos, dizendo isso com igual clareza. Referindo-se ao nosso Senhor, ele diz:
“O qual por nosso pecados foi entregue, e

ressuscitou para nossa justificação” (4:25). Ele quer dizer que é por meio de
Cristo, é em Qisto, é por Cristo, e pelo que Ele fez, que temos este acesso a
Deus. A parte disso não temos acesso nenhum a Deus.

Do mesmo modo, não podemos ler o Velho Testamento sem ver claramente que
é necessário receber instrução sobre a nossa aproximação a Deus. O Velho
Testamento está repleto deste ensino. Esse é o significado das ofertas queimadas,
dos sacrifícios, das ofertas de cereal e de todo o cerimonial restante. Deus tinha
dito e ensinado àquele povo que esse era o único meio pelo qual podia
aproximar-se dEle. Ele designou um sumo sacerdote chamado Arão, disse-lhe
exatamente o que ele devia fazer, deu-lhe todas aquelas instruções. Arão devia
entrar levando o sangue de um animal morto. Por quê? Porque com isso
Deus nos está ensinando que é somente pelo Seu caminho, o caminho por
Ele prescrito, que temos acesso à Sua presença.

Pois bem, é em nosso Senhor Jesus Cristo e por Ele que temos nosso acesso a
Deus. O Senhor Jesus Cristo nos introduz à presença de Deus porque Ele é o
nosso grande substituto, levando sobre Si os nossos pecados. E isso que
devemos colocar em primeiro lugar, como faz o apóstolo. “Mas agora, em Cristo
Jesus, vós, que antes estáveis longe, já pelo sangue de Cristo chegastes perto.”
Vocês notaram a repetição dos termos? Seu sangue, Sua carne, Seu corpo, Sua
cruz? E o que sempre tem que vir primeiro. Spurgeon costumava dizer, e cada
vez mais estou convencido da veracidade do seu pronunciamento, que o modo
definitivo de provar se um homem está pregando verdadeiramente o evangelho
ou não, é observar a ênfase que ele dá ao “sangue”. Não basta falar sobre a cruz
e a morte; a prova é “o sangue”. “Mas agora em Cristo Jesus, vós, que antes
estáveis longe, já pelo sangue de Cristo chegastes perto.” Temos visto que há
pessoas que, embora concordem que os pecadores são trazidos para perto pela
morte de Cristo, pela cruz de Cristo, são contudo muito insatisfatórios na sua
explicação de como isto se dá. Eles consideram grande demonstração do amor de
Deus o fato de Ele perdoar os homens apesar de terem eles crucificado Seu
Filho. Deus, dizem eles, tirou vitória da derrota aparente, e você pode
confiar num Deus que faz semelhante coisa. Essa é a sua interpretação da
morte e da cruz; o sangue de Cristo não entra. Mas Paulo afirma que a salvação é
“pelo sangue de Cristo”. E o autor da Epístola aos Hebreus afirma a mesma
coisa. É o sangue de Cristo que, em primeira instância, é essencial. E por esta
razão: o nosso Senhor Jesus Cristo é “o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do
mundo”. “O sangue”, vocês vêem, levamos a pensar necessariamente em
sacrifício, em expiação; e se as
pessoas não mencionarem a expiação, não estarão pregando verdadeiramente a
morte de Cristo. “O sangue” prende a pregação ao sacrifício e à expiação.

Os pecados dos homens eram colocados simbolicamente sobre a cabeça de um


animal, e o animal era morto; o corpo era queimado e o sangue era então
apresentado. Cristo é “o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo”. Os
pecados dos homens foram colocados sobre Ele, nEle os pecados foram
enfrentados; Ele foi ferido por causa deles, Seu sangue foi derramado. E é dessa
maneira que temos a nossa entrada: Ele levou “em seu corpo os nossos pecados
sobre o madeiro” (1 Pedro 2:24). Devemos partir daí. “Sem derramamento de
sangue não há remissão” de pecados (Hebreus 9:22). Não se pode jogar fora o
Velho Testamento. A Igreja, a Igreja Primitiva, foi levada pelo Espírito Santo a
conservar o Velho Testamento e a incorporá-lo na nova literatura, porque é uma
parte essencial do ensino. Foi Deus que ensinou que, sem esta oferta, sem o
sacrifício, Ele não pode perdoar, Ele não pode relacionar-Se com os homens.

Assim, qualquer conceito da cruz e da morte de Cristo que não leve “o sangue”
para o centro e que não faça dele uma necessidade absoluta, é uma falsa
representação da cruz. Cristo é que leva o nosso pecado. Ele morreu no Calvário
pelos nosso pecados, para receber o castigo que os nossos pecados deviam
receber. O justo e santo Deus tinha que punir o pecado, e Ele o puniu ali. A
pregação da cruz que não mencione a retidão e a justiça de Deus, e a necessidade
absoluta de punição, é uma apresentação completamente falsa da doutrina da
morte de Cristo. Aí está, vocês vêem, aberto diante de nós: “pelo seu sangue”,
“seu corpo”, “sua morte”, repetidos em toda parte. E o tema central do
Novo Testamento. Leiam o livro de Apocalipse, e vocês verão que ali se diz que
as pessoas vestidas de branco “lavaram os seus vestidos e os branquearam no
sangue do Cordeiro”. “Aquele que nos ama, e em seu sangue nos lavou dos
nossos pecados” (7:14; 1:5). Esta verdade está em toda parte. Como podem os
homens querer explicar a sua entrada à presença de Deus sem este fato
sumamente maravilhoso, que o Filho de Deus foi levado à morte por Seu próprio
Pai mediante a lei por causa dos nossos pecados, e com o fim de reconciliar-nos
conSigo!

Mas a coisa não pára aqui. Primeiro Ele é Aquele que leva os nossos pecados,
porém, em acréscimo, Ele é o nosso grande Sumo Sacerdote. “Tendo sido morto
na carne”, diz Pedro, “mas vivificado pelo Espírito.” “Por nossos pecados foi
entregue”, diz Paulo, “e ressuscitou para nossa justificação.” E isso é
maravilhoso. Ou vejam ainda a expressão
do autor da Epístola aos Hebreus, no capítulo quatro, versículos 14-16 - isso é
pregação apostólica - “visto que temos um grande sumo sacerdote, Jesus, Filho
de Deus, que penetrou nos céus, retenhamos firmemente a nossaconfissão.
Porque não temos um sumo sacerdote que nãò possa compadecer-se das nossas
fraquezas; porém um que, como nós, em tudo foi tentado, mas sem pecado.
Cheguemos pois com confiança ao trono da graça, para que possamos alcançar
misericórdia e achar graça, afim de sermos ajudados em tempo oportuno”.
Depois que o sumo sacerdote, em Israel, tinha imolado o animal e juntado o
sangue, ele então entrava com este sangue, através do véu, no “lugar
santíssimo”. E a expiação era finalmente feita quando ele apresentava o sangue
do sacrifício.

O Senhor Jesus Cristo morreu nacruz, o Seu sangue foi derramado, o Seu corpo
foi enterrado numa sepultura. Ah, dirá alguém, esse é o fim; portanto até Ele foi
derrotado! Absolutamente não! Ele ressurgiu. Tendo Ele ressuscitado e tendo-Se
manifestado, entrou no “lugar santíssimo”. Passou pelos céus e entrou no céu
propriamente dito. Foi ímediatamente à presença de Deus, e apresentou o Seu
sangue. Não apresentou sangue de touros e bodes. Ele não tenta purificar com as
cinzas de uma novilha. Ele faz uso do “seu próprio sangue”. É pelo sangue de
Jesus! Ele entrou, Deus O aceitou e aceitou a oferta do Seu sangue. Deus disse,
noutras palavras, que está satisfeito com a obra que Ele realizou. Deus
proclama que a morte de Cristo é suficiente, que a Sua justiça foi satisfeita.
Ele admite o Sumo Sacerdote à Sua presença, e O convida a assentar-Se à Sua
destra. O resultado é que o trono de Deus, que é trono de juízo, toma-se trono de
misericórdia e graça. “Cheguemos pois com confiança ao trono da graça”, é a
mensagem de Hebreus 4:16. E como posso saber que é trono da graça? Meu
único meio de saber isso é que o Senhor Jesus Cristo está assentado ao lado de
Deus. O meu Representante! Aquele que veio e tomou sobre Si a minha
natureza, e que levou sobre Si os meus pecados! Ele foi aceito por Deus, Ele é o
grande Sumo Sacerdote. Ele me conhece, Ele sofreu tentações, como eu as tenho
sofrido, Ele conhece as minhas fraquezas e a minha fragilidade. Ele está com
Deus, e o fato de Ele estar lá me garante que aquele trono é de misericórdia
e graça. Deus é eternamente justo e santo, mas, por causa de Cristo e do que Ele
fez por nós e pelos nossos pecados, Deus em Sua graça sorri para nós e nos
recebe como Seus filhos. Cristo nos salva, então, não somente pelo
derramamento do Seu sangue, e sim também por Sua entrada nos céus como o
nosso grande Sumo Sacerdote.

Há ainda outro modo pelo qual Ele me ajuda a ter acesso ao Pai.
Talvez você diga: muito bem, posso ver que os meus pecados são perdoados
dessa maneira, porém, quando penso em Deus, em Sua eternidade de poder, de
majestade e de grandeza, quando penso especialmente em Sua santidade e em
Suapureza absoluta, continuo achando que estou impuro. Creio que os meus
pecados estão perdoados, mas, infelizmente, ainda me falta retidão; como posso
comparecer diante de Deus? Como posso chegar perto de Deus? Leio nas
Escrituras que Isaías, quando teve uma visão do Senhor, disse: “Ai de mim, que
sou um homem de lábios impuros”, e como posso chegar perto de Deus?
A resposta continua sendo, “em Cristo”. E desta maneira, que Ele não somente
nos livrou dos nossos pecados e ressuscitou para a nossa justificação; mais que
isso, porém, Ele foi feito nossajustiça. “Mas vós sois dele, em Jesus Cristo”, diz
o apóstolo Paulo, “o qual para nós foi feito por Deus sabedoria, e justiça, e
santificação, e redenção” (1 Coríntios 1:30). Ou leiam o que ele igualmente diz
nestes termos: “Àquele que não conheceu pecado, o fez pecado por nós, para que
nele fôssemos feitos justiça de Deus” (2 Coríntios 5:21). Permitam-me usar uma
ilustração simples. Veja-se um grande salão de festas, com gente maravilhosa
presente e com uma grande cerimônia em andamento. Lá estou eu, fora, na rua;
eu gostaria de entrar, fui convidado, mas eu me sinto em andrajos, acho que a
minharoupa é indigna. Se eu entrar, todos olharão para mim e eu me sentirei
estranho e infeliz, e não vou gostar. Que posso fazer? A resposta é que me é dado
um novo manto, um manto de justiça. Visto-me da justiça de Jesus Cristo. É o
que as Escrituras ensinam: Sua vida virtuosa, perfeita, Sua vida de santidade, é-
me dada, é atribuída a mim, é-me imputada, é computada em meu favor.
Assim como os meus pecados foram atribuídos e imputados a Ele, também a Sua
justiça é atribuída a mim. Ele cumpriu a lei perfeitamente; Deus considera isso
como tendo sido feito por mim, Ele põe isso na minha conta, para meu crédito,
Sou revestido da justiça de Cristo. Foi por isso que o conde Zinzendorf pôde
dizer, no hino que João Wesley traduziu, e que aqui traduzimos:

Jesus, Teu sangue, Tua justiça,

Minha gloriosa veste é;

Vestido assim, no mundo em chamas Minha cabeça alegre elevo.

Vestido com a justiça de Cristo! Será esta uma doutrina seca e árida? É uma
doutrina tão vital para você que, se não crer nela, você não poderá

orar. Só quando você estiver cônscio de que está coberto pela justiça de Cristo
que poderá ir à presença de Deus com confiança e certeza. Mas, com isso, você
poderá fazê-lo, como esse hino diz tão perfeitamente. Ninguém poderá fazer
alguma acusação contra mim; nem Deus, pois é o próprio Deus que me justifica
e me dá a justiça do Seu Filho.

Finalmente, gostaria de dizer algo assim: temos este acesso por meio de Cristo,
não somente porque nos é dada a Sua justiça, porém também porque nos é dada
a Sua vida. Nascemos de novo dEle, tomamo-nos “participantes da natureza
divina”, Ele é o “primogênito entre muitos irmãos”. Na verdade, Paulo já vem
dizendo isso extensamente neste capítulo. Diz ele, vocês se lembram, naqueles
passos maravilhosos: “Estando nós ainda mortos em nossas ofensas,
nos vivificou juntamente com Cristo, e nos ressuscitou juntamente com Ele e nos
fez assentar nos lugares celestiais em Cristo Jesus”. Tendo consumado a Sua
obra, Cristo passou pelos céus, tomou Seu lugar, está sentado à mão direita de
Deus; e, de maneira maravilhosa, “em Cristo”, eu também estou ali. É dessa
maneira que eu tenho o meu acesso à presença do Pai. Se Cristo não tivesse
morrido pelos meus pecados, Deus não me receberia; vou além, Deus não
poderia receber-me. E uma necessidade absoluta. Vocês podem imaginar que o
Pai Celeste enviaria o Seu Filho unigênito, o Seu bem-amado Filho ao mundo
para padecer tanto sofrimento e agonia se não fosse absolutamente essencial? A
cruz teria acontecido, se não houvesse total necessidade dela? E inimaginável.

Outro bem não havia Que o preço do pecado pudesse pagar.

Somente Ele podia Abrir do céu a porta e deixar-nos entrar.

É mediante Cristo. Você depende absolutamente dEle. Se Ele não tivesse entrado
lá com Seu sangue, você nunca poderia entrar. Mas, visto que Ele entrou, você
pode entrar.

E bom lembrar que Ele está lá, um Sumo Sacerdote que pode compadecer-Se,
porque Ele esteve aqui, neste mundo, e por causa de tudo quanto Ele sofreu. Ele
transmite ao Pai as nossas orações com o Seu santo incenso. É, pois,
simplesmente natural que estes vários escritores sempre terminem com
exortações: “Tendo pois, irmãos, ousadia para entrar no lugar santíssimo, pelo
sangue de Jesus”; e também, “Cheguemos pois com confiança ao trono da
graça” - com confiança, com segurança, com certeza. “Pois” - à luz da doutrina
de Cristo como
Aquele que leva o pecado, como o Sumo Sacerdote, como a nossa Justiça,
Aquele em quem fomos incorporados, Aquele com quem fomos crucificados,
Aquele com quem morremos, morremos para a lei, morremos para o pecado, e
fomos resuscitados em novidade de vida -“Assim também vós considerai-vos
como mortos para o pecado, mas vivos para Deus, por meio de” - e somente por
meio de - “Cristo Jesus nosso Senhor” (Romanos 6:11, VA).

Você se deu conta da sua completa dependência do Senhor Jesus Cristo e da Sua
obra perfeita? Se não se deu, não admira que as suas orações pareçam vãs e
fúteis e vazias. Doravante, quando você buscar a Deus, comece com Cristo.
Agradeça ao Senhor Jesus Cristo o que Ele fez por você, agradeça a Deus que
Ele O enviou para fazê-lo; diga a Ele que você compreende que depende
inteiramente dEle, mas que, tendo esta fé, você sabe que Ele está à sua espera
para recebê-lo. Chame-Lhe seu Pai, e diga-Lhe que você sabe que Ele é seu Pai
porque Ele é o Pai do seu Senhor e Salvador, Jesus Cristo - “Porque por meio
dele temos acesso ao Pai por um só Espírito”.
ORANDO NO ESPÍRITO

“Porque por ele ambos temos acesso ao Pai em um mesmo Espírito. ” - Efésios
2:18

Voltamos mais uma vez a este versículo de máxima importância, no qual o


grande apóstolo mostra aos efésios o motivo que têm para regozijar-se no fato de
serem cristãos e, portanto, co-herdeiros do reino de Deus com os judeus. É um
versículo crucial. Vimos que este versículo nos faz lembrar que as três Pessoas
da Trindade santae bendita estão interessadas em nossas salvação e participam
dela. Esse é, para mim, o fato mais glorioso quejamais poderemos conhecer. Não
hánada que o supere, nem no céu. E aí que podemos saber, em sua plenitude, o
que Deus o Pai, Deus e Filho e Deus o Espírito Santo têm feito por nós e pela
nossa salvação. Vimos também que, imediatamente aqui, nesta existência, o
maior benefício que auferimos deste grande fato da nossa salvação é que temos
acesso ao Pai. Esse é o fim da salvação, esse é o grande objetivo que está por
trás de tudo quanto Deus fez em nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo e por
meio dEle - Ele morreu “para levar-nos a Deus”, e o Seu sangue foi derramado
para que pudéssemos ser capazes de entrar no “lugar santíssimo”. Parar, pois, em
qualquer ponto anterior a este é, não somente ignorar as Escrituras, é de fato
ir contra as Escrituras, porque, o que importa em última instância não é o que
você e eu pensamos que necessitamos ou desejamos, é o que Deus providenciou.
E este é o fim e objetivo da salvação, que possamos ter acesso ao Pai, que
possamos entrar à presença de Deus e gozar comunhão com Ele.

Em vista do fato de que esse é o mais alto privilégio e a maior bênção quejamais
podemos experimentar, não é surpreendente que justamente neste ponto é que a
maioria de nós, na verdade todos nós, muitas vezes vemos grande dificuldade, e
talvez continuemos em grande dificuldade. Suponho que, em última análise, a
coisa mais difícil que tentamos fazer, porque é a maior coisa que fazemos, é
orar. E, quanto à oração, há problemas que muitas vezes agitam as mentes e os
corações do povo de Deus. Não é de admirar, pois não há nada maior que a
oração. Por isso o adversário das nossas almas preocupa-se particularmente em
atacar-nos neste ponto. Isso é uma coisa que todos nós aprendemos pela

experiência. Não há nada, em nenhum sentido, que seja tão difícil como orar.
Permitam-me lembrar-lhes algumas das muitas dificuldades, para que possamos
ver o objetivo que o apóstolo tem em mente quando afirma o que temos neste
versículo.

Uma dificuldade é aperceber-nos da presença de Deus. Deus é Espírito, Deus é


invisível. Isso, em si, constitui logo uma dificuldade para nós. Estamos
acostumados a ver pessoas ou a ouvir as suas vozes, quando temos amizade e
comunhão com elas. Mas Deus é invisível. “Deus nunca foi visto por alguém”
(João 1:18). Para expressá-lo de outro modo, é freqüente ter-se uma impressão
de irrealidade na oração de alguém. E há vozes que nos vêm, sugestões enviadas
por satanás, querendo induzir-nos a pensar que na verdade estamos
meramente passando por algum processo psicológico, que estamos apenas
persuadindo e enganando a nós mesmos, que estamos virtualmente falando com
nós mesmos e nos encorajando a nós mesmos. Há esta impressão de irrealidade
da qual muitos se queixam frequentemente.

Depois há o problema da concentração. Se você está lendo um livro, não é muito


difícil concentrar-se. Se você está falando com alguém, não há esse problema.
Todavia, acaso não temos visto muitas vezes que, quando nos pomos a orar, as
nossas mentes vagam por todas as direções, que a nossa imaginação viaja pelo
mundo inteiro e, embora estejamos de joelhos com a intenção de falar com Deus,
tendemos a pensar em problemas - em algo que aconteceu ontem, em algo que
vai acontecer amanhã? Quão difícil é firmar a nossa mente e os nossos
pensamentos, e concentrar-nos de tal modo que a nossa oração seja realmente
um ato vivido, verdadeiro e vital! Depois há também o sentimento de
indignidade, a lembrança da nossa pecaminosidade e o sentimento de que
não temos direito de aproximar-nos de Deus. Este terrível sentimento
de indignidade milita contra nós. E ainda vêm as dúvidas, as dúvidas
se insinuam na mente, perguntas e questionamentos. Não tenho necessidade de
desenvolver isto elaboradamente; todos nós estamos familiarizados com estas
coisas, e elas acontecem porque a oração é a suprema atividade da alma humana,
é o ponto mais alto que podemos alcançar nesta vida - comunhão com Deus.
Assim é que, quando nos envolvemos nessa atividade, todas as forças do inferno,
por assim dizer, atuam sobre nós e fazem o máximo para frustrar os nossos
esforços. Digo isso não só porque é um fato, mas também em parte como um
meio de incutir ânimo. Não se desanime por achar a oração difícil. Na verdade, o
que se deve temer é achar muito fácil orar, porque, se compreendermos
exatamente o que estamos fazendo, veremos que, de maneira inevitável, seremos

alvos e vítimas especiais do adversário das nossas almas e,


correspondentemente, acharemos difícil orar.
Por todas essas razões, pois, é muito necessário que nos instruam como orar e
que saibamos orar. Nada é tão fatal como entregar-se à oração sem pensar. O
primeiro ato na oração sempre deve ser o que os chamados “pais” costumavam
chamar “recolhimento”. Sempre deve haver um ato de recolhimento, de
meditação. É muito errado correr para a presença de Deus com petições, sem
dar-nos conta do que estamos fazendo. Devemos parar, fazer uma pausa, meditar
e recordar o que estamos fazendo. Há muitas maneiras de esclarecer este ponto.
Se você tiver uma audiência com a rainha, provavelmente achará sábio
e oportuno aprender algo sobre a etiqueta da corte. Ora, multiplique isso pelo
infinito, e aí você terá uma alma indo à presença de Deus. Não é algo que se
possa fazer leviana e impensadamente, não é algo para o que devamos ir
precipitadamente; temos que compreender o que nos cabe fazer. Aqui o apóstolo,
ao dar-nos uma lista das coisas admiráveis acontecidas com estes efésios, leva-
nos a esta altura tremenda: “Por ele ambos temos acesso ao Pai em um mesmo
Espírito”. Vocês não somente deixaram de ser estranhos e forasteiros, e de estar
separados; vocês entraram à presença de Deus. Como chegaram lá? Ele nos
diz, vocês recordam, que há dois elementos essenciais; e já demos ênfase ao fato
de que são somente dois. Há somente duas coisas acerca das quais temos que ter
entendimento absolutamente claro e certo. Uma é o próprio Senhor Jesus Cristo;
e a outra é o Espírito Santo. Não há o que acrescentar a esta lista. Nada de
acrescentar a virgem Maria, nada de acrescentar a Igreja, nada de acrescentar um
sacerdócio, nada de acrescentar os santos. Não acrescentem nada. Tudo o que é
essencial à oração é que vocês se aproximem por meio do Senhor Jesus Cristo; e
já consideramos como fazê-lo.

A segunda coisa é dar-nos conta de que é “por um só Espírito”. Ao passarmos a


considerar isto, a primeira coisa que temos que salientar é que a referência é à
Pessoa do Espírito Santo. O apóstolo não está dizendo que, agora que os judeus e
os gentios compartilham as mesmas idéias e têm a mesma perspectiva e têm um
espírito comum, eles podem, portanto, orar juntos. Isso é verdade, naturalmente,
porém há algo muito mais forte aqui. A referência não é a espíritos humanos que
agora entram em unidade ou vêm em uníssono. A referência é ao Espírito
Santo; assim, muito acertadamente, em nossas Bíblias os tradutores indicam isto
escrevendo “Espírito”, com inicial maiúscula. E uma referência à

Pessoa do Espírito Santo. E o que o apóstolo está ensinando é que o Espírito


Santo é tão essencial à oração como o próprio Senhor Jesus Cristo. Não Um
sem o Outro, e sim ambos juntos.
Mais uma vez temos que fazer a nós mesmos certas perguntas. Teríamos nós, em
nossa vida de oração até este exato momento, compreendido o lugar vital e a
importância vital do Espírito Santo? Teríamos compreendido que sem Ele de fato
não podemos orar verdadeiramente, e que a verdadeira oração é sempre oração
pelo Espírito Santo mediante o Senhor Jesus Cristo? Como cristãos,
compreendemos como é essencial o Senhor Jesus Cristo, o único e exclusivo
Mediador entre Deus e o homem. Mas aqui, segundo o apóstolo, é
igualmente essencial que nos apercebamos da nossa dependência do Espírito
Santo e da Sua obra e da Sua atividade peculiares em nós. E esta não é
uma afirmação isolada; o apóstolo a repete. Por exemplo, no último
capítulo desta Epístola aos Efésios, no versículo dezoito, onde ele
estivera falando de revestir-nos de toda a armadura de Deus, ele encerra
dizendo: “Orando em todo o tempo com toda a oração e súplica no
Espírito” (outra vez com a inicial maiúscula) - no Espírito Santo. Essa é a
sua concepção da oração. E se vocês forem à Epístola aos Filipenses, verão que
ele diz a mesma coisa de novo, no capítulo três, versículo três, onde diz:
“Guardai-vos dos cães, guardai-vos dos maus obreiros, guardai-vos da
circuncisão. Porque”, diz ele, “a circuncisão somos nós, que servimos a Deus no
Espírito” (de novo a inipial maiúscula (Ara e VA)); ou vocês poderiam traduzi-
lo, “nós, quesefvimos a Deus pelo Espírito” e que compreendemos que somos
completamente dependentes dEle. Os judaizantes - “a circuncisão” - não serviam
a Deus no Espírito ou pelo Espírito; sua forma de culto era mecânica. E o que
diferencia o culto e a oração cristãos de todos os outros tipos e espécies de
oração é que é no Espírito. Existem muitos outros que oram, porém não oram
“no Espírito”. Este é o fator peculiar, o fator distintivo quanto à oração cristã. O
apóstolo Judas diz exatamente a mesma coisa em sua carta, no versículo vinte:
“mas vós, amados, edificando-vos a vós mesmos sobre a vossa santíssima fé,
orando no Espírito Santo, conservai-vos a vós mesmos no amor de Deus”. Aí
está, de maneira muito explícita. Vocês estão orando, diz ele, no Espírito Santo.

Estas expressões não são usadas ao acaso pelos escritores do Novo Testamento.
“No Espírito”, para eles, fazia parte da própria essência da oração. E, na verdade,
ao dizerem isso tudo, estavam apenas mostrando como a palavra de Zacarias
cumpriu-se, quando ele profetiza que o4 ‘Espírito de graça e de súplicas” seria
derramado nesta era do Messias (12:10).

É, pois, de vital importância que entendamos a parte que o Espírito Santo


desempenha nesta questão de oração. Num sentido, já tivemos a nossa exposição
no capítulo quatro do Evangelho Segundo João. Aí, falando à mulher samaritana,
o nosso Senhor coloca este ponto de maneira clara e uma vez por todas. Ela fala
levianamente sobre adoração - “Nossos pais adoraram neste monte, e vós dizeis
que é em Jerusalém o lugar onde se deve adorar”. O nosso Senhor a corrige e
explica este assunto com clareza e simplicidade: “Deus”, diz Ele, “é Espírito,
e importa que os que o adoram o adorem em espírito e verdade”. Que é a
oração? Quais as verdadeiras características da oração? Que é orar no Espírito?

Vejamos primeiro as características negativas. Obviamente, não é uma questão


de lugar nem de cerimônia como tais. O nosso Senhor logo pôs o dedo na falácia
da mulher samaritana - “este monte”. Se você quiser adorar, diziam os
samaritanos, terão que adorar aqui. Os judeus, por outro lado, diziam que você
terá que fazê-lo em Jerusalém, no templo, que Deus estava confinado no templo
- quando eles, os samaritanos, achavam que Ele estava confinado no seu monte.
Lugares! Cerimônias! Há pessoas que só oram quando estão num lugar de
culto e que nada sabem da oração em privado e da oração em secreto. Para elas a
oração é algo que só acontece em certas ocasiões, ocasiões estabelecidas, e em
lugares especiais. Ora, a verdadeira oração no Espírito é a antítese disso. Não se
restringe a um lugar especial, nem a alguma espécie particular de cerimônia.

Há também algumas pessoas para as quais parece que a essência mesma da


oração é a questão de postura e posição física. Como se preocupam em poder
ajoelhar-se! De fato conheço pessoas que opinam seriamente que você não terá a
mínima possibilidade de orar, senão de joelhos. Não podemos aprofundar-nos
nesses pontos todos, interessantes que são. Simplesmente estou tentando
ressaltar o grande princípio central, que não existe postura alguma que seja
essencial à oração. É certo ajoelhar-se para orar, é igualmente certo orar de pé, é
igualmente certo prostrar-se, rosto em terra. Todas estas coisas estão nas
Escrituras. Noutras palavras, não é apostura, aposição física, que importa. E se
você percebe no seu íntimo uma tendência para dizer que apostura é o grande e
central elemento, o elemento vital, já não é orar “no Espírito”. Você estará
atribuindo significação importante a um elemento incidental. É evidente que
você pode orar no templo, que você pode orar no monte, mas não só no templo,
nem só no monte, nem só numa dada postura.

Há depois toda a questão das formas de oração. Aí está outro assunto


complicado. Devemos ter orações fixas? Devemos ter orações formais?
Devemos ter liturgias? Como é vital este assunto! Há trezentos anos foi em parte
responsável pelo movimento puritano. Uns diziam que não há liberdade na
oração quando se está preso a liturgias, a formas fixas e a orações lidas. Eles
achavam que isso era um resíduo do catolicismo romano. Diziam que a oração
tem que ser livre e tem que estar sob a direção e a inspiração do Espírito Santo.
Assim, a ênfase não deve ser colocada na beleza das frases, na perfeição da
linguagem e nas formas especiais. Não me entendam mal, não estou dizendo que
uma oração escrita ou lida não pode ser verdadeira; mas sempre, nesta questão
de oração, temos que ter muito cuidado para manter o equilíbrio entre a
liberdade do Espírito e a forma. Até certo ponto, as duas coisas são essenciais.
Contudo, evidentemente, o ensino do nosso Senhor é que o fator vital é o
Espírito; o domínio, a inspiração, a liberdade do Espírito Santo. E assim vocês
sempre verão que, em todos os grandes períodos de avivamento, quando o avi
vamento vem, as pessoas começam a largar das formas e liturgias e a tolerar a
oração livre, extemporânea. Mas isso também pode tornar-se mecânico, e o fato
de você não estar usando formas fixasnão significanecessariamenteque você está
sempre orando com liberdade. Há maior perigo nas formas do que na
oração extemporânea, porém mesmo esta não é garantia de que você não
se tornará mecânico e não ficará amarrado. Eis o grande princípio: não dê ênfase
à forma ou à beleza ou à perfeição da linguagem ou a qualquer coisa semelhante
a isso, mas sim, ao fato de que a verdadeira oração é no Espírito. Noutras
palavras, a oração, de acordo com este ensino, nunca deve ser algo meramente
formal, todavia deverá ser sempre algo vital.

Ainda mais, não digo que você não deve ter horas de oração fixas; mas, no
momento em que começar a fazer isso, terá que ser cauteloso. Haverá sempre o
perigo de você estar orando porque é meio-dia ou são 7 horas ou alguma hora do
dia e da noite, e não porque você está ansioso para estar em comunhão com
Deus. Todas estas coisas podem tornar-se em perigos. E por isso que, parece-me,
há certasfrases e expressões que jamais devemos empregar. Este ensino acerca
da oração no Espírito indica que nunca devemos falar em “dizer as nossas
orações”, nem empregar aquela outra frase leviana que tantas vezes está nos
lábios de algumas pessoas, “dizer uma oração”. Há quem fale em entrar
num edifício e “dizer uma oração”. Quer dizer que estão recitando uma
frase. Você não pode “dizer uma oração” quando está tendo comunhão com

Deus. Onde está o Espírito Santo? Onde está o elemento de vida? Repetir frases
não é orar. Não, diz o nosso Senhor, você tem que livrar-se disso tudo; a oração é
uma realidade espiritual. “Deus é Espírito, e importa que os seus adoradores o
adorem em espírito e em verdade.” O Espírito Santo é absolutamente essencial; e
sem Ele não podemos orar de verdade, pois a oração é uma viva, vital e real
comunhão com Deus, que é Espírito. Deus é Espírito. E a oração realmente
significaque o meu espírito está em comunhão com Deus. É pessoal. É
companheirismo, este companheirismo imediato, e nada menos que isso. Dessa
maneira o apóstolo lembra aos efésios que nesta matéria o Espírito Santo
é absolutamente essencial. Você pode ler suas orações sem o Espírito Santo.
Você pode repetir frases sem o Espírito Santo. Você pode ficar de joelhos e falar
sem o Espírito Santo. Entretanto você não pode fazer contato com Deus, não
pode comunicar-se realmente com Deus, que é Espírito, sem a atividade do
Espírito Santo, permitam-me ir mais longe, ao ponto de dizer que, sem o Espírito
Santo, nem o próprio Senhor Jesus Cristo e Sua obra, sós, podem levar-nos a esta
relação vital com Deus. “A hora vem, e agora é, em que os verdadeiros
adoradores adorarão o Pai (não neste monte, nem ainda em Jerusalém, mas) em
espírito e em verdade.” E isso que vem, diz Ele. E é isso que o Espírito Santo
produz e possibilita. Sem o Espírito Santo a oração é mecânica, sem vida,
difícil, a oração fica sendo uma tarefa terrível; mas comEle tudo mudae a
oração se toma livre e gloriosa, e o gozo supremo da alma.

Isso nos deixa agora com a pergunta: o que seria exatamente que o Espírito faz
nesta questão de oração? E as respostas são quase intermináveis. Vou
simplesmente dar alguns títulos. Em certo sentido poderíamos resumir tudo
dizendo que é Ele que, como intermediário, transmite-nos e torna vivido e real
para nós tudo o que foi feito pelo nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Todavia,
dividamos o assunto da seguinte maneira: por que eu oro, porque devo orar,
porque tenho desejo de orar? A resposta é, que é o Espírito Santo que cria em
mim uma mente espiritual. Por natureza o homem, como vimos extensamente
neste capítulo, não tem mente espiritual ou perspectiva espiritual. E sem a ação
do Espírito, a oração é uma completa impossibilidade; simplesmente não
conseguimos orar. Naturalmente, pode ser que nos tenham ensinado a dizer
nossas orações, e podemos ir fazendo isso mecanicamente a vida toda. E, que
pena, muitos de nós permanecem crianças nesta questão até o túmulo! Ensinados
a dizer as suas orações de manhã e de noite - e vocês verão adultos, homens
inteligentes, homens de

negócio e profissionais, que gostam e até se orgulham de dizer que continuam


dizendo as orações que aprenderam na infância. Permanecem crianças nesta
questão; noutras questõesnão permanecem crianças, mas nesta continuam
simplesmente fazendo o que sempre fizeram. E isso é tão sem sentido agora,
como o era então. Não é oração. A primeira coisa absolutamente essencial é que
devemos ter mente espiritual, perspectiva espiritual. Estávamos mortos em
ofensas e pecados; e embora nos tenhamos tornado cristãos, a condição de
mortos tende a permanecer e a afligir-nos. Às vezes não nos é difícil animar-nos?
Não nos inclinamos a orar, sentimo-nos sem vida, letárgicos e insípidos, e
as coisas espirituais não são reais para nós. Nesse estado não podemos orar. Pois
bem, o Espírito nos dá alento, nos vivifica, nos inquieta, nos move, nos estimula,
persuade as nossas mentes carnais a pensarem espiritualmente. Esse é sempre o
primeiro elemento essencial nesta questão de oração. Tornamo-nos cientes do
reino espiritual e somos levados a lembrar que nós mesmos temos o Espírito
dentro de nós. E no momento em que começarmos acompreender isso, em certo
sentido já estaremos começando a orar. Contudo é claro, a questão não termina
aí.

E o Espírito que nos mostra a nossa necessidade, é Ele que nos faz lembrar-nos
dos nossos pecados. Não há nada que tenha tanta probablilidade de levar um
homem a orar como a sua consciência do seu pecado e da sua necessidade. E
esta é a obra peculiar do Espírito Santo. Vocês vêem a diferença entre
meramente correr para apresença de Deus com certas petições, e
verdadeiramente ter companheirismo e comunhão. Você diz a si próprio: vou ter
esta audiência com o Rei eterno, imortal, invisível. Quem sou eu para entrar lá?
Que espécie de criatura sou eu? Como estou vestido? Como estou calçado? Qual
a minha aparência? Noutras palavras, o Espírito Santo está fazendo você ver
o seu pecado, Ele o está convencendo e o está tornando convicto da
sua necessidade, Ele está produzindo no seu íntimo uma santa tristeza,
um verdadeiro arrependimento. Isso tem o poder de induzi-lo à oração. Ele o
está preparando.

Isso nos leva ao próximo ponto, o qual é que Ele nos mostra a necessidade que
temos de Deus e da misericórdia de Deus e da bênção de Deus. Imediatamente
você é retirado da esfera das generalidades e se dá conta de que é uma alma
isolada. Você já não tem interesse pelas coisas e meros eventos e
acontecimentos; você foi levado pelo Espírito Santo a compreender que Deus lhe
deu esta dádiva especial, a alma, o espírito. Você vei o a este mundo como um
indivíduo, e embora sej a uma só pessoa dos milhões de pessoas neste mundo,
ainda assim você é um

ser isolado, distinto, separado e tem relação com esse Deus que também é
Espírito e é pessoal, e você vai encontrá-10. Assim você começa a sentir o
desejo de conhecê-10 e de estabelecer contato. O Espírito Santo faz isso. Pois
bem, isso é da própria essência da oração; ela se torna pessoal nesse ponto, e
deixa de interessar-se apenas pelas formas, aparências e coisas desse gênero.
Tudo isso ainda é muito vago. Mas um passo vital é dado quando a pessoa
começa a sentir necessidade de Deus. Quanto a vocês não sei, porém cada vez
mais eu me vejo procurando esta coisa singular em todas as pessoas. As pessoas
que me atraem, das quais eu gosto, são as que me dão a impressão de que têm
fome de Deus, que em suas almas anelam pelo Deus vivo. Eu coloco essas
pessoas adiante das demais. Esta é a coisa realmente vital, sentir fome, sentir
sede de Deus. Em certo sentido, não há o que supere isso. Você pode ser muito
ocupado e muito ativo sem isso. Pode sertão ocupado que você se toma quase
impessoal, alheio a si próprio, não percebendo a condição da sua própria alma e
a sua necessidade de Deus e da sua relação com Deus. O Espírito Santo
produz essa consciente necessidade de Deus.

Depois o Espírito de Deus vai adiante e nos revela Deus em Sua glória. Isso
também é algo absolutamente vital e essencial. Tenho para mim que, em última
análise, todas as dificuldades da oração provêm da nossa incapacidade de
compreender a verdade sobre Deus. Ah, que diferença faria! Somos todos como
Moisés, não somos? E acaso não somos como Josué, depois dele? Queremos
correr para a presença de Deus. Vocês se lembram de como Moisés, perto da
sarça ardente, não entendeu muito. Ele ia investigar, ia correr para lá. Então veio
a voz e falou: para trás! “Tira os teus sapatos de teus pés; porque o lugar em
que tu estás é terra santa.” Esse é o terreno em que eu e vocês estamos quando
nos dedicamos à oração. Vamos estar na presença de Deus. E o Espírito nos
revela Deus em Sua glória e em Sua majestade. Entretanto não só isso, Ele nos
revela Deus como nosso Pai. E assim Ele cria em nós o desejo de conhecer a
Deus e de manter comunhão com Ele. Foi algo semelhante a isto que levou o
salmista a dizer: “Como o cervo brama pelas correntes das águas, assim suspira a
minha alma por ti, ó Deus! A minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo”
(42:1-2). O Deus vivo! Ele não quer mais simplesmente orar a Deus, ele quer o
Deus vivo e quer um ato vivo e real de comunhão, a experiência de estar com
Deus. Ora, é somente o Espírito que faz isso. E quando acontece esse tipo
de coisa, a oração é totalmente diferente. Toma-se a coisa mais animadora do
mundo, toma-se a coisa mais emocionante. Ela deixa de ser formal,

rígida e difícil, e deixamos de ter todos esses problemas.

Além disso, o Espírito realiza a obra que o próprio Senhor nosso declara que é a
Sua obra mais especial e mais peculiar, a saber: Ele mantém os nossos olhos fitos
no Senhor Jesus Cristo. Disse o Senhor que o Espírito Santo O glorificaria: “Ele
me glorificará” (João 16:14). Esse é o Seu supremo propósito e função. E é
exatamente o que Ele faz. Havendo nos mostrado a nossa total pecaminosidade,
debilidade e pequenez, e a glória de Deus, Ele nos leva ao Senhor Jesus Cristo.
Ele nos faz vê-lO em toda a glória e maravilha de Sua Pessoa, em toda a glória e
maravilha da Sua obra. Vemo-10 como o Mediador. Permitam-me colocá-lo na
forma de perguntas. Sempre que oramos percebemos anossa completa e absoluta
dependência do Senhor Jesus Cristo e da Sua obra expiatória? Estamos sempre
conscientes do fato de que, sem o sangue de Jesus, não podemos ter acesso à
presença de Deus? Certamente nós todos teríamos que confessar que milhares
das vezes em que oramos, “tomamos isso como líquido e certo”. E vejam só o
que tomamos como líquido e certo: o fato mais glorioso da história! Não damos
graças a Deus por ele, não meditamos nele, não pensamos nele até os nossos
corações serem arrebatados. Nós apenas o pressupomos. Haverá coisa mais
terrível, ou, em certo sentido, mais próximo do blasfemo, do que presumir
simplesmente o sangue do Calvário e a morte de Cristo? O Espírito Santo nunca
nos permitirá fazer isso. Ele nos revelará o Senhor Jesus Cristo em toda a Sua
glória e, graças a Deus, em Sua total suficiência. Assim é que, quando estiver na
presença de Deus, e terrivelmente cônscio da sua própria pecaminosidade, da sua
indignidade, da sua impureza, da sua baixeza e da sua fraqueza, o Espírito
Santo revelará a você que foi quando nós estávamos “ainda fracos” que
Cristo “morreu a seu tempo pelos ímpios”; que foi quando éramos “inimigos”
que fomos salvos pela morte do Senhor Jesus Cristo (Romanos 5:6,10). Será
então que o Espírito o fará lembrar que Cristo disse: “Eu não vim chamar os
justos, mas os pecadores, ao arrependimento” (Mateus 9:13). Será então que
você verá desfilarem Maria Madalena e todos os demais chegando a Deus,
conduzidos por Ele. O Espírito Santo mostrará tudo isso a você. E você verá que,
apesar da sua baixeza indescritível, não obstante você tem acesso à presença de
Deus. Você dirá com Charles Wesley:

Justo e santo é o Teu nome!

Eu, cheio de pecado e jaça,

Eu sou tudo o que há de mau;

Cheio és Tu de verdade e graça!

Ele revela, Ele desvenda o Senhor Jesus Cristo. Quando você se põe a orar, você
tem aquelas exaltadas visões da Pessoa e da obra do Senhor Jesus Cristo? E isso
que prova que você está orando “no Espírito”. Você não pode orar no Espírito
sem ser levado a vê-lO e aperceber-se dEle como nunca antes.

É igualmente o Espírito Santo que nos leva a um entendimento de todas as


promessas de Deus. Sabemos o que é estar cercado de provações, tribulações e
problemas, e o que é estarmos cientes da nossa fraqueza e ineficiência. De fato
somos tentados a clamar aEle: que farei? Que farei? E aí o Espírito começa a
revelar a você as “grandíssimas e preciosas promessas”, e tudo se transforma. E
Ele que nos revela Deus como nosso Pai, como “o Pai de nosso Senhor e
Salvador Jesus Cristo” e o nosso Pai. Vocês se lembram desta colocação feita por
Paulo: “Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o qual nos abençoou
com todas as bênçãos espirituais nos lugares celestiais em Cristo” (Efésios 1:3).
No momento em que você se der conta disso, toda a sua perspectiva mudará.
Você dirá a si mesmo: bem, embora as coisas estejam como estão, Deus é meu
Pai, e tenho a autoridade do Senhor Jesus Cristo para dizer que Ele tem todos os
cabelos da minha cabeça contados, que Ele não somente se interessa pela queda
de cada pardal, Ele está infinitamente mais interessado em mim e em tudo o que
me acontece. Ele é o Pai de Jesus Cristo, e é meu Pai; e como Ele cuidou dEle,
cuidará também de mim. Ele disse: “Não te deixarei, nem te desampararei”
(Hebreus 13:5). Você tem alguma experiência disso? Você sente na presença de
Deus, por ser filho de Deus, embora estando talvez quase sufocado por
dificuldades e problemas, uma alegria e felicidade que domina e supera tudo? E
isso que o Espírito Santo faz.

Permitam-me dizê-lo definitivamente desta forma: escrevendo aos romanos, o


apóstolo diz: “Não recebestes o espírito de escravidão para outra vez estardes em
temor, mas recebestes o espírito de adoção de filhos, pelo qual clamamos: Aba,
Pai” (ou, “o Espírito de adoção...”, 8:15, VA). Sabemos algo sobre escravidão,
não sabemos? Sabemos algo sobre as dificuldades que enumerei no princípio - e
isso é pura escravidão. Tentar pensar em algo que dizer, tentar produzir
um sentimento - ah, que escravidão é essa! Não há liberdade aí. Que diferença
um filho falando com seu pai, estendendo as mãos para o pai, para abraçá-lo,
sussurrando suas pequeninas coisas porque está alegre por ver seu pai. E assim
que devemos orar, com uma gloriosa liberdade. “Não o espírito de escravidão
para outra vez estardes em temor! - mas o Espírito de adoção de filhos, pelo qual
clamamos (com este clamor

rudimentar, infantil, filial): Aba, Pai.” Você experimenta liberdade na oração?


Você experimenta esta eloqüência espiritual na oração? Você sabe o que é ser
arrebatado de si próprio na oração? Você sabe o que é quase desejar continuar
orando para sempre, e achar difícil parar? Isso é orar no Espírito, quando a
oração chegou às suas maiores alturas. Aí está, pois, o modo como temos acesso
ao Pai, diz Paulo, mediante o Senhor Jesus Cristo, e pelo Espírito.

Permitam-me colocar tudo numa pergunta. Você gosta de orar? Você sempre
gostou de orar? E para você a ocupação mais agradável? Se não é, é porque você
esqueceu que as operações do Espírito Santo são absolutamente essenciais à
oração. Portanto, quando você for orar, lembre-se disso. Ore a Ele, peça-Lhe que
o anime, que o vivifique. Ele o fará; Ele já o fez sem você perceber. O desejo de
orar foi produzido por Ele, o simples pensar nisso. É Ele que produz todos estes
bons desejos; Ele “opera em vós tanto o querer como o efetuar”
(Filipenses 2:13); peça-Lhe, pois, e Ele o fará crescer. Vá a Ele, seco e
amortecido como você está, diga-Lheque você tem vergonha de si próprio, diga-
Lhe que você quer conhecer a Deus, diga-Lhe que você quer fruir a Deus, diga-
Lhe que você quer esta liberdade no Espírito; e peça a Ele que torne isso
possível, e persevere até que a resposta venha. E virá! Ouça de novo a palavra do
apóstolo em Romanos 8:26 e 27, neste sentido: “O Espírito ajuda as nossas
fraquezas; porque não sabemos o que havemos de pedir como convém, mas o
mesmo Espírito intercede por nós com gemidos inexprimíveis. E aquele que
examina os corações sabe qual é a intenção do Espírito”. É tão maravilhoso que,
mesmo quando nos vemos completamente desamparados e não sabemos pelo
que orar ou o que fazer, e, digamos, ficamos desesperados-não chegamos a
experimentar esse extremo, graças a Deus - mesmo então nos vemos gemendo,
sem saber o que estamos dizendo. E o próprio Espírito fazendo intercessão por
nós, em nós, por meio de nós, com gemidos inexprimíveis. Se Ele faz isso sem a
nossa solicitação, sem que Lho peçamos, quanto mais certo é que, se
verdadeiramente Lhe pedirmos e buscarmos o Seu auxílio, Ele nós responderá!
E, começando a orar no Espírito Santo, teremos verdadeiro acesso à presença de
Deus, e não somente glorifi-caremos a Deus, como também começaremos a
gozá-lO para sempre.

25
A UNIDADE CRISTÃ

“Assim que já ...” - Efésios 2:19

Agora vamos dar nossa atenção às duas palavras do apóstolo, “Assim já” (ARA),
ou “Portanto, agora” (VA). Noutras palavras, em nossa consideração do capítulo
dois desta grande Epístola, chegamos ao ponto no qual o apóstolo, tendo
completado a sua declaração maior, faz um sumário, ou faz uma pausa
momentânea para juntar as diversas verdades que estivera dizendo. E como ele o
faz, é importante que igualmente o façamos. Sempre se corre o perigo, quando se
trata de uma grande seção das Escrituras como esta, de que, ao se tratar dos
vários pormenores, como estivemos fazendo, e tivemos que fazê-lo
necessariamente, pode-se muito bem perder a linha mestra de orientação ou
o argumento principal da seção. Por isso é muito importante que, exatamente
como nos sugerç o apóstolo, façamos uma breve pausa e consideremos o que
estivemos extraindo e captando.

Que coisa tremenda! E importante que o examinemos como um todo por um


momento. Fomos sendo levados através dos passos dados: o apóstolo nos
mostrou exatamente como Deus fez uma grande obra por meio do Senhor Jesus
Cristo, como a parede intermediária de separação

- a lei dos mandamentos nas ordenanças - foi demolida. Há esta entrada, este
acesso à presença de Deus no Senhor Jesus Cristo e por meio do Espírito Santo.
O que precisamos ter em mente é esta grande questão de unidade, da unidade
que existe entre todos os que são verdadeiramente cristãos. E isso que o apóstolo
tem superiormente em seu pensamento

- este “um só corpo”, este “um só novo homem”; “nós ambos”, temos acesso
por um só Espírito, e assim por diante. É sobre isso que ele deseja que tenhamos
claro entendimento. E, portanto, é bom observar o que em geral constitui esta
unidade, o que a produz, o que a traz à existência e lhe dá continuidade. Aqui
nos vemos face a face com uma das grandes e cruciais declarações das
Escrituras.

Ao examinarmos isto, certos grandes princípios se nos tomarão manifestos. Por


exemplo, vocês não podem considerar uma passagem como esta sem se
lembrarem'claramente do que é ser cristão, e do que nos torna cristãos.
Mostrando como estes efésios foram introduzidos

na Igrej a com os judeus, o apóstolo mostra o que teve que acontecer com o
judeu e com o gentio antes de poderem sequer entrar na Igreja, antes de sequer
poderem ir à presença de Deus. Assim é que, aqui, de passagem, somoslevados
aestapedra fundamental, aestaposição básica na qual vemos claramente o que
nos torna cristãos. Noutras palavras, aí nos é dada uma esplêndida definição do
cristão.

Outra coisa que nos é exposta é que nenhuma outra coisa pode unir
verdadeiramente os homens, a não ser este evangelho. Vemos isso da seguinte
maneira: o apóstolo, ao expor e mostrar como foi produzida esta maravilhosa
unidade, de passagem nos mostrou o que teve que acontecer para que isso se
tornasse realidade. À medida que vamos tendo discernimento das coisas que
dividem homens e mulheres, somos levados e impelidos à conclusão de que
nada, senão o poder de Deus em Cristo e por meio do Espírito Santo no
evangelho, pode unir homens e mulheres. É certamente algo muito importante
que devemos ter em mente na hora presente. Quando digo isso, estou pensando
não somente na Igreja, mas também na situação internacional em geral. Há muita
prosa falsa, leviana e superficial sobre a unidade na Igreja e entre as nações.
Mas, como eu entendo o ensino das Escrituras, e especialmente esta seção
particular, não há nada que seja tão perigoso, e afinal tão fátuo e tão
completamente fútil, como esta vaga e geral conversa sobre juntar pessoas e
estabelecer o que chamam “uma unidade”.

Temos que reconhecer que há ocasiões em que parece haver uma unidade: porém
acabará se evidenciando apenas uma unidade superficial, apenas uma aparência.
As vezes, por causa de certas circunstâncias, as pessoas se unem, levadas talvez
por uma necessidade comum ou por um perigo comum, e então se vêem
conversando e cooperando umas com as outras, e trabalhando juntas. Mas isso
não é necessariamente uma verdadeira unidade, como a história o demonstra
com muita clareza. Pode haver uma aproximação de homens ou nações, ou entre
diferentes segmentos da Igreja Cristã, com objetivos específicos, e as
pessoas superficiais são tentadas a dizer que afinal a inimizade foi abolida e
são todos um. No entanto, uma comunidade de interesse ocasional não é uma
real unidade. Leiam os seus livros de história secular e observem o que as nações
têm feito, notem como houve estranhas combinações de países em ocasiões
diferentes, e como no momento parecia que eles tinham formado uma firme
amizade, que nunca poderia ser dissolvida. Mas então, poucas páginas adiante
em seu livro de história, vocês verão estes dois países, que pareciam ter-se
tomado um, em conflito um com o outro. Eis a explicação. Quando pareciam
estar numa firme amizade,

foi somente porque havia tais circunstâncias no caso de ambos os países, que era
compensador e conveniente a eles que se juntassem. Isso se vê com freqüência
durante uma guerra. Surge de repente um inimigo comum, e os outros (que
realmente não se dão bem e sempre foram antagônicos), por causa daquele
perigo comum, cooperam entre si com a finalidade de manter o inimigo por
baixo; porém depois, no momento em que isto se realiza, eles voltam a
desentender-se. O que parecia unidade não era unidade nenhuma, era pura
fachada, mera aparência. Isso não é unidade real.

Exatamente a mesma coisa se aplica nos domínios da Igreja. Há os que pensam e


dizem que, em face do grande inimigo, o materialismo (chamem-lhe
comunismo, se o preferirem), todos os que se chamam cristãos de um modo ou
de outro devem juntar-se. Não devemos incomodar-nos com definições, mas
devemos cerrar fileiras numa frente comum contra esta grande inimigo. Há,
portanto, os que dizem que os católicos romanos e os protestantes deveriam
trabalhar juntos e unir-se, esquecer todas as suas diferenças, levantar-se juntos
em defesa da civilização ocidental, ou seja qual for o nome que acaso se lhe dê,
contra este grande adversário comum. E pensam que isso é unidade. Ora,
a minha afirmação é que o ensino deste parágrafo da nossa Epístola, sem ir mais
longe, mostra-nos como é superficial e, em última análise, como é fútil toda essa
conversa. Se captamos bem o ensino desta seção, que nos ajuda apenetrar no
conhecimento da natureza do homem em pecado, e que é o que de fato divide as
pessoas fundamentalmente, então penso que somos levados à conclusão de que
nada menos que uma solução fundamental, como a que unicamente o evangelho
oferece, e nenhuma outra coisa, pode produzir esta verdadeira, real e duradoura
unidade. É o que este ensino mostra com clareza.

Depois, outra coisa que se vê com clareza é a seguinte: é-nos dado um


entendimento e um profundo discernimento da natureza desta verdadeira
unidade existente entre os cristãos. O ponto é que somente os que se enquadram
na descrição dada aqui é que são realmente um. O apóstolo fala desta unidade
em termos de um só corpo e nos oferece esta maravilhosa analogia do corpo,
analogia tão frequentemente utilizada por ele. Ele salienta que se trata de uma
unidade vital, orgânica; não é simplesmente uma questão de se ligarem
frouxamente as pessoas, não é simplesmente uma questão de, num dado
momento, as pessoas esquecerem as diferenças e formarem uma espécie de
coalizão. Nada disso! E uma unidade viva, uma unidade que prevalece no corpo,
onde os dedos se ligam ao restante do corpo, não apenas grudados, mas uma

unidade viva, unidade de sangue e de nervos. É um todo, com várias partes, não
certo número de partes postas juntas para formarem um todo. Começa-se do
centro para fora, e não vice-versa. Talvez eu possa fazer um sumário disso tudo
dizendo que a unidade entre os cristãos é uma unidade completamente inevitável
por causa daquilo que é verdadeiro quanto a todos e a cada um. Às vezes penso
que esse é o princípio mais importante de todos. Parece-me que, com toda essa
conversa sobre unidade estamos esquecendo a coisa mais importante, que a
unidade não é uma coisa que o homem tem que produzir ou arranjar: a
verdadeira unidade entre os cristãos é inevitável e indeclinável. Não é criação
do homem; é, como tão claramente nos foi mostrado, criação do próprio Espírito
Santo. E a minha tese é que existe essa unidade neste momento entre cristãos
verdadeiros. Não me importa quais sejam os rótulos que lhes ponham, a unidade
é inevitável; eles não a podem evitar, por causa daquilo que realmente
caracteriza cada um dos cristãos, individualmente falando.

Permitam-me mostrar-lhes a seguir como estes princípios são aqui expostos em


detalhe. Háprimeiramente este grande postulado, que, por natureza, por causa
dos seus antecedentes e do que está por trás deles, os homens estão
deseperadamente divididos. Isso nos foi mostrado aqui, em termos do judeu e do
gentio, e dos profundos e violentos preconceitos que ambos tinham. Isso é o
homem em pecado. O homem em pecado é um montão de preconceitos. E posto
que todos os homens estão em pecado e têm esses preconceitos, a desunião
é inevitável. O judeu desprezava o gentio, o gentio odiava o judeu, e então havia
aquela parede de separação que estava no meio. O mundo ainda estácheio desse
preconceito racial -pessoas que não hesitam em excluir nações inteiras e a
condená-las, a falar delas com sarcasmo e zombaria; e, por sua vez, os
condenados fazem exatamente a mesma coisa. Essa é a verdade com relação a
classes, com relação a grupos. A humanidade toda está dividida dessa maneira.
Não é algo superficial, é profundo na vida do homem, é elementar. Num sentido
é algo que está fora do controle do homem. Ele tenta dominar isso, coloca por
cima um revestimento de cavalheirismo e polidez, ele pode sorrir para
alguém que ao mesmo tempo ele está amaldiçoando em seu coração. Montamos
o espetáculo, e as aparências são resguardadas, porém por baixo há inimizade e
desunião; e o simples fato de que as pessoas mutuamente sorriem e apertam as
mãos não nos diz nada, necessariamente, do que se passa em seus corações. Elas
podem publicar os seus comunicados e, todavia, ao mesmo tempo podem estar
planejando e conspirando o

fracasso umas das outras e fazendo várias coisas inamistosas umas contra as
outras. Todos nós sabemos muito bem disso. A arte da política, geralmente assim
chamada, seja política local ou imperial ou internacional, baseia-se precisamente
na suposição de que não se pode confiar em ninguém e que você tem que estar
de olho nos seus melhores interesses, fazendo concessões quando lhe for
conveniente.

Essa é, pois, a verdade acerca da humanidade. E é a verdade ao nível individual


exatamente como o é ao nível internacional. Portanto, não somente é ser novato
nestas questões, e ingênuo, falto de instrução e iletrado quanto ao conhecimento
da história, aquele que supõe que as aparências são o que são; é também
profundamente perigoso. Noutras palavras, voltamos a isto: antes que possa
haver unidade entre os homens, tem que haver uma mudança radical neles. Tem
que haver uma mudança na própria constituição deles. O que precisa ser mudado
em cada um de nós, no que somos por natureza, são os nossos
preconceitos fundamentais; não o que fazemos à superfície para favorecer
negócios ou as aparências, mas o que realmente somos, o que realmente
cremos nas profundezas de nosso ser. Enquanto isso não for posto em
ordem, será ocioso e uma pura perda de tempo falar em unidade.

Então, que é que o evangelho faz para produzir esta unidade? Como foi que estes
judeus e gentios vieram a estar juntos? Por que todos os verdadeiros cristãos são
necessariamente um? Eis algumas das respostas:

Todos somos pecadores, e nada, senão o evangelho, leva as pessoas a verem isso.
Todos nós somos pecadores, cada um de nós. Vou além e digo: todos nós somos
igualmente pecadores. O que determina se você é um pecador ou não, não é a
soma total dos pecados que você cometeu, é a sua atitude total para com Deus.
Aqui é que vemos quão fúteis e superficiais são todas as divisões e distinções.
Era isso que mantinha separados o judeu e o gentio. O judeu dizia: somos o povo
de Deus e temos as Escrituras, os oráculos de Deus, temos a lei, temos
o cerimonial e o templo; estes outros não têm nada destas coisas. E achavam que
isso os acertava, que isso fazia uma diferença vital. Mas o propósito geral da
pregação do evangelho, diz o apóstolo Paulo, é mostrar ao judeu que ele é tão
pecador quanto o gentio. “Não há um justo, nem um sequer.” “Todos pecaram e
destituídos estão da glória de Deus.” Todo o mundo “tornou-se culpado diante de
Deus”. Nesta altura vocês vêem como é inteiramente superficial, e que
disperdício de tempo é favorecer as nossas divisões entre gente muito má, gente
má,

gente boa, gente muito boa, e gente nobre. São nossas classificações, não são? A
um homem chamamos pecador, um de fora; e julgamos outro respeitável, muito
fino e muito bom. Realmente atribuímos significação a todas estas divisões e
distinções. No momento em que você vem para o evangelho, tudo isso é
demolido e se torna completamente irrelevante. A prova, afinal de contas, não é
o que somos entre nós e de acordo com as nossas medidas e os nossos padrões.
Cada um de nós tem que vir à presença de Deus. E, face a face com Ele, somos
todos pecadores, somos todos vis. Não O conhecemos. Não O servimos como
devíamos. Quebramos as suas leis. Cada um foi por seu próprio caminho.
“Todos nós andamos desgarrados como ovelhas” (Isaías 53:6).

Entendemos isso perfeitamente bem na esfera natural. Mas de algum modo


falhamos não aplicando isso à esfera espiritual. Temos os nossos padrões para
medir a luz e a energia elétrica, e assim por diante. Falamos em voltagem, em
tantos ou quantos watts e em coisas como essas, e aí estão divisões e distinções -
ligarei uma lâmpada de 150 watts ou uma de 15? Que diferença! A diferença
parece ser muito importante. Contudo, leve as duas, a de 15 e a de 150, e
coloque-as diante do sol, e as suas diferenças não importarão mais. Não importa
se você tem uma vela ou uma candeia ou uma lâmpada muito poderosa, à luz do
sol elas são trevas, por assim dizer, e as diferenças são irrelevantes e não
pesam nada. E assim na esfera espiritual. Todos nós estamos face a face
com Deus. E quando estou na presença de Deus e da Sua santidade e da Sua lei,
não me servirá de ajuda pensar que talvez eu seja um pouco menos mau do que
alguma outra pessoa; a questão é: sou suficientemente bom para Ele? Sou
suficientemente bom lá? E o que este evangelho fez foi mostrar Deus aos
homens e mostrar os próprios homens à luz de Deus; e estão todos condenados,
estão todos sob um denominador comum. Não há judeu nem gentio, bárbaro,
cita, escravo nem livre, rico nem pobre, instruído nem ignorante. Todas estas
coisas são irrelevantes -preto ou branco, este lado de uma cortina ou aquele. Isso
não importa, todos pecaram. Esse é o primeiro passo para a unidade. Antes que
possa haver unidade, todos nós temos que ser derrubados ao pó.
Enquanto qualquer de nós estiver de pé, e quiser impor-se, nunca vocês
terão unidade, porque ele está se gabando de alguma coisa, está agarrado a
algo que lhe é peculiar. Vocês jamais conseguirão unidade dessa maneira; temos
que dar cabo do ego. Mas aqui, encarando Deus no evangelho, somos lançados
ao pó, somos forçados a ver anossa total pecaminosidade, e um a um vemos
exatamente em que situação estamos na Suapresença.

Essa primeira resposta leva inevitavelmente à segunda. Não só

todos nós somos igualmente pecadores, porém também somos todos igualmente
incapazes. Pois bem, essa era a dificuldade com o judeu; ele não percebia a sua
incapacidade. Achava que o seu conhecimento da lei ia salvá-lo de um modo ou
de outro. Mas ele passou a ver que não ia. Como o apóstolo diz no capítulo três
de Romanos: “pela lei vem o conhecimento do pecado”. Certamente! Muito
valiosa nesse aspecto! “Eu não conheceria a concupiscência, se a lei não
dissesse: não cobiçarás” (Romanos 7:7). Ela marca a coisa. A lei é de
inestimável valor nesse aspecto. No entanto, o tolo judeu achava que o seu
conhecimento da lei puro e simples de algum modo o salvava. Mas não o
fazia nem podia fazê-lo. A lei simplesmente condena; não ajuda a salvar. Isso é
vital para o argumento geral deste apóstolo, e para o argumento geral do
evangelho em toda parte. Ouçam-no dizê-lo também em Romanos 8:3: “Portanto
o que era impossível à lei, visto como estava enferma pela carne, Deus, enviando
o seu Filho em semelhança da carne do pecado, pelo pecado condenou o pecado
na carne; para que a justiça da lei se cumprisse em nós, que não andamos
segundo a carne, mas segundo o Espírito”. Aí está, uma vez por todas. Não
somente somos todos pecadores, todos nós juntos, porém igualmente somos
todos incapazes em nosso pecado. Podemos, com grande determinação e força
de vontade, tentar ser melhores, mas inutilmente. Há pessoas que podem levar
uma vida excelente, abstêmia e nobre; podem dedicar-se e aperfeiçoar-se e a
elevar-se na escala moral; entretanto quão fútil isso é, pois a tarefa é chegar a
Deus! E ocioso gabar-se dos cavalos de força dos seus carros motorizados
quando você se defronta com uma montanha que o carro mais poderoso não
poderá subir. E essa é a situação do homem em pecado. Não importa quão
grande seja a luta moral de um homem, ele, por si mesmo, nunca poderá chegar
a satisfazer a Deus e às Suas exigências. Ninguém poderá permanecer de pé no
juízo simplesmente firmado em sua justiça própria e por seus próprios
esforços; quando compreendemos isso, todos só temos que dizer:

Meus labores, minha mão Cumprir jamais poderão O que Tua lei exige;

Se o meu zelo e o meu ardor Repouso não conhecessem E as minhas sentidas


lágrimas Perpetuamente corressem,

E tudo pelo pecado,

Pecado não poderiam Expiar; nunca o fariam!

Somos todos um em nossa incapacidade, em nossa fraqueza, em nossa


desesperança, em nossa ineficácia; estamos juntos no pó. A compreensão disso é
que traz unidade. Antes disso, altaneiro, alguém diz: eu sou melhor do que você,
progredi muito mais que você. Jazendo desamparados no pó, percebemos que
não temos de que nos gabar, não temos nada que possamos falar. Somos
silenciados, todos nós juntos. A competição é abolida. Negativamente, estamos
todos na mesma situação.

E isso, naturalmente, leva a outro ponto que o apóstolo salienta. Todos nós
viemos ao mesmo e único Salvador. Como o apóstolo se delicia em repetir o
nome! “Mas agora em Cristo Jesus, vós, que antes estáveis longe, já pelo sangue
de Cristo chegastes perto” - vejam vocês como ele o repete logo! “Porque ele é a
nossa paz, o qual de ambos os povos fez um”; “Na sua carne (ele) desfez a
inimizade, isto é, a lei dos mandamentos”; “para criar em si mesmo dos dois um
novo homem”; “e pela cruz (ele pudesse) reconciliar ambos com Deus em um
corpo”; “e, vindo ele, evangelizou a paz”; “porque por ele ambos temos acesso.”
É sempre esta bendita Pessoa. Aqui estamos começando a ver o assunto
positivamente. Estamos todos juntos no pó, nas cinzas e em trapos. Então
erguemos os olhos e olhamos juntos para a mesma Pessoa bendita. Não estou
interessado num Congresso Mundial das Crenças. Não posso ajoelhar-me e estar
com pessoas, das quais uma está com os olhos postos em Confúcio, outra em
Maomé, outra em Buda e outra em algum filósofo. Não posso! Há somente Um
para quem olhar, o bendito Filho de Deus. E eu não tenho nenhum sentimento de
unidade e nenhuma comunhão com quem não esteja olhando comigo para
o mesmo Salvador. “Há um só Deus e um só Mediador (unicamente
um Mediador) entre Deus e os homens, Jesus Cristo homem” (1 Timóteo 2:5).
Não há unidade sem isso. Estamos juntos no fracasso e na incapacidade, e agora
estamos olhando juntos para a mesma Pessoa bendita. E se não estamos, de que
vale falar em unidade? De que vale falar em ter coisas em comum e em afirmar
que somos todos um, se há alguma dúvida sobre Ele, quanto a se Ele é o Filho de
Deus ou apenas homem? Sehouverqualquerdúvidasobreisso, não haverá unidade,
não haverá comunhão. Temos que confessar juntos que há somente um Salvador,
unicamente um Senhor Jesus Cristo, Deus e homem, duas

naturezas em uma pessoa, nascido da virgem, Maria, crucificado sob


PôncioPilatos, ressurreto. Épreciso quenão haja dúvida sobre Ele! Não haverá
unidade, a menos que estejamos de acordo sobre Ele! O mesmo Salvador, a
mesma Pessoa!

E depois temos a mesma salvação! Devemos particularizar, vocês sabem. Não


basta dizer: ah, eu creio em Cristo e sou um com todos os que crêem em Cristo.
Todavia, o que significa crer em Cristo? Bem, notem como o apóstolo o
expressa. Diz ele que “naquele tempo estáveis sem Cristo, separados da
comunidade de Israel, e estranhos aos concertos dapromessa, não tendo
esperança, e sem Deus no mundo. Mas agora em Cristo Jesus, vós, que antes
estáveis longe, já pelo sangue de Cristo chegastes perto”. Esse é o único
caminho. Eu não estou perto de um homem qualquer, a não ser que ele tenha
sido trazido para perto pelo sangue de Cristo. Não tenho comunhão com alguém
que não gosta da teologia do sangue. Ele poderá dizer-me, se quiser, que crê em
Cristo, porém eu não conheço nenhum Cristo, exceto o Cristo que morreu
por mim e pelos meus pecados na cruz. Não tenho acesso ao Pai, exceto “pelo
sangue de Jesus”. O homem que deixa de lado a cruz é um homem com quem eu
não estou em comunhão, não me interessa que título ele se dê. Não há unidade,
exceto entre os que pertencem ao grupo dos comprados pelo sangue, os quais
compartem a mesma salvação na qual a cruz é inevitável, essencial e central.
“Nenhum outro havia suficientemente bom para pagar o preço do pecado.”
Deus, diz ainda Paulo no capítulo três de Romanos, tem que ser justo quando age
como justificador daquele que crê em Jesus. Não posso crer num Deus que possa
tolerar o pecado e fingir que não o vê. Deus é “santo, justo e reto”. Ele disse que
punirá o pecado, e terá que fazê-lo; e creio que Ele o fez em Cristo, na cruz. Foi
aquele mesmo Cristo da cruz que literalmente saiu corporalmente do túmulo e
subiu ao céu para a minha justificação. Sou um só com aqueles que estão
vestidos com a mesma veste dejustiça, que é a justiça de Cristo. Não há unidade
quando as pessoas estão com vestes diferentes - uma com a sua justiça moral,
outra com a justiça de alguma filosofia, a outra com a justiça de Cristo. Não
somos um com ninguém, senão com os que “lavaram as suas vestes no sangue
do Cordeiro” e estão imaculadamente vestidos com a justiça do Filho de Deus.
Esse é o argumento; não somente na passagem que estamos estudando, é
o argumento em toda parte. Compartimos uma “salvação comum”. Essa é a
expressão utilizada, vocês se lembram, na Epístola de Judas.

Todas estas coisas são comuns a todos os cristãos. Além disso, temos o mesmo
Espírito Santo habitando em nós, vivendo em nós,

agindo em nós, e realizando exatamente a mesma obra em nós. O apóstolo já o


tinha mencionado. É “por um só Espírito” que temos este nosso acesso ao Pai.
“Operai a vossa salvação com temor e tremor; porque Deus é o que opera em
vós tanto o querer como o efetuar” - o mesmo Deus, o mesmo Espírito Santo!
Unidade maravilhosamente orgânica! Quão diferente é isso de dizer-se
superficialmente: unamo--nos. Há um inimigo comum, esqueçamos as nossas
diferenças! Necessitamos de uma mudança radical. É a nossa natureza que causa
divisões, e seja o que for que não trate da nossa natureza, não terá a
mínima possibilidade de resolver o problema. E para mudar a nossa natureza,
eis o que é necessário - é preciso que venha o Espírito Santo. E Ele veio, está em
todos nós, está produzindo em nós - e isto é talvez, em muitos aspectos, o que há
de mais maravilhoso - a mesma nova natureza. “Se alguém está em Cristo, nova
criatura é (uma nova criação); as coisas velhas jápassaram; eis que tudo se fez
novo.”0 cristão não é alguém que fez automelhoramento, ou que até certo ponto
aprendeu a dominar-se e, na linguagem das Escrituras, “limpou o exterior do
copo e do prato”. Nada disso! Ele é um novo homem. Deus o fez “participante
da natureza divina”. E a natureza divina é caracterizada pelo amor.

Como podemos conseguir unidade, se não houver amor? Mas o Espírito Santo
produz este novo homem, esta nova natureza. Este “fruto do Espírito” vê-se em
todos os cristãos, e assim é que temos a unidade inevitável. Todos os cristãos
nascem do Espírito, do mesmo Espírito. “Necessário vos é nascer de novo”,
disse Cristo a Nicodemos. “O que é nascido da carne é carne, e o que é nascido
do Espírito é espírito.” Isto é absolutamente essencial. Os homen nunca serão
um, se não tiverem esta mesma natureza comum. Em Cristo nós a temos. E Ele
criou em Si mesmo “dos dois um novo homem, fazendo a paz”. Esta Sua
nova humanidade! E assim, com esta no va natureza, com esta nova
disposição dentro de nós, nós que somos cristãos, temos os mesmos
interesses, estamos preocupados com as mesmas coisas e temos os
mesmos desejos. Por isso, quando nos encontramos, logo vemos que temos
esta co-participação em interesses e desejos. Não é difícil achar algo de que falar
quando você se encontra com um cristão. Você o reconhece na hora. Vocês
conversam sobre as mesmas coisas, sobre estes assuntos espirituais; não ficam
mais conversando sobre o mundo e as suas pomposas e superficiais nulidades, e
sim, sobre os interesses eternos, a alma, Deus, Cristo, a salvação, o novo
nascimento, e todas estas coisas. Os cristãos se reúnem e se falam. É como são
descritos os fiéis do Velho e do Novo Testamentos. Pessoas que se conhecem,
que se sentem mutuamente

atraídas, que se entendem; não precisam de introduções bem elaboradas, logo


pegam estes tópicos comuns, os mesmos desejos os anima, e compartilham as
mesmas esperanças. Como é inevitável a unidade entre os cristãos!

Depois isso nos leva a esta verdade: temos o mesmo Pai. “Porque por meio dele
(ou por ele) ambos temos acesso ao Pai por um só Espírito” (VA). Pertencemos
uns aos outros porque pertencemos a Deus. Somos filhos do mesmo Pai. Ora
membros de uma família, podemos discordar e brigar às vezes, porém há por trás
uma unidade fundamental. Essa é a diferença entre a verdadeira unidade entre
os cristãos e esta unidade produzida artificialmente sobre a qual o mundo e,
infelizmente, a Igreja tanto falam no presente. Você pode olhar para uma família
e dizer: eles parecem odiar uns aos outros, vejam como brigam. Mas, se você
procurar conviver com eles, logo verá que eles são um, porquanto há uma
unidade de sangue. Eles pertencem à mesma família, ao mesmo pai. Eles têm
direito, por assim dizer, têm liberdade de discordar, entretanto há sempre esta
unidade básica. Todavia, naquelas outras pessoas, que à superfície parecem tão
unidas, por baixo, no coração, não há nada sólido, e a aparência de unidade entra
em colapso na hora da maior necessidade. Como cristãos verdadeiros, temos um
só Pai. Somos filhos do mesmo Rei celestial. E, portanto, temos os
mesmos interesses familiares.

Não somente o acima exposto caracteriza a todos nós como cristãos, mas até as
mesmas provações nós temos. Temos as mesmas tentações. Temos os mesmos
problemas. Isso às vezes nos faz compreender a unidade mais que qualquer outra
coisa. Quando você pensa que está só em suas dificuldades, provações e
tribulações, e vem à casa de Deus, como fez o homem do Salmo 73, você logo se
dá conta: “Bem, de qualquer forma, não estou sozinho nisto”. Você encontra
alguém e começa a contar-lhe os maus momentos pelos quais está passando.
E quando você lhe pergunta como vão as coisas com ele, ele lhe diz a mesma
coisa que aconteceu com você na mesma semana. Visto que somos espirituais,
visto que temos esta nova natureza, temos os mesmos inimigos - o mundo, a
carne e o diabo - e eles nos atacam do mesmo modo. Assim entendemos,
levamos as cargas uns dos outros, temos compaixão uns pelos outros. “Não veio
sobre vós tentação, senão humana”, ou “senão a que é comum aos homens”
(VA). E o que Paulo diz aos coríntios (1 Coríntios 10:13). Estamos todos
tomando parte na mesma batalha, na mesma luta “contra os principados, contra
as potestades, contra os príncipes das trevas deste século, contra as hostes

espirituais da maldade nos lugares celestiais”. Mas, louvado seja Deus, na luta
experimentamos a mesma graça divina, a mesma libertação, o mesmo Salvador,
o mesmo Guia, Mentor e Amigo.

E, finalmente, estamos todos marchando e indo para o mesmo lar eterno. Como
cristãos, compreendemos como ninguém que este mundo é passageiro, que esta
existência é tão-somente uma escola preparatória. Este não é nosso lar; estamos
marchando para o céu, para a glória. Temos a mesma esperança posta diante de
nós. Há muitas diferenças aqui - diferenças de nacionalidade, diferenças de
dons. Podemos diferir na aparência, e em mil e um outros aspectos - sim,
mas todos nós estamos indo para o mesmo lugar, para a mesma eternidade e a
mesma glória, para o mesmo Deus, para o mesmo céu. Temos os olhos postos na
mesma “recompensa de galardão”.

Vocês não concordariam que as proposições que apresentei no começo estão


justificadas? Não existe isso de unidade, exceto nas pessoas caracterizadas por
estas coisas. Nenhuma outra unidade, assim chamada, tem qualquer valor. Mas,
ao mesmo tempo, devemos acrescentar que, tolerar qualquer coisa que divida
pessoas dotadas destas características, é pecado. De modo que, quanto a mim,
não dou importância ao rótulo de uma pessoa; as pessoas que eu realmente
conheço e nas quais estou interessado, são aquelas que são
verdadeiramente caracterizadas por estas coisas que venho salientando. Não
estou interessado em seu país, em sua cor, em seus dons, habilidades,
posses, nem em algum rótulo que o mundo dos homens dê a eles. Se um
homem me diz que sabe que é pecador sem esperança, vil, condenado, perdido, e
que se apóia unicamente no fato de que o Senhor Jesus Cristo morreu por seus
pecados, que o Seu corpo foi partido e o Seu sangue foi derramado por seus
pecados, que põe sua confiança unicamente nessa obra expiatória e
reconciliatória realizada por Cristo, que Cristo foi seu Substituto, e que Deus em
Cristo pelo Espírito fez dele um novo homem e lhe deu uma nova natureza,
então estou com esse homem. Pertenço a ele e ele me pertence, e nãò admitirei
que coisa alguma nos separe. E cada vez me parece mais pecaminoso permitir
que alguma coisa nos separe. Seria certo tais pessoas estarem distribuídas entre
as diversas denominações como estas são, e ligadas a pessoas com as quais elas
não têm fundamentalmente nada em comum, a não ser simplesmente a tradição?
A unidade verdadeira é esta unidade do Espírito, esta unidade da nova natureza,
esta unidade que é em Cristo e Este crucificado, a unidade do Seu sangue, a
unidade do próprio Senhor.

Queira Deus, em Sua graça infinita, dar-nos capacidade para ver estas coisas. A
unidade do Espírito é o único e veraz vínculo da paz. Graças a Deus, todos os
que pertencem a Ele, nascidos do Seu Espírito, são dEle e são um, apesar da sua
cegueira, do seu pecado e da sua incapacidade de levar à plena realização essa
gloriosa verdade!

JÁ NÃO SOIS ESTRANGEIROS


“Assim, que já não sois estrangeiros, nem forasteiros, mas concidadãos dos
santos, e da família de Deus.” - Efésios 2:19

Conforme fomos percorrendo o nosso caminho através dos diversos pormenores


da argumentação do apóstolo iniciada no versículo 11, vimos que o apóstolo
esteve dando ênfase a duas coisas. A primeira é a grandeza da mudança que
necessariamente tem que ocorrer em nós, antes de sequer nos tornarmos cristãos.
Não se conhece maior mudança em qualquer esfera ou departamento que aquela
pela qual todos nós passamos quando nos tornamos cristãos. É uma nova
criação, nada menos que isso. A segunda coisa que obviamente emerge é o
privilégio da nossa posição como cristãos e como membros da Igrej a Cristã,
como membros do corpo de Cristo. As duas coisas estão aí, vocês notam,
em todo o transcurso da argumentação. Os efésios eram aquilo, e se tomaram
isto\ e agora são um com os judeus pois também eles se tornaram cristãos, e
juntos são um só corpo, a Igreja, e servem a um só Pai.

Chegamos agora ao privilégio dessa posição. É a esse assunto que o apóstolo se


dedica neste versículo dezenove e que ele desenvolve no restante deste capítulo.
Ele deixa de pensar em termos de judeus ou gentios, ou de quaisquer diferenças;
ele agoranos descreve o privilégio de alguém que é cristão, quer judeu quer
gentio. A diferença não importa mais, tudo isso já terminou - um só novo
homem! Aqui ele está focalizando este novo homem, esta nova humanidade, esta
nova realidade que veio a existir, a Igreja Cristã. Seu interesse é mostrar-nos
quão maravilhosa ela é. Ele o faz empregando três figuras. A primeira é a figura
de um Estado - os cristãos são cidadãos de um grande reino, de um grande
Estado. A segunda é que eles são membros de uma família - “da família de
Deus”. E em terceiro lugar ele pensa nos cristãos e na Igreja Cristã como um
templo no qual Deus habita.

Esse é o tema aqui - o privilégio de ser cristão. Ele quer que estes efésios se
dêem conta disso. É um retorno ao tema do versículo dezenove do capítulo
primeiro e o seu contexto. O apóstolo disse a essas pessoas que ele estava orando
por elas, pedindo que os olhos do seu entendimento fossem iluminados, para que
elas soubessem “qual seja

a esperança da sua vocação, e quais as riquezas da glória da sua herança nos


santos; e qual a sobreexcelente grandeza do seu poder sobre nós, os que
cremos”. E isso que ele quer que eles vejam - o privilégio de ser cristão. E é a
isso que nos devemos apegar, mais do que a qualquer outra coisa. Todas as
exortações desta Epístola, e de todas as outras, dirigidas aos cristãos, realmente
são resultantes desta doutrina. Se apenas compreendêssemos exatamente o que
somos e quem somos como cristãos, a maior parte dos problemas da nossa vida
diária seria resolvida automaticamente. E porque não compreendemos issso, e o
privilégio da nossa posição, que surgem os problemas. Se compreendêssemos,
nunca invejaríamos os não cristãos, nunca procuraríamos viver tão perto
deles quanto possível, nem nos lamentaríamos por não estarmos na
posição deles. Tudo isso se deve à incompreensão do que somos. Assim,
o apóstolo o diz dessa maneira maravilhosa. Vocês notaram que, antes de chegar
a estas três figuras positivas, ele começa com uma negativa? O povo não gosta
de negativas hoje em dia; mas o apóstolo gostava. “Assim que”, ou “Portanto,
agora” (VA); será que ele vai dizer alguma coisa positiva? Não, ele vai começar
com uma negativa. “Portanto, agora já não sois estrangeiros e forasteiros,
mas...” Depois ele passa à colocação positiva.

Obviamente, o apóstolo se sentira constrangido a introduzir a negativa outra vez.


Noutras palavras, ele volta aos versículos onze e doze, onde dissera: “Portanto,
lembrai-vos de que vós noutro tempo éreis gentios na carne, e chamados
incircuncisão pelos que na carne se chamam circuncisão feita pela mão dos
homens; que naquele tempo estáveis sem Cristo, separados da comunidade de
Israel, e estranhos aos concertos da promessa, não tendo esperança, e sem Deus
no mundo”. Ele apenas olha de relance para isso de novo e daí começa com
esta negativa: “Portanto, agora já não sois estrangeiros, nem forasteiros”. Por
que vocês acham que ele faz isso? Parece-me óbvio que a sua razão para fazê-lo
deve ser que não será de nenhuma utilidade prosseguir e considerar os
privilégios da nossa posição, se não estivermos completamente seguros de que
estamos nessa posição. De nada vale que lhe digam exatamente o que se aplica a
uma certa posição, se você não está nessa posição. Portanto, é essencial que
deixemos bem claro para nós mesmos que tudo isso realmente se aplica a nós.
Antes de começar a ver a minha cidadania, ou a minha relação como
membro dessa família, ou a mim mesmo como uma pedra desse edifício,
desse templo, devo indagar a mim mesmo: estou ali? Isso tudo é aplicável
a mim?

No caso dos efésios não havia dúvida ou questão alguma acerca desta matéria.
Diz o apóstolo: portanto, agora vocês não são mais aquilo, são isto. Era óbvio,
estava claro e patente para todos. Essas pessoas, quando pagãs, haviam tido certo
tipo de vida. Por outro lado, os judeus tinham vivido um diferente tipo de vida e
seguiam um padrão muito diferente de culto. Ninguém podia ser convertido do
paganismo ao cristianismo e estar na fé cristã sem passar por uma mudança
muito grande. Tinhaque deixar certas práticas e costumes, tinhaque renunciar a
certos deuses aos quais servia antes, declará-los “não deuses”, e muitas outras
coisas. Era uma mudança óbvia. Paulo dizia: “Já não mais sois..., mas (sois)...”.
Isso é algo que se aplica verdadeiramente aos chamados “cristãos da primeira
geração”. Aplicava-se ao caso dalgreja Primitiva. Também é aplicável ao
contexto da obra missionária estrangeira. As missões estrangeiras ocupam-se de
lugares onde o evangelho nunca fora ouvido. O evangelho é pregado a pessoas
que estavam no paganismo e nas trevas. É ouvido pela primeira vez, e as pessoas
crêem, e a mudança delas é óbvia.

A primeira geração de cristãos! Mas não é tão simples quando se trata da


segundageraçãodecristãos; eémais difícil ainda quando se trata da terceira, da
quarta, da quinta - da décima - da vigésima geração. Assim é que, ao passo que a
coisa estava perfeitamente clara no caso destes efésios, nem sempre está tão
clara agora. Nunca é tão fácil e simples num país que se diz cristão, e onde
muitos supõem tacitamente que todo aquele que nasce em tal país só tem que ser
cristão. Não é tão fácil quando as pessoas foram criadas nas igrejas e numa
atmosfera cristã, e sempre freqüentaram um local de culto e a Escola
Dominical e participaram de atividades cristãs. Portanto, é muito importante
que interpretemos isto não somente no cenário no qual foi
originariamente escrito, e sim também em nosso próprio cenário particular; pois,
como tentarei mostrar, o princípio é sempre exatamente o mesmo; a aplicação é
que difere. Aqui o apóstolo estava primariamente preocupado com o princípio.
Ele não estava simplesmente se regozijando no fato de que estes efésios eram
membros de uma igreja como tais, e tinham os seus nomes num rol de igreja.
Não é disso que ele está falando. Ele está falando sobre o princípio de vida. Ele
estivera fazendo isso o tempo todo neste parágrafo altamente espiritual. Ele
chega a nós, portanto, nesta forma particular de pergunta. Era óbvio que estas
pessoas tinham sido incrédulas e agora eram cristãs. A questão quanto a nós é:
isso é tão definido, tão claro e inequívoco em nós como era nos efésios?

As duas palavras utilizadas pelo apóstolo nos ajudarão a encarar

este assunto da máxima importância. A primeira, como vocês vêem, é a palavra


“estrangeiros” (VA: “estranhos”). “Portanto, agora já não sois estranhos.” Que é
um estranho? Estranhos são os que se acham entre um povo que não é o deles.
Quando você é um estranho, você está no meio de um povo que não lhe
pertence. Todos pertencem uns aos outros, mas você é um estranho, não lhes
pertence, eles não são o seu povo. A segunda palavra é a que é traduzida por
“forasteiros” (VA: “estrangeiros”). As vezes vocês a verão traduzidas por
“residentes temporários”, ou “forasteiros” (ARC). Ambas as expressões são
muito boas. Que é que significa essa palavra? Originariamente era a descrição de
alguém que morava perto de uma comunidade, porém não nela; por exemplo, um
homem que vive perto do muro da cidade, do lado de fora. Ele está perto da
cidade, mas não está nela. Ele não pertence à cidade; mora perto, todavia não
nela. Esse era o sentido original, mas agora passou a ter o sentido de pessoas que
se acham num lugar que não é o seu país. O primeiro termo, “estranhos”, dá
mais a idéia de uma unidade familial, de uma espécie de relação de sangue, ao
passo que esta outra, “estrangeiros” ou “forasteiros”, compele-nos
inevitavelmente a pensar mais em termos de uma comunidade política, um
Estado, ou um país, ou um reino. Estrangeiro é quem está num lugar que não é o
seu próprio país. Quer dizer que, embora este homem esteja vivendo no país,
não possui a cidadania desse país, não se naturalizou, não tem direito
à residência permanente nesse país. Ou, para dizê-lo de modo ainda
mais simples, reside ali baseado num passaporte. Pois bem, são estas as
duas palavras empregadas pelo apóstolo Paulo: estranhos e estrangeiros (VA) ou
forasteiros, pessoas que vivem ali, talvez há bastante tempo, mas continuam
sendo estrangeiras. Outro lugar é o seu lar; aqui esses estrangeiros residem
graças a um passaporte, e têm que renová-lo periodicamente. E essa, então, a
figura que o apóstolo coloca diante de nossas mentes. E vocês podem observar
que quando ele chega à argumentação positiva, ele inverte a ordem: começa com
a cidadania e depois passa ao relacionamento familiar. No entanto, neste
momento estamos interessados primordialmente na negativa.

Notem como esta questão é sutil. Vemos isso muitas vezes na prática. Alguém
pode estar vivendo na família, alguém que está vivendo na família há anos, é
quase da família e, contudo, não é da família. Embora esta pessoa esteja
compartindo a vida da família de todas as formas que possamos conceber, ele ou
ela ainda não pertence à família. E é aí que entra a dificuldade. Um estranho, um
visitante, poderia muito bem pensar e dizer: obviamente, esta pessoa é da
família. E, todavia,

depois de conhecer os moradores passado breve tempo, descobririanão ser este o


caso. É exatamente a mesma coisa com um país. Pode haver pessoas vivendo
num país, residentes há muitos anos, e alguém, em visita ao país, vendo-as
poderia ter como certo que qualquer delas é de fato daquele país, é simplesmente
um cidadão típico - que faz o mesmo tipo de coisas que os outros cidadãos
fazem, vão ao trabalho de manhã, voltam à noite no mesmo trem, seguem
exatamente a mesma rotina. E, na verdade, aquela pessoa não pertence a esse
país, não é um cidadão local, mas vive ali mediante um passaporte.

Aí vemos, numa figura, a idéia que precisamos ter bem presente em nossas
mentes. Esse tipo de coisa acontece na Igreja de Deus; esta mesma situação, de
viver com uma família e não pertencer a ela, estar num país e não ser seu
cidadão. E possível estar num grupo e não ser do grupo. Certamente vocês se
lembrarão de que quando os filhos de Israel subiram do Egito e foram para
Canaã, é-nos dito, numa frase deveras extraordinária, que “subiu também com
eles uma mistura de gente” (ou, “uma multidão mista”, VA, Êxodo 12:38).
Foram com eles, partilharam os mesmos riscos, os mesmos problemas e
dificuldades que os filhos de Israel enfrentaram, porém não pertenciam a eles.
Eram uma “multidão mista”. Mas de fato o apóstolo leva mais longe o ponto,
na Epístola aos Romanos, quando diz: “Nem todos os que são de Israel
são israelitas” (Romanos 9:6). Que frase! Você olha para aquele monte de gente,
e diz: são todos de Israel. Todavia não é essa, necessariamente, a conclusão
certa. Há Israel e “Israel”. Há um “Israel” do espírito, como também há um
Israel da carne. Há um remanescente no povo. Esse é o ensino do apóstolo, e
nestas Epístolas do Novo Testamento, é uma doutrina vital e sumamente
importante. Você pode ser de um grupo e, contudo, não pertencer realmente a
ele. O apóstolo João diz a mesma coisa acerca de certas pessoas que tinham
saído da Igreja Cristã Primitiva. “Saíram de nós”, diz João, “mas não eram de
nós; porque, se fossem de nós, ficariam conosco” (1 João 2:19). Tinham estado
entre eles, mas não eram deles. Tinham estado na Igreja e pareciam
cristãos, porém nunca pertenceram realmente à Igreja.

Essa é a espécie de questão que se nos apresenta aqui. Consideremo-la na forma


de alguns princípios. O primeiro é que a diferença entre o cristão e o não cristão
é clara e definitiva. A despeito de tudo o que eu estive dizendo, permanece o
princípio segundo o qual há uma clara distinção entre um cristão e um não
cristão. Paulo diz algo semelhante a isso, para expressá-lo: “Vocês - não são
mais”. Há uma mudança, uma

mudança de alto a baixo. Que houve uma mudança exterior é evidente, mas ele
não está interessado na mudança exterior, e sim, na interior. E, portanto, não há
nenhuma necessidade de hesitar em afirmar que cada um de nós, neste momento,
ou é cristão, ou não é. Ou estamos “em Cristo”, ou estamos “fora de Cristo”.
Aristóteles uma vez lançou como proposição, sem dúvida verdadeira, que “Não
há meio entre os opostos”. Os opostos são opostos, e não há nada no meio, não
há nenhum meio entre eles. E “ou - ou.” No capítulo sete do Evangelho
Segundo Mateus, o nosso bendito Senhor e Salvador dá ênfase exatamente a
este ponto. Você não pode estar ao mesmo tempo no caminho estreito e
no caminho largo. Você não pode entrar por duas portas no mesmo
instante. Você não pode passar ao mesmo tempo por uma borboleta ou catraca, e
por uma porta larga. E impossível. Pois bem, é aí que começa a diferença entre o
cristão e o não cristão. O cristão entra por uma porta estreita e segue um
caminho estreito. O outro faz exatamente o contrário. Temos que ser uma coisa
ou outra. Essa é a afirmação do nosso Senhor. Vocês podem notar como Ele vai
repetindo isso - o profeta verdadeiro, e o falso; a boa árvore, e a ruim; o bom
fruto, e o mau; e, finalmente, nessa tremenda descrição dacasa sobre a rocha e da
casa sobre a areia. É sempre uma coisa ou outra, é ou - ou. Ou vocês são cristãos
ou não são cristãos. E estas coisas são absolutas. Vocês não são mais estranhos e
estrangeiros; vocês são cristãos, estão no corpo.

A posição do cristão não é uma posição vaga, indefinida, incerta. É verdade que
se vocês pensarem nela principalmente em termos de conduta e de
comportamento superficiais, então ela pode muito bem ser vaga. Posso traçar
facilmente um quadro descritivo e mostrar a vocês dois homens. Um deles é
notável por sua elevada moralidade, nunca faz mal a ninguém, sua palavra é sua
promissória, é honesto, justo e reto, um homem completamente bom, em todos
os sentidos da palavra. Entretanto, vejam agora o outro homem. Olhando os dois
de maneira geral, vocês não podem dizer que o segundo é bom como o primeiro.
Às vezes faz coisas que não devia fazer, ele não tem, talvez, um caráter
louvável. E, todavia, pode dar-se o caso deste segundo homem ser cristão e o
outro não. Pois o que determina se um homem é cristão ou não, não é a
sua aparência geral e o seu comportamento. Aquele estrangeiro que vive
em nosso país se parece exatamente com um inglês, faz as mesmas coisas, etc.;
não obstante o fato é que ele continua sendo estrangeiro. O fato de que ele se
parece com o cutro homem não significa que é como ele. A questão é:
suaresidência se apóianum passaporte ou em suacidadania? Vocês vêem, a prova
não é esta aparência geral, superficial. É exata-

mente isto que o Novo Testamento está sempre salientando. Este é um ponto
realmente fundamental. Concordaríamos que, ou somos definidamente cristãos,
ou senão, não somos cristãos? Concordaríamos que não existe isso de haver uma
posição intermediária em que o indivíduo espera ou tenta ser cristão? Se você
está simplesmente esperando ou tentando ser cristão, você não é. Estar na soleira
da porta não é estar dentro, e não ajuda nada estar na soleira quando a questão
é: você está dentro ou não? Quantas vezes isso é descrito nas Escrituras! O nosso
Senhor traça o quadro das pessoas que vêm bater àporta e dizem: “Abre para
nós”; mas a resposta que vem de dentro é: não, vocês estão fora, não são daqui.
Ou somos cristãos, ou não somos cristãos.

Assim, o segundo ponto que apresento, o meu segundo princípio, consiste em


acentuar a importância vital de sabermos o que somos. Ora, aqui, de novo, a
ilustração de Paulo nos ajuda. Pergunto: como se toma claro e óbvio se somos
estranhos e estrangeiros (forasteiros), ou se realmente somos do lugar? Sempre
acaba ficando claro. Não importa quão íntima seja a relação, e quão amigo você
seja de alguém que esteja vivendo com você na família. Temos um dito que
resume tudo muito bem - “Afinal de contas, o sangue é mais grosso do que a
água.” Certas coisas aparecem na vida quando o que de fato importa é a relação
de sangue. E é nesse ponto que o pobre estranho começa a sentir que não passa
de um estranho, afinal. Durante anos ele pode achar que as distinções eram
irrelevantes, e pode ter dito: eu sou um deles, sou membro da família e sempre
fui tratado como membro da família. Mas, de repente, numa crise, ele descobre
que não é. “O sangue é mais grosso do que a água.” Não se pode explicar estas
coisas; vocês até podem dizer que há muita coisa errada numa situação como
essa. Pode ser, porém é como funciona na prática. Se alguma coisa fundamental,
elementar, subitamente vier à superfície, logo você verá toda uma famíl ia que
talvez estivesse em confusão, repentinamente tornar-se unânime. E o
pobre estranho percebe que é um de fora.

Ou vejam a outra ilustração que talvez coloque isso de maneira mais clara ainda.
Tomem o caso de uma pessoa que se acha noutra terra como forasteiro, como
estrangeiro. Pode ter vivido ali vinte, trinta, quarenta anos, gosta de viver ali, é
estimado por todos e se sente feliz. Todas as distinções parecem irrelevantes.
Que importa se o que ele tem é um passaporte, e não uma verdadeira cidadania,
e tem que providenciar renovação e visto e tudo o mais? Mas, esperem! Súbita e
inesperada-mente, o país natal deste homem e o no qual ele está vivendo, têm
um

litígio; não resolvem o litígio, e é declarada guerra. E este homem, que pode
estar vivendo há quarenta anos no país, de repente vê que é um estrangeiro, e
que todos o olham com suspeita. Poderá ser posto em reclusão ou ser enviado de
volta ao seu país. Parecia ser um membro da comunidade, um cidadão do país,
unido aos verdadeiros cidadãos; porém quando surge uma crise, uma prova, uma
tribulação, logo fica claro que, afinal, ele é um estrangeiro. Vimos muito desse
tipo de coisa neste país em 1914 e em 1939. As vezes chega a ser trágico,
contudo acontece.

Retornemos, então, ao princípio que achamos percorrendo as Escrituras, de capa


a capa. Por que é importante saber se você é cristão ou não? Vou dizer-lhe. É na
hora da prova que isso se torna de vital importância para você. É nas provas e
tribulações que isso vem à luz. Você vai vivendo anos e anos enquanto você está
bem, robusto e saudável. Você está na igreja, você parece que é da igreja, os
seus interesses estão lá e você é um dos que pertencem à comunidade. Mas, de
repente, você adoece e fica meses de cama. Não demorará muito para você saber
se é cristão ou não. Isso faz uma vital diferença então. Ou quando um membro
da família fica enfermo, quando há privação ou luto, ou alguma terrível tristeza
de arrebentar o coração, Ah, é então que isto se toma da maior importância. Se
você só “reside baseado no passaporte”, isso não parece ajudá-lo. No entanto, se
você realmente pertence à comunidade, isso fará toda a diferença do mundo.
Mas, levemos isto à última instância. Esta nos é dada pelo Senhor mesmo. Não
seria disso que trata a parte conclusiva do capítulo sete de Mateus? Estas
pessoas que parecem cristãs e que dizem: “Senhor, Senhor, não profetizamos em
teu nome... e em teu nome não fizemos muitas maravilhas?” -estavam na igreja,
eram ativas na igreja, eram gente de igreja. Todavia Cristo diz: “E então lhes
direi abertamente: nunca vos conheci; apartai-vos de mim, vós que praticais a
iniqüidade”. Um estranho, afinal, um estrangeiro, em última análise; passaporte
devolvido, navio ao largo, expulso do país! Ah, a vital importância de certificar-
nos absolutamente do que somos, se continuamos sendo “estranhos e
estrangeiros”, ou se realmente somos daqui.

Para ser prático, deixem-me colocar o meu terceiro princípio em termos de


perguntas. Como podemos saber disso? Como podemos resolver esta questão?
Quais são as provas? Vou sugerir algumas respostas bem simples, baseadas na
ilustração utilizada pelo apóstolo.

Começo com amais superficial delas. E a seguinte: um sentimento

geral. Não vou testar vocês, vocês vão testar a si próprios. Amigo, você quer
saber se você é ou não um estranho e forasteiro? Bem, responda estas perguntas:
você se sente realmente bem na igreja? Você se sente à vontade entre os
cristãos? Você se sente em casa? Ou você tem a incômoda sensação de que, de
algum modo, é de fora? É o que acontece quando você vai hospedar-se numa
casa de família, não é? Os hospedeiros são excelentes e mostram amizade, mas
você sente que não é dali, não se sente muito à vontade, está cônscio de que não
está em seu próprio lar, não consegue descontrair-se. Você é um estranho, afinal
de contas, embora todos lhe sejam bondosos, afáveis e amigos. Você se sente
em casa entre o povo de Deus? Você fica à vontade? Ou, apesar de tudo, não
passa de um estranho, um de fora, um intruso que realmente não se enquadra?
Ou, permitam-me colocá-lo assim: você se sente bem, tão bem entre os cristãos
como noutros círculos sociais e com outros tipos de companhia- e com as risadas
e pilhérias, as brincadeiras, e talvez as bebidas e o jogo, você tem liberdade com
eles e tem muito que dizer? Você é um deles? É assim? Você se sente um pouco
fora do seu elemento na igreja? Isto é tremendamente importante. Quando você
o coloca em termos de família, você vê como isso é inevitável. É um
desses imponderáveis, como lhes chamamos, algo que dificilmente você poderá
escrever, isto é, pôr no papel, mas você simplesmente sabe o que é. É assim que
eu me sinto, você diz; e o seu sentimento está certo.

Ou vejam outra abordagem. Haveria um real e vivo interesse? Quando você


pertence a um grupo, trabalha ativamente pelo seu interesse, você tem vivo
interesse. Mais que isso, você realmente se deleita nisso, seu coração está posto
nisso, é o que você ama, é onde você gosta de estar. Você gosta de estar em casa,
você gosta de estar em seu país; você pode admirar outros, porém, afinal de
contas, este é o seu lar. Ora, a mesma coisa aplica-se a este relacionamento. O
homem que verdadeiramente lhe pertence se delicia nisso. Não é questão de
esforço para ele. Não é mera questão de dever. É uma coisa na qual ele
tem satisfação própria e que ele preza acima de tudo mais. Permitam-me resumir
toda esta seção colocando-a nas palavras da Primeira Epístola de João: “Nós
sabemos que passamos da morte para a vida, porque amamos os irmãos” (3:14).
Sentimos que pertencemos a eles. Haverá alguns deles dos quais não gostamos,
talvez, mas nós os amamos, porque são irmãos. Podem gostar mais doutras
pessoas do que deles, todavia não é questão de gostar, é questão de amar. As
vezes acontece que um membro de uma família gosta mais de um amigo do que
de um irmão ou irmã; isso não afeta o relacionamento, este é algo elementar,
funda-

mental, orgânico, e mais profundo que qualquer outra coisa. “Nós sabemos que
passamos da morte para a vida, porque amamos os irmãos.” Sentimento geral!

Passemos a uma segunda prova. Entendimento! Quando você está convivendo


com uma família, esta questão de entendimento toma-se tremendamente
importante; e dá-se o mesmo quando você é estrangeiro noutro país. Eis o que
quero dizer: você sabe e entende o que se está falando? Haveria algo que faça
você se sentir mais molestado do que, embora estando assentado com um grupo,
sentir-se, de um modo ou de outro, fora da conversa e não conseguir penetrar no
que está sendo dito? Todos parecem entender-se, usam certas frases, olham-se
uns aos outros como se entendendo, estão todos dentro do assunto, é uma
espécie de maçonaria, por assim dizer; mas você, de algum modo, não está
nisso. Você ouve, faz parte do grupo, está na conversação, entretanto não é capaz
de penetrar no que se diz e não sente prazer nisso. Por isso, faço-lhe perguntas
como estas: você entende a linguagem do povo de Deus ? A família tem o seu
linguajar próprio. Há os que dizem: não posso entender esta prosa sobre
justificação, santificação, e todos estes termos - você se sente assim? Não o
permita Deus! Eles são termos preciosos para os filhos de Deus. Estes não se
impacientam com eles. São como a criança que ouve os adultos. De repente ela
aparece com uma palavra grande, que ela não entende. Que é que a criança está
fazendo? Está tentando provar que é membro do grupo. Está usando uma palavra
que o pai usou. E os filhos de Deus são desse jeito. Eles podem não saber o que
significam justificação e santificação, mas, porque são filhos, querem saber, e se
põem a ler, a estudar e fazer perguntas. No entanto, se você fica impaciente com
isso tudo, você está simplesmente proclamando que é um de fora e que não
entende a linguagem. Porventura a linguagem de Sião é agradável a você?
Imagine-se o caso de um homem que foi para outra terra e teve que falar uma
lingua estrangeira; ele toma o navio de volta e, mesmo antes de desembarcar,
ouve de novo a sua lingua materna e, maravilha, como se regozija! É assim com
o cristão.

Mas não é só questão de linguagem, há algo mais. Você sabe algo dos assuntos
que estão discutindo? Você os entende, tem interesse nas questões? Outra vez,
permitam-me usar uma ilustração. Todos nós já tivemos este tipo de experiência.
Estamos hospedados numa casa de família, talvez. São todos excelentes,
bondosos e afáveis, e nos pomos a conversar. Então, de repente, alguém entra e,
observando o seu semblante, você pode dizer que aconteceu algo de grande
interesse para a família. Eles ficam sem graça, querem falar sobre o assunto,
porém

você está ali, e eles não podem fazê-lo. Por isso falam por meio de insinuações,
alusões indiretas e rodeios. Você não sabe do que estão falando. Eles se portam
desse modo porque você é um estranho - eles gostam de você, não o estão
insultando, mas você não os entende. Há estes problemas e questões íntimos que
eles não podem compartilhar com você, embora gostem muito de você, porque
você não pertence à família. Dá-se o mesmo com um país. E também é assim na
vida cristã. As questões, os assuntos e os problemas da vida cristã são do
seu conhecimento? Você se interessa por eles? Ou quando você se assenta e ouve
pessoas falando sobre eles, ou talvez quando você ouve alguém que está
tentando pregar, você diz a si mesmo: de que se trata? Não entendo. Se ele
estivesse falando sobre a visita de algum estadista estrangeiro, ou sobre alguma
nova medida apresentada no parlamento, claro que eu entenderia; todavia estas
outras coisas - de que se tratam? Que é isso? E tão aborrecível! É desse tipo a
maneira pela qual você pode verificar se é da família ou não.

Finalmente, permitam-me dizê-lo de um modo que, suponho, é uma das provas


mais definitivas. Você conhece os segredos? Há segredos familiares, há segredos
nacionais. Você está por dentro dos segredos? E possível que um homem tenha
interesse por religião, por teologia, por filosofia; e enquanto você está tratando
de questões abstratas e teóricas, ele parece estar integrado, parece um da
família. Mas, subitamente você começa a falar espiritualmente - quer dizer, você
começa a falar experimentalmente, você começa a falar sobre a sua alma e sobre
a sua experiência pessoal - e imediatamente o homem que se mostrava tão
interessado teoricamente, sente-se fora. Você sabe algo sobre isso? Outro dia
ouvi falar de um homem que estava num certo seminário teológico. Ele foi para
lá porque soube que lá ensinavam as grandes doutrinas da fé, e ele estava
apreciando aquilo, para alegria do seu coração. Contudo, de repente se defrontou
com um problema e quis falar com alguém sobre a sua alma, e quis falar a fundo
sobre algum segredo. Mas não conseguiu achar ajuda. Pareciam não entender,
não queriam falar sobre tais questões. Enquanto era uma questão de argumentar
sobre filosofia - maravilha! Interessados em teologia? - sim, certamente! Todavia
quando o homem teve uma necessidade relacionada com a sua alma e queria
algo experimental, de repente começou a sentir que estava vivendo num iceberg.
Totalmente ortodoxos - mas frios. E possível ter um interesse geral, sem este
interesse íntimo e pessoal pelos segredos da vida. Essa é uma prova vital!

Eis outras provas que sugiro: você está se amoldando às leis e aos

costumes do país? Diz o apóstolo João que, para o cristão, os mandamentos de


Deus “não são pesados” (1 João 5:3). São pesados para todos os outros, porém
não para o cristão. O cristão diz: “Quanto amo a tua lei!” Davi pôde dizê-lo no
Salmo (119:97), e o cristão o diz. Proclamamos onde estamos e o que somos
pelo modo de viver. Você vai deste país à França, digamos, ou a alguma outra
parte do continente europeu, em seu carro, e se põe a dirigir na faixa da esquerda
na estrada, e em dois segundos se verá que você é um estrangeiro. Exatamente!
E não há muitos que estão dirigindo na faixa errada da estradana igreja? Eles
não sabem talvez, mas estão proclamando que são estrangeiros e estranhos, estão
dirigindo no lado errado da estrada. Não conhecem e não honram as leis e os
mandamentos do reino. Não se comportam de maneira condizente e coerente
com os costumes e hábitos desta família ou deste país particular. Estranhos e
estrangeiros, embora vivendo com o grupo! Outra prova vital é o interesse pelo
estado e condição da família ou do país, pelo seu bem-estar. Isto surge
instintivamente.

Finalmente se chega a isto: comecei num nível superficial e fui me


aprofundando. Eis a prova final: que é que você tem, um passaporte ou uma
certidão de nascimento ? E uma prova absoluta, não é? Está acima do
sentimento, do interesse, do entendimento e de todas estas coisas. Em última
análise, é uma questão legal. Você tem certidão de nascimento, ou está
simplesmente residindo com base num passaporte? Vocês perguntarão: qual é a
certidão de nascimento do cristão? Eu lhes direi. Está acima e além de tudo
quanto estive dizendo. “O mesmo Espírito testifica com o nosso Espírito que
somos filhos de Deus” (Romanos 8:16). Trata-se de receber o selo do Espírito
(Efésios 1:13). E a segurança que só pode ser dada pelo próprio Espírito Santo,
que nos selou e que é “o penhor da nossa herança, para redenção da
possessão adquirida” (Efésios 1:14). Não me entendam mal. Você pode
ser cristão, embora não tenha um definido conhecimento do selo do Espírito. Se
você passou nas minhas outras provas, asseguro-lhe que você é cristão. Mas eu o
exorto, eu o concito, não se contente com isso. Insista em que tenha a sua
certidão! Vá à Embaixada do Reino Celestial, até consegui-la! Não deixe que
nada o detenha. Procure obtê-la das mãos do Senhor! Dirija-se a Ele. Torno a
usar a expressão de Thomas Goodwin - “corteje-O” para obtê-la até consegui-la.
E depois você saberá e poderá dizer: não sou mais estranho ou estrangeiro,
sou concidadão dos santos, sou da família de Deus; sou uma pedra viva
no templo em que Deus habita. 1

1
Teólogo puritano inglês (1600-1680). Do período mais recente dos puritanos, t) termo que emprega,
traduzido aqui por “corteje-O” é sue. Nota do tradutor.
CIDADANIA CELESTIAL

“Assim que já não sois estrangeiros, nem forasteiros, mas concidadãos dos
santos, e da família de Deus.” - Efésios 2:19

Com estas palavras o apóstolo coloca diante de nós as glórias, os privilégios e as


vantagens de ser membro da Igreja Cristã. Esse é, na verdade, o tema de todo o
capítulo. Anteriormente ele estivera interessado em tratar do mecanismo, da
maneira pela qual isso fora tomado possível tanto a judeus como a gentios, e
agora ele medita na realidade propriamente dita, e está desejoso de que estes
efésios a usufruam com ele e venham a entendê-la e a dar-se conta do seu
significado. Ele sabe, e lhes dissera no capítulo primeiro, que isto somente será
possível quando “os olhos do seu entendimento forem iluminados”. Sem isso, é
completamente impossível.

Para as pessoas cujos olhos não foram iluminados pelo Espírito Santo, a Igreja é
tão-somente uma instituição. Eles podem gostar dela como instituição, podem
gloriar nela como instituição, mas não é isso que o apóstolo gostaria que estas
pessoas vissem. Ele ora no sentido de que os olhos do seu entendimento fossem
iluminados para que elas soubessem qual “a esperança da sua vocação, e quais as
riquezas da glória da sua herançanos santos; equal a sobreexcelen te grandeza do
seu poder sobre nós, os que cremos” (1:18). Já iniciamos a nossa consideração
deste versículo mostrando como o apóstolo ressalta a vital importância de
estarmos absolutamente certos de que estamos na posição descrita neste
versículo. Não podemos esperar compreender os privilégios da posição se não
soubermos em que consiste a posição, e se não estivermos completamente
seguros de que estamos nela. Vimos a importância de saber com certeza que não
somos mais estranhos e estrangeiros, de saber, como me aventurei a colocá-lo,
que não residimos mais baseados num passaporte, e sim que realmente nós
temos as nossas certidões de nascimento, que realmente somos membros
da Igreja. A minha opinião é que, se tão-somente nos déssemos conta do que é
ser cristão e membro da Igreja Cristã, muitos dos nossos problemas, senão todos,
seriam imediatamente resolvidos. Se tão-somente pudéssemos subir às alturas
danossa alta vocação em Cristo Jesus e darmos conta de que ocupamos esta
posição, as picuinhas e os problemas

se tomariam inimagináveis; despencariam, seriam indignos de consideração.


Pois bem, em certo sentido, esse é o argumento de todas as Epístolas do Novo
Testamento. Todas essas Epístolas foram escritas para igrejas, para membros das
igrejas, e o que cada uma delas faz é precisamente o que venho dizendo. Todas
elas começam dando-nos um quadro descritivo da nossa posição como membros
da Igreja Cristã, e depois, tendo feito isso, elas dizem: bem, agora, à luz disso,
obviamente é assim que você tem que viver. Essa é a análise de cada uma
das Epístolas do Novo Testamento.

Portanto, certamente não há nada que seja mais importante hoje, de todos os
pontos de vista, do que compreendermos estas coisas. É importante para nós
pessoalmente. Muitas das nossas aflições, dificuldades e tribulações, muitos dos
nossos problemas seriam encarados de maneira inteiramente diferente, se de fato
nos víssemos como somos em Cristo. E, mais importante ainda, se toda algreja
simplesmente compreendesse o que ela é, j á estaria na estrada real de chegada a
um verdadeiro avivamento e a um poderoso despertamento espiritual. É
porque deixamos de compreender estas coisas que não oramos por
avivamento como devíamos, e não o buscamos e não ansiamos por ele. Não é
de admirar, então, que o apóstolo dê tanta ênfase a isto. Aqui ele o coloca na
forma de várias figuras. Temos as três figuras apresentadas juntas, quase
concomitantemente: a primeira, a Igreja como um grande Estado ou reino; sim,
mas ela é também uma família; sim, e também um templo. Ele j á nos dera antes
uma figura na qual compara a Igrej a a um corpo, um só corpo, um só novo
homem. E vocês verão que, no capítulo cinco desta Epístola, ele usa ainda outra
ilustração, pois nessa passagem ele diz que a relação entre a Igreja e o Senhor
Jesus Cristo é a que existe entre uma esposa e o seu esposo. É interessante notar
que, desse modo, o apóstolo usa uma variedade de figuras e ilustrações; e é
importante entender a razão pela qual ele o faz. Toda e qualquer ilustração é
insuficiente. A verdade é tão grande, tão multifacetada, tão gloriosa, que ele se
vê forçado a multiplicar as suas figuras e imagens. Cada uma delas comunica
algum aspecto particular, e nos habilita a ver uma faceta peculiar da verdade não
transmitida muito bem pelas outras ilustrações e figuras.

Passemos agora à primeira figura. “Não sois estranhos e estrangeiros”! (VA), diz
o apóstolo. Bem, nesse caso, o que somos? “Concidadãos dos santos”! Essa é a
primeira figura. Que é que isso nos diz? Ensino deveras rico! Aqui ele compara
a Igreja a uma cidade, ou

a um Estado, ou a um reino. Não nos surpreende que o apóstolo tenha feito isso.
Naqueles tempos antigos havia grandes cidades-Estados, ou Estados-cidades;
certas cidades eram, em si mesmas, verdadeiros Estados. Mas, acima e além
disso, naturalmente, havia grandes Estados, grandes reinos, grandes impérios. Na
ocasião em que escreveu estacarta, provavelmente o apóstolo era prisioneiro em
Roma, a própria metrópole e centro nervoso do grande Império Romano. Roma
era a capital, e tinha os seus povos espalhados por todo o mundo civilizado da
época, com governadores e outros funcionários importantes pondo em execução
as ordens e instruções do governo central e, em última instância, do imperador.
Não admira, pois, que o apóstolo tenha pensado na Igreja como algo semelhante
a isso. Ela é como um grande Estado, um grande império, um grande reino, e ele
usa a ilustração para transmitir a estes efésios um ensino muito precioso.

Não se trata de uma nova idéia que de repente ocorreu ao apóstolo Paulo. E uma
concepção muito importante que se acha na Bíblia toda. Há grandes seções das
Escrituras que simplesmente não poderemos entender, a não ser que captemos
esta idéia particular. Na vocação de Abraão - que é um dos grandes pontos
divisórios da história - Deus estava dando os primeiros passos para a formação
de uma nação paraEle próprio. Até aquela altura Deus tratava com o mundo
inteiro, por assim dizer. Os onze primeiros capítulos do livro de Gênesis tratam
do mundo todo e da história do mundo todo e de toda a sua população. Mas,
no começo do capítulo doze de Gênesis, no chamamento de Abraão, o registro
começa a tratar especial e especificamente da história de uma única nação. Ali
nos é apresentada logo a idéia de que o povo de Deus é reino de Deus, nação de
Deus - toda esta concepção de Estado. No capítulo dezenove de Êxodo repete-se
muito claramente amesma coisa. Pouco antes da entrega dos Dez Mandamentos
e da lei moral, Deus disse a Moisés que o povo devia dar-se conta de que era
uma “nação santa”, que eles eram “cidadãos de Deus”, que pertenciam a Ele, que
Ele era o seu Rei, e eles o Seu povo. Isso deveria dominar toda a perspectiva
dos filhos de Israel. Antes de levá-los e introduzi-los na terra prometida,
Ele queria que eles compreendessem isso. Toda a tragédia dos israelitas foi que
não o compreenderam. Nunca se aperceberam precisamente disso, que eles eram
reino de Deus, um reino de sacerdotes, uma nação santa para Deus. E por causa
da sua incompreensão, toda a sua tragédia desceu sobre eles, e deixou esculpida
a triste imagem que deles vemos descrita no Velho Testamento. Contudo, ainda,
se vocês forem ao livro de Daniel, verão esta concepção exposta de maneira
sumamente admirável. E a

grande mensagem daquele livro. Em todo ele lemos sobre reinos, lutas entre
reinos e a relação deste reino de Deus com aqueles outros reinos; os animais que
representam aqueles outros poderes - a Babilônia, que já existia, a Medo-Pérsia,
a Grécia, e Roma, que surgiram mais tarde -e este reino. Na verdade, a
mensagem de todos os profetas era uma tentativa de inculcar nos filhos de Israel
a sua peculiar relação com Deus como cidadãos do Seu reino eterno. Depois,
quando vocês chegam ao Novo Testamento, vocês vêem que este é um tema
central do ensino do nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Vejam as Suas
parábolas do reino. Ele sempre pensava em termos do reino. Ele dizia que tinha
vindo para estabelecer um reino. Ele Se dizia Rei - e foi crucificado por dizê-
lo, num sentido, num nível puramente secular. Todo o Seu ensino é sobre o reino
e sobre pessoas entrando em Seu reino. Ele começa dizendo a Nicodemos:
“Aquele que não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus”. Esse tema
integra a Sua mensagem toda. O Sermão do Monte tem sido acertadamente
descrito como o manifesto desse reino. E o tema se vê constantemente nos
escritos do apóstolo Paulo. Vocês o verão igualmente na Primeira Epístola de
Pedro. Ele cita as palavras do Êxodo, capítulo 19, e acrescenta: “Vós, que em
outro temponão éreispovo, mas agora sois povo de Deus” (1 Pedro 2:9-10). Ele
aplica isso a todos os membros da Igreja Cristã. E no livro de Apocalipse vocês
vêem exatamente a mesma coisa. Está claro, então, que esta é uma doutrina vital
na Bíblia; e, como povo cristão, convém que a estudemos, a compreendamos e a
apliquemos a nós mesmos, para que nos gloriemos e nos regozijemos nela, como
se espera que façamos. Qual é, então, o ensino?

Examinemo-lo assim: o que é que isso nos fala acerca de nós mesmos? Que
espécie de definição da Igreja isto nos dá? E muito simples, se vocês tiverem
uma clara concepção de um Estado ou reino ou cidade. A primeira coisa que este
ensino salienta é que nós somos um povo que foi separado e tornado distinto de
todos os outros. As cidades antigas tinham todas um muro ao seu redor, o muro
da cidade. Vocês ainda podem ver restos e remanescentes destes muros
em diversas cidades. Ainda existe uma parte desta cidade de Londres chamada
Muro de Londres, e há outras cidades, como Cantuária e Chester, onde se vê a
mesma coisa. Qual era o propósito do muro? Bem, era para separar os cidadãos.
O muro os mantinha dentro e os outros fora. Havia portas que davam passagem
através do muro da cidade; as portas eram fechadas numa certa hora e eram
abertas noutra hora, na manhã

seguinte. Toda a concepção da cidade, da comunidade política, dá a idéia de


separar, retirar, pôr à parte, circunscrever, e até mesmo encerrar.

Ou, se vocês não quiserem pensar em termos de cidade mas preferirem pensar
em termos de países ou de Estados, sempre há limites ou fronteiras. Pode ser o
mar, pode ser um rio ou uma cadeia de montanhas, ou pode ser umalinha de
demarcação imagináriatracadapor autoridades. Não importa qual seja, contudo
sempre tem fronteira, e não se pode passar de um Estado a outro sem cruzar a
fronteira. Você terá que passar pela alfândega e mostrar o seu passaporte e deixar
que examinem os seus objetos, porque está na fronteira! Não se pode pensar num
Estado ou numa cidade ou num reino sem fronteiras. E o dever das fronteiras é
dizer a certas pessoas: até aqui, sim, mas não além deste ponto; e dizer aos que
estão dentro das fronteiras: esta é a sua cidade, este é o seu país, esta é a terra a
que vocês pertencem.

A importância desta doutrina deveria ser evidente por si mesma. Você não pode
ser cristão sem ser uma pessoa separada. Você não pode estar no reino de Deus e,
ao mesmo tempo, no reino “do mundo”. Há este “ou - ou” fundamental,
gostemos ou não. Este mesmo apóstolo lembra aos gálatas que Deus, no Senhor
Jesus Cristo, livrou-nos do “presente século mau” (Gálatas 1:4). Escrevendo aos
colossenses, ele diz: “O qual nos tirou da potestade das trevas, e nos transportou
para o reino do Filho do seu amor” (1:13). Que concepção
tremendamente importante é essa! Se somos cristãos, somos separados, não
somos mais como os outros todos. Entretanto alguémpoderáperguntar: mas isso
não é ser farisaico? Não é ser orgulhoso? Nada disso! O fariseu separou-
se, porém o fez de modo errado; o erro não estava na separação, estava
no espírito com que ele a fez. Não estou defendendo a atitude do sou--melhor-
que-você, mas o que estou dizendo é que, como cidadão do reino dos céus, sou
diferente dos que não são cidadãos desse reino. Quão prontos estamos para
afirmar isso ao nível nacional - sou inglês, ou lá o que seja! Temos todo o
cuidado de ressaltar a distinção, que não somos outra coisa. E, todavia, quando
passamos à esfera espiritual, há os que se opõem. Isso é ser estreito, dizem eles,
é ser causador de divisão. Mas, sejamos coerentes, sejamos lógicos, acima de
tudo sejamos bíblicos. Seja qual for o nosso pensamento a respeito, o fato é que,
como cristão, como membro da Igreja, você foi tirado do mundo, você foi
separado. E, se você não se der conta disso e não se regozijar nisso, haverá
bom motivo para questionar se você é cristão afinal. É básico, é fundamental, é
uma das primeiras coisas que deveriam ser óbvias.

Passemos a outra coisa, porém. O segundo ponto que sobressai necessariamente


é que, portanto, os cidadãos estão ligados pela obediência a um governante, às
autoridades, à lei e a certo modo de vida. Isto sempre caracteriza uma cidade, um
Estado, um reino. Sendo assim separados, fomos separados para certos objetivos
e propósitos específicos. Toda cidade sempre teve um chefe. Podia ser um rei ou
alguém designado para isso, mas sempre havia um chefe. Todo Estado
sempre teve um chefe, todo reino sempre teve um rei. Não há sentido em
falar em reino se este não tiver rei. E são cidadãos do reino os que estão
ligados pela obediência comum a esse Estado, a esse rei, a essa
autoridade, presidente ou o que for. Como cidadãos, todos nós juntos
reconhecemos isso. Há este vínculo comum, esta lealdade; temos estes interesses
em comum.

Vemos a importância disso quando aplicamos o conceito à Igreja. Todos nós


reconhecemos o mesmo Chefe, o mesmo Rei, eterno, sempiterno. Temos
interesses comuns, os mesmos interesses. Reconhecemos as mesmas leis. E por
causa disso também temos lealdade uns para com os outros. Como direta
conseqüência, há certas coisas que nos são peculiares e que não se aplicam aos
outros. Isso é tão elementar que não tenho necessidade de salientá-lo.
Naturalmente, é vital que compreendamos que não estamos falando
simplesmente da Igreja externa, visível. O apóstolo, no contexto geral desta
declaração, deixa claro que está pensando espiritualmente. Nunca percamos de
vista este fato. Não estamos falando simplesmente da Igrejacomo organização,
como uma organização externa, visível; a idéia do apóstolo é espiritual, mística
e orgânica. Expressa-se externamente, mas o que é vital é este princípio interno.
Pois, é possível ser membro da Igreja visível, externa, e, contudo, ter ignorância
de Cristo, não conhecê-10, não estar verdadeiramente, vitalmente relacionado
com Ele. Que lástima! Sempre houve pessoas assim, e ainda há; foram criadas
na igrej a local, é tradição, é algo que faz parte da esfera social e suas modas,
mas não é algo vivido, não é real. O coração delas está no mundo, não na Igreja.

Em certo sentido, a maior tragédia ocorrida na história da Igrej a foi quando o


cristianismo se tomou a religião oficial do Império Romano, e começou aquela
fatal associação entre a Igreja e o Estado que daí em diante obscureceu e
confundiu a situação. Perdeu-se esta idéia de separação, e o povo passou a
pensar em termos de países cristãos, presumindo que todos os que são de um tal
país são cristãos. Quão completamente contrário ao ensino de Paulo! Não, não é
meramente o externo. O que Paulo quer dizer é que, como cristãos, somos
cidadãos

do reino de Cristo. Onde está o reino de Cristo? O reino de Cristo está onde quer
que Cristo reine; portanto, o reino de Cristo pode estar no coração do indivíduo.
Cristo reina nos corações de todos os que Lhe pertencem e se submetem a Ele. O
reino de Cristo está na terra e no céu, em Seu povo. Seu reino não é deste
mundo, é provisoriamente invisível, mas é real. O reinado, o governo e a
autoridade de Cristo, onde quer que estejam, é o Seu reino. É disso que o
apóstolo está falando. Cristo é o nosso Profeta, o nosso Sacerdote e o nosso Rei,
e todos os que reconhecem o Seu governo e se inclinam diante dEle em
obediência, são cidadãos do Seu reino eterno. O valor e a importância de se ver
este assunto desse modo toma-se evidente quando nos damos conta de que ele
nos diz que aqui e agora podemos ser cidadãos daquele reino, que durará para
todo o sempre. Entramos nele agora, e continuaremos nele por toda a eternidade.

Vejamos agora um terceiro ponto, que é: os privilégios da nossa cidadania neste


reino glorioso. Todos nós nos interessamos por privilégios, não é? Você conhece
o tipo de homem que gosta de gabar-se de os ter e de que ele está “de bem” com
os grandes. Ele poderá apresentar você, diz ele. Privilégios! Como os desejamos!
Como gostaríamos de tê-los! Todo o mundo está louco por privilégios hoje.
E resultado do pecado. Todavia, se você está interessado em privilégios, ouça
isto: quais são os privilégios desta cidadania? O primeiro e maior privilégio é
este - o nosso Rei. As pessoas se ufanam da sua cidadania, dos seus países e de
certas coisas em particular. Citam a sua história, falam dos seus heróis; erigem
monumentos em honra deles, escrevem sobre eles em livros. Orgulham-se da
sualigação com eles. Mas tudo isso empalidece, chegando à insignificância,
quando comparado com os nossos privilégios como cidadãos do reino do céu.
Acima de tudo o mais, nós nos gloriamos no fato de que temos um Rei que é “o
Rei dos reis, e o Senhor dos senhores”, o próprio Filho de Deus - o Rei do céu.

No entanto, continuemos a considerar a esfera deste reino. E este é um tema


sumamente fascinante e maravilhoso. A esfera de todos os reinos terrenos é a
terra, e o seu centro, a capital, é sempre na terra. Pertencemos à Grã-Bretanha, a
uma comunidade de nações, e costumávamos gabar-nos do fato de que os seus
cidadãos estavam espalhados por toda a terra, e que o sol nunca se punha sobre o
Império Britânico. Quão extenso, quão maravilhoso! E temos uma capital -
Londres. E outras nações gabam-se de coisas semelhantes. Londres -Paris -
Washington! Capitais! Poder sobre extensos territórios, amplo império e
domínio! As

nações têm grande orgulho disso, e muitas vezes as suas rivalidades e invejas as
levam a conflitos. Isso mostra como apreciam o privilégio, e o orgulho que
sentem pela esfera e pela extensão dos seus reinos. Mas por certo vocês
recordam como o nosso bendito Senhor definiu e descreveu o Seu reino neste
aspecto. Ele disse: “O meu reino não é deste mundo”. Referiu-Se a ele como o
reino do céu, ou “o reino dos céus”. E o apóstolo, escrevendo aos filipenses, diz:
“A nossa cidade está nos céus” (3:20). Estamos na terra, porém a nossa
cidadania é lá. Alguém traduziu essa frase com as palavras: “Somos uma colônia
do céu”. Sim, estamos na terra, mas agora simplesmente uma colônia; a nossa
capital não é Londres, Paris ou Nova York, e sim o próprio céu.

A que cidade eu e você, como cristãos, pertencemos? Segundo o livro de


Apocalipse, é a Nova Jerusalém, que vai descer do céu e estabelecer-se na terra -
a Nova Jerusalém! É onde vive o Rei, onde Ele está assentado à mão direita da
glória neste momento. Não uma Jerusalém terrestre, mas uma Jerusalém celeste,
uma Jerusalém sempi-tema. Que privilégio, pertencer a tão grande império, a tão
amplo domínio! Contudo não é só verdade dizer que o quartel-general, a capital,
é no céu. Os cidadãos deste reino estão espalhados pela terra toda. Inclui homens
e mulheres “de todas as nações, e tribos, e povos, e línguas” (Apocalipse 7:9).
Na expressão de Isaac Watts -

Povos de toda língua, e de toda nação,

Cantam sublime canto, em Seu amor estão.

Que reino! Que esfera! O romano orgulhava-se de ser cidadão romano. Os


homens pertencentes a grandes impérios sempre mostraram o mesmo orgulho.
Cristãos, apercebam-se de que são cidadãos de um reino como este! Quartel-
general no céu; o Rei eterno, imortal, invisível, como o seu Rei! E cidadãos em
todos os reinos, terras, continentes e climas! Onde quer que vivamos e seja qual
for a nossa nacionalidade, não faz diferença. Pertencemos a Ele, o quartel-
general é o mesmo - a Jerusalém celeste. Que reino glorioso! Que privilégio, ser
cidadão de tal cidade!

Entretanto deixem-me mencionar outra coisa. Vocês notam como o apóstolo


faladanossaconcidadania. “Assim quejánão sois estranhos, nem estrangeiros,
mas concidadãos dos santos” (VA). Pensem em seus concidadãos! Dos santos,
diz ele - vocês são concidadãos deles. Quem são eles? Não é a nação de Israel
como tal, porque “nem todos os que são de Israel são israelitas”. Ele está
pensando nos santos entre os filhos

de Israel. O que Paulo quer dizer aqui é o que o homem que escreveu o Salmo
oitenta e sete, versículos cinco e seis, tinha em mente quando disse: “E de Sião
se dirá: este e aquele nasceram ali; e o mesmo Altíssimo a estabelecerá. O
Senhor contará na descrição dos povos que este homem nasceu ali”. Vocês vêem
o que ele quer dizer? Ao nível natural, os homens se orgulham de pertencer a
uma nação capaz de produzir um ^Shakespeare - a terra de Shakespeare! A terra
de Marlborough! A terra de Wellington; aterradePitt; a terra de Cromwell - a
terra desses gigantes que foram estadistas, poetas, artistas etc.! Que orgulho,
pertencer a uma nação como esta - tais homens nasceram aqui, foram criados em
nossa terra, ossos dos nossos ossos, por assim dizer, ecarnedanossacarne. Mas
aBíbliadiz: “O Senhor contará na descrição dos povos que este homem nasceu
ali”. E esse o povo ao qual pertencemos. Somos concidadãos de Abraão, o maior
cavalheiro que já viveu, aquele que teve a distinção de ser chamado “amigo de
Deus”. Não seria uma coisa maravilhosa entender e saber que você pertence
à mesma cidade, ao mesmo reino a que Abraão pertenceu? E não
somente Abraão, mas também Moisés, Davi, Isaías, Jeremias, e todos
aqueles valorosos homens do Velho Testamento. Pertencemos a eles, estamos na
mesma cidade, temos estes interesses comuns e esta lealdade comum. Devo
confessar que para mim é, talvez, a maior emoção perceber que sou um
concidadão do apóstolo Paulo, que, como cristãos somos um com ele, que temos
os seus interesses em nossos corações, e que as mesmas coisas que o moviam
nos movem. E o veremos e passaremos a eternidade com ele, e com todos os
outros apóstolos.

Pois bem, considerem a história da Igreja. Alegra-me pertencer ao mesmo grupo,


ao mesmo reino a que pertenceram Agostinho, João Calvino, Martinho Lutero,
John Knox, os puritanos, Whitefíeld, Wesley, e tantos outros mais. Somos todos
um, pertencemos àquele grupo de pessoas. Já não somos do mundo, pertencemos
a este reino separado, a este reino de sacerdotes, a esta nação santa. Permitam-
me lembrar-lhes os versículos 22-24 do capítulo doze da Epístola aos Hebreus,
que expressa isso com perfeição: “Mas chegastes ao monte de Sião, e à cidade
do Deus vivo, à Jerusalém celestial, e aos muitos milhares de anjos; à universal
assembléia e igreja dos primogênitos, que estão inscritos no céus, e a Deus, o
Juiz de todos, e aos espíritos dos justos
John Churchill, primeiro Duque de Marlborough (1650-1722), soldado inglês, vitorioso em muitas
batalhas importantes. Nota do tradutor (para evitar associações indevidas).

aperfeiçoados; e a Jesus, o Mediador de uma Nova Aliança...”. É para onde


vamos. Pertencemos a este lugar. Já não somos um pequeno reino na terra, aos
pés do monte Sinai. Chegamos à Jerusalém celestial, a aos muitos milhares de
concidadãos.

Mas, finalmente, para completar a figura, o último privilégio é compreender algo


das expectativas futuras e da futura glória do reino. No presente ele parece
fraco. Grandes multidões estão fora da Igreja, e muito cristão tolo é tentado
aperguntar: devo continuar com isso, haverá de fato algo aí? Vou à igreja ou não
vou? Quem diz isso não viu o real significado deste reino. Hoje somos uns
poucos rejeitados e desprezados, talvez, mas há uma glória vindoura. “Em ti”,
disse Deus a Abraão no princípio, “serão benditas todas as famílias da terra.”
Conte as estrelas do céu, se é que pode, disse Deus a Abraão; numerosa assim, e
mais, será a sua posteridade. Conte os grãos de areia da praia do
mar; inumeráveis assim serão os cidadãos do reino que se formará de você e da
sua semente. Entretanto considerem também a mensagem dada ao profeta
Daniel. Acaso vocês se lembram da visão que foi dada ao rei, a visão daquele
grande poder que iria dominar o mundo e esmagar o povo de Deus — uma
imagem com cabeça de ouro, peito e braços de prata, o ventre e as coxas de
cobre, as pernas de ferro, e os pés em parte de ferro e em parte de barro? Esse
poder deveria dominar altaneiro sobre a terra como um verdadeiro colosso. Mas
esse não foi o fim. “Escrevas vendo isto”, diz Daniel a Nabucodonosor, “quando
um pedra foi cortada, sem mão, a qual feriu a estátua nos pés de ferro e de barro,
e os esmiuçou. Então foi juntamente esmiuçado o ferro, o barro, o cobre, apratae
o ouro, os quais se fizeram como apragana das eiras no estio, e o vento os
levou, e não se achou lugar algum para eles; mas a pedra, que feriu a estátua, se
fez um grande monte, e encheu toda a terra” (Daniel 2:34-35). Esse é o reino de
Deus, que começa como uma pedra desprezada, e como nada, diante de um
poder colossal; porém ela o fere e o esmiuça, e ele desaparece; e a pedra se torna
um grande monte, que enche a terra toda. Virá o dia, diz Paulo aos filipenses, em
que “ao nome de Jesus todo joelho, dos que estão nos céus e dos que estão na
terra, se dobrará, e toda língua confessará que Jesus Cristo é Senhor, para a
glóriade Deus o Pai” (2:10-11). Diz João, no livro de Apocalipse: “O sétimo anjo
tocou a sua trombeta, e houve no céu grandes vozes, que diziam: os reinos do
mundo vieram a ser de nosso Senhor e do seu Cristo, e ele reinará para todo
o sempre” (11:15). E eu e você somos cidadãos desse reino. Este
vencerá, prevalecerá.

Jesus reinará onde o sol Faz seu sucessivo percurso.

E vocês sabem disso? Sabem que eu e vocês vamos reinar com Ele? É o que
Paulo diz em 1 Coríntios, capítulo 6: “Não sabeis vós que os santos hão de julgar
o mundo? Não sabeis vós que havemos de julgar os anjos?” É um reino
inabalável. É um reino que não terá fim. E o reino eterno de Deus e do Seu
Cristo. E eu e vocês, se somos cristãos, já estamos nEle, já somos seus cidadãos.
Graças a Deus, “já não somos estranhos e estrangeiros, mas concidadãos dos
santos”.

PRIVILÉGIOS E RESPONSABILIDADES

“Assim que já não sois estrangeiros, nem forasteiros, mas concidadãos dos
santos, e da família de Deus.” - Efésios 2:19

Como já vimos, o apóstolo está descrevendo aqui, de maneira positiva, os


privilégios dos membros da Igreja Cristã. Havendo explicado como os dois lados
foram aproximados, os judeus e os gentios, agora mostra aos dois juntos qual é a
situação deles como membros da Igreja. Com esse fim, ele emprega diversas
imagens e figuras. A Igreja, ele já tinha sugerido, é como um corpo. Mas aqui ele
nos fala da Igreja como uma cidade, um reino - “concidadãos”. Ele diz que a
Igreja é também como uma família - “a família de Deus”. Todavia a Igreja
é também como um templo, no qual Deus habita. No momento vamos examinar
a primeira figura dada neste versículo dezenove - a Igreja como um Estado, um
reino, uma cidade. Anteriormente consideramos o significado dessa definição
em geral. Consideramos também como se obtém esta cidadania. E então vimos
alguns dos privilégios gerais que pertencem anos, como cidadãos desse reino.
Lembramo-nos do caráter do nosso Rei, da extensão do Seu reino, dos nossos
concidadãos, e da glória futura deste reino estupendo no qual fomos
introduzidos,

Mas agora devemos examinar por um momento privilégios mais particulares


que pertencem a nós como membros e cidadãos deste grande reino. O apóstolo
tinha desejo de que os efésios se dessem conta destas coisas. Eles tinham sido
salvos, estavam na Igreja, tinham sido selados pelo Espírito Santo. No entanto,
ele não está satisfeito com isso, ele ora no sentido de que os olhos do seu
entendimento sejam iluminados para que eles possam conhecer mais estas coisas
e, dentre elas, esta emparticular. E, certamente, o nosso maior problema como
povo cristão hoje é que não nos damos conta dos privilégios da nossa posição
como membros da Igreja Cristã. A maior necessidade atual é ter uma verdadeira
e adequada concepção danaturezadalgrejaCristã. Vistoqueanós que pertencemos
a ela falta isso, é que não conseguimos atrair os de fora. Causamos tão pobre
impressão que eles não se interessam. O aviva-

mento começa na Igreja. Nunca se poderá levar adiante a evangelização com


uma Igreja que não seja uma viva demonstração do evangelho. Assim, de todos
os pontos de vista, aquilo em que necessitamos concentrar-nos na hora presente é
o caráter, a natureza da Igreja, e o privilégio da nossa posição na Igreja.

Consideremos alguns destes outros privilégios. Há certas coisas que podemos


acrescentar aos privilégios gerais, já considerados. Ao desenvolvermos esta
analogia da Igreja como um reino, esses privilégios se tomam óbvios.

Pensem, por exemplo, nos benefícios que gozamos por sermos cidadãos desse
reino. Essa é uma das primeiras coisas em que se pensa em conexão com um
reino. Como cidadão de um país, você goza todos os benefícios do reino, do
governo e das leis dessa comunidade particular. Com freqüência a orgulhosa
vangloria dos cidadãos deste país (Inglaterra), é que ele é a pátria da liberdade -
da democracia parlamentar, e assim por diante. Pois bem, são essas as coisas que
desfrutamos como resultado da nossa cidadania neste país. Noutros países
hápessoas que não têm estes privilégios, ainda vivem mais ou menos em
servidão. Há outros que estão debaixo de tiranias terríveis. Uma das
melhores coisas da cidadania é que ela dá de imediato a você o direito de
gozar todos os benefícios do sistema e forma de governo, e da economia de
um Estado particular.

Podemos transferir tudo isso para a esfera da Igreja. O apóstolo já nos fizera
lembrar isso, no capítulo primeiro, no versículo três, onde ele diz: “Bendito o
Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o qual nos abençoou com todas as
bênçãos espirituais nos lugares celestiais em Cristo”. Esse é o sumário de todas
as bênçãos deste reino particular. São intermináveis, e é impossível tentar
descrevê-las. Mas devemos apegarmos ao grande princípio de que todas as
bênçãos espirituais nos lugares celestiais em Cristo são nossas. O reino, a cidade
a que pertencemos é um reino, uma cidade em que todas as bênçãos são dadas
gratuitamente; é do beneplácito do Rei que elas sejam dadas. Ele Se deleita em
fazê-lo. Ele Se interessa pelos Seus cidadãos, interessa-Se por todo o Seu povo;
seu bem-estar ocupa um lugar especial em Sua mente e em Seu coração. Ele é o
Pai do Seu povo, e Se interessa por seu bem-estar e por sua felicidade em todos e
cada um dos seus aspectos.

Outras declarações das Escrituras no mesmo sentido nos ajudarão a entender


isto. O apóstolo, em sua primeira carta a Timóteo, usa uma expressão
interessante: “Deus vivo, que é o Salvador de todos os homens, principalmente
dos fiéis” (ou, “principalmente dos que
crêem”, VA, 4:10), A palavra “Salvador” significa Aquele que abençoa, Aquele
que cuida de, Aquele que livra de dificuldade. E as Escrituras ensinam isto em
toda parte, concernente a Deus. Deus “faz que o seu sol se levante sobre maus e
bons, e a chuva desça sobre justos e injustos”. Há hoje no mundo homens e
mulheres que nunca pensam em Deus e nunca O mencionam, exceto para
blasfemar do Seu nome; não obstante, gozam alguns dos benefícios e bênçãos
comuns, gerais do reino de Deus. Tudo o que ele têm provém de Deus. Ele é “o
Salvador de todos os homens”, sim, mas “principalmente dos que crêem”.
Ele tem interesse pessoal pelos crentes, um interesse especial, um
interesse peculiar, e eu e vocês, como cidadãos do reino, somos os
beneficiários destes benefícios, destas bênçãos especiais que Ele tem para o Seu
povo. Tudo é ordenado para o nosso bem. “Sabemos”, diz Paulo - não
há necessidade de argumentar a respeito, nem de questionar ou indagar
-“Sabemos que todas as coisas contribuem juntamente para o bem daqueles que
amam a Deus” (Romanos 8:28). Não há nada que supere isso. É pura verdade
que Deus, que domina totalmente o universo e o cosmos, manipula todas as
coisas para o bem do Seu povo. Tudo é realizado com vistas a este fim. Deus
tem o domínio sobre tudo e, como nosso Rei, Ele manipula todos os Seus
recursos para o nosso bem.

Vejam outra declaração feita pelo mesmo apóstolo: “Aquele que nem mesmo a
seu próprio Filho poupou, antes o entregou por todos nós, como nos não dará
também com ele todas as coisas?” (Romanos 8:32). O nosso Senhor também
afirma que “até mesmo os cabelos da vossa cabeça estão todos contados”
(Mateus 10:30), e que nada pode acontecer independentemente de nosso Pai.
Muito do ensino do Sermão do Monte destina-se a inculcar esta idéia do
interesse e preocupação especial de Deus pelo Seu povo. É uma coisa que faz
parte de toda a concepção de um reino com seu rei e seus cidadãos. E por isso
devemos lembrar-nos deste fato deveras maravilhoso. Neste reino de Deus e
do Seu Cristo, ao qual pertencemos, todos os recursos da Deidade são para nós.
Esse é o ensino da Bíblia, em toda parte. O Velho Testamento diz muita coisa
acerca do interesse de Deus por Seu povo. Isso está ainda mais claro no Novo
Testamento. Somos os beneficiários de todas estas admiráveis, indizíveis,
insondáveis riquezas e bênçãos do reino de Deus.

Outro privilégio é que temos o direito de acesso ao Rei. Essa verdade inclui o
mais humilde cidadão do território. Em última instância, ele tem direito de apelar
para o rei. Todo o processo da lei está ali, num sentido, para habilitá-lo a exercer
esse direito. Ele pode recorrer de
uma autoridade para outra superior, até por fim apelar para o rei. Pois bem, isso
aplica-se a cada um de nós, como cristãos. Temos um Rei que, apesar de ser o
Rei dos reis e o Senhor dos senhores, e o Governador dos confins da terra,
conhece os Seus cidadãos individualmente e por eles Se interessa. Você está
sobrecarregado, leva um pesado fardo, está lutando e pelejando? Lembro-lhe que
você tem direito de acesso ao Rei. Leve a sua causa a Ele. Por maior que seja
aquilo que está ocupando a Sua atenção, eu lhe garanto que, se você estender a
mão quando Ele estiver passando e lhe apresentar a sua petição, Ele terá tempo
para ou vi-lo, para olhar para você e para tratar do seu caso. Nunca nos
sintamos sumidos na Igreja ou no grande mundo em que vivemos.
Nunca pensemos que somos tão pequenos e insignificantes que este grande
e exaltado Rei não Se interessa por nós. O ensino geral das Escrituras salienta o
inverso e o contrário. Ele está pronto a ouvir o seu humilde clamor.

Quantos exemplos disso há na vida e no ministério do nosso bendito Senhor,


quando esteve na terra! Lembram-se de quando Ele fazia a Sua última viagem
para Jerusalém, como era seguido por uma grande multidão? Mas lá estava um
pobre cego que clamava: “Jesus, Filho de Davi, tem misericórdia de mim”
(Lucas 18:38). Tentaram fazê-lo calar-se. Quieto!, diziam, Ele vai indo para
Jerusalém, Ele não tem tempo para falar com você. Todavia Ele o ouviu. E teve
tempo para parar, falar com ele, curá-lo e libertá-lo. Igualmente teve tempo para
Zaqueu. Também teve tempo para cuidar doutro cego, à porta do templo.
Não importava onde estivesse, ou quão grande fosse a multidão. Lembram-se da
mulher que tocou as Suas vestes? Aí vocês têm ilustrações do Seu cuidado e
solicitude pelas pessoas. Portanto, em sua necessidade e em seu desespero,
lembre-se de que, como cidadão deste reino, o seu Rei conhece você e está
sempre pronto a ouvir a sua petição e a atender o seu clamor.

Mas vamos considerar outro aspecto do assunto. Os recursos do reino são


compartilhados entre nós. Referimo-nos a este ponto quando estudamos a nossa
concidadania com os santos; porém só o analisamos do ponto de vista da sua
grandeza. Entretanto também nos será valioso do ponto de vista prático. A
comunhão que gozamos com os nossos concidadãos! Isso também é uma parte
essencial de toda e qualquer concepção do Estado. Fala-se muito hoje sobre a
responsabilidade do Estado pelo bem-estar do povo, cuja base se pretende ser
que os fortes levem as cargas dos fracos, e os ricos as cargas dos pobres. E uma
co-participação feita para que ninguém tenha superabundância e

outros fiquem sem nada. Essa é a idéia. E caracteriza mais propriamente o reino
de Deus. Há uma injunção específica, neste sentido: “Mas nós, que somos fortes,
devemos suportar as fraquezas dos fracos” (Romanos 15:1). “Levai as cargas uns
dos outros, e assim cumprireis a lei de Cristo” (Gálatas 6:2).

Certamente não há nada que nos seja mais precioso do que a maneira pela qual,
como cidadãos juntos, como membros da Igreja Cristã juntos, sabemos e
experimentamos isso na prática. Haveria alguma coisa mais animadora para o
cristão do que saber que outros oram por ele? - que outros têm você, o seu fardo
e o seu problema em seus corações e estão fazendo intercessão por você? Eles
não estão pensando somente em si mesmos, você é um concidadão, vocês se
pertencem. Oramos uns pelos outros, sentimos uns com os outros, entendemo-
nos uns aos outros. Eu poderia desenvolver este ponto extensamente; deixem-
me, porém, dizê-lo simplesmente desta forma: quantas vezes soubemos da
seguinte experiência! Sentimo-nos de tal modo que mal podemos orar, estamos
desanimados, e talvez o diabo tenha estado particularmente ocupado conosco, e
nos esquecemos inteiramente do fato de que temos este acesso direto ao próprio
Rei. Enquanto estamos tendo comiseração por nós mesmos, de repente nos
encontramos com outro cristão e, começando a conversar, vemos que ele ou ela
está com o mesmo problema ou dificuldade. Imediatamente somos
tranqüilizados efortalecidos. E assim vamos adiantejuntos. Levamos as cargas
uns dos outros. “A lágrima de compaixão”, a compreensão! Estamos indo juntos
para Sião, através de uma terra estranha. E deveras maravilhoso aperceber-nos
de que os recursos de outros, a força e a habilidade de outros, estão à nossa
disposição em nossas dificuldades. E, por sua vez, quando eles estão deprimidos
enós estamos alegres, podemos ajudá-los. E admirável a comunhão entre os
concidadãos!

Contudo, vamos considerar outra fonte de conforto, a saber: a proteção que o


reino nos dá. É algo extraordinário. É um fato, ao nível secular. Todo o poder,
toda a capacidade e todos os recursos de um reino estão por trás do cidadão mais
humilde e servem para defendê-lo. Deixem-me utilizar uma ilustração que
sempre me parece expressar o ponto com muita clareza. Do seu estudo da
história vocês se lembram do que aconteceu em 1739? Em 1739 começou a
chamada “Guerra da Orelha de Jenkins”. Um certo capitão Jenkins navegava em
alto mar, e uma guarda costeira espanhola o atacou sem nenhumajustificação, e
por breve tempo ocupou o seu navio. E ainda, em acréscimo à infâmia da ação,
cortaram uma das orelhas do capitão Jenkins. Este finalmente

voltou ao seu país. Conservou a orelha numa garrafa de álcool e, quando


regressou, apresentou-a ao parlamento. E por causa disso, este país, a Grã-
Bretanha, declarou guerra à Espanha em 1739 - a Guerra da Orelha de Jenkins.
Quem era o capitão Jenkins? Não importa, era um cidadão da Grã-Bretanha, e
não devia ser insultado pela Espanha, nem por qualquer outro país; e porque o
insultaram, todo o poderio deste país voltou-se contra a Espanha em defesa
daquele cidadão individual. E quando eu e você viajarmos ao exterior e acaso
sofrermos alguma indignidade ou insulto, devemos lembrar-nos do fato de que o
mesmo poder, e todos os recursos do nosso país, estão por trás de nós
e preocupados com a nossa defesa.

Isso tudo se aplica com mais propriedade à esfera da Igreja. Vejam certos
exemplos do Velho Testamento. Eis aí um homem de Deus duramente
pressionado, seus inimigos a cercá-lo e a atacá-lo. Que poderá fazer? Ele diz:
“Torre forte é o nome do Senhor; a ela correrá o justo, e estará em alto refúgio”
(Provérbios 18:10). “O nome do Senhor! ” Há uma exposição maravilhosa disso
nos Salmos três e quatro, onde o salmista nos conta que estava cercado por todas
as espécies de perigos e de inimigos furiosos. E, todavia, eis o que ele escreve:
“Tu, Senhor, és um escudo para mim, a minha glória, e o que exalta a
minha cabeça. Com a minha voz clamei ao Senhor, e ouviu-me desde o seu santo
monte. Eu me deitei e dormi; acordei, porque o Senhor me sustentou. Não
temerei dez milhares de pessoas que se puseram contra mim e me cercam.
Levanta-te, Senhor; salva-me, Deus meu; pois feriste a todos os meus inimigos
nos queixos; quebraste os dentes aos ímpios. A salvação vem do Senhor”.
Zacarias diz algo semelhante: “Porque assim diz o Senhor dos Exércitos: depois
da glória ele me enviou às nações que vos despojaram; porque aquele que tocar
vós toca namenina do seu olho” (2:8). Vocês querem algo que vá além disso?
“Aquele que tocar em vós”, diz Deus a você como cristão, “toca na menina do
meu olho” - o ponto mais sensível do Meu ser. Essa é a proteção. “Dou-lhes a
vida eterna”, diz o Senhor Jesus Cristo, “e nunca hão de perecer, e ninguém as
arrebatará daminhamão” (João 10:28). Haverá algum lugar mais seguro que
esse? “Se Deus é por nós”, diz Paulo, “quem será contra nós?” (Romanos 8:31).
“O Senhor é o meu ajudador”, diz o escritor da Epístola aos Hebreus, “e não
temerei o que me possa fazer o homem” (13:6). Diz João, em sua Primeira
Epístola, “maior é o que está em vós do que o que está no mundo” (4:4). Pode
ser que o inimigo esteja atacando e ferindo você; não revide, não se vingue, diz
Paulo, pois “Minha é a vingança, eu retribuirei, diz o SENHOR” (Romanos
12:19).

“Eles o venceram”, diz o livro de Apocalipse, “pelo sangue do Cordeiro e pela


palavra do seu testemunho” (12:11). Aquele poderoso dragão que se levanta
contra a Igreja de Deus, e lança da sua boca uma torrente de águas na tentativa
de arrastá-la, está sempre tentando destruir o povo de Deus. Que é que podem
fazer os que Lhe pertencem? “Eles o venceram pelo sangue do Cordeiro e pela
palavra do seu testemunho.” E assim que se derrota o diabo quando ele vem com
toda a sua milícia e com todo o seu terrível poder. Diz finalmente o apóstolo
Paulo: “por cuja causa padeço também isto” - as perseguições, provações e tribu-
lações que sofreu - “mas não me envergonho; porque eu sei em quem tenho
crido, e estou certo de que é poderoso para guardar o meu depósito (VA: “para
guardar aquilo que eu lhe confiei”) até àquele dia” (2 Timóteo 1:12). Está certo,
diz Paulo; você, Timóteo, está passando por tempos difíceis; sei o que é isso; eu
não me envergonho, não fico alarmado, não me apavoro, não me abalo - pois eu
conheço Aquele em quem eu creio, e Lhe confiei tudo, e Ele me guardará e
guardará tudo o que eu considero precioso até aquele dia. Ah, se nos déssemos
conta dos nossos privilégios como cristãos! Seja qual for o seu problema, seja
qual for a sua situação, seja qual for a sua provação, eu insisto com
você, lembre-se dos recursos, lembre-se das coisas que caracterizam você como
cidadão deste grande e glorioso reino.

Apresso-me a acentuar outro aspecto que é igualmente importante para nós, a


saber, as obrigações, as exigências, as responsabilidades da nossa cidadania.
“Já não somos estranhos e estrangeiros, mas concidadãos dos santos.” O que
estivemos fazendo foi regozijar-nos nos privilégios, porém agora vamos lembrar-
nos das responsabilidades. As Escrituras dão ênfase a elas em toda parte. Toda a
segunda metade desta Epístola aos Efésios é dedicada quase exclusivamente a
isso. Mas vamos recordar resumidamente algumas coisas que decorrem da
nossa posição privilegiada e exaltada. São elas que, como já mencionei,
nos fornecem certas provas sutis e excelentes quanto a se pertencemos ao reino
ou não.

A primeira é, obviamente, esta - o nosso orgulho do reino. A analogia humana é


óbvia. O nosso orgulho da pátria, o nosso orgulho da cidadania! SirWalter Scott
pergunta, com muito acerto: “Haverá algum ser humano vivo que esteja com a
sua alma tão amortecida que nunca tenha dito a si próprio: Esta é a minha terra
natal, a minha terra?” Isso é natural, é instintivo. As pessoas não somente estão
dispostas a falar sobre o seu país e a aclamá-lo; também morrerão por ele. As
pessoas

fazem isso por qualquer coisa pela qual se interessem. Está alguém interessado
em música? - está sempre falando sobre música. Está interessado em futebol?
Não gritaria, torcendo pelo seu time? Vocês não os têm ouvido aos milhares? O
interesse pela agremiação deles! Não contentes com isso, usam os seus
mascotes, as suas cores especiais, pagam muito dinheiro para ir ver seu time j
ogar. O entusiasmo! A paixão! Essa é a esfera do seu interesse.

Mas, que dizer de nós? Somos cidadãos de um reino que não pertence a este
mundo - o reino celestial que estivemos descrevendo. Que dizer a respeito?
Temos orgulho dele? Estamos mostrando de que lado estamos? Estamos
mostrando as nossas cores? Ou, quando estamos em companhia de certas
pessoas, procuramos ocultar que somos cristãos? Quando estamos com pessoas
que não observam o domingo, e que antes desprezam as que freqüentam a igreja,
procuramos dar a impressão de que essa é também a nossa posição? Não admira
que as multidões estejam fora da igreja, quando tantas vezes nós damos a
impressão de que nos sentimos um pouco envergonhados pelo fato de
estarmos dentro. Todavia não é só questão de envergonhar-nos. Se nos
déssemos conta da verdade acerca da nossa posição, ficaríamos
comovidos, ficaríamos emocionados. Como o homem que diz, “Esta é a minha
terra natal, a minha terra”, nós nos gloriaríamos em nosso reino e
nos gabaríamos dele, estaríamos prontos a aclamá-lo e, se necessário, a morrer
por ele. Nós o enalteceríamos, e enalteceríamos as suas virtudes e todos os altos,
grandes e gloriosos privilégios dele decorrentes, e estaríamos ansiosamente
desejosos de que todos o conhecessem e pertencessem a ele - como acontece
com alguém que se encontra num país estrangeiro. Os homens deste país,
quando no exterior, não escondem que são britânicos, querem que todo o mundo
saiba disso. E as pessoas que vêm para cá de outros países fazem o mesmo, e
fazem muito bem! Do mesmo modo, como cidadãos deste reino glorioso,
devemos mostrar sempre a nossa lealdade a esse reino, e gloriar-nos no fato de
que pertencemos a ele.

Naturalmente, o próximo ponto é: primeiro a pátria, depois eu. Essa é aprova da


verdadeira apreciação que apessoa faz da sua cidadania. Quando o país está em
dificuldade, o grito é: “Pelo rei e pela pátria!” - não por seus interesses e
preocupações particulares! Ouçam o que diz o apóstolo Paulo: “Ninguém que
milita se embaraça com negócios desta vida, a fim de agradar àquele que o
alistou para a guerra” (2 Timóteo 2:4). Ele quer dizer que quando um homem é
soldado do exército, não se dedica ao mesmo tempo a uma profissão ou a um
negócio fora do
exército. Ele está inteiramente à disposição do oficial comandante, do seu rei e
do seu país. Ele não se embaraça com os negócios desta vida quando está na
guerra, porque as conseqüências seriam caóticas. Se muitos homens alistados no
exército, com o país em guerra, de repente dissessem: lamento, mas não posso
combater hoje, tenho que irparacasa e resolver alguns negócios, o exército seria
logo derrotado. Os soldados têm que cancelar a si próprios, têm que dar de mão
de si, têm que estar a disposição do rei e da pátria. Quando você está no exército,
não é você que decide quando vai ter folga. Apliquemos esse pensamento à
esfera superior. “Pelo rei e pela pátria!” “Ninguém que milita se embaraça com
negócios desta vida, a fim de agradar àquele que o alistou para a guerra.”
Primeiro o reino e o rei. E é justamente essa aprova para vermos se nos damos
conta da nossa cidadania neste reino. Acaso submetemo--nos ao Rei e à pátria?
Renunciamo-nos a nós mesmos? Compreendemos que a verdade a nosso
respeito é que “não sois de vós mesmos”, que “fostes comprados por bom
preço”? (1 Coríntios 6:19 e 20). Pertencemos a Ele, não pertencemos mais a nós
mesmos.

O próximo pensamento nesta seqüência lógica é: em virtude da minha relação


com este reino, segue-se que agora sou estrangeiro em todo e qualquer outro
reino. Paulo diz a estes efésios: “Já não sois estranhos e estrangeiros, mas
concidadãos dos santos”; outrora estavam fora deste reino, eram estranhos e
estrangeiros, mas agora são cidadãos do reino. Entretanto, lembre-se, isso
significa que você agora é um estranho e um estrangeiro naquele país do qual
você veio. Que importante princípio! Permitam-me lembrá-los da maneira pela
qual o apóstolo Pedro usa este argumento na sua Primeira Epístola: “Vós, que
em outro tempo não éreis povo, mas agora sois povo de Deus”. “Amados”, diz
ele, “peço-vos, como a peregrinos e forasteiros, que vos abstenhais das
concupiscências carnais’ que combatem contra a alma; tendo o vosso viver
honesto entre os gentios, para que, naquilo em que falam mal de vós, como de
malfeitores, glorifiquem a Deus no dia da visitação, pelas boas obras que em vós
observem” (2:10-12). Vocês vêem a mudança? Eles não eram um povo; agora
são. Estavam fora do reino, estranhos e estrangeiros fora do reino de Deus; agora
estão dentro do reino de Deus. Mas, por causa disso, diz ele, vocês são
estrangeiros e peregrinos neste mundo, não pertencem mais a ele. Essa é outra
maneira de dizer o que Paulo diz em Filipenses 3:20: “A nossa cidadania está no
céu” (VA); e porque a nossa cidadania está no céu, aqui somos estrangeiros,
estamos no mundo porém não somos do mundo.

Isto é uma coisa que acontece automaticamente. Quando você está


visitando outro país, você não se torna parte dele; continua sendo estrangeiro,
sabe disso, e todo o mundo sabe disso também. Eu e vocês, como cristãos,
tornamo-nos estrangeiros neste mundo. Não mais pertencemos a este mundo, se
é que somos cristãos verdadeiros. Somos como pessoas que estão fora de casa.
Estamos aqui por algum tempo, somos forasteiros, somos peregrinos, somos
viajores; esta é sempre a descrição que a Bíblia nos apresenta. Leiam o capítulo
onze da Epístola aos Hebreus. Os que são mencionados ali se consideravam
“estrangeiros e peregrinos na terra”. Eles estavam em busca da “cidade que
tem fundamentos, da qual o artífice e construtor é Deus”. Eles moravam
em tendas. Cada um deles dizia: “Sou estrangeiro aqui, meu lar é o céu”. Segue-
se automaticamente, não segue? Somos tão-somente estranhos e estrangeiros
entre os ímpios. Eles não nos entendem, eles são diferentes. Podem opor-se a
nós, podem perseguir-nos. Tudo muito certo, diz Pedro, apenas se lembrem de
quem vocês são, e se lembrem de que não pertencem mais a eles. Não há
necessidade de argumentar a respeito disso. Ou vocês estão no reino de Deus, ou
estão fora; não podem estar nos dois lugares ao mesmo tempo. E é preciso que
fique evidente para todos que vocês pertencem a este reino celestial, e
não àquele outro.

Eu gostaria de colocar este ponto da seguinte forma, como o meu quarto


princípio. Como estranhos, peregrinos e estrangeiros neste mundo, lembremo-
nos sempre de que a nossa primeira obrigação é representar o nosso Rei e a
nossa pátria. “A Inglaterra espera que cada homem cumpra hoje o seu dever”,
disse o almirante Nelson na manhã da batalha de Trafalgar. Em tempos antigos,
aonde quer que fosse um cidadão do Império Romano, ele levava o seu manto
peculiar, o sinal do fato de que ele era um cidadão romano; e ele zelava muito do
manto e sua honra. Com toda razão o fazia! Sim, diz o apóstolo Paulo
também aos filipenses, “Somente deveis portar-vos dignamente, conforme
o evangelho de Cristo”(l :27). Você é um estranho fora de casa, você sabe da sua
pretensão e você disse aos outros o que você é. Lembre-se, eles o estarão
observando. Nunca se esqueça disso! Eles vão julgar o seu Rei e o seu país pelo
que vêem em você. Vejam de novo, em Pedro: “Amados, peço-vos como a
peregrinos e forasteiros, que vos abstenhais das concupiscências carnais que
combatem contra a alma; tendo o vosso viver honesto entre os gentios; para que,
naquilo em que falam mal de vós, como de malfeitores, glorifíquem a Deus no
dia da visitação, pelas boas obras que em vós observem”. Eles perseguem vocês
como a malfeitores, mas provem a eles, pelas suas boas obras, que vocês são
filhos de Deus.
Sempre é assim que o Novo Testamento prega a santificação e a santidade.
Algumacoisatragicamente errada aconteceu com apregação da santificação e da
santidade quando ela sempre nos oferece algo, “Vida com V maiúsculo”, ou algo
que vai ser maravilhoso para nós. Eis como as Escrituras nos exortam à
santidade: “Sede santos, porque eu sou santo, diz o Senhor”. Se você não está
vivendo uma vida santificada e uma vida santa, você é um traidor da sua pátria e
do seu Rei. Você não tem direito de viver como quiser. Você não pode dissociar-
se da sua cidadania. Você não pode dizer: não importa a ninguém o que eu
faço, quero ter a minha vida à minha maneira. Não, se você é cristão. Se
você cair, todos nós cairemos com você. E o mundo se rirá de nós. Acima
de tudo, Cristo será ridicularizado. Pois um membro da Igreja Cristã ter vida
mundana nada mais é que ser ele um canalha e um traidor. Na esfera secular as
pessoas são executadas por fazerem uma coisa como essa. Insultar a bandeira!
Rebaixar o país! Rebaixar o monarca! Não há nada pior. E eu e você somos
cidadãos deste Rei celestial e do Seu reino glorioso e santo. “Amados, peço-vos,
como a peregrinos e forasteiros, que vos abstenhais (que fiqueis longe) das
concupiscências carnais que combatem contra a alma” - não por amor de vocês
mesmos apenas, porém por amor daqueles gentios que estão olhando, e pela
honra do seu Rei. “Somente deveis portar-vos dignamente conforme o evangelho
de Cristo.”

Essa é uma boa maneira de estudar a prática cristã. Em nossa vida diária, quando
nos assaltam dúvidas sobre se devemos fazer algo ou não, ou se devemos usar
isto ou aquilo, esta é a nossa prova: serve para mim? Condiz? Se eu vestir este
manto, ele está de acordo com meu chapéu e os meus sapatos? E digno?
Combina com... ? Essa é a figura, a ilustração utilizada pelo apóstolo. Se não
servir, se não combinar, se não for próprio e não estiver em harmonia com o
restante, devo largar dele. Que toda a sua conduta seja governada pelo evangelho
de Cristo. Todas as minhas ações devem ser controladas por ele. E preciso que
seja uma realidade global. Cada ato deverá ser digno, próprio, pertinente.
Assim, você deve pensar nas grandes doutrinas da fé e perguntar: esta espécie de
conduta é consoante com essa fé? Convém ao evangelho de Cristo?

Finalmente, deveria ser óbvio que, como cidadãos deste reino, devemos sempre
estar preocupados com a defesa do reino, com a defesa das suas leis e com a
defesa de tudo o que é propugnado por esse reino. A bandeira! Devemos estar
dispostos a morrer pela “bandeira”; ela representa o país e tudo o que lhe
pertence. Isso é igualmente verdade quanto a nós, no sentido espiritual. Não
mais somos estranhos e
estrangeiros, mas concidadãos dos santos. Em dias como os atuais somos
convocados pera defender esta “bandeira”, a Bíblia. Ela está sendo atacada e
ridicularizada. Vocês a estão defendendo? Não basta dar o
seu testemunhocomoumadefesadaBíblia. Vocês têm que preparar-se
para defender a Bíblia. Para começar, vocês têm que conhecer a Bíblia. E vocês
têm que ter algum conhecimento dos livros que os ajudarão a defender a Bíblia.
Boa vontade e boas intenções não defenderão o país. Para defender o país, o
homem tem que entrar no exército e tem que ser treinado, fazer exercícios e
aprender a ser disciplinado; goste ou não, terá que fazê-lo “à força”, como se diz.
E eu e você temos que aprender “à força” a defender a bandeira, o país, o reino.
O nosso livro está sendo atacado; a nossa fé está sendo atacada. Temos que estar
“sempre preparados”, diz Pedro, “para responder a qualquer que nos pedir
a razão da esperança que há em nós” (1 Pedro 3:15). Como poderemos fazê-lo?
O reino está sendo atacado por um inimigo poderoso, e eu e vocês estamos
sendo convocados como combatentes para que façamos a nossa pequena parte
individual. Não há maior honra, não há privilégio mais alto. A vitória é certa e
segura. Mas seria trágico, quando chegar o grande e glorioso dia de celebrar essa
vitória, se algum de nós achasse que não fez absolutamente nada, que
simplesmente ficamos sentados enquanto alguma outra pessoa fazia o trabalho, a
defesa, a luta, o esforço.

Não precisamos ser todos grandes peritos na arte da guerra. Deixem-me usar
uma analogia humana. Não precisamos ser todos soldados de carreira; você não
precisa ser, necessariamente, um obreiro de tempo integral, pode engaj ar-se na
Defesa Civil do reino de Deus. Um policial de alto nível. Ache tempo para isso.
Tenha um só interesse. Dedique-se a ele. O reino de Deus está sendo atacado e
ridicularizado. Saltemos logo em sua defesa, por pequeno que seja o serviço
que possamos prestar.

Noutras palavras, como cidadãos deste reino, o nosso maior desejo, a nossa
principal ambição, sempre deverá ser que as suas fronteiras sejam ampliadas e
ele se torne cada vez mais poderoso e cada vez mais glorioso, até o dia em que
“os reinos do mundo vierem a ser de nosso Senhor e do seu Cristo”.

“Jánão sois estranhos e estrangeiros, mas concidadãos dos santos” neste reino
glorioso. E por essa razão somos apenas estrangeiros e peregrinos neste mundo,
com todo o seu artificialismo, ostentação com toda a sua louca confiança
própria, que darão em nada. Graças a Deus, não pertencemos a isso. Aqui somos
apenas estrangeiros. “A nossa cidadania”, graças a Deus, “está no céu.”
29
DA FAMÍLIA DE DEUS

“Assim, que já não sois estrangeiros, nem forasteiros, mas concidadãos dos
santos, e da família de Deus.” - Efésios 2:19

Tendo considerado a primeira figura que o apóstolo emprega para nos mostrar o
privilégio de sermos membros da Igreja Cristã, a saber, a de cidadãos de um
Estado, agora chegamos à sua segunda figura. Os cristãos verdadeiros não são
somente concidadãos dos santos, mas também são “da família de Deus”.
Obviamente, aqui há algo diferente, há um avanço. No entanto, de novo,
lembremo-nos de que as duas coisas que Paulo quer assinalar são este princípio
da unidade e também a grandeza do privilégio. Podemos perguntar, porém: por
que ele usa desse modo uma segunda figura? E por que, na verdade, ele vai usar
uma terceira figura, que estudaremos mais adiante? A resposta, penso eu,
é óbvia: é que ele sentiu que só a primeira figura não era suficiente. Ela nos dá
uma idéia, apresenta-nos uma parte vital da doutrina, mas não inclui tudo. Não é
suficientemente compreensiva. Ela estabeleceu um tremendo aspecto, que já
consideramos, porém há muito mais para ser dito. Portanto, convém que
consideremos e descubramos porque ele emprega esta segunda ilustração.

Certamente vocês se lembram de que, no primeiro capítulo, o apóstolo já nos


apresentara esta idéia de família, onde ele diz: “E nos predestinou para filhos de
adoção por Jesus Cristo, para si mesmo, segundo o beneplácito da sua vontade”.
Agora, aqui, ele retoma essa idéia, dizendo-nos que, como crentes, pertencemos
à família de Deus. Noutras palavras, somos filhos de Deus. Paulo argumenta
neste sentido quanto a judeus e gentios que se tornaram cristãos. Todas as
outras distinções, vocês recordam, desapareceram, foram postas de lado,
foram abolidas. Nesta nova realidade que Deus trouxe à existência entre
os judeus e os gentios, o grande fato suplementar é que estamos na posição de
filhos.

Portanto, o que temos que fazer é comparar e contrastar a idéia de Estado com
a idéia de família. E é só quando fizermos isto que compreenderemos porque o
apóstolo introduz a segunda figura e em que sentido esta segunda figura constitui
um definido avanço em relação à
primeira, e nos leva a uma percepção mais profunda da verdade acerca da
unidade de todos os cristãos e da grandeza do privilégio que gozamos. Devemos,
pois, considerar os pontos de contraste entre o Estado e a família.

O primeiro é que a relação que existe entre os membros de um Estado é, afinal


de contas, uma relação geral, ao passo que o que caracteriza a relação entre os
membros de uma família é que esta é uma relação mais particular. Todos nós,
neste país, somos cidadãos da Grã-Bretanha, mas não pertencemos à mesma
família. Há numerosas famílias e, somos todos um no Estado. É isso que quero
dizer quando falo da relação no Estado como sendo mais geral. Por outro lado,
na família estreita-se a relação; é uma unidade muito menor. E porque a relação é
mais estreita e mais particular, é, por isso mesmo, muito mais intensa. Assim é
que podemos usar outras expressões. Podemos dizer que a ligação entre nós no
Estado é muito leve. Há uma ligação, e é suficiente para separar-nos das pessoas
que pertencem a outros países e a outros reinos. Estamos ligados uns aos outros,
mas a ligação é leve. Numa família, porém, a ligação j á não é leve. Visto que é
particular, visto que é mais estreita, é mais intensa, e também mais cerrada.
Portanto, o apóstolo está dando realmente um passo adiante em sua doutrina
acerca desta unidade. A unidade que existe na Igreja Cristã entre os
membros não é uma ligação leve, é uma ligação intensa, cerrada, íntima.

Todavia, podemos ir mais adiante com a seguinte colocação: em segundo lugar, a


unidade existente no Estado é, em última análise, uma unidade externa. Isso
dispensa desenvolvimento e demonstração. Não se pode pensar numa família,
sem que se pense num fator interior, de dentro, que une os seus membros. Não é
o que se dá no Estado, no qual nos unem certos tipos de cultura, certas leis,
certos interesses comuns, todos os quais, num sentido final, estão na surpefície
das nossas vidas e fora de nós. Na família há algo essencialmente interior,
interno. Noutras palavras, a relação entre os membros de um Estado é
mais remota, enquanto que entre os membros de uma família é mais
íntima. Quero dizer com isso que conhecemos muitas pessoas de maneira vaga e
um tanto remota. Reconhecemos os que moram na mesma rua, ou que trabalham
no mesmo emprego; são nossos “conhecidos”, mas realmente não os
conhecemos, não temos intimidades com eles. Pode haver uma espécie de
conhecimento de “bom dia, boa tarde”, uma amizade geral, porém é sempre
remota. Ao passo que na família a idéia central é logo uma idéia de intimidade e
entendimento, e de laços interiores.

Ou pensemos nisso de maneira diferente. Em última instância, a


nossa relação uns com os outros no Estado é impessoal, ao passo que a verdade
geral acerca da família é que, nesta, a relação é intensamente pessoal. Este é um
princípio muito importante, independentemente da sua aplicação à Igreja. Há no
mundo atual a tendência de salientar e desenvolver relações impessoais, em
detrimento das relações pessoais. Vocês podem pensar em muitos exemplos
disso. O próprio Estado age assim. À medida que o Estado se torna cada vez
mais poderoso, e que interfere cada vez mais em nossas vidas, vai tendendo a
nos despersonalizar. Passamos a ser unidades impessoais, passamos a
ser números. Desaparece o elemento pessoal. Há muita evidência disso neste
país atualmente.

Não estou argumentando politicamente, mas o faço filosoficamente,


considerando-o um ponto muito importante e, em última análise, faço-o do ponto
de vista da personalidade e da individualidade. O Estado sempre tende a
despersonalizar-nos. Naturalmente, isso faz parte de toda a questão da psicologia
das massas e das multidões. Você sempre tende a perder um pouco a sua
identidade na multidão. E por isso que as multidões são tão perigosas, e talvez
chegue o dia em que haverá necessidade de uma legislação que proíba a reunião
de pessoas além de certos limites numéricos. Gostemos ou não, uma multidão
tem influência sobre nós, e as pessoas tendem a agir automaticamente em meio
a uma multidão. Hitler sabia disso muito bem, e soube aproveitar a idéia. Numa
multidão você pode levar as pessoas afazerem coisas que jamais elas sonhariam
em fazer sozinhas ou individualmente. De um modo ou de outro, desaparece o
elemento pessoal. De fato precisamos observar e vigiar isso até mesmo em
nossos sistemas educacionais. Quanto mais você forçar lealdade a um lado ou a
uma escola, mais tendendo estará a despersonalizar as crianças e a produzir uma
relação impessoal. Eu até chego a opinar que, talvez, esta seja uma das principais
razões do pavoroso aumento de divórcios no presente. As pessoas pensam
cada vez menos em si desta maneira pessoal, e os objetos de lealdade
se tornaram mais gerais - o país, a Coroa, a escola, a ala, algo semelhante, algo
que está fora da pessoa. Essas coisas não devem ser negligenciadas, concordo,
pois é uma coisa terrível a pessoa ser egoísta e egocêntrica; porém a tragédia é
que sempre nos inclinamos a ir de um extremo ao outro. Na tentativa de ensinar
as crianças e outros a não serem egoístas, certamente iremos ao outro extremo,
se nos tornarmos tão impessoais que eles tenham medo de expressar os seus
sentimentos, e assim tentem despersonalizar-se ao ponto de desaparecerem na
multidão. Assim vocês vêem que o apóstolo avançou definitivamente em seu
pensa-
mento aqui. A ligação, a relação no Estado é impessoal. Mas na família - e esta é
a glória da família - todos nós somos pessoas, e todas as relações são pessoais,
diretas e imediatas.

Então, finalmente, podemos dizer que a diferença entre as duas relações é a


diferença que há entre uma relação legal, judicial e uma relação de sangue,
vivida e vital. O que em última instância nos une no Estado é a lei. Pode haver
certos interesses e perspectivas em comum; todavia o que afinal de contas nos
une e mantém a coesão é o processo da lei - a relação é legal. Mas não é esse o
caso da família. Na família o que nos une é o sangue. É uma relação vital. Pode-
se mostrar facilmente a diferença desta maneira: vocês verão particularmente
no continente europeu, em vários países que estão separados uns dos
outros como Estados, que, não obstante, há o mesmo sangue nas pessoas
que pertencem a esses Estados diferentes. Pensem nos eslavos, por exemplo.
Eles têm o mesmo sangue e possuem certas características; e embora uns
pertençam a um país e outros a outro, sempre se pode reconhecer o eslavo. E
assim com outros tipos de nacionalidade e de sangue. Uma relação de sangue é
algo mais íntimo, direto, vital e vivo do que qualquer relação que seja delimitada
e determinada pelos processos da lei e pelos decretos dos homens.

O apóstolo, então, não está meramente multiplicando palavras quando diz:


“Assim que já não sois estranhos e estrangeiros, mas concidadãos dos santos” -
sim, e membros “da família de Deus”. Ele deu passos adiante, levou-nos a uma
esfera mais elevada, e estreitou a relação; e quando você estreita a relação, esta
sempre se torna mais intensa. Sempre temos relação mais intensa quando somos
em menor número. Isso é psicologia, assim é a natureza humana, não é? Por
isso o termo “família” transmite todas estas grandes idéias que é importante que
captemos.

Tendo mostrado a diferença de modo geral, passemos agora à aplicação


particular disso tudo aos cristãos, aos membros da Igreja Cristã. Porque é
importante que compreendamos esta relação familiar? Por que o apóstolo estava
tão desejoso de que estes efésios a compreendessem? É porque tantos de nós não
compreendem estas verdades que nós somos o que somos e a Igreja é o que é.
Acaso compreendemos que de fato somos dafamília de Deus - e que
pertencemos à família de Deus? Esta verdade é uma parte vital da doutrina da
salvação. Por isso devemos considerá-la. _

Começo com o aspecto mais grandioso e mais importante. E


importante que o compreendamos para que entendamos, como devemos, a
maravilhosa e estupenda graça de Deus. Eis o que quero dizer: já seria uma
coisa maravilhosa se Deus apenas decidesse não punir-nos, não nos enviar ao
inferno. Era o inferno que nós merecíamos. Em nosso estado e condição natural,
que o apóstolo descrevera -“andávamos nos desejos da nossa carne, fazendo a
vontade da carne e dos pensamentos”, e sendo “filhos da ira, como os outros
também” -não merecíamos outra coisa que não o inferno. Digo que teria sido
uma coisa maravilhosa se Deus meramente decidisse não nos deixar
naquele estado e não punir-nos. Contudo, o método de salvação estabelecido
por Deus não pára aí. Ele nos eleva a esta dignidade de filhos, Ele nos adota em
Sua família.

Vê-se tudo isso na parábola do filho pródigo. O filho foi para casa e disse a seu
pai: “Pai, pequei contra o céu e perante ti, e jánão sou digno de ser chamado teu
filho”. E ia acrescentar, “faze-me como um dos teus jornaleiros”. Mas o pai não
pode considerar o seu rapaz, embora pródigo, como um dos seus serviçais. Isso
simplesmente não pode acontecer. Diz ele: não, não, você volta como meu filho;
e o abraça, e lhe traz o melhor traje e o anel, e mata o bezerro cevado. Meu filho!
Esse é o método divino de salvação. É, pois, importante que captemos
este princípio, a fim de nos habilitarmos a engrandecer a graça de Deus.
Que plano de salvação! Que esquema de redenção! Não satisfeito com
outra coisa, senão que estejamos na Sua presença como Seus filhos! Se não nos
dermos conta disso, não nos daremos conta da grandeza e das riquezas da graça
de Deus.

Aí está, então, o primeiro ponto, e o mais importante, o ponto que, em certo


sentido, inclui todos os demais. Ele acentua o que há pouco estive dizendo, que
nunca devemos pensar na salvação negativamente. Só começamos com os
aspectos negativos. A primeira coisa da qual todos necessitamos é o perdão dos
pecados e a nossa libertação da ira de Deus. Todavia Ele não se detém nisso. E
jamais devemos deter-nos nisso, em nosso pensamento. O nosso pensamento
deve ser positivo, devemos ver a que tudo isso leva. O cristão não é meramente
alguém que foi perdoado e salvo do inferno. Muito mais que isso, ele foi adotado
na família do Deus eterno!

Outro ponto muito importante é o seguinte: vocês notam que isso só é verdade
quanto a nós no Senhor Jesus Cristo e por intermédio dEle. Isso só é próprio dos
que estão “em Cristo”. Isso é absolutamente vital e fundamental, porque há
corrente hoje um frouxo ensino concernente à paternidade universal de Deus,
assim chamada, e à

fraternidade universal dos homens. Aqui, neste capítulo, o apóstolo ensina


exatamente o oposto. Toda bênção - e devemos ter em mente que este versículo
dezenove é um resumo do que vem antes - tudo, ele nos estivera dizendo, é “em
Cristo Jesus”. Nenhuma destas coisas é real sem Cristo Jesus. “Portanto,
lembrai-vos de que vós noutro tempo éreis gentios na carne... que naquele tempo
estáveis sem Cristo, separados da comunidade de Israel, e estranhos aos
concertos dapromessa, não tendo esperança, e sem Deus no mundo. Mas agora
em Cristo Jesus, vós, que antes estáveis longe, já pelo sangue de Cristo
chegastes perto”; “Ele é a nossa paz.” Depois, no versículo 18, “Porque por ele
(ou “nele”, Cristo), ambos temos acesso ao Pai em um (ou “por um”)
mesmo Espírito”. Isso de pertencer à família de Deus independentemente
do Senhor Jesus Cristo não existe. A humanidade está dividida em
dois compartimentos - os que estão fora de Cristo ou sem Cristo, e os que são
membros da família de Deus. Acerca dos primeiros disse o Senhor Jesus Cristo:
“Vós tendes por pai ao diabo, e quereis satisfazer os desejos de vosso pai” (João
8:44). Como é importante observar estas coisas! Deus, como o Criador, é o
Criador de todos, e nesse sentido há uma espécie de paternidade. Entretanto não
é disso que o apóstolo está falando aqui; não é dessa verdade que o Senhor Jesus
Cristo fala, quando diz: “Vosso pai celestial sabe que necessitais de todas estas
coisas” (Mateus 6:32). Não, esta é a nova relação que só passou a
existir mediante o Senhor Jesus Cristo e a obra perfeita por Ele realizada.

Portanto, Deus não é Pai dos que não crêem em Cristo. E não há quem possa ir a
Deus e Lhe pedir algo, dizendo: “Meu Pai”, a não ser que vá “pelo sangue de
Cristo”, confiando unicamente em Sua obra perfeita. Isso, como vocês sabem,
muitas vezes é negado hoje. Muitos falam leviana, desembaraçada e
relaxadamente sobre ir a Deus sem sequer mencionar o nome do Senhor Jesus
Cristo. Um dia se despertarão para verem que Ele nunca os conheceu, que eles
estão fora, que não pertencem à família. Sem Cristo, esse relacionamento não
existe. Por outro lado, deixem que eu diga enfaticamente que esta bênção é
uma realidade quanto a todos os cristãos verdadeiros. Nisso não há
divisões quanto aos cristãos - são todos “concidadãos dos santos e da família
de Deus”. Portanto, devemos rejeitar todos os ensinamentos que dizem que
alguns cristãos não são filhos de Deus, e que traçam uma distinção entre filhos e
criaturas. Criaturas e filhos, neste sentido, são iguais, e você não pode ser cristão
sem ser uma criatura de Deus e um filho de Deus. Os termos aplicam-se
igualmente a todos os cristãos.
É importante compreender isso, pela seguinte razão: se eu e vocês

somos filhos de Deus, não temos direito de viver como se fôssemos apenas
empregados. Não temos direito de viver na cozinha da casa. Somos filhos! - e
todos os cristãos que não se dão conta disso, eque estão levando uma vida de
serviçal, estão desonrando a Deus e estão difamando a glória eterna da Sua
graça. Por isso é importante compreender mais este avanço na doutrina. Se não o
compreendermos, cairemos naqueles diversos erros e, com isso, estaremos
difamando a glória do Senhor Jesus Cristo. Nós O estaremos tirando do centro,
Elejá não será crucial, o Seu sangue estará sendo posto de lado e em descrédito.
Ele não será tudo para nós, e não glorificaremos Seu Pai como devemos.

Esse é, então, o primeiro motivo pelo qual devemos captar esta verdade. E
indispensável para um verdadeiro entendimento da doutrina da salvação.

Mas eu tomo a liberdade de dizê-lo com maior clareza. Somente quando


entendemos esta verdade ê que passamos a usufruir os privilégios desta posição.
Vocês percebem o que isto significa? Estivemos considerando os privilégios de
ser um cidadão do reino, e estes são maravilhosos e gloriosos. No entanto, à luz
das distinções que traçamos, você pode ver quão mais altos são os privilégios
quando você se vê como filho de Deus, e não apenas como cidadão do Seu reino.

Quais são estes privilégios? Eis o primeiro: Deus é nosso Pai. O eterno e
sempiterno Deus! Podemos ir a Ele como nosso Pai. Vocês recordam o que
opróprio Senhor Jesus Cristo disse: “Subo para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e
vosso Deus” (João 20:17). Certamente não há maior honranem maior dignidade
que possamos vislumbrar ou compreender do que justamente esta - levar sobre
nós o nome de Deus. Não admira que João, no prólogo do seu Evangelho, tenha
dito que “a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder (o direito, a autoridade)
de serem feitos filhos de Deus” (1:12). Não há o que supere isso, não há o
que conceber acima disso, que somos de fato membros da família de Deus. Isso
nos caracteriza literalmente como cristãos. Diz ainda João: “Amados, agora
somos filhos de Deus” (1 João 3:2). Não sabemos o que seremos em toda a sua
plenitude, continua ele dizendo, mas isto sabemos, que já, agora, somos filhos
de Deus. O apóstolo Pedro ocupa-se igualmente disso e afirma que “somos
participantes da natureza divina” (2 Pedro 1:4). Cada vez mais me parece que é a
nossa falha neste ponto que realmente explica por que a Igrej a Cristã está como
está. E não se trata do que fazemos ou tentamos fazer; enquanto não voltarmos
a isto, e realmente não o compreendermos, enquanto não o sentirmos e
não experimentarmos o seu poder, não vejo esperança para a Igreja. Somos
filhos de Deus, participantes da própria natureza divina.

Depois, por causa disso, a segunda coisa que nos caracteriza em nossa relação
com Deus como nosso Pai é que temos o direito de aproximar-nos dEle, o
mesmo direito que uma criança tem quanto ao seu pai. Paulo já o dissera num
versículo anterior: “Porque por ele ambos temos acesso” - não a Deus, vocês se
lembram, mas - “ao Pai em um mesmo Espírito”. Isso é tão extraordinariamente
forte que mal podemos recebê-lo; mas é verdade. Posso usar uma ilustração
simples e óbvia? Imaginem um homem, alguém responsável por uma
grande empresa, com centenas, talvez milhares de pessoas a seu serviço e sob a
sua direção, um homem excepcionalmente ocupado. É evidente que esse homem
não pode cuidar pessoalmente de todos os pormenores do seu negócio ou das
obras ou do que seja. Ele só lida com grandes princípios; ele tem os seus
gerentes e subgerentes, chefes etc., e esses tratam das minúcias das coisas dos
seus respectivos departamentos. Se você levar um detalhe de algum
departamento a esse grande homem, que é o chefe de todos, o presidente da
companhia, ele simplesmente o despedirá, pois não tem tempo para essas coisas.
E contudo o vejo ali, um certo dia, em seu escritório, sentado à mesa de trabalho,
com todas estas grandes tarefas em mente, e talvez com vultosas quantias
para administrar, pelas quais ele é responsável. Ele não pode ver os seus gerentes
hoje, só pode ver alguns diretores especiais. Contudo, de repente, ele ouve uma
leve batida à porta. Ele sabe quem é; é o seu filhinho, o seu pequerrucho
cambaleante; e o homem vai pessoalmente abrir aporta, e passa algum tempo
falando com ele, talvez brincando um pouco com ele.

Tudo é posto de lado. Por quê? E seu filho. Essa é a doutrina que estamos
considerando. Deus, que criou do nada todas as coisas, e para quem todas as
estrelas e constelações são o que bolinhas de gude são para uma criança, Deus,
que domina todas as coisas e que existe de eternidade a eternidade, para quem as
nações são como “o pó miúdo das balanças” (Isaías 40:15) - é meu Pai, é seu
Pai, e não há nada, por menor e mais trivial que seja, na minha vida e na sua,
pelo que Ele não Se interesse e, por assim dizer, pelo que não Se disponha a
deixar que o universo inteiro siga adiante por seu próprio impulso por algum
tempo enquanto Ele ouve você e dá atenção somente a você. E isso que essa
doutrina quer dizer.

Como somos tolos! Como nos privamos de algumas das coisas mais preciosas da
vida cristã, simplesmente porque não nos apegamos à
doutrina! Usamos as expressões levianamente, mas não analisamos o seu
conteúdo. Eis o que o apóstolo está dizendo: não somos só cidadãos -lembro-
lhes que o cidadão tem direito de apelar para o rei, mas isto nos leva muito mais
longe - vou como uma criança diretamente à presença de meu Pai, e Ele está
sempre pronto a receber-me. Ou, para dizê-lo invertendo os termos, se tão-
somente nos déssemos conta do interesse de Deus por nós e da Sua amorosa
preocupação conosco! Como é que podemos ler as Escrituras e examinar estas
declarações gloriosas, e, ao que parece, nunca as compreender? Foi o próprio
Filho de Deus que nos disse que, como filhos de Deus, “até os cabelos da nossa
cabeça estão todos contados”. É dessa maneira, e em minúcias como essa, que
Deus nos conhece. O nosso Senhor estava sempre repetindo este ponto. Diz Ele:
“Vosso Pai celestial bem sabe que necessitais de todas estas coisas” (Mateus
6:32). Por que inquietar-se e aborrecer-se? Se você tão-somente compreendesse
que Ele é seu Pai, que Ele sabe tudo a seu respeito, e que Ele conhece todas as
suas necessidades e inquietações muito melhor do que você mesmo, como um
pai sabe estas coisas melhor do que seu filho! Por que você não confia nisso, por
que você não põe a sua confiança nisso, por que você vai ao Pai com hesitação e
dúvida? “Vosso Pai celestial bem sabe que necessitais de todas estas
coisas.” Somos membros da família de Deus. Não haverá perigo de
abusarmos desta doutrina enquanto nos lembrarmos de que o nosso Senhor
disse na Oração Dominical: “Pai nosso, que estás no céu, santificado seja o teu
nome”. Enquanto você começar desse modo, quando for a Deus recorrendo a Ele
como seu Pai, não haverá leviandade, nem familiaridade indigna, porém
aplenarelação dePai-e-filho permanecerá, e você poderá buscá-10 com
confiança, com segurança, com certeza, sabendo que, por ser Ele seu Pai, e por
Suas grandíssimas e preciosas promessas, Ele estará sempre pronto a recebê-lo.
Mais maravilhoso que o Seu estupendo poder é a relação. Essa é a garantia.

Esse é o primeiro aspecto do privilégio. O segundo é: graças ànossa relação com


o Pai, há uma relação com o Filho. As Escrituras se referem ao Senhor Jesus
Cristo como “o primogênito entre muitos irmãos” (Romanos 8:29). E é verdade.
Diz Ele: “Meu Pai - vosso Pai”. Há uma relação entre nós e Ele. Diz o autor da
Epístola aos Hebreus que Ele “não socorre a anjos, mas socorre a descendência
de Abraão” (2:16, ARA). Ele não assumiu a natureza dos anjos, assumiu a
natureza humana; Ele foi feito “um pouco menor do que os anjos”, desceu
ao nosso nível, assumiu a natureza humana por meio da virgem Maria. Ele

é o nosso irmão, é o primogênito entre muitos irmãos; Ele diz: “Eis-me aqui a
mim, e aos filhos que Deus me deu”. Assim, Ele é um conosco, participante da
nossa natureza. Mas, como mostra a Epístola aos Hebreus, Ele não fica nisso.
Em razão dessa verdade, Ele nos entende, Ele Se identifica conosco, Ele está no
céu para nos representar. Ele está sempre lá com o Pai, intercedendo por nós. E
pensar nisso é, de novo, algo que se nos impõe com extraordinária força. E nEle,
por meio dEle e por Ele que nós vamos ao Pai.

No entanto, não nos esqueçamos nunca de que, graças à nossa relação com o Pai
e com o Senhor Jesus Cristo, temos o direito de dizer, segundo este apóstolo: “E
se nós somos filhos, somos logo herdeiros também, herdeiros de Deus, e co-
herdeiros de Cristo” (Romanos 8:17). E neste momento, seja qual for a sua
situação, esta é a pura e simples verdade a seu respeito, você é um herdeiro de
Deus. Há uma glória que nos espera, glória tão maravilhosa que até as Escrituras
pouco nos falam dela. As vezes as pessoas perguntam: por que tão pouco se nos
fala do céu, por que tão pouco nos é dito em detalhe sobre o estado eterno?
A resposta é muito simples. Porque somos pecadores, porque somos decaídos, a
nossa linguagem também é decaída, e qualquer tentativa de descrever a glória do
céu seria uma falsa apresentação. Por isso não recebemos descrições
pormenorizadas. Tudo que nos é dito é que estaremos com Cristo - e isso deveria
ser suficiente para nós. Estaremos com Ele. Seremos semelhantes a Ele.

Há imagens utilizadas no livro de Apocalipse, mas, lembremo-nos de que são


apenas figuras e imagens; a realidade mesma é infinitamente mais grandiosa, a
glória é indescritível. E eu e vocês somos herdeiros disso. “Bem-aventurados os
limpos de coração, porque eles verão a Deus.” “Bem-aventurados os mansos,
porque eles herdarão a terra” -e esta será uma nova terra, uma terra glorificada,
renovada, “novos céus e nova terra, em que habita a justiça” (2 Pedro 3:13). E é
nossa; somos herdeiros dela, e co-herdeiros com Cristo. “Se sofrermos (com
ele), também com ele reinaremos”, diz Paulo a Timóteo. O que o
está aborrecendo, Timóteo, por que você está se queixando e
lamentando? Porque está tão desgostoso consigo mesmo? Você não sabe que se
sofrer com Ele, também reinará com Ele e será glorificado com Ele? Se
nos lembrássemos disso sempre, falaríamos menos, não nos queixaríamos, não
nos deixaríamos vencer e abater pelos problemas e dificuldades. Os nossos
fracassos realmente provêm da nossa incapacidade de captar e compreeder que
Deus é nosso Pai, que todo e qualquer pormenor da nossa vida é do interesse
dEle. Leve tudo a Ele; “leve-o ao Senhor em

oração”, seja o que for. Ele próprio empregava o termo Pai. Não pense em Mim,
parece Ele dizer, como um Deus distante, na glória e na eternidade; estou lá, mas
em Cristo vim a você, sou seu Pai, venha a mim. Assim como o Senhor fazia o
Seu amoroso convite e convidava a que fossem a Ele todos os que estavam
cansados e sobrecarregados, igualmente Deus convida os Seus filhos. “Vinde a
mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei” (Mateus
11:28). Aquela criança que está zangada e triste porque desej a uma coisa que
elanão tem - seu pai a ergue e abraça, e a criança fica satisfeita só por isso,
porque sabe que o abraço significa que tudo o que o pai tem é dela
também. Assim Deus está pronto a tomar-nos nos Seus braços e a envolver-
nos no Seu amor. Busquem a Deus, cristãos, Ele é seu Pai, vocês são “membros
da família de Deus”.

E ainda, pela mesma razão, compartilhamos o mesmo Espírito. O Espírito que


estava em Cristo é o mesmo Espírito que está em nós. “E, porque sois filhos”,
diz Paulo, “Deus enviou aos vossos corações o Espírito de seu Filho, que clama:
Aba, Pai” (Gálatas 4:6). O Espírito de adoção! (Romanos 8:15). Aí está outro
resultado da nossa condição de filhos de Deus - Ele nos deu o Seu Espírito.

Ao concluir, preciso lembrá-los das responsabilidades disso tudo? Isso é


inevitável. Desfrute tal posição, tal dignidade, tal glória; participar de tais
privilégios, ah, como é grande a nossa responsabilidade! Permitam-me citar
algumas palavras ditas pelo nosso Senhor. Tendo em vista tudo quanto acima foi
dito, “resplandeça a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas
obras e glorifiquem a vosso Pai, que está nos céus” (Mateus 5:16). Um filho nos
diz muitas coisas sobre os seus pais, não diz? Um filho não nos diz somente
coisas referentes a si, ele nos diz muito mais acerca de seus pais. Quando
você observa o comportamento de uma criança, você aprende realmente muito
sobre a disciplina, ou a falta dela, no seu lar. O filho proclama o pai. “Eles verão
as vossas boas obras, e glorificarão a vosso Pai, que está nos céus.” Cristo disse
de novo: “Neles (em nós) eu sou glorificado” (João 17:10, VA e ARA).
Certamente vocês recordam como, no Sermão do Monte, falando sobre o amor
aos inimigos, o nosso Senhor diz: “Ouvistes o que foi dito: amarás o teu
próximo, e aborrecerás o teu inimigo. Eu, porém, vos digo: amai a vossos
inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam, e orai
pelos que vos maltratam e vos perseguem”. Por que devemos fazer todas estas
coisas? Eis porquê: “Para que sejais filhos do vosso Pai que está nos céus”

(Mateus 5:43-45). Aí está porque temos que fazê-lo, para que sejamos
semelhantes ao nosso Pai, para que proclamemos a família a que pertencemos.
“Pois, se amardes aos que vos amam, que galardão havereis? Não fazem os
publicanos também o mesmo? E, se saudardes unicamente os vosssos irmãos,
que fazeis de mais? Não fazem os publicanos também assim? Sede vós pois
perfeitos, como é perfeito o vosso Pai que está nos céus.” Portanto, na próxima
vez que você estiver em dúvida quanto à ação que deva praticar ou não, se você
deve fazer certa coisa ou não, não perca tempo perguntando a alguém se aquilo
é certo ou errado; simplesmente pergunte: “Essa espécie de coisa é digna de um
filho de meu Pai? E coerente com afamília a que eu pertenço, com o Pai que pôs
o Seu nome em mim e a quem eu represento entre os homens?”

“Já não sois estrangeiros, nem forasteiros, mas concidadãos dos santos, e da
família de Deus.”
HABITAÇÃO DE DEUS

“Edificados sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas, de que Jesus


Cristo é a principal pedra de esquina; no qual todo o edifício, bem ajustado,
cresce para templo santo no Senhor, no qual também vós juntamente sois
edificados para morada de Deus em Espírito. ” - Efésios 2:20-22

Estes versículos dão prosseguimento ao pensamento do versículo anterior, ondo


o apóstolo diz: “Assim que já não sois estrangeiros, nem forasteiros, mas
concidadãos dos santos, e da família de Deus”.

Tratamos das duas primeiras figuras que o apóstolo usa para habilitar-nos a ver
os privilégios de sermos membros da Igreja Cristã, e, assim, agora chegamos a
esta terceira e última figura. E a figura da Igreja como “templo de Deus”, “casa
de Deus”, edifício em que Deus habita.

E sempre interessante observar como opera a mente do apóstolo. Vocês alguma


vez perguntaram, ao lerem esta declaração, por que o apóstolo acrescentou esta
última, esta terceira figura? Parece-me haver um única explicação. A idéia de
família sugeriu-lhe logo a idéia de casa. E uma transição natural - da família para
a casa em que ela habita. Digo que é interessante observar como opera a mente
do apóstolo, e o digo deliberadamente. Quando pensamos na doutrina da
inspiração dos escritores das Escrituras, é importante ter sempre em mente que
a doutrina da inspiração não elimina as características individuais dos escritores;
de outro modo, não haveria nenhuma variação no estilo, todos eles escreveriam
exatamente da mesma maneira. Mas, embora seja um fato que todos estes
diferentes escritores estavam cheios do Espírito Santo e foram dominados,
governados e conduzidos por Ele, foi dada liberdade de ação às suas
características individuais. Portanto, nunca tenha dificuldade alguma, quando ler
ou ouvir uma porção das Escrituras, em saber se foi escrita por Paulo ou por
Pedro ou por João. Eles têm as suas características individuais, e aqui, nesta
passagem, temos algo que é muito característico do apóstolo Paulo, a saber, o
modo como a sua mente sempre se move ao longo das linhas da razão ou
seguindo elos e conexões lógicos. Família! - Casa!

Agora devemos examinar esta figura. Ao tratar da Igreja como

família de Deus, afanei-me para assinalar que isso representou um avanço no


pensamento do apóstolo em relação à primeira figura. Procurei mostrar, com
uma série de comparações e contrastes, o porquê disso, e como ele nos estava
levando a uma concepção mais elevada. Agora, pois, ao chegarmos a esta
terceira figura, levanta-se a questão: ele continua avançando? Esta terceira figura
é um clímax ou um anticlímax? Alguns talvez sintam, na primeira leitura, que,
qualquer que seja a verdade a respeito da segunda, esta terceira figura só pode
ser um anticlímax, porque ir da idéia de família para a idéia de casa é
certamente ir para baixo. Parece um movimento do pessoal para o impessoal,
do homem para o material. Qual será, pois, a situação? O pensamento do
» apóstolo está avançando? Está nos levando para um ponto ainda mais alto? Ou
de repente ele muda a tendência e a linha de pensamento e nos leva a uma
espécie de figura mecânica?

Esta é uma questão muito importante, não somente do ponto de vista da


exatidão, da exegese e da exposição, mas talvez ainda mais do ponto de vista da
verdade espiritual. Portanto, eu me proponho a mostrar que o pensamento do
apóstolo continua avançando e que nesta terceira figura ele nos leva a um
grande clímax além do qual nada épossível. Como sepode estabelecer isso? Da
seguinte maneira: em sua definição e descrição da relação que existe entre os
membros da Igreja.

Já salientamos que o princípio dominante do apóstolo o tempo todo é o da


unidade, e o que ele está procurando fazer com estas três figuras é expor este
grande fato da unidade. Minha tese é que nesta terceira figura ele nos está
mostrando a essência dessa unidade de maneira até mais grandiosa do que nas
duas primeiras ilustrações. Com o fim de justificar esta minha tese, tudo o que
necessito é mostrar a superioridade desta terceira figura nesse aspecto em
relação à segunda, a figura da família; porque já mostramos que essa é superior à
figura do Estado.

A minha opinião é que os membros de uma família, embora mais estreitamente


interligados que os concidadãos de um Estado, ainda constituem, nalguns
aspectos, uma associação livre e solta. Afinal, a família é uma reunião de
indivíduos, ao passo que, quanto ao edifício, a situação é outra e o que há é uma
verdadeira fusão das partes. Pois bem, a frase que o apóstolo usa no versículo
vinte, “no qual todo o edifício”, “o edifício completo” dá-nos a chave para um
verdadeiro entendimento. Sei que há os que traduziriam essa expressão como
“todo edifício”, mas ainda assim a verdade em foco continuaria sendo a mesma.
Se vocês preferirem entender a frase como significando “todo edifício” e
pensarem em cada edifício como uma parte diferente do

templo, ainda assim as diferentes partes serão componentes de um todo, de modo


que vocês ainda terão a idéia de um edifício completo. Opino, pois, que na idéia
de um edifício, em distinção de uma família, há a idéia de uma unidade existente
entre os diferentes tijolos ou pedras do edifício, unidade mais estreita do que a
que existe entre os membros de uma família. Os membros de uma família são
indivíduos separados e distintos. Os membros da família não são idênticos; eles
não têm que fazer desaparecerem as suas características afim de serem membros
de uma família. A individualidade ainda permanece, e às vezes é tão forte que
certos membros da família podem ter menos semelhanças uns com os outros do
que com outras pessoas das suas relações. São membros de uma família e,
todavia, a sua individualidade é mantida e permanece, e, nesse sentido, a
conexão e a ligação é fraca. Por outro lado, o ponto deveras essencial qu anto a
uma estrutura, a um edifício, é a coesão, o que o apóstolo descreve como sendo
“bem ajustado”.

Talvez eu possa expressá-lo melhor da seguinte maneira: os membros de uma


família, afinal de contas, podem separar-se uns dos outros. Não siginifica que
deixam de ser membros da família, porém podem romper a companhia un s dos
ou tros. Podem até brigar, não querer ver-se nem falar uns com os outros. Sei que
a união fundamental ainda está ali e que nada poderá dissolvê-la; mas, no que
diz respeito à amizade, à comunhão, ao companheirismo e a estarem juntos,
eles podem, porque são entidades distintas e separadas, separar-se uns dos outros
e até dar a impressão de que não existe nenhuma relação ou ligação entre eles.
Contudo, se vocês começarem a fazer esse tipo de coisa com um edifício, o fim
será que vocês não mais terão o edifício. Se vocês tirarem bom número de
pedras de um edifício, suas paredes ruirão, o seu edifício deixará de existir.
Assim é que neste caso, penso eu, o princípio da unidade revela-se mais estreito
e mais próximo. Separem os tijolos ou as pedras de uma parede, e o edifício se
vai; mas vocês podem separar os membros de uma família, e ainda a
família permanecerá como uma unidade. A ligação é mais frouxa do que no
caso do edifício. Portanto, a minha opinião é que o apóstolo está
realmente avançando em seu pensamento, e que aqui ele nos mostra que a
relação dos cristãos como membros de uma igreja é tão estreita e íntima como a
que prevalece nas diferentes partes e segmentos de um edifício.

Mas quando vemos isso do ponto de vista do privilégio, o progresso do


pensamento fica ainda mais evidente. Vimos que o filho está numa posição mais
vantajosa que o cidadão. O cidadão humilde pode apelar para o rei, para o chefe
de Estado, mas não da mesma maneira

pela qual uma criança pode aproximar-se do seu pai. Isso mostra uma relação
mais íntima e um privilégio superior e maior. Todavia aqui o apóstolo vai além
disso. A sua concepção de Igrej a nesta passagem é que a Igreja é templo santo
do Senhor, que “todo o edifício, bem ajustado, cresce para templo santo no
Senhor”. Pois bem, o filho tem acesso ao Pai, mas o filho não habita dentro do
Pai. Entretanto a idéia aqui apresentada é de Deus habitando conosco, fazendo
em nós a Sua habitação. Ora, isso é um tremendo avanço do pensamento, como
a segunda figura fora sobre a primeira. Não somente estamos nesta
relação íntima com Deus e temos esta liberdade de acesso a Ele; além e acima de
tudo isso, o mistério e a glória final da Igreja é que Deus habita nela. Ela é Seu
templo, o templo santo do Senhor. Como a Sua presença habitava no santuário
interior do antigo templo entre os filhos de Israel, as sim agora Ele habita na
Igrej a, entre o S eu povo. Não há n ada, na esfera do pensamento, que supere
isso.

Esta verdade, naturalmente, assemelha-se ao ensino dado pelo nosso Senhor


pouco antes do fim da Sua vida terrena, quando Ele disse: “...vos convém que eu
vá; porque se eu não for, o Consolador não virá a vós; mas, quando eu for,
enviar-vo-lo-ei” (João 16:7). Era um grande privilégio estar ali, na presença do
Filho de Deus, vendo-O, ouvindo-O, podendo fazer-Lhe perguntas e receber Sua
ajuda. Era maravilhoso, era esplêndido; mas há algo melhor, e é vir Ele habitar
em nós, viver em nós, ter Sua morada em nós. E Ele disse: Eis o que vou fazer,
virei a vocês e me manifestarei a vocês, eu e o Pai estaremos em vocês e em
vocês faremos nossa morada (João 14:21-23). Isso é mais que falar com
Ele externamente. Ele vem habitar em nós - “Vivo, não mais eu, mas Cristo vive
em mim” (Gálatas 2:20). Pois bem, é essa a idéia, o tipo de concepção que o
apóstolo coloca diante de nós nesta terceira e última figura que utiliza. O que ele
diz é que os efésios são partes deste grande edifício, deste templo de Deus - estes
mesmos efésios que antes estavam tão longe foram edificados neste templo e
estão sendo edifi-cados nele.

A este ensino, concernente à Igreja como um grande edifício, o Novo Testamento


dá muita proeminência. E como não há nada mais vital hoje do que a
necessidade que os cristãos têm de compreender este ensino do Novo
Testamento sobre a Igreja, não há nada mais urgente para nós do que apegar-nos
firmes a este ensino maravilhoso. Por certo vocês se lembram do que foi
proposto pelo Senhor no grande incidente ocorrido em Cesaréia de Filipe,
quando Pedro fez a sua confissão de fé,

“Tu és o Cristo, Filho de Deus vivo”, e o nosso Senhor lhe disse: “Eu te digo que
tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja” (Mateus 16:16-18). Aí
está aprimeira utilidade da analogia; aí está abase sobre a qual todos os outros
têm edificado. Espero referir-me a essa declaração particular mais adiante, para
que tenhamos algum entendimento do que o nosso Senhor quis dizer com ela;
mas ela é tratada aqui pelo apóstolo, indireta e implicitamente.

Depois há a declaração registrada no início do capítulo três da Primeira Epístola


aos Coríntios, indo do versículo 9 ao 17. Ali o apóstolo afirma que ele é um
sábio “arquiteto”, e evidentemente tem em mente esta concepção geral da Igreja
como um edifício - “ninguém pode pôr outro fundamento além do que já está
posto, o qual é Jesus Cristo”. Há pessoas de todo tipo que estão edificando sobre
este fundamento, diz o apóstolo, porém elas não estão edificando da maneira
certa, e vai haver um julgamento e as obras de cada um serão julgadas. Mas é à
idéia de Igreja como edifício que ele está dando ênfase: “Não sabeis vós”,
diz ele, “que sois o templo de Deus?” Todo o problema da igreja de Corinto foi
que os seus membros tinham esquecido isso, e a conseqüênciafoi que eles
estavam se dividindo - “Eu sou de Paulo; eu sou de Apoio; eu sou de Cefas”; e
assim por diante. Ele pergunta: vocês não percebem que são um templo do Deus
vivo? Não destruam dessa maneira o templo de Deus, vocês estão violando o
princípio da unidade. Somos assim levados a lembrar-nos da imensa importância
desta doutrina. Em última análise, todas as dificuldades da Igreja provêm da
incompreensão da natureza da Igreja. E por isso que, em última instância, todas
estas Epístolas do Novo Testamento tratam da doutrina da Igreja. Estas pessoas
tinham sido salvas, eram cristãs, sem dúvida; mas estavam com problemas em
muitas direções porque continuavam esquecidas de que eram membros da Igreja.
Segregavam-se a si mesmas, por assim dizer, tornando-se individualistas num
sentido errado, e daí surgiram problem mas e sofrimentos. A resposta a isso tudo
é: voltem e tratem de compreender que a Igreja é como um grande edifício.

Também diz a mesma coisa quando ele lembra a esses coríntios, no capítulo seis,
versículo dezenove, que o Espírito Santo habita neles. Ele está pensando mais
nos indivíduos do que na Igreja, porém isso faz parte do mesmo conceito. “Não
sois de vós mesmos, fostes comprados por bom preço.” O apóstolo lhes diz que
não cometam certos pecados do corpo. Por quê? Porque “o vosso corpo é o
templo do Espírito Santo, que habita em vós”. Há aindauma declaração muito
notável na Segunda Epístola aos Coríntios, capítulo seis, versículo dezesseis,
onde ele diz:

“Que consenso tem o templo de Deus com os ídolos? Porque vós sois o templo
do Deus vi vente, como Deus disse: neles habitarei, e entre eles eu andarei.,Aí
está, mais uma vez, a Igreja como templo do Deus vivo. De novo vocês o têm na
Primeira Epístola a Timóteo, capítulo três, versículo quinze. Cito todas estas
passagens para mostrar quão vitalmente importante é esta doutrinano ensino do
Novo Testamento. “Mas, se (eu) tardar”, diz Paulo a Timóteo, “para que saibais
como convém andar na casa de Deus, que é a igreja do Deus vivo, a coluna e
firmeza da verdade.” Continua sendo a mesma idéia. E o apóstolo Pedro faz
uso da mesma ilustração. Diz ele: “Vós também, como pedras vivas,
sois edificados casa espiritual...” (1 Pedro 2:5). Há outros exemplos que também
poderiam ser citados, mas estes são os principais.

Com todas estas passagens em nossas mentes, vejamos o que o apóstolo nos está
ensinando realmente neste ponto do nosso capítulo. Parece-me que podemos
dividir a sua declaração em duas partes principais. Primeiro, há nela uma
afirmação geral acerca desta idéia de Igreja, especialmente em termos de
unidade e privilégio; segundo, há nela verdadeiros detalhes daconstrução.
Sempre que você examinar um edifício, é importante que tenhaem mente essas
duas coisas. Você pode ter uma visão geral do edifício; há certas características
marcantes que você poderá notar imediatamente. Todavia, depois há aquele
outro aspecto que se deve estudar num edifício - o exame dos alicerces,
em detalhe, o processo empregado na construção das paredes, e o que mantém
toda a estrutura interligada. Há esse aspecto, o lado mais mecânico. De maneira
fascinante, o apóstolo trata aqui de ambos os aspectos.

No momento só quero tratar particularmente do primeiro princípio; a saber, esta


concepção geral da Igreja como edifício. Ao estudarmos este ponto, queira o
Espírito habilitar-nos a ver-nos a nós mesmos como parte deste admirável
processo que está em andamento.

A primeira coisa que o apóstolo nos diz é que a Igreja é um edifício que está em
processo de edificação. Não conheço melhor maneira de pensar na era atual, na
presente dispensação, do que simplesmente ver a Igreja desse modo. Que é que
Deus está fazendo no presente? Que será que na verdade Deus tem feito desde
que o nosso Senhor completou a Sua obra e retomou ao céu? Que é que na
verdade Deus tem feito desde a queda do homem? A resposta é que Deus está
erigindo um edifício, e esse edifício é a Igreja. Este é um processo que está em
andamento. E o apóstolo nos dá idéia disso aqui, com estas palavras, “edificados
sobre

o fundamento”, ou, mais precisamente, “que estão sendo edificados sobre”. Está
presente ai a idéia de processo. E também noutra expressão, “no qual todo o
edifício, bem ajustado, cresce para templo santo no Senhor”. Vocês podem ver o
processo em andamento, um edifício crescendo para o alto e aumentando. Gosto
de pensar nisso como um quadro descritivo daquilo que está acontecendo no
mundo. Vocês podem ler os livros da história secular, podem examinar a história
do mundo e da raça humana como o faz o homem de mentalidade secular, e
verão que é muito difícil formular alguma idéia disso tudo; mas quando o
examinam do ponto de vista da Bíblia, vêem claramente o que está acontecendo.
Deus tem um grande plano. Ele é o Arquiteto eterno, que traçou a Sua planta e as
especificações, e está edificando. E de cada geração Ele está retirando certas
pedras, escavando as pedreiras, extraindo as pedras, levando-as da maneira que
espero descrever posteriormente, e adicionando-as ao edifício. Em algumas
gerações houve poderosos avivamentos e houve grande acréscimo, podendo-se
ver o edifício como que saltando para o alto; porém também há períodos em que
parece não acontecer nada, e um observador casual poderia dizer que não
hácrescimento, que não há expansão, que as paredes não sobem nada e que nada
acontece. E, contudo, o edifício está crescendo, uma pedra aqui, outra ali, talvez.
É tudo parte deste grande processo.

Devemos lembrar-nos de que não se trata apenas de uma parte do propósito de


Deus, mas do fato de que esse propósito é firme e seguro. Este processo de
edificação vem se realizando há muito tempo. “Vocês estão sendo edificados
para isso”, para templo do Senhor, diz Paulo a estes efésios, entretanto quantos
milhares, quantos milhões têm sido edificados desde aquele tempo! Eu e vocês
fomos acrescentados a ele; somos parte dele; e o processo continua. E continuará
até que se complete e termine. Este grande apóstolo Paulo, no capítulo onze
da Epístola aos Romanos, fala sobre “a plenitude dos gentios” e sobre o fato de
que “todo o Israel será salvo”. Acreditem-me, “o Senhor conhece os que são
seus” e “o fundamento de Deus fica firme” (2 Timóteo 2:19). Faça o mundo o
que quiser, fique às soltas o inferno, ainda assim cada um daqueles que Deus
escolheu para este edifício estará no edifício. Fomos colocados nele,
acrescentados a ele, e este é o mais alto e maior privilégio que pode ser dado ao
ser humano. Portanto, pense em si desta maneira, como parte deste edifício
glorioso, deste tremendo templo que Deus está edificando. Ele vai extraindo
pedras do mundo e vai erigindo este novo edifício, esta estrutura maravilhosa,
este glorioso templo. Esse é o primeiro pensamento.

Pois bem, devo ressaltar logo o segundo ponto sugerido na passagem em foco,
que é o seguinte: este processo é vital. Outra vez devo anotar como é fascinante
observar como opera a mente do apóstolo. Ele deve ter percebido, logo que
começou com esta concepção, que as pessoas poderiam pensar na Igreja, e no
edifício da Igreja, de maneira mecânica. Põe-se tijolo em cima de tijolo,
acrescenta-se pedra a pedra, coloca-se um pouco de reboco, etc. - o que é mais
mecânico do que edificar? O apóstolo, penso eu, teve tanto receio de que as
pessoas o entendessem mal dessa maneira, que estranhamente introduziu a
palavra “cresce”: “no qual todo o edifício, bem ajustado, cresce...” Um edifício
pode crescer? Segundo o apóstolo, pode; e, a fim de tornar isso claro, ele quase
incorre no erro, na verdade incorre no erro de misturar as suas metáforas. Ele
mistura a metáfora do crescimento das flores, da relva, com a de um edifício
desenvolvendo-se, erguendo-se, estendendo-se e indo para cima. É interessante
notar que no capítulo três da Primeira Epístola aos Coríntios ele também põe
estas duas idéias lado a lado. Diz ele no versículo nove: “Porque nós somos
cooperadores de Deus; vós sois lavoura de Deus e edifício de Deus”. Ao mesmo
tempo o apóstolo se refere a si próprio como agricultor e como arquiteto.
Vocês, diz ele, são como uma lavoura de trigo, e são também um edifício.
Ele coloca as duas idéias juntas e parece fundi-las numa só. O edifício crescendo
- um processo vital.

O apóstolo Pedro faz a mesma coisa. Se ele recebeu de Paulo a idéia ou não, eu
não sei. (Sabemos que ele tinha lido as cartas de Paulo porque ele nos disse que
algumas delas eram um pouco difíceis de entender 2 Pedro3:15-16).) Vocês
notaram as palavras de 1 Pedro 2:5 quehá pouco citei: “Vós também, como
pedras vivas...”? Uma pedra pode ser viva, pode estar viva? Há vitalidade numa
pedra? Pedro afirma que há, pois esta é a sua metáfora: “Vós também, como
pedras vivas, sois edificados casa espiritual”.

Na verdade aqui, no versículo 22, o apóstolo expõe também a mesma idéia: “no
qual todo o edifício, bem ajustado” - bem ajustado! Ele faz uso desta mesma
idéia no capítulo quatro quando, falando sobre o corpo, diz: “Do qual todo o
corpo, bem ajustado, e ligado pelo auxílio de todas as juntas”. Ora, tudo isso é
muito simples no caso do corpo, mas seria tão evidente no caso de umaparede,
no caso de um edifício? A única maneira de entender isso, de acordo com o
apóstolo, é captar a idéia de que se trata de um edifício vital, um edifício vivo.
Esta é uma das coisas que precisam ser expostas com ênfase urgentemente hoje.
Há toda a diferença do mundo entre apenas acrescentar nomes

ao rol de membros de uma igreja, e o crescimento do templo santo do Senhor.


Estamos vivendo numa época caracterizada por uma mentalidade estatística, e
vocês podem ler relatórios de países e localidades em que todo o mundo parece
ser membro de igreja. Mas, infelizmente, não se segue que todos esses membros
estão sendo edificados neste santo templo do Senhor. Não se segue
necessariamente que eles são pedras “vivas”, que eles fazem parte deste
crescimento. O crescimento da Igreja é vital, não mecânico. Os homens podem
aumentar o número de membros de uma igreja, porém somente Deus pode
edificar, mediante o Espírito, na construção da Igreja. Este crescimento rumo a
um templo santo é um processo vital. Quando vocês ouvirem tudo o que se fala
hoje sobre a unidade da Igreja e sobre uma grande Igreja mundial, e sobre
a incorporação de denominações diferentes, tenham em mente esta palavra
“cresce”. Uma coisa é meramente fundir diversas organizações. Não é esse o
conceito de Paulo sobre a unidade da Igreja e sobre o aumento da Igreja. Mas
parece que é esse o pensamento dominante hoje. E mecânico, é estatístico.
Segundo esta idéia, vocês simplesmente somam; vocês se assentam, têm uma
conferência, e resolvem fazer isso. Que contraste com este processo vital, vivo,
dinâmico! “Cresce para templo santo”! Pedras vivas! Pedras animadas! Dou
ênfase a esta verdade porque não hesito em asseverar que, em grande parte, é
porque este princípio foi esquecido que a Igreja está como está hoje. A
Igreja está rogando aos homens que se agreguem a ela. Que confissão
de incapacidade de entender a natureza da Igreja! Eu nunca peço a ninguém que
se agregue à Igreja, nunca o farei. Nunca o fiz. Para mim é um grave erro querer
convencer as pessoas, quase implorar-lhes, que se agreguem à Igreja. Na
verdade, muitas vezes as pessoas são subornadas para aderirem à Igreja. Mas
tudo isso é a verdadeira antítese deste processo vital no qual o apóstolo está
interessado, este crescimento, o resultado desta tremenda operação. Lembremo-
nos sempre que este processo é vital.

Isso me leva ao meu terceiro comentário. Vocês notam que o apóstolo diz que
este é um “templo santo ”. Quando você anda em volta deste templo e o
examina, qual a sua impressão maior? Bem, diz o apóstolo, a impressão maior
que ele causa é de “santidade”. Ele não diz uma palavra sobre o seu tamanho,
não fala nada sobre o seu caráter ornamental. Não diz nada sobre algo nele que
se preste para exibição. Contudo, ele diz que o templo é santo. Essa é a sua
grande característica, “...cresce para templo santo no Senhor.” “No qual também
vós sois edificados para morada de Deus em Espírito” (ou, “mediante o

Espírito”, VA). Ah, como temos esquecido esta característica! Quão tristemente
está sendo esquecida hoje! Certamente foi essa a fatalidade que aconteceu
quando Constantino ligou o Estado romano à Igreja Cristã. Foi esquecido que ela
é um templo santo, que a principal característica da Igreja sempre é que ela seja
santa - não que ela seja grande e influente. Decerto vocês se lembram da
afirmação que um homem fez, talvez em parte brincando, mas como é
verdadeira! Discutindo a questão dos milagres na Igreja, este homem assinalou
que era quando a Igreja podia dizer: “Não tenho prata nem ouro”, que ela
podia continuar, dizendo, “Em nome de Jesus Cristo, o Nazareno, levanta-te e
anda” (Atos 3:6). Atualmente a Igreja não pode fazer nenhuma
dessas afirmações. Ela tem prata e ouro, tornou-se grande e poderosa, todavia se
esqueceu da santidade. No entanto, esta é a característica do templo, “um povo
santo”, “um local de encontro para Deus nele habitar”.

Oxalá em toda a nossa conversação, em todo o nosso pensar e em todas as


nossas discussões concernentes à unidade hoje, este princípio fosse posto no
centro. Mas não é. O que está sendo discutido hoje são os diversos pontos de
vista acerca da ordenação; se os bispos são do ser (isto é da essência) da Igreja,
ou se são apenas da sua conveniência, e assim por diante; meras questões
mecânicas! Como se essas coisas tivessem algum valor! Como o apóstolo
continua dizendo no capítulo 4, a única garantia da verdadeira unidade da Igreja
é a unidade do Espírito Santo, a unidade da santidade, a unidade do povo santo.
Quando a santidade é a principal característica, a unidade aparece por
conta própria. Quando a santidade é colocada no centro, muita coisa terá
que sair, antes de muita coisa poder entrar. Todo avivamento, todo
grande aumento da Igreja em sua longa história, sempre seguiu esse padrão.
Foi quando Wesley e Whitefield tiveram o seu “Clube Santo” que veio
o avivamento, há 200 anos. Você começa com a santidade, e então o número
aumenta. Mas se você tentar aumentar o número sem a santidade, você não terá
um “templo santo no Senhor”. Terá uma grande organização, terá uma
florescente preocupação com atividades, teráumainstituição maravilhosa; porém
não será esse o lugar onde Deus habita. Poderá ser um lugar de muito
entretenimento e de muita atividade e agitação, mas não será a Igreja do Deus
vivo. A santidade é a sua principal característica.

Isso me leva ao último pensamento, no momento, e é que sempre se deve pensar


na Igreja, em termos da Trindade santa e bendita. Com 1
que constância o apóstolo volta a isso! Vimo-lo no versículo dezoito, “Porque
por ele (referindo-se ao Filho) ambos temos acesso ao Pai em um mesmo
Espírito”. As três Pessoas! Vocês notam a sua ênfase? “Jesus Cristo (aí está a
primeira menção de Cristo nestes versículos particulares) é a principal pedra da
esquina” - Jesus Cristo! Que mais? “No qual” - em Jesus Cristo - “todo o
edifício, bem ajustado, cresce para templo santo no Senhor” - outra vez o Senhor
Jesus Cristo; “no qual” - ainda o Senhor Jesus Cristo. Paulo não consegue
deixá-10 de lado, não pode esquecê-lO. Vai sempre dando ênfase a isto, e o
vai repetindo. Quando lemos inteiramente estes dois capítulos desta Epístola aos
Efésios, com que freqüência vemos esta repetição do nome, Jesus Cristo, o
Senhor, Cristo Jesus, nEIe, tanbém nEle; e ele continua, e vai sempre se
referindo a Ele! Sem Cristo não há Igreja. Sem Cristo não há unidade. É por isso
que um congresso mundial de crenças, assim chamado, é uma negação de Cristo
e da Igreja. E é por isso que qualquer movimento ou organização que pretenda
pôr os homens em paz com Deus e que não ponha Cristo em toda parte - no
centro, no início, no fundamento, no fim, em toda parte - não é cristão. Poderá
fazer muitas coisas boas socialmente, poderá ajudar pessoas, poderá talvez
produzir alguma mudança em suas vidas; mas se Cristo não lhe for essencial,
não é cristão. Notem a repetição aqui de novo - “Jesus Cristo” - nO qual, nO
qual, nO qual! Não há nada que esteja fora da nossa relação com Ele. E depois,
“morada de Deus” - o Pai! - vindo habitar nEle. Ele manifestava a Sua presença
na glória da Shekiná no templo, no “lugar santíssimo”; e Ele vem habitar na
Igreja. E o faz mediante o Espírito. O Filho! O Pai! O Espírito Santo! Esta é
sempre a ordem - o Filho nos leva ao Pai, e o Pai e o Filho enviam o Espírito. E
assim temos este “templo santo no Senhor”.

Vocês não vêem a importância desta doutrina? As pessoas entravam no antigo


templo para encontrar-se com Deus. Era o lugar habitado por Sua presença e
Suahonra. A importânciaprática, a importância vital destadoutrinaparanós é que
Deus agorahabitano templo que é algreja. E é em nós e através de nós que as
pessoas O buscam e, nesse primeiro sentido, vêm a Ele. Estaremos nós dando a
impressão aos de fora que a Igreja é o templo do Deus vivo? Estarão eles vendo
algo desta santidade, desta referência que é própria de Deus em nós - que Ele
habita em nós e Se move em nós?

Há, então, alguns princípios gerais que se deduzem da linguagem geral do


apóstolo. Consideraremos em detalhe o que ele nos diz acerca da construção. É
absolutamente vital. Em todo este moderno interesse
pela união e pela Igreja, nada é mais fundamentalmente importante do que ser
todo o nosso pensamento dominado pelas Escrituras. Devemos ser cautelosos
para que não se intrometam idéias humanas, e devemos assegurar-nos de que,
em nosso desejo de “fazer” algo, não estejamos desperdiçando nossa energia e,
assim quando chegar o dia em que a obra de todos os homens será provada por
fogo, ver que a nossa obra não será mais que madeira, feno e palha e que será
totalmente queimada, e nós sofremos perda - embora, pela graça de Deus, nós
mesmos ainda possamos ser salvos - todavia, como que pelo fogo (1 Coríntios
3:13 e 15).

O ÚNICO FUNDAMENTO

“Edificados sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas, de que Jesus


Cristo é a principal pedra da esquina; no qual todo o edifício, bem ajustado,
cresce para templo santo no Senhor, no qual também vós juntamente sois
edificados para morada de Deus em Espírito. ” - Efésios 2:20-22

Vimos que o apóstolo utiliza aqui três figuras a fim de transmitir a estes cristãos
efésios uma verdadeira concepção de sua posição na Igreja Cristã e, portanto,
uma verdadeira concepção da natureza da própria Igreja Cristã. Já tratamos de
duas delas. A primeira foi a figura de um Estado, de um reino, um país. Todos
nós somos membros, somos cidadãos do reino de Deus. Mas, na segunda figura
ele compara a Igreja com uma família. E todos nós somos filhos de Deus e
membros da família de Deus. No entanto, mesmo isso não foi suficiente.
Ele prossegue e passa a esta terceira figura, que já começamos a estudar, a figura
da Igreja de Deus como um grande edifício em que Deus habita.

Pois bem, é óbvio que a figura surgiu espontaneamente na mente do apóstolo,


em parte por causa do que ele estivera dizendo num versículo anterior sobre o
templo na antiga dispensação. O seu grande argumento é que a parede
intermediária de separação entre os judeus e gentios tinha sido demolida. A
parede intermediária de separação, é evidente, achava-se no templo. Os gentios
estavam no Pátio dos Gentios, ehaviaumaparede que impedia a sua entrada no
Pátio do Povo. E, por sua vez, o povo não tinha permissão para entrar no “lugar
santo”, e ninguém, exceto o sumo sacerdote, podia entrar no “lugar
santíssimo”. Portanto, Paulo estava pensando em termos de um templo que
separava as pessoas. Todavia agora tudo isso passou, e há um novo templo; e
Deus habita neste novo templo, ó templo que consiste em Seu povo. Não é mais
um templo judaico. Isso passou para sempre; “Não há grego nem judeu...
bárbaro, cita, servo ou livre; mas Cristo é tudo em todos” (Colossenses 3:11). Há
esta nova realidade. O templo em que Deus agora habita é a Igreja, o Seu povo.

Já os fiz lembrar, e agora os faço lembrar de novo, que existem dois grandes
princípios que devemos ter firmemente no primeiro plano das

nossas mentes, se queremos acompanhar este ensino. O apóstolo está interessado


em mostrar duas coisas: uma, aunidade, a unidade essencial que sempre deve
caracterizar a Igreja Cristã e todos os cristãos verdadeiros. Isto não é matéria de
discussão, é algo que Deus fez e que Deus pessoalmente produziu em Cristo. Ele
criou “dos dois um novo homem”, esta nova realidade, a Igreja. E a unidade é
completamente inevitável. A segunda coisa, que é resultante dessa unidade, é
o privilégio da nossa posição. Nesta figura da Igreja como este templo, este
santo edifício no qual Deus estabelece a Sua residência, põe às claras estas duas
verdades. Já examinamos este assunto de maneira geral, porém agora vamos
passar a uma consideração mais minuciosa.

O apóstolo ensina que o edifício é algo que está em constante desenvolvimento,


graças a um processo dinâmico, vivo e ativo. “Cresce” - ele é algo que cresce; e
nós “juntamente somos edificados”. Não é algo mecânico - jamais devemos
pensar na unidade em termos de mecânica ou de fria estatística. Não, é algo vital
- “cresce”. E um processo vivo. Também vimos que o templo é santo. O apóstolo
não está preocupado com o tamanho, está preocupado com a qualidade.
Santidade! “Templo santo no Senhor”! Vimos igualmente que as três Pessoas da
Trindade santa e bendita estão sempre necessariamente envolvidas. Mas o
apóstolo não pára numa descrição meramente geral. Ele examina o templo e
primeiro nos dá um relato geral sobre ele. Entretanto esta questão é tão
importante, em sua opinião, que ele tem que entrar em detalhes. Ele nos dá a
planta e as especificações deste edifício, deste templo. E, uma vez que o apóstolo
se dá ao trabalho de fazer isso, devemos deduzir que ele o considerava um
assunto da máxima importância.

Todo este assunto relacionado com a natureza da Igreja, a unidade da Igreja, é


verdadeiramente uma questão fundamental. O apóstolo tratou disso em seus
próprios dias e em sua própria geração porque obviamente era indispensável que
o fizesse. E igualmente indispensável que o façamos hoje. A grande palavra hoje
em dia é a palavra “unidade”. Há possivelmente mais prosa, mais pregação
e maior produção de livros e artigos sobre aunidade da Igreja hoje do que sobre
qualquer outro assunto. É, na verdade, o principal tópico em discussão em todos
os segmentos dalgreja em todos os países. Portanto, quaisquer que sejam as
nossas opiniões, convém que o nosso pensamento a respeito seja claro. É um
grande erro um cristão, seja ele quem for, dizer que só se preocupa com a sua
experiência pessoal, e que não tem nenhuma preocupação com estas questões
maiores. Você deve

preocupar-se. Você não pode viver isoladamente. Todos nós vivemos juntos,
temos comunhão uns com os outros. “Nenhum de nós vive para si, e nenhum
morre para si” (Romanos 14:7). E a verdade é que se não pensarmos nestas
questões, acabaremos sendo influenciados por outros e acabaremos sendo
envolvidos em suas decisões. Permitam-me usar uma ilustração. Lemos
constantemente nos jornais em nossos dias que o real problema do mundo
industrial, quanto às greves e conflitos, é em grande parte causado pelo fato de
que, em sua imensa maioria, os membros dos sindicatos simplesmente não se
dão ao trabalho de ir às reuniões e votar. O resultado é que poucas pessoas, que
podem ser comunistas, sempre vão, e visto que eles vão e os outros não, mas
deixam que as questões se decidam à revelia, o programa de um sindicato
pode muito bem ser governado por um pequenino grupo de pessoas, ao
passo que todos os outros, que poderiam não estar de acordo, têm que seguir as
decisões tomadas. A pura negligência e indolência, a recusa a interessar-se
ativamente, permite que a situação vá à revelia. Exatamente a mesma coisa
poderá acontecer na Igreja. Muitas vezes aconteceu que cristãos, em sua
indolência, e negando-se a incomodar-se e a dedicar suas mentes a estas coisas,
permitiram que decisões fossem tomadas em lugar deles por um pequeno grupo
de oficiais. E nosso dever, digo eu, como cristãos, entender algo daquilo que o
apóstolo ensina aqui referente a esta questão de unidade.

Permitam-me oferecer-lhes algumas razões para procedermos assim. Há muitas


maneiras pelas quais se pode conseguir alguma espécie de unidade, porém o
que importa é a unidade que corresponde ao que o apóstolo ensina aqui. A
igreja católica romana acredita na unidade mais que qualquer outra corporação.
Ela está sempre dizendo isso. A própria palavra “católico” nos fala disso. O
termo se refere à Igreja universal, e os católicos romanos se espantam com o fato
de que os protestantes tenham se separado deles e com o fato de que
haja qualquer divisão. Eles dizem que devemos ser um, e que a Igreja deve ser
unida. Nenhuma igreja prega a unidade mais que a igreja católica romana. Mas
sabemos o que eles querem dizer com isso. Eles querem dizer uniformidade; o
que eles querem é que todos sejam reabsorvidos; querem que todos retornem a
Roma. O que acentuo é que eles têm muito interesse na unidade. Se nós
simplesmente falamos em unidade e dizemos que nada importa, senão a unidade,
então, logicamente, todos nós deveríamos unir-nos com a igreja católica romana.
Eles se chamam cristãos, como nós. Muito bem, pois, poderíamos raciocinar, se
todos nós somos cristãos, então por que estarmos separados, por que sermos

diferentes? Sejamos todos um, tornemo-nos todos católicos romanos.

Pois bem, quando dizem coisas desse tipo, não gostamos; entretanto quando
precisamente o mesmo argumento é utilizado dentro do protestantismo, achamos
que o argumento é maravilhoso. Mas o princípio continua sendo exatamente o
mesmo. Não se começa, e não se deve começar com unidade. A unidade é algo
que resulta doutra coisa. Não se pode criar unidade. Vejam, por exemplo, esta
figura que o apóstolo usou acerca da família. A unidade que existe entre os
membros de uma família não é criada artificialmente. A unidade é inevitável
por causa do relacionamento deles. E toda forma de unidade é assim também. A
unidade é um resultado. Não se parte da unidade; a unidade é algo que existe
porque certos princípios fundamentais estão em operação.

Consideremos outra ilustração. Há poucos anos lemos nos jornais sobre o modo
como foi celebrado o décimo aniversário da fundação da Organização das
Nações Unidas. Com relação a esse evento tiveram uma reunião à qual
chamaram “Festival da Fé”. E o festival da fé consistiu num grande culto em que
judeus, maometanos, hindus, budistas, confucionistas e cristãos participaram
juntos e juntos recitaram as mesmas orações. O argumento era o seguinte - e
quantas vezes este argumento é utilizado hoje! - as pessoas diziam: todos nós
cremos no mesmo Deus. Os maometanos, os hindus, os budistas, os cristãos,
todos crêem no mesmo Deus. A verdade é como uma grande montanha; há
um só pico, todavia há muitos caminhos que levam para lá. Por que eu deveria
dizer que só eu estou certo? Que direito têm os cristãos de dizer que só eles estão
certos e que todos os outros estão errados? Não importa que caminho você siga
para subir a montanha, contanto que você chegue ao topo. Portanto, juntemo-nos
todos num grande festival da fé, num festival das crenças, num grande
congresso, num congresso mundial das religiões. Cremos no mesmo Deus; logo,
porque brigar por causa destas coisas? Esse é o tipo de argumento que seusa
hoje. As vezes me pergunto o que estas pessoas pensariam de Paulo se ele
vivesse hoje. Pergunto-me o que muitos membros da Igreja Cristã diriam dele.
Notem o que ele diz aos gálatas: “Ainda que nós mesmos ou um anjo do céu
vos anuncie outro evangelho além do que já vos tenho anunciado, seja anátema”
(Gálatas 1:8). Ah, diriam eles, que homem impossível, que individualista,
queisolacionista! Só ele está certo, todos os outros estão errados. Ele não quer
saber de entrar conosco, está sempre fora, em certos pontos. Acaso não é
evidente que, às vezes, por deixar-nos influenciar por prosas gerais e vagas, nós
nos tornamos completamente

anti-escriturísticos sem perceber o que estamos fazendo? Ora, devemos ter o


cuidado de observar os planos e as especificações dadas por Deus. Não basta
gritar a palavra “unidade” e dizer que o importante é que fiquemos todos juntos.
Há uma coisa infinitamente mais importante -a verdade! Pois a unidade que não
se baseia na verdade é falsa. E produzida pelo homem; não é do plano de Deus e,
portanto, é irreal e espúria.

O apóstolo nos dá aqui um claro ensinamento concernente a isso tudo.


Construam, diz ele, sobre o fundamento. Ele de imediato nos leva ao princípio
vital: sem um fundamento verdadeiro não pode haver um edifício verdadeiro.
Vocês têm que começar com os alicerces, diz Paulo. Não podem falar em
edifício sem saber algo sobre o seu alicerce. Isso é absolutamente vital e central.
Portanto, à luz da trágica confusão moderna, devemos dar-nos ao trabalho de ir a
fundo na análise de minuciosas descrições, exposições e definições, para mostrar
exatamente o que o apóstolo diz.

Eis a única base da verdadeira unidade: o fundamento dos apóstolos e dos


profetas. Que é que Paulo quer dizer? Devemos começar fazendo a pergunta:
que é um apóstolo? Não se pode entender nada desta questão de unidade, a
menos que se entenda o que é um apóstolo e o que é um profeta, porque a Igreja
é edificada “sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas”. Os pontos
essenciais relacionados com um apóstolo são os seguintes: um apóstolo era
alguém que tinha visto o Senhor ressurreto. Apóstolo é, por definição, alguém
que pode dar testemunho da ressurreição de Cristo porque viu o Senhor
ressurreto. Essa era uma das qualificações do próprio Paulo. Ele viu o
Senhor ressurreto no caminho de Damasco. Se não O tivesse visto,
jamais poderia ser um apóstolo. Poderia ser um pregador, poderia ser um profeta,
poderia ser um grande mestre; mas nunca poderia ser um apóstolo, se não tivesse
visto o Senhor no caminho de Damasco. E por isso que, escrevendo aos
coríntios, ele diz que é como “um abortivo” (1 Coríntios 15:8). Paulo não viu o
Senhor ressurreto quando os outros apóstolos O viram; ele teve esta
manifestação especial e particular para que pudesse tornar-se um apóstolo.

Ele toca no mesmo ponto numa frase do princípio do capítulo nove da Primeira
Epístola aos Coríntios. “Não sou eu apóstolo? Não sou livre? Não vi eu a Jesus
Cristo Senhor nosso?” Essa é a prova de que ele é um apóstolo. No entanto, não
somente isso! Um apóstolo era alguém especialmente chamado, designado e
enviado como pregador do

evangelho pelo próprio Senhor ressurreto. Essa é também uma parte vital da
vocação de um apóstolo. Leiam o capítulo vinte e seis do livro de Atos, e verão
ali o relato de como o Senhor comissionou pessoalmente o apóstolo Paulo no
caminho de Damasco. Assim, o apóstolo é alguém que, tendo visto o Senhor
ressurreto dentre os mortos, foi especialmente comissionado por Cristo para ir e
pregar a mensagem. Além disso, aos apóstolos era dada uma autoridade muito
especial. Recebiam o poder de operar milagres e de fundar igrejas, e estas
coisas eram um atestado da sua autoridade como apóstolos. Essas eram, então, as
três principais características de um apóstolo. Veremos num instante quão vital é
que as tenhamos todas em mente. Sem essas três qualidades nenhum homem
poderia ser apóstolo, e isso torna a “sucessão apostólica” uma impossibilidade.

Passemos agora aos profetas .Queé um profeta ? Tem havido muita discussão a
respeito. Os comentaristas mais antigos concordavam todos em dizer que esta
palavra “profeta” refere-se aos profetas do Velho Testamento, aqueles que
profetizaram a vinda de Cristo, a vinda do reino, e nesse sentido estabeleceram
um fundamento. Mas, por outro lado também há muitos que são da opinião de
que não é uma referência aos profetas do Velho Testamento, e sim, uma
referência aos profetas do Novo Testamento, aos profetas que agiam na Igreja do
Novo Testamento. Eles argumentam que tem que ser esse o caso pois, se
o apóstolo estivesse pensando nos profetas do Velho Testamento, teria dito
“sobre o fundamento dos profetas e dos apóstolos”; contudo ele diz, “sobre o
fundamento dos apóstolos e dos profetas”. Portanto, é evidente que ele estava
pensando em termos doNovo Testamento. Eles vão mais longe e dizem que o
apóstolo faz a mesma coisa no versículo cinco do capítulo três, onde lemos: “O
qual noutros séculos não foi manifestado aos filhos dos homens, como agora tem
sido revelado pelo Espírito aos seus santos apóstolos e profetas”. E ainda, no
versículo onze do capítulo quatro, ele diz: “E ele mesmo deu uns para
apóstolos, e outros para profetas, e outros para evangelistas, e outros para
pastores e doutores” (ou “pastores e mestres”). Assim, com base nestas
coisas, eles argumentam que a referência é patentemente aos profetas do
Novo Testamento, aos profetas da Igreja Cristã.

Isso então levanta a questão: que é um profeta? - quer na antiga dispensação quer
na nova, A resposta é que profeta é alguém que recebe uma mensagem direta de
Deus. Profeta é aquele a quem a verdade é revelada diretamente pelo Espírito -
não como resultado da leitura das Escrituras ou de alguma outra coisa, mas por
uma mensagem dada

diretamente, mensagem que, por sua vez, ele transmite a outros. O apóstolo o
define para nós: “o que profetiza”, diz ele, “fala aos homens para edificação,
exortação e consolação” (1 Coríntios 14:3). Na Igreja Cristã dos primeiros
tempos havia os chamados profetas. Os cristãos não tinham então as Escrituras
do Novo Testamento; não dispunham nem dos Evangelhos nem das Epístolas;
porém havia aqueles que recebiam elementos da verdade e entendimento
espirituais por revelação e eram habilitados a proferi-los. O profeta do Velho
Testamento fazia exatamente a mesma coisa. Deus lhe revelava verdades e o
habilitava a proferi-las. Essa é a característica do profeta.

A que exatamente o apóstolo está se referindo aqui, quando diz, “sobre o


fundamento dos apóstolos e dos profetas”? Ele coloca primeiro os apóstolos por
causa da sua singularidade absoluta. Vocês têm a mesma coisa em Apocalipse
21:14, onde lemos sobre a cidade santa, a nova Jerusalém, descendo do céu, cujo
muro tinha doze fundamentos e, escritos neles, “os nomes dos doze apóstolos
do Cordeiro”. Quanto aos profetas, podemos concordar que ele está se referindo
aos profetas do Velho Testamento e aos profetas do Novo Testamento -
especialmente aos últimos.

Então, em que sentido é verdade que a Igrej a é edificada, estabelecida e fundada


sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas? Significa, em parte, sobre os
homens propriamente ditos, na qualidade de crentes, homens que exercem fé.
Eles foram os primeiros crentes - os apóstolos e os profetas - e nesse sentido
toda a estrutura superior repousa sobre eles. Não há dúvida que esse é em parte o
sentido, que eles foram os primeiros a ser colocados neste grande edifício como
pedras fundamentais. Portanto, é certo dizer que a referência é, em parte, a eles
como cristãos, como pessoas que exercem fé no Senhor Jesus Cristo.

Mas isso, por seu turno, leva ao segundo aspecto, e este, provavelmente, tinha
maior presença na mente do apóstolo do que o primeiro -o ensino dos apóstolos
e dos profetas. Este é, por excelência, o fundamento, afinal de contas. Nenhum
de nós poderia pertencer à Igreja sem crer. E como resultado da nossa crença que
obtemos todos os nossos benefícios, e que nos tornamos o que somos. A
diferença existente entre cristãos e não cristãos é a que existe entre crentes e
incrédulos. Os incrédulos não estão na Igreja; os crentes estão. No que é que
aqueles crentes criam? Criam no ensino. Assim é que, em última análise,
o fundamento é o ensino dos apóstolos e dos profetas, a sua doutrina.
Eles ensinavam o que eles mesmos criam; eles davam expressão à fé por aquilo
que eles viviam; portanto, as duas coisas são realmente uma só.

Essa é, pois, a verdade vital que nos cabe entender e fixar num tempo como este.
O que faz de nós membros da Igreja, o que faz de nós parte deste grande templo,
deste edifício maravilhoso que está sendo construído, é a nossa fé, é a nossa
aceitação do ensino, da doutrina. Isso é básico e fundamental. Foi sobre isso que
o apóstolo escreveu no capítulo primeiro da Epístola aos Gálatas. “Maravilho-
me de que tão depressa passásseis” - vocês podem notar quão abruptamente ele o
diz. Imediatamente após a sua breve saudação preliminar, ele diz: “Maravilho-
me de que tão depressa passásseis daquele que vos chamou à graça de Cristo
para outro evangelho; o qual não é outro” - porque não há outro, e não pode
haver outro. Como ele fala forte e dogmaticamente! Gostemos ou não, o
cristianismo é uma fé muito intolerante. Diz ele que isto, e somente isto, é
verdadeiro. O apóstolo diz até: “Mas, ainda que nós mesmos ou um anjo do céu
vos anuncie um outro evangelho além do que já vos tenho anunciado, seja
anátema”! (Gálatas 1:8).

Não há outro evangelho. “Ninguém pode pôr outro fundamento além do que já
está posto” (1 Coríntios 3:11). Noutras palavras, a única base da unidade hoje,
como foi a única base da Igreja Primitiva, é a mensagem apostólica. E seja o que
for que os homens pensem ou digam, devemos asseverar isso. Chamem-nos
intolerantes, isolacionistas, ou o que quiserem, devemos tomar posição com este
homem de Deus! O que importa não é a minha opinião ou a de outro qualquer, o
que importa é - que é que aPalavra ensina? Que é que os apóstolos ensinam?
Fora disso não reconheço nada. O que importa não é o conhecimento moderno,
ou a pesquisa ou o entendimento moderno, ou a idéia moderna sobre Deus. O
que estes homens ensinaram é o único evangelho.

Pois bem, evidentemente, isso é algo que se pode definir. Se não se pudesse
definir, como poderia o apóstolo repreender os gálatas? Eles sabiam o que ele
ensinava e ele lhes lembra o conteúdo do seu ensino. A idéia de que o
cristianismo é tão maravilhoso que não há como defini-lo, que é um espírito tão
maravilhoso que não pode ser reduzido a proposições, é uma negação do ensino
do Novo Testamento. As Epístolas foram escritas para que soubéssemos o que
cremos e o que exatamente representamos. Nenhum de nós pode alegar
ignorância deste ensino; tudo isso está neste capítulo dois da Epístola aos
Efésios. E o fundamento é este - que o homem, por natureza, está morto
em ofensas e pecados; que ele está sob a ira de Deus. E o apóstolo que o diz. E,
portanto, se você não crê que o homem, por natureza, está morto em ofensas e
pecados, e que a ira de Deus sobre o pecado é uma realidade, seja qual for a
verdade sobre você, você não está neste santo templo no

Senhor, no qual Deus habita. Esta é uma parte essencial do fundamento. Todavia,
graças a Deus, o ensino não pára aí, vai adiante e nos fala da graça de Deus. Vai
adiante e nos fala do Senhor Jesus Cristo, da Sua Pessoa e da Suaobra. Diz-nos
aindaqueEle é o Filho Unigênito de Deus. Mesmo que alguém se diga cristão, se
não crê na deidade de Cristo, eu digo que ele não é cristão! Eu tenho que ser
intolerante! Não posso fazer concessão neste ponto. Se Cristo não é o Filho de
Deus, eu continuo em meus pecados e vou para o inferno.

E quanto à Sua obra? Acaso teríamos notado, enquanto vamos percorrendo este
capítulo dois - e deliberadamente tomei bastante tempo, porque não posso
estudar superficialmente estas coisas - teríamos notado a ênfase ao sangue de
Cristo? Épor Sua morte, por Sua morte sacrificial, pelo fato dElenos substituir
para sofrer a punição dos nossos pecados, é que somos salvos. E pelo sangue de
Cristo! “Portanto, lembrai-vos de que vós noutro tempo éreis gentios na carne, e
chamados incircuncisão... que naquele tempo estáveis sem Cristo, separados
da comunidade de Israel, e estranhos aos concertos dapromessa, não
tendo esperança, e sem Deus no mundo. Mas agora em Cristo Jesus, vós,
que antes estáveis longe, já pelo sangue de Cristo chegastes perto.” Pelo sangue
de Cristo! E contudo há os que zombam do sangue de Cristo! Há pessoas que se
dizem cristãs e que zombam disso! Nas grandes denominações há líderes que
afirmam que é escandaloso falar em expiação vicária. E me pedem que me una a
eles em comunhão. Como posso fazê-lo? É impossível. Não tenho escolha; esta
questão é fundamental. O sangue de Cristo! “Meu pecado Ele levou em Seu
corpo no madeiro.” E unicamente pelo Seu sangue que eu sou posto em
liberdade, e pelo poder de Deus na regeneração, e pelo dom do Espírito. A união
com Cristo! Essa é a doutrina - tudo isso o apóstolo nos vem ensinando
neste capítulo maravilhoso.

É esse, então, o fundamento dos apóstolos e dos profetas. Não uma vaga prosa
acerca do cristianismo! Não um espírito maravilhoso segundo o qual nos
amamos uns aos outros, mantemo-nos juntos e não nos preocupamos com
definições! Se vocês quiserem esse tipo de unidade espúria, poderão tê-la, mas
quando chegar “o dia” e chegar o juízo, vocês verão que o que o apóstolo disse
escrevendo aos coríntios, “Ninguém pode pôr outro fundamento além do que já
está posto”, é a única verdade. Ele pregava a “Jesus Cristo, e este crucificado”,
com a exclusão de tudo o mais. Ele era intolerante. Não dêem ouvidos a
esse outro ensino, ele diz aos gálatas, é espúrio, é uma mentira, não é evangelho,
é uma negação do evangelho. O fundamento dos apóstolos

Tracemos agora algumas deduções muito atuais desta doutrina. A primeira é que
a Igreja é fundada não somente no apóstolo Pedro, mas nos apóstolos e nos
profetas - todos os apóstolos e profetas. Essa é a nossa resposta ao catolicismo
romano, e na verdade é simples assim. Ora, dirá alguém, que dizer de Mateus,
capítulo 16, quando em Cesaréia de Filipe, o nosso Senhor diz: “Tu és Pedro, e
sobre esta pedra edificarei a minha igreja”? - deve ter sido unicamente Pedro. A
resposta é o que eu disse há pouco, que essa foi a confissão de Pedro. Pedro
tinha acabado de fazer a sua grande confissão! O nosso Senhor dirigira aos
Seus discípulos a pergunta: “Quem dizem os homens ser o Filho do homem?”
“Uns, João Batista, outros, Elias, e outros, Jeremias ou um dos profetas.” “E vós,
quem dizeis que eu sou?”, indagou o nosso Senhor. E Pedro, adiantou-se como
porta-voz, como era seu hábito e disse: “Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo”. E
o Senhor lhe respondeu, dizendo: “Bem-aventurado és tu, Simão Barjonas,
porque to não revelou a carne e o sangue, mas meu Pai, que está nos céus”. Que
é que isso quer dizer? Tendo visto a verdade, Pedro a confessa, e sobre essa
rocha Cristo diz que construirá a Sua Igreja. A confissão, a crença, a fé! E essa
verdade não se refere somente a Pedro. O apóstolo não está contradizendo
o ensino de nosso Senhor aqui. Segundo o ensino católico-romano, ele estava
fazendo isso. Muitos contrastam o ensino de Cristo com o ensino de Paulo, mas
não há nenhuma contradição. O fundamento são os apóstolos e os profetas, todos
eles, não somente Pedro. Esta é confissão feita primeiramente pelos apóstolos e
pelos profetas. Esse é o único fundamento da Igreja Cristã. E, portanto, não
podemos juntar-nos aos que dizem que toda ela está fundada somente em Pedro
e que tudo depende de Pedro. Essa é uma base falsa.

Mas é igualmente importante que tiremos esta segunda dedução, que, à luz do
que vimos que caracteriza os apóstolos e os profetas, não pode haver repetição
de apóstolos e profetas. Eles são o alicerce. Não se repete um alicerce. O
alicerce é lançado de uma vez por todas. E, portanto, toda conversa sobre
sucessão apostólica é uma negação do nosso texto. Não há sucessores especiais
dos apóstolos. Na verdade não há sucessores dos apóstolos, nenhum sucessor.
Apóstolo era um homem que tinha visto o Senhor ressurreto e, portanto, podia
ser uma testemunha da ressurreição. Há dessas pessoas hoje? Apóstolo era
alguém especialmente comissionado pelo Senhor, de maneira visível. Há
dessas pessoas hoje? Eram-lhe dados poderes especiais, milagres e outros, e

infalibilidade, para poderem pregar e ensinar infalivelmente. Há dessas pessoas


hoje? E, todavia, em toda essa conversa e argumentação acerca de re-união, este
parece ser o ponto mais importante - a sucessão apostólica! E por causa disso, os
não-conformistas, os ministros das igrejas livres, têm todos de ser ordenados de
novo por um “direto sucessor” dos apóstolos! Sem isso não sepode ter unidade, e
não sepode ter comunhão! Como é importante estudar as Escrituras! Isso
de sucessão apostólica não existe; é por definição umapura impossibilidade.
Pode-se ter uma sucessão sacerdotal, pode-se ter uma sucessão de homens
queperpetuamente se designam uns aos outros, porém sucessão apostólica é
coisa que não existe. E, portanto, toda essa conversa que pretende que não se
pode ter unidade sem re-ordenação, ou sem alguma relação especial com um
bispo, é uma completa negação deste postulado. Somente afé e a subscrição da
verdade é que fazem de alguém uma parte do edifício.

Isso me leva à terceira dedução, que coloco desta forma: obviamente, não pode
haver acréscimo a este fundamento. No que se refere ao ensino, quero dizer. Se
o fundamento é o ensino dos apóstolos, não se pode acrescentar nada a ele. Por
isso não creio na “Imaculada Conceição”; não creio na “Assunção” da virgem
Maria; não creio em nenhuma das outras coisas que a igreja romana acrescentou,
e que outras igrejas acrescentaram. Nada se pode acrescentar a um alicerce, e
nada se pode tirar dele. Temos aqui um corpus de verdade, um corpo
de doutrina. Você não pode acrescentar nada a um alicerce, não pode subtrair
nada dele, não pode tocá-lo. Você pode pensar que pode, mas estará enganado. O
que você estará fazendo é simplesmente pôr-se fora do edifício. O alicerce tem
que ser lançado uma vez e para sempre, e nunca poderá ser repetido. Deus é o
Construtor, eEle constrói sobre “o fundamento dos apóstolos e dos profetas”.

Assim é que a próxima dedução, muito prática, é que não basta dizermos que
somos cristãos ou que queremos ser cristãos, e que nada mais é necessário. A
questão vital é: em que você crê? Você não poderá ser cristão se não souber o
que você crê. É impossível. É a verdade que nos leva a Deus, é pela verdade que
nós somos santificados. Somente quando conhecemos a verdade concernente ao
nosso bendito Senhor e Salvador, anós mesmos e anossa necessidade, e oque
Deus fez pela Sua graça, é que podemos ser partes e parcelas deste grande
edifício.
Portanto, a minha derradeira dedução terá de ser que, falar em 2

termos de número ou de tamanho ou de organização ou de qualquer outra coisa é


extremamente perigoso nestas questões. A unidade da Igreja é resultante de duas
coisas: da pureza da doutrina e da pureza da vida. Ela é um “templo santo do
Senhor”. É uma “morada de Deus”.

A Igreja é edificada sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas. E


observem como o apóstolo se apressa a acrescentar isso: “Jesus Cristo é a
principal pedra da esquina Que é uma principal pedra da esquina? Permitam-me
citar uma definição: “A pedra da esquina é uma pedra que dá início ao alicerce
no ângulo da estrutura, pela qual o arquiteto fixa um padrão para o suporte das
paredes laterais e das paredes transversais de todo o conjunto”. A pedra da
esquina não somente mantém juntas todas estas pedras subsidiárias do alicerce,
mas também as entrelaça e entrelaça todas as paredes. Ela está na esquina, e tudo
é sustentado por ela e tudo é entretecido por ela.

E a principal pedra da esquina é o próprio Senhor Jesus Cristo. Isaías tinha


profetizado isso, quando disse: “Eis que eu assentei em Sião uma pedra, uma
pedra já provada, pedra preciosa de esquina, que está bem firme e fundada”
(28:16). E o apóstolo Pedro, vocês se lembram, cita essa passagem em sua
Primeira Epístola, capítulo dois, versículo seis. Todavia vocês se lembram que o
nosso Senhor disse isto: “A pedra que os edificadores rejeitaram, essa foi posta
por cabeça do ângulo” -referindo-se a Si mesmo e à Sua gloriosa e triunfal
ressurreição. Eles O estão rejeitando, diz Ele, mas verão que Ele virá a ser a
principal pedra da esquina, que Ele será a base do edifício todo, interligando
tudo e sustentando o peso de toda a estrutura levantada sobre ela. Fora de
Jesus Cristo não há unidade. O que importa é a nossa relação com Ele, e a
nossa confiante dependência dEle. Ele é central, Ele é vital, a importância dEle é
total. Volto a repetir esta frase extraordinária: “no qual todo o edifício, bem
ajustado, cresce para templo santo no Senhor, no qual também vós juntamente
sois edificados para morada de Deus em Espírito” (ou “mediante o Espírito”
VA).

Portanto, as perguntas práticas que fazemos a nós mesmos são estas: eu sei o que
creio acerca do Senhor Jesus Cristo? Eu O conheço? Eu estou nEle, nesta relação
vital? Teremos que responder estas perguntas, porque o apóstolo trata dessa
questão em detalhe. “No qual todo o edifício”, diz ele, “bem ajustado...”. Se essa
verdade não diz respeito a nós, não estamos nEle. Mas no momento eu me limito
à questão do fundamento. Você está solidamente baseado no fundamento dos
apóstolos e dos profetas? Ou só está interessado num cristianismo

vago e nebuloso que diz que você não deve preocupar-se com doutrina porque a
doutrina separa? É essa a sua posição? Certamente não era a posição do homem
que disse: “Mas, ainda que nós mesmos ou um anjo do céu vos anuncie outro
evangelho... seja anátema”. Temos que saber em quem temos crido. Temos que
saber o que cremos. Este apóstolo fala em “meu evangelho”; e não há outro
evangelho. É o seu? Você sabe e confessa que, como você era por natureza, era
um filho da ira e estava morto em ofensas e pecados? E que, não fora a graça de
Deus em Jesus Cristo, não fora a Sua morte expiatória, sacrificial e vicária, você
ainda estaria nesta situação? Você sabe que Ele morreu por você, que Ele Se deu
por você e pelos seus pecados, que pelo poder do Seu Espírito Santo Ele o
regenerou, Ele o vivificou e o ressuscitou da morte resultante do pecado, que
você até está assentado nos lugares celestiais com Cristo, porque você está nEle
e está ligado a Ele, pela graça de Deus?

EDIFÍCIO BEM AJUSTADO

“Edificados sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas, de que Jesus


Cristo é a principal pedra da esquina; no qual todo o edifício, bem ajustado,
cresce para templo santo no Senhor, no qual também vós juntamente sois
edificados para morada de Deus em Espírito. ” - Efésios 2:20-22

Passamos agora a mais um estudo desta terceira figura. Tivemos uma visão geral
do assunto, mas também observamos que o apóstolo não se contenta só com
isso, embora seja importante. Em acréscimo a oferecer-nos uma descrição geral
do edifício e, portanto, da natureza e do caráter da unidade própria da Igreja, o
apóstolo trata também dos detalhes da planta e das especificações.

Já dedicamos alguma consideração ao fundamento, que é da máxima


importância. A primeira coisa que Paulo nos diz é que a Igreja é edificada “sobre
o fundamento dos apóstolos e dos profetas, de que Jesus Cristo é a principal
pedra da esquina”. Não vou retornar a isso, mas certamente nós temos de
compreender que o fundamento é de importância absolutamente central. Nunca
devemos sujeitar-nos a correr nenhum risco com um alicerce. O nosso Senhor
firmou esse ponto em Sua parábola das duas casas, uma edificada sobre a rocha
e a outra edificada sobre a areia. O alicerce é absolutamente vital, e nós já
vimos o que é o alicerce da Igreja, e como o próprio Senhor Jesus Cristo é
a principal pedra da esquina, interligando as pedras subsidiárias, interligando
todas as paredes, e assim suportando e unindo a estrutura inteira.

Agora, tendo feito isso, a próxima coisa da qual o apóstolo trata, a próxima
coisanaqual evidentemente estamos interessados, é esta: onde nós entramos nisso
tudo? Somos edificados sobre o fundamento, somos partes integrantes das
paredes que estão subindo neste processo em que se vai erguendo este grande
templo que Deus está construindo para Si e para a Sua habitação, este templo
santo no Senhor. Noutras palavras, passamos agora a estudar a nossa parte, o
nosso lugar e a nossa posição neste admirável edifício de Deus. O apóstolo
regozija-se no fato de que os efésios estão sendo edificados no edifício. A obra
tinha começado antes deles entrarem, mas eles são acrescentados a ele, são
colocados nele, e assim prossegue a edificação. Outros, muitos outros, entraram

daquele tempo em diante. Eu e vocês, como cristãos, estamos nele. Devemos


observar com toda a atenção o que o apóstolo nos diz sobre quais as pessoas que
são edificadas nele, e como são edificadas. Essas são as duas coisas que
importam. Quem são os que têm lugar, posição e parte nesta grande estrutura?
Como entraram ali? Como são postos ali? O apóstolo trata de ambas as questões
com muita clareza.

Devemos ter em mente três coisas. Obviamente, cada parte desta estrutura tem
que estar numa relação especial com o fundamento. Quase não é preciso dizer
isso e, contudo, é um ponto tão importante que eu devo salientá-lo outra vez.
Num templo como este que está sendo construído, em qualquer edifício grande e
magnífico, sempre tem que haver correspondência entre as diversas partes. Você
não pode por material falsificado aqui e ali num edifício perfeito. Se você vai
erigir um edifício incomum, um grande e santo templo, cada parte terá
que corresponder às demais. E assim é vital que nos lembremos de que
nós, como partes individuais deste grande templo de Deus,
devemos corresponder ao fundamento, devemos estar verdadeira e corretamente
relacionados com esse fundamento. Isso é algo de importância crucial.
Permitam-me lembrá-los da maneira como o apóstolo expressou essa verdade no
capítulo três da Primeira Espístola aos Coríntios. Trata-se de uma palavra
particularmente dirigida àqueles de nós que temos o privilégio de pregar e de
servir como pastores. Somos edificadores sob Deus, somos Seus colaboradores.
E eis o que o apóstolo diz: “Ninguém pode por outro fundamento além do que já
está posto”. “Mas veja cada um como edifica sobre ele.”
Você pode edificar sobre ele, diz o apóstolo, com ouro ou prata ou com metais
preciosos. Isso tem valor; mas também há os que querem construir com madeira,
feno e palha; e isso não é nada bom. A madeira, o feno e a palha não são
coerentes com o fundamento que foi posto. O fundamento é tão precioso, e a
principal pedra da esquina é tão preciosa, que nada senão ouro ou prata ou
metais preciosos são adequados. Colocar ali madeira, feno e palha é uma
indignidade. Não somente isso, diz ele; estas coisas não resistirão, afinal. Esta
obra será submetida a prova - “o dia a declarará”. E ela será provada pelo fogo.
E quando for posto o fogo, a madeira, o feno, apalha e a serragem desaparecerão
num momento e não restará nada. Um edifício construído com material de
má qualidade nunca passa naprova. Há gente que fica tão ansiosa pela
rápida construção de um edifício que não toma cuidado com o que põe
nas paredes - qualquer coisa serve para levantá-las, e depois se cobre tudo

com um pouco de tinta. Parece maravilhoso, e o ignorante e o inexperiente ficam


impressionados. Eles dizem: que maravilhoso! Outros parecem estar construindo
tão devagar que as pessoas faltas de discernimento dizem: ele não está fazendo
coisa nenhuma. No entanto, “o dia” a declarará. Não estamos construindo parao
tempo, mas para a eternidade, e o arquiteto responsável é o próprio Deus, que vê
tudo quanto está sendo feito e o provará no fim. Há homens, diz o apóstolo, que
parecem ter feito maravilhas, porém quando chegar “o dia”, verão que a sua obra
foi destruída, e nada restará. Eles mesmos, se são cristãos verdadeiros,
serão salvos, apesar de ser destruída a sua obra, mas eles serão salvos
“como pelo fogo”.

Portanto, diz o apóstolo, vejacada homem como constrói sobre este fundamento.
Noutras palavras, o ponto é que o dever deste construtor auxiliar não é
simplesmente levantar uma parede, mas certificar-se de que tudo o que vai
dentro dela está em harmonia com o fundamento. Ele não deve edificar na Igreja
apenas número num papel ou num rol, todavia aqueles que realmente estão
firmados no fundamento da fé. O tipo de gente que quer ser cristão só para obter
certos benefícios, não pode entrar nesta parede. Somente podem aqueles que
compreendem que estão mortos em ofensas e pecados, completamente sem
esperança e em desamparo, e que dependem unicamente da graça de Deus em
Cristo para a sua salvação; que compreendem que, se Ele não tivesse derramado
o Seu sangue por eles e por seus pecados, eles ainda estariam perdidos, e que
confiam somente na expiação de Cristo, expiação vicária, sacrificial, perfeita e
consumada, e no poder do Espírito Santo - somente estes entram nestas paredes.
Não aqueles que meramente foram habituados a freqüentar um local de culto ou
que têm moralidade razoável. Tem que haver esta relação definida com o único e
exclusivo fundamento.

Passemos à segunda questão. Menciono este ponto separadamente porque o


apóstolo lhe dá essa ênfase. Não somente temos que estar relacionados dessa
maneira com o fundamento, mas também temos que estar especificamente
relacionados com a principal pedra da esquina. Todo verdadeiro membro da
Igreja Cristã não está somente relacionado com a fé apostólica, também está
numa relação muito definida com o Senhor Jesus Cristo. Vocês se lembram de
que começamos com a fé, e com a fé apostólica, com o mínimo de cristianismo
irredutível que temos aqui neste capítulo dois desta Epístola aos Efésios.
Entretanto não paro nisso, porque dar assentimento intelectual a isso não é
suficiente.

Se você não der assentimento intelectual a estas verdades, certamente você não
estará no edifício. Mas, meramente subscrever estes princípios não basta. Temos
que “estar em Cristo”. Temos que estar ligados a Cristo. Temos que conhecer
esta união vital, esta relação vital com Ele. A principal pedra da esquina mantém
todas as partes juntas - razão pela qual o apóstolo vai repetindo: “...no qual todo
o edifício, bem ajustado, cresce para templo santo no Senhor, no qual também
vós juntamente sois edificados...”. O capítulo todo dá ênfase a isso. Fomos
vivificados juntamente com Cristo, fomos ressuscitados juntamente com Cristo,
e juntos nos assentamos nos lugares celestiais em Cristo Jesus. Não se pode fugir
disso, é algo que não se pode evitar. Não somente cremos e aceitamos a verdade
como está em Cristo Jesus, temos que ser incorporados nEle, temos que estar em
união vital com Ele. “Eu sou a videira, vós as varas”, disse Ele, e a idéia é a
mesma. De modo que, como membros, como partes deste grande edifício,
estamos relacionados com o fundamento, e todos nós estamos relacionados com
Ele desta maneira mística e vital.

Algumas das outras ilustrações que o apóstolo utiliza expõem isso com maior
clareza. A ilustração do corpo, que já vimos de relance, faz isso de maneira ainda
mais perfeita. O corpo não é uma junção de partes afixadas umas nas outras. A
essência da unidade de um corpo é que a sua unidade é vital e orgânica. Não se
forma um corpo afixando os dedos às mãos, as mãos aos punhos, e os punhos
aos braços. Ao contrário, eles são vital, íntima e organicamente relacionados.
Assim todos nós somos relacionados com Cristo, em Cristo, somos partes dEle,
pertencentes a Ele, e somos mantidos juntos por Ele. Isso é também, então,
obviamente, uma coisa de fundamental importância.
Isso nos leva ao terceiro ponto, ponto que devemos considerar em detalhe, qual
seja, a nossa relação uns com os outros. Pensem num edifício e nas pedras de
um edifício. Estão todas relacionadas com o fundamento, estão todas
relacionadas com a principal pedra da esquina, porém também estão
relacionadas umas com as outras. Não se pode ter uma parede sem que as suas
partes estejam interligadas. Este é um princípio que o apóstolo ilustra com esta
afirmação importante e pitoresca que no versículo vinte e um é traduzida pelas
palavras “adequada e conjuntamente ajustado” (VA) - “no qual todo o edifício”,
ou, como a temos na Versão Revista (inglesa, RV), “no qual todo edifício
adequada e conjuntamente ajustado”. A frase importante é “adequada e
conjuntamente ajustado”.

É uma expressão muito interessante. Temo-la aqui com três palavras (em inglês;
com duas em português, Almeida), mas na verdade o apóstolo utilizou somente
uma palavra no grego. Há outra coisa muito interessante acerca dessa palavra. É
uma palavra que só se acha aqui e no versículo dezesseis do capítulo quatro
desta Epístola, em toda a Bíblia. Não se acha em nenhum outro lugar. Contudo
há ainda outra coisa mais interessante sobre ela. É uma palavra que, obviamente,
foi feita, foi inventada e formada pelo próprio apóstolo. Ele não a copiou
de ninguém; ele não a tinha visto em lugar algum. Este é o primeiro
uso conhecido desta palavra. Dou ênfase a isso pela seguinte razão: obviamente
o apóstolo considerava este ponto particular como excepcionalmente importante,
tanto assim que ele cunhou uma palavra para expor a sua idéia. Todavia, apesar
de todo o trabalho tomado pelo apóstolo, é patética a maneira como algumas
traduções atualmente populares omitem completamente o significado exato.
Vejam, por exemplo, a Versão Revista Padrão (inglesa, RSV). Ela traduz a
palavra simplesmente por “unido juntamente”, deixando completamente de lado
o ponto específico dapalavra que o apóstolo cunhou. O apóstolo podia
ter empregado muitas outras palavras para expor a idéia de “unido juntamente”.
Moffatt chega um pouco mais perto. Ele diz, “caldeado juntamente”. Mas até
essa tradução é errada, pois não se caldeiam pedras juntamente, e toda a
concepção e toda a figura do apóstolo são em termos de edificar com pedras.

De fato, a palavra utilizada pelo apóstolo significa “harmoniosamente ajustadas


juntas” - pensando nas pedras do edifício. É um duplo composto, três palavras
colocadas juntas e feitas uma só. A palavra fundamental significa “ligar” ou
“juntar”, e isto em si já sugere a idéia de vir junto. No entanto, depois ele
acrescenta a isso o prefixo syn, que significa simplesmente “junto com”, a
mesma idéia que temos em “sinfonia” e em qualquer dos seus compostos. Juntar,
junto - junto, juntar. Ora, a própria palavra “juntar” sugere a idéia de “junto”
ou “juntos”, mas o apóstolo diz “junto-juntar” para assegurar-se de que captamos
o significado. E depois ele acrescentou a estas duas uma terceira palavra, que
realmente significa “coligir” ou “reunir” ou “selecionar”. Esta terceira palavra
muitas vezes é utilizada para ajustar palavras juntas ou juntar palavras para
formar uma frase completa. Quando alguém está falando ou escrevendo, certas
palavras se lhe insinuam. Ele escolhe uma e rejeita a outra. Depois ele faz a
mesma coisa com a próxima palavra, rejeita uma e escolhe outra. Depois ele
aplica todas as palavras escolhidas à formação de uma frase. A palavra que o

apóstolo utilizou deixa entrever esse processo. Assim temos “juntos--juntar-


escolher” (selecionar). E ele coloca estas três palavras juntas paraformarum
vocábuloquena Versão Autorizada (inglesa) é traduzida por “adequada e
conjuntamente ligado” ( na Versão de Almeida é traduzida por “bem ajustado”).

Obviamente, há uma doutrina profunda aqui. O apóstolojamais se daria ao


trabalho de formar uma palavra como esta, de inventar uma palavra, se não
quisesse ser bastante claro nas idéias que estava transmitindo. Espero que
possamos compreender a sua figura. Ah, vivemos dias em que os edifícios são
de tijolos e não de pedras, e, portanto, alguns sejam demasiado jovens para
entender a figura do apóstolo como deviam. Afastem da mente a idéia de um
edifício de tijolos. Pensem antes num grande e maciço edifício de pedras.
Observem aquele homem, ou melhor, aqueles homens que estão erigindo
este edifício. Vocês já viram um verdadeiro artesão, o antigo tipo de pedreiro, no
seu trabalho? Alguma vez vocês o viram levantar uma parede? Já o viram tirar
uma pedra de uma pilha, olhá-la e tornar a olhá-la e, vendo que não é adequada,
jogá-la fora e apanhar outra que ele apara e depois a coloca na posição certa?
Esta é a figura que o apóstolo está usando; “bem ajustado”, “adequada e
conjuntamente ajustado” - pedras individuais sendo acrescentadas e colocadas na
posição certa numa parede. Quais serão as idéias que o apóstolo comunica
mediante essa linguagem, mediante essa expressão pictórica?

O primeiro ponto é a idéia de escolha. Repito, quem já viu um verdadeiro


construtor sabe exatamente o que isso significa. Lembremos que estamos
considerando o nosso lugar e a nossa posição como membros da Igrejade Cristo.
Estamos examinando anós mesmos como partes desta grande parede, deste
grande edifício que está sendo erigido para a construção de um templo, uma
habitação para Deus. Como Deus habitava no templo antigo, na glória da
Shekinah, no “lugar santísssimo”, Ele habita e habitará por toda a eternidade na
Igreja, em Seu povo. E eu e você estamos nessa Igreja. Como chegamos ali?
Aqui está o primeiro ponto, a questão da escolha. É uma questão muito
individual, esta. Vejam aquelepedreiro, aquele construtor. Ele levantou
umaparede atécerto nível; porém quer levantá-la mais, e no momento precisa de
uma pedra particularmente grande para ocupar certa posição. Elé dispõe de uma
pilha de pedras ali trazidas para o seu uso. Ele corre os olhos sobre elas. Ah,
diz ele, esta serve. Tira a pedra da pilha, examina-a, mas finalmente decide
que ela não serve. Tem que devolvê-la à pilha. Pega outra, e talvez tenha
que pegar várias, e rejeitá-las; então finalmente acha a que serve e a coloca.

Tudo isso está envolvido. Há uma seleção pessoal e particular. Cada pedra é
selecionada e colocada individualmente na posição. Isso de produção em massa
não existia quando a construção era feita desse jeito, nos tempos antigos.
Quando se constrói com tijolos, um é tão bom como qualquer outro. Entretanto
não é assim com o tipo de edifício no qual o apóstolo estava pensando. Não foi
assim que o antigo templo de Jerusalém foi construído, e é essa afigura que
Paulo tem em mente. Não, ali há uma seleção deliberada, pessoal, particular e
individual. E, graças a Deus, isso caracteriza todo aquele que se toma cristão.
Não existe produção em massa na Igreja Cristã. Alguns parecem pensar que
existe, mas não existe, e não pode existir. Graças a Deus, num mundo em que o
individual está perdendo valor cada vez mais, ele fica bem no centro nestas
questões.

Examinemos a questão de outro ângulo, mediante umamudança da ilustração. Há


somente um modo de entrar no reino de Deus, e esse é por uma catraca. Não é
uma porta ampla, é uma catraca -“estreita é aporta”; “apertado é o caminho”; um
por um. Não se pode entrar em multidão no reino dos céus; trata-se de uma
transação individual entre Deus e a alma. A regeneração é individualista. E essa
é a base da fé cristã; é o princípio essencial no que diz respeito às paredes deste
edifício, deste templo de Deus. As pessoas não se salvam em famílias, menos
ainda em grupos ou classes ou nações. Um por um, um é tomado e outro
é rejeitado!

Todo esse assunto é também exposto pelo apóstolo no uso que faz da figura da
madeira, do feno e da palha, em 1 Coríntios, capítulo 3. O nosso Senhor deixou
isso claro em Sua parábola da rede que é lançada ao mar e recolhe grande
número, uma grande multidão de peixes; mas depois é feito um exame, e os bons
são mantidos e os maus são jogados fora. Eles ficam na rede por um momento,
porém não são mantidos, são devolvidos ao mar. O construtor apanha uma pedra.
Vai colocá-la na parede? Parece que ele vai usá-la. Mas não. Lá vai ela de volta,
jogada fora, rejeitada. Nem tudo que parece certo a mim e a vocês é certo
aos olhos de Deus. É um pensamento terrível este, mas a Bíblia o ensina em toda
parte. No Dia do Juízo haverá muitos que pensavam que estavam no edifício, no
entanto Cristo lhes dirá: “Nunca vos conheci; apartai-vos de mim, vós que
praticais a iniqüidade”. Trata-se de uma seleção individual, envolve uma
escolha, e uma rejeição. Esse é o primeiro ponto.

O segundo ponto é que as pedras deste edifício não são todas idênticas. Dêem
uma olhada nalgum magnífico edifício de pedra e

façam uma atenta busca desse ponto. As pedras não são iguais nem no tamanho,
nem na forma, nem em nenhuma outra coisa. São todas diferentes e , contudo,
estão harmoniosamente ajustadas e unidas, e fazem parte de uma parede
magnífica. Umas são muito grandes, outras são pequenas, outras são de tamanho
médio. Elas diferem no tamanho, na forma e em muitos outros aspectos. Torno a
dizer, graças a Deus por isso. Esse também é um ponto muito importante, que, ao
que me parece, é ignorado e esquecido hoje. Tive o privilégio de estar presente
numa discussão de pastores e clérigos há não muito tempo, na qual uma questão
muito pertinente foi levantada por um participante. Ele perguntou: por que será
que o cristianismo atual só parece atrair um tipo particular de gente? E
acrescentou: é evidente que não estamos sensibilizando as classes trabalhadoras,
assim chamadas. Só estamos sensibilizando uma certa classe, uma camada da
sociedade. Por que será? Em minha opinião era uma questão muito profunda.
Minha resposta foi que há algo radicalmente errado em nossa concepção
fundamental da Igreja. Atrair classes é o tipo de coisa ligada à psicologia, mas é
contrário ao gênio do cristianismo. A glória do cristianismo é que ele
sensibiliza todos os tipos, espécies e condições de homens. Este elemento
de variedade e variação, e de falta de mesmice, é sumamente interessante. A
característica essencial de uma parede de pedra em distinção de uma parede de
tijolo é que as pedras variam de tamanho, porém são ajustadas juntamente para
compor o modelo. Não há nenhuma uniformidade monótona e insípida na Igreja.
É uma característica das seitas que todos os seus seguidores tendem a ser sempre
idênticos. Na Igreja Cristã há diversidade na unidade. Portanto, sempre devemos
olhar com suspeita qualquer tipo de ensino que leve a uma espécie de mesmice
nos resultados. Há certas pessoas que, só pelo modo de falar e pelas frases que
empregam, quase contam a você onde foram convertidas. São produzidas em
massa, são todas amesmacoisa. Falam as mesmas coisas, e as falam da mesma
maneira, e fazem as mesmas coisas. São como uma série de selos postais. Não é
esse o princípio que o apóstolo está enunciando aqui. Nunca fomos destinados a
ser desse jeito, fomos destinados a ser diferentes. Todos na mesma parede, sim,
mas muito diferentes uns dos outros - alguns grandes, alguns médios,
alguns pequenos; alguns com esta forma, alguns com outra, porém
todos igualmente na parede. Essa é a verdadeira unidade, não a
uniformidade monótona e insípida que vemos hoje em muitos aspectos da vida,
e, lamentavelmente, na Igreja. Permitam-me expressá-lo com simplicidade e
clareza dizendo isto: como cristãos, não fomos destinados a ser

iguais. As nossas características individuais devem permanecer. Alguns de nós


nascemos veementes; bem, fomos destinados a ser veementes. Outros nascem
tranqüilos e fleumáticos, que continuem sendo assim. Não há nada mais ridículo
do que uma pessoa tentar ser veemente ou sangüínea. E, contudo, acontece com
freqüência; todos procurando ser iguais. Não é o que se espera de nós. Ah, você
dirá, mas eu sempre gosto do cristão alegre e animado. Bem, eu nem sempre! Há
ocasiões e circunstâncias que esse tipo de cristão me deprime terrivelmente.
A risada forçada! A jovialidade afetada! Há vezes em que dou graças a
Deus pelo indivíduo sério, de aparência sóbria, que me assegura que está
tendo uma interior e profunda visão de vida, e que tem algum conhecimento do
que o apóstolo quis dizer quando declarou: “Neste tabemáculo, gememos
carregados” (2 Coríntios 5:4).

Nem todos fomos destinados a pregar. Mas há um ensino hoje que quaseparece
dizer que fomos. Assim que apessoaé convertida, tem que dar o seu testemunho,
e então pregar. Contudo nem todos nós fomos destinados apregar. Nem todos
fomos destinados a ir para algum campo missionário estrangeiro. Nem todos
fomos destinados a ser obreiros de tempo integral na causa de Deus. Há pessoas
que procuram passar a idéia de que fomos. Em suas conferências eles
pressionam os jovens, fazendo-os sentir que quase estarão pecando se não se
apresentarem como voluntários para as missões estrangeiras. Mas esse ensino é
muito falso. Não fomos destinados a ser iguais. Todos nós temos o nosso papel
a desempenhar, anossafunção arealizar; estanão é amesmaem cadacaso. Aí está a
pedra grande, que suporta um peso tremendo. Ali está a pedra pequena - é
igualmente importante, ajusta-se àquele ponto ao qual nenhuma outra coisa se
ajustaria.

Livremo-nos, pois, da idéia de que todos nós temos que ser iguais, e procuremos
descobrir o que Deus quer fazer conosco e o que Deus quer que nós sejamos. A
história da Igreja dá eloqüente testemunho do fato de que, às vezes, um cristão
obscuro e desconhecido, de quem a Igreja pouco ouvira falar, que passava o
tempo em oração e intercessão, fez muito mais do que os grandes pregadores
populares que edificaram com muita madeira, feno e palha, que não subsistirão
no Dia do Juízo. Aprendamos a ver estas coisas espiritualmente. Alguns de nós,
como cristãos, talvez sejam chamados simplesmente para serem bondosos com
as pessoas, para serem amigáveis e compreensivos, para fazerem pouco mais que
sentar-se e ouvi-las. Você pode ajudar tremendamente as pessoas apenas
ouvindo-as e deixando que descarreguem os seus corações. Mas há alguns de
nós que somos tão ativos e ocupados, e

falamos tanto, que nunca damos às pessoas oportunidade para falarem; nunca
temos tempo para ouvi-las e, portanto, não as ajudamos.

Procuremos captar bem este princípio vital - que há esta grande variedade e
variação nas pedras que devem estar no mesmo edifício, no mesmo templo santo
do Senhor, neste edifício de Deus. Você pode não ser grande e importante; bem,
não se glorie no fato de não ser, porém lembre-se de que o fato de não o ser não
significa que você não está no edifício. Ele sabe. Ele nos vê a todos. Voltemos a
1 Coríntios, capítulo 12, e vejamos como o apóstolo desenvolveu ali este
princípio minuciosamente, em termos do corpo. O corpo completo não é o olho,
não é o ouvido, não é a mão, não é o pé. Todas estas diferentes partes estão
no mesmo corpo, embora alguns sejam mais elegantes que outros. Todavia ele
acentua que as nossas partes menos elegantes são tão indispensáveis como as
mais elegantes. Portanto, não caiamos na tolice de desejar que todos sejamos
iguais e idênticos. Não pensemos em termos de produção em massa ou em
termos de tijolos. Pensemos numa parede de pedra, e demos graças a Deus que,
seja o que for que sejamos, Ele nos tomou e colocou na parede do Seu edifício, e
que Ele tanto nos conhece como conhece apedra grande, bem proporcionada e
sólida. E maravilhoso para mim, e estupendo o fato de que somos colocados ali
um por um, e que o cristão mais humilde é objeto de conhecimento de Deus
como o é o maior e mais poderoso santo, que Ele vê o lugar exato para nós na
parede e nos coloca ali; e nos coloca ali exatamente da mesma maneira
como coloca todos os demais.

Não tentemos, pois, atalhar ou violar o plano de Deus, o método de Deus e a Sua
maneira de edificar. Procuremos estar cientes deste terrível perigo psicológico
com que se defronta a Igreja hoje - a idéia de produção em massa, sempre
levando ao mesmo resultado e produzindo o mesmo tipo particular. E uma coisa
grave quando a Igreja só produz certo tipo de cristão e somente apela a certo tipo
ou classe de pessoa. Quando este evangelho é pregado corretamente, ele toca
todos os segmentos da sociedade. A história da Igreja o comprova. Operigo
hoje é entender que todos nós devemos ser meramente pessoas finas, tranqüilas e
respeitáveis, pessoas que ainda se apegam à moralidade própria, e que algreja só
deve consistir de tais pessoas - somente pessoas da classe média. Jamais houve
tal propósito. Reconsideremos a nossa pregação, o nosso ensino, e especialmente
os nossos métodos, para não acontecer que inconscientemente deslizemos para a
prática do método psicológico e, com isso, nos persuadamos de que estamos
construindo um edifício maravilhoso, para somente descobrir no fim que não

acrescentamos nada ao templo de Deus, e ver-nos no “grande dia” com muito


pouca coisa para mostrar do nosso esforço e de todo o nosso entusiasmo. Esse é
o segundo ponto.

Permitam-me acrescentar apenas uma palavra como nosso terceiro princípio: é a


questão de preparo e adaptação. Só posso fazer uma introdução disso aqui,
porquanto é um grande tema. Teremos que entrar em detalhes posteriormente. Eu
disse a vocês que o construtor, o pedreiro, em dadopontoprecisadeumapedra de
certo tamanho ou forma e, olhando para o monte de pedras, enxerga uma que
parece servir e a retira. Ah, diz ele, esta vai servir. Tendo rejeitado algumas, ele
diz: agora esta vai servir direitinho. Mas não tão direitinho, porque esta pedra
vai ter que ser preparada e adaptada ao material que já fora posto ali. Há pedras
embaixo e nos lados. Esta é a pedra certa em geral, porém terá que ser adaptada
às que estão nos lados e por baixo, e depois ainda terá que ser colocada alguma
coisa em cima. Vocês já viram um pedreiro fazendo o seu serviço? Em minha
adolescência eu vi isso muitas vezes, e sempre me fascinou. Ele apanhava apedra
e depois, com seus diversos tipos de martelo, tirava pedaços dela. Ele a aparava,
modelava-a, dava-lhe forma, e lhe tirava lascas. Aí tentava colocá-la. Depois
tornava atirá-la porque não estava bem ajustada. Tirava outro pedaço, talvez com
o cinzel e o martelo. E assim ele ia trabalhando nela até ficar bem certa. Depois a
colocava, e se afastava para olhar. Satisfeito, punha a argamassa, pegava outra
pedra e fazia o mesmo trabalho. Pois bem, é isso que o apóstolo quer dizer com
“bem ajustado” ou “adequada e conjuntamente ajustado”. Algo terá que
acontecer conosco, antes de podermos estar adequadamente ajustados ao
conjunto. O construtor não lança as pedras juntas de qualquer maneira. Não, há
uma maravilhosa simetria em tudo isso. Observem os edifícios, e vocês verão
isso. E, naturalmente, é óbvio que o trabalho de aparar, cortar e cinzelar é
mais necessário em alguns casos do que noutros. Mas todos nós
precisamos disso. Eo temos. E enquanto isso não acontecer conosco, jamais
faremos parte da parede em construção.

Ao que me parece, não há nada mais fascinante na longa história da Igreja e do


seu povo do que ver em operação e na prática este princípio. Houve homens que
precisaram de muito trabalho de aparelhagem e de modelagem, e o tiveram.
Depois disso tornaram-se pedras enormes. Houve outros que pareciam estar
quase totalmente prontos como estavam. Pouca coisa foi necessária fazer com
eles. Vocês devem ter visto isso em sua experiência pessoal, ao observarem
diferentes cristãos. O que importa não é a quantidade, o princípio é que sempre

necessidade desse procedimento e desse processo, em maior ou menor medida.

Como se faz? Pela pregação e pelo ensino. É esse o dever geral da pregação e do
ensino; é modelar-nos, preparar-nos. Todos nós temos estes estranhos ângulos e
arestas e, como somos por natureza, não nos ajustamos à construção. Estas
coisas têm que ser podadas. Angulosidades, grosserias, gente grosseira na Igreja!
Todos nós somos grosseiros, em certo sentido, uns mais, outros menos. Somos
pedras rudemente talhadas quando saímos dapedreira, como que arrancadas
delamedi ante uma explosão. Temos mais ou menos a forma geral certa, mas é
necessário muito trabalho com o cinzel antes de nos adequarmos bem aos
nossos lugares particulares na construção. E enquanto não formos
aparelhados, não seremos colocados nela. Como nos inclinamos a esquecer isso!
Se lermos o Novo Testamento, se dermos ouvido à pregação e ao
ensino, veremos a absoluta necessidade e urgência desta preparação. Há os
que dizem: sou deste tipo de pessoa. Sou daquele tipo de pessoa. Sempre tenho
que dizer o que tenho na cabeça. Se todos fossem assim, que tipo de igreja vocês
teriam? Que espécie de edifício vocês teriam, se todas as pedras fossem
pontudas e difíceis assim? Seria impossível, vocês não poderiam construir; estas
arestas têm que ser debastadas. Pois bem, é aí que entra a disciplina pessoal.
Temos que ser menos difíceis, como pessoas. Temos que ajustar-nos - adequada
e conjuntamente ajustados.

Devemos esquecer-nos de nós mesmos e pensar na parede, no edifício, e


compreender juntos que é o Senhor quem decide onde devemos estar, o que
devemos ser e que funções nos cabe desempenhar. E, acredite-me, se você está
neste edifício, ou vai estar, terá que ser aparelhado e amoldado. E o edifício de
Deus, lembremo-nos, e se eu e você não aplicarmos o ensino, as instruções e a
mensagem das Escrituras como devemos, Deus terá outro meio de fazê-lo. Leia
o capítulo doze da Epístola aos Hebreus, e verá o que estou querendo dizer. “O
Senhor corrige a quem ama” (12:6, ARA). Se os apelos e argumentos
do evangelho não o levam a disciplinar-se, e se você não se livrar dessas arestas
e irregularidades, Ele tem um cinzel poderoso e um poderoso martelo, e Ele as
arrancará de você. Todos nós temos algum conhecimento disso em nossas
experiências pessoais. Ele nos humilha, Ele nos derruba, e Ele tem muitas
maneiras de fazê-lo por meio de enfermidade ou doença, ou morte, ou tristeza,
ou fracasso, ou incompreensão; mil e uma coisas. E Ele o faz. Graças a Deus que
Ele o faz. Pois, se Ele não fizesse isso conosco, nenhum de nós chegaria a estar
preparado para estar nessa parede. É a quem o Senhor ama que Ele castiga. Se
Ele não o ama,

Ele não Se importará com você, Ele o jogará fora, e lá você poderá ficar com
todas as suas angulosidades e anomalias pelo resto da sua vida, dizendo: eu sou
deste tipo de pessoa! Muito bem! Seja esse tipo de pessoa! Saiba, contudo, que
você não está no templo santo do Senhor, e nunca estará, enquanto for desse j
eito. Esta é uma questão muito grave e solene, uma questão de importância
eterna para nós. Temos que ser amoldáveis, e que ajustar-nos uns aos outros, se é
que desejamos estar neste templo santo. Assim, se nós não compreendermos este
princípio, não virmos a importância desta preparação vital, e não nos
submetermos a ela, seremos rejeitados, e se não compreendermos isso no
tempo, certamente o compreenderemos na eternidade.

Esse...bene esse. Em latim no original. Nota do tradutor.

2
Em latim no original. Nota do Tradutor.
O CRESCIMENTO DA IGREJA

“Ediflcados sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas, de que Jesus


Cristo é a principal pedra da esquina; no qual todo o edifício, bem ajustado,
cresce para templo santo no Senhor, no qual também vós juntamente sois
edificados para morada de Deus em Espírito. ” - Efésios 2:20-22

Ainda estamos estudando esta terceira figura que o apóstolo usa, do povo cristão
e da Igreja Cristã, segundo a qual ele diz que a Igreja é uma espécie de edifício,
um grande templo, no qual Deus habita, e ainda vai habitar de maneira mais
ampla e mais completa. Temos examinado esta figura de modo geral. Mas o
apóstolo não nos oferece meramente uma descrição geral deste edifício, ele nos
fala em detalhe sobre a planta e as especificações que foram obedecidas, e que
sempre deverão ser obedecidas, na construção deste edifício.

Portanto, começamos necessariamente com o alicerce, com o fundamento.


Somos “edificados sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas, de que
Jesus Cristo é a principal pedra da esquina”. Em seguida a isso, passamos mais
diretamente a uma consideração de nós mesmos e daquilo que nos caracteriza-
que, como pedras neste edifício, estamos relacionados com o fundamento,
estamos relacionados com o Senhor Jesus Cristo, estamos relacionados com a
verdade; porém, eeste é o aspecto que o apóstolo parece salientar mais que tudo
aqui, também estamos relacionados uns com os outros. Noutras palavras, a
frase importante aqui é esta palavra que foi traduzida por estas três, “adequada e
conjuntamente ajustado” (a palavra e só entrando como elemento de ligação).
Essa é a palavra a que devemos dar atenção outra vez. Aí estão todas estas
pedras individuais nesta parede, nestas paredes que estão sendo levantadas, e
elas todas são “adequadas e conjuntamente ajustadas”.

Todas estas coisas são figuras e, portanto, é óbvio que nenhuma delas pode
transmitir a verdade completa. E por isso que o apóstolo usa aqui três figuras
diferentes; nenhuma delas é suficiente só por si. Desta maneira, ao tratar
anteriormente desta questão de preparo das pedras, eu mostrei que certa dose de
preparação era necessária de antemão, e também que, em certo sentido,
apreparação continua a vida inteira. Essa

é a espécie de paradoxo que se vê no Novo Testamento concernente à Igrej a. De


um lado nos é dada a impressão de que Deus j á habita na Igreja - e é um fato. E,
contudo, há esta outra idéia de que a Igreja ainda está sendo construída “para
morada” na qual Ele virá habitar quando ela estiver completa. Da mesma
maneira nós, num sentido, já estamos preparados, mas também ainda
necessitamos deste processo. Todavia outras ilustrações são utilizadas para
aclarar isso.

Agora voltemos a esta grande questão sobre como exatamente estas pedras são
colocadas no edifício. “No qual também vós juntamente sois edificados”, diz
Paulo, “para morada de Deus”. Vocês efésios, diz ele, foram colocados neste
edifício, são partes agora desta construção, são partes deste grande templo que
está sendo erigido no Senhor para morada de Deus em Espírito (ou “mediante o
Espírito”, VA).

Uma questão muito importante para nossa consideração é a seguinte: quando


ocorre a preparação? Primordial e essencialmente, esta preparação acontece
antes de estarmos na Igreja. Jamais poderemos fazer parte deste edifício, jamais
seremos pedras nessas paredes, sem já estarmos preparados para isso. Portanto,
vamos lá para trás, a um versículo do Velho Testamento - 1 Reis 6:7: “E
edificava-se a casa com pedras preparadas, como as traziam se edificava; de
maneira que nem martelo, nem machado, nem nenhum outro instrumento de
ferro se ouviu na casa quando a edificavam”; Isso é uma parte da narrativa
da construção do templo de Salomão. É uma parte muito importante da história.
De fato, visto que estamos estudando esta passagem, é de grande importância
que voltemos ao Velho Testamento para lermos acerca da construção do templo
de Salomão em Jerusalém. Não há nenhuma dúvida de que o apóstolo Paulo
tinha essas figuras em sua mente, e é igualmente claro que o que nos é ensinado
quanto à construção do tabernáculo e do templo tem relevância para aquilo que
estamos estudando neste momento.

Quando Deus instruiu Moisés sobre a construção do tabernáculo, Ele o levou a


um monte e lhe deu instruções minuciosas. Deus não disse simplesmente
aMoisés: agoraEu quero que vocêconstruaum tabernáculo para Mim, no qual a
Minha presença possa habitar, no qual a glória da Minha Shekinah possa
manifestar-se. Ele lhe deu instruções pormenorizadas, entrando nas questões de
medidas, cores etc. Tudo foi dado em detalhe. E tendo lhe dado a planta e as
especificações, Deus disse à Moisés: “Atenta, pois, que o faças conforme ao seu
modelo, que te foi mostrado no monte” (Êxodo 25:40). Parece que foram dadas
instruções
de maneira semelhante a Salomão (2 Crônicas 3:3). É importante, pois, que
tenhamos isso em mente; é de profunda significação. Ouçam-no de novo: “E
edificava-se a casa com pedras preparadas, como as traziam se edificava; de
maneira que nem martelo, nem machado, nem nenhum outro instrumento de
ferro se ouviu na casa quando a edificavam”. Essa declaração contém importante
doutrina que lança luz sobre a exposição feita pelo apóstolo na passagem que
estamos estudando, com relação à natureza da Igreja Cristã.

Em meu parecer, o primeiro princípio que se deve observar é o seguinte: a


preparação é feita em segredo. Sem dúvida havia pessoas em Jerusalém que
ficavam observando a construção do templo. Mas elas não viam a preparação
das pedras. Este trabalho era feito antes de serem trazidas para o local do templo
e de serem colocadas nos seus lugares nas paredes. Eis aí um grande princípio do
Novo Testamento. Antes de sermos verdadeiros membros da Igreja Cristã,
qualquer de nós - (vocês vêem como é importante distinguir entre simplesmente
termos os nossos nomes nos róis de uma igreja e realmente sermos membros
de Cristo e da Sua Igreja) - antes de podermos estar verdadeiramente na Igreja,
uma enorme obra de preparação é indispensável. É uma obra realizada pelo
Espírito Santo, e é realizada nas profundezas da alma. É uma obra misteriosa e
secreta. O mundo a ignora. Assim como o povo de Jerusalém nada sabia da
preparação daquelas pedras, o mundo também nada sabe a respeito. É possível
estarmos trabalhando num escritório com outras pessoas, ou até vivendo na
mesma casa com outros, e esta poderosa obra de preparação estar sendo
realizada em nós, sem que eles saibam. Não é uma obra realizada externamente,
por fora, superficialmente; é realizada no âmago da alma.

Escrevendo aos coríntios, o apóstolo diz: “Vós sois a carta de Cristo... escrita,
não com tinta, mas com o Espírito de Deus vivo, não em tábuas de pedra, mas
nas tábuas de carne do coração” (2 Coríntios 3:3). E uma obra interna, uma obra
misteriosa, que se realiza naquela parte do homem chamada alma. Certamente
vocês se lembram de um famoso anatomista que zombou da alma há alguns
anos. Disse ele que tinha dissecado muitos corpos na sala de anatomia, e nunca
tinha encontrado um órgão chamado alma. Claro que não! Essa é uma das coisas
secretas que um anatomista materialista não pode entender. Menos ainda
tal homem poderia entender a obra realizada pelo Espírito na alma. A obra é tão
secreta que, às vezes, a própria pessoa em quem ela está sendo realizada não
sabe o que está acontecendo. Muitas vezes o Espírito age

em nós durante algum tempo, antes de percebermos o que se passa. Tudo o que
sabemos é que estamos sendo levados a fazer certas perguntas que nunca
tínhamos feito antes. Tudo o que sabemos é que, de repente, ficamos insatisfeitos
com nós mesmos e com as nossas vidas, e não sabemos por quê. Alguém talvez
diga que não estamos bem e que deveríamos consultar um médico; e pode ser
que concordemos. Talvez pensemos que estamos cansados, ou procuremos
alguma outra explicação. E uma obra misteriosa. Novos interesses surgem,
novos anseios, desejos e aspirações, e dizemos: “Que será isso? Não entendo o
que se passa comigo. Parece que alguma coisa está acontecendo comigo.
Não sou mais o mesmo. Que será isso?” E não entendemos. Ignoramos esta obra
secreta que o Espírito está realizando. Mas aí está ela, e faz parte da preparação.
Esse trabalho era feito antes de as pedras serem levadas para Jerusalém.

Não devo demorar-me neste particular, porém vocês se lembram da maneira


como o nosso Senhor expressou esta verdade, dizendo a Nicodemos, que nesse
ponto mostrou-se completamente incapaz de entender a Sua doutrina: “Como
pode um homem nascer, sendo velho?”, pergunta Nicodemos. “Pode, porventura,
tornar a entrar no ventre de sua mãe, e nascer?” -Não entendo! Certo, disse
efetivamente o nosso Senhor. “O vento assopra onde quer, e ouves a sua voz,
mas não sabes de onde vem, nem para onde vai; assim é todo aquele que
énascído do Espírito.” Você vê o resultado, você não vê o que acontece,
não entende. “Não sabes de onde vem, nem para onde vai.” Não se vê,
é invisível, mas você vê os efeitos, o resultado, o produto acabado. “Assim é
todo aquele que é nascido do Espírito.”

Noutras palavras, estabeleço como proposição fundamental - e é sumamente


importante dar ênfase a isso hoje, porque há uma grave incompreensão dessa
questão - que, ser cristão é estar sujeito a uma energia e um poder que está
acima do nosso entendimento. Não me entendam mal. Isso não significa que o
cristianismo é irracional; o que significa é que o cristianismo é super-racional,
supra-racional, poderíamos dizer. Não há - e isso me causa prazer, pelo que o
repito muitas vezes - não há nada que, uma vez que você esteja dentro, seja
tão racional, tão lógico como a fé cristã (como o revela a ilustração que
temos nesta Epístola aos Efésios). Mas se você está fora, não a entende;
parece haver algo de misterioso e estranho nela. Por quê? Porque é obra de Deus,
porque é ação direta do Eterno. Já não é ação realizada por meio das leis da
natureza; Ele está agindo diretamente, Ele está agindo imediatamente, isto é, sem
utilizar-Se de meios. Deixem-me pedir ao

grande apóstolo que exponha isso. Vejam como ele o faz na Primeira Epístola
aos Coríntios, capítulo dois. Diz ele que quando o Senhor Jesus Cristo estava
neste mundo, os príncipes deste mundo não O reconheceram, pois, se O tivessem
reconhecido, “nunca crucificariam o Senhor da glória”. Eles viam simplesmente
um homem, o carpinteiro de Nazaré. Indagavam: quem é este sujeito? Ficavam
admirados com o Seu conhecimento e com a Sua cultura; todavia não entendiam,
não sabiam que Ele era o Filho de Deus. Mas o apóstolo declara: “Deus no-
las revelou pelo Seu Espírito”; sim, pelo Espírito que “penetra todas as coisas,
ainda as profundezas de Deus”. Ele prossegue, dizendo: “Nós não recebemos o
espírito do mundo, mas o Espírito que provém de Deus, para que pudéssemos
conhecer o que nos é dado gratuitamente por Deus”. E ainda: “O homem natural
não compreende as coisas do Espírito de Deus, porque lhe parecem loucura; e
não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente”. E então ele
acrescenta isto: “Aquele que é espiritual (isto é, o homem espiritual) discerne
(ou, “julga” VA) bem tudo, e ele de ninguém é discernido (ou, “por ninguém é
julgado”). Noutras palavras, o cristão, por definição, deveria ser um problema e
um enigma para todos os não cristãos. Como isso é importante como umaprova
para cada um de nós! Se um incrédulo pode entender você e tudo o que você lhe
diz, então, pelo menos dentro deste contexto, você não está dando prova de que
você é cristão.

Quando o Filho de Deus estava neste mundo, Ele era um grande problema para
as pessoas. Elas perguntavam: quem é este? Ele é um homem comum, nunca foi
instruído como fariseu, não é escriba, não é sacerdote, nunca teve erudição e
cultura; no entanto, olhem para Ele, ouçam o que Ele está dizendo. Ele parece ter
conhecimento; vejam os Seus milagres - quem é este? Ele era um problema e um
quebra-cabeça para eles. Porventura vocês se lembram de que, nos capítulos
iniciais do livro de Atos somos informados de que acontecia a mesma coisa com
os Seus seguidores? Pedro e João curaram um homem na Porta Formosa do
templo, e as autoridades não podiam entender o fato. Levaram-nos a julgamento,
e tudo o que puderam dizer foi que “eles haviam estado com Jesus” (4:13). Isso
era tudo o que eles sabiam. Homens ignorantes, indoutos, mas cheios de poder!
Que será isso?

É esse o aspecto secreto desta obra, desta preparação. O cristão, por ter sido
formado e modelado pelo Espírito Santo, é alguém que ninguém pode entender,
exceto outro cristão. A obra realizada pelo Espírito não é irracional, mas
transcende a razão, confirmando aquele famoso dito de Pascal: “A suprema
realização da razão é levar-nos a ver que há um
limite para a razão”. Aqui nos encontramos numa esfera em que Deus age
imediata e diretamente. Assim, o cristão não é meramente alguém que decide
adotar certo número de proposições e um ponto de vista, ou esposar uma
filosofia. O cristão é, por definição, alguém que foi formado, modelado, posto
em forma, adaptado e ajustado para ser uma pedra nesta parede, neste edifício,
que vai ser um “templo santo no Senhor”, uma habitação de Deus. O cristão é
alguém que nasceu de novo, foi transformado, renovado, regenerado. Estes são
termos do Novo Testamento. Ele é uma “nova criatura”, uma “nova criação”.

No entanto, isso nos leva aum segundo princípio: tudo isso tem que acontecer
conosco antes de podermos fazer parte da Igreja. Nosso texto fundamental, 1
Reis 6:7, põe isso acima de tudo o mais. “Edificava--se a casa com pedras
preparadas, como as traziam se edificava”, (ou, “...com pedras preparadas antes
de serem trazidas...”, VA). Não estamos numa igreja para nos tornarmos cristãos.
Estamos numa igreja porque somos cristãos. A razão para ser membro dessa
igreja não é que finalmente você venha a ser cristão; é porque você já o é. Nunca
foi propósito da igreja ter em seus róis uma multidão mista - composta
de cristãos, dos que acham que são cristãos, dos que esperam poder tomar-se
cristãos e dos que, bem, estão ali porque nem sequer pensaram o suficiente em
parar de freqüentá-la, e são meros tradicionalistas. Este também, lembro a vocês,
é um ponto tremendamente importante, sobretudo na hora presente, quando a
questão da natureza da Igreja é levantada agudamente por todos quantos falam
em união, re-união e unidade.

É nosso dever familiarizar-nos com o que se ensinava no passado sobre essa


matéri a. Ora, no tempo da Reforma Protestante, essa era uma questão urgente e
crucial. Martinho Lutero ensinava que a Igreja é a comunidade dos crentes. João
Calvino acentuava que a Igreja consiste do número total dos eleitos. Vocês
notam a ênfase? - comunidade dos crentes, número total dos eleitos, dos
escolhidos, dos chamados. E vocês recordam que os puritanos, que em certo
sentido foram os originadores e os fundadores daquilo que hoje toma o nome de
“igrejas livres” (os primeiros “independentes”, os primeiros batistas, e outros),
colocavam sua ênfase no que eles chamavam, “a igreja reunida”. Queriam
dizer que a Igreja realmente consiste da reunião, ou do encontro dos santos, dos
crentes. Eles foram ficando cada vez mais tristes com a idéia de uma “Igreja do
Estado”, porque, de acordo com a idéia de uma “Igreja do Estado”, todos os que
vivem numa paróquia são membros da Igreja e

são cristãos. Pois bem, os não conformistas rejeitavam isso completamente. Eles
diziam: porque sucede que um homem vive numa paróquia, não é
necessariamente um cristão. Simplesmente porque certas pessoas vivem neste
país, não significa que são cristãs. Eles asseveravam que a Igreja consiste
unicamente dos que foram preparados, dos que nasceram de novo, dos
regenerados, dos renovados, dos santos, dos crentes, do povo de Deus; e a Igreja
é a reunião destes. Isso é a Igreja, os “santos reunidos”.

Vocês vêem a importância e a relevância disso tudo nos dias atuais, quando há
uma tendência das pessoas se tornarem cada vez mais soltas e cada vez mais
vagas nas definições; a tendência de dizer que todos os que se dizem cristãos
devem ser considerados cristãos, e que todos somos um, e assim por diante. De
fato às vezes chegam a sugerir que não deveríamos dar demasiada ênfase até
mesmo ao termo “cristão”. Temos um “Congresso Mundial de Crenças” que
incluem todos os que crêem em Deus, de uma forma ou de outra. Todos esses
são um, dizem, contrariamente aos que não crêem em Deus.

E vital que consideremos isso tudo, não somente à luz da história, mas ainda
mais à luz das Escrituras - esta Escritura de Efésios e aquela declaração
registrada em 1 Reis 6:7. Noutras palavras, certamente o ensino das Escrituras é
simples e cl aro. E é que a Igreja consiste somente daqueles que crêem na
doutrina verdadeira e que vivem a vida cristã. “O fundamento de Deus fica
firme, tendo este selo: o Senhor conhece os que são seus, e qualquer que profere
o nome de Cristo aparte-se da iniqüidade” (2 Timóteo 2:19). Há alguns que
negam a fé, diz Paulo a Timóteo: negam a ressurreição, dizem que é coisa do
passado. Não se aflija; eles parecem cristãos, porém Deus sempre soube onde
eles estão. Ele conhece todas as coisas, o Seu fundamento permanece seguro.
Ele não pode negar a Si próprio, embora O neguemos. Ele sabe o que faz. Em
última análise, o Arquiteto da Igreja é Ele.

Podemos ir adiante e dizer que certamente não há nada que seja completamente
tolo e calamitoso, quando pensamos na Igreja, como pensar nela em termos de
tamanho e de número. Mas esse é o pensamento determinante hoje. Igreja
mundial! - dizem: o único modo de combater o comunismo e as outras coisas
que se opõem ao cristianismo é tornar-nos um; devemos reunir os nossos
grandes batalhões, e então resistir ao inimigo. Entretanto, como isso é anti-
escriturístico! Nós cantamos em nossos hinos, “poucos fiéis”, e a Bíblia está
repleta de ensinamentos sobre a doutrina do remanescente. Deus não opera
por meio de grandes batalhões, Ele não se interessa por números; Ele está
interessado napureza, na santidade, em vasos aptos e próprios para o uso do
Senhor. Não devemos concentrar a nossa atenção em números, e sim na
doutrina, na regeneração, na santidade, na compreensão de que este edifício é
um templo santo no Senhor, uma habitação de Deus.

Isso é o que o próprio Senhor nosso ensina claramente. Às vezes, quando lemos
os Evangelhos, temos a impressão de que o Senhor Jesus Cristo passava grande
parte do Seu tempo recusando pessoas. Hoje forçamos as pessoas a tomarem
decisão, fazemos tudo o que podemos para fazê-las vir, quer queiram quer não.
Mas não era esse o método do nosso Senhor. Certo homem correu para Ele e
disse: “Senhor, seguir--te-ei para onde quer que fores”. Que maravilhoso
acréscimo à Igreja! - dizemos. Todavia o nosso Senhor voltou-Se para aquele
homem e disse: “As raposas têm covis, e as aves do céu ninhos, mas o Filho
do homem não tem onde reclinar a cabeça”. Vá pensar no que você está fazendo,
diz o nosso Senhor, não quero mera animação, quero que você compreenda o
que isso lhe poderá custar. E, vocês se lembram, Ele prosseguiu, falando com um
homem que lhe pediu permissão para primeiro ir para casa e sepultar o seu pai, e
Ele diz: “Deixa aos mortos o enterrar os seus mortos”. Disse ainda: “Ninguém
que lança mão do arado e olha para trás, é apto para o reino de Deus” (Lucas
9:57-62). Ele põe à prova, parece estar rejeitando - Ele examina. Avalie o preço,
diz Ele. Que tolo, diz Ele, é o homem que começa construir um castelo, porém
não fez uma avaliação para saber quanto lhe custaria e se ele teria condições e
recursos para dar prosseguimento à obra! Ele fala demaneira semelhante sobre o
homem que se aprestapara fazer guerra contra outro país, e não sabe qual é o
número dos componentes das suas tropas e das suas reservas. Ah, que loucura é
isso! Pare! Considere! Ele parece estar rejeitando os homens. A Sua preocupação
era com a pureza da Igreja, não com o tamanho, nem com os números. E quando
Ele partiu deste mundo, deixou apenas um pequeno grupo de homens comuns,
indoutos, sem instrução, iletrados para continuarem a Sua obra. E esse o Seu
método.

E tem sido sempre assim nos períodos de avivamento e despertamento. Era


extremamente difícil alguém tornar-se membro de uma igreja dos puritanos.
Leiam os relatos fidedignos dos feitos das primeiras igrejas independentes e
batistas e verão que era excessivamente difícil obter admissão à sua comunhão.
Vocês alguma vez leram as regras que João Wesley estabeleceu para a admissão
às suas sociedades? Os homens e as mulheres eram submetidos a exame e prova
na doutrina e na vida! É quando esse tipo de procedimento é adotado que se tem
avivamento.
Deus só pode habitar numa Igreja pura - não necessariamente numa Igreja
grande, mas numa Igreja pura, pura na doutrina e pura na vida. Pode parecer
surpreendente, mas não hesito em asseverar, mesmo hoje, que o maior problema
da Igreja atualmente é que ela é grande demais. É muito parecida com uma
multidão mista. Somente quando os homens são aptos e próprios para o uso do
Senhor é que Ele os utiliza. Somente num templo santo é que o Residente eterno
entra. O ensino geral das Escrituras tem esse propósito. E é evidenciado, apoiado
e comprovado pela subseqüente história da Igreja Cristã. Também é verdade que
ninguém sabe, o mundo não sabe o que Deus pode fazer quando um homem se
entrega completamente a Ele. Todos os grandes avivamentos e reformas vieram
dos mais insignificantes começos. Um só homem -Martinho Lutero! Estranhos
indivíduos do século dezessete! O pequeno Clube Santo de Oxford, no século
dezoito! Sempre foi assim. Vamos parar de pensar em termos de grande
atividade, quando estivermos falando da Igreja. Regressemos ao Novo
Testamento. Um santo templo no Senhor. Quando Ele entra, com um só frágil
homem Ele pode convencer m ilhares .Pela pregação do apóstolo Pedro no dia
de Pentecoste, três mil foram acrescentados à Igreja.

Antes de concluirmos, vejamos mais um princípio. Vão deve haver nenhum


ruído durante este processo de edificação. Voltemos a 1 Reis 6:7, e eis o que
vocês verão escrito ali: “E edificava-se a casa com pedras preparadas, como as
traziam se edificava”. E então - “De maneira que nem martelo, nem machado,
nem nenhum outro instrumento de ferro se ouviu na casa quando a edificavam”.
Que princípio vital é este! Interpretando-o e dando-lhe vestimenta moderna, é
isto: não deve haver discussão nem debate nem desacordo na Igreja acerca das
verdades vitais. Não se deve fazer ouvir nada desse ruído de cinzel,
martelo, amoldagem e preparação na Igreja. Isso terá que acontecer antes de
você entrar na Igreja. Não deve haver nenhuma discussão na Igreja Cristã sobre
a Pessoa do Senhor Jesus Cristo. Não deve haver nenhuma discussão na Igreja
acerca da situação e das condições do homem em pecado. Não deve haver
nenhumadiscussão na Igreja acercadaexpiação vicária, da regeneração, da Pessoa
do Espírito e de todas as doutrinas da graça. Não deve haver ruído de discussão
acerca destas coisas. Tudo isso deve acontecer antecipadamente.

Pois bem, falemos com clareza sobre este ponto, porque também pode ser
entendido erroneamente. Quando digo que não deve haver discussão nem ruído
de debate na Igreja, não estou querendo dizer que

a Igreja não deve interessar-se por doutrina; o que estou querendo dizer é que
deve haver acordo sobre a doutrina logo de início, de modo que não haja mais
necessidade de discussão. Contudo, isso está sendo mal entendido hoje, e está
sendo colocado desta forma-, ah, dizem muitos, não devemos ter discussões
sobre doutrinas porque elas sempre causam divisão; portanto, não as tenhamos,
mas vamos todos concordar em chamar-nos cristãos uns aos outros, seja o que
for que creiamos. Uns poderão dizer que Jesus de Nazaré era apenas homem,
outros dirão que Ele é também o Filho de Deus. Que importa isso realmente?
Afinal de contas, todos nós concordamos em Seu ensino, em que este é nobre
e enaltecedor e em que, se tão-somente o praticássemos, não haveria todo este
problema que o mundo enfrenta hoje. Assim eles dizem: vamos parar de discutir
sobre a Sua Pessoa. E depois, que dizer da Sua morte na cruz? Uns dizem que foi
o maior crime da história, e nada mais, a suprema tragédia de todos os tempos.
Outros dizem: não, é mais que isso. Deus O enviou para que morresse; Ele
morreu “pelo determinado conselho e presciência de Deus” (Atos 2:23); morreu
para levar a culpa dos nossos pecados, e se Ele não tivesse morrido nós
estaríamos ainda em nossos pecados. Mas a tendência hoje é dizer que não
importa em que você crê. Muitos dizem: afinal, a morte de Cristo foi
maravilhosa e comovente e, portanto, todos nós podemos vê-la, podemos
interpretá-la de diferentes maneiras. Isso não tem importância, todos nós
cremos nEle, e todos nós estamos procurando ser semelhantes a Ele e segui-
10. Somos todos cristãos; avante, pois!

No entanto isso é ausência de doutrina, e o que apassagem em foco ensina é


exatamente o oposto. Não deve haver nenhum ruído desse debate e dessa
discussão na Igreja - não por não haver doutrina, mas porque todos nós estamos
de acordo quanto à doutrina, porque todos nós a subscrevemos. Foi assim que
aconteceu na Igreja Primitiva. Quando foi que o Espírito desceu sobre aqueles
cristãos? Foi quando estavam no cenáculo, unânimes. Unânimes! Outra vez
lemos sobre a Sua vinda sobre eles, e que era um o coração e a alma deles. E-nos
dito que a Igreja Primitiva perseverava na doutrina (no ensino), na comunhão, no
partir do pão e nas orações. Não havia ruído de discussão e debate. Por
quê? Porque aqueles cristãos estavam todos concordes! Sabiam que Cristo era o
Filho de Deus; a ressurreição o provara para eles. Ele tinha exposto
as Escrituras, tinha explicado a Sua morte, eles tinham sentado aos Seus pés e
eles tinham crido na doutrina. Estavam todos unanimemente concordes. Nenhum
ruído! Por quê? Porque estavam de acordo na doutrina, não porque não tinham
doutrina.

Vocês não vêem por que a Igreja está como está hoje? Que é que foi acontecendo
na Igreja Cristã durante os últimos cem anos? Já demos a resposta. A Igreja tem
discutido doutrinas fundamentais. Por que será queum alarmante número de
igrejas estão quase vazias atualmente? Por que os números vão baixando ano
após ano? E a própria Igreja a responsável. Há cinqüenta anos, em Londres, a
Igreja toda esteve debatendo o que chamavam “nova teologia”. O debate era
principalmente sobre a Pessoa de Cristo! - seria Ele realmente o Filho eterno
de Deus? Ou seria apenas homem? Eram essas as questões. Discutiam sobre
fundamentos, sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas! Muitos não
criam nisso. Houve barulho na Igreja porque estavam discutindo sobre pontos
fundamentais. Será surpreendente que a Igreja se tenha tornado ineficiente, que
não lhe dêem valor, que os homens não estejam sendo salvos e que o Espírito
não esteja operando?

É preciso que não haja nenhum ruído de martelo, de machado e de nenhum


instrumento de ferro na Igreja. É preciso que os homens e as mulheres entendam
claramente estas coisas, antes de pertencerem à Igrej a. N a verdade, você não
pode estar verdadeiramente nalgreja, anão ser que já esteja certo sobre estas
questões. Jamais houve a intenção de que a Igrej a sej a um rinhadeiro no qual os
homens argumentam, pelej am, debatem e brigam sobre questões vitais
relacionadas com Cristo e Sua obra. A Igreja é a reunião daqueles para os quais
estas questões foram resolvidas uma vez por todas, os quais sabem no que
crêem, os quais estão firmados no fundamento de Deus, e os quai s se juntam -
não para argumentos e debates sobre estas questões, mas para esperar em
Deus, adorá-10, para que Ele venha a estar entre eles, para que Ele os encha da
Sua presença e de gozo indescritível e cheio de glória, para que Ele os encha de
poder para falar a outros e propagar as boas novas, e cati vá--los, libertando-os
dos grilhões e da escravidão do pecado.

Notem o que estou dizendo. Não estou dizendo que os cristãos têm que
concordar em todos os pormenores. Estou ressaltando os pontos fundamentais.
Há certas questões nas quais nem todos os cristãos concordam, certos detalhes
acerca da profecia, certas questões como o modo do batismo, e muitas outras.
Não são princípios fundamentais. O povo cristão jamais deve contender, brigar e
pelejar sobre esses pontos. Devem discuti-los como irmãos. Mas não devem
ocorrer discussões sobre pontos fundamentais, simplesmente porque são pontos
fundamentais. A preparação deve ser feita antes de se trazerem as pedras para a
Igreja. Aqui não há ruído, nós O conhecemos como o Filho de Deus e Salvador.
A maior necessidade da Igreja nesta hora é entender estes
princípios. Agora se realizam grandes conferências mundiais, uma após outra.
Todavia, como usam o tempo? Não em oração a Deus, não esperando pelo
Espírito, não se deixando encher do Espírito. Usam o tempo para tentar achar
uma base de acordo. Tentam achar um mínimo irredutível acerca do qual não
discordem.

Gastam seu tempo nisso e, enquanto isso, o mundo vai de mal apior. Eles têm a
fatal idéia de que doutrina é causa da divisão, quando a verdade é que não há
nada que una, exceto a doutrina - pois a única unidade digna de menção é a
unidade do Espírito, que produz a mesma crençano mesmo Senhor, na mesma fé
e no mesmo batismo. É a unidade dos que têm a mesma mentalidade e estão em
harmonia, que não põem a sua confiança em si mesmos, mas somente no Filho
de Deus e na perfeita obra que Ele realizou a favor deles. Portanto, a palavra
para a Igreja moderna, como a palavra que Deus dirigiu a Moisés na antigüidade,
é simplesmente esta: “Atenta pois que o faças conforme ao seu modelo, que te
foi mostrado no monte”. O monte do Sermão do Monte! O monte da
transfiguração! O monte Calvário! O monte das Oliveiras, o monte da ascensão!
Aí estão os grandes picos. Em nossos dias e em nossa geração, edifiquemos,
aconteça conosco o que acontecer, diga de nós a Igreja, a Igreja visível, o que
disser, seja o que for que o mundo fale de nós, edifiquemos conforme ao modelo
que nos foi mostrado no monte. Que não haja incerteza nem hesitação nem
discussão nem ruído nem debate acerca do conteúdo deste capítulo dois da
Epístola de Paulo aos Efésios, pois o fundamento é - o homem morto em ofensas
e pecados, desamparado e sem esperança; ressuscitado pela graça de Deus; salvo
pelo sangue de Cristo; regenerado, renovado e ligado a Cristo pelo Espírito
Santo e transformado numa pedra do templo santo no Senhor.

RECONCILIAÇÃO: O MÉTODO DE DEUS

Estas exposições por Dr. Lloyd-Jones atingem o âmago do problema humano - o


homem estar separado de Deus! Eles demonstram que nada é mais relevante para
a triste condição do homem do século XX do que a mensagem cristã.
Realmente, demonstram que à raiz de todos os problemas dos
relacionamentos humanos jaz o problema do relacionamento do homem com o
seu Criador.

Numa época de confusão, tumulto, divisões e guerras violentas, e, ao mesmo


tempo, de uma indolente crença num falso e superficial idealismo que afirma
que os homens e as nações podem viver em harmonia, paz e concórdia, graças ao
apelo dirigido ao que há de melhor no homem, mais que nunca a mensagem
deste capítulo dois da Epístola de Paulo aos Efésios é necessária.

Aqui vemos claramente exposto e firmado o método divino de reconcilação - o


único método. O texto em apreço trata dos mais profundos e inspiradores temas
da Bíblia.

Não sei de nenhum outro capítulo da Bíblia que exponha com tanta clareza e
perfeição, ao mesmo tempo, a mensagem evangelística essencial para o
incrédulo e a posição e os privilégios do crente.

Aí está a única esperança para o indivíduo e para o mundo, e, ao desvendar o


apóstolo o plano eterno de Deus, não podemos senão entusiasmar-nos com a
gloriosa perspectiva que aguarda todos quantos se tornaram “concidadãos dos
santos, e da família de Deus”.

PUBLICAÇÕES EVANGÉLICAS SELECIONADAS

Rua 24 de Maio, 116 - 3Q andar - salas 14-17 01041-000 - São Paulo - SP

AS INSONDÁVEIS RIQUEZAS DE CRISTO


EXPOSIÇÃO SOBRE O CAPÍTULO 3 DE EFÉSIOS

D.M.LLOYD-JONES

PUBLICAÇÕES EVANGÉLICAS SELECIONADAS

Caixa Postal 1287 01059-970 — São Paulo - SP

Título original:

The Unsearchable Riches of Christ Editora:

The Banner of Truth Trust

Primeira edição em inglês:

1979
Copyright:

Lady E. Catherwood

Tradução do inglês:

Odayr Olivetti

Revisão:

Antonio Poccinelli Capa:

Ailton Oliveira Lopes

Primeira edição em português: 1992

Composição e impressão: Imprensa da Fé

ÍNDICE

(Efésios, capítulo 3)

PREFACIO

Cada capítulo deste livro registra um sermão por mim pregado nalgum domingo
de manhã durante o ministério que exerci regularmente na Capela de
Westminster, Londres, no transcorrer do ano de Í956.

De imediato o título dá a entender que temos aqui o ensino mais profundo ou


mais elevado do apóstolo Paulo. Ao mesmo tempo é, possivelmente, das suas
Epístolas todas, o capítulo mais caracterizado pela experiência prática, e no qual
o fervor do grandioso espírito pastoral do apóstolo é mais evidente. Isto, com as
referências que faz a si e à sua vocação, e juntamente com o registro que fez das
suas fervorosas orações em favor destes cristãos efésios, leva a uma das mais
sublimes, mais eloqüentes e mais comoventes declarações que Paulo escreveu
em toda a sua vida.

Seu valor intrínseco requer atenção o tempo todo, mas é particularmente


relevante para as condições da Igreja dos nossos dias. Sua ênfase prática e
experimental é urgentemente necessária devido a certas tendências alarmantes.

Uma destas é a descrita como fideísmo, ou fé fácil. Esta, em sua mais tosca
forma, ensina que, à luz de Romanos 10:9, se tão-somente dizemos que cremos,
estamos salvos. Mas talvez a mais perigosa é a atitude altamente intelectualista
que alega que, à luz do versículo três do capítulo primeiro da Epístola aos
Efésios, todos os crentes já receberam tudo que é possível ao cristão receber, e
que jamais se deve buscar alguma bênção posterior. Este ensino errôneo, avesso
a toda e qualquer ênfase à experiência fatual, não passa de uma versão
moderna daquilo que outrora foi propagado pelos glassitas na Escócia e
pelos sandemanianos na Inglaterra, 1 no século dezoito, e que levou a
muita aridez, dureza e esterilidade espiritual.

A resposta simples a esse ensino acha-se neste capítulo três de Efésios, onde
Paulo nos conta que orava constantemente no sentido de que os efésios, que já
criam e recebiam tanto, recebessem muito mais — a ponto de serem “cheios de
toda a plenitude de Deus”! Os puritanos do século dezessete, igualmente,
traçavam e acentuavam a vital distinção entre crer no que é possível ao cristão, e
apropriar-se dessa possibilidade. Esta atitude moderna que tanto teme a
experiência do amor de Deus, devido aos excessos de certas pessoas que põem
as experiências à frente da verdade, constitui virtualmente uma defesa da atitude
dos membros da igreja de Laodicéia, que diziam: “de nada tenho falta”.

Se me pedissem para mencionar o maior problema entre os cristãos atuais,


incluindo-se os conservadores, eu diria que é a nossa falta de espiritualidade e de
um verdadeiro conhecimento de Deus. Tetpos algum conhecimento a respeito de
Deus, e somos peritos na “atitude cristã” para com a política, as atividades
sociais, o teatro, as artes, a literatura e que tais, mas poderíamos dizer com Paulo
que o nosso mais profundo desejo é “conhecê-lo”?

Ninguém teve maior entendimento teológico e intelectual do que o apóstolo


Paulo, porém, ao mesmo tempo, ninguém teve conhecimento mais profundo,
mais pessoal e mais experimental do “amor de Cristo, que excede todo o
entendimento”. Pôr toda a nossa ênfase a um ou ao outro, ou exagerar a ênfase
num ou no outro, é o perigo dominante hoje. Devemos interessar-nos por ambos.
Devemos crescer “na graça e no conhecimento do Senhor”. Jamais poderemos
conhecer demasiadamente as grandes doutrinas da fé, mas se esse conhecimento
não nos leva a uma experiência cada vez mais profunda do amor de Cristo,
não passa de conhecimento que “incha” (1 Coríntios 8:1).
Graças a Deus, ambos nos são possíveis, e a minha oração e a minha confiança é
que a leitura deste livro ajude muitos a obter crescentemente ambos. Que
sabemos de fato?

D.M. Lloyd-Jones

Como sempre, estou muito agradecido à inestimável ajuda e assistência da Sra.


E. Bumey, que mourejou na datilografia, do Sr. S. M. Houghton e da minha
esposa.

Londres, julho de 1979

AS INSONDÁVEIS RIQUEZAS DE CRISTO

Efésios 3:1-21

1 - Por esta causa eu, Paulo, sou o prisioneiro de Jesus Cristo por

vós, os gentios;

2 - Se é que tendes ouvido a dispensação da graça de Deus, que para

convosco me foi dada;

3 - Como me foi este mistério manifestado pela revelação (como

acima em poucas palavras vos escrevi;

4 - Pelo que, lendo, podeis entender a minha ciência neste mistério

de Cristo),

5-0 qual noutros séculos não foi manifestado aos filhos dos homens, como agora
é revelado pelo Espírito aos seus santos apóstolos e profetas;

6 - A saber, que os gentios são co-herdeiros, e de um mesmo corpo,

e participantes da sua promessa em Cristo pelo evangelho;

7 - Do qual sou feito ministro, pelo dom da graça de Deus, que me


foi dado segundo a operação do seu poder.

8 - A mim, o mínimo de todos os santos, me foi dada esta graça de

anunciar entre os gentios, por meio do evangelho, as riquezas incompreensíveis


de Cristo,

9 - E mostrar a todos qual seja a comunhão do mistério, que desde

todos os séculos esteve oculto em Deus, que por Cristo Jesus criou todas as
coisas;

10 - Para que agora pela igreja a multiforme sabedoria de Deus seja

manifestada aos principados e potestades nos céus,

11 - Segundo o eterno propósito que fez em Cristo Jesus nosso

Senhor:

12 - No qual temos ousadia e acesso com confiança, pela fé nele.

13 - Portanto vos peço que não desfaleçais nas minhas tribulações

por vós, que são a vossa glória.

14 - Por causa disto me ponho de joelhos perante o Pai de nosso

Senhor Jesus Cristo,

15 - Do qual toda a família nos céus e na terra toma o nome,

16 - Para que, segundo as riquezas da sua glória, vos conceda que

sejais corroborados com poder pelo seu Espírito no homem interior;

17 - Para que Cristo habite pela fé nos vossos corações; para que,

estando arraigados e fundados em amor,

18 - Possais perfeitamente compreender, com todos os santos, qual


seja a largura, e o comprimento, e a altura, e a profundidade,

19 - E conhecer o amor de Cristo, que excede todo o entendimento,

para que sejais cheios de toda a plenitude de Deus.

20 - Ora, àquele que é poderoso para fazer tudo muito mais abundan

temente do que pedimos ou pensamos, segundo o poder que em nós opera,

21 - A esse glória na igreja, por Jesus Cristo, em todas as gerações,

para todo o sempre. Amém.

“O PRISIONEIRO DE JESUS CRISTO”

“Por esta causa eu, Paulo, sou o prisioneiro de Jesus Cristo por

vós, os gentios. ” Efésios 3:1

Ao começarmos a considerar o capítulo três desta Epístola aos Efésios, é deveras


importante lembrar-nos do seu contexto e do seu cenário. A mente do grande
apóstolo sempre funcionava com muita lógica. Ele não era um pensador
intuitivo; era um pensador lógico. Ele não lançava idéias a esmo; sempre tinha
um plano e um esquema. Por mais que se afastasse desse esquema aqui e ali,
fundamentalmente sempre retomava a ele. A própria expressão “Por esta causa”,
no começo do capítulo, lembra-nos da conexão. Foi para nosso proveito que
estas Epístolas do Novo Testamento foram divididas em capítulos; mas nunca
devemos esquecer-nos de que originariamente não eram divididas assim. Duvido
se houve até mesmo uma indicação neste ponto de que era novo parágrafo, mas
as autoridades que fizeram as divisões sentiram que devia ser assim, e em geral
as divisões são úteis. Às vezes isso pode ser um estorvo, porque dá a impressão
de que um novo capítulo introduz um novo assunto.

Aqui, clara e obviamente, não é o que acontece. “Por esta causa”, ou “Por causa
disto”, diz o apóstolo; mas a que se refere ele? Evidentemente ao que acabou de
dizer, a saber, que a estupenda verdade que veio à luz no evangelho de Jesus
Cristo é que os gentios que creram no evangelho foram feitos um só corpo com
os judeus em Cristo Jesus. Essa é a mensagem do capítulo dois. Estes gentios
efésios que antes estavam “mortos em delitos e pecados”, que eram “estranhos
às alianças da promessa e separados da comunidade de Israel, não
tendo esperança, e sem Deus no mundo”, foram “trazidos para perto” (de Deus).
Não só isso, mas destes dois fora criado um “novo homem, fazendo a paz”. Isto
levou à doutrina da natureza da Igreja Cristã, mostrando que os cristãos gentios
são agora “concidadãos dos santos, e (membros) da família de Deus”,
“edificados sobre o fundamento dos apóstolos e profetas”, e são feitos
“santuário” para o Senhor habitar

nele. Isso é verdade tanto com relação aos gentios como com relação aos judeus;
todas as paredes intermediárias de separação foram derrubadas e abolidas; e toda
a inimizade se foi. Esta admirável unidade e paz foi levada a efeito por meio do
sangue de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo (2:13).

Tendo exposto essas verdades aos efésios, diz o apóstolo: agora, pois, por causa
disso, “eu, Paulo, o prisioneiro de Cristo Jesus, por amor de vós, gentios, ...”. De
repente, porém, parece que ele pára. Obviamente ele ia dizer mais alguma coisa,
mas faz uma pausa, hesita, e não a diz, senão ao chegar ao versículo 14, onde
vemos de novo a mesma fórmula — “Por esta causa (eu)” — e depois
prossegue, dizendo-lhes que está orando por eles. Noutras palavras, do
versículo 2 ao fim do versículo 13, temos uma longa digressão, e a
pontuação devia ter dado indicações disto no fim dos versículos 1 e 13.

Nesta digressão o apóstolo faz aos efésios um relato do seu ministério — sua
vocação, seu ofício — e do seu grande objetivo e propósito. Depois, havendo
feito isto, ele volta ao seu tema e diz o que estava começando a dizer no
versículo primeiro.

Com isto em mente, devemos considerar por que o apóstolo interrompeu


repentinamente o seu pensamento e introduziu esta digressão. Por que teria
interrompido provisoriamente o fluxo da sua argumentação, fazendo-se assim
culpado daquilo a que os puristas e os pedantes chamam nódoa em seu estilo? A
crítica lançada contra Paulo como estilista é que ele constantemente se faz
culpado daquilo que denominam anacoluto, isto é, interrupções nas quais o
escritor de repente rompe o que está dizendo e parte para outra coisa, e nunca
mais retoma, talvez, ao que tivera a intenção de dizer. Noutras palavras, em vez
de fluir o estilo com consistência, leveza e serenidade, subitamente surge uma
interrupção, uma interjeição, uma digressão, um parêntese. É mau estilo, dizem
os pedantes, e um estilo totalmente ruim. Certamente o apóstolo tem culpa disso
neste ponto particular, de modo que devemos indagar-nos por que o fez. Que
será que de repente o tomou e o moveu a introduzir a digressão? A resposta a
essa pergunta não oferece dificuldade real. Ele mesmo dá a resposta no versículo
13, que deverá ser tomado juntamente com os versículos 1 e 2, se de fato
quisermos entender esta questão, pois ele diz: “Portanto vos peço que
não desfaleçais nas minhas tribulações por vós, que são a vossa glória”. Isto se
liga à descrição que ele faz de si mesmo no versículo primeiro — “o prisioneiro
de Jesus Cristo por vós, os gentios”. Ele insta com os cristão efésios a que não
desfaleçam em suas tribulações por eles, mas que, em vez disso, as considerem
como sua própria glória. Noutras palavras, o

que explica a digressão é uma das coisas mais maravilhosas e emocionantes


relacionadas com o apóstolo. Vemos aqui o seu grande coração pastoral. Sua
preocupação com os outros era a sua característica mais notável.

Devemos entender que Paulo não estava se pondo a escrever aqui um tratado ou
uma obra prima de literatura. Talvez nenhuma das Epístolas de Paulo contenha
mais teologia e doutrina do que esta Epístola aos Efésios, todavia ele a escreveu
por motivo puramente pastoral. Escreveu-a com o fim de ajudar estes cristãos
efésios, de animá-los na fé, de firmá-los, de levá-los para as maiores alturas e
para as maiores profundidades desta grandiosa salvação. Visto que esse era o seu
objetivo e o seu real motivo, estas questões de estilo e forma não passavam de
impertinências para ele. Não lhes dava atenção. Que importância tem o estilo,
em comparação com o desejo de que estas pessoas viessem realmente a
compreender a verdade? Que valor haveria, até em ensinar-lhes teologia, se iam
sucumbir nalgum ponto prático? Portanto, todas estas coisas deviam ser tomadas
juntas; e o apóstolo invariavelmente levava isso em conta.

Poderíamos tomar muito tempo com este assunto, porém não é meu propósito.
Contento-me em dizer de passagem uma palavra aos pregadores, aos que
pretendem vir a ser pregadores e aos que estão se preparando para serem
pregadores. Muitas vezes penso que o que explica em grande parte as presentes
condições da Igreja Cristã é que nós que temos o privilégio de pregar, de algum
modo olvidamos o método apostólico e nos afastamos do modelo apostólico.
Provavelmente foi por volta do segundo quartel do século passado que uma
sutil mudança aconteceu em nossos púlpitos. A pregação começou a tomar-se
erudita. Os pregadores começaram a dar atenção ao estilo literário e à forma
literária. Bem pode ser que a publicação de livros tenha sido responsável por
isto, pois disso resultou que se desse cada vez mais atenção à forma e ao estilo, à
dicção e à linguagem, às citações e alusões históricas e literárias.

Este é um estudo fascinante. A longa história da Igreja Cristã mostra que cada
novo avivamento e reforma teve que romper essa tendência. Isso aconteceu, por
exemplo, na Reforma Protestante. O método católico-romano de pregar, com o
seu manejo e exame de argumentos filosóficos e com as suas sutis distinções,
tinha se tomado completamente árido e estéril espiritualmente. Pode ser que
fosse estimulante, do ponto de vista intelectual, mas não transmitia nenhuma
verdade e vida espiritual às pessoas. Por isso Lutero e Calvino tiveram
que introduzir um estilo de pregação inteiramente novo, baseado num método
expositivo.

No início do século dezessete, porém, a pregação anglicana se tomou


predominantemente literária, quanto à forma. Vê-se isto nos escritos de homens
como o bispo Launcelot Andrewes, Jeremias Taylor e outros. Estilo maravilhoso,
prosa maravilhosa! Alguns diriam que Jeremias Taylor é o mais excelente
estilista inglês que este país já produziu. Era maravilhoso do ponto de vista da
forma, da dicção e do equilíbrio; jamais um anacoluto, jamais quaisquer
digressões ou parênteses. E as clássicas citações em latim e grego eram sempre
expostas com perfeição. Mas esse tipo de pregação não produzia nenhuma
vida espiritual. Aos puritanos foi dado ver que o que se fazia necessário era uma
vivida apresentação da verdade, a expensas do estilo e de todos estes
embelezamentos cheios de enfeites. O século dezoito apresenta uma repetição
das mesmas fraquezas na Igreja, tanto na Inglaterra como na América, entretanto
o Senhor levantou homens para reagirem contra elas. Certos eruditos criticam o
grande Jonathan Edwards por seu estilo terrível. Concedo que o estilo dele não é
bom; mas estão presentes a verdade, a vida e o poder. Sua pregação estava sob a
unção do Espírito e levou a um glorioso avivamento.

De maneira similar o apóstolo Paulo, com o seu coração amoroso e com o seu
interesse pastoral, preocupava-se em que os homens e as mulheres fossem
edificados na fé. Por isso não hesitava em partir para uma digressão; mas sempre
retomava, retomando o seu tema anterior.

Mas volto a perguntar, por que fez isso, por que a digressão? A resposta é que ele
sabia que estes efésios iam ficar inquietos com o fato de que ele era um
prisioneiro em Roma. O apóstolo sabia que iriam ficar preocupados com a sua
saúde e com o seu futuro. Não só isso, mas sabia outra coisa, muito mais
importante, a saber, que os seus sofrimentos e tribulações como prisioneiro
poderiam muito bem tomar-se uma pedra de tropeço para eles. Sabia do perigo
de ficarem a discutir e a perguntar-se: pois bem, quando Paulo estava conosco e
nos pregava, falava-nos das bênçãos da vida cristã e de como, na qualidade de
filho de Deus, ele sempre estava em segurança e nada poderia causar-lhe dano;
de fato, que Cristo dissera que “os cabelos da nossa cabeça estão
todos contados”. Ele dava ênfase a estes gloriosos aspectos da vida cristã; porém
agora está prisioneiro e está sofrendo como prisioneiro. Isto combina com o
cristianismo? Deus permite que o Seu povo sofra desta maneira? Paulo sabia que
talvez eles estivessem pensando e arrazoan-do desse modo (como os cristãos
sempre tendiam a fazer) e que isto poderia levá-los a tropeçar na fé. Assim,
conquanto o seu propósito fosse expor as gloriosas possibilidades da vida cristã,
o que vemos do versículo 14 ao fim do capítulo, ele foi um mestre bastante
prudente para perceber que de nada lhe valeria mostrar-lhes as riquezas espiri-

tuais da vida cristã se fossem levados a duvidar do próprio evangelho pelo fato
de estar ele sofrendo em Roma naquele momento.

Nada tem deixado tantas vezes perplexo o povo de Deus como a questão do
sofrimento. Por que Deus permite que o Seu povo sofra provações e tribulações?
Por que um servo de Deus que tanto se distingue de todos os demais, como
Paulo, deveria alguma vez ser deixado cair prisioneiro? Aí está por que este
assunto é tratado tantas vezes nas Escrituras, e particularmente por este apóstolo
Paulo. Vê-se isto em sua Epístola aos Filipenses, em cujos dois primeiros
capítulos ele o expõe de maneira a mais extraordinária. Ele o fez
particularmente ao escrever Timóteo, porque este parece ter sido o problema
perpétuo de Timóteo. Ele estava perplexo com o fato de que o apóstolo Paulo
fora deixado a sofrer e seria levado à morte. Timóteo não podia compreender
isto, e isto sempre o deprimia. Por isso Paulo teve que escrever-lhe. Aqui, no
início do capítulo três da sua carta aos efésios, o apóstolo toma este mesmo
tema. É esse o propósito desta digressão. Ela trata deste problema particular do
sofrimento dos piedosos e dos justos e da razão por que o povo cristão tem que
passar por provações e tribulações neste mundo.

Voltando-nos agora para o método do apóstolo para ajudar os seus leitores e


ouvintes, observamos negativamente que ele não lhes escreveu apenas uma
exposição geral, nem lhes enviou apenas uma palavra geral de consolação. Não
lhes escreveu para dizer-lhes: bem, isto é uma infelicidade. Tenho meus planos e
propostas, todavia vocês sabem, num mundo como este e numa vida como esta,
acontecem estas coisas. Mas não fiquem muito preocupados, pois estou certo de
que, por fim, tudo acabará bem. Não era esse o seu método. O que ele fez,
como podem observar, foi dizer-lhes como ele mesmo via a coisa; mostrou-lhes
sua própria atitude e sua própria reação face aos acontecimentos. E depois instou
com eles a que vissem o problema do mesmo modo. Ele os ensinou e os
habilitou a raciocinarem exatamente como ele. E estou chamando a atenção para
isto, não só porque é uma parte essencial da exposição desta epístola, e sim
porque temos aqui, uma vez por todas, os grande princípios que sempre devem
governar o nosso pensamento quando enfrentamos este tormentoso e difícil
problema. Esta é a mensagem para todo aquele que estiver passando por
provações e tribulações e que poderá estar aflito a ponto de perguntar: por que
Deus permite isto? Ou talvez seja alguém que lhe seja muito querido, que
está sofrendo. Ou pode ser que alguma coisa na igreja esteja abalando a sua fé.
Aqui está uma grande exposição sobre esta questão toda. Seja qual for a
perseguição que você esteja sofrendo, ou seja qual for a doença

ou dor, ou seja qual for a decepção — não importa o que seja — aqui está o
modo como se deve encarar isso.

Ao examinarmos a maneira pela qual o apóstolo olha para o problema, vemos


que ele não profere nem uma palavra de queixa. Nada há que sequer levante a
suspeita de uma murmuração. Nem por um segundo ele permite que entre em
sua mente ou em seu coração a indagação: é justo? Servi a Deus durante anos,
viajei, tenho sido infatigável, sofri, envelheci antes do tempo no serviço de Deus
— por que me sobrevêm isto? Não há o mais leve vestígio disso! Nem
uma palavra. Nada de queixas, nada de lamentações!

Em segundo lugar, notamos que Paulo não se resignou simplesmente, face ao


problema, com uma espécie de fortaleza estóica. Muitos agem assim! Mas não
há nada disso aqui. Ele não escreveu: bem, você sabe, você tem que receber o
mal com o bem num mundo como este; não se pode ter uma rosa sem espinhos;
você tem que harmonizar-se com o fato de que a vida é um misto de bem e mal,
prazer e dor, e, devido ser assim, não se deve resmungar e reclamar. Até agora
tudo saiu bem para você, portanto não fique lamuriando se as coisas começarem
a ir mal. Seja equilibrado, seja firme, faça esforços, seja homem, tome coragem,
seja rijo. Não há sombra desse ensino! Isso é estoicismo, isso é paganismo, é o
que o mundo chama de coragem! Nada tem a ver com o cristianismo; na
verdade, é quase uma antítese dele.

O fato é que se vocês lerem com serenidade este capítulo, só poderão chegar à
conclusão de que o apóstolo parece alegrar-se em meio às suas provações. Há
uma nota de exultação aqui, uma nota de triunfo. No fim do versículo 13 ele diz:
“Portanto vos peço que não desfaleçais nas minhas tribulações por vós, que são a
vossa glória”. Ele quer que os irmãos efésios sejam “mais que vencedores”,
como ele é “mais que vencedor”. Ele não está apenas suportando as
circunstâncias que o envolvem; está indo além, está exultando em seu
sofrimento. Está triunfante, está jubiloso. Há um elemento maravilhoso nisto, ele
lhes diz, se tão-somente puderem vê-lo. Esta é uma característica do ensino do
Novo Testamento. Já afirmei que o apóstolo dá o mesmo ensino na Epístola aos
Filipenses, no versículo 12 do capítulo primeiro. Ali também ele está escrevendo
como prisioneiro e diz: “E quero, irmãos, que saibais que as coisas que me
aconteceram contribuíram para maior proveito do evangelho”. Não desperdicem
as suas lágrimas por mim ou pela minha situação, diz o apóstolo. Quero que
olhem para estas coisas de modo que vejam, como eu vejo, que todas estas
coisas que me sobrevieram, certamente aconteceram “para maior proveito do
evangelho”. Diz ele virtualmente: graças a Deus por isso! Ao escrever
a Timóteo, toca na mesma tecla, na segunda Epístola, capítulo primeiro:

“Deus”, diz ele, “não nos deu o espírito de temor, mas de fortaleza, e de amor, e
de moderação” (versículo 7). De novo, no capítulo 2: “Sofre, pois, comigo, as
aflições como bom soldado de Jesus Cristo” (versículo

3). “Se sofrermos, também com ele reinaremos” (versículo 12). E indo além
disso, no capítulo 3, diz ele: “E também todos os que piamente querem viver em
Cristo Jesus padecerão perseguições” (versículo 12). Essa é a doutrina.

Mas esta doutrina não se limita ao apóstolo Paulo. Vemos o mesmo ensino na
Primeira Epístola de Pedro: “Amados, não estranheis a ardente prova que vem
sobre vós para vos tentar, como se coisa estranha vos acontecesse; mas alegrai-
vos no fato de serdes participantes das aflições de Cristo: para que também na
revelação da sua glória vos regozijeis e alegreis. Se pelo nome de Cristo sois
vituperados, bem-aventurados sois, porque sobre vós repousa o Espírito da glória
de Deus”, (da parte deles, ele é difamado, mas da parte de vós, ele é glorificado)2
(4:12-14). Aí está, pois, a essência do ensino. O apóstolo deseja que estes efésios
olhem para o seu aprisionamento e para os seus sofrimentos de modo tal que
realmente vejam a glória refulgindo através disso tudo e nisso glorifiquem a
Deus.

Como, porém, os cristãos chegam a esta posição? Como chegou o apóstolo a


esta posição, e como ele conduz a ela os efésios? Esta é, de todas, a questão mais
prática. Ele age assim, não porque acontece que ele nasceu com temperamento
plácido. Seu temperamento era exatamente o oposto. Paulo era homem que, por
natureza, facilmente podia ficar deprimido. Era naturalmente doentio,
introspectivo e sensível. Sua paz mental em meio às tribulações não era apenas
uma questão de temperamento, mas sim o produto final de um método
empregado por ele. Êle faz perguntas e depois, tendo anotado as respostas,
elabora uma argumentação. Este é seu método invariável. É precisamente o que
ele faz aqui, nesta digressão. A primeira coisa que eu e você temos que fazer
nesta vida cristã é aprender esse segredo. Em vez de deixar que as coisas nos
dominem e nos deprimam, de sentar-nos e cair numa autocomiseração, devemos
parar, examinar as circunstâncias e fazer perguntas sobre a coisa mesma, e não
sobre Deus. Tendo feito isso, precisamos observar as respostas e então elaborar
um argumento. Temos que pôr a questão toda dentro do seu contexto, em seu
cenário, e relacioná-la com a totalidade da vida e fé cristã. Quando fizermos isso,
veremos emergir um argumento. Consideremo-lo.

Eis aí Paulo prisioneiro. Ele está ciente desse fato; e os efésios

também estão. Agora, eis as indagações: como e por que ele é um prisioneiro?
Qual a causa da sua prisão? Em vez de compadecer-se de si mesmo na cela,
acorrentado a um soldado de cada lado, ele diz: devo investigar isto e inquirir
por que estou aqui afinal; por que sou prisioneiro? Como aconteceu, qual é a
explicação, qual a razão? Depois ele passa a dar as respostas, a si e aos efésios.
Assim começamos examinando as respostas dadas no versículo primeiro.

A primeira coisa que nos diz é que ele não é um prisioneiro comum. Esta é a
maneira como ele coloca a questão: “Por esta causa eu, Paulo, sou o prisioneiro
de Jesus Cristo”. Num sentido, ao falar assim já resolveu o seu problema. Ele
não é prisioneiro de Roma. Não está na prisão por causa do poderoso Império
Romano. Ele não é realmente prisioneiro de Nero. Nero é o imperador,
incidentalmente; mas Paulo não é prisioneiro de Nero. Ele não está na prisão por
causa da lei romana; ele não está na prisão como todos os outros
prisioneiros presumivelmente estão, em razão de alguma contravenção ou de
algum crime. Pois bem, se não é isso, por que está na prisão?

Eis sua resposta: sou o prisioneiro de Cristo, de Cristo Jesus. Afirmação


estonteante! Vocês já notaram que, com este apóstolo, toda verdade sobre ele é
sempre expressa em termos de Cristo? Ele é “o apóstolo de Cristo”, “o servo de
Cristo”, “o ministério de Cristo”, “o escra vo de Cristo”. Observem as suas
expressões, sempre e principalmente nas introduções das suas epístolas. É tudo
em relação a Cristo, e por causa de Cristo. E aqui ele não hesita em dizer que
está na prisão por uma única razão, a saber, porque ele está “em Cristo”. Ele
é prisioneiro de Cristo.

Provavelmente ele disse a si próprio o seguinte: se eu ainda fosse o homem que


fui, se ainda fosse Saulo de Tarso, se ainda fosse aquele fariseu, aquela pessoa
blasfema e perniciosa que eu era, se eu ainda fosse mestre da lei judaica e dos
comentários dessa lei feitos pelos escribas e pelas autoridades, se eu fosse ainda
o que era como Saulo de Tarso, não estaria nesta prisão. Esse é um fato absoluto.
Eu estaria em liberdade. Não há dúvida nenhuma quanto a isso. Bem, por que
estou aqui então? Estou aqui pelo que me aconteceu naquele dia, em pleno meio-
dia, no caminho de Damasco. Aquele acontecimento é que me trouxe para Roma
e para esta prisão!

Uma vez que vocês comecem a pensar desta maneira, esquecerão as grades, as
celas, os desconfortos e tudo mais. Paulo punha-se a recordar aquele
maravilhoso evento em sua vida quando viu o rosto de Cristo que do alto olhava
para ele, e ouviu a voz. A prisão o remete ao passado, fazendo-o pensar em sua
conversão, na maravilhosa graça de Deus e no amor de Cristo. Ele reflete sobre o
fato de que, embora tenha sido

aquela pessoa blasfema, perniciosa e perseguidora, não obstante Cristo o amara e


morrera por ele na cruz para expiar os seus pecados, reconciliá-lo com Deus e
fazer dele um filho de Deus. Tudo isso retomou a ele. Ele é um prisioneiro de
Jesus Cristo. Tudo que lhe sucedeu como cristão, ali tem seu ponto de partida.

E depois ele rememorou a comissão que lhe fora dada por Cristo, como iria
desenvolver mais tarde — como por revelação Cristo lhe esclarecera a verdade.
Cristo lhe dissera: vou fazer de você “ministro e testemunha, livrando-te deste
povo e dos gentios, a quem agora te enviou” (Atos 26:16-17), para que lhes dê
testemunho. A comissão! Tudo isso lhe voltou. Se forem estes o pensamentos
que ocupem a sua mente numa prisão, esta se toma um palácio. Vocês estão
assentados “nos lugares celestiais”, embora possam estar sofrendo
fisicamente. Esse é o método do apóstolo. Ele é prisioneiro de Cristo.

Mas a coisa não para aí! Paulo quer dizer também que ele está realmente
sofrendo por causa de Cristo, e não por sua própria causa. Ele não está na prisão
por algo de errado que tenha feito ou praticado pessoalmente. Está ali porque é
pregador do evangelho de Cristo, por causa do seu zelo pelo nome e pela glória
de Cristo. Está literalmente sofrendo como cristão, e por amor a Cristo. Esta era,
para o apóstolo Paulo, uma das coisas mais maravilhosas do mundo. Escrevendo
aos filipenses, diz ele: “Porque a vós vos foi concedido, em relação a Cristo, não
somente crer nele, como também padecer por ele” (Filipenses 1:29). Não
murmurem e não se queixem, ele lhes diz, se é que estão sofrendo por Cristo.
Antes, considerem isso a suprema honra das suas vidas. Era desta maneira que
estes cristãos primitivos sempre viam os seus sofrimentos. Davam graças a Deus
porque finalmente foram achados dignos de sofrer por Cristo. Agiam assim
mesmo quando estavam morrendo na arena, feridos pelos leões. A honra
suprema, a coroa final de glória, era o martírio. Assim é que se deve ver a
questão! É aí que a glória e o triunfo entram.

Todavia há mais uma coisa. Os sofrimentos de Paulo eram, para ele, uma prova
absoluta da sua vocação e do seu discipulado. Isto vem exposto naquilo que já
citei da sua Segunda Epístola a Timóteo: “E também todos os que piamente
querem viver em Cristo Jesus padecerão perseguições” (3:12). Essa é uma
afirmação penetrante. Significa que, se de alguma forma não estamos padecendo
perseguição por amor de Cristo, não somos cristãos. Vocês acreditam que as
Escrituras são a Palavra de Deus? Vocês acreditam que Paulo é um apóstolo
inspirado? Então devem aceitar esta afirmação categórica: “E também todos os
que piamente querem viver em Cristo Jesus padecerão perseguições”. Portanto,
se estou padecendo perseguição de alguma forma ou

de algum modo, é prova do meu discipulado. O apóstolo Tiago, em sua epístola,


afirma positivamente isso quando escreve: “Meus irmãos, tende grande gozo
quando cairdes em vários tentações”( 1:2). Por quê? Porque, diz ele, esta é a
prova da vocação e do discipulado dos cristãos. No capítulo primeiro da sua
Epístola, Tiago raciocina e argumenta sobre isso. Também nesse sentido Paulo é
o prisioneiro de Jesus Cristo.

No entanto esse pronunciamento é verdadeiro noutro sentido ainda. Uma das


coisas mais surpreendentes jamais ditas pelo apóstolo Paulo acha-se em sua
Epístola aos Colossenses: “Regozijo-me agora no que eu padeço por vós, e na
minha carne cumpro o resto das aflições de Cristo, pelo seu corpo, que é a
igreja”: (1:24). Noutras palavras, com respeito aos seus sofrimentos corporais,
ele penetrou nos sofrimentos de Cristo. Em Filipenses, capítulo 3, expressa-se o
mesmo pensamento: “Para conhecê-lo, e à comunicação de suas aflições”
(versículo 10). Ele precisa do poder da ressurreição para fazê-lo! “Para conhecê-
lo, e à virtude da sua ressurreição, e à comunicação de suas aflições”.
Nestas aflições, diz ele, estou enchendo, por assim dizer, até às bordas o que foi
deixado para trás, o que resta dos sofrimentos de Cristo, em minha carne, pelo
seu corpo, que é a Igreja. Estou na prisão, diz ele, mas não gastem nenhuma
lágrima por mim, não se desanimem por minha causa. Isto é sumamente
glorioso; estou tendo o maior privilégio da minha vida, estou completando o que
resta dos sofrimentos do meu Senhor. Ele está tendo agora o grande e alto
privilégio de seguir as pegadas de Cristo. Pedro igualmente expõe a mesma
verdade em sua primeira epístola: “Segui suas pisadas”, diz ele, “o qual não
cometeu pecado, nem na sua boca se achou engano. O qual, quando padecia
não ameaçava” (2:21-23). Esse é o privilégio: estamos seguindo as pisadas de
Cristo.

Finalmente, Paulo dá a entender que a sua lealdade à mensagem que Cristo lhe
confiara é que era a causa imediata do seu encarceramento. Observem o que ele
diz: “eu, Paulo, sou o prisioneiro de Jesus Cristo por vós, os gentios”. Um
melhor modo de traduzir isto seria: “eu, Paulo, o prisioneiro de Jesus Cristo por
causa de vós, os gentios” — “por”, “por causa de”, “vós, os gentios”. Que é que
ele quer dizer? A grosso modo, o argumento é como segue: por que,
precisamente, ele está na prisão? “Por esta causa” — aquilo a que ele se havia
referido. O que realmente colocou Paulo na prisão foi que ele ia por toda parte
pregando que o evangelho de Jesus Cristo era tanto para os judeus como para
os gentios. Foi isso que, mais que qualquer outra coisa, enfureceu os judeus. As
narrativas da prisão de Paulo registradas no livro de Atos dos Apóstolos,
capítulos 21 e 22, mostram claramente que foi essa a causa direta da sua
detenção, do seu confinamento e do seu envio a

Roma. Ele persistia em pregar que os crentes gentios eram “co--herdeiros” com
os crentes judeus. Se ele não tivesse salientado esta doutrina, os judeus bem
podiam ter-lhe permitido continuar pregando, mas, para os judeus, o ensino de
Paulo era absolutamente intolerável, era totalmente impossível. Daí se opuseram
a ele, quase o mataram, e ele só escapou da morte pela intervenção das
autoridades romanas. “Por esta causa.” Assim, o que o apóstolo está realmente
dizendo a estes cristãos gentios efésios é que ele está, de fato, sofrendo pelo
bem deles, sofrendo porque insistia em dizer que os gentios haviam de tomar-se
filhos de Abraão pela fé, exatamente do mesmo modo que os judeus. Para que
vocês gozassem a liberdade do evangelho, estou em cadeias, estou na prisão, foi
o que ele lhes falou. Se eu tivesse retirado esse aspecto da verdade, eu ainda
estaria livre; mas quero que saibam, diz ele, que estou sofrendo alegremente por
amor a vocês — regozijo-me nisto. Estou na prisão, porém vocês estão
usufruindo a gloriosa liberdade dos filhos de Deus.

Que homem! Que cristão! Alguns de nós seriam muito mais populares na Igreja,
como também no mundo, se não dissessem certas coisas. Se um pregador quiser
ser popular, nunca deverá desgostar os outros. Todavia Paulo não queria ser
popular. Foi-lhe dada a verdade, e ele pregava toda a verdade; não tirava nada.
Se tão-somente retirasse este aspecto particular, tudo ficaria bem. Mas não, diz
ele, foi-me dito que pregasse isto, o meu Senhor me enviou aos gentios, bem
como os judeus. Por isso ele está sofrendo alegremente pelo bem deles.

Contudo Paulo vai mais longe ainda. Notem suas palavras no versículo 13 —
“Portanto vos peço que não desfaleçais nas minhas tribulações por vós, que são a
vossa glória”. Há glória para eles nos sofrimentos do apóstolo. Como se dá isto?
Podemos procurar uma resposta indagando que valor tem para nós a história dos
mártires. Lemos as vidas dos santos e dos mártires, porém qual é o valor
preciso da morte dos mártires para nós? Por que devêramos ler o Livro
dos Mártires, de Foxe? Por que devêramos ler sobre os pactuários escoceses?
Por que devêramos ler sobre todos os homens e mulheres que deram a vida pela
fé cristã? Diz o apóstolo a estes efésios que os sofrimentos dele restabeleceriam
a segurança deles com relação à verdade sobre eles mesmos. Por que Paulo está
na prisão? A resposta é, porque ele está absolutamente certo da mensagem de
que Cristo morreu pelos gentios, como pelos judeus. Embora soubesse que
pregá-la significaria prisão e provavelmente a morte, não obstante a
pregava porque era verdadeira. Que tremendo fortalecimento da fé dos
efésios resultaria disso! Eles diriam a si mesmos: Paulo só pode estar
absolutamente certo disso; jamais se submeteria ao sofrimento desta maneira,

se tivesse alguma dúvida sobre isso! Ele está com tanta certeza disso, como ele
nos diz, que preferiria sofrer o que tivesse que sofrer, a evitá-lo. Então, isso só
pode estar certo, esta é a verdade a nosso respeito, somos feitos um corpo com
os judeus em Cristo Jesus. Vemos, pois, que os sofrimentos de Paulo centraliza a
atenção neste aspecto sumamente glorioso do evangelho, do ponto de vista deles;
e isto explica por que ele continua a dizer-lhes, com minúcias, nos versículos
subseqüentes, como Cristo lho revelara pessoal e individualmente, de
maneira especial.

Os crentes efésios são levados a recordar que Cristo morreu por eles e que, por
sua vez, Paulo agora está sofrendo por eles e está pronto até a morrer por eles, e
que ele considera isto um privilégio. Muitos deles eram apenas escravos e
pessoas muito simples e comuns, mas ele lhes diz que o Filho de Deus morreu
por eles, e que ele, como apóstolo deles, considera grande privilégio estar na
prisão por eles. Quando um homem como Paulo diz uma coisa dessas, sentimos
desejo de levantarmos, cantar e gritar. Sentimo-nos indignos e, contudo, estamos
cientes do privilégio, da maravilha e da glória disso tudo. E ao mesmo tempo, ao
sofrer desta maneira, que magnífico exemplo o apóstolo dá aos cristãos quanto a
como se deve encarar estas coisas. Haverá alguma coisa mais fortalecedora da
fé, do que ler sobre a morte dos mártires? Se alguma vez você tiver dúvida ou se
sentir hesitante acerca da fé cristã, se alguma vez sentir-se atraído pelo mundo, e
ficar sem saber se deve perseverar sofrendo perseguição como estudante, por
exemplo, ou em sua profissão, ou em seus negócios, leia as histórias da morte
dos mártires. Observe o fim do homem reto, diz o salmista (37:37). “Lembrai-
vos dos vossos pastores”, diz o autor da Epístola aos Hebreus, “atentando para a
sua maneira de viver (ou, segundo a AY: “considerando o fim do seu viver”).
Observem o modo como eles morreram. “Jesus Cristo é o mesmo ontem, e hoje,
e etemamente” (13:7-8). Não há nada que fortaleça tanto a fé como isso! Estes
homens enfrentaram triunfalmente os tiranos e “a ensangüentada juba dos leões”
porque conheciam a Cristo e a realidade da verdade.

O apóstolo está dizendo a estes efésios que se tão-somente vissem


verdadeiramente o significado do seu encarceramento, se tão-
somente observassem acertadamente estas coisa, isso os levaria ao conhecimento
da glória da vida cristã como nunca a conheceram antes. O que Paulo está
dizendo é que, para ele, a vida cristã é tudo; Cristo é “tudo em todos”. A vida
cristã é tão gloriosa e tão maravilhosa que, para ele, é muito mais preciosa que a
própria vida. O que ele está realmente dizendo é o que disse aos filipenses nestas
palavras: “para mim o viver é Cristo, e o morrer é ganho”, e tenho “desejo de
partir, e estar com

Cristo, porque isto é ainda muito melhor” (1:21,23).

Aí está, pois, o início da argumentação do apóstolo; aí estão os pontos básicos,


os princípios fundamentais. Você se regozija nas tribulações? Você está
desanimado pelo que lhe aconteceu ou pelo que aconteceu com a Igreja? Se você
está sofrendo como cristão, encare de novo os argumentos, como Paulo os
apresenta. Veja-os, creia neles, aplique-os, e por fim ponha-e de pé e dê graças a
Deus, gloriando-se no fato de que a você também “foi concedido, em relação a
Cristo, não somente crer nele, como também padecer por ele” (Filipenses
1:29). “Eu, Paulo, sou o prisioneiro de Jesus Cristo por vós, os gentios.”
Você compreendeu?

1
Em ambos os casos, discípulos do escocês John Glass (1695-1773). Nota do tradutor.

2
Parte entre colchetes: AV. Nota do Tradutor
“O MISTÉRIO DE CRISTO”

“Se é que tendes ouvido a dispensação da graça de Deus, que para convosco me
foi dada; como me foi este mistério manifestado pela revelação como acima em
pouco vos escrevi; pelo que, quando ledes, podeis perceber a minha
compreensão do mistério de Cristo, o qual noutros séculos não foi manifestado
aos filhos dos homens, como agora tem sido revelado pelo Espírito aos seus
santos apóstolos e profetas; a saber, que os gentios são co-herdeiros, e de um
mesmo corpo, e participantes da promessa em Cristo pelo evangelho; do qual
fui feito ministro, pelo dom da graça de Deus, que me foi dado segundo a
operação do seu poder. ” Efésios 3:2-7

Ponderaremos agora as palavras que se acham nos versículos 2 a 7, e devemos


ver isto como um todo, porque é unicamente uma frase com muitas subdivisões;
e há um sentido em que, se hemos de entender corretamente qualquer das suas
partes individuais, precisamos ter alguma concepção da declaração toda. É o
início de uma longa digressão que continua até o fim do versículo 13. Vimos que
o objetivo da mesma era ajudar estes efésios, que estavam aflitos pelo fato de
que o apóstolo era prisioneiro. Ele queria que eles vissem as coisas de tal modo
que não somente não desfalecessem ante o fato — como o diz no versículo 13 —
mas que até se gloriassem nisso. Ele mesmo está se gloriando nisso, e aqui
prossegue para mostrar-lhes que eles também deveriam gloriar-se no seu
aprisionamento.

O apóstolo começa a fazê-lo no versículo 2: “eu, Paulo, sou o prisioneiro de


Jesus Cristo por vós, os gentios; se é que tendes ouvido a dispensação da graça
de Deus, que para convosco me foi dada”. Poder-se-ia traduzir: “Supondo-se que
sabeis”, ou “tomando como certo que estais cientes do fato” de que estou nesta
condição especial com respeito a vocês. Alguns comentaristas vêem-se em
dificuldade com esta expressão: “Se é que tendes ouvido”, como se o
apóstolo estivesse em dúvida sobre isso. No entanto não é uma expressão
de dúvida; é uma maneira de dizer, “supondo-se, naturalmente, que sabeis”,
“tomando como certo”. Mesmo assim, embora pressupondo que o sabem, o
apóstolo põe-se a falar daquilo. Aqui de novo está uma das lições que jamais
devemos deixar de aplicar quando lemos as

Escrituras. Vocês sabem tudo sobre isto, diz o apóstolo, mas outra vez vou fazê-
los recordá-lo. A quintessência do bom ensinar é a repetição. Todos nós
pensamos e supomos que sabemos certas coisas, porém quando somos
examinados a respeito delas, muitas vezes descobrimos que não as sabemos. Não
só isso; conquanto possamos sabê-las teoricamente, de um modo ou de outro ao
ver-nos em dificuldade ou com problemas, falhamos na aplicação do
conhecimento. É, pois, necessário que nos façam recordá-las. É o que o apóstolo
faz aqui. Eles sabiam tudo isso — o próprio apóstolo lhes falara a respeito,
outros lhes tinham falado — entretanto desde que estavam perturbados por
ele estar na prisão, era preciso fazê-los lembrar-se disso de novo. Ele o faz com
muita deliberação, pois eles estavam entendendo mal as suas tribulações porque
na verdade não tinha entendido a lição. Contudo, ao mesmo tempo, não se pode
ler esta digressão sem sentir que o apóstolo alegra-se em repassar mais uma vez
a grande história. E tão gloriosa, tão magnífica! Há certas coisas que não se pode
contar em demasia, tão magníficas elas são.

O objetivo de Paulo era levar os cristãos efésios a verem que somente quando
compreendessem o que Deus fizera por eles por meio dele, como apóstolo de
Cristo, é que não só não ficariam escandalizados com o seu aprisionamento, mas
na verdade acabariam louvando a Deus, apercebidos da perfeição dos Seus
inescrutáveis caminhos. Naturalmente a mesma coisa continua sendo aplicável a
nós. Além de toda dúvida, não há nada que dê tanta consolação e segurança à fé,
não há nada que nos cause tanta alegria na vida cristã, como
simplesmente postar-nos a contemplar, e compreender nalguma medida o
grandioso plano, esquema e propósito da redenção de Deus. É isso que o
apóstolo descerra aqui para estes efésios e, por meio deles, descerra para nós.
Ele lhes está oferecendo uma rápida descrição de como foi que o
evangelho chegou a eles, pagãos como eram. Ele os faz lembrar-se de que
levavam vida ímpia, adorando uma multiplicidade de deuses, e
particularmente em Éfeso adorando a grande deusa Diana, fazendo imagens e
ídolos e, naturalmente, vivendo no baixíssimo nível moral que sempre
caracteriza o paganismo e o politeísmo. Tais foram eles outrora, porém agora são
santos da Igreja de Deus, e juntamente com os judeus convertidos adoram a
Deus. Esse fato é mais que surpreendente, é quase inacreditável. Mas a grande
interrogação é: como foi que isto veio a acontecer? O apóstolo passa a dizer-
lhes, e especialmente o faz na longa frase que começa aqui no versículo 2 e que
vai até o fim do versículo 7.

Ao examinarmos este assunto, lembremo-nos de que não se trata apenas de uma


questão de interesse acadêmico, ou de interesse pela história do apóstolo Paulo.
Talvez alguns indaguem se a nossa pesquisa
traz algum proveito num mundo tão cheio de problemas e dificuldades, e
perguntam que é que isso tem a ver conosco. A resposta é que o apóstolo trata
aqui de questões absolutamente fundamentais para toda a posição cristã. Ao
mesmo tempo ele tem coisas para dizer aqui, que me parecem sumamente
relevantes e importantes quando considerados em relação ao interesse atual pelo
ecumenismo e por uma possível grande Igreja mundial, incluindo até o
catolicismo romano, que poderia opor-se ao comunismo e à perspectiva ateísta
em geral. O apóstolo nos apresenta aqui certos princípios cardeais cuja
negligência nos levará a grave erro. Noutras palavras, quando Paulo relata aqui
uma parte de sua história pessoal, também nos está instruindo no ensino do
Novo Testamento com relação à Igreja, a certos encargos na Igreja e a toda a
natureza da verdade cristã.

A primeira coisa que ele diz aos crentes efésios é que, no momento, ele está na
prisão por ser um apóstolo dedicado a servi-los: “Se é que tendes ouvido a
dispensação da graça de Deus, que para convosco me foi dada; como me foi este
mistério manifestado pela revelação...”. Ele prossegue dizendo que este mesmo
“mistério” foi “revelado pelo Espírito aos santos apóstolos e profetas (do
Senhor), do qual fui feito ministro, pelo dom da graça de Deus, que me foi dado
segundo a operação do seu poder” (versículos 2 a 7). Aqui começamos a
olhar para a extraordinária provisão que Deus fez para nós e para a
nossa salvação. Triste é dar-nos conta de quão poucas vezes paramos
para meditar em tudo isto! É-nos dito com muita freqüência nas Escrituras que
Deus planejou e quis a nossa redenção “antes da fundação do mundo”, porém
quantas vezes contemplamos isso pormenoriza-damente? Quantas vezes
meditamos nesse grande plano-mestre de Deus, e compreendemos como cada
parte e parcela foi planejada é predeterminada, e como, na plenitude do tempo,
Deus o pôs em ação? Deus tivera este grande propósito de unir gentios e judeus
e de enviar esta mensagem de salvação por todo o mundo. Para que isto
acontecesse, como o apóstolo nos dirá no capítulo 4, Deus fez surgir a Igreja.
Há “um só Senhor, uma só fé, um só batismo; um só Deus de Pai e
todos” (versículos 5 e 6). Também “deu dons aos homens”, incluindo-se vários
encargos: “deu uns para apóstolos, e outros para profetas, e outros para
evangelistas, e outros para pastores e doutores, querendo o aperfeiçoamento dos
santos, para a obra do ministério, para edificação do corpo de Cristo” (versículos
11 e 12). Que perfeição de plano! Tudo isto foi ordenado por Deus, diz o
apóstolo, e como uma parte disto, ele foi chamado por Deus para ser apóstolo.
Observem a bela linguagem com a qual ele o expressa: “a dispensação da graça
de Deus, que para convosco me foi dada.”Deus, diz o apóstolo, confiou-me uma
tarefa

como um despenseiro desta Sua maravilhosa graça. Deus me designou para ser
um dos defensores e guardiães deste precioso favor que Ele está manifestando
para a humanidade no Filho do Seu amor, nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo.

Vemos agora por que o apóstolo não pede desculpas por repetir estas coisas.
Jamais olvidou o espanto e a maravilha disto — que ele, que fora blasfemo e
perseguidor, que odiara a Cristo e Sua Causa, e que pensava estar prestando
serviço a Deus quando perseguia a Igreja Cristã — que a ele tivesse sido dada de
fato esta dignidade, esta honra, este privilégio de ser chamado pelo próprio Deus
para ser um apóstolo desta mensagem, um mordomo desta verdade, alguém
chamado para propagar as estupendas boas novas vindas ao mundo por meio de
nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Noutras palavras, a sua reivindicação é
que, como em toda parte nos diz em seus escritos, ele é um apóstolo no sentido
mais completo do termo. É tão apóstolo como Pedro, Tiago, João e todos os
demais. Ele, que fora tão oposto ao evangelho, é um dos principais arautos do
evangelho. “Esta graça me foi dada”, diz ele. Devemos examinar o que ele inclui
nesta definição, nesta designação.

Um apóstolo era alguém que fora muito definida e especificamente chamado


pelo próprio Deus, em particular pelo Senhor Jesus Cristo. Se vocês lerem as
diversas Epístolas de Paulo no Novo Testamento e derem bastante atenção às
introduções por ele escritas, verão que, quase invariavelmente, ele se refere a si
mesmo como alguém que foi “chamado para ser apóstolo”, expressão que se
traduz melhor, “um chamado apóstolo”. Ninguém poderia ser apóstolo, a não ser
que fosse chamado desta maneira única e especial. Noutras palavras, um
apóstolo é alguém não nomeado pela Igreja. Ninguém pode nomear ou criar um
apóstolo. Uma parte essencial da definição de apóstolo é que de maneira única,
especial e direta, ele é “chamado de Deus”. Paulo transmite isso aqui, na
expressão: “a graça de Deus, que para convosco me foi dada”; o dom foi-me
dado, a honra foi-me conferida.

Temos outro exemplo desta ênfase na carta aos gálatas: “Paulo apóstolo” —
depois, entre parênteses, “não da parte dos homens, nem por homem algum, mas
por Jesus Cristo, e por Deus Pai, que o ressuscitou dos mortos” (1:1). Observem
o modo como Paulo o coloca, e como é importante a negativa — “não da parte
dos homens, nem por homem algum”. Não se pode ser apóstolo “de” homens
nem “por” homens. Ele dá ênfase à declaração por este bom motivo,
que, perambulando pelas igrejas naqueles primeiros dias, havia certos falsos
apóstolos, homens que diziam, “Eu sou apóstolo”, e que instavam com as
pessoas a que não dessem ouvidos à pregação do apóstolo Paulo, que segundo
eles, não era apóstolo. Eles alegavam que eram os

verdadeiros apóstolos, ensinavam às pessoas que precisavam circun-cidar-se e


submeter-se a certos ritos, e que o evangelho da salvação gratuita não era
verdadeiro. O apóstolo sempre os denunciava como falsos apóstolos. Eram
“anticristos”, como lhes chama o apóstolo João; nunca foram chamados por
Deus; foram nomeados por si mesmos ou por outros homens; eram “de” homens,
e “por” homens, e não por Jesus Cristo e Deus o Pai.

Mas Paulo sustenta que ele é um verdadeiro apóstolo: “Esta graça”, diz ele, “foi-
me dada”. Que expressão! O próprio ofício constitui uma graça; é uma
dispensação da graça; todavia também inclui a idéia de que quando Deus
chamava um homem para ser apóstolo, por Sua graça o equipava para ser
apóstolo. Dava-lhe certos dons. Invariavelmente havia certos “sinais” e “marcas”
de apóstolo. Ao verdadeiro apóstolo sempre era dada a graça e o poder de operar
“milagres, prodígios e sinais”. Homem nenhum era apóstolo, se não era capaz de
produzir esta autenticação. Há muitas referências a isto nas Escrituras do
Novo Testamento. Um dos “selos”, “marcas”, “sinais” de um apóstolo era que
tivesse este poder sobrenatural, miraculoso. Assim, quando lemos o livro de
Atos dos Apóstolos, encontramos expressões como esta: “Deus pelas mãos de
Paulo fazia maravilhas extraordinárias”. Maravilhas extraordinárias! Eram tão
numerosas que o povo se levantava, cheio de espanto e admiração. De fato isto
acontecera nesta mesma cidade de Éfeso quando Paulo estivera lá, e se originou
grande tumulto, como se pode ler no capítulo 19 do livro de Atos.

Acima disso tudo, e muito mais importante para o nosso propósito imediato, está
o fato de que um apóstolo era um homem a quem Deus dera, de maneira muito
especial, a mensagem de salvação. Paulo declara: “Uma dispensação da graça de
Deus me foi dada”. Os apóstolos foram os “despenseiros”, os guardiães, os
defensores do mistério da fé. Há vários outros lugares nas epístolas em que o
apóstolo diz a mesma coisa. Lemos, por exemplo, na Primeira Epístola
aos Coríntios: “Que os homens nos considerem como ministros de Cristo, e
despenseiros dos mistérios de Deus” (4:1). Isso tudo é de tremenda importância
para nós. Já nos foi dito pelo apóstolo, no fim do capítulo 2, que a Igreja de Deus
está estabelecida “sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas” (versículo
20). Aqui o apóstolo nos ajuda a entender isto. Deus toma estes homens, estes
homens especiais, e os faz despenseiros, guardiães, administradores da
mensagem da Sua maravilhosa graça redentora.

Vemos aí o desenrolar do plano de redenção. Deus o Pai o pensou; Ele o


planejou. Na “plenitude do tempo” Ele enviou Seu unigênito Filho ao mundo
para realizar a obra absolutamente necessária. Se o

Filho não tivesse vindo, ensinado e morrido, se não tivesse levado sobre Si os
pecados dos homens e seu castigo, se não tivesse ressuscitado e retomado ao
céu, a salvação jamais teria sido possível. A graça de Deus vem por intermédio
do Senhor Jesus Cristo. Depois Deus enviou o Espírito Santo no dia de
Pentecoste para que esta graça que fora preparada fosse administrada, nos fosse
dispensada. Não haveria proveito em providenciá-la, a não ser que fosse
preparado o canal pelo qual viesse até nós individualmente, para que
pudéssemos recebê-la e desfrutá-la. O Espírito Santo faz isto dando esta
habilitação e este entendimento, este poder e capacidade àqueles homens que
Deus chamou e designou para serem os defensores, guardiães e
despenseiros dela.

No início do livro de Atos dos Apóstolos pode-se ver claramente este plano e
propósito de Deus. Nosso bendito Senhor ressurgira dos mortos e Se manifestara
durante quarenta dias aos Seus discípulos. Eles conheciam os fatos acerca da Sua
vida, morte e ressurreição, entretanto ainda não estavam em condições de ir e
pregar. Não poderiam fazê-lo enquanto não recebessem a plenitude, o batismo
do Espírito Santo (Atos 1:8). Mas depois podiam, e o fizeram. Cheios do
Espírito de Deus, foram e pregaram esta mensagem do evangelho.

É isso que Paulo quer dizer quando fala que uma dispensação, uma
administração deste admirável mistério da graça de Deus lhes fora dada. Deus o
enchera do Espírito, capacitara-o a compreender. Deus o enviara a pregar e lhe
dera poder para pregar, e para atestar a verdade com a realização de milagres. No
tempo devido ele viera aos efésios e lhes pregara, e os que creram foram
acrescentados à Igreja. E agora ele lhes diz que por isso está na prisão.

Que coisa tremenda! Estes crentes efésios, na maioria provavelmente simples e


comuns escravos, tinham sido incluídos neste plano e esquema eterno de Deus.
Vocês percebem a dolorosa situação a que Deus chegou a fim de que eu e vocês
fôssemos resgatados e redimidos, e nos tomássemos santos e finalmente,
viéssemos a passar a eternidade em Sua gloriosa presença? Agora, pois, diz
Paulo aos efésios, não desfaleçam por causa das minhas tribulações, não pensem
muito em minhas cadeias na prisão; pensem antes nesta coisa esplêndida
que Deus fez — “uma dispensação da graça de Deus me foi dada
para convosco”! Ele me deu essa dispensação no caminho de Damasco, quando
me disse que me chamou para serum “ministro e testemunha”. Fui designado e
comissionado para pregar aos judeus e aos gentios. Pensem nisso, diz o apóstolo;
vejam este grande propósito de Deus! Não desperdicem a sua compaixão por
mim; glorio-me no fato de que estou sofrendo pelo nome de Cristo, e gostaria
que vocês se gloriassem

nisso também.

Algo lhe foi confiado, diz o apóstolo. Ele foi feito despenseiro. O quadro é
familiar. Um grande homem, dono de um castelo e de grandes possessões, não
pode fazer tudo sozinho; o que ele faz é nomear mordomos. Coloca um a cargo
disto, outro a cargo daquilo. São responsáveis perante ele e a favor dele
administram os seus negócios de acordo com as diferentes “dispensações” a eles
confiadas. Portanto, Paulo foi feito despenseiro. Mas despenseiros de quê? Ele
lhe chama “mistério” — “Como me foi este ministério manifestado pela
revelação” — e o repete — “como acima em pouco vos escrevi; pelo que quando
ledes, podeis perceber a minha compreensão do mistério de Cristo”.

Quando lemos estas epístolas do Novo Testamento, freqüentemente encontramos


esta palavra “mistério”; é, pois, essencial que entendamos o que o apóstolo quer
dizer com ela. Muitos há que ensinam que este termo “mistério” significa que a
mensagem cristã, a fé cristã, é uma coisa vaga, indefinida, nebulosa, uma coisa
que de modo nenhum pode ser definida; noutras palavras, asseveram que o
cristianismo não passa de uma forma de misticismo. Neste ponto vemos a
relevância prática desta porção das Escrituras para a nossa presente situação. A
tendência geral do “pensamento moderno” é desacreditar a definição, a
doutrina, o dogma e toda formulação teológica. Afirma-se que as definições
da fé dividem os cristãos e, como a única coisa que importa é estarmos todos
unidos, não devemos dar ouvidos a definições precisas. Na verdade, muitos vão
mais longe a e afirmam que, por sua própria natureza, o cristianismo é uma coisa
que escapa à definição. Não devemos tentar definir o cristianismo, dizem eles,
porque ele é uma experiência mística maravilhosa, é um mistério. Não podemos
dizer o que ele é, mas podemos ser iniciados nele; não podemos declará-lo
no papel, mas podemos senti-lo e experimentá-lo. No momento em
que tentarmos dizer o que ele é, e defini-lo — dizermos que é isto, que não é
aquilo — vocês o estarão destruindo, porque nesse caso o cristianismo deixará
de ser um mistério .Daí interpretam a palavra “mistério” no sentido de
“misticismo”, ou quase “nebulosidade”, algo vago e indefinido, algo que não se
pode expressar mediante proposições. Contudo o certo é que o apóstolo Paulo,
nesta passagem e em toda parte, nega essa interpretação. O que ele diz é que o
mistério lhe foi “revelado”. Não é uma coisa vaga e indefinida, e sim uma
mensagem que lhe foi tomada simples e clara.

“Mistério”, no sentido do Novo Testamento, é um termo técnico pertencente a


uma verdade que, em vista do seu caráter, jamais poderá ser alcançada; não se
pode chegar a ela por meio do intelecto humano

desassistido, nem por meio da capacidade humana pura e simples. É algo claro
em si mesmo, mas devido o homem ser o que é — finito e pecaminoso — não
pode chegar a ele nem compreendê-lo com o seu intelecto desassistido. A
exposição clássica disto acha-se na Primeira Epístola aos Coríntios, onde o
apóstolo o definiu uma vez por todas. “Todavia”, diz ele, “falamos sabedoria
entre os perfeitos; não porém a sabedoria deste mundo, nem, dos príncipes deste
mundo que se aniquilam; mas falamos a sabedoria de Deus oculta em mistério, a
qual Deus ordenou antes dos séculos para nossa glória; a qual nenhum
dos príncipes deste mundo conheceu; porque, se a conhecessem,
nunca crucificariam ao Senhor da glória. Mas, como está escrito: as coisas que o
olho não viu, e o ouvido não ouviu, e não subiram ao coração do homem, são as
que Deus preparou para os que o amam. Mas Deus no-das revelou pelo seu
Espírito; porque o Espírito penetra todas as coisas, ainda as profundezas de
Deus”(2:6-10).

A sabedoria que falamos, diz Paulo, não é “a sabedoria deste mundo”, é a


“sabedoria oculta”, a “sabedoria de Deus oculta em mistério”. O homem natural,
mesmo que seja um príncipe, não a compreenda, não pode alcançá-la; seu
intelecto não é adequado. “Mas Deus no-la revelou pelo seu Espírito. ” Vê-se
que o “mistério” não é uma coisa vaga, indefinida, nebulosa; é clara e definida,
entretanto sem ajuda o homem nunca a pode alcançar. Ele tem que “recebê-la”
de Deus; é preciso que a sua mente seja iluminada e aberta pelo Espírito Santo
para entendê-la e, como parte da vocação do pregador, expô-la. Portanto, o que o
apóstolo está dizendo aqui é que Deus o comissionara como guardião, mordomo,
depositário de um discernimento e conhecimento deste estupendo mistério. Daí
estar ele agora habilitado para transmiti-lo, explicá-lo e expô-lo aos outros. Era
essa a sua ocupação e o seu privilégio como apóstolo.
Diz ele também que se tratava de algo que lhe foi revelado: “como me foi este
mistério manifestado pela revelação ”. Com que constância ele nos inculca isto!
Repetidamente ele declara que não tinha chegado a este conhecimento por sua
própria capacidade ou entendimento. Por exemplo, ao dirigir-se ao rei Agripa e
ao governador Festo numa famosa ocasião, ele diz: “Bem tinha eu imaginado
que contra o nome de Jesus Nazareno devia eu praticar muitos atos” (Atos 26:9).
Esse era o pensamento de Paulo como homem natural. E teria continuado a
fazer a mesma coisa até a morte, denunciando o evangelho de Cristo, odiando-o,
perseguindo-o, se tivesse continuado a pensar consigo mesmo em termos do seu
próprio entendimento. Mas algo lhe acontecera. Saí pela estrada de Damasco, diz
ele, com a intenção de exterminar os cristãos daquela cidade, “respirando ainda
ameaças, e mortes”

contra eles, quando de repente, por volta do meio dia, vi uma luz nos céus, luz
mais brilhante do que o sol, e ouvi uma voz. Foi o Senhor Jesus Cristo, o Senhor
da glória, que me apareceu. E noutras palavras Ele me disse: “Eu te apareci,
Saulo, com o fim de dizer-te certas coisas”. Revelou-me o mistério concernente
a Si próprio e ao Seu grande propósito, e me deu esta dispensação, fez de mim
um apóstolo, e me disse que estava prestes a me enviar aos judeus e aos gentios.

Não há como exagerar a ênfase a este aspecto da verdade. Retomemos à Epístola


aos Gálatas e observemos como o apóstolo, tendo-o afirmado no primeiro
versículo da sua carta, repete-o nos versículos 11 e 12: “Faço-vos saber, irmãos,
que o evangelho que por mim foi anunciado não é segundo os homens. Porque
não o recebi, nem aprendi de homem algum, mas pela revelação de Jesus
Cristo”. Eles não devem dar ouvidos a nenhum outro ensino, e não devem
permitir que ninguém ou nada perverta a sua fé, porque o que ele lhes pregara,
tinha recebido, não de algum homem, nem o tinha aprendido de alguém, nem
mesmo dos apóstolos; mas o aprendera do próprio Senhor Jesus Cristo quando
Ele lhe aparecera na estrada de Damasco. Recebera-o por revelação
direta. Também Cristo lhe aparecera noutra ocasião, quando ele estava no templo
de Jerusalém, e ainda noutra ocasião, quando ele estava em Corinto. O
“mistério”chegara a ele “por revelação”. Não se tratava de uma mensagem que
ele estava originando; foi-lhe dada diretamente pelo Senhor. Sua autoridade não
é outra senão a do Senhor da glória. Apegai-vos a este evangelho, diz ele aos
efésios. O que faz de mim um apóstolo é que eu recebi isso tudo mediante esta
direta revelação do Senhor Jesus Cristo.

Observem que ele escreve a mesma coisa acerca de todos os “seus santos
apóstolos e profetas”. Lembra ele aos efésios que a Igreja é edificada “sobre o
fundamento dos apóstolos e dos profetas”, no sentido de que foi aos apóstolos e
aos profetas que Deus revelou o mistério (2:20). Os maiores homens do mundo
não puderam compreendê-lo. Olhavam para Jesus de Nazaré e nada viam, senão
um homem, um carpinteiro; não viam que Ele era o Filho de Deus. Esta verdade
tem que ser revelada como “o mistério de Cristo”. Eles não o conseguiam ver;
não lhes foi revelado. Cristo mesmo dissera: “Graças te dou, ó Pai, Senhor do
céu e da terra, que ocultaste estas coisas aos sábios e entendidos, e as revelaste
aos pequeninos. Sim, ó Pai, porque assim te aprouve” (Mateus 11:25-26). Deus
revelou esta verdade aos apóstolos e aos profetas uma vez e para sempre.

É evidente que os profetas não eram apóstolos. Os apóstolos eram uns poucos
escolhidos, doze, incluindo-se Paulo. Os profetas eram homens aos quais foi
dado um entendimento especial da verdade que

fora revelada, e podiam ensiná-la aos outros. Assim, o que temos no Novo
Testamento é o ensino dos apóstolos e dos profetas. A Igreja Primitiva,
conduzida pelo Espírito Santo, não admitia nenhum livro do cânon do Novo
Testamento se não se provasse que havia sido escrito por um apóstolo, ou que o
fora sob a influência de um apóstolo. Nada que não venha com a autoridade
apostólica é canônico. Temos a mensagem apostólica, a revelação do mistério,
aqui na Palavra de Deus.

Procuremos aprender de tudo isto certas lições vitais para nós. A primeira é a
natureza gloriosa daquilo que Deus fez por nós mediante o evangelho da
redenção . Acaso não nos vem algo da sua glória com renovado vigor quando
nos damos conta de que o Todo-poderoso e eterno Deus tanto Se afanou com
aqueles escravos de Éfeso, aqueles pagãos que vieram a conhecer esta verdade e
se tomaram filhos de Deus? Que plano perfeito! Tudo de graça, tudo de Deus.
Não foi Saulo de Tarso que decidiu fazer-se cristão e ir pregar em Éfeso.
“Uma dispensação” desta graça maravilhosa “me foi dada”, afirmava ele.
O Senhor tinha olhado para ele no caminho de Damasco e tinha Se apoderado
dele, porque o escolhera para ser um despenseiro deste mistério. A graça de
Deus, a bondade, a misericórdia, a compaixão de Deus! Que verdade estupenda!
Receio que nós, cristãos modernos, não contemplamos o plano de salvação como
o faziam nossos pais. Refiro-me aos pais de um, dois e especialmente três
séculos atrás, e aos grandes pais protestantes do século dezesseis. Eles se
deleitavam em contemplar este grandioso plano de redenção. Quando eu e você
o fizermos, seremos levados a gloriar-nos e a triunfar nele, como Paulo queria
que estes efésios fizessem.

No entanto, além disso, aprendemos uma lição sobre a natureza e caráter de um


apóstolo. Porventura já não percebemos que o ofício de apóstolo é algo
inteiramente único, que um apóstolo era alguém chamado diretamente pelo
Senhor, que ele tinha que ser uma testemunha da ressurreição de Cristo, que lhe
foi dada uma singular inspiração e autoridade, e que lhe foi dado poder para
atestar a sua vocação com milagres, sinais e prodígios? Estaríamos vendo o
caráter singular de um apóstolo, vendo que um apóstolo pertence ao alicerce da
Igreja, e unicamente ao alicerce?

Uma verdade clara nas Escrituras é que não pode haver repetição do ofício de
apóstolo, e que falar em “sucessão apostólica” é simplesmente negar o ensino
escriturístico. Não pode haver nenhum sucessor dos apóstolos; a verdade foi
revelada uma vez e para sempre. Não temos necessidade de revelação adicional,
pois a verdade foi revelada aos

apóstolos e aos profetas. Uma vez que eles a transmitiram e a pregaram, e a sua
mensagem foi escrita, nós a temos. Está, pois, implícito na definição de um
apóstolo que ele é um homem que recebeu a revelação de maneira única e,
portanto, é óbvio que não pode ter nenhum sucessor. Noutras palavras, nossa luta
com a igreja católica romana e seus adeptos não é política, é escriturística; eles
negam as Escrituras. Um alicerce é feito uma vez e para sempre: “sobre o
fundamento dos apóstolos e dos profetas”.

Igualmente, espero que tenhamos visto algo da natureza da verdade cristã. Não é
um conhecimento comum. Não é algo que o intelecto desassistido pode entender
e receber. Sem a iluminação que somente o Espírito Santo pode dar, as verdades
do evangelho permanecem tão escuras e ocultas para nós como o eram para “os
príncipes deste mundo”, quando o Senhor da glória estava concretamente entre
os homens. “Mas Deus no-las revelou pelo seu espírito.” “Nós não recebemos o
espírito do mundo, mas o Espírito que provém de Deus, para que pudéssemos
conhecer o que nos é dado gratuitamente por Deus”(l Coríntios2:10,12). Esta
não é uma verdade comum. Seja qual for a capacidade do nosso intelecto, seja
qual for o nosso brilhantismo, não será suficiente. Todos nós temos que nos
tomar “como crianças”. Precisamos da inspiração, da bênção e da unção do
Espírito, antes de podermos receber e compreender a verdade divina.

Por último, somos inteiramente dependentes das Escrituras, Não temos nenhuma
verdade salvadora fora do que nelas encontramos. E obviamente, à luz do que
vimos dizendo, nada pode ser acrescentado às Escrituras, jamais. Mais uma vez
vemos onde nos separamos da igreja católica romana que, às vezes explícita, às
vezes implicitamente, alega ter recebido revelação adicional. Todavia é claro que
não pode haver revelação adicional, porque a revelação vem somente por
meio dos apóstolos e dos profetas, e atualmente não existe apóstolo, e
por definição não pode existir. Assim, estamos inteiramente limitados
às Escrituras, e não podemos acrescentar-lhes nada. Tampouco podemos tirar
delas alguma coisa. Não nos cabe escolher e retirar porções delas. Não podemos
dizer: creio nisto e rejeito aquilo; gosto muito do ensino de Jesus, porém não
acredito em milagres. Admiro a maneira como Ele morreu, mas não acredito que
Ele nasceu de uma virgem, ou que ressuscitou da tumba. No momento em que
começarmos a fazer isso, estaremos negando a revelação. Estaremos dizendo que
o nosso intelecto desassistido é capaz de julgar a revelação e de peneirar
e encontrar o que é verdadeiro e o que é falso. Isso é negar totalmente
o princípio da revelação, do apostolado e desta obra singular do Espírito Santo.

Quão importante, pois, é esta digressão para nós! Estamos encerrados na Bíblia e
em seu ensino. Nada sei fora dela. Nada posso acrescentar-lhe, nada posso tirar
dela; tomo-a como nos foi dada com a autoridade dos apóstolos. Contudo, se
este ponto de vista é rejeitado e a pessoa diz: isto é o que eu penso, é nisto que
eu creio. Replico: você não tem direito de falar desta maneira; mas se você
prefere fazê-lo, então, de acordo com esta autorizada palavra dos apóstolos, a
autorizada Palavra de Deus, você está nas trevas, não recebeu a iluminação; você
permanece fora da vida de Deus e sem nenhuma experiência da Sua graça e da
Sua bênção em Cristo, nosso Senhor.

A mensagem de Paulo a estes efésios é: sou um apóstolo chamado, foi-me


confiada uma dispensação da graça de Deus, e eu a lhes tenho transmitido. Vocês
a têm, vocês são cristãos. Por isso estou sofrendo. Mas, esqueçam isso; pensem
na glória, maravilha e prodígio daquilo que Deus providenciou para vocês em
Seu infinito amor e bondade, e no que vocês se tomaram como resultado da Sua
maravilhosa graça.

<ÉOS DOIS MISTÉRIOS”

“Se é que tendes ouvido a dispensação da graça de Deus, que para convosco me
foi dada; como me foi este mistério manifestado pela revelação como acima em
pouco vos escrevi; pelo que, quando ledes, podeis perceber a minha
compreensão do mistério de Cristo, o qual noutros séculos não foi manifestado
aos filhos dos homens, como agora tem sido revelado pelo Espírito aos seus
santos apóstolos eprofetas; a saber, que os gentios são co-herdeiros, e de umsó
corpo, e participantes da promessa em Cristo pelo evangelho; do qual fui feito
ministro, pelo dom da graça de Deus, que me foi dado segundo a operação do
seu poder. ” Éfésios 3:2-7

Ao darmos continuidade ao nosso estudo desta frase que vai do versículo 2 ao


versículo 7, lembramos que estamos interessados em suas declarações, não
simplesmente porque fazem parte da exposição desta grande Epístola, mas
porque elas têm uma significação prática muito importante para nós. Estamos
vivendo num mundo em que muitos cristãos estão sofrendo agudamente porque
são cristãos. No caso de alguns deles, sua fé pode ficar abalada, e a nossa fé
pode ficar abalada por causa daquilo que eles têm que suportar. Na
verdade, poderá vir o dia em que nós, cristãos, talvez tenhamos que
suportar provações semelhantes neste país. O apóstolo nos ensina como
estar preparados para essa eventualidade. Todavia, mesmo sem isto, que poderá
ser mais proveitoso do que meditar na grandeza desta plano de salvação?
Somente quanto compreendermos isto é que louvaremos a Deus como devemos,
e Lhe prestaremos culto como se espera que o façamos.

O apóstolo está lembrando a estes cristãos efésios a extraordinária maneira pela


qual Deus planejara levar-lhes o evangelho. Paulo os faz lembrar-se de que ele,
dentre todos os homens, recebera o grande privilégio de pregar-lhes em Éfeso;
ele, apóstolo de igual nível e posição dos outros apóstolos, apesar de nunca ter
estado com o Senhor nos dias da Sua carne como eles, e apesar de não ter
recebido sua comissão da parte do Senhor enquanto Ele estivera na terra,
como acontecera com os outros apóstolos. Não obstante, acrescenta ele, fora--lhe
dada uma revelação especial no caminho de Damasco e, portanto,

ele é um apóstolo da mesma categoria dos outros, e nisto se gloria.

Passamos agora à questão quanto à natureza deste mistério que lhe fora revelado.
Nesta longa frase o apóstolo emprega a palavra “mistério” duas vezes, nos
versículos 3 e 4; primeiro, “como me foi este mistério manifestado pela
revelação” — depois, na Versão Autorizada inglesa há uma afirmação entre
parênteses. Infelizmente, outras versões, entre elas a Versão de Almeida, tanto a
Edição Revista e Corrigida como a Edição Revista e Atualizada no Brasil, não
utilizam os parênteses, e isto confunde a questão. A Versão Autorizada
acertadamente começa com parêntese (“como acima em pouco vos escrevi;”—
quer dizer, “quando reexaminais isso”— “pelo que, quando ledes,
podeis perceber a minha compreensão do mistério de Cristo”). A seguir, depois
de fechar o parêntese, o trecho continua: “O qual noutros séculos não foi
manifestado aos filhos dos homens”. Fica claro que a expressão entre parênteses
é definidamente um parêntese. A afirmação principal é: “Como me foi este
mistério manifestado pela revelação, o qual noutros séculos não foi manifestado
aos filhos dos homens, como agora tem sido revelado pelo Espírito aos seus
santos apóstolos e profetas; a saber, que os gentios são co-herdeiros, e de um
mesmo corpo”. As palavras entre parênteses são uma afirmação
subsidiária (“como acima em pouco vos escrevi...”). Paulo se refere aí, não
a alguma outra suposta Epístola, e sim ao que já disse nos capítulos 1 e 2. Hoje
expressaríamos isto com as palavras: “Como eu disse acima, como vocês
poderão reler”. O apóstolo os faz lembrar-se de que ele já lhes indicou algo da
sua “compreensão do mistério de Cristo”.

Está bem claro que o apóstolo está empregando a palavra mistério com relação a
duas coisas diferentes. Já definimos “mistério” como tendo o sentido de algo que
a mente humana não pode alcançar por seus próprios esforços desassistidos, e
que só pode ser revelado pelo Espírito. Não significa algo nebuloso ou incerto
sobre o qual nunca se pode ter idéia clara; porém algo que, sem a iluminação e a
revelação do Espírito Santo, nunca poderemos compreender. Ele utiliza o termo
em dois sentidos. O mistério a que se refere no parêntese, no versículo 4, é “o
mistério de Cristo”. Podemos denominá-lo mistério geral. Mas o que ele está
realmente interessado em desenvolver é outro mistério, o mistério que ele
descreve nos versículos 5 e 6. Este é um mistério que “noutros séculos não foi
manifestado aos filhos dos homens, como agora tem sido revelado pelo Espírito
aos seus santos apóstolos e profetas; a saber, que os gentios são co-herdeiros”.
Este é o mistério particular.

Este esclarecimento é essencial, pois, se não estivermos cientes da distinção,


provavelmente ficaremos atrapalhados e confusos quanto à

declaração inteira. Mais uma vez é interessante observar, não somente como
funciona a mente deste grande apóstolo, mas também seu espírito. Ao que
parece, é como se houvesse certas coisas que o apóstolo não pode deixar de
fazer. Embora isto cause estrago em seu estilo literário (como vimos), parece que
ele é totalmente incapaz de controlar-se. Assim, conquanto esteja
primordialmente interessado em expor o mistério particular, não pode conter-se
de dizer uma palavra sobre o mistério geral.

Começamos, pois, com o mistério geral, o mistério a que ele se refere no


versículo 4 e que descreve como o “mistério de Cristo”. Ele se refere àquilo que
já esteve expondo a estes efésios. Vocês não precisam ficar na incerteza, parece
dizer ele, quanto ao meu conhecimento desta mensagem a mim confiada; já lhes
disse o bastante, já lhes escrevi o bastante para que tenham certeza. O “mistério
de Cristo” é simplesmente outra maneira de referir-se a toda a mensagem
do evangelho, ou a toda a verdade concernente ao Senhor Jesus Cristo; pois, na
realidade, Ele é o evangelho. O evangelho está todo “nEle”. Noutras palavras, o
apóstolo está se referindo à mensagem a ele confiada, mensagem que ele já tinha
pregado oralmente a estas pessoas. E essa mensagem é Cristo, o mistério de
Cristo. Ninguém pode ler os escritos de Paulo sem ver que é sempre este o seu
grande tema e a sua consumidora paixão. Leiam as epístolas de Paulo e vão
pondo no papel todas as referências que ele faz a Cristo, ao Senhor Jesus Cristo,
a Cristo meu Senhor, e assim por diante. É surpreendente e espantoso.
Como alguém já o expressou, Paulo era um homem “intoxicado de Cristo”. Não
admira que ele diga: “Para mim o viver é Cristo” — Cristo é o princípio, o fim, o
centro, a alma, tudo! Sua mensagem era que tudo que Deus tem para o homem
está em Cristo, e em nenhum outro lugar. Assim o vemos escrever em sua
Epístola aos Colossenses estas palavras: “Em quem (em Cristo) estão escondidos
todos os tesouros da sabedoria e da ciência” (2:3). Tudo está em Cristo; e em
nenhum outro lugar. Portanto, Paulo não pode passar a tratar do mistério
particular sem dizer uma palavra acerca deste grande mistério geral.

O mesmo elo de ligação se vê na Primeira Epístola de Paulo a Timóteo, uma


epístola particularmente prática e pastoral em que ele instrui Timóteo sobre a
ordenação de presbíteros e diáconos, e sobre outras questões. O capítulo três é
uma das passagens mais práticas de todos os seus escritos; mas aqui de novo ele
é arrastado pelo seu tema dominante. Preocupa-o que Timóteo saiba conduzir-se
“na casa de Deus, que é a igreja de Deus vivo, a coluna e firmeza da verdade”.
A seguir, repentinamente: “E sem dúvida alguma grande é o mistério da piedade:
Aquele que se manifestou em carne, foi justificado em

espírito, visto dos anjos, pregado aos gentios, crido no mundo, e recebido acima
na glória” (3:16). “Grande é o mistério da piedade!”

Paulo não pode deixar de fazer esta declaração porque a vinda de Cristo ao
mundo é a coisa mais tremenda, mais emocionante, mais grandiosa e mais
gloriosa que já aconteceu na história. O mistério é a espantosa maneira pela qual
Deus enviou a salvação aos homens; é a maneira pela qual Ele o fez; é tudo
quanto aconteceu com o Senhor Jesus Cristo e por meio dEle. Que mistério!
Quem jamais teria tido um simples vislumbre dele, quem jamais o teria
conhecido, não fora a iluminação, a revelação que só o Espírito Santo pode dar!

Vamos examiná-lo de novo. Nasce um bebê em Belém e é posto numa


manjedoura. Isso acontece muitas vezes. O nascimento de um bebê! Milhares de
bebês nascem diariamente. Mas “O Bebê de Belém” é o maior mistério que o
mundo já conheceu porque aquela criança, aquele bebê, é o eterno Filho de
Deus. O mistério está em que resultou em “duas naturezas numa pessoa! ” Ele é
Deus, Ele é homem. Há estas duas naturezas nEle e, todavia, Ele não é duas
pessoas, é uma. “Não entendo isso”, dirá alguém. Naturalmente que não, e não
se espera que entenda! Se você pensa que a sua mente é suficientemente grande
para captar e apanhar esse conceito, será melhor pensar de novo. Este é
“o mistério da piedade”. Este homem, o apóstolo Paulo, que provavelmente o
penetrou mais profundamente que todos quantos já viveram, simplesmente recua
e diz: “Grande é o mistério da piedade”. Este lhe foi revelado, de modo que ele
sabe que há duas naturezas numa só pessoa. Agora ele sabe quem é essa pessoa;
não por um processo dele próprio, mas, como ele nos diz, pela revelação vinda
mediante o Espírito Santo. De fato o Filho mesmo lho dissera quando, no
caminho de Damasco, perguntara: “Quem és tu, Senhor?” — “Eu sou Jesus,
a quem tu persegues”. Esse é o mistério de Cristo! Este é o meio divino de
salvação. Deus é Todo-poderoso, o eterno e sempitemo Deus, para quem as
nações são “como o pó miúdo das balanças”, são vaidades, são menores e mais
leves que a vaidade. Foi Ele que do nada fez tudo, e disse: “Haja luz, e houve
luz”. Assim teríamos pensado que, quando Ele desejasse salvar o homem e o
mundo, tomaria a proferir alguma palavra grandiosa que faria o universo inteiro
balançar e tremer. Teríamos esperado alguma dramática exibição de poder pelo
qual Deus salvaria os homens e destruiria o mal. Mas Deus não agiu
dessa maneira. Seu meio de salvação acha-se neste mistério de Cristo, num frágil
bebê. Não há nada que seja mais fraco ou mais frágil; nada que seja menor, nada
que seja mais indefeso. Esse é o método de Deus!

Depois considere tudo que aconteceu a Ele e com Ele. Procure contemplar todo
o processo da encarnação. Considere como Ele Se

despojou da insígnia da Sua etema glória para nascer como um bebê. Depois
continue a pensar em Sua humilhação e em tudo que Ele suportou e sofreu; e
então a morte, o sepultamento, a ressurreição e a ascensão. Esse é o caminho da
salvação estabelecido por Deus! Esse é o modo como Deus trata as críticas
condições do homem, o problema humano! Esse é o meio pelo qual Deus
reconciliou conSigo os homens e pelo qual produzirá finalmente ordem e glória
do caos das coisas como estas são agora! Esse é o mistério ao qual Paulo está se
referindo! Esse é o mistério, a compreensão que lhe fora dada do mistério
de Cristo!

Deixem-me fazer uma pergunta: “o mistério de Cristo” é o interesse mais


absorvente da sua vida? O “mistério de Cristo” é, para vocês, a coisa mais
comovente do mundo? Está ele no centro das suas vidas, ocupa ele a parte
suprema dos seus corações, o ponto central das suas meditações? Nas Escrituras
Cristo está sempre nessa posição central. Os nossos hinos mais grandiosos olham
para Ele, contemplam-nO e, com Paulo, expressam grande admiração face ao
mistério. O mistério de Cristo! Este nada dizia aos judeus e aos gentios. Esta é a
última coisa em que Paulo jamais teria pensado ou imaginado. Mas é fato,
é evangelho. É o que pessoalmente Cristo tomara conhecido a Paulo na estrada
de Damasco e o comissionara para pregar aos judeus e aos gentios, dizendo-lhe
que somente nEle se pode obter a remissão dos pecados, a vida etema e a
esperança da glória etema.

Creio que já não estamos tão surpresos como talvez estávamos quanto à razão
pela qual Paulo fez este parêntese, deixando de lado o estilo. Muitas vezes achei
que grande parte da explicação do trágico estado da Igreja moderna está no fato
de que já não temos parênteses! Somos perfeitos demais, a nossa forma literária
é soberba; o ensaio pode ser belo, mas falta vida, falta realização. Somos
demasiadamente auto-controlados; e isto é porque não temos visto “o mistério
de Cristo”. Graças a Deus pelos parênteses que nos lembram “o mistério de
Cristo”!

Devemos agora dirigir a atenção ao mistério particular. O mistério particular a


que o apóstolo começou a referir-se no versículo 3, é por ele retomado agora no
versículo 5 — “O qual noutros séculos não foi manifestado aos filhos dos
homens, como agora tem sido revelado pelo Espírito aos seus santos apóstolos e
profetas; a saber, que os gentios são co-herdeiros, e de um mesmo corpo, e
participantes da promessa em Cristo pelo evangelho”. Esta porção se refere à
matéria particular das relações entre judeus e gentios na Igreja Cristã. Diz-nos o
apóstolo noutro lugar que se gloria no fato de que ele é, em particular, “o
apóstolo

dos gentios”, e se gloria nesse encargo. Ele se refere a isso nesta altura porque
está escrevendo aos cristãos efésios, que tinham sido pagãos, e o seu objetivo,
como eu já disse, é habilitá-los a dar-se conta da maravilha e do portento da sua
salvação.

Mas nós temos nosso próprio motivo para dar cuidadosa atenção a esta
declaração particular. Digo com a maior franqueza que preferiria não tratar deste
assunto, porém o trabalho da pregação não é só exortar e consolar, e sim também
instruir; e é só quando compreendemos as doutrinas com as nossas mentes que
podemos viver verdadeiramente a vida cristã e desfrutá-la, como é o seu
propósito para nós. Sei que há aqueles que usam certas “Bíblias” com notas que
dão muita ênfase a esta declaração particular, e dela constroem toda uma
perspectiva e esquema de ensino. Refiro-me ao ensino comumente conhecido
como dispensacionalismo, e sei que há sempre o perigo, quando vemos notas na
Bíblia, de crer inconscientemente que as notas são inspiradas como o texto.
Temos a tendência de as engolir e tomá-las como autênticas. Portanto, somos
impulsionados a ver essa declaração a partir desse ponto de vista particular.

O ensino dispensacionalista afirma que todas as promessas que se acham no


Velho Testamento foram feitas aos judeus somente, e a estes se aplicam; isto é,
não se aplicam à Igreja; afirma-se que a Igreja Cristã é algo que “entra” — este é
o termo que empregam — como uma espécie de “parêntese”. Os
dispensacionalistas sustentam que quando o Senhor Jesus Cristo veio a este
mundo, veio para oferecer o reino dos céus aos judeus, e foi somente porque os j
udeus o recusaram que a idéia da Igreja foi introduzida. Se os judeus tivessem
aceitado o reino, dizem eles, nunca teria existido Igreja Cristã nenhuma. No
entanto, tendo os judeus rejeitado o reino, a Igreja foi introduzida como uma
nova dispensação, como uma espécie de parêntese. A Igreja terá fim e,
então, mais uma vez haverá uma restauração dos judeus como nação, e
Cristo estabelecerá Seu reino entre eles. Traçam, uma aguda linha de
divisão entre a Igreja e o reino. Dizem eles que os judeus ainda constituem
um povo separado e especial, e que as profecias do Velho Testamento só se
aplicam a eles.

O significado disto para a nossa posição hoje é que aqueles que acreditam no
ensino dos dispensacionalistas estão ocupados demais pregando sermões e
fazendo discursos sobre o Egito e sobre o que está acontecendo na Palestina e no
Oriente Próximo. Alguns têm até a pretensão de que podem predizer o que vai
acontecer, e quando. Encontram isso tudo nas Escrituras, dizem eles. Por esta
razão fazem grande uso da declaração particular que estamos examinando.
Salientam que o apóstolo diz: “Como me foi este mistério manifestado, o qual

noutros séculos não foi manifestado aos filhos dos homens”, e param nisso.
Depois dão prosseguimento, argumentando que estas palavras deixam
perfeitamente claro que o “mistério” pertencente à Igreja não foi conhecido sob a
antiga dispensação; na verdade, enquanto não foi revelado ao apóstolo Paulo. De
fato alguns se aventuram a afirmar que em parte alguma o Velho Testamento
ensina que os gentios seriam salvos.

Há só uma resposta a tal ensinamento. Se os seus expositores lessem o Velho


Testamento sem preconceito, veriam muitas referências à matéria em discussão
entre nós. A promessa foi feita a Abraão, como Paulo no-lo faz recordar no
capítulo três de Gálatas: “Todas as nações serão benditas em ti” (3:8). Em Isaías
há referências às “ilhas”, aos “gentios” etc. Essa é a resposta pura e simples. Mas
há outras respostas, e mais importantes, a modo de réplica aos que dizem que a
Igreja, como tal, não foi conhecida sob a antiga dispensação. Aqui vai uma
citação das Notas de uma bem conhecida “Bíblia”: “A Igreja
corporativamente não está na visão dos profetas do Velho Testamento”, e depois,
entre parênteses, para provar seu ponto de vista, “(Efésios 3:1-6)”. Efésios 3:1-6,
segundo essa afirmação, indica que a Igreja, corporativamente, não está na visão
do profeta do Velho Testamento. Essa citação acha-se na introdução dos livros
proféticos do Velho Testamento naquelas Notas particulares. Talvez eu deva
acrescentar, para tomar completa a minha exposição, que há um sistema de ultra-
dispensacionalismo associado ao nome do dr. Bullinger, o qual vai tão longe que
chega a dizer que é somente nas Epístolas que temos realmente o evangelho
do Novo Testamento aplicável a nós. O dr. Bullinger ensinava que
os Evangelhos nada têm a ver conosco, que eles eram só para os judeus; é aqui
no capítulo 3 de Efésios que temos a mensagem para esta era, para judeus e
gentios na Igreja.

Qual será a resposta a este ensino? Certamente a doutrina concernente à Igreja


foi claramente ensinada por nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Considere o
que transpirou em Cesaréia de Filipe, quando o Senhor disse a Pedro: “Sobre
esta rocha edificarei a minha igreja”. As famosas Notas têm que admitir que de
fato Ele disse isso, mas afirmam que Ele não desenvolveu a idéia. O fato, porém,
é que Ele o disse; assim, esta verdade concernente à Igreja não foi revelada
somente a Paulo; já havia sido revelada. O Senhor a ensinara. Além disso, Pedro,
pregando no dia de Pentecoste, disse: “Arrependei-vos, e cada um de vós
seja batizado em nome de Jesus Cristo, e recebereis o dom do Espírito Santo;
porque a promessa vos diz respeito a vós, a vossos filhos, e a todos os que estão
longe”. É uma clara referência aos gentios. Do mesmo modo, é óbvio que Pedro
e João compreenderam este princípio

quando reconheceram que os samaritanos, que não eram judeus, também tinham
recebido os benefícios da salvação, pelo que impuseram as mãos sobre eles para
que recebessem o Espírito Santo. De novo Pedro, no dramático acontecimento
que ocorreu antes de sua ida à casa de Comélio, foi levado a ver a mesma
verdade. Foi necessária uma visão oriunda do céu para fazer Pedro enxergá-la.
Como judeu, ele não podia entender isto. A despeito do fato de que ele era um
homem salvo e de que passara pela experiência do Pentecoste, a idéia de que
os gentios haveriam de tomar-se co-herdeiros com os judeus era, em sua opinião,
impossível. Mas com a visão que teve, e havendo testemunhado o cair do
Espírito Santo sobre Comélio e sua casa, ele viu esta verdade uma vez e para
sempre, e assim admitiu os gentios na Igreja. Ele foi criticado por fazê-lo e se
defendeu, como se nos diz nos capítulos 11 e 15 do livro de Atos dos Apóstolos.
Fica, pois, claro que, antes de Paulo haver-se tomado apóstolo aos gentios, esta
verdade já fora pregada.

No entanto, esta verdade realmente se encontra no Velho Testamento. Há


passagens, como Ezequiel capítulo 36 e outras, que mostram este retrato da
Igreja. E como Paulo argumenta no capítulo três de Gálatas, na promessa a
Abraão ela está perceptivelmente implícita. Quão importante é dar-nos conta do
perigo de começar com uma teoria e impô-la às Escrituras! Eis o que de fato diz
o apóstolo: “O qual noutros séculos não foi manifestado aos filhos dos
homens”— e então vem, não um ponto final, e sim uma vírgula — “como agora
tem sido revelado pelo Espírito aos seus santos apóstolos e profetas”. O apóstolo
não está dizendo que o mistério nunca fora revelado antes. O que ele
está dizendo é que ele não fora revelado antes “como”, “na medida em
que”, agora foi revelado. Lá estava em embrião; agora está em plena florescência
e desenvolvimento. Lá estava em sombra, como uma sugestão; agora está
plenamente revelado. A expressão é, “como agora tem sido revelado...”. Como
são extraordinárias as sutilezas da mente humana, mesmo quando cristã, mesmo
após ter recebido o Espírito Santo! Não é questão de desonestidade. Estou
apenas indicando que as nossas mentes são falíveis e que, portanto, temos que
ser cuidadosos quando estudamos as Escrituras para não suceder que elaboremos
um sistema completo de doutrina baseados num texto ou numa compreensão
errônea de um texto.

O mistério agora feito claro e simples não é apenas o fato de que é para os
gentios serem salvos, mas que é para os gentios e os judeus estarem juntos na
Igreja Cristã — em estreitas relações uns com os outros. Paulo não está dizendo
que agora se deve permitir que os gentios se tomem judeus prosélitos. Nisso os
judeus já criam; na

verdade eles tinham praticado o proselitismo. Muitos gentios chegaram a ver a


verdade de Deus nas Escrituras do Velho Testamento, e os judeus os instruíam e
os circuncidavam e, assim, eles se tomavam judeus prosélitos. Permitia-se que o
gentio entrasse, mas somente como prosélito; não era ainda um judeu completo.
Não obstante, o mistério que fora feito claro para Paulo e para os demais
apóstolos era que os gentios agora tinham ingressado, não como acréscimo,
nem como prosélitos, mas haviam entrado nesta nova realidade, a
Igreja, exatamente da mesma maneira como o judeu. Ele está afirmando
que agora a Igreja é o reino, que aquilo que a nação judaica era no
Velho Testamento, a Igreja é agora; e que aquela distinção antiga não
existe mais. Noutras palavras, ele está dizendo que se cumpriu a profecia
do Senhor registrada em Mateus 21:43: “Portanto eu vos digo que o reino de
Deus vos será tirado, e será dado a uma nação que dê os seus frutos”. O apóstolo
Pedro repete isto a seu modo aplicando-o à Igreja, constituída de judeus e
gentios, as próprias palavras que Deus empregara, mediante Moisés, referentes à
nação de Israel, em Êxodo, capítulo 19: “Vós sois o sacerdócio real, a nação
santa, o povo adquirido” (ou “um povo peculiar”). A Igreja é a forma atual do
reino.

O ponto defendido pelo apóstolo é que a velha distinção entre os judeus e os


gentios foi abolida uma vez por todas. Ele já mostrou isso no capítulo dois,
afirmando que “a parede de separação que estava no meio” já não existe, que
Cristo a demoliu e criou “um novo homem, fazendo a paz”. A antiga distinção se
foi. A maneira particular como Paulo o afirma é sumamente interessante. Ele o
expressa empregando a palavra “companheiro” três vezes (vs. 3-6). Infelizmente
a Versão Autorizada (em inglês) e a Versão de Almeida omitem isto e
dizem: “co-herdeiro, e de um mesmo corpo, e participantes da
promessa”. Todavia, na verdade Paulo disse: “companheiros herdeiros,
companheiros membros do corpo, companheiros participantes da promessa” (ou
“co-herdeiros, co-membros do corpo, co-participantes da promessa”).
Os gentios, diz ele, devem ser co-herdeiros com os judeus, o que significa que
todas as promessas feitas por Deus aos judeus no Velho Testamento estão agora
acessíveis aos gentios. O judeu é participante com o gentio, ambos no mesmo
nível — igualmente o gentio com o judeu. Não há diferença. Ambos são co-
herdeiros e, por assim dizer, têm o mesmo lugar na vontade de Deus; ambos
recebem os mesmos benefícios. Isto se refere à nova aliança que Deus tinha
prometido. Ele dissera que ia fazer uma nova aliança, não semelhante à que
fizera quando os tirara do Egito. Esta é: “Dos vossos pecados e das
vossas iniqüidades não me lembrarei mais”; “Serei para vós Deus, e vós sereis

para mim um povo”. Entretanto isto não é mais somente para os judeus; é
também para os gentios; é para mim e para você. Estamos na vontade de Deus,
somos herdeiros junto com os judeus, a velha nação, o antigo povo de Deus,
nesta admirável promessa dos benefícios da nova aliança.

A segunda expressão é “co-membros do corpo”. Poderíamos ter pensado que


“co-herdeiros” diz-nos tudo e que não há nada que possa ir além. Talvez se possa
explicar este elemento adicional com uma ilustração. Imaginemos um homem
que só tem um filho, mas também um criado da família que está com ele,
digamos, há quarenta anos, e que ele passou a considerar quase como filho.
Assim, quando ele faz o seu testamento, declara que todos os seus bens deverão
ser repartidos entre o seu filho e o seu fiel criado. Um criado pode se tomar co-
herdeiro, porém continua sendo criado. Isto não faz dele um membro da
família; não significa que ele tem o mesmo sangue; não significa que
houve mudança na relação essencial. Por isso o apóstolo acrescenta a “co--
herdeiros” o termo “co-membros do corpo”. É isto que põe abaixo todas as
tentativas para fazer perpetuar a distinção entre os judeus e os gentios. Não é, diz
Paulo, que os gentios são apenas acrescentados superficialmente a alguma coisa;
eles são interligados de forma compacta, unidos como juntas neste corpo. Já não
há distinção; não há superioridade, nem inferioridade. O sistema
dispensacionalista afirma que há, que existe um “povo celestial” e um “povo
terrenal”, e que os judeus serão trazidos de volta e que tomarão a receber um
lugar muito especial numa era futura. Este ensino é uma negação do que nos é
dito na passagem em foco, negação de que tudo isso terminou para sempre, de
que há um só corpo, e que o judeu e o gentio são partes (juntas) igualmente
implantadas no corpo.

O apóstolo dá mais um passo ainda, dizendo que somos “co--participantes da


promessa”. À luz doutras partes das Escrituras, isto significa duas coisas. Em
Gálatas 3:14 lemos: “Para que a bênção de Abraão chegasse aos gentios por
Jesus Cristo, e para que pela fé nós recebamos a promessa do Espírito”. Esta é
também chamada “a promessa do Pai”, e isso passa como um fio de ouro através
do Velho Testamento. É o que aconteceu no dia de Pentecoste, que
Pedro explicou assim: “Isto é o que foi dito pelo profeta Joel”. A promessa
do Pai é o derramamento do Espírito e os resultados dele decorrentes. Vocês são
co-participantes da promessa, diz Paulo aos efésios, vocês receberam a plenitude
do Espírito exatamente como os judeus. Mas eu acredito que as palavras têm
mais um sentido. Outra grande promessa foi a da ressurreição e do glorioso reino
do Filho de Deus. Paulo afirma isto com muita clareza em Atos 2ó:ó-8, ao fazer
a sua defesa perante o

rei Agripa e Festo. “E agora”, diz ele, “pela esperança da promessa que por Deus
foi feita a nossos pais estou aqui e sou julgado. À qual as nossas doze tribos
esperam chegar, servindo a Deus continuamente, noite e dia. Por esta esperança,
ó rei Agripa, eu sou acusado pelos judeus. Pois quê? Julga-se coisa incrível entre
vós que Deus ressuscite os mortos?” A promessa é que o Messias viria e
venceria a morte e o túmulo, e traria à luz a vida e a imortalidade. É a promessa
da ressurreição, da ressurreição final, e da vinda do reino glorioso, “novos céus e
nova terra, em que habita a justiça”. Isso era uma coisa que o judeu pregava
acima de tudo mais. Ele teve que sofrer muito em sua vida neste mundo, mas
olhava para além disso tudo, como se nos diz em Hebreus, capítulo 11 — ele
aguardava o cumprimento daquela promessa, a ressurreição e a vida gloriosa.
Primeiro essa promessa estava restrita ao judeu; o gentio estava sem esperança,
sem Deus no mundo, como Paulo já dissera no capítulo 2, versículo 12; mas
agora diz ele que os gentios são co-participantes da promessa de Deus em Cristo
pelo evangelho.

Para nós isto significa que podemos aguardar anelantes a ressurreição do corpo,
um corpo glorificado. Podemos aguardar anelantes nossa morada numa nova
terra sob novos céus, em que habita a justiça; co--participantes da promessa,
“Cristo em vós, a esperança da glória”.

Esses são os dois mistérios que o apóstolo nos diz que lhe foram dados, para os
pregar: o mistério geral, o mistério de Cristo; e o mistério particular de que o
propósito de Deus agora é manifesto e está em operação na Igreja; e de que a
Igreja é a forma final deste propósito, até completar-se. O judeu e o gentio estão
juntos em Cristo, compartem as bênçãos de Deus agora e participarão dos
benefícios da glória eterna e sempitema. Estarão sempre surpresos e
maravilhados por toda a eternidade ante a graça de Deus que fez isto possível,
que nEle nos juntou e que a nós e aos judeus fez co-herdeiros, co-membros do
corpo e co-participantes de tão bem-aventurada esperança.

“AS INSONDÁVEIS RIQUEZAS”

“Do qualfui feito ministro, pelo dom da graça de Deus, que me foi dado segundo
a operação do seu poder.

“A mim, o mínimo de todos os santos, me foi dada esta graça de anunciar entre
os gentios, por meio do evangelho, as riquezas insondáveis de Cristo. ” Efésios
3:7-8

Tendo descrito a natureza da mensagem que o Senhor Deus lhe revelou e o


comissionou a pregar, o apóstolo continua a tratar disto de maneira ainda mais
profunda e com uma declaração sumamente comovedora. Ele começa dizendo
que foi feito “ministro” do evangelho. Um ministro é aquele que serve aos
interesses de outros e em benefício de outros; assim, o que Paulo está dizendo é
que o “mistério” lhe fora revelado por Deus a fim de que ele pudesse ensinar os
gentios, de que pudesse levar-lhes este grande beneficio. Eles estavam
“separados da comunidade de Israel, e estranhos aos concertos da promessa, não
tendo esperança, e sem Deus no mundo”; estavam nas trevas do paganismo, e a
ele fora dada esta dispensação da graça de Deus para que pudesse levar-lhes esta
grande bênção. Por isso ele foi pregar-lhes. Ele foi chamado para fazê-lo, e foi
habilitado para fazê-lo.

O apóstolo estava particularmente interessado em que os Efésios


compreendessem que todos os benefícios que agora desfrutavam como co-
herdeiros com os judeus, tinham chegado a eles por meio do evangelho que ele
pregara, e do qual era ministro. E aqui ele faz uma descrição magnífica do
ministério cristão como uma vocação divina. Presumivelmente esta é, talvez, a
primeira coisa que a Igreja Cristã precisa recuperar nos dias atuais. O fato de que
a Igreja tem tão pouco valor para o mundo moderno deve-se em grande parte à
sua incapacidade de compreender a origem e o caráter da vocação ministerial.
Toda a idéia de ministério sofreu rebaixamento. Muitas vezes ele é considerado
como uma profissão. O filho mais velho de uma família talvez vá para a
Marinha, outro para o Exercito, outro para o Parlamento; depois, o filho caçula
“entra” no ministério cristão. Outros acham que o ministro é alguém que
organiza jogos e entretenimentos agradáveis para os jovens; ou alguém que visita
os idosos e toma com eles uma

saborosa chávena de chá. Tais conceitos do ministério cristão se tomaram por


demais comuns. Contudo estes casos são caricaturas do ministério. O ministro é
um arauto das boas novas, é um pregador do evangelho. Em grande medida é
porque a verdadeira concepção da obra do ministério foi rebaixada, que o
ministério perdeu a sua autoridade e tem tão pouco valor no presente. Queira
Deus que num tempo como este os homens retomem a esta velha e
neotestamentária concepção do ministério. O mundo de hoje está precisando de
um Savonarola. Os homens e as mulheres precisam ser sacudidos para saírem da
sua letargia, da sua pecaminosidade, da sua indulgência ociosa e do
seu relaxamento. Os ministros são chamados primordialmente para ensinar aos
homens e mulheres a grande revelação de Deus sobre Si mesmo, sobre o
homem, sobre o único meio de reconciliação, sobre a qualidade da vida que a
humanidade foi destinada a viver.

Depois o apóstolo passa a expressar o seu assombro por lhe ter sido dirigido este
chamamento para o ministério. Notem o modo como ele se expressa. “A mim, o
mínimo de todos os santos, me foi dada esta graça. ” Não e falsa modéstia, nem
afetação, nem hipocrisia. Ao mesmo tempo, não é, em nenhum sentido, uma
contradição daquilo que ele diz noutro lugar sobre si mesmo, quando alega, “em
nada fui inferior aos mais excelentes apóstolos” (2 Coríntios 11:5). Como
conciliar estas afirmações? A resposta é que ele nunca deixou de admirar-se do
fato de que o pernicioso e blasfemo Saulo de Tarso fora chamado, não somente
para a vida cristã, e sim também para ser apóstolo, e de que lhe fora dado o
privilégio único de ser, de maneira muito especial, “o apóstolo aos gentios”. É
um mau dia na vida de qualquer cristão quando este se esquece da sua origem,
quando se esquece da fossa da qual foi tirado. Não significa que devemos ficar
perpetuamente olhando para trás e tomar-nos mórbidos, sempre nos lembrando
dos nossos pecados. A essência da posição cristã é que sempre devemos
compreender que é pela graça que somos salvos, que somos o que somos única
e inteiramente pela graça de Deus. Se deixarmos de agir assim, perderemos o
elemento de ação de graças e louvor em nosso testemunho cristão. O apóstolo
jamais caiu nessa condição. Jamais se esqueceu de que era o que era “pela graça
de Deus”. Ah, o privilégio disso tudo!

Mas havia outro elemento também nesta situação. Paulo era um homem que
vivia tão perto do seu Senhor que tinha vivida consciência das suas deficiências
e defeitos. Trabalhando infatigavelmente como trabalhava, não obstante estava
cônscio de quão pouco fizera e de quanto mais poderia ter feito. Ele expressa
isto em muitos lugares e de muitas maneiras, demonstrando com isso verdadeira
humildade, verdadeira modéstia. Se a pessoa não estiver sempre consciente da
honra

e dignidade de sequer ser cristão, e especialmente de pregar o evangelho, e se


não tiver consciência da sua inaptidão e insuficiência, estará numa posição muito
falsa. Quanto mais percebermos estas coisas, mais maravilhados ficaremos,
juntamente com o apóstolo, ante a graça, a bondade e a benignidade de Deus.

Ademais, o apóstolo explica aos efésios, e a nós, como tudo isso lhe aconteceu; e
mais uma vez a sua explicação é que tudo lhe veio “pela graça de Deus”. Notem
como ele fica repetindo esta palavra, “dado”: “Do qual”, diz ele no versículo 7,
“fui feito ministro, pelo dom da graça de Deus, que me foi dado segundo a
operação do seu poder. A mim, o mínimo de todos os santos, me foi dada esta
graça”. Esta é a palavra que apresenta o evangelho e a salvação — “dado. É tudo
de graça, tudo é “dado”. O apóstolo não se achava digno de coisa alguma; tudo
lhe fora dado livremente segundo o amor, a misericórdia e a compaixão de Deus.
Tomo a dizer que se não percebemos isto, é porque todo o nosso entendimento
da salvação é defeituoso.

Paulo, porém, continua e nos diz que o dom lhe foi dado de maneira particular:
foi “segundo a eficaz operação do seu poder”. Desafortuna-damente a Revised
Standard Version, tão popular hoje em dia, e tambéma Versão de Almeida,
mormente a Edição Revista e Corrigida, são fracas neste ponto. Dizem
simplesmente: “pela” ou “segundo a operação do seu poder”. Mas a palavra é
muito mais forte; e a Versão Autorizada (Authorized Version) a traduz
acertadamente: “pela eficaz operação do seu poder”. Também poderíamos
traduzi-la, “pela vigorosa operação do seu poder”. A palavra empregada veicula
essa idéia; e o apóstolo a utilizou com o fim de explicar o que é que
transformara aquele perseguidor e blasfemo inimigo de Cristo num dos
Seus principais pregadores e apóstolos. Nenhuma outra coisa pode produzir tal
mudança.

Uma das questões mais fundamentais que nos confrontam quando pregamos o
evangelho é, o que é que pode levar uma pessoa a deixar de ser um inimigo de
Deus para ser alguém que ama a Deus? O que é que pode transformar o homem
natural, para quem as coisas de Deus são “loucura”, num homem que se deleita
nelas e as desfruta e vive por elas, e cuja suprema ambição é conhecê-las mais e
mais? De acordo com o apóstolo Paulo, há somente uma resposta: é a “eficaz
operação” do poder de Deus — nenhuma outra coisa.

O apóstolo Paulo estava bem cônscio deste poder. Se tivesse sido deixado a si
mesmo, teria continuado sendo o fariseu perseguidor e blasfemo. Ele tinha
ouvido falar da pregação de Cristo, tinha ouvido a pregação de Estêvão; sabia
tudo que os cristãos pretendiam. No entanto ele odiava as “boas novas”; nada via
nelas, exceto blasfêmia. Que foi que aconteceu com este homem? Há só uma
resposta: ele tinha sido

feito um novo homem. Tinha sido regenerado, tinha nascido de novo, tinha sido
feito “uma nova criatura” — nada menos que isso! E tudo como resultado da
“eficaz operação” do poder de Deus.

É a eficaz operação do poder de Deus que faz deste ou daquele um cristão. Isto
significa renascimento, regeneração. Não é resultado da nossa decisão, não é
algo que eu e vocês podemos decidir fazer; é o que nos é feito! “A eficaz
operação do seu poder!” Paulo nunca teria sido um cristão, se não fosse este
poder. Mas mesmo após tomar-se cristão, ele teria sido ineficiente, sem este
mesmo poder. E esta operação, é este poder de Deus que não só transformou
totalmente a sua perspectiva, porém também o chamou para o ministério e lhe
deu os dons que são os requisitos para o ministério, para a compreensão da
verdade, para a capacidade de falar, para a capacidade de escrever, para a
capacidade de ensinar. Era tudo de Deus. O apóstolo trata disto detalhadamente
no capitulo subseqüente e afirma que quando Cristo ressurgiu dos mortos e
ascendeu às alturas, “deu dons aos homens”, a alguns, apóstolos, a alguns,
profetas, a alguns, evangelistas; e a alguns, pastores e mestres.

Tudo é dado por Deus. Os ministros são dados por Deus à Igreja, e todos os dons
e toda ajuda presentes na Igreja são dados por Deus. Em nós e por nós mesmos,
somos desvalidos. Ninguém pode pregar verdadeiramente o evangelho por sua
própria força e poder. Talvez se possa falar, e falar eloquentemente; mas falar
não é pregar, e não levará a nada. Sempre que há um ministério eficaz, é por
causa desta “operação”, desta “operação vigorosa” do poder de Deus mediante
o Espírito Santo. Como nos diz o apóstolo em 1 Coríntios, capítulo 2,
sua pregação “não consistiu em palavras persuasivas de sabedoria humana”. Ele
não dependia de quaisquer dons ou métodos ou artifícios humanos. Foi “em
demonstração do Espírito e de poder”. Assim, aqui ele de novo salienta que
recebeu o seu ministério e foi posto em sua posição pela “vigorosa operação” do
poder divino.

Sabemos alguma coisa sobre isto? Vocês sentiram a mão de Deus sobre vocês?
Vocês experimentam a operação de Deus em suas vidas e em suas almas? Vocês
sabem o que é receber tratamento e ser moldado e modelado? Isto está envolvido
no cristianismo verdadeiro. É tudo resultado da “vigorosa operação do seu
poder”. O apóstolo resume isto com perfeição numa grandiosa frase, no capítulo
primeiro da Epístola aos Colossenses (vers. 29). Vinha ele dizendo que
pregava “admoestando a todo o homem e ensinando a todo o homem em toda a
sabedoria; para apresentar todo o homem perfeito em Jesus Cristo”, e em
seguida acrescenta: “E para isto também trabalho, combatendo segundo a sua
eficácia, que opera em mim poderosamente”. Estou labutando, diz Paulo, estou
trabalhando, para não dizer agonizando em

meu trabalho. Sim, mas este e o resultado daquilo que Ele está fazendo em mim
e operando em mim! Estou externando o trabalho que Ele está realizando em
mim. Estou labutando, claro, porém em conformidade com esta tremenda
operação de Deus que age em mim poderosamente. Temos assim esta perfeita
fusão do divino e do humano, o poder de Deus “energizando” um homem e
capacitando-o a levar avante a sua obra no ministério.

Diz o apóstolo que deste modo ele foi preparado, equipado e chamado para
pregar entre os gentios “as insondáveis riquezas de Cristo”. Que frase! Que
profunda, que sublime afirmação! Todavia é também uma declaração que nos
prova e nos examina. Não hesito em asseverar que a prova de toda pregação está
em sua conformidade com esta definição da mensagem, e com este padrão. A
função de todo aquele que alega ter sido chamado para ser ministro do
evangelho é pregar “as insondáveis riquezas de Cristo”.

Examinemos esta obra e vocação do ministro, primeiro negativamente. Ele não


deve pregar simplesmente sobre eventos comuns. Há os que nos criticam por
gastarmos tempo domingo após domingo examinando Efésios, capítulo 3, por
causa da situação do mundo e de muitos e graves problemas internacionais,
políticos, industriais e econômicos. Acham que, para ser relevante, a pregação
deve abordar diretamente essas questões. Mas, será essa a tarefa do ministro
cristão? Será sua função expressar sua idéia sobre o que o governo devia ter feito
na semana, ou sobre o que não devia? Será que a missão da Igreja é
viver mandando resoluções aos governos e aos estadistas, e proferindo
seus minuciosos conselhos sobre muitas questões especificas? Minha resposta é
que eu não tenho a pretensão de conhecer mais a situação internacional do que
qualquer outro membro da Igreja. Não tenho diante de mim todos os fatos; assim
expressar eu a minha opinião seria uma impertinência. Tenho minhas idéias,
como todos nós temos, porém não estou em condições de levantar-me e dirigir-
me a um grupo de cristãos dando minha opinião quanto ao fato de o governo
agir acertada ou erradamente. Essa, reitero, não é a ocupação primordial
do ministro cristão. E tenho a impressão de que, devido muitas vezes a Igreja ter
feito esse tipo de coisa, não só ela é o que é hoje, mas também, o mundo é o que
é. Há evidências muito fortes que dão a entender que foi a ação da “Igreja”, e
particularmente de certas pessoas da Igreja, na década de 1930, que levou
diretamente à guerra de 1939 a 1945.

A Hitler e a outros da Alemanha foi dada a impressão de que o seu país se


tomara completamente pacifista e a preço nenhum se envolveria noutra guerra. É
perigoso para os ministros, quer ocupem posição

elevada na Igreja quer não, exprimir as suas opiniões sobre esses assuntos. O
ministro cristão é chamado para pregar “as insondáveis riquezas de Cristo”.

Por outro lado, não é função da Igreja Cristã pregar patriotismo. Ela o tem feito
numerosas vezes. Muitas vezes a Igreja não tem passado de agência de
recrutamento , de posto de recrutamento em tempos de guerra. Isso é uma
falsificação do ministério cristão. O mundo estava envolto em grande
dificuldade quando Paulo escreveu estas coisas; e o mundo sempre esteve em
dificuldade; mas a ocupação e tarefa peculiar à Igreja Cristã e a seus ministros é
fazer o que o apóstolo diz aqui. Muitíssimas vezes os ministros cristãos não têm
sido senão uma espécie de Capelão da Corte, declarando vagas generalidades.

Tampouco é tarefa da pregação simplesmente apregoar e inculcar moralidade


pública geral ou alguma ética geral. Tem havido muito disso nos últimos cem
anos, e o ministério foi se tomando cada vez menos profético. O cristianismo foi
ficando cada vez mais diluído e, conseqüentemente, cada vez menos eficiente. A
missão da Igreja não consiste em produzir “pequenos cavalheiros perfeitos”. O
mundo pode pregar moralidade e ética, e o tem feito de várias maneiras. Os
filósofos podem fazê-lo, e o têm feito. Os judeus do primeiro século A.
D. ensinavam moralidade; e os filósofos pagãos pregavam moralidade antes de
Paulo ter sido chamado para o ministério. No entanto Paulo foi chamado para
pregar “as insondáveis riquezas de Cristo”.
Além disso tudo, a tarefa do pregador não é pregar religião. Nem mesmo
religião! Nem mesmo a vida piedosa em geral! O judaísmo estivera pregando a
importância da religião e a importância vital da vida piedosa. Permitam-me ir
mais adiante. Nem mesmo constitui a tarefa primordial do pregador do
evangelho dizer ao povo que ore, que se amolde a determinados padrões e que
exercite a disciplina pessoal. O maometanismo faz isso, e na verdade o faz com
muita eficiência. Ele prega uma disciplina austera. Prega um culto a Deus.
Contudo isso não é crisdanismo. Em certo sentido, vocês podem viver
piedosamente sem o cristianismo. É uma piedade falsa, bem sei, porém é um tipo
de piedade. Igualmente vocês podem ter religião, e ser muito zelosos nela. Mas
não é isso que Paulo fora chamado para pregar. Ele estivera fazendo isso tudo
como fariseu.

Vou dar mais um passo; tampouco constitui a função primária dos ministros
cristãos ensinar e pregar a doutrina de Cristo relacionada com certas questões
específicas. Há homens que parecem reduzir “as insondáveis riquezas de Cristo”
a nada mais que pacifismo. Pregam-no todos os domingos: a guerra é o pecado
absoluto e, se tão-somente nos portássemos com boas maneiras para com as
outras pessoas, e nos

negássemos a brigar por qualquer coisa, seriamos muito mais felizes. Para eles
esse é o supra-sumo do cristianismo. Todas estas coisas ficam desesperadamente
abaixo desta grande e prodigiosa definição do evangelho dada aqui pelo
apóstolo. Pensem em todos os pomposos pronunciamentos feitos por ministros
da Igreja domingo após domingo sobre a situação internacional. Onde entram
“as insondáveis riquezas de Cristo”? Pensem nos apelos ético-morais, e nos
apelos feitos em nome do país, sistematicamente repetidos. Onde Cristo e as
Suas insondáveis riquezas entram nisso tudo? Isso é uma máscara do evangelho;
é um desperdício de tempo. É uma negação do dever e da tarefa de que fomos
incumbidos.

Então, que é que Paulo prega? Que devemos pregar? Primária e essencialmente,
o Senhor Jesus Cristo. As riquezas são “as insondáveis riquezas de Cristo"! A
essência do evangelho é Cristo e o que Ele nos dá. Não o que fazemos, não o que
Ele pede que façamos. Isso vem mais tarde. O claro princípio e essência do
evangelho é o que Ele nos dá, o que recebemos dEle. Paulo vibra de emoção
simplesmente ao pensar nisso. Diz ele, noutras palavras: foi-me dado este grande
privilégio de chegar até vocês, e eu lhes dei as boas novas, as maravilhosas
e emocionantes novas concernentes às riquezas de Cristo — o que Ele lhes deu,
o que pode dar-lhes e o que lhes dará — “as insondáveis riquezas de Cristo”. A
primeira mensagem é, pois, sobre o dom de Deus, antes de qualquer
chamamento para fazermos alguma coisa.

A seguir devemos tentar analisar este evangelho — “tentar”, porque a própria


tentativa é quase ridícula. Em última instância, não podemos analisá-lo, mas,
visto que temos a tendência de apenas repetir estas frases sonoras sem considerar
o que significam, devemos ao menos aventurar-nos a fazer esse trabalho.
Felizmente o próprio apóstolo faz a análise das “boas novas” no restante do
capítulo.

A primeira coisa que devemos acentuar é que o evangelho é o próprio Cristo.


“As insondáveis riquezas de Cristo.” Primeiro, não as insondáveis riquezas que
Ele nos deu, porém Cristo mesmo como as insondáveis riquezas. Naturalmente
isto inclui o que já consideramos sob o termo “mistério” — “o mistério de
Cristo”. As “riquezas” estão nEle graças ao mistério da Sua encarnação,
assumindo a natureza humana e Se tomando verdadeiramente homem. A
mensagem do cristianismo e o próprio Cristo. Como muitas vezes tem sido
assinalado, “o cristianismo é Cristo”. Tudo está nEle, e não há nada fora
dEle. Deus entesourou todas as Suas riquezas em Seu Filho; e tudo que vem a
mim e a vocês na vida cristã, vem-nos diretamente dEle. Sem contato com Ele,
não teríamos nada. “Sem mim”, disse Ele, “nada podeis

fazer.” João, no capítulo primeiro do seu Evangelho, diz: “E todos nós


recebemos também da sua plenitude, e graça por graça”!

(versículo 16) — “da sua plenitude”! Estamos unidos a Ele e dEle fluímos; Ele é
o manancial. Assim, pois, a mensagem do evangelho é o próprio Cristo; o que
Ele nos dá, apesar da sua imensa importância, vem em segundo lugar.

Em seguida, vejam a segunda palavra de Paulo, a palavra insondá-veis. Se tão-


somente pudéssemos enxergar o que há em Cristo! Mas é insondável,
inescrutável. Isto nos faz lembrar a nossa definição da palavra mistério. É um
mistério, porém foi revelado. Graças a Deus que é assim, pois, doutro modo,
nada saberíamos a respeito. Segue-se que não há quem possa achar e apossar-se
dessas riquezas por sua iniciativa e poder. Muita gente tentou fazê-lo. Muita
gente abordou o cristianismo filosoficamente e tentou compreendê-lo de fora.
Fariam bem em desistir logo no começo, pois nunca se poderá fazer isso. As
riquezas são inescrutáveis, são insondáveis; por si mesmo o homem é incapaz de
consegui-las.

Alem disso, porem, as riquezas que há em Cristo são insondáveis no sentido de


que nenhum homem, mesmo sendo cristão, pode compreendê-las plenamente. À
medida que Paulo prosseguia na vida cristã, foi ficando cada vez mais
maravilhado ante essas riquezas. Talvez ele pensasse, às vezes, que já tinha
estado em todos os compartimentos deste grande tesouro, mas então encontrava
outro. Há sempre outro compartimento mais para o fundo, e mais outro, e mais
outro. Passaremos a nossa eternidade descobrindo novos aspectos e facetas
das insondáveis riquezas de Cristo. Insondáveis, inescrutáveis!

Outro significado da expressão é que as riquezas jamais poderão ser descritas


plenamente. Daí Paulo se vê obrigado a juntar superlativo a superlativo — falta-
lhe a linguagem. As “insondáveis riquezas”, “as abundantes riquezas” da Sua
graça, diz ele. Uma e outra vez ele fala de superabundância, e afirma que Deus
“é poderoso para fazer tudo muito mais abundantemente alem daquilo que
pedimos ou pensamos” (3:20). São estas as suas expressões e elas significam que
as riquezas não podem ser descritas porque são extremamente gloriosas e
infindáveis. O subseqüente sentido do termo é que as riquezas de Cristo
são inesgotáveis; jamais faltarão. Conquanto os homens e as mulheres venham
extraindo delas durante séculos, continuam existindo riquezas ali como se ainda
fosse o começo. Jamais será possível reduzi-las. Elas são “um mar sem maré
vazante”, como no-lo recorda um dos nossos hinos. As insondáveis riquezas de
Cristo! Quanto sabemos delas? A expressão nos emociona? Significa algo de
real e concreto para você?

Que são estas insondáveis riquezas de Cristo? Embora seja impos-

sível descrevê-las, devemos tentar mencionar algumas delas. Que há em Cristo


para qualquer de nós neste momento? Vejamo-lo da seguinte maneira: sou pobre,
estou de mãos vazias, sou um mendigo; de que preciso? Cristo tem tudo de que
preciso. Quais as coisas de que tenho maior necessidade? A resposta acha-se
numa expressão de Paulo, na Primeira Epístola aos Coríntios, onde ele diz: “...o
qual para nós foi feito por Deus sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção”
(1:30). São estas as riquezas, as “insondáveis riquezas”.

A primeira coisa de que necessitamos é “sabedoria”, isto é, conhecimento e


entendimento. Aqui estamos nós, neste grande mundo, perplexos ante os seus
problemas e possibilidades. As primeiras questões a serem respondidas são: que
dizer de tudo isso? Por que o homem é como é? Existe um Deus? Por que Deus
não faz alguma coisa com relação a isso tudo? Como podemos conhecer a Deus?
Com o mundo ruindo ao nosso redor, não haveria nenhum lugar seguro
e estável? Essa é a nossa primária e fundamental necessidade. E aí está por que
não prego diretamente sobre a situação internacional. Eu não poderia ajudar
vocês, se fizesse isso. Mas esta é a maneira cristã de ajudá-los. Se eu e vocês
conhecemos a Deus, muito bem, então o que lemos no Salmo 112 é verdade
quanto a nós: “Não temerá maus rumores: o seu coração está firme, confiando no
Senhor” (versículo 7). E como poderemos chegar a este conhecimento e a esta
sabedoria? Notem a resposta do apóstolo: “em Cristo.” (Ele) para nós foi feito
por Deus sabedoria

O Senhor Jesus Cristo me ensina sobre Deus, porém isso me faz cônscio da
minha pecaminosidade. Sinto-me incapaz de ousar aproximar-me de tal Deus.
Estou em agonia, estou em crise, porquanto posso morrer a qualquer momento e
ter que me apresentar a Deus. Como pode um pecador apresentar-se a Deus?
“Como se justificaria o homem para com Deus?” (Jó 9:2). Cristo foi feito
“justiça” para nós. Embora vocês tenham vivido uma vida de pecado ate este
momento, se crerem no Senhor Jesus Cristo os seus pecados serão perdoados,
vocês serão revestidos da justiça de Jesus Cristo neste exato momento e
poderão estar na presença de Deus. A justiça faz parte das “insondáveis
riquezas de Cristo”.

Mas não termina aí; devo prosseguir. Como poderei continuar com Deus?
Embora saiba que estou perdoado, e que me foi dada a justiça de Cristo, sei que
o pecado continua em mim, e sei que o diabo continua sendo meu inimigo.
Como poderei permanecer firme na luta contra o pecado e o mal? Paulo
responde: Cristo foi feito para nós, não somente sabedoria e justiça, e sim
também santificação. Seja quando for que venhamos a morrer, podemos estar
certos disto, que em Cristo

compareçaremos perante Deus “irrepreensíveis e inculpáveis” (Colossenses


1:22). Ele é a nossa santificação, e Ele nos ajuda a desenvolvê-la em nossa vida
diária pondo em nós o Seu Espírito Santo.

Cristo é também a nossa redenção, o que significa que Ele ressuscitará o meu
corpo e o glorificará e o transformará. A redenção é completa e total; nada estará
faltando em meu corpo, mente e espírito. Em sua pobreza, em sua necessidade,
vocês se defrontarão com “as insondáveis riquezas de Cristo”. Ele é tudo de que
vocês necessitam.

Redimido, curado, restaurado, perdoado, quem como tu louvor irá cantar-Lhe ?

Ou vejam-no assim: de que realmente necessitamos, qual é a nossa maior


necessidade? A nossa maior necessidade é a vida. Na maioria, as pessoas hoje
apenas existem; mas não têm vida. Quando os seus prazeres lhes são vedados,
quando por causa da guerra os cinemas, os teatros, as casas de diversão e os
salões de dança têm que ficar fechados, elas não têm nada. Elas não têm vida;
apenas existem, e dependem de coisas externas; carecem de vida. Contudo, onde
achar vida? Cristo de novo foi quem disse: “eu vim para que tenham vida, e a
tenham em abundância” (João 10:10). Vida significa vida espiritual; vida
significa ter relação com Deus e fruir Sua comunhão; e Cristo, Senhor nosso,
a tem em toda a sua plenitude. Diz Ele: “aquele que vem a mim não terá fome; e
quem crê em mim nunca terá sede” (João 6:35). “A água que eu lhe der”, disse
Jesus à mulher samaritana, “se fará nele uma fonte de água que salte para a vida
eterna”. Ainda que o mundo tire tudo de vocês, ainda que vocês venham a ficar
nus e privados de todas as coisas, esta vida procedente de Cristo continuará a
jorrar em vocês, etemamen-te.

O apóstolo desenvolve mais este ponto no final deste capitulo três, mas devo
acentuar de novo que Cristo mesmo é as riquezas, e é quando eu O conheço e O
tenho, que sou participante das riquezas. O apóstolo teve um conhecimento
pessoal do Senhor Jesus Cristo, e esse é o maior tesouro do mundo. Muitas vezes
dizemos, e é verdade, que a maior bênção que podemos ter neste mundo é ter um
bom marido ou mulher ou amigo. Dizemos que isso é uma possessão
inapreciável. Entretanto no evangelho nos é oferecido este conhecimento de
Cristo e este companheirismo com Ele. Escrevendo aos filipenses, diz o
apóstolo: “Para mim o viver é Cristo” (Filipenses 1:21). É vida para ele
— conhecer a Cristo. Depois ele prossegue, dizendo que a sua maior ambição é
“conhecê-lo”. Não quer dizer simplesmente conhecer algo acerca dEle; quer
dizer conhecê-lO, para poder andar e falar com Ele,

e ouvi-lO. Assim vivia o apóstolo Paulo. Ele vivia neste estado de comunhão
com Cristo. Cristo estava mais perto dele e lhe era mais precioso e mais real do
que qualquer coisa no mundo. Ele já desfrutava isto e disto queria mais e mais.

Ele ora pelos outros: “que Cristo habite pela fé nos vossos corações” (3:17).
OSenhorvem ao coraçãoenele habita. Elemesmodiz: “Eis que estou à porta, e
bato; se alguém ouvir a minha voz, e abrir a porta, entrarei em sua casa, e com
ele cearei, e ele comigo” (Apocalipse 3:20). Todas as riquezas e todos os
tesouros de Deus estão em Cristo, e Ele entra na vida e no coração, e ali habita
— “Cristo em vós, a esperança da glória” (Colossenses 1:27). O apóstolo
prossegue e ora por estes efésios, no sentido de que sejam “fortalecidos com
poder pelo seu Espírito no homem interior; para que Cristo habite pela fé nos
vossos corações”. E o objetivo disto é que venham a compreender “a largura, e o
comprimento, e a altura, e a profundidade, e conhecer o amor de Cristo, que
excede todo o entendimento”. Nada no mundo é comparável a isto — ser amado
por Cristo, senti-lo e experimentá-lo. Que são as riquezas do universo inteiro, em
comparação com isto? Ser amado pelo Filho de Deus! “As insondáveis riquezas
de Cristo.”

Ainda assim, além da dádiva de Si mesmo, Cristo também nos dá o Seu Espírito
Santo. “Eu, na verdade, vos batizo com água”, disse João Batista; “ele vos
batizará com o Espírito Santo, e com fogo” (Mateus 3:11). Recebemos o dom da
habitação do Espírito Santo, residente em nós; e, ademais, o Seu poder de ativar-
nos e habilitar-nos para “operar a nossa salvação” (Filipenses 2:12) e para
sermos testemunhas disto para os outros.

Mas há também certas riquezas particulares que resultam disto. A primeira que
Cristo nos dá é descanso: “Vinde a mim, todos os que estais cansados e
oprimidos, e eu vos aliviarei” (Mateus 11:28). Vocês têm experiência disto? Ele
o pode dar-lhes copiosamente. Depois é a paz. Isto é o que Ele diz: “Deixo-vos a
paz, a minha paz vos dou; não vo-la dou como o mundo a dá. Não se turbe o
vosso coração, nem se atemorize” (João 14:27). Não posso ajudar nenhuma alma
necessitada e atribulada pregando sobre a situação internacional, mas eis a
mensagem de Cristo para vocês: “Paz vos dou”, não importa o que lhes
esteja acontecendo. Os jovens podem ser convocados para a luta, não
sei; calamidades podem sobrevir, não sei; porém sei que o de que necessitamos é
paz interior. Aconteça o que acontecer no mundo exterior, Ele nos dá Sua paz.
“Não estejais inquietos por coisa alguma”, diz Paulo; isto é, “Em nada vos
oprimais com ansiosa preocupação”; aconteça o que acontecer com o seu
marido, ou com os seus filhos, não se inquiete. “Antes as vossas petições sejam
em tudo conhecidas diante de Deus

pela oração e súplicas, com ação de graças.” E logo a seguir: “a paz de Deus,
que excede todo o entendimento, guardará os vossos corações e os vossos
sentimentos em Cristo Jesus” (Filipenses 4:6-7). Tudo isso está incluído nas
riquezas “insondáveis”.

Pensem então na alegria. “Até agora”, diz o Senhor, “nada pedistes em meu
nome; pedi, e recebereis, para que o vosso gozo se cumpra. "Isso foi dito no
contexto, “no mundo tereis aflições, mas tende bom ânimo, eu venci o mundo”
(João 16:24, 33). Acaso vocês precisam de sabedoria? “Se algum de vós tem
falta de sabedoria, peça-a a Deus, que a todos dá liberalmente, e o não lança em
rosto, e ser-lhe-á dada”, diz Tiago em sua Epístola (1:5). O Senhor nos oferece
direção, entendimento, sabedoria e discernimento. Isto leva a uma das coisas
mais maravilhosas, a saber, a capacidade de estarmos contentes com o quinhão
que nos toca, haja o que houver. Paulo diz aos filipenses: “já aprendi a contentar-
me com o que tenho. Sei estar abatido, e sei também ter abundância... Posso
todas as coisas naquele que me fortalece” (4:11-13). Que maneira de enfrentar o
futuro, por mais trevoso e problemático que seja! Seja o que for que aconteça,
podemos encará-lo com serenidade e firmeza. “Posso todas as coisas naquele
que me fortalece.”

O Senhor também pode transfigurar a morte. “Para mim o viver é Cristo, e o


morrer é ganho”, diz o apóstolo aos filipenses (1:21). Ah, “as riquezas da Sua
graça”! A bem-aventurada esperança que Ele nos oferece por sermos filhos de
Deus, e “se nós somos filhos, somos logo herdeiros também, herdeiros de Deus e
co-herdeiros de Cristo” (Romanos 8:17), capacita-nos a sorrir mesmo em face da
morte. Embora se usem bombas atômicas e de hidrogênio, e o nosso mundo seja
reduzido a nada, resta para nós “uma herança incorruptível, incontaminável,
e que se não pode murchar” (1 Pedro 1:3-5).

Mal comecei a falar-lhes das riquezas, mas estas são algumas das coisas que se
acham na casa do tesouro da graça de Deus. Vocês estão usufruindo estas
riquezas, “as insondáveis riquezas de Cristo”? Vocês são infelizes? Estão
abatidos? Sentem-se despojados de tudo? Deus tenha misericórdia de vocês!
Com todos estes tesouros dados gratuitamente, não temos direito de passar
necessidade; e somos uma desonra para Cristo, se estamos nessa condição. Vocês
usufruem a Cristo? Ele está à porta e bate. Esse texto não é para os incrédulos; é
para os convertidos. É mensagem para a igreja em Laodicéia (Apocalipse 3:20).
Ele está à porta, e bate; Ele quer entrar e enchê-los de paz, de alegria e de tudo
quanto vocês necessitam. Deixem-nO entrar! Contemplamos estas riquezas?
Demoramo-nos nelas? Nós as estamos recebendo cada vez mais? Seu desejo por
elas vai ficando cada vez
maior, cada vez maior? Vocês vivem por essas coisas? Como vocês vão passar o
restante deste dia? Será em termos das “insondáveis riquezas de Cristo”, ou
vocês vão cair de novo nos jornais ou na leitura de um romance ou no rádio ou
na televisão? Em Cristo é que são abundantes as riquezas. Não permita Deus que
sejamos como os crentes em Laodicéia, que achavam que tinham tudo e que
estavam ricos! A mensagem do Filho de Deus aos que pensam assim é: “Como
dizes: rico sou, e estou enriquecido...” Se alguém tende a dizer, sou convertido,
não sou como esses incrédulos; sou fundamentalista, e não modernista; comigo
está “tudo bem”, e posso sentar-me e relaxar; se pensa assim e acredita que não
precisa de nada, a verdade a respeito dele é: “Não sabes que és um desgraçado, e
miserável, e pobre, e cego, e nu”. Acaso vocês estão em dúvida sobre si mesmos
e sobre o que têm? Se é assim, esta é a palavra do Senhor para vocês:
“Aconselho-te que de mim compres ouro provado no fogo, para que te
enriqueças; e vestidos brancos, para que te vistas, e não apareça a vergonha da
tua nudez; e que unjas os teus olhos com colírio, para que vejas” (Apocalipse
3:18). Dessa maneira Ele oferece a todos os que nEle crêem as suas “insondáveis
riquezas”.

Não permita Deus que nenhum de nós viva como mendigo! Não permite Deus
que qualquer de nós esteja em penúria, em necessidade e carência, em angústia,
em condição alarmante e insegura! O mundo hoje nos oferece uma oportunidade
única de falar aos homens e às mulheres das “insondáveis riquezas de Cristo”.
Estamos sendo vigiados, estamos sendo observados; e muitos, em sua ruína
espiritual, ficam a indagar se, afinal de contas, a resposta está em Cristo. O
mundo O julga pelo que vê em nós. Se dermos a impressão de que, afinal,
ser cristão não ajuda muito quando há uma crise, não ouvirão a nossa mensagem
e não olharão para Ele. Mas se vêem que somos inteiramente diferentes deles, e
capazes de manter calma, equilíbrio, paz, estabilidade, e até alegria em meio aos
furacões da vida, sob Deus isso poderá ser o meio para abrir os seus olhos e
levá-los ao arrependimento, trazendo-os ao Senhor Jesus Cristo e às Suas
“insondáveis riquezas”.
“A MULTIFORME SABEDORIA DE DEUS”

“E demonstrar a todos qual seja a dispensação do mistério, que desde os


séculos esteve oculto em Deus, que tudo criou; para que agora, pela igreja, a
multiforme sabedoria de Deus seja conhecida dos principados e potestades nos
céus, segundo o eterno propósito que fez em Cristo Jesus nosso Senhor. ”
Efésios 3:9-11

Com estas palavras, como a palavra E indica, o apóstolo dá continuidade ao


tema sobre a tarefa do ministério cristão, de tomar conhecida a mensagem do
evangelho. Até aqui ele esteve tratando dos benefícios pessoais particulares,
individuais, que todos nós podemos auferir se cremos no Senhor Jesus Cristo e
em Seu evangelho. Mas a mensagem não pára nesse ponto. Paulo continua: “E
demonstrar a todos qual seja a dispensação do mistério, que desde os séculos
esteve oculto em Deus, que tudo criou”. Noutras palavras, a mensagem cristã e a
salvação cristã não são unicamente pessoais. O evangelho é pessoal, e sempre
começa com o pessoal; porém vai além do pessoal e do individual, abrangendo
algo maior e mais amplo. Este amplo propósito é alcançado, como veremos, por
meio do pessoal; todavia é importante para nós que compreendamos que o
evangelho de Jesus Cristo, além e acima do que nos dá a título de salvação
pessoal, tem também um âmbito maior, um escopo mais amplo. Para isto o
apóstolo chama a atenção dos efésios nestes três versículos.

O evangelho sempre tem que ser pregado num mundo de problemas e


sofrimentos, de guerras e derramamento de sangue, mundo em que as pessoas
vivem perplexas e levantando questões. A questão mais comum que o mundo
apresenta à Igreja é: que é que o cristianismo tem para dizer sobre a situação
mundial? Que é que o cristianismo tem para dizer acerca de todos os problemas
que confrontam a humanidade de maneira tão aguda na época atual? O
cristianismo oferece alguma esperança? Tem ele alguma luz para dar-nos na
situação, na angustiosa situação em que nos encontramos? Estas questões são
perfeitamente legítimas e justas; na verdade, devemos incentivar as pessoas a
fazê-las

mais e mais, pois nestes três versículos temos a inspirada resposta do


apóstolo precisamente a estas questões. Nada é mais relevante para
a situação da hora presente do que a declaração que temos diante de nós. De
fato não há questão que possa ocorrer a qualquer homem, que não seja
respondida de maneira completa e final nalgum lugar das Escrituras
Sagradas. Assim, que é que o cristianismo tem para dizer a respeito do
mundo? Há alguma esperança de paz duradoura? Poderá esta mensagem,
de um modo ou de outro, estabelecer a concórdia e a amizade entre as
nações e entre os homens, que os homens do mundo inteiro dizem esperar e
desejar? Em resposta só temos que mostrar e expor o que o apóstolo diz
nestes três versículos. Ao faze-lo, lembremo-nos de que isto não é uma
opinião do apóstolo Paulo, mas lhe foi “dado”, foi-lhe “revelado”. Não é sua
filosofia pessoal, no entanto é o que o Senhor Jesus Cristo lhe comunicou.
Noutras palavras, vamos considerar a resposta de Deus às questões e
problemas que afligem a humanidade no presente.

A primeira coisa que o apóstolo diz é que há muita obscuridade com


respeito a todo este assunto. Diz ele: “E demonstrar a todos qual seja a
dispensação do mistério”. A palavra ver (que aparece na
Versão Autorizada), devo assinalar, não traduz adequadamente a palavra
que o apóstolo empregou e que significa “iluminar”, “infundir luz”,
“derramar luz sobre” (Almeida: “demonstrar”). Uma parte da sua
vocação, diz ele, é iluminar as mentes dos homens com relação a este
problema

— sendo a implicação, como já disse, que há grande escuridão nas mentes


dos homens quanto a isso tudo.

Se os homens e as mulheres fossem sinceros, estariam prontos a confessar a


sua ignorância. Para vocês estaria claro o que está acontecendo no mundo?
A situação atual enquadra-se em sua filosofia e em suas idéias quanto à
vida, à história e ao homem? Quando leio periódicos, livros e jornais,
parece-me haver densas trevas e terrível confusão. Naturalmente há muitas
teorias que ainda estão sendo propostas, como sempre o foram, teorias que
tentam explicar o curso da história e o que está acontecendo no mundo. Há
alguns que dizem

— e talvez esta seja a teoria mais popular no momento, porque por


trás está o nome do professor Arnold Toynbee — que todo o processo
da história é, num sentido, mera questão de ciclos. Um grande poder
se levanta, mas o próprio fato de que se levanta significa que ele
estimula aqueles que ele tende a manter por baixo e a oprimir, a se
levantarem contra ele. Não só isso, mas, visto que chegou a uma posição
de supremacia, ele tende a afrouxar os seus esforços, de modo que há
uma espécie de semente de decadência em sua grandeza e em sua glória.

Assim, como a sua tendência é decair, outros poderes, estimulados pelo


declínio daquele, tendem a elevar-se; e vem o tempo em que aquele grande
poder é sobrepujado por estes outros poderes. Aquele cai, estes se
levantam;porém estes, por sua vez, ao levantar-se, acabam provocando
outros a levantar-se contra eles, e assim se repete todo o processo. Essa, diz
Toynbee, é a explicação da história — levantamento e queda; não há
nenhum progresso real; os homens simplesmente ficam girando e girando
em círculos. Se olharmos para a história superficialmente, parecerá haver
muita coisa em favor dessa idéia. Muitos grandes impérios, nações e reinos
se levantaram, cresceram, tomaram-se poderosos, e depois se
enfraqueceram; e o mundo ainda parece ser muito parecido com o que já
foi.

Outro grande historiador, o finado sr. H. A. L. Fisher, dizia com toda a


honestidade e franqueza que, depois de passar a vida toda estudando a
história, chegara à conclusão solene e simples de que não se
encontra nenhum propósito na história. Nela, diz ele, parece que não há
finalidade ou propósito, não há nela objetivo de nenhuma espécie.
Muitos concordam de todo o coração com o seu profundo pessimismo
quanto à vida e à história. As coisas simplesmente acontecem, e ninguém
sabe por que ou por qual razão.

Outro grupo, não tão propalado como outrora, consiste dos otimistas e
humanistas, assim chamados. Eram pessoas que falavam aos brados e
vociferavam no fim da era vitoriana e no período de Eduardo VII. Um dos
sinais mais seguros do entendimento cristão é o que vemos através da
loucura total do vitorianismo e do eduardianismo, com o seu otimismo
completamente falso. Eles criam que o mundo ia adiantar-se, desenvolver-se
e progredir inevitavelmente. Com Tennyson eles entoavam cânticos sobre a
vinda do “Parlamento do homem” e da “Federação do mundo”. Esperava-
se que o século vinte seria maravilhoso, como resultado do conhecimento
secular, especialmente do conhecimento cientifico, da educação e da cultura.
Quanto à Bíblia, eles se apegavam ao ensino ético, moral do Senhor Jesus no
Sermão do Monte. Mas, naturalmente, eles eram inteligentes demais, eram
demasiado científicos, para acreditarem em milagres e no sobrenatural. Se
ensinássemos a todos a “ética de Jesus”, todos os homens se abraçariam
e seriam amigos uns dos outros, e nunca mais haveria guerra. Não ouvimos
falar muito disso agora, e certamente não é de admirar. Havendo nós
experimentado os horrores das duas guerras mundiais, e à luz do que está
acontecendo no mundo nos dias atuais, há pouca evidência que sugira
termos chegado à idade de ouro em que os homens, tendo conseguido a
sanidade pela educação, transformam as suas espadas em arados. As
evidências apontam para uma conclusão

quase oposta. O louco e insulso otimismo dos períodos vitoriano e


eduardiano, que se prolongaram até 1914, e que alguns tentaram
fazer reviver mesmo depois de 1918, apresenta um aspecto deveras
patético hoje.

O fato é, digo eu, que a humanidade está realmente às escuras sobre a


situação mundial em geral. A despeito de todo o pensar dos
maiores pensadores, e de todas as tentativas de elaboração de um plano
ou esquema quanto à história, e de oferecer uma esperança quanto
ao futuro, não há nada senão trevas. Na verdade, intelectualmente
falando, a presente situação é precisamente aquela que foi descrita
repetidamente pelo escritor do livro de Eclesiastes: “Vaidade de vaidades! é
tudo vaidade”. Ou, como Paulo descreve a situação dos gentios, no
capítulo 2 de Efésios: “Sem esperança”. Esta é a situação do mundo na
hora presente. Densas trevas!

As grandes novas do evangelho, diz Paulo, consistem em que, apesar das


trevas, a luz está disponível, porém unicamente no evangelho. Ele foi
chamado, não somente para pregar “as insondáveis riquezas de Cristo”
num sentido pessoal, e sim para fazer que todos os homens pudessem ver.
Sua missão era esclarecer, iluminar, lançar luz sobre a situação mundial. Há
luz! Esta é a reivindicação da Bíblia em geral e do evangelho em particular.
Diz-nos o apóstolo que lhe fora dado este grande e elevado privilégio de
manter esta luz perante os gentios, perante todos os homens, para propiciar-
lhes entendimento e discernimento do que estava acontecendo e do que ia
acontecer no mundo deles. Esta era a reivindicação do próprio Senhor Jesus
Cristo. Disse Ele: “Eu sou a luz do mundo”, e proferiu as palavras de
tal maneira que significam, “Eu, e somente eu, sou a luz do mundo”.
Vocês jamais obterão esta luz dos seus estadistas, nem dos seus filósofos,
nem dos seus sociólogos, nem dos seus humanistas,nem dos seus
hedonistas. Não há luz em parte alguma, exceto aqui, no Senhor Jesus
Cristo. Ai está por que a Igrej a Cristã ocupa nesta hora uma posição tão
importante e singular. Ela e a única corporação que tem uma mensagem
capaz de oferecer luz às pessoas; ela é chamada para iluminar.

Eis a luz que o apóstolo recebera para dar a todos os homens: “Fazer que
todos os homens vejam qual é a comunhão do mistério” (AV). “Comunhão”
é uma tradução infeliz; realmente significa “plano” do mistério, ou
“administração” do mistério, ou “mordomia” (ou “dispensação”, Almeida)
do mistério, ou “concretização” do mistério. Este é o plano de Deus para as
eras. Paulo repete a afirmação no versículo 11: “Segundo o eterno
propósito”, o propósito das eras, “que fez em Cristo” — o qual já começara
a pôr em execução — “em Cristo Jesus nosso Senhor”.

Como uma parte da fé cristã, isto é absolutamente fundamental. Deus tem


um plano, um propósito, um grande esquema para a totalidade da vida
neste mundo, e para o homem. A Bíblia é a grande revelação desse plano e
propósito. Hã tolos e ignorantes que afirmam que a Bíblia é abstrata, e que
eles querem algo prático. Assim, vão em busca do seu jornal ou de algum
outro meio de informação. Voltam-se para os historiadores e filósofos. Acaso
encontram o que procuram? Se querem algo prático, devem ir à Bíblia. O
tema geral deste Livro, a sua grande e única mensagem, é dar aos homens
entendimento da vida neste mundo — o que há quanto a ela e o que vai ser
dela. Portanto, isto vem a ser um teste muito bom, para ver se somos
cristãos de verdade. Porventura conhecemos o plano de Deus para este
mundo? Isso faz parte do conhecimento cristão. Os cristãos devem ter uma
compreensão única da situação do mundo neste momento; se não a têm, são
muito pobres, e são cristãos muito ignorantes. Demoramos demais
nas bênçãos pessoais, e passamos nosso tempo tomando nosso
pulso espiritual e nos mimando espiritualmente. Contudo, se
queremos ajudar outros, devemos ir além. Precisamos ter uma compreensão
do plano de Deus para o cosmos em geral, se é que desejamos tirar
estas densas trevas das mentes das pessoas na hora presente.

A segunda coisa que o apóstolo diz é que este plano estava na mente de Deus
antes do início do tempo. Ele escreve: “E demonstrar a todos qual seja a
dispensação do mistério, que desde os séculos “ — ou “desde o princípio das
eras” — “esteve oculto em Deus”. Deus o manteve oculto até quando Cristo
veio e começou a revelá-lo; até então, através dos séculos e das eras, esteve
oculto na mente de Deus. Entretanto estava lá! Esta é a grande verdade que
precisamos captar. Graças a Deus por isso! A história não saiu das mãos de
Deus. A primeira coisa necessária a ser compreendida é que Deus não
depende do fluxo do tempo. Ele não está sujeito às mudanças da política das
nações, às mentiras e à desonestidade. Está inteiramente acima disso tudo.
Ele habita na eternidade. Ele olha sobranceiramente o tempo e o
mundo, mas não lhes está sujeito. Seguramente, o fato mais consolador que
se pode descobrir num tempo como este é que o plano de Deus foi projetado
perfeito e completo antes de criar-se o mundo, antes de iniciar-se o processo
do tempo. Ele subsiste independentemente de tudo quanto acontece; e é
indubitavelmente certo. Nada é contingente no que se refere ao plano de
Deus. Deus nunca teve que improvisá-lo ou que modificá-lo por causa de
algo que alguém mais tenha feito. É plano existente desde antes do início das
eras, desde antes de haver sido criado o próprio tempo. É um propósito
eterno. Se, à luz dessa verdade,

vocês não se sentem firmados na “Rocha dos Séculos”, duvido que sejam
cristãos.Trata-se da nova mais gloriosa que se pode receber num mundo
como este.

Quando desaba tudo ao meu redor,

Ele é minha esperança e meu esteio.

Em Cristo, a Rocha sólida, me firmo; todo outro solo é areia movediça.

Depois diz o apóstolo que esta verdade esteve oculta. Chama-lhe mistério, e
vimos que um mistério é uma coisa que existe, porém ainda não foi revelado
plenamente, e que a mente humana jamais o pode alcançar por seu próprio
esforço. Todavia Deus o revelou, diz o apóstolo. Há uma diferença entre a
situação no passado e o que se dá agora. Tinha estado oculto através dos
séculos, mas “...agora”, diz ele, “pela igreja, a multiforme sabedoria de Deus
será conhecida dos principados e potestades nos céus”. É-nos dada a idéia
de que aqueles fulgentes espíritos angelicais foram levados a perquirir;
sabiam que Deus estava para realizar alguma coisa, no entanto não sabiam
o quê. Precisavam ser iluminados pela Igreja, diz Paulo, pelo que
acontece comigo e com vocês. Contudo, mesmo sem ter sido revelado ainda,
o plano e propósito de Deus lá estava, e estava sendo executado por
Deus paulatinamente e com segurança. Vê-se isto em toda a história
do Velho Testamento, através do qual ele passa como um fio de
ouro, bastando que vocês tenham olhos para vê-lo. Muitas vezes parece
que as coisas vão mal, porém o propósito de Deus continua a
avançar persistentemente-, embora oculto, continua existindo. Através
dos séculos sempre existiu um propósito eterno de Deus, seguro e certo.

Isso nos leva à indagação crucial: qual é este plano que Deus determinou
antes da fundação do mundo, que Ele manteve oculto dos homens e dos
anjos, que, não obstante, continua existindo e em processo de execução? A
resposta é dada na frase final do versículo 9: “E demonstrar a todos qual
seja a dispensação do mistério, que desde os séculos esteve oculto em Deus,
que tudo criou”. Por que é que Paulo, ao falar do nome de Deus, acrescenta,
“que tudo criou”? Aí eu encontro a chave para a resposta a esta pergunta.
O apóstolo nos relembra o fato de que, afinal de contas, este mundo é de
Deus. Não é do homem; é dAquele “que tudo criou”. Se já houve tempo em
que o homem necessitava ouvir a verdade sobre a criação, é agora. Temos
nos tomando tão inteligentes... dividimos o átomo! Como somos prodigiosos,
como somos maravilhosos! Acreditamos que fizemos tudo e que somos
responsáveis por todas as coisas. Não passamos de guias cegos

em nossa ignorância! Este mundo é de Deus — “Ele criou todas as coisas”.


Se vocês desejam tentar compreender o que está acontecendo no mundo
hoje, este é o ponto donde deve partir. Este mundo não foi trazido à
existência pelo homem, e sim por Deus. Ele o fez, e o fez perfeito. Nunca foi
projetado para ser o que é agora; o que vemos é apenas uma caricatura
dele. Este mundo não é como Deus o fez. Fundamentalmente é, mas o
pecado e o mal trouxeram o mundo para a sua presente condição. O pecado
introduziu nele os conflitos, o derramamento de sangue, o despeito, a
malícia, a inveja, o ódio e todas as demais coisas vis e abomináveis. O que
vem descrito com tanta perfeição nos primeiros capítulos de Gênesis é a
causa do nosso problema. Deus fez o mundo, olhou para ele e viu “que era
muito bom” (Gênesis 1:31). Era perfeito, era um paraíso .

Uma parte da mensagem do evangelho visa levar os homens a terem isto em


mente com clareza. Este mundo é de Deus, a Ele pertence. O homem fez dele
o que ele é porque, em sua loucura, deu ouvidos à tentação de Satanás. No
entanto — o e aí está a glória da mensagem —o plano de Deus é redimi-lo e
restabelecer-lhe a perfeição. O apóstolo já dissera isso tudo no versículo dez
do capítulo primeiro desta Epístola: Deus propusera “tomar a congregar em
Cristo todas as coisas, na dispensação da plenitude dos tempos, tanto as que
estão nos céus como as que estão na terra. Tudo será reunido em Cristo.
Essa é a mensagem do evangelho para este nosso mundo dominado pela
guerra, dilacerado, em conflito e perplexo. E o plano divino de reunir tudo,
diz-nos Paulo, é para ser levado a efeito no Senhor Jesus Cristo e por meio
dEle: “se gundo o eterno propósito que fez em Cristo Jesus nosso Senhor”.

Permitam-me asseverá-lo muito dogmaticamente: fora do Senhor Jesus


Cristo não há nenhuma esperança para este mundo. Vocês encontraram
alguma? Tomo a dizer: examinem os seus jornais, os seus livros de história,
filosofia, poesia, ciência; façam o giro completo; onde existe algum vestígio
de esperança? Não há nenhum. Mas Deus determinou restaurar todas as
coisas em Cristo Jesus, nosso Senhor. Ele é o único caminho.

Ao passarmos a tecer considerações sobre como Deus realiza os Seus


propósitos em Cristo Jesus, é essencial começar com certas negativas em
vista da popularidade de falsos conceitos. Começamos dizendo que não se
faz a obra simplesmente pregando o ensino ético de Jesus Cristo. De todos
os ensinamentos fátuos e estultos de hoje, nenhum é mais errôneo do que
aquele que afirma que tudo que precisamos fazer é tomar o ensino cristão e
aplicá-lo à situação moderna. Alguns dizem que simplesmente temos que
ensinar a ética de Cristo às pessoas, e elas a aplicarão. Dizem eles que os
homens poderão

ter paz no presente neste mundo se tão-somente aceitarem o ensino de


Cristo e seguirem o Seu exemplo. Deliberada e solenemente afirmo que essa
pretensão envolve uma das mais completas negações imagináveis da
mensagem cristã. Como solução do problema do mundo, é completamente
impossível. E por ser impossível é que Cristo veio e morreu na cruz. O
Senhor Jesus Cristo veio a este mundo porque todos os homens e todo o seu
planejamento falharam por completo.

Se o único requisito fosse que os homens fossem conclamados e estimulados


a seguir o ensino e o exemplo de Cristo, então a lei que Deus tinha dado aos
filhos de Israel por meio de Moisés teria resolvido o problema e acertado
tudo. Se os homens praticassem os Dez Mandamentos e a lei moral, todos os
problemas seriam solucionados. Jamais haveria outra guerra, jamais outra
dificuldade. Contudo, os filhos de Israel fracassaram e não os cumpriram.
Nem um só individuo cumpriu plenamente a lei. Escrevendo aos romanos, o
próprio apóstolo acentua isso: “o que era impossível à lei, visto como estava
enferma pela carne...” (8:3). A lei é perfeita, porém o homem tem que
cumpri-la; e aí está a dificuldade. O homem não deseja cumprir a lei e não
tem poder para cumpri-la. Portanto, pergunto, se o homem não pode
guardar os Dez Mandamentos, como poderá guardar o Sermão do Monte?
Se o homem não consegue nivelar-se aos seus próprios padrões,
como poderá seguir o padrão do Senhor Jesus Cristo? Afirmar outra coisa
é puro absurdo; é negar o evangelho. Quem pregar a fé cristã como se fosse
apenas essa espécie de comportamento, estará negando a Cristo. Não
poderia haver maior negação do evangelho. É pura heresia.

Então, como Deus realiza o Seu propósito em Cristo Jesus, nosso Senhor? A
resposta já do dada no capítulo dois desta Epístola. Não é apenas que Cristo
nos diz o que devemos fazer. O grande propósito de Deus é realizado por
meio do que Cristo fez por nós. A salvação é atividade de Deus, não é nossa
— nem sua nem minha. “Somos feitura sua, criados em Cristo Jesus.” É o
que Deus fez e faz em Cristo que ainda leva a efeito o grande propósito
divino.

A primeira coisa de que todos nós necessitamos é sermos reconciliados com


Deus. Não poderemos ser abençoados por Deus enquanto formos Seus
inimigos. Deus não nos abençoará, se não estivermos em corre ta relação
com Ele, se não estivermos reconciliados com Ele. Como o homem pode ser
reconciliado com Deus? Há somente uma resposta: é mediante Jesus Cristo,
e Este crucificado. “Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo,
não lhes imputando os seus pecados.” “Aquele que não conheceu pecado, o
fez pecado por nós; para que nele fôssemos feitos justiça de Deus” (2
Coríntios 5:19-21). Esse é o

primeiro fato. A inimizade terá que ser retirada de nós; temos que ser
reconciliados com Deus, e Deus realiza isso em Cristo. Ele pôs os nossos
pecados sobre Cristo, castigou-os nEle e, portanto, Ele olha para nós e nos
perdoa. Ele faz de nós Seus filhos, Ele nos adota em Sua família.

Isso nos leva à estupenda declaração feita pelo apóstolo precisamente neste
versículo: “Para que agora, pela igreja, a multiforme sabedoria de Deus seja
conhecida dos principados e potestades nos céus”. Quer dizer que Deus
finalmente restabelecerá a paz, a unidade e a concórdia no mundo mediante
Cristo e por intermédio da Igreja. Deus, que no princípio criou o mundo e o
fez perfeito, que segundo a Sua inescrutável vontade tolerou e permitiu que
o pecado e o mal entrassem por meio do diabo, determinou restabelecer à
perfeição o universo inteiro — porque é Seu mundo. Planejou fazê-lo por
meio de uma nova criação. Uma parte dessa nova criação é a Igreja.
Isso constitui uma parte vital da mensagem bíblica. A situação do
homem em pecado é tal, que nada menos do que uma nova criação
poderá resolvê-la. A humanidade jamais poderá ser levado de volta à
perfeição mediante as diversas aplicações externas. É necessário haver um
novo princípio, uma nova criação. E o que Deus está fazendo em Cristo
é trazer à existência esta nova criação, esta nova humanidade, este
novo corpo, este “homem novo” em Cristo, que inclui o judeu e o
gentio; noutras palavras, a Igreja. Todas as divisões são abolidas, uma
nova realidade é trazida à existência . Não é que os judeus e os gentios
são fixados frouxamente uns nos outros, porém ambos são criados de
novo e, com isso, são amoldados num só corpo, do qual todos eles se
tomam membros.

Esta é a parte principal da grande mensagem do cristianismo. Desde


quando o Senhor Jesus Cristo esteve neste mundo, esta nova humanidade
está sendo formada. Guerras e períodos de paz têm-se alternado; tem
havido tempos de derramamento de sangue e tempos de concórdia. Nada
senão isto encontramos nos livros da história secular. Entretanto, vemos
mais do que a simples exibição externa — vemos Deus, em cada geração,
atraindo do mundo um povo para Si, criando pessoas de novo em Cristo
Jesus, acrescentando-as à Igreja. Vemos um novo corpo, uma nova
humanidade, congregando-se, propagando-se, aumentando, progredindo e
desenvolvendo-se — algo absolutamente novo! Vemos uma nova raça de
seres humanos, Cristo o primogênito, e todos nós nascidos dEle. Vemos Deus
juntando-os, preparando-os e a nós para o dia da manifestação. É um
processo progressivo. Vocês o vêem agora? Está em avanço neste momento.
É o grande propósito de Deus, e será cumprido, até completar-se o Seu
plano. E quando este se completar,

Ele enviará de novo o Seu Filho a este mundo, cavalgando as nuvens do céu,
como “Rei dos reis e Senhor dos senhores". Voltará para juízo e destruíra
todos os Seus inimigos — Satanás e todas as suas hostes, e todos os que o
seguiram, rejeitando a Cristo; na verdade, todo o mal, todas as iniqüidades
e todo o pecado, em todos os seus tipos e formas, serão lançados no lago de
fogo e de perdição. O universo será lavado e purificado.
Vem o dia, descrito pelo próprio Senhor como a hora da “regeneração,
quando o Filho do homem se assentará no trono da sua glória” (Mateus
19:28). Ocorrerá uma regeneração de todo o cosmos; até o mundo físico
será perfeito. Haverá “novos céus e nova terra, em que habita a justiça” (2
Pedro 3:13). “E o lobo morará com o cordeiro... o leão comerá palha como o
boi” e “um menino pequeno os guiará” (Isaías 11:6-7). Perfeição absoluta!
Ela vem! É o fim definitivo do propósito de Deus. Há um mundo novo à
nossa espera.

Um só Deus, uma lei, um elemento, e um divinal evento, alto e remoto, rumo ao


qual a criação está em movimento.

É isso que foi revelado a Paulo; é o que ele anseia que todos os homens
vejam; essa é a luz que brilha nas trevas hoje.

Devido isso ser plano de Deus, tem cumprimento absolutamente certo e


seguro, pois Ele ainda é o Criador e este ainda é o Seu mundo. Ele ainda é o
Deus que disse, “Haja luz” e “houve luz”. Faça o homem o que quiser, faça
o máximo que puder para frustrar este plano, nada o poderá impedir. Deus
é Aquele que criou todas as coisas pela palavra do Seu poder e, apesar do
inferno, Ele levará avante o Seu propósito. No Velho Testamento vemos
como, a despeito de tudo que aconteceu contrariamente, Deus continuou
com o Seu plano. Cristo veio; o rei Herodes tentou matá-lO, os Seus
inimigos tentaram estorvá-lO e impedi-lO; contudo, o plano prosseguiu.
Crucificaram-nO; mas Ele ressuscitou. Faça o mundo o que puder, solte-se
o inferno — o propósito de Deus jamais poderá ser frustrado, porque Ele é
o criador.

Deixem-me, porém, acrescentar isto: esta revelação do plano de Deus dá-nos


apenas uns poucos pormenores de incidentes e acontecimentos particulares.
Muitos daqueles que o mundo considera grandes e de vital importância não
são nem sequer mencionados — os cáiseres, os Hitler, os Stalin, e muitos
outros. Ela não nos dá esses pormenores. É a importância que o homem se
arroga que o leva a buscar essas coisas. Tudo quanto nos é dito repousa
sobre o grande e eterno propósito. A Bíblia não trata de trivialidades, com
meros incidentes do tempo. As

nações podem levantar-se e cair, todavia o plano de Deus prossegue, firme e


sem interrupção.
Além disso, o plano não pode ser modificado para adaptar-se aos caprichos
e fantasias, aos gostos e aversões de qualquer indivíduo ou nação. Na
verdade devemos estar preparados para algumas estranhas surpresas
quanto a este plano. Às vezes poderemos pensar que tudo vai mal. As igrejas
poderão estar vazias, e as pessoas perguntarão: onde está esse seu
propalado plano de Deus? A resposta é que as igrejas estiveram vazias
muitas vezes antes; porém na plenitude do Seu tempo, Deus envia um
avivamento, e se for da Sua vontade, enviará outro.

No entanto, acima de tudo, afirmo e repito que o plano de Deus é sempre em


termos do Senhor Jesus Cristo. Cristo é tanto o centro como a
circunferência, Ele é tudo, tudo se cumpre nEle. Também se cumpre por
meio da Igreja. Não há benefícios para ninguém, exceto para os que estão na
Igreja. Se vocês não são cristãos, não têm direito de buscar a Deus para
receber benefícios e bênçãos. Todas as Suas bênçãos vêm por meio de Cristo
e por meio da Igreja aos que pertencem ao corpo. Tudo mais é incidental.
Esta mensagem não oferece nenhuma esperança de paz na terra e entre as
nações, enquanto Cristo não voltar para a Sua vitória final. Isso é uma parte
essencial do evangelho. Na Bíblia não há vestígio de esperança de paz entre
os homens e as nações neste mundo, enquanto Cristo não voltar e finalmente
destruir o pecado e o mal. Enquanto houver pecado, luxúria e paixão no
coração humano, haverá conflito e guerra. Não há nenhuma promessa que
contrarie isso. Mas Cristo voltará, apesar de tudo; Ele derrotará os Seus
inimigos, Ele extinguirá o pecado do universo. Então, e somente então,
deixará de haver guerra, e a tristeza e o pranto desaparecerão. Depois a paz
reinará universalmente e para todo o sempre.

Meu amigo, você se sente tentado a dizer que está decepcionado com esta
mensagem, que a acha muito depressiva, que pensava que poderia ouvir
falar de alguma esperança imediata para o mundo, e que perdeu o interesse
pelo cristianismo? Se é assim, tenho duas coisas para dizer-lhe. A primeira é
que, patentemente, você não é cristão, pois nenhum cristão fala dessa
maneira. O cristão não está apenas interessado em bem-estar e consolo
pessoal. O cristão é alguém interessado na glória de Deus e na grandeza do
Seu santo nome. Esse bem-estar que você procura é oferecido pelas seitas e
pelas várias falsificações da mensagem cristã. Em segundo lugar, digo a
quem quer que pensa que esta pregação é irrelevante e não ajuda os homens
nas situações presentes, que esta é a única mensagem que lhes diz a verdade
sobre a situação presente. É a única que explica por que o mundo é como é.
Você acha que isto é irrelevante para você? Se acha, e se continuar com essa
forma de pensar e com essa opinião até ir para o seu túmulo, virá o dia em
que, de repente, descobrirá que não existia nenhuma outra coisa que fosse
mais relevante. Você faz parte do propósito e plano de Deus. Deus “julgará o
mundo com justiça”, e como cidadão deste mundo você será julgado com
justiça. Este é o propósito eterno que Deus estabeleceu antes da fundação do
mundo. Ele certamente está sendo levado a efeito, e será levado a cabo.
Todos os que pertencem ao diabo e às suas hostes, todos os que rejeitam este
evangelho por não oferecer um pouco de bem-estar ou consolação
temporária, todos os que rejeitam o Senhor ver-se-ão rejeitados naquele
grande dia, e não ficarão na companhia dos que estarão se aquecendo ao
fulgor da glória de Deus, e que estarão reinando com Cristo como “reis e
sacerdotes de Deus” por toda a eternidade. Graças a Deus pela luz do
evangelho nesta hora tenebrosa, luz que mostra que, a despeito de tudo que
vemos no mundo, Deus ainda está no trono. Seu propósito certa e
seguramente está sendo realizado; e está sendo realizado também em nós e
por meio de nós, que somos verdadeiramente membros da Igreja,
verdadeiramente membros do corpo de Cristo.

O ESTRANHO PROPÓSITO DE DEUS

“Para que agora, pela igreja, a multiforme sabedoria de Deus seja

conhecida dos principados e potestades nos céus. ” Efésios 3:10

Estas palavras vêm como parte da declaração que começa no versículo 9 e


termina no versículo 11. É parte da explicação dada pelo apóstolo do
propósito geral da sua vocação e do seu ministério. Vimos o que isto
significa em função do plano de Deus para o mundo, do propósito de Deus
para o mundo, plano que Ele está executando seguramente. Mas aqui, em
conexão com essa segunda declaração, o apóstolo interpõe esta observação
concernente aos principados e potestades. Mediante a mensagem do
evangelho, diz ele, e como resultado da sua pregação, a saber, a colheita da
Igreja da qual os cristãos efésios são parte integrante, a estonteante e
estupenda verdade é que mesmo os principados e potestades nos lugares
celestiais estão sendo cientificados. Alguma coisa está acontecendo por meio
de todos quantos são membros da Igreja que ate aumenta o entendimento
destes augustos e poderosos seres. Esta é a matéria que devemos
examinar agora.
Devemos dar-nos conta de que quando o apóstolo escreve sobre os
principados e potestades nos lugares celestiais, ou nos céus, está se referindo
aos anjos, incluindo-se os mais brilhantes e gloriosos deles. Alguns acham
que a referência é, antes, aos anjos caídos, isto é, aos demônios. Contudo, me
parece que, se aceitarmos esta interpretação, perderemos de vista o real
objetivo que o apóstolo tem em mente aqui, e certamente perderemos a
emoção e a glória daquilo que ele está dizendo. Sem dúvida, os anjos
decaídos, os demônios, são levados a compreender e a ver a sua loucura
total, em parte mediante a Igreja; porém o que vemos aqui é uma coisa mais
estonteante ainda. Se tomarem esta expressão como se encontra nas
Escrituras, verão que invariavelmente se refere aos anjos que sempre estão
na presença de Deus; e o apóstolo está afirmando que o que está
acontecendo na Igreja é tão estupendo, tão glorioso, que os fulgurantes seres
angélicos que passaram toda a sua existência na presença de Deus, mesmo
eles, ficam

estonteados e maravilhados com o que vêém na Igreja e através dela. Estes


anjos, criados por Deus, sempre estão na presença imediata de Deus; mas,
de acordo com o apóstolo, o que acontece na Igreja é algo que eles nunca
pensaram nem imaginaram. Sobrepuja o conhecimento e a compreensão
deles, e até mesmo a sua imaginação. O que nos interessa é que esta
informação concernente ao eterno propósito de Deus deveria chegar até
eles; e a declaração é que é “pela igreja”, por meio de nós. Noutras palavras,
é-nos dado aqui um retrato da Igreja em sua dignidade, grandeza e glória
que, em certo sentido, realmente parece sobrepujar toda e qualquer coisa
que o apóstolo tenha dito a respeito dela. Certamente nada pode ser mais
elevado que isto; examinemo-lo, pois, na forma de alguns princípios que
demonstrarão esta glória.

A primeira proposição é que o cristianismo, e a salvação em Cristo e por


meio de Cristo, é a suprema, a mais elevada e a maior manifestação da
sabedoria de Deus. Podemos definir a sabedoria de Deus dizendo que é o
atributo pelo qual Ele dispõe os Seus propósitos e os Seus planos, e dispõe os
meios que produzem os resultados que Ele determinou. É também
sabedoria ao nível humano. Sabedoria é aquela rara faculdade e qualidade
que capacita o homem a ver a situação de maneira tal, que ele pode decidir
o que fazer e como obter o resultado mais desejável. Há uma enorme
diferença entre conhecimento e sabedoria. Muitos têm conhecimento,
todavia não têm sabedoria. A sabedoria, num dos seus aspectos, é a
capacidade e poder de fazer uso do conhecimento. Um homem pode ser
muito instruído, mas, se lhe faltar sabedoria, será de pouco valor na
sociedade. Isto se aplica a todas as profissões e, na verdade, a todas as
carreiras da vida. Alem e acima de um conhecimento dos fatos, o que
diferencia o supremo artista, o grande cientista, o grande homem em
qualquer profissão, é que ele tem esta qualidade adicional de poder usar e
acionar tudo que sabe com o fim de levar ao resultado desejado. Assim a
Bíblia nos diz que a sabedoria é um dos atributos do caráter de Deus e do
Seu ser. E o que o apóstolo diz aqui é que na Igreja e por meio dela este
atributo de Deus está sendo revelado aos principados e potestades nos
lugares celestiais de maneira mais grandiosa do que nunca antes.

Obviamente, os principados e potestades nos lugares celestiais já sabiam


muita coisa a respeito da sabedoria de Deus. Permanecendo sempre na
presença de Deus, estão na esplêndida condição de poderem observar o que
Deus faz e dispõe. Assim eles sempre estiveram cientes da sabedoria de
Deus. Eles a tinham visto, por exemplo, na natureza e na criação. Para
quem tem olhos para ver, a sabedoria de Deus pode ser

vista de maneira maravilhosa nas coisas que são feitas. Apanhem qualquer
flor e dissequem-na, e verão que ela foi estruturada e construída segundo
um plano e desenho bem definido. De muitas maneiras, a maior
característica de todas as obras das mãos de Deus na natureza é a
simplicidade essencial do padrão pelo qual Ele sempre opera. Algumas
flores parecem altamente complexas, mas se vocês as dissecarem, verão
sempre um padrão muito simples, e verão que o que parece complexo é
apenas uma coleção de vários modelos muito simples. Este princípio
percorre a natureza toda. A sabedoria essencial é exposta neste modelo
simples. Esta é, na verdade, a característica dominante de todo gênio, da
maior competência em qualquer departa mento. O grande artista sempre dá
a impressão de que o que ele está fazendo é muito simples. O homem que em
seu trabalho é presunçoso e dá a impressão, de que o que ele está fazendo é
realmente difícil, mostra que não é competente.

Isto é verdadeiro em qualquer profissão, em qualquer vocação. O


verdadeiro experto, o gênio, sempre reduz a complexidade à simplicidade.
Pense na diferença entre um grande mestre e um aluno, ou entre um grande
profissional e um amador em algum esporte ou na musica. Isto se vê de
modo supremo, naturalmente, na pregação do nosso bendito Senhor e
Salvador. Embora tratasse de verdadeiras profundidades, o Seu padrão
essencial foi sempre muito simples. Quantas vezes isso tem sido esquecido
na vida, e na própria Igreja Cristã! Muitos parecem ter a insensata idéia de
que o que realmente é grande e profundo é o complexo e complicado, aquilo
que eles não podem entender. No entanto, a verdade é exatamente o oposto
disso. Se a mente não estiver clara e não puder expressar-se com clareza,
será sinal de confusão e de falta de capacidade, como se vê à perfeição em
todos os domínios da natureza. Os anjos tinham estado observando
isto; tinham estado observando a obra das mãos de Deus de acordo com
o planejamento que Ele fizera da criação, e a ordenada seqüência ano após
ano de primavera, verão, outono e inverno. A mesma coisa todo ano! Que
simplicidade em tudo isso! Vejam como a flor começa num botão; cresce e se
desenvolve, depois começa a florescer e a florir, chegando à maturidade;
depois murcha, seca e morre. Sempre o mesmo processo! Vemos aí algo da
gloriosa sabedoria de Deus.

Os anjos também tinham visto esta sabedoria na história. Estiveram


observando as atividades humanas através de toda a história registrada no
Velho Testamento, e tinham visto como Deus estivera manobrando as
nações. Observaram como Ele pacientemente permitiu a ascensão de algum
grande tirano, que “montasse no mundo como um colosso”, e fizesse as
nações tremerem, aterrorizar-se e alarmar-se. Talvez os anjos

tenham começado a indagar o que estaria acontecendo; e depois viram que,


num dado momento, Deus Se levantava e dispersava os Seus inimigos, e os
fazia desaparecerem como se nunca tivessem existido. Em procedimentos
como estes, muitas vezes eles tinham visto a sabedoria de Deus na história.
Assim, numa época como esta, é-nos proveitoso que a leiamos, naturalmente
com olhos cristãos. Se vocês não lerem a história com olhos cristãos e
bíblicos, chegarão à conclusão a que Hegel chegou, de que “A história nos
ensina que a história não nos ensina nada”. Todavia se vocês examinarem a
história com mente bíblica, com olhos cristãos, verão que ela está repleta de
instruções porque, por trás de tudo verão a sabedoria de Deus deixando,
permitindo isto e aquilo, mas sempre mantendo o domínio. O Senhor
Deus reina; e sempre está presente como “Eu sou”, e em Seu tempo faz
várias coisas.

Os anjos estiveram observando isso tudo, admirando-o, e enquanto faziam


isso, adoravam a Deus. E muito particularmente eles haviam observado e
contemplado a história geral dos judeus. Um dia viram Deus olhando para
um homem chamado Abrão. Este vivia num país pagão, no seio de um povo
pagão, e não podiam compreender o interesse de Deus por aquele homem.
Mas observavam, e O viram chamar Abrão do seu país e levá-lo para uma
terra estranha. Abrão não sabia para onde ia, porém foi; e os anjos
começaram a ver que Deus estava formando uma nação para Si, criando um
povo para Si. Eles observaram o chamamento de Abraão, sua vinda para
Canaã, e o nascimento de Ismael e Isaque. Para seu espanto, viram o
propósito de Deus sendo levado adiante por meio de Isaque, e não de Ismael,
e depois por meio de Jacó, e não de Esau; e em cada um desses eventos eles
viam a sabedoria de Deus. Bem podem ter pensado, a princípio, que Esau
deveria ser o homem escolhido, mas não, o escolhido foi Jacó. Esau era um
homem muito melhor, era caçador e generoso, robusto e saudável,
completamente diferente do bajulador Jacó, que passava o tempo em casa,
sempre na barra da saia da mãe, um tipo intrigante de homem. Não
obstante, foi Jacó que Deus escolheu. Os anjos não podiam entender isso;
mas começaram a ver desdobrar-se o propósito de Deus, e que Deus estava
dando uma ilustração do fato de que o Seu método consiste em chamar, não
os justos, e sim os pecadores ao arrependimento, em tomar os piores e fazer
deles os melhores. Desse modo eles tinham visto Deus revelando a Sua
grande sabedoria.

Além disso, os anjos tinham visto os filhos de Israel descerem para o Egito e,
finalmente, tomarem-se escravos em grande desamparo. Depois,
subitamente, viram como Deus feriu Faraó e os seus exércitos no Mar
Vermelho e levou de volta os filhos de Israel para Canaã, e

observaram toda a história subseqüente, incluindo-se o cativeiro na


Babilônia. Em tudo isso eles tinham visto uma tremenda manifestação da
sabedoria de Deus.

No entanto, diz o apóstolo, não foi por meio disso tudo que os anjos viram
realmente a sabedoria de Deus. Antes, foi pelos resultados da mensagem
confiada a Paulo, a mensagem do evangelho de Cristo, e principalmente a
mensagem acerca da Igreja, que estes principados e potestades nos lugares
celestiais puderam ver a multiforme sabedoria de Deus. É aí que as
múltiplas facetas, o caráter variegado, a grande variedade de cores da
sabedoria de Deus aparecem. Já conheciam a essência dela; mas aí está a
plena florescência em sua glória. Noutras palavras, o argumento do apóstolo
é que os anjos, estes principados e potestades, foram levados a ver, mediante
a Igreja, que a sabedoria de Deus é maior do que imaginavam; que é mais
variada, mais variegada; que nela há cores e matizes dos quais nunca
tinham tido ciência. Havia nela glórias ocultas das quais eles nada sabiam,
apesar de terem vivido sempre na presença de Deus. Empregando a palavra
multiforme, o apóstolo nos transmite a idéia de que a luz, o brilho da luz da
sabedoria de Deus, subitamente, por assim dizer, irrompera nestas diversas
cores do espectro e a exibira em suas partes componentes. Os anjos
tinham visto apenas o brancor; agora estão vendo todas as nuanças, todas
as variedades da cor — a variegada sabedoria de Deus.

O segundo princípio é que a Igreja é o meio pelo qual a sabedoria se toma


manifesta. A Igreja é uma espécie de prisma posto no caminho da luz para
repartir o resplendor nas cores do espectro. Que concepção da Igreja
Cristã! Sem esta os anjos podiam ver a luz, podiam ver a sabedoria em
geral, mas não a admirável variedade. É através da Igreja, como um meio,
que os anjos têm recebido esta nova concepção da transcendente glória da
sabedoria de Deus. O que, pois, temos que captar e compreender é que a
Igreja Cristã, à qual eu e você pertencemos é o fenômeno mais espantoso
que o mundo já viu. A Igreja Cristã é mais maravilhosa do que qualquer
coisa visível na natureza. Todos estamos interessados nas maravilhas da
natureza; estamos dispostos a viajar quilômetros e quilômetros para vê-las.
Vamos à Suíça para ver as grandes montanhas; viajamos para a América
para ver o “Grand Canyon”. Maravilhoso! Magnífico! Emocionante! —
dizemos. A afirmação do apóstolo é que todas estas coisas empalidecem e
se reduzem a uma insignificância, quando postas ao lado da Igreja
Cristã, quando postas lado a lado com aqueles de nós que somos cristãos,
que nos juntamos em congregações. Como membros do corpo de
Cristo somos o mais maravilhoso fenômeno do universo, a coisa mais

admirável que Deus fez.

Vocês não podem explicar as grandes montanhas nem os grandes fenômenos


sem Deus. Não podem explicar a mais singela flor sem Ele. Lembro-me de
ter ouvido a história de um homem que morava aqui em Londres e foi
passar um feriado no campo, no início de setembro. Sucedeu que pôde ver
uma grande lavoura de trigo maduro, pronto para a colheita. Lá estava, em
todo o seu dourado esplendor, com uma brisa amena a andejar sobre ela.
Quando a estava contemplando, disse a única coisa que qualquer pessoa
deveria dizer ao ter visão semelhante: “Ó Deus, como foi bem feita”! Ele viu
a sabedoria e a maravilha da obra das mãos de Deus. Todavia, é a Igreja,
este corpo ao qual pertencemos, este corpo do qual somos partes, que é a
suprema e mais alta manifestação das obras das mãos de Deus.

Devemos tirar duas importantes conclusões deste ponto. Que terrível erro
dos que a si mesmos chamam dispensacionalistas, dizerem que a Igreja
Cristã foi apenas um dêutero-pensamento na mente de Deus, que realmente
Ele nunca tivera essa intenção na eternidade, que o Senhor Jesus Cristo veio
à terra para pregar o evangelho do reino aos judeus, e que foi porque eles
não O receberam que Deus introduziu a Igreja como uma idéia ulterior. A
maior coisa do universo, a maior manifestação da sabedoria de Deus, uma
idéia ulterior! Assim é que negamos as Escrituras com as nossas teorias.
Longe de ser um dêutero--pensamento, uma idéia ulterior, a Igreja é o
brilho mais esplendente da sabedoria de Deus. É igualmente errôneo dizer
que a Igreja é apenas temporária, e que virá o tempo em que ela será
retirada e o evangelho do reino voltará a ser pregado aos judeus! Não existe
nada acima da Igreja. Ela é a manifestação mais elevada e suprema da
sabedoria de Deus; e olhar adiante, à espera de alguma coisa alem da Igreja,
é negar não somente este versículo, mas também é negar muitos
outros versículos das Escrituras. A Igreja é a expressão final da sabedoria
de Deus, a realidade que, acima de todas as demais, capacita até os anjos a
compreenderem a sabedoria de Deus.

Para explicar o terceiro princípio devo expor como Deus mostra e manifesta
a Sua variegada sabedoria na Igreja, por meio da Igreja e na salvação.
Procuremos meditar nisto, pois este será o tema dos nossos louvores por
toda a eternidade. Sobre isso diz o apóstolo Pedro, no capítulo primeiro da
sua primeira Epístola: “para as quais coisas os anjos desejam bem atentar”
(versículo 12). Refere-se à salvação e à Igreja Cristã. Diz uma melhor
tradução que os anjos de Deus “se abaixam para vê-las por dentro”. Este é o
sentido real da palavra empregada por Pedro. Na glória os anjos estão
olhando do céu para

baixo, estão se abaixando para olhar para mim e para vocês, para olhar
para a Igreja Cristã — esta manifestação da multicolorida sabedoria
de Deus. Eles nunca viram nada parecido, embora tenham passado a
sua eternidade na presença de Deus. Nós devemos estar olhando para
ela agora com todo o nosso ser, pois daqui por diante estaremos
olhando para ela por toda a eternidade, e nunca cessaremos de estar
surpresos e maravilhados diante dela.

Que vemos? Pensem por um momento na maneira maravilhosa pela qual


Deus resolveu o problema criado pelo pecado. Aqui é que vemos a sabedoria
de Deus. O que o apóstolo está dizendo aqui refere-se, em certo sentido — e
o digo com reverência — ao maior problema que Deus enfrentou. Por isso a
salvação é a maior manifestação da sabedoria de Deus. Para Deus não foi
difícil criar a luz e o Sol; tudo que Ele disse foi: “Haja luz” e “houve luz”.
Vejam as grandes montanhas; não são nada para Deus! As nações são como
“a gota dum balde” e como “o pó miúdo das balanças” (Isaías 40:15).
Mandar uma peste, ocasionar um terremoto, não e nada para Deus. Tais
coisas não são nenhum problema para Ele. Aqui está o problema — o
homem em pecado! Digo com reverência, aí estava o maior problema que
Deus já enfrentou e enfrentará; não há nada que o sobrepuje! Portanto,
requer-se a maior sabedoria para solucionar este problema. Quem quer que
pense que a salvação do homem foi uma questão simples para Deus, está
simplesmente proclamando que não conhece nem o Velho Testamento nem
o Novo. Se você, amigo, imagina que o perdão é coisa simples para Deus, e
que uma vez que Deus é amor Ele só tem que dizer, “Muito bem, eu o
perdôo”, bem que você poderia queimar a sua Bíblia. O perdão dos pecados,
atrevo-me a dizer, pesou até na sabedoria de Deus. De qualquer forma, creio
que estou certo quando digo que os anjos não conseguiram ver nenhuma
solução para este problema. Por isso ficaram surpresos quando viram o que
Deus fez acerca disto. Eles sabiam que alguns dos seus companheiros
tinham cometido pecado, tinham sido expulsos do céu e reservados por Deus
em cadeias no inferno, como Pedro nos diz no capítulo dois da sua segunda
epístola. Depois assistiram também à queda de Adão e Eva. Mas não
podiam imaginar o que Deus poderia fazer quanto a isso. Não viam como
solucionar o problema. O problema da salvação da alma, da salvação de
uma alma individual, o perdão dos pecados, é o problema mais profundo
que já surgiu e poderá surgir em todo o universo, e isto para o próprio
Deus.

A essência do problema está no fato de que Deus não é somente amor, e sim
também justo, reto e santo.Deus é o “Pai das luzes, em quem não hã
mudança nem sombra de variação” (Tiago 1:17), e não pode negar-Se a Si
mesmo. Etemamente Ele é sempre o mesmo; em
Sua perfeição jamais há alguma sombra de contradição. Daí o problema
levantado pelo pecado. Se Deus deve perdoar o pecado, deve fazê-lo
de modo que não somente manifeste o Seu amor, como igualmente manifeste
a Sua justiça, a Sua retidão, a Sua santidade, a Sua verdade, a Sua glória
eterna e a Sua imutabilidade. Será possível? O amor de Deus não terá que,
inevitavelmente, entrar em conflito com a Sua justiça? Poderá a Sua
misericórdia ser levada a compatibilizar-se com a Sua retidão? Esse é o
problema; e a glória central do evangelho é que ele é a revelação do modo
como a sabedoria eterna de Deus resolveu este problema.

No capítulo três da Epístola aos Romanos vemos tudo isto exposto


perfeitamente e da maneira mais gloriosa por este mesmo apóstolo.
O problema é: como Deus pode ser “justo e justificador daquele que tem fé
em Jesus”? Como Deus pode justificar o perdão dos pecados dos filhos de
Israel sob o Velho Testamento? Deus outorgou a lei; ao exercer o perdão,
não estaria pondo de lado a lei? Não, afirma Paulo; Ele está estabelecendo a
lei! No método de salvação que Deus planejou, Ele não a está anulando; está
estabelecendo a lei. Como poderia Deus, a um só tempo, cumprir a lei e
perdoar o pecador? Deus encontrou o caminho: conciliou o Seu amor, a Sua
justiça, a Sua misericórdia e a Sua compaixão. Estes formam uma unidade e
devem ser vistos reful-gindo juntos. O salmista que escreveu o Salmo 85
(versículo 10) teve uma antevisão disto. Não podia compreendê-lo, mas
disse: “A misericórdia e a verdade se encontraram; a justiça e a paz se
beijaram”.

Ó Deus, quão amável Tua sabedoria!

Quando pecado e opróbrio só havia, veio um segundo Adão para o combate e


para o mais completo resgate.

Vocês são capazes de ver que nada, senão a eterna sabedoria de Deus
poderia habilitá-lO a fazer isto e continuar sendo Deus, inalterado e
fulgindo em todas as direções com a mesma glória e a mesma perfeição?
Não conheço nada que seja mais comovente do que meditar nesse mistério.
Privaremos a Deus de Sua glória se imaginarmos que o perdão e a salvação
são simples e fáceis. Eles constituíam um problema na mente do Eterno.
Eles frustraram os anjos. Só Deus podia resolver o problema.

Esse era o problema visto de modo geral, mas agora vamos examiná-lo
pormenorizadamente. Afim de solucionar o problema, Deus enviou o Seu
próprio Filho ao mundo. Como redimir a humanidade decaída? Disse Deus:
“Enviarei meu Filho ao mundo de pecado e vergonha. Ele

assumirá a humanidade e a elevará.” Quem poderia ter pensado em tal


coisa? Os anjos nunca imaginaram que a segunda pessoa da
Trindade bendita e santa, que é substância da substância eterna, o Filho
unigênito, gerado do coração do Pai, iria humilhar-Se e nascer como um
bebê em Belém e viver como um homem. E quando viram isto,
ficaram maravilhados. Viram aí a sabedoria de Deus a manifestar-se em
facetas e ângulos que nunca tinham penetrado suas mentes. Depois
ficaram observando o Filho vivendo como homem entre os homens,
“nascido sob a lei”, e dando perfeita obediência a ela. Podemos imaginar os
seus pensamentos e os seus sentimentos quando O viam — a Ele,
o esplendor e refulgência da glória do Pai — trabalhando como carpinteiro
na oficina do seu pai em Nazaré?

Vejam ainda outro aspecto desta admirável sabedoria de Deus. O Pai não
enviou Seu Filho para nascer num palácio, e sim numa manjedoura. Ah, a
sabedoria de Deus! Quem jamais poderia ter esperado tal coisa? Mas
podemos ver o propósito brilhando através disso tudo. Se Ele não Se
submetesse à pobreza, à necessidade e a condições inferiores, não poderia
soerguer os de condição mais baixa. Nós, com a nossa sabedoria, teríamos
agido de maneira a mais espetacular, não teríamos? Contudo, Deus age
desta maneira essencialmente simples, por meio de um bebê e de tudo
quanto se Lhe seguiu.

Ainda mais, quando os anjos O viram na cruz devem ter ficado perplexos
com o que estava acontecendo. Parecia a hora da vitória do inferno, do
diabo e do mundo, no que este tem de pior. Não foi assim, porém. O que
estava acontecendo ali, Paulo o diz em sua Epístola aos Colossenses,
capítulo 2, era que, na cruz, e por Sua morte ali, o Senhor estava expondo
todos os poderes contrários a Ele “à vergonha pública, e deles triunfando
em si mesmo”. Deus os estivera usando, na inteligência deles, para fazer
cumprirem-se os Seus grandes e gloriosos propósitos; pois na cruz Deus
estava fazendo de Seu Filho Aquele que leva o nosso pecado. Estava pondo
os nossos pecados sobre Ele, dando-lhes o tratamento devido. Deus os estava
punindo; portanto, Deus continua sendo justo e reto porque o pecado é
punido e a lei é cumprida. O nosso Senhor cumpriu perfeitamente a lei, e no
madeiro sofreu por nós a penalidade por ela imposta. A lei foi honrada em
todas as suas peculiaridades, e Cristo a estava estabelecendo. Mas ao mesmo
tempo Deus estava abrindo um caminho para o perdão dos nossos
pecados. Essa é a sabedoria de Deus.

Assim podemos prosseguir, desenvolvendo o ponto em todas as minúcias e,


ao fazê-lo, compreenderemos cada vez mais o que o apóstolo tinha em mente
quando, escrevendo a sua Primeira Epistola a Timóteo, disse: “E sem
duvida alguma, grande é o mistério da

piedade: Aquele que se manifestou em came, foi justificado em espírito,


visto dos anjos, pregado aos gentios, crido no mundo, e recebido acima na
glória” (3:16). Estivemos expondo o significado da frase “visto dos anjos”.
Eles estavam observando isso tudo, e se maravilhavam. Entretanto deram-
se conta de que esta é a sabedoria de Deus, que eles julgavam conhecer.

O resultado de tudo isso é que temos o direito de dizer que a Igreja remida é
a suprema e final manifestação da sabedoria de Deus. Vimos como Ele
conciliou os Seus atributos; porém , ao mesmo tempo e de maneira
extraordinária, Ele efetuou o que particularmente está na mente do
apóstolo nesta altura, a saber, Ele reuniu o judeu e o gentio. Isto é
espantoso! O judeu e o gentio pareciam desesperadamente irreconciliáveis.
Eram inteiramente diferentes, e inimigos tradicionais, com todas as suas
tradições em antagonismo. Os anjos tinham visto o mundo dividido em
judeus e gentios, e tinham meditado no problema aparentemente insolúvel.
Eles observaram as fúteis tentativas feitas pelos maiores filósofos de resolvê-
lo quando escreviam, e ainda escrevem, sobre as suas utopias. Parecia não
haver solução. Mas agora eles vêem a solução concretizando-se na Igreja. O
judeu e o gentio são reunidos na Igreja, não em tréguas temporárias, não
mediante a colocação de uma espécie de tropa entre eles para impedi-los
de aproximar-se e matar-se uns aos outros; não pelo uso de alguma
ação policial. Não; eles foram feitos um, foram feitos co-membros de um
só corpo.

No entanto, vemos a sabedoria de Deus mais claramente ainda na maneira


pela qual Ele o fez. Ele não apenas tomou os dois como eram e os juntou de
algum modo. Primeiro Ele tomou o judeu e o humilhou ate o pó. Depois
tomou o gentio e fez a mesma coisa com ele. Fez ver a ambos que eles são
pecadores, que não há “nenhum justo, nem um sequer”. O judeu, vendo-se
como ele é aos olhos de Deus, não tem nada do que se orgulhar; nem o
gentio. Vemos ambas as partes lambendo o pó e vendo o seu inenarrável
desespero e desamparo, e ao mesmo tempo vendo que são idênticas, que não
há diferença nenhuma entre elas. Depois, tendo-os abatido a ambos, Deus os
levanta, mas não simplesmente como eram; faz de um e do outro novos
homens. O judeu já não é um judeu como tal, e o gentio não é mais gentio;
cada qual é um novo homem em Cristo Jesus. Segundo a carne ainda são
judeu e gentio, porém isso é esquecido em Cristo. Como novos homens,
novas criaturas, eles são idênticos, são ambos membros do mesmo
corpo, entrelaçados como juntas de um mesmo corpo. Esta é a sabedoria
de Deus!

Tomem a pensar na variedade de maneiras pelas quais Deus faz todas estas
coisas, maneiras pelas quais Ele nos trata a todos individualmente. Um
Saulo de Tarso tem que ser lançado ao solo na estrada de Damasco, e o
Senhor ressurreto lhe aparece. O coração de Lídia é aberto serenamente.
Um terremoto é utilizado para salvar o carcereiro de Filipos. Não têm fim as
variações nas experiências pessoais, e cada uma delas oferece mais um
vislumbre da sabedoria de Deus, que apresenta tantas facetas. Ele conhece a
cada um de nós individualmente, e sabe qual o tratamento exato de que
necessitamos.

Depois considerem o acerto do tempo, o modo como Deus marca o tempo


para todas estas coisas. Vejam o Velho Testamento. Ali vemos o povo de
Deus clamando e perguntando: “Ate quando, Senhor? Por que não vens,
por que não envias o Messias?” Mas Deus O enviou na “plenitude dos
tempos”. Foi depois de ter dado aos filhos de Israel tempo suficiente para
verem que a lei, a mera posse da lei, não podia salvá-los. Eles acreditavam
que ela podia fazê-lo; assim, Ele lhes deu tempo suficiente para se
convencerem completamente de que não podia. Ao mesmo tempo Deus deu
aos filósofos gregos tempo suficiente para verem que a filosofia deles
também não podia salvar o mundo. Se Deus enviasse Cristo antes de
acontecerem estas duas coisas, muitos poderiam continuar pensando que se
a filosofia simplesmente tivesse tido mais demorada oportunidade, teria tido
sucesso. Assim Deus permitiu que Sócrates, Platão, Aristóteles e todos os
demais viessem, ensinassem, estabelecessem as suas escolas e conquistassem
os seus seguidores — tudo para não chegarem a coisa nenhuma.
Então, havendo provado fora de toda duvida que nada poderia solucionar
o problema do homem em pecado, Ele o fez a Seu modo. Dessa
maneira fulge a Sua gloriosa sabedoria.

E quando acompanhamos a subseqüente história da Igreja, encontramos


evidências da mesma sabedoria eterna. Quantas vezes os homens pensaram
que a Igreja tinha declinado e chegado ao fim! Quantas vezes riram dela,
ridicularizaram-na e quase a sepultaram! Mas quando estavam prestes a
colocá-la no túmulo e a fazer as orações funerais, eis repentina ressurreição,
repentino avivamento! E assim Deus confunde os Seus inimigos e põe à
mostra a Sua sabedoria. Assim podemos dizer a Deus com o salmista que “a
cólera do homem redundará em teu louvor” (Salmo 76:10). Vocês percebem
que pela presente manifestação da ira do homem no século vinte Deus
está manifestando a Sua sabedoria? O fim de toda esta confusão
moderna, como o de todos os acontecimentos similares do passado, virá a
ser que “a cólera do homem redundará em louvor de Deus”. “Os seus
propósitos depressa amadurecerão.” O homem jamais os pode deter ou

frustrar. O que Deus planejou, é mais que certo que realizará.

Eis a pergunta que nos vem: estamos nós manifestando esta sabedoria de
Deus? É por meio da Igreja que Deus a mostra. Ela está sendo vista em nós?
Somos refletores, em nossa pequenez, deste esplendente brilho da sabedoria
eterna? Vocês estão nalgum lugar do espectro? A luz está sendo refletida
por meio de vocês? Deus nos perdoe, se estamos falhando. A maneira do
cristão brilhar consiste em meditar nestas coisas, contemplá-las,
compreender a verdade sobre si mesmo como parte da Igreja. Depois,
continue meditando nisso, e dedique-se ao Senhor diariamente. Aí a luz
brilhará por meio dele numa das suas variegadas cores, e os anjos ficarão
maravilhados com o que irão ver nele. Foi o nosso bendito Senhor que disse
que “há alegria diante dos anjos de Deus por um pecador que se arrepende”
(Lucas 15:10).

É tudo mistério! o mortal morre!

Quem pode sondar Seu estranho desígnio ?

Em vão o primeiro serafim tenta ir às profundezas do amor divino!

Tudo é misericórdia, a terra O adore; e as mentes dos anjos não mais inquiram.

(Charles Wesley)
OUSADIA, ACESSO, CONFIANÇA

“No qual temos ousadia e acesso com confiança, pela nossa fé

nele. ’’Efésios 3:12

Obviamente esta afirmação liga-se à anterior. “No qual” e uma referência


Àquele de quem ele fala no versículo 11, onde Paulo diz: “Segundo o eterno
propósito que fez em Cristo Jesus nosso Senhor". Ao examinarmos este
versículo devemos lembrar-nos de que o grande objetivo que o apóstolo tem
em mente quando escreve tudo que encontramos neste capítulo, é que estes
cristãos efésios não desfaleçam face às tribulações e provações que o próprio
apóstolo estava sendo chamado para suportar. Uma das primeiras coisas
que sempre nos inclinamos a perguntar em tempos de dificuldade é: por que
acontece isto? Tendo-se em conta o fato de que somos o que somos, por
que haveria de acontecer-nos isto? Por que deveria ser permitido? Esta
é uma tentação que o diabo está sempre pronto a insinuar nas mentes
do povo de Deus, e aqui o apóstolo trata disto com vistas a estes efésios.

Nesta declaração particular Paulo leva esta parte da sua mensagem a uma
espécie de grande clímax e conclusão. Num sentido podemos dizer que tudo
que o apóstolo estivera dizendo não teria sido de nenhum valor para os
efésios, se não os levasse inevitavelmente a esta conclusão particular.
Noutras palavras, o propósito principal de toda a doutrina cristã, do ensino
cristão, na verdade a finalidade da própria salvação cristã, é levar-nos
àquilo que nos é dito neste versículo. Precisamos lembrar-nos disso porque
vivemos dias em que muitos pensam na salvação cristã e nos seus benefícios
noutros termos, como alguma bênção particular que desejamos ou alguma
necessidade que desejamos ver suprida. Graças a Deus todas estas coisas são
verdadeiras, e jamais poderemos exagerar nossa gratidão a Deus por elas.
Mas além e acima de todas elas, e na verdade antes de todas elas, o
grande objetivo para o qual tudo é determinado, é levar-nos à presença
de Deus, e habilitar-nos para a adoração e para a oração.

O apóstolo está dizendo aos efésios que eles não precisam desfalecer ou ficar
angustiados ou sentir-se infelizes por causa dele. Paulo diz que ele próprio
não está desfalecendo e que não precisa de compaixão.

Ele está perfeitamente feliz porque está em contato com o Deus eterno, e
desfruta acesso à Sua presença. E o seu desejo é que os seus amigos efésios
compreendam que a mesma experiência é acessível a eles e lhes é possível.
Daí, se forem agredidos, e forem levados a ficar tristes e perplexos, não
precisarão gastar nenhum tempo dando atenção a estes acontecimentos,
mas deverão ir direto à presença de Deus. Quando agirem assim, todos os
seus problemas assumirão novo aspecto; verão propósito mesmo nas
tribulações, nos problemas e nas provações, e acabarão louvando a Deus e
glorificando o Seu santo nome. Pelas mesmas razões também devemos
considerar este versículo particular.

Há aqui um princípio que ignoramos ou esquecemos para nosso prejuízo.


Toda a doutrina cristã visa levar, e foi destinada a levar a um bom resultado
prático. Não há como exagerar a ênfase sobre isto. A verdade não é apenas
algo para a mente e para o intelecto. Naturalmente é primeiro para a mente
e para o intelecto, e é absorvido pela mente e pelo intelecto. Todavia será
fatal pensar que a verdade ou a doutrina ou a teologia — chame-lhe como
quiser — deve ser considerada como um fim em si mesma, como uma coisa
da qual alguém tem consciência e da qual pode apropriar-se com a mente,
sobre a qual pode discutir e argumentar, e nada mais. Se a doutrina parar
nesse ponto, não hesito em asseverar que ela pode ser até uma maldição. A
doutrina visa levar-nos a Deus, e a isso foi destinada. Seu propósito é ser
prática.

Temos uma perfeita ilustração desta verdade na própria porção que


estamos examinando. Ali o apóstolo, como vimos, apresenta-nos algumas
das doutrinas mais profundas; porém deixa claro que o faz para levar-nos a
uma experiência que nos capacite a dizer: “No qual temos ousadia e acesso
com confiança, pela nossa fé nele”. Nada é mais notável, com relação ao
apóstolo Paulo, nada é mais comovente do que isto — que, embora ele possa
voar para os céus, os seus pés estão sempre fixos firmemente na terra. Como
a Cotovia, de Wordsworth, ele sempre permanece “fiel aos pontos afins do
céu e do lar”. Ele nunca é um mero teólogo teórico; nunca um intelectual
que gosta de debater termos. Ele foi o maior teólogo, mas o seu objetivo, a
sua intenção, o seu propósito é sempre este fim e resultado prático. Noutras
palavras, se o seu conhecimento da doutrina não faz de você um grande
homem ou mulher de oração, é melhor você examinar-se de novo. Quanto
mais conhecimento tiver, mais esse conhecimento deve mostrar-se em
sua vida de oração, em seu santo viver, em todos os demais aspectos. É
por isso que você nunca vai encontrar doutrina ou teologia isolada,
nas Escrituras. Geralmente nós a vemos no início de cada Epístola.
Contudo, os apóstolos não se detêm aí. “Portanto”, dizem eles — sempre
a aplicam, levam-nos a ver como toda doutrina deve refletir-se em nossa

vida. Demo-nos conta, pois, de que os onze primeiros versículos do capítulo


três da Epístola aos Efésios têm a intenção de levar-nos ao versículo 12, com
a sua importantíssima declaração.

Devemos, por certo, dar igual ênfase ao outro lado, para termos equilíbrio.
A doutrina, repito, visa a ser prática e a levar a grandes riquezas na vida
cristã. No entanto, é igualmente importante dizer que as nossas vidas cristãs
nunca serão ricas, se não conhecermos e não apreendermos a doutrina.
Estas coisas não devem ser separadas uma da outra; são uma só coisa, e
indivisível. Uma das principais causas de dificuldade na Igreja está em que
temos a tendência de nos dividirmos em segmentos. Alguns só se interessam
pelas doutrinas e se consomem nesse interesse. Raramente os vemos orando,
nem nos impressionam a santidade e a pureza das suas vidas. Entretanto as
suas mentes estão repletas de doutrina. Para um segundo grupo a doutrina
não tem nenhum valor. Aqueles outros, dizem estes, só falam e
discutem teologia; nós somos gente prática, nada queremos com doutrina.
Mas falar assim é estar tão errado como aqueles que vocês estão
criticando. Estas duas coisas devem andar juntas; a doutrina não deve
ficar separada do elemento prático, nem o elemento prático da
doutrina. Devemos aprender a preservar o equilíbrio das Escrituras, e
devemos lutar para preservá-lo, “manejando bem a palavra da verdade”
(2 Timóteo 2:15). Devemos tomar as coisas como vêm nas Escrituras. Você,
meu amigo, não tem direito de dizer: “Sou um homem prático; portanto,
não leio os capítulos 1,2,3 e parte do capítulo 4 da Epístola aos Efésios;
começo a ler no meio do capítulo 4”. Se for assim, você estará fazendo
violência à Palavra de Deus. Contudo, se por outro lado você se deti ver no
meio do capítulo 4 e não for até o fim da epístola, será igualmente culpado.

Pois bem, o real propósito de tudo que o apóstolo estivera lembrando a estes
efésios — que eles tinham sido gentios, separados e estranhos aos concertos
da promessa, sem esperança e sem Deus no mundo, agora, por este glorioso
evangelho que ele lhes havia pregado, foram feitos co-herdeiros com os
santos, conservos dos judeus como membros do corpo, e co-participantes
das grandes promessas — o real propósito, digo, era que se regozijassem
nisso, porque esse fora o meio pelo qual eles vieram a ter “ousadia e acesso
com confiança” à presença de Deus. Aquilo com que Paulo desejava que se
regozijassem era que agora eles, que outrora estavam longe de Deus, foram
aproximados, podem chegar à presença de Deus, e podem orar como os
judeus sempre oraram.

Eis aí algo de que nós também precisamos lembrar-nos, pois de muitas


maneiras constitui o mais alto pináculo da salvação. De todas as

bênçãos da salvação cristã, nenhuma é maior do que esta — que temos


acesso a Deus pela oração. Antes de entrarmos em detalhes, notemos a
palavra “nós” (implícita na Versão de Almeida) — “No qual nós temos
ousadia e acesso”. Outrossim, diz o apóstolo, o que vou dizer não se aplica
somente aos apóstolos, ou a certas pessoas que se dedicam inteiramente ao
cultivo da vida cristã. Aplica-se a todos os cristãos. Esta é a glória disso
tudo. Eliminemos do nosso pensamento, uma vez por todas, aquela
dicotomia artificial e antibíblica, na verdade pecaminosa, que se vê em
todas as formas do ensino católico-romano, ensino que divide o povo em
dois grupos, os “religiosos” e os “leigos”. Não existe essa distinção nas
Escrituras. “Nós”, afirma Paulo — eu o apóstolo, vocês que anteriormente
eram gentios — “Nós”, todos juntos, “temos esta ousadia e acesso com
confiança”.

Portanto, examinando isto em termos práticos, consideramos a maneira


pela qual nos aproximamos de Deus em oração. Podemos muito bem
introduzir isto com a seguinte pergunta: como você ora? Qual é o caráter da
sua vida de oração? Como se sente quando se põe de joelhos em oração a
Deus? Que acontece? Você gosta? É livre? É certa? É segura? Que espécie
de oração é a que você faz? Segundo o apóstolo, a nossa aproximação deve
ser caracterizada por “ousadia”. “Acesso com confiança” é uma verdadeira
oração cristã. Os termos merecem consideração à parte.

Ousadia significa destemor, isenção de toda apreensão, e de toda duvida


quanto a podermos ser rejeitados. Significa liberdade de todos os aspectos
do mal que tendam a impossibilitar a oração verdadeira. Ousadia
obviamente significa ausência de inibição ou medo, em toda e qualquer
forma. Quando pensamos num homem ousado, pensamos em alguém que
segue diretamente para frente, que não tem medo de nada. Embora
enfrentando um poderoso inimigo, o ousado avança de peito estufado, com
confiança e com segurança. Não sofre inibições, não é hesitante, nem
duvidoso, nem inseguro. A ousadia é o exato oposto de tudo quanto indica
fraqueza.

O segundo termo é acesso. Pode-se traduzir por “entrada”, “ingresso”. Um


homem afirma que conseguiu ingresso para um clube exclusivo; muitos não
têm permissão para entrar ali, mas ele achou um meio de penetrar, de
entrar. Isto implica o privilégio do ingresso, da admissão. O uso que Paulo
faz do termo significa, então, que há uma relação entre nós e Deus pela qual
sabemos que somos aceitáveis a Ele e temos a segurança de que Ele tem
disposição favorável a nós. Esta é a essência do termo “acesso”. Sabemos
que Deus está pronto a olhar-nos favoravelmente e que Ele está à nossa
espera para receber-nos. Por isso não

hesitamos na soleira da porta, por assim dizer; temos direito de entrada,


temos acesso, temos ingresso. Este é um termo bastante forte, já empregado
pelo apóstolo no versículo 18 do capítulo dois.

Depois o apóstolo acrescenta outra palavra — confiança. Ele mostra-se tão


interessado em firmar este ponto que diz a mesma coisa de três maneiras
diferentes, por assim dizer. Alguns pedantes chamariam a isso verbosidade
ou tautologia; o apóstolo o faz para ênfase. E naturalmente o faz porque
sabe como somos lentos para aprender estas coisas. Conhece os nossos
insucessos na oração, pelo que continua dando ênfase a isso e continua a
repeti-lo uma e outra vez. A confiança está sempre no fim de um processo.
Quando alguém tem confiança, significa que esteve praticando alguma coisa
tão diligentemente que agora está seguro quanto àquilo.

Pense, por exemplo, em como aprender a andar de bicicleta. No primeiro


momento em que a mão daquele que o está ensinando o largou, você ficou
hesitante, inseguro e apavorado. Mas logo você chega ao ponto em que,
tendo andado sozinho bom numero de vezes, conseguiu ter confiança, e está
pronto para ir sozinho pelas ruas e pelas praças, e para subir e descer
morros. Você desenvolveu confiança. É sempre resultado de um processo. O
orador pode ficar nervoso quando começa a falar, porém depois de proferir
algumas frases, perde o nervosismo e ganha confiança. Esse é o termo
empregado pelo apóstolo, e significa que podemos ir à presença de Deus
com confiança, graças a um processo pelo qual passamos; é resultado de
alguma coisa que aconteceu.
Em todo o Novo Testamento aprendemos que a confiança é um elemento
essencial da oração verdadeira: ousadia, acesso, confiança! Um notável
exemplo deste ensino encontra-se no capítulo 10 da Epístola aos Hebreus:
“Tendo pois, irmãos, ousadia para entrar no santuário... cheguemo-nos com
verdadeiro coração, em inteira certeza de fé...” (versículos 19-22).

Agora devemos dirigir a atenção ao segundo princípio e considerar o que é


que possibilita este meio de entrada à presença de Deus. Como poderei ter
esta ousadia e este acesso com confiança? Só se pode dar uma resposta e, em
vista da sua importância, Paulo no-la diz duas vezes neste versículo: “No
qual temos ousadia e acesso com confiança, pela nossa fé nele". No qual! Ele!
Fé nEle significa fé da qual Ele é o objeto. Poder-se-ia declarar deste modo:
“No qual temos ousadia e acesso com confiança por meio da nossa fé nEle
(no Senhor Jesus Cristo)”. Evidentemente esta verdade é básica, é
fundamental. E, contudo, quão evidente é que pessoas que falam sobre a
oração muitas vezes a omitem

completamente! Uma das mensagens centrais do Novo Testamento é que


não há a mínima possibilidade de oração, ou de entrada à presença de Deus,
exceto em nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, por Ele e mediante Ele. Ele
mesmo disse: “Eu sou o caminho, e a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai,
senão por mim” (João 14:6). Escrevendo a Timóteo, Paulo diz: “Há um só
Deus, e um só Mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo homem” (1
Timóteo 2:5). Cristo é o único caminho; não há outro. E nós, será que
sempre vamos a Deus em Cristo, pela fé nEle e por meio dEle? Há sempre
muito interesse pela oração quando o mundo está com problemas. Quando
se esgotam os expedientes, as pessoas recorrem à oração e a Deus.
Entretanto, de acordo com as Escrituras — e eu não conto com outro
conhecimento que não este — não há entrada à presença de Deus, a não ser
no Senhor Jesus Cristo e por meio dEle. Se houvesse outros meios pelos
quais entrar, Ele nunca precisaria vir a este mundo. Ele veio e fez tudo que
era necessário fazer “para levar-nos a Deus”.

Exponhamos isto de maneira prática. Se compreendemos quem e o que


Deus é, como poderemos sequer pensar em ir a Ele por algum outro meio?
Pensem nas descrições que Ele fez de Si próprio como, por exemplo, aos
filhos de Israel na antigüidade, descrições da Sua santidade, da Sua
eternidade, da Sua majestade, do Seu poder. Quando estava neste mundo, o
Filho de Deus dirigiu-Se a Ele em oração dizendo-Lhe, “Pai santo” (João
17:11). “Deus é luz, e não há nele trevas nenhumas”, diz o apóstolo João (1
João 1:5). “O nosso Deus é um fogo consumidor”, diz a Epístola aos
Hebreus (12:29). Receio que muitas vezes não paramos para pensar em
Deus antes de nos dirigirmos a Ele em oração. Na verdade às vezes somos
incentivados por certos tipos de ensino a pensar que uma indulgente
familiaridade com Deus é por excelência a marca da espiritualidade.
Contudo, não se vê isso nas Escrituras.

Examinem todas as instruções que Deus deu aos filhos de Israel no Velho
Testamento sobre como Ele deve ser cultuado. Por que tiveram que
construir um tabemáculo, e depois um templo? Por que essas estruturas
eram divididas em vários compartimentos e seções? Por que o
compartimento interior mais adentrado era chamado “O Santo dos Santos”,
no qual ninguém tinha permissão para entrar, exceto o sumo sacerdote, e só
uma vez por ano? Por que Deus instituiu todo o cerimonial, incluindo
numerosos sacrifícios — ofertas queimadas, ofertas pelo pecado, ofertas
pela transgressão, e outras? Qual o significado disso tudo? Quem deu as
instruções foi Deus, não os homens. Não foram imaginadas pelas mentes dos
homens. Deus chamou Moisés e o fez subir a uma montanha, e lhe ensinou
como Ele devia ser

cultuado, dizendo: “Olha, faze tudo conforme o modelo que no monte se te


mostrou” (Hebreus 8:5). Há apenas uma explicação disso tudo: Deus estava
ensinando o Seu povo sobre a Sua santidade, a Sua eternidade e a Sua
majestade, e Ele lhes ensinou que esse era o único modo pelo qual eles
poderiam chegar à Sua presença. Só poderiam fazê-lo quando Lhe
trouxessem os sacrifícios e as ofertas; e ainda há aqueles que ensinam que
podemos lançar-nos descuidosos à presença de Deus, e nunca se menciona o
nome de Cristo! É tudo muito simples, dizem eles; não há necessidade de
preocupar-nos com teologia, eles falam; orar é muito simples, é tão simples
como respirar.

Esse ensino é uma negação de todo o Velho Testamento. E é uma negação do


Novo Testamento, com o seu ensino sobre a absoluta necessidade que temos
do Senhor Jesus Cristo e da Sua obra expiatória. Certamente tal ensino não
é nada senão psicologia, uma forma de auto--hipnotismo que persuade as
pessoas de que estão falando com Deus. O fato de que isto as faz sentir-se
melhor ou satisfeitas não é resposta. Com freqüência a psicologia faz a
pessoa sentir-se melhor. Uma pessoa pode persuadir-se de muitas coisas. As
seitas prosperam com base nesse fato. A única autoridade que temos sobre
esta questão são as próprias Escrituras. Como posso aproximar-me de
Deus? “Quem dentre nós habitará com o fogo consumidor?”, é a pergunta
feita por um dos profetas do Velho Testamento (Isaías 33:14). Toda vez que
algum deles recebia uma visão de Deus, embora pálida, vemo-lo cair a
tremer, rosto em terra, por causa da santidade e da majestade de Deus.

Então, de novo, que direi à minha consciência? Quando vou à presença de


Deus, minha consciência me lembra os meus pecados, a minha indignidade,
o mal que tenho praticado e no qual tenho pensado? Como posso
apresentar-me a Deus com a consciência transparente e com a certeza de
que Deus me perdoará? Depois, além e acima dessa consideração, como
terei possibilidade de manter comunhão e companheirismo com Deus? Sei o
que é ficar nervoso na presença de grandes homens e mulheres; sei o que é
sentir-me verme, e menos que verme, quando na presença de um santo. À
luz disso, como posso manter conversação com Deus? Sinto-me vil, sórdido e
indigno; como posso fazê-lo? Eis as perguntas: como posso ter certeza que
Deus tem boa disposição para comigo? Como posso ir ali com ousadia?
Como posso estar seguro de que tenho ingresso, acesso, de que serei
aceito? Como posso ter confiança? Há só uma resposta — “pela fé nele”.

O único modo de ir à presença de Deus com segurança é saber que o Filho


de Deus levou os meus pecados, a culpa e a punição destes em Seu próprio
corpo no madeiro. Somente quando sei que Deus levou embora o meu
pecado e a minha culpa, que Ele me revestiu da justiça

do Seu Filho e que quando me ponho diante dEle, Ele não vê os meus trapos
sujos, e sim a perfeita roupagem da justiça produzida por Jesus Cristo para
mim — somente então poderei ir a Deus com ousadia. Quem preparou essa
roupagem foi o Filho de Deus, e me foi dada por Ele; assim eu sei que sou
aceito. Não há outro caminho. Como diz o capítulo 10 de Hebreus: “É
impossível que o sangue dos touros e dos bodes tire os pecados” (versículo
4). Cobria o pecado pelo período aprazado, mas não podia limpar realmente
a consciência. E, contudo, há os que ensinam que você não tem necessidade
de fazer nenhuma oferta — nem do sangue de touros e bodes, nem das
cinzas de uma novilha, nem do Filho de Deus e do Seu sangue derramado
— simplesmente você vai a Deus como você é!

Sem Cristo não podemos orar verdadeiramente. Como de novo diz o autor
da Epístola aos Hebreus: “Visto que temos um grande sumo sacerdote,
Jesus, Filho de Deus, que penetrou nos céus, retenhamos firmemente a
nossa confissão. Porque não temos um sumo sacerdote que não possa
compadecer-se das nossas fraquezas; porém um que, como nós, em tudo foi
tentado, mas sem pecado. Cheguemos, pois, com confiança (ousadia;AV) ao
trono da graça, para que possamos alcançar misericórdia e achar graça, a
fim de sermos ajudados em tempo oportuno” (4:14-16).

Sabemos o que aconteceria com o tipo de gente que pensa que pode entrar
no Palácio de Buckingham e aparecer diante da rainha na hora que quiser;
seria logo abordado e posto para fora, e talvez lançado na prisão, como
merecia. E ainda há pessoas que imaginam que, justamente como estão, sem
nenhuma meditação ou mediação, podem comparecer na presença de Deus!
Há só Um que pode introduzir você, há só Um que pode rubricar o seu
cartão de visita. É o Filho de Deus, e Ele escreveu Seu nome com o Seu
próprio sangue. Graças a Deus, não importa quem ou o que você é, nem as
profundezas do pecado em que se afundou, nem em que lamaçal tenha
passado a sua vida, andando e rastejando no pecado. Se você tem esse
cartão com a assinatura feita com sangue, as portas do céu estão abertas
para você, e pode entrar com “ousadia”, você tem “acesso com confiança”
pela fé nEle!

Para sermos mais práticos ainda, consideremos outra questão. Se esta é a


única maneira pela qual eu posso ter esta ousadia e acesso com confiança,
que devo fazer para tomar isto uma realidade para mim mesmo e na minha
experiência pessoal? O ensino que estivemos considerando terá que ser
aplicado; ele não se aplica sozinho. É possível aos cristãos crerem em tudo
que eu estou dizendo e, todavia, jamais saberem realmente o que é orar com
“ousadia” e “ter acesso com

confiança". Isto é porque nunca aplicaram o que sabem. Realmente, nunca


tomaram posse pela fé da verdade vital, e nunca a utilizaram de maneira
certa; pois há certas coisas que precisamos fazer, se queremos ter esta
ousadia e acesso com confiança.

A primeira é que precisamos compreender que não devemos apoiar-nos em


nossos sentimentos, caprichos ou disposições de ânimo. Isto é básico.
Quando você se ajoelha para orar, porventura não acha que às vezes fica
subitamente insensível e sua mente fica vagando por longes plagas? Não lhe
parece estar orando, você está cheio de duvidas e incertezas, os seus pecados
retomam a você, e você acha quase impossível orar? Se der ouvidos a esses
caprichos e pensamentos, nunca orará. A primeira coisa que temos que
fazer é dar o devido tratamento a estes caprichos, sentimentos, disposições
de ânimo e condições internas. Temos que dar-nos conta de que eles não
provêm só do corpo, mas também do diabo, cujo supremo objetivo é
impedir-nos esta comunhão com Deus. Devemos considerá-los todos
como enviados por ele. São os “dardos inflamados” que o diabo lança
em você, e principalmente quando está de joelhos, em oração. Reconheça a
fonte e origem deles, reconheça que são “do diabo” e, tomando pé com
firmeza, rejeite-os. Você tem que fazer isso. A oração é trabalho duro, é
tarefa. Você não deve “relaxar”, como ensinam as seitas, mas, antes, deve
revigorar-se e disciplinar-se. Deve aprender a agonizar em oração.

Depois, tendo tratado assim os seus sentimentos, caprichos e disposições de


animo, deve começar a pregar para si mesmo. Mais que nunca estou
convencido de que o problema com muitos cristãos é que eles não pregam
para si mesmos. Todo dia devemos passar algum tempo pregando para nós
mesmos, mormente quando estivermos de joelhos, em oração. Com pregar a
si mesmo quero dizer que, quando você estiver de j oelhos, e todos estes
pensamentos, duvidas e incertezas se acumularem sobre você, os seus
pecados se levantarem contra você, e você achar que não tem direito de orar
e que é quase um canalha quando o faz — digo eu, você primeiro deve
compreender de onde eles vêm, e depois começar a lembrar-se das verdades
centrais da fé cristã. Você deve lembrar-se da grande doutrina que
estivemos considerando juntos. Você dirá: “Naturalmente sou um pecador;
quando o diabo me disse que eu era pecador, tinha toda a razão. Ele disse
isso para me desanimar; mas vou usar isto para me ajudar. Naturalmente
que sou pecador! Deus é santo e eu sou vil, e nem chego a compreender
como sou vil. Muito bem; então, como poderei orar? Como poderei ir
à presença de Deus? A resposta é que Deus mesmo abriu o caminho
para mim; Ele o providenciou. Ele enviou Seu Filho unigênito a este mundo

para levar sobre Si os meus pecados, para morrer por mim. Cristo cumpriu
a lei por mim e me vestiu com a Sua roupagem de perfeita justiça. Vestido
com ela, posso ir à presença de Deus”. Havendo-se convencido disso, você
obtém confiança e começa a orar.

Desse modo você terá que, solene e especificamente, lembrar-se do que é e


do que tem feito, como também de que o Deus a quem está se dirigindo é o
Deus que Se revelou. Terá que ver a absoluta necessidade que temos de
Cristo, e de saber que Ele realmente lhe dá cobertura em todos os aspectos.
Assim, vestido com a justiça de Cristo, e tendo Cristo com você, você vai à
presença de Deus. João, em sua primeira Epístola, afirma isso da seguinte
maneira: “Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo, para nos
perdoar os pecados, e nos purificar de toda a injustiça”. Isso ele diz no
contexto de “o sangue de Jesus Cristo que nos purifica de todo o pecado”
(1:7-9). Ele prossegue, dizendo: “Se alguém pecar, temos um Advogado para
com o Pai, Jesus Cristo, o Justo. E ele é a propiciação pelos nossos pecados”
(2:1-2). É isso que você dirá a si próprio. Não espere até melhorar o seu
estado de animo; e não vá simplesmente falando a despeito da sua
disposição ou do seu estado de ânimo. Você terá que dizer a si próprio:
“Apesar de eu ser um pecador, e apesar de eu não sentir nada, creio no
Senhor Jesus Cristo. Sei que nunca me farei apto para ir à presença de
Deus; mas creio neste registro feito nas Escrituras. Portanto, o que quer que
eu sinta ou deixe de sentir, eu creio que Cristo, o Filho de Deus, morreu por
mim e pelos meus pecados; e que, portanto, tenho tanto direito de ir à
presença de Deus como o tem o maior santo”.

E depois, imediatamente você dará graças a Deus por tudo isso — “pela
oração e súplicas, com ação de graças”, diz este apóstolo, quando ensinava
os filipenses a orar (4:6). Esqueça por ora todas as suas necessidades e
desejos, até mesmo aquela coisa particular que o levou a orar. Antes disso,
apenas agradeça a Deus o Seu amor, agradeça-Lhe a Sua misericórdia e
compaixão, dê-Lhe graças por enviar o Seu Filho a um mundo como este;
dê-Lhe graças por ir à cruz e morrer por você; dê-Lhe graças por enviar o
Espírito Santo. Derrame o seu coração em louvor e ação de graças. Logo
você achará liberdade; seu coração se comoverá e, pela primeira vez em sua
vida, você saberá o que é “ousadia e acesso com confiança”. Então ore,
rogando a Deus que derrame o Seu Santo Espírito amplamente em seu
coração, de modo que venha a experimentar a autenticação de todas estas
coisas. Precisamos ir à presença de Deus empregando as palavras que o
conde Zinzendorf escreveu, e que João Wesley traduziu:

Jesus Cristo, o Teu sangue e a Tua justiça minha elegância são, gloriosas
vestes; entre os mundos em chamas, com tal traje alçarei a cabeça, jubiloso.

Ousado me erguerei no grande dia; pois quem irá fazer pesar meu fardo ?
Mediante as vestes já fui absolvido do pecado e temor, da culpa e opróbrio.

Se fizermos o que estou tentando dizer, e depois formos com ousadia à


presença de Deus, sabe o que vai acontecer? (Não é surpreendente que o
apóstolo tenha trazido estes efésios a este ponto prático.) O que acontecerá é
o que o apóstolo Tiago diz no capítulo quatro da sua epístola: “Chegai-vos a
Deus, e ele se chegará a vós” (versículo 8). Essa é a maior coisa que se pode
ouvir nesta vida. Vá à presença de Deus com ousadia e acesso com
confiança, pela fé em Jesus Cristo, e você se encontrará com Deus. Você se
dará conta da Sua presença; terá suporte não só de uma percepção da Sua
glória e da Sua consolação, da Sua força e do Seu poder, mas também de
uma percepção do Seu amor, da Sua bondade e da Sua compaixão. Você
saberá que é filho dEle e que Ele é seu Pai. Você saberá, e será capaz de
dizer que “todas as coisas contribuem juntamente para o bem daqueles que
amam a Deus”. Você ficará persuadido de que “nem a morte, nem a vida,
nem os anjos, nem os principados, nem as potestades, nem o presente, nem o
porvir, nem a altura, nem a profundidade, nem alguma outra criatura nos
poderá separar do amor de Deus, que está em Cristo Jesus nosso
Senhor!” Você poderá dizê-lo nos termos deste outro hino:

No amor celestial permanecendo, não temerei mudança; firme, segura e certa é


tal confiança, pois nada aqui vai mudar:

Pode a tormenta ao meu redor rugir, meu coração desmoronar; porém, ao meu
redor está meu Deus, poderei fraquejar?

“Chegai-vos a Deus, e ele se chegará a vós.”


ORANDO AO PAI

“Por causa disto me ponho de joelhos perante o Pai de nosso Senhor Jesus
Cristo, do qual toda afamília nos céus e na terra toma o nome. ” Efésios 3:14-
15

A Versão Revista (Revised Version) omite as palavras “de nosso Senhor


Jesus Cristo” e traduz deste modo: “Por causa disto me ponho de joelhos
perante o Pai, do qual toda a família nos céus e na terra toma o nome”. Com
ligeira variação, a Versão Revista Modelo (Revised Standard Version) a
segue de perto. Com estas palavras o apóstolo toma o assunto que
obviamente pretendera tomar no início do capítulo, como vimos quando
estávamos examinando o versículo primeiro. Notem que o versículo
primeiro começa com as palavras “Por esta causa”, como também o
versículo 14.1 Ele estava para dizer aquilo que agora vai dizer, depois do
versículo 15. Seu grande interesse, como ele diz no versículo 13, é: “Portanto
vos peço que não desfaleçais nas minhas tribulações por vós, que são a vossa
glória”. Ele abrira o seu caminho através da grande digressão, e agora
retoma àquilo que originariamente tivera a intenção de dizer.

A expressão “Por causa disto” no versículo 14, como no versículo 1, refere-


se ao que o apóstolo estivera dizendo no fim do capítulo 2. Portanto, em
nossa exposição da afirmação que vamos examinar, devemos ter o cuidado
de assegurar-nos de que se ligue com o que fora dito no fim do capítulo 2.
Seu ponto essencial era mostrar a estes efésios que eles tinham sido
introduzidos num estado de completa unidade, na Igreja Cristã, com os
judeus que também tinham crido no evangelho. Vós não sois mais, garantiu-
lhes ele, “separados e estranhos, mas concidadãos dos santos, e da família de
Deus; e sois edificados sobre o fundamento dos apóstolos e profetas, sendo
Jesus Cristo mesmo a principal pedra da esquina; no qual todo o edifício
bem ajustado, cresce para templo santo no Senhor; no qual também vós
juntamente sois edificados para morada de Deus em Espírito”. Essa é a
elevada concepção e descrição que ele faz ali da Igreja Cristã.

É-nos claramente importante que tenhamos em mente a conexão, pois é só


quando nos lembramos do que Paulo vem dizendo que temos a possibilidade
de entender o que ele está para dizer agora. Esta outra verdade, esta oração
que agora ele vai oferecer em favor destes efésios, surge por causa da
posição deles como concidadãos dos santos e como membros da família de
Deus. Pertenciam à família de Deus e constituíam parte do templo santo no
Senhor em que Deus faz a Sua habitação pelo Espirito. Tendo isso tudo em
mente, podemos acompanhar o apóstolo quando diz a estes efésios que ele
está orando por eles. “...me ponho de joelhos perante o Pai”.

Por ora me proponho apenas a fazer alguns comentários sobre o modo pelo
qual o apóstolo introduz a grande oração que oferece pelos efésios. A
primeira coisa que se deve acentuar é que ele ora por eles. E, tomando isto
em seu contexto, é uma coisa de grande valor para nós. Quando Paulo
estava escrevendo esta carta era prisioneiro; esta é uma das “epístolas da
prisão”. Provavelmente era prisioneiro em Roma, porém isto é pouco
importante. O importante para nós é saber que ele está realmente dizendo
que, embora prisioneiro, embora um perverso inimigo o tenha encarcerado,
o tenha posto em grilhões, o tenha impossibilitado de visitá-los em Éfeso e
de pregar-lhes (ou de ir a qualquer outro lugar para pregar) há uma coisa
que o inimigo não pode fazer — não pode impedi-lo de orar. Ele ainda pode
orar. O inimigo pode confiná-lo numa cela, pode meter ferrolhos e trancas
nas portas, pode algemá-lo a soldados, pode pôr grades nas janelas, pode
enclausurá-lo e confiná-lo fisicamente, entretanto nunca poderá obstruir o
caminho do coração do crente mais humilde para o coração do Deus
eterno. De muitas maneiras, neste nosso incerto mundo moderno esta é
uma das mais confortantes e consoladoras verdades que podemos
aprender. Pensem no que isto significa para centenas, para não dizer
milhares de cristãos em diversas partes do mundo neste momento. Alguns
estão na prisão, alguns em campos de trabalho forçado. Estão sujeitos
a incontáveis sofrimentos e indignidades, porém graças a Deus ainda podem
asseverar que “muros de pedra não fazem uma prisão, nem barras de ferro
uma jaula”. O espírito de oração continua livre, apesar de toda a
malignidade dos cruéis tiranos. Os homens podem proibir-nos de falar com
os lábios, mas ainda que juntassem os nossos lábios e os costurassem,
poderíamos continuar orando em nossos espíritos, poderíamos continuar
orando a Deus.

Isto será sempre aplicável a nós, sejam quais forem as nossas circunstâncias
e condições. Há ocasiões em que parece que nós, cristãos, estamos numa
espécie de prisão. Podemos ser enclausurados e amarrados, talvez por
alguma doença ou debilidade física, ou pelas
circunstâncias, ou pode ser que as circunstâncias nos impeçam de vir à casa
de Deus ou de manter companheirismo com outros. Com frequência os
cristãos se vêem nessas circunstâncias ou condições. Lembremos que, o que
quer que as circunstâncias ou os perversos nos façam, sempre estará aberto
para nós este ministério e atividade. Nada terá por que impedi-lo. Noutras
palavras, se você se achar doente e preso ao leito, não significa que será
inútil durante esse período, não significa que não poderá fazer nada. Ainda
poderá orar. Poderá orar por si mesmo; poderá orar por outros; poderá
tomar parte num grande ministério de intercessão.

Às vezes temo que nos inclinamos a esquecer isto. Tomamo-nos uma geração
de cristãos tendentes a viver de reuniões. Isto pode soar estranho numa
época em que a frequência à igreja é muito baixa. Não obstante, penso que é
verdade que os que ainda se reúnem tendem a depender demais da sua
frequência às reuniões e a achar que, quando são deixados de lado em seus
leitos de enfermidade, não há nada que possam fazer, exceto esperar até
ficarem bem de saúde novamente. Isso é uma total falácia. Paulo estava
muito ativo e ocupado na prisão. Passava o tempo, deduzimos, em oração
por várias igrejas. Vemos nas epístolas da prisão que ele afirma que estava
orando constantemente, diariamente por elas. Ocasionalmente podia enviar-
lhes cartas, embora apenas algumas tenham sobrevivido. Contudo ele
constantemente amparava todas as igrejas com as suas orações, e orava
pelas pessoas a elas pertencentes. Estava exercendo um grande ministério
na prisão. Não era o seu ministério usual, pois ele era pregador, evangelista,
era um mestre incomparável. Ele não diz aos seus amigos que agora
não pode fazer nada, pois está sem ânimo na prisão, e a única coisa que
pode esperar é que, de um modo ou de outro, logo seja posto em
liberdade. Absolutamente não! Esta tremenda atividade na oração
continua. Tenhamos este fato em mente.

E quanto mais há pelo que orar na época atual, com o mundo como está, e
com tantos cristãos sofrendo como estão! Posso fazer uma pergunta simples
e óbvia? Quanto do nosso tempo dedicamos diariamente à oração em favor
de cristãos doutros países? Temos o tempo e o vagar; nem estamos na
prisão. Temos tempo para fazer muitas coisas não essenciais e nem mesmo
proveitosas. Quanto tempo estamos dedicando à intercessão e à oração pelos
outros? Somos chamados para levar as cargas uns dos outros, para
compartir os infortúnios uns dos outros. Eis aqui um homem que fez isso na
prisão tendo tudo contra ele. Vamos, digo eu, vamos dar ouvidos a este
chamamento para a oração. Assim como Paulo sabia que podia ajudar os
efésios orando por eles, nós também podemos ajudar outras pessoas —
pessoas com as quais

talvez nunca nos tenhamos encontrado, mas sabemos que nesta hora estão
sofrendo e estão com vários tipos de problema. Passemos algum tempo
junto ao trono da graça em favor delas.

A seguir lembra-nos aqui o apóstolo que a oração é sempre necessária como


instrução. Seria um grande engano ficarmos com a impressão de que o
apóstolo estava orando por estes efésios só porque não lhes podia pregar; no
entanto quero deixar igualmente claro que não foi esse o seu único motivo
para orar por eles. Estivesse ele em liberdade, continuaria orando por eles.
Aqui, mais uma vez, está um principio que parece um tanto negligenciado
por nós. É essencial que oremos por nós mesmos como o é que nos
instruamos. Acreditamos que temos necessidade de instrução: lemos a
Bíblia, lemos comentários, lemos livros sobre a história da Igreja, lemos
livros sobre doutrina. É certo fazê-lo, é essencial; nunca poderemos saber
demais. Precisamos de instrução, precisamos de esclarecimento — para isso
estas Epístolas foram escritas. O apóstolo acreditava que a doutrina é
essencial; a instrução deve ter prioridade. Mas transmitir conhecimento não
basta. É igualmente essencial que oremos — que oremos por nós mesmos,
para que Deus nos faça receptivos ao conhecimento e à instrução; que
oremos para sermos capacitados a agasalhar o conhecimento recebido e
aplicá-lo; que oremos para que não fique só em nossas mentes, e sim que
se apegue aos nossos corações, dobre as nossas vontades e afete o
homem todo. O conhecimento, a instrução e a oração devem andar
sempre juntos; jamais devem estar separadas.

A oração é igualmente necessária em nossos procedimentos para com os


outros. Isso é deveras proeminente aqui, por certo. Paulo estava escrevendo
esta rica e profunda doutrina, e ele sabia que os efésios a iriam ler, discutir e
estudar juntos. Mas sabia que isso não é suficiente, de modo que orava no
sentido de que o ensino que lhes ministrava se tomasse real para eles. E
sabia que nunca poderia tornar-se real, a não ser sob a direta bênção de
Deus. O melhor ensino do mundo é inútil, se o Espírito não o toma, não o
aplica e não abre o nosso entendimento para ele, e não lhe dá um amplo e
profundo lugar em todo o nosso ser para abrigá-lo. Já vimos no capítulo
primeiro como o apóstolo estivera orando pelos cristãos efésios para que
“tivessem iluminados os olhos do seu entendimento.” Pois se o Espírito não
abrisse “os olhos do seu entendimento”, o ensino do apóstolo seria
completamente inútil e vazio.

Tiremos uma lição muito prática disso. Todos nós temos amigos não
cristãos,com os quais nos preocupamos. Desejamos muito ajudá-los e lhes
falamos acerca destas coisas. Citamos e explicamos as Escrituras

para eles. Tentamos mostrar-lhes a atitude e a posição cristãs com respeito


às presentes condições da vida em todos os seus aspectos. Todavia devo
salientar que se pararmos aí, poderá dar em nada. Não se pode levar
ninguém à vida cristã pelo raciocínio. Vocês podem dar as razões para
crerem, mas não podem levá-los a crer pela razão. Vocês podem pôr a causa
diante deles, mas não podem prová-la como se fosse questão de um teorema
da geometria. Devemos compreender que, enquanto os instruímos, devemos
orar por eles também. É só quando o Espírito Santo lida com eles e os
prepara e abre o entendimento deles, que eles podem receber a verdade.

O apóstolo é perfeitamente coerente com a sua doutrina. Ele sabia que era
tão essencial orar por estes efésios como instruí-los por meio desta Epístola.
Nós, igualmente, jamais deveremos esquecer que a instrução e a oração
andam juntas. Se você, irmão, está interessado numa pessoa em particular, e
deseja a sua salvação, você não deve ficar só nisso de favorecê-la, ajudá-la,
gastar tempo com ela e expor-lhe a verdade; também deve orar por ela. De
fato vou longe a ponto de dizer que, se você não der mais peso à sua oração
do que à instrução que lhe oferece, o seu trabalho terá a probabilidade de
ser um fracasso. Note o lugar dado à oração intercessória no Novo
Testamento. É extraordinário e espantoso, e é exemplificado
particularmente no apóstolo Paulo. Observe também quão dependente era
Paulo das orações doutros cristãos. Na maioria das suas cartas ele insta com
eles para que orem por ele. Ele os concita a orar no sentido de que haja para
ele uma porta à oportunidade, de que tenha liberdade, e assim por diante.
Ele compreendia plenamente a sua dependência das orações alheias.
Nalguns aspectos isto é um mistério; e alguns são tentados a dizer: Deus é
Todo--poderoso, não há nada que Ele não possa fazer; por que, pois,
há necessidade de oração? A resposta é que Deus, em Sua sabedoria eterna,
escolheu operar deste modo. Ele faz divisão do trabalho e, de um modo ou
de outro, usa as nossas orações e leva os Seus grandes propósitos à execução
mediante a instrumentalidade da intercessão dos santos.
Outra importante questão que devemos notar é a maneira pela qual o
apóstolo ora; ou seja, devemos dar atenção ao método, modo ou maneira da
sua oração. Vê-se aqui uma coisa notável e significativa. “Por causa disto
me ponho de joelhos perante o Pai.” Não é preciso afirmar que no momento
em que escrevia, o apóstolo se pôs de joelhos literalmente. Pode tê-lo feito;
não sei. Mas o que evidentemente ele está dizendo é que orava por eles, e o
que nos interessa é o modo como ele decidiu descrever a oração. Ele não
orava ao acaso, acidentalmente,

porém muito deliberadamente. Sob a inspiração divina o homem não fala


casualmente, não diz coisas acidentalmente. Muito
deliberadamente, quando vem a falar sobre a oração que faz, diz ele:
“Ponho-me de joelhos”.

Esta expressão nos coloca face a face com a questão geral da nossa postura
na oração. É um ponto que tem perturbado muitas pessoas de duas
maneiras diametralmente opostas; a tendência é ir de um extremo a outro.
Contudo as Escrituras são muito claras sobre a questão. Elas ensinam que
às vezes os homens dobram os joelhos ou se ajoelham para orar; mas
igualmente é clara em seu ensino que outros ficam de pé para orar. Ambos
os métodos são mencionados nas Escrituras, e ainda outros, como prostrar-
se em terra.

Esta questão deve reter-nos por um momento, porque pode ser manipulada
de maneira errônea, e até estulta. Há dois extremos que devemos observar.
Um é o formalismo, e o outro é a irreflexão ou negligência. O formalismo
virtualmente ensina que, se não ajoelharmos de verdade, não estaremos
orando de modo algum. Há gente que acredita sinceramente que os não-
conformistas, isto é, pessoas não anglicanas nunca oram verdadeiramente
na igreja simplesmente porque não se ajoelham. Para tais pessoas o
ajoelhar-se é vital e essencial à oração. Esquecem-se totalmente das
referências bíblicas ao ficar de pé. Podemos colocar dentro da mesma
categoria todos os que pensam que as formas de liturgia são absolutamente
essenciais. Do outro lado estão os que afirmam o princípio da liberdade. No
entanto, também é possível exagerar no princípio da liberdade, dando em
licença, frouxidão, relaxamento e irreflexão, podendo levar a um modo de
orar totalmente indigno de Deus.

Certamente o princípio vital envolvido é que o que importa não é a postura


ou a atitude por si só, mas o que esta representa ou indica. Dobrar os joelhos
é uma indicação de reverência, daquilo que o autor da Epístola aos Hebreus
quer dizer quando escreve no capítulo 12, sobre “reverência e piedade”.
Indica uma atitude de culto, adoração e louvor. É óbvio que alguém pode
cair sobre os joelhos mecanicamente, quando são pronunciadas certas
palavras, mas o coração pode estar longe. Há pessoas cuja reverência é
inteiramente determinada pelo tipo de edifício em que elas se acham. Se se
vêem em tipos de edifícios semelhantes a catedrais, caminham suavemente e
falam sussurrando; porém assim que saem, podem até blasfemar e
amaldiçoar. Assim, o que fazem no edifício não é demonstrar reverência, é
simplesmente refletir que o edifício as afeta psicologicamente. As Escrituras
não estão interessadas nesse tipo de comportamento. Há homens que podem
ser sumamente devotos em sua postura, fazendo o sinal da cruz

ou cunhando outras atitudes; mas isso não tem valor, se não for verdadeira
expressão do estado dos seus corações. Contudo — e isto precisa ser
salientado — o estado do coração expressa-se inevitavelmente. E é aqui que
a expressão utilizada pelo apóstolo é tão interessante.

Este assunto está ligado diretamente ao que estivemos considerando sobre a


magnífica e animadora declaração do apóstolo: “No qual temos ousadia e
acesso com confiança, pela nossa fé nele”. Como é vital que isso esteja
sempre acoplado a “Ponho-me de joelhos”, a fim de lembrar-nos de que
ousadia não significa descaramento, e que confiança não significa
familiaridade fácil. Ousadia junto ao trono da graça não é presunção.
Confiança não é atrevimento. Acentuo isto porque existem aqueles que
parecem pensar que a marca por excelência da espiritualidade e da
segurança da salvação é orar a Deus com familiaridade frouxa e verbosa, o
que é uma completa negação daquilo que é ensinado aqui e em toda parte
das Escrituras.

Há um tipo de pessoa que pensa que, se você quer provar quanto é


espiritual, terá que orar à moda comercial. Deverá proferir petições curtas,
petições quase telegráficas. Essa gente ensina que você deve estar tão seguro
da sua posição diante de Deus que ignorará por completo isso de “temor e
tremor”, na verdade ignorará todo e qualquer ato de culto e adoração antes
de apresentar os seus pedidos. Muitas vezes, infelizmente notei isto em
congressos de cristãos conservadores. Com frequência a reunião de oração é
dirigida da seguinte maneira: lê-se uma lista de coisas pelas quais orar, os
chamados pedidos de oração, e depois o dirigente diz: “Bem, agora vamos
ao trabalho, vamos orar”. E assim as pessoas presentes se levantam uma
após outra e apenas elevam petições muito curtas concernentes a estes
vários problemas. Estive em reuniões desse tipo e não hesito em afirmar
que não houve ali nenhuma adoração. Deus não foi cultuado, não
foi louvado, não foi adorado. Nem mesmo Lhe deram graças por
Suas grandes mercês. Não houve menção de Sua majestade e de Sua
glória. Não houve o “dobrar de joelhos”. Alguns talvez se tenham
ajoelhado literalmente, porém seus espíritos não se curvaram. Tudo era
tomado como líquido e certo.

Essa é a atitude que a declaração de Paulo corrige tão drasticamente. É uma


atitude que, longe de ser um sinal de espiritualidade é, na verdade, o
inverso. Sua base está na ignorância — ignorância quanto às Escrituras e
ignorância quanto a Deus. Se já houve um homem que conheceu a Deus, se
houve um homem que conheceu o caminho para a presença de Deus, foi este
vigoroso apóstolo; e, todavia, ele “dobra os seus joelhos”. Ele sabia de quem
se aproximava. Não agia em termos

de uma verbosa familiaridade com Deus. “Ousadia e acesso com confiança”,


sim, mas juntamente com “reverência e santo temor”, pois “o nosso Deus é
um fogo consumidor”. Recordemos a interpretação do versículo 12, segundo
a qual devemos livrar-nos de um covarde temor porque conhecemos as
bases da nossa posição, e também sabemos que temos acesso e entrada à
presença de Deus. No entanto isso não significa que podemos caminhar
atrevidamente, com o peito para a frente, por assim dizer, para a presença
do Deus Todo-poderoso. Devemos estar sempre e humildemente cientes do
nosso grande privilégio. Sabemos que temos acesso, entretanto lembramos
de que se trata de acesso à presença do Deus vivo, em toda a Sua glória e
poder. “Ponho-me de joelhos.” Culto, adoração, louvor! Jamais
devemos começar a fazer petições particulares enquanto primeiro não
tivermos prestado culto, louvor e ação de graças a Deus, e não nos
tivermos submetido completa e inteiramente a Ele.

A palavra perante — “me ponho de joelhos perante” — é muito expressiva e


significa “frente a” ou “face a face”. Ele dobra os joelhos para ficar face a
face com Deus. No momento em que compreendermos que a oração
significa vir e ficar face a face com Deus, não poderemos fazer outra coisa
senão dobrar os joelhos. Quando Isaías teve a sua visão de Deus, disse: “Ai
de mim, pois sou homem de lábios impuros” (6:5). Quando João teve a sua
visão “em Patmos, caiu por terra como morto” (Apocalipse 1:17). Não seria
necessária esta exortação se tivéssemos uma real concepção da glória de
Deus. Se tão-somente tivéssemos um vislumbre de Deus, tremeríamos ao
estar face a face com Ele. Demos de novo graças a Deus por isto. Onde quer
que estejamos, quaisquer que sejam as nossas circunstâncias, no
Senhor Jesus Cristo e por meio dEle podemos vir e estar face a face com
Deus. “Todos nós, com cara descoberta, refletindo como um espelho a
glória do Senhor... ” — diz o mesmo apóstolo aos Coríntios (2 Coríntios
3:18).

Finalmente chegamos à descrição que o apóstolo faz aqui de Deus, Aquele


de quem ele se aproxima de espírito humilde e ajoelhado em seu coração.
Diz ele que vem “ao Pai, do qual toda a família nos céus e na terra toma o
nome”. A Versão Autorizada (Authorized Version) e Almeida, Revista e
Corrigida têm “o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo”, ao passo que outras
versões tem simplesmente “o Pai”. Isto é pura questão de crítica textual que
em nada afeta o sentido. O apóstolo já deixara mais que claro que Deus só é
nosso Pai no Senhor Jesus Cristo e por meio dEle.

No versículo 15 temos uma afirmação sumamente interessante. “Do qual”


significa realmente “Segundo o qual” ou na verdade “Procedente

do qual”. Quanto ao restante da afirmação, a Versão Autorizada (e


Almeida) tem “Do qual toda a família nos céus e na terra toma o
nome”. Certas outras traduções tem “Do qual (ou procedente do qual) toda
a família nos céus e na terra toma o nome”. Em última análise, a
diferença não é séria; mas a interpretação feita particularmente varia
conforme a tradução ou versão adotada. A tradução “Do qual (ou
procedente do qual) toda a família nos céus e na terra toma o nome” coloca
a ênfase na palavra “família” com o sentido de “pertencente a uma
linhagem comum”. Esse e o significado da palavra “família” propriamente
dita. Pode significar também tribo ou classe ou nação. Além disso,
toda família tem um nome de família. O nome de família deriva de um
pai originário; as tribos de Israel todas tomaram seus nomes
deumhomem em particular. “Nosso Senhor veio da família e linhagem de
Davi”; Ele era “da descendência de Davi segundo a carne”. Todos os
grupos receberam seus nomes de uma procedência semelhante a essa. E
assim, de acordo com esta interpretação, o que o apóstolo está dizendo aqui
é que todas estas distinções e divisões em famílias, tribos, grupos e nações,
que reconhecem algum líder ou pai, são apenas pálidos reflexos do fato de
que Deus é o Pai de todos; Ele é o Pai de todas as famílias, de cada família.
Ele é Aquele de quem deriva todo parentesco ou toda paternidade
subsidiária. Portanto, em última instância, Ele é o Pai de todos.

Observemos que o apóstolo não cüz somente “na terra”, e sim também “nos
céus” —"toda a família nos céus e na terra” — e a linha de interpretação a
que me referi há pouco dá a seguinte explicação. No versículo 10 Paulo diz:
“Para que agora os principados e potestades nos céus”; e no fim do capítulo
primeiro ele escreveu mais detalhadamente ainda, dizendo que Cristo está
“acima de todo o principado, e poder, e potestade, e domínio, e de todo o
nome que se nomeia”. Há diferentes grupos no céu; os seres angélicos se
dividem em anjos e arcanjos, e há várias outras subdivisões. Dividem-se,
por assim dizer, em grupos, famílias e tribos. Assim aqui, conforme
afirmam, o apóstolo está dizendo que não somente toda paternidade, nação,
tribo e divisão tem sua origem última na paternidade de Deus, mas também
que os próprios agrupamentos do céu estão todos sob esta paternidade
universal. Na verdade dizem que o Velho Testamento se refere aos anjos
como “filhos de Deus”, de modo que, num sentido, eles são Sua prole, e
Deus é o seu Pai.

Esta linha de exposição é verdadeira; porém é verdadeira só no sentido em


que Deus é o Criador de todos. O apóstolo seguiu esta linha quando,
pregando em Atenas, disse: “Pois somos também sua geração (de Deus)”
(Atos 17:28). Nesse sentido o mundo todo é geração de

Deus. Ele é o Pai no sentido em que é o Criador de todos. Se isto for mantido
em mente, a interpretação a que me referi é legítima e veraz. E contudo,
quanto a mim, não a aceito aqui, e isso porque não me parece adequar-se ao
contexto; parece extrair algo que, neste ponto em particular, é irrelevante.

A expressão “Por causa disto”, como vimos, refere-se ao capítulo 2, e ali


certamente nós temos a chave para a explicação daquilo que Paulo quer
dizer aqui. Pois no versículo 18do capítulo 2, lemos: “Por que por ele
(Cristo) ambos temos acesso ao Pai em um mesmo Espírito”. Esteja atento a
esta referência ao Pai. E ainda: “Assim que já não sois estrangeiros, nem
forasteiros, mas concidadãos dos santos, e da família de Deus” — “família
de Deus”! Temos aqui as duas expressões, o “Pai” e a “família”. Certamente
o que o apóstolo está dizendo aqui no versículo 15 do capítulo 3 é que Deus é
o Pai de toda a família. Que família? A família dos redimidos! Desta
“família” dos redimidos, alguns já estão no céu, e alguns ainda estão na
terra; mas todos eles pertencem à mesma família, a toda a família. Noutras
palavras, a minha opinião é que o apóstolo está dizendo aqui precisamente o
que o autor da Epístola aos Hebreus diz no capítulo 12 da sua Epístola. Eis
suas palavras: “Porque não chegastes ao monte palpável... Mas chegastes
ao monte de Sião, e à cidade de Deus vivo, à Jerusalém celestial, e
aos muitos milhares de anjos; à universal assembléia e igreja
dos primogênitos, que estão inscritos nos céus, e a Deus, o juiz de todos,
e aos espíritos dos justos aperfeiçoados, e a Jesus”. Assim o apóstolo
está dizendo que ora em favor dos efésios, Àquele que é o Pai de
todos. Agora Ele é o Pai deles, visto que entraram na Igreja, como também
é o Pai do apóstolo. Ele é o Pai de todos os que crêem. Agora já “não
há grego nem judeu... bárbaro, cita, servo ou livre” (Colossenses 3:11). Não
mais distanciados, os cristãos chegaram perto.

Creio que o apóstolo empregou esta forma de expressão com o fim de


ensinar estes cristãos efésios a não pensarem mais em si mesmos como
gentios. Agora deviam pensar em si mesmos como filhos de Deus, como
pertencentes à grande família de Deus. Este foi o maravilhoso resultado
daquilo que lhes acontecera, quando foram feitos “membros da família de
Deus”, “co-herdeiros” com os judeus, membros do mesmo corpo,
participantes das mesmas promessas; eles tinham sido introduzidos na
grande família de Deus.

Nada do que possamos aprender nos é mais precioso do que


compreendermos esta gloriosa verdade. Você pode ser um desconhecido
para o mundo, pode ser insignificante, ou pode sentir-se esquecido e achar
que ninguém sabe nada a seu respeito; e pode ser verdade. Não obstante, se
você está “em Cristo”, se você é cristão, você pertence a

Deus, está em Sua família, e seu Pai olha por você. Nada poderá acontecer a
você sem a Sua participação e a Sua permissão; “os cabelos da vossa cabeça
estão todos contados” (Mateus 10:30). Você é tanto filho de Deus como o
maior santo, como o mais poderoso apóstolo que já viveu. Há somente uma
família, “toda a família”, e Ele é o Pai de toda a família, tanto da Igreja
“militante” como da Igreja “triunfante”. Todos nós temos este acesso à Sua
presença. E aqui este grande irmão, o apóstolo Paulo, este poderoso irmão
que era tão adiantado em conhecimento, diz aos seus humildes irmãos, aos
seus recém-chegados irmãos de Éfeso, que ele vai à presença do “nosso Pai”
a favor deles e que está a ponto de pedir-Lhe certas coisas para eles.

Pertencemos a esta família, a “toda (esta) família”. Nunca nos esqueçamos


disto — principalmente quando orarmos e nos aproximarmos de Deus em
adoração. Mas nunca nos esqueçamos disto também em nossa conduta e em
nosso comportamento. Sabemos o que é ter orgulho das nossas famílias e do
“nome de família”. Sabemos o que é ter orgulho do país, de uma classe, ou
de um grupo, ou dç uma escola — orgulho do nome! Portanto, como
cristãos, vamos lembrar-nos sempre de que o Nome que está sobre nós é o
nome de Deus, “do qual toda a família nos céus e na terra toma o nome”. O
que realmente importa não é mais a família de Davi, não é mais esta ou
aquela tribo, não é mais este ou aquele país, esta ou aquela classe, este ou
aquele grupo. Não! O nome de família que me arrogo é o nome de Deus, e
devo viver neste mundo como alguém que representa está família,
como alguém que representa este Pai. Seu nome está sobre mim; assim,
oxalá nunca seja ele manchado. Que jamais os homens venham a pensar
mal de Deus e do Seu nome por causa daquilo que eles vêem em mim!

Queira Deus abrir os nossos olhos para os privilégios que temos graças ao
Nome que levamos, e também para a alta e, de muitas maneiras, tremenda
responsabilidade de levar sobre nós o nome de Deus!

“O HOMEM INTERIOR”

“Para que, segundo as riquezas da sua glória, vos conceda que

sejais corroborados com poder pelo seu Espírito no homem interior. ”

Efésios 3:16

Estas palavras são uma parte da exposição que, começando no versículo 14,
vai até o versículo 21: “Por causa disto me ponho de joelhos perante o Pai
de nosso Senhor Jesus Cristo, do qual a família nos céus e na terra toma o
nome, para que, segundo as riquezas da sua glória, vos conceda que sejais
corroborados com poder pelo seu Espírito no homem interior; para que
Cristo habite pela fé nos vossos corações; a fim de, estando arraigados e
fundados em amor, poderdes perfeitamente compreender, com todos os
santos, qual seja a largura, e o cumprimento, e a altura, e a profundidade, e
conhecer o amor de Cristo, que excede todo o entendimento, para que sejais
cheios de toda a plenitude de Deus. Ora àquele que é poderoso para fazer
tudo muito mais abundantemente além daquilo que pedimos ou pensamos,
segundo o poder que em nós opera, a esse glória na igreja, por Jesus
Cristo, em todas as gerações, para todo o sempre. Amém”.

Por mais tempo que vivamos neste mundo, seja qual por o orador que surja,
vocês jamais ouvirão coisa alguma que se iguale a isso quanto à eloqüência,
à elevação do pensamento, à profundidade da linguagem e à concepção. É
indubitavelmente um dos picos culminantes das Escrituras. De fato há
muitos que dizem que este é o pico mais elevado em toda a cadeia de
montanhas da verdade e da revelação divina nas Escrituras. Lembremo-nos
de que estamos focalizando a oração que concretamente o apóstolo eleva em
favor do povo cristão de Éfeso. Estudamos o modo pelo qual ele se aproxima
de Deus, e notamos quão cuidadoso ele é ao fazer-nos recordar os seus
pontos essenciais e a nossa necessidade de nos ajustarmos a isso. Ele “se
põe de joelhos” perante o Pai, perante Aquele a quem, graças ao
nosso bendito Senhor e Salvador, também temos o direito de chamar
“nosso Pai”. Tendo assim chegado à presença de Deus, que é que o
apóstolo pede em oração a favor destes cristãos efésios, que tão
profundamente estão em seu coração?

No Novo Testamento temos registradas diversas orações de Paulo, e todas


são dignas da nossa mais diligente e séria consideração, mas nenhuma das
suas orações se eleva mais alto que esta. Aqui ele nos eleva diretamente aos
céus, e ora por coisas quase incríveis, subindo ao clímax — “para que sejais
cheios de toda a plenitude de Deus”. Lembrem-se de que ele está orando
assim por pagãos convertidos, muitos dos quais tinham sido escravos, e
talvez ainda o fossem, pessoas desconhecidas. Visto que eram cristãos o
apóstolo faz esta oração por eles e, ao fazê-la, leva-nos aos pontos mais altos,
ao nível mais elevado da experiência cristã e daquilo que é possível aos
homens e mulheres no presente mundo. Esta é a verdadeira chave da
genuína vida cristã; portanto, não há como exagerar no exame desta oração.

Vindo, pois, ao conteúdo real da sua oração, notemos primeiro aquilo pelo
que ele não ora. Nas Escrituras o negativo é sempre significativo. Às vezes é
quase tão importante como o positivo. E aqui, aquilo pelo que o apóstolo
não ora merece atenção. Imaginem-se na situação do apóstolo. Como vocês
poderiam orar por estes efésios? Que é que rogamos quando oramos uns
pelos outros? Quando sabemos que outros estão com problemas e em
dificuldades, qual é a nossa petição a favor deles, qual o caráter da nossa
intercessão? Paulo não ora pedindo que haja mudança nas circunstâncias,
nem com relação a si mesmo, nem com relação a outros. Sua oração não é
no sentido de que ele seja solto da prisão para poder voltar a pregar-lhes em
Éfeso. Isso era muito desejável e, sem dúvida, ele orava pedindo isso; mas
não era essa a coisa de maior importância, não era o que ele colocava no
centro, não era a coisa que ele queria inculcar neles. Tampouco fez apenas
um tipo geral de oração por eles, rogando a Deus que os abençoasse e
fosse bom para eles. Saliento particularmente isto porque me parece
que muitíssimas vezes as nossas orações são deste caráter. Oramos
pedindo a Deus que abençoe as pessoas. Rogamos a Deus que seja graciosa
para com elas, e que olhe por elas; e assim no limitamos a um tipo de
oração geral.

Positivamente, a primeira petição do apóstolo é: “Para que, segundo as


riquezas da sua glória, vos conceda que sejais fortalecidos com poder pelo
seu Espírito no homem interior”. Aqui temos o que é sempre característico
das orações de Paulo, e, ao mesmo tempo, é sempre característico de todas
as orações bíblicas, tanto no Velho Testamento como do Novo. Ao mesmo
tempo nos é apresentado o modo caracte-risticamente cristão de ver os
problemas que incidentalmente sobrevêm às nossas vidas neste mundo,
muitos dos quais surgem diretamente por causa da nossa profissão de fé
cristã.

A primeira característica é que a sua oração é exclusivamente espiritual. Ele


está preocupado, não com o material, porém com o espiritual. Ele focaliza a
sua atenção e o seu interesse no estado espiritual dos efésios. Toda a atitude
do apóstolo para com a vida é espiritual, e ele sempre parte do espiritual.
Este é um princípio que ignoramos, com risco nosso. Nesta questão ele segue
o Senhor nosso, que ensinava: “Buscai primeiro do reino de Deus, e a sua
justiça, e todas estas (outras) coisas vos serão acrescentadas” (Mateus 6:33).
Nosso bendito Senhor estava lidando com pessoas que viviam
preocupadas com comida, bebida, roupas e outras coisas materiais. O
problema com vocês, diz Ele efetivamente, é que vocês estão começando com
o material e com o visível; comecem com o invisível, “procurem primeiro o
reino de Deus e a sua justiça”. É precisamente isso que o apóstolo faz aqui.
O que está acima de tudo em sua mente e em seu coração é a condição
espiritual e o bem-estar espiritual destas pessoas.

A segunda característica da oração de Paulo é que é uma oração muito


específica. Como digo, não é simplesmente uma oração geral; ele seleciona
certas coisas, isola certas particularidades e as apresenta uma por uma em
sua oração a Deus em favor dos efésios. A verdadeira oração cristã — a
oração no Espírito, a oração em Cristo — não é somente de caráter
espiritual, mas também é sempre específica. Pomos à mostra muita verdade
a nosso respeito em nossas orações e em nossa maneira de orar. Em última
análise, não há melhor indício do estado e condição espiritual de uma pessoa
do que as suas orações. Se as suas orações são formais, significa que toda a
sua posição é formal. Se está mais preocupado com a beleza da linguagem e
da dicção, vocês podem estar certos de que o seu principal interesse é, de
novo, por exterioridade. Há liberdade, há espiritualidade na oração?
Demonstra-se entendimento do caráter e a natureza essencial da vida
cristã? Encaremos isto individualmente com relação a nós. Quando vocês
oram a Deus, qual é a sua maior preocupação referente a si próprios?
Preocupam-se principalmente com as circunstâncias e ambições — com os
seus corpos, os seus quefazeres — ou se preocupam primordialmente com o
seu estado e condição espiritual? Que é que recebe maior atenção e mais
tempo em suas orações e devoções pessoais? Vocês se
preocupam primariamente com toda a questão do seu crescimento e
desenvolvimento espiritual, com o seu conhecimento de Deus, com a sua
relação com Ele e com o modo como O fruem? É esse o grande interesse?
Ou vocês dão prioridade às coisas que pertencem às exterioridades da vida?
As orações do apóstolo não são só essencialmente espirituais; são também
específicas. Há certos aspectos da prosperidade espiritual dos efésios que o
preocupam em particular, e assim ele

Notem que Paulo não faz pouco caso dos problemas envolvidos. A
abordagem neotestamentária, a abordagem verdadeiramente cristã
dos problemas da vida, nunca os menospreza. Contudo, é característico
da psicologia que esta geralmente o faz. Interessada primariamente
em fazer-nos felizes, não toma muito cuidado quanto à maneira de
conseguir isso. Assim é que ela vem e nos dá uma certeza geral de que
tudo estará bem e que o pior nunca acontecerá. Ou poderá examinar
a situação da pessoa e dizer que, depois de tudo, a situação não é tão
ruim como poderia ter sido. Esse não é, absolutamente, o método
do apóstolo, e esse método não se encontra em parte alguma do
Novo Testamento. As Escrituras jamais procuram diminuir um problema
ou uma dificuldade; fazem exatamente o oposto. O modo terrenal de
tentar ajudar-nos quando estamos em dificuldade é dar palmadinhas
nas costas e dizer: “Está tudo bem! ” Mas é muito errado dizer que está
tudo bem quando não está. Uma sinceridade essencial sempre caracteriza
a abordagem bíblica e cristã.

Tampouco o método cristão promete levianamente que o problema ou


dificuldade ou o que quer que seja será afastado logo. Nada é
tão característico das Escrituras como o seu realismo. Dou ênfase a
isto porque é a chave para compreendermos esta oração. O Novo
Testamento diz-nos com muita franqueza e clareza: “No mundo
tereis aflições” (João 16:33). Ele não nos promete tempos fáceis.
Não constitui um alegre tipo de otimismo. Ele não diz que, uma vez que
você se tome cristão, o mundo inteiro mudará; que você andará sobre
rosas e nunca mais terá nenhum problema. Ao contrário, estas são as
suas afirmações: “Por muitas tribulações nos importa entrar no reino
de Deus” (Atos 14:22). “ A vós vos foi concedido, em relação a Cristo,
não somente crer nele, como também padecer por ele” (Filipenses
1:29). “Todos os que piamente querem viver em Cristo Jesus
padecerão perseguições” (2 Timóteo 3:12). O livro de Apocalipse,
igualmente, está repleto de profecias de provações, problemas e tribulações.
Nada do Novo Testamento nos leva a pensar que todas as nossas
dificuldades serão removidas subitamente e que andaremos dentro de um
círculo mágico. Muito ao contrário! Se o Novo Testamento não nos
falasse desta maneira realista, não nos ajudaria a enfrentar as situações em
que nos acharmos, a sobrepujá-las e a sermos mais que vencedores.

É da essência do método bíblico mostrar-nos que, visto que este mundo é


pecaminoso, necessariamente há nele provações, lutas, problemas e
tribulações. O cristão não deve ficar surpreso face às condições do mundo,
pois o pecado traz tristes conseqüências. São os

filósofos, os psicólogos e os falsos otimistas que devem ficar surpresos, pois


eles acreditam que há dentro do homem poder para pôr tudo em ordem
neste mundo. Mas o cristão parte deste princípio — que enquanto houver
pecado neste mundo, haverá problema. “O caminho dos prevaricadores é
áspero” (Provérbios 13:15). “Os ímpios, diz o meu Deus, não têm paz”
(Isaías 57: 21). Não têm, não terão e não poderão ter. O pecado, a luxúria
que está no peito e no coração humanos, é a causa da guerra, da discórdia e
de todos os problemas. Se vocês opinar em que este conceito é muito
pessimista, replico que é realista. Não é pessimismo encarar os fatos. O
pessimismo vem depois de encaramos os fatos, e principalmente como
resultado do modo pelo qual os encararmos. Não é verdadeiro otimismo
negar-nos a olhar sinceramente para os fatos, porque o verdadeiro otimismo
é sempre e completamente realista. Começa vendo todas as coisas como são,
e em sua pior condição, e depois as domina. E aqui o apóstolo não
promete nada fácil ou simples. Na vida espiritual não há atalhos.

Notem ademais que Paulo não ora pedindo que apareça um método para
combater diretamente estes problemas, dificuldades e situações. Nunca o
cristianismo se preocupa primariamente com a destruição dos nossos
inimigos, ou com a solução das nossas dificuldades e problemas. Antes, o
método do apóstolo consiste em orar no sentido de que, face a face com
todas estas coisas, antes o aprisionamento e tudo mais que Deus possa
permitir, sejamos “corroborados (ou fortalecidos) com poder pelo seu
Espírito no homem interior”, “segundo as riquezas da sua glória”. Noutras
palavras, o modo cristão de lidar com todos os problemas da vida não é, em
primeiro lugar, fazer algo acerca deles, mas sim, tratar das nossas condições
espirituais. O método cristão consiste em edificar a nossa resistência em
nosso homem interior, pelo Espírito.

Uma ilustração lançará luz sobre o que estou querendo dizer. O ensino
bíblico referente à nossa reação aos ataques é análogo ao que sucede na
natureza no caso do corpo físico e da doença. É um modo conveniente de
estudar este problema em geral. O pecado, o mal, Satanás e todos os poderes
que querem derribar-nos, deprimir-nos e destruir-nos, são como doenças
resultantes dos ataques de germes, micróbios e viros fortes e poderosos,
capazes até de destruir a vida. Estamos sendo atacados constantemente
desta maneira, quer estejamos conscientes disso, quer não. Eles estão dentro
de nós; há em nossos corpos muitos milhões de germes, alguns dos quais a
qualquer instante podem tomar-se letais e destruir-nos. Como o corpo lida
com estas coisas? Há no corpo um mecanismo destinado a resistir a tais
ataques. É questão de infecção e resistência. Às vezes se faz referência à

resistência como constituição natural do homem; alguns lhe chamam físico.


Uns nascem com constituição melhor e mais forte que outros, de modo que
quando dois homens são expostos à mesma infecção, enquanto um deles
pode cair de cama, o outro não é afetado. Isso porque o último tem melhor
resistência. Vocês decerto ouviram falar de alguma criança que foi
vacinada, e a vacina não pegou. O médico pode pensar que houve algum
engano, de modo que repete a vacinação. Mas esta ainda não pega. Então o
médico conclui que a criança tem “imunidade natural.” Faz parte da
natureza dessa criança, da sua constituição.

Há um mecanismo para a resistência no corpo. Nem sempre a resistência é


muito forte; na verdade, pode ser muito fraca. Assim, o que é necessário
fazer para enfrentar a infecção é fortalecer a resistência. Há muitas
maneiras de fazê-lo. Uma é fazer exercício, sair ao ar livre e encher os
pulmões de ar puro e oxigênio. Outro é alimentar-se com o tipo certo de
comida. Há, porém, outra linha de abordagem, a saber, tomar remédios de
várias espécies e tentar atacar diretamente o inimigo. Esta abordagem não
se relaciona com o fortalecimento da resistência; lida de maneira direta com
os germes invasores. Outro método possível é operar e remover algum órgão
infeccionado.

Ora, o método que está sendo empregado pelo apóstolo é o fortalecer a


resistência dos cristãos efésios. Aí estão as circunstâncias, aí está o ataque
sofrido, e assim o apóstolo ora rogando a Deus que, “segundo as riquezas da
sua glória, os fortaleça com poder no homem interior”. Seja qual for o
ataque, a resistência pode ser tão fortalecida que eles se farão mais que
vencedores. Este é o ensino bíblico essencial quanto a como viver num
mundo como este, como perseverar nisso e como ser “mais que vencedor”, a
despeito de tudo quanto possa acontecer nesta existência.

Nosso bendito Senhor ensina isto no versículo 1 do capítulo 18 do Evangelho


segundo Lucas, onde Ele diz que os homens devem “orar sempre, e nunca
desfalecer”. Diz Ele que, se não quiserem desfalecer, orem. O que a oração
faz é, por assim dizer, encher os pulmões da alma com o oxigênio do Espírito
Santo e Seu poder. Se vocês quiserem permanecer de pé sem vacilar,
encham-se com a vida de Deus. Orem, e não desfaleçam. Noutras palavras,
não devemos perder tempo em ficar pensando nas coisas que tendem a
derrotar-nos; devemos fortalecer-nos em nossa “santíssima fé”, como nos
exorta Judas.

Esta é a única maneira pela qual poderemos vir a saber o que é regozijar-
nos na tribulação. Esta é a única maneira pela qual poderemos ser o que o
apóstolo intitula “mais que vencedores”, apesar de tudo aquilo que nos
ataca. Ou, como ele afirma no capítulo 4 da sua Segunda

Epístola aos Coríntios, se vocês desejarem poder dizer, “a nossa leve e


momentânea tribulação produz para nós um peso eterno de glória
mui excelente”, deverão poder dizer também, “Não atentando nós nas coisas
que se vêem, mas nas que se não vêem” (versículos 17 e 18). O mesmo
princípio funciona em toda parte, na esfera espiritual. Fortaleçam o homem
interior. Fortifiquem a resistência.

O princípio deveria ser óbvio para todos. E, todavia, é tão forte a nossa
tendência para deixar de vê-lo, que precisa se repetido e salientado
constantemente. Outro modo de expô-lo é dizer: acerte bem o centro, e o
restante se ajustará sozinho. Acerte a fonte, e não precisará preocupar-se
muito com as tensões e pressões. Geralmente o problema está na fonte, pelo
que nós temos que retomar ao início. Há um provérbio que diz: “como (o
homem) imaginou na sua alma, assim ele é” (Provérbios 23:7), e isto
corresponde perfeitamente à vida. Assim, acerte o homem, acerte o seu
pensamento. Não o trate aos pedaços, tratando primeiro deste problema,
depois aquele, e simplesmente remendando as coisas; retome ao centro. O
que está errado é o pensamento do homem; então conserte o seu
pensamento. Ou siga o método expresso pelo homem que escreveu o livro de
Provérbios, no capítulo 4, versículo 23: “Guarda o teu coração, porque dele
procedem as saídas da vida”. Realmente o coração exerce controle sobre
todas as coisas; e aqui, “coração” significa o centro da personalidade, e
não apenas a sede das emoções. Acerte isso, e tudo mais se acertará.

O Senhor Jesus expôs negativamente a questão quando disse que não é o


que entra no homem que o corrompe, mas, antes, o que sai dele. “Do
interior do coração dos homens saem os maus pensamentos, os adultérios, as
prostituições, os homicídios” e todas as coisas desse jaez (Marcos 7:20~23).
Noutras palavras, emúltima análise, a nossa conduta não é determinada
pelas tentações que nos defrontam nas mas; é o coração do homem que as
enfrenta. Dois homens podem enfrentar idênticas condições; um cai, o outro
não. A diferença não está na tentação, e sim no coração do homem. “Do
coração...” Devemos, pois, dar atenção ao coração.

Esdras expressa isto de maneira mais lírica. Vê-se que ele entendeu este
princípio quando disse: “A alegria do Senhor é a vossa
força” (Neemias8:10). Como isto é verdadeiro! Quando você quer forças
para fazer o seu trabalho e para enfrentar uma tarefa que o aguarda,
a tendência é dar atenção unicamente aos seus músculos. Isso está
certo, dentro de limites. Mas não adianta quão apto você esteja
fisicamente, se algo lhe corrói a mente. Se tiver alguma preocupação ou
ansiedade, não será capaz de realizar o seu trabalho. Você poderá estar cem
por cento apto fisicamente, porém, se houver alguma coisa a mortificar o

seu coração, a perturbá-lo e a preocupá-lo, você se sentirá fisicamente fraco.


Por outro lado, embora esteja muito fraco no físico, quando de repente lhe
sucede algo que o enche de alegria e contentamento, você se sente como um
gigante revigorado e vê que tem extraordinário poder. “A alegria do Senhor
é a vossa força.” Realmente o coração governa tudo.

O apóstolo enuncia este grande princípio desta forma interessante: “Para


que, segundo as riquezas da sua glória, vos conceda que sejais corroborados
com poder pelo seu Espírito no homem interior”.

Consideremos ainda o que se quer dizer com “homem interior”. Temos a


resposta em 2 Coríntios 4, versículo 16, onde o apóstolo diz: “Ainda que o
nosso homem exterior se corrompa, o interior, contudo, se renova de dia em
dia”. De novo o apóstolo diz em Romanos, capítulo 7, versículo 22:
“Segundo o homem interior, tenho prazer na lei de Deus”. Há dois homens
nele. Há uma lei em seus membros arrastando-o para debaixo, no entanto
ele diz: “Segundo o homem interior, tenho prazer na lei de Deus”.
Obviamente, este homem interior é o oposto do homem exterior. Todavia, a
maioria das pessoas do mundo nunca sabe ou nunca percebe que há
diferença entre o homem interior e o homem exterior. E uma das mais
profundas descobertas que podemos fazer em nossa experiência cristã. O
homem interior é o oposto do corpo e todas as suas faculdades e funções. É
este outro homem, separado destes elementos, a parte mais recôndita do
nosso ser, a parte espiritual do nosso ser. Inclui o coração, a mente, a alma e
o espírito do homem regenerado, do homem que “está em Cristo Jesus”.

O problema fundamental com o não regenerado, com o não cristão, é que


lhe falta este homem interior. Ele nada sabe do homem interior, não
acredita no homem interior; vive só na parte exterior. Só vive segundo a
carne, vida que não passa de vida no corpo e naquilo que se pode chamar a
parte física do homem. Não há nada espiritual quanto a ele. Toda a sua vida
é limitada por aquilo de que ele tem ciência, isto é, suas sensações por
dentro dele e em sua correspondência com o mundo das coisas que se pode
ver, ouvir, sentir e apalpar. Essa é a sua única vida, e sua vida total; está
restrita ao corpo, suas faculdades e suas relações com pessoas semelhantes e
com as coisas do mundo em que ele se acha. É vida puramente animal.

Essa é a tragédia do homem em pecado, do homem como resultado da


Queda. Não tem consciência de que foi criado como um ser espiritual. Não
tem consciência de que há algo superior a todos os sentidos do homem. Para
ele o homem é, na melhor das hipóteses, um animal racional, um animal
que, por acaso, tem faculdades mais

altamente desenvolvidas que os animais inferiores, contudo ainda pertence à


mesma ordem dos animais. Seu cérebro tem mais uma dobra que o dos
animais, entretanto essa é a única diferença entre ele e o animal. Ele não
está ciente de que, em acréscimo à sua natureza animal, há esta outra parte
do ser humano, a parte a que Paulo se refere como “o homem interior”.

A tragédia final do homem natural é que ele não tem nenhum homem
interior no qual refugiar-se nas horas de dificuldade, pressão e provação.
Vocês sabem o que quero dizer com “refugir-se no homem interior”? Sabem
o que é, quando as suas vidas de homens ou mulheres neste mundo são
afligidas pelas coisas que lhes estão acontecendo e vocês ficam a ponto de
cair e desfalecer — sabem o que é refugir-se no “homem interior”? Essa é
uma das experiências mais abençoadas que podem ter. Ali estava o apóstolo
Paulo, velho antes do tempo devido às suas pregações, às suas viagens e às
perseguições e provações que sofrerá e suportara, seu corpo em decadência,
ainda atribulado por um antigo mal, obviamente um homem muito doente.
“O nosso homem exterior vai perecendo”, diz ele; mas não se assenta num
canto, dizendo: é o fim; tive minhas boas oportunidades, agora devo ceder
o lugar a outros, chegou a minha hora; eu bem que poderia virar o
rosto para a parede e encarar o fato de que o fim está aí. Absolutamente
não! Ao compreender a verdade de tudo quanto está acontecendo com
o homem exterior, ele se retira para o homem interior e diz: “o
interior, contudo, se renova de dia em dia”. À medida que o exterior fenece,
o interior se fortalece. À medida que o mundo vai levando embora a
vida exterior e inevitavelmente vai se afastando dele, este homem
interior vai recebendo novo acervo de poder do céu e da glória. Ele se
refugiou no homem interior.
Aquele que não é cristão ignora isso tudo. Pobre sujeito! Depende só das
circunstâncias, e é dominado inteiramente por elas. Ele vive unicamente
numa esfera, e não sabe absolutamente nada da outra. Por isso ele não goza
nenhum conforto, nenhuma consolação, e por isso terá que cair na
psicologia, nas drogas e em várias tramóias que ele mesmo faz para si.
Corre em busca de prazer, apenas para esquecer os seus problemas pelo
momento que passa, e assim por diante. Ele realmente não pode enfrentar a
vida porque vive só numa dimensão, e quando esta se vai, tudo se vai. Ele
fica deprimido e desconsolado, sente-se infeliz e fica desiludido. Mas quando
nos tomamos cristãos e recebemos o dom do novo nascimento e da nova
vida, um novo homem é implantado em nós, uma nova ordem de vida
começa, e entramos numa nova esfera, numa esfera espiritual e invisível.
Não é o temporal, o físico, o desvanecente, porém é algo que é de Deus.
Somos feitos

participantes da natureza divina, uma semente da vida divina é plantada em


nós; ela cresce e se desenvolve, e muitas vezes as provações e tribulações
estimulam o seu crescimento de maneira sumamente gloriosa.

Devido a este homem interior existente em nós, somos capacitados a obter


grandes vitórias sobre o diabo. Ele nos ataca de muitas maneiras, todavia às
vezes exagera e comete um engano, e involuntariamente nos faz lembrar a
nossa posição em Cristo. Mais comumente ele apenas nos mantém num
estado geral de depressão. Ele pode usar as condições do tempo, por
exemplo, ou tirar vantagem da nossa constituição particular ou da nossa má
circulação. Ele faz que nos sintamos frouxos, sem poder pensar nem fazer
coisa alguma, e depois nos desanima com maus pensamentos, e nos leva a
desiludir-nos. No entanto, subitamente vemos o caso doutra pessoa que está
em condição similar, que se trata claramente de uma investida do diabo; e,
ao vermos o que ele faz a essa outra pessoa, de repente nos despertamos
para o fato de que realmente é ele que nos está atacando. Assim, o homem
interior é revivido até por problemas de fora, e dominamos o diabo e
nos tomamos “mais que vencedores”.

Vocês têm algum conhecimento sobre “o homem interior”? Sabem que têm
um “homem interior”? Há este outro do qual estão cientes e no qual podem
refugiar-se? Sabem que, enquanto o homem exterior vai decaindo,
arruinando-se e se decompondo, o homem interior vai sendo renovado dia a
dia, vai sendo fortalecido, e tem visão de uma glória que é “incorruptível,
incontaminável, e que se não pode murchar”? Nosso segredo como cristãos,
como no-lo recorda o apóstolo, é que temos um homem interior, e quando
esse homem interior é fortalecido pelo Espírito Santo, o que acontece ao
nosso redor e ao próprio homem exterior é relativamente sem importância.
Oxalá Deus nos dê a segurança da posse do homem interior, do homem
espiritual, do novo homem em Cristo Jesus.

“FORTALECIDOS COM PODER

“Para que, segundo as riquezas da sua glória, vos conceda que sejais
corroborados com poder pelo seu Espirito, no homem interior. ” Efésios 3:16

Diz-nos agora o apóstolo que está orando para que o homem interior seja
corroborado ou fortalecido com poder pelo Espírito Santo. Devo acentuar
que esta oração está sendo elevada a favor dos que já são cristãos. Está
orando pelas pessoas que estivera descrevendo nos dois primeiros capítulos,
onde dissera algumas coisas muito notáveis, como, “Em quem também vós
estais, depois que ouvistes a palavra da verdade, o evangelho da vossa
salvação; e, tendo nele também crido, fostes selados com o Espírito Santo da
promessa. O qual é o penhor da nossa herança, para redenção da possessão
de Deus” (1:13-14). Nãosó isso! O apóstolo já elevara uma grande oração
por eles no capítulo 1, a saber, “Para que o Deus de nosso Senhor Jesus
Cristo, o pai da glória, vos dê em seu conhecimento o espírito de sabedoria e
de revelação” (17). Mas ainda não estava satisfeito. Ele continua a orar por
eles, e os faz sabedores de que, conquanto na prisão e distante deles, ele está
se ajoelhando e está orando na presença de Deus, está com os olhos
postos no semblante de Deus em favor deles, e está orando para que,
no homem interior, fossem fortalecidos com poder pelo Espírito de Deus.

Saliento o fato de que ele eleva esta oração em favor dos cristãos porque a
experiência do perdão e da salvação é meramente o princípio da vida cristã.
É só o primeiro passo, uma indicação da entrada para o reino de Deus.
Desafortunadamente, há muitos cristãos que parem nesse ponto; só se
preocupam com a sua proteção e segurança pessoal; seu único interesse é
pertencer ao reino de Deus. Seu desejo é saber que os seus pecados estão
perdoados, que não vão para o inferno e que podem ter a esperança de ir
para o céu. Contudo, assim que passam por esta experiência inicial,
parecem descansar nela. Jamais crescem, jamais poderemos perceber
alguma diferença neles, se os encontrarmos cinqüenta anos mais tarde.
Permanecem onde estavam. Pensam que têm tudo, e neles não há sinal
nenhum de desenvolvimento.

Ora, isso está muito longe do que vemos aqui sobre os cristãos. Há

grandes e gloriosas possibilidades para os cristãos. Uma delas é que “Cristo


pode habitar pela fé nos vossos corações” e que eles podem vir a conhecer
algo do amor de Deus em sua “largura, comprimento, altura e
profundidade”; de fato eles podem “ser cheios de toda a plenitude de Deus”.

Não é somente uma possibilidade para todos os cristãos; é dever de todos os


cristãos ocuparem esta posição. O grande Charles Haddon Spurgeon,
tratando deste assunto, disse um vez: “Na graça há um ponto situado tão
acima do cristão comum, como o cristão comum está acima do mundano”.
Noutras palavras, há na vida cristã um estágio “situado tão acima do cristão
comum, como o cristão comum está acima do mundano”. Isso coloca a coisa
de maneira impressionante e forte, mas é certa e verdadeira. Todos nós
sabemos a diferença de nível entre o não cristão e o cristão. O cristão está
num nível mais elevado, num plano mais alto que o do não cristão. Mas
Spurgeon nos lembra que na vida cristã pode-se alcançar pontos mais
elevados, pontos que se acham tão acima deste nível cristão comum, como o
cristão está acima do não cristão. Só temos que aceitar isto, se é que nós
cremos que Cristo pode habitar em nossos corações, que podemos conhecer
este amor de Deus e de Cristo em todas as suas dimensões, que podemos
conhecer este amor de Deus e de Cristo em todas as suas dimensões, que
podemos ser cheios de toda a plenitude de Deus. Evidentemente, isto se acha
tão acima do nível cristão comum, como este nível está acima do não cristão.

Portanto, a questão que devemos encarar é esta: já alcançamos este nível a


que se refere Spurgeon? Correspondemos à descrição que o apóstolo aqui
faz daquilo que é possível para o cristão? Cristo habita pela fé em nossos
corações? Vemos por dentro este grande “cubo” do eterno amor de Deus?
Ficamos pasmos quando examinamos as suas dimensões? Sabemos o que
significa ser “cheios de toda a plenitude de Deus”? Conhecemos o Deus que
pode fazer por nós tudo muito mais abundantemente além daquilo que
pedimos ou pensamos? Atingimos esse nível, essa altura? Estamos
permanecendo ali? Ou ainda estamos embaixo, no nível cristão comum?
Sempre há o perigo de imaginarmos que, porque nos convertemos, podemos
repousar sobre os nossos louros, ou de simplesmente nos tomarmos obreiros
ativos e ocupados, sempre a correr para a realização das nossas atividades.

Havendo tratado deste assunto, devemos passar para a questão


subseqüente. Se achamos que ainda permanecemos neste nível comum,
como poderemos chegar ao nível mais elevado? Há unicamente uma
resposta para essa pergunta, a resposta dada pela oração do apóstolo. Que
sejamos fortalecidos ou “corroborados com poder pelo

Por que o nosso homem interior precisa ser fortalecido?

A primeira resposta é que, inicialmente, o cristão é apenas um bebê. É dessa


maneira que se expressa o Novo Testamento. Paulo, escrevendo aos
coríntios, diz: “nos vos pude falar como a espirituais, mas como a carnais,
como a meninos (ou bebês) em Cristo”. O bebê mal começou a viver; não se
desenvolveu plenamente e precisa ser fortalecido. É fraco, é ignorante, é
ingênuo quanto a muitas coisas do mundo que o cerca, e não tem imunidade
contra as coisas tendentes a atacá-lo. Isto sempre caracteriza a infância. Daí
por que a criança tem que ser protegida pelos pais; é óbvio que ela não sabe
nem entende. Julga a todos pelo seu valor aparente, toma o mundo como ele
é, e vê todas as coisas muito superficialmente. Nada sabe da feiúra do
mundo e das coisas vis nele existente. Somente quando crescemos é que
começamos a compreender estas coisas. Não estou dizendo que o bebê é
sem pecado, ou que é inocente. Não concordo com a idéia de
Wordsworth, de que entramos neste mundo “arrastando nuvens de glória”,
e de que mais tarde “as sombras do cárcere começam a fechar-se sobre o
menino que cresce”. O que estou dizendo é que devido à sua ignorância,
a criança não tem consciência dos perigos e, portanto, precisa ser protegida.

A mesma coisa acontece com o novo homem em Cristo Jesus. Por mais idoso
que o homem seja quando é convertido, a princípio é um bebê em Cristo. E
como bebê ele acha, no início, que tudo está resolvido, que nunca mais terá
outra dificuldade. Com muita freqüência os evangelistas são responsáveis
por esse modo de pensar; eles lhe dão essa impressão. Em sua total candura
o bebê imagina que nunca mais haverá outra nuvem, em toda a sua vida.
Mas, infelizmente, as nuvens vêm, surgem as dificuldades, problemas
cruzam o seu caminho; e ele fica desnorteado e muitas vezes cai. Pode até
vir a ser um apóstata. Em grande parte acontece isto porque ele era um
bebê e não estava ciente dos fatos. Assim, o bebê necessita ser fortalecido.
Em sua primeira epístola o apóstolo João escreve aos “filhinhos”, aos
“jovens” e aos “pais”, porque há esta gradação na vida cristã, que é um
processo de crescimento e de desenvolvimento.

Uma segunda razão da necessidade deste fortalecimento do “homem


interior” é a existência do diabo, o adversário, o acusador dos irmãos. Quem
quer que não tenha percebido que é confrontado por este poder é o mais
rematado neófito na vida cristã. O apóstolo dá ênfase à questão no último
capítulo desta Epístola aos Efésios, dizendo: “não temos que lutar contra a
carne e o sangue.” O problema não é somente

que temos que lutar contra a nossa própria carne e sangue, isto é, contra os
nossos corpos. Tampouco é apenas uma luta contra outros homens. O
verdadeiro problema, diz Paulo, é a luta “contra os principados, contra as
potestades, contra os príncipes das trevas deste século, contra as hostes
espirituais da maldade, nos lugares celestiais”. O homem interior precisa ser
fortalecido porque este poder não somente é grande em força, como também
em sutileza e em astúcia. Este mesmo apóstolo diz aos coríntios que o arqui-
inimigo é tão poderoso que é capaz de “transfigurar-se em anjos de luz” (2
Coríntios 11:14). Ele pode citar as Escrituras, pode arrazoar com você, pode
expor argumentos e apresentar exemplos, e pode confrontar você com uma
aparência da verdade que parece correta e verdadeiramente cristã, porém
que é falsa; e pode levá-lo a desviar-se e a cair em armadilhas que o
prenderão. Não existe razão mais forte para a necessidade de fortalecimento
com poder pelo Espírito no homem interior, do que a realidade do diabo.

Sempre o diabo faz deste homem interior um alvo especial. Muitas vezes
tive que lidar com pessoas que estavam com problemas e dificuldades em
sua vida espiritual simplesmente porque não se haviam dado conta da
existência e da astúcia do diabo. Pareciam pensar que os únicos pecados
eram os da carne. Mantinham-se cautelosas e vigilantes contra estes, e
tinham chegado a um ponto em que eram relativamente livres. Por isso
achavam que essa era a única linha em que o diabo ataca, e não tinham
consciência de que, com grande sutileza e como anjo de luz, ele pode fazer
ataques diretos ao homem interior, e ali insinuar os seus pensamentos e
idéias malignos, as suas induções e sugestões. Inconscientes disto, aquelas
pessoas de repente se viram infelizes e em condição miserável, e se
perguntavam se alguma vez foram cristãs. Isto era totalmente devido ao
fato de que o diabo, em sua sutileza, tinha deixado por completo o exterior e
concentrara toda a sua atenção no homem interior. Daí a exortação presente
no Velho Testamento: “Sobre tudo o que se deve guardar, guarda o teu
coração, porque dele procedem as saídas da vida” (Provérbios 4:23).

Uma terceira razão pela qual necessitamos do fortalecimento do homem


interior é a própria grandeza daquilo que nos é oferecido, e que é possível
para nós. Esta possibilidade é “que Cristo pode habitar pela fé em nossos
corações”, e que podemos conhecer o amor de Deus e podemos “ser cheios
de toda a plenitude de Deus”. A própria grandeza daquilo que nos é
oferecido exige que sejamos fortalecidos para recebê-lo, para não suceder
que sejamos destruídos por aquilo. Este é um ponto sumamente importante,
e um ponto que com freqüência é mal compreendido; muitos cristãos não
avaliam a sua significação.

Uma ilustração do que considero um completo fracasso em compre-

ender o ponto ocorre nalgumas palavras escritas pelo piedoso bispo


Handley Moule. Ele escreve: “E por que precisamos de um
supremo revestimento de poder tão-somente para recebermos a nossa vida,
a nossa luz?” Acha ele que é estranho dizer que precisamos ser fortalecidos
para recebermos Jesus Cristo, que é a nossa vida e a nossa luz. Ele indaga:
“O errante faminto precisa de forças para comer o alimento sem o qual ele
logo sucumbirá? O marinheiro desorientado precisa de forças para receber
o piloto que, só ele, pode conduzi-lo ao porto desejado? Não!” A pura e
simples idéia, opina ele, parece inteiramente ridícula. Contudo, em minha
opinião, isto soa completamente errado. Paulo ora no sentido de que
sejamos fortalecidos com poder pelo Espírito de Deus no homem interior,
para recebermos Cristo. Mas, diz o bom bispo, Cristo é a nossa força. De
que modo precisamos de forças a fim de recebermos forças? Depois de
apresentar as suas duas ilustrações, ele prossegue dizendo que Paulo deve
estar referindo a uma tendência que há dentro de nós de espantar-nos com a
idéia da “absoluta habitação” de Cristo em nossos corações e de ficarmos
com medo disso, e de indagarmos o que isso poderia fazer-nos. Embora haja
um elemento de verdade nessa declaração, rejeito-a como exposição
deste versículo em particular. Diz o bispo que precisamos ser
fortalecidos pelo Espírito porque, deixados entregues a nós mesmos, temos
medo de receber Cristo em Sua plenitude.

Há uma bem definida falha no argumento do bispo Moule, e uma falha


precisamente em função das suas próprias ilustrações. Ele pergunta se o
homem que ficou muito tempo sem alimento precisa de forças para tomar o
alimento que lhe vai dar forças. Diz ele: “Não”! Aventuro-me a sugerir, com
grande respeito, que a resposta pode ser: “Sim! ” Deixem-me explicar.
Provavelmente alguns de nós leram sobre homens que, durante a última
guerra, foram torpedeados e passaram muitos dias em jangadas ou barcos
no oceano; ou sobre homens que estiveram em campos de concentração
onde chegaram ao cúmulo da desnutrição. Finalmente estes homens foram
resgatados ou postos em liberdade. A tendência geral da gente seria fazê-los
sentar-se a uma mesa e servir-lhes uma tremenda refeição. Entretanto isto
bem poderia matá-los. A explicação é que o homem não está bastante forte
para comer essa comida. Antes de estar em condições de consumir
uma refeição pesada, terá que recuperar as forças. Para isso é preciso
injetar glicose em suas veias, em seu sangue; pode-se dar-lhe diversos
extratos de alimentos, ou um ovo ligeiramente cozido, que contém
poucos elementos nutritivos. No início é preciso submetê-lo a um
regime alimentar muito suave. Um homem enfraquecido e exausto
simplesmente não pode comer alimento forte; é perigoso para ele. Portanto,
eu

afirmo que, nos termos da própria argumentação do bispo, sua causa está
completamente errada. Certamente perde de vista a intenção espiritual da
oração do apóstolo neste ponto que, em minha opinião, é que aquilo que
vamos receber é tão poderoso, tão vigoroso, tão forte, que precisamos ser
fortalecidos para podermos recebê-lo.

Permitam-me dar respaldo ao meu argumento referindo-me ao que Paulo


escreveu ao coríntios: “Com leite vos criei, e não com manjar, porque ainda
não podíeis, nem tão pouco ainda agora podeis” (1 Coríntios 3:2).
Correspondentemente, o autor da Epístola aos Hebreus escreve: “O
mantimento sólido é para os perfeitos” (ou “maduros”) (5:14), quer dizer,
para os que cresceram e se desenvolveram. Se você der a um bebê carne ou
comida pesada, isso vai lhe dar indigestão aguda e vai causar-lhe grande
mal-estar e moléstia. Não se dá comida pesada a bebês; o que se lhes dá é
leite. Alimento pesado só é próprio para aqueles cujos organismos foram
exercitados pelo uso, que se desenvolveram, que são bastante fortes para o
assimilar. Na verdade o apóstolo Paulo dissera a mesma coisa aos coríntios
na primeira Epístola, capítulo 2, versículo 6: “Todavia, falamos sabedoria
entre os perfeitos”. Ele não lhes tinha ensinado “sabedoria” porque ainda
eram carnais, eram, de fato, simples bebês na graça. Ele lhes havia dado
o alimento apropriado para eles. Antes de poderem receber
"sabedoria” precisavam ser fortalecidos.

Isso tudo é plenamente consubstanciado pelo que vemos nas experiências de


muitos santos de Deus. Há uma bem conhecida história de uma experiência
pela qual passou D. L. Moody quando caminhava pela Wall Street em Nova
York uma tarde. Subitamente lhe sobreveio o Espírito Santo; foi batizado
com o Espírito Santo. Diz-nos ele que a experiência foi tão tremenda, tão
gloriosa, que ele ficou em dúvida se poderia agüentá-la, num sentido físico;
tanto assim que ele clamou a Deus que segurasse a sua mão, para que ele
não caísse na rua. Foi assim por causa da glória transcendental da
experiência. Quando Cristo entra no coração a glória é tal, que a própria
estrutura parece desmoronar-se sob o seu impacto, e somos levados a tremer
e a estremecer. Pode-se ver a mesma coisa nas experiências de homens como
Jonathan Edwards e David Brainerd. Quando Cristo vem habitar pela fé no
coração, e quando somos cheios de toda a plenitude de Deus, precisamos
ser fortes. Éuma experiência lancinante e irresistível. Assim o apóstolo
ora no sentido de que estes efésios sejam fortalecidos com poder no
homem interior. Quanto maior o poder, maior será a força necessária
para contê-lo.

Então, como se mostra esta fraqueza do homem interior? Primeira-

mente, a mente precisa ser fortalecida num sentido espiritual. Isto porque
somos assaltados por dúvidas. Alguns dos maiores santos relataram que
foram assaltados até o fim das suas vidas por dúvidas. Eles não davam
crédito às dúvidas, mas estas se apresentavam a eles e os perturbavam por
algum tempo. Depois vem o problema da depressão. É muito difícil definir a
depressão. Você pode despertar de manhã e ver-se com a mente num estado
de depressão. A mente que pode ter estado funcionando perfeitamente
ontem, não parece estar funcionando bem hoje. Sentimos uma espécie de
entorpecimento, lentidão e incapacidade para pensar com clareza. Parece
que a mente precisa ser fortalecida. Ou podemos ser perturbados por maus
pensamentos que invadem a mente. Parece que estes estão sendo lançados
em nós. Mais adiante, no capítulo 6, Paulo fala dos “dardos inflamados do
maligno”. O diabo os arremessa na mente. Eles começam quando você
acorda de manhã, antes de ter tempo para pensar. Assim a mente precisa
ser fortalecida. Outro problema é o de pensamentos dispersos. Todos
nós temos experiência disto. Você vê que pode ler uma literatura leve ou
um jornal sem dificuldade, no concernente à concentração. No
entanto, quando procura ler a Bíblia, a sua mente parece vagar por todas
as direções e você não consegue concentrar-se. Está olhando para
as palavras, está lendo os versículos, mas a sua mente parece estar
noutro lugar.

Também precisamos ser fortalecidos na mente por causa da natureza da


verdade cristã. Embora o evangelho do Senhor Jesus Cristo seja, num
sentido, gloriosamente simples, é igualmente verdadeiro que ele é a verdade
mais profunda do mundo. Esta Epístola aos Efésios não é simples. Vocês não
poderão compreendê-la de maneira casual e sem esforço. Não podem passar
por ela a galope. Há nela uma verdade profunda, e uma sutil argumentação.
Há “imensidões e infinidades”, para citar Thomas Carlyle. Vocês não
podem tomar estas coisas “às carreiras”. Os nascidos de novo, os cristãos,
quando lêem esta Epístola bem podem dizer: “não a compreendo”. Assim a
mente precisa ser fortalecida. O propósito quanto a nós é que apreendamos
a verdade; e não podemos apreendê-la e compreender o que ela significa e o
que ela nos está dizendo, a não ser que as nossas mentes sejam fortalecidas.

Lamentavelmente existem muitos cristãos que não sabem disto, e


absolutamente não o compreendem. Não só não o sabem; não querem sabê-
lo. É desse tipo o cristão que diz: “Sou um cristão simples, um homem
comum; posso testificar, posso dar o meu testemunho. Posso realizar obra
prática. Todavia estas outras coisas são difíceis demais para mim; não
consigo ligar-me a elas. Doutrina e teologia não me interessam; creio no
evangelho simples”. Mas nenhum cristão tem

direito de falar dessa maneira. Se vocês não fazem nenhum esforço para
entender esta Epístola aos Efésios, ou todos os outros
ensinamentos profundos do Novo Testamento, culpa de pecado pesa sobre
vocês. Esta Epístola foi escrita para cristãos comuns. O propósito é que
todos nós entendamos estas coisas; e não temos nenhum direito de reduzir
as nossas responsabilidades e dizer que queremos uma mensagem simples,
um evangelho comum. Dizer um cristão que ele não pode perder tempo, que
fazer isso requer muito esforço, que sua mente está cansada, que ele tem
muitas ocupações e muitos problemas na vida diária, que não tem
inclinação para ser leitor ou pensador — é negar as Escrituras. O apóstolo
ora no sentido de que as mentes destes efésios sejam fortalecidas para que
venham a compreender estas possibilidades mais elevadas da vida cristã, e
venham a experimentá-las, a regozijar-se nelas e a dar vigoroso testemunho
e demonstração da glória de Deus. A letargia intelectual é, sem dúvida, o
maior pecado de muitos cristãos hoje em dia. Jamais crescem no
conhecimento; terminam onde começaram. Estão sempre falando das
primeiras experiências que tiveram, porém nunca adentraram estas
riquezas a que Paulo se refere; jamais escalaram os picos das montanhas, e
jamais respiraram o ar puro da santa verdade de Deus. Estão contentes com
o nível comum; ignoram o ensino mais avançado porque este exige esforço
intelectual.

Exatamente da mesma maneira o coração precisa ser fortalecido porque


somos invadidos por temores e imaginações. Somos sujeitos ao desânimo.
Temos a tendência de render-nos a maus pressentimentos. Mesmo quando
tudo vai bem conosco, os nossos corações começam a dizer: “Ah, vai tudo
bem por ora, mas nunca se sabe o que está para vir! E de imediato ficamos
deprimidos. Já não experimentamos isso, todos nós? Quão traiçoeiro pode
ser o coração! Ele pode evocar possibilidades; e vamos encontrá-las na
imaginação: que será, se acontecer isto? Que será, se acontecer aquilo? Que
será, se esta criança morrer? Que será, se eu perder o ser amado? — e
assim por diante. Dessa maneira podemos fazer-nos sentir em miseráveis
condições. De fato não está acontecendo nada; só estamos imaginando como
nos sentiríamos se acontecesse. Assim, muitas vezes estes temores,
presságios, desânimo e más imaginações arruinam o cristão. Há alguns
cristãos cuja carreira se resume em estar “preso a superficialidade e
aflições” porque nunca se aperceberam da necessidade de terem o seu
coração fortalecido pelo Espírito Santo.

De igual modo a vontade precisa ser fortalecida. Nossas vontades são fracas
e irresolutas, como resultado do pecado e da Queda. Com sinceridade
resolvemos e fazemos o propósito de fazer certas coisas; e realmente
desejamos fazê-las. Então, no último instante, ficamos com

medo ou desistimos. Por causa de indagações como esta: que será ou que
acontecerá se eu o fizer? A vontade parece ficar paralisada ou tornar-se
irresoluta, e deixamos de fazer aquilo que sabemos que devíamos fazer.
Quantas vezes falhamos exatamente no ültimo instante!

Assim que começarem a olhar para este homem interior, e a examiná-lo,


verão que ele é muito fraco, muito débil, e que necessita ser fortalecido. Não
fora o fato de que podemos fazer a nosso favor a oração que Paulo estava
fazendo pelos efésios, cada um de nós vacilaria e fracassaria. Quantas vezes
vacilamos e fracassamos em nossa mente, em nosso coração ou em nossa
vontade! Se fôssemos deixados entregues a nós mesmos, não haveria
esperança para nós, e não haveria ninguém para recomendar o evangelho.
Graças a Deus, porém, há este meio pelo qual podemos ser fortalecidos. O
apóstolo o estabelece perfeitamente para nós aqui. Assim é que, por mais
fraco ou frágil que vocês se sintam neste momento, por muito que tenham
falhado, este é o meio. A oração do apóstolo é para que “o Pai de nosso
Senhor Jesus Cristo, do qual toda a família nos céus e na terra toma o
nome” os fortaleça no homem interior. Não podemos, então, dizer: tudo está
bem; posso ser revigorado por Deus? Não posso fazer-me forte: não
posso introduzir este ferro nas muralhas da minha alma; faça o que
fizer, fracassarei. Mas eis aí a força que vem de Deus. Ele é
totalmente suficiente!

A expressão subseqüente diz: “vos conceda"'. Que bendita palavra é a


palavra “conceda”! Deus me faz uma concessão; Ele me dá este meio. É
uma dádiva gratuita; você não precisa conquistá-1 a, não precisa comprá-la.
Simplesmente a pede e a recebe. “Para que vos conceda...” O mais fraco
santo pode elevar o rosto, mesmo quando não possa manter-se de pé.
Simplesmente olha e diz — “Senhor, tem misericórdia de mim”, “Fortalece-
me, ó Deus”. E Ele lhe “concederá” a força de que necessita.

Mais maravilhoso ainda, porém, Paulo diz: “para que vos conceda segundo
as riquezas da sua glória ”. A glória de Deus é a suma, a soma total de todos
os atributos de Deus — Seu poder, Sua majestade, Sua santidade, Sua
pureza, Sua retidão, Sua justiça; Deus na totalidade do Seu ser. A glória de
Deus! E é segundo as riquezas, a plenitude dessa glória, que Deus pode
fortalecer-nos com poder. Ele o faz “pelo seu Espírito”. É função especial do
Espírito Santo fazê-lo. Foi o mesmo Espírito Santo que nos convenceu do
pecado e que nos deu o dom da fé que nos capacitou a crer. Jamais
poderíamos crer sem Ele, porque “o homem natural não compreende as
coisas do Espírito de Deus, porque lhe parecem loucura; e não pode
entendê-las, porque elas se discernem

espiritualmente” (1 Coríntios 2:14). Deus, porém, nos deu do Seu Espírito, e


é pelo Espírito que nós cremos e é por Ele que somos transformados em
homens espirituais. O mesmo Espírito também pode fortalecer-nos no
homem interior. Diz o apóstolo no capítulo 4 da Epístola aos Filipenses:
“Não estejais inquietos, por coisa alguma”. Quando as coisas vão mal,
tendemos a ficar inquietos, e principalmente em nossos corações e mentes.
Há só um meio de livrar-nos da inquietação ou ansiedade: “as nossas
petições sejam em tudo conhecidas diante de Deus pela oração e súplicas,
com ação de graças”(versículo 6 a 7). Se você fizer isso, diz Paulo, “a paz de
Deus, que excede todo o entendimento, guardará os vossos corações e os
vossos sentimentos em Cristo Jesus”. As circunstâncias não mudaram,
continuam exatamente como eram. Donde vem, então, a paz ao coração e à
mente? Vem do Espírito Santo, que fortaleceu o seu coração e a sua mente,
de modo que pode resistir a tudo quanto se lance contra você; e você está a
salvo.

Assim é, pois, a oração que o apóstolo faz. Estamos vivendo dias em que
constantemente ouvimos falar do reforço de materiais. Reforçam o
concreto, e temos o concreto armado. O concreto é muito forte, mas, se
puser algum ferro nele, ficará mais forte. E quando se constroem novos e
pesados edifícios, alguma coisa é necessária para agüentar com segurança o
peso que terão que suportar. Esse é o princípio que está por trás daquilo que
o apóstolo diz aqui. Se eu e vocês havemos de conter o Senhor Jesus Cristo
dentro de nós e se havemos de ser “cheios de toda a plenitude de Deus”,
temos que ser reforçados no homem interior pelo Espírito Santo, E se
compreendermos que há estas possibilidades para nós, e as desejarmos, e
pedirmos a Deus que “segundo as riquezas da sua glória” nos reforce pelo
Espírito Santo, Ele prometeu fazê-lo, e Cristo habitará pela fé em nossos
corações.

Estamos nós tão acima do nível do cristão comum como o cristão comum
está acima do nível do homem que não é sequer cristão? Ser alguém assim é
uma extraordinária, uma gloriosa possibilidade para cada um de nós neste
momento, em Jesus Cristo, pela graça de Deus.

No grego as expressões são idênticas nos dois lugares. Nota do tradutor.


CRISTO NO CORAÇÃO

“Para que Cristo habite pela fé nos vossos corações. ” Efésios 3:17

Aqui estamos diante da maior de todas as altitudes da vida cristã e do que


nos é possível como novo cristão. Portanto, este não é um trecho fácil das
Escrituras. Mas não existe nada que seja mais glorioso. Os montanhistas
contam-nos que, quanto mais alto se chega, mais difícil é escalar; e, todavia,
é cada vez mais gratificante e maravilhoso. A mesma coisa aplica-se às
Escrituras. E certamente aqui nos achamos deveras no pico culminante da
experiência cristã.

Pois bem, tomemos a lembrar-nos de que isto é algo destinado a todos os


cristãos. O apóstolo escreve para todos os membros da igreja de Éfeso e,
obviamente, queria que eles compreendessem isso; na verdade ele pressupõe
que serão capazes de compreendê-lo. Digo isso porque há muitos cristãos
hoje que não procuram entender nada que seja difícil. Mas isso é ignorar
deliberadamente o claro ensino de que se espera que cresçamos “na graça e
no conhecimento de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo” (2 Pedro 3:18).
Como o apóstolo diz no capítulo seguinte, não devemos ser crianças, não
devemos permanecer crianças, deixando-nos levar “em roda por todo o
vento de doutrina”. E estas palavras, jamais nos esqueçamos, foram escritas
a pessoa que provavelmente eram escravas, que não tinham recebido
nenhuma instrução escolar e que não tinham nenhuma das vantagens que
nós desfrutamos. Assim, para usar a linguagem de Pedro, devemos
“cingir os lombos do nosso entendimento” (1:13). Temos que esforçar-
nos para entrar nesta atmosfera rarefeita. Precisamos mover-nos
com precisão e com toda a nossa capacidade e poder. Mas acima de
tudo devemos prestar atenção nas petições do apóstolo.

A primeira petição, como vimos, é para que sejamos “fortalecidos com


poder pelo Espírito de Deus no homem interior”. Quando
formos fortalecidos “segundo as riquezas da glória de Deus” pelo
Espírito Santo, seremos capazes de subir e chegar a esta grande
altitude. Podemos testar-nos neste ponto fazendo a nós mesmos uma
pergunta simples — estou olhando para frente e para o alto? Fico em
comovida expectação quando considero estas ardorosas frases colocadas
diante
de nós pelo apóstolo?

Passamos agora à petição, “para que Cristo habite pela fé nos vossos
corações”. Tem havido muita discussão sobre como se deve tomar
esta petição e as duas anteriores (ver vss. 14-16). Dizem a mesma coisa
de maneira diferente, ou o apóstolo estaria colocando primeiro a
petição sobre “serem fortalecidos” por ser uma essencial preliminar a
esta petição posterior? Eu pessoalmente não duvido que esta última
possibilidade é a correta, embora haja um sentido em que é igualmente
certo dizer que estas coisas sempre se fundem mais ou menos e não
podem ser dividas em nenhum sentido terminante. O apóstolo as coloca
nesta ordem — o fortalecimento primeiro e, depois, “para que Cristo
habite pela fé nos vossos corações”.

Ao abordarmos esta estonteante declaração — e devemos andar, como


sugeri, com cautela, com cuidado, e circunspectos — é essencial que nos
lembremos uma vez mais de que esta oração é feita em favor de crentes.
Dou ênfase à questão porque se tomou corrente uma frase relacionada com
a evangelização, que tem causado confusão com respeito a este versículo
particular. Ao relatarem sua experiência e falarem da sua conversão as
pessoas muitas vezes dizem: “Já faz muitos anos que eu recebi Cristo no
meu coração”. Com freqüência os evangelistas comunicam a sua mensagem
desse modo e perguntam às pessoas se querem receber Cristo em seus
corações. Mas esta expressão não é bíblica e pode levar a um entendimento
errôneo, particularmente quando nos defrontamos com uma frase como a
que estamos estudando agora. É por esta razão que lhes faço lembrar que o
apóstolo está fazendo esta oração por pessoas que já são crentes. Elas
outrora estavam longe, porém foram trazidas para perto, pelo sangue de
Cristo. Já são crentes, já estão unidas a Cristo, sua Cabeça, já são membros
do Seu corpo, que é a Igreja. Estes crentes estão “nEle”, e Ele está neles.

Noutras palavras, o apóstolo não está orando com o fim de que estas pessoas
se tomem cristãs; está orando com o fim de que Cristo habite pela fé nos
seus corações, conquanto Ele já esteja presente. Paulo não está orando pela
conversão delas, ou pela sua salvação, ou pela sua justificação. Tudo isso é
tomado como líquido e certo; já se realizou. Para tirar qualquer possível
dúvida ou confusão concernente a isto, lembremo-nos de novo da exposição
do apóstolo na Segunda Epístola aos Coríntios, capítulo 13, versículo 5:
“não sabeis quanto a vós mesmos, que Jesus Cristo está em vós? Se não é
que já estais reprovados”. Diz ele que sermos crentes, sermos cristãos,
significa que Jesus Cristo está em nós. Ninguém pode ser cristão se Cristo,
nalgum sentido, não estiver nele. Igualmente há a declaração registrada
em Romanos, capítulo 8, versículo 9: “se alguém não tem o Espírito de

Cristo, esse tal não é dele”. Isso era verdade quanto a estes efésios; eles já
são cristãos. De fato é porque eles são cristãos que ele vai adiante e faz esta
oração por eles, para que Cristo habite pela fé nos seus corações.

Qual é, pois, a diferença entre esta condição e a condição normal, a


condição invariável de todos quantos são cristãos verdadeiros? A resposta
deve achar-se primariamente na palavra “habitar”. No grego é uma palavra
composta que, basicamente, significa “viver numa casa”. Mas quando é
acrescentado o prefixo que significa “abaixo”, a palavra passa a significar
“instalar-se e estar em casa”. O apóstolo decide deliberadamente utilizar
esta palavra para salientar a idéia de fazer morada em você, de instalar-se,
de fazer seu lar permanente, em distinção de uma simples visita ou de estar
num lugar, num sentido geral.

Lança luz sobre esta concepção o que lemos no capítulo três do livro de
Apocalipse, na mensagem à igreja de Laodicéia, principalmente no versículo
20.0 Senhor ressurreto diz: “Eis que estou à porta, e bato: se alguém ouvir a
minha voz, e abrir a porta, entrarei em sua casa, e com ele cearei, e ele
comigo”. Às vezes penso que não há nenhuma declaração das Escrituras
mais freqüentemente mal compreendida, mais mal empregada e mais objeto
de abuso do que essa declaração em particular. Quase invariavelmente é
tomada num sentido evangelístico. Cristo é retratado como de pé, do lado de
fora da porta fechada do coração humano, e implorando ao pecador que O
deixe entrar e que O receba em seu coração. Mas essa é uma interpretação
completamente falsa de Apocalipse 3:20. A carta aos laodicenses é,
naturalmente, uma carta dirigida a uma igreja; é “o que o Espírito diz às
igrejas”. Suas palavras não são dirigidas a incrédulos, e sim a cristãos que
estão dentro da Igreja Cristã. Todo o conteúdo dos capítulos 2 e 3 do livro
de Apocalipse, devemos lembrar, é dirigido a cristãos, a crentes, a
pessoas que já criam no Senhor Jesus Cristo e que estão unidos a Cristo,
que estão nEle, e Ele nelas. E ainda a mensagem do bater à porta trancada é
dirigida a essas pessoas, em particular à igreja do laodicenses. Eles eram
cristãos; mas estavam em más condições, “nem frios, nem quentes”;
achavam que eram ricos e que tinham tudo; no entanto, na realidade eram
pobres e estavam nus, cegos e vazios. É a tal espécie de cristãos que o nosso
Senhor diz: “Eis que estou à porta, e bato: se alguém ouvir a minha voz, e
abrir a porta, entrarei em sua casa, e com ele cearei, e ele comigo”.

Então, essas palavras são dirigidas a cristãos que têm vida espiritual, porém
que se acham em condições de muita pobreza e imaturidade. Há um sentido
em que eles conhecem o Senhor Jesus Cristo, mas num

sentido mais profundo não O conhecem. Estão num relacionamento com


Ele, mas não são dominados por Ele. Certamente estão numa posição em
que se comunicam com Ele; todavia Ele não está no centro das suas vidas.
Ele não está realmente nos corações deles, Ele não está “habitando” ali, Ele
não “se instalou” ali, ele não “fez ali Sua habitação”.

A carta à igreja dos laodicenses nos fornece uma chave para entendermos a
petição que está sendo elevada pelo apóstolo Paulo em favor dos efésios. Ele
dá graças a Deus por tudo quanto lhes acontecera; mas deseja ansiosamente
que eles percebam o que ainda lhes é possível, e especialmente esta ulterior
intimidade pessoal com o Senhor Jesus Cristo. Isto não poderá acontecer,
enquanto não forem fortalecidos. Temos que ser preparados para isto, como
um lar tem que ser preparado para algum grande e importante hóspede.
Como já lhes dissera, o cristão foi feito para ser, e é para ser “morada de
Deus em Espírito” (ou “mediante o Espírito,” 2:22), e individualmente os
cristãos devem ser moradas para Cristo mediante o Espírito. Isto ainda não
acontecera com os cristãos efésios, entretanto Paulo deseja que aconteça.

O apóstolo anseia que isto aconteça com eles porque ele mesmo sabia
exatamente o que significa experimentá-lo. Este é o homem capaz de dizer,
escrevendo aos gálatas: “vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim; e a
vida que agora vivo na carne vivo-a na fé do Filho de Deus, o qual me amou,
e se entregou a si mesmo por mim” (2:20). Ele estava numa posição em que
podia dizer, sem dúvida ou hesitação: “vivo, não mais eu, mas Cristo vive
em mim”. Assim ele ora no sentido de que os efésios tenham e gozem uma
experiência semelhante.

Também podemos examinar a petição de Paulo em termos de uma


passagem do capítulo 14 do Evangelho segundo João. Nosso Senhor, às
vésperas da Sua crucificação, volta-se para estes homens que se sentem tão
mal, infelizes e de crista caída, e diz: “Não se turbe o vosso coração, nem se
atemorize” (versículo 27). Diz Ele que num sentido vai deixá-los, mas noutro
sentido, virá a eles. Depois Ele apresenta a verdade concernente ao Espírito
Santo e à Sua vinda, e lhes diz que, resultante da vinda do Espírito, Ele
próprio voltará para eles, para “habitar” e “fazer Sua habitação” neles. Diz
Ele mais: “Naquele dia conhecereis que estou em meu Pai, e vós em mim, e
eu em vós” (14:20). Não tinham esse conhecimento naquela ocasião; por isso
Ele diz: “Naquele dia” conhecereis.

Quando o Senhor lhes estava falando, eles já eram cristão, pelo que
continua a dizer-lhes: “Vós já estais limpos, pela palavra que vos
tenho falado” (15:3). Ele diferencia também entre eles e o mundo no
capítulo 17, quando diz: “Eu rogo por eles: não rogo pelo mundo...”
(versículo

9). São cristãos; porém não se dão conta de que eles estão nEle e de que Ele
está neles. Ou veja o versículo 21 nesse mesmo capítulo 14 do Evangelho
segundo João. O Senhor está falando acerca do cristão a quem o Espírito
terá vindo e que está guardando os Seus mandamentos. Diz Ele: “eu o
amarei e me manifestarei a ele”. Ele acentua que não se manifestará desse
modo ao mundo, mas unicamente a quem já é cristão. Isto não pode referir-
se à revelação geral que temos nas Escrituras porque os discípulos já criam
nela. A referência aqui é a algo mais, como fica ainda mais claro quando o
Senhor continua, no versículo 23, a dizer, falando de Si mesmo ao Pai:
“viremos para ele, e faremos nele morada”. A palavra “morar” ou
“habitar” é característica do Evangelho segundo João. Ela transmite esta
mesma idéia de “instalar-se”, de “estabelecer residência permanente” —
não de estar presente ocasionalmente, mas de estar ali permanentemente.

Está bem claro que isso é algo que está muitíssimo além do simples crer;
muitíssimo além da justificação; muitíssimo além da salvação no sentido da
experiência do perdão dos pecados. Bem podemos referir-nos de novo, nesta
altura, às palavras de Spurgeon sobre a existência de um ponto na
experiência do cristão que se acha tão acima da experiência do cristão
comum como a experiência do cristão comum está acima do não cristão.
Então, em favor do quê o apóstolo está realmente orando aqui? Devemos
examinar outra palavra, antes de responder a pergunta. A palavra
“habitar” realmente diz tudo, no entanto o apóstolo a sublinha, por assim
dizer, orando “para que Cristo habite pela fé nos vossos corações. ” Nas
Escrituras a palavra “coração” geralmente significa o próprio centro da
personalidade. Não é apenas a sede das afeições; inclui igualmente a mente,
o entendimento e a vontade. É, portanto, a verdadeira cidadela da alma.
Assim, o que o apóstolo deseja para os efésios é que Cristo habite em suas
mentes; não somente nos seus intelectos, mas também no centro mesmo
das suas personalidades. Cristo já estava nas mente deles, pois eles
já tinham crido; contudo há uma grande diferença entre ser crente
em Cristo e ter Cristo morando no coração. Essa é a distinção que
Paulo está traçando com nitidez aqui, no caso dos cristãos efésios.

É vitalmente importante que apliquemos isto a nós. Crer no Senhor Jesus


Cristo não é o fim do cristianismo; é apenas o começo. Crer na verdade
acerca da Sua pessoa e acerca da Sua obra é absolutamente essencial e, se
nós não subscrevemos estas verdades, simplesmente não somos cristãos.
Ninguém pode ser cristão se não crê no Senhor Jesus Cristo nesse sentido.
Mas não é isso que o apóstolo tem em mente aqui. Você pode ter Cristo em
sua mente e em seu intelecto, e ainda não ser

capaz de dizer: “vivo, não mais eu...”. O desejo de Paulo é que Cristo habite
igualmente em suas afeições, que Cristo habite em sua vontade, que Cristo
seja o fator dominante na totalidade da vida deles, exercendo o controle
sobre ela e dirigindo-a. Cristo deve ser o próprio coração deles, deve estar
no verdadeiro centro das suas vidas.

É então aqui que nós penetramos naquela atmosfera rarefeita a que me


referi. Se Cristo está no seu coração, significa que Cristo Se manifestou a
você. E quando Cristo Se manifesta a nós, não é apenas uma figura de
linguagem; é real, é fatual. É tão definido que não deixa nenhuma dúvida a
respeito. Quando você lê as experiências de alguns santos do passado, você
vê que eles tiveram todo o cuidado de traçar esta distinção. Dizem eles que
houve uma ocasião em que passaram a crer em Cristo, quando tiveram a
certeza de que os seus pecados foram perdoados. Sabiam que estavam
relacionados com Ele, que estavam nEle e que tinham encontrado paz e
descanso para as suas almas. Dizem eles também que, por algum tempo, às
vezes por anos, pensavam que isso era todo o cristianismo. Não obstante,
depois começaram a descobrir que havia algo mais vasto e maior, que
jamais tinham conhecido. Encontraram a promessa do Senhor expressa nas
palavras: “eu me manifestarei a ele” (João 14:21), e começaram a
perguntar-se se Cristo Se manifestara a eles. Não estavam certos do sentido
disso. Eles criam nEle e estavam cientes da Sua influência geral sobre
eles; mas esta declaração de que Ele Se manifestaria aos Seus pareceu-
lhes uma declaração deveras específica. Então começaram a dar-se conta
de que nunca tinham conhecido essa manifestação.

Quando Cristo Se manifesta a nós, Ele Se toma real para nós como pessoa.
Chegamos a conhecê-lO num sentido pessoal. Noutras palavras, tal
experiência é o cumprimento de tudo que o Senhor promete no capítulo 14
do Evangelho segundo João. Permita-me fazer-lhe uma pergunta pessoal:
você conhece de fato o Senhor Jesus Cristo pessoalmente? Você O conhece
como pessoa? Como pessoa Ele é real para você? Ele Se manifestou a você
nesse sentido? É evidente que isso tinha acontecido com o apóstolo Paulo.
Não somente O vira de fato na estrada de Damasco, não somente tivera uma
visão no templo mais tarde; em acréscimo a isso, e acima disso, diz ele,
escrevendo aos gálatas: “aprouve a Deus revelar seu Filho em mim” (1:15
-16). Ele diz “em mim”, não “a mim”. Éuma manifestação interna do Filho
de Deus na qual Ele Se faz tão real para nós como qualquer outra pessoa, e
até mais. Neste ponto não posso fazer melhor que citar uns versos
que Hudson Taylor costumava usar como oração por si mesmo todo dia
de sua vida:

Ó Senhor, faze-Te para mim uma fulgente e viva realidade, mais presente à visão
da fé vibrante do que qualquer objetivo exposto à vista mais caro e mais
intimamente próximo que o laço terrenal mais doce e amado.

Esse é o objetivo da súplica do apóstolo em favor dos efésios. Ele parece


dizer: sei que vocês são cristãos, sei que há um sentido em que Cristo está
em vocês, pois não poderiam ser cristãos sem estarem unidos a Ele como sua
Cabeça, sei que vocês estão nEle e que Ele está em vocês; mas, além disso,
vocês O conhecem? Cristo ocupa o centro de suas vidas? E Ele de fato real
para vocês, e conhecido por vocês? Ou é Ele alguém que estava vagamente à
distância, alguém de quem vocês se aproximam somente em termos de
crença? Ele Se manifestou realmente a vocês?

Há mais um elemento na declaração de Paulo que dá maior segurança a esta


exposição. O tempo do verbo que ele emprega em conexão com o “habitar”
é o aoristo, que traz o sentido de algo que acontece uma vez e para sempre.
Aqui, pois, ele está orando por uma bênção específica, e não por uma
bênção geral para os efésios, bênção que leva a pessoa a dizer: “Até este
momento eu não conhecia de fato a Cristo pessoalmente, mas agora Ele Se
manifestou a mim e eu O conheço. Ele Se tomou real e vivo para mim. Este
é um momento sublime da minha vida”. Não é uma questão de visões ou de
transes, mas de um conhecimento espiritual de Cristo. O Espírito Santo O
traz a nós, e mediante o Espírito Ele Se manifesta de modo que Se toma
real, vivo e verdadeiro para nós. Em seu grande hino, J. Caspar Lavater
ora rogando esta mesma bênção quando pede: “Ó Jesus Cristo, cresce
Tu em mim, E todas as outras coisas se afastarão”. Num poema posterior ele
ora no sentido de que Jesus Cristo Se tome mais real, mais amado, a paixão
da sua alma. Isto só passa a ser uma realidade quando se tem este
conhecimento pessoal do Senhor Jesus Cristo.

Isto, por sua vez, leva a um consciente sentimento de comunhão com o


Senhor e leva a pessoa a desfrutá-la. Sabemos o que é desfrutar consciente
comunhão com o Senhor Jesus Cristo? Falemos disto com clareza; você
pode ser cristão sem isto. Graças a Deus por isso! Você pode ser cristão sem
gozar consciente comunhão com Cristo. Você pode estar na posição na qual
descansa no Senhor, descansa na obra perfeita que Ele realizou em seu
favor, e pode mesmo orar a Ele e, todavia, não ter comunhão consciente,
uma consciente percepção da Sua proximidade e uma consciente fruição
dEle. É isso que o apóstolo

deseja para estes efésios, “para que Cristo habite pela fé nos vossos
corações”. E, naturalmente, quando isto é real, é obvio que Ele domina tudo
em nossas vidas. Podemos sumariar o assunto repetindo
palavras empregadas pelo apóstolo noutro lugar. É quando Cristo nos é
conhecido desse modo, e está em nossos corações, que podemos dizer
com sinceridade e verdade: “vivo, não mais eu” (Gálatas 2:20), e
“Posso todas as coisas naquele que me fortalece” (Filipenses 4:13). O
apóstolo não está se gabando quando escreve essas coisas. Há sempre o
perigo, quando lemos as suas Epístolas, de o considerarmos como um
homem literário que gosta de hipérboles. Mas não é esse o caso. Quando
o apóstolo utiliza estas frases está sendo rigorosamente preciso,
está expondo a sua experiência; tudo isso foi real quanto a ele. Ele
conhecia tão bem o Senhor Jesus Cristo, que podia dizer: “Posso todas as
coisas naquele que me fortalece” e “Sei estar abatido, e sei também
ter abundância” (Filipenses 4:12), ser rico e ser pobre. Não importa o
que aconteça, afirma Paulo, desde que Ele esteja comigo, Ele me fortalece, e
eu posso fazer todas as coisas. Não estou só. Esta é na verdade doutrina
sumamente elevada.
Demos, porém, um passo mais. Esta presença de Cristo no coração é algo
real. Não significa somente que Ele está presente por meio do Espírito, ou
que está presente no sentido de que nos influencia de maneira geral, e nos
dá graças e nos habilita a sentir-nos seguros da Sua influência. É mais que
isso. Significa que Ele próprio, nalgum sentido místico que nem começamos
a compreender, realmente habita em nós. É isto que o apóstolo tem em
mente quando repreende os cristãos coríntios como culpados de certos
pecados corporais da carne, e diz: “não sabeis que o nosso corpo é o templo
do Espírito Santo, que habita em vós?” (1 Coríntios 6:19). Não significa
apenas que o Espírito Santo nos influencia de modo geral. Quando Paulo
diz “corpo” quer dizer “corpo” — carne, ossos, músculos; quer dizer nossa
estrutura física. Isto se refere, não à Sua influência, mas ao fato de que Ele
está pessoalmente em você. Eis por que pecar com o seu corpo é tão grave; e
é desta maneira que o cristão deve encarar o pecado. Não deve olhar só para
os pecados particulares e confessar que fez o que é errado e que não deveria
tê-lo feito; o apóstolo ensina que temos que dar-nos conta de que o Espírito
Santo reside em nossos corpos e de que não devemos usar o templo do
Espírito Santo de maneira indigna.

De modo similar, quando o Espírito Santo habita em nossos corpos, o


Senhor Jesus Cristo entra da mesma maneira. Ele bate à porta do coração
do cristão que não O conhece e efetivamente diz: gostaria que você Me
conhecesse. Se você tão-somente abrir a porta, Eu entrarei e Me
manifestarei a você; sentar-Me-ei e cearei com você, e você

coMigo. Então você Me conhecerá com uma intimidade que nunca ainda
tinha experimentado. Entrarei em seu ser, e farei habitação em você. É real
assim!

Devemos notar que tudo isso se toma possível pela fé — ”Para que Cristo
habite pela fé nos vossos corações”. “Pela fé” significa que é a fé que nos
revela esta possibilidade. Você tinha percebido que isto era uma
possibilidade para você? É-nos possível ler as Escrituras com muito
entendimento intelectual, porém sem fé será possível passar os olhos sobre
estas grandes palavras sem entender o seu significado real. Você pode ter
lido este capítulo três da Epístola aos Efésios e ter dito muitas vezes,
“Maravilhoso! Magnífico! Como o apóstolo é eloqüente!” Mas você
compreendeu que ele está dizendo que Cristo quer vir para dentro do seu
coração e quer que você O conheça num sentido vivido e real? É a fé que
revela esta possibilidade para nós.

Semelhantemente é também a fé que nos habilita a crer que habitação de


Cristo no coração é uma realidade, e não apenas uma frase. O homem
carente de fé nunca acreditará nisso. Posso imaginar um homem ouvindo ou
lendo isto e dizendo: “Que quer dizer isso tudo? Realmente não tenho idéia
do que o apóstolo esteve falando. Parece estar sobre as nuvens, nalgum
lugar. Sou um homem prático, e tenho que lutar contra a tentação e o
pecado, e vivo num mundo em que estou cercado de problemas — que é isso
tudo?” Quem fala desse jeito está dizendo que não tem fé;
conseqüentemente, ele jamais conhecerá esta verdade, pois ela é conhecida
“pela fé”. A fé revela que se trata de uma realidade.

Posso levar o assunto para mais longe ainda. A fé revela que se trata de uma
realidade para mim, pessoalmente. A fé capacita você a dizer a si mesmo,
quando a lê ou a ouve: é a Palavra de Deus que afirma que me é possível
conhecer o Senhor Jesus Cristo desta maneira íntima. A fé toma posse da
promessa pessoal e individualmente. A fé, e tão-somente a fé, capacita o
homem a crescer na palavra proferida por Deus, a aceitá-la plenamente e a
descansar nela. E depois de vir a crer, começa a orar pela bênção prometida.
O apóstolo, ele mesmo crendo nisso e tendo experiência disso, orava sem
cessar pelos cristãos efésios. Ele “se põe de joelhos” diante do Pai e ora para
que sejam fortalecidos, a fim de que lhes suceda isto. E se eu e você crermos,
começaremos a orar desde este momento, pedindo isto para nós mesmos.
Diremos: não conheço a Cristo desta maneira íntima, e quero conhecê-lO
assim. Creio que isso é possível, e vou pedi-lo. Assim você vai a Deus com
fé, com confiança, com ousadia, com segurança, e diz: “Sei que isto
não depende de mim, mas oro, rogando que TU me fortaleças com
poder pelo Espírito em meu homem interior, para que eu obtenha este

conhecimento, para que Cristo se manifeste a mim. Quero conhecê-lO,


quero que Ele viva em minha vida e domine todo o meu ser”.

Assim você começa a orar, e continua a orar dessa maneira, com fé, até que
chega um momento maravilhoso e, de repente, você se vê conhecendo a
Cristo. Ele ter-Se-á manifestado a você, Ele terá feito Sua habilitação em
você, instalando-Se em seu coração. E, admirado, você dirá: “Como pude
passar tantos anos satisfeito com os simples rudimentos do cristianismo,
com os simples portais do templo, quando me era possível tão glorioso e
magnificamente entrar no “lugar santíssimo”?

Ó Senhor Jesus Cristo, cresce Tu em mim, e as outras coisas todas as


retirarão; meu coração de Ti cada dia mais perto, do pecado liberto estará cada
dia.

Cada dia, Senhor, Teu poder que sustenta Continue a envolver minha
debilidade; a minha escuridão Tua luz desvanece,

Tua vida elimina a minha morte.

Mais e mais da Tua glória permite-me ver,

Tu, Jesus Cristo, Santo, Sábio e Verdadeiro!

O meu desejo é ser a Tua imagem viva, tanto nas alegrias como nas tristezas.

Faze este pobre ego decrescer; sê Tu a minha vida e a minha meta.

Oh, faz-me, diariamente, pela graça, mais disposto a levar Teu santo nome!

(Johann Caspar Lavater)

A VERDADE COMEÇA A BRILHAR

“Para que Cristo habite pela fé nos vossos corações; a fim de,

estando arraigados efundados em amor” Efésios 3:17

Ao continuarmos o nosso estudo desta grande exposição, precisamos orar


por nós mesmos como o apóstolo orava por estes efésios, “para que sejamos
fortalecidos com poder pelo seu Espírito no homem interior”. Seria
insensato pretender ou presumir que esta grande oração é fácil de entender
ou fácil de expor. Necessariamente não é, não pode ser e não pretende ser. A
fé cristã, a mensagem cristã, pode ser comparada a um grande oceano. Uma
criança pode chapinhar nas águas da praia do oceano, mas no centro das
profundezas o mais poderoso transatlântico é apenas como uma rolha de
cortiça ou como uma garrafa. É imensurável. Nós entramos na vida cristã
como crianças e começamos a chapinhar nas águas rasas; porém devemos
avançar rumo às profundezas. É o que estamos fazendo a considerar esta
grande oração, e ao retomar ao versículo dezessete. Não se pode fazer
apenas uns poucos comentários sobre estas vigorosas frases, e passar
diante para outra coisa, achando que já lhes foi dado tratamento
suficiente. Estas frases são tão recheados de substância que é nossa tarefa e
nosso dever fazer uma pausa, pónderá-las profundamente e gastar
muito tempo com elas.

Além disso, uma grande e profunda verdade está sempre sujeita a ser mal
compreendida. Quando manejamos uma verdade de natureza tão profunda,
somos incapazes da precisão que podemos exercer quando estamos lidando
com os princípios elementares da fé cristã. É evidente que haveria pouca
dificuldade em expor com clareza a doutrina da justificação pela fé. Quem
não é capaz de fazer isso, jamais deveria levantar-se num público. Nessa
matéria deve haver exatidão e precisão; contudo quando chegamos a
afirmações como as que vemos neste parágrafo, a situação é muito diferente.
A própria natureza e caráter da verdade em apreço toma isso quase
impossível. Deve-se esperar um elemento de incompreensão e dificuldade.
Há, na verdade,

um sentido em que é assim que deve ser. Não se pode dissecar um aroma,
não se pode analisar o amor. E é disso que estamos tratando aqui — do
amor de Cristo e de Deus. O que só podemos fazer é ir adiante, e ir tão longe
quanto pudermos em nossa tentativa de trazer à luz a verdade em sua
riqueza e elucidá-la quanto possível. Mas o fazemos com “temor e tremor”.

Confesso francamente que não me lembro de, em meu ministério como


pregador, haver tratado de algum tema das Escrituras em que eu estivesse
tão consciente da minha insuficiência e incapacidade como com esta
passagem particular. Não tenho a pretensão de ser capaz de fazer
declarações revestidas de autoridade, porém, pela graça de Deus, considero
um grande privilégio simplesmente manter estas coisas diante de vocês e
rogar-lhes que, com espírito de humildade, as examinem e as ponderem, e
que orem a respeito delas; não com espírito argumentative, não com o
desejo de classificar tudo com exatidão, e sim com o desejo de entrar
naquela posição na qual, estando face a face com Deus e com o Senhor Jesus
Cristo mediante o Espírito Santo, podemos muito bem ver-nos calados
devido à transcendental glória com que nos defrontamos.

Há dois grandes princípios que devemos continuar a ter em mente. O


primeiro é que esta petição é elevada em favor dos que já são crentes. Ela
nos leva a nos comparar e a nos contrastar, não com incrédulos ou com
cristãos imaturos, mas com santos bem firmes, e com as possibilidades ali
indicados. Devemos dar-nos conta de que não recebemos tudo, e de que a
nossa tarefa não é apenas a de manter a posição à qual chegamos. Devemos
impelir-nos para a perfeição. Devemos esquecer as coisas que atrás estão e
avançar para o alvo, para a soberana vocação, para a prêmio que está em
Cristo Jesus.

Prosseguindo, e para nosso encorajamento, deixem-me salientar o segundo


princípio, o qual é que o apóstolo eleva esta oração por todos os cristãos.
Não é meramente uma oração em favor de certas pessoas excepcionais. O
Novo Testamento, diversamente da igreja católica romana e doutras formas
de catolicismo, não divide os crentes em “religiosos” e “leigos”. Não existem
especialistas na vida cristã. As coisas de que trata a Epístola aos Efésios são
possíveis a todos os cristãos, até mesmo para cristãos aos quais o apóstolo
terá que lembrar, mais tarde, que não devem continuar a roubar, a cometer
adultério, a falar com insensatez e a fazer brincadeiras e gestos indignos, e
não devem continuar a ser mentirosos. Eles tinham sido retirados de
todos estes pecados, e embora isso lhes tivesse acontecido só recentemente, o
apóstolo sustenta diante deles esta tremenda possibilidade. Visto que lhes
eram possíveis tais coisas, ele ora desse modo por eles.

Devemos lembrar-nos, pois, que é errado e pecaminoso dizermos que essa


liberdade não é para nós todos, porém unicamente para alguns cristãos
excepcionais. Jamais devemos ficar satisfeitos, enquanto não estivermos
nesta posição, não a conhecermos experimentalmente e não fomos capazes
de regozijar-nos nela. Imagino que não haverá nada mais humilhante no dia
do Juízo, quando veremos o nosso Senhor face a face, do que
compreendermos o que nos tinha sido possível nesta vida, compreendermos
que nunca nos havíamos interessado por isto, e no entanto simplesmente
tínhamos passado por alto estas frases grandiosas, sem jamais examiná-las e
tentar descobrir o que queriam dizer e por quais maneiras eram aplicáveis a
nós.

Portanto, ao tentarmos explicar ainda mais a nossa definição do que


significa Cristo habitar pela fé em nossos corações, permitam-me começar
fazendo uma pergunta particular. Qual a relação entre este habitar e o selo
do Espírito? Alguns ensinam que são idênticos. Entretanto, obviamente não
podem ser. O apóstolo já fizera lembrar aos efésios, no versículo treze do
capítulo primeiro, que eles já tinham sido “selados com o Espírito”: “Em
quem também vós estais, depois que ouvistes a palavra da verdade, o
evangelho da vossa salvação; e, tendo nele também crido, fostes selados com
o Espírito Santo da promessa”. Paulo está fazendo esta petição, para que
Cristo habite pela fé em seus corações, em favor dos que já tinham sido
selados com o (ou pelo) Espírito.

Pode-se entender muito bem como surge a confusão. Como já vimos, nesta
esfera é muito difícil catalogar realidades espirituais e colocar rótulos nelas,
como coisas definidas e separadas, porque toda experiência, e
principalmente toda experiência de alto nível, relaciona-se necessariamente
tanto com o Espírito Santo como com o Senhor Jesus Cristo. Como
acentuamos anteriormente, você não poderá ser Cristão se Cristo não
estiver em você, e se levanta a questão: se Cristo está em todos os cristãos,
que é que o apóstolo pretende ao orar no sentido de que Cristo habite em
seus corações? Já respondemos à pergunta; mas para muitos parece
continuar havendo confusão neste ponto. Isto se deve à impropriedade da
linguagem e à gloriosa natureza da verdade. E a mesma coisa se aplica
quanto ao Espírito Santo: “Se alguém não tem o Espírito de Cristo, esse tal
não é dele”. Todavia, isso é diferente de ser “batizado pelo Espírito” ou de
ser “selado pelo Espírito”, como vimos. Num sentido continuamos
empregando as mesmas expressões, continuamos falando sobre o Senhor
Jesus Cristo e sobre o Espírito Santo; há uma diferença, porém. Estes
crentes efésios já tinham sido selados e, contudo, Paulo ora para que aquilo
que ele

menciona aqui seja recebido por eles.

Então, qual a diferença entre isto e receber o selo do Espírito? Sugiro a


seguinte resposta: receber o selo do Espírito Santo é primariamente questão
de segurança da salvação. É isso que nos dá uma certeza direta e imediata
de que somos filhos de Deus, herdeiros de Deus, e de que a herança haverá
de ser nossa finalmente. Contudo o que o apóstolo tem em mente aqui, neste
capítulo três, não é primariamente uma questão de segurança. É mormente
uma questão de comunhão com o Senhor. O recebimento do selo me garante
que estou ligado a Ele. Esta experiência ulterior me coloca em
companheirismo e comunhão com Ele num sentido mais profundo e mais
grandioso. Obviamente ambas as experiências são grandiosas e, como
vimos, quando o cristão é selado com o Espírito, tem consciência de Cristo e
também fica ciente do poder do Espírito. Mas aqui estamos tratando de algo
que vai além disso e que é mais profundo ainda.

Opino, em segundo lugar, que esta experiência é mais permanente que a do


recebimento do selo. A selagem pode ser repetida muitas vezes. Vê-se isto
claramente nas vidas de muitos santos, bem como no livro de Atos dos
Apóstolos. Não obstante, aqui temos algo mais permanente. A própria
palavra “habitar” da ênfase ao fato de que se trata de “estabelecer-se”, de
“fazer morada em”. Não se deve exagerar nisso, mas é uma distinção real.
Há aqui um maior elemento de permanência.

Além disso, gostaria de acrescentar que nesta experiência há menos que na


selagem, daquilo que se pode denominar elemento extático. Em conexão
com o recebimento do selo, aquilo de que se tem consciência é o seu caráter
imediato, a sua luminosidade; tudo se toma claro repentinamente, ao passo
que aqui há uma realidade num nível mais profundo, mais permanente e,
portanto, mais extático. Permitam-me ilustrar o que eu quero dizer.

Lembro-me de ouvir contar o que um velho pregador disse durante o


avivamento ocorrido no País de Gales em 1904 e 1905. Naquele avivamento
muitos experimentaram repentinamente o batismo do Espírito, e muitas
vezes isto foi acompanhado por grande êxtase e alegria, e muito louvor.
Alguns dos mais jovens ficaram surpresos com este velho ministro que
estivera num avivamento similar em 1859, quando ele era jovem. Ficaram
surpresos porque ele não parecia estar experimentando a arrebatada alegria
que eles estavam. Não podiam compreender isto, e achavam que havia
alguma coisa errada com ele, de modo que foram conversar com ele sobre
isso. Ele os recebeu com bondade e paciência e lhes respondeu da seguinte
maneira: mostrou-lhes que há diferença entre ficar apaixonado pela mulher
que será a sua

esposa, e viver com a sua esposa num estado de amor anos e anos. O
primeiro êxtase entusiástico não tem continuidade; porém não significa que
há menos amor. Há menos entusiasmo nisso, há menos alvoroço e menos
proporção do elemento demonstrativo, mas não quer dizer que há alguma
diminuição do amor. Na verdade pode significar exatamente o oposto, isto é,
um amor mais profundo. É minha opinião que o mesmo princípio aplica-se
aqui para explicar a diferença entre receber o selo do Espírito e Cristo
habitar no coração. Este é um maior amor, um conhecimento maior, uma
intimidade maior, uma comunhão mais profunda; todavia não vem
acompanhado pelo vibrátil elemento invariavelmente trazido pela primeira
experiência do poder do Espírito.

Também tomo a liberdade de tentar descrever mais a natureza e o caráter


desta experiência de conhecimento da morada de Cristo no coração pela fé.
É a diferença entre conhecer a Cristo “por” você e conhecer a Cristo
“em”você. No começo da vida cristã, necessariamente nós temos que
concentrar-nos em Cristo “por” nós. O começo da vida cristã é em geral
mormente objetiva. Noutras palavras, o que nos faz cristãos é que nos
damos conta de certas coisas acerca do Senhor Jesus Cristo, de Sua obra
por nós, e da Sua relação conosco. Esta verdade é objetiva. Vemos a Cristo
fora de nós; vemo-lO vindo ao mundo e nascendo como bebê em Belém.
Observamos o Seu crescimento; ouvimos o Seu ensino; observamos os Seus
milagres; vemo-lO morrendo na cruz e, depois, saindo ressurreto do túmulo.
Olhamos para todos estas coisas e perguntamos: que é que está acontecendo
ali, por que Ele veio, que faz Ele na cruz? E dizemos: Ele está ali levando
sobre Si os meus pecados, está morrendo por mim: Cristo é “por” mim.
Estou olhando para Ele e para aquilo que Ele fez para mim e em meu
favor objetivamente. Mas habitar Cristo no coração não é objetivo, e
sim subjetivo; segue-se ao objetivo e deste resulta.

Mas alguém poderá argumentar que existe um elemento subjetivo no ato


inicial de crer. Naturalmente que existe! Repito que não devemos traçar
estas distinções de forma exageradamente aguda. Se não houver este
elemento subjetivo, você não é cristão, de modo nenhum; poderá estar
dando somente um assentimento intelectual à verdade. Todavia, falando em
termos amplos, o primeiro ato de crer é principalmente objetivo, ao passo
que este outro é principalmente subjetivo. O elemento objetivo permanece,
mas se inclui numa realidade maior. Avançamos até uma posição na qual
estamos principalmente interessados em Cristo, não como Aquele que
morreu por nós, e sim como o “Cristo que é a nossa vida”, Cristo como
Aquele que vive em nós e que faz Sua habitação em nossas vidas e dentro da
nossa consciência.

Existem palavras pronunciadas pessoalmente pelo Senhor que nos

ajudam a entender isto. Acham-se no Evangelho segundo João. “Na


verdade, na verdade vos digo que, se não comerdes a carne do Filho
do homem, e não beberdes o seu sangue, não tereis vida em vós
mesmos. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna,
e eu o ressuscitarei no último dia. Porque a minha carne verdadeiramente
é comida, e o meu sangue verdadeiramente é bebida. Quem come a minha
carne e bebe o meu sangue permanece em mim e eu nele. Assim como o Pai,
que vive, me enviou, e eu vivo pelo Pai, assim, quem de mim se alimenta,
também viverá por mim” (6:53-57). É um pronunciamento difícil de
entender. Pouco depois lemos: “Muitos pois dos seus discípulos, ouvindo
isto, disseram: duro é este discurso; quem o pode ouvir?” Na verdade a
passagem chega ao ponto de dizer que muitos deles “tomaram para trás, e
já não andavam com ele” (versículos 60 e 66). Eles não conseguiam
acompanhar este ensino; este fora além da sua compreensão, pelo que,
muitos que O seguiam O abandonaram.

Aqui estamos num terreno que testa e desafia o nosso entendimento, mas
devemos perseverar e procurar captá-lo. É Cristo habitando dentro do
crente — não como uma influência, não como uma lembrança, não apenas
através dos Seus ensinamentos, não meramente através do Espírito Santo. É
Cristo habitando pessoalmente nele, numa relação mística. Tenho que
utilizar o termo “mística” porque nada mais, nada menos faz justiça ao
ensino do Novo Testamento concernente a este assunto. Tome-se a passagem
do capítulo 6 do Evangelho segundo João; ou as declarações registradas nos
capítulos posteriores desse mesmo Evangelho às quais nos referimos
anteriormente, onde Cristo afirma que Se manifestaria aos Seus discípulos,
onde Ele afirma que viria e faria Sua morada neles, que Ele e o Pai fariam
Sua morada neles. A oração sacerdotal do Senhor, no capítulo dezessete do
Evangelho segundo João, faz declarações similares. Ou tome-se a expressão
do apóstolo na Epístola aos Colossenses: “Cristo em vós, a esperança
da glória” (1:27). Não é Cristo “entre vós”, mas Cristo “em vós”,
a esperança da glória. Ou ainda, “Vivo, não mais eu, mas Cristo vive
em mim” (Gálatas 2:20). Todos estes pronunciamentos e
expressões descrevem uma relação mística.

Expresso-me deste modo porque alguém poderá dizer: “Que é que você
quer dizer com a afirmação de que Cristo habita em mim? Não posso
entender isso”. Eis minha resposta: “Naturalmente que não pode; eu não
posso entender isso; ninguém pode. É uma declaração e experiência que está
além da compreensão humana. Nossos corpos, é o que se nos diz, são
“templos do Espírito Santo, que habita em nós”. O Espírito Santo está no
céu; mas também está em mim. O Senhor Jesus Cristo está no céu, mas
também está em mim. Isto só se pode descrever

como uma relação mística. Não devemos diminuí-la, não devemos rebaixá-
la. Devemos atribuir-lhe todo o seu peso. Se o não fizermos, não estaremos
fazendo justiça às Escrituras.

E mais, não somente não estaremos fazendo justiça às Escrituras, mas


também não estaremos fazendo justiça às grandes experiências que, através
dos séculos, os santos de Deus têm tido. Veja-se o hino que inclui a estrofe,

Cristo, alegria de almas que amam,

Fonte da vida e Luz dos homens; da melhor bênção desta terra despidos nós a Ti
voltamos.

Jesus é isto para você? Isso é verdade quanto a você? É possível crer na
obra que o Senhor realiza por você, você pode ser cristão e pode ser salvo
por Ele, e não ser capaz de dizer com toda a sinceridade que Ele é “a alegria
da sua alma”, “do seu coração”. Os que escreveram hinos como este
queriam dizer de fato o que escreviam; estavam sendo sinceros e estavam
relatando suas experiências, e não fazendo mera poesia.

Todavia consideremos outro hino, de Bernardo de Claraval, que diz:

Jesus, o só pensar em Ti enche-me o peito de dulçor.

Isso é verdade quanto a você? Você pode empregar estas palavras com
sinceridade? Meu argumento é que estes homens estão expressando as suas
experiências nestes hinos. Não é teoria. Estes homens tinham lido as
Escrituras, tinham compreendido a aplicação delas a si mesmos, e tinham
procurado e obtido esta experiência. Continuemos, porém, com este grande
hino:

Ó Esperança do contrito, ó Alegria dos humildes, aos que compreendem quanto


és bom, quão bom Tu és aos que te procuram!

Mas que dizer dos que encontram ?


Nem língua ou pena mostrar pode;

o amor de Cristo, o que ele é, só os Seus amados é que o sabem.

“Seus amados é que o sabem.” Eles não podem falar muito desse amor de
maneira exata ou lógica, mas o sabem, o conhecem, regozijam-se nele.

Vejamos ainda outra expressão disto noutro hino atribuído a Bernardo -

Ó Jesus, rei magnificente,

Conquistador tão renomado!

Tu, ó Dulçor indescritível!

Acha-se em Ti toda a alegria.

Muito se pode dizer a favor da idéia de que não devemos cantar certos hinos
em público. Muitas vezes podemos ser insinceros ao cantarmos hinos. Com
freqüência entoamos este hino, porém, ele seria verdadeiro quanto a nós? A
pretensão é de que estamos cantando experiência — “Tu, ó Dulçor
indescritível! Acha-se em Ti toda a alegria”. É verdade sobre você? Estes
homens pensavam assim; por isso cantam assim. Não são insinceros; estão
contando a experiência deles. O escritor daquele hino prossegue, dizendo:

Quando visitas uma alma, põe-se a brilhar Tua verdade; vão-se as vaidades
deste mundo, e o amor divino então se inflama.

Aqui nos achamos numa esfera diferente, numa esfera muitíssimo mais
elevada que a da apreensão intelectual. Aqui experimentamos
a luminosidade, o fulgor da verdade. É o que acontece quando Cristo
se instala e habita no coração.

A seguir, passemos de um escritor do século doze para outro, do século


dezoito. Diz Charles Wesley:

Ó Cristo, és tudo quanto eu quero mais do que tudo em Ti eu acho.

Isso é verdade sobre nós? Podemos dizer isso? Essa é a linguagem do


homem em quem Cristo fez a Sua morada, em quem Cristo habita.
Eu poderia mencionar, do século dezessete, o piedoso Samuel Rutherford.
Em suas cartas e nos relatos da sua vida vocês verão que este elemento de
“misticismo de Cristo” foi proeminente em sua experiência. Ele foi um
calvinista que conhecia a Cristo, que O amava,

e que gostava de falar dEle, de permanecer nEle e em Seu amor. A mesma


nota há de encontrar-se em todos os séculos e em homens que pertenceram a
diferentes escolas teológicas. Vemos o Conde Zinzendorf , um morávio do
século dezoito, dizer: “Tenho uma só paixão: Cristo, e unicamente Cristo”.
Agora, esta linguagem não pode ser empregada pelo chamado cristão médio
ou comum. Alguém pode ser cristão e, todavia, não ser capaz de dizer tais
coisas. Isto explica por que o apóstolo estava fazendo esta oração em favor
dos efésios. Eles tinham crido, tinham sido selados pelo Espírito, mas não
podiam utilizar este tipo de linguagem; não conheciam a Cristo deste modo;
Ele não Se “instalara” em seus corações. Como tenho dito repetidamente,
isto significa que Ele governa totalmente as nossas atividades. Ele é
o Senhor das nossas vidas num sentido real e prático. Somos dominados por
Ele; é uma espécie de “intoxicação de Cristo”.

Citei estas diversas declarações porque me parece que é a melhor maneira


de transmitir esta preciosa verdade. Mas homens e mulheres através dos
séculos têm podido cantar esses hinos com sinceridade. Examinem os seus
hinários, principalmente as seções sobre o Senhor Jesus Cristo, e em
particular os que expressam alegria e paz, e amor a Deus e ao Senhor Jesus
Cristo. Olhem também as seções sobre consagração e santidade, e verão que
os autores de hinos através dos séculos sucessivos trataram deste tema de
Cristo no coração. Foi isto que os levou a escreverem, foi isto que inspirou
sua magnífica poesia e produziu o seu elevado, o seu exaltado pensamento.

Contudo, para terminar com uma nota prática: como é que isso tudo se
toma possível para nós? Que é que nos cabe fazer para chegarmos à posição
na qual podemos apropriar-nos realmente destas declarações com
sinceridade e fazer delas a linguagem dos nossos corações e a expressão da
nossa experiência pessoal? Minha resposta é que devemos repetir os
versículos 16 a 17 deste capítulo, e devemos ter o cuidado de tomá-los na
ordem certa. Primeiro o apóstolo ora no sentido de que Deus lhes conceda
que, “segundo as riquezas da sua glória, sejam fortalecidas com poder pelo
seu Espírito no homem interior”. Sem isso, não há esperança. Primeiro é
preciso que o Espírito Santo opere em nossas mentes, em nossos corações e
em nossas vontades. Vocês percebem que a sua mente precisa ser
fortalecida, ao defrontarem-se com uma verdade como esta? Quanto mais
fácil é entender história, ou literatura, ou geografia, ou geometria, ou
direito, ou medicina! Vocês não perceberam, ao examinarmos estas
grandes profundezas da verdade, que suas mentes precisam ser fortalecidas,
e que têm que ser fortalecidas, se não, tudo isso parece impossível?
Por natureza, todos nós temos a tendência de pensar como as pessoas que

estavam ouvindo o Senhor quando Ele falava sobre comer a Sua carne e
beber o Seu sangue; elas disseram: palavra dura é esta; quem pode seguir
esta espécie de pregação? E O abandonaram. Necessitamos ter nossas
mentes fortalecidas para que não nos abalemos quando
formos confrontados por algo maravilhoso e transcendental. Nossas
mentes não podem entender essas verdades; não podemos captá-las
com facilidade e dizer: “Eu as compreendi”. Elas sempre parecem
escaparmos e ir muito além de nós. Portanto, a mente precisa estar
preparada e, graças sejam dadas a Deus, o Espírito Santo pode realizar esta
obra.

Recordemos como o apóstolo, escrevendo aos coríntios, afirma que “os


príncipes deste mundo” não O conheceram, nem a verdade concernente a
Ele; “mas Deus no-las revelou pelo Seu Espírito; porque o Espírito penetra
todas as coisas, ainda as profundezas de Deus”(l Coríntios2:8,10). Não se
desesperem se acharem estas verdades duras e difíceis de seguir; lembrem-
se do poder do Espírito Santo, e orem para que Ele fortaleça suas mentes.

Nossos corações também precisam ser fortalecidos, porque, enquanto nos


amarmos a nós mesmos, Cristo não virá para dentro dos nossos corações.
Temos que livrar-nos do amor do ego. Essa é a mais difícil de todas as
tarefas da nossa experiência. A batalha principal da vida cristã é livrar-nos
do ego e do amor a nós mesmos. E por nós mesmos não podemos fazê-lo.
Vocês o fazem sair por uma porta da sua casa, por assim dizer, mas logo
aquilo retoma por outra, ou através de uma janela, ou pela chaminé. Livrar-
nos do amor próprio parece impossível. No entanto, Cristo não virá para
dentro dos nossos corações enquanto não houver lugar para Ele. Não
podemos criar o amor, não podemos “confeccioná-lo”. Nada é tão tolo como
tentar fazê-lo. O amor é um dom de Deus, mediante o Espírito; assim,
devemos orar para que Ele fortaleça os nossos corações para receberem este
amor puro, que é tão estranho para nós como para os homens e mulheres
naturais.

Igualmente a vontade necessita ser fortalecida. Não é esta a sua


experiência? Vocês ouvem ou lêem uma passagem como a que temos diante
de nós, e dizem: “Daria a minha mão direita para poder ter isto; vou
procurar obtê-lo; tenho que tê-lo”. Mas bem pode ser que amanhã de noite
vocês já tenham esquecido tudo sobre isso. Vocês estarão interessados
noutra coisa, nalguma coisa deste mundo. Estavam plenamente resolvidos
na ocasião, estavam determinados a buscar isto; entretanto vocês entram
numa conversação, falam sobre trivialidades, e logo se esquecem daquilo
tudo. Vocês retomam ao ponto, ou a sua atenção é chamada para isso, e
dizem: “Ah, pensava que a esta altura o teria experimentado”. Mas não se
aplicaram àquilo; a vontade de vocês é muito fraca. A vontade de todos nós
é fraca; estamos sempre

nos propondo, estamos sempre tomando resoluções. Todavia não as


mantemos, não as levamos a efeito. A vontade precisa ser fortalecida.

Portanto, precisamos orar para que o Espírito Santo nos fortaleça em todos
estes aspectos. O apóstolo orava constantemente pelos efésios. Um serviço
que compete a todo aquele que é chamado para ministrar a homens e
mulheres é orar por eles. Perdoe-nos Deus a nossa negligência! Mas também
devem orar por si próprios. Se vocês se derem conta de que esta experiência
é uma possibilidade para vocês, orem até obtê-la. Orem para que sejam
fortalecidos com este poder, com estas forças do Espírito em seu homem
interior. Quando a experiência lhes chegar, seguir-se-ão certos resultados.
Vocês começarão a ver o seu pecado e a sua pecaminosidade como nunca os
viram antes. Pensavam que tinham conhecimento sobre o pecado;
descobrirão que sabiam muito pouco sobre isso. Descobrirão em si
mesmos uma vileza que nem puderam imaginar; descobrirão que o mal está
em sua própria natureza.

Então vocês começarão a agir, e a “mortificar a carne”. Procurarão limpar


os seus corações e as suas mãos, tentarão “purificar a sua carne e o seu
espírito”, como Paulo exorta os coríntios a fazerem. A razão pela qual vocês
fazem isso tudo pode ser entendida da seguinte maneira: sempre que vocês
convidam alguém para hospedar-se em sua casa, põem-se a arrumá-la;
querem que o local tenha boa aparência e fique o melhor possível. Não agir
assim seria um insulto ao hóspede. Ao proceder deste modo, estão fazendo
ao hóspede um sutil e delicado cumprimento, Se um grande personagem vai
ficar em sua casa, vocês redobram os seus esforços; não há o que não façam.
O que vimos considerando é a possibilidade de vir morar conosco o Senhor
Jesus Cristo, o Filho de Deus; não apenas para uma visita, e sim
para estabelecer dentro de nós o Seu lar. Isto requer preparação, mas
uma preparação que ultrapassa a nossa capacidade e as nossas
forças naturais. Portanto, precisamos ser fortalecidos pelo Espírito Santo
e, quando formos assim fortalecidos, agiremos, trataremos de livrar-nos do
refugo, de limpar-nos e purificar-nos, de mortificar a carne, de manter
deliberadamente longe de nós as coisas que sabemos que não são
compatíveis com Ele, ou que O entristecem e O ofendem. Todos nós
podemos fazê-lo, e vamos fazê-lo. Instemos com Ele que venha; anelemos
por Ele.

É aí que a fé entra — “Para que Cristo habite pela fé nos vossos corações”.
Cremos na possibilidade, sabendo que poderá vir a ser uma realidade. Não
significa o que muitas vezes se entende pela expressão, “recebendo-o pela
fé” — que vocês simplesmente se persuadem de que Ele veio, ou ficam
repetindo a si mesmos que Ele veio. Não, quando

Cristo habitar nos seus corações, não precisarão persuadir-se; vocês o


experimentarão como um fato! Serão capazes de dizer: “Tu, ó
dulçor indescritível, acha-se em Ti toda a alegria”. A perniciosa doutrina
do “receber pela fé”, creio eu, tem sido um obstáculo para muita gente neste
ponto. Dizem: “Eu abri a porta, eu O deixei entrar, eu creio pela fé que Ele
está ali”. Não sentem nada diferente; não podem empregar com sinceridade
a linguagem que temos citado, porque Ele não está “habitando” neles.
Quando Ele habita dentro de nós, nós o sabemos. Nada mais importa
realmente; é o valor supremo. É a coisa mais maravilhosa de todas.

Então, procuremos dar-nos conta desta gloriosa e estupenda possibilidade.


Se alguma vez Ele nos visitou, roguemos a Ele, dizendo: “Vem e permanece;
não me deixes. Vem fazer Tua morada e Tua habitação comigo!”
“Fortalecidos com poder pelo seu Espírito no homem interior.” Oremos com
fé, e continuemos orando e orando e orando, até podermos apropriar-nos
sinceramente da linguagem e dizer com o apóstolo: “Vivo, não mais eu, mas
Cristo vive em mim”.

O CORAÇÃO PREPARADO
“Para que Cristo habite pela fé nos vossos corações; a fim de, estando
arraigados e fundados em amor ” Efésios 3:17

Continuamos o nosso estudo do versículo dezessete — a petição que o


apóstolo faz pelos cristãos efésios — “Para que Cristo habite pela fé nos
vossos corações”. Até aqui a consideramos de modo geral. Agora devemos
examiná-la num sentido mais prático. Além de toda questão, estamos
tratando aqui da maior verdade que jamais pode confrontar o ser humana.
Aqui se mostram as possibilidades para o cristão na presente vida, neste
mundo limitado pelo tempo. Isto é verdade. Repito que não estou dizendo
que não se pode ser cristão sem estar nesta posição; estou dizendo, antes,
que somos cristãos pobres, se não conhecemos algo disto. É isto que fomos
destinados a ser, e isto nos é possível. Portanto, certamente nada nos é mais
importante que saber como chegar a esta posição e, ao mesmo tempo, saber
se Cristo habita realmente em nós, e como podemos ser habilitados a gozar
este supremo privilégio, que é a maior fonte de alegria.

Lembremo-nos do que isto significa a fim de aguçarmos os nossos apetites e


de estimularmos o nosso desejo disto. Pois aqui não estamos tratando de
uma matéria puramente teológica, mas de algo que tem sido um fato
concreto na vida de numerosos membros do povo de Deus em todos os
tempos e lugares, e freqüentemente a despeito das diferenças teológicas.
Como já vimos, há um comum testemunho desta grande experiência de
Cristo no coração. Como mais um exemplo e ilustração, tomemos o
testemunho encontrado num dos hinos de Charles Wesley:

Tu, oculta Fonte de calmo repouso, amor divino mais que suficiente, auxílio e
abrigo contra os inimigos, firme e seguro estou, se Tu és meu.

E ah! — do triste pecado e da vergonha,

Senhor Jesus, escondo-me em Teu nome.

Jesus, Teu grande nome é salvação,

e minha alma feliz no alto mantém; traz-me consolação, poder e paz, traz-me
alegria e traz-me amor eterno; com Teu amado nome são me dados perdão e
santidade e, enfim, o céu.

Jesus, és tudo em tudo para mim, repouso no lidar, na dor alívio; bálsamo ao
quebrantado coração Na guerra és minha paz, na perda o lucro; meu sorriso à
carranca do tirano, minha glória e coroa na vergonha.

Na carência és meu pleno suprimento na fraqueza és o meu poder total, na


prisão és a minha liberdade, minha luz na trevosa e infernal hora; meu amparo
e socorro quando clamo; na monte és meu viver, meu céu, meu tudo!

Faço uma pergunta simples e óbvia: esta é a sua experiência? Vocês podem
adotar estas palavras e empregá-las? Cristo significa isto para vocês? É isso
que acontece quando Cristo habita no coração. Observem a intimidade da
relação, a plenitude da satisfação. Cristo é seu “tudo em tudo”, sejam quais
forem as circunstâncias e condições. Isto é experimental, é experiência
pessoal; não é mantido só na mente; não é teoria. Charles Wesley achava a
sua completa satisfação em Cristo. Ele tinha provado a veracidade das
palavras ditas pelo Senhor, quando Ele afirmara que se alguém fosse a Ele,
“jamais teria fome”, se alguém cresse nEle, “jamais teria sede”. Ele tinha
dentro de si “uma fonte de água viva a jorrar para a vida eterna”.

Repito que isto é cristianismo essencial. É o que se nos oferece, e é na


medida em que conhecemos esta experiência e podemos testificá-la que
temos a possibilidade de atrair outros para a fé cristã. Os incrédulo têm o
direito de vigiar-nos e observar-nos, e o fazem. Temos a tremenda pretensão
de que Deus fez algo único, de que Ele enviou Seu unigênito Filho ao
mundo. Cremos na Encarnação, no poder do Espírito; mas a que isto leva a
prática? E se como cristãos parecermos estar em condições miseráveis, se
em tempos de pressão e tensão parecer que não temos consolação ou
reservas a que recorrer, o mundo terá todo o direito de perguntar: que valor
tem o cristianismo? Que é que há nele, afinal de contas? Numa época como
esta, quando os corações

de muitos desmaiam de medo, eles tendem a olhar para nós. Assim, não
somente por nós mesmos, como também por Deus e Sua gloriosa salvação,
pelo Filho de Deus que veio e tanto suportou para que pudéssemos ocupar
esta posição, cabe-nos ser capazes de testificar este grande fato de Cristo
habitar em nossos corações, dia após dia.

Chegamos, pois, a esta questão sumamente prática e essencial: como é


possível isto? Como satisfazer os anseios daqueles que dizem que dariam o
mundo inteiro se tão-somente pudessem dizer aquelas palavras de Charles
Wesley com sinceridade? O apóstolo responde: “Pela fé” — “Para que
Cristo habite pela fé” ou, “mediante a fé”. Esta frase é frequentemente mal
compreendida. Podemos considerá-la em termos da figura a que nos
referimos previamente, de Apocalipse 3:20, onde Cristo diz: “Eis que estou
à porta, e bato: se alguém ouvir a minha voz, e abrir a porta, entrarei em
sua casa, e com ele cearei, e ele comigo”. Que significa “abrir a porta”? e
como isto se relaciona com a fé?

Para responder estas perguntas de maneira prática, devemos começar com


o versículo 16: “Para que, segundo as riquezas da sua glória, (o Pai) vos
conceda que sejais corroborados (ou “fortalecidos”) com poder pelo seu
Espírito no homem interior”. Disto ninguém é capaz por si mesmo. Mas
neste ponto surge o perigo de pensarmos que, por causa desta ênfase à obra
primária do Espírito Santo, simplesmente temos que ficar passivos, à espera
de que nos aconteça algo. Mas isso é uma falácia total. A verdade sobre esta
questão foi expressa uma vez e para sempre na Epístola aos Filipenses,
capítulo 2, versículos 12 e 13, onde o apóstolo diz: “operai a vossa salvação
com temor e tremor; porque Deus é o que opera em vós tanto o querer como
o efetuar, segundo a sua boa vontade”. Temos aí o equilíbrio certo e a
seqüência certa. O apóstolo começa com uma exortação, quase uma ordem:
“operai a vossa salvação com temor e tremor”. Aí está o imperativo; aí está
uma coisa que eu e você temos que fazer. Todavia imediatamente
ele acrescenta: “porque Deus é o que opera em vós:”. Embora a ordem
aí seja o inverso da que temos aqui em Efésios 3:16, ela diz a mesma
coisa. Não fora o fato de que Deus “opera em nós tanto o querer como
o efetuar”, nunca poderíamos fazer coisa alguma. Nossa vontade,
como vimos, precisa ser estimulada e fortalecida; necessitamos do poder. E é
porque Deus “opera em nós tanto o querer como o efetuar”, que podemos
“operar a nossa salvação com temor e tremor”. Portanto, o versículo 16 não
ensina nenhum tipo de passividade em que simplesmente esperamos sem
fazer nada.

A seguir, o apóstolo continua, dizendo que isto é algo que acontece “pela fé”.
Que significa isto exatamente? Mais uma vez topamos com

um tipo de doutrina que tem causado tropeço a muitos, e os tem mantido


longe da vivida experiência que estamos considerando. “Pela fé”
não significa (eu cito a frase corrente) “receba-o pela fé”, a que já
nos referimos abreviadamente. Essa ensina que é “muito simples”, que você
“apenas o recebe pela fé”; você só “abre a porta para Cristo”,
e imediatamente Ele está em seu coração. Ainda que alguém não sinta nada,
deverá convencer-se de que, uma vez que a Palavra afirma que, se você
abrir a porta Ele entrará, portanto, se abriu a porta, Ele tem que ter
entrado! É irrelevante se você sentiu alguma coisa ou não; dizem eles que
você pode continuar “presumindo” e supondo que Ele entrou porque Ele
disse que o faria.

Essa doutrina é completamente errada. Nenhuma outra doutrina é tão


calculada para privar-nos das mais elevadas experiências da vida cristã; e,
por esta razão, não passa de uma forma de auto-persuasão, de pôr-se em
prática o princípio psicológico da auto-sugestão. O que a toma
particularmente errada neste contexto é que aqui não estamos lidando com
uma influência, e sim com uma Pessoa: “para que Cristo habite pela fé nos
vossos corações”. Quando Charles Wesley escreveu o hino por nós citado,
não estava se persuadindo, mas estava registrando a sua experiência daquilo
que Cristo era de fato para ele. Não diz ele que não tinha quaisquer
sentimentos, que foi deixado a si mesmo e tinha que persuadir-se de que
estas coisas são assim e de que tinha de “recebê-las pela fé”; o que ele diz é
que Cristo era o bálsamo para o seu quebrantado coração, a sua perfeita
liberdade, quando na prisão. Era questão de experiência. Não estava a
persuadir-se de alguma coisa; estava experimentando alguma coisa. E essa,
como vimos, tem sido sempre a experiência do povo de Deus. Não é algo que
você tem que pressupor ou tomar como líquido e certo, e então prosseguir
em sua jornada com fé cega. Graças a Deus não é assim; é uma realidade,
uma viva realidade. O apóstolo Paulo não estava fazendo uso de
uma hipérbole, quando disse: “Para mim, o viver é Cristo”; era
verdade quanto a ele. E quando disse: “Posso todas as coisas naquele que
me fortalece”, estava declarando um fato da sua experiência.

Devemos, pois, rejeitar o ensino que fala de “recebê-lo pela fé”. De qualquer
forma, não há nada que tanto induza ao erro que dizer que é “muito
simples”. Os defensores deste falso ensino muitas vezes usam uma
particular ilustração. Pedem-nos que imaginemos com as persianas
cerradas, ficando em conseqüência na escuridão, apesar de haver fora um
sol refulgente. Dizem eles: “Tudo que você precisa fazer é abrir as persianas,
e torrentes de luz solar entrarão. É tão simples como isso! ” Tal ensino deixa
muitos perplexos, porque estes dizem que durante anos vêm tentando pôr
em prática esse conselho. Acreditaram que é
“muito simples”, porém por algum motivo nada parece acontecer, e eles
continuam sem esta experiência. Contudo a fé não é “simples”, nesse
sentido; não é auto-sugestão, nem alguma espécie de “fideísmo”. A fé é
muito mais ativa. Se lermos as biografias dos filhos de Deus que souberam o
que é ter Cristo pela fé no coração, veremos que nenhum deles afirma que é
“muito simples”; ao contrário, veremos que muitos deles, na verdade a
maioria, experimentaram um longo processo de busca e exame, quase
perdendo as esperanças e quase desistindo em desespero. No entanto,
perseveraram na busca, procuraram e lutaram, e por fim ficaram cientes de
que Cristo na verdade e de fato habitava dentro deles.

Passemos à resposta positiva à questão do significado desta expressão, “pela


fé”. Não podemos fazer melhor do que tomar a descrição que nos é
oferecida no capítulo 11 da Epístola aos Hebreus, um capítulo escrito com o
fim de nos dar um relato e uma descrição daquilo que realmente constitui a
vida de fé. Não é um estado passivo, como veremos, porém primária e
essencialmente uma atividade; e o autor daquela epístola resume o ponto
para nós num versículo: “Todo estes morreram na fé, sem terem recebido as
promessas; mas vendo-as de longe, e crendo-as e abraçando-as, confessaram
que eram estrangeiros e peregrinos na terra” (Hebreus 11:13). À luz desta
definição da fé, podemos agora descobrir o verdadeiro significado das
palavras: “Para que Cristo habite pela fé nos vossos corações".

O primeiro princípio envolvido é que eu devo “ver” isto — “ Vendo-as de


longe” (as promessas). Noutras palavras, devo reconhecer o ensino, em vez
de o ler superficialmente. Devo ser cativado por ele. Os homens retratados
naquele capítulo onze de Hebreus vivam neste mundo, exatamente como eu
e você, e lhes chegou uma mensagem de algo diferente, de algo espiritual, de
algo procedente de Deus. E estes homens de fé a “viram”. Na maioria, os
seus contemporâneos não a viram; de fato a ridicularizaram. Veja-se, por
exemplo, um homem como Noé. Ele ouviu a mensagem de que Deus estava
para destruir o mundo com uma enchente. Ele “viu” essa mensagem, e fez
algo a respeito. Seus companheiros de existência, homens e mulheres, não
a viram, e o ridicularizaram por construir a sua arca. Riam dele,
com escárnio e mofa; a coisa parecia-lhes monstruosa.

O que diferencia os cristãos de todos os outros, em primeira instância, é que


eles “vêem” algo. Assim, a questão vital, quando consideramos a
possibilidade de Cristo habitar no coração, é: vemos esta possibilidade? Ou
nos inclinamos a pensar que é uma espécie de misticismo ou entusiasmo ou
fanatismo? “Eu creio em ser cristão”, diz

certo tipo de crente, “e creio em manter em minha mente a verdade cristã


em geral, e em ter uma vida moralmente boa; todavia agora você nos está
levando, certamente, a uma esfera perigosa, onde poderão suceder-nos
coisas estranhas.” Na verdade estou! Eu os estou conduzindo para os
domínios dos grande heróis de fé. Eu os estou conduzindo para os domínios
em que o apóstolo Paulo, os outros apóstolos e os cristãos primitivos
viveram. A menos que vejamos isto como uma realidade concreta,
obviamente jamais o conheceremos, jamais o experimentaremos.

Entretanto, estas pessoas não somente viram estas coisas; ficaram


“persuadidas” delas (“creram” de fato nelas). Deve-se dar ênfase a
isto porque muitos, quando lêem esta passagem e começam a ter
alguma compreensão dela e a “vê-la”, não vão adiante, pois raciocinam
como segue: reconhecem o tipo de experiência descrita e admitem que
ela pode ser demonstrada a partir das Escrituras e dos hinários, e
que certamente é verdadeira com relação a muitos cristãos. Mas ficam
a indagar-se se isto só vale para pessoas excepcionais. E não
depende, finalmente, de estrutura do indivíduo? Alguns são naturalmente
místicos, enquanto que outros são mais obtusos, insensíveis, mais
comuns, mais do tipo terrenal. Esta experiência não será unicamente para
um certo tipo de pessoa? Muitos há que pensam e argumentam
dessa maneira. O diabo veio e lhes sugeriu que, naturalmente, esta é
uma experiência perfeitamente genuína, mas nunca destinada a toda gente.

No entanto, as dificuldades podem tomar outra forma. Alguém poderá


dizer: por certo, esta experiência é maravilhosa, e eu gosto de ouvir e ler
sobre ela; porém obviamente não se destina a mim; sou um homem de
negócio, e me preocupo com os quefazeres desta vida. Ou, sou um
profissional extremamente ocupado. Posso ver com muita clareza que, se eu
não tivesse mais nada a fazer, senão passar meus dias estudando,
concentrado na vida cristã, ou se eu me fizesse monge ou eremita ou
anacoreta, e pudesse realmente dedicar-me a esta questão, não tenho dúvida
de que me seria possível. Entretanto estou imerso em questões de negócio e
em muitos problemas prementes; decerto esta experiência é completamente
impossível para mim.
A resposta pura e simples a esta alegação é que o apóstolo Paulo a
considerava possível para cada um dos membros da igreja de Éfeso. Estes
cristãos primitivos, pelo menos a maioria deles, eram escravos, não eram
senhores de si, e eram forçados a trabalhar, a labutar, a suar. Muitas vezes
faltavam-lhes instrução, conhecimento e cultura, e esta-vam mergulhados
nos mais sórdidos pormenores da vida. Todavia, o apóstolo garantia que isto
lhes era possível.

Assim, é essencial que nos persuadamos desta verdade. Se você

evadir-se disto alegando que a sua posição ou as suas circunstâncias são tais
que não lhe é possível, naturalmente nunca o experimentará. Mas agir assim
é completamente antibíblico. Você estará negando o ensino do apóstolo, e
não somente isso, estará negando a experiência cristã da Igreja através dos
séculos. Já diz advertência contra a dicotomia totalmente falsa de que se
fazem culpadas a igreja católica romana e outras formas de catolicismo,
quando dividem os cristãos em “santos” e cristãos comuns. Segundo o Novo
Testamento, todo cristão individual é santo. Todos os membros da igreja de
Corinto eram “chamados santos” e foram considerados santos pelo
apóstolo. Assim, devemos deixar-nos persuadir pelo ensino de que esta
experiência é possível a cada um de nós. Todos nós gozamos a mesma
salvação pelo sangue de Cristo, recebemos o mesmo dom da vida, fomos
destinados a experimentar e a viver a mesma vida, a morrer no mesmo
conhecimento da ressurreição, e a ir para o mesmo céu, de modo que todos
nós fomos destinados a entrar nesta experiência. E é um simples fato da
história que o tipo mais comum de indivíduo tem esta bendita experiência
e pode dar testemunho dela. Não está restrita a pessoas proeminentes; tem
sido a experiência das pessoas mais comuns, bem como de
pessoas extraordinárias porque finalmente não depende de coisa alguma
existente em nós, e sim do Senhor. O que temos que fazer é confiar nisto, vê-
lo, ficar convencido disto. Se não ficarmos convencidos de que isto é uma
possibilidade para nós, obviamente não o buscaremos.

O termos subseqüente, de Hebreus 11:13, afirma que eles abraçaram as


promessas. Cada termo dá mais um passo. No momento em que estas
pessoas se persuadiram das promessas, desejaram tomar posse delas;
começaram a desejar ardentemente o seu cumprimento. Pois bem, foi isto
que o Senhor disse no Sermão do Monte, numa das bem--aventuranças,
conforme registradas no Evangelho segundo Mateus: “Bem-aventurados os
que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos” (5:6). Abraçar as
promessas significa ter fome e sede delas. Persuadidos de que elas foram
destinadas para eles, estes agora começam a ter fome e sede delas e, então,
apropriar-se delas.

A lógica deste argumento nos é familiar na vida comum. Estamos


demasiado ocupados para persuadir-nos das coisas que desejamos nesta
vida e neste mundo, e para abraçá-las? Não temos tempo para cultivar os
nossos interesses e os nossos gostos? O homem de negócio ou o profissional
que nos diz que está ocupado demais para procurar a Cristo deste modo,
também nos diz que está ocupado demais para procurar uma esposa? Com
relação a isto ele é capaz de achar tempo, na verdade ele “fabrica” tempo.
Devemos agir de igual modo quanto a esta possibilidade na vida cristã.
Devemos “abraçá-la”. Uma excelente

exposição disto se acha num hino de Gerhard Tersteegen, um piedoso


cristão prussiano (embora com ligações holandesas) do século dezoito, que
tinha experimentado estas coisas. Ele não somente havia “visto” esta
realidade; ficara convencido dele e a abraçara.

Tu, oculto Amor de Deus, cuja altura e cuja profundeza ninguém sonda, de
longe vejo Tua luz esplêndida, anelo teu repouso desfrutar.

Meu coração se aflige e não repousa enquanto em Ti repouso não achar.

Ele não somente vira isto como uma possibilidade intelectual; tomara-se
uma realidade espiritual para ele. Tersteegen continua:

Total misericórdia foi levares minha mente a buscar em Ti sua paz; mas, se na
minha busca eu não Te achar, paz nenhuma verá minha alma andeja.

Oh, quando terão fim os meus vagares, e meus passos irão só rumo a Ti ?

Temos nós visto a possibilidade? Desejamo-la? Nós a temos buscado, e


temos sentido que enquanto não a pudermos achar, não haverá paz? Temo-
la visto com tanta clareza que podemos dizer que nunca mais seremos
felizes, enquanto não a tivermos? Tersteegen não a achava “muito simples”,
não dizia que era apenas questão de levantar a persiana! Não há nada de
falatório banal com relação a isto; os que o experimentaram, nunca foram
palradores. Repito o que sempre tenho sentido e dito, que há muitos hoje
que têm tomado tantas coisas pela fé, que nada têm. Tersteegen teve que
lutar; ele buscou, parecia-lhe fugir dele, e então brada agonia da sua alma:
“Oh, quando terão fim os meus vagares?” Você tem procurado o Senhor
desse modo? Você tem tentado abraçar a promessa dessa maneira
particular?

A expressão que vem a seguir, em Hebreus 11:13, é vitalmente importante.


Eles “confessaram que eram estrangeiros eperegrinos na terra”. Este é o
ponto em que eles começam a agir. Se deixarmos de agir com base no que
abraçamos, tudo será em vão. Há certas coisas que temos que fazer, se é que
isto há de vir a ser um fato em nossa experiência. No caso dos vigorosos
homens de fé de que fala Hebreus capítulo 11, vemos que toda a sua vida e
perspectiva era determinada e dominada por esta experiência. A história de
cada um daqueles

homens salienta isto como a sua principal característica. Quando Abraão


abraçou esta promessa, deixou a sua terra e partiu, “sem saber para onde
ia”. Ele confessou, ele agiu, toda a sua vida tomou-se um testemunho da
realidade de Deus. Quando Noé a viu, separou-se dos outros e se pôs a
construir a arca. Uma vez que vejamos isto, e estivermos convictos disto, e o
abracemos, isto vem a ser o motivo dominante da nossa vida e o centro do
nosso ser. Desejar Cristo no coração faz-nos prontos a renunciar a todas as
coisas, enquanto não O tivermos.

Para este fim, o primeiro passo prático que devemos dar é manter esta
questão constantemente em nossas mentes. Vocês podem ter sido atraídos
pela possibilidade muitas vezes; os hinos que têm lido e cantado podem tê-
los levado a desejá-la. Mas como é difícil manter na mente este sentimento e
desejo! A única maneira de fazê-lo é ler a Bíblia, e especialmente passagens
como esta e outras semelhantes, e então meditar nisso, pensar nisso com
freqüência e, deliberadamente, fazer a sua mente dirigir-se a isso. Outra
prática de inestimável valor é ler sobre as experiências dos santos, como as
vemos em nossos hinários e nas biografias dos fiéis homens de Deus.
Observem como eles buscavam esta experiência, e o que faziam a respeito. E
ao fazer isso, estarão mantendo-a diante da sua mente. Temos que fazer
isso deliberadamente, e temos que ser duros conosco mesmos.

Acima de tudo, temos que lembrar constantemente que está envolvido nisto
um relacionamento pessoal com o Senhor Jesus Cristo. Isso é absolutamente
central. Não estamos lidando com algum “Isto”, ou com alguma experiência
como tal; estamos falando acerca dEle, acerca de Cristo no coração, e da
experiência que decorre da intimidade com Ele. Portanto, devemos
perguntar a nós mesmos deliberadamente se Jesus Cristo é real para nós.
Cremos nEle, aceitamos a fé cristã; porém, nós O conhecemos neste
sentido? Podemos falar dEle como Charles Wesley falava? Precisamos
continuar a questionar-nos e a manter diante de nós a pessoa do Senhor.
Essa é a primeira e a mais importante questão.

O segundo ponto que temos que compreender é que certas coisas são
completamente incompatíveis com esta experiência. Se Cristo está em
nossos corações, certas outras coisas não devem e não podem estar em
nossos corações. Uma declaração muito clara sobre este aspecto
da experiência acha-se em 2 Coríntios, capítulo 6, onde lemos: “...
que sociedade tem a justiça com a injustiça? E que comunhão tem a luz
com as trevas? E que concórdia há entre Cristo e Belial? Ou que parte
tem o fiel com o infiel? E que consenso tem o templo de Deus com os

ídolos? Porque vós sois o templo do Deus vivente, como Deus disse: “nelas
habitarei, e entre eles andarei; e eu serei o seu Deus e eles serão o meu povo”
(versículos 14 a 16). Não há necessidade de argumentar sobre isto. Certas
coisas são incompatíveis. Não há concórdia entre Cristo e Belial. Se Cristo
está em meu coração, há certas coisas que têm que sair do meu coração. Ele
não habitará com elas. Ele é o Filho de Deus; Ele é santo e sem pecado.

Então, se verdadeiramente buscamos esta experiência e a abraçamos, temos


que tomar uma atitude a respeito. “Não ameis o mundo, nem o que no
mundo há”, diz o apóstolo João em sua primeira Epístola (2:15). Vocês não
podem ter o amor do Pai e o amor do mundo ao mesmo tempo. Portanto, se
quiserem Cristo em seus corações, livrem-se do mundo e da sua
mentalidade, da sua perspectiva, das suas atitudes e do seu comportamento.
Mas, tendo-se libertados dessas coisas, verão que ainda permanece um
inimigo, e este é o mais astuto de todos, a saber, o ego. Se se libertarem de
todas as outras coisas objetáveis por suas próprias forças, acabarão
louvando-se a si próprios, e ficarão orgulhosos de si e da sua santidade.
Cristo e o ego pecaminoso não podem permanecer no coração ao mesmo
tempo. Se é para Ele ocupá-lo, tenho que abdicar. Aqui, de novo, tomamos
ciência de um perigo testificado por muitos santos. Tomemos um exemplo
da experiência de um santo protestante francês Teodoro Monod:
Amarga vergonha e tristeza haver alguma ocasião em que o Salvador, com
piedade, clame em vão e obtenha a resposta:

“Do ego tudo, e nada de Ti! ”

Mas Ele me achou; contemplei-O na maldita cruz a sangrar, e Lhe ouvi orar:
“Pai, perdoa-lhes! ”

Minha alma anelante suspira:

“Do ego um pouco, e um pouco de Ti! ”

Mesmo após ter-se tomado cristão e ter cessado de dizer: “Do ego tudo, e
nada de Ti”, houve um estágio em que ele dizia: “Do ego um pouco, e um
pouco de Ti”. Contudo ele continua:

Sua eterna mercê, dia a dia, curando, ajudando em plena graça, vigoroso, suave
e paciente, fez me abaixar, e eu sussurrei:

“Do ego menos, e mais de Ti! ”

E então ele chega ao pináculo:

Mais alto que o mais alto céu, mais fundo que o mais fundo mar,

Senhor, Teu amor enfim venceu; atende agora esta oração:

“Do ego nada, e tudo de Ti! ”

Conhecemos algo destes estágios? Conhecemos a astúcia do diabo? Tem que


ser ou Cristo ou o ego. Enquanto eu e vocês estivermos dominando as nossas
vidas, Cristo não estará; portanto, não somente as coisas más têm que sair;
o ego também tem.

Não só precisamos reconhecer que tudo isso é verdade; precisamos agir de


acordo com isso. “Pelo que saí do meio deles, e apartai-vos, diz o Senhor; e
não toqueis nada imundo”. Não é “muito simples”, é? Não é simplesmente o
caso de levantar as persianas. Não! Vocês têm que ser muito ativos. “Não
toqueis nada imundo.” É então que vem a promessa: “e eu vos recebereis; e
eu serei para vós Pai e vós sereis para mim filhos e filhas, diz o Senhor
Todo-poderoso” (2 Coríntios 6:17-18). Não é surpreendente que em 2
Coríntios 7:1 o apóstolo argumenta: "Ora, amados, pois que temos tais
promessas, purifiquemo-nos de toda a imundícia da carne e do espírito,
aperfeiçoando a santificação no temor de Deus”. O Espírito já nos está
fortalecendo com o Seu poder no homem interior, e é porque Ele o faz que
nós temos de fazer estas coisas. Se vocês desejam de fato Cristo em seus
corações, têm que pôr em prática esta exortação. Não há outro meio. “Se
alguém quiser vir após mim, renuncie-se a si mesmo, tome sobre si a sua
cruz, e siga-me” (Mateus 16:24). “E os que são de Cristo”, declara Paulo,
“crucificaram a carne com as suas paixões e concupiscências” (Gálatas
5:24).

Depois, o passo seguinte é o da oração. Devemos dar-nos conta da nossa


total dependência do Senhor. Se vocês pensam que mutilar o corpo
oumortificar a carne, ou fazer várias outras coisas que alguns dos místicos
têm feito erroneamente, irá levá-los automaticamente ao fim desejado, estão
grandemente enganados. Devemos dar ouvidos à exortação: “Operai a vossa
salvação com temor e tremor”; mas também devemos dar-nos conta da
nossa total dependência do Senhor. Tomo a recorrer a Tersteegen. Tendo
percebido o que é que necessitava e não conseguindo acha-lo, ele prossegue:

Debaixo do sol haveria algo querendo compartilhar meu coração contigo ?

Ah, rasga-o e reina Tu somente,

Senhor de tudo que aí existe!

Serei então livre da terra, achando repouso apenas em Ti.

Ó divino Amor, auxilia-me de vãos cuidados a livrar-me; segue e apanha a


minha vontade em meu confuso coração:

Faze-me Teu dócil filho, para eu sempre clamar: “Aba, Pai! ”

Cada instante eleva da terra minha alma, que espera a Tua voz;

fala-lhe ao íntimo; e dize:

“Sou teu Amor, teu Deus, teu Tudo! ”


Sentir Teu poder, ouvir-Te a voz, provar Teu amor — é quanto quero.

Vocês oram desta maneira ao Senhor? Esta é a oração de um homem que


verdadeiramente está abraçando e confessando estas coisas. Ele toma o seu
tempo falando com Cristo, pedindo-Lhe que venha. Ele tenta limpar-se e
purificar-se, mas percebe que necessita do poder que somente Cristo pode
dar. Assim, ele clama por ele, anseia por ele, roga-o ao Senhor. A oração é
essencial.

Finalmente, é preciso haver perseverança. Devemos continuar e persistir.


Haverá muitas ocasiões de desânimo. Pode ser que vocês se sintam muito
piores do que nunca antes. Talvez descubram coisas em seus corações que
nunca imaginaram haver ali. Podem achar que estão se afastando mais de
Deus. Contudo, prossigam, continuem, perseve-rem. Este é o Seu processo;
Ele os está conduzindo avante. E temos a Sua definida promessa e garantia:
“o que vem a mim de maneira nenhuma o lançarei fora” (João 6:37). Este é
o Seu desejo quanto a nós. Mas, conhecendo-nos como nos conhece, Ele sabe
que aquelas outras coisas têm que acontecer primeiro. Desse modo,
geralmente sucede que o primeiro passo na vinda desta experiência de
“Cristo no coração” é que nos é dada uma visão do negror dos nossos
corações, do horror do ego, e da vida egocêntrica que nos assusta e faz com
que fiquemos completamente desesperados. Todavia é precisamente isto que
Ele quer que sintamos. É só quando ficamos completamente desesperados

e nos sentimos totalmente sem esperança, que olhamos para Ele e


compreendemos a nossa necessidade do fortalecimento do Espírito
no homem interior, oramos por esta bênção como nunca oramos antes.
E Deus responde a nossa oração, e o Espírito Santo de tal modo
nos fortalece e opera em nós, e tanto se move em nós que
ficamos capacitados “a querer e a efetuar”, e a preparar o lugar para o
Senhor Jesus Cristo em nosso corações. Então Ele cumprirá a Sua
promessa: Eu Me manifestarei a você; virei e farei Minha habitação em
você; Eu e o meu Pai habitaremos em você.
“ALICERÇADOS EM AMOR”

“Para que Cristo habite pela fé nos vossos corações; a fim de,

estando arraigados efundados em amor” Efésios 3:17

Passamos agora a considerar a última frase deste versículo dezessete, a


saber, “a fim de, estando (vós) arraigados e fundados em amor”. Também se
pode traduzir: “a fim de, tendo sido (vós) arraigados e fundados em amor”.
Isto é necessário, diz-nos o apóstolo, para habilitar-nos a termos alguma
compreensão do amor de Cristo. Ainda é parte da grande oração que o
apóstolo está fazendo em favor dos cristãos efésios. Conforme avançarmos,
é importante lembrar-nos de que o interesse do apóstolo por estas pessoas é
que conheçam o Senhor Jesus Cristo. Não devem buscar, primordialmente,
as bênçãos que Ele pode dar, nem mesmo a santidade, mas devem buscar ao
próprio Senhor Jesus. Toda santidade e santificação, todo tipo de bênção e
toda condição da vida cristã devem resultar do nosso conhecimento
dEle como Pessoa, e da nossa comunhão com Ele.

Esse é o sentido essencial de “Cristo habitar pela fé no coração”. A minha


principal ambição deve ser, não de ser um bom homem, nem mesmo de ser
santo. Há “santos” noutras religiões — no budismo e no judaísmo, por
exemplo. A verdade específica acerca do cristão é que a nossa santidade é
resultante do nosso conhecimento do Senhor e da nossa relação com Ele.
Portanto, num sentido, não devemos nem mesmo falar do “aprofundamento
da vida espiritual”; devemos falar do aprofundamento do nosso
conhecimento de Cristo e do nosso amor por Ele. Quando isso acontece, a
nossa vida espiritual se aprofunda necessariamente. Assim, o que o apóstolo
está dizendo aqui é que, se Cristo habitar em nossos corações, o resultado
será que estaremos “arraigados e fundados em amor”. Notem a ordem em
que estas questões são mencionadas. Mudá-la é extremamente perigoso.

O primeiro resultado da habitação de Cristo pela fé em nossos corações é


que passamos a estar “arraigados” e “fundados” em amor. Paulo não diz
que devemos estar arraigados e fundados no amor de Deus. Isso virá mais
tarde. Aqui a ênfase é que nós mesmos devemos estar arraigados e fundados
no amor. Noutras palavras, o amor deve ser o elemento predominante e
preponderante em nossas vidas, em nossa
conduta e em nossa experiência. Obviamente não temos nenhum amor em
nós sem o amor de Deus. “Nós O amamos porque Ele nos amou primeiro”; e
necessariamente há um elemento de amor na vida cristã desde o começo.
Não se pode simplesmente crer que o Filho de Deus veio à terra e Se
entregou à morte na cruz por nós e por nossos pecados, sem que
imediatamente haja um elemento de agradecido amor para com Ele. O
apóstolo já tratara deste aspecto de verdade nos dois primeiros capítulos.
Aqui, no capítulo três, ele está interessado num amor mais profundo, num
amor mais permanente, e está falando especificamente do nosso amor a Ele,
e não do Seu amor a nós. Assim, o assunto aqui é nosso amor a Deus, o
nosso amor ao Senhor Jesus Cristo, o nosso amor aos irmãos na fé, o nosso
amor à obra e ação cristã — na verdade, o nosso amor a tudo que pertença
à “verdade que está em Cristo Jesus (Ef. 4:21).

Com o fim de acentuar que a principal característica da vida cristã deve ser
o amor, o apóstolo utiliza duas figuras: “arraigados” e “fundados”. A
primeira logo nos faz pensar numa árvore; a segunda, num edifício. O
apóstolo usa deliberadamente as duas comparações, e minha opinião é que
ele o faz devido a certas semelhanças das duas figuras, e também devido a
certas diferenças. Vê-se claramente que a idéia dominante e central presente
nas duas figuras é a de permanência. Mas há também uma sutil distinção
entre as duas. O que é comum às duas figuras é o que uma grande árvore
tem em comum com um grande edifício, a saber, a idéia de profundidade e
firmeza, de permanência e durabilidade. “Arraigados” quer dizer
“profundamente arraigados”. Não devemos pensar num tenro renovo que
poderia ser derrubado por uma ligeira rajada de vento, mas, antes, num
majestoso carvalho cujas raízes descem às profundezas da terra e que se
espalham em muitas direções e se agarram firmemente no solo e nas rochas.
Devemos pensar numa árvore de considerável idade e tamanho, e que dá
a impressão de que vai permanecer para sempre. Na outra figura, devemos
ver um edifício grande e alto, erigido sobre um alicerce firme e forte.
Quanto mais olhamos para ele, a idéia que se estampa em nós é a de solidez.
Dois elementos — profundidade e força — e, portanto, permanência e
durabilidade, são comuns a ambas.

Ao mesmo tempo, vêem-se claramente certas diferenças; doutro modo, o


apóstolo nunca teria utilizado as duas figuras. Se ele quisesse meramente
salientar a solidez e a permanência, a figura de um edifício seria suficiente;
porém o apóstolo retrata uma árvore também. Quando vocês olham para
uma árvore, não notam apenas força e durabilidade, e sim também vida e
vitalidade, energia e crescimento. E não só isso, mas também há algo numa
árvore que nos impressiona de um modo que

um edifício não pode nos impressionar. Ela transmite a idéia de vida,


vitalidade e energia. Transmite benefícios resultantes da sua natureza ativa.
Esses elementos faltam no edifício. O edifício sugere uma força resistente às
pressões, às tensões e a todas as outras influências que pesam sobre ele;
entretanto não há vida ali, não há vitalidade, não há nenhuma possibilidade
de crescimento. É fixo, estabelecido, durável, permanente. Devemos, pois,
examinar mais de perto as duas figuras, para podermos captar o
ensinamento do apóstolo.

Este não é o único lugar em que o apóstolo coloca juntas estas duas idéias.
Na verdade parece que ele pensa em termos destas duas figuras toda vez
que pensa na Igreja. Voltemo-nos, pois, para 1 Coríntios 3:9, onde vemos o
apóstolo lembrar aos membros da igreja de Corinto: “vós sois lavoura de
Deus e edifício de Deus”. Eles são “lavoura”, “fazenda” de Deus; contudo
são também edifício de Deus. Diz igualmente o apóstolo que ele pensa em si
como agricultor e construtor. Uma idéia sem a outra não parece adequada
ao seu propósito de comunicar certas grandes verdades acerca da Igreja e
da vida cristã. Precisamente da mesma maneira ele emprega as duas idéias
com o fim de falar-nos da centralidade do amor na vida do cristão. Um só
quadro não basta.

A primeira figura é a de estarmos “arraigados” em amor. Pensem de novo


num grande carvalho e em suas raízes. Observem o alcance destas, a sua
força, e como se espalham e se dividem e se subdividem por todos os lados.
Não pensem nos pequenos e delicados filamentos que vocês vêem noutras
plantas ou em rebentos; em vez disso, pensem nas raízes que constituem,
elas próprias, árvores, e que abarcam e abraçam grande volume de terra. Se
essa árvore for arrancada, esse tremendo volume de terra será arrancado
com ela. Mas ela não pode ser abalada, porque penetrou profundamente o
solo. E, segundo o apóstolo, essa é a condição do cristão. Essa é a descrição
que ele faz do amor presente na vida do cristão maduro. Lembremo-nos
uma vez mais de que o apóstolo está orando por pessoas já cristãs, pessoas
que tinham crido, que já tinham sido seladas pelo Espírito. No entanto
elas precisam progredir para além do seu início, e experimentar a vida
cristã em sua maturidade. E essa vida deveria provocar admiração.
Deveria ser notável e espantosa como uma árvore, como uma árvore
que, quando vocês estão passeando numa floresta, de repente
páram, firmam-se e dizem: que maravilha! Que majestade! Que
magnificência! O apóstolo ora no sentido de que estes cristãos efésios
venham a ser assim.

Portanto, a figura comunica a idéia de que o amor é o solo em que a nossa


vida cristã é plantada e no qual ela cresce. O alimento e a nutrição, e tudo
que nos ajuda a edificar-nos e a fortalecer-nos, provêm

do solo do amor. Devemos estar arraigados nele. A árvore recebe desse


modo muito da sua nutrição. Ele retira vários elementos químicos do solo, e
também sua umidade e várias outras coisas. Suas necessidades são
satisfeitas por meio desta ativa rede de raízes; os elementos nutritivos são
levados para o tronco e para os ramos e folhas. Desta maneira é mantida a
vida da árvore. Assim, o terreno e solo da nossa vida cristã devem ser o
amor, diz o apóstolo. O amor é a única coisa que edifica a vida cristã e que a
toma parecida com a vida de Cristo. Como cristãos, fomos destinados a ser
semelhantes a Ele; devemos ser “conformes à imagem do Filho de Deus”
(Romanos 8:29). Devemos manter esta verdade sempre diante de nós.
Devemos parar de pensar negativamente a nosso respeito, como sendo só
um pouco melhores do que éramos, ou um pouco melhores do que alguma
outra pessoa. Devemos olhar para Ele, devemos tomar-nos semelhantes a
Ele. Em nossa regeneração fomos feitos de novo segundo esse modelo,
e devemos tomar-nos cada vez mais semelhantes a Ele. O único modo de nos
tomarmos semelhantes a Ele é estar “arraigados” em amor. Somente desta
maneira ficaremos fortes e manifestaremos aquela simetria e aquela
proporção que constituem a mais notável característica de uma árvore
majestosa. É só quando estivermos arraigados em amor que
manifestaremos estas glórias, e seremos uma alegria, uma satisfação e de
valor para os outros.

A força real da vida cristã é o amor. Vivemos dias em que, com freqüência, o
amor é considerado como algo fraco, frouxo e sentimental. Mas o amor é
forte. “O amor é forte como a morte” (Cantares de Salomão 8:6); é na
verdade mais forte do que a morte. Não há nada mais forte do que o
verdadeiro amor. Aqui vemos a diferença essencial entre o amor e a mera
sentimentalidade ou sentimentalismo, que é sempre fraco, piegas e frouxo, e
incapaz para a ação. O amor é a influência mais grandiosa e mais poderosa
no mundo.

Podemos acentuar esta verdade mediante certos contrastes. De acordo com


o ensino do Novo Testamento, é o amor, e não o conhecimento, que nos faz
cristãos fortes. Isto é ensinado com clareza no capítulo oito da Primeira
Epístola de Paulo aos Coríntios, onde lemos a memorável frase: “A ciência
incha, mas o amor edifica” (versículo 1). Esta é uma distinção sumamente
importante. Lembremos que é o grande apóstolo Paulo que diz isto, homem
que foi eminentemente um mestre, o maior mestre que a Igreja conheceu,
homem grandemente interessado em que os cristãos tivessem conhecimento
e crescessem no conhecimento. E ele, dentre todos os homens, que declara:
“A ciência” (ou “o conhecimento”) incha, mas o amor edifica”.

Podemos expor e salientar esta distinção da seguinte maneira: há um


sentido em que é certo dizer que toda a Primeira Epístola aos Coríntios é
uma dissertação sobre a diferença entre o conhecimento e o amor.
O apóstolo escreveu a carta por causa de divisões, de seitas, e porque havia
muitos e graves problemas naquela igreja. Ele toma estes problemas um por
um. Mas um cuidadoso exame do tratamento dado aos problemas,
individualmente separados, leva à conclusão de que todos os problemas
tinham uma origem comum — os coríntios estavam colocando o
conhecimento no lugar do amor. Estavam fazendo do conhecimento a coisa
suprema da vida do cristão. Era uma igreja muito dotada, a de Corinto. O
Espírito Santo dispensara muitos dons àqueles crentes; porém se desviaram
porque esqueceram o amor. Se alguma coisa é colocada na posição
principal, ou edificada sobre algo que não seja o amor, certamente
perderemos o caminho. Se pusermos em primeiro lugar o conhecimento e
compreensão intelectual, provavelmente isto nos fará inchar e estragará
tudo. Se pusermos em primeiro lugar os dons espirituais, também nos fará
inchar, e causará divisão e cisma, e arruinará tudo. O amor é o alicerce, o
amor é o solo, não o conhecimento. Naturalmente o conhecimento é
absolutamente essencial; sem conhecimento não pode haver nenhum
crescimento. Todavia o conhecimento, no sentido verdadeiramente cristão,
nunca é meramente intelectual. É assim, e isso porque é o conhecimento de
uma Pessoa. O propósito de toda doutrina, o valor de toda instrução, é
levarmos à Pessoa do nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo.

Dou ênfase a isso de novo porque isso tem sido uma armadilha para muitos
na Igreja através dos séculos. Para alguns cristãos professos a armadilha
não é perturbar-se acerca do conhecimento; essas pessoas já se acham numa
posição falsa. Outros podem ver claramente que é para termos
conhecimento, que as Escrituras nos concitam a isso, e assim eles se põem a
buscar conhecimento. Então o diabo entra e transforma isso numa coisa
puramente intelectual. O resultado é que eles têm cabeças repletas de
conhecimento e de doutrina, mas os seus corações são frios e duros como
pedras. São áridos, e tão diferentes de uma árvore majestosa quanto é
possível ao homem ser. O verdadeiro conhecimento cristão é conhecimento
de uma Pessoa. E porque é conhecimento de uma Pessoa, leva ao amor,
porque Ele é amor. “Deus é amor.” Cristo é o amor encarnado. Assim,
conhecer a Deus e conhecer a Cristo leva necessariamente ao amor. Se o
conhecimento que alegamos ter não tem levado a um maior amor em nossas
vidas, será melhor examinar-nos com muita seriedade. Conhecimento sem
amor vem a ser o que as Escrituras denominam “obstinados” e
“orgulhosos”. (2 Tim. 3:4). Toma-nos autoridades; introduz um espírito
crítico e uma

dureza positivamente prejudiciais.

Vemos uma repetição do mesmo ensino no capítulo treze da mesma


Primeira Epístola aos Coríntios. No versículo 2 lemos: “E ainda que tivesse
o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda
que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não
tivesse caridade (amor), nada seria”. Por maior que seja o nosso
conhecimento, se não temos este amor, somos inúteis. De novo no versículo 8
desse capítulo: “havendo profecias, serão aniquilados, havendo línguas
cessarão; havendo ciência, desaparecerá”. O versículo 9 diz: “em parte
conhecemos, e em parte profetizamos”. Todo o nosso conhecimento é apenas
parcial; na melhor e mais elevada hipótese em nossa vida neste mundo,
somente “vemos por espelho em enigma”.

Tratemos de dar-nos conta de que o que compete ao conhecimento é levar-


nos ao amor. Esta é sempre a prova principal da nossa vida cristã. Nosso
bendito Senhor o expressa desta maneira, no Sermão do Monte: “Sede vós
pois perfeitos, como é perfeito o vosso Pai que está nos céus” (Mateus 5:48).
A perfeição da qual Ele fala aqui é o amor. Diz Ele que Deus envia chuva
sobre justos e injustos, e faz que o Seu sol brilhe igualmente sobre maus e
bons. Deus manifesta o Seu amor dessa maneira e, com isso, mostra-nos o
modo como nós também temos que amar. Os gentios, diz o Senhor, amam
aos que os amam, pçrém a questão é: vocês são capazes de fazer o bem aos
que os odeiam? É assim que Deus ama; e devemos amar como Deus ama.
“Sede vós pois perfeitos, como é perfeito o vosso Pai que está nos céus.” Esse
é o solo, o único nutriente que pode edificar-nos e fazer-nos fortes, e fazer
que pareçamos representantes e reproduções da vida do próprio
Senhor Jesus Cristo.

Outra verdade ainda é que somente o amor pode dar-nos real poder para
vivermos a vida cristã e para trabalharmos e labutarmos nesta vida cristã.
Isto é frequentemente acentuado nas Escrituras. Ao exortar o povo a
trabalhar na reconstrução, após a destruição e devastação feita em
Jerusalém, Esdras fez esta extraordinária declaração: “A alegria do Senhor
é a vossa força” (Neemias 8:10). Não há nada no mundo que nos dê tanto
vigor como o amor. Tomo a salientar a diferença entre o amor e o
sentimentalismo. A pessoa sentimental senta-se em sua poltrona e goza
algum estímulo passageiro. Sente-se feliz no momento, e depois fica
esperando o próximo estímulo ou experiência, mas ela nada faz. O amor
enche de energia o homem e o envia a uma tarefa, concita-o e o impulsiona a
sair para a ação.

O apóstolo Paulo expõe esta mesma verdade em sua Epístola aos Gálatas,
onde o vemos dizer: “em Jesus Cristo nem a circuncisão nem

a incircuncisão tem virtude alguma; mas sim a fé que opera por caridade
(por amor)” (5:6). Dificilmente Paulo menciona a fé sem juntar-lhe o amor.
Na verdade a fé, a esperança e o amor andam juntos, como uma tríade
gloriosa. Assim, neste capítulo três da Epístola aos Efésios, depois de
escrever sobre Cristo habitar pela fé em nossos corações, ele passa
imediatamente a mencionar o amor. Ele o faz porque a fé opera pelo amor, a
fé é energizada pelo amor, e a vida da fé só é ativa graças ao amor. E este se
refere, lembremo-nos, ao nosso amor a Deus, aos irmãos e ao serviço do
Senhor.

Deixem-me ilustrar o que quero dizer. Um homem pode pregar por ser este
o seu trabalho, sua tarefa, ou porque se anuncia que o fará. E pode ser
energizado, se o é, somente por isso. Contudo é um trabalho difícil, uma
tarefa árdua. Mas como é diferente, quando esse homem é energizado pelo
amor — pelo amor a Deus e a Cristo, e pelo amor às almas! “Fé que opera
pelo amor.”
Vejamos agora este tema numa sua representação veterotestamentária
belíssima e quase idílica. O ponto que estou defendendo é que unicamente o
amor realmente nos dá poder e força na vida cristã. O conhecimento pode
dar um conhecimento restrito ao intelecto, e uma compreensão e um
interesse puramente intelectuais. No entanto o de que necessitamos é a
dinâmica que o amor propicia. Vemos isto em ação na história de Jacó, no
Velho Testamento. Tendo fugido de casa e da ira do seu irmão Esaú, ele foi
para a terra natal da sua mãe e entrou em contato com Labão e sua família.
Ali enamorou-se de Raquel, uma das filhas de Labão, e pediu que lhe fosse
cedida para ser sua esposa. Mas foi ludibriado por Labão e forçado a
receber Lia, irmã mais velha de Raquel, e depois lhe foi dada Raquel, com a
condição de que concordasse em trabalhar sete anos por ela. Então vem a
interessante declaração registrada em Gênesis: “Assim serviu Jacó sete anos
por Raquel; e foram aos seus olhos como poucos dias, pelo muito que
a amava” (29:20): Sete anos parecem um longo tempo quando alguém está
esperando por alguma coisa. Um estudante que tem que fazer um curso de
sete anos, acha que é que quase interminável. Ou se alguém está esperando
receber um dinheiro que deverá vir-lhe em sete anos, parece um período
muito longo. Mas a Jacó o trabalho e a espera por Raquel, durante sete
anos, pareceram apenas uns poucos dias. A explicação está no seu amor a
Raquel. O amor muda tudo. Parece ter o poder de cancelar o tempo. Faz os
segundos, os minutos, as horas, os dias, os meses e os anos parecerem algo
inteiramente artificial e irreal. O amor tem a sua própria cronologia; e
assim é porque ele produz esta energia, este poder, este potencial, esta
capacidade de ver todas as coisas de uma nova maneira. Não entra em conta
o preço, nem o tempo;

é um mundo todo seu, e faz tudo parecer novo.

O amor é também o único motivo verdadeiro para a obra e para a atividade


na vida cristã. Por que nos chamamos cristãos? Por que participamos do
pão e do vinho na Ceia do Senhor? Por que nós cremos que Cristo morreu
pelos nossos pecados na cruz? A razão disso tudo é que sabemos que “Deus
amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito”, O amor é o
motivo de Deus. Por que o Deus eterno, absoluto e santo haveria de
preocupar-Se com este mundo que se rebelou contra Ele e reduziu o Seu
paraíso a um estado de caos? Por que não destruiu tudo e não o despachou
logo para a perdição? Foi por causa do Seu eterno e espontâneo amor! Esta
é a motivação atuante no coração de Deus. E quando se lê a história do
Senhor Jesus Cristo, nada se levanta mais proeminentemente em todos os
Evangelhos do que precisamos este fato. Ele olhou para a multidão, diz-nos
a Palavra, e Ele a viu como “ovelhas sem pastor”. Com que freqüência a
palavra “compaixão” é empregada em conexão com Ele! “Ele teve
compaixão da multidão.” Os Seus atos de bondade, os Seus milagres, o
alívio que Ele dava aos doentes e aos sofredores, tudo era por causa do Seu
grande coração repleto de amor. Isso Lhe dava energia, e Lhe propiciava
o motivo também; era o poder que O levava a prosseguir. E na vida
cristã devemos ser como Ele; devemos seguir os Seus passo, devemos
ser reproduções dEle. Os homens e as mulheres do mundo, quando
olham para nós, devem ver Jesus. Este, pois, deve ser o motivo impulsor
em nossa vida cristã, em tudo que lhe diz respeito, em todos os
seus aspectos.

Como já dissemos, o amor deve ser o motivo mesmo para o santo viver. O
real motivo para ter uma vida santa deve ser que isto agrada a Deus, e que o
pecado Lhe é desagradável. Não devo estabelecer o meu diminuto padrão de
santidade e retidão e o meu diminuto código moral, e orgulhar-me de que
sou um homem que sempre cumpre a sua palavra e vive de acordo com o
seu código e com o seu padrão. Isso não é ser cristão, em última análise.
Frequentemente o mundo age com base nesse motivo. O único motivo
verdadeiro para o santo viver é que quando não sou santo, isto entristece a
Deus e O ofende. Meu desejo deve ser agradá-lO; não simplesmente
obedecer a lei divina, mas causar alegria a Deus e ao Senhor Jesus Cristo.
Esse deve ser o motivo para todas as nossas ações e atividades. Todos nós
temos que confessar que nem sempre é assim. Homens que têm sido muito
ocupados na vida da Igreja muitas vezes têm sido ativados por motivos
muito diferentes deste. Muitíssimas vezes o motivo tem sido a exaltação do
seu nome, da sua reputação, da sua importância, do seu sucesso. Todavia
isso é totalmente indigno da nossa “soberana vocação”. O nosso motivo deve

ser o amor.

Vejam este motivo como vem exemplificado no próprio apóstolo Paulo. As


Escrituras o retratam como um infatigável evangelista e pregador que
viajava dia e noite ensinando e pregando, cruzando oceanos e se sujeitando
a intermináveis crueldades e indignidades às mãos dos homens. Perguntem-
lhe por que procedia desse modo. Em sua Segunda Epístola aos Coríntios,
achamos a sua resposta: “O amor de Cristo nos constrange” (5:14). O amor
de Cristo está nele. Ele via a situação da humanidade em pecado como
Cristo a via. Ele sabe o que Cristo fez por ele, e isto criou em seu coração
um amor semelhante. Ele está “arraigado no amor de Cristo”, a base de
toda a sua experiência. É isto que o impulsiona, a força motriz é esta, e nada
mais. Esta deve ser a maneira pela qual nós também devemos apresentá-lO,
dar glória ao Seu nome e ser-Lhe agradáveis.

Há ainda mais um elemento nesta idéia de estarmos arraigados em amor. É


negativo, porém muito importante, e está implícito no que temos dito. Não
haverá nenhum valor fundamental em toda a nossa obra e em toda a nossa
atividade, se não estiver arraigada e fundada em amor. Essa pode parecer
uma afirmação demasiado forte, ou extrema; mas não é minha, pertence ao
próprio apóstolo. Ele nos diz: “Ainda que eu falasse as línguas dos homens e
dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que
tine”. Você pode ser o maior orador do mundo, pode ser capaz de falar de
maneira comovente, podendo causar a admiração das pessoas e talvez até
levá-las à ação; entretanto se o amor não estiver dominando o que você diz
ou faz, você será como o metal que soa ou como o sino que tine. Mais: “E
ainda que eu tivesse o dom da profecia, e conhecesse todos os mistérios e
toda a ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que
transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria. E ainda que
distribuísse toda a minha fortuna para sustento dos pobres, e ainda que
entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse amor, nada disso
me aproveitaria”. Essa é uma declaração demolidora e alarmante, contudo
obviamente é a pura verdade. Tem que ser, porque a vida cristã é uma
vida semelhante a Cristo, e nEle tudo teve origem no amor. É como deve
ser conosco. O dia do juízo será uma revelação, será um dia de surpresas. O
que nos parecia grandioso, talvez pareça não ser absolutamente nada; e o
que nos parecia trivial, então será visto com algo de grande valor, com a
fulgente luz do amor de Deus sobre isso derramada. Que inversão dos
nossos julgamentos e das nossas concepções veremos!

Isto não é ensino só do apóstolo Paulo. Nosso bendito Senhor e Salvador


ensinou a mesma verdade. De acordo com Ele, devemos julgar uma ação,
não por seu volume e por sua aparência exterior, e sim

pelo motivo que a originou, e pelo elemento de amor presente nela. Este é o
sentido da história da pequena oferta da viúva. No que se refere à soma, era
uma oferta irrisória, mas expressava o amor do seu coração e, aos olhos de
Deus, tinha valor infinitamente maior do que milhões sem amor. Ela deu
tudo que possuía, deu seu amor e demonstrou o seu desejo (Marcos 12:41-
44). Vê-se o mesmo princípio no Evangelho segundo Lucas, que fala de
como o nosso Senhor esteve na casa de Simão, o fariseu. Simão não Lhe
ofereceu água para lavar os Seus pés, nem Lhe ofereceu óleo para ungir a
Sua cabeça. Simão não mostrou para com Ele as cortesias comuns e
costumeiras. Era um fariseu incapaz de compreender bem esta Pessoa.
Tinha interesse até certo ponto, no entanto não O conhecia, não cria nEle,
não O amava. Todavia, desejava que Ele entrasse em sua casa e Se
assentasse à sua mesa. Mas então uma pobre mulher, uma pecadora da
cidade, veio e caiu aos Seus pés. Lavou-Lhe os pés com suas lágrimas,
enxugou-os com os seus cabelos e ungiu-os com ungüento (Lucas 7:36-50).
Suas lágrimas foram mais aceitáveis aos olhos do Senhor do que o precioso e
caro ungüento utilizado por ela. Ser ungido por lágrimas nascidas
no coração, mesmo que aplicadas somente aos Seus pés, é
infinitamente mais valioso que ter a cabeça ungida com preciosa nardo ou
com especiarias do mais alto preço e fragrantes perfumes. Nada tem
valor aos olhos do Senhor, a menos que venha de um coração cheio de amor.

O cristão não é alguém que está realizando um trabalho, ou que está


empenhado apenas em cumprir um dever. É alguém que “está arraigado em
amor”. E, como se dá com o seu Senhor, o seu motivo brota disso. É também
dali que ele recebe energia, e é que o constrange. Ele não pode refrear-se; só
pode ser assim. Visto que Cristo habita em seu coração pela fé, a sua fé está
arraigada no solo do amor, e extrai os seus preciosos nutrientes vitais
daquela fonte. Desse modo, passa a ser uma reprodução do próprio Senhor
Jesus Cristo. Deus nos abra os olhos para isto! Dê-nos Ele este amor, e o
“derrame” em nossos corações! Busquemos isto acima de tudo mais, porque
sem isto, tudo mais nada é, e não levará a nada, senão a perda. Que Deus
nos arraigue em Seu amor!

«FUNDADOS EM AMOR”

“Para que Cristo habite pela fé nos vossos corações; a fim de, estando
arraigados e fundados em amor... " Efésios 3:17

Continuando o nosso estudo da frase, “estando arraigados (alicerçados) e


fundados em amor”, lembramo-nos de que a proposição fundamental é que
todo o nosso viver deve basear-se no amor; deve haurir sua vida, suas
forças, seu poder, sua nutrição, tudo enfim, deste princípio cristão do amor.
Se Cristo habita em nossos corações, o amor também tem que estar em
nossos corações, no centro do nosso ser. Como já vimos, o apóstolo
apresenta esta verdade na forma de duas figuras, a de uma árvore e
também a de um edifício.

Vimos que há certas coisas comuns às duas figuras e que cada uma delas
acentua certas particularidades. Portanto, agora dirigimos a atenção
àqueles aspectos deste assunto que são ilustrados pela figura de um edifício.
Não somente devemos estar arraigados em amor, mas também devemos
estar “fundados” em amor, precisamente como um grande edifício requer
um alicerce profundo e sólido. O princípio ensinado é que a vida e a
atividade do cristão devem ser edificadas sobre o amor, pois o amor é uma
parte essencial e inevitável da vida de todos aqueles em cujos corações
Cristo fez a Sua habitação.

Vários princípios óbvios emergem desta figura particular. O primeiro é a


importância de assegurar-nos de que o alicerce foi bem feito, e foi feito
corretamente. O apóstolo fala de si próprio como “sábio arquiteto” — não
apenas arquiteto, porém um arquiteto “sábio” (1 Coríntios 3:10). O sinal de
excelência de um sábio arquiteto é que ele dá muita atenção ao alicerce. Ele
não se precipita a levantar um edifício; quer um edifício estável e
duradouro; quer um edifício sólido, no qual possa morar a vida toda, e
outros depois dele. Assim, como sábio arquiteto, dará muita atenção ao
alicerce, tomará tempo com ele, e se preocupará muitíssimo com ele. Um
sábio arquiteto nunca toma coisa alguma como liqüida e certa na questão de
alicerce. Ele quer saber exatamente o tipo de solo com que vai lidar, se há
muita argila ou areia, e se há a possibilidade de uma inclinação ou de um
deslizamento mais tarde. Ele vai fundo nessas coisas, com zelo meticuloso. O
sábio arquiteto não faz esta obra apressadamente, pois compreende que esta

coisa não pode ser apressada. Num sentido, a qualidade do edifício vai
depender disso, razão pela qual o alicerce deve ser bem feito,
e corretamente.

Isto é particularmente verdadeiro se o projeto é de um edifício muito grande


ou muito alto. Quanto maior e mais alto for o edifício, mais importância
terá o alicerce. Se a intenção for erigir um edifício leve, um barracão de
madeira, uma estrutura provisória, não será necessário ser muito minucioso
quanto ao alicerce. No entanto, se a intenção for erguer um edifício de
grandes dimensões, um arranha-céu, um edifício de grande peso, com um
enorme número de salas, então será absolutamente essencial um alicerce
firme e sólido, e será preciso ter o máximo cuidado para habilitá-lo a resistir
às tensões e pressões às quais o edifício estará sujeito.

Os numerosos edifícios da cidade de Nova Iorque ilustram bem este


princípio. O que tomou possível aquela coleção de prédios altos e enormes é
o fato de que a ilha de Manhattan é rocha mais ou menos sólida. Não seria
possível construí-los em todo e qualquer lugar. Essas construções não são
permitidas, por exemplo, em Los Angeles, onde há um limite para a altura
de qualquer edifício por causa da natureza do solo e do subsolo. Se você
quiser erguer edifícios, como os de Nova Iorque, terá que assegurar-se, em
todos os aspectos, de que conta com alicerces adequados.

Dá-se grande proeminência a este princípio no Novo Testamento. O apóstolo


está interessado em que os cristãos efésios alcancem grande altura na
experiência, em que, de fato, sejam “cheios de toda a plenitude de Deus”. E
ele sabe que, se isto se há de realizar, muito tempo terá que ser gasto no
preparo de um alicerce adequado. Não se pode construir até essa altura
apressadamente. Se me for permitido misturar as metáforas, como o
próprio apóstolo faz, colocando as raízes e o alicerce juntos, ilustrarei este
ponto a partir da esfera da horticultura. Lembro-me de uma vez em que
estive em Weston-super-Mare com um homem especializado no cultivo de
ervilha-de-cheiro. Ele ganhara o primeiro prêmio e a taça em disputa vários
anos sucessivos, nas Exposições da Real Sociedade de Horticultura.
Aconteceu que eu estava com ele justamente na época em que as ervilhas-
de-cheiro estavam em plena florescência. Fiquei muito impressionado com a
beleza e com o aroma dessas plantas, e lhe fiz a pergunta óbvia: havia algum
segredo especial que explicasse o sucesso na conquista de tão cobiçado
prêmio ano após ano? E, particularmente, qual o segredo da extraordinária
altura das plantas? Ele me disse que era um princípio muito simples: se
você quer uma grande altura, precisa cavar, cavar fundo. A altura acima da
terra, disse ele, deve corresponder à profundidade debaixo da terra! Para

garantir alguma altura em particular, as raízes devem ser tão fundas como a
altura que você requer. Era esse o princípio secreto. De igual modo, é
preciso que a altura e o peso de um edifício correspondam ao alicerce em
que ele repousa.
Certamente é esse o princípio que o apóstolo está enunciando aqui. Ele está
preparando o caminho para “a largura, e o cumprimento, e a altura, e a
profundidade, e conhecer o amor de Cristo, que excede todo o
entendimento”, e para que fossem “cheios de toda a plenitude de Deus”.
Como essa deve ser a qualidade do edifício, diz ele, não se apresse no seu
alicerce. Gaste tempo com isso, assegure-se de que ele sera adequado. O
nosso próprio Senhor disse isto perfeitamente, uma vez por todas, na
famosa parábola das duas casas, no final do Sermão do Monte. O que Ele
salienta de maneira tão notável é a importância vital do alicerce. A mesma
parábola no Evangelho segundo Lucas dá-nos um pormenor que não se
acha no Sermão como o temos em Mateus. Em Lucas lemos: “Qualquer que
vem a mim e ouve as minhas palavras, e as observa... é semelhante ao
homem que edificou uma casa, e cavou, e abriu bem fundo, e pôs os
alicerces sobre rocha” (6:48). Segundo Mateus, o Senhor fala simplesmente
do “homem prudente, que edificou a sua casa sobre a rocha” (7:24). Lucas
acrescenta a informação de que este homem particular “cavou, e abriu bem
fundo” a fim de colocar o alicerce sobre a rocha. O contraste é com o
homem que edificou a sua casa sobre a areia. Este segundo homem
desejava retomo rápido. Ele estava interessado só em casas, não em
alicerces; queria uma casa na qual pudesse viver confortavelmente. Não
se preocupava com alicerces; construiu sobre a areia. Mas quando
sobrevieram os temporais e provações, a sua pobre casa, que parecia
tão maravilhosa, foi demolida. O ponto acentuado pelo nosso Senhor é que,
se você realmente quiser viver uma vida correspondente às bem--
aventuranças, se você quiser realmente ser Seu discípulo, terá que cavar
fundo e lançar um sólido alicerce sobre a rocha.

Este é o princípio ao qual, o apóstolo dá ênfase aqui. Temos que


compreender que não há atalhos na vida espiritual. Estas coisas
levam tempo. O apóstolo não ora meramente por estas pessoas para que
sejam cheias de toda a plenitude de Deus; ele sabe que isso não pode
acontecer repentinamente e sem preparação. Precisamos ser fortalecidos
com poder pelo Espírito no homem interior e pôr-nos a estabelecer
um sólido alicerce. Temos que cavar fundo e, depois, despejar o
concreto para fazer um alicerce volumoso e sólido. Devemos ter sempre
em mente o peso da superestrutura que está para ser erigida.

É neste ponto que vemos o contraste apresentado pelas seitas. Elas são
essencialmente diferentes da experiência cristã. Com as seitas tudo
é tão fácil e rápido! Não há necessidade de nenhum preparo ou alicerce.
“Operai a vossa salvação com temor e tremor”, diz a Escritura
(Filipenses 2:12). Não é assim como as seitas, nem com qualquer sistema
fundado numa falsa interpretação das Escrituras. Sem o fortalecimento
com poder pelo Espírito de Deus, sem a habitação de Cristo no coração,
sem estarmos arraigados e fundados em amor, não temos esperança
de conhecer as mais altas experiências da vida cristã. Diz-nos um hino bem
conhecido: “Tempo para ser santo tu deves tomar”; e isso está certo. E
também devemos tomar tempo para certificar-nos de que a nossa vida está
baseada no amor. Ninguém pode passar precipitadamente por estas coisas e
dizer: quero essa experiência aqui e agora. Só se obtém pelo método de
Deus. Há regras para a construção da vida e experiência cristã; e esta é uma
das mais vitais de todas elas.

Para nos dirigirmos agora aos pormenores: que significa este alicerce?
Como deve ser construído? A primeira resposta é que todas as relações da
vida cristã devem basear-se no amor. Tudo deve estar baseado, fundado no
amor. Isto é verdade, primeiramente, quanto às suas relações com Deus.
Jamais conhecerei o amor de Deus, a não ser que a minha relação com Ele
seja uma relação de amor. Isto é deveras básico. Qual é a nossa maneira
costumeira de pensar em Deus? É somente teórica? É somente intelectual?
Como é fácil pensar em Deus só intelectualmente, e ficar discorrendo sobre
Ele, lendo sobre Ele e discutindo sobre Ele! Com que verbosidade fazemos
isto! Quantas vezes temos dito que Deus devia ter feito isto ou aquilo! Esse é
um conceito puramente teórico de Deus; não há amor nele. Mas se a
nossa atitude para com Deus for apenas teórica e intelectual, não
temos nenhuma esperança de sermos “cheios de toda a plenitude de Deus”,
ou de conhecer realmente o Seu amor e as insondáveis riquezas de Cristo.

Portanto, devemos continuar a interrogar-nos sobre a nossa atitude habitual


para com Deus. É atitude de amor? Diz-nos o nosso Senhor que o primeiro
mandamento é: “Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, alma,
entendimento e forças” (Marcos 12:30). A Bíblia nos exorta, não somente a
crer em Deus, mas também a amá-lO: ela exige de nós um relacionamento
pessoal. Deus não é impessoal. Não éum simples poder ou a desconhecida
quantidade do sistema filosófico. Os filósofos falam do “Absoluto”e de uma
“Causa Não Causada”. Isso é fazer de Deus uma categoria, não uma Pessoa.
Todavia Deus é uma Pessoa e, portanto, se estamos na relação cristã com
Deus, esta será uma relação de amor, inevitavelmente. Não devemos
tentar avançar nem um passo mais, enquanto não tivermos uma clara
compreensão disso. Eu amo a Deus? O amor governa a minha maneira de

pensar nEle e a minha relação com Ele?

Exatamente do mesmo modo, a minha atitude para com Deus não deve ser
de receio ou medo. Naturalmente, sempre deverá haver um temor
reverente; porém este não é “o temor que tem consigo a pena”, pois “o
perfeito amor lança fora o temor” (1 João 4:18). A relação do cristão com
Deus deve ser a de um filho para com o seu Pai. Para os cristãos, Deus não é
apenas algum grande poder distante nos céus; Ele é nosso Pai. Paulo declara
que “se põe de joelhos perante o Pai do Senhor Jesus Cristo, do qual toda a
família nos céus e na terra toma o nome”. Só oramos de verdade quando
sabemos que estamos falando com o nosso Pai. Ele nos ama e nós O amamos
porque Ele é o nosso Pai.

Como é vital que tomemos tempo com estas questões! Não basta você fazer
as suas orações todo dia. Muito mais importante que fazer as nossas
orações, e mais importante que aquilo que digamos e desejemos em nossas
orações, é a nossa atitude para com Deus quando Lhe dirigimos as nossas
orações. Às vezes inclinar-nos simplesmente e ficar em Sua presença sem
dizer nada, mostra melhor a correta relação com Ele. “Extasiar-me, e
extasiar-me diante de Ti”, como o expressa

F. W. Faber. A contemplação de Deus, a adoração e o culto são as mais altas


expressões do nosso amor a Deus. O que o apóstolo pede na oração por estes
efésios é que toda a vida deles esteja baseada neste alicerce. Muitos há que
passam a vida inteira procurando em vão estas experiências mais elevadas
da vida cristã, simplesmente porque não puderam captar este primeiro
princípio. Eles tomaram como líquido e certo, apressaram-se, em vez de
certificar-se de que amam verdadeiramente a Deus. E nós só passamos a
amar a Deus quando compreendemos profundamente a verdade sobre Ele e
o que Ele fez por nós em Seu Filho.

Todavia, não devemos deter-nos no amor a Deus; também devemos amar-


nos uns aos outros, devemos “amar os irmãos”. De novo, isto
é constantemente salientado nas Escrituras. Podemos percorrer o circuito
completo de todas as reuniões e convenções em busca de alguma bênção
particular, de um “quê” particular, mas nunca o encontraremos, a menos
que nos amemos uns aos outros. Quão fácil é dizer que anelamos ser “cheios
de toda a plenitude de Deus” enquanto negligenciamos algo óbvia e
claramente errôneo em nossas relações pessoais com alguma outra pessoa!
Isto não é questão de argumento, nem mesmo de apelo. É questão de puro
bom senso. Se o alicerce não for bem colocado, nunca você levantará este
grande edifício; é impossível; temos que tomar tempo e obedecer às
injunções das Escrituras. O segundo grande mandamento que se segue a
amar ao Senhor nosso Deus de todo o nosso coração, alma, mente e força é:
“Amarás ao teu

próximo como a ti mesmo”. Na verdade, o ensino do nosso Senhor vai


além,ediz: “Amai a vossos inimigos”. Seja o que for que tenham falado de
vocês falsamente, e por mais ofensivamente que os tenham injustiçado ou
difamado, vocês devem “amar os seus inimigos”.

O Senhor ensinou isto mais claramente do que em qualquer outro lugar, no


Sermão do Monte, como o vemos registrado no Evangelho segundo Mateus,
onde Ele contrasta o Seu modo de pensar com todos os demais. “Ouvistes
que foi dito: amarás o teu próximo, e aborrecerás o teu inimigo. Eu, porém,
vos digo: amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem
aos que vos odeiam, e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem; para
que sejais filhos do vosso Pai que está nos céus; porque faz que o seu sol se
levante sobre maus e bons, e a chuva desça sobre justos e injustos. Pois, se
amardes os que vos ama, que galardão havereis? Não fazem os publicanos
também o mesmo? E, se saudardes unicamente os vossos irmãos, que fazeis
de mais? Não fazem os publicanos também assim? Sede vós pois perfeitos,
como é perfeito o vosso Pai que está nos céus” (5:43-48). Essa é a base da
vida cristã. É o que nos diferencia do melhor não cristão. Este ama
pessoas que o amam mas não ama seus inimigos; ele os odeia como aqueles
o odeiam, e porque o odeiam. Entretanto, isso não é cristão; qualquer
um pode amar os que o amam, e todos fazem isso. No próprio alicerce
da vida cristã está este amor aos nossos inimigos; e enquanto não estivermos
firmados neste alicerce, estaremos perdendo tempo na busca de quaisquer
experiências mais elevadas. Vocês jamais conhecerão o comprimento, a
largura, a profundidade e a altura do amor de Cristo que excede todo o
entendimento, enquanto não se firmarem neste alicerce. Esse é o argumento
desta oração que Paulo oferece em favor dos cristãos efésios.

O apóstolo dá uma nobre expressão a isto em sua Epístola aos Filipenses:


“não atente cada um para o que é propriamente seu mas cada qual também
para o que é dos outros”. E então: “De sorte que haja em vós o mesmo
sentimento que houve também em Cristo Jesus” (Filipenses 2:4-5). Esse
“sentimento”, como o apóstolo explica, levou nosso Senhor que estava no
céu “em forma de Deus”e desfrutava essa posição desde a eternidade, a vir à
terra e a humilhar-Se, porque não considerava essa posição como uma presa
a que “agarrar-se” e que devesse “reter”. Ele abandonou os símbolos da Sua
glória e veio a este mundo “na forma de homem”, na semelhança de carne
pecaminosa. Ele Se fez servo, e humilhou-Se até à morte na cruz. Fez isso
tudo por nós, não porque fôssemos bons e merecedores de amor aos Seus
olhos, nem porque O amássemos. A situação era exatamente o oposto. Foi
apesar de nós, apesar do fato de que éramos rebeldes e “cheios de ódio e

odiando-nos uns aos outros”, e odiando ao Senhor. A que outro é o


“sentimento” que deve existir em nós.

É evidente que esta atitude é algo que devemos cultivar, e que devemos
certificar-nos de que possuímos. Estou tendo amor pelos meus inimigos e
costumo abençoar os que me amaldiçoam e que falsamente dizem todo tipo
de coisas contra mim? Devo considerar isto cuidadosamente, e não devo
dar-me por satisfeito enquanto não puder dizer com sinceridade que os
amo, que oro para que Deus tenha misericórdia e piedade deles e lhes abra
os olhos, e os atraia para Si. Enquanto eu não fizer isso, de nada me valerá
procurar uma experiência mais elevada. Quão importante é o alicerce!

Uma das tentações mais astutas do diabo é fazer-nos ignorar os alicerces e


correr atrás de experiências mais elevadas. Ao lerem as biografias dos que
conheceram o amor de Cristo e no conhecimento deste amor se regozijavam,
vocês verão que eles passaram por grandes vexames e por verdadeiras
humilhações, e que muitas vezes experimentaram tentações e provas. Às
vezes tudo neles queria reagir com inimizade contra os seus inimigos.
Alguns deles tinham um orgulhoso espírito de justiça própria, que eles
tiveram que crucificar. Tiveram que assumir seu lugar como mortos com
Cristo; e foi somente depois que se disciplinaram severamente e que
visivelmente perderam tudo e se tomaram capachos do mundo, que Deus
subitamente Se revelou a eles e os encheu deste conhecimento do Seu amor e
da Sua plenitude.

Ademais, a nossa atitude para com os mandamentos e exigências da vida


cristã deve ser também uma atitude de amor, se de fato queremos ver este
grande edifício erigido. A vida cristã cumpre os Dez Mandamentos. Temos
que viver o Sermão do Monte, e que obedecer a “lei real do amor”. Todas as
injunções que se acham nas epístolas do Novo Testamento devem ser postas
em prática. Os Dez Mandamentos ainda permanecem como padrão da vida
piedosa. Por isso devemos interrogar-nos se amamos os Mandamentos do
Senhor. Recordem o que o salmista podia dizer sobre isto, apesar de esta sob
a Antiga Dispensação. Ele só podia ter uma vaga visão da dispensação na
qual vivemos. Ele viveu no tempo das sombras e dos tipos. Cristo ainda não
tinha vindo; o Espírito Santo “ainda não fora dado”. Mas ele podia dizer:
“Oh! quanto amo a tua lei; amo os teus mandamentos mais do que o
ouro” (Salmo 119:97,127). Ele podia dizer que para ele a lei de Deus era
mais doce do que o mel e o licor dos favos (Salmo 19:10). “Muita paz têm os
que amam a tua lei”, diz ele (Salmo 119:165). Se ele pôde amar a lei de Deus
no tempo dele, estamos nós, como cristãos, amando a lei de Deus em nosso
tempo? Em sua primeira epístola diz claramente o apóstolo João: “Porque
este é o amor de Deus, que guardemos os seus

mandamentos; e os seus mandamentos não são pesados” (5:3).

Se vocês desejam realmente conhecer o amor de Cristo “que excede todo o


entendimento”, e declarar que o seu maior desejo é serem “cheios de toda a
plenitude de Deus”, devem enfrentar uma questão preliminar: vocês amam
os mandamentos de Deus como se acham na Bíblia? Ou vocês consideram
estreita a vida cristã e insistem em seu “direito de gozar”a vida à sua
própria maneira? Se for assim, vocês jamais saberão o que é ser cheio “de
toda a plenitude de Deus”. A vida cristã é especificamente estreita, em
certos aspectos. Certas proibições são muito claras e definidas. Elas estão
nos Dez Mandamentos, e estão na nova lei do Novo Testamento. Há certas
coisas que os cristãos não devem fazer. Se vocês de fato querem continuar
vivendo a vida mundana, são livres para fazê-lo, no entanto não têm direito
de esperar fruir as grandes bênçãos da vida cristã. Há certas coisas que não
se misturam com o alicerce deste grande edifício. Este edifício precisa
ter um alicerce sólido; portanto, precisamos cavar fundo, até alcançarmos a
rocha sólida, e assegurar-nos de que estamos firmados no alicerce.

Muitos cristãos parecem considerar a vida cristã como estreita, enfadonha e


penosa; e estão sempre em luta contra ela. Contudo as suas exigências são
parte integrante do próprio alicerce da vida cristã. “Vós, que amais ao
Senhor, aborrecei o mal”, é uma palavra do Velho Testamento (Salmo
97:10). Assim, se virmos que estamos vivendo a vida cristã como elemento
de dever, e que temos que forçar-nos, ou compelir-nos e arrastar-nos para
isso, há pouco propósito em ir diante neste capítulo três de Efésios. Uma
parte do alicerce de amor é que desejamos e amamos a lei de Deus. “Bem-
aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos.” As
pessoas que haverão de ser cheias do Espírito, as pessoas que haverão de
gozar a plenitude da bênção, são as que têm fome e sede de justiça; não da
bênção, e sim de justiça. Essa é uma distinção que diz respeito aos alicerces.
É justamente aqui, mais uma vez, que a vida cristã difere de todos os outros
tipos de vida. É onde ela difere daquilo que muitas vezes foi
equivocamente considerado como puritanismo no século passado. Aquilo
era apenas uma espécie de legalismo. Com muita razão, muitos têm reagido
contra isso neste século, mas foram para o outro extremo — para a licencio-
sidade. A liberdade cristã significa que a pessoa ama a lei do Senhor e tem
fome e sede de justiça. Philip Doddridge expressa isto perfeita-mente
quando diz:

Meu supremo deleite considero Teus ditados ouvir e obedecer.

Nosso último princípio é que o alicerce sempre surge estabilidade. Portanto,


eu o exponho como princípio, dando ênfase a que o nosso amor não deve ser
volúvel, não deve ser variável. Deve ser estável e constante, como um
alicerce que nunca se abala e nunca se move. Todos nós sabemos o que é ter
efusões ocasionais de amor cristão. Talvez vocês sintam isto durante um
culto, ou quando estão cantando um hino ou lendo um livro, ou quando
estão contemplando um belo pôr do sol. Vocês sabem o que é ter ocasionais
lampejos de amor a Deus e ao nosso Senhor. Como resultado de algo que nos
sucede, ou em certas circunstâncias, sentimos que realmente amamos a
Deus. Todavia a experiência logo se desvanece, e logo no dia seguinte pode
parecer que jamais tenha ocorrido; nosso amor vai e vem. Isso não é um
alicerce sólido, pois a nossa vida deve estar fundamentada, “fundada” no
amor. O nosso amor deveria ser semelhante ao amor de Deus. “Sede vós
pois perfeitos, como é perfeito o vosso Pai que está nos céus” (Mateus 5:48).

O perfeito amor de Deus é produzido por Ele mesmo; não depende de coisa
alguma de fora dEle; é um amor que principia dentro dEle e sai para
outros. É por isso que Deus amou o mundo de tal maneira que deu o Seu
Filho unigênito. Isto a despeito do que Ele viu no mundo e, certamente, não
em resposta a uma solicitação do homem. Foi o Seu próprio amor, nascido
dEle mesmo e se derramando copiosamente. Este amor começa em Deus e se
baseia em si próprio. O meu amor e o de vocês devem ser assim também. E
o será quando a nossa vida estiver fundada no amor. O nosso amor deve ser
tão firme, e deve esta tão fixamente firmado neste alicerce, que nada seja
capaz de movê-lo, sacudi-lo ou afetá-lo nem um pouco. Esta, devemos todos
concordar, é a prova de um sólido alicerce. Quando cai a chuva, ocorrem
enchentes e o vento sopra, a casa sobre a rocha permanece. A casa sobre a
areia cai e é destruída. Se vocês querem um edifício que não se abale
na tormenta, cave fundo e façam um sólido alicerce.

O nosso amor pelos outros varia conforme eles viram? Se for assim, não está
alicerçado na rocha, não está deveras baseado neste alicerce. Shakespeare,
como também as Escrituras, reconhece isto quando ele diz:

Amor não é o amor que sofre alteração quando alteração vê, ou que se inclina
com o mutável a mudar.

Soneto 116

Não! é sempre e para sempre um marco fixo que vê as tempestades e jamais se


abala.

O amor que se altera, varia e muda é amor humano, erótico, é o amor


natural. Não é o “agape” do Novo Testamento, este amor de Deus
no coração. Este não muda; permanece o mesmo, apesar dos homens.
No belo capítulo treze da sua Primeira Epístola aos Coríntios, diz o apóstolo
Paulo: “O amor é paciente, é benigno”. “Paciente” porque está firmado
num sólido alicerce. Também resiste às pressões. “Não se irrita” facilmente.
O amor que se irrita facilmente não é profundo. “Tudo sofre, tudo crê, tudo
espera, tudo suporta.” Mudanças nos outros, malícia, despeito, amargor,
ódio, o que quer que aconteça não faz diferença! O amor agüenta firme! “O
amor jamais acaba.” Jamais! Venha o que vier em contrario, o alicerce é tão
profundo que o amor permanece como se nada tivesse acontecido.

Vocês já estiveram a beira-mar durante uma tempestade e viram as ondas


arremetendo contra um forte penhasco ou rochedo? Elas se retraem e
depois voltam com força redobrada. Os ventos parecem redobrar sua força,
e as ondas se lançam contra a rocha. Mas esta permanece inamovível, como
se nada tivesse acontecido. “O amor jamais acaba.” O nosso amor se
amolda a esta descrição? Pode ele resistir face às mudanças ocorridas
noutros? Não somente isto, porém pode ele resistir às mudanças das
circunstâncias? Pode resistir às provações e tribulações? Essas experiências
vêm; têm que vir. No entanto o nosso amor, se estiver profundamente
fundamentado, permanecerá de pé, aconteça o que acontecer. Jó, em seus
dias, pôde dizer: “Ainda que ele me mate, nele confiarei” (13:15).

Considerem o modo como Paulo e Silas se portaram e reagiram face às


circunstâncias que enfrentaram em Filipos. Eles foram presos ilegalmente e
sem base, foram açoitados com varas a ponto de se lhes sangrarem as costas,
foram atormentados, maltratados, insultados, lançados no cárcere interior,
e seu pés foram presos no tronco. Numa fétida e úmida cela, sem nada para
os consolar e animar, quando parecia que tudo estava contra eles, lemos
que, “perto da meia noite, Paulo e Silas oravam e cantavam hinos a Deus”
(Atos 16:25). Há somente um explicação adequada dessa reação a
circunstâncias cruéis, a saber, que eles estavam “arraigados e fundados em
amor”. Assim fundado, o cristão pode cantar com Anna Waring:

Firme no celeste amor mudança não temerei; segura é tal confiança, pois nada
se altera aqui; rujam temporais lá fora, meu coração fique em baixa,

Deus, porém, bem perto está.

Poderei desfalecer?

Nada, senão um profundo amor a Deus, pode resistir às provações e às


pressões, aos riscos e às tensões da vida. Só crer não basta. Crer é essencial,
e pode levar vocês longe. Mas quando as verdadeiras tempestades chegam,
somente crer não basta. Apenas o amor nos habilita a resistir aos temporais.
Outro autor de hinos, Edward Mote, pôde dizer com certeza e com
segurança:

Quando tudo que cerca a minha alma se vai, toda a minha esperança e o meu
esteio é Deus.

Quando não posso compreender o que se passa, quando o meu intelecto luta
em vão, e quando não posso explicar, o amor continua a sustentar-me. Quão
vitalmente importante é que tomemos tempo com o alicerce e nos
certifiquemos de que estamos “arraigados e fundados em amor”. É só
quando as nossas vidas tiverem este alicerce, que realmente se aplicará a
nós a petição do apóstolo: “a fim de... poderdes perfeitamente compreender,
com todos os santos, ... este amor de Cristo, que excede todo o
entendimento”. Certifiquemo-nos, pois, de que o alicerce foi bem
construído.

“PODER COMPREENDER COM TODOS OS SANTOS”

“(Para)poderdesperfeitamente compreender, com todos os santos, qual seja a


largura, e o cumprimento, e a largura, e a profundidade, e conhecer o amor de
Cristo, que excede todo o entendimento, para que sejais cheios de toda a
plenitude de Deus. ” Efésios 3:18-19

Estes dois versículos nos dizem qual era o objetivo do apóstolo em sua
oração por estes cristãos efésios. Todas as petições anteriores nos preparam
para esta petição e a ela nos conduzem. Eram essenciais como preparativos,
mas não eram fins em si mesmas; destinavam-se a chegar a este grande
objetivo. Vemo-nos aqui, por assim dizer, no pináculo da verdade cristã.
Nada é mais elevado que isto. Conceda-nos Deus o Seu Espírito para que
possamos considerá-la direito! Encontramo-nos numa atmosfera rarefeita;
num local a que, infelizmente, não estamos acostumados. Muitíssimos de
nós contentam-se em passar o tempo nas baixadas e planícies, em meio a
brumas e a outras características desse nível da vida. Portanto, nas palavras
do apóstolo Pedro, é necessário que “cinjamos os lombos do nosso
entendimento e que sejamos sóbrios” (1 Pedro 1:13).

Confesso que abordo este grande tema com “temor e tremor”. E nos seus
escritos está patente que todos os que ensaiaram tratar dele e expô-lo
estiveram cônscios da mesma inaptidão. É por isso que, em geral, eles nos
propiciam tão pequeno auxílio. No caso de numerosas passagens das
Escrituras há ajuda abundante; os comentadores e os expositores
expandem-se e se abrem amplamente, e têm muito que dizer. Mas é
interessante notar que quando chegamos a uma passagem como esta, eles
têm pouco que dizer. Isto por causa da própria natureza e caráter da
verdade de que estamos tratando. É um assunto que não se pode dividir e
analisar em puras categorias e compartimentos de maneiras vulgar. Uma
vez alguém disse, com muita propriedade, que “não se pode dissecar uma
fragrância. ’’Menos ainda se pode analisar e dissecar o amor. Tudo que se
pode fazer é dizer algumas coisas sobre ele. Acima de tudo, é preciso ter
experiência dele. E há experiências que são quase inexprimíveis, dada a sua
exaltada natureza e caráter. Assim é esta

declaração a que chegamos. Devemos iniciar fazendo um exame geral dela.


Devemos familiarizar-nos com ela olhando-a de maneira geral, antes de
começar a particularizar o estudo. Vamos, por assim dizer, tomar fôlego e
assegurar-nos de que estamos respirando fácil e livremente nesta atmosfera
rarefeita.

Começo fazendo várias proposições gerais e óbvias — proposições que


tendemos a negligenciar com tanta freqüência em nosso pensar. A primeira
é que uma das mais altas conquistas da vida cristã é conhecer o amor de
Cristo. Há muita discussão entre as autoridades eruditas — e nisto gastam
muito tempo em conexão com esta passagem — sobre o que significam “a
largura, e o cumprimento, e a altura, e a profundidade”. Alguns
argumentam que estas palavras não se referem ao amor de Cristo, e que a
conjunção “e” indica claramente que o apóstolo está pensando noutra coisa
quando se refere a estas dimensões, e depois passa a falar do amor de
Cristo. Contudo, certamente essa distinção é artificial. Se argumentarem
que “a largura, e o cumprimento, e a altura, e a profundidade” se referem a
todos os procedimentos de Deus para conosco, estarei pronto a concordar,
pois, neste caso, é apenas outra maneira de dizer que as quatro palavras se
referem ao amor de Deus e ao amor de Cristo com relação a nós. No
entanto, esse é o tema do qual o apóstolo trata no capítulo todo. Ele já tinha
falado acerca das “insondáveis riquezas de Cristo” etc.

Argumento, pois, que aqui Paulo passa para algo mais elevado ainda.
Observemos que ele não está falando do nosso amor, mas do amor de Cristo
por nós. Do nosso amor ele falara na frase, “estando arraigados e fundados
em amor” que, como vimos, refere-se ao nosso amor a Deus e aos nossos
semelhantes, nosso amor pela vida cristã e pela lei de Deus. Nos versículos
18 e 19, porém, Paulo não está falando mais do nosso amor, embora isso
tenha sido necessário primeiro, para levar-nos à percepção e ao
conhecimento do Seu amor por nós.

Outra dificuldade pode surgir aqui. Talvez alguns digam que você não pode
ser cristão sem conhecer o amor de Deus e de Cristo para com você. Isso é
verdade. Se você crê que Cristo morreu pelos seus pecados, necessariamente
crê no amor de Deus e no amor de Cristo por você. Daí há muitos que
acham que o cristão começa com um conhecimento desse amor. Todavia é
evidente que não é essa a explicação daquilo de que estamos tratando aqui.
O apóstolo está escrevendo a pessoas, e orando por pessoas já cristãs. No
capítulo primeiro ele já as fizera lembrar-se de que elas confiaram no
Senhor depois de ouvirem a palavra da verdade, o evangelho da sua
salvação. Creram no evangelho e, por isso, perceberam algo do amor de
Deus por elas. E, ainda assim, a oração do apóstolo por elas aqui, é para que
venham a compreender

com todos os santos este amor.

Então, de que maneira se pode obter esta experiência? Parece claro que é
questão de grau. Há uma consciência preliminar do amor de Deus; mas,
comparada com o que Paulo tem em mente aqui, essa consciência é, nas
palavras de um hino, “fraca e tênue”. Na verdade, o amor que agora
estamos contemplando é tão maior do que esta consciência, que todos os que
já tiveram experiência dele inclinam-se a dizer que nunca antes tinham
conhecido o amor de Deus. Sentem que haviam tido algum conhecimento
dele, e que tinham conhecido algo a respeito dele, porém que realmente não
tinham conhecido o amor propriamente dito. Essa é a diferença entre os
dois graus de conhecimento do amor de Deus. Jamais devemos cair no erro
de imaginar que, porque somos cristãos, sabemos tudo sobre o amor de
Deus. Na maioria não passamos de crianças chapinhando na praia do mar;
há, neste amor de Deus, profundidades abismais que desconhecemos. O
apóstolo ora para que estes efésios, e nós com eles, partamos para estas
profundezas e profundidades e descubramos coisas que nunca sequer
tínhamos imaginado.

Outra observação preliminar e essencial é que estamos estudando o amor,


não como conceito, mas como o real e concreto amor de Cristo. É pessoal,
refere-se ao conhecimento pessoal dEle e do Seu amor por nós. Em sua
primeira Epístola o apóstolo João escreve seguindo o mesmo filão, dizendo:
“E nós conhecemos, e cremos no amor que Deus nos tem" (4:16). O alvo de
todo o nosso conhecimento deve ser este conhecimento do amor de Cristo
por nós. A finalidade, propósito e objetivo de toda doutrina é levar-nos a
isto. Em certo sentido, é-nos possível saber toda a doutrina e, contudo, não
saber isto. A doutrina não é um fim em si mesma. Naturalmente ela é vital e
essencial, como o apóstolo já deixou supinamente claro ao conduzir-nos a
esta grande petição. Homem nenhum jamais conheceu este amor de Cristo a
que o apóstolo se refere aqui, a menos que tenha sido profundamente
instruído na doutrina e nesta fosse versado. Doutro lado, é igualmente
certo dizer que, se você se detiver na doutrina, continuará sem conhecer
este amor de Cristo.

Que tolas criaturas somos! Muitos de nós não têm o mínimo interesse pela
doutrina; somos cristãos ociosos — cristãos que não lêem, não pensem e não
procuram sondar os mistérios. Tivemos alguma experiência, e não
desejamos nada mais. Outros de nós, deplorando tal atitude, dizem que,
visto que a Bíblia está repleto de doutrina, devemos estudá-la, agarrá-la e
tomar posse dela. Assim, ficamos absortos em nosso interesse pela doutrina,
e nos detemos aí. O resultado é que, quando a esta questão do amor de
Cristo, não

avançamos mais que os outros porque fizemos da doutrina um fim e um


ponto final. Desta maneira o diabo nos engana, nos agarra e nos priva da
nossa herança. Se o conhecimento que vocês têm das Escrituras e das
doutrinas do evangelho do Senhor Jesus Cristo não os têm levado a este
conhecimento do amor de Cristo, então deveriam estar profundamente
insatisfeitos e inquietos. Toda a doutrina bíblica é acerca desta bendita
Pessoa; e não há maior armadilha na vida cristã do que esquecer a Pessoa
mesma e viver simplesmente das verdades a Ele concernentes.

É por esta razão que alguns de nós sempre acharam perigosos submeter a
exame o conhecimento escriturístico. Alguns dos Reformadores defenderam
essa opinião, especialmente Martinho Lutero. Alguns dos puritanos também
a defendiam. Nunca deveria existir algo como um “Grau em Conhecimento
das Escrituras”. E isto não somente porque em si mesmo é errado, mas
também porque se presta a encorajar esta tendência de parar nas verdades
e omitir a Pessoa. Jamais devemos estudar a Bíblia ou qualquer coisa
relacionada com a verdade bíblica, sem nos darmos conta de que estamos na
presença do Senhor, e de que se trata da verdade acerca dEle. E isto deve ser
feito sempre numa atmosfera de adoração. A verdade bíblica não é um
assunto entre outros; não é algo próprio de um plano de estudos. É verdade
viva acerca de uma Pessoa viva. É por isso que uma faculdade de
teologia deve ser diferente de todas as outras espécies de faculdade; e é por
isso que um culto religioso é essencialmente diferente de todas as
outras espécies de reunião que o mundo possa organizar. É sempre
adoração; estamos na presença de uma Pessoa.
O apóstolo diz isto de maneira extraordinária no capítulo três da sua
Epístola aos Filipenses. Conquanto ele tivesse progredido tanto na
vida cristã, e tivesse tido muitas experiências maravilhosas, diz ele que
esta era a sua ambição: “Para conhecê-lo, e à virtude da sua ressurreição,
e à comunicação de suas aflições, sendo feito conforme à sua
morte” (versículo 10). E ele prossegue: “esquecendo-me das coisas que
atrás ficam, prossigo”. O amor nunca fica satisfeito o bastante. Uma vez
que você conhece esta Pessoa e começa a amá-lA, você sente que tudo
que recebeu não é suficiente, quer mais e mais. É pelo que o apóstolo
está orando em favor destes efésios. Seu anseio é que eles conheçam
a Cristo, pois conhecê-10 é conhecer o Seu amor. Quanto mais
O conhecermos, mais conhecermos o Seu amor para conosco. Estas coisas
são indivisíveis, não podem ser separadas.

Assim, a nossa primeira proposição é que este conhecimento do amor de


Cristo é a meta de todos os nossos esforços cristãos. Quanto sabemos disto?
É real para nós? Pensemos de novo nas expressões de

Quão doce soa o nome de Jesus nos ouvidos do crente! e

Senhor Jesus, o só pensar em Ti de dtulçor me enche a alma.

Isso é verdade a respeito de vocês? Pode ser que tenham crido, e que sejam
doutos na Bíblia e na doutrina; entretanto a questão a encarar é: vocês O
conhecem realmente? Vocês conhecem o Seu amor? Este é o objetivo
principal de todos os esforços cristãos.

A segunda proposição é que esta experiência é algo possível a todos os


cristãos. “A fim de poderdes perfeitamente compreender, com todos os
santos...” As duas palavras aqui empregadas são importantes. Tomemos
primeiro a palavra santos — “poderdes perfeitamente compreender, com
todos os santos”. A palavra santos quer dizer “separados”, além de “santos”
propriamente dito. Éum termo empregado no Novo Testamento para
designar os cristãos. Noutras palavras, o termo santos nos diz que este
conhecimento só é possível aos que crêem no Senhor Jesus Cristo. Essa é a
razão pela qual o apóstolo já havia salientado a fé — “Para que Cristo
habite pela fé nos vossos corações”. Este tema do amor de Cristo é uma
coisa da qual o incrédulo não tem a mínima concepção. O que explica a sua
completa ignorância e incompreensão é o que lemos no Evangelho segundo
João, onde se nos diz que o Senhor promete o dom do Espírito Santo
somente aos que nEle crêem (14:16-17). Referindo-Se ao “Espírito da
verdade”, Ele diz: “que o mundo não pode receber, porque não o vê nem o
conhece; mas vós o conheceis, porque habita convosco, e estará em vós”.

A prova da nossa condição e posição é esta: a palavra da verdade aqui neste


capítulo três da Epístola de Paulo aos Efésios é estranha para vocês? Parece
remota e irrelevante para vocês neste mundo moderno, com os seus terríveis
problemas? É essa a reação de vocês a isso? Se for assim, estarão
proclamando exatamente a que lugar pertencem. O mundo não pode
receber o Espírito Santo porque não O conhece. E porque não pode receber
o Espírito Santo, o mundo nada sabe deste amor de Cristo. Somente os que
são “fortalecidos com poder pelo seu Espírito no homem interior” é que
podem começar a entender estas coisas. É verdade somente para os santos.
Pode-se ter “uma forma de piedade” e de cristianismo, porém só isso não
basta.

Há um elemento secreto nesta questão. É um segredo só usufruído

pelo povo do Senhor. Com freqüência a Bíblia dá ênfase a este aspecto da


verdade. No livro de Apocalipse, por exemplo, na carta à igreja de Pérgamo,
diz o Senhor Jesus Cristo: “Ao que vencer darei eu a comer do maná
escondido, e dar-lhe-ei uma pedra branca, e na pedra um novo nome
escrito, o qual ninguém conhece, senão aquele que o recebe” (2:17). O maná
“escondido”! A pedra branca com um nome nela escrito que ninguém pode
entender, exceto aquele que o recebe! Os outros podem ver a grafia, mas
esta nada significa para eles. Ninguém entende o nome, a não ser aquele que
verdadeiramente o recebe. Este éum amor secreto que ninguém mais
conhece. A figura é de uma grande afeição entre duas pessoas, que elas
mantêm entre si como um grande segredo. Elas o desfrutam, os seus
corações estão encantados com isso; todavia nenhuma outra pessoa tem
conhecimento disso. Num sentido, ambas desfrutam o verdadeiro mistério
disso. Assim é o caráter deste amor a que se refere o apóstolo. O mundo
nada sabe sobre isso; é somente para os santos, somente para os que foram
separados do mundo e introduzidos no reino do amado Filho de Deus. Aos
santos é dado fruir os segredos do maná escondido e festejá-lo. “Uma
comida tenho para comer”, disse o nosso Senhor aos Seus discípulos certa
ocasião, “que vós não conheceis” (João 4:32). O maná escondido! O nome
secreto! “O amor de Jesus, o que é, só os Seus amado o sabem.”
Apresso-me a acrescentar que este benefício é para todos os santos. Repito
isto porque estou ciente do sutil perigo de manter-nos presos a certos
resíduos daquele ensino católico-romano completamente falso que declara
que somente certos cristãos são “santos”. Na igreja católica romana os
cristãos não são considerados santos, exceto os que são canonizados. Os tais
são pessoas muito excepcionais e incomuns, e são chamados, “Santo Fulano
de Tal”. Contudo, de acordo com as Escrituras, todos os cristãos são santos.
O apóstolo escreve, por exemplo, “A todos os que estais em Roma, amados
de Deus, chamados santos”, e semelhantemente a outras igrejas. Todos os
cristãos são santos, pessoas separadas. Assim este conhecimento é, pois,
para todos os santos. Se vocês aceitam a noção católico-romana de piedade,
vida devota e experiência cristã, acharão que o que o apóstolo está dizendo
é maravilhoso, mas, evidentemente, só possível aos que abandonam
o mundo, renunciam a todas as perspectivas terrenais e se
tomam “religiosos”. Santos, segundo o ensino católico-romano, são os
que entram num mosteiro ou num convento e se fazem monges ou freiras ou
heremitas, e que assumem a religião como a única ocupação das suas vidas.
Então, após anos de esforço, jejum, fadiga, oração e isolamento, eles podem
vir a ter alguma esperança de chegar a este conhecimento. No entanto, essas
idéias são uma completa negação daquilo que o

apóstolo está dizendo aqui. “Todos os santos”! Provavelmente a maior parte


dos de Éfeso, a quem Paulo estava escrevendo, eram escravos. Todavia ele
ora para que eles conheçam este amor; ele anseia que o desfrutem com
todos os santos de todas as igrejas do mundo inteiro. É para cada um dos
cristãos, individualmente.

Dou ênfase a isto porque receio que muitos pensem consigo mesmos que esta
experiência é possível, talvez, a um ministro ou a um obreiro cristão de
tempo integral que tem tempo para ficar meditando e orando no escritório,
mas não a alguém que tem que passar o dia numa atividade comercial ou
profissional e que bem pode ter que levar trabalho para casa à noite. Essa é
uma mentira própria do diabo. Todos nós temos a mesma oportunidade e
possibilidade. É possível a um homem desperdiçar tanto tempo num
escritório como em qualquer outra parte. Mesmo num mosteiro a mente
pode estar ocupada noutras coisas. Graças a Deus, esta bênção é para todos
os santos, seja qual for a sua posição, seja qual for a sua situação.
Precisamos tomar a linguagem do apóstolo e dos santos de todos os séculos e
apropriar-nos dela, e determinar que esta há de ser real em nossa
experiência pessoal. Contentar-nos com qualquer coisa menos que isso é
virtualmente dizer a Deus que não cremos em Sua Palavra, e que nos
contentamos em permanecer na igreja como estamos. Nada desonra tanto a
Deus e Sua Palavra como esse estado de satisfação própria, como esse
contentamento em continuar como infantes em Cristo, e em negar-se a
escalar as alturas e de lutar para subir ao pico culminante do amor de
Deus. Todos os santos devem procurar isto.

O terceiro ponto que requer a nossa atenção é a descoberta do caminho


para este conhecimento. Temos que descobrir como poderemos esperar o
gozo desta consciência do amor de Cristo por nós. A frase do apóstolo diz:
“estando arraigados e fundados em amor (para) poderdes perfeitamente
compreender, com todos os santos...”. Desa-fortunadamente, & Authorized
Version (Versão Autorizada) não mostra com clareza o sentido. O apóstolo
não disse apenas “para poderdes”, e sim “para poderdes plenamente” (ou
“perfeitamente”, como em Almeida). Ele escolheu deliberadamente uma
palavra que contém essa ênfase extra. Poderíamos muito bem traduzi-la
pela palavra fortalecer — “para serdes fortalecidos para compreender”.

Noutras palavras, mais uma vez o apóstolo dá a impressão de que há


dificuldades concernentes a este assunto, e de que não é algo que se possa
descrever como “muito simples”. Ele já havia orado para que fôssemos
“fortalecidos com poder pelo seu Espírito no homem interior”, e aqui ele
reitera a petição. Precisamos ser “fortalecidos” ou

“plenamente capacitados”. Necessitamos força, poder e capacidade antes de


podermos conhecer o amor de Cristo. As ilustrações que já empregamos
realmente solucionam o problema. Precisamos ser fortalecidos, precisamos
ser capacitados plenamente, estando arraigados e fundados em amor, por
causa do peso do amor de Deus que vamos carregar. O amor é poderoso e
oneroso. O amor não é fraco, frouxo e sentimental. O amor é dinamite, o
amor é poder. “Deus é amor”, e o Seu poder, majestade e energia estão nesse
amor. Desse modo, quando você estiver sentindo o amor de Deus, estará
sentindo algo do poder de Deus, do seu peso e da eternidade da glória de
Deus.

Vemos constantemente nas biografias cristãs, como tive ocasião de fazer


notar várias vezes, que todo aquele que já teve alguma experiência do amor
de Deus, sempre teve a sensação de que ele é irresistível, duvidando se seria
capaz de suportá-lo. Quando Isaías viu e sentiu algo desse amor, essa foi a
sua reação. João, na Ilha de Patmos, conta-nos que “caiu como morto”
(Apocalipse 1:17). O amor de Deus é tão grande e poderoso que o homem
sente a sua estrutura fender-se debaixo dele. Muitos cristãos, quando de
repente se conscientizaram do amor de Deus, literalmente desmaiaram e
ficaram inconscientes.

Vê-se um exemplo disto nos relatos do avivamento que ocorreu em Gales,


em 1904-6, e que está associado a um homem chamado Evan Roberts. Evan
Roberts teve uma experiência desta natureza que não somente se evidenciou
como o ponto decisivo em sua vida, mas também como um momento crucial
na história daquele avivamento. Ele se pôs de pé durante uma reunião numa
capela e, de repente, de tal maneira este amor de Deus veio sobre ele, que
literalmente ele caiu no chão. Muitos dos que estavam presentes pensaram
que ele estava morto. O que aconteceu foi que ele teve uma percepção deste
irresistível amor de Deus. É por isso que precisamos ser “fortalecidos”.

Alguma vez fomos levados a sentir-nos desfalecer pelo amor de Deus?


Sabemos o que é — para usar a linguagem de Cantares de Salomão —
“desfalecer de amor” (2:5), experimentar o seu maravilhoso poder em tal
medida que as nossas forças parecem deixar-nos e somos dominados por
ele?

Mais uma razão pela qual precisamos ser capacitados a compreendê-lo, é


que somente o amor pode reconhecer o amor. Necessitamos estar
“arraigados e fundados em amor” a fim de compreendermos este amor de
Deus. Somente o amor reconhece o amor, somente o amor entende o amor;
na verdade é somente o amor que pode receber o amor. Esta é uma esfera
em que o intelecto parece quase ridículo. É inútil levar o intelecto a
confrontar o amor; ele é incompetente nesta área. Os semelhantes se
atraem. Você terá que ter amor em seu coração, se vai

conhecer o amor e experimentá-lo. Há pessoas que lêem a Bíblia e, contudo,


odeiam a Deus, pois não há amor em seus corações. É somente o amor que
pode apreciar o amor. Este princípio prevalece em muitos domínios. Você
não será capaz de apreciar a música mais gloriosa, se não for dotado em
música. Há pessoas que são quase levadas à loucura pelo som de uma
grandiosa sinfonia porque são vazias da faculdade musical. Igualmente há
pessoas que podem passear pelas mais finas galerias de arte e encher-se de
enfado. Falta-lhes o senso artístico.

A mesma coisa é verdadeira com relação ao amor. Há gente que


absolutamente não se comove com os mais eloqüentes e
emocionantes sermões sobre o amor de Deus, nem com o cântico de grandes
hinos sobre o mesmo tema. É porque essas pessoas não estão “arraigados
e fundados em amor”. Não foram plenamente habilitadas a recebê-lo e
a compreendê-lo. Por isso tivemos que tratar tão completamente
da preparação. Devemos dar graças a Deus pelo fato de que é o amor
que nos capacita a compreender o amor de Cristo, pois é isto que garante
a todos os santos a possibilidade de conhecê-lo. Se fosse matéria de intelecto,
não estaria aberta para todos os santos; uns teriam vantagem sobre outros.
O homem de cérebro maior, de maior intelecto e entendimento, levaria
vantagem e poderia conhecer mais do amor de Deus do que um cristão
menos dotados.

Quão maravilhosa é a salvação de Deus e a provisão de Deus! Visto que é


matéria de amor e não de intelecto, a pessoa mais atrasada inteléctualmente
está no mesmo nível do maior gênio. Graças a Deus, todos podemos amar,
por diminutos que sejam os nossos dons, por mais afundados na iniqüidade
que tenhamos estado num tempo anterior à nossa conversão. Num sentido
natural, o amor é mais universal que o intelecto; e na vida cristã a mesma
coisa é válida. O nosso bendito Senhor pôde dizer: “Graças te dou, ó Pai,
Senhor do céu e da terra, que ocultaste estas coisas aos sábios e entendidos,
e as revelaste aos pequeninos. Sim, ó Pai, porque assim te aprouve” (Mateus
11:25-26). Na mensagem e fé cristã, nada é mais glorioso do que o fato de
que Deus decidiu dar centralidade a isto. Outras coisas são de grande
valor, porém falham neste ponto mais central. Aqui, Ele postula algo que
é comum a todos, a capacidade para o amor. Assim, quando o Senhor entra
na alma e a fortalece com o Seu poder, ela é habilitada a conhecer e a
compreender “o amor de Cristo, que excede todo o entendimento”. E isto,
graças a Deus, aplica-se a todos os santos.

Finalmente, “a fim de, estando arraigados e fundados em amor, poderdes


perfeitamente compreender”, diz o apóstolo. À primeira vista parece haver
alguma confusão aqui. Se vocês já estão “arraigados e

fundados em amor”, de que mais necessitam? Um grande princípio bíblico


está envolvido neste ponto. Certa ocasião, quando o nosso Senhor estava
tratando da questão de receber a verdade, proferiu estas palavras. “Àquele
que tem, se dará, e terá abundância; mas àquele que não tem, até aquilo que
tem lhe será tirado” (Mateus 13:12). Temos aqui um exemplo típico de
paradoxo bíblico. “Àquele que tem, se dará.” Entretanto, em nossa
sabedoria perguntamos: se tem, por que precisa? É a nossa ignorância que
nos sugere essa pergunta. O princípio é que, quanto mais alguém tiver na
vida cristã, mais poderá receber. Assim, vocês não poderão receber este
grande e supremo amor de Cristo, se ainda não possuírem amor. É um
processo progressivo, e a progressão é geométrica, não aritmética. Quanto
mais vocês tiverem, mais terão. Na verdade, se vocês não tiverem nada,
nada receberão. “A qualquer que não tiver, até o que parece ter lhe será
tirado” (Lucas 8:18). Todo aquele que diz: “Sou cristão, sou membro de
igreja, e não entendo este ensino que sugere que necessito conhecer muito
mais do amor de Cristo”, está simplesmente proclamando que não tem
nada. Por outro lado, se você já tem em seu coração alguma porção deste
amor a Deus e a Cristo, por pouco que seja, se você tem amor aos irmãos, à
lei de Deus e à vida cristã — sua condição é esperançosa, e receberá mais.
E à medida que continue e tenha mais amor no seu coração, experimentará
ainda mais do amor de Deus para com você. Na verdade
continuará aumentando dessa maneira, até a eternidade. Quanto mais O
amarmos, mais viremos a conhecer do Seu amor por nós. Às vezes pode ser
que achemos que não é mais possível, porém não é assim. Uma vez que você
tem o que tem, mais terá. E assim por diante, continuará sempre e para
sempre. “Àquele que tem, se dará.”

Ninguém chega de súbito ao ápice do conhecimento do amor de Deus, pelo


que, se deseja alcançar o topo desta montanha e “conhecer o amor de
Cristo, que excede todo o entendimento”, será melhor começar a escalar
logo. Abandone imediatamente as partes baixas e planas da vida cristã. Dê
as costas ao nível comum e comece a escalar as alturas. Cada passo que você
der, subindo essa montanha, trará à sua experiência algo novo e bom, que
nunca antes conhecera. E altíssima essa montanha; tomo a salientar isso. E
o diabo vai procurar desanimá-lo, e às vezes você se sentirá cansado. Às
vezes achará que caminhou dias, meses e anos, e que o pico da montanha
parece estar mais longe que nunca. Talvez pergunte se o esforço ainda vale a
pena. Não dê ouvidos às sugestões desanimadoras do diabo. Você já está a
caminho. Prossiga. “Àquele que tem, se dará, e terá em abundância.” A
todo momento, no primeiro passo que der a seguir, você poderá sentir
algo mais glorioso que tudo quanto já sentiu. Começará a ver o sol brilhar
com um esplendor que jamais viu nas planícies. Você começará a ter uma
sensação de jovialidade e a consciência de um novo poder. Pode ser que a
princípio fique sem entender o que se passa; mas é o amor de Cristo a
manifestar-se a você. Estará cônscio de um crescente poder, redobrará os
seus esforços, e irá de altitude em altitude e de força em força. Contudo,
nunca chegará ao fim. É o amor de Cristo, que “excede todo o
entendimento”. É a montanha de Deus, e Ele o conduzirá por toda a
eternidade. Isto porque Deus é inexaurível, Seu amor é eterno, Suas
misericórdias são infindáveis, Seu amor é um “mar sem maré vazante”. No
entanto, meus irmãos, que alegria, que encanto é a maravilha de conhecer
este amor de Cristo, que excede todo o entendimento!

Até aqui estivemos apenas fazendo um exame geral da situação. Temos que
ir adiante para “compreender” e “conhecer” mais acerca das dimensões
deste amor. Por enquanto, faça a si próprio a pergunta: conheço realmente
o amor de Cristo? Busque-o dEle! Vá a Ele, dirija--se a Ele para pedi-lo!
Peça a Deus, “segundo as riquezas da sua glória, que vos conceda que sejais
fortalecidos com poder pelo seu Espírito no homem interior, para que Cristo
habite pela fé nos vossos corações; a fim de, estando arraigados e fundados
em amor, poderdes perfeitamen-te compreender, com todos os santos...”.
Essa oração jamais é feita em vão. Entregue-se, confiante, ao Seu amor. Seu
amor por você é um amor sempitemo; portanto, deixe-se descansar em Suas
mãos. Guarde os Seus mandamentos, faça todas as coisas que já temos
considerado, e prossiga no espírito do hino que diz:

Peleja e luta e ora, todo o poder das trevas pisa, triunfal seja o teu dia.
“LARGURA, COMPRIMENTO, ALTURA, PROFUNDIDADE”

“(A fim de) poderdes perfeitamente compreender, com todos os santos, qual seja
a largura, e o comprimento, e a altura, e a profundidade, e conhecer o amor de
Cristo, que excede todo o entendimento, para que sejais cheios de toda a
plenitude de Deus. ”

Efésios 3:18-19

Chegamos agora à petição propriamente dita que o apóstolo fez em favor


dos efésios. É para que, estando já arraigados e fundados em amor, possam
eles ser plenamente capazes de compreender, com todos os santos, “qual seja
a largura, e o cumprimento, e a altura, e a profundidade, e conhecer o amor
de Cristo, que excede todo o entendimento”. Devemos lembrar-nos de que
estamos tratando, não do nosso amor a Deus, a Cristo e aos irmãos, e sim do
Seu amor por nós. Até aqui temos examinado isto de maneira muito geral.
Agora vamos examiná-lo de modo mais pormenorizado. Antes de
estudarmos a natureza ou o caráter desse conhecimento, devemos
considerar o conhecimento propriamente dito, e verificar o que se pode
conhecer do amor de Deus. O apóstolo coloca isto de maneira
extraordinária, nas palavras que acabei de citar.

A própria terminologia empregada pelo apóstolo sugere vastidão. E não há


dúvida de que ele preferiu descrevê-lo desta maneira quadridimensional
com o fim de dar aquela impressão. É interessante especular sobre a razão
por que ele decidiu fazer isto. Concordo com os que dizem que
provavelmente ele ainda tinha em mente o que estivera dizendo no final do
capítulo dois, antes de começar a digressão que ocupa os primeiros treze
versículos deste capítulo. Ali ele estivera descrevendo a Igreja como “templo
santo no Senhor”, como um grande edifício no qual Deus fez a Sua
habitação e no qual Ele permanece. Estou pronto a acreditar que isso estava
em sua mente, e que, como ele pensava na vastidão da Igreja como um
templo enorme, achou-se que esta era uma boa maneira de descrever o
amor de Cristo pelo Seu povo. Assemelha-se à largura, comprimento, altura
e profundidade daquele grande edifício.

Seja assim ou não, certamente o apóstolo estava interessado em expor a


vastidão deste amor. Na verdade, ao fazê-lo, ele quase se contradiz por
empregar uma figura de linguagem denominada oximóron. Ele ora para
que “conheçamos” o amor de Cristo, “que excede todo o entendimento” (ou
“que excede todo o conhecimento”, na versão utilizada pelo Autor). Como
se pode conhecer algo que não se pode conhecer? Como se pode definir algo
que é tão grande que não pode ser definido? De que vale falar de medidas,
se o que está em foco é imensurável e eterno? Mas, naturalmente, não há
contradição aqui. O que o apóstolo está dizendo é que, apesar deste amor de
Cristo estar além de toda computação, e nunca poder ser corretamente
medido, não obstante nos compete a tarefa de aprender quando pudermos
sobre ele, e de receber quanto ele pudermos conter. Portanto, convém-nos
examinar esta descrição que ele faz do amor de Cristo.

Estamos prestes a pôr os olhos em algo que é tão glorioso e interminável,


que será o tema de contemplação de todos os santos, não somente neste
mundo como também no mundo por vir. Passaremos a eternidade
contemplando-o, maravilhando-nos e nos extasiando com isso. Entretanto o
que nos cabe é começar nisso aqui e agora, nesta vida. Uma das
características dos maiores santos sempre foi que eles passavam muito
tempo meditando no amor de Cristo para com eles e para com o povo de
Deus. Nada lhes dava maior alegria. Na verdade, esta é a característica do
amor em todos os níveis; quem ama deleita-se em pensar não somente no
objetivo do seu amor, porém também no amor que recebe. Portanto, nada
deveria dar maior alegria a todo o povo de Deus do que meditar neste amor
de Cristo. De fato, o nosso maior defeito como cristãos é que não nos damos
conta do amor de Cristo por nós. Quantas vezes vocês têm pensado nisto?
Tomamos tempo pensando em nossas atividades e em nossos problemas,
todavia a necessidade mais importante da vida cristã é conhecer o amor de
Cristo por nós e meditar nele. Isto sempre foi a fonte e origem da maior
atividade já manifestada ao longo da história da Igreja Cristã. Tentemos
examiná-lo, pois, nos termos das dimensões utilizadas pelo apóstolo.

Vocês alguma vez consideraram a largueza deste amor? Há vários lugares


nas Escrituras onde esta particular dimensão é posta diante de nós de
maneira extraordinária. No livro de Apocalipse, por exemplo, encontramos
estas palavras: "... e com o teu sangue compraste para Deus homens de toda
tribo, e língua, e povo, e nação”. E ainda: "... e era o número deles milhões
de milhões e milhares de milhares” (5:9, 11). O livro de Apocalipse parece
estar particularmente interessado na largura do amor de Cristo. Quando
nos dá o quadro dos santos
glorificados, e do Filho de Deus com os Seus remidos, emprega estes
números: “Depois destas coisas olhei, e eis aqui uma multidão, a
qual ninguém podia contar, de todas as nações, e tribos, e povos, e
línguas, que estavam diante do trono, e perante o Cordeiro” (7:9). Um dia
na glória veremos isso perfeitamente. Mas num desalentador período como
este na história da Igreja, o que poderia causar mais ânimo e alegria do que
pensar nesta largueza do amor de Cristo? Como cristãos somos somente um
punhado de pessoas neste país hoje, apenas uma pequena porcentagem. Às
vezes esse pensamento tende a deprimir-nos e a desanimar-nos. O antídoto é
considerar a amplitude do amor de Cristo.

A causa fundamental do fracasso dos judeus foi que eles jamais captaram
esta particular dimensão. Eles pensavam que a salvação era só para o judeu.
No entanto, aqueles dentre eles cujos olhos foram abertos pelo Espírito, o
próprio apóstolo inclusive, que era “hebreu de hebreus” e outrora defendia
este conceito exclusivista, vieram a enxergar que aquele conceito estreito e
naturalista era totalmente errado, e que em Cristo “não há grego nem
judeu, circuncisão nem incircuncisão, bárbaro, cita, servo ou livre”
(Colossenses 3:11). Nada é mais animador e revigorante que recordar que,
mesmo nestes dias de decadência religiosa, há no mundo, em cada país, em
cada continente — embora diferentes na cor, na cultura, nos antecedentes,
em quase tudo — homens e mulheres que se reúnem regularmente para o
culto a Deus e para agradecer-Lhe Seu amado Filho e Sua grandiosa
salvação. Na glória ficaremos arrebatados de encanto diante disto, quando
compreenderemos o que o amor de Deus em Cristo realizou, apesar do
pecado, do inferno e do diabo.

Miríades vezes miríades em refulgentes vestes, as hostes dos santos


remidos abismos de luz cruza.

Terminou de vez sua luta com a morte e com o pecado; amplos se abrem os
portais de ouro, e entram os vencedores!

Essa é a gloriosa perspectiva na qual devemos permanecer e meditar.

Não podemos conceber a grandeza deste plano de salvação e do seu alcance.


No Evangelho segundo Lucas se nos diz que certas pessoas se aproximaram
do nosso Senhor um dia e Lhe fizeram a pergunta:
“Senhor, são poucos os que se salvam?” (13:23). Não sei a resposta exata a
essa pergunta, mas sei muito bem que as Escrituras ensinam que nós
ficaremos estupefatos quando virmos reunidos todos os remidos — a
“plenitude dos gentios”, a "plenitude de Israel”, “todo o Israel” salvo, e os
remidos de pé na presença do seu Redentor. Não é surpreendente que o
apóstolo ore tão ardentemente para que estes efésios conheçam isto, porque
isto muda toda a visão das coisas quando tendemos a ficar deprimidos,
quando somos tentados a duvidar se haverá algum futuro para a Igreja,
visto que somos apenas um punhado de gente. A resposta é olhar para a
largueza do amor de Cristo, e olhar para a frente, olhar para a glória e ver o
resultado final da Sua obra concluída. Assim que alguém começar a
compreender a amplitude do Seu amor, tomará a levantar a cabeça, seu
coração voltará a cantar, e perceberá que está tendo o precioso privilégio de
ser um humilde membro de um poderoso exército, um no meio desta
gigantesca multidão que vai passar a eternidade na presença do Cordeiro de
Deus, e nEle vai deleitar-se para sempre. A largueza do Seu amor!

Mas procuremos examinar também o comprimento do Seu amor. Estou


convicto de que o apóstolo especificou estas medidas particulares com o fim
de encorajar os efésios, e a nós por meio deles, a desenvolvermos isto em
nossas mentes. Meditar no amor de Deus de maneira abstrata não é muito
proveitoso. Temos que desenvolvê-lo detalhadamente, como foi
demonstrado. Certamente o comprimento comunica a idéia do caráter
infindável do amor de Cristo. Às vezes lemos nas Escrituras sobre o
“eterno” amor de Deus — “com amor eterno te amei” (Jeremias 31:3).
Porventura já consideraram a eternidade do amor de Cristo para com vocês
e para com todos os santos? A dimensão do comprimento lembra-nos que
este amor começou na eternidade. Sempre existiu. Vê-se a superioridade dos
Reformadores, dos puritanos e dos líderes evangélicos do século dezoito
sobre nós no fato de que eles eram mais apegados aos conhecimentos
teológicos do que nós. Nós julgamos insensatamente que o mais importante
é ser prático. Concordamos que ser prático é muito importante; mas
os homens mais realizadores do mundo sempre tiveram apego à teologia. O
homem que se precipita à atividade sem estudar teoria, finalmente se vê que
é um tolo. Pensem no homem que deseja lidar com a energia atômica sem
nada saber a respeito!

Os grandes líderes evangélicos do passado viam a importância da teologia e


da doutrina, e falavam e escreviam muito sobre o que denominavam
Aliança da Redenção que, por sua vez, levava à Aliança da Graça. O que
eles queriam dizer era que, anteriormente ao tempo,

antes da criação do mundo e do homem, entraram num acordo Deus o Pai e


Deus o Filho. Foi um acordo concernente à salvação daqueles que haveriam
de ser salvos pelo Senhor Jesus Cristo. A Queda do homem foi prevista,
tudo era conhecido; e o Filho, como Representante desta nova humanidade,
entrou numa aliança com Seu Pai, no sentido de que Ele os salvaria e os
resgataria. O Pai, em aliança com o Filho, concordou outorgar certos
privilégios e bênçãos aos que foram então dados ao Filho.

Como é importante meditar sobre esse tema! Fazê-lo leva-nos logo à


percepção de que o amor de Cristo pelos Seus começou anteriormente ao
tempo, na remota eternidade passada. O amor de Cristo por nós não veio à
existência repentinamente; existia antes de iniciar o tempo. Daí lemos que os
nossos nomes foram “escritos no livro da vida do Cordeiro (que foi morto,
13:8) desde a fundação do mundo” (Apocalipse 13:8; 17:8). Isto é, para
mim, uma das coisas mais estonteantes — eu era conhecido por Cristo na
eternidade. Eu em particular, e cada um de nós que pertencemos a Ele, em
particular. Éramos conhecidos por Ele, e os nossos nomes foram escritos no
Seu livro. Que dignidade acrescenta à vida humana e à nossa existência
neste mundo, saber que Ele pôs o Seu coração sobre nós, que a Sua afeição
pousava sobre nós, mesmo na eternidade! Esse é o começo — se é possível
tal expressão — do comprimento do Seu amor para conosco. Antes de
existir o tempo!

Vejamos, porém, nesta dimensão de comprimento, como opera na vida neste


mundo. O amor de Cristo pelos Seus é de eternidade e eternidade. Começou
na eternidade, e continua no tempo. Portanto, podemos estar sempre
seguros de que ele nunca mudará, nunca sofrerá variação, sempre será o
mesmo. “Jesus Cristo é o mesmo ontem, e hoje, e etemamemte” (Hebreus
13:8). E o Seu amor é sempre o mesmo. Não sofre interrupções. Este
“comprimento” é uma linha ininterrupta. Aconteça o que acontecer, segue
adiante; não é variável; é constante. Não cessa de repente, para logo
recomeçar. “Teu amor é imutável.” É uma linha, uma linha reta, não é
variável. É um amor que nunca nos abandona nem nos larga; é um amor
que nunca perde as esperanças quanto a nós.

Uma das mais perfeitas expressões deste elemento de dimensão acha-se na


parábola do nosso Senhor sobre o filho pródigo. A despeito de fato de que o
filho mais moço tinha sido um tolo e partira para uma terra longínqua,
desprezando o amor que lhe foram mostrado em casa, e gastara os seus bens
nos dispendiosos e falsos prazeres daquele país distante, seu pai ainda o
amava, esperava seu regresso e derramou bênçãos sobre ele. Este é o quadro
do amor de Cristo para com os Seus

— paciente, resignado, tolerante, nunca nos abandonando. Não há nada


mais maravilhoso do que dar-nos conta de que, mesmo quando em nossa
loucura damos as costas ao Senhor, e ainda pecamos gravemente contra Ele,
o Seu amor permanece. O hino de George Matheson expressa isto
perfeitamente: “Amor sublime, que perduras, que em Tua graça me
seguras”.1 É um amor que nos segue aonde formos; não nos soltará. Disse
Deus: “Não te deixarei, nem te desampararei” (Hebreus 13:5).

Quão importante é que meditemos neste amor, e que o contemplemos ! É


porque não fazemos isso que, por vezes, inclinamo-nos a pensar que Ele Se
esqueceu de nós, ou que Ele nos abandonou. Quando nos sobrevêm aflições,
problemas e provações, e enfrentamos dificuldades e decepções, temos a
tendência de perguntar: “Onde está o Seu amor?” A resposta é que está
presente, sempre presente. A falha está em nós, que não conseguimos vê-lo, e
não temos meditado nele, não temos compreendido o seu caráter eterno, e
não captamos a sua dimensão de comprimento. O apóstolo Paulo expressa
esta verdade com estas palavras: “Estou certo de que, nem a morte, nem a
vida, nem os anjos, nem os principais, nem as potestades, nem o presente,
nem o porvir, nem a altura, nem a profundidade, nem alguma outra
criatura nos poderá separar do amor de Deus, que está em Cristo Jesus
nosso Senhor!” (Romanos 8:38-39). Nada jamais poderá fazê-lo mudar
ou falhar. Como diz Augustus Toplady:

Nem as coisas futuras ou presentes, nem quanto existe embaixo, nem em


cima, podem fazê-lO Seus fins renunciar ou minha alma privar do Seu amor.

Que conforto, que consolação, que força isto nos dá! Que esteio em tempos
de provação e adversidade! Se Ele pôs Seu coração e Seu afeto sobre nós,
eles permanecerão ali. Nada jamais poderá arrancar-nos da Sua mão, nada
poderá jamais privar-nos desse amor. Nada! Se o inferno ficar às soltas, se
tudo for contra nós, nada poderá jamais fazer com que Ele nos abandone.
E isto continuará pela eternidade adentro. Principiou na eternidade,
manifesta-se no tempo, e vai de volta à eternidade. Esta linha é ininterrupta.
O autor da Epístola aos Hebreus o expõe assim: “Portanto” — noutras
palavras, porque Cristo tem um sacerdócio eterno —

“pode também salvar perfeitamente os que por ele se chegam a Deus,


vivendo sempre para interceder por eles” (7:25). Ele nos
salvará “perfeitamente”. Nada ficará por fazer. Aconteça o que acontecer,
o Seu amor pelos Seus continuará até completar-se o plano de
redenção. Nosso bendito Senhor está no céu fazendo intercessão por nós
agora, e ali estará sempre. Ele não é como os sacerdotes da dispensação
do Velho Testamento, que entravam e saíam do lugar santíssimo.
Eles viveram e fizeram o seu trabalho, e depois morreram e outros
tomaram o lugar deles. “Ele vive para sempre”; Ele está sempre ali, e
sempre estará. Isso nos dá uma idéia do comprimento do Seu amor.

No entanto, estudemos a profundidade do Seu amor. Quando examinamos


uma das dimensões, somos tentados a pensar que essa é a mais maravilhosa
de todas — e o certo é que isso é verdade quanto a cada uma delas! Ao
considerarmos a profundidade, não poderemos fazer nada melhor do que
ler o que o apóstolo escreveu aos filipenses no capítulo segundo, onde ele
mostra que se pode ver a profundidade do amor de Cristo em dois casos
principais: o primeiro, no que Ele fez. Quanta culpa pesa sobre nós por
lermos apressadamente, e talvez sem pensar, algumas das mais estonteantes
palavras já escritas. Na eternidade o nosso Senhor era “em forma de Deus”.
Era Deus o Filho no seio do Pai desde toda a eternidade. Mas o apóstolo nos
diz que Ele “não teve por usurpação ser igual a Deus”. Significa que Ele não
considerava a Sua igualdade com Deus como uma presa a que agarrar-Se, a
que agarrar-Se a todo custo. Ao contrário, Ele Se humilhou e Se
despiu daqueles sinais da Sua eterna glória. E veio a este mundo de pecado
e vergonha fazendo-Se semelhante aos homens, na forma de homem.

Isso está inteiramente além da compreensão; como diz o apóstolo, é “o amor


de Cristo, que excede todo o entendimento”. Estes são os fatos.
Deliberadamente não Se apegou àquilo a que tinha direito, porém, antes,
humilhou-Se, adentrou o ventre da virgem, assumiu a natureza humana e
veio viver como homem neste mundo. Recordem o que nos foi narrado
acerca da pobreza e humildade do lar no qual Ele nasceu. Recordem o que
aconteceu com Ele enquanto esteve neste mundo, como Ele realizou tarefas
servis; Ele, que era igual ao Pai; Ele, o Filho do Deus eterno!

Em seguida, considerem o que ele sofreu nas mãos dos homens, a


incompreensão, o ódio, a falsidade e o despeito. Pensem em Seu sofrimento
com o cansaço, a fome e a sede. Pensem nos homens lançando mãos cruéis
sobre Ele, prendendo-O, julgando-O, zombando e escarnecendo dEle,
cuspindo no Seu santíssimo rosto. Pensem nos homens cruéis condenando-O
e açoitando-O. Vejam-nO cambaleando

sob o peso da pesada cruz, a caminho do Gólgota. Olhem para Ele cravado
no madeiro e ouçam as Suas expressões de agonia pela sede que sentia e pela
dor que padecia. Pensem no terrível momento em que os nossos pecados
foram postos sobre Ele. Perdeu de vista a face do Seu Pai uma tinica vez,
entregou o espírito e morreu, e foi sepultado e posto num sepulcro. Ele, o
Autor da vida, o Criador de todas as coisas, jaz morto numa tumba! Por
que fez Ele isso tudo?

A espantosa resposta é: por causa do Seu amor por mim e por você; porque
Ele nos amou. Tal é a profundidade do Seu amor! Não há outra explicação.

Seu amor se mostra ainda maior e mais profundo quando nos lembramos de
que não havia nada em nós que atraísse tal amor. “Todos nós andamos
desgarrados como ovelhas”. Todos pecamos e estamos “destituídos da glória
de Deus” (Isaías 53:6; Romanos 3:23). Em nosso estado natural, todos nós
éramos criaturas odiosas e sem esperança. Para que possamos ter uma
verdadeira concepção do nosso real estado e condição, e da profundidade do
Seu amor, vejamos o que Paulo nos diz acerca da condição da humanidade
enquanto a graça de Deus em Cristo não se assenhoreou de nós. Vemo-lo no
capítulo três da sua Epístola aos Romanos, onde lemos: “Não há um justo,
nem um sequer. Não há ninguém que entenda; não há ninguém que busque
a Deus. Todos se extraviaram, e juntamente se fizeram inúteis. Não há
quem faça o bem, não há nem um só. A sua garganta é um sepulcro
aberto; com as suas línguas tratam enganosamente: peçonha de áspides
está debaixo de seus lábios; cuja boca está cheia de maldição e
amargura. Os seus pés são ligeiros para derramar sangue. Em seus
caminhos há destruição e miséria; e não conheceram o caminho da paz. Não
há temor de Deus diante de seus olhos. Ora, nós sabemos que tudo o que a
lei diz aos que estão debaixo da lei o diz, para que toda a boca esteja
fechada e todo o mundo seja condenável diante de Deus” (versículos 10-
19). Foi para esse tipo de gente que Cristo veio, suportando a cruz
e desprezando a vergonha. O apóstolo expõe o mesmo ponto no
capítulo cinco da Epístola aos Romanos. O nosso Senhor disse: “Ninguém
tem maior amor do que este: de dar alguém a sua vida pelos seus
amigos”; mas Paulo diz: “Deus prova o seu amor para conosco, em que
Cristo morreu por nós, sendo nós ainda pecadores” e “se nós, sendo
inimigos, fomos reconciliados com Deus pela morte de seu Filho...”. Tudo
isso Ele fez por pecadores, por Seus inimigos, pelos que eram seres vis
e cheios de pecado e que nada tinham que os recomendasse. Essa é a medida
da profundidade do Seu amor. Ele veio do céu, desceu às profundezas e
ressurgiu por essas pessoas. Somente quando meditamos nestas coisas e nos
damos conta da sua veracidade é que começa-

Isso nos leva, por sua vez, à altura do Seu amor. Mediante esta dimensão o
apóstolo expressa o supremo e final propósito de Deus quanto a nós. Ou
podemos dizer que este é o meio pelo qual ele descreve a altura a que Deus
se propõe elevar-nos. A maioria de nós tende a pensar na salvação
unicamente em termos de perdão, como se o amor de Cristo só adquirisse
para nós o perdão dos nossos pecados. Quem quer que se detenha nisso
mostra claramente que nunca soube coisa alguma da altura do amor de
Cristo. Vê-se alguma coisa dessa altura no fato de que Ele morreu não
somente para que fôssemos perdoados; morreu para fazer-nos bons.
Morreu não somente para que os nossos pecados fossem eliminados, e sim
também para que nos fosse dado um novo nascimento; não meramente para
livrar-nos do castigo, como também para que fôssemos os remidos de Deus,
filhos de Deus, herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo. Esse é o Seu
propósito quanto a nós, e tudo o que Ele fez tinha esse fim em vista. Além
disso, havendo-nos dado este novo nascimento, este novo princípio de
vida, Ele faz que habite em nós o mesmo Espírito que estava nEle. “Não
lhe dá Deus o Espírito por medida”, é o que se nos diz (João 3:34). Ele
nos dá o mesmo Espírito por medida. Essa é a altura do Seu amor
para conosco.

Contudo, como o apóstolo já estivera lembrando a estes efésios, o Seu amor


por nós é tão grande que Ele nos uniu de fato a Si. Estamos unidos a Cristo,
Ele nos tomou parte de Si mesmo, do Seu próprio corpo. É por isso que
fomos “vivificados com ele”, “ressuscitados com ele” e estamos “assentados
nos lugares celestiais” com Ele. No capítulo cinco da Epístola aos Efésios ele
prossegue, dizendo: “Somos membros do seu corpo, da sua came e dos seus
ossos” (5:30, na versão utilizada pelo Autor). Seu amor é que fez isso por
nós. Mas lemos na Epístola aos Filipenses que Ele não nos salva apenas num
sentido espiritual; Ele vai salvar até os nossos corpos. Ele Se propõe a
redimir-nos inteiramente, pelo que aguardamos do céu a vinda do
Salvador, “que transformará o nosso corpo abatido, para ser conforme o
seu corpo glorioso, segundo o seu eficaz poder de sujeitar também a si todas
as coisas” (3:20-21). Temos compreendido que Cristo não ficará satisfeito
enquanto o nosso próprio corpo não for glorificado como o Seu foi?

Devemos ir mais longe ainda, e lembrar como, em Sua última oração ao Pai,
quando estava na terra, orou com estas palavras: “Pai, aqueles que me deste
quero que, onde eu estiver, também eles estejam comigo, para que vejam a
minha glória” (João 17:24). O amor do nosso Senhor

para conosco não conhece limites; o Seu desejo quanto a nós é que
estejamos com Ele e vejamos algo daquela glória que Ele comparte com o
Pai desde toda a eternidade. Ele não Se satisfaz em conseguir o
nosso perdão e livrar-nos da corrupção deste mundo mau; Ele quer
que estejamos com Ele lá na glória, e que lá passemos a nossa eternidade.

Em sua primeira Epístola, o apóstolo João, descrevendo esta altura, diz:


“Vede quão grande amor nos tem concedido o Pai: que fôssemos chamados
filhos de Deus. Por isso o mundo não nos conhece; porque o não conhece a
ele. Amados, agora somos filhos de Deus, e ainda não é manifestado o que
havemos de ser. Mas sabemos que, quando ele se manifestar, seremos
semelhantes a ele; porque assim como é o veremos” (3:1-2). Quem ama,
sempre deseja que o objetivo do seu amor participe de todos os seus
privilégios, bênçãos e alegrias, e assim o nosso Senhor deseja que gozemos
algo da Sua glória eterna. Ele não Se dará por satisfeito enquanto, como diz
o apóstolo no capítulo cinco desta Epístola, não formos uma “igreja
gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante, mas santa e
irrepreensível” (versículo 27). Esta é a Sua ambição quanto à Igreja e a
todos aqueles a quem Ele ama. Seremos glorificados no espírito, na alma e
no corpo; não haverá defeito, nem mancha, nem ruga. Seremos perfeitos,
completos e cheios de “toda a plenitude de Deus”. A palavra final é: “e
assim estaremos sempre com o Senhor” (1 Tessalonicenses 4:17).

Desse modo temos procurado captar fracamente um vislumbre do amor de


Cristo por nós. Você, amigo, se sente triste por si próprio, e algo letárgico,
num sentido espiritual? Você considera o culto e a oração como deveres a
cumprir? Você tem permitido que o mundo, a carne ou o diabo o derrote e o
leve à depressão? O antídoto é meditar e contemplar este amor de Cristo.
Você já compreendeu a sua largura, o seu comprimento, a sua profundidade
e a sua altura? Você já compreendeu quem e o que você é como cristão?
Você já compreendeu que Jesus é “o Amante da sua alma”, que Ele dedicou
Seu afeto a você? Já percebeu a altura da Sua ambição quanto a você?
“Filho de Deus, irá queixar-se?” Iremos manquejar pelo mundo? Ao
contrário, devemos responder positivamente à exortação de John Cennick:

Filhos do celeste Rei, na viagem cantai suave; cantai hino ao Salvador glorioso
em obras e em Seu ser.

Uma grande causa das presentes condições da Igreja é que não conhecemos
o amor de Cristo por nós. Gastamos nosso tempo com

picuinhas e em atividades e discussões espalhafatosas. Se estivéssemos


cheios deste amor e do conhecimento deste amor, seriamos transformados
inteiramente. É este conhecimento que nos faz poderosos. Aí está por que o
apóstolo orava sem cessar para que estes efésios pudessem “perfeitamente
compreender, com todos os santos, qual sej a a largura, e o comprimento, e
a altura, e a profundidade, e conhecer o amor de Cristo, que excede todo o
entendimento”. Oxalá nós O conhecêssemos, e crescêssemos nEle e nos
regozijássemos nEle. Sigamos Cennick, na continuação do seu hino:

Bradai, rebanho, louvai, pousareis no trono de Cristo; vosso lugar está


preparado, vosso reino e recompensa.

Erguei o olhar, filhos da luz, eis a cidade de Sião; será ali nosso eterno lar, ali
veremos o Senhor.

Não temais; ponde-vos alegres nas lindes da vossa terra;

Cristo o Senhor, Deus o Filho, vos manda seguir com vigor.

E então, juntemo-nos a Cennick, dizendo —

Senhor, obedientes prosseguimos; tudo aqui deixamos, felizes; sê Tu somente o


nosso Guia, e hoje e sempre Te seguiremos.
Conhecendo o Incognoscível

“(Para) poderdes perfeitamente compreender, com todos os santos, qual seja a


largura, e o comprimento, e a altura, e a profundidade, e conhecer o amor de
Cristo, que excede todo o entendimento, para que sejais cheios de toda a
plenitude de Deus ”. Efésios 3:18-19

Tendo examinado a largura, o comprimento, a profundidade e a altura


deste conhecimento do amor de Cristo, devemos voltar-nos agora à
consideração da natureza ou caráter do conhecimento. Nossa compreensão
disto obviamente terá um sério efeito não somente sobre o nosso desejo
disso, mas também sobre o nosso empenho e sobre os nosso esforços para
obtê-lo. Muitos jamais o conheceram e nunca o experimentaram por haver-
se extraviado em suas idéias quanto ao caráter do conhecimento. O apóstolo
redobra o seu esforço para ajudarmos nesta questão dizendo-nos três coisas
sobre o caráter do conhecimento. Ele emprega três expressões escolhidas
deliberadamente com o fim de esclarecer as nuanças do seu significado para
os efésios, e para todos os que subsequentemente lessem a Epístola.

A primeira palavra a que devemos dar atenção é a palavra “compreender”


— “(Para) poderdes perfeitamente compreender, com todos os santos...”. A
palavra significa “apanhar mentalmente com firmeza” uma coisa, ou
“agarrar-se a algo com a mente”. O termo descreve o processo de captação
mental de uma idéia ou de uma verdade. Portanto, uma tradução melhor
aqui poderia ser, “Para poderdes apreender, com todos os santos, a largura,
o comprimento, a profundidade e a altura”.

Existem, naturalmente, diferentes tipos de conhecimento, e é bom para nós


que sejamos capazes de distinguir entre elas. Não necessitamos entrar nisso
pormenorizadamente, porém devemos contentar-nos em dizer que o tipo
que estamos focalizando aqui é o que se descreve como conhecimento
“conceptual”, um conhecimento de conceitos e idéias. Esse é um definido
compartimento do conhecimento. Existe um tipo de conhecimento
instintivo, intuitivo, e existe esta outra espécie de conhecimento em que um
conceito, uma idéia, é posta diante de nós, e podemos captá-la, agarrá-la,
tomar posse dela e fazê-la nossa. Este tipo de conhecimento conceptual
aplica-se quando estamos estudando

algum assunto e procurando aprender algo sobre os seus primeiros


princípios e suas idéias determinantes. A ênfase está no fato de que é um
processo mental, é algo feito com a mente. Assim o apóstolo está orando, em
primeiro lugar, para que os cristãos efésios captem com as suas mentes este
amor de Cristo.

Imediatamente somos confrontados pelo que parece uma contradição; não


somente uma contradição com o que eu estive dizendo anteriormente, mas
também uma contradição com o que o próprio apóstolo Paulo estivera
dizendo. A duras penas procurei salientar o que claramente Paulo está
salientando, a saber, que quando vocês chegam aos domínios do amor, não
se baseiam no intelecto. Vimos isto quando estávamos tratando da
importância de estarmos “arraigados” e “fundados” em amor, e estávamos
mostrando o único meio de chegar a este conhecimento do amor de Cristo.
Acentuei que não abordamos o amor com a nossa mente, com o nosso
intelecto, e que somente o amor pode compreender o amor. Entretanto,
agora estou dando ênfase ao fato de que o apóstolo escolheu
deliberadamente uma palavra que põe às claras o aspecto mental deste
conhecimento do amor de Cristo.

Como resolver a notória contradição? A resposta é que quando o apóstolo


afirma que deseja que os efésios apreendam, agarrem mentalmente o amor
de Cristo, não está dizendo que isto é um processo puramente intelectual.
Assim, Paulo não está invertendo o que dissera anteriormente. O que ele diz
é que sempre há um elemento intelectual no amor; na verdade, que a
apreensão intelectual é sempre uma parte essencial do amor.

Não se pode contestar que a nossa maior dificuldade nestas questões é que
toda a nossa noção do amor é gravemente defeituosa. Temos a tendência de
considerar o amor de maneira sentimental, como se fosse algo puramente
emocional. O conceito de amor comum no mundo hoje é que ele é
puramente irracional. Falando de modo geral, não é amor, mas
simplesmente o que se chama paixão, e não há nenhum elemento intelectual
na paixão! Todavia há sempre um real elemento intelectual no amor, um
elemento de entendimento. O amor pode dar razões de si. Esta é a idéia
transmitida pelo emprego que o apóstolo faz da palavra “compreender”. Ao
mesmo tempo, porém, ele não está dizendo que o amor deve ser apreendido
por um puro ato do intelecto, e sim que há um elemento no amor que jamais
devemos ignorar. O próprio apóstolo elucida este ponto em sua Epístola aos
Filipenses, onde ele diz que está orando pela igreja de Filipos: “E também
faço esta oração: que o vosso amor aumente mais e mais em pleno
conhecimento e toda a percepção, para aprovardes as coisas excelentes e
serdes sinceros e inculpáveis para o dia de Cristo” (1:9-10). Notem que ele
está orando para que o

amor deles aumente em conhecimento e percepção, e no senso de


discriminação e na capacidade de diferenciar as coisas que diferem.

No Novo Testamento o amor jamais deve ser entendido como algo intuitivo
ou instintivo, como algo puramente emocional e irracional. Duas palavras
são empregadas no Novo Testamento para descrever o amor — “eros”e
“agape”. Pois bem, o apóstolo não está se referindo aqui ao que se pode
descrever como amor erótico. Isso é simplesmente da carne; é animal e
carnal. É o conceito comum de amor que prevalece no mundo hoje. Os
jornais populares constantemente fazem exibição dele. Na verdade, é um
dos maios problemas desta geração moderna, dominada pelo sexo, na qual
vivemos. Nenhum aspecto do mundo nesta hora presente é mais trágico do
que o modo pelo qual os prazeres e a sexomania estão rebaixando a
qualidade do pensamento, como também estão levando a grandes tragédias
nas vidas dos homens e das mulheres. Ficamos livres deste mal quando nos
damos conta da veracidade daquilo que o apóstolo está salientando com esta
palavra “compreender” ou “apreender”.

Noutras palavras, o amor é algo que pode ser contemplado; na verdade


podemos dizer que o amor sempre tem em si um elemento contemplativo. Se
o amor não nos leva a pensar, não é amor; é um instinto puramente físico. O
amor gosta de refletir, demorar-se em, olhar para, dissecar, analisar e
considerar. Esse é um processo intelectual que envolve o elemento
conceptual. Assim, podemos dizer que, virtualmente, o apóstolo está orando
para que os efésios, juntamente com todos os santos de toda parte comecem
a “estudar” o amor de Cristo. O amor é para ser estudado e, quanto mais
vocês o estudarem, mais gostarão dele. Isto pode acontecer até com assuntos
seculares. Às vezes, falando livremente, dizemos que estamos “tomando
amor”por um assunto. O que queremos dizer é que, como resultado da
nossa apreensão dos conceitos, estamos gostando do assunto.

Diz o apóstolo que a nossa primeira real reação a este amor é que
começamos a captá-lo com as nossas mentes. É o que estamos fazendo ao
considerarmos a sua largura, comprimento, profundidade e altura. Com
nossas mentes devemos demorar-nos sobre estas dimensões, falar conosco
mesmos sobre elas e meditar nelas. Não é meramente questão de se ter um
sentimento. Envolve pesquisa nas Escrituras e exame da manifestação do
amor de Deus objetiva e exteriormente. À medida que aplicarmos as nossas
mentes a isto, veremos aumentar o nosso amor a Cristo. Não se trata de
entrar num estado passivo e de esperar que, ao fazê-lo, alguma grande
emoção de repente vá apossar-se de você. Você tem que aplicar
deliberadamente a sua mente a isto, tentar captar o conceito e obter uma
compreensão

espiritual do amor de Cristo.

Quantas vezes meditamos no amor de Cristo da maneira que vemos no


grande hino de Isaac Watts que começa com as palavras, “Quando eu
perscruto a espantosa cruz”? Quantas vezes a perscrutamosl Consideremos a
seguinte ilustração. Você pode achar-se em qualquer parte do país e ouvir
dizer que não longe dali se obtém maravilhosa vista, embora verifique que
terá de subir uma encosta uma ou duas horas antes de a desfrutar. Você
sobe e sobe, e finalmente fica a extasiar-se ante o magnífico panorama que
se estende à sua frente. Você o contempla, é uma festa para os seus olhos, e
você se abebera da esplêndida visão: você a “perscruta”. Mas você tem que
fazer esforço; tem que escalar a montanha e, tendo chegado ao topo, não
olha só de relance. Isso é o que o apóstolo quer dizer neste ponto da sua
epístola. Temos que escalar as alturas para contemplar e contemplar o
amor divino. Leva tempo “perscrutar” o amor de Cristo é meditar nele.
Isto envolve uma atividade mental, algo conceptual.

A segunda palavra do apóstolo é que devemos conhecer o amor de Cristo,


“que excede o conhecimento” (na versão utilizada pelo Autor). De muitas
maneiras esta palavra é maior e mais forte que “compreender”. Ela não fala
de conhecimento conceptual, e sim de um conhecimento obtido pela
experiência pessoal e nela fundada. Já não se trata de conhecimento
conceptual; agora é conhecimento experimental e vivencial. Não estou
apresentando teoria da minha lavra; se vocês consultarem os léxicos gregos
a respeito desta palavra, verão que as autoridades estão concordes em dizer
o que acabei de explicar. Esta é a diferença entre compreender e conhecer. A
palavra “conhecer”, como empregada nas Escrituras, é sempre pessoal e
experimental. Ademais, o verbo “conhecer” refere-se ao conhecimento
direto e imediato que não resulta da contemplação e da meditação; isto é,
não é mediate, mas sim, imediato e direto. É conhecimento pertencente à
esfera da experiência.

Devemos observar cuidadosamente a ordem em que o apóstolo utiliza estas


duas palavras. É evidente que o conhecimento conceptual sempre deve vir
primeiro; e vem primeiro. Todavia deve levar a este conhecimento
experimental posterior. Agora estamos examinando, não primariamente
uma atividade da mente ou do entendimento. Um elemento mais passivo
entra aqui. Este descreve não tanto uma atividade da nossa parte; descreve
mais uma consciência de algo que está acontecendo conosco e que está
ocorrendo dentro de nós. Já não estamos vendo extemamente o amor de
Cristo com extasiada admiração; agora o estamos experimentando; somos
inundados e envolvidos

por este amor, completamente tomados por ele e por ele arrebatados.
“Conhecer” descreve a nossa consciência do fato de que Cristo nos ama; de
que o nosso Senhor nos está deixando claro e nos está dizendo pessoalmente
que nos ama com imensurável amor.

Os homens e as mulheres dotados de algum entendimento espiritual não


podem ler o Novo Testamento sem terem conhecimento de que obviamente
Cristo ama todo cristão. Nenhum de nós seria cristão se Cristo não nos
amasse e não Se desse por nós. A mensagem do evangelho para nós é que
“Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para
que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna”. Se eu
aceito o ensino de que Cristo levou sobre Si os meus pecados e recebeu o
castigo que me cabia, deve ser óbvio para mim que Ele o fez porque me
amou; é prova do Seu amor. Vejo esta verdade como vem exposta nas
Escrituras, estou ciente dela e nela creio; aceito-a e descanso fiado nela. Mas
há um sentido em que toda esta realidade está fora de mim. Creio no
conceito, descanso no conceito. Como isso é diferente de dizer-me Cristo
pessoalmente que me ama — de me fazer ciente disto simples e claramente
num sentido íntimo, direto e experimental!

Somos forçados a utilizar analogias nesta altura. Você pode ficar ciente do
amor de outrem por você pelas ações dessa pessoa, porém o que o amor
sempre requer é uma declaração pessoal. O amor sempre deseja uma
palavra pessoal; não se contenta com manifestações gerais. Aqui o apóstolo
está afirmando que ao cristão é possível “conhecer” o amor de Cristo neste
sentido imediato, direto, experimenta] e vivencial. Além e acima do
conhecimento conceptual há este conhecimento experimental. É uma
possibilidade tão gloriosa que o apóstolo afirma que dobra os seus joelhos
diante de Deus Pai e ora incessantemente para que os cristãos efésios
tenham esse conhecimento. Ele sabe que eles são crentes, e já os fez lembra-
se disso; eles foram “selados com o Espírito Santo”, e há muitas outras
coisas verdadeiras sobre eles: entretanto, ele sente que não conhecem este
amor como deviam. Não só lhes falta um conhecimento conceptual dele; não
o conhecem por experiência, como ele o conheceu; razão porque ele ora no
sentido de que venham a conhecê-lo desse modo.

A terceira expressão que o apóstolo emprega em conexão com o amor de


Cristo é, excede o entendimento (ou “o conhecimento”). Significa realmente,
“ultrapassa o conhecimento”. Lembro que uma vez um amigo me contou o
que ouvira de um estranho pregador, num dos estado sulinos da América do
Norte, ao expor ele esta expressão. O que o pregador disse foi muito
pitoresco e, num sentido era verda-

deiro, e noutra era errôneo. O pregador estava tratando da declaração do


apóstolo em Filipenses sobre “a paz de Deus, que excede todo
o entendimento” (4:7). O sentido, disse o pregador, é que, descendo do céu,
ela passa ao lado da cabeça e vai direto ao coração! Vimos que num sentido
ele estava certo; mas errou ao dizer que deixa de lado a cabeça. O que o
apóstolo afirma é que a “excede”, a “ultrapassa”. Não “passa de largo”,
porém a “ultrapassa”! Transcende-a, excede-a. Portanto, uma boa tradução
seria, “o superior ou sobreexcelente conhecimento do amor de Cristo”; quer
dizer, embora possamos vir a conhecê-lo, só conheceremos algo dele; é um
“mar que nunca vaza”, inesgotável e inescrutável. É sempre maior do que se
pensa; por mais que se tire dele, será ainda o começo. Este é um ponto em
que a linguagem falha completamente, e o apóstolo se vê forçado a recorrer
a este oximóron com o fim de comunicar a idéia de que, por muito que
tenhamos, sempre há muito mais. Assim esquecemos o que para trás fica
e prosseguimos para a frente e para o alto, sempre a fazer
novas descobertas. É amor que ultrapassa o conhecimento, este amor
de Cristo!

Tendo considerado as expressões, chegamos ao ponto em que devemos fazer


uma pergunta: este conhecimento que estivemos descrevendo é realmente
possível para todos os cristãos aqui e agora, nesta vida e neste mundo; ou é
uma daquelas hipérboles que os escritores às vezes se permitem? Será
simplesmente um exemplo de imaginação poética inflamada por uma idéia?
Mas fazer essa sugestão não é somente insultar o apóstolo Paulo, é também
negar as Escrituras. Todavia, não é surpreendente que o apóstolo faça essa
espécie de pergunta, pois o ensino do apóstolo aqui parece muito distante
da experiência cristã comum. Mas o apóstolo afirma que ela está acessível a
todos os cristãos, e assim ora para que os membros da igreja de Éfeso, cada
um deles, e todos os santos de toda parte, venham a ter este conhecimento
do amor de Cristo — o conceptual e o experimental. Isso é possível nesta
vida e neste mundo.

O apóstolo Pedro, escrevendo em sua primeira Epístola a numerosos


cristãos que ele não conhecia, os quais descreve como “estrangeiros
dispersos”, diz, referindo-se ao Senhor Jesus Cristo: “Ao qual, não
o havendo visto, amais; no qual, não o vendo agora, mas crendo,
vos alegrais com gozo inefável e glorioso” (1:8). Também recordamos o que
nós é dito acerca das manifestações do Filho de Deus aos
que verdadeiramente O conhecem, em especial no capítulo quatorze
do Evangelho segundo João. Essa porção das Escrituras deve ser
mantida em nossas mentes como o pano de fundo para esta oração que
estamos

considerando. O nosso Senhor diz: “Naquele dia conhecereis que estou em


meu Pai, e vós em mim, e eu em vós”. “Aquele que me ama será amado de
meu Pai, e eu o amarei, e me manifestarei a ele.” Ele vai manifestar-Se a
quem já crê nEle (14:20-21). E depois, no capítulo dezessete do Evangelho
segundo João, versículo 23, há uma estonteante declaração na oração do
Senhor pelos Seus: “... e para que o mundo conheça que tu me enviaste a
mim, e que os tens amado a eles como me tens amado a mim”. Não se trata
aqui de um conhecimento conceptual do amor de Deus, e sim de um
conhecimento imediato, direto do amor de Deus por nós. Como amou Seu
Filho, assim nos ama. É preciso que tenhamos esse conhecimento.

Não obstante, alguém poderá perguntar se este ensino das Escrituras se


verificou nas subseqüentes experiências do povo de Deus ao longo da
história da Igreja Cristã. A resposta é sim, e de forma abundante.
Há numerosos testemunhos disso em todos os séculos, em todos os lugares e
entre todos os tipos e classes de pessoas. Esta experiência não se limita aos
apóstolos e a alguns santos proeminentes, mas algumas pessoas humildes e
desconhecidas têm-se regozijado neste conhecimento conceptual e
experimental do amor de Cristo. Por exemplo, num hino de George Wade
Robinson, um ministro congregacional do século dezenove, lemos:

Amado com amor eterno,

Guiado pela graça que o amor conhece,

Espírito, do alto soprando,

Tu me tens ensinado que é assim.

Oh, plena e perfeita paz!

Oh, divino transporte!

Num amor que jamais pode cessar,

Eu sou dEle, e Ele é meu.

No alto o céu é mais azul,

A terra em volta é mais verde;

Em cada cor vive algo Que sem Cristo nunca os olhos viram;

As aves cantam mais alegres cantos,

As flores com maior beleza brilham Depois que eu soube, como agora sei,

Que eu sou dEle, e Ele é meu.

Para sempre dEle, e somente dEle:

Quem separará meu Senhor de mim ?

Ah, com que descanso bendito Cristo pode encher o coração que ama!

O céu e a terra podem esvair-se,

E a prístina luz desvanecer; mas enquanto Deus e eu existirmos,


Eu sou dEle, e Ele é meu.

Ora, ninguém poderia escrever tais palavras, se não fossem verdadeiras.


Seria quase uma blasfêmia. Somente a experiência pode produzir tais
declarações.

Muitos outros hinos poderiam ser citados. Num hino traduzido do galês
para o inglês, escrito por um dos grandes “pais” metodistas do século
dezoito, William Williams, vemos a oração:

Fala, peço-Te gentil Jesus;

Que suaves são Tuas palavras Soprando em meu turbado espírito

A paz que o mundo nunca dá!

As vozes sedutoras do mundo,

E todas as vis tentações,

Aos Teus melodiosos e brandos tons

Ficam subjugadas, e tudo é paz.

Ele sabia o que era ouvir a voz deste “gentil Jesus”, e quando
temporariamente deixava de ouvi-la, ficava ansioso para ouvi-la outra vez.
Nenhuma outra coisa podia satisfazê-lo. Podemos apropriar-nos desta
linguagem? Charles Wesley repete freqüentemente a mesma coisa com
palavras como,

Jesus, Amante da minha alma,

Permite-me voar para o Teu seio.

Ó Cristo, és tudo que eu desejo;

Bem mais que tudo em Ti encontro.

Mas esta experiência não se restringe aos poetas. Acha-se em prosa. As


seguintes palavras foram escritas por um homem mórbido, introspectivo
por natureza e por temperamento, e inclinado ao ceticismo. Fora cristão
durante vinte e oito anos, e era um mestre, professor de filosofia. Estava
longe de ser o que se poderia descrever como uma pessoa superficial e
sujeita a ser arrastada emocionalmente, porém era um homem cuja
ocupação era analisar e dissecar, e viver nos domínios

dos conceitos. Entretanto, Daniel Steele veio a conhecer o amor de Cristo


neste sentido experimental, e aqui está como ele o descreve:

Quase uma semana, e várias vezes por dia, uma pressão do Seu grande
amor sobreveio ao meu coração em tal medida que fez meu cérebro latejar,
e todo o meu ser, alma e corpo geme sob a tensão da quase insuportável
pletora de alegria. E, contudo, em meio a esta plenitude, há uma fome de
mais, e em meio à consumidora chama de amor, está sempre em meus lábios
o paradoxal brado: “Queima, queima, ó Amor, dentro do meu coração,
queima ferozmente noite e dia, até que toda a escória dos amores terrenais
esteja extinta e seja eliminada”.

E diz ele mais:

O celestial habitante da minha alma mudou tudo isso. Ele abriu todos os
compartimentos do meu ser e os encheu e inundou com a luz da sua radiosa
presença; o vacuum tomou-se um plenum', uma intocável mancha foi
alcançada, e toda a suas aspereza derreteu-se na presença daquele solvente
universal, “O Amor divino, que excede todos os amores”. Agora eu gostaria
de ter o poder de mil corações para amar, e a capacidade de mil línguas
para proclamar Jesus, o Senhor absolutamente admirável, o Salvador
completo, capaz de salvar totalmente aqueles que por Ele se chegam a Deus.

Deixem-me citar também algo da vida de Edward Payson, homem piedoso


que viveu nos Estados Unidos da América (1783-1827). Diversamente de
Daniel Steele, Payson era um forte calvinista em sua teologia e em sua
doutrina. Payson também tinha sido cristão por muitos anos, exercera um
grande ministério e tinha sido usado e abençoado por Deus antes de
experimentar o que o habilitou a escrever a certo clérigo:

Ah, se os ministros tão-somente enxergassem a inconcebível glória que está


diante deles, e a preciosidade de Cristo, não poderiam refrear-se e deixar de
sair por aí saltando e batendo palmas de alegria, e exclamando: “Sou um
ministro de Cristo! Sou um ministro de Cristo!” Quando lia a descrição que
Bunyan fez da terra de Beulá, onde o sol brilha e os pássaros cantam dia e
noite, eu costumava duvidar de que houvesse tal lugar. Mas agora a
minha própria experiência me convenceu, e isso transcende
infinitamente todas as minhas concepções anteriores.

Ainda mais, escrevendo à sua irmã, diz ele:

Se eu adotasse a linguagem figurada de Bunyan, poderia datar esta carta


“da terra de Beulá”, da qual fui um feliz habitante durante algumas
semanas. A Cidade Celestial enche a minha visão; suas glórias refulgem
sobre mim, suas brisas me arejam, seus aromas fluem para mim, seus sons
percutem os meus ouvidos, e o seu espírito sopra em meu coração. Nada me
separa dela, senão o Rio da Morte, que agora me parece apenas um
insignificante córrego que se poderá atravessar com um único passo,
quando Deus der a permissão. O Sol da Justiça vinha chegando cada vez
mais perto, mostrando-Se maior e mais brilhante à medida que Ele Se
aproximava; e agora Ele preenche o hemisfério todo, despejando
uma corrente de glória na qual parece que flutuo qual inseto nos raios
do sol, exultante ainda que trêmulo, ao contemplar extasiado este fulgor
quase excessivo, e indagando com indescritível espanto por que Deus
condescende em fulgir sobre um mundo pecaminoso. Um simples coração e
uma simples língua parecem totalmente inadequados às minhas
necessidades; quero um coração completo para cada emoção em separado, e
uma língua completa para expressar essa emoção.

E finalmente:

Os cristãos poderiam evitar muitos problemas e muita inconveniência, se


tão-somente cressem no que professam, que Deus pode fazê-los felizes,
independentemente de qualquer outra coisa. Eles imaginam que se um
querido amigo morresse, ou se tais ou quais bênçãos fossem retiradas, eles
se sentiriam miseravelmente infelizes, ao passo que Deus pode fazê-los mil
vezes mais felizes sem elas. Para mencionar o meu próprio caso, Deus me
privou de bênção após bênção (Payson estava no leito de morte quando
escreveu isto), mas quando cada uma delas era retirada, Ele vinha e
preenchia o seu lugar. E agora, quando sou um aleijado e incapaz de mover-
me, sou mais feliz do que jamais fui em minha vida, e do que jamais
esperei ser; e se eu tivesse crido nisto há vinte anos, poderia ter-me
poupado muita ansiedade.

Eu e você devemos apreender e conhecer, com todos os santos, este amor de


Cristo. Isto não é uma fantasia ociosa; é uma gloriosa possibilidade.
Devemos orar incessantemente por nós mesmos, fazendo a oração que Paulo
fez pelos efésios, até podermos dizer, com Daniel

Steele e Edward Payson, com total sinceridade, que habitamos “na terra de
Beulá”, e que Cristo pessoalmente nos fez conhecido o Seu amor pessoal por
nós.

O Círculo Mais íntimo

“(Para) poderdesperfeitamente compreender, com todos os santos, qual seja a


largura, e o comprimento, e a altura, e a profundidade, e conhecer o amor de
Cristo, que excede todo o entendimento, para que sejais cheios de toda a
plenitude de Deus ”. Efésios 3:18-19

Chegamos a um ponto no qual devemos fazer uma pergunta simples e óbvia.


Onde estamos, com respeito à mensagem do apóstolo? Nada é mais danoso
do que considerar este ensino como ele no-lo dá, sem aplicá-lo. Não nos
referimos a uma simples familiarização intelectual com estas coisas; elas são
destinadas a serem práticas, e de nós se espera que as conheçamos. A
questão que temos de encarar é, pois, se estamos compreendendo esta
largura e comprimento, e profundidade e altura. Conhecemos “o amor de
Cristo que excede o conhecimento”? É bem provavelmente que variaremos
consideravelmente em nossas respostas. O piedoso Edward Payson, já
citado por mim, dá-nos um meio prático e conveniente de provar-nos,
descrevendo vários grupos ou classificações com respeito a esta questão. Diz
ele:

Suponhamos que os que se professam religiosos fossem enfileirados em


diferentes círculos concêntricos ao redor de Cristo, como o seu centro
comum. Alguns têm a presença do seu Salvador em tão alta conta que não
podem suportar que sejam afastados dEle nem um pouco. Mesmo o
trabalho que realizam, eles o elevam e o fazem à luz do Seu semblante, e
embora empenhados nele, serão vistos elevar constantemente os olhos para
Ele, como se temerosos de perder um só raio da Sua luz.
Aí ele descreve o círculo interior dos que vivem para Ele, fazem o seu
trabalho em Sua presença e mantêm erguidos para Ele os seus olhos, para
não perderem nem sequer um raio da Sua luz. Depois ele descreve o círculo
seguinte, expondo de dentro para fora.

Outros que, certamente, não ficariam contentes vivendo fora da Sua

presença, são todavia menos absorvidos por esta do que aqueles, e podem
ser vistos um pouco mais afastados, empenhados aqui e ali em suas várias
ocupações, seus olhos geralmente postos em seu trabalho, mas com
freqüência olhando para o alto, para a luz que amam.

Em seguida, diz ele, há uma terceira categoria:

Uma terceira categoria, para lá destas duas, mas ainda dentro dos raios
vivifícantes, inclui uma duvidosa multidão, muitos dos quais se acham tão
envolvidos em seus esquemas terrenais que podem ser vistos de lado para
Cristo, olhando mais para o outro caminho e só de vez em quando voltando
os seus rostos para a luz. E mais longe ainda, entre os últimos e difusos
raios, tão distantes que muitas vezes é duvidoso que possam entrar na área
da sua influência, está um grupo misto de indivíduos ocupados, alguns com
as costas inteiramente voltadas para o sol, a maioria deles tão preocupados
e aflitos com as suas muitas coisas, que dedica apenas um pouco de tempo
ao seu Salvador.

Aí entendo que temos uma análise justa e exata. Cristãos há que se acham
naqueles vários círculos, naquelas várias posições. De fato é possível estar
no terceiro círculo descrito por ele, e ainda ser cristão. Este círculo contém
cristãos que parecem passar a maior parte do seu tempo com as costas
voltadas para Cristo, e que só muito ocasionalmente se viram para procurá-
lO e olhar para Ele. Há muitas gradações possíveis entre essa posição e o
círculo interior daqueles para quem Cristo é tudo e que podem dizer com o
apóstolo Paulo: “Para mim o viver é Cristo, e o morrer é ganho”. O ponto
que estou acentuando é que aqueles que pertencem ao círculo do extremo
externo são cristãos, e a oração do apóstolo os inclui. Ela nada tem a ver,
naturalmente, com os não cristãos; o apóstolo está interessado na relação
dos que já creram, como estes efésios, e que, como eles, tinham
experimentado muito, os quais ele ainda sente que não conhecem este amor
de Cristo que excede o conhecimento.
Payson prossegue e diz algo que, penso eu, é profundamente verdadeiro: “A
razão pela qual os homens do mundo fazem pouco caso de Cristo é que não
olham para Ele; suas costas estão voltadas para o sol, eles só podem ver as
suas próprias sombras e, portanto, estão completamente fechados em si
mesmos; ao passo que o verdadeiro discípulo, olhando só para cima, vê
unicamente o seu Salvador e aprende a esquecer-se de si mesmo”. Temos aí
a chave da vida cristã

e da experiência cristã. O único meio de livrar-se do ego é olhar para Cristo.


Você não se livrará do ego indo para um mosteiro e fazendo-se monge. Não
o fará sendo um heremita no alto de uma montanha, nem vivendo numa
ilha deserta, totalmente por sua conta. Você poderá ficar tão cheio de ego
nesses lugares como sempre estivera. Há somente um meio de perder o ego,
e este é amar o Outro e perder-se nEle. Como Payson diz, se você estiver de
costas para o sol, estará vendo a sua própria sombra o tempo todo, estará
pensando em si mesmo, olhando para si e preocupado com si mesmo. Só há
uma coisa para fazer, a saber, virar-se e olhar para o sol; então você
começará a esquecer-se de si por completo. Nada é mais vital do que
examinar-nos deste modo.

Suplementemos o testemunho de Payson introduzindo outra declaração,


desta vez a de um piedoso homem de Deus que viveu na Escócia e que
morreu cedo, por volta de 1851. Este homem tinha as mesmas idéias
doutrinárias de Edward Payson. Acrescento esse fato a seu respeito porque
existem aqueles que, ao que parece, pensam que estas experiências íntimas
com o Senhor Jesus Cristo só se acham entre certas pessoas que sabem
pouco de doutrina e que têm noções e idéias vagas, místicas e soltas. O
escocês que vou citar agora não se caracterizava somente pelo seu apego à
doutrina, à teologia, ao estudo e ao entendimento, mas, acima de tudo, era
um brilhante filósofo e pensador. Estou me referindo a W.H. Hewitson. Ele
não é tão conhecido como deveria ser, porém é alguém que podemos colocar
na mesma categoria de Robert Murray McCheyne. Eles viveram na mesma
época e se conheceram. Eis como Hewitson escreve:

Vocês não acham que, no caso de muitos cristãos, a regeneração é


acompanhada por um considerável período, não de trevas, mas
de obscuridade, como o da compreensão na infância, deixando a
alma incapaz de assumir um Cristo completo e, conseqüentemente, de gozar
perfeita paz? Tais cristãos vivem muito abaixo dos seus privilégios como
reconhecidos filhos da adoção, nascidos para uma herança, não em si
mesmos, mas em Cristo.

É-nos possível ser verdadeiramente regenerados e, todavia, viver como


pobres, tendo pouco ou nenhum conhecimento das gloriosas possibilidades.
Alguém, escrevendo sobre Hewitson, descreve-o assim:

Desde a ocasião em que ele foi levado a ver claramente a Cristo como seu
Tudo, sua alma encheu-se da glória de Cristo, como um Salvador presente e
um amigo que vive sempre e para sempre. Sua

comunhão com Ele tomou-se mais e mais semelhante à de um amigo com


outro que se acham pessoalmente próximos, e não à de um correspondente
distante. Sua santa ambição era seguir plenamente ao Senhor.

Eis mais duas citações de Hewitson:

Uma bênção que está além de todas as demais é ter ouvidos moucos para a
música do mundo, mas estar totalmente desperto para a voz dAquele que é
o Principal entre dez mil, e totalmente admirável. Bem-aventurança é estar
realmente nEle. Nenhuma alma desperta deveria privar-se da percepção e
do gozo experimental da união com o Senhor. Nenhuma alma convertida
deveria ficar satisfeita enquanto não pensasse e não falasse tudo que se pode
falar em comunhão com Jesus. A um confessante carnal, ou a um filho de
Deus ainda em grande medida carnal, isto pareceria um padrão demasiado
alto, mas ter um padrão mais baixo é ignorar a nossa posição em Cristo, o
que nEle temos, a intimidade da nossa união com Ele e o caráter que
devemos manter para estarmos em harmonia com a nossa profissão de fé
em Seu nome.

Não posso imaginar melhor de expor o que o apóstolo Paulo tinha em mente
quanto aos efésios.

À luz disso tudo, à questão é: onde estamos? Não é mais que verdadeiro
quanto a muitos de nós, que somos como pessoas às quais foi legada uma
grande fortuna no testamento de alguém, mas que não parecem perceber
que isso é um fato? Parece bom demais para ser verdadeiro. Estamos há
tanto tempo acostumados à pobreza e à penúria, e a lutar para viver dentro
do orçamento apertado, que, embora nos digam que nos foi deixada uma
fortuna, continuamos a viver como se nada tivesse acontecido. Ou, para
variar a figura, parecemos pessoas que receberam convite para ir a um
grande banquete, as quais ficam na rua, fora da sala do banquete, no frio e
na chuva, olhando ocasionalmente pelas janelas e vendo as brilhantes luzes
lá dentro e tentando imaginar a natureza da festa que foi preparada.

Do mesmo modo, muitos de nós, com freqüência, dizem que o padrão é alto
demais, que estas coisas são impossíveis. Mas o que é totalmente importante
é que devemos examinar-nos à luz do ensino do Novo Testamento. Já
atingimos este nível? De fato, deixem-me fazer uma pergunta mais
penetrante ainda: já chegamos ao padrão e ao nível do Velho Testamento?
Lemos sobre um salmista que dizia: “Vale mais

um dia nos teus átrios do que em outra parte mil”, e: “Preferiria estar à
porta da casa do meu Deus, a habitar nas tendas da impiedade”
(Salmo 84:10). Isso seria verdade a nosso respeito? Podemos dizer isso?
Para ajudar-nos neste exame introspectivo, sirvamo-nos de
Augustus Toplady. Sua posição doutrinária era militantemente calvinista,
mas nestas questões ele e os Wesley, com suas fortes opiniões
arminianas, estão de acordo. Eis como Toplady escreveu:

Objeto do meu primeiro desejo,

Jesus, na cruz morto por mim; todos quantos aspiram à felicidade acham-na
somente em Ti:

A Ti conhecer e a Ti louvar — bem-aventurança é nossa aqui;

Ver-Te, contemplar-Te e Te amar — bem-aventurança é nossa no céu.

Senhor, não será vida que se viva, se a Tua presença me negares;

Senhor, se me deres a Tua presença, morrer deixará de me ser morte.

Dadivosa fonte de repouso, só do Teu sorriso este provém; a felicidade e a paz


Te pertencem; minhas são, se Tu estás em mim.

Enquanto eu sentir Teu amor por mim, tudo explodirá de alegria; oxalá eu ande
sempre conTigo; épara mim glória pura e imensa:

Deixa-me, Senhor, fazer-Te meu,


-supra-sumo da felicidade; gozarei, então, bênção real,

— o céu cá embaixo, e o céu lá em cima.

Notem a ênfase experimental, e o verbo “sentir” na última estrofe. Muitos


há que não hesitam em dizer (com isso confirmando a suposição de
Hewitson) que tudo isso impõe um padrão alto demais; e vão além. Dizem
eles que tudo isso não passa de misticismo, um estado doentio em que,
através de toda a história da Igreja, certas pessoas têm caído, voltando-se
para si mesmas, e se tomaram introspectivas e egocêntricas. São pessoas,
dizem eles, que passam o tempo tomando o

seu pulso espiritual e gozando experiências, que nunca fazem nada de


prático e não têm nenhum valor para ninguém. Tais pessoas, dizem eles, só
vivem de experiências, enquanto que se espera de nós, como cristãos, que
creiamos e conheçamos o ensino que temos; noutras palavras, tão-somente
ver a verdade extemamente nas Escrituras e aplicá-la em nossa vida diária.
Não fomos destinados a conhecer e a falar de experiências diretas e
imediatas, e de amar a Cristo pessoalmente. Isso tudo, dizem eles, sugere
uma imaginação febril, para não dizer uma condição que às vezes vai além
dos limites e se toma psicopatológica.

Infelizmente, há até muitos cristãos conservadores que negam que Deus


tenha quaisquer ligações diretas com os homens hoje, e que lançam ao
descrédito o sentimento e a emoção. Freqüentemente eles confundem a
verdadeira emoção com um frouxo sentimentalismo. Temem o poder do
Espírito Santo, e têm tanto medo de certos excessos que às vezes se vêem no
misticismo e em certas pessoas que alegam ter experiências extraordinárias
com o Espírito Santo, que eles “extin-guem o Espírito” e nunca têm
qualquer conhecimento pessoal de Cristo. Na verdade, muitas vezes vão tão
longe que negam a possibilidade de tal conhecimento.

Obviamente isto é algo de que temos de tratar, pois, se defendemos este


conceito particular, claro está que nunca buscaremos o conhecimento do
qual o apóstolo está falando e, portanto, jamais o teremos. Então, como
responder a esta acusação?

Há, por certo, um misticismo falso. Isto se vê com clareza nos livros sobre o
assunto, e especialmente nas biografias de certos místicos. Sem dúvida
houve aberrações nas vidas de muitos deles, e havia muita coisa mórbida e
não saudável. Há um tipo de misticimo mórbido, introspectivo, egoístico,
nada prático e inútil. Mas, devido certos místicos serem condenáveis por
essas coisas, não devemos deixa-nos cegar para o misticismo legítimo e
saudável, misticismo ensinado pela própria Bíblia. Há sempre o risco de
rejeitarmos um ensino verdadeiro por não gostarmos de uma falsa
apresentação dele. Há muitos que hoje estão fora da Igreja pela única razão,
aparentemente, de que conheceram um homem que era cristão e membro
da igreja e que levava uma vida egoística e era maldoso para com a esposa e
os filhos. Repudiam o cristianismo todo por causa de um representante
indigno! Mas, evidentemente, isso não é nada inteligente, e as mesmas
pessoas não usam esse mesmo argumento noutras áreas. Na área da política,
por exemplo, jamais diriam que não poderiam ser conservadores
simplesmente porque conhecerem um homem indigno que era um ativo
membro do Partido Conservador. Igualmente com o Partido Trabalhista.
Na esfera

política eles não julgariam desse modo, porém procedem assim com respeito
à religião. Da mesma maneira há cristãos que usam exatamente esse
argumento e, por causa de certos excessos no caso de alguns místicos,
repudiam o misticismo por completo. O corretivo para tal raciocínio é
assinalar que o oposto ao falso misticismo não é uma total negação do
misticismo, e sim o verdadeiro misticismo. Entretanto, acima de tudo, temos
que ser governados pelas Escrituras, e apegar-nos ao que elas ensinam.

Nesta parte que estamos examinando vemos um verdadeiro misticismo


cristão. Ele refulge noutras passagens em declarações como, “Vivo, não
mais eu, mas Cristo vive em mim” (Gaiatas 2:20), “Posso todas as coisas em
Cristo que me fortalece” (Filipenses 4:13), “Para mim o viver é Cristo”
(Filipenses 1:21). Paulo fala como um verdadeiro místico cristão em
declarações como essas. Quando o vemos dizer, em Filipenses 3:10, “para
conhecê-lo”, ele não está dizendo que ainda não O “conhecera” neste
sentido pessoal, que até então só tinha uma fé objetiva, e que esperava
conhecê-lO um dia. É porque já O conhecia que desejava conhecê-lO
melhor; é o brado de quem ama, clamando pela pessoa amada. Ele quer
passar mais tempo com Ele, quer conhecê--10 mais íntima e completamente.

Encontra-se o mesmo ensino nos escritos do apóstolo João. Às vezes se traça


uma falsa distinção entre estes dois apóstolos e se sugere que Paulo é lógico,
apegado à lei e à doutrina, ao passo que João é místico. Essa afirmação é
inteiramente falsa. Ambos são lógicos e ambos são místicos verdadeiros.
Mas de novo devemos lembrar-nos de que este ensino se encontra, talvez
supremamente, nas próprias palavras de nosso bendito Senhor. No capítulo
quatorze do Evangelho segundo João, tendo-lhes falado que estava prestes a
deixá-los, diz o nosso Senhor: “Não se turbe o vosso coração; credes em
Deus, crede também em mim”. Turbaram-se quando lhes foi dito que Ele ia
deixá-los. Tinham estado com Ele três anos, tinham contemplado o
Seu rosto, tinham visto os Seus milagres, ouvido os Seus sermões, e
sempre haviam podido fazer-Lhe perguntas. Todavia agora ia deixá-los,
e temiam que não lhes seria possível continuar vivendo e serem felizes sem
Ele. Sua resposta foi: “Voltarei para vós. Eu me manifestarei a vós”
(versículos 18,21 e 22). No entanto, ainda mais explicitamente, no capítulo
dezesseis O vemos dizer:“... vos convém que eu vá” (versículo 7). Seria bom
para eles que Ele os deixasse e deles Se ausentasse na forma em que estava
até então com eles, porque (como Ele continuou explicando), “se eu não for,
o Consolador não virá a vós; mas, se eu for, enviar-vo-lo-ei”. Como poderia
ser bom para os discípulos que Ele os deixasse na carne e deles Se
ausentasse no corpo? Como é que isso pode

ser verdade, se não é possível ao cristão conhecê-lO imediata e diretamente?


Obviamente, a suprema bem-aventurança é estar com Ele, em Sua presença
e em Sua companhia. O que Ele estava dizendo realmente era que, depois
que partisse e os batizasse com o Espírito Santo, Ele seria mais real para
eles do que o era naquele momento. E foi o que de fato aconteceu. Eles O
conheceram muito melhor depois do Pentecoste, do que antes. Ele era mais
real, mais vivo, mais vital para eles depois, do que o fora nos dias da Sua
carne. Sua promessa foi cumprida e comprovada literalmente.

Além disso, porém, no dia de Pentecoste o apóstolo Pedro disse aos seus
ouvintes: “A promessa vos diz respeito a vós, a vossos filhos, e a todos os que
estão longe” (Atos 2:39). Apromessa de nosso Senhor não foi feita somente
aos apóstolos. O apóstolo Paulo não estava presente naquela ocasião, mas
posteriormente ele teve experiências iguais às de qualquer dos outros
apóstolos. E, como vemos, agora ele está orando para que a mesma bênção
venha para os cristãos efésios, e para “todos os santos”. O Senhor Jesus
Cristo não está agora entre nós na carne; todavia no Espírito Ele pode ser
muito mais real, e podemos conhecê--ÍO com uma intimidade que os
discípulos e os apóstolos não desfrutaram quando Ele estava aqui nos dias
da Sua carne.

O apóstolo João faz um sumário deste ensino para nós em sua primeira
Epístola, onde ele diz àqueles cristãos primitivos que lhes estava escrevendo,
“para que também tenhais comunhão conosco; e a nossa comunhão é com o
o Pai, e com seu Filho Jesus Cristo” (1:3). O desejo não era apenas que
tivessem comunhão com ele e com os demais apóstolos. Isso eles já gozavam
em certa medida. Seu profundo desejo era que eles entrassem na comunhão
que ele e os demais apóstolos estavam gozando com o Pai e o Filho, para que
a alegria deles fosse completa. Eles já tinham a alegria preliminar,
experimentada pelos que crêem no Senhor Jesus Cristo e compreendem que
os seus pecados estão perdoados; não obstante, o desejo do apóstolo é que a
alegria deles “seja completa”. É a “paz perfeita” a que Augustus Toplady
se refere. E isso é possível a todo cristão. Não é um misticismo vago.
Não deve ser entendido em termos do falso misticismo das pessoas que
se retiram do mundo, usam vestes de pelos de camelo e escarificam
a própria carne. Aquilo a que Paulo se refere é possível a todos os
que verdadeiramente crêem na Palavra de Deus, e crêem no Senhor
Jesus Cristo.

Portanto, este ensino não pode e não deve ser rejeitado com base nalguma
vaga objeção ao misticismo. Mas também devemos tratar da crítica quanto
ao aspecto prático. Vivemos dias em que o aspecto prático do cristianismo
está sendo acentuado quase exclusivamente por

alguns cristãos. É o dia do ativismo e dos ativistas. Jamais o mundo esteve


tão ocupado, tentando tratar dos seus vários problemas; e a mesma coisa é
muito verdadeira quanto à Igreja. O tipo de cristão prático, ativista,
desconfia do ensino que ele julga fará as pessoas ficarem sentadas e isoladas,
à espera de experiências. “Nunca fazem outra coisa”, diz ele; “não são
cristãos práticos; não se envolvem com as atividades usuais”. Esse
argumento se baseia na pura ignorância, não só das Escrituras como
também da história da Igreja. Na verdade, o fato é que os homens que
estiveram ocupados no serviço do seu Senhor e Mestre, ao longo da história
da Igreja, foram sempre os que O conheceram melhor e mais se regozijaram
em Seu amor.

Comecemos com o exemplo supremo. Que foi que levou o Senhor Jesus
Cristo a fazer tudo que fez? Ele nos diz repetidamente que foi para que
glorificasse a Seu Pai. Foi por essa razão que Ele veio do céu à
terra, suportou a contradição dos pecadores contra Ele, e foi
resolutamente para Jerusalém e para a cruz. Ele declara em Sua oração
sacerdotal registrada no capítulo dezessete do Evangelho segundo João:
“Eu glorifiquei-te na terra” (versículo4). Seu único motivo era mostrar
Seu amor pelo Pai e o amor do Pai por Ele.

Encontramos a mesma coisa subsequentemente nas vidas dos Seus servos.


Examinem o caso dos apóstolos e especialmente Pedro, que havia sido tão
temeroso e tão covarde, com tanto medo de ser levado à morte, que até
negou seu Senhor. Contudo, depois do batismo com o Espírito Santo e
depois de ter vindo a conhecer realmente o amor de Cristo, quando as
autoridades lhe ordenaram que parasse de pregar, respondeu-lhes dizendo:
“Não podemos deixar de falar do que temos visto e ouvido” (Atos 4:20).
Tendo vindo a conhecer este amor de Cristo, Pedro tinha que falar disso a
todos os outros. O apóstolo Paulo disse ao coríntios que “o amor de Cristo
nos constrange” (2 Coríntios 5:14). Ele não podia conter-se; o amor de
Cristo o pressionava e o impelia. Nunca houve um homem mais ocupado ou
mais ativo que este grande apóstolo. Não só porque era um homem ativo
por natureza, mas porque o amor de Cristo o dinamizava e lhe dava
compaixão pelos pecadores. O que quer que estivesse acontecendo, grilhões
e prisão ou liberdade, ele tinha que ir e cumprir este ministério, e falar a
todo o mundo do amor de Deus em Cristo Jesus.

Ora, esta experiência não está limitada aos apóstolos. Referi-me


anteriormente ao conde Zinzendorf e à sua afirmação acerca da “sua única
paixão”. Lemos sobre ele que em certo dia, enquanto observava um quadro
do Cristo crucificado, disse: “Fizeste isso por mim; que posso fazer por Ti?”
Essa é a explicação da sua carreira subseqüente. De muitas maneiras ele foi
fundador da obra missionária estrangeira,

enviando missionários para a Groenlândia cinqüenta anos antes da


fundação da Sociedade Missionária de Londres (“London
Missionary Society”), a Sociedade Missionária da Igreja (“Church
Missionary Society”), e outras. Era o seu conhecimento, a sua compreensão
do amor de Cristo que o impulsionava, e a muitos outros com ele.

Nada se ergue mais proeminentemente na vida de George Whitefield que a


sua consciência do amor de Cristo. Ele o conhecia num grau excepcional, e
vocês verão que era sempre depois de ter tido alguma excepcional
experiência com Cristo, que lhe era dado um extraordinário
engrandecimento e liberdade em sua pregação, e que homens e mulheres se
quebrantavam e se derretiam diante da sua santa eloqüência e da sua
descrição do amor de Deus em Cristo Jesus. Charles Wesley sabia-o
igualmente bem, e assim escreve:

Alarga, inflama e enche o meu coração com Teu ilimitado e divinal amor!

Assim minha energia porei em ação, e os amarei com zelo igual ao Teu, Senhor.

Esta é a verdade a respeito dos maiores servos de Deus de todas as eras, de


todos os séculos, em todos os lugares.

Talvez o maior perigo que confronta a Igreja e o povo cristão hoje seja que,
em vez de percebermos que a suprema necessidade do momento é este
conhecimento do amor de Cristo, gastamos nosso tempo e energia
organizando atividades. Fazemos da atividade um fim em si. Dizemos que
temos que “estar em atividade”. E de maneira carnal tentamos realizar a
obra de Deus. Mas quão pouco acontece! Isso não é de admirar. Estamos
esquecendo o verdadeiro motivo e o poder que energiza. Não devemos
trabalhar como cristãos simplesmente porque é bom e certo que os cristãos
trabalhem. O motivo é absolutamente importante. Devemos trabalhar por
causa do amor de Cristo. Não devemos trabalhar porque decidimos fazê-lo
ou porque nos disseram que agora que somos convertidos temos de “estar
em atividade”. Querer as igrejas cheias também não deve ser o nosso
motivo. Isso é inverter o quadro e o método do Novo Testamento, como
também o é toda a idéia de treinar pessoas a fim de serem testemunhas e
para fazerem evangelização pessoal. Tudo hoje tem que ser organizado, e
a impressão que se tem é que ninguém pode testemunhar sem fazer
um curso de treinamento.

A resposta para essa idéia moderna é descobrir o que aconteceu nos séculos
passados, especialmente no primeiro. Não havia aulas de treinamento,
exames e diplomas naqueles tempos. O segredo dos

primeiros cristãos, dos primeiros protestantes, puritanos e metodistas é que


eles foram ensinados sobre o amor de Cristo e se encheram de conhecimento
deste amor. Uma vez que um homem tenha o amor de Cristo em seu
coração, não será preciso treiná-lo para testemunhar; ele ofará. Ele
conhecerá o poder, o constrangimento, o motivo; tudo já está ali. É pura
mentira insinuar que as pessoas que consideram este conhecimento do amor
de Cristo como a coisa suprema são uns místicos doentios e inúteis. Os
servos de Deus que mais adornaram a vida e a história da Igreja Cristã
sempre foram homens que compreenderam que esta é a coisa mais
importante de todas, e passavam horas em oração, buscando a face do
Senhor e fruindo o Seu amor. O homem que conhece o amor de Cristo em
seu coração pode fazer mais numa hora do que o homem “ocupado” pode
fazer num século. Não permita Deus que façamos da atividade um fim em si.
Tratemos de compreender que em primeiro lugar vem o motivo, e que o
motivo sempre deve ser o amor de Cristo.

Concluo com a pergunta que fiz no princípio: a qual dos círculos vocês
pertencem? Estão se esforçando para chegar ao círculo central? Talvez
tenham visto pessoas em multidão, quando a rainha ou alguma outra pessoa
notável está passando, e elas se esforçam para ir para frente, a fim de ver
melhor. A mesma coisa ocorre em vários jogos. Há aqueles que sempre
querem estar na frente para terem melhor visão. Estamos nós fazendo
esforço rumo ao círculo mais central? Estamos em busca do rosto do
Senhor? Ambicionamos o conhecimento do Seu amor? O apóstolo orou em
favor de cada um dos membros da igreja em Éfeso para que ele ou ela
pudesse “perfeitamente compreender, com todos os santos, qual seja a
largura, e o comprimento, e a altura, e a profundidade, e conhecer o amor
de Cristo, que excede todo o entendimento”. Que tragédia, alguns de nós
viverem como mendigos nas ruas frias, quando a sala do banquete está
aberta e a festa preparada. Busquemos o conhecimento do Senhor nas
Escrituras e leiamos as vidas dos santos de todos os séculos. Quando o
fizermos, não ficaremos satisfeitos enquanto não estivermos no círculo mais
próximo do centro, contemplando a bendita face do Senhor.

PROCURANDO COMPREENDER

“(A fim de) poderdes perfeitamente compreender, com todos os

santos, qual seja a largura, e o comprimento, e a altura, e a

profundidade Efésios 3:18


Resta-nos agora considerar a questão muito prática e direta quanto a como
podemos alcançar este conhecimento. Presumo que agora estamos ávidos e
ansiosos por conhecê-lo e experimentá-lo. Estou certo de que, quando
chegarmos ao céu e à glória, ficaremos admirados; não somente pelo que ali
veremos e de que nos aperceberemos, mas ainda mais por nossa cegueira
enquanto estávamos na terra. Então veremos claramente aquilo que poderia
ter sido o caso conosco. Veremos o que poderíamos ter usufruído. Veremos
como desperdiçamos o nosso tempo. Veremos como permitimos que outras
coisas interviessem entre nós e a maravilhosa e bendita experiência que
pode ser o quinhão de todo e qualquer homem ou mulher deste mundo. E
por esta razão estou enfatizando esta questão com tanto empenho e
urgência para a consideração de vocês.

Conto com a autoridade do Novo Testamento para dizer que é possível aos
cristãos experimentarem algo como um sentimento de vergonha quando
virem o Senhor como Ele é. Em sua primeira Epístola, o apóstolo João
exorta os cristãos primitivos a se esforçarem para progredir nestes aspectos
para que não sejamos “confundidos por ele”, ou “não fiquemos
envergonhados diante dele em sua vinda” (2:28). Existe claro ensino sobre
um julgamento que envolve recompensas entre os crentes, de maneira que
devemos estudar este assunto à luz daquele ensino. O homem cujo
pensamento é: “contanto que esteja perdoado, contanto que esteja salvo,
contanto que vá para o céu, tudo está bem” descobrirá que, ao adotar essa
atitude, rejeitou o ensino do seu Senhor. O propósito do Senhor era fazê-lo
desfrutar muito mais benefícios, usá-lo para ajudar outros e usá-lo como
padrão e exemplo. Assim, considerações pessoais à parte, devemos examinar
esta questão do ponto de vista de que a medida em que falharmos em
ajustar-nos a esse padrão, será a medida em que estaremos falhando com o
nosso bendito Senhor.

A descrição muitas vezes feita no Novo Testamento é que Deus é nosso Pai e
que, como um pai terreno tem orgulho dos seus filhos e gosta de olhar para
eles protetoralmente, e de sorrir para eles, e deseja que todos pensem bem
deles, assim Deus, como nosso Pai do céu, deleita-Se em nós e deseja exibir-
nos como “padrões e exemplos das obras das Suas mãos”. Ele quer mostrar
a Sua graça aos outros através de nós e por nosso intermédio, como vimos
quando estivemos estudando o versículo 10. Por todas estas razões nos
convém descobrir como é que nós, com todos os santos, podemos vir a
conhecer este amor que ultrapassa o conhecimento. Há abundante ensino
com respeito a isso no Novo Testamento. Há um sentido em que o restante
desta Epístola aos Efésios trata precisamente deste assunto, Nos capítulos
seguintes o apóstolo continua a tratar em detalhe de vários assuntos
relacionados com a conduta e com o comportamento, e esse é um dos
melhores modos de ensinar como conseguir este conhecimento do amor
de Cristo.

Podemos sumariar este ensino com certo número de princípios. O primeiro


é fazer uma advertência negativa, porém extremamente importante. Nunca
se deve pensar nesta questão em termos mecânicos. Com isso quero dizer
que jamais se deve presumir que, desde que façamos certas coisas, logo,
inevitável e automaticamente, gozaremos a bênção. Essa suposição nunca é
verdadeira na vida espiritual. Para usar uma ilustração óbvia: não há
nenhum mecanismo tipo caça--níqueis com relação à vida espiritual. Por
outro lado, todas as seitas são caracterizadas justamente por esse ensino.
Todas elas afirmam, noutras palavras, que, por assim dizer, basta você
colocar uma moeda na abertura da máquina e puxar a gavetinha, e terá a
sua barra de chocolate, ou seja o que for. Tal ensino é alheio ao Novo
Testamento e, se começarmos a pensar dessa maneira mecânica, estaremos
condenados à decepção.

Devo desenvolver isto porque sei, por experiência própria, deste perigo, e sei
que é um laço do diabo. Às vezes funciona da seguinte maneira: você está
lendo a biografia de um grande santo, por exemplo, um daqueles cujas
obras tenho citado. Ali você lê sobre um homem que fora cristão durante
anos, mas que nunca tinha conhecido este amor de Cristo, e então ele lhe
conta como veio a conhecê-lo. Isso pode ter acontecido de uma dentre
muitas maneiras. Pode tê-lo procurado anos e anos, sem nada acontecer;
então, um dia, quando estava lendo um livro, quase casualmente a página
pareceu iluminar-se e ele percebeu que Deus lhe falava diretamente, e ele
passou a conhecer este amor de Cristo que excede o conhecimento. A
tentação que vem neste ponto é

você procurar descobrir que livro ele estivera lendo e depois começar a ler o
mesmo livro, persuadindo-se de que aquilo que acontecera ao outro terá que
acontecer a você. Daí você lê a página, todavia ela parece completamente
morta! O erro foi ter um conceito mecânico. O santo estava fazendo isso
quando obteve a bênção; logo, se eu fizer a mesma coisa, também obterei a
bênção!
Por outro lado, você lê a respeito de homens que testificam que tinham lido
a Bíblia muitas vezes sem jamais enxergar estas coisas, porém, súbita e
inesperadamente, quando liam dado capítulo, veio a iluminação. Entretanto
esta não vem a você, quando lê o mesmo capítulo. A falha que está por trás
desta abordagem errada é que estamos lidando com relações pessoais, e que,
nos domínios das relações pessoais, os métodos mecânicos não somente não
contam, mas também podem ser o maior obstáculo possível. Não
estamos lidando com algum objeto ou com alguma experiência como
tal; estamos falando de conhecer “o amor de Cristo que excede o
conhecimento”. Discernimos instintivamente, quanto ao amor de um
ser humano, que ele é intensamente pessoal e direto; assim, devemos ter
o mesmo discernimento aqui.

Temos que começar dando-nos conta de que isto é algo que está
inteiramente nas mãos de Deus, e que ele dispensa as Suas bênçãos como
quer, quando e onde, e a Seu próprio modo. Vocês não podem garantir coisa
alguma, nestas questões. Não podem dar nenhuma garantia de que, se
fizerem “isto”, logo acontecerá “aquilo”. Sabemos que nas relações
humanas comuns tais idéias fracassam completamente. No momento em que
sentimos que estamos sendo subornados, ou que alguém está tentando nos
manipular, imediatamente toda emoção e todo real afeto se apagam. Isto é
igualmente verdade na esfera espiritual de que estamos tratando. É por isso
que se pode dizer que, conquanto os livros e manuais sobre a vida de
devoção e consagração sejam de utilidade e de valor até certo ponto,
também podem ser extremamente perigosos. O diabo pode usá-los para
introduzir a noção mecânica, e acabaremos ficando mais longe dAquele a
Quem estamos procurando.

Voltando-nos para o positivo, vemos que certas coisas são ensinadas com
simplicidade e clareza nas Escrituras. A primeira é que existe isso, de
colocar-se alguém no caminho da bênção. Não podemos ordenar bênçãos ou
“reclamá-las”. Deus, em Sua soberana vontade e graça, dispensa as Suas
bênçãos. Mas, embora não possamos ordená-las, podemos fazer o que fez o
cego Bartimeu. Lemos que Bartimeu ouvira que o Senhor Jesus Cristo ia
passar por certa estrada, e que ele

foi bastante inteligente para fazer seu ponto ao lado dessa estrada. É o que
todos nós podemos fazer. O Senhor caminha por certas estradas; é Sei
costume e Seu hábito passar em certas direções. Assim, tudo que posso fazer
é dizer-lhe como tomar posição ao lado destas estradas. Coloque-se no
caminho das bênçãos. Não lhe posso garantir nada; contudo sei que as
Escrituras nos exortam a fazer certas coisas. T ambém sei que todo santo
que já chegou ao conhecimento do amor de Cristo, neste sentido íntimo e
pessoal, geralmente cumpriu estas coisas.

O primeiro passo é o que Paulo mesmo já mencionou no versículo 16.


Devemos orar por nós mesmos sem cessar, como o apóstolo orou pelos
efésios, para que Deus, “segundo as riquezas da sua glória, nos conceda que
sejamos corroborados com poder pelo Seu Espírito no homem interior”.
Isso é um absoluto essencial. É essencial — tenho que ser repetitivo porque
somos muito propensos a esquecê-lo — dada a grandeza do conhecimento
do Seu amor. É tão grande que quase pode destroçar a estrutura humana,
tão glorioso que mal cabe no coração do homem. Lembramo-nos das
experiências do profeta Isaías, e do apóstolo João na ilha de Patmos. Mas
também necessitamos dele por mais esta razão, que assim que
empreendermos este esforço, seremos alvos dos ataques concentrados e
extraordinários do diabo.

Esta é de novo a experiência universal dos santos. Ninguém jamais foi tão
tentado pelo diabo neste mundo como o Filho de Deus; e quanto mais perto
dEle chegarmos, mais provados e tentados seremos. A princípio o diabo faz
tudo que pode para impedir que o indivíduo se tome cristão; no entanto, se
ele falha e nos tomamos cristãos, todo o seu esforço então será no sentido de
manter-nos como meninos em Cristo, de manter-nos unicamente no estágio
dos princípios elementares, de manter-nos satisfeitos com o círculo
periférico. No momento em que começamos a crescer e a desenvolver-nos, o
diabo fica preocupado, porque nesse caso nos tomamos melhores
recomendações de Cristo. Se nos tomamos homens, adultos, o reino do
diabo fica ameaçado, de modo que ele faz tudo para impedir o nosso
crescimento, e põe em ação os seus agentes e os seus poderes contra nós.

Permitam-me citar as palavras de alguém que foi uma grande autoridade


nestas questões. Numa frase maravilhosa, ele disse: “Os momentos
batismais são sempre seguidos de uma tentação no deserto”. Naturalmente
ele se refere ao que aconteceu com o próprio Senhor Jesus quando foi
batizado por João Batista no Jordão e deu início ao Seu ministério público
para realizar a Sua obra como o Messias. O Espírito Santo desceu sobre Ele
na forma de uma pomba. Agora Ele está equipado. Foi selado pelo Pai, foi
ungido pelo Espírito para pregar e levar a efeito a obra de redenção. Lemos,
porém, que logo depois Ele

foi levado pelo Espírito para o deserto para ser tentado pelo diabo durante
quarenta dias. “Os momentos batismais são sempre seguidos de uma
tentação no deserto”. Todo aquele que sempre se esforçou para percorrer
esta estrada sabe quanta verdade há nisso. Quanto mais buscarmos o rosto
do Senhor e o conhecimento do Seu amor, mais conhecermos “as ciladas do
diabo” e “os dardos inflamados do maligno”. Com isso o diabo nos faz um
grande cumprimento; mas devemos lembrar-nos de que ele é forte e
poderoso, e se formos com a nossa própria força e poder, certamente ele nos
derrotará. Portanto, devemos orar para que sejamos fortalecidos com poder
pelo Seu Espírito no homem interior, e também, como o apóstolo o expressa
no último capítulo desta Epístola, devemos “revestir-nos de toda a
armadura de Deus”. Sem esta, estamos condenados ao fracasso. Se você
procurar estar perto de Cristo, o diabo porá em ação todas as suas reservas
contra você, e você terá consciência das profundezas de Satanás de um
modo que nunca antes imaginou.

Os cristãos que não sabem o que é ficar sujeito a uma arremetida de


Satanás ou a um ataque satânico, são apenas meninos em Cristo. Ele não
tem necessidade de tratar as crianças desta maneira; mas no momento em
que você começar a crescer e se tomar um “jovem”, no momento em que
você se tomar forte e conhecer crescentemente a Cristo e Seu amor, poderá
esperar tentação. Assim se vê nas vidas de todos os maiores santos, que, lado
a lado com as suas gloriosas experiências do amor de Cristo, há uma
percepção em tempos de conflito, como se o inferno ficasse solto ao redor
deles. Deve ficar claro, portanto, que estamos numa esfera completamente
diversa da esfera mecânica à qual pertence o ensino de todas as seitas,
como acontece com todo ensino evangélico superficial que assegura que
“é muito simples”. Como o apóstolo diz mais tarde, no capítulo 6, a
nossa luta não é “contra a carne e o sangue, mas sim contra os
principados, contra as potestades, contra os príncipes das trevas deste
século, contra as hostes espirituais da maldade, nos lugares celestiais”
(6:12). Estamos seguindo os passos do Senhor, que foi tentado pelo diabo de
maneira tão dura que nos é impossível concebê-la.

A seguinte questão vital a que devemos dar ênfase é que temos de aprender
a buscar o Senhor. Quero dizer que não devemos contentarmos com idéias
concernentes a Ele, ou com proposições a respeito dEle. Mais uma vez é
essencial salientarmos que, se bem que as doutrinas, a teologia e o
entendimento são absolutamente vitais para o cristão, é sempre errado
parar unicamente nestas coisas. Temos que ir além, e compreender que o
propósito de todo conhecimento da doutrina é levar-nos ao conhecimento da
Pessoa de Cristo. Como vimos, “Para

conhecê-lo, e à virtude da sua ressurreição” era a ambição do maior mestre


e pregador doutrinário e teológico que a Igreja já conheceu.
Sem conhecimento da doutrina podemos ser vítimas de um falso misticismo,
ou podemos simplesmente permanecer meninos em Cristo. Para sermos
fortes, para crescermos e para nos tomarmos viris e poderosos, é-nos
essencial um entendimento da verdade. Mas isso deve levar-nos a buscar um
conhecimento da própria Pessoa.

Esta é uma questão muito sutil. Todos os que se têm interessado por estas
questões sabem que os esperam laços. Às vezes um homem, ao corrigir um
subjetivismo falso, vai para o outro extremo e se toma tão objetivo que a sua
alma e o seu espírito ficam secos. Entretanto os extremos são errôneos. A
glória do evangelho é que ele envolve o homem todo, sua mente, seu
coração, sua vontade, realmente, a personalidade inteira. Se falta um
aspecto, falta equilíbrio. Saliento este grande perigo de contentar-nos com
idéias e verdades acerca do Senhor Jesus Cristo, em vez de conhecermos o
Senhor Jesus Cristo. Você se enamorou dos pensamentos, dos princípios e
dos conceitos, e pode ficar tão embevecido neles que eles podem intrometer-
se entre você e a Pessoa. A própria doutrina concernente a Ele pode ocultá-
lO aos seus olhos. Nada é mais trágico do que isso! Muitos de nós têm
que confessar terem estado nessas condições por anos. É uma
armadilha terrível; é tão perigosa como permanecer uma criança em Cristo.

Deixem-me acentuar ainda que devemos buscar o Senhor em Pessoa, e não


meramente experiências que nos vêm de maneira geral na vida cristã.
Graças a Deus pelas experiências de gozo na leitura ou pregação da Palavra,
experiências que sobrevêm nas reuniões de oração, experiências que vêm
enquanto cantamos um hino, ou as experiências que temos na comunhão
cristã, e em muitos outros aspectos. Graças a Deus por essas experiências
cristãs gerais. Mas enquanto as agradecemos a Deus nesta esfera particular
de que estamos tratando, temos que dar-nos conta de que mesmo elas
podem ser perigosas. Isto não deveria desanimar-nos. É certo dizer que
cada nível da vida cristã tem seus próprios problemas peculiares. Há muitos
que não têm nenhuma experiência espiritual; simplesmente
aceitaram certas coisas com as suas mentes. Evidentemente, isso é
totalmente inadequado, porém, tendo dito isso, prosseguimos dizendo que
temos que ser cuidadosos acerca das experiências. Que há problemas
especiais em cada estágio é uma verdade quanto à nossa vida comum
neste mundo. Os problemas da infância não são idênticos aos da
adolescência, e os problemas da adolescência não são idênticos aos da
meia idade; e os problemas da meia idade não são os da idade avançada.
À superfície, o ensino parece contraditório. Todavia, não é; quando

ficamos mais velhos entramos numa esfera diferente, chegamos a um estágio


diferente, e pode ser que tenhamos de fazer num estágio algo que parece
estar em franca contradição com o que tivemos de fazer num estágio
anterior. É precisamente a mesma coisa na vida cristã.

Deixem-me expressá-lo de maneira mais simples e mais direta. Muitos


cristãos vivem de “reuniões”, e não do Senhor Jesus Cristo. Podem sentir-se
perturbados ou infelizes em sua experiência espiritual, e isso pode muito
bem significar que o Espírito Santo lhes esteja falando. Não obstante, ao
invés de fazerem o que nos é dito aqui, e de procurarem este conhecimento
do Senhor e este Seu amor que excede o conhecimento, ficam freqüentando
uma interminável série de reuniões. Nas reuniões se sentem felizes, e vão
para casa achando que tudo está bem. De novo se sentem em condições
miseráveis; então vão a outra reunião, e a experiência se repete. Podem sair
todas as noites de semana para irem a uma reunião ou outra com o fim de
manterem numa condição de regozijo. O que está acontecendo é que eles
estão vivendo de reuniões!

Esta verdade não vale só para as reuniões; também pode acontecer com
livros. É possível viver de livros uma espécie de vida espiritual de segunda
mão. Dá-se da seguinte maneira: sentindo-nos insatisfeitos e inquietos,
interiormente conscientes de que a nossa vida não é o que deveria ser, e que
há algo muito mais grandioso possível, pomo-nos a ler certos livros — a
biografia de um santo, por exemplo, ou um livro que fala dos níveis mais
elevados da vida cristã. Apreciamos grandemente fazer isso, e nos
comovemos. Embora não tenhamos tido pessoalmente a experiência da qual
estamos lendo, sentimo-nos melhor e mais felizes. Podemos fazer isto
durante anos, sem percebermos que estamos vivendo de livros, em vez de
vivermos de Cristo. Podemos viver das experiências doutras pessoas que
ouvimos numa reunião, ou que lemos em livros, sem termos experiência
propriamente nossa. Só porque nos sentimos bem e um pouco mais felizes,
damo-nos por satisfeitos e não vamos em busca do Senhor.

Na verdade, é possível que façamos tão mau uso dos meios da graça que
vivemos deles, em vez de prosseguirmos através deles para descobrir o
Doador de toda a graça. Como é sutil isso tudo! Assim é porque ainda não
somos perfeitos, e por causa das ciladas do diabo. A grande regra que
jamais devemos esquecer é: busquem o Senhor. Busquem a Pessoa. A vida
cristã não é simplesmente uma questão de adotar certo número de idéias; o
cristianismo não é uma filosofia, não é uma coleção de pensamentos e
conceitos. Sua glória especial, e o que o toma único, é que ele não somente
nos ensina a aplicar um ensino, como também a conhecer tuna Pessoa
(Deus) e a andar com Ele na luz.

É pessoal, é individual. A essência do bom êxito nesta questão é manter isso


sempre no primeiro plano. Não nos deixemos satisfazer por coisa alguma,
por melhor e mais benéfica que seja, em nossa vida espiritual, enquanto não
pudermos dizer realmente: conheço a Cristo pessoalmente.

Isto é particularmente verdadeiro com respeito à oração. Oração realmente


significa falar com Deus, ouvir a Deus e ter comunhão com Deus. Isso,
obviamente, envolve relação pessoal. Que sabemos realmente da verdadeira
oração? Podemos iludir-nos facilmente pensando que, se nos pusermos de
joelhos e tivermos certos bons pensamentos, ou se certos bons pensamentos
concernentes a Deus passarem pelas nossas mentes, estaremos orando.
Creio que Deus, em Sua misericórdia, está disposto a aceitar até isso;
entretanto não é oração verdadeira. “A nossa comunhão”, diz João, “é com
o Pai, e com seu Filho Jesus Cristo”. Com o termo “comunhão” ele quer
dizer, conhecer o Pai e o Filho e andar com Eles.

George Müller, de Bristol, sabia mais sobre a oração do que a maioria dos
cristãos; e vocês verão que a primeira coisa que ele sempre fazia quando
orava era assegurar-se de uma percepção da presença de Deus. Ele não
apresentava as suas petições enquanto não se apercebia da Sua presença.
Este era o segredo daquele grande homem de oração. Falamos da fé
grandiosa de Müller, e naturalmente era uma grande fé; mas o real segredo
de George Müller não era a sua grande fé, e sim o fato de que ele conhecia a
Deus e falava com Deus como alguém que O conhecia. Percepção da
presença de Deus! Vocês não poderão conhecer o amor de Cristo enquanto
não conhecerem a Cristo. Essa é a razão pela qual o apóstolo diz aos
filipenses que a sua maior ambição era “conhecê-lo” (3:10). A primeira
coisa que temos de fazer é aperceber-nos da presença da Pessoa, buscar o
Senhor pessoalmente — não Suas bênçãos, não pensamentos ou ensinos
concernentes a Ele. Estas coisas são excelentes, e devemos continuar a
buscá-las; mas não devemos deter-nos nelas. Devemos apropriar-nos delas e
usá-las para buscar a bendita Pessoa propriamente dita.

O princípio subsqüente, em conexão com este ensino, segue-se disso de


maneira inevitável; é que sempre devemos lembrar-nos de que é mister que
o Senhor Jesus Cristo habite em nós: “que sejais corroborados com poder
pelo seu Espírito no homem interior, para que Cristo habite pela fé nos
vossos corações”. O que precisamos fazer neste ponto é dar-nos conta de que
Ele próprio disse: “eis que estou à porta, e bato; se alguém ouvir a minha
voz, e abrir a porta, entrarei em sua casa, e com ele cearei, e ele comigo”
(Apocalipse 3:20). Quando isso se toma um fato, Cristo está em nós. Às
vezes penso que a percepção disso é o

evento mais transformador que pode suceder a alguém. É a essência e o


segredo da santificação. Não é questão de se tentar obter alguma coisa, não
é simplesmente lutar para viver num certo nível moral; o segredo disso tudo
é dar-nos conta de que Ele habita em nós, de que Ele está em nossos
corações. O apóstolo nos ensina isso, não somente acerca do nosso Senhor, e
sim também acerca do Espírito Santo.

Como somos lerdos para aprender as grandes lições das Escrituras! No


capítulo seis da sua Primeira Epístola aos Coríntios, o apóstolo trata do
assaz prático problema do pecar no corpo. “Fugi da prostituição”, diz ele
(versículo 18). Todavia, ao mostrar como se deve fazer isso, ele não
condescende em ministrar algum vago ensino moral, ou em fazer uma
preleção sobre as conseqüências do pecado na saúde, ou em fazer um apelo
geral. Seu método é muito diferente. Diz ele (AV): “Quê/Não sabeis que o
vosso corpo é o templo do Espírito Santo, que habita em vós, que vós tendes
de Deus, e que não sois de vós mesmos? Porque fostes comprados por preço;
glorificai, pois, a Deus no vosso corpo, e no vosso espírito, os quais são de
Deus” (versículos 19 e 20). O modo de dominar o pecado é darem-se conta
de que o Espírito Santo está habitando em vocês, e que os seus corpos são
Seu templo. O Espírito Santo está envolvido, por assim dizer, com aquilo
que vocês fazem com os seus corpos. “Quê!" Todo o segredo da santificação
é, num sentido, saber proferir esta palavra, “Quê!” Assim, na próxima vez
que vocês forem tentados, quando o diabo vier tentá-los a pecarem desta
ou daquela maneira, parem e digam: “Quê!? Nem pensar! É impossível! O
Espírito Santo habita em mim; meu corpo é Seu templo. Cristo está em
mim.”

Salmos e Hinos 134,4a estrofe, trad, de H. M. Wright. Nota do tradutor desta


obra.
Devemos falar conosco mesmos dessa maneira, e aplicar a nós mesmos a
verdade. É porque deixamos de fazer isso que somos como somos, e o que
somos. Devemos sair em busca desta Pessoa, e é preciso que nos demos
conta de que Ele está em nós. Sua Palavra é verdadeira e não pode ser
quebrada. Portanto, devo viver como quem acredita que Cristo, o Senhor,
habita nele; na verdade, que está plenamente persuadido de que o Senhor
habita nele. “Não sou meu”; Ele veio morar em mim. Toda a minha
perspectiva e atitude será determinada por esta percepção.

Finalmente, tendo dado estes passos, devemos buscar positiva e ativamente


o seu amor. O apóstolo ora para que estes cristãos venham a conhecê-lo em
sua largura e comprimento, altura e profundidade. Tendo-nos apercebido
da verdade concernente a esta gloriosa possibilidade, devemos agora buscar
o Senhor em Pessoa, devemos procurar conhecer o Seu amor e recorrer a
Ele para obter este conhecimento. Tomo a dizer que tem sido esta a prática
universal de todos quantos

foram capazes de testificar que conheceram verdadeiramente este amor.


Vemos isso acentuado, não somento no Novo, mas também no Velho
Testamento. Por exemplo, um profundo anseio e desejo de conhecimento de
Deus é expresso em muitos Salmos, como por exemplo nos Salmos 42,63 e
84: “Como o cervo brama pelas correntes das águas, assim suspira a minha
alma por ti, ó Deus! A minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo: quando
entrarei e me apresentarei ante a face de Deus?” (42:1-2); “A tua
benignidade é melhor do que a vida” (63:3); “Preferiria estar à porta da
casa do meu Deus, a habitar nas tendas da impiedade” (84:10). Este mesmo
desejo tem feliz expressão num hino em galês, de autoria de William
Williams, e assim traduzido:

Dize que és meu, ó Salvador;

Dá-me certeza firme e clara;

Os meus sombrios medos bane,

As minhas dúvidas acalma.

Se tão-somente aplicássemos à vida espiritual o que sabemos e praticamos


tão bem na vida natural, a nossa condição espiritual seria muito diferente.
Não há nada que mais desejamos do que nos dizerem que aqueles que
amamos nos amam. Atos não são suficientes; gostamos que nos digam com
palavras. Portanto, insistamos com Ele que Ele nos faça saber com certeza
que nos ama pessoalmente com amor eterno.

PREPARANDO-NOS PARA O HÓSPEDE

“E conhecer o amor de Cristo, que excede todo o entendimento,

para que sejais cheios de toda a plenitude de Deus ”. Efésios 3:19

Temos visto, de acordo com o ensino das Escrituras (e é amplamente


confirmado por todos quantos experimentaram ricamente este
conhecimento do amor de Cristo), que, embora não possamos reivindicar
esta grande bênção, ou pretender que, devido certas coisas serem
verdadeiras a nosso respeito, nós já a temos, há, não obstante, certas coisas
que podem ajudar-nos a pôr-nos no caminho da bênção. Levando tudo
isso como lastro em nossas mentes, partamos de vez para a
consideração pormenorizada do que nos cabe fazer. O princípio dominante
e determinante é buscar a Pessoa — não buscar bênçãos gerais, e sim buscar
a Pessoa do Senhor. Mas há também certas coisas que temos de fazer
detalhadamente. Estou cada vez mais convencido de que muitos vivem a
vida cristã neste mundo sem este conhecimento, simplesmente porque nunca
saíram da esfera das generalidades para a das particularidades. Vocês
precisam começar com o geral, porém isso deve levar ao particular. É coisa
inútil ler um livro que descreve alguma experiência grandiosa e achar que
você daria o mundo inteiro para tê-la, se pudesse, se depois nada faz a
respeito. Temos que colocar-nos no caminho da bênção, como fez o cego
Bartimeu.

A primeira e óbvia regra é ler a Palavra de Deus com regularidade. Esta


Palavra foi dada a fim de O revelar a nós. Num sentido, o propósito central
das Escrituras é revelar o Senhor Jesus Cristo. Isso é verdade tanto com
relação ao Velho Testamento como com relação ao Novo. Trazemos à
memória como, após a Sua ressurreição, o nosso Senhor levou dois dos Seus
confusos discípulos através da Lei, dos Profetas e do livro de Salmos com o
fim de mostrar-Se a eles em todas as Escrituras (Lucas 24:27,44). Cabe-nos
vê-lO em toda parte nas Escrituras. Um hino bem conhecido lembra-nos
que a Bíblia é: “O quadro de Cristo, a viva Palavra, no céu desenhado”.
Cabe-nos vê-lO, não somente nos quatro Evangelhos, onde O vemos em Seu
terrenal estado de humilhação, mas também nas Epístolas. Todas elas se
referem a Ele,

todas elas são revelações dEle. Assim, toda vez que vocês lerem a Bíblia,
poderão vê-10, se souberem como fazê-lo.

É-nos possível ler as Escrituras de maneira totalmente inútil. Se vocês lêem


as Escrituras mecanicamente porque acreditam que é certo e bom fazer isso,
ou porque lhes disseram para fazê-lo, provavelmente auferirão pouco
benefício. Vocês poderão ter uma imediata sensação de satisfação própria e
de justiça própria por terem lido a sua porção bíblica para o dia; todavia
isso não é ler as Escrituras. Todos os componentes da inteligência são
necessários quando lemos as Escrituras; todas as nossas faculdades e
inclinações devem ser empregadas. Nem isso é suficiente; temos que orar,
pedindo a iluminação e a inspiração do Espírito Santo. Sempre que
recorrermos às Escrituras devemos falar conosco mesmos antes de começar
a ler; caso contrário, a nossa leitura não nos trará proveito. E devemos fazer
isso, não somente com a Bíblia, mas também com outros livros e
compêndios. Podemos passar horas com um compêndio aberto diante de
nós, olhando para as páginas e para as palavras, contudo, se não
concentrarmos a atenção, não receberemos nenhuma instrução. É possível
se fazer mais em cinco minutos, às vezes, quando realmente se concentra,
do que em muitas horas, quando a mente divaga e não se aplica.

Não há livro que mais exija a aplicação e a concentração de todos os nosso


poderes e faculdades, do que a Bíblia. Portanto, devemos falar conosco e
fazer a nós mesmos perguntas como estas: que espero receber das
Escrituras? Por que estou lendo? Qual é o meu objetivo? Não devemos
parar no ponto em que dizemos que é bom lê-la porque é a Palavra de Deus.
Devemos ir além e dizer a nós mesmos: ela é uma Palavra viva. O fato é que
Deus continuou falando aos santos ao longo dos séculos por meio da Sua
Palavra. Leiam as experiências deles, e verão que muitos deles, na verdade,
virtualmente todos eles, tiveram as suas maiores experiências pessoais do
amor de Cristo quando estavam lendo as Escrituras. Subitamente parece
que Ele vem ao encontro deles mediante uma palavra particular; Ele sai do
Livro, por assim dizer, e eles sabem que Ele lhes está falando pessoalmente.

E nós podemos ter experiências semelhantes, se aprendermos a ler a Bíblia


com reflexão e meditação. Não obstante, a meditação e a contemplação não
são fáceis, como sabemos por experiência própria. Concentrar-nos no que
estamos lendo e meditar nisso requer esforço e disciplina. A contemplação e
o pensamento interior são mais difíceis ainda. De acordo com os manuais
sobre a vida piedosa, o estágio final da vida santa é o da contemplação.
Poucos chegam lá. Assim, se nesta questão de conhecer o amor de Cristo
ficarmos entregues a nós mesmos, veremos que isso será quase impossível.
Mas Deus desceu até

a nossa fraqueza e nos providênciou a Palavra, as ilustrações, a instrução e


o ensino. Portanto, devemos tirar pleno proveito disso tudo e utilizá-lo em
nossos esforços para conhecê-lO.

Quando, por exemplo, você ler os Evangelhos, lembre-se de que são retratos
de Cristo, mostrando como Ele era quando estava neste mundo. Depois,
lembre-se de que Ele ainda é, essencialmente, a mesma Pessoa. Devemos
aplicar deliberadamente as nossas mentes à procura dEle e ao conhecimento
do Seu amor. Noutras palavras, devemos ir às Escrituras com espírito de
grande expectativa. Devemos ir num estado de grande avidez, indagando:
será que Ele vai falar comigo pessoalmente, como também o faz
indiretamente mediante a Palavra? Tendo olhado o retrato, lembre-se de
que Ele continua o mesmo — “Jesus Cristo é o mesmo ontem, e hoje, e
etemamente” (Hebreus 13:8). Essa foi a maravilhosa e comovente
descoberta feita pelos diversos apóstolos que O viram após a Sua ascensão.

Há uma descrição do Senhor ressurreto no capítulo primeiro do livro de


Apocalipse, onde o apóstolo nos conta como, quando ele se encontrava na
ilha de Patmos e Cristo lhe apareceu, ficou alarmado, até que o Senhor pôs
Sua mão em seu ombro, provando que Ele continua sendo o mesmo, apesar
de estar na glória. Devemos lembrar-nos disso deliberadamente, e não
contentar-nos com uma noção vaga do Senhor Jesus Cristo. Devemos
compreender que Ele ainda é um “cordeiro que foi morto”, Aquele que foi
morto, porém “vive para todo o sempre” (Apocalipse 5:12,14). Portanto,
devemos buscá-lO. As Escrituras foram dadas para ajudar-nos, e devemos
aplicar o que lemos nelas. O grande princípio é que a verdadeira leitura da
Bíblia envolve pensamento, meditação, preparo pessoal e, acima de tudo,
expectativa, uma ávida antecipação, uma procura do Senhor e uma
prontidão para achá--ÍO em toda parte.
O subseqüente elemento essencial nesta busca é a oração. Já tive que
acentuar antes precisamente o mesmo princípio. Podemos passar
muito tempo na posição de oração e, todavia, sem orar realmente. É por
isso que os horários estabelecidos, embora indispensáveis para
muitos, podem ser muito perigosos nestas questões. Aqui, de novo, a
instrução espiritual parece contraditória, ora ensinando a importância da
disciplina e da regularidade, ora indicando os perigos relacionados com
isso. O fato é que necessitamos conhecer-nos e conhecer nossas necessidades,
como também saber o que temos que evitar em dados estágios. Além disso,
necessitamos da ajuda pastoral neste aspecto. Permitam-me expor isto na
forma de uma ilustração. Na agricultura científica moderna este princípio
foi descoberto e se confirma cada vez mais. Se

você quiser obter as melhores colheitas das suas terras, valerá a pena fazer
uma análise científica do solo. Você envia uma amostra do solo ao
laboratório, e lhe dirão se é demasiado ácido ou demasiado alcalino. Depois
terá que tratá-lo de acordo com a análise feita. Se puser cal numa terra que
já é demasiadamente alcalina, arruinará o seu campo. Mas se a terra foi
ácido, então precisará de mais álcali. No entanto, é interessante notar que,
ao levar avante o processo, verá que o solo muda de natureza
completamente. Assim você não poderá dizer que, porque a primeira
amostra era ácido, sua terra precisará de álcali para todo o sempre. Você
pode muito bem chegar a um ponto em que ela tenha se tomado alcalina
demais e, então, precisará dar-lhe ácido. Parecerá estar se contradizendo,
mas de fato estará simplesmente sendo inteligente. Você compreende que
está lidando com processos vivos no solo, não com materiais inorgânicos
estáticos, e que, portanto, precisa tratar do solo como ele é em dada ocasião.
A mesma coisa se aplica à estrutura e constituição humana. Alguém pode
corrigir com tanto exagero o hiper-acidez do seu organismo, que causará uma
outra doença chamada alcalose. Ele se toma demasiada alcalino e talvez
precise tomar algum ácido para restabelecer o equilíbrio.

O mesmo princípio se aplica nos domínios da vida espiritual. Pode ser que,
pela disposição natural, comecemos sendo moles e indolentes. Entendemos
que precisamos ter um horário, e adotamos um. Contudo, inconsciente e
gradativamente nos tomamos escravos do nosso horário, e será necessário
que nos digam que esqueçamos o horário e experimentemos mais da
liberdade do Espírito. Por causa dos restos de pecaminosidade que
permanecem em nós, vamos de um extremo ao outro. Assim, temos que
conhecer-nos a nós mesmos, temos que examinar-nos e vigiar a nós mesmos,
e temos que assegurar-nos bem de que não perdemos de vista o grande
objetivo, o qual é, conhecer a Cristo e conhecer o Seu amor.

Insisto, pois, em que, quanto à oração, não há nada mais importante que a
meditação e exame preliminar daquilo que vamos fazer. Isto é o que os
santos chamavam de “reflexão”, a qual realmente significa que você
conversa consigo mesmo sobre você e sobre o que anda fazendo. A maior
falta que cometemos é que não conversamos conosco mesmos o quanto
deveríamos. Temos de falar conosco sobre nós mesmos. Há pouco propósito
em começar a falar com Deus e a orar, se não compreendemos a nossa
própria condição. Não proceder assim significa que talvez estejamos indo à
presença de Deus num estado pessoal completamente falso. Podemos achar
que temos sido tratados de maneira muito dura, nada bondosa e, na
verdade, muito cruel; enchemo--nos de auto-piedade; vamos a Deus nessas
condições e Lhe pedimos

certas coisas. Se tivéssemos parado para analisar-nos a nós mesmos, e se


tivéssemos conversado conosco mesmos com toda a sinceridade, teríamos
descoberto que, provavelmente, estávamos em condições totalmente más e
indignas, que realmente estávamos precisando ser chicoteados
espiritualmente, e que, essencialmente, o problema estava em nós mesmos.
Tivéssemos feito isso, quão diferente seria a nossa oração! Antes de
começarmos a orar, precisamos examinar-nos a nós mesmos; e, depois,
havendo feito isso, precisamos lembrar-nos do que vamos fazer. Precisamos
meditar nisso de novo, e precisamos aperceber-nos das possibilidades.
Acima de tudo, precisamos pensar de novo nEle, em nosso grande Sumo
Sacerdote nas alturas. Com Isaac Watts, devemos dizer:

Com alegria meditamos nós na graça do nosso Sumo Sacerdote nas alturas;

Seu coração é feito de doce ternura, e transborda de amor.

Fazer isso, e compreender que isso vale para nós, transformará a nossa
maneira de orar. Estaremos verdadeiramente buscando o Senhor, e
esperando dEle uma resposta viva.

Outro elemento importante é a ação de graças. Quando lemos uma


grandiosa passagem, como a que estamos considerando, ou as experiências
dos que conheceram o amor de Cristo, nossa tendência é achar que é disso
que necessitamos, que daríamos muito para possuí-lo, que devemos começar
a orar e a clamar por isso; e simplesmente passamos a fazê-lo. Mas essa
atitude contém uma verdadeira falácia. É como a criança que vive fazendo
pedidos e exigências aos seus pais, porém nunca mostra apreciação.
Devemos compreender que Deus tem prazer em ouvir as nossas palavras de
gratidão e louvor. Daí o apóstolo, corrigindo a tendência dos filipenses para
a ansiedade, dizer: “Não estejais inquietos por coisa alguma: antes as vossas
petições sejam em tudo conhecidas diante de Deus pela oração e súplicas,
com ação de graças” (4:6). Antes de pedirmos a Deus quaisquer novas e
adicionais bênçãos e benefícios, devemos ter sempre o cuidado de agradecer-
Lhe o que já recebemos. Se crêem que o Senhor morreu por
vocês, agradeçam-Lhe isso. Quantas vezes o fizeram? Esse é um
verdadeiro teste da nossa fé. Se um ser humano nos faz uma gentileza, logo
lhe agradecemos. Dizemos que cremos que Cristo morreu pelos
nossos pecados, mas quantas vezes Lhe agradecemos isso? Quanto mais
vocês Lhe agradecerem e Lhe expressarem seu débil amor por Ele,
maior probabilidade terão de conhecer o Seu amor por vocês no sentido
maior

a que Paulo se refere. Quanto mais proeminente forem o louvor e a ação de


graças em nossa vida de oração, mais conheceremos este amor, que excede o
conhecimento.

Também deveria ser óbvio que devemos procurar agradá-lO em todas as


coisas. Isso fica patente quando expresso em termos de uma analogia
humana. Se amamos certas pessoas, instintivamente procuramos agradá-
las; e quanto mais as agradamos, mais elas mostrarão o seu amor por nós. É
realmente simples assim. O nosso Senhor pessoalmente afirma isso com a
maior clareza e simplicidade no Evangelho segundo João: “Aquele que tem
os meus mandamentos e os guarda, esse é o que me ama; e aquele que me
ama será amado de meu Pai, e eu o amarei e me manifestarei a ele” (14:21).
E, contudo, quantas vezes nos esquecemos disso! Temos a tendência de
dividir as nossas vidas em compartimentos. Quando estamos lendo as
Escrituras ou algum livro sobre a vida de um santo, vemos esta maravilhosa
possibilidade e a desejamos, e começamos a orar e a rogar esta bênção. Mas
depois nos defrontamos com os duros fatos, dificuldades e problemas da
vida, e parece que esquecemos isso tudo. Tomamo-nos irritadiços,
precipitados, grosseiros e impacientes. Tomamos a pensar ao nível humano,
e fazemos coisas que não deveríamos fazer. O resultado é que a nossa oração
é realmente de pequeno valor.

A Bíblia é um livro muito prático, e quer mostrar-nos que o amor não é um


vago sentimento. Diz-nos o nosso Senhor que mostremos nosso amor por Ele
guardando os Seus mandamentos. Se realmente desejamos conhecê-lO e
conhecer o Seu amor, devemos realizar com todas as nossas forças tudo que
Ele mandou que fizéssemos. Ficamos sem desculpa, se não nos damos conta
disso. É-nos ensinado no Sermão do Monte, nas Epístolas, na verdade em
toda parte no Novo Testamento. Sejamos diligentes, portanto, na
observância dos Seus mandamentos. Ou, para expor negativamente o
assunto, tratemos de compreender quão importante é evitar desagradá-10,
Certas coisas são completamente incompatíveis com a Sua presença. Às
vezes isso é expresso numa frase que eu abomino. Há os que falam em
“levar Cristo com eles”. Isso é completamente errado, pois não O levamos
conosco. A questão é se Ele nos acompanhará ao fazermos certas coisas. Há
certas coisas que Ele não fazia nos dias da Sua carne: e ainda não as faz,
pois são inimagináveis em Sua presença. Portanto, as Escrituras nos
advertem com muita clareza acerca do perigo de “entristecer o Espírito”.
O que se aplica ao Espírito Santo, aplica-se igualmente ao Senhor
Jesus Cristo. E por isso que é tão importante estar sempre pensando nEle
e nos lembrando de que, devido sermos cristãos, Cristo está em nós e o

Espírito está em nós aonde quer que formos e seja o que for que fizermos.
Portanto, se você anela a manifestação do Seu amor, evite fazer as coisas
que sabe que Ele não pode suportar, as coisas que Ele odeia, as coisas que O
enviaram à morte na cruz. Evite-as!

Posso ilustrar isso com uma ilustração simples, que muitas vezes me ajudou
pessoalmente, e ainda me ajuda. É uma história simples, quase ridícula, de
uma coisa que aconteceu dentro da esfera da minha experiência pessoal; e
sempre me faz lembrar tudo que tento dizer a mim mesmo quando enfrento
esta questão particular.

Fui criado num distrito rural, agrícola, onde todos nós sabíamos tudo uns
dos outros, e sabíamos tudo que acontecia. Havia um homem naquela área,
filho de um lavrador, que estava muito apaixonado por uma certa moça e
queria desposá-la. E ela o amava. Não obstante, havia um obstáculo para
ser transposto. Este pobre sujeito, como muitos outros, tinha uma fraqueza,
que era a de beber muito quando ia à cidade, uma vez por semana. Ela
odiava esse hábito, e ele lutava para deixá-lo. Mas, de repente ele
escorregava e caia, ao ser tentado. Ela então não queria mais nada com ele.
Toda a vizinhança vinha observando como as coisas se desenrolavam,
durante vários anos. Ela deixou perfeita-mente claro que, enquanto ele
tocasse em bebida, não quereria mais nada com ele. Todos nós
perguntávamos qual seria o resultado disso tudo. O que de fato aconteceu
foi que o homem a amava tanto, que abandonou a bebida para todo o
sempre. O resultado foi que eles se casaram e viveram juntos e felizes por
muitos anos.

Essa singela história ilustra a essência mesma desta questão. A escolha com
a qual este homem se defrontou era, que é que ele queria mais, esta jovem
que ele amava, ou a bebida e os alegres companheiros do dia da feira? Ele
tinha que chegar a uma decisão básica; e o seu amor pela moça era tão
grande que ele desistiu da bebida para sempre. Assim, ele a conquistou,
recebeu o seu amor, e ela se deu a si mesma a ele.

Há certas coisas que o Senhor Jesus Cristo detesta e abomina; assim é


simples questão de lógica afirmar que, se nos apegamos a essas coisas e as
permitimos, realmente não temos direito de esperar nenhuma manifestação
do Seu amor. Lembro-lhe mais uma vez que você pode ser cristão sem
conhecer deste modo o S eu amor; porém, se você quiser ser a espécie de
cristão que Paulo queria que estes efésios fossem, terá que desistir das coisas
que Ele odeia, custe o que custar. Então verá que, na hora que o Senhor
quiser, Ele sorrirá para você e manifestar-Se-a você, bem como o Seu amor.

Cada um de nós sabe individualmente qual a coisa, ou quais as coisas que se


interpõem entre nós e Ele. Façamo-las partir! Expulsemo-las! Mesmo que
elas sejam legítimas em si mesmas, se você tem

certeza em seu coração de que elas são um empecilho, elas têm que sumir.
“Se o teu olho direito te escandalizar, arranca-o e atira-o para longe de ti”;
“Se a tua mão direita te escandalizar, corta-a e atira-a para longe de ti”
(Mateus 5:29-30). Esse é o ensino do próprio Senhor nesta matéria. Agrade-
O positivamente; e evite tudo que você sabe ser desagradável aos Seus
santíssimos olhos. E faça isso não somente durante um período limitado,
como o da quaresma; faça-o, sempre.
O quarto princípio envolvido nesta questão requer importunidade, quer
dizer, concentração ou dedicação total. Vemo-lo exposto no livro de
Jeremias: “E buscar-me-eis, e me achareis quando me buscardes de todo o
vosso coração” (29:13). Isso veio a ser muito conhecido num oratório, com
as palavras: “Se de todo o vosso coração verdadeiramente me buscardes,
certamente me achareis”. A ênfase cai na frase, “de todo o vosso coração”.
Tambémno livro de Salmos lemos: “Une o meu coração ao temor do teu
nome” (86:11). O salmista está cônscio da dificuldade, de modo que ora a
Deus, pedindo-Lhe que una o seu coração para que ele O busque com todo o
seu ser. Recordemos o ensino do nosso Senhor concernente aos bons olhos:
“Se os teus olhos forem bons, todo o teu corpo terá luz; se, porém, os teus
olhos forem maus, o teu corpo será tenebroso” (Mateus 6:22-23). (AV,
versículo 22: “Se o teu olho for único”, “não duplo”).

Nada é mais importante, nesta esfera, do que ter o “olho único”, isto é, o
olhar posto numa só direção, concentrado, fechado para tudo mais que
esteja fora do campo de visão; quase uma monomania. Este tem sido uma
grande característica dos santos de Deus. Ou tomem o ensino do nosso
Senhor registrado no Evangelho segundo Lucas, acerca da viúva importuna
(18:1 -8). O juiz injusto, “que nem a Deus temia nem respeitava o homem”,
foi confrontado por uma viúva que persistia em ir ao tribunal com a sua
petição. Afinal o juiz, reduzido a um estado de desespero, decidiu que era
melhor conceder-lhe o que pedia. Vão a Deus com a importunidade daquela
viúva, diz o Senhor Jesus Cristo. Quem mais teria ousado dizer isso? A
importunidade é essencial. Todos estamos prontos para começar, todavia
também prontos para contentar-nos com um sentimento ocasional e, com
esforços espasmó-dicos ocasionais. Mas devemos perseverar, persistir, e
nunca desistir.

Devemos tomar-nos mais semelhantes ao patriarca Jacó em Peniel. Pensem


nele ali, naquela noite crítica; dentro de algumas horas ele se encontraria
com Esaú. Relembrem o seu temor e o seu pressentimento. Ele tinha
mandado tudo e todos atravessarem o ribeiro, e ali estava ele sozinho
quando, de repente, apareceu um homem e começou a lutar com ele. Jacó,
sentindo que era Deus que estava lidando com ele,

persistiu até o raiar do dia, e proferiu as imortais palavras: “Não te deixarei


ir, se me não abençoares”(Gênesis 32:26). E esse espírito que devemos
cultivar, o espírito de concentração, o espírito de importunidade, o espírito
que diz: “Não te deixarei ir”. Quando agirmos assim, Ele nos fará várias
coisas. Deixem a questão do tempo inteiramente com Ele, mas — para
copiar uma expressão utilizada pelo puritano Thomas Goodwin —
“Movam-Lhe a demanda, solicitando isso”, e continuem a fazê-la, como a
viúva importuna fez com o juiz injusto.

Isso nos leva ao nosso último princípio, que, como todos os outros, também é
sumamente vital. Pode ser descrito como responsividade1 às iniciativas de
aproximação do Senhor. Estamos tratando de questões muito sensíveis e
delicadas. Ou, para variar a descrição, estamos no monte do Senhor, onde o
ar é muito puro e rarefeito, e as leves alterações são imediatamente sentidas.
A responsividade às aproximações de Deus significa buscá-las, esperar por
elas, contar com elas. Muitas vezes ficamos tão ocupados lendo as
Escrituras, orando e fazendo tudo que estivemos considerando, que
achamos que nada está acontecendo. Entretanto, muita coisa pode estar
acontecendo, e o problema é que somos tão lerdos e tão destituídos de
responsividade, ou estamos tão ocupados, que não tomanos consciência
disso.

O Senhor bem pode vir muito silenciosa e brandamente, a princípio. O


Espírito Santo é comparado com uma pomba, a mais gentil de todas as aves.
Essa é, também, uma descrição do nosso bendito Senhor. Nem sempre Ele
manifesta a plenitude do Seu amor. Pode acontecer que lhe dê somente leves
indicações dele. O amor humano pode expressar-se com um olhar apenas. O
olho que pode severamente, pode também olhar com ternura e amor. Um
simples cintilar nos olhos pode dizer-nos tudo e trazer-nos alegria indizível.
O nosso Senhor trata-nos dessa maneira. Ele é o nosso Amante celestial, e às
vezes a manifestação do Seu amor é tênue; Ele nos dá apenas uma ligeira
indicação dele. Por isso, devemos estar buscando estas coisas. Seu amor não
vem de maneira estereotipada. São muitas as maneiras pelas quais Ele
manifesta o Seu amor. Estejam sempre à espreita, atentos à mais leve
manifestação dele! Jamais “desprezem o dia das pequenas coisas”.

No momento em que você, meu amigo, perceber o mais leve traço ou


indicação do Seu amor, aja em cima disso imediatamente, venha como vier.
Você pode estar lendo um livro, por exemplo, sem realmente estar pensando
muito neste assunto particular, quando subitamente toma consciência de um
impulso ou de um chamamento para orar. Toda a essência da sabedoria
nesta questão consiste em deixar de lado o livro imediatamente, não importa
quão interessante seja, e começar a orar. Não queira terminar o capítulo e
orar depois. Se o fizer, poderá ver que o maravilhoso, glorioso momento se
foi; e não poderá recapturá-lo. No momento em que você sentir o mais leve
movimento ou indicação do Seu amor, corresponda, aja, renda-se a Ele
imediatamente. Seja o que for que Ele o chame para fazer, faça-o logo. E
quando você agir assim, verá que Ele virá mais freqüentemente, e as
manifestações serão mais patentes e mais claras. E então poderá chegar o
dia em que a experiência será mais gloriosa em seu vigor e poder. Como diz
William Cooper:

/is vezes uma luz surpreende O cristão quando ele canta;

E o Senhor em alto vôo,

Trazendo cura nas asas.

Ao mesmo tempo, demos ouvidos à advertência concernente precisamente a


esta questão que se acha no capítulo cinco de Cantares de Salomão, nos
primeiros seis versículos:

“Já vim para o meu jardim, irmã minha, minha esposa: colhi a minha
mirra com a minha especiaria, comi o meu favo com o meu mel, bebi o meu
vinho com o meu leite: comei, amigos, bebei abundamente, ó amados.”

Aí temos a chegada do noivo, quando ele bate à porta da noiva. Mas a


resposta dela é:

“Eu dormia, mas o meu coração velava; eis a voz do meu amado, que estava
batendo; abre-me, irmã minha, amiga minha, pomba minha, minha
imaculada, porque a minha cabeça está cheia de orvalho, os meus cabelos
das gotas da noite: já despi os meus vestidos; como os tomarei a vestir? Já
lavei os meus pés; como os tomarei a sujar?” Seu amado está ali,
implorando-lhe que abra a porta; porém ela está cansada e acha que não
deve incomodar-se e deixar o leito e sujar de novo os pés para abrir a porta.
Ela o deseja, naturalmente, mas não lhe é conveniente recebê-lo naquele
momento. “Eu dormia, mas o meu coração velava.” Ela reconhece a voz,
contudo não pode ser importunada para levantar-se naquele momento. A
narração continua:

“O meu amado meteu a sua mão pela fresta da porta, e as minhas


entranhas estremeceram por amor dele.”

Tendo visto a mão dele, ela diz:

“Eu me levantei para abrir ao meu amado, e as minhas mãos destilavam


mirra, e os meus dedos gotejavam mirra sobre as aldrabas da fechadura”.

Ela pensava que ia vê-lo e que seria arrebatada pelo seu amor. No entanto,
eis que lemos em seguida:

“Eu abri ao meu amado, mas já o meu amado se tinha retirado, e se tinha
ido: a minha alma tinha-se derretido quando ele falara; busquei-o e não o
achei; chamei-o, e não me respondeu”.

O cântico prossegue, descrevendo como ela o procurou. Saiu e caminhou


pelas ruas. Foi maltratada, castigada e ferida; sofreu abuso. Ainda assim,
continuou e continuou a procurá-lo. (Claro, o noivo simboliza Cristo).
Graças a Deus, Ele não a deixou para sempre. Estava simplesmente lhe
ensinando esta grande, central e absolutamente importante lição de que,
sempre que Se aproxima, deve ser agarrado, deve ser seguro imediatamente,
com pronta reação. Não a retarde, não a posterque. Agradeça-Lhe toda
indicação, por mais tênue que seja; corra para Ele, receba-O, seja-Lhe
responsivo. E quando formos responsivos a Ele e a cada aproximação dEle,
Ele Se chegará mais e mais a nós; e nos aqueceremos ao refulgente calor da
Sua face, regozijando-nos com os Seus abraços e nos embriagando com o
Seu glorioso e eterno amor.

Achamo-nos aqui numa atmosfera muito delicada e sensível. Queira Deus


encher-nos com o Seu Espírito e com sabedoria e entendimento, para que
possamos estar despertos, alertas e sensíveis a cada aproximação dEle, e
para que jamais venhamos a ser repreendidos por Ele devido termos
recusado, ou não termos reconhecido, alguma das Suas temas aproximações.
Lembre-se de que Ele está dizendo a você: “Eis que estou à porta, e bato”.
Não permita Deus que haja tanto barulho na casa das nossas almas que não
O escutemos! Não permita Deus que haja tanto estrondo dos ruídos do
mundo que não O ouçamos, e que O deixemos lá fora, batendo à porta.
Sejamos sensíveis a Ele, estejamos preparados, estejamos sempre a ouvi-lO,
anelantes, e esperando por Ele. E quando procedermos assim, com toda a
certeza Ele virá e Se manifestará a nós.
“TODA A PLENITUDE DE DEUS”

E conhecer o amor de Cristo, que excede todo o entendimento, para que sejais
cheios de toda a plenitude de Deus. " Efésios 3:19

Chegamos agora a uma frase, a uma declaração, que foi bem e


acertadamente descrita como “o clímax de toda oração”. É mais que certo
que não se pode conceber nada que seja mais elevado que isto, quer na
esfera da oração e súplica, quer na esfera da experiência. Estivemos
seguindo o apóstolo e observando como, nesta oração, ele esteve escalando
uma montanha, por assim dizer. Ele foi subindo e subindo, passo a passo, e
aqui, afinal, chega ao pico culminante. Seu desejo quanto a estes efésios, e os
seus pensamentos concernentes a eles, realmente, a sua exposição da fé
cristã e das possibilidades da vida cristã neste mundo, foram subindo passo
a passo, até que ele chegou a esta grande altitude.

Ele não estava satisfeito com estes crentes como eles estavam. Ele dá graças
a Deus pelo fato de que eles, que tinham sido pagãos, e então estavam longe
de Cristo e sem Deus no mundo, foram aproximados — “chegastes perto”.
Mas ele não está satisfeito; isso é apenas o começo, não a totalidade de
redenção. Ele tinha sido chamado e separado para “pregar entre os gentios
as insondáveis riquezas de Cristo”, e eles ainda tinham pouco conhecimento
a respeito disso. Eles tinham os primeiros princípios, os elementos
incipientes da fé cristã, e nada mais. É por isso que ele ora da maneira que
ora por eles. Ele quer que compreendam que existem possibilidades mais
altas, maiores, infinitas; e não somente isso, quer também que eles
participem delas; deseja ansiosamente que as desfrutem. Por isso planejou
que a sua oração subisse de degrau em degrau; e aqui chegamos ao clímax,
ao apogeu, ao zênite disso tudo.

Tem-se dito, e com acerto, que “a perfeição do homem consiste em ser cheio
de Deus”. Aqui o apóstolo está orando por essa perfeição. A conexão entre
os vários passos da oração é importante, e assim notamos que a primeira
expressão desta frase é “para que”, “a fim de que”. Ele deseja que eles
compreendam com todos os santos qual é a largura, o comprimento, a
altura e a profundidade, e que conheçam o amor de

Cristo, que ultrapasse o conhecimento, para que eles (e nós com eles) “sejam
cheios de toda a plenitude de Deus”.
Em toda a extensão das Escrituras não há afirmação mais estonteante que
esta. Estamos face a face com a realidade máxima em matéria de
experiência, com a doutrina mais elevada de todas. Devemos, pois, abordá-
la com um sentimento de reverência, e com um sentimento de total
inadequação; e todavia, graças a Deus, com um sentimento de ardente
antecipação. Não há no mundo privilégio mais alto do que examinarmos
juntos esta declaração particular. As nossas mentes naturais, é claro, são
totalmente inadequadas para conceber isto plenamente, ou para entendê-lo.
Já nos foi lembrado várias vezes nesta epístola que os olhos do nosso
entendimento precisam ser iluminados pelo Espírito, se é que havemos de
compreendê-lo pelo menos em parte. Àqueles cristãos que se orgulham de
serem práticos, e para os quais nada importa senão a aplicação social ou
política ou cultural do cristianismo, isto não passa de uma doentia
consideração dos nossos estados, disposições e experiências interiores. No
entanto, os que dão abrigo a esses sentimentos, estão simplesmente
confessando que os seus olhos não foram iluminados; e, como vimos
anteriormente, eles não se deram conta de que, historicamente, os homens
que de fato têm feito mais para o alívio do sofrimento neste mundo são os
que mais conheceram da “plenitude de Deus”. Concentremos a nossa
atenção nisso, a fim de que, sob o domínio de Deus, também possamos
tomar-nos utilizáveis, e possamos ser usados por Ele para fazermos
alguma coisa neste mundo para aliviar a sua dor, a sua tragédia e a sua
tristeza. As pessoas verdadeiramente práticas, diversamente dos meros
tagare-las e teóricas, são homens e mulheres que, à semelhança do
apóstolo Paulo, têm algum conhecimento desta plenitude. Eles são os
maiores benfeitores da raça humana que o mundo já conheceu.

Ao examinarmos esta espantosa frase, de novo somos levados a começar


com uma negativa, por causa da errônea compreensão daqueles que a
abordam com olhos cegos, olhos naturais. Outra vez acentuo que não
estamos lidando com um falso misticismo. Como vimos, há falsos tipos de
misticismo que fazem uso completamente equivocado desta frase e a
compreendem de forma totalmente errada. Há, por exemplo, aqueles que
falam da possibilidade de dissolver-nos ou perder-nos em Deus, no Eterno
ou Absoluto. Algumas das religiões orientais insinuam isso. A salvação final
é a absorção no Eterno. Você perde a sua individualidade, a sua
personalidade e se funde no Divino e no Eterno. Mas não é isso que significa
ser “cheio de toda a plenitude de Deus”. O chamado panteísmo também
entende mal esta frase. O
panteísmo ensina que Deus está em tudo e que, portanto, num sentido, tudo
é Deus. Embora diferindo radicalmente um do outro, estes dois ensinos têm
uma coisa em comum, a saber, que se perdeu a distinção entre Deus e o
homem. Jamais se encontram tais ensinos na Bíblia, onde há sempre uma
distinção essencial entre Deus e o homem. Não há nada deste “dissolver-se
em Deus”nem deste “Deus em tudo”; essas idéias são uma completa
contradição de mensagem essencial das Escrituras, e particularmente do
ensino e dos escritos do apóstolo Paulo. Ele teve que combater precisamente
isso, como vemos por exemplo no capítulo dois da sua Epístola aos
Colossenses. Havia as religiões de mistério, assim chamadas, e várias seitas e
outras religiões nos seus dias, como ainda há, e o apóstolo teve que luta
contra elas. Havia um ensino que falava de uma série de gradações entre o
homem e Deus, e de como o homem podia ascender de um nível para outro.
O apóstolo reprova tais ensinos, a que ele chama “filosofias”, e “rudimentos
do mundo”.

Outros pensam que o que temos nesta frase é o que se chama, numa figura
de linguagem, hipérbole. Eles virtualmente insinuam que o apóstolo estava
sendo arrebatado pela sua própria eloqüência. Claro, um homem pode ser
arrebatado pela sua própria eloqüência, e pelo ímpeto do seu falar. Ele pode
ter chegado a um estágio em que quase parou de pensar. Isso de fato
acontece, e um orador ou escritor pode usar palavras e frases sem pensar
sóbria e seriamente no que está dizendo. Muitas vezes foi feita esta acusação
contra o apóstolo Paulo; mas é uma acusação inteiramente falsa. Quanto
mais analisamos as suas declarações, mais vemos que quando ele escreve
uma frase como esta, apesar da sua mente se comover pela glória e
transcendência daquilo que ele está dizendo, ele não esquece a conexão
lógica com o que foi dito antes. Ele continua construindo a sua
argumentação; a lógica ainda está ali, a estruturação não foi abandonada.
Seu clímax continua coerente com tudo que foi dito até ali, e na verdade é
a conclusão inevitável disso. Portanto, não é mera eloqüência, não é um caso
de empilhar afirmação sobre afirmação, e de atirar palavras ao léu, sem
pensar. É uma afirmação lógica, clara e muito precisa. Jamais o apóstolo se
fez culpado de fazer “arte pela arte”. Nunca se propôs deliberadamente ser
eloqüente. Sua eloqüência é incidental, ou melhor, quase incidental. É a
glória da verdade que produz a eloqüência. O apóstolo não estava
interessado em formas literárias, ou em meramente causar impressão. Ele
não foi um retórico profissional, nem tampouco um literato profissional.
A última interpretação errônea para a qual chamo a atenção é a que afirma
que tudo aquilo a favor do que o apóstolo está realmente orando

é que os efésios recebam e gozem as múltiplas bênçãos que Deus tem para
dar-nos, e que quando ele diz, “para que sejais cheios de toda a plenitude de
Deus”, de fato está dizendo, “para que sejais cheios de todas as múltiplas
bênçãos que Deus pode dar ao cristão que crê”. Rejeito tal insinuação
também, e por esta razão, que seria um anticlímax, e não um clímax.
Referir-se somente às bênçãos da vida cristã depois de falar de Cristo
habitando pela fé no coração, e de compreender “a largura, o comprimento,
a altura e a profundidade”, e conhecer o amor de Cristo de maneira
imediata e direta, seria patético. Essa é uma coisa da qual nunca se pode
culpar o apóstolo. Não! Aqui se trata do passo final numa série ascencional.
Aqui ele chegou ao ápice, está num dos grandes picos do plano divino de
redenção, não havendo nada mais alto. Esta afirmação não deve ser
reduzida ao nível de uma bênção geral. Ele quer dizer o que diz; podemos
ser verdadeiramente “cheios de toda a plenitude de Deus”.

Portanto, que é que pode ser mais importante do que saber exatamente o
que o apóstolo quer dizer com esta expressão? Desafortunada-mente, a
“Authorized Version” (Versão Autorizada) é um tanto falha, pois introduz a
palavra “com” — “para que sejais cheios com toda a plenitude de Deus”.
Isso tende a dar a impressão de que é possível a nós, seres humanos, sermos
cheios com toda aquela plenitude que é Deus. O apóstolo não está dizendo
isso, como devo passar a demonstrar. Uma tradução melhor seria, como
geralmente se concorda, não “para que sejais cheio com toda a plenitude de
Deus”, e sim “para que sejais cheios para ou com respeito a toda a plenitude
de Deus.2 Traduzir assim evita aquela idéia sumamente infeliz.

Evidentemente é impossível ao ser humano conter a total plenitude de Deus.


Contudo, historicamente, houve fanáticos na Igreja que, não sabendo o que
diziam, reivindicavam isso para si mesmos. Isso geralmente levava a
conseqüências desastrosas. O diabo está sempre esperando para segurar-nos
e impedir-nos de seguir a verdade, ou, quando já estamos dentro dos
domínios da verdade, forçar-nos a avançar e a fazer-nos pretender demais e
tomar-nos fanáticos. Fanatismo é perder o equilíbrio da verdade e o
equilíbrio da fé, e acaba levando a uma condição trágica e patética, e muito
dano tem feito à Igreja. Ser como Deus, é para o homem — cristão ou não
— uma pura e simples impossibilidade. Vê-se isso claramente no capítulo
três do livro de Gênesis, onde lemos: “Então a serpente disse à mulher:
certamente não

morrereis (se comerdes do fruto). Porque Deus sabe que no dia em que dele
comerdes se abrirão os vossos olhos, e sereis como Deus, sabendo o bem e o
mal (versículos 4 e 5). Noutras palavras, o diabo estava insinuando que Deus
fora injusto para com o homem e a mulher; que Ele os estava mantendo em
baixa condição, porém, se comessem do fruto, viriam a ser como “deuses”
(AV), e iguais a Deus.

Talvez seja melhor tratar da questão que está diante de nós de maneira
teológica. Tradicionalmente tem sido costume, no ensino da doutrina e da
teologia cristãs, dizer que se pode dividir os atributos de Deus em dois
grupos. Certos atributos de Deus são incomunicáveis; não podem ser
comunicados. Mas certos outros atributos são comunicáveis. A vital
distinção entre os dois grupos dá-nos a chave para entendermos a nossa
frase, “para que sejais cheios de toda a plenitude de Deus”. Se fosse certo
dizer que a totalidade de Deus pode habitar em nós, tudo que é próprio de
Deus seria própria de nós. Todavia os atributos incomunicáveis de Deus
tomam imediatamente claro que isso não pode acontecer.

Os atributos de Deus são, primeiro, a eternidade. Deus é etemo, “de


eternidade a eternidade”. É óbvio que este atributo é incomunicável; é algo
que pertence exclusivamente a Deus. Outro atributo é a imutabilidade. Deus
não pode mudar. Ele é etemamente o mesmo, “o Pai das luzes, em quem não
há mudança nem sombra de variação” (Tiago 1:17). Isso nunca é próprio do
homem. Há depois a onipresença. Deus está em toda parte. Deus está no
céu; Deus está na terra; Deus está em toda parte. O Salmo 139 dá-nos uma
notável expressão desta verdade. Este atributo também é claramente
incomunicável. Em seguida, pensemos na onisciência de Deus. Deus sabe
todas as coisas; não há nada que Ele não saiba. Depois vem a onipotência.
Não há limite para o poder de Deus; é um poder absoluto, sem nenhum
limite. Obviamente, de novo, este não é comunicado ao homem.

Mais maravilhosa ainda é a bem-aventurança absoluta de Deus; Ele é


“etemamente bendito” (2 Coríntios 11:31). Isso leva à Sua glória. É algo que
não podemos conceber, e é o atributo que permeia e ilumina todos os outros.
Deus é glorioso em majestade e poder. A Bíblia fala constantemente do
“glorioso Deus” e da “glória de Deus”. Significa Sua perfeição, Sua
majestade, Seu esplendor. “Deus nunca foi visto por alguém” (João 1:18) e
“Ninguém pode ver a Deus, e viver”. Isto é por causa do esplendor de Deus,
da Sua majestade e da Sua glória. Até a Moisés, quando desejou ver a Deus,
foi dito que ele não podia ver a face de Deus. Deus lhe disse que só lhe seria
permitido vê-lO “pelas costas” (Êxodo 33:20-23). Os que tiveram uma visão
de Deus geralmente ficaram estupefatos. O apóstolo João, em Patmos, “caiu
como morto”

(Apocalipse 1:17). Isso por causa da glória e majestade de Cristo Jesus.


Todos estes atributos de Deus são Seus atributos essenciais e, obviamente,
todos eles são incomunicáveis. Assim, nunca devemos interpretar a nossa
frase como se dissesse que Deus, como Ele é, pode habitar em qualquer ser
humano, até mesmo num homem poderoso. Isto se vê com muita clareza na
encarnação do nosso Senhor, como vem explicada na Epístola aos
Filipenses, onde nos é dito que Ele “humilhou-se a si mesmo” a fim de fazer-
Se semelhante aos homens (2:5-9).

Por outro lado, os atributos comunicáveis podem ser dados ao homem e,


pela graça de Deus, são dados ao homem. Um é a santidade. Deus é santo;
todavia, é Ele que nos ordena assim: “Sede santos, porque eu sou santo” (1
Pedro 1:16). Portanto, a santidade é comunicável. O mesmo se aplica à
retidão, eqüidade e justiça. A glória central da salvação cristã é que “uma
justiça de Deus” agora é dada ao homem mediante a redenção que há em
Cristo Jesus. Outros atributos comunicáveis são a bondade, o amor, a
misericórdia, a compaixão, a benigni-dade, a longanimidade, a fidelidade.
Na Epístola aos Gálatas Paulo faz um sumário disso, dizendo: “O fruto do
Espírito é: caridade (amor), gozo, paz, longanimidade, benignidade,
bondade, fé, mansidão, temperança” (5:22-23). Os atributos comunicáveis
de Deus aparecem no homem como “o fruto do Espírito”.

Agora começamos a entender algo do significado desta grandiosa frase. Ela


não deve ser tomada num sentido absoluto; e, todavia, há um sentido em
que ela deve ser tomada literalmente. Não se refere somente às bênçãos de
Deus; é de fato a comunicação de algo da plenitude do próprio Deus. A
questão que agora surge é: como isto se toma nosso? Em que sentido o
apóstolo ora corretamente para que os efésios, e todos os cristãos, sejam
cheios para, “com respeito a”, “toda a plenitude de Deus”? Tudo isso
acontece, devemos recordar, em nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, e
mediante Ele. Tudo isso tomou-se possível como resultado da Sua
encarnação e da obra que Ele realizou a nosso favor. Noutras palavras, a
plenitude da qual Paulo fala tomar-se nossa mediante a habitação de Cristo
em nossos corações e o nosso conhecimento do Seu amor.

Com que cuidado o apóstolo constrói a sua argumentação e a desenvolve!


Ele já tinha orado para que Cristo habite pela fé em nossos corações,
porque sem isso, sermos cheios da plenitude de Deus é pura impossibilidade.
Mas quando Cristo habita de fato em nossos corações pela fé, e quando
começamos a conhecer o Seu amor, então a plenitude de Deus começa a
penetrar em nós.

Certas Escrituras paralelas ajudam a elucidar esta afirmação. Tomem uma


vez mais o que o nosso Senhor ensina no capítulo quatorze

do Evangelho segundo João. Diz Ele: “Se alguém me ama, guardará a


minha palavra, e meu Pai o amará, e viremos para ele, e faremos
nele morada” (14:23). Aí temos uma afirmação semelhante. Notem os vários
passos — “Se alguém me ama, guardará a minha palavra, e meu Pai o
amarás, (nós o Pai e o Filho) viremos para ele, e faremos nele morada”. O
Pai e o Filho! Esta afirmação se relaciona com a doutrina do Espírito Santo,
o Consolador que havia de vir. No Evangelho segundo João vemos o nosso
Senhor profetizar o que ia tomar-se possível. Paulo afirma que agora é
possível. Acontecera com ele, e ele está orando para que o mesmo aconteça
com os efésios. Primeiramente, diz ele, precisamos ser fortalecidos com
poder pelo Espírito no homem interior; depois Cristo estabelece a Sua
habitação no coração pela fé; e depois Deus o Pai — o Pai a quem ele está
orando — concede que Sua plenitude habite em nós. É a mesma ordem que
vemos no capítulo quatorze do Evangelho segundo João. Acaso não é
assombroso que, estando ainda num mundo como este, podemos pensar
nessas verdades tão maravilhosas e gloriosas, e examiná-las? Não estamos
discutindo teologia abstrata; é verdade intensamente prática. O apóstolo
ora para que os cristãos a conheçam e a experimentem.

Isto é possível graças àquilo que é próprio do Senhor Jesus Cristo. Se Cristo
habita pela fé no meu coração, segue-se que a plenitude da Deidade está em
mim pela fé. Permitam-me demonstrar que é este o caso. Referindo-se ao
Senhor Jesus Cristo, diz-nos o apóstolo em sua Epístola aos Colossenses que
“foi do agrado do Pai que toda a plenitude nele habitasse” (1:19). Pouco
depois, a respeito de Cristo, ele diz: “Em quem estão escondidos todos os
tesouros da sabedoria e da ciência” (“do conhecimento”) (2:3). Toda a
sabedoria e todo o conhecimento de Deus estão ocultos em Cristo. E depois
ele vai ainda além, e diz: “Porque nele habita corporalmente toda a
plenitude da divindade” (Av: “Divindade”, com inicial maiúscula) (2:9).

Como é fraca a linguagem! Como são raquíticos a mente e o entendimento


humanos! Mas aí está a verdade! Olhem para Jesus de Nazaré. Vê-se
claramente que é um homem no corpo, como todos os outros homens. Ele
está verdadeiramente num corpo; não é um fantasma coberto de carne, é
tão verdadeiramente homem como nós, Seu corpo é tão real como o seu e o
meu. E, contudo, “nele habita corporalmente toda a plenitude da
divindade”. A totalidade de Deus estava nEle. Ou vejam a Epístola aos
Hebreus. “Havendo Deus antigamente falado muitas vezes, e de muitas
maneiras, aos pais, pelos profetas”, diz o autor, “a nós falou-nos nestes
últimos dias pelo Filho.” Depois ele descreve o Filho, Jesus assim: “O qual,
sendo o resplendor da sua glória, e a expressa imagem da sua pessoa...” O
resplendor da

Sua glória! O fulgor, a expressa imagem da Sua pessoa! Não é apenas uma
aparência, e sim a própria coisa, o resplendor da glória e da imagem de
Deus.

A doutrina é, pois, que em nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo “habita


corporalmente toda a plenitude da divindade”. Segue-se, portanto, que, se
Ele habita em nossos corações, também somos cheios de toda a plenitude de
Deus. Este é o propósito de Deus e nosso respeito. O apóstolo ensina isto
explicitamente na Epístola aos Romanos, onde ele diz: “Porque os que
dantes conheceu também os predestinou para serem conformes à imagem
de seu Filho; a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos”
(8:29). Havemos de ser “conformes à imagem de seu Filho”.

Entretanto, essas outras Escrituras à parte, o ensino é claro no capítulo


quatro desta Epístola aos Efésios. Diz ali o apóstolo que Deus deu apóstolos
e profetas, evangelistas, pastores e mestres, “querendo o aperfeiçoamento
dos santos, para a obra do ministério, para edificação do corpo de Cristo;
até que todos cheguemos à unidade da fé, e ao conhecimento do Filho de
Deus, a varão perfeito, à medida da estatura completa de Cristo” (AV: “à
medida da estatura da plenitude de Cristo”) (11-13). Nada menos! Isso é
essencial ao cristianismo. Cristianismo não é você parar na conversão e no
conhecimento de que os seus pecados estão perdoados, e então contentar-se
com isso pelo resto da vida; cristianismo é ingressar e desenvolver-se rumo à
medida da estatura da plenitude de Cristo. Precisamos desenvolver nossas
mentes e nossas faculdades, se é que desejamos tomar posse disso. Se
nos contentamos com menos que isso, não passamos de crianças em Cristo, e
somos indignos deste glorioso evangelho.

Ademais, neste capítulo quatro da Epístola aos Efésios, o apóstolo diz a estes
cristãos que, à luz disso tudo, eles devem “despojar-se do velho homem, que
se corrompe pelas concupiscências do engano”. “E vos renoveis”, diz ele,
“no espírito do vosso sentido; e vos revistais do novo homem, que segundo
Deus é criado em verdadeira justiça e santidade”, ou “na santidade da
verdade”, na própria santidade de Deus. Esse é o método de Paulo para
ensinar santidade. Você não poderá ser santo, se não conhecer bem a
doutrina. Doutrina é a ligação direta que leva à santidade. É somente
quando compreendemos estas verdades fundamentais que podemos atender
ao apelo lógico para a conduta e o comportamento agradáveis a Deus.

Finalmente vamos considerar como funciona tudo isso na prática. A


resposta se acha na gloriosa doutrina neotestamentária da união do crente
com Cristo. Estamos “em Cristo”; e Cristo está “em nós”. Não

tentem compreender isto, pois “ultrapassa o conhecimento”, “excede o


entendimento”. Diz-nos o Novo Testamento que somos unidos a Cristo, que
estamos “nele”. No capítulo cinco da mesma Epístola vemos o apóstolo dizer
que somos “membros do seu corpo, da sua carne e dos seus ossos” (versículo
30). Isso indica a natureza da união. Para podermos ter uma idéia de como
isto funciona, vejamos algumas das mais gloriosas declarações que se acham
na Bíblia inteira. O apóstolo João escreve no prólogo do seu Evangelho: “E
todos nós recebemos também da sua plenitude, e graça por graça”
(versículo 16). O nosso Senhor tinha ensinado essa verdade nos dias da Sua
carne, quando disse: “Eu sou a videira, vós as varas” (João 15:5). Essa é
a relação — a de uma videira e os seus ramos. Isto nos ajuda a
entender como podemos ser cheios da plenitude de Deus. Já no capítulo
primeiro desta Epístola aos Efésios, referindo-se à Igreja, o apóstolo diz:
“Que é o seu corpo, a plenitude daquele que cumpre tudo em
todos” (versículo 23).

Por conseguinte, a plenitude de Deus pode residir em mim exatamente do


modo como a plenitude da vida da videira também está em cada um dos
ramos e brotos individuais. A plenitude da videira, a essência, a vida, aquele
elemento da seiva que faz da videira uma videira autêntica, está nos ramos
também. Toda a plenitude da videira está nos ramos por causa da ligação
orgânica, da união vital de todas as suas partes.

Ou tomando o ponto em termos do corpo, analogia que tantas vezes o


apóstolo usou, é próprio dizer que toda a plenitude da minha vida e do meu
ser está em meu dedo mínimo por causa desta união orgânica e desta
relação das partes. As diversas partes do meu corpo não são postas juntas
de maneira solta; são partes vivas de mim, e o meu sangue passa pelo meu
dedo mínimo como pela minha cabeça. A plenitude da minha cabeça está
em meu dedo mínimo por causa desta relação orgânica, vital. Daí, posso
dizer que a plenitude da minha vida está no meu dedo. Há um sentido em
que a totalidade da minha vida não está no meu dedo. Posso viver sem o
meu dedo mínimo; e todavia, enquanto este dedo mínimo fizer parte do meu
corpo, minha vida estará nele, minha plenitude estará nele.

Noutras palavras, para compreendermos esta grande verdade concernente à


plenitude de Deus em nós, temos que parar de pensar em termos de
quantidade, e pensar mais em termos de qualidade. Se Cristo está em mim,
“toda a plenitude da divindade” está em mim no sentido de que essa
qualidade de vida está em mim. A quantidade varia consideravelmente no
mesmo homem de tempos em tempos; varia de um cristão a outro, mas
todos podemos receber da plenitude.

Com relação a isso, ouvi uma vez uma ilustração que achei útil para
mostrar como podemos ter a plenitude, e todavia ter mais dela. Implicava o
sopro de ar numa bexiga ou num balão. Você sopra certa porção de ar nele,
e pode dizer que ele está cheio de ar; depois sopra mais ar nele, e ele
continua cheio de ar, se bem que maior do que antes. O balão estava cheio
de ar em ambas as ocasiões, todavia ficou maior. Ou você pode pegar uma
garrafa e enchê-la de água do mar. Pode dizer que a garrafa agora está
cheia do mar. Mas você pode usar um grande tanque para fazer a mesma
coisa. Tanto a garrafa como o tanque têm uma plenitude, porém não têm a
mesma quantidade. A plenitude do mar é sempre a mesma, e a pequena
garrafa tem as mesmas características do mar em sua plenitude, como o
tanque, embora em termos de galões haja grande diferença. Assim, é-me
possível “crescer na graça” como também no “conhecimento do Senhor”.
Não significa que somos todos idênticos porque todos temos a plenitude de
Deus. Não significa que todos temos os mesmos dons. O apóstolo continua a
dizer no capítulo seguinte que há variedades — alguns são apóstolos; alguns
são profetas; alguns são evangelistas; alguns são pastores; alguns
são mestres; e assim por diante. Os dons diferem e as graças
também. Contudo Deus é sempre um, e como a plenitude de Deus está em
todos nós, somos todos um, porém não idênticos em todos os aspectos.

Dessa maneira, pode-se ter dois cristãos, um dos quais tem um brilhante
intelecto, e o outro sendo uma pessoa bem comum, sem nenhum dom
notável. Não obstante, graças a Deus, este pode ser cheio da plenitude de
Deus exatamente do mesmo modo que aquele. Esta plenitude não
transforma o homem comum num gênio de repente; ele não se toma
subitamente um brilhante escritor ou orador ou pregador ou outra coisa
qualquer. Seus dons permanecem como eram, como permanecem todas as
suas inclinações e faculdades. Mas, porque Cristo está nele, e por causa da
sua relação com Cristo, ele é cheio de toda a plenitude de Deus tão
verdadeiramente como o outro cristão. O que importa não é a quantidade, e
sim a qualidade da nossa relação com Cristo, e a nossa experiência do amor
de Cristo. Isso o eleva acima da esfera dos dons e faculdades.

Termino lembrando a vocês como o nosso Senhor expressou isso


pessoalmente no Sermão do Monte, quando disse: “Sede vós pois perfeitos,
como é perfeito o vosso Pai que está nos céus” (Mateus 5:48). Ele disse isso
quando falava sobre o amor, sobre amar os seus inimigos e fazer o bem aos
que o odeiam. Deus faz isso, diz Ele, e vocês devem ser como Ele e fazer o
mesmo. Isto não significa que subitamente nos tomamos divinos e deixamos
de ser homens; nós não nos tomamos eternos, imutáveis, absolutos,
onipotentes e oniscientes; entretanto a

plenitude de Deus em Seus atributos comunicáveis adentra o nosso ser, e nos


tomamos capazes de manifestar e demonstrar o mesmo amor aos inimigos
que Deus mostra para com os pecadores. É isso que devemos procurar; é
por isso que devemos fazer esta oração que Paulo fez pelos efésios —
fazendo-a por nós mesmos dia após dia e incessantemente, até chegarmos à
“medida da estatura da plenitude de Cristo”.

A EXPERIÊNCIA DA PLENITUDE
“E conhecer o amor de Cristo, que excede todo o entendimento,

para que sejais cheios de toda a plenitude de Deus. ” Efésios 3:19

Ao darmos continuidade a este grande assunto, eu gostaria de insistir


particularmente em que nos lembrássemos de que estamos tratando de algo
essencialmente prático, e não de uma espécie de contemplação místico,
abstrata, vaga. O apóstolo que escreveu estas palavras era um evangelista,
um mestre e um pastor; e ele não estava interessado em dar aos cristãos
efésios um prazer místico, ou algum interessante problema metafísico para
deslindarem. Ele não escreveu com a finalidade de incentivá-los a
discutirem doutrina; escreveu sua Epístola com o fim de ajudá-los em sua
vida e em seu viver diário. Algo essencialmente prático, uma realidade
concreta, está aqui diante de nós. Deveras afirmo que não há nada tão
completamente prático como isto. Estou disposto a asseverar que esta
oração do apóstolo em favor dos efésios é a questão mais urgentemente
prática para a consideração da Igreja Cristã na hora presente.

Receio que é próprio acrescentar que a Igreja não percebe isto, pois temos a
curiosa idéia de que ser prático é entregar-nos a atividades do nosso próprio
nível. Não é esse o ensino do Novo Testamento. Se realmente desejamos
fazer algo para Deus e por Cristo, então, de acordo com o ensino do Novo
Testamento, não devemos começar de imediato; primeiro devemos
certificar-nos de que somos cheios da plenitude de Deus, e do poder que,
necessariamente, disso resulta. É de presumir que o apóstolo Paulo fez mais
na Igreja e por ela do que qualquer homem que já viveu, mas nunca
esqueçamos que ele passou três anos na Arábia antes de empreender o seu
ministério. Ele não começou a agir a partir do momento em que foi
convertido. Ele não subscreveu o moderno lema: “Dê ao recém-convertido
algo para fazer”. Três anos na Arábia! Todavia, quando se retirou da
Arábia, veio cheio da plenitude de Deus e de poder. Essa é a explicação da
sua atividade vigorosa e dos maravilhosos resultados que acompanharam o
seu ministério.

A mesma coisa tem-se repetido muitas vezes na história doutros

servos de Deus através dos séculos. Em certo sentido, nunca houve homem
mais ocupado nem mais ativo que João Wesley antes de 1738; no entanto ele
era um completo fracasso. Mas depois, e como resultado daquela
experiência singular na Rua Aldersgate, Londres, quando seu coração
“aqueceu-se estranhamente”, todo o seu ministério mudou e logo ele se
tomou um poderoso e vigoroso evangelista. Nisso ele seguira o padrão do
Novo Testamento. Percebia que lhe faltava poder, e especialmente que lhe
faltava o conhecimento de Cristo que certos irmãos morávios tinham; de
fato achava que devia parar de pregar; e foi só depois que lhe foi dada a
certeza de que os seus pecados foram perdoados, que Deus o usou e o
empregou de maneira extraordinária.

Por isso garanto que não existe nada mais prático do que esta experiência.
O homem verdadeiramente prático não é o que está sempre alvoroçado,
ocupado, agitado, sempre correndo para lá e para cá, mas sim, é o que está
sendo usado por Deus o Espírito Santo. Ah, se a Igrej a fosse levada a
compreender isso! Este é o avivamento de que a Igreja necessita. Somente
quando ela for avivada pelo Espírito é que se tomará poderosa. Enquanto
continuarmos confiando em nossas habilidades e atividades, não serviremos
para nada. A Igreja precisa desta plenitude de Deus — a única maneira pela
qual ela poderá ser levada à verdadeira atividade prática.

Recentemente dei com uma declaração que me pareceu atingir em cheio a


verdade acerca de muitos cristãos dos dias atuais. O escritor escreveu: “A
religião parece fazer parte do quintal da vida, não examinado e quase não
utilizado”. Ele se referia aos que estão dentro da Igreja. Sua religião parece
estar nos fundos, e não na frente das suas vidas, não no centro. Utilizando o
que considero uma excelente ilustração, ele continuou, dizendo: “Para a
vasta maioria, (a religião) pode ser comparada com o conhecimento de que,
numa emergência, pode-se discar determinado número”, o número do
pronto-socorro. Cada qual trata de examinar-se. Onde estas coisas entram
em sua vida? Porventura a verdade cristã é algo que você gosta de ter e de
saber que estará aí se ficar gravemente enfermo, ou se algum ente querido
ficar doente, ou se de repente tiver que enfrentar a perda da sua renda,
ou quando suceder algum desastre, ou quando você estiver no leito
de morte? Ela é meramente algo que você mantém no fundo do quintal
da sua vida? Ela não foi destinada a ocupar essa posição.

Não é isso que o apóstolo pede em oração para os efésios. A fé cristã não é
um fundo de reserva a que você possa recorrer. Não é um pronto-socorro
para o qual você possa telefonar pedindo ajuda numa hora de dificuldade.
Não é algo que se possa descrever como “não examinado e quase não
utilizado”. Sabemos o que é ser “fortalecido com poder”

pelo Seu Espírito no homem interior? Estaria Cristo habitando pela

fé em nossos corações”? Sabemos nós, com todos os santos o comprimento e


a largura, a altura e a profundidade deste amor de Cristo que ultrapassa o
conhecimento, para que sejamos “cheios de toda a plenitude de Deus”? Isto
nos interessa? É central em nosso pensamento? Onde o cristianismo entra
em nossas vidas? É algo que só lembramos domingo de manhã e que
esquecemos durante o restante do domingo, para não dizer durante a
semana? É algo de que você só se lembra de vez em quando? Ou é o centro,
“a razão de ser e o ponto final” da nossa vida, existência e atividade? Paulo
ora para que seja isso; para que, de fato, conheçamos toda a plenitude de
Deus.

No entanto, que é que isso significa na prática? Que significa


experimentalmente? Já examinamos o assunto doutrinariamente; agora
vamos examiná-lo experimentalmente e de um ponto de vista prático. Que
será próprio de um homem que sabe o que é ser cheio de toda a plenitude de
Deus? Primeiramente, significa que Deus habita em nós de tal modo que Ele
nos domina e domina todas as nossas faculdades; na verdade, de tal modo
que, por uma inevitabilidade lógica, Deus domina a totalidade de nossa
vida. Ele domina o nosso pensar, as nossas emoções e as nossas ações
externas. Deve-se pensar no homem em termos da sua mente, do seu
coração e da sua vontade. Se somos cheios de toda a plenitude de Deus,
significa que Deus nos está dominando na mente, na esfera da cognição; no
coração, as emoções, os sentimentos; e na esfera da vontade, as ações
externas e todas as nossas atividades.

Tudo isso significa, primeiro e acima de tudo, que o nosso pensamento é


dominado por Deus e pela mente de Deus. Há declarações nas Escrituras
que indicam com muita clareza o que quer dizer isso. Tomem, por exemplo,
a declaração na Epístola de Paulo aos Romanos: “Rogo-vos, pois, irmãos,
pela compaixão de Deus, que apresenteis os vossos corpos — vossos corpos
literais, físicos — em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso
culto racional. E não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos
pela renovação do vosso entendimento, para que experimentais qual seja a
boa, agradável, e perfeita vontade de Deus” (12:1-2). Notem a menção que
Paulo faz da “renovação da mente”. As nossas mentes nunca são livres.
Não existe isso de “livre pensamento”. É sempre run total
impossibilidade. Sei que a Associação da Imprensa Racionalista
(“Rationalist Press Association”) afirma que a mente do homem é livre,
porém isso não passa de uma ilusão do homem em pecado. Por natureza, e
como resultado do pecado, a mente é sempre dominada pelo mundo e pela

perspectiva do mundo. A diferença entre o incrédulo e o cristão é que, ao


passo que a mente do incrédulo é dominada pelo mundo, a do cristão foi
“transformada” e “renovada” pelo Espírito Santo. O resultado é que agora
o cristão pode pensar de maneira espiritual, ao passo que anteriormente não
podia.

Vê-se uma exposição particularmente clara desta verdade na Primeira


Epístola de Paulo aos Coríntios. O apóstolo explica que a mente do homem
natural “não compreende as coisas do Espírito de Deus”. Esta coisas “lhe
parecem loucura; e não pode entendê-las.” Diz ele também: “Porque, qual
dos homens sabe as coisas do homem, senão o espírito do homem, que nele
está? Assim também ninguém sabe as coisas de Deus, senão o Espírito de
Deus”. O homem natural não as compreende nem as pode entender “porque
elas se discernem espiritualmente”. Então ele acrescenta: “Mas o que é
espiritual discerne bem tudo, e ele de ninguém é discernido” (AV: “julga...
não é julgado”). “Porque, quem conheceu a mente do Senhor, para que
possa instruí-lo? Mas nós temos a mente de Cristo” (2:11 -16). O apóstolo
quer dizer que, se formos cheios de toda a plenitude de Deus, e se Cristo
habitar pela fé em nossos corações, então teremos “a mente de Cristo”. Isto
é inevitável, como afirmo o apóstolo.

Noutras palavras, Paulo afirma que o homem cheio de toda a plenitude de


Deus é que pode pensar espiritualmente. Não há nada mais glorioso, nada
mais romântico acerca da vida cristã do que a maneira pela qual ela muda
inteiramente o tipo de pensamento de um homem, na verdade todo o seu
método e modo de pensar. Acaso está clara para nós a diferença entre
pensar naturalmente e pensar espiritualmente? O cristão não somente tem
uma nova perspectiva, tem também um novo modo de pensar, um novo tipo
de pensamento. Segue-se disso que uma boa prova para ver se somos
cristãos é a nossa reação a porções das Escrituras como a que estamos
examinando. Sentimo-la inteiramente estranha, ou ela nos fala? O apóstolo
pensava de modo espiritual, e ele não escreve segundo as palavras do
pensamento do homem ou da língua do homem, mas de acordo com o
Espírito. A terminologia é espiritual, na verdade tudo é espiritual. E,
naturalmente, se não tivermos a mente renovada, transformada, estas coisas
serão loucura para nós. Entretanto, para o homem em quem Cristo habita,
para o homem que tem em si esta “plenitude de Deus”, para o homem cuja
mente agora está sendo dominada e governada por Deus, estas coisas são
tudo, e são o seu maior deleite. Isso encontra feliz expressão no bem
conhecido hino de Francês Ridley Havergal,

Toma a minha vida, e faze-a... -261 -

Num dos seus versos ela emprega esta expressão:

Toma o meu intelecto, e sua Todo o poder, como quiseres.

É muito difícil expressar estas coisas em palavras, mas todo o modo de


pensar é essencialmente diferente. É diverso do pensar político ou filosófico;
é de natureza espiritual. É por isso que o homem cujo intelecto foi revestido
da graça de Deus, pode pensar espiritualmente e compreender as Escrituras
com muito maior êxito do que o homem que tem um grande cérebro, todavia
não tem entendimento espiritual. A fé cristã necessita de um tipo e modo de
pensar inteiramente diverso. O novo homem em Cristo tem um sentido
espiritual, um instinto espiritual, que o capacita a seguir e a compreender a
verdade espiritual a qual não significa nada para o homem natural, ou seja,
o incrédulo.

O segundo elemento posto sob domínio é a parte emocional do nosso ser,


onde está sediada a emoção. Isto de novo é igualmente inevitável. O homem
em quem habita toda a plenitude de Deus é dominado pelo amor de Deus.
Vê-se isto supremamente no caso do nosso Senhor Jesus Cristo, e quando
Ele habita em nós, toma-se uma característica de nós. Disse Ele
repetidamente que não tinha vindo ao mundo para fazer a Sua própria
vontade; tinha vindo para agradar e glorificar o Pai. E Ele pôde dizer no
fim da Sua carreira terrena: “Pai, eu glorifiquei-te na terra” (João 17:4).
Noutras palavras, quando Deus domina os nossos corações, deixamos de ser
governados pelo ego. Quando o amor de Deus entra, o amor do ego sai. E
quando o amor do ego sai e o amor de Deus entra, começamos a amar os
outros.

Um dos mais notáveis exemplos e ilustrações disso acha-se no caso do mártir


Estêvão. Ele fora condenado injustamente e estava sendo apedrejado até à
morte, contudo sua oração foi: “Senhor, não lhes imputes este pecado” (Atos
7:60). Fora de tal modo liberto do ego que, à semelhança do seu bendito
Senhor e Mestre antes dele, pôde orar pelos seus inimigos; pôde amar os
seus inimigos e rogar a Deus que tivesse misericórdia deles. Vemos o mesmo
espírito no apóstolo Paulo. Em sua Primeira Epístola aos Coríntios ele diz:
“A mim mui pouco se me dá de ser julgado por vós, ou por algum juízo
humano; nem eu tão pouco a mim mesmo me julgo” (4:3). Que
transformação! Houve tempo em que ele era muito sensível ao julgamento e
à crítica. Ele julgava os outros, mas detestava ser julgado. Mas tudo
mudara. Por quê? Porque fora cheio de amor de Deus! O antigo amor do
ego e a antiga preocupação consigo mesmo tinham desaparecido. Ele foi

dominado por Deus e, assim, o que preocupava agora não era o que as
pessoas diziam e pensavam dele, e sim o que pensavam de Deus e do Senhor
Jesus Cristo.

Da mesma maneira, a vontade é dominada por Deus, bem como todas as


nossas ações e atividades. O nosso Senhor diz de Si: “Eu desci do céu, não
para fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou” (João
6:38). O Filho de Deus não Se agarrou às Suas prerrogativas; humilhou-Se,
fez-Se um servo, pôs de lado a Sua vontade, e tudo quanto dizia e fazia era
determinado pela vontade do Pai.

Isto caracterizava também o apóstolo Paulo. Numa passagem lírica do livro


de Atos, vemo-lo despedir-se dos presbíteros da igreja de Éfeso. Ele estava a
caminho de Jerusalém, e diz: “Não sei o que lá me há de acontecer; senão o
que o Espírito Santo de cidade em cidade me revela, dizendo que me
esperam prisões e tribulações, mas em nada tenho a minha vida por
preciosa, contanto que cumpra com alegria a minha carreira e o ministério
que recebi do Senhor Jesus, para dar testemunho do evangelho da graça de
Deus” (20:22-24). Sua vontade perdera-se inteiramente na vontade do seu
Senhor.

Toma a minha vontade, e faze-a Tua;

Ela não será mais minha,

tinha sido a sua oração, e esta fora respondida, tinha se concretizado. Mais
adiante, em Atos, vemos uma quase exata repetição do que ele dissera em
Éfeso. Certos amigos estavam insistindo com Paulo que não fosse para
Jerusalém, porque sabiam que ele seria tratado com crueldade. Entretanto
Paulo respondeu: “Que fazeis vós, chorando e magoando-me o coração?
porque eu estou pronto não só a ser ligado, mas ainda a morrer em
Jerusalém pelo nome do Senhor Jesus” (21:13). Ele não tinha vontade
própria; sua vontade se absorvera na do seu Senhor; ele a entregara, e na
dEle ela desaparecera. Ele era inteiramente governado pela mente, pelo
coração e pela vontade do Senhor Jesus Cristo que habitava pela fé em seu
coração.

Tudo isso é o primeiro resultado de sermos “cheios de toda a plenitude de


Deus”. Isso é expresso de maneira incomparável num dos mais grandiosos
hinos de Charles Wesley:

Dá-me a fé que pode remover

Montanha, e torná-la uma planície;

Dá-me o amor que ora qual criança,

Que anela Tua casa reconstruir;

Teu amor me domine o coração

E sorva a minha alma redimida.

Quero remir o precioso tempo,

Quero viver mais por isto só —

Gastar e ser gasto por aqueles Que ainda não conhecem o Salvador;

A missão por eles cumpro, e aspiro,

Para respirar o Teu amor.

Meus dons, talentos e virtudes Em Tuas mãos benditas toma, ó Deus,

Deixa-me viver para pregar A Tua Palavra, e para a Tua glória,


Todo o santo instante meu passar Anunciando o Amigo dos pecadores.

Alarga, inflama e enche-me o coração Do divino amor, sem limites;

Em ação porei todas as forças E os amarei com zelo igual ao Teu;

E os conduzirei para o Teu lado,

Ovelhas por quem seu Pastor morreu.

Com estas comoventes palavras, Charles Wesley nos conta o que ele pedia
para si em oração, e é apenas um reflexo daquilo que Paulo pedia em oração
para os efésios. Quando a plenitude de Deus habita em nós, a mente, o
coração e a vontade são subjugadas e governadas pelo Senhor Jesus Cristo.

Em segundo lugar, cheio de toda a plenitude de Deus é o homem do qual


todo objetivo e instinto espiritual é satisfeito. No momento em que nascemos
de novo, ou que somos regenerados, no momento em que este novo princípio
é posto em nós, no momento em que nos tomamos participantes da natureza
divina, novos instintos, novos desejos, novos alvos, novos objetivos vêm à
existência. Estes começam a agitar-se dentro de nós; ficamos ansiosos por
ver o seu cumprimento; e eles vêm a ser crescentemente cumpridos e
satisfeitos. Por exemplo, no momento em que temos esta vida em nós,
começamos a ter um desejo que nunca tínhamos conhecido antes de
conhecermos a Deus. Não digo conhecer “acerca de” Deus, mas “conhecê-
lO”. Este era o conhecimento do salmista: “Como o cervo brama pelas
correntes das águas, assim suspira a minha alma por ti, ó Deus! A minha
alma tem sede de Deus,

do Deus vivo: quando entrarei e me apresentarei ante a face de Deus?”


(42:1-2). Conhecemos esse desejo? Esse desejo está sendo satisfeito? “Para o
conhecer”, Paulo diz. “E a vida eterna é esta: que te conheçam, a ti só, por
único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste” (João 17:3). Não
conhecer algo acerca dEle abstratamente, teoricamente, de modo que se
pode falar e discutir sobre Ele, porém uma intimidade, algo direto, um
verdadeiro conhecimento de Deus!

Nalgum grau, este desejo deve estar em todo filho de Deus. Ele continua
tendo interesse por outras formas de conhecimento; entanto estas são todas
secundárias, em relação a este desejo de conhecer o Senhor. Similarmente,
há nele um instinto amoroso, bradando e clamando por satisfação. Refiro-
me não somente a conhecer o amor de Deus e de Cristo, e sim ao fato de que
um filho de Deus anela estar cheio de amor. Ele se sente infeliz se o amor
está ausente da sua vida. Com William Cowper, ele diz:

Senhor, a minha queixa maior É que é fraco e débil meu amor.

Ele anseia amar a Deus mais verdadeiramente, e amar mais a Cristo. Ele
quer ser cheio de amor a seus semelhantes, homens e mulheres. E quando lê
1 Coríntios 13, diz: meu anelo é ser assim; quero estar cheio desse amor e
ser alguém que exemplifica esse amor.

Quando um homem é “cheio de toda a plenitude de Deus”, amolda-se cada


vez mais ao padrão do amor, porque “o fruto do Espírito (o primeiro e
supremo) é o amor” (Gálatas 5:22). Deveria ser este o assunto da nossa
meditação diária. “A caridade (ou amor) é sofredora, é benigna: a caridade
não é invejosa: a caridade não trata com leviandade, não se ensoberbece,
não se porta com indecência, não busca os seus interesses , não se irrita, não
suspeita mal; não folga com a injustiça, mas folga com a verdade; tudo
sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. A caridade nunca falha” (1
Coríntios 13:4-8). Se verdadeiramente somos filhos de Deus, anelamos ser
cheios desse amor, e cada vez mais conhecemos algo dele, para nossa
admiração!

Depois, ainda, há o anseio por justiça. Disse o nosso Senhor: “Bem-


aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos”
(Mateus 5:6). O filho de Deus deve, necessariamente, estar faminto, sedento
e anelante por justiça. Você não está cansado de pecar? Não está cansado de
falhar? Não está cansado de extraviar-se? Há no filho de Deus um instinto
que pede santidade e justiça. Ele não se queixa mais de que a vida cristã é
estreita e restritiva. Se você acha que é, está confessando que lhe falta este
instinto de bebê recém-

-nascido em Cristo. Se você tem que se arrastar para prestar culto a Deus, é
uma pobre criança, se é que na verdade é uma criança afinal. Examine-se a
si mesmo. Instintivamente o filho de Deus tem um anseio, um desejo de
justiça e santidade. E temos a bendita promessa de que seremos cheios, de
que o instinto será satisfeito.
Outro desejo instintivo é o anseio por ter capacidade para servir ao Senhor
e glorificar o Seu nome. O hino de Charles Wesley expressa isso
perfeitamente; era sua única e ardente paixão. Mais poderosamente ainda,
Paulo conta como era governado por isso. Na Epístola aos Colossenses,
referindo-se ao Senhor Jesus Cristo, ele diz: “A quem anunciamos,
admoestando a todo o homem, e ensinando a todo o homem em toda a
sabedoria; para que apresentemos todo o homem perfeito em Jesus Cristo; e
para isto também trabalho, combatendo segundo a seu eficácia, que obra
em mim poderosamente” (1:28-29). O apóstolo sabia o que era ser movido
pelo emocionante poder de Deus mediante o Espírito Santo. De igual modo,
ele diz aos coríntios que o seu falar e a sua pregação eram em demonstração
do Espírito e de poder. Sabemos alguma coisa disso?

Permito-me dizer com toda a humildade que não há nada debaixo do céu
que seja mais bem-aventurado do que conhecer algo do poder do Espírito
Santo. Lamento por aqueles que nunca o experimentaram quando
pregavam e procuravam expor as Escrituras. Há uma diferença quase
inexprimível entre pregar com o próprio poder, e pregar com o poder do
Espírito. Isto pode acontecer também na conversação e em todas as
atividades e esforços do cristão. Quando somos cheios de toda a plenitude de
Deus, todos os nossos instintos e alvos espirituais são satisfeitos. O hino de
Johann Caspar Lavater, citado anteriormente, e que deveria ser nossa
oração diária, diz tudo:

Ó Senhor Jesus Cristo, cresce tu em mim,

E as outras coisas todas se retirarão.

O hino descreve o filho de Deus clamando pela satisfação destes novos


instintos e desejos.

Faze este pobre ego decrescer;

Sê Tua minha vida e a minha meta.

Mostra como ele anela ser liberto das trevas—

A minha escuridão Tua luz desvanece,

Tua vida elimina a minha morte.


Expressa o anseio por ser liberto, por ser posto em liberdade do ego e do
pecado, da vergonha, do fracasso e da fraqueza, e ser “cheio de toda a
plenitude de Deus”. Todos estes novos instintos são satisfeitos quando somos
cheios dessa plenitude.

Finalmente, quando um homem é “cheio de toda a plenitude de Deus”, vai-


se toda a sensação de carência, de vazio e de insuficiência. Permitam-me
lembrar-lhes o que o nosso Senhor disse à mulher samaritana. Apontando
para a fonte de Jacó, Ele disse: “Qualquer que beber desta água tomará a
ter sede; mas aquele que beber da água que eu lhe der nunca terá sede,
porque a água que eu lhe der se fará nele uma fonte d’água que salte para a
vida eterna” (João 4:13-14). "Nunca terá sede”! Como poderão ter sede, se
estão cheios de toda a plenitude de Deus?

Mas o nosso Senhor não Se contentou em dizer isso só uma vez. Ele o repete
nesse mesmo Evangelho segundo João, capítulo 6, versículo 35: “Aquele que
vem a mim não terá fome; e quem crê em mim nunca terá sede”. Você está
com fome? Está com sede? É infeliz? Não está bem? Às vezes você se vê sem
saber o que fazer na próxima hora? Você tem uma sensação de incerteza e
de perda, de vacuidade e de irresolução? Se se sente assim simplesmente
significa que você não se mantém na busca do Senhor Jesus Cristo. “Aquele
que vem a mim” significa “aquele que persevera em vir a mim”. Como é
que pode ter fome ou sede, se a própria vida, a vida de verdade, a vida mais
abundante, está dentro de você?

Aí temos, pois, as promessas do nosso Senhor: são verdadeiras? Cumprem-


se na prática na vida? O apóstolo Paulo dá-nos a resposta em sua Epístola
aos Filipenses: “Não digo isto como por necessidade, porque já aprendi a
contentar-me com o que tenho. Sei estar abatido, e sei também ter
abundância: em toda a maneira, e em todas as coisas estou instruído, tanto
a ter fartura, como a ter fome, tanto a ter abundância como a padecer
necessidade. Posso todas as coisas naquele que me fortalece” (4:11 -13). As
promessas são verdadeiras! Paulo está numa condição em que nunca está
faminto e nunca está sedento. Diz ele mais adiante no mesmo capítulo: “...
bastante tenho recebido, e tenho abundância” (versículo 18). Ele estava na
prisão quando escreveu estas palavras, e naquele tempo as prisões muitas
vezes eram úmidas, escuras e insalubres. Talvez estivesse algemado a um
soldado. Mas, “bastante tenho recebido, e tenho abundância”. “Cheio
estou.” Naturalmente que está! Ele estava cheio de toda a plenitude de
Deus! Ele se abre mais ousadamente, e diz: “O meu Deus, segundo as suas
riquezas, suprirá todas as vossas necessidades em glória, por Cristo Jesus”

(versículo 19). É isso que significa ser “cheio de toda a plenitude de Deus”.

Povo cristão, conhecemos esta alegria? Isto é cristianismo! Foi para tomar
isto possível que o Filho de Deus deixou o céu, veio à terra è foi para a cruz
no monte do Calvário. Ele não morreu somente para que pudéssemos ser
perdoados e salvos do inferno. Morreu para que pudéssemos ser “cheios de
toda a plenitude de Deus” — aqui, nesta vida! Não quando vocês estiveram
mortos e tiverem passado para o céu e para a glória, mas aqui e agora!
Vamos tê-lo em maior plenitude lá, porém é para sermos completamente
cheios aqui e agora. E por isso que Paulo estava orando em favor destes
efésios. Não é um vago ideal que ele está pondo diante deles; está orando
para que eles conheçam verdadeiramente isto, exatamente como ele o
conhecia.

Isso é cristianismo! Contentar-se com menos que isso é pecaminoso e é


desonrar ao Senhor. Não se contente com o mero fato de que você crê em
Cristo, de que os seus pecados estão perdoados e de que você é membro de
igreja. Empenhe-se, não se dê nem descanso nem paz; faça esta oração em
favor de si próprio, faça-a completa, e continue fazendo-a até conhecer algo
desta bendita satisfação e perceber algo desta plenitude. Não pense nisto
como se fosse uma espécie de substância, como um objeto. Não pense em
termos de analogias, como despejar um líquido de um jarro numa vasilha.
Isto é pessoal, é Deus, Cristo habitando em nós. Portanto, concentre-se na
Pessoa. Dirija-se à Pessoa do Senhor, aja com base em sua fé e fale com Ele;
conte-Lhe suas carências e necessidades, espere nEle, passe tempo com Ele.
Ele lhe dará da Sua plenitude, e então você poderá concordar com
outro autor de hinos, William Tidd Matson. Seu pai foi um grande vulto
no mundo da política, e William era um jovem de grande
capacidade, também destinado ao mundo político, e indubitavelmente teria
sido brilhante nessa área. No entanto, aos vinte anos de idade teve
uma profunda experiência evangélica. Foi convertido e recebeu esta
nova vida de Deus em sua alma. Desistiu de todas as esplendidas e
fascinantes perspectivas e se tomou um humilde pregador do
evangelho. Achava que tinha feito um grande sacrifício? Não! Foi todo um
ganho, como ele nos diz:
Ó bendita vida! o coração em repouso,

Quando fora tudo perece tumultuado,

Que confia numa vontade superior,

E a esta considera superior, e não a minha.

Ó bendita vida! a mente que vê e enxerga

Toda alteração que os anos consigo tragam,

E ainda uma bênção em tudo que sucede E a refulgir por entre todos os
mistérios.

Ó vida, bendita vida, vida divina!

Alta e elevada, muito mais alta que tudo,

Ó Salvador, cumpre o meu profundo desejo E faze que minha seja esta vida
bendita.

John Ryland, pregador que viveu de 1753 a 1825, e que também conhecia
algo desta plenitude, assim a expressa:

Ó Senhor, deleitar-me quero em Ti E do Teu cuidado depender;

Rumo a ti fugir quando há problema,

A Ti, meu melhor e único Amigo.

Quando secam todos os ribeiros,

Tua plenitude a mesma é;

Que esta me faça satisfeito E o Teu Santo nome eu glorifique!

Nas criaturas bem nenhum se vê,

Mas se pode achar, Senhor, em Ti;


Tudo posso ter, e em abundância,

Enquanto, ó Deus, fores Deus pra mim.

Aquele que o céu me garantiu,

Aqui todo o bem me proverá;

Se Cristo rico é, posso ser pobre?

Que é que poderei pedir-lhe mais?

Ó Senhor, meus cuidados lanço em Ti;

A vitória tenho, e eu Te adoro;

Doravante todo o meu interesse Será agradar-Te e amar-Te mais.

Introduzo o neologismo “responsividade”, tomado literalmente do inglês,


embora de raiz latina. Os dicionários da lingua portuguesa registram
“responsivo”, que significa “que contém resposta”, “que responde”.
“Responsividade” significa “qualidade ou estado de ser responsivo”. Contém a
idéia de corresponder à iniciativa alheia. Nota do tradutor.

A Versão de Almeida é passível da mesma apreciação crítica do Autor. Nota do


tradutor.
A GRANDIOSA DOXOLOGIA

“Ora, àquele que é poderoso para fazer tudo muito mais abundamente além
daquilo que pedimos ou pensamos, segundo o poder que em nós opera, a esse
glória na igreja, por Jesus Cristo, em todas as gerações, para todo o sempre.
Amém. ” Efésios 3:2021

“Ora, àquele que é poderoso para fazer tudo muito mais abundamente além
daquilo que pedimos ou pensamos, segundo o poder que em nós opera, a
esse glória na igreja, por Jesus Cristo, em todas as gerações, para todo o
sempre. Amém.”

Com estas palavras, uma doxologia, o apóstolo termina esta notável oração
que elevou a Deus em favor dos cristãos efésios. Nada poderia ser mais
pertinente que isso, depois de uma oração como essa. Na verdade, nenhuma
outra coisa seria pertinente. Temos visto como o apóstolo foi subindo de
petição em petição, e de altitude em altitude, até que chegou ao clímax, ao
apogeu, além do qual nada é possível. Nada maior jamais poderá acontecer-
nos do que a resposta à petição que sejamos “cheios de toda a plenitude de
Deus”, e a sua satisfação. Tendo pedido isso e orado por isso, nada mais se
pode fazer, não há oração suplementar, nada mais resta, senão louvar a
Deus.

Assim o apóstolo conclui com esta doxologia, e não é surpreendente que ele
tenha sentido este desejo de louvar a Deus. Ele estivera orando para que
estes efésios fossem “fortalecidos com poder pelo Espírito no homem
interior”. Essa já é em si uma grande solicitação. Ele prosseguira, orando
para que Cristo “habitasse pela fé nos seus corações” e, então, para que
“conhecessem o amor de Cristo que ultrapassa o conhecimento”, e, acima de
tudo, para que fossem “cheios de toda a plenitude de Deus”. Em seguida,
por assim dizer, ele pára e pergunta a si mesmo que é que toma possível
tudo isso. Há somente uma resposta, é a graça de Deus. Ele já estivera
enaltecendo essa graça no capítulo dois, lembrando aos cristãos efésios que é
Deus que, “pelo seu muito amor com que nos amou”, fez isso tudo: que tudo
se deve às “insondáveis riquezas da sua graça” e à “sua bondade para
conosco em Cristo Jesus”.

Assim aqui, tendo elevado as petições, Paulo compreende que as respostas a


petições tão espantosas só são possíveis por causa da graça de Deus. É tudo
de graça. Não há nada no homem que mereça tais bênçãos, nada há no
homem que o recomende. Todas as bênçãos que nós gozamos nos vêm pelo
caminho da salvação que Deus providenciou em Seu Filho unigênito, nosso
Senhor e Salvador Jesus Cristo, e por meio dEle. O apóstolo estava tão
profundamente cônscio disto, e tão comovido pela percepção disto, que a
sua alma e o seu coração pareciam arder de desejo de louvar e dar graças e
glória ao Deus que tomou possíveis essas coisas aos homens.

Estou opinando que o apóstolo conclui com esta doxologia porque não podia
fazer outra coisa. O que ele tinha pedido para estes cristãos era um
possibilidade tão gloriosa que ele irrompe neste grandiosa hino de louvor
devoto e de adoração. Seu desejo é que toda a glória seja atribuída Àquele
que é o Autor e Doador da salvação e que é o único que merece a glória, a
honra e o louvor.

A questão que agora surge é: sentimo-nos impelidos a juntar-nos a ele?


Animam-nos as mesmas emoções e os mesmos pensamentos? Tendo lido as
várias petições da oração, e tendo chegado ao clímax, estamos cônscios da
inevitabilidade da doxologia? Sentimos, como o apóstolo sentiu, este quase
irreprimível desejo de louvar a Deus e de magnificar a Sua graça? Será que
ficamos emocionados e comovidos, como o apóstolo ficou, quando
compreendemos as tremendas possibilidades abertas para nós na presente
vida? Seria muito errôneo começar a considerar esta doxologia sem encarar
essas questões. Ou será possível que, antes, nós estejamos achando que o
apóstolo exagerou? Cremos no evangelho, somos cristãos e cremos que tudo
é pela fé; mas quando ele se põe a falar sobre Cristo habitar em nossos
corações e sobre conhecermos este amor de Cristo e sermos cheios de toda
a plenitude de Deus, aí suspeitamos que ele foi longe demais, que
ele ultrapassou a si mesmo e se fez vítima da sua própria
eloqüência. Acharíamos que estas coisas só são possíveis para pessoas
extraordinárias como o próprio apóstolo, ou para os chamados “santos” que
se segregavam do mundo e se retiravam para os mosteiros? Acharíamos que
estão fora do alcance do cristão comum, assim chamado, e que certamente
não nos são possíveis?

Estamos numa destas duas posições. Se já apanhamos um vislumbre destas


coisas e vimos a possibilidade, então certamente sentiremos o desejo de
externar a doxologia e de unir-nos ao apóstolo nisso. Todavia se ficamos em
dúvida e hesitantes, estaremos discutindo e argumentando conosco mesmos,
e perguntando se isso não é alguma

estranha espécie de misticismo. A doxologia nos prova e prova a nossa


profissão da fé cristã.

Isto não é algo que pode ser considerado de maneira puramente objetiva.
Juntamo-nos ao apóstolo de coração e sentimos esta doxologia jorrar de
dentro de nós? Receio que muito de nós mereçam a repreensão que Deus
passou aos filhos de Israel na antigüidade, no Salmo 81, quando os faz
lembrar-se do que Ele teria feito por eles se não fosse a sua incredulidade.
Diz Ele: “Ah, Israel, se me ouvísses!” Não há fim para o que Ele fará por
eles, se tão-somente derem ouvidos. “Abre bem a tua boca, e ta encherei.”
“Ah, se o meu povo me tivesse ouvido! Se Israel andasse nos meus
caminhos! ” (versículos 8,10,13). Mas eles não ouviram; temiam o inimigo, e
lhes faltava a fé para receberem estas promessas. Achavam que eles eram
grandes demais; eles hesitavam na incredulidade. Não criam na Palavra de
Deus, não criam nas promessas, e por isso vagaram e deram voltas em sua
peregrinação, como o registro nos informa, cheios de dúvida, de vacilação e
de medo, muitas vezes ficando sentados em suas tendas, com pena de si
mesmos. Que triste figura faziam! Tudo devido ao fato de que não podiam
crer nas promessas porque achavam que elas eram boas demais para
serem verdadeiras. Qual a nossa posição com respeito a elas? Qual a
nossa reação às petições que Paulo apresentou, uma após outra, e que
levaram ao grande clímax quanto a sermos “cheios de toda a plenitude
de Deus”?

Vejo-me especulando sobre se o apóstolo teve a sensação de que alguns dos


efésios teriam tais pensamentos. Levanto essa questão porque ele ajeita as
suas expressões nesta doxologia de molde a responder a essa possível
dificuldade. O apóstolo sempre foi mestre e pastor. Mesmo numa doxologia
como esta, na qual ele está atribuindo louvor e glória a Deus, há uma
exortação. Ele trata de uma possível falta de fé, uma possível vacilação na
incredulidade, pelo que diz: “Ora, àquele que é poderoso para fazer tudo
muito mais abundantemente além daquilo que pedimos ou pensamos,
segundo o poder que em nós opera, a esse glória”. Ele podia ter dito: “Ora,
Àquele, o Deus que tanto promete, glória na Igreja, por Jesus Cristo”;
entretanto, deliberadamente acrescenta as outras expressões. Assim como o
apóstolo louva a Deus, ao mesmo tempo nos anima a orar e a louvar, e nos
ensina como fazê-lo.

Você tem dúvidas sobre estas coisas? Você crê realmente que Cristo pode
habitar pela fé em seu coração? Ele está habitando em seu coração pela fé?
Você tem sido capaz de “compreender, com todos os santos, qual seja a
largura, e o comprimento, e a altura, e a profundidade”, e já conheceu “o
amor de Cristo, que excede todo o entendimento”? Você

o sentiu, experimentou-o, conheceu-o de maneira experimental? Pode ser


que creia nisso e que o tenha aceitado pela fé, mas existe a questão mais
profunda do nosso conhecimento vivencial destas coisas. Vimos que a
palavra “conhecer” carrega uma ênfase experimental; é um conhecimento
por experiência. “O amor de Jesus, o que é ele, é simplesmente Seus amados
conhecer.” Conhecemo-lo neste sentido? E conhecemos algo acerca de
sermos “cheios de toda a plenitude de Deus” — a satisfação que vimos
considerando? Se não “conhecemos” estas coisas, é porque, em última
instância, somos ignorantes de Deus, ignorantes da glória e do poder de
Deus, ignorantes do que Ele planejou para nós em Cristo Jesus. Somos
ignorantes daquilo que Ele entesourou e depositou para nós na Pessoa do
Seu Filho unigênito, em que “habita corporalmente toda a plenitude da
divindade”, e em quem somos completos.

Demos ouvidos à exortação contida no doxologia. O apóstolo deseja ajudar-


nos; ele se inclina para chegar à nossa fraqueza, encontra-se conosco no
local da nossa ignorância e incredulidade. Ele nos afirma que o que
precisamos acima de tudo mais é conhecer a grandeza do poder de Deus.
Podemos conhecer isso, diz-nos ele, primeiramente examinando-o
objetivamente, examinando-o diretamente. Depois ele nos pedirá para
examiná-lo subjetivamente, e por fim em termos da Igreja.

O tema da grandeza do poder de Deus, visto objetivamente, está na mente


do apóstolo, desde o fim do capítulo primeiro da Epístola. No capítulo
primeiro o apóstolo diz aos crentes efésios que está orando por eles sem
cessar, e pedindo que “tenham iluminados os olhos do seu entendimento”.
Ora por eles, apesar de já terem crido no evangelho, já serem salvos e já
terem sido selados pelo Espírito. Ora para que sejam iluminados a fim de
“saberem qual seja a esperança da sua vocação, e quais as riquezas da
glória da sua herança nos santos; e qual a sobreexcelente grandeza do seu
poder sobre nós, os que cremos”. Depois ele prossegue, descrevendo esse
poder em termos do poder exercido por Deus quando ressuscitou Seu Filho
do túmulo; noutras palavras, em termos do poder da ressurreição. Esse é o
poder que opera nos cristãos.

No capítulo dois ele desenvolveu isso experimental e minuciosamente; e aqui


ele retorna a isso. Quer que eles conheçam “a sobreexcelente grandeza do
seu poder sobre nós, os que cremos”. Se tão-somente conhecêssemos esse
poder, jamais vacilaríamos na incredulidade, em quaisquer circunstâncias.
Ele já o definira, já o descrevera e o ilustrara com o poder da ressurreição,
porém aqui ele o descreve de

forma diferente. E o faz numa linguagem sumamente extraordinária.

A linguagem nunca foi tão forçada e usada até ao limite extremo como nesta
doxologia. Isto porque a linguagem é inadequada. O apóstolo agora está
tentando definir o indefinível. Está tentando tomar a medida do
imensurável. Está tentando colocar em termos humanos aquilo que é
ilimitado — o absoluto! Vejam como ele empilha as palavras umas sobre as
outras. A Versão Autorizada (“Authorized Version”) 1 é muito defeituosa
aqui, e não expressa adequadamente o pensamento. Diz ela: “Àquele que é
poderoso para fazer muitíssimo mais abundantemente acima de tudo que
pedimos ou pensamos”. Contudo, o que de fato o apóstolo escreveu consiste
de um superlativo acrescido de um superlativo. Primeiramente ele diz:
“Àquele que é poderoso acima (ou além) de todas as coisas”. Poderíamos
pensar que isso era suficiente, mas Paulo não ficou satisfeito. Ele
acrescenta: “muitíssimo mais abundantemente, além de tudo que pedimos
ou pensamos”. Assim, a sentença inteira pode ser traduzida desta
maneira: “Ora, àquele que é poderoso acima de todas as coisas para
fazer muitíssimo mais abundantemente além do que podemos pedir
ou pensar”. Isto mostra a total inadequação da linguagem.

Nossos mais grandiosos superlativos não descrevem o poder de Deus.


Adicionem um a outro, multipliquem-nos, juntem-nos, tomem a multiplicá-
los, e continuem fazendo isso “além de todas as coisas”, “muitíssimo mais
abundantemente além de todas as coisas”, e ainda vocês não conseguirão
descrevê-lo. Haverá algo “além de toda as coisas”? O poder de Deus é
muitíssimo mais abundante, além de todas as coisas.

Assim o apóstolo tenta em vão dar-nos uma concepção do poder de Deus.


Ele parece estar fazendo uma série de perguntas, tais como: vocês acham
que estou indo longe demais? Acham que fui empolgado por minha retórica
ou eloqüência? Acham que estou perdido num estado místico em que a
lógica e a razão são deixadas para trás? Ouçam, diz ele, venho orando
Àquele cujo poder é eterno e absoluto, acima de todas as coisas, Àquele que
pode fazer muitíssimo mais abundantemente, além do nosso pensamento
apical. Esse é o poder em que estou pensando e que desejo que vocês
experimentem.

O apóstolo desce ao nosso nível e nos ajuda em nossa descrença e em nossas


dúvidas e hesitações. Às vezes, em nossas orações pensamos que fomos um
tanto atrevidos, e pedimos algo completamente impossível. Diz-nos o
apóstolo que nunca devemos dar guarida a tais pensamentos, porque Deus
pode fazer muitíssimo mais abundante-

mente além do que podemos pensar. John Newton compreendeu isso, pelo
que nos concita, num dos seus bem conhecidos hinos, a parar e pensar, e a
lembrar-nos de certas coisas, antes de começarmos a orar. Não devemos
precipitar-nos com nossas petições e correr para a presença de Deus.
Precisamos fazer certas perguntas. A quem vou orar? Quem é o Ser e qual é
a verdade concernente ao Ser a quem estou prestes a dirigir-me? Newton
responde sua própria pergunta, dizendo:

Ante um Rei vens comparecer,

Grande pedições vens trazer;

Pois Sua graça e Seu poder são tais Que ningue'm pode pedir demais.

Tragam as suas mais ousadas petições, tragam os seus pedidos mais


impossíveis, a crescentem-lhes outros; que toda a Igreja se junte em seus
mais desabridos desejos e exigências! Não há perigo de transpor o limite —
“Pois Sua graça e Seu poder são tais que ninguém pode pedir demais”. Seu
poder está além de tudo quanto possamos pedir.

E não só isso, o poder de Deus está até além do que podemos pensar. Não se
trata de uma divisão sem distinção. Há diferença entre o que pedimos e o
que pensamos. Constantemente traçamos esta distinção na vida diária.
Falamos acerca da esfera do possível. “A política”, dizem-nos, “é a arte do
possível”; esse é o limite da sua capacidade. Há coisas das quais dizemos que
seria maravilhoso se pudéssemos tê-las, mas estão além dos limites da
possibilidade. Os homens têm pensado e escrito acerca de um ideal, um
estado perfeito, um tipo de utopia, porém num mundo como este, isso é
inatingível. Temos de restringir-nos ao que é possível. Noutras palavras, há
distinção entre o que pedimos e o que pensamos. Pomos limite a nossos
pedidos, a nossas petições reais, porque sabemos que estamos cercados e
limitados por esta idéia do possível. Não obstante, logo queremos voar em
nossas mentes e imaginações, e pensar em impossibilidades e com elas
sonhar. Subimos a um nível mais alto e, embora saibamos que tais coisas
não podem acontecer neste mundo, ainda assim podemos concebê-las e
pensar nelas. Mas o apóstolo abrange isso também. Deus não somente
pode fazer muitíssimo mais abundamente além de tudo que podemos
pedir; pode também fazer além de tudo que podemos imaginar, de tudo
que podemos pensar, de tudo que podemos suplicar com os nossos
mais elevados e mais inspirados pensamentos e imaginações.

Certamente o nosso maior problema na vida cristã é a nossa incapacidade


de compreender que Deus não é como o homem. O maior pecado de todo
cristão, e da Igreja Cristã em geral, é limitar o poder

etemo e absoluto de Deus, reduzindo-o à medida das nossas mentes, dos


nossos conceitos e dos nossos entendimentos. Sempre o povo de Deus tem-se
feito culpado disso. “Limitaram o Santo de Israel.” “Se tão-somente”, Deus
lhes diz repetidamente. Também foi o que aconteceu quando o nosso Senhor
esteve neste mundo, nos dias da Sua carne. Esta foi a condenação que Ele
lançou sobre os judeus quando proferiu o lamento: “Jerusalém, Jerusalém,
que matas os profetas, e apedrejas os que te são enviados! Quantas vezes
quis eu ajuntar os teus filhos, como a galinha os seus pintos debaixo das
asas, e não quiseste?” (Lucas 13:34). “Se tão-somente conhecesses”!

O povo de Deus, como Sara, mulher de Abraão, constantemente se fez


culpado de falta de fé em Deus e de confiança em Seu poder. Isso se vê
igualmente no Velho Testamento e no Novo. Quando o arcanjo Gabriel
anunciou a Maria que ela haveria de dar nascimento ao Filho de Deus, ela
vacilou em sua descrença, e o anjo teve que repreendê-la, dizendo: “Para
Deus nada é impossível” (Lucas 1:30-37). Ao perguntar, “Como se fará
isto?”, ela estava pensando somente em termos do poder humano e, com
isso, estava limitando a Deus.
Recordem também a ocasião em que os discípulos estavam observando o
nosso Senhor quando Ele falava com o “jovem rico” que afirmou que tinha
guardado a lei de Deus desde a sua mocidade. Para mostra-lhe sua
necessidade de arrependimento, o Senhor repreendeu-lhe a imcompreensão
da Lei. Provavelmente o jovem tinha bela aparência e era conhecido por
seus atos de beneficiência e pela alta moralidade do seu viver; contudo,
“ficou muito triste” (Lucas 18:1823). Os apóstolos se espantaram e
perguntaram ao nosso Senhor: “Quem pode salvar-se?” O nosso Senhor
fitou-os e disse (AV): “Para o homem é impossível, mas não para Deus, pois
para Deus todas as coisas são possíveis.” Quão constantemente cometemos o
pecado de limitar o poder de Deus em nossas petições e súplicas por nós
mesmos! Por isso, quando nos é dito que podemos ser “cheios de toda a
plenitude de Deus”, achamos que não é possível.

Somos culpados da mesma incredulidade quando limitamos as nossas


petições com relação aos outros. Por exemplo, podemos dizer de certo
homem que ele se impregnou tanto do pecado, que nada o pode salvar. Pode
ser que você esteja preocupado com alguém que lhe é caro e que se opõe a
Cristo e blasfema Seu nome, e por quem ou por cuja conversão você orou
durante anos; e você começa a dizer que não vale a pena continuar orando,
e que, afinal, os psicólogos estão certos quando falam sobre temperamento
religioso. Você acha que a conversão dele é impossível. A resposta ainda é:
“Para Deus nada será impossível". Ele “é poderoso para fazer muitíssimo
mais abundante-

mente, acima e além de tudo que pedimos ou pensamos”. Como na


antigüidade, a Palavra de Deus para nós hoje é: “Abre bem a tua boca, e ta
encherei”. Lembremo-nos disso, quando estivermos orando a Deus, o
Onipotente, o Eterno e Sempitemo. Assim o apóstolo nos convidou para
examinarmos a grandeza do poder de Deus objetivamente.

Sigamo-lo agora, quando ele nos pede que examinemos a grandeza do poder
de Deus subjetivamente e na esfera da experiência. “Ora, àquele que é
poderoso para fazer tudo muito mais abundantemente além daquilo que
pedimos ou pensamos, segundo o poder que em nós opera”. Com as
palavras, “segundo o poder que em nós opera”, entramos na esfera do
subjetivo. Pode-se ouvir ou ler estas descrições maravilhosas do poder de
Deus e, todavia, achar que tudo está longe e muito afastado da nossa vida e
experiência diária. Soa “bom demais para ser verdade”, algo que não pode
acontecer conosco de maneira alguma. Não somente pode acontecer, mas de
fato acontece, afirma Paulo, “segundo o poder que em nós opera”. O
apóstolo não está falando de maneira puramente acadêmica ou teórica, e
sim está apelando à nossa experiência. O poder do qual ele está falando,
assevera ele, é o poder que já está operando em nós. Isto, num sentido, é
uma prova ainda maior do poder de Deus, porque responde a todas as
objeções que possam surgir dos nossos sentimentos subjetivos. O apóstolo
resume aqui muito do que disse nesta Epístola, nos três primeiros capítulos.
É como se estivesse desafiando qualquer que, em Éfeso, estivesse duvidando
do poder de Deus, e estivesse sendo tentado a achar que Paulo estava indo
longe demais e buscando o impossível. Daí dizer ele que, em acréscimo a
todas as provas externas do poder de Deus, há outra prova, a saber, o poder
que está operando em nós.

Sem dúvida o apóstolo estava, em primeira instância, pensando nele


próprio. Lembramos como ele se refere a si no começo deste capítulo três,
quando diz: “Se é que tendes ouvido a dispensação da graça de Deus, que
para convosco me foi dada; como me foi este mistério manifestado pela
revelação”. Ali ele os remetera à sua própria experiência. Alguém duvida do
poder de Deus? Bem, se duvida, olhe para mim! Houve tempo em que eu fui
um blasfemo, um perseguidor e uma pessoa nociva. Eu odiava a Cristo com
toda a intensidade do meu ser; fiz o máximo que pude para massacrar os
membros da Igreja e para eliminá-la totalmente. Saí para Damasco um dia,
respirando ameaças e mortes contra os cristãos. Nunca houve um homem
tão oposto ao cristianismo, nunca houve um homem tão preso a
preconceitos, preconceito nacional, preconceito de treinamento, preconceito
de religião

e de conhecimento, preconceito de amor próprio e de justiça própria. Como


é que um homem como eu, Saulo de Tarso, pude tomar-me cristão? Mas eu
sou cristão. Sou o homem que teve o privilégio de pregar o evangelho a
vocês. Como aconteceu isso? Há só uma explicação — o poder de Deus!

Nada senão o eterno poder de Deus poderia ter transformado o fariseu


blasfemo e perseguidor no apóstolo de Cristo, sim, no apóstolo dos gentios.
Entretanto, isso não estivera operando somente em Paulo; o mesmo poder
estivera operando nos cristãos efésios também. Ele já os fizera lembrar-se
disso. “E vos vivificou, estando vós mortos em ofensas e pecados, em que
noutro tempo andastes segundo o curso deste mundo, segundo o príncipe
das potestades do ar, do espírito que agora opera nos filhos da
desobediência, entre os quais todos nós também andávamos nos desejos da
nossa came, fazendo a vontade da carne e dos pensamentos; e éramos por
natureza filhos da ira, com os outros também.” Eles estavam numa condição
completamente desesperada — espiritualmente mortos! Mas ele acrescenta
à descrição: “Portanto, lembrai-vos de que vós noutro tempo éreis gentios
na carne... que naquele tempo estáveis sem Cristo, separados da
comunidade de Israel, e estranhos aos concertos da promessa, não
tendo esperança, e sem Deus no mundo” (2:1-3, 11-12). Estavam-
lhes vedadas as bênçãos que os judeus conheciam, impedidos por
uma parede de separação, estavam em total desesperança, perdidos,
condenados. Como foi que tais pessoas puderam tomar-se cristãos?
Como puderam tomar-se herdeiros de Deus? Como tais pessoas
puderam tomar-se concidadãos e herdeiros junto com os judeus? Para o
homem era pura impossibilidade; e contudo, diz o apóstolo, vocês sabem
que isso aconteceu; e vocês são membros da Igreja de Cristo. E tudo
isso aconteceu por causa deste mesmíssimo poder de Deus. Foi
unicamente esse poder operando em vocês que os capacitou a crerem no
evangelho. Por si mesmos não teria crido; vocês estavam mortos.

Ninguém pode crer por si mesmo no evangelho; somente o poder do Espírito


pode levar alguém a crer; sem esse poder, estamos espiritualmente mortos,
perdidos, arruinados, e sob a ira de Deus. No entanto, Deus pode vivificar os
mortos! E Ele tinha vivificado os efésios. Tinha posto nova vida neles; e os
tinha ressuscitado juntamente com Cristo e os fizera “assentar nos lugares
celestiais em Cristo”. Eles, que tinham estado tão longe, e tão completa e
inteiramente sem esperança, haviam sido aproximados (“chegastes perto”)
pelo poder de Deus. Isso acontecera de fato na experiência deles. Assim, a
lógica do argumento do apóstolo é que o Deus que pode fazer isso, pode
fazer qualquer coisa, pode fazer tudo. Não há limite para tal poder!

Mais uma vez fazemos uma pausa para fazer-nos uma pergunta:
conhecemos este poder? Acaso este argumento particular sobre “o poder
que em nós opera” aplica-se a você e o convence? Você tem experimentado
esse poder concedendo-lhe nova vida? Está consciente da nova vida
vibrando em seu ser? Porventura tem consciência do Espírito santificando
você, revelando o pecado a você, “trazendo à luz as coisas ocultas das
trevas”( 1 Coríntios 4:5), explicando-lhe a Palavra de Deus, criando desejos
de santidade e de justiça no seu íntimo? Está ciente de que Deus está
lidando com você? Ele está agindo em você? Você acha e sabe que Ele pode
impedi-lo de cair? Este argumento é sem valor para todos os que jamais
conheceram a origem do poder. Mas se conhece este poder de Deus
operando em você, então deve ira adiante; deve ser lógico e dizer: o Deus
que já fez isto por mim é um Deus que fará tudo que prometeu! Não há fim
nem limite para este poder; é necessariamente infindável e eterno.

O argumento do apóstolo é que, se os cristãos conhecem este poder, não


devem vacilar na descrença, nem duvidar, nem hesitar quando ele lhes diz
que podem “ser cheios de toda a plenitude de Deus”. Assim é que o apóstolo
os leva a examinarem o poder objetivamente e, depois, subjetivamente.

Em terceiro e último lugar, Paulo lhes pede que examinem a grandeza deste
poder como se vê e se manifesta na Igreja. “Àquele que é poderoso para
fazer tudo muito mais abundantemente além daquilo que pedimos ou
pensamos, segundo o poder que em nós opera, a esse glória na igreja, por
Jesus Cristo, em todas as gerações, para todo o sempre. Amém”. Uma vez
mais o apóstolo faz um sumário daquilo que já tinha ensinado. Além dos
argumentos propiciados pelas provas objetivas do poder de Deus e pelas
nossas experiências pessoais e individuais dele, há outro poderoso
argumento para levar-nos à percepção deste poder de Deus. Devemos
estudar a Igreja Cristã.

A Igreja Cristã é um milagre. O apóstolo já tinha chamado a atenção para


isto várias vezes em sua epístola. Os efésios eram gentios, estrangeiros,
estavam fora da comunidade de Israel e eram estranhos aos concertos, às
alianças da promessa. E ali estavam os judeus — com sua justiça própria,
orgulhosos e nacionalistas. Uma parede de separação havia no meio, entre
eles. Reconciliação de judeu e gentio? Parecia pura loucura; isso não estava
dentro da área da política prática. Era uma coisa que não podia acontecer.
Contudo acontecera. “Mas agora em Cristo Jesus, vós que antes estáveis
longe, já pelo sangue de Cristo chegastes perto. Porque ele é a nossa paz, o
qual de ambos os povos fez um; e, derribando a parede de separação que
estava no meio, na sua

came desfez a inimizade, isto é, a lei dos mandamentos, que consistia em


ordenanças, para criar em si mesmos dos dois um novo homem, fazendo a
paz” (2:13-15). E mais: “Assim que já não sois estrangeiros, nem
forasteiros, mas concidadãos dos santos, e da família de Deus; edificados
sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas, de que Jesus Cristo é a
principal pedra da esquina” (versículos 19 e 20). Tinha acontecido. Nada
senão o poder de Deus poderia levar a efeito esta reconciliação, poderia
produzir a Igreja, o corpo, e nos habilitar a dizer: “Porque por ele ambos
temos acesso ao Pai em um mesmo Espírito”.

Não há nada que tanto mostre o poder e a glória de Deus como a Igreja
Cristã. O apóstolo nos lembra isso, dizendo: “Para que agora, pela igreja, a
multiforme sabedoria de Deus seja conhecida dos principados e potestades
nos céus” (3:10). E a sabedoria é exposta mediante o poder. O apóstolo já
utilizara este argumento no capítulo primeiro, quando ele ora para que os
efésios conheçam “a sobreexcelente grandeza do seu poder sobre nós, os que
cremos”. Este é, diz ele, o “poder que (o Pai) manifestou em Cristo,
ressuscitando-o dos mortos, e pondo-o à sua direita nos céus, acima de todo
o principado, e poder, e potestade, e domínio, e de todo o nome que se
nomeia, não só neste século, mas também no vindouro; e sujeitou todas as
coisas a seus pés, e sobre todas as coisas o constituiu como cabeça da igreja,
que é o seu corpo, a plenitude daquele que cumpre tudo em todos”
(versículos 19 a 23). Paulo está apenas repetindo isso aqui, como gosta de
fazer em toda parte.

Não há nada que dê tanta glória a Deus como a Igreja Cristã. Deus
manifestou o Seu poder quando disse: “Haja luz”, e houve luz!
As montanhas, os rios e o furioso mar, os raios e os trovões,
proclamam todos a Sua glória. “Os céus manifestam a glória de Deus e o
firmamento anuncia a obra das suas mãos” (Salmo 19:1). Mas não há nada
que tanto proclame a glória de Deus como a Igreja Cristã, o corpo cuja
Cabeça é Cristo, nada é tão maravilhoso como o fato de que homens e
mulheres, como eu e vocês, homens e mulheres envoltos, perdidos e mortos
em pecado, haveríamos de tomar-nos membros do corpo de Cristo.
Aqui temos a mais grandiosa manifestação da glória de Deus. Assim, não
é surpreendente que o apóstolo diga: “A esse glória na igreja, por
Jesus Cristo”. É tudo “por Jesus Cristo”, e é tudo por intermédio
dEle. Estamos nEle, Somo “membros do seu corpo, da sua came e dos
seus ossos”. O Filho glorifica o Pai, e o Filho é glorificado em nós. É o
que Ele diz em Sua oração ao Pai, antes de sofrer (AV): “Neles
sou glorificado” (João 17:10). Ele glorificou o Pai, e nós, estando “nEle” e
na Igreja, também contruibuímos para a glória do Pai. Que
quadro maravilhoso!
Isso nos leva à frase final em que, de novo, o apóstolo parece estar fora de si
próprio, e empilha adjetivo sobre adjetivo e superlativo sobre superlativo.
De novo a Versão Autorizada é inadequada, com a sua expressão, “A ele
seja a glória na igreja por Cristo Jesus, através de todas as eras,
etemamente”. O que Paulo de fato escreveu deveria ler--se: “A ele seja a
glória na Igreja para todas as gerações, da era das eras”. Nada se pode
acrescentar a isso! “Todas as gerações." De quê? “Da era das eras.” Que é
“a era das eras”? Não existe era para as eras; é a era das eras, era sobre era
sobre era, para sempre e sempre, um número infinito de eras.

Notem o que Paulo diz. A Igreja existirá para todo o sempre. Eu e você
existeremos, para todas as gerações da era das eras. Os principados e
poderes nos lugares celestiais olharão para nós com espanto e admiração e,
ao ver-nos, atribuirão a Deus toda a honra e a glória e a majestada e a força
e o domínio e o poder. É em nós, na Igreja, que eles vêem a glória e a
sabedoria de Deus, como não as vêem em nenhum outro lugar. Estaremos
assim manifestando a glória de Deus para todo o sempre, “para todas as
gerações da era das eras”. Tal é o poder de Deus. Enquanto estivermos neste
mundo, é um poder suficientemente grande para livrar-nos de cair. A
doxologia de Judas nos leva a lembrarmos dAquele “que é poderoso para
nos guardar de tropeçar”, e a Ele nos encomenda. Mas Ele não é somente
poderoso para guardar-nos e manter-nos; também é poderoso para
“apresentar-nos irrepreensíveis, com alegria, perante a sua glória”. Não
admira que Judas acrescente: “Ao único Deus, Salvador nosso, por Jesus
Cristo, nossos Senhor, seja glória e majestade, domínio e poder, antes de
todos os séculos, agora, e para todo o sempre. Amém” (versículos 24 e 25).

Você, meu amigo, vai participar desta grandiosa doxologia? Tendo


examinado as possibilidades que estão abertas para você agora mesmo, em
Cristo Jesus, e tendo elevado por si mesmos estas petições, você está
dizendo: “Toda a glória nos céus, e na terra e no mar, e onde quer que haja
quaisquer seres, toda a honra e glória seja atribuída ao Deus bendito, o Pai
de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, o nosso Deus, o Deus da nossa
salvação. A ele seja a glória na igreja, por Jesus Cristo, para todas a
gerações da era das eras”? Você está pronto a unir-se a Samuel Davies no
cântico:

Grandioso Deus, os Teus caminhos todos Incomparáveis são, e divinais;


Porém, as belas glórias da Tua graça,

Mais divinas refulgem, sem rival.

Ah, que esta estranha graça, incomparável,

Este divinal milagre de amor,

A terra encha de gratos louvores E os exércitos de anjos no alto entoem: Quem é


Deus como Tu, que assim perdoas? E em quem há graça rica e livre assim ?

AS INSONDAVEIS RIQUEZAS DE CRISTO

Os sermões que compoem este terceiro volume de exposições sobre a


Epístola aos Efésios foram pregados por Dr. Lloyd-Jones aos domingos de
manhã na Capela de Westminster. Eles fazem parte da série que se extendeu
de 1954 a 1962.

Este capítulo 3 contém o ensino mais profundo do apóstolo Paulo, como


também o seu desenvolvimento da experiência cristã no seu sentido mais
elevado. Certamente o fervor do seu magnânimo coração de pastor se
evidencia aqui de maneira que não se encontra em qualquer outro lugar. O
registro do seu próprio chamado para pregar Cristo e das suas orações
fervorosas a favor dos cristãos efésios, nos apresenta uma das declarações
mais sublimes que achamos em todos os seus escritos. Que benção maior
poderia ele desejar para seus irmãos do que o estarem “cheios de toda a
plenitude de Deus ” ?

PUBLICAÇÕES EVANGÉLICAS SELECIONADAS

Rua 24 de Maio, 116 - 32 andar - sala 17 - 01041-000 São Paulo, SP

A UNIDADE CRISTA
Exposição sobre Efésios 4:1-16

D. M. Lloyd-Jones

PUBLICAÇÕES EVANGÉLICAS SELECIONADAS


Caixa Postal Postal 1287 01059-970 - São Paulo - SP

Título original:

Christian Unity

Editora:

The Banner of Truth Trust

Primeira edição em inglês:

1980

Copyright:

Lady E. Catherwood

Tradução do inglês:

Odayr Olivetti

Revisão:

Antonio Poccinelli Capa:

Ailton Oliveira Lopes

Primeira edição em português:

1994

Composição e impressão:

Imprensa da Fé

ÍNDICE

(Efásios 4:1-16)
PREFACIO

Certamente nenhum assunto tem sido tratado mais freqüentemente em


sermões, livros, preleções, panfletos e artigos durante o século atual, do que
a questão de “A Unidade Cristã”. Isso tem sido verdade especialmente desde
o Primeiro Congresso do Concilio Mundial de Igrejas, em Amsterdã, em
1948.

E igualmente correto dizer que nenhum assunto causou tanta confusão nas
mentes e nos corações dos membros das igrejas.

Fosse meramente uma questão de organização, não seria tão grave; mas,
como o mostra a exposição desta passagem chave, de Efésios 4:116, ela
envolve doutrinas vitais. Geralmente o problema surge porque os defensores
do que se conhece como “o movimento ecumênico” se contentam em fazer
declarações gerais e vagas - muitas vezes sentimentais - ou em salientar uma
parte de uma declaração, em vez do todo. Por exemplo, no versículo 15, dá-
se ênfase exclusivamente ao amor, à custa da verdade.

Todos nós temos a tendência de ser criaturas de preconceitos e, portanto,


convém que nos examinemos, e os nossos conceitos, à luz desta passagem
crucial. Que houve divisões pecaminosas no passado, é dolorosamente
óbvio; porém não há de achar-se a resposta numa fusão de organizações
baseada na verdade mínima. A maior tragédia do mundo hoje não é, como
freqüentemente se afirma, uma Igreja dividida, e sim o fato de que a
maioria parece colocar a unidade acima da verdade, e que muitos que se
interessam genuinamente pela verdade, na prática são dirigidos por suas
tradições.

Só posso orar para que este estudo seja abençoado por Deus para ajudar
muitos cristãos perplexos e confusos.

Como sempre, expresso a minha profunda gratidão à Sra. Elizabeth Bumey,


ao Sr. S. M. Houghton e à minha esposa por seu auxílio, possibilitando a sua
publicação.

D. M. Lloyd-Jones

Londres Junho de 1980


A UNIDADE CRISTÃ

Efésios 4:1-16

1. Rogo-vos, pois, eu, o preso do Senhor, que andeis como é digno da vocação
com que fostes chamados,

2. Com toda a humildade e mansidão, com longanimidade, suportando-vos uns


aos outros em amor,

3. Procurando guardar a unidade do Espírito pelo vínculo da paz.

4. Há um só corpo e um só Espírito, como também fostes chamados em uma só


esperança da vossa vocação;

5. Um só Senhor, uma só fé, um só batismo;

6. Um só Deus e Pai de todos, o qual é sobre todos, e por todos e em todos.

7. Mas a graça foi dada a cada um de nós segundo a medida do dom de


Cristo.

8. Pelo que diz: subindo ao alto, levou cativo o cativeiro, e deu dons aos
homens.

9. Ora, isto - ele subiu - que é, senão que também antes tinha descido às partes
mais baixas da terra?

10. Aquele que desceu é também o mesmo que subiu acima de todos os céus,
para cumprir todas as coisas.

11. E ele mesmo deu uns para apóstolos, e outros para profetas, e outros para
evangelistas, e outros para pastores e doutores.

12. Querendo o aperfeiçoamento dos santos, para a obra do ministério, para


edificação do corpo de Cristo;

13. Até que todos cheguemos à unidade da fé, e ao conhecimento do Filho de


Deus, a varão perfeito, à medida da estatura completa de Cristo.
14. Para que não sejamos mais meninos inconstantes, levados em roda por
todo o vento de doutrina, pelo engano dos homens que com astúcia
enganam fraudulosamente.

15. Antes, seguindo a verdade em caridade (amor), cresçamos em tudo


naquele que é a cabeça, Cristo,

16. Do qual todo o corpo, bem ajustado, e ligado pelo auxílio de todas as juntas,
segundo a justa operação de cada parte, faz o aumento do corpo, para sua
edificação em amor.

“PORTANTO”2

“Rogo-vos, pois, eu, o preso do Senhor, que andeis como é digno da vocação
com que fostes chamados, com toda a humildade e mansidão, com
longanimidade, suportando-vos uns aos outros em amor, procurando guardar a
unidade do Espírito pelo vínculo da paz. ” Efésios 4:1-3

Estas palavras introduzem não somente um novo capítulo, mas também


uma nova e importante divisão desta Epístola aos Efésios. Semelhante à
maioria das Epístolas do Novo Testamento, esta pode ser dividida em duas
partes; e aqui temos o começo da sua segunda metade. Para nossa
conveniência, a Epístola foi dividida em seis capítulos, e o seu ensino pode
ser dividido em duas partes de três capítulos cada.

A primeira seção, que consiste dos três primeiros capítulos, foi inteiramente
doutrinária. O apóstolo esteve desdobrando e demonstrando, à sua
maravilhosa maneira, as grandes doutrinas essenciais da fé cristã, tudo
aquilo que é central e vital para a compreensão do meio de salvação. Não há
maior exposição das doutrinas da fé cristã do que a que se acha nos três
primeiros capítulos desta Epístola. Pois bem, havendo feito isso, o apóstolo
agora parte para a aplicação prática da sua doutrina; vai mostrar como a
doutrina se relaciona com a vida e também com o modo de viver diário.
Assim, estamos num ponto sumamente importante desta Epístola, um ponto
que marca uma divisão muito real.

No entanto, devo assinalar logo de início que, ao chegarmos a esta transição,


não devemos exagerar-lhe o teor, não devemos forçá-la demais. Veremos
que, quando chegarmos ao quarto versículo deste capítulo quatro, o
apóstolo retoma à doutrina. É uma característica dele, que ele nunca se
rende a divisões absolutas; e pela simples razão de que, em última análise,
não podemos e não devemos separar

doutrina e prática. Os que pensam que podem fazer isso é que sempre ficam
sem as glórias da fé cristã.

Ao empregar a palavra “pois”, o apóstolo mostra claramente a conexão


entre a fé e a prática. Ele firmara a doutrina; agora é preciso que ela seja
aplicada. Mas, no momento em que começa a tratar da aplicação, ele diz:
“Há um só corpo e um só Espírito, como também fostes chamados em uma
só esperança da vossa vocação; um só Senhor, uma só fé, um só batismo”.
Noutras palavras, ele regressa à esfera da doutrina. Todavia ele não pára aí.
O retomo é feito com a intenção de apresentar a aplicação prática da
doutrina, e é importante em que mostra a mecânica do seu método.

Aqui, então, no capítulo 4, o apóstolo começa a fazer um grande apelo aos


crentes efésios para que ponham em ação as coisas que lhes estivera
ensinando. Lembra-lhes as coisas que inevitavelmente se seguem como uma
conseqüência natural do entendimento das grandes doutrinas da fé cristã.
Neste ponto sou tentado a fazer uma pergunta, pois fazer isso é uma parte
essencial da pregação. Como vocês reagem quando digo que agora estamos
para considerar a aplicação da doutrina cristã? Num volume anterior
estivemos tratando daquela estupenda seção do final do capítulo 3, onde,
tendo sido fortalecidos com poder pela fé, estivemos procurando
compreender com todos os santos “qual seja a largura, e o comprimento, e a
altura, e a profundidade, e conhecer o amor de Cristo, que excede todo o
entendimento, para que fôssemos cheios de toda a plenitude de Deus”. E
examinamos a energia, a força e o poder de Deus que está em ação em
nossos corações e “é poderoso para fazer tudo muito mais abundantemente
além daquilo que pedimos ou pensamos”. Ali estivemos no ponto
culminante das “montanhas aprazíveis”. Contudo, agora estamos prestes a
considerar como essa riqueza de experiência se relaciona com a nossa vida
diária e com o nosso modo de viver. Portanto, repito a minha pergunta:
vocês acham que os três capítulos restantes desta Epístola estão destinados a
ser algo como um anticlímax? Vocês prefeririam que a nossa exposição
da Epístola terminasse no fim do capítulo 3, deixando-nos livres
para buscarmos noutras partes das Escrituras as grandes exposições
de sublimes momentos da vida e experiência cristã?
Esta é uma questão muito prática e muito importante. Fico pensando se
vocês gostariam de sentir-se como Pedro no Monte da Transfiguração.
Pedro, Tiago e João estavam com o nosso Senhor no monte; e o nosso
Senhor transfigurou-Se diante deles. Eles viram isso, e a glória e maravilha
disso, e viram Moisés e Elias, e ouviram a voz do céu. Disse Pedro: “Senhor,
façamos aqui três tabernáculos, um para ti,

um para Moisés, e um para Elias”. Com efeito, Pedro disse: “Fiquemos


aqui; é tão maravilhoso! Eu sei o que está acontecendo ao pé da montanha;
sei da miséria e angústia dali; não podemos ficar aqui? Nãç podemos
permanecer aqui, no topo da montanha?” (Mateus 17:4). E esse o
sentimento de vocês? Permitam-me ser franco e sincero e admitir que eu
tive algum sentimento como esse. Mas render-se a isso seria gravemente
errado, seria uma coisa da qual este grande apóstolo nos adverte. O meio
pelo qual o faz é esta palavra, esta palavra sumamente vital e essencial -
“pois”.

Não temos direito de parar no fim do capítulo 3. As divisões em capítulos


foram feitas para a nossa conveniência, e devemos ser gratos por elas.
Entretanto há um sentido em que elas podem ser realmente perigosas. O
apóstolo não escreveu sujeitando-se a estas divisões de capítulos; ele
escreveu uma carta, e queria que nós lêssemos a carta diretamente do
começo ao fim. Na verdade, ele quase nos manda fazer isso; e o que nos cabe
fazer é segui-lo. “... pois, eu...”. Sigam-me, diz ele, e o que temos que fazer é
acompanhá-lo. Como o nosso Senhor não acedeu à proposta concernente
aos três tabernáculos no alto do monte da Transfiguração, mas tornou a
descer ao vale para encontrar e atender um pai e seu filho atormentado por
demônios, assim devemos retornar à vida e aplicar as grandes doutrinas às
nossas vidas diárias comuns. O apóstolo, reitero, convida-nos a segui-lo
quando nos leva à aplicação prática da grande doutrina que esteve
desvendando diante de nós.

O meio de que Paulo se utiliza para fazê-lo é a palavra “pois”, e tudo o que
me proponho a fazer no momento é extrair algumas das coisas sugeridas
por essa palavra. “Rogo-vos, pois, eu, o preso do Senhor.” “Pois” é uma
palavra que, de maneira muito prática, diz-nos como ler as Escrituras. O
predominante princípio, como estive indicando, é que nunca devemos
escolher textos aqui e ali em nossa leitura das Escrituras. Devemos ler as
Escrituras completas, cada parte das Escrituras. Instintivamente não
gostamos de fazer assim; temos as nossas passagens favoritas; há certos
salmos ou certas porções das Epístolas do Novo Testamento ou certos
quadros dos Evangelhos nos quais nos deleitamos e que sempre nos
comovem quando os lemos. A tendência e o perigo é estarmos sempre
voltando a essas porções. Esse é, porém, o caminho aberto para o
desenvolvimento de uma vida e experiência cristã desequilibrada e
truncada. Nossa regra invariável para com a Bíblia deve ser a seguinte: lê-la
de Gênesis ao Apocalipse, lê-la constantemente e totalmente, sem deixar
nada de fora, mas seguindo-a e sendo dirigidos por ela. Se cremos que ela é
a Palavra de Deus, que tudo nela é a Palavra de Deus, segue-se que há
sentido e significado em

cada parte dela, nas porções históricas e nas genealogias bem como nas
porções explicitamente doutrinárias. Portanto, devemos percorrê-las todas e
lê-las todas, procurando captar o sentido de tudo.

Podemos expor isso de mane ira diferente. Não há nada tão perigoso como
extrair certos versículos e certos parágrafos das Escrituras, arrancá-los do
seu contexto, e só examiná-los isoladamente. Há o perigo de fazer isso no
caso do capítulo três desta Epístola. Mas a palavra “pois” proíbe isso e
insiste em que devo aplicar esse ensino e prosseguir. Não devo isolar essa
grande passagem, devo desenvolvê-la, devo considerar o que leva a ela e o
que se lhe segue. Embora possa haver algum valor em afixar textos nas
paredes de nossas casas ou em ler uma coleção de textos de um livro como
Luz Diária (“Daily Light”), jamais nos esqueçamos de que tais práticas
podem ser perigosas, porque há um equilíbrio nas Escrituras, e o contexto
de cada versículo é sempre importante. Precisamente esta seção que
estamos examinando ilustra e salienta a importância daquilo que estou
acentuando. É a pura verdade dizer que a maioria das heresias que
têm pertubado a Igreja através de toda a sua longa história surgiu
porque homens e mulheres esqueceram este princípio simples. Tomaram
um texto fora do seu contexto, e dele formularam uma doutrina. Se tão-
somente eles o tomassem em seu contexto, seriam poupados do erro que
abraçaram. Lembremo-nos, então, de que esta palavra pois faz-nos pensar
na totalidade das Escrituras, na importância de tomá-las em sua inteireza, e
da loucura de isolar textos ou parágrafos do seu cenário no conjunto maior.

A segunda questão é até mais importante, a saber, que esta palavra pois é
uma conjunção que nos leva adiante, e nos indica a vida que devemos viver
à luz das doutrinas que já consideramos. Vocês verão - e isto é um princípio
geral - que em todas as Epístolas, num ponto correspondente a este, vocês
têm geralmente esta palavra “pois”. Elas começam invariavelmente com as
doutrinas fundamentais. Depois, havendo feito isso, elas dizem: “Portanto” -
à luz disso, por causa disso, segue-se. Como esta é uma questão claramente
vital e básica, devo analisá-la mais amplamente. Há sempre o perigo - e este
afeta mais umas pessoas do que outras - de esquecer que o cristianismo
é, acima de tudo, um modo de vida e um modo de viver. Naturalmente há
certas pessoas que só dão ênfase a isso, e que nada sabem de doutrina e não
se interessam pela doutrina. Tais pessoas consideram o cristianismo como
um sistema de moralidade ou ética. Mas, ao contrário, estou tratando com
pessoas de mentalidade evangélica firme, cujo perigo é ficar somente com a
doutrina.

Algumas pessoas são naturalmente intelectuais; foram-lhes dadas

por Deus mentes acima da média, talvez, e elas gostam de ler, estudar,
arrazoar e manejar as grandes verdades e doutrinas. Seu perigo particular é
passar todo o tempo com doutrina e deter-se na doutrina. Elas lêem as
porções doutrinárias destas Epístolas e depois, tendo chegado ao fim de um
trecho como Efésio, capítulo 3, inclinam-se a dizer: “Naturalmente, o
restante é aplicação prática, que é óbvia; isso eu sei”. E assim não
continuam a leitura; ficam só nas doutrinas. Lêem livros sobre doutrina e
teologia. Isso é excelente, é claro, e muito desejável. Todavia, pode ser a
própria armadilha do diabo. Houve igrejas, denominações e grupos na
passada história da Igreja, que gastavam o tempo todo discutindo,
argumentando, e salientando certas doutrinas, mas esqueciam os incrédulos
ao seu redor. Deixavam de transformar as doutrinas em prática, ficavam tão
absorvidos em seu interesse pelas doutrinas, que até brigavam uns com os
outros e, desse modo, negavam as doutrinas em que acreditavam. A
doutrina vem primeiro, porém não devemos deter-nos na doutrina.

Há outro grupo cujo perigo é ficar só com a experiência. Eles lêem, por
exemplo, os versículos finais do capítulo três de Efésios que descrevem a
tremenda possibilidade de conhecermos o amor de Cristo de maneira
experimental e de termos os nossos corações emocionados e arrebatados
pelas manifestações do Seu amor, e de sermos cheios da plenitude de Deus, e
eles acham que nada mais importa, que nada mais conta. Há pessoas que
figuraram na história da Igreja e que passaram todo o tempo das suas vidas
buscando experiências. Foi esse, num sentido, o perigo dos monges e
eremitas; e tem havido muitos monges e eremitas evangélicos! Houve
pessoas com inclinação mística que virtualmente saíram do mundo, por
assim dizer, e procuravam estas experiências e manifestações do amor de
Deus, e ficavam tão preocupadas com essas questões que não faziam mais
nada. O homem que só se interessa pela doutrina, e o homem que só se
interessa pelo tipo místico de experiência, estão igualmente negligenciando
esta importante palavra “portanto”. Esta palavra nos salvaguarda de todos
esses perigos.

Vemos esta mesma verdade noutra exposição feita por Paulo em sua carta a
Tito. Ele está escrevendo acerca do Senhor Jesus Cristo e da Sua morte na
cruz, e diz: “O qual se deu a si mesmo por nós”. Mas na seqüência ele não
diz que o propósito do Senhor era que ele tivesse alguma experiência
estranha, extática, e sim “para nos remir de toda a iniqüidade, e purificar
para si um povo seu especial, zeloso de boas obras” (2:14). Na verdade o
Senhor já dissera isso, com as palavras: “Se sabeis estas coisas, bem-
aventurados sois se as fizerdes” (João 13:17). Conhecer doutrina é uma
questão muito responsabilizante; ter

A vida não estava na chuva; não estava na luz do sol; estava na semente e
nos pequeninos rebentos. O valor do sol e da chuva é que eles fornecem um
estímulo ao crescimento. Eles o incentivam e o promovem. A vida já estava
na semente. Precisamente a mesma coisa pode-se dizer da experiência que
temos na vida cristã e do nosso entendimento da doutrina. As experiências
promovem a santificação. Quando estou perto do Senhor e cônscio da Sua
presença, não quero pecar. Quando sinto o Seu amor, o pecado é-me odioso
e detestável. Compreender realmente a doutrina tem o mesmo efeito. As
experiências e o conhecimento estimulam, promovem e encorajam; mas a
santificação mesma não é uma experiência. É resultado da vida que recebi e
do conhecimento que tenho; é algo que, à luz disso tudo, eu devo começar a
pôr em prática. “Operai a vossa salvação com temor e tremor ; porque (por
causa do fato de que) Deus é o que opera em vós tanto o querer como o
efetuar, segundo a sua boa vontade” (Filipenses 2:12 e 13).

Diz o apóstolo que lhes está rogando, está instando com eles, com o fim de os
estimular. Não lhes está dizendo apenas que tudo que eles têm que fazer
agora, à luz das grandes doutrinas, é simplesmente “olhar para o Senhor”.
Ele poderia ter concluído a sua Epístola rapidamente neste ponto, se
acreditasse em tal ensino concernente à santificação. Não haveria
necessidade de mais três longos capítulos. Simplesmente teria que escrever:
“Pois bem, agora, à luz de tudo isso, tudo que vocês têm que fazer é olhar
para o Senhor e deixá-10 viver a Sua vida em vocês; é muito simples, vocês
simplesmente não fazem nada, vocês olham para o Senhor, e Ele viverá a
Sua vida em vocês”.

Entretanto, não é o que o apóstolo diz; em vez disso, lemos: “Rogo-vos, pois,
eu, que andeis como é digno...” O ensino que nos assegura que não temos
que fazer nada, senão receber a santificação como um dom, isto é, apenas
deixar Cristo viver Sua vida em nós, deixa de lado as Escrituras, elimina
seções completas das Escrituras. Nos três capítulos, deste ponto em diante,
até o fim da Epístola, vocês vêem que o apóstolo entra em detalhes. Ele diz
coisas como: “Aquele que furtava, não furte mais”, ele nos concita a evitar
“parvoíces” e “chocarrices”. Ele entra em detalhes, ele exorta os efésios,
repreende-os, ordena-lhes, apela para eles, argumenta com eles, lança os
seus grandes imperativos. Ele o faz porque esse é o ensino do
Novo Testamento sobre a santificação. É o desenvolvimento, a
vivência dinâmica, pelo poder que Deus nos dá e que já está em nós, da
doutrina em que cremos e das experiências que temos desfrutado de
Suas bondosas mãos. E espantoso que alguém possa extraviar-se quanto
a isto; pois o nosso Senhor mesmo expõe a verdade claramente no capítulo
17 de João, onde Ele ora: “Santifica-os na verdade: a tua

palavra é a verdade”, (ou, segundo a VA (versão inglesa), “Santifica-os


mediante a tua verdade; a tua palavra é a verdade”). E por meio da Palavra
que nós somos santificados. “Portanto”, é à luz da doutrina que nós
devemos viver a vida santificada.

O processo de santificação é, primeiro e acima de tudo, uma plena


compreensão das doutrinas bíblicas. Devemos compreender o meio
de salvação como esboçado nelas. Devemos ver as coisas para as quais fomos
chamados, as gloriosas possibilidades que foram abertas para nós; e quanto
mais as entendermos e as captarmos, mais prontos e deveras ansiosos
estaremos para desenvolvê-las na prática. Veremos a inevitabilidade destas
coisas; veremos o seu caráter lógico e a sua ordem lógica. O não
entendimento do sentido desta palavra “portanto”, e da sua real mensagem,
leva a um modo inteiramente falso de examinar as Escrituras. Há muitos
cujo ministério é dividido de maneira antibíblica. Pregam uma mensagem
evangelística, “Venham a Jesus”, “Venham a Cristo”, “Salvem-se”,
“Aceitem a salvação” -essa é uma mensagem. Dejsois eles têm outra
mensagem, completamente distinta e separada. E apenas um apelo
constantemente repetido para “render-se” ou para “dispor-se a ser
capacitado a dispor-se a render-se”. Isso é tudo que é necessário, dizem eles;
a santificação ocorrerá porque Cristo viverá Sua vida em nós. Muitas vezes
isso é acompanhado pelo que chamam “leitura da Bíblia”, que é uma
espécie de ligeiro comentário da Bíblia, sem uma clara exposição das
grandes doutrinas e sem mostrar a íntima relação destas com a vida
que devemos levar. Tal ensino deve-se ao fato de que esses mestres
nunca entenderam o significado desta palavra “portanto”. Mas nas
Escrituras a doutrina e a prática estão indivisivelmente unidas. Jamais
devemos separá-las. Sempre devemos pregá-las e aplicá-las. Não
devemos parar no fim do capítulo 3, é o que Paulo diz. O seu “portanto”
força-nos a ir adiante, sob pena de arriscarmos as nossas vidas e as
nossas almas. Não devemos ficar só com a doutrina; não devemos ficar
só come experiência. Não devemos separar ajustificaçãoe a
santificação, exceto no pensamento. A salvação é um todo, e o “portanto” é o
elo que sempre mantém juntas as partes . Jamais devemos fazer violência
às Escrituras no interesse de teorias ou métodos ou experiências
particulares. Queira Deus conceder-nos graça para entendermos o
significado desta poderosa palavra “portanto”! A nossa santificação é o
resultado inevitável da doutrina e da experiência, graças à vida de Deus
em nossas almas. O processo começa imediatamente, assim que nascemos de
novo, e o que nos compete fazer é pôr toda a nossa energia em atividade
nesse processo, para desenvolvê-lo “com temor e tremor”.

O apóstolo dá-nos também razões pelas quais isso deve ser assim. Para isso
fomos chamados, e essa é a razão pela qual tudo o que nos aconteceu, de
fato nos aconteceu. Leiam de novo os três primeiros capítulos desta Epístola
- “Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o qual nos abençoou
com todas as bênçãos espirituais nos lugares celestiais em Cristo”. Você crê
nisso, meu amigo? Se crê, o “portanto” forçosamente virá logo à sua mente.
Tudo em você o fará ansiar por ser digno disso e por elevar-se a isso. Ou
vejam o versículo dez do capítulo primeiro: “De tomar a congregar em
Cristo todas as coisas, na dispensação da plenitude dos tempos, tanto as que
estão nos céus como as que estão na terra”. Você crê que é propósito de
Deus em Cristo reunir nEle todas as coisas? Se crê, você dirá: “Não devo
fazer nada que se oponha a esse propósito, mas devo fazer tudo para ajudá-
lo e para amoldar-me a ele.” Você crê no que Deus nos diz no versículo
catorze do mesmo capítulo, onde Ele afirma que o Espírito é também “o
penhor da nossa herança para redenção da possessão de Deus”? Você crê
que Deus fez de você um herdeiro e co-herdeiro com Cristo, e que você vai
receber aquela gloriosa herança? Se crê, então você concordará com a
lógica do apóstolo João, como também com a do apóstolo Paulo, e dirá: “E
qualquer que nele tem esta esperança purifica-se a si mesmo, como também
ele é puro (1 João 3:3).

É na medida em que captamos a verdade da doutrina, que o desejo de


sermos santos é produzido em nós. Se eu creio realmente que, quando eu
estava “morto em ofensas e pecados”, Deus me vivificou, enviou Seu Filho
ao mundo para morrer por mim e por meus pecados para salvar-me do
inferno, e para salvar-me para o céu - se eu creio realmente nisso, devo
dizer: “Amor tão admirável, tão divino, requer a minha alma, a minha vida,
o meu tudo”. E lógico, e requer a minha alma, a minha vida, o meu tudo.
Não posso resistir a essa lógica - não devo! E assim analisamos todas as
grandes doutrinas que o apóstolo nos estivera apresentando nos três
primeiros capítulos, e lembramos que não somos mais “estrangeiros, nem
forasteiros, mas concidadãos dos santos, e da família de Deus”. Se eu crer
nessa verdade enquanto viver neste mundo, compreenderei que não tenho
direito de viver para mim mesmo. “Portanto”! É lógica inegável, uma
dedução inevitável. Porque eu creio na doutrina é que desejo ser cada vez
mais santificado. “Sede santos, porque eu sou santo”, diz o Senhor (1 Pedro
1:16).

Vemos assim a importância desta palavra portanto e a importância de não


tomar porções selecionadas das Escrituras, de não consultarmos somente os
nossos sentimentos, mas sermos levados pela Palavra de Deus, para que
possamos ser sempre “para louvor e glória da Sua graça”.

DIGNOS DA NOSSA VOCAÇÃO

“Rogo-vos, pois, eu, o preso do senhor, que andeis como é digno da vocação
com que fostes chamados, com toda a humildade e mansidão, com
longanimidade, suportando-vos uns aos outros em amor, procurando guardar a
unidade do Espírito pelo vínculo da paz. ” Efésios 4:1-3

Tendo visto como um verdadeiro entendimento da doutrina e da experiência


cristãs leva ao desejo de viver uma vida santa, passamos agora a considerar
o caráter da vida que devemos viver. Primeiramente o apóstolo dá-nos uma
descrição geral disso, e depois começa a tratar dos seus aspectos
particulares e em detalhe. O caráter geral da vida é que ela deve ser “digna
da vocação com que fostes chamados”. Depois, tendo firmado o caráter
geral, ele menciona um aspecto particular da vida, a saber, que devemos
esforçar-nos para “guardar a unidade do Espírito pelo vínculo da paz”. E
isso devemos fazer “com toda a humildade e mansidão”, e assim por diante.
Desse modo ele continua com argumento após argumento, até o fim do
versículo 16. Depois disso ele passa a argumentos mais diretos e práticos
com as palavras, “E digo isto, e testifico no Senhor, para que não andeis
mais como andam também os outros gentios”. Essa é a análise geral do
método do apóstolo; descrição geral primeiro, e depois particular. Devo
acentuar que esta é a prática invariável do apóstolo; ele nunca vai para os
pontos particulares sem antes firmar princípios gerais. Parece-me que
muitas pessoas entram em dificuldades em suas vidas cristãs porque
se precipitam para os pontos particulares. “Que dizer disto ou
daquilo?”, perguntam. A resposta a tais indagações é retornar e encontrar
um princípio geral. Os pormenores nunca poderão ser
compreendidos apropriadamente, exceto à luz do todo. O todo é maior do
que as partes, e dirige o nosso entendimento delas. Os problemas
particulares que surgem na vida cristã nunca devem ser considerados
isoladamente; fazê-lo é buscar erro, heresia e muita dificuldade na prática.
Portanto, o apóstolo sempre começa com o geral; e é só depois de ter
deixado isso claro, que desce à esfera do particular e do detalhe.

Começamos, pois, com a descrição geral que Paulo faz do caráter da vida
cristã: “Rogo-vos, pois, eu, o preso do Senhor, que andeis como é digno da
vocação com que fostes chamados”. Se tão-somente soubéssemos o que
significam estas palavras, a maioria dos nossos problemas seria resolvida
imediatamente. Outra e melhor tradução o expressa assim: que andeis como
é digno do chamamento com que fostes chamados. Há um sentido em que
“vocação” significa “chamamento”, mas nestes tempos desenvolveu-se um
sentido ligeiramente diferente, que pode fazer-nos extraviar.

Cada palavra aqui é de grande importância e significação, de modo que


devemos examiná-las uma por uma. A primeira palavra é “digno” (como é
digno; dignamente). As doutas autoridades dizem-nos que ela contém duas
idéias básicas, ambas importantes. A primeira idéia é a de igual peso ou
equilíbrio. Pensem em duas coisas que têm o mesmo peso, de modo que, ao
serem colocados nos lados opostos da balança, não há nenhuma inclinação,
nem para um lado nem para o outro, mas elas se equilibram perfeitamente.
Essa é a derivação original da palavra aqui traduzida por “como é digno”.
Assim, o que o apóstolo está dizendo é que lhes está rogando e os está
exortando no sentido de que sempre atribuam em suas vidas igual peso à
doutrina e à prática. Não devem pôr todo o peso sobre a doutrina e nenhum
sobre a prática; nem pôr todo o peso sobre a prática e só um pouco, se tanto,
sobre a doutrina. Agir assim produz desequilíbrio e assimetria. Os
efésios deviam fazer tudo para ver que os pratos da balança
estivessem perfeitamente equilibrados. Por mais atulhado de conhecimento
que a sua cabeça esteja, se você estiver falhando em sua vida, será
um empecilho à propagação do reino, estará trazendo má reputação à causa
de Deus e do Seu Cristo. Mas é igualmente certo dizer que se a sua
concepção da vida cristã é que esta não significa mais que ter uma vida
digna, que você deve ter boa moral e que a doutrina é sem importância, de
novo será um empecilho à causa. E preciso haver verdadeiro equilíbrio,
devemos ser “dignos da vocação com a qual fomos chamados”.

A Bíblia usa esse argumento freqüentemente. Vê-se, por exemplo, no


capítulo seis da Epístola aos Hebreus, onde lemos: “Mas de vós, ó amados,
esperamos coisas melhores, e coisas que acompanham a salvação, ainda que
assim falamos. Porque Deus não é injusto para se esquecer da vossa obra, e
do trabalho de caridade que para com o seu nome mostrastes, enquanto
servistes aos santos; e ainda servis. Mas desejamos que cada um de vós
mostre o mesmo cuidado até o fim, para completa certeza da esperança”
(versículos 9-11). O autor da Epístola os recomenda por terem sido
maravilhosamente diligentes para com o

lado prático das suas vidas, porém depois os concita a mostrarem a mesma
diligência na questão de captarem as doutrinas da fé, e especialmente a da
completa certeza da esperança, até o fim. Aqueles cristãos hebreus estavam
em dificuldade porque tinham deixado de manter o equilíbrio entre a
doutrina e a prática; não estavam sendo “dignos” da vocação. ^

A outra idéia contida nessa palavra é de algo que “combina”. É interessante


observar como os tradutores desta Versão Autorizada, ou Versão do Rei
Tiago (inglesa), traduziram a mesma palavra do original grego de diferentes
maneiras em lugares diferentes. Eles podiam muito bem tê-la traduzido
como segue: “Rogo-vos, pois, eu, o preso do Senhor, que andeis de um modo
condizente com a vocação corn a qual fostes chamados”, porque quando
eles traduzem o mesmo apóstolo, no capítulo primeiro da sua Epístola aos
Filipenses, onde de novo ele escreve acerca de si próprio na prisão e do seu
sofrimento, eles dizem, “Somente seja o vosso procedimento como convém
ao evangelho de Cristo” (versículo 27, VA). 3 É exatamente a mesma idéia. A
idéia comunicada é de igualar-se, de vestir uma peça de roupa que
combina com outra, algo que se ajusta e se harmoniza com alguma outra
coisa.

Negativamente, Paulo quer dizer que devemos evitar um conflito de cores


ou de aparência. Jamais deverá haver um conflito entre a nossa doutrina e a
nossa prática. Isso é algo que se reconhece na questão de vestuário; nunca
deve ocorrer um conflito de cores não condizentes. Há certas cores que n ão
combinam, que não devem andar juntas; e quando vemos uma pessoa com
essas cores chocantes e contrastantes, dizemos que essa pessoa não tem bom
gosto. Podemos ampliar a idéia e dizer que nem sempre a mesma roupa
convém a todas as idades. Não há nada tão ridículo como ver uma pessoa
idosa vestida como se fosse jovem, e vice-versa. Há certas coisas que não
combinam. Essa é a idéia que Paulo transmite aqui; jamais deverá
haver incongruência ou agudos contrastes em nossas vidas.

Estou ciente de que a arte moderna se deleita nesse tipo de coisa. Vê-se a
mesma coisa em muita música moderna, assim chamada, que despreza a
melodia e tem prazer na cacofonia, nos contrastes e nas discordâncias. Mas
isso é perversão, não arte. A arte verdadeira sempre tem beleza, porque
sempre tem como seu centro a idéia de equilíbrio e de congruência. Não há
beleza verdadeira fora disso. Isso

tem sido reconhecido através dos séculos; portanto, estejamos cientes dessas
perversões modernas. Agora o apóstolo está utilizando essa espécie de
quadro descritivo: “Seja o vosso andar”, diz ele, “como convém à vocação
com que fostes chamados.”

Podemos levar adiante a idéia, notando a palavra que o apóstolo empregou


quando escreveu a Tito, onde ele fala sobre “ornamento da doutrina” (Tito
2:10). A idéia é que a doutrina é, por assim dizer, a veste fundamental ou
básica e que a vida é uma espécie de adorno acrescentado a ela. Sua
exortação é que sempre devemos ser cuidadosos para que as nossas
decorações, os nossos ornamentos, sejam sempre apropriados a essa veste
básica de que já nos vestimos, com ela sejam congruentes e combinem. A
doutrina é o fundamento; a vida é o ornamento. O propósito do ornamento
é tornar atraente a doutrina, levar o povo a admirá-la, a contemplá-la e a
tê-la. Aqui, como em toda parte, o apóstolo faz mais que lançar um apelo ao
povo cristão para que viva uma vida digna e seja filantrópico. O apelo é
sempre em termos da doutrina; a vida deve fluir dela, deve sempre
harmonizar-se com ela. Eu e vocês devemos viver uma espécie de vida que
adorne a doutrina.

O apóstolo começa logo a dizer-nos o que a doutrina é. É “a vocação”, “o


chamamento com que fostes chamados”. Devemos ser dignos da vocação
com que fomos chamados. Aqui de novo estamos lidando com uma frase
que é muito típica e característica do Novo Testamento, e como se repete
constantemente, é importante que compreendamos os termos sem nenhuma
dúvida ou mal entendido. A doutrina que ela comunica é que devemos viver
essa espécie de vida pela razão de que somos “os chamados”. Esse é um dos
termos característicos com as quais o Novo Testamento geralmente descreve
os cristãos. Os cristãos são “os chamados de Jesus Cristo”. Uma igreja, a
Igreja, nada é senão a reunião dos “chamados”. O propósito termo grego
para igreja é ekklesia, que significa “os chamados para fora”. O apóstolo se
referira a isso no capítulo anterior: “Ora, àquele que é poderoso para
fazer tudo muito mais abundantemente além daquilo que pedimos ou
pensamos, segundo o poder que em nós opera, a esse glória na igreja” -
entre “os chamados” ou “os chamados para fora”. Os cristãos são os
que foram chamados para fora do mundo, “das trevas para a sua
maravilhosa luz” (I Pedro 2:9). Nunca se deve pensar no cristão
como alguém que resolveu adotar um certo tipo de vida. Nunca se deve
pensar na vida cristã em termos de algo que decidimos adotar. É
exatamente o oposto, é algo para o que fomos “chamados”. Por isso é infeliz
o emprego do termo “vocação” na tradução. Nós até usamos mal a palavra
“vocação” e falamos de alguém adotando uma vocação. Mas

ninguém adota uma vocação verdadeira; é algo para o que a pessoa é


chamada. Por isso devemos apegar-nos à palavra “chamamento”.

Assim, o ensino do apóstolo é que o modo pelo qual devemos viver a vida
cristã, é, primeiramente, lembrar sempre que fomos chamados para ela,
chamados das trevas, chamados para a luz. O apóstolo estivera salientado
esta idéia desde o começo da Epístola. No capítulo primeiro ele dissera:
“Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o qual nos abençoou
com todas as bênçãos espirituais nos lugares celestiais em Cristo; como
também nos elegeu nele antes da fundação do mundo, para que fôssemos
santos e irrepreensíveis diante dele em caridade; e nos predestinou para
filhos de adoção por Jesus Cristo, para si mesmo, segundo o beneplácito de
sua vontade” (versículos 3-5). No capítulo dois fizera os seus leitores
lembrar-se disso: “E vos vivificou, estando vós mortos em ofensas e
pecados” (vers. Is), e assim por diante. Agora, todavia, mais uma vez ele
retorna a isso, outra vez e renovadamente. Estou interessado em acentuar
que este é, de todos, o maior motivo para a santificação. A principal
razão pela qual devemos viver uma vida de pureza e de santificação é
que somos “os chamados”. Certamente não é correto pecar, e é correto viver
a vida cristã, e estas coisas são boas em si e por si, mas primariamente
devemos viver uma vida santa porque fomos “chamados” para isso.

Portanto, devemos examinar toda esta idéia de chamamento, como a Bíblia


a ensina. Ela ensina que há dois tipos de chamamento. O primeiro é o
chamamento geral, feito atodos. “Deus anuncia (VA: “Deus ordena”) agora
a todos os homens que se arrependam” (Atos 17:30). Aí está um
chamamento universal que parte da Igreja para o mundo inteiro, para que
se arrependa e creia no evangelho. Essa mensagem é dirigida a cada pessoa.
Mas esse não é o único sentido do termo, e vemos que ele é empregado de
maneira muito mais particular, pois, em acréscimo ao chamamento geral há
o que se chama chamamento ou vocação “eficaz”. Nem todos os que ouvem
o chamado lhe respondem. Dois grupos acham-se entre os que recebem o
chamamento geral. Num grupo todos continuam incrédulos, porém no outro
estão aqueles a quem o chamamento veio eficazmente. Estes são os cristãos
verdadeiros.

Permitam-me considerar alguns exemplos e ilustrações disto. Na Primeira


Epístola aos Coríntios diz o apóstolo Paulo que “a palavra da cruz é loucura
para os que perecem; mas para nós, que somos salvos, é o poder de Deus”
(1:18). Há dois grupos de pessoas - aquelas para as quais a pregação da cruz
é loucura, e aquelas para as quais é a sabedoria de Deus. Essa é uma
distinção fundamental. Há os que

“perecem” e há os salvos. Depois Paulo continua: “Porque os judeus pedem


sinal, e os gregos buscam sabedoria; mas nós pregamos a Cristo crucificado,
que é escândalo para os judeus e loucura para os gregos. Mas para os que
são chamados, tanto judeus como gregos, lhes pregamos a Cristo, poder de
Deus, e sabedoria de Deus” (versículos 22-24). O contraste é entre os que
perecem e os salvos: aqueles para quem a cruz é escândalo e loucura, e
aqueles para quem ela é o poder e a sabedoria de Deus. Os cristãos são
salvos; e os crentes são sempre descritos como “os chamados”, isto é, os que
são separados de todos os outros foram transportados para uma nova
posição.

Outra matéria de importância é que devemos observar o ponto em que


entra o chamamento, nesta questão da salvação. Devemos entender que o
“chamamento” vem antes da justificação. O apóstolo expõe claramente a
matéria na Epístola aos Romanos: “E aos que predestinou a estes também
chamou; e aos que chamou a estes também justificou; e aos que justificou a
estes também glorificou” (8:30). “Predestinação”, “chamamento”,
“justificação” e, finalmente, “glorificação”! Significa que a salvação é
resultado da poderosa ação do Espírito de Deus na alma, ação pela qual Ele
introduz um novo princípio de vida e de ação, o qual nos capacita a crer.
Somos chamados para “crer”. O nosso Senhor Jesus Cristo expressa isto
claramente no Evangelho Segundo João: “Ninguém pode vir a mim, se o Pai
que me enviou não o trouxer” (6:44). O que o traz é o chamamento. Há no
“chamamento” poder que o traz; sem este ele não pode vir.

Considerem, ademais, o relato dos primeiros convertidos ao evangelho na


Europa, como se vê em Atos dos Apóstolos. Paulo prega na pequena reunião
de oração de mulheres, fora das muralhas de Filipos, num sábado, e lemos
que, “assentando-nos, falamos às mulheres que ali se ajuntaram. E uma
certa mulher, chamada Lídia, vendedora de púrpura, da cidade de Tiatira, e
que servia a Deus, nos ouvia, e o Senhor lhe abriu o coração para que
estivesse atenta ao que Paulo dizia” (16:13-14). O “chamamento” é ali
descrito como a abertura do coração que faz a pessoa ficar atenta e crer.
Sem essa abertura do coração, a Palavra não tem efeito. O apóstolo já o
dissera claramente no começo do capítulo 2 desta Epístola aos Efésios,
quando escrevera: “E vos vivificou, estando vós mortos em ofensas e
pecados” (versículos l9). Ele o repete no versículo 5: “Estando nós ainda
mortos em nossas ofensas, nos vivificou...” Uma pessoa morta não pode
vivificar-se a si mesma; somente Deus a pode vivificar. E o faz por meio de
um chamamento eficaz.
Uma ilustração maravilhosa disso tudo vê-se no Evangelho Segundo João,
no caso de Lázaro. Lázaro tinha morrido e estivera morto por

quatro dias; seu corpo estava numa sepultura, e a decomposição já


começara. Chega o nosso Senhor à cena e ordena aos que cuidavam dos
serviços fúnebres: “Tirai a pedra”. Depois disse: “Lázaro, sai para fora”, e
ele saiu do túmulo. O poder estava no chamamento. O poder estava na
palavra proferida. É isso que Paulo quer dizer aqui, quando fala na
“vocação com que fostes chamados”. A palavra tinha vindo eficazmente,
com poder, a estes cristãos efésios; o Espírito Santo estava nela; a pregação
tinha sido “em demonstração do Espírito e de poder”. Quando a palavra
vem no poder do Espírito, ela chama as nossas almas da morte espiritual e
do túmulo para a vida e para uma novidade de vida (Romanos 6:4). O
apóstolo torna a declarar o fato na Epístola aos Romanos: “Deus, o qual
vivifica os mortos, e chama as coisas que não são como se já fossem” (4:17).
Abraão e Sara, apesar de estarem com mais de noventa anos, foram
capacitados a ter um filho. Pela natureza era impossível, não porém para
Deus. Quando Deus chama salvadoramente, Ele dá o poder e torna eficaz o
chamamento. Torna-o seguro e certo; terá que acontecer, e acontece. Nós,
os cristãos, somos os “chamados” da morte e do túmulo do pecado. Quando
ainda estávamos mortos em ofensas e pecados, veio a palavra poderosa e nos
“chamou”, e nos capacitou a ouvir. A palavra nos vivificou e pôs vida em
nós. Vivificar é dar vida.

O apóstolo Pedro diz a mesma coisa em sua primeira Epístola, quando


escreve sobre, “Sendo de novo gerados, não de semente corruptível, mas da
incorruptível, pela palavra de Deus, viva e que permanece para sempre”
(1:23). A palavra do evangelho tem vida em si, e quando ela vem no poder
do Espírito, e a semente é implantada, nós reagimos prontamente. Além
disso, o apóstolo Pedro usa o mesmo argumento que o apóstolo usa aqui.
“Mas, como é santo aquele que vos chamou, sede vós também santos em
toda a vossa maneira de viver” (1:15). De novo ele argumenta no capítulo 2,
dizendo: “Mas vós sois a geração eleita, o sacerdócio real, a nação santa, o
povo adquirido, para que anuncieis as virtudes daquele que vos chamou das
trevas para a sua maravilhosa luz”(2:9).

É precisamente isso que o apóstolo está argumentando aqui, que fomos


chamados a fim de podermos anunciar essas coisas. Sejam dignos, diz ele,
da vocação, do chamamento pelo qual vocês foram chamados. Fazemo-lo
aplicando a doutrina e o conhecimento que temos. Temos que viver como
quem compreende que fomos chamados por Deus para esta vocação
celestial. Só podemos fazê-lo quando conhecemos a doutrina. Portanto,
devemos recordar algumas coisas que sempre devem estar em nossas
mentes, governando a nossa conduta e o nosso comportamento. Fomos
chamados para esta mara-

vilhosa e elevada vocação, e as nossas vidas devem combinar com a vocação


e estar em conformidade com ela.

Quais são, porém, as coisas de que devemos lembrar-nos sempre? A


primeira é: “Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o qual nos
abençoou com todas as bênçãos espirituais nos lugares celestiais em Cristo”.
Isso está exposto no versículo três desta Epístola aos Efésios. Ele próprio
responde a todos os argumentos e a todas as escusas que possamos
apresentar. De nada vale falarmos das nossas dificuldades ou dos problemas
da vida neste complicado mundo moderno do século vinte. O que importa e
o que vale é que fomos abençoados “com todas as bênçãos espirituais nos
lugares celestiais em Cristo”. Não há nada além disso; tudo que
necessitamos está à nossa disposição. E tudo em Cristo; estamos nEle, e Ele
está em nós. Sempre devemos lembrar-nos deste fato, e devemos viver de
maneira que o ilustre.

O apóstolo prossegue e nos lembra também no versículo seguinte: “Como


também nos elegeu nele antes da fundação do mundo, para que fôssemos
santos e irrepreensíveis diante dele em caridade” (versículo

4). Deus nos chamou não apenas para que não fôssemos para o inferno, e
não somente para que soubéssemos que os nossos pecados estão perdoados;
Ele nos escolheu “para sermos santos”, e para sermos “irrepreensíveis
(“inculpáveis”, VA) diante dele em amor”. Não temos direito de argüir ou
questionar ou pôr em dúvida. Essa é a vida para a qual Ele nos chamou.

Lembra-nos a seguir o apóstolo que Deus “nos predestinou para filhos de


adoção por Jesus Cristo” (vers. 5), e a isso ele acrescenta, no capítulo 2, que
somos “concidadãos dos santos, e da família de Deus” (vers. 19). Somos
chamados para a família de Deus; somos filhos de Deus. E devemos viver de
modo que faça recair honra e glória na família e em nosso Pai. Em qualquer
país estrangeiro o britânico deve estar sempre cônscio do fato de que, num
sentido, a honra do seu país está em suas mãos. A honra da família está nas
mãos do filho da família quando ele vai a uma festa; e se o filho não se porta
como deve, os hospedeiros não culparão o filho, e sim os pais, e com razão. A
honra da família está nas mãos do filho, e eu e vocês somos filhos de
Deus, Assim, quando eu andar pelas estradas da vida, deverei lembrar-
me sempre de que sou filho e membro da família de Deus: “E
nos predestinou para filhos de adoção por Jesus Cristo”. E porque sou filho,
sou herdeiro, de modo que o apóstolo lembra a estes cristãos efésios que eles
têm o Espírito Santo, “o qual é o penhor da nossa herança, para redenção
da possessão de Deus” (vers. 14). Devo pensar não somente no que eu sou
agora, mas também no que vou ser. Não sou

somente filho de Deus, sou herdeiro e co-herdeiro com Cristo. Lemos sobre
pessoas que foram preparadas para certas coisas e instruídas nos costumes,
conduta, procedimentos e comportamento antes de apresentar-se à corte ou
de tomar parte nalgum grande acontecimento. Assim devemos viver, como
sempre lembrados de que vem o dia em nossas vidas em que seremos
levados à presença de Deus. “Ora, àquele”, diz Judas, “que é poderoso para
vos guardar de tropeçar, e apresentar-vos irrepreensíveis, com alegria,
perante a sua glória...” (vers. 24). Devemos viver como apercebidos de que
vamos para a glória. E tendo sido apresentados, receberemos a nossa
recompensa e entraremos em nossa herança. Esta vem - “a possessão
adquirida”. Desta só recebemos as primícias e o antegozo neste mundo;
todavia depois a receberemos em plenitude.

Não somente isso; o apóstolo já nos estivera lembrando, no fim do capítulo


primeiro, que, como membros da Igreja, somos membros do corpo de Cristo
- “da igreja, que é o seu corpo, a plenitude daquele que cumpre tudo em
todos”. Estamos ligados a Cristo como os membros do corpo pertencem à
cabeça. Somos “da sua carne e dos seus ossos”, como Paulo nos dirá no
capítulo 5. No capítulo 2 ele nos lembra que não somente fomos vivificados
com Cristo, mas também ressuscitaremos da morte com Cristo. De fato
estamos, neste momento, “assentados com Cristo nos lugares celestiais”.
Devemos viver, digo eu, como estando cientes de que estamos assentados nos
lugares celestiais precisamente neste momento. E então sempre devemos
lembrar-nos de que Cristo habita em nossos corações pela fé, e que há algo
da plenitude de Deus em nós. Esse é o caminho para a santificação, para a
santidade. Esse é o modo de viver - dar-nos conta de que estas coisas são
verdadeiras.
Finalmente, jamais devemos esquecer-nos do modo como tem lugar o
chamamento. Que será que me tornou possível vir da morte para a vida, do
túmulo do pecado para a novidade de vida, e estar assentado nos lugares
celestiais em Cristo? A resposta é que isto se deve inteiramente à livre graça
de Deus. “Pela graça... por meio da fé; e isto não vem de vós; é dom de
Deus” (2:8). “Somos feitura sua” (2:10). Enquanto estávamos mortos,
perdidos e sem esperança, e éramos criaturas dominadas pela luxúria, Ele
nos vivificou, apesar disso. E, acima de tudo, tratemos de lembrar-nos
constantemente do que é que possibilitou a Deus fazer isso. A nossa salvação
é “pelo sangue de Cristo”. “Vós, que antes estáveis longe, já pelo sangue
de Cristo chegastes perto” (2:13).

O apóstolo Pedro o expõe deste modo: “Não foi com coisas

corruptíveis, como prata ou ouro, que fostes resgatados da vossa vã maneira


de viver... mas com o precioso sangue de Cristo, como um cordeiro
imaculado e incontaminado” (1 Pedro 1:18). Assim, quando o pecado vem
tentá-lo, ou quando você está em dúvida quanto a se você conseguirá
prosseguir na vida cristã, ou se achar que a vida cristã é dura e faz
exigências excessivas, lembre-se do preço que foi pago por sua libertação,
por seu resgate. Cristo entregou Sua vida à morte para que fôssemos
redimidos e para nos tornarmos santos.

Depois, lembremo-nos sempre do poder que nos é dado, “a sobreexcelente


grandeza do seu poder sobre nós, os que cremos” (1:19). Lembremo-nos
também de que devemos ser “fortalecidos com poder pelo seu Espírito no
homem interior” (3:16), e de que Deus “é poderoso para fazer tudo muito
mais abundantemente além daquilo que pedimos ou pensamos, segundo o
poder que em nós opera” (3:20).

Observem, finalmente, que o apóstolo faz este apelo como “o prisioneiro do


Senhor”. Com isso eu creio que ele está efetivamente dizendo: vocês devem
viver como eu estou tentando viver, e como estou vivendo. Vivo a vida de um
prisioneiro; estou de fato numa prisão neste momento. E estou na prisão
porque não sou eu que resolvo o que fazer; sou servo de Cristo, sou Seu
escravo. É porque sou leal a Ele e prego o Seu evangelho que estou na
prisão; mas isso não me apoquenta; estou a Seu serviço, e não a serviço de
mim mesmo. Ele me chamou, e eu sou Seu escravo, Seu servo, Seu
prisioneiro, e vocês devem viver como prisioneiros de Jesus Cristo. “Não
sois de vós mesmos; fostes comprados por bom preço” (1 Coríntios 6:19-20).
Não temos direito de viver como queremos e como nos agrada.
Éramos prisioneiros de satanás; agora somos prisioneiros de Jesus Cristo.
Não devemos ter desejo algum, senão o de agradá-10. “Que nada me
agrade ou me cause dor, a não ser que venha de Ti, meu Senhor”, deve ser
a expressão do nosso constante desejo. Se tão-somente enxergássemos e
captássemos o significado do nosso chamamento, em todas as suas partes,
não teríamos problema com a vida cristã. “Teríamos como nosso supremo
prazer ouvir os Seus ditames e obedecer”, com Philip Doddridge e com os
santos de todos os séculos.

Almeida é passível da mesma observação do Autor. Nota do tradutor.

2
Empregaremos os termos “portanto” e “pois” um pelo outro, conforme o contexto. Nota do tradutor.

3
Almeida, Atualizada: “Vivei, acima de tudo, por modo digno do evangelho...”; Revista e Corrigida:
“Somente deveis portar-vos dignamente conforme o evangelho...”; Tradução Brasileira: semelhante à
tradução de Almeida; Figueiredo: “Somente vos recomendo que vos porteis conforme o evangelho...”.
Nota do Tradutor.
GUARDANDO A UNIDADE DO ESPÍRITO

“Com toda a humildade e mansidão, com longanimidade, suportando-vos uns


aos outros em amor, procurando guardar a unidade do Espírito pelo vínculo da
paz. ” Efésios 4:2-3

Nestes dois versículos que se relacionam intimamente com o primeiro


versículo do capítulo, o apóstolo, tendo descrito o caráter e natureza geral
da vida cristã para a qual fomos chamados por Deus mediante a Sua graça,
passa agora a aplicações particulares. O caráter geral da vida é que ela deve
ser “digna da vocação com que fomos chamados”. Isto sempre deve ser
central e supremo em nossas mentes. Fomos chamados para uma espécie
particular de vida. Quando estáva-mos mortos em ofensas e pecados, fomos
chamados, vivificados e trazidos a esta vida. Ou, como o apóstolo o
expressara anteriormente, “Somos feitura sua, criados em Cristo Jesus para
as boas obras, as quais Deus preparou para que andássemos nelas”(2:10).

O fato de que a vida cristã é descria como um “andar” é significativo.


“Andar” sugere atividade, movimento e progresso. Temos que “andar” de
maneira digna da nossa vocação. Não ficamos parados onde está vamos ou
como estamos; não dizemos: “Ah, agora estou salvo, os meus pecados estão
perdoados, tudo está bem”, passando o resto da vida falando da nossa
conversão, sempre olhando para trás e permanecendo naquela posição. A
vida cristã é vida de progresso, um sempre ir para a frente; há sempre
novas coisas para descobrir e novas experiências para desfrutar.

A primeira particularidade que o apóstolo menciona é que devemos


esforçar-nos para “guardar a unidade do Espírito pelo vínculo da paz”. Por
que o apóstolo escolheu isto como o primeiro ponto particular? Devemos
buscar a resposta nos três primeiros capítulos desta Epístola, onde Paulo
estivera salientando este grande princípio da unidade. Dissera ele, clara e
especificamente, no versículo dez do capítulo primeiro, que este era o
objetivo primordial que Deus tinha em mente quando planejou, antes da
fundação do mundo, e antes do início do

tempo, enviar o Seu Filho unigênito à este mundo. Foi para “tornar a
congregar (ou para reunir) em Cristo todas as coisas, na dispensação da
plenitude dos tempos, tanto as que estão nos céus como as que estão na
terra; nele...”. Este é o principal objetivo do plano divino de salvação. O
pecado é uma força dilacerante. O pecado sempre divide, sempre separa,
sempre despedaça. Divide o homem dentro de si e contra si mesmo. Produz
sempre a luta e o conflito de que todos estamos cientes em nossas vidas. Há
o constante problema do bem e do mal, do certo e do errado; farei? Não
farei? O pecado também produz divisão entre homem e homem; leva à
inimizade, à guerra e à discórdia. O mundo foi destroçado pelo pecado.

Assim, num sentido, o objetivo central da salvação é reunir, juntar de novo,


restaurar a unidade que prevalecia antes do pecado e da Queda produzirem
este estrago terrível. O apóstolo desenvolvera isso, dizendo no capítulo
primeiro, versículos 11 a 13: “Em quem também (nós, os judeus) fomos
feitos herança”, e depois, “em quem também vós (os gentios) estais, depois
que ouvistes a palavra da verdade, o evangelho da vossa salvação”. Mais
adiante, no capítulo dois, o apóstolo o desenvolve com mais detalhes,
mostrando como “a parede de separação que estava no meio” foi
derrubada, e como “dos dois um novo homem”, um novo corpo, foi feito.
Esta unidade em Cristo, unidade de judeu e gentio, diz ele no capítulo 3, é o
mistério que “agora tem sido revelado” (versículos 5ss.). É, pois, inevitável
que ao chegarmos às particularidades do andar cristão, da vida cristã, a
preservação dessa unidade seja mencionada primeiro. Este é o grande
desígnio de Deus; é o que mostra a glória de Deus acima de tudo mais.
Portanto, a marca peculiar da vocação cristã é que ela preserva esta
“unidade do Espírito pelo vínculo da paz”. Esse é o primeiro passo no
desenvolvimento do “portanto” do versículo primeiro do capítulo quatro. É
a primeira coisa que devemos lembrar enquanto lutamos para andar “como
é digno da vocação com que fomos chamados”.

O apóstolo mostra a importância que ele dá a esta questão de unidade pelo


fato de que ele continua a tratar disso até o fim do versículo dezesseis deste
capítulo. No versículo 17 ele começa a tratar da conduta e do
comportamento dos crentes na prática minuciosa; mas esta questão de
unidade é a primeira coisa.

Observemos como ele trata disso, analisando a exposição. Nos versículos 2 e


3 ele faz um apelo geral com respeito a esta unidade. Depois, nos versículos
4 a 16, ele lhes dá razões e argumentos em prol da preservação da unidade.
Primeiro ele faz um apelo a eles; e em seguida, com o fim de ajudar a quem
quer que estivesse em dúvida
sobre isso, ou não o tivesse com clareza em suas mentes quanto a por que
deviam lutar neste aspecto, ele introduz a doutrina concernente a toda a
natureza, ser e caráter da Igreja. No momento estamos interessados no
apelo geral - “Com toda a humildade e mansidão, com longanimidade,
suportando-vos uns aos outros em amor, procurando guardar a unidade do
Espírito pelo vínculo da paz”. Todos os que estão a par das tendências
modernas da Igreja Cristã concordarão que não há assunto de que tanto se
fale e tanto se escreva nos dias atuais como esta questão de unidade. Esta é a
era do ecumenismo, com infindáveis conversas e escritos acerca da unidade,
da união e da reunião. Quão importante é, pois, considerarmos o que o
apóstolo tem para dizer a respeito deste tema. Há muita prosa solta quanto
a isso; todavia o nosso interesse deve ser sempre escriturístico; devemos
tratar de saber exatamente o que o Novo Testamento ensina sobre essa
matéria.

A primeira coisa, pois, que devemos examinar é o caráter, ou a natureza, da


unidade. Começamos observando que o apóstolo não está apenas apelando
para um espírito geral de amizade, fraternidade ou camaradagem.
Tampouco está apelando apenas para algum objetivo comum, ou para uma
série de objetivos comuns contrariamente a algo que seria um inimigo
comum. Estas negativas são importantes porque grande parte da conversa
sobre a unidade é inteiramente nesses termos. E tudo muito vago e
nebuloso. Freqüentemente o chamado para a unidade é posto em função do
fato de que o mundo de hoje está tristemente dividido. Como de um lado há
poderes ateístas, o comunismo e o humanismo, assim do outro lado, dizem-
nos, compete a todos os que de algum modo crêem em Deus se juntarem e
agirem juntos. Não devemos ser demasiado particularistas com relação
àquilo em que cremos, mas devemos ter espírito de comunhão e de amizade
e de trabalho em conjunto contra o inimigo comum.

Evidentemente devemos examinar essa atitude, e devemos ter em mente essa


idéia moderna de unidade enquanto seguimos o ensino do apóstolo neste
capítulo. Devemos acentuar imediatamente algo que é da máxima
importância. Seja qual for a unidade da qual o apóstolo fala, é uma unidade
diretamente resultante de tudo o que ele estivera dizendo nos três primeiros
capítulos da Epístola. Vocês não devem começar no capítulo 4 da Epístola
aos Efésios. Fazê-lo é violar o contexto e ignorar a palavra “portanto”.
Noutras palavras, não se pode ter unidade cristã, a menos que seja baseada
nas grandes doutrinas esboçadas nos capítulos um a três. “Portanto”!
Assim, se alguém chegar a vocês e disser: “Não importa muito o que vocês
crêem; se nos chamamos cristãos, ou se cremos em Deus nalgum sentido,
venham, vamos trabalhar juntos”, vocês devem dizer, em resposta: “Mas,
meu

caro senhor, que dizer dos capítulos 1 a 3 da Epístola aos Efésios? Não sei de
nenhuma unidade, exceto a que provém e brota das grandes doutrinas que o
apóstolo estabelece naqueles capítulos”. Qualquer que seja essa unidade,
somos compelidos a dizer que ela deve ser teológica, deve ser doutrinária,
deve basear-se num entendimento da verdade.

Observemos em seguida que a palavra “Espírito” tem a inicial


maiúscula,“E” - “Procurando guardar a unidade do Espírito”. Refere-se ao
Espírito Santo. Paulo não está escrevendo sobre a manifestação de um
espírito de amizade, não está pensando em termos do assim chamado
espírito de escola pública ou do espírito de uma equipe de críquete ou de
uma equipe de futebol. A inicial da palavra é E, é o Espírito Santo. No
versículo 4 ele repete a mesma ênfase, “Há um só corpo e um só Espírito”, o
Espírito Santo. Em toda parte neste contexto a palavra “Espírito” deve ser
interpretada como se referindo ao Espírito Santo. E devido este fato ser tão
constantemente esquecido parece-me que a maior parte de toda a conversa
sobre unidade é inteiramente anti-escriturística. É inteiramente humana, é
algo pertencente ao homem; não é a unidade produzida pelo Espírito
Santo. Passemos a examinar isto na forma de algumas afirmações.

A unidade na qual o apóstolo está interessado aqui é produzida e criada pelo


próprio Espírito Santo. Somente Ele pode produzir esta unidade; e somente
Ele produz esta unidade. Obviamente, esta questão é de importância
fundamental. O apóstolo deixa bem claro que esta é uma unidade que eu e
você jamais poderemos produzir. Ele nem sequer pede que o façamos, não
nos chama para fazê-lo, não nos exorta a fazê-lo. O que ele pede que
façamos é que tenhamos o cuidado de não romper a unidade já existente, e
que foi produzida e criada pelo Espírito Santo. Temos de mantê-la, não criá-
la; é a unidade do Espírito. É obra realizada por Ele, é algo que Ele faz em
nós.

Visto que isso é verdade, as seguintes deduções são verdadeiras também. A


unidade com a qual o apóstolo está preocupado é uma unidade viva e vital.
Não é uma unidade mecânica. Há toda a diferença do mundo entre uma
coalizão ou fusão e uma unidade verdadeira. As coalizões e fusões consistem
de diversas unidades díspares que se unem para um dado propósito; mas a
unidade do Espírito começa dentro e se projeta para fora. E comparável à
unidade que se vê numa flor, ou numa árvore, ou nos corpos dos seres do
mundo animal. E algç essencialmente orgânico e vital, não algo produzido
artificialmente. E algo inevitável por causa da sua própria natureza. Não é
uma unidade externa, e sim, uma unidade interna.

Além disso, esta unidade só pode ser entendida a medida que a obra do
Espírito Santo é entendida. Se nos faltar um correto entendimento

da doutrina do Espírito Santo, não poderemos entender esta unidade. Se


dermos ao Espírito Santo nome comum, e não nome próprio, ou se O
considerarmos mero poder, e não compreendermos que Ele é a Terceira
Pessoa da Trindade santa e bendita, não poderemos entender esta unidade,
e ela será inexistente. Tampouco esta unidade poderá ser sentida ou
experimentada ou posta em prática, a não ser que o Espírito Santo esteja
em nós e tenha realizado em nós a Sua obra misericordiosa. Isto explica por
que às vezes é tão difícil discutir este assunto com certas pessoas. Elas não
concordam quanto à doutrina do Espírito Santo, não concordam quanto à
regeneração e ao novo nascimento. Sua idéia do cristianismo é que ele
significa simplesmente fazer o bem, ter boa moralidade e ser religioso, ou
interessar-se por uma denominação particular e por suas atividades.
Nenhuma conversação ou discussão proveitosa com essa gente será possível,
pois todo o seu conceito sobre o Espírito é diferente. Nenhuma unidade é
possível entre essas pessoas e as que têm um conceito bíblico sobre a obra
do Espírito. Se o Espírito Santo não estiver em nós, não
poderemos experimentar esta unidade; esta só pode ser experimentada por
aqueles em quem Ele habita e a quem Ele iluminou. Entretanto, se o
Espírito Santo estiver naquela outra pessoa e também em mim,
imediatamente teremos consciência de um vínculo de unidade, porque o
mesmo Espírito estará em nós ambos, e reconhecemos a unidade um no
outro. Estas são, certamente, considerações deveras básicas e fundamentais.

Uma vivida ilustração da unidade produzida pelo Espírito Santo já foi


apresentada no capítulo dois. Estes efésios que outrora estavam “longe”,
“separados da comunidade de Israel”, agora foram introduzidos na aliança
de Deus com os judeus. Ele agiu neles, Ele agiu nos judeus, e assim eles são
um. E, portanto, falar volúvel e superficialmente sobre esquecer as
diferenças, unir-se e achar uma base comum ou um denominador comum, é
falar de algo inteiramente diverso daquilo que Paulo ensina aqui. Pôr de
lado diferenças é uma coisa que pode ser feita na política, na indústria e em
muitas outras esferas. Mas quando você começa com o Espírito Santo e com
a Sua pessoa e a Sua atividade, você não pode falar daquela maneira. Se Ele
não estiver em mim, não poderei ter comunhão espiritual com alguém em
quem Ele habita. Se Ele não estiver nele, mas estiver em mim, não
haverá comunhão. Se Ele estiver em nós dois, haverá comunhão
verdadeira; e esta é a única base da comunhão. É onde Ele reina, e onde a
comunhão do Espírito Santo é experimentada, que esta unidade existe. Daí
a bênção do fim da Segunda Epístola aos Coríntios: “A graça do
Senhor Jesus Cristo, e o amor de Deus, e a comunhão do Espírito Santo seja

com todos vós. Amém” (13:13). Onde reina o Espírito, ali há unidade.

Quando formos considerar os versículos 4 a 6, veremos como o apóstolo


desenvolve tudo isso com detalhes. Por ora podemos resumido dizendo que
a unidade produzida pelo Espírito é primariamente espiritual, invisível e
interna. Naturalmente ela também se expressa visível e externamente, pois,
como cristãos, prestamos culto juntos, pertencemos a igrejas juntos e
entramos constantemente em contato uns com os outros. Mas a realidade
mesma é interna. Notemos de novo a importância da ordem. Não
começamos com o que é externo e depois esperamos chegar ao interno.
Começamos com o interno e depois passamos a expressá-lo externamente.
Devemos ter isto em mente o tempo todo quando lemos livros sobre o
ecumenismo ou ouvimos sermões e apelos. Seu grande argumento e apelo é
no sentido de que, como povo até aqui dividido e separado, devemos
começar a agir juntos, a trabalhar juntos, a orar juntos, e então
começaremos a sentir o espírito de unidade. Contudo, isso é uma negação do
ensino do apóstolo. Em toda manifestação de vida o interno vem primeiro,
e depois a manifestação exterior. Foi assim na criação; dá-se o mesmo na
reprodução. Duas diminutas células contêm a vida da qual se desenvolverá
um corpo completo. O corpo não consiste de uma coleção de partes e
porções colocadas juntas livremente e ao acaso. Cada parte ou membro
individual desenvolve-se a partir da vida central. E é precisamente a mesma
coisa nesta grande e vital questão de unidade espiritual. A unidade do
Espírito não se pode ver primariamente; na verdade, é algo que mal se pode
definir. Quando está presente, nós a reconhecemos; nós a sentimos quando
entramos em contato com outrem em quem o Espírito habita. Nossas almas
são invisíveis; e, todavia, a alma é a coisa mais importante do homem. Além
disso, temos acesso à alma e ao espírito por meio do corpo; a alma e o
espírito é que se manifestam através do corpo. Assim é com este princípio de
unidade.

Havendo, assim, considerado a natureza, o caráter da unidade, examinemos


agora o nosso dever com relação a ela. As palavras particulares que o
apóstolo emprega explicam isto perfeitamente. A primeira palavra é
“procurar” (VA: “esforçar-se”). Inclinamo-nos a pensar nesta palavra como
“fazer uma tentativa de”; mas não é esse o sentido radical da palavra. Ela
significa realmente “ser diligente”, e deriva de uma palavra que sugere
rapidez. Devemos apressar-nos a fazer alguma coisa, a mostrar grande
interesse, a expressar solicitude - “esforçando-vos para guardar”. Acima de
tudo mais, diz o apóstolo, como cristãos nesta vocação para a qual vocês
foram chamados,

apressem-se a fazer isto, sejam diligentes quanto a isto, nunca o esqueçam,


seja esta a coisa principal da sua vida; acima de todas as outras coisas,
mostrem grande interesse e solicitude com respeito a esta unidade que existe
entre vocês.

A palavra subseqüente é “guardar” - “esforçando-vos para guardar a


unidade do Espírito”. “Guardar” significa “defender”, “reter”,
“preservar”. O apóstolo não nos pede quefaçamos ou que criemos
uma unidade. Ela existe porque somos cristãos, diz ele, e devemos guardá-
la. Não podemos ser cristãos sem a obra do Espírito Santo; não podemos ser
cristãos, a não ser que o Espírito resida em nós. E Ele está em todos os
cristãos verdadeiros. A unidade aí está, e o que temos que fazer é guardá-la,
mantê-la, preservá-la. Nosso primeiro e principal interesse, como cristãos,
deve ser guardar e preservar esta preciosa e maravilhosa unidade do
Espírito. O grande propósito de Deus, o que Deus está fazendo por meio da
Igreja, é produzir e manter esta unidade entre os redimidos, quer judeus,
quer gentios e devido a esse propósito, é-nos dito no capítulo 3, versículo 10,
até os principados e as potestades nos lugares celestiais vão ficar admirados
e espantados quando o virem. Se cremos em Deus, devemos sentir que o
nosso primeiro dever é guardar esta unidade, preservá-la a todo custo,
forçar todos os nervos e ser diligentes em esforçar-nos para guardá-la e
manifestá-la.
A maneira pela qual devemos fazê-lo é exposta pelo apóstolo com palavras
simples. Estas podem ser agrupadas da seguinte maneira: as duas primeiras
palavras nos descrevem e descrevem a nossa disposição pessoal interna. As
palavras subseqüentes descrevem as nossas relações com os outros. A
primeira expressão é “com toda a humildade” - especialmente humildade da
mente. Esta ênfase particular acha-se em todos os léxicos. Significa
modéstia. É o oposto da auto-estima, da auto-afirmação e do orgulho. De
todas as virtudes cristãs, a humildade é uma das principais; é a marca
distintiva do filho de Deus. Humildade significa você ter modesta opinião de
si próprio, bem como dos seus poderes e faculdades. Para empregar a
palavra do nosso Senhor no Sermão do Monte, significa ser “pobre de
espírito”. E o oposto do que se vê no homem do mundo, assim chamado; é o
oposto do espírito mundano que concita o homem a confiar em si mesmo, a
crer em si mesmo. É o oposto de toda agressividade, promoção própria,
ambição e descaramento da vida no presente. Não há nada mais triste
quanto à época atual do que a espantosa ausência de humildade; e quando
esta mesma carência se acha na Igreja de Deus, é a maior de todas
as tragédias. Como disse Crisóstomo há muito tempo: “Nada se presta tanto
para dividir a Igreja do que o amor pelo poder”.

Logo em seguida à “humildade” o apóstolo coloca a “mansidão”,

que invariavelmente a acompanha. “Mansidão” significa brandura e


gentileza interior. Todavia, é compatível com grande poder. Moisés era o
mais manso dos homens e, contudo, era forte. Em seu íntimo
ele eraumhomem manso e gentil. Eo nosso Senhoreramanso.
“Mansidão” significa realmente prontidão para sofrer o mal, confiando
tudo a Deus. O apóstolo Paulo era muito manso. Ao mesmo tempo, era
capaz de dizer algumas coisas muito fortes; ele podia ser firme e
poderoso; há algo de magistral em suas declarações. Todavia, quando lemos
as suas Epístolas, vemos por toda parte este elemento de humildade e
de mansidão. Ele já manifestara esta mansidão no capítulo três,
onde escreve: “A mim, o mínimo de todos os santos” - apesar de que ele
era o maior de todos - “me foi dada esta graça de anunciar entre os
gentios as insondáveis riquezas de Cristo”. A humildade e a mansidão são
os primeiros elementos essenciais para a preservação da unidade
do Espírito nos laços da paz. São virtudes que se vêem no Senhor. Diz
Ele: “Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu
vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, que
sou manso e humilde de coração; e encontrareis descanso para as
vossas almas” (Mateus 11:28-30). Mateus, no capítulo doze do seu
Evangelho, citando Isaías, descreve o nosso Senhor assim: “Não contenderá,
nem clamará, nem alguém ouvirá pelas ruas a sua voz; não esmagará a
cana quebrada, e não apagará o morrão que fumega, até que faça triunfar
o juízo” (versículos 19 e 20). Essa era a Sua personalidade como a
vemos retratada nos retratos do nosso bendito Senhor. E nós pertencemos
a Ele, e somos membros do Seu corpo. Pelo que o apóstolo, escrevendo aos
coríntios, faz uso deste argumento: “Além disto, eu, Paulo, vos rogo, pela
mansidão e benignidade de Cristo...” (2 Coríntios 10:1). Escrevendo em sua
Segunda Epístola a Timóteo e lhe dando conselho, Paulo diz: “E rejeita as
questões loucas, e sem instrução, sabendo que produzem contendas. E ao
servo do Senhor não convém contender, mas sim ser manso para com todos,
apto para ensinar, sofredor, instruindo com mansidão os que resistem, a ver
se porventura Deus lhes dará arrependimento para conhecerem a verdade”
(2:23-25). É como se o apóstolo dissesse a Timóteo: é assim que você deve
portar-se; haverá pessoas que não concordarão com você; não se
aborreça com elas e não se zangue. Não deve contender com elas; porém
é melhor procurar fazê-las ver a verdade; coloque-a diante delas de
um modo que as atraia; procure conquistá-las para a verdade, retirá-las
do erro e conduzi-las à verdade.

O apóstolo Pedro faz uma similar exortação de maneira deveras notável.


Em sua primeira Epístola ele diz: “Sede todos sujeitos uns aos

outros, e revesti-vos de humildade, porque Deus resiste aos soberbos, mas


dá graça aos humildes” (5:5). Notem a interessante expressão: “revesti-vos
de humildade”. A palavra traduzida por “revesti-vos” significa “ponde o
avental da humildade”. Certamente, quando Pedro escreveu essas palavras,
tinha em mente a cena sobre a qual lemos no capítulo treze do Evangelho
Segundo João. É-nos mostrado o próprio Filho de Deus aqui na terra; e isto
é o que nos é dito sobre Ele: Ele sabia de onde tinha vindo e para onde ia.
Sabia que tinha vindo de Deus e que ia para Deus. Mas tomou uma toalha,
vestiu-a como avental e se abaixou e lavou os pés dos Seus discípulos. Depois
lhes disse: se Eu, que sou seu Senhor e Mestre, fiz isso a vocês, façam o
mesmo uns aos outros. “Se eu lavei os seus pés, lavem os pés uns dos
outros.” “Revistam-se de humildade.” “Vistam a humildade como um
avental.” Cinjam-se com a toalha da humildade; abaixem-se, e lavem os pés
dos outros. Este é o segredo da preservação da unidade do Espírito
pelo vínculo da paz.

Mas Paulo acrescenta a palavra “toda” - “Com toda a humildade e


mansidão”. Por que ele acrescenta a palavra “toda”? Esta significa -“com
toda a possível” humildade e mansidão, “com toda espécie de”, “em todas as
situações”, “todas as vezes”. Não devemos vestir este avental só nos
domingos, esquecendo-o o resto da semana. Mantenham-no sempre, estejam
sempre revestidos de humildade, onde quer que vocês estejam, seja o que
for que estejam fazendo, seja quem for a pessoa, seja qiial for a ocasião -
“toda a humildade e mansidão”. Nunca fiquem sem isso.

Esta deve ser a nossa disposição fundamental, e o nosso caráter. Somos


humildes? “Ninguém pense de si próprio mais do que deve” (Romanos 12:3;
cf. VA e Almeida), diz o apóstolo. “Aquele, pois, que cuida estar em pé, olhe,
não caia” (1 Coríntios 10:12). São os nossos conceitos errôneos a respeito de
nós mesmos que causam divisões. Um tem orgulho do seu nascimento, outro
da sua família; um tem orgulho do seu dinheiro, outro da sua nacionalidade,
do seu “status”, da sua sagacidade nos negócios. Outro tem orgulho do seu
cérebro, do seu entendimento - quiçá da doutrina - e o seu orgulho disso é
tanto, que ele chega a causar divisão, com isso negando a sua doutrina!
Humildade! Mente humilde! Disse Oliver Cromwell a certos
presbíteros escoceses: “Rogo-vos, pelas entranhas de Cristo, que considerem
a possibilidade de vocês estarem enganados”. Isso é humildade. E
a mansidão vai junto com ela; e é o que devemos demonstrar em toda parte.

Sendo essa a nossa disposição fundamental, devemos manifestá-la em nossos


procedimentos para com os outros. “Longanimidade” - que

simplesmente significa sofrer ou suportar bastante tempo. Significa manter o


domínio próprio durante muito tempo e não ceder à paixão. Você pode defrontar-
se com uma pessoa cuja conduta é irritante - pelo que ela diz ou pelo que faz.
Bem, diz o apóstolo, simplesmente agüente, não aquiesça ao desejo de demoli-la
ou esmagá-la ou humilhá-la. Contenha-se, seja “longânimo”, não ceda à paixão.
Na Bíblia atribui-se longanimidade ao próprio Deus. Se Deus não
fosse longânimo, nenhum de nós estaria vivo, nenhum de nós seria cristão. Se
Deus não fosse longânimo, não haveria cristianismo. A longanimidade é a Sua
atitude para conosco; portanto, seja ela também a nossa atitude uns para com os
outros. Nós temos que suportar aos outros, e os outros têm que suportar-nos.
Suportemos, então, todos nós, o tempo todo!
Depois chegamos ao termo “resistir” (Almeida: “suportando-vos”). Todas estas
palavras se relacionam. “Resistir” significa “manter-se contra”. Uma pessoa
tenta envolver você numa atitude ou ação errada. Mantenha-se contra a tentação.
Fique firme; agüente; resista; não ceda. Todas estas coisas são difíceis, não são?
Sim, mas nós fomos chamados para uma vida tão gloriosa que, necessariamente,
é difícil. Graças a Deus que é! Os outros não podem entender as coisas como as
entendemos, ou não podem fazer as coisas como gostaríamos que as fizessem.
Não nos apressemos a desforrar-nos; como aqueles que estão interessados na
preservação da unidade do Espírito pelo vínculo da paz, tratemos de tolerá-los e
procuremos compreendê-los. Uma pessoa pode ser irritável por estar passando
por uma prolongada provação, ou porque pode não estar fisicamente bem. Talvez
não tenha tido vantagens e oportunidades na vida, talvez a sua capacidade
mental não seja o que devia ser, talvez ela não tenha tido a oportunidade
que você teve de ouvir a exposição destas verdades. Desculpe o que puder nessa
outra pessoa, quer em sua conduta, quer em sua doutrina, ou seja no que for.
Procure, acima de tudo mais, conquistar essa pessoa para a sua posição, se você
está seguro de que está certo. Não tente inferiorizá-la, nem agredi-la, nem livrar-
se dela, nem ser arrogante para com ela e nem ser impaciente com ela. Devemos
ser pacientes uns com os outros, devemos ser tolerantes, devemos ser
longânimos.

Mas notem mais um acréscimo feito pelo apóstolo! “...com toda a humildade e
mansidão, com longanimidade, suportando-vos uns aos outros em amor”. Se
você, irmão, amar as pessoas, será longânimo e paciente para com elas porque de
coração se interessará por elas. Você não estará tão interessado em mostrar que
você está certo e que elas estão erradas. Você desejará que elas estejam certas
como você. Você as ama e se interessa por elas, e se preocupa com elas; e por
causa disso

você é paciente com elas. Se você ama uma criança, será paciente com ela. Ela
poderá fazer a mesma pergunta mil vezes, mas você continuará respondendo
pacientemente. Você faz algo, e a criança diz, “Faça de novo”, e você faz, e torna
a fazer, até ficar quase exausto. Você até gosta de fazê-lo, embora esteja quase
sofrendo colapso físico. É porque você ama a criancinha. Esta não sabe, não
entende; e seria muito errado esperar que entendesse, naquela idade. Você desce
ao nível dela, veste o avental, põe-se de joelhos para identificar-se com ela. E, se
você a ama, fará isso com prontidão e com alegria.

O que o apóstolo está dizendo realmente é que, quando manifestamos estas


características, estamos preservando a unidade. Isso porque somos pacíficos,
somos amantes da paz e somos pessoas com as quais é fácil conviver; somos
pacificadores. Esta unidade do Espírito é mantida, é entrelaçada ou atada, pela
paz, “pelo vínculo (ou pela atadura) que é a paz”. E como somos pacíficos,
amantes da paz e pacificadores, preservamos a paz e preservamos a unidade.

Em tudo isso o apóstolo esteve repetindo as bem-aventuranças que o nosso


Senhor Jesus Cristo tinha proferido no início do Sermão do Monte. Eis o que Ele
diz com relação às pessoas que Ele veio produzir no mundo: “Bem-aventurados
os pobres de espírito”, “bem-aventurados os que choram”, “bem-aventurados os
mansos”, “bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça”,“bem-
aventurados os pacificadores”. São estas as características do cristão. Esta é a
vocação para a qual fomos chamados. Se fracassarmos aqui, o sucesso
em qualquer outra área será inútil. Se a maneira de eu afirmar alguma coisa certa
significa que eu quebro a paz, não estou agindo bem, deixei de manter o
equilíbrio da verdade, ou está faltando algo ao meu caráter. O fim de toda
doutrina é preservar esta unidade do Espírito pelo vínculo da paz. O fim de toda
conduta deve ser esse mesmo. Este é o ensino das bem-aventuranças, e também
de 1 Coríntios, capítulo 13. De fato, este é “o fruto do Espírito”, que é “amor,
alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fé, mansidão,
temperança” (Gálatas 5:22-23). Na verdade, o apóstolo está realmente dizendo:
não extingam o Espírito, não entristeçam o Espírito, porém deixem que
o Espírito produza o Seu glorioso fruto em vocês e entre vocês. E, ao fazê-lo, a
unidade do Espírito será preservada entre vocês pelo maravilhoso laço e vínculo
da paz.

“Com toda a humildade e mansidão, com longanimidade, suportando-vos uns


aos outros em amor.”

O CORPO DE CRISTO

“Há um só corpo e um só Espírito, como também fostes chamados em uma só


esperança da vossa vocação; um só Senhor, uma só fé, um só batismo; um só
Deus e Pai de todos, o qual é sobre todos, e por todos e em todos. ” Efésios 4:4-
6

Com estas palavras o apóstolo Paulo começa a dar-nos uma grande razão, uma
incontestável razão pela qual devemos, “com toda a humildade e mansidão, com
longanimidade, suportando-nos uns aos outros em amor, procurar (esforçar-nos
diligentemente para) guardar a unidade do Espírito pelo vínculo da paz”. Na
verdade, nestes três versículos ele introduz uma das suas grandes declarações
relativas à doutrina da Igreja Cristã. Este será o seu assunto até o final do
versículo

16.

Ao iniciarmos este estudo, observemos quanto espaço é dado no Novo


Testamento à doutrina da Igreja. Num sentido, é o grande tema de todas as
Epístolas. É verdade que o apóstolo, como os outros escritores, estava
constantemente preocupado com as dificuldades e problemas particulares das
vidas dos membros da igreja; mas ele sempre os trata em termos da sua doutrina
da Igreja. Este é um princípio muito importante e vital. Quando lermos estas
Epístolas, observemos quão invariavelmente todo apelo que nos é feito, é-
nos feito indiretamente; é sempre feito em termos da nossa condição
de membros da Igreja e da nossa relação com a Igreja. Somos todos partes,
porções e membros da Igreja, de sorte que, se não entendermos a doutrina
neotestamentária da Igreja, há um sentido em que todos os seus apelos,
exortações e indicações serão completamente sem sentido para nós.

A maioria dos nossos problemas surge principalmente do fato de que


persistentemente começamos com nós mesmos; somos demasiado subjetivos.
Este é um dos maiores resultados do pecado. O pecado coloca o homem no
centro. Ele me faz achar que só eu sou importante, e que aquilo que eu acho e
aquilo que me acontece é o que realmente importa. Passamos o nosso tempo
pensando em nós mesmos e em

nossos interesses pessoais. O ensino do Novo Testamento tira-nos logo disso,


dando-nos uma esplêndida descrição da Igreja, e de nós mesmos como unidades
e membros deste grande corpo místico de Cristo. No momento em que
começamos a ver as coisas dessa maneira, ficamos livres desse subjetivismo
mórbido e miserável. O modo de curar-nos da maior parte dos nossos males e
problemas é elevar-nos desse subjetivismo para ver-nos como o Novo
Testamento nos descreve, especialmente com as palavras, “vós sois o corpo de
Cristo, e seus membros em particular” (1 Coríntios 12:27). Na verdade é isso
que o apóstolo vem fazendo desde o começo desta Epístola. Judeus e
gentios individuais, no grande propósito de Deus e por Sua graça,
foram chamados, salvos e colocados juntos. E aqui, agora, isso é exposto
em termos da Igreja. Portanto, o que temos que fazer é ver-nos como membros
da Igreja. Quando o fizermos, ficaremos livres da maior parte dos nossos
problemas e dificuldades. Sendo esta a verdade quanto a todos os nossos
problemas, é particularmente a verdade quanto à questão da unidade - “unidade
do Espírito pelo vínculo da paz”.

Há claras indicações no Novo Testamento de que já havia problemas


concernentes a um verdadeiro entendimento da natureza da Igrej a. Vejam, por
exemplo, a igreja de Corinto. A razão pela qual Paulo escreveu a sua Primeira
Epístola aos Coríntios foi que havia divisões, seitas, cismas naquela igreja. E o
que ele efetivamente diz a eles é que os seus problemas brotavam da sua falha
em não entenderem claramente a natureza da Igreja Cristã. Continuavam
pensando em si de maneira atomística, como indivíduos, e se haviam formado
em pequenos grupos de indivíduos. Se eles tivessem captado a idéia da
Igreja como uma totalidade, como um corpo unido, isso seria
completamente inimaginável. Por isso, ali como aqui, ele lhes faz uma exposição
da doutrina da Igreja.

Nestes três versículos ele o faz de maneira muito interessante. Ele joga com a
palavra “um” - “um só corpo e um só Espírito, como também fostes chamados
em uma só esperança da vossa vocação; um só Senhor, uma só fé, um só
batismo; um só Deus e Pai de todos, o qual é sobre todos, e por todos e em
todos”. Ele repete a palavra um(a), e com isso estabelece este princípio da
unidade essencial da Igreja.

Essa declaração é interessante, de muitos pontos de vista, incluso o que podemos


denominar mecânica da interpretação, pois a palavra um (a) ocorre sete vezes.
Há certamente aqui uma sugestão do número da Divindade, do número de Deus,
da perfeição, mas não quero forçar esse ponto. Pode muito bem ser que Paulo
tenha feito isso

deliberadamente, a fim de que pudéssemos ver que a unidade da Igreja é uma


manifestação da perfeição da Divindade. Outra questão interessante é o modo
como ele as agrupa. Três acham-se no versículo quatro, três no versículo cinco, e
a sétima no versículo seis. A última, observem, é uma coleção, um sumário de
todas as unidades. O apóstolo repete igualmente a palavra todos - “Um só Deus e
Pai de todos, o qual é sobre todos, e por todos”. De novo isto salienta a
mesma noção e idéia de unidade.

Outro ponto sumamente importante é que cada um dos três grupos é disposto ao
redor das pessoas da Trindade bendita e santa. Os três primeiros referem-se ao
Espírito Santo. Os três seguintes referem-se ao Senhor Jesus Cristo, o Filho. E
finalmente temos Deus o Pai. Ver o significado disto é o único modo pelo qual
podemos captar esta doutrina da unidade e ver a sua importância em nossa vida e
em nosso viver diários. No momento em que vemos isso, somos retirados
do nosso desprezível e mórbido interesse próprio e somos levados a postar-nos
face a face com a santa e bendita Trindade, Três em Um, Um em Três. A Igreja é
um reflexo e uma manifestação da Trindade santa e bendita.

Essa é a maneira pela qual o apóstolo maneja a doutrina da unidade da Igreja.


Ele não no-la deixa como um apelo para sermos bondosos, longânimos e bons.
Estas graças são essenciais, mas o princípio fundamental é que nos vejamos
como membros da Igreja, e vejamos a Igreja como um reflexo, na terra, da
unicidade do Deus Triúno - Três em Um, Um em Três, o Espírito Santo, o Filho,
o Pai. Por certo deve ser evidente que a real dificuldade com os cristãos
modernos é que eles negligenciam a doutrina! Falamos em ser práticos, mas não
podemos ser práticos se não soubermos como ser práticos, e por que
devemos ser assim. Antes de podermos responder a apelos pessoais e
diretos, temos que ver o que somos, onde estamos, e onde Deus nos
colocou. Nós fomos “chamados”.

Um ponto final nesta questão de interpretação; notem a ordem que o apóstolo


emprega. Ele começa com o Espírito Santo, depois passa ao Filho, e conclui com
Deus o Pai. Por que esta ordem? Por que não Deus o Pai, Deus o Filho, Deus o
Espírito Santo? Por que Paulo inverte a ordem? Há somente uma resposta a essa
questão, a saber, que ele está primariamente interessado em ser prático. Ele
começa com a Igreja como esta é, composta de pessoas que são seus membros. A
Igreja é uma comunhão do Espírito, uma comunidade do Espírito. Ele
começa conosco exatamente onde estamos e como éramos. Depois nos leva a um
ponto mais alto - a Igreja como corpo, cuja Cabeça é Cristo. Finalmente, a
cabeça de Cristo é Deus o Pai. Assim ele se move de

onde estamos, habitados pelo Espírito, por meio do único e exclusivo Mediador,
para Deus o Pai. O método dele é prático e experimental; ele não está
interessado numa doutrina seca como o pó, algo remoto e distante; ele nos
encontra onde estamos. Ele nos mostra que estamos onde estamos e que somos o
que somos devido à obra do Espírito; todavia o Espírito nunca teria vindo, nunca
nos teria sido enviado e dado, não fosse pelo Filho e pelo que Ele fez. E o Filho
nunca teria vindo, não fosse que “Deus amou o mundo de tal maneira que deu
o seu Filho unigênito”. Isso é total e intensamente prático. Como cristãos, não
somos deixados a nós mesmos. O Espírito Santo está em nós e nos leva ao Filho.
Ele nos ensina a orar, pois “não sabemos o que havemos de pedir como convém,
mas o mesmo Espírito intercede por nós com gemidos inexprimíveis” (Romanos
8:26). E Ele nos leva ao Filho; e, como nosso Mediador e grande Sumo
Sacerdote, o Filho nos apresenta ao Pai.

O interesse do apóstolo é mostrar-nos que não há necessidade de argüir sobre


esta questão da “unidade do Espírito pelo vínculo da paz”. A unidade já existe, é
inevitável. A tradução feita pela Versão Autorizada inglesa (como também pela
Versão de Almeida) expõe esta verdade com clareza, dizendo: “Há um só
corpo”. A palavra “Há” é acrescentada; não está no original. Muito
acertadamente os tradutores a acrescentaram. Noutras palavras, ela nos lembra
que o apóstolo não nos está apelando para formarmos a unidade; o que ele nos
está dizendo é que esta unidade já existe e que tudo o que ele nos está pedindo é
que não a rompamos - “procurando guardá-la”, defendê-la, salvaguardá-la. Ele
não está fazendo um grande apelo para que nos unamos. Ele nos está concitando
a termos o cuidado de não romper a unidade, de alguma forma, nem de sermos
causa de algum tipo de ruptura ou cisma.

Examinemos esta unidade como deve ser vista em conexão com o Espírito Santo
e a Sua obra. Esse é o tema do versículo quatro. Com o seu desejo de ser prático,
a primeira coisa que o apóstolo faz é lembrar-nos do que somos como membros
da Igreja. Ao fazê-lo, ele usa esta analogia do corpo - “um só corpo”. Um exame
cuidadoso das Epístolas de Paulo nos levará à conclusão de que essa era a
sua ilustração favorita quando tratava da doutrina da Igreja. Ele tem
outras ilustrações, como se pode ver nos primeiros capítulos desta Epístola. No
capítulo 2 ele compara a Igreja com um grande império -“concidadãos dos
santos”. Diz ele também que os cristãos são “membros da família de Deus”. Não
só isso, a Igreja é como um edifício, “Edificados sobre o fundamento dos
apóstolos e dos profetas”. Mais

tarde, no capítulo 5, vê-lo-emos comparando a Igreja com uma esposa, dizendo


que a Igreja é a esposa de Cristo, e que a relação entre o Senhor e a Igreja é a de
um esposo e sua esposa. Mas parece que o apóstolo usa esta ilustração particular
do corpo mais vezes do que qualquer outra. E particularmente com relação a esta
questão de unidade, esta parece dar um quadro mais claro do que qualquer outra.

Ele já utilizara esta ilustração duas vezes nesta Epístola. Ele o faz no fim do
capítulo primeiro, onde escreve, “E sujeitou todas as coisas a seus pés, e sobre
todas as coisas o constituiu como cabeça da Igreja, que é o seu corpo, a
plenitude daquele que cumpre tudo em todos”. Ele o repete no capítulo dois,
com as palavras, “e pela cruz reconciliou ambos com Deus em um corpo,
matando com elas as inimizades” (versículo 16), e, em sua declaração sobre
fazer dos dois um novo homem, ele está realmente usando a mesma ilustração
(versículo 15). Nesses exemplos ele apenas o menciona de passagem, mas aqui
ele o expõe. Com freqüência tenho comparado o método de Paulo com o de um
compositor musical, que no prelúdio sugere os seus temas, e não faz mais que
sugeri-los. Mas depois, no corpo da obra, ele toma as sugestões, dá-lhes trato e
as desenvolve mais detalhadamente.

Que é que o apóstolo quer dizer com a sua referência à Igreja como “um só
corpo”? Esta é uma pergunta muito importante, e especialmente nos dias atuais,
com todo o interesse que há pela unidade da Igreja e pelo ecumenismo. E
certamente óbvio que Paulo se refere necessariamente à Igreja mística, invisível
e espiritual. Não pode significar a Igreja visível e externa pelo bom motivo de
que a Igreja visível e externa consiste de muitos corpos, de uma multiplicidade
de corpos. Portanto, não era nisso que o apóstolo estava pensando. Pensava
na Igreja essencial, na Igreja mística, que é invisível, o corpo místico de Cristo.
A incompreensão deste princípio muito importante do Novo Testamento levou a
muitas tragédias na história da Igreja. Por não compreender isso, a igreja católica
romana se diz a única igreja verdadeira e afirma que todas as outras igrejas
visíveis não são igrejas. E houve outros que faziam a mesma afirmação,
deixando completamente de entender o caráter místico, interno, invisível da
Igreja verdadeira e essencial. Portanto, o apóstolo está asseverando que
há unicamente uma Igreja verdadeira. Não podem existir muitas porque a Igreja
é o corpo de Cristo, e um homem não pode ter muitos corpos; há somente um.
Há uma só Igreja mística e perfeita, invisível e espiritual. Há somente um corpo.
Esta Igreja consiste de pessoas de todos os tipos, espécies e cores, de muitos
continentes e climas. Mas essas diversidades não fazem diferença para esta
Igreja, invisível,

mística. Há nesta Igreja pessoas de todas as nações debaixo do céu, de todas as


tribos e povos de toda a terra.

Da mesma maneira, o tempo não faz diferença para este fato. Os cristãos
primitivos estão neste corpo. Os mártires da Reforma estão neste corpo. Os
puritanos, os pactuários, os primeiros metodistas, todos eles estão neste corpo; e
eu e vocês estamos neste corpo, se estamos verdadeiramente em Cristo. A Igreja
transcende os séculos. As habilidades naturais não desempenham nenhum papel
nesta questão. Não importa o que você seja, ignorante ou de grande potencial
de conhecimento, inteligente ou deficiente em suas faculdades, grande
ou pequeno, rico ou pobre. Todas estas coisas não passam de insignificâncias;
este corpo é um só. É a Igreja de todas as eras - a plenitude do povo de Deus. E o
corpo único, é a Igreja invisível, mística. A única coisa que, em última instância,
importa para cada um de nós é que pertençamos a este corpo. Podemos ser
membros de uma “igreja” visível, e, lamentavelmente, não ser membros desta
Igreja mística e invisível. O Novo Testamento ensina isso. Ser membro de
uma “igreja” visível pode sertão inútil como a circuncisão o era nos dias
da Igreja Primitiva. A única coisa que importa é que sejamos achados nesta
Igreja mística, invisível, espiritual que, somente ela, é o corpo de Cristo.

Há certas coisas que devemos entender sobre esta “Igreja invisível, mística”, e
evidentemente Paulo achava que essa figura, essa analogia do corpo, as
comunica bem. A melhor maneira de compreendermos este ensino é considerar o
que o apóstolo diz no capítulo doze da sua Primeira Epístola aos Coríntios, onde
ele trata disto de maneira exaustiva. A primeira coisa que emerge é o caráter
orgânico da unidade que há na Igreja. A Igreja é uma nova criação, e, ao trazê-la
à existência, Deus fez uma coisa tão inteiramente nova como a criação do
universo. Ele não tomou simplesmente um judeu e um gentio e os juntou algo
assim como uma espécie de coalizão, e os fez sentar-se juntos a uma mesa e os
levou a um acordo de amizade mútua. Não! A Igreja é uma nova criação. Ela
não é uma coleção de partes. O antigo foi destruído, já não há mais judeu e
gentio. Essa distinção é eliminada por este corpo. Houve uma destruição antes de
haver uma nova criação. Fomos libertos das coisas que nos separavam antes de
Deus “criar dos dois um novo homem”.

Isto se pode ver claramente na analogia do corpo. O corpo consiste de dez dedos
nas mãos, dez nos pés, duas mãos, dois pés, duas pernas, dois braços, e assim
por diante. No entanto, o corpo não é uma coleção dessas partes; e nenhuma
delas foi criada independente ou separada-

mente e depois colocada junta com as outras. Não é assim que o corpo se
desenvolve e vem à existência. Como dissemos antes, tudo parte de uma célula
que começa a desenvolver-se e a crescer, e pequenos filamentos germinam. Um
destes filamentos será o antebraço direito, o braço e a mão; outro formará o
mesmo no lado esquerdo. Então o filamento que forma o tronco desce, e as
pernas se formam, provenientes do tronco. E tudo vem da célula original
primitiva. As partes nunca tiveram existência independente; todas são rebentos,
produtos desta célula central primitiva. E por isso que há uma unidade
essencial no corpo.

A ilustração mostra aquilo que é próprio de nós, como membros da verdadeira


Igreja Cristã. E neste ponto que pode muito bem acontecer que as igrejas
visíveis, que são essenciais, nos façam extraviar. O que sucede com elas é que há
um rol de membros, e, quando uma pessoa se une a uma igreja, o seu nome é
acrescentado à lista dos que já são membros. É preciso que se faça isso, mas
tende a dar-nos uma falsa noção da natureza da igreja mística. Não somos
acrescentados a Cristo dessa maneira. A verdadeira Igreja é uma nova criação, e
todos os que pertencem a ela nasceram do Espírito, nasceram de Cristo,
são “participantes da natureza divina”. Uma vez que vejamos a verdade nesses
termos, a inevitabilidade da unidade será óbvia.

O segundo elemento que o apóstolo acentua é a diversidade na unidade. Isto


dificilmente requer alguma explanação porque é óbvio. Para expor a matéria
negativamente, o que vemos na Igreja é unidade, não uniformidade. No uso que
faz da analogia em 1 Coríntios, capítulo 12, o apóstolo utiliza a ironia e o
ridículo. Ele recebera cartas dos que pertenciam à família de Cloe e de outros,
dizendo-lhe que um membro dizia, “Eu sou de Paulo”, outro, “Eu sou de
Apoio”, outro, “Eu sou de Cefas”. Estavam divididos em facções, e brigavam e
discutiam. O meio de que o apóstolo se serviu para tratar disso foi dizer-lhes que
era evidente que eles tinham esquecido que a Igreja é o corpo de Cristo. Isso, diz
ele, é como se o olho dissesse à mão, “Não tenho necessidade de ti”, e o pé
dissesse o mesmo ao ouvido. Ele ridiculariza tudo isso, e se põe a ensinar o
princípio de que na Igreja, como no corpo humano, há diversidade na unidade.

Ambas estas verdades devem ser salientadas. Todo ensino que apresenta os
membros da Igreja manifestando uma nebulosa uniformidade é antibíblico. Há
variedade na unidade essencial. Vejam um dedo e comparem-no com um olho. A
princípio não parece haver nada em comum. O dedo parece muito comum. Mas
depois considerem o olho. As vezes penso que não há no mundo nenhum
instrumento comparável ao olho. Pensem em sua delicadeza, sua sutileza, o
refinamento, o

equilíbrio, a ternura - que instrumento! À primeira vista parece não haver relação
nenhuma entre um olho e um dedo, ou um pé, ou outras partes do corpo ainda
menos elegantes. E, contudo, a verdade é que, embora todas elas sejam tão
diferentes, pareçam diferentes e cumpram funções diferentes, são todas uma só
coisa, neste sentido essencial de que todas pertencem juntas ao corpo e são
partes essenciais deste. O corpo não é completo se tão-somente uma dessas
partes não estiver ali. Diverso e, todavia, um só!

Depois vejam a analogia em termos da interdependência de cada parte, umas das


outras. Nenhuma delas tem real sentido ou significado ou existência por si
mesma. Como o apóstolo o expressa, se o corpo todo fosse mão, não haveria
corpo. Se o corpo todo fosse pé, não haveria corpo. O que faz do corpo um corpo
é que todas estas partes são uma só coisa neste todo orgânico, nesta unidade
essencial; e todas elas são absolutamente interdependentes umas das outras. O
olho não pode dizer à mão, não tenho necessidade de você. Se você não
tiver mãos, irá ver-se aleijado e desvalido. O olho não pode acionar o corpo todo.
Não há independência no corpo. Cada parte deriva o seu significado, a sua
essência, da sua relação com o restante. Essa é a verdade acerca do corpo; e
igualmente é a verdade, diz o apóstolo, acerca da Igreja. Cada órgão necessita
dos outros, e cada qual se beneficia das funções dos demais.

A seguir examinem o seu argumento sobre as partes menos honrosas. Diz ele
que, se você tiver um correto conceito sobre o corpo, não desprezará nenhuma
parte do seu corpo. Nenhuma parte é destituída de importância. Cada uma das
partes conta. Cada membro individual da Igreja é importante. Pessoas há na
Igreja que às vezes dizem, “Não sou um membro muito importante”, ao que
replicamos que não existe isso de membro não importante. O que talvez elas
queiram dizer é que não têm certos dons notáveis e incomuns que outras pessoas
têm. Talvez queiram dizer que não têm capacidade para falar ou pregar ou orar
eloquentemente em público. Mas estão desprezando o dom que possuem. “E os
que reputamos serem menos honrosos no corpo, a esses honramos muito mais”,
diz Paulo. Na vida da Igreja Cristã cada membro é essencial para o harmonioso
funcionamento do todo. Às vezes o exponho desta maneira, que o simples fato
de você ser membro de uma igreja e de ocupar um assento, já é uma grande
coisa. Isto ajuda o pregador porque para este é desanimador ter bancos vazios em
sua frente. Na igreja, pessoas e ações, tudo importa; e, portanto, qualquer coisa
que façamos para eliminar esta idéia de interdependência, não somente falseia a
doutrina, mas introduz uma divisão artificial, fazendo-nos culpados de cisma
desta ou daquela forma.

Outro princípio evidente é que todas as partes do corpo trabalham juntas com a
mesma finalidade e têm o mesmo objetivo. Cada parte do corpo tem sua própria
função, pois desempenha o seu papel no todo. O homem pensa com o seu
cérebro e age com a sua vontade. Entretanto, precisa ter um instrumento pelo
qual executar o seu propósito. Se eu quero fechar um livro, faço isso com as
mãos ; penso nisso, quero isso, porém o ponho em prática com as mãos. Se estou
sem mãos e sem braços, não posso fechar o livro. Assim, todas as
partes cumprem uma grande função, e todas elas trabalham para o
mesmo grande fim e objetivo. A Igreja é o corpo de Cristo, e nós
somos membros em particular. O apóstolo já dissera aos efésios que é
por intermédio da Igreja que Deus vai revelar certas coisas, “para que agora, pela
igreja, a multiforme sabedoria de Deus seja conhecida dos principados e
potestades nos céus” (3:10). Os principados e potestades estão olhando desde os
céus; e é por meio da Igreja, por meu intermédio e por meio de você, de cada um
de nós, de todos nós juntos, que estes principados e potestades estão começando
a entender a multiforme sabedoria de Deus. É para isso que somos chamados.

Não esqueçamos, porém, outra questão mencionada pelo apóstolo em 1


Coríntios, capítulo 12. Por causa desta unidade essencial, se um membro sofre,
todos os membros sofrem com ele. Você não pode dizer, “Só o meu dedo
mínimo está doente”. Não! Se o seu dedo mínimo está doente, você está doente.
Se há dor nele, você sente dor. Você não pode separar-se do seu dedo mínimo.
Por causa da unidade do corpo, o mesmo sangue corre em todas as suas partes.
Este poder vital anima o todo. Daí, se um membro sofre, todos os
membros sofrem com ele; e se um membro recebe honra, todos os membros
se gloriam com ele. Se verdadeiramente entendêssemos esta doutrina da Igreja,
toda idéia de competição, rivalidade, egoísmo, presunção seria completamente
impossível; na verdade, seria grotesca. E quando nos fazemos culpados dessas
coisas, estamos simplesmente proclamando que nunca entendemos a doutrina da
Igreja. A maneira de evitar esse erro é entender claramente a doutrina. Não se
precipitem para as praticabilidades; apeguem-se à doutrina primeiro.

Que privilégio temos e gozamos! Eu e vocês somos membros do corpo de


Cristo. Esse é o nosso relacionamento com Ele. Ele é a Cabeça; e nós somos os
diversos membros. Não há nada acima disso, não há maior privilégio. No Salmo
84 o salmista diz: “Preferiria estar à porta (ou “ser porteiro”) da casa do meu
Deus, a habitar nas tendas da impiedade”. Is so era maravilhoso - ser, por assim
dizer, um porteiro do palácio do Rei. Mas esta bênção do Novo Testamento vai
infinita-
mente além disso! Estamos em Cristo, pertencemos a Ele. Como cristãos, somos
partes do Seu corpo místico, espiritual. “Ora, vós sois o corpo de Cristo, e seus
membros em particular.” Se compreendermos isso, inevitavelmente “nos
esforçaremos para guardar a unidade do Espírito pelo vínculo da paz”.

“UM SÓ ESPÍRITO”

“Há um só corpo e um só Espírito, como também fostes chamados em uma só


esperança da vossa vocação; um só Senhor, uma só fé, um só batismo; um só
Deus e Pai de todos, o qual é sobre todos, e por todos e em todos. ” Efésios 4:4-
6

Passamos agora à segunda expressão utilizada pelo apóstolo. Várias questões


surgem neste ponto, sendo a primeira esta: se a Igreja é o corpo de Cristo, e se a
Igreja é como um corpo, de onde ela veio, por que foi formada e veio a existir, o
que é que constitui a sua vida? Que é que habilita o corpo a funcionar? Que é
que faz do corpo um organismo vivo e vital? O apóstolo responde imediatamente
estas perguntas dizendo que é o Espírito Santo - “um só corpo e um só Espírito”,
com E maiúsculo. Noutras palavras, a Igreja é resultado da atividade do Espírito
Santo. É Ele que opera na Igreja, na produção da Igreja, e na manutenção, no
bem-estar e na vida da Igreja. O apóstolo está preocupado em mostrar quão
inevitável é esta doutrina da unidade da Igreja, pelo fato de que o Espírito Santo
está no centro mesmo do corpo e permeia a vida e o ser do organismo inteiro.

O apóstolo diz: “um só Espírito”. Há somente um Espírito Santo; e Ele é


indivisível. Esta é realmente a base de tudo o que o apóstolo tem para dizer aqui.
Há somente um Espírito Santo, que é uma Pessoa e, portanto, é indivisível.
Existem muitos maus espíritos. No capítulo seis desta Epístola o apóstolo nos
lembra que “não temos que lutar contra a carne e o sangue, mas sim contra os
principados, contra as potestades, contra os príncipes das trevas deste século,
contra as hostes espirituais da maldade, nos lugares celestiais”(versículo 12). Há
uma pluralidade de maus espíritos. Há milhares, talvez milhões de
maus espíritos. Todavia, há somente um Espírito Santo. Não há
uma multiplicidade de Espíritos Santos correspondentes à multiplicidade de
maus espíritos. Parece-me que essa verdade é esquecida freqüentemente. Mais
importante ainda é o fato de que Ele é chamado Espírito Santo. Isso para
diferenciá-10, de uma vez por todas, de todos esses outros espíritos.

A mesma verdade se vê nos Evangelhos. Vejam, por exemplo, o pobre homem


de Gadara que o nosso Senhor curou. Recordem a resposta que o homem deu ao
nosso Senhor: “Legião é o meu nome, porque somos muitos” (Marcos 5:9). Não
era apenas um mau espírito que estava no pobre homem, havia uma legião de
maus espíritos nele. Lembramo-nos também da ilustração que o nosso Senhor
utilizou em Seu ensino de que, se um mau espírito for expelido por um
poder meramente humano, ele voltará e trará consigo mais sete, piores do
que ele (Mateus 12:43-45). Há muitos maus espíritos. O ensino bíblico é que
existe um grande reino do mal chefiado pelo diabo (satanás), “o príncipe das
potestades do ar”; mas ele tem os seus emissários, os seus subalternos, que ele
emprega- “principados, potestades, príncipes das trevas deste século, hostes
espirituais da maldade, nos lugares celestiais”. Há um grande número desses
poderes, um exército deles. Mas há somente um Espírito Santo, esta Pessoa
singular e bendita, a Terceira Pessoa da Trindade santa e bendita. E Ele que age
na Igreja e cria a unidade da Igreja. E esta unidade é indivisível porque a
Pessoa do Espírito obviamente é indivisível. Também devemos ter sempre
em mente o fato de que o Espírito na Igreja não é uma influência.
Jamais deveremos falar dEle como algo neutro, como muitas vezes temos
a tendência de fazer. O Espírito Santo é uma Pessoa. É Pessoa, tanto como o Pai
o é. E Pessoa, tanto como o Filho o é. “Quando ele vier”, diz o nosso Senhor
(João 16:8), Ele fará certas coisas.

Podemos deduzir desta certas outras verdades que também nos ajudarão a expor
e a ressaltar a indivisibilidade, e, portanto, a unidade da Igreja. Posto que se trata
do próprio Espírito Santo, e devido à obra ser obra que Ele realiza, temos o
direito de dizer que Ele sempre realiza a mesma obra; e é porque Ele realiza a
mesma obra em nós todos, que há esta unidade essencial na Igreja. Não devemos
entender mal o ensino neste ponto. Há diferenças insignificantes e superficiais
nas manifestações da Sua obra, porém toda ela é essencialmente uma só. Muitas
vezes tem-se assinalado que não existem duas flores absolutamente idênticas.
Elas pertencem à mesma família, ao mesmo grupo, à mesma espécie, mas não há
duas que sejam perfeitamente idênticas. Você pode ter duas tulipas, por exemplo.
Ambas são tulipas, todavia sempre há alguma pequena diferença. A mesma coisa
é válida quanto aos membros de uma família, mesmo no caso dos chamados
“gêmeos idênticos”. Nunca são de fato idênticos; quase parece que são, e
no entanto, sempre há alguma diferença. O mesmo se aplica à vida cristã. Visto
que a obra realizada é do Espírito Santo, é sempre a mesma; mas os cristãos não
são como selos do correio. Isto é da maior importância

porque nos propicia um dos melhores meios de diferenciar entre a obra do


Espírito Santo e a do homem. O homem procura conseguir produção em massa,
e trabalha de maneira mecânica, resultando em mesmice aquilo que ele produz.
Os métodos psicológicos também produzem a mesma espécie de pessoa, o
mesmo tipo. Essa mesmice é uma das maneiras pelas quais o falso, o espúrio e a
imitação sempre tendem a revelar-se. Contudo, quando o Espírito realiza a obra
de Deus em nós, esta é, em todos os casos, essencialmente a mesma
obra, entretanto é sempre uma obra vital, não mecânica e não idêntica
nos detalhes.

Em seu ensino, no final do capítulo dois, o apóstolo já tinha tocado nesta


matéria. Comparando a Igreja com um edifício, ele escrevera: “No qual todo o
edifício, bem ajustado, cresce para templo santo no Senhor” (versículo 21).
Provavelmente o apóstolo estava pensando na narrativa da construção do templo
no Velho Testamento. É-nos dito que as pedras foram preparadas antes de serem
levadas e colocadas na construção. Esse trabalho era feito muito longe, numa
pedreira, para que não houvesse barulho de martelos no edifício que estava
sendo erigido. Havia, no entanto, essa obra preliminar de preparação. As pedras
não deviam ser usadas como encontradas na pedreira; elas tinham que ser
aparadas e modeladas para poderem encaixar-se bem em suas posições
apropriadas nas paredes e assim, juntas, tornar-se partes do edifício. Da mesma
maneira, uma obra de preparação é absolutamente essencial em nós, antes de
podermos ser partes da Igreja. Muito tem que ser feito com o homem natural,
antes de poder ele tornar-se membro do corpo de Cristo, ou uma pedra neste
glorioso edifício que é o templo de Deus. A incompreensão disso e a
não recordação disso explicam a maioria dos problemas presentes na vida da
Igreja Cristã hoje, como sempre aconteceu através dos séculos.

A Igreja visível, lamentavelmente, compõe-se de muitos que nunca passaram por


esta obra de regeneração; e é por isso, como já dissemos, que eles podem
pertencer à Igreja visível, não porém à Igreja invisível. Há muitas e variadas
maneiras pelas quais as pessoas se tornam membros da Igreja visível. As vezes é
um puro acidente de nacionalidade. Se você nasceu num país cristão, assim
chamado, pelo menos se nasceu ali até uma época relativamente recente, a
probabilidade é que você tenha sido criado numa atmosfera religiosa. Em países
do mundo chamado pagão, não seria assim. Noutros casos, muitas vezes é puro
acidente de se pertencer a certa família ou a certa tradição. Estes são fatores que
operam com muita freqüência. Muitos de nós sabemos o que é a pessoa tornar-se
membro de igreja, não porque o Espírito Santo fez algo em nós ou a nós, mas
simplesmente por causa de um
desses acidentes. Quando eu, pessoalmente, fui recebido como membro em
plena comunhão da Igreja Cristã na qual fui criado, só me foi feita uma pergunta.
Perguntaram-me qual era o nome do ribeiro que o nosso Senhor e os discípulos
tiveram que atravessar quando iam indo do Cenáculo para o local da Sua agonia.
Não consegui lembrar a resposta; não obstante, fui recebido como membro
comungante da igreja. Isso me aconteceu literalmente quando eu tinha catorze
anos de idade. E coisas parecidas têm acontecido com muitos outros. Pode
ser que, em dada idade, o ministro ou o seu auxiliar tenha tido uma conversa
com os seus pais, sugerindo que esse era o tempo próprio para você, como
adolescente, tornar-se membro comungante da igreja. Talvez, em acréscimo,
você tenha freqüentado uma classe de instrução ou de preparação ou de
confirmação. Você não teve nenhuma experiência viva; você realmente não sabia
nada a respeito, fundamentalmente; era “a coisa que se tinha que fazer”. É isso
que sucede muitas vezes na Igreja visível; mas não sucede na Igreja invisível.
Você pode tornar-se membro da Igreja visível daquela maneira; nunca
poderá tornar-se membro do corpo de Cristo daquele modo. Antes de podermos
tomar-nos membros do corpo de Cristo, é preciso que o Espírito Santo faça um
trabalho de definida preparação. Como você é por natureza, não pode ligar-se ao
Senhor em toda a Sua glória e em Sua pureza, porque por natureza você é “filho
da ira, como os outros também”, “morto em ofensas e pecados”. O próprio
apóstolo Paulo deixa isso muitíssimo claro e evidente em sua Primeira Epístola
aos Coríntios, onde ele escreve, no capítulo 6: “Não sabeis que os injustos não
hão de herdar o reino de Deus? Não erreis: nem os devassos, nem os idólatras,
nem os adúlteros, nem os efeminados, nem os sodomitas, nem os ladrões, nem
os avarentos, nem os bêbedos, nem os maldizen-tes, nem os roubadores herdarão
o reino de Deus. E é o que alguns (de vós) têm sido” (versículos 9-11). Mas
agora eles estavam no reino. Como acontecera isso? A resposta é - “mas haveis
sido lavados, mas haveis sido santificados, mas haveis sido justificados em nome
do Senhor Jesus, e pelo Espírito do nosso Deus” (versículo 11). Sem essa obra
do Espírito Santo sobre nós e em nós, não somos nem podemos ser membros do
corpo de Cristo. Sem essa obra também não pode haver unidade. As igrejas e os
grupos de igrejas se dividem porque outros elementos - o elemento nacional, ou
muitos elementos são considerados mais importantes. Isso tudo é antibíblico e
anti-espiritual. As igrejas, falando geralmente, baseiam-se em tradições feitas
por homens e por elas são governadas. A maior parte das divisões
persiste porque as pessoas não se dão conta de que, sem a obra do
Espírito Santo, não há Igreja verdadeira, nem corpo de Cristo, seja qual for a

situação externamente e na aparência.


Ao nos voltarmos então, para esta obra que o Espírito Santo realiza, examinemo-
nos a nós mesmos a fim de certificar-nos de que foi realizada em nós esta obra
preliminar, que é essencial, antes de se poder ser membro do corpo de Cristo. A
primeira obra que sempre Ele realiza é a de convicção de pecado. Por natureza
nós estávamos satisfeitos conosco mesmos, contentes em continuar, imaginando
que tudo ia bem, que éramos boa gente, ou talvez sabendo que éramos maus,
porém ainda sem experimentar convicção de pecado. Todavia, quando o Espírito
começa a operar, Ele nos convence do pecado. Disse o nosso Senhor: “Quando
ele vier, convencerá o mundo do pecado, e da justiça e do juízo” (João 16:8). Ao
fazê-lo, Ele nos faz compreender algo da verdade concernente va santidade de
Deus. Podemos ter conversado sobre Deus durante anos; podemos ter “feito as
nossas orações” a Ele, sem termos pensado seriamente sobre Ele, e sem nada
sabermos verdadeiramente sobre Ele, até o Espírito Santo começar a tratar
conosco.

Estas duas coisas acontecem juntas. Sou capacitado a ver a mim próprio.
Começo a compreender que o meu problema não é tanto o fato de eu fazer coisas
que não devo, e sim que eu sempre desejo fazê-las. Tomo consciência do fato de
que existe dentro de mim algo vil, corrupto e errado, uma natureza pervertida e
tortuosa; e começo a perceber que não conheço a Deus, que realmente estou em
inimizade para com Deus, que nas profundezas do meu coração há ódio de
Deus. Alegrava-me falar de Deus enquanto Ele não interferia em minha vida, e
eu podia buscá-10 em minha necessidade e orar a Ele em busca de socorro. Mas
eu não queria que Deus dominasse a minha vida, não queria ser guiado por Deus.
O Espírito Santo desperta em nós uma percepção disso tudo. Ele também nos
leva à convicção da nossa condição de perdidos, do vazio que há em nós, e da
nossa miséria. Quando isso acontece, o resultado é um só, a saber, somos
humilhados, somos rebaixados; somos habilitados a ver-nos a nós mesmos
como realmente somos. O nosso orgulho é ridicularizado e começamos a dizer
com Isaac Watts -

“Senhor, não deixes que eu me ufane,

Salvo na morte de Cristo, meu Senhor,

Tudo o que é vão e que me atrai Ao sangue dEle eu sacrifico’’.

E mais:
“Desdém derramo em todo o meu orgulho 56

Nada temos de que possamos gabar-nos ou que nos faça pensar que somos
melhores do que os outros. Enxergamos a verdade acerca de nós mesmos; e
sabemos que a mesma coisa é válida quanto aos outros. O apóstolo Paulo,
enquanto Saulo de Tarso e antes de o Espírito Santo ter realizado a Sua obra
nele, era um grande fanfarrão - “Hebreu de hebreus, da tribo de Benjamim,
circuncidado ao oitavo dia” (Filipenses 3:5), homem que se sentara aos pés de
Gamaliel, o melhor dos sábios, homem que excedia a todos os demais em zelo,
em energia e no serviço de Deus. Mais tarde, porém, ele veio a dizer: “Mas o que
para mim era ganho reputei-o perda por Cristo”. Os seus privilégios e os
seus trabalhos tinham-se tornado “esterco” e “perda” (Filipenses 3:7-
8). Escrevendo mais tarde a Timóteo, ele disse: “Esta é uma palavra fiel e digna
de toda a aceitação, que Cristo Jesus veio ao mundo, para salvar os pecadores,
dos quais eu sou o principal” (1 Timóteo 1:15). Ele tinha perdido o seu orgulho,
a sua jactância, tudo o que era seu; ele não é nada; em seu conceito, não havia
maior pecador no universo. Charles Wesley expressa a mesma verdade com as
palavras:

O Teu nome é justo e santo,

Eu sou maldade e injustiça;

Sou falso e cheio de pecado,

Cheio és Tu de graça e verdade.

Nesses acontecimentos vemos a obra do Espírito Santo. Se todos os membros da


Igreja visível pensassem e falassem dessa maneira, não haveria problema na
Igreja. A obra do Espírito Santo garante a unidade. Se todos nos humilhássemos
no pó e na cinza, com vergonha e tristeza, e tomássemos ciência da vileza que há
em nós, necessariamente haveria unidade. O Espírito Santo produz uma unidade
no fracasso, uma unidade no pecado, uma unidade na vergonha, uma unidade no
mais completo desamparo e desespero. E devido os membros da Igreja não
serem convencidos do pecado, que não há unidade. Eles ainda estão apegados às
coisas das quais podem gabar-se, coisas nas quais podem vangloriar-se. A nossa
primeira grande necessidade é a de sermos derrubados, humilhados e tornados
humildes, para vermos a nulidade que somos; e esta é a primeira obra que
o Espírito Santo realiza em nós.
O passo seguinte é “vivificação” e “regeneração”. Não há uma ordem absoluta
quanto a essas questões; entretanto devemos tê-las nalgum tipo de ordem em
nossas mentes. Parecem acontecer exatamente ao mesmo tempo. Esta
vivificação ou renegação é a dádiva que nos é feita de um novo princípio de
vida. Não se pode ser cristão sem

nascer de novo. O nosso Senhor afirmou esta verdade uma vez por todas a
Nicodemos (João 3:1-8). Você não poderá ser membro do corpo de Cristo se não
tiver em você algo da Sua vida. Você pode unir-se à igreja ou ser membro de
uma sociedade qualquer, mas não poderá pertencer a Cristo, a menos que a Sua
vida esteja em você. As expressões utilizadas para descrever isto são
regeneração, nova criação, nascer de novo. Quando nos tornamos cristãos, o
Espírito não somente nos melhora um pouco, não somente nos livra de
algumas manchas e nódoas aqui e ali. Ele faz muito mais que limar-nos
um pouco e, por assim dizer, pôr-nos uma nova capa de tinta e um pouco de
verniz. Não! Temos que ser reconstruídos desde os alicerces. “Ele vos
vivificou”, diz o apóstolo no início do capítulo 2 desta Epístola. O cristão é um
“participante da natureza divina”. É “membro da família de Deus”. Repito que
isto não significa que somos idênticos em cada detalhe; todavia, significa
realmente que temos esta nova vida, vida que é a mesma em cada um de nós.
Somos todos co-participantes da natureza divina desta mesma vida nova
essencial. Pertencemos à mesma família, somos relacionados uns com os outros
como irmãos e irmãs; o mesmo sangue, por assim dizer, corre por nossas veias
e artérias. Essa é a base da unidade da Igreja e dos cristãos. É quando isso está
ausente que as divisões surgem.

O resultado deste novo nascimento é que somos capacitados a exercer a fé e a


obtermos certa medida de compreensão. “Porque pela graça sois salvos, por
meio da fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus”(2:8). Não nos demoraremos
com isto agora, pois teremos que estudá-lo mais tarde. Apenas anoto que é a
mesma fé presente em todos. De acordo com o apóstolo Judas, somos todos
participantes da “comum salvação”. Há “um só Senhor, uma só fé, um só
batismo”. Há somente um sangue que pode expiar os nossos pecados, que
pode cobrir-nos a nós e aos nossos pecados e que pode acertar-nos com Deus -
unicamente um! “Debaixo do céu nenhum outro nome há, dado entre os homens,
pelo qual devamos ser salvos” (Atos 4:12). A obra especial do Espírito Santo é
glorificar o Senhor Jesus Cristo. Assim, a situação é que todos nós estivemos
lambendo o pó juntos; depois todos nós recebemos esta mesma nova vida. E
agora estamos todos contemplando juntos a mesma Pessoa bendita. Não
devemos dedicar tempo para olhar-nos uns aos outros, para comparar-nos e
contrastarmos uns com os outros; todos nós devemos olhar para Ele e gloriar-
nos nEle. Quando assim nos unirmos nEle, não haverá lugar, não haverá tempo
para divisão. Todos nós temos os mesmos desejos. “Bem-aventurados os que têm
fome e sede de justiça.” Já não desejamos buscar lugares de importância, honra e
proeminência. A verdadeira tragédia

da Igreja é que ela esqueceu esta doutrina de um só corpo e um só Espírito. A


obra do Espírito foi esquecida; as coisas pertencentes à velha vida natural
levantam a cabeça e causam cisma, divisão e problema.

O passo seguinte da obra que o Espírito Santo realiza em nós é a obra de


incorporar-nos no corpo de Cristo, na Igreja. Tendo nos preparado, agora Ele nos
incorpora num corpo só. Ele nos une ao Senhor Jesus Cristo e, portanto, ficamos
unidos uns aos outros. O apóstolo Paulo expõe isto claramente em 1 Coríntios
12:13 - “Pois todos nós fomos batizados em um Espírito formando um corpo
(VA: “Pois por um Espírito fomos batizados em um corpo”), quer judeus, quer
gregos, quer servos, quer livres, e todos temos bebido de um Espírito”. Notem de
novo o E maiúsculo. É o Espírito que nos batiza no corpo de Cristo. Esta obra é
inconsciente, no concernente à experiência; porém, uma vez que é um fato,
gradativamente nos tornamos conscientes dela à medida que vivemos juntos -
“Nós sabemos que passamos da morte para a vida, porque amamos os irmãos” (1
João 3:14).

Depois o Espírito Santo dá alento à vida do corpo todo. O apóstolo expressa essa
verdade na Primeira Epístola aos Coríntios: “Não sabeis vós que sois o templo
de Deus, e que o Espírito de Deus habita em vós? Se alguém destruir o templo
de Deus, Deus o destruirá; porque o templo de Deus, que sois vós, é santo” (1
Coríntios 3:16-17). Quando ele diz: “Não sabeis vós que sois o templo de
Deus?”, está falando da Igreja, coletivamente. No capítulo 6 daquela Epístola ele
fala do indivíduo, quando diz: “Não sabeis que o nosso (VA: “vosso”) corpo é o
templo do Espírito Santo?” - porém no capítulo 3 ele se refere à Igreja. O próprio
Espírito Santo é o Agente por intermédio de quem e por meio do qual a unidade
orgânica do corpo é preservada. Nesta questão Ele é comparável à vida dos
nossos corpos físicos, ou, na verdade, ao sangue dos nossos corpos físicos. Ele é
o Espírito unificador, que os liga a todos e os faz um só; e quando Ele não
está presente, o corpo está morto. É por isso que falamos em igreja “morta”. Mas
ao dizê-lo, não estamos falando da Igreja invisível, porque esta nunca está morta,
e sim, está sempre viva. Podemos ir adiante e dizer que, enquanto Ele dá vida a
todo o corpo, dá vida igualmente a cada parte, separadamente, ao mesmo tempo.
Vê-se isso no contraste entre 1 Coríntios 3:16-17 e 1 Coríntios 6:19-20. Isso é
um grande mistério, contudo é um fato. O Espírito Santo realiza exatamente a
mesma obra de santificação em cada um de nós, individualmente. A
santificação significa sermos feitos semelhantes ao Senhor Jesus Cristo, e,
portan-

to, todos os que estão sendo santificados devem ter uma similaridade
fundamental, pois todos estão se tomando cada vez mais semelhantes a Ele; e,
finalmente, como diz o apóstolo João, “quando ele se

manifestar, seremos semelhantes a ele” (1 João 3:2). Então


estaremos perfeitamente santificados; toda mancha e ruga terá desaparecido,
e seremos semelhantes a Ele e uns aos outros. A obra de santificação realizada
pelo Espírito é a mesma em todos. Isto leva, por sua vez, ao fato de que o
Espírito Santo produz o mesmo fruto em todos nós, quando está habitando em
nós. Dominando-nos, Ele produz o Seu fruto em nós, fruto que é sempre o
mesmo. É sempre “amor, gozo, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fé,
mansidão, temperança”. Onde quer que o cristão esteja, na Inglaterra, na
América, na China ou no Japão, o fruto do Espírito é sempre o mesmo; e onde
esse fruto está presente, necessariamente há unidade. Não podemos por nós
mesmos produzir esse fruto; Ele é o único que pode fazê-lo. Vemos tudo
isso com muita clareza em 1 Coríntios, capítulo 13, o grande hino de amor. Se
todos nós correspondêssemos àquela descrição, nunca haveria divisões. Nenhum
de nós se encheria de soberba; todos nós estaríamos esperando todas as coisas
uns para os outros e acreditando no melhor reciprocamente. Teríamos aquele
amor que nunca falha. É quando o Espírito realiza a Sua obra que esta unidade
passa a existir. O que nos divide são as nossas personalidades naturais. Elas são
pecaminosas e dividem; elas se afirmam a si mesmas, e sempre há nelas o
elemento de egoísmo e de egocentrismo. E, inevitavelmente, há um conflito
de personalidades. Quando você se torna cristão, não perde a sua personalidade,
num sentido fundamental, mas você não é mais governado pela sua
personalidade; a sua personalidade é governada pelo Espírito Santo, e assim, por
meio da sua personalidade, as diversas graças, o fruto do Espírito, começam a
mostrar-se. Todos reconhecemos este fruto quando o vemos; e gostamos de vê-lo
uns nos outros. Estas nossas personalidades tolas e angulosas não se intrometem
mais. Nós mesmos, as nossas personalidades, estamos lá, mas o fruto é tanto
que não podemos ser vistos. Nada há para se ver, exceto as graças; e assim há
esta bendita e maravilhosa unidade.
Paulo afirma isto com muita clareza no capítulo cinco da sua Epístola aos
Gálatas. Ele contrasta ali o que ele chama “as obras da carne” com “o fruto do
Espírito”. “Porque as obras da carne são

manifestas, as quais são: prostituição, impureza, lascívia, idolatria, feitiçarias,


inimizades, porfias, emulações, iras, pelejas, dissensões, heresias, invejas,
homicídios, bebedices, glutonarias, e coisas semelhantes a estas”. Cada uma
destas obras divide, pelo que o apóstolo acrescenta: “acerca das quais vos
declaro, como já antes vos disse, que

os que cometem tais coisas não herdarão o reino de Deus”. Como podem? Tais
coisas levam' a divisão, à guerra; são feias e vis. A seguir, ele descreve um
quadro completamente contrastante, e parece que estamos vendo um magnífico
pomar, repleto de belos frutos. Precisamos examinar os espécimes individuais.
“Mas o fruto do Espírito é amor.” E o amor sempre une. Depois “alegria”. Esta
também sempre une. Diz o nosso Senhor que a mulher que encontrara a sua
moeda perdida, saiu e foi dizer às suas vizinhas: “Alegrai-vos comigo, porque j á
achei a dracma perdida” (Lucas 15:9). O pastor que tinha encontrado a sua
ovelha perdida falou de modo semelhante. Em seguida vem “paz”, o oposto da
guerra e da divisão. “Longanimidade”, em lugar de conflito e divisão.
“Benignidade, bondade, fé, mansidão, temperança.” Estes termos explicam-se a
si mesmos, e cada uma destas virtudes promove a unidade. Quando o Espírito
Santo produz este fruto, deixa de haver lugar para divisão ou discórdia. Assim é
que Ele produz a unidade; e a nós compete, “com toda a humildade e mansidão,
com longanimidade, suportando-vos uns aos outros em amor”, manter
esta “unidade do Espírito pelo vínculo da paz”. O Espírito é representado por
uma forma de pomba que, desde os dias da arca de Noé, simboliza benignidade e
paz; e esta obra em nós sempre produz benignidade e paz. A obra que o Espírito
realiza em nós sempre produz esse fruto, e assim leva à unidade.

Pergunto: realizou Ele a Sua obra em você? Realizou Ele a obra de preparação e
a obra de incorporação? Ele habita em você, e está produzindo o glorioso fruto
da Sua graça em você?
AYIVAMENTO

“Há um só corpo e um só Espírito, como também fostes chamados em uma só


esperança da vossa vocação; um só Senhor, uma só fé, um só batismo; um só
Deus e Pai de todos, o qual é sobre todos, e por todos e em todos. ” Efésios 4:4-
6

Continuamos o nosso estudo do versículo quatro: “Há um só corpo e um só


Espírito, como também fostes chamados em uma só esperança da vossa
vocação”, e o fazemos particularmente à luz da narrativa que temos no capítulo
dois do livro de Atos dos Apóstolos daquilo que aconteceu no dia de Pentecoste
em Jerusalém. Esse evento é básico, não somente em nossa compreensão da
doutrina do Espírito Santo, mas também da questão da unidade da Igreja Cristã.
É por isso que o domingo de Pentecoste veio a ser considerando como a festa da
Igreja que salienta a questão da unidade. Isso é bom, desde que o abordemos de
maneira bíblica, e não sentimental.

Até aqui estivemos tratando daquilo que podemos denominar, por falta de
melhor expressão, a obra comum ou normal do Espírito Santo. Essa obra pode
ser dividida em ordinária e extraordinária, naquilo que é comum e aquilo que é
especial. Esta é uma distinção importante. Em acréscimo à obra que Ele realiza
normalmente em todos os cristãos, o Espírito Santo concede dons particulares
aos membros individuais da Igreja. No capítulo doze da sua Primeira Epístola
aos Coríntios, o apóstolo ensina que Ele dá apóstolos, profetas e mestres;
também ensina que alguns cristãos têm dons de milagres, outros têm dom
de curas, outros têm fé, e assim por diante. Ao fazê-lo, ele nos relembra a
verdade de que é só quando compreendemos que os dons procedem do Espírito,
que temos verdadeira unidade. No momento em que começamos a pensar neles
como algo que possuímos, ou como algo de que podemos gabar-nos, há divisão.
Esta foi uma das principais causas de divisão na igreja de Corinto; alguns tinham
dons muito especiais, e outros tinham dons comuns. Dificuldades surgiram
porque os homens que tinham dons especiais desprezavam os que tinham
dons comuns; e os que tinham dons comuns tinham inveja dos que tinham

dons especiais; e assim a igreja dividiu-se. No entanto, também estava havendo


divisão com relação às personalidades de alguns dos seus mestres; alguns
diziam, “Eu sou de Paulo”, outros, “Eu sou de Apoio”, e outros se dizem
seguidores de Cefas. Noutras palavras, não compreendendo que os dons,
apóstolos e profetas inclusive, vêm do Espírito, estavam atribuindo os dons às
pessoas, e, assim, estavam causando divisão. O antídoto para esse mal é
compreender que há um só Espírito, que Ele é o Doador de todos estes dons, e
que Ele os dispensa variadamente, segundo a Sua sabedoria e o Seu soberano
beneplácito.

Falando de si próprio e do seu ministério, o apóstolo Paulo expõe isto com muita
clareza em sua Segunda Epístola aos Coríntios, quando ele diz: “Temos, porém,
este tesouro (este poder para pregar e este entendimento do evangelho) em vasos
de barro, para que a excelência do poder seja de Deus, e não de nós” (4:7). Diz
ele efetivamente que esta é a explicação da sua constante fraqueza, do seu
desânimo e do seu trazer no corpo a morte de Cristo. É claro que o apóstolo
Paulo teve uma luta pessoal constante com a enfermidade física, com fraqueza,
com sua doença nos olhos e com vários outros problemas. À luz disto, diz ele,
ninguém poderia atribuir a ele o caráter e os resultados do seu ministério. Ele
padecia estas coisas para que pudesse ser claro que o poder que operava nele e
por meio dele não era dele, mas, era o poder de Deus, por intermédio do Senhor
Jesus Cristo e do bendito Espírito Santo.

Uma obra do Espírito Santo ainda mais especial é a que se manifesta no que
denominamos operações ordinárias do Espírito, constantemente em andamento
na Igreja Cristã, semana após semana. As pessoas são levadas à convicção, os
crentes são levados a ver a sua insuficiência e a sua indignidade, e são
incentivados a orar. O Espírito Santo realiza a Sua obra de santificação na Igreja
constantemente; todavia também vem claramente ensinada nas Escrituras e na
história uma obra incomum, extraordinária e especial do Espírito, realizada
de tempos em tempos. Podemos considerar isto como geral e particular. Vê-se a
obra geral e extraordinária do Espírito na vida da Igreja em termos gerais; a obra
particular, em indivíduos, na Igreja. É a obra geral e extraordinária do Espírito, a
qual chamamos avivamento. Não há assunto que seja de maior importância ou
de maior urgência para a consideração da Igreja hoje, do que este: o avivamento.
Se é que tenho alguma compreensão dos tempos, se é que tenho alguma
compreensão do ensino bíblico a respeito da natureza da Igreja e da obra do
Espírito Santo, não hesito em asseverar que a única esperança para a Igreja
na presente hora está no avivamento. Não vejo esperança em nenhuma espécie
de movimento, organização ou esforço especial planejado pe-

los homens. A única e suprema necessidade da Igreja é o avivamento.


Costumo definir um avivamento como uma repetição, nalgum grau, ou nalguma
medida, do que aconteceu no dia de Pentecoste em Jerusalém, como vem
registrado no capítulo dois do livro de Atos dos Apóstolos. É um derramamento
do Espírito sobre certo número de pessoas ao mesmo tempo. Às vezes envolve
uma igreja, às vezes um distrito ou um bairro, às vezes todo um país.
Geralmente, o efeito disto é que a Igreja é elevada a um novo nível de
experiência e de entendimento; e, ao mesmo tempo, muitos de fora da igreja, e
alguns que só nominalmente estão na Igreja, são convencidos de
pecado, convertidos, e são levados a um salvador conhecimento do Senhor Jesus
Cristo. É importante que captemos com clareza esta definição porque, da parte
de muitos há hoje um infeliz ensino de que se deve considerar uma campanha
evangelística como avivamento, e de que se deve anunciá-la como avivamento.
Veremos, à medida que prosseguirmos, que essa é uma impossível definição de
avivamento. Não se pode anunciar um avivamento, não se pode dizer que um
avivamento vai começar num dia particular, conforme dizem tais pessoas.
Afixam cartazes anunciando reuniões de avivamento. Isso é impossível,
por definição; o que pretendem é uma campanha evangelística, que é
algo inteiramente diverso de um avivamento. Um avivamento pode
irromper numa campanha evangelística, mas avivamento não é
campanha evangelística propriamente dita.

Devemos considerar este assunto em muitos aspectos. Há muitos cristãos hoje


que nunca sequer consideram esta questão de avivamento. De fato, muitos o
desaprovam e dizem que não deve ser pregado, e que certamente não deve ser
procurado. Eles temem tudo o que produz entusiasmo ou fervor. Há muitas
razões para essa atitude. Existe, por exemplo, um tipo de ensino sacramentalista
que não deixa espaço para a doutrina do avivamento. Segundo esse ensino, o
Espírito Santo só exerce a Sua influência por meio dos sacramentos, e os
sacramentos agem miraculosamente. Recebe-se graça numa hóstia ou pela água
do batismo. A graça foi mecanizada e ligadaa coisas materiais. De acordo com
esse conceito, a Igreja recebe a graça e a influência do Espírito por meio dos
sacramentos, e só por meio dos sacramentos pode recebê-los. Daí nunca vocês
lerão sobre avivamento nos segmentos “católicos” da Igreja Cristã, assim
chamados. Eles mecanizaram a ação do Espírito, e a ataram aos sacramentos; e
excluem todas as outras possibilidades. Consideram o que aconteceu no dia de
Pentecoste como entusiasmo desenfreado. Naturalmente não dizem isso; mas é o
que de fato estão dizendo efetivamente. Tudo se acha sob o domínio do
sacerdote; a vida da Igreja é mantida constantemente dessa maneira tranqüila, e a
bênção deve vir sempre dessa maneira.

Outra escola de pensamento encontra-se, às vezes, entre cristãos evangélicos


conservadores. Ela ensina que o Espírito Santo foi dado uma vez por todas no
dia de Pentecoste. Foi quando Ele veio sobre a Igreja e passou a estar nela.
Portanto, argumentavam eles, é um erro orar por um derramamento do Espírito.
Houve somente um derramamento, não poderá haver outro, e não é correto orar
por outro. O Espírito Santo está na Igreja, ensinam eles, e tudo o que você tem
que fazer é submeter-se à Sua influência e ao Seu poder. Então Ele encherá o seu
ser, e a todos os que fizerem o mesmo, e assim a Igreja será cheia do Espírito.
No entanto, eles ensinam que nunca devemos pedir um derramamento, que
nunca devemos pedir ao Senhor que envie e derrame outra vez o Espírito, como
o fez no dia de Pentecoste. Obviamente, essa questão é muito séria, pois, se esse
ensino for certo, realmente não haverá lugar para avivamento, e certamente não
devemos orar por avivamento. Contudo, seguramente, é um ensino
completamente antibíblico.

No próprio livro de Atos dos Apóstolos há instrução que mostra que esse ensino
é totalmente errôneo, pois o Espírito Santo não foi somente derramado, e veio a
encher a Igreja no dia de Pentecoste, mas isso aconteceu subsequentemente. No
capítulo 4 do livro de Atos lemos: “E, tendo orado, moveu-se o lugar em que
estavam reunidos; e todos foram cheios do Espírito Santo, e anunciavam com
ousadia a palavra de Deus” (4:31). Certamente isso é uma repetição do
que aconteceu no dia de Pentecoste. Ali estão estes apóstolos e os
outros discípulos e seguidores que tinham sido batizados e sobre quem o Espírito
Santo tinha vindo no dia de Pentecoste. Dois apóstolos tinham estado na prisão
por causa da sua pregação; após a sua libertação, voltaram para a igreja reunida,
e todos juntos oraram e pediram a Deus que tivesse misericórdia deles e os
protegesse. O Espírito de Deus desceu sobre eles, e as próprias paredes
começaram a mover-se; e todos eles foram de novo cheios do Espírito, e com
ousadia deram testemunho concernente à ressurreição. Coisa parecida aconteceu
em Samaria, como se vê registrado no capítulo 8 de Atos; e outra vez
em Cesaréia, na casa de Comélio. É-nos dito que o Espírito Santo caiu sobre ele
e sobre o grupo reunido, como fizera no dia de Pentecoste, em Jerusalém. Pedro,
que era cético e hesitante quanto à admissão de gentios na Igrej a, teve que
admitir que Deus os havia recebido, quando viu que o Espírito tinha sido
derramado sobre eles “como também sobre nós no princípio” (Atos, capítulos 10
e 11). A mesma coisa é certa quanto àqueles discípulos que o apóstolo Paulo
encontrou em Éfeso, segundo o registro do capítulo 19 de Atos.
Em acréscimo a isso, e fora da história registrada no cânon do Novo Testamento,
há a admirável história da própria Igreja Cristã. Quando examinamos a
subseqüente história da Igreja, o que vemos é que o que se conta da Igreja não
mostra um nível constante de realização, progresso e êxito. Pelo contrário,
vemos uma história de altos e baixos no transcurso dos séculos. Na verdade há
um sentido em que se pode dizer que a história da Igreja é a história de
avivamentos seguidos por períodos de inércia, e avivamento vindo outra vez.
Vemos o maravilhoso início no livro de Atos e lemos sobre o extraordinário
poder e sobre as transformações que aconteceram. Isso, porém, foi
passando gradativamente, e nos movemos para a Idade das Trevas, para
a obscura Idade Média, aquele período de torpor, letargia e ausência de vida, no
sentido evangélico, na história da Igreja Cristã. Apesar disso, houve ocasionais
movimentos do Espírito, condenados pela Igreja institucional como movimentos
heréticos - os montanistas, os catharis, os waldenses e outros. Veio depois a
brilhante e flamejante Reforma Protestante, que foi um verdadeiro
“avivamento”, um retorno ao livro de Atos, uma restauração do antigo poder e
de tudo a que isso levou. Todavia, de novo se vê que isso passou, até chegarmos
à era dos puritanos, que nalguns sentidos foi um movimento. Vieram depois
os grandes avivamentos do século dezoito, em vários países. E houve ainda
avivamentos no século dezenove, notavelmente de 1857 a 1859. Essa é a história
da Igreja. Portanto, ensinarem quaisquer cristãos que não devemos buscar, ansiar
e orar por avivamento e esperar por ele, não só me parece antibíblico, mas
também uma negação de algo sumamente glorioso na história da Igreja.

É de fato vital compreender que os avivamentos são o meio de que Deus Se


utiliza para manter viva a Sua obra. Isto se vê também no Velho Testamento.
Vemos os filhos de Israel caindo em pecado, esquecendo-se de Deus e tornando-
se indolentes e frouxos; então vemos que Deus subitamente levanta um profeta
ou um rei, e aviva a Sua obra entre eles. Vê-se isto no tempo do rei Josias, do rei
Ezequias e noutras ocasiões. Foram avivamentos nos quais Deus Se manifestou e
manifestou algo da Sua glória. E é o que se tem comprovado através da longa
história da Igreja Cristã. Houve tempos em que o verdadeiro cristianismo quase
desapareceu, e certos céticos espertos, como também certos infiéis, ficaram
inteiramente confiantes em que o fim tinha chegado. E justamente em tais
ocasiões que Deus envia o avivamento, e a Igreja moribunda ressurge para um
novo período de atividade, êxito e glória.

Vendo a questão de um ângulo diferente, podemos dizer que não há nada que,
como o avivamento, prove com igual clareza o caráter
sobrenatural e divino da Igreja, e que mostre tão evidentemente a obra realizada
pelo Espírito Santo; e, acima de tudo, podemos dizer que não há nada que
promova tanto a unidade da Igreja como um avivamento e despertamento
espiritual. Como tenho salientado repetidamente, a tragédia da situação moderna
é que os homens pensam na unidade em termos de organização, não em termos
deste poder do Espírito; pois é unicamente o Espírito que pode produzir a
unidade. A unidade é sempre vital, cheia de energia, orgânica; somente o Santo
Espírito de Deus pode produzi-la na Igreja.

Com isto em mente, vejamos o que a história dos avivamentos nos ensina. A
primeira coisa que descobrimos quando lemos a história dos avivamentos ilustra
perfeitamente este ponto concernente à unidade. A história de todos os
avivamentos é de caráter quase sempre idêntico. Isto é deveras espantoso,
porque não se pode dizer o mesmo da história geral da humanidade. Há
diferenças nas reações face à vida, e no comportamento dos homens em geral de
era a era e de país a país. Há costumes locais, há costumes nacionais; há
características que pertencem a um século, e que não pertencem a outro, e assim
por diante. Mas o que é notável, acerca de cada avivamento, é que parece igual a
todos os outros avivamentos. Seja no século primeiro, ou no século
dezesseis, dezessete, dezoito, dezenove ou vinte, é sempre o mesmo. A
história de qualquer avivamento lembra-nos o capítulo dois do livro de Atos dos
Apóstolos. Sempre há, por assim dizer, um retomo àquele derramamento inicial
do Espírito. A explicação disto é que o avivamento é essencialmente obra do
mesmo Espírito. Há um só Espírito, e Ele sempre age no avivamento da mesma
maneira fundamental. Isto se aplica, não somente a todos os séculos, mas
também a todos os países.

Estes pormenores são de grande importância, porque nada é mais fortalecedor da


fé que observar tais fatos. Tomem, por exemplo, a história da Reforma do século
dezesseis. A Reforma ocorreu quase ao mesmo tempo na Alemanha, na Suíça, na
França e na Inglaterra. Pois bem, foi por acidente? Pode-se explicar esse fato em
termos humanos? O avivamento rompe as barreiras nacionais, põe abaixo todas
essas distinções. Vê-se isto admiravelmente no capítulo dois de Atos. Judeus e
prosélitos estavam juntos na festa de Pentecoste; tinham vindo de vários países e
tinham as características daqueles países; e, todavia, todos foram feitos um, por
assim dizer, pelo Espírito Santo. Esta é sempre a característica de um
avivamento.

Outro fato notável é a maneira pela qual o avivamento acontece numa variedade
de lugares ao mesmo tempo, como já observei quanto à Reforma do século
dezesseis. O século dezoito mostra precisamente

o mesmo fenômeno. Em 1734 houve o começo de um avivamento na América,


nos Estados da Nova Inglaterra, numa pequena cidade chamada Northampton,
onde o ministro era o grande Jonathan Edwards. Não nos esqueçamos de quais
eram as condições de viagem há duzentos anos; e também de que não havia
telégrafo, sem falar no telégrafo sem fio. Mas, ao mesmo tempo, ocorreu um
avivamento em Gales, no ano de 1735. Mais interessante ainda, ele irrompeu em
dois lugares de Gales, por meio das vidas de dois homens que nunca se haviam
encontrado e que nunca tinham ouvido falar um do outro -Daniel Rowland e
Howel Harris. Eles se encontraram dois anos mais tarde, e quando o fizeram,
ficaram admirados com a igualdade das coisas que lhes tinham acontecido. Isso
aconteceu numa aldeia onde Rowland era um clérigo ordenado, um pároco
adjunto; e aconteceu noutro lugar, a umas cinqüenta ou sessenta milhas,
mediante a vida de Harris, que era um mestre-escola e que nunca foi ordenado. A
mesma coisa sucedeu com os dois homens ao mesmo tempo; e eles
foram levados a coisas similares. Em 1736-7 aconteceu a mesma coisa na vida
de George Whitefield, e em 1738 com João Wesley e Charles Wesley. Pouco
mais tarde, na Escócia, nas vidas de ministros piedosos e em igrejas de
Cambuslang e de Kilsyth, houve este mesmo movimento do Espírito. É
certamente notável e admirável que estes movimentos do Espírito tenham
acontecido ao mesmo tempo entre pessoas que tinham pouco ou nenhum contato
umas com as outras.

Igualmente, no século dezenove, de novo aconteceu o mesmo. Em 1857


irrompeu um grande avivamento na América, depois em Ulster,1 em 1858, e em
Gales e partes da Inglaterra em 1859.0 ponto que estou salientado é que estas
coisas não podem ser explicadas em termos humanos, naturalistas. É o Espírito
agindo em Sua Igreja, e Ele faz a mesma coisa ao mesmo tempo. Na verdade,
esta é a realidade quanto ao século atual. Houve um avivamento em Gales, em
1904 e 1905, e também na Coréia, e quase exatamente ao mesmo tempo, em
1905 e 1906. Assim aconteceu através dos séculos. Estes fatos
indubitáveis devem despertar-nos para que vejamos que é desse modo que
Deus age, que esta é a única esperança para a Igreja, e, acima de tudo,
que oremos por isto.

Voltando-nos para os traços distintivos e as características de um avivamento,


vemos em geral o que lemos no capítulo dois de Atos: “E, cumprindo-se o dia de
Pentecoste, estavam todos reunidos no mesmo lugar; e de repente” - os
avivamentos vêm de repente, e muitas vezes

inesperadamente. Os apóstolos e outros estavam esperando porque o Senhor lhes


tinha dito o que aconteceria “não muito depois destes dias” (Atos 1:5). Eles
estavam juntos, “unanimemente em oração”, porque sabiam que ia acontecer
alguma coisa; entretanto não sabiam quando. “E de repente...” Na subseqüente
história da Igreja podemos acrescentar às palavras “de repente” a palavra
“inesperadamente”. Devemos dar graças a Deus por isso, porque nos traz
poderosa consolação num período árido como este em que estamos vivendo.

Não podemos dizer quando o Espírito Santo irá visitar-nos e fazer reviver a Sua
obra. O ponto que desejo acentuar é que Ele virá. É Ele que vem. “E de repente
veio do céu um som, como de um vento veemente e impetuoso, e encheu toda a
casa em que estavam assentados. E foram vistas por eles línguas repartidas,
como que de fogo”. O avivamento não é o resultado de algo que os homens
façam. E algo que os homens não podem fazer. Isso também aparece com
regularidade na história dos avivamentos. Muitas vezes vemos que Deus usou
uma pessoa particular mais do que quaisquer outras numa época de avivamento.
E muitas vezes vemos que o homem que Ele escolhe é alguém que homem
nenhum teria escolhido. Nem sempre ses trata de um grande homem ou de
alguém superdotado ou incomum. As vezes é um homem muito humilde e
inconspícuo, demonstrando-se assim o fato de que é obra do Espírito. Não pode
ser explicada em termos de homens ou dos seus dons ou de suas personalidades.
Assim, a honra e a glória devem ser dadas ao Espírito Santo. “Não por força nem
por violência, mas pelo meu Espírito, diz o Senhor” (Zacarias 4:6).

Nada é mais proveitoso que a leitura da história dos avivamentos. Vocês verão
que, por vezes, o avivamento veio depois que um grupo de pessoas, talvez
apenas um punhado, pessoas com os corações quase despedaçados por causa do
estado da religião em seu distrito, e por causa da inércia e falta de vida da sua
igreja, reuniam-se para orar, suplicando a intervenção de Deus. Estiveram quase
a ponto de desistir, quem sabe, porém persistiram com a sua pequena reunião de
oração. Um dia foram à reunião mais ou menos desanimados e
desconsolados, mas ali estavam orando quando, “de repente”, todos tomaram
consciência de que acontecera algo; o Espírito de Deus tinha vindo sobre eles, e
eles foram transformados. Era como se a reunião não pudesse terminar. Isso
continuou no dia seguinte e por meses, e vinha gente de toda parte para ver o que
estava acontecendo. É assim que Deus age no avivamento - de repente,
inesperadamente, ele vem.

O que sucede é que tais cristãos de repente se tornam cientes de uma presença,
de um poder, de uma glória, e são tomados de um senso do

maravilhoso. A palavra “maravilhar-se” acha-se no capítulo dois do livro de


Atos: “E todos pasmavam e se maravilhavam, dizendo uns aos outros...”. Os
próprios apóstolos e os demais estavam tomados de um senso do maravilhoso. O
que acontece numa ocasião como essa é que Deus o Espírito Santo faz sentir a
Sua presença tão poderosamente que homens e mulheres que podem ter crido no
evangelho anos e anos, de repente ficam cientes, de maneira mais direta, da
glória de Deus, da majestade de Deus e da grandeza de Deus. Não é mais
questão de fé; há uma espécie de percepção mais direta. Eles sentem e sabem
que Deus está ali, que Deus parece estar enchendo o edifício. Naturalmente, isso
está inteiramente além do entendimento e de explicação, e até mesmo além da
possibilidade de expressão e de descrição. A Igreja não o compreende; o mundo,
menos ainda.

Seu efeito sobre os crentes é dar-lhes nova clareza de entendimento das verdades
em que eles anteriormente criam. Os apóstolos começaram a falar, é o que se nos
diz, sobre “as maravilhosas obras de Deus”. Em tempo de avivamento, cristãos
há que dizem que enxergaram as coisas com maior clareza num segundo do que
em toda a sua vida anterior. Há aquela conhecida experiência de John Flavel, o
puritano, que uma vez teve uma experiência admirável dessa natureza, quando
estava a sós. Disse ele que aprendeu mais naquela única experiência do que em
toda a sua vida de leitura da Bíblia e de livros sobre a Bíblia, e oração. Há um
novo senso de clareza, uma luminosidade com respeito a isso tudo. É isso que
acontece, e é desse modo que o Espírito Santo produz unidade. Pessoas que
estavam com dúvidas, incertas e hesitantes e, por isso, discutindo umas com as
outras, subitamente são cheias do Espírito Santo e de um novo entendimento.
Elas se sentem quase como se vissem o Senhor Jesus Cristo e O conhecem como
o Filho de Deus e como o seu Salvador com uma nova certeza. É o que
acontece com todos os que experimentam isso, e assim há uma unidade real.

A tragédia é que há homens tentando produzir unidade dizendo-nos que não


importa muito o que cremos, que na medida em que nos reunirmos, trabalharmos
juntos e não discutirmos sobre doutrina, seremos todos um. Mas a unidade do
Espírito vem por meio do entendimento, não menosprezando o entendimento e
dizendo que o conhecimento da doutrina não importa. A grande característica
do avivamento é que os homens entendem a doutrina e a verdade como nunca
antes. Não somente isso, começam a regozijar-se como nunca antes, e se enchem
de segurança e de um senso de certeza da sua relação com Deus. Às vezes ficam
tão cheios de alegria que outros, vendo-os, dizem: “Estão cheios de mosto”. No
entanto, é “o gozo do Espírito Santo”; eles ficam comovidos com este novo
senso da sua relação com

Deus o Pai e o Filho e o Espírito Santo.

Isto, por sua vez, leva a um desejo de dizê-lo aos outros, e assim começam a
falar e a proclamar estas “maravilhosas obras de Deus”. Os apóstolos o fizeram
com uma ousadia e com uma autoridade que nunca antes haviam experimentado.
Aquele Pedro que poucas semanas antes havia negado que conhecia a Cristo,
porque temia ser levado à morte, falou no dia de Pentecoste com ousadia e com
autoridade. Ele repreendeu os judeus e os censurou, e os colocou face a face com
o juízo. A maior necessidade da Igreja hoje é essa ousadia, essa autoridade e esse
poder. Que é que podemos fazer com uma geração como esta na qual nos
encontramos, com o seu orgulho de conhecimento e cultura, sua zombaria e sua
arrogância? Mediante o poder do Espírito Santo esta geração pode ser abalada,
convencida do pecado e renovada. O homem não pode realizar esta obra, porém
o Espírito pode, como o fez no dia de Pentecoste, e como Ele tem feito de
tempos em tempos daí em diante, nos períodos de poderoso avivamento.

Não se pode senão notar nos registros do livro de Atos o senso de unidade que os
crentes tinham. Todos eles se mantinham juntos. Durante certo período até
vendiam os seus bens e viviam uma espécie de vida comunal. Isto porque
sentiam que eram um, não num sentido mecânico, mas porque agora nada
importava, senão esta nova vida. Tinham-se unido como num processo de fusão;
sentiam o Espírito a dominá-los e a governá-los. Este senso de unidade é
inevitável quando o Espírito Se faz presente com poder.

Examinando o outro lado do quadro, vemos o efeito que isso teve sobre outros.
Eles se juntaram às pressas, perguntando: “Que será isto?” E Pedro pregou, e
eles foram convencidos do pecado e se renderam. Judeus que recentemente
haviam gritado acerca do Senhor, “Fora com ele, crucifica-o”, ao ouvirem a
pregação sobre Ele, gritaram, “Que faremos, varões irmãos?” Isto sempre
acontece nas épocas de avivamento. Há certas pessoas das quais a gente se
sentiria tentado a dizer, falando em termos naturais, que nada poderia convertê-
las jamais, e que, de repente, são convencidas e convertidas pelo Espírito Santo.
É o que tem acontecido nos avivamentos ocorridos na Igreja através dos séculos.

Não há nada que atraia tanto as pessoas para a Igreja como o avivamento. Os
homens tentam fazer propaganda da Igreja hoje; a Igreja está criando
departamentos de publicidade, e tem agentes de publicidade; e nos dizem que
devemos fazer propaganda da Igreja para o povo. Contudo, se irrompesse um
avivamento aqui ou em qualquer outro lugar, não haveria necessidade de
propaganda. Viria gente de

toda parte, como no dia de Pentecoste, perguntando, “Que será isto?” Quando o
poder do Espírito está presente, o povo vem, por admiração, talvez por
curiosidade, e muitas vezes acontece que “tolos que vieram para zombar, ficam
para orar”.

Que é que devemos fazer com relação a isso tudo? Qual é o caminho para o
avivamento? A resposta é que nós temos que aperceber-nos da nossa impotência,
temos que aperceber-nos de que de nós e por nós mesmos nada podemos fazer. O
poder é de Deus, quem age é o Espírito. O que nos cabe fazer “unanimemente” é
perseverar “na doutrina dos apóstolos, e na comunhão, e no partir do pão, e
nas orações”. A doutrina vem primeiro. A principal obra do Espírito Santo é
glorificar ao Senhor Jesus Cristo. Portanto, não haverá valor em nossas orações,
se não crermos nEle, em Sua divindade singular, em Sua encarnação, nascimento
virginal, milagres, morte expiatória, ressurreição e ascensão. O Espírito O
glorifica e, portanto, devemos crer nEle e ser “unânimes” em nossa doutrina.

Também devemos orar. Devemos passar tempo rogando pelo Espírito, como
aquelas pessoas oraram durante aqueles dez dias. E vocês verão na história da
Igreja através dos séculos que, quando as pessoas oravam e eram levadas a ver a
sua impotência e a sua debilidade, elas perseveravam, firmadas no nome de
Cristo, o seu Salvador e Mediador, e pleiteavam com Deus para que de
novo derramasse o Seu Espírito. E muitas vezes, quando achavam que o
fim chegara e que não havia mais esperança, subitamente Deus lhes respondia e
derramava o Seu Espírito sobre elas. Se vocês realmente sentem o peso do fardo
dos tempos em que vivemos, se vocês realmente se entristecem de coração ao
verem a impiedade do mundo, se vocês tiverem em seus corações compaixão
pelos homens e mulheres que se acham na escravidão do pecado e de satanás, o
seu primeiro dever é orar por avivamento. Quando o avivamento vem,
pode acontecer mais num dia do que num século de obra comum da
Igreja. Quando o Espírito vem, os corações mais valentes são quebrantados, os
intelectos mais vigorosos são derribados, e homens e mulheres bradam pedindo
misericórdia e procurando conhecer o caminho da salvação. A primeira tarefa, o
primeiro dever dos cristãos e da Igreja Cristã hoje é orar “unanimemente” e
clamar por uma repetição do Pentecoste, por um avivamento feito pelo Espírito
Santo, Deus vindo outra vez com autoridade, vigor e poder no meio do Seu
povo. O Espírito Santo ainda está em disponibilidade, com todo o Seu
poder; assim, orem a Deus, rogando-Lhe que O envie. E quando Ele
vier, veremos coisas que nos surpreenderão e que encherão de pasmo o mundo
escarnecedor e incrédulo que está do lado de fora.

UMA SÓ ESPERANÇA

“Há um só corpo e um só Espírito, como tambémfostes chamados em uma só


esperança da vossa vocação. ” Efésios 4:4

Chegamos agora ao terceiro aspecto que o apóstolo acentua em conexão com a


obra do Espírito: “como também fostes chamados em uma só esperança da vossa
vocação”. Talvez a melhor maneira de abordar esta frase seja com uma pergunta.
E, diga-se de passagem, um dos segredos do proveito do estudo da Bíblia é
descobrir a arte de fazer perguntas. Noutras palavras, não tomem as afirmações
simplesmente como elas vêm; mas, para se certificarem de que entendem a
seqüência, parem por um momento e façam uma pergunta. Temos aqui
um exemplo do valor dessa prática. Diz o apóstolo: “Há um só corpo e um só
Espírito”. Podemos entender esta seqüência, “Há um só corpo”, e é evidente que
a vida do corpo, o poder que mantém o corpo vivo e que o capacita a agir, é
obviamente, esse “um só” Espírito. O apóstolo passa naturalmente de “um só
corpo” para “um só Espírito”. Todavia, depois ele diz: “como também fostes
chamados em uma só esperança da vossa vocação”. A pergunta é: por que
acrescentar isso a “um só corpo” e “um só Espírito”? O apóstolo não escreve
isso por acaso ou por acidente. Há uma seqüência lógica aí, e uma conexão
inevitável.

Minha opinião é que há duas razões que tornam inevitável que esta seja a
terceira coisa que ele mencione. A primeira coisa é compreender por que o
Espírito Santo fez em nós, cristãos, o que fez. Por que é que Ele nos chamou
eficazmente, como nos lembra o versículo primeiro deste capítulo? Quando
estávamos mortos em pecados, fomos chamados e vivificados pelo Espírito
Santo: Ele nos convenceu do pecado e nos habilitou a ver os méritos do sangue
de Jesus. Ele nos deu nova vida; Ele nos chamou do mundo e nos batizou no
corpo de Cristo. Será que isso tudo é um fim em si mesmo, ou haverá mais
algum propósito por trás? A resposta é que todas estas coisas ocorreram
meramente como uma preparação para algo que ainda iria acontecer. É um
passo num grande processo; uma atividade intermediária que há de levar a uma
atividade final. A Igreja não é um fim em si e por si; a Igreja é o

corpo, o instrumento que Deus está usando, por intermédio de Cristo e do


Espírito Santo, para chamar dentre todo o gênero humano uma nova
humanidade, um novo povo para Si, que Ele finalmente vai aperfeiçoar e vai
fazer habitar num mundo renovado e glorificado, livre de todo pecado. Tudo tem
o propósito de levar àquela glória final, à final manifestação concludente de
Cristo e ao estabelecimento do Seu reino eterno. Dessa maneira, fica clara a
seqüência, “um só corpo, um só Espírito, uma só esperança da vossa vocação”.
O corpo está sendo preparado para o grande dia que ainda está por vir.

Uma segunda razão pela qual o apóstolo introduz esta frase neste ponto é que o
Espírito Santo, em acréscimo à Sua obra de preparar-nos para a incorporação no
corpo, Sua obra especial na revivificação, realiza outra obra especial, mais
pessoal. O apóstolo já se referiu a isso no capítulo primeiro, onde ele escreve:
“Em quem também vós estais, depois que ouvistes a palavra da verdade, o
evangelho da vossa salvação; e, tendo também nele crido, fostes selados com o
Espírito Santo da promessa, o qual é o penhor da nossa herança, para redenção
da possessão de Deus” (versículos 13-14). Isto se refere à obra do Espírito,
como “selo” e “penhor”. Tendo-nos feito cristãos, tendo-nos colocado no corpo
de Cristo, Ele nos sela e age como penhor; e todo o objetivo do selo e do penhor
tem relação com a “possessão adquirida” (VA) da qual ele fala. O selo é, por
assim dizer, a estampilha posta em nós para mostrar que pertencemos a Deus,
que somos Seus filhos e que somos herdeiros da grande herança vindoura. O
penhor é um antegozo daquela herança, ou as suas primícias. É um pagamento
parcial que nos é feito aqui e agora como garantia de que a receberemos
plenamente.

No momento em que pensamos nos aspectos do “selo” e do “penhor” na obra do


Espírito Santo, somos levados a pensar nessa possessão adquirida, nesta
maravilhosa herança que Deus está preparando e mantendo para os que O amam.
E por isso que Paulo diz aqui que há “um só corpo e um só Espírito, como
também fostes chamados em uma só esperança da vossa vocação”. Essa é a
conexão inevitável. Ao mesmo tempo, vemos a maravilha e o portento das
Escrituras, o seu ordenado arranjo das verdades. Como cristãos, não devemos
apegarmos a diversas idéias desconexas em nossas mentes; há um plano
de salvação, há um esquema de redenção, e há passos e estágios que levam aos
seguintes, numa inevitabilidade lógica. Aqui temos um exemplo dessa verdade.
Portanto, qualquer veraz consideração da obra do Espírito Santo,
necessariamente deve levar-nos a uma consideração da bendita e gloriosa
esperança que está à frente de todo cristão verdadeiro.

O apóstolo se repete, e lembra a estes cristãos efésios o que ele

dissera no capítulo primeiro, onde lhes diz que está orando por eles, para que
Deus lhes dê “em seu conhecimento o espírito de sabedoria e de revelação”.
“Tendo iluminados os olhos dos seus entendimentos”, ele ora no sentido de que
eles saibam “qual seja a esperança da sua vocação”. O seu desejo é que eles
saibam qual é a esperança à qual Deus os chamou, que conheçam, percebam,
apreciem e entendam o grande propósito que Deus tem por trás do Seu grandioso
plano de redenção. “A esperança da sua vocação”! Também precisam saber quais
“as riquezas da glória da sua herança nos santos”; e, depois, “a sobreexcelente
grandeza do seu poder sobre nós, os que cremos”. No primeiro capítulo ele ora
por isso em geral, mas aqui ele trata disso e lhe dá atenção especificamente em
conexão com este princípio de unidade. Ele lhes roga que, “com toda a
humildade e mansidão, com longanimidade, suportando-os uns aos outros em
amor”, se esforcem para “guardar a unidade do Espírito pelo vínculo da paz”
porque são “chamados numa só esperança da sua vocação”. Nada promove
tanto a unidade, e a guarda e a protege, como a nossa percepção da
bendita esperança que está diante de nós, a mesma gloriosa herança
que devemos compartir.

É, em grande parte, porque deixamos de manter os olhos postos na “esperança


da nossa vocação”, que há tantas divisões, distinções e mal-entendidos. Não
devemos permanecer apenas negativamente com relação àquilo de que fomos
chamados; devemos, sim, permanecer naquilo para o que fomos chamados. A
nossa tendência é permanecer naquilo de que fomos chamados, e olhar para trás,
para aquilo, e falar sobre aquilo. Isso necessariamente causa divisões e
distinções. O diabo, nosso adversário, não pode impedir que nos
tornemos cristãos, mas ele pode causar muito dano entre nós. Um dos
seus métodos é fazer-nos olhar para trás, atentos àquilo de que fomos chamados,
em vez de para diante, para o que somos chamados. O resultado desse modo de
agir é demonstrado no caso da Igreja Primitiva. Alguns dos crentes tinham sido
judeus, alguns gentios, alguns bárbaros, outros citas; alguns escravos, alguns
livres; alguns homens e algumas mulheres. Quando olhavam para trás,
lembravam-se dessas divisões, distinções e animosidades. Assim, se essas
coisas se perpetuarem na vida da Igreja, necessariamente surgirão distinções e
divisões; e esta é uma das mais proliferas causas de divisão. De igual modo,
olhar para trás muitas vezes nos faz lembrar que os pormenores de uma
conversão diferem dos de outra. Vê-se isso com freqüência nas reuniões em que
as pessoas relatam as suas experiências ou dão os seus testemunhos, como se
diz. Começam com o que eram outrora, e imediatamente entra em cena um
elemento de divisão. Um pode ter

sido judeu, outro, gentio. A posição deles, na vida, era diferente, e o seu
comportamento pode ter variado da respeitabilidade ao pecado grosseiro e
flagrante. Logo ocorrem divisões intermináveis.

Posso ilustrar isso por meio de um incidente que eu mesmo testemunhei uma
vez. Eu e outros estávamos envolvidos numa reunião ao ar livre. Eu não tinha
originado a reunião, mas estava tomando parte nela com outros; sucedeu que o
trabalho estava a meu cargo na ocasião. Segui o procedimento geralmente
empregado, e eis o que aconteceu: um homem foi à frente, pôs-se no círculo, e
narrou sua experiência, sua história, fez um relato da sua conversão. Contou-nos
que tinha sido um homem terrível, pesava-lhe a culpa de pecados horrendos, e
contou-nos como, apesar disso, a graça de Deus se apoderara dele e o convertera.
Depois, outro homem caminhou para a frente, um homem mais velho, homem
que se convertera uns dez ou quinze anos antes do primeiro orador. Isto é quase
literalmente o que ele disse: “Vocês ouviram o nosso irmão falar-lhes sobre a sua
conversão e sobre a vida de pecado da qual ele foi convertido. Ele não sabe o
que é pecado; eu vou dizer-lhes o que é”. Então começou a descrever a sua vida
pregressa com de- talhes sombrios. Pareceu-me que a reunião estava virando
uma competição de crime. O segundo homem não estava consciente disto, mas o
que ele estava fazendo realmente era gabar-se da sua pecaminosidade; ele estava
traçando uma distinção entre o seu pecado e o do outro homem, para provar que,
portanto, a sua conversão foi mais grandiosa que a do outro. Mas tudo isso é
errôneo e completamente antibíblico. Todas as conversões são idênticas, num
sentido último. Requer graça e o poder do onipotente Deus, salvar
qualquer alma. Não importa se você era judeu ou gentio, homem ou
mulher, bárbaro, cita, escravo ou livre; o que você era é irrelevante, não importa.
Mas nós vivemos perpetuando estas diferenças e divisões, resultando em que, na
Igreja, alguns são considerados mais importantes que outros. Ainda se pensa
neles em termos do que eles eram por natureza, ou da sua posição social, sua
riqueza, suas habilidades, ou de alguma outra coisa própria do homem natural.
Tudo isso acontece porque persistimos em esquecer que não devemos olhar para
aquilo de que fomos salvos, mas devemos olhar para aquilo para o que
fomos salvos.

Permitam-me concluir esta questão particular repetindo a famosa história do que


aconteceu no caso de Philip Henry, pai do comentador Matthew Henry. O jovem
Philip Henry enamorou-se de uma jovem dama que pertencia a uma classe social
mais alta que a dele; e ela se enamorou dele. Eles queriam casar-se, e se puseram
a falar com os pais dela sobre isso. Os pais não gostaram da proposta. Não
conheciam esse

tal de Philip Henry, não conheciam a família dele. Por fim o pai dirigiu-se a ela e
lhe perguntou: “De onde ele veio?” E a filha, boa cristã que era, deu sua imortal
resposta, dizendo: “Eu não sei de onde ele veio, mas sei para onde vai”. Que
mais importa, realmente? Como cristãos devemos fixar-nos na “esperança da
nossa vocação”. Essas outras coisas são resultado da Queda, do pecado e da
divisão. Nunca houve o propósito de que o mundo se dividisse em judeu e
gentio, bárbaro, cita, escravo ou livre, superior ou inferior, grande ou pequeno.
Não devemos olhar para trás, para essas coisas; devemos olhar para a frente,
para “esperança da nossa vocação”. Essa esperança é somente uma, é sempre a
mesma, e é para todos nós.

Devo acentuar o fato de que não somente não devemos olhar para trás e
permanecer naquilo de que fomos salvos, mas tampouco devemos permanecer
nas experiências da nossa conversão, quer dizer, nos detalhes concretos da
experiência da conversão propriamente dita, pois isso também é algo que
inevitavelmente tende a dividir-nos. Há alguns que tiveram uma conversão muito
dramática, envolvendo agonias de arrependimento e remorso que podem ter
durado longo tempo. Afinal, nalgum momento sumamente dramático, eles viram
a luz e foram salvos. Há outros que realmente não podem dar o momento exato,
a hora exata da sua conversão. Esta foi tranqüila, quase não notada. Eles não
podem identificar nenhum evento ou momento particular; todavia o que sabem é
que, enquanto que antes estavam mortos, agora estão vivos; sabem que amam o
Senhor Jesus Cristo, e O querem acima de tudo mais, e desejam estar com Ele e
ser semelhantes a Ele. Os dois tipos de experiência são muito diferentes. Como
pastor e ministro, posso testificar o prejuízo e o dano, divisões e distinções, que
a ênfase à forma da experiência da conversão causa à vida da Igreja. v
Isto funciona numa variedade de maneiras. As vezes faz grande dano ao próprio
homem que teve uma conversão dramática. Ele fica orgulhoso dela; torna-se
uma espécie de peça de exposição, é um cristão diferente dos outros, e tende a
desprezar o homem que não está muito seguro do modo como lhe aconteceu, ou
quando aconteceu. Por outro lado, o cristão que teve uma experiência tranqüila
às vezes é levado a pensar que talvez ele nem seja cristão, porque a sua
experiência não se enquadra no modelo dramático. Nas reuniões em que se dão
testemunhos, ele fica com a impressão de que somente a experiência dramática é
verdadeira. As pessoas serenas nunca são chamadas à frente para falar, e, assim,
ele começa a perguntar a si mesmo se é realmente cristão e se está de fato no
reino. É dessa maneira que muitas vezes

divisões e cismas errôneos e pecaminosos entram na vida da Igreja.

Permitam-me salientar isto repetindo algo que ouvi uma fez o famoso John
Macneil dizer nesta conexão. Num sermão ele estava imaginando uma conversa
entre dois cegos que foram curados por nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo - o
cego cuja cura está registrada no capítulo nove do Evangelho Segundo João, e o
cego cuja cura está registrada no capítulo oito do Evangelho Segundo Marcos.
No caso do homem do capítulo nove de João, o nosso Senhor cuspiu num
pouco de argila do solo, misturou-o, untou os olhos do homem com a mistura de
argila e saliva, e lhe disse que fosse lavar-se no tanque de Siloé. No caso do
homem do Evangelho Segundo Marcos, Ele não fez isso; e John Macneil ficou a
imaginar estes dois homens encontrando-se mais tarde e conversando; e ele
descreveu a conversa do seu jeito peculiar e inimitável, assim: o homem do
capítulo nove de João perguntou ao do capítulo oito de Marcos: “Que é que você
sentiu quando Ele pôs aquela mistura de argila e saliva nos seus olhos?” “Argila
e saliva?”, disse o homem de Marcos 8, “Nada sei de argila e saliva”. “O
quê?” replicou o outro, “Não lembra como Ele cuspiu no chão, fez a mistura e a
pôs nos seus olhos? - estou perguntando: que é que você sentiu?” “Mas”, disse o
homem de Marcos, capítulo 8, “não foi posto nada em meus olhos.” E a
conversa continuou e continuou, o homem do capítulo nove de João repetindo as
suas perguntas, e o outro expondo a sua ignorância. Por fim, o homem do
capítulo nove de João disse ao outro: “Olhe aqui, não acredito que você tenha
sido curado; você só pode estar cego ainda. Se Ele não pôs lodo em seus olhos,
você continua cego”. “Noutras palavras”, disse John Macneil, “vieram a existir
duas denominações de uma vez - os lodo-ítas e os antilodo-ítas.”

Mas, lamentavelmente, isso ilustra o que tem acontecido com muita freqüência
entre nós. Há essa tendência constante de olhar para trás. A única maneira de
lidar com esse problema é dizer com o grande apóstolo Paulo: “Esquecendo-me
das coisas que atrás ficam, e avançando para as que estão diante de mim,
prossigo para o alvo, pelo prêmio da soberana vocação de Deus em Cristo Jesus”
(Filipenses 3:13-14). O que importa não é como você entrou no reino; a questão
vital é: você está no reino? Não importa se o seu nascimento foi dramático
e excitante, ou se foi tranqüilo e quase imperceptível. Graças a Deus, isso não
importa! Em parte nenhuma das Escrituras nos é dito que você precisa ser capaz
de dar o momento exato, ou o versículo exato que foi utilizado, ou o nome de
certo pregador. Essas coisas não importam. A única coisa que importa é que
você esteja no reino.

Desafortunadamente há hoje uma grande tendência de olhar para trás. Lemos


sobre reuniões especiais de cristãos que foram salvos

numa campanha particular ou num dado ano! Desse modo a Igreja fica dividida
em função dos convertidos de certos evangelistas, ou do ano particular da
conversão. É assim que se causam cismas na Igreja. Isso é pecaminoso; e a causa
do pecado é que estamos deixando de olhar para frente, para “a esperança da
nossa vocação”. Não estamos esquecendo as coisas que atrás ficam, e não
estamos olhando para a frente, para o prêmio da sublime vocação de Deus em
Cristo Jesus, como devíamos.

Mas agora devemos ir um pouco mais adiante e dizer que tampouco devemos
permanecer naquilo que somos agora. Devemos sempre estar olhando para a
frente porque, se permanecermos no que somos agora, continuará havendo a
tendência de dividir e separar. Essa tendência entrou crescentemente na Igreja
nos últimos cem anos. Dividimo-nos em jovens, pessoas de meia idade e mais
velhos; irmandades masculinas, irmandades femininas e muitos outros
agrupamentos. Fazemos isso porque insistimos em olhar para nós mesmos como
somos agora, em vez de olharmos juntos para aquilo que vamos ser, isto é, para
“a esperança da nossa vocação”. Não estou insinuando que essas diferenças não
têm significação; entretanto, o que de fato digo é que elas não devem ser
sublinhadas e salientadas. Não vemos essas divisões na Igreja Primitiva; eles
eram todos um. As diferenças de idade não contavam; e não devem contar agora.
Um homem idoso pode ser um bebê em Cristo; e uma pessoa jovem pode ser
espiritualmente madura. A única coisa que importa é esta união, esta unidade; as
outras divisões se relacionam com a natureza, com o tempo e com o homem não
regenerado, e não com o Espírito. O apóstolo, embora tendo avançado mais que
a maioria das pessoas, ainda diz: “Não que já a tenha alcançado, ou que seja
perfeito; mas prossigo para o alvo pelo prêmio da soberana vocação de Deus em
Cristo Jesus”. Em toda parte o Novo Testamento nos concita a olhar para a
frente. Diz o nosso Senhor: “Não se turbe o vosso coração; credes em Deus,
crede também em mim. Na casa de meu Pai há muitas moradas; se não fosse
assim, eu vo-lo teria dito” (João 14:1-2). Escrevendo aos romanos, diz
o apóstolo Paulo: “Porque para mim tenho por certo que as aflições deste tempo
presente não são para comparar com a glória que em nós há de ser revelada”
(Romanos 8:18). Em sua Segunda Epístola aos Coríntios, ele diz: “Porque a
nossa leve e momentânea tribulação produz para nós um peso eterno de glória
mui excelente; não atentando nós nas coisas que se vêem; porque as que se vêem
são temporais, e as que se não vêem são eternas” (4:17-18). Ele continua, no
capítulo 5: “Porque sabemos que, se a nossa casa terrestre deste tabernáculo se
desfizer, te-

mos de Deus um edifício, uma casa não feita por mãos, eterna, nos céus”
(versículo 1). A Tito ele escreve desta maneira: “Aguardando a bem-aventurada
esperança e o aparecimento da glória do grande Deus e nosso Senhor Jesus
Cristo” (2:13). Esta é a grande característica do ensino do Novo Testamento. O
apóstolo João escreve de igual maneira: “Amados, agora somos filhos de Deus, e
ainda não é manifestado o que havemos de ser. Mas sabemos que, quando ele se
manifestar, seremos semelhantes a ele; porque assim como é o veremos” (1 João
3:2).

O fato é que nós, em nossa loucura, estamos constantemente olhando para o


presente. Estamos interessados nas bombas de hidrogênio e nas bombas
atômicas e no que pode estar acontecendo na Africa do Sul ou no Oriente Médio
aqui e agora, e assim nos dividimos. Este é a favor da luta, aquele é contra; um
adota uma certa idéia política, outro adota a idéia oposta; uns são socialistas,
outros são conservadores, e assim a Igreja fica dividida. Isto porque damos
demasiada atenção ao presente, e não olhamos para “a esperança da
nossa vocação”. Não é que nós, como cidadãos de pátrias terrenais, não devemos
ter idéias sobre essas questões nem tomar parte na aplicação delas; mas que elas
não devem influenciar-nos na Igreja; muito menos deve a Igreja envolver-se
nessas questões. De um modo geral esquecemos que somos estrangeiros e
peregrinos neste mundo.

O fato é que o Novo Testamento não nos oferece muito neste mundo. Disse o
Senhor Jesus Cristo: “No mundo tereis aflições, mas tende bom ânimo, eu venci
o mundo” (João 16:33). O apóstolo Paulo faz eco disso, dizendo: “Neste
tabernáculo gememos, desejando ser revestidos da nossa habitação, que é do
céu” (2 Coríntios 5:2). “Agora vemos por espelho em enigma, mas então
veremos face a face” (1 Coríntios 13:12). Quão importante é, portanto, que
olhemos para essa ‘ ‘vocação com que somos chamados” - ‘ ‘a esperança da
nossa vocação”! Não olhemos para trás, não gastemos o nosso tempo olhando
para o presente e comparando-nos e contrastando uns com os outros,
mas olhemos para diante, para “a esperança da nossa vocação”. Há uma
só esperança; há a mesma esperança para todos; e vamos indo todos juntos para
a mesma glória. Não haverá divisões e distinções lá.

Vamos indo avante, para uma vida inteiramente livre do pecado. É o pecado que
sempre divide e separa. O objetivo da vinda do nosso Senhor Jesus Cristo é que
as obras de satanás e do pecado sejam abolidas e destruídas (1 João 3:8), e que
tudo venha a reunir-se nEle (Efésios 1:10). E, graças a Deus, isto vem! Chegará
o dia em que seremos todos sem defeito e inculpáveis, sem mancha ou ruga
ou qualquer coisas desse gênero. Que prospecto maravilhoso! Agora

temos manchas e rugas. Uns têm poucas, outros têm muitas. Todos nós somos
tão diferentes, e olhamos uns para os outros, e há divisão! Mas vem o dia em que
não haverá mancha, nem ruga, nem qualquer outra coisa desse tipo, e seremos
todos perfeitos. Não haverá pecado em nós, e não haverá tentação fora de nós. O
pecado não será retirado de nós somente; será retirado do universo inteiro.
Haverá “novos céus e nova terra, em que habita a justiça” (2 Pedro 3:13). E
estaremos com o Senhor. Nós O veremos como Ele é, e O fruiremos juntos.
Quando estivermos em Sua presença e O virmos como Ele é, não
estaremos interessados em nenhuma outra coisa. Estaremos absorvidos
“no encanto, no amor e no louvor”. Não haverá divisões e distinções. Ninguém
estará interessado se você era judeu ou gentio ou bárbaro ou cita, escravo ou
livre, se você fora nascido numa grande família ou numa favela. Graças a Deus,
tudo isso terá desaparecido; estaremos olhando para Ele, e nenhuma outra coisa
será lembrada. “A unidade do Espírito pelo vínculo da paz”.

Ademais, estive lembrando a vocês, não somente O veremos todos juntos, mas,
ainda mais extraordinário, seremos como Ele. Acredito que as nossas identidades
serão preservadas, porém seremos todos semelhantes a Ele. O apóstolo Paulo diz
aos crentes filipenses que devemos aguardar o retorno do nosso Salvador porque
Ele tem poder para “transformar o nosso corpo abatido (este corpo da nossa
humilhação), para ser conforme o seu corpo glorioso, segundo o seu eficaz poder
de sujeitar também a si mesmo todas as coisas” (Filipenses 3:21). Nesta vida uns
são coxos, outros podem andar altaneiramente; uns podem ter beleza, outros são
feios; uns têm alguma habilidade, outros não. Isso não terá valor lá; seremos
todos semelhantes a Ele. Mesmo os nossos corpos serão como “o corpo da sua
glorificação”. Não haverá ciúme, nem inveja, nem desprezo, nem condenação.
Deus nos perdoe por sermos sempre culpados dessas coisas na esfera da Igreja,
no corpo de Cristo!

De fato, nos novos céus e nova terra que Ele vai produzir, não somente
estaremos com Ele, estaremos reinando com Ele, seremos “reis e sacerdotes de
Deus” para todo o sempre. Esse há de ser o nosso destino, de todos nós, cristãos.
A nossa expectativa é uma e a mesma. Mesmo aqui e agora estamos tendo o
mesmo antegozo da glória, participando das mesmas primícias. Como, então,
podem existir divisões e distinções na Igreja? O caminho da unidade da Igreja, a
maneira de salvaguardar a unidade do Espírito pelo vínculo da paz, é fazer o
que Paulo diz aos colossenses: “Pensai nas coisas que são de cima, e não nas que
são da terra” (Colossenses 3:2). Focalizem o seu afeto lá, como se faz com uma
bússola ou com uma câmara. Centralizem o seu afeto

lá, mantenham-no lá; contemplem o Senhor constantemente. Olhem para as


coisas de cima, não para as da terra, e juntem-se no cântico de um hino traduzido
para o inglês por S. Baring-Gould, que diz:

Uma só, a luz da presença divina Por sobre o Seu povo remido
espalhou, Expulsando a treva e todo o terror,

A iluminar todo o caminho em que andamos;

Um só objetivo da nossa jornada,

Somente uma fé que jamais se afadiga,

Um somente o olhar resoluto adiante,

Uma só esperança o nosso Deus inspira;

Um único tom que os lábios de milhares Elevam qual fora de um só coração;

Um só o conflito, um só o perigo,
Uma única marcha teve início em Deus;

Uma só a alegria de alta exultação Na praia distante, na praia eternal,

Onde o Onipotente, o único Pai Reina com amor, e sempre reinará.

Avante, portanto, irmãos peregrinos,

Avante, levando a cruz, o nosso auxílio!

Levai seu opróbrio, librai sua batalha,

Até repousarmos sob a sua sombra.

Logo chegará o grande despertar,

Logo há de romper-se o túmulo, afinal;

Então todas as sombras serão dissipadas,

E será o fim do afã e do pesar.

UM SÓ SENHOR

“Um só Senhor, uma só fé, um só batismo. ” Efésios 4:5

Esta declaração vital deve ser considerada como parte da exposição completa, do
versículo 4 ao versículo 6: “Há um só corpo e um só Espírito, como também
fostes chamados em uma só esperança da vossa vocação; um só Senhor, uma só
fé, um só batismo; um só Deus e Pai de todos, o qual é sobre todos, e por todos e
em todos” (VA: “em todos vós”). Nela o apóstolo continua com o tema da
unidade, que tanto o preocupa. Esta unidade deve caracterizar a vida da Igreja,
diz ele, porque, em última instância, a Igreja é obra da bendita e santa Trindade.
No versículo 4 a temos visto em termos da obra do Espírito, “um só corpo e um
só Espírito, como também fostes chamados em uma só esperança da vossa
vocação”. Agora Paulo põe-se a descrevê-la em termos da obra do Filho, como
também em termos da obra do Pai.

Neste quinto versículo chegamos à segunda das três divisões em que o apóstolo
divide o seu ensino, a saber, a unidade da Igreja, tendo-se em vista a doutrina da
segunda Pessoa da bendita e santa Trindade, o Filho de Deus, nosso Senhor e
Salvador Jesus Cristo. Torno a lembrar-lhes a ordem em que o apóstolo coloca
estas coisas, a seqüência empregada por ele. Tendo começado com a obra do
Espírito porque essa é a abordagem prática, agora passa a considerar a
parte desempenhada pelo Filho, pois a obra central do Espírito Santo é glorificar
o Filho, como o nosso Senhor mesmo disse: “Ele não falará de si mesmo - Ele
me glorificará” (João 16:13-14). Não significa que Ele não falará sobre Si
mesmo, porém que a Ele será dado o que falar, isto é, ensino que glorificará o
Filho. O Pai enviou o Filho e o Filho glorificou o Pai; depois o Pai e o Filho
enviaram o Espírito, e o Espírito glorifica, em particular, o Filho. O apóstolo
Paulo nos ensina que, “ninguém pode dizer que Jesus é o Senhor, senão pelo
Espírito Santo” (1 Coríntios 12:3). O Espírito Santo nos conduz ao nosso
Senhor; somente Ele nos habilita a vê-10 e a conhecê-10. “Os príncipes
deste mundo não o conheceram, porque, se o tivessem conhecido, nunca teriam
crucificado o Senhor da glória. Mas Deus revelou-nos estas

coisas pelo seu Espírito, porque o Espírito penetra todas as coisas, ainda as
profundezas de Deus” (1 Coríntios 2:8-10).

Mais uma razão pela qual o apóstolo passa agora a falar do Filho é que, havendo
considerado a Igreja como o corpo - “um só corpo” -inevitavelmente surge a
pergunta: quem é a cabeça do corpo? - pois um corpo sem cabeça não funciona.
A resposta é: o próprio Senhor Jesus Cristo. O apóstolo já nos fizera lembrar isso
no capítulo primeiro, onde, falando sobre Ele, diz: “(Deus) sujeitou todas as
coisas a seus pés, e sobre todas as coisas o constituiu como cabeça da igreja, que
é o seu corpo, a plenitude daquele que cumpre tudo em todos” (versículos 22 e
23). Vemos a mesma verdade exposta freqüentemente pelo apóstolo em suas
várias Epístolas. É importante observar esta abordagem doutrinária. Estas coisas
não são registradas acidentalmente; há um sistema definido aqui. O Espírito
Santo ilumina a mente, e aqui vemos uma mente espiritual iluminada
descortinando a verdade.

O apóstolo continua interessado em dar ênfase à unidade da Igreja. A doutrina da


Pessoa do Filho é-nos exposta com o fim de levar-nos a manter “a unidade do
Espírito pelo vínculo da paz”. O apóstolo apresenta esta grande doutrina com
apenas três palavras, “um só Senhor”. Geralmente não a declara tão
simplesmente assim. Em 1 Coríntios, capítulo 8, versículo 6, ele nos diz: “um só
Senhor, Jesus Cristo”. Certamente ele usa aqui essa forma abreviada para dar
ênfase ao seu argumento sobre a unidade. O Senhor Jesus Cristo, em Si e por Si,
leva à unidade e sempre produz unidade; assim, uma das melhores maneiras
pelas quais podemos ver e entender esta doutrina bíblica da unidade da Igreja, e
preservá-la, é manter os nossos olhos firmemente postos na doutrina da Pessoa
do Filho de Deus. Esse é o argumento, e agora passamos a considerar como ele
funciona.

Primeiramente, há a unicidade da Pessoa do nosso Senhor. “Um só Senhor”


significa que há somente um que pode, real e verdadeiramente, ser descrito como
“o Senhor”. Devemos ter os olhos fixos nesse ' *

título quando lemos o Novo Testamento. “E o Senhor”, disse o apóstolo João ao


apóstolo Pedro quando eles O viram de pé na praia, depois de uma noite
infrutífera de pesca (João 21:7). Nunca houve alguém como Ele; nunca haverá.
Antes da Sua vinda, nunca houve alguém como Ele no mundo; nunca haverá
outro como Ele, antes da Sua segunda vinda. Ele permanece inteiramente só em
toda a glória da Sua unicidade absoluta.

O que nos compete fazer como cristãos é estar sempre a contemplá--10 e a


considerá-lO - Jesus de Nazaré. Quando vocês O virem, parecerá que estão
vendo tão-somente um homem. E Ele era um homem.

Ele pertencia ao tempo, estava no tempo, estava no mundo. E, todavia, num


sentido, falar desse modojáé errado. As nossas declarações sobre Ele nunca
devem ser feitas separadamente, isoladamente. Quando vocês olharem para Ele,
não estarão somente vendo um homem, estarão vendo ao mesmo tempo Deus o
Filho eterno, estarão vendo “o Senhor da glória”. Sempre devemos pensar e falar
dEle da mesma maneira como as Escrituras o fazem. Tomem, por exemplo, a
declaração que há no início da Epístola aos Hebreus: “Havendo Deus
antigamente falado muitas vezes, e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas,
a nós falou-nos nestes últimos dias pelo Filho, a quem constituiu herdeiro
de tudo, por quem fez também o mundo”. E mais: “O qual sendo o resplendor da
sua glória, e a expressa imagem da sua pessoa”. Assim é Aquele para quem
estamos olhando, o resplendor da glória de Deus, e “a expressa imagem”, aplena
“refulgência” da glória essencial de Deus.

A pretensão da Bíblia, e deve ser a nossa, é que a encarnação do Filho de Deus é


um evento único na história. Não aconteceu nunca antes; não acontecerá nunca
de novo. Uma única vez e para sempre! Esta é a estonteante verdade em que
cremos - verdade que desafia o entendimento. É a essência da nossa fé. Sobre
Ele Paulo escreve: “Que, sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser
igual a Deus (não considerou a sua igualdade com Deus como algo a
que agarrar-se e em que fixar-se). Mas aniquilou-se a si mesmo, tomando a
forma de servo” (Filipenses 2:6-10). “O Verbo se fez carne, e habitou entre nós”,
diz o apóstolo João no seu Evangelho (1:14). Este é o evento único de toda a
história, “um só Senhor”. O único! O apóstolo diz aos coríntios, na primeira
Epístola para eles escrita, que isto é um grande mistério, um mistério oculto
desde a fundação do mundo, mas então revelado (2:7). O que nos torna cristãos é
que nos foi dada certa medida de entendimento deste “mistério oculto”, a
encarnação do Filho de Deus. “Um só Senhor” - o único para Quem podemos
olhar e dizer, o homem-Deus, o “theanthropos”, Deus-homem - duas naturezas
numa só Pessoa.

Quais são as implicações, ou que é que devemos deduzir desta ênfase a “um só
Senhor”? O apóstolo está usando a expressão no interesse do seu apelo para
manter “a unidade do Espírito pelo vínculo da paz”. Seu andamento dá-se da
seguinte maneira: Cristo, e somente Ele, é o cristianismo. “O cristianismo é
Cristo.” Não é uma coleção de idéias; não é uma coleção de pensamentos ou
filosofias; não é mera questão de ensino. Primariamente, o cristianismo é o
próprio Senhor e a nossa relação com Ele. Ensinos, pensamentos e filosofias
variam, e, portanto, tendem a dividir. Todavia, há uma questão de relaciona-

mento pessoal, de conhecimento de uma Pessoa, e de estar num dado


relacionamento com essa Pessoa. O argumento é que, como a Pessoa é uma só, o
relacionamento deve ser um só. Há somente um Senhor; portanto, há esta
unidade essencial em todos os que Lhe pertencem e em todos os que estão
verdadeiramente relacionados com Ele. O grande perigo que ameaça a vida da
Igreja é sempre o de esquecer a Pessoa do Senhor Jesus Cristo, de encobri-10 e
ocultá-10 por trás de várias coisas. Há certas doutrinas essenciais, mas nunca
devemos permitir que mesmo estas venham ficar entre nós e Ele. Elas
simplesmente derivam dEle, e o propósito delas é levar-nos de volta a
Ele. Grande parte da dificuldade da Igreja através dos séculos deve-se ao fato de
que as pessoas se esqueceram do Senhor. Somos criaturas tão frágeis e tão
falíveis, que nos inclinamos a ir a extremos, numa ou noutra direção. Mas todos
nós somos culpados quanto ao fato de que se deixa de observar a Pessoa do
Senhor e se dá proeminência a outras coisas, que se interpõem entre nós e Ele,
que é “um só Senhor”.

Uma segunda dedução que devemos tirar é que, visto que Ele é o único Senhor,
não pode ser dividido. Este é o argumento que este apóstolo Paulo utiliza ao
escrever aos coríntios no capítulo primeiro da sua primeira Epístola. Estou sendo
informado, diz ele com efeito, que há divisões entre vocês em Corinto.
Disseram-me que um diz, “Eu sou de Paulo”, outro diz, “Eu sou de Apoio”, e
outro, “Eu sou de Cefas”. Depois ele faz esta pergunta: “Está Cristo dividido?”.
Ele está lhes perguntando se compreendem as conseqüências de formar partidos
e de se alinharem desse modo por trás de certos homens e certos nomes. Diz a
eles que estão tentando dividir Cristo, e que isso não pode ser feito, porque Ele é
Um. Há unicamente um Senhor, e Ele é indivisível.

Esta é a elevada doutrina das duas naturezas numa só Pessoa. As duas naturezas
acham-se tão interligadas nEle que elas não podem ser divididas. Quando lemos
a história da Igreja e notamos as diversas heresias que surgiram, vemos que
geralmente foi devido ao fato de que os cristãos se esqueceram do único Senhor
- “um só Senhor”. Num sentido eles estiveram produzindo uma multiplicidade
de senhores. Muito cedo na Igreja Cristã houve aqueles que ensinavam que as
duas naturezas na Pessoa única se haviam fundido numa só e não mais
se distinguiam. Havia alguns, porém, que iam ao outro extremo e diziam que
havia duas Pessoas - Deus e Homem; não duas naturezas numa Pessoa, e sim
duas Pessoas, Cristo como Deus, Cristo como homem.

Essas heresias ainda são ensinadas na Igreja moderna. Homens sinceros em seu
desejo de acentuar os dois aspectos da Pessoa do nosso Senhor, vão longe
demais. Pregam sobre Jesus Cristo como Deus e sobre Jesus Cristo como
homem isoladamente um do outro. Jamais deve-

mos fazer isso. Jesus Cristo é sempre o Deus-Homem; portanto, devemos ser
muito cuidadosos e prudentes quanto a dizermos que Ele fez certas coisas como
Deus, e outras como homem. Não! Ele é o Deus--Homem, indivisível. Não se
pode dividir Cristo em nenhum sentido. Graças a Deus por isso. Ele é sempre o
mesmo; sempre será o mesmo. “Jesus Cristo é o mesmo ontem, e hoje, e
etemamente” (Hebreus 13:8). Um hino de Horatius Bonar lembra-nos que “não
há noite” em Cristo, “não há mudança” nEle. Isso é verdade, aconteça o que
acontecer no mundo. Este é o maior consolo do santo. Jesus Cristo é um só, o
Senhor é um só, há somente Um, e Ele é sempre, para sempre e etemamente
o mesmo.

Tiremos sempre estas deduções. O cristianismo é Cristo, este único Senhor. Ele o
faz. Sem Ele não há cristianismo. Ele é essencial ao cristianismo. Com respeito a
isto, é diferente de todos os outros ensinos. Outros ensinos podem ser
divorciados dos seus propagadores, por exemplo, o budismo separado de Buda;
não faria nenhuma diferença vital. Mas no cristianismo, o nosso Senhor é tudo.
Todo ele resulta deste assombroso e singular fato da Encarnação e do que
Ele tem feito.

Outra dedução inevitável é que não podemos crer em partes dEle. Ou cremos
nEle, ou, de outro modo, não cremos nEle. Também com respeito a isso não
podemos dividi-10. Mais uma vez o apóstolo expressa isto muito explicitamente
no capítulo primeiro da Primeira Epístola aos Coríntios, que é o melhor
comentário desta matéria: “Mas vós sois dele, em Jesus Cristo, o qual para nós
foi feito por Deus sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção” (versículo 30).
Ele -Cristo, o Senhor, o Senhor único e indivisível - foi “feito” isso tudo para
nós. Portanto, crer no Senhor Jesus Cristo é crer na totalidade dEle e crer em
tudo o que nEle há. Não podemos dizer - não devemos dizer - que cremos nEle
quanto à “justiça”, mas não quanto à “santificação”, não quanto à “redenção”, ou
que em certa altura nós O recebemos somente quanto à nossa justificação, e que
mais tarde nos será possível recebê-10 quanto à nossa santificação. Isto seria
dividir Cristo. Recebemos a totalidade de Cristo. Não há alternativa.

Esta doutrina leva a uma questão sumamente importante. Será que está certo
formar movimentos em torno de diferentes aspectos da Sua obra, e separá-los e
dividi-los do todo? Será que é certo ter um movimento que ensina somente a
justificação, outro que só dá ênfase à santificação, outro somente à Sua segunda
vinda? Não “tomamos” somente o Seu ensino; é por Ele que somos salvos, e Ele
é um só, e é indivisível. Cristo não pode ser dividido - “um só Senhor”.
Devemos ter todo o cuidado de começar com esta grande doutrina do único

Senhor, e de lembrar-nos também de que Ele “foi feito” o mesmo para todos os
crentes. Ele não é uma coisa para um, e outra coisa para outro. Não há muitos
Cristos, há somente um; e se eu creio nEle, estou na mesma posição em que se
acham todos os outros que crêem nEle. “Um só Senhor”; portanto, uma só
Igreja.

O segundo grande princípio que devemos salientar é a unicidade da Sua obra.


Esta segue-se, naturalmente, da unicidade da Sua Pessoa. E devemos estudá-la;
devemos estudá-la constantemente. Nunca devemos tomar estas verdades como
líquidas e certas, nunca devemos pressupor que as conhecemos. Devemos
sempre recordá-las, porque, se não, diz o apóstolo, logo haverá divisão, haverá
algum tipo de cisma.

O ponto que estamos acentuando agora é que há somente um Salvador. Que não
há muitos Salvadores, mas somente um, é o grande tema do Novo Testamento. É
isto que faz do cristianismo uma fé única. O mundo acredita em muitos
salvadores, em muitos libertadores. Ele tem a sua lista de salvadores que vive
repetindo. Fala de Moisés, Jeremias, Isaías, João Batista e Jesus, e talvez de um
dos apóstolos, Pedro ou Paulo, e depois acrescenta alguns grandes homens que
têm figurado na história do mundo. Algumas listas acrescentam Confúcio e
Buda, e talvez Sócrates e Platão. Mas o Novo Testamento denuncia essa idéia e
afirma que o nosso Senhor Jesus Cristo é único, que Ele é o único e exclusivo
Salvador. Negar isto será negar a verdade central e mais essencial da fé cristã.

Quero salientar esta verdade asseverando que há um aspecto de intolerância na


fé cristã; e vou além, afirmando que se nós não vimos o aspecto intolerante da
fé, provavelmente não a vimos de fato. Há muitas declarações nas Escrituras que
consubstanciam esta asserção, que colocar alguém ao lado de Jesus, ou falar de
salvação sem Ele, ou sem Ele no centro, é uma traição e uma negação da
verdade. O apóstolo Pedro, dirigindo-se ao Sinédrio, em Jerusalém, disse:
“Debaixo do céu nenhum outro nome há, dado entre os homens, pelo qual
devamos ser salvos” (Atos 4:12). As autoridades estavam tentando proibir Pedro
e os demais apóstolos de pregar em nome de Cristo e de operar milagres em Seu
nome. Pedro, “cheio do Espírito”, fez aquela réplica. Uma tradução alternativa
diz: “não há segundo nome”. O nome de Cristo é o único. “Um só Senhor.” Diz
Pedro que não deve haver acréscimo a Ele, que não devemos colocar outro nome
ao lado do Seu nome. Ele é único e todo-suficiente. Ele precisa estar só. Não há
outro que tenha descido do céu à terra. Não há outro que seja Deus e homem.
Sua unicidade precisa ser preservada. Ele não precisa de um assistente, Ele fez
tudo. Ele bradou na cruz: “Está consumado”. Ele não deixou nada

que devêssemos adicionar, nada que devêssemos completar. “Ele pisou o lagar
sozinho.” Ninguém mais poderia fazê-lo; mas Ele o fez.

Ou vejam o que o apóstolo Paulo diz em sua Primeira Epístola aos Coríntios.
Havia pessoas na igreja de Corinto que não tinham claro entendimento disso
tudo. Tinham sido convertidas, mas ainda, embora tivessem vindo a crer no Deus
único, havia outros deuses, os deuses nos quais eles estavam acostumados a crer,
os deuses aos quais eles anteriormente serviam e aos quais eles costumavam
fazer os seus sacrifícios nos templos pagãos. Eles ainda não viam isto com
clareza; alguns deles eram “irmãos mais fracos”. Por isso Paulo lhes diz: “Ainda
que haja também alguns que se chamem deuses, quer no céu quer na terra (como
há muitos deuses e muitos senhores), todavia, para nós há um só Deus, o Pai, de
quem é tudo e para quem nós vivemos; e um só Senhor, Jesus Cristo, pelo qual
são todas as coisas, e nós por Ele” (1 Coríntios 8:5-6). Há quem fale em deuses,
porém não há deuses; há somente um Deus. Estes supostos deuses são ficções
das imaginações dos homens; são apenas projeções das idéias dos homens; não
são seres vivos, não têm existência. Há somente um Deus. E há somente um
Senhor Jesus Cristo. Não poderia haver outro, não há outro. De novo,
escrevendo a Timóteo, Paulo diz: “Há um só Deus, e um só Mediador entre Deus
e os homens, Jesus Cristo homem” (1 Timóteo 2:5). Um, e somente um! Não há
quem possa introduzir-se entre Deus e o homem, exceto esta Pessoa. Para
empregar a linguagem de Jó (9:33), da antigüidade, não há “árbitro” que nos
possa juntar, senão Cristo. Deus está no céu em Sua santidade, e nós estamos na
terra em nosso pecado. Como podemos orar a Deus, como podemos ir a Deus,
como podemos ouvir a Deus e ter acesso a Deus? Há somente um caminho.
Necessitamos de um Mediador entre nós, diz o apóstolo, “Um só Deus, o único
Mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo homem” - o único que “foi feito
o resgate”.

Somente quando captamos a unicidade desta Pessoa única é que realmente


começamos a compreender a verdadeira natureza da Igreja. Se um homem
acredita que pode ir diretamente a Deus como ele é, e outro sabe que não pode,
exceto pelo sangue de Cristo, há divisão. Se dizemos que podemos encontrar a
Deus independentemente de Cristo e sem Ele, e Este crucificado, não estamos na
Igreja. Haja o que houver, e por melhor que pareça estar a nossa vida, ela não é
suficientemente boa. Há somente um Mediador; há somente um Salvador;
houve somente um “suficientemente bom para pagar o preço do pecado”.
Há somente Um que pôde levar sobre Si toda a natureza humana, e
pôde suportar o fardo e o peso da nossa culpa do pecado e cuidar disso uma vez
e para sempre - unicamente Um! Um só Senhor, um só Salvador!

Nenhum outro! Jamais haverá outro. Qualquer mestre ou ensino que conteste
isto, é o que o Novo Testamento chama anticristo; e há muitos deles. Mas o
apóstolo Paulo diz: “Nada me propus saber entre vós, senão a Jesus Cristo, e este
crucificado” (1 Coríntios 2:2). Ele conhecia muita coisa da filosofia e das idéias
dos gregos, e conhecia as idéias dos judeus; mas ele põe ambos de lado. A
Encarnação é única, e única é a morte de Cristo. Por que falar doutra coisa,
quando Deus fez isto uma vez por todas? Por que é que Deus enviou o Seu Filho
ao mundo, se podemos chegar a Deus sem Ele?

Diz ainda o apóstolo, a respeito de Cristo: “Nele habita corporalmente toda a


plenitude da divindade” (Colossenses 2:9). E mais: “Em quem (em Cristo) estão
escondidos todos os tesouros da sabedoria e da ciência” (Colossenses 2:3). Por
que é que os homens olham para outros lugares? Tudo o que necessitamos saber
sobre Deus e sobre a salvação está em Cristo, e somente em Cristo. Além disso,
Paulo diz aos colossenses: “Tende cuidado, para que ninguém vos faça presa sua,
por meio de filosofiae vãs sutilezas” (2:8). Se não estamos ligados à Cabeça, que
é Cristo e somente Cristo, ainda estamos em nossos pecados, não conhecemos a
Deus e não estamos relacionados com Ele. Ele é Um só em Sua Pessoa e Um só
em Sua obra como Salvador, o único Salvador, o único Mediador entre Deus e o
homem. O cristianismo é, ao mesmo tempo, intolerante e unificador. Ele precisa
ser intolerante: “Ainda que nós mesmos ou um anjo do céu vos anuncie outro
evangelho além do que já vos tenho2 anunciado, seja anátema”, Paulo declara
(Gálatas 1:8). Se um anjo do céu, diz ele, vier pregar a vocês e negar o que lhes
tenho dito acerca desta Pessoa bendita, maldito seja. Ele era intolerante. E nós
devemos ser intolerantes. Não devemos pôr ninguém junto dEle; Ele está só; e
jamais devemos dizer que é possível conhecer a Deus sem Ele. Devemos ser
totalmente intolerantes neste ponto. E porque todos os cristãos verdadeiros
são intolerantes neste ponto, e estão nEle, eles são todos unidos, entrelaçados,
feitos um. Intolerância, e unidade absoluta! Não é isto o evangelho do Novo
Testamento? Devemos preservar ambas. Devemos dizer ao mesmo tempo que
isso de “Congresso Mundial de Crenças” não pode haver, e também que todos os
cristãos são um em Cristo. É precisamente porque somos todos um em Cristo
que não se pode ter um “Congresso Mundial de Crenças”. Essa idéia é uma
farsa; na verdade, é uma negação de Cristo. O cristianismo não pode participar
de um tal congresso. Não pode entrar em nenhuma proposta ou conferência que
diga que o cristianismo é maravilhoso, mas, afinal

de contas, Deus deu percepções a Buda, Confúcio, Maomé e outros, e podemos


aprender alguma coisa deles. O cristão não precisa aprender desses rincões,
porque “todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento estão em Cristo”. Ele
não precisa deles, não se interessa por eles, porque ele tem tudo em Cristo. Até
um olhar de relance dirigido a qualquer outro é uma negação de Cristo.
Intolerante e, todavia, unificador!

Finalmente, como o Senhor é único em Sua Pessoa, e único em Sua obra, é


também único em Sua relação conosco. Aqui de novo vemos como a unidade
existe inevitavelmente. Na vida estamos envolvidos em várias relações pessoais.
O estudante, por exemplo, está numa relação com o seu mestre ou instrutor; mas
não há ninguém com quem estamos relacionados como estamos com Cristo.
Nossa relação com Ele firma-se essencialmente no fato de que Lhe pertencemos.
Nós Lhe pertencemos porque Ele nos comprou. Lembrem-se do modo como
o apóstolo Paulo, em seu discurso de despedida aos presbíteros da igreja de
Efeso, como vem registrado em Atos, capítulo 20, expressa a questão, dizendo:
“... para apascentardes a igreja de Deus, que ele resgatou com seu próprio
sangue” (versículo 28). Aos coríntios ele disse: “Não sois de vós mesmos,
porque fostes comprados por bom preço” (1 Coríntios 6:19-20). Essa é a relação
de Cristo com o cristão; e é absolutamente única. Foi Ele que nos comprou.
Quando nós estávamos mortos sob a lei, e éramos escravos de satanás, Ele
nos comprou, Ele nos resgatou, Ele nos redimiu, Ele pagou o preço necessário.
“Não havia nenhum outro que fosse suficientemente bom para pagar o preço do
pecado. Somente Ele poderia abrir a porta do céu e deixar-nos entrar.” Como
nosso Senhor, Ele é o nosso Dono; visto que Ele nos adquiriu pertencemos a Ele.
Essa é a relação.

Isto, por sua vez, leva ao fato de que Ele é o Mestre de todos nós. Disse Ele aos
discípulos, no Cenáculo, na ocasião em que lhes lavou os pés e os enxugou com
uma toalha: “Vós me chamais Mestre e senhor, e dizeis bem, porque eu o sou”
(João 13:13). E esta é a relação única que subsiste entre nós e Ele. Há somente
um Senhor, há somente um Dono, há somente Um que morreu por mim e me
comprou. Não há outro. E esta verdade vale para cada um de nós, como cristãos.
As implicações são óbvias. Não pertencemos mais a nós mesmos. Não somos
mais os nossos próprios mestres. Não temos direito de crer no que quisermos,
não temos direito de fazer o que quisermos. Não somos de nós mesmos. É este
precisamente o argumento usado por Paulo ao escrever aos coríntios. Ele lhes diz
que, ao cometerem pecado, não percebiam o que estavam fazendo: “Não sabeis
que o nosso corpo

(VA: “vosso”) é o templo do Espírito Santo, que habita em vós, proveniente de


Deus, e que não sois de vós mesmos? Porque fostes comprados por bom preço”
(1 Coríntios 6: 19-20), Se todos nós compreendêssemos esta verdade, haveria
perfeita unidade.

Não somos mestres de nós mesmos; e é igualmente certo dizer que ninguém
mais é nosso mestre. Também não somos mestres de ninguém. Ninguém deve
dominar-nos; e nós não devemos dominar ninguém. O nosso Senhor mesmo
estabeleceu isto claramente no Evangelho Segundo Mateus: “Vós, porém, não
queirais ser chamados Rabi, porque um só é o vosso Mestre, a saber, o Cristo, e
todos vós sois irmãos. E a ninguém na terra chameis vosso pai, porque um só é o
vosso Pai, o qual está nos céus. Nem vos chameis mestres, porque um só é o
vosso Mestre, que é o Cristo. Porém o maior dentre vós será vosso servo. E o
que a si mesmo se exaltar será humilhado; e o que a si mesmo se humilhar será
exaltado” (23:8-12). Um só Senhor! Posto que Ele é o único Senhor, nós estamos
num só nível. Nenhum de nós é mestre. Ele é o Mestre, e todos nós estamos na
mesma posição; e devemos servir-nos uns aos outros. De novo Ele expôs isso
com muita clareza na ocasião do lava-pés (João 13:13-14). Segue-se isto por
inevitável lógica. Sejam vocês quem forem, diz Ele, Eu sou o Mestre, e vocês
são apenas servos; e se Eu, o Mestre, fiz isto, todos vocês devem fazê-lo. Paulo
diz: “Aquele que se gloria, glorie-se no Senhor” e “Fostes comprados por bom
preço; não vos façais servos dos homens” (2 Coríntios 10:17; 1 Coríntios 7:23).
E de novo, no sexto capítulo desta Epístola aos Efésios, ele diz, em suas
particulares injunções: “E vós, senhores, fazei o mesmo para com eles (com
vossos servos), deixando as ameaças, sabendo também que o Senhor deles e
vosso está no céu, e que para com ele não há acepção de pessoas” (versículos 9).
Esta é a doutrina de Cristo como o nosso Senhor, como Aquele que, somente
Ele, tem posse de nós, como o Único que tem autoridade sobre nós. De novo
vemos Paulo dizendo exatamente a mesma coisa na Epístola aos Colossenses:
“Vós, servos, obedecei em tudo a vossos senhores segundo a carne, não servindo
só na aparência, como para agradar aos homens, mas em simplicidade de
coração, temendo a Deus. E, tudo quanto fízerdes, fazei-o de todo o coração,
como ao Senhor, e não aos homens; sabendo que recebereis do Senhor o
galardão da herança, porque a Cristo, o Senhor, servis”. E mais: “Vós, senhores,
fazei o que for de justiça e eqüidade a vossos servos, sabendo que também
tendes um Senhor nos céus” (3:22-24 e 4:1). A doutrina do único Senhor
leva inevitavelmente à doutrina da única Igreja e à “unidade do Espírito pelo
vínculo da paz”. Estamos todos ligados a Ele, à mesma Pessoa; e Ele está em
todos nós, e é o nosso “tudo em todos”.

O amor que devemos procurar conhecer, diz o apóstolo, é “o amor de Cristo, que
excede todo o entendimento” (Efésios 3:19). No entanto, acima de tudo, o
apóstolo usa este argumento em sua grande exposição da Encarnação no capítulo
dois da Epístola aos Filipenses, que já citamos. Ele descreve a auto-humilhação
do nosso Senhor para poder dizer, “haja em vós o mesmo sentimento”, o
sentimento que havia em Cristo e que O levou a fazer tanto por nós. E também,
“Nada façais por contenda ou por vangloria, mas por humildade; cada
um considere os outros superiores a si mesmo” e “não atente cada um para o que
é propriamente seu, mas cada qual também para o que é dos outros” (Filipenses
2:3-5). Certamente todos hão de concordar que, se tão-somente entendêssemos
com clareza a nossa relação com Ele e a nossa doutrina da Segunda Pessoa da
bendita e santa Trindade, a maioria dos nossos problemas seria resolvida
imediatamente. Se apenas O conhecêssemos de maneira que fôssemos capazes
de dizer com Paulo, “Para mim o viver é Cristo”; ou com o conde
Zinzendorf, “Tenho uma só paixão, Ele, e somente Ele”, a maior parte dos
nossos problemas desapareceria. As divisões, os cismas e todos os
fracassos devem-se em última instância à incapacidade de compreender que
há somente “um Senhor”. Quando cada um de nós compreender que o eterno
Filho de Deus pôs de lado a insígnia da Sua eterna glória, desceu à terra, nasceu
como bebê num estábulo de Belém e suportou a contradição dos pecadores
contra Si mesmo por trinta e três anos, foi cuspido, escarnecido e ridicularizado,
sofreu zombaria, e que Ele passou por tudo isso apesar de ter aquela destra na
qual segurar, a Sua igualdade com Deus no céu, mas renunciou à Sua honra -
quando soubermos que Ele fez tudo isso em favor de cada um de nós, então
veremos que não somos nada, e não nos preocuparemos com o que nos faça o
homem. Nada importará então, exceto que vivamos para Ele e para a Sua glória.
Então estaremos preparados para cantar com Isaac Watts -

Quando eu contemplo a cruz tremenda,

Na qual morreu o Príncipe da Glória,

Tenho por perda o maior lucro E desdém lanço em meu orgulho.

Quando realizarmos isso, ver-nos-emos mantendo, preservando, a unidade do


Espírito pelo vínculo da paz.

1
Irlanda do Norte. Nota do tradutor.

2
VA, Almeida Atualizada, e o original grego: “temos”. Nota do tradutor.
UMA SÓ FÉ

"Um só Senhor, uma só fé, um só batismo.” Efésios 4:5

Chegamos agora à subseqüente expressão da definição da unidade da Igreja,


dada pelo apóstolo - “uma só fé”. E esta fé única está em conexão com “um só
Senhor”. E por isso que ela entra neste agrupamento particular - “Um só Senhor,
uma só fé, um só batismo”. Ele não coloca “uma só fé” com a obra do Espírito
ou com o Pai, mas com o Senhor.

Quase todos os cultos comentadores parecem estar em dificuldade quanto ao


sentido exato da expressão, e há muito desacordo entre eles, uns tomando uma
idéia, outros tomando outra. Essas idéias podem ser divididas em dois grupos
principais. Há os que acham que esta fé única se refere à nossa fé subjetiva,
àquela qualidade em nós, àquela capacidade em nós que nos habilita a crer.
Portanto, eles argumentam que o caráter, a natureza dessa fé é patente e
obviamente a mesma em todos os cristãos. É a mesma ação, a mesma
consciência, o mesmo sentimento. Tudo acerca da nossa fé, subjetivamente
considerada, é a mesma coisa em todos. Parece-me que esta é uma impossível
explicação desta declaração, e por esta boa razão que, num sentido, ela já
está coberta pela expressão “um só Senhor”. Mas há uma objeção ainda mais
séria. O apóstolo está se esforçando para dar provas absolutas da unidade dos
crentes, de modo que, sempre que formos assaltados por dúvidas, possamos ter
certeza que nos mantenha firmes. Pois bem, sempre que queiramos demonstrar
ou provar algo, jamais devemos apelar para o que é subjetivo, porque o subjetivo
é pessoal e não se pode definir. O subjetivo não é resposta a uma investida
objetiva. Todavia, o apóstolo nos está dando provas objetivas, algo que está
fora de nós e que podemos aplicar a nós, e pelas quais, portanto, podemos testar-
nos a nós mesmos. Assim, eu argumento que “uma só fé” não pode ser
considerada subjetivamente, pois fazer isso a retira da categoria de um teste
objetivo. Tudo o que temos considerado até aqui é estritamente objetivo.

A outra idéia quanto a esta expressão é que é algo objetivo. Mas

aqui, de novo, há uma dificuldade. Se dissermos que quando ele se refere a “uma
só fé” está se referindo a um corpo objetivo no qual se crê - não o meu ato de
crer, porém aquilo em que eu e todos os demais cremos - outra dificuldade
surgirá. E que aqueles que defendem essa idéia tendem a dizer que a fé objetiva
a que se refere Paulo é uma completa confissão ou um compêndio da fé. Aos
olhos desses mestres, “uma só fé” significa que os cristãos adotam e subscrevem
uma das grandes confissões de fé, como a de Westminster, ou os Trinta e
Nove Artigos da Igreja da Inglaterra, ou o Catecismo de Heidelberg. Fé
aqui, dizem eles, significa um esboço completo do que cremos, um completo
compêndio de teologia. Mais uma vez, esta não me parece uma possível
explicação de “uma só fé”. Na verdade, os que a adotam admitem, e têm que
admitir, que se vêem em dificuldades a esse respeito, e por esta razão, que a
história da Igreja mostra com muita clareza que nem sempre todos os cristãos
concordam com todos os pormenores relacionados com a fé cristã. Tem havido
divergências de opinião sobre diversas questões. Eles admitem que, se vamos
definir “uma só fé” como um completo e detalhado compêndio de
teologia, nunca existiu “uma só fé”. Eles assinalam que o próprio
apóstolo parece insinuar isso mais adiante, quando ele diz, no versículo 13,
“Até que todos cheguemos à unidade da fé, e ao conhecimento do Filho de Deus,
a varão perfeito, à medida da estatura completa de Cristo. Para que não sej amos
mais meninos inconstantes, levados em roda por todo o vento de doutrina, pelo
engano dos homens que com astúcia enganam fraudulosamente. Antes, seguindo
a verdade em amor, cresçamos em tudo naquele que é a cabeça, Cristo”
(versículos 13-15). O apóstolo parece estar concedendo que, até aqui, não
estamos concordes em tudo, entretanto chegará o dia em que nós todos
seremos levados juntos a essa unidade, veremos tudo claramente e estaremos de
acordo acerca de todas as coisas - mas, não ainda!

Parece-me, pois, que não devemos tomar a expressão “uma só fé” no sentido de
acordo em detalhe acerca de todas as coisas, acordo quanto a um completo
compêndio de teologia ou doutrina. O apóstolo utiliza a expressão “uma só fé”
como um argumento em prol da unidade, e diz que todos eles sabem o que é essa
fé. Para ele é um teste objetivo que pode ser aplicado, é algo tão definido como
“um só Senhor”, “um só Espírito” e “um só Deus”, e todas as outras afirmações.
“Uma só fé” é claramente algo que podemos e devemos definir, e sobre o que
devemos dizer que todos os cristãos devem estar de acordo. Que é que isto
significa?

Minha opinião é que, embora não seja um completo sistema de

teologia, é algo que com muita freqüência é tratado no Novo Testamento, algo
sobre o que devemos ter claro entendimento. O que defendo é que se refere à
própria essência do evangelho, àquilo que os apóstolos foram especificamente
chamados para pregar, em sua obra de evangelização. É de fato a grande
mensagem do evangelho concernente à salvação ou justificação somente pela fé.
Opino que é a única exposição possível e satisfatória da expressão “uma só fé”
é dizer que o apóstolo está se referindo à fé justificadora; e que esta não é
somente uma fé, mas também a única fé.

Para consubstanciar a minha alegação, permitam-me lembrar-lhes algumas


outras afirmações que o apóstolo faz com respeito a esta matéria. É costume
referir-se a Paulo como o grande apóstolo da fé, e ele o é. Não que os outros
apóstolos não a pregassem; pregavam-na, como o próprio apóstolo Paulo o
afirma alhures; mas, preeminente-mente, esta era a mensagem confiada a ele, e
que ele expunha igualmente aos judeus e aos gentios. Talvez o exemplo maior e
mais nobre se veja na Epístola aos Romanos. Diz ele que está desejoso
de encontrá-los e visitá-los (1:11). Ele ouvira falar deles e quer visitá-los e firmá-
los na fé. Depois passa a dizer-lhes qual é a mensagem do evangelho, Ele a
resume logo no início da Epístola, onde escreve: “Porque não me envergonho do
evangelho de Cristo, pois é o poder de Deus para salvação de todo aquele que
crê... Porque nele (no evangelho) se descobre a justiça de Deus de fé em fé,
como está escrito: mas o justo viverá da fé” (1:16-17). Essa é a mensagem, e
essa, eu sugiro, é a “uma só fé” a que se refere em Efésios 4:5. Na verdade, os
que estão familiarizados com a Epístola aos Romanos sabem que os
quatro primeiros capítulos dessa Epístola são inteiramente dedicados a
esta grande mensagem da justificação - ou salvação, ou justiça - pela fé. Esta, diz
ele, é a nova mensagem. Até ao ministério de Cristo, diz ele, os judeus estavam
debaixo da lei e a Lei era pregada, “Mas agora”-esse é o ponto decisivo - há algo
novo. No terceiro capítulo dessa mesma Epístola ele diz: “Pela lei vem o
conhecimento do pecado. Mas agora se manifestou sem a lei
(independentemente da Lei) a justiça de Deus”(versículos 20-21). Ele vai adiante
e faz uma exposição vigorosa deste princípio, desta doutrina da justificação
unicamente pela fé. Isso é “uma só fé”.

A Epístola aos Gálatas é exclusivamente dedicada ao mesmo tema. Essa Epístola


foi necessária porque certas pessoas tinham descido de Jerusalém e estiveram
pertubando a vida das igrejas da Galácia, dizendo que o apóstolo Paulo estava
certo em pregar a doutrina da justificação pela fé, porém estava errado quando
falava emjustificação pela fé somente. Eles diziam aos gálatas que, num sentido,
eles eram

cristãos, mas que, se desejavam ser cristãos verdadeiros, eles, como gentios,
deviam sujeitar-se à circuncisão. O apóstolo escreve a sua Epístola para mostrar
que, se alguém faz tal acréscimo à fé, “caiu da graça” e “tem outro evangelho,
que não é evangelho”. De fato ele lhes diz que tivera até que corrigir o apóstolo
Pedro sobre essa questão. Pedro tivera claro entendimento disso, mas tinha
ficado assustado e alarmado com certo gente que descera de Jerusalém, e ele
começara a dissimular e a transigir. Paulo declara que teve que resistir-lhe na
cara (a Pedro) em Antioquia, e o levara a ver de novo que o princípio da fé é o
centro e a glória do evangelho cristão - “uma só fé”.

Mas talvez a exposição mais clara dessa verdade seja a que se acha no décimo
capítulo da Epístola aos Romanos. O apóstolo compara e contrasta as falsas
idéias dos judeus com o verdadeiro método de salvação, e escreve: “Mas que
diz? A palavra está junto de ti, na tua boca e no teu coração; esta é a palavra da
fé, que pregamos” (versículo 8). Esta expressão, “a palavra da fé”, refere-se ao
que ele já dissera no versículo 6: “Mas a justiça que é feita pela fé diz assim”. A
afirmação é acentuada pelo contraste com o que diz a Lei - “Moisés descreve
a justiça que é pela lei, dizendo: o homem que fizer estas coisas viverá por elas”.
Depois continua: “Mas a justiça que é pela fé diz assim: Não digas em teu
coração: Quem subirá ao céu? ... Ou: quem descerá ao abismo?... Mas que diz?
A palavra está junto de ti, na tua boca e no teu coração; esta é a palavra da fé que
pregamos”. “A palavra da fé” é a palavra da “justificação pela fé”. É a palavra da
justiça pela fé. É esse o sentido da expressão, “a palavra da fé”. É a palavra
acerca da fé, a palavra acerca da fé como o princípio justificador, a palavra da fé
no sentido de que “O justo viverá da fé”(VA e Almeida, Atualizada, “O justo
viverá por fé”). “A palavra da fé” é a palavra que devemos contrapor à palavra
da Lei.

Devemos agora ir adiante e ampliar a definição e a descrição desta “uma só fé”.


É muito importante que o façamos, pois esta é a única fé, esta é “uma só” fé. De
acordo com Paulo, quem quer que diga outra coisa, está errado, é inimigo da
verdade. Esta é “a fé” que foi redescoberta, ou melhor, revelada de novo e
restaurada na Reforma Protestante. Esta foi “a fé” pregada pelos pais
protestantes; esta é “a fé” pela qual eles morreram alegremente na fogueira. A
Reforma Protestante foi uma redescoberta, uma nova percepção do grande
princípio de que “o justo viverá por fé”. Foi esta a grande mensagem de
Lutero, a justificação unicamente pela fé - “sola fide”. Essa é “a palavra da
fé”; não fé em geral, porém esta mensagem peculiar, específica, sobre o método
da justificação. Esta é a “uma só fé”.
Torno a dar ênfase a isto, pois, se não temos esta fé e não nos apegamos a esta fé,
não somos cristãos. Não hesito em dizer isso. Repito que não estamos tratando
de um compêndio da fé, ou de uma minuciosa lista de pontos. Não estou
afirmando que, se- você não subscrever cada detalhe desse tipo de confissão de
fé, você não é cristão. Essa é a maneira de produzir divisões. Estou
interessado somente na “uma só fé”, que é o que importa. Essa é a
mensagem concernente à maneira pela qual Deus salva os homens. É
concernente à justiça que vem de Deus. Não é algo feito pelos homens, e sim o
que Deus fez. Esta é a mensagem; e isto é cristianismo. O apóstolo afirma isso
com várias expressões. Escreve sobre “Deus justificando aquele que crêem
Jesus”. No quarto capítulo da Epístola aos Romanos ele faz uma das mais
espantosas afirmações por ele feitas: “Mas aquele que não pratica, mas crê
naquele que justifica o ímpio, a sua fé lhe é imputada como justiça” (versículo
5). O fato de que “Deus justifica o ímpio” prova, sem sombra de dúvida, que se
trata de um ato de Deus. Este é o meio pelo qual Deus faz qualquer de nós justo
e aceitável aos Seus santos olhos. E o meio pelo qual nos tornamos retos para
com Deus e reconciliados com Deus, e ficamos sabendo que Deus é o nosso Pai.
Somente Deus faz isso, e o faz em Cristo. Ele nos declara justos, Ele proclama
que somos justos. E essencialmente um anúncio, uma proclamação, uma
declaração feita por Deus a nosso respeito.

A analogia freqüentemente usada é esta: um prisioneiro no banco dos réus, e o


juiz sentado à mesa do tribunal. Há o conselho de denúncia, a lei de Deus,
apoiada pela própria consciência do homem. O prisioneiro não guardou a lei,
mas pecou contra ela . Essa é a comunicação, a causa contra ele; e o prisioneiro
não tem resposta. Todavia, em vista de uma exposição feita por um benfeitor, o
juiz faz uma proclamação e um anúncio; ele declara que considera o criminoso,
o réu, livre da acusação que fora proferida contra ele. Ele o proclama justo aos
seus olhos, afirma que não tem nada contra ele e o absolve da culpa e da
vergonha. Ele diz: declaro você justo, e o considero como se você nunca tivesse
sido culpado.

A justificação é uma ação de Deus, uma ação legal, uma ação forense.
Absolutamente independente de nós, Deus faz um pronunciamento concernente
a pecadores, dizendo que Ele considera aquela pessoa ímpia em particular como
sendo agora justa. Deus a declara justa e livre de todo pecado. A justificação
significa que Deus declara o homem justo aos Seus olhos.

No entanto, como Deus faz isso? Façamos de fato a pergunta que Paulo faz em
Romanos, capítulo 3, versículos 25 e 26: como Deus pode fazer isso? Pois Deus
é santo, justo, reto e puro. Deus não pode

fingir nem disfarçar; Deus não pode dizer uma coisa um dia e desdizê-la no dia
seguinte. Ele é o “Pai das luzes, em quem não há mudança, nem sobra de
variação” (Tiago 1:17). Ora, Deus disse, desde o início da criação, que, se o
homem pecasse, seria punido e expulso da Sua presença. Ele repetiu isso e o
deixou mais claro quando deu a Lei por meio de Moisés. Ele disse que mantinha
o homem responsável. Deus deixou claro que, por causa do Seu caráter, do Seu
ser, da Sua santidade, da Sua retidão, justiça e eqüidade, o pecado tem que
ser punido. Portanto, como é que Deus pode justificar o ímpio, como é que Ele
pode fazer esse pronunciamento com relação a algum pecador? A grande
resposta é dada numa passagem maravilhosa da Epístola aos Romanos, capítulo
3, versículos 21 a 31. Deus “propôs Cristo para propiciação pelos nossos
pecados”. Quer dizer que Deus tomou os nossos pecados e os colocou sobre
Cristo, e os puniu. Tratou deles em Seu próprio Filho na cruz do Monte Calvário.
Essa é a doutrina: “Ao qual Deus propôs para propiciação pela fé no seu
sangue”. Este é o coração do cristianismo; de fato, não há cristianismo sem isto.
Esta é “a fé” que todos nós devemos ter e crer, a saber, que “Deus estava
em Cristo reconciliando consigo o mundo, não lhes imputando os seus pecados”;
que Deus “fez cair sobre ele a iniqüidade de nós todos”, e que “o fez pecado por
nós; para que nele fôssemos feitos justiça de Deus”. Em 2 Coríntios, capítulo 5,
Paulo nos diz: “Somos embaixadores da parte de Cristo, como se Cristo por nós
rogasse. Rogamos-vos, pois, da parte de Cristo, que vos reconcilieis com Deus”.
Esse é o método de reconciliação, essa é a mensagem de reconciliação que
nos foi transmitida.

O próprio coração da mensagem cristã é que Deus tomou os nossos pecados e os


imputou a Jesus Cristo - “não os imputando a nós”, afirma Paulo, porque os
imputou a Ele. “Imputar” significa considerámos, colocá-los na conta de alguém.
É como se um homem rico fosse a uma loja ou armazém e dissesse: “Quero que
mande as seguintes mercadorias a tal endereço, mas não lhes mande a conta;
ponha na minha conta; impute isso a mim”. Deus tomou os nossos pecados e
os imputou a Cristo, colocou-os na Sua conta e os puniu nEle. “Ele o fez pecado
por nós” - em nosso lugar. Deus feriu o Seu próprio Filho por causa dos nossos
pecados. Cristo sofreu o nosso castigo. O apóstolo Pedro escreve: “Levando ele
mesmo em seu corpo os nossos pecados sobre o madeiro, para que, mortos para
os pecados, pudéssemos viver para a justiça; e pelas suas pisaduras fostes
sarados”(l Pedro 2:24).
Mas Deus fez também algo mais; Ele pôs a justiça de Cristo em nossa conta. O
Senhor Jesus Cristo nunca pecou; Ele obedeceu a Lei de Deus em todos os
pormenores. O Pai ficou satisfeito com Ele; Ele

tinha feito tudo o que o Pai O enviara para fazer. Ele foi descrito pelo arcanjo
Gabriel a Maria como “o Santo” (VA: “a coisa santa”) (Lucas 1:35). Ele nasceu
cheio de retidão, guardou perfeitamente a Lei e agradou a Deus em tudo,
prestando uma obediência perfeita. O que Deus faz é tomar a justiça de Cristo e
pô-la em nossa conta. Há, por assim dizer, uma grande transação, uma grande
transferência no livro--razão do céu. A nossa injustiça foi posta sobre Ele; a
justiça dEle é posta sobre nós. E assim Deus, tendo tirado de nós os nossos
pecados, e tendo posto sobre nós a justiça de Cristo, declara-nos justos. Esta é a
gloriosa verdade que capacitou o conde Zinzendorf a escrever o grande hino que
João Wesley traduziu com tanta nobreza:

Jesus, Teu manto de justiça

E minha veste, é minha glória;

Em meio a mundos flamejantes

Feliz afronte eu erguerei.

No grande dia estarei de pé;

Quem minha culpa levará?

Graças a Ti, absolvido fui

Do vil pecado, medo e culpa.

Jesus, a Ti louvor eterno!

Misericórdia tens por mim;

Plena expiação por mim fizeste,

Pagaste eterna remissão.

A palavra da fé que pregamos é que a nossa salvação é, toda ela, ação de Deus
por meio deste único Senhor Jesus Cristo. É por isso que “uma só fé” segue-se a
“um só Senhor”. O “um só Senhor” foi enviado pelo Pai. Ele tomou sobre Si a
natureza humana, viveu uma vida perfeita na terra, e então “Deus lançou sobre
ele a iniqüidade de todos nós” e transfere para nós a Sua justiça. Esta nos vem
pela fé, pela “uma fé”, a única fé. Não contribuímos com nada para tudo isso. Os
nossos feitos, as nossa ações não desempenham parte alguma, a nossa bondade
não entra, pois não é bondade aos olhos de Deus, é apenas como “esterco” e
refugo aos olhos de Deus. A nossa busca não ajuda, a nossa capacidade não
ajuda, nada em nós ajuda, em absoluto. É tudo de Deus, é tudo de graça, é tudo
feito por Deus, do princípio ao fim.

A justiça é posta sobre nós. Estávamos em andrajos, por assim dizer, como
condenados no banco dos réus; mas Deus enviou Cristo, pelo Espírito, para tirar-
nos os trapos e vestir-nos com o manto da

perfeita justiça de Cristo. Deus agora olha para nós e vê, não os nossos pecados,
porém a justiça de Cristo. Ele nos vê “em Cristo”. O nosso nascimento natural
não faz nenhuma diferença, a nossa nacionalidade não entra nisso. O grau do
arrependimento que experimentamos não importa, nem o volume da emoção que
o acompanha. Se fizermos do nosso arrependimento um ato meritório, estaremos
negando a fé. O que somos, ou o que fizemos ou não fizemos, não conta; nada
em nós conta; a nossa justiça está toda em Cristo, e pela fé, somente pela fé. O
apóstolo já nos disserano capítulo 2, versículo 8, que a salvação não vem de nós:
“Pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus”.
Esta justiça de Cristo nos é dada, e passa a ser nossa, mediante a
instrumentalidade da fé, que também é dom de Deus.

Dessa maneira fica mais claro que o apóstolo menciona “uma só fé”. Neste
ponto em particular ele está interessado no princípio essencial da unidade, e isto
nos ajuda a ver esta unidade. Este é o único meio de salvação. Na verdade diz o
apóstolo que este sempre foi o único meio de salvação. No quarto capítulo da
sua Epístola aos Romanos, Paulo expõe este fato. Diz ele que, embora, num
sentido, o que ele pregava e ensinava era novo por causa da vinda do Filho
de Deus ao mundo, realmente este sempre fora o meio pelo qual Deus justifica o
homem. Ele mostra como Abraão foi justificado aos olhos de Deus, e isso pela
fé, não por suas obras. Ele prossegue e mostra que Davi tinha ensinado a mesma
verdade, dizendo: “Bem-aventurado o homem a quem o Senhor não imputa
maldade” (Salmo 32:2). A imputação foi também o método de Deus na antiga
dispensação. Pela mesma razão Paulo diz no terceiro capítulo da Epístola aos
Gálatas que Abraão é o pai de todos nós, o pai de todos os que confiam na fé, o
pai de todos os cristãos. Como cristãos, somos filhos de Abraão porque somos
filhos da fé. O décimo primeiro capítulo da Epístola aos Hebreus ensina que isto
vai mais longe, no passado, chegando A Abel, Enoque e Noé. Sempre foi este o
método de Deus. E errado pensar que havia um meio de salvação no Velho
Testamento, e agora outro, no Novo. Não! Deus sempre justificou os homens
pela fé. Abraão foi declarado justo por Deus, mediante a fé. É “uma só fé”; esta
foi sempre a única fé.

Uma vez mais, devemos dar ênfase igualmente ao meio de salvação para judeus
e gentios. Nenhuma outra coisa importa, senão a fé. Não importa se somos
bárbaros, citas, homens ou mulheres, escravos ou livres. Todos viemos pelo
mesmo caminho, e este é sempre o caminho da fé. Somos todos culpados perante
Deus: “Não há um justo, nem um sequer”, “todos pecaram e destituídos estão da
glória de Deus”. Somos

todos culpados e estamos sob a condenação da mesma lei de Deus. Devemos


esquecer judeu e gentio e todas as outras distinções. Há somente um caminho da
salvação, o caminho da fé, pela qual a justiça de Cristo nos é imputada depois de
serem imputados a Ele e punidos nEle os nossos pecados. Se havermos de ser
cristãos, temos que tomar-nos cristãos do mesmo modo. Se você foi “bom” ou
“mal” em sua vida passada, não importa. Se você foi criado num lar religioso e
sempre foi à igreja, ou se a sua criação e a sua vida passada foi ímpia, é
igualmente irrelevante. Somos todos um, e há tanta esperança de salvação
no segundo caso como no primeiro. Não há meio de salvação, exceto mediante
“uma só fé”, a fé que recebe esta justiça perfeita de Deus por intermédio de Jesus
Cristo, e Este crucificado. Tudo está em Cristo, não há nada em nós. Não deve
haver discussão nenhuma sobre isso. É isto que nos faz todos um. Vejam, diz o
apóstolo, que não quebrem a unidade, vejam que a preservem, “procurando
guardar a unidade do Espírito pelo vínculo da paz”.

Há, infelizmente, muitas maneiras pelas quais podemos romper a unidade com
relação a esta fé. Uma delas é introduzir algo nosso. Se introduzirmos a nossa
“vida virtuosa” e as nossas “boas obras”, estaremos virtualmente dizendo que
somos melhores do que os outros. Seremos como o fariseu que foi ao templo
orar e que deu graças a Deus porque era um homem tão bom, e muito melhor do
que o publicano. Mesmo que, como cristãos, comecemos a gabar-nos do que
estamos fazendo ou do que somos, estaremos desacreditando a fé e
causando divisão. Qualquer jactância acerca das nossas boas obras, das
nossas vidas, da nossa piedade, e até da nossa fé, é negação do princípio de fé.
Se nos jactarmos do nosso entendimento e nos orgulharmos dele, e desprezarmos
o homem que sabe menos, estaremos rompendo a unidade e violando o princípio
de fé. Quão cuidadosos devemos ser!

Outro modo de quebrar a unidade é negar a absoluta centralidade de Cristo e Sua


obra. Há pessoas que dizem que são salvas, que crêem que os seus pecados estão
perdoados, mas quando lhes perguntam sobre quais fundamentos elas sabem que
os seus pecados estão perdoados, dizem que crêem, que Deus é um Deus de
amor, que não mandará para o inferno o homem que pede perdão. Nem
mencionam o nome de Jesus Cristo; atribuem tudo unicamente ao amor de
Deus, como se Cristo nunca tivesse existido, como se o único Senhor
nunca tivesse vindo da glória para o mundo, e nunca tivesse ido para a cruz e
derramado o Seu precioso sangue pelos nossos pecados. Elas acreditam que
obtêm perdão independentemente de Cristo. Mas essa não é a “uma só fé”, e
essas pessoas não estão em Cristo. Obviamente

estão causando divisão.

Um terceiro modo de quebrar a unidade, igualmente perigoso, é o de acrescentar


algo a esta “uma só fé1’. Isto produziu a heresia daqueles gálatas que diziam: “fé
mais circuncisão”. Se acrescentais a circuncisão, é o que Paulo diz, “da graça
tendes caído” (Gálatas 5:4), negastes a fé. Não se deve acrescentar nada a esta
fé. Esta é a heresia fatal do catolicismo romano, denunciada pelo ensino da
Reforma Protestante. A igreja católica romana obscureceu o princípio da “uma
só fé”. Os seus mestres estiveram acrescentando à fé muitas coisas, como a
igreja e a idéia de transmissão mecânica da graça por meio dos
sacramentos. Ensinavam que o batismo nos torna cristãos, que, como resultado
de uma oração feita por um sacerdote, a água contém graça, e que recebemos o
corpo físico de Cristo ao recebermos a hóstia naquilo que eles denominavam
missa. Acrescentaram também a adoração e a mediação da virgem Maria, as
obras de superrogação dos santos, e muitas outras coisas. Com esses acréscimos
eles negavam a “uma só fé”, e, assim, causaram divisão e cisma. Não foi Lutero
que dividiu a Igreja; os erros do catolicismo romano é que foram responsáveis
por isso.

Temos que ser cuidadosos para não cairmos nessa heresia sutil. Todo aquele que
ensinar que há alguma outra coisa essencial para a salvação, seja lá o que for,
estará negando esta “uma só fé” e estará dividindo a Igreja. A “uma só fé” é a fé
justificadora. Isso, e somente isso, é essencial. Há muitos outros ensinos que
podem ou não ser verdadeiros. Estamos divididos em nossos conceitos sobre
profecia, em nossas idéias concernentes ao batismo, e sobre muitas outras coisas.
Graças a Deus, essas idéias não determinam a nossa salvação. O único e
exclusivo meio de salvação é que eu venho a Deus e digo de coração: “Nada
trago nas mãos, só me apego à Tua cruz” - e

Assim como estou, sem nada pleitear, senão que morreste por mim E que me
chamaste a vir a Ti,

Cordeiro de Deus, eis-me! 1

Isso é fé justificadora! Você sabe que não pode apoiar-se em nada que haja em
você; que toda a sua justiça não passa de “trapo da imundícia” (Isaías 64:6), que
se pudesse viver outros mil anos e jejuar, suar e orar, não estaria mais perto da
salvação do que está neste momento, que não há nada em você que conte, que
tudo está em Cristo,

mediante o Espírito Santo, e que só nisso você põe a sua confiança. Se você crê
nisso, você é cristão. Se não crê, não é. Nenhuma outra coisa é essencial; esta é a
“uma só fé”. Não quero dizer que não há outras matérias muito importantes e
que não precisamos instruir-nos sobre elas, mas sim, que elas não são essenciais
para a salvação. Esta é a única e exclusiva coisa que é um essencial absoluto; e,
portanto, é a única e exclusiva fé.

Você tem isso? Não estou fazendo uma pergunta teórica. Você compreendeu que
esta é a única coisa que nos faz um em Cristo? Você está se apoiando em seus
antecedentes? Você está pondo, na mínima extensão que seja, a sua confiança no
fato de que os seus pais podem ter sido cristãos, e que você foi sempre educado
num lar piedoso e numa atmosfera piedosa, que você sempre freqüentou igreja,
que você sempre acreditou em Deus, que você não cometeu adultério
ou assassínio ou quaisquer pecados grosseiros ou perversos, que você sempre
procura fazer o bem e fazer doações às boas causas? Você está confiando numa
dessas coisas? Se a sua resposta for positiva, você está fora da “uma só fé”, e
está fora de Cristo. A mensagem do evangelho, a mensagem da salvação é sobre
“a justiça de Deus pela fé”, “de fé em fé”, “O justo viverá pela fé”, ou, “O justo
pela fé viverá”. A “uma só fé” é a fé que pronta, alegre e sinceramente reconhece
esta verdade, dá graças a Deus por ela, regozija-se nela, é a fé que, com o
apóstolo Paulo, diz: “Longe estej a de mim gloriar-me, anão ser na cruz de
nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo está crucificado para mim e
eu para o mundo” (Gálatas 6:14). Conceda-nos Deus que todos nós tenhamos a
“uma só fé” e que nesta fé descansemos, nela nos alegremos, para a glória de
Deus o Pai, do único Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus, e do bendito Espírito
Santo.

UM SÓ BATISMO

“Um só Senhor, uma só fé, um só batismo.” Efésios 4:5

Chegamos agora à terceira afirmação deste segundo grupo de afirmações


centralizadas no nosso Senhor - “um só batismo”. É evidente que, ao estabelecer
estes pontos, o apóstolo não o faz de maneira casual ou acidental. Ele não está
apenas fazendo uma série de afirmações ao acaso, e muito menos se repetindo.
Está realmente acrescentando algo à mensagem, está desenvolvendo o
significado dela. É óbvio que ele selecionou as questões particulares por meio
das quais poderia provar conclusivamente aos efésios a natureza da unidade da
Igreja, a inevitabilidade dessa unidade e, portanto, a importância do seu esforço
para a manterem. Já vimos que há diferença de ênfase nas expressões “um só
Senhor” e “uma só fé”. É a própria Pessoa de Cristo que recebe ênfase em “um
só Senhor”, ao passo que “uma só fé” dá ênfase à fé concernente em particular à
justificação, o meio pelo qual Deus toma o Seu povo justo e o declara justo.

A própria menção desta expressão, “um só batismo”, indubitavelmente levanta


uma dúvida na mente de muitos, quanto a como este “um só batismo” promove
unidade, porque é um fato notório que toda a questão do batismo levou muitas
vezes à discussão, à divisão e à separação. E, todavia, o apóstolo inclui “um só
batismo” com o fim de mostrar a inevitabilidade da unidade entre os
crentes verdadeiros. Daí, seja qual for a nossa interpretação da expressão,
“um só batismo”, terá que mostrar a inevitabilidade da unidade; terá que ser algo
que os efésios poderiam usar como um argumento para se persuadirem de
continuar a guardar “a unidade do Espírito pelo vínculo da paz”. Assim, não
estamos discutindo meramente o batismo em geral; precisamos discutir este “um
só batismo” de tal modo que ilustre claramente, mais que nunca, a unidade
particular que prevalece nos membros do corpo de Cristo.

Contudo, devemos começar com certo número de elementos negativos, porque


alguns têm dito que isto é muito simples e que aqui não há absolutamente
nenhum problema. Através dos séculos houve
aqueles que ensinavam que este “um só batismo” obviamente se refere ao que
eles gostavam de chamar “regeneração batismal”. O batismo, ensinam eles, é o
instrumento da regeneração, de modo que quando alguém é batizado ele recebe,
por esse ato, nova vida e é regenerado. Assim, em sua cerimônia ou ministração
de batismo eles dizem daquele que batizaram: “Agora esta criança é
regenerada”. Querem dizer que a criança foi regenerada por aquilo que lhe
fizeram. Este ensino prevalece em vários segmentos da Igreja; não se limita
aos católicos romanos. Esta escola de interpretação considera a
declaração completa do apóstolo como significando um Senhor, uma fé
nesse Senhor, e uma regeneração ou incorporação nesse Senhor por meio
de, pela instrumentalidade do, batismo. Os católicos romanos consideram o
batismo como algo que age “ex opere operato”, isto é, que opera por si e de si.
Como resultado da oração do sacerdote, a água passa a conter graça, graça
regeneradora, e, portanto, a criança nasce de novo. Outros que não vão tão longe
assim acreditam que, de um modo ou outro, o ato do batismo toma regenerada a
pessoa que é batizada.

Há outros que explicam essa expressão em termos do modo do batismo.


Lembro-me de haver lido um sermão de um homem que, referindo-se a esta
frase, “um só batismo”, despachou-a com a lacônica observação: “Naturalmente
isto significa batismo de adultos por imersão na água”. Nada mais havia para ser
dito. Para ele não havia problema nenhum. Nunca lhe ocorreu que interpretá-la
desse jeito obviamente tem causado divisão na Igreja e, portanto, não era, mais
do que as outras interpretações que mencionei, uma ilustração da unidade. Não
podemos, pois, aceitar a idéia de que é apenas uma referência ao modo do
batismo, pois isso não mostra a inevitabilidade deste princípio de unidade.

Uma terceira interpretação fala de “um só batismo” como uma referência ao rito
do batismo, e nada mais. Eles não crêem na regeneração batismal; não ensinam
que algum modo particular é essencial. Alegam que há o rito do batismo e,
assim, o apóstolo estava simplesmente se referindo ao fato de que, quando as
pessoas se tornavam cristãs, eram batizadas, e que essa era a sua iniciação
no corpo visível da Igreja. Como veremos, há algo que se pode dizer em favor
desta terceira idéia, mas temos que ser cuidadosos, porque sempre há o perigo de
fazer do batismo algo essencial para a salvação. Mesmo que rejeitemos a
doutrina da regeneração batismal, que evidentemente não é ensinada em parte
alguma das Escrituras, porém foi introduzida para estabelecer o poder do
sacerdócio e da igreja, há o perigo de fazermos do próprio rito um elemento
essencial. Certamente não devemos fazer isso nunca. Não devemos dizer que o
batismo, em qualquer forma ou modo, é vital e essencial para a salvação, e que
um homem não pode ser salvo, a não ser que seja batizado. Isto pela boa e
suficiente razão que tem havido excelentes cristãos entre os quaeres,
particularmente os quaeres primitivos, e entre os membros do Exército de
Salvação hoje, e outros. Tome-se o caso do ladrão moribundo na cruz, ao lado do
nosso Senhor. Seguramente ninguém duvida da sua salvação, da sua conversão,
da sua regeneração; todavia, ele não foi batizado. Tem havido outros
que chegaram a ver a verdade em seus leitos de morte e nunca foram batizados.
O batismo não é essencial para a salvação; assim é que não pode ser que o
apóstolo estivesse dando ênfase ao rito em si.

Parece claro, portanto, que devemos rejeitar essas três sugestões. No lugar delas
eu sustento que o apóstolo está se referindo àquilo que o batismo representa e
significa. Era, como sabemos, costume na infante Igreja Cristã, como devia ser
ainda, batizar todos os que se tomavam crentes. Temos exemplos disto no livro
de Atos dos Apóstolos. Vejam, por exemplo, o que aconteceu no dia de
Pentecoste. Quando certas pessoas clamaram e disseram a Pedro: “que
faremos, varões irmãos?” A resposta de Pedro foi: “Arrependei-vos, e cada
um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo, para perdão dos pecados; e
recebereis o dom do Espírito Santo”. Mais tarde se nos diz que o carcereiro de
Filipos “creu e logo foi batizado, ele e todos os seus”. Isso era feito em
obediência a uma ordem do Senhor. O Batismo e a Ceia do Senhor deviam ser
observados; estas são as duas, e as únicas duas ordenanças que reconhecemos,
porque são as únicas duas ensinadas nas Escrituras. No entanto, é muito
importante compreender que estas são simplesmente representações externas de
uma graça interna, invisível e espiritual. O significado é o elemento vital.

Portanto, estou preparado para argumentar que o único sentido concebível que
esta expressão pode ter deve estar na esfera dessa representação espiritual que é
significada pelo rito externo do batismo, seja qual for a forma ou maneira ou
modo que você escolha ou empregue. Não é o modo do batismo que importa, é a
realidade significada. É assim porque somente esta interpretação é coerente
com o princípio da unidade acerca da qual o apóstolo está escrevendo e
está interessado em salientar. Quero mostrar que no batismo, seja que
você batize uma criança ou um adulto, quer o faça por imersão quer
por aspersão, esta unidade é possível - quer dizer, se a pessoa batizada se toma
cristã. Estamos rejeitando completamente a opinião de que batizar uma criança
faz dela uma cristã; e igualmente esse batismo não faz de um adulto um cristão.
O ato do batismo não efetua nada por si
mesmo; mas ele representa e significa algo, e é isto que exibe o elemento de
unidade.

A primeira coisa a ser acentuada é que o batismo é em um nome somente, em


nome do Senhor Jesus Cristo. Estou ciente de que no fim do Evangelho Segundo
Mateus nos é dito: “batizando-as em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito
Santo” (28:19). Isso, porém, não precisa causar nenhuma confusão, porque
primariamente o batismo é em nome do Senhor Jesus Cristo e, por meio dEle,
em nome do Espírito e do Pai. Permitam-me demonstrar esta verdade. O que o
apóstolo diz no capítulo primeiro da sua Primeira Epístola aos Coríntios
nos oferece um excelente comentário desta matéria, pois ali o apóstolo se ocupa
justamente desta questão de divisão, desunião e cisma na Igreja. Diz ele: “A
respeito de vós, irmãos meus, me foi comunicado pelos da família de Cloe que
há contendas entre vós. Quero dizer com isto, que cada um de vós diz: Eu sou de
Paulo, e eu de Apoio, e eu de Cefas, e eu de Cristo”. Depois Paulo pergunta:
“Está Cristo dividido? Foi Paulo crucificado por vós? Ou fostes vós batizados
em nome de Paulo?” Evidentemente ele lhes está lembrando que eles foram
batizados em nome de Cristo. E continua dizendo: “Dou graças a Deus, porque
a nenhum de vós batizei, senão a Crispo e a Gaio. Para que ninguém diga que foi
batizado em meu nome. E batizei também a família de Estéfanas; além destes,
não sei se batizei algum outro”. Notem com que cuidado ele coloca esta questão
do rito do batismo em seu lugar certo e na perspectiva certa. Mas a frase
significante é apergunta: “Está Cristo dividido? Foi Paulo crucificado por vós?
Ou fostes vós batizados em nome de Paulo?” Claro que não. Eles não foram
batizados em nome de Paulo ou de Apoio ou de Cefas; cada um deles foi
batizado em nome do Senhor Jesus Cristo. Um Senhor, uma fé nesse Senhor, a
fé justificadora, e um batismo no mesmo nome.

Mas vejamos alguns outros exemplos. Já citei a exortação de Pedro no dia de


Pentecoste, como está registrada em Atos 2:38, onde ele diz: “Cada um de vós
seja batizado em nome de Jesus Cristo”. De novo, em Atos 19:5, lemos: “E os
que ouviram foram batizados em nome do Senhor Jesus”. Antes eles só tinham
conhecido o batismo de João Batista; agora são “batizados em nome do Senhor
Jesus”. O nome dEle é o único nome, e o único batismo é em Seu nome. A
tragédia é que tantas vezes na Igreja aquilo que é mais importante tem sido
esquecido, e os homens têm argumentado, debatido e discutido, e,
infelizmente, têm até brigado sobre o modo e o método do batismo e, com isso,
têm produzido divisão. Se tão-somente se lembrassem do único nome, teriam
dado ênfase ao princípio da unidade.
Passamos agora àquilo que este batismo em nome de Cristo representa
realmente. Para alguns a resposta parece simples e óbvia, e eles levianamente
replicam que ele representa o lavar dos meus pecados, o perdão dos meus
pecados, devido ao fato de que sou justificado. Naturalmente isto é verdade, mas
se você parar nesse gonto, estará perdendo a coisa mais importante em relação
ao batismo. E certo que o batismo representa o lavar dos pecados, todavia,
havendo feito isso, vai adiante, para algo infinitamente mais importante. É
bom notar que a expressão utilizada é “batizado em” ou “batizado para”. Isto nos
dá a chave para um verdadeiro entendimento deste “um só batismo”. Significa
“em referência a Cristo”, ou “para o domínio de Cristo”, ou “para a esfera de
influência exercida por Cristo”.

Há uma interessante declaração, de novo na Primeira Epístola aos Coríntios, que


realmente lança muita luz sobre isto. O apóstolo está escrevendo àqueles
coríntios que estavam prontos a dividir, e emprega esta expressão espantosa:
“Ora, irmãos, não quero que ignoreis que nossos pais estiveram todos debaixo da
nuvem, e todos passaram pelo mar. E todos foram batizados em Moisés, na
nuvem e no mar” (10:12). É uma declaração a respeito dos filhos de Israel. Deus
tinha enviado Moisés para livrá-los do cativeiro do Egito. Eles partiram em
sua jornada, mas Faraó e os seus exércitos os perseguiram. Chegaram ao Mar
Vermelho, e Deus operou o milagre de dividir as águas do mar, e os filhos de
Israel, guiados por Moisés, passaram pisando terra seca. Ao tentarem segui-los,
os egípcios se afogaram. É com referência àquele acontecimento que o apóstolo
afirma que os filhos de Israel foram “batizados em (ou “para”) Moisés”. Essa
afirmação só pode ter um sentido. Eles foram batizados para a liderança, para a
esfera de influência de Moisés. Eles se tomaram identificados com Moisés e com
tudo pelo que ele lutava, e com a causa representada por Moisés. Noutras
palavras, eles foram separados dos egípcios entre os quais tinham vivido, e agora
eram o povo redimido de Deus, o povo salvo, o povo protegido e identificado
com Moisés, a quem Deus enviara para libertá-los. Agora havia uma divisão
entre eles e todos os que pertenciam ao domínio de Faraó.

Esta é uma descrição daquilo que é próprio de todos os que estão em Cristo.
Portanto, o batismo representa e significa a nossa introdução na esfera e sob a
influência do Senhor Jesus Cristo. Significa que anteriormente nós pertencíamos
ao mundo, pertencíamos ao domínio do mundo; mas no momento em que nos
tornamos cristãos, saímos do domínio do mundo para o domínio de Cristo, e o
batismo significa isso. Escrevendo aos colossenses, Paulo diz que Deus ‘ ‘nos
tirou da potestade das trevas, e nos transportou para o reino do Filho do seu
amor” (1:13).

Fomos tirados do mundo e postos no reino de Deus, no reino de Cristo. Estamos


num novo domínio, numa nova esfera, estamos sob uma influência inteiramente
nova. Não somente isso; quando somos batizados estamos confessando Cristo,
estamos anunciando que nos sujeitamos a Ele, que Ele Se tomou o nosso Mestre
e Senhor. Aqueles filhos de Israel poderiam ter ficado no Egito, se quisessem.
Mas tinham ouvido a Moisés e o seguiram, arriscando suas vidas com ele e
adentrando o Mar Vermelho. Tinham se sujeitado inteiramente à liderança de
Moisés, tinham-se rendido a ele. Ele era o seu líder, o seu mestre, o seu Senhor.
Figuradamente, foram batizados no Mar Vermelho para Moisés.

Assim, o batismo representa e significa que eu e vocês, que somos cristãos, não
pertencemos mais ao mundo, ao seu reino e aos seus interesses; mas, sim, que
agora pertencemos ao Senhor Jesus Cristo. Ele é para nós o único Senhor, o
único que reconhecemos como Mestre e Senhor. Compreendemos que estamos
por completo numa nova esfera e num novo reino; deixamos o mundo e O
seguimos. E isso que o batismo representa. Pensem de novo nos ouvintes de
Pedro no dia de Pentecoste. Havia judeus e prosélitos, e outros; eles estavam
ouvindo o sermão de um homem cheio do Espírito Santo. Enxergaram e
creram a verdade, e deram o momentoso passo de batizar-se em nome de
Jesus Cristo. Sabiam que isso poderia muito bem levá-los a sofrer perseguições,
que as suas famílias poderiam odiá-los, e talvez votá-los ao ostracismo porque
criam neste Jesus, neste Nazareno, que tinham sido crucificado como criminoso.
Mas, tendo enxergado a verdade, identificaram-se com Ele, submeteram-se ao
batismo e, ao serem batizados, identificaram-se com Cristo e Sua causa. Estavam
declarando que Jesus de Nazaré é o Senhor, que no reino espiritual César não é
o Senhor, porém Jesus é o Senhor, e não há outro, que Ele é o Messias, o
Libertador há tanto tempo esperado.

Todos nós que dizemos que estamos “em Cristo” estamos proclamando que
abandonamos tudo mais, que unicamente Ele é o nosso Mestre e Senhor, que
doravante vamos segui-10. Ele mesmo disse: “Se alguém quiser ser meu
discípulo, renuncie-se a si mesmo, tome sobre si a sua cruz, e siga-me” (cf.
Mateus 16:24). O batismo representa e significa que fizemos isso. A importância
disto, com relação à unidade, é óbvia. Antes éramos indivíduos, cada
homem exercendo a sua própria vontade e cada qual seguindo o seu
caminho; cada homem centralizado em si mesmo e egoísta. Ao nos
submetermos ao batismo, negamo-nos a nós mesmos, tomamos a cruz e
seguimos a Cristo. E óbvio que quando o fazemos sinceramente, não pode haver

divisão, só terá que haver unidade. Visto que todos nós desistimos de nós
mesmos, negamo-nos a nós mesmos e estamos olhando e seguindo o único
Senhor. Como os filhos de Israel não decidiram sobre a travessia do Mar
Vermelho, mas atenderam ao chamado de Moisés e o seguiram, assim nós não
somos mais guiados pelas nossas vontades, e sim O seguimos; e, daí, somos
todos um. O único batismo leva inevitavelmente à unidade.

No entanto, esta verdade maravilhosa ainda não se finda nisso. Há algo mais
profundo, a saber, aquilo que vemos no sexto capítulo da Epístola aos Romanos.
“Ou não sabeis que todos quantos fomos batizados em Jesus Cristo, fomos
batizados na sua morte? De sorte que fomos sepultados com ele pelo batismo na
morte; para que, como Cristo ressuscitou dos mortos, pela glória do Pai, assim
andemos nós também em novidade de vida” (versículos 3 e 4). Esta declaração
faz parte da seção de doutrina que começa no versículo 12 do capítulo cinco da
Epístola aos Romanos, onde o apóstolo está mostrando aos crentes, pessoas
cristãs, que como outrora eles estavam “em Adão”, e ligados a ele, agora estão
“em Cristo” e ligados a Cristo, e são uma parte de Cristo.

Pois bem, este é o argumento: Adão foi o primeiro homem. Nele estava junta
toda a humanidade, e ele era a totalidade da raça humana. Não somente isso,
Deus o fizera chefe e representante de toda a raça humana. Deus falou com ele
nessa qualidade, e lhe destinou e fez com ele uma aliança. Deus lhe disse que, se
ele pecasse, seria punido com a expulsão do Jardim, e sofreria a morte. Adão
desobedeceu e, como a argumentação do apóstolo mostra no restante do capítulo,
as conseqüências do pecado de Adão caíram sobre toda a sua posteridade. Todos
nós pecamos em Adão, porque todos estávamos “em Adão”; todos estávamos,
por assim dizer, nos lombos de Adão. Toda a humanidade vem de Adão; assim, o
que ele fez, todos nós fizemos. Isso por causa da raça humana. Adão foi o nosso
chefe federal e o nosso representante, de modo que o que ele fez, ele o fez por
nós; e somos responsáveis por isso, e as conseqüências vêm sobre nós.
“Em Adão todos morremos.”

A seguir o apóstolo passa a desenvolver e elaborar o seu argumento, e a mostrar


que “como em Adão todos morrem, assim em Cristo todos serão vivificados” (1
Cor. 15:22). Ele deixa isso ainda mais claro no capítulo 6 tratando da pergunta
que alguns poderiam fazer: “Permanecemos no pecado, para que a graça
abunde?” O apóstolo responde: “De modo nenhum. Nós, que estamos mortos
para o pecado, como viveremos ainda nele?” (Romanos 6:1-2). Mas se lhe

perguntassem: “Está morto para o pecado?” - certamente que está, replicaria


Paulo. Como é que estou morto para o pecado? Você está morto para o pecado
neste sentido, que você morreu para ele com o Senhor Jesus Cristo, a quem você
agora está ligado, como anteriormente estava ligado a Adão. Você está agora em
Cristo, como outrora estava em Adão; e o que Cristo fez, você fez. Podemos
afirmar esta verdade da seguinte maneira também: na Primeira Epístola aos
Coríntios o apóstolo diz: “Pois todos nós fomos batizados em um só
espírito formando um corpo, quer judeus, quer gregos” (12:13). Não sou tão-
somente um crente em Cristo, não só tenho aquela fé justificadora que me
assegura que os meus pecados estão perdoados porque Deus os puniu em Cristo
e imputa a Sua justiça a mim, mas eu estou “em Cristo”, fui batizado pelo
Espírito Santo no corpo de Cristo, que é a Igreja. Cada cristão - “todos nós” - foi
incorporado em Cristo, foi ligado a Cristo e é membro do Seu corpo, a Igreja.
Como estávamos “em Adão”, assim estamos “em Cristo”. Examinemos algumas
das conseqüências disto, e vejamos a sua particular importância quanto a essa
questão de unidade.

Tudo que aconteceu a Cristo, diz o apóstolo, aconteceu conosco. Ele foi
crucificado; e fomos crucificados com Ele. “Fui crucificado com Cristo”, diz
Paulo aos Gálatas; e, como vimos em Romanos 6:3, “Ou não sabeis que todos
quantos fomos batizados em Jesus Cristo fomos batizados na sua morte?”
Quando Adão pecou, nós pecamos. Quando Cristo morreu, nós morremos. Nós
morremos com Ele. Fomos sepultados com Ele, o que significa que estamos
“mortos para o pecado”. “Nós, que estamos mortos para o pecado, como
viveremos ainda nele?” O apóstolo passa a explicar que “aquele que está
morto está justificado do pecado” (Romanos 6:7). Diz ele: “Sabendo
que, havendo Cristo ressuscitado dos mortos, já não morre; a morte não
terá mais domínio sobre ele”. Quanto a nós isto significa que estamos mortos
para o reino do pecado, estamos mortos para toda a autoridade do pecado,
estamos mortos para “o mundo”. Diz ainda o apóstolo aos gálatas: “Longe esteja
de mim gloriar-me, a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o
mundo está crucificado para mim e eu para o mundo” (6:14). Sintam-no vocês
ou não, se estamos em Cristo, essa é a verdade concernente a nós. Todos nós
pertencemos por natureza ao mundo, ao diabo e ao pecado; mas, tendo sido
crucificados com Cristo, não pertencemos mais àquela esfera. Fomos
crucificados para o mundo, e o mundo foi crucificado para nós. Coloquemos
o ponto desta maneira: outrora eu era um homem em Adão, mas tendo morrido
com Cristo, não estou mais naquela situação. Não pertenço mais à raça de Adão;
eu pertenço à nova raça que começou no Senhor

Jesus Cristo, que é “o primogênito entre muitos irmãos”. “Sabendo isto, que o
nosso homem velho foi com ele crucificado, para que o corpo do pecado seja
desfeito, para que não sirvamos mais ao pecado” (Romanos 6:6).

Nada é mais importante que a compreensão desta verdade particular. Ela afeta o
princípio de unidade da seguinte maneira: o pecado sempre leva à divisão e à
discórdia. No momento em que o homem pecou e caiu, a discórdia e a desunião
entraram no mundo. Vocês podem delinear a história nos primeiros capítulos de
Gênesis. Vocês vêem Caim chegar a matar o seu irmão. Esse é o efeito do
pecado. O pecado sempre divide porque leva ao egoísmo. O homem rebelde
e pecador não dobra mais os seus joelhos para Deus; ele próprio se fez um Deus.
Cada qual se faz um Deus, e assim há discórdia e desunião, rivalidade e conflito.
Assim é sempre o homem adâmico. E assim o mundo está dividido hoje como
sempre esteve no transcurso dos séculos; e há divisões entre nações, raças,
grupos e alinhamentos de nações, por causa da natureza adâmica que está no
homem. Mas quando um homem está “em Cristo”, está ligado a Ele; morreu
com Ele; o velho homem está morto; ele é um novo homem. E posto que essa é a
verdade a respeito de todos os que estão em Cristo, não deveria haver nenhuma
divisão, nenhum conflito, nenhuma separação.

“Um só Senhor, uma só fé, um só batismo.” Não somos mais criaturas adâmicas.
Não devemos estar mais exercendo as nossas vontades separadas, e não deve
haver mais divisão, rivalidade, ciúme, inveja. Não devemos começar a dizer:
“Eu sou de Paulo, eu sou de Apoio, eu sou de Cefas”. Não devemos gabar-nos
de nomes; há somente um nome - “um só Senhor, uma só fé, um só
batismo”. Estamos nEle, não somos mais adâmicos, somos cristãos, somos
povo de Cristo. Morremos com Ele, fomos sepultados com Ele. O velho homem
e os seus caminhos foram levados ao fim. Mas, graças a Deus, há também o
positivo. Também “ressuscitamos com ele”. Recebemos nova vida dEle, através
dEle. Embora estivéssemos mortos em ofensas e pecados, fomos vivificados
“juntamente com Cristo”.

Assim Paulo prossegue, argumentando e exortando: “Assim também vós


considerai-vos como mortos para o pecado, mas vivos para Deus em Cristo
Jesus, nosso Senhor” (Romanos 6:11). Isto significa que o cristão não é tão-
somente um homem que crê no Senhor Jesus Cristo e que Cristo morreu por ele
em seus pecados. Ele crê nisso, e sabe que os seus pecados estão perdoados
porque Cristo morreu por ele. Entretanto, ele é muito mais do que isso! Ele está
“em Cristo”, está ligado a Cristo, e a vida de Cristo está nele. Cristo é a Cabeça,
e ele é

um membro do corpo. Cristo é a Videira, e ele é um ramo. Ele está “em Cristo”,
faz parte de Cristo. A vida de Cristo está nele, e é a mesma vida que está em
todos os membros. Tudo isso é verdade quanto ao cristão porque ele foi batizado
naquele corpo único de Cristo pelo Espírito Santo (1 Coríntios 12:13). Este é o
verdadeiro significado de “um só batismo”. Quando e enquanto
compreendermos isto, e quando todos vivermos à luz disto, não poderá haver
divisão. Cristo não está dividido, o corpo é um só; ele tem uma unidade
orgânica. Não deve haver cisão no corpo, não deve haver guerra civil. Todos nós
e cada um de nós estamos “nele”, a Cabeça viva, e Sua vida está em
nós, permeando o nosso ser, enchendo-nos com o seu poder,
derramando amplamente o seu amor dentro de nós.

Vemos assim, o que o apóstolo quer dizer com este “um só batismo”. Ele não
está pensando em termos do rito; não é nada mágico; é esta percepção de que há
somente um nome e um só Senhor, há somente uma vida, a vida do Filho de
Deus, que nos redimiu, que ascendeu ao céu, em quem fomos incorporados, e
cuja vida é a nossa vida. Escrevendo aos Colossenses, Paulo diz: “Quando
Cristo, que é a nossa vida, se manifestar...”. (3:4). Ele é a nossa vida. Quando
cada um de nós poder junta-se à proclamação: “Vivo, não mais eu, mas Cristo
vive em mim”, seremos todos um nesta unidade espiritual viva. O velho ego terá
desaparecido e seremos um em Cristo, a Cabeça viva.

UM SÓ DEUS

“Um só Deus e Pai de todos, o qual é sobre todos, e por todos, e em


todos." Efésios 4:6

Estas palavras completam a grande declaração do apóstolo iniciada no versículo


4: “Háum só corpo e um só Espírito, como também fostes chamados em uma só
esperança da vossa vocação; um só Senhor, uma só fé, um só batismo; um só
Deus e Pai de todos, o qual é sobre todos, e por todos, e em todos”. É também o
clímax do apelo de Paulo aos cristãos efésios para “se esforçarem para guardar a
unidade do Espírito pelo vínculo da paz”. Como vimos, ele lhes dá estas sete
razões para fazê-lo, e as divide em três grupos principais. As três
primeiras centralizam-se no Espírito Santo (um só corpo^um só Espírito, uma
só esperança da vossa vocação); as três seguintes no Filho (um só Senhor, uma
só fé, um só batismo); e agora chega ao clímax - “um só Deus e Pai de todos, o
qual é sobre todos, e por todos, e em todos”.

Nada é tão característico do modo como o apóstolo escreve às diversas igrejas


como o modo como ele sempre sobe a esse clímax. Vemos outro exemplo disto
no capítulo onze da Epístola aos Romanos, onde, depois de esboçar o curso da
história da Igreja e de mostrar como uma cegueira temporária tinha caído sobre
Israeh ele afirma o grande e seguro propósito de Deus e termina dizendo: “O
profundidade das riquezas, tanto da sabedoria, como da ciência de Deus!
Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis os seus caminhos! Por
que quem compreendeu o intento do Senhor? ou quem foi seu conselheiro? ou
quem lhe deu primeiro a ele, para que lhe seja recompensado? Porque dele, e por
ele, e para ele, são todas as coisas; glória pois a ele eternamente. Amém”
(versículos 33 a 36). O apóstolo não pára no Espírito ou no Filho, como tantos
cristãos são tentados a fazer; ele sempre prossegue, indo ao Pai.

Devemos lembrar-nos de que o apóstolo coloca estas verdades numa ordem


experimental. Como membros da Igreja, naturalmente pensamos primeiro na
obra do Espírito Santo. Mas o Espírito Santo leva-nos ao Filho, pois Ele foi
enviado para glorificar o Filho. E o

principal desejo e propósito do Filho era glorificar o Pai. Isto precisa ser
salientado na época atual porque há uma tendência de se deixar de lembrar isto.
Há uma escola popular de teologia que dá ênfase ao aspecto cristocêntrico da
salvação. Num sentido é correto fazê-lo; todavia nunca devemos parar no Filho.
O apóstolo Pedro, em sua primeira Epístola, lembra-nos isto quando escreve:
“Porque também Cristo padeceu uma vez pelos pecados, o justo pelos injustos,
para levar-nos a Deus” (3:18).

O apóstolo está interessado em mostrar que tudo que se relaciona com a nossa
salvação sugere o elemento de unidade; e em nenhuma outra parte se vê isso
mais claramente do que na doutrina das Pessoas da bendita e santa Trindade.
Cada Pessoa da Trindade está interessada em nós e em nossa salvação; cada
Uma delas trata de um aspecto particular dessa obra, e cada Uma delas coopera
com as Outras. O apóstolo está incentivando os crentes efésios a se lembrarem
disto sempre. Ele não começa falando-lhes imediatamente a respeito
deles mesmos; lembra-lhes, em vez disso, a grande verdade objetiva concernente
à salvação deles. Esta é a chave para a maior parte dos nossos problemas. Vejo
cada vez mais que a maioria das dificuldades da vida cristã deve-se^ao fato de
que somos demasiado subjetivos e passamos muito tempo examinando-nos a nós
mesmos e tomando o nosso pulso espiritual, por assim dizer. A cura para muitas
doenças e enfermidades da alma está em dar atenção à grande verdade
objetiva, à glória da nossa redenção e salvação. Se tão-somente nos
déssemos conta de que as três benditas Pessoas de Trindade santa estão íntima e
ativamente interessadas em nós e em nossa salvação, toda a nossa situação
mudaria completamente. O ensino bíblico concernente à salvação é que, antes
mesmo do tempo, num eterno conselho do Pai, do Filho e do Espírito Santo, a
nossa salvação foi planejada e projetada; e na plenitude do tempo ela foi posta
em ação. Como membros da Igreja, ensina-nos o apóstolo, estamos em relação
com o Espírito e o Filho e o Pai. E esta relação torna inevitável a questão
da unidade.

Esta é também a única maneira de manter essa unidade; não o estabelecimento


de uma imensa organização a fim de tentar produzida. O caminho para a unidade
é pregar o evangelho, não estabelecer novos ofícios e organizações. A unidade
resulta da compreensão e entendimento da verdade.

E agora chegamos à verdade particular concernente a “um só Deus e Pai de


todos”. Por alguma estranha razão, estamos constantemente em perigo de
esquecer que a Igreja é, depois de tudo, “a igreja de

Deus”. Existem seitas que falam sobre “a igreja de Cristo” - e há um sentido em


que a Igreja é a Igreja de Cristo, porém a expressão empregada na Bíblia é “a
igreja de Deus”. Lemos, por exemplo, sobre “A igreja de Deus que está em
Corinto”.

Como será que isto nos ajuda a entender este princípio de unidade? A primeira
expressão é, “um só Deus”. Isto quer dizer que, como cristãos, constatamos que
existe somente um Deus. O mundo pagão ao qual os cristãos efésios tinham
pertencido anteriormente não cria nesta verdade. Como o apóstolo lembra aos
coríntios, “sabemos (nós, cristãos) que o ídolo nada é no mundo, e que não há
outro Deus, senão um só. Porque, ainda que haja também alguns que se chamem
deuses, quer no céu, quer na terra (como há muitos deuses e muito
senhores), todavia para nós há um só Deus, o Pai, de quem é tudo e para quem
nós vivemos; e um só Senhor, Jesus Cristo, pelo qual são todas as coisas, e nós
por ele” (1 Coríntios 8:4-6). Aqui também, no interesse da unidade, o apóstolo
está apresentando o argumento do “um só Deus”. A crença numa multiplicidade
de deuses sempre leva à divisão. Este adora a Júpiter, aquele a Mercúrio, outro
adora ao deus Marte ou a algum outro Deus. As vilas e cidades dos pagãos
estavam repletas de altares dedicados aos diversos deuses, como Paulo viu em
Atenas. Isso, Paulo ensinava em toda parte, era resultado da obra do diabo;
pois há unicamente “um Deus”. E, uma vez que há somente um Deus, tem que
haver unidade essencial entre os que crêem nEle.

O apóstolo não está só ensinando que há somente um Deus, mas também está
acentuando o fato de que Deus é um só. Este é um grande mistério, porém é a
essência da doutrina da Trindade. Não cremos que existem três deuses; há um só
“Deus em três Pessoas, a bendita Trindade”. A grande doutrina específica que os
judeus tinham que preservar e proteger era esta verdade e doutrina concernente à
unidade de Deus, que “Deus é um”. Isto explica por que alguns dos judeus
a princípio achavam difícil crer no Senhor Jesus Cristo, que Se dizia um com o
Pai. Isto parecia insinuar que há dois deuses, mas não é assim. Não tentem
entender isto; ninguém pode entender este mistério último. Contudo é a verdade
que encontramos nas Escrituras. Deus é Um - há uma só Deidade. Todavia há
três Pessoas na Deidade. Isto não implica três deuses, não triteísmo, e sim
monoteísmo - três Pessoas na Deidade Eterna e Una. Evidentemente, esta
verdade está na mente do apóstolo aqui. Reconhecemos o Espírito;
reconhecemos o Filho; reconhecemos o Pai; não obstante, dizemos que os três
são um só Deus.

As Escrituras ensinam isso do começo ao fim. Lemos que o Espírito está em nós,
que Cristo está em nós, que Deus está em nós. Lemos que o Espírito fez certas
coisas, lemos noutras partes que Cristo fez as

mesmas coisas, e ainda que o Pai fez as mesmas coisas. Essa é apenas uma
maneira de salientar esta verdade, que os Três são Um na Deidade etema - “Deus
em três Pessoas, a bendita Trindade”. É Trindade em Unidade, é Triunidade. Isso
de novo reforça e acentua o princípio de unidade na Igreja. Assim como as três
benditas Pessoas são um só Deus, também nós, que adoramos e pertencemos a
Deus, somos igual e necessariamente um só. Portanto, devemos lembrar-nos de
“guardar a unidade do Espírito pelo vínculo da paz” examinando, crendo
e admirando esta doutrina da Trindade.

Pode-se deduzir disto certas conclusões práticas. O fim e objetivo da salvação é


“trazer-nos a Deus”. Não seria estranho que tenhamos de estar repetindo e
salientando isso? O objetivo da salvação não é levarmos ao Senhor Jesus Cristo.
O Senhor Jesus Cristo veio a este mundo e fez tudo que fez para “trazer-nos a
Deus”, a Deus o Pai. É por isso que oramos a Deus o Pai, e não ao Senhor Jesus
Cristo. Vimos a Deus por meio do Senhor Jesus Cristo; mas a finalidade de tudo
é “trazermos a Deus”. Vemos que isto é completamente inevitável
quando entendemos realmente a mensagem da B íblia. No princípio vemos
que Deus fez o homem à Sua imagem, e que o homem era submisso a
Deus. Todavia o pecado e a rebelião entraram; e isso levou à Queda, cujo efeito
foi separar de Deus o homem. Assim como o pecado é aquilo que nos separa de
Deus, a salvação é aquilo que nos traz de volta a Deus. O grande fim e objetivo
da salvação não é somente que sejamos felizes e tenhamos certas experiências e
certos benefícios. Ela faz isso, é certo, mas se eu não compreender que o
principal fim da minha salvação é reconciliar-me com Deus, trazer-me a Deus e
habilitar-me a compare; cer na presença de Deus, não a terei entendido
verdadeiramente. É neste ponto que o cristianismo difere de todas as seitas e de
todas as outras religiões. Elas sempre se centralizam no homem e
nalgum benefício para o homem; entretanto a fé e doutrina cristã começa
com Deus, e tudo leva a Deus - “um só Deus”.

Sendo este o grande fim e objetivo da salvação, todos nós, que somos cristãos,
devemos, portanto e evidentemente, vir juntos ao mesmo Deus; e se viermos ao
mesmo Deus, não poderá haver divisões. Todos nós temos um e o mesmo objeto
de culto. O apóstolo já tinha tratado disso várias vezes em porções anteriores
desta Epístola. No capítulo 2, versículo 18, ele diz: “Porque por ele (Cristo)
ambos (judeu e gentio) temos acesso ao Pai em um mesmo Espírito”. O judeu
era anteriormente um adorador de Deus, enquanto que o gentio era um adorador
de uma das divindades pagãs; mas agora tudo isso passou e tanto o judeu como o
gentio têm “acesso ao Pai em um mesmo

Espírito” (ou “por um mesmo Espírito”). Se compreendêssemos isto, a unidade


seria totalmente inevitável.

No céu se centraliza em Deus. É-nos ensinado isto claramente nos capítulos 4 e


5 do livro de Apocalipse. Os animais, os anciãos e todos os santos anjos adoram
a Deus o Pai Eterno, e se inclinam diante dEle, focalizando-se nEle. Diante dEle
os anjos velam seus rostos. Há perfeita harmonia no céu. Na verdade é isto que
faz do céu, céu; não há desunião, não há discórdia. Tudo é em uníssono, tudo em
harmonia. Deus é tudo, e todos O adoram e se prostam diante dEle. Deus é
o centro. E, portanto, tudo é bem-aventurança, alegria e perfeição. No entanto,
Paulo nos lembra que, mesmo aqui na terra, todos nós estamos adorando este
único Deus, e quando nos apercebemos da presença de Deus, todas as distinções
e cismas se desvanecerão e desaparecerão imediatamente. Na presença da glória
de Deus, tudo mais empalidece, reduzindo-se à insignificância, e “nos
absorvemos em encanto, amor e louvor”. Um só Deus! Nós O adoramos, ao
Deus único, e o fazemos todos juntos. Não há necessidade de argumentar acerca
da unidade; a percepção da presença de Deus cria unidade.

Além disso, podemos e devemos lembrar-nos de que todos nós estamos indo a
este único Deus, ao mesmo Deus. Estamos agora na terra e estamos juntos como
membros da Igreja. A nossa salvação nos reconcilia com Deus, e nos habilita a
cultuá-10. Mas não somos estáticos; somos apenas “estrangeiros e peregrinos”
neste mundo, estamos “marchando para Sião”. Todos vamos encontrar e ver
o mesmo Deus. “Bem-aventurado os limpos de coração, porque eles verão a
Deus.” Estamos indo para o mesmo lar eterno. Como o hino já citado nos
lembra:

Um só o prazer de alegrar-nos Na longe praia eternal,

Onde o uno Pai onipotente Com amor reina, para sempre.

Ah, que possamos compreender que estamos todos sob os olhos de Deus, e que
todos estamos indo a Deus! Há somente um Deus, e nada mais importa.

Contudo, o apóstolo não nos deixa nisso; diz ele: “Um só Deus e Pai de todos, o
qual é sobre todos, e por todos, e em todos”. É sumamente importante que
notemos que a palavra todos não está no gênero neutro, e sim no masculino. Isto
é importante porque, quando ele diz, “Um só Deus e Pai de todos”, não quer
dizer todas as coisas - a criação, o

universo, o cosmos e tudo o que ele contém - mas todas as pessoas. Não
obstante, devemos apressar-nos a acrescentar que não significa cada indivíduo
singular que já viveu ou ainda viverá. Há os que se dispõe a dizer que o sentido é
esse, e que vêem neste versículo um argumento em prol daquilo que eles
chamam “Paternidade Universal de Deus”. Deus, afirmam eles, é o Pai de todos,
e nós, como cristãos, não devemos restringir a paternidade de Deus unicamente a
nós. Uma cuidadosa análise da declaração mostra que não pode ser esse
o sentido. O apóstolo está escrevendo acerca da Igreja; não está escrevendo
acerca do mundo. Está escrevendo aos que pertencem a um “corpo”, aos que
estão “em Cristo”; está escrevendo a cristãos aos quais exorta a se esforçarem
para “guardar a unidade do Espírito pelo vínculo da paz”. Ele não está pensando
no mundo em geral, porém nos que foram recolhidos do mundo e incorporados
no corpo de Cristo, e que são membros do Seu corpo místico. A referência toda é
unicamente ao povo cristão; o termo “todos” cobre todos os cristãos, e
ninguém mais.

Não só isso, pois a última frase aí, “e em todos”, basta para firmar a questão uma
vez por todas. Essa frase nunca é utilizada acerca do incrédulo, do não cristão.
Deus está somente “no” crente, “no” cristão. Contudo, podemos ir adiante e dar
uma conclusiva prova afinal. O versículo seguinte - o versículo 7 - estabelece a
nossa argumentação além de toda e qualquer dúvida, no sentido de que o
apóstolo está falando acerca da Igreja - “Mas a graça foi dada a cada um de
nós segundo a medida do dom de Cristo” - e ele passa a tratar da distribuição de
dons e trabalhos dentro do corpo, da Igreja. Assim, desde o início ele está
limitando a sua atenção à Igreja, ao povo cristão, e não está dizendo coisa
alguma sobre os de fora.

Deus não é o Pai de todos os homens. A respeito de alguns homens, disse o


nosso Senhor: “Vós tendes por pai ao diabo, e quereis satisfazer os desejos de
vosso pai” (João 8:44). Deus é o criador de todos, e nesse aspecto há uma
espécie de paternidade geral; mas a paternidade de Deus, como exposta aqui,
limita-se aos que estão em Cristo e na Igreja. Assim, enquanto que não cremos
na paternidade universal de Deus e na fraternidade universal do homem, nós
cremos e devemos crer na paternidade de Deus, no caso de todos os que
pertencem a Cristo. O apóstolo começara nesta Epístola dizendo: “Bendito o
Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo”, e toda a sua argumentação é que,
mediante Cristo, Deus Se tornou nossa Pai também. O fato estupendo
que devemos tentar captar é que Deus, este grande, glorioso e eterno Deus, é
nosso Pai. Paulo repetira isso no capítulo 2, dizendo: “Por ele ambos temos
acesso ao Pai em um mesmo Espírito” (versículo 18). Depois,

no capítulo 3, ele se refere ao “Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, do qual toda a
família nos céus e na terra toma o nome” (versículos 14 e 15), e ele está apenas
repetindo isso aqui. Se tão-somente víssemos e entendêssemos pelo Espírito que
somos filhos de Deus, isto revolucionaria todo o nosso modo de pensar e de
viver. O apóstolo Pedro, empregando uma expressão diferente, afirma que somos
“participantes da natureza divina” (2 Pedro 1:4). Não significa que os
tornamos deuses, mas sim, que nos foi dado um princípio de vida que vem
do próprio Deus.

E isso que realmente significa ser cristão. O cristão é alguém que nasceu de
novo, nasceu do Espírito, nasceu de Deus. Este princípio da vida divina e eterna
foi posto nele; portanto, ele é o filho de Deus. Deus é seu Pai. Isto
necessariamente introduz o princípio da unidade. Como cristão, somos todos
filhos de Deus, filhos do mesmo Pai, pertencentes à mesma família. Pertencemos
à família da qual Paulo nos lembrara no fim do capítulo dois, onde ele diz: “Já
não sois estrangeiros, nem forasteiros, mas concidadãos dos santos, e da família
de Deus”. Fomos adotados na família de Deus, e Ele enviou aos nossos corações
o Espírito de Seu Filho, que clama: “Aba, Pai” (Gálatas 4:6). Quão pouco
pensamos nestas coisas, e quão raramente falamos delas! Como nos
preocupamos com exterioridades e com as coisas que se acham na periferia e na
circunferência da nossa vida cristã! Se retomássemos a estas centralidades, se
tão-somente nos déssemos conta do sentido desta particular declaração de que
Deus é nosso Pai, de que pertencemos à Sua família, e de que Ele cuida de nós
como Seus filhos queridos e bem-amados, toda a nossa perspectiva mudaria e a
unidade se seguiria inevitavelmente, como a noite segue-se ao dia.

O apóstolo era um sábio mestre. Conhecia estes efésios, e a nós. Por isso não
deixa isto como uma declaração geral; vai adiante, às particularidades,
acrescentando: “O qual é sobre todos, e por todos, e em todos”. Este acréscimo
não é mero floreio retórico nem vão acúmulo de palavras. É o desenvolvimento
do que ele já dissera em detalhe, sabendo que, se eles captassem isto,
solucionaria os seus problemas e os ajudaria a guardar “a unidade do Espírito
pelo vínculo da paz”. Ele divide a declaração geral em três pontos
particulares. Alguns interpretam isto entendendo que, obviamente, o apóstolo
está se referindo de novo à doutrina da Trindade. Dizem eles que “um só Deus e
Pai de todos, o qual é sobre todos” refere-se a Deus o Pai; “por todos” refere-se a
Deus o Filho; “e em todos (vós)” refere-se a Deus o Espírito Santo. Muitos
grandes e cultos comentadores argumentam desse modo, provavelmente
inclinados a se repetirem uns aos outros.

Mas por certo essa é uma explicação e exposição totalmente impossível pela boa
e suficiente razão que o apóstolo está tratando aqui unicamente do Pai, de “Um
só Deus e Pai de todos, o qual é sobre todos, e por todos, e em todos”. Ele já
falara do Espírito e do Filho; agora fala do Pai, e, indubitavelmente, estas três
afirmações referem-se ao Pai.
Minha opinião é que Paulo já nos dera nos três primeiros capítulos uma
exposição do que ele quer dizer aqui. A primeira coisa que ele diz acerca do Pai
é que Ele é “sobre todos”. Significa que Deus está acima de todos. E uma
referência à supremacia de Deus o Pai, à posição exaltada do Pai, ao fato de que,
na “economia” da Trindade, Deus o Pai é supremo. Na obra de salvação o Filho
subordinou-Se ao Pai, embora sendo co-igual e co-etemo com Ele; e o Espírito
subordinou-Se ao Filho e ao Pai. O Pai está “acima de todos”; a Ele pertence a
supremacia final. Refere-se isto ao fato de que Deus é Criador, de que Deus
é supremo, acima de todo o universo, de todo o cosmos? Isso é verdade; mas não
é isso que o apóstolo tem em mente aqui. Ele está pensando em termos da Igreja.
E quando ele diz que Deus, o único Pai, é sobre todos, está querendo dizer sobre
todos na Igreja e para a Igreja dos redimidos. Certamente o sentido é que em
toda esta questão da Igreja, esta questão dos redimidos, no meu caso, no seu e de
todos nós que estamos no corpo de Cristo e nesta bem-aventurada unidade, Deus
o Pai é o originador de tudo isso. A Igreja é o Seu grande propósito e desígnio. O
apóstolo já estivera dizendo e expondo isto no primeiro capítulo: “Bendito o
Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo” (versículo 3). Aí é onde ele começa, e
aí é onde nós devemos começar em nosso pensamento. Ele está prestes a expor a
doutrina cristã, ele está prestes a revelar a coisa admirável que Deus fez,
trazendo a Igreja à existência, e começa com, “Bendito o Deus e Pai de nosso
Senhor Jesus Cristo”. Mas ele continua dando ênfase à mesma coisa
nos versículos seguintes: “Como também (Deus o Pai) nos elegeu nele (Deus o
Filho) antes da fundação do mundo, e nos predestinou para filhos de adoção por
Jesus Cristo para si mesmo (Deus o Pai)”. O Pai concebeu a idéia, planejou-a,
projetou-a. Notem depois a significativa frase no final do versículo 5, “segundo
o beneplácito de sua vontade” - a vontade de Deus.

Vê-se a mesma verdade, ainda mais explicitamente, em versículos que se acham


um pouco adiante: “Descobrindo-nos o mistério da sua vontade, segundo o seu
beneplácito, que propusera em si mesmo” (versículo 9). O grande e eterno Deus,
em Sua glória, infinidade e inefabilidade, “propusera em si mesmo” cuidar de
mim e de vocês e redimir-nos, tirar-nos do domínio do pecado, de satanás e do
inferno,

colocar-nos “no corpo de Cristo” e adotar-nos para a Sua família. O próprio


Deus o Pai o fez, “segundo o benefício de sua vontade”, “segundo o seu
benefício, que propusera em si mesmo”. E neste sentido que Deus o Pai está
“sobre todos” ou “acima de todos”. O propósito é exposto claramente com as
seguintes palavras: “De tornar a congregar em Cristo todas as coisas, na
dispensação da plenitude dos tempos, tanto as que estão nos céus como as que
estão na terra; nele” (versículo 10).

Dessas coisas o apóstolo nos está lembrando aqui, no capítulo 4, ao tratar da


questão da unidade. Seu argumento é que há “um só Deus e Pai de todos, o qual
é sobre todos”, e, sendo sobre todos, o Seu plano e propósito é reunir, juntar em
um só todas as coisas em Cristo. Não haverá necessidade de argumentar ou
apelar acerca da unidade, se se perceber que o propósito de Deus o Pai, o qual é
sobre todos, é reunir, tornar a juntar em um só, aquilo que foi dividido e
separado pelo pecado. A desunião e o cisma ser-nos-ão completamente
impossíveis se nos regozijarmos nessa verdade; jamais deveríamos permitir-
nos estar numa posição na qual causamos divisão. Todo o propósito de Deus é
reunir. Ele é “sobre todos”, e planejou e projetou este recolhimento de todos
juntos outra vez.

Paulo diz, porém, em segundo lugar, que Deus não somente é “sobre todos”, mas
também é “por todos”, ou “produz energia” em todos. Pode-se considerar isto
como uma descrição da providência de Deus. Noutras palavras, Paulo está
dizendo que Deus permeia toda a vida da Igreja e a sustenta. É a energia de Deus
que trouxe à existência a Igreja, mantém em existência a Igreja e a manterá
existindo até à consumação final. O apóstolo mesmo expõe isto no fim do
capítulo primeiro, onde, tendo dado graças a Deus pelos cristãos efésios, diz-lhes
que está orando por eles desta maneira: “... tendo iluminados os olhos do vosso
entendimento, para que saibais qual seja a esperança da sua vocação, e quais as
riquezas da glória da sua herança nos santos; e qual a sobreexcelente grandeza
do seu poder sobre nós, os que cremos, segundo a operação da força do seu
poder, que manifestou em Cristo” (versículos 18-20). O seu desejo quanto a eles
é que se apercebam da sobreexcelente grandeza do poder de Deus, “a energia da
força do seu poder”, para com os todos os que crêem. Este é o poder que os
havia tirado das trevas e da morte para a luz e a vida, quando eles estavam
“mortos em ofensas e pecados”. Ele os vivificara e os ressucitara dos mortos
com essa energia. Homem nenhum seria salvo, nem poderia ser salvo, a não ser
pela energia de Deus; é Ele que nos vivifica e nos ressucita da morte decorrente
do pecado.

Isto é desenvolvido no capítulo 2. Deus não parou em nossa vivificação. Ele nos
mantém e nos sustenta. Nada é mais importante, diz Paulo a estes efésios, do que
o fato de conhecer esta “sobreexcelente grandeza do seu poder sobre nós, os que
cremos”. E este poder está em todos nós. A mesma energia, a mesma vida e o
mesmo poder estão em todos nós. O conhecido hino, que fala da natureza da
Igreja, lembramos isto:

Uma só, a luz da presença divina Por sobre o Seu povo remido espalhou,

Expulsando a treva e todo o terror,

A iluminar todo o caminho em que andamos.

Um só o objetivo da nossa jornada,

Somente uma fé que jamais se afadiga,

Um somente o olhar resoluto adiante,

Uma só esperança o nosso Deus inspira;

Com a mesma idéia em mente, Paulo, escrevendo aos fdipenses, diz: “Operai a
vossa salvação com temor e tremor; porque Deus é o que opera em vós tanto o
querer como o efetuar, segundo a sua boa vontade” (2:12-13). Vê-se aenergia de
Deus na santificação, como em todas as partes da nossa salvação. Ele é “sobre
todos”; Ele é “por todos”. Finalmente, Ele é “em todos vós”. Esta, a coisa mais
espantosa de todas, não significa nada menos que o fato de que Deus o Pai,
como Deus o Filho e Deus o Espírito Santo, está em todos nós. O
apóstolo dissera no capítulo 2: “Já não sois estrangeiros, nem forasteiros,
mas concidadãos dos santos, e da família de Deus; edificados sobre
o fundamento dos apóstolos, de que Jesus Cristo é a principal pedra da esquina;
no qual todo o edifício, bem ajustado, cresce para templo santo no Senhor, no
qual também vós juntamente sois edificados para morada de Deus em Espírito”
(versículos 19-22). A Igreja é habitação de Deus; Ele habita nela, e, portanto, em
nós. O nosso Senhor mesmo já tinha ensinado isto, como vemos no Evangelho
Segundo João: “Jesus respondeu, e disse-lhe: se alguém me ama, guardará a
minha palavra, e meu Pai o amará, e viremos para ele, e faremos nele a morada”
(14:23). Estas palavras expõem a verdade em todo o seu esplendor, encanto e
glória. Não podemos contemplá-la sem sermos um. Não é surpreendente que o
nosso Senhor, em Sua “oração sacerdotal”, tenha orado assim: “Para que todos
sejam um, como tu, ó Pai, o és em mim, e eu em ti; que também eles sejam um
em nós, para que o mundo creia que tu me enviaste. E eu dei-lhes a glória que a
mim
me deste, para que sejam um, como nós somos um. Eu neles, e tu em mim, para
que eles sejam perfeitos em unidade, e para que o mundo conheça que tu me
enviaste a mim, e que tens amado a eles como me tens amado a mim” (João
17:21-23). “Um só Deus e Pai, o qual é sobre todos, por todos, e em todos.”

Você tem contemplado esta grande verdade? Você tem considerado o fato de que
Deus o Pai, Deus o Filho e Deus o Espírito Santo estão interessados em sua
redenção? Você entendeu que somente a percepção disso no faz um? O fim de
toda a doutrina é levar ao conhecimento de Deus e ao serviço de Deus; todo e
qualquer conhecimento que possamos ter será inútil se não nos levar a esse
ponto. Se o seu espírito não for humilde, se você não tiver amor, se não estiver
interessado nesta unidade do povo de Deus, você não terá nada melhor do que
um conhecimento intelectual que, além de estéril, na verdade pode até ser do
diabo. Disse o nosso Senhor: “Se sabeis estas coisas, bem-aventurados sois se as
fizerdes” (João 13:17). Você está lutando para aperceber-se de que há “um só
corpo e um só Espírito, como também fostes chamados em uma só esperança da
vossa vocação; um só Senhor, uma só fé, um só batismo; um só Deus e Pai de
todos, o qual é sobre todos, e por todos, e em todos”? Diz-nos o apóstolo Pedro
que os anjos desejam examinar bem isso. Você o está examinado?

Cf. Salmos e Hinos, 318. Nota do tradutor.


“UM... CADA UM”

“Mas a graça foi dada a cada um de nós segundo a medida do dom de Cristo.
Pelo que diz: subindo ao alto, levou cativo o cativeiro, e deu dons aos homens.
Ora, isto - ele subiu - que é, senão que também antes tinha descido às partes
mais baixas da terra? Aquele que desceu é também o mesmo que subiu acima de
todo os céus, para cumprir todas as coisas.”

Efésios 4:7-10

Embora esta grande declaração comece com a disjuntiva “mas”, é óbvio que o
assunto de que trata está estreitamente relacionado com o de que estivemos
tratando. Noutras palavras, “mas” é, afinal de contas, uma conjunção. Implica
um contraste, porém, ao mesmo tempo, levamos de volta ao que se passou antes.
Evidentemente, o apóstolo está continuando ainda com o assunto da unidade da
Igreja; ainda está desenvolvendo a exortação a “guardar a unidade do Espírito
pelo vínculo da paz”. Entretanto, agora vai fazê-lo de maneira
ligeiramente diversa; ele vai examinar outro aspecto do assunto. Por isso
emprega esta particular palavra “mas”. E essencial que o tenha feito, pois, se
não o fizesse, correríamos o real perigo de ter um falso entendimento e uma falsa
concepção do que significa esta unidade.

Há sempre o perigo de concebermos a unidade em termos de uniformidade


.Nossa tendência é pensar na unidade como consistindo de várias coisas
absolutamente idênticas em cada um dos aspectos individuais, sem nenhuma
diferença, tal como uma folha de selos do correio. Contudo, o apóstolo peleja
para mostrar-nos que isso não é verdadeira unidade, e sim uma opaca e
monótona uniformidade. A unidade, mostra ele, é muito mais que isso, algo
muito mais grandioso. Qualquer concepção da unidade que a iguale à
uniformidade diminui a grandeza e glória essencial da unidade. Noutras
palavras, a unidade não é algo mecânico; não é pura mesmice. Para nós, que
vivemos na presente hora, é muito difícil captar este ponto. Estamos
acostumados com a produção em massa - artigos saindo de uma máquina um
após o outro, todos exatamente iguais. E a intenção é que sejam idênticos.

E isso não é somente com as máquinas e com as mercadorias manufaturadas; há


óbvias tendências no mundo atual de pensar da mesma maneira dos seres
humanos. Isto não é inteiramente novo; tem caracterizado certos
estabelecimentos educacionais que têm produzido um artigo de massa, um
diferente tipo de indivíduos, todos eles amoldados ao mesmo padrão de
comportamento, na conduta, na linguagem e noutros aspectos. Cada qual tem
sobre si uma certa marca, e mais consciência se tem do tipo do que do indivíduo
propriamente dito, exceto no caso de indivíduos incomuns. E não é de admirar,
porque o espírito de grupo é poderoso em todos nós, por natureza. O
apóstolo contesta essa noção e mostra que a unidade é algo vivido e vital,
algo quase estonteante em sua variedade. Este é, de fato, o aspecto
muito especial e sumamente glorioso da unidade espiritual. Sigamos o apóstolo
enquanto ele desenvolve este princípio.

Estudando os versículos 4,5 e 6, vimos que o apóstolo emprega a palavra “um”


(“um só”) sete vezes -“um só Espírito, um só corpo, uma só esperança da vossa
vocação, um só Senhor, uma só fé, um só batismo, um só Deus e Pai de todos”, e
com isso estabelece o grande princípio da unidade. No entanto, o conceito que o
apóstolo tem de unidade, e o ensino do Novo Testamento sobre a unidade, é tal
que, havendo salientado a unicidade sete vezes, ele pode imediatamente passar a
dizer: “Mas a graça foi dada a cada um de nós”. Ele parece ter estilhaçado a
unidade com este “cada um de nós”. Todavia ele não fez isso, pois não fomos
fundidos numa substância sólida e não diferenciada; não perdemos a nossa
identidade. Ainda temos as nossas individualidades. Estamos sendo de novo
considerados como personalidades singulares, e devemos pensar em nós mesmos
como unidades num todo. O fato admirável e espantoso é que, apesar de
sermos todos “um”, podem, não obstante, dirigir-se a nós com a frase, “cada um
de nós”.

A explicação é esta: somos todos “um” em Cristo. Somos todos um na questão


da salvação, e como filhos de Deus. Somos todos um como membros distintos
do corpo de Cristo. É isso que o apóstolo vem salientando e acentuando. Cada
indivíduo cristão foi salvo exatamente da mesma maneira como todos os demais.
A salvação do apóstolo Paulo não foi diferente do que a salvação de qualquer
outro cristão. Todas as conversões são essencialmente iguais. As
circunstâncias especiais e peculiares, os pormenores particulares, são
realmente irrelevantes. É por isso que é tão errado dar-lhes tanta
importância como se faz com freqüência. A regeneração é obra do Espírito de
Deus, e somente dEle. É um milagre em cada caso individual, e é sempre
o mesmo milagre. Além disso, como filhos de Deus e como membros da

família de Deus, não há diferença. Pensem numa família, numa família grande;
uns podem ser meninos, outros meninas, mas todos eles são filhos. Os meninos
não são mais filhos do que as meninas, e as meninas não são mais do que os
meninos. Podem ser diferentes em muitos aspectos, mas isso não faz a menor
diferença quanto à sua relação, quanto ao fato de que são filhos, quanto ao fato
de que eles estão nessa peculiar relação com o seu pai. A imagem e ilustração do
corpo transmite claramente a mesma noção, a mesma idéia.

Nesses aspectos somos todos idênticos, somos todos um, somos todos iguais.
Contudo - e é disto que o apóstolo vai tratar agora - a nossa unidade não
significa que somos idênticos em cada um dos aspectos singulares. Mil vezes
não! “A cada um de nós.” Nesta expressão ele inclui diversidade, diferença,
variedade e variação. A especial glória da unidade é que é uma unidade na
diversidade, uma unidade que abrange variação e variedade. Somos
essencialmente um, porém em muitos aspectos diferimos. Devemos manter em
nossas mentes estes dois princípios juntos o tempo todo. A diversidade
não destrói a unidade; e a unidade não elimina a diversidade. Esta é a especial
glória da graça redentora; este é o milagre da redenção. Este é o fenômeno
peculiar que a Igreja Cristã deve manifestar e demonstrar ao mundo, e que
nenhuma outra coisa o pode fazer.

O apóstolo passa agora a salientar estas óbvias diferenças dos membros do


corpo, isto é, dos membros da Igreja: “Mas a graça foi dada a cada um de nós
segundo a medida do dom de Cristo.” A questão que nos confronta é: “Como é
que esta grande unidade que Paulo tanto tem acentuado possa ser preservada, à
luz desta diversidade e variação? É uma questão a que ele dá resposta
imediatamente, começando no versículo 7 e continuando até o fim do versículo
16. Nestes versículos ele pinta um quadro da Igreja e mostra como a Igreja
é caracterizada por estes dois elementos gêmeos de unidade e diversidade. Os
dois elementos são mantidos juntos sempre e de maneira maravilhosa. Somos
conduzidos ao segredo disso tudo, e se nos mostra como isso vem a ocorrer na
experiência e na atividade da Igrej a.

O apóstolo firma o grande princípio com as palavras: “Mas a graça foi dada a
cada um de nós segundo a medida do dom de Cristo” (versículo 7). O princípio
determinante é que o próprio Senhor Jesus Cristo é a Cabeça da Igreja e é o
Doador da variedade de dons de que se serve a Igreja em geral e cada membro
em particular. Este é o princípio que garante a unidade na diversidade. O
apóstolo desenvolve este mesmo princípio no capítulo doze da sua Primeira
Epístola aos Coríntios. Ali ele o faz em termos do Espírito. Chega quase à
mesma coisa, porque,

como ele nos diz aqui, é o Senhor Jesus Cristo que dá o Espírito, e dá os Seus
dons por intermédio do Espírito. Aos coríntios ele diz: “Ora há diversidade de
dons, mas o Espírito é o mesmo. E há diversidade de ministérios, mas o Senhor é
o mesmo” (1 Coríntios 12:4-5). Aí temos precisamente o mesmo princípio
central e determinante.

Agora, no entanto, surge uma questão que insiste em chamar a nossa atenção. É
algo que é muito característico deste apóstolo, e que ele vai desenvolver: “Mas a
graça foi dada a cada um de nós segundo a medida do dom de Cristo”.
Antecipamos que ele está para dizer imediatamente, “e ele mesmo deu uns para
apóstolos, e outros para profetas, e outros para evangelistas, e outros para
pastores e mestres”. Mas não o faz. E o que ele eventualmente, e claramente,
tenciona dizer; todavia ele se interrompe e insere o conteúdo dos versículos 8,9 e
10. Estes versículos constituem uma espécie de parênteses, e é isso que é tão
característico do método de Paulo como escritor. Ora, por que será que ele segue
este método? Há apenas uma resposta a essa pergunta. Ele tinha mencionado o
nome de Cristo: “Mas a graça foi dada a cada um de nós segundo a medida do
dom de Cristo”. A menção do nome bendito imediatamente o inflama e o
entusiasma. Ele não pode conter-se, e despeja estes três versículos com esta
tremenda declaração acerca do nosso bendito Senhor e Salvador. Dou ênfase a
isto porque ilustra o fato de que o apóstolo Paulo amava tanto o Senhor
Jesus Cristo que a simples menção do Seu nome sempre o comovia até
às profundezas do seu ser. Ele podia dizer, em grau ainda mais elevado, o que
disse Bernardo de Claraval:

Jesus, o só pensar em Ti

Meu peito enche de dulçor.

A simples menção do nome o faz interromper o seu pensamento particular e


expor a Sua glória mais uma vez. Ao fazê-lo, ele se torna culpado de perpetrar
um crime literário conhecido como anacoluto. Os puristas falam sobre isso.
Estes anacolutos tão característicos do estilo de Paulo constituem uma
interrupção de um argumento ou de uma declaração por outra e, e depois, de um
retomo à idéia original e sua continuação. Na Versão Autorizada os versículos 9
e 10 são colocados entre parênteses, e acertadamente, num sentido. Na verdade,
o primeiro parêntese devia aparecer antes do versículo 8. Opino que o que levou
ao parêntese foi algo semelhante a isto: Paulo mencionara na declaração original,
no versículo 7, que o Senhor Jesus Cristo é a Cabeça da Igreja e que Ele é o
doador e o dispensador de todos os dons.

Isto o leva não somente a atribuir toda a glória ao Senhor, como também a
mostrar-nos como o Senhor Jesus Cristo chegou à condição de poder fazer isso.
Por que Cristo é a Cabeça da Igreja? Por que Ele é o doador de todos os dons?
Como foi que o Filho de Deus chegou a essa condição particular que Lhe dá o
direito de fazer isso? Esta é a questão respondida nos versículos 8, 9 e 10.

Podemos analisar a declaração da seguinte maneira. A primeira coisa que o


apóstolo diz é que a declaração que acabara de fazer não deveria surpreender-
nos, pois isso fora predito e profetizado desde os tempos antigos - “Pelo que
diz”, declarando com isso que o Espírito Santo, ou Deus, fala desse modo nas
Escrituras - e imediatamente cita o Salmo 68: “Subindo ao alto, levou cativo o
cativeiro, e deu dons aos homens” (versículo 18). Seu argumento é que a sua
declaração acerca da sua graça dada a cada um de nós, cristãos, pelo Senhor
Jesus Cristo, não deve ser entendido como algo que subitamente viera à mente
de Deus. Ao contrário, sempre fez parte do plano divino de redenção e do Seu
propósito com respeito à Igreja. Deus de fato o tinha revelado ao salmista uns
dez séculos antes.

Dou ênfase a este assunto porque há um ensino conhecido como


dispensacionalismo que nos diz que Deus enviou o Senhor Jesus Cristo ao
mundo para estabelecer o reino de Deus, porém, quando viu que os judeus
rejeitaram Seu Filho e Seu ensino, e não quiseram receber o reino, Ele decidiu-
Se pelo meio de salvação mediante a cruz e pelo estabelecimento da Igrej a. A
Igreja, dizem os dispensacionalistas, é um pensamento ulterior, um parêntese;
não fazia parte do plano original, e é apenas uma fase temporária, até que o reino
seja de novo pregado aos judeus e seja introduzido. Entretanto nos versículos 8,
9 e 10 temos uma completa negação desta doutrina dispensacional, pois ela é
reprovada, fora de toda dúvida, no Salmo 68, versículo 18, onde temos esta
profecia concernente à Igrej a e ao Senhor Jesus Cristo como a Cabeça da Igreja.

Mas o apóstolo vai além, porquanto se põe a comentar a sua citação. Ele o faz
nos versículos 9 e 10. Estes três versículos, 8, 9 e 10, são extremamente
interessantes e importantes. Todo aquele que estiver familiarizado com a história
da Igreja, principalmente com a história das doutrinas e da teologia, saberá que
aqueles versículos muitas vezes desempenharam importante papel nas discussões
e controvérsias, e com freqüência têm sido mal compreendidos. Convém, pois,
considerá-los cuidadosamente e tomar tempo para entendê-los, não somente
em sua significação geral, mas também em seu ensino particular, e mesmo num
sentido técnico.

A primeira coisa que notamos é que a citação, no versículo 8, do Salmo 68 é,


obviamente, uma referência ao próprio Deus, o Senhor, Jeová. Esta é a verdade
com relação ao salmo inteiro. Lemos, por exemplo, nos versículos 4 e 5: “Cantai
a Deus, cantai louvores ao seu nome; louvai aquele que vai sobre os céus, pois o
seu nome é JÁ (forma abreviada de Jeová); exultai diante dele. Pai de órfãos e
juiz de viúvas é Deus no seu lugar santo”. E mais: “Os carros de Deus são
vinte milhares, milhares de milhares. O Senhor está entre eles, como em Sinai,
no lugar santo” (versículo 17).Eno versículo 18, que o apóstolo cita: “Tu subiste
ao alto, levaste cativo o cativeiro, recebeste dons para os homens, e até para os
rebeldes, para que o Senhor Deus habitasse entre eles”. Neste salmo Davi está
glorificando o nome de Deus; e o faz por causa da grande vitória que Deus lhe
dera. Sua vitória pessoal lembra-lhe que a mesma não era a única vitória que
Deus dera ao Seu povo. Isso o envia de volta à história dos filhos de Israel, sua
saída do Egito e sua travessia do Mar Vermelho, a destruição de Faraó e
seus exércitos, as jornadas pelo deserto e a entrada em Canaã. Todas estas, diz o
salmista, são vitórias de Deus. O povo de Deus entrava em dificuldade, e Deus,
por assim dizer, descia e os livrava; e tendo-o feito, Ele, por assim dizer, subia de
novo ao céu. Era isso que Davi estava pretendendo dizer. Mas aqui, neste
versículo oito do capítulo quatro da sua Epístola aos Efésios, o apóstolo atribui
isso tudo ao Senhor Jesus Cristo. Ele está se referindo ao dom de Cristo. “Pelo
que diz: subindo ao alto, levou cativo o cativeiro, e deu dons aos homens.” Paulo
está falando de Cristo e da Igreja, ao passo que o salmista está falando de Jeová.
Como conciliar estas coisas?

A dificuldade nos lembra algo que devemos ter sempre em mente quando lemos
a Bíblia;, Se não o fizermos, a nossa leitura será pouco inteligente e confusa. E
que muitas vezes veremos um duplo sentido nas declarações do Velho
Testamento. O mesmo acontece com muitos salmos; é igualmente o que se pode
dizer dos profetas e dos seus escritos. No Salmo 68 a primeira coisa presente na
mente de Davi foi um evento histórico e local, um acontecimento
contemporâneo acerca do qual ele quer escrever. Contudo, posto que ele está sob
a influência do Espírito Santo e, por isso, é um homem inspirado, é levado a
algo além do tempo então presente. Davi mesmo talvez não tenha percebido isso,
mas é levado pelo Espírito a uma verdade mais alta. A inspiração leva Davi a
descrever a circunstância local de tal maneira que ela também se torna uma
perfeita prefiguração daquilo que vai acontecer mais tarde. É uma profecia de
Cristo; é uma primoriosa e exata descrição do que aconteceu com o Senhor Jesus
Cristo. Similarmente, os profetas escreveram para o seu tempo e a sua geração;
tinham uma

mensagem local e imediata; entretanto esta não ficava nisso. Emparelhada a ela
havia a mensagem profética mais ampla e maior, concernente à vinda do
Messias. O imediato e local continha também o remoto e mais grandioso. O
nosso primeiro princípio é, pois, que o salmista, sob a inspiração divina, viu no
evento local um quadro e uma leve representação da vinda do Filho de Deus e do
que Ele ia fazer. Esta é uma das grandes provas da inspiração das Escrituras.

Em segundo lugar, é igualmenfe claro que o ensino do apóstolo aqui, como na


verdade em todos os seus escritos, é que o Senhor Jesus Cristo é Jeová, o “JA” a
respeito de quem Davi escreve. No Velho Testamento há referências ao “Anjo da
Aliança” e à sua vinda para ajudar o povo. Indubitavelmente essas são
referências ao Senhor Jesus Cristo. Relembramos também como Paulo, em 1
Coríntios, capítulo 10, afirma que Cristo era a Rocha que acompanhava os filhos
de Israel, a Rocha que lhes dera água. Igualmente o mártir Estêvão, no
grande discurso que fez quando estava sob julgamento, declara que Cristo estava
com os filhos de Israel, “a igreja no deserto”. Noutras palavras, o ensino é que
Cristo é Jeová.

Do Pai não se pode dizer que Ele recebeu dons para os homens. Do Pai não se
pode dizer que Ele subiu, porque Ele está no céu, e sempre esteve e sempre
estará. Há somente um de quem podemos dizer que subiu às alturas - o Senhor
Jesus Cristo. Assim deduzimos esta grande verdade que está no coração e no
centro da mensagem cristã. Jesus de Nazaré é o Filho de Deus. Não é um ser
criado. É co-igual e co-etemo com o Pai, igual a Ele em majestade e poder.
Acha-se aqui a verdade concernente ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo, a
completa doutrina da Trindade, O Filho subordinou-Se para a obra de salvação;
mas Ele, como tal, não é subordinado. É nesse ponto que a heresia ariana
surgiu na Igreja Primitiva e lhe ameaçou a própria vida. Essa heresia
ensinava que Cristo é um ser criado, criado anteriormente ao tempo,
porém, ainda, um ser criado. É aí que o unitarismo está igualmente errado. Cristo
é Jeová, Cristo é o Senhor. O termo “Senhor”, empregado no Velho Testamento
com referência a Deus, é o mesmo termo aplicado e atribuído ao Senhor Jesus
Cristo no Novo Testamento. A nossa segunda dedução é, portanto, que Jesus
Cristo é Senhor, que Jesus Cristo é Jeová.

Há ainda outra questão para considerarmos. O versículo 18 do Salmo 68 não é


idêntico à citação neste versículo 8 de Efésios 4. Aqui lemos: “Pelo que diz:
subindo ao alto, levou cativo o cativeiro, e deu dons aos homens”. Mas no Salmo
68 vemos que ele recebeu: “recebeste dons para os homens” (vers. 18); não que
Ele os deu, e sim que os recebeu. Isto, de novo, é importante. No hebraico do
Velho Testamen-

to a palavra é, de fato, recebeste, e na Septuaginta, a Tradução dos Setenta, o


termo também é corretamente traduzido recebeste. Todavia aqui o apóstolo
Paulo escreveu deu. Isto parece entrar em conflito com a doutrina da inspiração
das Escrituras. Como podemos dizer que o apóstolo está decididamente
escrevendo como alguém inspirado, quando ele cita mal uma passagem do Velho
Testamento? Os espertos críticos argumentam que isto descarta a nossa defesa da
autoridade das Escrituras e, especialmente, da infalibilidade das Escrituras. Mas
a nossa resposta é clara, e é que não há contradição aí. É correto dizer do Senhor
Jesus Cristo que Ele tanto recebeu como deu. O apóstolo Pedro disse no dia de
Pentecoste, em Jerusalém: “De sorte que, exaltado pela destra de Deus, e tendo
recebido do Pai a promessa do Espírito Santo, derramou isto que vós agora vedes
e ouvis” (Atos 2:33). Ele recebeu e Ele deu\é uma só ação. A mesma Pessoa
recebe e dá; o dar pressupõe o receber. No entanto, concedido isso, alguém dirá:
“ que dizer da questão da autoridade e inspiração do Espírito Santo?” A resposta
é que foi o mesmo Espírito Santo que inspirou Davi quando ele escreveu o
salmo, que inspirou o apóstolo Paulo quando ele escreveu o capítulo 4 desta
carta aos efésios; e o que Ele faz em ambos os casos é mostrar que todos os dons
que vêm à Igreja, vêm do Senhor Jesus Cristo e por meio dEle. Num caso Ele
salienta que é o Pai que os dá ao Filho; no outro Ele salienta que é o Filho que os
dá à Igreja, e aos seus membros individuais. Não há contradição; as duas
afirmações são verdadeiras. Na verdade, é precisamente aí que vemos com tanta
clareza o senhorio e a soberania do Espírito Santo. Há outros exemplos no Novo
Testamento onde afirmações do Velho Testamento são citados, e não
com palavras absolutamente idênticas. O que sempre importa é o significado. O
Espírito Santo está interessado nos significados, e Ele exibe o mesmo significado
nos dois casos, que é que os dons são dados à Igreja no Senhor Jesus Cristo e por
meio dEle. O apóstolo Paulo estava bem ciente do que se afirma no Salmo 68,
versículo 18, tanto no original hebraico como na tradução da Septuaginta, e,
todavia, sob a inspiração do Espírito, ele diz: “deu”. Ele deseja dar ênfase à ação
única, receber e dar. O Filho é sempre e para sempre o grande Mediador.
Isto nos leva ao comentário final sobre o que podemos chamar, o aspecto
mecânico desta grande declaração, antes de passarmos a traçar a grande doutrina
ali ensinada. A frase final diz: “levou cativo o cativeiro”. Há um ensino que
considera “o cativeiro” como se referindo aos santos do Velho Testamento.
Ensino que sustenta que eles eram filhos de Deus, que foram salvos do Velho
Testamento. Ensino que sustenta que eles eram filhos de Deus, que foram salvos,
porém que

eram mantidos numa espécie de cativeiro. O que o Senhor Jesus Cristo fez após
a Sua morte, argumentam eles, foi descer ao Hades, tirá-los do seu cativeiro e
introduzi-los numa esfera mais alta. Esse é o ensino dos católicos romanos neste
ponto. Eles falam de algo a que chamam “limbus patrum”, onde os pais ficaram
até Cristo livrá-los do seu cativeiro. Rejeito isso como uma interpretação
inteiramente falsa aqui, porque o quadro é de triunfo sobre os inimigos, de levar
os inimigos em triunfo. Nos tempos antigos, se um rei ou príncipe ou
comandante em chefe empreendia vitoriosamente uma guerra, quando
regressava ao seu país, sempre havia uma espécie de parada triunfal. Os
reis, príncipes, comandantes e capitães derrotados eram postos a marchar em
procissão, acorrentados. O vencedor estava “levando cativo o cativeiro”. Ele
tinha feito os seus adversários cativos e agora os exibia publicamente. Ao
mesmo tempo ele atirava presentes para o seu povo. Ele ia em seu carro
distribuindo-os ao povo que o aclamava e, ao mesmo tempo, ia levando esses
homens derrotados com cativos. Esse é, indubitavelmente, o quadro aqui. Assim,
não devemos interpretar isso em termos de alguma libertação dada aos santos
redimidos do Velho Testamento. É um quadro do Senhor Jesus Cristo levando
em Seu séquito triunfal o diabo, o inferno, o pecado e a morte - os
grandes inimigos que estavam contra o homem e que tinham mantido
a humanidade em cativeiro por tanto tempo. Os príncipes que tinham exercido o
domínio sobre o cativeiro, agora estão sendo levados cativos. O apóstolos nos
está dizendo que o Senhor Jesus Cristo veio ao mundo para haver-Se com os
nossos inimigos e vencê-los, e, tendo concluído a Sua campanha e tendo-os
derrotado, Ele voltou para o céu levando cativos todos esses inimigos, e
despejando sobre nós os Seus presentes, a nós, Seu povo que O aclama. O
apóstolo não se contentou em deixar o tema nesse ponto, como veremos; não
obstante, a coisa grandiosa que devemos ter em nossas mentes é que o princípio
de unidade é acentuado pelo fato de que Cristo é o dispensador, o doador de
todos os dons. Ele é o grande Capitão celestial, e nós somos o Seu povo. Tendo
derrotado os Seus inimigos, Ele dispensa e derrama os Seus dons sobre nós. Mas
todos os dons, sempre e eternamente, vêm dEle.
O DRAMA DA REDENÇÃO

“Ora isto - ele subiu - que é, senão que também antes tinha descido às partes
mais baixas da terra? Aquele que desceu é também o mesmo que subiu acima de
todos os céus, para cumprir todas as coisas.” Efésios 4:9-10

Nestes versículos o apóstolo põe-se a provar e a demonstrar que a declaração do


Salmo 68, versículo 18, que ele tinha citado, deve ser aplicada ao nosso bendito
Senhor e Salvador. Na versão Autorizada, como já observamos, estes dois
versículos são colocados entre parênteses para indicar que eles são parte
integrante da declaração completa e são uma exposição daquilo que ele acabara
de dizer, como o indica a palavra “Ora”. Realmente, ele está expondo aquele
versículo; e nós o acompanharemos no processo. “Ora”, diz ele; e depois faz
a pergunta, “que é, senão”? Então se concentra na palavra “subiu”. Esta palavra,
argumenta ele, prova que Ele tinha que ter descido primeiro às partes mais
baixas da terra.

Como vimos, o Salmo 68 é um grande hino de louvor a Jeová, que dera a Davi
uma vitória maravilhosa, como na antigüidade dera uma notável vitória aos
filhos de Israel sobre Faraó e seus exércitos quando os levou através do Mar
Vermelho. Mas Davi afirma que Jeová tinha “subido”. A questão é: como pode
Jeová, o “Eu sou o que sou”, o Único Ser etemamente existente, sem princípio e
cujos dias não têm fim - como pode Jeová subir? A resposta do apóstolo é que há
só um modo de explicar isso. É que o próprio uso do termo “subir” implica uma
descida anterior - “Ora isto - ele subiu - que é, senão que também antes tinha
descido às partes mais baixas da terra?” Há somente uma maneira pela qual
podemos falar de uma descida da Deidade, e é com relação a Jesus de Nazaré, o
Filho de Deus. É nEle, e somente nEle, que Deus, Jeová, desceu. Assim o
apóstolo argumenta que a declaração do Salmo 68, versículo 18, só pode ser uma
referência ao nosso bendito Senhor e Salvador Jesus Cristo. Ele não está fazendo
violência às Escrituras quando aplica isso tudo ao nosso Senhor. Não há
outra explicação concebível, não há outra possibilidade, é a única maneira

pela qual Deus desceu à terra e subiu de volta ao céu.

Chegamos agora à afirmação que se evidenciou ser mais difícil na história da


interpretação - “que também antes tinha descido às partes mais baixas da terra”.
Como sabem os que têm conhecimento da história da Igreja, a expressão “às
partes mais baixas da terra” tem provocado muita discussão e tem levado à
proposta de certas doutrinas. Têm sido sugeridas muitas explicações dela, das
quais não podemos tratar exaustivamente. Mas devemos dar uma olhada
nalgumas delas, porque são repetidas irrefletidamente por muitos cristãos.
Nas igrejas em que é costume recitar credos, as pessoas recitam domingo após
domingo a frase, “Ele desceu ao inferno”. Bem podemos inquirir quantas delas
sabem exatamente o que querem dizer quando fazem isso. Baseia-se numa
exposição particular desta declaração de Efésios, capítulo 4, e como nos compete
prestar culto inte-ligentemente, somos forçados a examinar a exposição desta
frase em particular.

Alguns têm sustentado que é uma referência ao nascimento do nosso Senhor, da


virgem Maria, que Ele nasceu “do ventre da virgem”. Há algum apoio para essa
opinião no Salmo 139, versículo 13-15: “Pois possuíste os meus rins;
entreteceste-me no ventre de minha mãe. Eu te louvarei, porque de um modo
terrível, e tão maravilhoso fui formado; maravilhosas são as tuas obras, e a
minha alma o sabe muito bem. Os meus ossos não te foram encobertos, quando
no oculto fui formado, e entretecido como nas profundezas da terra”. Outros
dizem que as palavras de Paulo fazem referência ao túmulo. “Terra” é a terra,
argumentam eles, porém “as partes mais baixas da terra”, indicando algo
que está abaixo do nível do solo, devem, portanto, ser o túmulo. Outros, que vão
mais longe ainda, dizem que as palavras em questão se referem ao inferno. O
inferno está embaixo, o céu em cima; assim, a frase “as partes mais baixas da
terra” é uma referência ao inferno ou ao Hades.

Com relação às duas primeiras sugestões, tudo o que necessito dizer é que,
obviamente, no Salmo 139, versículo 15, a referência é a algo que aconteceu na
terra; certamente não aconteceu em lugares profundos da terra. O homem não é
formado nalgum buraco ou poço nas profundezas da terra. Trata-se
simplesmente de uma frase pictórica que descreve como o homem é produzido
no ventre da sua mãe. Portanto, não há referência a descer num sentido físico ou
material. O mesmo se aplica, naturalmente, ao túmulo. A interpretação que nos
é importante considerar é a terceira, pois é a que tem figurado
mais proeminentemente na história da Igreja e na história das doutrinas.

Há, digo, aqueles que crêem que as palavras de Paulo ensinam que o nosso
Senhor, depois da Sua morte e do Seu sepultamento, desceu

ao inferno e fez certas coisas, em particular que Ele derrotou ali o diabo e as suas
hostes. Outros dizem que o que Ele fez no Hades foi pôr em liberdade os santos
do Velho Testamento que tinham sido mantidos numa espécie de cativeiro desde
a sua morte. O nosso Senhor, dizem eles, desceu, tirou-os e os fez subir com Ele.
Outros acreditam que o que o nosso Senhor fez quando desceu ao inferno foi
proclamar a salvação a certas pessoas que estavam lá. Eles baseiam essa idéia,
não somente neste texto, e sim também no que vemos na Primeira Epístola de
Pedro, capítulo 3: “Porque melhor é que padeçais fazendo o bem (se a vontade
de Deus assim o quer), do que fazendo o mal. Porque também Cristo padeceu
uma vez pelos pecados, o justo pelos injustos, para levar-nos a Deus;
mortificado, na verdade, na carne, mas vivifi-cado pelo Espírito; no qual também
foi, e pregou aos espíritos em prisão; os quais noutro tempo foram rebeldes,
quando a longanimidade de Deus esperava nos dias de Noé, enquanto se
preparava a arca; na qual poucas (isto é, oito) almas se salvaram pela água”
(versículos 17

20). A frase importante é, “pelo Espírito; no qual também foi, e pregou aos
espíritos em prisão”. Isto, sustentam eles, só pode ter o sentido de que o nosso
Senhor, após a Sua morte e sepultamento, desceu ao inferno e lá pregou o
evangelho aos que foram destruídos no Dilúvio dos dias de Noé, com o fim de
conceder-lhes “uma segunda chance”, outra oportunidade para arrependimento e
fé. Há alguns que vão além e ensinam que haverá “uma segunda chance” e mais
uma oportunidade para todos depois desta vida, no Hades. Das explicações
sugeridas, da expressão “as partes mais baixas da terra”, essa é a mais popular. É
a mesma explicação que aquela dada sobre 1 Pedro 3:19, a saber, que é uma
indicação de que o nosso Senhor, depois da Sua morte, foi pregar àqueles
“espíritos em prisão”, ou foi evangelizá-los.

Outra explicação é que o que o nosso Senhor fez não foi pregar o evangelho a
eles no sentido de que lhes estava dando oportunidade para crerem, porém que
Ele desceu e proclamou a Sua retumbante vitória sobre o diabo e o inferno a
todos os habitantes e hóspedes do inferno. Ele lhes disse como tinha vencido
todos os inimigos de Deus, em toda parte, e que Ele era Senhor sobre todos.

São essas as declarações que se fazem de tempos em tempos, ao longo da


história da Igreja. Minha concepção da obra de pregação e ensino é que devemos
encarar estas questões francamente, e não esquivar-nos delas ou deixá-las sem
consideração, porque obviamente esta expressão tem algum significado. Minha
opinião é, pois, que ela não tem nenhum desses sentidos, mas que o sentido da
frase, “as partes mais baixas da terra” é simplesmente a terra mesma. Digo isso
pelas seguintes razões: como já sugeri, a afirmação do Salmo 139, versículo
15, obviamente significa a terra. Quando um homem nasce e vem a existir, entra
na vida da terra, embora a expressão do salmista seja “nas profundezas da
terrar”. Uma expressão similar no Salmo 63, versículo 9, pode ter o sentido de
“o túmulo”, mas, de novo, é muito incerto.

A questão crucial, contudo, é a exposição de 1 Pedro 3:19. Estará o apóstolo


Pedro dizendo que o nosso Senhor foi pregar aos que tinham sido destruídos no
Dilúvio do tempo de Noé? Rejeito essa explicação perguntando: por que lhes
seria dada uma “segunda chance” ou oportunidade, mais do que a todos os
outros pecadores? Por que haveriam de ser eles os únicos a quem Ele pregou?
Nas gerações anteriores houve muitos que tinham pecado antes dos que viveram
na época do Dilúvio; e houve miríades que pecaram desde aquela época; por
que, pois, só a eles foi dada mais uma oportunidade? Por que não também ao
povo de Sodoma e Gomorra? Por que não a muitos outros que foram mortos e
destruídos repentinamente pela ação de Deus? Por que aqueles foram separados?
Os que ensinam que o nosso Senhor pregou no Hades àquelas pessoas, não têm
resposta para estas perguntas. A situação delas, como pecadoras, não é diferente
da situação de todos os demais pecadores. A verdade dessa questão é que o
apóstolo Pedro não está dizendo tal coisa. Nesta parte da sua Epístola, Pedro está
lembrando aos seus leitores que eles estavam vivendo num tempo de juízo. No
capítulo subseqüente ele diz: “Já é tempo que comece o julgamento pela casa de
Deus”. Ele os está advertindo da vinda do juízo e lhes diz que há somente um
modo de serem salvos, o modo que ele menciona nos versículos que se seguem.
Lembra-lhes ele que Noé e sua família foram salvos por meio de uma arca; e
lhes diz que nós somos salvos por um similar do tipo de arca, a saber, pelo
batismo em Cristo. Em Cristo, que é a nossa Arca, somos salvos.

A afirmação de Pedro é que a situação dos cristãos é similar à situação que


prevalecia imediatamente antes do Dilúvio. Cristo está falando no Espírito por
meio dos apóstolos (Pedro e outros), e está exortando o povo de Deus e outros a
“fugir da ira que está para vir”. Ele tinha feito precisamente o mesmo, “no
Espírito”, por meio de Noé, antes do Dilúvio. Há somente dois grandes
julgamentos universais na história da humanidade - o primeiro foi o Dilúvio; o
segundo será quando o Senhor vier de novo, e os elementos se fundirão com
o tremendo calor do juízo final. Assim Pedro está dizendo que há um paralelo
entre os que estão vivendo na época e era anteriores ao segundo grande
julgamento e os que viveram antes do primeiro grande julgamento. O paralelo é
perfeito: Cristo prega “no Espírito” agora por intermédio dos apóstolos, como
pregou “no Espírito” naquele tempo por intermédio de Noé àquele povo antigo.
Esta não é somente a

exposição verdadeira; é a única que evita a idéia de que o evangelho foi pregado
somente a certos pecadores particulares, e não a todos.

Segue-se, pois, que, se nos propusermos a escorar a nossa exposição do


versículo 9 de Efésios 4 aduzindo-lhe 1 Pedro 3:19, veremos que não nos dará
nenhuma ajuda. Não há prova nenhuma para^dizer--se que o nosso Senhor
alguma vez pregou no inferno. É uma suposição, mera especulação, e uma
teoria. Não há nada nas Escrituras que a consubstancie, nenhuma palavra que
insinue que Ele tenha libertado pessoas que tinham sido mantidas cativas. Não
há qualquer indicação de que o nosso Senhor finalmente tenha vencido o diabo
e os seus poderes no inferno, depois da Sua morte; na verdade, é-nos dito,
positivamente, que essa obra foi realizada na cruz. Paulo ensina no capítulo dois
da Epístola aos Colossenses: “E, despojando os principados e potestados, os
expôs publicamente” - não “nas partes mais baixas da terra, mas “publicamente”
- “e deles triunfou em si mesmo” - a saber, em Sua morte na cruz. Foi na cruz
que o nosso Senhor bradou, dizendo: “Está consumado”. Nada foi deixado
para completar-se no inferno; a obra foi realizada completamente na cruz.

Finalmente, para concluir esta exposição, há outras declarações nas Escrituras


que, quando tomadas juntas com esta declaração, leva à conclusão de que aquilo
de que estamos tratando nada é, senão uma maneira gráfica e pictórica de
descrever a vinda do nosso Senhor à terra. Não é Sua descida a estas ou aquelas
profundezas da terra, mas é Sua vinda do céu à terra. Vejam, por exemplo, o que
o nosso Senhor diz em João 3:13: “Ninguém subiu ao céu, senão o que desceu
do céu, o Filho do homem, que está no céu”. Temos aí de novo o subir e
descer, a descida e a subida; não em termos de descer ao inferno, porém de
vir para viver na terra. O nosso Senhor estava na terra e estava falando
com Nicodemos na terra, e estava reivindicando autoridade única para o Seu
ensino. Homem nenhum jamais subiu ao céu para falar com Deus e ouvir os
segredos de Deus, diz Ele, mas eu vim do céu. “Nós dizemos o que sabemos e
testificamos o que vimos.” Eu vim do céu e continuo no céu. Ou tomem o que se
vê em João 8:23: “Vós sois de baixo, eu sou de cima”. Ele não quis dizer que
eles estavam embaixo, nalguma cova, debaixo da terra; eles estavam na terra,
mas, em comparação com o “de cima” do qual Ele viera, eles eram “de baixo”.
“Vós sois deste mundo, eu não sou deste mundo” comunica exatamente o
mesmo contraste. É um contraste entre ser de cima, do céu, e estar na terra,
não debaixo da terra.
Como uma citação final, vejam Atos 2:19. Pedro está pregando no dia de
Pentecoste, e cita o profeta Joel: “E farei aparecer prodígios em

cima, no céu; e sinais em baixo, na terra, sangue, fogo e vapor de fumo”. Não
devemos literalizar as expressões “em baixo”, ou “as partes baixas” ou
“debaixo”. O contraste é, patentemente, entre o céu em cima e a terra em baixo.
Diz o apóstolo que este Jeová subiu “acima de todos os céus”. Aí de novo temos
uma frase pictórica, pois “acima de todos os céus” significa no mais alto céu, no
lugar mais alto que se pode conceber. O apóstolo não diz, “no lugar mais alto
que se pode conceber”, e sim, “acima de todos os céus”. Não existe nada “acima
de todos os céus”, porque céu é céu; essa é uma expressão empregada
para ênfase. Assim como os céus são mais altos, as partes mais altas, assim a
terra são “as partes mais baixas”. O contraste é entre o céu e a terra.

Assim o apóstolo está asseverando que o que coloca o nosso Senhor na condição
em que Ele é o doador de todos estes dons à Igreja, a Cabeça da Igreja e o
Senhor de toda a Igreja, é a obra que Ele realizou quando esteve aqui na terra.
Ele subiu, e está em condições de dispensar dons porque primeiro desceu e veio
à terra para aqui habitar e para fazer certas coisas enquanto estivesse aqui. Esta
exposição e explicação evita toda confusão e toda especulação desnecessária
sobre o que o nosso Senhor pode ou não ter feito depois da Sua morte e antes da
Sua ressurreição. Estas especulações se infiltraram nos credos, mas não têm
nenhuma sanção bíblica real.

O que temos aqui é uma descrição de todo o movimento da salvação. Na


verdade, podemos usar uma expressão mais forte e dizer que o apóstolo está
descrevendo o grande drama da salvação. Ele está efetivamente dizendo que o
versículo do Salmo 68 que tinha citado é uma descrição de como o nosso Senhor
realizou a salvação e redenção, e, na qualidade de poderoso Vencedor, agora está
dando dons as Seu povo na Igreja.

Examinemos os termos que o apóstolo emprega. Afinal, por que há necessidade


de salvação? A resposta é, porque a humanidade em pecado está numa condição
de escravidão. Um inimigo entrou no mun- do. O diabo, o inimigo de Deus,
fingindo-se amigo do homem, foi o maior inimigo do homem. Ele dominou o
homem e daí em diante o mantém em escravidão e cativeiro. Ensina-nos isto o
capítulo dois da Epístola aos Hebreus: “E, visto como os filhos participam da
carne e do sangue, também ele participou das mesmas coisas, para que pela
morte aniquilasse o que tinha o império da morte, isto é, o diabo; e livrasse todos
os que, com medo da morte, estavam por toda a vida sujeitos à servidão”
(versículos 14-15). O homem em pecado éescravo do diabo; está sob o domínio
de satanás. Quando foi dada pelo Senhor Jesus Cristo ao apóstolo Paulo, no
caminho de Damasco, a ordem para

pregar o evangelho, foi-lhe dito que fosse para o povo e para os gentios “para
lhes abrires os olhos, e das trevas os converteres à luz, e do poder de satanás a
Deus” (Atos 26:18). Satanás, o arqui-inimigo, é o comandante dos exércitos do
inferno; e ele atacou e derrotou a humanidade, e a tomou cativa. Ele exerce um
terrível domínio e poder sobre a humanidade. O pecado é semelhante a uma
terrível escravidão - “O caminho dos prevaricadores é áspero” (Provérbios
13:15).

Muitos pensam que uma vida de pecado é uma vida de liberdade, mas é a maior
escravidão de todas. Pensem nas multidões que no mundo atual são escravas da
bebida e das drogas, do sexo e de mil e uma outras coisas. Falam da sua
liberdade e vida maravilhosas, porém são pobres escravos ignorantes, como logo
descobrem quando tentam libertar-se. Quem quer que tenha tentado livrar-se de
um hábito mantido e praticado há muito tempo sabe algo sobre a escravatura e
sobre o poder da escravidão do pecado. Acresce que a humanidade está debaixo
da maldição da lei: “A cédula que era contra nós nas suas ordenanças, a qual de
alguma maneira nos era contrária”, diz Paulo em Colossenses (2:14). A lei de
Deus é contra nós por causa do nosso pecado, e está pronunciando um
julgamento sobre nós. Estamos “debaixo da lei” por natureza. Esta é a
condenação, e dela não podemos escapar. E depois há o fato da morte. “Ora o
último inimigo que há de ser aniquilado é a morte” (1 Coríntios 15:26). Eis o
poderoso inimigo que mantém a humanidade em escravidão a vida inteira, o
medo da morte. Satanás maneja e usa esse medo para manter-nos na
escravidão. A humanidade em pecado odeia esse temível espectro que cada
vez mais se aproxima de nós. Ela faria qualquer coisa para evitá-lo, todavia não
consegue. Estes são os inimigos que derrotaram o homem. O Filho de Deus veio
a este mundo a fim de vencer estes inimigos e pôr em liberdade todos os que
nEle crêem. Cristo veio para redimir a Igreja, para resgatar o Seu próprio povo
dessa escravidão, desse cativeiro, dessa tirania. Ele veio com esse objetivo
específico, e o levou a cabo.

O nosso Senhor agora está na glória, assentado à destra de Deus, tendo posto
todos os inimigos debaixo dos Seus pés. Mas, quando pensarmos nEle, devemos
pensar também nalguma coisa mais - “que é, senão que também antes tinha
descido às partes mais baixas da terra?” Ele está nos altos céus agora, mas já
esteve na terra. Ele “veio à terra para ficar”. O hino das crianças lembra-nos isso:

Eu gosto de contar a história

Que a voz dos anjos conta,

Que outrora o Rei da glória

Veio à terra para ficar.

Ele “deixou o palácio real celestial”, Ele “humilhou-se”; estes são outros modos
de dizer, “que é, senão que também antes tinha descido?” Estes são modos de
descrever a Encarnação. Como John Henry Newman o expressou:

Que sabedoria do nosso Deus!

Quando tudo era pecado e vergonha,

Um segundo Adão para o combate E para o resgate à terra veio.

Ele não poderia levar cativo o cativeiro enquanto não descesse primeiro e
enfrentasse o inimigo. No entanto Ele veio, Ele desceu.

A clássica descrição e desenvolvimento disto acha-se no capítulo dois da


Epístola aos Filipenses: “Que haja em vós o mesmo sentimento que houve
também em Cristo Jesus, que, sendo em forma de Deus, não teve por usurpação
ser igual a Deus”. Ele não Se apegou a esta igualdade que tinha com Deus como
um prêmio que jamais deixaria ir--se, “mas aniquilou-se a si mesmo”.
Continuava sendo Deus em Sua plenitude; mas deixou de lado os sinais, a
insígnia, a pompa e a glória disso tudo. Desceu à terra como incógnito, por assim
dizer. “Tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens.” “Ora
isto - ele subiu - que é, senão que também antes tinha descido às partes
mais baixas da terra?” significa que Ele veio dos mais altos palácios reais do céu
ao ventre da virgem, à terra, na forma de homem, na forma de servo, com toda a
pobreza e com tudo o que caracterizava o lar para o qual Ele veio. Dêem rédeas
à sua imaginação inspirada e contemplem este drama da redenção. Ele desceu
para defrontar-Se com os inimigos que nos derrotaram, e especialmente o
poderoso adversário que nos mantém na escravidão.
Mas Ele não somente tomou para Si a forma de servo e Se fez semelhante aos
homens, pois lemos a seguir: “E, achado na forma de homem, humilhou-se a si
mesmo, sendo obediente até à morte”. Fazemos uma pausa aqui, por um
momento, para ressaltar este elemento de obediência que caracterizou a Sua vida
toda. Ele veio para empenhar-Se num conflito terrível; ainda quando Ele era um
bebê, o Rei Herodes tentou matá-lO. “Um segundo Adão para o combate e para
o resgate veio.” Considerem também o Seu conflito com o diabo. Depois pensem
também em Sua obediência aos Seus pais. Ele foi obediente, apesar de ser o
Filho de Deus. Recordem como, aos doze anos de idade, no templo, Sua mãe e
José O encontraram “assentado no meio dos doutores, ouvindo-os e
interrogando-os”, e O censuraram

(Lucas 2:46). E lhes disse: “Não sabeis que me convém tratar dos negócios de
meu Pai?” Embora Ele conhecesse os “negócios” do Seu Pai, foi obediente a
José e Maria. “Sendo obediente.” Procedeu assim porque isso fazia parte da luta.
Sujeitou-Se ao batismo, apesar de não ter feito nada de errado e não ter nenhuma
necessidade de ser batizado. Recordem o que João Batista Lhe disse. Mas Ele
estava Se identificando com o Seu povo, pelo qual Ele ia lutar. Ele foi tentado
pelo diabo. Durante quarenta dias e quarenta noites no deserto, Ele esteve
em combate singular e mortal com o principal inimigo. Pensem na oposição dos
fariseus, dos escribas, dos saduceus e dos doutores da lei. Tudo isso faz parte do
drama da redenção e da luta, do conflito para libertar o Seu povo. Ele “desceu”
para fazer isso. “Ele se tornou obediente” (VA). Nunca falhou; prestou perfeita
obediência à vontade do seu Pai. Veio depois aquele terrível momento no Jardim
do Getsêmani, quando Ele viu claramente o que a nossa redenção ia envolver, e
clamou: “Meu Pai, se é possível, passe de mim este cálice; todavia, não seja
como eu quero, mas como tu queres”. Obediência! Sim, “obediente até à morte,
e morte de cruz”. Ele foi até à cruz a fim de que esta vitória fosse completa.

Considerem de novo a palavra de Paulo aos colossenses: “E, despojando os


princípios e potestados” (2:15). No Calvário eles puseram à mostra as suas
últimas reservas. O diabo supunha que, se O matasse, ficaria livre dEle, e assim
O derrotaria. Mas quando eles O estavam matando, Ele os estava destruindo.
“Despojando os principados e potestados, os expôs publicamente e deles
triunfou em si mesmo.” Foi morrendo e ressucitando que Ele derrotou
finalmente o diabo e todas as suas hostes. Ao mesmo tempo Ele enfrentou a
lei: “Havendo riscado a cédula que era contra nós nas suas ordenanças, a qual de
alguma maneira nos era contrária, e a tirou do meio de nós, cravando-a na cruz”.
Fazendo tudo isso, Ele morreu, e eles baixaram o Seu corpo e o sepultaram num
túmulo.

Ele foi derrotado afinal? Sabemos a resposta, graças a Deus. Não houve derrota;
foi sempre vitória, o tempo todo. Ele morreu e foi sepultado; os Seus amigos
fizeram rolar uma grande pedra sobre a boca do túmulo, e os Seus inimigos
puseram soldados para vigiá-lo. O inimigo parecia vitorioso, e tudo parecia estar
perdido. Mas Ele “rompeu as ataduras da morte” e Se levantou triunfante sobre
o túmulo. “Tragara foi a morte na vitória.” Ele venceu a morte e o túmulo, de
modo que podemos dizer com Paulo: “Onde está, ó morte, o teu aguilhão? Onde
está, ó inferno, a tua vitória? Ora o aguilhão da morte é o pecado, e a força do
pecado é a lei. Mas graças a Deus que nos dá a vitória por nosso Jesus Cristo”.

O nosso Senhor venceu o último inimigo. Todo inimigo que alguma vez
escravizou o homem e o manteve em cativeiro foi vencido e derrotado. Assim,
tendo completado a obra, Ele ressurgiu e subiu da terra ao céu. Os discípulos
estavam com Ele no Monte Olivete e O viram subir ao céu. “Ele passou através
das nuvens.” Como diz o apóstolo, “Aquele que desceu é também o mesmo que
subiu acima de todos os céus, para cumprir todas as coisas”.

A asserção do apóstolo é que é porque Ele fez tudo o que viera fazer na terra,
que Ele está agora “acima de todos os céus”. Ele expressa a mesma verdade na
Epístola aos Filipenses: “Pelo que também Deus o exaltou soberanamente, e lhe
deu um nome que é sobre todo o nome; para que ao nome de Jesus se dobre todo
o joelho dos que estão nos céus, na terra, e debaixo da terra” (2:9-10). É por
causa do que Ele fez, que Deus O exaltou a esta posição suprema. O nosso
Senhor mesmo afirmou isso, quando disse: “É-me dado todo o poder no céu e na
terra. Portanto ide, ensinai todas as noções ... e eis que eu estou convosco todos
os dias (estarei convosco), até à consumação dos séculos” (Mateus 28:18-20).
Depois voltem-se para o livro de Apocalipse, capítulo 5, com o seu relato de um
livro e selos nele, o livro da história, e observem o choro e o lamento porque
ninguém é bastante forte (ou digno) para abrir os selos; não há ninguém, nem na
terra nem no céu, que seja suficientemente grande para ter o controle da história.
Outra vez, tudo parece perdido e sem esperança; mas “eis aqui o Leão da
tribo de Jüdá, que venceu para abrir o livro e desatar os seus sete selos”. O Leão
da tribo de Judá! Jesus, o Filho de Deus! Aquele que “desceu”, também “subiu”,
e é grande o bastante e suficientemente forte! O Livro é dado a Ele, e Ele rompe
os selos. Ele é o Senhor da história! Ele está assentado à mão direita de Deus,
“esperando até que os seus inimigos sejam postos por escabelo dos seus pés”
(Hebreus 10:13). Senhor da criação, Senhor da história, Senhor de tudo!
O apóstolo já dissera tudo isso no capítulo primeiro desta Epístola. Ele quer que
nós conheçamos a sobreexcelente grandeza do poder de Deus sobre nós, os que
cremos, “segundo a operação da força do seu poder, que manifestou em Cristo,
ressuscitando-o dos mortos, e pondo-o à sua direita nos céus, acima de todo
principado, e poder, e potestado, e domínio, e de todo nome que se nomeia, não
só neste século, mas também no vindouro; e sujeitou todas as coisas a seus pés, e
sobre todas as coisas o constituiu como cabeça da igreja, que é o seu corpo, a
plenitude daquele que cumpre tudo em todos” (versículos 1923). “Subindo ao
alto, levou cativo o cativeiro, e deu dons aos homens.” “A graça foi dada a cada
um de nós segundo a medida do

dom de Cristo.” E em tudo isso porque Aquele que subiu e está em condições de
dar dons, primeiro desceu, venceu todos os nossos inimigos e captores e os levou
em Seu séquito triunfal. Ele conquistou o direito de ser a Cabeça da Igreja, e tem
todo o poder. Assim, Ele dispensa estes dons ao Seu povo na Igreja, segundo a
medida que Ele próprio determinou.

Certamente devemos juntar-nos todos para agradecer a Deus o grande apóstolo


ter interrompido o seu argumento e ter-nos dado esta exposição, e, com ela, esta
estupenda visão do drama da redenção - do céu à terra, ao túmulo, e de volta ao
céu. Devemos lembrar-nos, porém, de que Ele levou conSigo a nossa natureza
para a glória. Aquele que está no trono pôde “compadecer-se das nossas
fraquezas” (Hebreus 4:15). Ele levou com Ele a Sua natureza humana, a nossa
natureza, para a glória! E num sentido nós estamos lá com Ele, assentados com
Ele “nos lugares celestiais.” Esse é o quadro com o qual o apóstolo descreve
Cristo como a Cabeça da Igreja, concedendo e distribuindo graças e dons ao Seu
povo na Igreja, “que é o seu corpo, a plenitude daquele que cumpre tudo em
todos”.

DONS DIFERENTES

“Mas a graça foi dada a cada um de nós segundo a medida do dom de Cristo. ”
“E ele mesmo deu uns para apóstolos, e outros para profetas, e outros para
evangelistas, e outros para pastores e doutores. ” Efésios 4:7 e 11

Agora devemos dirigir a nossa atenção para estes dois versículos em particular.
Estivemos considerando o parêntese dos versículo 8-10 porque é essencial que
captemos o seu ensino, se é que havemos de compreender verdadeiramente o
ensino destes dois versículos que o circundam. Tendo o apóstolo escrito a
declaração que vemos no versículo 7, a saber, que “a graça foi dada a cada um de
nós segundo a medida do dom de Cristo”, em vez de passar a explicar de
imediato o que exatamente o Senhor Jesus Cristo dá, explica primeiro como
Ele está em condições de fazê-lo. Também devemos lembrar-nos, mais uma vez,
de que o tema fundamental da seção toda é o da unidade da Igreja. Ele está
interessado também em mostrar que esta unidade não implica uma mesmice
monótona, mas é uma unidade na variedade, uma unidade na diversidade, é
resultado da obra que o nosso Senhor, como a Cabeça da Igreja, realizou a favor
do Seu povo.

Nestes dois versículos o apóstolo começa a desenvolver este princípio em


detalhe e como vemos, ou deveríamos vê-lo, na vida e na atividade da Igreja
Cristã. Este é um tema sumamente importante, e particulamente importante na
presente hora, quando tanto se fala e se escreve sobre igreja, ecumenismo e
unidade. Talvez nunca tenha sido mais importante que hoje considerar e tentar
entender o ensino do apóstolo concernente a esta questão essencial. Ao fazê-lo,
tenhamos o cuidado de observar que o apóstolo não estabelece um rígido
sistema de ordem eclesiástica. Na verdade, é questionável se se pode achar
tal coisa nalguma parte das Escrituras. Contudo, é importante notar que são
firmados certos princípios que devemos observar e praticar. Devemos, pois, ter o
cuidado de evitar dois perigos. Um é o de ir além das Escrituras e impor à Igreja
algum sistema de ordem rígido, legal, mecânico. O outro é que, com medo de
fazer o que acabamos de dizer,

não tenhamos nenhum sistema, tornando impossível fazer tudo “com ordem e
decência”, segundo a injunção apóstolica. Portanto, devemos dedicar-nos ao
exame destes princípios.

O primeiro é que Cristo, e somente Cristo, é o Cabeça da Igreja. Há somente um


Rei na Igreja, o Rei Jesus, como disse o escocês Andrew Melville no século 16.0
papa não é o chefe, nem qualquer príncipe ou monarca. Jamais algum homem ou
mulher pode ser o chefe da Igreja. A história da Igreja mostra que esta verdade
foi esquecida muitas vezes, e muita batalha tem sido travada sobre ela. Cristo na
Igreja é o Chefe da Igreja, e, onde quer que dois ou três se reúnam em Seu
nome, ali está Ele, no meio deles. Devemos reafirmar esta verdade central nestes
dias em que todos estes princípios estão de novo no crisol, nas mentes da imensa
maioria das pessoas. Nossos antepassados terão lutado em vão acerca destas
questões? Será inconseqüente dizermos que não há Chefe da Igreja senão o
Senhor Jesus Cristo, e que ninguém deverá ser colocado nessa posição, jamais?
Cristo é a Cabeça, e nós somos o corpo, e seus membros em particular.

O segundo princípio é que a Igreja consiste de membros, cada qual tendo uma
função sob a Cabeça. E o que é exposto no versículo 7, “Mas a graça foi dada a
cada um de nós segundo a medida do dom de Cristo”. Quando o apóstolo fala
em “graça dada”, não está se referindo à graça de salvação, porque ele já tinha
tratado desse assunto. Agora ele está preocupado com o funcionamento da Igreja
como corpo de Cristo. Obviamente, a todos nós foi dada a graça da salvação, do
contrário não estaríamos na Igreja; agora, porém, como o indica a expressão, “e
ele mesmo deu uns para apóstolos”, o seu tema é a graça dada a cada membro
individual da Igreja Cristã, homem ou mulher, habilitando-o a desempenhar
alguma função particular. A cada um é dada uma função, e, com esta, Ele lhe dá
capacidade para exercer essa função particular. A analogia do corpo esclarece
muito bem nisso. Cada parte do meu corpo, em particular, tem uma função para
executar. Nem sempre sabemos qual é a função; entretanto, o fato de não sabê-la
não significa que não haja uma função para cada parte.

Muitas vezes os cientistas caíram em erro quanto a esta questão. Há cem anos, e
depois, houve aqueles que, acreditando na teoria da evolução, diziam
dogmaticamente que a glândula tireóide não tem nenhuma função, sendo apenas
um dos vários vestígios rudimentares. Falavam semelhantemente de diversas
outras glândulas inativas. Mas hoje sabemos que essas glândulas executam
funções vitais. Tais pessoas ainda dizem que o apêndice não tem nenhuma
função, todavia o que realmente querem dizer é que não sabem o que ele é, e
provavelmente descobrirão que ele tem uma função muito importante. O ponto
em que

estou insistindo é que não há nada no corpo, nem sequer uma célula mínima,
nem um fio de cabelo, sem alguma função, algum propósito. Pode parecer muito
insignificante em si; mas está no corpo, opera com os outros elementos e tem o
seu papel a desempenhar.

Quando examinamos esta verdade e nos testamos por meio dela, como nos
vemos como membros da Igreja Cristã? Surgiu uma fatal tendência de pensar e
dizer que, em sua grande maioria, as pessoas da Igreja estão destinadas a ser
inteiramente passivas. Muitos parecem pensar na Igreja apenas como um edifício
ao qual as pessoas vêm, sentam-se e ouvem sermões e palestras, e no qual não
fazem nada. Isto é negar a proposição fundamental de que a graça foi dada a
cada um de nós na Igreja e como partes do corpo de Cristo. Cada um de nós
tem uma função, e não somos destinados a ser inteiramente passivos. Todo o
segredo do funcionamento do corpo humano é que cada parte e partícula tem
uma função particular destinada a ser cumprida.

A primeira coisa que temos que fazer, portanto, é descobrir qual é a nossa
função. Quando compreendemos isso, é que vemos que privilégio é sermos
membros da Igreja Cristã. A glória da nossa posição é que, neste corpo que
Cristo está formando por meio do Espírito, temos uma parte e um lugar. Em 1
Coríntios, capítulo 12, são nos lembrados algumas dessas funções, mas Paulo
não nos dá uma lista exaustiva. Há alguma posição particular que cada um de
nós é chamado para ocupar e na qual trabalhar. Assim, como cremos que a Igreja
é a guardiã e a defensora da única mensagem que pode salvar o homem neste
terrível mundo moderno, o nosso primeiro dever é descobrir qual é a nossa
função, e exercê-la. Esta função pode parecer não importante, como vou
mostrar, mas isso não importa; o que é vital é que há algo para cada um de nós
fazer - “A graça foi dada a cada um de nós segundo a medida do dom de Cristo”.

O terceiro princípio é que é o próprio Cristo que dá a cada um de nós esta graça
particular. O apóstolo dá ênfase a este ponto nos versículos 7 e 11. A graça nos é
dada “segundo a medida do dom de Cristo”. Infelizmente, no versículo 11, a
Versão Autorizada não assinala o sentido, pois diz: “E Ele deu uns, apóstolos”.
Contudo, a tradução correta e melhor é; “E ele mesmo deu uns para
serem apóstolos” (como Almeida). É enfático; não “ele”, mas “ele mesmo”, para
que não deixemos de compreender e de lembrar que é o próprio Senhor que dá
todos estes diversos dons.

Chegamos a seguir ao mais importante aspecto prático de toda esta matéria. Do


ponto de vista das atividades da Igreja hoje, esta é certamente uma das questões
mais importantes. Noutras palavras,

vamos considerar o que se conhece como doutrina da vocação. Os homens e as


mulheres da Igreja são chamados pelo próprio Senhor para determinadas
funções, e por Ele mesmo lhes é dada a capacidade para exercê-las. Este é um
assunto difícil, e freqüentemente mal compreendido. Só poderemos tratar de
alguns dos princípios pertinentes.

O primeiro princípio é que a pessoa não se chama a si própria. Não nos cabe
decidir fazer isso ou aquilo na Igreja, como se tem feito com freqüência. Por
exemplo, um decide que vai pregar, e o faz. Não lhe interessa a doutrina da
vocação; nunca ouviu falar dela. Ele faz o que deseja fazer. Mas, segundo o
ensino do apóstolo, o homem não se chama a si próprio; menos ainda, por certo,
ele entra no ministério, ou em qualquer outro ofício da Igreja, como profissão. A
história dos períodos sem vida nos anais da Igreja mostra como a idéia de entrar
no ministério como profissão tendia a prevalecer. A tradição e costume das
grandes famílias era que o filho mais velho se engajasse na Marinha, o segundo
filho ia para o Exército, enquanto que o terceiro filho entrava no ministério da
Igreja como clérigo. O filho que ia para o ministério, ia exatamente da mesma
maneira como os seus irmãos iam para a Marinha ou para o Exército. Isto
freqüentemente explicava as tristes condições da Igreja Cristã. E não
imaginemos que esse costume se restringe ao passado; ainda há aqueles que vão
para o ministério exatamente do mesmo modo. Um homem que poderia ser um
poeta e que deseja uma vida sossegada em que possa ter tempo para ler obras da
literatura e para compor poemas ou escrever romances ou outros tipos de
literatura, pode entrar no ministério por essas razões. Isto explica por que tantas
vezes a Igreja é fraca e ineficiente. Os homens esqueceram que é Cristo quem
chama, e que não somos nós que decidimos o que fazer na Igreja, nesta ou
naquela posição.

Devemos ir ainda além e acentuar que a necessidade não é a vocação. Esta é uma
negativa importante, porque um ensino evangélico popular tem insistido em que
a necessidade é a vocação. A resposta a isso é que é o Senhor que chama.
Naturalmente Ele pode chamar-nos para fazermos algo devido a uma certa
necessidade; mas a necessidade não pode ser a vocação, pela boa e suficiente
razão que, se a necessidade constituísse a vocação, todos nós deveríamos
estar atendendo a essa necessidade, e isso é patentemente ridículo. O propósito
não é que a necessidade seja a vocação. O Senhor mesmo vê o campo todo, e é a
Cabeça do corpo todo. Ele vê uma necessidade aqui, uma necessidade ali, ao
mesmo tempo. Ele vê, como nós, de maneira parcial; Ele vê perfeitamente.
Devemos salientar este princípio, que, simplesmente porque eu vejo uma
necessidade num dado lugar, não devo concluir daí que tenho a incumbência de
satisfazê-la.

Pode não ser da vontade de Deus que eu o faça. Pode ser que Ele tenha alguma
outra coisa para eu fazer, e talvez Ele queira que outra pessoa realize a obra que
eu insensatamente me apresso a empreender. O ensino segundo o qual a
necessidade é a vocação não somente não é escriturístico, é uma negação do
ensino de que o Senhor, como Cabeça da Igreja, é o único que pode dar a
vocação, e de que Ele no-la dá diretamente.
Em terceiro lugar, devemos acentuar que a Igreja sozinha não dá a vocação. Não
estou avançando a minha própria opinião ou interpretação daquilo que o
apóstolo diz aqui - “A graça foi dada a cada um de nós segundo a medida do
dom de Cristo.... E ele mesmo deu uns para apóstolos, e outros para profetas, e
outros para evangelistas, e outros para pastores e doutores” - pois o próprio
Cristo deu o mesmo ensino nas muitas vezes citada declaração de Mateus 9: “A
seara é realmente grande, mas poucos os ceifeiros”. Será a Igreja, então, que
deve lançar mãos de pessoas e enviá-las à seara? A resposta do nosso Senhor
é: “Rogai, pois, ao Senhor da seara que mande ceifeiros para a sua
seara” (versículos 37-38). Nós não lançamos obreiros; Ele o faz; e tudo o
que fazemos é orar rogando-Lhe que os envie. Em nosso zelo e
entusiasmo carnal, muitas vezes julgamos que o nosso objetivo é chamar
pessoas para tarefas na igreja, e fazemos isso de diferentes maneiras. Sugerimos
a jovens que entrem no ministério, ou preguem, ou ensinem. Como isso é
escandaloso! Não temos direito de sugerir a outrem qual pode ser a sua função
na igreja ou o que ele deve fazer. Há muitos homens que estão no ministério por
uma só razão, a saber, que a certa altura um velho ministro ou algum presbítero
ou diácono foi lhes perguntar se alguma vez tinham pensado em entrar no
ministério, e então os persuadiu a fazê-lo.

Perdoem-me uma referência pessoal que pode ajudar a ilustrar este assunto. Há
uns trinta anos, quando me senti chamado por Deus para entrar no ministério e
para pregar o evangelho, recebi uma carta do Secretário Geral de uma certa
sociedade de missões estrangeiras. Em sua carta ele me sugeriu que, ao invés de
pregar o evangelho na Inglaterra, eu devia ser um médico missionário na índia.
Parecia-lhe óbvio isso. Na ocasião havia tremenda necessidade de um homem
em certo hospital da índia, e aqui estava eu apressando-me para pregar
o evangelho na Grã-Bretanha, quando obviamente eu era o homem para aquele
posto na índia. Minha resposta àquele bom homem - cujos motivos,
naturalmente, eram excelentes e de quem eu muito me compadecia - foi
simplesmente fazer-lhe uma pergunta. Perguntei-lhe se ele cria na doutrina
bíblica da vocação, se ele cria que o Senhor da

seara ainda escolhe os homens e escolhe o lugar para onde enviá-los. Disse-lhe
eu que, quanto a mim, não somente creio, mas ajo baseado nisso e, daí, não fui
para a índia.

Há de fato um elemento quase impertinente, espiritualmente impertinente, neste


falso ensino segundo o qual a necessidade é a vocação. Pensamos que
entendemos, e tantas vezes fracassamos em nossos esforços! Em nossa
ignorância, não hesitamos em legislar para a Igreja e em decidir o que os homens
devem fazer. Não é tarefa da Igreja sugerir ou chamar, ou, menos ainda,
pressionar os homens, como se faz tantas vezes, e numa atmosfera emocional.
Delinea-se a necessidade, e com ela se procura impressionar os jovens; depois se
faz um apelo para que todos se disponham a alistar-se como voluntários. É
um processo sumamente antibíblico.

Estou dando ênfase a isto, não somente por tratar-se de matéria de interesse
teológico, mas também porque com freqüência têm ocorrido tragédias
resultantes dessa prática. Há pessoas cujas vidas foram completamente
arruinadas por este ensino que proclama que é o dever de todo jovem cristão
irpara o campo missionário. Não se preocupem com a ausência de sentimento,
diz este ensino, a necessidade é a vocação; vão para o campo missionário e, se
virem, quando chegarem lá, que não há propósito em ficarem lá, bem, então, vão
para casa! Isso é exatamente o oposto do ensino do nosso Senhor, e também do
ensino do apóstolo. Assim a confusão entra na Igreja, e muitas vidas se arruinam
simplesmente pela falta de aplicação do ensino das Escrituras.

Cada um de nós deve estar disposto a fazer qualquer coisa que o Senhor nos
chamar para fazer - ir para o campo missionário, e igualmente talvez, não irpara
o campo missionário. Às vezes pode ser mais fácil ir do que não ir. Há pessoas
que tranqüilizam e satisfazem as suas consciências fazendo algo heróico, tal
como ir para o coração da África e construir um hospital. No entanto, pode não
ser a vontade de Deus que o façam. Sua vontade pode ser que fiquem fazendo
algo monótono e comum neste país. Como povo cristão, como membros
do corpo de Cristo em particular, devemos estar à disposição dEle, prontos a
fazer o que quer que Ele nos chame para fazer. Os que Ele chama para que vão, e
envia, realizam uma obra fiel e trazem glória ao Seu nome.

Tem havido muita confusão quanto a todo este assunto de obra missionária
estrangeira, e muitas vezes o nome de Cristo foi difamado. Pessoas que se
lançam emocionalmente à obra, quando chegam ao campo descobrem o seu
engano e, quando retornam ao país de origem apresentar relatório do trabalho,
não voltam mais ao campo, e disto ficam sabendo os de fora da Igreja. Ouvi
dizer que, nalguns países,

somente um em três voltam para o campo missionário depois do seu primeiro


período de ausência de lá. Isso porque foram chamados por homens, e não pelo
Senhor; tem-se considerado a necessidade como sendo a vocação, ou a igreja
tem dado a vocação. Eles nunca entenderam que somos apenas partes e membros
individuais de um corpo, que é a Cabeça que decide e chama, e que esta
prerrogativa é de Cristo, e dEle somente.

Mas alguém poderá perguntar como havemos de saber quando vem esta
vocação. Há quem pergunte se a igreja tem algo que ver com isto. Que se há de
fazer com um homem que se apresenta e afirma que foi chamado pelo Senhor
para realizar uma obra em particular? As Escrituras nos fornecem uma resposta
para o problema. Elas começam, como temos acentuado, com a grande e central
doutrina de que o Senhor mesmo é Aquele que chama. No entanto, em
acréscimo, as Escrituras mostram que o que qualquer de nós pode considerar
como vocação deve ser provado e testado. E justamente aqui que a igreja entra;
porém a função da igreja é mormente negativa. A igreja deve aplicar certos testes
ao homem que alega que foi chamado pelo Senhor para uma tarefa. Tal homem
não deve pôr-se em ação imediatamente; deve vir à igreja e fazer a sua
declaração; e então a igreja deve estudar a questão.

Notem, por exemplo, o que vemos no capítulo seis do livro de Atos dos
Apóstolos, e também nas Epístolas pastorais. Ali vemos minuciosas regras e
regulamentos com vistas aos presbíteros e diáconos e acerca dos que pregam e
ensinam. E dever da igreja aplicar esses testes a qualquer candidato. Há dois
lados nesta questão. Posso ilustrar isso repetindo a conhecida história sobre
Charles Haddon Spurgeon, que tinha o seu próprio método de aplicar esses
princípios. Uma vez um jovem o procurou e lhe disse que tinha sido chamado, e
que o Espírito lhe dissera que ele devia pregar na terça-feira seguinte no
Tabernáculo de Spurgeon. Spurgeon respondeu que era muito estranho, porque
o Espírito não tinha dito nada a ele (a Spurgeon) sobre isso. Quando o Senhor
chama pelo Espírito, não fala somente com o jovem; fala com Charles Haddon
Spurgeon também! “Faça-se tudo decentemente e com ordem”, diz Paulo, para
que o ministério não seja censurado (1 Coríntios 14:40; 2 Coríntios 6:3). É
preciso que não haja confusão na igreja; e quando o Espírito opera, sempre o faz
de modo ordeiro. Assim, demos estas instruções à igreja, e com isso temos uma
prova que nos assegura de que não fomos mal conduzidos por um
impulso passageiro. Todos nós somos tão frágeis, e o inimigo é tão astuto!
Ele pode “transfigurar-se em anjo de luz” ( 2 Coríntios 11:14), com o fim

de confundir-nos. O homem verdadeiramente vocacionado é humilde, e não se


impõe sozinho; ele vai à igreja e declara que acredita que foi chamado por
Cristo. Ele se apresenta à igreja; e a igreja o examina.

Naturalmente, é muito importante que a igreja faça isso corretamente; e aqui há


erros, perigos e armadilhas por todos os lados. A igreja deve fazer isso aplicando
testes de maneira espiritual. Ela mesma deve ser sensível à direção do Espírito.
Ela não deve agir de maneira legalista, nem de maneira rígida, nem de maneira
meramente formal. Por vezes a igreja cometeu trágicos enganos. Houve
homens que verdadeiramente foram chamados por Deus, e que foram à igreja só
para ouvirem dela que eles não eram vocacionados. A igreja os rejeitou. Mas
nalguns casos a igreja errou inteiramente. A igreja não é infalível e não deve agir
de maneira legalista; deve respeitar a liberdade do Espírito, e o equilíbrio do
Espírito. Portanto, convém-nos a todos manter-nos no Espírito e debaixo da
influência do Espírito, de modo que possamos “julgar segundo a reta justiça”
(João 7:24).

A história da Igreja mostra claramente que, gostemos ou não, quem chama é o


próprio Senhor. O tratamento dado a George Whitefield e aos irmãos Wesley
pela Igreja da Inglaterra há duzentos anos nos fornece uma perfeita ilustração
deste ponto. Naquele tempo a Igreja da Inglaterra estava cega, e não podia ver
que era o Senhor que tinha chamado aqueles homens e os enviara para os seus
poderosos ministérios. A igreja não conseguia enxergar isso; e a igreja estava
errada. É o Senhor que concede os Seus dons à Igreja; e não há nada
mais fascinante na história dalgreja do que observar o modo como Ele o faz. De
que maneira inesperada, age Ele às vezes! Ele impõe as Suas mãos sobre um
filósofo imoral como Agostinho de Hipona, assenhoreia-se de um monge como
Martinho Lutero, ou de um grande crânio para leis como João Calvino. Assim O
vemos dar os Seus dons. Ele chama e dá. A Igreja nem sempre entende; mas não
significa que devemos ignorar a Igreja e dizer que a Igreja não importa. Ela pode
cometer erros por não ser bíblica e espiritual, todavia Ele é a Cabeça, e pode
sobrepujar até os erros dela.

Não há nada que esteja tão distante da descrição apostólica da Igreja como o
instuticionalismo e o eclesiasticismo. Não se encontram esses “ismos” em parte
alguma de Novo Testamento. O institucionalismo é uma negação da descrição da
Igreja como corpo de Cristo, e de Cristo somente com a Cabeça, e do Espírito
Santo produzindo e preservando esta bendita unidade. O eclesiasticismo é tanto
uma negação do ensino da Escrituras, como é o caos que se vê noutros círculos
na hora presente, onde os homens se estabelecem a si próprios e não reconhecem
nenhuma autoridade. Devemos ser guiados pelo conjunto com-
pleto das Escrituras, e esforçar-nos conforme nos sejam dados graça e poder pelo
Espírito, para manter um genuíno equilíbrio.

Isto nos leva ao quarto princípio, que é mais prático ainda. Esta graça que o
Senhor dá a cada um de nós difere e varia de caso a caso. “E ele mesmo deu uns
para apóstolos, e outros para profetas, e outros para evangelistas, e outros para
pastores e doutores.” É Ele que determina os diversos ofícios e funções na
Igreja; portanto, quem não crê em nenhuma organização, está numa posição
inteiramente antibíblica. Há os que imaginam que é muito espiritual não
ter organização, mas sim, ter uma comunidade solta e livre. Contudo, o nosso
Senhor determinou ofícios específicos para a Igreja. Não é um artifício feito pelo
homem; tudo proveio de Cristo, por meio destes apóstolos inspirados. Ele não
somente determinou que houvesse ofícios e funções, porém também determinou
a natureza e a variedade deles. 1 Coríntios, capítulo 12, ensina-nos isso
claramente. Uns ofícios são mais importantes do que os outros e, todavia, cada
um deles é essencial. Como no corpo físico algumas partes não são tão
elegantes como outras, entretanto estas partes deselegantes são necessárias e lhes
concedemos mais abundante honra. As várias funções diferem umas das outras,
e o propósito é que sejam diferentes; porém todos são indispensáveis para o
funcionamento harmonioso do conjunto total.

Além disso, é-nos dito que o nosso Senhor designa os homens para estes ofícios.
“Ele mesmo deu uns para serem (ou como) apóstolos.” E o Senhor mesmo que
escolheu os apóstolos, os profetas e todos os demais. Ele estabelece estes
diferentes ofícios, chama homens para eles e lhes dá capacidade para exercerem
as funções que estão destinadas a exercer naquele ofício particular. Aqui, de
novo, é óbvia a desigualdade. As próprias Escrituras ensinam que se preste
excepcional honra aos presbíteros que pregam e ensinam, pois essa função é
excepcionalmente importante. Há uma graduação de ofícios na Igreja; uns são
mais importantes, outros são menos, contudo todos são essenciais. Portanto,
devemos ter constantemente em vista estas duas coisas ao mesmo tempo - a
divisão de ofícios, a graduação dos ofícios e, todavia, o fato de que todos eles
são igualmente essenciais, e todos são designados pelo próprio Senhor.

A transposição deste ensino para a prática é altamente importante. Começamos


pelo reconhecimento das desigualdades; e longe de ficarmos perturbados ou
transtornados diante das desigualdades, reconhecemos que elas são determinadas
por Cristo e que visam ao pleno e harmonioso funcionamento da Igreja. Depois,
tendo reconhecido estas diferenças e graduações, devemos respeitá-las. Pelo que,
Tiago ensina no capítulo três da sua Epístola: “Meus irmãos, muitos de vós não
sejam mestres” (VA: “Meus irmãos, não sejais muitos mestres”) (versículo 19).
Havia pessoas na Igreja Primitiva que afirmavam que todos eram iguais, que
todos eram mestres, todos pregadores, todos capazes de fazer as mesmas coisas.
Não foi determinado que fôssem todos mestres! Devemos reconhecer que há
diferentes funções, diferentes ofícios, diferentes capacidades, diferentes
vocações na Igreja. Mas preciso acrescentar imediatamente que não
devemos endurecer isso numa divisão rígida e absoluta. Não há nada
nas Escrituras que dê suporte à idéia monárquica do governo da Igreja. Não
devemos chamar a ninguém senhor na Igreja. Não há autoridade monárquica ou
papal.

E interessante observar que, dentre todos os homens, foi o apóstolo Pedro que
escreveu: “Nem como tendo domínio sobre a herança de Deus, mas servindo de
exemplo ao rebanho” (1 Pedro 5:3). Os nossos antepassados puritanos e vultos
da Igreja Livre derramaram o seu sangue por este princípio; porém hoje a
tendência é dizer que estas coisas de nada valem. Temos que reconhecer que
existem diferentes funções, vocações e ofícios; todavia eles não devem ter
caráter hierárquico. O homem de um ofício inferior não tem por que dobrar
os joelhos ao de um ofício superior e chamar-lhe, “Meu Senhor”. Todos nós
recebemos a mesma graça e, apesar de nos serem dadas funções diferentes,
somos igualmente essenciais. Na Igreja, a ninguém chamo Senhor, a ninguém
chamo mestre. Reconheço as divisões e respeito o homem que exerce uma
função superior, mas não me sujeito como escravo, como súdito de um nobre ou
de um rei ou de alguém que tem autoridade monárquica. A idéia monárquica é
uma negação daquilo que aqui se ensina com clareza.

Devemos aprender a considerar corretamente estas coisas, em nós e nos outros.


Com relação a nós mesmos, se você achar que foi chamado para um alto ofício
ou que lhe foi dado um dom extraordinário, não seja orgulhoso, não se gabe e
não despreze outro irmão. Como Paulo argumenta: “Quem te diferença? E que
tens tu que não tenhas recebido? E, se o recebeste, por que te glorias, como se
não o houveras recebido?” (1 Coríntios 4:7). Se você ocupa uma posição
elevada, seja humilde; o que você tem lhe foi dado; o ofício foi dado, o dom foi
dado; a capacidade foi dada; portanto, não se jacte, e não despreze os outros. Por
outro lado, se é você que ocupa uma posição inferior, não seja invejoso, não seja
ciumento. Não olhe para o outro e diga: por que ele tem isso, e eu não? Leia 1
Coríntios, capítulo 12, e corrija-se. Todos nós devemos estar contentes com a
função que nos foi dada, com a tarefa para a qual fomos chamados. Não importa
quão inferior ou quão

insignificante ela é; não importa se não recebo louvores dos homens, e se o meu
nome nunca está nos jornais; isso é completamente sem importância, porque foi
o Senhor que chamou a cada um, e a minha função é essencial. Faço tudo para a
Sua glória; alegro-me nisso; a Deus louvo porque estou no corpo, mesmo sendo
uma das partes menos elegantes, e uma parte que não parece necessária. “Pela
graça de Deus sou o que sou” (1 Coríntios 15:10). Foi Ele que me chamou, foi
Ele que me deu a incumbência e a capacidade.

Também devemos aplicar isto com relação à nossa maneira de ver os outros. Foi
isso que deixaram de fazer em Corinto, resultando em que aquela igreja foi
dividida em seitas, cisões e grupos, cada qual seguindo um homem em particular
e se gabando de um dom particular. Eles tinham esquecido que “Paulo não é
coisa alguma, e Apoio não é coisa alguma, senão ministros de Cristo”, e que
nenhum deles teria dom nenhum, se o Senhor Jesus Cristo não lhos tivesse dado.
Assim Paulo diz-lhes que não se gloriem no homem, mas que se
gloriem somente no Senhor, o Doador dos dons, a Cabeça da Igreja.

Não seria crescentemente óbvio que é a nossa falta de estudo das Escrituras que
leva às dificuldades e à confusão, às divisões e cismas, às mágoas, aos pesares,
ao ciúme, à inveja e rivalidade, e a toda balbúrdia e confusão nas igrejas, e que
retarda o avivamento? Como poderá o Senhor honrar uma tal igreja, um tal
aglomerado de pessoas? Devemos retomar ao ensino bíblico sobre a Igreja. Isso
não é algo teórico, só para presbíteros e líderes, não é somente algo para
ser discutido nos concílios da Igreja. Esta Epístola foi escrita para todos os
membros da igreja de Efeso. Todos nós precisamos ter idéias claras acerca destas
coisas, de modo que, quando lermos sobre elas, possamos ter opiniões e
expressá-las. E nossa obrigação ver que a Igreja funcione como o seu Senhor
planejou que funcionasse. Portanto, humilhemo-nos, todos nós, diante dEle,
confessemos o nosso orgulho ou ciúme, a nossa inveja ou o nosso fracasso, o
nosso egoísmo, a nossa autovalorização, os nossos sentimentos de que somos
negligenciados. Voltemos ao Senhor, é o que digo, e humilhemo-nos diante
dEle; peçamos-Lhe que nos perdoe, que nos purifique; peçamos-Lhe que nos
mostre de modo simples e claro a obra para cuja realização Ele nos chamou, que
é que Ele deseja que façamos; e depois levantemo-nos e vamos fazê-lo com
todas as nossas forças, firmados no poder, na autoridade e na energia do próprio
Espírito Santo.
APÓSTOLOS, PROFETAS, EVANGELISTAS, PASTORES E MESTRES

“E ele mesmo deu uns para apóstolos, e outros para profetas, e outros para
evangelistas, e outros para pastores e doutores. ” Efésios 4:11

Já vimos que o versículo 11 é uma continuação do que o apóstolo começara a


dizer no versículo sete. Era essencial que os tomássemos juntos. Mas tendo feito
isso, agora podemos considerar a particular mensagem e declaração deste
versículo em si mesma, contudo somente com a condição de continuarmos a ter
em mente que o Senhor Jesus Cristo é o Doador de todos os dons da Igreja.
Também devemos continuar a ter em mente que o objetivo e o propósito de
Deus, acima de tudo, consistem em reunir em uma só todas as coisas, e que uma
das principais funções da Igreja Cristã é manifestar isso ao mundo. É por isso
que precisamos ter sempre o cuidado de preservar e defender a unidade. O
apóstolo explica como o nosso Senhor mesmo fez certas coisas com esse fim, e
para salvaguardar esta unidade.

Tendo firmado a sua doutrina, os seus princípios, o apóstolo passa agora a


ilustrar isso e a dar alguns exemplos de como Ele o faz: “Ele mesmo deu uns
para apóstolos, e outros para profetas, e outros para evangelistas, e outros para
pastores e doutores”.

É importante que compreendamos que no versículo 11 o apóstolo está


simplesmente ilustrando o seu grande tema. Ele o faz indicando algo com o que
os seus leitores estavam bem familiarizados na vida das suas igrejas e na de
outras igrejas. Mas ele não está expondo um pleno e exaustivo relato e descrição
de uma ordem da Igreja. Há ofícios que ele não menciona aqui. O seu objetivo é
simplesmente ilustrar o seu princípio. O que ele está efetivamente dizendo é que
na vida da Igreja há diferentes ofícios e diferentes dons, porém que cada um
deles foi designado para levar ao mesmo alvo da unidade. Põe-se ele a
desenvolver isso pormenorizadamente nos versículos 12-16: “Querendo o

aperfeiçoamento dos santos, para a obra do ministério, para a edificação do


corpo de Cristo; até que todos cheguemos àunidade da fé”, e assim por diante.

Esta é mormente uma matéria de instrução que, a primeira vista, pode parecer
distante da vida do cristão individual, porém há muitas razões importantes pelas
quais devemos estudá-la. A história da Igreja, através dos séculos, mostra que
nada, talvez, foi mais prolífico na produção de dificuldade, contenda, cisma e
grave dano à Igreja e, conseqüentemente, do nome de Cristo e da Sua obra de
salvação, do que a incompreensão deste assunto. Esta verdade se vê
particularmente no caso da igreja católica romana; mas não se restringe a ela.
Houve outros segmentos da Igreja e movimentos dentro da Igreja em geral que
são igualmente culpados de confusão neste aspecto, e nos estaremos referindo a
alguns deles.

A dificuldade tem sido com respeito à definição de “apóstolos e profetas” e aos


demais ofícios. Isto, no entanto, não é importante somente do ponto de vista do
entendimento da história da Igreja; é de importância prática no presente, com
toda a ênfase que se dá ao ecumenismo. Dizem-nos constantemente que a única
questão importante é a união dos diversos segmentos da Igreja Cristã numa
grande igreja mundial. É-nos dito que esta é a grande necessidade, e há os
que asseveram que a sua promoção é o maior movimento do Espírito
Santo desde a era dos apóstolos. O perigo é que aquele que carecem de
uma firme apreensão do ensino escriturístico podem estar prontos a
fazer concessões e a cometer erros graves. Em seu desejo de unidade, os cristãos
podem alijar certos princípios pelos quais os nossos antepassados não só
lutaram, mas até morreram. Há, por exemplo, acordo geral entre os corpos
religiosos maiores, no sentido de que o episco-pado é essencial para o bem-estar
da Igreja. É, pois, importante que tenhamos um inteligente entendimento destas
questões. Como povo cristão, cabe-nos ter opinião sobre elas, e estaremos
falhando em nosso dever, se não falarmos delas inteligentemente. É um erro
dizerem quaisquer cristãos que não se incomodam com estas questões, que
são simplesmente evangélicos preocupados com a salvação de almas. Não temos
direito de dissociar-nos da Igreja, não temos nenhum direito de ignorar o ensino
das Escrituras. Você pode imaginar que está sendo muito espiritual ao fazê-lo,
porém na verdade você está deixando de sujeitar-se à Palavra de Deus. Não
temos o direito do continuar crianças; devemos crescer, como o apóstolo nos faz
lembrar. Os que se colocam como extraordinariamente espirituais, não podendo
incomodar-se com essas coisas, são, como diz o apóstolo, os que estão
mais sujeitos a ser “levados em roda por todo o vento de doutrina”, e

eventualmente se vêem em situações nas quais nunca imaginaram, sequer por


um momento, que poderiam estar.

Os ofícios mencionados pelo apóstolo são apóstolos, profetas, evangelistas,


pastores e mestres. A respeito destes muito se tem escrito, discutido e debatido
no transcorrer dos séculos. Minha opinião é que podem ser divididos em dois
grupos. Primeiro, há certos ofícios que foram temporários e extraordinários na
Igreja, certas funções destinadas a serem utilizados durante um certo período, e
daí em diante desapareceram. Obviamente, portanto, o segundo grupo consiste
dos ofícios permanentes na vida e no testemunho da Igreja. Com o fim
de estabelecer e mostrar que esta classificação é boa, devemos examinar agora
estes diferentes ofícios.

No primeiro grupo, dos ofícios extraordinários e temporários, temos apóstolos,


profetas e evangelistas; e no segundo grupo, dos ofícios permanentes, temos
pastores e mestres. Começamos com “apóstolos”. Foi o nosso Senhor mesmo
que criou, e foi Ele que designou homens para o ofício. Como Paulo nos lembra
no versículo primeiro da sua Epístola aos Gálatas, Paulo apóstolo (não da parte
dos homens, nem por homem algum, mas por Jesus Cristo, e por Deus Pai, que o
ressucitou dos mortos)”. Ele não é apóstolo “da parte dos homens”; não foi
chamado ou designado por homens; “mas por Jesus Cristo”. “Ele mesmo deu
uns para apóstolos”, e deu esses apóstolos à Igreja. Há certas coisas claras nas
Escrituras do Novo Testamento com relação ao ofício de apóstolo. Apóstolo era
um homem caracterizado pelas seguintes coisas: primeiro e acima de tudo, é
preciso que ele tenha visto a Cristo ressurreto. Não podemos trabalhar com todas
as provas escriturísticas, porém uma das mais importantes é 1 Coríntios 9:1,
onde Paulo escreve: “Não sou apóstolo? Não sou livre? Não vi eu a Jesus Cristo
Senhor nosso?” Igualmente em 1 Coríntios, capítulo 15, ao dar uma lista das
pessoas pelas quais o Senhor ressurreto fora visto, ele menciona o fato de que,
“Por derradeiro de todos me apareceu também a mim, como a um abortivo.
Porque eu sou o menor dos apóstolos, que não sou digno de ser chamado
apóstolo”. Nenhum homem poderia ser apóstolo, se não fosse testemunha da
ressurreição do Senhor, se não pudesse dizer que tinha visto a Cristo
ressurreto. Veremos por que é importante dar ênfase a isso.

O segundo ponto essencial é que é preciso que ele tenha sido chamado e
comissionado para realizar a sua obra pelo próprio Senhor, em pessoa; não pela
Igreja, não por alguma delegação. Vê-se isto, de novo, em Gálatas, capítulo
primeiro. De fato Paulo geralmente começa as suas Epístolas descrevendo-se
como “Paulo”, chamado para ser

apóstolo”, ou “um apóstolo chamado”. Com isso ele se diferencia de outros


homens que se diziam apóstolos, os quais nunca tinham sido chamados pelo
Senhor. Eles se chamaram a si mesmos, ou certos segmentos da Igreja os tinham
chamado. Paulo fora “chamado” no caminho de Damasco. O Senhor ressurreto
lhe aparecera; e Paulo O tinha visto. Não foi uma visão, lembremo-nos; Paulo de
fato viu, a olhos nus, o Senhor ressurreto e glorificado. Vira-0 tão
definidamente como cada um dos outros apóstolos O vira no Cenáculo e
noutros lugares. O Senhor o comissionara ali, e lhe dissera que ia fazer dele
um “ministro e testemunha tanto das coisas que tens visto como daquelas pelas
quais te aparecerei ainda” (Atos 26:16). Ele dissera que tinha aparecido a Paulo
“por isso”, “com esse propósito” (VA). Sem ter visto realmente o Senhor
ressurreto, ninguém podia ser apóstolo.

Em terceiro lugar, apóstolo era um homem a quem tinha sido feita uma revelação
sobrenatural da verdade. O apóstolo já tinha tratado disso no capítulo três desta
Epístola, onde ele diz: “Se é que tendes ouvido a dispensação da graça de Deus,
que para convosco me foi dada; como me foi este mistério manifestado pela
revelação” (versículo 2-3). Ele recebera “pela revelação” o conhecimento da
verdade que devia pregar. No capítulo primeiro da Epístola aos Gálatas, onde
ele defende o seu apostolado e declara anátema sobre qualquer, mesmo um anjo
do céu, que pregasse algum outro evangelho que não o que ele lhes tinha
pregado, Paulo justifica a sua linguagem forte e alega com as seguintes palavras:
“Persuado eu agora a homens ou a Deus? Ou procuro agradar a homens? Se
estivesse ainda agradando aos homens, não seria servo de Cristo. Mas faço-vos
saber, irmãos, que o evangelho que por mim foi anunciado não é segundo os
homens. Porque não o recebi, nem aprendi de homem algum, mas pela revelação
de Jesus Cristo” (versículos 10-12). É isso que dá a um apóstolo a sua autoridade
e competência como mestre excepcional.

Quarto, o desiderato subseqüente segue-se logicamente do terceiro, a saber, que


apóstolo é um homem a quem foi dado poder para falar não só com autoridade,
com também infalivelmente. Os apóstolos eram os embaixadores de Cristo, e
lhes foi outorgada autoridade única. A Igreja Primitiva reconhecia esta
autoridade. Quando, mais tarde, a Igreja Primitiva teve que decidir sobre o cânon
das Escrituras do Novo Testamento, sob a direção do Espírito Santo, este foi o
último teste, que um livro tinha que ter autoridade apostólica. Esta autoridade
tinha que ser traçada até um apóstolo propriamente dito, ou tinha que
ser provado que derivava do ensino de um apóstolo. A apostolicidade era um
teste da autenticidade, porque um apóstolo, e unicamente um apóstolo, podia
falar infalivelmente e com autoridade divina. Isto se

explica por que o apóstolo Paulo pôde escrever ao povo e dizer: “Sede meus
imitadores” (1 Coríntios 4:16; Filipenses 3:17). Isto não era egoísmo, nem
presunção; era a humildade de um apóstolo que sempre deixou claro que as suas
palavras não eram propriamente suas, e sim as do Senhor. A importância da
ênfase a isto é evidente.

O quinto e último teste que se deve salientar é que apóstolo era um homem que
tinha o poder de realizar milagres. Afirma-se isto em Hebreus 2:4, onde se nos
diz que, primeiro, a palavra foi proclamada pelo Senhor, e pelos que O ouviram,
“Testificando também Deus com eles, por sinais, e milagres, e várias
maravilhas”. O Senhor dissera aos Seus discípulos: “Maiores obras do que estas
fareis” (João 14:12). Isto se refere a milagres; a realização de milagres era uma
das marcas de um apóstolo, como vemos profusamente no livro de Atos dos
Apóstolos.

Tudo isso é importante porque, mesmo nos dias da Igreja Primitiva e dos
apóstolos, havia homens que, dizendo-se apóstolos, arvoravam-se em apóstolos e
mestres. Paulo refere-se a eles na Segunda Epístola aos Coríntios. Esses homens
estavam perturbando a igreja de Corinto e outras igrejas; e é isto que Paulo diz a
respeito deles: “Porque tais falsos apóstolos são obreiros fraudulentos,
transfigurando-se em apóstolos de Cristo. E não é maravilha, porque o próprio
satanás se transfigura em anjo de luz” (11:13-14). O fato de que havia
falsos apóstolos torna vitalmente importante que entendamos o que é
um verdadeiro apóstolo. Os falsos apóstolos não tinham visto o
Senhor ressurreto, e nunca tinham sido chamados e comissionados por Ele. Não
compreendiam a verdade, nunca tinham recebido a revelação, não realizaram
milagres. Eram impostores que davam e recebiam “cartas de recomendação” uns
dos outros (2 Coríntios 3:1). Por definição, este ofício de apóstolo era claramente
um ofício extraordinário e temporário. Era impossível que continuasse,
simplesmente por este fato, que, desde o apóstolo Paulo, homem nenhum viu a
olhos nus o Senhor ressurreto, nem teria a mínima possibilidade de alegar que O
vira daquela maneira. Alguns têm alegado que tiveram visões, contudo visões
pertencentes a uma categoria inteiramente diferente. Paulo não teve uma visão
no caminho de Damasco; ele realmente viu o Senhor Jesus Cristo.

Portanto, não há nenhum sucessor dos apóstolos. Por definição, nunca poderá
haver, nem houve, sucessor dos apóstolos. Que isto é ensinado no próprio Novo
Testamento pode-se provar assim: recordem como, por causa da apostasia e do
suicídio de Judas Iscariotes, os apóstolos decidiram designar um sucessor dele; e
designaram Matias, como somos informados no capítulo primeiro de Atos. Mas
depois há

este interessante caso do apóstolo Paulo, e como ele foi introduzido no


apostolado. Ele nunca teria sido aceito pelos outros apóstolos, se não lhe fosse
dado ver o Senhor ressurreto no caminho de Damasco. Ele mesmo nos declara
que o seu caso foi incomum e excepcional, dizendo que ele foi como “um
abortivo”, uma espécie de nascimento ectópico (1 Coríntios 15:8). O Cristo
ressurreto foi revelado por último a ele. Ele não estivera presente quando da
ressurreição.

Há também uma muito interessante prova negativa da questão. No capítulo doze


de Atos dos Apóstolos se nos diz que Tiago, o irmão de João, um dos apóstolos,
foi morto pelo rei Herodes. No entanto não foi designado nenhum sucessor dele.
Se os apóstolos devessem ser designados pela Igreja, indubitavelmente a Igreja
teria designado um sucessor de Tiago, sem demora. Mas não foi feito isso. Todas
estas evidências, tomadas juntas, provam, fora de toda dúvida, que o apostolado
era um ofício temporário e que nunca foi intenção do Senhor dar-lhe
continuidade. Com que freqüência não se tem compreendido isto! Toda a
estrutura do papado está baseada num errôneo entendimento disto. Está baseada
na teoria de que Pedro se tornou o fixo e estabelecido apóstolo e bispo de Roma,
que ele nomeou um sucessor, e que esse processo vem sendo seguido sempre,
desde aquele tempo. O catolicismo romano ensina que Pedro transmitiu aos
seus sucessores o mesmo poder que ele possuía. A pretensão não somente é
antibíblica, é até historicamente errada. Não há nenhuma prova válida de que
essa posição alguma vez foi outorgada a Pedro, ou de que ele foi o primeiro
bispo de Roma. Essa mentira foi inventada nos séculos subseqüentes. Todavia,
em última análise, essa estrutura está baseada num entendimento completamente
falso do ofício de apóstolo. Os papas designados pela igreja não têm a pretenção
de que viram o Senhor ressurreto; porém nós vimos que isso constitui a
primeira qualificação essencial de um apóstolo.

Que lástima! Esta falácia não se restringe à igreja de Roma. Fora o ensino dos
setores católicos da Igreja da Inglaterra e de certas outras igrejas sobre a
“sucessão apostólicaz”, houve outros na Igreja que se diziam apóstolos e que
afirmavam que o que se ensina em 1 Coríntios, capítulo 12, deve perpetuar-se na
Igreja. Vê-se isto, por exemplo, na extraordinária história de Edward Irving, dos
irvingitas e da assim chamada Igreja Católica Apostólica que ele fundou em
Londres por volta de 1830. Irving era um brilhante jovem escocês pregador,
que tinha sido assistente do Dr. Thomas Chalmers, e que, para muitos,
era superior ao próprio Chalmers, em sua eloqüência e oratória. Ele veio para
Londres, onde foi o pregador da moda durante bom número de anos; mas,
subitamente, para espanto e consternação de todos, come-

çou a dizer que todo o sistema da Igreja estava errado, que ele era um apóstolo, e
que o apostolado era algo que devia perpetuar-se na Igreja. Assim ele
estabeleceu o que denominou A Igreja Católica Apostólica, com apóstolos,
profetas e outros ofícios. Sua vida terminou em tragédia. A informação pode ser
lida num livro intitulado, Edward Irving e o seu Círculo (“Edward Irving and his
Circle”), escrito por A.L. Drummond. A partir daí passou a existir uma igreja
que a si mesma se chama, A Igreja Apostólica, Tudo isso baseia-se num
falso entendimento do ensino do Novo Testamento concernente ao ofício
de apóstolo.

Em seguida passamos ao termo “profetas”. No Novo Testamento os profetas


geralmente estão ligados aos apóstolos, como no capítulo dois desta Epístola:
“Edificados sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas, de que Jesus
Cristo é a principal pedra da esquina” (versículo 20). No entanto, embora ligados
aos apóstolos, os profetas são obviamente diferentes. Po exemplo, não era
necessário que o profeta tivesse visto o Senhor ressurreto. Na verdade, ele não
precisava ter a maior parte das qualificações de apóstolo. O profeta
era, essencialmente, um homem que falava sob a direta inspiração do Espírito
Santo. Está claro também que, às vezes, o profeta era mulher. No capítulo dois
de Lucas se nos diz que Ana era uma “profetisa”. Igualmente somos informados
em Atos 21:9 de que o evangelista Filipe tinha quatro filhas que “profetizavam”.
Há muitas referências a profetas no Novo Testamento. Em Atos, por exemplo, é-
nos dito que havia diversos profetas na igreja de Antioquia, alguns dos
quais tinham descido para lá, de Jerusalém (11:27; 13:1). Um deles, chamado
Ágabo, profetizou que uma grande fome estava para sobrevir à terra, e ele
exortou os cristãos sobre isso. Há um ensino específico sobre os profetas no
capítulo catorze da Primeira Epístola aos Coríntios. Toda a questão dos profetas
é um assunto difícil, e não se pode falar demasiado dogmaticamente a respeito.
Podemos e devemos ser absolutamente dogmáticos acerca dos apóstolos, mas,
quanto aos profetas, devemos ser mais cautelosos, porque o ensino não é nítido.

Podemos dizer, contudo, que o profeta era uma pessoa a quem a verdade era
dada pelo Espírito Santo. De fato, pode-se dizer que ele recebia uma revelação
da verdade, e também lhe era dado poder para falar e proferir esta verdade de
maneira mais ou menos extática. Isto fica evidente pelo fato de que um dos
problemas da igreja de Corinto era que estes pronunciamentos extáticos dos
profetas estavam tendendo a causar confusão. Alguns que profetizavam lá
desculpavam-se dizendo que ficavam anulados sob o poder do Espírito. Paulo
vai

contra isso, dizendo: “E os espíritos dos profetas estão sujeitos aos profetas”. Ele
ensina que os profetas podem e devem controlar-se, e que devem falar um de
cada vez e sem interromper uns aos outros.

Devemos acentuar que o profeta é uma pessoa a quem veio uma revelação da
verdade. Isso está claro no ensino de Paulo em 1 Coríntios, capítulo 14, onde ele
diz: “Falem dois ou três profetas, e os outros julguem. Mas se a outro, que
estiver assentado, for revelada alguma coisa, cale-se o primeiro” (versículo 29-
30). Vinha-lhes uma revelação ou mensagem ou algum discernimento da
verdade e, cheios do Espírito, podiam fazer declarações benéficas e proveitosas
para a igreja. Certamente está claro que também isto era temporário, e por esta
boa razão, que naqueles primeiros dias da Igreja não havia Escrituras do Novo
Testamento, a verdade ainda não tinha sido exposta em palavras.

Procurem imaginar a nossa situação, se não possuíssemos estas Epístolas do


Novo Testamento, mas unicamente o Velho Testamento. Essa era a situação da
Igreja Primitiva. A verdade lhe era comunicada primordialmente pelo ensino e
pregação dos apóstolos, porém isso era suplementado pelo ensino dos profetas, a
quem era dada a verdade e também a capacidade de proferi-la com clareza e
poder, na demonstração e autoridade do Espírito. Todavia, uma vez que estes
documentos do Novo Testamento foram escritos, o ofício de profeta deixou de
ser necessário. Daí, nas Epístolas pastorais, que se referem a um
período posterior da história da Igreja, quando as coisas se haviam tornado mais
estabelecidas e fixas, não há menção dos profetas. É claro que mesmo naquele
tempo o ofício de profeta não era mais necessário, e aos mestres e pastores e
outros competia expor as Escrituras e transmitir o conhecimento da verdade.

De novo devemos notar que muitas vezes, na história da Igreja, dificuldades


surgiram porque havia os que pensavam que eles eram profetas no sentido
neotestamentário, e que tinham recebido revelações especiais da verdade. A
resposta para isso é que, em vista das Escrituras do Novo Testamento, não há
necessidade de verdade adicional. Essa é uma proposição absoluta. Temos toda a
verdade no Novo Testamento, e não temos necessidade de quaisquer
outras revelações mais. Tudo foi dado, tudo o que é necessário está disponível.
Portanto, se alguém afirmar que recebeu revelação de alguma nova verdade,
suspeitemos dele imediatamente. Muitas vezes a Igreja teve que fazer isso. No
século segundo apareceu uma seita chamada montanistas que afirmava
justamente isso. Foram denunciados como hereges pela Igreja; e acertadamente.
Eram boas pessoas, e sinceras,

como freqüentemente os hereges são, e grande parte da crítica que eles faziam ao
estado da Igreja era correta. Eram pessoas de propensão espiritual, mas
exageravam na ênfase a uma verdade particular, e o diabo vinha e os concitava a
irem além das Escrituras, e assim se tornavam hereges. Deveras ironicamente,
entretanto, a própria igreja católica romana é a principal herege nesta questão,
como na do apostolado. No passado, a igreja católica romana muitas vezes
não hesitou em reivindicar e asseverar que recebeu novas relações da verdade,
além daquilo que se acha no Novo Testamento. Isso se aplica à maior parte do
seu ensino acerca da virgem Maria. Não se acha nas Escrituras, mas eles alegam
que o receberam mediante novas revelações. Em geral eles não ensinam isso no
presente de maneira nua e crua como o faziam, porém dizem que estas coisas
estavam latentes nas Escrituras. Contudo, quando o papa fala “ex cathedra” e
promulga a doutrina da imaculada concepção, assim chamada, ou a da assunção
da virgem, alega-se que ele está falando com a autoridade dos apóstolos e
profetas e como vigário de Cristo. Tudo isso deve-se a um falso entendimento
destes ofícios de apóstolos e profetas. Porventura não é certo que devemos estar
cientes destas coisas quando muito nos concitam a juntar-nos a Roma para a
formação de uma grande igreja mundial?

Além disso, devemos lembrar que isso não se limita ao catolicismo romano. Na
época da Reforma Protestante surgiram certas seitas -freqüentemente
classificadas, um tanto injustamente, sob o título geral de anabatistas - no
continente europeu, as quais causaram muito problema a Martinho Lutero em
particular, e também a Zwínglio e Calvino. Essas pessoas, chamadas “profetas de
Zwickau”, alegavam que eram profetas e que estavam recebendo revelações do
céu. Alguns dos mais fanáticos foram tão longe que chegaram a repudiar e
ignorar a Palavra escrita e a substituir a sua autoridade pelo que eles diziam
que eram revelações diretas do Espírito. Vê-se a mesmâ tendência na Inglaterra,
no caso do movimento dos quaeres, que surgiu no século dezessete, na época do
avivamento puritano. George Fox, o seu fundador, foi sem dúvida um santo
homem de Deus, mas cada vez mais foi dando ênfase à “luz interior” e a uma
direção e orientação direta como superior à Palavra escrita, e os seus seguidores
fizeram mais ainda disso. Eles realmente se diziam profetas no sentido do
Novo Testamento.

A resposta para tudo isso é que a necessidade de profetas terminou, uma vez que
temos o cânon do Novo Testamento. Não temos mais necessidade de revelações
diretas da verdade; a verdade está na Bíblia. Nunca devemos separar o Espírito
da Palavra. O Espírito nos fala por

meio da Palavra; portanto, devemos pôr em dúvida e questionar sempre qualquer


suposta revelação que não seja inteiramente coerente com a Palavra de Deus. Na
verdade, a essência da sabedoria está em rejeitar completamente o termo
“revelação” naquilo que se refere a nós, e falar somente em “iluminação”. A
revelação foi dada uma vez por todas, e o que necessitamos e o que pela graça de
Deus podemos ter, e temos, é a iluminação do Espírito para entendermos a
Palavra. O pregador não deve ir ao púlpito alegando que recebeu uma
revelação; sua alegação deve ser que ele é um homem que lê a Palavra e ora e
crê que o Espírito Santo esclarece e ilumina o seu entendimento, com o resultado
que tem uma mensagem para o povo. Noutras palavras, é um homem que ora
constantemente, rogando para si o que Paulo no diz que rogava a favor dos
cristãos de Efeso (capítulo 1 e 3).

Opino também que o mesmo vale para o termo “evangelista”. Se alguém ficar
surpreso por eu colocar o evangelista e o seu ofício na mesma categoria
extraordinária e temporária dos apóstolos e dos profetas, a probabilidade é que
ele está pensando num evangelista nos termos do uso moderno da palavra. Este é
algo essencialmente diferente do seu uso no Novo Testamento, onde não temos
muita informação acerca dos evangelistas. Filipe, que é mencionado no capítulo
oito do livro de Atos, era um evangelista. Ele é mencionado outra vez, no
capítulo vinte e um. É mais que evidente, também, que Timóteo e Tito eram
evangelistas. O apóstolo Paulo lembra a Timóteo que faça a obra de evangelista.
Dessas referências parece claro que o evangelista era um homem muito especial,
que estava em estreita associação com os apóstolos. Alguns dos chamados Pais
Primitivos da Igreja inclinavam-se a dizer que foram os evangelistas que
escreveram os quatro Evangelhos; mas não pode ser, à luz do que nos é dito
nas passagens jámencionadas. O evangelista é um homem a quem foi
dada habilidade e poder especial para tomar conhecidos e expor os fatos
do evangelho. Geralmente era um homem designado pelos próprios apóstolos, e
pode ser descrito como uma espécie de aprendiz dos apóstolos. Era alguém
enviado pelos apóstolos para fazer determinada obra. Às vezes era enviado
adiante dos apóstolos, como Filipe foi enviado a Samaria, porém geralmente
seguia os apóstolos.

Os apóstolos, os profetas e os evangelistas eram itinerantes. Viajavam, fundavam


igrejas e lançavam os fundamentos da Igreja Cristã, com freqüência se verá,
pois, que o evangelista era deixado pelo apóstolo para edificar sobre o alicerce
que fora estabelecido, para expor e explicar a verdade mais completamente. Ou,
como eu disse, às vezes ele era enviado adiante do apóstolo para preparar o
caminho e

apresentar a mensagem geral do evangelho. Essa era a sua tarefa particular. Ele
não tinha visto o Senhor ressurreto, não podia testificar a ressurreição dessa
maneira. A história de Tito e Timóteo prova isso além de toda dúvida. Mas o
evangelista era um homem que o Espírito Santo levara os apóstolos a
escolherem. Foram dadas a ele certas habilidades; ele conhecia os fatos,
conhecia as verdades do evangelho, e ele podia apresentá-las de maneira clara e
com aunção, a autoridade e o poder do Espírito Santo. Desse modo ele
suplementava a obra dos apóstolos e a estendia e a fazia espalhar-se e tornar-se
firme. Assim, o evangelista era um homem cujo ofício era temporário, e quando
as igrejas estavam constituídas e se tornaram mais solidamente estabelecidas,
este ofício igualmente desapareceu.

Isso não significa que, desde aquele tempo, não pode haver homens na Igreja
hoje a quem é dada uma vocação especial para pregar o evangelho de jeito e
maneira particular, mas, estritamente falando, não são evangelistas no sentido
neotestamentário da palavra. Seria melhor chamá-los “exortadores”, como eram
chamados no tempo do despertamento evangélico do século dezoito.

Aíestão, pois, três ofícios que foram extraordinários e temporários. Os ofícios


permanentes são descritos como os de “pastores e mestres”. Este grupo é muito
mais fácil de entender, embora tenha havido muita discussão quanto a se
pastores e mestres são dois ofícios diferentes. Concordo com os que dizem que
são um só. Se fossem dois ofícios separados, esperaríamos ler, “Ele mesmo deu
uns para apóstolos, e outros para profetas, e outros para evangelistas, e outros
para pastores, e outros para doutores” (ou “mestres”); mas o apóstolo escreve,
“e outros para pastores e mestres”, ligando os dois um ao outro; e, falando em
termos gerais, estes dois ofícios acham-se no mesmo homem. Relacionam-se
com uma condição mais regular da Igreja, e têm persistido através dos séculos.
O ofício de pastor geralmente ocupa-se do governo, da instrução, das normas e
da direção. E copiado, naturalmente, da figura do pastor de ovelhas. O pastor
pastoreia o seu rebanho, mantém em ordem as ovelhas, dirige-as aonde ir e
onde alimentar-se e as traz de volta ao aprisco, cuida da segurança delas e as
protege dos inimigos que poderiam atacá-las. É um grande ofício, todavia,
infelizmente, o termo tem sido rebaixado. O pastor é aquele a cujos cuidados são
confiadas almas. Não é apenas um homem fino e agradável que visita as pessoas,
toma uma chávena de chá com elas à tarde ou se entretém com elas. Ele é o
guardião, o vigia, o protetor, o organizador, o diretor, que governa o rebanho. O
mestre ministra instrução na doutrina, na verdade. O apóstolo passa a
desenvolver isso,

mostrando que precisamos ser edificados e que é necessário que não


permaneçamos “crianças”. Precisamos ser protegidos contra “todo o vento de
doutrina”, e o meio de fazê-lo é dar instrução e ensino.

Apesar de eu dizer que estes dois ofícios geralmente andam juntos, e isso através
da longa história da Igreja, às vezes um homem tem mais dom pastoral do que de
ensinar ou pregar, e outras vezes tem mais dom de ensinar e pregar do que de
pastorear. Esta é uma questão de variação individual, de acordo com o dom do
Espírito. Mas na Igreja vocês têm estes ofícios, estes homens que ensinam,
pregam e cuidam das almas dos membros da Igreja. A igreja católica romana
inclinou-se a dividir estes ofícios, ao passo que os puritanos nos séculos 16 e 17,
nomeavam “preletores” que não tinham cargo pastoral. Estes casos, porém,
são exceções à regra geral.

Na Igreja Cristã temos a sabedoria da Cabeça, nosso Senhor e Salvador Jesus


Cristo. Ele deu apóstolos e profetas para o lançamento do alicerce. A Igreja é
edificada “sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas” (Efésios 2:20).
Eram homens que Ele chamou de maneira especial para essa obra. O apóstolo
Paulo, olhando para trás, pôde dizer: “Ele me separou desde o ventre de minha
mãe” (Gálatas 1:15). Durante anos e anos ele não soube disso, e foi um
blasfemo, odiando e perseguindo a Igreja. Não obstante, chegou a hora em
que Ele Se revelou a Paulo e o chamou. Oh, a sabedoria da Cabeça da Igreja!
Provavelmente eu e vocês nunca chamaríamos a maioria dos apóstolos, os quais
eram pescadores incultos. Teríamos chamado uma série de homens notáveis
como filósofos. No entanto, o Senhor nosso, como Cabeça da Igreja, escolheu
alguns homens muito comuns, bem como este incomum e extraordinário Paulo.
Foi ele que os escolheu a todos. Ele sabia como lançar o alicerce. A Igreja
esqueceu-se disso muitas vezes, como, por exemplo, quando o imperador
romano Constantino tornou-se cristão e fez do cristianismo a religião oficial
do Império Romano, em 313 A.D. Logo houve uma aliança entre a Igreja e o
Estado. Imperadores e concílios começaram a designar membros de famílias
nobres para ofícios da Igreja; e isso vem acontecendo daí em diante. Introduziu-
se o termo não cristão “padroado”, e tem persistido e continuado. Assim é que,
falando em termos gerais, os homens não têm sido chamados para estes altos
ofícios por sua espiritualidade ou por sua compreensão da verdade, mas, antes,
por seu nascimento natural, por sua capacidade natural ou por sua
cultura secular, adquirida nas universidades a que pertencem, e por
razões similares. A Igreja Cristã está em constante perigo de esquecer o ensino
dos apóstolos, o fundamento sobre o qual somos edificados,

com o resultado que o mundo nem sequer olha para ela, porém a ignora. O
mundo vê esta mundaneidade na Igreja, vê a caça de ofícios, as rivalidades, as
maquinações e as manipulações que ele conhece muito bem em sua própria
esfera, e diz que por isso não se interessa pela Igreja. Noutras palavras, uma das
mais urgentes necessidades da presente hora é que demonstremos ao mundo que
a Igreja ainda é o corpo de Cristo, que ela ainda é espiritual, que tudo quanto lhe
diz respeito, especialmente estes ofícios, é determinado pelo Senhor, e não por
eclesiásticos astutos. Como a verdadeira Igreja continua sendo o corpo de Cristo,
será só quando a Cabeça chama e designa os homens para estes ofícios que o
mundo ouvirá a Igreja e sua mensagem, e se livrará da escravidão do pecado e de
satanás, e seus membros se tomarão santos na Igreja do Deus Vivo.

Queira Deus conceder-nos sabedoria e entendimento nestas questões, para que


possamos desempenhar o nosso papel certo em todas as perigosas discussões da
atualidade. Não tenhamos medo de firmar a nossa posição nas Escrituras, e não
nos deixemos arrastar e afastar por vagas generalidades acerca da unidade, tantas
vezes às custas da própria verdade.

EDIFICANDO O CORPO

“Querendo o aperfeiçoamento dos santos, para a obra do ministério, para


edificação do corpo de Cristo; até que todos cheguemos à unidade da fé, e ao
conhecimento do Filho de Deus, a varão perfeito, à medida da estatura
completa de Cristo. Para que não sejamos mais meninos inconstantes, levados
em roda por todo o vento de doutrina, pelo engano dos homens que com astúcia
enganam fraudulosamente. Antes, seguindo a verdade em caridade (amor),
cresçamos em tudo naquele que é a cabeça, Cristo. Do qual todo o corpo,
bem ajustado, e ligado pelo auxílio de todas as juntas, segundo a justa operação
de cada parte, faz o aumento do corpo, para sua edificação em
amor.'’’ Efésios 4:12-16

Grande declaração essa, e quão poderosa! Seu propósito é dizer-nos por que o
nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo designou na Igreja vários ofícios e os
homens para ocupá-los. É com a finalidade de aperfeiçoar a Igreja e torná-la
inteira e completa em todos os aspectos.

É bom começar fazendo uma análise geral da declaração. Nos versículos 12 e 13


o apóstolo faz uma afirmação positiva e geral do objetivo em vista. Tudo isso foi
feito, diz ele, para “o aperfeiçoamento dos santos, para a obra do ministério, para
edificação do corpo de Cristo; até que todos cheguemos à unidade da fé, e ao
conhecimento do Filho de Deus, a varão perfeito, à medida da estatura completa
de Cristo”. É esse o propósito quanto ao que devemos ser, essa é a meta, mas,
mestre sábio como ele era, coloca-o negativamente no versículo 14: “Para que
não sejamos mais meninos inconstantes, levados em roda por todo o vento de
doutrina, pelo engano dos homens que com astúcia enganam fraudulosamente”.
Depois ele volta aos termos positivos no versículo 15: “Antes, seguindo a
verdade em amor (caridade), cresçamos em tudo naquele que é a cabeça, Cristo”.
Tudo visa à edificação do corpo e seu funcionamento harmonioso, com ele o
desenvolve em detalhe mediante a analogia da Igreja como corpo de Cristo, no
versículo 16.

Mais uma vez estamos olhando para um maravilhoso quadro da Igreja. Somente
quando nós, que estamos na Igreja, tivermos um conceito certo da Igreja, é que
começaremos a funcionar verdadeiramente. Por exemplo, a primeira questão
quanto ao problema da evangelização não é o estado do mundo lá fora; é a
condição da Igreja. Conceitos defeituosos da Igreja e do seu funcionamento
levam ao emprego de métodos mundanos e carnais. Se víssemos a Igreja
como retratada pelo apóstolo, tudo mudaria. O real problema continua sendo a
natureza da Igreja.

Devemos começar com a exposição geral dos versículos 12 e 13 com respeito ao


propósito de todos os ofícios da Igreja. No versículo 12 Paulo o expõe
objetivamente e em geral. No versículo 13 ele o expõe de maneira um tanto mais
particular e subjetiva: o fim propriamente dito, em geral, no versículo 12; o meio
pelo qual isso nos afeta, no versículo 13. Há apóstolos, profetas, evangelistas,
pastores e mestres na Igreja por três razões principais: para o
aperfeiçoamento dos santos, para a obra do ministério e para a edificação do
corpo de Cristo. A questão que se levanta é a relação destes três ofícios uns
com os outros, e os doutos comentadores passam muito tempo discutindo-a. A
questão é: seriam estas três coisas absolutamente paralelas e exatamente
coordenadas?

A resposta é propiciada pela palavra “para” (VA) - “para o aperfeiçoamento dos


santos, para aobra do ministério,para a edificação do corpo de Cristo”. A mesma
palavra é empregada três vezes na Versão Autorizada inglesa, porém se formos
ao original, veremos que no grego o primeiro para é uma palavra diferente da
que é empregada no segundo e no terceiro casos. O primeiro para é mais geral
do que os outros. Concordo inteiramente com os que dizem que a diferença
é que o primeiro para faz referência ao propósito final, ao passo que o segundo e
o terceiro se referem a um propósito mais imediato. Há um grande fim ao qual os
dois fins intermediários levam. Podemos expor a matéria da seguinte maneira: o
propósito final de todos estes ofícios e divisões de trabalho na Igreja é o
aperfeiçoamento dos santos; e o modo como os santos devem ser aperfeiçoados é
pelo dom do ministério, cuja função é edificar o corpo de Cristo. Há um
objetivo final, e há objetivos mais imediatos.

Chamo a atenção para a maneira pela qual os crentes são descritos aqui. Cada
um deles é um santo - “para o aperfeiçoamento dos santos”. Todo membro da
Igreja Cristã é um santo. As Epístolas do Novo Testamento tornam isso claro e
simples; elas são dirigidas “aos santos que estão em Corinto” ou “aos santos que
estão em Roma”, ou nalgum

outro lugar. É muito entristecedor que os cristãos tenham permitido que esta
palavra fosse mal empregada, e em particular que tenhamos permitido que a
concepção católica romana de um santo nos influenciasse tanto. Em nossa
estultícia dizemos: “Ah, eu não sou um santo”, ou “Não gosto de dizer que sou
um santo”. Todavia, devemos dizer que somos santos. Que é um santo? Um
santo é um homem que foi separado do mundo. A palavra mesma significa “uma
pessoa santa” -“para o aperfeiçoamento das pessoas santas”. “Uma pessoa santa”
é alguém que foi tirado de onde estava e foi posto à parte. O termo é empregado
constantemente no Velho Testamento. Um monte foi tornado santo e, neste
sentido, foi separado para uso de Deus. Os vasos do templo tornavam-se santos
quando era aspergido sangue sobre eles. Eles eram santificados desse modo e
postos à parte. O modo como devemos conceber-nos a nós mesmos como
cristãos e como membros da Igreja é, portanto, que fomos separados do mundo,
que não somos mais profanos, e não pertencemos mais a essa esfera. Deus nos
moveu, separou-nos e nos pôs à parte para Si. Somos “a geração eleita,
o sacerdócio real, a nação santa, o povo adquirido” (ou “um povo peculiar”) -
um povo para a Sua possessão peculiar. Fomos segrega-dos e separados. Mais
uma vez afirmo que a Igreja é como está porque esta idéia foi esquecida. Esta
separação não está mais em evidência; somos parecidos demais com o mundo. O
mundo penetrou na Igreja, e ficou difícil dizer a diferença entre um cristão e um
não cristão. A palavra “santo” nos lembra todo o processo pelo qual somos
chamados, separados e postos de lado para Deus. Regozijemos-nos no fato de
que somos santos, e gloriemo-nos em nossa alta vocação.

Passamos agora à palavra “aperfeiçoamento”. Essencialmente esta palavra


significa que nós temos que fazer-nos aptos para servir ao fim e objetivo
colimado. A figura é que algo que desejamos usar ainda não está perfeito, de
modo que temos que fazer certas coisas a fim de habilitá-lo para aquele fim e
objetivo para o qual queremos usá-lo. Significa suprir certas deficiências ou
corrigir e ajustar certas partes que estão erradas. A idéia griginal, por trás desta
palavra, é “ajustar em conjunto num só corpo”. É de fato um termo que era
empregado para descrever a junção de ossos deslocados. Quando os ossos se
deslocam, o membro particular ao qual eles pertencem fica imperfeito.
Quando eles são colocados ou recolocados no alinhamento certo, o membro fica
perfeito de novo. Assim, a idéia presente na palavra utilizada pelo apóstolo é que
todas estas diferentes partes e porções do corpo de Cristo sejam colocados no
alinhamento certo, sejam adequadamente ajustadas, e que cada uma delas se
desenvolva plenamente. O apóstolo ainda está pensando em termos da Igreja
como o corpo de Cristo.

Todos nós juntos somos o corpo de Cristo, mas somos membros em particular; e
cada um de nós tem que ser aperfeiçoado; e quando cada um de nós for
aperfeiçoado, todo o conjunto será aperfeiçoado. Portanto, a obra está sendo
realizada em cada um de nós, estamos sendo ajustados adequadamente para o
nosso lugar particular na Igreja, com o resultado que o corpo todo funcionará de
maneira harmoniosa e satisfatória. Tudo o que o Senhor designou para a
Igreja tem em vista esse fim e objetivo, a saber, que este corpo de Cristo,
em todos os seus membros, venha a tornar-se perfeito e completo.

Passando agora para a questão seguinte, quanto a como isto deve ser realizado,
chegamos à segunda declaração - “para a obra do ministério”. Este é um dos fins
subsidiários. Aqui de novo há muito debate e discussão, quanto ao sentido desta
frase particular. Alguns afirmam que significa “para a realização de serviço”, que
o nosso Senhor estabeleceu todos estes ofícios na Igreja para que nos
tomássemos aptos ou “equipados para” fazermos o nosso serviço, seja este qual
for. Alguns afirmam que significa que o apóstolo está dizendo que todos estes
ofícios são designados para capacitar-nos, como membros do corpo, para servir-
nos uns aos outros. Parece-me, porém, que, como exposição, isso é
insustentável. Naturalmente, há um sentido em que isso é verdade, porém a
questão é se isso que o apóstolo está salientando aqui. Meu parecer é que não é,
pela razão de que todo o contexto o contraria, e de que a idéia do apóstolo em
todo o contexto é a dos ofícios ministeriais na Igreja. Para esse fim ele os
especificou - “apóstolos, profetas, evangelistas, pastores e mestres”. Ele não
está pensando nos membros tipo médio, nos membros comuns da Igreja; ele está
ilustrando deliberadamente o seu tema destacando certos ofícios e certas
vocações especiais. Noutras palavras, ele está ressaltando que o Senhor
determinou uma forma e uma ordem de ministério na Igreja Cristã. Esse é o
contexto completo; e ele inclui aqueles, e somente aqueles, que exercem ofícios
ministeriais. De fato, no Novo Testamento esta palavra para “ministério” é
geralmente utilizada naquele sentido e com aquela conotação. Vejam, por
exemplo, o que o mesmo apóstolo diz em 1 Coríntios 3:5: “Pois quem é Paulo, e
quem é Apoio, senão ministros pelos quais crestes, e conforme o que o Senhor
deu a cada um?” O que ele quer dizer com, “e conforme o que o Senhor deu a
cada um” é, “e conforme o Senhor designou o seu ofício para cada um”. Ele
prossegue, dizendo: “Eu plantei”; essa foi a obra confiada a ele; “Apoio regou”;
essa foi a tarefa dada a ele. No entanto, observem que o apóstolo descreve a si
próprio e a Apoio como “ministros”. Ele o faz de novo no capítulo subseqüente,
em 1 Coríntios

4:1: “Que os homens nos consideram como ministros de Cristo, e dispenseiros


dos mistérios de Deus”. De novo ele está tratando do ofício ministerial.

O Senhor Jesus Cristo ressurreto, em toda a Sua glória, enviou estes dons para a
Igreja. Estes não são de instituição humana; Ele mesmo os ordenou e os
designou, Ele decidiu qual a natureza dos ofícios, e Ele decidiu sobre os homens
que devem exercer estes ofícios. Assim é que eles são “ministros” da Igreja. O
apóstolo é um ministro. Os profetas, os evangelistas, os pastores, os mestres, são
todos ministros de Cristo e dispenseiros dos mistérios de Deus. O que os
ministros fazem na Igreja domingo após domingo não é algo que o homem
desenvolveu através dos séculos; foi originado pelo próprio Senhor, e nós
o realizamos porque é nosso dever fazê-lo, pois fomos chamados para realizá-lo.
“O aperfeiçoamento dos santos” não pode efetuar-se fora da obra do ministério.
Esta obra do ministério é “para edificação do corpo de Cristo”. Esta palavra
“edificação” significa “construção”. O apóstolo Paulo já tinha utilizado essa
palavra no fim do capítulo dois, onde ele diz que somos “edificados sobre o
fundamento dos apóstolos e dos profetas, de que Jesus Cristo é a principal pedra
da esquina; no qual todo o edifício, bem ajustado...” Na verdade, é a mesma
idéia que o nosso Senhor utilizou, quando disse: “tu és Pedro, e sobre esta pedra
edificarei (ou “construirei”) a minha igreja”. Portanto, ocupamo-nos aqui da
idéia de construção. O apóstolo parece estar misturando as suas metáforas,
como parece estar fazendo também no capítulo dois. Sua idéia dominante é a do
corpo, entretanto ele fala de construção do corpo. Ele combina esta idéia de
erigir um edifício com a de crescimento de um corpo e, assim, escreve sobre a
construção do corpo. Fazemos algo similar quando falamos sobre alimentos que
“constroem o corpo”. Paulo ensina que a obra do ministério é “construir o
corpo”.

A obra do ministério, diz o apóstolo, é promover crescimento e desenvolvimento


espiritual. Ninguém pense que este assunto só é apropriado para um seminário
teológico ou para uma reunião de ministros, nada tendo que ver com os membros
de igreja não chamados para algum ofício ministerial. Esta matéria é importante
para todos os membros de igreja, por esta boa razão, que demasiadas vezes o
banco de igreja dominou o púlpito, com grande dano para a Igreja. O
apóstolo adverte a Timóteo de que “virá tempo em que não sofrerão a
sã doutrina”. É o que sucede freqüentemente nos dias atuais, e foi assim durante
o presente século. Por isso é importante que todos os membros de igreja tenham
uma verdadeira concepção da Igreja e do ofício do ministério em particular.

Há igrejas no mundo atual que, na superfície, parecem florescentes. Multidões se


juntam nelas e exibem muito zelo e entusiasmo. Mas, com um exame de perto,
vocês verão que a maior parte do tempo é tomada com música de vários tipos, e
com clubes e sociedades e atividades sociais. O culto começa às 11 horas e deve
terminar ao meio-dia em ponto. Será um problema sério, se não for assim!
Há apenas uma breve “palestra” de um quarto de hora de duração, vinte minutos
no máximo. O infeliz ministro, se não vê estas coisas claramente, teme ir contra
os desejos da maioria, o seu sustento depende dos membros daquela igreja, e o
resultado é que tudo se faz para amoldar-se aos desejos e vontades do banco da
igreja. Soube de uma fonte bem autorizada que há uma igreja que é freqüentada
em certas ocasiões do ano por distintas personalidades, quando são
dadas instruções ao pregador para não pregar por mais de sete minutos. É muito
importante, pois, que todos os membros da Igreja entendam que o propósito e a
função do ministro consistem na “edificação do corpo de Cristo”. A história da
Igreja mostra claramente que é quando o banco, ou seja, os ouvintes exercem tão
poderosa influência, e quando os ministros destituídos de coragem são tão
coibidos, que a Palavra de Deus não é pregada fielmente e a Igreja fica inerte e
sem vida. O banco não deve ordenar ao ministro o que lhe cabe fazer.

_ Contudo, deixem-me acrescentar que o ministro não deve mandar. E o Senhor


que determina, é Ele que está assentado à mão direita de Deus e que deu “uns
para apóstolos, e outros para profetas, e outros para evangelistas, e outros para
pastores e mestres”. Ele os deu para edificação dos membros da Igreja, e é a Sua
mensagem que deve ser pregada, sem temor nem favor. Precisamos recapturar
algo do espírito de John Knox, cuja pregação fazia Maria, a rainha dos
escoceses, tremer.

A obra do ministério é edificar o corpo de Cristo. O dever dos ministros é


edificar a Igreja, não edificar-se a si próprios! Ah! Tantíssimas vezes eles têm se
edificado a si mesmos, e lemos sobre príncipes da Igreja que vivem em posições
de grande riqueza e pompa. Que completa inversão do ensino de Paulo é isso!
Observemos também que são chamados para edificar; não para agradar e
entreter. O modo como eles fazem isso é resumido perfeitamente
naquela passagem tão lírica de Atos, capítulo 20. O apóstolo Paulo estava
se despedindo dos presbíteros da igreja de Éfeso, à beira-mar, e eis o que ele
disse: “Agora, pois, irmãos, encomendo-vos a Deus e à palavra de sua graça; a
Ele que é poderoso para vos edificar e dar herança entre todos os santificados”
(versículo 32). “à palavra da sua graça; a Ele que é poderoso para vos edificar”!
(VA: “à palavra da sua graça, que é

poderosa para vos edificar”!). O apóstolo expressa a mesma idéia ao escrever


aos colossenses: “A quem anunciamos, admoestando a todo o homem, e
ensinando a todo o homem em toda a sabedoria; para que apresentemos todo o
homem perfeito em Jesus Cristo; e para isto também trabalho, combatendo
segundo a sua eficácia, que obra em mim poderosamente” (1:28-29). Vemos o
mesmo ensino também na Segunda Epístola a Timóteo: “Toda a Escritura
divinamente inspirada é proveitosa para ensinar, para redargüir, para corrigir,
para instruir em justiça; para que o homem de Deus seja perfeito, e
perfeitamente instruído para toda a boa obra” (3:16-17). De novo, no capítulo
quatro da mesma Epístola, lemos: “Que pregues a palavra, insistes a tempo
e fora de tempo” (4:2). Em sua Primeira Epístola aos Coríntios, o apóstolo diz:
“Com leite vos criei, e não com manjar, porque ainda não podíeis” (3:2).
Igualmente, na Epístola aos Hebreus, vemos: “Do qual muito temos que dizer, de
difícil interpretação; porquanto vos fizestes negligentes para ouvir. Porque,
devendo já ser mestres pelo tempo, ainda necessitais de que se vos tome a
ensinar quais sejam os primeiros rudimentos das palavras de Deus; e vos haveis
feito tais que necessitais de leite, e não de sólido mantimento. Porque qualquer
que ainda se alimenta de leite não está experimentado na palavra da justiça,
porque é menino. Mas o mantimento sólido é para os perfeitos, os quais,
em razão do costume, têm os sentidos exercitados para discernir tanto o bem
como o mal” (5:11-14).

Todas estas passagens nos instruem quanto à obra do ministério. Elas mostram a
maneira de edificar o corpo de Cristo. É “pregar a Palavra” - “a Palavra da sua
graça, que é poderosa para vos edificar”. A obra do ministério não consiste em
falar acerca de atividades ou eventos correntes, o ministro não deve achar a sua
mensagem nos jornais, não deve entreter as pessoas contando-lhes histórias
ou provocando risadas. Deve “pregar a Palavra”. Esta é a única Palavra que pode
edificar a Igreja, e edificar cada membro do corpo de Cristo.

Voltando-nos agora para a questão prática quanto a como esta Palavra deve ser
pregada, a primeira regra é que a pureza doutrinária deve prevalecer. O apóstolo
Pedro, em sua primeira Epístola, escreve: “Desejai afetuosamente, como
meninos novamente nascidos, o leite racional, não falsificado, para que por ele
vades crescendo” (2:2). O leite “não adulterado”, “puro”, sem mistura,
correspondente ao padrão, vitorioso no teste - o leite puro e não adulterado da
Palavra. E não “a palavra do homem”, mas “a palavra de Deus” (VA). Não é
de admirar que a Igreja seja hoje como é; foram-lhe dados filosofias
e entretenimento. Por esses meios o ministro pode atrair e reter uma

multidão por algum tempo; porém esses meios não podem “edificar”. E o dever
dos pregadores é edificar, não atrair multidões. Nada, senão a Palavra de Deus
não falsificada, edifica. Fora desta não existe autoridade alguma; e é preciso que
ela não seja modificada ou enfeitada para enquadrar-se na moda da ciência
moderna ou nalguns supostamente “seguros resultados da crítica”, que sempre
estão mudando. É o “evangelho eterno”, é a “Palavra eterna”, a mesma
Palavra que Paulo e os outros apóstolos pregaram, a mesma Palavra que
os reformadores protestantes pregaram, e os puritanos, e os grandes pregadores
de há duzentos anos, e igualmente Spurgeon no século passado, sem modificação
alguma. E porque isso foi esquecido nos últimos cem anos que as coisas estão
como estão hoje.
Em segundo lugar, deve ser a palavra apropriada, o alimento apropriado. Vimos
como o apóstolo Paulo diz: “Com leite vos criei, e não com manjar”, e como o
autor da Epístola aos Hebreus diz exatamente a mesma coisa. Não damos
alimento forte a um bebê; o bebê tem que ser alimentado com leite. Quer dizer
que o ministro precisa ter discernimento e juízo nestas questões. Não é a criança
que resolve qual a particular dieta melhor para o seu crescimento. A criança quer
resolver, é claro, a criança sempre quer ter aquilo que gosta; mas ela não sabe o
que é bom para ela. Não é dever da criança resolver; é dever dos pais. Na
nutrição espiritual há leite e há alimento forte; faz parte do dever do pregador
saber as diferenças entre ambos. Ele deve variar a dieta alimentar de acordo com
a necessidade das pessoas - não só leite, e não apenas alimento forte - doutro
modo a sua pregação não estará edificando. Há também circunstâncias
variáveis; e esta Palavra deve ser aplicada a toda e qualquer
circunstância. Alguns ouvintes estão alegres, outros estão tristes; há os que
talvez estejam sofrendo perseguição e tribulação; alguns poderão
estar celebrando uma vitória. Há uma palavra para todos; e um
completo ministério de toda a Palavra satisfará a todas as condições e a todas
as circunstâncias concebíveis.

Além disso, esta dieta que edifica, não só não deve ser falsificada e apropriada;
também deve ser completa e balanceada. Pode-se ilustrar isto com o que é
próprio da esfera natural. Lemos nos jornais sobre a importância de uma dieta
balanceada de proteínas, gorduras e carboidratos, e vitaminas também. Uma das
grandes descobertas deste século, e especialmente durante a Segunda Guerra
Mundial, é a importância de uma dieta balanceada. Muitas vezes as pessoas
ficam doentes, não somente por não comerem alimento suficiente,
porém também porque a sua dieta não é balanceada. Isto é igualmente certo e
vital com relação ao alimento espiritual. Deve ser uma dieta balan-

ceada, como nos dizem as citações que fizemos. Dieta de ensino e doutrina. Esta
sempre vem em primeiro lugar: “Persiste em ler, exortar e ensinar”, diz o
apóstolo a Timóteo (1 Timóteo 4:13). E outra vez, no mesmo capítulo: “Tem
cuidado de ti mesmo e da doutrina” (versículo 16). Se não estivermos firmes na
doutrina da fé cristã, não teremos a mínima possibilidade de crescer.

A história da Igreja mostra claramente que os seus grandes e gloriosos períodos,


tais como durante e após a Reforma Protestante, sempre vieram depois da
poderosa pregação da doutrina. Não será inteligente admirar os grandes heróis da
fé, tais como os pactuários, se você não os entende. O que fez daqueles homens
os homens que foram, é o fato de que eles conheciam as grandes doutrinas da fé
cristã. Isto é a proteína e o ferro que dão força. As grandes doutrinas da fé têm
que ser a base da dieta alimentar cristã. Depois da doutrina deve vir o ensino que
aplica a doutrina. O apóstolo teve o cuidado de dizer que estava “admoestando a
todo o homem”. E nós precisamos ser admoestados em dias e tempos como
estes. Há demasiada complacência na Igreja. A situação é realmente
desesperadora, e “é tempo que comece o juízo pela casa de Deus”. Acaso
percebemos a nossa responsabilidade pelas condições da Igreja, pelas condições
do mundo? Nós seremos chamados às contas.

Em seguida à exortação vêm a repreensão e a correção. Não gostamos disso, e


desejamos algo que nos faça sentir felizes. Mas a Bíblia está repleta de
repreensão, de correção; e todos nós temos necessidade de ser repreendidos e
corrigidos quanto às nossas vidas e ao nosso modo de viver; por exemplo, nosso
uso do dinheiro, nosso uso do tempo, nosso vestuário e muitas outras coisas.
Depois precisamos de “instrução na justiça”. Necessitamos que nos digam
como viver uma vida piedosa, santa e pura. Nesta mesma Epístola que estamos
estudando, o apóstolo vai do meio deste capítulo quatro até o fim para dar clara
instrução na justiça. Ele também diz a Timóteo que “exorte, com toda a
longanimidade”. Quer dizer que a verdade tem que ser aplicada. Um ministério
que apenas expõe a verdade sem aplicá-la, falhou. O verdadeiro pregador da
justiça concita o povo a pô-la em prática. Noutras palavras, se estivermos
interessados no crescimento de uma criança ou de um adolescente, daremos
ênfase à necessidade de exercício. Este ajudará o crescimento e o
desenvolvimento.

Aqui, de novo, devemos ter o cuidado de que o nosso ensino seja balanceado.
Dizia-me recentemente um amigo que ele e muitos dos seus irmãos de igreja
estavam constantemente sendo exortados a fazerem várias coisas sem que lhes
fosse dada a razão para isso. Um

ministério que consiste unicamente de exortação e apelos às pessoas para


tomarem decisões constantemente, em geral se torna estéril e fútil. Ação e
atividade devem resultar da doutrina. Um ministério balanceado não se limita
nem somente à doutrina, nem somente à exortação, e sim combina ambas e as
coloca na ordem certa. É preciso haver sempre algo para a mente, para o coração
e para a vontade. A verdade envolve prática, bem como teoria. O pregador não
deve tratar e analisar uma porção das Escrituras como se estivesse
manuseando uma peça de Shakespeare. A Palavra é a Palavra de Deus, é
verdade santa e visa a comover o coração e a influenciar e afetar a
vontade. Assim, aquele que ministra o evangelho deve pregar de maneira
vivida e calorosa, sob o poder do Espírito. Num sentido, nada é mais devastador
do que o ministério que é unicamente intelectual e que nunca perturba. Houve
tempos na história da Igreja em que os ministros pregavam sermões ortodoxos,
porém a Igreja estava morta. A explicação é que a pregação era puramente
intelectual, o coração nunca era tocado.

Há pouco tempo um homem disse-me uma coisa que me animou mais do que
qualquer coisa que eu tenha ouvido durante anos. Era um homem de mais de
oitenta anos de idade. Sucedeu que eu estivera pregando sobre a justificação pela
fé e, com lágrimas nos olhos, disse-me ele: “Eu soube essa doutrina a minha vida
toda; mas antes nunca a conheci de modo que me comovesse”. Ele tinha mantido
a doutrina intelectualmente; ele pertencera a um segmento da Igreja no qual
estas coisas eram consideradas objetivamente, de maneira puramente intelectual,
todavia a doutrina não o comovera. O que podemos chamar vitaminas espirituais
sempre deve ser um elemento constitutivo da dieta, se é que há de haver uma
qualidade vivificante no ministério.

Finalmente, é preciso fazê-lo de maneira atraente. Quando uma pessoa adoece e


perde o apetite, o seu alimento deve ser apresentado de maneira atraente. Você
não o atira nele, por assim dizer; você o cozinha tão bem quanto puder, e o serve
tão atrativa e asseadamente quanto puder. Noutras palavras, se o ministro não se
preocupa com as almas das pessoas, se ele não se inquieta por elas, e não tem o
cuidado de observar se elas estão crescendo e se desenvolvendo, não
está exercendo um ministério edificante. Torno a acentuar que isto não significa
que ele devia estar entretendo o povo. Paulo salienta, particularmente em suas
Epístolas pastorais, que isto deve ser feito com seriedade e com sobriedade. O
apóstolo escreve acerca de si mesmo e do seu ministério nestes termos:
“Sabendo o temor que se deve ao Senhor” (“Conhecendo o terror do Senhor”),
persuadimos os homens” (2 Coríntios 5:11). Ele se sentia responsável pelas
almas dos homens,

e sabia que ele e a sua obra seriam julgados no “tribunal de Cristo”, em parte
pela condição das pessoas. A verdade deve ser apresentada atrativamente, isto é,
de maneira espiritualmente atrativa, não de maneira carnalmente atrativa, não
como entretenimento.

Mais uma instrução para o ministério é que ele deve mostrar em si mesmo um
padrão em sua vida e ministério. Ele próprio deve manifestar crescimento
espiritual, entendimento da doutrina, e interesse por ela, em sua vida e em todo o
seu comportamento. O apóstolo pôde desafiar o povo de Tessalônia neste
sentido: “Vós e Deus sois testemunhas de quão santa, e justa, e
irrepreensivelmente nos houvemos para convosco, os que crestes” (1
Tessalonicences 2:10). E insiste com Tito sobre a importância de mostrar-se ele
próprio um modelo de piedade, retidão e santo viver (2:7-8).

Como vimos, o Senhor mesmo designou estes ofícios “para o aperfeiçoamento


dos santos”. Seu desejo é que, por meio do ministério, sejamos todos edificados,
que o corpo de Cristo seja edificado, que cada parte seja forte e vigorosa, e uma
honra para a Cabeça, e tudo em conformidade com a Sua vontade e o Seu prazer.
A Cabeça viva, sabendo qual é a necessidade, designa os ofícios e os homens
para exercê-los e realizar a Sua obra.

Deus tenha misericórdia de todos nós que fomos chamados para pregar, se
falharmos no exercício deste ministério. Ficamos sem desculpa, pois aqui nos é
dito abertamente o que se espera que sejamos e façamos. O que todos nós
precisamos conhecer é “a palavra da sua graça, que nos pode edificar”. Você está
sendo edificado? Você está “crescendo na graça e no conhecimento do Senhor”?
Você é forte, é varonil? E capaz de levantar-se contra as perigosas infecções que
são epidêmicas no mundo moderno? Você é saudável? Você está
sendo aperfeiçoado, está sendo edificado como membro do corpo de Cristo? É
uma questão solene. “Cada um examine-se a si mesmo.”

FÉ E CONHECIMENTO

“Até que todos cheguemos à unidade da fé, e ao conhecimento do Filho de


Deus, a varão perfeito, à medida da estatura completa de Cristo.” Efésios
4:13

Neste versículo treze, o apóstolo explica como os vários ofícios do ministério e


da obra do ministério levam à edificação, à construção, do corpo de Cristo.
Portanto, nada é mais importante para nós, como nada foi mais importante para
estes cristãos efésios, do que entender esta figura e esta concepção da Igreja
Cristã que o apóstolo coloca diante de nós. Como povo cristão, falhamos em não
entender o que significa a nossa condição de membros da Igreja - a dignidade, o
privilégio e a responsabilidade - e essa é a causa da maior parte dos
nossos problemas. Nossa maior necessidade é recapturar o ensino do
Novo Testamento concernente à Igreja. Se tão-somente nos víssemos a
nós mesmos em função disso, compreenderíamos que somos o povo
mais privilegiado da terra, que não existe nada que se compare com ser cristão e
membro do corpo místico de Cristo.

Os ofícios da Igreja foram introduzidos e homens foram chamados para


funcionarem neles a fim de que o corpo de Cristo fosse edificado. Mas há
dificuldades acerca disso, como vem exposto no versículo treze, como há acerca
das informações subseqüentes nos versículos 15 e 16. O apóstolo retornou à sua
analogia favorita da Igreja como o corpo de Cristo. Seu interesse nisso é tanto
que ele interrompe o seu pensamento com a declaração negativa do versículo 14,
e depois torna a voltar a ele, e, ao fazê-lo, quase mistura as suas metáforas.
Não obstante, a descrição maior é essencial é muito clara. O objetivo final destes
ofícios e da obra da Igreja é que os santos sejam aperfeiçoados. Isto é descrito,
primeiramente, em termos de unidade - “Até que todos cheguemos à unidade da
fé” - e depois, em segundo lugar, em termos do “conhecimento do Filho de
Deus”. Mediante estas realidades chegamos a “varão perfeito”, “à medida da
estatura completa de Cristo”. Pode-se descrever o objetivo final em termos de
chegarmos a “varão perfeito”, ou “à medida da estatura completa de Cristo”.

A palavra “perfeito” significa “puro”, “com pleno crescimento”, “plenamente


desenvolvido”, ou “completo”. O perigo quanto ao emprego da palavra “varão”
(ou “homem”) é considerar a questão como uma coisa que se refere a nós
individualmente, um por um, como se o apóstolo estivesse dizendo, “até que
todos nós cheguemos a ser homens perfeitos”. Ora, embora num sentido, como
vou mostrar, isso seja a verdade, não é exatamente o que o apóstolo comunica
mediante este quadro, pois, como foi assinalado, se fosse assim, levantar-se-ia a
questão sobre onde entram as mulheres. Na verdade, por causa desse problema,
alguns dos Pais Primitivos entraram em grande dificuldade neste ponto. Mas o
“varão perfeito” significa a Igreja, com Cristo, a Cabeça, e nós mesmos, homens
e mulheres, como membros do corpo. Assim, pode-se considerar “o varão
perfeito” como sendo a Igreja numa condição perfeita, o corpo correspondendo à
perfeição da Cabeça.

Podemos justificar esta interpretação referindo-nos ao fato de que o apóstolo


utiliza de novo esta expressão concernente ao nosso Senhor na Primeira Epístola
aos Coríntios, onde lemos: “Porque, assim como o corpo é um, e tem muitos
membros, e todos os membros, sendo muitos, são um só corpo, assim é Cristo
também” (12:12). “Cristo” aqui obviamente representa a Igreja. O que
caracteriza o corpo, o corpo humano natural, também caracteriza a “Cristo”, com
o que ele quer dizer, Cristo e Sua Igreja, Cristo e a Igreja constituindo um só
corpo. Assim, o apóstolo está dizendo que sempre devemos pensar em
nós mesmos dessa maneira e dar-nos conta de que o grande programa
e propósito de Deus é que a Igreja seja perfeita - Cristo como a Cabeça e nós
como membros em particular desse corpo. Esse deve ser o estado final da Igreja,
e é para esse fim que profetas, evangelistas, e pastores e mestres são ordenados.
Vem o dia em que este corpo, a Igreja, será completa, madura, completamente
crescida, plenamente desenvolvida. Ela não é assim ainda; mas será. Depois o
apóstolo expõe esta matéria noutros termos, “à medida da estatura completa de
Cristo” (VA: “à medida da estatura da plenitude de Cristo”).
Doutos comentadores passam muito tempo arrazoando se a tradução deve
ser “estatura” ou “idade”. Em última instância, não faz diferença qual seja o
sentido, pois as duas idéias, de altura e de idade, obviamente andam juntas. A
figura é a do desenvolvimento de uma criança para a adolescência e para a idade
adulta. Podemos pensar nisso em termos de idade ou em termos de altura;
porque é quando a criança atinge certa idade que ela atinge idade e altura
permanentes. O importante é que o apóstolo nos ajuda a ver como esta perfeição
do corpo será alcançada. O homem perfeito consiste, não somente da Cabeça,
Jesus Cristo, que é sempre perfeito, porém também de nós, que formamos os
membros

e as partes individuais do corpo. Portanto, o que Paulo está realmente dizendo é


que o homem perfeito só se concretizará quando cada um de nós, que é membro
do corpo, tiver crescido até a plena estatura e o pleno desenvolvimento que Deus
determinou para nós. Esse corpo, esse “homem”, a Igreja, não será perfeita,
enquanto cada singular parte e porção não for perfeita. Se houver um defeito ou
falta de desenvolvimento ou imaturidade em qualquer parte ou porção, não se
poderá dizer que o corpo está perfeito.

Pensem, por exemplo, numa maçã. Pode-se ter o que parece um ótimo espécime;
todavia, se houver nela um só defeito, o mais leve sinal de estrago, ela não levará
o primeiro prêmio na competição de uma exposição de fruticultura. Embora se
destaque de todas as outras quanto a tamanho, forma e cor, não será mais um
espécime perfeito. Assim, não se chegará a ter este “homem perfeito” enquanto
cada parte e porção não estiver plenamente desenvolvida e absolutamente
perfeita.

Uma vez mais, porém, isto não significa que seremos absolutamente iguais e
idênticos. A figura do corpo torna isso impossível. O polegar é diferente dos
outros dedos, os dedos são diferentes da mão; todas as várias partes são
diferentes: haverá variações na capacidade e na função; não obstante, cada parte
terá atingido aquilo que se pretendeu que ela seja e aquilo que se pretendeu que
ela faça.

A idéia que constitui a glória central da Igreja Cristã pode ser considerada
negativamente da seguinte maneira: podemos dizer que toda apresentação da
verdade cristã que tenda a produzir mesmice em seu povo é, por esse teste,
errônea e falsa. As seitas, como vimos, sempre reproduzem um tipo; os seus
membros são quase idênticos, todos se ajustam a um modelo. Eles usam as
mesmas expressões e as proferem da mesma maneira. Não há sugestão disso no
Novo Testamento; e jamais é uma característica de uma obra genuína do
Espírito Santo. Esta analogia do corpo deveria salvar-nos desse erro
particular. As imitações sempre são mecânicas, e se revelam tais
reproduzindo pessoas idênticas em muitos aspectos. A glória da Igreja está
nesta extraordinária variedade e variação; não há somente unidade, mas também
a perfeição de cada uma das partes. Noutras palavras, o corpo não será perfeito
enquanto cada polegar não for perfeito, cada unha não for perfeita, cada fio de
cabelo não for perfeito, cada detalhe não for absolutamente perfeito.

Portanto, o que importa na Igreja não é qual é a nossa vocação ou o nosso ofício,
ou a particular graça a nós concedida, seguudo a medida do dom de Cristo; o que
importa é que cada um de nós seja perfeito nessa posição. O propósito é que
cada um de nós seja cheio da vida de Cristo. Os membros não contêm, cada qual,
a mesma quantidade,

contudo cada um está cheio. Se você foi ao oceano com um copo na mão e o
mergulhou, você dirá: “O meu copo está cheio”, e se levar um grande
reservatório e o deixar encher-se, você dirá: “O reservatório está cheio”. Há uma
grande diferença na quantidade de água do mar no copo e no reservatório,
entretanto ambos estão cheios, e ambos podem estar transbordando. Assim, o
que aqui se ensina não é identidade na quantidade, mas que cada um tem a
plenitude a ele destinada, seja homem, seja mulher.

Quando a Igreja estiver completa, quando se chegar a este “homem perfeito”,


nem um único santo estará faltando; todos estarão seguramente reunidos. “A
plenitude dos gentios” e “todo o Israel” estarão salvos. Deus sabe o número, a
complementação e a plenitude. Eu não o sei, e ninguém o sabe; porém “O
Senhor conhece os que são seus” (2 Timóteo 2:19), e quando o homem perfeito
estiver concretizado, nem um só membro do corpo estará ausente ou faltando,
nem o mais leve grau da graça estará faltando em parte alguma. O corpo todo
estará proporcionalmente completo e perfeito.

Podemos examinar isto de duas maneiras. Há um sentido em que eu e você


faremos parte daquilo que constitui a plenitude de Cristo. Há um sentido em que
Ele não está completo sem nós. Uma parte da Sua abnegação e da Sua
humilhação é que Ele Se sujeitou a isto, que Ele Se uniu a este corpo e agora faz
parte dele, a saber, é a Cabeça. Neste sentido, Ele não está completo sem nós,
porque esta plenitude que Lhe pertence como a Cabeça do corpo não estará
completa, enquanto nós todos não estivermos compartindo a Sua plenitude e não
formos perfeitos. No entanto agora, e até sermos perfeitos, significa que a
Sua plenitude está em cada um de nós.

É neste ponto que vemos que a analogia do corpo é tão valiosa. Toda a
organização do corpo, a sua natureza orgânica e a natureza orgânica da sua
unidade, torna isto absolutamente vital. A vida está no sangue e flui através de
cada parte do corpo, mesmo dos membros do corpo mais distantes. O mesmo
sangue flui através de cada parte levando a mesma vida. A plenitude da Cabeça
está nos dedos. A plenitude de Cristo está em nós. Mas é igualmente certo que o
fato de estarmos cheios completa a Sua plenitude. É assim que devemos ver a
nós mesmos como povo cristão.

Deixar de compreender isto, e de compreender o privilégio e a glória que isto


envolve, é que leva à situação miserável na qual muitos pastores e pregadores
têm que clamar aos membros da sua igreja que a freqüentem no domingo, e têm
que persuadi-los a cumprirem vários deveres na igreja. Tais pessoas nunca se
viram a si mesmas como membros do corpo de Cristo. Acham que estão
conferindo honra à

igreja por estarem, mesmo frouxamente, ligadas a ela, e que a honram com a sua
freqüência irregular. Não vêem que devem lutar para completar a Sua plenitude,
que não há tempo a perder, que devem purificar-se dos seus pecados, buscar a
santidade e crescer na graça para poderem chegar a esta plenitude. Precisamos
meditar mais e mais neste “homem perfeito” vindouro, na consecução da
“medida da estatura da plenitude de Cristo”.

Não devemos concentrar-nos em nosso lugar ou em nossa posição particular na


igreja, pois não há membro sem importância na igreja. Temos a tendência de
andar errados (e certos segmentos da Igreja encorajam-nos a andar errados), se
exageramos a distinção entre os clérigos e os leigos. Como vimos, é certo dar
ênfase a ofícios especiais, e não devemos desacreditá-los; porém nunca devemos
considerá-los de tal modo que digamos que nós nada significamos nem
somos levados em conta, e que somos membros insignificantes da igreja.
O corpo ainda não está perfeito, e tampouco estará completo, enquanto nós
formos imperfeitos ou tivermos alguma imperfeição quanto a nós. A meta que
todos nós devemos buscar é este “homem perfeito” e “a medida da estatura de
Cristo”. Apressemo-nos para passar “da graça para a glória”. Não há tempo a
perder, pois, como diz o apóstolo João: “qualquer que nele tem esta esperança
purifica-se a si mesmo, como também ele é puro” (1 João 3:3).

Consideremos agora com atingir esse objetivo. O ensino do apóstolo é que toda a
obra do ministério deve levar-nos a isso. Há duas coisas que devemos alcançar.
A primeira é a “unidade da fé”. Diz ele: “Até que todos cheguemos à unidade da
fé, e ao conhecimento do Filho de Deus”. (VA: “e do conhecimento do Filho de
Deus”). “A unidade da fé é a fé do “Filho de Deus”. Todos os gramáticos
concordam nisso. Assim, podemos ler: “Até que todos cheguemos à unidade da
fé do Filho de Deus, e do conhecimento do Filho de Deus”. Temos que vir para a
unidade da fé concernente ao Filho de Deus. Este é o meio de chegar àquela
perfeição. Vemos como o apóstolo é prático. Ele não deixa nada ao acaso. A
perfeição sobre a qual ele escreve não é alguma espécie de experiência esotérica
ou mística; o meio de consegui-la é, primeiro e acima de tudo, compreender esta
unidade da fé concernente ao Filho de Deus.

Que significa esta unidade, e como conciliá-la com o que Paulo disse no
versículo 5 sobre “um só Senhor, uma só fé, um só batismo”? Diz ele naquele
versículo que já temos “um só Senhor, uma só fé, um só batismo” e, contudo,
aqui ele diz que chegaremos à unidade da fé. Parece haver uma contradição,
mas, obviamente, não há. Quando

estivermos estudando o versículo 5, opinamos que ele significa que há um


mínimo irredutível na questão da fé salvadora, sem o qual não se pode ser
cristão. Aventurei-me a sugerir que isso realmente significa justificação pela fé
somente. Esta doutrina é o cerne da fé; qualquer introdução das obras significa
que já não há cristianismo. “A fé” é o princípio, o primeiro passo; “uma só fé”
significa que somos justificados somente pela fé. Todavia este é apenas o
começo, não tudo. É o primeiro passo, que é absolutamente essencial, é também
o primeiro passo que leva ao estágio final em que a nossa fé será perfeita,
inteira, completa e balanceada, sem lhe faltar nada e sem nada perder.
Mas, conquanto eu diga que aqui e agora devemos ter claro entendimento
da primeira verdade, sem a qual não há cristianismo, existem muitos outros
aspectos da fé concernente ao Filho de Deus a respeito dos quais não temos claro
entendimento e acerca dos quais os cristãos divergem. Contudo, quando
chegarmos a esta perfeição da fé, estaremos dizendo as mesmas coisas e crendo
nas mesmas coisas; pois então O conheceremos e O veremos como Ele é. Haverá
então uma fé tomada perfeita.

Daí, enquanto falamos de “uma só fé”, podemos falar também de chegar à


“unidade da fé do Filho de Deus”. Esta fé é grande e abrangente, e não podemos
esperar tratar dela de maneira exaustiva; no entanto significa, em primeiro lugar,
que deve ser unidade da fé concernente à Pessoa do nosso Senhor. A própria
expressão utilizada pelo apóstolo faz sobressair isto: “Até que cheguemos à
unidade da fé do Filho de Deus”. Mais tarde Paulo se refere a Ele como “Cristo”.
É preciso que não haja dúvidas ou incertezas concernentes à Sua Pessoa. Ele é o
Filho de Deus; mas também é homem. A unidade da fé incorpora ambos. Alguns
salientam somente o homem nEle, e não vêem nada mais. Essa não é “a fé”.
Outros salientam Deus nEle, e não parecem entender claramente o fato de que a
encarnação foi real e de que Ele não Se revestiu de um corpo fantasma, porém
assumiu realmente a natureza humana e nasceu da virgem. Ele foi tanto Filho de
Deus como Filho do Homem. “A fé” mantém estas coisas na proporção certa, e
dá a cada uma o seu valor relativo. Todos nós temos que ser constantemente
cuidadosos para não nos tornarmos culpado de uma ênfase falsa. Alguns de nós
podem tender a dar exagerada ênfase à Sua deidade eterna e única, e a esquecer-
se de acentuar, como devemos, que Ele foi homem entre os homens,
verdadeiramente homem, como também verdadeiramente Deus. Outros podem
ser culpados do exagero oposto, conquanto sustentando realmente a verdade
acerca das duas naturezas. Contudo, quando chegarmos realmente a esta
“unidade da fé”, veremos tudo isso claramente, e veremos tudo nas devidas
proporções. Devemos apressar-nos rumo a

essa perfeição.

Isso envolve toda a assombrosa maravilha da encarnação e de tudo o que levou a


isso. É parte integrante da “fé do Filho de Deus” saber que Deus, antes do
tempo, planejou tudo isso e fez do Seu filho o herdeiro de todas as coisas, e Lhe
deu a Igreja para ser o Seu povo. E assim o Filho veio, aceitando
voluntariamente o plano e a Sua parte nele. O meio de chegar a essa perfeição
final é olhar para estas coisas, captá-las, entendê-las e meditar nelas. Devemos
crer no plano de redenção, no esquema de salvação, como os profetas o
predisseram. É tudo parte desta fé do Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus. O
velho Testamento, com os seus tipos e sombras, é essencial para a
nossa felicidade. Quanto mais soubermos sobre eles, mais estaremos crescendo e
amadurecendo.

Depois devemos pensar nos ofícios do nosso Senhor - Profeta, Sacerdote, Rei.
Devemos examinar o Seu ensino, e agarrar-nos a ele. Devemos crer que “Deus
nunca foi visto por alguém. O Filho unigênito, que está no seio do Pai, este o fez
conhecer” (VA: “este o manifestou”) (João 1:18). Devemos ler os quatro
Evangelhos e contemplar esta manifestação e revelação da glória de Deus, e
examinar o ensino de Cristo. Negligenciamos estas coisas para nosso risco;
devemos viver baseados nelas. Devemos ouvir o Profeta no Sermão do Monte, e
ouvir todos os Seus outros ensinos, porque isso faz parte da “fé do Filho
de Deus”. Em seguida, devemos vê-10 como Sacerdote. Devemos contemplá-10
fazendo Ele a oferta de Si mesmo. Ele fez da Sua alma uma oferta pelo pecado.
Ele renunciou à Sua própria vida, Ele deu-Se até a morte. Ele sujeitou-Se quando
Deus “fez cair sobre ele a iniqüidade de nós todos”, quando Deus O feriu com os
açoites que eu e vocês tanto merecemos. Como o nosso grande Sumo Sacerdote,
Ele fez ofeita de Si mesmo, e depois apresentou o Seu sangue no mais Santo de
todos os Santos, no céu. Este grande Sumo Sacerdote “passou pelos céus” e
tomou o Seu lugar à mão direita de Deus. Meditar nestas coisas é o meio pelo
qual amadurecer e desenvolver-se. Este é o meio para chegar finalmente ao
“homem perfeito, à medida da estatura da plenitude de Cristo”.

A seguir pensem em nosso Senhor em Seu ofício real. Ele já é o Rei da Igreja.
Ele veio fundar um reino. A Igreja é a forma atual do reino. Mas Ele voltará e
estabelecerá o Seu reino de maneira visível. Ele instalará aquela condição eterna
em que estaremos com Ele na glória, com os nossos corpos glorificados,
julgando o mundo e julgando os anjos. Também devemos considerar o fato de
que Ele enviou o Seu Espírito à Igreja, de que Ele designou todos estes ofícios, e
considerar toda a obra realizada pelo Espírito, aperfeiçoando-nos, santificando-

-nos, purificando-nos. Tudo isso faz parte desta “fé do Filho de Deus”, e o
conhecimento disto leva-nos à perfeição final.

O apóstolo não somente fala da fé do Filho de Deus, porém também do


“conhecimento do Filho de Deus”. Tem havido muita discussão em torno deste
conhecimento. Há os que dizem que devemos ler a declaração da seguinte
maneira: “Até que todos cheguemos à unidade da fé, isto é, do conhecimento do
Filho de Deus” - a fé que leva ao conhecimento. Não podemos aceitar isto
porque o apóstolo diz “e”, e não “isto é”. Ele está se referindo a algo adicional.
Dou ênfase a isto porque é a coisa mais preciosa. A fé, é claro, leva ao
conhecimento, e há sempre um elemento de conhecimento na fé. É difícil
diferenciar estas coisas, mas é vital que procuremos fazê-lo. Você pode ter “a
fé do Filho de Deus” sem ter este “conhecimento” especial de que o apóstolo
está falando. Você pode ser cristão sem ter muito deste conhecimento de que
Paulo está falando. Repito que você não pode ter fé sem ter algum
conhecimento. Não pode crer nas coisas às quais me venho referindo sem, em
certo sentido, conhecê-las. Há na fé esse elemento de conhecimento que, para
usar uma expressão técnica, é chamado “conhecimento de cognição”. Todavia
aqui não estamos tratando de cognição, e sim de recognição. É algo
experimental. O apóstolo faz uso de uma palavra muito forte (epignosis), que
significa “pleno conhecimento”, algo que está além e acima daquela
outra espécie de conhecimento e apreensão intelectual. O conhecimento do qual
estamos falando é uma coisa mais penetrante, mais profunda e, como digo, é
algo experimental.

E parte vital da obra do ministério levar-nos a este conhecimento mais completo;


e que Deus nos perdoe por sermos propensos a negligenciar esse dever e por não
termos a consciência disso como devíamos! E parte essencial da edificação do
corpo que todos cheguemos a este conhecimento do Filho de Deus. A este
“conhecimento” é que Paulo se refere no capítulo três da sua Epístola aos
Filipenses. Fazia anos que ele tinha um claro entendimento da justificação pela
fé. Não se interessava mais por sua própria justiça, que é “segundo a lei”; tinha
passado a vê-la como “esterco” e refugo e sem valor. Ele desej ava e tinha “a
justiça que é Deus, pela fé” em Jesus Cristo. No entanto, ele tinha uma aspiração
ainda maior, a saber, “Para conhecê-lo” - não somente conhecer a doutrina
acerca dEle - “e à virtude da sua ressurreição, e à comunicação de suas aflições,
sendo feito conforme à sua morte; para ver se de alguma maneira posso chegar à
ressurreição dos mortos. Não que já a tenha alcançado” (versículo 10-12). Ele
ainda não tinha isto como o desejava. Dentre todos os homens, ele tinha

recebido muito, e dava graças a Deus por isso, mas continuava tentando
“alcançar aquilo para o que fui também preso”. Seu desejo era conhecer ao
próprio Cristo, não se contentava em só crer acerca de Cristo e nEle. É possível
ao cristão este conhecimento mais íntimo do Filho de Deus, uma apropriação do
Seu amor a nós, pessoalmente, um verdadeiro conhecimento do Senhor mesmo.

O apóstolo já tratara deste conhecimento profundo no capítulo anterior, onde


expressara o seu desejo de que os efésios pudessem “perfeitamente compreender,
com todos os santos, qual seja a largura, e o comprimento, e a altura, e a
profundidade, e conhecer o amor de Cristo, que excede todo o entendimento,
para que sejais cheios de toda a plenitude de Deu” (versículos 18-19). O
“conhecimento” de que o apóstolo torna a falar é o conhecimento do Seu amor
pessoal por nós; nossa confiança nEle e nossa devoção a Ele, num sentido
pessoal. Significa conhecê-10 diretamente, e ter comunhão e
companheirismo com Ele pessoalmente. Isso é algo que é possível a todos os
cristãos; faz parte do processo do nosso desenvolvimento. Significa que sabemos
o que é receber da Sua plenitude, como o Evangelho Segundo João o expressa:
“Vimos a sua glória, como a glória do unigênito do Pai, cheio de graça e de
verdade. E todos nós recebemos também da sua plenitude, e graça por graça”
(VA: “e graça sobre graça”) (1:14-16). Significa receber algo do Seu poder, da
Sua energia e da Sua graça; e literalmente saber que o estamos recebendo, saber
que estamos nEle como o ramo está na videira, e que estamos recebendo da Sua
vida.

Foi isso que o nosso Senhor quis dizer quando declarou à mulher de Samaria: “A
água que eu lhe der se fará nele uma fonte d’ água que salte para a vida eterna”
(João 4:14). Significa nunca mais ter fome, nunca mais ter sede, conhecer a Sua
plenitude e receber dela. Noutras palavras, significa viver nEle, de acordo com
as palavras do nosso Senhor com relação a isto, como se vê no Evangelho
Segundo João: “Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em
mim e eu nele. Assim como o Pai, que vive, me enviou, e eu vivo pelo
Pai, assim, quem de mim se alimenta, também viverá por mim” (6:56-
57). Porventura sabemos o que é participar espiritualmente de Cristo
dessa maneira? Estamos comendo a Sua carne e bebendo o Seu
sangue espiritualmente? Estamos vivendo por Ele? Estamos vivendo
nEle? Podemos dizer com Paulo: “Para mim o viver é Cristo”? Tudo isso
faz parte do “conhecimento” do Filho de Deus. O que se espera de nós é que
sejamos cheios por Ele. Espera-se que experimentemos o que dizemos e aquilo
pelo que oramos quando cantamos juntos -

Enche-me a vida, ó meu Senhor,


Toda ela, de louvor.

Significa receber da plenitude da Cabeça e, assim, ser cheio em todas as partes e


áreas do nosso ser.

Cabe-nos não somente chegar à “fé do Filho de Deus”, no entanto também ao


“conhecimento do Filho dé Deus”. Você O conhece? Ele é real para você? Ele
disse que Se manifestará aos que guardam os Seus mandamentos. Quando Ele Se
manifesta, nós O conhecemos; já não é mais a fé preliminar, por assim dizer.
Este é um conhecimento pessoal, um conhecimento íntimo dEle, que é oferecido
aos Seus filhos, que faz parte integrante da vida do Seu povo.

Estes são os meios pelos quais somos edificados. A atividade da Igreja não é
apenas dizer-nos que podemos ser felizes e como podemos encontrar um Amigo,
ou como dominar o pecado. Somos subjetivos demais, somos centralizados
demais em nós mesmos. O meio pelo qual crescer é olhar para Ele, ter fé nEle,
ter este conhecimento dEle.

Gostaria de salientar a relação íntima destes elementos, um com o outro - a fé e o


conhecimento. A fé, sozinha, pode fazer-nos inchar; entretanto este
conhecimento edifica. Há uma espécie de conhecimento, diz Paulo, que “incha”;
mas “o amor edifica” (1 Coríntios 8:1). Temos que usar o nosso tempo para
estudar doutrina, temos que chegar a esta “unidade da fé do Filho de Deus”. A
revelação está na Palavra de Deus escrita, e o Espírito nos é dado para ajudar-nos
a entendê-la. Devo entregar-me ao estudo dela com diligência; é tarefa dos
pastores e mestres informar o seu povo destas coisas e edificá-lo. Contudo
não paramos aí, pois o propósito é levar-nos a este pleno conhecimento do Filho
de Deus - “Para conhecê-lo” - a saber, este conhecimento íntimo, pessoal,
subjetivo do Senhor, regozijando-nos nEle, receben-do-0 como a nossa vida,
aspirando a Sua plenitude e enchendo-nos da Sua plenitude.

Devemos prosseguir em busca disto, “até que todos cheguemos à unidade da fé,
e ao conhecimento do filho de Deus, a varão perfeito, à medida da estatura
completa de Cristo”. Oh dia bendito! Oh bendita realização! Então, cada um de
nós será perfeito, aperfeiçoado nEle, e estará participando da Sua bem-
aventurança e glória eterna.
NÃO MAIS MENINOS

“Para que não sejamos mais meninos inconstantes, levados em roda por todo o
vento de doutrina, pelo engano dos homens que com astúcia enganam
fraudulosamente.” Efésios 4:14

Vimos que a função do ministério - apóstolos, profetas, evangelistas, pastores,


mestres - e de tudo quanto foi determinado pelo Senhor, é levar todos os
membros do corpo de Cristo a “varão perfeito”, à “medida da estatura completa
de Cristo”. “Vimos também que o meio pelo qual se obtém esse fim é que
sejamos todos levados à “unidade da fé e do conhecimento”, a este pleno
conhecimento “do filho de Deus”. É isso que o futuro reserva para nós, essa a
meta a que devemos chegar. Mas ainda não chegamos, e muita coisa terá que
acontecer antes de chegarmos. A palavra “doravante” (VA) já por si sugere
este contraste entre o que somos e o que seremos. Devemos sempre ter os olhos
postos na meta derradeira, porém é igualmente importante compreender o que
somos no presente e partir desse ponto.

Mais uma vez devemos comentar a profunda sabedoria deste apóstolo como
mestre. Ele não estabelece simplesmente a meta, nem nos considera como já a
tendo alcançado; ele é sempre realista e prático, e sempre o move um profundo
zelo pastoral. O primeiro grande princípio de todo bom ensino, seja for o
assunto, é tratar as pessoas como são, não como deviam ser. O bom professor
está sempre ciente do conhecimento ou da falta de conhecimento dos seus
alunos, e se preocupa em relacionar a sua lição com a condição deles. O apóstolo
faz precisamente isso nesta exortação, e com a palavra “doravante”. Como já
indiquei, ele de fato faz uma interrupção com o fim de fazer isso.

O apóstolo nos faz lembrar que há certas coisas que devemos compreender
acerca de nós mesmos. Elas são mormente negativas, todavia são absolutamente
essenciais. Se não estivermos cientes desses elementos negativos, nunca
chegaremos ao positivo e perfeito. Mais uma vez saliento que é a nossa não
compreensão desses fatores negativos que explica muito do presente estado da
Igreja Cristã; e aqui

temos um retrato perfeito da Igreja de hoje e dos seus problemas.

A primeira coisa que devemos entender é que todos nós começamos na vida
cristã como crianças. Isso parece tão óbvio e, contudo, estamos sempre a
esquecê-lo. “Para que não sejamos mais meninos”, diz o apóstolo, indicando que
todos nós começamos como crianças. E apenas outro modo de fazer-nos lembrar
que a vida cristã é uma vida nova. Não é a continuação de alguma outra vida,
não é um adendo a alguma outra vida, é uma vida nova. A palavra “meninos”
(VA: “crianças”) traça uma absoluta linha de divisão entre o não cristão e
o cristão. Não há mudança gradativa de um movimento do estar no mundo para
o estar na Igreja. É um nascimento, um começo inteiramente novo. Nascemos
numa esfera inteiramente nova que está em completo contraste com a esfera
antiga. E visto que esta nova vida começa com um nascimento, nós, portanto,
começamos como crianças. Constantemente o Novo Testamento da ênfase a este
princípio vital. “Necessário vos é nascer de novo “, diz o nosso Senhor
a Nicodemos (João 3:1-8). Isto implica de imediato o princípio geral
do crescimento e desenvolvimento. Começamos como crianças, e desde esse
começo temos que crescer, desenvolver-se e amadurecer. Este é o princípio
central da vida cristã ensinado em toda a parte no Novo Testamento.

Em sua primeira Epístola, João dirige-se a “filhinhos, mancebos e pais” (2:12-


13). Todos nós temos que passar por estes estágios. Pedro trata da mesma
verdade quando escreve: “Desejai afetuosamente, como meninos novamente
nascidos (VA: “recém-nascidos”), o leite racional, não falsificado, para que por
ele vades crescendo” (1 Pedro 2:2). Todavia, a despeito da ênfase do Novo
Testamento a esta verdade fundamental, há da nossa parte uma curiosa tendência
de esquecê-la, e uma fatal tendência de supor que, desde que nos tornamos
cristãos, temos tudo, já chegamos. A conversão não é um fim, mas sim,
um começo, e devemos livrar-nos da idéia de que tomar-se cristão é o fim da
história, e que agora estamos completos e só temos que passar o resto da vida em
atividades. Desse modo, passamos por alto muito do ensino destas Epístolas, e
produzimos o estado de confusão que é a principal característica da vida da
Igreja Cristã na presente hora. Para ilustrar o que quero dizer, basta que leiamos
as Epístolas pastorais a Timóteo e a Tito, para notarmos que o apóstolo escreve
sobre neófitos, sobre o que os neófitos não devem fazer e sobre o que não se
deve pedir aos neófitos que façam. Depois, aplicando tudo isso à Igreja em
geral, como a Igreja é hoje, vemos como isso é quase inteiramente
ignorado. Longe de ensinar que começamos como neófitos e crianças, o lema é:

“Dê ao converso algo para fazer”. No entanto, o ensino dessas Epístolas


pastorais é que o primeiro dever do neófito é crescer, aprender e fazer-se apto e
qualificado para prestar serviço ao Senhor.
Por amor da ênfase, podemos expor este princípio da maior importância assim:
todo aquele que se toma cristão e entra nesta vida cristã, entra como criança.
Ainda que ele tenha grande intelecto ou que seja um grande homem numa
profissão e tenha o que se descreve como uma personalidade forte, é totalmente
insignificante. Seja o que for que se possa dizer dele, quando ele entra nesta vida
cristã, ele, como todos os outros, entra como um bebê; é um bebê espiritual. Ele
deve ser considerado como tal, e deve considerar-se a si mesmo como tal. Mas,
desafortunadamente, o que se supõe é que, se um homem é grande nalguma
outra esfera, começa como grande nesta esfera. Vê-se muitas vezes na prática
que isso não o acaso. Deixar de lembrar isso tem levado à prática antibíblica de
colocar certas pessoas em posições de liderança imediatamente, apenas devido à
sua proeminência nalguma esfera secular ou natural.

Devemos compreender que, na esfera da Igreja, estamos interessados em algo


inteiramente diferente. O apóstolo repete este princípio tão freqüentemente que é
espantoso como podemos esquecê-lo alguma vez. “Ora, o homem natural não
compreende as coisas do Espírito de Deus” (1 Coríntios 2:14). “Não são muitos
os sábios segundo a carne, nem muitos os poderosos, nem muitos os nobres que
são chamados” (1 Coríntios 1:26). Nesta esfera estamos lidando com verdades
que “se discernem espiritualmente”. Assim é que cada um de nós começa como
um bebê, como um pequenino, e se toma criança. O primeiro teste a ser aplicado
na esfera da Igreja não é a capacidade natural, menos ainda a posição ou classe
ou poder natural; o que se requer aqui é entendimento espiritual, apreensão
espiritual, um conhecimento espiritual da verdade. Devemos dar graças a Deus
por isso; e devemos dar-nos conta de que esta é a marca peculiar da Igreja
Cristã. Na Igreja, todas as divisões e distinções são abolidas, “não há grego, nem
judeu, bárbaro, cita, servo ou livre” (Colossenses 3:11). Não somente isso,
porém; não há grande, nem pequeno. Todas estas divisões e distinções tomam-se
completamente irrevelantes. Todos entramos no reino de Deus da mesma
maneira, e todos começamos como “bebês” recém-nascidos“.

Em seguida o apóstolo prossegue e mostra que as crianças têm certas


características e tendências particulares. Ele chama a atenção para estas com as
palavras, “para que, doravante, não sejamos mais meninos inconstantes, levados
em roda por todo o vento de doutrina,

pelo engano dos homens que com astúcia enganam fraudulosamente”. Aqui
temos um exemplo do conhecimento que o apóstolo tinha do que hoje se
descreve como “psicologia infantil”. É uma perfeita descrição das crianças, e do
modo de ver e da mentalidade da criança, e isso corresponde fielmente a todos
nós,quando começamos na vida cristã. Há uma passagem paralela no capítulo 3
da Primeira Epístola aos Coríntios, onde de novo ele analisa esta condição, mas
sob um aspecto e um ponto de vista ligeiramente diferentes. Para o nosso
crescimento é essencial que compreendamos e continuaremos sendo crianças.
Não conheço nada que seja mais trágico do que ver cristãos
permanecem exatamente onde sempre estiveram e sendo o que sempre
foram. Terminam como crianças, como começaram. Eles achavam que tinham
tudo no começo e, assim, nunca cresceram espiritualmente, permanecem
crianças a vida toda. Não parecem que tenham compreendido que temos
apropriar-se e apossar-nos do que é prometido e tomado possível a cada um de
nós, e que temos que “crescer na graça e no conhecimento” do Senhor.

Segundo o apóstolo, há duas principais tendências nas crianças. A primeira é


instabilidade. Ele utiliza uma frase bastante pitoresca para descrever isso:
“lançados para lá e para cá” (“inconstantes”), “agitados como as ondas”. Não
significa que somos agitados de um lado para outro pelas ondas, porém que nós
somos semelhantes às ondas, agitadas para lá e para cá e constantemente em
movimento. Na verdade podemos traduzir a frase por, “lançando-se por todos os
lados”. A palavra que o apóstolo empregou, e é o único caso em que ela se
acha no Novo Testamento, comunica o sentido de violência - “um
violento lançar-se das águas ao redor”. Tiago tem a mesma idéia no
capítulo primeiro da sua Epístola, onde a palavra empregada significa
“lançada de um lado para outro” ou “agitada” (1:6). Nada é tão característico
do mar como a sua inquietação, o seu constante movimento e mudança. A
palavra do apóstolo transmite esta idéia do mar agitado para lá e para cá, oudas
ondas do mar em constante movimento, com a idéia de violência e agitação. E
isso, diz o apóstolo, caracteriza a condição infantil.

Contudo, devemos analisar isto mais detalhadamente, como o apóstolo


claramente tenciona que façamos. A condição nos lembra que uma das
características mais proeminentes da criança é a inconstância e mutabilidade.
Quão rapidamente uma criança pode mudar do riso para o choro! Pode-se ver no
seu rosto as rápidas mudanças. A criança não pode evitar isso, é claro, porque é
criança. Nas Escrituras há muitos exemplos disto, nos casos em que se aplica a
uma condição infantil. Vejam, por exemplo, o que lemos no último

capítulo de Atos dos Apóstolos. Paulo tinha desembarcado, após um naufrágio,


na ilha de Melita (Malta). Fazia frio, e eles juntaram uns gravetos para fazer uma
fogueira para esquentar-se. De repente, uma víbora prendeu-se na mão do
apóstolo. Os outros concluíram imediatamente que ele devia ser um homem
muito mau, e ficaram na expectativa de que ele começasse a inchar a qualquer
momento e sofresse morte violenta. Todavia, quando viram que ele nem
inchava nem morria, mudaram de opinião e disseram que ele era um
deus. Passaram imediatamente de um extremo ao outro. Essa conduta é típica da
criança, “agitada para lá e para cá, como as ondas do mar”. É sempre triste ver
essa espécie de comportamento no povo cristão, entretanto todos começamos
como crianças.

Outra coisa que caracteriza esta condição infantil é a falta de domínio próprio. É
por isso que as crianças devem estar sob o controle de pessoas mais velhas. As
crianças são criaturas de impulsos e caprichos; pouco sabem de autodisciplina, e
elas não conseguem dominar-se, controlar-se e controlar o seu gênio. Diz-nos o
livro de Provérbios que o homem pode dominar o seu gênio é o maior do
que aquele que pode capturar uma cidade. O domínio próprio é uma tarefa muito
difícil. A criança não pode dominar-se; ela dá livre expressão de si mesma. Quer
uma coisa, e a quer imediatamente; mostra o seu temperamento e o seu
desagrado, se lha negam. A criança manifesta-se incapaz de controlar as suas
reações e respostas às coisas que lhe sucedem.

Outra característica da criança, e característica que se segue às anteriores, é que a


criança sempre reage exagerada e violentamente às coisas que lhe acontecem. A
criança age de maneira global, e o faz com um elemento de violência e excesso.
A criança ou gosta demais de uma coisa, ou a odeia; não há meio termo. Ela vai
direto de um extremo ao outro. Todas as reações da criança exibem este
elemento de excesso, de violência e de falta de disciplina e de controle. Quão
desconcertante as Escrituras podem ser quando colocam de nós esse tipo de
espelho! O verdadeiro cristão, e adulto, não deve reagir violentamente e
com excesso; ele precisa manifestar disciplina e controle, e um elemento
de temperança. “Deus não nos deu o espírito de temor, mas de fortaleza, de
amor, e de moderação”, diz o apóstolo ao jovem Timóteo (2 Timóteo 1:7).
“Moderação” (VA: “mente sã”) quer dizer disciplina e domínio próprio, não
devemos reagir com excesso e com violência às coisas que acontecem conosco.

Mais uma característica da criança é que ela defende as suas idéias


violentamente, e tende a mudar de um extremo para o outro. Todos
nós conhecemos o dogmatismo da criança; e o que a torna mais difícil
ainda é que quando ela muda completamente de idéia, defende a novas idéia de
maneira igualmente dogmática. Além disso, nunca se sabe quando a mudança
vai acontecer. O resultado disso tudo é que a criança vive num estado de
perpétuo tumulto e agitação mental. Do mesmo modo, o adulto que acabou de se
tomar cristão tende a mostrar estas características, tanto individualmente como
em grupos. Observem um pequeno grupo de crianças. Elas parecem
terrivelmente perturbadas; uma coisa de nada as transtornou, e elas se juntam
em bloco e parecem falar todas ao mesmo tempo. São violentas em suas reações,
agitadas, e estão num estado de tumulto. Acham que o fim do mundo está prestes
a acontecer, tudo porque um brinquedinho se quebrou ou por causa de alguma
coisa igualmente trivial. São como as ondas do mar, agitadas para lá e para cá. A
agitação mental é sempre indicativa de uma condição infantil, a não ser que se
deva a uma verdadeira doença mental.

Tudo isso deve levar-nos a perguntar se nós estamos manifestando estas


características da criança, esta instabilidade, este constante movimento e
agitação, esta tendência para ser violenta nestes diferentes aspectos; esta falta de
disciplina e de domínio próprio, e especialmente esta incapacidade de controlar
as nossas reações às coisas que nos acontecem. Noutras palavras, a vida da
criança é uma vida vivida na superfície. A criança não tem reservas às quais
recorrer. Isto não é uma crítica à criança; é uma descrição. É a característica da
criança. E porque é criança, não pode evitá-lo. Contudo, quando você vir
esta condição em alguém que é cristão há algum tempo, a primeira
coisa necessária é fazê-lo compreender que ele está muito errado e
que “doravante” não deve continuar nesse estado.

O segundo fato importante da criança é a sua predisposição para ser


desencaminhada e enganada. “Para que (doravante) não sejamos mais meninos
inconstantes, levados em roda por todo o vento de doutrina”. Uma tradução
melhor talvez seja, “levados em roda em todas as direções”. O vento vem de
umancerta direção, e então, subitamente, parece mudar para outra. O constante
girar de um cata-vento indica as mudanças do vento. De maneira similar, uma
criança dá voltas e é levada por toda espécie de ensino, em todas as direções
imagináveis. Este é simplesmente um modo gráfico e pictórico de dizer que a
criança está sempre sujeita a ser enganada, pois tende a acreditar em tudo o
que lhe dizem. A criança, por ser criança, prontamente é presa de
qualquer impostor que aparece. O apóstolo está particularmente preocupado com
isso. Por isso falou como falou aos presbíteros desta igreja de Efeso, como
consta noi capítulo vinte do livro de Atos, numa das
passagens mais comoventes de todas as Escrituras. Ele podia antever o que
estava para suceder-lhes e, conseqüentemente, estava preocupado com eles. Ele
podia ver como eles eram propensos a deixar-se enganar, porque ainda eram
crianças na fé. É interessante que ele tenha dito tudo isso aos presbíteros da
igreja de Éfeso, à qual escreveu mais tarde esta mesma Epístola que agora
estamos estudando.

Uma questão muito importante que devemos encarar, se é que havemos de


livrar-nos desse estado, é quanto a por que uma criança é propensa dessa
maneira a ser enganada? Qual será a nossa análise psicológica da sua situação?
Eis algumas das respostas: isto é próprio da criança, por sua ignorância. Em
última instância se deve, na verdade, à sua falta de conhecimento. Os problemas
da criança surgem porque ela não tem um padrão, e lhe falta um padrão porque
lhe falta conhecimento. Sem um padrão, nada se pode testar e avaliar. E
deixar de testar é não ser capaz de julgar. Quando você é confrontado
por diversos ensinos, como você sabe qual é o certo? Há apenas uma resposta;
somente o conhecimento nos habilita a fazer o teste e, se não tivermos o
conhecimento, simplesmente não estaremos em condições de testar, peneirar e
discriminar. Esse é o problema com a criança; e se torna trágico quando o vemos
nos que continuam crianças quando já deviam ser adultos. É inevitável na
criança porque lhe falta o conhecimento, e por essa razão ela precisa ser
ensinada. Mas é indesculpável nos que são adultos e que já deviam ter obtido o
conhecimento.

Também é certo dizer da criança que, não somente é ignorante, porém também
tem uma tendêcia inata para não gostar de receber instrução e de sujeitar-se à
disciplina. Sabemos que isso é verdade quando olhamos retrospectivamente para
as nossas experiências pessoais, e também para a nossa experiência com as
crianças no presente. Em particular, a criança não gosta de ser ensinada
vagarosamente. A criança é impaciente e sempre quer avançar rapidamente.
Pensem numa criança que está recebendo lições de música. Ela destesta ter
que praticar as escalas; quer tocar a grande peça clássica imediatamente; ela não
gosta de trabalho penoso e de aplicação regular. A criança que está estudando
aritmética não gosta de estudar a tabuada, porém quer resolver os problemas. A
idéia de que se tem que tomar tempo e que se tem de crescer de estágio é odiosa
para a criança. O apóstolo sabia que a criança espiritual mostra o mesmo
desagrado pela disciplina e por receber instrução, e sempre exagera na avaliação
da sua própria capacidade e conhecimento.
Ou, ainda, não há nada que seja mais característico da criança do que o quanto
ela gosta de novidade, de mudança, de algo novo. A criança não se preocupa
tanto com o valor intrínseco de uma coisa,

como com o fato de ser nova. A criança pode estar brincando com os seus
brinquedos favoritos, entretanto, se de repente lhe apresentam um brinquedo
novo, os outros logo são esquecidos e jogados fora pela sua própria mão. A
mente e a mentalidade infantis gostam de mudança e ambicionam o que é
moderno e o que é novo. Atos, capítulo 17, nos fala dos moradores de Atenas,
que “de nenhuma outra coisa se ocupavam, senão de dizer e ouvir alguma
novidade”. Isso é típico da mentalidade infantil, sempre interessada na coisa
mais recente, seja qual for. Como isso é típico de muitos cristãos hoje, que se
denunciam inconscientemente por este gosto por mudança e novidade!

Além disso, a criança gosta de entretenimento e de agitação. Isto era próprio de


todos nós na infância. A criança tende a ter um antagonismo secreto até pelos
seus pais, se não pais dignos do nome, porque estes sempre estão ali, exercendo
certa medida de restrição e impondo certos princípios. Quão mais bondoso é o
tio favorito, que ocasionalmente vem passar uma semana e que nos dá tudo o
que queremos e não nos nega nada! O tio nos consola quando somos castigados
e está proto a brincar conosco, a entreter-nos e a juntar-se a nós em várias
travessuras. Ele parece ser muito melhor e mais amável do que o pai e a
mãe. Lembro-me distintamente do prazer secreto que eu e outros rapazes
da minha idade sentiam quando o diretor da escola sob quem ei tive que estudar
outrora, tinha o seu ataque anual de lumbago e não podia vir à escola. Como era
animador ter a permissão para estudar a lição como quiséssemos, e com um
mestre que talvez estivesse gostando um pouco da liberdade!

Infelizmente tudo isso tende a ser verdade quanto a nós como cristãos. Às vezes
penso que um dos primeiros problemas e provas que um jovem pastor tem que
enfrentar deve-se exatamente a isto, que tem de ajustar-se ao fato de que muitos
cristãos mostram esta característica da meninice. Gostam de mudança; qualquer
coisa, contanto que seja diferente; mudança, modernidade e novidade, e
especialmente o anseio pelo elemento de entretenimento e animação. Quão
mais gostoso é divertir-se do que passar pela fadiga de uma lição! Se
vocês prestarem atenção nos periódicos religiosos e em seus anúncios,
e aplicarem o ensino do apóstolo a isso, vocês entenderão o que eu quero dizer.
O incomum, especialmente se contiver o elemento de entretenimento e
animação, evidentemente será o mais popular. Essa é uma clara indicação da
perspectiva e mentalidade infantil. O apóstolo está interessado em imprimir isto
nas mentes dos efésios porque, se eles não o percebessem nem o
compreendessem, nunca se desenvolveriam nisso.

A derradeira característica deste estado e condição da criança que leva ao perigo


e à suscetibilidade de ser levada em roda por todo vento de doutrina, é que a
criança é peculiarmente suscetível face ao sensacionalismo teatral. A criança
instintivamente gosta do sensacional. Quanto maior for o elemento teatral, mais
a criança vai gostar. A criança não tem como discriminar, não tem meios de
avaliar estas questões. Quanto maior o “show”, quanto maior a ilusão, em
certo sentido, mais provável será que a criança acreditará naquilo. Posto que lhe
faltam conhecimento e capacidade para discriminar e entender, ela tende a ser
seduzida pelo espetacular, pelo vultoso, pelo pomposo, por tudo o que seja feito
com autoconfiança. O espetacular sempre atrai as crianças; é por isso que a
criança tem que ser protegida, e também é por isso que é tão indispensável que a
criança seja disciplinada e ensinada.

Tudo isso é apenas introdutório com relação ao que o apóstolo vai dizer. É
importante que entendamos esta mentalidade por causa dos terríveis perigos que
nos cercam. E de todos os perigos, nenhum é maior do que “o engano dos
homens” e a astúcia com que eles “enganam fraudulosamente”. Mas será sem
propósito continuar estudando mais estas questões, se não nos examinarmos a
nós mesmos e não estivermos conscientes das características da mentalidade
infantil. Duas coisas são essenciais. Acriançadeve compreender que é criança; e
também deve compreender que, devido ser criança, está numa situação
extremamente perigosa. O apóstolo coloca estas coisas na ordem certa. Deus nos
perdoe por sermos tão instáveis, tão inconstantes, tão prontos a deixar-nos iludir,
tão prontos a reagir violentamente! Perdoe-nos Deus também por sermos tão
faltos de disciplina e daquele conhecimento verdadeiro que leva a um interesse
pela glória e honra de Deus e do Senhor Jesus Cristo, e também pela glória da
Igreja, que é o Seu corpo! Todos nós entramos nesta vida como crianças,
“nascemos do Espírito”, “nascemos de cima”, “nascemos de novo”. Pode ser que
alguns de nós estejam na vida cristã por longo tempo. Acaso continuamos sendo
meninos “lançados para lá e para cá e levados em roda por todo o vento de
doutrina”? Deus tenha misericórdia de nós!

AS CILADAS DO DIABO

“Para que não sejamos mais meninos inconstantes, levados em roda por todo o
vento de doutrina, pelo engano dos homens que com astúcia enganam
fraudulosamente.” Efésios 4:14

Agora devemos examinar mais de perto os. perigos a que estão expostas a
meninice e a imaturidade espirituais. É deveras assombroso notar quanto o
espaço e quanta atenção a Bíblia dá a esta questão particular. Há advertências
constantes contra este perigo particular. Vejam, por exemplo, o que lemos no
Evangelho Segundo Mateus: “Acautelai-vos, porém, dos falsos profetas, que
vêm até vós vestidos como ovelhas, mas interiormente são lobos devoradores”
(7:15). Que solene advertência! E o nosso Senhor prossegue e a desenvolve.
De novo, no capítulo 24 do mesmo Evangelho, o nosso Senhor diz: “Então, se
alguém vos disser: eis que o Cristo está aqui, ou ali, não lhe dei crédito; porque
surgirão falsos cristos e falsos profetas, e farão tão grandes sinais e prodígios
que, se possível fora, enganariam até os escolhidos. Eis que eu vo-lo tenho
predito. Portanto, se vos disserem: eis que ele está no deserto, não saiais; eis que
ele está no interior da casa, não acrediteis” (versículos 23-26). “Eis que eu vo-lo
tenho predito”, diz o nosso Senhor; todavia, quão pouco ouvimos sobre
estas exortações hoje! De fato, como espero mostrar mais tarde, muitos até se
aborrecem com estas advertências hoje em dia! A Igreja atual não parece estar
consciente do perigo, e dá pouca atenção, se é que dá alguma, a estas infindáveis
advertências que se acham nas Escrituras.

Considerem de novo a advertência do apóstolo Paulo aos presbíteros desta


mesma igreja de Éfeso, parte da qual já citamos. Diz ele: “Olhai pois por vós, e
por todo o rebanho sobre o que o Espírito Santo vos constitui bispos, para
apascentardes a igreja de Deus, que ele resgatou com seu próprio sangue. Porque
eu sei isto; que, depois da minha partida, entrarão no meio de vós lobos cruéis,
que não perdoarão ao rebanho; e que dentre vós mesmos se levantarão homens
que falarão coisas perversas, para atraírem os discípulos após si. Portanto,
vigiai”. (Atos 20:28-31). Em todas as suas Epístolas estas advertências estão

sempre em evidência. Daí, é certo dizer que a maioria destas Epístolas contém
um proeminente elemento polêmico. Elas estão repletas de argumentação,
debate, raciocínio e advertência. Pensem, por exemplo, no capítulo 11 da
Segunda Epístola aos Coríntios, onde o apóstolo os adverte dos falsos mestres.
Diz ele que não é admirar que estes falsos mestres se portem como o fazem, pois
o diabo é capaz de transformar-se num anjo de luz. A Epístola aos Gálatas pode
verdadeiramente ser considerada como tão-somente uma extensa
advertência sobre os falsos mestres. Em sua Epístola aos Filipenses Paulo
escreve: “Guardai-vos dos cães, guardai-vos dos maus obreiros, guardai-vos da
circuncisão” (3:2). Em sua Epístola aos Colossenses vemo-lo advertindo os
cristãos: “Tende cuidado, para que ninguém vos faça presa sua, por meio de
filosofias e vãs sutilezas, segundo a tradição dos homens, segundo os rudimentos
do mundo, e não segundo Cristo” (2:8). Nas Epístolas pastorais ele adverte das
“oposições dafalsamente chamada ciência (conhecimento); a qual professando-a
alguns, se desviaram da fé” (1 Timóteo 6:20-21).

Nada é mais notável neste aspecto, talvez, do que o que vemos no capítulo dois
da Segunda Epístola de Pedro. Ele avisa os seus leitores de que surgiriam falsos
mestres entre eles, exatamente como surgiram falsos profetas entre os filhos de
Israel na antiga dispensação; e ele prossegue e diz coisas terríveis a respeito
deles. A Epístola de Judas também é inteiramente dedicada à mesma espécie de
solene advertência. Na Primeira Epístola de João muita atenção é dada aos
“anticristos”, os falsos profetas, que se levantaram. No livro de Apocalipse as
cartas às sete igrejas tratam especificamente do mesmo problema; na verdade, o
livro de Apocalipse é uma grande advertência à Igreja neste sentido. De fato,
quase se pode dizer que o Novo Testamento veio a existir com a finalidade de
advertir o povo cristão a guardar-se do terrível e sempre presente perigo de ser
levado a extraviar-se por falso ensino concernente ao nosso Senhor e à Sua
grande salvação.

Gostaria de salientar algo de que este versículo nos faz lembrar, a saber, a
extraordinária linguagem empregada com relação a este perigo - a linguagem
forte, a linguagem quase violenta empregada! Vê-se isto até na linguagem do
nosso Senhor. Ao descrever os falsos profetas, Ele diz que eles vêm até nós
“vestidos como ovelhas”, parecendo inocentes, atraentes, fascinantes. Mas
“interiormente”, diz Ele, “são lobos devoradores”. Com essas expressões tão
fortes Ele caracteriza estes falsos mestres! De novo, no capítulo 23 do
Evangelho Segundo Mateus, advertindo os Seus discípulos e seguidores sobre
os fariseus, diz Ele que eles são “sepulcros caiados”. Feitos para parecer

atrativos, mas por dentro estão cheios de nada que ossos e imundícia. Esta
linguagem é muito forte; é quase violenta; contudo, é o Filho de Deus falando, a
encarnação do amor de Deus.

A mesma coisa é verdadeira quanto à linguagem utilizada pelo apóstolo Paulo


em Atos, capítulo 20, onde ele descreve os falsos mestres como “lobos cruéis”.
Em sua Epístola aos Filipenses ele os denomina “inimigo da cruz de Cristo”
(3:18). Em sua Segunda Epístola aos Coríntios ele adverte os cristãos que se
cuidem para não suceder que, “assim como a serpente enganou Eva com a sua
astúcia”, assim também estes falsos mestres e falsos apóstolos os
enganem (11:3). No entanto, talvez não haja nada mais forte do que o que ele
diz na Segunda Epístola aos Tessalonicenses. Paulo os está advertindo
do anticristo em sua forma final, e diz: “A esse cuja vinda é segundo a eficácia
de Satanás, com todo o poder, e sinais e prodígios de mentira, e com todo o
engano da injustiça para os que parecem” (2:9-10). Diz ele que há perigo de
sermos levados a extraviar-nos pela “operação do erro” e de virmos a “crer na
mentira” (versículo 11). Não há linguagem mais forte nas Escrituras do que a
linguagem empregada com relação a este assunto. Paulo se refere a falsos
mestres chamando-lhes “cães”. O apóstolo João escreve sobre “o anticristo; e
Pedro se refere a “heresias de perdição” e a “dissoluções” (VA: “caminhos
perniciosos”), e fala de homens maus que “por avareza farão de vós negócio com
palavras fingidas”. Todos os escritores utilizam a palavra “mentiras”, ou seus
sinônimos, com referência ao ensino propagado por esses falsos mestres.

Não é de admirar, porque, segundo as Escrituras, todo falso ensino é resultado da


obra da serpente, e traz em si a marca e o caráter da serpente. Foi por meio da
serpente que o falso ensino entrou pela primeira vez na vida do homem. O
homem estava num estado de perfeição, em comunhão com Deus e tinha
amizade com Deus. Contudo, veio a serpente e “enganou” Eva com as suas sutis
insinuações, alusões e sugestões. Sutileza e engano, diz a Bíblia, sempre foram,
daí em diante, uma característica de grande parte da vida do homem. Mas as
crianças não têm consciência disso, e por esta razão, diz o apóstolo, o Senhor
Jesus Cristo estabeleceu na Igreja apóstolos, profetas, evangelistas e pastores e
mestres.

Pintei o cenário de fundo para que possamos compreender que isso não é algo
peculiar a Paulo. A escola da “Alta Crítica”, assim chamada, sempre esteve
pronta a afirmar que isso é peculiar a Paulo que, afirmam eles, era legalista e
intolerante em sua estreiteza, e ficava aborrecido quando alguém discordava do
que ele dizia. Os incrédulos

estão prontos a aceitar aquele ensino, e cristãos jovens e ignorantes têm sido
enganados por ele. Citei o Senhor Jesus Cristo para mostrar que isso não é
verdade e que Ele falou em “lobos devoradores”, “condutores cegos”, “supulcros
caiados”, e assim por diante. O motivo pelo qual dou ênfase a este assunto é que
não posso imaginar, e desafio quem possa apresentar uma descrição mais
perfeita da situação do cristão moderno do que a que temos no versículo 14 de
Efésios, capítulo 4.0 cristão moderno está rodeado de seitas e falsos
ensinos, pelo que devemos estudar as expressões que o apóstolo utiliza, devemos
aplicá-las aos numerosos ensinos falsos e erros que se oferecem às crianças na fé
atualmente.

A primeira expressão que devemos examinar é “todo o vento de doutrina”. As


palavras de Paulo, “para que doravante não sejamos mais meninos inconstantes,
levados em roda por todo o vento de doutrina”, sugerem uma multiplicidade;
sugerem que, de repente, os falsos ensinos podem vir do norte, do sul, do leste e
do oeste. Estamos literalmente cercado de erros, falsos ensinos e heresias. Foi
assim na Igreja Primitiva, e continua sendo assim. Mesmo nos dias que
se seguiram imediatamente à vida, morte e ressurreição do nosso Senhor, e nos
dias dos próprios apóstolos, estes ventos de falsa doutrina começaram a soprar.

A expressão seguinte e: “pelo engano dos homens que com astúcia enganam
fraudulosamente”. O real sentido de engano é erro. Significa um extrativo da
ortodoxia ou da piedade; significa algo que é falso, infiel, e mentira. O objetivo
de todos os falsos ensinos, é o que Paulo diz, é persuadir-nos a ir pelo caminho
do erro e a agarrar-nos ao erro, e não temos por que ficar surpresos por ele
empregar uma linguagem forte com relação a eles.

Observemos a seguir a maneira pela qual ele nos diz que estes erros são
ensinados e propagados. “Todo o vento de doutrina”, diz ele, que tende a
desviar-nos e a enredar-nos, é manipulado “peio engano dos homens”. “Engano”
é uma palavra muito interessante. Notemos de passagem o fato de que são
empregadas nesse único versículo duas palavras que não são utilizadas em
nenhuma outra parte das Escrituras, e uma terceira que é empregada somente
aqui e outra vez nesta mesma Epístola, no capítulo 6, versículo 11. Estas
palavras são “hapax legomenom”, expressão técnica empregada para descrever
palavras utilizadas só uma vez nas Escrituras. Outra palavra dessa classe é a
que é traduzida por “inconstantes” (VA: “lançadas para lá e para cá”), que já
consideramos.

A palavra “engano” só é utilizada aqui, nas Escrituras; portanto, devemos dar-lhe


atenção. A palavra de fato utilizada pelo apóstolo é

a que conhecemos como “dados”. Refere-se a jogar com dados, um jogo de azar
que é praticado e determinado pelo lançamento de um dado. A impressão que
dáé que, com relação atai jogo, há sempre uma abertura para o elemento de
engano e trapaça, de tapeação e chicanice. Quando você não está vigiando
cuidadosamente, o homem que está para atirar o dado manipula-o de alguma
maneira, de modo que ele consegue o particular número que deseja. O jogo de
dados e a sorte dão uma oportunidade ao homem que, pela rapidez da mão, pode
enganar os olhos. O apóstolo está descrevendo os falsos mestres que
se aproximam com artimanha do jovem cristão. Diz o apóstolo que eles são
como homens hábeis nos jogos que dependem do lançamento de um dado e do
fator sorte. Sabem manipular o jogo, são rápidos e sutis, e quando você, em sua
inocência, não está observando atentamente, eles o enganam e o fazem extraviar-
se.

O apóstolo não se contenta em ficar nisso; vai adiante e afirma que eles fazem
isso “com astúcia” e “enganam”. Isto se refere à perícia ou manha que eles
empregam. Isto outra vez chama a atenção para a arte do sofisma, ou fraude,
para a esperteza, a sutileza do ensino e dos métodos deles. Eles sabem o que
estão fazendo, e estão cheios de astúcia e engano.

Chegamos agora a outra palavra, aquela que é usada somente aqui e no capítulo
6, versículo 11. Paulo diz: “com o que eles ficam de emboscada” (VA). “Ficar de
emboscada”, no original, é uma palavra que significa “seguir alguém e persegui-
lo, como um animal persegue e segue a sua presa”. Pensem numa doninha na
pista de um coelho; uma vez que a doninha parte pelo faro, continua indo,
continua indo. O coelho corre e periodicamente pára e se põe à escuta. Julga-se a
salvo, e se vai, porém a doninha o segue lenta, mas implacavelmente, até
que acaba capturando a sua presa. Ou pensem num desses animais predatórios à
espera da sua vítima e depois se lançando sobre ela. Desse sentido original a
palavra desenvolveu este sentido em que o apóstolo a emprega. Ela transmite a
idéia do método de um plano bem feito, de fato a idéia geral de um plano e um
sistema deliberados. É traduzida por “astutas ciladas” no capítulo seis, no
versículo que diz: ’’Revesti--vos de toda a armadura de Deus, para que possais
estar firmes contra as astutas ciladas do diabo”. O apóstolo utiliza esta palavra
particular com o fim de salientar que somos confrontados por algo que é
muito metódico e que é planejado quase à perfeição. Age como a fera,
por instinto, começa a perseguir a sua vítima; e, portanto, a palavra assinala tanto
o sutil engano dos falsos mestres como a patética fraqueza das vítimas.
Podemos, pois, explicar a frase dizendo que o apóstolo ensina que o engano dos
homens “opera segundo a astúcia ou
manha empregada por aqueles que desejam laçar ou capturar”, ou “enganando
segundo a astúcia que o erro usa”. Este, diz o apóstolo, é o perigo com o qual se
defrontam as crianças espirituais.

Certas perguntas devem ser feitas nesta altura. Estaríamos cientes de que esta é a
nossa situação no presente? Diz o nosso Senhor: “Eis que eu vo-lo tenho
predito”, e o apóstolo Paulo fez a mesma afirmação quando se dirigiu aos
presbíteros da igreja de Éfeso; assim repito a minha pergunta: damo-nos conta de
que esta é a nossa situação? No entanto, deixem-me subdividir a questão numa
série de perguntas. Porventura compreendemos como devemos que o erro não é
meramente negativo, mas pode ser muito ativo e muito positivo? O erro não é
apenas a ausência da verdade completa ou do ensino completo; é mal positivo.
Falo assim porque há um ensino que tem tido muita aceitação, com vistas a que
o pecado nunca seja considerado como positivo, que o pecado é meramente
negativo, mera ausência de boas qualidades. De acordo com o ensino
sentimentalista popular, não devemos dizer que um homem é realmente mau; o
que devemos dizer é que ele não é bom. Para esse ensino não existe mal
positivo. Também defende a idéia de que não existe ensino positivamente mau.
Ora, isso é negar o ensino da Bíblia inteira, que, como vimos, acentua o caráter
positivamente mau do falso ensino.

O segundo fato que devemos compreender a respeito do falso ensino é que ele é
planejado e organizado; que não acontece acidentalmente. Se todos estamos
cientes do que está acontecendo hoje, só temos que saber do plano, do método e
da organização dos falsos mestres. Os missionários em terras estrangeiras no
dizem que têm mais dificuldade com os erros e os falsos ensinos, e com as
falsas religiões, do que com a incredulidade como tal. Além disso, vemos que os
erros, as seitas e os falsos ensinos muito raramente conseguem convertidos
diretamente do mundo; eles os obtêm entre os cristãos inexperientes. Após o
missionário ter realizado o seu trabalho e de haver convertidos, eles vão atrás da
sua presa, e como animais predatórios, lançam-se sobre ela. Isto não se restringe
ao campo estrangeiro; é igualmente verdade quanto às Ilhas Britânicas.
Os recém-convertidos são atacados pelos que geram dúvidas nas suas mentes
quanto à autoridade da Bíblia, à Pessoa do nosso Senhor, a expiação substitutiva,
e vários outros aspectos essenciais da fé cristã e, em sua ignorância, podem ser
levados a extraviar-se temporariamente.

Devemos acentuar que estes mestres “ficam de emboscada”, que eles são
metódicos, e sabem exatamente o que estão fazendo. O falso
ensino é sempre bem organizado, e também se caracteriza por extraordinário
zelo. Quando se comparam os falsos ensinos, neste aspecto, com o ensino
ortodoxo, aqueles fazem este passar vergonha. Vê-se isto muitas vezes nos
recursos financeiros que eles controlam e nas sacrificais contribuições feitas
pelos seus seguidores. Vê-se também em sua literatura, em suas reuniões e na
prontidão do seu povo para trabalhar. O nosso Senhor disse uma vez que “os
filhos deste mundo são mais prudentes na sua geração do que os filhos da luz”
(Lucas 16:8), e certamente isso é verdade neste aspecto particular. Os
falsos mestres “ficam de emboscada”, planejam a sua campanha e a executam
com extraordinária habilidade, astúcia, zelo e energia. Não é de admirar, quando
lembramos que tudo isso provém do próprio diabo. Ele é “mentiroso desde o
princípio”, diz o nosso Senhor, é “pai da mentira”, e pode transformar-se num
“anjo de luz”. O plano mais brilhante já executado neste mundo limitado pelo
tempo foi o do diabo concernente a Adão e Eva no jardim do Éden. Que trama
perfeita! Que esquema perfeito! Com que habilidade o diabo soube abordá-los!
E quão traiçoeiro e insinuante foi o seu método! Essa tem sido a
grande característica dos seus seguidores daí em diante.

A característica subseqüente do falso é a sua sutileza. Isto vê nas palavras


“engano”, “astúcia” e “enganar fraudulosamente”. Elas descrevem a sedução
exercida pelo falso. É porque ele parece tão sedutor que as pessoas estão prontas
a aceitá-lo, especialmente as que são apenas crianças na fé. Ele sempre parece
muito simples e direto. O falso ensino diz-nos que não precisamos passar muito
tempo estudando esta Epístola aos Éfésios e ficar pelejando para entender
doutrina; a verdade é tão simples! Você simplesmente crê, e tem tudo.
Ele oferece “atalhos”; é sempre simples, direto, imediato, e é sempre
tão “gloriosamente simples”! É aqui que vemos a sutileza disso tudo. Este é o
segredo da conjuração, como era o segredo dos homens que no passado
costumavam passear pelos mercados atirando coisas numa sacola e
aparentemente oferecendo uma grande venda por uma pequena quantia, porém
que os tolos e ingênuos que caíam vítimas da língua traiçoeira descobriam que
não tinham valor nenhum.

Pode-se ilustrar muito facilmente isto na esfera espiritual mencionando certos


ensinos particulares. Somos convidados a unir-nos a um segmento da Igreja que
se oferece para fazer tudo por nós. Simplesmente confessamos os nossos
pecados ao sacerdote e deixamos a nossa alma sob a guarda da igreja. Quão sutil,
quão plausível, quão atraente parece! Por isso tem sucesso, e por isso todo erro e
falso ensino sempre teve sucesso, desde o início. Isso mostra a sutileza da
serpente. “Como a serpente enganou Eva”, assim os seus emissários, os seus
agentes, continuam a enganar e a iludir os ingênuos, os que de nada desconfiam.

Quando passamos a considerar como se pode reconhecer essa trapaça toda, há


uma invariável característica do falso ensino, a saber, que ele sempre usurpa e
diminui a glória do Senhor Jesus Cristo. Não admira que o apóstolo tenha escrito
“pelo engano dos homens”, porque em cada um destes falsos ensinos a
proeminência é dada ao homem, de algum modo ou forma. Não é que eles
neguem completamente o Senhor Jesus Cristo; claro que não! São inteligentes
demais para fazê-lo. Todavia eles O negam e diminuem a Sua glória. Dão ênfase
ao sacerdote, ou à virgem Maria, ou à igreja, ou ao papa, ou aos santos finados,
ou a alguma mulher que afirma que teve uma visão. Geralmente há uma pessoa a
quem é dada proeminência e que está no centro, e de maneira muito sutil, o
Senhor Jesus Cristo não é “tudo em todos”. Isto porque o diabo odeia o Filho de
Deus acima de tudo mais e, por meios sutis, usurpa a Sua glória central e exalta
o homem, ou um grupo de homens, ou uma instituição, ou uma organização. Não
é mais Cristo, e somente Cristo, e exclusivamente Cristo.

É bom e prudente testar todo ensino com esse critério. O apóstolo João, em sua
Primeira Epístola, depois de nos advertir quanto a crermos em todo espírito, e de
nos assegurar que muitos falsos profetas saíram pelo mundo, e que existem
muitos anticristos, diz-nos que o teste que devemos aplicar a todo ensino é,
“Todo o espírito que confessa que Jesus Cristo veio em carne é de Deus; e todo o
espírito que não confessa que Jesus Cristo veio em carne não é de Deus”, mas é
anticristo (4:2-3). Tudo deve ser testado pela posição atribuída ao Senhor Jesus
Cristo. Se Ele não é essencial, se Ele não é central, se Ele não é único e não está
acima e além de todos, e se Ele não torna pequenos tudo e todos, então o ensino
é falso.

Finalmente aprendemos aqui, como noutras partes, que todo falso ensino deve
ser odiado e deve ser objeto da nossa oposição. O Novo Testamento nos diz que
o nosso Senhor e todos os apóstolos o odiavam, opunham-se a isso, e advertiam
as pessoas a respeito. No entanto, eu pergunto de novo: é o que se faz hoje? Que
dizer da sua atitude pessoal para com isto? Você seria um daqueles que dizem
que não há necessidade desses pontos negativos , e que devemos contentar-nos
com uma apresentação positiva da verdade? Subscrevemos o ensino dominante,
que não gosta de advertências e de criticar os falsos ensinos? Você concorda com
aqueles que dizem que o espírito de amor é incompatível com a denúncia
negativa e crítica do erro que se apresenta ruidosamente, e que sempre devemos
ser positivos? A

resposta simples a tal atitude é que o Senhor Jesus Cristo denunciou o mal e
denunciou os falsos mestres. Repito que Ele os denunciou como “lobos
devoradores”, “sepulcros caiados” e “condutores cegos”. O apóstolo Paulo disse
de alguns deles: “cujo Deus é o ventre, e cuja glória é para confusão deles”
(Filipenses 3:19). Essa é a linguagem das Escrituras. Pouca dúvida pode haver
de que a Igreja é como é hoje porque não seguimos o ensino do Novo
Testamento e suas exortações, e nos limitamos ao positivo e ao “simples
evangelho”, assim chamado, e deixamos de acentuar os pontos negativos e
as críticas. O resultado é que as pessoas não reconhecem o erro quando o
encontram. Aceitam o que lhes parece bom, e se impressionam com os que vêm
às suas portas falando da Bíblia e oferecendo livros sobre a Bíblia, sobre a
profecia, e assim por diante. Em sua ignorante condição infantil, muitas vezes
ajudam a propagar o falso ensino porque não vêem nada de errado nele.
Sobretudo, não percebem que o erro deve ser odiado e denunciado. Imaginando-
se cheios do espírito de amor, são enganadas por satanás, o animal predatório
que estava em sua pista e que de repente as apanhou e se apossou delas com a
sua astúcia e sutileza.

Não é agradável ser negativo; não dá prazer ter que denunciar e expor o erro.
Entretanto qualquer pastor que sinta, em pequena medida, e com humildade, a
responsabilidade que o apóstolo Paulo sentia em grau infinitivamente maior,
pelas almas e pelo bem-estar espiritual do seu povo, é compelido a proferir estas
advertências. Não é provável que isto seja apreciado nesta frouxa geração
moderna, mas, se não for feito, o povo será enganado pelos falsos mestres,
“como a serpente enganou Eva”. Que não sejamos mais “meninos inconstantes,
levados em roda por todo o vento de doutrina, pelo engano dos homens que com
astúcia enganam fraudulosamente”. Queira Deus abrir os nossos olhos, ter
misericórdia de nós e dar-nos entendimento e discernimento espiritual, para que
possamos resistir às ciladas do diabo em nossos dias e em nossa geração, e assim
honrar e glorificar o nosso bendito Senhor e Salvador, a Cabeça do corpo, da
Igreja, da qual temos a inapreciável honra de ser membros!

FALANDO A VERDADE EM AMOR

“Mas, falando a verdade em amor, cresçamos em tudo nele."1

Efésios 4:15
Naturalmente, esta frase faz parte de uma declaração maior. Ela introduz o
aspecto positivo do ensino do apóstolo relacionado com a função do ministério
na Igreja Cristã. O objetivo do ministério é levar-nos todos a “varão perfeito, à
medida da estatura completa de Cristo”. Mas, como vimos, a fim de alcançarmos
esse objetivo, devemos começar de onde estamos. E a primeira coisa que
devemos fazer é compreender que somos crianças e que estamos sujeitos a
algumas das características das crianças, quer dizer, crianças no sentido
espiritual. Portanto, havendo-nos advertido no sentido de, doravante, não
continuarmos como crianças, o apóstolo nos exorta a “falar a verdade em amor”
e a “crescer em tudo naquele que é a cabeça, Cristo”.

Primeiramente devemos procurar o sentido da palavra traduzida por “falando”.


Embora num sentido esteja certo, não comunica o significado pleno da palavra
utilizada pelo apóstolo. A palavra que ele empregou não é normalmente
traduzida por “falando”. Ou, para expor a matéria pelo ângulo oposto, as
palavras geralmente traduzidas por “falando” não são a palavra que o apóstolo
usou aqui. A palavra grega significa “professando”, de modo que podemos
traduzir a frase desta maneira: “professando a verdade em amor”. Muitos
insistem em que uma tradução bem literal, embora não agradável, é
“verdadeando” -“mas, verdadeando em amor”. O que a expressão comunica é
que estamos “andando na verdade”. Talvez a melhor tradução seja, “tendo ou
mantendo a verdade em amor”. Isso inclui, é claro, falando-a, discutindo-a
juntos e ensinando-a. Todavia, não é mero falar; cobre todo o nosso
comportamento. Devemos ser verdadeiros e andar na verdade e em amor. Assim,
o que o apóstolo diz é que não devemos ser mais crianças, lançadas para lá e
para cá, etc., mas, antes, devemos manter a verdade em amor, devemos crescer
em tudo em Cristo.

Estou tentado a asseverar que no presente não há nenhuma declaração na Bíblia


inteira que seja objeto de tanto abuso e que tenha sido tão mal citada como esta
declaração particular. Esta frase, junto com a do versículo 21 do capítulo
dezessete do Evangelho Segundo João, “Para que todos sejam um”, são os dois
textos favoritos dos participantes do movimento ecumênico e dos defensores de
uma grande “Igreja Mundial”. Juntos se tomaram ambos, virtualmente, um lema.
É, pois, muito importante que examinemos e consideremos cuidadosamente esta
frase.

Ela se tornou o texto favoruo de muitos porque foi arrancada do seu contexto. É
sempre extremamente perigoso tirar uma frase do seu contexto e tomá-la num
lema. Toda declaração das Escrituras sempre deve ser tomada em seu contexto.
É fazer violência às Escrituras tratá-las doutra maneira qualquer. Veremos a
importância deste princípio quando fizermos a nossa exposição. Ao fazê-la,
devemos ter o cuidado de ter em mente o interesse do apóstolo em toda esta
passagem. Quando ele diz: “falando a verdade em amor”, não quer dizer
apenas ser bom e amável. Sinto-me compelido a começar com esse
elemento negativo porque hoje em dia é comum interpretar o texto dessa
forma. Esta se tornou a idéia dominante no presente nas discussões concernentes
à unidade da Igreja. O companheirismo é posto em primeiro lugar. Dizem-nos
que nada é tão importante como companheirismo; a unidade, em si e por si, é a
coisa suprema. Dizem-nos que a falta desta unidade é o principal, senão o
insuperável, obstáculo para a evangelização. Também nos dizem que não
temos direito de esperar avivamento na ausência desta unidade. A explicação do
estado da Igreja e do fato de que as multidões estão fora da Igreja é que há tanta
divisão na Igreja. Na verdade nos dizem que nada é mais importante hoje do que
sermos todos um numa grande igreja e que, a todo custo, devemos pôr o
companheirismo e a unidade na posição suprema. Para esse fim nos dizem que
devemos tolerar qualquer coisa, tudo; que contanto que um homem seja bom e
amável, e mostre espírito amigável e pratique boas obras, especialmente que se
sacrifique para fazê-lo, então, o que ele crê ou não crê é relativamente
sem importância.

O que importa, dizem-nos, é que a pessoa tenha “o espírito de Cristo” e que


deseje imitar o exemplo de Cristo. Isso faz dele um cristão! No passado foi dada
exagerada ênfase à exatidão doutrinária. Um homem pode ser vacilante sobre a
Pessoa de Cristo, pode não crer na doutrina da expiação, ou no nascimento
virginal, ou na ressurreição literalmente física do nosso Senhor, porém, se tem
mente aberta, é tolerante para com outras opiniões, é bondoso, amigável,
“gracioso”

e se preocupa com os outros, especialmente com o sofrimento e a necessidade


dos outros, e deseja corrigir todos os erros políticos e sociais, é um cristão
verdadeiro. O que um homem é e faz, dizem-nos, é de muito maior importância
do que os seus conceitos doutrinários. Além disso, argumentam, nada senão uma
demonstração deste “espírito cristão”, assim chamado, terá algum efeito sobre os
de fora da Igreja que não têm nenhum interesse por doutrina. De fato,
manter conceitos doutrinários com rigor e criticar outros conceitos é
virtualmente considerado pecaminoso e frequentemente se descreve como sendo
“sub-cristão”. É assim que a frase, “falando a verdade em amor”, está sendo
comumente interpretada.

Seria fácil dar algumas ilustrações notáveis e quase assombrosas do que estou
dizendo. Por exemplo, é muito divertido notar como um conhecido resenhista de
livros religiosos, quando passa por alguma crítica de outras idéias no livro que
ele está analisando, imediatamente critica o espírito do autor. Essa parece ser a
única prova da sua erudição. “Erudição” veio a significar que você acha todas as
idéias muito interessantes, e que há algo que dizer a favor de todos os pontos de
vista. Se você quiser ser considerado erudito, não deverá dizer se dado conceito
é certo ou errado; não deverá criticar, pois criticar é negar o espírito de Cristo, e
ser inteiramente vazio de amor. “Falando a verdade em amor” passou a significar
que você elogia mais ou menos todas as coisas, entretanto, acima de tudo, que
você nunca crítica fortemente nenhuma idéia, porque, afinal de contas, há uma
certa porção do certo e da verdade em tudo.

Portanto, devemos perguntar: esta interpretação da declaração de Paulo estaria


certa e verdadeira? Seria isto que se quer dizer com “falando a verdade em
amor”? Respondo imediatamente que não pode ser, por esta razão, que o
apóstolo não nos diz simplesmente aqui para falarmos amorosamente. O que ele
diz é, “falando a verdade” ou “mantendo a verdade”. Não nos é dito pelo
apóstolo que cultivemos um vago espírito amoroso, mas que mantenhamos “a
verdade” em amor. A própria palavra verdade torna por si mesma a moderna
e popular exposição da declaração óbvia e patentemente errônea. Além disso - e
aí é que o contexto é tão importante - se a frase denota meramente um espírito
amoroso, como se liga ao que o apóstolo disse no versículo 14? Se “falando a
verdade em amor”, “mantendo a verdade em amor”, significa que devemos sorrir
para todos os conceitos e pontos de vista doutrinários, e jamais criticar, condenar
e rejeitar nenhum conceito, como deixaremos de ser “crianças lançadas para lá e
para cá e levadas em roda por todo o vento de doutrina” ? Este suposto

“espírito amoroso” impossibilita o uso de expressões como “engano dos


homens”, “astúcia” e “enganam fraudulosamente”. O próprio texto, e
especialmente o contexto, tornam essa interpretação completamente impossível;
de fato, é uma negação da declaração do apóstolo. Não devemos hesitar em dizê-
lo francamente. Colocar vida ou “espírito” ou bondade ou qualquer outra coisa
antes da verdade é negar o ensino essencial do Novo Testamento; e, em
acréscimo, é contradizer diretamente a solene advertência do apóstolo no
versículo 14. É estabelecer-nos a nós mesmos, a mente moderna e o homem do
século 20 como a autoridade, em vez de Paulo, “chamado apóstolo”, e
outros que o Senhor colocou na Igreja para advertir-nos e salvar-nos
desta atitude que não gosta de discriminação e de julgamento. Nunca foi mais
importante afirmar que a disposição amigável ou a bondade ou quaisquer noções
sentimentais de fraternidade não constituem o cristianismo. Pode-se ter essas
qualidades sem o cristianismo e fora dele, e até em homens que o negam, no
entanto não se pode ter cristianismo sem a “verdade”. Assim é que, seja o que
mais for que “mantendo a verdade em amor” signifique, não significa uma vaga
e débil noção sentimental de bondade, companheirismo e fraternidade.

Examinando a frase positivamente, notem que o apóstolo diz, “mas mantendo a


verdade”. O fato de que ele introduz isto com a palavra mas diz-nos que o
versículo deve ser interpretado de um modo que ressalte o contraste com o
versículo 14. Não devemos ser “crianças, lançadas para lá e para cá, e levadas
em roda por todo o vento de doutrina”, e sim o oposto disso. Em vez de sermos
cata-ventos, girando em todas as direções e acreditando em tudo, devemos
“manter” algo particular e definido, sim, a verdade. Em vez de crer numa coisa
um dia e, depois, noutra diferente noutro dia, devemos ser estáveis, firmes na
verdade, devemos andar na verdade como esta se dá a conhecer nas
Escrituras. Manter a verdade é a antítese de ser levado em roda por todo o
vento de doutrina. Como é importante observar o contexto! Muitos problemas e
dificuldades desaparecem no momento em que deixamos que as Escrituras falem
por si, em vez de arrancarmos declarações do seu contexto e de as usarmos como
lemas.

Chegamos agora à questão quanto a como devemos manter-nos na verdade em


amor. Que é que significa isso na prática? Não posso segurar-me no ar, não
posso agarrar uma neblina com as mãos e segurar-me nela. Mas devo “manter-
me” ou “segurar-me” em alguma coisa. Ora, é matéria de simples e elementar
raciocínio dizer que, antes de eu poder manter-me em alguma coisa, preciso
saber o que ela é. Tem que ser algo a que a gente possa segurar-se, algo definido
e que possa

ser descrito. E o apóstolo afirma que se trata disso, a saber, da verdade.


Obviamente, pois, esta verdade a que ele está se referindo é passível de
definição. Isto, certamente, é uma decorrência necessária. Como posso julgar
estes vários “ventos de doutrina” que sopram ao meu redor, se não tenho um
padrão? Como posso saber se estes ventos de doutrina são verdadeiros ou falsos?
Como posso detectar este “engano dos homens” e a sua “astúcia” trapaceira, ou
como perceber que eles estão “enganando fraudulosamente” para fazer-me cair
no erro -como, se não tenho algum padrão? Nos negócios acreditamos em
que haja o padrão ouro e uma medida padrão; temos padrões de “pesos
e medidas”. Agimos necessariamente assim porque, sem esse padrões, nunca
saberíamos se estamos sendo tratados com justiça ou se estamos sendo roubados;
não teríamos como conferir as coisas mutuamente, e os negócios seriam
impossíveis. Dá-se precisamente o mesmo na esfera espiritual e na Igrej a. Você
não poderá evitar ser levado em roda por todo o vento de doutrina, se não tiver
um padrão de julgamento. Você não pode manter-se em algo amorfo; não pode
manter-se em algo que seja nebuloso, vago e indefinido como o vento que sopra
em todas as direções.

Por definição, a própria expressão utilizada, e o contraste com o versículo 14,


persistem em dizer que “a verdade” é algo que se pode definir, analisar e expor
em proposições. E, contudo, dizendo isso, estou correndo inteiramente contra o
que está sendo dito atualmente, a despeito do fato de que aquilo que estou
asseverando e em favor do que estou argumentado está baseado na lógica e
raciocínio elementar, e no trato honesto da Palavra de Deus. No entanto isto,
dizem-nos, é fatal para a fraternidade e o companheirismo, a amizade e a
unidade e, dizendo tais coisas, causamos divisão. No presente século há
marcante aversão por credos, confissões e por definições precisas. O
cristianismo tomou-se um vago e indefinido espírito de boa vontade e
filantropia. Isto é declarado abertamente em livros e sermões, e em
pronunciamentos de congressos e conferências. É tempo de enfrentarmos
esta questão e de a examinarmos à luz das Escrituras. Como se pode conciliar
esta atitude moderna com o que o apóstolo está dizendo aqui ? À luz do ensino
de Paulo, como se poderia justificar coisas como congressos de cristãos e judeus
e congressos de religiões do mundo, alegando-se que todos estamos aplicados à
mesma busca, e que existem muitos caminhos para se chegar ao pico de uma
montanha?

Esta idéia moderna é, sobretudo, não somente uma negação das Escrituras, e sim
também uma negação de toda a história da Igreja Cristã. Há segmentos da Igreja
nos quais em todos os cultos os adoradores recitam juntos o Credo Apostólico, o
Credo Atanásio ou

uma parte do Credo Niceno. Todas as grandes Igrejas têm confissões de fé; a
Igreja da Inglaterra tem os Trinta e nove Artigos, a Igreja Presbiteriana
reconhece a Confissão de fé, de Westminster, a Igreja Luterana, no continente,
tem a sua Confissão de Augsburgo, e muitas igrejas usam a Confissão e o
Catecismo de Heidelberg e subscrevem a Confissão Belga. À luz deste grande
fato da história, e sem nenhum desejo de ser crítico, sinto-me constrangido a
dizer que esta atitude moderna é arrogante. É arrogante em que repudia
virtualmente toda a história da Igreja e condena todos os credos e confissões.

Por que e como estes credos e confissões vieram a existir? Conquanto saibamos
que o Credo Apostólico não foi produzido pelos apóstolos propriamente ditos,
foi produzido pela Igreja Primitiva para que os crentes tivessem uma sucinta
declaração daquilo que os apóstolos pregavam e ensinavam. Mas, por que a
Igreja Primitiva achou que isso era necessário? Por que foram redigidos o Credo
de Atanásio e o Credo Niceno? Estas questões são muitos
pertinentes. Deveremos tratar delas dizendo que a vida naqueles dias era sem
muita ocupação, e que os filósofos e teólogos gostavam de discussão,
de argumentação e de sistematização do pensamento? Seria o caso de que os
homens legalistas e lógicos transformaram o agradavelmente “simples”
evangelho de Jesus em algo que era quase exatamente o oposto? A história da
Igreja revela com muita clareza que não era esse o caso e que cada um daqueles
credos e confissões foi redigido para salvar a vida da Igreja e para salvaguardar a
verdade concernente ao nossò Senhor e à Sua grandiosa obra de salvação. Falsos
ensinos e erros se insinuaram, como as Escrituras tinham profetizado
que aconteceria e como os apóstolos tinham advertido. O resultado foi confusão
na Igreja. Na providência de Deus houve líderes na Igreja cheios do Espírito
Santo que viram claramente que, se essa espécie de ensino continuasse, a Igreja
seria destruída. Por isso eles se reuniram em grandes concílios, o que
simplesmente significava que vinham líderes cristãos de diferentes partes do
mundo para tratar da situação.

Diversamente da idéia ecumênica moderna, eles não se reuniam para dizer que
eram todos ume que as idéias divergentes eram de pouca conseqüência; reuniam-
se para declarar explicitamente o que devia ser crido, e para afirmar que os que
recusassem subscrever tal verdade deviam ser denunciados como hereges e
deviam ser excomungados. Eles achavam que toda a vida da Igreja e todo o
futuro da Igreja estavam em perigo, e que era preciso pôr um fim na incerteza e
na confusão concernentes a doutrinas vitais. Por isso redigiram os seus credos,
nos quais definiram o que se devia crer e traçaram uma aguda distinção entre o
certo e o errado, a verdade e o erro. A história registra

as heresias e os erros que se introduziram acerca da Pessoa do Senhor Jesus


Cfisto, a heresia ariana e outras, mas Atanásio e eventualmente outros
levantaram-se contra esses erros e os condenaram. Isso tudo, porém, é posto de
lado comum mover de mãos, hoje. Isso é, repito, não somente uma negação do
ensino das Escrituras, mas também uma negação dos períodos mais gloriosos da
história da Igreja Cristã.

Você não poderá “manter-se” na verdade, a menos que saiba o que é a verdade.
Há certas doutrinas que são absolutamente essenciais à fé cristã. Uma é a
autoridade da Bíblia. Sem a absoluta autoridade da Palavra de Deus em questões
de fé e conduta, como se pode discernir entre a verdade e o erro? Se ela não for
reconhecida como a única autoridade, “todo o vento de doutrina” será
permissível; todavia, se fosse assim, não haveria cristianismo e, portanto, não
haveria salvação. Igualmente, não deve ocorrer discussão alguma acerca da
Pessoa do Senhor Jesus Cristo. Ele é Filho de Deus e Filho do
homem; plenamente Deus e plenamente homem. Como vimos, a Igreja Primitiva
viu a crucial importância desta doutrina. O ensino do Novo Testamento está
inteiramente baseado nela. A grande Epístola aos Hebreus foi escrita para
sustentar isto, para mostrar a preeminência de Cristo e para afirmar que “Deus
falou-nos nestes últimos dias pelo Filho”. Foi porque certos cristãos hebreus
tinham ficado em dúvida acerca desta verdade, que o autor de Hebreus lhes
escreveu a sua grande Epístola. Não há que discutir o fato de que o Senhor
Jesus Cristo, o Filho de Deus, é o único Mediador entre Deus e os homens. A
Igreja não deve ter discussão sobre Ele, sobre a Sua Pessoa, o Seu nascimento
miraculoso, a Sua expiação sacrificial e a Sua ressurreição literalmente física. Se
a Sua ressurreição corporal não é verdadeiro e fatual, diz Paulo aos Coríntios, “é
vã a nossa pregação, e também é vã a vossa fé, e ainda permaneceis nos vossos
pecados” (1 Coríntios 15:14,17). É vital assim! Igualmente com respeito à
doutrina da expiação. Paulo diz aos coríntios que a mensagem que, como
embaixador, ele foi comissionado para pregar, era que “Deus o fez pecado por
nós; para que nele fôssemos feitos justiça de Deus” (2 Coríntios 5:21).

Também, como já tivermos ocasião de salientar, há a crucial doutrina da


justificação pela fé. Paulo diz aos gálatas que, se eles negassem isto com a
introdução de quaisquer obras como coadjuvantes da salvação, “caíram da
graça” (5:4). Lembremo-nos de que os falsos mestres que estavam pertubando os
gálatas não estavam negando realmente a Pessoa do nosso Senhor, ou a Sua
expiação sacrificial, porém estavam ensinando que os gentios precisavam ser
circuncida-dos, em acréscimo a crerem em Cristo. Tão específica é a verdade,
que
Paulo não pode tolerar este falso ensino, e “resistiu a Pedro na cara” (Gálatas
2:11) porque parecia que ele estava dando apoio àquilo. Paulo não considerava a
questão quanto a se o cristão devia ser circuncidado como questão indiferente, e
dizia que tão logo alguém tivesse uma espécie de vaga crença em Cristo, tudo
estaria bem. Ele não queria fazer nenhuma concessão neste ponto porque fazê-lo
seria “pregar outro evangelho, o qual não é outro” (1:6-7). De fato, o que
já consideramos nos versículos 4-6 é absolutamente essencial.

A Igreja Cristã é o que é hoje porque a doutrina da revelação e as verdades da


revelação estão sendo negadas. A verdade revelada nas Escrituras, “a verdade
que uma vez foi dada aos santos’ ’, foi substituída pela filosofia e pelo
pensamento moderno, especialmente na forma de ciência. Em lugar da exposição
das Escrituras, temos tentativas de encontrar a Deus e de definir o ser de Deus. É
por isso que, virtualmente, não há mais nenhum ensino Bíblico. Foi substituído
por discursos éticos e apelos sentimentais, palestras sobre coragem e sobre
o cumprimento do dever, e discursos políticos. Mas não é este o ensino bíblico,
isto não é realizar o que o apóstolo Paulo nos diz que os apóstolos, os profetas,
os evangelistas, os pastores e os mestres foram chamados e receberam ordem
para fazer. Em vez de clara doutrina há um vago ensino sobre Deus, fraternidade,
semelhança com Cristo, sobre a prática do bem e sobre ser amoroso. Isto
acontece porque, obviamente, não pode haver bom ensino se o mestre não sabe o
que é a verdade. A tarefa da Igreja não é especular sobre Deus e sobre a Pessoa
de Cristo; é ensinar as verdades reveladas concernentes a Eles, comunicar os
princípios revelados nas Escrituras e edificar-se em sua fé santíssima.

É óbvio que devemos saber exatamente o que é a verdade. Não devemos passar
o tempo todo argumentando acerca de preliminares e pressuposições; devemos
partir da verdade revelada, e expô-la. Cada um de nós deve entender, crer e
“manter a verdade”, e não especular filosoficamente acerca da vida e o seu
significado e os seus problemas. Não cabe a nenhum pregador levantar-se num
púlpito e dizer: “Penso isto”, ou “Cheguei à seguinte conclusão”, mas sim,
“Assim diz o Senhor”. Devemos repetir o que Paulo disse, escrevendo aos
romanos: “Mas graças a Deus que, tendo sido servos do pecado, obedecestes
de coração à forma de doutrina (sólido ensino) a que fostes entregues” (6:17); ou
o que ele disse a Timóteo: “Conserva o modelo das sãs palavras que de mim tens
ouvido” (2 Timóteo 1:13). Paulo ensinara a Timóteo “o modelo das sãs
palavras”; e não escreve a Timóteo meramente para que imite o seu espírito, o
espírito que ele tinha visto
nele, mas lhe diz: “Conserva o modelo das sãs palavras”. Paulo escreveu
similarmente aos gálatas, não porque o que ele pregava era sua idéia, porém,
como ele diz: “faço-vos saber, irmãos, que o evangelho que por mim foi
anunciado não é segundo os homens, porque não o recebi, nem aprendi de
homem algum, mas pela revelação de Jesus Cristo” (1:11-12). A Timóteo ele diz:
“E o que de mim, entre muitas testemunhas, ouviste, confia-o a homens fiéis,
que sejam idôneos para também ensinarem os outros” (2 Timóteo 2:2).
A mensagem cristã é verdade exata, que consiste de proposições acerca de Deus
e do Senhor Jesus Cristo, Sua Pessoa e Sua obra, acerca do Espírito Santo e Sua
obra, do único caminho da salvação, da Igreja, e de toda a verdade necessária
acerca da vida. Tive que ressaltar tudo isso extensamente porque não há
propósito em ir adiante para a declaração seguinte, se não tivermos entendido
claramente esta questão. “Nós mantemos a verdade.”

No entanto, devemos ser igualmente cuidadosos no sentido de “manter a verdade


em amor”. Mais uma vez saliento que este acréscimo, como a declaração toda,
deve ser interpretado à luz do versículo

14. Ao interpretar esse versículo, dei grande ênfase à força e quase violência da
linguagem empregada pelo apóstolo. Todavia, aqui ele nos está exortando a
“falar a verdade em amor”. Haveria uma contradição entre a linguagem forte do
versículo 14 e “falar a verdade em amor”, no versículo 15? É óbvio que não há
tal coisa, mas isso nos ajuda a interpretar esta frase sobre o amor.
Evidentemente, à luz do versículo 14, não pode significar somente ser bom e
amável. O apostolo Paulo não era um “bom” homem, no sentido
comumente aceito. O homem que está cheio do amor de Cristo não é
meramente “um bom homem” no sentido natural, o que se deve principalmente
à constituição física e inteiramente acidental da pessoa. Não é esse o amor do
que Paulo está falando. O que Paulo está afirmando é que, enquanto “mantemos
a verdade”, devemos vigiar os nossos espíritos. Os falsos mestres tendem a
perturbar-nos e a irritar-nos, e nós temos que opor-nos a eles, e a fazê-lo
fortemente. Contudo, não devemos fazê-lo com espírito mau e amargo.

Ora, em particular, o apóstolo está tratando do modo como falamos uns aos
outros como crentes na igreja, e como corrigir os erros que acaso apareçam entre
nós. A severidade aplica-se mormente aos falsos mestres, aos que Judas descreve
como “tendo-se insinuado inespera-damente” (Judas 4, VA), mas entre nós
devemos falar e manter a verdade em amor. O apóstolo quer dizer que, embora
devamos salientar a absoluta necessidade de definições e credos, nunca deve-
mos ser duros e rígidos, nunca devemos ser legalistas e ostentar justiça própria.
Jamais devemos portar-nos de molde a dar a impressão de que a nossa
preocupação é provar que estamos certos e que todos os outros estão errados.
Jamais devemos fazê-lo apenas para vencer numa argumentação ou numa
discussão. Pode ser que muitos de nós devam confessar-se culpados disso.

Similarmente, o “espírito de partido” é sempre mau; colocar rótulos é sempre


mau; o espírito de censura é sempre mau. Há gente sempre dominada e motivada
por um espírito partidário e por rótulos; e se você não subscrever o particular
santo-e-senha dessa gente, estará condenado. Lembro-me de como um amigo me
contou uma vez que estava um tanto decepcionado porque, em minha exposição
do capítulo dois desta Epístola aos Efésios, eu não tinha mencionado o
calvinismo enquanto expunha o capítulo. Minha resposta simples a ele foi: o
texto não menciona aquele termo. O meu amigo estava tão preso ao
espírito partidário que estava ficando em dúvida sobre a minha posição!
O espírito partidário geralmente é resultado de uma abordagem puramente
intelectual da verdade, e também de ser dominado pelo preconceito, que muitas
vezes é conseqüência da edução recebida.

A verdade sobre a qual o apóstolo escreve nunca deve ser abordada somente com
o intelecto. Se o meu coração não se comove com a verdade, se eu não a sinto e
não sinto o seu poder, o meu espírito está mal. A verdade deve produzir paixão, e
numa profissão verdadeiramente cristã há emoção e sentimento. Uma verdade
que só seja mantida no intelecto torna-se dura, árida e seca; e o homem de
quem se possa dizer isso nunca poderá falar a verdade em amor. Só
devemos afirmar a verdade em termos fortes com o fim de torná-la clara, com o
fim de ajudar os outros, com o fim de persuadir os homens. Devemos fazer isso
porque temos tristeza por aqueles que se acham desorientados e que se deixaram
extraviar; não com o fim de mostrar-lhes que eles estão errados e nós estamos
certos, porém com o fim de levá-los à verdade. Portanto, devemos fazê-lo com
humildade e reconhecer a nossa falibidade, reconhecer que todos cometemos
enganos e que todos podemos cair no erro. Sempre devemos falar com
humildade e ter o cuidado de não fazer violência às Escrituras ou de interpretá-
las mal, de alguma forma. Devemos “manejar bem a palavra da verdade” (2
Timóteo 2:15).

Noutras palavras, nunca devemos começar denunciando; devemos começar pela


explicação e pela exposição. Se eu acredito que a idéia doutro homem é errônea,
não devo atacá-lo imediatamente; primeiro devo expor-lhe a verdade, e procurar
fazê-lo da maneira mais persu-asiva possível. Devo tentar cativá-lo. Na verdade,
devo ir além e dizer

que devemos tratá-lo empaticamente. Devo reconhecer que talvez ele seja
apenas um bebê em Cristo e que ele defende idéias erradas porque é um bebê e
não recebeu instrução; devo sentir compaixão por ele. É--nos dito que, quando o
Senhor olhou para as pessoas, viu-as como “ovelhas que não têm pastor, e teve
compaixão delas” (Marcos 6:34); é dessa maneira que devemos ver os que são
novos na fé. Devemos ter e exercitar grande paciência para com eles.

Recordem o que o apóstolo diz em 1 Coríntios a respeito da questão das carnes


oferecidas a ídolos. Ele próprio tinha claro entendimento da questão, mas diz ele
que, embora tivesse direito de comer tais carnes, e não estivesse errado ao fazê-
lo, não obstante, se isso fosse um obstáculo para um irmão mais fraco e menos
esclarecido, ele exerceria o seu direito de não comer: “Pelo que, se o manjar
escandalizar a meu irmão, nunca mais comerei carne, para que meu irmão não se
escandalize” (8:13). Mais claramente ainda, isso é declarado em 1
Coríntios, capítulo 13, versículo primeiro, e é vital no capítulo inteiro:
“Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse
amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine”.

No entanto, isso tudo não significa que transigimos em relação à verdade; temos
que manter a verdade a todo custo. Mas temos que mantê-la com este amor, a
fim de persuadir as pessoas, cativá-las e tentar esclarecê-las. Isso é a própria
antítese de dizer que a verdade não conta e que os cristãos podem crer no que
quiserem, contanto que tenham uma vida benéfica e demonstrem espírito cristão.
O erro tem que ser posto às claras; o versículo 14 vem antes do versículo 15.

Acima de tudo precisamos compreender que o amor não é sentimental e fraco; o


amor é forte, o amor é veraz, o amor é puro. Amar verdadeiramente uma pessoa
é desejar o melhor possível para essa pessoa. As vezes o amor tem que ferir; às
vezes é preciso “ser cruel para ser bondoso”. O pai que nunca corrige o filho é
um pai muito insatisfatório. “O Senhor corrige o que ama, e açoita a qualquer
que recebe por filho” (Hebreus 12:6). Se o que realmente nos anima é
um espírito de amor, desejaremos ansiosamente que os nossos amados irmãos na
fé cristã fiquem livres do erro e deixem de ser crianças. Para isso pode ser que
tenhamos que falar-lhes com muita severidade, às vezes, reprimi-los, repreendê-
los e mostrar-lhes o erro da posição deles com todas as forças que tivermos.
Amar não significa sorrir para toda e qualquer coisa e mostrar-nos indulgentes,
dizendo que coisa alguma importa, contanto que sejamos todos um. O amor é
uma das qualidades mais viris, fortes e magníficas existentes. E o amor é
tão poderoso que se dispõe a ferir o seu objeto a fim de cativá-lo, salvá-lo e
salvaguardá-lo de um horrível destino. “O amor é forte como a

morte” (Cantares de Salomão 8:6).

“Falando a verdade em amor” é ilustrado perfeitamente no capítulo quatro da


Epístola de Paulo aos Gálatas. Havendo-lhes escrito em termos muito fortes, e
havendo-os repreendidos severamente, de súbito ele diz: “Fiz-me acaso vosso
inimigo, dizendo a verdade?” (versículo 16). Os infantis gálatas, porque ele lhes
dissera a verdade, podiam achar que ele se tomara inimigo deles, e que ele era
uma pessoa odiosa e que os odiava. Ele lhes assegura que ele só tinha amor por
eles, e escreve no versículo 19: “Meus filhinhos, por quem de novo sinto
as dores de parto, até que Cristo seja formado em vós”. Ele os amava como uma
mãe ama os seus filhos; e foi porque os amava e dava às suas almas tão alto
valor, que escreveu tão fortemente contra a heresia particular que os pertubara e
os enredara. Ele odiava o erro, porém os amava. Devido eles não enxergarem o
erro, ele teve que escrever em termos muito fortes, exatamente como, por amor
da verdade, tivera que resistir a Pedro na cara. Foi tudo por amor da verdade;
mas o fazia em amor, como a mãe ama os seus filhos, e foi assim que cativou
de novo a Pedro e aos gálatas para a verdade.

O princípio que nos deve governar em tudo isso é o conhecido princípio


enunciado cedo na história da Igreja - “Nas coisas essenciais, unidade; nas coisas
indiferentes (coisas não essenciais e sobre as quais não há certeza absoluta),
liberdade; em todas as coisas, caridade”.

1
Almeida: “ ... seguindo a verdade em caridade”. Nota do tradutor.
CRESCENDO

“Antes, seguindo a verdade em amor, cresçamos em tudo naquele que é a


cabeça, Cristo. Do qual todo o corpo, bem ajustado, e ligado pelo auxílio de
todas as juntas, segundo a operação de cada parte, faz o aumento do corpo,
para sua edificação em amor.” Efésios 4:15-16

Nestes versículos chegamos ao fim, ao clímax da declaração do apóstolo


concernente à unidade da Igreja, declaração que começou no primeiro versículo
do capítulo. Portanto, devemos ter todo o cuidado, ao examiná-los, para ter em
mente todo o contexto. O apóstolo não está interessado na unidade em geral
entre os cristãos, mas em particular na unidade que deveria ser evidente entre os
cristãos como membros do corpo de Cristo, a Igreja. Isto o levou, e
especialmente do versículo 7 em diante, a tratar da natureza e da constituição da
própria Igreja. Seu objetivo primário não é escrever sobre a doutrina da Igreja;
porém ele mostra que um verdadeiro entendimento da natureza da Igreja
Cristã torna completamente inevitável o princípio da unidade. A doutrina
da Igreja estivera implícita o tempo todo, mas agora ela se toma explícita nas
palavras, “cresçamos em tudo naquele que é a cabeça, Cristo”, no versículo 15, e
mais ainda no versículo 16. Não devemos ser crianças, todavia “crescer”, e não
somente crescer individualmente, mas devemos crescer juntos na Igreja, de
modo que o corpo todo se torne mais maduro e finalmente alcance “a medida da
estatura completa de Cristo”. O apóstolo acentua que devemos “crescer em tudo
nele”, em Cristo.

As Escrituras constantemente fazem sobressair a importância do equilíbrio na


vida cristã. Crescer nalguns aspectos e não noutros leva a uma monstruosidade;
pois umas partes serem superdesenvolvidas, e outras subdesenvolvidas, produz
falta de simetria e fealdade na forma. O cristão deve crescer simetricamente “em
tudo”, em todos os aspectos. Devemos crescer e desenvolver-nos, não somente
em nossas mentes e em nossos entendimentos, porém também em nossos
corações, em nossos sentimentos e em nossa sensibilidade. Devemos, pois,

provar-nos a nós mesmos nestas linhas e também com relação à nossa conduta e
ao nosso comportamento. Estaríamos crescendo intelectualmente? Teríamos
mais conhecimento da verdade do que tínhamos há um ano? Acaso
compreendemos melhor as Escrituras? Estaríamos menos freqüentemente com
problemas e perplexos acerca de questões espirituais?
Tomemos uma ilustração óbvia. Um estudante que toma um assunto para
estudar, vê-se mergulhado nas lições. A princípio ele não entende praticamente
nada, e fica meio confuso. Pode até querer desistir; no entanto é aconselhado a
prosseguir, e ele o faz, e se assenta e ouve, ainda sem aprender muita coisa.
Contudo, de repente, após uns poucos meses, começa a sentir que está
aprendendo o assunto e que está começando a fazer sentido para ele. Daí em
diante o assunto vai ficando mais claro para ele, e ele percebe que o vai
dominando.

É a mesma coisa na vida cristã. Pessoas há que me dizem, com freqüência, que
quando começaram a freqüentar os cultos cristãos, tinham bem pouca idéia do
que estava sendo dito. Tinham consciência de um espírito geral na reunião que as
empolgava, mas elas realmente não conseguiam acompanhar e compreender as
mensagens. Contudo, continuaram freqüentando e gradativamente começaram a
entender o ensino. Esse é um sinal de crescimento e desenvolvimento; e
isso costuma ir adiante, crescendo progressivamente. Conforme vão passando os
anos, o nosso conhecimento e a nossa compreensão da verdade devem tomar-se
cada vez maiores.

O mesmo vale quanto ao sentimento e à emoção. A verdade gloriosa do


evangelho nos prende mais que nunca? Comove-nos mais que nunca? Ou nos
tornamos o que tem sido descrito como “endurecidos pelo evangelho”? Estamos
numa triste e gravemente defeituosa condição, se o evangelho não nos comove
cada vez mais e não nos enche de uma crescente percepção do maravilhoso, do
admirável e do espantoso. Há muitíssimos cristãos cujos sentimentos só foram
requisitados em sua vida cristã quando eles foram convertidos. Olham para trás,
para aquilo, porém não parecem ter experimentado nada parecido depois disso.
Entretanto devemos sentir o que cremos cada vez mais, conforme continuamos
nesta vida; e se as nossas emoções não se inflamam cada vez mais, realmente
significa que tampouco o nosso entendimento está crescendo. Para entender a
verdade cristã é necessário ser comovido por ela. Uma coisa segue-se à outra,
como a noite segue-se ao dia. Quanto mais conhecermos o Senhor Jesus
Cristo, mais teremos que amá-10. Quanto mais conhecermos alguma verdade a
Seu respeito, mais ela nos comoverá, num sentido muito profundo e vital. Da
mesma maneira devemos mostrar desenvolvimento na ques-

tão da nossa conduta e do nosso comportamento. Devemos “crescer nele em


tudo”.
Permitam-me confirmar este ensino citando o que o apóstolo diz noutros lugares.
Em sua Primeira Epístola aos Coríntios ele escreve: “Irmãos, não sejais meninos
no entendimento, mas sede meninos na malícia, e adultos no entendimento”
(14:20). A malícia deverá ficar cada vez menos evidente em nossas vidas, mas
no entendimento devemos ser “adultos”; devemos crescer e desenvolver-nos. De
novo, em sua Epístola aos Romanos vemos: “Quanto à vossa obediência, é ela
conhecida de todos. Comprazo-me pois em vós; e quero que sejais sábios no
bem, mas símplices no mal” (16:19). Devemos continuar crianças no que se
refere ao mal, e até morrer completamente quanto ao mal; todavia, com relação
ao bem, devemos ser sábios, crescer e desenvolver-nos.

Não devemos continuar sendo crianças, e sim, crescer em todas as coisas e em


todos os aspectos. Devemos, porém, crescer e desenvolver-nos “naquele que é a
cabeça, Cristo”, uma doutrina que já expusemos no versículo 13. Quer dizer que,
como membros e partes individuais do corpo, devemos crescer no sentido de
amoldar-nos a Cristo, a Cabeça. Noutras palavras, Paulo está dizendo que cada
parte do corpo deve ser digna da Cabeça, deve corresponder à Cabeça. A cabeça
é o modelo e o padrão, e a Cabeça é “Cristo”. Cada uma das partes do corpo,
mesmo as menores, por pequenas e aparentemente insignificantes que sejam,
deve estar em conformidade com a Cabeça, deve ser digna dela. Não deve existir
nem desacordo nem defeito. Todos sabemos o que é falta de proporção e de
simetria na natureza. Pode-se ver um rosto muito bonito, porém mãos feias, ou
um belo corpo, mas pernas feias. Diz o apóstolo que não deve existir
tal desacordo ou falta de correspondência, mas que o corpo todo, em todas as
suas partes, deve ser perfeitamente proporcionado e equilibrado, sem nada
sobressaindo como algo estranho ou excêntrico. Tudo deve adequar-se
perfeitamente e na devida proporção. Este deverá ser o resultado de falarmos a
verdade em amor quando tratamos uns com os outros. Devemos estar crescendo
todos juntos, no mesmo ritmo se possível, com a mesma espécie de maturidade,
para que o corpo mostre uma agradável proporção e beleza, e perfeição de
forma; e devemos buscar especialmente que não haja desarmonia entre a cabeça
e as diversas outras partes do corpo.

Há também outro aspecto desta verdade que é importante, a saber, que cada parte
do corpo deve estar tão desenvolvida que esteja sempre pronta a responder ao
Senhor. Não somente devemos conformar-nos a Ele, porém também devemos
estar à Sua disposição e ao Seu serviço;

naturalmente, é essencial para que haja uma unidade orgânica verdadeira,


e para um funcionamento apropriado. Cristo é a Cabeça, e nós, como partes
do corpo, devemos estar bem ajustados e firmemente unidos.

Passamos agora a perguntar como tudo isso vem a existir e como se mantém.
Vê-se a resposta numa das frases mais difíceis do apóstolo, a saber, “pelo auxílio
de todas as juntas”. A dificuldade surge na palavra “juntas”, porque
instintivamente pensamos na palavra junta de maneira como já utilizamos, como
luva e cano encaixando-se para formar uma junta. Entretanto este novo termo
tem um sentido algo diferente e bem poderia traduzir-se por “faixas” * ou “elos
de ligação”. Noutras palavras, Paulo está dizendo que estas faixas não nos
unem apenas. Fazem isso. Mas fazem algo muito mais importante; é por meio
dessas faixas ou por esses elos de ligação que os suprimentos de vida e energia
passam a cada parte do corpo. De fato, é enganoso ler “pelo auxílio de todas as
juntas” porque essa frase dá a impressão de que são as “juntas” que fazem o
suprimento. Contudo não é assim. O suprimento não vem através das juntas,
porém através das faixas. Por isso alguns comentadores traduzem assim a frase:
“através de todas as juntas para auxílio” (ou “para suprimento”), ou “através de
todas as juntas que servem para auxílio” (ou “para suprimento”).
Noutras palavras, as faixas a que Paulo se refere são os canais através dos
quais passa o suprimento de vida e energia para todas as partes do corpo.
Este suprimento vital é veiculado através de cada faixa. Portanto, podemos ler da
seguinte maneira a frase: “Do qual todo o corpo, bem ajustado, e ligado pelo
suprimento veiculado por todas as faixas”.

Passamos a seguir ao termo auxílio (VA: faz suprimento), que é muito


importante. A palavra que o apóstolo empregou leva o sentido de “suprimento
abundante”, “superabundância”; não mera suficiência, e sim suprimento
abundante. E a mesma idéia que o apóstolo João expressa no prólogo do seu
Evangelho, com as palavras: “E todos nós recebemos também da sua plenitude, e
graça por graça” (1:16). Paulo já comunicara essa idéia nesta Epístola, com as
palavras: “as abundantes riquezas da sua graça” (2:7), “o amor de Cristo, que
excede todo o entendimento... cheios de toda a plenitude de Deus” (3:19). O
suprimento é um “suprimento abundante”. Vem aos diversos membros do corpo
através dessas faixas de comunicação, desses canais de abastecimento pelos
quais ele passa. Este é, pois, o sentido da frase, “bem
Faixa ou canal, como de rádio e televisão. Nota do tradutor.

ajustado, e ligado pelo auxílio de todas as juntas”.


Todavia até a isso Paulo acrescenta algo: “segundo ajusta operação de cada
parte”. “Justa operação” (VA: “operação eficaz”) significa “energia operante”,
energia que faz algo. “Segundo a medida de cada parte” (VA) significa “segundo
a capacidade de cada parte”. Esta energia operante, este poder eficaz - de que
Paulo diz que há suprimento abundante - passa através das faixas ou canais de
comunicação para cada uma das partes; e depois acrescenta que o volume dessa
energia dada a cada parte é “segundo a medida da sua capacidade”. As partes do
corpo não recebem exatamente a mesma porção, mas cada parte recebe tudo o
que precisa receber de acordo com a medida da sua capacidade.

Resumindo as diversas frases, podemos expor o ensino da seguinte maneira: a


Cabeça do corpo é o Senhor Jesus Cristo. Nós, como membros individuais,
devemos funcionar como a Cabeça deseja que funcionemos. Estamos todos
adequadamente ajustados, ligados e mantidos juntos, e energizados através das
faixas de suprimento por um indeterminável e superabundante suprimento que
nos vem de Cristo. Cada parte, seja grande ou pequena, fica absolutamente
cheia; recebe tudo o que necessita, e não mais. As partes não são idênticas umas
às outras; não somos todos absolutamente iguais. Diferimos tremendamente;
cada um de nós tem a sua capacidade particular, e cada um de nós deverá encher-
se de acordo com a sua capacidade. Noutras palavras, o apóstolo está resumindo
aqui, e repetindo, o que dissera no versículo 7, “a graça foi dada a cada um de
nós segundo a medida do dom de Cristo”. Há diferenças nas ministrações, há
diver-sidades dos dons, alguns membros do corpo são mais importantes
que outros, alguns são mais elegantes que outros, como nós é dito em
1 Coríntios, capítulo 12.

O olho, a mão e o pé, o nariz e a língua, não são iguais em importância, porém
todos eles são membros do corpo, e todos eles são essenciais ao funcionamento
do corpo. E a cada parte é dado pleno e abundante suprimento de vida e energia
para habilitá-la a desempenhar a sua função perfeitamente.

Qual é o objetivo disso tudo? Por que a Igreja é constituída desse modo? Por que
o corpo é construído dessa maneira? Diz o apóstolo que o objetivo é que tudo
faça “o aumento do corpo”. Ele de fato introduziu um parêntese depois de, “Do
qual todo o corpo”, a saber, “bem ajustado, e ligado pelo auxílio de todas as
juntas, segundo a justa operação de cada parte”. Depois ele completa a afirmação
com, “faz o aumento do corpo, para sua edificação em amor”. Dito de
outra forma, a Igreja foi designada e constituída desta maneira maravilhosa
para que possa crescer. É essa a razão por que há as juntas bem ajustadas, por
que há faixas de comunicação, e por que há este abundante suprimento de vida e
de energia. E para que todo o corpo cresça. Notem o que Paulo diz: “Do qual
todo o corpo, bem ajustado... “O propósito é promover crescimento, ou, para
declará-lo doutra maneira, é para que o corpo seja “construído”, como fora
previamente declarado no versículo 12: “Querendo o aperfeiçoamento dos
santos, para a obra do ministério, para edificação (construção) do corpo
de Cristo”.

Depois, para que não esqueçamos o que ele dissera bem no início, o apóstolo
acrescenta: “para sua edificação em amor”. O amor é a perfeição final, o apogeu.
“Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três, mas o maior
destes é o amor”. Nesta questão de unidade, nada é mais importante que o amor.
Se a Cabeça é amor, o corpo deve ser amor. Devemos amoldar-nos à Cabeça; Ele
é amor sempiterno, amor eterno. Ele Se tornou amor encarnado; e o corpo deve
corresponder a Ele ; assim nos edificamos e crescemos “em amor”.

Agora podemos sugerir outra tradução da declaração toda: “De quem todo o
corpo - estando estreitamente interligado, e sendo constantemente mantido por
meio dos canais através dos quais passa o abundante suprimento da energia vital,
a qual é gerada para suprir a capacidade de cada parte - trabalha junto para o
constante crescimento do corpo, resultando na construção dele mesmo em
amor”. Esta descrição da Igreja Cristã corresponde rigorosamente ao que
sabemos do corpo humano. O apóstolo, escrevendo há mais de 1900
anos, parece ter antecipado a filosofia moderna o bastante para fazer uso dessa
ilustração particular. No corpo humano a cabeça contém o cérebro; e todo o
sistema nervoso do corpo vem originalmente do cérebro e a ele está ligado. O
menor nervo, ou o tenro nervo da ponta do seu dedo, pode ser seguido de volta
até ao cérebro. Primeiro vai até a medula espinal que, por sua vez, está ligada
por cordas de nervos ao cérebro, o centro mais elevado e que contém tudo.
Verdadeiramente, os nossos corpos “de um modo terrível, e tão maravilhoso”
foram formados. Eles estão cheios de articulações, das quais estivemos falando.
Junta encaixada em junta, antebraço no braço, braço no tronco, e tudo mais.
Mas, além e acima de tudo isso, há as faixas ou canais de comunicação; o
sistema nervoso une o corpo todo e o mantém unido, e faz dele uma unidade
orgânica de um modo que os ligamentos e as juntas não podem fazer.

A mesma coisa, é claro, pode-se dizer do sistema sangüíneo, o


sistema vascular. Esse também faz uma combinação de todas as coisas juntando-
as, centralizando tudo no coração. O resultado é que a mais diminuta vênula da
ponta do seu dedo tem ligação direta com o coração, e o sangue que corre por ela
percorre todo o corpo. O sistema nervoso e o sistema vascular correspondem a
estas faixas ou canais de suprimento sobre os quais o apóstolo escreve. O notável
é que a energia, a energia nervosa, com a qual eu movo o meu dedo
mínimo, realmente vem originariamente do meu cérebro. Pelo pensamento e pela
vontade eu dou início àquele movimento em meu cérebro, e então o cérebro
expede a energia que passa através do meu sistema nervoso e, desse modo, sou
capacitado a mover o meu dedo. Esse é o tipo de idéia que o apóstolo tem aqui; e
a descrição que faz é perfeita. O que ele está dizendo é que o suprimento, a
origem da vida, da energia, do poder, da sustentação e de tudo o que
necessitamos como cristãos, está na Cabeça, que é Cristo. DEle o suprimento
passa para todas as partes do corpo.

Há uma espécie de paradoxo aqui. A princípio, o apóstolo parece contradizer-se;


não é isso, porém. Ele diz, por um lado, que tudo vem da cabeça; mas ele tinha
dito também que cada parte do corpo tem o seu suprimento de acordo com a sua
capacidade, para que o todo cresça, desenvolva-se e se edifique em amor. Não há
contradição porque o crescimento do todo depende, num sentido, da condição
de cada parte. Em última análise, todos nós dependemos inteiramente da Cabeça.
Ele é a única fonte de suprimento. Todavia, ao mesmo tempo, é correto dizer
que, se houver algum defeito nalguma parte, o desenvolvimento de todo se
interrompe e fica imperfeito. Isto resulta da maravilhosa interrelação, da unidade
orgânica que impera entre as várias partes do corpo.

Vejamos uma única ilustração. Você pode dizer que a única coisa que importa é a
condição do cérebro, sede da energia e da força vitais, sede do meu pensamento
e da minha plena capacidade. E você pode dizer que, em comparação, o meu
dedo mínimo é destituído de significação. Contudo, não é assim; e o dedo
mínimo pode tornar-se altamente importante. Se de repente aflorar uma infecção
aguda na ponta do seu dedo mínimo resultante de uma ligeira espetada de
um espinho de espinheiro ou de roseira, logo verá que começa a latejar e a doer
terrivelmente; não somente isso, você mesmo ficará doente; terá uma forte dor
de cabeça e poderá delirar e ficar incapacitado para o uso do cérebro. O mal no
dedo mínimo produz, digamos, envenenamento e paralisia da cabeça e do corpo
inteiro.

Pois bem, essa é uma ilustração da importância das partes indivi-


duais; mas não devemos exagerar nisso. Entretanto, ela nos ajuda a entender o
que o apóstolo está dizendo. Quanto aos objetivos da Igreja, Cristo é a Cabeça.
Ele é todo-poderoso e, em certo sentido, não está preso à Igreja. Todavia, há um
sentido em que Lhe é imposto um limite pelo insucesso da Igreja. Graças a Deus,
isso não é verdade num sentido conclusivo; porém é verdade num sentido
temporário. O apóstolo ensina que, se todo o corpo há de crescer, desenvolver-se
e edificar-se em amor, segue-se que é muito importante que cada parte particular
se encha até ao limite da sua capacidade com este vigor e esta energia vital, e
esteja funcionando como foi destinada a fazê-lo. Vemos assim que cada membro
individual da Igreja é da mais vital importância. Não admira que o apóstolo
tenha empilhado expressão sobre expressão. Ele estava interessado em mostrar a
glória da Igreja e a glória da nossa posição como membros individuais da Igreja.
Que privilégio estar em tal corpo! Pertencer a tal Cabeça e receber de Cristo este
suprimento de vida e de energia! Você o recebeu até o extremo da sua
capacidade? Está cumprindo a sua função? Esta energia vital de Cristo, a
Cabeça, estaria em você, seja você o que for, seja qual for o seu lugar na Igreja?
Esse é o nosso privilégio.

Pense também em sua responsabilidade como membro do corpo. Você estaria


causando dor e dificuldade a outras partes por estar enfermo, por estar em
pecado ou por estar letárgico? Estas são questões que se levantam
inevitavelmente. O grande apelo do apóstolo é para que não sejamos mais
crianças, não fiquemos mais sem desenvolver-nos, mas que “cresçamos em tudo
naquele que é a Cabeça, Cristo, de quem todo o corpo, bem ajustado, e ligado
pelo auxílio de todas as juntas, segundo ajusta operação de cada parte, faz o
aumento do corpo para sua edificação em amor”. Não haverá nenhum valor no
conhecimento intelectual, se não levar ao amor. Não haverá nenhum valor em
qualquer emoção se não levar ao amor. As nossas obras serão inúteis, se não
apresentarem este amor; “... ainda que entregasse o meu corpo para ser
queimado, e não tivesse amor, nada disso me aproveitaria”. Portanto,
edifiquemo-nos em amor.

ATIVIDADES E VIDA

“Antes, seguindo a verdade em amor, cresçamos em tudo naquele que é a


cabeça, Cristo. Do qual todo o corpo, bem ajustado, e ligado pelo auxílio de
todas as juntas, segundo a justa operação de cada parte, faz o aumento do
corpo, para sua edificação em amor” Efésios 4:15-16
Ao concluirmos o nosso estudo desta parte da Epístola aos Efésios, destacarei
alguns princípios importantes que foram aparecendo à medida que passávamos
por ela. Eles se relacionam com questões de intensa importância e relevância
prática na hora presente. Há um sentido em que esta porção das Escrituras,
tomada em conexão com o capítulo dezessete do Evangelho Segundo João, é
uma das mais urgentemente relevantes passagens das Escrituras Sagradas nos
dias atuais. Isto devido ao grande interesse pela Igreja e pela questão da unidade.
Como cristãos, devemos ter um inteligente entendimento das Escrituras, para
não sermos arrastados por argumentos especiosos, vagas generalidades e um
interesse sentimental pela unidade, pois essas coisas podem muito bem levar-nos
para uma posição realmente antagônica ao ensino bíblico.

Mais uma razão subsidiária para salientar estes princípios é que só poderemos
entender o que esteve acontecendo na Igreja na primeira metade deste século, se
entendermos o ensino desta passagem. As coisas estão como estão porque os
cristãos não entenderam a doutrina bíblica da unidade. Portanto, necessariamente
estaremos lidando com assuntos altamente polêmicos; todavia, evitar assuntos
polêmicos com espírito de temor é negar as Escrituras. “Deus não nos deu o
espírito de temor, mas de fortaleza e de amor, e de moderação” (disciplina),
diz Paulo (2 Timóteo 1:7). Temos que enfrentar as dificuldades e examiná-las à
luz das Escrituras. Assim, eu me proponho a selecionar certos princípios
notáveis, que são da mais urgente importância.

Comecemos onde o apóstolo começa, com o princípio de unidade: “Procurando


guardar a unidade do Espírito pelo vínculo da paz”. O

apóstolo começa dizendo que toda esta questão da unidade é de suprema


importância, e que jamais devemos perdê-la de vista. Alguns têm a tendência de
ignorar o princípio de unidade porque, reagindo contra as falsas noções de
unidade, inclinam-se a ir para o outro extremo e dizer que a unidade é
inconseqüente. Mas, se a Igreja é o corpo de Cristo, a unidade é essencial e vital.
O Novo Testamento não nos deixa em dúvida sobre isso. Ser culpado de cisma e
de divisão errônea é pecado, como Paulo deixa claro em 1 Coríntios, capítulo
12, e noutros lugares. Em Sua oração sacerdotal, o nosso Senhor ora no sentido
de que os crentes “sejam um” (João 17:21). Portanto, não há por que discutir esta
questão. No entanto, em acréscimo a essas afirmações claras, a importância da
unidade deveria ser óbvia para todos os que alguma vez estudaram a doutrina da
Igreja em termos da analogia do corpo humano. Essa analogia, igualmente, toma
ociosa qualquer argumentação quanto à centralidade da doutrina da unidade. A
unidade orgânica que há no corpo é que faz dele um corpo.

Portanto, nada é mais importante que entendermos a verdadeira natureza da


unidade. Podem existir idéias falsas com respeito à unidade. A unidade é
essencial; na verdade, há uma unidade no corpo, tenhamos ciência disso ou não,
unidade do Espírito; mas essa tem o propósito de manifestar-se; portanto,
devemos ter claro entendimento do caráter, da natureza desta unidade. Que é que
traz à existência a unidade? Que é que impede a unidade? O apóstolo deixa
certas coisas muito claras em termos da sua analogia do corpo. A primeira é
que nunca devemos pensar na unidade da Igreja de maneira meramente externa
ou mecânica ou organizacional. A ilustração do corpo mostra claramente o erro
disso; todavia, muitos hoje pensam na unidade nesses termos. Começam olhando
para as grandes denominações, como são, e simplesmente levantam a questão
sobre como se pode juntá-las. Contudo isso é fazer uma abordagem mecânica do
problema. Ora, se a analogia do corpo é correta, eles já se extraviaram, porque
um corpo não é apenas uma coleção de partes, e a unidade nunca é questão de
soma, somar isto àquilo, e aquilo a outra coisa. Esse pensamento inevitavelmente
leva a conclusões falsas.

Para expor a matéria de forma diferente, de acordo com esta analogia nunca
devemos pensar em unidade meramente em termos de retirada das divisões. Isso
também prevalece atualmente. Partindo da proposição de que uma Igreja
dividida é a maior tragédia do mundo hoje, a única questão considerada é como
podemos livrar-nos dessas divisões. Essa é uma abordagem negativa que
imagina que, removendo as divisões, você produz unidade. Entretanto, de acordo
com a analogia do corpo, esse raciocínio é falso. Baseia-se no erro fatal de

partir das coisas como estas são - das organizações, das seitas, das denominações
etc. - e tentar realizar algo com elas. Ao invés disso, devemos pensar de maneira
mais fundamental e compreender que a nossa primeira tarefa é entender a
natureza da Igreja, antes de podermos compreender a natureza da unidade da
Igreja.

Noutrãs palavras, o princípio de unidade nunca deve ser colocado primeiro, pois
a unidade não é algo que subsista por si; é sempre resultado doutra coisa. Não
devemos começar pela unidade, e sim pela natureza da Igreja, e então havemos
de ver que a unidade é inevitável. O corpo propriamente dito é de primordial
importância, e a unidade -essencial como é - é tão-somente uma das
características do corpo.
Estes princípios são absolutamente fundamentais com relação a toda esta questão
de unidade, e é a minha opinião que, devido tudo isso ser esquecido, nós nos
achamos nesta confusão moderna. Realmente, sou bastante ousado para afirmar
que a maneira de enfrentar apresente situação não é simplesmente olhar para a
situação como é e perguntar: “Que é que podemos fazer a respeito?” Temos que
ser muito mais radicais e dizer a nós mesmos: que estas grandes denominações
e agrupamentos sejam o que quiserem e façam o que quiserem, o nosso dever é
descobrir a real natureza da Igreja Cristã. Acaso não estamos, mais ou menos, na
mesma situação de Martinho Lutero no século dezesseis, quando ele viu que
tinha que ir de volta direto à verdade fundamental e à origem da Igreja? Teremos
que retornar a essa mesma posição. Se permitirmos que o nosso pensamento seja
determinado pela situação existente, ficaremos tão presos a ela que toda a
nossa concepção da Igreja será errada. Como outros, começaremos a pensar em
termos mecânicos e a tentar baixar as barreiras e a tentar melhorar a situação um
pouco aqui, um pouco ali, em vez de aperceber-nos de que a situação toda está
errada. A questão vital que se deve encarar é: que é que determina a unidade?

O primeiro princípio essencial, como o ensino do apóstolo o mostra claramente,


é a verdadeira fé no Senhor Jesus Cristo. Ele nos lembra isso com as palavras:
“Há um só corpo e um só Espírito, como também fostes chamados em uma só
esperança da vossa vocação; um só Senhor, uma só fé, um só batismo; um só
Deus e Pai de todos, o qual é sobre todos, e por todos e em todos” (versículos 4 a
6). Certamente isso deve evidenciar-se por si mesmo para quem quer que
tenha estudado esta Epístola aos Efésios. O apóstolo não começa a falar sobre o
esforço para guardar a unidade do Espírito pelo vínculo da paz no capítulo
primeiro, porém no capítulo quatro! Já tenho firmado as grandes doutrinas
fundamentais da fé, ele diz: “Rogo-vos, pois”, e

introduz o seu ensino concernente à unidade do Espírito pelo vínculo da paz.


Mas a Igreja do século vinte coloca a unidade no capítulo primeiro; começa com
ela, e os homens estão pregando a unidade, em vez de pregar a Cristo. Estão
pregando a Igreja, em vez de pregar a salvação. Toda a conversa é sobre a
unidade, os homens e as mulheres não estão sendo salvos e a verdadeira Igreja
não está sendo edificada.

A situação é essa porque eles não compreendem que a unidade resulta doutra
coisa e é conseqüência, corolário dessa outra coisa. Vê-se este princípio também
na frase “seguindo (ou “falando”) a verdade em amor” (versículo 15). Não
devemos pôr o amor antes da verdade; devemos falar as verdade em amor. Não
devemos apenas falar amorosamente, ou ser simplesmente bondosos e amáveis;
devemos falar a verdade em amor. A verdade sempre deve vir primeiro. O
resultado é que é completamente impossível discutir a unidade com um
homem que nega a deidade de Cristo. Embora possa chamar-se cristão,
nada tenho em comum com ele. Se ele não reconhece este único Senhor, nascido
da virgem, e que operou os Seus milagres e sofreu morte expiatória e ressuscitou
literalmente, corporalmente do túmulo, não posso discutir a unidade com ele.
Não há base para a discussão sobre a unidade. É puro desperdício de tempo e
uma máscara do ensino das Escrituras fazê-lo. Devemos estar arraigados e
fundados na verdade, e crer em toda a doutrina ensinada nos capítulos 1,2 e 3 - a
soberania de Deus, que nos chamou e nos escolheu antes da fundação do
mundo; a singular deidade de Cristo e o derramamento do Seu sangue por nós e
pelos nossos pecados na cruz do Calvário; a verdade concernentes a nós mesmos
como “mortos em ofensas e pecados” e andando segundo o curso deste mundo,
criaturas de luxúria, paixão e vícios, filhos da ira, como os outros também - antes
de ser possível qualquer discussão sobre a unidade. Não tenho comunhão com
alguém que diz que nascer neste país nos faz cristãos. Não posso ter comunhão
com alguém que me diz que, porque fui batizado na infância, sou por isso
cristão. Estas coisas são absolutamente vitais e centrais, e o mesmo se aplica
à doutrina do Espírito Santo e à doutrina da natureza da Igreja Cristã.

Essa é a verdade que devemos falar em amor. Falar em manter a unidade do


Espírito pelo vínculo da paz é um absurdo e uma perda de tempo, se
discordamos acerca dos pontos verdadeiramente vitais e fundamentais da fé. Não
me uno a alguém que nega a deidade única de Cristo, o nascimento virginal, os
milagres, a morte sacrifical e expiatória, a ressurreição do nosso Senhor e a
Pessoa do Espírito Santo. Não posso orar com tal pessoa, porque não vamos orar
da mesma maneira. Paulo nos ensina no capítulo dois que só podemos orar
aceitavelmente quando “ambos (judeus e gentios) temos acesso ao Pai (mediante

Cristo) em um mesmo Espírito” - e este é o único meio. Assim, não devemos


desperdiçar o nosso tempo e a nossa energia em falar de unidade ou em orar
juntos, antes de falarmos acerca destas doutrinas, acerca desta verdade.

O princípio seguinte é a nossa correta relação com o Senhor e a nossa união com
Ele. Não devemos ter comunhão “com as obras infrutuosas das trevas” (Efésios
5:11). E, como o apóstolo João diz em sua segunda Epístola, não devemos ter
comunhão com quem não prega e não defende esta verdade, e nem devemos
saudá-lo. Ao mesmo tempo, devemos entender esta doutrina da nossa relação
com o Senhor Jesus Cristo. União não é matéria de organizações, é mais uma
questão de ser um ramo na videira, ou de ser um braço, um membro de
um corpo. Toda a questão da unidade tem que ser examinada desta maneira. A
doutrina da Igreja como corpo de Cristo torna isso completamente inevitável. A
questão não é: posso ter comunhão com esta ou aquela pessoa? É, porém, estou
eu “em Cristo” e aquela pessoa está “em Cristo”? Esse é o ponto do qual
devemos partir - sou um ramo da Videira verdadeira? Pois, se eu sou, não posso
ter comunhão com os que não são ramos da Videira; e vice-versa.

Com esses pensamentos gerais sobre a questão da unidade em nossas mentes,


examinemos outro grande princípio, qual seja, toda a questão da vida espiritual.
A vida tem que vir antes da unidade porque, afinal de contas, a unidade é
resultado da vida. O que produz e mantém a unidade orgânica do corpo é a vida
que está no corpo. Por isso devemos colocar esta questão da vida no primeiro
plano. Diz-nos o apóstolo que o Senhor Jesus Cristo é a vida da Igreja, e é a
fonte de toda a energia, vitalidade e poder da Igreja. Ele expressa isto com
as palavras; “Antes, seguindo a verdade em amor, cresçamos em tudo naquele
que é a cabeça, Cristo, do qual todo o corpo, bem ajustado, e ligado ...” Sem o
Senhor Jesus Cristo, não há vida na Igreja. O nosso Senhor mesmo deixou isto
bem claro em Sua parábola da videira e os ramos, registrada no capítulo 15 do
Evangelho Segundo João. A vida está na videira; e flui para os ramos. Cristo é a
vida, e sem esta união, sem este relacionamento orgânico e vital, a Igreja seria
sem vida e inútil. Na teoria isso é óbvio, mas é algo que podemos
esquecer facilmente. E como opinei, a real explicação das condições atuais
da Igreja Cristã, e durante boa parte do século vinte, é que ela não entendeu
isso. _

A Igreja ficou confusa quanto à diferença entre atividade e vida. É uma diferença
vital. É a diferença entre o que é feito por uma máquina e o que um homem faz,
ou a diferença entre uma máquina e uma planta

ou uma flor. O apóstolo Paulo, em Gálatas, capítulo 5, acentua a diferença


contrastando as “obras da carne” com o “fruto do Espírito”. A carne trabalha,
produz “obras” como uma máquina; porém o Espírito produz “fruto”, como uma
árvore. Tudo o que é espiritual é resultado de vida e de crescimento. Esta
distinção entre atividade e vida foi me dada a compreender duramente uma vez
por uma senhora que me contou sobre uma visita que fizera a certa igreja quando
estava na casa de uns parentes. Disse-me ela que a igreja em questão era “cheia
de vida”. Indaguei sobre as manifestações dessa vida, e ela respondeu dizendo
que havia algum tipo de atividade na igreja quase todas as noites da semana.
Indaguei mais, sobre a natureza dessas atividades, e descobri que elas consistiam
de produções teatrais, concertos, reuniões de sociabilidade, esportes e
entretenimento de várias espécies. Obviamente a senhora estava confundindo
atividades com a manifestação de vida espiritual. Uma igreja com
aquelas atividades não era uma igreja viva; uma igreja morta pode estar
repleta de obras e atividades.

Esta diferença essencial pode ser ilustrada por algo que sucedeu no início da
década de 1920. Naquele tempo liamos nos jornais informes sobre dois homens,
o Sr. Howard Carter e o Lorde Carnarvon, que por meses estiveram escavando e
fazendo pesquisas nos túmulos do Egito. Finalmente descobriram uma espécie
de esquife que parecia estar em quase perfeito estado de conservação, e logo se
deram conta de que era de um antigo rei egípcio chamado Tutancâmon.
Abriram-no e, para seu espanto, viram o corpo daquele rei, que morrera fazia
milhares de anos, perfeitamente preservado. Apesar de morto durante tanto
tempo, o corpo não mostrava nenhum sinal de decomposição. A
explicação desse fenômeno é que os egípcios empregavam um sistema
de embalsamamento pelo qual, quando uma pessoa morria, tratavam o corpo
com vários elementos químicos. Isto, juntamente com a natureza da atmosfera
do Egito, garantia a preservação de um corpo quase indefinidamente, sem
quaisquer sinais de decadência ou decomposição. Encontraram o corpo de
Tutancâmon perfeitamente conservado; mas também estava perfeitamente
morto! Não havia sinais evidentes de decadência ou decomposição, todavia se
lhe fizessem uma pergunta, ele não poderia responder. Seu corpo era totalmente
incapaz de manifestar vida, poder e atividade, embora perfeitamente conservado.

Sinto que a Igreja Cristã em geral tem estado simplesmente preservando uma
instituição durante os últimos cinqüenta anos. A ênfase tem sido às aparências
externas e às finanças. Vejo que os débitos das igrejas e capelas estão mais
baixos que nunca, porém, que dizer da condição espiritual? As finanças estão
bem, apesar de ser menor o

número dos freqüentadores. Toda a abordagem tem sido errônea. Desde cerca de
meados do século passado, o pensamento das igrejas foi dominado pela idéia
institucional. A idéia dominante tem sido a de encontrar meios para segurar os
jovens que não gostam de sermões, mas gostam de teatro, de entretenimento e de
jogos. Assim se introduzia a igreja institucional, e por um tempo parecia
funcionar; no entanto só por um curto período. Tudo isso por não se entender a
doutrina da Igreja Cristã! Não se pode manter a Igreja, o corpo de Cristo, por
tais meios e métodos. Cristo é a vida da Igreja, e, se não houver relação
vital com Ele, não haverá vida, e a Igreja estará morta.

E essencial que sejamos claros sobre a crucial importância da vida espiritual.


Mas a Igreja não está falando em vida, está interessada em números, e está
convencida de que, se tão-somente pudéssemos livrarmos das barreiras e
divisões e torná-la uma, o mundo nos daria ouvidos e coisas maravilhosas
aconteceriam. Isso, porém, não é pensamento espiritual. Acreditar que o número
ou o tamanho da igreja é o que conta, é uma contradição de todo o ensino da
Bíblia. No Velho Testamento vemos uma doutrina que parece ir do começo ao
fim - a doutrina do remanescente. Deus age repentinamente através de
um remanescente, às vezes através de um só homem. Como nos
tornamos mundanos em nosso modo de pensar, quão mecânicos! O Senhor
Jesus Cristo deixou algreja nas mãos de doze homens, apenas uma mancheia. de
nulidades. Parece que nos esquecemos disso! E quando lemos a história da Igreja
desde o fim do cânon do Novo Testamento, vemos precisamente a mesma coisa.
A gente pensa em “Athanasius contra mundum” - como um único homem se pôs
contra o mundo inteiro em prol da doutrina, e prevaleceu! A explicação é que o
poder de Cristo estava nele; ele estava ligado e unido à Cabeça. Martinho
Lutero também se levantou sozinho, depois de todos os séculos de inanição, e de
catolicismo e, apesar de todo o poder material de Roma, ele prevaleceu, porque o
poder da Cabeça estava nele.

O que importa na Igreja não é o número, e sim a nossa relação com Cristo, e a
pureza da nossa doutrina, e a pureza da nossa vida e do nosso modo de viver. O
que importa é que a seiva esteja fluindo da Videira para os ramos. Portanto, não
devemos estar preocupados primariamente com o tamanho de uma denominação
particular, ou com o que se pode fazer para transformar todas as denominações
numa só Igreja, e então esperar que aconteçam coisas grandiosas. Isso é
enfrentar o problema de maneira totalmente antibíblica. A primeira pergunta
deve ser: estamos cheios da vida da Videira? Enquanto isto não for verdade a
nosso respeito, o que quer que façamos não levará a nada. Disse o Senhor: “Sem
mim, nada podeis fazer” (João 15:5). Quando será que

as igrejas vão compreender a verdade? Quando perceberão que, sem a atividade


de Cristo, todas as nossas atividades não levarão a nada? A vida é a única coisa
que importa; e a vida está nEle. Portanto, o nosso primeiro interesse deve ser o
de saber que estamos vitalmente ligados a Ele e que as faixas, os canais de
suprimento, estão abertos, e que o Seu poder, a Sua força, a Sua vida e a
sustentação que nos dá estão fluindo para dentro de nós.

Isso, por sua vez, leva-nos a outro princípio, que se deduz por lógica simples e
direta. É que é a Cabeça que age. O corpo não age; é a Cabeça que age.
Naturalmente, a Cabeça age por um meio do corpo, mas, não obstante, é a
Cabeça que age. E Ele quem decide e determina quando agir e como agir. O
nosso interesse deve ser que sejamos usáveis ao Seu comando. Ele é o
originador, a ação é dEle, e nós somos apenas os veículos ou os canais através
dos quais a Sua atividade passa. Quando examino a história da Igreja dos últimos
cinqüenta ou cem anos, o que vejo sobressair descaradamente é uma completa
incapacidade de recordar-se deste princípio. Vejo muita atividade febril; contudo,
é a atividade dos membros, não a atividade da Cabeça.

A falácia envolvida nisto deve ser demonstrada por uma ilustração. O que o meu
corpo é para mim, a Igreja é para o Senhor ressurreto. Que é que eu peço do meu
corpo? Que é que eu espero que as minhas mãos e os meus dedos façam? Qual é
a função de todos os membros do meu corpo? Seria agir em meu lugar? Seria
agir por sua própria conta e independentemente? Claro que não! O dever do meu
corpo é simplesmente estar à minha disposição. Eu decido fazer algo, inicio
um movimento e ajo através do corpo, através dos seus membros. Não cabe aos
membros do meu corpo fazer coisas sem mim ou em meu lugar. De fato, se os
braços ou as partes ou os membros do corpo de um homem começam a agir
independentemente dele, é porque ele está em más condições de saúde, está
sofrendo convulsões. Nessas condições, os braços do homem se movem
desordenadamente, e talvez aconteça o mesmo com as suas pernas e com a sua
cabeça; mas ele não quer que eles façam isso. Eles estão agindo por conta
própria, à revelia dele. As ações não são voluntárias, são involuntárias. A soma
de energia despendida pelo pobre sofredor é tremenda; entretanto não há sentido
nisso, não atende a nenhum propósito; é puro desperdício de energia. O homem
que sofre um ataque de convulsões é tremendamente ativo, o dispêndio de
energia é espantoso; todavia não tem valor nenhum; é doença, é completamente
inútil.

Pois bem, a Igreja é o corpo de Cristo; assim, as perguntas que devemos fazer
são: qual é a natureza e qual o caráter das nossas

atividades? Qual o seu valor espiritual? Levam a resultados espirituais? O fato


de que uma igreja é muito ativa não prova necessariamente que o que ela faz é
bom; pode ser totalmente errado. Uma igreja pode estar vivendo por suas
próprias forças, fazendo coisas por sua própria iniciativa e ignorando
deliberadamente a Cabeça, e recusando-se a ser subserviente a Ele. Não seria
tempo de começarmos a fazer essas perguntas? Suponho que há um sentido em
que a Igreja Cristã nunca foi tão ativa como nos cem anos recém-passados. Estou
deveras convencido de que se os pais protestantes e os puritanos pudessem voltar
e observar a Igreja moderna, durante uma semana ou duas eles pensariam que
eles mesmos não tinham feito absolutamente nada. Eles não tinham sociedades
de homens, sociedades de mulheres, divisões por idade, organizações, clubes,
ligas e distintivos. Não tinham nada disso; e por isso eles podiam muito bem
pensar, a princípio, que não tinham feito nada. Tudo depende de como avaliamos
as atividades. A maneira correta de fazê-lo não é medir apenas o dispêndio de
energia, mas, antes, julgar o trabalho pelos resultados a que leva - o
produto. Não estaríamos a enganar-nos com as nossas organizações e com
as nossas atividades? Que foi que aconteceu com a Igreja? Essa é a questão vital.

E neste ponto que surge a questão quanto à diferença entre uma campanha
evangelística e um avivamento. O pensamento que leva a uma campanha
evangelística funciona da seguinte maneira: os homens começam a dar-se conta
de que a Igreja está estagnada e que pouca coisa acontece. Assim, eles se reúnem
para estudar a situação e se decidem a ter uma campanha evangelística.
Escolhem um evangelista (ou às vezes resolvem aceitar o oferecimento dos
serviços de um evangelista!) e começam a organizar uma campanha. Fixam
grandes cartazes nas paredes externas das igrejas, fazem propaganda
pela imprensa, usam outros meios de publicidade, e talvez consigam que
o prefeito compareça à reunião de abertura. O motivo é puro, e visa a chamar a
atenção do mundo para a Igreja e “fazer o povo entrar”. Resolvem fazer isso
para tratar das condições da igreja local.

Mas há outra maneira de abordar o problema. E que a igreja deve reunir-se para
estudar a situação e para fazer a pergunta vital: por que estamos nesta situação?
A primeira pergunta nunca deve ser: que faremos? Deve ser: por que as coisas
estão como estão? Por que as igrejas estão vazias; por que a Igreja não é levada
em conta nesta região? Por que a situação é tão diferente do que era? Estas são
as primeiras perguntas que se deve fazer; e elas levam a uma
abordagem totalmente diversa, Elas levam a algumas outras questões vitais,
como por exemplo: a nossa doutrina é certa? Eu não tenho dúvida de que as

igrejas estão vazias era grande parte porque, durante os últimos cem anos,
muitos púlpitos vêm negando a fé cristã. Uma nova abordagem da Bíblia,
denominada “Alta Crítica”, começou a solapar a sua autoridade e levou a um
ensino que dizia que Cristo era apenas homem, e que dava ênfase ao “Jesus da
História”, não ao Cristo da fé. Ao mesmo tempo, a “Alta Crítica” negava a
Pessoa do Espírito Santo, o caráter substitutivo da expiação e os elementos
sobrenaturais e miraculosos do cristianismo. Isto levou à ausência de oração e
à mudança para as ênfases morais, éticas, políticas e sociais. A cultura e a
especialização acadêmica tomaram o lugar da revelação. Perdeu-se o contato
com a Cabeça, os canais da vida espiritual ficaram bloqueados. Esta abordagem
inteiramente diversa faz-nos compreender que a Igreja, como ela é, não está em
condições de ser anunciada ao mundo. A nossa primeira tarefa é examinar-nos a
nós mesmos; o nosso primeiro dever é assegurar-nos de que a vida da Cabeça
está fluindo através de nós. Isto nos fará cair de joelhos, arrepender-nos
e confessar os nossos pecados, e reconhecer, envergonhados, as
nossas transgressões, e então clamar por misericórdia e compaixão.
Então rogaremos ao Senhor que envie sobre nós o Seu Espírito com grande e
vivificante poder.

Essa última maneira de abordar o problema é a que foi adotada pela verdadeira
Igreja através dos séculos. De maneira geral, a história da Igreja em seus
períodos mais gloriosos, até meados do século passado, é a história dos
avivamentos. Mas, desde meados do séculos passado não tem sido esse o caso; e
a história é de campanhas evangelísticas. Este é apenas um puro e simples fato
da história. Quantas vezes vocês ouviram falar de avivamento? Quantas vezes
vocês oram por aviva-mento? Em vez de orar e esperar de Deus e de rogar Sua
bênção, instalamos nossos comitês, temos almoços e depois traçamos os nossos
planos de ação. Havendo feito isso, pedimos a Deus que abençoe as nossas
propostas e os nossos esforços. Apareceu uma expressão horrível, “apoio da
oração”, como se a oração fosse algo que “dá apoio” ao que decidimos. Ao invés
de começarmos com a oração e então descobrirmos a vontade de Deus, e de nos
colocarmos à Sua disposição e de esperarmos nEle, decidimos e agimos.
Contudo, quem decide e age é a Cabeça.

É hora de examinar os resultados dos dois métodos diferentes. Os que confiam


era campanhas evangelísticas conseguirão conversões individuais, mas qual é o
quadro geral? Apesar de todas as campanhas evangelísticas e das conversões
individuais, a Igreja como um todo continua a declinar, ao passo que, como se vê
na história dos grandes avivamentos da Igreja através dos séculos, acontece mais
num dia de
avivamento do que geralmente acontece em cinqüenta anos de nossas atividades
e esforços. A Igreja toda recebe nova vida e começa um novo período de vitória
e progresso, Essa é a nossa necessidade hoje. Avivamentos significa estar
firmemente ligado à Cabeça, Cristo, recebendo dEle a Sua atividade e
colocando-nos com alegria à Sua disposição.

Chegamos agora ao princípio final, que é, que o chamamento do Novo


Testamento dirigido a nós primariamente, não é para fazermos algo, e sim, para
sermos algo. A única coisa absolutamente necessária é que sejamos usáveis. O
principal obstáculo à operação de Cristo é que não somos usáveis como
devíamos. As vidas de todos os homens que foram usados por Deus de maneira a
mais poderosa e memorável, revelam todas a mesma verdade admirável. O seu
primeiro conflito intenso foi sempre o conflito consigo mesmos e com as suas
habilidades e capacidades pessoais. Chegou um ponto em que eles dobraram os
joelhos, percebendo que não tinham poder nenhum. Então se sujeitaram
completamente ao seu Senhor e foram cheios do poder do Seu Santo Espírito.
Vocês verão isto na vida de Whitefield, na vida dos irmãos Wesley, em Jonathan
Edwards, em Howell Harris e Daniel Rowland em Gales, e em muitos outros, em
muitas terras e em muitos séculos. Eles se deram conta da sua completa e
absoluta dependência do Senhor Jesus Cristo e da veracidade das Suas palavras:
“Sem mim, nada podeis fazer”. Então foram “batizados com o Espírito e
com poder” (Cf. Atos 10:38); saíram como homens transformados e fizeram
coisas surpreendentes e grandiosas. O que eles foram capacitados a fazer não foi
temporário, mas permanente. Suas obras deixaram sua marca na história da
Igreja porque eles foram usados para avivar a Igreja toda e para edificar o povo
de Deus. Primariamente é para Deus agir, não para nós. A primeira pergunta não
deve ser: que posso fazer a seguir? Antes, deve ser: que é que eu sou? Eu estou
sendo cheio, segundo a medida da minha capacidade, com esta energia
divina que vem da Cabeça, o Senhor Jesus Cristo, através do Espírito
Santo? Cada um de nós, em particular, deveria fazer essa pergunta e pedir
que seja cheio com esta energia divina; e peçamos isto não somente para nós
mesmos; roguemos isto para toda a Igreja.

Eu os exorto, em nome de Deus, a que orem pedindo avivamento. Que não orem
simplesmente pedindo que Deus abençoe algum empreendimento em que vocês
estejam envolvidos; que não orem somente pelos missionários que trabalham
noutras terras; orem também por avivamento neste país. Oremos rogando que
haja avivamento da Igreja em toda a parte, no mundo todo. Oremos no sentido
de que toda a Igreja
seja ligada vitalmente a Ele, a Cabeça, de modo que a Sua vida e o Seu poder
venham sobre nós e para dentro de nós, e aja através de nós, para que a Igreja
receba nova vida e para que os pecadores que se acham fora dela sejam
convertidos. Cristo é a Cabeça. Ele disse: “Eu sou a videira, vós as varas”.
Certifiquemo-nos de que estamos crescendo “em tudo naquele que é a Cabeça,
Cristo”.

A UNIDADE CRISTA

Este volume é o quarto da série de oito da exposição sistemática da Epístola aos


Efésios, feita aos domingos de manhã por Dr. Lloyd-Jones na Capela de
Westminster, Londres, entre 1954 e 1962.

Neste livro o Dr. Lloyd-Jones salienta que todos nós temos a tendência de ser
criaturas preconceituosas e, portanto, convém que nos examinemos em relação a
esta passagem crucial (4:1-16). Os defensores do movimento ecumênico fazem
declarações gerais e vagas - muitas vezes sentimentais - sobre o amor, à custa da
verdade.

A maior tragédia do mundo hoje não é, como freqüentemente se afirma, uma


Igreja dividida,e sim o fato de que a maioria coloca a unidade acima da
verdade. Realmente, na prática, muitos são dirigidos por suas tradições e não
pelas Escrituras.

PUBLICAÇÕES EVANGÉLICAS SELECIONADAS

Rua 24 de Maio, 116 - 3Q andar - salas 14-17 -01041-000-São Paulo-SP

AS TREVAS E A LUZ
Exposição sobre Efésios 4:17 a 5:17

D. M. LLOYD-JONES

PUBLICAÇÕES EVANGÉLICAS SELECIONADAS

Caixa Postal 1287 01059-970 - São Paulo -SP

Título original:
Darkness and Light

Editora:

The Banner of Truth Trust

Primeira edição em inglês:

1982

Copyright:

Lady E. Catherwood

Tradução do inglês:

Odayr Olivetti

Revisão:

Antonio Poccinelli Capa:

Ailton Oliveira Lopes

Primeira edição em português:

1995

Impressão:

Imprensa da Fé

ÍNDICE

PREFÁCIO

Não há nenhuma razão particular para a ordem em que têm sido publicados os
oito volumes que reúnem os sermões do Dr. Lloyd--Jones sobre Efésios. Foi
porque eles não apareceram na seqüência cronológica que a única porção que
restava para completar-se por ocasião da morte do autor, em primeiro de março
de 1981, foi Efésios 4:17-5:17. O presente volume cobre agora a lacuna e, assim,
conclui 1 uma série que já foi extraordinariamente usada por Deus em todo
o mundo. A opinião, outrora ouvida, segundo a qual os que maior atração
sentiriam pelos sermões do Dr. Lloyd-Jones eram os que se beneficiavam
diretamente do seu ministério, foi refutada há muito tempo. Embora seja grande
o número dos que desfrutaram do seu inesquecível ministério, muito maior é o
número dos que já foram beneficiados por suas obras publicadas. E muitos mais,
cremos nós, ainda virão a estar sob a sua influência.

O Dr. Lloyd-Jones foi pregador, de ponta a ponta. Dos seus sermões sobre
Efésios, pregados entre 1954 e 1962, nenhum foi escrito, exceto na forma de
esboço esquemático. Por conseguinte, a sua publicação só foi possível porque
havia gravação completa deles em fita. Dessas fitas, transcritas pela Sra. E.
Burney, o Dr. Lloyd- Jones preparou a exposição de Efésios para publicação, e a
esse labor, conquanto auxiliado por sua esposa e pelo Sr. S. M. Houghton,
ele dedicou muito tempo. Foi um trabalho mais árduo, disse ele muitas vezes,
que a própria pregação!

No caso do presente volume, o Dr. Lloyd-Jones não pôde empreender nenhuma


supervisão do preparo da sua publicação antes da sua morte. Felizmente, os
princípios editoriais sobre os quais ele trabalha-

va, estavam claramente firmados nos volumes anteriores, e os seus auxiliares, já


mencionados - com o auxílio adicional de Lady Catherwood, filha mais velha do
autor - seguiram-nos fiel e rigorosamente. Não se pouparam esforços para que a
forma final deste volume seja como ele gostaria que fosse.

Em 1937, quando o Dr. Campbell Morgan estava na última parte do seu


ministério na Capela de Westminster, ele falou da sua confiança em que, quando
os obreiros de Deus têm que renunciar ao seu trabalho, Deus está ali, e o Seu
escolhido sucessor está a caminho. Ele não sabia então que dentro de doze meses
o Dr. Lloyd-Jones haveria de juntar-se a ele.

Agora, passados mais de quarenta anos, certamente este livro servirá também
como parte da ininterrupta obra de Deus.

Em 1955 o Dr. Wilbur M. Smith, depois de visitar a Inglaterra, escreveria


extensamente no Moody Monthly (Mensário de Moody) sobre o que tinha ouvido
na Capela de Westminster, mencionando particularmente a série do Dr. Lloyd-
Jones sobre Efésios, que chegara então apenas ao sermão trinta e oito. Smith
concluiu: “Eu gostaria que todos os ministros da Palavra de Deus na América
pudessem ter ouvido os sermões que ouvi deste ungido servo do Senhor neste
verão. Minha linguagem é completamente inadequada para comunicar
a experiência de sentar-me aos pés de uma tão ungida proclamação das verdades
eternas da nossa santíssima fé”.

Este volume, juntamente com todos os demais da série, com a bênção de Deus,
dará ao leitor uma idéia daquilo que o Dr. Wilbur Smith quis dizer. Oxalá ajude
também a promover aquela pregação em todas as nações!

O autor destas páginas já entrou no gozo do seu Senhor. A nós, que continuamos
no presente cenário de peregrinação e serviço, resta lembrar os que nos falaram a
Palavra de Deus, “a fé dos quais imitai . . . Jesus Cristo é o mesmo ontem, e
hoje, e eternamente” (Hebreus 13:8).

Iain H. Murray 28 de dezembro de 1981

AS TREVAS E A LUZ

Efésios 4:17 a 5:17

17 E digo isto, e testifico no Senhor, para que não andeis mais como andam
também os outros gentios, na vaidade do seu sentido.

18 Entenebrecidos no entendimento, separados da vida de Deus


pela ignorância que há neles, pela dureza do seu coração;

19 Os quais, havendo perdido todo o sentimento, se entregaram à dissolução,


para com avidez cometerem toda a impureza.

20 Mas vós não aprendestes assim a Cristo,

21 Se é que o tendes ouvido, e nele fostes ensinados, como está a verdade em


Jesus;

22 Que, quando ao trato passado, vos despojeis do velho homem, que se


corrompe pelas concupiscências do engano:

23 E vos renoveis no espírito de vosso sentido;


24 E vos revistais do novo homem, que segundo Deus é criado em verdadeira
justiça e santidade.

25 Pelo que deixai a mentira, e falai a verdade cada um com o seu próximo;
porque somos membros uns dos outros.

26 Irai-vos, e não pequeis; não se ponha o sol sobre a vossa ira.

27 Não deis lugar ao diabo.

28 Aquele que furtava, não furte mais; antes trabalhe, fazendo com as mãos o
que é bom, para que tenha que repartir com o que tiver necessidade.

29 Não saia da vossa boca nenhuma palavra torpe, mas só a que for boa para
promover a edificação, para que dê graça aos que a ouvem.

30 E não entristeçais o Espírito Santo de Deus, no qual estais selados para o


dia da redenção.

31 Toda a amargura, e ira, e cólera, e gritaria, e blasfêmias e toda a malícia seja


tirada de entre vós.

32 Antes sede uns para com os outros benignos, misercordiosos, perdoando-


vos uns aos outros, como também Deus vos perdoou em Cristo.

1 Sede, pois, imitadores de Deus, como filhos amados;

2 E andai em amor, como também Cristo vos amou, e se entregou a si mesmo


por nós, em oferta e sacrifício a Deus, em cheiro suave.

3 Mas a prostituição, e toda a impureza ou avareza, nem ainda se nomeie entre


vós, como convém a santos;

4 Nem torpezas, nem parvoíces, nem chocarrices, que não convêm; mas antes
ações de graças.

5 Porque bem sabeis isto: que nenhum fornicário, ou impuro, ou avarento, o


qual é idólatra, tem herança no reino de Cristo e de Deus.

6 Ninguém vos engane com palavras vãs; porque por estas coisas vem a ira de
Deus sobre os filhos da desobediência.

7 Portanto, não sejais seus companeiros.

8 Porque noutro tempo éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor; andai como
filhos da luz

9 (Porque o fruto do Espírito está em toda a bondade, e justiça e verdade);

10 Aprovando o que é agradável ao Senhor.

11 E não comuniqueis com as obras infrutuosas das trevas, mas


antes condenai-as.

12 Porque o que eles fazem em oculto até dizê-lo é torpe.

13 Mas todas estas coisas se manifestam, sendo condenadas, pela luz, porque a
luz tudo manifesta.

14 Pelo que diz: Desperta, tu que dormes, e levanta-te dentre os mortos, e


Cristo te esclarecerá.

15 Portanto, vede prudentemente como andais, não como néscios, mas como
sábios,

16 Remindo o tempo; porquanto os dias são maus.

17 Pelo que não sejais insensatos, mas entendei qual seja a vontade do Senhor.

A PRÁTICA ARRAIGADA NA DOUTRINA

“E digo isto, e testifico no Senhor, para que não andeis mais como andam
também os outros gentios, na vaidade do seu sentido. ”

-Efésios 4:17

Chegamos aqui a uma nova divisão de Efésios, e alcançamos uma junção muito
importante, porque esta é de fato a última grande divisão da Epístola. Paulo
comeca no versículo 17 o que continuará como uma seção até ao fim da sua
carta. E, portanto, um ponto decisivo, sumamente importante, e isso torna
necessário que entendamos exatamente o que ele vai fazer e por quê. E, pois,
importante, nesta conjuntura particular, que vejamos com clareza as conexões,
e que tenhamos em nossas mentes uma visão geral, uma espécie de sinopse da
Epístola como um todo.

O apóstolo tinha firmado a sua grande doutrina nos três primeiros capítulos, e
depois, tendo feito isso, prossegue com o seu apelo e exortação á nos, para que
nos demos conta de que somos membros do corpo de Cristo, e de que, portanto,
o nosso primeiro interesse e consideração deve ser esforçar-nos para manter a
unidade do Espírito pelo vínculo da paz em todas as ocasiões. Ele nos ajudara a
fazê-lo lembrando-nos de novo a doutrina da natureza da Igreja; e em particular
nos indicara como o próprio Senhor Jesus Cristo, a Cabeça da Igreja, quando
subiu ao alto, estabeleceu ofícios na Igreja e pessoas para desempenhá-los, e Ele
o fizera com o fim de que fôssemos instruídos, conduzidos e exortados quanto a
preservarmos sempre em nossas mentes essa grande meta (Efésios 4:8,11). Não
fomos salvos meramente para escapar do inferno; fomos salvos para que
Deus apresentasse um povo que causaria espanto ao mundo. Vocês recordam o
que ele disse no versículo dez do capítulo três: “Para que agora, pela igreja, a
multiforme sabedoria de Deus seja conhecida dos principados e potestades nos
céus”. Assim é que cada vez mais devemos pensar em nós mesmos, não de
maneira atomística ou individualista, mas, antes, como partes da Igreja, como
membros do corpo de Cristo, e a nossa suprema ambição deve sempre ser a de

crescermos nEle, a Cabeça, em todas as coisas, para que juntos cheguemos a


varão perfeito, à medida da estatura da plenitude de Cristo.^

E isso, então, que o apóstolo estivera dizendo, e assinalara que, em vista da


provisão já feita - não somente pela instrução dada por meio dos pastores e
mestres, e sim também por esta vida que flui da Cabeça, por meio dos canais e
vias de comunicação, a cada parte segundo a sua medida e a sua capacidade -
ficaremos absolutamente sem nenhuma desculpa, se falharmos.

No versículo dezessete do capítulo 4, a que passamos a dar atenção agora, Paulo


passa ao desenvolvimento de todo o seu ensino prévio. De novo começa com a
palavra “portanto” (VA; ARA) - “Isto, portanto, digo”, à luz de tudo aquilo que
já passou. E a questão, à luz de tudo o que se passou, é: como vamos crescer em
Cristo em todas as coisas? Como vamos chegar a esse varão perfeito? Como
vamos manter a unidade do Espírito pelo vínculo da paz? A partir deste versículo
até o fim da Epístola, Paulo dá-nos a sua resposta, e isso de maneira prática e
minuciosa. Portanto, parece-me que seria algo bom e útil se, neste ponto, eu
fizesse uma análise geral do restante da Epístola, para que pudéssemos divisar o
esquema; e depois voltaríamos às diversas partes componentes, desenvolvendo-
as. Este é sempre um excelente modo de proceder com as Escrituras. Diga-se
de passagem, é um excelente modo de proceder com qualquer problema que nos
confronte, seja qual for. Médicos e clínicos e outros que se preparam para a
profissão médica lhes dirão - pelo menos costumava ser assim quando a
medicina era, talvez, mais clínica e menos científica, em certo sentido, do que é
agora, e menos dependente de acessórios e recursos mecânicos - que os médicos,
os clínicos de antanho, sempre ensinavam que a primeira coisa que um médico
deve fazer com um paciente é examiná-lo como um todo; não deve apressar-se à
queixa particular, porém deve procurar ter uma visão geral e, enquanto não tiver
feito isso, não deve ir para o particular. Dá-se o mesmo com um problema de
matemática, por exemplo, ou de química. Se você está tentando descobrir, pela
análise de uma substância específica, que elementos químicos particulares há na
massa que se lhe apresenta, primeiro você aplica os seus testes gerais, pela
exclusão de certos grandes grupos antes de passar à análise particular dentro
dos grupos. E é exatamente a mesma coisa com relação às Escrituras. Opino,
pois, que será bom e sábio que, nesta altura, tenhamos uma visão geral do
restante desta Epístola.

Aqui está, parece-me, a divisão. Neste capítulo quatro, do versículo 17 ao 24,


Paulo nos diz que devemos compreender que somos criaturas inteiramente novas
em Cristo. Passando para questões de conduta e comportamento prático, ele
começa dizendo: “Isto, portanto, digo, e testifico no Senhor, para que não andeis
mais como andam também os outros gentios”; “mas antes”, como ele diz
mais tarde, “que vos despojeis do velho homem e vos revistais do novo homem”.
Noutras palavras, como cristãos devemos compreender que em Cristo somos
criaturas inteiramente novas. Tendo dito isso, nos versículos 25 a 29 ele assinala
a óbvia implicação disso na prática, empregando ilustrações práticas. Note-se a
lógica com que o faz: ele diz, “Portanto” - para ligar a sua prática, então, à luz da
doutrina -“Pelo que”. Se vocês não se deram conta da importância
dosportantos epelos ques nos escritos do apóstolo Paulo, não o conhecem, de
modo nenhum - “pelo que deixai a mentira” - tendo-se despido do velho homem
e revestido do novo, você pôe de lado a mentira - “e falai a verdade cada um
com o seu próximo; irai-vos, e não pequeis; não se ponha o sol sobre a vossa
ira”, e assim por diante. Portanto, o padrão é, doutrina primeiro, seguida de
implicações óbvias e práticas, elaboradas em detalhe. Depois, no versículo 30,
Paulo retorna à doutrina. “Não entristeçais o Espírito Santo de Deus, no * qual
estais selados para o dia da redenção”! Noutras palavras, sempre devemos
lembrarmos de que o Espírito Santo habita em nós. O apostolo está falando sobre
a conduta prática, diária, e começou firmando como seu primeiro lembrete o fato
de que somos inteiramente novos; o segundo segue-se rapidamente. “Nunca se
esqueçam”, diz ele, “de que o Espírito Santo de Deus habita em vocês”
(versículo 30), “e por causa disso” (versículos 31 -32) é óbvio, diz ele, que
devemos evitar toda e qualquer coisa que entristeça o Espírito Santo que está em
nós. Portanto, “toda a amargura, e ira, e cólera, e gritaria, e blasfêmia e toda a
malícia sejam tiradas de entre vós”, e “sede uns para com os outros
benignos, misericordiosos, perdoando-vos uns aos outros”. Por quê? Porque,
se vocês não procederem assim, estarão entristecendo o Espírito Santo.

Chegamos então ao capítulo 5, versículos 1 e 2. Nunca se esqueça, diz Paulo,


que Cristo morreu para fazer de vocês filhos de Deus. Vocês são filhos amados
de Deus, porque “Cristo vos amou, e se entregou a si mesmo por nós, em oferta
e sacrifício a Deus, em cheiro suave”. Doutrina outra vez! E por causa dessa
doutrina, eu e vocês devemos viver de tal modo que estejamos constantemente
’ (VA: “pelo qual”)

manifestando a sua verdade. Assim ele volta a dar as suas ilustrações práticas:
“Mas a prostituição, e toda a impureza ou avareza, nem ainda se nomeie entre
vós, como convém a santos”! Cristo morreu para fazer-nos santos. Tanto nos
amou que morreu por nós com o fim de apresentar-nos a Deus como santos.
Portanto, livrem-se destas coisas feias. “Nem torpezas, nem parvoíces, nem
chocarrices, que não convêm; mas antes ações de graças.” Isso, diz Paulo, segue-
se necessariamente dessa doutrina. No entanto ele o desenvolve para nós com
minúcias práticas. Nos versículos 6 a 17 do capítulo 5 o apóstolo faz algo
interessante. Ele estivera firmando doutrina, elaborando as implicações práticas.
Agora ele acha que deve fazer uma pausa por um momento, por assim dizer, e da
a conhecer os pontos que defende. Deu-se conta de que lhe era necessário fazer
isso por causa de certos falsos mestres que estavam visitando as igrejas -
antinomianos, como os nicolaítas de que fala o livro de Apocalipse, homens que
tinham entendido de maneira completamente errada o evangelho e
que virtualmente ensinavam: façamos o mal para que nos venha o bem; homens
que estavam transformando a graça de Deus numa espécie de escusa para a
pessoa fazer o que quiser e pecar como quiser. Por isso o apóstolo diz:
“Ninguém vos engane com palavras vãs”, e tanto se greocupa com isso, e tão
alarmado fica quanto ao futuro da igreja de Efeso, que dedica a isso considerável
espaço (versículos 6-17). Ele adverte os efésios de todos os falsos e especiosos
argumentos que visavam impedir-lhes a prática da vida cristã, ereforça a sua
advertência com outra declaração positiva da verdade concernente aos
cristãos em Cristo. Depois torna a voltar às praticabilidades - isso foi
uma espécie de digressão, esclarecendo, rebitando, por assim dizer, certificando;
ele sempre faz isso.

Nos versículos 18-21 o apóstolo firma outro grande princípio de doutrina, a


saber, que sempre devemos lembrar a nós mesmos que as nossas vidas devem ser
vividas no Espírito e plenamente sob o domínio do Espírito. “E não vos
embriagueis com vinho, em que há contenda, mas enchei-vos do Espírito;
falando entre vós em salmos, e hinos e cânticos espirituais; cantado e
salmodiando ao Senhor no vosso coração; dando sempre graças por tudo a nosso
Deus e Pai, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo.” A vida do cristão é para ser
uma vida inteiramente sobe o domínio do Espírito, cheia do Espírito, dirigida,
dominada pelo Espírito. Isso, é claro, é doutrina. Depois, do versículo 22 ao
versículo 9 do capítulo 6, ele a aplica. Tendo firmado esta verdade, que o cristão
é alguém que vive a sua vida no Espírito e cheia do Espírito, ele então mostra
que, obviamente, isso também é

algo que deve ser posto em ação na prática; é algo que deve governar todas as
nossas relações. Assim, ele passa a considerar as relações entre mulheres e
maridos, e maridos e mulheres; filhos e pais, e pais e filhos; servos e senhores, e
senhores e servos. Notem como em cada caso, em todas essas subdivisões, ele
tem a doutrina apropriada; ele seleciona o aspecto particularmente relevante da
doutrina geral. E assim, quando ele está tratando da vida no Espírito, o que traz
para exame são estas relações humanas pessoais - marido, esposa; filhos, pais;
senhores, servos.

Na seção final da Epístola, do versículo 10 ao versículo 20 do capítulo 6, Paulo


diz efetivamente: aí está o programa, essa é a classe de vida que vocês têm que
viver. Vocês acham que é fácil? Seja o que for que vocês pensem, continua ele,
não é fácil. Vocês precisam de um poder infinitamente maior que o de vocês. Há
um adversário poderoso: “Não temos que lutar contra a carne e o sangue, mas,
sim, contra os principados, contra as potestades, contra os príncipes das
trevas deste século, contra os hostes espirituais da maldade, nos
lugares celestiais”. Há um poderoso antagonista que fará tudo o que puder para
manter-nos fora deste programa. Por quê? Para ridicularizar a obra de Deus e a
graça do Senhor Jesus Cristo. Se satanás puder fazer algum cristão, ou até
mesmo a Igreja toda cair em pecado, como ficará contente! Assim ele atacará
vocês, diz Paulo, em todos os pontos particulares; e se vocês não se dão conta
disso, já estão derrotados. Há somente um meio pelo qual agir: “Revesti-vos de
toda a armadura de Deus”. Deus, diz o apóstolo, fez provisão; Deus não nos
chama para cumprirmos um programa e depois nos deixa entregues a nós
mesmos. Nada disso! Ele já nos supriu perfeita epormenorizadamente.
Assim vemos no capítulo 6, do versículo 10 ao versículo 20, uma descrição da
provisão feita por Deus para o cristão neste combate da fé - toda a armadura de
Deus! E havendo dito isso, Paulo conclui, como é seu costume, com saudações
pessoais e palavras de recomendação.

Aí está, pois, a análise da seção final desta maravilhosa Epístola aos Efésios.
Vemos que a Epístola pode ser dividida em três seções: primeira, capítulos 1, 2 e
3, onde Paulo firma a grande doutrina da salvação; depois, em seguida, no
capítulo 4, versículos 1 a 16, vemos a doutrina da Igreja e de tudo o que nos
introduz na Igreja; seguindo-se a isso, na terceira seção, temos a expressão
prática das doutrinas em nossas vidas, conduta e experiência diárias, e em todos
os contatos da vida. Que maravilhoso esquema é este, e como o apóstolo
desenvolve em detalhe cada seção de modo que não há lugar para enganos!

Examinemos agora resumidamente o caráter geral desta última seção, porque,


completamente separados do seu ensino pormenoriza-

do, há certos princípios ensinados aqui, que são da maior importância. Erraremos
em nossa aplicação dos detalhes, se não o abordarmos do jeito certo, em termos
dos princípios obviamente implícitos no método geral do apóstolo.

A primeira coisa que, necessariamente, devemos notar é que o apóstolo Paulo


nunca deixa nada ao acaso. Ele é um mestre cuidadoso, e nunca se contenta com
a mera enunciação de princípios. Sempre faz isso primeiro, porém nunca pára aí,
nunca o deixa nisso. Há uma escola de ensino da Bíblia que não faz nenhuma
tentativa de aplicar o ensino. Para mim isso é contradizer as Escrituras. Ninguém
tem direito de dividir esta Palavra de Deus e deixá-la, declarando, digamos:
agora estou fazendo uma preleção, não estou pregando. E falsear o uso da
Palavra de Deus. Esta Palavra é para ser aplicada sempre, e qualquer
entendimento que possamos ter da Bíblia poderá ser uma cilada para nós, se
deixarmos de aplicá-la. O apóstolo nos compele a aplicá-la. E não temos direito
de ver a aplicação simplesmente como um cabeçalho geral e dizer: aí Paulo está
aplicando a sua doutrina, pelo que passemos à Epístola seguinte. Absolutamente
não! Ele pretende que encaremos cada detalhe; ele nos compele a fazê-lo pela
minuciosa aplicação da verdade.

Paulo faz isso, é claro, de sorte que, como eu disse, não há desculpa pelo
fracasso. E isso aplica-se a nós, não somente em geral, mas em particular. Eu e
vocês devemos aplicar detalhadamente o que sabemos. A vida cristã não é mera
filosofia geral; é isso, todavia não se detém nisso! É uma vida para ser vivida, e é
uma vida que deve ser vivida em minúcias particulares. E se a nossa vida cristã
não está sendo vivida em minúcias, estamos negando a própria verdade
que proclamamos crer. Nunca se poderá exagerar na ênfase a isso. Todo o
propósito desta seção é mostrar justamente isso. O nosso Senhor mesmo afirmou
isso uma vez por todas quando disse - o que é para mim uma das palavras mais
terríveis de toda a Bíblia - “Se sabeis estas coisas, bem-aventurados sois se as
fizerdes” (João 13:17). E não nos esqueçamos de que é segundo a medida do que
temos que nos será dado. “Àquele que tem, sedará, e terá em abundância
(Mateus 13:12; 25:29). Lembremo-nos também de que conhecer é uma
tremenda responsabilidade. Tiago faz disso um forte argumento quando diz,
no início do capítulo três da sua carta: “Meus irmãos, muitos de vós não sejam
mestres, sabendo que receberemos mais duro juízo”. Conhecer é uma grande
responsabilidade porque, se conhecemos e não o aplicamos, teremos que
responder por isso. O nosso Senhor de novo ensina isso com toda a clareza,
quando fala sobre o senhor que voltou

e investigou a conduta dos seus servos durante a sua ausência. Diz Ele que
alguns receberão muitos açoites, e alguns receberão poucos. E os servos que
receberão muitos açoites são aqueles a quem muito foi dado! Portanto, digo, eu,
se estivemos entendendo a doutrina desta Epístola e nos alegrando nela, a nossa
responsabilidade é enorme. Cabe-nos aplicar a verdade. “Isto, portanto, digo.” E
notem como ele o reforça, dizendo: “e testifico no Senhor” - chamar o Senhor
como testemunha, é o que ele quer dizer. A verdade é para ser aplicada, e nada
deve ser deixado ao acaso, não devemos parar nas generalidades; a aplicação
deve descer a cada detalhe das nossas vidas.

Neste ponto chegamos a um segundo princípio. A vida da igreja e a vida na


igreja não deve ser um tipo separado de vida. Noutras palavras, tudo o que
fazemos e dizemos faz parte da nossa vida cristã e do nosso viver cristão. As
nossas vidas fora da igreja e dentro da igreja são essencialmente uma só, e
devem ser interrelacionadas, pois uma afeta a outra. Não há nada mais fatal do
que ter uma ruptura ou lacuna ou mudança repentina entre a vida na igreja e a
vida fora da igreja. O homem da rua diz realmente que esta é a razão pela qual
ele hoje está na rua, e não na igreja. Não estou dizendo que isso está certo ou
errado, contudo o que ele afirma é que essa era a situação dos
nossos antepassados vitorianos. Olhem para eles, diz ele, nas igrejas e capelas no
domingo; mas depois olhem para eles fora delas, de segunda a sábado.
Observem a devoção e a reverência e a aparente piedade no domingo; observem-
nos no mercado, na loja, entre os homens, e eis que são homens diferentes. Bem,
se isso era verdade, e se ainda é verdade, a crítica é válida.

Que lástima! A gente às vezes vê essa tendência na Igreja dos dias atuais. Há
homens, que, por assim dizer, de repente têm que readquirir o domínio próprio e
vestir uma espécie de uniforme ou máscara, e subitamente se tornam sérios e
solenes, sendo eles normalmente frívolos. Parecem duas espécies diferentes de
homens: são uma coisa na rua, depois cruzam os umbrais de um edifício
especial, e de repente se tornam sérios e solenes. Esse é o tipo de comportamento
que o apóstolo está denunciando. Devemos ser tão reverentes fora da igreja
como dentro; as nossas vidas não devem ser determinadas por edifícios. A vida
do cristão é uma só, ele é um novo homem! Ele não é alguém que simplesmente
veste um terno diferente quando vem à igreja e logo depois o tira, ou apanha a
religião como uma bolsa e a põe no chão pouco depois. Nada disso! Eleé algo; e
porque é algo, é esse algo não somente na igreja, mas onde quer que esteja - no
mercado, na loja, no negócio, na profissão, no lar, em sua convivência com os

vizinhos da porta ao lado, em toda parte. Claro! A doutrina geral prova que o
Espírito está neste novo homem em Cristo Jesus. O Espírito não está no homem
somente quando ele está na igreja, o Espírito está nele quando ele está na
estrada, em toda parte. Não deve haver nenhuma ruptura entre o que somos fora
da igreja e o que somos dentro. É uma coisa só. Há uma gloriosa unidade acerca
dessa vida.

Vamos adiante, porém, para considerar o terceiro princípio. E aqui vemos de


novo a constante ligação da doutrina com a prática. Vimos isso em nossa análise
desta grande seção da Epístola. Vimos as transições alternadas de doutrina e
aplicação, doutrina e aplicação. Não estou tentando forçar um interesse artificial
aqui; tudo o que fiz foi dar-lhes uma exposição, uma análise, do que o apóstolò
diz - o método é dele. A mim me espanta que haja quem possa omitir isso. Aqui
vemos Paulo voltando à seção prática da sua Epístola, e vocês poderiam ter dito:
ah, agora já não há mais doutrina, de forma nenhuma; você nos manteve presos à
doutrina por muito tempo, mas afinal terminamos com a doutrina; graças a Deus,
finalmente nos tornamos práticos. Pelo contrário, vocês não podem ficar fora
dela. Paulo os leva de volta a ela o tempo todo. Doutrina seguida de prática é a
característica distintiva do seu método. Mesmo aqui no versículo 17 - “Isto,
portanto, digo... que não mais andeis como também andam os gentios”. Eu e
vocês teríamos parado aqui, provavelmente. Pensaríamos que era suficiente. Não
assim Paulo! Ele se sente obrigado a falar-lhes desse andar dos gentios - “na
vaidade do seu sentido, entenebrecidos no entendimento, separados da vida de
Deus”, e de pronto ele se vê no meio da sua doutrina de novo, e nela permanece
até o fim do versículo 24. Então passa à sua aplicação prática em detalhe. Ah, a
doutrina e a prática são tão intimamente relacionadas e interligadas que não
devem ser separadas jamais! Paulo nem consegue tratar das questões mais
práticas, exceto à luz da doutrina.

Agora desejo subdividir esta verdade da seguinte maneira: a nossa conduta


sempre terá que proceder da nossa doutrina e por ela deverá ser ditada e
dominada. Noutras palavras, a vida cristã não é um código que é imposto a nós,
o qual não entendemos. No entanto, receio que se faz isso, e que se faz isso hoje,
mesmo nos círculos evangélicos. As pessoas ouvem o som do evangelho e são
convertidas. Depois lhes é dada uma espécie de código, e elas tentam praticá-lo;
não sabem por quê, e não entendem a razão disso. Não posso me incomodar
com doutrina, dizem elas, não sou esse tipo de gente; e muitas vezes os que as
lideram dizem a mesma coisa. Procuram amoldar-se ao código, como os homens
fazem noutras áreas da vida; mas não sabem por quê,

e muitas vezes se sentem mal e infelizes. Ficam sob um aglomerado de


minudências, e grande conflito lavra em seu íntimo. Às vezes chegam a ter uma
depressão nervosa - tive que lidar com muitas pessoas nessas condições. E tudo
porque nunca tiveram doutrina. Tiveram um código. É-lhes dito que, como
cristãos, naturalmente, não façam isso, não façam aquilo; todavia não sabem por
quê, não enxergam a razão disso. Jamais devemos deixar as pessoas
nessa situação, nunca; é muito errado. A vida cristã não é um código imposto a
nós. Visto que ela decorre da doutrina, devemos saber o que estamos fazendo e o
que não estamos fazendo. Ou, para expressá-lo com maior clareza, jamais
devemos fazer coisas meramente porque outras pessoas as estão fazendo, e não
deixar de fazer coisas simplesmente porque outras pessoas não as estão fazendo.
Devemos entender por que as fazemos ou por que não. Vocês não são mais
crianças, diz Paulo, vocês devem aprender, devem crescer, devem ter
entendimento!
Faço um resumo da questão com esta colocação: a nossa conduta deve ser para
nós algo que é inevitável em vista do que cremos. É desse modo que eu gosto de
pensar nisso. Se a minha vida cristã não é totalmente inevitável para mim, se
estou sempre em conflito com ela, lutando e tentando ficar livre dela, e
perguntando por que é tão dura e estreita, se me acho invejando um pouco as
pessoas que permanecem no mundo, há algo radicalmente errado com a minha
vida cristã. A conduta e o comportamento cristãos devem ser inevitáveis - não
há argumento que o conteste. E quando estamos nesta posição, de fato
já compreendemos claramente a questão.

Talvez achemos útil traçar uma distinção entre a moralidade e a vida cristã. Há
grande diferença entre ambas. A moralidade ocupa-se da virtude e retidão da
coisa praticada, em si própria e em termos da sua conseqüência social. Ela
pergunta: é boa? Émá? A que leva? Como afeta as outras pessoas? Há um
sentido em que a moralidade é algo muito ultrajante para o ser humano porque,
em última análise, não está realmente interessada em mim, está interessada
unicamente em meu comportamento. Ah, é nisso que o cristianismo é tão
diferente! O cristianismo está interessado primordialmente em mim; e
está interessado na minha conduta, não em si mesmo e em termos da
sua conseqüência social; está interesada em minha conduta e comportamento por
causa do seu interesse por Cristo, por Deus, pela Igreja, pelo plano de redenção,
por todo o esquema da salvação, pelo fato de que Deus, mediante a Igreja,
deixará pasmos os principados e aspotestades nos lugares celestiais. Não a
conduta em si, mas a conduta em função deste esquema grandioso; Deus
anulando os efeitos do mal, destruindo as obras do diabo e restaurando e
reunindo numa só todas as coisas em

Cristo. A conduta e o comportamento cristãos sempre têm uma referência


especificamente cristã, e só se concebem corretamente em termos do grando
propósito da redenção.

Agora vamos passar a outro princípio. O fracasso na vida cristã só pode resultar,
pois, em última instância, do fracasso na compreensão deste ou daquele ponto da
doutrina e da verdade. Isso não requer maior demonstração. A luz de tudo o que
eu estive dizendo, se algum de nós está falhando em algum ponto da conduta e
do comportamento, é porque não entendemos a doutrina. Se há ira, maldade,
ódio, amargor e um espírito não perdoador em algum de nós, é porque não nos
damos conta de que o Espírito Santo habita em nós, e de que O estamos
entristecendo. Essa é a doutrina! Não podemos continuar sendo assim, se
compreendemos a doutrina. É falhar na doutrina que faz falhar na prática.
Portanto - e quero ser enfático nisto - não há nada pior do que ignorar a doutrina
e falar em ser prático. Os maiores fracassos na vida cristã que conheço são as
pessoas que desvalorizam a doutrina e dizem: não estou interessado em sua
teologia; comigo a prática é tudo. De todas as pessoas, essas são as que falham
mais, como tem que ser, porque a conduta é determinada pela doutrina e
pelo entendimento. Não há nada, repito, que seja mais fatal do que dizer que se
deve contrastar o doutrinário com o prático.

Para expressá-lo doutro modo, não há nada que seja tão errado e tão contra as
Escrituras como fazer apelos constantes e diretos à vontade sem inculcar
doutrina. Nunca se deve abordar a vontade diretamente; deve-se abordar por
intermédio da mente e por intermédio do coração. Portanto, dirigir apelos às
pessoas para que tomem decisões, venham à frente e recebam algo é uma
negação de toda a seção final desta Epístola. É completa e absolutamente errado.
Não se dirige apelo à vontade das pessoas para fazê-las santas; em vez disso, é
preciso fazê-las entender a doutrina! Não é questão de decisão, é questão de
entendimento e de desenvolvimento.

Portanto, não hesito em dizer que todo e qualquer método usado para ensinar a
santificação que não esteja baseado direta e imediatamente na compreensão da
doutrina, seguida de uma exortação a que apliquemos essa doutrina logicamente,
é um falso ensino da santificação. A Bíblia ensina a santificação; o apóstolo a
está ensinando aqui, a partir deste versículo dezessete até o fim da Epístola, e
esse é o seu método. Entretanto há maneiras de ensinar a santificação
que deixam completamente de lado a passagem que estivemos estudando. Não
lhe dão nenhuma atenção. Nada se requer de você para que obtenha santificação,
dizem; você a recebe como uma dádiva; você

não precisa fazer nada. Mas o apóstolo nos está exortando a desenvolver em
detalhe, logicamente, o que declaramos crer, e a compreender por que
inevitavelmente devemos agir assim, se realmente entendemos e captamos a
doutrina.

E isso me leva á minha palavra final, que é a seguinte: a nossa preocupação


como povo cristão não deve ser tão-somente um desejo de sermos bons, nem
mesmo um desejo de sermos melhores do que temos sido; não deve ser
meramente um desejo de livrar-nos de certos pecados e ficar nisso, ou de ter
felicidade, ou mesmo de alcançar vitória em nossas vidas: tudo isso é
demasiadamente egocêntrico. E é aí, de novo, onde os ensinos sobre a santidade
vão mal. Dizem eles: você está com problema? - venha à clínica. Está falhando
nalgum ponto? - venha, e nós o poremos em ordem. O fato é que eles
estão partindo de você; você é tudo. Não, diz Paulo, a sua preocupação não deve
ser essa; isso irá seguir-se. A nossa preocupação deve ser a de funcionarmos
plena e perfeitamente como membros do corpo de Cristo. O que deve aborrecer-
me não é tanto eu falhar ou eu ter um problema em minha vida, porém eu estar
falhando com Ele, eu estar falhando com algreja, eu estar falhando com Deus e
com o Seu grande e maravilhoso propósito. É tudo demasiado subjetivo e
egocêntrico; temos que ver-nos - o apóstolo nos deu este versículo dezesseis
para habilitar-nos a fazer isso - como membros em particular do corpo de Ctisto.
E essa deve ser a nossa preocupação, estamos traindo a Deus, por assim dizer, a
Deus e Seu glorioso propósito; a Igreja está sendo traída; Cristo está sendo
traído. Ele morreu para fazer o Seu povo perfeito, íntegro e completo, e aqui
estamos nós falhando! Ah, se tão-somente víssemos isso dessa maneira! Tantas
vezes vejo que as pessoas estão preocupadas consigo mesmas e com o seu
pecado particular! E passam o tempo todo orando para que sejam libertas desse
pecado. Então lhes pergunto: vocês já consideraram isso em termos do fato de
que são membros do corpo de Cristo? E não o fizeram! Sua abordagem tem sido
negativa, e por isso continuam fracassadas. Temos que ser positivos, nosso
desejo deve serproclamar os louvores dAquele que nos chamou das trevas para a
Sua maravilhosa luz. Nosso desejo, nosso objetivo, deve ser expor a glória de
Cristo e de Sua Igreja neste mundo presente.

Permitam-me expressá-lo nas palavras do nosso Senhor no Sermão do Monte:


“Assimresplandeça a vossa luz diante dos homens” - e digam que pessoa
maravilhosa você é, como você é bom e santo? Nem por um momento! “Assim
resplandeça a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras
e glorifiquem a vosso

Pai, que está nos céus.” Devemos viver de tal maneira que as pessoas, entrando
em contato conosco, não nos entendam, fiquem perplexas, achem que somos
uma espécie de enigma, e sejam levadas a dizer: bem, eles são como são porque
pertencem àquele Cristo de quem falam; são diferentes, são novas pessoas. Essa
referência pessoal é da máxima importância. Temos que ver tudo isso em termos
da nossa soberana vocação, da nossa posição privilegiada, do fato de
estarmos juntos e ligados à Cabeça neste Corpo maravilhoso por meio
destes canais de suprimento. A vida da Cabeça está fluindo por meio de nós, de
modo que, quando os homens e mulheres olham para nós, sejam compelidos a
pensar em Cristo. Somos Seus seguidores, somos Seus imitadores, devemos ser
semelhantes a Ele. “Neste mundo”, diz João, “somos como Ele é”, e como Ele
era, e devemos viver sempre para o louvor da glória da Sua graça.

Por esses meios, pois, o apóstolo nos colocou nas linhas certas, e, querendo
Deus, nós o seguiremos à medida que nos conduza através das aplicações da
verdade única, grande, gloriosa e central.

Na língua portuguesaA? Trevas e a Luz é o quinto volume publicado. Ainda restam três volumes
da série.
VIDA VAZIA - A VIDA SEM CRISTO

“E digo isto, e testifico no Senhor, para que não andeis mais como andam
também os outros gentios, na vaidade do seu sentido, entenebrecidos no
entendimento, separados da vida de Deus pela ignorância que há neles, pela
dureza do seu coração; os quais, havendo perdido todo o sentimento, se
entregaram à dissolução, para com avidez cometerem toda a impureza.
” - Efésios 4:17-19

Continuamos com a nossa consideração das palavras que se acham na Epístola


de Paulo aos Efésios, capítulo quatro, versículos 17, 18 e 19.

Agora vamos concentrar-nos particularmente no versículo 17.

Lembro-lhes que a questão particular aqui é que, como cristãos, somos homens e
mulheres inteiramente novos, que a regeneração é a mudança mais profunda do
mundo, e que, portanto, sempre devemos manter isso no primeiro plano das
nossas mentes. O cristão não é apenas um homem que decidiu ser um pouco
mais moral do que era, ou que decidiu unir-se a uma igreja, ou que decidiu isto
ou aquilo, seja o que for. O que torna um homem cristão é que ele nasceu de
novo, foi-lhe dada uma nova natureza, é uma nova criação, é
totalmente diferente do que era antes. Esse é o primeiro princípio a que o
apóstolo se dedica nesta seção da Epístola, e neste versículo ele está
começando a aplicá-lo. Lembrem-se dessa verdade acerca de vocês mesmos,
diz ele, e ao fazê-lo, verão que certas coisas são totalmente inimagináveis; elas
são impossíveis, e vocês nunca mais as verão de novo, porque agora vocês vêem
claramente que foram separados uma vez e para sempre de tudo o que vocês
eram antes.

Mas vejamos agora o assunto nas exatas palavras que o próprio apóstolo utiliza.
Ele começa dirigindo-se a eles de maneira a mais solene. Quer chamar a atenção
para algo que é de vital importância para eles. “Isto, portanto, digo, e no Senhor
testifico.” Não se contenta em dizer: “Isto, portanto, digo”; já seria forte, porém
ele lhe acrescenta - “isto, portanto, digo, e no Senhor testifico”. Que quer ele
dizer com

a palavra testifico? A palavra significa realmente intimar solenemente. É como


se ele estivesse convocando uma testemunha. Quando você dá testmunho, está
servindo de testemunha de alguma coisa. A pessoa é posta no banco das
testemunhas, e testifica. E é exatamente isso que o apóstolo está dizendo. Seu
desejo é que eles não pensem nem por um momento que ele está declarando a
sua opinião pessoal, pois havia então pessoas (como há agora) que só estavam
muito prontas a dizer: isso é somente opinião de Paulo: isso é o que
Paulo pensa. Vocês não devem dizer isso, diz o apóstolo; não é apenas
uma fraqueza pessoal minha, não é apenas uma coisa que eu estou dizendo ou
pensando, porque sucede que tenho mente estreita; isso não é dito porque fui um
fariseu e fui instruído na lei. Absolutamente não! Enão sou meramente eu quem
está falando. “Isto, portanto, digo, e no Senhor testifico.”

Com essa expressão “no Senhor” ele não quer dizer tanto que está invocando o
Senhor como sua testemunha, embora se encontre isso às vezes nas Escrituras -
“Como Deus é minha testemunha”, diz uma pessoa, ou “Na presença de Deus”.
Mas aqui a expressão não significa exatamente isso, conquanto a idéia
provavelmente esteja presente. Certamente o que Paulo quer dizer é que ele está
testificando isso como alguém que está no Senhor; ele é alguém que está em
comunhão com o Senhor, está, portanto, comunicando algo definidamente
autenticado e que lhe foi confiado; ele é alguém que ousa dizer que está
falando como quem tem acesso à mente do Senhor. Vocês recordam como,
em sua Primeira Epístola aos Coríntios, no capítulo sete, ele traça essa espécie
de distinção; em dado ponto ele diz: agora, é isso que eu penso, não tenho a
mente do Senhor aqui. Ele estave expressando a sua opinião pessoal, e quando se
trate da opinião pessoal de Paulo, ele o diz claramente. Contudo, quando ele não
fala dessa maneira, está falando no Senhor. Noutras palavras, ele está falando
com a plena autoridade de apóstolo. Não somente a grande e gloriosa doutrina
foi-lhe revelada, como ele nos diz no capítulo três da nossa Epístola, mas estes
pormenores acerca da conduta também lhe foram revelados; eles têm a mesma
autoridade apostólica, a mesma autoridade divina, portanto, que as suas
exposições das doutrinas. Então, aqui ele está falando como alguém que foi
revestido da autoridade única que era própria dos apóstolos. Os cristãos são
edificados sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas. Cristo deu estes
apóstolos à Igreja, e quando eles falavam e ensinavam, falavam com autoridade
única, suas palavras eram definidamente inspiradas, elas têm a autoridade
de Deus. “No Senhor testifico”, diz ele.

Então, que é que ele testifica? Que será essa injunção que ele lhes impõe de
maneira tão solene, tendo apreendido a atenção deles, e tendo-os feito
compreender que estão ouvindo as palavras do Deus vivo? Vocês notam que ele
coloca o que tem a dizer, primeiramente em termos negativos: “Isto, portanto,
digo, e testifico no Senhor, para que não andeis mais ..Somos tão ocupados hoje,
não somos?, que não gostamos de elementos negativos, realmente não temos
tempo para elementos negativos, queremos a verdade positiva e não gostamos de
críticas ao que está errado. Deveríamos sempre ser positivos? Vocês vêem a
completa loucura dessa conversa ociosa, fútil? Aqui está a autoridade divina
falando por meio do apóstolo, e a primeira coisa que temos é negativa: NÃO!
Não basta dizer aos homens e mulheres, num mundo como este e na carne,
simplesmente o que eles devem fazer. Todos nós sabemos perfeitamente bem
quão inadequado é isso. Primeiro devemos aprender o que não ser e o que não
fazer. A idéia de que se você simplesmente mantiver o ideal diante dos
homens, eles logo se amoldarão a ele, foi tão completamente reprovada
pela história da raça humana, que é quase incrível que alguém ainda acredite
nela. Áqui se nos diz primeiramente o que não devemos fazer. Que será?

“Vocês não devem”, é o que Paulo diz, “andar como os outros gentios andam”.
As próprias palavras são maravilhosas; cada uma delas nos comunica um
significado importante. Tomem, por exemplo, a palavra andar: “para que não
andeis mais como andam também os outros gentios”. Refere-se à totalidade da
vida e da conversação. Com freqüência vocês verão na V ersão Autorizada
ingles a a palavra traduzida por conversation 1 - “Somente seja a
vossaconvemipãocomo convém ao evangelho de Cristo”, diz este mesmo
apóstolo em Filipenses (Fil. 1:27; ARA: “Vivei, acima de tudo, por modo digno
do evangelho de Cristo”; ARC: “Somente deveis portar-vos dignamente
conforme o evangelho de Cristo”). Diz ele: “a nossa conversação está no céu”
(Fil. 3:20; ARA: “a nossa pátria está nos céus”; ARC: “a nossa cidade...”). Ele se
refere à totalidade da vida, ao teor geral da vida e, ao mesmo tempo, à vida em
detalhe. O andar, como empregado nas Escrituras, significa a vida completa do
homem, interna e externa. Devemos lembrar-nos de que o nosso andar não se
limita ao exterior; envolve também o interior. Isso é importante, e vou salientá-lo
mais tarde

porque, de acordo com este argumento geral, o que determina o exterior é o


interior. O homem é o que ele pensa, o seu andar na vida nos diz o que ele está
pensando, porque o seu andar é expressão da sua filosofia.

A seguir encontramos a expressão “não mais”, significando “doravante”. Aqui,


logo de início, Paulo nos está apresentando a sua doutrina. Estou-lhes dizendo,
afirma ele, e testificando no Senhor que vocês não devem andar mais como os
gentios. Vocês vêem a implicação - outrora vocês andavam assim, porém não
devem andar mais assim. Por quê? Por causa da tremenda mudança que se
operou em vocês. Portanto, em certo sentido, a expressão doravante ou não mais
contém a totalidade do evangelho. Doravante diz-nos isto: há o passado, o que
eles eram outrora, a vidanão regenerada; mas doravante!

- algo aconteceu, agora há o futuro, e vai ser totalmente


diferente. Imediatamente, vocês vêem, é-nos dito quão profunda mudança
a regeneração produz; como o cristão é de fato um novo homem; as coisas
antigas passaram, eis que todas as coisas se tornaram novas.

Considerem depois a frase subseqüente: “para que não andeis mais”, e como a
Versão Autorizada e a Almeida, Revista e Corrigida, dizem, “como os outros
gentios”. No entanto vocês notarão que as versões revistas neste ponto não têm a
palavra outros, mas, “para que não andeis mais como andam os gentios”. Bem,
esta é pura questão de documentos, e parece que os documentos mais antigos e
mais credenciados não têm a palavra outros. Não faz a mínima diferença, gorque
em todo caso o que Paulo está dizendo é: vocês cristãos de Efeso não devem
andar mais como andam os gentios, apesar de vocês serem gentios e de terem
outrora andado como eles. Os tradutores da Versão Autorizada certamente
captaram o ponto e também captaram o espírito da expressão. O que o apóstolo
está realmente dizendo é: olhem lá, vocês são cristãos gentílicos, porém, como
cristãos, não devem andar mais como andam os outros gentios. Nesta
conjuntura, pode-se, pois, dividir os gentios em dois grupos - os que se
tomaram cristãos, e os que permaneceram onde estavam, os outros gentios,
os gentios não cristãos. Assim, quer o entendamos como os gentios em geral,
quer como os outros gentios, refere-se exatamente à mesma coisa. Mas a palavra
outros certamente ajuda a assinalar a tremenda mudança ocorrida. Noutras
palavras, com cada palavra que usa, Paulo está imprimindo nas mentes desses
cristãos efésios que eles não estão mais onde outrora estavam. E é este o lugar
onde eles se elevam e louvam a Deus e cantam os seus louvores. “Eu era cego, e
agora vejo”!

- doravante! não mais! Graças a Deus por um evangelho que nos capacita a
falar desse modo e a dizer: doravante nós temos um novo

começo, uma nova partida, uma nova vida!

Então que é que não devemos fazer mais? Em que devemos refrear-nos? Aqui o
apóstolo nos diz como os gentios, os outros gentios, continuam andando, e o
expressa com a tremenda frase: “na vaidade do seu sentido” (VA: “da sua
mente”; ARA: “dos seus próprios pensamentos”). Esta frase introduz a terrível
descrição que o apóstolo faz aqui da vida dos não regenerados, da vida do
mundo pagão daquele tempo. E, digo eu, uma tremenda e terrível descrição. Não
podemos lê-la sem lembrar-nos imediatamente do que Paulo disse no início
do capítulo dois: “E vos vivificou, estando vós mortos” (uma vez, antes de
chegar a vocês o evangelho, “estando vós”) vocês estavam -“mortos em ofensas
e pecados, em que noutro tempo (vocês vêem como ele vai repetindo) andastes
segundo o curso deste mundo, segundo o príncipe das potestades do ar, do
espírito que agora opera nos filhos da desobediência. Entre os quais todos nós
também antes andávamos nos desejos da nossa carne, fazendo a vontade da
carne e dos pensamentos; e éramos por natureza filhos da ira, como os
outros também”. Ele estaria apenas se repetindo? Não, não está. Naturalmente há
um sentido em que está, porém há uma notável diferença entre o que ele diz no
início do capítulo dois e o que diz aqui. E a diferença é esta: no capítulo dois ele
está fazendo uma descrição objetiva da vida dos gentios não regenerados, a vida
do mundo pagão. Aqui ele faz uma análise psicológica dessa vida. Capítulo 2,
descrição geral; aqui, dissecção, análise, pondo tudo às claras, mostrando-nos
a fonte e origem disso tudo. Em nenhuma outra parte há uma análise mais
profunda da vida não regenerada do que a que encontramos aqui. E quando digo
isso, tenho em mente aquela outra passagem tremenda de Romanos 1:18-32, que
é outra das profundas e magistrais análises da vida e perspectiva do mundo
pagão do seu tempo. Leiam-na, leiam cada uma dessas passagens. Há outra
ainda em 1 Coríntios 6:9-11, e análises similares podem ser vistas em Atos dos
Apóstolos, capítulos 14 a 17. Elas estão cheias de importância e de significação.
Aqui está a que achamos que é a descrição mais magistral que jamais se
pode encontrar da vida sem Cristo. E aqui realmente tudo está contido
numa frase: “na vaidade do seu sentido” ou “da sua mente”.

Estou acentuando esta matéria, não por ser de interesse teórico ou acadêmico,
não porque eu esteja interessado na psicologia da natureza e do comportamento
humanos. Estes são temas fascinantes, concordo, mas não estou chamando a
atenção para eles animado por um interesse teórico desse tipo. Menos ainda
estou sendo movido por uma espécie de interesse de antiquário por aqueles
tempos antigos, fascinante como tal estudo possa ser. A antropologia, como se
lhe chama, leva-nos de

volta ao estudo da conduta e do comportamento, à investigação das civilizações


e do que lhes aconteceu; e do ponto de vista intelectual, não há nada mais
cativante e emocionante. Todavia não estou fazendo uma pausa nesta altura
animado por qualquer desses motivos ou idéias. A razão pela qual sou tão
importunamente insistente sobre isso e procuro reter a sua atenção nisso, é que
me parece que aqui temos uma perfeita descrição, análise e explicação daquilo
que cada vez mais está se tornando próprio da vida no mundo moderno no qual
estamos vivendo. Os princípios que o apóstolo ensina aqui são
sempre verdadeiros, e a minha opinião é que o nosso mundo está se
tornando cada vez mais o que é pela razão dada aqui, e por causa do fracasso
do homem moderno, não compreendendo a realidade disso. Assim, quando
lemos as palavras do apóstolo, não estamos vendo simplesmente a sociedade
pagã de Éfeso há cerca de dois mil anos; também estamos vendo Londres hoje,
Paris, Nova Iorque, qualquer delas; aqui está a vida moderna, o mundo moderno.

Essas coisas não mudam. São princípios eternos. E, portanto, se realmente


estamos preocupados com a vida da sociedade e com o mundo, a primeira coisa
que temos de fazer é entender o ensino do apóstolo. Nós, evangélicos, estamos
sendo constantemente acusados de não sermos práticos. Ah, dizem, aí estão
vocês, passam o tempo discutindo as Escrituras e falando uns aos outros; mas,
quanto ao grande mundo de fora, vocês não fazem nada a respeito. O que
estou ressaltando aqui, portanto, é que nada poderemos fazer, enquanto
não começarmos a entender o ensino das Escrituras. E unicamente isso que
habilita a pessoa a fazer algo a respeito. E todas as organizações que não
começam por aí, não somente estão falhando, e têm falhado, mas
inevitavelmente falharão. Essa é a tragédia em tomo das sociedades
exclusivamente morais. Elas têm subsistido atualmente, algumas delas, por
quase duzentos anos, e todavia, a despeito das suas atividades, a situação vai de
mal a pior. Por quê? Porque olvidaram estes princípios apostólicos.

Nesta Epístola o apóstolo mostra a origem do iníquo tipo de vida que ele
descreve. Antes de descrever a vida em detalhe, ele nos mostra por que é que
ninguém jamais deve viver tal vida. Ou, noutras palavras, o que o apóstolo está
asseverando aqui é que não se pode ter moralidade sem piedade. Aí, numa frase,
parece-me, indiquei todo o problema havido em particular durante os cinqüenta
anos recém--passados. Há boa gente na terra que se preocupa muito com
a moralidade; porém não se preocupa com a piedade. Simplesmente não se pode
ter moralidade, finalmente, sem piedade. E o meio século

recém-passado provou isso até a última gota. Se retrocedermos um século e


mais, veremos que a grande ênfase era à piedade, e que a moralidade decorria da
piedade. Entretanto, depois veio uma geração que dizia efetivamente: a
moralidade é muito boa e é sumamente essencial para o país, mas, naturalmente,
não queremos mais essa piedade, não cremos mais no sobrenatural, não cremos
em milagres, não cremos que Cristo é o Filho de Deus - Ele era nada mais que
um grande mestre moral - e assim, naturalmente, devemos despejar toda essa
parte piedosa do cristianismo. E fizeram isso. Achavam que podiam preservar a
moralidade sem a piedade. Contudo, vocês vêem o que aconteceu. Apesar de se
ter educação de bom nível e tudo mais que se possa providenciar, se não houver
piedade por trás, a moralidade entrará em colapso. E o mundo moderno é
simplesmente uma ilustração dessa verdade. Noutras palavras, o apóstolo aqui
está preocupado não somente com o fato de que os gentios viviam de
certa maneira, está muito mais preocupado com a razão pela qual eles o faziam.
E essa ainda é a situação conosco. Todas as pessoas pensantes, de bem e
decentes devem estar alarmadas com o que está acontecendo na Inglaterra. 2 O
lento mas constante declínio da moralidade deve ser evidente para todos. E é
claro que todos aqueles que têm um modo de viver decente estão tremendamente
preocupados com essa questão. No entanto, aqui está a grande e inevitável
pergunta: por que está acontecendo isso, e o que se pode fazer a respeito?

Ora, a coisa mais fútil e tola é meramente denunciar o mal. Essa é a coisa mais
simples e mais fácil de fazer, como vemos nas ruas e nos nossos jornais; somente
sentir desgosto, dar as costas e dizer: que coisa horrível! Que terrível!
Obviamente issò não vai ajudar a ninguém. O dever do evangelho não é
simplesmente denunciar; não é simplesmente refrear. O dever do evangelho é
tratar da situação da única maneira pela qual se pode tratar dela radicalmente, e
essa é pregar o evangelho da regeneração, este poder de Deus para a salvação,
que pode até dar um jeito nesta situação aparentemente desesperada, neste
problema aparentemente insolúvel. Essa é toda a história do Novo
Testamento. Aí está, pois, a nossa sobrepujante razão para demorarmos neste
ponto e examinarmos a matéria com tanto esmero. Esta é a única esperança para
a sociedade. E façam os homens o que fizerem, multipliquem as sua
organizações educacionais, morais e sociais, não tocarão no problema. Pode-se
ter as costumeiras organizações pró abstinência, as cruzadas pela moralidade, os
seus conselhos morais e mil outras

coisas, e não se tocará na situação. O mal envolvido está no coração dos


homens, e a única mensagem que pode lidar com o coração dos homens e que é
apropriada para enfrentar o problema é a do evangelho de redenção. Então, que é
que o apóstolo diz a respeito? Sigamos a sua linha de pensamento.

Ele divide o assunto em três partes. No versículo 17 ele faz uma declaração geral
acerca da condição dos homens - “a vaidade do seu sentido", ou "da sua
mente”. No versículo 18 ele nos fala da causa da vaidade. No versículo 19 ele
nos dá a conseqüência da vaidade. Primeiro, então, devemos examinar o estado e
as condições gerais como ele os descreve. Eis aqui: “que não andeis mais como
andam também os outros gentios, na vaidade da sua mente”. Que é que ele quer
dizer com isso? Que é que ele quer dizer com a palavra mente? E importante que
o entendamos claramente porque o nosso primeiro impulso seria considerá-lo
como sendo uma descrição do intelecto. Mas o termo não se refere unicamente
ao intelecto, pois Paulo faz referência ao intelecto no versículo seguinte (18),
onde ele fala sobre o entendimento entenebrecido. Assim, quando ele fala
“mente” aqui, não está pensando somente no intelecto e no entendimento.
“Mente” aqui significa algo muito maior. Significa a mente com as
suas capacidades emocionais incluídas. Significa pensamento, vontade
e suscetibilidades. Significa razão, entendimento, consciência, afetos. Na
verdade, significa a alma completa do homem. Em muitos outros lugares das
Escrituras o termo mente é empregado neste sentido, como descritivo da alma
completa do homem: intelecto, afetos, consciência, vontade, a personalidade
toda. Para expressá-lo doutro modo, significa toda a perspectiva dos gentios
sobre a vida, toda a sua reação à vida e, portanto, todo o seu modo de viver.

A mente! A personalidade total! Paulo nos diz que esses outros gentios andam na
vaidade da sua mente. Para que se entenda o que ele quer dizer com o termo
vaidade, permitam-me dar-lhes alguns termos alternativos - o que significa
realmente é vacuidade - vacuidade? A “Revised Standard Version” traduziu-o
bem: “na futilidade da sua mente”. Completamente vazios, absolutamento fúteis!
Deveras, a palavra que o apóstolo realmente utiliza significa, em sua
origem, aquilo que não leva ao alvo. Significa, pois, algo destituído de objetivo,
sem indicação, carente de direção, algo que não leva a pessoa a meta nenhuma, e
naturalmente a leva por fim à completa fulilidade, àquilo que é absolutamente
vazio. Essa é, pois, a descrição em geral da vida do mundo pagão dos gentios.
Mas, que descrição, também, do mundo moderno! Que descrição daquilo que
muitos consideram a

vida real hoje! A vida de Londres, especialmente em seus círculos mais


elevados! Vida! Ei-la aqui, dizem eles. O apóstolo afirma que essa vida é vazia,
fútil, sem objetivo, completamente vã. Ele estaria certo?
Certamente podemos justificar a descrição que ele faz do mundo antigo de
molde a aplicá-la agora à vida de hoje, e veremos que ela é igualmente
verdadeira e que é uma descrição perfeita da vida moderna sem Cristo. É vida
que não leva a parte alguma, que jamais oferece satisfação real. Vejam o mundo
antigo. Vocês dizem, porém: ah, que dizer dos grandes filosófos? Sim, sejamos
justos, vejamo-los! Numa vida de trevas pode haver uma centelha ocasional. Nas
trevas dos seus tempos, aqueles grandes filósofos devem ter parecido uma
centelha de luz. Contudo, essa centelha levou a algo? Eles falavam de
maneira culta acerca da verdade, da bondade e do belo. Estes eram os seus temas
favoritos - a busca da verdade, a busca da bondade, a busca do belo. Bondade,
beleza e verdade! Centelhas maravilhosas! Masaque levaram? Essa é a questão
que o apóstolo está levantando. Qual a finalidade, qual a meta, qual o objetivo?
Levaram as pessoas a algum alvo almejado? Paulo diz: não - eram
indirecionados, fúteis e sem objetivo. Pergunto: ele estaria certo? Vamos
submeter à prova aquela filosofia. Aonde ela levou os homens, no sentido
religioso? Pela descrição que Paulo faz do povo de Atenas em Atos, capítulo
17, vemos que esse povo estava muito interessado em religião, deuses
e adoração. Eles (os atenienses) falavam muito sobre a Primeira Causa e sobre a
Causa Não Causada; estavam em busca de Deus, erigiam os seus altares ao
“Deus Desconhecido”; procuravam uma explicação no sentido religioso.
Entretanto, a que isso levou? Leiam mesmo os relatos seculares daqueles tempos
antigos, e verão que eles confirmam absolutamente as Escrituras. A grande
maioria do povo consistia de ateus que não criam em Deus de modo nenhum;
uns eram panteístas, quer dizer, criam que Deus está em tudo e que tudo é Deus.
Outros eram politeístas. Criam numa multiplicidade de deuses - Júpiter, Marte,
Mercúrio - vocês os vêem mencionados no livro de Atos dos Apóstolos, e o
povo lhes edificava grandes templos, como nos lembra Atos, capítulo 17. Paulo
diz: quando eu estava caminhando pela sua grande cidade, cheguei à conclusão
de que vocês são por demais religiosos; sua cidade inteira está coalhada de
templos. Politeísmo! Aí estão eles, os grandes filósofos, estes grandes homens
em busca de Deus. Aonde tudo isso leva? Futilidade! Eles não O conhecem.
“Esse pois que vós honrais, não o conhecendo”, disse-lhes Paulo, “é o que
eu vos anuncio” (Atos 17:23). Na vaidade da mente deles, sem meta,

fúteis; não leva a nada, no sentido religioso no qual eles estavam tão
interessados.

Que dizer disso, porém, em termos mais gerais, intelectualmente? A resposta é a


mesma. Eles não tinham satisfação de forma alguma. Não tinham um real
entendimento dos homens, da vida e do propósito da vida neste mundo. Eles
tinham muito interesse pela história e pelo problema da história, mas a viam em
termos de ciclos. A história, diziam eles, gira e gira em círculos, sem progresso,
sem direção e sem meta; em sua intenção, talvez pareça que estão subindo,
porém logo verão que estão descendo. Noutras palavras, os eventos giram e
giram num circuito perpétuo. Esse era o seu conceito da história; eles
nunca tiveram a concepção bíblica deste “evento único, divino e remoto, para o
qual a inteira criação se move”! Eclesiastes, capítulo primeiro, expressa isso
tudo perfeitamente. “Vaidade de vaidades!” “O que foi, isso é o que há de ser.”
“Todos os ribeiros vão para o mar, e contudo o mar não se enche.” Por quê? Suas
águas são absorvidas pelo sol, formam nuvens e chovem, voltando aos rios -
“para o lugar para onde os ribeiros vão, para aí tomam eles a ir”. Apenas outro
exemplo do ciclo que a história é.

E depois, que dizer da morte? Que conceito da morte eles tinham? Aqueles
grandes filósofos, acaso tinham eles algum conceito da morte? Para muitos deles
a morte era meramente o fim; o túmulo era a última palavra. Outros acreditavam
no que eles denominavam transmigração das almas, uma série de reencarnações.
Outros defendiam a idéia de que o estado do homem além da morte era
fugidio, vago, indefinido e sombrio. Leiam a mitologia grega, e verão o que
eu quero dizer. Lá estáo os homens, por assim dizer, girando intermina-velmente
numa espécie de sombra e escuridão, sem luz, com todas as suas paixões ainda
dentro deles. Infelicidade! Essa era a sua idéia da morte, e de qualquer vida
acaso existente além da morte e do sepulcro.

E moralmente, como eram? Completo fiasco aqui também! Tornem a ler a parte
final do capítulo primeiro da Epístola aos Romanos, e ali vocês verão um relato
da vida vivida nos esgotos e nas sarjetas do tempo, com todas as perversões e
sujeiras concebíveis! Será surpreendente que o apóstolo descreva tudo isso como
vão, vazio, fútil e sem objetivo? Além disso, muitas vezes os principais filósofos
eram os líderes na imoralidade. Alguns dos maiores filósofos elogiavam o amor
de um homem por um homem como estando acima do amor dos homens por
mulheres; eles justificavam filosoficamente as perversões. Leiam-nos vocês
mesmos. Antes de vocês darem ouvidos aos filósofos modernos que dizem que
não temos necessidade de Cristo, e que Platão, Sócrates e Aristóteles são
suficientes, leiam-nos tão-

-somente, e verão que eles justificam essas perversões daquela maneira


particular. E o resultado disso tudo foi, naturalmente, que o suicídio aumentou, e
continuou a aumentar em porcentagem alarmante.

Assim, apesar de todas as fulgurantes centelhas, dos intelectos brilhantes e de


todo o interesse pelo bem, pelo belo e pela verdade, a vida continuou sem
significado, vã, vazia, fútil. Não foi somente Salomão que, no livro de
Eclesiastes, disse isso tantos séculos antes de Cristo. Retornem, digo eu, a Atos,
capítulo 17; observem as pessoas cultas de Atenas - estóicos e epicureus -
homens que se encontravam para discutir essas coisas. Eles se reuniam, como se
nos diz, somente para “dizer e ouvir alguma novidade”. Qual é a última? Qual a
última mania, a última moda? - não apenas nas roupas, mas também no intelecto,
no pensamento, nas idéias e na filosofia. Eles estavam sempre correndo atrás do
mais recente, do último. Que confissão de futilidade, que completa vacuidade,
um tal de girar e girar em círculos, fulgente, excitante, brilhante, mas, no fim o
quê? Nada! Nenhum entendimento da vida; nenhum conhecimento de como
viver; nenhum entendimento da morte; nada que os console além da morte e
do túmulo! “Comamos e bebamos, que amanhã morreremos” (1
Coríntios 15:32). Que utilidade há em alguma coisa? Essa era a vida do
antigo mundo pagão.

Em nome de Deus lhes pergunto: não é essa uma descrição rigorosamente


precisa da vida deste mundo moderno sem Cristo? A vida da televisão! A vida
do cinema! A vida das bebidas e do jogo! A vida da sociedade, alta ou baixa! E o
brilho, a maravilha e o “show” aparentes! Mas, que é que há nisso? Que é que há
nisso para a sua alma? Que é que há nisso para o ser humano? Que é que isso
lhes diz sobre a vida? A que leva? Isso tudo, por fim, deixa a pessoa vazia,
de fato sem nada, absolutamente. Vaidade! - “na vaidade da sua mente”, vazios,
sem objetivo, fúteis. A despeito da nossa sofisticação, a despeito do fato de que
se passaram quase dois mil anos desde quando estas palavras foram escritas pelo
apóstolo Paulo, essa é a verdade hoje, como sempre foi. Tratemos de ver que não
sejamos enganados e iludidos pela vistosa exibição ao nosso redor, com toda a
sua conversa sobre a arte, com todo o seu interesse intelectual e sua sofisticação
- que é que há nisso? Vejam aqueles que se dedicam a essas coisas. Que é que
eles têm? Nada! É tudo vão e vazio. Eles falam de arte pela arte! Será essa a
maneira de solucionar o problema? Isso oferece alguma direção? Edifica a alma?
Produz moralidade? Assegura a continuidade da esperança para as pessoas que
falharam e caíram? Claro que não! Eles não têm nada; é tudo fé forjada. A vida

gira e gira, como um satélite, porém pode parar a qualquer momento, e a


civilização pode sofrer colapso, como aconteceu tantas vezes na história anterior.
A vida sem Cristo é sempre vazia, é sempre vã; ela o esgota e o despoja, e no fim
você fica uma casca vazia. Ela o exaure totalmente, deixando-o sem nada em
que se apoiar, nada de que se orgulhar e absolutamente nada pelo que esperar no
futuro.

Então, em suma, o apóstolo está dizendo: vocês não devem mais ser dominados
e influenciados por uma perspectiva e por uma mentalidade como essas. Vocês,
que nasceram de novo, estão olhando para trás, com olhos saudosos, para aquela
espécie de vida? O mundo os atrai? É essa a sua concepção de como viver?
Longe do que parece, diz ele, é uma vida completamente vazia, fútil, sem meta
nem rumo. “Isto, portanto, digo, e no Senhor testifico, para que não andeis mais
como andam também os outros gentios, na vaidade da sua mente.” Graças a
Deus por afinal ter aberto os nossos olhos para isso, para o mundo e todas as
suas recompensas resplandecentes. “Esta”, diz o apóstolo João, “é a vitória que
vence o mundo, a nossa fé” (1 João 5:4). É a fé, é o evangelho que abre os olhos
da gente para a vaidade e futilidade deste mundo e da sua mente, sua vida e sua
perspectiva. Graças a Deus que, em Sua graça infinita, fez um dia que o facho de
luz do Seu Espírito brilhasse em nossos corações e nos desse
entendimento. Graças a Deus!

AS TREVAS E A LUZ
“E digo isto, e testifico no Senhor, para que não andeis mais como andam
também os outros gentios, na vaidade do seu sentido, entenebrecidos no
entendimento, separados da vida de Deus pela ignorância que há neles, pela
dureza do seu coração; os quais, havendo perdido todo o sentimento, se
entregaram à dissolução, para com avidez cometerem toda a impureza.
” - Efésios 4:17-19

Estivemos considerando o grande relato que o apóstolo fez da espécie de vida


que estava sendo vivida pelos gentios, aqueles pagãos que não se haviam
tornado crentes em nosso Senhor Jesus Cristo e seguidores dEle. Vimos que, em
geral, ela pode ser caracterizada como uma vida que era um andar na vaidade
das suas mentes, uma vida vazia, inútil e sem rumo, vida que não leva a nada. É
como uma bolha de espuma, e esta é magnífica e atraente. Observem a sua
redondez, as suas cores - todas as cores do arco-íris - como é bela! E, contudo,
de repente desaparece, não resta nada; é cheia de ar, e nada mais. Esse é o tipo de
vida que os homens e as mulheres estavam vivendo, a vida de uma bolha, com
beleza aparente, com encanto e vibração, mas vazia; a bolha explode, e no fim
você fica de mãos abanando, sem nada. “Na vaidade da sua mente.”

Paulo, porém, não se contenta em meramente expor o assunto em termos gerais.


Nos versículos 18 e 19 ele passa a analisar isso, especialmente para mostrar por
que as pessoas vivem tal vida. Com muita clareza e em detalhe, ele nos mostra o
que foi que produziu essa mentalidade e essa perspectiva. Ele nos faz, devemos
concordar, uma descrição bem precisa da vida do mundo pagão antigo e, como
vimos, uma descrição igualmente precisa da vida que está sendo vivida
pela vasta maioria do povo hoje. E a questão que deve levantar-se em nossas
mentes é: que é que pode explicar o fato de que alguém viva tal vida, uma vida
completamente vazia e vácua, uma vida que promete tanto e no fim não dá nada?
Que é que pode explicar o fato de que o ser humano seja atraído por essa vida e
queira vivê-la?

Aqui o apóstolo nos dá a resposta. E de novo devo salientar que estou chamando
a atenção para isso, e estou seguindo cuidadosa e minuciosamente a sua análise,
porque o que ele diz aqui continua

sendo a pura e simples verdade hoje. Não pode haver nenhuma dúvida de que a
razão pela qual as pessoas vivem essa vida é que nunca entenderam exatamente
o que ela é. A obra prima final de satanás é manter os seus vassalos tão ocupados
que não tenham tempo para pensar. E, como veremos, mesmo quando eles param
para pensar, ele os impede de pensar reta e verdadeiramente. Temos então aqui
uma descrição do que a incredulidade significa realmente. Temos aqui
uma análise intelectual e psicológica magistral da vida do incrédulo, da vida da
pessoa não cristã. Desafio a todos, em qualquer literatura, de todo e qualquer
lugar, a apresentar uma análise magistral como esta; por sua profundidade e
clareza, é deveras inigualável; e se vocês se interessam por psicologia, encontrá-
la-ão aqui. Esta parte da Epístola é simplesmente uma análise psicológica.

Que condição! Ouçam-no de novo! “Entenebrecidos no entendimento, separados


da vida de Deus pela ignorância que há neles, pela dureza do seu coração.” Essa
é a condição, não somente dos pagãos de quase dois mil anos passados, é uma
exata descrição e análise da condição das pessoas inteligentes e sofisticadas
deste mundo moderno que riem do cristianismo, que ridicularizam a fé cristã, e
que se gabam do seu conhecimento e cultura, do seu intelecto e do seu
entendimento. Esta é a verdade a respeito delas. Essa é a coisa espantosa.
Sigamos isso, vejamos como vem a suceder que pessoas que realmente
se orgulham do seu intelecto e do seu entendimento, não obstante estão de fato
na condição aqui descrita pelo apóstolo.

Neste versículo dezoito há quatro frases, e cada uma delas faz parte da descrição.
No entanto elas parecem cair em dois pares. O primeiro par descreve essa
condição em geral; o segundo (e é aqui que devemos ser cautelosos), o segundo
par explica a segunda frase do primeiro par somente. Vejamos isso em detalhe.
Qual a situação dessas pessoas que andam na vaidade da sua mente? As duas
principais coisas que se deve dizer sobre elas, diz o apóstolo, são, primeiro, que
os seus entendimentos estão entenebrecidos; segundo, que elas estão separadas,
alienadas da vida de Deus. E então ele nos diz imediatamente por que elas estão
alienadas da vida de Deus. Primeiro, é porque estão separadas da vida de Deus
por meio ou por causa da ignorância que há nelas; e segundo, por causa da
cegueira, ou antes, da dureza do seu coração. Assim, o segundo par de cláusulas
dá-nos realmente um relato e uma explicação da sua alienação de Deus; e ainda,
de maneira maravilhosa, as duas últimas ligam-se às primeiras. Por que essa
gente é ignorante? Por que é que os seus corações estão endurecidos? A resposta
é: porque os seus entendimentos estão entenebrecidos! As-

sim, pois, a ordem é esta: devido os seus entendimentos estarem entenebrecidos


estão cheios de ignorância, os seus corações estão endurecidos, e essas duas
coisas levam à sua alienação de Deus. A classificação é de alguma importância,
porque, se disséssemos que as duas últimas esclarecem e explicam as duas
primeiras, estaríamos dizendo algo completamente errado. Jamais devemos dizer
que os seus entendimentos estão entenebrecidos por causa da ignorância que há
nelas. Isso é errar invertendo a ordem. Elas são ignorantes porque os seus
entendimentos estão entenebrecidos. Portanto, a declaração fundamental é esta:
o obscurecimento do entendimento leva à ignorância, ao endurecimento do
coração e, obviamente, estes dois levam à alienação da vida de Deus.
Examinemos, pois, esta descrição do não cristão e vejamos exatamente em que
importa.

Shakespeare também sabia algo acerca dessa vida vã, vazia e sem objetivo. Ele
escreve sobre o tipo de gente que passa o tempo todo “buscando a reputação da
bolha de espuma” e que até se dispõe a “procurá-la na boca do canhão”. Neste
mundo vão, há muitos que estáo sempre procurando alguma espécie de
reputação - reputação pelo conhecimento, pela engenhosidade, por algum tipo de
habilidade artística ou executiva, pela coragem e pela bravura - “buscando
a reputação da bolha de espuma”. Sempre a bolha! - e os homens a procuram,
mesmo correndo grande perigo. Vivem desse modo porque os seus
entendimentos estão entenebrecidos; esta é a única explicação. Então, que é que
Paulo quer dizer com entendimento? Neste contexto significa particularmente
intelecto. Pouco antes, ao tratar da palavra mente (versículo 17, VA),
assinalamos que ali a palavra mente é um termo abrangente que inclui, não
somente a razão, e sim também os afetos e a consciência, o homem completo,
toda a atividade da alma. Aqui, porém, entendimento significa realmente
entendimento; significa, noutras palavras, intelecto, em oposição aos
sentimentos e às sensibilidades. Assombra-me e me enche de admiração a
perfeição dessa análise, e ver como Paulo a põe em ação em cada parte da
vida do homem; primeiro ele coloca a totalidade; depois as partes componentes.
O entendimento, o intelecto, diz ele, está entenebrecido nessa gente; os seus
intelectos foram cegados. E que coisa terrível é isso! Uma espécie de véu desceu
e cobre as mentes de todos os que não são cristãos.

Este é um grande tema deste apóstolo, como na verdade o é de toda a Bíblia.


Notem como ele o expressa para os coríntios no capítulo três da segunda
Epístola que lhes escreveu, na qual ele compara e contrasta os judeus que
permaneceram na incredulidade com os que se tomaram cristãos. Diz ele que o
problema com o homem não convertido, seja

ele judeu ou gentio, é que há um véu sobre o seu coração e sobre a sua mente e o
seu entendimento; ele não consegue ver. E o resultado, acrescenta o apóstolo, é
que, mesmo quando o judeu ouve a leitura das Escrituras do Velho Testamento,
como o faz todos os sábados na sua sinagoga, não enxerga o significado; ele
ouve a letra, mas não capta o espírito do ensino. Há um véu, diz ele, que os cega;
eles pensam que conhecem a verdade, passam o tempo a discutí-la e a falar sobre
ela, porém não a vêem. Por quê? Porque há algo entre eles e a verdade, de modo
que não conseguem vê-la. Depois, no capítulo quatro dessa mesma Epístola, ele
se torna ainda mais específico. Ele fala de si mesmo como pregador e
evangelista, e então diz: todavia nem todos crêem no que digo, e ele se expressa
com estas palavras: “Se ainda o nos so evangelho está encoberto, para os que se
perdem está encoberto. Nos quais o deus deste século cegou os entendimentos
dos incrédulos, para que não lhes resplandeça a luz do evangelho da glória de
Cristo, que é a imagem de Deus”. O deus deste mundo cegou os entendimentos,
ou a mente! É outra maneira de dizer que eles foram entenebrecidos no
entendimento.

Pois bem, percorram toda a Bíblia e verão que é isto que ela diz em toda parte
sobre o homem em pecado e sobre o homem que está fora de Cristo. Ela
descreve a espécie de vida que as pessoas vivem, e depois faz a pergunta: por
que elas vivem dessa maneira? Só há uma explicação, diz a Bíblia: a falha está
nas suas mentes, nos seus intelectos e no seu entendimento. A mais elevada
faculdade do homem ficou embotada e cega; ele não consegue ver por causa
desse véu que desceu sobre ele; ele está cercado pelas trevas. Permitam-
me, porém, expressá-lo de modo um pouco mais teológico. O efeito
mais desastroso que a Queda produziu no homem foi em seu entendimento. Essa
é toda a explicação bíblica da razão pela qual o homem é como é, e o mundo é
como é. Deus criou o homem perfeito, dotou-o de faculdades admiráveis, fez
dele senhor da criação e do universo; e, contudo, vemos algo inteiramente
diferente. Por que a diferença? O que aconteceu foi que o homem pecou,
desobedeceu a Deus, caiu. E a Queda teve as conseqüências mais desastrosas
para o homem e para toda a sua vida e para o seu modo de viver; e de todos os
seus terríveis efeitos, o mais desastroso e devastador é na mente do
homem. Entenebreceu o seu entendimento.

Não há palavra que a Bíblia utilize mais freqüentemente, com relação ao homem
não cristão, do que a palavra tolo, ou louco. O pecador não passa de um tolo. O
tolo é estulto, falta-lhe entendimento, é alguém que faz o que faz porque não
sabe fazer melhor; ele se

precipita numa coisa sem pensar. Que tolo! vocês dizem. Que tolo, quem se
meteu nisso! Se tão-somente ele pensasse por um momento, se tão-somente
tivesse olhos em sua cabeça! Certamente lhe falta entendimento! Essa é a
palavra que a Bíblia usa acerca do pecador, sobre o não cristão. Foi o tolo, o
néscio, que disse no seu coração: não há Deus. Claro! É porque ele não tem
entendimento. Vejam a colocação que Paulo faz naquele grande capítulo
primeiro da Epístola aos Romanos, onde ele faz o mesmo tipo de análise. Diz ele
que o que andou mal com a humanidade foi que, embora Deus tenha feito
os homens à Sua própria imagem, embora a criação lhes fale acerca de Deus, e
embora eles tenham começado pela adoração do Criador, agora estão adorando a
criatura. Por quê? Porque, diz ele, “o seu coração insensato” (“o seu tolo
coração”) “se obscureceu”. E ele diz de novo: “Dizendo-se sábios, tornaram-se
loucos”. Tornoalembrar--lhes que essa é toda a explicação do mundo moderno.

Mas Paulo usa também outra palavra. Ele descreve o estado do incrédulo como
um estado de trevas. Ele é alguém que está andando na escuridão em pleno
meio-dia, andando às apalpadelas. Ouçam algumas das expressões típicas do
Novo Testamento. Já no começo dos Evangelhos se nos diz que a vida do Senhor
Jesus Cristo cumpriu uma profecia anunciada por Isaías - “O povo que andava
em trevas, viu uma grande luz” (VA: “O povo que estava assentado nas
trevas”) (Isaías 9:2; Mateus 4:16). Retrata a raça humana sentada nas trevas; ela
tentou achar um caminho de escape, entretanto não conseguiu, e afinal se
assentou no mais completo desamparo e desespero. Afundou-se no cinismo - “O
povo que estava assentado nas trevas” - sem nenhuma luz, sem nenhum
conhecimento. Ali estão eles, sentados sem esperança e sem amparo nas trevas.
Finalmente os homens vêem uma grande luz, isto é, o evangelho. Ou pensem nas
constantes e conhecidas comparações e contrastes do apóstolo. Escrevendo
a crentes ele diz: vejam lá, vocês não devem mais levar esse tipo de vida; vocês
não são mais da noite, vocês são filhos do dia! Vocês não estão mais nas trevas,
pertencem à luz! Filhos das trevas e filhos da luz! Noite e dia! Na Bíblia o
pecado é sempre associado às trevas.

Atentem também ao nosso bendito Senhor na colocação que faz com estas
palavras: “A condenação é esta: que a luz veio ao mundo, e os homens amaram
mais as trevas do que a luz, porque as suas obras eram más” (João 3:19). O
problema, diz Ele, está em amar as trevas, e não a luz. E então, de novo, não
admira que o apóstolo Paulo use essas expressões, em vista do que lemos sobre o
seu chamamento no caminho de Damasco. Disse-lhe o Senhor que ò estava
chamando para que ele fosse uma testemunha tanto para o povo como para os
gentios,

e com esta comissão particular: “Para lhes abrires os olhos, e das trevas os
converteres à luz” (Atos 26:18). Compete à pregação, constitui o evangelho da
evangelização integral, que os olhos dos homens sejam abertos; não que lhes
seja dado entretenimento, ou que sejam levados a rir ou a chorar; mas sim, abrir-
lhes os olhos, tirá-los das trevas para a luz e para o conhecimento. Foi nesses
termos que o apóstolo foi chamado. Devemos lembrar-nos também de que o
próprio Senhor nosso descreveu-Se a Si mesmo como a Luz do mundo - “Eu sou
a luz do mundo; quem me segue não andará em trevas, mas terá a luz da vida”
(João 8:12).

Fiz-lhes estas citações a fim de que vocês vejam que é isso que encontramos na
Bíblia acerca da vida do incrédulo. Este está nas trevas, é cego, seu
entendimento se obscureceu. Todos nós seguimos o exemplo da Bíblia nesta
questão, não seguimos? No passado, por exemplo, todos nós tendíamos a
descrever a África como “O Continente Negro”, ou “Obscuro”. É assim que
descrevemos as pessoas que vivem na ignorância e no paganismo - o Continente
Obscuro! Contudo, vocês sabem, William Booth estava igualmente certo
quando escreveu o seu famoso livro - Na Obscuríssima Inglaterra (“In
Darkest England”). Escreveu-o na era vitoriana e, todavia, esse é o título do seu
livro, Na Obscuríssima Inglaterra - e quão densas eram essas trevas!

Ora, é importante compreendermos que isso se aplica a todos os não cristãos. É


por isso que toda a filosofia e toda a especulação, brilhantes e inteligentes como
freqüentemente são, afinal não levam a nada. O apóstolo pôde dizer aos filósofos
de Atenas que a vida deles consistia realmente em só buscar e nunca achar,
buscando\o Senhor “se porventura, tateando, o pudessem achar”. Mas não O
acharam, apesar dos seus cérebros e intelectos vigorosos. Platão, Sócrates,
Aristóteles, e todos os demais, nunca encontraram Deus; continuaram e
acabaram nas trevas. Nunca me canso de citar a marcante observação do
grande filósofo e poeta alemão, Goethe. Seu intelecto era brilhante, porém vocês
se lembram do que ele disse em seu leito de morte - estava entre as suas últimas
palavras - “Mais luz”. Disse que necessitava de mais luz mental! Tinha passado a
vida toda pensando, analisando, discutindo - grande filósofo! Mas, infelizmente,
acabou nas trevas, e o admitiu - “Mais luz!” E um homem quase infinitamente
menor, chamado H.

G. Wells, virtualmente confessou a mesma coisa no fim da sua vida. O título do


seu última livro é A Mente no Fim da sua Corda (“Mind at the End of its
Tether”). Ele tinha confiado na mente a vida inteira; no fim admitiu, no meio da
Segunda Guerra Mundial, que não sabia onde

estava, e que estava sem entender. O seu entendimento estava entenebrecido!


Naturalmente que não entendia! Ele não cria neste Livro! Se tais pessoas tão-
somente lessemo Velho Testamento! Se, por exemplo, lessem o capítulo sessenta
da profecia de Isaías, veriam isto no versículo dois: “Porque eis que as trevas
cobriram a terra, e a escuridão os povos”. É uma descrição literalmente exata da
mente humana após a Queda; ela está obscurecida e cega; o homem
não consegue pensar direito, é incapaz de entender as coisas espirituais.
E, naturalmente, é por isso que ele considera as coisas espirituais como loucura,
como tolice, e escarnece delas e as repudia.

O cúmulo da tragédia, no entanto, e o que me parece ser a parte mais triste de


todas, é que, apesar de estar nessa condição, não há nada do que ele se gabe
tanto como do seu intelecto e do seu entendimento. Isso explica por que eu estou
dando tanto atenção a esse problema. Acho muito difícil entender por que muitos
cristãos ficam deveras perturbados e aborrecidos pelo fato de que tantos
intelectuais de renome não crêem no cristianismo, mas o rejeitam e o
ridicularizam. Vocês os conhecem, não preciso mencionar os nomes deles, eles
falam freqüentemente pelo rádio; escrevem nos jornais e produzem os seus
livros, Por que não sou Cristão, e assim por diante. Todavia, muitos cristãos
ficam aflitos e assustados com isso. E isso, reitero, que não posso entender, pois
se os cristãos entendessem esse texto de Isaías, nunca mais ficariam surpresos.
Os entendimentos dos incrédulos estão entenebrecidos! Eles se jactam dos seus
intelectos - claro! Eles dizem: não sou cristão porque tenho cérebro; sou capaz
de pensar, e não me deixo levar por charlatanices, não me rendo a esse tipo de
lavagem cerebral; ainda estou no controle, sou racional, posso pensar e
raciocinar e, por causa do meu entendimento, não sou cristão! Essa é a posição
deles. E aí vocês vêem a obra prima de satanás e o cúmulo do engano. Ele
conseguiu iludir aquelas pessoas, primeiramente quanto a elas próprias, e elas
ficam o tempo todo sem ver que o seu problema real está no seu entendimento!
Isso, para mim, é quase matéria para humor e para riso divino. O principal lema
dos filósofos gregos, dos gregos pagãos, era; “Conhece-te a ti mesmo”! Nesse
conhecimento, diziam eles, estava toda a arte de viver. “Conhece-teatimesmo!”
Digo que é de fazer rir por esta razão, porque não houve nenhum outro ponto em
que eles falharam tão completa e desastrosamente.

Ora, é certo dizer isso hoje como há dois mil anos. Os filósofos não se
conheceram a si mesmos, pois eles pensavam que os seus intelectos eram
bastante grandes e grandiosos para descobrir Deus, abarcar Deus e entender a
Deus! Entretanto, o homem que começa pensando que é capaz de fazer isso, não
é nem um pouco melhor do que o tolo, não se conhece a si mesmo. E os homens
continuam agindo assim. Aqui

desejo ressaltar que essa declaração acerca do entendimento estar obscurecido é


verdadeira quanto a todos os não cristãos. Não pensem que é simplesmente uma
referência a pessoas iletradas e sem instrução. É igualmente verdadeira quanto
aos mais eruditos, aos mais conhecedores, à pessoa mais culta do mundo atual. A
sua mente e o seu entendimento estão completamente obscurecidos. E toda a
sua dificuldade acerca do evangelho é que existe essa escuridão entre a
sua mente e o objeto da sua observação.

Talvez uma singela ilustração deixe isso mais claro e mais simples. Acaso vocês
não observaram muitas vezes que o que é dito para zombar do cristianismo por
aqueles supostamente grandes filósofos e pensadores, também é dito exatamente
da mesma maneira por João, José e Joaquim, pelo homem dali da esquina? O
que leva os primeiros ao repúdio não é o seu intelecto; os outros podem não ser
intelectuais, porém dizem exatamente a mesma coisa. O grande filósofo escreve
o seu livro sobre Por que não sou Cristão, e dá a impressão de que a
sua incredulidade é produto do seu intelecto poderoso. Mas, vão ouvir o homem
da esquina, que diz: “Não sou cristão”, e verão que ele lhes dará exatamente as
mesmas razões; não há diferença nenhuma. O cristianismo já deu o que tinha, é
tolice, está fora de época. Sua terminologia é ligeiramente diferente, entretanto o
argumento essencial é precisamente o mesmo.

Esta é uma questão muito importante, que devemos compreender. Vejam algo
como isto: lembro-me de uma experiência que tive há alguns anos; eu estava
sendo levado por um amigo através de uma parte da Irlanda do Norte, e ele me
disse que, em certo ponto da viagem, poderíamos ver a Escócia. Finalmente
chegamos àquele ponto, mas não pudemos ver a Escócia. Por quê? Porque
baixara um nevoeiro! Olhei com toda a intensidade de que fui capaz, a
continuei sem ver nada, senão o nevoeiro. O meu amigo continuava dizendo:
“A Escócia está bem ali”, porém eu não a consegui ver. Ora, por que eu não
pude ver a Escócia? Foi porque de repente comecei a padecer de alguma terrível
doença dos olhos? De repente desenvolvi catarata? Meu nervo ótico ficou
paralisado de repente? Havia algum defeito no funcionamento do meu órgão
visual? Absolutamente não! O funcionamento estava normal como sempre,
todavia eu não consegui ver a Escócia. Por quê? Era o nevoeiro - a escuridão do
nevoeiro. Mas o fato de que eu não pude ver a Escócia não significa que a
Escócia não estava lá. E se eu começasse a dizer: não acredito que a Escócia
está lá, não acredito que ela poderá ser vista alguma vez, estou olhando e não
consigo vê-la - que é que vocês diriam de mim? Teriam dito que

eu era um tolo, e teriam dito isso com razão. Essa é precisamente a situação de
todos os não cristãos. Os seus entendimentos estão obscurecidos! Não estou
dizendo que os poderosos filósofos não têm grandes cérebros. Contudo o maior
cérebro do mundo não consegue ver através do nevoeiro, e quando o véu das
trevas desce, como desceu sobre toda a raça humana, a maior mente do mundo
fica inútil.

O apóstolo está dizendo exatamente a mesma coisa nos dois primeiros capítulos
da Primeira Epístola aos Coríntios. “Vede, irmãos”, diz ele, “a vossa vocação,
que não são muitos os sábios segundo a carne, nem muitos os poderosos, nem
muitos os nobres que são chamados”. E por que não? Porque confiam em seus
próprios entendimentos; estão entenebrecidos, estão cegos e não conseguem ver.
Quando o Senhor veio, os príncipes deste mundo não O conheceram. Eles
disseram; “Este sujeito, este carpinteiro, fora com ele, crucifiquem-no!” Por que
fizeram isso? Porque não o conheceram, “pois, se o conhecessem, nunca
crucificariam ao Senhor da glória”. Como, então, nós sabemos que Ele é o
Senhor da glória? Ah, diz Paulo: “o Espírito no-las revelou”, “porque o Espírito
penetra todas as coisas, ainda as profundezas de Deus”. “O homem natural não
compreende as coisas do Espírito de Deus, porque lhe parecem loucura; e não
pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente” - ele não tem como
remediar isso. Brilhante como possa ser, se houver nevoeiro, não conseguirá ver!
Vocês continuam surpresos porque esses não cristãos ridicularizam a encarnação,
os milagres, as duas naturezas em uma só Pessoa, e derramam o seu escárnio
sobre a expiação sacrificial e substitutiva, e sobre a idéia de que Deus puniu os
nosso pecados em Seu Filho? Não é razoável, dizem; é irracional e imoral; não
posso aceitá-lo. Há somente uma resposta apropriada, quando eles dizem isso, e
a resposta é esta: claro que você não pode! Alguma vez pensou que pudesse?
Você não se deu conta de que a sua mente está toda obscurecida, que a sua
natureza está toda pervertida, que o véu da ignorância desceu sobre você, como
sobre todos os demais, que você está na mesma situação da mais simples
criança, do homem mais humilde, mais ignorante do mundo, e que toda a sua
mente e o seu entendimento estão entenebrecidos? E nós, como cristãos, não
temos por que surpreender-nos com isso, não temos por que ser perturbados por
isso. Graças a Deus, a verdade é essa! Graças a Deus que não se trata,
primordialmente, de uma questão de entendimento. Graças a Deus, digo, por esta
boa razão, que o maior filósofo do mundo neste momento está exatamente na
mesma situação do mais ignorante membro de uma tribo numa selva primitiva.
O grande filósofo não tem vantagem alguma sobre o pagão, nesta questão do
evangelho. En-

quanto os dois não estiverem sob a influência e poder do Espírito Santo de Deus,
nenhum deles o verá. Mas, graças a Deus, quando o Espírito Santo vier sobre
ambos, ambos o verão; não somente o filósofo, nem somente o pagão, e sim os
dois juntos! Voltemos à minha ilustração. Tome-se o maior filósofo do mundo
esta manhã, e tome-se um homem iletrado e ignorante; juntem-se eles a mim
enquanto estou là na Irlanda do Norte olhando na direção da Escócia. E nenhum
de nós consegue ver nada. No entanto, depois o nevoeiro se evola, e nós três
podemos ver a Escócia. Não é questão de capacidade intelectual, pequena
ou grande; é questão de se ter este poder de visão; o homem o perdeu, o seu
entendimento ficou obscurecido, e isso é efeito da Queda.

Então, se o observarmos doutra maneira, veremos que o efeito da vinda do


evangelho é sempre descrito em termos de luz. “O povo que estava assentado
nas trevas viu grande luz!” (Mateus 4:16). E me permitam completar a minha
citação de Isaías 60:2 e 3: “mas sobre ti o Senhor virá surgindo, e a sua glória se
verá sobre ti. E as nações caminharão à tua luz, e os reis ao resplendor que te
nasceu”. Ou escutem Paulo dizê-lo uma vez por todas: “Deus, que disse que
das trevas resplandecesse a luz, é quem resplandeceu em nossos corações, para
iluminação do conhecimento da glória de Deus, na face de Jesus Cristo” (2
Coríntios 4:6). Aí, está! E como a vinda da luz às trevas.

Neste ponto deixem-me fazer uma pergunta simples. Você, amigo, crê neste
evangelho? Crer neste evangelho é tudo para você? Se não é, o seu coração está
entenebrecido. Você pensa que sabe, pensa que entende, mas não. Esta é a única
razão pela qual as pessoas não crêem no evangelho e não são cristãs. Contudo,
deixem-me expressá-lo assim: você é cristão, mas tem em sua mente perfeito
entendimento quanto ao que está errado com os outros que não são cristãos?
Você se tornou um tanto impaciente, talvez, com o marido ou com a mulher ou
com os filhos ou com os pais que ainda estão na incredulidade? Você se enerva
quando lhes fala destas coisas? Você se sente como se os estivesse sacudindo
porque eles não enxergam isso? Se é assim, é porque você ainda não entende que
o problema com os incrédulos é que o entendimento deles está obscurecido!
Você pode demonstrar a verdade, pode argumentar, arrazoar e expô-la a eles à
perfeição, e eles não verão nada nela. E isso simplesmente por causa das trevas
do entendimento; não têm como ajudar-se, não podem fazê-lo. _

Há uma história que, para mim, ilustra isso tudo perfeitamente. É sobre William
Pitt, o Jovem, um dos maiores Primeiros Ministros que a Inglaterra já teve. Ele
era amigo de William Wilberforce, o libertador dos escravos. Mas havia uma
grande diferença entre eles:

William Wilberforce tinha passado pela conversão evangélica e se tomara o


santo que foi; William Pitt, naturalmente, era um cristão nominal, porém isso
não significava nada para ele. Ora, naquele tempo havia em Londres um grande
clérigo e pregador da Igreja da Inglaterra chamado Richard Cecil, e o prazer da
vida de Wilberforce era ouvir a pregação desse homem. Ele também desejava
muito que o seu amigo Pitt fosse com ele. Sempre o convidava, e sempre
havia alguma escusa - deveres de Estado, muito ocupado, e assim por
diante. Contudo, chegou o dia em que William Pitt disse a William
Wilberforce: vej o que estou livre e posso ir com você domingo que vem.
Wilberforce ficou à espera, ansiosamente, e orando por seu amigo, orando
no sentido de que lhe viesse um raio de luz. Domingo de manhã foram ao culto.
Richard Cecil estava pregando em suas melhores condições, sob a unção do
Espírito, e Wilberforce subiu aos mais altos céus. Ele se deleitava e se gloriava
na verdade, tendo uma festa na alma, todo o seu ser sendo comovido até às suas
maiores profundezas; ocasionalmente se perguntava o que estaria acontecendo
com o seu amigo. Todavia, o culto terminou e, quando iam saindo juntos, mesmo
antes de saírem do vestíbulo, William Pitt virou-se para William Wilberforce a
disse: “Sabe, Wilberforce, não tenho a mínima idéia do que aquele homem
estava falando”.

Não tenho dúvida de que, a julgar os homens segundo a carne, William Pitt era
maior do que William Wilberforce, maior cérebro, maior estadista. Mas não é
isso que realmente importa. A verdade celestial, espiritual, proferida por Richard
Cecil não significava absolutamente nada para ele; ele não sabia do que se
tratava; aborreceu-se, e não via a hora em que aquilo acabasse! O outro homem
se deleitava e se regozijava! Vocês vêem o que faz a diferença? As trevas!
Trevas que ninguém senão o Espírito Santo pode eliminar.

Qual é, então, o objetivo do meu argumento? É que nós, cristãos, devemos estar
cientes disso, quando pensamos em outros que ainda não são cristãos.
Reconhecemos nós a causa da dificuldade, que essa espantosa escuridão
sobreveio e amortalhou o entendimento? E mesmo que façamos tudo o que
pudermos, de nada valerá. Há somente uma coisa que pode afastar o nevoeiro e
tirar o véu, e essa é o impacto do Espírito. Já tentamos quase tudo mais, não
tentamos? Temos organizado, arranjado e utilizado meios e métodos que nós
mesmos sentíamos que eram duvidosos. Resolvemos usar qualquer coisa que nos
trouxesse as pessoas e as levasse à conversão. Mas não funciona! Como pode ser
isso? As trevas no entendimento, o véu do pecado é a causa do problema. E só
há uma coisa que pode tratar disso. Graças

a Deus, diz Paulo aos coríntios, isso aconteceu conosco: “As coisas que Deus
preparou para os que O amam... Deus nos revelou pelo Seu Espírito” (1
Coríntios 2:9 e 10). “Mas nós não recebemos o espírito do mundo, mas o
Espírito que provém de Deus, para que pudéssemos conhecer o que nos é dado
gratuitamente por Deus.” E a quem quer que ache todo este assunto aborrecido,
eu gostaria de dizer: se você não sabe do que é que eu estou falando, se você não
entende estas coisas, digo que é porque a sua mente, o seu entendimento está
obscurecido, você está sob o domínio do diabo, de satanás, você está
amortalhado por estas trevas do mal e do inferno. Trate de dar-se conta disso, é
o que aconselho, e clame por luz, peça a Deus que abra os seus olhos! Veja a
aterrador condição em que você está.

Também digo outra palavra aos que são cristãos, aos que gozam e vêem estas
coisas. O meu supremo dever, e o seu, é orar por avivamento, orar rogando que o
Espírito Santo desça sobre a Igreja de modo que venhamos a falar de tal maneira
que os homens vejam. Eu mesmo não posso fazê-lo; sou como este apóstolo, e
ainda pior, “em fraqueza, e em temor, e em grande tremor”; não tenho confiança
em mim mesmo, nem na igreja, nem em nenhuma organização, nem em qualquer
outra coisa. Nenhum agente humano pode fazê-lo. Mas o Espírito pode - “em
demonstração de Espírito e de poder”. Você ora diariamente por seu pastor para
que ele seja cheio do Espírito de poder, para que ele possa pregar em
demonstração do Espírito e de poder? Você ora nesse sentido, ou deixa tudo com
ele? Porventura oramos rogando que o Espírito tome posse de nós? Oramos por
avivamento? Sabemos do estado da sociedade, sabemos do estado de
Londres, sabemos do estado do mundo, vivemos falando disso. No entanto,
isso não basta! Não devemos confiar em nenhum homem, nem em numerosos
homens. Necessitamos do Espírito de Deus, necessitamos de uma visitação com
poder avivador, e somos chamados para orar por isso, cada um de nós. Só somos
cristãos porque o Espírito de Deus abriu os nossos olhos cegos e tirou de nós as
trevas. E essa é a necessidade de todos os outros. Que palavra, que frase, a do
apóstolo! Os homens “andam na vaidade do seu sentido, entenebrecidos
no entendimento”. Pobres e tolos obscurecidos, apesar da sua sofisticação e
inteligência, dos seus argumentos e debates pelo rádio e pela televisão, e dos
seus artigos e livros! Que brilhante! Mas é o brilho da bolha de espuma! Não há
nada nela. E a cegueira deles é resultado das trevas. Tenham compaixão deles.
Não se contentem em denunciá-los; orem por eles. Acima de tudo, orem rogando
que o Espírito de Deus venha com tal poder que as trevas deles sejam removidas
e os seus olhos sejam abertos.

SEPARADOS DA VIDA DE DEUS

“E digo isto, e testifico no Senhor, para que não andeis mais como andam
também os outros gentios, na vaidade do seu sentido, entenebrecidos no
entendimento, separados da vida de Deus pela ignorância que há neles, pela
dureza do seu coração; os quais, havendo perdido todo o sentimento, se
entregaram à dissolução, para com avidez cometerem toda a impureza.
” - Efésios 4:17-19

Continuamos o nosso estudo desta análise extraordinária que o apóstolo nos dá


aqui da vida do incrédulo, da vida de toda pessoa não cristã. Paulo estava de fato
analisando e fazendo uma esmerada e minuciosa descrição da vida dos gentios
pagãos em seus próprios dias e em sua geração. Mas, como vimos, é uma
descrição igualmente verdadeira hoje, como sempre foi, em todas as eras e
gerações, de todos quantos se acham fora da vida de Deus.

Estamos examinando isso por certas razões específicas; a primeira,


naturalmente, é a que Paulo coloca em primeiro plano, a saber, para que, tendo
uma compreensão veraz daquela espécie de vida, possamos odiá-la, evitá-la e
ficar tão longe dela quanto pudermos. Uma segunda razão é esta: quanto mais
entendermos o caráter e a natureza daquela espécie de vida, mais chegaremos a
entender e a apreciar o que Deus fez por nõs, em Sua graça, livrando-nos
daquela vida. Como pôde Ele sequer olhar para nós naquela condição? No
entanto Ele o fez! Eessa é uma das melhores maneiras de enaltecer a
incomparável graça de Deus. São as pessoas que entendem melhor o pecado e o
que ele significa, que entendem e apreciam melhor o amor, a graça, a
misericórdia e a bondade de Deus. Um conceito superficial do pecado leva a um
conceito superficial da salvação, e a um conceito superficial de tudo mais.
Assim, acompanhamos o apóstolo enquanto ele mostra as profundezas do
pecado e da iniqüidade para que nos habilitemos a medir a altura, a
profundidade, a largura e o comprimento, e conhecermos o amor de Cristo que
excede o conhecimento. E terceiro, estamos fazendo isto, como eu já disse, a fim
de podermos ter um verdadeiro entendimento da condição daqueles que são
nossos conhecidos, entre os quais vivemos, e que ainda não são cristãos.

Esta é certamente a primeira coisa, com relação à evangelização, e todos nós


somos evangelistas, se somos cristãos de verdade; todos nós vivemos entre
outras pessoas. Nos primeiros dias da Igreja o cristianismo espalhou-se por meio
de cristãos individuais que, quando perseguidos e dispersos, iam por toda parte e
diziam ao povo por que eles foram perseguidos e o que era ser cristão. E de igual
modo, em dias e tempos como os atuais, esta questão de evangelização torna-
se cada vez mais uma questão pertencente à nossa vida, experiência
e testemunho pessoal. Temos, pois, que ter um verdadeiro entendimento desse
estado pagão, porquanto isso determinará o nosso método. Se nos dermos conta
da profundidade da iniqüidade, se nos dermos conta de que esta é a pura e
simples verdade acerca de todos os não cristãos, então, digo eu, seremos levados
a pôr-nos de joelhos; isso nos ajudará a ver que nada menos que o extraordinário
poder do Espírito Santo de Deus pode realmente tratar de uma tal situação.
Passaremos mais tempo em oração e em clamor por um poderoso avivamento
religioso, por um derramamento do Espírito de Deus sobre nós. Portanto,
não hesito em dizer que se eu e você não estamos orando por avivamento, há
somente uma explicação. É que não compreendemos a natureza do problema que
nos confronta. Pensamos que ainda podemos fazê-lo por meio de organizações
ou de outras atividades, porém tão logo vejamos que o homem está realmente em
pecado, saberemos que nada menos que o poder de Deus tem possibilidade de
lidar com ele. E não vejo esperança hoje, fora de um poderoso despertamento
espiritual, como os que Deus concedeu nos séculos passados. Há um século
Ele concedeu um, em 1857,1858,1859; outro no século dezoito; e há mais tempo
ainda, a Reforma Protestante, no século dezesseis. Digo que, se entendermos
realmente as condições do mundo nos tempos atuais, todos nós nos poremos de
joelhos, rogando a Deus que envie o Seu Espírito com extraordinário poder
revitalizador. Aí estão, pois, as nossas razões para aprofundar-nos nestas
questões em detalhe. Já vimos a descrição geral dos “outros gentios” que
“andam na vaidade da sua mente” - e começamos a estudar a análise que Paulo
fez da situação. Vimos que uma razão para a vaidade das suas mentes é
o entenebrecimento do entendimento. Mas não é só isso. Agora vamos passar a
examinar a segunda coisa dita pelo apóstolo: “separados da vida de Deus”. É por
isso que estes “outros gentios” estão andando na vaidade das suas mentes; os
seus entendimentos estão obscurecidos, e eles estão separados da vida de Deus.
Esta é outra declaração tremenda, e é importante que entendamos o que o
apóstolo está dizendo aqui. O que quer dizer exatamente estar separado da vida
de Deus? Que é a vida de Deus? Há alguns que acham que as palavras

significam o tipo de vida que Deus aprova, e certamente isso está incluído,
todavia elas querem dizer muito mais. A vida de Deus não é meramente a vida
piedosa, a vida que Deus nos indica nas Escrituras como sendo a vida reta. A
vida de Deus não significa uma vida virtuosa apenas, ou uma vida vivida de
acordo com as veredas de Deus, e de acordo com a Sua santa lei. Inclui isso,
porém a frase em foco vai além. Permitam-me provar-lhes isso.

Se o apóstolo só quisesse referir-se à vida peidosa, à vida de bem, à vida


virtuosa, não teria usado a palavra que de fato usa aqui, quando fala sobre a vida
de Deus. Na língua grega se empregam duas palavras para vida: uma é a palavra
bios, a palavra que utilizamos quando falamos em biologia. Biologia é o estudo
da vida no sentido de estudo da organização da vida, do curso geral ou do teor
geral de uma vida. Pois bem, aqui o apóstolo não fez uso dessa palavra. Das
duas palavras, “bios” é a inferior. Indica a vida em geral, por assim dizer, a vida
como existe nas plantas, nos animais e no próprio homem. Mas o apóstolo não
usou essa palavra, de modo que não devemos interpretar “a vida de Deus” como
significando apenas a vida de bem, a vida piedosa, a vida virtuosa. Ao invés
disso, ele utiliza a outra palavra para vida - zoe. Esta é a palavra elevada que ele
sempre usa, e que as Escrituras usam em toda parte, quando o assunto é a vida
propriamente dita, o princípio de vida. Ela significa realmente, num aspecto,
a própria vida de Deus, a vida divina como um princípio dentro de nós. Portanto,
quando afirma que os homens estão separados da vida de Deus, está se referindo
à vida que há em Deus mesmo, e àquele princípio de vida que Deus dá aos que
crêem nEle.

Deixem-me ilustrar o que quero dizer. Eis o que o apóstolo Pedro escreve na
primeira parte da sua Segunda Epístola: “Pelas quais ele nos tem dado
grandíssimas e preciosas promessas, para que por elas fiqueis participantes da
natureza divina, havendo escapado da corrupção, que pela concupiscência há no
mundo”. Ali Pedro está dizendo a seu modo exatamente o que o apóstolo Paulo
está dizendo aqui. Ambos dizem a mesma coisa. É por isso que, se você
realmente entende e estuda completamente uma grande Epístola, como
esta Epístola aos Efésios, você de fato comhece toda a doutrina da Bíblia. A
Bíblia é um livro uno. Paulo fala da “vida de Deus”. Pedro nos diz que os filhos
de Deus são “participantes da natureza divina”. Assim, Paulo se refere aqui à
vida que vem de Deus, à vida que Deus dá. Os pagãos, os incrédulos, os não
cristãos, diz ele, são completamente alheios a essa vida, estão inteiramente
separados dela, alienados.

A tragédia do homem em pecado, do homem que não é cristão, é que ele está
fora da vida de Deus, não participa dela, não a conhece,

não a desfruta. O nosso Senhor realmente expressou isso uma vez por todas,
simples, clara e perfeitamente, em Sua grande oração sacerdotal, registrada no
capítulo dezessete do Evangelho Segundo João. Foi assim que Ele orou: “E a
vida eterna é esta: que te conheçam, a ti só, por único Deus verdadeiro, e a Jesus
Cri sto, a quem enviaste”. Diz Ele: fui enviado ao mundo por Ti, e fui enviado
para dar ao Teu povo este dom da vida eterna! Essa é a vida eterna. O homem
que está sem ela não conhece o único Deus verdadeiro, nem a Jesus Cristo. Esse,
diz Paulo, é o problema com estes “outros gentios”; eles estão andando
na vaidade da sua mente, estão caçando bolhas. Não somente porque os seus
entendimentos estão obscurecidos, mas também porque são absolutamente
alheios à vida de Deus; não a conhecem, não são participantes dela.

Aqui devemos notar uma coisa muito interessante (cada palavra é tão
importante!): “Entenebrecidos no entendimento, estando separados. ..” (VA). A
tradução deveria ser, “tendo se tomado separados”. Importante e iluminadora
diferença! Não é que eles são ou estão separados da vida de Deus; tornaram-se
separados da vida de Deus. Aí está mais uma referência à Queda do homem. Já
vimos que o entendimento do homem está entenebrecido por causa da Queda;
o homem perdeu esse entendimento quando Adão caiu em pecado. Aqui está
outra conseqüência. O homem se tornou alienado da vida de
Deus. Originalmente ele estava em comunhão com Deus; Deus fez o
homem para Si, e o homem foi destinado, não somente a conhecer a Deus, como
também a gozar comunhão com Ele. Deus o fez à Sua imagem justamente por
essa razão. E essa era a situação no princípio. Lemos sobre a vinda de Deus ao
jardim. O homem olhava para Deus com o rosto descoberto, e fruía a Deus.
Estava em perfeita comunhão e amizade com Deus, e compartilhava algo da
sempiterna e eterna vida de Deus.

E aí está por que a Queda do homem é a maior tragédia da sua história, e por que
a doutrina da Queda é essencial para ter-se algum entendimento da vida atual
neste mundo. Por que vemos o homem “andando na vaidade da sua mente”?
Porque ele abandonou a vida de Deus! Caiu em Adão e desde a Queda ele
continua naquelas condições. Ele está fora do jardim, e os querubins e a espada
flamejante estão guardando a porta oriental de entrada. O homem não pode
voltar para lá; está fora; e a vida se tornou uma solidão por causa dessa queda e
da perda da vida de Deus. Como resultado da Queda, o homem foi cortado da
verdadeira vida, foi cortado da fonte do seu ser, e é desse jeito que ele ficou daí
em diante. De modo que, o que eu e vocês

chamamos vida não é vida, é mera existência. O homem em pecado não vive,
existe, vive como um animal, está em busca de vaidades. Ele foi cortado da vida
de Deus, a fonte do seu ser, e está meramente existindo. Não está mais no
paraíso, está fora, num deserto - sem repouso, intranqüilo e insatisfeito. Tem
dentro de si uma vaga reminis-cência de que fora destinado a algo maior; não
pode livrar-se dela; há dentro dele um senso de Deus. Ele tem consciência de
uma contradição. “Ele sente que não foi feito para morrer”, como o poeta
o expressa. Ele tem uma vaga recordação doutra existência e doutro tipo de vida,
e o resultado é que ele anela por um paraíso que perdeu. Ele o está sempre
buscando, todavia não o pode encontrar. Ele ficou alienado da vida de Deus.

E, contudo, com este senso de Deus dentro de si, o homem tem que cultuar
alguma coisa, pelo que ele faz os seus deuses, faz os seus ídolos. Nos tempos
antigos os faziam de madeira, de pedra e de metais preciosos. Ainda fazem isso
nalguns lugares, mas temos outros meios de fazê-lo hoje, pois somos idólatras
por natureza, todos nós e cada um de nós. Adoramos a nós mesmos, adoramos a
nossa família, adoramos o nosso país, adoramos os nossos bens, a nossa posição
- temos que ter um deus! E o homem sempre esteve fazendo deuses. Há um
espírito de adoração dentro de nós, e o homem procura satisfazê-lo. No entanto,
nada disso satisfaz; no fim ele sente que está fazendo papel de bobo. E os deuses
que ele fabrica para si não satisfazem. Ele está sempre em busca do “Deus
desconhecido”, e não consegue achá-10. Já tentou achá-10 com a sua filosofia,
mas nunca teve sucesso. “O mundo não conheceu a Deus pela sua sabedoria” (1
Coríntios 1:21). Assim é que, como digo, o homem está nessa solidão, e a sua
vida, a sua existência, é insatisfatória. Ele é um pobre infeliz e, tendo perdido o
contato com Deus e a vida de Deus, perdeu o seu senso de valores; não
compreende a verdadeira natureza de si próprio, não percebe o que realmente é
de valor. Assim, passa o tempo caçando vaidades, sonhando com espirais de
fumaça, e não encontra paz nem descanso, e nunca encontra satisfação.

Ah, quão ativamente o homem se tem empenhado na busca dessa satisfação!


Leiam a história dos séculos, leiam os seus livros de história secular, leiam a
história das grandes civilizações que surgiram e caíram. Que é que isso tudo
significa? Façam um rápido exame de toda a história da raça humana, e o que
verão? Verão a história do homem tentando achar um lugar de repouso, tentando
achar algum lugar ou alguma coisa em que afinal encontre as respostas às
suas indagações, e a satisfação fundamental à qual aspira. Mas sempre
e constantemente, no fim dos seus mais altos esforços, de um modo ou

de outro, ele tem que admitir e confessar: “Tentei as cisternas rotas, Senhor, mas
ah, suas águas falharam!” Muitos homens, se não são cristãos, vão perdendo as
esperanças cada vez mais, à medida que envelhecem. O cinismo e o desespero se
lhes apegam e os penetram, porque tudo parece tão fútil, e todo o esforço não
leva a nada. Qual é a questão? O real problema é justamente esta mesma coisa da
qual o apóstolo está falando. O homem não vê e não sabe que a sua necessidade
suprema é a sua necessidade de Deus, o conhecimento de Deus, a participação
na vida de Deus! O homem não compreende o que o autor do Salmo 42
compreendeu tão claramente, quando disse: “Como o cervo brama pelas
correntes das águas, assim suspira a minha alma por ti, ó Deus! A minha alma
tem sede de Deus, do Deus vivo!” Esse é um homem que sabe, que descobriu a
sua necessidade e está na pista da solução. Se tenho Deus, diz ele, tenho tudo.
Entretanto o homem em pecado, na vaidade da sua mente, não sabe disso, não
o compreende; seu entendimento está obscurecido, e assim ele se tomou alienado
da vida de Deus.

Meus amigos, não peço desculpa por fazer-lhes algumas perguntas simples nesta
altura. Vocês conhecem a Deus? Vocês participam da vida de Deus? Vocês
encontraram paz e descanso para as suas almas? Citemos mais uma vez a
declaração imortal de Agostinho: “Fizeste--nos para Ti, e os nossos corações não
descansarão enquanto não acharem descanso em Ti!” Vocês gozam descanso no
coração, paz na alma? Tendo experimentado as cisternas rotas e tendo-as visto
falhar, vocês encontraram o Manancial de águas vivas, a Fonte de toda bem--
aventurança? Essa, vocês vêem, é a diferença entre os não cristãos e os cristãos.
O não cristão está separado da vida de Deus. O cristão é, por definição, alguém
que não está mais separado e alienado; ele conhece a vida de Deus, ele a
desfruta, ele está nessa vida.

Mas devemos ir adiante. Por que é que o incrédulo, o ímpio, está separado dessa
maneira da vida de Deus? O apóstolo nos dá duas respostas a essa pergunta, e
ambas se acham neste versículo dezoito. A primeira é: “pela ignorância que há
neles”; em segundo lugar, “pela cegueira (ou dureza) de seu coração”. Devemos
examiná-las bem, porque, se há alguém que não conhece a Deus e que não
está desfrutando a vida de Deus, devo dizer-lhe o porquê disso. Para mim, esta é
a essência da evangelização: mostrar às pessoas por que elas não estão
desfrutando a vida de Deus. É, diz o apóstolo, por causa da ignorância que há
nelas. Vimos que essa ignorância está nelas porque os seus entendimentos estão
obscurecidos. Ah, sim, porém a pergunta vital aqui é: de que exatamente elas são
ignorantes? Através da Bíblia

toda a afirmação é que o real problema da humanidade é a ignorância. Estamos


vivendo em dias e numa época em que nos gabamos de tudo o que sabemos.
Lemos as nossas enciclopédias, e fragmentos de informação nas revistas. Já não
lemos livros grandes, mas procuramos saber um pouco de tudo com os nossos
sumários e sinopses. Então ouvimos esses enigmas intermináveis, e as pessoas
parecem saber tudo! E, todavia, é-nos dito que o principal problema da
humanidade hoje é a ignorância! - “pela ignorância que há neles”! De que é
que eles são ignorantes?

A primeira e principal realidade da qual eles são ignorantes é o próprio Deus.


Por que eles estão separados da vida de Deus? Há só uma resposta. E porque não
O conhecem e não sabem a verdade acerca dEle. Se os homens tão-somente
soubessem a verdade sobre Deus, toda a situação deles mudaria, todavia eles são
ignorantes acerca de Deus, ignorantes do Seu caráter, ignorantes do Seu ser,
ignorantes dos Seus atributos. Por que será que o homem gasta o seu tempo na
Feira da Vaidade? Por que será que ele gasta o seu tempo iludindo-se com essas
puras bolhas de sabão, essas vaidades que fogem e desaparecem? Que é que há
com ele? Eu digo que o problema com ele é que ele tem um gosto por demais
estragado e baixo, não conhece coisa melhor; não conhece a Deus e não conhece
o caráter, o ser e os atributos de Deus. Que são eles? Primeiro e acima de tudo,
ajlória de Deus! Esse é, de modo final, o supremo atributo de Deus. É o que faz
de Deus Deus -a Sua glória! Ele habita na luz da qual homem nenhum pode
acercar-se, que homem nenhum jamais viu nem pode ver. “Ó Senhor, a
Tua glória enche os céus; da sua plenitude a terra se abastece.” Os anjos e
arcanjos e todos os espíritos glorifícados passam todo o seu tempo dando glória
a Deus. A glória de Deus! Ah, se tão-somente tivéssemos um vislumbre disso, se
o mundo todo tivesse um vislumbre dela, a situação se revolucionaria
completamente; mas os homens e as mulheres não conhecem a glória de Deus.
Estão interessados na glória, é claro; gostam de atribuir glória uns aos outros e
aos grandes vultos, e se dispõem a ficar horas a contemplá-los e a aplaudi-los.
Assim eles dão glória aos reinos que perecerão, com a terra e toda a sua glória.
Por que fazem isso? Porque jamais conheceram a glória de Deus!

Pensem então na majestade de Deus e em Sua eternidade. Deus é o Pai das luzes,
em quem não há mudança, nem sombra de variação. De eternidade a eternidade,
Ele é o mesmo. Uma vez alguém o expressou com uma frase impressiva: “O
tempo não imprime nenhuma ruga na fronte de Deus”. Sempitemo e Eterno! O
Eterno, o Deus bendito para sempre e sempre! A humanidade alguma vez deu
alguma atenção a isso? A humanidade pensa na santidade de Deus? Vocês já

notaram como isso vem expresso no cântico entoado por Moisés e pelos filhos
de Israel? “Ó Senhor, quem é como tu entre os deuses? quem é como tu
glorificado em santidade, terrível em louvores, obrando maravilhas?” (Êxodo
15:11). Vocês têm alguma concepção da santidade de Deus? Pensem depois,
também, na Sua justiça e na Sua retidão. Ouçam falar o salmista destes atributos.
“Atuajustiçaécomo as grandes montanhas; os teus juízos são um grande
abismo!” (Salmo 36:6). Deus é o Deus de toda a terra. E vocês têm pensado em
Seu poder? “No princípio criou Deus os céus e a terra.” Deus falou, e foi feito;
Deus disse: “Haja luz. E houve luz”. Sim, diz o cântico de Moisés e dos
israelitas redimidos: “Ele é glorioso em poder” (Êxodo 15:6, VA); é o poder da
Sua glória. Deus não somente fez todas as coisas, Ele sustenta todas as coisas.
Como o Salmo 103 o expressa, se Deus retirasse o Seu Espírito, ainda que por
um momento, todo o cosmos entraria em colapso; toda árvore, todo animal, todo
ser humano. Tudo é sustentado e mantido pelo Espírito do Senhor e, se Ele Se
retirasse, imediatamente a criação inteira entraria em colapso e cairia. Ele não é
somente o Criador, é também o Sustentador de tudo. É o Seu poder que mantém
todas as coisas andando.

Pensem também no amor de Deus e em Sua misericórdia, em Sua compaixão e


em Sua graça. Sabemos algo disso, não sabemos? Estudando
estaEpístolaaosÉfésios.lemos: “Mas Deus, que é riquíssimo em misericórdia,
pelo seu muito amor com que nos amou...”, e então vem a frase suplementar “..
.para mostrar nos séculos vindouros as abundantes riquezas da sua graça, pela
sua benignidade para conosco em Cristo Jesus”. Paulo falou também das
“insondáveis riquezas de Cristo”, da sabedoria de Deus e do Seu poder - os
grandes atributos de Deus!

Ora, o problema com os que levam a vida de vaidade e estão separados da vida
de Deus é que eles não O conhecem. Se tão-somente pudessem ver estas coisas,
dariam as costas a todas as outras coisas e passariam o tempo a contemplá-10, a
admirá-lO, a meditar nEle, a buscar saber mais e mais sobre Ele. Mas não vêem,
são ignorantes e, portanto, passam o tempo indo atrás de tolices e vaidade. Não
foi exatamente isso que Paulo disse aos pagãos de Listra? Eles estavam para
adorar a Paulo e a Barnabé e a oferecer-lhes sacrifícios. Parem! - diz o apóstolo
noutras palavras. Somos homens como vós e pregamos “que vos convertais
dessas vaidades ao Deus vivo...”. É porque não conhecem a Deus que pensais
que somos deuses; é ignorância vossa!

Além disso, os homens não ignoram somente o caráter de Deus, o

Seu ser e os Seus atributos; ignoram também os Seus propósitos e as Suas


dispensações. Ignoram o fato de que Ele continua sendo o Governador deste
mundo, e que Ele tem um plano e um propósito para o mundo e para esta vida.
Não conhecem o Velho Testamento, não conhecem o Novo. Não sabem que
Deus determinou um fim para o tempo, tão certamente como lhe deu início, e
que vem o dia em que Deus dará cabo deste mundo e liquidará com os seus
interesses. E ainda mais grave e importante, eles não sabem que Deus está
determinado a destruir os Seus inimigos e todos os que se Lhe opõem. Não
se dão conta de que este mundo é de Deus e que Deus está determinado a levá-lo
de volta ao que era. Ele o fez perfeito; veio o diabo e o estragou e o arruinou.
Deixará Deus a coisa assim? Claro que não! Deus iniciou este grande
movimento de salvação, e vem o dia em que o diabo e todos quantos lhe
pertencem serão lançados no lago de fogo, e serão eliminados eternamente da
presença do Senhor. Eles não sabem disso. Pensam que, porque podem dividir o
átomo e dominar a sua energia, podem exercer controle sobre a vida, sobre o
mundo e sobre tudo mais. Contudo não podem! O mundo todo está nas mãos de
Deus. “O Senhor reina; tremam as nações” (Salmo 99:1). Ele é todo-poderoso.
Ele trouxe do nada o mundo à existência, e lhe dará fim quando quiser, e nada O
pode deter. Os ignorantes não sabem que estão nas mãos do Deus vivo, e que
“horrenda coisa é cair nas mãos do Deus vivo” (Hebreus 10:31). Bastava que
soubessem disso para não viverem como vivem. Eles são ignorantes do que
Deus fez em Cristo, são ignorantes do Seu grande propósito de redenção e de
restauração, e do tempo da regeneração, quando Cristo voltará e destruirá todos
os Seus inimigos com o sopro da Sua boca. E, naturalmente, são ignorantes do
fato de que eles próprios estão envolvidos nisso tudo. Eles não sabem que “aos
homens está ordenado morrerem uma vez, vindo depois disso o juízo” (Hebreus
9:27). Eles são ignorantes do fato de que, se morrerem em pecado e fora da vida
de Deus, passarão uma eternidade como são agora, e até pior, porque verão a
loucura disso tudo. Eles são ignorantes de todas essas verdades! Estão
“separados da vida de Deus pela ignorância que há neles”.

Entretanto não quero deixá-los com o aspecto negativo. Quero, antes, salientar
que esta é a tragédia, o patético, do homem em pecado. Os nossos corações
deveriam sangrar por todos os que não são cristãos, porque eles não percebem o
que estão perdendo; não percebem que, mesmo neste mundo, como ele é neste
momento, eles podem começar a conhecer a Deus. Não sabem que podem ser
reconciliados com Ele e podem ter este conhecimento dEle, e que podem
começar a desfrutar

Deus aqui e agora. “O fim principal do homem é glorificar a Deus e gozá-10


para sempre.” Não seria trágico que eles gastem o seu tempo correndo atrás das
bugigangas extravagantes deste mundo? Se tão-somente conhecessem esta
grande verdade, imediatamente desistiriam destas coisas sem valor. Mas não a
conhecem, por causa da ignorância que há neles. Não sabem que podem tornar-
se filhos de Deus, herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo. Não sabem
que lhes é possível passar a eternidade, não em aflição, desgraça e infelicidade, e
sim em glória indescritível na presença de Deus, com um corpo glorificado,
inteiramente perfeito em todos os aspectos, contemplando a face de Deus e
fruindo a Deus por toda a eternidade. Eles não sabem disso! “As coisas que o
olho não viu, e o ouvido não ouviu, e não subiram ao coração do homem, são as
que Deus preparou para os que o amam.” “O meu povo”, diz Deus por meio do
profeta Oséias, “foi destruído, porque lhe faltou o conhecimento” (1
Coríntios 2:9; Oséias 4:6). E continua sendo esse o problema! Os
incrédulos estão separados da vida de Deus por causa da ignorância que há
neles. Ah, se apenas O conhecessem! A tarefa do evangelho é abrir os
nossos olhos, bradar: “Despertem! Despertem!”, fazer soar o alarme, dizer aos
homens e mulheres que fujam da ira vindoura e venham conhecer a Deus e
começar a fruí-10. E essa é a minha e a sua tarefa. Temos que falar aos homens e
mulheres acerca desta vida de Deus. Isso é evangelização! Não devemos dizer-
lhes meramente que eles terão isto ou aquilo, ou que receberão um novo impulso
na vida! Não; é conhecer a Deus. As seitas podem dar felicidade e paz
temporária, e mil e uma coisas, mas há só uma coisa que pode levar o homem a
conhecer a Deus, e essa é o evangelho cristão. Ele não oferece um garbo
jovial; ao contrário, ele me faz dizer, nas palavras do grande hino de W.
T. Matson:

Senhor, eu era cego! Não podia ver Em Teu desfigurado rosto a Tua graça;

Mas agora a beleza de Tua augusta face Em radiosa visão irrompe sobre mim.

Senhor, eu era surdo! Não podia ouvir A comovente música de Tua voz;

Mas agora eu Te ouço e em Ti me regozijo,

E as palavras que dizes são-me preciosas, todas.

Senhor, eu era mudo! Não podia falar De Tua graça e da glória do Teu santo
nome;

Mas agora, tocados por Tua chama viva, Meus lábios Teus ardentes louvores
despertam.

Senhor, eu estava morto! Não podia agir Trazendo a Ti minha alma fria,
inanimada; Agora, porém desde que me deste vida, Fora estou da trevosa tumba
do pecado.

Ó meu Senhor, fizeste o pobre cego ver, Fizeste o surdo ouvir, falar fizeste o
mudo, Ao morto deste vida; e eis que rompo então As cadeias do meu horrível
cativeiro.

1
“Conversation” tem outros sentidos, além de conversação. Há também alguns sentidos obsoletos,
arcaicos. Uma antiga edição do dicionário de Webster traz, entre outros, os seguintes sentidos:
intercâmbio, comunhão, familiaridade, discurso, diálogo. Um dos sentidos dados por NuttalVs
Standard Dictionary (1926) é “behaviour”, comportamento. Nota do tradutor.

2
Só na Inglaterra?! Nota do tradutor,
O PECADO NUM MUNDO PAGÃO

“E digo isto, e testifico no Senhor, para que não andeis mais como andam
também os outros gentios, na vaidade do seu sentido, entenebrecidos no
entendimento, separados da vida de Deus pela ignorância que há neles, pela
dureza do seu coração; os quais, havendo perdido todo o sentimento, se
entregaram à dissolução, para com avidez cometerem toda a impureza. ” -
Efésios 4:17-19

Continuamos o nosso estudo desta descrição - alarmante porque é tão exata - que
o apóstolo aqui faz da vida ímpia, da vida do não cristão. Ele estava descrevendo
particularmente o paganismo dos seus dias e da sua geração, porém, como
vimos, temos abundantes provas de que é igualmente uma descrição precisa da
vida dos ímpios desta presente hora. O interesse do apóstolo é que os efésios aos
quais está escrevendo e os quais, tendo-se tomado cristãos, haviam se
emancipado do modo de vida pagão, não vivam mais daquela maneira;
ao contrário, devem ver essa vida com horror. Para usar o termo
utilizado noutros lugares das Escrituras, eles devem fugir dela, devem
recuar dela como faz o cavalo quando alguma coisa o espanta. Esse é o
seu grande objetivo. Mas também, como estive indicando, ele queria fazê-los ver
quão gloriosa salvação eles estavam desfrutando. Esta os libertara daquelas
condições e os introduzira em algo que era essencialmente diferente. E é
importante, acho eu, que compreendamos que este é um dos problemas com que
a Igreja se defronta. E o problema dos homens e mulheres que ainda se acham
naquelas condições. E no momento em que virmos isso, perceberemos que em
nós e por nós mesmos nada poderemos fazer, e que a maior necessidade desta
hora é a necessidade de avivamento e despertamento espiritual. Espero, pois, que
estaremos orando mais e mais por uma visitação do Espírito de Deus à Igreja
nestes tempos terríveis pelos quais estamos passando.

Pois bem, nós vimos que os homens e mulheres estão procurando vaidades futeis
porque não conhecem a Deus, Seu ser e Seus atributos; e, ao retomarmos o nosso
estudo neste ponto, quero ressaltar esta pequena palavra em. Vocês notam que
Paulo diz: “separados da vida de Deus pela ignorância que há neles” (em eles).
Ora, isso é algo que não podemos deixar escapar. O apóstolo usa
deliberadamente a

palavra em, a fim de poder fazer com que os seus leitores em Éfeso, e todos
quantos viessem a ler essas palavras, entendessem o fato de que esta ignorância
da qual ele está falando não é algo superficial, não é meramente uma falta de
conhecimento no sentido intelectual; é isso, mas é muito pior que isso! É algo
entranhado profundamente no homem como resultado da Queda e do pecado.
Portanto, não devemos pensar nela como sendo mera falta de conhecimento
intelectual, que se pode retificar facilmente dando informação - simplesmente
como se pode dar informação aos homens sobre política, ciência ou
qualquer outra coisa. Não é esse o problema aqui; esta ignorância está neles.
É algo que os agarra e se torna parte da própria tessitura de toda a sua vida e
perspectiva.

É extraordinário como os cristãos podem esquecer isto, ou como parecem estar


inteiramente inconscientes disto. Conheci cristãos, muito zelosos no labor
cristão, que realmente acreditavam que tudo o que era necessário era instruir o
povo. Achavam que, se Londres fosse emplastrada com textos, haveria tremenda
resposta. O povo simplesmente não sabe, diziam eles; portanto, que sejam
colocados textos das Escrituras diante dele, por assim dizer, em todo lugar aonde
as pessoas vão. E eles pensavam que, em conseqüência, haveria um
grande retorno para Deus. Não entendiam que a ignorância está nos
homens. Não é meramente intelectual, não é só de informação que as
pessoas necessitam; necessitam disso, claro que sim, porém temos que entender
que essa ignorância é algo que está nas profundezas da personalidade. E me
parece que há um modo muito simples de provar isso. Há muitas pessoas cultas,
intelectuais, muito capazes em termos de conhecimento, que leram o
NovoTestamento, todavia continuam sem ver nada, depois da sua leitura. E
devido à ignorância que está nelas, abaixo do nível do intelecto, e a mera leitura
do texto de nada vale; não é de nenhum proveito para elas, absolutamente.
Portanto, digo eu, é essencial compreendermos que a ignorância é algo que está
nas profundezas dos homens e que se fixa neles; é uma ignorância que
os domina. Se posso tomar emprestada uma frase oriunda doutro segmento da
igreja que não recomendo, é uma espécie de ignorância invencível; a ignorância
está neles. Veremos isso mais claramente com a frase subseqüente de Paulo,
porque, num sentido, ela explica esta frase.

Eles estão separados da vida de Deus, diz o apóstolo, pela - por causa da -
ignorância que há neles, por causa (aqui está a explicação), por causa da
cegueira do seu coração. Estou utilizando aqui a Versão Autorizada que,
infelizmente, neste ponto erra completamente em traduzir a palavra por
“cegueira”. Naturalmente, chega à cegueira,
mas a palavra que Paulo usou não é cegueira, e as versões inglesas Revista e
Revista Padrão indubitavelmente estão certas neste ponto (como se dá com a
versão de Almeida, tanto a Edição Revista e Corrigida como a Edição Revista e
Atualizada no Brasil). A palavra significa dureza ou endurecimento: “por causa
do endurecimento”, ou “por causa da dureza do seu coração”. A ignorância que
há neles é, em parte, a explicação da alienação, porém em acréscimo há um
processo de endurecimento realizando-se no coração.

O que Paulo quer dizer com essa palavra não é meramente que o coração é duro,
mas que se tomou calejado; uma espécie de calosidade o recobriu. A maioria de
nós sabe o que é calosidade. Quando a pele fica grossa na sola do seu pé, por
exemplo, você tem uma calosidade. Esse, diz o apóstolo, é o tipo de coisa que
aconteceu com os corações dos homens. A cobertura, o revestimento, tomou-se
espessa e dura, enrijecida e fibrosa; usem qualquer destes termos, a seu gosto.
Contudo é essa a expressão utilizada aqui; é uma espécie de termo médico. A
coisa toda é uma figura, é claro. O coração mesmo não sente nada; mas o
coração é considerado como o centro e a sede dos afetos e das emoções, e ainda
mais que isso, nas Escrituras é geralmente entendido como valendo pelo próprio
centro e sede da personalidade. No entanto aqui, indubitavelmente, o apóstolo
está pensando primariamente nas emoções e nas sensibilidades. Ele estivera
lidando mais com o intelecto, sob as expressões entenebrecidos no
entendimento, e ignorância que há neles, mas aqui ele diz que, quando seguimos
mais longe a pista do problema, descobrimos que a ignorância que há nas
pessoas e que as domina deve-se, em última instância, ao fato de que se deu
um processo de endurecimento nas profundezas do seu coração, e por causa
deste engrossamento, endurecimento, calosidade, há uma ausência de
sensibilidade; e o resultado da ausência de sensibilidade é que os homens não
são mais suscetíveis à verdade. Não somente não crêem, porém também não são
mais suscetíveis à verdade, pois os seus corações estão endurecidos.

Certamente o nosso Senhor estava pensando em algo semelhante em Sua


parábola do semeador. Ele falou do terreno pedregoso onde parte da semente
caiu, da beira do caminho, do caminho muito batido. A semente não pôde
penetrar naquilo, e as aves a comeram. Esse é o tipo de figura que temos aqui,
fazendo-nos lembrar que em toda parte nas Escrituras, tanto no Velho
Testamento como no Novo, essa condição do coração é sempre posta diante de
nós como o problema fundamental do homem em pecado. É por isso que muitos
podem sentar-se e ouvir o evangelho, e não ser afetado por ele; é por isso
que muitos podem ler a Bíblia, e não ver nada nela; é essa dureza do
coração. Agora, permitam-me dar-lhes um ou dois exemplos do que eu quero
dizer.

Vejam, por exemplo, aquela grande passagem lírica e evangélica que se acha em
Ezequiel, capítulo 36, começando no versículo 17. Pois bem, deixem-me citar-
lhes o versículo 26 em particular, que é a promessa que Deus faz ao povo
concernente ao que o evangelho vai fazer: “E vos darei um coração novo, e porei
dentro de vós um espírito novo; e tirarei o coração de pedra da vossa carne, e vos
darei um coração de carne”. Aí está, perfeitamente exposto. O coração não
é mais flexível, não é mais sensível, mas está endurecido e rijo; tomou-se como
pedra; e a promessa do evangelho é: “tirarei o coração de pedra da vossa carne, e
vos darei um coração de carne”, um coração capaz de sentir, um coração cálido,
um coração capaz de reagir, um coração flexível. A seguir, permitam-me dar-lhes
um exemplo do Novo Testamento, para contrabalançar o que lhes dei do
Velho Testamento. Vamos à Epístola aos Hebreus, e a uma citação que ali é feita
de um salmo: “Portanto, como diz o Espírito Santo, se ouvirdes hoje a sua voz,
não endureçais os vossos corações, como na provocação, no dia da tentação no
deserto, onde vossos pais me tentaram, me provaram, e viram por quarenta anos
as minhas obras. Por isso me indignei contra esta geração, e disse: estes sempre
erram em seu coração, e não conheceram os meus caminhos. Assim jurei na
minha ira que não entrarão no meu repouso”. Neste ponto a citação termina, e o
escritor prossegue, dizendo: “Vede, irmãos, que nunca haja em qualquer de vós
um coração mau e infiel, para se apartar do Deus vivo. Antes exortai-vos uns aos
outros todos os dias, durante o tempo que se chama Hoje, para que nenhum de
vós se endureça pelo engano do pecado; porque nos tomamos participantes de
Cristo, se retivermos firmemente o princípio da nossa confiança até ao fim.
Enquanto se diz: hoje, se ouvirdes a sua voz, não endureçais os vossos corações,
como na provocação. Porque, havendo-a alguns ouvido, o provocaram; mas não
todos os que saíram do Egito por meio de Moisés”. Aí está de novo, exposto
largamente, e repetido, vocês observam, numa Epístola cheia de advertências
ameaçadoras por causa do perigo da apostasia. O que se deve ter em conta é o
coração! “Filho meu, dá-me o teu coração”, diz o Velho Testamento. “Guardem
os seus corações”, diz outro escritor. De acordo com as Escrituras, o problema
está, eventual e finalmente, no coração.

Estou desejoso de deixar isso perfeitamente simples e claro. A dificuldade com o


incrédulo não está meramente em seu intelecto; a totalidade da pessoa está
envolvida, os sentimentos e as sensibilidades
também. Uma das grandes causas de dificuldade e erro é que persistimos em
dividir a personalidade humana de maneira totalmente artificial. Fazemos uma
falsa dicotomia, sempre reprovada nas Escrituras. A tendência hoje é as pessoas
se considerarem como puro intelecto, excluindo as sensibilidades e as emoções.
Crer, dizem elas, é pura questão de intelecto, e elas vêm a isso com uma
abordagem científica. Todavia o homem não é mero intelecto no vácuo! Creia
ele ou não, o fato é que ele é uma estranha combinação e amálgama de
um grande número de coisas - luxúria, paixões, desejos, emoções
e sensibilidades. Conquanto as possa negar, aí estão elas, e o homem está sempre
agindo como um todo. É por isso que é quase divertido, não fora trágico, ver a
maneira pela qual pessoas que posam como puros intelectos, estão
constantemente pondo à mostra o fato de que realmente estão sendo governadas
por seus preconceitos e por seus sentimentos, o tempo todo. Elas falam em Livre
Pensamento, e assim por diante. No entanto não existe livre pensamento onde
não se permite que as pessoas repliquem.

Dou como ilustração o modo como a Teoria da Evolução prendeu as mentes dos
homens, e até muito recentemente não havia oportunidade de réplica para os que
não acreditam nela. A “British Broadcasting Corporation” não costumava dar
oportunidade ao outro lado; não permitia que o assunto fosse debatido pelo
rádio. O que chamam Livre Pensamento não é nada dessa espécie, é preconceito
- o coração envolvido. O fato de que essa rigidez agora relaxou um pouco é
porque os evolucionistas não são tão dogmáticos como eram! Mas
continuam ensinando como fato uma coisa que não passa de teoria. E
esses homens que costumam descrever-se como cientistas frios, desprendidos e
desapaixonados, estão mostrando desse modo, diante dos nossos olhos, a
maneira pela qual o coração se intromete e os governa e os domina. Do começo
ao fim, as Escrituras salientam isso; dizem elas que o homem é uno, que a sua
personalidade é indivisível, e que se tem um conceito inteiramente falso do
homem e da vida quando se tenta isolar essas coisas e desenvolver uma parte a
expensas das outras.

Mas voltemos ao princípio. Diz-nos a Bíblia que no alvorecer da história o


problema de Adão e Eva estava em seus corações, não em suas cabeças. O diabo
sabia muito bem disso. Ele não veio para uma discussão teórica com os nossos
primeiros pais. Não foi uma proposição puramente intelectual que o diabo
apresentou a Adão e Eva. A colocação que lhes fez foi: “E assim que Deus disse:
não comereis de toda a árvore do jardim?” Sua sugestão por certo foi que Deus,
com uma certa proibição limitadora, realmente os estava insultando. Assim foi
que a tentação do diabo saiu da esfera do intelecto e penetrou

na dos sentimentos. Deus quer manter vocês por baixo, disse o diabo a Eva; Ele
sabe perfeitamente bem que no momento em que vocês comerem daquele fruto,
serão deuses, vocês mesmos, e serão iguais a Ele. Noutras palavras, ele estava
jogando no orgulho dela. Contudo, não se trata do intelecto, quando se apela
para o orgulho, a paixão e o desejo de grandeza das pessoas! Deixou-se
completamente a esfera do intelecto; não é mais científico, não é mais
argumentative. Mas o diabo sabia que esse era o ponto em que era provável que
o homem caísse, de modo que concentrou nele todo o seu poder e toda a
sua atenção. O pecado original, a queda original do homem, deveu-se
a dificuldades em seu coração, em suas sensibilidades, em seus sentimentos, em
suas paixões; e continua, persistindo como sempre, desde aquele tempo.

Não sabemos nós como fato da nossa experiência pessoal e pela observação dos
outros, que a persistente desobediência à vontade de Deus e aos caminhos de
Deus sempre produz endurecimento? Toda vez que você comete um pecado, fica
menos sensível. Toda vez que você repete um pecado, a sua consciência o
perturba menos que antes. Na primeira vez, há uma agonia, há uma espécie de
crise, há um sentimento de pesar, um remorso e um sentimento de vergonha;
porém não seria certo que quando se vai repetindo o mesmo ato, há cada
vez menos vergonha, cada vez menos pesar, cada vez menos remorso? A que se
deve isso? Ah, é o tal endurecimento, o endurecimento do coração! Ele vai
ficando cada vez menos capaz de responder, cada vez menos capaz de reagir,
cada vez menos sensível aos apelos. Não há nada na vida, que eu saiba, que seja
mais trágico do que o gradual declínio e endurecimento de uma alma. Vocês não
viram isso? E pena, mas toda pessoa de mais de cinqüenta anos de idade viu isso
mais de uma vez; como um homem que você conheceu quando jovem e
que gradativamente se tornou mais e mais duro, mais e mais frio, e agora parece
completamente insensível. Endurecimento do coração! Éuma coisa pavorosa,
uma das coisas mais tristes da vida. E o que a toma pior é que os homens a
cultivam, e deliberadamente.

Como a citação de Hebreus, capítulo 3, nos indica, em prol dos propósitos do


pecado os homens e as mulheres endurecem deliberadamente os seus corações. E
é claro que você tem que fazer isso, se deseja ter o gozo do pecado. Enquanto o
seu coração for mole e brando, você não poderá gozar o pecado porque o seu
coração protesta o tempo todo, segue-se o remorso, e todo o seu prazer
pelo pecado se vai. Assim é que, se você quiser gozar uma vida de pecado,
de ummodo ou de outro terá que fazer alguma coisa com o seu coração, terá que
endurecê-lo, para que, a despeito de toda a discussão teórica moderna, ele não
continue a afirmar-se. Diz alguém: cheguei à conclusão de que Deus não existe;
essa conversa sobre moralidade e religião é um absurdo total, e vou viver como
eu quiser. Entretanto, apesar de dizer isso, o seu coração continua a dizer-lhe que
há um Deus. Quando ele quebra o dia do Senhor, ele se recorda; gostaria de não
recordar nada, mas o seu coração continua a falar-lhe; ele pratica coisas
maléficas, e o seu coração fala. Prossegue uma batalha dentro dele. Só lhe resta
fazer uma coisa; de algum modo ele tem que tentar silenciar o seu coração!
Muito depois que o intelecto capitulou, o coração continua fazendo os seus
protestos! E assim os homens descobrem que a única maneira de gozar o pecado
é, de um modo ou de outro, silenciar o coração, isto é, endurecê-lo.

Se me pedissem para declarar qual é, em minha opinião, a característica mais


notável da vida sem Cristo, eu diria sem hesitação que é a dureza do coração do
homem. Há muitos que andam por aí como se estivessem mascarados. E eles
põem as suas máscaras deliberadamente. Mas antes de as porem, eles põem essa
dureza em seus corações, esmagando deliberadamente os sentimentos,
assumindo aquela postura, aquela atitude para com a vida, crucificando
deliberadamente coisas dentro de si, silenciando protestos e pisoteando toda
suavidade e brandura. Estão decididos a prosseguir nesse tipo de
comportamento. Dureza no viver! Quão insensíveis algumas pessoas se
tomaram, quase incapazes de solidariedade e compaixão! Para viver essa espécie
de vida você tem que chegar a uma decisão deliberada. Se você permitir que os
seus sentimentos interfiram, tudo ficará prejudicado para você, e por isso você
põe esta couraça em torno de você, por assim dizer, o endurecimento do coração.
Então, o que quer que aconteça, você não nota, você continua a vestir aquela
fachada ousada, e você vai avante com ela. Faz-se isso deliberadamente, uma
espécie de falsa crucificação da própria vida e natureza que Deus nos deu.
E, digo eu, isso está sendo levado a efeito diante dos nossos olhos. Acaso vocês
não acham que, com muitas dessas pessoas, vocês nunca conseguem conhecê-las
realmente? Vocês se deparam com uma máscara, com essa aparência que elas
vestem, parece que nunca vocês podem chegar a elas mesmas. Há uma camada
de aço em torno delas, e elas estão simplesmente agindo como robôs, por assim
dizer. É uma vida mecânica; e todas essas pessoas fazem a mesma coisa,
exatamente da mesma maneira. Usam o mesmo tom, as mesmas frases; é
tudo artificial. O endurecimento do coração! Isso tem que ser feito, se é que elas
querem gozar aquele tipo de vida, porque, se a sensibilidade
permanecer, elas não poderão gozá-lo, haverá protesto o tempo todo; pelo que o
coração tem que ser endurecido.

Que é que se segue? Tendo feito isso por algum tempo - esta é a coisa terrível! -
essas pessoas que cultivam a dureza vêem que realmente se tornaram duras, e
mesmo que ocasionalmente queiram ter algum sentimento, não conseguem.
Assim, por exemplo, quando a morte visita a família, são incapazes de derramar
lágrimas, já não conseguem sentir nada, de tal forma subjugam os sentimentos
que no fim não têm nenhum. E assim a vida se torna cruel. Os idosos se tornam
um estorvo. Que vão para um lar de anciãos, dizem elas. Desse modo, as coisas
que tomavam a vida amena, nobre e feliz rapidamente vão desaparecendo, e
todos nós estamos vivendo esta vida curiosamente dura, isolada, na qual o
principal desejo é que não nos perturbem, que não nos incomodem. É assim,
digo eu, que os homens se vêem incapazes de sentir. E tudo isso, naturalmente,
aplica-se supremamente à atitude para com Deus. O endurecimento
leva finalmente a uma total inimizade, e assim a Bíblia afirma que a
mente natural é “inimizade contra Deus” (Romanos 8:7); ela odeia a
Deus. Falem aos homens sobre as glórias do evangelho e da vida de Deus e de
Cristo, e eles dirão: isso me deixa completamente frio! Claro que deixa! Quão
precisos são eles! As coisas mais gloriosas do universo, as coisas mais
maravilhosas, enobrecedoras e comoventes - deixam-me completamente frio, diz
o incrédulo, não me importam nada! Que frase terrível, que confissão trágica!
Incapazes de sentir, completamente frios, impassíveis!

Se vocês querem um grande exemplo clássico disso tudo, vão encontrá-lo no


Novo Testamento, no caso dos fariseus, que podiam olhar o Senhor Jesus Cristo
no rosto, ouvir as Suas palavras e ver os Seus milagres, e contudo odiá-10. Qual
era o problema deles? Ah, diz Èle, essa gente Me honra com os lábios, porém o
seu coração está longe de Mim! - endurecido, frio, insensível! É cheio de
amargor e ódio, levando finalmente à violência! E como venho dizendo, é
exatamente a mesma coisa hoje! Se as pessoas dissessem apenas: bem, eu
não acredito nesse evangelho de vocês, e parassem nisso, talvez não fosse tão
ruim; mas nunca param aí. Não podem deixar de mostrar o seu desprezo, o seu
escárnio, o seu riso frio, o seu desdém gélido, o seu olhar de aço, de gelo. Vocês
não o têm visto? Não têm visto esse endurecimento do coração, que se mostra,
acima de todas as outras coisas, em seu relacionamento com Deus e com o
Senhor Jesus Cristo?

Ei-lo aí, pois, diz o apóstolo; os entendimentos dos homens estão obscurecidos,
eles estão separados da vida de Deus por causa destas duas coisas, a ignorância,
que há neles e o endurecimento do seu

coração. Eu lhes ofereci a análise psicológica que Paulo faz deles, e é perfeita.
Vocês jamais encontrarão melhor ou mais profunda. Como análise, é
devastadora. Mas devemos perguntar: a que é que isso tudo leva? Sendo os
homens o que são, como vivem? Aqui de novo o apóstolo nos dá a verdade
terrível: “Os quais, havendo perdido todo o sentimento, se entregaram à
dissolução, para com avidez cometerem toda a impureza”. Examinemos as
frases.

“Havendo perdido todo o sentimento.” Simplesmente significa que eles se


acham num estado em que estão além da possibilidade de sentir vergonha e
pesar. Jeremias tinha algum conhecimento disso, pois, na vida pecaminosa os
homens são sempre iguais; é por isso que não existe nada mais ridículo e
absurdo do que pensar que o homem muda. Jeremias escreve sobre alguns dos
seus contemporâneos que se haviam afastado de Deus e que se achavam na
mesma espécie de fase pela qual o mundo está passando na presente hora, e até
mesmo quando o nosso Senhor estava pessoalmente aqui. Há fases e épocas
particulares na história do mundo quando o pecado parece estar mais aberto, e
então a destruição vem veloz. Foi assim no tempo de Jeremias. O profeta nos diz
que os seus contemporâneos eram culpados de certas coisas, mas o pior de tudo
acerca deles era que “nem podiam corar de vergonha” (Jeremias 6:15, VA).
Tinham se tornado incapazes de ruborizar-se. Enquanto você puder corar de
vergonha haverá esperança para você; o seu coração ainda bate, se você ainda
pode sentir vergonha. É maravilhoso ver uma pessoa jovem corar de
vergonha. Não acredito no conceito de Peter Pan sobre a vida, porém existe
esse processo de endurecimento que estive descrevendo e, enquanto somos ainda
jovens, esse processo não foi longe demais, e ainda podemos corar de vergonha.
Corar de vergonha, corar por recato! Quando foi a última vez que você viu isso
em alguém de mais de vinte anos? pergunto. Que calamidade sobreveio à raça
humana! - “nem podiam corar de vergonha”, sem nenhum sentimento de
vergonha, incapaz de ruborizar-se, não importa o que aconteça!

Ao escrever a sua Primeira Epístola a Timóteo, o apóstolo Paulo se expressou


assim: “falando mentiras com hipocrisia; tendo a consciência queimada com
ferro quente” (4:2, VA). Aí está outra expressão médica. Que é que ele quer dizer
com consciência queimada com ferro quente? A palavra que ele de fato usou foi
cauterizada, “ cauterizada com ferro quente”. Você mete o ferro no fogo até ficar
em brasa, e depois você o coloca na ferida e a cauteriza, quer dizer, a
endurece. Cauterizada! E foi o que aconteceu, diz Paulo, com as
consciências dos homens; foram queimadas com ferro em brasa, os nervos estão

destruídos, a sensibilidade sumiu, não sentem mais nada, não reagem mais. É
dessa maneira que eles trataram das suas consciências, e é dessa maneira que
sempre se viveu essa espécie de vida. Se você quiser gozá-la de uma forma ou de
outra, é essencial tratar com muita energia o coração e a consciência; você tem
que secá-los ou queimá-los ou tentar silenciá-los de um modo ou de outro. E,
segundo o apóstolo, há este passo terrível no fim, quando você teve tanto
sucesso nisso que fica realmente sem sentimento. Mesmo que você queira sentir,
não pode, ficou totalmente insensível, parece ter perdido o seu senso moral,
ficou mais ou menos como um animal. E o que é quase inacreditável é que os
homens e as mulheres fazem essa cauterização da consciência deliberadamente.

Como fazem isso? Um método muito comum é questionar se existe isso de


consciência, afinal de contas, e concluir que não existe; “consciência” são
apenas certos hábitos, meras tradições que nós herdamos; não existe tal coisa
como um monitor interno colocado ali por Deus. E para excluí-la argumenta-se
intelectualmente. Outro método é argumentar contra a Bíblia e contra o conceito
bíblico do pecado. Tudo isso, é o que se diz, não passa de uma retomada
de condições primitivas; não acreditamos mais nesse tipo de coisa. Rejeita-se
todo o conceito bíblico sobre a vida e se diz: afinal de contas, o homem foi feito
assim mesmo; não dê ouvidos aos tabus, às proibições, aos vetos e às restrições;
são simplesmente uma parte das relíquias do paganismo e da religião, e delas
devemos descartar-nos. Essa é outra maneira de cauterizar o coração e a
consciência.

Ainda, positivamente, podemos considerar o culto da auto-expres-são.


Naturalmente, dizem, fomos destinados a expressar-nos e, se queremos ter
grande prazer na vida, temos que livrar-nos de toda essa obscuridade da religião,
e assim por diante; temos que expressar-nos e as nossas personalidades. Não
conheço nada que seja tão patético na vida como as pessoas que tentam
expressar-se e ser algo que nunca foram destinadas a ser. Pessoas que foram
destinadas a ser naturalmente quietas e recatadas querem gozar da roda social,
ou lá o que sej a, e, a fim de fazerem isso, vestem essa auto-expressão. Mas na
verdade não estão se expressando a si mesmas, estão expressando o modelo,
o tipo padrão, a que estão tentando amoldar-se. Chamam a isso auto--expressão,
porém estão crucificando a sua personalidade, estão negando o seu ego real e
estão vestindo essa fachada; estão tentando ser ousadas, estão tentando fazer
aquela coisa atrevida. Provavelmente não é o que querem a princípio, mas
gradativamente se endurecem na conformidade. E assim chegam a um estado em
que perdem totalmente o sentimento. Finalmente chegam a um estágio no qual

ignoraram a sua consciência por tanto tempo, e foram tão diligentes e constantes
em silenciá-la e cauterizá-la, que por fim se tornam incapazes de sentir.

E assim, nesse estado, diz o apóstolo, é isto que elas fazem: “entregam-se à
dissolução”, o que significa que elas se deixam levar pela dissolução. Ou, para
usar uma fraseologia moderna, elas deixam a coisa correr. Abandonam toda
restrição, todas as tentativas para domínio próprio e para disciplina; não dão a
mínima para a consciência e para a opinião pública, para a tradição, para a
decência, para a moralidade, ou outra coisa qualquer. Ameaças divinas, pensar
na morte ou no juízo, deixam-nas impassíveis. Nada importa! Se tiverem que
encarar essas coisas, bem, elas se fortalecerão com álcool ou com alguma outra
coisa, e deliberadamente vestem uma fachada. Tornam-se completamente
avessos à lei, nada as pode conter ou restringir. “Tendo perdido todo o
sentimento, se entregaram à dissolução.” A linguagem do apóstolo neste ponto
nos reporta ao que ele nos diz no capítulo primeiro da Epístola aos Romanos -
“E, como eles se não importaram de ter conhecimento de Deus, assim Deus os
entregou.. .” - Deus os abandonou. Sim, esse é o estágio final, e aqui em
Efésios temos o estágio que ocorre antes disso. Primeiro eles se entregam,
e depois, finalmente, Deus mesmo os entrega. Essa é a história de Sodoma e
Gomorra. Graças a Deus, penso que ainda não chegamos completamente a essa
situação na Inglaterra; às vezes fico em dúvida; mas acho que não chegamos
completamente a esse ponto! Mas o mundo já chegou a esse estágio muitas
vezes antes; chegou a ele no tempo do Dilúvio; chegou a ele quando Sodoma e
Gomorra foram destruídas; chegou a ele pouco antes do cativeiro babilônico;
chegou a ele por volta do ano 70 A.D.; chegou a ele em certos períodos trevosos.
Será que vai chegar a esse estágio outra vez? Estamos vendo muito deste
“entregar-se”. A Primeira Guerra Mundial não o sustou; tampouco o fez a
Segunda Guerra Mundial. Vocês poderiam pensar que elas o fizeram!
Nadaparece detê-lo-os pensamentos dos homens, a decência, Deus, a eternidade,
nada parece servir para isso, “eles se entregam”. A menos que aconteça alguma
coisa que os impeça, a menos que haja um poderoso avivamento, só uma coisa
poderá decorrer, e é que Deus desistirá deles, os abandonará e os entregará a um
sentimento perverso (Romanos 1:28).
A que é que os homens se entregam? “Dissolução!” (VA:“Lascívia!”) Significa
libertinagem, franca, irrestrita e desavergonhada luxúria! Acaso vocês não têm
observado isso desde cerca de 1940? A conduta das pessoas, até nas ruas, a
impudência, o descara-

mento disso tudo! Existem algumas coisas que, certamente, pertencem à vida
privada, coisas que nunca foram destinadas à exibição pública. Todavia, cada
vez mais se vêem essas coisas em público -lascívia, conduta desregrada e
ultrajante! “para com avidez cometerem toda a impureza”! Impureza significa
devassidão, falta de castidade, toda a imundície da vida, no sentido moral.

E tudo isso, diz ele, vem acompanhado pela avidez ou avareza, pelo espírito de
cobiça e de extorsão. Realmente significa que o ego é tudo, que nada importa
senão o ego. Tenho que obter o que eu quiser, e quanto mais eu tiver, melhor!
Portanto, quero dinheiro, porque não se pode fazer esse tipo de coisa sem
dinheiro. Tudo está centralizado no ego. Os homens gastam fortunas na
gratificação das suas cobiças, e ao mesmo tempo manifestam o seu egoísmo e a
sua avidez avara. Se resolvem dar-se a uma noite de prazeres e alguém que lhes
é muito caro cai de cama, eles não deixam que isso interfira; não permitem que
nada interrompa o prazer. Avidez! Avareza! Sempre no interesse do ego, e tudo o
que se levante entre mim e o prazer terá que ser posto de lado, terá que ser
varrido do caminho! Aí está essa dureza, manifestando-se em avidez de
avarento. O egoísmo de quem vive no pecado! Parece uma vida vigorosa e sadia,
e a bonomia parece constituir a característica mais evidente. Mas, mergulhem
fundo nisso, e verão que cada qual só se interessa por si mesmo; é tudo uma
representação teatral; eles não são nem alegres nem brilhantes e felizes; fingem
ter amor, porém não têm; o que têm é luxúria, e esta tem o seu preço. A
coisa toda é feita em função do ego, do engrandecimento do ego e
da gratificação do ego. O apóstolo está perfeitamente certo. Os homens se
entregaram à cegueira dos seus corações e à dureza da sua consciência, e
perderam todo o sentimento; entregaram-se à dissolução, para com avidez
cometerem toda a impureza.

É dessa espécie de vida, diz Paulo aos crentes efésios, que eles foram salvos e
emancipados. Não permita Deus que algum deles olhe com saudade para os que
levam aquela vida! Paulo não diz, é claro, que cada membro individual da
sociedade pagã era culpado de toda a gama de aspectos do mal, sempre e ao
mesmo tempo. Absolutamento não! Contudo, está descrevendo a vida pagã de
modo geral, vocês vêem. Apesar de vocês estarem chapinhando na beira do
oceano, não se esqueçam de que estão no oceano, e que estão chapinhando
no mesmo mar em que outros estão nadando e afundando. O ponto é que vocês
não devem nem querer chapinhar entre eles! Essa é a vida deles. “Fora dela!” diz
Paulo. Mantenham os pés enxutos e limpos, tratem de não ter nada a ver com
ela, de não ter nada a ver com as obras

infrutuosas das trevas!

Irmãos cristãos, o mundo em que eu e vocês estamos vivendo hoje é o mundo


que o apóstolo descreve nestes versículos 17,18 e 19 deste capítulo quatro da
Epístola aos Efésios. Vocês nãn enxergam isso? Não conseguem vê-lo? Não
vêem isso em toda parte ao redor de vocês? Não vêem nos seus jornais? Eu
afirmo que não devemos somente evitá-lo de toda forma e maneira e em toda a
sua aparência, mas devemos dar-nos conta de que, se o Espírito de Deus não
vier sobre a Igreja com grande poder e não realizar obras extraordinárias, nós
nos defrontaremos com essa realidade completamente desamparados. Nenhuma
campanha organizada por homens jamais poderá tratar disso; jamais! poderá
produzir resultados indivicuais, porém não poderá influenciar o mal como um
todo. toda a história da Igreja dá eloqüente testemunho dsse fato, que nada senão
um grande derramamento do Espírito de Deus sobre a igreja pode lidar com isso.
Esse pode! Já o fez nos séculos passados! Graças a Deus, ainda pode fazê-lo! Se
realmente captamos o que o apóstolo nos está dizendo aqui, provaremos isso
orando incessantemente por avivamento.

O CRISTÃO E O NÃO CRISTÃO

“Mas vós não aprendestes assim a Cristo. ” - Efésios 4:20

Aqui chegamos a uma declaração dramática e pouco menos que abrupta. O


apóstolo estivera descrevendo a espécie de vida vivida pelos “outros gentios”, a
espécie de vida que estes cristãos efésios mesmos costumavam viver - a vida que
continuava sendo vivida por aqueles compatriotas e companheiros seus que não
tinham crido no evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo. E, tendo concluído
a descrição que fizera, de repente muda, e usa esta palavra mas. Agora, para
obtermos a plena força disto, vejamos a declaração como um todo. “E digo isto,
e testifico no Senhor, para que não andeis mais como andam também os outros
gentios, na vaidade do seu sentido, entenebrecidos no entendimento, separados
da vida de Deus pela ignorância que há neles, pela dureza do seu coração; os
quais, havendo perdido todo o sentimento, se entregaram à dissolução, para
com avidez cometerem toda a impureza. Mas vós não aprendestes assim
a Cristo”; e então Paulo continua dizendo: “se é que o tendes ouvido, e nele
fostes ensinados, como está a verdade em Jesus”.

Chegamos, pois, a esta declaração extraordinária, dramática, vivida e, como


digo, pouco menos que abrupta, que o apóstolo faz aqui. E é óbvio que ele se
expressa desta forma deliberadamente, com o fim de chamar a atenção para ela e
chocá-los, e com o fim de assinalar o tremendo contraste que ele tem em mente.
E, portanto, a ênfase tem que ser dada tanto ao mas como ao vós. “Mas vós” -
“vós não aprendestes assim a Cristo”; o vós em contraste com aqueles outros
gentios; e ornas ficando aí como uma grande palavra de contraste para assinalar
esta antítese marcante. Então, que é que essas duas palavras sugerem?

Por certo, a primeira coisa que elas nos transmitem é uma sensação de alívio e
um sentimento da gratidão. Começo com isto porque penso que é a coisa da qual
devemos estar conscientes antes de tudo. Temos acompanhado a magistral
análise feita pelo apóstolo, a sua dissecção psicológica da vida do incrédulo, do
pagão, do homem que não é cristão, e vemos como tudo vai de mal a pior porque
a sua mente é má. Ele se acha num estado de trevas, o coração foi afetado, e ele
está separado de Deus. Também temos visto homens se entregarem, em

sua torpeza e lascívia, para praticarem com avidez toda sorte de iniqüidade e
impureza. Estivemos vendo e observando tudo isso. E depois, Paulo diz: “Mas
vós”! E logo dizemos: bem, graças a Deus, não estamos mais ali, essa não é a
nossa situação! E é isso, repito, que deve vir em primeiro lugar; só temos que ter
uma sensação de alívio e um sentimento de profunda gratidão a Deus por
estarmos cobertos por estemas, por Paulo estar aqui passando do pecado para a
salvação, e por termos experimentado a mudança da qual ele vai falar agora.

Saliento este ponto porque me parece que não existe melhor teste da nossa
profissão cristã do que a nossa reação a estas palavras, “Mas vós”. Se meramente
mantivermos a verdade em nossas mentes em termos teóricos, isso não nos
mudará em nada. Se examinamos a descrição do pecado meramente numa
espécie de maneira desligada, científica, ou como faria o sociólogo; se anotamos
grupos e categorias de pessoas, e o temos feito de maneira completamente
desligada, então não teremos nenhuma sensação de alívio e nenhum sentimento
de gratidão quando nos deparamos com essas palavras. No entanto,
se compreendemos que tudo isso vale a nosso respeito; se compreendemos que
estamos nas garras do pecado e sob o seu domínio; se compreendemos que ainda
temos que lutar contra ele, então, digo eu, essas palavras nos dão imediatamente
uma sensação de maravilhoso e esplêndido alívio. Esta não é toda a verdade, é
claro; há mais que dizer. Mas ao respondermos a essas palavras, em nossos
sentimentos, em nossas sensibilidades, como também com as nossas
mentes, estamos proclamando se somos cristãos de verdade ou não. Lemos essas
palavras em Paulo, e depois lemos os nossos jornais, e quando olhamos para o
que está à nossa volta, dizemos: sim, é absolutamente certo e verdadeiro, essa é a
vida neste mundo. E então, subitamente paramos e dizemos: ah, mas espere um
minuto, há mais uma coisa! -há o cristão, há a Igreja Cristã, há esta nova
humanidade que está em Cristo! Aquilo parece verdadeiro acerca de quase todos
neste mundo, porém não o é, pois “agora neste tempo ficou um resto (ou
“um remanescente”, VA, ARA), segundo a eleição da graça”! (Romanos 11:5).
Graças a Deus! No meio de toda a escuridão há um fiapo de luz. Nesse sentido, o
cristianismo é um protesto; algo aconteceu, há um oásis no deserto. Ei-lo aqui;
graças a Deus por isso! E, portanto, estou dizendo que nos testamos a nós
mesmos segundo estas linhas. Aqui estivemos viajando neste ermo, neste
deserto, e ele parece interminável. Parece não haver nada pelo que esperar.
Subitamente o vemos-“Mas vós”! Afinal de contas há uma cabeça de ponte
desde o céu neste mundo de pecado e vergonha! Mas vós! Alívio! Açao de
graças! Um sentimento de esperança, afinal!

As palavras, “Mas vós”, naturalmente, marcam também a entrada do evangelho.


E devo confessar que fico cada vez mais comovido e encantado com a maneira
pela qual este notável apóstolo sempre introduz o seu evangelho como o faz
aqui. Vemo-lo fazer isso no versículo quatro do seu segundo capítulo. Ele
sempre o faz dessa maneira. Lemos ali aquela terrível passagem nos três
primeiros versículos, e então, repentinamente, havendo dito aquilo tudo,
Paulo diz: “Mas Deus”! - e aí se introduz o seu evangelho. E ele está
fazendo exatamente a mesma coisa aqui. Esta mas, vocês vêem, este
contraste, esta disjunção, isto é o evangelho, e é algo completamente
diferente, não tem nada a ver com este mundo e sua mentalidade e perspectiva; é
algo que vem de cima, e que traz consigo uma esperança maravilhosa e
magnífica.

O evangelho sempre vem como um contraste. Não é mera extensão de uma


filosofia humana, não é apenas como algo semelhante a um apêndice do livro da
vida, nem apenas como um acréscimo a algo que os homens puderam
desenvolver eles próprios. Não! É inteiramente oriundo de Deus, de cima, do
céu; é sobrenatural, é miraculoso, é divino. É isso que penetra como luz no meio
das trevas, do desamparo e do indescritível desespero. Mas é assim que ele vem;
e, digo de novo, graças a Deus que é assim.

A situação com a qual nos defrontamos é esta. Estamos observando o mundo e


vemos que tudo aquilo em que o homem já pôde pensar foi incapaz de enfrentá-
lo. O movimento político está sabendo lidar com a situação moral? Está sabendo
lidar com a situação internacional? A educação tem poderes para lidar com isso?
Leiam os seus jornais, e vocês terão a sua resposta. Os desordeiros não
pertencem somente à classe dos iletrados. Vejam as suas agências sócias, tudo
aquilo em que o homem já pôde pensar. Como é que isso pode ter
alguma possibilidade de lidar com uma situação como a que
estivemos considerando nos versículos 17,18 e 19? Quando se está lidando
com uma mente obscurecida, com um coração endurecido, com um princípio de
lascívia a dominar os fatores mais poderosos do homem, todos opostos a Deus,
todos vis e torpes, que valor têm uma pequena charla moral e um pequeno
melhoramento? Que poder tem uma legislação qualquer? Não se pode mudar a
natureza dos homens com a aprovação de leis do parlamento, com a dádiva de
novas casas, nem com qualquer outra coisa que se faça em favor deles. Há só
uma coisa que pode fazer frente à situação; e graças a Deus esta pode! “Não me
envergonho do evangelho de Cristo”, diz o grande apóstolo, quando antevê uma
vista à cidade imperial de Roma, com toda a magnificência e grandeza desta,
bem como com todo o seu pecado e torpeza. “Não me envergo-

nho do evangelho de Cristo”, diz ele, e por esta razão: “é o poder de Deus para
salvação”. E porque é o poder de Deus, oferece esperança até aos homens e
mulheres que se entregaram, que se abandonaram, para com avidez cometerem
toda a impureza.

Tenho dito muitas vezes que não há nada tão cativante quanto a pregação do
evangelho. Nunca se sabe o que vai acontecer. Tenho esta absoluta confiança em
que, se o caráter mais vil e mais tenebroso desta cidade de Londres ouvisse hoje
esta mensagem, mesmo que ele fosse o mais abandonado pobre infeliz na mais
abjeta sarjeta, vejo uma esperança para ele, por causa do evangelho, deste mas
que entra em cena, deste poder de Deus! O evangelho se introduz no meio
do desespero e da desesperança; entra olhando a vida com olhos realistas. Não
há nada, fora do evangelho, que tenha condições de poder ser realista; toda e
qualquer outra coisa tem que procurar persuadir-se como numa espécie de auto-
hipnotismo. Aqui está a única coisa que pode ver o homem como ele é, em suas
péssimas e trevosas condições, em seu estado mais desesperado, e ainda dirigir-
se a ele. Por quê? Porque o poder de Deus está nele. E este é o poder que pode
fazer os homens de novo e amoldá-los de novo à imagem do Senhor
Jesus Cristo, como o apóstolo está prestes a dizer-nos. Isso é obra do Criador.
Assim é que o evangelho entra dessa maneira, e as palavras “Mas vós” nos
fazem lembrar a coisa toda.

Mais ainda, porém, e este é o ponto que, em particular, o apóstolo está


acentuando aqui - estas duas palavras, mas vós, dão-nos de imediato uma
perfeita e compreensiva descrição do cristão. Paulo descreve os “outros gentios”;
agora está descrevendo o cristão. Que é que o apóstolo nos diz a respeito do
cristão? Obviamente, em primeiro lugar, ele nos diz que o cristão é alguém que,
por definição, foi separado e retirado daquele mundo mau. Os “outros gentios”?
-aquele era seu modo de viver. “Mas vós”! Houve uma separação, o cristão foi
tomado, foi tirado para fora daquela situação, e foi colocado noutra. Outrora ele
era como os outros, porém não é mais. Está claro que tornar-se cristão é realizar
a mudança mais profunda do mundo. É aí que, suponho, o maior inimigo da fé
cristã é a moralidade. E é por isso que às vezes penso que Thomas Arnold,
famoso nos círculos do futebol americano, foi talvez, de todos os homens do
século recém--passado, o que fez maior dano. O seu ensino e o e ensino dos
seus seguidores obliterou este ponto particular, esta mudança completa, esta
transformação, esta mudança. Mas essa é a verdade acentuada em toda parte na
Bíblia quanto à salvação pro vinda de Deus. Vocês vêem o salmista falando
disso; ele fala de ter sido levantado e tirado do poço

horrível e do lamaçal, e de seus pés terem sido firmados sobre a rocha. Ele teve
que ser puxado para fora do lodo, do poço horrível! do lamaçal! apanhado de lá,
levantado e posto sobre uma rocha, enquanto que o seu modo de agir foi
estabelecido num nível diferente (cf. Salmo 40:2, etc.). Ora, isso é cristianismo,
e só quando a Igreja volta à compreensão disso é que haverá alguma esperança
de avivamento.

Para estabelecer o ponto que estou elaborando, ouçamos Paulo, no início da


Epístola aos Gálatas. Ele está dando graças a Deus por Sua graça maravilhosa no
Senhor Jesus Cristo, e se expressa desta maneira: “O qual se deu a si mesmo por
nossos pecados, para nos livrar do presente século mau” (1:4). Foi por isso que
Cristo morreu. O primeiro objetivo da Sua morte na cruz foi que Ele pudesse
livrar o Seu povo do presente mundo mau; Ele os apanha e os puxa para fora
do mundo mau. Ouçam de novo o apóstolo, quando escreve aos colossenses: “O
qual nos tirou da potestade das trevas, e nos transportou para o reino do Filho do
seu amor”(l: 13). Quando você se toma cristão você muda de domínio, você
pertence a um novo reino; você não está mais no reino de satanás, pertence ao
reino de Deus e do Seu Cristo; você não está mais no reino das trevas, mas está
no reino da luz. São essas as expressões de Paulo, e cada uma delas dá ênfase a
esta mudança, a esta transformação. Você não é apenas melhorado um pouco
onde está; nunca foi esse o dever do cristianismo; este nunca faz isso. Trata-se de
algo novo. E por fim vai dar num novo céu e numa nova terra, onde habita a
justiça. _

O dever do cristianismo não é melhorar o mundo. Não! É tirar homens do


mundo, salvá-los dele, e formar este novo domínio, este novo reino, esta nova
humanidade. Temos que apegar-nos a essa idéia. O que a Bíblia ensina não é
uma espécie de cristianização do mundo. As pessoas têm que ser tiradas dele,
separadas dele e transferidas para uma posição diferente. Pedro faz a seguinte
colocação sobre isso no capítulo dois da sua Primeira Epístola: “Que vos
chamou das trevas para a sua maravilhosa luz”. O Senhor nos tira do Egito e nos
coloca em Canaã! O que aconteceu na dispensação do Velho Testamento não foi
um melhoramento das condições do Egito-, ao contrário, os israelitas foram
tirados do Egito, impelidos para a sua jornada e levados para Canaã. Muito
acertadamente Pedro vai adiante e se refere aos cristãos como “estrangeiros e
peregrinos” (VA). “Amados”, diz ele, “peço--vos como a peregrinos e
forasteiros, que vos abstenhais das concupis-cências carnais que combatem
contra a alma.” Somos só forasteiros neste mundo, se somos cristãos. Paulo diz a
mesma coisa em sua Epístola aos Filipenses, capítulo três: “A nossa cidade está
nos céus” (VA: “A nossa cidadania está no céu”). Alguém traduziu: “Somos

uma colônia do céu”, o que vem a ser a mesma coisa. Significa que a nossa
comunidade política, por assim dizer, a nossa pátria, a nossa sede do governo,
está ali', a nossa cidadania está no céu! Ainda estamos neste mundo, mas, se
somos cristãos, não pertencemos a ele; não pertencemos à sua mentalidade, à sua
perspectiva, à sua organização; somos estrangeiros e peregrinos, somos um povo
que está longe de casa, somos pessoas que simplesmente vivem aqui com
passaporte; não somos daqui. O nosso Senhor o disse claramente por nós em
Sua grande oração sacerdotal; diz Ele: “Não são do mundo, como eu do mundo
não sou”.

Devemos ser claros sobre isso. Eu não estou dizendo que, em vista de tudo o que
estive citando, o cristão não deve tomar parte na política e em nada que se lhe
assemelhe. Não significa isso, de modo nenhum, porém significa, sim, que ele
está inteiramente separado em seu ser, em sua essência e em sua perspectiva.
Porque o cristão sabe que este continua sendo o mundo que finalmente Deus vai
redimir, ele crê que o pecado e o mal têm que ser dominados. Segundo o seu
conceito, a política e toda a cultura são negativas e simplesmente se destinam
a manter o pecado e o mal dentro de limites, e impedir que as suas manifestações
corram soltas. Mas o que o cristão faz, ele o faz na qualidade de estrangeiro,
como quem pertence a outra esfera, mas que tem piedade desta; e assim ele
dedica o seu tempo e as suas energias a um esforço para manter o mal dentro de
limites. Ele não põe a sua fé em coisas terrenais, não acha que se pode introduzir
uma nova Jerusalém mediante leis do parlamento, como tanta gente
estulta pensava no início deste século. Ele não vê utilidade no
evangelho “social”, porque este sempre falhou e só tem que falhar sempre,
pois se baseia na falácia de não compreender que o coração do homem
está endurecido e que toda a sua perspectiva está obscurecida. De todos
os ensinos, esse é o mais fátuo. Mas o cristão foi separado de todas as esperanças
que tais. Ele foi transferido do reino das trevas para o Reino do amado Filho de
Deus.

Mas estas palavras de Paulo mostram uma outra coisa acerca do cristão e do seu
caráter. Por causa da transferência ocorrido, a vida do cristão é para apresentar
um completo contraste com aquela outra vida. “Mas vós; não aprendestes assim
a Cristo.” Paulo dá ênfase à palavra assim. Não foi dessa maneira que
aprendestes a Cristo, diz o apóstolo. Não aprendestes a Cristo de modo tal que
digais: bem, sim, eu creio em Cristo, mas continuo vivendo como antes.
Impossível!-diz ele. Fora com a sugestão! De novo ele utiliza litotes, uma das
suas figuras de linguagem favoritas. “Vós não aprendestes assim a Cristo” - isso
é

negativo, não é? O que ele quer dizer é algo muito positivo. Litotes é uma figura
de linguagem muito boa para empregar-se, se se deseja dar ênfase. Deixem-me
dar-lhes outro exemplo conhecido disso. Vejam o que eu já citei, em Romanos
1:16, onde o apóstolo diz: “Não me envergonho do evangelho de Cristo”. O que
ele quer dizer é que ele está tremendamente ufanoso do evangelho, que ele tem
absoluta confiança nele, e que se gloria nele. Mas o expressa por meio de
uma negativa enfática, não me envergonho. Semelhantemente, ele diz aqui: “Vós
não aprendestes assim a Cristo”. Com o que ele quer dizer que a própria
sugestão é completamente impossível; é inimaginável; a coisa é grotesca, diz ele,
você não poderá retê-la nem por um momento, se entendeu realmente estas
coisas. O apóstolo está ressaltando que a vida do cristão é para ser inteiramente
diferente da dos “outros gentios”. Cabe-lhe sugerir e apresentar o mais
completo e extraordinário contraste com tudo o que aquele tipo de vida
mundana apresenta. A vida do cristão não é para ser algo vago e indefinido,
algo difícil de definir e difícil de reconhecer. De acordo com o ensino de Paulo, e
com o ensino da Bíblia toda, a vida do cristão tem contornos nítidos, é óbvia -
sobressai, é perfeitamente definida, e toda gente deveria ser capaz de reconhecê-
la de relance.

Examinemos algumas das expressões utilizadas nas Escrituras para demonstrar


justamente este ponto. Vejamos as palavras usadas pelo nosso Senhor. Diz ele
que o cristão é “o sal da terra”. Diz ele também que os cristãos são “a luz do
mundo”. Escrevendo aos filipenses, o apóstolo usa palavras semelhantes. No
capítulo dois ele diz que eles “brilham como luzes no mundo” (VA). A figura é
que o mundo todo está nas trevas, na escuridão absoluta, e estaria
universalmente na escuridão, não fora o ocasional astro brilhando aqui e ali.
Luzes no firmamento! O contraste entre os cristãos e os não cristãos é
o contraste entre a luz e as trevas. Diz também Cristo que quando alguém acende
uma candeia não a põe debaixo de um alqueire, mas num velador, para que
ilumine a casa toda. Igualmente diz Ele que os Seus discípulos são como “uma
cidade edificada sobre um monte”, que, por isso, “não se pode esconder”. Lá
está ela para todos verem. Deve ser tão impossível esconder o cristão como
impossível é esconder a cidade edificada sobre um monte. Toda a terminologia
visa assinalar exatamente esses contrastes. A coisa toda é também colocada, com
grande perfeição, na passagem de 2 Coríntios, capítulo 6, onde Paulo escreve:
“Que sociedade tem a justiça com a injustiça? E que comunhão tem a luz com as
trevas? E que concórdia há entre Cristo e Belial? Ou que parte tem o fiel com o
infiel? E que consenso tem o templo de Deus com os ídolos?” Assim, o cristão é
aquele que

sobressai na sociedade porque é cristão. Não significa que ele deva ser quadrado
ou deleitar-se em ser esquisito ou mostrar-se excêntrico ou bobo, mas significa,
sim, que quando lemos arespeito do nosso Senhor que Ele “não pôde esconder-
se” (Marcos 7:24), isso é igualmente certo a respeito do cristão. Quando a pureza
aparece no meio da impureza, não há necessidade de exagerar ou de mandar um
trombeteiro na frente para anunciar a sua presença, como faziam o fariseus,
como quando faziam os seu filactérios amplos. Não! A pureza faz ela própria a
sua publicidade: o contraste se encarrega de tudo.

Pois bem, essa é a espécie de coisa que o apóstolo está calcando e inculcando
aos efésios aqui. Ele diz a eles, noutras palavras: é inimaginável que vocês
vivam como vivem os incrédulos; toda o seu viver e o seu comportamento, a sua
conduta e o seu procedimento deveriam sugerir algo maravilhoso e
estranhamente diferente. Estou salientando, vocês vêem, que não deveria ser
difícil para as pessoas saberem que somos cristãos. Contudo, eu pergunto se é
assim. Pergunto se às vezes elas não ficam surpresas quando lhes dizem
que somos cristãos. Não seria esta uma das tragédias da época em que vivemos,
que a linha de demarcação entre a Igreja e o mundo ficou tão obscura, tão mal
definida e tão incerta? Sei que, indubitavelmente, há uma reação contra um falso
puritanismo, e eu não estou aqui para defender nunhum falso puritanismo; não
permita Deus que eu o faça! Vocês notam que o denominei falso puritanismo -
mera moralidade que perdeu contato com a verdade.

Isso estava em grande evidência no fim da era vitoriana, e não permita Deus que
tenhamos de volta aquela religião mecânica! Mas estou opinando que, em nossa
reação, fomos longe demais para o outro extremo e obscurecemos algo que é
absolutamente vital no Novo Testamento, a saber, esta linha de demarcação entre
o mundo e a Igreja.

Houve época em que era costume o protestantismo criticar o catolicismo romano


com base em que ele mistura os dois, e sem dúvida ele faz isso; porém, que
lástima, o protestantismo o seguiu de perto e tem feito o mesmo! O cristão
moderno parece pensar que está fazendo uma coisa maravilhosa quando se porta
como o homem do mundo: ele tenta argumentar que esse é o jeito de conquistá-
lo para Cristo. Mas não o está conquistando! O nosso Senhor podia misturar-Se
com publicanos e pecadores, todavia nunca confundido com nenhum deles; Ele
foi chamado amigo dos publicanos e pecadores, mas o contraste estava lá,
mesmo na crítica. E o ponto é que o cristão verdadeiro, por causa do que lhe
aconteceu, por causa desta regeneração, por causa da

obra realizada pelo Espírito, porque ele foi criado de novo, é, necessariamente,
um homem diferente, e deve mostrar que é diferente.

Mas vou adiante. Não só o cristão sabe que é diferente; o não cristão também
sabe. De imediato o cristão e o não cristão ficam cientes de que há uma diferença
entre eles. Têm consciência de uma falta de afinidade. Quero salientar isso,
porque me parece que é um dos mais completos testes que sempre podemos
aplicar a nós mesmos. Se não estivermos cônscios da falta de afinidade com as
pessoas que ainda pertencem ao mundo, nem sequer poderemos ver que somos
cristãos. Não quer dizer que não podemos compartilhar certas coisas com
elas, que não podemos ser agradáveis, que não podemos passar horas com elas,
por assim dizer. Mas de fato significa que estamos cientes de uma diferença, de
uma barreira, de que pertencemos totalmente a diferentes domínios e a diferentes
posições. Podemos manter relações sociais com não cristãos, porém o tempo
todo estamos cônscios dessa differença, não nos sentimos bem naquela
atmosfera. Pode ser que, por várias razões, tenhamos que estar com eles
ocasionalmente, mas estamos cientes de que não pertencemos ao mundo deles. E
eles também estão igualmente cientes do fato de que não pertencemos ao seu
mundo. E é isso que é tão importante, que até o não cristão, o homem do mundo,
espera que o cristão seja diferente.

Uma das maiores falácias que com respeito a isso encontrei foi uma que ocorreu
durante a Primeira Guerra Mundial. Menciono o fato sem mencionar o homem
que foi o maior responsável por ele; o indivíduo como tal não importa, pois não
estamos interessados em personalidades, e sim em princípios. O que houve foi
uma certa maneira de ver propagada por aquele homem particular, que
argumentava deste modo: “Tomemos aqueles homens nas trincheiras da Primeira
Guerra Mundial; agora”, dizia ele, “se havemos de influenciar aqueles homens
em seu retomo à vida civil, temos de mostrar-lhes que realmente lhes
pertencemos; assim o modo de fazer isso, o modo de conquistar homens para
Cristo, é sentar-nos e fumar com eles, e usar a sua linguagem. Se eles
amaldiçoam e praguejam, vamos amaldiçoar e praguejar também; estaremos
fazendo isso com um bom objetivo, com boa intenção; nós nos
confraternizaremos com eles, mostraremos a eles que, afinal de contas, todos
somos do mesmo ramo, que nos pertencemos uns aos outros; e depois, se tão-
somente fizermos isso com eles, eles virão aos magotes às nossas igrejas para
ouvir”. Mas, vocês sabem, eles não vieram! E graças a Deus que não! O
homem do mundo, homem que ainda é pecador, espera que o cristão
seja diferente, e não respeita muito o tipo de cristão que não é diferente!

Lemos os evangelhos e vemos que os casos mais desesperados chegaram ao


Senhor Jesus Cristo. Por quê? Porque Ele era tão diferente! Não estou sugerindo
que existe uma centelha de divindade na natureza humana decaída, porém estou
sugerindo que sempre há uma desesperança na vida de pecado, que de um modo
ou de outro paga o seu tributo à pureza, à santidade e à vida semelhante à de
Cristo. Quem leva aquela vida sabe que esta é diferente. E assim vocês
verão muitas vezes nos romances e nas narrativas que quando certos
homens brutais tentam caçoar de um cristão, talvez o maior dos valentões venha
detê-los e dizer-lhes: vocês não devem fazer isso, ele é um bom sujeito. Aí está a
diferença, e eu digo que ela é reconhecida por ambos os lados.

Todavia, quais são as coisas que nos diferenciam desse modo? Permitam-me dar-
lhes a resposta de João Bunyan à minha pergunta. Estou dizendo que o cristão,
por ser cristão, é completamente diferente do homem do mundo e que ele e o
homem do mundo têm consciência disso. Deixemos João Bunyan dizê-lo em sua
obra O Peregrino (“Pilgrim’s Progress”).

“Depois eu vi em meu sonho que quando saíram do deserto, logo viram uma
cidade diante deles, e o nome daquela cidade é Vaidade”; (Paulo fala dos homens
andando na vaidade das suas mentes!) - “e na cidade se realiza uma feira,
chamada Feira da Vaidade; é mantida durante o ano inteiro; leva o nome de
Feira da Vaidade porque a cidade onde ela se realiza é mais leviana que a
vaidade; e também porque tudo o que ali se vende, ou que para ali vem, é
vaidade; como diz o ditado do sábio “Tudo o que vem é vaidade”.

“Essa feira não é um comércio recém-estabelecido; pelo contrário, é coisa antiga.


Vou mostrar-lhes o seu original” (e então ele cita Eclesiastes 1:2 e certos
versículos notáveis). “Há quase cinco mil anos havia peregrinos caminhando
para a Cidade Celestial, como estas duas pessoas honestas estão fazendo, e
Belzebu, Apoliom e Legião, com os seus companheiros, percebendo que o
caminho dos peregrinos conduzia à Cidade Celeste, e que passava por esta
Cidade da Vaidade, planejaram estabelecer uma feira ali, uma feira na qual se
vendessem todos os tipos de vaidade e que deveria durar o ano todo.
Portanto, nessa feira toda variedade de mercadoria é vendida, como casas, terras,
negócios, lugares, honras, preferências, títulos, países, reinos, luxúria, prazeres e
deleites de todos os tipos; como meretrizes, alcoviteiros, esposas, maridos,
filhos, senhores, servos, vidas, sangue, corpos, almas, pérolas, pedras preciosas e
não sei o que mais. E, além disso, nessa feira se pode ver a qualquer hora
prestidigitações, trapaças, jogos, peças, loucos, bobos, velhacos, e vadios, e isso
de todas as

espécies.” (Marvalhosa literatura, não é? Mais maravilhosa ainda


espiritualmente.) “Ali se exibem também, e de graça, roubos, assassinatos,
adultérios, os que juram falsamente, e isso com cor de sangue.

“E, como noutras feiras menos momentosas, há diversas alas eruas, com seus
nomes apropriados, onde se apregoam tais e tais artigos; assim, ali você tem
igualmente os lugares, alas, ruas apropriados (viz. países e reinos), onde num
instante se pode encontrar os artigos dessa feira. Ali estão a Ala Inglesa, a Ala
Francesa, a Ala Italiana, a Ala Espanhola, a Ala Alemã, onde várias espécies de
vaidade estão para ser vendidas. No entanto, como noutras feiras uma certa
mercadoria é a principal da feira, assim os artigos de Roma e o seu comércio
têm grande promoção nesta feira; somente a nossa nação inglesa, com algumas
outras, tomaram aversão por isso.” (Isso foi, lembrem-se, há trezentos anos!)

“Agora, como eu disse, o caminho para a Cidade Celestial passa justamente por
esta cidade em que se mantém a feira; e quem quisesse ir para a Cidade Celestial
sem passar pela feira, teria que sair do mundo. O próprio Príncipe dos príncipes,
quando esteve aqui, passou por essa cidade para ir para o Seu País, e isso num
dia de feira também. Sim, e como penso, foi Belzebu, o maior senhor dessa feira,
que o convidou a comprar das suas vaidades; sim, teria feito dele o Senhor da
feira, se tão-somente o tivesse reverenciado quando passou pela cidade; sim,
porque ele era Pessoa de tão alta Honra, Belzebu o levara de rua em rua, e lhe
mostrara todos os reinos do mundo num breve momento, para que, se possível,
engodasse aquele Ser bendito, levan-do-0 a regatear e comprar alguma das suas
vaidades; mas ele não tinha em mente negociar e, portanto, saiu da cidade,
gastando menos que um tostão com aquelas vaidades. Essa feira é, pois, antiga,
de longa duração, e é uma feira muito grande.

“Ora, estes peregrinos, como eu disse, têm que passar por essa feira. Bem, foi o
que fizeram; porém, eis que mal entraram na feira, todos os que estavam lá se
agitaram, e a própria cidade ficou, por assim dizer, em alvoroço, e isso por várias
razões; pois -

“Primeiro, Os peregrinos vestiam roupas muito diferentes dos que negociavam


na feira. Por isso o povo que estava na feira fixou os olhos neles. Alguns diziam
que eles eram tolos; outros, que eram loucos; e ainda outros diziam que eles
eram estrangeiros.

“Segundo, E assim como se espantavam com o vestuário deles, igualmente se


espantavam com o seu linguajar, pois poucos podiam entender o que eles diziam.
Naturalmente, eles falavam a língua de Canaã, mas os que mantinham a feira
eram homens deste mundo; desse modo, de uma ponta da feira à outra, eles
pareciam bárbaros, uns aos outros.

“Terceiro, Mas o que não divertiu nem um pouco os negociantes foi que aqueles
peregrinos pouco se demoravam diante das suas mercadorias; limitavam-se a
olhar para elas; e se eram convidados a comprar, punham os dedos nos ouvidos e
gritavam: “Desvia os meus olhos de contemplarem a vaidade” (Salmo 119:37); e
olhavam para cima, querendo dizer com isso que o seu comércio e os seus
negócios estavam no céu”.

Notem as três razões de Bunyan. Eu acredito que elas são tão verdadeiras e
válidas hoje como sempre foram! Mesmo na questão de trajes e aparência, o
cristão é cuidadoso. Ele não se deixa governar pela Feira da Vaidade, com todas
as suas atrações sensuais, todas as suas incitações para o mal e toda a excitação
das paixões. O cristão é cuidadoso e modesto no vestir. E igualmente no falar:
não somente nas coisas de que fala, porém também na maneira como fala delas.
E terceiro, o cristão não se interessa pelas vaidades e bugigangas que continuam
sendo vendidas na Feira da Vaidade. Ele se interessa pela mercadoria do céu. O
seu tesouro e o seu coração estão no céu. “Mas vós não aprendestes assim a
Cristo!” Graças a Deus pelo evangelho da salvação, que nos livra das incitações
da Feira da Vaidade!

O CONHECIMENTO DA VERDADE

“Mas vós não aprendestes assim a Cristo, se é que o tendes ouvido, e nele fostes
ensinados, como está a verdade em Jesus. ”

- Efésios 4:20-21

O apóstolo Paulo nos estivera recordando que para tornar-se cristão significa que
experimentar a mais profunda operação que ocorre em todo o universo. Ser
cristão significa que nascemos de novo, nascemos do Espírito, nascemos de
cima; que somos participantes da natureza divina; que somos uma nova criação.
Essa é essencialmente a definição que o Novo Testamento dá do que o cristão é
realmente. Mas o que é que fez acontecer isso, o que é que explica esse
tremendo contraste, essa mudança essencial? Nos versículos 20 e 21 do
nosso capítulo o próprio apóstolo responde a pergunta. Primeiramente,
no versículo vinte ele o coloca, por assim dizer, como um todo, com as palavras
“aprendestes... a Cristo” - “Mas vós não aprendestes assim a Cristo.” E depois,
no versículo vinte e um, ele analisa aquela expressão e a coloca em detalhe, para
que não haja dúvida ou questão alguma acerca do seu significado. E uma espécie
de parêntese. “Mas vós não aprendestes assim a Cristo ” - travessão - “supondo
que o ouvistes, e que fostes ensinados por ele, como a verdade está em Jesus.”
Pois bem, este versículo 21, repito, é realmente uma exposição do versículo 20.
O apóstolo gosta de adotar este método particular; ele expõe a matéria como um
todo, depois a divide para nós, a fim de podermos ver bem claro em nossas
mentes o que ele está dizendo. Sigamo-lo agora e examinemos as expressões
propriamente ditas que ele emprega.

Em primeiro lugar, o apóstolo diz aos cristãos efésios que eles tinham aprendido
a Cristo. Que é que ele quer dizer com isso? Ambos os termos são importantes.
Este aprender a Cristo é sempre a chave da vida cristã. Noutras palavras, o
cristianismo não é uma vaga, indefinida e nebulosa espécie de sentimento ou de
experiência; é manifestamente algo que se pode definir e descrever; é
primordialmente matéria de conhecimento. Eisso, obviamente, que
transparece aqui. Paulo diz aos crentes: vocês não estão mais lá, no mundo de

pecado; estão aqui, no reino de Deus. Entretanto, por quê? Por causa daquela
maravilhosa experiência que você teve? Não é isso que ele diz! Ele diz que é
porque você aprendeu a Cristo. O cristianismo é primária e essencialmente
matéria de conhecimento; é o conhecimento ao qual aquelas pessoas tinham
chegado. Ele se vê forçado a expressar-se assim, num sentido, porque, como já
vimos, o real problema com os incrédulos é que as suas mentes estão
obscurecidas. Vocês recordam como Paulo ficou dando ênfase a esse fato .
O problema essêncial deles estava nas suas mentes, no seu entendimento.
Obviamente, pois, o cristão é alguém que, em primeiro lugar, recebeu algo na
esfera do entendimento .Aprendestes a Cristo! Este é um ponto tremendamente
importante, porque estamos vivendo numa época que não gosta desta ênfase.
Toda a dificuldade atual, na Igreja e no mundo, é que a este elemento não é dada
a prioridade devida, e as pessoas estão dizendo: ah, bom, contanto que a pessoa
ame a Cristo e ame a Deus... Sempre a colocação é feita em termos de
sentimento, ao passo que no Novo Testamento a ênfase toda é sempre ao
conhecimento; ao aprender e ao entender.

Portanto, devemos considerar o que Paulo quer dizer com esta expressão, “vós
não aprendestes assim a Cristo”. Anteriormente, o entendimento dos efésios
estava obscurecido; eles estavam separados da vida de Deus por causa da
ignorância que havia neles; e ligada a isso, havia a dureza dos seus corações.
Mas agora, diz o apóstolo a eles, tudo aquilo foi superado e vocês têm
conhecimento do Senhor Jesus Cristo. Com freqüência ele usa precisamente essa
frase; por exemplo, no capítulo dois da sua Primeira Epístola a Timóteo, ele
escreve o seguinte: “Deus quer que todos os homens se salvem, e venham
ao conhecimento da verdade”. “Vir ao conhecimento da verdade” é como ele
define o ser salvo. Portanto, o cristão é, por definição, alguém cujos olhos foram
abertos, enquanto que o incrédulo continua cego, pela ação do deus deste
mundo. Então, que é que ele pode ver agora? Primeiro e acima de tudo, ele vem
a estar ciente do seu próprio estado e condição. E essa é, obviamente, a primeira
coisa que tem que acontecer com qualquer homem que se torna cristão. Até
então ele esteve levando uma vida mundana, seguindo a multidão, fazendo o que
toda gente faz, tentando persuadir-se de que a vida é maravilhosa. Ele pode ter
lido a Bíblia ocasionalmente, ou pode ter ficado doente e outros podem ter-lhe
falado sobre coisas cristãs; porém elas não significam nada para ele, elas o
irritam e o aborrecem, e ele não vê nada nelas. Ora, a primeira coisa que
acontece com alguém assim é que ele começa a examinar a situação, os seus
olhos se abrem e ele começa a enxergar o seu estado e as suas condições, e as
condições do mundo e

da sociedade em que ele se acha. Ele começa a fazer perguntas e a dizer a si


proprio: esta vida terrena vai continuar para sempre? Vai durar? Qual será o seu
valor real? Ele nunca tinha pensado nisso antes. Se antes ele se sentia um pouco
infeliz, mergulhava em mais prazeres; se lhe vinham problemas, dava-lhes as
costas e porcurava afogá-los. Todavia, de repente ele se vê agora encarando
essas coisas e fazendo certas perguntas - que é que um homem faz consigo
mesmo quando perde a saúde ou perde o seu dinheiro? Que faz ele quando perde
um ente querido, e lhe sobrevêm o luto e a tristeza? Que é que acontece com o
homem quando está no leito de morte? Para onde ele vai? Que é que se estende
além? Ele começa a ponderar todas estas coisas. Os seus olhos estão abertos, e
ele vê a total loucura e futilidade da sua antiga posição. Diz ele: isto é loucura;
não estou sendo capaz de pensar, não estou encarando os fatos, não estou
encarando a vida, estou agindo com base em suposições, não estou encarando os
grandes e eternos valores. Ele começa a olhar para eles e a examiná-los. E,
é claro, ele se vê numa condição desesperada e perigosa.

Logo depois ele começa a pensar em sua relação com Deus. Ele se dá conta de
algo acerca do ser, da natureza e do caráter de Deus! Ele enxerga também a sua
condição de completa desesperança e desamparo. E a seguir ele começa a ver o
significado do evangelho; está aprendendo a Cristo. Começa a ver que Cristo é o
Messias, o Libertador, Aquele que veio ao mundo com o fim de lidar com
pessoas na Feira da Vaidade e tirá-las da vaidade das suas mentes na
qual andavam, e colocá-las no Seu reino e introduzi-las neste outro domínio.
Aprender a Cristo significa tudo isso.
Ou ainda podemos expressá-lo assim: o apóstolo Pedro, no capítulo três da sua
Primeira Epístola, tem uma frase similar; diz ele: “estai sempre preparados para
responder com mansidão e temor a qualquer que vos pedir a razão da esperança
que há em vós” (versículo 15). Mas o único homem que pode dar a razão da
esperança que nele há é o que entende por que ele tem essa esperança. Não se dá
a razão disso dizendo meramente: você sabe, eu era muito infeliz, porém agora
sou feliz. Isso não explica nada, porque alguém poderá dizer-lhe: “Ah bom,
claro, você diz isso, e diz que é porque você é cristão, mas ontem eu estava
conversando com um cientista cristão que nega grande parte do que você crê, e
ele disse a mesma coisa; e um pouco adiante encontrei outro que não era nem
uma coisa nem outra, que não tinha nenhuma dessas crenças - era na verdade
alguém que tinha algo de psicólogo -e ele disse que tinha encontrado essa
libertação maravilhosa por meio daquilo que ele denominou pensamento
positivol” Você não dá a razão da esperança que há em você dizendo apenas que
se

sente melhor do que antes. Absolutamente não! Antes de você poder dar a razão
você terá que ser capaz de dar explicações, terá que ter entendimento; e isso
significa conhecimento, significa que você só pôde ter aprendido algo. E é por
isso que o apóstolo diz aos cristãos: “Vós... aprendestes assim a Cristo”. Não é
nada menos do que este maravilhoso conhecimento de Cristo e concernente a
Ele. Ora, é isso que nos torna cristãos, afinal. Se não conhecemos o que cremos,
como podemos ser cristãos de acordo com a definição, “Vós não
aprendestes assim a Cristo”? Esta, diz o apóstolo a estes efésios, é a
coisa estupenda que aconteceu com vocês, que, enquanto que outrora
vocês estavam em densas trevas, com corações obstinados, endurecidos, quando
nada da verdade divina conseguia tocar vocês ou penetrar, agora a situação toda
mudou inteiramente; vocês receberam o conhecimento e o aprendizado, e os seus
corações foram abrandados; vocês agora têm corações de carne que podem sentir
e ser mudados.

Então, como foi que isso tudo aconteceu? Há somente uma explicação - que isso
é obra do Espírito Santo. Nada mais, ninguém mais pode fazer isso, senão o
Espírito Santo. É a Sua obra especial, é a Sua obra peculiar. Ele é o único que
pode remover o véu do coração. A perferita exposição disto está, naturalmente,
em 1 Coríntios, capítulo 2, onde o apóstolo explica que os príncipes deste mundo
não conhecem o propósito de Deus no Senhor Jesus Cristo, pois, diz ele, se O
conhecessem, “não teriam crucificado ao Senhor da glória... Mas Deus no-las
revelou pelo seu Espírito; porque o Espírito penetra todas as coisas, ainda as
profundezas de Deus”. “Mas nós não recebemos”, diz ele no versículo doze do
mesmo capítulo, “o espírito do mundo, mas o Espírito que provém de Deus, para
que pudéssemos conhecer o que nos é dado gratuitamente por Deus.” Esta obra
é, necessariamente, a obra realizada pelo Espírito Santo. Tudo o que o apóstolo
estivera dizendo sobre a vida pecaminosa, má e ímpia faz disso uma necessidade
absoluta. Ninguém senão o Espírito Santo, pode iluminar as trevas, abrandar o
coração e capacitar a verdade a penetrar, segurar e dominar um homem ou uma
mulher.

O apóstolo João faz duas declarações maravilhosas sobre isso no capítulo dois da
sua Primeira Epístola. Diz ele: “Mas vós tendes a unção que vem do Santo, e
conheceis todas as coisas” (VA). Aí está o velho apóstolo no fim da vida
escrevendo a cristãos novos. Estes eram pessoas muito comuns, na maioria
provavelmente escravos, e ele vai morrer e vai deixá-los, porém ele sabe que há
muitos anticristos, falsos mestres, cercando-os e propagando as suas doutrinas
perniciosas. Como ele os conforta? Bem, diz ele, este é o único conforto:
“Vós tendes a unção que vem do Santo, e conheceis todas as coisas”. Mais

adiante ele diz: “E a unção que vós recebestes dele, fica em vós, e não tendes
necessidade de que alguém vos ensine; mas, como a sua unção vos ensina todas
as coisas, e é verdadeira, e não é mentira, como ela vos ensinou, assim nele
permaneceis”.

Esta verdade é a coisa mais gloriosa que podemos compreender juntos. Não é
primariamente a capacidade natural do homem que importa. Não é preciso
menosprezar isso, todavia tornar-se cristão não depende da capacidade natural e
do entendimento natural da pessoa. Graças a Deus por isso! Se fosse questão de
aceitar ou entender um ensino filosófico, que salvação desigual seria! As pessoas
mais dotadas de cérebro e entendimento, com lazer para a leitura e com preparo
acadêmico, estariam numa posição inteiramente vantajosa, e haveria bem pouca
esperança para a ocupada dona de casa ou para o homem destituído de
capacidade natural e que nunca recebeu nenhum ensino, nem instrução ou
educação. Graças a Deus, não é esse o método usado por Ele para salvar
pessoas! Seria completamente parcial e injusto, não seria um modo equitativo de
tratar da situação. No entanto, o método de Deus é muito diferente. Nenhum
homem, seja qual for o seu entendimento, pode realmente aceitar, crer e
captar esta verdade por si mesmo. Por outro lado, o Espírito Santo de Deus pode
dar entendimento a qualquer pessoa! Não importa quão ignorante e iletrada a
pessoa seja. Ele pode dar-lhe este discernimento, este ungir, esta unção, que abre
o entendimente e a mente. A história da Igreja está cheia desse tipo de coisa. Ela
mostra como alguns dos mais simples, mais iletrados tiveram um conhecimento
da verdade que faltou a alguns dos cérebros mais grandiosos. Não somente isso,
por vezes deu-se o caso de que uma pessoa simples, iletrada, pôde levar
um grande cérebro ao conhecimento da verdade, graças à unção do Espírito!

É isso, pois, que se quer dizer com aprendera Cristo, e chegar a este
maravilhoso e bendito conhecimento. É o que explica a mudança desses cristãos
efésios da posição antiga para a nova. E é uma coisa que se vê através de todas
as Escrituras. Vejam o caso de Lídia, a primeira pessoa, em certo sentido, a ser
convertida no continente europeu. Vocês se lembram do que nos é dito sobre ela
em Atos 16:14. Paulo se juntara a uma reunião de oração de mulheres em Filipos
numa tarde de sábado. Ele se assentara e lhes pregara, anunciando-lhes a palavra
do Senhor; e então se nos fala desta mulher, Lídia, vendedora de púrpura oriunda
da cidade de Tiatira, e que “o Senhor lhe abriu o coração para que estivesse
atenta ao que Paulo dizia”. - Estivesse atentai Se o Senhor não lhe abrisse o
coração, ela não estaria atenta. Muitos ouvem a Palavra, porém não ficam
atentos a ela; isso nada

significa; ela salta por cima deles por causa da dureza dos seus corações. Mas
sobre Lídia lemos: “o Senhor lhe abriu o coração”; foi o abrandamento, a
preparação; e, uma vez aberto o coração, ela esteve atenta às coisas que Paulo
dizia, e assim ela foi salva e se tornou cristã. É sempre a obra do Espírito Santo.

Examinemos, também, a outra expressão presente no versículo. “Mas vós não


aprendestes assim a Cristo.” Por que o apóstolo se expressa dessa maneira? Ele o
faz deliberadamente, com o fim de persuadir-nos uma vez por todas que o
conhecimento obtido pelo homem que se tornou cristão é, na verdade, um
conhecimento de Cristo. Permitam-me expressá-lo negativamente. Por que será
que este homem, que outrora andava na vaidade da sua mente e que, havendo
perdido o sentimento, se entregara à dissolução para com avidez cometer toda a
impureza - por que será que ele parou de viver daquela maneira, por que será que
agora é um santo na igreja? Que conhecimento chegou a ele? Certamente não é
um mero conhecimento de moralidade e de ética. Tomem qualquer das frases
que se acham na tremenda lista do apóstolo no capítulo seis da Primeira Epístola
aos Coríntios - “Não sabeis que os injustos não hão de herdar o reino de Deus?
Não erreis: nem os devassos, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os
efeminados, nem os sodomitas, nem os ladrões, nem os avarentos, nem os
bêbados, nem os maldizentes, nem os roubadores herdarão o reino de Deus. E é
o que alguns 1 têm sido, mas haveis sido lavados, mas haveis sido santificados,
mas haveis sido justificados em nome do Senhor Jesus, e pelo Espírito de nosso
Deus”. Lá estavam eles, muitos dos pagãos coríntios, como também dos efésios -
esse era o tipo de vida que estiveram vivendo; culpados dessas coisas
feias, torpes, bestiais; mas não as estão praticando mais. Por quê? Porque tinham
aprendido algo. Que é que tinham aprendido? Moralidade e ética? Nunca! O
ensino de moralidade e ética apenas, nunca foi capaz de mudar gente como
aquela. E é por isso que esta verdade tem que ser salientada com todo o poder de
que se disponha e com todo o poder do Espírito Santo. Por que foi que aquele
bêbedo deixou de beber? Foi porque os preletores da temperança o convenceram
dos maus efeitos do álcool? Que idéia absurda! O simples conhecimento das
conseqüências do pecado nunca foi capaz de impedir que os homens
pecassem. Os próprios homens que sabem tudo a respeito disso, às vezes são
mais culpados dessas coisas, porque o seu desejo é mais forte que o seu saber

e a sua cultura! Não, isso não é matéria de moralidade, não é conhecimento da


ética: a Cristo foi que eles aprenderam.

Mas vamos fazer a seguinte colocação: o que aquelas pessoas aprenderam não
foi única e meramente que os seus pecados foram perdoados. Esse é um
conhecimento maravilhoso, não é? Por outro lado, se o evangelho apenas
informasse os homens de que os seus pecados foram perdoados na morte de
Cristo, não os libertaria das coisas horríveis que tinham mantido cativos aqueles
efésios. Eles provavelmente diraim: então, não importa quanto pequemos,
tudo será perdoado - o amor de Cristo é tão grande e maravilhoso! - mesmo que
continuemos a pecar, tudo será apagado. Não existe nada mais enganoso que o
ensino que afirma que o evangelho não é mais do que um anúncio do perdão dos
pecados. Graças a Deus, é um anúncio do perdão dos pecados! - mas não é
somente isso! Essa é toda a argumentação do apóstolo aqui. “Não aprendestes
assim a Cristo”, não como se dissesse: “E isso, o evangelho é uma espécie de
apólice de seguro, posso fazer o que quiser, estou protegido”. Não, diz
o apóstolo, “Vós não aprendestes assim a Cristo”.

Devo acrescentar ainda outra negativa, e com igual ênfase. A aprendizagem dada
aos crentes não é meramente sobre doutrina e teologia, de modo puramente
intelectual e teórico. Tal aprendizagem de nada vale; de fato, pode ser uma
maldição para nós. Lembro-me de um homem que, estando sob a influência da
bebida, discutiu comigo a doutrina da expiação. A teologia era o seu grande
interesse, a paixão da sua vida; ele era um grande estudante da Bíblia. Mas isso
não fez dele um cristão. Não é isso que se quer dizer com “aprendestes
a Cristo” \ Não me entendam mal neste ponto. Este conhecimento, esta instrução
na doutrina e na teologia, não é somente importante, é essencial. Homem
nenhum pode ser cristão sem doutrina; doutro modo, não sabe o que crê; porém
você pode tê-la em sua mente, pode tê-la em teoria, mas, como tal, ela não terá
nenhum valor para você; ela está fora de você, não lhe tocou, não se apossou da
sua vida, não o mudou, não o tornou mais e mais amoldável ao modelo e
exemplo do Senhor Jesus Cristo. Portanto, não diz o apóstolo que os
cristãos efésios tinham aprendido apenas a teoria e a doutrina; não
tinham chegado apenas a um conhecimento acadêmico destas grandes verdades
intelectuais.

Jamais conseguiremos repetir isso demasiadas vezes; o mero conhecimento da


doutrina, que não leva a uma nova vida, é do diabo. O diabo, como anjo de luz,
está muito disposto a interessar pessoas na doutrina, se isso significar que as suas
vidas não serão afetadas. Se ele souber que elas vão tornar-se insensíveis, duras e
intolerantes, daquela

maneira as encorajará a ler e a estudar doutrina e teologia. Assim, não é so isso!


O apóstolo o expressa com toda a clareza: “Vós não aprendestes assim a Cristo”,
ao próprio CRISTO! Um conhecimento, um conhecimento pessoal do Salvador,
é o fim e o objetivo de toda doutrina. E, se o crescente conhecimento da doutrina
não nos leva ao crescente conhecimento da bendita Pessoa, há algo
radicalmente errado. E se não tem um correspondente efeito sobre a nossa
conduta e o nosso comportamento, igualmente há algo radicalmente errado.
O conhecimento essencial é conhecimento do próprio Cristo como o Salvador,
como o Libertador, como o Messias, como Aquele que veio a este mundo para
destruir as obras do diabo, para redimir-nos de toda iniqüidade, e para separar-
nos para Si, um povo peculiar, zeloso de boas obras. Noutras palavras, pelo uso
da abrangente expressão aqui, o apóstolo quer dizer tudo o que é verdade a
respeito do Senhor Jesus Cristo e também de tudo o que Ele faz. É isso que ele
quer dizer com aprender a Cristo,

Mas Paulo subdivide a matéria. E aqui ele a introduz, como já assinalei, com a
curiosa expressão, “se é que”. Devemos ter claro entendimento do sentido aqui.
Ele não quer dizer que não tem certeza sober eles e sobre o conhecimento deles.
Ele já dissera no capítulo primeiro que eles o tinham. Com “se é que” ele quer
dizer,presumindo que. Ele está dizendo: “Na pressuposição de que vocês
realmente O ouviram e foram ensinados por Ele, como está a verdade em
Jesus”. Contudo, ele quer deixar isso bem claro, pelo que o divide para nós.

A melhor maneira de abordá-lo é começando com o que ele coloca no fim.


Significa que temos um conhecimento da “verdade como está em Jesus”.
Significa, em segundo lugar, que realmente ouvimos essa verdade e O ouvimos.
E, em terceiro lugar, significa que realmente fomos ensinados por Ele. Vejamos
agora estes pontos nessa ordem.

A primeira coisa é que temos esse conhecimento da verdade como está em Jesus.
O apóstolo introduz aqui uma mudança muito interessante. Primeiramente ele
diz: “Vós não aprendestes assim a Cristo”; agora ele fala sobre “a verdade como
está em Jesus”. Por que não Cristo de novo? Por que Jesus! Por que diz ele
Cristo no versículo 20, e Jesus no versículo 21? Há nessa diferença uma verdade
muito profunda que ignoramos ou negligenciamos, com grande risco para nós.
Ela ilustra o que eu diria que é uma particularidade do evangelho. Paulo está
realmente dizendo que não devemos pensar na salvação em termos frouxos,
vagos; não devemos falar de um grande Cristo cósmico, que exerce influência
sobre os homens deste mundo; não devemos apegar-nos à salvação meramente
como uma idéia e como

um conceito e como um pensamento. Absolutamente não! Diz o apóstolo que


devemos pensar nela inteiramente em termos de Jesus. Ora, este apóstolo, mais
do que qualquer outro homem, gostava de usar a expressão completa, o Senhor
Jesus Cristo, mas aqui ele diz, “como está a verdade em Jesus". E por esta boa
razão, que o cristão não é salvo por uma filosofia da redenção; é salvo por aquela
Pessoa histórica, Jesus de Nazaré, o Filho de Deus!

Aqui está um perigo muito real e muito grande. Uma coisa é apegar-se à noção
de perdão, à noção de renovação, à noção de uma vida divina. Você pode apegar-
se a tudo isso sem o Senhor Jesus Cristo! Mas o apóstolo não vai deixar-nos
fazer isso. Diz ele: este conhecimento de Cristo é a verdade como está em Jesus.
Noutras palavras, você está ligado ao Novo Testamento, você está ligado
aos quatro Evangelhos. E por isso que eles foram dados. Houve pregação cristã e
pessoas que se tornaram cristãs antes que tivéssemos os quatro Evangelhos e
antes que o restante do Novo Testamento fosse escrito e entrasse em circulação;
então, por que foram escritos? A resposta é que o diabo entrou imediatamente
em ação e tentou transformar estes grandes fatos em meras idéias e em meras
teorias, e com isso o significado deles foi esvaziado. Por isso o apóstolo diz que
o conhecimento de Cristo é a verdade que está em JESUS, “como está em
JESUS”. E desse modo somos postos face a face com esta verdade sumamente
profunda acerca do cristianismo, que é a fé que diz respeito à história. E dessa
forma ele difere das religiões do mundo.

Todas as religiões - o budismo, o hinduísmo, o confucionismo, e as demais -


estão edificadas sobre ensinos e idéias. Elas dizem que, se você os aceitar e os
seguir e os puser em prática, você terá ajuda, a sua vida será modificada, e assim
por diante. Isso não é cristianismo, de maneira nenhuma! O cristianismo é o
anúncio de certos fatos e eventos que aconteceram na história. Ele nos diz que a
nossa salvação se baseia neles; que na plenitude do tempo Deus enviou Seu
Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei - o histórico Jesus de Nazaré. Ele é
essencial! Não é a aplicação que eu faço do Seu ensino que me salva; é ELE que
me salva. Assim, estou ligado à verdade como esta é em JESUS.

O apóstolo quer dizer várias coisas, quando usa esta expressão. Num sentido, a
mais importante delas é que a verdade estásomente em Jesus, e em nenhum outro
lugar. Ao usar estas palavras, Paulo está somente repetindo um tema favorito
dele. Por exemplo, escrevendo aos colossenses ele diz: “Quero que saibais quão
grande combate tenho por vós, e pelos que estão em Laodicéia, e por quantos
não viram

o meu rosto em carne; para que os seus corações sejam consolados, e estejam
unidos em amor, e enriquecidos da plenitude da inteligência, para conhecimento
do mistério de Deus, Cristo, em quem estão escondidos todos os tesouros da
sabedoria e da ciência” (2:1-3). É em Cristo Jesus que estão escondidos todos os
tesouros da sabedoria e do conhecimento. Toda a verdade está em Jesus, e não há
verdade que não esteja ligada a Ele, pois todas as coisas estão nEle e unicamente
Ele é a verdade.

Todos os apóstolos ensinavam isso. Lemos no capítulo quatro do livro de Atos


como Pedro e João foram submetidos a julgamento pelas autoridades porque
tinham curado um coxo à Porta Formosa do templo. Foram julgados por isso e
também porque estavam pregando “este Jesus”. Vocês se lembram da resposta
dada por Pedro: “Ele é a pedra que foi rejeitada por vós, os edificadores, a qual
foi posta por cabeça de esquina. E em nenhum outro há salvação, porque
também debaixo do céu nenhum outro nome há, dado entre os homens, pelo qual
devamos ser salvos” (versículos 11 e 12). Não há verdade que não esteja ligada à
verdade que está em Jesus. E Ele mesmo o disse, uma vez por todas. Vocês o
verão no Evangelho Segundo João, capítulo 14, versículo 6: “Eu sou o caminho,
e a verdade, e a vida; ninguém vem ao Pai, senão por mim”. É exatamente isso
que o apóstolo está dizendo neste versículo. Vocês são o que são, diz ele, porque
aprenderam a Cristo, porque chegaram ao conhecimento da verdade que está
em Jesus. Não permita Deus, digo eu de novo, que alguma vez separemos a
nossa doutrina da Sua Pessoa! Não permita Deus que nos tornemos acadêmicos,
teóricos e desligados, e que esqueçamos por um segundo que a salvação veio
numa Pessoa, nesta Pessoa particular, Jesus, em quem Deus acumulou todos os
tesouros da Sua sabedoria e do Seu conhecimento.

É isso que faz de um homem um cristão; é isso que liberta o homem e muda
completamente a sua condição, e o tira do mundo e da sua vaidade mental,
coloca-o na Igreja Cristã e faz dele um filho de Deus e herdeiro da glória e da
bem-aventurança eterna.

Você, amigo, aprendeu a Cristo? Você sabe em quem você tem crido? Você O
conhece? E, em acréscimo, você sabeoque crê? Você pode dar a razão da
esperança que há em você? O homem que aprendeu a Cristo pode fazê-lo; ele O
conhece e conhece a verdade como está em Jesus.

1
VA: “alguns de vós”. Grego: “alguns fostes” (implícita a expressão “de vós”). Nota do tradutor.
OUVINDO A CRISTO E APRENDENDO A CRISTO

“Mas vós não aprendestes assim a Cristo, se é que o tendes ouvido, e nelefostes
ensinados, como está a verdade em Jesus. ”

- Efésios 4:20-21

Voltamos uma vez mais a estas notáveis e dramáticas palavras endereçadas pelo
apóstolo aos efésios que outrora tinham sido pagãos mas que agora tinham se
tornado cristãos. O ensino de Paulo é que o evangelho prega a santidade; prega o
viver cristão contrariamente ao viver pagão e pecaminoso que ainda caracteriza a
vida do mundo. Se vocês O ouviram, diz ele, se vocês foram ensinados por Ele,
como a verdade está em Jesus, vocês simplesmente não podem continuar
no pecado. Obviamente, pois, da mesma maneira como é errado
e completamente antibíblico, não há nada que seja mais ridículo do que dizer que
você pode ser justificado sem ser santificado, que pode receber uma dessas
bênçãos sem a outra, que você simplesmente crê em Cristo e está salvo e então,
mais tarde, vai a certas reuniões para poder aprender algo sobre a santidade e a
santificação. Isso está patentemente errado. Se você tem algum conhecimento
dEle, isso terá que levá-lo à santidade. É por isso que, pessoalmente, eu
nunca pude entender como se pode ter Movimentos pró-
evangelização, Movimentos pró-santidade, Movimentos acerca da Segunda
Vinda, Movimentos sobre a temperança, e várias outras coisas. E um erro total e
uma falsa divisão das Escrituras, é pura manifestação de pensamento confuso.
Tudo no evangelho leva à santidade. De modo que, em nenhum estágio da vida
cristã podemos dizer: ah, sim, ainda não ficamos interessados em santidade; isso
virá depois - como se estas coisas fossem departamentos especiais com ligação
apenas muito branda entre elas. Paulo afirma que, se “aprendemos assim a
Cristo”, não temos a menor possibilidade de continuar vivendo como
antes vivíamos. Sigamo-lo, então, no desenvolvimento disto.

O que é de grande valor, afirma Paulo, é este conhecimento da verdade que está
em Jesus. Como vimos, isto significa, primeiramente, conhecimento da pessoa
histórica de Jesus de Nazaré, e que é

preciso que a nossa fé esteja solidamente baseada nEle. Não devemos ter vagas e
filosóficas idéias da salvação; estas devem decorrer todas de Jesus, desta Pessoa
que tem a ver com a história. O velho Credo está perfeitamente correto: “nasceu
da virgem Maria, padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e
sepultado”. Apeguemo-nos à história! Uma vez que tenhamos perdido a história,
perdemos tudo. Por isso a tendência moderna da teologia do continente europeu
é tão perigosa (está vindo para o nosso país, e de fato já chegou). Diz ela que os
fatos não importam; apegamo-nos à mensagem, à verdade. Esta pretensamente
nova abordagem da Bíblia diz-nos que podemos apegar-nos à Alta Crítica e
rejeitar todos os milagres e todos os fatos que não se ajustam à ciência moderna,
e ainda continuar apegados à “verdade que está em Jesus”. Isso, certamente, é do
diabo, porque esta verdade está toda em Jesus, esta pessoa histórica, e nEle
somente.

O evangelho é exclusivo, e todo aquele que faz objeção ao caráter exclusivo do


evangelho, também o está negando. “Debaixo do céu nenhum outro nome há,
dado entre os homens, pelo qual devamos ser salvos.” Ele mesmo disse: “Eu sou
o caminho, e a verdade, e a vida; ninguém vem ao Pai, senão por mim”. Não
estamos interessados num Congresso Mundial de Crenças. O cristianismo não
precisa de ajuda, não precisa de acréscimo, tudo está em Jesus, e fora dEle não
existe coisa nenhuma em parte alguma. Está exclusivamente nEle, em Jesus, esta
Pessoa presente na história.

Ao mesmo tempo, porém, devemos estar bem certos de que aceitamos a verdade
acerca de Jesus como é. Não somente é certo dizer que toda a verdade está nEle;
temos que aceitar toda a verdade como ela está nEle. Quero dizer com isso
exatamente a mesma coisa que João menciona com freqüência em sua Primeira
Epístola. Nos primeiros dias da Igreja, antes mesmo do término da formação
do cânon do Novo Testamento, houve falsos ensinos sobre o Senhor
Jesus Cristo. João fala dos anticristos que já se insinuavam e, em oposição a eles,
desenvolve este tema - a verdade como está em Jesus. Toda a Primeira Epístola
de João não é nada senão uma exposição dessa frase. É o oposto de tudo quanto
é falso. João desmascara esses mentirosos, que estão ensinando em nome de
Jesus, porém que de fato estão negando a verdade. Quem é que nasceu de Deus?
- pergunta ele. E a resposta é esta: é aquele que crê que Jesus Cristo veio em
carne! Ele escreve desta maneira porque os anticristos, esses falsos
mestres, estavam dizendo que Cristo não tinha vindo realmente em
carne. Diziam que Ele tinha tomado um corpo tipo fantasma, que não era
um corpo real de carne e sangue. Eles não acreditavam na Encarnação,

não acreditavam no Nascimento Virginal. O Cristo eterno, diziam eles, tomou


sobre Si um corpo tipo fantasma de que Ele Se utilizou enquanto esteve aqui na
terra, e Se retirou dele antes da crucificação de Jesus no Calvário.

E isso que se dá o nome de Falso Dualismo. Foi, num sentido, a primeira heresia
da era cristã - uma espécie de gnosticismo. Teve diversos nomes, geralmente
gnosticismo ou docetismo, todavia os termos exatos não importam. O ponto é
que aqueles homens que se professavam cristãos estavam negando o evangelho,
dizendo que Jesus não tinha vindo realmente em carne. Por isso, quando lemos
a Primeira Epístola de João, vemos que ele fala repetidamente da carne, da água
e do sangue, da realidade dessas coisas em contraposição àqueles falsos mestres.
Precisamos certificar-nos, pois, de que realmente cremos na verdade acerca do
Senhor Jesus Cristo como exposta na Bíblia, e não nesse falso ensino místico.

Mas houve muitas outras heresias que se insinuaram sorrateiramente na Igreja


Primitiva, como o pecado dos nicolaítas mencionados no livro de Apocalipse, e
estes levaram ao pecado do antinomianismo, ensino segundo o qual todo aquele
que professasse o cristianismo poderia ter vida pecaminosa e contudo crer que
estava salvo. Como seria de esperar, João e Paulo fazem soar a mesma nota de
alerta. Ambos afirmam aos cristãos que a salvação redunda em santidade, e que
a vida diária do crente se relaciona com a verdade como está em Jesus, e a ela
tem que corresponder. Tudo acerca do Senhor Jesus Cristo imediatamente leva à
santidade; assim é que, se um culto evangelístico não levar à santidade, terá
falhado. Se não houver uma mensagem para todo cristão num culto
evangelístico, não é evangelização neotestamentária. Por quê? Porque tudo
acerca de Jesus leva à santidade.

Que é a verdade que está em Jesus? Pensem nela como uma revelação de Deus.
“Deus nunca foi visto por alguém. O Filho unigênito, que está no seio do Pai,
esse o fez conhecer.” Nós nos lembramos de que o nosso Senhor disse: “Quem
me vê a mim vê o Pai”! No entanto, que foi que Ele ensinou acerca do Pai? Ele
tinha vindo para fazê-10 conhecido, para O revelar, para O expor. Ele
disse também que tinha vindo “para dar testemunho da verdade”. E esta
é, primordialmente, a verdade a respeito de Deus! Em que consiste? E a verdade
que todos nós aprendemos - de qualquer forma a maioria de nós, tenho certeza -
quando éramos pequeninos, e não entendíamos o que estávamos dizendo, mas
tudo se achava na Oração do Senhor: “Pai nosso, que estás no céu” (VA). É o
que você ensina a uma criança, não

é? Não algum benevolente “papai” a sorrir indiscriminadamente, porém “Pai


nosso, que estás no céu”! Nem mesmo semelhante a um pai terreno, mas “no
céu”! Depois, “Santificado seja o teu nome”.

E isso que ensinamos às criançasl E contudo as pessoas dizem: ah, este é um


culto evangelístico: outros cultos se ocupam da santidade; a santidade não é o
assunto agora, não há nada aqui para os cristãos, de modo que os cristãos não
precisam ouvir; eles podem ficar orando para que outros sejam salvos enquanto
o evangelista prossegue com o seu sermão! Vocês conhecem esse ensino,
entretanto que negação da verdade escriturística! A menção do nome DEUS já
ensina santidade! “Pai nosso que estás no céu, santificado seja o teu nome.” É
por isso que as brincadeiras e as risadas nos cultos evangelísticos estão fora
de lugar, pois DEUS está presente, e onde Deus está presente, “Santificado seja o
teu nome”. Ah, como negamos as Escrituras na prática!

Que mais? O Senhor continua, dizendo: “Venha o teu reino, seja feita a tua
vontade, assim na terra como no céu”. A evangelização é necessária porque a
vontade de Deus não é feita. Não devo demorar-me nisso. Mas ouçam o próprio
Cristo orar ao Pai; e é isto que vocês ouvirão: “Pai Santo”! “Pai Santo”! (João
17:11). Ele era o Filho unigênito; Ele tinha vindo do seio eterno; todavia, é assim
que Ele Se dirige a Ele - “Pai Santo”. A Cristo, então, é confiada a revelação
de Deus.

Pois bem, que é que Ele diz acerca de Si mesmo? Que nos é dito a respeito dEle?
Antes do Seu nascimento no mundo foi dito a Maria, na anunciação, que “o
Santo, que de ti há de nascer, será chamado Filho de Deus”! O Nascimento
Virginal declara a Sua impecabilidade. Ele não nasceu das núpcias naturais, não
nasceu como todos os demais nascem. Foi dito a Maria: “Descerá sobre ti o
Espírito Santo, e a virtude do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra”. Houve
necessidade de um processo purificador. Ele não teve natureza pecaminosa.
A natureza humana foi purificada para Ele, era perfeita. O Seu
próprio nascimento é santo. Portanto, você não pode mencionar o Seu nome sem
perceber logo que você está sendo dirigido para a santidade e para um novo tipo
de vida. “O Santo, que de ti há de nascer ...”

E depois, acompanhem a vida do nosso Senhor; notem como era separada, como
era incomum; assim é que Ele pode dizer no fim: “Quem me convence de
pecado?” (VA: “Quem me acusa de pecado?”). Diz Ele ainda: “... se aproxima o
príncipe deste mundo, enada tem em mim”. Ninguém pôde achar nada contra
Ele. Como o autor da Epístola aos Hebreus o coloca, Ele era “santo, inocente,
imaculado, separado dos pecadores” (7:26). Vocês não poderão pregar
Jesus Cristo sem pregar santidade; é inconcebível! E se vocês tentarem fazer

isso O estarão negando. Não se pode separar a mensagem da Pessoa, em nenhum


sentido. Ora, dirão vocês, as pessoas não estão interessadas em Jesus Cristo; o
que elas querem é paz ou felicidade ou bem-estar. Bem, se elas hão de obter
satisfação nEle, têm que encará-10, e Ele é santo, inocente, imaculado, separado
dos pecadores, Não se pode pregar Jesus Cristo sem pregar santidade.

Vejam a seguir o ensino de Cristo. Qual é o Seu ensino? O Sermão do Monte!


“Bem-aventurados os pobres de espírito.” “Bem-aventurados os que choram.”
Alguns dizem: venha a Jesus; não se preocupe com arrependimento agora, isso
virá depois. Mas é com isso que Cristo começa! “Bem-aventurados os pobres de
espírito”, isto é, os que se dão conta de como são fracos e necessitados de ajuda.
“Bem-aventurados os que choram”, isto é, os que têm consciência da
sua pecaminosidade. “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça.”
“Bem-aventurados os limpos de coração, porque eles verão a Deus.” Vê-se esse
ensino no transcurso de todo o ministério do Senhor. Ouçam-nO quando Se
dirige aos fariseus e a outros. Diz Ele: vocês, que são tão zelosos e meticulosos
quanto ao pagamento dos dízimos da hortelã, do endro e do cominho, são
negligentes no concernente às coisas maiores e mais importantes da lei.
Vocês acreditam que devem limpar o exterior do copo e do prato, porém
o interior de vocês está cheio de rapina e de iniqüidade! Esse é o ensino! “Este
povo”, diz Ele, “honra-me com os seus lábios, mas o seu coração está longe de
mim.” Ele não está interessado numa religião superficial, chocha, só de lábios;
está interessado no coração. “Vós sois os que vos justificais a vós mesmos
diante dos homens”, diz Ele ainda a essa gente, todavia “Deus conhece os vossos
corações, porque, o que entre os homens é elevado, perante Deus é abominação.”

Ah, diz muito homem moderno, não estou interessado nessas Epístolas, sou
pelos Evangelhos, sou crente no evangelho simples. Bem, aí está o evangelho!
Aí estão os seus Evangelhos simples, carregados do começo ao fim da
importância do coração e sua pureza e limpeza, porque Deus é Deus, e Deus é
Luz, e nEle não há trevas nenhumas. E depois lemos como uma pobre mulher,
pecadora notória, aproxima-se dEle. Lava os Seus pés com as suas lágrimas,
e Ele, bondoso e compassivo, diz a um fariseu a respeito dela: “Os seus muitos
pecados lhe são perdoados”. Para outra mulher, igualmente pecadora, diz Ele:
“Vai-te, e não peques mais”\ Ele não Se limita a dizer: “São-te perdoados os teus
pecados”, mas acrescenta,, “vai-te, e não peques mais”. Ainda a outra pessoa,
por Ele curada, Ele disse: fiz isso por você, “não peques mais, para que não te
suceda alguma coisa pior”. E foi sempre assim. Ele não veio apenas para dar às

pessoas um pouco de felicidade e para garantir-lhes que os seus pecados foram


perdoados, ou para curar as suas doenças e enfermidades. Ele sempre salienta
estoutro lado: “A tua fé te salvou1, vai-te em paz”, onde a palavra salvou
significa muito mais que a cura física. Além disso, temos também o Seu ensino
sobre o rico e Lázaro - é ensino de Jesus - sobre a separação de bons e maus e de
céu e inferno.

Vejamos agora a morte do nosso Senhor. Por que diz Ele que tem que ir para
Jerusalém? Por que manifestou o firme propósito de ir a Jerusalém? Ele sabia o
que ia acontecer; Ele fala daquela “raposa, Herodes”. Ele sabia tudo sobre a
conspiração e as maquinações dos Seus inimigos, e, contudo, vai; Ele
“manifestou o firme propósito de ir a Jerusalém”. Por quê? Porque Ele tinha
vindo para dar Sua vida em resgate por muitos. Sua morte é essencial para a
nossa salvação. E essencial por causa da gravidade maligna do pecado e da
santidade de Deus. Nenhuma outra razão. Assim, se vocês pregam a morte
de Cristo, como poderão pregá-la sem pregar a santidade? A verdade que está em
Jesus é uma condenação da vida de pecado; ela mostra a enormidade do pecado.
Não há nada que pregue com igual força a santidade como a cruz do alto do
Calvário. E porque Deus é santo, justo e reto, que a cruz teve que acontecer. Ela
envolveria uma contradição no Ser e na natureza de Deus, se Ele tivesse que
perdoar o pecado sem puni-lo. Portanto, não se pode pregar a cruz sem pregar a
santidade, a retidão e a justiça de Deus; a cruz é a suprema manifestação destas.
E qual é o propósito e o objetivo da Sua morte? Escrevendo a Tito, o apóstolo
Paulo o expressa com muita clareza: “O qual se deu a si mesmo por nós para nos
remir de toda a iniqüidade, e purificar para si um povo seu especial, zeloso de
boas obras”. Essa é toda a mensagem da cruz. E se alguma vez pregarmos a cruz
sem darmos ênfase ao fato de que o seu propósito é tornar-nos santos -
“Ele morreu para que fôssemos perdoados, Ele morreu para fazer-nos bons” -
não estaremos pregando o evangelho completo.

E ainda, a ressurreição de Cristo prega a mesma coisa. Ele ressuscitou para


justificar-nos, para dizer que Deus e a Sua santa lei foram satisfeitos.
Ressuscitou com o fim de apresentar-nos a Deus, apresentar-Se por nós e então
apresentar-nos. Ele está assentado à direita de Deus; com que propósito?
“Vivendo sempre para interceder por nós”, para que sejamos santos. Todo o
processo se dirige a este único fim.
E depois, finalmente, chegamos à última grande doutrina nestes atos de salvação,
o envio do Espírito Santo. Qual é a obra do Espírito Santo? Santificar-nos.
Preparar-nos para a glória que nos aguarda. Todo o objetivo de cada parte da
salvação é libertar-nos de satanás e

de uma vida de pecado, e levar-nos a Deus; noutras palavras, tirar-nos, separar-


nos de um reino e colocar-nos noutro. Somos povo de Deus e não pertencemos
ao mundo. Assim, vemos que toda a verdade concernente ao evangelho é que,
como povo de Deus, devemos ser santos.

Não admira, pois, que o apóstolo se expresse com as palavras, “Mas vós não
aprendestes assim a Cristo”, querendo dizer, como vimos, que o crente é retirado
de uma vida de pecado, e habilitado a ter vida santa. Alguém discutirá isso? Eu
simplesmente tomei algumas das grandes e óbvias coisas, a fim de mostrar como
é inevitável a mudança radical. Contudo vou expressar isso como um desafio.
Desafio qualquer pessoa a dar-me um único pormenor acerca da vida do Senhor
Jesus Cristo - Sua vinda, Sua vida, Seus feitos, Seu ensino, Sua morte,
Sua ressurreição, e o Seu ato de enviar o Espírito - que inevitavelmente e, por
assim dizer, automaticamente, não dirija a atenção para a santidade e para a vida
própria do reino de Deus. Não há nada que seja tão pecaminoso e que negue
tanto o evangelho como fazer separação entre a salvação e uma vida de
santidade. De todas as divisões, a mais terrível é a que fazemos quando
separamos o que cremos do que somos, e explicamos e desculpamos o que
estamos fazendo com aquilo em que alegamos crer. É impossível, não se pode
fazer. “Não aprendestes assim a Cristo”; nenhuma pessoa que tenha
aprendido assim a Cristo pode fazê-lo. Portanto, diz o apóstolo, se alguém
está levando uma vida pecaminosa, uma vida mundana, a pergunta que se lhe
deve fazer é: você aprendeu a Cristo, você O ouviu?

Ouvir a Cristo, conhecer a verdade como está em Jesus, depende de duas coisas.
Estas são muito simples e muito práticas; ao mesmo tempo, são muito profundas.
A primeira é ouvir a Cristo, “...seéque o tendes ouvido”. Que é que Paulo quer
dizer? Obviamente, ele não quer dizer, “Se vocês, efésios, realmente ouviram o
Senhor Jesus Cristo pregar . . porque ele sabia perfeitamente bem que não
O tinham ouvido. Nunca tinham estado na Palestina, nunca tinham visto o
Senhor Jesus, nunca tinham ouvido a Sua mensagem propriamente dita dos Seus
lábios. Eram pagãos, gentios, muito distantes de Jerusalém e da Palestina.
Portanto, não quer dizer isso. Mas quer dizer que eles tinham ouvido a
mensagem do evangelho. Provavelmente não ouviram nenhum dos apóstolos,
fora Paulo, de modo que aprender a Cristoe ouvi-10 referem-se aqui à
mensagem apostólica. Paulo diz: “Sou embaixador de Cristo”, de modo que,
quando vocês me ouvem O estão ouvindo. O embaixador fala pelo rei, pelo
chefe do reino, e Paulo é um embaixador e diz: “Rogamo-vos da parte de Cristo
que vos

reconcilieis com Deus”. Logo, ouvir o apóstolo é ouvir a Cristo; sempre significa
ouvir a mensagem.

Então, que é que a palavra ouvir significa de fato? “... se é que o tendes ouvido”.
As palavras do apóstolo implicam uma diferença entre escutar e ouvir, que pode
ser ilustrada da melhor maneira com as palavras que o nosso Senhor proferiu:
vocês as encontrarão no Evangelho Segundo João, capítulo 5: “Na verdade, na
verdade vos digo que quem ouve a minha palavra, e crê naquele que me enviou,
tem a vida eterna, e não entrará em condenação, mas passou da morte para
a vida”. “Quem ouve a minha palavra.” Todas as pessoas às quais Ele estava
pregando o estavam escutando, porém - apesar disso - não O ouviam. “Quem
ouve a minha palavra, e crê naquele que me enviou, tem a vida eterna, e não
entrará em condenação.” Ouvir é algo tremendo. Deixem-me dar-lhes outra
ilustração do mesmo ponto. Diz respeito àquela maravilhosa história lírica da
primeira pessoa convertida que Paulo conseguiu na Europa - Lídia, a vendedora
de púrpura da cidade de Tiatira. O que nos é dito sobre ela é isto: “e o Senhor
lhe abriu o coração para qne estivesse atenta ao que Paulo dizia” - ela
não somente escutava, mas estava atenta. Os homens e as mulheres
podem escutar sermões evangelísticos sem ouvir a Cristo. Há pessoas que podem
sentar-se e escutar o evangelho a vida inteira, e nunca ouvi-lo. Não estão atentas
a ele.

E a mesma distinção que fazemos entre ver e perceber. Você pode olhar uma
coisa e não ver nada senão a coisa mesma. Você pode olhar um panorama
maravilhoso e ver árvores, pastos, animais, montanhas e rios, e nada mais. Como
diz Wordsworth sobre Peter Bell:

Uma prímula à margem do rio,

Uma prímula era para ele,

E nada mais.

Apenas uma prímula! E não existem tantas prímulas? E, no que se refere a Peter
Bell, não havia nada mais que isso. Para ele uma prímula era uma prímula, e
nada mais! Entretanto, Wordsworth diz noutro dos seus poemas:

Para mim a mais singela flor pode inspirar Pensamentos profundos demais para
as lágrimas.

Um homem olha uma pequenina violeta numa cerca viva e vê o poderoso


Criador, e Lhe presta culto. Outro homem-xi! simplesmente vê uma outra flor, e
há tantos milhares delas! Ou, se ele for um

botânico, vem e a disseca -pétalas, estame e tudo mais! Você vê o meu ponto?
Ouvir a Cristo não é apenas escutar sermões ou escutar o evangelho. Nem
mesmo significa gostar deles. Você pode apreciar a pregação e ainda não ouvir a
Cristo. Se um homem é um pregador que vale o que lhe pagam, vocês devem
apreciar a pregação; mas há perigo mesmo assim - vocês podem apreciar a
pregação e não ouvir a Cristo! Ouvir a Cristo tampouco significa estar ciente do
que Ele disse. Podemos estar cientes do que Ele disse nos quatro Evangelhos
e, contudo, não ouvir a Cristo! É possível o homem tomar este
assunto intelectualmente; não há nada que o impeça; e se ele tem bom intelecto,
pode traçar os livros das Escrituras com a maior facilidade. Todavia pode nunca
ouvir a Cristo. Talvez possa dizer o conteúdo da Epístola aos Efésios; talvez
possa fazê-lo em cinco minutos! Mas pode nunca ter ouvido a Cristol Ter
conhecimento intelectual, estar ciente, não basta. Na verdade, vou além e digo
que aceitar a verdade somente com o intelecto não é o mesmo que ouvir a Cristo.

Ouvir a Cristo vai além de todas essas coisas. Significa que o ouvinte do
evangelho não somente escuta, porém crê que ele é a verdade, entende o que ele
diz, e até entende o que ele implica. Além disso, o ouvir a Cristo inclui o ungir, a
unção que o Espírito Santo dá, unção que nos dá uma compreensão espiritual.
Não se trata de um fideísmo chocho e fácil; é algo que absorve toda a
personalidade. Noutras palavras, compreendemos a sua significação, e a sua
significação para nós. O homem que ouve a Cristo é o homem que diz: esta é a
coisa mais importante do mundo, é tudo; conheço muitas outras coisas, e não
menosprezo o seu valor, mas esta, esta é verdade, esta é a verdade! Ele ouviu a
Cristo! Ele diz: “Que tudo se vá, menos isto; sacrificarei tudo, contanto que
possa ter a vida eterna que o evangelho promete aos crentes”. A mensagem o
agarrou, apreendeu-o, e ele a está apreendendo. Significa que ele se rende a ela.
Quando umhomem ouviu a Cristo, Cristo e o Seu evangelho passam a ser as
coisas principais da sua vida, ele é dominado por eles, governado e dirigido por
eles, ele se rende a eles, vive para obedecer a Cristo e para obedecer ao
evangelho. É, de fato, mais que óbvio, de todo o contexto e de todo o conteúdo
do Novo Testamento, que ouvir a Cristo significa que Cristo domina e determina
as nossas vidas. Não pode significar menos que isso! “Se é que o tendes ouvido”,
eu sei quem Ele é, diz o crente, sei por que Ele veio, e sei que o evangelho de
Cristo é a verdade, a verdade de DEUS; portantç, isso tem que estar em primeiro
lugar e ser supremo em minha vida. É isso que se quer dizer com ouvir a
Cristo. Basta isso, então, para a primeira condição!

Passemos à segunda condição. “Se é que o tendes ouvido, e por ele fostes
ensinados.” Assim diz a Versão Autorizada; mas devia ser: “Se é que o tendes
ouvido, e nele fostes ensinados” (como diz Almeida), ensinados nEle - uma
diferença muito importante. Que é que o apóstolo está querendo dizer? Não
meramente “ensinados na doutrina concernente a Ele”, porque ele já dissera isso;
agora vem um acréscimo, significando que fomos ensinados em união com Ele.
Noutras palavras, o ensino sobre o qual ele está falando não é uma espécie
de ensino desligado. Ouvir a Cristo e ser ensinado em Cristo significa que você
já não é um de fora, você está em Cristo. É por isso que esta espécie de ensino é
tão diferente de todas as outras espécies de ensino levadas a efeito no mundo.
Uma pessoa pode lecionar-lhe história, ou poesia, ou ciência, ou qualquer outra
matéria e, naturalmente, o tempo todo há este desligamento, não somente entre
os que escutam e a pessoa que fala, mas também entre os que escutam e até
acreditam no que é ensinado, e a verdade mesma; você não está nela. No entanto
o significado a nós transmitido por Paulo aqui é que, se você ouviu a Cristo,
você está em Cristo, e assim você está aprendendo de dentro. Esta é uma coisa
tremenda, e até certo ponto já estivemos tratando dela. O apóstolo introduz esta
espécie de ensino no fim do capítulo primeiro. Ele ora pelos efésios, no sentido
de que tenham “iluminados os olhos do vosso entendimento”; ele ora “para que
o Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória, vos dê em seu
conhecimento o espírito de sabedoria e de revelação; tendo iluminados os olhos
do vosso entendimento, para que saibais qual seja a esperança da sua vocação, e
quais as riquezas da glória da sua herança nos santos, e qual a sobreexcelente
grandeza do seu poder sobre nós, os que cremos, segundo a operação da força do
seu poder, que manifestou em Cristo, ressuscitando-o dentre os mortos, e pondo-
o à sua direita nos céus, acima de todo o principado, e poder, e potestade, e
domínio, e de todo o nome que se nomeia, não só neste século, mas também no
vindouro; e sujeitou todas as coisas a seus pés, e sobre todas as coisas o
constituiu como cabeça da igreja, que é o seu corpo, a plenitude daquele
que cumpre tudo em todos”. E também neste capítulo quatro, Paulo nos estivera
dizendo que estamos em Cristo, no corpo. Ele estivera fazendo declarações
tremendas - “do qual todo o corpo, bem ajustado, e ligado pelo auxílio de todas
as juntas, segundo ajusta operação de cada parte, faz o aumento do corpo, para
sua edificação em amor”; e a sua oração é para que todos nós “cresçamos em
tudo naquele que é a cabeça, Cristo”.

Que é que tudo isso significa? Significa que estamos sendo ensinados em Cristo!
A vida de Cristo está em nós! Não é teoria, é

ensino vivificante, é ensino que transmite vida. Se eu estou pregando no


Espírito, como rogo a Deus que esteja, não estou apenas proferindo palavras para
vocês, estou comunicando vida a vocês, estou sendo usado por Deus como canal
do Espírito, e as minhas palavras trazem vida, e não apenas conhecimento. Vocês
aceitam essa distinção? As vezes receio por alguns de vocês que fazem
anotações, que estejam somente obtendo as palavras e não o Espírito. Não estou
dizendo que não devem fazer anotações, mas os advirto a que tenham
cuidado. Muito mais importante que as palavras é o Espírito, a vida; em
Cristo estamos sendo ensinados, e edificados nEle. Assim é que, num sentido,
embora vocês esqueçam as palavras, terão recebido a vida, e sairão conscientes
da vida de Deus pulsando dentro de vocês, por assim dizer. É tudo resultado da
permanência do Espírito Santo dentro de nós, e da existência de canais de
suprimento (como vimos anteriormente) mediante os quais a nutrição vem da
Cabeça a cada parte do corpo. Portanto, diz o apóstolo, se vocês ouviram
realmente a Cristo e foram ensinados nEle, vocês não terão a mínima
possibilidade de viver “segundo o curso deste mundo”, porque já lhes ensinei
(diz ele) que vocês são partes do corpo de Cristo, vocês são membros da
Sua carne e dos Seus ossos - como ele dirá no próximo capítulo. Sua vida passa
pelos canais de suprimento diretamente a cada um de vocês, e se essa vida está
em vocês, como é possível que continuem vivendo como vivem os incrédulos?
“Vós não aprendestes assim a Cristo!”

Eu resumo o ensino do apóstolo, então, da seguinte maneira: ouvir a Cristo e ser


ensinado nEle significa que aprendi que Deus tanto me amou que, em dado
ponto do tempo, Ele enviou o Seu Filho unigênito a este mundo, da eternidade
para o ventre da virgem. Ele humilhou-Se e nasceu como um bebê, incapaz de
cuidar de Si mesmo, deitado numa manjedoura. Ele viveu e ensinou; Ele rendeu
perfeita obediência a Seu Pai e Sua santíssima lei. E depois, embora pudesse
ter ordenado a mais de doze legiões de anjos que O atendessem, e pudesse ter
voltado para o céu imediatamente, deliberadamente foi para a cruz e sofreu a
vergonha, a cusparada e a indignidade daquilo tudo; e o fez para levar sobre Si
os meus pecados; para receber o castigo a mim devido; para sofrer a pena que a
minha culpa merecia; e, infinitamente mais importante, para libertar-me da
escravidão do pecado e de satanás; para separar-me para Si; e para fazer de mim
um homem zeloso de boas obras e que tem prazer na santidade. Ele morreu;
Ele foi ressuscitado dos mortos; Ele retornou ao céu e enviou o Espírito Santo no
dia de Pentecoste, a fim de que eu tivesse a segurança da minha fé, e a alegria, e
o poder. Ele me deu uma nova vida e uma nova

natureza; Ele me uniu a Si mesmo; sou membro do Seu corpo místico; sou filho
de Deus e herdeiro do céu.

É isso que conhecer a Cristo significa, aprender a Ele, ouvi-10, ser ensinado
nEle! Eu creio no ensino segundo o qual nada que contamine terá permissão de
entrar no céu; que o céu é etemamente puro e santo, a antítese deste mundo e do
pecado, o oposto do inferno. Essa é a maneira como aprendi a Cristo, essa é a
maneira como fui ensinado nEle - que estou nEle, a Cabeça viva, e que sou uma
parte dEle; e que além desta vida e da morte e do véu, estarei com Ele para todo
o sempre. Se vocês crêem nestas coisas, diz Paulo, vocês não terão comunhão
“com as obras infrutuosas das trevas”. Se vocês crêem nestas coisas, diz João,
“qualquer que nele tem esta esperança purifica-se a si mesmo, como também ele
é puro”. A lógica é inevitável e somente uma dedução é possível, a saber: tudo o
que diz respeito a Cristo e à nossa relação com Ele torna a velha vida
inimaginável, como também impossível.

DESPINDO-NOS E REVESTINDO-NOS!

“Que, quanto ao trato passado, vos despojeis do velho homem, que se corrompe
pelas concupiscências do engano; e vos renoveis no espírito do vosso sentido; e
vos revistais do novo homem, que segundo Deus é criado em verdadeira justiça
e santidade. ”

- Efésios 4:22-24

Nestes versículos o apóstolo está lembrando aos cristãos efésios o que eles
tinham aprendido em Cristo Jesus. Vocês vêem quão logicamente ele se move na
seqüência. Primeiro ele os faz lembrar-se do tipo de vida que eles costumavam
viver, e depois lhes diz que “aprender a Cristo” é aprender que não se vai mais
viver daquela maneira. Mas de novo, para que não houvesse nenhuma
incerteza sobre isso, ou alguma falha da parte deles quanto a entendê-
lo verdadeiramente, ele desce ao nível prático e lhes lembra o que é a verdade
em Jesus - esta verdade que eles já aprenderam e ouviram, e lhes fora ensinada.

Os três versículos que vamos considerar agora têm importância incomum, num
sentido teológico, e partícularmente quanto à doutrina da santificação. São
versículos cruciais, com relação ao correto entendimento do ensino
neotestamentário sobre a questão sumamente importante da santidade e,
portanto, não conseguiremos dar-lhes atenção demasiadamente concentrada e
cuidadosa, quando não, ao menos por essa mesma razão. Contudo, em
acréscimo, e de algumas maneiras ainda mais importantes, eles são de grande
significação para nós, do ponto de vista prático. O apóstolo, como sempre,
combina a sua doutrina com a sua prática. Diversamente de muitos dos
seus seguidores, ele nunca incorre na culpa de separá-las; as duas vão sempre
juntas. Se posso expressá-lo com uma frase - muitíssimas vezes a Igreja Cristã
hoje dá a impressão de que é uma espécie de loja de departamentos, com toda
uma série de departamentos com frouxa ligação entre eles. Mas a Igreja nunca
foi destinada a ser desse jeito. A Igreja é una, e existem certas coisas que jamais
devem ser divididas. Doutrina e prática; justificação e santificação;
evangelização e edificação. Todas elas andam juntas, e isso em termos da
verdade.

A declaração do apóstolo deve, pois, ser tomada como um todo, porque é um


todo. E, todavia, vemos que o todo é dividido em partes. Há duas partes aqui,
com uma espécie de elo de ligação. A primeira parte é negativa, “quanto ao trato
passado, vos despojeis do velho homem”; então vem o elo de ligação - “e vos
renoveis no espírito do vosso sentido” (VA: “da vossa mente”) - e isso traz vocês
ao positivo: “e vos revistais do novo homem, que segundo Deus é criado
em verdadeira justiça e santidade”.

Há toda uma série de contrastes deveras notáveis aqui, nestes dois versículos, 22
e 24. Temos, por exemplo, o velho homem e o novo homem; o velho homem
encaminha-se para a destruição, o novo homem é uma nova criação. Opostos
exatos! O velho homem vai se corrompendo sob o poder da concupiscência; o
novo vai se desenvolvendo sob o poder de Deus. O velho homem é dominado
pelo engano, o novo, pela verdade. Noutras palavras, os contrastes são
absolutos. E é isso que Paulo está interessado em mostrar, a saber, que as
duas coisas são tão essencial e inteiramente diferentes que nenhum cristão que
de fato tenha aprendido a Cristo pode sequer sonhar ou pensar em continuar no
velho modo de viver e no velho nível. E é dessa maneira que o Novo Testamento
ensina a santidade. Simplesmente nos pede que sejamos lógicos, que nos demos
conta daquilo em que cremos, e que, portanto, o ponhamos em prática. E um
grande apelo dirigido à razão, ao entendimento e à lógica - ter aprendido a
Cristo! tê-10 ouvido! e ter sido ensinado nEle como a verdade está em Jesus!
E qualquer outra apresentação da santificação e da santidade não é ensino do
Novo Testamento; não é escriturística; cheira mais ao psicológico.

Então, ao passarmos a examinar essa grande declaração, há um ou dois pontos


gerais que precisam ser tratados em primeiro lugar. Como já vimos, as duas
coisas presentes em nossos versículos sempre devem ser tomadas juntas. Noutras
palavras, o apóstolo não nos dá apenas a negativa e fica nisso. Não nos diz
meramente que nos despojemos do velho homem e então paremos, pois essa é
apenas uma parte da ação; há o outro lado, e ambos devem andar sempre juntos;
devemos vestir-nos como também despir-nos. Não devemos permanecer nus,
por assim dizer. Não existe uma posição intermediária neutra. As duas coisas
sempre têm que ser feitas juntas.

Esta é precisamente a diferença entre o cristianismo e o moralismo. O moralismo


pára na negativa. Diz-nos: dispa-se do velho homem! Você não deve fazer isso,
não deve fazer aquilo. E então está terminado. E isso, na essência, o moralismo;
é sempre negativo,

unicamente preocupado com o despojamento do velho homem. Mas isso nunca é


cristianismo. O nosso Senhor mesmo deixou isso perfeitamente simples e claro,
uma vez por todas. No capítulo onze do Evangelho Segundo Lucas Ele fala
sobre o espírito maligno que tinha saído de um homem. No entanto, visto que o
homem só expulsara o espírito maligno de maneira negativa, e não acolhera de
maneira positiva o Espírito, o Espírito Santo, embora a sua casa
estivesse varrida, limpa e adornada, o espírito maligno que saíra logo volta
com outros piores do que ele; e o último estado daquele homem, diz o
nosso Senhor, é pior do que o primeiro. Do ponto de vista espiritual e
cristão, não há nada mais perigoso do que meramente você despir-se do
velho homem, limpar a sua casa, varrer o lixo, por assim dizer; pois, se
o Espírito Santo não entrar, o último estado, diz Cristo, será pior do que o
primeiro.

Historicamente falando, esta é uma das coisas mais importantes que podemos
captar na vida. Sou um dos que defendem a idéia de que o dano real foi feito nos
fins do século passado, quando a Igreja Cristã começou a formar organizações
para tratar de pecados particulares. Inconscientemente, ela caiu do nível
espiritual para o moral. Ora, não faz parte do meu dever denunciar estas coisas,
porém estou apenas pedindo a vocês que observem os fatos. Apesar de termos
organizações especiais com vistas à observância do santo descanso semanal,
à temperança, ao jogo e a muitas outras questões - todas conduzidas por pessoas
excelentes, que têm trabalhado arduamente - que é que realizaram realmente?
Penso que os fatos atuais mostram que realizaram muito pouco. E não fico
surpreso. Não é esse o modo de tratar dessas coisas. O modo de lidar com elas é
ter & verdade positiva do evangelho. Foi o que aconteceu no século 18. Às vezes
penso que a via régia para o avivamento é a simples percepção de que, quanto
mais cedo esquecermos o século 19 e voltarmos ao 18, melhor será. A pregação
do evangelho no poder do Espírito Santo tratou desses vários problemas,
inevitavelmente; sempre o faz. Esse é o tipo de questão que emerge aqui. Não
nos despimos meramente do velho homem e paramos nisso; não, trata-se de uma
ação combinada. Despimo-nos do velho homem, revestimo-nos do novo; jamais
devemos permanecer numa condição neutra, de nudez. As duas coisas devem ser
tomadas juntas. E, todavia, entendemos que elas devem ser
consideradas separadamente, a fim de podermos ter pleno entendimento delas.
Mas, embora as estudemos separadamente, não significa que delas efetuemos
ações isoladas e distintas, como se disséssemos a alguém: pois bem, agora, por
enquanto, dispa-se do velho homem e então, mais tarde, talvez o levemos a uma
reunião ou convenção onde você poderá

vestir-se do novo. Nunca! Nunca! Jamais se deve dividir essas coisas. Nós as
consideramos separadamente apenas por amor da conveniência e da
compreensão, porém nunca devemos dividi-las nesse sentido completo e
absoluto em nosso pensamento.

O meu segundo comentário geral sobre estes versículos é que despir-se e vestir-
se, de acordo com a maneira expressa pelo apóstolo aqui, devem ser ações
realizadas uma vez para sempre, se bem que o elo de ligação, a renovação que
ocorre no espírito da mente, é contínuo. Infelizmente, a tradução da VA não tem
a clareza que devia ter. “Para que vos despojeis quanto à vossa conversação, do
velho homem”, Paulo coloca no tempo aoristo, que indica uma ação realizada
uma vez por todas; o cristão se despe uma vez para sempre do velho homem,
diz ele, e se veste uma vez para sempre do novo. Sim, mas você continua sendo
renovado no espírito da sua mente; essa é uma ação continuada, está no presente
contínuo; nunca pára. Contudo, a outra é uma vez para sempre, como espero
mostrár a vocês. Esta diferença é importante para o entendimento da doutrina da
santificação.

Mais uma explicação é necessária neste ponto. Refere-se àpalavra traduzida por
“conversation” (conversação) na Versão Autorizada. Nessa versão a palavra
sempre significa conduta e comportamento, modo ou maneira de viver. Temos
várias ilustrações disso. Escrevendo aos filipenses, diz o apóstolo: “Somente seja
a vossa conversação” (“conversation”) “como convém ao evangelho de Cristo”(l
:27). Mas ele não quer dizer o que conversação sempre significa hoje; ele
não estava se restringindo ao falar. Não, ele se referia à totalidade da vida. Mais
adiante ele torna a dizer aos filipenses: “A nossa conversação está no céu”, e o
que ele quer dizer é, a nossa cidadania (3:20). Assim, aqui o que ele quer dizer
com “a velha conversação” é o antigo modo de viver que ele estivera retratando
nos versículos 17 a 19. E esta é a colocação que ele faz: o que lhes estou
dizendo, pois, é que aquilo que vocês “aprenderam a Cristo” é que, com relação
ao antigo modo de viver que vocês tinham, vocês têm que despir-se do velho
homem, uma vez para sempre.

Para obtermos o sentido exato disso devemos começar examinando as


expressões que Paulo utiliza - “despir-se” e “vestir-se”. É evidentemente uma
figura, e uma figura óbvia. É a figura referente a despir umaroupa.
Vocêtiraaroupaeapõedelado. Ouaveste. Pauloescolhe esta analogia particular a
fim de dar-nos o sentido da finalidade da ação. Ou você tira a roupa ou a põe.
Não pode ser meio tirar e meio pôr. Ou é uma coisa que você põe de lado - lá
está ela, você lhe deu fim, jogou-a fora, por assim dizer- ou você a apanha e a
veste. E uma

figura de linguagem forte e impressionante, e era precisamente o que o apóstolo


queria nesse estágio. Ela comunica plenamente a idéia de abandonar e renunciar,
pôr de lado uma coisa, não usá-la mais.

Ora, que é que devemos despir? “Que, quanto ao trato passado”, diz Paulo, “vos
despojeis do velho homem." “Velho homem” é uma espécie de expressão técnica
que ele usa, e muito importante. Vocês a verão constantemente em suas
Epístolas, e é essencial que captemos o seu significado. Com homem, é claro, ele
quer dizer personalidade, a totalidade da personalidade. O homem é isso. Assim,
o que ele quer dizer aqui é a pessoa não regenerado que éramos outrora,
dominada por uma natureza depravada, e para ajudar-nos dá-lhe o nome
dcvelho homem. Não há nada difícil nesses termos. Falamos do nosso eu melhor,
e assim fazemos uma espécie de divisão de nós mesmos, e da mesma maneira
Paulo usa esta expressão, velho homem. Por que velhol Uma razão é que ele está
contrastando algo que costumava ser próprio dos crentes de Éfeso, porém não o
é mais. Ele se refere ao antigo comportamento, e esse é velho porque pertence ao
modo de viver deles no passado; refere-se ao que eles eram outrora - ao antigo.

Há, porém, mais que isso no uso que Paulo faz da expressão “velho homem”.
Penso que ele o usa no sentido daquilo que a Bíblia quer dizer com pecado
original, porque o velho homem que há em nós é de fato muito velho; ele é na
verdade tão velho como Adão. E, portanto, realmente so deve pensar no “velho
homem” como o velho homem que todos nós éramos de nascença e como
resultado da nossa descendência de Adão. A expressão fala de tudo o que
herdamos de Adão como resultado da Queda. De modo que há um sentido em
que o velho homem é o mesmo em cada um de nós. Todos nós nascemos com
uma natureza corrupta, com uma natureza contaminada, com uma
natureza maculada. Certamente ninguém irá querer discutir isso! Não há
nada tão óbvio como a universalidade do pecado. Todo mundo peca, e
todo mundo peca assim que é capaz de tomar alguma decisão por si mesmo. A
criança mais pequenina gosta de fazer o que se lhe pede que não faça; gosta de
fazer o que não é bompara ela. Isso é pecado, pecado original; é uma
manifestação da corrupção da nossa natureza, da depravaçâo, da contaminação
que há na natureza humana desde a queda de Adão. Podemos ver a
universalidade disso hoje. Vocês lêem a Bíblia e a vêem em toda parte nela;
aparece desde o começo mesmo, e é por isso que Gênesis é um livro tão
importante. A passagem clássica sobre isso tudo é o capítulo cinco da Epístola
aos Romanos, onde lemos a respeito do fato de que estamos “em Adão”, e
depois, de que estamos “em Cristo”. E o mesmo tema aqui. O velho homem é,
pois, o que todos nós somos por nascimento e por natureza; decaídos,
maculados,

depravados, corruptos, pecaminosos, com propensão contra Deus e para o mal.


O pecado é universal. Portanto, diz o apóstolo, estou lhes dizendo que se
despojem desse velho homem. Fora com ele!

Então, por que temos que fazer isso? Aqui de novo há um ponto preliminar que,
na verdade, me parece de muito grande interesse, pois com freqüência as pessoas
tropeçam aqui, e acham que há quase uma incoerência no ensino do apóstolo.
Aqui, dizem elas, na Epístola aos Efésios, Paulo nos está dizendo que nos
despojemos do velho homem, ao passo que em Romanos, capítulo 6, versículo 6,
ele diz: “Sabendo isto, que o nosso homem velho foi com ele crucificado”, com
Cristo. Como explicar isso? O argumento em Romanos, capítulo 6, é que o velho
homem foi crucificado com Cristo e morreu com Cristo. Paulo continua dizendo,
“vós estais mortos para o pecado”, “vós estais mortos para a lei”, o vosso velho
homem morreu com Cristo. E contudo, continuam aquelas pessoas, aqui em
Efésios 4:22 ele nos está dizendo que nos despojemos do velho homem. Como
você poderia despir-se do velho homem, se o velho homem já está morto?

Aí está, pois, uma dificuldade aparente, mas de fato não será dificuldade
nenhuma, se vocês tomarem o cnsino tão-somente como ele é. Romanos 6:6
declara algo que é um fato. E uma descrição de algo que é certo a nosso respeito
em nossa relação com Deus. Como digo, cada um de nós nasceu como um filho
de Adão, cada um de nós nasceu em Adão, pertencemos a Adão, e sofremos
todas as conseqüências da queda de Adão. Sim, isso é verdade, porém também é
certo dizer do cristão que o homem que ele era em Adão está morto. Se
um homem está em Cristo, não está mais em Adão, e se eu sou cristão, o homem
que eu era em Adão já se foi, para sempre. Deus não o reconhece; eu fui
justificado livremente pela graça de Deus em Jesus Cristo. Deus não me vê mais
como um homem em Adão, porque sou um homem em Cristo. Portanto, é
perfeitamente correto dizer que o velho homem foi crucificado e morreu com
Cristo. Essa é uma declaração absoluta de fato acontecido.

Muito bem, pois, vocês dirão, se isso é verdade, como Paulo poderia exortar-nos
aqui a despir-nos do velho homem? A resposta é esta: é porque o velho homem
está morto que eu devo despojar-me dele. A única pessoa que pode desfazer-se
do velho homem é a que sabe que, no seu caso, o velho homem está morto.
Deixem-me expressá-lo assim: embora em minha relação com Deus seja
certo dizer que o meu velho homem está morto, não obstante, do ponto de vista
experimental, por causa dos hábitos, das práticas e da falta de conhecimento e de
entendimento, muitas das características do velho

homem ainda se agarram a mim, na minha qualidade de novo homem. Assim o


apóstolo pode dizer-me agora: não se preocupe com o velho homem, não
continue fazendo o que ele costumava fazer, porque ele está morto! Esse é o
argumento, e é perfeitamente coerente. Como digo, sempre se deve pensar no
velho homem em termos da nossa posição, da nossa relação com Deus. Todos
nós começamos estando em Adão; depois, se nos tornamos cristãos e nascemos
de novo, estamos em Cristo; e se estamos em Cristo, não estamos mais em Adão.
Éuma coisa ou outra, e o fato de que estamos em Cristo significa que estamos
mortos para a natureza adâmica, mortos para o pecado, mortos para a lei, mortos
para toda e qualquer possibilidade de condenação; somos novas criaturas em
Cristo.

Expresso doutra forma, o que o apóstolo nos está dizendo realmente aqui é que
devemos SER O QUE SOMOS. Isso faz sentido para vocês? Seja, irmão, o que
você é. Trate de dar-se conta do que você é, e seja isso! Uma ilustração pode
ajudar-nos aqui. Parece que depois da Guerra Civil Americana e da libertação
dos escravos no sul, alguns deles, muito naturalmente, permaneceram esquecidos
de que agora eram homens livres, e continuaram vivendo e se comportando
exatamente como se ainda fossem escravos. O mesmo espírito servil e o mesmo
temor estavam lá. Ora, de fato houvera uma proclamação que estabelecia que
eles não eram mais escravos, porém estavam completamente livres. Essa era a
realidade, posicionai e legalmente; era a justificação. O antigo escravo não o era
mais; o mesmo homem ainda estava vivo, entretanto o escravo que ele fora
outrora tinha se ido para sempre e estava morto. Sim, mas o pobre homem, por
puro hábito, prática e costume, continuou vivendo como se ainda fosse
escravo. Assim, o que se devia dizer a ele era: despoje-se da escravidão!
Você não é mais escravo! Você é um homem livre; viva como um homem livre,
pare de viver como escravo, pare de comportar-se como escravo, você está livre!
Seja o que você é! Pois bem, é isso exatamente o que o apóstolo está dizendo
aqui. ,

Não há contradição entre Romanos 6:6 e Efésios 4:22. E porque o velho homem
foi crucificado e morreu que somos exortados a despojar-nos dele. Nunca o
Novo Testamento diz a um homem não regenerado que se despoje do velho
homem; seria estranho e seria ilógico. Contudo, o homem regenerado tem que
fazê-lo, e tem que livrar-se das lembranças, das recordações e dos hábitos que
lhe pertencem e que tendem a persistir nele. Espero que isso esteja claro, porque
admito que o ensino é um tanto difícil. Se vocês quiserem conhecer uma coisa
mais difícil ainda, leiam o capítulo sete da Epístola de Paulo aos Romanos; ali
vocês verão que ele parece estar

falando de três pessoas ao mesmo tempo! Ele fala do velho homem, do novo
homem e de mim mesmo. E ele está perfeitamente certo.

Permitam-me ilustrar o que Paulo está dizendo. Quando me torno cristão, vejo-
me virtualmente como um homem que está conduzindo uma parelha de cavalos.
Eu sou o condutor, com as rédeas em minhas mãos; há o cavalo da direita; há o
da esquerda; eu estou conduzindo os dois cavalos. O velho homem, o novo
homem e eu! E agimos juntos, e estamos cientes de que estamos fazendo isso.
Estou ciente do velho homem que eu era, estou ciente do novo homem que me
tomei, e ainda eu, por assim dizer, sou capaz de considerar esses dois. Aí, está.
Isso talvez ajude a levar em sua mente essa figura. E assim o apóstolo diz a mim:
despoje-se desse velho homem! Despoje-se de tudo o que lhe diz respeito, ele
não é mais você; portanto, despoje-se de tudo o que o caracterizava; e vista-se do
novo homem.

Mas há outra dificuldade. Há os que têm problema porque dizem que na Epístola
aos Colossenses (capítulo 3, versículo 9), o apóstolo diz: “Não mintais uns aos
outros, pois que já vos despistes do velho homem com os seus feitos”. Aqui ele
está dizendo que nos despimos do velho homem com os seus feitos e, todavia,
em Efésios, capítulo 4, ele diz: despojai-vos do velho homem com tudo o que a
ele se refere. É contradição? Naturalmente que não. Apesar de eu dizer que
esta ação de despojar-se do velho homem é uma ação feita uma vez por todas,
não quero dizer com isso que você o faz uma só vez na vida e nunca mais tem
que fazê-la de novo. No momento em que um homem se torna cristão, ou toma
consciência do fato de que é cristão, está se despindo do velho homem, e
obviamente chega a certas conclusões e decisões. Diz ele: uma vez que sou
cristão, há certas coisas que não posso mais fazer, e vou fazer outras coisas.
Estou despindo o velho homem, e vestindo o novo.

Nos primeiros dias da Igreja, quando um pagão era convertido e pedia para ser
batizado, isso era um sinal evidente de que ele estava fazendo justamente esta
ação. E isso tinha acontecido com os crentes efésios. A profissão que eles tinham
feito em seu batismo, ou em qualquer outra forma de admissão na igreja, era
definidamente despir-se do velho e vestir-se do novo. Então, como sucede que
Paulo lhes diz que o façam outra vez, quando já o tinham feito uma vez por
todas? A resposta está naquilo que há pouco estive dizendo. Embora cada
um deles, a seu tempo, tenha dito: estou dando fim à velha vida e
estou assumindo a nova, contudo, ao se passarem os anos, e talvez
vindo tentação e pecado, eles se viram esquecendo estas coisas, e
inconscientemente a princípio, viram-se arrastados de volta àquele velho tipo

de vida. Por isso o apóstolo lhes escreve e lhes diz: para onde vocês estão indo?
Que é que estão fazendo? Acaso não vêem que estão mais ou menos de volta ao
ponto em que costumava estar? Despojem-se do velho homem, e façam isso uma
vez para sempre! Assim é que, conquanto seja uma ação destinada a ser uma vez
por todas, infelizmente na experiência vemos que temos que repetir a ação
muitas vezes. Assim, não há contradição! Paulo está dizendo aos
colossenses: vocês estão sendo incoerentes; diziam que estavam dando cabo
da velha vida, mas vejo que estão continuando com ela - despojem-se dela! Não
há, pois, contradição mesmo neste ponto. Cada vez que surge a necessidade, é
preciso que haja uma ação inteira e completa, sem nenhum tipo de reserva.

Pois bem, já temos examinado uma razão para despir-nos do velho homem e
vestir-nos do novo. Devemos fazê-lo por causa do homem novo que está em nós,
e por causa do que aconteceu conosco. Vejam, por exemplo, o argumento de
Paulo em Romanos, capítulo 6, que, em certo sentido, é um extenso comentário
dos versículos que estamos considerando. Diz o apóstolo: por que vocês não se
dão conta destas coisas? Por que não compreendem que agora vocês mesmos
estão mortos para a sua antiga maneira de viver, no pecado? “Assim
também vós”, diz ele, “considerai-vos como mortos para o pecado, mas
vivos para Deus”; depois continua: “Não reine portanto o pecado em
vosso corpo mortal, para lhe obedecerdes em suas concupiscências”. Diz ele:
tratem de compreender a verdade acerca de vocês mesmos! Cristo morreu para o
pecado uma vez por todas, e vocês estão nEle e morreram com Ele e, portanto,
vocês estão mortos para o pecado; ponham esta lógica em prática e em ação,
“nem tampouco apresenteis os vossos membros ao pecado por instrumentos de
iniqüidade; mas apresentai-vos a Deus, como vivos dentre os mortos, e os
vossos membros a Deus, como instrumentos de justiça.” E então, vocês
se lembram, havendo dado o seu grande argumento, ele diz - “Falo
como homem, pela fraqueza da vossa carne”. Essa é a maneira de Paulo dizer:
agora vou usar uma ilustração com o fim de tentar deixar isto claro e simples
para vocês. Diz ele: “Pois que, assim como apresentastes os vossos membros
para servirem à imundícia, e à maldade para maldade, assim apresentai agora os
vossos membros para servirem à justiça para santificação”. Todo o argumento
eqüivale a isto: em vista do que ocorreu dentro de nós e aconteceu conosco,
devemos agora seguir avante e renunciar e dar fim uma vez para sempre ao
velho homem e todos os seus modos, hábitos e práticas. Temos que aperceber-
nos da verdade acerca de nós mesmos em Cristo Jesus. Precisamos lembrar-nos
do que aprendemos nEle. Além disso, temos

que lembrar que somos realmente membros da Sua carne e dos Seus ossos, que
somos partes do Seu corpo. E portanto, diz o apóstolo, tudo o que diz respeito ao
velho homem terá que ser abandonado, e terá que ser deixado de lado uma vez
para sempre. Estaríamos tratando aqui do que somos compelidos a denominar
um ponto teológico? Indubitavelmente! Mas há quem tenha que se desculpar
pela teologia? Não o permita Deus! É o não entendimento destas coisas que leva
a tanta dificuldade na prática.

Por isso eu gostaria de levantar uma questão a todos os crentes. Você sabe, você
está plenamente consciente de que o seu homem velho foi crucificado? Você
elevou-se à gloriosa compreensão de que você não é mais filho de Adão, de que
você não está mais em Adão? Você se deu conta de que o homem que você era
em Adão foi apagado da vista de Deus por toda a eternidade? Esse é o
significado da justificação pela fé. Deus faz o pronunciamento num sentido
forense. Ele nos diz que somos justos e retos aos Seus olhos, porque estamos em
Cristo. O homem que eu era se foi, deixou de existir. E a realidade mais gloriosa
que o cristão pode compreender. Ele não se considera mais um homem que está
tentando fazer-se cristão, ou que está esperando vir a ser cristão. Esta ação é de
Deus, é Deus que o tira de Adão e o coloca em Cristo; é Seu pronunciamento
judicial. Como a escravidão foi abolida e os escravos foram declarados livres,
assim aconteceu com todos os cristãos, com todos os que verdadeiramente crêem
no Senhor Jesus Cristo; Deus os proclama livres do pecado original, de tudo o
que eles herdaram em Adão, de todos os pecados que eles próprios cometeram.
É uma declaração legal do Juiz do universo. O velho homem adâmico deixou de
existir, o velho homem foi crucificado com Cristo, está morto; você nunca é
chamado para crucificar o velho homem, nunca lhe é dito que tente matar o
velho homem; somente Deus em Cristo pode fazer isso, e Ele o fez! E somos o
novo homem em Cristo Jesus. Quanto eu saiba, não há nada que seja tão
fortalecedor da fé, tão fortalecedor da vida cristã em seu viver diário, como ter
plena consciência de que o velho homem se foi para sempre. E é por causa disso
que devo repelir toda e qualquer coisa que lhe dizia respeito ou que de algum
modo o lembre.

CORRUPÇÃO, CONCUPISCÊNCIA, ENGANO

“Que, quanto ao trato passado, vos despojeis do velho homem, que se corrompe
pelas concupiscências do engano; e vos renoveis no espírito do vosso sentido; e
vos revistais do novo homem, que segundo Deus é criado em verdadeira justiça
e santidade. ”

- Efésios 4:22-24

Aqui Paulo está aplicando as doutrinas fundamentais da fé cristã à vida diária


dos cristãos efésios, e o seu importante ponto é que eles não devem viver mais
como viviam antes. “Vós não aprendestes assim a Cristo”, ele lhes assegura.
Tudo acerca do Senhor Jesus Cristo, diz ele, ensina-nos que devemos despojar-
nos do velho homem e deixar a vida de pecado. Pensem em Sua encarnação e na
razão pela qual Ele veio ao mundo. Como o anjo disse a José, o Seu objetivo era
libertar o Seu povo dos seus pecados, e tudo o que Ele fez visava a esse fim. Ele
veio a fim de morrer por nós, para que “provasse a morte por todos” (Hebreus
2:9), para nos livrar e nos emancipar.

Neste hino, adaptado da sua obra, Jeremy Taylor mostra a “purificação do


templo” como um quadro ou uma parábola do que o Senhor tenciona fazer em
nós:

Hosana! Bem vindo aos nossos corações! pois aqui Também tens um templo,
Senhor, como Sião amado;

Sim, como Sião - e igualmente cheio de pecado;

Os ladrões e salteadores, quanto vão demorar ali?

Entra, expulsa-os e limpa o chão, agora imundo e fosco;

Frustra-os, derrota-os, de modo que nunca mais Profanem com vil comércio o
santo lugar, jamais!

Lugar que escolheste, Senhor, para inclinar Teu rosto.

- variante de Jeremy Taylor, 1613-67

Vocês notam a colocação que ele faz: quando Cristo entrou em Jerusalém, no
início da Sua última semana na terra, Ele foi ao templo

e deteve os cambistas, aquelas pessoas que tinham feito da casa de Deus um


covil de salteadores; Ele foi a Jerusalém para limpar e esvaziar o templo. E,
como Jeremy Taylor o coloca, Ele veio ao mundo para fazer a mesma coisa por
nós, pois fomos destinados a ser templos do Deus vivo. “Ou não sabeis que o
vosso corpo”, diz Paulo aos coríntios, “é o templo do Espírito Santo, que habita
em vós?” Vemos então que tudo neste ensino concernente ao Senhor Jesus Cristo
leva à inevitável conclusão de que devemos despir-nos do velho homem, do
nosso trato passado, da nossa antiga maneira de viver.
Já vimos que a razão mais importante para despir-nos do velho homem é que ele
já está morto - crucificado com Cristo, morreu com Ele. Somos por demais
parecidos com aqueles escravos dos Estados Unidos - o edito foi dado, a
promulgação foi feita, aquela escravidão fora abolida, mas alguns deles estavam
tão acostumados com a vida de escravo que não podiam perceber que estavam
livres, e continuaram vivendo como se ainda fossem escravos. Somos
semelhantes a eles quando fazemos as coisas pertencentes à vida antiga. Posso
pensar noutra ilustração deste ponto. Ao lidarmos com um amigo, pessoa adulta,
que está com medo de alguma coisa, quantas vezes não dizemos: “Não seja
criança”? Pois bem, dizemos isso a alguém que não é criança e, naturalmente, o
que queremos dizer é: “Você não é mais criança; então, não se porte como se
fosse”. Quer dizer, dispa-se do velho homem, você saiu da infância; você é
adulto, pois então deixe de portar-se como criança. Ora, é exatamente esse tipo
de coisa que o apóstolo está dizendo aqui. O velho homem morreu com
Cristo, foi crucificado com Ele, desapareceu. Portanto, despoje-se dele,
não continue sendo criança.

No entanto, há outra razão para despir-nos do velho homem, que é a sua


condição, a direção na qual ele vai indo. Despojem-se do velho homem, diz o
apóstolo, que se corrompe pelas concupiscências do engano (VA: que écorrupto,
segundo as concupiscências enganosas). Não se preocupem mais com ele por
causa da sua natureza e do seu caráter. Tudo o que pertencia àquela velha vida,
diz Paulo, é ofensivo. Não lhe dêem atenção, tirem-no fora, lancem-no para
longe! Assim como alguém tira a roupa e a põe de lado, façam isso com esse
velho hábito, com essa velha natureza que ele assim descreve como
velho homem. Por que devemos fazer isso? Paulo, aqui, continua com a
sua análise.

Primeiro, ao chamar a atenção para as condições do velho homem e para a


direção na qual ele está indo, Paulo emprega a palavra corrupto. Mas esta é uma
grande palavra, que deve ser decomposta em

suas partes componentes. Segundo a Bíblia, todos nós herdamos uma natureza
corrupta. Não há nada da teoria de Peter Pan na Bíblia. “Eis que em iniqüidade
fui formado, e em pecado me concebeu minha mãe” (Salmo 51:5). A natureza
que herdamos é corrupta e contaminada. Tudo na vida dá eloqüente testemunho
disso. A mais pequenina criança dá muita prova disso. Nascemos com uma
natureza já corrupta, sim, mas de acordo com o apóstolo aqui, é pior que isso,
pois essa natureza torna-se mais corrupta ainda! Lemos aqui, na
Versão Autorizada, “quee corruptoporém uma tradução melhor seria: “que está
sendo corrompido”, ou “que está.ve tornando corrupto”, ficando pior do que era
no princípio; (cf. Almeida, RA: “que se corrompe segundo as concupiscências
do engano”; RC: “que se corrompe pelas concupiscências do engano”).

Mas há outra nuança de significado na palavra que o apóstolo usou, e esse é,


tendendo para a destruição. Normalmente, quando usamos a palavra corrupto,
temos esse sentido em nossas mentes, não temos? Corrupção e decadência,
contaminação e putrefação vão todas juntas. Assim, não é somente uma coisa
que está se tornando corrupta; também é desintegradora, e vai rumo à destruição.
E é isso que o apóstolo diz acerca do velho homem. Despojem-se dele, diz
Paulo, porque ele está se tornando cada vez mais contaminado e decadente, e vai
avançando rapidamente para a destruição. Noutras palavras, é isso que ele diz
sobre a vida de todos os não cristãos, e não hesito em asseverar que a história da
humanidade o confirma tintim por tintim. As biografias o comprovam, a história
o comprova. Há nas duas este processo de decadência e declínio, sempre a
mover-se na direção da destruição final.

Entretanto, deixem-me dar-lhes um ou dois exemplos do mesmo tipo de


declaração, os quais se acham nas Escrituras. Ouçam o mesmo apóstolo aos
gálatas, no capítulo 6 da Epístola, versículos 7 e 8: “Não erreis: Deus não se
deixa escarnecer; porque tudo o que o homem semear, isso também ceifará.^
Porque o que semeia na sua carne, da carne ceifará a corrupção”. Éisso! Semear
na came sempre leva à corrupção, à decadência que acaba na destruição. Mas
por outro lado ele diz: “Mas o que semeia no Espírito, do Espírito ceifará a
vida eterna”. Ou vejam a Epístola de Tiago, que realmente diz a mesma coisa no
capítulo primeiro, quando, ao falar sobre a tentação e o pecado, ele se expressa
assim (anote os passos): “Havendo a concupis-cência concebido, dá à luz o
pecado; e o pecado, sendo consumado, gera a morte”. A concupiscência começa
o processo e dá à luz o pecado; aí já está o início da corrupção. Depois isso
continua, e “o pecado, sendo consumado, gera a morte”, a destruição. O
processo de

corrupção termina inevitavelmente numa destruição final. Como Paulo diz


também em Romanos 6:23: “O salário do pecado é a morte”.

Então, o argumento do apóstolo aqui é que a vida dos gentios não cristãos é uma
vida decadente e em processo de putrefação, uma vida que vai caminhando para
uma destruição final. E que exposição eloqüente é esta, do estado da sociedade e
do mundo hoje! Não estariamos presenciando na presente hora este declínio, este
processo de decadência? Não o vemos acontecer em todos os aspectos da
esfera moral? Vejo-me constantemente dirigindo a atenção a isso, porque
o declínio moral que estamos testemunhando hoje neste país, e em todos os
países do mundo, é o resultado direto da impiedade, da irreligiosidade e da
ausência do espírito cristão na sociedade. É uma prova absoluta do que o
apóstolo diz. Despojem-se desse velho homem, diz ele, ele está decaindo, ele
está marchando para a destruição! E o mundo inteiro hoje está tornando
manifesta a veracidade do diagnóstico do apóstolo. O mundo nunca melhora,
nuncal

Agora, essa é uma afirmação categórica que estou pronto a fundamentar.


Deixado a si mesmo, o mundo sempre fica cada vez pior. E se vocês tiverem
uma visão ampla e geral da história e vierem dizer-me: mas certamente, você
não concordaria que em tal e tal época o mundo parece ter-se elevado a maiores
alturas? Você não diria que houve alguma evidência disso em meados do século
passado? Concordo inteiramente. Tais ciclos certamente ocorrem; há
melhoramentos, e depois declínios. Sim, porém a questão é: o que é
responsável pelos melhoramentos? E a resposta é sempre a mesma -
avivamentos e despertamentos religiosos. E, portanto, o oposto ainda é
verdadeiro, que, sem a influência do Espírito Santo, o mundo, devido à
decadência que há em sua constituição, vai de mal e pior.

Essa verdade não é só com relação ao mundo em geral; também o é com relação
ao indivíduo. Todo homem que passa da meia-idade para a velhice tem que lutar
contra o cinismo. Muito pouca gente leva consigo o idealismo da sua mocidade
até a meia idade e além dela. A que se deve isso? Claro, a essa corrupção, a essa
putrefação, a esse processo de decadência! O homem entregue a si mesmo
inevitavelmente decai, e perde o brilho, a visão, a capacidade de
recuperação moral e a reação contra a indignidade. Ele se protege, vive
na comodidade, faz o mínimo que pode, e diz: por que devo me incomodar?
Tudo por uma vida sossegada! Isso faz parte da corrupção. Não é que tenhamos
começado perfeitos. O meu ponto é que, embora fôssemos imperfeitos quando
começamos, ficamos piores. O velho homem está sendo corrompido, e vai indo
para a destruição.

Essa é a primeira coisa que Paulo nos diz acerca dessa velha natureza que temos
de despir. Agora, em segundo lugar, ele nos diz algo sobre as influências que
impelem, dirigem e apressam esse velho homem rumo à destruição. Paulo as
denomina concupiscências (ou cobiças): “que se corrompe pelas
concupiscências do engano”. Concupiscências! Já encontramos esse termo no
início do capítulo dois, mas devemos assegurar-nos de que temos claro em
nossas mentes o seu significado. A palavra significa realmente desej o forte e
dominador. Lembramo-nos de que, pouco antes do fim, o nosso Senhor
disse: “Desejei muito comer convosco esta páscoa, antes que padeça”
(VA: “Com desejo desejei . . .”). A palavra empregada aí é a mesma empregada
noutros lugares para concupiscência e concupiscências (ou cobiça, cobiças).
Significa desejo veemente, bom ou mau. No entanto, o próprio fato de que nos
inclinamos a pensar instintivamente agora em algo que é mau quando usamos a
palavra cobiça, diz-nos muita coisa sobre o homem e sobre a natureza humana,
não diz? Hoje em dia cobiça veio a significar algo quase inteira e
exclusivamente mau, e por esta boa razão, que os desejos compulsivos e
dominadores da imensa maioria do povo são maus; assim cobiça tornou-se
um sinônimo de mau desejo. E o apóstolo diz aqui que essas cobiças que estão
dentro de nós são corruptoras e destruidoras. “O que semeia na sua carne, da
carne ceifará a corrupção.” Elas nos conduzem na direção da corrupção e da
destruição. Paulo de fato diz: “... o velho homem, que é corrupto segundo as
(como resultado das) cobiças do engano”. Essa é a tradução exata.

Devemos tentar fazer uma análise bíblica da expressão, e é aí que vemos a real
tragédia do pecado. Os instintos naturais em todos nós - por exemplo, a fome, o
sexo, o instinto de conservação - não são errados em si mesmos, não há nada
errado com os instintos naturais. Todos os instintos pertencem à nossa natureza
humana e são, em si e por si, não somente não maus, mas bons. Foi Deus quem
os colocou no homem; foi Deus quem nos dotou deles. Foram dados ao
homem para o gozo e a preservação da vida. Deus fez o homem perfeito, e
uma parte dessa perfeição aparece no fato de que os seus vários
instintos, faculdades e propensões foram postos em tal ordem e peculiar
arranjo no homem que atendem ao propósito de servir ao seu bem e ao seu
gozo da vida.

Os instintos que estão mormente no corpo do homem foram destinados a estar


sob o controle da sua mente. Deus deu ao homem o cérebro e a mente, e a Sua
vontade foi que eles exercessem controle sobre esses vários instintos. Entretanto,
a mente sozinha não é suficiente, e Deus deu ao homem a consciência, que é
mais elevada que a

mente e dá instruções à mente. E então, sendo o homem feito à Sua imagem, a


consciência, por sua vez, foi destinada a estar sob o controle do próprio Deus.
Tal é o homem como Deus o fez. Animal perfeito, se a expressão é permissível,
com um corpo perfeito. O homem tem os instintos que o animal tem, não há
nada errado neles. E dizer o homem que há algo errado em algum desses
instintos, é negar as Escrituras. Infelizmente, houve gente estulta na Igreja, em
épocas passadas, que dizia que o sexo é em si pecaminoso. Mentira! Eépor isso
que o celibato, como defendido pela igreja católica romana e outros, é
completamente antibíblico.

Não há nada errado no sexo; se houvesse, seria o mesmo que dizer que Deus
colocou uma coisa má no homem! Fora com esse pensamento! Ao mesmo
tempo, porém, todos temos consciência de que os nossos instintos têm que estar
em seu lugar certo, governados, dirigidos e ordenados pela mente e pelo
entendimento; e este, pela consciência; e esta, pelo próprio Deus. Ah, eis aí a
tragédia do homem em pecado, eis aí a tragédia do mundo: que a ordem foi
invertida, e que a humanidade está sendo governada por seus instintos, e quando
os instintos assumem o comando, tornam-se cobiças. Quando aquilo que tem o
propósito de estar sob controle assume as funções e governa a totalidade da vida,
há o caos; e é exatamente isso que se quer dizer com cobiça (ou concupiscência).
É um afeto ou um instinto tomando conta de nós e nos governando, silenciando a
mente e a consciência, e rejeitando a voz de Deus. Quando isso acontece, o
estado do homem é de caos e confusão.

Às vezes a Bíblia dá a isso o nome de “apetite desordenado” (Colossenses 3:5;


VA: “afeição desordenada”). Não há nada errado com as afeições como
inicialmente implantadas no homem, mas as afeições nunca devem ser
desordenadas. Se forem, o homem negará o seu próprio ser, como também
negará a Deus; e esse é o problema, diz o apóstolo, com os gentios que são
governados e dominados por suas cobiças! Despojem-se do velho homem, diz
ele aos crentes, parem de ser como os gentios! Vocês estão negando a sua
própria natureza humana, e estão negando a própria essência do seu ser
como veio a existir das mãos de Deus! O problema do mundo é que a cobiça está
no comando. É a força responsável por todos os nossos problemas como
indivíduos, nas relações matrimoniais, nas famílias, e entre parentes, classes
sociais, grupos na indústria, nações, grandes divisões de nações por trás de certas
cortinas - é a completa explicação de tudo. Os maus desejos estão no comando,
enquanto que a razão e o entendimento foram lançados ao mar. Deus não está em
seus pensamentos. Não há dúvida de que a decadência e o inexorável movimento
rumo à destruição são resultantes do domínio, da tirania das cobiças. Que estrago
o pecado fez no homem e neste mundo dos homens! Virou o homem de cabeça
para baixo, por assim dizer, e fez dele um animal, e pior que isso, pois o
propósito era que ele fosse melhor; assim é que, quando o homem é governado
por seus instintos, como se dá com um animal, ele é pior do que um animal
irracional.

E isso nos leva à terceira e última coisa que o apóstolo diz sobre este ponto
particular. Vocês acompanham a sua análise? O povo fala em análise psicológica.
Se vocês estão interessados em psicologia, aí a têm, em sua modalidade mais
brilhante, perfeita e maravilhosa. Sem Deus, diz Paulo, o homem vai na direção
da decadência. Que é que o levaparalá? Suas cobiças, suas concupiscências.
Aqui está a resposta que ele dá; diz ele que é o engano: “segundo as cobiças
enganosas” (VA). Uma tradução melhor, como já sugeri, é “segundo as
cobiças ou concupiscências do engano” (como na Versão de Almeida). Noutras
palavras, o poder dominante real e fundamental é esse engano, como lhe chama
Paulo; e o que o engano faz é manipular as cobiças. Por sua vez, as cobiças
manipulam o homem; e aí está ele, o velho homem, movendo-se rapidamente
rumo à destruição. Esta é, deveras, ummodo maravilhoso de descrever o
processo, não é? Oengano! Fico a indagar se todos nós compreendemos que a
maior característica da vida do mundo é o engano. O poder que está por trás de
todo este problema é um poder enganoso, e isso a Bíblia ensina em toda
parte. Examinemos agora a situação.

É questão de necessidade começar pelo diabo, aquele que, em última instância, é


responsável pelo estado decaído de todos os indivíduos, e pelo estado decaído do
mundo todo. E se há uma coisa que, mais que qualquer outra, caracteriza o
diabo, é o elemento de engano, a sua falsidade. Ele arruinou a vida do homem,
arruinou o mundo, e o fez com astúcia e engano. Eis o que as Escrituras
dizem acerca dele (Gênesis 3:1): “Ora, a serpente era mais astuta que todas as
alimárias do campo”. Notem como Paulo o expressa em 2 Coríntios 11:3: “Mas
temo que, asim como a serpente enganou Eva com a sua astúcia...”. E isso que
ele temia com relação aos cristãos coríntios, pois na verdade o diabo tinha feito a
mesma coisa em Corinto, e noutros lugares. Nas primeiras igrejas, como
retratadas no Novo Testamento, o diabo entrou com a sua falsidade e fez estrago
entre elas. Essa é sempre a sua característica. Diz o nosso Senhor; “ele
é mentiroso desde o princípio”; “mentiroso e pai da mentira” (João 8:44). Todo o
problema do mundo é que ele não percebe que o diabo o está fazendo de bobo e
o está enganando.
No entanto, isso não é verdadeiro somente com relação ao diabo; também é o
mesmo com relação a todos os seus agentes. Na Bíblia existem algumas
descrições impressivas do pecado, e todas as vezes o quadro é do engano. No
livro de Provérbios, por exemplo, vemos como é descrita a meretriz, com toda a
sua arte enganosa de pintura e pó, de aparência e de fingimento. Escreve-se
sobre o engano de toda a sua pessoa. Pedro coloca a matéria com muita clareza
no capítulo dos da sua Segunda Epístola: “Prometendo-lhes liberdade, sendo
eles mesmos servos da corrupção”. Na Igreja Primitiva havia os que diziam:
vejam aqui, não dizemos que Pedro e Paulo e os seus amigos não pregaram o
evangelho; pregaram, porém lhe acrescentaram uma espécie de legalismo e o
estreitaram demais. E depois iam adiante e diziam: vocês não precisam crer em
tudo o que eles disseram; é demasiado estreito, é muito acanhado e limitado. Nós
temos o verdadeiro evangelho, diziam eles, e se punham a prometer aos
discípulos grande liberdade; você pode ser cristão, pode ir para o céu, e
ainda viver como quiser neste mundo. Maravilhoso! Magnífico! Mas ouçam, diz
Pedro, “enquanto lhes prometem liberdade, eles mesmos são servos da
corrupcão”! (VA). “Fontes sem água”, Pedro lhes diz, “manchas nas suas
festas!” Todo o segundo capítulo da Segunda Epístola de Pedro é, de fato, uma
análise da falsidade dos agentes do diabo.

Contudo, a acusação toda pode ser resumida com uma única palavra - a palavra
Judas! Judas! - o homem que traiu o seu Senhor e Mestre. Judas! - o homem
caracterizado acima de todas os demais pela falsidade, pela astúcia e pela
insinceridade. Não há nada mais terrível que se possa dizer sobre um homem do
que dizer que ele se portou como Judas. O pecado sempre envolve traição, como
nos dizem todas as partes das Escrituras. Vocês até verão Judas mencionado
como traidor no livro de Salmos. 1 O pecado endurece o homem, o pecado
engana. Cuidado “para que nenhum de vós se endureça pelo engano do pecado”,
diz o escritor da Epístola aos Hebreus (3:13). Se um cristão se endurece, é
sempre por causa do pecado. Há os que dizem: você sabe, não me sinto como
costumava sentir-me; parece que me tornei duro e frio. Se é assim, então, de um
modo ou de outro você está sendo enganado pelo pecado.

Paulo tem uma palavra para nós sobre a matéria em Romanos, capítulo 7:
“Porque o pecado, tomando ocasião pelo mandamento, me enganou, e por ele
me matou”. E não seria essa toda a sua argumentação naquele capítulo? Notem
como ele a desenvolve. Diz ele: ah,

que coisa terrível e enganosa é o pecado! O pecado é tão enganoso que logra o
homem com relação à lei. A lei é boa, reta, santa e justa, mas você sabe, disse
ele, vejo que a própria lei que foi dada ao homem a fim de salvá-lo do pecado,
levou-o a pecar! A própria lei que lhe diz que não pratique o mal, cria nele o
desejo de praticá-lo!

É por essa razão que muitas vezes tenho assinalado que toda a nossa confiança
no ensino moralista não somente é anticristã e antibíblica, é também credulidade
ingênua, pois mostra uma profunda ignorância sobre a psicologia do homem em
pecado. “Todas as coisas são puras para os puros.” Sim! Mas para os que não são
puros, até o que é puro se torna impuro, escreve Paulo a Tito. O fato é que, por
causa da natureza enganosa do pecado em nós, sermos esclarecidos acerca
da natureza do pecado pode levar-nos a pecar. Ao dizer às pessoas que não
façam certas coisas, você está estimulando dentro delas o desejo de fazê-las. É
por isso que sempre digo aos jovens que, longe de aconselhá-los a lerem livros
sobre o domínio do sexo, assim chamado, e assim por diante, digo-lhes que os
evitem como se fossem a própria peste. Tais livros fazem mais mal que bem.
Não há nada que possa tratar desse problema, senão a obra do Espírito Santo
dentro de nós; qualquer coisa que seja menor do que a operação do Espírito
Santo é insuficiente para a tarefa.

Precisamos estar plenamente convencidos de que o pecado em nós é sempre


enganoso. Jeremias disse isso uma vez para sempre: “Enganoso é o coração,
mais do que todas as coisas, e perverso; quem o conhecerá?” (17:9). O homem
mesmo não o conhece; ele é uma mistura de contradições, está constantemente
se enganando a si mesmo. E isso é o que há de terrível quanto ao pecado; não é
tanto que ele engane outros, ele engana o próprio homem. Essa é toda a
agonia de Paulo em Romanos, capítulo 7. Que é que posso fazer a respeito? Ele
diz: “Miserável homem que eu sou! quem me livrará do corpo desta morte?” Eu
não posso livrar-me, porque quando tento fazê-lo com a leitura da lei, vejo que
ela inflama as minhas paixões; ela desperta certos instintos dentro de mim;
portanto, a própria lei não pode ajudar-me. Que haverá, então, que possa ajudar-
me? E há somente uma resposta: “Dou graças a Deus por Jesus Cristo,
nosso Senhor”.

Até aqui demonstrei que, em todos os aspectos, o pecado é enganoso, do diabo


para baixo - o diabo, seus agentes, o pecado propriamente dito, o pecado em
mim, e o pecado em meus membros. Como é que ele engana? Como é que este
elemento de engano resulta em pecado? Ele o faz vindo a nós como um pretenso
amigo. Ele
sempre nos adula. Quando o diabo, com a sua astúcia e a sua falsidade,
aproximou-se de Eva, ele a adulou. Disse ele: “Deus não é justo com vocês, Ele
impôs uma proibição a vocês; não devia ter feito isso; Ele tem medo que vocês
se tornem como Ele”. Dessa maneira ele estava fazendo a ela um elogio astuto.
O pecado sempre vem com um sorriso; é muito lisonjeiro, sempre nos faz
elogios; somos maravilhosos - se tão-somente lhe déssemos ouvidos! Ele joga
em nosso orgulho de algum modo ou forma, em nossa aparência, em nossa
beleza, em nosso gênio, em alguma coisa concernente a nós - maravilhoso! E
assim ele nos engana elogiando-nos. É sempre atraente, é claro. Em si mesmo é
uma coisa muito feia, porém, como eu disse, ele sabe usar a pintura e o pó. E
como a Bíblia descreve a meretriz. A pintura e o pó! Ela sempre finge ser algo
que não é. E ela sabe que, se não parecer atraente, não seduzirá. O pecado faz
isso em todas as esferas, sempre vem de forma atraente. E nós somos bastante
tolos para olhar a superfície e julgar pela aparência externa, e não pela realidade.

E depois, outra coisa que o pecado faz - e esta faz parte de toda a sua arte de
enganar - ele sempre desestimula o pensamento, sempre desestimula a
meditação. O pecado sabe que só tem uma esperança de sucesso, e esta é jogar
nos sentimentos e desejos da pessoa. Se a mente começar a funcionar realmente,
o pecado estará acabado e, portanto, em sua astúcia, ele joga nos sentimentos e
desestimula a mente e o pensamento. Todos nós sabemos alguma coisa sobre
isso. Você se irrita simplesmente porque não pensou no que estava fazendo.
O pecado o governou e o dominou. Ele nos faz viver só para o
momento. Deixamos de pensar além do momento presente, e então ele pega
você! Se os homens e as mulheres tão-somente pensassem de antemão,
quão diferente seria a vida! Mas não o fazem; o pecado desestimula
o pensamento, e isso faz parte da sua estratégia de engano.

Pensem também nos argumentos plausíveis que o pecado apresenta. Tal e tal
coisa é muito natural, diz o pecado, não é como se lhe pedissem que fizesse algo
antinatural; afinal de contas, todos vocês fizeram algo parecido com isso. Por
que se requer que você crucifique os seus poderes pessoais? Isso é negar a sua
personalidade; você não poderá dar expressão ao seu ser; certamente você foi
destinado a expressar-se e a expressar a totalidade do seu ser; é
simplesmente natural, diz o pecado. Como são plausíveis os seus argumentos!
E depois, o ponto seguinte é que ele não só é plausível em seus argumentos; ele
oculta certos fatos e fatores. Ele aparece diante de nós enfeitado, vestido e
atraente, e deliberadamente mantém na parte dos fundos as diferenças entre o
certo e o errado; as categorias morais não têm permissão de entrar. Deus,
naturalmente não! A lei de Deus,

certamente não! Eles nunca são mencionados, nunca entram na argumentação. E


quanto às conseqüências de uma ação pecaminosa, o homem pára para pensar
nelas e planejá-las? Certamente que não; ele nem sequer pensa nelas. Quanto aos
perigos do vício, eles nunca entram na discussão. Não, certamente não, diz o
homem, não é meu propósito ser um beberrão, só vou tomar um copo de cerveja,
ou lá o que seja. Beberrão, é certo que não! Ele não percebe que o primeiro leva
ao segundo, e o segundo ao terceiro. O vício o prende. E que terrível coisa é um
vício, e quão difícil rompê-lo! Isso não é levado em consideração; o pecado o
mantém fora de vista, suprime fatos e certos fatores vitais.

E então a sutileza do apelo do pecado, os falsos motivos! Ah, quanto homem foi
para a destruição porque realmente pensava que ia obter algum conhecimento!
Alguém poderia dizer: claro, eu não creio na leitura de maus livros, mas, afinal
de contas, é dever do homem na vida equipar-se com conhecimento. Realmente
estou procurando conhecimento e entendimento teórico. Assim ele lê e continua
lendo! Qual é precisamente o seu motivo e a sua real razão para ler todos
os pormenores dados nos jornais dos casos de divórcio? Seria para você poder
discutir certos assuntos modernos com homens e mulheres, e para ser capaz de
advertir os jovens de certos perigos? É essa a sua razão? Provavelmente é essa a
razão que o pecado nos sugere. A plausibilidade, a falsidade disso tudo! Vamos
de fato em busca de instrução, de conhecimento, de entendimento? Algumas das
maiores tragédias de que tive que tratar em minha experiência pastoral surgiram
desta maneira: pessoas, muito inocentemente como pensavam, preocupavam-se
em ajudar outras pessoas e salvar as suas almas. Estavam plenamente convictas
de que não tinham outro motivo. Contudo, aquilo quase terminou em sua
destruição. Não fora que o homem pode salvar-se, ainda que por meio do fogo,
teriam ido para a destruição. Todavia o diabo tinha sugerido que o desejp de
ajudar era bom, e lhes propiciou uma esplêndida oportunidade. Às vezes
tenho que dirigir a palavra a estudantes de teologia e a jovens ministros
sobre este assunto, e tenho que exortá-los a serem cautelosos em tudo. Isto se
aplica tanto aos homens como às mulheres, e é perigoso de um lado e do outro.
As pessoas dizem que querem ajuda espiritual, mas às vezes não é realmente
ajuda espiritual que elas querem, pois o pecado está cheio de engano. “As
cobiças do engano!”

Finalmente, o pecado oferece o que ele nunca pode dar, isto é, satisfação. O
pecado nunca satisfaz; nunca o fez e nunca o fará; não consegue porque é errado
e é sórdido. Nunca satisfaz, embora esteja

sempre oferecendo satisfação. Na verdade, agindo por meio das cobiças, o


pecado nunca dá nada, mas simplesmente tira. Vocês já tinham pensado nisso?
Pensem no filho pródigo, que, para mim, é a prova clássica disso tudo. Lá está
ele, pobre sujeito, no campo, com as bolotas e os porcos. E esta é a densa frase
das Escrituras: “Ninguém lhe dava nada”. No entanto, tinham tirado muito dele,
aqueles que tinham esvaziado os seus bolsos. Ele tinha saído de casa com o
seu bocado de fortuna, e com aqueles que se tornaram os seus
alegres companheiros. Oh, como eram afáveis, bondosos e agradáveis! E como o
elogiavam e bebiam à sua saúde! Ele era o melhor homem do mundo! Todavia,
eles o estavam roubando o tempo todo, tiraram tudo o que ele possuía e, em sua
penúria e em sua necessidade, ninguém lhe dava nada. O pecado nos rouba, tira
de nós, esgota-nos mentalmente, fisicamente, moralmente, em todos os aspectos,
e por fim nos abandona no monte de ferro velho, rejeitados! E inteiramente
destrutivo. Rouba e leva de nós o caráter, a castidade, a pureza, a honestidade,
a moralidade, a retidão, a gentileza, o equilíbrio, a sensibilidade, e tudo quanto é
nobre no homem. Causa surpresa que o apóstolo diga, “Que, quanto ao trato
passado, vos despojeis do velho homem, que se corrompe pelas concupiscências
do engano”? Evite o pecado, digo eu, como se fora a própria peste, fique longe
dele quanto puder, faça tudo o que puder para destruí-lo e mortificá-lo.

O Novo Testamento está repleto deste ensino. O pecado é tão horrível, tão torpe,
tão enganoso! “Despojem-se, então concernente ao modo de viver do velho
homem, que está sendo corrompido e vai indo rumo à destruição, em
conseqüência das cobiças do engano.”

1
Cf. Salmo 41:9; Atos 1:16; João 13:18, 21, 26. Nota do tradutor.
QUANDO NÃO ORAR, MAS AGIR

“Que, quanto ao trato passado, vos despojeis do velho homem, que se corrompe
pelas concupiscências do engano; e vos renoveis no espírito do vosso sentido; e
vos revistais do novo homem, que segundo Deus é criado em verdadeira justiça
e santidade. ”

- Efésios 4:22-24

Até aqui, em nosso consideração destas palavras do apóstolo, nós as tomamos


em seu aspecto geral. Vimos por que devemos despojarmos do velho homem; e
agora, o próximo passo é aprender como nos despojamos dele. Não é suficiente
apenas dizer: “Despojem-se do velho homem, revistam-se do novo”! Isso é algo
que tem que ser feito na prática e em detalhe, e devemos saber exatamente como
se faz isso. De fato, é bem provável que neste ponto o movimento
evangélico moderno mostre a sua maior fraqueza, pois, lamentavelmente, ele
tem negligenciado esse aspecto da vida cristã. Muitas vezes expressamos crítica
adversa ao catolicismo romano, e ainda o fazemos. Mas devemos conceder que
nesta matéria particular, o cultivo da vida espiritual e devota, os católicos têm
muito para nos ensinar. Contudo, não necessitamos ir a eles. Esse foi o peculiar
ensino dos puritanos do século 17. Esta espécie de teologia pastoral, este ensino
em detalhe sobre como se deve lutar neste combate da fé, foi aquilo em que
eles sobressaíram. Entretanto tudo isso, digo eu, teve a tendência de
ser negligenciado por nós, e nisso nos fazemos culpados de fazer violência às
Escrituras. Qual é, pois, o ensino concernente à ação de despojarmos do velho
homem?

O primeiro princípio é claro. “Despojar-se” é uma coisa que o cristão tem que
fazer. Não é uma coisa que outros façam por ele. A exortação chega a ele como
uma ordem definida. “Despoje-se do velho homem!” Começo expondo a
exigência negativamente. Despir-se do velho homem não é algo sobre o que se
deve orar. Isto soa muito anti-espiritual, não soa? Imaginem um pregador num
púlpito cristão dizendo aos ouvintes que eles não devem orar sobre esse assunto!
Mas é essencial que digamos isso, porque muitos têm a tendência de, seja qual
for o problema, dizer leviana e imediatamente:

“Devemos orar sobre isso! Devemos levar isso ao Senhor em oração”. É muito
simples, dizem, não há nada que fazer, senão orar. Alguma coisa o preocupa?
Ore sobre isso! Nada disso, diz Paulo; nada de orar sobre isso; dispa-se do velho
homem; avante com isso! Há algo que chega a ser quase violento nessa questão;
e eu penso que ela requer violência porque há muito de sentimentalismo doentio
e de falsa piedade com relação a este assunto, o que leva certas pessoas a
viverem uma espécie de vida espiritual sempre esmorecida. Claro que
precisamos orar sobre todas as coisas; toda a nossa vida deve ser uma vida de
oração. Devemos orar sem cessar. O que estou dizendo é que não se deve
resolver este problema apenas orando sobre ele. O apóstolo não diz aos cristãos
de Éfeso: “Com relação a este problema, quero que vocês orem a respeito”.
Longe disso! Ele de fato diz: “Pelas razões que lhes apresentei, dispam-se desse
velho homem, não orem sobre isso, digo-lhes que ajam; vão adiante com isso, e
façam-no”.

No entanto, que dizer se um crente falar da sua fraqueza, da sua falta de poder?
A resposta a isso é que, como uma criatura regenerada, um ser nascido de novo,
ele tem o poder. Se o Novo Testamento nos manda fazer uma coisa,
acertadamente podemos esperar receber do Senhor o poder para fazê-la, e, por
conseguinte, não há desculpa neste ponto. Esta questão é muito sutil portanto
deixem-me expô-la da seguinte maneira: minha opinião é que, muitas vezes, por
orarem sobre uma questão como esta, as pessoas, longe de resolverem os
seus problemas, simplesmente o aumentam, pois oram com espírito de temor.
Dizem elas: sinto-me tão fraco, nada posso fazer. E oram pedindo que sejam
libertas disto, em vez de atirá-lo para longe! A maneira de solucionar este
problema não é orar; é pensar e aplicar o ensino e a doutrina do apóstolo para
despojar-se do velho homem.

Há muitos anos, uma senhora veio ver-me por causa de um problema que vinha
estragando a sua vida já fazia uns vinte e dois anos. Pode parecer algo trivial a
outros, porém estava prejudicando a vida dela. Aquela senhora tinha fobia,
terror, horror, por temporais com trovões. Uma vez estivera numa terrível
tempestade carregada de trovões, e achava que ia ser morta, e isso ficara fixo em
sua mente. E por fim chegara a um ponto tal que, se ela ia indo a um local de
culto num domingo de manhã e visse uma nuvem negra, esse medo
sugeria imediatamente a vinda de temporal e trovões, e, de medo, em vez de ir
para a igreja, voltava para casa. A fobia tinha assumido várias formas: tinha
impedido que ela fizesse muitas coisas que desejara fazer, e tinha criado
dificuldades na família. Pode-se imaginar os problemas que surgiam, decorrentes
disso. A senhora veio falar comigo simplesmente em conseqüência de algo que
me ouvira dizer
de passagem num sermão, e eu ouvi o relato do seu caso. Pois bem, disse eu, que
é que você tem feito a respeito? Tenho feito tudo o que posso, respondeu ela;
tenho falado com todo tipo de gente. Suponho que você tem orado sobre isso,
disse eu. Não oro sobre outra coisa, disse ela; sempre oro sobre isso.
Provavelmente, repliquei, aí está por que o problema persiste! E continuei: o de
que você precisa não é orar, mas pensar! E depois lhe mostrei que mau
testemunho era isso numa pessoa cristã como certamente ela era. Alguma vez
pensara nisso? Alguma vez fizera a si mesma a pergunta: por que devo ter mais
medo de uma tempestade e dos trovões do que qualquer outra pessoa? Se todas
as outras pessoas podem continuar indo a um local de culto, por que eu não
posso? Por que essa dificuldade é tão especial para mim? Ela nunca havia
pensado nisso. Em vez disso, tinha orado sincera e honestamente, e com grande
intensidade, durante vinte e dois anos, rogando que fosse liberta do medo de
tempestades e trovões, todavia o medo continuou e estava aumentando.

Existem pontos, digo eu em nome de Deus e em nome das Escrituras, acerca dos
quais vocês não necessitam orar, mas necessitam, sim,pensar e aplicar a
doutrina. Despojem-se do velho homem! Vocês não precisam orar pedindo
orientação sobre isso! Uma vez apercebidos do seu caráter, fora com ele! Não é
questão de orar, é questão de agir. E assim vemos que o diabo, com a sua astúcia
e como anjo de luz, às vezes pode animar-nos a orar de maneira cega e
nada inteligente, porque ele sabe que, enquanto fizermos isso, não exerceremos o
pensamento e não encararemos o ensino bíblico para aplicá-lo a nós mesmos e a
este problema particular.

Mas devo expor a força da palavra do apóstolo com outra negativa. Esta não é
uma experiência que você recebe ou que lhe acontece. Muitos cristãos conhecem
bem o ensino que afirma que a solução de todo e qualquer problema da vida
espiritual é muito simples; tudo o que você tem que fazer é levá-lo ao Senhor e
deixá-lo com Ele. Ele o livrará. Vá deixá-lo com Deus! Muito simples! - dizem
eles, você simplesmente tem que levá-lo a Ele; e depois terá esta
maravilhosa experiência de libertação. Já faz anos que este ensino vem
sendo propagado, e existem os que estão tentando praticá-lo. Entretanto,
não ficaram livres dos seus problemas. Podem ter uma libertação passageira
enquanto estão nas reuniões, mas o problema volta; e eles persistiram tentando
“largá-lo e deixá-lo com Deus”! Mas, diz o apóstolo, não é disso que se
necessita; você mesmo tem que despir-se do homem velho. Não peça a Deus que
tire de você o homem velho; tire-o você mesmo!
Certamente devemos reconhecer que este ensino sobre “largá-lo e deixá-lo com
Deus” e completamente antibíblico. Se fosse verdadeiro, toda esta parte da
Epístola aos Efésios, do versículo 17 do capítulo quatro até o fim da Epístola,
jamais teria sido escrita. O apóstolo não teria escrito essas palavras, e não teria
prosseguido com o que disse em seguida: “deixai a mentira; falai a verdade, cada
um com o seu próximo, irai-vos, e não pequeis; não deis lugar ao diabo; aquele
que furtava, não furte mais”. Ele não teria dito essas coisas; estaria cometendo
um erro, se as dissesse. Ao invés disso, ele diria: se alguém entre vós, crentes, é
tentado a furtar, ore sobre isso; que vá pedir ao Senhor que o livre disso!
Contudo ele não diz nada desse tipo. Ao contrário, ele diz: “aqueles que, dentre
vós, dedicavam-se a furtar, parem de fazê-lo, não furtem mais, despojem-se do
velho homem”! Assim é obvio que o ensino que talvez pareça muito espiritual,
pode ser completamente antibíblico. Não somente passa de largo
pelas Escrituras; nega as Escrituras.

Mas certamente, vem o protesto, você recebe a sua santificação como recebe a
sua justificação; você recebe a sua justificação pela fé, e deve fazer o mesmo
com relação ao velho homem. Ora, é aí que a falácia entra. A justificação é, sem
dúvida, inteiramente pela fé, porque é dada quando a pessoa não tem nenhuma
vida espiritual, não tem capacidade nenhuma. Não é assim, porém, quanto ao
despojamento do velho homem. Mas, alguém perguntará: Paulo não tinha dito
no capítulo 2, “Somos feitura sua, criados em Cristo Jesus para as boas obras”?
Eu respondo: essa é uma referência à justificação, e à regeneração; nisso somos
inteiramente obra realizada por Deus. Lembremo-nos, porém, que o mesmo
Paulo que escreve, “Somos feitura sua”, também diz aos que foram salvos,
“operai a vossa salvação com temor e tremor”! (ARA: “desenvolvei...”,
Filipenses 2:12). Noutras palavras, ponham fora, dispam-se, e depois vistam-
se. “Somos feitura sua.” Claro! Não podemos fazer nada enquanto Ele não nos
faz de novo. Mas, uma vez que nos tenha feito de novo, somos capazes de agir.
Por isso ele diz: operai ou desenvolvei a vossa salvação com temor e tremor. A
justificação é unicamente pela fé. A santificação não é unicamente pela fé. A
totalidade da vida cristã é uma vida de fé, porém na santificação temos que agir,
e desenvolver; despir-nos e vestir-nos; como o apóstolo nos diz em todos
esses pormenores que nos oferece aqui. Começamos, pois, dando-nos conta de
que isso é algo quenós mesmos temos que fazer. Não o fazem outros por nós.
Não esperamos passivamente, apenas, nem relaxamos e ficamos à espera de que
seja realizado por outrem a nosso favor. Absolutamente não! Despojem-se!
Parem de fazer certas coisas, diz
o apóstolo. E digo de novo, que tragédia é que homens e mulheres tenham
pensado que era altamente espiritual negar esta clara ordem e exortação e ensino
das Escrituras! Aquele outro ensino, como assinalei muitas vezes, realmente
significa que a segunda metade de cada uma das Epístolas do Novo Testamento
nunca deveria ter sido escrita. No caso que temos diante de nós, tudo o que o
apóstolo deveria ter dito, no começo do capítulo 4 ou no versículo 17,
é simplesmente isto: à luz desta doutrina, tudo o que vocês têm que fazer é
deixar a coisa correr, permanecer em Cristo, e tudo estará bem; você será liberto
de todos os seus problemas; é muito simples; é justamente como abrir as
venezianas e deixar o sol entrar; não há mais nada a fazer. Isso é tudo o que ele
precisava dizer. Mas notamos que os escritores do Novo Testamento dedicam
quase a metade das suas Epístolas a minuciosas instruções práticas; eles dizem
às pessoas o que não devem fazer, e lhes dizem o que devem fazer. E evidente
que esses dois ensinos são inteiramente incompatíveis. No entanto, o ensino
das Escrituras é claramente: despojem-se\ É algo que nós mesmos temos que
fazer. E como lhes tenho feito lembrar, é inútil dizer que não temos poder.
Temos! Se você é cristão, o poder está ao seu alcance. Deus nunca o manda fazer
uma coisa sem capacitá-lo a fazê-la. Se eu e vocês nascemos de novo, o Espírito
de Deus e de Cristo está em nós, o Espírito Santo está em nós, o poder aí está. E
temos que aperceber-nos disso e, na força da energia e do poder divinos, nós
agimos e fazemos precisamente o que temos dito.

Depois, como fazê-lo? Há o princípio e, logo a seguir, a aplicação prática. O


primeiro ponto essencial é que temos que lembrar quem somos e o que somos. O
apóstolo de fato nos diz que procedamos assim. Diz ele: despojem-se do velho
homem por causa do seu caráter pecaminoso, e revistam-se do novo homem que,
segundo Deus, é criado em justiça e verdadeira santidade. Não somos mais o
que éramos, e a primeira coisa que temos que fazer é dizer a nós
mesmos justamente isso! Toda a arte do viver cristão consiste em você
saber falar consigo mesmo. Se você não prega a si próprio, você não é cristão. O
cristão é um pregador; prega a si mesmo. Você começa o seu dia dizendo: agora
sou um novo homem, não sou mais o velho homem; o meu velho homem foi
crucificado com Cristo, o meu velho homem está morto, acabou-se, não existe
mais; não sou mais o que eu era. Se alguém está em Cristo, é nova criatura, nova
criação; as velhas coisas passaram; eis que tudo se fez novo. Você começa o
novo dia dizendo isso a si próprio. Isso não será dito a você, não lhe
acontecerá automaticamente. O diabo falará com você no momento em que você

acordar, e lhe dirá mil e uma coisas para deprimi-lo antes mesmo de você sair da
cama. Portanto, temos que tomar uma resolução; vamos levantar-nos e dizer: eu
sou um novo homem em Cristo. Isso tem que ser feito literalmente e em detalhe
dessa maneira.

Não é de admirar que falhemos tanto. Não começamos o dia como devíamos.
Nós gememos: aí estão esses pensamentos de novo, e aí está o meu problema,
outras dezoito horas, mais ou menos, que se me apresentam. Que posso fazer? E
antes que o percebamos, já estamos derrotados. Vamos dar ouvidos à exortação
do apóstolo - despojai-vos do velho homem! E se você o fizer, e quando o fizer,
compreenderá que Cristo entrou em sua vida e o libertou. Portanto, não pule
da cama para ajoelhar-se e fazer uma oração de um deprimido. Ao invés disso,
lembre-se primeiro de quem você é, pois, se você orar de maneira deprimida,
realmente não estará orando no Espírito, de modo nenhum. Essa oração é de
incredulidade, não de fé. Realménte não poderemos orar enquanto a nossa
doutrina não for clara para nós. Portanto, lembremo-nos de quem somos, antes
de buscar a Deus.

O segundo ponto essencial segue-se obviamente, não é? Também temos que


lembrar-nos da natureza e do caráter da velha vida. Isso vem retratado aqui,
nestes terrificantes versículos 17, 18 e 19; Paulo nos oferece de novo o seu
sumário no versículo 22. Notem como o apóstolo está interessado em que o
façamos minuciosamente; ele não quer deixar-nos escapar disso. Ele fica a
recordar-nos repetidamente o caráter da vida anterior; força-nos a tê-la diante de
nós. E nisso está, penso eu às vezes, toda a arte de triunfar na vida cristã.
Suponho que preciso dizer isso mais vezes do que qualquer outra coisa em
meu trabalho pastoral. Pessoas há que me procuram por causa dos
seus problemas particulares; elas me dizem que têm orado para serem libertas, e
assim por diante. Eu lhes pergunto: vocês têm de fato encarado essa coisa de
frente? Vocês estão com medo disso, estão fugindo, estão se abaixando, toda a
sua atitude está errada. Mas agora, esperam um momento. Examinem essa coisa,
coloquem-na defronte de vocês, analisem-na e dissequem-na, avaliem-na pelo
que ela é. Isso é a metade da batalha. E depois, diz Paulo, vocês verão que é
preciso que se livrem da coisa toda. Olhem para ela e encarem-na, em vez
de fugirem dela. Esse é o segundo ponto essencial.

E depois há um terceiro ponto. Fixem em suas mentes a completa incoerência de


quem se diz cristão, porém continua vivendo da maneira antiga. Tão óbvio, não
é? E, contudo, como todos nós falhamos nisso! Você tem que examinar-se, tem
que examinar o seu velho modo de viver e, quando o fizer, dizer a si mesmo:
pois bem, é

impossível, estou sendo completamente incoerente; eu digo que o homem


incoerente não tem valor para mim, que não dou valor ao hipócrita, ao homem
que diz uma coisa e faz outra. Mas, que é que eu sou? Como estou vivendo? Que
é que eu declaro como cristão, como membro da Igreja? Goste eu disso ou não, e
o entenda ou não, estou fazendo uma tremenda declaração. Como cristão, como
homem que se diz cristão, estou afirmando que sou participante da natureza
divina, que Cristo morreu para resgatar-me deste mundo mau, que fui transferido
do reino das trevas para o reino do amado Filho de Deus. É isso que estou
afirmando. Estou afirmando que sou membro do corpo de Cristo, e que por meio
desses canais de suprimento de que o apóstolo estivera falando, a vida da bendita
Cabeça está fluindo para dentro de mim. Será coerente com essa declaração
continuar a viver como tenho vivido? Acaso minha conduta e meu
comportamento devem ser os da esfera antiga, quando eu declaro que pertenço a
esta nova esfera? O Novo Testamento está literalmente repleto desse tipo de
argumento. Dêem atenção ao que Paulo escreve aos filipenses: “Somente
deveis portar-vos dignamente conforme o evangelho de Cristo” (1:27).
Seu argumento é claro: o seu comportamento é “conforme o evangelho”? Está à
altura da sua profissão de fé? Todos nós conhecemos bem o argumento, a
ilustração. Não tenham um conflito de cores em seu vestuário, diz o apóstolo.
Não se vistam de maneira imprópria para o que vocês são. Seja o seu
procedimento, a sua conduta, como convém ao evangelho de Cristo. Vejam que
toda a sua vida seja tal que sugira às pessoas que o Filho de Deus deixou o céu e
veio a este mundo, que Ele morreu num madeiro, e que ressusscitou e enviou o
Espírito Santo.

Permitam-me ilustrar o ensino oferecendo-lhes outro incidente da minha


experiência pastoral. Também parece simples e quase trivial, todavia eu acho que
é um dos maiores fatos que já ocorreram dentro da esfera da minha experiência.
Refere-se a certo homem de cinqüenta e poucos anos que tinha levado uma vida
ímpia e dissoluta. Era um ébrio, um lutador, um jogador, batia na mulher, era um
adúltero; não havia nada, imagino, menos o homicídio, de que o homem não
fosse culpado; e, na verdade, teria sido culpado de homicídio em muitas das suas
brigas de bêbado, se os seus amigos não o contivessem. Ele tinha um
temperamento diabólico e sórdido, e a bebida o deixava louco. Finalmente,
chegou-lhe o som do evangelho, e ele foi convertido. Ora, é justamente aí onde a
coisa soa quase grotesca, mas é um fato. Ele era alto, atlético, de boa compleição
física, um lutador. E havia uma coisa da qual ele era particularmente orgulhoso,
a saber, o seu bigode e o comprimento deste, de ponta a ponta. (Não é
extraordinário o de que as pessoas se orgulham?) Essa era a sua particular
matéria de orgulho.

De fato, sucedia que a causa das suas brigas era o seu bigode, porque algum
outro homem o desafiava a provar que o seu bigode media mais de ponta a ponta
que o dele. E assim começava uma discussão, e acabavam brigando. Entretanto,
ele não se orgulhava somente do seu bigode; também se orgulhava de que
nenhum homem podia resistir às suas façanhas como lutador. Então o inesperado
aconteceu. Ele veio para a igreja, foi convertido, e o evento o deixava
maravilhado.

Ora, a história é esta: umas seis semanas após a conversão do homem, ele veio a
uma reunião noturna de meio de semana, e notei imediatamente, quando ele
entrou, que o bigode tinha desaparecido. Ele não tinha apenas cortado as pontas
extensas, porém tinha rapado o bigode inteiro. Minha reação imediata foi de
contrariedade; eu disse a mim mesmo: algum intrometido desta igreja disse a
esse homem que fizesse isso. No fim da reunião, quando ele ia saindo, eu o
derive e lhe disse que queria ter uma palavra com ele. Quem lhe disse que
tirasse o bigode?, perguntei. Ninguém!, replicou ele. Vamos lá, disse eu;
não proteja ninguém; esse tipo de intrometido faz muito dano à igreja. Estou
querendo ficar livre desses detetives espirituais autonomeados, continuei. Diga-
me a verdade. Quem lhe disse que tirasse o bigode? Ninguém me falou isso,
disse ele. Continuei a pressioná-lo duramente, mas ele persistiu. Bem, disse eu,
por que você o tirou então? Vou dizer-lhe por quê, disse ele. O fato é que eu me
levantei esta manhã e, depois de lavar-me, fui ao espelho, e lá estava eu, disse
ele, penteando o cabelo. De repente vi os meus bigodes - por causa do tamanho
do bigode, ele dizia que eram dois - e disse a mim mesmo: essas coisas “não é
boa” para um cristão! Por isso cortei as pontas e rapei o resto.

O homem, deixem-me acrescentar, não sabia nem ler nem escrever. Tinha levado
uma vida tão dissoluta e má, e tinha sido criado de maneira tão solta que,
literalmente, não sabia escrever e não sabia ler; e essa foi a sua expressão:
“Essas coisas não é boa para um cristão!” Iletrado e ignorante, sim, mas tinha
nascido de novo, e o Espírito de Deus tinha entrado nele; e o Espírito de Deus,
com a Sua unção e o Seu poder, lhe tinha ensinado esta lição: “Essas coisas não
é boa para um cristão!” “Despojai-vos do velho homem!” E ele se despojara
do velho homem, naquele aspecto. Eram coisas próprias da velha vida, nada
tinham a ver com a nova vida. Muito simples, não? Homem ignorante, iletrado!
Quisera Deus que esta igreja estivesse cheia de gente assim! Vejo cristãos hoje
que, até deliberadamente, me parece, estão vestindo o homem velho! - estão
vestindo coisas pertencentes à vida da carne, do diabo e do mundo. Elas não
perceberam ainda que “Essas coisas não é boa para um cristão”! Esse é o
argumento do

apóstolo. Tratem de desenvolvê-lo para si mesmos, em detalhe. O cristão não


deve sequer parecer-se com o homem ou mulher típico do mundo. Há certas
coisas que são incompatíveis com esta nova vida. Fora com elas! Livrem-se
delas!

Devemos agora passar ao próximo passo de obediência ao evangelho. Cito para


vocês uma palavra escrita pelo apóstolo em seu capítulo subseqüente: “E não
comuniqueis” (VA: “Não tenhais comunhão”) “com as obras infrutuosas das
trevas, mas antes condenai-as”. O ponto essencial aqui, a frase operativa, é “Não
tenhas comunhão”. Noutras palavras ele diz: não tenham nada a ver com
as obras das trevas. Sejam drásticos. Não façam nenhum trato com elas. O
princípio importante, parece-me, é este: vigie o começo. Não debata, não
discuta, não tenha nada a ver com o pecado, se é que você é sábio: despoje-se
totalmente do velho homem. Não temos todos nós experiência disso? No
momento em que você mal dá ouvidos ao diabo, praticamente já ficou por baixo.
Se você discutir com ele, certamente você será derrotado. Não converse nem um
pouco com o diabo; não lhe dê a mínima atenção. Não fale com ele, não
troque expressões com ele. Se você começar a falar com o diabo e a ouvi-lo e
disser: ora, por que não? Eu quero entender... você já estará batido, ele sempre o
derrotará; ele é astuto, ele é esperto, ele é brilhante na arte da resposta pronta; ele
conhece todos os argumentos. Assim que você começa a dar lado ao pecado,
você está liqüidado. Não tenha nenhuma ligação, nenhuma comunhão, com as
obras infrutuosas das trevas. Estabeleça este princípio, também, que se você
estiver em dúvida sobre uma coisa, não a tocará. “Tudo o que não é de fé
é pecado.” “Aquele que tem dúvidas, se come está condenado”, diz Paulo em
Romanos, capítulo 14. Se você está em dúvida acerca de uma coisa, diga:
“Não”! É melhor errar desse lado do que do outro. Não se deve tocar as coisas
que sejam meramente duvidosas.

A seguir chegamos a outra injunção positiva que desejo ressaltar. E do novo é


uma citação direta das Escrituras. Na Epístola aos Romanos o apóstolo escreve:
“Não tenhais cuidado da carne”! (13:14. ARA: “Nada disponhais para a carne”;
VA: “Não façais provisão para a carne”). Que declaração! “Não façais provisão
(ou nenhuma provisão) para a carne!” Que coisa tremenda! Essas
palavras desempenharam o seu papel na vida de Agostinho. Que é que
Paulo quer dizer quando declara que não devemos fazer provisão para a carne?
Ele quer dizer: não seja bobo de alimentar aquele velho homen que está em
você. Não seja bobo de dirigir os seus passos para a tentação. Não faça provisão
para a carne, aquilo que põe você abaixo!

Existem certos lugares que são ruins para você - fique fora deles! Você sabe de
antemão que, se entrar, a carne será estimulada. Isso é fazer provisão para a
came. Portanto, nunca entre num lugar desses. E falo não somente de lugares,
mas também de pessoas. Se há pessoas que sempre exercem má influência sobre
você, evite-as! Fora com o velho homem! Não ore sobre isso, não argumente;
você não precisa de orientação especial sobre isso. Se a experiência lhe ensina
que uma pessoa tende invariavelmente a ter má influência sobre você, evite
essa pessoa. Não faça provisão para a carne.

A mesma coisa vale com respeito à leitura. Não hesito em dizer que os jornais
populares deste país são hoje, indubitavelmente, a pior influência que há, com
relação à vida espiritual. Eles estão repletos de sugestão e insinuação. Portanto,
seja discriminativo e cauteloso quando lê o seu jornal. Evite aquilo que tenda
afazer-lhe mal e arrastá-lo para baixo. Não faça provisão para a carne! Ouça a
Jó, quando ele nos fala no Velho Testamento. Ele era um homem piedoso, e eis o
que ele diz: “Fiz concerto (ou aliança) com os meus olhos”! (31:1). No versículo
7 do mesmo capítulo ele diz: “Se os meus passos se desviaram do caminho, e se
o meu coração segue os meus olhos .. Notem: os seus corações seguem os seus
olhos! Os olhos são o problema. Vocês vêem algo, e os seus corações vão atrás.
Por isso Jó diz: “Fiz aliança com os meus olhos”. Deixem-me expressar a
questão positivamente, como a vemos em Provérbios 4:25: “Os teus olhos olhem
para a frente, e as tuas pálpebras olhem direto diante de ti”. Se há alguma coisa
tentadora, não olhem para ela! É isso que significa despojar-se do velho homem.
Façam aliança com os seus olhos, olhem direto para a frente, não deixem que os
seus olhos passeiam errantes, não os deixem cobiçar coisas, não os deixem
desviar-se do caminho reto. Este ensino é bíblico: não se limitem a orar sobre
isso; simplesmente não olhem\ Mantenham os seus olhos longe das coisas que
têm a probabilidade de seduzi-los ou atraí-los, sejam elas quais forem. Reitero:
façam aliança com os seus olhos, olhem direto para diante, mantenham-se
firmes, olhando no direção de Deus e do céu e da santidade. Não façam provisão
para a carne.
E isso me leva ao último princípio - procurei colocar os princípios numa ordem
ascendente: não só não devemos fazer nenhuma provisão para a carne, mas
realmente nos é dito que mortifiquemos a carne. “Se pelo Espírito mortificardes
as obras do corpo, vivereis”, diz Paulo aos cristãos romanos (8:13). Lemos uma
exortação similar em Colossenses 3:5: “Mortificai pois os vossos membros, que
estão sobre a terra: a prostituição, a impureza, o apetite desordenado, a vil
concupiscência, e a avareza, que é idolatria”. Mortificai os vossos membros, que
estão

sobre a terra! Cristão, você tem que fazer isso, e eu tenho que fazê-lo; não o
fazem por nós; o mal não é extraído de nós numa experiência maravilhosa,
emocionante. Temos que empenhar-nos nessa obra de mortificação; temos que
mortificar os feitos do corpo. E isso mediante o Espírito! O Espírito é dado;
temos o Espírito. Portanto, diz o apóstolo, em Seu poder, mortificai . . .
Mortificar significa amortecer, significa atacar deliberadamente, significa
deixar passar fome para que os nossos inimigos morram de inanição; prive-os de
alimento, não faça nenhuma provisão para eles, noutras palavras. Outra boa
maneira de mortificar uma coisa é não usá-la. Se você não usar os
seus músculos, eles ficarão atrofiados e se enfraquecerão. Portanto, não usar é
um excelente meio de mortificar. Retire o alimento e o sustento; não use. E à
medida que você fizer essas duas coisas, os nossos inimigos serão mortificados
gradativamente.

Mas o apóstolo vai mais longe ainda. Nós não apenas não alimentamos a carne e
o corpo neste sentido mau; não somente não devemos exercitar o corpo, se
desejamos mortificá-lo. O apóstolo vai mais longe em sua Primeira Epístola aos
Coríntios, dizendo; “Pois eu assim corro, não como a coisa incerta; assim
combato, não como batendo no ar. Antes subjugo o meu corpo, e o reduzo à
servidão”! (9:26-27). Logo vem a objeção: “Isso é legalismo, é um homem
fazer algo, cair de volta na lei das obras”. Contudo, é o apóstolo que o ensina! E
o sentido literal da expressão que o apóstolo usou de fato, aqui traduzida por
“subjugo o meu corpo”, é dar um soco no olho; esmurrar (Cf. ARA), inutilizar
um antagonista, como faz o pugilista! O apóstolo diz realmente: “Eu me esmurro
no olho”. Virtualmente, ele diz: sou como um boxeador, não estou batendo no ar,
estou surrando a mim mesmo, estou deixando o meu corpo cheio de manchas,
estou dando a mim mesmo olhos roxos; para que esta carne não me lance
ao chão. Subjugo o meu corpo, e o reduzo à servidão.

O cristão é assim! Portanto, não devemos dizer acerca do nosso problema: “Ah,
a solução é muito simples; basta abrir as venezianas e deixar o sol entrar, e as
trevas desaparecerão”! Todavia não desaparecerão! E as pessoas que usam essas
expressões sabem que não; e tem havido pessoas que, durante anos, vêm
tentando abrir as venezianas, e continuam derrotadas por pecados particulares.
Claro que continuam! Elas estão negando as Escrituras. Subjugo o meu corpo e o
surro, esmurro o meu olho com toda a minha força; levanto-me contra
um antagonista, e como um pugilista, estou tentando nocauteá-lo. Esse é o
método bíblico. Assim, não somente não fazemos provisão para a carne; temos
que mortificar a carne, subjugá-la, mantê-la baixo, compreendendo que, se não
fizermos isso, a carne nos porá abaixo

temporariamente, e estaremos vivendo uma vida contraditória.

Aí está, pois, a essência do ensino do apóstolo. Se vocês quiserem ler uma


ampliação desse ensino (e como ele foi ampliado!) vejam o tratado de John
Owen sobre A Mortificação da Carne (“The Mortification of the Flesh”). Vocês
o acharão muito volumoso; naturalmente que é, pois estas coisas têm que ser
desenvolvidas em detalhe. Eu lhes dei apenas os princípios básicos. Permitam-
me, pois, repetir que, seja o que for que os perturbe, levantem-no e examinem-no
à luz destes princípios. Não corram, não se apavorem, não digam simplesmente:
tenho que tentar orar. Examinem bem a coisa e desenvolvam-na; coloquem-na à
luz deste contexto, e depois apliquem os princípios, e pelejem com ela no poder
do Espírito Santo. Despojem-se do velho homem. E façam isso em detalhe. O
apóstolo continua e passa aos detalhes - mentira, roubo, comunicações corruptas.
Ele os toma, um por um, e diz que vocês têm que aplicar os princípios com
relação a cada um dos itens. E assim vocês se despojarão do velho homem, que é
corrupto, que está morrendo e que é decadente, segundo as concupiscências do
engano

Queira Deus dar-nos honestidade! Queira Deus abrir os nossos olhos para as
Escrituras! Queira Deus livrar-nos de passar por alto as Escrituras e de eliminar
partes completas delas no interesse de uma teoria! E quando Deus fizer assim, e
quando compreendermos que temos o Espírito de Deus em nós, nós nos veremos
capacitados a despojar-nos do velho homem e de tudo quanto é tão
horrivelmente certo a respeito dele, para que não mais desonremos o glorioso
nome do nosso bendito Senhor e Salvador Jesus Cristo.

RENOVADOS NO ESPÍRITO DO ENTENDIMENTO


“E vos renoveis no espírito do vosso entendimento ”

r - Efésios 4:23

Recentemente estivemos estudando duas exortações feitas pelo apóstolo Paulo


aos crentes efésios, uma para que se despojassem do velho homem, o qual se
corrompe segundo as concupiscências do engano, e a outra para que se
revestissem do novo homem, que segundo Deus é criado em justiça e verdadeira
santidade. Mas, entre essas duas exortações vem este versículo 23, para o qual
dirigimos agora a nossa atenção. Ele marca a transição do negativo para
o positivo, na exortação do apóstolo. Antes, porém de passar de fato ao positivo
e de dizer-nos que nos revistamos do novo homem, Paulo insinua e insere esta
declaração particular. Assim a declaração é, como digo, o início do positivo. No
entanto, é muito mais que isso, pois seria muito errado considerar esta
declaração meramente como uma introdução do que vem. Na verdade atrevo-me
a sugerir que este versículo colocado aqui, entre as duas exortações, e que,
superficialmente examinado, é apenas um elo de ligação; é, na realidade, a
chave para entender-se o segredo de se poder despojar do velho homem e de se
revestir do novo. Paulo decide colocá-lo dessa maneira particular, pois o homem
nunca se despojará realmente do velho homem, e nunca se revestirá do novo,
enquanto não for renovado no espírito do seu entendimento. Assim, o versículo
23 é uma daquelas profundas declarações doutrinárias que abundam, conforme
notamos, não somente na primeira parte desta Epístola, como também até
mesmo aqui nesta seção muito prática, onde, num sentido, o apóstolo está
simplesmente aplicando a sua grande doutrina e exortando estes efésios
a andarem agora, não como andam os outros gentios, porém segundo os que
verdadeiramente aprenderam a Cristo. Face a face, pois, com tão importante
declaração, devemos dar-lhe nossa total atenção.

A primeira coisa que o apóstolo nos diz é: “e vos renoveis” -expressão de grande
interesse! De fato, literalmente significa precisamente o que diz; significa re-
novar, ou ser feito de novo. Sugere restauração a uma condição prévia que
existia outrora. Sugere que

houve uma saída daquela condição, e que o que necessitamos é ser levados de
volta a ela. Pois bem, eu espero mostrar-lhes o significado dessa declaração, mas
é exatamente isso que ela significa. É importante observar que a Versão
Autorizada não nos dá o tempo verbal exato aqui (VA: “E sede renovados...”). O
tempo verbal é realmente o presente contínuo; diz Paulo que eles devem
continuar sendo renovados dessa maneira. Não é uma coisa que acontece uma
vez por todas. Vimos antes que “despir-se” é algo que se faz uma vez por todas;
“vestir-se” ou “revestir-se” também; todavia esta “ser renovado” é algo que
continua; é presente e deve continuar constantemente. E evidente que esse ponto
é muito importante. E o terceiro ponto acerca dessa palavra é que está na voz
passiva; não é algo que cabe ao cristão fazer. O “despojar-se” ou “despir-se”,
como estive acentuando é nossa ação; similarmente, o “revestir-se” é nossa ação;
mas a renovação não é nossa acão, é algo que nos acontece. Nós vamos sendo
renovados.

É de fato obra de Deus, obra do Espírito Santo. E todavia, penso eu, é óbvio que,
embora tenhamos que salientar e reforçar esse aspecto da questão, a própria
maneira pela qual o apóstolo a coloca indica claramente que podemos impedir
essa obra. Não há dúvida acerca disso tudo. Não estou falando da conversão,
porém de algo que está acontecendo com o homem que já nasceu de novo, pois é
a pessoas regeneradas que o apóstolo está escrevendo. É porque elas já nasceram
de novo, Paulo diz a elas, que ele as exorta dessa maneira. Por isso dizemos
acerca do cristão que ele pode impedir essa obra, pode apagar o Espírito, pode
entristecer o Espírito. Assim, embora a ênfase maior esteja no fato de que
sermos renovados é algo que nos é feito, devemos ter cuidado para não impedir
ou frustrar de algum modo essa obra, mas que façamos tudo o que pudermos
para promovê-la e fomentá-la. Podemos, pois, traduzir a declaração desta
maneira: “que continueis sendo renovados constantemente”, pois isso é o que
Paulo está dizendo de fato.

Em segundo lugar, notamos que a renovação mencionada é “no espírito da vossa


mente” (VA) -uma declaração sumamente profunda, e deveras importante para o
nosso claro entendimento da doutrina cristã. Entretanto Paulo não diz que temos
que ser renovados em nossa mente apenas, mas no espírito da mente. Tem
havido muita discussão sobre essa expressão. Alguns escritores dizem que ela
significa o Espírito Santo, residente na mente; contudo não há a mínima
possibilidade de significar isso, por esta boa razão, que em parte alguma
as Escrituras se referem ao Espírito como o Espírito da nossa mente. É-

-nos dito que o Espírito Santo habita em nós, mas Ele não é nosso Espírito
Santo. Assim, o espírito da mente não pode significar o Espírito Santo
influenciando a mente. O Espírito Santo influencia a mente, porém Paulo aqui
está falando do espírito da mente. De igual modo devemos assinalar que aqui o
apóstolo não está se referindo aos nossos espíritos.
Neste ponto devemos lembrar-nos de novo da maneira pela qual a Bíblia disseca
e analisa a personalidade humana; noutras palavras, devemos por um momento
olhar de relance a psicologia bíblica. E o que ela nos diz sobre nós é que há no
homem a mente, a sede do entendimento; o coração, a sede das emoções e dos
sentimentos; a alma, a sede das sensações; e também o espírito. Há,
naturalmente, uma grande argumentação quanto a se o homem consiste de duas
ou de três partes. Uns dizem que só devemos falarem corpo o alma, o não em
corpo, alma e espírito, que é o conceito tricotômico. Este é um assunto que
jamais poderá ser resolvido de maneira final, porque notamos que este apóstolo
mesmo, no último capítulo da Primeira Epístola aos Tessalonicenses, fala acerca
de todo o nosso espírito, alma e corpo. E lemos no capítulo quatro de Hebreus
sobre dividir em partes até mesmo a alma e o espírito, e as juntas e a medula.
Realmente não importa qual dos conceitos você adota, contanto que
reconheça que, se disser que há somente um órgão (por assim dizer) em
acréscimo ao corpo, baseia-se no reconhecimento de que esse órgão tem
duas partes - alma e espírito. Portanto, chega-se à mesma coisa, no fim. Aí está a
alma do homem, a sede das sensações, pela qual o homem tem comunhão com
os seus semelhantes. Mas existe algo superior, o espírito que há no homem; e,
indubitavelmente, é a coisa mais elevada que há em nós e em nossa constituição.

Ao lerem a Bíblia, vocês devem ter notado que muitas vezes esses termos são
utilizados uns pelos outros; às vezes a palavra mente é utilizada significando a
pessoa completa; às vezes a palavra coração é utilizada, não somente para
indicar a sede dos afetos e das emoções, mas de novo pela personalidade toda,
incluindo a mente; alma é empregada do mesmo modo; e também espírito, da
mesma maneira. Alguém poderá perguntar então: temos alguma possibilidade de
saber que sentido é indicado em qualquer contexto particular? A resposta é que,
se você der cuidadosa atenção ao contexto, geralmente será capaz de determinar
o sentido. Eé esse o caso em nosso presente estudo. Em nosso texto de Efésios
Paulo fala sobre o espírito da mente; assim, obviamente, espírito e mente não
significam a mesma coisa. E, na verdade, ele não está falando nem mesmo dos
nossos espíritos; está falando particularmente do que ele chama espírito-da-
mente, e deve-

mos pesquisar o âmago do significado dessa palavra.

Minha opinião é que a palavra significa o princípio interior que realmente


governa, domina e aciona a mente propriamente dita. Com isso quero dizer que,
em acréscimo às nossas faculdades, aos nossos poderes e às nossas capacidades
intelectuais, há uma espécie de espírito da mente que dirige todo o
funcionamento da mente. É a isso que o apóstolo está se referindo aqui. A
palavra espírito significa sopro, ou vento, que significa poder. Assim, ele está
falando aqui sobre o poder da mente, não simplesmente sobre as habilidades
da mente, porém sobre o poder que domina e dirige as habilidades. Obviamente
estamos lidando aqui com algo muito profundo, algo que fruir e com que se
alegrar. Que livro maravilhoso é a Bíblia! Dizem alguns que ser cristão significa
que de repente você se abrandou; você joga fora o seu intelecto e simplesmente
passa o tempo cantando coros e sendo emocional. Se tais cristãos existem, que
pobres cristãos são eles! O nosso Novo Testamento foi escrito para cristãos, há
dois mil anos, quando eles não tinham as nossas facilidades educacionais.
Foi escrito para pessoas, muitas das quais tinham sido escravas; todavia, aí está
Paulo analisando a mente, nestas várias categorias. Eis aí pensamento profundo,
filosofia profunda, psicologia profunda; e o que se supõe é que eu e você
entendamos isto, que nos apeguemos a isto e o compreendamos, pois, como
espero mostrar-lhes, é “o espírito da mente” que realmente governa e domina
tudo mais, é aquela parte do seu ser que governa e domina a sua mente. Ser
renovado no espírito da mente é essencial ao progresso cristão.

Até aqui estivemos definindo os nosso termos. Agora passamos à doutrina. O


apóstolo nos está oferecendo aqui uma das suas mais profundas definições do
cristão. Observemo-lo enquanto ele o faz. Aqui, parece-me, estão as partes
componentes.

Primeiramente, o apóstolo assinala o que o pecado e a queda do homem fizeram


conosco. Esta palavra re-novar no-lo diz. O que o cristão necessita, diz ele, é ser
levado de volta para onde ele estava, com relação à sua mente. Sua mente
precisa ser renovada, feita de novo, como era antes, fato que logo sugere que ela
se havia afastado dali, o que, é claro, foi exatamente o que aconteceu quando o
homem caiu. Não há nada que seja mais importante que compreendemos do que
a doutrina da Queda, a doutrina do homem em pecado; é a chave da Bíblia toda.
Não vejo como um homem pode entender realmente a doutrina da salvação, a
não ser que entenda ao menos alguma coisa da doutrina da Queda. E isto explica
por que o Velho Testamento é tão essencial ao cristão como o Novo. Ele não
pode entender o Novo

Testamento sem o Velho, porque o fato é que Deus fez o homem perfeito, porém
o homem caiu. E o que acontecu quando ele caiu? O apóstolo nos informa.
Quando o homem caiu, não foi somente que ele desobedeceu a Deus num
aspecto particular e, por isso, tornou-se transgressor. Ao mesmo tempo, e como
resultado direto da sua queda, ele começou a sentir-se miserável e infeliz.
Também viu que tinha perdido vários benefícios que antes usufruía. Mas, diz o
apóstolo, o fato mais devastador que lhe sucedeu foi que a sua mente entrou
por maus caminhos.

Aqui entramos em contato com a própria essência da Queda. Quando o homem


deu ouvidos ao diabo, ele se pôs debaixo do poder do diabo, e passou a ficar sob
o domínio de satanás, como o coloca Paulo em sua Epístola aos Romanos. O
resultado disso foi que a mente do homem, o espírito da sua mente, ficou
debaixo de um poder dominador forâneo. O problema com todos nós, resultante
do pecado de Adão, é que nascemos com uma natureza corrupta. A
nossa dificuldade essencial não é tanto que fazemos coisas más - claro que isso é
bastante ruim - todavia a real dificuldade com todos nós é que, como somos por
natureza, toda a nossa perspectiva é má. É o espírito da nossa mente que está
mal; a nossa maneira fundamental de pensar e de raciocinar ficou retorcida,
pervertida e viciada. E exatamente isso que a Bíblia diz a respeito do mundo
todo em sua presente situação de caos e de infelicidade. O mundo é como é
porque os homens não sabem pensar direito. Sejam renovados no espírito da sua
mente! Eles mesmos não podem fazer isso, necessitam da operação do
Espírito Santo, mas uma vez que tenha ocorrido a regeneração, eles
são exortados a entrar em ação.

Leiam como isso é expresso no livro de Gênesis, capítulo 6, pouco antes do


Dilúvio. A respeito do mundo que Ele vai julgar e destruir, diz Deus: “Toda a
imaginação dos pensamentos do coração do homem era só má continuamente”.
Que diagnóstico! Que análise psicológica! - toda a imaginação dos pensamentos
do seu coração\ Nessas palavras vemos que “o espírito da mente” é analisado de
maneira ainda mais ampla; a imaginação entra, os sentimentos entram. É
este princípio que está por trás da mente que tem se transtornado. Não foi a
mente, como instrumento, que se transtornou. Devemos entender isso com
perfeita clareza, porque alguém poderia desafiar-me neste ponto e dizer: você
está dizendo que todos os não cristãos são incapazes de pensar e não têm
nenhuma capacidade? Se é assim, você está completamente errado. Acaso não
existem grandes cientistas que não são cristãos? Não existem grandes filósofos,
poetas e outros que não são cristãos? Você estaria afirmando que eles não têm
nenhuma

capacidade? Naturalmente que não! É aqui que se toma importante fazer


distinção entre a mente e o espírito da mente. O problema com o homem não
está na sua mente, mas no espírito da sua mente. Os homens têm as faculdades,
têm as capacidades, podem ser gênios na matemática, na física, na química, na
filosofia, em qualquer destas coisas. A mente como órgão, e como máquina que
trabalha, raciocina, calcula, pensa etc., produz resultados extraordinários; porém
o que se tem desarranjado é o poder governante que está por trás disso tudo.

Permitam-me usar como ilustração o que me parece um dos melhores


comentários sobre esta matéria. Não é um paralelo exato, mas pode servir como
ilustração. O apóstolo Paulo, escrevendo aos romanos, reconhece que o assunto
com o qual está lidando é difícil, pelo que diz: “Falo como homem, pela
fraqueza da vossa carne” (6:19). Noutras palavras ele diz: uma vez que vocês
acham difícil entender o que eu estou dizendo, vou usar uma ilustração. Diz
ele: “Pois que assim como apresentastes os vossos membros (isto é, as
sua faculdades) para serviram à imundícia, e à maldade para maldade, assim
apresentai agora os vossos membros para servirem à justiça para santificação”.
Os membros que antes eram utilizados de maneira má, as faculadades, os
poderes, agora deviam ser utilizados com propósitos bons e retos. Continuavam
sendo exatamente as mesmas faculdades, entretanto o que mudou foi a direção, o
espírito que as domina.

A ilustração do apóstolo atende ao meu presente propósito. Aí está, digo eu, o


efeito devastador que a Queda e o pecado produziram na raça humana. A mente
do homem que, no princípio, era governada pelo espírito, agora é governada pela
carne. Todo o pensamento do homem foi pervertido até esse ponto. O homem
ainda é capaz de pensar e agir com proveito como físico, médico, filósofo etc.;
se bem que, mesmo aí, em dado ponto ele se equivoca. Mas, no momento em
que se chega às coisas que realmente importam - todo o ser do homem e a
sua relação com Deus, com o tempo e com a eternidade-aí o pensamento do
homem fracassa completamente, porque o espírito da sua mente extraviou-se.

Se vocês quiserem ler a descrição da essência desta doutrina nas Escrituras,


vejam o capítulo dois da primeira Epístola aos Coríntios, onde vemos que Paulo
diz: “O homem natural não compreende as coisas do Espírito de Deus, porque
lhe parecem loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem
espiritualmente”. Estará ele dizendo que o homem natural não é cristão porque
não tem cérebro? Não! Ele está dizendo que o cérebro do homem natural de nada
lhe vale porque o espírito que o domina impede-o de captar a verdadeira
doutrina. É o espírito da mente que está mal, não a mente como instrumento. Se
captarmos isso, jamais ficaremos surpresos ao vermos que certos grandes vultos
não são cristãos. Alguns deles são nossos conhecidos, graças ao rádio e à
televisão, e outros deles são escritores. Em conseqüência, alguns cristãos fracos
tremem nas bases, e dizem: “Bem, afinal de contas, poderia eu estar errado?
Esses grandes homens não crêem em Cristo e no evangelho!” Mas os cristãos
não deveriam ficar surpresos. Aqueles são grandes homens; e admitimos que
possuem cérebros maiores do que os nossos, melhores instrumentos, como tais.
No entanto não é o instrumento que importa; o importante é o espírito da mente.

Vemos que o apóstolo oferece o mesmo ensino no capítulo dois desta Epístola
aos Efésios, onde se nos diz que, por natureza, todos os homens estão “mortos
em ofensas e pecados”, e que andam “segundo o curso deste mundo, segundo o
príncipe das potestades do ar, do espírito que agora opera nos filhos da
desobediência”. Vemo-lo também no capítulo oito da Epístola aos Romanos,
onde lemos (VA) que “a mente carnal é morte”. Não há nada de errado com a
mente propriamente dita, mas o espírito da mente é carnal. “Amente carnal” (a
inclinação da carne), diz ele, “é morte, mas a mente espiritual (a inclinação do
espírito) é vida e paz.” A isso Paulo acrescenta: “Porquanto a mente carnal é
inimizade contra Deus, pois não é sujeita à lei de Deus, nem, em verdade, o pode
ser”. O espírito da mente é que está errado. Este é, pois, o real problema com o
homem. Não é meramente que ele faz coisas que não deve fazer, e que não faz o
que deve. A tragédia de todo aquele que não é cristão é simplesmente esta, que
na própria cidadela do seu ser, no seu ponto mais elevado, no espírito da sua
mente, ele perdeu o rumo. Que tragédia pode ser maior do que essa?! Algumas
pessoas que vivem para o mal neste mundo, que fazem dinheiro disso e que o
organizam, têm cérebros maravilhosos; são gênios nisso; têm grande capacidade,
porém essa capacidade está sendo prostituída, está sendo manobrada e utilizada
numa direção completamente errada. O “espírito da mente” extraviou-se e,
portanto, precisa ser renovado.

Mas, perguntamos ainda: que é que a regeneração faz? Neste ponto,


naturalmente, o apóstolo não nos faz um relato elaborado da regeneração;
simplesmente põe o dedo no princípio essencial. Este é o fato mais importante de
tudo o que acontece na regeneração. De que necessita o homem em pecado?
Bem, obviamente, à luz de tudo o que eu estive dizendo, ele não necessita de
novas faculdades, porque não há nada de errado com as faculdades pessoais. O
homem não precisa
ter um novo cérebro a fim de se tornar cristão; o mesmo cérebro continuará
servindo, quando o espírito for transformado. O meu argumento é que, quando
um homem se torna cristão, não se torna nem um til mais capaz do que era antes.
Continua tendo o mesmo cérebro, as mesmas faculdades; fossem o que fossem,
continuam sendo o que eram. Se o homem era um gênio no pecado, será um
gênio como pregador; o apóstolo Paulo é uma ilustração disso. Mais que
ninguém, ele foi um perseguidor; ele espancava ou aprisionava todos os
cristãos que conseguia encontrar; e depois se tornou cristão e o maior
pregador de todos. A mesma intensidade! O mesmo zelo!

Tenho visto pessoas crucificarem as suas faculdades pessoais, no entanto nunca


foi esse o propósito para elas! O que você era, você continua sendo; você tem as
mesmas faculdades pessoais, e as mesmas capacidades, mas o espírito que as
dirige é que mudou. Assim, as mesmas diferenças entre pessoa e pessoa ainda
existem. Os cristãos não são todos igualmente capazes; seria preciso dizer isso?
Às vezes penso que é. Nem todos são vocacionados para ensinar e
pregar. Alguns parecem pensar que todo e qualquer cristão faz automaticamente
o que os outros cristãos fazem. Não é assim. As capacidades permanecem, e
devem ser consideradas e levadas em consideração. Por isso digo que, na
regeneração, não recebemos novas faculdades pessoais. O que recebemos é este
novo espírito que exerce o controle, uma nova disposição é implantada em nós,
um novo princípio de vida começa a operar. O novo espírito penetra na mente e a
domina e a dirige; assim é que, ao passo que anteriormente ela ia numa
direção errada, agora vai na direção certa. Se tudo funcionava numa
direção, tudo funciona na outra. O que importa é o controle, o
princípio vitalizante. Por renovação devemos entender que a mente
recebe iluminação. O cérebro humano qua1 cérebro é precisamente o que era
antes; todavia, sendo o homem renovado no espírito da sua mente, e já não sendo
totalmente incapacitado em razão da Queda, torna-se capaz de receber as coisas
do Espírito de Deus, e o cérebro, que antes lhe era inútil nas questões espirituais,
agora passa a ser de valor inestimável para ele.

Havendo, então, ocorrido a mundança, a que leva? Significa que o cristão não
somente pensa em coisas diferentes, mas, o que é ainda mais importante é que
ele pensa de modo diferente. Ouçam o que diz o poeta sobre a mudança
ocorrida:

O céu em cima é azul mais suave;


Verde mais leve é a terra em volta.

Há certa vida em cada nuança Que olhos sem Cristo nuança vêem.

Os olhos sem Cristo podem ver, naturalmente. Podem ver as flores, como podem
ver os olhos cristãos, e observam as mesmas flores. E o não cristão pode dizer o
nome da flor, como o cristão, talvez melhor; pode dissecá-la, analisá-la, sabe
tudo sobre ela, vê e pode redigir o seu relatório; o cristão também pode; ambos
vêem as mesmas coisas, e até certo ponto os seus relatórios são idênticos.
Contudo, o cristão vê algo que o outro não vê. O céu em cima é azul mais suave\
O não cristão apresenta o seu relatório. Diz ele: os céus são azuis! Ele
está perfeitamente certo. Mas não viu a suavidade. O cristão olha para os céus e
não vê apenas algo material, físico; há um resplendor que o outro não consegue
ver; é a glória de Deus por trás deles. Tudo isso está lá no Salmo oito. “Quando
vejo os teus céus, obra dos teus dedos, a lua e as estrelas...” O cristão vê algo
extra. Não vê somente o que está ali, ele vê os dedos de Deus que os fizeram. “A
luz e as estrelas que tu ordenastes!” (VA). O céu em cima é azul mais suave. E a
terra -que dizer dela? Bem, é verde, diz o incrédulo, e é evidente que ele
está perfeitamente certo. Entretanto, diz o cristão, verde mais leve é a terra em
volta. Que se passa? Nos dois homens, a capacidade cerebral é mais ou menos
idêntica; porém há algo extra, o espírito da mente mudou, no cristão. Há certa
vida em cada nuança que olhos sem Cristo nunca vêem.

Aí aves cantam mais alegres,

Na flor o belo é mais profundo,

Desde que eu sei, como hoje sei,

Que Cristo é meu, e eu dEle sou.

Que foi que aconteceu com esse homem? O apóstolo dá a resposta. O espírito da
mente foi renovado! Ele não tem intelecto maior do que o que tinha antes, mas o
seu intelecto está sendo habilitado a funcionar de uma nova maneira, ele agora
pensa de uma nova maneira. Ele não somente fala de coisas diferentes, porém
faz diferentemente tudo o que faz. “As coisas velhas já passaram; eis que tudo se
fez novo.” E isso que acontece com o cristão. Como “homem natural”, pode ser
que ele tenha sido um escravo da bebida, e não pudesse passar em frente de
um bar sem se sentir tentado a entrar; lá ia ele. Mas, agora que se tornou cristão,
passa em frente do mesmo bar, todavia não o vê como o via
antes. Fisicamente ele vê exatamente a mesma coisa, o mesmo edifício, a mesma
pintura, a mesma cor, o mesmo nome no letreiro; não houve mudança; e, no
entanto, tudo é diferente, não é mais o mesmo lugar. Que terá acontecido? Não
houve mudança no bar; não houve mudança no cérebro do homem, enquanto
cérebro,qua cérebro. O que mudou foi o espírito da sua mente! Ele agora pensa
diferentemente. Embora observe precisamente os mesmos dados, neles medite e
sobre eles cogite, já não faz a mesma coisa do mesmo jeito. O espírito da sua
mente mudou. A sua perspectiva é completamente nova.

Ora, alguém poderá perguntar: que é que isso tudo significa na prática? Bem,
aqui vão algumas deduções práticas. Quando o apóstolo nos exorta a despojar-
nos do velho homem e a revestir-nos do novo, ele não está pedindo que haja uma
conformidade mecânica, mas sim, que ponhamos em prática uma mudança
inteligente. Essa é a razão para falar em ser renovado no espírito da sua mente no
intervalo entre o “despojar-se” e o “revestir-se”. O apóstolo não dá estas
ordens como o faria um sargento duro na disciplina. O sargento duro não recorre
à inteligência. Ele berra as ordens-Despoje-se! Revista-se! Não é o que temos
aqui, de modo nenhum! A vida cristã não é mecânica. Haveria necessidade de
salientar isso? Receio que sim. Vejo cristãos fazendo coisas como se estivessem
numa parada militar, nestes dias; “Despojem-se!” “Revistam-se!” Assistem a
aulas de instrução, e são treinados para fazer isso, aquilo e outras coisas mais. Se
eles dizem isto, yocê o diz também - sejam evangelistas e dêem o seu
testemunho pessógl! Não há nada sobre isso no Novo Testamento. O que o Novo
Testamento faz é treinar o homem, endireitá-lo, e depois ele vai realizar a obra. E
o espírito da mente que precisa ser mudado. O cristão não deve fazer coisas sem
saber por que as faz. Não deve fazê-las cegamente só porque lhe disseram que as
faça. Nada disso! A inteligência é essencial! O espírito da mente! Se você não
sabe por que vive a vida cristã, você está sendo um pobre cristão. O cristão
deve ser capaz de dar a razão da esperança que nele há, com mansidão e temor.
Não é uma coisa mecânica; isso tem que ser realizado pelo espírito da sua
mente!

Ou deixem-me expressá-lo assim: o apóstolo não está pedindo apenas uma


mudança externa das ações e dos hábitos. O que ele está pedindo realmente é
esta mudança interior na mente, porque ele sabe que se a mente interior do
homem for mudada, ele logo cuidará das ações externas. Noutras palavras, Paulo
não está pedindo que você tire um uniforme e vista outro. Você pode fazer isso e
não ser cristão. O cristianismo é, inevitavelmente, uma coisa que age de dentro
para fora,
nunca de fora para dentro. É esse todo o princípio. Qualquer pessoa pode tirar
um uniforme e pôr outro. Um homem não regenerado pode fazer isso. Essa é a
diferença entre o moralismo e o cristianismo. O moralista não cristão despe-se
de um temo ruim e veste um bom, mas ele continua não mudado e, portanto, não
é cristão. Exteriormente parece que é, porém o espírito da sua mente não mudou.
Essa é não somente a diferença entre o moralista e o cristão, é a diferença entre o
hipócrita e o cristão verdadeiro. É a diferença entre o que os puritanos
denominavam crente temporário, confessante temporário, evangélico hipócrita,
e o cristão verdadeiro.

Num sentido, foi essa a maldição dos últimos anos do período vitoriano e dos
primeiros anos do século atual. As igrejas cristãs estavam repletas de gente que
tinha tirado a velha veste e vestido a nova, entretanto os espíritos das suas
mentes não sofreram mudança. Essas pessoas não sabiam por que estavam
fazendo aquilo; era a tradição; tinham sido criadas aprendendo a ir a locais de
culto; a não fazer isso e a fazer aquilo. Essa foi, sem dúvida, a maldição do
período final do vitorianismo. Graças a Deus chegamos ao fim disso! Prefiro a
presente situação àquela, porque os vitorianos que tinham essa forma de piedade
julgavam-se cristãos verdadeiros e, todavia, muitos deles nunca foram cristãos e
jamais tinham conhecido de coração a fé. Se este despojar-se e revistir-se não for
resultado da renovação da mente, não terá nunhum valor. Não somente devemos
viver a nova vida, mas devemos querer fazê-lo, devemos achar que é inevitável
fazê-lo, devemos achar que não temos escolha. Devemos entender a lógica
da verdadeira profissão cristã. O cristianismo não está interessadç unicamente
em nossas ações, está muito mais interessado em nós. É por isso que a Bíblia nos
diz que, no resultado final, Jacó, e não Esaú, foi homem de Deus. Esaú tinha
muito mais de cavalheiro que o seu irmão, e era muito mais simpático, porém
não era piedoso, era “profano”, como nos é dito claramente na Epístola aos
Hebreus. Não obstante toda a corrupção de Jacó, ele era homem de Deus. Não
são as nossas ações, e nada mais, que importam; somos nós, e o espírito
da mente.

Mas vamos agora ao meu terceiro e último princípio prático. Reconhecemos que
fazer-se cristão não é simplesmente você trocar de terno moral ou de conduta
externa. Tampouco é apenas mudar as suas opiniões, nem a sua mente.
Entretanto, sem dúvida nenhuma,é mudar o espírito da sua mente. Que
distinção! Noutras palavras, o cristianismo não é algo de que eu e você nos
apossamos intelectualmente; é algo que se apossa de nós, nos cativa, nos
governa e nos domina. Mas é
preciso que eu toque um sinal de alarme! Conheço gente - não permita Deus que
eu cometa o pecado de julgar! - porém conheço gente que, tendo passado a viver
em círculos evangélicos, começam a usar frases evangélicas. Essas pessoas as
ouvem tantas vezes que as adotam e começam a usá-las. E, se você for um
observador superficial, poderia dizer: essas pessoas agora são verdadeiramente
cristãs, você não as ouve? Agora falam como crentes evangélicos! Todavia um
papagaio também pode fazer isso. Pode repetir frases e clichês
evangélicos; basta que os ouça suficientes vezes, e os repetirá. E ao homem
é possível fazer o mesmo. Você pode perguntar-me: mas como é que você sabe
isso acerca dessas pessoas? Da seguinte maneira. Se de repente você as
confrontar com uma pergunta ou com um problema a que não possam dar uma
resposta apropriada, você verá que elas não sabem pensar espiritualmente. O
espírito das suas mentes não mudou nada; é a velha mente que fica repetindo
frases, usando o linguajar, porém elas se traem - quão tragicamente! - revelando
que realmente jamais começaram a pensar de maneira cristã. De vez em quando
elas dizem coisas que o chocam e o espantam, e você diz: eu pensava que Fulano
tinha de fato visto a verdade. E ele se trai logo, mostrando que nunca a viu
realmente. Tais pessoas ficam repetindo frases emprestadas, e nada mais!
Qualquer pessoa de inteligência média, ouvindo uma coisa freqüentemente, deve
ser capaz de fazê-lo! Mas o cristão é testado, não simplesmente pelo que ele diz,
nem simplesmente pelas opiniões que ele apresenta, e sim pelo espírito da sua
mente!

Devemos pôr no coração a mensagem de Paulo. Se o espírito da nossa mente for


mudado e renovado, estaremos pensando de tal modo que nos despojaremos do
velho homem e nos revestiremos do novo. E o faremos de maneira própria e do
jeito certo. O que é terrível é que nos é possível parecermos estar certos em
quase todos os aspectos e, contudo, estarmos errados em nós mesmos o tempo
todo. E possível vestir o cristianismo como roupa ou colocá-lo como uma
máscara. Você não conhece gente desse tipo? Você sente que tudo está certo com
eles, exceto eles mesmos! Noutras palavras, tudo parece ter mudado, exceto o
que é vital, o espírito da mente. E aí, diz o apóstolo, está uma coisa que nunca
deve cessar. É óbvio que, na ocasião em que nos convertemos, vimos a grande
verdade, mas precisamos instruirmos muito mais, não precisamos? Precisamos
aprender a pensar. Vocês podem ouvir cristãos novos dizerem coisas
verdadeiramente chocantes do ponto de vista do cristão maduro. Em certo
sentido, eles não podem evitar isso; são crianças, o espírito da sua mente tem
que ser renovado, eles têm que começar aprendendo a pensar dessa
nova maneira; toda a perspectiva, toda a atitude, o próprio espírito do seu
pensamento tem que ser inteiramente renovado. E depois, com o passar do
tempo, vocês começarão a vê-los desenvolver a matéria e aplicá-la. E essa é uma
das coisas mais gloriosas e fascinantes que acontecem na vida. Estou falando
como pastor. Não conheço nada mais emocionante, mais encantador, do que
simplesmente observar alguns dos meus amigos empenhados neste processo de
terem renovado o espírito das suas mentes. É maravilhoso! Não é apenas que
eles pararam de fazer o que costumavam fazer, ou que começaram a fazer coisas
que antes não faziam, e agora falam de uma nova maneira. Muito mais
fascinante e atraente é ver que o próprio espírito da mente é diferente! Toda a
perspectiva, o próprio método de pensamento, agora passou a ser cristão!
Precisamos ser cristianizados na totalidade do nosso ser; e obviamente, em
primeiríssimo lugar na mente, pois “como o homem pensa em seu coração,
assim ele é!”

Por conseguinte, “Sede renovados no espírito da vossa mente”.

O NOVO HOMEM E A SUA ORIGEM

“E vos revistais do novo homem, que segundo Deus é criado em verdadeira


justiça e santidade. ” - Efésios 4:24

O nosso texto é uma declaração que realmente não deve ser tomada
isoladamente. Pertence à seção que começa no versículo 22: “Que, quanto ao
trato passado, vos despojeis do velho homem, que se corrompe pelas
concupiscências do engano; e vos renoveis no espírito do vosso sentido; e vos
revistais do novo homem, que segundo Deus é criado em verdadeira justiça e
santidade”. ^

Vamos examinar agora a última declaração, no versículo 24. É a injunção


positiva que corresponde à injunção negativa que já consideramos no versículo
22. Também nos damos conta do elo vital que há no versículo 23. Noutras
palavras, não seremos capazes de despojarmos do velho homem nem de revestir-
nos do novo, se não estivermos sendo constantemente renovados no espírito das
nossas mentes. Também, ao examinarmos esta faceta positiva da injunção do
apóstolo, devemos lembrar-nos de que estas duas coisas sempre devem
ser tomadas juntas, o despojar-nos do velho homem, o revestir-nos do novo;
temos que distinguir entre elas, como faz o apóstolo, no pensamento e no
entendimento, e de fato elas são ações separadas, mas, ao mesmo tempo,
devemos entender que as duas coisas sempre devem ir adiante simultaneamente.
A natureza detesta o vácuo, e a vida espiritual é exatamente idêntica. Jamais há
uma condição na qual alguém meramente se ache despojado do velho homem.
Você se despoja do velho homem, você se reveste do novo, exatamente
ao mesmo tempo.

Muitíssimas vezes na história da Igreja homens e mulheres deixaram de


compreender isso como deviam, e levaram sobre si mesmos diversos tipos de
dificuldade. Há, por exemplo, os que dão toda a ênfase ao despojar-se do velho
homem. Ora,este é um dos perigos do misticismo, como lhe chamam. Se você
conhece o ensino dos místicos e o método do misticismo, verá que ele sempre
começa com uma fase negativa, a via da negação. Você tem que passar pelo que
eles chamam a escura noite da alma, que constitui o processo de despojar-se do

velho homem - auto-exame, visão da pecaminosidade pessoal, e o devido


tratamento disso. Isso, por certo, é essencial, porém se você se detiver nisso,
cairá nalguns dos excessos e dos reais perigos do misticismo. Retornará ao nível
das obras, muito inconscientemente, e lá você poderá ver-se num estado de
miséria e desolação.

Mas este mal não se restringe ao misticismo. O mesmo erro, a saber, olhar
somente para o negativo e concentrar-se unicamente no despojamento do velho
homem, é indubitavelmente a causa direta de alguns dos aspectos menos
agradáveis daquilo a que chamam purita-nismo. O perigo do puritanismo sempre
é cair no legalismo. E não há nenhuma dúvida de que alguns puritanos, deveras
inconscientemente, tornaram-se legalistas porque davam mais atenção ao
despojamento do velho homem do que ao revestimento do novo. Ficavam
perpetuamente se examinando, demorando-se sobre os seus pecados, tentando
livrar-se deles, impondo a si mesmos regras disciplinares, e assim, sem dúvida
nenhuma, alguns deles tornaram-se mórbidos, introspectivos e depressivos. Por
causa disso fizeram um quadro da vida cristã desequilibrado e, portanto, infiel;
de maneira muito inconsciente, tornaram-se legalistas. Além disso, se dermos
toda a ênfase ao aspecto negativo - ao despojamento do velho homem - essa
ênfase levará indubitavelmente à depressão, e isto pode ser muito grave.
Os escritos de Paulo mostram a vida equilibrada que ao cristão cabe manter.
Temos uma excelente ilustração disso no começo dos capítulos 4 e 5 de 2
Coríntios. Ao procederem à sua leitura, notem os paralelos; vejam como ele
coloca o positivo contra o negativo: “Abatidos, mas não destruídos”, e assim por
diante. Ele não continua caído no chão; está passando por um período terrível,
sim, todavia ele sempre acentua a contraparte, que é o revestimento do novo
homem. As suas frases são perfeitamente equilibradas. E cristianismo é
vida equilibrada; temos que ter o cuidado de ver que não nos
concentremos totalmente no negativo.

No entanto, de igual modo, devemos ter muito cuidado para não colocar toda a
nossa ênfase unicamente no positivo - no revestimento do novo homem - sem
nos preocuparmos em despojar-nos do velho homem. Muitos também têm sido
culpados desse erro. Este erro é a estrada real que leva ao que se chama
antinomismo, em que as pessoas dizem: bem, naturalmente, eu tenho que me
revestir do novo homem; não importa muito, quanto ao velho homem;
simplesmente o ignoro. Se as coisas vão moralmente mal, não sou eu, é a carne
em mim. Havia pessoas desse tipo na Igreja Primitiva, e tais pessoas sempre
existiram, daí em diante. Ah, dizem elas, o valor está em você concentrar-se
no fato de que você nasceu de novo, e de que você deve ser animado e

alegre! Mas o que se vê é que as suas vidas estão salpicadas de pecados, culpas e
fracassos, o que anula o seu testemunho da veracidade dá fé cristã. E isso tudo se
deve ao fato de que, em vez de se despojarem do velho homem, como também
se revestirem do novo, resolveram só revestir-se do novo.

Há um sentido em que este segundo perigo, conquanto seja uma possibilidade,


realmente não pode durar muito, porque o homem não pode verdadeiramente
revestir-se do novo homem sem se despojar do velho. Pode revestir-se da
aparência, porém realmente não pode revestir-se do novo homem. Como o
apóstolo de novo o demonstra plenamente no capítulo seis da sua Segunda
Epístola aos Coríntios, isso é terminantemente impossível, e por esta razão, que
não pode haver comunhão entre a luz e as trevas, nem concórdia entre Cristo
e Belial. Que parte aquele que crê tem com o infiel? Que acordo tem o templo de
Deus com os ídolos? O grande princípio é, pois, perfei-tamente claro. O negativo
e o positivo sempre devem ser praticados simultaneamente, e o homem que
experimentou verdadeiramente a renovação do espírito da sua mente sempre fará
isso; ele quererá livrar-se do vélho homem, mas também desejará revestir-se do
novo.

Portanto, contra esse cenário de fundo, devemos dispor-nos a considerar o


revestimento do novo homem e, como isso é o exato oposto do despojamento do
velho homem, podemos adotar, em nossa investigação do assunto, precisamente
o mesmo procedimento que adotamos no caso do negativo. Escreve o apóstolo
(VA): “E que vos revistais do novo homem, que segundo Deus é criado em
justiça e em verdadeira santidade”. A figura é de novo a de vestir uma peça
do vestuário. Despimo-nos, tiramos a roupa; agora nos vestimos, pomos outra
roupa. Pois bem, o que é que Paulo quer dizer exatamente quando nos fala que
nos revistamos deste novo homem? Aqui também devemos ser extremamente
cautelosos, pois tem havido muitos que interpretam isto muito erroneamente,
considerando-o como uma exortação às pessoas a se tomarem cristãs. Acham
eles que revestir-se do novo homem significa que, fazendo isso, você se torna
cristão. Mas isso é pura incompreensão do texto e do seu contexto. O
apóstolo dirige a sua exortação aos que já eram cristãos. Ele os fizera lembrar-se
disso suficientemente nos capítulos dois e três, e aqui de novo, neste capítulo. De
fato, toda a seção de que estamos tratando começa com as palavras: “E digo isto,
e testifico no Senhor, para que não andeis mais como andam também os outros
gentios”. Não andem mais daquela maneira. Noutras palavras, eles já são
cristãos. Portanto, a exortação é dirigida unicamente a crentes autênticos. Ela
nada diz a

pessoas não cristãs, porque estas não podem despojar-se do velho homem, não
podem revestir-se do novo, ainda estão em seu velho estado, não foram
regeneradas.

A exortação é dirigida aos já regenerados, em quem o novo homem é já


existente; e o que o apóstolo os está realmente exortando a fazer é que vivam de
maneira coerente com o novo homem que há neles. Portanto, não posso fazer
nada melhor do que repetir o que eu disse negativamente em função do despoj
amento do velho homem. Eu disse que, quando o apóstolo nos diz que nos
despojemos do velho homem, ele quer dizer: chega de ser o que você não é! E
usei uma ilustração. Dizemos a um homem: não seja criança! Você agora é
adulto; então, nãoseportecomosefossecriança! Chega de ser o que você não é!
Isso é despojar-se do velho homem. Revestir-se do novo homem é o
oposto disso. E: seja o que você é! O problema com todos nós é que não somos o
que somos. Estou procurando ser paradoxal; isto é cristianismo! Seja o que você
é! Mas, deixem-me explicar o meu propósito.

Vejamos o problema à luz do que este mesmo apóstolo diz em sua Epístola aos
Filipenses. Se vocês fizerem uma leitura superficial, poderão achar que ele está
se contradizendo. “De sorte que, meus amados, assim como sempre obedecestes,
não só na minha presença, mas muito mais agora na minha ausência, assim
também operai a vossa salvação com temor e tremor; porque Deus é o que opera
em vós tanto o querer como o efetuar, segundo a sua boa vontade” (2:12-13). De
um lado ele nos diz que façamos algo, nós mesmos; depois ele diz que é Deus
que o faz. Como conciliar as duas coisas? É muito simples. Devemos operar a
nossa salvação com temor e tremor, porque é Deus que opera em nós. É pelo que
Deus fez em nós que somos capazes de fazê-lo, e devemos fazê-lo porque Deus
o fez em nós. Porque Ele o operou em nós, devemos operá-lo também. Não há
contradição. Devemos dar-nos conta do que somos, e viver de acordo. É
porque você é um novo homem que você deve revestir-se do novo homem. Esta
é uma pitoresca, porém útil, maneira de expressá-lo.

Fazemos isso mesmo constantemente em nossa prática comum. Dizemos aos


nossos filhos que se lembrem de quem eles são. A escola diz aos seus alunos e
professores que se lembrem da escola a que pertencem. Na verdade, a totalidade
da vida realmente está sendo governada por esse tipo de interesse. Você não deve
deixar cair o seu lado. Voc cveste a camisa do^seu lado, por assim dizer, você vai
junto, você se lembra de quem é. É porque você é isto ou aquilo, que você tem
que viver como você é. E preciso que não haja contradição entre o que você é e o
que você faz. Seja o que você é! Seja-o em todos os aspectos, em toda a sua
conduta e em todo o seu comportamento. É esse

exatamente o sentido desta exortação. É, pois, ocioso dirigir esta exortação a


alguém que não nasceu de novo, a alguém que ainda está em seus pecados, a
alguém que ainda não é um novo homem. O homem que não tem o novo homem
não pode revestir-se do novo homem! É porque o novo homem está em nós que
devemos revestir-nos dele.

A seguir, consideremos as razões pelas quais devemos agir assim. E a primeira


razão é uma que já sugeri ligeiramente, mesmo naquilo que estive dizendo. A
primeira e principal razão para revestir-nos do novo homem é a natureza e o
caráter do novo homem. Vimos negativamente que a principal razão para
despojar-nos do velho homem é que não somente não mais somos o velho
homem, porém ainda mais por causa do caráter do velho homem; ele é
“corrupto segundo as concupiscências do engano” (VA). E pudemos ver que,
se tão-somente entendêssemos a verdadeira natureza e caráter daquela espécie de
vida, nós a odiaríamos e quereríamos livrar-nos dela. Contudo, o exato oposto
funciona aqui. Devemos revestir-nos do novo homem por causa da natureza e do
caráter do novo homem, o qual, segundo Deus, é criado em justiça e em
verdadeira santidade. Vemos o cristianismo todo nesta declaração. Ela chega ao
próprio coração e centro do cristianismo. E o teste da nossa profissão da fé cristã
é a nossa percepção do que se quer dizer como novo homem. Saberíamos o que é
o novo homem? O novo homem está em você? A sua maior alegria e orgulho é
que o novo homem está em você? Os próprios termos, é claro, dizem-nos muita
coisa sobre isso. O velho e o novo! Vamos levantar as nossas cabeças; temos
algo aqui - o novo homem! Isto é cristianismo essencial. As pessoas que
meramente são moralistas nada sabem acerca do novo homem; as pessoas que
pensam que ser apenas bom é ser cristão, nada sabem acerca do novo homem.
Não se interessam; de fato, muitas vezes elas se opõem à própria expressão.

Lembro-me de uma senhora que uma vez se queixou a mim de uma sua amiga
que fora convertida, e ela disse: “Você sabe, ela só fica falando sobre nascer
outra vez; não entendo isso, ela me parece estar perdendo o rumo; antes ela era
uma mulher agradável, decente e boa; sempre ia à igreja; mas agora está sempre
falando desse novo nascimento!” Parecia-lhe algo muito terrível e errado, algo
tinto de fanatismo. Ela receava que a sua amiga estava perdendo o rumo, talvez
até em sua mente. E, todavia, era uma boa mulher, de bons princípios e religiosa.
Mesmo assim obviamente, ela não sabia nada acerca do novo homem, apesar de
ser este o próprio centro nervoso e vital da fé cristã.

Em que consiste essa novidade? Não se refere primariamente ao

tempo, embora não se exclua o tempo. Mas significa especialmente novo em


qualidade, algo de qualidade e ordem diferentes, algo que é essencialmente e em
todos os aspectos diferente do velho. O assunto é bem ilustrado pelo caso de
Nicodemos. “Rabi”, disse ele a Cristo, “bem sabemos que és Mestre, vindo de
Deus; porque ninguém pode fazer estes sinais que tu fazes, se Deus não for com
ele.” Aí está um homem bom, piedoso, religioso, um mestre de Israel; ele se
aproxima de Cristo e diz: que é isso que tu tens e eu não tenho? Que devo
fazer para consegui-lo? O nosso Senhor replica: “Na verdade, na verdade te digo
que aquele que não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus”. Você tem
que nascer de novo! Esse foi o ensino de Cristo. Ele não é apenas outro mestre
religioso; Ele não é apenas o último profeta; Ele não é apenas um superpolítico;
Ele é Alguém que vem falar deste novo nascimento, deste novo homem, desta
nova vida, desta regeneração. Sendo assim, diz Paulo, se vocês aprenderam
verdadeiramente a Cristo, se realmente se apegaram à verdade como ela está em
Jesus, foi isso que vocês aprenderam! Isto constitui o próprio centro
da mensagem cristã. Mas, tomemos o assunto conforme o apóstolo o divide.

A primeira coisa acerca do novo homem, diz o apóstolo, é que ele é criado.
Notem a completa antítese em relação ao velho homem. O que ele diz a respeito
do velho homem é que ele é corrupto, condição que já vimos significar que ele
foi se corrompendo cada vez mais. Qual é a característica do novo homem? Ele é
“criado”! No primeiro caso há um processo de morte e decadência, no segundo,
de criação! A própria palavra “criação” nos sugere algo novo, um completo
contraste com o velho. Vimos também, depois, que a corrupção do velho homem
resultou em destruição. Entretanto a criação é o começo da vida. O velho homem
está ligado a tudo o que vai se desvanecendo, fenecendo e decaindo, ao passo
que o novo é o exato oposto de tudo o que sugere corrupção e decadência.

Mas, o que é ainda mais importante nesta palavra “criado” é a idéia de que algo
foi trazido do nada à existência. Quando Deus criou os céus, a terra e todas as
coisas, Ele os criou do nada. Foi pela palavra do Seu fiat. Ele dizia, “Haja”, e
dessa maneira os trouxe à existência. Criar é fazer algo do nada.
Semelhantemente, o novo homem, diz Paulo, é algo que écriado. Noutras
palavras, o novo homem não é uma coisa que se desenvolve a partir do velho
homem por um processo gradual. Não é um lento e quase imperceptível processo
de renovação. Não é um melhoramento do velho homem. É uma criação, uma
nova obra. Deus colocou em nós algo que não estava ali antes. E isso que

significa tornar-se cristão. E se não entendemos isso claramente, a nossa noção


do cristianismo é inteiramente errada. O cristão não é o “velho homem”
melhorado. O cristão não é alguém que está procurando ser melhor do que era.
Absolutamente não! Algo totalmente novo é colocado no centro - “criado”! Esse
é o sentido global da regeneração, do nascer de novo. Foi isso que o nosso
Senhor disse a Nicodemos - “o que é nascido da carne é carne, e o que é nascido
do Espírito é espírito”. Vemos aí o contraste - o cristão é inteiramente diferente!
É absolutamente novo!

Devemos, pois, entender que Deus fez em nossas almas a mesma coisa que fez
quando criou o mundo e quando criou o homem. O “novo homem” é
verdadeiramente uma nova criação! O apóstolo já nos estivera dando este
ensinamento nesta mesma Epístola; diz ele, por exemplo, que “somos feitura
sua, criados em Cristo Jesus para as boas obras, as quais Deus preparou para que
andássemos nelas” (2:10). Um novo princípio é colocado em nós por Deus
mediante o Espírito Santo, e este é o princípio da própria vida de Jesus Cristo.
Assim é que vemos o apóstolo Pedro dizendo que somos “participantes da
natureza divina” (2 Pedro 1:4). A verdade é tão estonteante que mal
conseguimos recebê-la. E pergunto: a Igreja Cristã não está nas condições
em que hoje está devido não compreendermos o que somos e quem somos?
Somos gente que apenas procura viver um pouco melhor do que a maioria
descrita nos jornais? Somos tão-somente um grupo de pessoas de boa moral,
pessoas decentes... ? Somos isso, porém somos infinitamente mais; Deus
colocou algo da Sua própria natureza dentro de nós: somos “participantes da
natureza divina”! É isso que significa ser cristão.

Ouçam o apóstolo Paulo dizê-lo de novo em 2 Coríntios 5:17: “Se alguém está
em Cristo, nova criatura é (uma nova criação); as coisas velhas já passaram; eis
que tudo se fez novo”. Um novo princípio de vida foi introduzido no cristão. Ele
tem uma nova disposição - a vida de Deus na alma do homem! Isso é
cristianismo! Estou dando ênfase a isso por esta boa razão: a percepção disso
constitui a estrada real, não somente para um verdadeiro entendimento, e sim
também para o verdadeiro gozo da vida cristã. Na verdade, irei mais longe. É
a estrada real que leva ao avivamento! Jamais nos esqueçamos de que, há
duzentos anos, o livro (fora as Escrituras) que mais que qualquer outro
influenciou George Whitefield e John Wesley foi A Vida de Deus na Alma do
Homem, escrito pelo escocês Henry Scougal. E foi quando eles leram o livro de
Scougal que lhes veio a convicção, a ambos igualmente: não tenho isso; sou um
bom homem, sou homem de princípios morais, sou religioso; mas não tenho
isso; é algo

diferente, é algo de fora de mim, por assim dizer, é algo que é preciso que Deus
infunda em mim! E eles foram ao Novo Testamento e encontraram lá a mesma
verdade! Aprenderam que o Criador, Aquele que no princípio fez o homem, vem
e o refaz, por assim dizer, e põe dentro dele este princípio de vida. A ação é de
Deus; os crentes são obra das Suas mãos; a obra não é algo que nós penosamente
realizamos; é algo que Ele faz. E porque Ele fez isso em nós, vivamos de acordo.
E isso que significa revestir-se do novo homem, porque o novo homem está em
você.

No entanto, isso não esgota a doutrina. O novo homem, diz Paulo, é criado; mas
ele introduz a frase adicional: “segundo Deus”, outra expressão deveras vital!
Ele não diz “por Deus”. Ele não quer somente dizer que Deus o fez, se bem que
foi Deus que o fez. Isto é algo adicional. Literalmente significa que o novo
homem foi criado por Deus segundo a Sua imagem; que o que Deus criou e
implantou em nós é algo que participa da Sua semelhança. Isto não é teoria
minha, todos os eruditos concordam que essa é a única maneira de interpretar
a expressão “segundo Deus”. Estas palavras levam-nos de volta ao capítulo
primeiro de Gênesis, onde vemos Deus dizendo: “Façamos o homem à nossa
imagem, conforme à nossa semelhança; e domine sobre os peixes do mar, e
sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil
que se move sobre a terra. E criou Deus o homem à sua imagem”; e depois, para
que jamais pudéssemos esquecê-la, a palavra é repetida, “à imagem de Deus o
criou; macho e fêmea os criou” (versículos 26-27). Notem a repetição de
imagem e semelhança, pois “imagem” e “semelhança” significam
essencialmente a mesma coisa.

Oxalá toda a raça humana compreendesse a verdade aqui revelada! Será o


homem a espécie de ser que é descrito nos filmes, nos jornais e nas conversas, e
como vocês o vêem nas ruas das nossas cidades? Isso é uma máscara, um insulto
ao nome do homem! E a decadência de que estivemos falando quando tratamos
do “velho homem”; é isso que caminha para a destruição, “a concupiscência da
carne, a concu-piscência dos olhos e a soberba da vida” (1 João 2:16). Isso não
é homem! É uma máscara hedionda. Que é o homem? O homem é uma criatura
criada “segundo Deus”, à imagem e semelhança de Deus! E óbvio que o homem
não era uma exata semelhança de Deus. Isso é verdade somente com relação ao
Senhor Jesus Cristo, de quem nos diz a Epístola aos Hebreus que Ele é “a
expressa imagem da sua pessoa (de Deus)”. O homem não é Deus; ele foi feito à
semelhança, à imagem de Deus; ele é uma cópia criada, uma cópia de algo que é
essencial em

Deus. Quando Deus disse: “Façamos o homem à nossa imagem, conforme a


nossa semelhança”, foi isso que Ele quis dizer. O homem não foi feito um deus,
mas Deus colocou nele algo que é uma reprodução daquilo que é o próprio Deus.

Jonathan Edwards, de Northampton, Massachusssetts, pode ajudar-nos neste


ponto. Ele foi aquele vigoroso americano, que morreu há duzentos anos, em 22
de março de 1758. Leiam sobre ele, e leiam as suas obras, agora reeditadas,
quanto puderem. Retenham-nos e devorem-nos. Edwards dizia que a imagem de
Deus no homem pode ser dividida em duas partes, a natural e a espiritual. “A
imagem natural consiste em grande parte naquilo pelo que Deus, em Sua
criação, distinguiu o homem dos animais, a saber, naquelas faculdades
e naqueles princípios da natureza pelos quais ele é capaz de agir moralmente.”
Essa é uma parte da imagem. O homem é um agente moral; o animal não é um
agente moral. De modo que se pode entender a parte natural da imagem como
abrangendo todas as faculdades do homem que o distinguem do animal. Contudo
há também um lado espiritual da imagem. “A imagem moral e espiritual”, diz
Edwards, “consiste na excelência moral de que Deus dotou o homem.”
Similarmente, João Calvino ensinava que “a imagem de Deus abrange
tudo aquilo em que a natureza do homem sobrepuja a dos animais”. Então, que é
que ela significa?

A espiritualidade do homem faz parte da imagem de Deus nele, pois Deus é


Espírito. O homem é um ser espiritual; não há nenhum animal que seja um ser
espiritual. Assim é que, ao fazer o homem à Sua imagem, Deus colocou em nós
este elemento de espiritualidade. E isso é uma coisa a respeito da qual os
incrédulos nada sabem e que eles nunca manifestam. Eles vivem como animais.
Onde está o espírito? Desapareceu. Outra coisa, Deus é imortal, Ele fez o
homem imortal. O homem nunca teria morrido, não fosse o pecado. Mas a morte
entrou como resultado do pecado, e unicamente como resultado do pecado. Os
poderes psíquicos do homem, as faculdades racionais do homem e as suas
faculdades morais, são parte integrante da imagem de Deus no homem. O
intelecto! A vontade! A nossa autoconsciência! Não há nenhuma evidência que
mostre que um animal tem consciência de si próprio. O animal não pode
contemplar-se a si mesmo, olhar-se objetivamente e pensar em si mesmo. O
homem pode; Deus pode. A autoconsciência, o poder de raciocinar e pensar e a
autocontemplação são parte integrante da imagem de Deus no homem. E outra
vez mais, notem o domínio e o senhorio do homem sobre a terra, nos termos
de Gênesis. Deus é o Senhor de tudo e de todos; Ele fez o homem à Sua

imagem e fez dele o senhor da criação: fez dele rei e príncipe sobre todos os
animais e sobre tudo quanto há na terra. Deus pôs dentro do homem algo daquilo
que O caracteriza. O próprio corpo do homem dá prova disso. Deus fez o homem
ereto. Os animais não são eretos. Deus fez o homem ereto para mostrar que ele
tinha essa dignidade, essa qualidade régia concernente a ele. O homem não anda
de quatro, anda ereto; a própria constituição ereta do corpo homano faz parte
da imagem de Deus nele. Mais importante ainda é o fato de que Deus fez o
homem, originariamente, reto. Deu-lhe integridade moral e intelectual. O
homem, como foi feito por Deus, era reto, santo e verdadeiro. Não havia pecado
nele, não havia defeito, ele permanecia diante de Deus como uma criatura
moralmente reta, apta para a comunhão com Deus, e que gozava comunhão com
Deus.

Por que o mundo está como está? - vocês indagarão. A resposta é que o homem
caiu. E quando o homem caiu, a imagem de Deus no homem foi desfigurada.
Não digo que a imagem foi destruída ou completamente perdida, porque quando
o homem pecou e caiu, não deixou de ser homem, não se tornou um animal,
continuou sendo homem. E essa é a tragédia do homem, que ele ainda leva
algumas das marcas da imagem de Deus. Ele ainda pode pensar; ainda
pode raciocinar; ainda fica ereto, de pé; ainda tem poderes psíquicos com
os quais pode raciocinar acerca de si próprio e pode contemplar-se. Esses traços
permanecem. Mas o que de fato foi o dom supremo da imagem - a justiça, a
retidão, a santidade, a verdade - perdeu-se, e o homem foi expulso da presença
de Deus e se tornou um estranho para Ele.

Que é, pois, a nova criação? Que é o novo homem? Que é essa nova coisa que
Deus cria e introduz em nós? Dizem-nos as Escrituras que os crentes foram
criados de novo segundo a imagem de Deus, e que recebem de volta a justiça, a
santidade e a verdade outrora perdidas por causa do pecado e da Queda. Pode
haver alguma coisa mais importante do que compreendermos o que é nascer de
novo e termos a vida de Deus em nossas almas? Se tão-somente cada cristão que
há no mundo hoje se desse conta de que esta nova criação, este novo homem,
este novo ser, está dentro dele, a Igreja toda seria revolucionada! Todos
os nossos fracassos, todos os nossos pecados, devem ser rastreados até se chegar
fínalmente ao fato de que não compreendemos como devíamos o que Deus fez
por nós, e o caráter e a natureza do novo homem, da nova vida, que Ele colocou
dentro de nós. Somente quando compreendermos isso plenamente é que, seja
como for, seremos capazes de revestir-nos do novo homem. Você sabe que a vida
de Deus está em sua alma? Essa é a questão.

1
Em latim no original. Sentido da frase: o cérebro humano, pelo que o cérebro é (enquanto cérebro).
Nota do tradutor.
JUSTIÇA, SANTIDADE E VERDADE

“E vos revistais do novo homem, que segundo Deus é criado em verdadeira


justiça e santidade. ” - Efésios 4:24

Damos seqüência ao nosso estudo da mensagem do apóstolo concernente ao


novo homem e à criação do novo homem à própria imagem de Deus; e, como
vimos, podemos pensar nisto em termos da regeneração.

Devemos, porém, lembrar que esta é a segunda metade desta grande Epístola,
onde Paulo está aplicando o ensino e está preocupado com a conduta e com o
comportamento daqueles cristãos. Por isso aqui ele não faz um tratamento
exaustivo de toda essa questão da imagem, nem mesmo da regeneração; visto
que ele tem em mente esta preocupação prática, por isso mesmo ele se afana em
salientar de maneira muito especial os aspectos éticos e práticos desta
coisa tremenda que Deus faz conosco na regeneração, restaurando assim em nós
a imagem de Si próprio. Portanto, examinemos isso agora.

Este processo, este ato de regeneração, esta renovação da imagem, esta coisa que
sucede conosco no novo nascimento, nesta nova criação, é como o apóstolo João
o expressa, como a implantação em nós de uma semente divina. Pedro diz que
nos tornamos participantes da natureza divina, João nos diz que esta semente
está em nós. Neste ponto Paulo está interessado em acentuar que há duas
características especiais da semente, desta vida divina, deste novo princípio que
foi colocado em nós, e nos é dito que elas são o exato oposto das características
do velho homem, descritas como concupiscências. O oposto das
concupiscências, afirma Paulo, é a justiça e santidade; “o novo homem, que
segundo Deus é criado em justiça e verdadeira santidade”.

Quão importante é que tenhamos uma correta concepção desses termos! Justiça
é retidão essencial, amor pelo que é certo e verdadeiro. E talvez ainda mais
importante, é uma justa e reta relação entre os poderes da alma. No velho
homem os poderes da alma não estão em correto equilíbrio ou na proporção
certa. E um ser anômalo e desequilibrado. Em lugar de ser governado por sua
mente e por seu entendimento, mais ainda pelo espírito da sua mente, é
governado por

seus desejos. Os desejos podem não ser pecaminosos, em si mesmos, porém se


eles exercem o controle, se ocupam a posição suprema, em vez de estarem na
posição subordinada, perde-se o equilíbrio e as coisas não ficam em sua devida e
correta proporção. Justiça, repito, significa aquele estado em que há uma justa e
reta relação entre os poderes da alma. O homem volta a ser o que era no
princípio, com tudo na posição certa na sua constituição. Ele não é mais
governado por seu corpo, mas sim, pelos seus poderes mais altos, pelo espírito e
pela mente. O novo homem ama o que é certo e, portanto, faz o que é certo em
todas as suas relações da vida.

Há alguns que dizem que a diferença entre a justiça e a santidade é a diferença


que existe entre a relação do homem com o seu semelhante e a sua relação com
Deus. Bem, isso é verdade, em certo sentido, mas não aceito que isso demonstra
a real diferença entre essas duas coisas. A justiça dá a idéia desta reta ordem,
deste reto entendimento e, portanto, do reto viver. O termo indica uma retidão,
uma integridade, que é restabelecida no homem pelo poder criador de
Deus quando Ele regenera um ser. A santidade sugere algo que é inteiramente
separado do mal, algo que é posto a um lado e que se separa. Não somente se
separa do mal, mas odeia o mal! Significapi/reza essencial da natureza e do ser.
Noutras palavras, a diferença entre as duas coisas visa salientar este elemento de
pureza que governa a totalidade. Não se trata mais de uma questão de equilíbrio
certo e de proporção certa; o equilíbrio está na própria natureza das coisas. Além
disso, a santidade do novo homem é um reflexo desta característica ou
deste atributo essencial de Deus - santidade! É reflexo desta pureza -
algo inefável! É algo que não podemos descrever por causa da inadequação da
nossa linguagem, todavia algo que é eternamente diferente do pecado e do mal
em sua essência e em todas as suas manifestações. A Santidade de Deus! Deus é
santo! São estas, pois, as duas características que o apóstolo nos diz que são
muito proeminentes na nova natureza, nesta nova vida, neste novo princípio,
nesta semente que foi colocada no novo homem. No entanto, notamos que até a
isso ele acrescenta algo. Infelizmente a Versão Autorizada (como a Versão
de Almeida, Edição Revista e Corrigida) não é tão boa como poderia ser. Diz
ela: “que segundo Deus é criado em justiça e verdadeira santidade”. Mas
geralmente se concorda que deveria dizer: “que segundç Deus é criado na justiça
e na santidade da verdade” (cf. ARA). É importante que notemos esta diferença
na tradução, a fim de assinalar-se o contraste visado pelo apóstolo. No versículo
22, como aparece na Versão Autorizada, lemos sobre as concupiscências ou
cobiças enganosas, e concordamos que deveria ser, as concupiscências do

engano (como na ARC e na ARA). A vida inteira do ímpio, do incrédulo, do não


regenerado, é governada pela mentira, pelo engano, por algo que é falso - a
característica total do diabo. Entretanto aqui, diz o apóstolo, está a completa
antítese disso: a justiça e a santidade são da verdadel A vida do novo homem é,
toda ela, algo que é caracterizado pela verdade. E aqui certamente está uma coisa
que é completamente básica e fundamental. Vemos a diferença entre as duas
vidas - o caráter horrível da vida de engano! Vemos a verdade, a beleza e a
maravilha da vida de justiça e de santidade! Vemos por que devemos apressar-
nos a despojar-nos do velho homem e a revestir-nos do novo. Na Epístola aos
Colossenses encontramos um paralelo exato da declaração feita pelo apóstolo em
Efésios: “(E vós crentes) vos revestistes do novo (homem), que se renova para o
conhecimento, segundo a imagem daquele que o criou” (3:10). Noutras palavras,
o apóstolo está dizendo que esta nova vida é inteiramente governada pela
verdade; a justiça e a santidade são realmente produzidas pela verdade; são
estimuladas pela verdade, e são encorajadas a crescer pela verdade.

Parece-me que este é um modo muito frutuoso de examinar a vida cristã, e é algo
freqüentemente ressaltado no Novo Testamento. No capítulo oito do Evangelho
Segundo João, por exemplo, onde se registra que o nosso Senhor estivera
pregando sobre a Sua relação com o Pai, é-nos dito que isso maravilhou tanto
aos que O ouviam que muitos deles creram nEle; e mais adiante nos diz o texto:
“Jesus dizia pois aos judeus que criam nele: se vós permanecerdes na
minha palavra, verdadeiramente sereis meus discípulos; e conhecereis a verdade,
e a verdade vos libertará”. Averdadel Permanecei, diz Ele, nesta Minha palavra
que ouvistes, e então “verdadeiramente sereis meus discípulos; e conhecereis a
verdade, e a verdade vos libertará”!

Vemos outra ilustração da mesma coisa na oração sacerdotal do nosso Senhor, no


capítulo 17 do Evangelho Segundo João, onde lemos a petição que Ele fez pelo
Seu povo: “Santifica-os na verdade; a tua palavra é a verdade” (VA: “Santifica-
os por meio da verdade . . .”). Observamos que é a verdade que santifica, e assim
Ele ora rogando ao Seu Pai que os santifique por meio da verdade. Há, portanto,
um sentido em que podemos dizer que o objetivo da salvação, bem como o seu
método essencial, e o seu fim principal, é levar-nos ao conhecimento da verdade.
Observem como o apóstolo o expressa no capítulo dois da sua Primeira Epístola
a Timóteo; “Deus nosso Salvador . . . quer que todos os homens sejam salvos, e
cheguem ao conhecimento da verdade” (2:3-4). Como é importante o lugar dado
à verdadel

Mas por que será que a espécie de exortação que temos aqui, sobre o
despojamento do velho homem e o revestimento do novo, é sempre necessária?
Por que é que todos nos, como cristãos, não somos perfeitos? Por que é que a
Igreja parece como parece nos dias atuais? Que acontece? Qual a real
explicação? Eu não hesito em afirmar que é em parte e principalmente porque o
nosso conceito fundamental da salvação é errôneo. Não pensamos nela em
termos da verdade. Com demasiada freqüência pensamos nela somente em
termos do sentimento ou da experiência. Talvez tenhamos estado em
péssimas condições e infelizes depois de havermos sido derrotados por
alguma coisa; depois fomos libertos, e nos inclinamos apensar: agora tudo
está bem, sou feliz, ao passo que antes eu me sentia miseravelmente mal; agora
sinto uma alegria que não sentia antes, e tenho vitória onde antes fora derrotado.
E ficamos nisso! É natural, porém está completamente errado. A experiência é
uma parte vital da nossa vida cristã, mas não é toda ela. E é porque tendemos a
deter-nos nestes pontos e nestas conjunturas, ao invés de irmos adiante e
concebermos as nossas experiências em termos da verdade, que nos vemos
nestas constantes dificuldades e problemas. O apóstolo escreve a sua Epístola
para levar os cristãos a compreenderem que o homem é como é, em sua
condição de pecador, porque acreditou numa mentira, porque se tomou
um desconhecedor da verdade; e o que o homem necessita acima de tudo mais, é
ser levado de volta ao conhecimento da verdade! É certo que ele necessita ser
liberto dos seus pecados particulares; é certo que ele necessita receber alegria e
muitas outras coisas; todavia o real problema com o homem é que ele acreditou
na palavra do diabo, acreditou numa mentira, seguiu o pai da mentira, aquele que
foi mentiroso desde o princípio; e daí em diante ele vive uma vida de engano e
debaixo do domínio do engano. O que o homem necessita acima de tudo mais
é ser levado de volta ao conhecimento da verdade.

Há somente um modo pelo qual isso pode acontecer; e esse é que precisa ser
dado ao homem um novo princípio de vida. Sem o mesmo ele não pode enxergar
a verdade. “O homem natural não compreende as coisas do Espírito de Deus”;
ele é incapaz disso, ele está em inimizade contra Deus, toda a sua vida é
antagônica a Deus. Portanto, não é suficiente dar-lhe instrução. Se a verdade for
colocada diante dele, ele não conseguirá vê-la. Mas quando um homem é criado
de novo segundo a imagem de Deus, e lhe é dada esta nova vida, ele tem a
capacidade de compreender a verdade, crer na verdade, gozar a verdade, e de
crescer na graça e no conhecimento dessa verdade. E é exatamente isso que nos
acontece na regeneração. Recebemos essa nova capacidade, a capacidade da
verdade, a qual literalmente não
tínhamos antes, e isso, por sua vez, torna mais importante que tenhamos o
conceito certo sobre a salvação. Sempre devemos examiná-la como um todo,
nunca devemos deter-nos em pontos particulares.

Para algumas pessoas, a salvação parece ser apenas uma questão de perdão. Elas
estavam inquietas, eram acusadas por sua consciência, sentiam e ouviam o
tonitroar da lei de Deus, sentiam-se como se estivessem aos pés do Monte Sinai;
viam o clarão dos relâmpagos, ouviam o rolar dos trovões e a voz temível,
tremiam e estremeciam, e ansiavam por saber se havia um caminho para o
perdão. E viram que há. Mas, que lástima! A tragédia de tantos é que param
nesse ponto; e o resultado é que as suas vidas são indignas, elas caem
repetidamente no pecado. Ah, dizem elas, o sangue de Cristo me cobre. ..! Isso
é perfeitamente verdadeiro, entretanto continuam nesse nível, nunca se elevam,
nunca crescem. Para tais pessoas Paulo diz: “Despojei-vos do velho homem. .
.revistai-vos do novo homem”; é porque vocês não compreenderam a verdade
que estão vivendo nesse baixo nível. Elas só tomaram uma pequena parte dela;
detiveram-se no perdão, ou nalguma outra experiência. Alguns ficam só na
justificação, e não hesitam em dizer que podem, por assim dizer, receber a sua
justificação isoladamente, de Cristo, e depois, mais tarde, receber a
sua santificação. Contudo isso é um erro. Não se pode dividir Cristo; não se pode
dividir a verdade. Todas as partes da salvação resultam do conhecimento da
verdade! E a verdade é que “Jesus Cristo.. .foi feito por Deus sabedoria, e
justiça, e santificação, e redenção” (1 Coríntios 1:30). Não é possível dividi-la e
tomar partes dela. E um todo. Portanto, o que o apóstolo quer que estes efésios
entendam é que este princípio justo e santo que está dentro deles os habilite a
compreender, reter, gozar e praticar a verdade. Ao que me parece, Paulo coloca
a matéria num só versículo em sua Epístola aos Romanos; “Graças a Deus”, diz
ele, “que vós fostes servos do pecado”, mas agora! -“obedecestes de coração à
forma de doutrina a que fostes entregues” (6:17). Por que a obedeceram de
coração? Porque a tinham compreendido e haviam crido nela; a mente fora
capacitada a recebê-la; e, como conseqüência, ela os movera à ação. Assim, o
intelecto, o coração e a vontade estão envolvidos; a verdade absorve o
homem completo, e move todo o seu ser. O homem foi criado de novo na justiça
e na santidade da verdade!

Isso nos leva à maior e mais importante de todas as questões. Qual é esta
verdade que leva à justiça e à santidade? A resposta é: a verdade acerca de
DEUS, o Pai, é a grande mensagem da Bíblia, do começo ao fim. Não termina
nem mesmo no Senhor Jesus Cristo. Ele não é o
limite terminal; Ele nos leva a DEUS! É porque nos esquecemos disso que
estamos em dificuldade ao nível moral e ético. Há somente um modo de
assegurar que os homens e as mulheres vivam uma vida reta e santa, e é que eles
conheçam a DEUS. Vejam o tema do Velho Testamento. Deus revelou a Sua
santidade aos homens logo no princípio. Ele continuou fazendo isso. Em certos
lugares ela é preeminente, na dádiva da lei, nos termos e no caráter da lei e
dos mandamentos. Acha-se no transcurso de todo o ensino de uma vigorosa
sucessão de profetas. O seu fardo e a sua mensagem era a santidade de Deus
contraposta à loucura do próprio povo de Deus, povo que Ele formara para Si,
em esquecer-se da santidade de Deus!

Mas ainda mais, naturalmente, esta verdade é ensinada e revelada na Pessoa do


nosso bendito Senhor e Salvador. “A lei foi dada por Moisés; a graça e a verdade
vieram por Jesus Cristo” (João 1:17). Ele não hesitou em levantar-se e dizer: “Eu
sou o caminho, e a verdade, e a vida; ninguém vem ao Pai, senão por mim”
(João 14:6). Ele tinha vindo para tornar Deus conhecido; “Deus nunca foi visto
por alguém. O Filho unigênito, que está no seio do pai, esse o fez conhecer!”
(João 1:18). No fim da Sua vida Ele diz a Pilatos que veio ao mundo “para dar
testemunho da verdade”! Ele tinha vindo para salvar-nos, porém não colocou
isso em primeiro lugar; Ele tinha vindo para dar testemunho da verdade, e é só
quando nos leva ao conhecimento da verdade que Ele nos salva. Tudo é em
termos da verdade, e da verdade acerca de Deus!

Todo o propósito do evangelho, o objetivo da salvação toda, é levar-nos a este


conhecimento de Deus. Não é somente propiciar-nos certas experências e
emoções! Graças a Deus, recebemos estas de passagem, por assim dizer, mas se
eu não tenho esta salvação, as experiências e as emoções podem ser espúrias e
falsas; podem ser do diabo e seus imitadores; pois as seitas podem tomar felizes
as pessoas e dar-lhes vários tipos de libertação, até a cura dos seus corpos,
às vezes. Não, não é isso, é conhecer a Deus e vir ao conhecimento da verdade, e
a verdade é - a santidade de Deus. Lá está ela, no capítulo seis de Isaías: “Santo,
santo, santo é o Senhor dos Exércitos; toda a terra está cheia da sua glória”! Mas,
nós cremos realmente nisso? Nós o vemos e o reconhecemos enquanto andamos
pelo mundo? E isso que domina todo o nosso pensamento e o nosso
entendimento, e toda a nossa conversação? Ora, vocês poderão dizer, isso é
Velho Testamento! Claro que é, porque é o mesmo Deus em toda parte, e todo
o objetivo do Velho e do Novo Testamentos é, igualmente, mostrar-nos a
santidade de Deus. A lei, sozinha, não poderia fazê-lo. Cristo o fez! E não
podemos deter-nos em ponto nenhum aquém desta verdade, que
Deus é luz, e que nEle não há treva alguma; que Deus é o Pai das luzes, em
quem não há mudança nem sombra de variação. Quando o Seu unigênito e
amado Filho, que veio do Seu seio eterno, esteve neste mundo como verdadeiro
homem, quando Ele orava não Se dirigia a Ele tratando-O como Pai querido, e
sim como Pai santo\ Essa é a verdade! “Pai nosso, que estás nos céus,santificado
seja o teu nome.” A característica da espiritualidade não é a fala mansa, é a
reverência, é o temor santo. A característica da espiritualidade éconhecer a
Deus, e se nós O conhecemos, sabemos que Ele é o Pai santo, cujo nome
é santificado.

A verdade nos ensina também o completo ódio e aborrecimento de Deus pelo


pecado. A santidade não é uma experiência que recebemos numa reunião. E
entender que o Deus santo odeia o pecado, odeia essa realidade enganosa que
governa os homens e lhes dá essas concupis-cências e paixões, fazendo deles
criaturas de tão maus desejos. Deus odeia o pecado. E é somente o homem que
realmente sabe disso que se apressa a despojar-se do velho homem e a revestir-se
do novo, que segundo Deus é criado em justiça e em santidade. Leiam, pois, os
Dez Mandamentos! Ouçam Deus falando em Habacuque, onde Ele declara que é
tão puro de olhos que não pode nem olhar para o pecado. Ele odeia o pecado,
abomina-o. É assim que a Bíblia prega a santidade! “Santifica-os por meio da tua
verdade!”

Lembrem-se também da determinação divina de punir o pecado, determinação


revelado por Deus. Ele fez o homem à Sua imagem e semelhança, mas quando o
mesmo homem rebelou-se contra Ele e Lhe desqbedeceu, e deu ouvidos à voz do
diabo, Ele o expulsou do jardim do Éden e pôs os querubins e a espada
inflamada, para impedir o seu regresso. Foi dessa maneira que Êle tratou o
homem que Ele mesmo fizera, à Sua imagem e semelhança. Deus pune o pecado
porque o odeia e porque é um intruso no Seu santo universo. Leiam
também sobre o Dilúvio, como Ele destruiu a terra toda, só deixando
uma família de oito pessoas. Prossigam e leiam sobre Sodoma e
Gomorra. Prossigam e leiam sobre o tratamento que Ele deu aos filhos de
Israel, a nação que Ele fez para Si e que Ele modelou para o Seu deleite. Apesar
deles serem o Seu povo, Ele os envia ao cativeiro da Babilônia, Ele os manda
para a Assíria. Ele levanta nações pagãs para destruí-los e castigá-los; Ele está
punindo o pecado.

Depois leiam o ensino do próprio Filho de Deus, o Senhor Jesus Cristo, e verão
que Ele exorta o povo a fugir da ira vindoura. Ele fala sobre o lugar onde o
verme não morre e o fogo não se apaga, onde está posto um abismo eterno onde
os maus e os impenitentes passam a eternidade em sofrimento. Prossigam para o
livro do Apocalipse, e

verão que nada que seja impuro ou imundo terá permissão de entrar pelas portas
da cidade santa. Fora ficam os cães, os feiticeiros e todos os que praticam a
iniqüidade; não estarão dentro, mas sim, fora, expulsos e mantidos fora, e fora
permanecerão. Deus revelou isso; isso faz parte da verdade! Não esperem por
uma experiência, leiam a Palavra de Deus e estudem-na. Agora vocês têm uma
natureza que os habilita a fazê-lo, a recebê-la e a assumi-la. Revistam-se do
novo homem! Ele é criado na justiça e na santidade da verdade!

Ainda mais, vão adiante para compreenderem que esta comunhão com Deus só é
possível em certas condições. Vejam o Salmo 15: “Senhor”, diz este homem,
“quem habitará no teu tabernáculo? Quem morará no teu santo monte?” Ele
responde: “Aquele que anda sinceramente, e pratica a justiça, e fala a verdade no
seu coração”. E tomem a ouvi-lo no Salmo 24. “Quem subirá ao monte do
Senhor, ou quem estará no seu lugar santo? Aquele que é limpo de mãos e
puro de coração, que não entrega a sua alma à vaidade, nem jura enganosamente.
Este receberá a bênção do Senhor e a justiça do Deus da sua salvação. Esta é a
geração daqueles que buscam, daqueles que buscam a tua face, ó Deus de Jacó.”
“Santidade, sem a qual ninguém verá o Senhor” (Hebreus 12:14, VA). Quem
habitará com as labaredas, com o “Fogo Consumidor”? Quem dentre nós
habitará com as chamas eternas? Mas vocês dirão: você está citando o Velho
Testamento, você nos está levando de volta aos Salmos e a Isaías. Que dizer do
sangue de Cristo? Ele não tornou tudo diferente? Acaso agora não posso correr
para a presença de Deus tendo-0 como o meu Pai? Bem, ouçam o autor da
Epístola aos Hebreus. Embora alguém entre com santa ousadia pelo sangue de
Cristo no Santo dos Santos, ainda o fará com “reverência e santo temor” (VA),
“porque o nosso Deus é um fogo consumidor” (Hebreus 12:28-29). Sem
santidade ninguém verá o Senhor, sem santidade ninguém pode ter comunhão
com Ele, ninguém pode orar verdadeiramente a Ele.

E então, finalmente, procuremos compreender o que o nosso pecado e rebelião


deve significar para tal Ser! Temos alguma concepção do que a primeira
desobediência do homem significou para este Deus santo? Vocês já viram o
insulto envolvido no pecado, e a enormidade do pecado? Agora, diz Paulo,
revistam-se do novo homem, procurem dar-se conta destas coisas, desta justiça,
desta santidade; não é meramente que fizeram alguma coisa errada que depois os
deixou sofrendo e infelizes - não, mas tentem pensar nisso como realmente é à
luz deste santo e augusto Ser contra quem vocês

pecaram e a quem insultaram. É o conhecimento da verdade que leva à


santificação. É por meio da verdade que havemos de ser santificados e que
chegamos a perceber a natureza do pecado e a odiar as concupiscências que
nascem do engano.

Procuremos compreender cada vez mais que o propósito fundamental da


redenção é habilitar-nos a glorificar a Deus e gozá-lO para sempre. Somos tão
subjetivos e tão centralizados no homem hoje em dia, que até concebemos a
origem da salvação de maneira errada. Porventura vocês sabem por que Deus
enviou o Seu Filho a este mundo e à cruz do Calvário? Por que o fez? Ah, vocês
dizem, para que fôssemos salvos! Como eu disse antes, essa não é a primeira
coisa. E nunca devemos colocá-la em primeiro lugar. O que Deus disse é
isto: “Não por amor de vós, mas por amor do meu santo nome”! O
primeiro objetivo da salvação e redenção é vindicar o caráter e o Ser de
Deus. Deus em Cristo Se vindica ao reconciliar conSigo o mundo. Assim, o meu
primeiro objetivo e o seu, o nosso maior desejo, não deve ser que tenhamos isto
ou aquilo, ou mesmo que sejamos isto ou aquilo, mas que sejamos sempre
agradáveis aos Seus olhos e que vivamos sempre para o louvor da glória da Sua
graça. Dessa maneira nos despojamos do velho homem e nos revestimos do
novo, que segundo Deus é criado na justiça e na santidade da verdade.

APRONTE-SE E FAÇA!

“E vos revistais do novo homem, que segundo Deus é criado em verdadeira


justiça e santidade. ” - Efésios 4:24

Até aqui estivemos examinando algumas das razões pelas quais devemos
revestir-nos do novo homem. Resta-nos considerar uma coisa, e é sumamente
importante - como nos revestimos do novo homem? Se evitarmos essa pergunta
ou nos esquivarmos dela, estaremos numa situação muito perigosa. Não há nada,
suponho, que seja tão perigoso como examinar uma grande verdade como esta
de maneira meramente teórica. Nada pode ser mais perigoso para a alma do que
ter forma de piedade, mas negar o poder dela. Disse o nosso Senhor: “Se sabeis
estas coisas, bem-aventurados sois se as fizerdes” (João 13:17). Pode ser
assolador, como a história o prova plenamente, os homens examinarem esta
sublime e gloriosa doutrina do novo homem de maneira puramente objetiva,
acadêmica e teórica, vendo-a como um conceito maravilhoso. Todavia, o
apóstolo aqui, e em toda esta seção da sua Epístola, está interessado em ser
intensamente prático. Nós o veremos prosseguir e dizer: “Pelo que deixai a
mentira, e falai a verdade cada um com o seu próximo”, e assim por diante.
Mas, antes de chegarmos aos pormenores fatuais, examinaremos, de maneira
geral, esta questão de como revestir-nos do novo homem.

Há certos princípios que devemos ter em mente, e o primeiro, naturalmente, é


que isto é algo que nós mesmos temos de fazer. Indiquei isto quando estivemos
tratando da parte prática do despojamento do velho homem. E me parece
essencial acentuá-lo de novo, quando começamos a considerar as atividades
requeridas do novo homem. O versículo chave quanto à matéria toda acha-se
no capítulo dois da Epístola aos Filipenses, onde o apóstolo diz a crentes: eu os
exorto neste sentido: “não só na minha presença, mas muito mais agora na minha
ausência, assim também operai a vossa salvação com temor e tremor. Porque
Deus é o que opera em vós tanto o querer como o efetuar, segundo a sua boa
vontade”. Paulo não está pedindo a pessoas incrédulas que façam isso; é claro
que elas não podem fazê-lo; ele o está pedindo a pessoas nas quais Deus está
agindo poderosamente, por Seu Espírito, para que o efetuem. É inútil dizer: não
tenho

o poder necessário; você tem o poder, e o que você é exortado a fazer é dar-se
conta de que o poder está em você e que, à medida que você se exercitar,
descobrirá que o poder está ali. Esse é o mistério do método divino de
santificação. Não fique à espera do poder; no novo nascimento o poder está
presente, e à medida que você o exercitar, você verá que o tem, e continuando a
exercitá-lo, você terá ainda mais dele. E exatamente como se dá com os nossos
músculos; você não conhecerá o seu poder muscular enquanto não começar a
usar os seus músculos, e à medida que os usar, muitas vezes ficará surpreso com
a força e poder que possui. Deus nos dá o poder; o que somos chamados a fazer
é usá-lo e exercitá-lo.

Vejam ainda um caso similar no capítulo 8 da Epístola aos Romanos: “Se pelo
Espírito mortificardes as obras do corpo, vivereis”. “Pelo Espírito!” O Espírito
dá o poder, e o Espírito está em nós. Portanto, sendo esse o caso, somos
exortados a despojar-nos do velho homem e a revestir-nos do novo.

Em segundo lugar, o revestimento do novo homem é algo que precisa ser feito
completamente, sempre tem que ser feito como um todo, e terá que ser aplicado
à totalidade da nossa vida continuamente. Noutras palavras, jamais deveremos
realizar a obra por compartimentos; temos de revestir-nos do novo homem não
somente em certas partes das nossas vidas, tem que ser na totalidade da nossa
vida. Não devemos revestir-nos do novo homem somente em certas ocasiões
ou quando estivermos com certos companheiros, ou quando estivermos em
certos lugares. Isso seria negar o princípio todo. O novo homem terá que ser o
princípio dominante e condutor de toda a nossa vida; tendo nascido de novo,
fomos transferidos do mundo para o reino de Deus; e, portanto, a totalidade da
nossa vida e da nossa conduta será e terá que ser inteiramente diferente da nossa
vida e da nossa conduta do passado. Mas a expressão “revestir-se” do apóstolo
pode ser mal empregada. A expressão “revestir-se” ou “vestir-se”, como já
vimos, faz-nos pensar no ato de vestir uma capa ou um vestido ou alguma outra
peça do vestuário. E uma boa expressão para usar-se, desde que não abusemos
dela. Entretanto, somos muito propensos, receio, a fazer justamente isso. Que
pena! Na era vitoriana, digamos, as pessoas costumavam vestir sua “roupa
religiosa” nos domingos, e ir a um local de culto; e depois de voltarem para casa
domingo à noite, despiam-na, e viviam o resto da semana como duros homens
de negócio, de forma que ninguém jamais suspeitava que alguns deles eram
cristãos. Em nossos próprios dias podemos ver um grupo de pessoas
conversando. Olhamos para elas e achamos que todo o seu

procedimento e comportamento, toda a sua aparência e os seus maneirismos, são


típicos das pessoas do mundo. Daí, ficamos muito surpresos quando
descobrimos que elas se reuniram com a finalidade de prestar culto, pois a sua
conduta não sugeria o revestimento do “novo homem”. A hipocrisia, isto é, o uso
de uma máscara, é o exato oposto do que o apóstolo pretende. “O novo homem”
não é uma coisa que você veste uma vez ou outra, quando você de repente fica
sério; é um princípio determinante, que ocupa o centro da vida do homem, que
exerce controle sobre tudo o que ele faz, onde quer que ele esteja, e esteja na
companhia em que estiver. Revestir-se do novo homem significa que o novo
homem está no centro e está dirigindo todas as minhas atividades, em toda e
qualquer situação que se possa conceber.

Num sentido, nunca deveria ser necessário que o cristão se esforçasse para
lembrar-se de que é cristão. Se você de fato se revestir do novo homem, sempre
se lembrará de que é cristão! Naturalmente há pessoas que têm tanto medo de ser
uma fraude como cristãs, têm tanto medo de ser hipócritas, que nunca chegam a
revestir-se do novo homem; ninguém sabe que essas pessoas são cristãs, pois
simplesmente parecem homens e mulheres do mundo. E isso é igualmente tolo
e igualmente mau. Devemos ter em mente que o apóstolo está apenas usando
uma figura para gravar em nós que sempre, em todas as coisas e em todos os
lugares devemos viver a vida do novo homem em Cristo Jesus.

Toda a questão do revestimento do novo homem é, na essência, a aplicação da


verdade a nós mesmos. Essa é a coisa mais importante que se pode descobrir na
vida cristã. O real segredo da vida cristã é você descobrir a arte de falar consigo
mesmo. Devemos falar conosco, devemos pregar a nós mesmos, e devemos
tomar a verdade e aplicá-la a nós mesmos, e continuar fazendo isso. Isso é
revestir-nos do novo homem. Temos que nos malhar a nós mesmos até nos
convencermos a nós mesmos. Ou seja, não é uma coisa pela qual você
espera passivamente. Se você esperar até sentir o novo homem, provavelmente
isso nunca acontecerá. Devemos ser ativos nesta questão. Não existe maior
armadilha na vida cristã do que alimentar a idéia de esperar até nos sentirmos em
melhores condições, e então revestir-nos do novo homem. Ao contrário, temos
que estar sempre dizendo a nós mesmos que o novo homem já está em nós. Em
sua Epístola aos Romanos o apóstolo diz: “Considerai-vos como mortos para o
pecado, mas vivos para Deus” (6:11). Considerai-vos! Diga isso a você mesmo!
Persuada-se, argumente, diga-o a si próprio, proclame-o a você mesmo. No
momento em que você acordar de manhã, diga a si

mesmo: eu sou o novo homem em Cristo Jesus, não sou o velho homem, não
pertenço ao mundo, pertenço a Cristo. Essa é a verdade sobre você, sejam quais
forem os seus sentimentos. Você vê a analogia; no sentido físico, você pode não
gostar de se levantar de manhã, porém se levanta. Talvez não queira vestir-se,
prefira ficar na cama, mas você se levanta e se veste. Você tem que fazer o
mesmo no sentido espiritual, diz o apóstolo. O diabo estará lá, governando
os seus sentimentos, e ele vai sugerir pensamentos, alusões malignas
e insinuações, no momento em que você acordar. Virão os maus pensamentos, e
mil e uma coisas. Então é hora de levantar-se e dizer: não! Eu sou o novo
homem em Cristo, e não vou continuar vivendo daquela maneira, vou viver
como o homem que eu sou! Isso é revestir-se do novo homem. Você o diz a si
mesmo, sejam quais forem os seus sentimentos, porque você sabe que é verdade.

E que esse princípio de atividade se aplique ao meu terceiro ponto geral. Usem
tudo o que vocês sabem, que os faça lembrar-se do novo homem e que alimente
e ajude a edificar o novo homem. Este é o exato oposto do que vocês têm que
fazer no despojamento do velho homem, a respeito de quem diz o apóstolo:
“Não façais provisão para a carne”. Não o alimentem! Se vocês sabem que a
leitura de certo tipo de literatura os rebaixa, parem com essa leitura! Deixem o
velho homem passar fome, estrangulem-no, sejam violentos com ele,
mortifiquem--no, diz o apóstolo. E mortificar significa mortificar; vocês o
golpeiam, vocês o surram, vocês o asfixiam, para livrar-se dele! Mas, quanto ao
novo homem, alimentem-no, dêem-lhe o sustento propício para ajudá-lo e para
fazê-lo crescer; e façam isso diligente e constantemente. Como fazê-lo?

Bem, primeiramente, leia a Bíblia. Se a essência do revestimento do novo


homem é a aplicação da verdade a si próprio, que é que pode ser melhor do que
você familiarizar-se com a verdade? Ah, mas você dirá, nem sempre me sinto
disposto a ler a Bíblia. Sei que não; por isso, obrigue-se a ler as Escrituras. Não é
questão de sentimento, é algo essencial à sua vida, ao seu bem-estar e à sua
saúde. Portanto, faça isso, levante-se e faça-o. Pode ser feito; tem que ser feito.
Podemos sacudir-nos fisicamente, e podemos sacudir-nos espiritualmente.
“.. .que despertes o dom de Deus que existe em ti” (2 Timóteo 1:6), diz Paulo a
Timóteo, e diz a mesma coisa a nós. Você poderá dizer: não me sinto disposto
para isso; como poderei superar essa dificuldade? De várias maneiras! Às vezes
uma boa coisa é preparar-se para ler as Escrituras lendo alguma coisa sobre as
Escrituras, lendo alguma exposição bíblica ou lendo uma parte de uma biografia
ou alguma

declaração de experiência. No tempo em que se usavam bombas para conseguir


suprimento de água, às vezes as pessoas viam que quando tentavam usar a
bomba, nada acontecia. Que se devia fazer? Pegavam uma pequena lata já cheia
d’água e a despejavam na bomba, e, então, quando recomeçavam a bombear, a
água subia. Esse procedimento ilustra um grande princípio da vida espiritual.
Você tem que acionar a bomba, e isso muitas vezes! Você tem que entender a si
mesmo. Tem que saber manejar a si próprio. E há muitas coisas que a pessoa
tem que fazer a fim de chegar ao estado certo, à atitude certa e às
condições certas. E fatal limitar-se a sentar-se e esperar sentir-se animado a ler as
Escrituras. Levante-se! Incentive-se! E depois, quando você chegar às Escrituras,
não as leia, por assim dizer, mecanicamente, dizendo no fim: a minha porção das
Escrituras para hoje é assim e assim, e já a li, e me vou! Podia muito bem ter
ficado sem a ler; não há valor nenhum nessa leitura superficial. Quando você se
aproximar dela, veja que a sua mente esteja nela; concentre-se, leia
inteligentemente, busque a verdade. Meramente ler a Bíblia inteira uma vez
por ano é sem dúvida uma coisa boa, no entanto, feito como um frio dever, pode
ser de pouco valor, espiritualmente. Temos que aprender a ler com mente e
entendimento espirituais. Faça perguntas; diga: que é este pronunciamento? Que
é que está me dizendo? Qual é o ponto em questão aí? A que tipo de pessoa o
escritor está se dirigindo? Feito isso, não só passa a ser interessante; passa a ser
absorvente. E à medida que for fazendo isso, você estará alimentando o novo
homem, e com isso vai estar se revestindo dele. Levantemo-nos, pois, de
várias maneiras, para ler as Escrituras.

Depois, também devemos orar. Jamais devemos tentar ler as Escrituras sem orar
rogando a Deus que faça delas uma bênção para nós e que nos ilumine pelo
Espírito. Ah, que diferença faz! E devemos orar sobre todos os aspectos das
nossas vidas. Somos filhos de Deus; bem, busquemos a Deus como nosso Pai,
falemos com Ele sobre as nossas dificuldades e as nossas fraquezas, peçamos-
Lhe que nos dê sabedoria e entendimento. Quanto mais orarmos, mais
daremos graças a Deus pelo que Ele tem feito por nós e para nós em Cristo,
pelo Espírito, mais estaremos vestindo o novo homem, e mais se manifestará a
sua vida nas nossas atividades. Portanto, a oração -solitária, isolado, a sós, e
também com outros - é a segunda maneira de revestir-nos do novo homem.

Também devemos buscar a comunhão com pessoas de mentalidade semelhante.


Os santos sempre acharam sumamente fortalecedor reunir-se, conversar sobre
estas coisas, orar juntos. “O ferro aguça o ferro”; os semelhantes se atraem; aves
de igual plumagem juntam-se

no mesmo bando, inevitavelmente. O novo homem está onde está outro, fala
com ele e reconhece a sua presença. E quando você vê a nova natureza noutra
pessoa, você se fortalece. Esse é o valor da igreja; e é por isso que o seu rádio, a
sua televisão e todas as demais coisas semelhantes, juntos, nunca serão um
substituto da igreja. Impossível! Não podem! A igreja está onde dois ou três se
reúnem! E não somente Cristo está presente, mas também nos reconhecemos uns
aos outros, e isso estimula a vida de cada um. Assim, a igreja é essencial. O
autor da Epístola aos Hebreus faz a exortação: “Não deixemos de congregar-nos,
como é costume de alguns” (10:25, ARA) - “alguns”, sem dúvida, inclui os que
se extraviaram. A comunhão dos crentes pertence ao padrão divino. Quando os
santos se reúnem e o Espírito está presente, então Deus age; Ele continua agindo
por meio da Igreja; a Igreja é Sua criação.

Aí estão, pois, certos princípios gerais. Eles cobrirão todos os pormenores e


todas as particularidades das nossas ações. Contudo, ao mesmo tempo,
permitam-me dar-lhes algumas das verdades das quais devemos lembrar-nos em
particular. Revistam-se do novo homem! Muito bem, do que é que eu me faço
lembrar? Primeiro, que não há escolha nessa questão de despojar-nos do velho
homem e revestir-nos do novo. Por quê? Porque eu não sou meu. Não há
necessidade de argumentar sobre estas coisas, diz Paulo: fujam da prostituição
(cf. 1 Coríntios 6:18) - por quê? - porque vocês não são de vocês mesmos, vocês
foram comprados por preço! O cristão não é livre, o cristão é escravo de Jesus
Cristo. É por isso que eu sempre acho muito errado fazer apelos às pessoas para
que façam estas coisas; precisamos ser exortados, não receber apelos. Não gosto
da prédica de santificação que diz: agora faça isto, e você será maravilhosamente
feliz e terá vitória, e assim por diante. Essa forma de colocação é errada.
Você não se pertence, você foi comprado por preço: você não tem direito
de fazer nenhuma outra coisa, você será um rebelde, se tentar. Fomos comprados
e adquiridos pelo precioso sangue de Cristo, como de um cordeiro sem defeito e
sem mácula; Ele Se deu a Si mesmo, e tudo quanto nisso está envolvido, para
que eu e você fôssemos novos homens. Lembre-se disso. Lembre-se dessa
primeira coisa de manhã, lembre-se disso constantemente durante o dia. Você
não se pertence, você foi comprado por preço.

E isso, por sua vez, leva-nos a isto, não leva? - ao privilégio e à dignidade da
nossa posição. “Criado”, diz o apóstolo, “segundo Deus” na justiça e na
santidade da verdade. Você sabe, se eu e você tão-somente lembrássemos quem
somos e a dignidade da nossa vocação e da nossa posição, restariam muito
poucos problemas em nossas

vidas. Mas nós temos que lembrar-nos disso; temos que dizer a nós mesmos
quem somos e o que somos. Ouçam Paulo na colocação que faz aos
tessalonicenses; diz ele: vocês não são filhos da noite, são filhos do dia, vocês
são filhos da luz! “Nós não somos da noite nem das trevas. Não durmamos, pois,
como os demais, porém vigiemos e sejamos sóbrios.” “.. .agora sois luz no
Senhor”, diz ele aos efésios. “Andai como filhos da luz”! Vocês notaram como
ele o expressa, ao escrever aos romanos? “A noite é passada”, já acabamos com
tudo isso; para nós já não há nada de “desonestidades” nem de “dissoluções”.
Essa palavra poderosa veio, vocês se lembram, a Agostinho, e para ele foi a
palavra da vida, a palavra de Deus e da regeneração. “A noite é passada, e o dia
é chegado. . .” Portanto, não andemos mais daquela maneira, . .mas revesti-vos
do Senhor Jesus Cristo, e não façais provisão para a carne” (VA). Somos filhos
de Deus, filhos da luz, filhos do dia; e o nosso propósito ao revestir-nos do novo
homem, éque nos lembremos disso e, lembrando-nos disso, que andemos
como tais, e que todo o nosso procedimento e comportamento, a nossa postura,
toda a nossa atitude, seja a completa antítese dos que pertencem à noite e às
trevas, e que se escondem atrás da porta e se envergonham da luz e do sol.
“Filhos do celeste Rei, enquanto jornadeais, cantai suavemente”! “Somente
deveis portar-vos dignamente conforme o evangelho de Cristo”, diz Paulo em
Filipenses 1:27. Bem aí está, lembremo-nos destas coisas.

E isso, por sua vez, leva-nos a recordar isto; lembremo-nos da família a que
pertencemos e, portanto, da família que representamos. Somos de fato filhos de
Deus. “Amados”, diz João, “agora somos filhos de Deus” - agora, já! E esta é
uma concepção de tal maneira espantosa e estonteante da vida cristã que o
homem que uma vez a compreenda, vê-se inevitavelmente revestindo-se do novo
homem. Agora somos filhos de Deus! Esse é todo o problema com a
Igreja Cristã hoje, ela não compreende isso. A Igreja é considerada apenas como
outra instituição, e as nossas reuniões parecem reuniões políticas. Somos filhos
de Deus! E somos completamente diferentes do mundo - é isto que devemos
recapturar, e que é nosso privilégio representar a família neste mundo temporal.
Somos estrangeiros e peregrinos neste mundo. Como cristãos, realmente não
pertencemos mais ao mundo; ainda estamos nele, porém a nossa cidadania está
no céu, e aqui somos peregrinos, somos estrangeiros, estamos aqui por algum
tempo; e devemos viver como tais; não devemos conformarmos com este
mundo, pertencemos àquele, e toda a glória e dignidade da família depende de
nós e em muitos sentidos está em nossas mãos.

E isso, vocês vêem, leva-nos ao fato de que nos revestimos do novo

homem e ele governa toda a nossa atividade porque, sendo estrangeiros numa
terra estranha, estamos sendo observados, e as pessoas nos estão olhando; e
dizem: quem são estes? Bem, vem a resposta, são cristãos. Ah, dizem elas, o
cristianismo é isso? E se põem a julgar o cristianismo, e a julgar a Deus, e se
põem a julgar a totalidade do evangelho, pelo que elas vêem em nós.
Naturalmente elas estão completamente erradas em fazer isso, mas fazem, e
vocês têm que aceitar as pessoas como são, e não podem culpá-las por fazê-
lo. Portanto, eu e vocês devemos lembrar-nos disso. Revestir-nos do novo
homem significa estarmos sempre conscientes da nossa responsabilidade.
Ouçam Pedro dizer isto. Vejam 1 Pedro 2:11-12. “Amados”, diz ele, “peço-vos,
como a peregrinos e forasteiros, que vos abstenhais das concupiscências carnais
que combatem contra a alma; tendo o vosso viver honesto entre os gentios; para
que, naquilo em que falam mal de vós, como de malfeitores, glorifiquem a Deus
no dia da visitação, pelas boas obras que em vós observem.” Ora, aí está,
em resumo. Vocês são estrangeiros e peregrinos, diz Pedro, não são daqui; pois
bem, estes gentios os estão observando, estão olhando para vocês, estão falando
contra vocês, eles dizam que vocês estão loucos, que vocês são tolos, que vocês
são hipócritas; estão dizendo coisas desse tipo, todavia, diz Pedro, vivam de tal
maneira que os convençam e os silenciem, e os levem a tal situação que venham
a louvar e glorificar a Deus no dia da visitação. Vocês encontrarão a mesma
injunção em toda parte, percorrendo as Escrituras todas. Ora, revestir-nos do
novo homem significa isso. E se realmente cremos nestas coisas e que Cristo
morreu para fazer-nos assim e para tornar estas coisas possíveis para nós, eu
digo que se dispensa pressão; o nosso próprio senso de honra está envolvido, e
nos sentiremos canalhas se de algum modo O desapontarmos ou representarmos
mal a Sua graça maravilhosa e o Seu extraordinário amor para conosco.

E isso me leva ao meu último ponto, que é o seguinte: o nosso destino! Todas
estas coisas dão-se numa seqüência lógica. Haverá algo que seja mais forte como
argumento? Havendo-se lembrado que você é apenas um estrangeiro neste
mundo, bem, então prossiga, e lembre-se do lugar para onde você vai indo! “E
isto, conhecendo o tempo, que jáé hora de nos despertarmos do sono, porque
agora a nossa salvação está mais perto do que quando cremos”! (Romanos
13:11, VA). Vamos indo avante. Cada dia chegamos mais perto. Mais perto do
quê? Do que vem-a noite é passada, o dia já vem. Que dia? O dia de Cristo, o dia
do Senhor, o dia da Sua volta, o dia do Juízo, o dia em que todos os homens
terão que comparecer perante Ele, o fim da história. “A noite é passada, o dia
está às portas”! (VA). Ou vejam a

colocação que João faz a seu modo: “E qualquer que nele tem esta esperança.
. - que será? Bem, o que ele diz é isto: “Ainda não

sabemos o que seremos”, mas bem sabemos “que O veremos como Ele é, e
seremos semelhantes a Ele”; com os nossos corpos glorificados, seremos
perfeitos e sem mácula, sem nenhum vestígio do pecado que para trás fica;
seremos semelhantes a Ele! É para isso que vamos indo. Agora, se real mente
cremos no evangelho, se verdadeiramente aprendemos a Cristo, aprendemos que
tudo o que Ele fez o fez para preparar-nos para aquele dia. Se cremos nisso,
cremos que devemos levantarmos, vestir o novo homem; a noite é passada, o dia
já vem; não continuemos dormindo, preparemo-nos para o dia do apogeu que
vem, para a visão beatífíca, para a nossa final glorificação, para a nossa entrada
na cidade eterna, para o júbilo, a bem-aventurança e a glória de participarmos da
vida de Deus por toda a eternidade. Isso é revestir-se do novo homem, é você
lembrar-se você desta verdade.
E finalmente lembremos isto (e creio que este é o clímax, o argumento mais forte
de todos). Se somos cristãos, significa, como já nos dissera o apóstolo no
capítulo três, que Cristo habita em nossos corações pela fé. Ou vamos ouvi-lo de
novo: “Não sabeis que o vosso corpo”, o vosso próprio corpo, “é o templo do
Espírito Santo, que habita em vós?” Que é revestir-se do novo homem? É você
lembrar-se de que Cristo habita em seu coração pela fé, que o Espírito Santo de
Deus que habitava em Cristo habita em nós. Se tão-somente todo cristão do
mundo atual vivesse neste mundo como se se lembrasse de que o Espírito Santo
habita nele ou nela, que revolução produziria! A Igreja Cristã se transformaria!
As pessoas não se reconheceriam! E o mundo veria tudo, cheio de pasmo e
espanto! É isso que significa revestir-se do novo homem, dar-se conta de que Ele
está em você, e de que tudo o que seja indigno ou pecaminoso ofende o Espírito
Santo que está dentro de nós.

Portanto, comecemos o nosso dia lembrando-nos destas coisas -sou filho de


Deus; nasci de novo; sou participante da natureza divina; Cristo está morando
em meu coração pela fé; aonde quer que eu vá, o que quer que eu faça, o Espírito
santo está em mim, no meu próprio corpo, de modo que toda e qualquer ação
que eu pratico Ele conhece, o Espírito Santol E quando você viver o seu dia
lembrando isso, obviamente tudo mudará. E isso é revestir-se do novo homem,
que segundo Deus é criado na justiça e na santidade da verdade.

COMO E POR QUE O CRISTÃO SE REVESTE DO NOVO HOMEM

“Pelo que deixai a mentira, e falai a verdade cada um com o seu próximo;
porque somos membros uns dos outros. ” - Efésios 4:25

Chegamos agora ao que, num sentido, é uma nova seção subsidiária desta grande
Epístola. Vocês se lembram de que a Epístola se divide vagamente em duas
grandes partes: a exposição da doutrina; e agora, aqui, a aplicação dessa
doutrina; mas o apóstolo não se estendera o suficiente antes de retomar a grande
e fundamental doutrina concernente à natureza da Igreja. Ele trata dessa doutrina
até o versículo dezesseis deste capítulo quatro, e então chega realmente a esta
parte prática, que se inicia no versículo 17: “E digo isto, e testifico no Senhor,
para que não andeis mais como andam também os demais gentios”. Aí vemos de
novo que isto o envolveu numa descrição muito necessária e pormenorizada da
espécie de vida que os gentios viviam, para que lhes pudesse dizer: “Vocês não
têm a mínima possibilidade de viver esse tipo de vida; se é que de fato vocês
aprenderam a Cristo, e se de fato conhecem a verdade como está em Jesus.
Muito bem então”, diz ele, manejando e resumindo tudo de novo, eu os exorto,
pois, a que “quanto ao trato passado, vos despojeis do velho homem, que se
corrompe pelas concupiscências do engano; e vos renoveis no espírito da
vossa mente; e vos revistais do novo homem, que segundo Deus é criado
na justiça e na santidade da verdade”. Aqui, depois, tendo dito isso, ele agora vai
adiante, com a expressão “pelo que”, ou “portanto”. E aqui ele nos está
introduzindo no aspecto realmente prático de todo este ensino. O princípio geral
determinante é que nos despojemos do velho homem e que nos revistamos do
novo. No entanto, o apóstolo não deixa a coisa aí, nessa forma geral; ele sente
que lhe é necessário aplicá-la em detalhe e levantar questões específicas,
aspectos particulares da conduta e do comportamento. E é o que ele começa a
fazer aqui, no versículo 25; e, em certo sentido, veremos que ele
continua fazendo isso até o fim da Epístola. Contudo, como assinalei antes,
ele continua entremeando o texto com doutrina, e isso pelo motivo do
qual espero tratar agora.

Este é, pois, o seu argumento. Vocês não são mais o que eram outrora, na
verdade se tornaram algo inteiramente diverso; agora então, despojem-se, por
todos os meios, de tudo o que lembre o que vocês foram outrora, revistam-se de
tudo o que realmente pertença a este novo homem em Cristo Jesus, e que lhe seja
próprio. O apóstolo agora quer que eles vejam como se pode fazer isso. Portanto,
ao abordarmos esta parte, que é longa, pareceu-me que seguramente
nada poderia ser mais útil ou mais vantajoso do que examinar o ensino como um
todo, antes de mais nada; porque há certos princípios, com respeito a ele, que
governam cada uma das aplicações pormenorizadas e singulares. E por isso os
convido a considerarem estes princípios gerais, estas lições comuns, que me
parecem sobressair clara e proeminentemente em toda esta parte. Aqui vão
alguns deles.

O primeiro é que sempre se deve aplicar a verdade. “Portanto”, “pelo que”, diz o
apóstolo. A verdade não é meramente uma coisa para ser observada
objetivamente e para ser desfrutada intelectualmente; a verdade deve ser
aplicada. Lembro-me de uma ocasião, quando um homem estava pregando com
grande eloqüência, e ele disse uma coisa muito notável. Como resultado,
algumas pessoas, dentre os ouvintes, irromperam em espontâneo aplauso.
Bateram palmas, e o bom pregador, homem de Deus que era, conteve-as e disse:
“A verdade não é para ser aplaudida, é para ser aplicada!” Quanta verdade no
que disse! Faremos violência à verdade, se não compreendermos que ela deve
ser aplicada. O propósito de toda doutrina, e de todo conhecimento, é levar-nos a
ter uma vida que esteja em conformidade com a verdade em que cremos. Não
preciso demorar-me nisto, o nosso Senhor o expressou uma vez por todas numa
frase memorável: “Se sabeis estas coisas, bem-aventurados sois seas fizerdes”
(João 13:17). Terrível coisa é deter-se somente no conhecimento. O
conhecimento é absolutamente essencial, pelo que o apóstolo dedicou a ele os
três primeiros capítulos completos, e na verdade a maior parte deste capítulo
quatro. O conhecimento é absolutamente essencial, nada podemos fazer sem ele;
mas parar no conhecimento - no conhecimento teórico, acadêmico - é tão mau
como ser ignorante, senão pior.

Em segundo lugar, eu diria que um real e verdadeiro entendimento da verdade


sempre leva à aplicação. Assim é que, se um homem não aplica a verdade, o seu
real problema é que ele não a entendeu. Pois se o homem é agarrado pela
verdade e vê o que ela significa e o que implica, necessariamente terá qua aplicá-
la. E por isso que o apóstolo geralmente introduz estas partes com palavras como
“portanto” e “pelo que”.

Em terceiro lugar, a fé cristã e o ensino cristão aplicam-se à

totalidade da vida, e a afetam totalmente, em cada detalhe. Paulo nos diz que não
mintamos, mas que falemos a verdade; que não furtemos e que não falemos
insensatamente. Ele entra em minúcias com referência a pais e filhos, maridos e
esposas; todas as coisas concebíveis são abordadas, todos os aspectos, hábitos e
departamentos da vida. A verdade e a fé cristãs aplicam-se a todos eles. Não
há compartimentos na vida espiritual, e não existe nada que seja tão fatal como
dividir as nossas vidas em compartimentos. A zombaria característica do
presente século lançada contra os nossos avós da era vitoriana é que eles eram
muito religiosos no domingo, porém se esqueciam do cristianismo no resto da
semana. Pode haver alguma verdade na acusação, e pode haver substância nela,
quando se aplica a nós também. De fato, esta pode ser uma das razões pelas
quais a maior parte do povo está fora da Igreja Cristã hoje. É preciso
acentuar que o cristianismo abrange a totalidade da vida: devemos ser
religiosos não somente no domingo, e sim sempre! A nossa conduta deve ser
a mesma em toda parte, na igreja, no mercado, onde estivermos. Ou, para
expressá-lo doutra maneira, a nossa fé cristã deve manifestar-se e deve ser posta
em prática, não somente em nossa conduta pública ou profissional, mas em todas
as partes da nossa conduta. Existe um tipo de homem que é muito escrupuloso
em sua conduta pública, todavia que não aplica as mesmas regras quando passa
ao comportamento privado. Há homens de negócio que nem sonhariam em dizer
uma mentira ou em fazer algo desonesto, homens que cumprem o seu código
profissional com a máxima fidelidade; entretanto os padrões que seguem na sua
conduta privada, nos seus lares e no seio das suas famílias, é uma coisa estranha
e extraordinariamente diferente. Paulo nos mostra aqui que essas variações são
inteiramente erradas. O ensino cristão, o princípio cristão, cobre e governa toda a
nossa vida, em cada detalhe. Num sentido, a suprema glória da vida cristã é
que ela nos dá esta integralidade, e nos livra das dicotomias e divisões
que sempre caracterizam o pecado, não somente entre os homens, mas
até mesmo dentro do próprio homem.

Há certas características que sobressaem quando visualizamos o método seguido


pelo apóstolo quando ensina moralidade e ética. E este é o seu esquema:
primeiro coloca o lado negativo, dizendo-nos o que não devemos fazer; depois
ele coloca o lado positivo, no qual nos diz o que devemos fazer; e, em terceiro
lugar, ele nos dá a razão para a ação requerida. Observem-no no versículo 25:
“Pelo que deixai a mentira (o negativo), e falai a verdade cada um com o seu
próximo (o positivo); porque somos membros uns dos outros (a razão para a

ação)”. Espero que vocês estejam tão fascinados pelo método como eu estou.
Pode-se analisar estas Epístolas como se pode analisar as sonatas ou as sinfonias
de Beethoven; há estes passos definidos; o ensino não é atirado de qualquer
maneira; há um esquema definido aqui - o negativo, o positivo, a razão.

Há um princípio vital envolvido no método do apóstolo aqui. Aquelas pessoas


tinham sido criadas no paganismo e tinham tido uma vida que caracterizava
aquele tipo de vida naquele tempo - era uma vida de mentira, fraude, roubo,
engano e coisas semelhantes; bem, elas se tomaram pessoas cristãs, contudo isso
não significa que automaticamente tudo estava bem com elas; não, agora
estavam no combate da fé, e as antigas tendências as perturbavam. Que é que o
apóstolo lhes diz que façam? Vocês notam logo que o seu conselho e a sua
exortação não são simplesmente no sentido de que os crentes orem a
Deus pedindo-Lhe que tire essas coisas das suas vidas. Sobre essa questão de
mentir, ele não diz: orem a Deus pedindo-Lhe que os livre da tendência de
mentir. O que ele diz de fato é: parem de mentir! Tratem de falar sempre a
verdade! E façam isso por esta razão. Agora, penso que vocês concordarão que
este é um princípio muito importante. Existe o tipo de ensino que sempre nos diz
que, seja qual for o seu problema ou dificuldade, só há uma coisa a fazer, e é
levar esse problema ao Senhor em oração, pedir-Lhe que o livre disso, retire-o
de você; e você simplesmente aguarda e fica de olho na vitória. Não, diz o
apóstolo, “Pelo que deixai a mentira, efalai a verdade cada um com o seu
próximo”. Isso é uma coisa que eu e você temos que fazer. “Não saia da vossa
boca nenhuma palavra torpe.” “Toda a amargura, e ira, e cólera, e gritaria, e
blasfêmia e toda a malícia sejam tiradas de entre vós.” “Aquele que furtava” -
não orem para que ele seja liberto da tendência de furtar, mas - “não furte mais”!
“Antes trabalhe, fazendo com as mãos o que é bom, para que tenha (o) que
repartir com o que tiver necessidade.” Eu e vocês somos chamados a fazer estas
coisas -aplicar concretamente na prática o ensino que dizemos crer, e
sempre saber por que estamos agindo assim, e poder dar a razão da
nossa conduta.

Sempre devemos s aber por que paramos de fazer uma coisa, por que
começamos a fazer uma outra coisa, a fim de podermos dizer aos outros o
porquê. Quando outros nos abordam e nos perguntam: “Por que vocês pararam
de fazer as coisas que costumavam fazer conosco?” e “Por que andam agindo do
modo diferente?” - não respondemos simplesmente: “Não sabemos; estamos
ligados a uma agremiação na qual não se fazem essas coisas ese fazem outras”, e
nada mais. Temos que estar prontos, não somente a dar sempre a razão da
esperança que

há em nós; temos que ser capazes de dar a razão da nossa conduta e da nossa
maneira de portar-nos.

O apóstolo de fato diz tudo isso implicitamente usando a expressão portanto,


pelo que. Noutras palavras, a razão do comportamento cristão acha-se no ensino
que ele já lhes estivera dando. Mas ele não o deixa meramento no “pelo que”. O
tempo todo ele nos dá a razão específica. “Pelo que”, diz ele, “deixai a mentira, e
falai a verdade cada um com o seu próximo.” Por quê? Porque “somos membros
uns dos outros”. É por isso que paramos de mentir, é por isso que começamos a
falar a verdade. E uma razão especial e única.

Por que será que este ponto sobre a singularidade ou sobre o caráter especial da
razão é tão importante? É de vital importância porque existem outras formas de
ensino sobre comportamento moral e ético. O cristianismo não é um monopólio
do ensino moral e ético. Existem moralidades pagãs. Existem moralidades
humanistas, assim chamadas, e sistemas éticos e culturais, e eles são muito
evidentes neste mundo moderno, no qual nos achamos. Como crentes, devemos
ser capazes de traçar uma clara distinção entre a moralidade, a ética e a cultura
cristãs, e todas as outras formas de moralidade, ética e cultura. Caso contrário,
seremos incapazes de expor a verdade cristã com simplicidade e clareza.
Permitam-me pôr isto em seu cenário histórico, para dar-lhe maior simplicidade
e clareza.

Particularmente no século passado, entrou em cena um tipo de ensino, em grande


parte patrocinado e impulsionado por Thomas Arnold, o famoso professor da
cidade de Rugby. Ele e outros começaram a ensinar e a propagar uma nova
doutrina, que ainda chamava cristianismo mas que, na verdade, não passava de
doutrina moral e ética. Ela praticamente nada tinha para dizer acerca
do sobrenatural e do miraculoso; falava muito pouco do elemento espiritual; nela
não havia nada de redenção, e nenhuma palavra sobre a regeneração. A idéia
geral de Arnold era que o cristianismo é um modo de vida, e que a pessoa torna-
se cristã quando ouve ou lê o ensino do nosso Senhor em particular e o aplica ao
seu viver diário. Essa era a doutrina. Era quase exclusivamente matéria de
conduta e comportamento, prática moral e ética. E veio a ser tremendamente
popular. Às vezes a denominam religião da escola pública. Há os que hoje
até gostariam de denominá-la religião da B.B.C.1 Essa é a espécie de ensino a
que estou me referindo, e muitos ainda acreditam que o cristianismo é isso, e que
nos tornamos cristãos não fazendo certas

coisas e fazendo outras, amoldando-nos a um padrão moral, ético, ou a certo tipo


de cultura.

Contudo, não hesito em dizer que a doutrina de Arnold nega totalmente o que o
apóstolo está ensinando aqui na Epístola aos Efésios. Não há nada, afinal, que
seja mais oposto à mensagem cristã do que justamente esse tipo de doutrina. E,
portanto, parece-me tremendamente importante que, antes de passarmos a
estudar em detalhe questões como mentir, irar-se e sujeitar-se a ira, furtar
e empregar linguagem torpe, devemos ter claro em nossas mentes que a
mensagem cristã nada tem em comum com idéias e ensinamentos pagãos e
humanistas, morais e éticos, com relação à vida.

Se para nós isso não estiver claro, estaremos sempre apagando o caráter único da
mensagem cristã. A nossa afirmação é que o cristianismo é absolutamente único,
que não há nada semelhante a ele, nunca houve e nunca haverá. Todavia se
adotarmos aquele ensino, eliminaremos totalmente a unicidade do cristianismo.
Ele passará a ser uma simples coleção de princípios morais e éticos,
exatamente como vemos nos escritos de muitos dos filósofos pagãos gregos
que viveram, ensinaram e morreram antes da vinda do Senhor Jesus Cristo a este
mundo; desaparecerá a singularidade do cristianismo, e este fícará sendo apenas
um dentre outros grandes sistemas de moralidade. Mais grave ainda, porém,
aquele ensino elimina a singularidade do nosso Senhor, faz dEle apenas um
dentre outros grandes mestres, no que diz respeito à vida. E quando lemos os
escritos de pessoas pertencentes àquela escola (e há muitas delas ainda, e muitas
vezes elas escrevem em livros e periódicos religiosos), notamos que elas sempre
revelam a sua posição compilando listas daqueles que eles chamam grandes
mestres de moral e ética - Moisés, Isaías, Jeremias, Jesus, Paulo, Maomé, Buda,
e por aí afora. O nosso Senhor é colocado numa categoria comum a outros, é
simplesmente um entre muitos grandes mestres, não está mais sozinho numa
categoria à parte. Não passa de um grande mestre, de um dos grandes mestres,
um dos grandes gênios; Ele apenas pertence a uma série. E assim Ele
é despojado da Sua unicidade e da Sua glória essencial. Algumas das pessoas
mais difíceis a quem pregar e a quem conquistar atualmente são os pagãos
cultos, pois eles acham que não necessitam do cristianismo. Não mentem, não
furtam, não cometem adultério, não usam linguajar torpe. E quando o
cristianismo é apresentado como nada mais que um sistema moral e ética que
nos diz que não façamos certas coisas e que façamos outras, eles reagem
dizendo: “Eu já estou vivendo esse tipo de vida; é nisso que eu já creio; pratico
esse tipo de coisa, e não vejo nenhuma necessidade de ir às suas igrejas no

domingo; posso viver a minha vida muito bem no campo; na verdade, sou
ajudado pela glória e pela beleza da natureza. Por que a Igreja Cristã? Por que
vocês se separam dos outros? Por que vocês têm algo separado e diferente?”

Portanto, esta é uma matéria que envolve o próprio coração e cerne da posição
cristã; e assim eu quero sugerir algumas das diferenças essencias entre o
cristianismo e toda e qualquer forma de cultura pagã ou de qualquer coleção de
virtudes pagãs.

A primeira diferença importante acha-se nos motivos que os não cristãos dão
para viverem o seu próprio tipo de vida. Eles invariavelmente isolam a sua
conduta e o seu comportamento como algo que vale por si mesmo. Isolam certas
virtudes, ou fazem uma lista de uma séria de virtudes abstratas que, dizem eles,
são as coisas que os homens devem pôr em prática - sua abordagem é
essencialmente teórica e abstrata; selecionam certas virtudes que são apreciadas
por eles e nos concitam a aplicá-las. E assim nos fizem o seu apelo em termos do
país ou da escola ou da família ou da classe a que pertencemos. Eles
dizem: nunca fazemos isso, “isso não se faz” -nós sempre fazemos isto; isto é “o
que se faz”. A virtude que eles isolam e nos concitam a aplicar é sempre algo
impessoal e abstrato. O motivo cristão, porém, é sempre essencialmente
diferente. O motivo pelo qual o cristão não faz certas coisas, mas faz outras, é
sempre em termos do Senhor Jesus Cristo! Ele raciocina e vê que, porque Cristo
veio ao mundo e morreu por ele e ressuscitou, e lhe deu uma nova
vida,portanto...! Notem a bela frase utilizada no versículo 27 do capítulo
primeiro da Epístola aos Filipenses: “Somente seja o vosso comportamento
como convém ao evangelho de Cristo” (VA): não o seu país, nem “o que se faz”,
e sim “como convém ao evangelho de Cristo”! O nosso motivo é sempre
pessoal, sempre se remete ao Senhor, quem Ele é, o que Ele fez, como o fez e
por que o fez. Os motivos são diametralmente opostos e diferentes.

Em segundo lugar, estes sistemas pagãos (chamo-lhes pagãos mesmo que usem
terminologia cristã) sempre pressupõem capacidade natural; obviamente, porque
vêm a nós e nos dizem que entremos na linha, que nos enquadremos no
esquema. Eles pressupõem que temos capacidade e poder para fazê-lo. Por isso é
geralmente uma espécie de doutrina que só apela para certo tipo de pessoa. Nos
velhos tempos ela só apelava para os cultos, para os capazes e instruídos; e o que
se vê é que quando o nosso Senhor estava exercendo o Seu ministério, e
João Batista Lhe enviou seus dois discípulos com a pergunta: “És tu aquele que
havia de vir, ou esperamos outro?” (Mateus 11:3) esta foi a resposta que Ele
enviou de volta: “Ide e anunciai a João as coisas que

ouvis e vedes; os cegos vêem, e os coxos andam; os leprosos são limpos, e os


surdos ouvem; os mortos são ressuscitados, e” - um terrível anticlímax? - “aos
pobres é anunciado o evangelho”. Esse é o Seu clímax, e isso logo depois de
mencionar a ressurreição dos mortos - “aospobres é anunciado o evangelho”. Por
que é que Ele diz isso? Porque os sistemas pagãos, as moralidades e éticas pagãs,
não tinham nada para dizer aos pobres. Você tem que ser um homem culto antes
de poder aplicar a cultura pagã e a moral e ética humanista. Esses sistemas e
moralidades pressupõem poder em você, e se você não o tem, eles não têm nada
a lhe dizer. E por isso que o povo em geral nunca se sentiu tocado por esse
ensino, e atualmente não está sendo tocado por ele. Noutras palavras, o ensino
não cristão nada tem para oferecer para sanar fracassos. Se um homem é incapaz
de corresponder a ele, os seus promotores o denunciam e o abandonam, não
pode entendê-lo; eles dizem que aquele homem não é inteligente, é um tolo, e o
deixam de lado, e não têm nada para dar-lhe. Por outro lado, o cristianismo só
pressupõe uma coisa, e é que recebemos nova vida, que somos regenerados.
Portanto, diz Paulo, vocês não devem andar mais como andam os outros gentios
e como vocês andavam outrora; pois vocês nasceram de novo, vocês têm dentro
de si o novo homem, vocês têm uma capacidade dada por Deus. Nada daquela
outra doutrina! Nela tudo é natural e humano. Esta é divina, esta é de Deus, esta
é miraculosa, esta é sobrenatural; pressupõe a habitação do Espírito Santo em
nós. Que diferença! Como poderão confundir-se alguma vez?

Chegamos agora a uma terceira diferença. As moralidades e éticas divorciadas


da fé cristã, pelos motivos que lhes dei, cultivam a satisfação pessoal e o
orgulho. Obviamente, o homem se ufana do fato de que não é mentiroso, de que
a sua palavra vale ouro; sou homem de palavra! A minha palavra vale ouro!
Tenho um código! E se mostra muito contente consigo mesmo! O apostolo Paulo
estava muito contente consigo antes de tomar-se cristão. A pessoa que se apega
a qualquer tipo de moralidade e ética fora do cristianismo, sempre está contente
consigo mesma e com as suas realizações! “Segundo a justiça que há na lei,
irrepreensível”! (Filipenses 3:6). Excedo todos os meus patrícios em meu
empenho e em meus esforços. Certamente vou indo muito bem, já estou vivendo
esta vida moral, ética, culta! Satisfação própria e orgulho! O cristianismo sempre
nos mantém humildes, sempre nos leva a estarmos conscientes do que não
somos e do que estamos deixando de fazer. E quando contemplamos a Cristo,
achamos que somos vermes. E quando lemos as palavras a nós dirigidas,

“haja em vós o mesmo sentimento (ou a mesma mente) que houve também em
Cristo Jesus”, sentimo-nos no chão, no pó. É óbvio que os dois sistemas são
completamente antagônicos, do começo ao fim.

Assim é que estabelecemos um quarto princípio: os sistemas não cristãos não


tocam no velho homem e na velha natureza. Eles apenas fazem uma caiação na
superfície e escondem a sujeira que está por dentro. Raspem a superfície, e verão
o que ainda está ali. Irritem ou contradigam os que parecem tão morais e éticos,
e verão que a moralidade tem a espessura da pele. Ela deixa o velho
homem exatamente onde estava e como era, mas cobre a superfície com
uma chapa, passa-lhe cal, dá-lhe certa aparência, porém não faz mais nada. Por
outra lado, o cristianismo cria um novo homem, uma nova natureza, uma nova
criação, um novo coração, uma nova perspectiva. Ou, para citar de novo o
princípio que se destaca nesta série, é toda a diferença que há entre algo ser feito
fora e algo ser feito dentro. Os sistemas do mundo simplesmente gastam o tempo
despejando elementos químicos nas águas poluídas. O cristianismo vai à origem
da água poluída e a purifica; ele desce às profundezas máximas, produz uma
nova criação, um novo homem vem à existência.
Em quinto lugar, meu parecer é que os sistemas morais do mundo simplesmente
retardam e refreiam grandes investidas do mal e grosseiras manifestações do
vício; não lhes dá tratamento real e direto. O homem que segue esses sistemas j
amais será culpado de algo grosseiro ou patentemente hediondo. Ele acredita na
respeitabilidade. Não abraça nada que seja rude ou baixo ou feio - nem sonharia
com isso! - todavia, em princípio e na essência, o mal está em sua vida! Por
outro lado, o cristianismo trata do problema todo. Vemo-lo
perfeitamente ilustrado no Sermão do Monte. Por exemplo, os fariseus
ensinavam que, contanto que você não cometesse adultério de fato, tudo
estaria bem, e você seria perfeito quanto a esse mandamento. Nada disso,
diz Cristo; se estiver em sua mente, em seu coração, em seu pensamento, em sua
imaginação, e você gostar disso, você será culpado! As palavras de Cristo vão
direto ao fundo, às raízes. Não se referem somente a manifestações grosseiras, e
sim a todas as espécies de manifestações. Os sistemas não cristãos só se
preocupam, reitero, com o comportamento público, e muitas vezes o
comportamento é tão diferente! Uso uma ilustração moderna para aclarar o que
quero dizer. Vejam as listas de certos cavalheiros que no presente falam
tão ativamente em nome da moralidade contra o uso de bombas de hidrogênio e
outros horrores quejandos. Eles têm senso de indignação moral. Em nome da
humanidade, dizem eles, isso é, uma coisa impossível, temos que denunciá-la,
temos que detê-la! E provocada

a sua consciência moral, o seu senso de justiça! Mas examinem a história e o


desenrolar da sua vida; porventura há o mesmo gume agudo em sua consciência
moral quanto à sua fidelidade para com as suas esposas? Uma moralidade
pública que não se aplica às relações mais temas e nobres da vida é uma fraude.
Não me interessa a indignação moral de homens que não têm a mesma
indignação moral em todos os domínios e departamentos da vida. É mera
aparência; não é genuína.

Em sexto lugar, os sistemas não cristãos de nada tratam, senão da repressão.


Nada sabem sobre a expressão. São negativos, falta-lhes liberadade. No entanto,
o cristianismo tem ambas. Você pára de fazer uma coisa, e faz a outra. Não
somente pára de mentir; você fala a verdade. Mas o sistema contrastado é
sempre negativo e puramente repressivo; nada sabe da gloriosa liberdade dos
filhos de Deus. O fato é que as culturas pagãs e similares sempre são
manufaturadas, sempre lhes falta vida, e sempre lhes falta espontaneidade. São
uma espécie de produto padronizado, resultando em que sempre produzem
o mesmo tipo de mentalidade e de perspectiva; todos eles vêem e fazem as
mesmas coisas da mesma maneira. Fazem violência à personalidade porque
forçam todas as personalidades a entrar na mesma forma. Contudo o cristianismo
nunca faz isso. No cristianismo sempre há variedade na unidade. Nós, cristãos,
fazemos as mesmas coisas mas não somos idênticos. Graças a Deus há variações
e variedade entre nós, diversidade na unidade. Não nos amoldamos a um
esquema padrão. Se se der o caso de vocês acharem cristãos que sempre fazem a
mesma coisa da mesma maneira, desconfiem deles! Há algo errado no ensino
deles. Como havia diferenças nos apóstolos, assim há diferenças em todos os
cristãos. Não existem dois pregadores cristãos que preguem exatamente do
mesmo modo; um pode ser tranqüilo, o outro pode ser veemente. Que o sejam!
Deus os fez assim. Ora, nesses outro sistemas, eles dominam a sua personalidade
e produzem um tipo padrão, como ervilhas numa vagem, ou como uma série de
selos do correio. Isso indica a falsidade dos sistemas não cristãos; são a
antítese do verdadeiro, que é o cristão. _

Finalmente, os sistemas não cristãos são sempre frios. E a frieza da


artificialidade. É toda a diferença que há entre uma rosa florescendo num ramo
de roseira no seu jardim e uma rosa artificial. São muito parecidas à primeira
vista, não são? Mas essa coisa artificial! - fria, morta, rija, sem calor, sem nada
que realmente nos atraia quando nos aproximamos dela. E isso é verdade quanto
a todos os sistemas meramente éticos, morais. Você não pode chegar porto de
pessoas que são meramente morais e éticas, há frieza em torno delas; mostram

satisfação própria, são perfeitas, mas você não consegue despertar a compaixão
delas, falta-lhes calor, elas não o incentivam, não se solidarizam com você. Pois
bem, quando você se aproxima do cristão, que contraste! Ele tem calor, é
humano, é compassivo, é acessível; comunica ânimo, não fica eternamente
empinado em sua dignidade; pode esquecer-se de si mesmo, pode entusiasmar-
se, é governado pelo princípio do amor, que se acha no centro da sua vida e se
irradia dele. Não fica sempre a vigiar-se e a observar-se de fora; há esta
espontaneidade, este princípio, este bendito princípio de vida. Ele é o que é pela
graça de Deus e, porque a graça de Deus pôde fazer isso por ele, ele faz você
sentir que a graça divina pode fazê-lo por você também!

Encerro contando a história da conversão de um homem de setenta e sete anos de


idade; aconteceu há uns vinte anos. Tinha um caráter terrível, era beberrão, batia
na esposa, era jogador, era tudo o que um homem não deve ser. Todavia esse
homem tornou-se cristão, e desta maneira: estando a beber sua caneca de cerveja
certa tarde, sucedeu que ouviu dois homens conversando sobre o evangelho, e
escutou um dizer ao outro: “Você sabe, senti que havia esperança para mim
ali”. E algo atingiu aquele homem de idade; disse ele: “Se há esperança para ele,
há esperança para mim”. Mas o impacto feito sobre outros pelas pessoas
meramente éticas é muito diferente. Elas nunca fazem você sentir que há alguma
esperança. É provável que você diga: é maravilhoso, porém quem sou eu? Não
sou capaz disso, fui feito diferentemente. Assim eles condenam você e o deixam
fora, no frio. Não é assim com o evangelho de Cristo! Há calor, vida, fulgor, há
uma qualidade dinâmica. Você olha para um homem e diz: ele é o que é
pela graça de Deus! Se a graça fez isso com ele, pode fazê-lo comigo!

Lembro-me doutro caso semelhante. Há uns trinta anos, passei a noite na casa de
um médico, então já idoso, e ele me contou a história da sua vida, depois do
culto vespertino. “Você sabe”, disse ele, “tenho tido problemas em minha vida
desde o início; começou quando eu estava em casa. Meu pai era membro de uma
igreja anglicana; minha mãe era membro de uma igreja unitária. E esse”, disse
ele, “era o meu problema. Meu pai, embora fosse uma pessoa amável e
bondosa, simplesmente não podia ir ao mercado às sextas-feiras à noite e
voltar sóbrio para casa. Minha mãe, quanto eu saiba, nunca fez nada errado. Era
pessoa de alto nível moral, como os unitários geralmente são. Mas você sabe”,
disse ele, “não me saía da cabeça, havia algo quanto ao meu pai que, apesar da
sua grande falha, me ajudava e me atraía mais do que a perfeita retidão da minha
mãe. Quando eu fazia algo errado, podia procurar meu pai, porém nunca achava
que podia procurar

minha mãe; havia aquela frieza”. E então ele disse que quando se tomou
estudante de medicina, o seu velho problema perpetuou-se. “Aos domingos de
manhã eu costumava ir ouvir o grande pregador unitário, o Dr. James Martineau,
que nas pregações fazia grandes discursos éticos; e eu admirava a linguagem e a
dicção, e divisão do assunto, o pensamento e a lógica. E depois”, disse ele, “aos
domingos à noite eu costumava ir ao Exército de Salvação, onde não havia
culto formal, eloqüência e muitas outras coisas cuja falta realmente
me desgostavam, como homem de cultura; todavia”, disse ele, “ali o
meu coração se aquecia; eu sempre achava que havia algo que me ajudava em
minhas falhas pessoais e nos meus problemas pessoais. No culto matutino eu me
sentava e admirava, com alheamento e frieza intelectuais, mas não recebia ajuda
para os meus problemas morais e pessoais, e o meu coração não se aquecia. No
entanto, de noite, que diferença!”

Todos nós precisamos aprender a lição que essas histórias nos transmitem.
Quando paramos de mentir e começamos a falar a verdade, quando paramos de
usar linguagem torpe, quando paramos de furtar e de fazer todas as outras coisas
más, temos que agir de tal maneira que o beberrão, o homem desesperançado
que perdeu toda a sua força de vontade, encontrando-nos e entrando em contato
conosco, sinta que há esperança para ele. Sempre devemos agir, nessas coisas, de
tal maneira que levemos as pessoas a olhar para Cristo e saber que somos o que
somos unicamente pela graça de Deus em Cristo Jesus.

1
British Broadcasting Company. Nota do tradutor.
“DEIXAI A MENTIRA”

“Pelo que deixai a mentira, e falai a verdade cada um com o seu próximo;
porque somos membros uns dos outros. ” - Efésios 4:25

O evangelho de Jesus Cristo é intensamente prático, e prático é, como vimos, por


suas razões especiais, que estão muito afastadas e muito longe das razões que o
mundo dá para a sua cultura, para as suas moralidades e para os seus códigos de
honra e de comportamento; as razões que se acham nas Epístolas do Novo
Testamento são sempre peculiarmente cristãs.

Examinemos de início a minuciosa injunção que o apóstolo dá aos crentes


efésios. Sobre o seu método já observamos anteriormente: primeiramente a
injunção negativa, “deixai a mentira”; depois a injunção positiva, “falai a
verdade cada um com o seu próximo”; e depois o motivo para fazer ambas a
coisas, “porque somos membros uns dos outros”. Então, a primeira coisa que
Paulo inclui em sua lista é a mentira ou falsidade, a falsidade em geral, pois,
como todos nós sabemos, infelizmente, é possível mentir sem dizer uma
palavra. Pode-se mentir, às vezes, não falando, deixando de dizer algo que
se sabe que é errôneo, pode-se mentir com um olhar. Assim é que o termo mentir
abrange realmente a falsidade em geral. Mas por que Paulo começa pela
falsidade e mentira? Sem dúvida por muitos motivos, porém ele nos dá um que,
num sentido, resume todos, aqui neste versículo. Vamos dividir o versículo,
então, para mostrar melhor como o apóstolo foi, num sentido, impelido a colocar
isso em primeiro lugar.

Um motivo parece quase mecânico. Já notamos o que o apóstolo estivera


dizendo no versículo anterior, traduzido corretamento: “que vos revistais do
novo homem, que segundo Deus é criado na justiça e na santidade da verdade”.
Desse modo somos levados a lembrar-nos de que a caraterística mais essencial
da vida cristã é a verdade, a Verdade. É isso que faz que a vida cristã seja um
completo contraste com a vida não cristã, com a vida do mundo. Também, ao
descrever o velho homem, o apóstolo estivera falando sobre a corrupção e
as concupiscências do engano, que são as maiores características da
vida pecaminosa. Nada é tão característico da vida cristã como o fato de que

ela pertence aos plenos domínios da verdade. Descrevemos o que aconteceu com
o homem que se tornou cristão dizendo que ele viu a verdade, ou que viu a luz.
Igualmente é o que reivindicamos para o evangelho e para a Bíblia. Não é? Esta,
dizemos, é a verdade,e nenhuma outra coisa é verdade! Todos os outros
conceitos da vida, do homem, da existência,do propósito da vida e do que está
além dela, são mentiras! Damos graças a Deus que fomos libertos do reino
da mentira, pela qual o mundo é governado. Mas fomos trazidos para o reino da
verdade, e nisso nos gloriamos. “Deus nosso Salvador”, diz Paulo, escrevendo a
Timóteo, “deseja que todos os homens sejam salvos, e cheguem ao pleno
conhecimento da verdade” (1 Timóteo 2:4). Em sua Primeira Epístola, João
argumenta repetidamente no sentido de que o cristão está no reino da verdade; as
trevas se foram, veio a luz. E evidente, pois, que tudo o que nos diz respeito deve
ser indicativo do fato de que, tendo chegado ao conhecimento da verdade, agora
estamos vivendo na verdade,e estamos vendo a totalidade da vida de modo
legitimo. Assim, naturalmente, havendo terminado com a palavra verdade, Paulo
retoma o ponto. E, portanto, é isso que vem em primeiro lugar: “Pelo que, deixai
a mentira ...”; ela é totalmente incompatível com o reino ao qual vocês
pertencem agora.

Isso por certo nos leva necessariamente a outros aspectos da questão. Haveria
algo que seja, em última análise, uma parte de importância tão vital e tão
essencial do caráter de Deus como a verdade? Este ensino está por toda parte na
Bíblia. Vocês já notaram a extraordinária afirmação que o apóstolo faz no início
da sua carta a Tito? - “Deus que não pode mentir...” Deus não pode mentir!
Deus é isso! Deus é o “Pai das luzes, em quem não há mudança nem sombra de
variação”. Que tremenda declaração! Há uma coisa que Deus nunca pode fazer,
Deus não pode mentir. Seria uma contradição em Sua própria natureza, em Seu
própria Ser. Deus é luz, e nEle não há treva nenhuma. Ele não pode ser tentado
com pecado, nem pode tentar ninguém. Deus é a verdade essencial, sempitema e
eterna. E ser cristão significa que fomos trazidos para a comunhão com tal Deus!

Quando o apóstolo diz que devemos deixar a mentira, não está interessado nisso
nos termos dos moralistas e dos humanistas; ele não diz meramente que mentir é
uma coisa terrível, que pode causar muito dano, etc. etc. Claro que é uma coisa
terrível, mas, como cristãos, nós temos razões melhores para deixar a mentira.
Fomos reconciliados com Deus. Dizemos que conhecemos a Deus, que temos
amizade com Deus e que estamos em comunhão com Ele. O apóstolo João
acentua o fato de que, se alguém diz: “Eu o conheço”, no entanto não guarda

o Seus mandamentos, “é mentiroso”. É impossível, diz ele, andar ao mesmo


tempo na luz e nas trevas; e conhecer a Deus e ter comunhão com Ele significa,
necessariamente, verdade e prática habitual da verdade. Davi entendeu isso,
mesmo com a luz menor da antiga dispensação. Foi o que perturbou Davi depois
do seu pecado mais terrível; por isso, da agonia do seu coração, ele brada: “Eis
que amas a verdade no íntimo”. Ele sabia que nenhum disfarce,
nenhum fingimento, nenhuma mentira pode prevalecer na presença de Deus. Diz
ele: de nada vale fingir, de nada vale tentar esconder alguma coisa. “Amas a
verdade no íntimo!” E se eu não for sincero aqui, parece dizer, e absoluta e
completamente honesto, isso não valerá nada. Os homens podem enganar os
seus semelhantes, mas Deus vê todas as coisas. Ele exige com insistência esta
honestidade, esta verdade no íntimo. Portanto, naturalmente, no topo da lista,
vocês devem ter aquilo com o que o apóstolo dá início: “deixai a mentira, e falai
a verdade cada um com o seu próximo”.

Passemos agora às palavras subseqüentes do apóstolo. Como é certo dizer que


não há nada que represente Deus tão bem como a verdade e a prática habitual da
verdade, é igualmente certo dizer que o diabo é mentiroso, e que isso faz parte
da própria essência da sua natureza e do seu ser. O Senhor Jesus Cristo nos diz
isso no capítulo oito do Evangelho Segundo João. Aos judeus que
argumentavam irritados com Ele, e que se opunham à verdade porque esta
os condenava e lhes perscrutava o íntimo, Ele diz: “Vós tendes por pai ao diabo,
e quereis satisfazer os desejos de vosso pai. Ele foi homicida desde o princípio, e
não se firmou na verdade, porque não há verdade nele. Quando ele profere
mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso, e pai da mentira”. É dessa
maneira que o Novo Testamento trata da questão de falar a verdade e não
mentir.Ele exige que o cristão veja o que isso significa e o que envolve, não
meramente com vistas a ser um cavalheiro , um homem de palavra, e de praticar
a verdade. O mundo pode fazer tudo isso, mas não é cristianismo.O que se
requer de nós, cristãos, é que vejamos a mentira em todo o seu caracter perverso,
e você só pode fazer isso quando a coloca no contexto cristão.De modo que todo
moralismo que é levado adiante em nome do cristianismo é finalmente a maior
negação do cristianismo.Da cabo da sua singularidade, que é a sua glória central.

Vejam o terrível caso de Ananias e Safira como uma ilustração da imensa


diferença que existe entre a mentira e a verdade. Tinha havido acordo entre os
cristãos primitivos de que deveriam vender os seus bens e as suas propriedades e
levar o produto ao fundo comum. Era

voluntário, não havia compulsão, e várias pessoas o tinham feito, entre elas
Ananias e Safira. Estes procuraram os apóstolos e disseram: fizemos o que
prometemos, e aqui está o produto. Mas retiveram uma parte do dinheiro; e o
Senhor levou Pedro a dizer a Ananias: “Ananias, por que encheu satanás o teu
coração, para que mentisses ao Espírito Santo?” Satanás enchera o coração do
homem! Não era apenas uma questão de dizer uma mentira! Quando você é
cristão, o pecado não fica nisso, vai além. “Satanás encheu o teu coração, para
que mentisses ao Espírito Santo”; e a fim de mostrar que coisa terrível era, ele
caiu morto naquele instante, para que Deus chamasse a atenção da
Igreja Primitiva e de todo o povo cristão em todos os lugares, até o fim
dos séculos, para o caráter terrível daquele pecâdo particular. Do nosso ponto de
vista como cristãos, mentir é indicar que temos afinidade com o diabo. E o
mentiroso, o mentiroso habitual, pertence ao reino do diabo, cujo ser é, todo ele,
mentira. Ele é o pai da mentira, não há verdade nele. Ele é a encarnação do mal,
e o que ele ensina aos outros é mentir.

Portanto, diz o apóstolo em sua Epístola àqueles crentes. Como novos homens e
mulheres,revistam-se do novo homem que está em vocês; e, com respeito a
isto,primeiro e acima de tudo, parem de mentir, e falem a verdade, cada um com
o seu próximo; porque, se não o fizerem, estarão dando a impressão de que
vocês ainda estão presos ao diabo e que pertencem ao seu reino. Mas isso não é
verdade sobre nós, como cristãos! Como o apóstolo João igualmente o expressa
em sua Primeira Epístola:“Sabemos que somos de Deus, e que todo o mundo
está no maligno”. Nessa passagem, e noutras semelhantes, os apóstolos nos
levam de volta aos fundamentos da nossa fé. Continuo dizendo isso porque nos
ajudará, não somente com relação a esta primeira injunção, porém com todos
elas. Temos que aprender a examinar estas coisas de maneira cristã, e no
momento em que o fizermos, não importa qual o assunto, seremos levados de
volta aos fundamentos da fé. Assim, quando vocês dizem a alguém da
Igreja Cristã que pare de mentir, vocês estão fazendo uma coisa que é totalmente
diferente do modo como normalmente se faz no mundo, que está sempre
interessado na fachada e na aparência; pois você não poderá fazê-lo de maneira
cristã sem retornar à sua doutrina sobre Deus, à sua doutrina sobre o diabo.

Eis o que vem a seguir: temos que parar de mentir porque o primeiro pecado do
homem foi resultado de uma mentira. Noutras palavras, o mundo é como é por
causa de uma mentira. Aqui, de novo, retornamos a uma verdade básica,
fundamental. Por que o mundo é como é? O apóstolo Paulo, escrevendo a sua
segunda carta aos coríntios, expres-

sa-o com estas palavras: “Como a serpente enganou Eva com a sua astúcia”
(11:3). A causa daquele primeiro pecado foi a mentira que o diabo sussurrou a
Eva. Foi uma mentira sobre o caráter e o ser de Deus. “Deus disse?” Deus finge
que é bom para vocês, que os ama e que busca os melhores interesses de vocês,
diz o diabo; mas a verdade real e concreta, disse o mentiroso e pai da mentira, é
que Ele é contra vocês e que os mantém em situação inferior por Seus próprios
interesses, porque Ele sabe que, no dia em que vocês comerem do fruto
proibido, vocês se tornarão como deuses, serão iguais a Ele, e então vocês
terão de fato os seus direitos; Ele é contra vocês! De tal monta foi a mentira do
diabo! Essa foi a causa do problema. Foi o que levou à Queda, e foi o que
começou o processo que levou à história humana como a conhecemos. E o que
explica o estado atual do mundo. O pecado original foi produzido por uma
mentira. Temos que compreender que aqui estamos vendo algo que constitui
uma completa representação daquilo que levou à rebelião do próprio diabo e
depois, por meio dele, à rebelião do homem. Foi isso que levou o mundo para
baixo, do paraíso que era ao mundo no qual eu e vocês estamos vivendo
neste momento. E é quando o examinamos desta maneira doutrinária e vemos a
sua natureza e o seu caráter fundamentais que verdadeiramente podemos tratar
dele de maneira radical.

Eu diria, em segundo lugar, que a mentira é a característica mais proeminente e


mais comum do viver no pecado. Considere a seqüência dos eventos. Você
comete um pecado; você não quer ser descoberto e não quer que ninguém saiba
disso, pelo que você conta uma mentira. Uma vez que você contou aquela
mentira, tem que contar outra para encobrir aquela; e a coisa continua, e
continua, num terrível processo em progressão geométrica. Multiplica-se cada
vez mais, até que a vida vem a ser uma total mentira e falsidade. Haverá
alguma coisa que seja mais característica da vida pecaminosa, da vida não cristã,
do que esse fator mentira? Engano e mentira, falsidade e fingimento são mais
óbvios do que qualquer outra coisa na vida do mundo. Vocês já tentaram
examinar a vida deste ângulo? Pensem num grupo de pessoas reunidas naquilo
que o mundo entende que é uma ocasião alegre, uma recepção, uma festa. Notem
a afabilidade, as atitudes amigáveis. Contudo, observem depois os olhares de
relance, prestem atenção nos murmúrios! Ah, a camaradagem, o trato amigável,
a afabilidade, como se deleitem encontrar-se. . . Oh, como as pessoas se querem
bem! - e, todavia, ficam cochichando. Não seria essa a vida da sociedade? Que
seria, se as pessoas realmente falassem a verdade umas às outras e dissessem o
que realmente pensam umas

das outras e o que realmente crêem? Posso dizer com segurança que, em geral, a
vida da sociedade, em qualquer esfera e em qualquer nível - apesar do
refinamento e elevação - segue este princípio de engano e mentira. E todos nós
sabemos que é assim. No entanto, o fingimento, a falsidade e a representação
prosseguem. Esta é, sem dúvida, a coisa mais característica acerca do viver no
pecado.

De igual modo, não seria o hábito de mentir uma das principais causas das
complicações da vida? Por que a vida é tão complexa, complicada e difícil? A
resposta é que é por causa desse fator mentira, porque, no momento em que nos
afastamos da verdade, como digo, isso tem que ser encoberto por outra mentira,
e essa por outra, e assim a vida se torna, toda ela, uma complexa e complicada
rede de mentiras. Às vezes vemos isto patente num processo criminal ocasional
divulgado pela imprensa. Um homem começa cometendo uma falta,
talvez trivial, porém, por pequena que seja, é uma falta, e ele não devia tê-
la cometido; mas, desde que a cometeu, acha que deve encobri-la, e a coisa toda
evolui e se avoluma como bola de neve, como dizemos, até que o pobre homem
se vê no tribunal com uma tremenda acusação nas costas. Devido à mentira
original, a sua vida se enche de problemas e se complica; ele se vê obrigado a
providenciar isto e a cobrir aquilo, a manipular este ponto e ser cauteloso
naquele, e assim, toda a sua vida que pretendia ser, e que fora, relativamente
simples, torna-se complexa, e ele tem que dar uma de malabarista; vê-se forçado
a continuar com a coisa de algum modo, sendo que todas as suas dificuldades
se devem a uma mentira.

Haveria alguma coisa, uma única coisa, pergunto, que neste mundo cause tanta
infelicidade e desgraça como a mentira? De novo, simplesmente precisamos
conhecer a vida e os fatos da vida para sabê-lo. A mentira, o fingimento, a
dissimulação e a falsidade - ah, que infelicidade causam! As suspeitas que
levantam, a falta de sossego, de repouso, de tranqüilidade, e a falta de confiança!
Se tão-somente a mentira fosse inteiramente banida, que fardos seriam retirados
das nossas mentes e dos nossos corações. Ah, a destruição causada pela mentira,
o abatimento, a tristeza, a infelicidade, o sofrimento que a mentira causa a
pessoas inocentes! Não admira, pois, que o apóstolo nos diga que nos
desfaçamos imediatamente da mentira como a primeira coisa com a qual lidar!

Acaso não podemos dizer, também, que não há nada que nos mostre a real
natureza e caráter do pecado como a mentira? Qual é a real essência do pecado?
Que é que está por trás dele? Que é que o causa? Não pode haver dúvida sobre a
resposta a essas perguntas! O ego! O ego é a causa fundamental do pecado. E ele
se manifesta no interesse

próprio, no egocentrismo e no egoísmo. Bem, vocês dirão, que é que isso tudo
tem a ver com a mentira? Posso dizer-lhes. Nós nos expressamos profundamente
em nosso falar, expressamo-nos mais em nosso falar do que em qualquer outra
coisa. É, talvez, de todas as coisas, aquilo que mais distingue o homem do
animal. O animal pode expressar a sua natureza em seu comportamento; pode
haver um cão manso ou feroz (bravo); e assim com todos os outros animais. Mas
o homem tem esta capacidade única de falar e, num certo sentido, esta é a sua
glória. Não existe coisa alguma pela qual a pessoa expresse mais profundamente
a sua personalidade do que o falar. Este dom da fala e da comunicação, ligado ao
interesse próprio, ao egocentrismo e ao egoísmo do homem, leva-o ao desejo de
ser altamente considerado, de ser elogiado, de impressionar as pessoas, de ser
importante. Queremos que todo mundo pense bem de nós. Queremos que
todos nos façam elogios. Queremos ser importantes, ter boa imagem. E como se
há de fazer isso? No mundo que está no maligno, muitas vezes isso é feito pela
mentira, que habilita você a construir a personalidade que você pensa que é e
que gostaria de ser, aquela que quer que as outras pessoas pensem que você é.
Você tem que ser importante, de modo que às vezes você faz deliberadamente
afirmações falsas, você inventa “fatos”. A anatomia do pecado, a anatomia da
mentira! Neste momento estou dissecando-a, e acaso não é uma coisa feia que
vai aparecendo? Estou fazendo isso a fim de que tratemos de eliminá-la de uma
vez e para sempre, como o apóstolo nos está exortando a fazê-lo.

Assim fazemos deliberadamente as nossas afirmações falsas e as nossas


invenções, ou também podemos mentir não dizendo nada. Simplesmente
ocultamos a verdade omitindo-a. E então vem outra maneira muito comum de
mentir - os exageros! Você tem um caso para contar, um bom caso, mas você
acha que se o enfeitar um pouco, ficará mais maravilhoso, e tomará você mais
maravilhoso, e assim você o exagera. E toda vez que o contamos, ele aumenta.
Contamo-lo a primeira vez, e a reação foi boa; ah, pensamos, isso é
bom! Fazemos-lhe um pequeno acréscimo, e a reação é melhor ainda! E isso vai
se repetindo. Por fim, o que estamos contando agora, nunca aconteceu; é tão
exagerado que não passa de uma mentira. Porque será que a humanidade faz
isso? Por que exagerar? Por que acrescentar coisas? Por que omitir? Por que
fabricar? Por que inventar? Faça um rastreamento, pegue a coisa em qualquer
ponto de você mesmo ou de outrem, e sempre verá que o propósito dessa prática
é servir o ego e a importância pessoal. O nosso objetivo é conquistar a boa
opinião dos outros, e ser elogiado e ser objeto de elevada consideração; por
isso seguimos e construímos uma fachada e pomos sobre ela uma camufla-

gem, parecendo que somos uma coisa que na realidade não somos. Não há nada
que finalmente mostre tanto o verdadeiro e sujo caráter do pecado como a
mentira, porque, em última instância, o falar é a maneira suprema de manifestar
a nossa personalidade.

Mas, para prosseguirmos, nada mostra mais claramente o caráter desprezível do


pecado e a natureza do pecado como a mentira. Se vocês fizessem uma pesquisa
de opinião entre um grupo de pessoas, e se fizessem a elas a pergunta: “que é
que vocês pensam de um mentiroso?” receberiam resposta unânime! Não há
nada que a natureza humana, mesmo no pecado, despreze tanto em seu
julgamento como o mentiroso. Desculparemos muitas coisas, porém o mentiroso
não vale nada para nós. A humanidade em geral, decaída e aviltada pelo pecado,
concorda que o mentiroso é o tipo mais desprezível de homem. E, todavia,
apesar de concordarmos todos quanto a isso na teoria, a mentira é o mais
comum, o mais universal de todos os pecados. Alguns são culpados de certos
pecados, alguns cometem outros, contudo aqui está uma coisa que é comum a
todos os homens. Apesar de o odiarmos, de o desprezarmos e de o
denunciarmos, somos culpados dele. A mentira revela a natureza radical do
pecado, porque não é apenas uma questão de atos à superfície, mas uma
expressão daquilo que é o ser e a personalidade essenciais do homem desde
a Queda. E todo ele gira em torno do ego.

Que coisa terrivelmente profunda e sutil é o pecado! E nesta altura devo


denunciar de novo os moralistas superficiais que tratam da mentira como se esta
pertencesse à superfície da vida e dizem que ela não deve ser tomada muito a
sério. Ao contrário, a mentira vem das profundezas do ser humano. Que coisa
odiosa e repugnante ela é! Não há nada que mostre mais claramente o poder que
o pecado exerce sobre a natureza humana, não importa quão refinada, não
importa quão culta! Visitem os círculos mais elevados, visitem os mais
baixos, vocês a encontrarão em toda parte. Naturalmente, o modo como se
faz isso difere. Vocês podem mentir, pode-se dizer, com as mãos grosseiras do
trabalhador braçal, e podem mentir suavemente, com luvas de pelica. O modo
como se faz não é o que importa. Quando é mais refinado, mais sutil é, e para
mim, mais odioso, porque muito mais hipócrita. Quase que se pode dizer alguma
coisa em favor do mentiroso descarado, não, porém, em favor daquele que com
tanta esperteza e inteligência esconde a mentira, talvez com uma expressão de
inocência. E dessa maneira, digo eu, a mentira mostra mais claramente do que
qualquer outra coisa, talvez, a profundidade do pecado, a força e o poder do
pecado. Embora desprezemos a mentira

com a nossa mente, nós a praticamos! E com isso mostramos que o pecado
introduziu em nós um dualismo e uma falsa dicotomia. Isso mostra que somos
escravos e vassalos.

Fimalmente, quero enfatizar o que o apóstolo destaca neste ponto, a saber, que
não há nada que seja tão oposto e tão contrário à doutrina da Igreja como a
mentira. Como vimos, a primeira parte do capítulo quatro desta Epístola aos
Efésios é inteiramente dedicada à doutrina da Igreja - um só Senhor, uma só fé,
um só batismo; um só corpo, um só Espírito, fomos chamados numa só
esperança da nossa vocação. A Igreja é como um corpo adequadamente
interligado e compacto, todos os membros ligados à Cabeça e recebendo o
mesmo suprimento de sangue. Verdadeiramente, o corpo é um só! Haveria algo
que cause tanta destruição a esta verdade como a mentira? Não mintais uns
aos outros, diz o apóstolo, mas “falai a verdade cada um com o seu próximo;
porque somos membros uns dos outros”! E eu acredito que aqui ele estava
pensando particularmente na Igreja. Há os que opinam que ele estava falando de
maneira mais geral, porém não estou convencido disso. Por certo isso vale no
aspecto geral, mas vale particularmente com relação à Igreja, e aqui Paulo está
tratando de toda essa questão no contexto da vida da Igreja. Somos todos
membros uns dos outros! Se você diz uma mentira a outro membro,
você realmente está se prejudicando; em certo sentido está mentindo a si próprio.
Isso de existência independente não existe. “Nenhum de nós vive para si, e
nenhum morre para si”, diz o apóstolo Paulo aos romanos (14:7). Assim é que
mentir a outro membro do mesmo corpo de Cristo é mentir a si próprio. Você faz
dano a si próprio porque está fazendo dano ao corpo ao qual você pertence. Você
pode dizer: “Posso fazer um corte no meu dedo sem fazer nenhum mal a mim
mesmo”. Ora, o fato é que não pode! Se você ferir o seu dedo, você sofrerá,
o todo sofre. Somos membros uns dos outros.

Pensem nisto mais ou menos assim: como poderá haver comunhão, se houver
mentira? A mentira é o oposto exato da comunhão verdadeira. Não é? O que
torna possível a comunhão é a confiança, a confiança mútua, a fidedignidade
mútua, a certeza de que vocês podem confiar uns nos outros e, portanto, podem
falar, e falar livre e francamente, uns aos outros. Todavia no momento em que
entra o fator mentira, a comunhão é destruída: você deixa de ser livre; não
sabe quanto pode acreditar, ou no que acreditar; você não sabe quanto
pode confiar na outra pessoa. E se a comunhão se rompe, você fica numa espécie
de estado policial em que todos são espiões de todos. Você diz: fico sem saber se
o que é dito é realmente o que se quer dizer. Seria verdade mesmo? Dessa
maneira se destrói a comunhão. A mentira

destrói a comunhão. E o que acontece conosco, cristãos, não é tanto e não


somente que somos salvos individualmente; somos salvos e transformados em
membros do corpo de Cristo; somos como um edifício que está sendo construído
para habitação de Deus; somos todos pedras individuais desse edifício
maravilhoso; contudo, o que importa é a unidade. A mentira torna impossível a
unidade, pois corta pela raiz a doutrina da Igreja Cristã em seu ponto mais
essencial. Se vocês quiserem, poderão acrescentar a isso uma afirmação geral.
Uma vez um advogado aproximou-se do nosso Senhor e Lhe disse:
“Mestre, qual é o grande mandamento na lei?” E Jesus lhe respondeu: “Amarás o
Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu
pensamento. Este é o primeiro e grande mandamento. E o segundo, semelhante a
este, é: amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mateus 22:36-39). Amar o seu
próximo como a si mesmo! Você não acha bom que o façam de tolo, acha? Bem,
então, não faça o seu próximo de tolo! Se o ama como a si mesmo, não pode
fazê-lo; você deixará de mentir para ele; não acha bom mentir para si mesmo,
então não minta para ele. Ama o seu próximo como a si mesmo!

Esse tanto basta referente ao aspecto geral; mas, como na Epístola, a nossa maior
atenção deve ser dada à esfera da Igreja e dos remidos. Quando dizemos que
outrora estávamos sob “o poder das trevas”, porém fomos libertos e
transportados para o reino do amado filho de Deus por meio do lavar
regenerador e renovador do Espírito Santo, que caminho nos resta, senão o
deixar de mentir, e falar a verdade, cada um ao seu próximo? Oxalá saibam todos
e a todos seja óbvio que não somos mais filhos do diabo; não somos mais filhos
das trevas e da noite; nem da falsidade e do fingimento, tão característicos do
mundo, com a sua diplomacia e com a sua afabilidade em que ninguém acredita!
Suponho que não há nada que cause tanto dano às relações entre as nações como
a expressão daquilo sobre o que estamos falando. Estadistas há que escrevem as
suas memórias depois que acaba uma guerra; durante a guerra lemos sobre as
suas reuniões e sobre quão maravilhosamente bem iam eles juntos; mais tarde
surgem as suas memórias e nos oferecem citações dos seus diários, nos quais
eles nos dizem as coisas que diziam uns dos outros secretamente. Como
vocês podem ter confiança enquanto esse tipo de coisa continua? Como
pode haver confiança quando a coisa toda é fingida, falsa, é como
uma representação teatral, e se baseia em mentiras e dissimulações? Esse mal
está presente na totalidade da vida, é o que faz do mundo o que ele é hoje. Mas
entre os cristãos tal conduta deveria ser inimaginável. Somos filhos de Deus,
filhos da luz, pertencemos à verdade, somos filhos dAquele de quem está escrito,
“Deus, que não pode mentir”, e

devemos ser semelhantes ao nosso Pai e proclamar-Lhe louvores, manifestar as


Suas virtudes e a Sua glória; e o fazemos abandonando a mentira e falando a
verdade uns aos outros, provando com isso que verdadeiramente somos novos
homens e novas mulheres, que somos irmãos, e que juntos somos filhos do Deus
vivo.

“Pelo que deixai a mentira, e falai a verdade cada um com o seu próximo;
porque somos membros uns dos outros.”

IRA PECAMINOSA E IRA SANTA

“Irai-vos, e não pequeis; não se ponha o sol sobre a vossa ira. Não deis lugar
ao diabo. ” -Efésios 4:26-27

Com estas palavras o apóstolo continua a séria de injunções particulares que ele
está dando aos cristãos efésios a fim de ilustrar e deixar bem claro para eles o
que significa exatamente despojar-se do velho homem e revestir-se do novo
homem. Em particular ele está interessado na doutrina da Igreja, naunidade da
Igreja, na Igreja como o corpo de Cristo e em nós como membros, juntos e
individualmente, do mesmo corpo e nele. Assim é que o que ele está realmente
dizendo é, com efeito, que nós temos que desfazer-nos daquela velha vida
de pecado e revestir-nos desta nova vida de santidade porque o pecado não é
somente algo mau em si mesmo e indicativo da velha vida - o pecado sempre
rompe a comunhão; e essa é a sua imediata preocupação prática neste ponto
particular. O pecado rompe a comunhão; por outro lado, a santidade sempre
promove a comunhão, e enquanto trata destes exemplos e ilustrações
particulares, é óbvio que ele mantém isso em mente o tempo todo.

Ao chegarmos à segunda injunção de Paulo, vemo-lo tratar doutra coisa além da


mentira, algo que não somente rompe a comunhão entre os cristãos mas também
faz violência a toda a base e fundamento da vida cristã. Assim ele passa a dar
atenção à questão da ira, uma fonte muito comum de pecado e de separação na
vida da Igreja Cristã. Estou certo de que ele coloca estas coisas na ordem em que
as encontramos porque, sem dúvida, ela representa o grau da sua freqüência. E
aqui vemos de novo que ele não trata deste problema apenas do ponto de vista da
moralidade, ou da filosofia pagã, porém a seu modo especificamente cristão. E
esse é, como vimos, o único modo pelo qual nós, cristãos, devemos encarar cada
um dos problemas com os quais nos defrontamos na vida cristã. A nossa maneira
de enfrentar esses problemas deve ser totalmente diversa da do mundo. Muito
bem, pois, que é que ele diz exatamente? Qual será o significado desta
exortação, “Irai-vos, e não pequeis”?

Alguns acham que significa que, se você não puder livrar-se

totalmente da ira, a melhor coisa que possa fazer é reprimi-la, e mantê-la sob
domínio quanto você puder. E isso, eu opino, está completamente errado. As
Escrituras ignoram tal ensino. É isso que o mundo faz, e o resultado é que toda
vez que os homens são tomados de surpresa, a porta do alçapão se abre de
repente e tudo reaparece, violenta como sempre antes. Não, certamente a
repressão não é o método cristão de lidar com a ira e seus problemas. Então, que
é que o apóstolo quer dizer? É claro e óbvio que esta é uma ordem positiva. Não
é uma concessão feita à fraqueza. Diz ele que é nosso dever irar-nos com relação
a certas coisas, mas que nunca devemos irar-nos de maneira pecaminosa, nunca
perder o controle.

Há vezes em que a ira tem propósito - “Irai-vos”! Nunca, porém, de maneira


pecaminosa, e nunca de maneira que abra a porta da oportunidade para o diabo.
Como conciliar estas coisas? Como colocá-las em ação? Não podemos fazer
nada melhor, parece-me, do que tomar as afirmações do apóstolo como ele as
coloca, começando com “Irai-vos”. Noutras palavras, existe um tipo certo de ira.
A ira em si não é pecaminosa. É uma capacidade inata em cada um de nós,
e evidentemente colocada em nós por Deus. Realmente dizemos que é um dos
instintos naturais. A capacidade de irar-nos contra o que é mau e errôneo é algo
essencialmente reto e bom; e visto que os moralistas incrédulos com tanta
freqüênica esquecem isso, os seus seguidores se vêem numa posição falsa. A
idéia pagã sempre é que você deve crucificar os seus instintos, sejam quais
forem. Todavia isso é um falso ascetismo. A Bíblia nunca ensina que devemos
crucificar um instinto natural. O que temos de fazer com eles é dominá-los, não
livrar-nos deles totalmente. Os estóicos criam no dever de livrar-se
deles; tentavam eliminá-los. Os epicureus os viam com desdém, e
ambos estavam errados. Segundo o ensino cristão, os instintos devem
ser governados, devem ser dominados e devem ser utilizados corretamente. A ira
é algo colocado por Deus em nós; é uma capacidade que há no homem e que
vem a ser despertada pela visão de certas coisas. O resultado é que a ira é uma
coisa de valor inestimável e preciosa.

Para provar que a ira não é pecaminosa e que, na verdade, é uma coisa
inteiramente correta em si mesma, simplesmente necessito chamar a atenção
para uma declaração feita no Evangelho Segundo Marcos acerca do nosso
Senhor: “E, olhando para eles (para os fariseus) com ira, condoendo-se da
dureza do seu coração. . .” (3:5, VA). Uma declaração similar acha-se no
Evangelho Segundo Lucas: “Respondeu-lhe, porém o Senhor, e disse:
Hipócrita!” (13:15). Um desses escribas, um dos fariseus, mestres da lei, tentava
pegá-10 em

contradição e fazê-10 cair. Nosso Senhor virou-se e lhe disse: “Hipócrita”. Ele
falou com ira! Leiam também a narrativa do capítulo 2 do Evangelho de João,
sobre a ira do Senhor com os que negociavam no Templo: “E tendo feito um
azorrague de cordéis, lançou todos fora do templo, também os bois e ovelhas, e
espalhou o dinheiro dos cambiadores, e derribou as mesas” (2:15). Ali estava o
nosso Senhor, com justa indignação e ira, fazendo um açoite de cordéis e
literalmente expulsando os vendilhões o purificando o templo.

Além disso, ninguém que conheça a Bíblia pode ter deixado de observar uma
expressão constantemente utilizada no Velho e no Novo Testamentos acerca do
próprio Deus - a ira de Deus! Por exemplo, o apóstolo Paulo, escrevendo aos
romanos, diz: “Não me envergonho do evangelho de Cristo, pois é o poder de
Deus para salvação de todo aquele que crê; primeiro do judeu, e também do
grego. Porque nele se descobre a justiça de Deus de fé em fé, como está escrito:
mas o justo viverá da fé” (1:16-17). Por que Paulo mostra tanto prazer nisso?
Por que o vemos tão desejoso de proclamá-lo em Roma e em toda parte? Ele dá
a resposta no versículo 18: “Porque do céu se manifesta a ira de Deus sobre toda
a impiedade e injustiça dos homens, que detêm a verdade em injustiça”. A ira de
Deus! Tanto João Batista como o nosso Senhor pregaram exortando o povo a
“fugir da ira vindoura”. O apóstolo João, no livro do Apocalipse, falando do fim
do mundo, do tempo e da história, bem como do julgamento que será conduzido
pelo Senhor Jesus Cristo, diz graficamente: “Porque é vindo o grande dia da sua
ira” (Apocalipse 6:17). Compreendemos, pois,que esse é uma verdade na qual
não devemos deixar de pensar.

E ainda, o apóstolo Paulo, escrevendo aos coríntios, na Segunda Epístola,


explicita esta matéria e mostra como, num dado ponto, devemos irar-nos com
justa indignação conosco mesmos. Ele está falando da tristeza segundo Deus, e
diz: “A tristeza segundo Deus opera arrependimento para a salvação, da qual
ninguém se arrepende; mas a tristeza do mundo opera a morte. Porque, quanto
cuidado não produziu isto mesmo em vós que segundo Deus fostes
contristados! que apologia, que indignação, que temor, que saudades, que zelo,
que vingança!” (7:10-11). Indignação! Ira! Eles estavam zangados consigo
mesmos e com a causa do problema, com o homem que tinha caído em pecado, e
com o erro deles mesmos em não reconhecerem o pecado, e com o seu fracasso,
não reagindo como deviam. A lição para nós é que sempre devemos irar-nos com
relação ao pecado e o mal, contra o pecado e o mal. “Irai-vos”, diz o apóstolo!
Num sentido ele está simplesmente pondo na linguagem do Novo Testamento o
que um dos salmos expressa desta maneira: “Vós que amais o Senhor, odiai o

mal!” (97:10, VA). As duas coisas vão juntas: se você amar realmente o Senhor,
terá que odiar o mal; devemos definitivamente odiar o mal e o pecado.

Absolutamente não causa surpresa que o apóstolo faça essa exortação aos
crentes efésios, àqueles gentios cujo modo de viver anterior à sua conversão ele
descreve com as palavras: “Entenebrecidos no entendimento, separados da vida
de Deus pela ignorância que há neles, pela dureza do seu coração; os quais,
havendo perdido todo o sentimento, se entregaram à dissolução, para com avidez
cometerem toda a impureza” (4:18-19). Já vimos que a expressão “havendo
perdido todo o sentimento” significa que as suas consciências tinham
ficado calejadas e endurecidas, a sua sensibilidade ficara embotada e obscura,
eles não conseguiam reagir a coisa nenhuma: tinham “perdido todo o
sentimento”, tinham se encharcado tanto no pecado que não havia mais nada que
os comovesse ou que os chocasse. Tinham perdido todo o sentimento! - tinham
se tornado moralmente indiferentes, tinham ficado lerdos. Isto sempre
caracteriza a impiedade e a irreligiosidade. Um dos terríveis aspectos do
paganismo é que os homens e as mulheres tanto se chafurdam no pecado que não
se dão conta do fato de que estão pecando, não podem reagir, nunca têm nenhum
sentimento de indignação e de horror; jamais se iram; perderam todo sentimento.
Na segunda metade do capítulo primeiro da Epístola aos Romanos, Paulo nos
fala tudo a respeito disso. Os homens e as mulheres tinham se esquecido de
Deus, e estavam adorando aves, quadrúpedes e insetos; também se adoravam uns
aos outros. E não somente se tomaram imorais, quase perderam totalmente o
senso de moralidade; pesava sobre eles a culpa pelas perversões mais torpes e
repulsivas. O mundo inteiro se tomara um imundo poço de iniqüidade.
Por essa razão Paulo diz aos cristãos: vocês têm que romper com os pecados do
mundo; vocês têm que aprender a irar-se com eles; têm que levantar-se; não
devem ser complacentes e dizer que o pecado não importa! Essa atitude era
própria do passado deles, disse Paulo, mas não devem ser mais como eram. Não
reagir com indignação e ira contra o pecado e o mal é sempre sinal de
decadência moral, de impiedade e de irreligiosidade. Lembro-lhes uma palavra
que citei antes, palavra do profeta Jeremias, capítulo 8, que descreve o
pecado em seu auge. Permitam-me dar-lhes o clímax da declaração toda, porque
é grandioso. Ouçam-no. Diz ele: “Porventura envergonham-se de cometer
abominação? Pelo contrário, de maneira nenhuma se envergonham, nem sabem
que coisa é envergonhar-se”. Que terrível estado de coisas! Você não está
completamente sem esperança

enquanto pode envergonhar-se; significa que ainda há em você alguma coisa que
lhe dá sentimento de indignação, de vengonha e de ira. Mas certas pessoas
afundaram tanto no pecado que o profeta diz: “Nem sabem que coisa é
envergonhar-se”. E o de que necessitamos, se estamos nestas condições, é esta
exortação do apóstolo: “Irai-vos!” Levante a cabeça! Não se deixe governar por
aquela velha mentalidade ! Dispa-se do velho homem, vista-se do novo! Temos
que aprender, diz Paulo, a irar-nos realmente contra a iniqüidade, contra o
pecado. Deus nos fez de tal maneira que essa deve ser a nossa reação natural; foi
a reação natural do próprio Senhor Jesus Cristo; é a reação de Deus contra o
pecado.

E quão necessária é esta exortação a irar-nos no mundo hoje! Acaso não é uma
das maiores tragédias do mundo na presente hora a falta de sentimento de
indignação e ira moral porque estão acontecendo estas coisas? Não há uma
tendência fatal de ser complacente, de desculpar tudo e de ficar indiferente?
Mesmo quando ouvimos gente dizer “no ar” e nas tribunas públicas, “Mal, sê tu
o meu bem”, ainda assim parece não haver protesto nenhum. Parece que
perdemos a capacidade de agir moralmente movidos por um sentimento de
indignação. Para mim, este é um dos maiores problemas do mundo atual. Tem
havido um constante declínio moral, não somente no comportamento,
como também na perspectiva e na reação. Meramente damos de ombros
e deixamos que o pecado fique sem contestação. Creio que é o que se pode dizer
da atitude do mundo para com Hitler, antes da Segunda Guerra Mundial. Essa
atitude seria inimaginável cinqüenta anos atrás.1 Haveria protestos, e Hitler teria
parado. Mas não foi assim na decadência mundial da década de 1930! Não
podíamos incomodar-nos, queríamos continuar gozando a vida, sem
preocupações, e esperávamos que de algum modo os problemas mundiais não
nos afetariam, e tudo iria bem. E assim foi que se deixou que todo aquele triste
processo começasse e prosseguisse.

No entanto, isto não se evidencia apenas em nossa atitude para com as questões
internacionais - como, por exemplo, para com o surgimento de ditadores e a
tolerância de coisas, nas nações, que nunca deveriam ser toleradas - mas também
me parece que se está insinuando em todos os aspectos da vida. Eu mesmo não
pude deixar de ficar horrorizado com a reação a um documento como o
Relatório Wolfenden, com a sua idéia de que podemos considerar naturais certas
perversões. Defrontamo-nos com o puro fato de que a própria categoria geral do

pecado está desaparecendo rapidamente. Na verdade, muitos estão afirmando


que não existe pecado. Não - o homem nasceu como é, simplesmente recebeu
essa tendência, e esta é muito forte neste, menos forte naquele! Desculpa-se o
pecado; não há protesto, não há indignação moral. E é a uma situação como esta
que vem a palavra do apóstolo, a palavra de Deus: “Irai-vos!” Aprendem a reagir
contra estas coisas! Tenham sentimento de indignação! Há certas coisas
que devem mover-nos e que devem ser denunciadas. A ausência de sentimento
de vergonha, de ira e de justa indignação é sempre a evidência da degradação
profunda, da pecaminosidade e de qualquer sentido da existência de Deus. O
nosso Senhor irava-se quando via manifestações do pecado. E o que mede a
nossa proximidade dEle é que manifestemos uma reação semelhante quando
confrontados por coisas semelhantes. É nosso dever irar-nos diante de certos
pontos e com relação a certas questões.

Passemos, porém, para o segundo ponto, pois o apóstolo acrescenta a “Irai-vos”,


“Não pequeis”! Isto é, não vos ireis de maneira pecaminosa. Estivemos
examinando o tipo certo de ira; agora devemos examinar o tipo errado. Notem
que estamos caminhando numa espécie de fio de faca. Noutras palavras, estamos
oscilando de um extremo ao outro e, conseqüentemente, precisamos ter muito
cuidado. Já vimos outros exemplos disto. O apóstolo já nos dissera
que falássemos a verdade em amor. Alguns dão toda a ênfase à verdade, outros
ao amor; o primeiro grupo de pessoas não tem amor, o segundo não tem verdade;
mas ambos estão errados, pois temos que falar a verdade em amor!
Semelhantemente aqui - “Irai-vos, e não pequeis”

Há um modo errado de irar-se. E qual é? Do que é que nunca devemos fazer-nos


culpados? Primeiro, nunca devemos ser pessoas de mau temperamento. Isso é
inteira e completamente errado. Ser temperamental, irritável ou irascível é
pecaminoso e é condenado em toda parte nas Escrituras. Assim é que não
adiante dizer: “Ah, mas acontece que eu nasci assim!” Se você é cristão, você
nasceu de novo e, portanto, não deve usar esse argumento. E errado em
qualquer ocasião e em qualquer tempo que se manifeste. Não devemos
explicar o que somos e o que fazemos em termos do equilíbrio das
diversas glândulas ou de suas disfunções, pois seria dizer que o pecado
não existe. Todavia não nos detenhamos nisso; há outra coisa que não devemos
ser. Não devemos irritar-nos facilmente. No capítulo treze da Primeira Epístola
aos Coríntios diz o apóstolo que uma das coisas mais gloriosas acerca do amor é
que ele não se irrita facilmente (cf. VA). O homem que se irrita à toa está sujeito
a cair no pecado

frequentemente. Não devemos ser esquentados. Mas coloquemos o argumento


positivamente, nos termos do modo como Tiago, em sua Epístola, descreve a
sabedoria que vem do alto: “A sabedoria que do alto vem é primeiramente pura,
depois pacífica, moderada, tratável, cheia de misericórdia” (3:17). Não devemos
irritar-nos facilmente. Todavia, como se irritam facilmente alguns de nós, por
todos os tipos de coisas! Pois bem, aqui está o teste: você perde as estribeiras
por qualquer coisa? Não importa o quê. E isso o transtorna e o perturba e
mantém a sua mente fixa nisso e o impede de concentrar-se noutra coisa? Há
cristãos que às vezes me expressam a sua irritação com hinos e cânticos e coisas
semelhantes, e às vezes tenho a impressão de que eles ficam tão alterados e
transtornados que não podem serenar-se e ouvir o sermão. Facilmente irritáveis!
É pecaminoso. Não devemos ser facilmente irritáveis. Devemos seguir o amor, o
que nos habilita a suportar todas as coisas, e com o qual é fácil lidar,

Mas devemos ir adiante. Qualquer ira ou expressão de ira que seja excessiva,
violenta, incontrolável, fora de domínio, é um tipo errado de ira. Falamos de um
homem enfurecido, que ele subiu a serra. Isso é definitivamente, completamente
pecaminoso. De certas pessoas dizemos que estão fervendo de raiva, que estão
esbravejando. Ora, isso é pecar com a ira - o rosto lívido, o corpo a tremer, os
olhos fuzilando.. .Vocês já o viram, não viram? Pois bem, isso é completamente
errado e pecaminoso. É falta de controle, e tal homem está irado e pecando; está
se irando de maneira pecaminosa.

O passo seguinte é o que o apóstolo nos propicia, com as palavras: “Não se


ponha o sol sobre a vossa ira”. No original as palavras traduzidas por ira não são
as mesmas; daí, é uma pena que a Revised Standard Version (Versão Padrã
Revista) use a mesma palavra em ambos os lugares. (Cf. igualmente Almeida,
RC e RA.) A segunda palavra, “rancor”, é mais forte que a primeira, “ira”.
Significa exasperação, significa raiva exaltada, pageada e nutrida até vir a
ser uma condição fixa; significa ódio rancoroso, amargor de espírito, espírito
vingativo. Significa que a pessoa está determinada a mostrar rancor, a procurar
vingança e está absolutamente resolvida a consegui-la. É ira crônica; passou a
ser parte integrante da pessoa; é mau temperamento; é condição permanente; a
pessoa fica amarga, cheia de ódio e determinada a manter-se rancorosa. Essa é a
ira de que fala o apóstolo aqui, porém não é a ira de Deus; não há nada disso na
ira de Deus. O que o apóstolo está condenando é o tipo errôneo de ira. A ira que
devemos ter como cristãos nunca devemos ter apenas porque sucede que somos
do tipo que se “esquenta” facilmente. Isso é sempre

errado. Da mesma maneira, a nossa ira jamais deverá ser pessoal, mas, antes,
contra oprincípio da iniqüidade e do pecado. A minha irajamais deverá ser
resultado do fato de ser eu do tipo de homem apimentado, como dizemos,
rabugento, e sempre nos limites, facilmente irritável e pronto a explodir. É disso
que se requer que nos desfaçamos. Noutras palavras, a ira de que fala o apóstolo
é a que sempre se levanta contra o mal e contra o pecado - coisas que
ocasionaram a ira e a indignação vistas em nosso bendito Senhor.

Isso nos leva ao nosso terceiro grande princípio. Como devemos lidar com esta
ira pecaminosa, com esta tendêndia de perder o controle e de render-nos ao tipo
errado de ira? Devemos notar que o apóstolo nos manda lembrar que essa perda
de controle de nós mesmos pertence ao velho homem, à velha vida, e que
devemos despojar-nos disso. Em segundo lugar, essa perda de controle sempre
dá ao diabo a sua maior oportunidade. Paulo acrescenta o versículo 27 ao 26:
“Não deis lugar ao diabo”! O que ele quer dizer com isso é: nunca abra a porta
para o diabo. Quando você perde o equilíbrio emocional você a escancara; não
poderia abri-la mais amplamente. Não há nada que abra mais amplamente a
porta do que a ira, e por esta boa razão: no momento em que você se deixa
dominar pelo temperamento, perde a capacidade de raciocinar, não pode mais
pensar, não é mais capaz de fazer um julgamento equilibrado, pois você fica com
total preconceito em favor de um lado e contra o outro. Noutras palavras, perde a
capacidade de raciocinar, de pensar, de tratar de maneira equânime, de avaliar -
tudo o que faz do homem um homem, já se foi; pois por algum tempo ele vira
um animal, criatura da sua paixão e de um tipo instintivo de energia. E,
naturalmente, essa é justamente a situação na qual o diabo vê a sua mais
esplêndida espécie de oportunidade! Foi quando ele persuadiu Eva e Adão de
que se irassem contra Deus que os teve em suas mãos com toda facilidade. Ele
os incitou ao amargor e à inimizade contra Deus, e os fez acreditar que Deus
estava contra eles; e assim, imediatamente o diabo pôde fazer o que quis. E
pensem no assunto como vocês o conhecem na vida. Haveria alguma coisa
que leve a maior dificuldade que a ira? As coisas proferidas com raiva e num
momento de azedume! - você quase cortaria a sua língua, se pudesse, para trazê-
las de volta; e às vezes, apesar de obtido o perdão, elas deixam feridas e
cicatrizes indeléveis. Que estrago a ira pecaminosa faz no mundo!

E depois a ira pecaminosa leva ao fomento das ofensas, ao desejo de vingança e


de repulsa; leva-nos a desprezar pessoas e a tratá-las com descaso. A ira
pecaminosa! No momento em que se lhe dá acolhida,

o diabo entra. Ele fará que ela permaneça, e insinuará pensamentos e idéias, e os
implantará. Na verdade, a totalidade da vida pode ser arruinada tão-somente por
causa da ira. A ira é sempre causa de confusão, não somente na vida do
indivíduo, mas também nas vidas de todos os que estão envolvidos nos
quefazeres da vida com tal indivíduo. Não existe nada, eu afirmo, que tão
constantemente dê oportunidade ao diabo como a perda de controle na ira.

Notemos agora um princípio mais importante ainda. O espírito de vingança, ou a


ira que o apóstolo condena, é uma negação de todo o evangelho cristão. Sem
dúvida, o apóstolo tinha isto em mente. Se você se torna vingativo, se fica com
essa ira crônica, se tem desejo de vingança, você está negando o fundamento
geral do evangelho como estabelecido nos primeiros capítulos da Epístola, a
saber, que Deus nos perdoa a despeito de sermos o que somos. Somos cristãos
inteira e unicamente pela graça de Deus. Tudo se deve àmisericórida de
Deus. Apesar de sermos o que somos, apesar de sermos odiosos e de
nos odiarmos uns aos outros, apesar de sermos ingratos, apesar de
sermos rebeldes, Deus enviou Seu Filho, e Ele levou sobre Si os nossos pecados.
Ele morreu por nós quando éramos pecadores, quando éramos inimigos. A nossa
salvação é totalmente pela graça de Deus. Como cristão você pode dizer que crê
neste evangelho. Mas, se está numa condição de ira permanente contra uma
pessoa, como pode você conciliá-la com o seu cristianismo? Vamos, deixem-me
fazer uma pergunta mais prática. Como você pode fazer a Oração do
Senhor todas as noites e todas as manhãs? “Perdoa-nos as nossas dívidas, assim
como nós perdoamos aos nossos devedores”! Você faz essa oração, e a nega em
sua vida e em sua prática.
Ouçam o que o nosso Senhor disse na parábola que contou sobre este assunto,
como se vê no Evangelho Segundo Mateus: “Assim vos fará, também, meu Pai
celestial, se do coração não perdoardes, cada um a seu irmão, as suas ofensas”
(18:35). A parábola não é difícil lembrar. Um servo devia grande soma de
dinheiro ao seu senhor, que estava prestes a colocá-lo na prisão; mas o servo
disse: tenha misericórdia de mim, dê-me tempo, e lhe pagarei tudo. Muito bem,
disse o senhor, certamente o farei. O servo ficou agradecido e contente.
Então aconteceu que ele se encontrou com um seu conservo que lhe devia uma
pequena quantia, uma insignificância, e disse: pague-me o que me deve. O
homem disse: sinto muito, não o tenho. O outro o pegou pela garganta e disse:
você tem que me pagar cada centavo. O homem disse: tenha misericórdia de
mim, dê-me tempo. Não, disse o servo, não lhe darei tempo, você tem que me
pagar já, até o último centavo.

E o lançou na prisão! O senhor chamou aquele homem e disse: Você, servo mau!
- porque não tratou seu conservo como eu tratei você? E o nosso Senhor Jesus
Cristo, aplicando a parábola, disse: “Assim vos fará, também meu Pai celestial,
se do coração não perdoardes, cada um a seu irmão, as suas ofensas”.

Se você não pode perdoar o seu irmão, digo-lhe em nome de Deus, você não é
perdoado. Você não pode agir com leviandade no universo moral de Deus. Ouça
a exposição que João faz da verdade em sua Primeira Epístola: “Se alguém diz:
eu amo a Deus, e aborrece a seu irmão, é mentiroso. Pois quem não ama a seu
irmão, ao qual viu, como pode amar a Deus, a quem não viu?” O mau
comportamento é uma negação do próprio fundamento do evangelho. O novo
homem, diz-nos Paulo, que segundo Deus, é criado em verdadeira justiça
e santidade, é criado à imagem de Deus! Assim, se eu afirmo que sou cristão, eu
creio que sou renovado à imagem de Deus e, portanto, devo fazer aos outros o
que Deus me fez. Ele me perdoou, apesar de eu ter sido o que fui. Eu devo
perdoar o outro, apesar de ser ele o que ele é. A lógica é essa! É uma verdade
fundamental do evangelho.

Também, como cristão, eu afirmo que recebi o Espírito Santo. E “o fruto do


Espírito é: amor, gozo, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fé, mansidão,
temperança”. Portanto, não perdoar, mas enraivecer-se, perder o controle, mostra
a ausência do fruto do Espírito.

Além disso, os crentes são membros do mesmo corpo de Cristo, e precisamos


uns dos outros, e somos interdependentes uns dos outros. Portanto, se você pensa
em prejudicar o seu irmão, você vai prejudicar uma parte de si próprio, uma
parte da sua vida e do corpo ao qual você pertence. É uma negação da doutrina
da Igreja. A ira pecaminosa e a busca de vingança são uma usurpação do direito
de julgar que pertence a Deus. É o que o apóstolo nos diz na Epístola aos
Romanos: “Não vos vingueis a vós mesmos, amados, mas dai lugar à ira” -
isto é, a ira de Deus - “porque está escrito: minha é a vingança;
eu recompensarei, diz o Senhor. Portanto, se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de
comer; se tiver sede, dá-lhe de beber; porque, fazendo isto, amontoarás brasas de
fogo sobre a sua cabeça. Não te deixes vencer do mal, mas vence o mal com o
bem” (12:19-21). “Minha é a vingança; eu recompensarei, diz o Senhor”! Sei
que isto ou aquilo está completamente errado, diz o cristão, mas não sou o juiz,
deixo tudo com Deus. Esse é o modo cristão de agir! Despojem-se do velho
homem! Revistam-se do novo!

Finalmente, se esta é a maneira pela qual devemos lidar com a ira

ou raiva falsa, pecaminosa, a minha pergunta final é esta: quando devo fazê-lo?
Quando devo lidar com ela? E o apóstolo nos dá uma das respostas mais
gloriosas da Bíblia toda: “Não se ponha o sol sobre a vossa ira”! Faça-o
imediatamente! Não vá para a cama, não se entregue ao sono com isto em sua
mente ou em seu coração. Resolva isso logo. Nunca vá para o leito sem acertar
as suas contas morais. Nunca deixe uma coisa como essa na sua escrituração.
Livre-se dela! Apague-a! Passe sobre ela o sangue de Cristo! Liberte-se da
coisa! “Não se ponha o sol sobre a vossa ira.” Jamais vá dormir com
um pensamento amargo, odioso, raivoso em seu coração. Não permita que estas
coisas encontrem guarida. Se você sofreu uma terrível provocação durante o dia
- e tais coisas de fato acontecem - e você teve realmente uma justa ira e
indignação, não deixe que ela s cfixe e venha a ser um ódio maligno e amargo.

Permitam-me lembrar-lhes o que o nosso Senhor disse a respeito deste assunto


no Sermão do Monte. Ele está falando do homem que foi ao templo para
entregar a sua oferta, a sua dádiva, a Deus. Mas, diz Ele, se você estiver junto ao
altar e de repente se lembrar de que um seu irmão tem alguma coisa contra você,
“Deixa ali diante do altar a tua oferta”, antes de entregá-la, “e vai reconciliar-te
primeiro com teu irmão, e, depois, vem e apresenta a tua oferta” (Mateus 5:23-
24). Muito forte, não é? Imaginem isso! Ali está você! Você está de fato no
templo, foi realmente até o altar, vai colocar a sua oferenda sobre o altar.
Todavia de repente se lembra! Deixe ali a sua oferta! Vá acertar com o seu
irmão, ponha as coisas em ordem com ele primeiro. “Vai reconciliar-te primeiro
com teu irmão, e, depois”, e somente depois você estará pronto, e então “vem e
apresenta a tua oferta” a Deus.

Faço um resumo da situação toda da seguinte maneira: odeiem o pecado,


sempre; odeiem o pecado no pecador, sempre; porém nunca odeiem o pecador.
Ambos os lados da verdade são absolutamente essenciais. O pecado nunca deve
ser tolerado. Nunca deve ser desculpado. O pecado tem que ser condenado
sempre. Há pecadores que não gostam disso! Ah, dizem eles, mas onde está o
seu princípio de graça, de amor, de misericórdia e de compaixão? O pecador
nunca deve falar desse modo. Ele deve achar que merece tudo o que
está recebendo, e infinitamente mais! Ele nunca deve defender-se; deve
ter indignação contra si próprio; deve irar-se consigo mesmo; deve odiar-se a si
mesmo. O pecado deve suscitar em nós uma ira santa, toda vez que ocorre, e em
todas as suas formas. Contudo, o pecador deve ser perdoado; o pecador deve ser
amado. O pecador deve ser ajudado a abandonar o seu pecado e a elevar-se. Este
bendito equilíbrio das

Escrituras! - ódio ao pecado, mas nunca ódio ao pecador; ira, nunca porém de
maneira pecaminosa. E acima de tudo, reitero, sempre assegurar-se de nunca
pousar a cabeça no travesseiro para descansar e dormir de noite com um espírito
de azedume ou ódio ou falta de perdão em seu coração ou em sua mente ou em
sua alma. “Não se ponha o sol sobre a vossa ira”! Você pode ter um grande
conflito consigo mesmo, porém não vá descansar enquanto não o resolver. Você
poderá ter que questionar por todos os lados; vá adiante, digo eu, até que se
aperceba do amor de Deus em Cristo para com você, até que veja Cristo
sangrando e morrendo na cruz para que você fosse perdoado; demore-se nisso
até que Ele amoleça o seu coração, faça-o prostrar-se quebrantado e o leve a
entristecer-se por aquele que ofendeu você, e até que você o perdoe livremente.
Depois, mas não antes disso, vá para a cama, ponha a cabeça no travesseiro e
durma o sono dos justos, dos retos e dos santos, pois então terá direito de
fazer isso; você estará fazendo como o Filho de Deus fez; você terá agido em sua
vida e em sua esfera como Deus agiu com relação a você.

“Irai-vos, e não pequeis; não se ponha o sol sobre a vossa ira. Não deis lugar ao
diabo.”

NÃO FURTAR,

MAS TRABALHAR E DAR


“Aquele que furtava (o ladrão), não furte mais; antes trabalhe, fazendo com as
mãos o que é bom, para que tenha que repartir com o que tiver necessidade.
” - Efésios 4:28

Aqui chegamos à questão do roubo, e não podemos deixar de notar que em cada
uma das suas exortações práticas o apóstolo está selecionando coisas que
realmente são de vital e axial importância. Há muitas declarações no Novo
Testamento no sentido de que pessoas que praticam certas coisas simplesmente
não são cristãs. Agora permitam-me mostrar-lhes este mesmo apóstolo, que às
vezes é descrito como o apóstolo da fé, fazendo justamente esse tipo
de declaração. “Não sabeis”, diz ele, “que os injustos não hão de herdar o reino
de Deus? Não erreis: nem os devassos, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem
os efeminados, nem os sodomitas, nem os ladrões, nem os avarentos, nem os
bêbados, nem os maldizentes, nem os roubadores herdarão o reino de Deus” (1
Coríntios 6:9-10). E vocês notam que nesta lista de 1 Coríntios se faz menção
dos ladrões. Assim também, vocês vêem, Paulo nos está lembrando que, se um
homem persiste em roubar, com isso prova que não é cristão. Vocês observarão
que eu digo se elepersiste em roubar, se não há mudança nele nesse aspecto.
Paulo não diz que o cristão não pode cair em tentação uma vez, ou quem sabe
mais de uma vez, mas o que ele diz é que o Novo Testamento diz em toda parte
que o homem que persiste em roubar está com isso provando que não é cristão,
sejam quais forem as suas crenças doutrinárias.

Aqui o apóstolo usa o mesmo método que utilizara antes. Primeiramente ele nos
diz o que não fazer; depois nos diz o que fazer; depois nos dá a razão para não
fazer uma coisa e fazer a outra. “Aquele que furtava, não furte mais”, é a
negativa; “antes trabalhe, fazendo com as mãos o que é bom”, é a positiva; e a
razão disso tudo, “para que tenha que repartir com o que tiver necessidade”.
Muito bem, nessa importante injunção há certamente algumas coisas que logo
sobressaem

como mensagens, como princípios, como ensino. E a primeira é esta: de novo,


todos nós devemos regozijar-nos com este grande, glorioso e magnífico
evangelho. O evangelho é o poder de Deus para a salvação, e ele pode salvar os
homens de toda espécie de pecados. É isso que torna tão admiráveis essas listas
que as Escrituras nos dão aqui e ali. O evangelho de Jesus Cristo não é para
gente boa, é para pecadores; foi quando éramos ainda pecadores e sem forças
que Cristo morreu por nós. Morreu por pessoas culpadas de todas
aquelas terríveis, horríveis coisas que constam nessa lista de 1
Coríntios, capítulo 6; é por tais pessoas que Cristo morreu, por larápios,
ladrões e gatunos. Nisso está, digo eu, a glória central do evangelho;
nada sobrepuja o seu poder, nada sobrepuja o seu escopo. Ninguém ficará sem
esperança, quando vir o evangelho face a face; nenhum pecado particular exclui
o homem dessa maneira. Este evangelho é poder. E ao percorrermos estes
diferentes itens que o apóstolo nos dá aqui, devemos lembrar-nos de que quando
este poder entra na vida de um homem, seja o que for que o mantenha cativo, ele
pode ser posto em liberdade. Aí está a nossa primeira proposição, e esta, digo eu,
é uma proposição na qual devemos regozijar-nos.

Passo, então, a uma segunda proposição que às vezes é mal entendida, porém
que evidentemente é de central importância. O evangelho nos livra de todos os
tipos de pecados; sim, mas é importante observar o modo como o faz. Temos
aqui uma injunção que com freqüência deixa muitos surpresos. Perguntam eles:
o evangelho diz realmente a alguns cristãos que eles devem deixar de roubar?
Eu pensava, diz alguém, que você estava dando ênfase ao fato de que
essas pessoas foram regeneradas, nasceram de novo, foram criadas
segundo Deus neste novo molde, e que a imagem de Deus foi restaurada nelas; e
agora você nos vem dizer que o apóstolo tem que dizer a essas mesmas pessoas:
“Aquele que furtava^ não furte mais”? Sim, é precisamente isso que o apóstolo
diz. E uma coisa com a qual não devemos ficar surpresos. Se estamos surpresos,
sem dúvida é porque estamos errados em nossa conceituação da doutrina da
regeneração, do novo nascimento, e do que ela significa. Há
considerável incompreensão sobre isso. Vejam, por exemplo, a declaração de
Paulo aos coríntios: “Se alguém está em Cristo, nova criatura é: as coisas velhas
já passaram; eis que tudo se fez novo” (2 Coríntios 5:17). Muitas vezes essas
palavras são mal interpretadas, como se significassem que, quando um homem é
regenerado, quando ele está em Cristo e passa a ser nova criatura, tudo o que
antes lhe era próprio acabou; nada daquilo permanece, e ele é um homem
inteiramente novo, em todos os pormenores e em todos os aspectos. Mas,
obviamente, isso

está completamente errado. É uma total incompreensão das palavras de Paulo,


porque, se isso fosse verdade, ele nunca teria escrito aos crentes efésios para
dizer-lhes que deixassem de mentir, que se irassem sem pecar, que parassem de
roubar, e estas outras coisas que estamos estudando em detalhe. Noutras
palavras, seria inteiramente errôneo interpretar a regeneração dando-lhe uma
espécie de sentido mágico. Contudo, é o que o mundo faz. Diz o mundo que nós,
cristãos, afirmamos que nascemos de novo e, portanto, devíamos ser
absolutamente perfeitos. Se, portanto, ele vê um cristão caindo em
pecado, exclama: grande coisa, o seu cristianismo! Eu pensava que ele libertava
o homem de todo o pecado e o tomava logo perfeito! No entanto, o mundo
sempre deu prova de que é incapaz de receber e de entender os princípios do
cristianismo, e ainda menos capaz de entender a doutrina da regeneração.

Como devem os cristãos enfrentar a zombeteira reação do mundo? E como


devem interpretar a regeneração? Isto não é importante só na Grã-Bretanha; é
ainda mais importante, em certo sentido, nos campos missionários estrangeiros,
onde as pessoas de repente ficam livres do paganismo e de tudo o que lhe diz
respeito; e se esta doutrina da regeneração for mal entendida, estará sujeita a ser
uma pedra de tropeço para a fé, tanto para os de dentro da Igreja como para os de
fora que a estão buscando. A resposta é que, às vezes, na regeneração,
um homem fica inteiramente livre de certos pecados específicos, sem fazer
nenhum esforço. Mas não é uma regra universal. Outro homem pode ser
verdadeiramente regenerado e ainda necessitar desta instrução minuciosa, e
ainda ver um certo elemento de conflito em sua vida. Pode ser que não
entendamos isto; é algo que está dentro da soberania de Deus. Todavia, o de que
estamos absolutamente certos é que na regeneração não somos libertos
automaticamente de todos os nossos pecados e não ficamos imunes de toda
tentação imaginável. Asseverar que somos imunes é patentemente falso; a
doutrina e a experiência paulinas igualmente o provam. Entretanto Deus, em Sua
sabedoria infinita, emprega diferentes métodos em casos diferentes.

Lembro-me bem de dois homens que eram membros da mesma igreja e que, em
seus tempos anteriores à conversão, eram ébrios. Ouvindo o evangelho, ambos
foram convertidos, foram salvos, foram regenerados; porém foi muito
interessante notar a diferença que houve na experiência de ambos. No caso de
um deles, até o gosto pela bebida foi tirado imediatamente; literalmente, nunca
mais teve problema com isso, nem por um momento. Mas o segundo homem,
que igualmente renunciara à bebida, não era mais seu escravo e não mais estava
sujeito a ela em nenhum sentido, não se viu livre dela num instante, como

aconteceu com o outro homem; sabia que tinha que lutar e, às vezes, sentia-se
tentado. E, todavia, os dois homens eram igualmente regenerados. Aprendemos,
pois, que as exortações que vemos na Epístola são necessárias. Nascemos como
crianças em Cristo e não ficamos sabendo tudo de uma vez; não vemos logo tudo
claramente; precisamos de instrução, é preciso que nos ensinem,
precisamos crescer na graça e no conhecimento do Senhor Jesus Cristo. Por
isso foram escritas estas cartas.

Isto é sumamente interessante e fascinante. Todos nós por certo conhecemos


algo por experiência sobre como a princípio, embora por assim dizer tenhamos
visto todas as coisas de maneira diferente, todavia não tínhamos visto coisas
específicas de maneira diferente. Tínhamos passado realmente por esta poderosa
transformação e, contudo, não nos ocorrera que certas coisas teriam que ser
enfrentadas. Tínhamos que receber instrução sobre elas. E se nós, como
cristãos, não nos tomamos mais sensíveis neste aspecto, ano após ano,
significa que não estamos crescendo e que há algo errado conosco. De início
a gente vê as coisas centrais e de grande monta; depois a gente precisa aprender
sobre estas outras coisas. Essa era a situação dos crentes de Efeso. Não havia
nada que fosse mais característico do paganismo do que o roubo. É sempre uma
das características dominantes de uma sociedade ímpia e irreligiosa. Eles tinham
estado impregnados disso, tinham sido criados nisso, e de tal modo se tomara
uma questão de hábito, de costume e de prática, que a pripcípio não se davam
conta de que havia algo errado nisso, e de que precisavam ser iluminados
e instruídos da maneira como o apóstolo os está instruindo aqui. E isso é verdade
hoje como então. A pessoa recém-nascida em Cristo não enxerga tudo, e precisa
que lhe dêem instrução minuciosa e especial. Ocasionalmente, como digo, o
pecado aflitivo é extirpado imediatamente; muitíssimas vezes, na verdade eu
diria geralmente, não é, mas ao homem é dada a nova atitude, a nova
perspectiva, e assim ele é capacitado a sobrepuj á-lo. Havendo nascido de novo,
há nele um novo princípio; o Espírito Santo está nele; ele tem em si um novo
poder, de modo que, com a instrução e o poder, ele é habilitado a lidar com
a questão. E este é o método de santificação seguido pelo Novo Testamento.

Vamos, porém, examinar um pouco mais esta matéria. Por que a prática do roubo
tem que ser abandonada? Por que diz o apóstolo, “Aquele que furtava, não furte
mais”? Este é um assunto muito relevante e, infelizmente, tem referência prática
muito urgente. Os jornais nos estão falando sobre o pavoroso aumento dos
roubos e furtos

insignificantes, e mesmo de roubos em larga escala. Cada vez mais vai se


tomando um problema urgente, no sentido sociológico, neste país. Estudemo-lo,
pois. Que significa o roubo? É óbvio que o apóstolo estava pensando
primordialmente no fato concreto de apossar-se com as próprias mãos de algo
que pertence a outrem. Ele dá ênfase às mãos; essa era então a mais comum
forma de roubo, como ainda é uma das mais comuns. Mas não fica nisso. Roubar
não se restringe às coisas da esfera material. Roubar significa realmente apossar-
se e fazer uso como se fosse sua, de alguma coisa que não pertence a você,
apropriar-se de algo que não é seu, para atender aos seus fins pessoais e para
a sua satisfação pessoal. Assim, refere-se a muitas coisas, além das materiais.
Pode-se roubar dinheiro; sim, porém também se pode roubar tempo; pode-se
roubar quase tudo, pode-se roubar pensamentos, idéias, o crime que chamamos
plágio, que é tomar as idéias de alguém e publicá-las como se fossem suas
próprias. Você pode escrever um artigo, mas usando o que tomou de alguém e
você não dá a conhecer o seu reconhecimento - é roubo. Você pode pregar
o sermão doutro homem, e isso é roubo, é furto, é assalto. Você prega como se o
sermão fosse seu, todavia não é. Roubar é tomar posse de alguma coisa que
pertence a outro e que realmente não pertence a você, e ter posse dela e
considerá-la como sua, e dar a impresssão de que é sua. As vezes fico chocado
com coisas como esta: recebo carta do secretário da União Cristã, que trabalha,
digamos, numa empresa comercial ou no Serviço Civil, ou num banco ou
nalguma organização dessa natureza; e, para minha admiração e espanto, o
convite que me é dirigido para eu falar na reunião dos cristãos pertencentes à
União Cristã daquela empresa ou instituição comercial foi escrito em papel de
carta com o timbre daquela empresa ou Serviço Civil ou banco. Considero isso
um roubo. Os cristãos não têm direito de usar papel da empresa para o seu
interesse pessoal, para fins e objetivos privados, mesmo que seja para os
interesses da União Cristã. Agora deixem-me dar-lhes outra ilustração de roubo.
Para que não pensemos que o apóstolo estava escrevendo apenas para um
punhado de pagãos e que nós, que nunca fomos pagãos nesse sentido, não
necessitamos dessa exortação, considerem a questão de tempo. Se acontece que
sou pago por uma firma para fazer determinado trabalho, usar parte
daquele tempo para tentar evangelizar um colega de serviço é roubo. Não
tenho direito de usar o tempo do meu patrão, mesmo que seja para
evangelizar outra alma. Sou pago para usar certo espaço de tempo para fazer o
que a empresa me solicitou, e embora sej a uma coisa excelente falar à
outra pessoa sobre Cristo e a salvação, não tenho direito de fazê-lo nas horas que
não me pertencem, mas que pertencem ao meu patrão.

Desse modo devemos entender que a exortação a parar de roubar tem relevância
muito ampla e muito prática, e devemos ter o cuidado de tomá-la desta maneira
ampla. Não devemos apropriar-nos de coisa nenhuma que pertença a outrem, ou
ao Estado, nem usá-la para os nossos fins e objetivos pessoais, por mais elevados
que sejam. O roubo inclui também o deixar de pagar a outrem o que lhe é
devido. Reter de outros o que lhes é devido, seja do Estado, na forma de
taxas alfandegárias ou de imposto de renda, ou seja lá o que for, é roubo.
Se pertence a outros por lei e de direito, e o retemos, somos culpados de roubo.
Não pagar o que se deve, é roubo, bem como apropriar-nos de fato daquilo que
não nos pertence.

“Que o ladrão não roube mais.” Essa é a exortação do apóstolo. Não existe nada,
talvez, que mais do que o roubo mostre quão desprezível é o pecado. E, de
acordo com o Novo Testamento, o modo de sobrepujar o pecado é vê-lo como
ele é, desprezá-lo, odiá-lo e dizer: isso é impossível para o cristão! Não haveria
algo inerente e essencialmente vergonhoso quanto ao roubo? Envolve
clandestinidade, ação oculta, furtiva, busca de oportunidade quando ninguém
está olhando, agir depois de escurecer, fazê-lo quando ninguém está por perto.
Ah, certamente há algo completamente desprezível em torno do roubo! Há
vergonha e traição inerentes e essenciais em tomo desse tipo de ação. Tudo o que
está envolvido nele, tudo o que é indicado por ele, está cheio dessa característica
horrível. E depois entra outro elemento: o roubo sempre envolve o mau uso de
uma capacidade que nos é dada. Como eu disse, o apóstolo está pensando em
termos das mãos. Vejam aquele homem, ele viu algo que cobiça; pertence a
outro, e as mãos que Deus lhe deu ele usa para agarrá-la e tomar posse dela. Que
mau uso destes instrumentos maravilhosos! As mãos! Dadas a nós por Deus!
Instrumentos admiráveis! - e vejam o uso que o ladrão lhes dá!

Mas isto não se refere somente às mãos da pessoa; refere-se a todos os outros
aspectos que eu estive delineando. Observem a maneira como os ladrões usam
mal o poder do pensamento, do poder da razão, do poder da lógica, do poder de
fazer previsões e de planejar. Vejam o puro engenho, a mestria do ponto de vista
do cérebro que penetra em muito comércio ilícito, e em tudo o que está
envolvido no grande e compreensivo termo roubo! A argúcia, a abilidade que os
homens demonstram quando fogem e se esquivam, e na sua busca.
Que prostituição de alguns dos mais potentes e mais nobres dons que Deus deu
aos homens! Pensem também no prazer perverso que o ladrão tem neste mau uso
dos seus dons. Ele de fato pensa que é esperto quando rouba! Ah, que perversão!
Será esse o padrão da habilidade, será essa

a maneira pela qual medimos a capacidade? É um insulto à natureza humana e às


coisas mais maravilhosas que Deus nos deu como homens, que alguém se
orgulhe de fazer tal coisa e de sua habilidade de fazê-la. Haveria algo mais
repreensível?
Que é que realmente está por trás do roubo? A resposta, naturalmente, é o
egoísmo. É uma das manifestações centrais do ego. O desejo de obter e de
possuir o que eu quero. É simplesmente uma dessas manifestações do ego
mostrando-se no desejo de obter, possuir e conservar que aquele que rouba pode
construir de várias maneiras. Isso está realmente na sua raiz. Contudo, também é
necessário salientar que o roubo é realmente o desejo de obter sem esforço.
Há não somente o desejo de que o ego obtenha e possua, porém há este fator
adicional,o desejo de ter sem trabalhar para isso, sem labutar para obtê-lo, como
o apóstolo se expressa aqui. Assim é que, em última análise, o problema com o
ladrão, com o larápio, é que ele não gosta de trabalhar. Ele é o tipo de homem
que realmente despreza o trabalho, o labor honesto. Sua idéia é ter o máximo e
fazer o mínimo. Ele não é exigente quanto a como o faz, quanto a como o
consegue, contanto que o consiga. Ele exalta a posse em si, elevando-a à posição
suprema. Finalmente chega ao ponto de pensar que se se pode obter uma
coisa pelo roubo, o homem que trabalha como escravo, suando, e quase se mata
para consegui-la em possessão, não é melhor do que o tolo. E, como
conseqüência, fica com mais orgulho de si mesmo. Ele não se mata. Sua frase é
“dinheiro fácil”, não é? Tão simples! Por que trabalhar, se se pode obter assim!
Dessa maneira ele exibe a sua completa degradação.

Seguramente estamos testemunhando algo dessa mentalidade na hora presente.


Há uma certa filosofia moderna que despreza o trabalho, que põe o prazer e o
gozo na posição suprema, e que considera o trabalho como um aborrecimento,
algo indispensável para que eu possa ter bastante dinheiro para gozar! O fim
dessa lógica é conseguir dinheiro e gozo sem trabalhar. No momento em que
você começa a considerar o trabalho como uma coisa degradante, você
está numa encosta escorregadia. No momento em que você deixa de ver
a dignidade do trabalho e a retidão essencial do trabalho, no momento em que
você começa a pensar em termos de “ter” e não em termos de ganho legítimo e
honesto, você está abrindo a porta que levará a alguma forma de desonestidade.
A posse nunca deve estar na posição suprema. O simples ter, o simples ganhar, o
simples gozar, nunca deve ser a coisa suprema. Uma sociedade, um país, um
mundo, que começa a desprezar o labor e o esforço, está proclamando o seu
caráter ímpio.

Qualquer falha em não compreender a dignidade proclama a mesma coisa. Toda


a idéia de obter-se o máximo e dar-se ou fazer-se o mínimo é completamente
irreligiosa, é profundamente anticristã; mas, quem poderá negar que essa idéia
está afetando todas as camadas da sociedade na Grã-Bretanha hoje? Há zangões
e parasitas em todas as classes sociais; todavia não importa a classe; todo
homem que pensa em termos do que ele pode ter e gozar com o mínimo de
esforço, é um zangão, é um parasita, é alguém que nega a essência mesma do
ensino cristão. O problema não é político, e sim espiritual.

Acresce que o homem que rouba se persuade de que tem direito a tudo de que
gosta e que deseja. Ele só vê o objeto do seu desejo. Ele não pára para perguntar
se é dele ou não, ou de quem é; tudo o que ele diz é: ora, eu gosto disso, eu
quero isso, eu ficaria muito alegre se o tivesse, eu poderia fazer maravilhas com
isso, portanto eu o tomo. Esse é o raciocínio, essa é a mentalidade, o que mostra
completa e total falta de respeito pelos outros e suas posses. E essa é, talvez, a
pior coisa acerca do furto e do roubo - a falta de respeito pelos outros. Só
penso em mim, no que é bom para mim, no que eu quero e no que
posso desfrutar. Se começasse a pensar do mesmo modo acerca doutro homem,
eu nunca tomaria o que é dele porque respeitaria os seus direitos àquilo. Mas eu
o excluo, faço violência à sua personalidade, só me importo comigo, ninguém
mais conta. Essa é a filosofia que está por trás do que o ladrão pensa.

Vemos, pois, por que o apóstolo estava forçando tanto essa questão aos efésios.
O modo de ver do gatuno torna impossível a comunhão. E Paulo está escrevendo
aos membros das igrejas, e havia pouco lhes dissera que todos eles eram
membros do corpo de Cristo e que o corpo é um só. No entanto, como pode
existir essa unidade e comunhão, se cada um estiver se apropriando dos bens de
outrem e se cada um for por si? A mão diz: o pé não me interessa, tiro dele tudo
o que posso! O resultado é o caos, é uma monstruosidade; não há
comunhão possível onde não há confiança. Portanto, diz o apóstolo, que o
ladrão não roube mais! Roubar éuma ilegalidade, é anarquia, é cada qual por si,
é egoísmo absoluto. É por isso que o apóstolo diz: “Aquele que furtava, não furte
mais”!

Então, como deve o cristão considerar e tratar todo esse problema e essa tentação
para roubar? De novo devo assinalar que o apóstolo não diz apenas: ore sobre
isso, peça a Deus que tire isso da sua vida, e Ele o fará por você! Você mesmo
não precisa fazer nada, deixe que Ele faça tudo, Ele fará tudo, simplesmente olhe
para Ele, Ele tirará isso da sua vida se você Lhe pedir! Não é o que o apóstolo
diz. Em vez disso,

eie dá uma injunção positiva. Parem de fazer isso, diz ele. Aquele que furtava,
não furte maisl Pare de fazer isso! Mas, como parar? Primeiramente, dê uma boa
olhada na coisa. Analise-a, observe-a bem, e diga: será que é isso? Porventura eu
sou culpado disso? É impossível! E você pára de roubar. Entretanto não fica
nisso. Depois você faz uma abordagem positiva do problema. E qual será
essa abordagem? O apóstolo não nos deixa na dúvida - aquele (ladrão)
que furtava, não furte mais - “antes trabalhe, fazendo com as mãos o que é
bom”. Esta é deveras uma grande palavra: labute, trabalhe!

Pois bem, no original a palavra trabalhe é muito forte: o verbo significa


trabalhar ao ponto de fadiga. Não apenas trabalhar; você tem que labutar, diz o
apóstolo. Aqui de novo quero acentuar este grande princípio da dignidade do
trabalho, a dignidade da faina e do labor, a dignidade de produzir alguma coisa.
Somente o cristianismo ensina uma coisa dessas. Vocês se lembram das palavras
de Paulo quando se despedia dos presbíteros da igreja de Éfeso? “Vós mesmos
sabeis”, diz ele, “que para o que me era necessário a mim, e aos que
estão comigo, estas mãos me serviram. Tenho-vos mostrado em tudo
que, trabalhando assim, é necessário auxiliar os enfermos (VA: “os fracos”), e
recordar as palavras do Senhor Jesus, que disse: mais bem-aventurada coisa é
dar do que receber” (Atos 20:34-35). Obviamente ele pôde afirmar que lhes
estava dando um exemplo e um modelo de trabalho. O cristianismo sempre
defendeu a dignidade do trabalho, a dignidade do labor, como se pode provar
historicamente. O paganismo e a irreligiosidade sempre sãos caracterizados pela
negligência, pela indolência e pela preguiça. À medida que a Inglaterra vai
se tornando cada vez mais ímpia e irreligiosa, vai se tornando cada vez mais
preguiçosa, em todas as camadas da sociedade. Isso sempre acontece. Mas, por
outro lado, todo avivamento da religião verdadeira exalta a dignidade do
trabalho, porque leva o homem a ver que Deus lhe deu o seu corpo e todas as
suas faculdades pessoais com vistas a que ele as utilize. O homem não foi feito
simplesmente para sentar-se, gozar e receber todos os dons para nada. Isso é
enervante, é affontoso, não desenvolve as faculdades e capacidades do homem.
Contudo, no momento em que você se vê como cristão, como homem feito
à imagem de Deus, você quer fazer uso das suas faculdades.

O que vocês vêem historicamente é que o período elizabetano, que sobressai


como uma grandiosa era da história deste país (Inglaterra), como a época em que
este país começou a lançar a base da sua grande prosperidade e sucesso, foi um
período que se seguiu à Reforma Protestante! No momento em que o povo foi
despertado para a verdade do evangelho e se viu sujeito a Deus e à Sua vontade,
começou a
trabalhar. A era puritana levou à mesma coisa, e de maneira ainda mais
extraordinária. Por mais que tenhamos progredido no período de Elizabeth,
progredimos muito mais no período de Cromwell. E o que fez desse período uma
época verdadeiramente grandiosa foi, de novo, exatamente a mesma coisa, esta
dignidade do trabalho. Algumas pessoas têm se preocupado com isso. Preocupa-
as o fato de que os quaeres e pessoas semelhantes a eles tornaram-se muito ricas.
Isso não é nenhum problema. A explicação é clara. Quando os homens
são convertidos de verdade, primeiramente eles vêem como o pecado é danoso, e
param de esbanjar dinheiro em futilidades inúteis. Ao mesmo tempo, eles
adotam este princípio positivo, a dignidade do trabalho, e passam a ser diligentes
e a trabalhar. Eles não começam a vida cristã dizendo: que posso fazer para
encurtar o meu dia de trabalho, para fazer pouco e receber quanto puder?
Absolutamente não! Eles gostam do trabalho, eles estão criando algo, estão
formando algo, estão fazendo algo, estão labutando. E, como é natural,
é completamente inevitável, a sua diligência leva ao sucesso e, em muitos casos,
eles ficam ricos. Se você trabalhar duro e não desperdiçar dinheiro, estará fadado
a acumular riquezas, não poderá evitá-lo, não poderá fugir disso. E essa é a real
explicação dessa situação.

Diz-nos, pois, o apóstolo que trabalhemos e labutemos com as nossas nãos, e


pode ser que, como cristãos numa geração como esta, estejamos sendo chamados
para ensinar isto acima de tudo mais, e assim dar testemunho de Cristo e Sua
graça. Devemos mostrar que o objetivo supremo das nossas vidas não é deleite e
prazer, não é ter vida cômoda, e depois constituir comissões para verem como
podemos empregar o nosso tempo de lazer, ver o problema de como
manipular as nossas horas de lazer! Longe disso! Devemos estar fazendo
alguma coisa, devemos estar trablhando, devemos estar labutando, e
fazendo isso com toda a nossa energia, cedendo a um pouco de suor honesto
e sabendo o que é ir para a cama cansado, com a sensação de que vivemos como
homens, e não como mandriões, como parasitas, edificando-nos sobre capital
alheio e tirando do sustento e das forças de outrem. “Trabalhe”, diz o apóstolo,
“fazendo com as mãos o que é bom.”

Acaso não é espantoso notar como sempre somos lerdos para aprender as
grandes lições da vida e da história? Certamente nós temos observado que é uma
coisa muito perigosa herdar riqueza. Não estou dizendo que sempre a situação
em apreço vai mal, porém estou dizendo que é sempre perigosa. Lamento muito
quando jovens herdam riqueza, porque eles ficam numa situação perigosa; não
é surpresa que muitas vezes eles vão mal. Quantas vezes tem acontecido
que um pai trabalhou duro e labutou, como as Escrituras mandam; edificou
grande e rendoso comércio, e lançou bom alicerce; vem o seu filho, herda tudo e
esbanja tudo. Pobre rapaz! Sinto por ele. Recebeu riqueza sem trabalhar por ela,
sem labutar por ela; tem atitude errada para com a vida e para com p modo de
viver, e não admira que faça mau uso da riqueza herdada. É perigoso ter riqueza
e posses sem as ter adquirido de algum modo, e uma sociedade que passa por
muito dessa espécie de coisa está procurando problema.

“Trabalhe, fazendo com as mãos o que é bom, para que tenha que repartir com o
que tiver necessidade.” Nosso próximo passo é notar os elementos essenciais do
princípio de mordomia. Por que possuo coisas? Ah, não como o larápio, o
ladrão, vejo isso, não meramente para mim mesmo, e o que posso tirar delas.
Absolutamente não! Sou um mordomo, estas coisas estão comigo, mas
realmente não são minhas. Não são um fim em si mesmas, nunca foram
destinadas à satisfação pessoal apenas. Simplesmente as mantenho para o
Doador, porque Deus é o Doador de todo bem e de todo dom perfeito, e Ele
me designou para ser guardião, para tê-las em custódia, para ser o mordomo.
Não são minhas; simplesmente as tenho por algum tempo.

E, finalmente, devemos preocupar-nos com os outros e com as suas


necessidades. “Trabalhe, fazendo com as mãos”, diz o apóstolo, “o que é bom,
para que tenha que repartir com o que tiver necessidade.” Trabalhe porque o
trabalho é coisa boa! Se você ganha dinheiro com ele, mantenha-o como
guardião, e dê aos que têm qualquer tipo ou forma de necessidade; pratique todo
bem que puder. “Mais bem-aventurada coisa é dar do que receber”, diz o Senhor
Jesus Cristo. Esse é um dos Seus pronunciamentos que não estão registrados
nos Evangelhos, entretanto ao apóstolo Paulo fora feito. Disse ele:
vocês lembram como o Senhor Jesus disse que é mais bem-aventurado dar que
receber? Pois sejam assim, diz Paulo. E na verdade, é isso que ele está dizendo
realmente nesta exortação. Ele está simplesmente dizendo que sejamos
semelhantes ao Senhor Jesus Cristo. A que se assemelhava Ele? O apóstolo
responde a pergunta ao escrever o capítulo dois de Filipenses: “Não atente cada
um para o que é propriamente seu, mas cada qual também para o que é dos
outros. De sorte que haja em vós o mesmo sentimento que houve também
em Cristo Jesus. Que, sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual
a Deus. Mas aniquilou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se
semelhante aos homens; e achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo,
sendo obediente até à morte, e morte
de cruz”. E ainda, escrevendo aos coríntios, ele diz: “Já sabeis a graça de nosso
Senhor Jesus Cristo, que, sendo rico, por amor de vós se fez pobre” (2 Coríntios
8:9).

Não somente Cristo não furtou o que não Lhe pertencia, mas nem sequer reteve
o que ere dEle, as riquezas eternas, e por amor de nós se fez pobre. E Ele viveu
neste mundo como um dos pobres; não teve casa própria; não teve lar que fosse
propriamente Seu - “O Filho do homem”, disse Ele, “não tem onde reclinar a
cabeça.” Lemos que “cada um foi para a sua casa; Jesus foi para o Monte das
Oliveiras”!

Que esfera diferente da esfera do roubo é esta! É a diferença que há entre o


cristianismo e o paganismo. O paganismo, a impiedade, e irreligiosidade, é a
esfera em que cada homem é por si, onde cada homem está tentando conseguir
quanto puder por nada, para desfrutá-lo. O cristianismo defende a consideração
pelos outros, a renúncia, a abnegação o auto-rebaixamento, a visão das
necessidades alheias, o dar. “Haja em vós o mesmo sentimento que houve
também em Cristo Jesus.” O ensino moralista se detém nos dizeres: não furte!
Não toque nisso! E, que lástima, como é pobre o moralismo! Todavia
o cristianismo nos ordena: “Trabalhe, fazendo com as mãos o que é bom, para
que tenha que repartir com o que tiver necessidade”. “Haja em vós o mesmo
sentimento que houve também em Cristo Jesus.” Dar! Outros! Ver a
necessidade! Sacrificar-se! É a exata antítese do outro ensino! Visto que somos
novos homens, despojemo-nos do velho homem, e sigamos as pegadas do nosso
bendito Senhor e Mestre, que disse; “Mais bem-aventurada coisa é dar do que
receber”.

1
Como se vê no Prefácio, os sermões sobre Efésios, parte dos quais está no presente volume, foram
pregados entre 1954 e 1962. Nota do tradutor.
COMO COMUNICAR-NOS COM OS NOSSOS SEMELHANTES

“Não saia da vossa boca nenhuma palavra torpe, mas só a que for boa para
promover a edificação, para que dê graça aos que a ouvem. ”

- Efésios 4:29

O nosso texto nos leva a problemas concernentes à nossa conversação, ao nosso


falar uns com os outros, à nossa comunicação uns com os outros, desta forma
particular. Não podemos deixar de notar que, nestas injunções particulares, o
apóstolo parece ter em mente, a maior parte do tempo, a grande importância do
falar. A sua primeira injunção foi: “Pelo que deixai a mentira, e falai a verdade
cada um com o seu próximo”. Ora, essa é uma questão ligada ao falar, e mais
adiante, no capítulo, ele volta a ela: “Toda a amargura, a ira, e cólera, e gritaria, e
blasfêmias” (VA: “falar maligno”), e toda a malícia seja tirada de entre vós”
(versículo 31). E de novo a retoma no versículo 3 do capítulo 5, onde ele diz:
“Mas a prostituição, e toda a impureza ou avareza, nem ainda se nomeie entre
vós, como convém a santos; nem torpezas, nem parvoíces” (VA: “nem
conversação tola”), nem chocarrices, que não convêm; mas antes ações de
graças”. Obviamente, pois, na opinião e na avaliação do apóstolo, toda esta
questão ligada ao falar é vital e, necessariamente, deve receber grande
proeminência ao tratarmos e estudarmos a aplicação da verdade aos pormenores
das nossas vidas. E isso não é surpreendente porque, como já fiz lembrar quanto
à questão da mentira, a fala é, afinal de contas, o fator biológico distintivo e
diferencial do homem. Comparando-se e contrastando-se o homem e os animais,
há muitas diferenças, mas esta é provavelmente a mais proeminente e
importante; o que faz do homem um homem é o dom da fala e da expressão.
Nessa capacidade de expressar-se vemos sobressair mais claramente a imagem
de Deus, segundo a qual o homem foi criado originariamente. O homem pode
pensar, raciocinar e ver-se objetivamente e considerar-se a si próprio; os animais
não podem fazer isso.

Contudo o nosso texto vai além: o homem pode falar, pode

expressar-se, pode pôr pensamentos em palavras e em linguagem. De muitas


maneiras é o maior dom concedido à humanidade, e sendo assim, não é de
admirar que seja a coisa mais mal utilizada. Na esfera espiritual, o diabo
centraliza os seus ataques naquilo que é mais precioso no homem. E o que há de
devastador, quanto ao pecado, é que ele sempre destrói primeiro o que é melhor
em nós. Os centros mais elevados são sempre os primeiros a serem afetados pelo
pecado. Não admira, pois, que considerável atenção seja dada pelo apóstolo
à questão geral do falar, visto que expressa tanto a essência do ser e
da personalidade do homem. No capítulo três da sua Epístola, Tiago argumenta
sobre o mesmo ponto. Ali a língua humana é comparada ao leme do navio, e
também à brida, ao freio que se põe na boca do cavalo: em ambos os casos, um
objeto muito pequeno, porém quão importante ele é! Muda o curso de um grande
transatlântico; mantém dentro dos limites e no controle o cavalo, com todo o seu
vigor e força. Portanto, diz Tiago, como cristãos, vocês têm que dar-se conta da
vital importância de vigiar a língua e os lábios. Que destruição, diz ele, é feita
pelo mau uso da língua! É um verdadeiro mundo de iniqüidade, é uma coisa que
pode acender um fogo terrivelmente destruidor.

Essa é a maneira escriturística de lembrar-nos que, em nossa vida neste mundo,


não há nada que seja de maior importância que a capacidade de falar porque,
afinal de contas, expressamos o que realmente somos pelo que dizemos. As
palavras do nosso Senhor -“Da abundância do seu coração fala a boca” (Lucas
6:45) - dizem-nos a mesma coisa. Quando falamos estamos expressando o que
está em nosso coração. Às vezes os nossos amigos nos lembram que
“nos entregamos” pelo nosso falar. No entanto, o nosso Senhor tem mais uma
verdade para nos dizer: “O homem bom tira boas coisas do seu bom tesouro, e o
homem mau do mau tesouro tira coisas más. Mas eu vos digo que de toda a
palavra ociosa que os homens disserem hão de dar conta no dia do juízo. Porque
por tuas palavras serás justificado e por tuas palavras serás condenado”. Todos
nós somos lerdos para perceber a importância do falar. Falamos com tanta
liberdade, tão levianamente, tão soltamente; e, no entanto, diz o nosso Senhor:
“Por tuas palavras serás justificada e por tuas palavras serás condenado”. Ele
nos assegura que no dia do juízo o homem “dará conta de toda palavra ociosa
que tiver dito”. Ele quer dizer que é quando estamos desprevenidos, por assim
dizer, que realmente expressamos o que somos. O moralismo pode pôr certo
controle em nós. Mas vocês descobrem realmente a fraqueza do não cristão, do
homem meramente moral, em seus momentos de não vigilância, quando algo lhe
sucede subitamente e ele se expressa; então ele mostra realmente o que é; e

essa é uma das maneiras de distinguir entre o homem meramente moral e o


cristão. O cristão não é alguém que está sempre a reprimir-se; há algo diferente
no centro, porquanto da abundância do coração a boca fala; é o que escorrega
para fora que realmente nos diz a verdade sobre outra pessoa.
Não admira, pois, que o apóstolo dê grande atenção a esta questão de falar.
Vocês, efésios, diz ele, eram pagãos, e eram tipicamente pagãos em sua
conversação e em seu falar. Entretanto, diz ele, agora vocês são novos homens,
vocês se despojaram do velho homem, revestiram-se do novo, e não há aspecto
em que mostram isso de maneira tão direta e clara como na sua conversação, na
espécie de coisa sobre a qual conversam, e no seu falar. E notamos também que
ele adota a mesma fórmula que adotara em todos os outros casos: primeiramente,
injunção negativa, depois, injunção positiva, e em terceiro lugar, explicação.
“Não saia da vossa boca nenhuma palavra torpe”; aí está a negativa. Então, que é
que vocês devem fazer? “... só a que for boa para promover a edificação”; aí está
a positiva. Mas por que vocês têm que fazer isso, qual a razão? A razão é, “para
que dê graça aos que ouvem”. Adotamos a classificação feita pelo apóstolo, pois
não podemos melhorá-la.

A injunção negativa corre: “Não saia da vossa boca nenhuma palavra torpe”, que
eqüivale a dizer que, nessa questão de falar, o cristão deve ser completamente
diferente do não cristão. Devemos, pois, indagar a nós mesmos o que é que
caracteriza a fala, a conversação dos não regenerados e dos ímpios, e isso é
sugerido pelos próprios termos usados pelo apóstolo, que vemos elaborados
noutras partes das Escrituras. Uma característica do falar dos ímpios é o excesso,
a falta de controle. Os ímpios falam demais; falam sem pensar, estão
sempre falando. Se você viajar de ônibus ou de trem, ou se estiver numa
sala pública, verá esse constante falatório; é sempre uma característica
dos ímpios. Provavelmente nem todos percebemos que o povo cristão não fala
tanto como o povo não cristão.

Outra característica da conversação do não cristão é aquilo que realmente faz


dela o que é - tão-somente uma expressão do ego. A vida do não regenerado é
sempre egoística, egocêntrica, e a sua conversação e o seu falar sempre visam a
uma oportunidade para exibição pessoal. Isto explica por que tais pessoas,
quando juntas, procuram falar todas ao mesmo tempo. Uma não pode esperar
que a outra termine; todas querem ficar com a palavra. Está eternamente presente
o desejo de ser interessante, divertido, e de ser admirado, com o povo dizendo:
que maravilhoso! Todas elas querem estar sempre

com a palavra, anseiam por auto-expressão e por conseguir algo para o seu ego.

Se vocês analisarem uma fala e uma conversação tendo todas essas coisas em
mente - o excesso, o não falar na vez e a interrupção uns dos outros - vocês serão
forçados a concluir que não há nada nelas, senão a pura manifestação do ego e
da importância própria, o desejo de admiração e de elogio. A conversação dos
ímpios está repleta dessas características.

Depois o apóstolo introduz algo que seguramente tem também uma nova
urgência nos dias atuais, a saber, a falta de polidez. Que lástima! Ele se refere ao
que é torpe, indigno, feio, indecente, corrupto e sujo. Estas são traduções
alternativas da palavra que ele usa. Naturalmente, temos termos polidos para
essa coisa má; falamos de mordacidade, de acrescentar um pouco de tempero à
conversação, de algo sugestivo, vulgaridade, impureza, grosseira, obscenidade.
Esta é sempre a característica da conversação da sociedade pagã, mesmo em
sua melhor condição. Digo mesmo em sua melhor condição! Talvez seja uma das
maiores manifestações da Queda e do corruptor efeito do pecado, que mesmo
homens pertencentes a profissões e sociedades cultas, quando se encontram em
seus jantares e festas, passam o tempo contanto anedotas uns aos outros,
repetindo anedotas, colecionando-as, dando-se ao trabalho de recordá-las. Fazem
isso porque sabem que serão admirados por isso, e se tomarão o centro de
atração. E quanto mais atrevidos, mais maravilhosos! Homens capazes e
inteligentes, em alta posição em suas p/ofissões, literalmente passam o tempo
fazendo esse tipo de coisa. É clara evidência da grosseria que o pecado introduz
na vida humana e nos corações dos homens; contudo, isso é considerado esperto,
divertido. “Vocês ouviram esta?” perguntam, e toda gente ouve! Homens dotados
de inteligência, sim, e homens honrados, são capazes de passar o tempo dessa
maneira, uma horrorosa manifestação do corruptor efeito do pecado!

Seria fácil fazer neste ponto uma digressão para chamar a atenção de vocês para
o óbvio aumento desse tipo de coisa na vida do nosso país e de outros. Uma
baixeza, um relaxamento está se insinuando na conversação. As pessoas usam
em público termos que ninguém sonharia em usar há quarenta anos. Acaso vocês
não notaram a entrada disso nos artigos e nas revistas, não somente nos jornais?
Isso não estaria acontecendo em geral? Esta curiosa tendência de desafiar -
na verdade se tomou tão costumeira que não desafia nem choca ninguém. E está
se tornando espantosamente comum. Até em periódicos de boa reputação não se
pode senão notar o curioso e triste declínio que tão evidentemente vem
ocorrendo. E frequentemente o mundo ímpio faz

disso uma brincadeira, e considera divertido o que realmente é trágico. Por que
se deveria considerar divertida a infidelidade de um homem para com a sua
esposa? Por que as constantes pilhérias sobre esse tipo de coisa? Nada causa
maior infelicidade a homens, mulheres e crianças do que justamente esse mal, e,
todavia, é considerado como tema para brincadeira. Atos de infidelidade tornam-
se objetos de riso e diversão! Comunicação torpe, conversação torpe, é marca
dos nãp regenerados. Não se envolvam com nada disso, diz o apóstolo. É prática
corrupta e corrompe outros. E isso era o que mais ocupava a mente do apóstolo
aqui, como em todas estas diversas injunções. Ele quer que os crentes
considerem a influência das suas palavras sobre os outros, pelo que diz: não saia
da sua boca nenhuma palavra torpe; algum espectador pode ouvi-la, e isso lhe
poderá ser nocivo.

Que influência as palavras podem ter? Tiago nos lembra que elas inflamam, com
uma paixão do inferno! Muitos homens se desgarraram na vida simplesmente
por terem ouvido conversa que estimula, inflama e provoca tudo quanto é
indigno. Escrevendo aos coríntios, o apóstolo Paulo adverte-os de que “as más
conversações corrompem os bons costumes” (1 Coríntios 15:33). Portanto, diz
ele, por amor aos outros, que nada disso saia da sua boca. Para expressá-lo com
muita simplicidade e clareza, o que ele está realmente dizendo é: parem de fazer
esse tipo de coisa! Notem particularmente, porém, mais uma palavra que ele
utiliza: “Não saia da vossa boca nenhuma palavra torpe”. Noutras palavras, se
isso chegar a entrar em sua mente, se começar a tomar forma em seus lábios e
em sua língua, pare! Se chegou em sua boca, não o deixe sair! Crucifique-o,
mate-o, assassine-o, detenha-o! Se já lhe pesa a culpa de maus pensamentos, se
o diabo os sugere a você - se você não conseguir detê-lo, ele atirará em você os
seus dardos inflamados, ele os insinuará a sua mente, as suas sugestões malignas
- mesmo assim, diz o apóstolo, o que lhe estou dizendo é isto: jamais saiam
palavras torpes da sua boca, faça-as morrer em seus lábios pelo bem dos outros.
Esta é a sua injunção negativa, antes de tentar persuadi-los com a positiva.

Que é que deve sair da sua boca? “A que for boa para promover a edificação.”
Devo salientar de novo que uma parte da glória central da fé e vida cristã é que
nunca é meramente negativa. Não é moralismo, é cristianismo. O moralista pode
pôr breques e freios, e pode não ser culpado de certas coisas, mas pára nesse
ponto. Paulo, porém faz soar uma nota positiva. O evangelho de Cristo dá-nos
vida, nova vida, e está cheio de atividade positiva e de diligente esforço; e é
sempre este o método cristão. Observem a expressão do apóstolo -“a que for boa
para promover a edificação”. Desafortunadamente, a

Versão Autorizada (.Authorized Version) (e com ela, ARC) realmente não é boa
neste ponto, pois traduz mal a frase. Diz ela: “a que for boa para proveito da
edificação”; entretanto o que Paulo diz de fato é: “a que for boa para a edificação
da necessidade”. A Versão Revista inglesa (Revised Version) a traduz melhor:
“aquela que for boa, conforme a necessidade” (como ARA). Todavia a Versão
Revisada Padrã (Revised Standard Version) é melhor ainda: “Somente
aquela que for boa para edificação, de acordo com as circunstâncias”.
Então, quais são os princípios que devem governar o meu falar e a
minha conversação com outros? Examinaremos primeiro os princípios gerais.

O primeiro, evidentemente, é que a nossa conversação deve estar sempre sob o


nosso controle. Em nossa condição anterior de não regenerados - e infelizmente
caímos nisso às vezes, mesmo como cristãos - todos fomos culpados de
embriagar-nos com a conversação. Observem as pessoas conversando,
especialmente nas conferências. A conversação começa com serenidade; eleva-
se o grau; no fim as pessoas estão gritando; é grande o vozerio; é pura
intoxicação; a conversação as embebeda, perdeu-se totalmente o controle. Um
diz uma coisa, outro quer meter-lhe bala, e um terceiro quer ser ainda
mais atrevido, e lá se vai todo o controle. A língua do cristão jamais deve ficar
fora de controle. Jamais devemos acalorar-nos a ponto de nos tornarmos
realmente irresponsáveis pelo que dizemos. Sempre é preciso haver pensamento
por trás da fala e da conversação do cristão porque, como eu disse antes, o nosso
falar e a nossa conversação são uma expressão da nossa personalidade total. E o
que diferencia o cristão do não cristão é justamente isto - nada de excesso,
mas controle, disciplina, ordem. Vai-se o caos. O Deus que ordenou que das
trevas brilhasse a luz na criação, brilhou em nossos corações para que tenhamos
a luz do conhecimento da glória de Deus na face de Jesus Cristo. Ele trouxe
ordem, há controle e tudo está em posição. E, naturalmente, a nossa conversação
é dominada pela verdade em que cremos.

A segunda coisa evidente acerca do linguajar do cristão é que não é mais egoísta
ou egocêntrica. O crente nunca deve sair só querendo ser admirado ou ser
importante ou ser considerado uma maravilha na conversação. Nunca! Quem faz
isso é o velho homem. Fora com ele! Detenha-o! - diz Paulo. Não se envolva
nisso, você foi tirado disso; nunca se ponha na frente, nunca procure
oportunidade para a sua exibição pessoal. O que deve caracterizar o falar do
cristão é o interesse pelas outras pessoas. Paulo disse isso em cada uma destas

injunções específicas. Disse ele: “Falai a verdade cada um com o seu próximo”,
pelo bem do seupróximol “Irai-vos, e não pequeis; não se ponha o sol sobre a
vossa ira” - não vá dormir com um pensamento mau sobre o seu próximo!
“Aquele que furtava, não furte mais; antes trabalhe, fazendo com as mãos o que
é bom, para que tenha que repartir com o que tiver necessidade”! Em cada
ordem dada o próximo é proeminente, e continua sendo nesta questão do falar,
do prosear e da conversação. Você não deve exibir-se e mostrar-se, como
dizemos, pois o cristão é alguém que não só pensa em seus próprios interesses, e
sim também nos dos outros. Ele é como o Senhor, e a mente do Senhor deve
estar em nós. Ele não pensou em Si; por amor dos outros, por amor de nós, Ele
Se humilhou.

Estes, pois, devem ser os princípios gerais do nosso falar e da nossa


conversação. Mas, quais são os princípios particulares? Primeiro, diz o apóstolo,
a nossa conversação deve ser “boa”, não torpe, não corrupta. E à palavra “boa”
ele acrescenta “para edificação”. É preciso que haja algum propósito, alguma
perspectiva, algum valor nela. Não devemos ser tagarelas o tempo todo, falando
sobre coisa nenhuma. Ah, as horas que temos desperdiçado na vida, com prosa
ociosa, tagarelice inútil e conversa fiada, tudo para nada! O cristão
deve desfazer-se disso. Ele não tem que necessariamente estar sempre falando
em religião, porém toda vez que falar, terá que haver no que fala algum
conteúdo, algum valor. Terá que ser sempre uma palavra boa, sempre limpa e
sempre terá que ser edificante, num sentido ou noutro, para que as pessoas
digam no fim: foi uma boa coisa passar algum tempo com esse homem ou com
essa mulher; sinto-me melhor por tê-lo feito. Estou quase tentado a dizer que
uma das principais diferenças entre a conversação pagã e a cristã é que a
conversação cristã é inteligente, e a outra não.

No entanto a ordem vai mais adiante. Inclui a menção da necessidade, a


edificação da necessidade, ou, como a Revised Standard Version o expressa, “de
acordo com as circunstâncias”, ou, conforme a necessidade. Isto é
particularmente importante. Eé justamente aqui que alguns de nós, cristãos - e
talvez isto se aplique particularmente aos evangélicos - tantas vezes caímos no
erro e numa armadilha. Aqui estou em conversa com alguém, ou com alguns.
Não devo fazer certas coisas; devo ter consideração pelos outros; o meu falar
deve ser bom e edificante. Sim, mas vá adiante, diz o apóstolo, o seu falar deve
ser “de acordo com as circunstâncias”. Coisa difícil, porém vital!

“De acordo com as circunstâncias” significa que eu devo refletir sobre as


pessoas com as quais estou falando; devo fazer uma avaliação

delas, e o meu linguajar e a minha conversação devem ser apropriadas a elas.


Mas muitos cristãos não fazem isso; o que fazem é pregar-lhes um sermão; falam
com um indivíduo como se ele ou ela fosse uma reunião pública; o que fazem é
sermonar; fazem-lhe um pequeno discurso ou um sermoneco; fazem excelentes
declarações sobre o evangelho e sobre o meio de salvação, todavia às vezes isso
não é próprio e não está de acordo com as circunstâncias. Agem dessa maneira
porque estão pensando somente em si mesmos, e não estão avaliando o outro.
Dizem a si mesmos: agora que sou cristão e devo empenhar-me em boa e
piedosa conversação, sempre devo dar o meu testemunho ou pregar o evangelho
ou introduzir uma breve palavra num ponto ou noutro.

Não, diz o apóstolo; essa abordagem é errônea. Se fizer essa abordagem, você
estará mais preocupado consigo próprio e com o cumprimento do seu dever, do
que em manifestar a atitude verdadeiramente cristã nesta questão. A palavra de
edificação dita pelo cristão sempre deve ser de acordo com as circunstâncias!
Portanto, não devemos repetir frases como papagaio e achar que agimos bem
e cumprimos o nosso dever. Nada disso! Em vez disso, devemos primeiro
descobrir qual a exata situação das outras pessoas. Compete-me falar-lhes de
modo tal que as ajude exatamente no ponto em que elas estão; “não deiteis aos
porcos as vossas pérolas”, diz o nosso Senhor (Mateus 7:6). Não dê um bife,
digamos, de boa carne vermelha a um bebê que só pode tomar leite! Estes são os
termos das Escrituras, não são? “Eu, porém, irmãos, não vos pude falar”, diz
Paulo aos coríntios, “como a espirituais; e, sim, como carnais, como a
crianças em Cristo. Leite vos dei a beber, não vos dei alimento sólido”. O fato é
que eles não podiam suportá-lo! (1 Coríntios 3:1-2, ARA).

O autor da Epístola aos Hebreus lamenta o mesmo fato. Diz ele aos seus leitores:
eu gostaria que vocês fossem adiante, para a perfeição, mas tenho que retroceder
em meu ensino, pois vocês não estão querendo receber mais que os primeiros
princípios do evangelho de Cristo. Sim, mas que sábios mestres eram os homens
desse tipo! Reconhecendo que os seus leitores ainda não estavam em
condições de receber ensino mais avançado, davam-lhes ensino próprio para
as condições deles, “de acordo com as circunstâncias”! Evidentemente, esse é o
modo como todos os cristãos devem falar. Não só falamos e falamos e falamos;
não apenas fazemos afirmações corretas. Temos que aprender a entender os
outros e suas necessidades. E devemos estar tão desejosos de ajudá-los que
tomemos tempo, meditemos, pensemos, experimentemos o nosso método,
observemos a situação, e então aplicamos a palavra necessária e apropriada. Isso
requer
grande sabedoria, grande compreensão, grande paciência. Não sejamos injustos
com as pessoas, não esperemos que elas sejam o que não são. O nosso dever é
receber as pessoas como são e procurar levá-las dessa posição a outra. Portanto,
sejamos cuidadosos no sentido de que a nossa palavra, a nossa palavra boa para
edificação, sempre seja de acordo com as circunstâncias e seja apropriada para
qualquer ocasião, em cada caso individual.

O objetivo da nossa “palavra” é “para que dê graça aos que a ouvem”, isto é,
para que, de algum modo, lhes transmita graça. Nunca esqueçam, diz com efeito
o apóstolo, que o homem ou a mulher ou o grupo de pessoas a quem vocês
estiverem falando, possuem almas imortais; que a vida deles não termina neste
mundo, que eles vão para a eternidade. E se o mantivermos em mente,
certamente isso dominará e governará toda a conversação. Dê-lhes graça!
Acontecerá que alguns com os quais você vai conversar não são convertidos; que
haja quanto a você, quanto à sua maneira de falar e quanto ao que você
diz, alguma coisa que os prenda e chame a atenção deles para a verdade. Não
pregue, porém que a sua conversação em geral seja tal que algum aspecto da
graça se torne evidente para eles. E, por outro lado, se eles são filhos de Deus,
ajude-os a edificar a sua pequena provisão de graça, de conhecimento e de
entendimento; eles são exortados, como nós somos, a crescer na graça e no
conhecimento do Senhor. Que o contato com você ajude esse processo, e que a
sua conversação com eles leve à edificação deles.

Posso resumir o ensino do apóstolo assinalando que o que ele está fazendo
realmente aqui é pedir-nos que nos portemos como o nosso Senhor. Como é que
Ele se portava? Temos uma descrição dEle, feita pelo profeta Isaías numa das
suas grandes passagens messiânicas. No capítulo cinqüenta ele olha para o futuro
e O vê, e nos diz que o Messias está dizendo as seguintes palavras: “O Senhor
Jeová me deu uma língua erudita, para que eu saiba dizer a seu tempo uma boa
palavra ao que está cansado”. Meu querido povo cristão, há gente cansada
ao nosso redor, cansada do pecado, cansada no pecado, cansada da vida. Há em
torno de nós cristãos carregando fardos, carregando cargas, padecendo
enfermidades e doenças, decepções, traição de amigos, alguma acariciada
esperança que se foi de repente, ilusões frustradas e desvanecidas; há por perto
de nós homens e mulheres cansados! E quando nos encontrarmos com eles e lhes
falarmos, esqueçamo-nos de nós mesmos, não consideremos o encontro como
uma ocasião na qual podemos demonstrar como somos maravilhosos. Não o
permita Deus! Oremos para que tenhamos esta língua erudita que nos habilite a
falar
uma palavra a seu tempo a alguma pobre alma cansada. O nosso Senhor veio do
céu para fazer isso; e a respeito dEle foi escrito, e Ele o concretizou em Sua
vida: “A cana trilhada não quebrará, nem apagará o pavio que fumega” (Isaías
42:3). Esse é o caminho para nós também. Durante o nosso jornadear pela vida,
devemos ajudar os homens eas mulheres com umapalavra,umapalavra de
encorajamento, uma palavra de entusiasmo, talvez uma palavra de reprovação,
mas uma palavra que os faça lembrar-se de que estão sob Deus, e de que, se
estiverem em Cristo, serão preciosos para Ele. Saiamos, pois, para socorrer os
cansados e ajudar os fracos. Ajudemos verdadeiramente uns aos outros, em
todos os aspectos da nossa vida e da nossa conversação, porém sobretudo em
nosso falar. Não proceda da nossa boca nenhuma comunicação corrupta, e sim
somente a que for boa para a edificação dos outros, para o melhor proveito da
necessidade, de acordo com as circunstâncias, para que possa ministrar graça
aos ouvintes. Graças a Deus pela vida cristã, em que tudo passa por mudança, e
tudo o que somos, fazemos e dizemos é tão diferente daquilo que caracterizava a
antiga vida não regenerada. Bendito seja o nome de Deus, que teve misericórdia
de nós e enviou o Seu Filho, não somente para morrer por nós e libertar-nos de
inferno e sua corrupção, mas também nos deu esta nova natureza e modelou de
novo as nossas vidas à Sua imagem.

“NÃO ENTRISTEÇAIS O ESPÍRITO SANTO DE DEUS”

“E não entristeçais o Espírito Santo de Deus, no qual estais selados para o dia
da redenção. ” - Efésios 4:30

Em nosso estudo sistemático do capítulo quatro da Epístola aos Efésios,


chegamos à espantosa e admirável declaração que o apóstolo aqui, por assim
dizer, lança no meio de uma série de injunções e exortações práticas. E
certamente, ao ver-nos confrontados por este versículo trinta, muitas coisas vêm
de imediato às nossas mentes. A primeira é que não há nada, talvez, que seja tão
característico do método deste grande homem de Deus, o apóstolo Paulo, como
a maneira pela qual ele faz precisamente aquilo que nós estamos considerando
aqui. Conquanto ele tenha uma divisão óbvia do seu assunto nesta Epístola,
como em todas as outras, tratando das suas doutrinas na primeira metade e
depois passando à aplicação prática das mesmas, ele nunca é escravo do método.
E assim vocês o vêem na seção prática, embora de fato tratando de questões
particulares, específicas, de maneira totalmente prática e pastoral, de
repente lançando uma vigorosa declaração como esta, o que nos coloca outra vez
face a face com as doutrinas centrais, axiais da nossafé e profissão cristã. E, ao
proceder assim, o apóstolo realmente nos mostra, não somente o seu método,
mas também certas verdades profundas acerca da totalidade da nossa vida cristã
e do nosso comportamento cristão.

A primeira coisa que devemos considerar é a que se refere à conexão desta


declaração particular. E aqui há desacordo entre os comentaristas, não grave, é
claro, porque, em última análise, realmente não tem importância. Há os que
dizem que a declaração vem realmente como um clímax do que Paulo já estivera
dizendo; que, tendo-nos dito que não mintamos e que não nos iremos num
sentido errôneo, e nos havendo dito que não mais roubemos, e que não deixemos
sair da nossa boca nenhuma palavra torpe, ele diz, com efeito: assegurem-se de
não cair nestes pecados, porque seria entristecer o santo Espírito de Deus. E,
naturalmente, isso é perfeitamente

verdadeiro. Mas eu penso que também é verdade que quando o apóstolo


escreveu essas palavras, tinha igualmente em mente o que se seguiria: “Toda a
amargura, e ira, e cólera, e gritaria, e blasfêmia e toda a malícia sejam tiradas de
entre vós. Antes sede uns para com os outros benignos, misericordiosos,
perdoando-vos uns aos outros, como também Deus vos perdoou em Cristo”. Na
análise que lhes apresentei quando estávamos tratando do versículo 17, sugeri
que este versículo trinta é uma introdução daquilo que vem a seguir, e não um
resumo e um reforço daquilo que viera antes. Digo isso tudo meramente
por amor da ordem e da limpidez das nossas mentes e do nosso pensamento.
Quanto mais límpidas as nossas mentes quando lemos as Escrituras, melhores
cristãos seremos. No entanto, indubitavelmente, como digo, esta declaração
abrange as exortações e injunções precedentes, e também as que se lhes seguem.
Ela vem aqui como uma especie de centro, um ponto focal, de tudo o que é dito
em relação às particularidades.

Em segundo lugar, neste versículo temos o que se pode descrever muito bem
com a differentia 1 da ética cristã; quer dizer, temos aqui o que realmente faz da
ética cristã o que ela é e a distingue de todas as outras espécies de sistema ético
ou moral. Todos os outros lhes dirão que não mintam, que falem sempre a
verdade, que não percam o equilíbrio emocional, mas sempre se dominem e
sejam disciplinados; eles lhes dirão que não roubem, que não usem mau
linguajar e nenhum tipo de comunicação corrupta, e que vocês sejam amáveis e
bondosos, que estejam dispostos a ajudar e que sejam filantrópicos; eles
fazem tudo isso, porém nunca em seus sistemas você encontra a ordem: “e não
entristeçais o Espírito Santo de Deus” - nunca! Esta, digo eu, é a peculiaridade, a
differentia, aquilo que o marca, que o separa de tudo mais. E, naturalmente, isso
é importante da seguinte maneira: se a nossa concepção da vida cristã e do viver,
da conduta e do comportamento cristãos não incluir essa ordem e não estiver
baseada nela, e não estiver nos levando sempre nessa direção, não é
verdadeiramente cristã. Uma boa conduta não é necessariamente cristã. E é um
fato trágico na vida e na história da Igreja que com muita freqüência
o moralismo, moralismo que até pode usar terminologia cristã, é confundido
com o cristianismo. Mas eis o teste: a totalidade da nossa vida está centralizada
numa verdade como esta? Ela está no coração de toda a nossa perspectiva da
conduta e do comportamento, e no cerne da nossa prática?

Além disso, neste versículo, nesta declaração, temos o que pode-

mos muito bem descrever como o coração, o cerne e o centro da doutrina bíblica
da santificação. É um apelo, sim, mas notem a espécie e o tipo de apelo que é.
Notem a natureza do apelo feito pelo apóstolo. Negativamente, ele não está
apelando para que se amoldem a uma lei ou a um código moral ou a um código
de ética. Ele não menciona tal coisa em seu apelo. Seu apelo não está num nível
legal, não é no sentido de que o cristão deve obedecer a um certo padrão. Os
padrões são bons no lugar que lhes cabe, porém isso não é peculiarmente cristão.
Mais importante ainda é observar que o apelo de Paulo não é para que os crentes
se refreiem quanto a certas coisas para o seu próprio benefício. Nisso o seu
ensino é completamente oposto a certas escolas populares de pensamento e de
ensino que invariavelmente ensinam a santificação em termos de nós mesmos.
Elas nos dizem: você está com algum problema em sua vida? Você está preso a
algum pecado específico? Você é derrotado constantemente? Se é assim,
procuremos, venha à nossa clínica, e nós o ajudaremos a lidar com o
pecado específico que o está arrasando. Não há uma só palavra disso aqui,
pois não é o modo bíblico de apresentar a santificação. Esta não
começa conosco, não é em termos de nós mesmos. Não nos diz: se você quer ter
uma vida vitoriosa, ser realmente feliz, ter grande gozo e experiências
maravilhosas, pare de fazer isto e aquilo. Absolutamente não! Naturalmente, as
coisas malignas são más para mim, e, obviamente, como estou prestes a
demonstrar-lhes, elas afetam a minha experiência, todavia não é essa a primeira
coisa. Se nos falta entendimento da doutrina bíblica, revelaremos o fato pelas
coisas que pomos em primeiro lugar, é a coisa que o homem põe em primeiro
lugar que realmente nos diz onde ele se firma e qual é o seu fundamento.^
Aqui ele nos mostra o que deve ser. Deve ser a Sua gloria! É por isso que não
devo fazer certas coisas. “Não entristeçais o Espírito Santo de DEUS no qual
estais selados para o dia da redenção.” Aí está o modo cristão, aí está o modo
bíblico de ver toda esta questão de santificação. Não por nós mesmos, mas por
amor de Cristo! A nossa santificação, a nossa vida, a nossa conduta, sempre deve
ser a percepção, o resultado e o desenvolvimento daquilo que Ele fez por nós,
do fato de sentirmos a Sua glória e do nosso desejo de viver para o louvor da
glória da Sua graça.

A doutrina ensinada pelo apóstolo é que o mau viver, em qualquer sentido, ou de


qualquer modo ou forma, entristece o Espírito Santo de Deus, em quem os
crentes são selados até o dia da redenção. A ordem das palavras no original
grego dá maior ênfase à declaração: “Não entristeçais o Espírito, o santo Espírito
de Deus”! E como o apóstolo

o coloca: “o Espírito, sim, o santo Espírito de Deus, em quem vós sois selados
para o dia da redenção”!

Obviamente, a primeira coisa que esta passagm nos ensina refere-se ao Espírito
Santo na vida do crente. Lembra-nos que no capítulo primeiro o apóstolo o
expressa desta mesma maneira interessante e extraordinária, em termos de selo.
E aqui, no capítulo quatro, ele nos diz que o selo que Deus nos dá do fato de que
estamos entre os remidos é o próprio Espírito Santo. Não é uma declaração
concernente ao que o Espírito Santo nos faz, mas que Deus nos sela com o
Espírito Santo. O próprio Espírito Santo é o selo. E Ele nos sela para o dom da
salvação e todos os seus concomitantes, como no-lo garante o apóstolo
no capítulo primeiro, onde ele diz: “e, tendo nele também crido, fostes selados
com o Espírito Santo da promessa, o qual é o penhor da nossa herança, para
redenção da possessão adquirida”. E aqui, neste capítulo quatro, o apóstolo,
tomando por líquido e certo que os crentes efésios guardam na mente o que eleja
lhes falara, agora simplesmente faz uso desse argumento a fim de reforçar e
aplicar esta série de injunções particulares relacionadas com a sua conduta ética,
com o seu comportamento ético.

O que é importante que tenhamos em mente nesta conjuntura particular é que o


Espírito Santo nos foi dado e que Ele habita em nós. Nenhum homem é cristão, a
menos que o Espírito Santo esteja nele. “Se alguém não tem o Espírito de
Cristo”, diz Paulo aos cristãos romanos, “esse tal não é dele” (8:9). Esta é a
doutrina que percorre toda o Novo Testamento. Não precisamos aprofundar-nos
nela aqui em particular. No capítulo 3 da Primeira Epístola aos Coríntios o
apóstolo nos lembra que o Espírito Santo habita na Igreja como corpo; no fim do
capítulo 6 dessa mesma Epístola o apóstolo faz esta colocação: “Ou não sabeis”
- e agora ele está falando sobre o indivíduo, não sobre a Igreja como corpo -
“não sabeis que o vosso corpo é o templo do Espírito Santo, que habita em vós,
proveniente de Deus, e que não sois de vos mesmos? Porque fostes comprados
por bom preço; glorificai pois a Deus no vosso corpo, e no vosso espírito, os
quais pertencem a Deus” (versículos 19 e 20). O que certamente o apóstolo tem
em sua mente neste versículo trinta do capítulo quatro da Epístola aos Efésios é
que o Espírito Santo habita dentro de nós, que os nossos corpos são templos em
que o Espírito Santo habita. Agora veremos como ele aplica esse argumento e o
desenvolve.

A segunda coisa que o apóstolo nos diz é que é possível entristecer o Espírito
Santo. Ora, digo eu, esta é uma afirmação mais que magnífica e espantosa, e
derrama abundante luz sobre a doutrina cristã

da redenção. Os cristãos sempre devem lembrar-se de que Deus é eterno, Deus o


Pai e o Filho e o Espírito Santo. Deus é\ Ele independe de tudo, existe em Si
mesmo, existia antes do tempo, antes de existir o mundo, e não tinha necessidade
de coisa alguma. Há um grande termo teológico que devo usar neste ponto
porque ele ajuda a expressar a idéia com a qual nos defrontamos aqui - Deus é
impassível; quer dizer que Deus não somente não depende de nós, do mundo e
de todas as coisas que acontecem no mundo, mas, num sentido final, nada destas
coisas O afeta. Eu e vocês somos criaturas constantemente afetadas pelas coisas
que acontecem ao nosso redor, e é por isso que damos lugar à raiva e à ira e às
várias outras coisas de que estivemos tratando; estamos sujeitos a elas e somos
afetados por elas. Contudo Deus, em Si e de Si, está fora disso tudo. E, todavia,
é-nos dito pelo apóstolo: “Não entristeçais o Espírito Santo de Deus”!

Pois bem, como conciliar essas duas coisas? Essa é a questão. Num sentido
conclusivo, não podemos conciliá-las, é um grande mistério que ultrapassa o
nosso entendimento; mas temos o direito de dizer que, por causa do meio de
salvação e redenção, e como parte destas mercês, Deus, por assim dizer, desceu
ao nosso nível. Vemos isso na encarnação do Filho; Ele assumiu a natureza
humana e, portanto, conhece a nossa ignorância, a nossa fraqueza e a nossa
fragilidade; Ele sabia por experiência o que é ter fome e sede e estar cansado;
Ele mesmo Se conduziu a essa possibilidade. E a presente passagem nos diz a
mesma coisa acerca do Espírito Santo, que, tendo em vista os propósitos
da redenção e da salvação porque Ele veio residir e permanecer em nós, é-nos
possível entristecê-10. Agora, esta é uma espécie de condição temporária; não
obstante, é uma condição real. Na salvação Ele Se pôs numa relação conosco
que nos possibilita feri-10, entristecê-10, desapontá-10.

A analogia que devemos ter em nossas mentes é obviamente esta, que a nossa
relação com o Espírito Santo é de amor. E esta é a essência da doutrina cristã da
salvação. Demos fim à lei, não estamos mais debaixo da lei; mas estamos
debaixo da graça, e jamais devemos pensar em nós mesmos naqueles velhos
termos legais. Quando o cristão peca, não é tanto de que ele fez algo errado, nem
mesmo de que quebrou a lei, que ele deve tomar consciência; o que realmente
deve preocupá-lo é que fez ofensa ao amor. O próprio termo entristecer
o comprova. A nossa relação agora é pessoal. E é porque nos esquecemos desta
relação pessoal que temos a maioria dos nossos problemas e dificuldades em
nossas vidas e experiências cristãs. Persistimos em considerar o Espírito Santo
como nada mais que uma influência ou que uma espécie de poder. Mas temos
que compreender que Ele é uma

Pessoa! Não se pode entristecer uma influência, só se pode entristecer uma


pessoa. Não se pode ferir um poder, só se pode ferir uma pessoa. Ele pode ficar
decepcionado conosco. Um princípio não pode ficar decepcionado, somente uma
pessoa pode ficar decepcionada. E aqui está, digo eu, uma das coisas mais vitais
e importantes para captarmos, que estamos nesta relação com o Espírito Santo;
se estamos em Cristo, Ele está em nós, Ele habita em nós! Onde quer que
estivermos, Ele está! E nunca nos esqueçamos da Sua ternura. Porventura Ele
não é apresentado nas Escrituras como uma pomba? Por ocasião do batismo no
Jordão Ele desceu sobre o nosso Senhor com a aparência de uma pomba! E é
esse o Espírito que habita em nós. Ele está em nós, os nossos corpos são Seus
templos.

Agora, é obvio que tudo isso só é verdade quanto aos crentes; não pode aplicar-
se ao não crente. O incrédulo pode resistir ao Espírito Santo, mas não pode
entristecê-10. A única pessoa que pode entnstecê-40 é a que pertence à família e
que está nesta relação pessoal. É dessa maneira que eu, como cristão, devo ver a
santificação; não simplesmente em termos de ações ou acontecimentos ou
experiências. Devo esquecer isso tudo, por assim dizer, e dar-me conta de que o
Espírito está em mim e está sempre comigo. Ele conhece todos os meus atos, e
me é possível entristecê-lO, desapontá-10, contristá-10. Isso é que significa o
termo entristecer.
O nosso próximo ponto segue-se em seqüência lógica. Então, como é que
entristecemos ou podemos entristecer o Espírito Santo de Deus? E a resposta
está clara diante de nós. Qualquer coisa que façamos que não seja santa O
entristece. “Não entristeçais o Espírito Santo de Deus!” E isto deve ser
interpretado em seu sentido mais completo. Evidentemente, as coisas que o
apóstolo estivera detalhando entristecem o Espírito. Qualquer coisa pertencente à
carne entristece o Espírito. Vejam a lista dada em Gálatas, capítulo 5: “Porque
as obras da carne são manifestas, as quais são: adultério, prostituição, impureza,
lascívia, idolatria, feitiçarias, inimizades, porfias, emulações, iras, pelejas,
dissensões, heresias, invejas, homicídios, bebedices, glutonarias, e coisas
semelhantes”. Todas obras da carne, e elas entristecem o Espírito Santo de Deus.
Mas, lembremo-nos de que O entristecemos não somente com ações e práticas
concretas. Já fomos lembrados que podemos entristecê-10 com as nossas
palavras. Ele está sempre conosco, Ele ouve tudo o que dizemos; portanto, “Não
saia da vossa boca nenhuma palavra torpe”. Isso O entristece, como também O
entristecem outras coisas que Paulo continua mencionando. Devemos, porém,
dar mais um passo. Você pode entristecê-10

com os seus pensamentos. Ele está em você! Ele está dentro de você! Quantas
vezes o diabo a todos nos fez tropeçar neste ponto? Você dirá: ora, eu não faço
tal e tal coisa. Não, eu sei que você não faz, e talvez não a tenha feito por
covardia, todavia pensou nela, teve prazer com isso e o fantasiou em sua
imaginação, e pensou que tudo estava bem porque não o tinha feito. Nada disso!
Você O entristeceu! Um pensamento indigno, um pensamento impuro, um
pensamento de raiva, de ciúme ou inveja, entristece-O, fere-0 tanto como a ação.
Ele conhece todas as coisas; Ele conhece os mais íntimos recessos da sua mente,
do seu coração e do seu ser, e Ele se entristece tanto com pensamentos indignos
como com palavras e atos indignos.

Mas essas não são as únicas maneiras pelas quais O entristecemos. Há algo que
eu penso que é pior ainda, a saber, o nosso fracasso em não nos darmos conta da
Sua presença dentro de nós, o nosso fracasso em não honrá-10 como devíamos,
o nosso fracasso em não nos cientificarmos de que Ele está sempre conosco.
Existe algo mais ultrajante do que isso? Poderia outra pessoa insultar você ou
feri-lo mais dolorosamente do que comportar-se como se você não
estivesse presente, comportando-se e conduzindo-se como se você não estivesse
na sala? Haverá algo mais humilhante? Como cristãos, pois, jamais nos
esqueçamos de que o Espírito Santo de Deus está em nós e conosco. Nós O
honramos? Deixar de fazê-lo é entristecê-10!
A seguir, outra maneira pela qual entristecemos o Espírito está em nosso fracasso
em não responder às Suas sugestões, à Sua direção, às Suas influências, e a tudo
o que Ele faz em nós, para nós e conosco com o fim de favorecer a obra de
santificação dentro de nós. O Espírito Santo foi dado para aplicar a redenção que
foi adquirida e levada a efeito pelo bendito Filho de Deus. E Ele que opera em
nós tanto o querer como o efetuar, diz Paulo, segundo a Sua boa vontade. E
nós então realizamos o que o Espírito Santo opera em nós constantemente, pois
Ele habita em nós. “A carne cobiça contra o Espírito, e o Espírito contra a
carne”! Ele está em nós para fazer isso. ÉElequenosconcita, que nos dirige, que
cria desejos dentro de nós. Você de repente se vê desejando ler a Palavra: o
Espírito em ação! Subitamente Ele o incentivará à oração, talvez, ou à
meditação. Ele lhe dirá que desista de algo, e que faça algo; tudo vem do
Espírito, é tudo parte da Sua grande obra de santificação. Não responder, ou
postergar, ou dizer, bem, não posso fazer isso agora, estou fazendo outra coisa;
ou não se render a Ele e não se deixar levar por Ele - ah, são estas as
maneiras pelas quais O entristecemos! “Todos os que são guiados pelo
Espírito de Deus”, diz Paulo aos cristãos de Roma, “esses são filhos de
Deus.” Se você não segue a Sua direção, ou se você tenta contrariá-la, ou se

você tenta protelá-la, você O está entristecendo. Retornem à analogia humana -


de pai e filho - e vocês verão como o Espírito pode ser entristecido por qualquer
falta de disposição da nossa parte, por qualquer tendência de dizer: farei isso
mais tarde, largando dEle, por assim dizer; como entristecemos o Espírito não
respondendo nem reconhecendo imediatamente a Sua ação, e não Lhe sendo
grato por Sua condescendência em habitar em nós e em interessar-Se pela
nossa santificação!

Assim vocês vêem, estas são as maneiras pelas quais entristecemos e podemos
entristecer o Espírito. Por que não devemos entristecer o Espírito? Por que
devemos dar atenção a esta exortação do apóstolo: “Não entristeçais o Espírito
Santo de Deus, no qual estais selados para o dia da redenção”? As palavras são
um apelo dirigido tanto aos nossOs corações como ao nosso entendimento. Não
é só o entendimento, é, como estive acentuando, em grande medida o coração e
as sensibilidades. Por que não devemos entristecê-10? Num sentido eu já
estive respondendo a pergunta. Não devemos entristecê-lO porque Ele é quem e
o que é. E isso deveria ser suficiente! Ele é a terceira Pessoa da bendita e santa
Trindade, e Ele está habitando como hóspede dentro de nós, em nossos corpos,
“Hóspede bondoso, Hóspede benfazejo”. A própria grandeza da Sua Pessoa
deveria ser suficeinte para nós. Todos nós sabemos o que isto é na prática, não
sabemos? Há certas coisas que normalmente podemos fazer, porém se acontecer
de termos algum hóspede distinto em nossa casa, deixamos de fazê-las;
sentimos instintivamente que devemos estar com o nosso melhor comportamento
quando temos alguma honorável pessoa conosco. Se há crianças na casa, elas
recebem ordens para ficar quietas, não fazer muito barulho de manhã, ou em
qualquer outra hora, porque Fulano de Tal está hospedado em casa. Muito certo!
É sinal de respeito e de honra. As pessoas fazem grande esforço para ler livros
de etiqueta para portar-se apropriadamente em certos círculos da alta sociedade.
Pensem na meticulosidade com que as pessoas estudam as regras, se têm o
privilégio de ser apresentadas à rainha. Quanto cuidado teríamos com a nossa
linguagem no Palácio de Buckingham! Devemos ser infinitamente mais
cuidadosos com a nossa linguagem onde quer que estivermos, em atenção ao
Hóspede que habita em nós. Nossos pensamentos, nossas imaginações - ali está
Ele, Ele os conhece! É comparável a praguejar na presença de um santo, ou usar
linguagem indigna na presença de alguma pessoa santa. Isto é santificação
cristã - a compreensão de que Ele está dentro de nós! Não é: como posso livrar-
me deste ou daquele pecado? Em vez disso, devemos pensar

NELE; é incentivo suficiente. Não precisamos de alguma experiência mágica;


precisamos tão-somente dar-nos conta da verdade que nos é dada na Palavra de
Deus! Se tão-somente nos apercebêssemos de que Ele está sempre dentro de nós,
toda a nossa conduta e todo o nosso procedimento seriam inteiramente
diferentes.

Pensem ainda na vil ingratidão de que somos culpados quando O entristecemos


de algum modo. Pensem em tudo o que foi feito por nós; pensem no plano de
Deus, elaborado na eternidade; pensem na subordinação do Filho ao Pai, e do
Espírito ao Filho e ao Pai. 2 Pensem no Espírito como co-igual, co-eterno, Ele, a
terceira Pessoa da bendita e santa Trindade, e, todavia, para a nossa redenção Ele
Se subordinou, e até condescendeu em habitarem nós. É uma vil ingratidão não
tomar consciência da Pessoa e não fazer sempre tudo o que é agradável aos Seus
olhos. Entristecê-lO é ser grosseiro, é ser culpado de vil ingratidão pelo que Ele
fez por nós.

Outra coisa que entristece o Espírito Santo, como o apóstolo nos lembra aqui, é o
completo fracasso de nossa parte em não entendermos o objetivo final da
salvação. Qual é o objetivo final da salvação? Que os meus pecados sejam
perdoados? Que eu seja feliz o tempo todo? Que eu fique livre de todos os
problemas da minha vida? Nada disso! Esses são incidentais. Qual o fim e
objetivo em vista? É o dia da redenção! “Não entristeçais o Espírito Santo de
Deus, no qual estais selados até...” - esse é o fim! Ah, estas coisas menores,
graças a Deus por elas, enquanto passamos por este mundo do tempo; mais
são temporais. O grande final está adiante. Qual é ele? É o dia do Senhor que
vem, o dia em que Cristo voltará e julgará o mundo com justiça, e destruirá
todos os Seus inimigos, e removerá do cosmos todo vestígio do mal, e instaurará
o Seu reino eterno. E nós, como crentes, estaremos lá, em corpos glorificados,
perfeitos, sem mancha nem ruga nem coisa semelhante, parte integrante desta
Igreja gloriosa, a noiva de Cristo, removido tudo o que é indigno e mau. Esse é o
fim, o dia da redenção, a entrada na salvação plena, final e perfeita!

O apóstolo dissera realmente no versículo quatro do capítulo primeiro: “como


também nos elegeu nele antes da fundação do mundo, para que fôssemos santos
e irrepreensíveis diante dele em amor”. O fim da redenção e da salvação não
consiste tanto nas coisas particulares que podem ser verdadeiras a nossa respeito
aqui e agora neste mundo, mas em que sejamos “santos e irrepreensíveis diante

dele em amor” - neste mundo, sim, porém especialmente naquele grande dia da
redenção! Portanto, o homem que entristece o Espírito não entende como ele
devia o pleno objetivo e propósito da redenção. Por que Cristo morreu na cruz?
Simplesmente para que você não fosse para o inferno? Não! Responda a
pergunta positivamente - para que você fosse para a glória! Não olhe sempre
pela negativa; não diga: estou livre disto, disso e daquilo; claro que está,
entretanto você está livre para, está preparado paral É isso que importa. Acaso
não é trágico quando as pessoas pregam a santificação em termos
subjetivos, pessoais, em vez de porem diante de nós a visão do dia da
redenção, da glória que nos espera, da perfeição para a qual estamos
sendo preparados? Esse é o objetivo disso tudo! Pedro, colocando com o
seu estilo e com as suas palavras o que Paulo diz aqui, declara-nos: “Aquele em
quem não há estas coisas é cego, nada vendo ao longe, havendo-se esquecido da
purificação dos seus antigos pecados”. “Acrescentai à vossa fé a virtude, e à
virtude a ciência” (ou “o conhecimento”, VA e ARA), e assim por diante, diz
Pedro em sua Segunda Epístola, porquanto, se fizerdes isso, “vos será
amplamente concedida a entrada” naquele estado final do reino de Deus. É
pena, mas o problema das nossas vidas é que, ou não conhecemos, ou
não cremos, ou não aplicamos estas doutrinas cristãs. E demonstrar um tipo final
de ignorância naparte central do objetivo global da redenção, é entristecer o
Espírito.
Dessa maneira lhes ofereci as grandes verdades, e deviam ser suficientes, mas, a
fim de animar e ajudar, permitam-me tornar-me pessoal, na verdade, subjetivo.
Pelo seu próprio bem, não entristeça o Espírito, porque, se O entristecer, isso o
levará inevitavelmente à perda das benéficas manifestações da Sua presença.
Entristeça-O, e Ele Se retirará. Quero dizer com isso que Ele retirará as
manifestações de Si próprio. Se você entristecer o Espírito, não sentirá o amor
de Deus por você, não terá a alegria da salvação, não terá segurança, não terá
certeza, não terá paz, não será capaz de dizer: o Espírito dá testemunho com o
nosso espírito de que eu sou filho de Deus. Tudo isso está implícito no selo; e se
você entristecer o Espírito, as evidências do selo em você ficarão esmaecidas e,
de fato, poderão desaparecer completamente. Não me entenda mal, não estou
dizendo que você estará perdido, porém estou dizendo que lhe faltarão, que você
perderá as consolações do Espírito! O cristão é alguém de quem se espera que
experimente a alegria do Senhor. “Regozijai-vos sempre no Senhor; outra vez
digo, regozijai-vos”, diz Paulo aos filipenses. Também o diz aqui, aos efésios. O
cristão não é alguém que se arrasta

pelo seu enfadonho caminho neste mundo gemendo e chorando. Quando ele olha
para dentro de si, só vê pecado, e chora; no entanto, não deve olhar só para
dentro, deve olhar para fora, e, quando se vê em Cristo, deve encher-se de
alegria indescritível e cheia de glória; ele deve ir cantando, em sua marcha para
Sião. “Filhos do celeste Rei, peregrinando cantai! Vosso Salvador louvai.
Glorioso Ele é, e o que faz!” Mas você não poderá fazê-lo, se entristecer o
Espírito! Todas as ternas visitações do Seu amor, e as influências do Seu regozijo
em você, serão retiradas, e você será deixado entregue a si mesmo, e
você perderá todas as experiências das ocasiões em que Ele vem e o abraça e o
envolve nos braços do Seu amor e o faz saber que você Lhe pertence. Portanto,
pelo seu próprio bem, não entristeça o Espírito.

Pois bem, deixem-me acrescentar algo. Se você entristecer o Espírito e Ele


retirar as Suas benéficas influências, significa que Ele o deixará entregue à
supremacia da carne; quer dizer que você será deixado com todo o poder da
carne dentro de você, e o diabo fazendo uso dele para atacar você. Ele investirá
contra você, insinuará pensamentos e desejos vis, torpes, feios em sua mente e
em seu coração. Você se sentirá vivendo no inferno e sentirá o inferno dentro de
você. E tudo porque o Espírito, com o fim de ensinar-lhe uma lição, não está
mais, por assim dizer, lutando contra a carne. Você O entristeceu. Portanto, se
você está sendo submetido a terríveis tentações, examine-se; pode ser que você
esteja sendo entregue a satanás, para corrigi-lo e para fazê-lo voltar a não
entristecer o Espírito, o Espírito Santo de Deus.

Finalmente, se entristecermos o Espírito Santo e Ele retirar as Suas


manifestações, não significa que Ele nos abandonará. Ele voltará; Ele está ali o
tempo todo, retirou tão-somente as Suas benéficas manifestações, e Ele nos
convencerá, Ele fará trovejar a lei outra vez, far-nos--á sentir que nunca fomos
salvos, que estamos perdidos, que estamos condenados e reprovados; Ele o fará
com o fim de levar-nos de volta para onde deveríamos estar. E se você não
quiser experimentar estas poderosas lutas e processos de convicção do Espírito
dentro de você, não O entristeça. Vejamos com clareza esta doutrina: o Espírito
nunca abandona o filho de Deus; selo é selo, e não serve se puder ser violado em
qualquer momento e recolocado e violado outra vez. Você não fica entrando e
saindo da salvação; você não é salvo hoje e perdido amanhã e depois salvo de
novo. Isso não é ensino bíblico. Um selo é um selo, é o selo de Deus, e nenhum
homem pode rompê-lo. Assim é que, quando digo que o Espírito Se retira, não
quero dizer que Ele sai fora de você; Ele continua aí, contudo as Suas benéficas
manifestações são

retiradas. E então, porque Ele contina em você, Ele o convencerá de pecado, Ele
o derrubará, Ele o prostrará, Ele o fará sentir-se desamparado e sem esperança. E
depois, quando você achar que Ele o abandonou, Ele lhe revelará de novo o
Senhor Jesus Cristo como o Seu Salvador que morreu por você e ainda o ama, e
de novo Ele o lavará do seu pecado, sorrirá outra vez para você e restabelecerá
em você a alegria da salvação. Não entristeça o Espírito Santo de Deus. Ele
está em você e o terá e o levará à glória da perfeição; e se você não quiser ser
conduzido por Ele, esteja certo de que Ele o castigará! “Aquele que em vós
começou a boa obra a aperfeiçoará até ao dia de Jesus Cristo.” Não O entristeça,
eu o advirto, não O entristeça! Pois, se você o fizer, trará sobre si próprio
dolorosas experiências e agonias de alma que nunca precisaria ter.

Então, que devemos fazer? Simplesmente isto - lembre-se de que o Espírito está
sempre em você. Comece o dia dizendo: sou filho de Deus e, portanto, o Espírito
Santo de Deus permanece dentro de mim. Onde quer que eu esteja, o que quer
que eu faça, o que quer que aconteça, Ele estará comigo; cada um dos meus
pensamentos, palavras e atos será visto por Ele e estará em Sua presença. Ah,
como dou graças a Deus pelo privilégio! Como devo ser cauteloso, para em
nada entristeçê-10 ou desapontá-10! Não entristeça o Espírito Santo de Deus,
com o qual você foi selado até o dia da redenção. Lembre-se dEle, lembre-se do
que Ele está fazendo em você, pense na glória para a qual Ele o está preparando,
e as coisas que O entristecem se tornarão inimagináveis.

PERDOADO E PERDOANDO

“Toda a amargura, e ira, e cólera, e gritaria, e blasfêmia e toda malícia sejam


tiradas de entre vós. Antes sede uns para com os outros benignos,
misericordiosos, perdoando-vos uns aos outros, como também Deus vos perdoou
em Cristo. ” - Efésios 4:31-32

Nos dois últimos versículos deste capítulo quatro, o apóstolo está continuando a
lista de injunções particulares que ele está dando aos efésios a fim de ensinar-
lhes como, exatamente e na prática, despojar-se do homem velho e revestir-se do
novo. Esse é o princípio dominante, essa é a doutrina que abrange tudo. O
apóstolo não está interessado na conduta como tal, está interessado na conduta
como expressão e reflexo da nova vida que eles tinham recebido como resultado
da regeneração. No versículo 31 chegamos a exortações que em geral nos fazem
lembrar as exortações que se acham nos versículos 25 a 29. Vemos lá referências
ao falar, à ira, etc., e, portanto, alguns podem indagar se o apóstolo não está
repetindo aqui as suas injunções. Mas não está. Embora os termos sejam os
mesmos em certos aspectos, há uma diferença essencial; e a diferença foi
introduzida pelo versículo trinta, no qual se nos diz que não entristeçamos “o
Espírito Santo de Deus, no qual estais selados para o dia da redenção”. A
diferença é que nos versículos 25 a 29 Paulo tem em vista a conduta em geral,
dando uma descrição muito geral e ampla da conduta, ao passo que após
o versículo 30 ele se torna muito mais pessoal e íntimo, e está muito
mais interessado no estado dos nossos espíritos. Podemos, pois, considerar estes
dois versículos como uma espécie de exposição prática do que devemos evitar,
se estamos desejosos de não entristecer o Espírito Santo que habita em nós.

Notem, em primeiro lugar, que o apóstolo adota a mesma fórmula de antes; põe a
sua proposição negativa primeiro, depois a positiva, e então nos dá uma razão ou
um motivo ou um argumento. Vemo-lo fazer isso em cada uma destas injunções
particulares, de modo que nada nos resta fazer senão seguir a divisão e
classificação do próprio apóstolo. Portanto, no versículo 31, ele nos apresenta
primeiramente a proposição negativa: “Toda a amargura, e ira, e cólera, e
gritaria, e

blasfêmia e toda a malícia sej am tiradas de entre vós”. E quando lemos estas
palavras horríveis, temos de novo um quadro descritivo da mentalidade, da
perspectiva e da vida interior dos não cristãos. O apóstolo nos deu diversas
descrições do mundo incrédulo nesta Epístola; e, naturalmente, o que ele quer é
que essas pessoas vejam aquela velha vida como realmente é, para que, vendo-a,
tanto a odeiem que renunciem a ela e lhe dêem as costas para sempre. Ponham-
na fora, diz Paulo, não se envolvam mais com os seus males morais, descartem-
se deles; estas coisas nunca se deve poder atribuir a vocês, em nenhum sentido!
No entanto, obviamente ele de novo sente a importância de particularizar. E nós
também temos de fazer isso. Não basta confessar o pecado em geral, temos de
confessar os pecados particulares. Antes, é perigoso confessar o pecado em
geral. Tomamos plena consciência destas coisas confessando os pecados
em particular. E o apóstolo nos ensina a fazê-lo dando-nos estas listas.

Ele começa com a palavra amargura, “Toda a amargura... sejam tiradas de entre
vós”. A amargura é um estado de espírito. Denota uma espécie de azedume e
ausência de cordialidade. É uma condição inamistosa. Na verdade, é uma
condição que nunca vê algum bem nalguma coisa, mas sempre inventa um jeito
de ver algo errado, ou algum defeito e alguma deficiência. Diz-nos o provérbio
que “Quem sofre de icterícia vê tudo amarelo”, e o mesmo se pode dizer
do amargor de espírito. Este põe em tudo o que vê um elemento indigno. Porque
a pessoa mesma é ictérica e amarga, tudo o que ela vê tem a mesma cor; é como
olhar através de óculos coloridos. O apóstolo expõe isso em muitos lugares,
como por exemplo no capítulo três da sua carta a Tito, “Porque também nós
éramos noutro tempo insensatos, desobedientes, extraviados, servindo a várias
concupiscências e deleites, vivendo em malícia e inveja, odiosos, odiando-nos
uns aos outros”. Não precisamos demorar-nos nisto. Lembro-lhes que já tivemos
ampla oportunidade de ver a falsidade, o fingimento e a fachada que o mundo
veste. Dá uma extraordinária expressão de afabilidade, enquanto que o fato é que
por trás da pintura e do pó de arroz não há nada, senão amargura, resultado do
hábito de ficar incubando males, reais ou imaginários. No estado de não
regenerados, todos somos amargos por natureza; razão pela qual, como
cristãos, temos que expulsar de nós a amargura. Concedo que ocorrem
ofensas genuínas; porém o que nos toma amargos é ponderar e meditar nelas e
nos demorarmos com elas; noutras palavras,alimentamos as ofensas feitas a nós,
permanecemos nelas, damos grande atenção a elas, e se tivermos a tendência de
esquecê-las, deliberadamente as trazemos de volta e deixamos que nos levem de
novo a um estado de amargura.

Ora, naturalmente, isso não acontece apenas com ofensas reais; muitas são
puramente imaginárias, sem nunhuma substância real, todavia, visto que nos
tornamos amargos, vemo-las onde realmente não estão, e as alimentamos, e
acabamos nos tornando cada vez mais amargos.

A amargura descreve, pois, o tipo de vida que se tornou ácida; não se dispõe a
acreditar que alguém ou algo seja bom, mas sempre está pronta a crer no que é
mau; é sempre um tanto cínica, arranca a glória de tudo, procura estragar tudo.
Quando mostram uma coisa bonita, ela não elogia os noventa e nove por cento
que são belos, porém sempre aponta para o um por cento de defeito. Todos nós
conhecemos o tipo de indivíduo que está sempre apontando para os problemas,
os defeitos, as faltas e as manchas. Há muitos assim. Todo pregador, estou certo
disso, poderia mencioná-los. Há alguns que nunca lhe escrevem para agradecer-
lhe os sermões, entretanto se você, por um mero lapso da língua, disser algo
errado, eles lhe escreverão acerca disso. E só então que lhe escrevem. O espírito
amargo vê as falhas e manchas, contudo parece que nunca vê o que é bom. Não
quero deter--me aqui.

Naturalmente, há muitas pessoas que acham que têm boa causa para o seu
amargor; nas duas guerras mundiais, muitas pessoas perderam o marido ou o
filho único. É muito fácil entender como se tornaram amargas com relação a
tudo na vida; mas isso não as desculpa, é um erro, nunca deviam permitir-se
tornar-se amargas. Sofreram duros golpes da vida, no entanto isso não é
justificação para a amargura, para o azedume, ou para se tomarem cínicas.
Mesmo que se lhes descreva a vida em suas melhores condições, a
expressão daquelas pessoas faz-nos sabedores de que elas realmente não
estão dispostas a permitir-se desfrutar coisa alguma. As pessoas mais tristes que
eu conheço neste mundo são essas pessoas amargas; elas se fazem a si mesmas
miseráveis, e com o tempo fazem todas as outras miseráveis também. É uma
coisa terrível alimentar uma ofensa, real ou imaginária. Ponham-na para fora de
vocês, diz Paulo, ponham-na para fora de vocês; isso é o velho homem, isso é o
pagão, isso é o mundo não regenerado, jamais deve aparecer no cristão.

Passemos, porém, à segunda palavra. A amargura sempre se expressa no falar e


no agir. Por isso, depois de mencioná-la, o apóstolo fala de ira e cólera como as
forças que freqüentemente estão por trás do comportamento. Já estudamos os
termos, de modo que só lhes faço lembrar que a cólera significa violenta
excitação ou agitação da mente, uma espécie de fervura; ao passo que a ira é um
estado e condição da mente mais sereno e regular. A ira nunca chega a ser o

fogo branco do calor em alto grau, como acontece com a cólera; é uma condição
mais equilibrada da mente e do espírito.

Por sua vez, a ira e a cólera tendem a expressar-se no falar. Aqui, de novo, Paulo
usa dois termos, e o primeiro é gritaria.

Gritaria, no texto, significa uma espécie de briga; inclui gritos e violência. Ah,
todos nós sabemos o que significa; homens e mulheres, num estado de furor ou
de cólera, não se falam, gritam uns com os outros, levantam a voz. Que coisa
terrível é o pecado! E que anatomia do pecado temos neste capítulo, que
dissecação! Mas é a verdade! A vida é isso! E, infelizmente, é uma coisa com a
qual todos nós estamos familiarizados, este alvoroço de briga, estes gritos, tudo
de maneira descontrolada. É algo que nunca deve estar presente na vida do
cristão, quer no sentido individual, quer no comunitário.

Contudo há uma coisa ainda pior do que o alvoroço de briga ou do que a gritaria,
a saber, a blasfêmia (VA, “o falar mal”, a calúnia). Falar mal é a fria e
deliberada menção de coisas que prejudicam outras pessoas; inclui o prazer de
difamar os outros, deliberadamente dizendo ou repetindo coisas sobre os outros
calculadas para causar-lhes dano. Falar mal dos outros! Que descrição da vida
moderna! Que descrição do mundo atual! E como o mundo sempre foi! É um
mal que toma tão completamente fátua toda a conversa absurda que ouvimos
sobre o desenvolvimento, a evolução e o progresso! O mundo incrédulo
era assim há dois mil anos; é exatamente assim hoje. Absolutamente nunhuma
mudança! Pensem nas difamações a que o mundo se entrega, e no mal que dessa
maneira se faz ao caráter, e»no mal que se faz à vida.

E depois, como se tudo isso não bastasse, o apóstolo acrescenta a palavra


malícia. Malícia significa maus desejos com relação aos outros, uma
determinação em ferir os outros, de novo uma espécie de espírito fixo, que odeia
tanto os outros que fica pensando nas maneiras de prejudiçá-los, planeja essas
maneiras, exulta-se com elas, e depois passa a pô-las em prática; é uma espécie
de malignidade. Os mexericos maus, maliciosos, e a difamação também fazem
parte desta malícia que o apóstolo nos diz que mandemos para longe de nós.

Diz ele que todos esses males têm que ser expulsos para longe de nós, uma vez
por todas, como algo repugnante e blasfemo. De fato, a expressão falar mal é
realmente a nossa palavra b/as/êmia (cf. Almeida), e, portanto, o ensino é que
não somente blasfemamos quando dizemos coisas más acerca de Deus, mas
podemos realmente ser culpados de blasfêmia quando dizemos coisas más acerce
de alguma outra pessoa. Afinal de contas, o homem foi feito à imagem de
Deus, e falar mal doutra pessoa é uma forma de blasfêmia, pois é falar mal
de algúem que foi feito à imagem de Deus. Por isso o apóstolo afirma que todo

esse tipo de coisa é totalmente incompatível com o novo homem.

Pois bem, de novo devo lembrar-lhes que o apóstolo está exortando os efésios a
desfazer-se de todo esse mal. Ele não diz que, uma vez que eles se tornaram
cristãos, esse mal caiu por si. Assim, todo tipo de pregação evangelística que dê
a impressão de que no momento em que você se torna cristão todos os problemas
são deixados para trás não é verdadeira, e o apóstolo compreendeu que os efésios
ainda estavam sujeitos a esse tipo de coisa. E também notamos que ele não lhes
diz meramente que orem para que esses pecados sejam tirados das suas vidas.
Orar é bom sempre, porém não se esqueçam de que Paulo diz aos efésios que os
ponham para fora, e nós devemos fazer o mesmo. Não é agradável. Não é nada
agradável até pregar sobre essas coisas; para nós é muito desagradável encará-las
e ver se há em nossos corações algum amargor de espírito, ou malícia ou ódio ou
ira ou cólera; todavia, diz o apóstolo, temos que fazê-lo, e se
encontrarmos qualquer vestígio ou traço dessas coisas em nós, teremos que
agarrá-lo e jogá-lo fora, pisoteá-lo, trancar-lhe a porta e nunca mais deixá-lo
voltar. Temos que fazer exatamente isso! Que essas coisas sejam tiradas de
vocês, diz o apóstolo! Ponham-nas fora de uma vez, e tratem de compreender
que isso é uma negação, uma completa negação de tudo o que vocês dizem que
são e que têm como pessoas renascidas no Senhor Jesus Cristo, pessoas em
quem o Espírito Santo de Deus veio para fazer Sua bendita residência. Se essas
coisas estiverem em nós, o Espírito Santo ficará triste, pois o fruto do Espírito é
amor, gozo, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fé, mansidão e
temperança. Tudo quanto for contrário a esse fruto terá que ser posto fora, diz
Paulo. Mas, graças a Deus, o apóstolo não fica nisso! Ele vai adiante, passando à
sua injunção positiva. “Sede uns para com os outros benignos, misericordiosos,
perdoando-vos uns aos outros."

Graças a Deus, digo eu, o apóstolo não pára na injunção negativa, porém nos
leva à positiva. Na verdade, como eu já disse, não se pode tratar adequadamente
da negativa se não se tratar ao mesmo tempo da positiva. O jeito de se livrar dos
defeitos é cultivar as virtudes. Para usar a conhecida frase de Thomas Chalmers,
o de que necessitamos é aplicar o expulsivopoder de um novo afeto. Faço uso de
uma ilustração simples. O meio pelo qual se retiram de algumas árvores as
folhas no inverno não é que as pessoas as arranquem; não, é a nova vida,
o impulso que vem e solta a folha morta para conseguir lugar. Do mesmo modo,
o cristão se livra de todas essas coisas, como a amargura, a ira, a cólera, a
gritaria, o falar mal dos outros e toda a malícia. As novas qualidades se
desenvolvem e as outras simplesmente ficam sem lugar;

são tiradas e postas fora.

Precisamos observar com muita atenção a maneira precisa pela qual o apóstolo
dá a sua instrução. Lemos “sede benignos”, porém o que ele realmente escreveu
foi: “tornai-vos benignos”. Não simplesmente .sw benigno, mas tornar-se
benigno. Noutras palavras, ele está sugerindo um processo de cultivo. Devemos
cultivar deliberadamente esse tipo de personalidade e de atitude para com a vida
e, ao fazê-lo, as nossas vidas se encherão dessas qualidades positivas, e não
haverá lugar para as do tipo oposto. Lembrem-se também da ilustração que o
Senhor utilizou sobre este ponto. Será inútil livrar-se dos demônios que estão na
casa e varrê-la e adorná-la; se o Espírito Santo não entrar, o espírito que foi
expulso voltará com outros muito piores do que ele (Lucas 11:24-26). Ora, é esse
o princípio aqui. É onde, em última análise, a moralidade em si nunca tem
sucesso. E que pena! Eu e vocês, na segunda metade do século vinte, estamos
vivendo numa era que é justamente uma prova visível da bancarrota da
moralidade pura e simples. No transcurso dos últimos cem anos as pessoas vêm
dando as costas ao cristianismo, dizendo que os milagres, o novo nascimento e
muitas outras coisas sobrenaturais não são necessários. Mas naturalmente, dizem
elas, há bom ensino moral e ético na Bíblia, pelo que retemos coisas como o
Sermão do Monte, por exemplo, porém jogamos fora o resto; queremos a
moralidade, e só ensinaremos a moralidade. E qual é o resultado? O atual estado
imoral e até amoral em que se encontra a sociedade! Não, não se pode fazer
essas coisas sem o fator positivo. Tomai-vos, diz o apóstolo; cultivem-no,
tomem interesse por isso, dediquem-lhe tempo e atenção. Noutras
palavras, vocês vêem que a palavra utilizada indica que isso não
acontece automaticamente. Vocês não o recebem numa experiência de crise. Ao
invés disso, tornem-se! Avante! Vocês não poderão livrar-se de repente da
amargura e tornar-se benignos num piscar de olhos; longe disso! Isso é também
uma condição determinada, um processo de cultivo, que resulta da aplicação da
verdade que vimos e na qual cremos.

Nesta altura o apóstolo introduz as suas grandes injunções positivas. Havendo-


nos livrado de todas as coisas horríveis detalhadas, em que devemos tornar-nos?
Ele no-lo diz com grandes e gloriosos termos cristãos! E quão maravilhosos são
os termos, e quão diferentes das coisas que estivemos examinando. Perdão
benigno e misericordioso! Vocês jamais encontrarão esses grandiosos termos
cristãos noutro lugar. Vejamo-los de novo. Qual é o significado do
termo benigno na frase “Sede uns para com os outros benignos”? É certamente o
oposto de ser amargo, mas, além disso, o real significado

do termo em sua origem é ser útil a, ser útil para os outros. Assim é que não se
trata meramente de uma condição ou de um estado, porém de uma condição e
um estado que levam a um desejo; o homem benigno é aquele que é útil e
benéfico para os outros. O homem amargo, é claro, fica de lado e olha, e em seu
azedume nunca é benéfico, nunca é útil. Como vimos, o amargor sempre tira,
sempre subtrai, mas a benignidade dá, é útil, é benéfica, é sempre
proveitosa. Significa ser benévolo para com os outros.

Paulo, em sua Primeira Epístola aos Coríntios, capítulo 13, diz-nos: “O amor é
sofredor, é benigno”. “Sede uns para com os outros benignos”! Tenham e
cultivem esta benevolência de espírito e de atitude; em vez de estarem sempre à
procura de alguma coisa na qual possam achar defeito, estejam sempre à procura
de alguma coisa que possam elogiar. Ajudem os outros. A vida pode ser dura,
difícil e muito penosa, e, em conseqüência, certas pessoas de fato se
tomam azedas e amargas. Não aumentem esse amargor, mas, antes,
procurem ajudá-las - ajudem-nas a transpor barreiras, ajudem-nas a levar os
seus fardos, a resolver os seus problemas e a suportar as suas dificuldades. É isso
que se quer dizer com benignidade. Estejam sempre em busca de uma
oportunidade para demonstrar benevolência e dar assistência e ajuda.

Logo a seguir o apóstolo introduz outro termo maravilhoso -misericordiosos, que


mal precisa de exposição. Recordem como ele nos dissera que aquelas mesmas
pessoas, antes da sua conversão, tinham “perdido todo o sentimento”, o que quer
dizer que os seus corações tinham ficado endurecidos, como que calejados. A
cobertura do coração, que deveria ser branda e macia, fica dura como
couro; toma-se rija, e não somente não se move e não se curva; impede
o coração lá dentro de reagir, bater e mover-se como devia. E o apóstolo nos diz
que, como cristãos, devemos ser exatamente o oposto disso; devemos tomar-nos
misericordiosos, ou, de acordo com o que provavelmente é uma tradução melhor,
ter fortes entranhas de compaixão. É um apelo para que nos tornemos
compreensivos, compassivos e amorosos. Os antigos invariavelmente punham a
sede dos afetos nas entranhas. Eles consideravam as entranhas, ou seja, os órgãos
abdominais em geral, como a sede das emoções. Vemos Jeremias clamando:
“Ah, entranhas minhas, entranhas minhas!”. Significa que ele está com angústia
em seu espírito e nos seus sentimentos.

Se havemos de entender certas expressões do Novo Testamento, é essencial que


tenhamos isso em mente. Por exemplo, Paulo diz aos filipenses: “Porque Deus
me é testemunha das saudades que de todos

vós tenho, em entranhável afeição de Jesus Cristo” (VA: . .de todos

vós sinto nas entranhas de Jesus Cristo” - 1:8), com o que ele quer dizer: “Tenho
saudade de todos vós com o afeto, a emoção e o sentimento de Jesus Cristo”. E
então, de novo, mais tarde: “Se há algum conforto em Cristo, se alguma
consolação de amor, se alguma comunhão no Espírito, se alguns entranháveis
afetos e compaixões” (VA: “.. .no Espírito, se algumas entranhas e
misericórdias.. .”-2:1). Mais uma vez ele está falando sobre simpatia,
compaixão, compreensão e natureza amorosa. O apóstolo Pedro usa o mesmo
termo em sua Primeira Epístola: “E, finalmente, sede todos de um mesmo
sentimento, compassivos, amando os irmãos, entranhavalmente misericordiosos
e afáveis” (3:8); significa que você não está calejado, numa condição na qual
nada do que acontece com alguém faz a mínima diferença para você. Significa
que você não chegou à triste conclusão de que a vida é dura e terrível, que é cada
um por si, que você vai viver para si mesmo, e que realmente você não pode
dedicar tempo e energia aos outros e aos seus problemas. Pois bem, essa é a
atitude que você tem que pôr fora. E o oposto disso é tornar-se misericordioso.
Isto significa que você se interesse pelos outros e que você sente pelos outros,
que você tem empatia pelos outros, e que você tem um grande coração cheio de
compaixão para com eles; que na verdade você vê tanto os problemas dos outros
que se esquece dos seus.

Haverá alguma palavra que seja tão necessária neste nosso mundo moderno
como esta? Para mim não existe nada que seja tão pavoroso quanto à vida atual
como a dureza de coração que a invadiu. Estou constantemente ouvindo a
respeito de pessoas que têm esse tipo de queixa contra o Serviço Nacional de
Saúde da Inglaterra. Não poucos médicos e enfermeiros são bons cristãos, e o
que estou dizendo não se aplica a eles, eu sei, mas se aplica a muitos outros. O
paciente é considerado como um número. Para mim está quase além do
entendimento o fato de que alguém que está tratando de um enfermo nunca fale
com ele nem lhe explique o que há com ele, ou o que está aconteceodo com ele,
ou não lhe dê uma palavra de conforto e de ânimo. Ele não é um tubo de ensaio!
Todavia, que lástima! - dão-nos a entender que muito desse tipo de coisa está
entrando, e a misericórdia e o sentimento solidário estão em maré vazante. Que
os pacientes sejam vistos impessoalmente dessa maneira é coisa que ultrapassa
a capacidade de entendimento. Mas é verdade, infelizmente. A vida tornou-se
dura. As profissões passaram a ser meios de fazer dinheiro para que os homens
possam gozar de várias maneiras, e o maravilhoso toque pessoal e a simpatia do
passado estão desaparecendo. E isso está acontecendo ao nosso redor e por todos
os meios. Não estaria

acontecendo que muitos problemas estão sendo evitados? Acaso não se está
fugindo deles? Sei que existem grandes dificuldades na vida atual, e que houve
muitas mudanças; mesmo assim, acho muito difícil entender as pessoas que de
algum modo parecem tão egocêncticas que são capazes de evitar claras
responsabilidades humanas e de endurecer-se contra a necessidade dos outros.
Isso é pagão; o pagão não se importa com os outros; ele se interessa por si
mesmo e pelo seu prazer. Contra tudo isso precisamos dar ouvidos à palavra de
Paulo - “tomai-vos misericordiosos”!

Depois o apóstolo vai adiante e diz, perdoandol - o oposto da malícia.


“Perdoando-vos uns aos outros”, diz ele. Significa que devemos aperceber-nos
de que os homens e as mulheres são o que são por causa do pecado. Paulo não
fala como muitos tolos que entendem mal o cristianismo estão falando hoje, que
se recusam a ver nenhum mal nas pessoas. Isso não é cristianismo; é fingimento.
O cristianismo é sempre realista. Certas pessoas lhes fizeram mal, diz
Paulo. Perdoem-nas! Ele não diz: finjam que elas não fizeram nada; isso não é
perdão. Perdão é perceber todo o mal que elas fizeram, e então perdoá-las.
Também significa esquecer, e nós devemos perdoar e esquecer prontamente e
livramente. E é somente o cristão que pode fazer isso, pois ele se tomou capaz de
olhar agora o ofensor com outros olhos. Antes ele o via como alguém que lhe
estava causando dano; agora o vê como uma vítima do pecado, como um reles e
ingênuo instrumento do diabo; e diz: sim, é o que ele é, e o que eu era, e ainda há
em mim restos e resíduos disso; quem sou eu para dizer que não vou perdoar
esse homem? Ele raciocina em termos da sua doutrina e da sua teologia, e
começa a condoer-se pelo homem. O resultado é que o perdoa. O fato é que o
seu coração já amoleceu para com ele, o seu modo de ver já é benigno e,
inevitavelmente, o resultado é que ele o perdoa.

Partamos agora para a última divisão, que nos dá a razão pela qual devemos
fazer isso, ou como devemos fazê-lo, o grande motivo para isso tudo. Ouçam o
apóstolo: “Sede uns para com os outros benignos, misericordiosos, perdoando-
vos uns aos outros, como também Deus vos perdoou em Cristo”. Notem este
como também. Quer dizer que se você perdoar e for benigno e misericordioso
para com os outros, você se tomará como Deus. O nosso Senhor colocou o
mesmo ensino com as seguintes palavras: “Amai, pois, a vossos inimigos, e
fazei bem, e emprestai, sem nada esperardes, e será grande o vosso galardão, e
sereis filhos do Altíssimo; porque ele é benigno até para com os ingratos e
maus” (Lucas 6:35). Sejam benignos, diz Paulo, tomem-se

benignos, e quando vocês se tornarem benignos se tomarão semelhantes a Deus,


pois Deus “é benigno até para com os ingratos e maus”. Porventura não
queremos ser como Deus? Essa é a exortação! Leiam o Salmo 103, vejam o
mesmo ensino ali: “O que perdoa todas as tuas iniqüidades, que sara todas as
tuas enfermidades”. Leiam esse salmo e tomem-se semelhantes ao que ele diz.
Mas não precisamos voltar para tão longe, pois o próprio apóstolo disse tudo a
respeito nesta Epístola. No capítula 2 lemos: “Mas Deus” - que é tão diferente
do homem por natureza e do homem em pecado - “que é riquíssimo
em misericórdia, pelo seu muito amor com que nos amou . . . e nos ressuscitou
juntamente... em Cristo Jesus, para mostrar nos séculos vindouros as abundantes
riquezas da sua graça pela sua benignidade para conosco ... ”. Assim é que,
quanto o apóstolo nos exorta a nos tomarmos benignos, ele nos está exortando a
nos tornarmos filhos de nosso Pai que está no céu, a nos tornarmos filhos do
Supremo, a sermos perfeitos como Deus é perfeito.

No entanto, um segundo argumento é utilizado pelo apóstolo. Ele nos diz que
perdoemos dessa maneira porque Deus nos perdoou. Notem que ele não diz:
perdoem uns aos outros porque Deus vai perdoarv ocês. Absolutamente não! Ele
diz: “como também Deus vos perdoou em Cristo”. Já aconteceu. Isto é
sumamente importante, pois as únicas pessoas que podem levar a cabo essa
exortação do apóstolo são as que sabem que Deus as perdoou. Ninguém mais!
Mas as que sabem que Ele fez isso, perdoarão as outras. Portanto, a questão
vital é: você sabe que os seus pecados foram perdoados? Como posso saber, dirá
alguém, que os meus pecados estão perdoados? Ofereço-lhe um teste muito bom.
Se você quer saber se os seus pecados estão perdoados ou não, eis o meu teste:
você está perdoando os outros? Você está pronto a perdoar os que o prejudicaram
e pecaram contra você? Ou veja a coisa doutra maneira: este argumento do
apóstolo chama a sua atenção? Quando eu leio as palavras, “Sede uns para
com os outros benignos, misericordiosos, perdoando-vos uns aos outros, como
também Deus vos perdoou em Cristo”, você sente abrandarem os seus
sentimentos? Sente-se enternecer? Está pronto a perdoar neste momento? Se
está, não hesito em dizer que você é cristão. Contudo, se ainda se inflama o seu
amargor, e se, a despeito daquelas gloriosas palavras, você está dizendo: “Mas,
afinal de contas, não fiz nada e não mereço esse tratamento”, melhor seria você
voltar a examinar os seus fundamentos. Acho muito difícil ver como tal pessoa
pode ser cristã afinal.

Este é o argumento do Senhor numa parábola que se acha no capítulo 18 do


Evangelho Segundo Mateus. Fiz referência a ela num

capítulo anterior. Um servo devia ao seu senhor dez mil talentos; não podia
pagar, pediu tempo, e o seu senhor disse: muito bem, meu amigo, dou-lhe tempo.
Mas quando ele saiu, encontrou-se com um servo que lhe devia alguns centavos,
mera fração do que ele mesmo devia; ele pegou o outro pela garganta e lhe disse:
pague-me o que me deve! Tenha misericórdia, tenha compaixão, dê-me algum
tempo e lhe pagarei, replicou o outro. Nem um pouco, disse ele, você me deve
isso, e tem que me pagar imediatamente. Qual foi o comentário do nosso Senhor
sobre esse comportamento? Disse Ele: se vocês se portarem dessa maneira, não
terão direito de pensar que Deus os perdoou. O ensino dessa parábola não é que
Deus nos perdoa porque nós perdoa-mosprimeiro. Issoéumainversão. Entretanto,
o ensino édefinidamente que o homem que compreende o que é perdão, perdoa!
O homem que se dá conta da misericórdia, da benignidade e da compaixão
que cancelaram o seu grande débito, diz: “Não posso recusar”. O seu coração
amoleceu, ele tem sentimento de compaixão. “Como também Deus vos
perdoou” \ Ele o fez por você? Então, o que Deus fez por você, você não deve
recusar a outrem.

Em último lugar, considerem o modo como Deus o fez. Em Cristo! Essa é a


única maneira pela qual mesmo Deus pode perdoar. Ninguém me venha dizer
que confia somente no amor de Deus para o perdão dos seus pecados. Deus
perdoa os pecados em Cristo, por amor a Cristo. Ele perdoa os pecados apesar de
nós; não é por causa de alguma bondade acaso existente em nós, ou de alguma
coisa que fizemos ou que faremos algum dia, que Deus nos perdoa.
“PorqueyCristo, estando nós ainda fracos, morreu a seu tempo pelos ímpios.” É
por pecadores que Cristo morreu; “sendo (nós) inimigos, fomos reconciliados
com Deus pela morte de seu Filho” (Romanos 5:8,10). Somos perdoados apesar
de nós mesmos, não por causa de algum mérito ou de alguma bondade existente
em nos. Deus o fez inteiramente por Sua livre graça; vem tudo de Deus; tudo por
Sua graça; é pura dádiva; éramos inimigos, sem forças, ímpios, vis e pecadores.
Mas Deus nos perdoou gratuitamente. E eu a vocês devemos fazer o mesmo,
perdoando outros que são vis, ímpios, inimigos e odiosos.

Acima de tudo, lembrem-se de como Ele o fez. “Como também Deus vos
perdoou em Cristo” Deus, que não nos devia nada, por Sua benignidade, Sua
misericórdia, Seu amor, Sua graça, Sua bondade, Sua compaixão, não somente
enviou Seu Filho unigênito, Seu Filho amado a este mundo de pecado e
vergonha, porém até O enviou à cruz do Calvário, para que pudéssemos ser
perdoados. “O Senhor fez cair sobre ele a iniqüidade de nós todos” (Isaías 53:6).
Ele tomou os nossos

pecados e os colocou sobre o Seu Filho e os castigou nEle, para que pudéssemos
ser perdoados. Foi assim que Deus perdoou você; Ele suportou o sofrimento em
Seu próprio Filho. Se Ele fez isso por nós, temos nós alguma possibilidade de
negar perdão a outros? É inconcebível. Se você quer saber se você é cristão ou
não, aqui está o teste: quando eu torno a lembrar a você como Deus o perdoou
em Cristo, e por Sua morte e por Seu sangue derramado na cruz, e Seu
sepultamento no sepulcro, pergunto-lhe: o seu coração se enternece? Neste
momento você está com malícia com relação a alguma pessoa? Você
pode recusar perdão a outros, mesmo que o tenham ferido nas profundezas do
seu ser? Você está pronto agora a perdoá-lo? Se está, acredite-me, você é cristão.
Estou certo disso. Em nome de Deus eu lhe digo que os seus pecados estão
perdoados; eu o solto dos seus pecados. Todavia, se você continua duro e
incapaz de perdoar, nada mais tenho para dizer-lhe, exceto isto: enquanto você
permanecer desse jeito, eu não tenho prova, e você não tem prova, de que você
foi perdoado. O homem que conhece o perdão tem coração quebrantado;
compreende que é um ser vil a quem Deus não deve nada, mas em favor de
quem Deus enviou Seu Filho único, e o Filho levou sobre Si todo o seu pecado e
iniqüidade, e a salvação lhe foi dada como uma livre dádiva, inteiramente,
completamente e unicamente em Cristo.

“Tornai-vos benignos, misericordiosos, perdoando-vos uns aos outros, como


também Deus vos perdoou em Cristo.”

1
A diferença ou o ponto distintivo. Em latim no original, Nota do tradutor.

2
Certamente subordinação funcional, em termos da Economia da Trindade; não subordinação
ontológica. O contexto imediato o comprova. Nota do tradutor.
“IMITADORES DE DEUS”

“Sede pois imitadores de Deus, como filhos amados; e andai em amor, como
também Cristo vos amou, e se entregou a si mesmo por nós, em oferta e
sacrifício a Deus, em cheiro suave. ”

- Efésios 5:1 e 2

Aqui, neste novo capítulo, chegamos ao que talvez seja o supremo argumento de
Paulo, ao mais alto nível da doutrina e da prática, ao ideal culminante. Nâo há
possibilidade de mais nada além disso. Esta é a suprema declaração da doutrina
que se pode conceber ou sequer imaginar. É realmente desnorteante, é quase
incrível; mas aí está. “Sede imitadores de Deus”! Seria muito interessante, do
mero ponto de vista da mecânica, saber se esta injunção pertence à seção
anterior da Epístola ou à que se lhe segue. Francamente, não posso determinar a
minha opinião, realmente acredito que pertence a ambas. Isto é em parte
sugerido, penso eu, pelo que Paulo diz no fim do capítulo 4: “Sede uns para com
os outros benignos, misericordiosos, perdoando-vos uns aos outros, como
também Deus vos perdoou em Cristo. Sede pois imitadores de Deus”. E,
contudo, os bons homens que dividiram esta carta em capítulos terminaram o
capítulo 4 e começaram esta nova seção no capítulo 5, e eu acredito que também
se pode dizer muito a favor disso; pois me parece que aqui Paulo está firmando o
que, afinal de contas, é um princípio que governa tudo; ele está ajuntando a
sua mensagem, por assim dizer; e depois passa a fazer as suas deduções práticas,
nos versículos 3 a 5. Mas o ponto é que o apóstolo aqui nos está fazendo lembrar
algo que nunca devemos esquecer em toda a nossa vida, em todo o nosso pensar,
em toda a nossa conduta, prática e comportamento! “Sede imitadores de Deus,
como filhos amados”! Agora, pois, que é que isto significa?

Bem, primeiramente vocês notam que de novo ele nos está apresentando um
princípio de doutrina. Nesta parte sumamente prática, na qual ele está tratando
das coisas mais comuns da vida, subitamente ele nos apresenta isso. É por isso
que estas Epístolas são tão românticas, se as estudamos corretamente. Talvez
você diga a si próprio: ah, bem, terminei minha doutrina no fim do capítulo 3,
posso ir adiante com outra coisa! Entretanto não pode! Você não terminou sua
doutrina.

Paulo não pode falar sobre coisa alguma, a não ser em termos da verdade, e
assim, subitamente, como vocês vêem, quando ele está tratando das coisas mais
práticas da vida, repentinamente nos lança isto, e nos vemos diante da declaração
mais estoneante e espantosa que jamais poderíamos encarar. Que declaração?
Vejamo-la.

“Sede pois imitadores de Deus.” Esta tradução é melhor que a da Versão


Autorizada, que diz, “seguidores”. O apóstolo diz realmente “Sedeimitatores de
Deus”; na verdade, “Sedtremedadores (mímicos) de Deus”. A nossa palavra
mímico vem da que o apóstolo empregou. 1 Devemos remedar a Deus, devemos
imitar a Deus. É possível isso? Não seria um exagero grosseiro? Acaso o
apóstolo não se precipitou, permitindo que a sua eloqüência o ofuscasse? Estaria
ele pedindo seriamente a homens e mulheres como nós, que vivem num
mundo como este, cercado de tentações, acossados pelo diabo, com o pecado, o
mal e a indignidade dentro de nós, que sejam “imitadores de Deus”? Seria
possível? Uma pergunta como essa precisa ter resposta, e sugiro que a
abordemos desta maneira: temos que olhar para Deus e considerar o Seu ser e a
Sua natureza. Se devemos imitar a Deus, precisamos saber algo sobre Ele. E,
graças a Deus, aprouve a Ele graciosamente revelar-Se a nós. Ele o faz em Sua
Palavra. Vemos essa revelação no Senhor Jesus Cristo. E, portanto, temos direito
de dizer que há certos atributos de Deus que podem ser divididos em dois
grupos. Há atributos de Deus que não são comunicáveis, certas coisas são
pertencentes a Deus, próprias unicamente dEle, e nesses aspectos não podemos
imitá-10. Por exemplo, a Sua glória! Não podemos imitar a glória de Deus! A
Sua eternidade! Ele é de eternidade a eternidade; ésempitemo. Esse é um
atributo de Deus. Não podemos imitá-lo. A Sua majestade! Quem seria tão louco
de tentar imitar a majestade de Deus?! Acrescentem a esses atributos a Sua
onipotência, a Sua onipresença, a Sua onisciência. São atributos de Deus, sim,
porém são incomunicáveis, só pertencem a Deus, e eles fazem de Deus
Deus. Estão em Deus porque Ele é Deus, e nós nunca somos chamados
para imitar de algum modo os atributos incomunicáveis!

Mas há outros atributos de Deus que são comunicáveis. São comunicáveis


porque são de natureza moral. São esses que devemos entender, se de fato
havemos de seguir o nosso texto. Quais são? Santidade! “Sede santos”, diz Deus,
“porque eu sou santo.” É algo comunicável, e algo que devo imitar. Como Deus
é santo, eu devo ser santo. Justiça! Deus é justo - e os cristãos devem ser justos.
Sua justiça! Sua bondade! Seu amor! Sua misericórdia! Sua compaixão!

Sua ternura! Sua paciência! Seu carinho! Sua fidelidade! Sua clemência! Todos
estes atributos de Deus são comunicáveis, e se espera de nós que os
manifestemos, que os tenhamos, que os mostremos; eles devem ser partes
integrantes da nossa vida e do nosso modo de viver.

“Sede pois imitadores de Deus”, diz o apóstolo. Tornai-vos imitadores, mímicos


de Deus. Com relação a quê? Com relação a estes atributos comunicáveis! Não
devemos ser apenas boas pessoas, devemos ser imitadores de Deus! “Sede
imitadores de Deus”! Eis aí o apelo; e só compreendemos a sua grandeza, o seu
valor e o seu caráter estonteante quando compreendemos o ensino bíblico acerca
do ser e da natureza de Deus, e esses dois tipos de atributos.

No entanto, por que devemos ser imitadores de Deus? Por que devemos ser,
nestes aspectos, como Deus em nossa vida diária? Primeiramente e acima de
tudo porque somos filhos de Deus. “Sede pois imitadores... como filhos
amados.” Mais uma vez entramos aqui numa esfera completamente diferente da
que o mundo conhece, e de novo o argumento me compele a repetir o que
salientei muitas vezes; refiro-me à diferença essencial entre o cristianismo e a
mera moralidade. Algumas das pessoas não cristãs do mundo atual são homens
e mulheres cujas vidas são retas e de bom nível moral, estão satisfeitas consigo
mesmas e pensam que isso é o máximo. O que digo é que isso é o oposto do
cristianismo, é bondade pela bondade. São pessoas muito boas, eu sei, mas o
ensino do apóstolo é uma coisa acerca da qual eles não sabem nada. É porque
somos filhos de Deus que devemos abster-nos de algumas coisas e fazer outras.
O apóstolo, é óbvio, já nos estivera lembrando isso; não se trata de uma idéia
nova que ele introduz aqui de repente. Nós o vimos logo no início da
Epístola. “Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o qual
nos abençoou com todos as bênçãos espirituais nos lugares celestiais em Cristo;
como também nos elegeu nele antes da fundação do mundo, para que fôssemos
santos e irrepreensíveis diante dele em amor; e nos predestinou” - para quê? -
“paia. filhos de adoção por Jesus Cristo, para si mesmo, segundo o beneplácito
de sua vontade”. Isso ecoa no capítulo dois, onde lemos: “Assim que já não sois
estrangeiros, nem forasteiros, mas concidadãos dos santos e da família de Deus”
- filhos de Deus, adotados como membros da casa e da família de
Deus, pertencentes a Deus, parentes de Deus!

Se não entendemos isso, estamos perdendo toda a perspectiva da mensagem


cristã, e jamais entenderemos este apelo que visa à conduta e ao comportamento.
Como cristãos, não somos apenas crentes;
somos crentes; não se pode ser cristão sem crer; porém o cristão não é alguém
que meramente creu num certo corpo de doutrina. Tampouco, na qualidade de
cristãos, estamos meramente perdoados. Estamos perdoados, graças a Deus; não
haveria esperança para nós, se não estivéssemos. Mas o cristianismo é mais do
que o perdão. Nem ainda ser cristão detém-se no novo nascimento, por mais
glorioso que isso seja. Temos de ir além disso, pois, que é que significa o nosso
novo nascimento? É novo nascimento segundo o modelo e a imagem do Senhor
Jesus Cristo. Já estivemos examinando isso neste capítulo 4: “E vos revistais do
novo homem”, diz Paulo, “que segundo Deus é criado na justiça e na santidade
da verdade”. O cristão é filho de Deus. Foi adotado como membro da família de
Deus. É participante da natureza divina. Nasceu de cima, nasceu do Espírito! E,
naturalmente, o problema daqueles que se opõem a viver a vida cristã é que eles
não podem conceber uma bênção como essa; jamais a viram, não têm o mínimo
conhecimento dela, pensam no cristianismo como um código moral que lhes é
imposto, e não gostam disso. Pobres sujeitos! Simplesmente ignoram o que é o
cristianismo! Aqui nos é dada a razão pela qual viver a vida cristã. Devemos ser
imitadores de Deus porque somos filhos de Deus! Povo de Deus! É isso que o
cristianismo significa.

Todavia não somos somente Seus filhos, somos Seus filhos queridos (VA) ou -
numa tradução melhor - filhos amados (Almeida). O apóstolo assegura que
somos filhos de Deus não somente no sentido de que estamos nessa relação legal
de fato; somos filhos amados, Ele mostrou Seu amor para conosco e continua a
mostrá-lo a nós. Ele mostra o cuidado que tem por nós, Sua solicitude por nós.
Você sabe que, se você é um cristão verdadeiro, você é precioso a Deus? Eu
tenho a autoridade do Senhor Jesus Cristo para dizer isso. Os próprios
cabelos das nossas cabecas estão todos contados! Deus conhece os Seus
filhos um por um, tem interesse por nós; a analogia é humana, mas
podemos multiplicá-la por um valor infinito. O interesse e o cuidado de Deus por
Seus filhos é infinitamente maior do que o maior e mais nobre interesse de um
pai (ou mãe) humano por seu filho. Deus interessa-Se amorosamente por nós.
Ele vigia como o pai humano vigia o seu filho pequeno quando dá os seus
primeiros passos, ou quando vai à escola pela primeira vez. Ele fica à porta e
observa o filho até virar a esquina e sair do seu campo visual; essa é uma
expressão de interesse amoroso. Não é uma reação mecânica; os filhos são
queridos, os filhos são amados! E, diz Paulo, essa é a relação de Deus conosco;
do alto Ele olha por nós, e Ele nos ama; Ele Se interessa por nós,somos caros
ao Seu coração, Ele tem um intenso interesse pessoal por nós.
Qual deverá ser, pois, a nossa resposta ao amor de Deus? Inevitavelmente, se eu
creio e capto algo desta verdade, o maior desejo deve ser o de mostrar o meu
amor por Ele, e agradá-10 em tudo. Nada causa a Deus maior alegria - digo-o
com a autoridade que o meu texto me confere, bem como todos os textos
paralelos das Escrituras - nada causa a Deus maior alegria do que ver os Seus
filhos vivendo de maneira digna dEle. Se somos filhos dignos deste nome, o
nosso supremo desejo na vida deve ser o de agradá-lO e dar-Lhe alegria. É--nos
dito que há alegria entre os anjos de Deus por um pecador que se arrepende, e
que também há alegria no coração de Deus quando os Seus filhos vivem de
maneira digna dEle. “Tomai-vos imitadores de Deus, como filhos amados”!

Igualmente, se compreendemos a verdade desta relação, o nosso maior desejo na


vida será ser como Ele. Observem um rapazinho que ama seu pai e que sabe que
o seu pai o ama; o seu grande desejo é ser como o seu pai; gosta de sentar-se na
cadeira do seu pai; gosta de ocupar o lugar do seu pai; tenta andar como o seu
pai; tenta falar como o seu pai! Imita o seu pai o tempo todo! É a natureza
humana, não é? É o amor comum em sua melhor expressão. Torno a dizer,
purifique isso, multiplique-o pela infinidade, e você descorbirá o que o
apóstolo nos está dizendo que façamos. “Tomai-vos imitadores de Deus” -
por quê? - porque Ele é vosso Pai!

E a seguir, outra dedução. A honra da família está em nossas mãos! Isso é


sempre uma verdade a nosso respeito, como filhos numa família. Somos
representantes da família, e quando as pessoas nos vêem não nos julgam
somente a nós, julgam as nossas famílias. Épor isso que temos tanto cuidado de
dizer aos nossos filhos que se portem bem quando vão a uma festa. Sabemos que
não são os filhos que serão criticados, porém os pais. O filho é representante da
família e, portanto, não deve pensar tanto em si, antes, muito mais em
sua família. “Nenhum de nós vive para si”, diz Paulo aos crentes romanos, “e
nenhum morre para si” (14:7). Todo homem tem que ver com o seu Senhor. E
nós, se somos cristãos, não podemos descartar-nos da nossa relação com Deus.
Não podemos dizer: quero ser salvo, não quero ir para o inferno, quero ser
perdoado, todavia não quero essa vida cristã; quero uns tempos de bom lazer em
tal e tal lugar, quero participar disto e daquilo. Mas você não argumenta assim,
se é cristão; se você é filho de Deus, é membro da família, e o que lhe importa é
a honra da família, não o que você quer e o que lhe agrada. Estas coisas operam
como princípios nas relações humanas; quanto mais aqui - “Tomai-
vos imitadores de Deus”!
Seguramente, o privilégio de pertencer a tal família, mesmo

enquanto ainda estamos neste mundo como ele é, perto de nós e ao nosso redor,
com todo o seu pecado e vergonha, confusão e agonia, deveria comover-nos e
entusiasmar-nos. Haveria maior privilégio que o de ser cristão? Poderiam vocês
mencionar alguma coisa deste mundo que seja comparável ao fato de que somos
filhos de Deus, que pertencemos ao Seu parentesco, à família deDeusl Não nos
sentimos em casa neste mundo; a nossa cidadania está no céu; somos de lá;
Deus nos deixa neste mundo por algum tempo, e o mundo é antagônico, odioso e
pecaminoso. Mas nós fomos chamados das trevas do mundo, fomos tirados do
reino de satanás, transferidos para o reino do amado Filho de Deus, adotados
como membros da família celestial e introduzidos na realeza deste lar. Haveria
neste mundo honra que se compare a isso?

Se você se der conta da honra, terá cuidado com o seu comportamento. Quando
andar pela rua, dirá a si mesmo: sou filho de Deus, pertenço à família do Rei
celestial, e as pessoas me olham e me vigiam, e estão perfeitamente certas em
fazê-lo; elas estarão julgando Deus, estarão julgando Cristo pelo que vêem em
mim. Por isso, diz Paulo, “Sede imitadores de Deus”; ande pela rua, se me posso
expressar assim, como representante de Deus. Viva de tal maneira que todos
os que o conhecem sejam levados a pensar em Deus porque você é filho de
Deus. O nosso Senhor o expressa claramente: “Um novo mandamento vos dou:
que vos ameis uns aos outros; nisto todos conhecerão que sois meus discípulos”
(João 15:34-35). Olhando para vocês e vendo vocês amando-se uns aos outros,
deles dirão: que é isso? Nunca vimos nada parecido antes: isso não pode
acontecer entre pessoas comuns. E serão levados à única explicação adequada:
“Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos”. Ou ainda, como o
nosso Senhor o coloca no Sermão do Monte: “Resplandeça a vossa luz
diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem a
vosso pai, que está nos céus”. Noutras palavras, a conduta do cristão faz
os homens pensarem no Pai celestial do cristão; eles não podem ver um filho em
seu andar e em seu comportamento, sem pensarem no Pai. “Tomai-vos
imitadores de Deus, como filhos amados”!

Uma pergunta final - como havemos de imitar a Deus? O apóstolo nos dá a


resposta. Ele nos diz que devemos fazê-lo andando em amor - “e andai em
amor”! O que ele quer dizer é que a nossa conduta e a nossa conversação devem
ser efetuadas nos domínios e na esfera do amor, pois Deus é amor. Ele já fizera
uma alusão a isso no último versículo do capítulo anterior: “Sede uns para com
os outros benignos, misericordiosos, perdoando-vos uns aos outros, como
também Deus

vos perdoou em Cristo”. E como o próprio Senhor nosso disse no Sermão do


Monte: “Sede vós pois perfeitos, como é perfeito o vosso Pai que está nos céus”
(Mateus 5:48). Diz Ele que devemos viver dessa maneira “para que sejais filhos
do vosso Pai que está nos céus”. E como Ele Se comporta? Ele “faz que o seu sol
se levante sobre maus e bons, e a chuva desça sobre justos e injustos”. É assim
que Ele Se comporta! Ele não limita as Suas bênçãos aos bons e aos justos.
Nada disso! Ele as dá também aos maus e aos injustos. Que devo fazer então? O
nosso Senhor dá a resposta: “Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos
maldizem, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos maltratam e vos
perseguem”. Noutras palavras, devemos aplicar aos outros o que Deus nos fez.
Mesmo que sejam nossos inimigos e nos tratem de maneira cruel e injustificável,
devemos tratá-los como Deus trata os Seus inimigos, os injustos, os vis e os
maus. Como filhos amados, somos chamados para imitar a Deus, e isto significa
que não viveremos um tipo comum de vida. A nossa vida será absolutamente
diferente.

“Pois”, diz o nosso Senhor, “se amardes os que vos amam, que galardão
havereis? Não fazem os publicanos também o mesmo?” Os publicanos amam os
que os amam; não há nada de inteligente ou de extraordinário nisso. E depois Ele
diz: “E, se saudardes unicamente os vossos irmãos que fazeis de mais? Não
fazem os publicanos também assim?” Não há maravilha nenhuma nisso! Não
passa de moralidade do mundo. “Que fazeis de mais?” diz o nosso Senhor; o que
de fato significa: “Que é que há de especial nisso?” A nossa vida, vocês vêem,
deve ser muito especial. Você não pode ser filho de Deus sem ser uma pessoa
muito especial! Não há nada de ordinário no cristão; ele é extra-ordinário, em
cada detalhe e aspecto, porque ele é filho de Deus e faz coisas que ninguém que
não o seja pode fazer - os “publicanos” não podem, os não cristãos não podem,
só ele pode! Toda a nossa vida deve ser especial, porque somos filhos de Deus.

E assim fazemos a colocação final: “Sede vós pois perfeitos, como é perfeito o
vosso Pai que está nos céus”. Ah, você dirá, mas Ele está no céu, e eu estou na
terra; pode-se fazer isso na terra? Sim, pode, diz Paulo; “andai em amor, como
também Cristo vos amou, e se entregou a si mesmo por nós, em oferta e
sacrifício a Deus, em cheiro suave”. Examinaremos isso mais detalhadamente
mais tarde. É uma das declarações mais gloriosas da Bíblia. Contudo aí está,
caso alguém pense: ah, tudo isso está certo; muito bem que se diga; “Sede
perfeitos, como é perfeito o vosso Pai que está nos céus”, mas eu estou
andando nas ruas deste mundo pecaminoso. Tudo bem, você tem um Irmão
que já esteve nele, e Ele andou pelas ruas deste mundo, e eis como Ele

andou-emamor! Ele Seentregou por nós, em oferta e sacrifício. Deu a Sua vida, o
Seu corpo para ser partido, o Seu sangue para ser derramado por Seus inimigos,
por vis pecadores. Esse sacrifício subiu para Deus como cheiro suave. E quando
eu e você imitarmos a Deus e imitarmos o Senhor Jesus Cristo, que é o
primogênito entre muitos irmãos, as nossas vidas e as nossas atividades subirão à
presença de Deus como cheiro suave; Deus gostará, Seu coração paternal
se dlilatará de amor e de satisfação quando Ele vir os Seus filhos imitá--10 aos
olhos dos homens.

Portanto, “sede, tornai-vos imitadores de Deus, como filhos amados”.

A OBRA EXPIATÓRIA DE CRISTO

“E andai em amor, como também Cristo vos amou, e se entregou a si mesmo por
nós, em oferta e sacrifício a Deus, em cheiro suave. ”

- Efésios 5:2

Nos versículos 1 e 2 deste capítulo o apóstolo está fazendo o mais elevado apelo
aos cristãos que se pode conceber, com vistas a uma conduta e a um
comportamento dignos da sua alta vocação em Cristo Jesus. Depois de concitá-
los a tornar-se imitadores de Deus como filhos amados, a seguir ele diz: “Andai
em amor, como também Cristo vos amou”. Noutras palavras, o apóstolo nos
ensina que a totalidade da nossa vida cristã deve ser ordenada na esfera do amor.
Esta é a prova final da nossa profissão de fé cristã. Todas as nossas
profissões, pretensões e atividades devem ser medidas pelo metro do
amor. “Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não
tivessse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine.” Ainda
que eu tenha um magnífico entendimento e um esclarecido conhecimento de
doutrina, e tanta fé que possa remover montanhas, e não tiver amor, isso de nada
me valerá. Ainda que eu entregue o meu corpo para ser queimado - não somente
que eu seja muito ativo na igreja ou muito religioso ou dedicado à obra cristã,
mas que até entregue o meu corpo para ser queimado - e não tiver amor, não
haverá nada nisso, não terá valor nenhum. O amor é o teste; tudo na vida cristã
destina-se a trazermos a esta condição. Como filhos de Deus, devemos ser
semelhantes a Deus. Deus é amor. Portanto, a maior característica das nossas
vidas, como o apóstolo o expressa, deve ser o amor! Andar em amor! O apóstolo
está muito desejoso de que saibamos o que isso quer dizer; já no-lo tinha dito em
parte, em termos do que Deus fez por nós, no fim do capítulo 4, onde ele diz:
“Sede uns para com os outros benignos, misericordiosos, perdoando-vos uns aos
outros, como também Deus vos perdoou em Cristo”. E aqui ele prossegue para
mostrar que a mais elevada manifestação do amor de Deus é a que vemos em
nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo e em Sua obra em nosso favor. “Andai
em amor”, diz ele, “como também Cristo vos amou.” E depois ele vai adiante
para mostrar-nos como o nosso Senhor demonstrou esse amor por nós.

Pois bem, mais uma vez não posso continuar sem me desviar para assinalar que
aqui somos confrontados por uma destas coisas presentes no estilo e nas
características deste grande homem de Deus como escritor. Aqui, nesta parte
sumamente prática da sua Epístola, quando ele está falando do nosso
comportamento para com os outros, do nosso falar, da nossa conduta, até aos
mínimos detalhes, de repente, no meio disso tudo, ele introduz esta tremenda
declaração da doutrina da expiação. Ele não pode deixar de mencioná-la porque,
na vida cristã, a doutrina e a conduta estão interligadas indissoluvelmente, e
não devemos separá-las nunca. De nada vale falar de conduta e comportamento
no sentido cristão, sem doutrina. E quando as pessoas negligenciam a doutrina,
sempre se nota isso em suas vidas. Mas, por outro lado, a doutrina, só, não tem
valor. As duas coisas devem andar juntas, e andam. E aqui, vocês vêem, de
repente, como digo, inespe-radamente, no meio desta seção muito prática, ele
põe diante de nós uma das suas maiores e mais vigorosas declarações da
doutrina da expiação. Não sei o que vocês acham, porém eu sempre achei que
não há nada mais animador do que ler as Epístolas deste homem. Nunca se sabe
o que vem; e se vocês ainda julgarem que, quando terminaram os três primeiros
capítulos da Epístola aos Efésios, terminou a doutrina, verão que estão
cometendo um grande engano. De repente lá vem ela quando menos se espera,
não importa onde ele está e com que está lidando - estas grandes verdades
centrais, sempre estão em sua mente e no seu coração, e subitamente ele as atira,
sem nenhum aviso.

Aqui, pois, parece-me, o apóstolo nos diz duas coisas importantes, e devemos
examiná-las. Primeiro, é claro, ele nos oferece esta declaração objetiva da
doutrina da expiação, claramente definida e exposta. Depois, em segundo lugar,
ele nos mostra como essa doutrina pode influenciar-nos e vir a constituir o nosso
exemplo como cristãos. As duas coisas estão aí. A seguir, à medida que as
examinarmos, é óbvio que convém que tenhamos certos pontos em mente. Eis
a primeira coisa.

As Escrituras nunca se satisfazem com uma simples afirmação geral acerca do


amor de Deus. De fato me parece que, no geral, a dificuldade fundamental da
Igreja Cristã hoje é que o amor de Deus é entendido e concebido em termos
puramente gerais; o amor de Deus está sendo posto contra as doutrinas, e é por
isso que não está sendo compreendido nem apreciado como devia. A Bíblia
nunca deixa o amor de Deus como algo vago e geral. Às vezes dizem:
naturalmente, não estou interessado nas doutrinas e na teologia, estou
interessado no amor, e o que queremos conseguir é que todos se amem uns aos
outros, e devemos manifestar este amor. Mas não dizem a vocês o que é o

amor; não entendem o amor de Deus, não sabem o que ele significa; tudo o que
eles têm é uma noção doentia, sentimental do amor de Deus; porém a Bíblia
nunca se detém aí; ela nos conhece tão bem, ela sabe que precisa definir
exatamente os seus termos. Temos que saber o que é este amor, e por isso Paulo
nos oferece esta exposição doutrinária a respeito.

E o segundo ponto é que a nossa conduta, como digo, é sempre determinada por
nossa doutrina. “Como o homem pensa, assim ele é” (Provérbios 23:7, VA). Isso
é verdade em todas as esferas. Pela nossa conduta e pelo nosso comportamento,
todos nós proclamamos os nossos conceitos, a nossa filosofia de vida. É
inevitável. O nosso comportamento é determinado pelo nosso pensamento;
mesmo se houver falta de pensamento, isso aparece em nossa conduta. “Como o
homem pensa, assim ele é.” Muito bem, como o cristão pensa, e ele pensa em
termos das suas doutrinas, assim ele se comporta. Inevitavelmente, a nossa
conduta é determinada pela nossa doutrina.

Antes de examinarmos o cenário doutrinário da declaração do apóstolo, e depois


a sua aplicação prática, gostaria de lembrar-lhes que a nosssa compreensão do
amor de Deus e do amor do Senhor Jesus Cristo deve ser avaliada pela medida
em que manifestamos este amor em nossa vidas. Isaac Watts está perfeitamente
certo quando diz: “Amor tão admirável, tão divino, exige” - exige! Alguns
pensam que são ultra-piedosos por mudarem exige para terá. Entretanto é um
erro total. Se você acha que chegou ao fim das exigências, não entendeu nada;
elas não têm fim. “Amor tão admirável, tão divino exige” - e continua exigindo;
Isaac Watts estava certo - “exige a minha alma, a minha vida, tudo de mim”.
Você prova que Ele o terá em sua conduta, não como você canta, mas como você
se porta em seu lar, na tribuna, na loja e na profissão. E muito mais fácil cantar o
amor do que praticá-lo, porém é unicamente a prática que prova que você
realmente o tem.

Passemos agora à declaração da doutrina. Notem bem os termos que de fato o


apóstolo emprega. “Andai em amor”, diz ele, “como também Cristo nos amou”
(VA). A primeira coisa que consideraremos é que Cristo nos amou. O apóstolo
está dizendo que toda a atividade do nosso Senhor foi motivada e determinada
única e inteiramente por Seu amor. Ele não diz que a medida do Seu amor é que
Ele ama o Seu Pai celestial. A medida do amor de Cristo é que Ele nos amou!
Você jamais conhecerá verdadeiramente o amor de Cristo, enquanto não tiver
captado a doutrina cristã do pecado, enquanto não compreender a verdade sobre
você mesmo. Se você se acha uma pessoa muito boa, que tem levado uma vida
virtuosa, tem feito o bem a muitos e que

nunca fez mal a ninguém, ora, naturalmente, seria estranho se Ele não o amasse,
não seria? E isso não lhe diz muito acerca do amor de Cristo. Mas quando você
se dá conta de que a verdade sobre nós é o que Paulo nos diz no capítulo cinco
da Epístola aos Romanos, então você começa a ver algo do amor de Deus. Que é
que nós somos? Não somos somente fracos, somos ímpios, somos pecadores,
somos inimigos de Deus, somos vis. “Em mim”, diz também Paulo, “isto é, na
minha carne, não habita bem algum” (Romanos 7:18). Contudo “Cristo nos
amou”! Aí está a medida! Não podemos ter um verdadeiro conceito sobre o
amor do Senhor Jesus Cristo sem o pleno ensino do evangelho. É inútil
falar vagamente sobre o amor. É preciso ter algum padrão pelo qual avaliá-lo. E
esta declaração apostólica nos dá esse padrão: “Ele nos amou”. Inteiramente do
Seu amor Ele nos amou. Não havia nada em nós que nos recomendasse a Ele,
nada que extraísse o Seu amor, nada que o atraísse. Feios, vis, sórdidos - são os
termos utilizados; “odiosos, odiando-nos uns aos outros”, diz Paulo aTito (3:3); é
o que nós éramos. E é só na media em que compreendemos quão horríveis
criaturas nós somos por natureza e em conseqüência do pecado, e em
conseqüência da herança que recebemos de Adão, que começamos a entender
o significado do amor de Deus e do amor do Senhor Jesus Cristo. “Ele nos
amou”! No capítulo anterior Paulo nos estivera descrevendo em nosso estado
não regenerado - gentios que andavam “na vaidade do seu sentido,
entenebrecidos no entendimento, separados da vida de Deus pela ignorância que
há neles, pela dureza do seu coração; os quais, havendo perdido todo o
sentimento, se entregaram à dissolução, para com avidez cometerem toda a
impureza”. Foi esse tipo de gente que Ele amou - Ele nos amou! Essa é a
primeira declaração.

E a que vem em seguida é: “nos amou, e se deu por nós” (VA). Uma tradução
melhor seria: “Ele se entregou” (assim Almeida). Ele não apenas deixa que as
coisas aconteçam com Ele. “Elese entregou.” Ele teve parte ativa nessa obra.
Evidentemente, o apóstolo está desejoso de que se dê ênfase a isso. Ele dá ênfase
igualmente ao fato de que Cristo não entrega meramente as Suas posses. É certo
que Ele entregou muitas posses, como nos é dito, por exemplo, na exposição que
o apóstolo faz desta mesma frase no capítulo dois da Epístola aos Filipenses:
“que, sendo em forma de Deus, não teve por usurpação o ser igual a Deus”; o
que realmente significa, “não considerou como um prêmio a que apegar-se, a
que agarrar-se”. Ele não Se apegou às Suas prerrogativas, às prerrogativas da
Sua deidade eterna, mas as pôs de lado, esvaziou-Se, despojou-Se destes sinais e
insígnias da Sua glória sempitema, e “aniquilou-se a si mesmo”. Eis aí um tema
do qual

ocupar-nos por toda a eternidade! Ele entregou coisas que possuía, e que possuía
por direito! Ele não Se agarrou a este Seu direito, às prerrogativas da Sua
deidade com o Pai e a todos os seus sinais e acompanhamentos; não,
deliberadamente os colocou de lado. Ou, como se expressa o apóstolo quando
escreve a Segunda Epístola aos Coríntios, “sendo rico, por amor de vós se fez
pobre”.

Nessas declarações há uma indicação das posses que Cristo pôs de lado; Ele
desistiu dos Seus bens, colocou-os à margem, por assim dizer, e não somente
assumiu a natureza humana, porém também tomou a forma de servo; Ele
humilou-Se, não somente para Se tornar homem, mas também para Se tornar
servo, operário. Considerem tudo o que estava envolvido nesse “pôr de lado”.
Todavia, o que o apóstolo assinala não é meramente que Ele entregou todas as
coisas, mas que Ele Se entregou. A Si mesmo\ Sua vida! O Seu próprio Ser!
Fez entrega total, como um sacrifício. Não somente as coisas sobre as quais
tinha o comando e que Ele podia pôr de 1 ado, porém o Seu próprio Ser!
Submeteu-Se; sacrificou-Se completamente, absolutamente! E, como torno a
dizer, devemos dar ênfase à participação ativa aqui envolvida, à natureza
positiva do que Ele fez. Ele “se entregou a si mesmo por nós”. No capítulo 10 do
Evangelho Segundo João, o nosso Senhor faz esta colocação: “Por isto o Pai me
ama, porqueí/ow a minha vida para tornar a tomá-la. Ninguém ma tira de mim,
mas eu de mim mesmo a dou; tenho poder para a dar, e poder para tomar a tomá-
la. Este mandamento recebi de meu Pai”. Isso corresponde ao que o apóstolo
está dizendo aqui. Soma-se à medida do amor. Não foi uma submissão passiva.
Foi ativa, deliberada e positiva. Quando se avizinhava o fim, Ele disse que tinha
que ir para Jerusalém; “Importa que o Filho do homem seja levantado” (João
3:14). Os discípulos tentaram dissuadi-10, mas Ele disse: não, Eu tenho que ir.
Quando eles tentaram defendê-lO, até Pedro com uma espada, Ele disse: torne
a embainhar a sua espada. Você não sabe que eu poderia dar ordens a doze
legiões de anjos e poderia ser levado para o céu sem passar por isto? Para isto
vim, é preciso, “a hora chegou”! Devemos dar ênfase à participação ativa, ao
caráter deliberado disso tudo. Ele Se entregou a Si mesmo\

Após isso chegamos a estes dois grandes termos, “em oferta e sacrifício”. Oferta
é uma dádiva presenteada, uma coisa oferecida a alguém. E o que o apóstolo diz
aqui é que Cristo Se entregou a Si mesmo como uma oferta a Deus. No entanto,
a palavra oferta não é suficiente para comunicar tudo o que o apóstolo quer
dizer. É necessário um segundo termo - “sacrifício”! Para encontrar o sentido de
sacrifício precisamos voltar ao Velho Testamento. O apóstolo era

fariseu, versado nas Escrituras do Velho Testamento; quando pregava, sempre


calcava a sua argumentação no Velho Testamento. O Novo Testamento é
cumprimento do Velho; o Velho Testamento aponta para o Novo, para o futuro, e
o que o Novo Testamento quer dizer com sacrifício é o que o Velho Testamento
quer dizer com esse termo. O Espírito Santo guiou a Igreja Primitiva, que era
principalmente de caráter gentílico, para preservar o Velho Testamento como
absolutamente essencial; e o cristão que pensa que pode dispensar o
Velho Testamento está simplesmente pondo à mostra a sua ignorância. Vocês não
entenderão o Novo Testamento sem o Velho. Vejam uma grande Epístola como
Hebreus; vocês não começarão a entendê-la, a menos que conheçam o ensino do
Velho Testamento sobre sacrifícios, ofertas, derramamento de sangue, e assim
por diante.

O sacrifício era algo que era oferecido por um sacerdote sobre um altar. No livro
de Levítico em particular, como também noutros livros, Deus deu instruções
completas a Seu servo Moisés sobre como todos aqueles sacrifícios deveriam ser
definidos e sobre como deveriam ser apresentados e oferecidos. Deus estava
indicando a Moisés, por meio daqueles tipos e símbolos, o único modo pelo
qual, finalmente, os homens poderiam ser reconciliados com Ele; apontavam
para o futuro, para o Senhor Jesus Cristo, que é o sacrifício. Na antiga
dispensação, tomava-se um animal, e tinha que ser perfeito. Tinha que estar
isento de todo e qualquer defeito. O sumo sacerdote, representando o
povo, punha as mãos sobre a cabeça do animal, com isso
simbolicamente transferindo para ele os pecados do povo. Então o animal era
imolado; sua vida era tirada e o seu sangue era derramado e recolhido
numa tigela. Matava-se o animal porque agora ele recebia a punição devida à
culpa dos pecados do povo, pecados que foram transferidos ao animal. A seguir,
o sumo sacerdote levava o sangue e o apresentava a Deus diante da arca, no
santuário que ficava mais para dentro, no interior do templo; ele o aspergia na
arca e na frente dela. Depois o corpo do animal era colocado sobre o altar, no
átrio externo do templo, onde o queimavam, e o cheiro subia para a presença de
Deus. Tudo isso o termo sacrifício significa! E aqui o apóstolo nos está
dizendo que foi isso que aconteceu quando o Senhor Jesus Cristo morreu na cruz
do Calvário, quando o Seu corpo foi partido e o Seu sangue foi derramado -
oferta e sacrifício a Deus!

Mas há mais um termo que requer explicação - “em oferta e sacrifício a Deus,
em cheiro suave”, ou com “perfume de aroma suave”, Que significa isso?
Talvez a maneira mais simples de entendê-lo é ler os dois versículos do capítulo
oito do livro de Gênesis, os quais nos dizem que, após o Dilúvio, “Edificou Noé
um altar ao

Senhor, e tomou de todo o animal limpo, e de toda a ave limpa, e ofereceu


holocaustos sobre o altar. E o Senhor cheirou o suave cheiro e disse o Senhor em
seu coração: não tornarei mais a amaldiçoar a terra por causa do homem... ”. Eis
aí este homem que Deus tinha escolhido, este homem que tinha agradado a Deus
e que foi salvo com a sua família na arca; ele sai da arca, e uma das primeiras
coisas que faz é construir um altar, para demonstrar a Deus a sua gratidão. Ele
toma animais limpos e os oferece sobre um altar, e os queima, e o cheiro sobe, e
é agradável a Deus.

Isso é um antropomorfismo, é claro, mas nos dá uma idéia do prazer e da


satisfação que este sacrifício causou a Deus. Deus é considerado como se fosse
homem, e Ele cheira este aroma que sobe da oferta e do sacrifício, e isso Lhe
agrada. Foi um aroma suave, foi satisfatório para Deus. Deus gostou, Deus o
saboreou. Ele cheirou o aroma suave e então, visto que Lhe agradou, disse em
Seu coração: “Não tomarei mais a amaldiçoar a terra por causa do homem”. E
aqui em Efésios o apóstolo nos está ensinando que a oferta e sacrifício do Filho
de Deus na cruz chegou à presença de Deus como algo que Lhe agradou, que O
satisfez, algo que Lhe deu alegria e prazer. Sim, mas ainda mais, significa que
de fato Deus ficou plenamente satisfeito com o que fora feito. Sua lei fazia certas
exigências aos pecadores; e a oferta de Cristo em favor dos pecadores chegou à
presença de Deus como um perfume de aroma suave, um cheiro agradável; Deus
ficou perfeitamente satisfeito. Disse o nosso Senhor: “Está consumado”; e eu
creio que o Pai disse: sim, está consumado, é suficiente, não exijo mais nada. O
sacrifício oferecido no Calvário tinha subido à presença de Deus como “um
perfume de aroma suave”. Deus e a Sua santa lei estão plenamente satisfeitos e
contentes, e o homem foi reconciliado com Deus e pode ser perdoado.

Pois bem, eu devo apresentar-lhes mais uma expressão, para que a observem.
“Cristo nos amou, e se entregou a se mesmo por nós, em oferta e sacrifício a
Deus, em cheiro suave” - por nós\ Que é que significa? Significa, em
substituição a nós, em nosso lugar. Ora, o termo propriamente dito, a palavra
“por”, pode ser traduzida desse modo, mas nem sempre - não estou baseando
toda a minha doutrina na palavrapor, eu a estou baseando na palavrapor, mais o
uso do termo sacrifício e todo o contexto. E, tomando estes elementos juntos, é
certo que aqui por significa em nosso lugar. É vicário, é substitutivo; a palavra
mais o contexto, como digo, toma-o inevitável. Num sentido, a palavra por é
neutra; sempre temos que interpretá-la à luz do seu contexto próximo, e ao fazê-
lo aqui, somos levados à conclusão inevitável de que o Senhor realizou a Sua
obra sacrificial em nosso lugar, a nosso favor.

Tendo examinado os termos, estamos habilitados agora a tirar as nossas


conclusões. Que foi que aconteceu na cruz? Qual é o significado da morte do
Senhor Jesus Cristo? Porventura trata-se apenas de um caso de resistência
passiva? Éisso que temos ali? Seria o nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo o
supremo Pacifista? Trata-se apenas do caso de uma Pessoa bondosa e nobre cujo
ensino foi muito bom para a humanidade? Seria Ele uma Pessoa que viveu
séculos adiante do Seu tempo, que ensinou esta ética maravilhosa e que
a praticou em Sua vida, apesar de mal compreendido e hostilizado? Aí está Ele,
com os Seus cruéis inimigos a condená-10 a uma morte injusta; mas, em vez de
lutar, em vez de levantar um exército, em vez até de demandar Sua causa no
tribunal, Ele simplesmente não faz nada - resistência passiva! Pacifismo! Ele
quer vencer pelo amor.

Em vista do que estivemos dizendo, vocês só têm que perceber que essa
explicação é impossível! Ele Se entregou. Ele teve parte ativa! Não se trata de
uma atitude passiva! Portanto, a morte do nosso Senhor Jesus Cristo não é
apenas uma manifestação da crueldade dos homens. Nessa transação não
devemos pôr a nossa ênfase nos homens. Pedro, pregando no dia de Pentecoste
em Jerusalém, disse que o que tinha acontecido estava “de acordo com o
predeterminado conselho e presciência de Deus”! Ele o repete em seu discurso
no capítulo quatro do livro de Atos dos Apóstolos, onde ele diz que foi Deus que
levou Herodes e Pôncio Pilatos a fazerem o que fizeram com Cristo; Deus já o
tinha determinado. Portanto, não olhem para os homens. O nosso Senhor não
estava apenas Se submetendo passivamente às ações cruéis dos homens; não foi
isso que aconteceu, de modo nenhum! Ele veio afim de ir para o Calvário. Ele
podia tê-lo evitado, podia ter fugido, mas manifestou no semblante a intrépida
resolução de ir para Jerusalém (cf. Lucas 9:51, ARA). Ele podia ter ordenado a
mais de doze legiões de anjos que viessem em Seu auxílio, porém não o fez;
Ele disse: se Eu fizesse isso, como poderia cumprir toda a justiça? Ali estava o
cálice, e Ele viera para bebê-lo. Disse Ele: “Que direi eu? Pai, salva-me desta
hora?” Não! “Para isto vim a esta hora” (João 12:27). O tempo todo, o que está
sendo salientado é a atividade intensa. Assim é que, quando vemos Sua morte na
cruz, não devemos pensar nela como o nosso Senhor meramente suportando o
que os homens Lhe fizeram em sua crueldade e perversidade. Nem mesmo o
nosso Senhor estava apenas sendo obediente à vontade de Seu Pai, embora
esta incluísse sofrimento como esse às mãos dos homens. Em si, isso não era
suficiente; isso não é sacrifício, não traz à tona o conteúdo dessa grande palavra
com todos os paralelos veterotestamentários.

Digo de novo que o ponto importante é a atividade e o caráter

voluntário do que estava acontecendo. “Ninguém ma tira de mim, mas eu de


mim mesmo a dou”, disse o nosso Senhor. Ele Se entregou, Ele Se ofereceu
como sacrifício. Ele Se tornou, tomo a dizê-lo, a vítima sobre cuja cabeça foram
lançados os nossos pecados. Esse é o simbolismo do Velho Testamento, foi isso
que Deus ensinou Moisés a ensinar ao povo. Os pecados têm que ser transferidos
para a vítima que está para ser oferecida. E Cristo Jesus Se fez uma vítima por
nós. E foi como alguém que Se tomara vítima por nós que Ele foi açoitado, que
Ele foi morto, que o Seu sangue foi derramado e que o Seu corpo foi ferido.
Como um cordeiro sem mácula se tomava o substituto dos pecados do povo sob
a antiga dispensação, assim o Senhor Jesus Cristo Se tomou o nosso substituto.
João Batista viu isso logo no início e, apontando para Ele, disse: “Eis o Cordeiro
de Deus” - o Cordeiro que o próprio Deus providenciou - “o Cordeiro de Deus,
que tira o pecado do mundo”! Sacrifício! Aquele a Quem os pecados e a culpa
foram transferidos, e que depois foi ferido e morto! “Àquele que não conheceu
pecado”, Deus “o fez pecado por nós; para que nele fôssemos feitos justiça de
Deus” (2 Coríntios 5:21). “Levando ele mesmo em seu corpo os nossos pecados
sobre o madeiro, para que, mortos para os pecados, pudéssemos viver para a
justiça; e pelas suas feridas fostes sarados” (1 Pedro 2:24).

Posso dizer-lhes por que a Igreja Cristã está como está. Ela vem esvaziando a
doutrina bíblica da cruz, retirando dela a morte de cruz, e a vem descrevendo
como uma vaga manifestação de amor. E tem chorado de tristeza e de compaixão
por Ele. Mas Ele disse às mulheres de Jerusalém: “Não choreis por mim; chorai
antes por vós mesmas” (Lucas 23:28); não vos entristeçais por Mim, disse Ele,
para isso vim. “Eu sou o bom Pastor; o bom Pastor dá a sua vida pelas ovelhas”
(João 10:11). Todas as Escrituras, do começo ao fim, dão ênfase à mesma coisa,
que é na obra sacrificial de Cristo que vemos o amor de Deus; que Deus O
enviou e O entregou à morte de cruz, e lançou sobre Ele, sobre o Seu Filho
unigênito, os pecados dos homens. “Deus amou o mundo de tal maneira que
deu” - à vergonha, à agonia, ao sofrimento, à separação entre Ele e Seu Filho
quando Este foi feito pecado - “deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele
que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna.” Essa é a medida do amor!

E o Filho deu-Se espontaneamente e voluntariamente. Escrevendo aos gálatas,


diz o apóstolo: “Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se maldição por
nós; porque está escrito: maldito todo aquele que for pendurado no madeiro”
(3:13). Sua morte não foi mera resistência pacífica, não foi nem mesmo a morte
de um mártir, porém algo infinitamente maior. Ele Se fez maldição] Ele nasceu
de mulher,

nasceu sob a lei, “para remir os que estavam debaixo da lei”. A lei diz: “Maldito
todo aquele que for pendurado no madeiro”. Ele Se fez maldiçãopornósl Nada
menos que isso! Ele levou sobre Si os nossos pecados. Ele assumiu
voluntariamente a nossa posição. Elejáotinha indicado no início do Seu
ministério público, quando foi a João Batista para ser batizado. João não podia
entender isso, mas Ele insistiu com João que O batizasse, porque Ele estava Se
identificando com os nossos pecados! Ele não precisava ser batizado - João
estava certo em dizer isso - mas como o Messias, o Libertador, Ele Se põe em
nossa posição, os nossos pecados vêm sobre Ele, Ele leva a carga. Diz
Ele: “Deixa por agora, porque assim nos convém cumprir toda a justiça”. Do
começo ao fim do Seu ministério terreno houve a mesma ênfase.

É muito próprio, pois, dizer que ninguém que não creia na doutrina da expiação
substitutiva e penal sequer começa realmente a entender o amor de Deus e o
amor do Senhor Jesus Cristo. Pensem nisso. Onde vocês vêem o amor de Deus,
se o Filho de Deus está simplesmente sofrendo a crueldade e tudo o que os
homens estão fazendo com Ele, de maneira inútil? Que valor há nisso? Não
realiza nada; se não é substitutivo, se não é penal, se Ele não está realmente
tratando com pecados, é sofrimento inútil. É sem propósito, é pura crueldade,
não há amor ali. Ah, que tragédia pensarem os homens que estão exaltando o
amor de Deus dessa maneira, enquanto que, na realidade, o estão esvaziando da
sua verdadeira essência e das suas profundidades infindas e eternas! Eis onde se
vê o amor de Deus, que Deus “nem mesmo a seu próprio Filho poupou, antes o
entregou por todos nós”! Deus não Lhe poupou nada; derramou sobre Ele o
frasco da Sua ira contra o pecado. Não Lhe poupounada. Epor nós, e por causa
do Seu amor por nós! Não o que os homens Lhe fizeram, mas o que Deus
Lhe fez como Juiz de todo o mundo, o justo Juiz eterno, o Pai Santo - esse é o
supremo ponto visado na “morte na cruz”! E o Filho deu-Se espontaneamente;
não houve compulsão. Ele manifestou no semblante a Sua intrépida resolução. O
Seu único desejo era fazer a vontade do Pai e assim possibilitar a nossa salvação.
E é somente quando você O vê como a vítima inocente, o substituto, que
voluntariamente se pôs em nosso lugar para receber o castigo que nós
deveríamos receber, que você de fato começa a entender e a avaliar o eterno
amor de Deus em Jesus Cristo, o nosso Senhor. E o apóstolo Paulo confirma
tudo quanto lemos noutras partes das Escrituras - “como também Cristo nos
amou, e se entregou a si mesmo por nós, em oferta e sacrifício a Deus, em cheiro
suave”.

Qual será a lição para nós? “Andai em amor, como também Cristo

nos amou.” O preceito é óbvio. O nosso amor deve fluir do amor de Cristo, e
deve corresponder a ele. Cristo não pensava em Si. “Haja em vós o mesmo
sentimento (ou “mente”) que houve também em Cristo Jesus.” “Não atente cada
um para o que é propriamente seu, mas cada qual também para o que é dos
outros”, diz o apóstolo na Epístola aos Filipenses. Foi o que o nosso Senhor fez.
“Haja em vósa mesma mente ..qual era a Sua mente? Ele não pensava em Si, não
reclamava os Seus direitos, não considerava a Sua inocência, não considerava
os Seus sentimentos, não considerava o Seu bem-estar, não considerava a Sua
comodidade; absolutamente não tomava em consideração a Si próprio. Ele Se
entregoul “Andai em amor, como também Cristo nos amou, e se entregou a si
mesmo por nós.”

Finalmente, reitero o que já disse, o nosso Senhor realizou a Sua obra por nós
apesar de nós. Como Ele argumenta no fim do capítulo cinco do Evangelho
Segundo Mateus, no Sermão do Monte, não há nenhum mérito em amar os que
amam você; os gentios fazem isso. Não há maravilha nenhuma em ser bondoso
para os que são bondosos com você; o pior homem do mundo faz isso! Mas o
que nos toma cristãos, e prova que o somos, é que fazemos pelos outros o que
Ele fez por nós. Somos ímpios, pecadores, inimigos, vis, não temos nada que nos
recomenda; e Ele Se entregou por nós em oferta e sacrifício a Deus. Assim é que
quando eu e você encontramos pessoas difíceis, pessoas que não têm nada que as
recomende, pessoas vis e tão censuráveis e sórdidas quanto podem ser, pessoas
que nos agridem, nos perseguem, nos tratam maldosamente e nos caluniam,
devemos tratá-las como o Senhor nos tratou. Ande em amor! Ore por elas!
Procure sentir tristeza por elas; tanta tristeza que você tenha no seu íntimo um
desejo ardente de que elas sejam libertas; tanta tristeza que você se ponha
de joelhos e tenha no fundo do coração preocupação por elas, por serem vítimas
do pecado e de satanás. Ame os seus inimigos! Abençoe os que o amaldiçoam!
Ore pelos que o perseguem e o tratam com maldade e o caluniam. “Andai em
amor, como também Cristo nos amou, e se entregou a si mesmo por nós, em
oferta e sacrifício a Deus, em cheiro suave.”

Haveria no mundo alguma coisa comparável ao privilégio de ser cristão? Somos


solicitados, convidados e convocados para viver como Cristo viveu. O não
cristão não pode viver desse modo. Ele precisa nascer de novo, precisa ter nova
natureza e nova vida. Precisa que lhe sejam abertos os olhos para a bendita
verdade do evangelho. Nada senão isso pode capacitar e persuadir os homens a
andarem em amor como também Cristo andou. Que privilégio, que honra, que
elevada vocação, sermos imitadores de Deus e do Senhor Jesus Cristo!

A IGREJA E O ESTADO: SUAS FUNÇÕES DIFERENTES

“Mas a prostituição, e toda a impureza ou avereza, nem ainda se nomeie entre


vós, como convém a santos; nem torpezas, nem parvo-íces, nem chocarrices, que
não convêm; mas antes ações de graças. Porque bem sabeis isto: que nenhum
fornicário, ou impuro, ou avarento, o qual é idólatra, tem herança no reino de
Cristo e de Deus. ”

- Efésios 5:3-5

Para começar, proponho considerar estes três versículos notáveis somente de


maneira geral, achando que, como espero mostrar, antes de chegarmos a estudá-
los em detalhe, é vitalmente importante que os examinemos como um todo e
colhamos ao menos uma grande lição que aqui é ensinada com tanta clareza e
que é seriamente necessária na presente hora. Primeiramente, porém, devo
anotar o uso que o apóstolo faz da palavra “mas”. “Mas a prostituição, e toda a
impureza”, etc. Paulo está prestes a contrastar estas diversas coisas
malignas com aquilo que estivemos considerando nos dois primeiros
versículos deste capítulo cinco: “Sede pois imitadores de Deus, como
filhos amados; e andai em amor, como também Cristo vos amou, e se entregou a
si mesmo por nós, em oferta e sacrifício a Deus, em cheiro suave. Mas” - e logo
você se vê transferido para uma atmosfera diferente.

Quando contemplei esta declaração, confesso que vim a entender um pouco os


sentimentos do apóstolo Pedro no Monte da Transfiguração como nunca os tinha
entendido antes. O nosso Senhor levou Pedro, Tiago e João ao alto de um certo
monte. Ali Ele Se transfigurou diante deles, e conversava com Moisés e Elias.
Pedro estava gostando tanto da situação toda que disse: “Façamos aqui três
tabemáculos, um para ti, um para Moisés, e um para Elias”. Noutras palavras, ele
queria ficar lá! Ele nunca tinha experimentado coisa alguma semelhante a essa,
como tampouco Tiago e João. Ver o Senhor assim em Sua glória era o céu para
Pedro. Que é que poderia ser melhor do que armar tendas e lá ficar e permanecer
no maravilhoso gozo daquilo tudo? Entretanto não lhe foi permitido fazê-lo. Por
que não? Bem, eis a resposta: lá

estavam eles no alto do monte, nessa atmosfera rarefeita e gloriosa; sim, mas o
mundo continuava ali, ao pé do monte; de fato, naquele mesmo momento um
pobre homem com um filho lunático tinha vindo em desespero aos demais
apóstolos perguntando-lhes se eles podiam ajudá-lo. Por isso o nosso Senhor não
lhes permitiu ficar desfrutando aquele prazer no topo do monte. Mandou-os
descer, e descendo viram uma grande discussão em andamento, com
contestações e ruidosos argumentos, tudo como se, por assim dizer, estivessem
falando de assuntos diferentes, em confusão. Ao invés de ficarem no alto
do monte armando tendas como Pedro tinha proposto, tiveram que descer à
planície e voltar às duras e feias realidades da vida neste mundo, resultantes do
pecado. E é exatamente isso que nos diz esta pequena palavra mas.

Falando por mim, devo confessar que nada seria mais excelente e deleitável do
que continuar com os versículos 1 e 2, olhando para Deus e para a nossa relação
com Ele, compreendendo o Seu amor por nós, que não somente somos Seus
filhos, porém que somos Seus filhos muito amados, e contemplando o Senhor
Jesus Cristo e tudo o que Ele fez pos nós em Sua obra expiatória sacrificial em
nosso favor. Como é maravilhoso ir adiante sempre e sempre, em tal atmosfera!
Todavia não devemos fazer isso; devemos seguir as Escrituras e devemos tomar
as Escrituras como um todo. Não há nada que seja mais perigoso para a vida da
alma do que sempre ficar lendo as nossas passagens favoritas, e não somente é
um perigo para a alma, é abusar das Escrituras. Devemos seguir as Escrituras
aonde quer que elas nos levem ou nos conduzam. Hoje em dia há muitos que
dizem: não gosto deste aspecto negativo da verdade; por que não podemos ficar
sempre com o positivo? Digo-lhes, muito bem, façam isso, e logo
descobrirão por que é necessário o negativo. Temos que tomar as Escrituras
como elas são, não simplesmente tomar o que nos agrada. Devemos sujeitar-nos
a elas completa e absolutamente, e segui-las em todos os nossos passos. Noutras
palavras, o cristianismo é muito prático e, se não nos damos conta disso, o nosso
entendimento das Escrituras é completamente errôneo. Naturalmente somos
filhos de Deus - graças a Deus por tudo o que estivemos aprendendo nos
versículos 1 e 2; e devemos ser como Cristo, andar em amor como Ele andou;
sim, e as Escrituras mostram tanto desejo de que andemos de maneira digna de
nosso Pai celeste, e de Jesus Cristo, que Se identificou conosco, que elas
se afanam em instruir-nos quanto aos pormenores do nosso andar, negativa e
positivamente. Até aqui, neste capítulo, tivemos a argumentação positiva;
passemos agora à negativa.

E a mensagem é que há certas coisas que nós, como filhos de Deus, nunca
devemos fazer. Devemos compreender que há certas coisas que são
completamente incompatíveis com a nossa vida como amados filhos de Deus e
como pessoas ligadas ao Senhor Jesus Cristo. As pessoas não gostam das
negativas, porém o fato é que a extensão em que você não gosta de negativas é a
medida da sua falta de espiritualidade. Aqui, todo o objetivo é mostrar a
importância das negativas.

Porventura não seria suficiente contemplar a nossa posição gloriosa? Isso não
resolveria todos os nossos problemas? A resposta é: não! As negativas são
penosamente essenciais, por várias razões. A primeira é que, infelizmente,
precisamos que nos lembrem constantemente que o grande fim e objetivo do
cristianismo e da salvação é tornar-nos santos. Notem como o apóstolo se
expressa a respeito no capítulo primeiro desta Epístola: “Bendito o Deus e Pai de
nosso Senhor Jesus Cristo, o qual nos abençoou com todas as bênçãos espirituais
nos lugares celestiais em Cristo; como também nos elegeu nele antes
da fundação do mundo” - para quê? - “para que fôssemos santos
e irrepreensíveis diante dele em amor”. Esse é o fim e objetivo do evangelho
cristão, da fé cristã. Mas todos nós somos tão subjetivos! Temos dificuldades, e
por isso queremos orientação; queremos que as coisas aconteçam
miraculosamente conosco; achamos que o cristianismo existe para fazer isto e
aquilo para nós e por nós. Primordialmente, não é isso. Graças a Deus, isso está
incluído, todavia nunca devemos perder de vista o fato de que o objetivo
primordial do cristianismo é tornar-nos santos e inculpáveis na presença de
Deus. O apóstolo o diz de novo no capítulo dois da Epístola a Tito, onde
ele afirma que Cristo “ se deu a si mesmo por nós” - para quê? - “para nos remir
de toda a iniqüidade, e purificar para si um povo seu especial, zeloso de boas
obras”. Ele veio com o fim de fazer precisamente isso, não simplesmente para
salvar-nos do inferno e dar-nos perdão, mas para purificar para Si este povo para
ser Sua propriedade peculiar; e a característica deste povo é que ele nega a
impiedade e a injustiça e é zeloso de boas obras. Precisamos lembrar-nos disso
sempre porque, infelizmente, em conseqüência da Queda e do pecado que ainda
há em nós, estamos sempre rebaixando o alvo e objetivo final da fé
cristã. Portanto, precisamos lembrar-nos disso e, assim, as negativas
são essenciais.

Uma segunda razão em prol das negativas é que sempre corremos o perigo de
não aplicar a fé cristã a nós mesmos, mas sim de contentarmos somente em
desfrutá-la de maneira teórica. Pode-se fazer isso com muita facilidade. O que
será mais agradável do que uma grande

exposição da verdade como a que temos nesta Epístola escrita pelo apóstolo? É
um grande prazer intelectual. Contudo, o que será mais fácil do que apenas
tomá-la em geral e dizer: como é maravilhosa, como é magnífica! - e nunca
aplicá-la a nós mesmos? Todos nós temos feito isso, somos todos culpados disso.
E por essa causa precisamos ser obrigados a encarar a realidade; precisamos
das negativas.

Sempre há também o perigo do antinomianismo, e da seguinte maneira:


acabamos de ler que o nosso Senhor Jesus Cristo Se deu por nós, em oferta e
sacrifício a Deus, em cheiro suave. Portanto, dizemos: somos salvos, estamos
seguros; se Ele fez isso por nós, nunca nos abandonará. Mas neste ponto somos
propensos a dizer a nós mesmos: bem, não importa muito, portanto, o que eu
faço. Se a minha salvação final é certa e garantida, posso viver como eu quiser.
Isso é antinomianismo! Alguns dos primeiros cristãos caíram nessa armadilha;
os cristãos estão sempre sujeitos a cair nela. É o perigo particular que correm os
homens e as mulheres que têm o melhor entendimento da verdade. Para o
homem que crê na justificação pelas obras nunca há o perigo do
antinomianismo. Esse perigo é peculiar ao homem que entende a doutrina e se
interessa por ela, e que vê especialmente este aspecto de sermos escolhidos e
eleitos, e da nossa segurança, e da nossa salvação final; o diabo o tenta segundo
os termos do antinomianismo. O apóstolo sabe disso, pelo que, tendo dado
o elemento positivo, diz: “Mas”, e começa a dar pormenores em
termos negativos.

Eis uma quarta razão: precisamos lembrar-nos sempre de que o nosso


cristianismo e a nossa profissão de fé cristã é algo que visa a manifestar-se em
cada detalhe da nossa vida. O cristianismo não é algo para ser desfrutado
somente nalgum lugar de culto ou quando lemos a seu respeito na Bíblia ou
noutros livros; deve mostrar-se nos detalhes mais comuns da vida, em tudo o que
fazemos. É por isso que Paulo outra vez entra em detalhes, e até menciona a
nossa conversação comum, pois ele sabia perfeitamente bem que é muito
possível ouvir uma exposição da verdade numa reunião de igreja e depois sair
e imediatamente começar a conversar de maneira frívola e leviana -talvez até
pior. Assim ele nos diz que não façamos isso, e nos mostra que é uma
compreensão muito pobre da verdade cristã a que só funciona quando estamos
ouvindo a verdade e não se manifesta e não se revela em toda parte, sempre,
onde quer que estivermos, seja na companhia de quem for e seja o que for que
acaso estejamos fazendo. O nosso cristianismo deve mostrar-se em todos os
aspectos das nossas vidas.

Gostaria de dar-lhes ainda esta razão final: é preciso que nos lembremos sempre
de que a vida cristã é o combate da fé. O apóstolo está muito preocupado com
isso. No último capítulo da Epístola somos exortados a revestir-nos de “toda a
armadura de Deus”, nós, povo cristão! Porquê? “Porque não temos que lutar
contra a carne e o sangue, mas sim, contra os principados, contra as potestades,
contra os príncipes das trevas deste século, contra as hostes espirituais
da maldade, nos lugares celestiais.” Não devemos considerar a vida cristã como
algo que se recebe numa grande experiência e que depois os problemas e as
tentações nunca mais tornam a acontecer, pois o crente é absolutamente perfeito.
Nada disso! É o combate da fé, e necessitamos de toda a armadura de Deus;
temos de vigiar e orar; temos de compreender que estamos cercados de inimigos
e perseguidores visíveis e invisíveis, alguns deles dentro de nós, e durante
todos os dias nós temos que estar alerta. E o apóstolo ilustra o seu
argumento tomando estas coisas particulares que são perigosas para a alma
e mostrando-nos, negativamente, a sua total incompatibilidade com a vida e
profissão de fé cristã.

Esta é, pois, a primeira reação geral que se tem ao mas do apóstolo, e ao fato
dele recorrer ao uso de negativas. Ah! Não estou mais no Monte da
Transfiguração, porém estou com os olhos postos no rapaz lunático; desci às
monótonas planuras da vida, voltei à dura realidade da vida e do viver, e gostaria
de poder ficar lá em cima, mas não posso; essa experiência me aguarda na
glória; primeiro tenho que viver neste mundo; tenho que ir avante com
discernimento e fé.

Também não se pode deixar de notar o método que o apóstolo emprega para
lidar com estas questões morais. Como invariavelmente é o seu costume, ele
trata destes problemas de prostituição (ou fornicação), impureza, avareza,
torpezas, parvoíces, chocarrices e todos os demais, inteiramente em termos da
sua doutrina cristã. Notem as expressões que ele usa - “como convém a santos”;
“que não convêm” - com as quais ele quer dizer que essas coisas más não
são convenientes, não se ajustam, não são pertinentes aos crentes em Cristo. E
então, especificamente: “Porque bem sabeis isto: que nenhum fornicário, ou
impuro, ou avarento, o qual é idólatra, tem herança no reino de Cristo e de
Deus”. É por causa desse reino, não dos reinos desta terra, que Paulo se
preocupa com estas coisas. Seu interesse é doutrinário - santos, convenientes,
pertinentes, reino de Cristo e de Deus! Noutras palavras, vocês jamais
encontrarão no Novo Testamento nenhum apelo para que as pessoas sejam
morais firmado nas bases que nos são conhecidas. Talvez, quando você deixou o
lar

pela primeira vez, você tenha prometido a seu pai e a sua mãe que não faria
certas coisas; logo você começa a vacilar, e vem o moralista e lhe diz: não
quebre a sua promessa, lembre-se do que prometeu aos seus pais. No entanto,
vocês nunca verão esse tipo de apelo na Bíblia; isso pertence ao mundo; não faz
parte do cristianismo. A exortação do apóstolo é - porque somos santos, porque
estamos no reino de Cristo e de Deus, por causa das coisas que são convenientes
nessa esfera. O Novo Testamento se interessa pela moralidade, não por causa da
honra da escola, ou por causa da honra do país, ou pelo bem da
humanidade; nem um pouco! Santos! Cidadãos do reino de Cristo e de Deus!
E também não se interessa pela moralidade em si, não se interessa
pela moralidade como uma idéia, não está interessado nos pecados em si, e
porque são maus, e por causa das suas más conseqüências e dos seus nefandos
resultados. Absolutamente não! Não se vê nada sobre eles nestes aspectos. Paulo
se concentra na incompatibilidade do pecado com quem somos e com o que
somos! As suas palavras se aplicam unicamente aos cristãos, e a mais ninguém.
Se não entendermos estes princípios, estaremos interpretando mal as Escrituras.

Sejamos intensamente práticos. Notem que o apóstolo não estuda em detalhe


esses pecados para então denunciá-los. Ele não os analisa, não os expõe e não
apresenta estatísticas para provar que as pessoas que se dão à bebida ou que dão
azo a vários tipos de pecado, sofrem as conseqüências. Aqui, dizem certos
reformadores modernos, estão os resultados, e aqui estão as estatísticas! Coloco
o assunto desta maneira pela seguinte razão: há muitas sociedades no mundo
atual que estão preocupadas com a situação moral, e elas sempre se
expressam em termos de estatísticas. Dizem elas: “Ora, vejam aqui, gasta-
se tanto com bebida e tabaco todos os anos e, todavia, o povo se queixa de que
pouco se gasta com o Serviço Nacional de Saúde”, e assim por diante. Ou elas
vêem a questão do ponto de vista das doenças contraídas pelas pessoas culpadas
dessas coisas - vejam as conseqüências! Tudo perfeitamente verdadeiro! Mas o
apóstolo não faz nada disso! Simplesmentenâosevêissoaqui. Tampouco se vê em
qualquer outro lugar da Bíblia. Ele não se limita a simplesmente denunciar
e malhar essas coisas em si mesmas.

Estou chamando a atenção para essas coisas porque me parece urgentemente


importante que tenhamos as nossas mentes claras quanto à relação da Igreja
Cristã com os problemas morais e com as organizações moralistas do mundo.
Há, como digo, órgãos que lutam pela moralidade. Recentemente recebi uma
carta de um alto dignitário da igreja convidando-me para ir a uma reunião do
Conselho pela Moralidade (“The Morality Council”), para anunciá-la, e assim
por

diante. Creio que devo dizer aos meus amigos por que, como ministro do
evangelho, sou cauteloso com tais coisas, não tenho um Domingo de
Temperança, depois um Domingo de Moralidade, e todos esses vários outros
domingos, e por que não tomo parte nessas organizações e atividades. Vocês
sabem dos conselhos moralistas, das sociedades pró temperança, e de várias
outras sociedades que cuidam deste ou daquele interesse. Todos eles estão
empenhados em melhorar a situação moral. E, na verdade, devemos preocupar-
nos com a situação moral. Entretanto, para mim, é muito urgente que saibamos
claramente como preocupar-nos e que papel devemos desempenhar nisso
tudo. Muito recentemente foi realizada uma importante série de reuniões;
as reuniões da Associação dos Magistrados foram realizadas em Londres 2, e
várias pessoas discursaram. E nos relatórios dessas reuniões eu notei um
marcante elemento de confusão. Vejam, por exemplo, as declarações sobre a
delinqüência juvenil feitas por um eminente estadista que, segundo me disseram,
é um cristão autêntico. Disse ele: “A prevenção do crime requer a compreensão e
a ação da sociedade como um todo”. Depois ele se referiu à “insolência e a
visível desconsideração para com a justiça que prevalecem entre os
nossos jovens de certa idade hoje ...”. “Dependemos”, continuou ele,
“dos tribunais, da polícia e de todas as outras agências diversas, que trabalhem
conosco numa livre síntese, e assim lutemos e trabalhemos pela liberdade e para
defendê-la. Qualquer tentativa de mudar esse sistema seria, estou certo, uma
invasão na liberdade ... O meu apelo é dirigido a um auditório mais amplo, às
igrejas, aos pais e aos professores, no sentido de que façam a sua parte no trato
destes problemas de crime juvenil; sem eles seremos incapazes”.
Nessas palavras, sugiro, vê-se uma característica confusão, que não se restringe
unicamente ao estadista, e sim - infelizmente! - vê-se também na própria Igreja.
E é com o fim de indicar o perigo que resulta dessa confusão, que eu estou
chamando a atenção para este assunto. O apóstolo me compele a fazê-lo, pois a
sua maneira de abordar a situação não é a que acabei de lhes apresentar. Como,
então, justifico a minha afirmação de que a Igreja não deve preocupar-se da
maneira indicada, e de que aquele apelo dirigido pelo estadista “as igrejas,
aos professores e aos pais” é uma total incompreensão das Escrituras?

Começo fazendo uma pergunta. Que é que todos esses movimentos e


organizações têm realmente realizado? Eles se multiplicaram dos tempos
vitorianos em diante. Nunca tivemos tantos! Que é que eles

têm realizado na questão de temperança e de moralidade? Vejam os fatos! Por


que é que os homens se preocupam tanto com esses problemas? Por que foi que
a Sociedade dos Magistrados informou que “Atualmente há cinco mil pessoas
nas prisões, três dormindo em cada cela, o índice mais alto registrado”? E isto,
apesar dessas sociedades e desses domingos e apelos especiais, e do dinheiro
que lhes é dado! Não seria hora de perguntar: que é que esses esforços morais
têm realmente realizado?

Antes de dedicarmos o nosso tempo e as nossas energias, e os nossos domingos


cujo propósito é a pregação do evangelho, a essas atividades, temos o direito de
perguntar: a que leva tudo isso? Eu acho que o estado moral deste país hoje
mostra que há um sentido em que todas essas atividades são futeis. Não se pode
persuadir as pessoas dessa maneira, por esta boa razão, que a doutrina do Novo
Testamento sobre o pecado mostra que isso é impossível. Gosto de muitos dos
que pertencem a sociedades desse tipo e a sustentam. Sei que são honestos e
sinceros, todavia eu nunca falo sobre os seus programas, nem mesmo sobre a
Sociedade pela Observância do Dia do Senhor, porque não se pode fazer
ninguém observar o dia do Senhor por uma lei do parlamento; não é assim que
se faz.

Também gostaria de declarar a minha firme convicção de que essas atividades


não fazem parte do dever da Igreja como tal. E aqui eu acho que a confusão
entra, como sendo entre a esfera da Igreja e a do Estado. A Igreja é designada e
ordenada por Deus; a mesma coisa com o Estado, diz o apóstolo em Romanos,
capítulo 13, e noutras passagens. Ambos são designados por Deus. Deus está
agindo no mundo hoje nestas duas esferas, a esfera da Igreja e a do Estado. Deus
designou o Estado, os seus poderes, os governantes, juizes e magistrados.
Ambas as esferas se destinam a funcionar segundo os métodos e meios que lhes
são designados, e jamais deveria haver confusão entre elas. E, como eu vejo a
situação hoje, o problema é, em grande parte, que gente que devia estar pregando
o evangelho, está pregando moralidade e política, e gente cujo dever é cuidar da
moralidade e da política está tentando pregar. O resultado é a maior confusão, e
as duas esferas estão deixando de cumprir aquilo para o que Deus as ordenou v

A Igreja Cristã não é uma agência moral. Que é, então? É uma agência de
regeneração! Ela não é uma agência moral; agências morais existem muitas; a
Igreja não é isso, ela é sobrenatural, é divina, é cheia do Espírito; ela converte
homens, regenera homens; digo que ela o faz, que ela é utilizada por Deus para
fazê-lo. Essa é a sua esfera. Além disso, a Igreja não existe para produzir bons
homens. Existe para produzir novos homens! E um novo homem é infinitamente
maior que

um bom homem; você pode ser um bom homem sem ser cristão. Reitero a
palavra: a Igreja existe, não para produzir homens morais, mas sim, para
produzir aqueles que, nas Escrituras, são chamados santos. Se você não enxerga
essa distinção, você não sabe o que é cristianismo! Certamente o cristão é um
bom homem e um homem moral, porém se você o descrever simplesmente
nesses termos, você o estará insultando; não o estará descrevendo corretamente.
O cristão é um santo! É um homem regenerado! É filho de Deus! Pertence
a Cristo, está “em Cristo”! Não estamos na esfera da moralidade e da bondade,
estamos na esfera da santidade e do Espírito! E, portanto, eu afirmo que a Igreja
aceitar o papel de agência de moral significa que a Igreja está falseando a sua
mensagem. E por essa razão que não posso dar atenção aos apelos do eminente
estadista que citei anteriormente. É insultar a Igreja Cristã apelar para ela como
se apela para os professores, para os pais e para várias outras pessoas que têm
que tentar tratar do problema da delinqüência juvenil; é não entender o que ela é
e o que foi destinada a fazer.

Sejamos claros a respeito disso. A Igreja não é um Departamento ou Secretaria


de Estado. Parece-me que, enquanto houver esta união entre Igreja e Estado, essa
confusão persistirá forçosamente. Contudo, devemos rejeitá-la com todas as
veras do nosso ser; é uma grave incompreensão da natureza da Igreja; ela não é
meramente uma agência moral. Em certo sentido, o erastianismo 3 é uma
negação da mensagem cristã. O Estado não está acima da Igreja. A Igreja não
é simplesmente uma das atividades do Estado. A Igreja não pertence à mesma
esfera do Estado; ela é o reino de Cristo e de Deus! E sempre devemos lutar por
essa distinção.

O dever da pregação cristã não é meramente restringir e prevenir o pecado. Mas


quando a Igreja prega a moralidade e se liga a movimentos como os que
mencionei, ela se põe nessa posição negativa. Não conheço nada que esteja
causando hoje mais dano à Igreja Cristã e ao evangelho do que a impressão que
se dá de que o dever da Igreja é estar sempre protestando acerca disto ou
daquilo. Acaso não seria uma queixa comum feita pelos incrédulos que, se vão à
igreja, simplesmente ouvem os pregadores denunciarem as bombas atômicas, ou
falarem

sobre a questão racial, ou denunciarem a bebida e o fumo, ou alguma outra coisa


que esteja em debate? E, dizem eles, a Igreja é sempre negativa; está sempre
proibindo coisas e pondoyvocê abaixo. E o resultado é que nem sequer ouvirão o
evangelho. E uma apresentação completamente falsa da Igreja e sua mensagem!

Se ficarmos somente no nível moral, ou se dermos a impressão de que a Igreja é


uma das agências das quais o Estado se propõe utilizar a fim de tratar de
problemas como, por exemplo, a delinqüência juvenil, então, digo eu, a Igreja
está deixando de lado a coisa mais grandiosa de todas, a saber, a nossa relação
com Deus! Os estadistas, na verdade todos os servidores do Estado, sem dúvida
desejam que haja boas condições morais, e desejam manter os homens afastados
do pecado explícito; isso é perfeitamente correto na esfera deles. Mas
o evangelho opera de maneira diferente. Um homem pode não ser culpado de
qualquer dessas delinqüências e, contudo, o Novo Testamento diz que, no que se
refere à sua relação com Deus, ele é tão mau como o homem que vive na sarjeta.
E como não me canso de afirmar, é bem provável que do ponto de vista do
evangelho, os homens mais perigosos hoje são os bons, os morais, os bons
pagãos! Eles acham que não precisam do evangelho, que são auto-suficientes,
não dão lugar a nenhuma forma de intemperança, são paradigmas de todas as
virtudes; sim, porém o Novo Testamento diz que eles estão tão condenados como
o bêbedo, o que bate na mulher e o adúltero. O fato é que a Igreja Cristã se
interessa pela relação do homem com Deus, e afirma que, se essa relação não for
certa, todas essas outras coisas não importam. Se a Igreja fica tão-somente no
nível de agência de moralidade, ela está deixando fora da sua mensagem a coisa
mais gloriosa e vital, que constitui a dinâmica do evangelho. “Não me
envergonho do evangelho de Cristo”, diz Paulo aos crentes romanos. Por que o
evangelho tem grande valor para a elevação moral? Nada disso! - “pois é
opoder de Deus para salvação de todo aquele que crê”. Quando o
evangelho chega a um homem, não se limita a dirigir-lhe um apelo; sujeita-o,
põe nova vida nele, transforma-o, faz dele um novo homem. E dinâmico! Mas se
nós simplesmente falamos da bondade como tal, e da importância de observar
leis e de uma vida moral, e de não fazer isto e aquilo, perde-se a dinâmica e não
se apregoa a salvação.

Eu gostaria, ainda, de acentuar que, se e quando a Igreja passa o tempo pregando


sobre o aspecto negativo, está negligenciando a mensagem positiva que, somente
éla,pode tratar, edefato trata, do real problema que os incrédulos estão
enfrentando, e isto para mim é da máxima importância. Afirmo que se eu passar
os meus domingos pregando sobre esses diferentes dias que são designados, e
dando

apoio a essas boas causas e sociedades, e assim por diante, estarei desperdiçando
o meu tempo e o tempo da igreja. Por esta razão, que, enquanto estou fazendo
isso, não posso pregar a mensagem positiva de salvação e libertação. E vou além
e digo que, no fim, não há nada que possa tratar desse problema, senão a
dinâmica, o poder espiritual, do evangelho. É o poder de Deus para salvação!

Para ilustrar o que quero dizer, faço menção da primeira parte do século dezoito.
As condições morais da Inglaterra naquele tempo eram até piores que as de hoje.
Leiam England: Before and After Wesley (A Inglaterra: Antes e Depois de
Wesley), por J. Wesley Bready. Leiam sobre as condições de Londres e doutros
lugares deste país. Houve esforços naquele tempo para tratar do problema,
porém deram em nada. Subitamente veio o despertamento evangélico com o
evangelho pregado como o poder de Deus para salvação e o Espírito Santo
derramado em avivamento. Que aconteceu? As condições morais foram
alteradas! - não inteiramente, todavia a mudança foi quase inacreditável! Foi o
que aconteceu então. Já tinha acontecido na época da Reforma. Em certo sentido
tinha acontecido de maneira muito semelhante no século 17 como resultado dos
puritanos. Aconteceu também, em grande medida, no século 19. Quando a Igreja
prega o evangelho como o poder de Deus, como a dinâmica espiritual que pode
atuar nos homens e transformá-los, é então que ela trata do problema social; não
quando ela fica falando sobre o problema social, dando estatísticas e fazendo
apelos morais. Isso é desperdício de tempo, e devemos rejeitá-lo como tentação
do diabo! Não hesito em dizê-lo. O diabo fica perfeitamente satisfeito quando a
Igreja fica apenas lendo, domingo após domingo, pequenos ensaios
morais, procurando promover uma pequena elevação moral, e fazendo
apelos para que as pessoas sejam decentes. Estou certo de que em tais ocasiões o
diabo se alegra, porque ele sabe que o seu reino não será afetado.

Qual é, então, a relação da Igreja com esta situação moral? Aminha opinião é
que, em primeiro lugar, a Igreja trata diretamente da situação moral na pregação
de um evangelho que pode converter e mudar os homens. Em segundo lugar,
pela produção numérica de cristãos, ela afeta igualmente a vida do Estado para o
bem. Em todo caso, os cristãos não podem conseguir melhoramentos desejáveis
por meio de leis do Parlamento hoje, pois os votos são tão poucos! Os cristãos
são apenas uma pequena porcentagem da comunidade. E os poderes existentes
sabem perfeitamente bem que eles podem ignorar a Igreja Cristã, e de fato
ignoram a Igreja Cristã. Eles estão interessados em

votos, estão interessados nas maiorias, estão de olho nos resultados das eleições;
essa é a verdade com relação a todos os partidos, e eles dão pouca atenção a nós,
pois nós não pesamos na balança. Mas no século passado, em conseqüência do
grande despertamento e avivamento do século 18, e depois, dos avivamentos de
1858 e 1859, havia tantos cristãos neste país que os políticos tinham que dar
atenção ao voto cristão, ao voto não conformista, assim chamado! Este era
tão poderoso que Charles Stewart Parnell * foi realmente posto fora da vida
pública pelo voto não conformista! De fato, havia tantos eleitores cristãos que o
Estado tinha que dar ouvidos à sua voz. Portanto, se os cristãos querem ajudar o
Estado, a melhor maneira é pela pregação de um evangelho que produza tantos
cristãos que o Estado terá que dar atenção ao que nós dizemos. No entanto,
enquanto se pregar nada mais que moralidade, não somente o Estado não nos
dará ouvidos, mas também não se produzirão cristãos.
As tradições que passavam do avô ao pai e ao filho estão morrendo
gradativamente, as pessoas já não se deixam influenciar por essas coisas; as
igrejas estão vazias, e a visão cristã não conta para nada. Assim, se eu quero
ajudar o Estado, eis o meu modo de fazê-lo: tentar encher o Estado de autênticos
cristãos, novos homens e mulheres em Cristo Jesus. Essa é a maneira de ajudar o
Estado. Eu digo que tudo mais é dever do Estado, é esfera do Estado, designado
por Deus para realizar certa obra. Contudo as duas tarefas, como devemos ver,
são muito diferentes. Ao mesmo tempo, concordo que os homens e as mulheres
cristãos desempenhem seu papel no Estado. Que os homens e as mulheres
cristãos se façam membros das câmaras, que ingressem no Parlamento, que
façam tudo o que puderem pare influenciar os decretos do Estado. Wilberforce e
Shaftesbury, no século 19, são um exemplo para outros. Não são os ministros,
que ocupam os púlpitos, que devem estar pregando sermões políticos. Que eles
preguem o evangelho aos Wilberforce e aos Shaftesbury, para animá-los,
para edificá-los na. fé, para inspirar-lhes confiança. Então, os que são chamados
para essa obra podem ir para o Parlamento, falar, agir e organizar movimentos.
Os leigos é que devem fazer isso, não a Igreja!

Ora, que é que ao Estado cabe fazer? O apóstolo mostra isso claramente no
capítulo treze de Romanos. É dever do Estado lidar com
‘ Charles S. Pamell (1846-91) foi um influente e poderoso político irlandês e membro do Parlamento
do Reino Unido (Inglaterra, Escócia, Gales e Irlanda do Norte - Ulster). Pamell foi tão ativo e
influente que chegou a ser chamado “rei não coroado da Irlanda” e a inspirar um movimento
denominado “Movimento Pamellita”. Nota do tradutor.

certas questões mediante leis e decretos. Ele existe para impedir o crime, para
dominar o crime quanto possível, por todos os meios legítimos. E não somente
isso, mas também é dever do Estado punir o crime. “O magistrado não traz
debalde a espada!” Contudo, alguns modernistas se dispõem a dizer que as
punições devem ser abolidas. Dizem eles que se tão-somente formos bondosos e
falarmos bondosamente com os bandidos, com os covardes que atacam crianças
e mulheres, aos poucos faremos deles pessoas melhores. Essa é uma completa
incompreensão da doutrina sobre o pecado e da doutrina bíblica sobre o Estado.
É dever do Estado punir. As pessqas têm que guardar a lei enquanto não venham
para debaixo da graça. É tão ocioso e fútil falar de maneira suavemente razoável
e fazer apelos morais a um homem dominado pelo mal, pela luxúria e pelo vício,
como ocioso e fútil foi o finado Sr. Neville Chamberlain fazer coisa parecida
com um homem como Hitler. Não cabe ao Estado pregar; o dever do Estado é
usar a espada; é governar; é fazer as leis do Parlamento; é punir e ensinar aos
homens que se eles não responderem como devem a uma correta visão da vida,
merecerão castigo, e certamente o receberão. A graça e a lei não podem se
misturar; não pertencem à mesma esfera.

Mas alguns dizem: certamente você está indo longe demais, está sendo
extremista; por que a Igrej a deveria opor-se a esses movimentos que tanto bem
estão fazendo? Replico que se você fizer do “fazer bem” um fim, você terá que
participar de tudo quanto há. Tenho que admitir que a Ciência Cristã faz muito
benefício, conheço gente que parou de beber como resultado da Ciência Cristã,
conheço pessoas que viviam em desesperada angústia e pararam de angustiar-se:
devo por isso pregar e apoiar a Ciência Cristã? Claro que não! O que nos
interessa é a verdade, não estamos simplesmente preocupados com as coisas
que fazem bem. O que desejamos é que os homens sejam levados a este novo
relacionamento cristão; eles precisam tornar-se santos, filhos de Deus! Esse é o
nosso dever; o outro é da esfera do Estado. Que o Estado continue com as suas
atividades. Entretanto que não haja confusão de pensamento; doutro modo,
haverá fracasso em ambas as esferas. Não posso senão achar que é porque o
Estado, faz uns vinte ou trinta anos, vem pensando que é uma instituição
reformadora, que tem havido ultimamente um substancial aumento da
criminalidade. O Estado traz a espada, e deve punir. Deve ensinar as pessoas
dessa maneira, se elas não querem dar ouvidos a qualquer outra. Que o Estado
exerça a sua função própria, que deixe de tentar pregar; e que a Igreja continue
a cumprir a sua função.

Qual é a função da Igreja? Logo de início é preciso que haja uma

percepção do problema do pecado; e no momento em que se perceber quão


profundamente arraigado e quão violento é o pecado, também se perceberá que a
persuasão moral nunca pode funcionar e nunca funcionou para dominá-lo. Foi
por causa da natureza do pecado que o Filho de Deus teve que descer do céu e ir
para a cruz. Com a percepção disso, a nossa tarefa é pregar o evangelho em toda
a sua plenitude. Que mais? Ah, esta, penso eu, é a coisa mais importante hoje:
orar por avivamento\ Não passamos de poucas vozes; somos apenas um pequeno
grupo; de que necessitamos? Necessitamos de uma autenticação da nossa
mensagem que prenda a atenção do mundo. Necessitamos de uma repetição do
que aconteceu no século 18 e noutros séculos. E quando a Igreja estiver
experimentando o aviva-mento, homens e mulheres serão transformados e
convertidos em grande número, haverá mais cristãos, e eles influenciarão toda a
vida do Estado.
Leiam a história, e vocês verão que é verdade. Após um grande avivamento da
Igreja, toda a vida moral de uma nação se eleva durante bom número de anos.
Depois a influência do avivamente se desvanece; as condições morais vão
abaixo. Há necessidade doutro avivamento, e de novo há esse impacto sobre a
totalidade da vida da comunidade - isso acontece invariavelmente. Portanto,
devemos orar por avivamento, pregar o evangelho completo, e rogar a Deus que
nos visite e nos dê poder. E, nesse meio tempo, que os cristãos,
individualmente, desempenhem os seus papéis como cidadãos, como membros
do Estado. Que eles façam isso, não a Igreja, que o façam na qualidade de
cidadãos, que exerçam a sua influência, que façam o que puderem. Não estou
criticando tais esforços; o que estou criticando é a confusão das esferas dalgreja
e do Estado. E se tão-somente conseguirmos fazer com que os homens e as
mulheres tornem a compreender quão separadas as duas esferas têm que estar e
quão diferentes são as suas funções e os seus objetivos, creio que na hora certa,
no tempo de Deus, veremos este terrível problema moderno da delinqüência
juvenil e da imoralidade generalizada tratado como Deus sempre costumou tratá-
lo, em todas as eras e em todos os séculos. Oh, que Deus nos dê graça que nos
habilite a pensar bem nestas coisas, a ter um claro entendimento delas, para que
possamos funcionar como Deus quer que funcionemos, para a Sua glória!

Grego, mimeíai, mímicos, imitadores. Nota do tradutor.

2
Cerca de 1960

Erastianismo é o termo empregado para designar a doutrina da supremacia do Estado nas


questões eclesiásticas. O nome vem do teólogo suíço, Thomas Erastus (1524-83), mas um tanto
indevidamente. Essa doutrina foi defendida mais por Hugo Grócio do que por Erastus. Grócio (Huig
van Groot, 1583-1645) foi jurista, diplomata, literato e autor holandês de obras teológicas. Nota do
tradutor.
MALES QUE NEM SE DEVE MENCIONAR ENTRE OS SANTOS

“Mas a prostituição, e toda a impureza ou avareza, nem ainda se nomeie entre


vós, como convém a santos; nem torpezas, nem parvo-íces, nem chocarrices, que
não convêm; mas antes ações de graças. Porque bem sabeis isto: que nenhum
fornicário, ou impuro, ou ' avarento, o qual é idólatra, tem herança no reino de
Cristo e de Deus. ”

- Efésios 5:3-5

Até aqui, temos considerado estas solenes palavras num sentido geral. Devemos
examiná-las agora mais minuciosamente. Como o apóstolo mesmo segue esse
procedimento, também nós devemos fazê-lo, por penoso que seja o processo.
Conquanto o cristão nunca deva contentar-se com a compreensão de princípios,
contudo, deve começar com princípios. Grande parte do problema atual da Igreja
deve-se, inegavelmente, ao fato de que as pessoas não buscam captar princípios;
não vêem a mata por causa das árvores. Por outro lado, é igualmente perigoso
preocupar-se unicamente com princípios. Cabemos primeiro captar os princípios,
e depois aplicá-los em detalhe a cada ação e aspecto da nossa vida e do nosso
viver cristão. Notem como o apóstolo desce a minúcias e abrange a totalidade da
vida.

Jamais devemos perder de vista o fato de que o objetivo principal do


cristianismo é que sejamos santos, e que andemos diante de Deus inculpáveis,
em amor. Este é o fim e o objetivo da fé cristã, prepararmos para andar diante de
Deus neste mundo e para passar a eternidade na presença de Deus. E se
perdermos isso de vista, bem, então o nosso cristianismo, assim chamado, é
inteira e completamente vão. E o que o apóstolo está fazendo nesta seção é
mostrar àquelas pessoas como haverão de tomar-se santas e andar diante de Deus
em amor, santidade e pureza.

Há certas coisas que, como cristãos, devemos evitar e renunciar completamente;


nada temos a ver com elas. Quais são? Leiam de novo essa terrível lista, e
lembrem-se de que o apóstolo não estava tentando reformar o mundo; estava
escrevendo para cristãos. Essas palavras são dirigidas aos membros da igreja de
Éfeso, e doutras igrejas. Não são conselhos morais e gerais ao mundo exterior,
mas palavras diridigas
a cristãos; e, portanto, deduzimos que os cristãos necessitam de que tais palavras
lhes sejam dirigidas. E Deus sabe que continua sendo assim. Portanto, digo eu,
elas não constituem o programa moral e geral em que a Igreja pode juntar-se ao
mundo e ao Estado na tentativa de pôr a sociedade em ordem. Nem um pouco
disso! E mensagem dirigida à Igreja. E são essas as coisas que nos é dito que os
cristãos devem renunciar e evitar completa e inteiramente. Na maioria,
as palavras do apóstolo explicam-se a si mesmas, porém algumas delas precisam
de um breve comentário. Primeiramente e acima de tudo, “fornicação” (ou
“prostituição”) e toda a impureza. Todas as formas, todos os tipos, toda sugestão
disso devem ser evitados - “impureza". Nada temos a ver com isso. Não somente
a prática específica, mas toda a impureza. Devemos pensar nisso com relação a
nós mesmos. Como somos propensos, às vezes, a pensar que as coisas feitas na
mente não são tão más como as praticadas de fato! Entretanto toda a
impureza, em todas as suas formas e tipos, deve ser banida das nossas vidas.

Depois chegamos à que vem em seguida, que é a avareza. Significa,


naturalmente, ganância, amor ao dinheiro; amor ao dinheiro pelo dinheiro; amor
ao dinheiro, em parte pelo próprio dinheiro e em parte pelo que ele pode fazer
por nós, as coisas que podemos comprar com dinheiro, as coisas que podemos
conseguir com dinheiro, as coisas que podemos fazer se temos dinheiro - de fato,
o amor a tudo o que o dinheiro pode fazer e conseguir - é o que Paulo está
condenando sob a palavra avareza. Não temos nada a ver com a avareza, temos
que isolar-nos dela; ela pertence, diz ele, à antiga vida, mas não tem
ligação nenhuma com a vida cristã. Avareza!

A palavra subseqüente é torpezas. Inclui obscenidade, qualquer coisa que seja


obscena no falar. Contudo, não fica nisso, inclui também tudo o que é vil ou
repugnanate na conduta. E é uma boa palavra que os tradutores da Versão
Autorizada empregaram aqui. Quão expressiva ela é! - torpezasl Nada temos a
ver com o que é desavergonhado, feio e corrupto - torpezasl Isso, diz o apóstolo,
não é próprio da vida cristã.

Chegamos depois a parvoíces. Significa hnguajar vazio, frívolo, insensato,


irrefletido, tolo e pecaminoso. E interessante notar que Paulo arrola isso com
outras coisas que são sujas e repugnantes. A prosa, a tagarelice vazia, irrefletida,
diz ele, tampouco é própria da vida cristã. A conversa cristã nunca deve ser
vazia, insensata, frívola; o cristão jamais deve ser uma pessoa frívola, nem deve
jamais falar de maneira frívola, leviana, insípida e vazia. Isso é típico da vida
do mundo, porém não tem ligação nenhuma com a vida cristã. Devo ressaltar
aqui o aspecto de reflexão. A vida do cristão deve ser

caracterizada por este elemento de consideração. E isto não se aplica somente ao


nosso falar, mas também ao nosso cantar. “Santo, santo, santo, Deus onipotente.”
Não cantamos essas palavras em ritmo acelerado, nem as atropelamos, por assim
dizer. Num sentido, a diferença entre o canto cristão e o não cristão é esse fator
de consideração, de reflexão. Não cantamos ritmos, cantamos palavras! Que
o cantar cristão seja animado, é claro, porém nunca agitado, nunca
com saracoteios! E depois o apóstolo introduz a palavra chocarrices, que se
refere à conversa inteligente, polida, espirituosa, com tendência para o picante e
pecaminoso. A palavra original contém a idéia de virar ou tornar ou girar - girar
uma frase, as flechas espertas, sofisticadas, espirituosas, polidas que essas
pessoas atiram, ou todo e qualquer sentido duplo, qualquer insinuação, qualquer
coisa que nalgum sentido seja obscena ou imoral. E isso também, diz ele,
não deve ter lugar na vida cristã, mas deve ser banido completamente -“nem
parvoíces, nem chocarrices, que não convêm”. E de novo no versículo cinco,
vemos outra terrível coleção de palavras: devasso, ou impuro, com uma segunda
menção de avareza.

Não faz parte da pregação cristã gastar muito tempo com essas coisas; por certo
deveria bastar ao povo cristão mencioná-las e certificar-se de que entendem
claramente o que elas significam e descrevem, e o que representam. O apóstolo
está dizendo realmente que são essas coisas que caracterizam a sociedade não
cristã, e essa é também a única descrição certa da vida dos pagãos do tempo
do apóstolo. No entanto, aqueles cristãos efésios tinham sido tirados daquele tipo
de vida; haviam sido transferidos do reino das trevas para o reino do amado
Filho de Deus, e Paulo lhes está dizendo virtualmente: vocês não podem trazer
essas coisas para dentro do reino de Cristo; Seu reino é totalmente diferente. Ele
morreu para “purificar para si um povo seu especial, zeloso de boas obras”. Não
tenham mais ligação nenhuma com essas coisas; elas pertencem ao tipo de vida
vivida onde não imperam o evangelho e a sua doutrina.

Mas seria necessário que eu assinale que os males relacionados em nossa


Epístola estão se tornando crescentemente evidentes na vida do nosso país hoje?
Eles estão ficando cada vez mais evidentes e proeminentes na vida dos não
cristãos em todas as classes, nas profissões, em todos os círculos da sociedade.
Lembro-me de que, quando jovem, eu ficava chocado com o tipo de coisa que
podia acontecer entre pessoas cultas e mesmo em círculos profissionais; com o
tipo de fatos que se contavam; a gente não esperava isso daquelas pessoas, não
obstante acontecia! E ainda acontece! E lamento dizê-

-Io, mas as parvoíces e chocarrices parecem estar entrando cada vez mais na
obra da Igreja Cristã. Por que se há de considerar como uma excelente peça
técnica o orador que sobe a uma tribuna cristã começar com um gracejo?
Todavia é o tipo de coisa que está aumentando muito. E muitas vezes a anedota
não tem a mais remota ligação com o evangelho, mais é contada simplesmente
(como se diz) para fazer contato com os ouvintes! Uma vez participei de um
culto de aniversário em certa parte da Inglaterra. Havia cerca de mil e
oitocentas pessoas presentes, e eu tive que sentar-me e ouvir o primeiro
orador que - sem exagero - ficou uns quinze minutos simplesmente
contando anedotas. Eu não conseguia ver a mais remota aplicação cristã
em nenhuma delas e, na verdade, o orador nem sequer tentava aplicá-las. E o
povo tonitroava com gargalhadas, na maior alegria. Contudo, o entretenimento
não tem nada a ver com a vida cristã e com as atividades da Igreja Cristã. As
parvoíces e as chocarrices não têm lugar na vida cristã, na conduta cristã e entre
os cristãos. Não são próprias do cristianismo. Mesmo que você deixasse de lado
o que é grosseiramente ofensivo, ainda estaria usando a mesma terminologia, o
mesmo tipo de técnica. Os cristãos não contam anedotas uns aos outros; eles têm
coisa muito melhor para dizer uns aos outros. É isso que o apóstolo está dizendo.

Então, como havemos de evitar esses males? O apóstolo nos diz como. Primeiro
ele nos diz simplesmente que não devemos praticá-los. Mas não pára aí; diz ele:
“Nem ainda se nomeie entre vós”. Vocês não devem nem sequer mencionar essas
coisas! Não devem insinuá-las. Vocês não devem aproximar-se disso em lugar
nenhum. Não somente vocês não devem fazer essas coisas; não devem falar
sobre elas, não devem mencioná-las, são indignas de menção, não devem entrar,
de nenhum modo ou forma, nem no linguajar, nem no pensamento de vocês.

Também devemos desenvolver isto em termos da nossa situação moderna. O


apóstolo estava escrevendo numa época em que eles não tinham jornais, cinema,
rádio, televisão, e tudo mais. Naqueles dias os homens se limitavam a falar desta
questão de propagar idéias indignas, e as idéias que levam a ação pecaminosa à
prática. Assim Paulo o coloca nestes termos: “Nem ainda se nomeie entre vós” -
não o mencionem! Jamais o introduzam, de nenhum modo ou forma! Mas agora
temos que desenvolver isto num contexto muito diferente. E se a questão era
difícil para o povo cristão do século primeiro da era cristã, como será agora? Ha
um sentido em que é certo dizer que nunca foi mais difícil viver a vida cristã em
sua plenitude do que hoje. Não
quero dizer que as pessoas são mais pecadoras agora, pois de há muito vinham
cometendo estes pecados, porém o que quero dizer é que o cristão estã cercado
de estímulos para envolver-se no pecado, numa multiplicidade de maneiras, ao
passo que na antigüidade o falar é que estava principalmente envolvido.

O princípio firmado pelo apóstolo é que devemos evitar de todas as maneiras e


por todas as formas toda e qualquer coisa que de algum modo tenha a
probabilidade de levar-nos a fazer alguma dessas coisas - fomicação (ou
prostituição), impureza, e todas as demais. Toda a arte, toda a estratégia do viver
cristão está em manter-nos alerta contra a tentação no início. Se você deixar que
a tentação consiga o mais diminuto ponto de apoio em sua mente, logo você será
dominado. Deve-se resistir à investida preliminar; é por isso que Paulo diz:
“Nem ainda se nomeie entre vós”. Se vocês querem parar de fazer essas coisas,
diz ele, parem de falar sobre elas. Se vocês estiverem vigilantes no começo, não
terão tanto problema depois.

Temos que ser cautelosos quanto a toda e qualquer coisa que nos prejudique e
que tenda a fazer-nos inclinar na direção das coisas que não são próprias da vida
cristã. E nestes tempos modernos estaremos lutando o tempo todo, desde o
momento em que nos levantamos de manhã até quando vamos dormir à noite;
pois o mundo inteiro está aclamando essas coisas diante de nós. Ele o faz em
seus jornais. Evocê começa de manhã, com o seu jornal, talvez àmesa do café.
“Nem ainda se nomeie entre vós”, diz Paulo; sim, mas isso será nomeado,
provavelmente na primeira página. E essencial que você leia o seu jornal com
discriminação, deixando de ler certas coisas. Você quer estar a par das notícias, e
quer ser um cidadão bem informado, também quer ler o jornal para poder votar
inteligentemente. Entretanto, ao ler, deve evitar, afastar, deve ficar com o que
importa e evitar todas as demais coisas. A mesma coisa com as revistas. Você
olha para uma banca de jornais na estação ferroviária, e as vê, e nota como são
sugestivas! Você vê as pessoas a comprá-las, revistas que por seu próprio título
lhe dizem o que são. Só Para Homensl Porquê? Obviamente há algo errado ali.
Depois, as fotos e os anúncios! Evitem-nos, não se envolvam com eles, desviem
deles o olhar. Peças teatrais! Filmes! Coisas que vêm pelo rádio e pela televisão,
as parvoíces, as chocarrices, a esperteza, a sugestão, as insinuações!

Você quer tomar a luta mais difícil para você? Você acha que de fato pode
resistir ao diabo e às concupiscências que estão dentro de você? Não seria
melhor para você fazer o que o apóstolo manda no fim do capítulo treze da sua
Epístola aos Romanos: “Não façais provisão para a carne” (VA)? Se vocês
olham para coisas e lêem coisas que

sabem que são más, vocês estão fazendo provisão para a carne. Não fiquem
surpresos, então, se vocês caírem. Não dêem a mínima atenção a essas coisas.
Não permitam que sequer sejam mencionadas entre vocês. Cortem-nas no botão,
parem no início, não tenham o mínimo interesse por elas. E que dizer dos livros,
dos romances e até das biografias? Cada vez mais se publicam biografias, uma
após outra, nas quais são revelados pormenores revoltantes e sem valor, que
não elevam ninguém. Atualmente as pessoas se deleitam com a pornografia, e se
sentem atraídas pelo fétido e pelo indecente. A insistência do apóstolo é,
realmente, no sentido de que nos afastemos do mal in toto. * Se houver suspeita
da presença de algo impuro num livro ou num artigo, não o leiam; vocês poderão
passar sem esse conhecimento e sem essa informação. Ah, alguém dirá, mas eu
sou estudante de sociologia, interesso-me por isto e aquilo. Pois então renuncie
ao seu interesse, digo eu. Para os puros todas as coisas são puras, porém se vocês
não forem puros, até as coisas boas se tornarão más. Toda a ênfase do apóstolo é
que não devemos ter nenhuma ligação com as coisas más, que estas coisas não
sejam nem mencionadas entre vocês, como convém a santos; fiquem o mais
longe que puderem delas todas.

Logo a seguir o apóstolo passa a dizer-nos como fazer isso positivamente; ele
não se contenta em dar-nos somente o aspecto negativo. Diz ele: “Nem ainda se
nomeie entre vós, como convém a santos; nem torpezas, nem parvoíces, nem
chocarrices, que não convêm; mas antes” - aí está o positivo, o que devemos
fazer - “ações de graças”. Isto ele desenvolve mais adiante no mesmo
capítulo (versículos 19 e 20), onde ele diz: “Falando entre vós em salmos,
e hinos, e cânticos espirituais; cantando e salmodiando ao Senhor no vosso
coração; dando sempre graças por tudo a nosso Deus e Pai, em nome de nosso
Senhor Jesus Cristo”. Examinaremos estes versículos mais tarde. Por enquanto,
lembro-lhes de novo que aqui o apóstolo está tratando daquilo que deve
prevalecer entre os cristãos nos círculos cristãos. Ele não está dizendo aqui como
devemos falar e conduzir-nos em relação aos incrédulos, e sim, em relação à
Igreja de Deus. E ele ressalta que devemos dar graças, como igualmente o faz
em sua Epístola aos Tessalonicenses - “Em tudo dai graças, porque esta é
a vontade de Deus em Cristo Jesus para convosco” (1 Tessalonicenses 5:18).

A ordem tem ampla aplicação. O cristão não deve ser insípido! E 1

se vocês concluíram do que eu já disse que estou defendendo uma espécie de


vida insípida, mecânica, estão muito enganados. O cristão não deve ser uma
pessoa insípida, mórbida e desinteressante, nem por um momento! Nunca deverá
fazer por merecer que o acusem de chocarrice, de ser ladino, de ser espertalhão,
mas isso não significa que ele deva ser insípido ou cheio de si ou
desinteressante. Absolutamente não! O cristão é uma pessoa que deve estar
dando graças! Deve expressar alegria e felicidade em sua vida, pois ele é alguém
que tem profundo senso de gratidão a Deus e ao Senhor Jesus Cristo que
nele está, e é alguém que deseja estar dando graças! Portanto, devemos libertar-
nos de todas as idéias de monotonia insípida. É aí que um falso puritanismo
tantas vezes tem feito dano. Há pessoas que interpretaram esse tipo de injunção
de maneira inteiramente negativa; suas vidas são negativas; evitam fazer coisas
erradas, é verdade, porém são inúteis, não têm nenhum valor para ninguém; elas
impedem as pessoas de abraçar a fé cristã. A verdadeira vida cristã nunca é uma
vida sem graça. Ações de graças! -diz Paulo. A alegria deve ser evidente na vida
do cristão. Deve mostrar-se em sua conversação, em seu falar e em todo o seu
procedimento.

Ora, vocês poderão dizer, como devemos fazer isso? Aqui também devo
começar com uma negativa. Há gente que imediatamente interpreta o que acabei
de dizer acrescentando-lhe alegria gaiata e alacridade. Não permita Deus que o
façamos jamais! Isso é tão ruim como a melancolia do falso puritano. Não
devemos adicionar coisa alguma. Certa atitude jovial deve expressar-se em nós
por sermos cristãos. Não se deve acrescentar algo como boca escandarada em
riso frívolo, e nada de querer ser uma pessoa eufórica, exageradamente alegre,
jovialmente explosiva. Não posso imaginar o apóstolo Paulo fazendo uma coisa
dessas. Tampouco, é bom lembrar, significa que devemos usar levianas frases
feitas e clichês. Há um tipo de gente que, na conversa, fica sempre usando
interjetivamente as palavras, “Louvado seja o Senhor! Louvado seja o Senhor” -
pensando que, fazendo isso, está obedecendo à injunção; “Mas antes ações de
graças”. Todavia não é isso que se quer dizer com ações de graças! Não
frases feitas, não clichês, não expressões que saem levianamente dos lábios! É,
antes, algo profundo que está na mente do apóstolo aqui, algo que expressa a
profundidade do ser e da personalidade. E o homem não tem consciência disso,
não o faz de cor ou mecanicamente. É resultado de uma mudança do coração, é a
nova criatura se expressando, é uma evidência da vida “mais abundante”.

O apóstolo, parece-me, interpreta perfeitamente esta sua afirmação no último


capítulo da sua Epístola aos Colossenses, onde ele diz: “A
vossa palavra seja sempre agradável, temperada com sal, para que saibais como
vos convém responder a cada um” (4:6). O falar do cristão deve ser sempre
agradável (VA: “com graça”), e temperada com sal, que mantém fora o elemento
corruptor. O falar do incrédulo é caracterizado pela falta de pensamento, como
uma bolha de ar, mas o falar do cristão é fruto do pensamento e é proveitoso para
os outros. É preciso que as pessoas sempre se sintam um pouco melhor por
terem falado conosco. Devem sempre colher algo: não somente
instrução positiva, porém o fato de entrarem em contato conosco deve fazer-
lhes bem, e fazê-las sentir-se melhor. Há algo de sólido quanto ao cristão, em sua
conversa e na totalidade da sua vida e da sua atividade.

Vou além. Não vejo nada aqui que exclua até mesmo um elemento de humor na
conversa do cristão. Mas sempre, é claro, um humor que está sob controle.
Nunca uma conversa tola, nunca leviana (nem parvoíce, nem chocarrice). O
humor do cristão é o que vem naturalmente, inevitavelmente. O cristão não tenta
ser divertido; isso é que tem que ser eliminado. O cristão nunca o faz
simplesmente para causar impressão, para chamar a atenção para si, para fazer
uma imagem, ou para ser o centro de interesse numa conversação; nunca!
Tampouco ele monopoliza uma conversação. Quanto melhor for o
cristão, melhor ouvinte será. Se Deus lhe deu dom de humorista, que o use,
que venha naturalmente; no entanto será sempre controlado, nunca obsceno,
nunca indecente, nunca prejudicando quem quer que seja; haja nele uma espécie
de beleza que seja de valor e que seja enobrecedora.

Assim, o cristão é alguém que está sempre dando graças, na aparência, no


comportamento, no procedimento, na conversação, no linguajar; ele sempre se
lembra de quem ele é e do que é; está sempre apercebido de que ele é o que é
pela graça de Deus; está sempre consciente de que foi liberto da sua antiga vida
má e tola, da vida do mundo com seu encanto e a sua futilidade, e dá graças a
Deus por ter sido tirado dela. Ele não quer saber de coisa alguma que lhe
esteja ligada. A sua nova vida não consiste na antiga vida com a retirada
de algumas coisas más. Lamento dizê-lo, porém toda vez que ouço
certos cristãos falarem em público ou privadamente, ainda sou levado a pensar
que na vida antiga deles teriam dado excelentes comediantes. E acho que isso
nunca se deveria poder dizer do cristão. O mesmo tipo de coisa, a mesma espécie
de frases, a mesma espécie de atitude! Eles cortam certas partes, mas o principal
continua ali! Não deve ser assim com o cristão; ele é um novo homem, ele sabe
que foi liberto do “velho homem” ao preço da morte do Filho de Deus; ele deve
tudo a Deus e a Cristo, e isto deve dominar a totalidade da sua vida e aparecer
em tudo o que ele diz e faz. Todos nós somos fracassos, somos pecadores

nestas questões, não somos? Mas, tratem de compreender o que devemos ser, diz
o apóstolo. Que as coisas do Espírito de Deus caracterizam as nossas vidas, de
modo que quando as pessoas vierem falar conosco, vejam em nós algo atraente,
algo limpo e puro, algo enobrecedor, inteligente, refletido e proveitoso; que elas
sintam que há um elemento de louvor em toda a vida de vocês, algo que as leve
a dizer: acerca do que será que eles louvam a Deus? Onde será que eles o acham,
num mundo como este? Quisera eu ser assim!

A seguir, notem que o apóstolo está muito preocupado com a questão da avareza,
pois a menciona duas vezes; e também disso o cristão deve tratar positivamente.
O amor do dinheiro, diz Paulo a Timóteo mais tarde, é a raiz de todo mal. Mas o
termo traduzido por “avereza” inclui mais que dinheiro; também inclui o que o
dinheiro pode conseguir e produzir, e se um homem ama o dinheiro
daquela maneira, não admira que ele cause o naufrágio da sua vida. É a raiz de
todo mal. A maneira de evitar este laço e perigo particular é usar o seu dinheiro
corretamente! Dê graças a Deus por meio de seu dinheiro; mostre sua gratidão a
Ele dando suporte a tudo o que diz respeito a Ele e ao Seu reino. Se você acha
que esse mal o está aborrecendo, elimine-o dando o seu dinheiro para uma boa
causa. Não digo que o homem deve dar todo o seu dinheiro; o Novo
Testamento não diz isso. No entanto, ele nos diz que somos mordomos das
nossas posses. Mordomo não é alguém que dá tudo o que tem, porém é alguém
que o utiliza de maneira certa e não o usa erroneamente. Se ele desse tudo, não
seria mais mordomo, pois não ficaria nada do que cuidar. O meio de eliminar a
avareza é usar as nossas posses para a glória de Deus como expressão da nossa
gratidão e do nosso louvor a Deus por tudo o que Ele fez por nós, enviando o
Seu amado Filho para morrer por nós e para libertar-nos daquela velha vida que
era tão suja e tão má, tão superficial, tão inútil, a vida do mundo.

Além disso, notem como o apóstolo introduz a palavra “santos” em seu apelo.
“Mas a prostituição, e toda a impureza ou avareza, nem ainda se nomeie entre
vós, como convém a santos”! Os cristãos são santosl Nada do que a igreja
católica romana fez é pior do que o seu mau uso da palavra santo; segundo
aquele conceito, só certos cristãos são santos. A igreja romana os canoniza, e
então um homem ou uma mulher se torna “Santo (ou “Santa”) Fulano de Tal”.
Completamente falso. Todo cristão é santo. As Epístolas são dirigidas aos
“santos” que estão em Corinto, aos santos de todas as igrejas. “Como convém
a santos”, diz Paulo a todos os membros da igreja de Éfeso. Cada um
de nós é um santo, portanto denunciemos e rejeitemos aquele erro católico-
romano. Mas, que é um santo? Éumapessoa santa, alguém que foi separada por
Deus para o Seu prazer e para o Seu próprio uso. Vemos a mesma palavra no
Velho Testamento. Em Êxodo, em Levítico e noutras partes lemos acerca dos
vasos que deviam ser colocados no tabernáculo e sobre o altar; eram chamados
vasos santos, quer dizer, não deviam ser utilizados para fazer refeições comuns,
nem para o comum comer e beber, todavia eram separados para um propósito
especial e para o uso de Deus. E a mesma coisa é verdade quanto aos cristãos. E
isso que o santo é, e eu eu vocês somos santos. Já vimos que os cristãos são
filhos de Deus, queridos e amados, sim, e por essa razão, são santos, propriedade
peculiar de Deus, são os que Deus separou para Si, para o Seu deleite e prazer. E
todo cristão verdadeiro é santo! Lembrem-se de quem você é, diz o
apóstolo. Lembrem-se disso, a primeira coisa de manhã, diga isso quando
está indo para o seu escritório ou para a oficina em seu carro ou no metrô ou no
ônibus. Se você está caminhando ou pedalando, diga a si próprio: sou santo, sou
uma pessoa separada, estou no mundo mas não sou do mundo e, portanto, há
certas coisas que não devo fazer, nem sonhar em fazer.

A ênfase é reforçada pelas duas expressões - “como convém a santos”, e “que


não convêm”. Paulo está dizendo que certas coisas não convêm ao santo, não são
próprias, não são dignas do santo. E aqui de novo a figura que está na mente do
apóstolo é uma figura que todos nós conhecemos bem. Há pessoas que não se
vestem de maneira apropriada à sua idade ou condição. Se vocês vissem uma
senhora muito idosa vestida como se tivesse vinte anos de idade, vocês diriam:
não é próprio! Certas coisas combinam, certas coisas não - isso condiz com a
outra coisa? Há choque entre aquelas cores? O adorno condiz com a ocasião?
“Como convém”! Paulo está usando uma ilustração tirada do mundo do
vestuário, e diz: todos nós sabemos que algumas coisas não convêm ao cristão,
não se ajustam à sua profissão de fé, “não convêm”, não são condizentes. O
homem do mundo vê um cristão entrando num lugar em que não devia entrar, e
diz: você vê o que aquele cristão está fazendo? E até o homem do mundo fica
chocado e espantado. Até o homem do mundo reconhece o hipócrita, sabe
que certo tipo de conduta não condiz com a verdadeira profissão de fé cristã.
Notemos todos! Como convém a santos!

E depois o apóstolo passa a condenar a avareza por ser idolatria. E não há


pecado mais terrível do que a idolatria. Significa que você faz de alguma coisa
um deus, e lhe presta culto. Contudo, a avareza é idolatria. O Novo Testamento
nos diz isso repetidas vezes. Não
importa o que seja, qualquer coisa que eu e vocês nos inclinemos a estabelecer
como a grande realidade, a realidade central, em nossas vidas, aquilo em que
pensamos e com que sonhamos, aquilo que prende a nossa imaginação, aquilo
pelo que vivemos, aquilo que nos causa a maior emoção; se é alguma outra coisa
que não DEUS, é idolatira. E cada um de nós deve examinar-se. Uns prestam
culto ao dinheiro, o que ele pode fazer e o que pode trazer e obter;
outros prestam culto ao “status” e à posição; outros mais, ao seu cérebro e à sua
capacidade; ainda outros, à sua boa aparência. E idolatria. E é o pecado mor. O
que se requer de nós é que adoremos a DEUS, e somente a DEUS. Há somente
um Deus, e Ele não reconhece nenhum outro. Não permita Deus que algum de
nós esteja prestando culto ou se entregando a alguém ou a alguma coisa que não
seja o único Deus vivo e verdadeiro!

Lembremo-nos sempre de que somos santos, separados para Deus, destinados a


viver para Ele e para a Sua glória, a culturar e louvar unicamente a Ele; e,
lembrando-nos disso, tratemos de compreender que certas coisas são
incompatíveis com o cristianismo, que devemos renunciá-las para sempre, evitá-
las, fugir delas por todos os meios concebíveis, e positivamente viver uma vida
que seja uma constante expressão de gratidão a Deus, que teve misericórida de
nós e que, quando ainda éramos pecadores e inimigos, ímpios e vis, deu o
Seu unigênito Filho para sofrer a morte de cruz, para que fôssemos resgatados e
redimidos e tivéssemos parte em Sua herança eterna.

O REINO DE CRISTO E DE DEUS

“Porque bem sábeis isto: que nenhum devasso, ou impuro, ou avarento, o qual é
idólatra, tem herança no reino de Cristo e de Deus. ”

- Efésios 5:5

Neste versículo cinco do capítulo cinco de Efésios vem-nos defrontados por uma
advertência solene, e por um pronunciamento alarmante a respeito do viver
impuro. “Porque bem sabeis isto: que nenhum devasso, ou impuro, ou avarento,
o qual é idólatra, tem herança” -absolutamente nenhum lugar - “no reino de
Cristo e de Deus.” Aqui está, pois, uma advertência que temos de encarar.
Devemos tomar as Escrituras como são. O apóstolo achou necessário ministrar
esta severa advertência aos cristãos efésios, e não podemos senão concluir que é
uma advertência necessária para os cristãos de todas as eras e de todos os
lugares.
Em primeiro lugar, somos alertados pela maneira pela qual esta advertência é
apresentada. “Bem sabeis isto”, diz Paulo - ele quer dizer que esta é uma coisa
além de toda a dúvida, algo que ultrapassa toda a discussão. Isto, diz ele, é uma
coisa que é auto-evidente. Como se pode ser cristão sem saber isso? Como se
pode aprender a Cristo nalgum sentido real sem estar logo ciente disto? Diz ele
que não há necessidade de nenhuma instrução a respeito. E, todavia, embora
diga isso, ele nos faz lembrar disso. Nesta era moderna eu repito a pergunta do
apóstolo. Sabemos todos o que aqui se declara? Vemos isso com perfeita
clareza? É algo que não necessita de demonstração ou de explicação para o
cristão moderno? Só posso responder dizendo que, embora o apóstolo diga aqui
que esta é uma coisa que deveria ser auto -evidente, não podemos ler as
Epístolas, e nem mesmo qualquer dos escritos do Novo Testamento, sem sofrer
certo impacto com o fato de que os escritores estão constantemente lembrando às
pessoas coisas como esta, e fazendo isso da maneira mais solene. Noutras
palavras, só pode dar-se o caso que muitos de nós que deviam saber certas
coisas, não as sabem, e por isso temos que entrar nessas coisas em detalhe. Ora,
por que há esta alarmante possibilidade de que podemos saber essas coisas
teoricamente, sem verdadeiramentecon/zecé-Zaí', entendê-las e captá-las?
Muitas vezes as pessoas ficam surpresas comisso. Às

vezes elas vêm dizer-me: imagine, pregar isso a cristãos! Minha única resposta é:
os apóstolos o fizeram; se era necessário então, é necessário agora, e não é difícil
saber por que é sempre necessário. Temos que examinar a questão.

Todos corremos o perigo de ser demasiado subjetivos em nossa abordagem da


questão da salvação e da redenção. Tendemos a começar conosco mesmos, e
commuita freqüência terminamos conosco mesmos. Queremos algo, e
especialmente felicidade, e consideramos o evangelho como uma coisa que pode
ajudar-nos em nosso problema de procurar por ela. E visto que começamos
conosco mesmos dessa maneira, e com essa busca da felicidade, nunca
examinando toda a situação objetivamente, tendemos a meter-nos em
dificuldades. Queremos uma coisa e, de maneira inteiramente subjetiva, ditamos
qual é essa coisa. E o resultado é que nos esquecemos este outro
aspecto infinitamente mais importante, a saber, a nossa relação com Deus, e
a nossa posição diante do Seu santíssimo olhar.

Depois, também, somos todos peritos em racionalizar os nossos pecados e


fracassos! Ah, reconhecemos isso noutra pessoa, e o condenamos nela! Mas, de
um modo ou de outro, quando fazemos a mesma coisa, há uma explicação fácil,
e ficamos perfeitamente satisfeitos. Somos todos peritos nesse processo.
Estamos todos em boas relações conosco mesmos, não gostamos que nos
coloquem em condições miseráveis, e não gostamos de sofrer condenação; e,
portanto, nós nos tornamos hábeis na defesa de nós mesmos,
apresentando razões, argumentos e explicações - a coisa na verdade não era bem
o que parecia ser! - e assim acabamos em paz conosco mesmos.

Uma vez que seguimos esse caminho subjetivo, é espantoso quão brilhantes
podemos tornar-nos na proteção de nós mesmos e dos nossos interesses. No
capítulo dois da sua Epístola aos Romanos, Paulo nos diz que “acusamos ou
defendemos” neste sentido\defendemo--nos cacusamos outros acerca das
mesmas coisas. Por trás de tudo isso está a astúcia do diabo, que pode chegar a
nós como amigo, na verdade como um anjo de luz, e pode persuadir-nos com
tanta facilidade porque desejamos ser persuadidos, de que aquilo de que nos
acusamos como pecado não é realmente pecado nenhum, e sim apenas
algo natural - estávamos tendo demasiado pudor, estávamos
sendo exageradamente sensíveis em nossas consciências, tínhamos desenvolvido
uma espécie de escrupulosidade mórbida. E o maligno (satanás) vem e lhe
imprime tanta plausibilidade, e nós, querendo estar de bem conosco mesmos,
rendemo-nos às suas lisonjas. E assim ficamos cegos e entramos num estado tal
que é necessário que o apóstolo nos fale nos termos do versículo que agora está
diante de nos.

Há necessidade de que examinemos constantemente as grandes declarações das


Escrituras acerca do objetivo principal do cristianismo. Qual é o objetivo
principal da mensagem cristã, desta fé cristã? É fazer-nos santos - não fazer-nos
felizes! A felicidade é um subproduto do cristianismo, não a coisa central. Nunca
poderemos exagerar na ênfase a isso. E esse o ponto que faz a diferença entre
o cristianismo e as seitas. Permitam-me usar o termo técnico (latino) -é a
differentia da fé cristã. Nesta o primeiro valor é a santidade', nas seitas é a
felicidade. Quando você examina as seitas vê que elas estão sempre procurando
prover à sua felicidade; elas não estão preocupadas com a sua santidade; querem
que você se livre disto, disso e daquilo, porém quereriam que você se livre do
pecado? Muitas delas nem sequer reconhecem a categoria de pecado. Mas nas
Escrituras o primeiro valor, o valor central, é que sejamos feitos santos. Esse é
o grande argumento do capítulo doze da Epístola aos Hebreus. Porque o Senhor
nos ama, Ele nos castiga e nos faz infelizes por algum tempo, a fim de que nos
tornemos santos. Ele quer que sejamos perfeitos. Ele nos está preparando para Si
e para a vida com Ele; portanto, a santidade tem que ser, necessariamente, o
primeiro valor e o mais importante. Noutras palavras, o que cada vez mais
precisamos fazer é olhar para Deus, para o Seu conceito do pecado e do mal e
para a Sua atitude para com o pecado e o mal. Esqueçamo-nos de nós mesmos
provisoriamente. Comecemos com Deus-, vimos à Sua presença e O
contemplamos. O que importa é o que ELE pensa e diz sobre o mal, e o
mau procedimento, e sobre a vida e o modo de viver. O que eu acho, e o
que outros dizem, pesam pouco, em comparação. E assim nos voltamos para o
nosso texto.

Observemos a freqüência com que a declaração feita em nosso texto aparece nas
Escrituras. “Não sabeis”, diz Paulo aos coríntios, “que os injustos não hão de
herdar o reino de Deus? Não erreis; nem os devassos, nem os idólatras, nem os
adúlteros, nem os efeminados, nem os sodomitas, nem os ladrões, nem os
avarentos, nem os bêbados, nem os maldizentes, nem os roubadores herdarão o
reino de Deus” (1 Coríntios 6:9-10). E de novo, mais adiante na mesma Epístola,
vemo-lo dizer: “Não vos enganeis: as más conversações corrompem os
bons costumes. Vigiai justamente (VA: “Despertai para a justiça”) e não pequeis;
porque alguns ainda não têm o conhecimento de Deus; digo-o para vergonha
vossa” (15:33-34). E segue-se daí uma vigorosa dissertação sobre este assunto.
Depois, na Segunda Epístola aos Coríntios, lemos: “Não vos prendais a um jugo
desigual com os infiéis; porque, que sociedade tem a justiça com a injustiça?” -
Agora respondam a isso! - “E que comunhão tem a luz com as trevas?” -

Quem pode dizer-me? - “E que concórdia há entre Cristo e Belial? Ou que parte
tem o fiel com o infiel? E que consenso tem o templo de Deus com os ídolos?”
(6:14-16). Naturalmente, as perguntas do apóstolo são feitas para mostrar que
não há comunhão, que não há acordo nenhum, entre os opostos; são
incompatíveis eternos, e nunca podem ser postos juntos. Não há meio entre dois
opostos, diz Aristóteles. Essas coisas são antíteses eternas. Jamais poderá haver
cinza nos domínios em que Deus impera, é uma coisa ou a outra, preto ou
branco, e nunca podem misturar-se. O apóstolo João ensina a mesma coisa. No
capítulo primeiro da sua Primeira Epístola ele diz: “Se dissermos que temos
comunhão com ele, e andarmos nas trevas, mentimos, e não praticamos a
verdade”. E de novo, no capítulo dois: “Aquele que diz: eu conheço-o, e não
guarda os seus mandamentos, é mentiroso” - não há nenhuma outra coisa que
dizer a seu respeito, ele não passa de um mentiroso descarado! - “e nele não está
a verdade”. Ele é um estranho para a verdade. E depois, no último livro da
Bíblia, como se para lembrar-nos - justo no fim - uma coisa que somos tão
propensos a esquecer, vemos escrito: “E não entrará nela (na cidade santa)
coisa alguma que contamine, e cometa abominação e mentira; mas só os
que estão inscritos no livro da vida do Cordeiro . . . Bem-aventurados aqueles
que guardam os seus mandamentos, para que tenham direito à árvore da vida, e
possam entrar na cidade pelas portas. Ficarão de fora os cães e os feiticeiros, e os
que se prostituem, e os homicidas, e os idólatras, e qualquer que ama e comete a
mentira” (Apocalipse 21:27; 22:14-15). Ah, esta é uma distinção eterna - fora! -
aí estão elas, as pessoas das quais João está falando, que não têm herança
no reino de Cristo e de Deus, estão fora, eternamente do lado de fora, e lá
permanecerão. Não têm entrada na cidade santa. O nosso Senhor disse
pessoalmente a mesma coisa no Sermão do Monte: “Nem todo o que me diz:
Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu
Pai, que está nos céus” (Mateus 7:21). Este é o cristianismo do Novo
Testamento. Não estamos agora pensando em nossa felicidade ou em nossos
sentimentos subjetivos, estamos? Aqui está a declaração grandiosa, objetiva,
eterna. Há uma cidade na qual entrar, e se queremos entrar naquela cidade, temos
que lembrarmos de que é uma cidade santa e que a entrada nela é controlada
pela categoria de santidade. As Escrituras falam sobre a santidade sem a qual
ninguém verá o Senhor. “Bem-aventurados os limpos de coração, porque eles” -
e ninguém mais - “verão a Deus”.

Agora, a primeira questão que nos confronta é esta: que é que esta declaração do
versículo cinco significa? O apóstolo o deixa claro. Ele está afirmando que
aquele cuja conduta habitual é manchada por

pecados como os que ele menciona, não tem herança no reino de Deus. Ele não
está dizendo que todo aquele que cair nalgum desses pecados estará etemamente
excluído do reino. Hão significa isso, graças a Deus! No entanto significa, sim,
que se esses pecados constituem a característica da vida de alguém, se é esse o
seu modo de viver, se é essa a sua atmosfera, se é essa a esfera em que ele se
sente feliz e como quem encontrou o que procurava, então ele não tem nenhuma
herança no reino de Cristo e de Deus. Temos no próprio Novo
Testamento ilustrações de cristãos caindo temporariamente em pecado, sem
que isso tenha passado a ser o seu habitat, por assim dizer; eles não voltaram a
viver em pecado. Essas pessoas não estão incluídas nas solenes palavras do
versículo 5. Digo isso porque a verdade me compele a dizê-lo. Sei que existem
pessoas que se agarrarão a essa afirmação, e a usarão e a torcerão, como diz
Pedro, para a sua própria destruição. Mas a essas pessoas eu garanto que a
persistência, a continuidade, a permanência no pecado, ou uma reversão a
ele, significa que elas não estão dentro do reino. Homens e mulheres
cujo procedimento, cuja vida, é caracterizada por coisas contrárias à lei de Deus,
não estão no reino de Deus; não têm nenhuma herança ali. Ora, por que é que
isso é necessariamente verdadeiro? Por que é que o apóstolo diz: “Bem sabeis
isto”? Bem, aqui ele nos dá uma explicação muito interessante. Diz ele: não
“tem herança no reino de Cristo e de Deus".

Vocês verão que os comentadores cultos gastam a maior parte do seu tempo, ao
tratarem deste versículo, com essa frase particular. Preocupam-se em dizer que o
que o apóstolo de fato escreveu foi, “não tem herança no reino de Cristo e
Deus”; disso muitos deles deduzem, e acertadamente, penso eu, que uma das
coisas que o apóstolo tinha em mente era que Cristo é Deus - o reino de Cristo e
Deusl Não o reino de Cristo cde Deus, mas o reino d&Cristo eDeus, do Cristo
queéDeus. Ora, é perfeitamente legítimo dizer isso e, contudo, não posso
senão achar que o apóstolo não estava primariamente interessado em dizer isso,
embora seja verdade e ele diga coisas similares noutros lugares. O Senhor Jesus
Cristo é Deus, é a segunda Pessoa da Deidade. Mas eu prefiro pensar que aqui o
apóstolo estava dizendo “o reino de Cristo e de Deus”, para poder acentuar o
fato de que o reino que Cristo abriu para nós e que, portanto, com acerto pode
ser chamado reino de Cristo, é também o reino de Deus. E é sobre esse reino que
estamos falando, o reino no qual Deus é o centro e a alma, no qual Deus é tudo,
e no qual tudo tem que ser semelhante a Deus; e “Deus é luz, e não há nele
trevas nenhumas”!

Porventura não vemos na leitura de Salmos que esta verdade era

conhecida dos santos do Velho Testamento? “Senhor, quem habitará no teu


tabemáculo? Quem morará no teu santo monte? Aquele que anda sinceramente,
e pratica a justiça, e fala a verdade no seu coração; aquele que não difama com a
sua língua”, e assim por diante (15:1-3). Esse é o homem que estará com o
Senhor. E de novo, noutro salmo: “Quem subirá ao monte do Senhor, ou quem
estará no seu lugar santo?” Era isso que preocupava o salmista, e ele responde:
“Aquele que é limpo de mãos e puro de coração; que não entrega a sua alma
à vaidade, nem jura enganosamente. Este receberá a bênção do Senhor” (24:3-5).
Em certo sentido, que importa se somos felizes ou infelizes? Acaso importaria
algo senão isto? Queremos estar na presença do Senhor? Queremos subir àquele
monte santo? Queremos ter entrada na cidade de Deus, santa e eterna? Queremos
passar a nossa eternidade ali? Essa é a questão! E, portanto, a primeira
consideração é a santidade! “Sede santos”, diz Deus, “porque eu sou santo”'. A
coisa é tão óbvia! Isto vocês sabem! “O nosso Deus é fogo consumidor”! “Deus
é luz, e não há nele trevas nenhumas”! Olhem para o nosso Senhor, e verão que
Ele era “santo, inocente, imaculado, separado dos pecadores”. De tal maneira era
Ele que podia desafiar os Seus acusadores e dizer: quem pode levantar acusação
contra Mim? Ele pôde dizer: “O maligno vem, e nada acha em mim” (cf. João
14:30).

Mas surge neste ponto um perigo muito sutil, e não tenho dúvida de que o
apóstolo o tinha em mente quando escreveu precisamente as palavras que
estamos considerando. Há pessoas que dirão: “Ora, espere um minuto; você não
nos estaria pregando a lei? Você deve ser um ministro da graça, e, contudo,
parece estar pregando pura lei. Porventura você nos está lembrando o Ser e o
caráter de Deus como expressos nos Dez Mandamentos e em Sua lei moral? Não
nos está simplesmente colocando de volta debaixo da lei? Você não
está excluindo cada um de nos do reino de Deus? Certamente você
está esquecendo o evangelho! Você esteve se referindo ao reino original e à lei
original que Deus pôs diante da humanidade; porém agora o Senhor Jesus Cristo
veio, e somos confrontados por algo inteiramente novo; não mais nos
defrontamos com a lei; tudo o que se pede que façamos como cristãos é crer no
Senhor Jesus Cristo. Não podemos ser salvos sob a lei, porquanto a lei o
impossibilitou, dizendo: “Não há um justo, nem um sequer”. Entretanto agora
Deus introduziu outro meio que o torna fácil para nós; não nos defrontamos mais
com as exigências da lei e com a tremenda santidade de Deus. É apenas
uma questão de crer no Senhor Jesus Cristo, e seremos salvos”. Ora, esse é o
argumento delas, mas sou forçado a dizer que é uma das mais sutis

e perigosas heresias que se pode oferecer aos homens e mulheres. E, todavia,


essa heresia caracteriza grande parte da evangelização moderna.

A resposta a isso tudo está perfeitamente clara no próprio Novo Testamento.


Cristo é Deus, e Ele não veio a este mundo para mudar a lei de Deus; ele mesmo
diz no Sermão do Monte que, nem um jota ou um til passará da lei sem que tudo
se cumpra. Ele não veio para destruir a lei e os profetas, mas para cumpri-los. E
como o apóstolç nos faz lembrar aqui, o reino de Cristo é também o reino de
Deus! É um só reino. Os santos do Velho Testamento estão no mesmo reino
que nós. Estavam nele antes de nós. Como gentios, fomos introduzidos; éramos
estranhos à aliança da promessa e estávamos fora destas coisas, porém fomos
introduzidos, fomos feitos co-herdeiros com eles; essa divisão entre o velho e o
novo é falsa; e o argumento segundo o qual a lei nada tem conosco é um
exemplo do aparecimento do diabo como um anjo de luz. Há somente um padrão
eterno.

No reino de Cristo somos postos face a face com DEUS! E qual é a obra
realizada pelo Senhor Jesus Cristo? Por que Ele veio? Veiopara levar-nos a Deus,
diz o apóstolo Pedro. Veio, diz Paulo, e Se deu a Si mesmo por nós para
“purificar para si um povo seu especial, zeloso de boas obras”; veio para fazer-
nos santos! Vemos uma perfeita exposição da matéria na Epístola aos Romanos:
“Porquanto o que era impossível à lei, visto como estava enferma pela carne,
Deus, enviando o seu Filho em semelhança da carne do pecado, pelo
pecado condenou o pecado na carne; para que a justiça da lei se cumprisse
em nós, que não andamos segundo a carne, mas segundo o Espírito” (8:3-4). E o
reino de Cristo e de Deus, e o padrão do reino de Cristo não é inferior ao do
reino de Deus. O reino é um só, e a santidade é sempre o único padrão. O Senhor
Jesus Cristo não veio a este mundo para rebaixar o padrão ou tomá-lo mais fácil
do que era, para que deslizássemos para dentro do reino, como se pudéssemos
entrar dizendo: cremos em Cristo, e fiquemos ainda apegados aos nossos
pecados. Disse o nosso Senhor: “Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor!... mas
aquele que faz ... ”! E lembremo-nos da ilustração da casa edificada sobre a
rocha e da casa edificada sobre a areia. Ela foi introduzida com as palavras:
“Todo aquele, pois, que escuta estas minhas palavras, e as pratica, assemelhá-lo-
ei ao homem prudente, que edificou a sua casa sobre a rocha” (Mateus 7:24); o
homem que ouviu as palavras de Cristo, e não as pratica, é semelhante ao
homem que edificou a sua casa sobre a areia.

Nesta altura alguém poderá dizer: “Não consigo conciliar estas

coisas em minha mente como princípios; teologicamente não entendo o que você
está dizendo. Certamente, colocando as coisas como você o faz, você está
realmente ensinando de novo a justificação pelas obras. Você não estaria dizendo
que o que nos dá admissão ao reino é a nossa vida? Você não estaria dizendo que
o homem culpado dessas coisas está fora, ao passo que o não culpado está
dentro? Isso não seria ir direto de volta à justificação pelas obras? Você não
estaria efetivamente dizendo que o homem é justificado por sua
santificação? Não estaríamos dizendo que se ele é santificado é justificado, mas
se não é santificado não é justificado e está fora?” Pessoas há que muitas vezes
ficam em dificuldade quanto a isso. Ficam igualmente em dificuldade
exatamente da mesma maneira quanto ao capítulo seis da Epístola aos Hebreus.
Dizem elas: “Vejam ali aquelas advertências terríveis; apassagem nos diz quese
o homem que crê retroceder, estará fora para sempre; não podemos conciliar esta
justificação somente pela fé e este seu ensino da pura graça com esta outra
ênfase que parece pôr de novo tudo sobre nós, sobre a nossa conduta e sobre o
nosso comportamento. Como conciliar estas coisas?”

Essa é uma questão deveras importante! Conciliamos estas coisas asseverando


de novo que Deus justifica ímpios, não os piedosos. A justificação é pela
iésomente. Foi quando ainda éramos inimigos que fomos reconciliados com
Deus pela morte de Seu Filho; foi enquanto éramos ímpios, enquanto éramos
pecadores. Não há dúvida acerca disso; é uma doutrina cardinal, um grande
princípio primordial. Mas a justificação é apenas um passo, um passo inicial, de
um processo. E o processo inclui não somente a justificação, como também a
regeneração, a santificação e a glorificação final. A justificação e o perdão de
pecados não são fins em si mesmos; são apenas passos no caminho que leva à
perfeição final. E essa é a resposta completa ao problema. Alguns cristãos
persistem em isolar estas coisas, porém nas Escrituras elas não estão isoladas.
“Aos que chamou a estes também justificou; e aos que justificou a estes também
glorificou”! “Mas vós sois dele, em Jesus Cristo, o qual para nós foi feito por
Deus sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção”! (Romanos 8:30; 1
Coríntios 1:30). Aí está o processo em geral. E a verdade é que, se você está nele
todo, está em cada um dos seus pontos. Não se pode divorciar a justificação e
o perdão das outras partes da verdade. E os passos restantes estão colocados
claramente diante de nós na Primeira Epístola aos Coríntios: “E é o que”, diz o
apóstolo, após haver dado a sua terrível lista de pecados - “E é o que alguns (de
vós) têm sido, mas haveis sido lavados, mas haveis sido santificados, mas haveis
sido justificados em nome do Senhor Jesus, e pelo Espírito do nosso Deus”
(6:11). Quer dizer que

Deus não justifica o homem eo deixa aí. Absolutamente! Se Deus o justifica,


Deus o introduziu no processo. Se você pode dizer que está justificado, a seu
respeito eu digo que você foi lavado, foi santificado, foi separado e retirado dos
antigos domínios e colocado em novos, num novo reino; você está neste
processo de Deus que o está levando à sua perfeição final e completa. E o
versículo que aqui estamos examinando diz que se em nossas vidas não há
evidência deste processo no qual Deus coloca as pessoas que Ele justifica, então
nós não fomos justificados, porém estamos apenas dizendo, Senhor! Senhor! E a
Sua resposta será: “Nunca vos conheci; apartai-vos de mim, vós que praticais a
iniqüidade”. Dirá isso, pois o argumento é que quando Deus justifica alguém Ele
o introduz neste processo, e estas coisas acontecem com ele.
Portanto, esta seria a maneira de abordarmos o nosso texto e a primeira parte do
capítulo seis da Epístola aos Hebreus: estes versículos são postos diante de nós
para que possamos testar a nós mesmos com eles, nós que estamos prontos a
dizer, “Senhor! Senhor!” Sim, mas ouçam, diz Paulo, saibam isto: “que nenhum
devasso, ou impuro, ou avarento, o qual é idólatra, tem herança no reino de
Cristo e de Deus”. Tem havido pessoas na igreja que dizem: “Senhor! Senhor!”
mas que é culpada destas coisas. Leiam 1 Coríntios, capítulo 5, e verão
que havia um membro da igreja de Corinto que era culpado de um pecado tão
terrível que sequer se podia pensar em mencioná-lo, diz Paulo, mesmo entre os
gentios. Ali estava um homem que dizia, “Senhor! Senhor!” e, todavia, ao
mesmo tempo, era culpado de um pecado que nem dá para mencionar! Esta não
é uma questão de palavras. Qualquer homem pode dizer: “Senhor! Senhor!”
porém, se ainda continua com o seu pecado, não há valor nenhum nisso; não é
um homem justificado. O homem justificado é aquele a quem foi aplicado o
processo. Toda a sua relação com o pecado e o mal é nova. Ele foi lavado,
foi santificado, foi justificado em nome do Senhor Jesus Cristo e pelo Espírito do
nosso Deus.

Mas o nosso texto é mais que um teste. Vocês percebem que versículos dessa
espécie fazem parte do método pelo qual Deus nos santifica? Lembrem-se da
oração do Senhor que se encontra em João, capítulo 17. Ele orou: “Santifica-os
na verdade; a tua palavra é a verdade”. Ele já tinha dito a certas pessoas: “Se vós
permanecerdes na minha palavra, verdadeiramente sereis meus discípulos; e
conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”. Vocês já compreenderam
que é por meio de palavras como essas que Deus nos santifica? Fazem parte do
Seu método de santificação. Estas advertências, estas

ameaças, estas declarações alarmantes, são as coisas que Deus usa para nos
santificar; Ele as aplica a nós pelo Espírito com este propósito. Todos nós
devemos testar a nós mesmos para saber se somos cristãos ou não. Como você
reage, meu amigo, ao texto que estou usando? Ele o preocupa? Ele o deixa
alarmado? Ele o faz sentir vergonha de si mesmo e da sua vida? Você diz: ele
está absolutamente certo, e eu estou sempre correndo o risco de cair no
antinomianismo? Se é assim, digo-lhe que você está no reino. Deus usou este
versículo por meio do Espírito Santo para promover a sua santificação. Estas
palavras vêm para despertar o crente verdadeiro; não tocam os outros. Os
outros apenas são levados a aborrecer-se. Dizem eles: “O que você me diz está
totalmente errado, eu pensava que eu estava justificado pela fé somente”. Mas o
que realmente querem dizer é: “Eu pensava que o evangelho dizia que não
importaria se eu continuasse pecando, e que tudo estaria bem comigo, se eu
cresse em Cristo!” Eles fazem do sangue de Cristo uma capa para cobrir os seus
pecados, mercadejam com a cruz, estão pondo a balança a funcionar, estão se
acertando. Entretanto o homem verdadeiramente chamado, o homem que está
no reino, diz: “Isso está certo, só pode estar certo”.

Deus é santo, Deus é luz, e nEle não há trevas nenhumas. E estas palavras são
empregadas para ampliar, aprofundar e acelerar a santificação do crente
verdadeiro. Lembro-lhes de novo as palavras do apóstolo João em sua Primeira
Epístola: “E qualquer que nele tem esta esperança purifica-se a si mesmo, como
também ele é puro” (3:3). Naturalmente, um homem pode dizer levianamente:
“Quero ir para o céu; eu tenho esta esperança nEle”. “Não tem não!” diz João.
Aí está o teste. Se você tem realmente esta esperança nEle - a esperança de que
no fim vai entrar na cidade santa, e de que nela vai passar a eternidade - todo
aquele que tem esta esperança nEle, purifica-se -naturalmente que o faz, só tem
que fazê-lo - como também Ele é puro. Mas aquele que só tem a esperança nos
lábios, e não no coração, não se purifica, continua vivendo a velha vida; e a
verdade sobre ele é que ele não tem nenhuma herança no reino de Cristo e de
Deus. Ele não pertence a esse reino. Ele diz: “Senhor! Senhor!” porém o seu
falar é barato e leviano.

A questão é: há esta esperança em nossos corações? Se há, reconhecemos a


verdade; dizemos: sim, sabemos de fato isso, que as pessoas presas ao pecado
obviamente não podem ter nenhuma herança no reino de Cristo e de Deus. Não
há contradição entre estas declarações e a doutrina da livre graça e da
justificação pela fé somente, pois o Deus que justifica continua com o processo.
E, a menos que estej amos dando prova de que estamos no processo e de que

por meio dele estamos sendo aperfeiçoados, não se pode tirar senão uma
conclusão - nunca estivemos no reino; temos que voltar ao início, temos que
arrepender-nos e crer no Senhor Jesus Cristo.

A IRA DE DEUS

“Ninguém vos engane com palavras vãs; porque por estas coisas vem a ira de
Deus sobre os filhos da desobediência. ” - Efésios 5:6

Ao referir-se a estas coisas, naturalmente o apóstolo se refere às coisas que ele


acabara de mencionar - prostituição, impureza, parvo-íces, chocarrices, avareza,
etc.; todas elas, coisas inconvenientes nos santos. O seu objetivo primordial aqui,
como vimos, é exortar os crentes efésios a viverem verdadeiramente a vida
cristã, até nos mínimos detalhes das suas vidas. Mas vemos que o apóstolo não
pode manejar até mesmo um assunto prático como este, sem relacioná-lo com
certos princípios gerais e fundamentais. Noutras palavras, ele não está
interessado somente na conduta deles como tal, na moralidade e conduta r/wa 2
moralidade e conduta; a ele tem um interesse mais amplo e maior, o que é
característico de toda a mensagem cristã. Ela toma tudo o que fazemos nesta
vida e neste mundo, e tudo o que nos acontece, e o coloca num contexto eterno.
Noutras palavras, o nosso comportamento neste mundo é importante por três
grandes razões eternas. A primeira é que a nossa conduta afeta a nossa relação
com Deus; não simplesmente o nosso relacionamento, digamos,
conosco mesmos e com as outras pessoas, porém o nosso relacionamento com o
próprio Deus eterno.

O segundo princípio é que só existem duas possibilidades quanto a essa relação


com Deus; ou estamos no reino de Cristo e de Deus, ou estamos fora desse reino
e debaixo da ira de Deus, como filhos da desobediência.

Mas há, depois, um terceiro princípio, a saber, que esta nossa relação com Deus
aplica-se não somente ao tempo, e sim também à eternidade. É importante não
somente por causa da nossa vida e da nossa felicidade enquanto estamos neste
mundo; é o que determina a nossa condição eterna, interminável, ou de
felicidade, ou de profunda miséria e infelicidade.

O mundo incrédulo não faz idéia destes três princípios que o apóstolo enuncia
aqui. Não se interessa pela relação com Deus. Não

se dá conta de que todo ser humano, ou está no reino de Cristo e de Deus, òu está
fora e sob a Sua ira. Não se dá conta de que além desta vida e além do túmulo
existe outra vida, que vamos prosseguir interminavelmente, eternamente, numa
das duas situações, ou de bem--aventurança inefável, ou de sofrimento e agonia
que desafiam a nossa imaginação. E bem que podemos indagar por que será que
tantos homens e mulheres ao nosso redor se mostram tão desatentos a estas três
grandes verdades. Deve-se achar a resposta nas palavras do apóstolo como vêm
registradas em nosso texto.

Diz ele, em primeiro lugar, que o povo do mundo geralmente é enganado por
palavras vãs. “Ninguém vos engane com palavras vãs”! O homem está como
está, em pecado, e o mundo está como está, sofrendo todos os tipos de agonias e
tumultos, porque está sendo enganado. De acordo com a Bíblia, essa é a essência
da tragédia humana, da tragédia do mundo. Todos os problemas e dificuldades
da humanidade são conseqüências do fato de que, no princípio, o homem foi
logrado, foi enganado, foi seduzido, por satanás que, como diz a Bíblia, foi um
enganador desde o princípio. As Escrituras falam também do “engano do
pecado” (Hebreus 3:13). Essa é a coisa mais terrível nesta questão - ele nos
seduz para o mal antes de nos apercebermos. Engana-nos com palavras vãs.

O homem moderno se vangloria acima de tudo mais daquilo que ele chama seu
conhecimento, sua cultura, seu entendimento. Ele acredita que tem um
verdadeiro conceito da vida; e neste contexto talvez não haja nada de que o
homem moderno típico tanto se orgulhe e com que se alegre como a maneira
pela qual ele se emancipou da religião. A religião, diz ele, é uma espécie de
superstição própria da infância da raça; é característica do homem em sua
condição primitiva. Seus acompanhamentos e concomitantes sempre tiveram um
espírito de temor e de escravidão. O homem sob a religião é uma criatura de
tabus e temores a ele impostos. Mas agora o homem moderno acha que
se desenvolveu e se desfez desse pesadelo; livrou-se desses tabus; adquiriu uma
visão da vida científica, saudável, varonil, e agora está livre para usar a sua
inteligência e a sua cultura. Assim, digo eu, ele se regozija com a emancipação
que conseguiu.

O resultado disso é que o homem moderno tira e elimina os velhos padrões,


especialmente os velhos padrões morais. Ele ri deles e os ridiculariza. O homem
moderno não somente pratica, porém também defende coisas que há cem anos, e
até mais recentemente, eram consideradas pela maioria do povo como
inquestionavelmente pecaminosas. Na verdade, ele faz mais que defendê-las, ele
luta por elas.

Ele de fato chega ao ponto de dizer que o homem que não segue essas práticas é
digno de dó; ainda está sujeito aos tabus da religião, ainda é meio vitoriano em
sua perspectiva, e não se desenvolveu à plena maturidade. Ele sustenta que,
embora no passado essas coisas tenham sido consideradas pecaminosas, não
devendo nem ser mencionadas, atualmente as nossas pesquisas e o nosso
desenvolvimento científico ensinaram-nos que o homem é uma criatura
constituída de tal maneira que deve dar plena expressão a essas forças,
propensões e qualidades que há dentro dele. A dedução do homem moderno é
que o que se costumava chamar pecado, na verdade não é nada mais que a ação
do homem expressando-se e vivendo plenamente a vida, não o tipo de vida
mutilada e truncada dos nossos antepassados, mas o homem entrando na sua
realidade e dando evidência daquilo que ele é realmente. E assim, tudo é natural,
e não devemos dizer que isto ou aquilo não é natural ou é pecaminoso, pois, em
última análise, tudo o que o homem faz é natural, e a conclusão final do homem
moderno é que não exercitar ou não dar expressão a estes instintos e
forças naturais é pecaminoso, e, no mínimo, deplorável - se é que existe
tal coisa.

Também há uma nova tendência na vida de explicar o que se costumava chamar


pecado em termos de variações do normal, ou em termos de enfermidade. A
idéia geral hoje é que realmente não existe isso de pecado, e que não devemos
dizer que as pessoas que seguem certas práticas são pecadoras. Dizem-nos que
devemos reconhecer o fato de que não somos todos idênticos, e que o homem
faz certas coisas porque essa é a sua constituição. É certo que fundamentalmente
somos todos iguais, todavia quando nos examinamos em detalhe, vemos que há
diferenças de temperamento e noutros aspectos; um homem é dinâmico, outro é
lerdo; um é vivo, outro é fleumático; um é mais inteligente que outro, um é mais
vigoroso sexualmente que outro. Essencialmente, todos os homens são
constituídos da mesma maneira, mas existem essas variações dentro do normal.
Esse tipo de distinção está sendo ressaltado o tempo todo - o homem nasceu
assim e, portanto, simplesmente deve expressar-se, e se não se expressar,
estará sendo culpado de violar a sua personalidade!

O equilíbrio das suas glândulas endocrínicas é tal que ele só faz o que é natural
para ele. E dessa maneira se desfaz toda a idéia de pecado. As vezes, como eu
disse, a colocação é não tanto em termos de variações do normal como em
termos de doença. E não se pode deixar de notar que essa atitude está se
insinuando nos argumentos utilizados nos tribunais. Um homem comete um
crime; sim, porém a defesa alega que ele não pôde evitá-lo naquele momento;
ele está em

péssimas condições de saúde. Este homem não devia ser considerado criminoso,
devia ser levado a um hospital, em vez de ser trazido para o tribunal! A,doença
foi a causa da sua ação, e, portanto, ele não é responsável. É dessa maneira, e
doutras semelhantes, que toda a noção de pecado, mal e erro moral antagônicos
ao direito e à verdade vai desaparecendo gradativamente.

Isso, por sua vez, leva ao relaxamento de toda a idéia de disciplina - disciplina
no lar, na escola, em todos os aspectos da vida em geral. A velha idéia era
ensinar as crianças a portar-se bem, e ensinar-lhes os três erres,3 gostassem ou
não, e estivessem interessadas ou não. Contudo, isso agora deu lugar à idéia de
que os problemas educacionais devem ser abordados psicologicamente, e cabe à
criança determinar o que se lhe deve ensinar e como se lho deve ensinar; deve-se
tomar tudo agradável e interessante. Se no momento ela não quer
estudar aritmética, contem-lhe uma história; e assim por diante. E assim toda a
idéia de disciplina, de ordem e de governo está desaparecendo. Não estou
ridicularizando a coisa, estou expondo literalmente o que está acontecendo. É
realmente nisso que se acredita hoje em dia. Está sendo posto em prática em
casa, na escola, com relação ao trabalho nas prisões, e em todos os aspectos da
vida. A noção de disciplina é objeto de aversão hoje, e é considerada um mal,
pois o homem deve ser livre e deve ter a permissão de expressar-se.

E depois, naturalmente, o passo seguinte - e é muito lógico - é que toda a idéia


de punição está desaparecendo. Os homens e as mulheres modernos não
acreditam mais em punição em casa, na escola, em relação ao crime e às faltas.
Os jornais dão amplaprova disso. Ocrime floresce; as prisões estão superlotadas.
E como os homens se propõem a resolver o problema? Bem, dizem eles, não
somente não devemos ter mais prisões, mas devemos elaborar bem os nossos
métodos e meios de tratamento psicológico dos delinqüentes. A punição
é antiquada; você deve fazê-los passar por esta análise profunda, deve descobrir
as origens e os motivos ocultos; eles não são criminosos; ou lhes falta equilíbrio,
ou estão positivamente enfermos; deve-se proceder a investigações inteiramente
deste ponto de vista. E depois você deve procurar reabilitá-los levando-os a ler
boa literatura, falando-lhes amavelmente, e assim por diante. A idéia de punição
tem que ser abolida.

Essas idéias têm estado em prática faz algum tempo. E é muito interessante notar
as pessoas que originariamente foram mais respon-

sáveis por elas. Não é sem significação que a força motriz desse tipo de atitude
foi o homem que foi um dos primeiros propulsores dos esforços conciliatórios
com Hitler. E eles continuam fazendo isso. Apesar de haver ficado claro para
todos que isso não funcionou com Hitler, eles ainda acreditam que funcionará
com outros criminosos. É tudo resultado dessa nova atitude para com a vida e,
em particular, para com o pecado e o crime. Para resumir tudo, a situação toda
está sendo considerada do ponto de vista da psicologia, e nos dizem que
palavras como pecado, crime e punição são feias, e devem ser banidas do
nosso vocabulário.

Tudo sobre o que estive falando vocês verão amplamente exposto no Relatório
de Wolfenden. Seu principal argumento é que não devemos falar mais de certas
perversões horríveis, como eu as denomino, como sendo anomalias, pois elas são
naturais para os que as praticam! Essa é a base geral do Relatório de Wolfenden e
do movimento que luta por legitimar a prática dessas imundas e indescritíveis
perversões em privado, senão em público. Esse é o argumento que está por trás,
que elas são naturais para os que as praticam; são variações dentro do normal, ou
senão são conseqüências de enfermidade.

Essa é também a explicação de uma ação declaratória do lorde Chamberlain que


sancionou a apresentação teatral de duas peças cujo tema é o homossexualismo,
desde que se ajustem a certas normas. No entanto, seguramente isso tudo é
ofensivo até mesmo aos melhores e mais elevados instintos do homem natural. E
não só isso; o argumento que explanei acaba fazendo do homem um animal e o
insulta. Considera o homem tão-somente como uma coleção de
glândulas endocrínicas, nada mais que uma coleção de impulsos, energias
e instintos; passa por alto esta outra coisa chamada alma, e o espírito, que o
homem é; e reduz o homem, digo e reitero, ao nível de um animal, e na verdade
o põe abaixo dele, às vezes, quase ao nível de uma máquina, e se alega que se
pode manipular o homem e a sua personalidade empregando-se medicação -
acrescentando doses extras disto, retirando uma certa porção daquilo!

Mas finalmente o meu argumento é o seguinte: não há nada que mostra com
tanta clareza que isso tudo não passa do engano de satanás e de palavras vãs e
vazias, como o caos para o qual esse modo de ver está levando. Dêem uma
olhada no mundo moderno, e no estado em que se acha a sociedade, pois estas
idéias vêm sendo postas em prática há algum tempo. Não tenho dúvida de que
quando os historiadores

futuros vierem a escrever a história desta era em que vivemos, chegarão à


conclusão de que a causa geral do nosso problema foi que as autoridades se
deixaram influenciar por esta atitude psicológica para com a vida, às custas da
visão escriturística da vida, A educação, o lar, os hospitais, as prisões - de fato, a
totalidade da vida - estão sendo governados por esta falsa psicologia que põe de
lado a idéia de que o homem foi cirado à imagem de Deus e responsável diante
de Deus, e que ele deve obedecer às santas leis de Deus; tudo isso foi posto de
lado, e o homem é visto desta nova maneira, psicológica e evolucionista.
Não tenho nenhum dúvida de que o mundo está como está, ao nível internacional
e ao nível nacional, e em vários grupos dentro das nações, porque o homem está
sendo enganado por estas “palavras vãs” propostas por satanás. Como um anjo
de luz, ele coloca a nova idéia muito inteligentemente nas bocas dos educadores,
dos sociólogos e de outros semelhantes; sim, soa tão bem e tão maravilhosa, tão
boa e tão amável, parece tão melhor do que a antiga idéia de disciplina, ordem e
punição, e da divisão em natural e antinatural, da divisão em verdade e crime. E
plausível, parece muito interessante e atraente, mas a única expressão para ela,
digo eu, acha-se no texto que estou focalizando -“palavras vãs”!

Além disso, porém, o mundo está como está não somente porque está sendo
enganado desse modo, mas também porque não conhece a verdade sobre a ira de
Deus. “Ninguém vos engane com palavras vãs; porque por estas coisas vem a ira
de Deus sobre os filhos da desobediência.” Os sofistas a quem venho me
referindo são particularmente sarcásticos acerca desta frase, “a ira de Deus”. Ah,
exclamam eles, isso é tão típico da religião! - assustador, alarmante, a ira de
Deus! Os nosso pais ficavam aterrorizados com esse tipo de coisa, e quando
os pregadores trovejavam do púlpito sobre a ira de Deus, eles estremeciam e
tremiam e se decidiam por Cristo, e as igrejas e capelas ficavam cheias de gente;
todavia isso não funciona com o homem do século vinte! Ele já viu tudo. Eles
dizem que o homem moderno tem o novo entendimento a que venho me
referindo. Não há nada, digo eu, que os sofistas mais desejem ridicularizar e
eliminar do que esta noção da ira de Deus. Mas, seguramente, não há nenhum
outro lugar onde a cegueira do homem moderno seja mais evidente e onde o
engano que ele sofre de satanás seja mais óbvio do que justamente neste ponto.

Considerem por um momento o fato da ira de Deus! E algo afirmado na Bíblia


do começo ao fim. Foi ensinada e apregoada pelos patriarcas, pelos reis, pelos
profetas e pelo próprio Senhor Jesus

Cristo, e pelos apóstolos, cada um deles. Se você não crê na ira de Deus, só
tenho uma coisa para dizer-lhe: você não crê na Bíblia! Você não pode crer na
Bíblia sem crer na ira de Deus. Se você tirar dela a ira de Deus, não será mais a
Bíblia, ela será o que você pensa; você terá feito uma bíblia própria, uma bíblia
sua. Contudo, sejamos claros sobre o que é a ira de Deus. Não devemos pensar
nela como pensamos na ira do homem. A ira do homem é algo terrível de se
testemunhar; é furor descontrolado, é mau gênio, é violência. Mas não há nada
de descontrolado quanto à ira de Deus. Sua ira é Sua atitude para com o mal e
para com o pecado, é Seu desprazer face ao pecado, é o Seu determinado ódio
contra o pecado. A ira de Deus é a declarada determinação de Deus de punir o
pecado. É, se posso dizê-lo, a reação do Deus eterno, que é imutável e
sempitemo em Sua santidade, ao pecado e ao mal, ao que se originou do diabo e
que ele inseriu na raça humana e introduziu na vida do mundo. Deus o odeia
com toda a intensidade do Seu Ser divino e eterno. Deus não pode entender-
Se com ele, e revelou desde o início que o punirá. Essa é a Sua
atitude determinada; esse é o significado da “ira de Deus”. E, diz o
apóstolo: “Por estas coisas” - os males por ele mencionados - “vem a ira de
Deus sobre os filhos da desobediência”. E agora vem a questão vital: como e
quando esta ira vai manifestar-se?

Faremos bem em perguntar: “Quando vem a ira de Deus? Quando e como se


manifesta? A primeira resposta à questão é: agora! No presente! Paulo não diz
que a ira de Deus virá sobre os filhos da desobediência; ele usa o tempo
presente, “vem”; é o presente contínuo; inclui o futuro, mas não é só o futuro,
inclui o presente! Como é que ela vem no presente? Desta maneira: no momento
em que você peca, imediatamente a sente. A sua consciência condena você.
Essa é uma parte da ira de Deus contra o pecado. O sentimento de remorso é
uma manifestação da ira de Deus. Pensem então nos sofrimentos que vêm do
pecado - sofrimentos físicos. A “manhã após a noite anterior”, assim chamada,
faz parte da ira de Deus contra o pecado, pois Deus ordenou que, se a pessoa
abusar do seu corpo, sofrerá por isso. Vocês falam do seu prazer; eu lhes lembro
a sua dor! As conseqüências físicas do pecado e da prática do mal fazem parte da
ira de Deus. Quando o homem pecou pela primeira vez, Deus amaldiçoou a
terrra; espinhos e abrolhos surgiram, e a doença apareceu. Essa foi uma parte da
punição de Deus pelo pecado, e continua. O pecado e o mal produzem
conseqüências e são parte integrante da manifestação da ira de Deus. Pensem
também no sofrimento mental, na agonia da mente, na infelicidade do mundo,
por causa do pecado! Pensem na confusão da vida - na confusão e balbúrdia
moral - e tudo o que isso envolve.

Verdadeiramente posso resumi-lo com uma palavra do Velho Testamento: “O


caminho dos prevaricadores é áspero”! (Provérbios 13:15). Foi Deus que
determinou isso. O homem não vai pecar e escapar ileso.

Considerem a palavra dita por Moisés às duas e meia tribos que queriam
estabelecer-se no lado leste do Jordão. Disse ele: se não cumprirdes o que
prometestes fazer, “sentireis o vosso pecado, quando vos achar” (Números
32:23). O pecado nos encontra. Pode levar anos, porém a sua busca nunca falha.
Há ainda o castigo positivo. Leiam o Velho Testamento; vejam como Deus puniu
indivíduos; vejam com Ele puniu nações, mesmo a nação de Israel, o Seu
próprio povo. Ele o enviou ao cativeiro! Ele puniu reis, derrubou-os! Está escrito
nas histórias das nações e do mundo em geral. E essa verdade é
ensinada explicitamente no Novo Testamento. Leiam, por exemplo, as
palavras lidas quando da Ceia do Senhor: “Por causa disto há entre vós
muitos fracos e doentes, e muitos que dormem”. Porque alguns de vocês
de Corinto, diz Paulo, não se examinavam antes de virem para a mesa
da comunhão, alguns de vocês estão fracos, alguns estão doentes,
alguns morreram! Era parte da punição de Deus ao pecado. Sim, diz o capítulo
doze da Epístola aos Hebreus: “O Senhor corrige o que ama, e açoita a qualquer
que recebe por filho”. A ira de Deus manifestando-se no presente contra o
pecado e o diabo!

Mas há uma coisa para a qual desejo chamar a atenção, ao nível nacional e ao
nível internacional. Na Epístola aos Romanos se nos diz, com relação aos
incrédulos: “Tendo conhecido a Deus, não o glorifí-caram como Deus, nem lhe
deram graças, antes em seus discursos se desvaneceram, e o seu coração
insensato se obscureceu. Dizendo-se sábios, tomaram-se loucos. E mudaram a
glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível, e
de aves, e de quadrúpedes, e de répteis. Pelo que também Deus os entregou
às concupiscências de seus corações, à imundícia, para desonrarem seus corpos
entre si; pois mudaram a verdade de Deus em mentira, e honraram e serviram
mais a criatura do que o Criador, que é bendito etemamente. Amém. Pelo que
Deus os abandonou às paixões infames. Porque até as suas mulheres mudaram o
uso natural, no contrário à natureza. E, semelhantemente, também os varões,
deixando o uso natural da mulher, se inflamaram em sua sensualidade uns para
com os outros, varão com varão, cometendo torpeza e recebendo em si mesmos
a recompensa que convinha ao seu erro. E, como eles se não importaram de ter
conhecimento de Deus, assim Deus os entregou a um sentimento perverso, para
fazerem coisas que não convêm; estando cheios de toda a iniqüidade,
prostituição, malícia,

avareza, maldade; cheios de inveja, homicídio, contenda, engano, malignidade;


sendo murmuradores, detratores, aborrecidores de Deus, injuriadores, soberbos,
presunçosos, inventores de males, desobedientes aos pais e às mães; néscios,
infiéis nos contratos, sem afeição natural, irreconciliáveis, sem misericórdia; os
quais, conhecendo a justiça de Deus (que são dignos de morte os que tais coisas
praticam), não somente as fazem, mas também consentem aos que as
fazem” (1:21-32).

E o apóstolo diz tudo isso para expor o que dissera no versículo 18: “Porque do
céu se manifesta a ira de Deus sobre toda a impiedade e injustiça dos homens,
que detêm a verdade em injustiça”. Diz ele que foi assim porque o mundo antigo
era o que era. Deus entregou os homens a um sentimento perverso - a
humanidade rebelou-se contra Ele, deu as costas a Ele, julgava-se sábia, julgava-
se entendida - Deus os abandonou. Retirou Sua graça restringente e os deixou
espojar-se na sua imundícia. E, quando lemos essa passagem terrível, acaso
não sentimos que estamos lendo uma perfeita descrição do mundo moderno? O
mundo está como está hoje porque pecou e porque Deus está punindo o pecado!

Durante cem anos e mais o homem tem se jactado da sua inteligência. Desde
cerca de 1859, com Charles Darwin e a sua Origem das Espécies (“Origin of
Species”), temos sido presenteados com a visão científica! O homem não é mais
uma criação especial de Deus, mas está evoluindo do animal! Os homens deram
as costas a Deus, e à maneira como Deus vê o homem, a vida e o mundo;
dedicaram-se às suas filosofias e arrogantemente se rebelaram contra Deus. E,
em conseqüência, a despeito da educação, do conhecimento e da cultura, o
mundo tornou a sèr o que Paulo descreve naquela segunda metado do capítulo
primeiro da Epístola aos Romanos. O mundo e o que vocês lêem nos jornais, e
agora aprática das perversões é declarada legal para adultos. A degradação
começou a será cada vez pior. Os homens do mundo podem apresentada sua
psicologia, podem construir prisões e podem fazer muitas outras coisas, mas não
encontram um remédio -Deus lhes deu um sentimento perverso! (VA: “... mente
reprovada”!). Essa é uma das maneiras pelas quais Deus trata com este
mundo. Quando o mundo não dá ouvidos aos apelos do Seu evangelho, Deus o
abandona, retira-Se, e o mundo afunda num estado tão sujo e horrível que, por
fim, “cai em si”, começa a clamar por misericórdia e volta para Deus. Essa é a
mensagem da Bíblia, e eu afirmo que essa é a única explicação adequada do
estado em que se encontra o mundo neste exato momento. Acredito que tivemos
duas guerras mundiais neste século como castigo da arrogância, do orgulho, da
vaidade e da loucura

da humanidade desde cerca de 1864. O mundo em geral tinha deixado de crer


em Deus, acreditava que o homem era imortal, que não havia nada que ele não
pudesse fazer; pelas leis do Parlamento ele poderia introduzir o paraíso mediante
a legislação. Deus não era necessário; Sua verdade foi descartada e relegada ao
limbo das coisas esquecidas. E acredito que Deus retirou a Sua graça
restringente e está deixando que a humanidade colha as conseqüências da sua
rebelião arrogante e pecaminosa. Deus está mostrando ao homem o que este
realmente é. Está lhe mostrando a sua insignificância, está lhe mostrando a
sua natureza moral, está lhe mostrando que, sem Ele e Sua graça redentora, ele
está perdido e condenado. Enquanto o mundo rejeitar a mensagem acerca da ira
de Deus contra o pecado, as coisas irão de mal a pior. Quão ocioso é tentar ser
otimista, e dizer que o que queremos é um espírito de amor, de fraternidade e de
amizade, enquanto o homem permanece pecador e egoísta, e rebelde contra
Deus. Ele tem que ser humilhado; e a ira de Deus está sendo revelada nesta
geração em que vivemos, contra toda a impiedade e injustiça dos homens.

A ira de Deus, no entanto, não se manifesta somente agora, no presente; ela será
revelada também no futuro, por ocasião da segunda vinda de Cristo, do fim do
mundo e do julgamento do universo inteiro! Jesus Cristo, o Filho de Deus, o
Salvador negligenciado, escarnecido, voltará a este mundo. Estará cavalgando as
nuvens do céu, e virá para julgar o mundo todo com justiça. O apóstolo nos
anuncia a sua certeza na Segunda Epístola aos Tessalonicenses: “Quando se
manifestar o Senhor Jesus desde o céu com os anjos do seu poder, como
labareda de fogo, tomando vingança dos que não conhecem a Deus e dos
que não obedecem ao evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo; os quais
por castigo padecerão eterna perdição, ante a face do Senhor e a glória do seu
poder, quando vier para ser glorificado nos seus santos, e para se fazer admirável
naquele dia em todos os que crêem (porquanto o nosso testemunho foi crido
entre vós)” (1:7-10). O mundo ridiculariza isso, eu sei; chamam-me louco por
pregá-lo. Digam o que quiserem. Eles ridicularizaram Noé; ridicularizaramLó
diante de Sodoma e Gomorra; ridicularizaram João Batista; ridicularizaram o
Filho de Deus; ridicularizaram os profetas, sempre. Não importa. Esta é a
Palavra de Deus e a verdade de Deus. Vocês não a podem ver sendo manifesta
sobre o mundo moderno e sobre o homem moderno? Bem, se vocês a vêem ali,
creiam no restante! O mundo está sob o julgamento de Deus, Sua ira está sobre o
mundo. Cristo voltará e destruirá todo o mal e todo o pecado, e punirá todos os
que pertencem a esse reino das trevas. Haverá novos céus e nova terra, em que
habita a justiça. E os que

pertencem ao reino de Cristo e de Deus serão tranformados e serão semelhantes


a Ele, e com Ele reinarão na glória por toda a eternidade. E esta promessa aplica-
se a todos - glória para os santos de Deus, condenação para os incrédulos. A ira
de Deus vem sobre os filhos da desobediência. Se você é filho da desobediência,
a ira de Deus virá sobre você, e virá sobre toda a multidão dos que constituem o
mundo condenado, rejeitado. É universal. Também é individual.

Então, que devemos fazer? - perguntará alguém. É inteiramente óbvio, não é? Se


você se der conta de que o seu sofrimento e dor e agonia se devem ao fato de que
você desobedeceu a Deus, de que você é rebelde contra Ele em seu coração e em
sua vida; se você se der conta e for a Ele e confessá-lo e reconhecê-lo (o que
significa arrependimento); e se você disser-Lhe então que crê em Sua benévola
mensagem concernente ao Seu Filho unigênito, que Ele enviou do céu
para libertar-nos deste presente mundo mau que está sob o Seu juízo e a
Sua condenação, Ele o perdoará, Ele o receberá. Como eu disse antes, todos nós
estamos, ou no mundo e adotando a sua mentalidade e compartilhando a sua
vida, ou temos herança no reino de Cristo e de Deus. E se estamos nesse reino de
Cristo e de Deus, nada temos que temer.

Que venha uma terceira guerra mundial; sim, que venha o Juízo Final - estamos
seguros, já pertencemos a Cristo. Não há presunção nisso! Entretanto, se não
pertencemos a esse mundo, pertencemos ao mundo que está sob a ira de Deus
cada vez mais, e que experimentará a condenação total e final. Ah, só há uma
coisa a fazer; é o que o apóstolo diz aos efésios que façam - “Não sejais seus
companheiros”! Não participem da vida deles! Apercebam-se do fim a que isso
leva! Retirem-se! Corram! “Fugi da ira vindoura”! Humilhe-se você
em completa penitência e contrição. Peça a Deus que tenha misericórdia de você.
Arrpenda-se e creia no evangelho do Senhor Jesus Cristo. E você não somente
será perdoado, ser-lhe-á dada uma herança em Seu reino glorioso e sempiterno.
Ah, queira Deus abrir os nossos olhos para a verdade, e oxalá nos dediquemos a
incessante oração em favor do mundo que está sendo enganado por palavras vãs.
Os cristãos são chamados para abrir os olhos dos homens, para mostrar-lhes o
engano, a loucura e a vaidade da sua situação e daquilo em que eles
crêem. Oremos, pois, a Deus, rogando-Lhe que nos dê poder para fazê-
lo. Noutras palavras, oremos por avivamento. Oremos, pedindo que o Espírito de
Deus desça de novo sobre a Igreja hoje, como fez há duzentos anos, e como fez
em 1859, de modo que ela se levante com

tal poder, e proclame a verdade fervorosamente e em termos tão gloriosos que


até os mortos sejam despertados. Vocês não poderão arrazoar com as pessoas que
estão sendo enganadas pelo diabo; é necessário o som da trombeta de Deus, é
necessário o poder do Espírito. Portanto, dediquemo-nos a incessante e
continuada oração pelo derramamento do Espírito de Deus, para que possamos
dar a verdade às nações e aos seus líderes cegos, e assim eles sejam salvos da ira
vindoura e comecem a viver para a glória de Deus.

1
Ao todo; totalmente. Em latim no original. Nota do tradutor.

2
Como. Em latim no original. Nota do tradutor.

3
Ler, escrever e aritmética. Em inglês, “reading, writing and ’rithmetic”, em que a letra R soa como
inicial na pronúncia. Nota do tradutor.
FILHOS DA LUZ

“Portanto, não sejais seus companheiros. Porque noutro tempo éreis trevas, mas
agora sois luz no Senhor; andai como filhos da luz. ”

-Efésios 5:7-8

Nestes dois versículos o apóstolo Paulo está começando um novo argumento. O


tema continua sendo o mesmo, naturalmente, a importância do reto, veraz e
próprio viver da parte do povo cristão. Já estivemos considerando um
argumento, na verdade toda uma série de argumentos, mas o apóstolo não se
contenta com isso, apresenta mais outro; e ele terá ainda outros argumentos para
pôr em discussão. Agora vou fazer uma pausa por um momento com o fim de
salientar este fato que é tão frequentemente esquecido e na verdade negado, que
este é o método do Novo Testamento de ensinar e de promover a santificação e a
santidade. Noutras palavras, é evidente que a santificação não é uma coisa que
você recebe como uma experiência; você não pode apossar-se da santificação
por um ato. É algo que resulta do desenvolvimento da verdade. Por isso Paulo a
apresenta na forma de um argumento; ele expõe a doutrina, e depois diz; agora, à
luz disso, certamente. . .! “Noutro tempo éreis trevas, mas agora sois luz
no Senhor; andai como filhos da luz”, ou como aqueles que pertencem à luz.
Ora, não seria extraordinário - apesar deste ensino constantemente repetido «as
Epístolas do Novo Testamento, que foram escritas com a finalidade de tratar de
toda a questão da santificação e do andar santo - não seria extraordinário, reitere-
se, que as pessoas ainda ensinem a santificação como sendo um dom a ser
recebido, algo que você obtém numa experiência, algo que você toma?

Também há outro ensino, iqualmente popular, que quer fazer-nos crer que tudo o
que é necessário para sermos santificados e sermos santos é simplesmente como
abrir as venezianas e deixar a luz entrar num quarto excuro. Tudo o que é
necessário, dizem, é que o crente olhe para o Senhor; ele não tem necessidade de
fazer nada, não há problema, não há luta, não há dificuldade; ele apenas olha
para o Senhor, e o Senhor faz tudo por ele. E esse, dizem-nos, é todo o
ensino sobre a santificação; sempre se tem feito muito alvoroço e
transtorno sobre isso, dizem, e contudo é muito simples, você apenas olha para

o Senhor e Ele o fará por você, Ele será vitorioso em você, etc., etc. Bem, tudo o
que eu pergunto é: se esses ensinamentos são verdadeiros, por que estas
Epístolas foram escritas? - e especialmente nestas seções práticas, por que o
apóstolo se dá ao trabalho de apresentar argumento após argumento - colocando
o tema primeiro de uma forma, depois de outra?

Certamente é hora de começar a considerar de novo estas questões e ver que esse
é o método neotestamentário de santificação e de santidade; é compreender a
verdade e depois aplicá-la. Naturalmente o nosso Senhor dissera tudo a respeito,
antes da Sua morte, quando disse: “A verdade vos libertará”. “Se vós
permanecerdes na minha palavra, verdadeiramente sereis meus discípulos; e
conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.” No fim Ele orou (vocês o
verão em João, capítulo 17): “Santifica-os na verdade; a tua palavra é
a verdade”. Bem, é exatamente isso que o apóstolo está fazendo aqui. Aí está a
palavra da verdade, e quando nos vem a verdade e a vemos e a entendemos,
devemos aplicá-la. Assim ele nos assedia, com argumento e mais argumento,
construindo o seu caso. Dá-nos argumentos positivos, dá-nos argumentos
negativos, para levar-nos a obedecer à sua injunção: “Andai em amor”, e
pensaríamos que isso bastasse. Mas não; ele apresenta agora, neste versículo que
estamos examinando, mais um argumento. Ele nos manda andar como filhos da
luz - antes, andar em amor, agora, andar na luz. E é este assunto que o mantém
ocupado direto do versículo 7 ao versículo 14. Notem como ele se expressa. Diz
ele que o fruto do Espírito está em “toda a bondade, e justiça e verdade; . . . Não
comuniqueis com as obras infrutuosas das trevas, mas antes condenai-as... todas
estas coisas se manifestam, sendo condenadas pela luz... Pelo que diz: desperta,
tu que dormes, e levanta-te dentre os mortos, e Cristo te esclarecerá”. (VA: “..., e
Cristo te concederá luz”)

Agora, ao abordarmos esta nova seção, lembramo-nos de que o Novo


Testamento nos fala muitas vezes da luz em contraste com as trevas. Obviamente
é, portanto, um argumento muito forte. A diferença entre cristão e não cristão é a
diferença que existe entre estar na luz e estar nas trevas. Estudemos algumas das
expressões que nos lembramisso. Vejam os termos empregados pelo nosso
Senhor. Disse Ele: “Eu sou a luz do mundo; quem me segue não andará em
trevas, mas terá a luz da vida”. Contudo, dirigindo-Se aos Seus seguidores, disse
Ele também: “Vós sois a luz do mundo”; quer dizer, por causa da nossa relação
com Ele, tornamo-nos luz do mundo. E, não “se ascende a candeia e se coloca
debaixo do alqueire”, diz Ele, “mas no velador”. O cristão deve ser como uma
“cidade edificada sobre um

monte” que “não se pode esconder”. “Vós sois a luz do mundo.” (João 8:12;
Mateus 5:14-15)/ No prólogo do Evangelho Segundo ^João vemos a vinda da
verdade ao mundo expressa em termos de luz. É-nos dito que Cristo era “a luz
verdadeira, que alumia a todo o homem que vem ao mundo”. “Nele estava a
vida, e a vida era a luz dos homens.” “A luz resplandece nas trevas, e as trevas
não a compreenderam.” E assim por diante. Evidentemente, esta é uma das
principais maneiras pelas quais o Novo Testamento nos apresenta todo o corpo
da verdade cristã, a nossa fé nela e a nossa sujeição a ela.

E o que é característico dos Evangelhos é igualmente característico das


Epístolas. Vejam a grande declaração registrada em 2 Coríntios, capítulo 4: “Se
ainda o nosso evangelho está encoberto, para os que se perdem está encoberto.
Nos quais o deus deste século cegou os entendimentos dos incrédulos, para que
lhe não resplandeça a luz do evangelho da glória de Cristo, que é a imagem de
Deus... Porque Deus que disse que das trevas resplandecesse a luz, é quem
resplandeceu em nossos corações, para iluminação do conhecimento da glória de
Deus, na face de Jesus Cristo” (2 Coríntios 4:3-6). Vocês vêem isso aparecendo
como tema constante em todas as Epístolas do apóstolo Paulo. Vemo-lo também
nos escritos de Pedro. Diz ele em sua Primeira Epístola: “Vós sois a geração
eleita, o sacerdócio real, a nação santa, o povo adquirido, para que anuncieis as
virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz”. É
também um dos principais temas da Primeira Epístola de João: “Deus é luz, e
não há nele trevas nenhumas”, e tudo mais que se deduz disso. Assim, digo eu,
temos abundantes provas que mostram que este é um aspecto sumamente
importante da verdade. E, portanto, não é de admirar que o apóstolo o tome para
reforçar e fazer entender o que ele já dissera em nosso texto e contexto.

O apóstolo apresenta o seu tema antes de passar a fazer as suas deduções, e


podemos dividir o seu método de apresentação em algumas proposições simples,
as quais, não obstante, levam-nos ao âmago da matéria toda. A primeira é: a
diferença entre o cristão e o não cristão - e é uma diferença absoluta - é
repetidamente acentuada no Novo Testamento e não deveria haver dificuldade
em reconhecer essa diferença; toda a terminologia do Novo Testamento com
relação ao que o cristão é pode ser descrita em termos da regeneração -
não apenas um ligeiro melhoramento na superfície, mas re-nascimento; não que
você tire os andrajos de um homem e lhe vista um temo de roupa melhor; não
que você lhe lave o rosto e lhe corte o cabelo. Não, não! Ele tem que nascer de
novo. Não existe expressão mais radical

que essa! “Se alguém está em Cristo, nova criatura é”, uma nova criação! (2
Coríntios 5:17). Aqui somos levados direto de volta à origem! Uma criação traz
algo do nada à existência. Não é melhoramento, não é adaptação, é criação.
Quem foi feito cristão, foi criado de novo. Uma expressão fundamental! Dou
ênfase a esta questão para assinalar o pensamento do apóstolo expresso em nosso
texto. “Éreis. .., sois luz.” Ora, esses termos são absolutos, e devemos provar-
nos a nós mesmos quanto a se sabemos alguma coisa sobre eles -
“éreis” e“sois”. Notem que Paulo nos dá mais duas palavras. Dizei e:
“noutro tempo”, quer dizer, era uma vez. E o contraste disso, que é,
“agora”. Olhem para tras, diz ele, lá no passado, era uma vez, uma vez, a
sua situação era essa; mas agoral Conforme viemos expondo esta Epístola, mais
de uma vez tivemos ocasião de mostrar como o apóstolo se glória nas palavras
mas agora. Nós as consideramos no capítulo dois, onde Paulo - usando-as com
aquela força e poder - lembra aos santos efésios que no passado eles estavam
“sem Cristo, separados da comunidade de Israel, e estranhos aos concertos das
promessas, não tendo esperança, e sem Deus no mundo. Mas agora. ..”! Graças
a Deus, diz ele, vocês não estão mais nas condições anteriores. Agoral E então,
mais adiante no mesmo capítulo, ele diz: “Já” (ou “Agora”) “não sois
estrangeiros, nem forasteiros, mas concidadãos dos santos, e da família de
Deus”. Vocês eram; vocês são! Noutro tempo; agora! E essa é a diferença, digo
eu, entre não ser cristão e ser cristão.

A seguir notamos que Paulo passa a contrastar as trevas com a luz. Não posemos
misturar a luz com as trevas. São etemamente opostas. Paulo diz aos coríntios
que “não há comunhão entre a luz e as trevas”. E ele quer que os efésios
compreendam que não são mais trevas, e sim luz no Senhor. Pois bem, quero
deixar isso perfeitamente claro. Ele não está se concentrando na maneira pela
qual passamos das trevas para a luz, ou no momento exato em que isso
aconteceu. Muitos ficam aflitos porque não podem pôr o dedo num momento
particular ou num texto particular ou numa ocasião particular. Entretanto não é
esse o ponto. A questão que o apóstolo está levantando não é quando ou como
exatamente você passou do que era para o que é; é, antes: pode dizer você sober
si mesmo: sou isto, não sou mais aquilo? A preocupação dele é que sejamos luz,
e não trevas, pode acontecer subitamente, pode acontecer gradativamente. No
caso de alguns é como ligar uma corrente elétrica; subitamente, no meio das
trevas há uma centelha de luz. Com outros, é muito semelhante ao que
acontece na natureza: passadas as trevas da noite, surge o primeiro indício
da aurora - a primeira promessa da luz do dia. Não se preocupe com a questão de
tempo. O fator tempo não importa, como tampouco
importa o método exato do processo. A analogia do nascimento confirma o que
estou dizendo. Não importa se o seu nascimento levou muito tempo para
acontecer. A questão é: você está vivo, ou não? Se você é tão-somente um
recém-nascido em Cristo, você está vivo.

Diz o apóstolo que, ou somos luz ou trevas, uma coisa ou a outra. Ou somos
cristãos ou não somos; não há meio termo. Não se pode ser meio cristão. A
estrada para o inferno está pavimentado com boas intenções. Usei a ilustração
antes, permitam-me usá-la outra vez. Você pode estar numa fila de ônibus. O
ônibus chega, e as pessoas entram. E então, para a sua total consternação, de
repente o cobrador levanta a mão; o homem que estava em sua frente pôde
entrar, porém você não. Não seria nenhum consolo saber que você teria sido
o próximo a entrar se ainda houvesse lugar para um, seria? O ponto é que você
não está no ônibus; você quase tomou o ônibus, eu sei, todavia não tomou, e não
é consolo algum saber que quase o tomou. Ou estamos no ônibus ou somos
deixados ali de pé na fila. Somos cristãos ou incrédulos, estamos na luz ou nas
trevas.

O apóstolo nos está dizendo, naturalmente, que isso é algo tão claro que nós
deveríamos sabê-lo. E não somente nós deveríamos sabê-lo, mas todos os outros
deveriam saber disso. Ele não pode aplicar o seu argumento, se não o
soubermos. Se não temos certeza se somos luz ou trevas, como podemos ouvir o
argumento que se aplica aos que são luz? Através de todo o Novo Testamento há
uma clara e marcante distinção entre o cristão e o não cristão, entre a Igreja e o
mundo. E toda a tragédia da Igreja hoje é que se perdeu essa distinção.
Os reformadores protestantes diziam que a Igreja Cristã leva três marcas. É um
lugar onde se prega a doutrina verdadeira, as ordenanças são administradas e é
aplicada a disciplina. Contudo tem havido confusão. Têm surgido ensinos que
obscurecem essas normas O moralismo entrou e se misturou com a religião.
Perderam-se os padrões. Presume-se que, se um homem vive uma vida correta,
ele é cristão. Mas isso basta? O homem está certo? Todos os outros estão certos?
O apóstolo, digo eu, está insistindo neste ponto tremendamente essencial,
dizendo que você tem que compreender que a diferença é a que existe entre a luz
e as trevas. “Éreis... sois; noutro tempo... agora. Trevas... Luz! Por isso, a
pergunta que apresentamos a nós mesmos é: estamos na luz do Senhor? Somos
recém-nascidos, pelo menos? Deixo a coisa aqui. No entanto, o apóstolo
continua a pressioná-la.

Passamos em seguida a examinar a natureza da diferença entre o cristão e o


incrédulo. E aqui as expressões do apóstolo são extraordinariamente
interessantes. Diz ele: “Noutro tempo éreis trevas, mas

agora sois luz no Senhor”. Ele não diz: houve um tempo em que estáveis nas
trevas; porém simplesmente, éreis trevas. Ele quer dizer que não somente eles
estavam na escuridão, e sim que a escuridão estava neles! E depois, por outro
lado, ele não diz apenas; agora estais iluminados, ou estais na luz\ não, ele diz:
sois luzl Outrora eles eram a própria treva! Agora eles são a própria luz! Que é
que ele quer dizer com isso? Permitam-me expressá-lo desta maneira: esta é uma
das mais urgentes questões do ponto de vista da evangelização - quando digo
evangelização, não me refiro somente à pregação, refiro-me à nossa conversação
com as pessoas sobre estes assuntos. Uma declaração como essa é muito
importante quando precisamos entender a exata condição e situação da pessoa
que não é cristã. O apóstolo nos afirma que o não cristão não somente está na
escuridão, mas sim, que ele faz parte da escuridão; quer dizer, do pecado.

O apóstolo é muito dado a desenvolver essa idéia. No capítulo primeiro de


Romanos, por exemplo, ele fala daqueles cujo “coração insensato se
obscureceu”. Não era simplesmente que eles estavam na escuridão, porém que
os seus corações ficaram escuros. De novo, no capítulo quatro de Efésios, os
incrédulos são descritos como “entenebrecidos no entendimento”; uma espécie
de escuridão tinha entrado na mente, no coração, na perspectiva, em toda a sede
e centro da personalidade. Um dos nossos hinos tem uma estrofe que salienta o
mesmo ponto: “Ah, como hei de poder, eu, cuja natural esfera é obscura, cuja
mente é confusa ...” Como pode tal homem “ante o Inefável aparecer” e com o
seu “espírito desnudo suportar a incriada luz?”

O problema com o homem não é simplesmente que ele está num mundo trevoso,
e sim que a luz que havia nele desaparecera! Deus colocou luz no homem.
Quando Deus fez o homem, soprou nele o Seu Espírito; o homem se tornou alma
vivente, e estava em comunhão com Deus; havia uma luz em sua alma. O pecado
apagou essa luz. Nãoé simplesmente que estamos num mundo de trevas, mas que
há trevas dentro de nós, em nosso ser e em nossa constituição. Ouçam
as palavras do nosso Senhor no Sermão do Monte! “A candeia do corpo são os
olhos; de sorte que, se os teus olhos forem bons, todo o teu corpo terá luz; se,
porém os teus olhos forem maus, todo o teu corpo será tenebroso” \ Visto que os
olhos da alma e do espírito ficaram abumbrados e obscurecidos, nenhuma luz
passa para dentro do corpo, e o resultado é que a totalidade do corpo, da mente e
do coração, a personalidade toda, está cheia de trevas (VA). É apenas outro
modo de dizer o que o apóstolo diz sobre os não cristãos no início do
capítulo dois desta Epístola aos Efésios: “E vos vivificou, estando vós mortos

em ofensas e pecados” - não meramente nas trevas, mas mortos, sem uma
centelha de vida em vocês. Isso, diz o apóstolo, é exatamente o que vocês eram.
E de novo, o nosso Senhor expressou isto com muita clareza no Evangelho
Segundo João: “E a condenação é esta: que a luz veio ao mundo, e os homens
amaram mais as trevas do que a luz, porque as suas obras eram más”. Veio a luz!
Por que os homens não crêem nela, por que não se voltam para ela? Eles amam
as trevas, gostam delas; elas os atraem; as trevas estão dentro deles.
“Noutro tempo éreis trevas”, diz Paulo.

E então, por outro lado, Paulo não diz acerca do cristão simplesmente que ele
está sendo iluminado, ou que ele veio para a luz. Isso é perfeitamente verdadeiro,
todavia ele diz uma coisa muito mais maravilhosa: “Agora sois luz no Senhor”.
A luz entrou nele, irradiou-se por todo o seu ser, apossou-se dele, iluminou-o!
“Deus, que disse que das trevas resplandecesse a luz, é quem resplandeceu em
nossos corações, para iluminação do conhecimento da glória de Deus, na face de
Jesus Cristo.” Os nossos corações foram feitos luz, foi colocada luz dentro deles.
“A luz semeia-se para o justo”, diz o salmista no Velho Testamento (Salmo
97:11). Portanto, o cristão não é simplesmente o homem que tem os olhos do seu
entendimento iluminados; tem isso, porém tem mais; seus olhos foram feitos
bons, com a conseqüência lógica de que todo o seu corpo está cheio de luz. O
cristão é alguém que foi transformado, ficando cheio de luz. Ora, por que isso é
tão importante? Por uma coisa, e é que salienta a diferença radical entre o
incrédulo e o cristão. Mostra-nos que a mudança pela qual passa o homem
quando se toma cristão é a mudança mais profunda do mundo. Afeta os centros
vitais do seu ser, a sede da sua personalidade, o coração, o entendimento, os
afetos, tudo.

Esta verdade é de tremenda importância também no que se refere à


evangelização, e desta maneira: existe uma falsa escola de evangelização que
nos afirma que tudo o que o pregador tem que fazer é manter a verdade diante
das pessoas. Seus adeptos dizem que o homem pode entender, crer e aceitar a
verdade. Assim, tudo o que necessitamos fazer é manter a verdade diante dele,
apresentá-la com lógica e clareza, expor os nossos argumentos, expressá-la
tão vigorosamente quanto pudermos, imprimir eloqüência, e assim por diante.
Mas o principal, dizem eles, é apresentar-lhe a verdade, pois ele tem a
capacidade e o poder de crer nela e de apossar-se dela; e isso é tudo que a
evangelização realmente significa e faz. Concordo que na evangelização é vital a
apresentação da verdade; porém isso por si só não é suficiente. O nosso Senhor
tratou da matéria num versículo

que eu já citei: “A condenação é esta: que a luz veio ao mundo, e os homens


amaram mais as trevas do que a luz, porque as suas obras eram más”'. A natureza
dos homens é má. Não basta manter a verdade diante dos homens, eles odeiam a
verdade, preferem e amam as trevas! Portanto, não é suficiente apenas ensinar as
pessoas. Lembro-me de um homem muitíssimo conhecido que costumava dizer
que tudo o que era necessário era afixar cartazes, emplastrar Londres com textos
das Escrituras, e coisas tremendas aconteceriam. Minha opinião é que nada
aconteceria necessariamente. Deus às vezes usa esse método, mas tão-somente
confrontar o povo com textos das Escrituras em si e por si não pode salvar uma
única alma, como tampouco pode fazê-lo qualquer pregação de qualquer tipo ou
espécie, sendo a razão disso que o incrédulo é trevas.

A dificuldade com o incrédulo não é apenas que é preciso que lhe mostremos
luz, mas que, em acréscimo a mostrar-lhe a luz, é preciso iluminá-lo. Ele precisa
nascer de novo, é necessário que o Espírito Santo faça uma operaçãone/e, pois
“o homem natural não compreende as coisas do Espírito de Deus, porque lhe
parecem loucura”. Vocês podem pôr a verdade diante dele, citar os seus
versículos, apresentar os seus argumentos, porém estas coisas continuam sendo
loucura para ele, “e não pode entendê-las, porque elas se discernem
espiritualmente” (1 Coríntios 2:14). Não devemos somente apresentar a luz e
a verdade, mas também devemos orar para que o Espírito Santo ilumine a mente
e o coração. E uma operação dual; fato que me faz dizer mais uma vez que nada,
senão um poderoso avivamento e a visitação do Espírito de Deus, pode tratar da
situação presente. Bíblias continuam sendo vendidas em larga escala; livros
sobre estas verdades estão sendo produzidos e lidos; a educação está sendo
promovida aqui, ali e em toda parte; todavia, a situação vai de mal a pior, pois
até a verdade do evangelho, se não chegar aos homens “em demonstração
do Espírito e de poder” (1 Coríntios 2:4), VA e ARA), não efetuará coisa alguma.
O pai desse tipo de evangelização que imagina e pensa que é suficiente
simplesmente manter a verdade diante das pessoas, foi de fato um grande
homem, chamado Finney. Era exatamente isso que ele ensinava. Ele não
acreditava no pecado original, mas acreditava que tudo o que se necessitava
fazer era manter a verdade diante das pessoas. Isso feito, dizia Finney, elas têm
capacidade para crer nela e assimilá-la. Contudo não podem! Elas são trevasl E
porque são trevas, manter a luz da verdade diante delas não é suficiente;
elas precisam sofrer mudança no centro do seu ser, precisam ser transformadas
em luz. A operação do Espírito Santo é essencial. Os príncipes deste mundo não
O reconheceram quando Ele veio, pois, se O tivessem

reconhecido, não teriam crucificado o Senhor da glória.

Como alguém crê nestas coisas? Desta maneira, diz Paulo: “Deus no-las
revelou”. Como? Pela pregação ou pela Palavra escrita? Não, “Pelo seu Espírito;
porque o Espírito penetra todas as coisas, ainda as profundezas de Deus” (1
Coríntios 2:10). Nunca devemos separar a Palavra e o Espírito! Não somente de
luz externa necessita o homem; necessita de luz interior. É obra do Espírito abrir
a Palavra e abrir o coração para recebê-la. Vocês se lembram da história de
Lídia, a primeira pessoa que foi convertida na Europa graças ao trabalho
do apóstolo Paulo? Como aconteceu a conversão dela? O livro de Atos nos diz:
“o Senhor lhe abriu o coração para que estivesse atenta ao que Paulo dizia”
(16:14). Verdadeira evangelização é a que se põe na completa dependência do
poder do Espírito de colocar luz dentro do homem. Este precisa ser transformado
em luz, não apenas ser iluminado.

Há ainda outro fator que opera para produzir essa mudança, essa transição. Que
é que explica esta diferença entre o cristão e o não cristão? Bem,
afortunadamente o apóstolo no-lo diz: “Noutro tempo éreis trevas, mas agora
sois luz no Senhor”. “No Senhor”! É tudo no Senhor. Não há nada que seja sem
Ele. O Senhor Jesus Cristo é o Alfa e o Ômega, o princípio e o fim. Ele é tudo, e
está em tudo. Não há nada fora dEle. Tudo está nEle. Voltemos à Segunda
Epístola aos Coríntios, onde Paulo faz disto uma colocação tão gloriosa e
bela. “Noutro tempo” éramos “trevas”. Como nos tornamos cristãos?
Desta maneira, diz Paulo: “Deus, que disse que das trevas resplandecesse a luz”
- foi assim que me tornei cristão, diz ele, não foi nada menos que a ação e a
operação de Deus que, no princípio, quando o Espírito Santo pairava vivificante
sobre o caos, quando o mundo ainda era sem forma e vazio, disse: “Haja luz”.
“Deus, que disse que das trevas resplandecesse a luz, é quem resplandeceu em
nossos corações.” Ele não somente nos colocou numa atmosfera de luz, porém
resplandeceu em nossos corações. Uma espécie de raio X, o mais poderoso que
se pode imaginar! “Resplandeceu em nossos corações.” Para quê?
“Para iluminação (ou para revelar a luz) do conhecimento da glória de Deus, na
face de Jesus Cristo”!

Pergunto: não é surpreendente que Paulo faça uma colocação como essa?
Recordem o que tinha acontecido com ele. Sigam com ele pela estrada de
Damasco quando ele sai de Jerusalém respirando ameaças e mortes, um não
cristão e perseguidor dos cristãos. Havia nele trevas que o faziam respirar
ameaças e mortes, que o faziam sentir-se extasiado à simples antecipação do
massacre de cristãos inocentes;

eram as trevas a manifestar-se, as trevas em sua alma! Então ele viu a luz,
superior ao mais fulgente brilho do sol; e não somente a luz, mas um Rosto!
“Quem és, Senhor?” Donde vem esta resplendor, esta luz, esta glória? De quem é
este Semblante? Quem é, Senhor? Tu me iluminaste, nunca vi nada semelhante.
Quem és? E a resposta foi: “Eu sou Jesus, a quem tu persegues”. Paulo já tinha
visto que era Senhor, uma pessoa divina, e agora ele passa a ver que é deveras o
eterno Filho de Deus, perfeitamente igual ao Pai, perfeitamente eterno com o
Pai. E por meio dEle e pela visão do Seu rosto, ele viu a Deus -“a luz
do conhecimento da glória de Deus na face de Jesus Cristo”! (VA). O apóstolo
tinha que ver o Rosto a fim de ser um apóstolo e uma testemunha da
ressurreição. Não teremos aquela visão direta que ele teve e que foi tão gloriosa
que o cegou; porém isto posso dizer, que ninguém pode ser cristão sem que algo
dessa luz que está na face de Jesus Cristo venha ao seu coração e à sua alma.
“Mas agora sois luz no Senhor”!

“Deus nunca voi visto por alguém. O Filho unigênito, que está no seio do Pai,
esse o fez conhecer.” Sim, mas ainda mais, Ele brilha em nossos corações. Ele
entra neles, e nós estamos nEle. Agora somos luz no Senhor! Não meramente
cremos em Cristo, estamos unidos a Cristo, estamos em Cristo, e Cristo está em
nós, a esperança da glória. Há um elo indissolúvel. Eleé a Videira, nós os ramos.
Estamos nEle, somos participadores, participantes da Sua vida, da Sua luz e da
Sua glória. Ele nos torna luz. Isso está inteira, total e exclusivamente em Jesus
Cristo. O cristão não é meramente o homem que crê no ensino, aceita a ética
cristã ou a moralidade cristã, e que depois passa a aplicá-la à sua vida. Muitos
são os seres humanos bons e de bom nível moral que fazem isso. Todavia não
são cristãos, pois não foram feitos luz. Estão simplesmente tomando emprestado
um pouco da Sua luz, como fizeram Gandhi e outros. Mas isso não faz de um
homem um cristão. O que faz de um homem um cristão não é que ele viu certa
porção de luz, tomou-a e aplicou-a, mas que ele foi feito luz\ que ele está
no Senhor,em Cristo, e Cristo está nele; que ele, assim, derivou a sua vida, a sua
energia, o seu poder e tudo quanto é seu da Cabeça viva. Somos o corpo de
Cristo, e membros em particular. Ele nos enche de vida, luz e poder, e assim
somos capacitados para a sua prática. Nós o fazemos. Não apenas ficamos sem
fazer nada e passivamente olhamos para Ele. Ele nos habilita a agir; portanto,
andemos “como filhos da luz”.

Graças a Deus o apóstolo expõe isto assim, para podermos compreender que a
diferença entre um cristão e um incrédulo é absoluta; para podermos
compreender que não estamos meramente olhando para a luz; graças a Deus
estamos, porém a luz está dentro de nós. Não somos

mais trevas; não posso mais cantar sinceramente, “Ah, como hei de poder, eu,
cuja natural esfera é obscura, cuja mente é confusa”. Graças a Deus não é
confusa, não é opaca. A luz do conhecimento da glória de Deus na face de Jesus
Cristo entrou; eu vejo, pois a minha mente e ,o meu coração foram enchidos pela
luz. Tenho que aprender infinitamente mais, contudo não sou mais trevas, sou
luz no Senhor. Como Ele é luz, nós somos luz. Como Ele é a Luz do mundo, nós
somos a luz do mundo. Somos lâmpadas, luminárias, a luz está em nós; não a
estamos apenas refletindo, ela está dentro de nós. “Agora sois luz no Senhor.”

AS OBRAS INFRUTUOSAS DAS TREVAS

“Porque noutro tempo éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor; andai como
filhos da luz. (Porque o fruto do Espírito está em toda a bondade, e justiça e
verdade); aprovando o que é agradável ao Senhor. E não comuniqueis com as
obras infrutuosas das trevas, mas antes condenai-as. Porque o que eles fazem
em oculto até dizê-lo é torpe. Mas todas estas coisas se manifestam, sendo
condenadas pela luz, porque a luz tudo manifesta. ”

-Efésios 5:8-13

Continuamos o nosso estudo das “trevas” e da “luz” indagando como podemos


saber se somos trevas ou se somos luz; e a resposta é que isto se mostra ao longo
de três linhas principais. A primeira é que as trevas se mostram na mente, no
intelecto e no entendimento. Temos o hábito, de associar sempre a ignorância
com as trevas, não temos? Falamos da Idade das Trevas, antes da Renascença na
Europa e do redescobrimento da filosofia e da cultura gregas, etc. Noutras
palavras, estamos familiarizados com esta identificação das trevas com
a ignorância; as coisas são sinônimas em nossa linguagem comum. Por outro
lado, temos a tendência de falar das pessoas que têm conhecimento como
pessoas iluminadas ou esclarecidas. Certos historiadores se referem ao século 18
todo como A Era do Iluminismo, porque esse período experimentou um
recrudescimento do saber e da cultura, um novo nascimento do interesse pela
filosofia e assuntos afins.

As trevas, em oposição à luz, afetam adversamente a mente, o intelecto, o


entendimento e todas as faculdades ligadas ao conhecimento; e a Bíblia,
naturalmente, acima de tudo mais, emprega o termo neste sentido. E assim,
quando o apóstolo diz aos crentes efésios, “Noutro tempo éreis trevas”, ele quer
dizer que houve um tempo em que as mentes eram obscuras, e eles eram
grosseiramente ignorantes. E isso continua sendo verdade quanto a toda pessoa
não cristã, homem ou mulher. Ele ou ela não passa de ignorante - não há outra
palavra para isto - faltando-lhe certo conhecimento vital, e tendo sido
cegado pelo pecado. Mas do que os incrédulos são ignorantes? Em primeiro

lugar, são ignorantes de Deus! “Disse o néscio no seu coração: não há Deus.” Ele
diz que não há Deus porque lhe falta o conhecimento de Deus. Isso é sempre
típico dos ignorantes, não é? Você lhes dá alguma informação, e eles dizem: não
acredito nisso! Não posso acreditar nisso! Não é verdade! Não está provando que
a informação é falsa, simplesmente nos estão revelando muita coisa sobre si
mesmos. Uma vez ouvi um homem expressá-lo muito bem. Disse ele: “Quando
um homem me diz que não vê nada em Beethoven, ele não me está dizendo nada
sobre Beethoven, porém me está dizendo muita coisa sobre si mesmo!” E esse é
precisamente o nosso objetivo aqui. Aquele que não é cristão, o incrédulo, é
ignorante de Deus. Se tão-somente os homens e as mulheres conhecessem a
Deus, e conhecessem a verdade acerca de Deus, não continuariam vivendo como
vivem. Eles nada sabem sobre o Seu caráter santo, falam com leviandade sobre
Deus, expressam as suas opiniões, não hesitam em criticá-10. Se apenas
tivessem uma difusa, vaga, tênue noção de Deus como Ele realmente é, poriam a
mão na boca, como fez Jó, e ficariam calados.

É a pavorosa ignorância acerca de Deus que leva as pessoas a falarem como


falam. Podemos pelo menos dizer a favor dos judeus que, mesmo na pior das
hipóteses, eles sabiam algumas coisas acerca de Deus; eles sabiam que Deus é
tão grande, tão poderoso e tão santo, que jamais sequer se atreviam a usar a
palavra JEOVÁ, falavam sobre “O Nome”. Esse era o seu modo de indicar o seu
conhecimento da glória, majestade, santidade e poder de Deus. E os não cristãos
não somente estão nas trevas, eles são trevas; não conhecem a Deus, e quanto
mais eles falam, mais expressam a sua ignorância. São ignorantes de Deus e de
Suas leis. De igual modo, são ignorantes da real verdade acerca de si mesmos,
são ignorantes acerca do valor das suas almas. Dê uma olhada nos que vivem
nos prazeres e no pecado, submersos neles, vangloriando-se neles, gozando-os
dissolutamente. O real problema com eles é que não sabem a resposta para este
tipo de pergunta: “Que aproveitaria ao homem ganhar todo o mundo e perder a
suaalmal Ou que daria o homem pelo resgate da smalmal” (Marcos 8:36-37).
Eles não se dão conta de que há dentro deles essa coisa que foi colocada ali por
Deus, coisa maior do que o mundo inteiro, a coisa mais preciosa, mais
maravilhosa de todas; são completamente ignorantes quanto a isso, vivem como
se não tivessem uma alma imortal; vivem ao nível do animal. Conhecemos tais
pessoas; lemos a respeito delas; acham-se em todas as classes da sociedade.
Ápesar do conhecimento que elas têm de muitos outros assuntos, são ignorantes
deste.

Da mesma maneira, são ignorantes do verdadeiro sentido da vida, do seu


objetivo e propósito. Que é a vida? A que fomos destinados?

Qual é o objetivo geral da nossa estada neste mundo, a que fim tudo isso está
levando? Sobre esses temas eles estão completamente no escuro. Toda a sua
noção da vida, como consta nas Escrituras, é: “Comamos e bebamos, que
amanhã morreremos” (1 Coríntios 15:32). Que insulto à vida, ao viver e à
natureza humana! Somos apenas animais? Comer, beber, jogar, ceder aos
instintos naturais - estas coisas constituem a vida verdadeira? Muitas vezes os
não cristãos pensam que sim! Contentam-se em permanecer
completamente ignorantes acerca do propósito da vida, e quanto ao que acontece
além dela. Diz a Bíblia: “Aos homens está ordenado morrerem uma vez, vindo
depois disso o juízo” (Hebreus 9:27). Segundo as Escrituras, a vida é algo
tremendo, é cheia de responsabilidade de natureza a mais momentosa. Tudo o
que fazemos e dizemos está sendo registrado. Deus conhece todas as nossas
ações. O livro do Apocalipse o expressa pictoricamente, dizendo que os livros
serão apresentados e serão abertos. Sabemos das responsabilidades, não
sabemos? Sabemos que os Ministros da Coroa têm grande e terrível
responsabilidade, e que quanto mais alto sobem, maior a sua responsabilidade,
sendo que o Primeiro Ministro é responsável diante da própria Rainha. E cada
um de nós, como nos dizem as Escrituras, é direta, imediata e pessoalmente
responsável diante de Deus. Teremos uma audiência com Ele, e teremos que
prestar contas do que tivermos feito por meio do corpo, ou bem, ou mal (cf. 2
Coríntios 5:10). Um julgamento! Mas os incrédulos ignoram inteiramente as
coisas de Deus. Por isso vivem como vivem. E não são só ignorantes de Deus,
porém igualmente são ignorantes acerca do Senhor Jesus Cristo, o eterno Filho
de Deus, e acerca da razão da Sua vinda a este mundo. Ignoram a necessidade
de salvação, pelo que não se interessam pela salvação.

Os cristãos têm submetido isso à prova com freqüência. Se vocês não o fizeram,
é tempo de fazê-lo. Procurem descobrir o que as pessoas realmente sabem acerca
do cristianismo e acerca do Senhor Jesus Cristo. É quase incrível que, embora a
Bíblia e outros livros cristãos sejam abertamente acessíveis, e embora elas
tenham sido criadas numa cultura cristã, assim chamada, e em muitos casos
tenham um vago senso da importância disso, todavia continuam completamente
ignorantes do verdadeiro Senhor Jesus Cristo e do Seu método de salvação.
Ignoram a Sua Pessoa e a Sua obra, ignoram a única maneira pela qual podemos
ser reconciliados com Deus, ser salvos e obter segurança por toda a eternidade.
Façam certas perguntas simples ao homem da rua - você já se deu conta de que
tem alma? Você já se deu conta da verdade acerca de Deus, e de que você tem
que encontrar-se com Ele e enfrentá-lO? Você compreende, dia após dia, a

responsabilidade de viver, a preciosidade deste dom que Deus lhe deu? Você
pensa em si mesmo como alguém que foi feito e criado à imagem de Deus Todo-
poderoso? Qual é o seu conceito sobre você? Você tem pensado sobre a sua
morte e sobre o fato de que terá que enfrentar a Deus e Lhe prestar contas do que
você fez? As respostas, se houver alguma, que você obtiver a essas perguntas,
estou certo disso, somente vão confirmar a veracidade daquilo que o apóstolo
nos diz acerca da pavorosa ignorância da humanidade. Trevas que se pode
apalpar!

No entanto, as trevas não afetam só a mente, afetam igualmente o coração e as


emoções. Os não cristãos não são apenas ignorantes da verdade, não querem
ouvi-la, não lhe respondem, são empedernidos. Mesmo que a ouçam acham-na
maçante. Muitos deles se assentam como juizes do pregador; mas o que
realmente acontece é que eles próprios estão sendo julgados., O homem que se
aborrece com a pregação do evangelho simplesmente está fazendo uma
tremenda proclamação a respeito de si mesmo! Não há condições mais terríveis e
imagináveis do que as do homem que acha que a verdade de Deus, as glórias de
Deus, as glórais do evangelho são enfadonhos, sem graça, desinteressantes,
fátuas, algo que pode ser jogado fora. Mas essa é a situação do incrédulo. O
nosso Senhor mesmo diz isso. “E a condenação é esta”, disse Ele: “Que a luz
veio ao mundo e os homens amaram mais as trevas do que a luz, porque as suas
obras eram más.” Não é só a mente que está obscura, o coração também está!
Pode haver algo pior do que um ser humano cujo coração odeia a luz, detesta-
a, abomina-a? Todavia é isso que o pecado faz conosco; essa é a influência do
diabo sobre todos nós.

Mas devemos ir adiante e considerar a vontade do homem com relação a isso,


pois é isso que o apóstolo está ressaltando acima de tudo mais neste parágrafo.
Temos um adágio que nos lembra isso: “Como o homem pensa, assim ele é”. É
absolutamente verdadeiro, se bem que muitas vezes nos inclinamos a esquecê-lo.
Todo homem ou mulher que vive hoje, e está fazendo isto ou aquilo, está
proclamando exatamente o que ele ou ela pensa! Todo ser humano é filósofo,
tem uma filosofia de vida, e nós mostramos qual é a nossa filosofia de vida pela
maneira como vivemos. As nossas ações sempre correspondem ao que pensamos
e ao que cremos. Portanto, se as pessoas estão vivendo uma espécie de existência
superficial, tipo bolha de sabão, é porque essa é a espécie de mentalidade que
elas têm. É sua incapacidade de pensar que as leva a terem uma espécie
superficial de vida. E isto me leva a dizer que o problema da imoralidade, dos
vícios, ou do crime nunca pode ser atacado diretamente. A conduta é resultado
do

ponto de vista, e assim nunca se pode tratar da conduta diretamente. Tentar fazê-
lo é o erro fatal de todo sistema não cristão. E estamos vendo o fracasso por
todos os lados. Os homens se recusam a reconhecer o princípio fundamental de
que, como o homem pensa, assim eleé. Portanto, inútil será tentar controlar o seu
comportamento, se o seu pensamento é mau.

Por longo tempo pensadores não cristãos nos têm dito que uma grande causa do
crime era a pobreza. Entretanto na hora presente, o que eles nos dizem é que a
grande causa do crime é a prosperidade! Os jovens, dizem eles, estão ganhando
dinheiro demais, e não sabem o que fazer com ele. Dizem que é essa
prosperidade que tem produzido a onda de crimes! Não me entendam mal.
Devemos preocupar-nos com o problema da pobreza e da angústia que muitas
vezes ela causa. Mas no momento estou simplesmente interessado em assinalar
a patética falácia do pensamento não cristão que não quer encarar esta verdade
central, que é a atitude total do homem para com a vida, para consigo mesmo,
para com Deus e para com as suas relações, que em última análise e
inevitavelmente determina e controla a conduta e o comportamento. O apóstolo
o coloca com muita clareza no capítulo primeiro da sua Epístola aos Romanos,
onde ele diz: “do céu se manifesta a ira de Deus sobre toda a impiedade e
injustiça dos homens”. Observem a ordem! A impiedade primeiro! É a
impiedade que leva à injustiça. E tentar tratar da injustiça sem tratar da
impiedade é puro desperdício de tempo, energia e dinheiro. Assim, que
os homens tragam novas leis do Parlamento, que aumentem as suas prisões, que
convoquem todos os professores e todas as instituições sociais, de nada lhes
valerá tudo isso; nunca valeu, nunca valerá. Há somente uma coisa que pode
lidar com toda essa questão de moralidade e de comportamento, e é que os
homens e as mulheres sejam tirados das trevas e levados para a maravilhosa luz
de Deus, para que deixem de ser trevas e se tornem luz no Senhor. A história
comprova o meu ponto de vista; a situação contemporânea o está demonstrando
novamente.

Como, porém, as trevas se manifestam nos domínios da vontade? De novo, isto é


algo que se vê quase interminavelmente na Bíblia. Notem as expressões. Pessoas
que levam uma vida má são descritas como “filhos da noite”; “os que se
embebedam, embebedam-sje de noite”; são filhos das trevas, filhos da noite. Que
é um cristão? É um filho da luz; “filhos do dia”, diz Paulo. Não estamos nas
trevas, somos filhos do dia, filhos da luz! Notem a diferença nos termos
utilizados. E na verdade, independentemente do cristianismo, a observação geral

da humanidade parece ter descoberto a diferença. Ouvimos e lemos sobre a vida


noturna em Londres. É algo que sucede de noite, no escuro, a vida noturna de
Londres! É uma descrição perfeita. O apóstolo se expressa aqui de maneira ainda
mais clara; ele se refere às “obras ocultas das trevas”, e diz que “É uma vergonha
até falar das coisas que eles fazem em oculto” (VA). Ele fala acerca das
“obras infrutuosas das trevas”.

O apóstolo Paulo gostava de acentuar o contraste entre o fruto da luz e as obras


infrutuosas das trevas. Ele usa expressões muito similares no capítulo cinco de
Gálatas (versículo 19), dizendo: “Porque as obras da carne são manifestas, as
quais são” - vem então aquela lista terrível. Depois diz, no versículo 22: “Mas” -
não as obras do Espírito - ‘‘ofruto do Espírito...”. Há um contraste aqui, entre
obras e fruto. Esta é claramente uma diferença não acidental. O apóstolo tem
obviamente uma significação muito profunda para comunicar-nos, porém a está
colocando nesta forma particular, e invariavelmente fala dâsobras das trevas.
Porquê? Parece-me que a única dedução que podemos fazer é que existe alguma
coisa com relação à vida má das trevas que (para usar o termo em seu sentido
certo) é artificial. É uma espécie de artefato produzido pelo homem. Noutras
palavras, não é a vida natural do homem, não é o tipo de vida que o homem foi
destinado a viver. Essa é a verdade quanto ao que chamamos, e disso
nos gabamos, “civilização”. Podemos dizer com segurança que Deus nunca
pretendeu que as pessoas vivessem como, por exemplo vivemos nesta cidade de
Londres. Deus nunca planejou um lugar como Londres, ou Chicago, ou Nova
York, ou Paris, ou qualquer destas grandes cidades, ou, na verdade, nem mesmo
qualquer dos nossos vilarejos, como os conhecemos hoje. Deus nunca pretendeu
que a vida fosse desse jeito! Este é um artefato do homem, algo produzido
pelo homem. A primeira pessoa a construir uma cidade foi Caim, o homem que
assassinou o seu irmão. Ele se tomara trevas e começou a expressá-las, e logo
edificou uma cidade e começou a vida urbana. Não é essa a intenção de Deus
para o homem. As monstmosidades que o homem produziu não são produção de
Deus. Assim é que o apóstolo fala disso como obras das trevas. É algo
mecânico, algo que se organiza.

Talvez vejamos isso hoje mais claramente do que a humanidade jamais viu antes.
Os jornais da atualidade estão se tornando cada vez mais o melhor comentário
que eu conheço da Bíblia. Neles vemos o completo artificialismo da vida vivida
nas trevas. Não há nada que seja real, mas algo foi erigido e exposto; é tudo obra
realizada pelo homem, o homem o faz. E assim a vida continua, e lhe chama
civilização. No

entanto, a Bíblia lhe chama “obras das trevas”! E não haveria algo de
tragicamente mecânico nisso tudo? A coisa mais temível acerca da vida de
pecado, parece-me às vezes, é o seu caráter mecânico, a maneira como ela vai se
repetindo, como uma máquina. Nada de novo, nada artístico no que lhe diz
respeito. Vai girando como uma batedeira, sempre tirando a mesma coisa velha
dia após dia, o mesmo pecado, a mesma tentação, o mesmo vício, a mesma coisa
feia que desanima você. Tal vida é mecânica, repetitiva, simplesmente
como uma máquina, produzida por máquina; é só “obras". É como a diferença
entre uma máquina e uma flor ou qualquer coisa dotada de vida real. “As obras
das trevas”! E todos nós estamos envolvidos nisso, na maquinaria. Organizam
por nós as nossas vidas, as pessoas não pensam mais, apenas fazem o que já é
“coisa feita”, aquilo que todos os outros estão fazendo. A originalidade é
excluída; as pessoas, independentemente dos seus interesses reais, simplesmente
caem nisso. E todos nós parecemos iguais, nos vestimos igualmente, e somos
produzidos em massa, em todos os aspectos. Somos induzidos a desfrutar as
mesmas coisas, a crer nas mesmas coisas, a fazer as mesmas coisas. A expressão
“as obras das trevas” é uma descrição perfeitamente precisa da vida não cristã!
Quão contemporâneo o livro de Deus é!

E então deixem-me ver de passo a segunda palavra de Paulo. Ele fala das obras
infrutuosas das trevas. Ele não está somente contrastando a máquina com a vida
real e com o crescimento, mas está vendo o outro lado. Diz ele que não se pode
achar valor numa vida vivida nas trevas. Ele diz a mesma coisa no capítulo seis
de Romanos: “Porque, quando éreis servos do pecado, estáveis livres da justiça.
E que fruto tínheis então das coisas de que agora vos envergonhais? Porque o
fim delas é a morte”. Que fruto tínheis então! Nenhum! Essa é a coisa espantosa
acerca desta vida de pecado, desta vida de trevas. É inútil para o homem que a
vive. Não acrescenta nada à sua mente, ao seu entendimento, ao seu
conhecimento, à sua pureza, à sua limpidez. Leva o seu dinheiro, leva as suas
energias, e no fim da vida ele não passa de um pobretão exausto. A vida que
começou com tanto encanto pode terminar numa sargeta. A beleza inicial torna-
se - ah, um rosto arruinado! É uma vida sem valor, sem fruto, sem proveito; toma
tudo de você.

Vemos isso ilustrado no caso do filho pródigo, não vemos? Ele partiu com os
bolsos cheios de dinheiro; terminou sem nada, com os bolsos vazios, sem
amigos, sem coisa nenhuma. Essa é a vida de pecado, leva tudo de nós, é
infrutífera, não tem nenhum valor para

quem a vive! E o que é pior é que ela não tem valor para ninguém. Não faz
nenhuma contri buição. E essa é, suponho, a acusação final que será lançada
contra a presente geração. Que contribuição estamos fazendo à história da
humanidade e da raça humana? Não há nada de enobrecedor, de animador ou de
estimulante nisso. Não leva as pessoas a se erguerem para uma realização
elevada. Não estamos interessados em realizações, estamos interessados em
comodidade; o nosso interesse é o lazer; até pelo trabalho perdemos o interesse!
O que nos interessa é o tempo em que não estamos trabalhando. E então, como
passamos esse tempo? Será com algum interesse positivo? Algo que melhora a
mente ou alarga o coração? Nada disso! Sempre um entretenimento passivo,
mecânico! Completamente infrutuoso, sem nenhuma contribuição a outros,
deixando de produzir algum fruto até para as próprias pessoas. Na verdade, essa
vida nunca leva a algum tipo de crescimento, exceto o crescimento de alguma
erva daninha. Forma na alma um jardim coberto de cizânia e espinhos; e não há
fruto ali, nada que sirva para comer, nada que ajude a viver. Não o ajuda no
presente, se você se sente mal, ou se fica prostrado no leito de enfermidade, ou
se encara a morte e a eternidade, pois embora espere poder recorrer às
suas reservas, vê que não tem nada! Lembrem-se das palavras ditas ao
rico insensato que se alegrava consigo mesmo, dizendo: “Alma, tens
em depósito muitos bens para muitos anos; descansa, come, bebe e folga”. Mas
Deus lhe disse; “Louco! esta noite te pedirão a tua alma; e o que tens preparado,
para quem será?” (Lucas 12:19-20) - não é teu, não podes levá-lo contigo, és
forçado a deixá-lo para trás.

É devido as pessoas não pensarem nessas coisas que elas continuam vivendo
como vivem. A vida não é maravilhosa?-diz o jovem. Será? Examine-a, meu
amigo, veja para o quê ela o está levando, vá até o fim! Há algum fruto para
você ou para algum outro? Não! Estas coisas transitórias são completa e
inteiramente infrutíferas. E isso não é verdade só ao nível pessoal; é verdade a
um nível mais amplo, no caso dos países, nações e impérios. É um fato da
história que o que causou o declínio e a queda do grande Império Romano foi
esse tipo de coisa. Roma declinou e caiu devido à deterioração interna. Gibbon
lhes ensinará isso! Os histori adores seculares põem is so à mostra. A queda veio
quando as pessoas se tomaram indolentes e amantes dos prazeres; construíram as
suas maravilhosas banheiras de ouro e de prata, e passavam o dia indolentemente
nelas, enquanto lhes tocavam música suave. A raça toda se tomou indolente, e
frouxa, e perdeu as suas ambições e o senso da sua missão e grandeza. Esse tipo
de vida, diz o apóstolo, é sempre infrutuoso, em todos os aspectos. E o que
é alarmante é a questão: estaremos nós testemunhando algo semelhante

em nosso país na presente hora? Não será essa deterioração toda a essência da
dificuldade? Nem a moralidade, nem mesmo o idealismo político podem ser
mantidos sem algum grande motivo ou sem alguma nobre idéia e concepção
sobre o homem. E estamos como estamos hoje, e estamos testemunhando o que
estamos testemunhando porque em meados do século passado o povo começou a
dar ouvidos a homens como Charles Darwin e outros, que afirmavam que o
homem não é uma criação especial de Deus! - se é que existe algum Deus - o
homem aparece no fim de um processo! Assim, degrada-se o conceito sobre o
homem; e os homens se esqueceram de Deus.

Naturalmente, por um tempo os homens podem viver da excelência do


Despertamento Evangélico, e podem levar avante o seu moralismo, a sua obra e
o seu idealismo político, porém isso não dura muito. Uma vez perdido o real
motivo, tem-se o que testemunhamos hoje. As obras infrutuosas das trevas!
Estas têm uma inevitável conseqüência do tipo que lhe é próprio; não é fruto; é a
quebra da máquina. O nosso Senhor fez-nos a advertência no Sermão do Monte,
quando disse: “Entrai pela porta estreita; porque larga é a porta, e espaçoso o
caminho que conduz à perdição”! (VA: “.. À destruição”!) A máquina se tomou o
senhor, e a coisa toda explodiu e foi feita em pedaços. As obras infrutuosas
das trevas levam inevitavelmente à destruição.
Finalmente, vejamos a palavra que Paulo usa no versículo 22: “Pois uma
vergonha até falar das coisas que eles fazem em oculto” (VA). As manifestações
da vida ímpia são trevas na esfera da vontade também; são obras, são
infrutuosas; sim, e são vergonhosas. Os que as fazem se envergonham das suas
práticas, e assim preferem realizá-las sob a capa da escuridão. Afinal, creia nisso
ou não, o homem foi feito à imagem de Deus, e mostra isso quando menos
desconfia. Apesar de não crer em Deus, e de não crer em sua própria alma,
apesar de decaído e degradado, ainda há nele este sentimento de vergonha.
Graças a Deus por isso! O homem não é um animal, não é uma máquina; há
nele isso, que resta e permanece. Embora desfigurada e arruinada, ficou-lhe algo
da imagem, e o homem, mesmo em sua expressão mais baixa e mais vil, ainda
sabe algo acerca do sentimento de vergonha. E é dever do cristão, em dias
terríveis e ímpios como estes, começar com as pessoas no nível delas e dizer-
lhes: digam-me, por que vocês não praticam coisas como estas à plena luz do
dia? E depois partir deste sentimento de vergonha e procurar levá-las a ver como
o conceito que elas têm sobre si mesmas, sobre Deus e sobre a vida está baseado
numa total ignorância que, se não for iluminada, levá-las-á ao desastre e
à perdição final.

Ah, o amor de Deus, que, vendo este mundo de trevas, ignorância e vergonha,
enviou-lhe o Seu unigênito Filho para ser a Luz do mundo e, morrendo na cruz,
livrar-nos dela e transportar-nos do reino das trevas para o reino do Seu amado
Filho! Mas, povo cristão, gostaria de expressar-me assim: você está preocupado
com as multidões que estão nas trevas? Sei que você sente repugnância com
relação a elas; todos nós sentimos; todavia se você meramente sente
repugnância, levanta a roupa e vai para o outro lado da rua, você é quase tão
ruim como aquela gente. Não foi mais que isso que o levita e o sacerdote fizeram
quando viram o homem ferido na beira da estrada. Isso não tem valor nenhum.
Se nos dermos conta de que pessoas que encontramos estão levando vida indigna
por causa dessa ignorância e dessas trevas do mundo, então, digo eu, como
cristãos, isso deveria levar-nos a indagar: que é que eu posso fazer por estas
pessoas? Como se pode levar a elas a luz e o conhecimento do evangelho? E
mais uma vez digo que não existe nada que possa tratar da situação, senão um
derramamento do Espírito de Deus, uma visitação do Espírito de Deus
em avivamento, como o que se experimentou durante a Reforma Protestante, e
no período dos Puritanos; no século 18 sob a pregação de Whitefield e dos
Wesley; e também sob Romaine e outros aqui na cidade de Londres; e outra vez
em 1859. Portanto, parece-me que a maneira de provar se realmente levamos a
sério estas coisas é perguntar a nós mesmos se estamos orando a Deus, rogando-
Lhe que nos envie um avivamento. Peçamos a Deus que derrame sobre nós o
Seu Espírito, para que a Igreja se encha de tal poder que os homens e
as mulheres desta geração apática, ímpia, trevosa, ignorante e vergonhosa sejam
compelidos a ouvir, sejam compelidos a pensar e sejam compelidos a encarar a
Deus e o destino eterno que os aguarda.

O FRUTO DA LUZ

“(Porque o fruto do Espírito está em toda a bondade, e justiça e verdade);


aprovando o que é agradável ao Senhor”

-Efésios 5:9-10

Tendo lembrado aos efésios o que eles tinham sido no passado -“Noutro tempo
éreis trevas” - Paulo passa em seguida a lembrá-los do que eles são agora e do
que se espera deles agora: “Agora sois luz no Senhor; andai como filhos da luz”.
Portanto, devemos elaborar o ensino em detalhe, para que possamos
compreender, não somente a diferença entre o cristão e o homem que, gritante e
obviamente, não é cristão, mas também a diferença entre o homem que é cristão
verdadeiro e “luz no Senhor”, e o homem bom e de boa moral, assim chamado,
que não é cristão. Isto ganha importância por causa deste versículo nove, onde se
nos diz que “o fruto do Espírito está em toda a bondade, e justiça e verdade”. Há
um tipo de homem não cristão que se vê no mundo, que nos declara que não é
cristão e quase se gaba do fato de não ser cristão. Todavia, na superfície, ele
parece ser um homem bom e reto, interessado na verdade e na integridade,
noutras palavras, “um bom pagão”.

Muitas vezes fiz referência a um livro chamado O Fracasso do Bom Pagão


(“The Failure of the Good Pagan’’), de autoria de Rosalind Murray, e tomo a
recomendá-lo a vocês. É uma exposição sobre este bom homem, de boa moral,
que não é cristão e que, em última análise, suponho eu, é o maior inimigo da fé
cristã. Pode ser um homem religioso, pois você pode ser religioso sem ser
cristão, e é muito importante distinguir outra vez entre ambos. Somente quando
virmos as características da luz é que seremos capazes de traçar estas distinções
importantíssimas, porque - torno a dizê-lo - o cristão não é meramente alguém
que recebeu certa quantidade de iluminação, ele é luz; “mas agora sois luz no
Senhor”.

Portanto, devemos indagar: como se manifesta esta luz? Primeiramente, e acima


de tudo, ela se manifesta na mente. A verdade bíblica chega primariamente à
mente, ao intelecto, ao entendimento; não é algum tipo de vago sentimento
nosso. Vagos sentimentos podem não

ter nada a ver com o cristianismo. Este é sempre algo ligado à verdade, pelo que
começamos com a mente. E a primeira coisa que temos para dizer sobre o cristão
é que ele mostra que, uma vez tendo se tomado luz no Senhor, tem um
conhecimento que lhe faltava antes. As trevas são caracterizadas pela ignorância;
a luz é caracterizada pelo conhecimento e pelo entendimento, sobretudo por um
conhecimento de DEUS; não mero conhecimento de certas coisas concernentes a
Deus ou acerca de Deus. Esse conhecimento é accessível a todos. Mas o cristão
tem um conhecimento maior. Ele se acha na condição descrita pelo nosso Senhor
no Evangelho Segundo João: “E a vida eterna é esta: que te conheçam, a ti só,
por único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste” (17:3). Inclui um
conhecimento acerca de Deus, é claro; porém vai além; inclui uma apreensão e
um conhecimento de Deus abertos somente para o cristão, e que faltam aos
outros.

Paulo disse aos cristãos coríntios que “o homem natural não compreende as
coisas do Espírito de Deus, porque lhe parecem loucura; e não pode entendê-las,
porque elas se discernem espiritualmente”. Quer dizer, o homem pode ter
grandes poderes intelectuais e capacidade de raciocínio, entretanto, se ele não é
cristão, ignora totalmente as verdades espirituais; não vê nada nelas, não as
entende. A faculdade espiritual éo que diferencia o cristão de todos os
demais: ela é que lhe dá penetração, entendimento e apreensão da
verdade espiritual. De fato, falta isso a todos os não cristãos. Eles têm
mente, têm intelecto; se lhes apresentarem uma situação de natureza
política, eles podem entendê-la, podem raciocinar a respeito, podem assimilá-la;
podem fazer o mesmo com a poesia, com a música, com a sociologia, com a
ciência e com mil e um outros assuntos. Contudo, quando são levados à esfera da
verdade espiritual, eles não têm nenhuma faculdade que os habilite a entendê-la.
Nada vêem nela, é loucura para eles, não passa de absurdo, e se despedem dela
com um aceno de mão. Há muitos assim, e se lhes dá grande proeminência
nos programas de rádio e na televisão. Mas vocês têm notado como eles ignoram
a verdade espiritual? Têm notado como eles não conseguem nem pensar
espiritualmente? Não podem, claro que não! São cegos, falta-lhes a faculdade
própria, não são luz no Senhor, são trevas! Eles padecem dessa ignorância, seus
tolos corações estão entenebrecidos, suas mentes foram cegadas pelo deus deste
mundo.
Vocês vêem, a fé em Cristo e no evangelho não é questão de capacidade
intelectual. Há os que pensam que certas pessoas não são cristãs por causa dos
seus grandes cérebros, da sua grande capacidade intelectual. E há muito cristão
que tende a pensar desse modo e ainda se perturba com o fato de que esses
grandes homens não são cristãos.

Que pena! No entanto, vocês vêem, essa é uma negação de todo o cristianismo.
Não importa quão perfeito o instrumento seja, se lhe falta esta qualidade
espiritual, esta faculdade espiritual, de nada vale. “O homem natural não
compreende as coisas do Espírito de Deus, porque lhe parecem loucura.” Ele é
“trevas”, não é “luz no Senhor”. Mas, no momento em que o homem se torna
cristão, a primeira coisa da qual ele toma consciência é que ele tem uma
faculdade espiritual; possui agora entendimento numa esfera na qual era antes
um estranho e se sentia como um de fora. Ele começa a ter uma apreensão de
Deus, do ser de Deus, da verdade sobre Deus e, em acréscimo, começa
a entender que tem uma alma.

Somente o homem em quem a luz entrou é que realmente passa a interessar-se


por sua alma. Os outros não se interessam nem um pouco pela alma. Pensam no
homem como se ele fosse um animal, pensam que a morte é o fim. Acham que
estão fazendo um elogio a si mesmos ao falarem desse modo, porém estão
negando o valor supremo do homem, a alma! Mas você precisa da capacidade de
apreensão espiritual para ter ciência de que você é uma alma, e de que, “És pó
e ao pó voltarás” não foi dito da almal Este valor imperecível! Ah, dizem eles,
mas quando se disseca um corpo não se vê um órgão chamado alma, e se
consideram espertos por se desfazerem da idéia. Pura ignorância! Estas coisas se
discernem espiritualmente; unicamente o Espírito pode revelar ao homem as
coisas profundas de Deus, e Ele o faz - aos cristãos!

Além disso, visto que os cristãos são “luz no Senhor”, eles têm um entendimento
e uma apreensão da realidade do pecado! Os não cristãos não sabem o que
significa ser pecador; toda essa idéia lhes parece monstruosa e ridícula. Eles
explicam toda a conduta em termos de ambiente ou de hereditariedade ou de
educação, ou de coisas como essas; eles não têm consciência de que há no
homem um princípio do mal que vicia todos os seus julgamentos, uma
propensão, uma tendência para o mal. Paulo lhe chama “lei em nossos
membros”, sempre nos arrastando para baixo. Isso nada significa para eles, eles
nada sabem sobre o conflito espiritual interior. Mas, no momento em que o
homem se toma cristão, toma consciência de que ele é sede desta
tremenda batalha e luta; fica ciente de que ele é uma espécie de enigma;
fica ciente destas forças em conflito dentro dele, umas lutando a favor da alma,
outras contra.

E depois, o Espírito ensina o cristão a ver o Senhor Jesus Cristo. Os outros


homens, nas trevas, vêem Jesus Cristo, a quem só chamam Jesus, naturalmente.
É típico deles chamá-lO Jesus. Os cristãos não

O chamam Jesus; Ele é o Senhor Jesus Cristo para o povo da luz! Todavia os
não cristãos olham para Jesus e vêem apenas um homem, um carpinteiro, um
simples mestre, e assim por diante, um pacifista ou algo semelhante, e isso é
tudo o que vêem nEle. Você precisa ter olhos ungidos pelo colírio do Espírito
Santo, antes de poder vê-10 realmente e de começar a ver a maravilha e o
mistério da Sua Pessoa. Você vê o divino, vê o humano; vê a natureza divina, vê
a natureza humana, você vê as duas juntas; não se misturam; estão ambas ali;
mas não se fundem. Você vê a maravilha e o mistério, e toma a sua posição
com o apóstolo Paulo e diz: “Grande é o mistério da piedade: DEUS
se manifestou em carne”! (1 Timóteo 3:16). Ora, para o cristão esta é a realidade
máxima da vida. Não é mais algo ridículo que ele põe de lado e diz que não pode
compreender cientificamente; para ele a verdade mais maravilhosa e mais
gloriosa, é que a Encarnação tenha acontecido. “DEUS se manifestou em carne”,
“o Verbo se fez carne, e habitou entre nós”, e assim ele contempla a Pessoa do
Senhor e a verdade concernente a Ele, e isto o leva a maravilhar-se e à adoração.

Semelhantemente com o caminho da salvação. O homem que é luz no Senhor


conhece o caminho da salvação, e ele pode explicá-lo a outros. Este ensino não é
só do apóstolo Paulo. O apóstolo Pedro, em sua Primeira Epístola, diz a mesma
coisa: “Estai sempre preparados para responder com mansidão e temor a
qualquer que vos pedir a razão da esperança que há em vós” (3:15). Pois bem, o
cristão pode fazer isso, posto que ele entende o único caminho da salvação.
Desenvolvamos isto, vejamos a totalidade desta grande e gloriosa verdade.
O cristão é alguém que se aproxima dela com sua mente renovada, ele é luz no
Senhor, este Livro significa tudo para ele, vê nele esta verdade extraordinária e
desta tem crescente entendimento.

Ademais, o cristão não somente tem este novo entendimento e apreensão, mas
também um coração que lhe corresponde. Alguns parecem ser constituídos de
tal modo que podem ter uma espécie de interesse intelectual pela Bíblia, porém
os seus corações não correspondem a isso. Certas pessoas estão interessadas na
Bíblia como literatura, ou como filosofia, etc. Todavia não são cativadas
e impulsionadas pela verdade. Mas, quanto ao homem que é luz no Senhor, seu
coração é luz. E ele sente o poder da verdade, o poder da palavra que aí se acha;
é impulsionado por ela. Pois bem, isso é necessariamente verdadeiro quanto ao
cristão. Este é luz no Senhor, e o homem integral é luz no Senhor. Como o
apóstolo o expressa, escrevendo aos Romanos, ele obedeceu “de coração à forma
de doutrina” que lhe fora confiada (cf. Romanos 6:17). O homem completo está
engajado. E assim sou enfático em dizer que o cristão

é alguém que tem luz no coração. Suas emoções estão envolvidas, ele deseja a
santidade. Deseja forçosamente a santidade. Não estou dizendo que ele não peca
e que é perfeito. Nadadisso! Mas, conquanto peque, deseja a santidade, tem fome
e sede de justiça. O desejo do seu coração é ser libertado do pecado. É conhecer
a Deus e ao Senhor Jesus Cristo, conhecer a Bíblia, conhecer a verdade. Esta é a
relação do seu coração com esta questões. Seu coração tornou-se luz no Senhor.

No entanto, agora devemos considerar o terceiro aspecto, que é a vontade. Esta é


a esfera na qual o apóstolo está particularmente interessado nesta seção que
estamos focalizando. Todos os aspectos estão ali, porém este é o ponto que ele
acentua ao máximo. Chegamos aqui ao caráter como ele se mostra na expressão,
na ação. No versículo 9 temos: “Porque o fruto do Espírito está em toda a
bondade, e justiça e verdade”. Num sentido esta tradução da Versão Autorizada
inglesa (e de Almeida, Edição Revista e Corrigida) é infeliz. A tradução mais de
acordo com os melhores manuscritos é: “o fruto da luz está em toda a bondade, e
justiça, e verdade” (como em Almeida, Edição Revista e Atualizada no Brasil).
Naturalmente, quase dá na mesma; é do Espírito que vem a luz, não há luz sem
Ele e, portanto, não é surpreendente que o nome do Espírito entre neste ponto;
assim, entenda-se “fruto do Espírito” ou “fruto da luz”; é igualmente certo, em
ambos os casos.

Já vimos que a palavra característica e significante com relação às trevas é


“obras”: “E não comuniqueis com as obras infrutuosas das trevas”. Mas quando
ele fala da luz e das manifestações da luz, não fala mais em obras, e sim em
fruto. Portanto, devemos examinar a significação desta mudança no uso dos
termos, contrastando “o fruto da luz” com as “obras das trevas”.

A grande característica da vida do cristão verdadeiro é fruto, e isso nos diz que é
só quando o homem se toma cristão que ele se toma realmente natural. É só o
cristão que começa a aproximar-se daquilo que o homem foi destinado a ser,
quer dizer, daquilo que o homem era em sua primeira criação. Ele foi feito e
criado à imagem de Deus, foi feito reto, foi-lhe dada retidão original; contudo,
em conseqüência da Queda e do pecado, tudo isso foi perdido. E o problema
quanto ao homem em pecado é que ele é uma monstruosidade, é inatural.
Se vocês quiserem ler o que talvez seja uma das mais grandiosas exposições
sobre isto em toda a Bíblia, concito-os a lerem o Salmo 104, e ali verão o
salmista falar da criação e dizer-nos como tudo manifesta a glória de Deus - as
montanhas, os rios, as aves, as árvores, os cedros do Líbano, ricos de seiva. E ele
via longe. Depois, tendo descrito as

obras da criação, ele olha para o homem e sente que só há uma coisa a dizer
sobre ele - “Desapareçam da terra os pecadores, e os ímpios não sejam mais”.
Por quê? Porque o pecador é uma monstruosidade no universo de Deus. É
inatural. Mas quando o homem se torna cristão, a primeira verdade sobre ele é
que ele se torna natural. Começa a funcionar segundo o propósito para o qual foi
criado. O que compete a uma árvore é produzir fruto; essa é a ordem natural.
No entanto, quantas vezes pensamos no cristão nestes termos? Por outro lado, os
não cristãos são inaturais, são monstruosidades, são uma negação do verdadeiro
ser do homem. Somente o cristianismo faz de nós homens dignos do nome.

Ainda, nunca há nada artificial ou mecânico ou que pareça uma máquina na vida
do cristão. A vida do cristão lembra antes o modo como o fruto cresce na árvore.
Jamais o cristão deve parecer uma máquina ou um produto dela. Não se pode
produzir cristãos em série, como tampouco a sua vida, as suas atividades e as
suas ações. Agora, para mim, isso é de tremenda importância. Vemos aí a real
diferença entre o comportamento e o viver do cristão, por um lado, e a
espécie de conduta e comportamento que caracteriza os devotos das seitas e das
religiões falsas, por outro lado. Estes últimos são sempre feitos a máquina,
sempre produzidos em série. Nunca a vida do cristão deve dar a impressão de
que ele se impõe a si próprio um certo número de coisas. Sua vida é comparável
a uma árvore, ao passo que a vida dos adeptos das seitas, e dos falsos religiosos,
parece uma árvore de Natal. No caso da árvore de Natal, você tem que pendurar
o fruto nela, as dádivas e os presentes. É uma árvore artificial. Mas a
característica da árvore verdadeira é que o fruto nasce dela, você não o pendura
nos ramos. Assim o cristão e o seu modo de viver nunca dão a impressão de que
ele se impôs a si mesmo uma certa linha de conduta e de comportamento. As
seitas podem simular a realidade. É muito difícil, às vezes, dizer a diferença
entre uma flor viva e uma flor artificial, não é? Há pessoas muito hábeis, capazes
de fazer uma rosa artificial de tal maneira que, à primeira vista, quase engana o
entendido. O diabo se faz de anjo de luz, e imita o verdadeiro, porém continua
sendo artificial, sem vida, algo manufaturado e feito. Tratemos de nunca dar essa
impressão. Seja o nosso fruto “o fruto da luz”!

Mas, para levar a analogia mais longe, sempre deve estar presente algo que
lembre a idéia de firme crescimento e desenvolvimento na vida do cristão. Sem
forçar a analogia, continuemos a examiná-la em termos desta árvore frutífera.
Uma noite você vai para a cama, tendo olhado a árvore pouco antes, e lá estava
ela, apenas ramos e folhas,

nada mais. Na manhã seguinte você se levanta, abre a porta, vai ao pomar, e lá
você vê a árvore, coberta e pejada de frutos plenamente desenvolvidos. Isso
nunca acontece, acontece? Não, não, você tem os botões; mais tarde você vê
flores, e depois consegue apenas ver uma insinuação de que o fruto está a
caminho; só depois é que o fruto começa a desenvolver-se, até chegar finalmente
à maturidade. O cristão é isso - o fruto! Não acontece de súbito, não é imposto,
não é pré-fabricado. Entretanto, vejo muitíssimos cristãos pré-fabricados, com
relação à conduta. Primeiro, uma pessoa é levada a uma reunião evangelística e
ali obtém a salvação; a seguir, dão-lhe vigilante instrução, e se lhe diz o que deve
fazer. Quase imediatamente chega à perfeição, um exemplo de cristão pré-
fabricado e produzido em massa. Oraisso não é cristianismo. Digo-o
deliberadamente, isso não é cristianismo. Isso é o que as seitas fazem, é o que as
religiões falsas fazem, é o que o legalismo faz. Isso a religião pode fazer. Mas
o cristianismo verdadeiro produz FRUTO genuíno, e na sua produção há sempre
o fator crescimento e desenvolvimento, que leva à maturidade.

Também é característico do fruto que, embora essencialmente, é claro, todo fruto


seja idêntico, é igualmente certo dizer que sempre há diferenças individuais.
Vejam uma macieira carregada de maçãs. Bem, vocês dirão, todas são maçãs!
Concordo, porém não são todas idênticas na forma, ou na cor; há um pouco mais
de vermelho numa, um pouco menos noutra, e assim por diante. Há todo tipo de
diminutas diferenças e variações no fruto. E isto é sempre uma característica
dos cristãos verdadeiros. Contudo não é uma característica dos seguidores e dos
devotos das seitas e das religiões falsas. Eles são sempre iguais, são produzidos
em massa. Quando você vê um, vê todos; são como selos postais; são todos
idênticos, como máquinas, como carimbo.

Às vezes se pode dizer qual a organização em que o homem se tornou cristão.


Há um certo carimbo nele, certa mesmice na expressão, na conduta e em tudo.
Mas devemos protestar contra tudo isso em nome do Espírito, e por causa da
liberdade do Espírito. Os cristãos são fruto, o fruto da luz! E nunca devemos
permitir que alguém nos imponha um molde. Somos chamados para a gloriosa
liberdade dos filhos de Deus. É trágico ver cristãos recém-convertidos
conformando-se a um molde e a ummodelo. Tenho visto isso evidenciado
mesmo nas questões de vestuário, da maneira de pronunciar certas palavras
,etc. Lembremo-nos, digo, de que temos vida, de que somos fruto, e de que uma
das nossas características é a liberdade que leva à variedade e à variação.

Permitam-me lembrar-lhes, ainda, que o fruto sempre vem de dentro para fora.
Num sentido, o fruto é expressão da vida da árvore

que o produz. É algo que provém do caráter, da natureza, da vida! E assim é com
o cristão. Conseqüentemente, não devemos impor formas ao cristão. E não
somente formas de conduta e comportamento! Há gente que até gostaria de
impor a você o que você deve fazer da vida; pode querer fazer de você um
missionário nas missões nacionais, ou um missionário nas missões estrangeiras,
ou um dente de uma engrenagem da máquina eclesiástica. Não o permitam!
Nunca façam nada porque alguém lhes diz que façam. O fruto deve provir de
você mesmo; deve provir da sua luz, da sua experiência pessoal, da sua própria
vida, da sua vitalidade. Tudo deve ser resultado do que somos e não nos
tomamos o que somos pelo que fazemos; fazemos o que fazemos porque somos
o que somos. O fruto sempre vem de dentro e é expressão da verdadeira
natureza. “Noutro tempo éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor; andai como
filhos da luz; pois o fruto da luz é... ” Essa é a ordem das coisas!

Vou mais longe ainda, e afirmo que não somente não devemos permitir que
outras pessoas nos ditem e nos imponham coisas, porém nem mesmo nós
devemos forçar a nós próprios. Isso é muito importante com vistas à orientação.
Muitas vezes já disse, e o direi de novo: nunca decidam fazer alguma coisa
unicamente em função da sua mente e do seu entendimento. As pessoas que
ensinam que o necessário é a vocação, estão realmente negando este princípio.
O necessário não é a vocação. Se fosse, todo cristão, homem ou mulher, deveria
renunciar ao trabalho secular e dedicar-se à obra cristã com tempo integral. A
necessidade não é, e nunca foi, a vocação. A necessidade faz parte dela, interfere
nela, todavia não será uma vocação enquanto eu não souber nada a respeito
desse constrangimento interior, desta pressão exercida pela seiva que sobe dentre
de mim e que me leva a dizer com Lutero: “Não posso fazer outra coisa”.
Estas coisas vêm de dentro, como expressão da natureza. Daí o
Novo Testamento sempre coloca a sua maior ênfase, não no que fazemos, porém
no qu& somos. Mas toda a teoria dominante na Igreja hoje, e até nos círculos
evangélicos, é o exato oposto. Que lástima! Ao trabalho! Prossigamos, diz o
povo. No entanto, a decisão de agir, a decisão para querer prosseguir, não nos
pertence. Deus colocou certos princípios dentro de nós. A luz na mente, no
coração e na vontade, esse é o dínamo, é isso que nos impulsiona a prosseguir, a
pressão interior. E o que somos chamados a fazer é cultivar a alma, o fruto
aparecerá; a conduta, o comportamento, a vocação e todas estas outras coisas
virão! Há estufas demais na Igreja Cristã, e demasiado aparelhamento
para forçar o crescimento. Essa é uma marcante característica da vida atual, não
é? E talvez venha a ser um dos maiores problemas para a

civilização dentro de alguns anos. Acaso não o temos visto, por exemplo, na
questão da produção de ovos? Como se usa luz artificial nos galpões das
galinhas, luz artificial a noite inteira, de modo que as pobres aves são forçadas a
produzir! É uma violação da natureza, um pecado. Também é pecado na vida
espiritual. Não temos que visar primeiramente à produção ou à quantidade
produzida! Sempre devemos preocupar-nos com a nossa capacidade de produzir,
e com a qualidade do que produzimos. Como Paulo o coloca escrevendo
a Timóteo, é nossa obrigação ver que sejamos vasos aptos para o uso do Senhor.
Prossigamos, dizem os homens; mantenhamo-nos ativos! Expressões
conhecidas! Mas isso é agir como máquina, como se estivessem acionando
algum mecanismo. Não é o método cristão. Nosso dever é sermos vasos próprios
para atender ao uso do Senhor. Pensemos em nós como árvores, com o nutriente,
a seiva, a vida. O nosso Senhor é a Videira, nós os ramos. Na medida em que
virmos a verdade desta maneira, estaremos capacitados a evitar a maioria
das armadilhas, tão perigosas para a alma e para a experiência do indivíduo, e
igualmente perigosas para toda a Igreja e para a sua vida e a sua atividade.

Concluo fazendo-os lembrar-se de que não é mais uma questão de obras; agora é
questão de fruto. Somos feitura Sua, criados em Cristo Jesus para boas obras.
Esse é o caminho. O homem tem que tomar-se luz no Senhor; quando isso
acontece, ele começa a produzir o fruto. Pergunto-lhes: não é a tragédia da Igreja
moderna que ela está cheia de obras, de atividade e de ativismo, porém é tão
escasso o fruto, este glorioso fruto da luz e do Espírito, que se vê entre nós?
Tratemos, pois, de ver que os nosso conceitos fundamentais sejam verdadeiros,
claros e bíblicos, e tratemos de compreender que somos ramos da
Videira verdadeira, e que o propósito a nosso respeito é que produzamos
fruto para a glória de Deus.
AGRADÁVEL AO SENHOR

“Porque noutro tempo éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor; andai como
filhos da luz. (Porque o fruto do Espírito está em toda a bondade, e justiça e
verdade); aprovando o que ê agradável ao Senhor. E não comuniqueis com as
obras infrutuosas das trevas, mas antes condenai-as. Porque o que eles fazem
em oculto até dizê-lo é torpe. Mas todas estas coisas se manifestam, sendo
condenadas pela luz, porque a luz tudo manifesta. Pelo que diz: Desperta, tu
que dormes, e levanta-te dentre os mortos, e Cristo te esclarecerá. ”

-Efésios 5:8-14

Continuamos com o nosso estudo do cristão como uma pessoa que é “luz no
Senhor”, e no versículo 9 vemos o apóstolo dizer-nos que a luz em questão se
mostra de certas maneiras. Ele aqui parece estar segurando uma espécie de
prisma sob a luz. E, naturalmente, o que o prisma faz é dividir a luz em suas
partes componentes. Desse modo ele produz uma espécie de espectro que Paulo
demonstra com as palavras “o fruto da luz” (versão do Autor: cf. ARA) “está em
toda a bondade, e justiça, e verdade”. Sua real exortação é: “Mas agora sois luz
no Senhor; andai como filhos da luz, aprovando o que é agradável ao Senhor”;
mas, para que não se esqueçam das características da luz, ele a divide aqui para
nós (num parêntese), como um prisma divide a luz natural, em bondade, justiça e
verdade - toda a bondade, toda a justiça e toda a verdade - e devemos examinar
cuidadosamente estas três palavras sumamente importantes.

A primeira é bondade, e depois vem justiça. Paulo estava muito interessado


nestas duas palavras, e muitas vezes as põe juntas, como por exemplo no
capítulo cinco de Romanos, embora numa ordem diferente ali. Ele está
mostrando como “Deus prova o seu amor para conosco, em que Cristo morreu
por nós, sendo nós ainda pecadores”. Isso, diz ele, é verdadeiramente admirável,
espantoso, quase incrível, porque não se vê esse tipo de coisa entre os homens. E
então ele faz uma colocação como esta: “Porque apenas alguém morrerá por
um justo; pois poderá ser que pelo bom alguém ouse morrer”. Aqui ele toma
primeiro o justo, e depois menciona o bom; porém em Efésios ele começa com o
bom primeiro, e depois prossegue com o justo. E é fácil

ver, penso eu, porque a ordem não é a mesma nos dois casos. Em Romanos,
capítulo 5, o apóstolo vai em pós de alguma coisa de baixo para cima, entretanto
em nosso texto de Efésios ele está trabalhando de cima para baixo; por isso
começa com a palvara bondade. “O fruto da luz está em toda a bondade.” Que é
bondade? Eis aí uma palavra que nos inclinamos a usar chochamente, sem
pensar e levianamente, mas é uma palavra grandiosa. A bondade é uma das
características do próprio Deus. “O Senhor é bom para todos” (Salmo 145:9).
“Aterra, Senhor, está cheia da tua bondade” (Salmo 119:64, ARA). Ou
vejam ainda como o apóstolo a define um pouco no capítulo dois da sua Epístola
aos Romanos: “Desprezas a riqueza da sua bondade, e tolerância, e
longanimidade, ignorando que a bondade de Deus é que te conduz ao
arrependimento?” (2:4, ARA) - a bondade de Deus! Deus é bom!

Bondade significa benevolência. Sempre indica um perfeito equilíbrio das várias


partes da personalidade. O homem bom é um homem equilibrado, um homem
em quem tudo o que é nobre e excelente opera um conjunto, harmoniosamente.
Ele não é angular; os vários atributos da sua personalidade devem ser vistos
nesta combinação perfeita. E o resultado disso é, naturalmente, que ele é um
homem interessado em promover a felicidade de todos os que o cercam. Não é
egoísta, não é egocêntrico, mas visto que ele tem este equilíbrio, preocupa-se
com os outro. E esta é também a grande característica de Deus; é a bondade de
Deus que nos leva ao arrependimento; é Deus vendo a nosssa miséria, a nossa
infelicidade, e tudo o que é verdade a nosso respeito em conseqüência do
pecado; é isso em Deus que nos leva ao arrependimento. Deus é bom para todos,
faz o Seu sol levantar-se sobre os maus e os bons, e envia a Sua chuva sobre os
justos e os injustos. Embora os homens sejam maus e injustos, Ele faz isso por
eles. A bondade de Deus leva ao arrependimento.

Vemos no homem um pálido reflexo da mesma coisa. O homem bom é o que


pensa no amor, na beleza e na verdade. E, portanto, ele tem olhos para os seus
semelhantes, homens e mulheres, e, por sua vez, está interessado em aliviar o
sofrimento, em mitigar os males. Está sempre procurando uma oportunidade
para fazê-lo, seu coração está cheio de benevolência, está interessado em
beneficiar outros. E, portanto, um completo contraste com relação às obras
infrutuosas das trevas, que não são de nenhum benefício e de nunhum valor
para ninguém. O pecador não é benfeitor, é puramente egoísta, busca satisfazer e
gratificar as suas cobiças e os seus desejos. Sua atitude é - quero isto, e porque o
quero, tenho que tê-lo. Ele pode causar intenso sofrimento a outros, porém não
dá a mínima a isso. Isso é exatamente

o oposto da bondade e da benevolência. Vocês vêem, o que há de terrível quanto


ao pecado é que ele faz o homem voltar-se sobre si mesmo fazendo dele um
homem egocêntrico, interessado em si próprio, egoísta. Assim, diz o apóstolo, a
primeira coisa que vocês vêem quando seguram este prisma frente à luz, é que o
homem que é “luz” está cheio de bondade, desta virtude que o leva a sair após
outros e a interessar-se por ajudá-los e por melhorar a condição deles. Deus é
bom para todos. E, por sua vez, o cristão deve ser bom para todos. Cristo diz:
“Eu sou a luz do mundo”, e vai adiante, dizendo: “Vós sois a luz do mundo”.
Como Ele foi bom para todos, de igual modo, devemos ser bons para todos.

O segundo termo é justiça. Esta difere da bondade em que traz consigo noções e
conceitos legais. Justiça significa conformidade com a lei, e é um termo mais
estreito qaebondade. Justiça é uma coisa na qual se pensa em termos das
prescrições e das exigências de uma lei, e da conformidade com essa lei.
Significa retidão, e uma manifestação da justiça. Significa, de fato, ser reto. Você
testa a retidão de uma parede ou de uma porta usando um nível ou um fio de
prumo. Isso supre toda a idéia de justiça. E o apóstolo está dizendo que a
justiça é uma característica do cristão. Ele é reto e justo em si mesmo:
no controle de se mesmo, o que ele faz é reto e justo, e também é equânime na
maneira de tratar os outros; nunca viola as regras e as leis referentes a eles;
nunca lhes faz qualquer mal; e respeita os seus direitos e as suas posses. Noutras
palavras, podemos pensar na justiça em termos dos Dez Mandamentos e do que
nos é dito sobre não cobiçar as coisas que pertencem ao próximo. O homem que
tem luz em si nunca incorrerá na culpa de cobiçar os bens e os direitos do
próximo. Ora, não estamos pensando tanto em benevolência neste momento,
como naquilo que é reto, verdadeiro e justo, naquilo que é indicado pela lei
moral de Deus. Noutras palavras, o homem que tem luz em si não é egoísta, e
não é governado por preconceitos. Não é governado pelos impulsos dos
seus pensamentos pessoais, quer saber o que é reto, o que é justo, o que
é equitativo, o que é realmente imparcial quanto aos seus semelhantes. Ele ama o
seu próximo como a si mesmo. A justiça está em perfeita conformidade com a
lei, não somente com a letra, mas também com o espírito.

Uma característica comum da vida não cristã é o desprezo pela lei, cada qual por
si, sem dar a mínima aos direitos alheios. Vemos muito desse tipo de vida na
sociedade atual. De fato, grande parte das dificuldades e dos problemas com que
se defrontam os políticos e outros deve-se à ausência desta justiça; não somente
não há bondade,

também não há justiça; e, naturalmente, estas coisas vão juntas. Já lhes fiz
lembrar a colocação que o apóstolo faz a respeito no capítulo primeiro da sua
Epístola aos Romanos: “Porque de céu se manifesta a ira de Deus sobre toda a
impiedade (primeiro) e (depois) injustiça dos homens”. A ausência de piedade é
sempre seguida pela ausência de justiça. Não existe falácia maior do que a que
caracteriza o ensino dos cem anos recém-passados, mais ou menos, a saber, que
você pode jogar fora a piedade e continuar apegado à justiça; que você
pode descartar-se da Bíblia e ainda ter a conduta inculcada pela Bíblia.
Isso simplesmente não pode acontecer. Uma vez que você perca a
piedade, sempre perderá a justiça. Por isso o apóstolo está lembrando aos crentes
efésios que, inversamente, voltar para Deus, ter esta luz do conhecimento da
glória de Deus na face de Jesus Cristo brilhando em nossos corações, leva não
somente à bondade que caracteriza o próprio Deus, e sim, por sua vez, leva à
justiça ou retidão no caráter e na conduta, em todas as esferas da vida. Noutras
palavras, a vida do cristão é governada por princípios. Ele sabe o que faz, e sabe
por que o faz. Não está apenas se amoldando a um modelo, ele tem razões,
ele está pondo em ação a sua doutrina, ele é reto porque sabe que a lei do Senhor
é perfeita (reta), e refrigera a alma, como diz o salmista (Salmo 19:7).

A terceira palavra do apóstolo é verdade. “O fruto da luz está em toda a bondade,


e justiça, e verdade” E este também é um elemento sumamente importante. Com
“verdade”, neste contexto, Paulo se refere a uma série de contrastes com o que
ele estivera dizendo acerca da vida não cristã. Dissera ele no versículo 6:
“Ninguém vos engane com palavras vãs”. No versículo doze nos é dito que “o
que eles fazem em oculto até dizê-lo é torpe”; noutro lugar ele fala das “coisas
ocultas das trevas” (1 Coríntios 4:5). Ora, a verdade é exatamente o
oposto dessas coisas. A característica do cristão é que nele não há falsidade, não
há nada que seja oculto, ou secreto, ou insincero, nada que cheire a hipocrisia ou
fingimento. Não! Suas características são que ele é aberto e franco, translúcido e
transparente. De fato, como assinala o apóstolo, “todas estas coisas se
manifestam, sendo condenadas pela luz, porque a luz tudo manifesta”. Essa não
é a melhor tradução, como lhes mostrarei, mas há esse sentido também. Não se
pode esconder nada quando a luz vem. Imagine-se andando por uma escura
estrada campestre. De repente surge um carro com os faróis acesos, e
num momento tudo se toma visível, e você vê todos os tipos de seres rastejantes
desaparecendo nas sombras. A luz expõe tudo, e esse é o efeito da verdade
dentro da personalidade. O cristão é um homem

aberto, que não tem nada para disfarçar ou ocultar. Ele não finge ser o que não é.
Ele é o que é pela graça de Deus, muito diferente daquele outro tipo de homem,
que leva uma vida de falsidade. O não cristão não confia em ninguém, e
ninguém confia nele; não se pode acreditar nele, nunca se sabe quando ele está
falando a verdade. Adão e Eva, depois que pecaram, cobriram-se com folhas de
figueira e foram para trás das árvores do jardim para esconder-se de Deus, e o
ímpio continua fazendo a mesma coisa, a seu modo. Sempre é essa
a característica da vida em pecado - oculta!.. .indigna de confiança!... enganosa!
O cristão, porém, é o exato oposto disso, há transparência nele; você conhece o
homem, pode-se dizer; ele está patente aos olhos, não é algo oculto, não tem
fingimento, é sincero. Em sua Primeira Epístola, Pedro o descreve como sem
malícia, sem engano, sem fingimentos (2:1), o que diz a mesma coisa que o
apóstolo Paulo expressa ao tratar deste ponto na Epístola aos Efésios. O cristão é
o que é graças à verdade de Deus, pois esta verdade penetrou nele e tomou posse
dele; e assim a sua vida é caracterizada pela verdade, em todas as sua variadas e
gloriosas manifestações.

Podemos resumir o que o apóstolo nos está dizendo sobre a luz afirmando que
ela é a coisa mais benéfica do mundo. Ela própria é uma coisa maravilhosa. Ah,
o bem que ela faz! Ninguém gosta de um dia de nevoeiro, mas nos gloriamos
com a luz e com o fulgor do sol. Luz! Cura os nossos corpos. Dá vigor a tudo, e
age até nas partes mais profundas da nossa constituição física. O nosso Senhor
nos disse, como já o lembrei a vocês, que, por nossa vez, somos a luz do
mundo, cabendo-nos irradiar este benefício entre os nossos companheiros
de existência, homens e mulheres. Vimos que a luz sempre expõe o que está
errado, põe-no à vista e o condena, por assim dizer, e nos mostra o que é certo,
verdadeiro e bom. E é a luz que faz com que tudo fique aberto, simples e claro,
Um homem está estudando uma porção das Escrituras, e não a entende. Gostaria
de ter alguma luz sobre isto! - diz ele. A luz revela as coisas, torna tudo simples,
claro e translúcido. E, de acordo com o apóstolo e com o Novo Testamento em
toda parte, os cristãos são caracterizados por essas qualidades. Quando
fazemos visita, as pessoas devem sentir quando vamos embora: “Foi bom
que eles vieram,” dizem elas, “sua visita nos fez sentir melhor”. Da
mesma maneira, sendo nós o que somos, devemos ser um castigo para o mal, e
devemos ser manifestações da vida justa e verdadeira, santa e reta. Acima de
tudo, devemos ter este elemento de franqueza e de veracidade em todos os
nossos procedimentos e em todas as nossas associações.

Aqui Paulo fecha o parêntese, e termina a sua exortação propriamente dita, ..


mas agora sois luz no Senhor; andai como filhos da luz ..com as palavras:
“aprovando o que é agradável ao Senhor”. De várias formas essa é a chave disso
tudo, a chave para as três coisas mostradas entre parênteses, pois nos propicia o
princípio prevalecente que, se o observarmos, garantirá as três manifestações da
luz dentro de nós. Uma declaração paralela do apóstolo acha-se no capítulo doze
da sua Epístola aos Romanos: “Não vos conformeis comeste mundo,
mas transformai-vos pela renovação do vosso entendimento, para
que experimenteis qual seja a boa, agradável, e perfeita vontade de Deus”. Em
ambas as passagens ocorre a palavra provar (VA; na ARC, “aprovando” e
“experimentais”). O termo se empregava para designar a prova de metais
preciosos; quando você queria diferenciar entre um metal e outro, davam-lhe um
pedaço do material e lhe pediam que o identificasse. Então você o submetia ao
teste de vários ácidos, e observava a reação. Você estava provando o metal, isto
é, testando-o e verificando o que era, aplicando os testes. O apóstolo usa a
mesma palavra em nosso texto: “provando o que é agradável ao Senhor”.

A grande característica da vida e conduta do cristão é que ele se dispõe a


verificar o que é que realmente agrada ao Senhor. E isso que ele sente que
precisa fazer, esse é o seu grande motivo, o seu motivo principal. É da máxima
importância, e devemos dar-lhe ênfase de maneira especial, pois, ao
examinarmos a conduta e o comportamento, necessitamos não somente
diferenciar entre o cristão e o pecador óbvio e flagrante, porém também entre ele
e o chamado homem bom, de boa moral, “o bom pagão”, se o preferirem. O
versículo dá o teste final de ácido. Quando se examinam as vidas dos dois
homens, não é fácil ver muita diferença entre eles; ambos parecem homens bons,
homens justos, homens caracterizados pela verdade. E, todavia, um deles
é cristão, e o outro não. Como discernir a verdade concernente a eles? Não
conheço melhor teste que o deste versículo dez. Aí está uma coisa que só é
verdade sobre o cristão, nunca sobre qualquer outra pessoa. A característica do
cristão é que ele está sempre provando o que é aceitável ao Senhor. Deixem-me
explicar. Eis aí um homem não preocupado, não interessado na bondade, na
justiça e na verdade, no que elas são em si mesmas. Não se interessa por elas
como virtudes abstratas, nem como absolutos abstratos que governam a conduta.
Por outro lado, os não cristãos podem estar interessados nestas coisas, no que
elas são em si mesmas. Acredito na bondade, acredito na retidão e na justiça,
acredito na verdade e na fidedignidade, diz o bom pagão. Ele as toma como seu
código e vive de acordo com ele. Concedamos a ele tudo quanto reivindica; ele
pode sair-se muito bem. No entanto,

tudo o que eu estou dizendo é que, se isso é tudo o que ele é capaz de me dizer,
digodhe que ele não é cristão. Isso não passa de um excelente paganismo. É o
ensino dos grandes filósofos gregos anteriores a Cristo; eles inculcavam estas
virtudes como princípios, como princípios abstratos. Mas o cristão não está
interessado nelas como princípios abstratos. Está interessado nelas porque sabe
que elas constituem a vontade do Senhor. É o Senhor que lhe interessa, e desde
que o Senhor é caracterizado por estas coisas e está desejoso de que o Seu povo
também o seja, o cristão se interessa por elas. O apóstolo vai adiante, pois, e
acrescenta esta verdade diferencial - “provando o que é agradável ao Senhor”.

Além disso, o cristão, diferentemente do homem de bem, de boa moral, ou do


bom homem religioso, não cristão, não leva a vida que leva com o fim de
agradar-se a si mesmo ou para cumprir o seu próprio padrão ou o seu próprio
código. Há muitos que fazem isso. Não faz parte do meu dever criticá-los, porém
é deveras meu dever mostrar que eles não são cristãos. Este é um dos pontos
mais sutis que podemos encontrar. Há os que dizem: pois bem, acredito em ter
um padrão, acredito em ter um código, e vou fazer o máximo para viver de
acordo com esse código; vou sentir-me infeliz, se não o conseguir. Mas o homem
está fazendo isso para agradar a si mesmo, está fazendo isso com o fim de pôr
em prática o seu próprio padrão. Diz ele: o homem tem que viver consigo
mesmo! Eu perderia o meu respeito próprio se não fizesse isso, teria vergonha de
mim mesmo, não me agrada viver de qualquer maneira. Acredito em viver tendo
essa meta e esse padrão. Contudo, o tempo todo o seu motivo é agradar a si
próprio e amoldar-se ao seu próprio padrão e ao seu próprio código, e isso é
muito diferente da ambição cristã de provar, e provar sempre, o que é agradável
ao Senhor!

No entanto, devo ir além. Há muitos que estão tendo um bom modo de viver
simplesmente porque temem o que as pessoas diriam se eles vivessem doutra
maneira. Temem ser descobertos e condenados, temem perder a boa opinião dos
seus vizinhos, receiam uma publicidade adversa se vacilarem; e este temor e esta
preocupação com a boa opinião das outras pessoas governam a totalidade das
suas vidas. São governados em toda a sua conduta pelo que os outros pensam ou
dizem ou fazem a seu respeito. O cristão é diferente. Na Primeira Epístola aos
Coríntios o apóstolo diz: “A mim mui pouco se me dá de ser julgado por vós, ou
por algum juízo humano; nem eu tão pouco a mim me julgo... Quem me julga é
o Senhor” (4:3-4). Isso é cristianismo! Paulo não é governado pelo que outras
pessoas venham a dizer, nem

mesmo é governado pelo que ele próprio diga de si mesmo. “Nem eu tão pouco a
mim mesmo me julgo.” Digam o que quiserem, diz Paulo, não faz nenhuma
diferença para mim; confiei o meu julgamento ao Senhor. Assim é o cristão; ele
prova o que é agradável ao Senhor!

Mas temos que dar mais um passo. O cristão cuja vida é caracterizada pela
bondade, pela justiça e pela verdade não é tampouco alguém que está tentando
viver em conformidade e de acordo com o ensino do Senhor Jesus Cristo por
achar que esse ensino é o mais elevado e o melhor. Ora, de novo, há muitos que
fazem isso. Eles lêem a ética dos filósofos gregos e outros, depois vêm ao
Sermão do Monte, e dizem: aqui está o ápice! Aqui está o que há de supremo e
de mais excelente! Nunca houve um ensino ético como este! Muito bem, diz o
homem, vou viver de acordo com os ditames e com o ensino do Sermão do
Monte, o conceito mais alto e mais nobre que já encontrei. Ele é cristão? Bem,
tudo o que eu digo é que, se ele pára nesse ponto, não é cristão, pois o cristão é
governado pela necessidade de provar “qual seja a boa, agradável, e perfeita
vontade de Deus”. Devemos ser absolutamente claros sobre isto. O que prova
que somos cristãos é que, além e acima de tudo mais, a nossa principal
consideração, a nossa consideração final, é o nosso desejo de buscar e conhecer,
descobrir, a vontade do Senhor, a fim de podermos agradá-10. É esta
relação pessoal com esta Pessoa bendita.

Essa é, como estive dizendo, a differentia da ética cristã, que a coloca numa
categoria inteiramente única. O seu motivo, a sua mola mestra, a coisa mais
importante nisso, é que ninguém senão o cristão pode alegar ou sequer falar
sobre o desejo de viver para a glória e louvor do Senhor, e para agradá-10 em
todas as coisas; como este apóstolo o coloca, “como eu não agrado a mim
mesmo”. Sua obediência consistia sempre em agradar ao Senhor e em viver por
amor ao Senhor.

Por quê? Bem, seguramente esta deve ser a verdade. O cristão é um homem que
compreende que deve tudo o que ele é, tem e espera ser, a este Senhor, Àquele
que tanto o amou quando ele ainda estava nas trevas, quando ainda era pecador,
quando ainda era ímpio, quando ainda era um inimigo, tanto o amou que Se
entregou por ele. O Seu corpo foi partido, o Seu sangue foi derramado, para que
ele, um pecador, pudesse vir a ser luz no Senhor. O cristão é alguém que diz a si
mesmo: “Não sou meu, fui comprado por preço”. Não é um livre agente; é, com
o apóstolo Paulo, escravo do Senhor Jesus Cristo, que morreu para que fôssemos
perdoados, que morreu para que fôssemos feitos bons, que morreu para que
tivéssemos esperança de entrar no céu. É o Senhor! Este é o Ser que lhe deu
tudo, o Senhor Jesus é o
motivo - o qual é: agradá-lO. O motivo do cristão não é cumprir um certo código
de moralidade, não é evitar a crítica dos outros, não é estar em paz consigo
mesmo, não é ser um paradigma de todas as virtudes, não é formar uma grande
imagem pessoal ou ter um grande nome entre os homens. Não, não! Ele diz:
“Não permitas que nada me agrade ou me aflija sem Ti, ó Senhor!” “Provando o
que é agradável ao Senhor”! Escrevendo aos coríntios, o apóstolo expressa a
mesma coisa: “Portanto, quer comais quer bebais, ou façais outra qualquer coisa,
fazei tudo para glória de Deus”! Isso está em 1 Coríntios, capítulo 10. Leiam--no
ainda: “. . . consciência”, diz ele, “não a tua, mas a do outro”. “Todas as coisas
me são lícitas, mas nem todas as coisas convêm.” Que é que ele quer dizer?
Bem, há o irmão mais fraco! Por que devemos considerá-lo? Porque Cristo o
considerou! “O que quer que façais” (VA) - ele o desenvolve, levando-o a um
grande clímax no fim - “quer comais ou bebais, ou o que quer que façais, fazei
tudo para a glória de Deus”. É só o cristão que faz isso.

O cristão não é alguém que está interessado em virtudes abstratas como tais,
ainda que elas sejam a bondade, a justiça e a verdade; está interessado nelas
unicamente porque está interessado no Senhor. Cristo morreu para que fôssemos
a luz do mundo, para que fôssemos reflexos dEle, para que fôssemos como uma
cidade edificada sobre um monte que não se pode esconder, e como a candeia
que não se põe debaixo do alqueire, porém num lugar proeminente, para que
irradie a sua luz pela sala toda. Resplandeça a sua luz, diz Ele, diante
dos homens, para que vejam as suas boas obras e glorifiquem a seu Pai, que está
nos céus. Sim, diz a resposta à primeira pergunta do Breve Catecismo: “O fim
principal do homem é glorificar a Deus e gozá-10 (como vocês estão fazendo
agora) para sempre”.

“Provando o que é agradável ao Senhor.”

EXPOSTOS PELA LUZ

“Portanto, não sejais seus companheiros. Porque noutro tempo éreis trevas, mas
agora sois luz no Senhor; andai como filhos da luz. (Porque o fruto do Espírito
está em toda a bondade, e justiça e verdade); aprovando o que é agradável ao
Senhor. Enão comuniqueis com as obras infrutuosas das trevas, mas antes
condenai-as. Porque o que eles fazem em oculto até dizê-lo é torpe. Mas todas
estas coisas se manifestam, sendo condenadas pela luz, porque a luz tudo
manifesta. Pelo que diz: Desperta, tu que dormes, e levanta-te dentre os mortos,
e Cristo te esclarecerá. ” - Efésios 5:7-14
Continuamos o nosso estudo das aplicações práticas da doutrina apostólica,
tendo já considerado como os cristãos, que são “luz no Senhor”, devem portar-se
e conduzir-se. Resta, porém, o problema quanto a qual deve ser a nossa atitude
para com as próprias trevas que ainda nos cercam e nos rodeiam. Afinal de
contas, os cristãos não vivem numa espécie de estufa de jardim. Não temos uma
vida isolada, segregada, temos que viver a vida cristão no mundo; esse é o
ensino do Novo Testamento sobre esta matéria. Há um ensino
errado, naturalmente, chamado monasticismo, que diz que os cristãos devem sair
do mundo, segregar-se e viver numa espécie de clausura com algum tipo de
cortina ao seu redor. Mas este é um falso conceito de cristianismo, um falso
ascetismo, que de muitas maneiras é inimigo da verdade cristã, porque priva o
evangelho de uma das suas maiores vitórias, a saber, capacitar-nos a viver uma
nova espécie de vida no mesmo mundo em que vivíamos antes. A maioria de
nós, senão todos, sabe muito bem o sentimento que deu surgimento as
monasticismo; muitas vezes houve que esperamos poder livrar-nos de
dificuldades, de problemas e de gente, de tudo aquilo que tende a irritar-
nos, transtornar-nos e derrubar-nos. Compreendemos o sentimento do salmista
quando clamava e dizia: “Oh, quern me dera ter asas como de pomba!”, para
poder fugir de tudo (55:6). É esse o espírito que leva ao monasticismo, todavia
não é cristianismo; e graças a Deus que não é! Ele nos dá o auxílio que nos
habilita a viver a vida cristã, uma vida como a de Cristo, no meio das nossas
lutas e provações.

O problema é ilustrado pelo modo como o nosso Senhor tratou o

homem que vivia na região dos gadarenos, o homem que tinha uma legião de
demônios. O nosso Senhor, por Seu poder, exorcizou aqueles demônios,
expulsou-os do homem, e o vemos sentado, vestido e mentalmente equilibrado.
De repente ele viu que o nosso Senhor partia, à solicitação do povo, e estava
para entrar num barco. O homem correu após Ele, expressando um desejo,
rogando-Lhe que lhe permitisse ir com Ele. Mas o nosso Senhor recusou-lhe o
pedido; disse Ele: não, volte para a sua cidade natal, volte para o lugar onde você
sofreu tanto e onde você viveu nessas condições terríveis. Parece absurdo
o nosso Senhor mandar aquele homem, sozinho e aparentemente sem defesa
alguma, de volta à cidade e ao lugar da sua anterior possessão demoníaca e da
sua miséria; Jesus Cristo não lhe permitiu que fosse com Ele. Ora, o desejo do
homem era muito natural, não era? Ele deve ter pensado: ah, se Ele me deixar, os
demônios vão voltar, minha única segurança é estar com Ele! Deixa-me ir
conTigo, diz Ele. Não, diz Cristo, volte! Envia-o de volta ao local da sua
desesperada miséria. Por que Ele fez isso? A resposta é dada pelo próprio
Senhor: vá contar aos seus amigos, diz Ele, o que Deus fez por você; vá
testemunhar e testificar ali. Assim Ele o envia de volta para testemunhar e
testificar em seu torrão natal. Entretanto o envia revestindo-o de um poder
do qual o homem ainda não se apercebera.

Pois bem, isso é cristianismo! Não temos que sair do mundo, temos que
continuar vivendo nele, e no seio da nossa vizinhança anterior temos que viver a
vida cristã. E aqui, em sua carta aos efésios, o apóstolo nos diz como fazê-lo.
Certamente não existe nada que seja mais urgentemente importante para os
cristãos, ao nível prático da presente hora, do que justamente esta questão. O
mundo está se tornando cada vez mais ímpio, irreligioso, e na verdade,
ativamente, positivamente pagão. Cada vez mais estamos retomando às
condições que prevaleciam na cidade de Éfeso há dois mil anos; e ainda é um
problema muito difícil, e que deixa perplexos os cristãos, saber como conduzir-
se nos negócios, em suas profissões, na política e em quase todas as situações
atuais, com homens e mulheres ímpios e irreligiosos, pagãos em sua perspectiva
e em sua prática. Qual deve ser a nossa atitude para com eles? Qual deve ser o
nosso relacionamento com eles? O apóstolo responde com três notáveis
afirmações neste capítulo cinco.

Na primeira, no versículo 7, ele diz: “Portanto, não sejais seus companheiros”.


Outrora vocês eram trevas, continua ele, e naquele tempo vocês eram seus
companheiros; porém agora vocês são luz no Senhor, não participem mais com
eles daquelas coisas pecaminosas. Em nossa conduta e prática há certas coisas
que temos de evitar

completa, inteira e absolutamente, e nas quais não se pode fazer nenhuma


concessão. Não devemos tocar nestas práticas más, nem participar delas, de
maneira nenhuma; temos que terminar completamente com elas, e fazer uma
limpeza total. Pois bem, são essas as coisas que o apóstolo estivera descrevendo
nos versículos anteriores. Mas, deixem-me ressaltar de novo que o apóstolo
achou necessário fazer esta advertência, mesmo às pessoas convertidas de
Éfeso. Devemos desfazer-nos de toda e qualquer noção mágica da vida
cristã. Algumas dessas coisas más continuavam tentando os crentes em Cristo, e
alguns deles estavam caindo na tentação. Paulo tivera que escrever as mesmas
coisas aos coríntios. O apóstolo teve que dizer-lhes positivamente que não
fizessem certas coisas que tinham feito anteriormente. Por quê? Bem, a
explicação é que quando somos convertidos não entendemos tudo acerca da fé
cristã, e temos que aprender coisas, temos que ir de degrau em degrau, de estágio
em estágio. A filosofia do mundo em que vivemos fica tão
profundamente arraigada em nós que ocasionalmente leva algum tempo para que
a verdade cristã aplicada nos esclareça em todas as coisas. Aqueles cristãos
recém-convertidos estavam tão acostumados a considerar certas coisas como
muito normais, muito naturais, de maneira nenhuma erradas, que era preciso
ensinar-lhes que aquelas coisas eram pecaminosas e vis, e que eles não deviam
tocar nelas. E por isso vocês verão muito dessa espécie de instrução nas páginas
do Novo Testamento. O cristão não é alguém que, súbita e imediatamente, num
só ato, é libertado de todo o pecado. Não, não! Ele é santificado pela verdade,
pelo ensino que temos em passagens como esta.

Passemos agora para a segunda injunção (no versículo 11), que não é tão clara.
“E não comuniqueis” (ou, “e não tenhais comunhão”, VA), “com as obras
infrutuosas das trevas, mas antes condenai-as.” Que é que significa a primeira
parte da frase? Há uma importante diferença entre “não ser seus companheiros”
(ou “participantes com elas”, VA), e “não ter comunhão”. O apóstolo não utiliza
a mesma palavra nos versículos 7 e 11. Tudo o que nos é dito no versículo 7 é
que não devemos juntar-nos aos pecadores na prática de coisas más, porém
a doutrina não pára aí, vai muito além. O versiçulo 11 nos diz que nem sequer
devemos mostrar interesse por elas. Para ser mais prático ainda, nem devemos
falar sobre elas de maneira errônea. Todos nós sabemos da distinção na prática.
Uma coisa é não fazer essas coisas; coisa muito diferente é não interessar-se por
elas. E há muitos cristãos que se interessam por coisas proibidas, por coisas das
quais o apóstolo afirma que até falar delas dá vergonha - “o que eles fazem em
oculto

até dizê-lo é torpe”. Eles não as faziam, mas estaria clara para nós que é
igualmente torpe ler sobre elas nos jornais e nos romances modernos, nos livros
e nos diários? Porventura vocês não notam o interesse que alguns cristãos
mostram, cristãos que nem sonhariam em participar dessas coisas? Todavia às
vezes vocês os observam e notam o interesse nos seus semblantes, o brilho dos
seus olhos, quando eles ouvem uma conversa sobre essas práticas. Podem até
fingir, é claro, que o seu interesse é psicológico, para conhecerem os fatos,
senão, certamente, não poderão ajudar as pessoas. Essa pode ser a capa
que cobre uma espécie de prazer com essas coisas na mente, na imaginação e no
coração; estão tendo comunhão com elas, estão realmente gostando da prosa e da
conversa, e assim permitem que digam em sua presença coisas que não deveriam
ser ditas. O apóstolo deixa absolutamente claro que o cristão não só não deve
dar-se a práticas más, porém também não deve gostar das pilhérias sobre essas
coisas, não mais deve considerá-las inteligentes ou alegres ou divertidas ou
boas para distrair. Ele não deve ter nenhuma comunhão com elas. Nunca deve
ser conivente nessas coisas, mas deve mostrar aos outros que elas pertencem a
uma esfera à qual ele não pertence mais.

O primeiro Salmo confirma suficientemente o que estou dizendo: “Bem-


aventurado o varão que não anda segundo o conselho dos ímpios”. Essa é a
primeira coisa que ele não deve fazer! Noutras palavras, a sua vida, o seu modo
de viver, a sua conversação, a sua maneira geral de conduzir-se, não deve ser
segundo o conselho dos ímpios. Entretanto o salmo não fica nisso. A segunda
coisa, “nem se detém no caminho dos pecadores”, é algo um pouco mais sutil.
Ele não deve nem fazer uma meia caminhada com eles; não deve ficar com
eles nas esquinas das ruas e dar boa acolhida às idéias que eles apresentam, de
modo nenhum; não deve ter nenhum secreto anseio ou aspiração por aquelas
coisas das quais ele não participa mais. E a terceira coisa: ele não deve assentar-
se “na roda dos escarnecedores”. Se o fizer, dará a impressão de que, afinal de
contas, ainda tem algum tipo de interesse nessas questões e que nelas ainda há
algo que o atrai. Não, diz o salmista, ele não tem que ter comunhão nenhuma
com as obras infrutuosas das trevas. Essa é, pois, a exposição geral do
princípio. Mas esta é uma questão que requer manejo cuidadoso, é um
princípio muito difícil de ser levado à prática no viver diário; pode ser
gravemente mal-entendido.

Portanto, devo mostrar exatamente como este ensino deve ser posto em prática
porque, se eu o deixar neste ponto, há aqueles que poderão dizer-me: você não
estaria ensinando um tipo de monasticismo? Você

não nos estaria dizendo que não devemos ter ligação nenhuma com os
pecadores, com os que não são cristãos? Não devemos andar segundo o seu
conselho, não devemos parar nas esquinas com eles, não devemos sentar-nos na
roda dos escarnecedores. Daí, você nos estaria dizendo que devemos passar todo
o nosso tempo somente com os cristãos, e nunca ter conversa alguma com os que
estão numa vida de pecado? A resposta a essa pergunta perfeitamente justa pode-
se ver no capítulo cinco da Primeira Epístola do apóstolo Paulo aos Coríntios, e
é uma declaração muito importante. Paulo diz ali: “Já por carta vos tenho escrito,
que não vos associeis com os que se prostituem. Isto não quer dizer
absolutamente com os devassos deste mundo, ou com os avarentos, ou com os
roubadores, ou com os idólatras; porque então vos seria necessário sair do
mundo. Mas agora vos escrevi que não vos associeis com aquele que, dizendo-se
irmão, for devasso, ou avarento, ou idólatra, ou maldizente, ou beberrão, ou
roubador; com o tal nem ainda comais. Porque, que tenho eu em julgar também
os que estão de fora? Nãojulgais vós os que estão dentro? Mas Deus julga os que
estão de fora. Tirai pois dentre vós a esse iníquo (versículos 9-13).

O contexto é importante. Aqui o apóstolo está tratando do caso de uma pessoa


incestuosa que era membro da igreja de Corinto, e lhes diz que ponham fora da
comunhão aquela pessoa incestuosa; eles devem excomungá-la e não ter mais
nenhuma comunhão com ela. No entanto, depois percebe que eles poderiam
entender mal o que ele diz, de modo que o retoma e o expõe. Diz ele: “Já por
carta vos tenho escrito, que não vos associeis com os que se prostituem”, o
que eqüivale a dizer: “Não tenham comunhão nenhuma com as obras infrutuosas
das trevas”. Mas, cuidado, continua ele, com a maneira de levar isso à ação -
“Isto não quer dizer absolutamente com os devassos deste mundo, ou com os
avarentos, ou com os roubadores, ou com os idólatras, pois”, se o fizésseis,
teríeis que sair totalmente do mundo, segregar-vos e tornar-vos monges e
eremitas e anacoretas. Ora, diz ele, não estou dizendo que façam isso! Noutras
palavras, ele não está dizendo que cortem todas as comunicações com os
pecadores de fora da igreja. E dá uma boa razão para a sua ressalva. Como
cristãos, devemos ser a luz do mundo e o sal da terra; devemos permanecer
na sociedade, e é por nosso intermédio e por intermédio da nossa vida, conduta e
comportamento, das nossas palavras e da nossa doutrina, que os pecadores têm
esperança de tornar-se cristãos e de serem libertados da ira de Deus. Portanto,
não devemos isolar-nos inteiramente deles. Eles vivem no pecado; sim, diz o
apóstolo, mas se vocês tivessem que cortar toda a ligação com eles, teriam que
sair do mundo. Os cristãos teriam que viver em comunidades só deles, e nunca

poderiam ter relações de nenhuma espécie com os não cristãos. Assim o apóstolo
explica a distinção que ele traça; se alguém que pertence à igreja se torna
culpado de práticas pecaminosas, os da igreja não devem ter comunhão com ele.
Por quê? Porque se espera algo mais dele! Ele é cristão, tem que ser repreendido,
precisas receber o devido tratamento e ser castigado. Paulo fala em entregar tal
pessoa a satanás, para a destruição da carne, para que o espírito seja salvo. Mas
ele não diz (e é isso que desejo ressaltar) que não devemos ter nenhum tipo
de relação com os de fora, os quais sabemos serem culpados de pecado.

Como você concilia essas afirmações? - alguém pergunta. Faço-o assim:


devemos manter contato com os pecadores exatamente da mesma maneira como
o nosso bendito Senhor e Salvador fazia. Ele foi chamado “amigo dos
publicanos e pecadores” (Mateus 11:19). Sentava-Se com eles, comia e bebia
com eles; eles se aproximavam dEle e Ele não os recusava, não os rejeitava;
interrelacionava-Se com eles, falava com eles; sim, mas o fazia de tal maneira
que não tinha nenhuma comunhão com as obras infrutuosas das trevas. Noutras
palavras, qu ando o nosso Senhor Se assentava e Se relacionava com os
publicanos e pecadores, não fazia concessões à conversação pecaminosa, suja
e insinuante; eles não faziam isso emSua presença; havia algo nEle que proibia
isso. E o apóstolo nos está dizendo que, conquanto mantenhamos os nossos
contatos com os não cristãos pelo bem das suas almas e pela sua salvação, não
tenhamos nenhuma comunhão com eles em sua perspectiva e em seu falar; A
maioria deles reconhece a nossa posição e a nossa profissão do nome do Senhor.
Podemos discutir outros assuntos com eles, porém se tenderem a introduzir
coisas feias e impuras, devemos mostrar nossa desaprovação, devemos
mostrar que não temos comunhão com elas, que não gostamos mais
dessas coisas. Às vezes é muito difícil traçar a linha, mas eu penso que
nós sempre saberemos quando chegou a hora de fazer isso. Podemos relacionar-
nos com eles sem apreciar as coisas que eles fazem. Mantenhamos contato com
eles, não os larguemos, para o bem deles, para benefício deles, todavia não
tenhamos nenhum tipo ou forma de comunhão com as obras infrutuosas das
trevas. Temos que deixar claro e simples para eles que, embora nos interessemos
por eles como pessoas e como seres humanos, e embora compartilhemos com
eles certos interesses comuns, não temos nenhum interesse por aquilo que, na
vida deles, é pecaminoso e nocivo.

Com efeito, observemos que o ensino do apóstolo não se detém nem nesse
ponto. A nossa atitude não deve ser somente negativa, também deve ser positiva.
Diz ele; “Não tenhais comunhão com as

obras infrutuosas das trevas, mas antes condenai-as”. Aqui está de novo uma
palavra que facilmente pode ser mal compreendida. Condenar não significa
simplesmente repreender, reprovar ou denunciar. É muito fácil fazer essas coisas.
Entendemos que condenar significa mostrar o nosso desagrado, denunciar a
coisa, censurá-la, condená-la imediatamente, tratá-la com severidade. Contudo,
não é nada disso que o apóstolo quis dizer. Essa era a atitude dos fariseus que,
quando viam essas coisas, pegavam suas capas e saíam. Essa é a típica
atitude farisaica e, de muitas maneiras, é exatamente o oposto da atitude cristã. E
puramente negativa. Concordo que é muito difícil não agir deste modo num
tempo como este, quando vemos e lemos coisas revoltantes e imundas. Como é
difícil deixar de mostrar horror, aversão e aborrecimento, e deixar de
simplesmente denunciá-las totalmente, ficando, porém, no outro lado da rua!
Mas não é isso que o apóstolo quer dizer.

Tampouco reprovar significa simplesmente aplicar a moralidade do ensino ao


problema. O moralismo tem o seu ensino, no entanto este é quase inteiramente
negativo. Ele denuncia as práticas más só porque são ruins para a pessoa e para a
sociedade; e aí ele pára. O moralismo vai a um homem que talvez seja viciado na
bebida, e lhe faz uma preleção sobre os maus efeitos do álcool no corpo. Vai
adiante e fornece estatísticas sobre os efeitos do álcool na produção
industrial, nas relações humanas, nas riquezas do país e em mil e uma
outras coisas; afirmações perfeitamente verdadeiras, cada um delas; porém nesse
ponto ele pára. Num sentido isso é reprovação, é condenação. Mas não é bem
isso, é apenas a aplicação negativa de ensinos morais.

Então, que é que o apóstolo quer dizer quando diz: “Mas antes condenai-as”?
Bem, o real significado da palavra - e não é teoria minha, vocês podem verificar
isso - é convencer mediante prova, levar à convicção dando esclarecimento e
entendimento. Significa que devemos lançar luz sobre essas coisas de tal
maneira que realmente convençamos a quem estamos falando da natureza do que
ele está fazendo e do que isso significa para a sua alma imortal e eterna,
Não devemos apenas denunciar as coisas más em si; em vez disso,
devemos lançar sobre elas toda a luz do evangelho. Não devemos falar com
os não cristãos somente sobre males morais particulares; mas, de
maneira amorosa, simpática e compreensiva, falar com eles sobre eles próprios,
sobre as suas almas e sobre toda a sua relação com Deus. A tragédia do escravo
da bebida não é simplesmente que ele fica bêbado e sofre péssimas
conseqüências sociais, é antes, que a relação desse homem com Deus é
completamente errônea. Diz-nos o apóstolo que “nenhum devasso, ou impuro,
ou avarento, o qual é idólatra, tem herança no

reino de Cristo e de Deus”! Esse é o ponto! E condenar da maneira certa


significa lançar a luz do evangelho sobre o homem e sobre toda a sua situação.
Precisamos fazê-lo compreender que ele é trevas, que as trevas estão dentro dele,
que ele habita nas trevas, que toda a sua relação com Deus está errada, e que, se
continuar vivendo desse jeito até a morte, irá para a perdição. Façam o que o
Senhor Jesus Cristo fez com os publicanos e pecadores; Ele não apenas
denunciou os seus pecados; pregou-lhes o evangelho; mostrou-lhes o amor de
Deus, tendo-os levado a compreender o caráter das coisas que eles
estavam fazendo. Esse é o significado desta palavra condenar.

E é para fazer isso que eu e vocês somos chamados. Não devemos desligar-nos
dessas pessoas; não devemos fazer como os fariseus, confiantes em sua justiça
própria, mostrando a nossa aversão, o nosso aborrecimento ou a nossa
superioridade e a nossa pureza. Não permita Deus que jamais façamos tal coisa,
ou que a Igreja de Deus faça tal coisa! Ela fez isso muitíssimas vezes no
passado. Ela o fez no período vitoriano, e creio que continua fazendo o mesmo.
O povo em geral, as classes trabalhadoras, assim chamadas, estão fora da Igreja
hoje, e isso em parte porque estamos muito prontos a dar a impressão de que
somos tão-somente pessoas respeitáveis, não que somos cristãos.
Devemos condenar desta maneira certa, devemos falar do evangelho a
essas pessoas; não pregar para elas, e sim falar do evangelho. Elas saberão que
somos diferentes, que talvez no passado tenhamos tomado parte em certas coisas
mas que não fazemos mais isso. É nosso dever levá-las a saber da mudança
operada em nós. Devemos dar-lhes relances de uma vida melhor, de uma vida
mais limpa e mais pura, sim, e de uma vida mais agradável. A tragédia é que elas
pensam que a nossa vida é miserável, infeliz e, na melhor das hipóteses,
enfadonha. E não devemos culpá-las por pensarem dessa maneira. Se como
grupo de pessoas parecemos infelizes, elas pensam que isso significa apenas que
renunciamos a todas as coisas e que o cristianismo, para usar as palavras de
Milton, é “escarnecer dos prazeres e viver dias laboriosos”. É porque não
mostramos a alegria do Senhor e a alegria da salvação que elas ficam com essa
falsa noção do cristianismo. Devemos condená-las mostrando que cristianismo é
vida de gozo, vida de felicidade, vida de paz. Usufruímos mais prazer aqui do
que elas jamais experimentaram, ou do que nós mesmos jamais experimentamos
quando vivíamos como aquelas pessoas. Façam brilhar sobre elas a luz do
evangelho.

O apóstolo vai mais adiante, no versículo 13, quando acrescenta: “Mas todas
estas coisas se manifestam, sendo condenadas pela luz”.

Ele quer dizer que quando uma coisa é exposta e condenada pela luz, ela se toma
visível e clara. Façam brilhar sobre ela a luz do evangelho, “porque tudo o que
se manifesta é luz” (VA), que se pode traduzir, “tudo o que toma as coisas claras
é luz”. Embora continuemos a manter conversação com os incrédulos, embora
mantenhamos contato social com eles, devemos desejar fazê-los sentir que lhes
falta algo tremendo. Por que os publicanos e pecadores se aproximavam
do Senhor Jesus Cristo? Ele era pureza absoluta, santidade absoluta e, contudo,
agia como um ímã sobre eles e os atraía a Si. Os fariseus os odiavam, os
denunciavam e se mantinham longe deles, porém quando os publicanos e as
meretrizes viam o Deus encarnado andando diante deles, aproximavam-se dEle.
Ah, existe algo atraente na santidade; faz-nos sentir muito indigos e impuros
quando a vemos; faz-nos ver as coisas que fazemos como a denúncia negativa
nunca o faz nem pode fazer; mostra-nos a nossa necessidade, e ao mesmo tempo
dá-nos um vislumbre de algo que é tão diferente do nosso passado, tão
superior, muito mais maravilhoso do que qualquer coisa que conhecemos.
A santidade deve ser atraente, deve ser afável, deve ser cativante ,deve ser
fascinante, deve aproximar as pessoas. É esse o sentido de condenar. Devemos
condenar as obras infrutuosas das trevas sendo luz, sendo o que somos, em nossa
conversação, em nosso falar, em nossa exposição ou manifestação do evangelho.

Vocês verão que às vezes os não cristãos deliberadamente tentam importuná-los;


farão coisas que os chocam; farão tudo o que puderem para fazer com que vocês
os denunciem. Resistam à tentação! Não deixem que eles tenham sucesso!
Nunca sejam meramente negativos e acusatórios. Mas repreendam-nos
mostrando-lhes algo da luz do conhecimento da glória de Deus na face de Jesus
Cristo. Irradiam sobre eles a luz do evangelho. Lembrem-se de que os cristãos
são a luz do mundo; nesta luz eles se verão e verão o que eles estão
fazendo como nunca o viram antes, e desejarão ficar limpos, desejarão
ser lavados, ser purificados, tornar-se santos, como vocês são santos, porém,
acima de tudo, como Cristo é santo. Não sejam participantes com eles, não
tenham comunhão com o que eles estão fazendo, condenem-nos como “luz no
Senhor”.

O NÉSCIO E O SÁBIO

“Portanto, vede prudentemente como andais, não como néscios, mas como
sábios. Remindo o tempo; porquanto os dias são maus. Pelo que não sejais
insensatos, mas entendei qual seja a vontade do Senhor.” -Efésios 5:15-17

Em vez de considerarmos a seção toda, veremos primeiro o versículo 15:


“Portanto, vede prudentemente como andais, não como néscios, mas como
sábios”. O apóstolo nos fizera lembrar no versículo 14 o que devemos ser e
como devemos conduzir-nos geralmente como cristãos, e agora passa a mostrar-
nos como devemos fazer tudo isso e, na verdade, a importância de fazer isso
tudo, e na prática dos fatos. Esse “portanto” é a conexão deste versículo: esta
palavra “portanto” lembra-nos imediatamente que se liga ao que vinha antes, e
creio que se liga diretamente ao versículo 14. Não somente isso, porém; liga-
se, como venho dizendo, a todo o parágrafo em que ele trata deste assunto, a luz.

Que nos diz ele então? Bem, aí está uma exortação: “portanto, vede”, estejam
atentos, sejam cautelosos, sejam cuidadosos. Isso, diz ele, é tremendamente
importante. Portanto, vejam bem isso, assegurem-se de que o farão, cuidado com
esta questão. Dêem toda a sua atenção, sem distrair-se. É uma exortação notável;
é uma ordem, arrasta-nos, por assim dizer. Ele está se dirigindo a nós e nos
pedindo que o ouçamos com toda a diligência. “Portanto, vede.” Que nos diz ele
então? A que devemos dar atenção? Em que aspecto temos que ter cuidado?
Bem, diz ele, quanto a este andar de vocês, vejam que andem prudentemente.
Esta palavra “andar” é, por certo, uma palavra característica do Novo
Testamento. Refere-se à generalidade da nossa conduta, do nosso
comportamento, do nosso procedimento. E um termo inclusivo, e há muitos
termos como esse no Novo Testamento. Vocês verão um deles, por exemplo, na
próxima Epístola, na Epístola aos Filipenses, capítulo 1, versículo 27, onde
lemos na Versão Autorizada, “Somente seja a vossa conversação como convém
ao evangelho de Cristo”. “A nossa conversação” veio a ter atualmente
uma conotação diferente para nós. Pensamos em conversação como uma questão
de falar, todavia, como andar, conversação é um termo

inclusive» que abrange a totalidade da conduta e da atividade da pessoa, a


totalidade da vida de uma pessoa entre outra pessoas. Trata-se do nosso andar.

Portanto, o que interessa ao apóstolo é que vivamos de tal maneira que estejamos
sempre agindo como a luz, tanto em nossa conduta e comportamento pessoal
como em nosso efeito sobre os outros. Mas aí surge a questão: como havemos de
fazê-lo? Como havemos de andar neste mundo da maneira que o Senhor Jesus
Cristo andou? “Como ele é, assim somos nós neste mundo” - devemos seguir os
Seus passos. É isso que somos chamados a fazer. Somos chamados
para funcionar, a nosso modo, como Ele o fez quando estava neste
mundo temporâneo. Como podemos fazer isso? É com isso que o apóstolo está
preocupado e é disso que ele trata particularmente nesta exortação. Eis a
primeira coisa que ele nos diz: fazemo-lo não sendo néscios, não sendo tolos,
mas sendo sábios e manifestando e exercendo a sabedoria.

Parece-me que o apóstolo divide o que tem para dizer em três partes principais.

Primeira, que é a sabedoria? Não poderemos proceder como sábios, se não


soubermos o que é a sabedoria. Segunda, ele nos diz que o cristão pode ser
tratado como sábio. “Andais”, diz ele, “não como néscios, mas como sábios;
porque sois sábios, atuai como sábios”. E, terceira, ele nos diz como se
manifesta esta sabedoria que há no cristão; ou, se vocês preferirem, vemos os
resultados a que esta sabedoria leva.

Comecemos, então, com esta primeira questão, que é obviamente a chave de


tudo mais. Que é esta sabedoria acerca da qual ele está falando? Ora, todos os
que estão familiarizados com a Bíblia sabem que esta é uma grande palavra na
Bíblia toda, tanto no Velho Testamento como no Novo. O Velho Testamento tem
muito a dizer sobre esta sabedoria. Na verdade, chamamos de fato alguns livros
do Velho Testamento de Literatura da Sabedoria, ou de Livros de
Sabedoria. Aquelas grandes declarações morais, aquelas afirmações,
aqueles livros de instruções são a Literatura da Sabedoria. E, naturalmente,
é uma parte essencial do ensino bíblico. O que a Bíblia diz acerca do homem que
não é filho de Deus, e que não é cristão, é que, em última instância, ele é néscio,
insensato. “Disse o néscio no seu coração: não há Deus” (Salmo 14:1). “Não
sejais como a mula”, diz outro salmo (32:9). Não seja como a mula, você é filho
de Deus. E vocês verão isso no transcurso de todo o Velho Testamento, esta
constante referência à sabedoria. A vida cristã é a única vida sã, segundo a
Bíblia. Todo o problema com o incrédulo, o não cristão, é que ele é néscio.
Faltam--Ihe sabedoria e entendimento.

Vemos exatamente a mesma coisa em toda parte do Novo Testamento - por


exemplo, naquele grande parágrafo de 1 Coríntios, capítulo 1, onde Paulo se
gloria nesta sabedoria. Como vimos o apóstolo dizendo em grande extensão
desta parte prática de Efésios, toda a dificuldade com os incrédulos é que eles
têm o seu entendimento entenebrecido. Estão alienados da vida de Deus pela
ignorância que há neles. É sempre a mesma coisa. Portanto, estamos
examinando algo que é uma palavra chave na Bíblia inteira, e há um sentido em
que não podemos entender a grande mensagem e exortação da Bíblia, a menos
que tenhamos claro entendimento de toda esta questão da sabedoria.

Que é ela, então? Pois bem, de maneira sumamente interessante, o apóstolo nos
apresenta o assunto neste mesmo contexto. O próprio modo como o faz dá-nos
uma indicação quanto a como se deve definir a sabedoria. No versículo 14 ele já
nos dissera que nós temos conhecimento, que temos luz - “Desperta, tu que
dormes, e levanta-te dentre os mortos, e Cristo te esclarecerá”. Ninguém poderá
ser cristão, se Cristo não brilhar sobre ele, e vimos que isto significa que Cristo
lhe dá este conhecimento, este entendimento. Assim pois, o cristão tem
conhecimento, tem luz. No entanto, aqui o apóstolo vai adiante e afirma que
devemos exercer e demonstrar sabedoria. Penso que, correta e legitimamente,
podemos inferir disso que sabedoria não é sinônimo de conhecimento e de luz. É
nisto que, por certo, chegamos à distinção mais vital. Sabedoria não é mero
conhecimento ou habilidade ou inteligência ou até mesmo gênio. Pode-se ter
todas estas, e ainda não ter sabedoria. Nem mesmo é bondade. Aí está uma coisa
que a Bíblia repete sempre. Não devemos pensar na sabedoria como sendo ela
apenas a posse de conhecimento. Não devemos pensar nela como significando
apenas que a pessoa tem grande habilidade, poderes, propensões e faculdades
naturais. O homem até pode ter alto nível de inteligência, a ponto de ser um
gênio e, todavia, ser falto de sabedoria.

Então, que é esta sabedoria, se não é sinônimo de inteligência e habilidade, e


nem mesmo de gênio e bondade? Bem, a grosso modo podemos dizê-lo assim: é
o poder e a capacidade de aplicar todas aquelas coisas. É a faculdade de fazer
uso da inteligência e do conhecimento e de relacionar estas capacidades com as
coisas práticas e comuns da vida diária. Aí está, como eu a vejo, a essência
desta palavra. Sabedoria, é claro, é muito semelhanate a julgamento, e também
estamos familiarizados com a diferença entre posse de conhecimento, e
julgamento. Não são a mesma coisa. Há pessoas que sabem muitíssimas coisas.
Têm memória maravilhosa e podem

lembrar todo tipo e espécie de fatos, mas são incapazes de exercer julgamento.
Conseqüentemente, não podem equipar o seu conhecimento, não conseguem
aplicá-lo, são incapazes de usá-lo para enfrentar problemas particulares. São
como discos de vitrola, podem repetir informações porém não as podem aplicar,
e daí dizerem delas: “Ah sim, ele é muito instruído, mas incapaz de julgar;
realmente lhe falta sabedoria”.

Pensem nisso em diferentes esferas, para verem a diferença. Vamos por um


momento à esfera das questões legais. Se vocês lerem as biografias dos homens
que se tomaram proeminentes no mundo da lei, verão que, muitas vezes, há
homens do tipo ou espécie do advogado brilhante mas que, elevado à tribuna de
magistrado, dá um juiz muito fraco. Li recentemente sobre um famoso
presidente do Supremo Tribunal de Justiça, a quem se aplica o caso. Por
quê? Porque ele continuou trabalhando como advogado quando passou a exercer
a magistratura, e aquele que toma o lado de uma das partes e age como
advogado, é péssimo juiz. Ele não pôde deixar de ser advogado e por isso foi um
mau juiz. Ora, isso é falta de sabedoria, e de critério para julgar. Vocês vêem que
estas coisas são inteiramente diversas. Ou vejam a questão na área dos negócios.
Há um tipo de homem que dá um excelente executivo nos negócios, porém que
nem sempre dá um bom gerente ou presidente. Há homens que parecem
ter nascido para ser secretários, não para ser presidentes; homens que, quando
postos numa posição em que têm de assumir responsabilidade e tomar decisões,
não conseguem. Essa é a diferença entre conhecimento e inteligência, por um
lado, e sabedoria, por outro. Há nisto algo extra, uma qualidade adicional. É a
capacidade de tomar todo o conhecimento e habilidade que se tem, e aplicá-lo.

Ou ainda, nos domínios da música, há homens que são muito bons técnicos -
bons executantes. Bons executantes no sentido de que são corretos, jamais
cometem erros, e assim por diante. Entretanto, não podem ser bons musicistas.
Não podem ser bons críticos. Falta-lhes a facilidade de chegar realmente à alma
daquilo que estão tocando. São mecânicos, por assim dizer, são mecanicamente
corretos, o que é bom e essencial, e podem ter a destreza e a agilidade
necessárias. Ah, sim, mas lhes falta aquele fator final, aquele fator que, em
última instância, pesa. É o que faz a diferença entre eles e o homem que parece
ter esta amplitude de visão, esta profundidade de entendimento, esta capacidade
de tomar tudo o que ele é e tudo o que ele sabe e tem, e levá-lo à execução numa
dada situação.

Ora, vocês podem reconhecer logo que isso é tremendamente importante em


todas as áreas e em todos os departamentos da vida, mas

é supremamente importante quanto ao cristão. Daí a exortação do apóstolo:


“Vede prudentemente como andais, não como néscios, mas como sábios”.

Vamos um pouco mais adiante. Para isso somos chamados. Não podemos portar-
nos como luzes, não podemos ser verdadeiros representantes do Senhor Jesus
Cristo se não possuímos e não manifestamos esta sabedoria. Assim, devemos ir
além da minha exposição geral e passar a uma análise e definição mais
particular.

Tomemos o próprio contraste feito pelo apóstolo. Vocês vêem isso em seu
método. Ele lança uma negativa. Quero que vocês vivam como sábios, diz ele.
Todavia vocês notam que primeiro ele desliza para o seu elemento negativo,
“não como néscios”. Ele espera que o analisemos. Como devo saber o que é um
sábio? Como devo portar-me como sábio? Não seja néscio, diz ele, não se porte
como néscio, como insensato. Assim é que posso chegar a uma definição
da sabedoria contrastando-a com a insensatez. Quais as características
do homem descrito na Bíblia como “néscio”, como uma pessoa tola, insensata,
não sábia? Aqui vão algumas das suas características. São coisas que temos de
combater constantemente, para podermos comportar-nos como pessoas sábias.

A primeira característica da pessoa néscia é que é geralmente governada pelos


sentimentos. Tudo é avaliado em termos dos sentimentos, e não da razão. Os
néscios não conseguem apresentar razões. Permitam-me usar uma ilustração
deveras óbvia. E o tipo de pessoa que vota num membro do Parlamento somente
porque se impressiona com a sua bela aparência ou algo semelhante. Nenhum
motivo racional, mas parece um belo homem, vote-se nele. Gente
governada pelos sentimentos!

No entanto, vocês vêem que isso se aplica à vida. São muitos os que se deixam
governar inteiramente por seus sentimentos, negando-se a fazer uso da sua mente
e do seu cérebro. Mesmo no culto, o que eles querem é felicidade e prazer.
Querem passar uma boa hora, como dizem, querem agitação, querem exercitar-
se cantando hinos, cânticos e “corinhos”, que ficam repetindo, repetindo, até
ficarem num estado de intoxicação mental. Não querem que os façam pensar. A
vida já é dura, dizem eles, sem se ter que lutar com este pensamento e
aquele; assim, tenhamos mais cânticos e menos pregação, assim por
diante. Sentimentos! Somente agitação e prazer - essa é a pessoa
néscia, insensata. Vocês vêem a relevância disto tudo para as condições da Igreja
atual? Não importa quanto se encham as suas igrejas, sejam quais forem os seus
países. O que eu quero saber é, que acontece quando a multidão se reúne ali?
Como se passa o tempo? E,

lamentavelmente, vêem-se e ouvem-se cada vez mais música e entretenimentos,


e cada vez menos ensino, doutrina e real entendimento. Essa é uma das
características da insensatez.

Outra sinal do néscio, do insensato, é que ele é sempre governado pelo desejo.
Tenho que ter o que quero, e o que quero é justo. Se aquilo me atrai, é o que me
fará realmente feliz, e tenho que tê-lo. A razão não entra em cena, nem o
entendimento; nada, senão o desejo. Cada um de vocês pode desenvolver isso.
Um dos grandes problemas do mundo atual é que a sociedade está sendo
governada pelo desejo, o que explica o fracasso do casamento e de tudo o mais.
As pessoas são dirigidas e determinadas unicamente pelos desejos inatos que há
em nós como conseqüência da Queda e do pecado. Pois bem, o néscio é aquele
que se deixa governar por esses desejos, em detrimento de tudo o mais.

Vejamo-lo também de maneira ligeiramente diferente. A pessoa néscia,


insensata, sempre age e é governada por impulsos e instintos e, naturalmente, em
geral se orgulha disso. “Não sou dos que lêem bastante, pensam e meditam, você
sabe. Eu pego uma idéia e a ponha em ação.” Impulso! Instinto! E acham isso
maravilhoso. Lembro-me de haver lido um livro cujo autor defende isso. Para
ele, essa é a solução para todos os problemas da vida. O nosso problema, diz
ele, é que temos vivido demais na esfera do nosso cérebro, da parte mais elevada
da nossa mente, da nossa inteligência e do nosso entendimento, em vez de
vivermos a um nível mais instintivo. E ele continua e conta que escreveu um
livro desse modo - deliberadamente impediu a intromissão do seu controle
superior e das inibições, como ele diz, e simplesmente escreveu o que exercia
atração sobre ele. Impulso! Instintivo! Contudo, há pessoas cuja vida é em geral
governada dessa maneira. Nunca se sabe o que elas vão fazer no momento
seguinte. Virá uma idéia, e elas agirão pelo impulso.

Há também os que obedecem a algum instinto que têm dentro de si. Não podem
explicá-lo, e naturalmente, às vezes o elevam à posição de virtude quase
suprema. Há pessoas que realmente acham que os julgamentos e decisões
instintivos são melhores do que os que se baseiam em considerações racionais e
no entendimento. Sei o que elas querem dizer, até certo ponto. Tenho ouvido
homens desse tipo dizerem que quando precisam fazer uma nomeação realmente
importante em seu negócio ou em seu escritório, sempre confiam no julgamento
instintivo das suas esposas. Bem, pode haver algo nisso! Mas o que estou
dizendo é que se vocês elevarem isso à condição de princípio, certamente estarão
fazendo uma coisa perigosa, sob todos os pontos de vista e, sem dúvida,
contrária ao ensino das Escrituras.

Agora devemos subir um pouco a escala em nossa definição do néscio, da


insensatez. Com muita freqüência, o néscio é governado pelo zelo. Neste ponto a
questão fica um pouco mais sutil, não fica? Nós gostamos das pessoas zelosas, e
creio que está certo. Todos nós devemos ser zelosos. Entretanto, se formos
governados pelo zelo, haverá grave perigo. O zelo e a sinceridade são
maravilhosos, porém nunca foram destinados a estar no comando, e, se lhe
derem o comando, é certo que sobrevirá o desastre. Mas existem muitos que se
deixam governar pelo seu zelo. Eles vêem algo e querem fazê-lo, e assim se
precipitam, sem tomar em consideração mais nada. Presumem que, devido serem
zelosos, só podem estar certos. Não, vocês podem estar sinceramente errados.
Podem estar sendo zelosos numa causa falsa. Dizemos que “o fogo é um bom
escravo, mas um mau senhor”, e a mesma coisa é verdade sobre o zelo. O zelo
pode levar ao fanatismo, à crueldade, à perseguição. O zelo tem sido uma das
mais devastadoras influências ao longo da história da Igreja Cristã. Assim é o
zelo, digo eu, que não esteja sob controle, e que não seja governado e guiado
pela sabedoria e pelo entendimento. Mas o néscio confia em seu zelo. Ele é
direito, é sincero. Se é sincero, só pode ser direito. Quantas vezes ouvimos isso
neste século! Não importa muito aquilo em que o homem crê, contanto que seja
sincero. E assim o néscio, o insensato, precipita-se loucamente para cair em
dificuldade porque exalta e eleva o zelo à posição suprema.

Eis a que tudo isso chega: a pessoa insensata não pensa adequadamente. Não
pensa direito num assunto; em particular não pensa adiante. Só está preocupada
com o momento particular. Essa é a essência do insensato, não é? Eis aí algo que
o confronta. Ele gosta disso, sente-se atraído. Eu quero isso, diz ele, e vou tê-lo.
Não pensa no que vem depois. É apenas este momento imediato, este segundo
em que vive. Neste ponto estamos tocando num assunto que poderia
ser discutido extensamente porque é uma das filosofias populares no momento.
É o existencialismo; este momento é tudo o que importa, este momento
imediato.

Naturalmente há um sentido em que isso é certo e verdadeiro. Há certos


momentos de decisão final e definitiva, um momento de conversão, e assim por
diante. Contudo, se você elevar o momento presente à categoria de um princípio
determinante universal, ele se tomará assoladoramente perigoso, porque eu não
vivo somente aquele momento. Viverei o seguinte, o seguinte, o seguinte; a
minha decisão agora tem suporte nos momentos seguintes, e tem relação com
eles. Se essa decisão lhes fizer mal, é errada agora, embora neste momento
me pareça certa. Mas o néscio nunca pensa no que vem depois. Preocupa-

-se exclusivamente com o imediato. Nada mais lhe importa.

Podemos expressar isto de forma ligeiramente diversa. O néscio não considera as


conseqüências. Sabedoria é você olhar tudo o que cerca o seu interesse,
considerar não somente os resultados imediatos, mas também os remotos, as
conseqüências possíveis. O néscio não tem paciência para nada disso. O
momento é este, a vida é esta. Ah, diz ele, se você ficar olhando para as
conseqüências possíveis, você nunca fará absolutamente nada, e assim ele vive
para o momento. Que tragédias há no mundo atual, que sofrimento, porque as
pessoas vivem para este momento existencial e se recusam a considerar o que a
sua real consciência e as relíquias residuais de sabedoria que há nelas
as concitam a fazerem, com relação às conseqüências.

Já antecipei a próxima negativa, que é esta - e vocês vêem que elas estão ligadas
umas às outras - o extraordinário é que há uma espécie de coerência no néscio.
Tudo o que ele faz é coeso. Visto que ele não olha adiante e, visto que não
considera as conseqüências, está sempre impaciente. Essa é uma grande
característica de todo aquele a quem falta sabedoria. Essa é toda a dificuldade
com a criança pequena. Esta quer agir imediatamente. Ela é impaciente. As
vezes você tenta ensiná-la daquela maneira, retendo algo dela, mas ela não
consegue controlar-se, quer aquilo imediatamente. A falta de sabedoria
é característica da criança. Assim, quando vocês vêem um adulto procedendo
desse modo, vocês dizem: que sujeito insensato! Impaciente ! Vocês vêem que se
pode ser impaciente numa boa causa, como também numa causa má. Um homem
pode ver certa meta desejável, porém depois, porque lhe falta sabedoria, ele
investe (como dizemos) como um touro na porteira. Ele não espera, não vê que o
jeito certo de chegar a ela é ir com cuidado e certificar-se do que está fazendo.
Ele se lança loucamente e causa mais dano e mal à sua própria causa do que o
homem que é ativo e militante opositor da sua causa. Por quê? Simplesmente
porque é impaciente, e não pode esperar o tempo e a hora certos e apropriados
para que essas coisas aconteçam.

De muitas maneiras, o real problema com a pessoa insensata, néscia, é que ela só
vê uma coisa de cada vez. E essa monopoliza a sua atenção. E cego para todas as
outras coisas. Há homens que vêem somente uma doutrina, esquecendo-se de
tudo o mais. As outras estão lá, nada obstante. Mas, devido à concentração num
só elemento, o conjunto fica desequilibrado. Este é o ponto final. Sempre
falta equilíbrio ao néscio. Ele é vesgo e, portanto, sempre há fealdade
na insensatez, na necedade. Agora pois, diz o apóstolo, “Vede prudentemente
como andais, não como néscios...”.

Então, que é isso positivamente? Bem, mesmo aqui não posso

deixar de lado a argumentação negativa. Porque, se eu dissesse que o sábio é


simplesmente o homem não culpado de todas aquelas coisas, não estaria dizendo
a verdade sobre a sabedoria. Assim preciso mencionar mais algumas negativas.
Vejamos a questão assim: que é sabedoria? Que é o sábio? Bem, deixem-me
dizer que a sabedoria não é mero fato. Vocês vêem a importância desta negativa.
Ela não é meramente o que denominamos sabedoria do mundo. A contenda
é sempre entre a sabedoria e a sabedoria do mundo. Não é mera discrição. Para
mim isso é tremendamente importante. Sabedoria não significa meramente
espírito cauteloso. Há muitos que são muito cautelosos, prudentes e cuidadosos,
porém não são sábios. Muitas vezes dão a aparência de que são, e muitas vezes
se lhes dá crédito de sábios. Vocês conhecem o tipo de homem que se assenta
quieto e fala muito pouco. A conversação prossegue animada. Debatem-se
e discutem-se questões, pedem-se opiniões e estas são consideradas. O tal
homem está sentado e não diz nada, só fica olhando. Ele é tido como um homem
que pensa profundamente e que, portanto, não fala com muita prontidão. Pois
bem, esse tipo de coisa é muitas vezes identificado com a sabedoria, mas é um
erro total. Francis Bacon pôs isso nos termos certos, e certamente uma vez por
todas: “O silêncio é a virtude dos tolos”! E como estava certo! E por isso que
sigo avante com as minhas negativas. Assim, vocês não podem dizer que
um homem é sábio simplesmente porque não fala muito. Mas eu lhes digo como
saber se ele é sábio ou não. Ouçam o que ele diz quando fala, e verão a
diferença. O sábio tem contribuição para fazer, e a faz. Todavia aquele sujeito
obtuso não tem nenhuma contribuição para fazer! Não tem nada para dizer, mas,
em sua pompa, muitas vezes é considerado sábio. Não! Não! Falemos claro
sobre isso. A sabedoria não consiste em mero silêncio, nem mesmo na ausência
daquelas coisas sobre as quais estivemos falando e que estivemos
descrevendo. Não é sábio aquele sujeito cauteloso e cuidadoso que passa
tanto tempo tomando cuidado que não realiza coisa alguma. Não, isso não é
sabedoria.

Então, que é sabedoria? Examinemos a questão positivamente. Sábio é o homem


que sempre pensa. Não age baseado apenas no instinto ou no impulso ou no
desejo. Não, ele insiste em aplicar-se ao pensamento, à razão e à meditação. Mas
devo acrescentar algo a isso. Ele é um homem que examina completamente cada
proposição com que se defronta, ou cada situação a que ele é levado. É um
homem que primeiramente e acima de tudo dá atenção a toda evidência.
É diferente daquele juiz na tribuna que se torna advogado e toma lado no início
de uma causa. O sábio nega-se a fazer isso. Ele se contém e ouve

as provas de ambas as partes. Ele ouve a argumentação, atento a cada ângulo


imaginável, e o faz com grande paciência.

Às vezes penso que o sinal distintivo do sábio é que ele é sempre um bom
ouvinte. Lembrem-se de que ele não é, como eu já disse, um homem que não faz
outra coisa senão ouvir e de quem vocês podem dizer: “O silêncio é a virtude
dos tolos”. Todavia, o sábio é extremamente bom ouvinte. Por quê? Bem, ele
reúne os seus fatos, junta os dados. Diz ele: não posso chegar a um julgamento
sem ter diante de mim todos os dados, e assim é muito paciente. Não se
precipita. Não entra em ação imediatamente. Examina tudo o que há em tomo
do ponto em questão, havendo reunido todas as evidências, e então passa a
inquirir, a ponderar e a avaliar tudo. E isso leva algum tempo. Mas este homem
faz isso, insiste em fazê-lo. Este é também um dos sinais distintivos da
sabedoria. Pode tomar muito tempo ou pouco - depende do homem, da sua
experiência e das circunstâncias - porém ele é um homem que nunca age sem ter
feito exame da situação toda.

Podemos ilustrar tudo isso com a história da Igreja. Quantas vezes foi
introduzido o erro na Igreja independentemente do que acontece no mundo!
Alguns homens de repente ficam com a cabeça tomada por uma só idéia e, às
custas de tudo mais, são arrastados por ela. Não, não; há algo de completo, de
global, há equilíbrio, há o que o apóstolo chama “a proporção da fé” (Romanos
12:6, VA e ARA). Todas essas coisas devem ser mantidas como um todo, e o
homem que tem sabedoria o faz. Ele tem doutrina e prática. Não só doutrina, não
só prática, mas ambas, e sempre juntas. É a mesma coisa em tudo. Portanto, o
sábio é alguém que se assenta e avalia as evidências.

Depois, tendo avaliado as evidências, o sábio as relaciona com os princípios


fundamentais. Aí está o segredo da sabedoria. Vocês vêem, mesmo tendo tomado
tempo, tendo sido paciente, tendo reunido os fatos e verificado todos os
documentos; tendo examinado tudo em tomo do assunto, tendo-o peneirado,
analisado, comparado e colocado nos seus respectivos departamentos, ainda
assim ele não chega à sua decisão por si e imediatamente. Não, ele toma tudo
isso e o examina à luz de certos princípios fundamentais e eternos. Vocês vêem
que ele não é nada subjetivo, é sempre objetivo. Essa é toda a essência
da sabedoria. O segredo da sabedoria é que o homem mantém o seu ser interior
preso - o que ele é por natureza e por instinto - e o tempo todo relaciona o que
encontra e descobre com as grandes certezas fundamentais. São estas as coisas
que são axiomáticas e acerca das quais não há discussão. Ele relaciona tudo com
essas coisas e, à luz destes princípios, chega ao veredito e o promulga.

Essa é a essência da sabedoria. O apóstolo diz tudo isso aqui,


naturalmente: “Vede prudentemente como andais, não como néscios, mas como
sábios, remindo o tempo; porquanto os dias são maus. Pelo que não sejais
insensatos, mas entendei qual seja a vontade do Senhor”. Esse é o definitivo. Há
os princípios eternos, tudo o que conscientemente sei e que descobri, agora tem
que ser colocado à luz desses princípios eternos. Noutras palavras, embora eu
tenha coligido os fatos tão cuidadosamente, e os tenha investigado etc., não
deixo que o meu temperamento ou capricho decida qual será o veredito.
Sujeitando os meus sentimentos, os meus desejos e tudo o mais, tomo
esta situação, esta coisa, esta condição, esta proposta que é colocada diante de
mim e a mantenho ali, à luz destes princípios eternos. E ouço o que eles têm para
dizer. Minha decisão, minha ação, a totalidade da minha vida é determinada por
isso, e somente por isso.

Agora, naturalmente, havendo chegado à minha decisão desse modo, e estando


seguro de mim mesmo, graças aos meus princípios, passo a pô-los em prática,
com entusiasmo, com zelo, com energia e com todo o vigor que Deus me deu.
Contudo, vocês vêem a diferença que há entre a sinceridade e o zelo como
servos assalariados, e não como senhores; como instrumentos para realizarem o
que é certo, em vez de determinarem o que é certo. Desta maneira, o homem
é governado, não pelas emoções exacerbadas, nem pelo zelo ou entusiasmo ou
impaciência, mas sempre pelo seu conhecimento da verdade e pelo seu desejo de
servir a verdade de Deus como está em Cristo Jesus, nosso Senhor, e de ser
governado por essa verdade.

Devemos examinar-nos à luz disto: a nossa vida teológica é governada pela


sabedoria? A nossa vida e o nosso modo de viver diário na prática são
governados por esta sabedoria? É assim que vocês agem em seus contatos com
os não cristãos? Estou pensando nos parentes que talvez vocês tenham, parentes
não cristãos, e que vocês tanto desejam que venham a ser cristãos. Vocês se
precipitam, causando talvez um dano irrecuperável? Ou vocês abordam o
problema com sabedoria? Vocês param para pensar? O zelo e o entusiasmo
mal conduzidos são responsáveis por dolorosos estragos. O cristão deve ser
sábio. O cristão sábio conquista almas. Sim, é o sábio que o faz. O outro pode
obter resultados imediatos, fulgurantes, espantosos, porém não duram. Busquem
sabedoria, busquem entendimento e, como tenho dito, nos quefazeres mais
comuns da vida, numa cidade como Londres, no mundo como este é hoje,
quando as coisas nos defrontam de todos os lados e direções, vocês estão
vivendo sabiamente, ou estão sendo governados pelo impulso, pelo instinto, pelo
desejo? Todas as suas ações, todos os seus pensamentos e tudo o que vocês são e
fazem sempre são postos em relação com os princípios eternos, com

a verdade de Deus, com a mensagem uma vez e para sempre entregue e confiada
aos santos? Vejam então, filhos da luz, vejam então que andem prudentemente,
não como néscios, mas como sábios; como homens que se tornaram sábios com
a sabedoria de Deus, como homens que possam dizer: “Temos a mente de
Cristo”.
ANDANDO PRUDENTEMENTE

“Portanto, vede prudentemente como andais, não como néscios, mas como
sábios, remindo o tempo; porquanto os dias são maus. Pelo que não sejais
insensatos, mas entendei qual seja a vontade do Senhor. ” - Efésios 5:15-
17

Estamos considerando o que é esta sabedoria, sobre a qual a Bíblia diz tanto.
Todavia, opinei que além dela o apóstolo diz outras duas coisas. A primeira é,
pois, a sabedoria propriamente dita, a segunda é a sua afirmação do que todos os
cristãos têm esta sabedoria, e a terceira, como se manifesta esta sabedoria.

Chegamos agora ao segundo ponto - a asserção feita pelo apóstolo de que todos
os cristãos são possuidores desta sabedoria. Notem como ele se expressa:
“Portanto, vede prudentemente como andais, não como néscios, mas como
sábios”, com o que ele quer dizer: vocês não têm por que portar-se como
néscios, porque são sábios. É precisamente em razão disso que ele pode dizer-
lhes negativamente que não lhes cabe comportar-se ou andar como pessoas
néscias ou não sábias.

A Bíblia, vocês vêem, divide a humanidade toda em dois grupos. Ela tem muitos
e diferentes modos de descrevê-los, mas todos dão na mesma - cristão e não
cristão, pertencente a Cristo, pertencente ao mundo. Sim, mas esta outro
distinção é igualmente verdadeira. Sábio, não sábio. Vocês o têm completo na
famosa parábola do fim do Sermão do Monte - o sábio que construiu a sua casa
sobre a rocha, e o outro que a construiu sobre a areia, o néscio. As virgens
sábias, as virgens néscias. Essa divisão é fundamental. Vocês a
encontram precisamente da mesma maneira no Velho Testamento. Todos
os patriarcas e profetas eram sábios; às vezes eram até chamados “videntes” por
essa razão. Portanto, isso é algo inteiramente básico para o nosso entendimento
da vida cristã. O apelo do apóstolo ao cristão é sempre em termos do fato de que
este é sábio, de haver-se tomado sábio em distinção do outro homem.

Ora, esta é uma afirmação espantosa, e o apóstolo nunca cessa de regozijar-se


nela. Vocês recordam como, no capítulo primeiro da Primeira Epístola aos
Coríntios, ele abora esta idéia e exulta nela. “Os gregos buscam sabedoria”, a
grande característica dos filósofos é que
eles estão sempre buscando sabedoria, sempre buscando o conhecimento e o
entendimento culminantes. A tarefa da filosofia é tentar descobrir esta sabedoria,
e os gregos passavam o tempo tentando achá-la, sem sucesso. Ela sempre se lhes
escapava, apesar da sua genial capacidade. E sempre tem sido assim, daquele
tempo em diante; o mundo sempre anda à caça da sabedoria.

Toda a cultura do mundo, assim chamada, preocupa-se com isso, toda a


inteligente fala e produção de livros por não cristãos inteligentes e instruídos v É
isso que todos eles estão fazendo, estão à procura desta sabedoria. E evidente
que é certo que ela seja procurada, porque todo homem que pensa, logo pode ver
que há algo radicalmente errado neste mundo. Ele quer ver o que é errado e
como pode corrigi-lo. Essa é a busca de sabedoria, e o extraordinário é que o
mundo, com toda a sua habilidade e esperteza, não a pode achar. O mundo a
busca hoje tão ativamente como sempre. As pessoas continuam lendo os
velhos filósofos gregos, estão até tentando ir além deles e edifcar sobre eles, e
promover os seus próprios sistemas. Até na filosofia existem modas. Nos
recentes anos os filósofos têm continuado a tentar descobrir o significado da
linguagem para que esta seja usada corretamente. Esta grande busca de sabedoria
continua sendo feita e, contudo, o apóstolo nos lembra aqui que o que o mundo,
com todo o seu genial brilhantismo não pode conseguir, e não pode ter bom êxito
em fazer, já é possessão do cristão. O cristão é sábio. Ele encontrou a sabedoria
que o mundo procura. O cristão não a está procurando mais, já a encontrou - ela
veio a ele.

Leiam os dois primeiros capítulos da Primeira Epístola aos Coríntios, e a


encontrarão. Os judeus exigem sinal, os gregos buscam sabedoria, nós pregamos
a Cristo crucificado. Porquê? Porque Paulo diz que Ele é a sabedoria de Deus e o
poder de Deus. “Mas vós sois dele”, diz ainda Paulo, “em Jesus Cristo, o qual
para nós foi feito por Deus sabedoria.” Sabedoria! Nós temos a sabedoria, nós a
temos em Cristo. Deus colocou esta sabedoria suprema em Seu Filho. Esta é,
pois, a tremenda afirmação. Pergunto se, como cristãos, no sentido verdadeiro,
temos esta sabedoria suprema. Temos o conhecimento e o entendimento sobre a
vida e todas as suas circunstâncias subordinadas que o mundo tenta em vão
descobrir. O que o mundo, com toda a sua sabedoria, não conseguiu fazer, já
aconteceu com o cristão.

Agora focalizamos isso, por um momento apenas. Como foi que aconteceu?
Bem, aconteceu porque os seus olhos foram abertos para essa sabedoria suprema
que está no Senhor Jesus Cristo. Como Paulo o expressa no capítulo dois da
Epístola aos Colossenses: “Em quem estão escondidos todos os tesouros da
sabedoria e do conhecimento”

(versículo 3, VA; cf. ARA). Tudo está em Cristo. A resposta aos problemas do
mundo estão no Senhor Jesus Cristo. Essa é outra afirmação estonteante, não é?
Mas é a afirmação que fazemos como cristãos. Não há problema que confronte o
indivíduo ou a sociedade em geral hoje que não tenha resposta em Jesus Cristo.
Tudo! Não hesito em asseverar isso. Diz o apóstolo que todos, todos os
tesouros da sabedoria e do conhecimento estão ocultos nEle. Está tudo ali. E se
os homens e as mulheres tão-somente O conhecessem, seriam possuidores dessa
sabedoria.

Ser cristão significa, então, que vocês estão nessa posição. O cristão é o homem
cujos olhos foram abertos para a verdade, para a sabedoria como esta se acha no
Senhor Jesus Cristo. O cristão passou a ver estes grandes princípios que
governam a totalidade do pensamento e da vida. Gostem vocês ou não, o
cristianismo é a única filosofia completa. Não é uma filosofia humana; Paulo
nega que o seja em Colossenses, capítulo 2, bem como em 1 Coríntios, capitulo
2. Não é a sabedoria deste mundo, porém é sabedoria, nada menos que
sabedoria. Nosso dever como povo cristão é capacitar-nos disso. É um perfeito e
completo sistema de pensamento e de entendimento. Prestaremos um grande
desserviço à causa cristã se não captarmos isto e se vivermos somente na esfera
de algum pequeno e confortável sentimento. O que se espera de nós é que demos
uma razão para a esperança que há em nós. Se havemos de funcionar como
luz, compete-nos mostrar que em Cristo estão toda a sabedoria e todo
o conhecimento de que necessitamos. O cristão é um homem cujos olhos foram
abertos para isso, e ele vê estes grandes princípios eternos e fundamentais
relacionados com a totalidade da vida e com a totalidade do cosmos, com a
totalidade da história - relacionados com todas as coisas.

Há outra maneira pela qual esta sabedoria chega a ele. Ele tem em si um novo
princípio de vida. Ora, isso é tremendamente importante. Não é apenas que os
seus olhos foram abertos para aquela sabedoria objetiva que há fora dele em
Cristo. Não, há ao mesmo tempo um novo princípio de vida. E vocês vêem como
isso é importante. Fizemos uma análise da pessoa néscia, não sábia, e vimos que
ela é néscia porque é uma criatura de certos impulsos e instintos que há dentro
dela. Todos nós os temos em nós, estes ímpetos e compulsões, e eles são mais
fortes que a nossa vontade e que o nosso entendimento natural. É por isso que,
como estive indicando, homens que podem ser muito instruídos e
reconhecidamente capazes, podem ser néscios consumados em sua vida e em sua
prática por causa dessas outras forças. Assim para tomar-me verdadeiramente
sábio, preciso não somente do conheci-

mento, da sabedoria objetiva que ali está, preciso de algo que opere dentro de
mim, e que aí está em Cristo, a nova vida, novo poder e novo princípio. Somos
participantes da natureza divina. Há agora em nós um princípio que está
operando na direção da verdade, da sabedoria e do agrado a Deus, e esse
princípio mantém dominadas as outras forças e energias que há em nós por
natureza e em conseqüência da Queda. É por isso que o apóstolo se dirige a nós
como sendo nós sábios. Não devemos pensar no cristão meramente como
alguém que mudou o seu ponto de vista. Ele fez isso, é claro, mas essa não é a
única coisa. Graças a Deus, há esta outra, a regeneração. O cristão tem mente
nova, nova capacidade, novo poder, um novo princípio de vida, e estes fatores
operam juntos, com o conhecimento que ele agora tem.

Em terceiro lugar, o Espírito Santo agora reside no cristão. Isso o Novo


Testamento ensina em toda parte. O cristão é alguém em quem habita o Espírito
Santo. “Não sabeis”, diz ainda Paulo a estes coríntios, “que o vosso corpo é o
templo do Espírito Santo, que habita em vós?” Visto que Ele está em nós, somos
ajudados nesta questão de sabedoria. Como posso dominar estas forças que estão
dentro de mim, esta impulsividade, esta tendência para agir pela intuição, pelos
sentimentos, etc.? Que posso fazer quanto a estas compulsões? O Espírito Santo
é a resposta. Escrevendo a Timóteo, que tendia a atentar demais para os seus
sentimentos e para o seu temperamento, em vez de aplicar esta sabedoria, diz o
apóstolo: “Deus não nos deu o espírito de temor, mas de fortaleza, e de amor, e
de moderação” (2 Timóteo 1:7). Disciplina - sabedoria, se vocês preferirem -
esse é o caráter do espírito que nos foi dado, diz ele. Não o espírito de temor.
Não, a característica do Espírito é que Ele dá poder, dá capacidade para manter
estas outras coisas sob controle. Ele incentiva o amor, que é essencial nestas
questões. Acima de tudo, há esta moderação, esta sabedoria, esta disciplina e
esta atitude ordeira.

Aí estão, pois, três razões, sem ir atrás de mais nada, pelas quais o cristão pode
ser considerado como sábio. Vocês vêem que ele é totalmente diferente do não
cristão. O não cristão é cego para a verdade. Não tem em si o princípio da nova
vida. Não é regenerado e o Espírito de Deus não habita nele. Que possibilidade
tem ele de ser sábio? Nenhuma. Ele é vítima de si próprio e do mundo em que
vive. Ele é néscio e nada pode fazer por si mesmo. Não é assim com o cristão,
porém. Tudo em tomo dele o separa, coloca-o noutro lado e numa categoria
diferente, e aí está ele, é um sábio. Esta é a espantosa afirmação do apóstolo.

Há algo deveras triste - não há? - no fato de que, como cristãos evangélicos,
demasiadas vezes damos a impressão de que ser cristão

significa passar muito tempo cantando cânticos e sendo animado, jovial e feliz;
contando breves contos e histórias, gracejando e fazendo rir as pessoas. Caros
amigos, nAquele que está em nós e em Quem nós estamos, estão ocultos todos
os tesouros da sabedoria e do conhecimento. E eu e você devemos mostrar isso.
Estaremos representando mal aCristo, se o não fizermos. A acusação que
constantemente fazem contra nós, evangélicos, e que não há nada em nós que
favoreça o intelecto, que somos anti-intelectuais e obscurantistas, que
enterramos a cabeça na areia, que não encaramos os problemas, não mostramos
esta sabedoria e este conhecimento. Vergonha para nós, se for verdade! O cristão
é sábio. É possuidor desta sabedoria suprema, e deve mostrá-la e torná-la
manifesta. Quando o fizer, estará clamando ao incrédulo: “Desperta, tu que
dormes, e levanta-te dentre os mortos, e Cristo te esclarecerá”.

Passemos à questão seguinte. Como se manifesta esta sabedoria que o cristão


possui agora? Aqui o apóstolo condescende com nosso fraqueza e divide o
assunto para nós. Eis a primeira coisa que ele nos diz - a característica
primordial do homem que é sábio neste sentido cristão é que ele anda
prudentemente. “Portanto, vede prudentemente como andais, não como néscios,
mas como sábios.” Que é que significa essa expressão? O termo significa de fato
“precisamente”, cuidadosamente, porque não se pode ser preciso sem ser
cuidadoso. Prudentemente - precisamente, cuidadosamente - que é que
estas palavras sugerem? Sugerem que a pessoa olha bem antes de saltar. Olha em
volta, examina tudo com cuidado, não sai correndo loucamente de maneira
precipitada ou impulsiva. Ele tem uma idéia, leu algo num livro e em seguida o
faz - nada disso! Ele olha, examina, inspeciona, é cuidadoso. É na verdade um
completo contraste com aquele néscio que nós analisamos extensamente para
podermos ver este assunto com clareza. Não desprezem as negativas; elas são
muito importantes. Éporque nos esquecemos das negativas que somos
como somos. Este sábio que anda prudentemente é exatamente o oposto
do indivíduo que se deixa governar unicamente por impulsos, instintos, desejos e
zelo estulto - o homem falto de sabedoria. Andar prudentemente significa andar
estritamente de acordo com uma regra. Ah, sim, o sábio sempre tem uma regra.
Já deixei entrever que ele sempre relaciona tudo com certos princípios
fundamentais. Ele sabe o que faz, sabe por que o faz, pode dar razões para o seu
proceder - essa é a essência da sabedoria.

O sábio compreende que tem que considerar muitas coisas antes de agir. Agora,
isso não é, como eu disse, a prudência ou cautela exagerada do homem que
nunca faz nada - “Quem observa o vento,

nunca semeará” (Eclesiastes 11:4). Não se trata disso. Simplesmente significa


que ele compreende logo que não é uma unidade isolada na vida, mas que ele
tem as suas relações com outros, que nenhum homem vive para si, nem morre
para si. Vocês sabem, a maioria do povo não pensa desse modo. Em geral as
pessoas pensam somente em si mesmas e fazem o que querem. Mas o sábio pára
e percebe que há outras pessoas que vão estar envolvidas no seu modo de viver e
no que ele faz. Eu não vivo para mim mesmo, e não posso fazê-lo.
Portanto, devo olhar ao redor e considerar estes outros fatores, que são
muitos. Para andar prudentemente, o cristão está se lembrando constantemente
de que é cristão. Deve lembrar-se disso todas as manhãs, quando se desperta,
todas as manhãs, quando sai de casa para o mundo. De igual modo, ele deve
compreender a condição dos outros. Se não pensarmos nos outros e em sua
situação, não agiremos como luz com relação a eles, não os despertaremos para
que saiam das trevas e da morte em que se acham, e não os traremos para a luz
de Cristo.

Não, andar prudentemente significa que você olha em volta, vê que existem
certos alçapões, e que se puser o pé neles, afundará. Você faz uma inspeção antes
de mover-se, procura ter uma visão geral, e só depois começa a andar. O
apóstolo, por certo, gosta muito da idéia toda, e fala a seu respeito em diferentes
Epístolas. Ouçam-no também em Colossenses, capítulo 4, versículo 6, onde ele
diz: “A vossa palavra seja sempre agradável, temperada com sal, para que saibais
como vos convém responder a cada um”. É isso que significa andar
prudentemente. Noutras palavras, temos que fazer avaliações, temos
que considerar estas outras pessoas. Devemos indagar: qual seria o efeito desta
minha ação sobre elas? Vocês vêem, existem muitas coisas que são legítimas
para o cristão, mas que ele não faz por causa do seu efeito sobre outros. O
apóstolo o expressa em 1 Coríntios desta maneira: “Digo, porém, a consciência,
não a tua, mas a do outro”; diz ele também: “Todas as coisas me são lícitas, mas
nem todas as coisas convêm”. Pois bem, o sábio está ciente disso. O outro diz:
“Bem, se isso é certo, eu tenho direito de fazê-lo; que mal há nisso?” - e o
faz. Ah, porém ele ofendeu o seu irmão mais fraco, por quem Cristo morreu, e
causou grande dano à igreja e aos de fora. Andar prudentemente significa
considerar como isso vai afetar os outros. Isso faz parte do exercício da
sabedoria.

Portanto, o cristão é alguém que deve exercer grande tato e grande paciência. Ele
vê a verdade com muita clareza, e o seu instinto é, naturalmente, fazer que todos
os outros a vejam. Não conhecemos isso? Preocupamo-nos com alguém e
tentamos explicar-lhe a verdade cristã. Para nós é tão simples e elementar, mas
essa outra pessoa não

pode vê-la, e você sente vontade de martelar-lhe os ouvidos para fazer com que
ela a veja, todavia, se você o fizer, é óbvio que ela nunca a verá. É aí que entram
a paciência e a sabedoria do cristão. O cristão deve dizer a si próprio: “Pois bem,
este homem é muito inteligente; por que não vê este ponto? Ah”, diz o cristão,
“sei por que ele não o vê; o deus deste mundo o cegou. Ele não consegue vê-lo.”
“Ora, o homem natural não compreende as coisas do Espírito de Deus, porque
lhe parecem loucura.” O cristão compreende isso. Por essa razão é cuidadoso
quanto à sua maneira de falar. Ele não bombardeia as pessoas, nem as caceteia;
não enfia a verdade pelas suas goelas. Não, ele é sábio.

O cristão precisa também considerar os diferentes tipos de pessoas. Ele sabe que
não são todas idênticas. Assim, ele varia a sua abordagem; não a sua mensagem,
mas a sua abordagem. O apóstolo Paulo nos diz que ele fazia isso. Diz ele: “Para
os que estão debaixo da lei, (fiz-me) como se estivera debaixo da lei. Para os que
estão sem lei, como se estivera sem lei. Aos circuncisos de um modo, aos
incircuncisos doutro. Fiz-me tudo para todos, para por todos os meios chegar a
salvar alguns” (cf. 1 Coríntios 9:20-22). Eu e vocês devemos agir assim também.
Há diferentes tipos de pessoas, ^com diferentes dons e habilidades. Estão em
situações diferentes. E nosso dever apresentar a verdade de tal maneira que ela
tenha algo para dizer a todos. Não somente a um tipo, e sim a todos. Se não o
fizermos, não estaremos andando prudentemente. Se dissermos: bem, o meu
método é este, e vou usá-lo sempre, é como procede o néscio. Ele não olha ao
redor, não considera. Não observa a situação. Não tem real e profundo
amor pelas almas. Ele só está preocupado consigo mesmo, com o que ele faz e
com o que lhe acontece - que tragédia!

Agora, é necessário que conheçamos estas coisas na Igreja, e todos que são
membros de igreja têm o dever de entendê-las. Se algo não o atrai, lembre-se de
que pode atrair outra pessoa, e é por isso que há estas constantes exortações a
que nos apoiemos uns aos outros. Precisamos crescer juntos. Estamos em
diferentes estágios. Se você não entende bem uma coisa, acredite que alguma
outra pessoa a entende, e procure chegar lá. E assim que nós crescemos na graça
e no conhecimento do nosso Senhor. Isso é sabedoria, é andar prudentemente.
Envolve tudo isto, este grande tato e paciência, esta capacidade de diagnosticar e
de entender, esta capacidade de apresentar a verdade.

Leiam Atos dos Apóstolos e verão tudo isso magnificamente nalguns daqueles
capítulos grandiosos e dramáticos. Leiam, por exemplo, o capítulo 26 e notem
como o apóstolo anda prudentemente. Aí está o apóstolo com o seu apelo ao rei
Agripa e à sua mulher, e a

Festo e à sua mulher. “Paulo, estendendo a mão em sua defesa, respondeu:


tenho-me por venturoso, ó rei Agripa, de que perante ti me haja hoje de defender
de todas as coisas de que sou acusado pelos judeus; mormente sabendo eu que
tens conhecimento de todos os costumes e questões que há entre os judeus; pelo
que te rogo que me ouças com paciência”. Que sabedoria magnífica! Que andar
prudente! Vocês vêem, se ele pode dizer alguma coisa favorável, ele a diz. Ele
está desejoso de conquistar para Cristo aquele homem; não o ataca. Não, ele o
encontra exatamente onde está, e parte desse ponto. Ele está tentando conquistar
pessoas para a verdade. Ele não diz: aqui eu fico! Você acaba dizendo isso
muitas vezes, como o fez Lutero, mas você não começa por aí- isso é sabedoria.
Todos nós precisamos desenvolver pessoalmente esse princípio em detalhe.

O traço essencial da sabedoria é que ela compreende que o conhecimento deve


ser aplicado, e que, se não for aplicado de maneira apropriada, provavelmente
fará mais mal que bem. O conhecimento teórico, o conhecimento acadêmico, em
si mesmo, pode ser completamente inútil. Há um tipo de homem que nega a sua
mensagem pelo seu método. O sábio tem coerência entre a mensagem e o
método. Ele está sempre aplicando a sua mensagem, ela transparece em tudo o
que ele faz. Essa é a essência da sabedoria. Esta é a primeira coisa que Paulo nos
diz: devemos andar prudentemente.

O segundo ponto nos diz por que devemos ser tão prudentes. Uma vez que o
cristão é sábio, tem uma visão correta da vida neste mundo, e do estado do
mundo. Ele redime o tempo, porque os dias são maus. Ninguém sabe disso,
exceto o cristão. Para o não cristão os dias são maravilhosos; nunca foram
melhores. Qual é a frase? “Nunca foi tão bom.” Os dias não são maus, não falta
trabalho, há muito dinheiro, há abundância de tudov Ah, mas o homem que tem
sabedoria afirma que os dias são maus. É unicamente a sabedoria de Deus que
habilita o homem a dizer isso. O mundo é maravilhoso, diz o outro homem.
Os dias são maus, diz o cristão. Isso, naturalmente, é perfeitamente exposto no
capítulo seguinte, no versículo 12. Dizele: “Não temos que lutar contra a carne e
o sangue, mas, sim, contra os principados, contra os potestades, contra os
príncipes das trevas deste século, contras as hostes espirituais da maldade, nos
lugares celestiais”. Vocês vêem, o que ele quer dizer é que este mundo é mau. Os
dias são maus, e não num sentido abstrato; ele quer dizer que este mundo é
pernicioso. Este mundo está sob o controle de poderes e forças e fatores hostis a
Deus e em ativa oposição a Deus. E isso que ele quer dizer.

Ele já tinha dito isso, é certo, logo no início do capítulo 2! “E vos vivificou,
estando vós mortos em ofensas e pecados, em que noutro

tempo andastes segundo o curso deste mundo, segundo o (governado pelo)


príncipe das potestades do ar, do espírito que agora opera nos filhos da
desobediência.” Os dias são maus. Pois bem, somente o cristão entende isso;
porém o cristão o entende imediatamente. Ele se dá conta de que, por trás do
homem e do que o homem faz, há este outro poder terrível, maligno, infernal,
que tenciona levar à ruína a gloriosa criação de Deus e tudo o que nela existe.
Esse poder é pernicioso, é ativamente mau. Se o homem não se der conta disso,
não terá possibilidade de andar prudentemente neste mundo. Não terá
possibilidade de viver como deve. Se alguém fizer objeção a isso e disser: “Bem,
não vejo assim, essa é uma idéia pessimista. Naturalmente, é típica da Bíblia, é o
velho puritanismo. Tudo negro e sombrio. Contudo o mundo não é assim. O
mundo é maravilhoso, é brilhante; tratemos de passar bons momentos,
principalmente na mocidade”. O homem que pensa dessa maneira nunca será luz
para ninguém. Nunca levará nenhuma pobre alma condenada a aperceber-se da
ira de Deus e do inferno, para onde ela se apressa.

Temos que entender que este mundo é a sede do conflito de dois extraordinários
poderes e forças, Deus e Seu Cristo, os Exércitos dos céus, o Espírito Santo, e,
do outro lado, o diabo e todos os seus poderes e emissários. Eu e vocês estamos
envolvidos nesse conflito. Os dias são maus. Devemos compreender isso com
relação a nós mesmos. Por isso o apóstolo nos dirá no próximo capítulo que
temos que revestir-nos de toda a armadura de Deus. Nenhuma outra coisa será
suficiente para nós. “Tomando sobretudo o escudo da fé, com o qual
podereis apagar todos os dardos inflamados do maligno.”
Não haveria ocasiões em que vocês sentem que isso é verdade? Vocês estariam
cientes do fato de que os dias são maus? Vocês com João Bunyan, consideram o
mundo como é, e sem Cristo, como uma Cidade de Destruição? Vocês enxergam
o poder infernal que está por trás das aparências? Acaso vocês não podem ver
isso quando passam os olhos em seus jornais populares todas as manhãs? Vocês
não vêem o mal que está por trás? Tudo se faz para fazer dinheiro - e eles
se entregam a tudo, filmes, sexo e tudo mais. É simplesmente uma questão de
fazer dinheiro. Eé este o seu poder maligno. Nada importa, os princípios não
importam. Ah, a vileza e o caráter pernicioso da vida neste mundo! E, vocês
vêem, o homem que anda prudentemente percebe isso e diz: “Tenho que ser
cauteloso. Devo ser cauteloso quanto ao que leio. Há muita literatura ao meu
redor, de vários gêneros e formas, que podem ferir a minha alma e embotar o
meu gosto, pôr abaixo as minhas barreiras, minar a minha resistência e afetar a
minha capacidade de julgar”. Há muito disso; não há nada mais difícil do que

manter-se reto, verdadeiro e puro neste mundo moderno, neste mundo mau. Os
dias são maus!

O cristão vê isso e, portanto, diz: tenho que andar prudentemente. E então,


quando ele percebe as condições dos que são vítimas ignorantes deste poder
maligno, sabe que deve redobrar os seus esforços e que deve ser cuidadoso. Os
homens do mundo não sabem disso, não têm consciência disso. Consideram
estas coisas como divertidas; gabam-se delas. Gabam-se das suas bebedeiras,
que causam tanta infelicidade e que levam famílias à ruína. Fazem brincadeiras
acerca disso. O que se diz é que essas coisas são maravilhosas e que você está
fora de época, é um retrógrado, se não as pratica. Não vêem que foi
justamente este poder maligno que os apanhou. Mas eu e vocês devemos
pensar por eles, devemos cuidar deles, devemos fazer tudo o que pudermos para
libertá-los e tirá-los deste poder perverso e maligno que os domina. Os dias são
maus. Nunca foram piores. E é somente o sábio que olha e vê tudo isso como
realmente é. Porventura vemos com clareza o estado em que se encontra o
mundo? Temos vivida nas nossa mentes a distinção entre o mundo e a Igreja,
entre o reino das trevas e o reino da luz? É fundamental para o cristianismo, e eu
e vocês temos que captá-la.

Deixem-me dizer uma palavra sobre o último ponto - “remindo o tempo” - que é
outro característica desta sabedoria. O cristão é alguém que, por causa de todas
estas coisas, redime o tempo. Que é que isso significa? Bem, temos que ser
cautelosos a esse respeito. Não significa meramente que ele usa o tempo da
maneira certa. Inclui isso, naturalmente. Mas há muito mais que isso. Tempo
aqui não é tanto o dos calendários - o espaço de tempo de janeiro a dezembro.
Não; significa oportunidade. Remindo o tempo deve traduzir-se “comprar toda a
oportunidade” ou “arrematar toda a oportunidade”.

Este é um pensamento muito profundo. Aí está este homem sábio, este cristão.
Como ele mostra sabedoria? Eis como: ele vê a sua vida neste mundo como
sendo uma grande oportunidade. Nisso, é claro, ele é absolutamente diferente do
não cristão. O não cristão vê este mundo como um lugar em que o homem se
estabelece, faz o máximo que pode e o desfruta plenamente. Mas não é esse o
modo de ver do cristão, O cristão compreende que este mundo é passageiro e
que ele não passa de um viajor. Eis aqui os termos do Novo Testamento -
“Amados”, diz Pedro, “peço-vos, como a peregrinos e forasteiros. . .” (1
Pedro 2:11). É o que vocês são, forasteiros ou estrangeiros e peregrinos. Vocês
estão apenas por pouco tempo aqui. O seu lar não é este. “A nossa cidade”, diz
Paulo em Filipenses, capítulo 3, versículo 20, “está nos céus.” É de onde somos.
Neste mundo, sou um homem que está

fora de casa. Sou estrangeiro aqui, estou apenas fazendo uma visita. Estrangeiros
e peregrinos, viajantes e moradores temporários, sempre em movimento. “Todas
as noites eu armo a minha tenda desmontável um dia de marcha mais perto do
lar.” Lar! Meu lar não é daqui, é de lá!

Essa é a posição do cristão. Esta vida não é vida real para o cristão. A vida real é
vindoura. Como diz Paulo em Romanos, capítulo 13: “A noite é passada, e o dia
é chegado”. É isso que o cristão espera. Essa é a esfera a que ele pertence, porém
aqui ele está num mundo mau, e diz: ah, mas enquanto estou aqui, devo fazer
uso da oportunidade. É um lugar temporário de oportunidade. Em espírito estou
fora dele, todavia no sentido físico sou deixado aqui, e assim, que devo
fazer? Bem, vou usar o meu tempo aqui para mostrar a glória de Deus.
Vamos parar neste ponto agora, porque desejo fazer um minucioso esquema de
como o cristão realmente faz isso tudo.

Somos chamados para fazer isso, e especialmente num tempo como este, quando
não é mais costume do povo freqüentar locais de culto, a responsabilidade do
cristão individual aumenta muito. Hoje em dia as pessoas não dão ouvidos ao
evangelho. Muito bem, pois, que o vejam em suas vidas. Que vejam a luz
quando olharem para vocês. Essa é a insistente exortação do apóstolo.
Estivemos examinando os princípios que habilitam o homem a andar de tal
maneira que atue como luz para os outros. Tal homem olha em volta; anda
prudentemente. Ele tem princípios pelos quais pode avaliar tudo e chega à
conclusão de que os dias são maus. Ele vê o inferno por trás da fachada, vê a
miséria, a infelicidade e o diabo existentes. Todas estas coisas o orientam em seu
procedimento pessoal, e em seu comportamento para com os outros. E depois ele
diz a si mesmo: estou aqui para representar a minha família, estou aqui como
representante do meu Pai, estou aqui como representante do Seu Filho, do
Espírito Santo e de todas as hostes angelicais. Pertenço à Sua família, e devo
considerar o meu tempo neste mundo primária e essencialmente como uma
oportunidade para dizer aos homens e às mulheres que existe outra vida, vida de
glória, vida de santidade, vida compartilhada com Deus. Vejo aquelas pobres
pessoas ao meu redor, na escravidão e nas garras do pecado em suas diferentes
formas. Não me interessa a forma que o pecado assuma, devo tentar trazer
aquelas pessoas para a luz, devo despertá-las, devo fazer-me tudo para
todos, para por todos os meios chegar a salvar alguns. Portanto, devo
mostrar esta sabedoria em todas as suas variegadas formas, moldes e cores. Que
todo o espectro se torne manifesto em mim e por meu intermédio, de modo que,
por algum meio, de algum modo, alguma pobre alma,

vítima do mal e do pecado, seja despertada do sono, levante-se do túmulo e da


morte que caracterizam o pecado, e se ponha a olhar para a face de Jesus Cristo e
a ver a luz do conhecimento da glória de Deus.

REMINDO O TEMPO

‘‘Portanto, vede prudentemente como andais, não como néscios, mas como
sábios, remindo o tempo; porquanto os dias são maus. Pelo que não sejais
insensatos, mas entendei qual seja a vontade do Senhor." -Efésios 5:15-17

Voltamos a esta importante exortação mais uma vez porque nela o apóstolo está
dizendo algo de grande valor. O seu grande interesse é que todos os cristãos
percebam a diferença existente entre eles e os não cristãos. O cristão tem a
sabedoria de Deus em Jesus Cristo. Ele sabe das coisas, tem uma capacidade de
discernir a vida que ninguém mais tem e, portanto, o que lhe cabe fazer é andar
prudentemente. Já vimos isso. Cabe-lhe entender as condições do mundo em que
ele vive - os dias são maus. Somente o cristão pode dizer isso. O não cristão até
se ofende com essa afirmação. Ele acredita que o mundo é maravilhoso, que a
vida é estupenda. Não, diz o cristão, os dias são maus. E assim vimos que o
cristão considera a sua vida neste mundo primariamente como uma grande
oportunidade - oportunidade de portar-se como luz, oportunidade de testemunhar
da graça de Deus no Senhor Jesus Cristo. Desta maneira, ele redime o tempo,
não deixando passar nenhuma oportunidade.

É esse, então, o pensamento que devemos ter em nossas mentes quando


passarmos a considerar de que modo o cristão usa a sua vida neste mundo como
uma oportunidade de disseminar o conhecimento e a luz provenientes de Deus
na face de Jesus Cristo.

A primeira coisa, pois, que devemos salientar é que ele de fato tem que remir o
tempo. O significado da palavra remir, redimir é o de adquirir alguma coisa,
especialmente adquiri-la para nós mesmos. Se vocês preferirem, é a descrição do
homem que está em busca de uma boa compra. Ele quer comprar algo para si e
está de olho nos artigos na banca, ou na vitrina da loja. Está desejoso de fazer o
negócio, e assim olha aqui e ali e mostra grande interesse.

Ora, essa é a exortação que o apóstolo nos faz aqui, como cristãos.
Compreendendo o que vocês são, diz ele, e que os dias são maus, e entendendo
quais são as condições do mundo em que se acham, sejam como os que estão de
olho nas oportunidades. Estejam preparados

para capturá-las e segurá-las. Essa é uma figura comum do cristão no Novo


Testamento. Na sua Primeira Epístola, capítulo 4, versículo 3, o apóstolo Pedro
faz a mesma colocação à sua maneira, com estas palavras: “Porque é bastante”,
diz ele, “que no tempo passado da vida fizéssemos a vontade dos gentios,
andando em dissoluções, concupis-cências, borrachices, glutonarias, bebedices e
abomináveis idolatrias”. Certamente; argumenta o apóstolo Pedro, é quase
desnecessário que eu discuta isso com vocês. Vocês já gastaram bastante tempo
neste mundo fazendo essas outras coisas, desperdiçando-o e jogando-o
fora. Bem, diz ele, não façam mais isso. Vocês já desperdiçaram demais a sua
vida neste mundo com disparates e lixo. Nunca mais! Sejam espertos, estejam
alerta, explorem todas as oportunidades. Agarrem cada minuto, cada segundo,
redimam o tempo, tendo em vista que vocês perderam demasiado tempo e
deixaram escapar muitas oportunidades gloriosas. Não façam mais isso.

Paulo não nos está meramente exortando a não desperdiçar o nosso tempo. Ele é
muito positivo. Diz ele que vocês devem esforçar-se para ir em busca de
oportunidades. Vocês vêem, isso é muito mais forte do que a postura negativa,
embora a negativa esteja incluída, naturalmente. Vocês não conseguirão fazê-lo,
se estiverem desperdiçando tempo. Mas não é só isso. Estejam alerta, sejam
espertos, explorem as oportunidades. Procurem-nas e agarrem-nas avidamente,
toda vez que se lhes apresentarem. Isso é, por certo, da maior
importância, porque os dias são maus e por causa das condições em que
nos achamos.

Agora, parece-me que aqui o apóstolo nos está exortando a apossarmos de todas
as oportunidades por duas razões principais. A primeira é que o façamos pelo
nosso próprio bem. Depois, em segundo lugar, pelo bem doutras pessoas.

Consideremos a primeira delas. Vocês devem remir o tempo, diz o apóstolo, por
amor de vocês mesmos. Então, como devo agora tomar providências para que,
durante o tempo que resta da minha breve vida, eu resgate e aproveite as
oportunidades?

Vejamos primeiro o que ele nos diz negativamente. Depois veremos como ele se
refere positivamente a qual é a vontade do Senhor. Vemos um conselho e uma
instrução muito práticos quanto a isso no Salmo primeiro. Se devo remir o
tempo, há certas coisas que não devo fazer. Não devo andar segundo o conselho
dos ímpios. Não devo desperdiçar tempo detendo-me no caminho dos pecadores.
Não devo vagar pelo tipo de lugar pelo qual eu sei que é provável que
eles passem. Tampouco devo assentar-me na roda dos escamecedores. Se eu
fizer essas três coisas, longe de apossar-me da oportunidade, estarei

perdendo oporturíidades. Aí está a instrução dada por Deus. “Bem-aventurado o


varão que não anda segundo o conselho dos ímpios.” Você sabe qual é a
perspectiva deles, sabe o que eles pensam da vida. Não se ligue a eles. Não se
interesse pela filosofia deles, pelo seu conselho. Não atraia o pecado, ou, como
Paulo o expressa escrevendo aos romanos: “não façais provisão para a carne”. Se
você se puser no caminho dos pecadores, o fim será que você acabará pecando
com eles. Portanto, se você souber de um tipo de literatura que tenha a
probabilidade de prejudicá-lo, não a veja. Jogue-a no fogo. Não lhe dê a mínima
atenção. Não tome muito tempo lendo insípidos pormenores sobre as leis nos
jornais. Não lhe farão bem nenhum. Isso é deter-se no caminho dos pecadores e,
se você ficar ali, será arrastado com eles sem perceber.

Pode-se dizer o mesmo sobre assentar-se na roda dos escamecedores. O apóstolo


Pedro no-lo expressa claramente em sua Primeira Epístola, capítulo dois,
versículos 11 e 12: “Amados, peço-vos como, a peregrinos e forasteiros”; é o
que vocês são, forasteiros ou estrangeiros e peregrinos neste mundo, desde
quando se tornaram cristãos, “peço--vos, como a peregrinos e forasteiros, que
vos abstenhais das concu-piscências carnais que combatem contra a alma; tendo
o vosso viver honesto entre os gentios”. E exatamente a mesma coisa. Aí estão,
pois, as exortações negativas.

Que dizer das positivas? Bem, voltem, e verão tudo no Salmo primeiro. Aí está o
homem bem-aventurado - “mas o seu prazer está na lei do Senhor, e na sua lei
medita de dia e de noite”. Vocês vêem, este homem não está perdendo tempo
com literatura indigna e nociva. Antes, ele passa o tempo com a lei do Senhor, e
nela medita de dia e de noite. Não é como o homem que diz que é tão ocupado
que realmente não tem tempo para estudar a Bíblia e ler bons livros. Mas como é
tão ocupado? Ele gasta mais tempo com o jornal do que com a Bíblia? Então, ele
não tem mais desculpa. Que o tempo que ele estava dando para a leitura do
jornal seja dado ao estudo da lei do Senhor. O cristão medita na lei do Senhor de
dia e de noite. Este é o seu prazer. Diz ele: quero algo que me edifique, me ajude
e me habilite a funcionar como luz; por isso é muito cauteloso quanto ao
emprego do seu tempo. Ele não desperdiça o seu tempo, para ver no fim do
dia que não leu a Bíblia, quase não orou a Deus e não fez nenhuma outra coisa
porque o seu tempo foi consumido com as frivolidades das coisas do presente
mundo. Não, não; este é o homem que se apossa da oportunidade. Ele tem que
disciplinar-se. Diz ele: tenho que fazer isto, insisto nisto. Vou fazê-lo, custe o
que custar. Isso nunca foi mais necessário do que hoje.

Ou vejam outra exortação, feita pessoalmente pelo nosso Senhor: “Não ajunteis
tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem tudo consomem, e onde os ladrões
minam e roubam”. Não gaste seu tempo neste mundo fazendo isso. Fazer o quê,
então? “.. .ajuntai tesouros no céu, onde nem a traça nem a ferrugem consomem,
e onde os ladrões não minam nem roubam.” Você é um peregrino da eternidade,
que é para onde está indo. Pois bem, não passe o tempo todo ajuntando tesouros
neste mundo, porque você vai sair dele; vai perecer, e os deixará para trás. Olhe
para a frente, prepare-se para o futuro, ajunte tesouros lá, redima o tempo.
Resgate a oportunidade.

Vejam a exortação similar registrada no Evangelho Segundo Lucas, capítulo 16,


versículo 9: “Granjeai amigos com as riquezas da injustiça; para que, quando
estas vos faltarem, vos recebam eles nos tabemáculos eternos”. Que é que Ele
quer dizer? Essas palavras são um comentário da parábola do mordomo infiel.
Qual a característica daquele mordomo? Sua sabedoria. Como diz o nosso
Senhor: “Os filhos deste mundo são mais prudentes na sua geração do que os
filhos da luz”. Eis aí um homem em apuros, e ele saltou sobre uma oportunidade.
Disse ele: ora, antes que a sentença caia sobre mim, vou preparar-me para o
futuro; por isso foi aos fregueses e disse: quanto vocês me devem? Um deles
respondeu: devo tanto - e o mordomo lhe disse que anotasse muito menos, a
metade. E continuou desse modo. Que é que ele estava fazendo? Estava se
preparando para a calamidade que estava prestes a cair sobre ele. Foi sábio. Viu
o que vinha e agiu imediatamente, remindo o tempo. Eu e vocês devemos ser
assim. Por isso diz o nosso Senhor: use o seu dinheiro neste mundo de tal
maneira que, quando chegar o fim, já tenha feito a sua preparação, e
assim, quando passar para o outro mundo, haja ali muitos que estejam prontos a
recebê-lo e a regozijar-se ao vê-lo. Trate de viver neste mundo de maneira tal,
que esteja realmente fazendo preparativos para o mundo por vir. Que esteja
resgatando a oportunidade.

Eu poderia citar as Escrituras quase interminavelmente para vocês, com relação


a este assunto, mas deixem que eu mencione apenas uma passagem - passagem
notável, do fim do capítulo treze da Epístola de Paulo aos Romanos: “E isto
digo, conhecendo o tempo, que é já hora de despertarmos do sono; porque a
nossa salvação está agora mais perto de nós do que quando no princípio cremos.
A noite é passada, e o dia é chegado. Rejeitemos pois as obras das trevas, e
vistamo-nos das armas da luz. Andemos honestamente, como de dia; não
em glutonarias, nem em bebedeiras, nem em desonestidades, nem
em dissoluções, nem em contendas e inveja. Mas revesti-vos do Senhor Jesus
Cristo, e não façais provisão para a carne” (versículo 14, VA).

Estas são todas diferentes maneiras, vocês vêem, de dizer-nos que nos
despertemos, que nos apercebamos do que somos e de quem somos, e que nos
agarremos a todas as oportunidades. Sejam ativos e estejam alerta. Considerem
este mundo apenas como uma oportunidade de agradar ao Senhor. Granjeai
amigos, até com as riquezas da injustiça; tomem posse da vida eterna.

Se é preciso algo mais para persuadir-nos da urgência disso, pensem no seguinte:


“Todos devemos comparecer ante o tribunal de Cristo”. Cristãos, “devemos
prestar contas dos feitos no corpo, quer bons quer maus” (cf. 2 Coríntios 5:10).
Muito bem, diz o apóstolo, conhecendo o terror do Senhor, procuro persuadir os
homens. O que ele quer dizer é que ele sabe que comparecerá perante o seu
Senhor. Não é que esteja em perigo de perder a salvação. O julgamento não é no
sentido de que o nosso destino eterno estará sendo determinado. Ele está falando
a pessoas já cristãs e cujo destino eterno está seguro. Este tipo de julgamento é
para recompensa ou galardão. Aquele que por nós veio do céu à terra e morreu
na cruel e infamante cruz do Calvário; que não Se poupou, que suportou a
contradição dos pecadores. Aquele que sofreu aquela agonia no jardim e na cruz,
Ele nos examinará - e o que estará investigando é: como passamos o nosso
tempo no^ mundo, depois que nos demos conta do que Ele tinha feito por nós. É
o terror do amor, vocês vêem, não o medo do tormento. Vocês olharão
aquela face amada e aqueles olhos, e compreenderão, como nunca antes, o que
Ele fez por vocês. Depois vocês compreenderão, com vergonha, o que não
fizeram por Ele. Ah, exclama Paulo, apossem-se da oportunidade, não percam
um segundo. Mantenham isto no primeiro plano de suas mentes.

O apóstolo João diz exatamente a mesma coisa em sua Primeira Epístola,


capítulo 3: “Amados, agora somos filhos de Deus, e ainda não é manifestado o
que havemos de ser. Mas sabemos que, quando ele se manifestar, seremos
semelhantes a ele; porque assim como ele é o veremos”. E João acrescenta
imediatamente: “E qualquer que nele tem esta esperança purifica-se a si mesmo,
como também ele é puro”. Éprecisamente isso que o apóstolo Paulo está dizendo
aqui. Vocês são filhos da luz, diz ele, e do dia; não devem andar como se
ainda estivessem nas trevas. Não, havendo compreendido o que vem,
vocês sabem que não podem perder um segundo. Apossem-se de todas
as oportunidades. Façam pleno uso do tempo que lhes resta neste mundo. Então,
finalmente, para remate disso tudo, há uma grande declaração no livro de
Apocalipse, capítulo 14, versículo 13: “Escreve” - vocês devem ter ouvido isto
em ofícios fúnebres; compreenderam a sua significação? - “Escreve: bem-
aventurados os mortos que desde agora

morrem no Senhor. Sim, diz o Espírito, para que descansem dos seus trabalhos,
pois as suas obras os seguem.” Aí está de novo. Graças a Deus, as obras que nos
seguem são as nossas boas obras! São as que fazemos conforme fomos
aproveitando a oportunidade ou remindo o tempo. Tudo está sendo registrado,
nada será esquecido; você ouvirá as benditas palavras: venha, bendito do Senhor,
venha, servo bom e fiel, entre no gozo do Senhor. Entre no reino que foi
preparado para você antes da fundação do mundo. É coisa estupenda - “as suas
obras os seguem”.

Muito bem, pois, aí está a exortação em face disso tudo. Para que vocês possam
ter aquela recepção, para que vocês possam ouvir aquele encômio, redimam a
oportunidade. Que coisa maravilhosa será ouvir as palavras: “Vinde, benditos de
meu Pai”. Desenvolvam-nas em termos de Mateus, capítulo 25, sobre as pessoas
que O visitaram na prisão visitando o Seu povo na prisão e levando-lhe alimento,
bebida e roupa. Vocês vêem, eles tomaram cada oportunidade, viveram à
luz disso e remiram o tempo. Essa é a exortação, Está aí com relação a
nós, porém não devemos viver somente para nós, embora devamos começar daí.
Seremos de pouco valor para os outros, se não compreendermos tudo isso acerca
de nós mesmos, e por isso Paulo o coloca em primeiro lugar.

Mas então passamos à segunda aplicação - a nossa relação com os outros neste
mundo. Devemos resgatar a oportunidade com vistas a eles. Como fazê-lo? A
primeira coisa que devemos fazer é procurar compreender o seu estado e as suas
condições. Eles ainda pertencem a este mundo mau. Ainda estão nas trevas e o
seu estado é de pecado. No entanto, sabemos algo mais. Sabemos que o tempo
todo eles nos estão olhando e observando. Todos nós sabemos isso por
experiência pessoal. Além disso, os jornais gritam isso para nós. Vocês
não notaram que, se houver um homem num tribunal com alguma acusação
contra ele, e se descobrem que ele fora professor da Escola Dominical trinta anos
antes, sempre o mencionam? Chegam a pôr como cabeçalho: “Professor da
Escola Dominical em julgamento”, embora não estivesse ali por trinta anos
talvez. Estão vigiando. Dizem eles: essas pessoas dizem que são diferentes.
Muito bem, vejamos como estão se comportando, como vivem. Esse é o
argumento comum, não é? Por que devo ser cristão? Por que devo unir-me a
vocês na igreja? Vejam as pessoas que vão!

Mais importante ainda, as pessoas julgam o cristianismo pelo que vêem em nós.
Não só isso, julgam a Cristo por nós, julgam a Deus por nós. Somos tomados por
Deus e por Cristo, pelo evangelho da salvação, pela totalidade da mensagem
cristã. Somos seus represen-

tantes. Eles a julgam inteiramente pelo que vêem em nós. Não lêem a Bíblia,
nem livros sobre a Bíblia. Nós somos tomados em lugar dela. Assim, eles nos
observam! Vocês vêem por que o apóstolo diz que devemos remir o tempo e
apossar-nos de todas as oportunidades. Muitas vezes Deus levou pessoas ao
arrependimento e à salvação simplesmente levando-as a observarem outros
cristãos, e elas tiveram um sentimento de condenação e, ao mesmo tempo, a
sensação de algo que as atraía. Essa é a razão pela qual devemos ser cautelosos,
diz o apóstolo.
Então, que é que devemos fazer? Como havemos de remir o tempo? Devemos
viver de tal maneira que silenciemos toda a crítica. Pedro o expressa
perfeitamente em 1 Pedro 2:11-12: “Amados, peço-vos, como a peregrinos e
forasteiros, que vos abstenhais das concupiscên-cias carnais que combatem
contra a alma”. Elas são prejudiciais a vocês, pelo que não as pratiquem pelo
bem de vocês mesmos. Mas depois ele continua: “Tendo o vosso viver honesto
entre os gentios; para que, naquilo em que falam mal de vós, como de
malfeitores, glorifiquem a Deus no dia da visitação, pelas boas obras que em
vós observem”. Vivam de tal maneira, diz ele, que desarmem a crítica que eles
fazem. Não haverá nada que possam dizer. Embora tenham falado contra vocês,
como se vocês fossem malfeitores, as suas boas obras lhes responderão e eles
terão que admitir que estavam errados.

Essa é, obviamente, a primeira coisa; porém devemos ir mais adiante. Não


devemos somente viver de tal maneira que silenciemos toda crítica. Devemos,
positivamente, viver de tal maneira que exerçamos atração sobre essas pessoas e
as façamos sentir que estão perdendo alguma coisa magnífica e maravilhosa por
não serem cristãs. E preciso haver, acerca de nós, o que havia no Senhor e que
atraía as pessoas como um ímã. Vocês não vêem aqueles pobres
homens possessos de demônios? Quando O viram, correram para Ele.
Tinham vivido nas montanhas e entre os túmulos. Fugiam das pessoas,
mas quando O viram, correram para Ele. “E chegavam-se a ele todos
os publicanos e pecadores”, lemos no início de Lucas, capítulo 15. Era sempre o
efeito que Ele causava; os fariseus não atraíam as pessoas, entretanto Cristo
atraía. Havia algo em tomo dEle que as fazia sentir que receberiam compreensão
e simpatia. A mulher, pecadora na cidade, foi e caiu a Seus pés, regou-os com as
suas lágrimas e enxugou-os com os cabelos da sua cabeça. Era sempre esse o
efeito que Ele causava, e é dessa maneira que devemos viver.

Como fazê-lo, porém? Que espécie de vida devemos viver? O primeiro ponto
essencial, eu diria, é que deve ser uma vida ordenada. Tem que ser uma vida
disciplinada. Uma das coisas que mais

prejudicam a causa cristã é o cristão errático. Vocês conhecem o tipo de gente


que vem com o maior ímpeto e por algum tempo faz-nos sentir como se nós
nunca fomos cristãos antes. Todavia isso não dura mais que algumas semanas, e
então ele desaparece completamente. Depois volta! Não há nada que cause mais
grave desserviço. O mundo está observando, e sorri quando vê de volta uma
pessoa desse tipo. Bem, graças a Deus, não é o mundo que decide sobre o
destino de um homem desses, e se você tem sido um cristão errático, deixe-me
assegurar-lhe que, se você voltar, e voltar deveras, Deus o receberá e você terá
outra oportunidade. Mas não continue agindo dessa maneira; “Vai, e não peques
mais”. Contudo não podemos ser erráticos ou inconstantes ou imprevisíveis, se
nos consideramos sábios. Não vivemos por uma legislação ad hoc. 1 Temos um
grande plano e vivemos com leal constância de acordo com esse plano. Se posso
tomar emprestadas as palavras de Matthew Arnold (e multiplicá-las pelo
infinito!) - o cristão é alguém que vê a vida com firmeza leal e a vê globalmente
e, portanto, não é errático.

Ou, vejam-no assim: temos que viver uma vida não caracterizada por tropeços e
quedas, desta ou daquela forma. Um cristão que vive tropeçando e caindo é uma
pobre recomendação do evangelho, porque o mundano pode tropeçar e cair em
pecado, em qualquer de suas formas ou tipos, pecado no temperamento, na ira,
na perda de controle, na falta de simpatia e de compreensão. Quem age assim
não está remindo o tempo. Não está recomendando o cristianismo, nem a
Deus, nem ao Senhor Jesus Cristo. Não; a grande característica da vida cristã é a
firmeza. Não pode haver reações violentas de modo algum. Ouçam a descrição
que um salmista faz deste bom tipo de homem, no Salmo 112: “Não temerá
maus rumores; o seu coração está firme, confiando no Senhor”. Vocês sabem que
os tempos de crise sempre ajudam a mostrar o que o homem é realmente. Uma
coisa é ser cristão teórico, mas a prova real é o que você é quando as coisas vão
mal. Subitamente você cai de cama, e se você fica alarmado e não sabe o que
fazer, o mundo diz: eu pensava que ele era cristão, porém isso não parece ajudá-
lo muito. Como é você quando a tristeza ou a aflição chega ao seu lar? Como é
você quando irrompe a guerra? Vocês vêem, é por nossas reações que revelamos
o que somos. Disse o nosso Senhor: “Por tuas palavras serás justificado, e por
tuas palavras serás condenado” (Mateus 12:37). Acontece alguma coisa, e você
fala instintiva-

mente, e mostra exatamente o que você é nas profundezas do seu ser. O cristão é
inabalável; não temerá más notícias. Seu coração está firme, confiando no
Senhor.

Naturalmente, vocês vêem, quando as coisas vão bem esta homem fala consigo
mesmo e diz; “Ora, sim, graças a Deus, as coisas vão indo bem. Deus é
misericordioso e bondoso comigo. Nem isso eu mereço. Não posso entender por
que Ele me abençoa como me abençoa, e Lhe dou graças por isso. Mas eu sei
que num mundo mau como este, nunca se sabe quando as coisas irão mal. O
pecado trouxe toda espécie de conseqüências e complicações, e eu faço parte do
munco e estou sujeito a estas coisas. A qualquer momento elas podem chegar a
mim”. Assim, quando elas chegam, ele não é apanhado desprevenido.
Ele pensou na frente, e previu tudo. Está tudo muito bem, diz ele, isto faz parte
da porção que me cabe neste mundo; neste tabemáculo gememos sob os nossos
fardos, desejando ardentemente ser revestidos da nossa casa, que é do céu. Seu
coração é firme. Ele é um homem inabalável. Tem equilíbrio em sua vida. Ele
tem reservas das quais ninguém sabe. Ele está sobre uma rocha, sobre um
alicerce, e ainda que o mundo todo se convulsione na calamidade final, este
homem permanece firme, confiante no Senhor. Essa é a espécie de vida que
devemos viver.

Pensemos também em remir o tempo como algo aplicável praticamente à


questão do falar. É muito importante. Você vive assim, não somente porque sabe
que os outros o estão observando, mas também, quando você está conversando
com eles, você está cheio de sabedoria, discrição e entendimento, e fica atento, à
espera das suas oportunidades. Você pode estar num trem, sentado ao lado de
alguém, ou pode estar falando com alguém por sobre o muro do jardim. Eles se
põem a expressar as suas opiniões, e você pode aproveitar a oportunidade. Eles
podem começar dizendo: “Não é terrível?” Você não diz apenas: “Sim, não é?”
Você diz: “Mas por que você acha que é terrível? Qual a causa de tudo isso?”
Você se assenhoreou da sua oportunidade. Deixe-os falar. Não vá de repente a
eles, dizendo-lhes, “Você está salvo?” Não, você tem que ser sábio - quem é
sábio conquista almas. Ouça a conversa deles. Se eles expressarem uma crítica
ou uma opinião, esteja pronto para usar a mensagem cristã. Induza-os a
ela, partindo de onde eles partem, levando-os gradativamente e ligando o que é
dito com os princípios eternos.

Ou pode ser que eles lhe façam perguntas. Que oportunidade vinda do céu! Se
tão-somente virmos isso deste modo é admirável quão constantemente as
pessoas nos presenteiam com estas verdadeiras oportunidades. Sim, porém nós
as estamos querendo, as estamos procurando? Estamos sempre prontos a agarrar-
nos à ocasião e a

aproveitá-la? É isso que o apóstolo nos está dizendo que façamos. Ou ainda,
devemos manter os olhos abertos e observar o que está acontecendo com as
pessoas. Aí está um homem que ficou doente, homem que é nosso conhecido e
que não tem interesse pelos assuntos cristãos. E maravilhoso poder ir oferecer-
lhe um pouco de simpatia, tentar ajudá-lo de alguma forma prática, e então, logo
lhe será dada oportunidade de oferecer melhor a maior ajuda. Enfermidade,
doença, acidente, morte, reveses, todas estas coisas estão acontecendo
constantemente com as pessoas, e aí vemos a nossa oportunidade. Quando os
seus corações se abrandam, estejamos lá e estejamos prontos. Redimam o tempo,
tomem posse da oportunidade!

Depois, finalmente, devemos governar-nos pelo nosso entendimento de qual é a


vontade do Senhor. “Mas entendei qual seja a vontade do Senhor.” Aí está o
princípio dominante que governa tudo. Que é que ele quer dizer? Entender qual é
a vontade do Senhor não significa procurar direção especial para tudo o que se
faz e se diz. Há gente que o interpreta desse modo, vocês sabem, e essa gente
nunca se move sem orar e esperar por uma orientação imediata. Todavia
vocês não necessitam fazer isso. Aqui está, diante de vocês, a orientação
na Bíblia. Leiam a Bíblia, em vez de fazer aquilo. Há circunstâncias muito
excepcionais em que a gente precisa de orientação especial, mas são muito
poucas. Entender qual é a vontade do Senhor não significa isso.

Que significa? Significa exatamente aquilo que o apóstolo nos estivera falando
no versículo 10: “Aprovando o que é aceitável ao Senhor”. Diz ele precisamente
a mesma coisa em Romanos, capítulo 12, versículo dois. Qual será então, a
vontade do Senhor? Certamente não deve haver dúvida sobre isso. O temor do
Senhor é o princípio da sabedoria. Quemais? “Esta é a vontade de Deus, avossa
santificação”, diz Paulo naPrimeiraEpístolaaosTessalonicenses,capítulo4,
versículo 3. Diz ele aqui, na Epístola aos Efésios, capítulo 1, versículo 4:
“Como também nos elegeu nele antes da fundação do mundo, para que fôssemos
santos e irrepreensíveis diante dele em amor”. A santidade sempre caracteriza o
cristão. A vontade do Senhor é isso. É o que Ele quer que eu seja. Ele quer que
eu seja alguém que aja como luz neste mundo, e a Bíblia está cheia de instruções
sobre o que eu devo fazer e o que não devo. Leiam os Dez Mandamentos, leiam
as Bem--aventuranças, leiam o Sermão do Monte. Essa é a vontade do
Senhor. Para conhecer a vontade do Senhor, digo e repito, vocês têm que ler
a Bíblia. Meditem na lei do Senhor, como o homem do Salmo primeiro, cujo
prazer está nela e que nela medita de dia e de noite. Conheçam--na
exaustivamente, e então apliquem-na.

Noutras palavras, eu gostaria de fazer esta colocação: aí está um homem cujo


maior desejo na vida é agradar ao Senhor. Como o Conde Zinzendorf, ele, por
assim dizer, olha para o quadro da cruz de Cristo e lê esta inscrição - Fiz isto por
você, que fez você por mim? - e se levanta e O serve obedientemente, É um
homem que, tendo compreendido o que Deus fez por ele em Cristo, sente que
não pertence mais a si próprio. “Não sabeis que não sois de vós mesmos? Porque
fostes comprados por bom preço” (1 Coríntios 6:19-20); portanto, sirvam a Deus
com o seu corpo, com o seu espírito, com todo o seu ser. Este é o seu maior
desejo, e ele sabe que o desejo do Senhor é que ele mostre ao mundo que o
Senhor o libertou do pecado, tomou-o santo e o está preparando para o céu. Se
você mantiver isso em mente, não poderá ir mal. Tudo, então, será determinado
por essa realidade.

Se vocês quiserem mais alguma coisa, aqui está: olhem para o Filho de Deus,
vejam como Ele viveu neste mundo. Devemos tentar viver desse modo, seguir os
Seus passos, que não erraram. “Quanto o injuriavam, não injuriava, mas
entregava-se àquele que julga justamente” (1 Pedro 2:23). “Sede pois
imitadores” - já dissera Paulo a estes efésios - “Sede pois imitadores de Deus”.
Imitem o Senhor Jesus Cristo, não para se tomarem cristãos, mas porque vocês
são cristãos. Como Ele é, assim somos nós neste mundo. Devemos seguir os
Seus passos. Devemos negar-nos a nós mesmos, tomar sobre nós a cruz e seguir
a Cristo. E na medida em que o fizermos, as nossas vidas serão santas, serão
firmes. Serão calmas e serenas, serão uma censura ao pecado em todas as suas
formas e modalidades. Serão uma atração para os pobres pecadores que estão
começando a perceber o seu estado e a sua necessidade. “Sempre conhecendo”,
diz ele, “e entendendo qual seja a vontade do Senhor.” Eis aqui a Sua vontade:
“Assim resplandeça a vossa luz diante dos homens, para que vejam as
vossas boas obras e glorifiquem a vosso Pai, que está nos céus” (Mateus
5:16). Essa é a exortação que está em Efésios, capítulo 5, versículos 15 a
17. “Assim resplandeça a vossa luz”!

AS TREVAS E A LUZ

Este volume é o quinto de uma série de oito. O conteúdo foi originariâmente


pregado como parte de uma exposição sistemática da Epístola aos Efésios nos
cultos dominicais matutinos na Capela de Westminster, Londres, entre 1954 e
1962.

E um fato extraordinário que, nos escritos do apóstolo Paulo, grandiosa


exposição doutrinária leva sempre a apelos claros, exigentes e práticos para
a santidade pessoal e para o crescimento na sabedoria cristã e no caráter cristão.
Em nenhum outro lugar isso é ilustrado mais claramente do que em
Efésios 4:17-5:17. Todavia, é precisamente neste ponto que falta a tantos cristãos
o equilíbrio das Escrituras -ou salientando a doutrina sem explicar as suas
implicações para a vida cristã, ou vice-versa. Aqui é que o Dr. Lloyd-Jones foi
considerado um mestre, talvez sem paralelo no presente século. As Trevas e a
Luz demonstra por que a sua pregação foi tão grandemente apreciada por sua
fidelidade à doutrina e prática apostólica. Magnífica exposição, é também um
manual que ensina a viver a vida cristã.

PUBLICAÇÕES EVANGÉLICAS SELECIONADAS

Rua 24 de Maio, 116 - 3o andar - salas 14-17 01041-000 - São Paulo - SP

Ad hoc = para isto; em resposta a isto. Expressão geralmente empregada nos casos de funções
emergenciais. E.g. - “Secretário ad hoc”, i.e., designado para o momento, para a reunião do momento.
Em latim no original. Nota do tradutor.
VIDA NO ESPIRITO
NO CASAMENTO, NO LAR E NO TRABALHO

Exposição de Efésios 5:18 a 6:9

D.M. LLOYD - JONES

PUBLICAÇÕES EVANGÉLICAS SELECIONADAS Caixa Postal


1287 01059 São Paulo — SP

Título original:

Life in the Spirit

Editora:

The Banner of Truth Trust

Primeira edição em inglês: 1974

Copyright:

Lady E. Catherwood

Tradução do inglês:

Odayr Olivetti

Capa:

Ailton Oliveira Lopes Revisão:

Antonio Poccinelli

Primeira edição em português: 1991

Composição e impressão: Imprensa da Fé


INDICE

I Nova Vida no Espírito Efésios 5:18-21

PREFACIO

Este volume segue-se ao anterior volume de sermões sobre o capítulo dois


da Epístola aos Efésios, publicado sob o título, “O Caminho de Deus para
a Reconciliação” (God’s Way of Reconciliation, Evangelical Press). O fato
de aparecer antes de um volume sobre o capítulo 3 é devido unicamente à
urgência dos problemas de que trata. Minha esperança é que afinal tome
seu próprio lugar como um tomo componente de uma série sobre esta
grandiosa epístola.

Os sermões desta série foram pregados na Capela de Westminster, Londres,


aos domingos de manhã, durante os anos de 1959 e 1960. Não
épreciso salientar a relevância do manejo que o apóstolo faz dos assuntos
aqui tratados, numa época em que a instituição do casamento está sendo
questionada, o chamado choque de gerações está recebendo ênfase, a
autoridade dos pais está sendo escarnecida e ridicularizada, e tem havido
excessivas lutas na esfera industrial. “Na verdade que já os fundamentos se
transtornam: que pode fazer o justo?”, pergunta o salmista (Salmo 11:3). O
apóstolo aqui nos traz à lembrança esses fundamentos da maneira que lhe é
costumeira; e, em minha opinião, o manejo deles deve ser explanado de
forma expositiva e mediante sermões.

Os sermões incluídos nos primeiros cinco capítulos já foram impressos na


Westminster Record de 1968/9, mas os onze restantes, que tratam das
relações entre pais e filhos e vice-versa, entre senhores e servos, no capítulo
6, aparecem pela primeira vez. Para evitar exagerada extensão, resolvi
omitir os sermões sobre os versículos 19 e 20 do capítulo 5, uma vez que não
têm relação direta com os temas tratados neste volume.

Janeiro de 1974

Muitos testificaram do auxilia recebido da leitura dos sermões já impressos,


e insistiram comigo para lançá-los nesta forma permanente, com os sermões
adicionais. Só me resta orar, pedindo a Deus que os abençoe e os utilize para
dar ajuda a muitas pessoas confiisas, cristãs ou não.
D.M. Lloyd-Jones
NOVA VIDA NO ESPÍRITO
Efésios 5:18-21

18 E não vos embriagueis com vinho, em que há contenda, mas enchei-vos


do Espírito;

19 Falando entre vós em salmos, e hinos, e cânticos espirituais: cantando


e salmodiando ao Senhor no vosso coração;

20 Dando sempre graças por tudo a nosso Deus e Pai, em nome de nosso
Senhor Jesus Cristo:

21 Sujeitando-vos uns aos outros no temor de Deus.

O ESTÍMULO DO ESPÍRITO

Efésios 5:18

Nada é mais notável acerca do apóstolo Paulo do que o variado caráter do


seu ministério. Ele foi ao mesmo tempo evangelista e pregador, fundador
de igrejas, teólogo e mestre, e também um pastor bondoso e compassivo.
Suas exposições das grandes doutrinas da fé cristã são incomparáveis; mas
igualmente notável é o modo pelo qual ele mostra e elabora as implicações
dessas doutrinas. Ele se interessava tanto pela aplicação quanto pela
exposição porque, como constantemente acentua, o cristianismo é viver -
não mera filosofia ou ponto de vista.

O resultado disto é que ele jamais aborda qualquer problema prático da


vida cristã de maneira imediata ou direta: sempre o faz doutrinariamente.
Ele coloca todo problema no contexto do conjunto completo da verdade
cristã. Assim, nesta passagem vemos que quando o apóstolo passa a tratar
dos problemas do cristão em sua vida conjugal e familiar, e em seu trabalho,
ele o faz lembrando-nos que a vida cristã é vida no Espírito.

Ele expõe isto de maneira extraordinária, com as palavras, “E não vos


embriagueis com vinho, em que há contenda, mas enchei-vos do
Espírito”. Podemos descartar imediatamente, é claro, qualquer noção de
que ele esteja falando aqui apenas da questão da embriaguez ou da bebida
excessiva. Pois, usar alguém este versículo meramente como um texto para
aquilo que, penso eu, é chamado Sermão de Temperança, é revelar completa
incompreensão do versículo. O objetivo do apóstolo não é apenas denunciar
ou proibir a embriaguez. Isso certamente está incluído no texto; mas não
constitui o toque principal, a mensagem principal do versículo. E se nos
detivermos aí, correremos grave risco de tomar-nos legalistas. Mas, acima
de tudo, perderemos a glória desta exortação particular.

Aqui o apóstolo começa a dar-nos uma visão ainda mais positiva da vida
cristã do que fizera até esta altura. Até este ponto, ele se interessara
mormente em expor, de maneira negativa, a diferença existente entre a
velha vida e a nova. Agora, porém, ele se toma muito mais positivo e pinta o
quadro da nova vida no Espírito em termos mais positivos. No entanto, por
que faz a transição com o que, a princípio, parece um modo estranho,
deveras surpreendente? É quase um choque para nós, no meio de tudo que
estivera dizendo e de tudo que iria dizer, ler de repente: “E não vos
embriagueis com vinho, em que há contenda, mas enchei-vos do Espírito”.
Por que Paulo não expôs este ensino positivo da vida daquele que está cheio
do Espírito de maneira direta? Por que introduziu

este elemento de embriaguez, de bebida excessiva?

Parece-me haver duas principais respostas para essa questão. A primeira é


que não havia nada mais característico da velha vida que essas
pessoas levaram, e que os seus contemporâneos ainda viviam, do que a
embriaguez e a devassidão. O mundo antigo, quando da vinda do Senhor,
era caracterizado justamente por esse tipo de coisa. Há muitas descrições
clássicas disto. Vemo-lo, por exemplo, na segunda metade do capítulo
primeiro da Epístola aos Romanos, e também no capítulo quarto de Efésios.
A forma comum de viver era de embriaguez e libertinagem, era, de fato, de
todas as coisas que geralmente acompanham o beber em excesso. Esse era o
modo de viver desses efésios, em geral. Mas agora, haviam sido
transformados. Tomaram-se novas pessoas, são cristãos, estão “no
Espírito"; por isso o apóstolo salienta mais uma vez o fato de que a nova
vida é completamente diferente. Todavia, mesmo isso não é suficiente; ele
está ansioso por mostrar que esta vida nova não é apenas diferente da velha
vida, mas é, na verdade, um completo contraste com ela.
Ao mesmo tempo, ele tem também um segundo objetivo em mente -mostrar
que, nalguns aspectos, há certa similaridade entre os dois estados e vidas. É
por causa desse fato curioso que ele resolveu empregar esta linguagem e esta
ilustração em particular. Não tenho dúvida de que havia na mente
do apóstolo, neste ponto, a lembrança do que estivera falando acerca da
reação dos cidadãos de Jerusalém, no dia de Pentecoste, quando vira que
algo estranho tinha acontecido com os seguidores do Senhor Jesus Cristo. O
relato é dado em Atos, capítulo 2, versículos doze e dezesseis. Os apóstolos
estavam falando “noutras línguas”. É-nos dito que pessoas de diferentes
países os ouviam em “nossas próprias línguas falar das grandezas de Deus.
E todos se maravilhavam e estavam suspensos, dizendo uns para os outros:
que quer isto dizer? E outros, zombando, diziam: estão cheios de mosto”.
Estão bêbados! “Pedro, porém, pondo-se em pé com os onze, levantou a sua
voz, e disse-lhes: varões judeus, e todos os que habitais em Jerusalém, seja-
vos isto notório, e escutai as minhas palavras. Estes homens não estão
embriagados, como vós pensais, sendo a terceira hora do dia. Mas isto é o
que foi dito pelo profeta Joel: e nos últimos dias acontecerá, diz Deus, que
do meu Espírito derramarei sobre toda a carne”. A passagem fala de
homens que subitamente foram cheios do Espírito Santo; mas certas pessoas
pensavam que eles estavam bêbados, cheios de vinho. Há, portanto, certa
semelhança entre os dois estados e condições.

Opino, pois, que o apóstolo se expressa desta maneira para poder


apresentar tanto o elemento de contraste como o de similaridade. Existem
essas claras diferenças essenciais entre as duas vidas; mas há certos aspectos
em que ambas são semelhantes. E não poderemos ter um genuína concepção
da vida cristã, se não tivermos em mente o elemento de semelhança, como
também o de contraste. Assim, mediante a colocação feita deste modo, o
apóstolo nos dá um notável e maravilhoso quadro da vida cristã em toda a
sua plenitude, e especialmente nalgumas das suas características mais
essenciais. Primeiramente, daremos uma olhada no que ele nos fala acerca
desta vida do cristão

cheio do Espírito. Depois consideraremos como esta vida se toma possível, e


o sentido exato da expressão “Encher-se (Ser cheio) do Espírito”. E
posteriormente, passaremos a considerar como esta espécie de vida se
mostra e se manifesta.

Há duas expressões que nos cabe considerar antes de examinarmos o


quadro geral. A primeira é a palavra “embriagar-se". “E não vos
embriagueis”; que significa? Wycliffe, quando traduziu a Bíblia, traduziu
esta palavra por “encher-se”, “Não vos enchais de vinho, mas enchei-vos do
Espírito”. Noutras palavras, a noção toda não é apenas a de um homem que
toma um trago de vinho, ou um pouco de vinho, mas de um homem cheio de
vinho. De fato, é sumamente interessante observar e constatar que a própria
palavra que o apóstolo empregou aqui, também era empregada com
referência ao processo de “embebedar-se”, “encharcar”. Por exemplo,
quando queriam fazer uso da pele de um animal e desejavam esticá-la, viam
que era muito difícil fazê-lo. O método a que recorriam era embeber a pele
em diversos óleos e gorduras, e deste modo ela ficava mais flexível e eles
podiam esticá-la mais facilmente. Pois bem, a mesma palavra era
empregada para esse processo de embeber; pode, pois, ser traduzida por
“encharcar”: “Não vos encharqueis com vinho, mas enchei-vos do Espírito”.
Esse é o sentido da nossa palavra “embebedar-se”.

A palavra subseqüente é “excesso” (que aparece no texto bíblico em inglês,


correspondendo ao termo “contenda”). Vê-se claramente que é uma palavra
muito importante. Entender isto dá-nos a chave para explicar a ilustração
que o apóstolo está empregando. Quando ele diz: “E não vos embriagueis
com vinho, em que há contenda” (ou “excesso”), não está simplesmente
chamando a atenção para a quantidade de vinho consumida, mas está
afirmando que embriagar-se com vinho leva a excesso, e é uma condição de
estar em excesso. Que quer dizer isso? É muito interessante observar que
é precisamente a mesma palavra empregada com relação ao filho pródigo.
Lemos sobre ele em Lucas 15, que “desperdiçou a sua fazenda, vivendo
dissolu-tamente” - a palavra traduzida por “dissolutamente” é exatamente a
mesma do nosso texto aqui em Efésios. O filho mais novo, o pródigo, foi
para uma terra distante com os bolsos cheios de dinheiro; mas desperdiçou
“a sua fazenda”, o seu dinheiro, “vivendo dissolutamente”. Assim, podemos
ler em Efésios: “E não vos embriagueis com vinho, que “causa dissolução”.
Ou poderíamos usar a palavra “prodigalidade”. Esta é a conduta de um
pródigo, pelo que podemos denominar aquela parábola, “Parábola do Filho
Pródigo”. Ele dissipou a sua fazenda de maneira pródiga, fez-se réu de
“prodigalidade". Poderíamos empregar ainda a palavra “esbanjamento”,
ou a palavra “desregrado” ou a palavra “libertino”. Mas é interessante
notar o sentido radical da palavra: é uma palavra que tem um prefixo
negativo, mas seu significado essencial é “poupar”. “Poupar” é,
naturalmente, o oposto de “esbanjar”. Ê “econimizar” - cuidar do que se
tem e ser cuidadoso. Mas aqui também há um prefixo negativo na palavra,
de modo que “excesso” é o oposto de “poupança”. Quando nos pesa a culpa
de “excesso”, é porque não poupamos, não guardamos, não conservamos;

desperdiçamos de maneira estulta, pródiga, desregrada, com esbanjamento;


e acabamos ficando sem absolutamente nada. Portanto, em última análise,
a palavra leva consigo a idéia de destrutibilidade. Longe de poupar e
conservar, é um processo de destruição. Agora temos, então, o sentido: “E
não vos encharqueis com vinho, que leva ao desregramento, ao
esbanjamento, ao desperdício e à destruição final; mas enchei-vos do
Espírito”.

À luz disso, observemos o quadro positivo que o apóstolo nos dá aqui da


vida cristã. Eis a primeira coisa que ele nos diz sobre isso: é uma
vida controlada, ordenada. Temos aqui um elo de ligação com o que veio
antes; porque ali Paulo nos disse que devemos andar “prudentemente”,
“não como néscios, mas como sábios”. “Pelo que não sejais insensatos, mas
entendei qual seja a vontade do Senhor.” Na passagem que estamos
focalizando, ele desenvolve aquela idéia. A vida cristã é uma vida
controlada, uma vida ordenada; é exatamente o inverso da condição do
ébrio, que perdeu o controle e está sendo controlado por alguma outra coisa,
por assim dizer, e que, portanto, jaz num estado de completa desordem e
desarranjo. O excesso de vinho leva a uma condição caracterizada acima de
tudo pela perda do entendimento, pela perda da delicadeza, pela perda da
capacidade de julgar, pela perda do equilíbrio. É o que a bebida faz.

A bebida não é um estimulante, é um agente de depressão. Deprime antes de


tudo os núcleos mais elevados do cérebro. Estes são os primeiros a
serem influenciados e afetados pela bebida. Eles controlam tudo que dá ao
homem o domínio próprio, a sabedoria, o entendimento, a discriminação, o
juízo, o equilíbrio, a capacidade de avaliar tudo; noutras palavras,
controlam tudo que faz o homem comportar-se no nível máximo e melhor.
Quanto melhor for o autocontrole de um homem, melhor homem ele será. O
homem que pode controlar os seus sentimentos, o seu temperamento, as
suas disposições e as suas paixões, obviamente é melhor e maior do que o
homem que não tem esse autocontrole. Um homem pode ser muito capaz,
porém, às vezes, quando estamos conversando sobre gente assim, temos que
dizer: “Sim, ele é um homem e tanto, um homem competente, mas,
infelizmente, não consegue controlar o seu temperamento”, ou este ou
aquele aspecto da sua vida. Em certo sentido, não há nada mais elevado do
que este poder de controle, este domínio próprio, este equilíbrio, esta
disciplina. As Escrituras ensinam isto de capa a capa, e afirmam que este é o
selo de garantia de qualidade do homem verdadeiramente “sábio”. Mas a
bebida é algo que imediatamente escapa do controle; essa é, na verdade, a
primeira coisa que ela faz; e aqui o apóstolo nos está lembrando que não há
nada que deva ser mais óbvio quanto ao cristão, nem mais característico
deste, do que a ordem - esta qualidade do que é bem ordenado, este
equilíbrio, esta delicadeza, esta disciplina. É a “moderação” de que ele fala
na Segunda Epístola a Timóteo* capítulo primeiro, versículo sete. Significa
disciplina. É essa, então, a primeira coisa. Não deve existir nada no cristão
que lembre aquela falta de controle que constitui o sinal mais patente
da embriaguez, o excesso que a caracteriza.

Em segundo lugar, a vida cristã não é de desperdício ou dissipação, mas,


sim, uma vida produtiva. Isso é óbvio em nossos próprios termos. Que é
um cristão? Não posso pensar num melhor modo de descrevê-lo do que este:
ele é exatamente o oposto do filho pródigo. Nessa parábola temos, creio eu,
um comentário perfeito deste versículo que estamos examinando. Vemos
dois lados: o filho pródigo na terra distante, o filho pródigo depois que
voltou para casa; e, de novo, o filho pródigo e o pai. Aqui está este
maravilhoso contraste. A bebedeira sempre leva ao excesso, à prodigalidade,
ao desregramento, ao esbanjamento e à destruição. Quero dizer que a
bebedeira é sempre dissipadora, que ela sempre esbanja. Esbanja o que?
Em primeiro lugar, esbanja tempo. Um homem na condição de ébrio não se
preocupa com o seu trabalho nem com coisa alguma; sempre tem tempo
para conversar, e quanto as outras coisas, que esperem. Ele desperdiça o seu
tempo. Do mesmo modo, esbanja a sua energia. Ele faz coisas que não faria
em seus momentos de sobriedade. Ele joga fora sua energia, apenas para
mostrar como é forte, como é maravilhoso. O excesso, a embriaguez, é coisa
pródiga, e é pródiga principalmente no desperdício de energia. O bêbado a
atira longe, por assim dizer, com as duas mãos. E o faz em seu falar, em suas
ações, em tudo.

Mas esse tipo de vida joga fora outras coisas mais importantes ainda. Lança
fora a castidade, lança fora a pureza. Longe de preservá-las, lança-as
para longe. Os mais preciosos dons que Deus dá ao homem, esse tipo de vida
joga fora - a capacidade de pensar, de raciocinar, de calcular, de
compreender, e de todo o equilíbrio de que venho falando. Tudo isso é
dissipado. Essa é a característica do excesso produzido pela embriaguez;
esta leva o homem a jogar fora a sua castidade, a sua pureza, a sua
moralidade. É isso que faz da embriaguez uma coisa tão terrível. Vemos um
homem assim atirar pela janela as coisas mais preciosas que lhe pertencem;
ele as dissipa. A embriaguez é sempre destrutiva.

Por outro lado, a vida cristã é o oposto exato disso tudo. Desenvolverei este
tema mais tarde. Mas a grande característica da vida cristã é que
ela conserva, edifica e aumenta o que temos. O cristão está sempre
ganhando algo, sempre aprendendo algo novo. Sobre a vida piedosa, o Velho
Testamento declara que é uma vida que enriquece - que nos faz ricos em
todos os aspectos; de fato nos introduz nas “insondáveis riquezas de Cristo”.
A vida cristã faz isso. É uma vida que preserva, conserva e aumenta tudo
que há de melhor no homem. É precisamente o oposto do tipo de vida que o
filho pródigo levava; e o é em todos os aspectos. O pródigo jogou fora seu
dinheiro com as duas mãos. O cristão não é um miserável, mas diz o Novo
Testamento que ele é um “mordomo”. Ele retém e conserva; não joga fora
dinheiro a mancheias, sem pensar no que está fazendo. Compreende que lhe
foi confiada uma solene responsabilidade, e que lhe cabe desincumbir-se
dela corretamente. Portanto, ele é verdadeiramente um mordomo do seu
dinheiro e de tudo mais.

Outro contraste notável é este: a vida cristã, diversamente da vida de


embriaguez e de excesso, não esgota o homem. Essa é a tragédia daquela
outra

maneira de viver, não é? O pobre sujeito pensa que está sendo estimulado;
na verdade está se exaurindo por causa do seu pródigo uso da sua energia e
de tudo mais. Mas a vida cristã não produz exaustão; na verdade faz
exatamente o oposto, graças a Deus.

Neste ponto emerge um grande princípio. Aplica-se não somente à bebida,


mas também a muitos outros instrumentos de ação que têm exatamente o
mesmo efeito da bebida. Em termos simples, ele nos diz que a diferença
entre a operação do Espírito em nós e qualquer outra influência que, à
primeira vista, pode parecer semelhante à influência do Espírito é esta: que
todas as outras fontes de influência nos esgotam, ao passo que o Espírito
sempre coloca poder dentro de nós.
Permitam-me ilustrar o que quero dizer. Lembro-me de ter ouvido, há
alguns anos, que certa missão fora mantida sob os auspícios de uma
organização cristã, durante determinado período. E depois me lembro de
ter ouvido que o período subseqüente foi um dos piores períodos, no sentido
espiritual, da história daquela determinada organização. Menos pessoas iam
às reuniões de oração e às várias outras reuniões. As pessoas não estavam
apenas deixando de comparecer às reuniões de oração ou de fazer o seu
trabalho cristão regular, mas também não estavam lendo as Escrituras,
como costumavam. Alguém quis saber a causa desse estranho fenômeno, e a
resposta dada foi que sua causa era o que denominaram “exaustão pós-
campanha”. Todos os participantes estavam cansados e exaustos. Isso não
nos faz pensar profusamente?

O Espírito Santo, volto a dizê-lo, não nos esgota; Ele coloca poder dentro de
nós. Muitos outros elementos esgotam os homens. Se uma igreja ou
uma organização cristã fica exausta após uma campanha evangelística, eu
questionaria muito a base sobre a qual a campanha foi conduzida. O
Espírito não esgota ninguém, mas a energia produzida e gasta pelo homem
esgota. O álcool, ou qualquer estímulo artificial produzido pelo homem,
sempre nos deixa exaustos e fatigados. O Espírito não! A embriaguez
esgota; o Espírito Santo não esgota, mas comunica energia.

Da mesma maneira podemos indicar que este excesso, esta embriaguez,


sempre empobrece. O pobre bêbado se vê sem nada. Observem isto na
parábola do filho pródigo. Lá estava ele, coitado: o dinheiro tinha acabado,
tudo tinha desaparecido, e ele estava tentando conservar-se vivo comendo as
bolotas que eram dadas para alimentar os porcos. “E ninguém lhe dava
nada.” Ele não possuía absolutamente nada; estava completamente
empobrecido. Lembra-se do seu lar e do seu pai, e diz: “Ora, os servos de
meu pai estão em melhor situação que eu, têm pão “para dar e vender”, e eu
não tenho nada”. Ei-lo ali, esgotado; tudo se foi, completamente, e ele fica
sem um tostão, sem esperança, sem amparo e sem amigos. A vida cristã é o
exato oposto disso. O apóstolo o expressa novamente, escrevendo a Timóteo:
“Que entesourem para si mesmos um bom fundamento para o futuro” (1
Timóteo 6:19). Estamos edificando, estamos aumentando, estamos
crescendo, estamos a desenvolver-nos? Esse é um penetrante teste para
vermos se o Espírito está em nós em Sua plenitude, ou

não. A vida antiga, natural e pecaminosa nos empobrece e nos deixa sem
nada.

Agora me apresso a passar para o terceiro princípio. Tenho acentuado que a


vida cristã é uma vida controlada e ordenada, que é uma vida produtiva,
em contraste com todas as outras maneiras de viver. Mas, acima de tudo,
quero acentuar que a vida cristã não é uma vida meramente negativa.
Acredito que foi para dizer isso que o apóstolo usou esta comparação.
Podemos ler esta Epístola aos Efésios, especialmente do versículo dezessete
do capítulo quatro até este ponto, e talvez, lendo-a superficialmente,
fiquemos com a impressão de que a vida cristã é tão somente negativa - que
não devemos fazer isto, não devemos praticar aquilo, que não nos devemos
dar a conversas tolas e pilhérias, que não devemos embebedar-nos, e assim
por diante. Muitos pensam assim, e dizem: “Sua vida cristã é puramente
negativa; é apenas uma vida de proibições, e vocês estão sempre dando
ênfase a ordem, controle, disciplina, zelo e coisas semelhantes. Esta sua vida
cristã é inteiramente negativa?” A resposta é: “Não, mil vezes não”.

Como expor e salientar isto? Podemos expressá-lo nestes termos: como


temos visto, há algo concernente à vida cristã que leva o incrédulo a pensar
que o cristão está bêbado: “Estão cheios de mosto” (Atos 2:13). “E não
vos embriagueis com vinho, em que há contenda (ou “excesso”), mas enchei-
vos do Espírito." Não, esta não é nenhuma vida negativa! E creio que o
apóstolo estava particularmente interessado em mostrar isto. Alguns
parecem pensar que o cristão é um homem que, para empregar as palavras
de Milton, “zomba dos prazeres e vive dias afanosos”, que é um homem
triste, quase miserável, um homem meramente moral.

Acaso poderia ser expresso mais vigorosamente o fato de que o cristianismo


não é mera moralidade negativa, do que o faz este versículo? Supreende-se
alguém de que eu fale deste modo da moralidade? Faço isto porque, de
muitas maneiras, a moralidade é o maior inimigo do cristianismo. São os
homens morais e bons da igreja que hoje constituem os maiores inimigos da
cruz de Cristo; e, portanto, eles devem ser denunciados. O cristianismo não
é moralidade apenas ou ausência de certas coisas da vida do homem.
Certamente não há nada que faça mais dano à fé cristã do que esse modo de
ver. Estou dando ênfase a este ponto porque cada vez me convenço mais de
que muita coisa das condições da Igreja cristã hoje se explica
principalmente pelo fato de que por quase cem anos a Igreja tem estado
pregando moralidade e ética, e não a fé cristã. É esta pregação do “viver
bem”, de que o cristão deve ser “cavalheiro”, e do conceito de religião como
“moralidade tocada de emoção”, como o expressa Matthew Arnold, que é a
maldição. Tais homens deixam cair as doutrinas; eles não gostam da idéia
de expiação, eliminam toda a noção do miraculoso e do sobrenatural, e
consideram ridículo falar do novo nascimento. Para eles, cristianismo é
aquilo que ensina o homem a viver bem.

Mas isso é inteiramente falso. O cristianismo dá vida nova ao homem. Não é


apenas uma espécie de moralidade negativa e mecânica que entorpece a
alma e a priva de todo vigor e vitalidade. O apóstolo, digo eu, ao utilizar
esta

comparação, troveja para nós este fato tremendo, que a vida cristã não é tão
somente uma vida negativa, uma simples ausência do mal e do pecado.

Permitam-me agora expressar isso em quarto lugar, numa forma positiva. O


cristianismo é estimulante, o cristianismo é entusiasmante, o cristianismo
é emocionante! É isso o que Paulo está dizendo: “E não vos embriagueis
com vinho, em que há contenda" (ou “excesso”) - não vão atrás de bebida,
se é que vocês estão procurando emoção, ou estímulo, ou alguma alegria -
“mas enchei-vos do Espírito”, e terão isso tudo, e mais. Esta é a tremenda
idéia que é tão característica do ensino do Novo Testamento. O vinho - o
álcool - como já lhes tenho lembrado, farmacologicamente falando não é
estimulante; é depressivo. Apanhem algum livro de farmacologia, vejam
“álcool”, e sempre verão que ele vem classificado entre os depressivos. Não é
um estímulo. “Bem", vocês dirão, “por que as pessoas tomam álcool em
busca de estímulo?" Num sentido eu já respondi esta pergunta. Eis o que o
álcool faz: ele abate os centros mais elevados e, assim, os elementos mais
primitivos do cérebro vêm à tona e assumem o controle; e o homem se sente
melhor, temporariamente. Perde o seu senso de temor, perde sua capacidade
de discriminação, perde sua capacidade de avaliação. O álcool simplesmente
abate os seus centros mais elevados e libera os elementos mais instintivos,
mais primitivos; mas o homem acredita que está sendo estimulado. O que
realmente é verdade a respeito dele é que ele se tomou mais animalesco; seu
controle sobre si mesmo diminuiu.

Isso é exatamente o oposto do encher-se do Espírito; pois o que o Espírito faz


é estimular de verdade. Se fosse possível colocar o verbete “Espírito”
num livro-texto de farmacologia, eu o colocaria entre os estimulantes, pois é
a classe a que Ele pertence. Ele realmente estimula. Não apenas parece fazê-
lo, como acontece com o álcool, e por isso este nos entontece e nos ilude. O
Espírito Santo é um estímulo real, positivo, ativo.

Que é que Ele estimula? Estimula todas as nossas faculdades. Estimula a


mente e o intelecto. Posso prová-lo com muita simplicidade. A história
prova que o desejo de educar-se sempre acompanha um avivamento e
despertamento espiritual. Aconteceu na Reforma, aconteceu após o
despertamento puritano, aconteceu de maneira mais notável ainda após o
despertamento evangélico, há 200 anos. Lá estavam aqueles mineiros e
outros beberrões embrutecidos na região central, no norte e nas vizinhanças
de Bristol. De repente, foram convertidos por este poder do Espírito, e
começaram a clamar por escolas, e queriam aprender a ler. O Espírito
Santo estimula a mente. Ele é um estímulo direto para a mente e para o
intelecto. Ele realmente desperta as faculdades da pessoa e as desenvolve.
Ele não produz sobre eles o efeito que o álcool e outras drogas produzem. É
o oposto exato disso; é um estímulo verdadeiro.

Todavia, Ele não estimula somente o intelecto. Também estimula o coração.


Toca o coração; e não há nada que possa tocar as profundezas do coração
como o Espírito Santo. O álcool não toca o coração. O que o álcool faz, tomo
a dizê-lo, é liberar o elemento instintivo da vida; e o homem o confunde com
os sentimentos. Não é verdadeiro; é falso; tudo isso não passa da superfície.

O alcoolizado realmente não se sente responsável pelo que faz, e depois fica
aborrecido pela generosidade que demonstrou enquanto estava bêbado.
Seu coração não foi tocado, absolutamente; tudo aquilo simplesmente pôs
fora de ação o seu controle superior. Parecia generoso; no dia seguinte
deplora isso, e gostaria de poder anular o ato praticado. Isso não toca o
coração. Mas eis aqui algo que toca o coração, dilata-o, abre-o. E
igualmente a vontade. Certo é que a bebida paralisa a vontade e deixa ao
desamparo o homem. “Olhem para ele”, dizemos, “irremediavelmente
bêbado, incapacitado”. A influência do Espírito Santo, porém, é uma coisa
que toca e estimula a vontade.

Os cristãos de todos os tempos sempre concordaram em que a vida cristã


que receberam é o maior estímulo que se pode conceber. Está sempre
levando a algo novo, a algo maior. Posso dar meu testemunho pessoal a
respeito disto? Talvez vocês pensem que um homem que por mais de vinte
anos prega no mesmo púlpito, começa a achar que já esgotou a Bíblia, ou
que esta já deixou de estimulá-lo. Ao contrário, o que acho é que estou
apenas começando. É um trabalho cada vez mais maravilhoso. Acho-o cada
vez mais emocionante, semana após semana. Às vezes gostaria que houvesse
dois domingos por semana, e até mais! É tão extraordinário! A riqueza, a
profundidade e a amplitude são tais que sinto como se estivesse apenas nas
antecâmaras; e lá dentro estão estes grandes tesouros. Tive um vislumbre
deles, e quero examiná-los. Que vida estimulante, emocionante,
entusiasmante é esta! Nela sempre estamos em movimento, sempre nos
movendo para diante, virando esquinas e contemplando sempre panoramas
mais majestosos. Nunca tínhamos ouvido nada a respeito deste, e eis outro
além dele, e outro mais, e ainda outro.

De glória em glória somos transformados, até assumir no céu nosso


lugar; nossas coroas pondo aos pés de Cristo, cheios de amor, de enlevo e de
louvor.

O cristão é o homem cuja mente se expande, cujo coração é tocado e se


alarga. E ele deseja fazer alguma coisa, deseja dar de si, deseja ampliar
as fronteiras do reino de Deus, para que outros venham a partilhar dele. A
vida cristã afeta o homem completo - o intelecto, as emoções, a vontade.
Que estímulo!

Meu quinto ponto é que a vida cristã é uma vida feliz; é uma vida repleta de
alegria. Por que aquele pobre sujeito vai atrás da bebida? Porque sua vida
é uma miséria! Ele deseja ser feliz, mas é infeliz. Pensa na vida, e fica mais
infeliz ainda. Olha para outras pessoas, e estas lhe parecem tão infelizes
como ele; mas todo o seu pensamento é ser feliz. Daí ele se sente atraído pela
bebida. Ele está em busca de alegria, de felicidade. “Vocês estão interessados
em felicidade e alegria?”, pergunta o apóstolo. Pois bem, se estão, “enchei-
vos do Espírito”. “E não vos embriagueis com vinho, em que há contenda,
mas enchei-vos do Espírito.” Vocês pensavam que esta vida cristã era uma
vida insípida e

enfadonha? Se a resposta é sim, estavam errados em sua opinião sobre isso.


“Mas”, alguém dirá “é essa a impressão que eu tenho dos cristãos.” Tanto
pior para eles! Deus tenha misericórdia de nós se representarmos esta vida
como insípida e enfadonha! Digo novamente que ela é emocionante, feliz e
repleta de alegria. Ouçam o Velho Testamento: “A alegria do Senhor é a
vossa força” (Neemias 8:10). Ouçam o apóstolo, em sua Epístola aos
Filipenses 4.4: “Regozijai-vos no Senhor; outra vez digo, regozijai-vos”.
Estas são as grandes expressões da vida cristã e da fé cristã.

Ainda mais: esta vida não é apenas feliz e alegre, é uma vida que capacita a
pessoa a ser feliz e alegre, mesmo em meio a provações e tribulações.
Ouçam o que apóstolo Pedro diz sobre isso. Falando acerca do evangelho e
suas bênçãos, diz ele: “Em que vós grandemente vos alegrais, ainda que
agora importa sendo necessário, que estejais por um pouco contristados
com várias tentações” (1 Pedro 1:6). Eles estavam passando por um período
muito duro e difícil, estavam em meio a provações e tribulações, e, contudo,
ele diz: “Sei que vós grandemente vos alegrais”. Ele reforça essas palavras
no versículo oito do mesmo capítulo. Falando de Cristo, diz: “Ao qual, não o
havendo visto, amais; no qual, não o vendo agora, mas crendo, vos alegrais
com gozo inefável e glorioso.” Isto é cristianismo! Ou retomemos a Paulo e
vejamos a colocação que ele faz disso em Romanos, capítulo cinco. Vem ele
dizendo que, sendo justificados pela fé, temos paz com Deus por meio de
nosso Senhor Jesus Cristo, “Pelo qual também temos entrada pela fé a esta
graça, na qual estamos firmes, e nos gloriamos na esperança da glória de
Deus. E não somente isto, mas também nos gloriamos nas tribulações”. Os
cristãos se regozijam, mesmo em meio a tribulações, Como fazemos isso?
Bem, temos uma esperança, diz ele, e “porquanto o amor de Deus está
derramada em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado”. Vida
miserável, infeliz? Esta é a única vida verdadeiramente feliz!

O salmista tem a mesma mensagem para nós, no Salmo 4: “Muitos dizem:


Quem nos mostrará o bem?” Eis a resposta: “Senhor, exalta sobre nós a luz
do teu rosto”. Essa é a resposta! “Puseste alegria no meu coração, mais do
que no tempo em que se multiplicaram o seu trigo e o seu vinho.” Nunca os
homens ficam tão contentes como na época da colheita, diz o salmista.
Recolhem o trigo, armazenam os produtos e fazem vinho. Eles têm o seu
festival da colheita, alegram-se e mantêm as suas celebrações. Comem,
bebem, conversam, e se sentem felizes. O trabalho do verão e do outono está
concluído, e eles estão prontos para o inverno. É tempo de grande alegria.
“Puseste alegria no meu coração”, diz o salmista, “maior do que toda e
qualquer alegria que os homens jamais experimentaram ou que jamais
poderão experimentar, com todo o seu trigo e com todo o seu vinho.” As
alegrias naturais muitas vezes levam à miséria e à infelicidade, ao “dia que
vem depois da noite”, ao remorso e à exaustão. A alegria do Senhor não me
faz feliz somente de noite, mas também de manhã, e durante o dia
subseqüente, e dez, vinte anos depois - em meu leito de morte, e para todo o
sempre na glória. “Mais do que no tempo em que se multiplicaram

o seu trigo e o seu vinho.” Esta é a única alegria que persiste até na
adversidade. “Minha alegria”, diz Cristo à sombra da cruz, “vos darei, e
minha alegria ninguém tirará de vós.” Graças a Deus, homem nenhum
poderá tirá-la, porque se trata da alegria do Senhor, da alegria do Espírito
Santo.

A sexta característica da vida cristã é que é uma vida convival. O outro tipo
de gente quer companheiros alegres, convivência social, felicidade;
e argumenta que não pode ter convivência social sem bebida. Tenho lido
livros sérios que tratam disso. “Convivência social”, dizem eles, “é
impossível sem o estímulo da bebida” - naturalmente querem dizer, sem o
efeito soporífico da bebida! Mas pensam que estão desfrutando convivência
e amizade. A réplica apostólica é que somente encontramos isso aqui: “E
não vos embriagueis com vinho, em que há contenda, mas enchei-vos do
Espírito; falando entre vós em salmos, e hinos, e cânticos espirituais”.
Naturalmente, os cristãos gostam da companhia uns dos outros. Se você não
gosta da companhia de cristãos, não posso ver como você pode ser cristão,
de maneira nenhuma. “Nós sabemos que passamos da morte para a vida,
porque amamos os irmãos” (1 João 3:14). Porventura há na terra alguma
coisa comparável ao encontro de cristãos? Eu sacrificaria tudo que o mundo
tem para oferecer para ter cinco minutos com um santo! Que é que o mundo
tem para oferecer-nos de melhor e mais elevado, em todos os seus palácios,
em todos os seus refinamentos, em toda a sua arte e literatura, em tudo que
é seu, quando o vemos à luz disto - a comunhão das mentes congêneres e
cristãs, os filhos de Deus reunindo-se, conversando acerca da grande
libertação, acerca da nova vida e da bendita esperança que jaz diante deles,
conversando acerca do lar, conversando acerca da glória
vindoura, contentes juntos, enfrentando juntos os problemas, ajudando uns
aos outros, fortalecendo uns aos outros, estimulando uns aos outros? Essa é
a alegria dos cristãos que convivem em comunidade na vida da igreja. Não
há nada que se lhe iguale, contanto que seja genuinamente cristã. Ser
membro da igreja não lhes dará isso necessariamente, como tampouco o
fará a moralidade. Mas quando os membros da igreja estão cheios do
Espírito, a resultante é essa vida comunitária feliz; têm amor, têm interesse
uns pelos outros, têm compaixão, desejo de ajudar, e estão todos juntos num
grande e glorioso espírito de convivência, louvando o Senhor, unindo as suas
vozes em cânticos e antecipando juntos aquilo que ainda lhes está
reservado!

Deste modo, por intermédio da sua estranha comparação, o apóstolo


descortina um panorama diante de nós e nos propicia a visão de algumas
das glórias essenciais da vida cristã. Não, não se trata meramente, nem
unicamente, de um vida de abstenção de bebidas, de renúncia ao cinema, de
não fumar, de não fazer isto ou aquilo. A pessoa pode ser transparentemente
limpa em todas essas questões e ainda não ser cristã. É cristão o homem que
é estimulado pelo Espírito Santo. Sua personalidade se expande; ele é feliz,
alegre, fraterno, útil. Vive a mais emocionante e entusiasmante vida que o
ser humano jamais pode experimentar, e isso tudo é produzido pelo Espírito
Santo. Nada mais e ninguém mais podem produzir essas coisas, e produzi-
las todas ao mesmo tempo. O

homem dotado de grande poder de vontade, ou de elevada moral, pode


controlar-se. Sim, mas não pode fazer-se feliz. É por isso que eu tenho
denunciado o tipo de homem que é meramente moral, que dá a impressão
de que o cristianismo é uma coisa negativa e triste.

Mas, deixem-me dizer isso também, para ser justo - denuncio igualmente o
tipo de cristão que tenta produzir uma jovialidade e alegria falsa, ilusória
e fictícia. Não é essa a obra do Espírito Santo. Refiro-me àqueles que vestem
uma espécie de alegria exibicionista, e dizem: “Eu sempre mostro que sou
feliz como cristão”. O efeito que eles sempre causam em mim é fazer-me
sentir num estado extremamente miserável ao ver a exibição da sua
camalidade, e a sua incapacidade de compreender a doutrina concernente
ao Espírito Santo! Eles tentam criar essa alegria e a usam como máscara.
Então procuram fazer as suas reuniões vivas e alegres. Agora até chegam a
falar de “edifícios cheios de vida e de alegria”. Alguns até argumentam que
isso é essencial para a obra de evangeli-zação! Isso é embriaguez, isso é
excesso, isso é parecido com o efeito do álcool; é o homem tentando produzir
uma aparência de felicidade.

Não há nada mais revoltante do que um homem tentando dar a impressão


de que é feliz! O cristão não faz isso, porque ele é feliz. Este é o estímulo
do Espírito Santo, esta é a alegria do Senhor. Não há nada de exibicionismo
nisso. Não é uma representação teatral, não é uma coisa que se veste. Aqui
não é tanto o homem que se vê, mas o Senhor, que faz dele o que ele é. É
“alegria no Espírito Santo”. “Mas o fruto do Espírito é: caridade, gozo” (ou
“alegria”) - é isso! Abominemos, pois, e reprovemos a espécie de cristão que
dá a impressão de que o cristianismo é infeliz; mas, abominemos e
reprovemos igualmente a espécie de cristão que dá a impressão de que o
cristianismo é um tipo de vivacidade, de jovialidade, de atividade e de
comoção que não é senão carne, na categoria do efeito produzido pelo
excesso de vinho. “E não vos embriagueis com vinho, em que há contenda
(ou “excesso”), mas enchei-vos do Espírito.”

O PODER DO ESPÍRITO Efésios 5:18

Como vimos, o apóstolo formula aqui um daqueles princípios


absolutamente vitais e essenciais relacionados não somente com a nossa
compreensão da fé cristã, mas, na verdade, com toda a nossa vida como
cristãos neste mundo. Ele está lembrando a estes efésios, e a todos os
cristãos, que há realmente só um modo pelo qual a vida cristã pode ser
vivida, que há só um modo pelo qual os grandes problemas que agitam a
vida da sociedade e a levam a tão trágica desordem, podem ser
solucionados.

Ele começa com esta afirmação geral: “Agora”, diz ele, “vocês devem
encher-se, não de vinho, mas do Espírito, se é que hão de resolver
certos problemas que defrontam”. Que problemas? Um dos primeiros é o
problema de harmonizar-se uns com os outros. Daí dizer ele no versículo
vinte e um: “Sujeitai-vos uns aos outros no temor de Deus”. Não é fácil
relacionar-nos harmoniosamente uns com os outros. O mundo é
caracterizado por divisões, por conflitos, cada qual querendo ser o primeiro,
cada qual querendo ser importante. Essa é, naturalmente, a principal causa
de todos os problemas e dificuldades que estão assediando o mundo na
época atual. Ora, a declaração do apóstolo assevera que há realmente só
uma solução para esse problema, e essa é, que os homens e as mulheres se
encham do Espírito Santo de Deus. Somente quando estão cheios do
Espírito Santo de Deus é que podem sujeitar-se uns aos outros no temor de
Deus.

Depois ele passa para outro grande problema, o problema de maridos e


esposas. Eis aqui um importante problema moderno. Tentem avaliar a
calamidade e a infelicidade do mundo de hoje devidas ao conflito entre
cônjuges. Que infelicidade isso causa a homens, mulheres e crianças!
Pensem como isso está afetando todas as nações do mundo - as mais
adiantadas, como também as mais atrasadas. Como resolver esse problema?
Como tratar disso? A resposta do apóstolo é que só há um meio, e é o
seguinte: que os homens e as mulheres se encham do Espírito Santo.
Somente maridos e mulheres cheios do Espírito é que terão um verdadeira
idéia do que um esposo deve ser e do que uma esposa deve ser, e em que
deve consistir o relacionamento entre ambos. É o único meio pelo qual obter
paz, unidade e concórdia, em vez de desunião, briga e separação, com tudo
que resulta desses males. Essa é a única solução para este
problema também.

Depois o apóstolo passa para o problema de pais e filhos. De novo, bem que
ele poderia estar escrevendo para os nossos dias. Este é outro dos nossos

maiores problemas, como todos nós sabemos - delinqüência juvenil,


ilegalidade entre as crianças, pais com controle cada vez menor sobre os
filhos, filhos completamente irresponsáveis, exigindo direitos e não
reconhecendo nenhuma autoridade. Às vezes há excessiva severidade da
parte dos pais, que reconhecem que a indisciplina é um mal, mas não sabem
lidar com o problema. Há grande agonia e aflição no mundo hoje, como
resultado deste multilateral problema de pais e filhos.

Depois disso, Paulo parte para o problema final que expõe aos efésios, a
saber, a relação entre senhores e servos. Como estamos familiarizados com
este problema, em termos de greves de empregados, greves de
empregadores, e de todas as coisas que ferem o trabalho da sociedade e
põem em perigo a paz desta e doutras terras! Senhores e servos!

Meu ponto de vista é que, neste versículo, o apóstolo está firmando um


grande princípio universal. O modo de lidar com todos estes problemas, diz
ele, é encher-nos do Espírito. Eles só podem ser tratados desta maneira
particular.

Este princípio é ensinado em toda parte na Bíblia. Este é o único meio pelo
qual o problema fundamental da guerra poderá ser resolvido, pois a guerra
nada mais é do que aquilo que esbocei acima, mas em grande escala.
Éporque tantos não conseguem enxergar isto, que consomem muito do seu
tempo, do seu fôlego e da sua energia; não conseguem enxergar que a
guerra, afinal de contas, não é senão uma disputa entre duas pessoas,
ampliada - uma disputa entre duas pessoas da mesma família, ou do mesmo
país, uma disputa entre marido e mulher, pais e filhos, senhores e servos. À
guerra é justamente o que está envolvido numa destas situações,
multiplicado e ampliado. A guerra não é uma coisa especial e diferente, não
é um problema único, singular; é apenas o problema das relações humanas
em larga escala. Assim aqui, digo eu, estamos face a face com este princípio
deveras vital, ensinado na Bíblia toda; e aqui está o argumento - que não há
solução para estes problemas fora da solução dada pelo Espírito Santo de
Deus.

Noutras palavras, o apóstolo está procurando mostrar a estes efésios a sua


singularidade como povo cristão; e o seu argumento é que, uma vez que
são cristãos, e não são mais o que tinham sido, agora lhes é possível viver de
maneira certa e feliz. Virtualmente, ele está dizendo: “Agora, uma vez que
são cristãos, não devem ocorrer brigas e dificuldades de maridos e esposas
entre vocês. Ele pode dirigir-lhes um apelo especial, que não poderia dirigir
a ninguém mais. E a mesma coisa com pais e filhos, e senhores e servos. É
justamente porque o cristão pode ser cheio do Espírito, que o apóstolo está
escrevendo como o faz. “Graças a Deus”, diz ele, “afinal há uma solução, no
que nos diz respeito. Agora, pois”, continua Paulo, “ponham isso em
prática, tirem proveito disso.”

Quem quer que venha ao Novo Testamento com mente aberta, sem
preconceito, haverá de concordar que esse é o ensino do Novo Testamento.
Mas, naturalmente, todos somos sabedores do fato de que não é o que está
sendo feito no presente, e que o que está sendo ensinado em nome do
cristianismo e da Igreja cristã muitas vezes é coisa essencialmente diferente.
A idéia agora é que

a “ética” cristã, como lhe chamam, o ensino cristão, tem que ser extraído da
Bíblia, e deve ser apresentado, pregado e ensinado a toda gente, que deve
ser dirigido aos Estados como também aos indivíduos. Está sendo ensinado
que esta ética cristã é uma coisa que todos são capazes de aplicar e pôr em
prática; que o Estado pode fazê-lo, e que o mundo todo pode fazê-lo. Essa é
a noção e idéia moderna. E assim, temos dignitários da Igreja dizendo que
um líder como Nikita Khrushchev fez uma declaração cristã magnífica. Esse
é o modo pelo qual o evangelho está sendo mal compreendido e pervertido
hoje em dia.
A resposta simples para isso é que homem nenhum pode falar como cristão,
a menos que seja cristão. Mas alcançou aceitação geral a idéia de que o
cristianismo é isto: basta que tomemos a ética cristã e a ensinemos, como
digo, a toda gente - toda gente é capaz de apreciá-la e de entendê-la, toda
gente é capaz de aplicá-la e de pô-la em prática e em ação. E assim somos
confrontados por um ensino que, como pretendo demonstrar, é uma total
perversão do ensino do Novo Testamento. De fato, não hesito em ir além: é
esse ensino que constitui o maior perigo para a verdadeira fé cristã; é,
finalmente, a derradeira negação dos princípios fundamentais deste
evangelho cristão. Digo isso porque esse conceito ensina, fundamentalmente,
que o cristianismo visa a reformar o mundo, e que, embora os homens
neguem completamente as grandes doutrinas da fé cristã, podem, não
obstante, aplicar esta ética cristã. Podemos livrar-nos da guerra, podemos
livrar-nos dos armamentos, podemos livrar-nos de todos estes grandes
problemas mediante a simples aplicação da ética cristã; e essa é a principal
função do evangelho cristão, dizem-nos. E assim, no “Domingo Memorial”1,
em milhares de púlpitos essa é a mensagem apregoada. O cristianismo será
apresentado como nada mais do que um ensino que pode ser aplicado pelas
autoridades civis e políticas; e, por conseguinte, serão pregados sermões
sobre questões políticas e sociais, por exemplo, sobre como evitar a guerra,
como livrar-nos de todas as nossas armas, e assim seremos
todos perfeitamente felizes juntos. Essa é a idéia de muitos, quanto ao que
constitui a mensagem cristã.

Desejo demonstrar que esse ensino é errôneo, por todos os ângulos


concebíveis. Teologicamente, é completamente errôneo, do ponto de vista
da doutrina do Novo Testamento; também é inteiramente oposto à prática
da Igreja Primitiva. Em terceiro lugar, falha completamente na prática, e
leva ao resultado diretamente oposto àquilo que os seus proponentes
desejam.

Vejamos de relance os pontos dois e três, antes do meu exame do primeiro,


que é realmente o importante. Isso tudo, digo, é oposto à prática do
Novo Testamento. Tomem o Livro de Atos dos Apóstolos. Acaso vêem aqui
os apóstolos constantemente pregando sobre negócios de Estado? Passavam
o tempo pregando sobre o problema da escravatura? Ou tomando
resoluções e enviando-as ao governo romano e ao imperador, em Roma? É o
que a Igreja
moderna está fazendo. O tempo é dedicado à política e a questões sociais, e
nos é dada a impressão de que, se não ficamos constantemente pregando
contra armamentos, bombas, guerras e problemas raciais, realmente não
somos cristãos. Certamente é essa a impressão que nos dão os jornais, os
comunicados telegráficos e a televisão. Isto, dizem-nos, é cristianismo; e
devemos estar perpetuamente objetando, protestando e falando contra
certas coisas, fazendo representações aos governos e exercendo pressões
sobre eles. Mas eu lhes peço solenemente que submetam isso tudo à prova
do Novo Testamento. Poderiam imaginar coisa mais diferente daquilo que
vocês encontram no Livro de Atos dos Apóstolos? Não era essa a prática da
Igreja Primitiva e jamais foi essa a prática da Igreja nos períodos de
avivamento e despertamento. Constitui uma contradição da prática da
verdadeira Igreja. Não somente isso; digo que é uma coisa que falha na
prática. Houve tempos e épocas na história deste país em que a mensagem
cristã indubitavelmente exercia grande influência geral. Quero dizer com
isso, tempos em que o ensino cristão permeava a vida da comunidade como
um todo. Quando foi assim? A resposta simples e clara é que
sempre sucedeu assim quando havia grande número de pessoas cristãs. O
mundo só ouve a voz cristã quando esta é poderosa. O mundo,
naturalmente, está interessado em política e em números, e quando havia
grande número de cristãos que podiam exercer o direito de voto, os
estadistas e os políticos lhes davam atenção. Eles podiam afetar o resultado
de uma eleição, de modo que lhes davam atenção e tinham que dar “sopa”
ao ponto de vista do cristão e da Igreja.

Noutras palavras, o ensino cristão penetrou mais a vida geral da sociedade


nos períodos subseqüentes aos grandes despertamentos religiosos. Assim, se
a Igreja pretende que o seu ensino penetre a vida da sociedade, o caminho
mais rápido e mais curto para realizá-lo não é pregar política, não é pregar
sobre temas sociais, não é viver protestando contra isto e aquilo; é produzir
maior número de cristãos. E como se faz isso? Pregando o puro evangelho,
pregando um evangelho que possa converter as pessoas. Pregar contra a
guerra e contra as bombas não converte ninguém. Portanto, esse ensino
mesmo frusta o seu próprio propósito. Muitas de nossas igrejas estão vazias
porque muitos pregadores só têm pregado sermões sobre assuntos políticos
e sociais. Não têm pregado o evangelho, e não têm convertido homens e
mulheres; e, assim, há cada vez menos cristãos, e “os poderes que existem”
nos ignoram e podem dar-se ao luxo de esquecer-nos inteiramente. Desse
modo, também segundo este ponto de vista, essa perversão do ensino do
Novo Testamento é completa e inteiramente errada.

Mas, vamos para a coisa mais importante, vamos ver quão completa
negação é do verdadeiro ensino do Novo Testamento propriamente
dito. Observem-no do seguinte modo: a primeira coisa que é tão errônea
nisso é que causa divórcio entre a ética cristã e a doutrina cristã.
Frequentemente me refiro a esta questão nos dias presentes porque se ouve
falar disso constantemente. Já na semana passada uma pessoa me falava de
um problema. Era um problema

puramente médico, num sentido; e aquele bom amigo me dizia que o médico
lhe havia sugerido seguir certo tipo de tratamento. Ele quis muito saber se o
médico que sugerira esse tratamento era cristão, de modo que lhe
perguntou qual era a sua posição nessas coisas. A resposta do médico foi:
“Naturalmente, acredito na ética cristã; mas lamento não aceitar o que você
considera como doutrina”. Esta posição é de fato comum - que podemos
defender a ética cristã, sem crer no nascimento virginal de Cristo e em Suas
duas naturezas numa pessoa, nos milagres, na morte sacrificial e expiatória
de Cristo, na ressurreição física literal e na pessoa do Espírito Santo. Não
estão interessados , dizem eles, nestas “doutrinas e dogmas”, mas somente
na ética, no ensino de Cristo, no Sermão do Monte. “É isso que queremos”,
dizem eles, “é isso que precisamos ensinar ao povo; a viver desse modo; e
então eliminaremos a guerra, e tudo ficará bem.”

Não há nada, assevero, que seja tão anticristão como falar dessa maneira, e
pensar que podemos tomar a ética e despejar a doutrina. Por que digo isto?
A resposta se acha no Novo Testamento. Vejam o método de Paulo na
epístola que estamos estudando. Qual é? Os três primeiros capítulos são
dedicados inteiramente à doutrina; e é só depois de ter formulado a sua
doutrina, que ele começa a tratar da sua aplicação prática. Noutras
palavras, o apóstolo, num sentido, está dizendo em toda parte que ele não
tem nenhuma ética separada da sua doutrina. Vocês jamais encontrarão
ensinamento ético no Novo Testamento que não esteja no contexto da
doutrina. É a segunda metade da epístola que contém os ensinamentos
éticos, e estes sempre são introduzidos pelo termo “portanto”, ou seus
equivalentes. “Portanto” - à luz de tudo que estive dizendo -
“portanto”. Mas, sem esse “portanto” não temos ética nenhuma.

Noutras palavras, a pressuposição básica do apóstolo é esta: “Agora”, diz


ele, “vou falar-lhe sobre algumas questões muito práticas. Vou falar-lhes
sobre como devem conviver uns com os outros, maridos e esposas, pais e
filhos, senhores e servos”. E, diz ele, “Estou muito contente ao fazer isto com
vocês porque são o que são, porque não são como os outros gentios
continuam sendo, nem como eram outrora; porque isto lhes é possível”.
Esse é o seu pressuposto básico. O apóstolo não estava escrevendo um
tratado para o Estado, ou para o povo em geral; não era algo para ser
enviado ao imperador romano e seu governo em Roma. Não, ele está
escrevendo para a Igreja, para várias igrejas; ele está se dirigindo ao povo
cristão. Por isso escreve com total confiança.

O que o apóstolo faz aqui é o que fazem todos os outros escritores do Novo
Testamento; é o que foi feito pelo nosso bendito Senhor. Tomem toda a
prosa atual sobre o Sermão do Monte como uma espécie de carta magna
social, como o meio pelo qual introduzir no mundo o reino de Deus e
segundo esta legislação, reformar a sociedade. O Sermão do Monte, dizem
eles, é o de que se necessita - voltar a outra face, em vez de fabricar armas,
dar um grande exemplo moral, e tudo estará bem. Mas, leiam o Sermão do
Monte, e o que verão é que o Senhor afirma que essa espécie de vida só é
possível a certa espécie de pessoa. Que espécie? É a pessoa que Ele descreve
nas bem-aventuranças. “Bem-aventurados os pobres de espírito”; são estas
as únicas pessoas aptas a oferecer a outra

face. Há outras pessoas que poderão fingir fazê-lo, a fim de alcançar os seus
nefandos fins pessoais; mas nunca veremos ninguém oferecer a outra face
no sentido bíblico, a não ser alguém que seja “pobre de espírito”, que
“chore”, que seja “manso”, que tenha “fome e sede de justiça”, que seja
“pacificador” e limpo de coração”.

O Senhor deixa isso bem claro. É ocioso requerer esse tipo de conduta, a não
ser que o homem já seja um possuidor do Espírito Santo. Se posso expressá-
lo assim, não poderemos viver a vida do reino de Deus enquanto não
tivermos entrado no reino de Deus. Não podemos participar da vida do
reino de Deus sem sermos cidadãos desse reino. Portanto, é errôneo falar de
homens que estão fora do Reino como se estivessem vivendo a vida do
Reino; é uma contradição de todo o ensino do Novo Testamento. Não há
maior negação da fé cristã do que precisamente essa.

Permitam-me expressá-lo doutra forma. Este ensino moderno é uma


negação completa da doutrina bíblica do pecado e da depravação do
coração humano natural. Essa é realmente a essência da dificuldade toda. O
verdadeiro problema quanto a todo este ensino, tão popular hoje em dia, é
que ele não conhece e não compreende a verdade acerca do homem como ele
é, como ele é em resultado da Queda, como ele é em resultado do pecado.
Ou, se posso dizê-lo doutra maneira, toda a tragédia de tal verbosa conversa
é o seu otimismo fatal. É isso que me espanta e me alarma a seu respeito.
Como algum homem, que já tenha lido a Bíblia, pode ter o otimismo que
estes pregadores antibíblicos têm, excede o meu entendimento. Eles de fato
acreditam, nos dias presentes (1959), que uma declaração feita pelo Sr.
Khrushchev garante a maravilhosa possibilidade de estarmos a ponto de,
afinal, no século vinte, abolir a guerra, e de serem eliminados todos os
armamentos - eles realmente acreditam que isso vai acontecer. Que
extraordinário otimismo! Já é um estranho otimismo, mesmo para
as pessoas que leram alguma coisa sobre o curso da história da
humanidade; mas, como alguém que alguma vez leu a Bíblia pode acreditar
nesse tipo de coisa, ultrapassa completamente a minha comprensão.

E por esta razão: se vocês aceitam o ensinamento bíblico concernente ao


“homem em pecado”, verão que ele é uma criatura controlada mormente
por luxtírias e desejos. “Ah”, dirá alguém, “mas esse é um modo de ver
pessimista”. Contudo, esta não é questão que se resolve atirando epítetos a
seu respeito, é uma questão de encarar os fatos e de ser realista. O homem,
segundo a Bíblia, é uma criatura de cobiças e desejos; ele não é governado
por sua mente ou por sua razão; nunca o foi, desde que caiu em pecado pela
primeira vez. O apóstolo afirma claramente isso no capítulo dois desta
epístola: “E vos vivificou, estando vós mortos em ofensas e pecados, em que
noutro tempo andastes segundo o curso deste mundo, segundo o príncipe
das potestados do ar, do espírito que agora opera nos filhos da
desobediência, entre os quais todos nós também antes andávamos nos
desejos da nossa carne, fazendo a vontade da carne e dos pensamentos; e
éramos por natureza filhos da ira, como os outros também” (Efésios 2:1-3).
Esse é o ensino bíblico, do começo ao fim. Diz esse ensino que

o homem é uma criatura egoísta e egocêntrica. O que para mim é tão difícil
entender é como alguém, que tenha os olhos bem abertos, pode discutir
essa proposição. Por que há tanta aflição no mundo? Por que é difícil viver
com outras pessoas? “Ora, pois”, você dirá, “é porque a outra pessoa é
difícil”. Sim, mas aquela outra pessoa está dizendo a mesma coisa a respeito
de você; e a verdade é que vocês dois estão certos! Todos somos difíceis; e
somos difíceis porque todos somos egoístas, porque todos somos
egocêntricos, porque todos damos ouvidos a uma coisa elementar que há
dentro de nós e que quer as coisas para nós. Somos todos injustos, somos
todos incorretos, somos todos capazes de praticar terrível desonestidade,
perversidade, falsidade - cada um de nós! Quem questionaria isso?

Tal é o homem por natureza, o homem resultante do que está registrado no


capítulo três de Gênesis. No momento em que o homem deu ouvidos
ao inimigo, ao inimigo de Deus, colocou-se sob o seu poder; e a partir daí,
sua vida tem sido uma vida de inimizades e conflitos. Vemos isso já nos
filhos de Adão e Eva - Caim e Abel. Aí está! Caim ainda está vivo, sua
natureza ainda vive em cada um de nós, por herança. Varia em suas
manifestações, mas está em cada um de nós. “Donde vêm as guerras e
pelejas entre vós?”, pergunta a Epístola de Tiago; e responde: “dos vossos
deleites, que nos vossos membros guerreiam” (4:1). Por que ficam surpresas
as pessoas ante uma nação cobiçando outra? Por que ficarem surpresas com
o que a China está fazendo com a India no presente (1959)? Com o que
nações agressivas estão fazendo com nações mais fracas? E o que tem
acontecido na história da humanidade desde o princípio. Por que havemos
de ficar surpresos quando isto acontece em nível pessoal? Por que havemos
de esperar que uma corporação de pessoas seja diferente de indivíduos? Um
Estado é apenas a junção de pessoas individuais, e, havendo cobiça no
indivíduo, haverá cobiça no Estado. Não é surpreendente; na verdade, é
uma coisa que devemos esperar.

Todavia, é dolorosa e tragicamente evidente que isso está sendo esquecido


por completo hoje. A idéia, hoje em dia, é que o homem é
fundamentalmente reto, em si e por si mesmo, e que as suas dificuldades são
devidas ao fato de que ele é vítima das circunstâncias. “Ah”, dizem eles,
“somos herdeiros de antigas tradições. Se tão somente rompermos com elas
e nos livrarmos delas, tudo ficará bem.” Eles acreditam que o homem deseja
isto e que é capaz de realizá-lo.

Entrar nos domínios da política não é comigo - j á estive abominando o fato


de que a Igreja faz muito disso - mas, permitam-me colocar a questão
desta maneira: a essência do ensino bíblico, como o vejo, é que realmente
não devemos confiar totalmente em ninguém que não seja cristão! Isso
parece extremismo? É ensino bíblico típico. Por que trancamos as portas à
noite? Por que temos uma força policial? E porque sabemos perfeitamente
bem que na natureza humana há algo que é predatório, egoístico, injusto,
desonesto, e que, portanto, precisamos proteger-nos. A própria sabedoria do
mundo ensina que uma pressuposição com a qual devemos enfrentar a vida
e seus problemas, é que todo homem é mentiroso, e que todo homem é vão.
Este é um conceito

pessimista? - É um conceito realista.

Não somente a sociedade, como é hoje, comprova isso, mas todo o curso da
história o comprova. Porventura a segunda guerra mundial não foi
ocasionada principalmente pelo fato de que o povo não captou verdades
como esta, mas acreditou no óbvio mentiroso que foi Hitler, quando ele dizia
que desejava a paz e que ia realizar um grande feito? Acreditaram nele! É
quase incrível. Mas o ponto que defendo é que, não compreender o
evangelho é que leva o povo a cair em tão colossais erros. O evangelho nos
ensina que o homem em pecado é um caráter deveras mau, que nada o
deterá no caminho do seu propósito. Ele aparecerá como um “anjo de luz”,
dirá, “extingamos todas as armas”, e assim por diante. Tudo que digo é que,
se você não tiver examinado, não só o que ele é e diz na superfície, mas
também tudo que ele é, e tudo de que é capaz nas profundezas do seu ser, se
você acreditar nele, você é um tolo!

“Que significa isto?”, alguém perguntará. “Significa que você está


defendendo a guerra e as armas?” Não. De maneira nenhuma. Mas
significa, sim, que não confiamos nas simples afirmações dos homens,
porque o homem em pecado é mentiroso, e ele dirá qualquer mentira que
pareça favorecer os seus fins e propósitos. Significa que a lei, e o poder para
fazê-la cumprir, são indispensáveis.

“Maridos e esposas”; qual a causa de todas as dificuldades modernas nessa


esfera? quando leio os jornais, vejo que essas dificuldades são resultantes
do descumprimento dos votos solenes, da mentira e do fingimento, e de
dizerem as pessoas que não fizeram o que fizeram, ou que fizeram o que não
fizeram. Um homem mentirá para satisfazer as suas cobiças e os seus
desejos. E, todavia, o ensino popular atual é que basta oferecer às pessoas
esta ética cristã, e elas se nivelarão a ela, estarão prontas a ouvi-la, prontas a
crer nela. Não apenas isso; ensina-se que o homem moderno é de fato capaz
de pô-la em prática. Esse é o erro decisivo - crer que o homem, como ele é,
pode praticar esta ética cristã; que os homens, como eles são, estão prontos
a “sujeitar-se uns aos outros no temor de Deus”, que os casais estão prontos
a fazer isso naturalmente, e que os pais e filhos se dispõem a resolver todos
os seus problemas de acordo com este ensino. Basta que lhes digamos:
“Vocês não conseguem ver que estão agindo mal? Ora, se tão somente
fizessem isto e aquilo, tudo ficaria bem. Venham, decidamo-nos todos a fazê-
lo”. E a crença é que todos dirão: “Excelente! Concordamos com isso; agora
vamos começar a fazê-lo”.

Contesto: se acreditam que são capazes de fazê-lo, tudo que pergunto é: por
que demoraram tanto tempo para pôr em prática sua crença? Este tipo
de coisa, devemos lembrar-nos, tem sido ensinado durante muitos séculos.
Os filósofos gregos ensinavam utopias “possíveis” antes da vinda de
Cristo. Depois, veio o Sermão do Monte; ele tem estado perante o mundo
por quase dois mil anos. Se um exemplo moral é suficiente, por que não
seguem a Cristo? A resposta pura e simples é que não podem e não querem
fazê-lo. O homem está paralisado pelo pecado; o mal é a força mais
poderosa em sua natureza.

Não há necessidade de gastar mais tempo sobre isto, pelo menos para os

que conhecem bem o ensino do capítulo sete da Epístola aos Romanos. Pois
o que Paulo ensina ali é que a santa Lei de Deus, que Ele deu a Moisés
por intermédio de anjos, em vez de salvar os homens os tomou piores!
Atentem para as suas palavras (nos meus termos): “A Lei de Deus
provocou, estimulou o pecado dentro de mim, produziu em mim toda forma
de concupiscência” (versículos 5,8). “A Lei de Deus”, declara Paulo,
“afundou-me cada vez mais no pecado, matou-me, destruiu-me”. Por que?
Não é porque haja algo de errado com a Lei, diz ele, mas, sim, é devido a
este “pecado que habita em mim”; “o pecado, para que se mostrasse
pecado, operou em mim a morte pelo bem; a fim de que pelo mandamento o
pecado se fizesse excessivamente maligno”. E, no entanto, a despeito de tudo
isso, o que se prega com tanta regularidade é simplesmente a ética cristã, e
se dirigem apelos a Estados e governos para a porém em prática. Dizem-
nos: “Se tão somente todos fizermos isso, a guerra será extirpada e tudo
ficará bem.”

Dá-se isto porque os homens acreditam na perigosa falácia de que o homem


em pecado é propenso a seguir um exemplo moral. Vocês já conhecem bem
a argumentação. Dizem eles: basta que esta nação, basta que uma só
nação destrua todos os seus armamentos, e as outras nações a olharão
admiradas e dirão: “que coisa maravilhosa! Devemos todas levantar-nos e
fazer a mesma coisa”! Acreditam nisso; acreditam que isso acontecerá.
Talvez vocês se recordem de como, antes da segunda guerra mundial,
começou uma guerra entre o Japão e a China, quando um bem conhecido
clérigo se propôs a postar-se entre os dois exércitos, porque acreditava que
quando os dois lados o vissem, diriam: “Isso é tão maravilhoso! Não
podemos continuar combatendo”! Ele acreditava que o homem em pecado
pode sentir-se tão tocado por um exemplo moral, que dirá: “Ah, como estou
errado! Devo desistir disso tudo. Doravante vou viver esta vida nova, esta
vida maravilhosa”! Se isso fosse verdade, o Filho de Deus nunca teria vindo
a este mundo; Sua vinda não teria sido necessária. Os ensinamentos divinos
e os bons exemplos dos homens teriam sido suficientes.

Chego, pois, ao último ponto. O que está vitalmente errado nesse ensino é
que constitui uma negação completa da doutrina bíblica do Espírito Santo.
O apóstolo não diz às pessoas que “se sujeitem umas às outras” - aos
“maridos e esposas” que se sujeitem mutuamente do jeito certo e com
espírito certo, e igualmente aos “pais e filhos” e aos “senhores e servos” -
não lhes pede que façam isto sem antes de tudo dizer-lhes: “Enchei-vos do
Espírito”. Ele afirma que tal conduta é totalmente impossível sem que se
preencha aquela condição preliminar essencial. Mas as pessoas de hoje não
crêem no Espírito Santo; não crêem na pessoa do Espírito Santo. Elas falam
acerca do “espírito cristão” e do “espírito de fraternidade e de boa
vontade”, e assim por diante. Isso não é cristianismo; é moralidade; é ensino
pagão.

Aqui temos uma doutrina sobre a terceira pessoa da bendita e santíssima


Trindade, o Espírito Santo de Deus. O ensino bíblico é que não há
esperança para o homem, fora do Espírito. Que Lhe cabe fazer? A primeira
coisa que Ele faz é “convencer o mundo do pecado, e da justiça, e do juízo”
(João 16:8). O

mundo não acredita no pecado; precisa ser persuadido dele. O Espírito


Santo é enviado para isto. A despeito do fato de que o cristianismo tem sido
pregado durante quase dois mil anos, o mundo ainda não acredita no
pecado, não acredita na justiça, não acredita no juízo. Acredita em si
próprio, no homem, na capacidade do homem, na bondade do homem. Isso
é o oposto exato ao ensino de Cristo. Que mais o Espírito Santo faz? Por que
nos é enviado? Permitam-me recordar-lhes este bendito ensinamento:
depois de nos convencer do pecado, e depois de nos revelar a salvação que
há em Cristo “mediante Seu sangue”, que é que Ele faz? Dá-nos vida nova -
regeneração. Vemo-lo no ensino de Cristo a Nicodemos! Ouçamos o Senhor.
Diz El e, noutras palavras: parede falar, páre de fazer perguntas; na
verdade, na verdade, eu lhe digo que aquele que não nascer de novo, não
pode ver o reino de Deus; você precisa nascer de novo, precisa nascer do
Espírito (João 3:3-8). Não posso discutir o Meu reino com você, disse o
Senhor àquele homem excelente, moral, religioso - Nicodemos; não
posso discuti-lo com você porque não tem a mínima possibilidade de
compreendê-lo, como é. “Não te maravilhes de te ter dito: necessário vos é
nascer de novo. O que é nascido da carne é carne, e o que é nascido do
Espírito é espírito.” Você está procurando entender, mas não pode. Tem que
nascer de novo antes de poder entrar neste reino; então começará a
entender. E, contudo, os homens ainda defendem que se ministre o ensino da
ética cristã a Estados ímpios e ateus, e a homens e mulheres que não
nasceram de novo, que não são cristãos.

Tal conduta é uma negação de toda a base do cristianismo. O Espírito Santo


é enviado a regenerar os homens, para dar-lhes uma nova natureza,
uma nova mente, uma nova perspectiva, um novo tudo. Não há esperança
fora disso. Ele é enviado, igualmente, para promover a nossa santificação -
“Enchei-vos do Espírito”. Somente os que são controlados pelo Espírito
Santo de Deus podem viver em paz uns com os outros. Esta é a solução dos
problemas do casamento, dos problemas do lar, dos problemas industriais.
Uma vez que os homens sejam governados pelo Espírito e dEle se encham,
compreenderão, verão o mal que há neles, refrear-se-ão, controlar-se-ão,
“crescerão na graça e no conhecimento do Senhor”, a amizade e a concórdia
serão possíveis. Mas, somente quando nos enchermos do Espírito Santo.
Sem o Espírito, é impossível. Assim, o Espírito Santo tem em vista e nos é
enviado para promover a nossa santificação, para exercer controle sobre
nós e para capacitar-nos a viver a vida que Deus quer que vivamos.

Finalmente, o Espírito Santo nos é enviado para produzir avivamento e


despertamento religioso. Eu disse no inicio que os períodos em que a ética
cristã teve sua maior influência na vida da sociedade neste país, sempre
foram os períodos imediatamente posteriores a algum avivamento, sendo a
razão disto que, nessas ocasiões, milhares de pessoas se tornaram cristãs. A
era vitoriana, com os benefícios que trouxe para muitos, deve ser explicada
em termos do Despertamento Evangélico ocorrido há 200 anos. E porque
tanta gente era cristã, e porque em tantos templos e capelas esta mensagem
era pregada, e tantas pessoas creram, que a Igreja cristã era levada em
conta. O próprio numero dos

cristãos produziu “a consciência não conformista”, e os estadistas tinham


que lhes dar ouvidos. O Espírito Santo é enviado com tal poder nas épocas
de avivamento, que ocorrem numerosos conversões ao mesmo tempo.
Quando Ele é “derramado”, milhares podem ser convertidos num só dia. As
condições da sociedade podem sofrer transformação, bares e casas de
libertinagem podem ser fechados. As pessoas começam a pensar de nova
maneira, e realmente começam a procurar aplicar os princípios cristãos a
todos os aspectos da vida. Jamais se pode exercer influência sobre políticos,
câmaras, congressos ou parlamentos sem os números; e assim, como se vê,
embora crescente número de pregadores estejam pregando sobre assuntos
políticos e sociais, o principal resultado tem sido o de esvaziar as igrejas. A
vida da sociedade vai de mal a pior, e a situação vai ficando cada vez mais
sem esperança.

Há somente um modo de viver a verdadeira vida cristã; é “encher-nos do


Espírito”. É desperdício de fôlego apelar às pessoas para que melhorem,
é desperdício de fôlego apelar às pessoas em termos do “Domingo
Memorial”, dos horrores da guerra, e coisas do gênero. Poderão ficar um
pouco emocionadas e um pouco melhores pelo resto do dia, e talvez até o dia
seguinte. Mas tudo se evaporará logo, como o orvalho da manhã,
justamente como nos esquecemos todos os anos, com suma regularidade,
das resoluções tomadas na entrada de cada novo ano. O homem não tem
capacidade para a verdadeira vida. O homem necessita de uma nova
natureza. Ele precisa ser transformado; e somente o Espírito de Deus pode
fazer isso. O homem precisa “encher-se do Espírito”. Então será capaz de
fazer estas coisas. Antes disso, não.

Povo cristão, nossa principal ocupação em tempos como estes consiste em


esclarecer bem a todos aqueles com quem tivermos contato, o que é
realmente o cristianismo. O conceito popular predominante é uma negação
da fé cristã. Levemos luz a homens e mulheres. Mas, acima de tudo,
continuemos a instar em oração por avivamento, por despertamento, porum
poderoso derramamento do Espírito de Deus, para que a Sua verdade seja
autenticada, para que grandes multidões sejam trazidas para a vida e para
a fé, e se ponham a demonstrá-lo na prática e, deste modo, influenciem a
vida geral da sociedade. “Enchei-vos do Espírito”, do Espírito do Deus vivo.

do espírito de Deus, de sabedoria, e de entendimento, e de ciência, em todo o


artifício”. Este homem Bazaleel foi cheio do Espírito de Deus a fim de
poder fazer aquele trabalho particular. Foi um revestimento especial, um
ato especial pelo qual foi cheio do Espírito, para que ele pudesse cumprir
aquela tarefa. Mas existe demonstração mais interessante de como certas
pessoas foram cheias do Espírito antes do dia de Pentecoste. Esta é a
profecia concernente a João Batista, em Lucas 1:15: “Será cheio do Espírito
Santo, já desde o ventre de sua mãe”. Depois se nos fala de Isabel, mãe de
João: “Isabel foi cheia do Espírito Santo; e exclamou com grande voz, e
disse” (Lucas 1:41-42). A mesma coisa lemos a respeito de Zacarias, pai de
João Batista, no versículo sessenta e sete: “E Zacarias, seu pai, foi cheio do
Espírito Santo, e profetizou”.

Em cada um destes casos, pode-se observar, estas pessoas foram cheias do


Espírito Santo para poderem falar ou fazer alguma coisa. É um
revestimento de poder com um propósito especial.

O outro emprego do termo no Novo Testamento está, como já disse, em Atos


2:4: “E todos foram cheios do Espírito Santo, e começaram a falar
noutras línguas, conforme o Espírito Santo lhes concedia que falassem”.
Essa é uma proposição singular, porque as duas coisas aconteceram juntas.
Houve o batismo e, inclusive, o encher-se do Espírito; e foi isso que os
capacitou a falarem noutras línguas, conforme o Espírito lhes concedia que
falassem. Mas há aqui um ponto interessante. O apóstolo Pedro, com todos
os demais apóstolos, e com os seus seguidores, naquele dia de Pentecoste,
foram batizados com o Espírito e foram cheios do Espírito. Mas em Atos 4:8
lemos isto: “Então Pedro, cheio do Espírito Santo, lhes disse”. Aqui é outro
encher-se do Espírito. O homem que já fora batizado e cheio naquele dia de
Pentecoste, agora é cheio de novo, com um objetivo especial. O objetivo
especial, em Atos 4, era que ele e João, que tinham sido acusados diante das
autoridades, e agora estavam sob j ulgamento porque haviam curado o
inválido que se sentara à Porta Formosa do templo, tinham que falar. O
Espírito Santo pousou sobre Pedro, e este foi cheio do Espírito para que
pudesse falar com autoridade e poder a estas autoridades que o estavam
julgando. O mesmo Pedro é enchido do Espírito outra vez.
Estou confirmando o ponto que há esta diferença essencial entre ser
batizado e ser cheio. Mas ainda estamos tratando do encher-se do Espírito
em termos de capacidade e poder outorgados para a realização de uma
tarefa específica.

A seguir, tomemos outro exemplo. Após o seu julgamento, Pedro e João


voltaram aos seus companheiros, à igreja, e relataram o que lhes
acontecera, e todos se puseram a orar. Depois, é-nos dito no versículo trinta
e um do capítulo quatro de Atos: “E, tendo orado, moveu-se o lugar em que
estavam reunidos; e todos foram cheios do Espírito Santo, e anunciavam
com ousadia a palavra de Deus”. Repetiu-se a mesma coisa. Estas pessoas já
haviam sido batizadas, tinham sido cheias quando foram batizadas, mas
tornam a ser cheias novamente. Isto é uma coisa que pode repetir-se muitas
vezes. Na verdade, há outro exemplo notável, em conexão com o apóstolo
Paulo. A narrativa da sua conversão e a do seu batismo com o Espírito
Santo estão no capítulo nove do

Livro de Atos. Mas no capítulo treze vemos que Paulo está falando, e eis o
que nos diz o versículo nove: “Paulo, cheio do Espírito Santo, e fixando os
olhos nele, disse”. Lucas, o historiador, está tratando do caso do encantador
Elimas, que estava acompanhando um certo oficial romano. O apóstolo
tomou a resolução de repreender esse homem pelo que ele dissera. Daí se
nos diz que Paulo, cheio do Espírito Santo, fixou os olhos nele. Ele foi
“cheio” para poder falar a esse homem e repreendê-lo severamente.

À luz disso tudo, é óbvio que estamos lidando com uma experiência nítida,
precisa. Todas estas pessoas estavam cônscias do fato de que o Espírito
lhes sobreviera, que tinham sido dotadas de novo poder e de autoridade.
Sabiam exatamente o que havia acontecido. Portanto, esta é uma
experiência que descreve algo que nos sucede, a nossa tomada de
consciência de aumento de poder com um propósito específico. É, pois, uma
coisa bem distinta e clara.

No entanto isto não se restringe ao novo Testamento, graças a Deus. Leiam


as biografias dos grandes pregadores da Igreja através dos séculos,
e especialmente nas épocas de avivamento e despertamento, e verão essa
espécie de coisa repetida interminavelmente. O pregador, subitamente, fica
ciente de que o Espírito de Deus veio sobre ele e se apossou dele. Deixa de
ter domínio sobre si, e recebe luminosidade, compreensão, poder e
capacidade para falar com convicção; e coisas tremendas acontecem. O
homem toma consciência pessoal disso, e o mesmo se dá com os que o estão
ouvindo. Muitos são os exemplos disto, durante a longa história da Igreja
cristã.

Graças a Deus, isto não se limite à história passada. Pela graça de Deus,
continua acontecendo. Há homens ainda vivos que sabem disso, que
se regozijam com isso, homens que servem a Deus com honestidade e
sinceridade e que de vez em quando ficam conscientes desta experiência.
Então, esse é um modo como se emprega a expressão; estas diversas pessoas
foram cheias do Espírito, e receberam poder e capacidade incomuns.

Agora se levanta a questão: é esse o sentido desta proposição de Efésios


5:18? Opino que não, e que é preciso que não nos deixemos confundir
pela simples similaridade da expressão. Então, que será? Para mim é uma
descrição de um estado ou condição. Talvez a melhor maneira de entendê-la
seja relembrar o que se nos diz do Senhor no versículo primeiro do capítulo
quatro do Evangelho Segundo Lucas. Lemos que “Jesus, cheio do Espírito
Santo... foi levado pelo Espírito ao deserto”, para ser tentado pelo diabo.
Pois bem, essa é uma afirmação de que o Senhor foi “cheio do Espírito
Santo”. Igualmente nos fala a Seu respeito o capítulo três do Evangelho
Segundo João, dizendo que “não lhe dá Deus o Espírito por medida” (João
3:34). Ele sempre estava cheio do Espírito, em toda a Sua plenitude.

Mas observemos outras afirmações. Tomemos, por exemplo, o que lemos


acerca de Estevão em Atos dos Apóstolos. Ele foi um dos escolhidos,
como vemos no capítulo seis, para tratar de várias questões para que os
apóstolos pudessem entregar-se à oração e à pregação da Palavra. E isto
lemos sobre ele: “Estevão, homem cheio de fé e do Espírito Santo.” Ele era
cheio do Espírito

Santo. Não se declara que num dado momento ele foi cheio do Espírito para
fazer certa coisa. Não, ele foi escolhido para fazer esse trabalho porque já
estava “cheio do Espírito Santo”. Mas tomemos outra afirmação sobre ele
no capítulo sete, versículo cinqüenta e cinco, de Atos. Aqui Estevão estava
sendo julgado, e lemos: “Mas ele, estando cheio do Espírito Santo, fixando
os olhos no céu, viu a glória de Deus, e Jesus que estava à direita de Deus; e
disse...”
Ora, para mim essa declaração é duvidosa, duvidosa neste sentido, que não
estou certo se devo colocá-la na categoria que estamos considerando
agora, ou na categoria anterior. Na verdade, ela se enquadra nas duas
categorias. Estevão estava habitualmente cheio do Espírito Santo, mas, em
função das circunstâncias, da crise em que agora se achava, embora
estivesse cheio do Espírito, foi “cheio do Espírito” outra vez. Significa que,
embora estivesse cheio do Espírito, houve uma manifestação posterior, um
posterior aumento de poder, um posterior “encher-se” até ao
transbordamento, e lhe foi dada uma capacidade particular para enfrentar
os seus caluniadores e acusadores, e a proferir a Palavra de Deus com
ousadia e convicção. Portanto, essa é uma declaração interessante. Mas
examinemos também a declaração a respeito de Bamabé, companheiro de
Paulo. Sobre Bamabé lemos em Atos 11:24: “era homem de bem, e cheio do
Espírito Santo e de fé”. Parecido com Estevão. Era cheio de fé, e também
era cheio do Espírito Santo. Concluo com uma declaração a respeito dos
discípulos como um grupo. Em Atos 13:52 leio: “E os discípulos estavam
cheios de alegria e do Espírito Santo”.

Vocês vêem a distinção. Nestes casos - sendo um caso muito especial o de


Atos 7:55 - estamos agora vendo pessoas sendo cheias de “poder” para
fazer certa tarefa. É-nos dada uma descrição do estado normal destas
pessoas, da sua condição. Temos aqui uma descrição de um “estado” moral
e espiritual. Não é tanto uma questão de poder agora; é mais uma questão
de como vive a pessoa. Estevão do escolhido - por quê? Porque era um
homem “cheios de fé e do Espírito Santo”. Assim falavam dele e, portanto,
quando foram escolher os diáconos, disseram: pois bem, aí está um homem
cheio de fé e cheio do Espírito Santo. Bamabé foi escolhido pela mesma
razão. E sobre o corpo geral dos discípulos, lemos que eles eram “cheios de
alegria e do Espírito Santo”.

Há, portanto, uma óbvia diferença entre estas duas proposições, que
parecem semelhantes à primeira vista; e o que toma tão importante
diferenciá-las é que não devemos esperar que a expressão sempre indique o
encher-se especial, para uma tarefa. Esse vem e vai. Mas nos cabe estar
sempre “cheios do Espírito”. Daí a importância de diferenciar ambos os
casos. Por conseguinte, estabelecemos outro ponto. Um homem que está
cheio do Espírito pode, subitamente, ser cheio do Espírito Santo para uma
finalidade especial. Ilustrei isso com o caso do julgamento de Estevão.
Ilustrei-o também com o caso dos próprios discípulos, no dia de Pentecoste.
À luz de todas estas passagens das Escrituras, acaso não fica clara e
evidente que neste versículo - Efésios 5:18- estamos lidando com o
segundo emprego da expressão? Aqui nos é dado um relato de um estado ou
condição.

De fato penso que se pode provar isso, além de toda dúvida, da seguinte
forma: “E não vos embriagueis com vinho, em que há contenda, mas
continuai enchendo-vos do Espírito”. O tempo verbal é da maior
importância, e aqui consta o presente, o presente contínuo. A tradução mais
correta deste versículo é a seguinte: “Não vos embriagueis com vinho, em
que há excesso, mas continuai enchendo-vos do Espírito - sede
perpetuamente cheios do Espírito. Prossiga, continue, seja constantemente
esta a vossa condição”. É o presente contínuo. Argumento que, sendo o
presente contínuo, não pode ter o primeiro significado, que, evidentemente,
é algo que vem, e toma a vir, e ainda se repete, como aconteceu com Pedro,
com Estevão e com o apóstolo Paulo em várias circunstâncias difíceis ou
críticas. O ser cheio para uma tarefa é algo que vem e passa; já este ser
cheio do Espírito significa uma condição constante, permanente, que não
varia nem muda. Noutras palavras, o que nos é dito nesta passagem é que se
tem em vista que sejamos sempre como Estevão, como Bamabé, como Paulo
e como outros que eram homens “cheios do Espírito”.

É vital que isso fique firmado, pois, do contrário, não haverá nada senão
confusão. Há grande confusão acerca disso tudo, e as pessoas ficam
esperando por uma experiência de encher-se do Espírito porque têm uma
concepção equivocada deste ensino particular. Então já está firmado o que
isto significa em termos do uso típico do Novo Testamento. Mas, que
significa na prática hoje? Eis aqui a questão prática para nós.

Parece-me que a maneira de abordar isto é lembrar-nos de que o Espírito


Santo é uma Pessoa. Não é apenas uma influência. Muitos parecem falar
em encher-se do Espírito como se o Espírito Santo fosse uma espécie de
líquido. Falam em ter um “vaso vazio”, um jarro vazio, e em ter o Espírito
derramado dentro dele. Isso é um erro completo, porque esquece que o
Espírito Santo é uma Pessoa. Ele não é uma substância, nem um líquido,
nem um poder ou força como a eletricidade. Todos tendemos a cair neste
erro. Temos até a tendência de referir-nos ao Espírito Santo como a uma
coisa neutra, olvidando que o Espírito Santo é a terceira Pessoa da bendita e
santíssima Trindade. Nossas idéias quanto a “encher-nos do Espírito” são
inteiramente erradas justamente porque nos esquecemos de que Ele é uma
Pessoa. Mas, se é assim, por que a Bíblia emprega as expresões “derramar”
etc., com referência ao Espírito? Estas são apenas figuras, é claro. As
Escrituras desejam transmitir a idéia de que a influência do Espírito sobre
nós é um poder. Costumamos falar da “influência” da personalidade de uma
pessoa; mas não é alguma substância, e sim, a pessoa mesma, que gera a
influência. Estes são apenas termos e expressões empregados com o fim de
colocar a verdade para nós de maneira vivida, para podermos perceber
as variações que ocorrem na força da influência e do poder pessoais.
Quando esta influência é poderosa, ela é “derramada”; mas não devemos
literalizar uma analogia ou uma ilustração e começar a pensar nela de
algum modo materialista. A influência é influência exercida por uma Pessoa,
a Pessoa do Espírito Santo.

Então, que significa ser “cheio”, neste sentido? Vou citar uma definição

que se acha no Dicionário Grego e Inglês do Novo Testamento, de Thayer


(Greek Lexicon), obra padrão, de autoridade reconhecida. Vem nestes
termos: “Daquilo que toma plena posse da mente se diz que a enche”. Essa é
uma expressão da atualidade. E comum dizer que uma coisa que toma posse
da minha mente, enche a minha mente; assim, na conversação comum
inglesa, falamos em ser ou estar “cheio” de alguma coisa. Alguém, de
repente, passa a ter um novo interesse. “Ah”, dizemos, “ele está cheio disto,
não fala doutra coisa”. 2 Ora, é isso - ele está cheio desta coisa. Ou falamos
disto em termos de pessoas. Se vemos uma pessoa ficar falando sempre
doutra, dizemos: “Ah, ele está absolutamente cheio de Fulano”. 2 Estamos
falando acerca da influência da pessoa “A” sobre a pessoa “B”, e dizemos
que a pessoa “B” está cheia de “A”, sempre falando dessa pessoa, não
podendo parar de falar dessa pessoa. É como expomos, noutras palavras, a
influência controladora de uma pessoa sobre outra.

Isso tudo é com referência a pessoas. Mas, deixem-me fazer a seguinte


colocação: tomemos a analogia do apóstolo aqui - “Enão vos embriagueis
com vinho, em que há contenda, mas enchei-vos do Espírito”. Que é que
dizemos de um bêbado? Dizemos: “Ele está sob a influência da bebida”.
Assim, o que o apóstolo está dizendo, em certo sentido, é: “Não fiquem sob a
influência do vinho; fiquem sob a influência do Espírito Santo” - é
exatamente o que significa. “Ser cheio” significa “estar sob a influência de”.
O homem que está cheio de vinho, em que há excesso, o homem que está
“encharcado” de vinho, está sob a influência do vinho. Muito bem, diz o
apóstolo, não fiquem sob a influência do vinho, mas fiquem sob a influência
do Espírito Santo. E exatamente a mesma expressão.

Estar “sob a influência" significa que toda a nossa personalidade - mente,


coração e vontade - está sendo dominada por essa outra influência ou poder.
O homem que está sob a influência da bebida, acha-se totalmente sob
essa influência - sua mente é afetada e influenciada, e assim com o seu
coração e a sua vontade. Não se preocupem com a exata farmacologia disso
- esta é uma expressão pictórica. Como vimos, o que de fato acontece no
caso do homem com o vinho é que, não é tanto que ele esteja debaixo da
influência do vinho; é mais que o vinho afasta a influência mais elevada e
melhor que ele tem dentro de si. Dá no mesmo, na prática. Mas aqui há uma
analogia - como a mente, o coração e a vontade daquele homem são afetados
por aquele vinho, assim devemos ser influenciados e afetados na mente, no
coração e na vontade pelo Espírito Santo. O homem que está sob a
influência do vinho, não pode mais controlar-se. Muito bem, Paulo diz,
deixem que o Espírito Santo os controle. É isso que significa ser cheio do
Espírito. Não é uma coisa derramada em mim de modo que eu tenho que
tentar esvaziar o vaso primeiro, e então receber.... Essa maneira de pensar é
completamente errada, faz violência à Pessoa do Espírito. Não, a exortação
é: “Continuem sendo dominados pelo Espírito Santo”. Como

um assunto ou uma pessoa do seu interesse pode encher-lhes, assim sejam


plenamente cheios do Espírito Santo.

Se é esse, então, o seu significado, a subseqüente questão que se levanta é:


como isso vem a ser possível? Como uma pessoa pode encher-se do
Espírito? Eis aí uma questão sumamente importante. Nossa primeira
observação é que se trata de uma ordem, uma injunção: “Enchei-vos”,
“continuem sendo cheios” do Espírito, “continuem sendo dominados pelo
Espírito Santo”. Infere-se, pois, necessariamente, que não se trata de uma
experiência isolada. Dado que é uma ordem, não é uma experiência; dado
que está no presente contínuo, não é uma crise, não é um experiência
crítica; e, portanto, não deve ser procurada como “uma bênção”. Há muitos
que giram por todo lado, de reunião em reunião, procurando, esperando
conseguir “a bênção” de serem “cheios do Espírito”. Às vezes são
convidados para virem à frente, no fim de uma reunião, para “receberem” a
plenitude do Espírito. Mas, certamente, isso é fazer total violência à
linguagem empregada aqui, bem como a toda a analogia do ensino das
Escrituras. Não é uma experiência crítica, é um estado ou condição em
que devemos viver sempre, permanentemente. É como devem ser sempre,
diz o apóstolo; e ele nos ordena que sejamos assim. Daí deduzo que isto não
é uma coisa que nos acontece; é uma coisa que nós controlamos, e que nós
determinamos. Assim como o homem decide e controla se vai ou não vai se
encher de vinho, semelhantemente é ele que controla e decide se vai ser
dominado pelo Espírito ou não. Portanto, é-lhe dada uma ordem, uma
injunção, uma exortação. Devemos, pois, parar de pensar nisso em termos
de “ter uma experiência”.

De novo, permitam-me fazer a seguinte colocação, para maior clareza. O


que aconteceu com os discípulos no dia de Pentecoste foi uma experiência,
e não só eles ficaram sabendo disso, mas todos os demais o souberam. O
que aconteceu com Comélio e sua família, quando o Espírito caiu sobre eles,
foi uma experiência, e todos os demais ficaram sabendo disso. O que
aconteceu com os de Samaria, quando Pedro e João desceram para lá, de
Jerusalém, e impuseram as mãos sobre eles e oraram por eles, foi uma
experiência, e eles e todos os demais o souberam. Igualmente, com as
pessoas mencionadas em Atos 19:1-6. Ser “selado”, ser “batizado” com o
Espírito é um experiência definida. Não dominamos isso; é inteiramente
ação do Senhor. É algo que Ele nos faz. Mas é patente que este encher-se é
uma coisa que está sob o nosso controle; e, portanto, é-nos colocado na
forma de uma ordem ou de uma exortação: “Continuem sendo cheios do
Espírito e dominados por Ele”. Noutras palavras, devemos livrar-nos de
todas as noções de passividade, aqui; não esperamos, apenas, que isto
aconteça. Está em nosso poder determinar se estamos cheios do Espírito ou
não. Está claro? Não está em nosso poder determinar se vamos
ser regenerados ou não, não está em nosso poder determinar se vamos ser
batizados com o Espírito ou não, mas está em nosso poder decidir se vamos
continuar sendo cheios do Espírito ou não. Confundir este último fato com o
batismo com o Espírito é nada menos que uma grave perversão das
Escrituras. Encher-se do Espírito não é uma experiência pela qual
esperamos, ou pela qual oramos, ou

pelo qual ansiamos. Ao contrário, vocês e eu temos que fazer certas coisas,
se desejamos continuar a encher-nos do Espírito. Quais?

Primeiro, permitam-me colocá-las negativamente. Se pretendo continuar a


encher-me do Espírito, não devo “entristecer” o Espírito. Encontramos
essa expressão no capítulo quatro, versículo trinta: “E não entristeçais o
Espírito Santo de Deus, no qual estais selados para o dia da redenção”. Que
quer dizer? Quer dizer que se eu e vocês nos rendermos a alguma coisa
oposta ao Espírito, não estaremos sob o controle do Espírito. Se eu permitir
que minhas cobiças e paixões me dominem, então o Espírito Santo não me
estará dominando. “Porque a carne cobiça contra o Espírito, e o Espírito
contra a carne; e estes opõem-se um ao outro” (Gálatas 5:17). Se eu desejo
ser cheio do Espírito e ser dominado por Ele, preciso cuidar que as minhas
cobiças, paixões e maus propósitos não me estejam dominando; nem
tampouco o diabo deverá dominar-me. Devo resistir ao diabo, e também
devo resistir ao “mundo”. Isso é óbvio; não devo entristecer o Espírito. Se
estou levando uma vida de pecado, Ele Se entristece; e Ele não me controla;
quando está entristecido. Ele Se retira. Lembremo-nos de que estamos
lidando com uma Pessoa. Portanto, devo ser muito cuidadoso para, em
termos negativos, não entristecê-lO de modo nenhum. Ele é comparado com
uma pomba - gentil e sensível.

De igual modo, não devemos “extinguir” o Espírito. O Espírito está em


nosso interior estimulando, dando idéias, produzindo pensamentos,
fazendo sugestões. Toda vez que as recuso ou as rejeito, toda vez que digo,
“Não, espera um minuto, quero fazer isto primeiro, e depois...”, estou
extinguindo o Espírito, e na mesma proporção não estou sendo dominado
pelo Espírito. Isto é voluntário, está sob o meu controle. Se deliberadamente
O rejeito, se deliberadamente faço coisas que Ele me diz que não faça, bem,
não estou sendo controlado pelo Espírito; e não desfrutarei os resultados da
bênção de ser dominado pelo Espírito.

Mas, passemos para a visão positiva - isso é o mais importante. A visão


negativa certamente é óbvia. Não podemos encher-nos de vinho e do
Espírito Santo ao mesmo tempo; não podemos encher-nos do pecado e do
Espírito Santo; são incompatíveis. “Não há comunhão entre a luz e as
trevas, entre Deus e Belial” (2 Coríntios 6:14-16). Isso é elementar, por
certo. Temos que parar de entristecer o Espírito; temos que resistir ao
diabo, temos que sujeitar o corpo, temos que lutar contra os resíduos e
restos do pecado que há em nós. Essa é a primeira parte, mas é negativa.

E a positiva, que é? É isto - e nada pode ser mais importante que isto -temos
que dar-nos conta de que Ele está dentro de nós. O Espírito Santo está em
todo cristão. “Ou não sabeis que o vosso corpo é o templo do Espírito Santo,
que habita em vós, proveniente de Deus, e que não sois de vós mesmos?”
(1 Coríntios 6:19). Essa é a primeira coisa; e é porque tão
constantemente esquecemos isto, que não somos cheios do Espírito, e não
somos dominados por Ele. Para empregar as palavras de um hino, Ele está
dentro de nós - “hóspede bondoso e bem disposto”.

Já notaram como o Senhor se expressa a respeito? Ele ia deixar os Seus


discípulos, e eles estavam desanimados. Disse Ele: “Não se turbe o
vosso coração” - não se entristeçam. “Não lhes deixarei sem consolação”;
que significa: “Não lhe deixarei órfãos, enviarei outro Consolador” (João
14). “Enviar-lhes-ei Alguém que fará por vocês o que tenho feito enquanto
estive com vocês. Vocês me procuravam quando estavam em dificuldade, me
consultavam. Eu estava sempre aqui para responder-lhes. Porque lhes digo
que parto, dizem: “E agora, que faremos?” Não se pertubem, porém. Vou
enviar-lhes outro Consolador, vou enviar-lhes outro Advogado, Alguém que
estará para sempre com vocês, em vocês; estará com vocês o tempo todo
para guiar-lhes, dirigir-lhes e fazer tudo de que tiverem necessidade. O meio
pelo qual somos dominados pelo Espírito Santo consiste em lembrar-nos de
que Ele está aí, “hóspede bondoso e bem disposto” dentro de nós, habitando
em nós. Temos que fazê-lo deliberadamente. Temos que repetir para nós
mesmos estas passagens bíblicas. Devemos começar o nosso dia dizendo a
nós mesmos alguma coisa como isto: “O Espírito Santo está morando em
mim, Ele está em meu corpo; o meu corpo é templo do Espírito Santo, que
vive e mora dentro de mim. Devo lembrar-me disso”.

Permitam-me usar uma ilustração simples, Que é que os pais que têm filhos
pequenos fazem quando têm em casa um hóspede ou um
amigo? Geralmente as crianças acordam cedo, de manhã. Que lhes dizem os
pais? Vocês diriam: “Fiquem quietos, não perturbem o nosso hóspede”.
Vocês os fariam lembrar-se de que este hóspede está na casa, e lhes diriam:
“Agora, tenham cuidado, não gritem, fiquem quietos, vejam bem quem está
aqui”. É precisamente isso que eu e vocês temos que fazer, se é que havemos
de ser dominados pelo Espírito Santo - lembrar-nos de que Ele está aí, está
em nós, habita em nós. Sem esta percepção, nunca seremos dominados por
Ele. Temos que recordar isto, que lembrar-nos disto, e continuar
lembrando.

Mais que isso; temos que desejar tê-lO, temos que ansiar por Ele, por Sua
companhia e Sua comunhão. Já notaram quantas vezes o Novo Testamento
fala da “comunhão do Espírito Santo”? Vejam a bênção: “A graça do
Senhor Jesus Cristo, e o amor de Deus, e a comunhão do Espírito Santo
sejam com vós todos” (2 Coríntios 13:13). Precisamos que nos lembrem
desta comunhão, temos que lembrar-nos a nós mesmos dela, e que buscá-la.
Se Ele está em mim, devo não somente captar o fato, mas devo comungar
com Ele, devo ter comunhão com Ele. Devo consultá-lO, considerar Sua
presença e pedir-Lhe que Se manifeste a mim cada vez mais. É assim que
podemos ser cheios do Espírito.

Em seguida, também, preciso prestar a máxima atenção a todas as Suas


sugestões: “operai a vossa salvação com temor e tremor; porque Deus é o
que opera em vós tanto o querer como o efetuar” (Filipenses 2:12-13). Como
o faz? Mediante o Espírito Santo. Ele “opera em vós tanto o querer como o
efetuar”. Se alguma vez vocês sentirem um súbito desejo de ler a Palavra de
Deus, será o Espírito Santo agindo em vocês. Ele está em vocês, Ele os está
incitando. Obedeçam-Lhe; vão fazê-lo. Se se sentirem impulsionados a orar,
façam-no.

Obedeçam-Lhe; parem de fazer o que estiverem fazendo; não adiem a


obediência. ELE lhes solicitou isto; portanto, larguem tudo; façam o que Ele
pede. Sejamos sensíveis às Suas sugestões. Dessa maneira é que seremos
cada vez mais dominados pelo Espírito. Quanto mais Lhe obedecermos,
mais indicações dará dos Seus desejos, mais sugestões nos dará. Portanto,
devemos ser cuidadosos e meticulosos na obediência a cada um dos Seus
mandados ou exigências, a cada uma das sugestões ou apelos que dEle nos
venham.

Todas estas coisas nos sucedem com freqüência. Ele quer conduzir-nos
avante, quer guiar-nos. Sempre o faz, sempre está desejoso de mostrar-nos
mais e mais do Senhor Jesus Cristo. Deixem-nO fazê-lo.Não nos pesará a
culpa de apagar saudáveis insinuações acerca da freqüência à casa de Deus,
acerca da leitura das Escrituras, acerca da oração, e acerca de mil e uma
coisas mais? Ocorrem as sugestões do Espírito Santo com vistas a conduzir-
nos, dominar-nos e dirigir-nos. Deixemos que Ele o faça. Esse é o sentido da
exortação em foco.

Não recebemos isto como uma experiência isolada. Quase ia dizendo:


quisera Deus que o fosse! Quão mais fácil seria! Mas o exposto é o método
de Deus. E questão de relacionamento pessoal; e, como cristãos, somos
criaturas responsáveis. Ele não vai ficar fazendo tudo enquanto ficamos na
passividade. Não é que tudo é feito maravilhosamente para nós, não nos
restando mais nenhuma luta. Há luta! O mundo, a carne e o diabo
continuam aí, e temos que resistir-lhes. E também temos que ouvir
positivamente o Espírito e dedicar tempo e atenção para fazê-lo.

Nessas questões não existem atalhos. Não recebemos isso num pacote
fechado e amarrado, como artigo de pronta entrega, já tudo pronto e
completo. Não, esse método é próprio das seitas; não é esse o ensino do Novo
Testamento. É psicologia; não é o ensino das Escrituras.

Demos ouvidos às sugestões do Espírito, e a seguir demos ouvidos à Palavra,


às Escrituras. Que é esta Palavra? É a Palavra do Espírito Santo. Ele é o
Autor. “Homens santos de Deus falaram inspirados pelo Espírito Santo”
(2 Pedro 1:21). Nada desta Palavra é de particular interpretação; ela não é
do homem, é a Palavra de Deus. Leiam-na, digo-lhes, estudem-na, devorem-
na, procurem compreendê-la, dediquem-lhe tempo e atenção. Vocês têm
aproveitado todas as oportunidades para aprofundar-se nesta Palavra?
Basta comparecer a um culto por semana? Quantas vezes damos atenção à
exposição pública da Palavra e ao estudo privado para compreendê-la? É
dessa maneira que somos conduzidos pelo Espírito. Conhecer a Sua Palavra
e todas as suas injunções, dar-lhes ouvidos; ter sensibilidade ante elas, e
então obedecê-las! Obedecer à Palavra de Deus! O Espírito Santo agrada-Se
quando um de nós toma uma palavra das Escrituras e a põe em prática,
quando deixamos que ela governe as nossas decisões, as nossas ações e todo
o nosso comportamento.

Aí estão, pois, alguns dos princípios. Mencionei apenas alguns títulos dos
meios pelos quais havemos de encher-nos do Espírito. Constitui
submissão voluntária ser dominado em toda a nossa vida, mente, coração e
vontade, pelo Espírito Santo de Deus.

A que isso leva? É o que o apóstolo vai dizer, na seqüência. Significa que o
fruto do Espírito se manifestará em nós. Onde Ele exerce o controle, o
fruto é evidente e óbvio - “caridade (ou “amor”), gozo, paz, longanimidade,
benig-nidade, bondade, fé, mansidão, temperança” (Gálatas 5:22). Ei-los!
São evidentes. E também todas as coisas que o apóstolo passa a dizer no
versículo seguinte, o versículo dezenove deste capítulo cinco de Efésios -
acerca de como devemos conduzir-nos na casa de Deus, de como devemos
conviver harmoniosamente, maridos e esposas, pais e filhos, senhores e
servos. Quando os homens e as mulheres são dominados pelo Espírito Santo
na mente, no coração e na vontade, essa é o tipo de vida que levam.
Prossigamos, continuemos sendo dominados pelo Espírito Santo, que habita
em nós como “hóspede bondoso e bem disposto”.

SUBMISSÃO NO ESPÍRITO Efésios 5:21

Há uma questão técnica na afirmação em epígrafe a que devo referir-me


antes de dar continuidade às considerações sobre ela; e a questão é que
todos concordam que devia ser: “Sujeitando-vos uns aos outros no temor de
Cristo”. Não é problema de tradução, mas, antes, de manuscritos; e, fora de
toda dúvida, os melhores manuscritos dizem aqui, “no temor de Cristo”, e
não, “no temor de Deus”. Naturalmente, em última instância, vem a dar na
mesma; mas dá uma ênfase adicional ao que o apóstolo diz, como veremos.

Aí está uma proposição que deve ser cuidadosamente vista em seu cenário e
em seu contexto. É importante fazê-lo, para que possamos
compreender verdadeiramente o que o apóstolo de fato está dizendo.
Noutras palavras, devemos dar atenção à conexão por um momento. Há os
que a traduzem de molde a fazer dela uma injunção nova e separada. Dizem
eles que nesta seção o apóstolo está dando uma série de exortação
separadas. Mas isso é inteiramente injustificável. Ele não disse: “Sujeitai-
vos uns aos outros”; disse: “Sujeitando-vos uns aos outros”. Portanto, não
devemos considerá-la uma afirmação ou exortação independente. Outros
dizem que se trata meramente e apenas de uma introdução ao que vem a
seguir, como se dissesse: “Sujeitai-vos uns aos outros no temor de Deus. Vós,
mulheres, sujeitai-vos a vossos maridos, como ao Senhor - e assim por
diante, com “filhos” e “servos”. Assim, fazem dela uma espécie de
introdução ao que segue. Mas, certamente, estas duas opiniões
estão erradas. A segunda é menos errada que a primeira. Não obstante, é
patente que o que o apóstolo está fazendo é continuar o que já vinha
dizendo e, ao mesmo tempo, introduzir o que vai dizer. Parece-me que essa é
a única maneira certa de interpretar esta proposição. É uma espécie de elo
de ligação entre o texto anterior e o posterior. Noutras palavras, é uma
ilustração suplementar do que ele tinha formulado como princípio
fundamental no versículo 18, “E não vos embriagueis com vinho, em que há
contenda, mas enchei-vos do Espírito”. Defendo a idéia de que ele ainda tem
isso em mente, e se dirige a homens e mulheres cheios do Espírito. Ele já
lhes havia falado certas coisas sobre eles mesmos que eram inevitavelmente
verdadeiras, se é que eram cheios do Espírito. Então, aqui é mais outro
ponto. Assim, interpretamos esta proposição à luz do versículo 18, com sua
exortação para que continuemos sendo cheios do Espírito.

Estou dando ênfase a isto porque nenhum homem tem a menor


possibilidade de fazer o que está neste versículo, a menos que esteja cheio do
Espírito.

É inútil sair pelo mundo, dizendo: “Sujeitai-vos uns aos outros no temor de
Cristo”. O mundo não somente não faz isso; não quer e não pode fazê-lo.
Esta é uma exortação sem sentido para quem não está cheio do Espírito.
Daí, insisto em que aqui o apóstolo está dando seqüência às duas idéias que
tem em mente no versículo 18: “E não vos embriagueis com vinho, em que
há contenda (ou “excesso”)”. O bêbado não se submete a ninguém. Ele se
afirma a si próprio. Isso caracteriza o ébrio. Falta-lhe controle,
principalmente neste aspecto. Gaba-se, louva-se a si próprio e se acha
maravilhoso. Se havemos de sujeitar-nos uns aos outros, temos que ser
inteiramente diferentes dos que estão cheios de vinho e vão chegar àquele
excesso. E, por outro lado, temos que encher-nos do Espírito.

Aí está, segundo penso, a conexão essencial. Aí está a idéia básica. Temos de


ser diferentes do que temos sido, temos de ser diferentes do mundo,
temos de ser completamente diferentes, em nossas características essenciais,
dos homens e mulheres que ainda pertencem aos domínios do mundo.
Devemos encher-nos do Espírito. Como demonstramos isso? Até aqui o
apóstolo o esteve ilustrando com a nossa relação com Deus. Esteve tratando
do nosso culto, “Falando entre vós (uns aos outros) em salmos e hinos, e
cânticos espirituais: cantando e salmodiando ao Senhor no vosso coração;
dando sempre graças por tudo a nosso Deus e Pai, em nome de nosso Senhor
Jesus Cristo”. São cheios do Espírito, diz ele, e vocês encontram em suas
reuniões, em suas reuniões conviviais de felicidade e de alegria. Devem
expressar todas essas coisas juntos no culto de Deus, em louvor e adoração.
Não somente isso, porém, diz ele; devem manifestar este mesmo espírito em
seu trato uns com os outros, no companheirismo que têm uns com os outros
ao nível puramente humano e terreno. Assim, ele está salientando o seu
tema básico, mostrando que os homens e as mulheres cheios do Espírito
devem apresentar essa característica em seu relacionamento uns com os
outros.

1
Refere-se ao dia do armistício da Primeira Guerra Mundial (11.11.1918) - comemorado anualmente.

2
Sentido diverso do uso popular da expressão em português. Nota do tradutor.
Essa é a maneira de abordar este versículo particular. É indispensável
entender exatamente o que significa, porque o apóstolo vai ilustrar esta
verdade em três aspectos particulares. Ele formula o princípio e depois,
tendo feito isso, diz, aplicando-o a casos particulares: “Vós, mulheres,
sujeitai-vos a vossos maridos, como ao Senhor... Vós, filhos, sede obedientes
a vossos Pais no Senhor, porque isto é justo... Vós, servos, obedecei a vossos
senhores segundo a carne”. Como já vimos, estas três colocações são
ilustrações separadas e particulares deste princípio fundamental que
sempre deve reger a relação dos cristãos, uns com os outros.

“Sujeitando-vos uns aos outros”. Notem que a própria maneira como o


apóstolo o expressa, confirma o que acabo de dizer sobre a conexão
deste versículo com o seu contexto. “Vós, que sois cheios do Espírito,
deveis, portanto, cantar juntos, sujeitar-vos uns aos outros, e portar-vos
como convém, nas cruciais relações da vida.”

Mas, que significa “sujeitando-vos uns aos outros”? Uma tradução melhor,
talvez, seria: “Sendo sujeitos uns aos outros”. A idéia que obviamente ele

tem em mente, em vista da palavra que emprega, é mais ou menos esta: é o


quadro de soldados de um regimento, soldados alinhados, sob o comando de
um oficial. A característica de um homem nessa posição é que, num sentido,
ele já não é mais um indivíduo; é agora membro de um regimento; e todos
eles juntos ouvem as ordens e instruções que o oficial lhes dá. Quando um
homem se alista no exército ele abre mão do seu direito de determinar sua
própria vida e atividade. Quando um homem se alista no exército ou na
força aérea ou na marinha, ou seja no que for, não mais se governa, não
mais tem domínio sobre si; ele tem que fazer o que lhe dizem. Não pode sair
de folga quando lhe dá na telha, não pode levantar-se de manhã na hora que
quer. Está debaixo de autoridade, e as regras mandam nele; e se começar a
agir por conta própria, e independentemente dos outros, faz-se culpado de
insubordinação e será adequadamente punido. Dessa natureza é a palavra
que o apóstolo emprega; portanto, o que ele diz eqüivale a isto - que nós,
que somos cheios do Espírito, devemos comportar-nos voluntariamente
desse modo, em relação uns com os outros. Somos membros do mesmo
regimento, somos unidades deste mesmo exército grandioso. Cabe-nos fazer
voluntariamente o que o soldado é “forçado” a fazer.
Como funciona isso na prática? Não é suficiente usar apenas palavras; estas
coisas têm que ser aplicadas à vida. O Senhor Jesus o expressou
aos discípulos: “Se sabeis estas coisas, bem-aventurados sois se as fizerdes”
(João 13:17). O que será que isto envolve? Que significa termos que nos
sujeitar, e sujeitar-nos uns aos outros? Em termos negativos significa,
evidentemente, certas coisas. Não devemos ser irrefletidos. Muitas aflições
da vida, e muitos conflitos, são devidos ao fato de que as pessoas não
pensam. Ações impetuosas são a maior causa de conflitos, brigas e
infelicidade em todas as esferas da vida. Se as pessoas tão somente
pensassem antes de falar, ou antes de olhar, ou antes de agir, que diferença
isso faria! Mas o problema com o homem natural é que ele não reflete; tem
uma idéia, e logo a expressa; tem um sentimento, e imediatamente o quer
pôr em ação; mal lhe vem um impulso, e ele age. Portanto, numa colocação
negativa, o apóstolo está dizendo que o cristão nunca deve ser uma pessoa
destituída de pensamento, nunca deve viver aquele tipo de vida instintiva,
intuitiva. Como o apóstolo já nos estivera falando demoradamente, o cristão
é pessoa governada pela verdade, governada por princípios; o cristão
é sábio. Paulo já se expressara, “mas como sábios”. E de novo: “Pelo que
não sejais insensatos, mas entendei qual seja a vontade do Senhor”
(Efésios 5:15,17). O sábio pensa, olha antes de pular, reflete antes de falar. É
homem governado pelo pensamento e pelo entendimento, pela meditação e
por um espírito de ponderação.

E assim que começa a pensar, descobre outro fator negativo muito


importante, a saber, que não deve ser egoísta e egocêntrico. O
verdadeiro problema com as pessoas egoístas e egocêntricas é que nunca
pensam - exceto, é claro, nelas mesmas. Mas isto, na verdade, significa que
não pensam, agem como animais. O animal é sempre o que se vê, não pensa,
age de acordo com

os seus instintos. Falando em termos gerais, esse é o problema com o não


cristão; é egoísta e egocêntrico, porque não pensa.

Ou, recordando a palavra do apóstolo e a ilustração que ela sugere, deixem-


me expressá-lo doutra forma. Embora o cristão continue sendo
um indivíduo, jamais deverá ser individualista. No momento em que
somos individualistas, erramos. Este princípio, esta característica de ser
individualista, é impossível, como digo, no exército. É a primeira coisa que
tem que ser reprimida pelo homem que vai para o exército. Pode ser um
processo muito penoso, mas ele tem que compreender que não poderá mais
agir como outrora. Talvez tenha sido um menino estragado em casa -
conseguia na hora o que queria, era o mandão. Mas tudo isso tem que
cessar. No exército ele terá que submeter-se a outros. Seria impossível
comandar um exército composto de individualistas. Tudo isso tem que ser
enterrado.

Para exprimir a matéria doutra maneira - temos que parar de ser auto-
afirmativos. A auto-afirmação é a antítese do que o apóstolo está dizendo:
“Sujeitando-vos uns ao outros no temor de Cristo”. Quem vai por esse
caminho, jamais será auto-afírmativo. O ego é a causa radical de todos os
nossos problemas. O diabo entendeu isso logo no princípio, quando tentou o
homem pela primeira vez: “Deus disse que não devem comer isto? Claro
que disse, pois sabia que seriam como deuses. Isso é um insulto a vocês; é
manter-lhes por baixo. Não se sujeitem a isso; afirmem suas
personalidades”. - Não se sujeite a isso; afirme-se. Auto-afirmação! Oh,
quanto dano está sendo causado neste mundo devido à auto-afirmação! Esta
foi a causa das duas guerras mundiais que já tivemos neste século. Isto pode
ser nacional, bem como individual - “Meu país, certo ou errado!” - daí as
guerras e os conflitos. Mas é a mesma coisa ao nível das relações
individuais; todo o problema surge deste horrível ego, sempre desejoso de
seguir o seu próprio caminho.

Ainda outro modo de expressar isso é dizer que o cristão jamais deve ser
obstinado, opiniático. O cristão tem, e deve ter, opiniões; mas nunca deverá
ser opiniático. Que diferença, entre o homem que tem opiniões, boas
opiniões, opiniões vigorosas, e o opiniático - cheio de si e orgulhoso das suas
opiniões! Jamais devemos ser opiniáticos porque, de novo, essa é outra
manifestação do ego. O opiniático está muito mais interessado no fato de
que ele crê, do que naquilo em que crê; está sempre olhando para si mesmo;
faz desfile de suas crenças. Naturalmente, o modo como age, sempre
denuncia o homem. Ele se mostra orgulhoso do seu conhecimento. Isso
porque, na verdade, não compreende o assunto sobre o qual tem pequeno
conhecimento. Se compreendesse, se humilharia. No entanto ele não está
interessado na verdade; está interessado em seu relacionamento com ela, em
seu conhecimento dela. Gente opiniática sempre causa conflitos.

Este problema, por sua vez, leva a outro. Tal pessoa sempre tende a ser
ditatorial - mais uma manifestação do ego - e (para empregar a expressão
do apóstolo Pedro), a “ter domínio” sobre os outros. Em sua primeira
epístola, capítulo 5, Pedro escreve: “Aos presbíteros, que estão entre vós,
admoesto eu”.

Ele se dirige aos presbíteros porque esta tentação confronta particularmente


o homem que se toma presbítero. Ele é um homem capaz, possui qualidades
de liderança e, portanto, galga esta posição; e, em razão da sua liderança,
está particularmente exposto a este perigo. “Aos presbíteros, que estão entre
vós, admoesto eu... Apascentai o rebanho de Deus, que está entre vós, tendo
cuidado dele, não por força, mas voluntariamente: nem por torpe ganância,
mas de ânimo pronto; nem como tendo domínio sobre a herança de Deus,
mas servindo de exemplo ao rebanho.” Não deve haver nenhum dominador
na igreja; os presbíteros devem ser exemplos para o rebanho. Exercer
domínio é sempre uma tentação, um perigo, para esses homens; e quanto
mais claras forem as idéias do homem, mais exposto ele estará a esta
tentação particular. Mas vocês não devem cair nessa tentação, diz o
apóstolo; deve “sujeitar-se uns aos outros”.

Este tema pode ser ilustrado quase interminavelmente. Talvez possamos


resumir o que dissemos com a seguinte colocação: o cristão jamais deve
ser interesseiro. Estive explicando as manifestações do interesse próprio; o
egocentrismo sempre leva ao interesse próprio. Então, para desenvolver
mais o ponto, porque este homem do mundo com quem o apóstolo está
contrastando o cristão, é essencialmente interesseiro e egocêntrico, ele é
irrefletido e não se preocupa com os outros. É tão preocupado consigo
mesmo que nunca tem um momento para outras pessoas. Ele quer uma
coisa, mas não lhe ocorre que algum outro talvez a queira também. Ele
deseja progredir, mas o outro também quer. Pois bem, ele não percebe isso;
assim, visto que ele é tão egocêntrico e indiferente, é particularmente
desinteressado e não se preocupa com a situação, as necessidades, os desejos
e o bem-estar dos outros. Na verdade, provavelmente irá mais longe e será
até propenso a desprezar os outros, e a tratá-los com algum desdém. Ha
uma excelente ilustração disto na Primeira Epístola de Paulo aos
Coríntios. O mal que venho descrevendo era o real problema lá; por isso
Paulo teve que escrever o capítulo doze, acerca da Igreja como o Corpo de
Cristo. Os membros “mais honrosos” estavam desprezando os “menos
honrosos”, e estes estavam invejando aqueles por sua ostentação e sua
importância, e pela honra que lhes era dada. Assim, sua falha fundamental
estava em não compreenderem este princípio.
Um último modo de expressar esta consideração negativa é dizer que o
homem egocêntrico, egoísta, individualista, negligente e interesseiro é,
ao mesmo tempo e quase invariavelmente, incapaz de receber críticas e de
tolerar pontos de vista alheios. Se tenho muito orgulho da minha opinião,
então, o fato de alguém se atrever a questioná-la ou de pô-la em dúvida será
um grosseiro insulto a mim - não à verdade, mas a mim. O que importa é o
que eu creio. Daí, este homem se ressente das críticas e não tolera os pontos
de vista dos outros. Não quer ouvi-los e, de fato, fica ofendido com eles. E
excessivamente sensível. Que coisa extraordinária é este “ego”! Que louca
moléstia é o egocentrismo! Observem a multiplicidade dos sintomas. Afeta a
perspectiva toda de um homem, todas as partes dele - seu intelecto, sua vida
emocional, afetiva, sua ação, sua vontade, a volição - tudo fica envolvido.
Vejam a descrição desta

pessoa - egoísta, egocêntrica, opiniática, propensa a ser ditatorial, hiper-


sensível. Que sucede depois? O que vem em seguida é que este homem está
sempre ameaçando renunciar. Acha que está sendo contestado, que as
pessoas não confiam nele, que não vão fazer o que ele diz, ou não vão dar
valor ao que ele pensa. É injusto -e, portanto, ele vai partir, vai renunciar! O
apóstolo está escrevendo a respeito da vida da Igreja, e diz: não devem ser
assim; arrumarão a Igreja se forem assim, e se estiverem sempre “caindo
fora”. É essa, pois, a maneira negativa de interpretar as palavras,
“Sujeitando-vos uns aos outros no temor de Cristo.”

Contudo, que significam essas palavras positivamente? Elas são,


naturalmente, a exata antítese de tudo que estive dizendo; e ainda mais.
“Enchei-vos do Espírito”. Significa que “os olhos do vosso entendimento são
iluminados”, com relação à verdade. A que isto leva? Eis como funciona.
Aqui está uma solução para todos os nossos problemas - problemas pessoais,
individuais, relações interpessoais no casamento, no trabalho, nas
atividades, nas profissões, no Estado - com as diversas classes, grupos,
raças, e tudo mais. Bem fácil seria ilustrar isto, por exemplo, em termos de
anti-semitismo. Essa é apenas uma ilustração deste grande princípio.
Acontece que é matéria política e muitas vezes está sob os olhares do
público; mas os homens não conseguem ver que o que importa é o princípio
que está por trás. Se estivermos certos quanto ao princípio, resolveremos
não somente esse problema; resolveremos muitos outros também.

A maneira cristã funciona deste jeito: se os olhos do entendimento foram


verdadeiramente iluminados, a primeira coisa que aprendemos é a
verdade sobre nós mesmos. Significa que nos damos conta de que não há
esperança para nós, de que estamos todos perdidos, que estamos todos
condenados, que somos todos pecadores - todos e cada um de nós. “Não há
um justo, nem um sequer” (Romanos 3:10). O homem que vê que isso é
verdade pára de gabar-se imediatamente. Não se gaba da sua moralidade,
da sua bondade, das suas boas obras, das suas boas realizações, do seu
conhecimento, da sua erudição ou de outra coisa qualquer. Se tão somente
soubéssemos a verdade a respeito de nós mesmos, estes problemas de
relações seriam resolvidos logo. É só o evangelho que consegue isso;
nenhuma outra coisa o consegue. O evangelho nos reduz ao mesmo nível, a
cada um de nós. Não há diferença, “todos pecaram e destituídos estão da
glória de Deus” (Romanos 3:23). “Judeu e gentio” são uma coisa só; não há
nenhuma raça soberana, nenhum povo superior, absolutamente nenhum -
todos são idênticos. Seja qual for a verdade a nosso respeito
individualmente, somos todos reduzidos ao mesmo nível.

Paulo faz uma soberba colocação disto quando escreve aos coríntios (1
Coríntios 4:7): “Porque, quem te diferença? E que tens tu que não
tenhas recebido? E, se o recebeste, por que te glorias, como se não o
houveras recebido?” Não é maravilhoso? Todavia, como as pessoas são
lentas para compreendê-lo! Eis aí um homem a jactar-se do seu grande
cérebro, da sua grande mente, da sua grande capacidade, e a desprezar os
outros. Espera um

momento, diz Paulo. De que se orgulha? Produziu sozinho esse cérebro,


gerou-o, trouxe-o à existência? Que tem você que não tenha recebido? O
que faz você diferente dos outros? Você fez a diferença? Claro que não; tudo
que tem, recebeu; é dom de Deus. Se tem um grande cérebro, muito bem,
não se gabe disso, mas dá graças a Deus por ele. E isso o manterá humilde.
Alguns se orgulham da sua boa aparência; mas foram eles que a
produziram? Outros se orgulham de sua habilidade, neste ou naquele
aspecto - na música, nas artes ou na oratória - porém, onde a obtiveram ?
No momento em que compreendemos que todas estas coisas são dádivas,
paramos de jactar-nos, deixamos de orgulhar-nos desta insensata maneira.

Entretanto, é somente o Espírito que pode levar o homem a este ponto. O


mundo faz exatamente o contrário; ele gradua os homens. O mundo tem
suas honras, seus prêmios deslumbrantes, e dá atenção a essas coisas; estas
são tudo para os homens do mundo, e eles se orgulham delas, e ficam
enfatuados com a sua vaidade e o seu sucesso. “Vocês não devem ser assim”,
diz Paulo - “isso é embebedar-se com vinho, em que há excesso. Encham-se
do Espírito, e se se encherem do Espírito, entenderão que tudo que têm lhes
é dado por Deus, e não têm nada de que se gabarem. De algum modo o
Espírito os levará a entender que, com tudo que têm, ainda são pobres,
ainda são muito ignorantes, ainda são falíveis e ainda fracassam, e muito.
“Vocês”, diz ele aos de Corinto, “vocês”, que se enfatuam com o seu
conhecimento, o que sabem realmente? Ainda são apenas bebês em Cristo.
Não pude alimentá-los com alimento sólido, só lhes pude dar leite, porque
ainda são bebês - e ainda se jactam do seu conhecimento” (cf. Romanos 3).
O meio de solucionar estas dificuldades nas relações é saber a verdade
acerca de nós mesmos. No momento em que começamos a
tomar conhecimento desta verdade, vemos que não passamos de crianças,
que estamos apenas no começo. O homem que pensa que sua cabeça está
atulhada de conhecimento, quando se defronta com a verdade como ela se
apresenta aqui à luz do Espírito, percebe que não sabe nada, que é apenas
um principiante, um bebê, e que está cheio de fiascos e defeitos.

Daí o apóstolo pode prosseguir, dizendo: “Quem és tu que julgas a outrem?”


Na verdade o Senhor já dissera isso com outras palavras: “Não julgueis,
para que não sejais julgados. Porque... com a medida com que
tiverdes medido vos hão de medir a vós” (Mateus 7:1-2). Trata de dar-se
conta, diz o Senhor, de que está por baixo de alguém. Você, que se elevou e
de cima olha para os outros embaixo, olha para Deus, que de cima o observa
cá embaixo, e perceberá que nào é nada. Naturalmente, o problema é que
temos a tendência de pensar em centímetros, em vez de quilômetros, e a
nossa colina que mal chega a trezentos metros de altura, parece-nos uma
magnífica montanha, porque muitíssima gente está ao nível do mar.
Comparemo-la com o Monte Everest, comparemo-la com o céu, e
deixaremos de gabar-nos da nossa colina verruga. É assim que o Espírito
opera. Ele abre o nosso entendimento.

Não somente isso, porém. Ele nos ajuda a compreender que somos membros
de um só corpo. Esse tema aparece logo no início desta epístola.

“Sujeitando-vos uns aos outros”. - Por quê? Porque sois todos como as
diferentes partes e membros de um corpo. O apóstolo introduziu essa noção
no fim do primeiro capítulo, e a desenvolveu no capítulo 4, versículos 11 a
16. E, como já disse, esse é o grande tema de 1 Coríntios capítulo 12: “Ora,
vós sois o corpo de Cristo, e seus membros em particular” (versículo 27). Se
você compreender isso, compreenderá também que o que é realmente
importante não é que você é uma parte, e sim que é uma parte do todo. O
todo tem maior importância que a parte. E, outra vez, essa é a maneira de
resolver todos os nossos problemas. Noutras palavras, isto o levará a
considerar sempre o corpo e o bem dele, em vez de apenas o seu benefício
particular e pessoal. Seguramente, a metade dos problemas de hoje se deve
ao fato de que somos demasiadamente individualistas em toda a nossa idéia
da salvação. Graças a Deus, a salvação é pessoal, é individual, como
devemos acentuar sempre; mas não devemos pensar nela de maneira
individualista. As pessoas estão sempre pensando em si mesmas e tendo em
vista a si mesmas. Vêm à igreja para conseguir alguma coisa para si
mesmas. Procuremos ter um fiel concepção da Igreja, esta grande entidade
na qual fomos colocados. Somos apenas pequenas partes,
membros, porções; portanto, pensemos no todo, não numa parte. O homem
que está no exército não está lutando por si próprio, está lutando por seu
país - esse é o argumento.

No momento em que um homem começar a compreender todas estas coisas,


estará preparado para renunciar aos seus direitos, aos seus direitos pessoais
individualistas. Ê preciso que ele entenda esta concepção da Igreja como o
corpo de Cristo, e o grande privilégio de ser uma pequenina parte ou porção
dele. Então, ele não pensará primordialmente em seus direitos: agora estará
interessado no desenvolvimento e no progresso do todo, de cada uma
das outras partes também - do seu próximo, daquele que está perto dele, e
assim por diante. Juntos eles vêem esta grande unidade, esta unidade
orgânica e vital do todo. O homem que enxerga isso não se preocupa mais
com os seus direitos como tais, nem fica a falar deles, nem fica sempre a
vigiá-los e a protegê-los -isso deixa de existir. Ademais, ele está pronto a
ouvir, pronto a aprender. Compreendendo que não possui o monopólio de
toda a verdade, e que as outras pessoas também têm suas opiniões e idéias,
ele está sempre disposto a ouvi-las, está sempre disposto a aprender. Ele não
rejeita automaticamente as coisas; é paciente, compreensivo, e se alguém lhe
diz, “Mas, amigo, espere um pouco, eu acho...”, ele o ouvirá, ele lhe dará a
devida atenção. Não lhe cortará a palavra de imediato; dará à pessoa ampla
oportunidade para expor a sua posição. Daí, tratará dessa posição da
melhor maneira que puder. Noutras palavras, ele é a antítese daquele
homem que descrevi em termos negativos.
Mas podemos ir além. Digo que este homem está pronto a sofrer, e até a
sofrer injustiça, se necessário for, por amor da verdade, por amor da
“causa”, por amor do “corpo”. Paulo expressa isso de forma final e
definitiva em sua grandiosa proclamação: “A caridade (o amor) é sofredora,
é benigna: a caridade não é invejosa: a caridade não trata com leviandade,
não se ensoberbece, não se

porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não
suspeita mal; não folga com a injustiça, mas folga com a verdade; tudo
sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. A caridade nunca falha" (1 Cor.
13:4-8). É o que o apóstolo áqui nos diz que devemos pôr em prática:
“Sujeitando-vos uns aos outros no temor de Cristo”. Não se enfatuem, não
sejam suspeitosos. Livrem-se do ego, encham-se de amor, creiam, esperem
todas as coisas, nunca falhem, sejam pacientes e benignos. De fato posso
resumir tudo isso expressando-o neste termos: o único homem que pode
sujeitar-se a outro no temor de Cristo é aquele que realmente está cheio do
Espírito, porque o homem que está cheio do Espírito é aquele que mostra e
demonstra o fruto do Espírito. E o fruto do Espírito é “caridade (amor),
gozo, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fé, mansidão,
temperança". Se um homem tem essas características, não
criará dificuldades nem problemas. Ele será o tipo de homem que se
sujeitará prontamente, de boa vontade e voluntariamente, sempre pelo
amor dos outros e pelo bem da “causa”. O único homem capaz de fazer isto
é aquele que apresenta o fruto do Espírito por ser cheio do Espírito.

Isto se demonstra mediante um número infindável de meios. Darei uma só


ilustração, bastante prática aliás. Em 1 Coríntios capítulo 14, versículo 29 a
32, o apóstolo escreve: “E falem dois ou três profetas, e os outros julguem.
Mas se a outro, que estiver assentado, for revelada alguma coisa, cale-se o
primeiro. Porque todos podereis profetizar, uns depois dos outros; para que
todos aprendam, e todos sejam consolados. E os espíritos dos profetas estão
sujeitos aos profetas”. Que ilustração perfeita! Eis o problema, em Corinto:
um homem se levantava e se punha a falar. Estava tão cheio de assuntos, e
achava que somente ele tinha o que falar, que continuava falando, sem
parar. Contudo, outro homem tinha uma verdade, e queria falar; no
entanto, o primeiro não lhe dava oportunidade. Ora, diz o apóstolo, está
errado. “Mas”, diz o primeiro homem, “estou cheio do Espírito, não posso
evitá-lo, estou cheio de assuntos, não posso refrear-me". Pode, sim, afirma
Paulo, “os espíritos dos profetas estão sujeitos aos profetas”. Controle-se, e
quando vir que outro homem tem algo para dizer, e você já teve a sua
oportunidade, sente-se, deixe-o falar. E esse homem, por sua vez, fará o
mesmo com o terceiro. “E falem dois ou três profetas, e os outros julguem”.
Considerem a matéria juntos. Essa é a maneira de evitar estes problemas,
diz o apóstolo: “Sujeitando-vos uns aos outros no temor de Cristo.”

Essa é, pois, a exposição do que o apóstolo está dizendo. Mas se eu parasse


por aqui, estaria fazendo uma coisa sumamente perigosa; na verdade,
estaria fazendo uma coisa que talvez seja uma das mais perigosas que um
homem pode fazer atualmente. Eu expus o que Paulo diz; mas, lembrem-se
do que eu disse no princípio, que isso deve ser tomado em seu contexto, e
que somente é verdadeiro em seu contexto. Quero dizer - esse é o tipo de
texto que está sofrendo muito abuso hoje em dia. “Sujeitem-se”, dizem eles,
“uns aos outros no temor de Cristo.” “Perfeitamente; vocês, evangélicos
problemáticos, que não se juntariam aos anglicano-romanos, vocês, que
dizem: “Não, não podemos fazer isso, não nos juntaremos à igreja de
Roma”, vocês e sua recusa a sujeitar-

se uns aos outros, são toda a causa do problema.” “Vejam o comunismo”,


acrescentam eles, “vejam os adversários do cristianismo: o que é
necessário hoje é ter-se uma grande e unida igreja mundial que inclua os
católicos romanos, os ortodoxos orientais, os modernistas liberais, os
conservadores, todo mundo.” Na verdade, alguns vão ainda mais longe, e
acrescentam: “todos os que crêem em Deus - os maometanos, os hindus, os
judeus, etc. Que sejam incluídos; esta não é ocasião para a afirmação de
crenças particulares”. “Sujeitando-vos uns aos outros no temor de Cristo”
significa, dizem eles, que não devemos fazer esse tipo de resistência e, se o
fizermos, estaremos negando nossa própria doutrina.

O texto em foco está sofrendo abusos desse gênero, hoje em dia. E eles
tomam a dizer: “Cristo não rogou, na grande Oração Sacerdotal, “para que
todos sejam um”? Daí, indagam: “Por que vocês não se submetem a isto?”
Eles acreditam que esse texto é o argumento final em prol do movimento
ecumênico, da fusão de todas as divisões, diferenças e distinções, e de se ter
uma grande igreja mundial. Vemos, pois, a importância de considerar uma
proposição como a que estamos analisando, dentro do seu contexto. Acaso
vocês imaginam que, neste versículo, o apóstolo Paulo está apregoando paz
a qualquer preço, e dizendo que o homem deve ir a passo leve e frouxo em
pós da verdade, e que deve ser flexível, amoldável e transigente quanto à
doutrina? Estará ele ensinando uma falsa humildade aqui? Estará dizendo
que a lealdade ao cristianismo institucional vem antes de tudo mais, e que o
homem deve pôr de lado as suas opiniões e se acomodar à linha geral de
pensamento e dizer o que todos os outros estão dizendo? Será que o ensino
do apóstolo segue aquelas linhas? Eis a reposta: o apóstolo que escreveu este
versículo tinha escrito os três primeiros capítulos desta epístola, nos quais
formula as doutrina cristãs básicas, essenciais, fundamentais. A proposição
em foco é dirigida somente às pessoas que estão de acordo quanto à
doutrina. Ele não está discorrendo aqui sobre as relações entre pessoas que
estão em desacordo sobre doutrina. Ele presume que os seus destinatários
estão firmados “sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas” (Efésios
2:20) e que estão “na unidade da fé" (cf. Efésios 4:5). Não se permitia que
um herege permanecesse na igreja; devia ser excluído; os crentes não
deviam ter comunhão com ele.

Aplicar uma exortação como esta à “Igreja” como ela é hoje, é entender de
maneira completamente equivocada o conteúdo total do Novo
Testamento. Paulo aqui está escrevendo a pessoas que estão de acordo na
doutrina. Está tratando do espírito com que elas aplicam a doutrina
comum, acerca da qual estão de acordo. Se vocês interpretarem doutra
maneira, verão passagens bíblicas contradizendo passagens bíblicas. As
Escrituras nos exortam a “batalhar pela fé” (Judas 3). O apóstolo agradece
aos filipenses o terem estado com ele na sua “defesa e confirmação do
evangelho” (Filipenses 1:7). Se aquela outra interpretação estivesse certa,
eles estariam errados agindo como agiram. Depois, vocês se lembrarão do
que lemos no capítulo dois de Gálatas sobre a atitude de Paulo para com
Pedro. Pedro não tinha a mente e o entendimento claros como Paulo, sobre
a questão de comer com os que não haviam sido

circuncidados. O mesmo Pedro, que fora tão proeminente, estava errado em


seu ensino, neste ponto. Que fez o apóstolo Paulo? Sujeitou-se a Pedro, no
temor de Cristo, e disse, “Bem, quem sou eu para discutir com Pedro?
Afinal de contas, ele foi um dos mais íntimos dos que pertenciam ao grupo
que estava com Cristo. Eu nunca estive com Cristo, durante Sua vida na
carne; nesse tempo eu era um blasfemo e um fariseu. Quem sou eu para
levantar-me contra um grande homem como Pedro? Não devo falar nada,
devo ficar em silêncio e orar; e então devemos trabalhar juntos, num
espírito de amizade e cooperação?” Que coisa espantosa! Ao contrário,
Paulo diz:"... lhe resisti na cara...” (Gálatas 2:11). Ele repreendeu a Pedro
em público porque Pedro estava errado, e todo o futuro da Igreja estava em
perigo. Vocês vêem como é importante examinar uma proposição em seu
contexto, e quão extremamente perigoso é isolar do seu contexto qualquer
proposição como esta. Pode levar à negação do ensino do Novo Testamento.
Vou dar um último exemplo, tirado da Segunda Epístola de João, versículos
10 e 11, onde o assunto é exposto com muita clareza: “Se alguém vem ter
conosco, e não traz esta doutrina, não o recebais em casa, nem tampouco o
saudeis. Porque quem o saúda tem parte nas suas más obras”. Isso significa
culpa por associação, e não devemos sujeitar-nos a ele.

“Sujeitando-vos uns aos outros no temor de Cristo” não significa que você
deve acomodar-se a ensinos e doutrinas errôneos, que não deve dizer
nada quando a falsidade está sendo propagada. Não! Pois isso é negar todo
o Novo Testamento! Não somente isso, é negar algumas das mais gloriosas
épocas e eras da Igreja cristã. Quais são os pontos culminantes da história
da Igreja? Eis um deles: Athanasius contra mundum. Atanásio teve que agüentar
sozinho contra o mundo inteiro, quanto à doutrina da Pessoa de Cristo.
Martinho Lutero - que fez? Bem, foi um homem que agüentou
absolutamente sozinho contra a grande igreja papista e quinze séculos de
tradição. Naturalmente, o que lhe diziam era: “Quem é você? Por que não
se sujeita, no temor de Cristo?” “Sujeitando-vos uns aos outros no temor de
Cristo”. “Quem é você?” Todavia, ele se manteve firme e disse: “Não posso
fazer outra coisa, assim Deus me ajude”! Por quê? Por que o Espírito o
tinha iluminado. Lutero estava certo; a igreja do papa estava errada.

Não permita Deus que interpretemos mal um texto como este. Esta
proposição tem que ser entendida em seu contexto. Paulo está escrevendo
a pessoas que estão de acordo quanto à verdade, e eis o que ele diz: vocês,
que estão de acordo quanto à verdade, façam-no do modo certo; não
sejam opiniáticos, obstinados; ouçam pacientemente o outro lado; não
percam a calma; procurem ser indulgentes nas discussões; permitam que os
outros falem, que dêem expressão às suas idéias; não sejam críticos; não
condenem uma pessoa por uma palavra - por questões de somenos; estejam
prontos a ouvir; sejam caritativos; façam tudo que puderem; quando,
porém, o que estiver em jogo for a verdade vital, resistam mas sempre da
maneira certa, no Espírito. Façam-no com humildade, com amor, com
discernimento, transbordando esperança. Não sejam ofensivos e grosseiros;
não sejam obstinados; “sujeitai-
vos uns aos outros no temor de Cristo”.

Aí está, parece-me, o significado do que o apóstolo diz nesta importante e


vital proposição. Ainda resta a última frase, “no temor de Cristo”.
Posteriormente haveremos de examiná-la. Mas, acima de tudo, devemos ter
a certeza de que compreendemos o contexto no qual o apóstolo faz esta
afirmação. Existem certas coisas essenciais, fundamentais, sobre as quais
não deve haver objeção ou dúvida. Há no cristianismo um mínimo
irredutível, e nisso devemos permanecer firmes. Aí não devemos sujeitar-
nos; lutaremos, se necessário, até à morte. E devemos fazer isso da maneira
certa e com os espírito certo. Todavia, quando vocês se defrontarem com
questões sobre as quais não pode haver certeza e conclusão definitiva, será
então, e especialmente, a hora de se lembrarem desta exortação. Os
membros da igreja de Corinto em geral estavam de acordo quanto às
questões fundamentais e vitais, os princípios que compõem o alicerce do
cristianismo. O apóstolo não tem por que instruí-los acerca
destes princípios, mas somente que fazê-los lembrar-se deles (1 Cor. 15:1-4).
A respeito de que, ele tem que instruí-los? A respeito da maneira como
falavam uns com os outros, a respeito do fato de que alguns comiam carne
oferecida a ídolos, e outros não, e assim por diante. Eles estavam de acordo
sobre o meio de salvação, sobre a divinidade de Cristo e sobre a expiação.
Todos eles concordavam nisso, do contrário não estariam na igreja. Mas
você pode concordar nessas coisas e ainda dividir a igreja, carregando a
culpa de causador de cisma, com relação a outros pontos. É justamente aqui
que temos de aprender a sujeitar-nos uns aos outros no temor de Cristo. Se
você não tem opiniões, você não é cristão; mas se você é opiniático, é um
mau cristão. Queira Deus nos capacitar a traçar essa distinção! O que se nos
diz não é que não tenhamos opiniões, nem que as vendamos barato. O que
se nos diz é que as tenhamos e as defendamos, mas que nunca sejamos
opiniáticos. Temos que sustentá-las na qualidade de pessoas “cheias do
Espírito”, manifestando caridade, gozo, paz, longaminidade, benignidade,
bondade, fé, mansidão, temperança - os gloriosos frutos do bendito Espírito
Santo. “E não vos embriagueis com vinho, em que há contenda” - não se
gabem, não sejam bombásticos, não sejam violentos. “Enchei-vos do
Espírito”; defendam, preguem e ensinem a verdade com amor, e então as
relações pessoais serão suaves, afetuosas e amenas, e o nome de Deus será
glorificado no mundo inteiro.

O ESPÍRITO DE CRISTO
Efésios 5:21

Nesta grande injunção, que deve dominar todo o nosso viver cristão, o
apóstolo não se detém no dito: “Sujeitando-vos uns aos outros”. Há
este acréscimo, para o qual chamo a atenção - “no temor de Cristo”.

Aqui nos é dito exatamente como e por que devemos sujeitar-nos uns aos
outros. Noutras palavras, esta última frase do apóstolo nos fornece os
motivos para sujeitar-nos uns aos outros. Vamos dividi-la do seguinte modo:
primeiro, observaremos por que devemos sujeitar-nos uns aos outros - a
razão para fazê-lo. É “no temor de Cristo”. Ora, não se trata de um
acréscimo casual, não é apenas uma frase para completar bem a injunção;
não é uma coisa que Paulo escreveu sem pensar, quase acidentalmente,
como às vezes cometemos o erro de fazer. Os que gostam de fazer-nos
conhecer a sua espiritualidade, muitas vezes entremeiam a sua conversa
com clichês e frases feitas. Vivem dizendo, “glória a Deus” ou “louvado seja
Deus” depois de quase cada sentença. Não foi desse modo que o apóstolo
acrescentou a frase, “no temor de Cristo”; não o fez impensada, prolixa e
superficialmente.

Obviamente, a frase foi feita porque é parte essencial do seu ensino. Posso
prová-lo facilmente. Ele está firmando aqui o seu princípio geral -
devemos levar uma vida caracterizada por isto, que nos sujeitemos uns aos
outros. Depois ele se ocupa de três casos particulares, esposas e esposos,
filhos e pais, servos e senhores. Mas o que é deveras interessante observar é
que, em cada um dos três casos, como também na declaração geral do
princípio, ele toma muito cuidado ao fazer este acréscimo.

Primeiramente, vemos isso no princípio geral, “Sujeitando-vos uns aos


outros no temor de Cristo”. Depois, na primeira aplicação, no versículo
22: “Vós, mulheres, sujeitai-vos a vossos maridos, como ao Senhor”. Ele não
se limita a dizer: “Vós, mulheres, sujeitai-vos a vossos maridos”, mas
acrescenta: “como ao Senhor”. Depois, na segunda aplicação, no caso dos
filhos, “Vós, filhos, sede obedientes a vossos pais no Senhor” (6:1). Ainda aí
o mesmo acréscimo! Ele não diz apenas, “Vós, filhos, sede obedientes a
vossos pais, porque isto é justo”, mas, sim, “sede obedientes a vossos pais no
Senhor, porque isto é justo”. E então, na terceira aplicação, concernente aos
servos e aos senhores, temos a mesma coisa, no capítulo 6, versículos 5 e
seguinte: “Vós, servos, obedecei a vossos senhores segundo a carne, com
temor e tremor, na sinceridade de vosso coração, como a Cristo; não
servindo à vista, como para agradar aos homens, mas como servos de
Cristo, fazendo de coração a vontade

de Deus; servindo de boa vontade como ao Senhor, e não como aos homens,
sabendo que cada um receberá do Senhor todo o bem que fizer, seja servo,
seja livre. E vós, senhores, fazei o mesmo para com eles, deixando as
ameaças, sabendo também que o Senhor deles e vosso está no céu, e que
para com ele não há acepção de pessoas”.

A passagem toda demonstra que, sem sombra de dúvida, este princípio é


determinante; e nos é inútil continuar considerando os deveres das esposas
para com os seus esposos, ou dos filhos para com os pais, ou dos servos para
com os senhores, a não ser que tenhamos com clareza na mente este
princípio soberano, concernente ao modo pelo qual fazemos estas coisas e a
razão por que devemos fazê-las.

Então, que é que isto significa exatamente? Podemos expressá-lo primeiro


de uma forma geral. Este é o motivo que deve governar todo o viver cristão.
Tudo que o cristão faz, deve fazê-lo “no temor de Cristo”. O
apóstolo salienta isso, repetindo a expressão em todos os casos individuais,
sem exces-são. Aqui está uma coisa que ignoramos para nosso próprio risco:
tudo deve ser feito “no temor de Cristo”.

Permitam-me, antes de tudo, colocar o assunto negativamente. Devemos


sujeitar-nos uns aos outros, e fazer todas as coisas que disso advenham,
não porque seja bom fazê-lo e mau não fazê-lo. Há homens do mundo que
fazem esse tipo de coisa porque acreditam que é a coisa certa que têm de
fazer. Mas não é esta razão pela qual o cristão age deste modo. O que marca
o cristão, diferenciando-o do não cristão, não é apenas que ele crê no Senhor
Jesus Cristo para a salvação e confia nEle e em Sua obra expiatória, mas
sim que, em acréscimo, a vida do cristão é totalmente governada por esta
Pessoa. Jesus Cristo é Senhor; e o cristão crê no Senhor Jesus Cristo. Você
não pode crer nEle como Salvador, sem crer nEle como Senhor. Se você tem
fé nEle, esta fé é no Cristo completo; e, portanto, Ele vem a ser o Senhor da
sua vida. O cristão não faz isto ou aquilo meramente porque é bom e certo, e
porque é errado fazer certas outras coisas; o sinal distintivo do cristão é que
ele faz tudo “como para o Senhor”, “no temor de Cristo”, porque Cristo é o
seu Senhor.
Isto revoluciona todo o nosso pensamento. Expressemo-lo, pois, na forma de
outro argumento em termos negativos. “Sujeitando-vos uns aos outros.”
“Eis aí”, dirá alguém, “um princípio com o qual estou inteiramente de
acordo. Não vejo utilidade em sua conversa sobre o sangue de Cristo, a
expiação etc., mas quando você diz que devemos sujeitar-nos uns aos outros,
eu concordo. Essa é a base de um estado igualitário; consiste na eliminação
de todas as classes, divisões e distinções, para que todos sej am um, e todos
os homens sej am iguais” - “sujeitando-vos uns aos outros”.

Mas não é isso que o apóstolo diz. Não devemos sujeitar-nos uns aos outros
em atendimento a algum ensino político ou social que acaso defendamos. Há
pessoas que defendem esse ensino, essa filosofia igualitária - de que
todos devem ser reduzidos ao mesmo nível comum. Independentemente do
que ou de quem sejam, todos devem ser levados àquele nível. Isso não é,
absolutamente,

o que o apóstolo diz. “Sujeitando-vos uns aos outros”. Por quê? Não porque
é nossa teoria política ou social, mas “no temor de Cristo” - uma coisa
completamente diversa.

Ao falar assim, não estou expressando a minha opinião sobre quaisquer


teorias políticas, sociais e filosóficas. Tudo que me interessa acentuar é que
o motivo cristão para fazer estas coisas é completamente diverso daquele
que funciona no caso do não cristão. Ademais, confundir o ensino cristão
com uma teoria política, com o socialismo ou com qualquer outra coisa, ou
reduzi-lo ao nível destas coisas, é mascarar o evangelho. Não estou
interessado em política, é o que digo, mas sim, em mostrar que a posição
cristã é sempre esta - “no temor de Cristo”. Conquanto seja possível reduzir
todos os homens a um denominador comum mediante leis constitucionais,
por este meio não é possível tomá-los cristãos. Se não for a razão dada pelo
apóstolo, tudo que se fizer não terá valor, no sentido espiritual.

Ou tomemos outro elemento negativo. Não é para sujeitar-nos uns aos


outros simplesmente porque é a coisa certa para fazer-se em certos
ambientes e sob certas condições. Existem convenções sociais que nos
compelem a agir assim; vocês recuam com polidez e dão passagem a outros -
sujeitando-se uns aos outros. Não é disso que o apóstolo está falando. Ele
não diz que vocês devem vestir uma espécie de uniforme social, ou fingir as
maneiras de determinada classe ou grupo, para darem a impressão de que
estão se sujeitando uns aos outros, ao passo que, na verdade, o tempo todo,
em seus corações, estão fazendo exatamente o contrário. O problema com
essa sujeição aparente é que, na realidade, é um sinal de superioridade, e
vocês se orgulham de sua posição e dos seus costumes sociais. Mas aqui não
se trata de etiqueta! O mundo parece por demais maravilhoso. Olhamos e
vemos um homem recuando e se inclinando, e dando passagem para outro.
Mas a questão é: que dizer do seu coração? Por que ele está fazendo isso?
Será que é “no temor de Cristo”? As convenções sociais não estão na mente
do apóstolo, de modo nenhum, porque elas são sempre superficiais e
geralmente falsas. O cristão age motivado por uma profunda e intensa força
motriz; é “o temor de Cristo”. E isto que o governa, é isto que o dirige
sempre.

Prossigamos ainda com mais um dado negativo. Pergunto-me se este não


nos causará um choque. Devemos sujeitar-nos uns aos outros - na questão
de esposas e esposos, filhos e pais e servos e senhores - não, porém, por amor
da observância da lei, nem mesmo da lei de Deus. Não é esse o motivo
primordial do cristão. O motivo do cristão é sempre, “no temor de Cristo”.
Naturalmente, algumas coisas que lhe são ditas que faça já tinham sido
estabelecidas na lei. Consideremos, por exemplo, os filhos: “Vós, filhos, sede
obedientes a vossos pais no Senhor, porque isto é justo. Honra a teu pai e a
tua mãe, que é o primeiro mandamento com promessa.” O mandamento
dizia isso, e o cristão deve fazer o que o mandamento indica. Sim, mas ele
tem outra razão, uma nova razão fazê-lo. Do judeu se espera que guarde o
mandamento, mas o cristão age “no Senhor”, “no temor de Cristo”. Ele não
está meramente preocupado em guardar

a lei, tem este motivo mais elevado, que é, “no temor de Cristo”.

Então, sempre a marca distintiva do cristão é esta. O cristão não mais pensa
em termos da lei, mas sempre pensa segundo esta relação - “não
como estando sem lei, mas como estando sob a lei de Cristo”, “no temor de
Cristo”, em termos desta relação pessoal com seu Senhor e Salvador (cf. 1
Coríntios 9:21). Portanto, o apóstolo vai repetindo isso com o fim de levar-
nos a gravá-lo; e, naturalmente, é essencial pela seguinte razão: somente
quando somos governados por este motivo, é que somos capazes de fazer
todas estas coisas. Quem é cheio do Espírito está sempre se lembrando do
Senhor Jesus Cristo. O Espírito aponta para Ele, o Espírito O glorifica, o
Espírito sempre leva a Ele; e assim, quem é cheio do Espírito sempre estará
olhando para Cristo. Este é o seu grande motivo - “no temor de Cristo”.
Tendo isto no centro de todo o seu pensamento, ele fica habilitado para fazer
estas diversas coisas.

Resumo com a seguinte colocação: eis a diferença entre o cristão e o não


cristão: o cristão sempre sabe por que faz uma coisa, sempre sabe o que
está fazendo. Como já nos foi lembrado, o cristão “não é insensato, mas
entende qual é a vontade do Senhor”. Isso está no versículo 17, e essa é a
diferença. O outro não sabe por que faz o que faz, amolda-se a um esquema,
imita os outros, observa o que eles fazem, e faz a mesma coisa. Ele não sabe
o porquê, não tem nenhuma filosofia efetiva da coisa, apenas o faz - sempre
em atitude de acomodação. Mas o cristão, ao contrário, pensa, raciocina;
tem sabedoria, sabe exatamente o que faz; e seu motivo é sempre, “no temor
de Cristo”.

Como funciona? Quais são as razões e motivos particulares do cristão?


Obviamente, o primeiro motivo do cristão é este: ele se sujeita aos outros e
faz estas outras coisas porque este modo de agir foi simples e claramente
ensinado pelo próprio Senhor Jesus Cristo. Seria coisa simples citar
numerosas passagens dos Evangelhos que mostram isto com clareza. Há
uma no capítulo 20 do Evangelho Segundo Mateus, que ilustra e ilumina
todo este assunto. Vejam o relato que começa no versículo 20: “Então se
aproximou dele a mãe dos filhos de Zebedeu, com seus filhos, adorando-o, e
fazendo-lhe um pedido. E ele diz-lhe: Que queres? Ela respondeu: Dize que
estes meus dois filhos se assentem, um à tua direita e outro à tua esquerda,
no teu reino. Jesus, porém, respondendo, disse: Não sabeis o que pedis;
podeis vós beber o cálice que eu hei de beber?”, etc. A narrativa de Mateus
prossegue: “E quando os dez ouviram isto, indignaram-se contra os dois
irmãos”. Mas, por que? Porque eles desejavam ocupar a posição suprema.
Ficaram aborrecidos com os dois irmãos porque eles tomaram a dianteira,
por assim dizer. Este tipo de deficiência nós vemos claramente nos outros;
assim, os dez se encheram de indignação. “Então Jesus, chamando-os para
junto de si, disse: Bem sabeis que pelos príncipes dos gentios são este
dominados, e que os grandes exercem autoridade sobre eles. Não será assim
entre vós; mas todo aquele que quiser entre vós fazer-se grande seja
vosso serviçal; e qualquer que entre vós quiser ser o primeiro seja vosso
servo; bem como o Filho do homem não veio para ser servido, mas para
servir, e para dar a sua vida em resgate de muitos.” Aí o Senhor nos dá um
ensinamento explícito
sobre este mesmo assunto. O cristão não tem necessidade de ficar em dúvida
ou hesitação, pois este é um dos mais claros mandamentos e ensinos que o
nosso bendito Senhor já nos deu.

Depois há aquela outra extraordinária ilustração pertinente, em João 13:12.


Aqui o Senhor está às vésperas da Sua morte. Diz-nos a passagem, no inicio
do capítulo, que como Jesus “havia amado os seus, que estavam no mundo,
amou-os até o fim”. E depois aconteceu esta coisa notável: “Depois que lhes
lavou os pés e tomou os seus vestidos, e se assentou outra vez à mesa, disse-
lhes...”. Vocês certamente se recordam do que sucedera pouco antes.
“Jesus, sabendo que o Pai tinha depositado nas suas mãos todas as coisas, e
que havia saído de Deus e ia para Deus, levantou-se da ceia, tirou os
vestidos, e, tomando uma toalha, cingiu-se. Depois deitou água numabacia, e
começou a lavar os pés aos discípulos, e a enxugar-lhos com a toalha com
que estava cingido.” Os discípulos não podiam entender isto, e Pedro fez tal
objeção, que o Senhor teve que repreendê-lo e ensiná-lo. “Depois que lhes
lavou os pés, e tomou os seus vestidos, e se assentou outra vez à mesa, disse-
lhes: Entendeis o que vos tenho feito?” Compreendem? Percebem o seu
significado? Vêem o seu alcance? “Vós me chamais Mestre e Senhor, e dizeis
bem, porque eu o sou. Ora, se eu, Senhor e Mestre, vos lavei os pés, vós
deveis também lavar os pés uns aos outros. Porque eu vos dei o exemplo,
para que, como eu vos fiz, façais vós também. Na verdade, na verdade vos
digo que não é o servo maior do que o seu senhor, nem o enviado maior do
que aquele que o enviou. Se sabeis estas coisas, bem-aventurados sois se as
fizerdes.” Jamais houve ensino mais claro do que este. Não há necessidade
de argumentar a respeito disto, não há necessidade de ficar com nenhuma
dificuldade, nem com nenhuma dúvida ou cegueira sobre isto. O Senhor
Jesus, uma vez por todas, naquele ato de lavar os pés aos
discípulos, colocou-o diante de nós. Ele fez algo, e sua descrição deve estar
sempre diante de nós.

Aí está por que nos sujeitamos uns aos outros - porque Ele nos ensinou a
fazê-lo. Ouçam-nO dizer ainda: “Nisto todos conhecerão que sois meus
discípulos, se vos amardes uns aos outros” (versículo 35). É assim que vão
saber disso. Na verdade Ele torna a dizê-lo em Sua grande Oração
Sacerdotal, onde ora no sentido de que todos sejam um como Ele e o Pai são
um, para que os homens saibam que eles são Seus discípulos e que o Pai O
enviou. Portanto, a nossa grande e primeira razão para darmos atenção a
isso é que o nosso Senhor deixou de lado Sua posição para nos comunicar
este ensino. Ei-10 aí, o Senhor da glória; mas Se humilhou. Senhor e Mestre
- sim! Mas Ele não é como os príncipes do mundo. É doutra categoria.
Temos que renunciar a todo pensamento humano aqui. Ele é o Filho de
Deus que desceu à terra para servir-nos. “O Filho do homem não veio para
ser servido, mas para servir, e para dar a sua vida em resgate de muitos.”

A segunda razão para fazer estas coisas, ou a segunda maneira de explicar


por que devemos fazê-las, é para mostrar nossa gratidão a Ele. Se
realmente cremos naquilo que alegamos crer, como cristãos, o nosso
supremo desejo na

vida deve ser o de mostrar nossa gratidão ao Senhor. Cremos realmente que
Ele é o Filho de Deus, e que desceu à terra para nos salvar? Cremos que Ele
nos salva não somente por viver Sua vida perfeita, mas especialmente por ir
deliberada-mente à cruz e levar sobre Si os nossos pecados, sofrendo a
punição deles? Cremos que Ele deu Sua vida, morreu para que pudéssemos
ser perdoados, para que pudéssemos ser reconciliados com Deus? O
argumento é que, se de fato cremos nisso, o nosso maior desejo deve ser o de
agradá-lO, de mostrar-Lhe nossa gratidão. Ele fez tudo aquilo por nós. Que
deseja Ele de nós? Ele nos pede que guardemos os Seus mandamentos para
que o Seu nome seja engradecido e glorificado entre outras pessoas.

Mais uma vez vemos na grande oração sacerdotal que Ele expressa algo
semelhante a isto. Orando ao Pai, Ele diz: “Eu te glorifiquei na terra”; e
depois

- “E neles eu sou glorificado” (João 17:10). É isto que sempre deve


governar toda a nossa prática, para que o Senhor Jesus Cristo seja
glorificado em nós e através de nós. Isto não é questão de argumento, não é
questão de gostarmos ou não; Ele o disse, e evidentemente é verdade. Os
homens e as mulheres de fora julgam o Senhor Jesus Cristo e fazem
avaliação dEle por aquilo que vêem em nós. Se olharem para nós e virem
conduta e comportamento idênticos aos do mundo - cada qual lutando por
superioridade, cada qual procurando exibir-se e chamar a atenção para si
mesmo, dirão: “O mundo é isso, isso é o que o mundo faz.” O mundo não
trabalha em harmonia; sempre há conflitos; o mundo está repleto de
individualistas que estão sempre se afirmando pessoalmente para chamar a
atenção para si. É desse modo que o mundo vive e faz tudo; portanto, se
virem a mesma coisa em nós, como poderão crer no Senhor Jesus Cristo
e servi-lo? O que Cristo se arroga não é somente que Ele morreu por nós,
mas também que nos dá vida nova, que nos cria de novo, que nos regenera,
que somos essencialmente diferentes, que somos cheios do Espírito que
estava nEle

- “neles eu sou glorificado”. Assim, o cristão é uma pessoa que sempre se


lembra disto. Ele não pergunta: “Que é que eu quero fazer, que é que eu
gostaria de fazer, o que me agradará?” Ele morre de amor por Cristo, de
gratidão a Ele. Seu desejo é mostrar sua gratidão; tem zelo pelo nome do
Senhor; ele quer que outros creiam em Cristo. E sabe que o modo de fazê-lo
é primordialmente viver da maneira esboçada pelo apóstolo aqui. É inútil
falar às pessoas, se você o nega na prática; minha pregação é vã, se eu nego
a mensagem com o meu viver. O povo nos observa e observa o que somos e o
que fazemos. Portanto, Paulo diz, “Sujeitando-vos uns aos outros no temor
de Cristo”. Este deve ser o motivo que nos governe e nos dirija.

No entanto, considerarei o caso de um ângulo mais elevado. Nosso desejo é


agradar a Cristo e demonstrar-lhe nosso amor. Paulo emprega a
palavra “temor” - “no temor de Cristo”. Significa, entre outras coisas, o
medo de desapontá-lO, no medo de entristecê-lO. Diz-nos a Epístola aos
Hebreus que Cristo declara: “Eis-me aqui a mim, e aos filhos que Deus me
deu.” (2:13). Somos Sua possessão, somos Seu povo. lavamos o Seu nome,
somos Seus representantes, somos o povo que Ele “comprou”, e o
relacionamento que existe

entre nós é um relacionamento de amor. Portanto, o cristão é governado por


esses pensamentos. O Senhor nos vigia; Sua reputação, por assim dizer, está
em nossas mãos - “neles eu sou glorificado”. Ele declara: “Eu sou a luz do
mundo”, mas também diz: “Vós sois a luz do mundo”. O mundo não O vê;
vê-nos, e nós somos a luz, a única luz de que o mundo dispõe. O cristão é
gente que vive, anda e faz tudo que faz à luz dessa compreensão. “Será que
eu O estou decepcionando?” É assim que o amor pensa, não é? Essa é a
espécie de temor que penetra os domínios do amor. É muitíssimo mais
elevado que a lei. Este é o temor de ferir ou entristecer ou decepcionar
alguém que nos ama, que tem fé em nós, que confia em nós, que nos quer
bem, que fez muito por nós. Isso é o que há de maravilhoso no amor.

Por isso o amor é o maior poder e a maior força motriz do mundo. O


homem é capacitado pelo amor a fazer coisas que não consegue fazer
pelo poder da sua vontade, nem por nenhuma outra coisa. O amor é o maior
e o mais grandioso motivo, e em parte opera dessa maneira. Haveria coisa
mais terrível do que perceber que estamos decepcionado Aquele que tanto
nos amou que Se entregou por nós - que O entristecemos, que somos
indignos dEle? Os pais têm este sentimento acerca dos seus filhos, e os filhos
devem ter o mesmo sentimento quanto aos seus pais. É desta maneira que o
cristão vive. Não é, digo eu, o uso de um uniforme, nem se baseia nalguma
teoria política ou social. É Seu amor por nós, e a nossa relação com Ele, e o
nosso temor ou medo, para que não suceda que O entristeçamos e O
decepcionemos.

Mas devo tecer considerações num plano mais alto ainda. Há um temor que
deve governar tudo que somos e que fazemos, que nos deve governar
na questão do nosso viver e da nossa santificação, e em todo o nosso serviço.
É uma coisa freqüentemente exposta no Novo Testamento. Pergunto-me
quanto somos influenciados por este temor particular para o qual vou agora
chamar a atenção. O apóstolo expõe isto aos coríntios, na primeira epístola,
capítulo 3, começando no versículo 9: “Porque nós somos cooperadores de
Deus: vós sois lavoura de Deus e edifício de Deus. Segundo a graça de Deus
que me foi dada, pus eu, como sábio arquiteto, o fundamento, e outro edifica
sobre ele; mas veja cada um como edifica sobre ele. Porque ninguém pode
pôr outro fundamento, além do que já está posto, o qual é Jesus Cristo. E, se
alguém sobre este fundamento formar um edifício de ouro, prata, pedras
preciosas, madeira, feno, palha, a obra de cada um se manifestará: na
verdade o dia a declarará, porque pelo fogo será descoberta; e o fogo
provará qual seja a obra de cada um. Se a obra que alguém edificou nessa
parte permanecer, esse receberá galardão. Se a obra de alguém se queimar,
sofrerá detrimento; mas o tal será salvo, todavia como pelo fogo. Não sabeis
vós que sois o templo de Deus, e que o Espírito de Deus habita em vós? Se
alguém destruir o templo de Deus, Deus o destruirá; porque o templo de
Deus, que sois vós, é santo”. Aí estamos tratando de um diferente tipo
de temor - “o dia a declarará”.

Vejamos alguns outros exemplos disto, antes de delinearmos a respectiva


doutrina. Tomemos o que Paulo diz no final do capítulo 9 dessa Primeira

Epístola aos Coríntios, do versículo 24 até o fim. “Não sabeis vós que os que
correm no estádio, todos, na verdade, correm, mas um só leva o prêmio?
Correi de tal maneira que o alcanceis. E todo aquele que luta de tudo se
abstém; eles o fazem para alcançar uma coroa corruptível, nós, porém, uma
incorruptível. Pois eu assim corro, não como a coisa incerta: assim combato,
não como batendo no ar. Antes subjugo o meu corpo, e o reduzo à servidão,
para que, pregando aos outros, eu mesmo não venha dalguma maneira a
ficar reprovado.” Depois, na Segunda Epístola aos Coríntios, capítulo 5,
versículo 9: “Pelo que muito desejamos também ser-lhe agradáveis, quer
presentes, quer ausentes. Porque todos devemos comparecer ante o tribunal
de Cristo, para que cada um receba segundo o que tiver feito por meio do
corpo, ou bem, ou mal. Assim que, sabendo o temor que se deve ao Senhor,
persuadimos os homens à fé, mas somos manifestos a Deus; e espero que nas
vossas consciências sejamos também manifestos”. “Sabendo o temor que se
deve ao Senhor, persuadimos os homens.” “Sujeitando-vos uns aos outros no
temor de Cristo”. - “O temor do Senhor”! Vamos ao capítulo 7 desta mesma
epístola, versículo primeiro: “Ora, amados, pois que temos tais promessas,
purifiquemo-nos de toda a imundícia da carne e do espírito, aperfeiçoando a
santificação no temor de Deus”. De novo, em Gálatas capítulo 6, a partir do
versículo primeiro: “Irmãos, se algum homem chegar a ser surpreendido
nalguma ofensa, vós, que sois espirituais, encaminhai o tal com espírito de
mansidão; olhando por ti mesmo, para que não sejas também tentado. Levai
as cargas uns dos outros, e assim cumprireis a lei de Cristo”. E ainda:
“Porque, se alguém cuida ser alguma coisa, não sendo nada, engana-se a si
mesmo. Mas prove cada um a sua própria obra, e terá glória só em si
mesmo, e não noutro. Porque cada qual levará a sua próprio carga.” Depois
temos aquela grandiosa declaração em Filipenses 2:12-13: “De sorte que,
meus amados, assim como sempre obedecestes, não só na minha
presença, mas muito mais agora na minha ausência, assim também operai a
vossa salvação com temor e tremor”. Aí está como devem levá-lo avante, aí
está por que devem sujeitar-se uns aos outro no temor de Cristo. “Operai a
vossa salvação com temor e tremor.” Depois, escrevendo a Timóteo, Paulo
diz exatamente a mesma coisa, na segunda epístola, capítulo 2, versículo 19:
há pessoas, diz ele, que andam dizendo e fazendo coisas erradas - “Todavia
o fundamento de Deus fica firme, tendo este selo: O Senhor conhece os que
são seus, e qualquer que profere o nome de Cristo aparte-se da iniqüidade”.
Mas, de muitas formas, o supremo exemplo disso tudo está no final do
capítulo 12 da Espítola aos Hebreus, nos versículo 28-29: “Pelo que, tendo
recebido um reino que não pode ser abalado, retenhamos a graça, pela qual
sirvamos a Deus agradavelmente com reverência e piedade; porque o nosso
Deus é um fogo consumidor”.
É evidente que tudo isso não tem nada a ver com a nossa justificação; nada
tem que ver com o nosso recebimento da salvação. O caso aqui é diferente;
o temor referido é o que se relaciona com a questão de recompensa ou
galardão. Tomemos a exortação do apóstolo, que consta da primeira citação
acima, de 1

Coríntios capítulo 3. Diz ele: “O fogo provará qual seja a obra de cada um,
e, se alguém sobre este fundamento formar um edifício de madeira, feno ou
palha, será queimado”. Não sobrará nada, “sofrerá detrimento; mas o tal
será salvo, todavia como pelo fogo” (cf. versículos 13c, 12, 15a, 15b). Este é
um grande mistério. Não tenho a pretensão de compreendê-lo; ninguém o
compreende. Mas o ensino se nos mostra claro, e se aplica a todas as outras
passagens. Nenhuma dessas passagens faz referência à salvação do homem,
mas, antes, todas elas se referem à recompensa que ele vai receber. É
possível a um homem ser salvo “todavia como pelo fogo”. E é exatamente o
que se vê em todas estas outras passagens. Não significa que o homem pode
cair da graça; mas significa, sim - que a pessoa salva pode experimentar “o
temor do Senhor” (ou “o terror do Senhor”, K. James). “Porque todos
devemos comparecer ante o tribunal de Cristo, para que cada um receba
segundo o que tiver feito por meio do corpo, ou bem, ou mal” (2 Coríntios
5:10).

Portanto, diz o apóstolo, “Sujeitai-vos uns aos outros no temor de Cristo”.


Povo cristão, vamos ter que postar-nos diante dEle e olhá-lO no rosto e
nos olhos. Podemos imaginar o que vamos sentir naquele momento? “Ah,
sim, eu acreditava no Senhor que morreu por mim, eu cria no Seu sangue
derramado; eu brincava com isso, fazia o que queria, não obedecia aos Seus
mandamentos, não fazia o que me dizia e não procurava aperfeiçoar a
santidade no temor de Deus. Eu não me sujeitava aos outros, buscava a
minha afirmação pessoal, continuei tendo muito do homem natural em
mim”!

Poderíamos imaginar como será olharmos para Ele em Seus olhos? Posso
dar-lhes uma idéia disso. Os Evangelhos nos dizem que o Senhor advertira
ao apóstolo Pedro de que O negaria três vezes antes de cantar o galo, e como
Pedro tinha protestado. Então chegou a ocasião do julgamento do Senhor,
quando a criada incriminou a Pedro, e este, querendo salvar a pele, em sua
covardia, negou a seu Senhor. Lembram-se, porém, do que nos é dito mais
tarde? “E virando-se o Senhor, olhou para Pedro. E saindo Pedro para fora,
chorou amargamente" (Lucas 22:61a, 62). O Senhor não lhe disse uma
palavra, mas simplesmente olhou para ele. Olhou-o com olhar de decepção,
de tristeza, porque Pedro tinha falhado com Ele; não foi um olhar de
reprimenda. Pedro não poderia agüentar isso; ele preferiria palavras,
preferiria levar uma sova, preferiria ser posto na cadeia. Foi aquele olhar
que o quebrantou e quase o matou.

“O Senhor olhou para Pedro.” Adicione-se o elemento de julgamento, e se


terá - “sabendo o temor que se deve ao Senhor”. “Sujeitando-vos uns
aos outros no temor de Cristo.” “Esposas e esposos”, não há necessidade
de argumentar; “filhos e pais”, não há argumento ou discussão; “servos e
senhores”; o Senhor nos contou qual é a Sua vontade; e nos deu exemplo.
Não temos desculpa. Portanto, vamos “sujeitar-nos uns aos outros no temor
de Cristo”. Este é o único motivo; e é motivo suficiente.

Mas, graças a Deus, Ele nos dá alento, Ele nos dá incentivo. Temos este
glorioso encorajamento. Qual? - O Seu próprio exemplo. Paulo já se
utilizara

dele no início deste capítulo cinco. “Sede pois imitadores de Deus, como
filhos amados; e andai em amor, como também Cristo vos amou, e se
entregou a si mesmo por nós, em oferta e sacrifício a Deus, em cheiro
suave.” Depois tomemos aquela exposição sumamente gloriosa disso, em
Filipenses 2:3-5. “Nada façais por contenda ou por vanglória, mas por
humildade; cada um considere os outros superiores a si mesmo. Não atente
cada um para o que é propriamente seu mas cada qual também para o que é
dos outros. De sorte que haja em vós o mesmo sentimento que houve
também em Cristo Jesus”. Seria difícil sujeitar-nos aos outros da maneira
que temos indicado? Seria difícil dominar-nos e sepultar-nos, e livrar-nos
desse antagonismo, etc. - Seria difícil? Bem, se você acha isso difícil, como
cristão, aqui está sua resposta: ”Haja em vós o mesmo sentimento que
houve também em Cristo Jesus, que, sendo em forma de Deus, não teve por
usurpação ser igual a Deus. Mas aniquilou-se a si mesmo, tomando a forma
de servo, fazendo-se semelhante aos homens; e, achado na forma de homem,
humilhou-se a si mesmo, sendo obediente até à morte, e morte de cruz.”

Se isso não os capacitar a sujeitar-se, nada poderá fazê-lo. “Sujeitando-vos


uns aos outros no temor de Cristo”, “para que sigais as suas pisadas. O qual
não cometeu pecado, nem na sua boca se achou engano... quando padecia
não ameaçava, mas entregava-se àquele que julga justamente: Levando ele
mesmo em seu corpo os nosso pecados sobte o madeiro, para que, mortos
para os pecados, pudéssemos viver para a justiça; e pelas suas feridas fostes
sarados” (2 Pedro 2:21-24). “Sujeitando-vos uns aos outros no temor de
Cristo.” Devemos viver esta vida, não porque é a coisa que se deve fazer, não
porque é um “uniforme” que vestimos agora que somos salvos e
convertidos, nem porque outros estão fazendo isso; na verdade, por
nenhuma outra razão, senão esta, e unicamente esta - “no temor de Cristo”.
E, graças a Deus, essa não é apenas suficiente, é mais que suficiente. “Haja
em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus.”
CASAMENTO
Efésios 5:22-33

22 Vós, mulheres, sujeitai-vos a vossos maridos, como ao Senhor;

23 Porque o marido é a cabeça da mulher, como também Cristo é a cabeça


da igreja: sendo ele próprio o salvador do corpo.

24 De sorte que, assim como a igreja está sujeita a Cristo, assim também
as mulheres sejam em tudo sujeitas a seus maridos.

25 Vós maridos, amai vossa mulheres, como também Cristo amou a igreja,
e a si mesmo se entregou por ela,

26 Para a santificar, purificando-a com a lavagem da água, pela palavra,

27 Para a apresentar a si mesmo igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga,


nem coisa semelhante, mas santa e irrepreensível.

28 Assim devem os maridos amar a suas próprias mulheres, como a


seus próprios corpos. Quem ama a sua mulher, ama-se a si mesmo.

29 Porque nunca ninguém aborreceu a sua própria carne; antes a


alimenta e

sustenta, como também o Senhor à igreja;

30 Porque somos membros do seu corpo.

31 Por isso deixará o homem seu pai e sua mãe, e se unirá a sua mulher; e
serão dois numa carne.

32 Grande é este mistério: digo-o, porém, a respeito de Cristo e da igreja.

33 Assim também vós cada um em particular ame a sua própria mulher


como
a si mesmo, e a mulher reverencie o marido.

PRINCÍPIOS BÁSICOS Efésios 5:22-33

Chegamos agora ao que descrevi como a aplicação prática do princípio que


o apóstolo formulou no versículo vinte e um, “Sujeitando-vos uns aos
outros no temor de Cristo”. Estabeleceu o princípio geral e, agora, como é
seu costume, passa à sua aplicação particular.

Não se pode contestar que isso é o que o apóstolo está fazendo. Podemos
prová-lo de três maneiras diferentes. A primeira é a palavra “sujeitar-se”,
que se acha na versão “King James” e noutras versões (Almeida, Revista
e Corrigida: “sujeitai-vos”; Atualizada: “sejam submissas”; Tradução
Brasileira: “sejam sujeitas”). “Vós, mulheres, sujeitai-vos a vossos
maridos.” Na verdade, no original não consta a palavra “sujeitai-vos”, mas
apenas se lê: “mulheres, aos vossos maridos, como ao Senhor”. Como
explicar a omissão da palavra? Explica-se: o apóstolo estende a injunção
sobre “sujeitando-vos” do versículo 21 ao 22. O fato de que a palavra não é
repetida explicitamente é, pois, uma prova de que o versículo 22 é
continuação do 21, e que Paulo ainda está tratando do mesmo tema, o
princípio geral da sujeição. Ele sabe que isso estará nas mentes dos seus
leitores e, portanto, diz: “Mulheres (nesta questão de sujeição), aos vossos
maridos”. Assim, a mera ausência da palavra “sujeitai-vos” no original é
por si mesma uma prova de que é isso mesmo que o apóstolo está fazendo
aqui.

Mas há uma segunda prova. Acha-se no fato de que ele menciona as


mulheres antes dos maridos. Isso não é acidental; tampouco é por polidez
ou pelo princípio de “primeiro as senhoras”. A Bíblia jamais faz isso.
Como veremos, a Bíblia, e como o apóstolo a expõe, invariavelmente usa a
outra ordem. Na verdade, é como o requer o direito público, e nós também
fazemos a mesma coisa em nossa conversação diária. Nós não dizemos
senhora e senhor Fulano e Fulana; dizemos senhor e senhora - e assim por
diante. Daí, quando o apóstolo coloca primeiro as mulheres em suas
considerações sobre o relacionamento entre esposos e esposas, tem uma boa
razão para fazê-lo. A razão é que ele está paiticularmente interessado nesta
questão de sujeição - “sujeitando-vos”. Esse é o princípio esboçado no
versículo 21. Ora, no relacionamento matrimonial o aspecto de sujeição,
como ele mostra, aplica-se particularmente às esposas, Há outro aspecto que
se aplica aos maridos - e ele trata disso, porque a sua exposição é completa e
equilibrada - mas como ele está primordialmente preocupado com a questão
da sujeição, inevitalmente, e de modo muito natural, coloca as mulheres
primeiro. Temos aí, pois, uma segunda prova da alegação

de que aquilo de que estamos tratando aqui é uma ampliação do princípio


geral firmado no versículo 21.

Outro argumento, o terceiro, é que ele emprega a expressão “a vossos


maridos”. Notem a ênfase: “Vós, mulheres, sujeitai-vos a vossos maridos”,
No versículo 21 ele formulou o princípio geral da sujeição da parte de todos
os cristãos para com os outros - “Sujeitando-vos uns aos outros”. O
argumento é, pois, este: se vocês fazem isso em geral, se o fazem a toda
gente, por assim dizer, quanto mais deverão as mulheres fazê-lo a seus
maridos, nesta relação peculiar tão adequadamente definida no Velho
Testamento?

Eu me afano em salientar isto porque, se não estiver claro para nós que o
versículo 21 é realmente o princípio determinante, não teremos a
mínima possibilidade de compreender corretamente o seu ensino
pormenorizado. Esclarecido esse ponto, prossigamos.

Antes de entrarmos neste assunto vital e da máxima importância -


principalmente nos dias atuais - é muito importante examinar a proposição
do apóstolo de modo geral. Observemos o seu método. Tenho muitas razões
para fazê-lo. O que o apóstolo faz aqui, vê-lo-emos fazer nos casos dos
“filhos e pais” e dos “servos e senhores”. Observem a ordem em cada caso.
Os filhos vêm antes dos pais. Por que ? Porque ele está interessado na
sujeição. Os filhos não vêm antes dos pais; mas, na questão em apreço vêm,
porque é caso de sujeição. Os servos vêm antes dos senhores, de novo pela
mesma razão. Meu argumento é que, ao estudarmos uma porção das
Escrituras como esta - e, como já disse, no momento estou interessado em
tratar da matéria em geral - veremos que o apóstolo emprega o seu método
costumeiro; e se conseguirmos captar seu método num caso particular,
encontraremos uma chave para o entendimento dos seus outros escritos.
Não somente isso; se investigarmos com exatidão como o apóstolo trata de
qualquer problema, se realmente descobrirmos qual o seu método, então,
quando confrontados por um problema, veremos que tudo que precisamos
fazer é aplicar o método e, ao aplicarmos o método, poderemos descobrir a
resposta. Então, o que estamos fazendo especialmente por ora, é estudar o
método do apóstolo. Havendo feito isso, abordaremos o assunto particular
do qual ele está tratando.

Há certas coisas que saltam à vista neste parágrafo particular que ilustra o
método do apóstolo. Eis a primeira delas: o fato de que nos tomamos
cristãos não significa que estaremos certos em tudo que pensarmos e
fizermos. Há algumas pessoas que parecem achar que é assim. No momento
em que uma pessoa se toma cristã, segundo elas, tudo fica perfeitamente
simples e claro. Muitas vezes os responsáveis por isto são os evangelistas,
porque, em seu desejo de obter resultados, fazem afirmações extravagantes
e, com isso, deixam problemas e mais problemas aos pastores e mestres. Dá-
se a impressão de que você entra nalguma atmosfera mágica; nada é a
mesma coisa de antes, tudo é diferente, nenhum problema, nenhuma
dificuldade! Tudo que lhe cabe fazer é tomar sua decisão, e o ditado será, “e
todos viveram felizes para sempre” - sem nenhum problema ou dificuldade.
É claro que isso está completamente errado.

Se fosse verdade, nunca teria existido uma só epístola sequer, no Novo


Testamento. O fato de que nos tomamos cristãos, que a questão básica da
nossa relação com Deus foi acertada, não significa que agora estamos
automaticamente certos em tudo que pensamos, dizemos e fazemos. O
próprio parágrafo que estamos focalizando é, por si mesmo, uma prova de
que necessitamos de instrução acerca de questões particulares.

O segundo princípio é o seguinte: não somente é verdade, como tenho dito,


que o cristão não está automaticamente certo em tudo, por ser
cristão; podemos até dizer que o fato de que um homem se tomou cristão,
provavelmente levantará para ele novos problemas que dantes jamais
defrontara. Ou, se não, certamente lhe apresentará problemas que nunca
enfrentara dessa maneira. Ele vê agora as situações como nunca as vira
antes. Enquanto que realmente nunca pensava antes, agora é compelido a
pensar. E no instante em que se põe a pensar, e uma vez que pensa, é
confrontado por novos problemas.

Havia muito disso na Igreja Primitiva. Vejam o caso de uma esposa. Marido
e mulher tinham vivido juntos como pagãos. Nenhum dos dois sendo cristão,
levaram sua vida matrimonial como os pagãos daqueles dias. Teremos que
referir-nos a isso mais tarde. Mas agora a mulher se converte e se
toma cristã. A tentação que imediatamente sobrevinha a essa mulher era de
dizer: “Muito bem, agora estou livre. Entendo coisas que não entendia. O
evangelho me revelou que “não há bárbaro, cita, macho nem fêmea, servo
nem livre” (cf. Colossenses 3:11 e Gálatas 3:28). Portanto, não continuarei
vivendo como costumava. Tenho uma compreensão que o meu marido não
tem”. O perigo era a mulher interpretar tão mal a nova vida que chegasse a
arruinar o seu relacionamento matrimonial. Dava-se o mesmo com filhos e
pais, e a tendência continua sendo a mesma. Muitas vezes, quando filhos se
convertem e seus pais não, e os filhos passam a ter uma compreensão que os
pais não têm, os filhos interpretam mal a nova situação e são levados pelo
diabo a aplicá-la erroneamente e a exceder-se. Daí, por fim, acabam
quebrando o mandamento de Deus, que manda que os filhos honrem seus
pais. Assim, quase inevitavelmente, com a iluminação que vem com o
cristianismo, surgem novos problemas jamais enfrentados antes. Portanto,
deduzimos desta passagem que a grande mudança que ocorre na
regeneração tende a levantar novos problemas. O resultado é que temos que
pensar cautelosamente, para vermos exatamente o que é certo nesta nova
vida, e como devemos aplicar este novo ensino à nova situação em que
nos vemos.

Eis o terceiro princípio: o cristianismo tem algo que dizer acerca da nossa
vida completa. Não há aspecto da vida que ele não considere e que não
governe. Não devem existir compartimentos em nossa vida cristã. Com
muita freqüência existem, como vocês sabem. O risco que os cristãos
primitivos corriam era que estas pessoas - marido e mulher, ou filhos, ou
pais - ao se converterem e se tomarem cristãos, dissessem a si mesmas coisas
como esta: “Bem, naturalmente, isso é uma coisa que só pertence à minha
vida religiosa, ao elemento relacionado com o culto que devo a Deus; não
tem nada que ver com o meu

casamento, com o meu trabalho, com a minha relação com meus pais” - e
assim por diante. Ora, segundo o ensino que estamos analisando, isso está
completamente errado. Não há nada que seja tão errado e fatal como viver
a vida em compartimentos. Chega domingo de manhã, e eu digo: “Ah, eu
sou religioso.” Portanto, pego a minha pasta religiosa. Depois chega
segunda-feira de manhã, e digo a mim mesmo: “Sou homem de negócio”, ou
outra coisa qualquer, e apanho outra pasta. Assim vivo minha vida em
compartimentos; e fica difícil perceber na segunda-feira que sou cristão.
Naturalmente mostrei que o sou no domingo, quando fui ao local de culto.
Esta concepção é inteiramente errada. A vida crista é integral; a fé cristã
tem o que dizer acerca de cada esfera e cada aspecto da vida.

Cada um destes pontos é de suma importância e poderia ser amplamente


desenvolvido. Há os que dizem e até certo ponto estou disposto a concordar
com eles que, em grande parte, o presente estado da Igreja e do cristianismo
se deve ao fato de que muitos dos nossos antepassados tiveram a grande
culpa da específica incapacidade de compreender que o cristianismo
governa a vida completa do homem, e não apenas parte dela. Muitos deles
foram pessoas profundamente religiosas; alguns deles realizaram reuniões
devocionais em suas oficinas ou em seus escritórios de manhã, e depois,
acabadas as orações, mostravam-se duros, avaros, grosseiros, injustos e
legalistas. Indubitavelmente, colocavam muitos em antagonismo à fé cristã,
porque, muitíssimas vezes havia esta espécie de dualismo, esta incapacidade
de perceber a abrangência total da vida cristã, e que o cristão jamais deverá
viver sua vida dividida em compartimentos. O meu cristianismo tem que
penetrar na minha vida conjugal, na minha relação com os pais, na minha
ocupação profissional, em tudo que sou e em tudo que faço.

Chego agora ao quarto princípio, que de novo é de muita importância do


ponto de vista doutrinária e teologica e, por isso, na vida comum também.
O ensino cristão nunca contradiz nem desfaz o ensino bíblico fundamental
com relação à vida e ao modo de viver. Quero dizer que não há contradição
entre o Novo e o Velho Testamentos. Isto precisa ser salientado nos dias
atuais, em razão da atitude comum para com o Velho Testamento. Com
língua solta e com superficialidade, há gente que diz: “Ora, pois, é claro,
não estamos mais interessados em coisa alguma dita no Velho Testamento;
somos povo do Novo Testamento”. Alguns são suficientemente insensatos
para dizer que não crêem no Deus do Velho Testamento. Dizem eles: “Creio
no Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo.” Também há pregadores
cristãos, assim chamados, que, sob aplauso, afirmam em seus púlpitos que
não crêem no Deus do Sinai, no Deus dos Dez Mandamentos e da Lei Moral.
Rejeitam o ensino do Velho Testamento e dizem que devemos guiar-nos
unicamente pelo ensino do Novo Testamento. Alguns vão mais longe ainda, e
dizem que não devemos ser governados nem pelo Novo Testamento, porque
temos muito maior conhecimento agora.

Existe esta tendência de rejeitar todo o ensino bíblico. Eis minha resposta: o
Novo Testamento, o ensino especificamente cristão, nunca contradiz, nunca
põe de lado o ensino bíblico fundamental quanto às relações humanas e às
ordens da vida. Refiro-me, naturalmente, a questões como o casamento,
como veremos aqui. O argumento de Paulo está baseado, em parte, naquilo
que é ensinado no Velho Testamento, precisamente no Livro de Gênesis. A
mesma coisa se dá com relação à família e, com todas estas ordens
fundamentais da vida. O fato de nos tomarmos cristãos não mexe com elas,
de modo algum. O que isso produz de fato é suplementar o Velho
Testamento, dar-lhe maior abertura, dar-nos visão mais ampla dele, ajudar-
nos a ver o espírito por trás da injunção original. Nunca o contradiz, porém.

Este é um princípio sumamente importante e vital. Estou dando ênfase a


isto porque, como pastor, muitas vezes tive que lidar com ele. De alguma
forma as pessoas ficam com a noção de que, porque são novas criaturas em
Cristo, os antigos princípios fundamentais não valem mais. A resposta do
Novo Testamento é que vale. Notem como o apóstolo cita o Velho
Testamento em todos estes casos, a fim de mostrar que o ensino original veio
de Deus, e que deve ser observado sempre, por mais que seja suplementado
por este ensino mais recente.

Vamos ao quinto princípio. O novo Testamento sempre nos dá razões para


os seus ensinamentos. Sempre nos dá argumentos - e não há nada, neste
aspecto, em que eu me alegre tanto como nisso. O Novo Testamento não nos
atira simplesmente certo número de regras e regulamentos, dizendo-nos:
agora, pois, tratem de cumpri-los. Não! Ele sempre explica, sempre nos
oferece argumento, sempre nos dá um motivo. O tipo de cristianismo que
meramente impõe ao povo regras e regulamentos é um desvio do ensino do
Novo Testamento; é tratar-nos como crianças. É pena, mas existem esses
tipos de cristianismo! Consiste em vestir um uniforme; e todos os cristãos
são “como ervilhas na vagem”. Lá vão eles, em sua ordem unida. Isso não é
cristianismo! Sempre devemos saber por que nos comportamos desta ou
daquela maneira; sempre devemos entender a razão disso. Sempre devemos
ser claros e ágeis sobre isso; e, portanto, nada de contradição, nada de
murro em ponta de faca, nada de trabalhar a contragosto, ou de pensar:
tenho que fazer isso, mas bem que eu gostaria de não precisar fazê-lo, e de
estar o mais longe possível disso. Isso não é cristianismo. O cristão
se regozija com o seu modo de viver. Ele o vê com clareza e não deseja outra
coisa; é inevitável -sua mente está satisfeita.

É por isso que digo que o não cristão não sabe verdadeiramente o que é ser
homem. Não há ensino no mundo que nos valorize como esta Palavra de
Deus. Não nos trata como crianças nem nos governa com regras e
regulamentos. Ela o coloca para a nossa razão, para o nosso entendimento.
Esse é ensino de verdadeira santidade - não uma coisa que recebemos num
pacote, não é uma coisa que nos vem quando estamos mais ou menos
passivos e inconscientes. É raciocinar sobre o ensino, tomar um princípio e
desenvolvê-lo, como o apóstolo faz aqui. Esse é o método neotestamentário
de santidade e santificação. Graças a Deus por isso!

O sexto princípio que observo aqui é deveras glorioso. Como é maravi-

lhosa esta passagem de Efésios! Deixa-me atônito que, ao observarmos este


ensino, pensamos primeiro: ora, naturalmente isso é apenas um
ensinamento sobre casamento, maridos e esposas. Mas depois começamos a
descobrir os tesouros aí presentes; vamos de sala em sala, e, conforme
andamos, mais esplendores vamos vendo. Vocês já notaram, ao ler esta
passagem, a íntima relação que há entre a doutrina e a prática? A doutrina
e a prática nunca devem estar separadas, porque uma ajuda a outra e uma
ilustra a outra. Há certos aspectos nos quais a passagem que estamos
examinando é uma das mais surpreendentes da Bíblia. Não digo que seja a
mais grandiosa, mas que é uma das mais surpreendentes. Aqui estamos
nesta Epístola aos Efésios, no capítulo 5, já rumando para o fim do capítulo.
O que acontece nesta parte da epístola? Bem, todos dizem, estamos agora na
seção práticas da epístola. A grande seção doutrinária está, naturalmente,
nos três primeiros capítulos. Um pouco aparece no capítulo 4, mas agora
entramos nos domínios das coisas práticas, das relações comuns e doutras
questões bem comuns. Nunca o apóstolo foi mais prático que nesta seção -
sobre esposas e esposos, filhos e pais, servos e senhores - seção puramente
prática da sua epístola. Todavia você observa - e não fica admirado sempre
que a lê, ou sempre que assiste a uma cerimônia nupcial em que esta porção
das Escrituras é lida? - não fica surpreso e emocionado até à medula
quando vê que o apóstolo, ao tratar desse assunto extremamente prático, de
repente nos introduz na mais elevada doutrina? Ao falar às esposas e
esposos como conduzir-se uns para com os outros, ele introduz a doutrina
da natureza da Igreja e da relação da Igreja com Cristo. De fato, devo ir
mais longe. Precisamente nesta seção o apóstolo nos dá o seu mais elevado
ensino sobre a natureza da Igreja e sobre a relação desta com Cristo. Isso é
uma coisa que nunca devemos perder de vista. Quando ler esta epístola,
prepare-se para surpresas. Não diga a si próprio: “ora, ora, eu não preciso
dar muita atenção a isto; naturalmente, isto é prático, simples e direto”.
Repentinamente, quando você menos espera, o apóstolo abrirá uma porta e
você se verá confrontado pela mais magnificente e gloriosa doutrina que
jamais encontrou em sua vida.

Isso me leva a fazer este comentário prático: cuidado com análises


superficiais das Escrituras! Você conhece o tipo de gente que diz, “capítulo
1, isto; capítulo 2, aquilo. Tudo tão perfeito, limpo e bem arrumado!” Se
você tentar fazer isso com este capítulo da Epístola aos Efésios, ver-se-á
desnorteado, e verá arruinado o seu diminuto esquema. Aqui, nesta mais
prática das seções, subitamente Paulo introduz esta tremenda doutrina da
natureza da Igreja e da sua relação com o Senhor Jesus Cristo. Mas o que
devemos ter em mente -porque resulta disso tudo - é que a doutrina e a
prática se relacionam tão intimamente que não podem separar-se. Portanto,
quem quer que diga, “Só estou interessado na prática”, realmente estará
negando a essência da mensagem cristã. Esta grandiosa passagem
demonstra isso perfeitamente.

Havendo dito essas seis coisas, digo em sétimo lugar: obviamente, à luz disso
tudo, quando somos confrontados por algum problema, nunca o abordemos
diretamente, nunca iniciemos considerando a coisa “per se”, a coisa

propriamente dita. É isso que todos temos a tendência de fazer. Quantas


vezes vejo isto nos grupos e reuniões de debate! Apresenta-se uma questão -
um problema da vida diária de alguém - e eu a coloco na reunião. A
tendência da pessoas é de levantar-se logo e falar diretamente sobre a
questão, dando suas opiniões a respeito. E por essa razão, naturalmente, em
geral estão erradas; porque não é esse o modo de abordar um problema.

O apóstolo não aborda este problema de maridos e mulheres, e de mulheres


e maridos diretamente, de imediato “per se”, como se fosse uma questão
isolada. Seu método é o seguinte - devemos abordá-lo sempre indiretamente.
É, uma vez mais, “a estratégia da abordagem indireta”. Quando
sou confrontado por uma questão em particular, não devo de imediato
aplicar o meu raciocínio diretamente a ela. Devo primeiro inquirir: há
algum princípio, alguma doutrina nas Escrituras que governe este tipo de
problema? Noutras palavras, antes de começar a tratar do problema
individual, que, por assim dizer, está em sua frente, diga: bem, a que família
ele pertence? Você poderá ampliar mais a investigação e dizer: a que nação
ele pertence? Obtenha uma classificação ampla, e, tendo descoberto a
verdade sobre o grupo ou classe ou comunidade maior, parta desse ponto e
aplique o princípio a esse caso ou exemplo particular. É o que o apóstolo faz
aqui. Ele vai do geral ao particular.

Tenho usado muitas vezes a seguinte ilustração: alguém que alguma vez fez
química, e lhe pedem que identifique uma substância, logo adotará o
método acima. Como procede? Faz exatamente o que acabei de dizer.
Começa com os teste gerais, com os testes de grandes grupos. Com isso ele
pode excluir certos grupos; e os vai reduzindo até chegar a um grupo.
Depois divide esse grupo, estabelecendo as suas subdivisões; e depois vai
reduzindo mais e mais até que, por fim, chega à particular substância
individual. É esse o método do apóstolo aqui; na verdade, é esse o seu
método em toda parte. É “a estratégia da abordagem indireta”, o
movimento do geral para o particular. Jamais salte num problema, jamais
caia sobre ele, isoladamente; apegue-se ao grande princípio ou doutrina
determinante.

Assinalo o último ponto, outra vez muito prático. Deduzo-o de tudo o que o
precede. Notem o espírito com que o apóstolo conduz a discussão. Aqui
ele está absorvido no problema do relacionamento entre esposas e esposos, e
entre esposos e esposas; mas observem o seu método, o espírito com que ele
o faz. Este assunto é objeto de constantes pilhérias no mundo, não é? É
sempre uma coisa capaz de provocar risada. O mais limitado comediante
procura tirar alguma coisa disto, quando não lhe resta mais nada - relações
matrimoniais, maridos e mulheres. Não é preciso salientar que o apóstolo
não trata do assunto deste modo. Não devemos tratar assim nenhum
problema cristão.

Mas há outros aspectos negativos também. Paulo não somente não o trata
de maneira chistosa, irreverente e superficial; há na passagem uma
completa ausência de espírito partidário. Não há nada de animoso, de auto-
afirmativo, de defesa de direitos, nenhum desejo de provar que um está
certo e o outro está errado. É assim que os assuntos são tratados
normalmente, não é? E é por isso

que há tanto problema. O apóstolo foge disso tudo, como estive dizendo,
elevando-lhes o nível e colocando-os noutro contexto; e, fazendo isso,
evita todas estas dificuldades.
Seu método, positivamente considerado, é este: é o princípio, “no temor de
Cristo”, que já havia formulado no versículo 21 - “Sujeitando-vos uns
aos outros no temor de Cristo”. Depois o repete: “Vós, mulheres, sujeitai-
vos aos vossos maridos, como ao Senhor”. Antes que comecemos a tomar
posição de um lado ou de outro - e, se o fizermos, estaremos fadados ao
fracasso, porque estaremos com um espírito partidário - ele evita todo
espírito partidário, eleva ambas as partes imediatamente “ao Senhor”. Todo
assunto discutido pelos cristãos deve ser discutido dessa maneira. O cristão
ou a cristã que perde a clama numa argumentação, não deveria falar. Quer
provemos o nosso ponto quer não, perdemos tudo se perdemos a calma. É
“no Senhor”, “no temor de Cristo”. Paulo está falando de sujeição, e o
ponto que defende é que, antes de considerarmos os méritos destas duas
pessoas, ambas devem sujeitar-se ao Senhor, “Sujeitando-vos uns aos outros
no temor de Cristo”. E quando ambas fizerem isso, terão a sua divergência
“de joelhos”. Que diferença isso faz! Se posso usar um vulgarismo, não
precisamos subir pelas paredes; precisamos nos pôr de joelhos. Se tão
somente conduzíssemos estas difíceis questões dessa maneira, que diferença
faria!

Isto é verdade não somente quanto à questão de maridos e esposas. Veja-se


o acaloramento gerado pela argumentação sobre o pacifismo e sobre várias
outras questões que estão envolvendo as pessoas hoje em dia - a veemência,
o espírito partidário, a animosidade! O método, isto é - o espírito, diz o
apóstolo, é que sempre devemos fazê-lo em submissão ao Senhor, com o
desejo de agradá-lO, sempre prontos a sermos instruídos e guiados por Ele e
Sua Palavra.

Eis aí, pois, vimos oito princípios gerais que não governam somente esta
questão particular, mas governam todo e qualquer problema que surja em
nossa vida cristã. Tendo feito isso, passemos à questão particular. Tudo que
estive dizendo é ilustrado à perfeição pela maneira como o apóstolo trata do
conceito cristão do casamento, do ensino cristão sobre o matrimônio. Mas,
uma vez mais, devemos seguir o seu método. Antes de passarmos aos
pormenores, vejamos o que ele nos diz em geral sobre isto.

A primeira coisa importante que ele nos diz é que o conceito cristão sobre o
casamento é único; é um conceito inteiramente diverso de todos os demais;
é um conceito que só se encontra na Bíblia. Qual é a idéia que o cristão tem
do casamento? Qual é o ensino? Comecemos de novo em termos negativos.
O modo pelo qual o cristão entende o casamento não é o modo pelo qual
o casamento é geralmente entendido pela imensa maioria das pessoas. Você
já pensou nisso? Que seria se, nesta altura, eu lhe pedisse que escrevesse um
relato do conceito cristão sobre o casamento? Já fez isso alguma vez? Que
vexame para nós, cristãos, se não tivermos um conceito claro e bem
definido! Acaso temos descoberto a singularidade do conceito cristão, temos
compreendido quão essencialmente difere do conceito geral? Em que
consiste esse conceito

geral?

Por desagradável que seja, devo recordá-lo a vocês. O conceito comum a


respeito do casamento é puramente físico. Baseia-se quase exclusivamente
na atração física e no desejo de gratificação física. É uma legalização da
atração física e da gratificação física. Assim, muitas vezes não passa disto -
daí o escândalo da escalada do divórcio. As partes nem sequer pensam sobre
isso, não têm absolutamente nenhum conceito do casamento; são
governadas inteiramente por instintos e impulsos; seu nível é puramente
animal, e nunca sobe acima disso. Não há pensamento nenhum acerca do
casamento propriamente dito; é apenas uma legalização de algo que estão
desejosos de fazer.

Há ainda um segundo conceito comum, um pouco mais elevado do que o


primeiro. É um pouco mais inteligente que o primeiro porque considera
o casamento como um arranjo humano e como uma invenção humana.
A antropologia nos ensina isto, dizem. Houve, sem dúvida, um tempo em
que os seres humanos eram mais ou menos como os animais; eram
promíscuos e se portavam como os animais. Mas quando o homem começou
a se desenvolver e a evoluir, começou a perceber que certo arranjo era
necessário, que a promiscuidade levava à confusão, a excessos e a muitos
problemas; assim, após um longo processo de tormento, de
desenvolvimento, de experiências e de ensaio e erro, a natureza humana, em
sua sabedoria, isto é, civilização, chegou à conclusão de que seria certo,
ficaria bem e seria bom que houvesse monogamia - um homem desposando
uma mulher. É questão de desenvolvimento social -esse é o ensino da
antropologia. Mas é sempre uma coisa que o homem descobriu ou inventou.
Assim como ele promulga leis e decretos para controlar o comércio, o
trânsito, o estacionamento etc., assim descobriu um meio de resolver este
problema de homem e mulher e de seus relacionamentos recíprocos bem
como com os filhos. É coisa que se acha inteiramente no plano
humano. Essa é provavelmente a pressuposição comum, feita pela vasta
maioria das pessoas. Lastimavelmente, às vezes a encontro até entre pessoas
cristãs!

Outra característica deste conceito - e surge porque lhe falta uma idéia
fundamentalmente correta do casamento - é que faz uma abordagem
do casamento que quase espera problema. Isso acontecia muito no mundo
pagão. Os maridos tendiam a tiranizar suas esposas e a fazer delas
verdadeiras escravas, e as esposas agiam falsamente. A atmosfera era de
ciúme e antagonismo, levando necessariamente a conflitos e brigas. Em vez
da comum sujeição ao Senhor, de que falamos, cada um lutava por seus
direitos. Não havia um verdadeiro companheirismo, mas uma espécie de
acordo de que, para certos propósitos, iam fazer certas coisas juntos; mas,
na realidade, havia subjacentes amargor e antagonismo de espírito e um
sentimento de oposição.

Examinem a idéia comumente sustentada sobre o casamento, o estado de


casados e as relações matrimoniais. Vê-se isto nos desenhos animados,
nas estórias em quadrinhos, nas caricaturas, nas reportagens de demandas
judiciais, vê-se, tomo a dizê-lo, nas anedotas populares. Por que há de ser
assim? Como é que isto veio a ser tão generalizado? É devido a esta idéia
completamente

errada do significado real do casamento. Hoje a questão toda é agravada


pelas noções modernas da igualdade de homens e mulheres resultantes do
movimento feminista assim chamado. Isto agravou o problema, e toma o
assunto de que estamos tratando particularmente urgente nos dias atuais.
Tem havido este movimento feminista moderno, que reclama que o homem
e a mulher são iguais em todos os aspectos, e que não deve existir
absolutamente nenhuma divisão ou distinção, mas sim, igualdade completa.
Ora, enquanto, por um lado, há aspectos desse ensino com os quais todo
cristão - de fato, qualquer homem saudável e inteligente - deve concordar de
alma e corpo, por outro lado, tomando-o em termos gerais e como um
princípio, vai contra o claro ensino das Escrituras sobre este ponto. É
incontestavelmente causa de muita angústia e muito dano, não só para a
condição matrimonial, mas também para a família como uma unidade
fundamental da vida. O resultado é que a disciplina se foi, a ordem se foi e
não se dá genuína oportunidade aos filhos. Por que? Porque seus pais não
mantêm um relacionamento mútuo correto; e a criança fica desorientada ao
ver esta competição, este conflito, onde deveria haver união.
Este movimento feminista moderno tem tido a tendência de obscurecer toda
a questão; e, infelizmente, parece que ele está penetrando até mesmo no
pensamento de muitos que se denominam evangélicos (cristãos bíblicos) e
que dizem crer nas Escrituras como a infalível Palavra de Deus e nossa
única autoridade.

Vemos imediatamente aqui que essa não é a abordagem cristã do


casamento. O conceito cristão do casamento é governado inteira e
unicamente pelo ensino das Escrituras - Velho e Novo Testamentos. O
apóstolo deduz o seu argumento do Velho Testamento, bem como de Cristo.
Portanto, o homem que se diz cristão não diz, “Pois bem, o que penso sobe o
casamento é isto”. Ao invés disso, ele diz, “Que diz a Bíblia sobre o
casamento?” Assim, já no começo há uma diferença completa - ele “se
sujeita” ao ensino deste Livro. Ele não diz, “Naturalmente, agora estamos
muito desenvolvidos e adiantados. As mulheres eram virtualmente tidas
como escravas, até pelo apóstolo Paulo, você sabe. Ele estava tão certo sobre
a expiação, mas não sobre as mulheres! ” No momento em que você diz isso,
já não crê nas Escrituras, e não tem o direito de dizer que crê que elas são a
infalível Palavra de Deus. Não, o cristão diz, “Fora o que as Escrituras me
dizem eu nada sei”. Assim, ele se sujeita ao Velho e ao Novo Testamentos.
Toda a sua vida deve ser governada com base nesse princípio -tanto na
questão de pensamento como na de conduta.

Em segunda lugar, descobrimos que o casamento não é uma invenção ou um


arranjo humano, mas ordenança de Deus, algo instituído por Deus, algo
que Deus, em Sua infinita graça e bondade designou, ordenou, preparou e
estabeleceu para os homens e as mulheres. É de Deus, e não do homem. O
ensino dos antropólogos está baseado na especulação e na imaginação; não é
verdadeiro. O ensino da Bíblia é a verdade sobre esta matéria; é invenção
de Deus e ordenança de Deus.

Em terceiro lugar, os termos da relação estão firmados com clareza e


franqueza, como veremos.

Em quarto lugar, só podemos compreender plenamente o casamento


quando compreendemos a doutrina do Senhor Jesus Cristo e da Igreja.
Vocês vêem que isso é central; o apóstolo desenvolve o argumento sobre
Cristo e a Igreja em toda esta passagem. Noutras palavras, chega ao
seguinte: se não temos entendimento claro sobre o Senhor Jesus Cristo e a
Igreja, e sobre a relação da Igreja com Ele, não podemos compreender o
casamento. È impossível, porque somente à luz daquela doutrina é que
realmente compreendemos a doutrina concernente ao casamento.

Portanto, eu tiro estas duas deduções: só o cristão entende e aprecia


verdadeiramente o casamento. Esse é um dos esplêndidos resultados de
ser cristão. O cristianismo não trata somente da nossa alma e da nossa
salvação final, de como evitarmos o inferno e irmos para o céu; o
cristianismo toca em todos os aspectos da nossa vida, enquanto estamos
neste mundo. Creio que posso dizer sinceramente que, em minha
experiência pastoral, não houve nada mais maravilhoso do que ver a
diferença que o cristianismo faz no relacionamento marido/esposa. Onde
havia entre as duas pessoas a tendência de rompimento e afastamento uma
da outra, de antagonismo, mordacidade e ódio, elas tomando-se cristãs
fizeram verdadeiro descobrimento uma da outra pela primeira vez.
Também descobriram pela primeira vez o que o casamento realmente é,
embora cônjuges durante anos. Agora vêem que coisa bela e gloriosa é.
Ninguém poderá entender o casamento, se não for cristão.

Posso aventuar-me a fazer esta colocação? A luz disso tudo, o que é de


admirar não é que haja tantos divórcios, mas que não haja muito
mais. Porventura não é espantoso e surpreendente que na ausência de
pensamento, e ainda com a presença de pensamento errado quando
começam a pensar, há casamentos que ainda perduram? Nenhum homem e
nenhuma mulher não cristãos têm um verdadeiro conceito do casamento;
mas, se somos cristãos, não haverá dificuldade quanto a saber o que é
casamento ou o que significa. Não há por que argumentar, não há por que
discutir. Se você acredita no ensino doutrinário, o conceito sobre o
casamento é inevitável. É tão maravilhoso, tão glorioso, tão elevado! Não há
dificuldade, não há regateio, não há argumentação. Você se sujeitou a
Cristo; o outro cônjuge também. E ambos se sujeitaram não somente um ao
outro, mas também a todos os outros membros da igreja, da comunidade a
que pertencem. São governados por uma lealdade superior, pela lealdade
Àquele que não levou em conta os Seus direitos e prerrogativas, mas só
levou em conta vocês e sua desesperada e aterradora necessidade. Ele
Se humilhou a Si mesmo, pôs de lado os Seus direitos e prerrogativas,
assumiu a forma de servo, e enfrentou a morte, sim, a morte de cruz.
Olhando para Ele, e vendo como Ele veio, não somente para salvá-los do
inferno, mas para dar-lhes vida, vida mais abundante, e encheu plenamente
o seu entendimento para a Sua glória - vendo isso, vocês verão seu
casamento com outros olhos, verão tudo com outros olhos. Não farão objeção
ao ensino bíblico; não somente se sujeitarão a ele, mas se alegrarão com ele
e louvarão a Deus por ele.

Aí está, pois, a nossa introdução ao pormenorizado ensino do apóstolo Paulo


em Efésios, capítulo 5, com relação ao casamento cristão. Agora podemos
passar a considerar o ensino pormenorizadamente.

A ORDEM DA CRIAÇÃO Efésios 5:22-24

Vamos agora considerar mais detalhadamente o ensino da passagem que, na


verdade, é o ensino do Novo Testamento e da Bíblia toda com relação
ao casamento. Examinamos o assunto em geral, e isso devido ao modo pelo
qual o apóstolo no-lo apresenta; é essencial termos isso em mente.

O espírito com que abordamos esta questão é muito importante. Tudo que
se faz na esfera da Igreja é diferente do que se faz fora dela. O mundo, em
suas entidades de debate, discute a questão do casamento, e o faz de
maneira particular - dois lados, pró e contra, defensores e demandantes.
Mas não é esta a maneira como a Igreja encara o problema; ela não
enfrenta nenhum problema desse modo. Aqui, somos confrontados pela
autoridade que nos vem da Palavra. Não nos interessa expressar nossas
opiniões; nosso único propósito é entender o ensino da Palavra. E o fazemos
juntos - não um grupo aqui e outra ali, oposição e governo, por assim dizer,
defesa e ataque. Nós nos reunimos com o fim de encontrar o ensino da
Bíblia; e temos visto que certos princípios grandiosos são formulados com
tanta clareza que tudo isso se eleva ao nível da doutrina cristã em suas
maiores alturas. Somos confrontados por alguns dos mais
profundos ensinamentos das Escrituras concernentes à natureza da Igreja
cristã.

Tendo examinado aqueles princípios gerais, podemos agora partir para a


aplicação particular. Vocês vêem que a primeira coisa é uma injunção dada
às esposas. Vocês se lembram de que as esposas são colocadas antes dos
esposos por uma única razão, que o apóstolo está tratando da questão da
sujeição. O princípio está no versículo 21: “Sujeitando-vos uns aos outros no
temor de Cristo”. Nesta questão de sujeição, diz ele primeiramente: “Vós,
mulheres, sujeitai-vos (ou sede sujeitas) a vossos maridos, como ao Senhor”.
O que devemos considerar é esta “sujeição” das esposas aos esposos. O
apóstolo não só lhes lembra isso, mas lhes diz franca e claramente que é
dever delas fazê-lo - assim como é dever de todos nós sujeitar-nos uns aos
outros. Eis uma coisa muito especial, diz ele: “Vós, mulheres, sujeitai-vos a
vossos maridos”. Isto é mais evidente ainda porque eles são seus maridos,
seus próprios maridos, e devido ao ensino sobre toda a questão do
casamento. O ponto importante que emerge aqui é esta questão de sujeição -
é o que ele está ressaltando. Portanto, devemos examinar bem este ponto; e,
afortunadamente, o apóstolo nos ajuda a fazê-lo. Não se trata apenas de
uma injunção lançada ao acaso.

Paulo nos dá primeiro o grande motivo para a sujeição: “Vós, mulheres,


sujeitai-vos a vossos maridos, como ao Senhor”. Precisamos ter uma clara

compreensão desta frase, porque ela pode ser, e tem sido, mal entendida.
Não significa: “Vocês, mulheres, sujeitem-se a seus maridos exatamente da
mesma maneira como se sujeitam ao Senhor”. Isto seria ir longe demais. A
sujeição de todas as esposas, e na verdade de todos os crentes cristãos,
homens e mulheres, ao Senhor Jesus Cristo é absoluta. O apóstolo não diz
isso, quanto ao relacionamento das mulheres para com os seus maridos.
Todos nós somos “escravos” de Jesus Cristo; mas nunca se diz que a esposa
é escrava do seu esposo. Nossa relação com o Senhor é de completa, inteira,
absoluta sujeição. As esposas não são exortadas a tal sujeição.

Que significa então? Significa: “Vocês, mulheres, sujeitem-se a seus maridos


porque isso faz parte dos seus deveres para com o Senhor, porque é
uma expressão da sua sujeição ao Senhor”. Noutras palavras, não estarão
fazendo isto somente para o marido, mas, primordialmente, para o Senhor.
É uma repetição do princípio geral estabelecido no versículo 21:
“Sujeitando-vos uns aos outros no temor de Cristo”. Em última análise, não
o fazem pelo marido; a razão, o motivo final não jaz aí; a sujeição é “ao
Senhor”. Vocês o fazem por amor a Cristo, porque sabem que é Ele que as
exorta, porque é agradável aos Seus olhos este seu procedimento. Faz parte
da sua conduta cristã, faz parte do seu discipulado. “Portanto, quer comais,
quer bebais”, diz o apóstolo, usando o mesmo tipo de argumento ao escrever
aos coríntios, na primeira epístola, capítulo 10, versículo 31, “quer comais,
quer bebais, ou façais outra qualquer coisa, fazei tudo para glória de Deus -
façam tudo “como ao Senhor”. Tudo que fazemos é por amor a Ele, para
agradá-lO, porque sabemos que Ele quer que o façamos.

Assim, logo no inicio, o apóstolo eleva esta questão muito acima da esfera da
controvérsia e nos habilita a abordá-la com o espírito apropriado.
Se desejam, diz ele, agradar ao Senhor Jesus Cristo e cumprir Suas ordens e
Sua vontade, sujeitem-se aos seus maridos. Não pode existir motivo mais
estimulante que esse para qualquer ação; e toda esposa cristã que se
preocupe acima de tudo em agradar ao Senhor Jesus Cristo, não verá
dificuldade nesta passagem; de fato, seu maior prazer será fazer o que
Paulo nos diz aqui. Eu iria mais longe. Jamais talvez tenhamos tido, como
povo cristão, maior oportunidade de mostrar o que o cristianismo significa
realmente do que nesta conjuntura atual, quando a vida neste mundo está
cada vez mais revelando as suas verdadeiras cores. Essa vida está se
tomando cada vez mais caótica, nesta questão do relacionamento
matrimonial e em todos os demais aspectos. Aí está uma gloriosa
oportunidade que temos de mostrar que diferença faz ser cristão. Portanto,
mulheres cristãs, diz o apóstolo, vocês têm uma oportunidade
magnífica; podem mostrar que não são mais pagãs, que não são mais
irreligiosas, que não pertencem mais ao mundo. E estas outras pessoas - que
vivem como vivem, que afirmam os seus direitos, que exibem a arrogância a
qual leva ao caos que caracteriza a vida atual - quando olharem para vocês,
verão algo tão diferente que dirão: “Que é isto? Por que vocês se
comportam desta maneira? Qual a razão disto?” E a sua resposta não será:
“Bem, simplesmente nasci deste jeito”, mas:

“Comporto-me assim porque esta é a vontade do meu Senhor”. Assim terão


imediatamente uma oportunidade para pregar e expor o evangelho.

É por isso que o apóstolo as exorta a que procedam deste modo. O ponto
presente em sua exortação, que vemos no conteúdo total deste capítulo e
na maior parte do capítulo anterior - é que estes cristãos devem mostrar em
todos os pormenores das suas vidas que, uma vez que alguém se tomou
cristão, é diferente em todos os aspectos. Daí, esta grande característica da
vida cristã pode ser demonstrada pelas esposas com sua sujeição aos seus
esposos. Esse é o grande motivo; e se não formos movidos e animados por
ele, nenhum outro argumento nos atrairá. Se já não estivermos sujeitos ao
Senhor Jesus Cristo e interessados em Seu nome e em Sua honra acima de
tudo mais, todos os outros argumentos nos deixarão impassíveis. O apóstolo
coloca isso primeiro; e nós temos que colocá-lo primeiro.

Havendo dito isso, porém, Paulo prossegue e nos dá razões particulares,


razões adicionais. Aqui de novo vemos a riqueza e a glória das Escrituras.
Há duas grandes razões subsidiárias, diz ele, pelas quais a esposa cristã
deve sujeitar-se ao seu esposo. A primeira é a que podemos denominar
“ordem da criação”; a segunda, que isto é algo que pertence à esfera da
relação da Igreja com o Senhor Jesus Cristo. Ambas as razões estão no
versículo vinte e três: “Porque” - aqui está a primeira razão - “o marido é a
cabeça da mulher”. A segunda razão é: “Como também Cristo é a cabeça
da igreja: sendo ele próprio o salvador do corpo”.

Observem a primeira razão. É que esta faz parte da ordem da criação, uma
parte das ordenaças de Deus, do decreto de Deus, da vontade de Deus,
daquilo que Deus estabeleceu quanto à esta relação entre homens e
mulheres. Este ensino encontra-se em várias porções das Escrituras. Vê-se
primeiramente no capítulo dois de Gênesis, logo em seguida à criação; e se
pode observar como as referências do Novo Testamento nos remetem de
volta para lá. É o que quero dizer quando afirmo que isto pertence à ordem
da criação. Antes de podermos considerar o casamento do ponto de vista
especificamente cristão, devemos ir aos antecedentes, porque a estes o Novo
Testamento nos envia. Envia-nos ao livro de Gênesis, a toda a questão da
criação. Também nos remete à questão da Queda. O relato desta acha-se no
capítulo três de Gênesis. O versículo crucial é o 16, onde lemos o que Deus
disse à mulher por ter ela dado ouvidos a Satanás e à sua tentação, e por ter
comido do fruto proibido. “E à mulher disse: Multiplicarei grandemente a
tua dor, e a tua conceição; com dor terás filhos, e o teu desejo será para o
teu marido, e ele te dominará.” Esse é um adendo ao capítulo 2, e devemos
prestar muita atenção nele.

A fim de resumir o ensino das Escrituras concernente a esta importante


questão do casamento e da família, podemos extrair os princípios postos
diante de nós nestas várias porções das Escrituras. Lembrem-se de que
estamos tratando essencialmente do “casamento”, e não da posição da
mulher (ou das mulheres) como tal. Certamente temos que deduzir das
Escrituras o ensino quanto às mulheres em geral, e de matérias como a
questão das mulheres

adotarem profissões etc. Mas não estou tratando disso, estou tratando
unicamente da questão do casamento. É o que o apóstolo faz aqui; ele está
se dirigindo às esposas. Não está se dirigindo a mulheres não casadas, neste
ponto. Há ensino sobre isso, mas não entra em nosso terreno aqui, a não ser
indiretamente.

O ensino é o seguinte: primeiro, vemos que a ênfase é dada constantemente


ao fato de que o homem foi criado primeiro, não a mulher. Assim, uma
prioridade natural favorece o homem. As Escrituras também ressaltam o
fato de que a mulher foi feita do homem, tirada do homem, e destinada a ser
um auxílio, uma “adjutora” para o homem, uma adjutora que estivesse
diante dele - “que lhe fosse idônea”. Nenhum dos animais poderia satisfazer
essa necessidade. “E Adão pôs os nomes a todo o gado, e às aves dos céus, e
a todo o animal do campo; mas para o homem não se achava adjutora que
lhe fosse idônea”. E foi porque não se achou “adjutora” satisfatória para o
homem dentre os animais, que foi criada a mulher.

Esse é o ensino básico, e observe, que o apóstolo lhe dá forte ênfase. O


homem foi criado primeiro. Não somente isso, porém, também foi
constituído o senhor da criação. Ao varão foi dada esta autoridade sobre a
natureza e sobre os animais; o varão é que foi convocado para dar-lhes
nomes. Aí estão indicações de que o varão foi colocado numa posição de
liderança, de senhorio, de autoridade e poder. Ele toma as decisões, ele
estabelece as regras. Esse é o ensino fundamental a respeito de toda esta
matéria.

O apóstolo Pedro sublinha tudo isso com aquela sua frase significativa na
qual diz aos maridos que dêem honra à esposa “ como vaso mais fraco” (1
Pedro 3:7). Que será que ele quer dizer com “vaso mais fraco”? Vê-se
claramente que ele quer dizer o que é ensinado com muita clareza nos
primeiros capítulos de Gênesis, e, na verdade, em toda parte na Bíblia. Quer
dizer primordialmente esta questão toda da chefia e liderança do varão.
Falando em termos físicos, o homem é mais forte que a mulher; foi criado
para ser mais forte, e é. Eu poderia entrar em minúcias a respeito. Poderia
prová-lo com extrema facilidade, não meramente do ponto de vista da
anatomia, mas ainda mais do ponto de vista da fisiologia. A mulher não foi
destinada a ser forte como o homem fisicamente, quanto aos nervos e às
emoções, e em muitos outros aspectos. Ela foi consituída de maneira
diferente; e quando o apóstolo afirma que ela é o “vaso mais
fraco”, absolutamente não está falando num sentido depreciativo. Está
simplesmente dizendo que ela é essencialmente diferente do homem, e que o
homem sempre deve ter isso em mente. Ele não deve tratar a mulher como
se fosse sua igual nestes aspectos. Deve lembrar que ela foi criada
diferentemente, e que, por conseguinte, deve respeitá-la e honrá-la, defendê-
la e protegê-la.

Eis, pois, o ensino fundamental, básico - o homem deve ser a cabeça da


esposa e o chefe da família. Deus o fez desse modo, dotou-o de
faculdades, capacidades e propensões que o habilitam a cumprir isto; e fez a
mulher de modo que seja o “complemento” do homem. Ora, a palavra
“complemento” traz consigo a idéia de sujeição; sua principal função é
suprir uma deficiência do homem. É por isso que os dois se tomam “uma
came”; a mulher é o comple-

mento do homem, Mas a ênfase é, portanto, esta - que o homem não é


responsável somente por si, mas também por sua esposa e por sua família
em todas as questões fundamentais. À esposa cabe auxiliá-lo, apoiá-lo,
assisti-lo e fazer tudo que puder para habilitá-lo a agir como o senhor da
criação, posição em que Deus o colocou. Ela foi trazida à existência com o
fim de ajudar o homem a realizar essa grande e maravilhosa tarefa. Esse é o
ensino básico quanto à relação de esposos e esposas nos termos exarados na
própria ordem da criação, as regras fundamentais quanto à vida do homem
neste mundo.

Todavia devemos ir além. Era assim antes da Queda. Enquanto o homem e


a mulher ainda eram perfeitos, enquanto ainda estavam no Paraíso
sem pecado, sem terem eles nenhum defeito, essa era a ordenação de Deus.
Mas, infortunadamente, algo aconteceu - a Queda. Sua importância é
exposta com muita clareza, principalmente pelo apóstolo Paulo na Primeira
Epístola a Timóteo, no capítulo 2, versículos 11a 15, no fim da seção. Notem
que o apóstolo dá grande importância ao fato de que foi a mulher que foi
enganada e caiu primeiro, e não o homem. Assim a Queda fez mais outra
diferença. Gênensis 3:16 demonstra isso. Ei-lo outra vez: “E à mulher disse:
(Por isso) multiplicarei grandemente a tua dor, e a tua conceição”. Daí se
pode deduzir que provavelmente o parto seria sem dor, não fora o pecado e
a Queda. “Com dor terás filhos.” Mas, para o nosso propósito agora - “o teu
desejo será para o teu marido, e ele te dominará”. Aí está algo adicional.
Não somente reitera o senhorio, a liderança e a chefia já estabelecidos antes
da Queda, saliente isso -“ele te dominará”. Há um novo elemento aqui; a
subordinação da mulher ao homem aumentou como resultado da Queda.
Ora, pode-se argumentar que o edito de Deus foi promulgado por esta razão
- que a quintessência da Queda, do que aconteceu com Eva, foi que ela,
sendo confrontada pela insinuação e pela sugesção do diabo, em vez de fazer
o que devia, o que fizera até então e que fora ensinada a fazer, isto é,
procurar Adão e consultá-lo sobre essa questão, tomou a decisão por conta
própria e se colocou na posição de liderança. Ela enfrentou a situação, em
vez de deixar isso com Adão, e, em conseqüência, caiu. Ela o envolveu
igualmente na Queda e, daí, toda a raça humana caiu. De modo que, em
certo sentido, o pecado original consistiu em que a mulher desconsiderou
o seu lugar e sua posição na relação matrimonial, usurpou autoridade,
poder e posição e, com isso, sobrevieram a calamidade e o caos. Isso não
consta apenas em Gênesis 3:16; forma a base do argumento apostólico
quanto às mulheres assumirem autoridade, ensinarem e pregarem, na
Primeira Epístola a Timóteo, capítulo dois.

Esse é o ensino, em sua essência. Mas surge logo uma objeção, uma objeção
que se lê e se ouve com muita freqüência - e, ah, muitas vezes partindo de
pessoas evangélicas que alegam crer nas Escrituras como a inspirada
e infalível Palavra de Deus! Eis o que se ouve tantas vezes: “Ah, mas isso
não passa de opinião do apóstolo Paulo. Obviamente ele era antifeminista
e defendia o conceito comum naquela época sobre as mulheres”. Salienta-se
que, naquele tempo, a mulher estava em posição extremamente baixa.
Todos, sem

exceção, tinham essa idéia; a mulher, por assim dizer, era apenas uma
“mercadoria”, uma escrava. E esta verdade abrange até os judeus, sendo
que o apóstolo não era nada mais que um típico judeu rabínico. Assim se
desenrola o argumento.

Não é surpreendente que as pessoas que não crêem nas Escrituras como a
Palavra de Deus digam essas coisas. Não hesitam em dizer, não somente
que Paulo estava errado, mas também que o Senhor Jesus Cristo estava
errado. Essas pessoas são a autoridade; elas é que sabem, que entendem.
Não discuto com tais pessoas; simplesmente lhes digo que não posso discutir
com elas porque não se trata de meramente pôr a minha opinião contra a
delas. Não há nada mais que dizer sobre sua opinião - esta não é cristã, de
modo nenhum. O cristão é alguém que se submete inteiramente à revelação
bíblico; nada sabe fora desta. Assim, quando ouvimos este argumento, não
somente o deploramos e nos entristecemos; temos que responder-lhe, e lhe
respondemos deste modo: falando em termos gerais, é mais que certo dizer
que no conceito comum no tempo do Senhor Jesus e do apóstolo Paulo, a
mulher era humilhantemente inferior. Mas esse não era o conceito dos
judeus, pois eles tinham estas Escrituras e criam nelas. E é bem certo que
não era esse o conceito do apóstolo Paulo. Notaram o que ele diz em 1
Coríntios 11:11? Suas palavras são: “nem o varão é sem a mulher, nem a
mulher sem o varão, no Senhor.” Este grande apóstolo gloriava-se no fato de
que em Cristo Jesus não há bárbaro, cita, servo ou livre, macho nem fêmea
(Colossenses 3:11; Gálatas 3:28). Constituía parte vital da sua pregação do
evangelho dizer: “Neste assunto da salvação, os homens e as mulheres
são iguais, e o homem e a mulher têm igual oportunidade de salvação. Ele
se gloriava nisso, e não há ninguém que fale com mais delicadeza nem
mais gloriosamente sobre a condição da mulher e de sua glória do que o
apóstolo Paulo. Ademais, observem que ele não se limita unicamente a dar-
nos uma descrição dos deveres da mulher para com o seu marido; também
nos fala sempre dos deveres do marido para com a sua mulher; e demonstra
que o conceito do marido cristão sobre a condição da mulher, sobre a
mulher em geral e sobre a sua esposa, é mais elevado do que qualquer outra
coisa que o mundo jamais conheceu. Ele coloca todas as coisas em seu
devido lugar. Ele sempre nos dá os dois lados.

No entanto, fora disso tudo, o apóstolo nunca apresenta estas coisas como
sua opinião pessoal; ele sempre retoma a Gênesis e à ordem da criação.
Com efeito, diz ele: não é minha opinião; é o que Deus estabeleceu. A
única preocupação do apóstolo é que a verdade de Deus seja conhecida, e
que o que Deus ordenou seja posto em prática constantemente. Portanto, a
tendência de dizer que isso “não passa de opinião de Paulo”, é uma negação
das Escrituras. Devemos ver isto com bastante clareza. Se vocês crêem que a
Bíblia é a inspirada e infalível Palavra de Deus, não devem falar como o
mundo fala sobre o apóstolo Paulo; porque, quando ele escreve, não
somente cita as Escrituras mas também escreve como apóstolo inspirado.
Quando emite sua opinião pessoal, sempre tem o cuidado de dizê-lo, e se não
avisa que é sua opinião

pessoal, o que escreve é Inspirado. Vocês recordam como o apóstolo Pedro


diz aos seus leitores que ouçam o apóstolo Paulo. Diz ele que algumas
pessoas torcem os argumentos de Paulo e os seus escritos, “e igualmente as
outras Escrituras, para a sua própria perdição” (2 Pedro 3:16). O que Paulo
escreve é Escritura; assim, os seus críticos não contestam Paulo, contestam a
Deus, contestam o Espírito Santo. Ao mesmo tempo, colocam-se a si mesmos
na contraditória posição de dizer que crêem na Bíblia somente na medida
em que ela não contradiz aquilo em que eles acreditam como criaturas do
século vinte. Isso é uma negação da crença na autoridade das Escrituras.

Tendo tratado dessa estulta objeção - e não há nada mais estulto que essa
prosa — deixem-me resumir de novo esta doutrina. A mulher, de acordo
com este ensino, a esposa, recebe certa posição. Ser sujeita ao seu marido
não significa que é escrava dele, não significa que lhe é inferior em tal
condição -nem por um momento! Veremos isso com maior clareza ainda
quando considerarmos os deveres do esposo para com a esposa. O que ele
está dizendo é que a mulher é diferente, que ela é complemento do homem.
O que ele proíbe é que a mulher procure ser máscula, isto é, que a mulher
procure comportar-se como homem, ou que procure usurpar o lugar, a
posição e o poder que foram dados por Deus ao varão. Isso é tudo que ele
está dizendo. Não é escravidão; ele está exortando os seus leitores a cumprir
o que Deus ordenou. Portanto, a esposa deve alegrar-se com a sua posição.
Ela foi feita por Deus para ajudar o homem a agir como representante de
Deus neste mundo. Ela deve ser a construtora do lar, a mãe, a auxiliadora
do homem, sua consoladora, alguém com quem ele possa falar e de quem
possa buscar consolo e estímulo - ela é uma auxiliadora própria para o
homem. O homem entende a verdade sobre si mesmo, ela também entende a
verdade sobre si mesma e, assim, ela o complementa e lhe assiste; e juntos
vivem para a glória de Deus e do Senhor Jesus Cristo.

Uma ilustração pode ser de ajuda neste ponto. A idéia de liderança ou chefia
causa tropeço a certas pessoas, porque estas parecem pensar
que, necessariamente, isso traz a idéia de uma inferioridade inerente e
essencial. Não só isso, porém. Toda esta idéia de chefia do homem, do
marido, na relação matrimonial, é comparável de muitas maneiras à relação
das tropas com o seu chefe. Um exército ficaria completamente caótico se
cada componente tivesse o direito de decidir o que fazer a cada passo. Como
eu já disse, no momento em que um homem se junta às forças armadas, está
se sujeitando, está dizendo que vai obedecer às ordens que lhe sejam dadas,
não importa o que pense delas; é o que lhe compete fazer. Ele cede o seu
direito de comando próprio àquele que é colocado acima dele; e conquanto
possa ter suas idéias e opiniões pessoais, agora renuncia a elas; ele se
submete e fica em sujeição.
Ou, se preferirem, pensem num grupo de homens de uma equipe jogando
futebol ou críquete. A primeira coisa que precisam fazer é nomear um
capitão. Não são todos capitães; se fossem, jamais ganhariam uma partida.
A primeira coisa que fazem é designar um dentre eles para ser o capitão.
Este nem mesmo deve ser o melhor jogador da equipe, mas eles decidem
que, de modo geral, ele

tem maior dom de liderança. Assim, eles o colocam na posição de capitão e,


tendo feito isso, sujeitam-se a ele. Se deixam de fazê-lo, o caos retoma.

Ou imaginem uma comissão sendo nomeada para considerar dado assunto.


São designados alguns homens. A primeira coisa que fazem é nomear um
presidente. Naturalmente! Por que? Porque é preciso haver alguma
autoridade. Não se poderá fazer transações se não houver uma Presidência
à qual dirigir-se, e temos que obedecer ao comando do Presidente. Aqui, de
novo, não entra em cena a questão da inferioridade. Simplesmente significa
que, para agir eficientemente, é preciso ter um líder. Tomemos uma Câmara
dos Comuns recém-formada. A primeira coisa que fazem é indicar um
Orador; e o trabalho do Orador consiste justamente em ocupar o assento da
Presidência e exercer controle, impor a sua autoridade. De novo, não quer
dizer que ele é o maior homem da Câmara dos Comuns, e que todos os
demais lhe são inferiores. Não! Em sua sabedoria, e porque nenhuma
resolução poderá ser tomada sem isso, eles colocam alguém nesta posição de
autoridade. Pois bem, a Bíblia ensina que Deus colocou o homem, o marido,
nessa posição . Portanto, diz o apóstolo às esposas: “Vós, mulheres, sujeitai-
vos a vossos maridos”, porque o marido foi nomeado chefe.

Mas um argumento maior ainda se acha em 1 Coríntios capítulo 11, onde se


nos diz que o homem, o marido, é a cabeça da mulher, que Cristo é a
Cabeça do homem e que Deus é a Cabeça de Cristo. Este argumento é
incontestável. Em que sentido Deus é a Cabeça de Cristo? A resposta está
naquilo que às vezes denominamos Economia da Trindade. O Pai, o Filho e
o Espírito Santo são co-iguais e co-etemos. Então, como pode o Pai (Deus)
ser a Cabeça de Cristo? Quanto ao propósito da salvação, o Filho
subordinou-Se ao Pai, e o Espírito subordinou-Se ao Filho e ao Pai. É uma
subordinação voluntária para que a salvação fosse levada a cabo. É
essencial para a execução da obra. Disse o Filho: “Eis-me aqui, envia-me”.
Foi voluntário. Ele põe de lado este aspecto da igualdade, toma-Se um servo
do Seu pai, e o Pai O envia - a Cabeça de Cristo é Deus (1 Coríntios 11:3).
Esse é o modo como Paulo o coloca: “Como a Cabeça de Cristo é Deus,
assim Cristo é a Cabeça do homem, e o homem é a cabeça da mulher”;
portanto, “Vós, mulheres, sujeitai-vos a vossos maridos, como ao Senhor”.

Essa é a exposição positiva deste tremendo ensino que, somente ele, nos dá
um genuíno conceito sobre casamento. Diga-se de passagem, tenho
lidado com um argumento, outra vez um argumento estulto, apresentado
muitas e muitas vezes. Diz alguém: “Você sabe, isso está completamente
errado; conheço muitos casos em que a esposa é uma pessoa muito mais
capaz do que o esposo, muito mais talentosa em todos os aspectos. Você está
dizendo que uma mulher tão brilhantemente dotada tem que sujeitar-se a
seu marido, a um homem que lhe é inteiramente inferior?” Há somente uma
resposta para esse argumento: a pessoa que o formula está argumentando
contra Deus. Deus não ignora esse casos. O que Deus diz é que, se essa
mulher talentosa e brilhante não se sujeitar a seu marido, estará pecando.
Sejam quais forem os seus talentos, ela

deve sujeitar-se a seu consorte.

Neste ponto farei dois comentários. Mulher nenhuma, sejam quais forem os
seus talentos, tem o direito de sequer pensar em desposar dado indivíduo,
se não estiver preparada para lhe ser sujeita. Trata-se de uma sujeição
voluntária, como Cristo Se sujeitou e Se subordinou. Ela deve portar-se da
mesma maneira e, a menos que esteja preparada para fazê-lo, a menos que
esteja convicta de que poderá submeter-se ao homem em vista, não deverá
desposá-lo. Se entrar na vida matrimonial com qualquer outra idéia, estará
indo contra a vontade de Deus e estará cometendo pecado.

Eis meu segundo comentário: às vezes penso que uma das coisas mais
maravilhosas que já tive o privilégio de testemunhar foi um acontecimento
do tipo a que estou me referindo. Durante bom número de anos, preguei
habitualmente em certa igreja num dos distritos, e depois de pregar
costumava passar a noite na residência do ministro e sua esposa. Sempre
era muito interessante, pois, desde a minha primeira visita me ficou
evidente que, do ponto de vista da habilidade pura e simples, não havia
comparação entre o marido e a esposa. Esta era uma mulher
excepcionalmente capaz e brilhante. O marido não era destituído de dons,
mas estes pertenciam à esfera da personalidade - ele era excepcionalmente
gentil, bondoso, humano e cortês. Mas, quanto à pura capacidade
intelectual, não havia comparação. De fato, seu histórico acadêmico - ambos
tinham formação universitária - tinha comprovado isto. A esposa se
graduara numa matéria que bem poucas mulheres assumiam naquela época
em particular, e ela fora classificada entre os do primeiro nível. O
esposo, que escolhera uma matéria de estudo muito mais fácil, conseguira
apenas graduar-se em segundo nível. Digo que não havia como questionar,
no que diz respeito à capacidade - sua percepção de questões intelectuais e
seu entendimento me impressionaram, e me ficaram cada vez mais
evidentes à medida que os conhecia melhor. Mas o que quero dizer é que
não sei se alguma vez vi algo mais maravilhoso que o modo pelo qual aquela
mulher sempre colocava o seu marido em sua posição verdadeiramente
bíblica. Ela o fazia de maneira muito inteligente e sutil. Ela colocava
argumentos na boca dele, mas sempre de tal modo que dava a idéia de que
eram dele, e não dela! Há um aspecto divertido nisso, mas estou relatando o
fato como uma das coisas mais comoventes e mais tremendas que já
experimentei. Ela não era apenas uma mulher capaz, era uma mulher cristã
e estava acionando o princípio segundo o qual o marido é a cabeça. Á ele
sempre cabia determinar a decisão, embora fosse ela quem lhe fornecia as
razões. Ela agia como uma auxiliadora idônea para ele. Ela possuía
as qualidades que a ele faltavam; ela o complementava e o suplementava.
Mas o marido era o chefe, e os filhos eram sempre encaminhados a ele. Ela
velava pela posição do marido.

Permitam-me demonstrar a importância de perceber, captar e compreender


este ensino. Por que isso tudo é tão importante, e especialmente hoje em
dia? Por que é mais importante eu estar fazendo o que tenho feito, em vez
de dar minha opinião sobre política ou sobre algum problema
internacional? É porque

a falta de compreensão e de execução deste ensino é a causa da maioria dos


problemas do mundo atual. O problema básico do mundo de hoje é
problema de autoridade. O caos no mundo se deve ao fato de que, em todas
as áreas da vida, as pessoas perderam todo o respeito pela autoridade, quer
entre nações ou entre regiões, quer na indústria, quer em casa, quer nas
escolas, ou em toda e qualquer parte. A perda da autoridade! E, em minha
opinião, tudo começa realmente no lar e na relação matrimonial. Por isso
me aventuro a indagar se um estadista cujo casamento se arruinou tem de
fato o direito de falar sobre os problemas do mundo. Se ele falha na esfera
para a qual lhe foi dada a maior competência, que direito tem de falar sobre
as outras? Ele deveria retirar-se da vida pública. O verdadeiro colapso
começa em casa, e no relacionamento conjugal. Estou afirmando que o
espantoso aumento do divórcio que vem ocorrendo desde a segunda guerra
mundial (disseram-me que no momento está diminundo um pouco, mais
opino que isso é apenas temporário e pode ser explicado) é devido a uma
única coisa, a saber, que os homens e as mulheres não entendem este ensino
escriturístico sobre o casamento e sobre esposos e esposas.

A mesma falta de entendimento é também a explicação da ruína da família e


da vida doméstica, de novo tão evidente nos dias atuais. A família
está deixando de ser o centro que era. Os membros da família estão sempre
fora de casa, nalgum lugar, e freqüêntemente estão fora até alta hora da
noite. A vida familiar, com a sua maravilhosa coesão - esta unidade
fundamental da vida -está desaparecendo. Encontramos aqui, também, a
explicação do desgoverno e da indisciplina existentes entre os filhos e, daí, a
principal explicação da delinqüência juvenil. Até pela estatística se pode
provar isso! Os jovens que se tomaram delinqüentes quase invariavelmente
são filhos de lares desfeitos, de casamentos desfeitos. Nunca lhes foi dada
uma “chance”, como dizemos. Eles foram criados numa atmosfera de
incerteza, indecisão e conflito, onde a esposa é contra o esposo, e o esposo
contra a esposa, e eles se tomam cínicos já em seus tenros anos. Não
respeitam pai e mãe, não respeitam nada e ninguém. O lugar onde a criança
deveria ter confiança e deveria poder buscar autoridade, liderança e
direção, desapareceu; não há mais nada ali e, assim, a pobre criança vem a
ser um delinqüente. Ela foi criada nesta atmosfera de conflito entre pai e
mãe, marido e mulher.

Na verdade, há outros aspectos desta tendência que me parecem mais


sinistros ainda. Não é um fato, cada vez mais presente, que os varões
estão abrogando sua posição e se afastando dela, deixando de cumprir os
seus deveres como maridos e pais por pura preguiça e egoísmo? Os maridos
estão cada vez mais deixando a disciplina da vida doméstica a cargo das
esposas, das mães. Eles não podem ser incomodados; chegam em casa
cansados do trabalho e pedem a suas esposas que mantenham os filhos longe
deles e que respondam às suas perguntas. Acaso não é o que está
acontecendo cada vez mais? O marido está deliberadamente deixando vaga
a posição em que Deus o colocou. Isso está acontecendo entre cristãos,
porém muito mais entre não cristãos. O marido está abandonando a sua
posição e, em sua preguiça, a está deixando com a esposa.
Isso está acontecendo atualmente em muitas outras direções também.
Tantos cristãos hoje em dia não se ligam à política porque, dizem, a política
é um “jogo sujo”. Mas que argumento pavoroso! Seu dever de cidadãos da
pátria é interessar-se e preocupar-se. Mas, aqui, estamos particularmente
interessados no terreno do matrimônio.

Depois, por outro lado, o feminismo tem levado à agressividade da parte da


esposa, da mãe. Ela está se posicionando como igual ao pai, e está
minando a influência do pai sobre a mente dos filhos. O infeliz resultado é a
abordagem totalmente falsa e errônea de toda a questão. Não digo isto com
espírito crítico. Estamos vendo isto crescentemente neste país (Inglaterra),
mas nem um pouco na extensão com que se vê nos Estados Unidos da
América. Ali se vê o que mais ou menos se pode chamar sociedade
matriarcal, e o homem está sendo cada vez mais considerado como aquele
que fornece dólares, o assalariado, o homem que traz o dinheiro necessário.
A mulher, a mãe, é a pessoa que sabe das coisas, é a cabeça do lar, e os filhos
olham para ela. Este falso e antibíblico conceito do homem e da mulher, do
pai e da mãe, leva a uma sociedade matriarcal que, ao que me parece, é
sumamente perigosa. O resultado é, naturalmente, o crescimento do crime e
de todos os terríveis problemas sociais com que estão pelejando naquele
país. Daí, uma vez que influenciam todos os outros países por meio dos seus
filmes e doutras diversas maneiras, esta atitude está se propagando pelo
mundo inteiro. Uma sociedade matriarcal, com a mulher como cabeça e
centro do lar, é uma negação do ensino bíblico e, de fato, é uma repetição do
antigo pecado de Eva.

O problema está sendo crescentemente reconhecido. Por isso foram


constituídos os Conselhos de Orientação Matrimonial e outras organizações
semelhantes. Entretanto - que pena! - geralmente focalizam os problemas
em termos da psicologia. Todavia, se vocês examinarem a vida conjugal de
muitos desses psicólogos, levarão um choque. Estas pessoas que dão
conselhos sobre como adentrar o estado matrimonial, e como preservar e
manter o casamento, não conseguem aplicar o ensino aos seus próprios
casamentos. Naturalmente, não conseguem! Não é questão de psicologia. O
que é preciso não é apenas um pouco de bom senso, prudência e espírito de
camaradagem, e de dar e receber. Os homens e as mulheres sabem tudo
sobre isso, e sempre souberam; mas não conseguem praticá-lo. Não, há
somente uma esperança. Enquanto Deus não for aceito como a Autoridade,
e o homem e a mulher não se submeterem a Ele, enquanto não fizerem todas
as coisas “como ao Senhor”, e não puserem em ação a mesma espécie de
chefia que Deus exerce sobre Cristo, e Cristo sobre o homem, não haverá
esperança. É na medida em que os homens e as mulheres nestes últimos cem
anos têm-se apartado crescentemente da autoridade da Bíblia, que este
terrível mal social, este problema social terrível, se evidencia cada vez mais.
Sei que me dirão: “É óbvio que você quer retomar àquele tipo de marido e
pai vitoriano, severo, repressivo e autoritário”. Isso está completamente
errado! Bem sei que grande parte do problema moderno se deve a
uma reação contra a mentalidade vitoriana, e eu também condeno a
mentalidade

vitoriana como condeno a situação atual. Devemos retomar à Bíblia. Não


defendo um retomo à idéia vitoriana. O que digo é: voltem para Deus,
voltem para Cristo, voltem para a revelação presente na fidedigna Palavra
de Deus. Observem de novo o Seu plano perfeito - o homem e, ao seu lado, a
mulher completando-o, sua auxialidora apropriada, idônea; amando-se um
ao outro, acatando-se, respeitando-se, honrando-se um ao outro, mas nunca
confundindo as duas esferas.

Que Deus, por Sua graça, nos capacite não somente a enxergar o ensino,
mas também a sujeitar-nos ao ensino e, com isso, a honrar e glorificar o
nome do bendito Senhor. “Como ao Senhor”.

A ANALOGIA DO CORPO Efésios 5:22-24

Retomamos a esta proposição porque até aqui só pudemos examinar


detalhadamente um dos seus aspectos. O apóstolo nos dá dois grandes
motivos particulares pelos quais as esposas devem sujeitar-se a seus
maridos. Já consideramos o primeiro deles, segundo o qual esta questão
pertence à ordem da natureza. Diz ele: “Porque o marido é a cabeça da
mulher”; Deus ordenou isto quando fez o homem e a mulher no princípio; e
vimos como o Novo Testamento não só confirma isso, mas constantemente
retoma a essa ordenança original de Deus. Portanto, aqui estamos lidando
com algo básico, fundamental para toda a vida do homem na terra, e para o
seu bem-estar.

Ora, nisso tudo ainda não dissemos nada de peculiar e especificamente


cristão. Que se trata de ensino do Velho Testamento, todos devem
reconhecer, sejam cristãos ou não. Isto é uma ordenação de Deus com
relação à integrali-dade da vida. Assim como reconhecemos a família,
devemos reconhecer isto. O Deus que ordenou a família, ordenou o
casamento; o Deus que ordenou o estado, ordenou o casamento; e assim
como devemos sujeitar-nos ao estado, devemos dar ouvidos a esta
fundamental ordenação de Deus quanto às posições relativas dos esposos e
das esposas, e ao relacionamento que deve substituir entre eles. Pois bem,
até aqui tudo isso é geral. O fato de sermos cristãos não significa que não
temos necessidade do Velho Testamento. Ele continua sendo um alicerce;
edificamos sobre ele; é por isso que o apóstolo o coloca em primeiro lugar.

Mas agora ele passa ao seu segundo motivo, peculiarmente cristão: “O


marido é a cabeça da mulher”. Em seguida vem o acréscimo cristão:
“como também Cristo é a cabeça da igreja”. Isto nos leva mais adiante; não
elimina o primeiro, mas lhe acrescenta algo, e na verdade nos ajuda a
entender o primeiro. É isso que a fé cristã faz com relação à vida, em todos
os seus aspectos. Só o cristão pode apreciar realmente a vida em geral neste
mundo. Quero dizer que, em última análise, somente o cristão pode
realmente desfrutar a natureza. O cristão vê a natureza de maneira
diferente do homem do mundo. Há uma novidade aqui. Ele não vê apenas a
coisa em si; vê o grande Criador e a maravilha dos Seus métodos, a
variedade, a cor, a beleza. Noutras palavras, ser um cristão significa que
toda a perspectiva da vida é enriquecida. Não importa qual seja, todo e
qualquer dom que o homem possua e que manifeste, só poderá ser
verdadeiramente apreciado pelo cristão. Ele enxerga com maior
profundidade, tem entendimento mais completo. Isto é, a mensagem cristã
não apenas

acrescenta algo ao que já tínhamos, mas enriquece o que tínhamos e nos dá


um discernimento mais profundo disso. Aqui veremos que este acréscimo
especi-fícamente cristão não somente nos ajuda a compreender a ordem da
natureza já estabelecida, mas, além e acima disso, acrescenta uma nova
qualidade, outro aspecto, por assim dizer, outra ênfase a toda a questão.

Eis a proposição: “o marido é a cabeça da mulher, como também Cristo é a


cabeça da igreja: sendo ele próprio o salvador do corpo”. O que
estamos vendo aqui é uma coisa que só o cristão pode entender; ninguém
mais. A pessoa que não crê no Senhor Jesus Cristo e não conhece o caminho
da salvação, obviamente não pode entender o que as Escrituras querem
dizer quando afirmam: “Cristo é a cabeça do corpo, que é a igreja”. Não
tem sentido para ela; não entende absolutamente nada disso. Portanto, tal
pessoa não pode compreender este conceito especificamente cristão do
casamento. Esta é uma dedução da doutrina cristã da Igreja; portanto, se a
pessoa não entender a doutrina cristã da Igreja, segundo o apóstolo ela não
poderá entender totalmente o conceito cristão do casamento.

Isto logo nos leva a tirar certas conclusões. A primeira é que, obviamente,
jamais o cristão deve casar-se com pessoa não cristã. Lemos na
Segunda Epístola aos Coríntios: “não vos prendais a um jugo desigual com
os infiéis” (2 Coríntios 6:14). Indubitavelmente nós temos aí uma referência
a esta questão do casamento. Se precisávamos de uma razão para aceitar a
exortação em foco, temo-la aqui. Se crente se casa com não crente, a
situação resultante será que um dos cônjuges terá este elevado conceito
cristão do matrimônio, ao passo que o outro o ignorará completamente. Já
haverá um defeito no casamento. Não serão os dois um só; não estarão
entrando no novo estado da mesma maneira; já haverá uma divisão. Já
haverá uma semente de discórdia, como o apóstolo o demonstra naquela
mesma proposição de 2 Coríntios capítulo 6.

A segunda dedução que tiro é que um serviço cristão em conexão com o


casamento só é apropriado para cristãos. Este é um tema amplo, e faz parte
do tema da disciplina da Igreja cristã. A situação tomou-se caótica, e às
pessoas que ignoram totalmente o cristianismo é oferecida uma cerimônia
nupcial religiosa cristã na qual é lida esta proposição apostólica sobre o
marido como cabeça da esposa “como Cristo é a cabeça da igreja”. Isto não
significa absolutamente nada para elas. Deduzo, pois, que não se deve fazer
isso. Não devemos ensinar alta doutrina cristã aos não cristãos; a estes
devemos pregar tão somente o arrependimento e a necessidade da fé. Eles
não têm a menor possibilidade de entender a doutrina concernente ao
matrimônio. A pessoa tem que estar na vida cristã antes de poder entendê-
la. Portanto, eu argumento no sentido de que uma cerimônia nupcial cristã
deve ser reservada única e exclusivamente para cristãos. Realizá-la para
outros é fazer dela uma farsa.

Em terceiro lugar, deduzo que tal cerimônia é apropriada e correta, e deve


ser admitida e dirigida quando os que se casam são cristãos. O que quero
dizer é isto: alguns dos puritanos, há 300 anos, em sua violenta reação
contra o catolicismo romano, decidiram que não deveria haver nenhum
serviço religioso
relacionado com o casamento. O casamento, diziam eles, não passa de um
contrato legal. Pois bem, podemos muito bem entender sua reação, e esta
conta com a nossa simpatia. A igreja romana ensinara (e ensina) a falsa e
antibíblica idéia de que o matrimônio é sacramento, pelo que os puritanos
achavam que deviam afastar-se tão longe quanto pudessem dessa idéia. Daí,
não quiseram ter nenhum tipo de cerimônia religiosa. Mas, certamente, à
luz do ensino do apóstolo aqui, isso foi um erro completo! A reação foi
demasiado violenta; foi tão violenta que se tornou antibíblica. Há aspectos
do casamento que requerem um serviço religioso - o ensino e o
entendimento desta porção particular das Escrituras, e outros pontos. E
como o ensino é que o matrimônio é uma coisa comparável à união mística
entre Cristo e Sua Igreja, digo que é boa ocasião para culto e para uma
cerimônia verdadeiramente cristã. O casamento não é apenas um contrato
legal, e devemos ter todo o cuidado, como estive assinalando, de não
permitir que pessoas cujo pensamento é errôneo governem o
nosso pensamento e a nossa conduta. O cristão jamais deve ser apenas uma
reação contra alguma coisa; ele deve ser positivo, deve ser bíblico. Mas há
aqueles que, em sua aversão ao catolicismo romano, vão tão longe para o
outro lado que acabam negando as próprias Escrituras que dizem defender.

Contudo, permitem-me asseverar que, embora o conceito cristão do


casamento sugira aquelas três coisas, não ensina aqui, nem em nenhum
outro lugar, como os católicos romanos ensinam, que o matrimônio é um
sacramento. Não há nenhum ensino, em parte alguma da Bíblia, que dê
apoio a essa idéia. Desafio quem quer que seja a mostrar uma passagem das
Escrituras que o faça. O matrimônio não é sacramento. Então, qual é o
ensino? É aquele que é dado aqui, a saber, esta idéia da união mística. A
relação entre marido e mulher, e entre mulher e marido, é comparável à
relação entre Cristo e a Igreja, e a Igreja e Cristo. Para nosso conforto, o
apóstolo diz mais tarde: “Grande é este mistério!” A relação entre Cristo e a
Igreja é um mistério. É um fato, mas é um grande mistério - esta união
mística entre a Igrej a e Cristo, e o crente individual e Cristo. Mas, sendo
um fato, devemos procurar entendê-lo cada vez mais. Paulo afirma que a
relação entre marido e esposa, e esposa e marido, é comparável a esse fato.
Pertence a essa ordem, e essa é a maneira pela qual devemos começar a
pensar nela. Aqui somos introduzidos na esfera desta alta doutrina
concernente à Igreja cristã.

O apóstolo, com sua mente lógica, sabe que não deve haver dificuldade
sobre isso nas mentes destes efésios, porque já os ensinara sobre essa
mesma doutrina. Ele o fizera no capítulo primeiro da epístola, onde, no fim,
ele ora no sentido de que eles conheçam “a sobreexcelente grandeza do seu
poder” — do poder de Deus para com eles. Explica que se trata do poder
que Deus “manifestou em Cristo, ressuscitando-o dos mortos... E sujeitou
todas as coisas a seus pés, e sobre todas as coisas o constituiu como cabeça
da igreja, que çe o seu corpo, a plenitude daquele que cumpre tudo em
todos”. Lá Paulo os introduzira na doutrina da Igreja; aqui ele a está
aplicando. Quem corre para o fim da epístola sem ler o começo, sempre
erra. O que temos aqui são deduções.

Ele fizera a mesma coisa de novo, e acrescentara um pouco mais à definição,


no capítulo 4, versículos 15 e 16, onde lemos: “Antes, seguindo a verdade
em caridade, cresçamos em tudo naquel que é a cabeça, Cristo, do qual todo
o corpo, bem ajustado, e ligado pelo auxílio de todas as junta, segundo a
justa operação de ele extrai esse ensino para que eles possam compreender
a verdadeira natureza do casamento cristão.

Qual é o ponto? É essencialmente este : ele está salientado a união orgânica,


a união vital, a relação íntima. Ele se referira a “ligações de suprimento”
(lit., grego) no capítulo 4:16, àquelas “bainhas”, por assim dizer, os nervos e
as artérias que levam alimento da cabeça, do centro, a todos as partes do
corpo. Essa é uma maneira de ressaltar esta união orgânica e vital que
existe entre um esposo e sua esposa. É uma só vida, e uma só vida da mesma
maneira que a vida da Igreja em sua relação com a Cabeça, que é Cristo.
Aqui, naturalmente, o apóstolo está particularmente interessado num
aspecto disso tudo, no aspecto da dependência: “Vós, mulheres, sujeitai-vos
a vossos maridos, como ao Senhor; porque o marido é a cabeça da mulher,
como também Cristo é a cabeça da igreja”. Ele está tratando deste aspecto
de dependência e submissão, e introduz mais este elemento para que
tenhamos um claro entendimento de como ele entra, e porque
inevitavelmente entra na composição do assunto. Mais adiante ele irá tratar
do outro lado da questão, do marido com respeito à esposa.

Ao considerarmos esta grande afirmação, somos logo confrontados por um


problema. Vejamo-la de novo: “Porque o marido é a cabeça da
mulher, como também Cristo é a cabeça da igreja: sendo ele próprio o
salvador do corpo”. O problema que tanto ocupa a atenção dos
comentadores, e com razão, é este: por que o apóstolo acrescenta esta outra
afirmação? Por que não diz: o marido é a cabeça da mulher, como também
Cristo é a cabeça da Igreja... Portanto, como a Igreja é sujeita a Cristo,
assim as esposas sejam em tudo sujeitas a seus maridos? Por que será que
ele acrescentou: “sendo ele próprio o salvador do corpo”? Há aqueles - e
constituem a maioria, incluindo até grandes nomes como, por exemplo,
Charles Hodge - que não hesitam em dizer, neste ponto, que este é um
acréscimo puramente independente, e que a referência do apóstolo, quando
diz, “sendo ele próprio o salvador do corpo”, é, evidentemente, que o
Senhor Jesus Cristo é o Salvador da Igreja. Dizem eles, ainda, que isso nada
tem que ver com o marido. Então, por que Paulo o diz? Bem, dizem
eles, Paulo disse isso por esta razão: ele se incumbira de declarar que o
marido é a cabeça da mulher, como Cristo é a cabeça da Igreja, e a simples
menção do nome de Cristo o leva a bradar: “e ele é o salvador do corpo”.
Isso nada tem que ver com aquilo sobre o que ele está argumentando no
momento, mas a simples menção do nome de Cristo o leva a dizer esta coisa
maravilhosa. Portanto, eles argumentam que esta é uma frase independente,
e que não se aplica ao relacionamento do marido com sua esposa.

Estes são os seus argumentos. Indagam: você pode afirmar que o marido é o
salvador da sua mulher como Cristo é o Salvador da Igreja? Isso, dizem
eles,

é um absurdo. Cristo, sabemos, morreu pela Igreja. Ele nos salva por Sua
morte expiátoria e por Sua ressurreição; mas não se pode dizer isso a
respeito de nenhuma outra relação. É absolutamente única, a relação
redentora de Cristo conosco. O apóstolo foi apenas levado pela intensidade
do seu sentimento, e colocou esta frase independente, que não tem nada a
ver com a relação marido/ mulher.

Que diremos sobre isso? Temos que conceder, naturalmente, que, se lermos
uma afirmação como a que estamos focalizando, superficialmente, e sem
examiná-la cuidadosamente, teremos que concordar com isso. Não há
por que argumentar a respeito. Cristo, como o Salvador da Igreja, é o único,
e é óbvio que isso nào se aplica ao marido.

Mas a argumentação deles não se restringe a isso. Eles têm outro


argumento, a que atribuem grande importância. Baseia-se na palavra
traduzida por “portanto” (Authorized Version), no início do versículo 24.0
versículo diz: “Portanto, assim como a igreja está sujeita a Cristo, assim
também as mulheres sejam em tudo sujeitas a seus maridos”. Eis o ponto
que defendem aqui: dizem eles que a tradução “portanto” é completamente
errada; e, de fato, têm razão nisso. Mas, então, eles vão adiante e afirmam
que a tradução deveria ser, “não obstante”. É uma expressão de contraste, e
sempre apresenta um contraste. Daí, afirma que deveríamos ler a frase
deste modo, ou de modo semelhante a este: “Pois o marido é a cabeça da
mulher, como também Cristo é a cabeça da igreja, e ele é o Salvador do
corpo”. “Não obstante” - embora isso não seja verdade quanto ao marido,
com respeito à esposa, apesar disso - “as mulheres sejam em tudo sujeitas a
seus maridos”. Daí acham que o caso é incontestável; que, noutras palavras,
o apóstolo diz: “Ora, quando digo que Ele é o Salvador do corpo, esqueci
por um momento a minha analogia da relação de Cristo e a Igreja, e a do
marido e sua esposa - “Não obstante” - apesar disso, embora não
seja verdade na esfera do marido e sua esposa, as mulheres devem sujeitar-
se a seus maridos, assim como a Igreja é sujeita a Cristo”.

No meu modo de ver, há uma resposta adequada a toda esta argumentação.


Em primeiro lugar, ela limita o sentido da palavra “salvador”. Este
vocábulo nem sempre tem o sentido de entregar Cristo Sua vida pela Igreja,
com Seu sangue derramado. Este é o sentido comum (no linguajar cristão),
mas não é o único; existe um sentido mais amplo do temor “salvador”. Há
um exemplo disto na Primeira Epístola a Timóteo, capítulo 4, versículo 10:
“Porque”, diz o apóstolo, “para isto trabalhamos e lutamos, pois esperamos
no Deus vivo, que é o salvador de todos os homens, principalmente dos
fiéis”. Ora, é essa mesma palavra que é empregada aqui, sobre “o salvador
do corpo”. Lá se nos diz que Deus, o Deus vivo, é o salvador de todos os
homens, principalmente dos fiéis. Vocês não podem dizer que isto significa
que todos os homens gozam a salvação num sentido espiritual, porque, nesse
caso, vocês seriam universalistas. Naturalmente, não podem! Pois bem,
então, significa que lá a palavra “salvador” tem outra significação. Quer
dizer “preservador” - aquele que olha por, que cuida de. Ele é o Preservador
de todos os homens, principalmente dos que crêem.

Lembra-nos o Senhor que Deus “faz que o seu sol se levante sobre maus e
bons, e a chuva desça sobre justos e injustos” (Mateus 5:45); sim, Ele dá
alimento a todos. É neste sentido que Ele é o salvador de todos os homens.
Assim, por que não atribuir esse sentido à palavra “salvador” aqui? Ele é
Aquele que cuida do corpo e o protege. Essa é a réplica que vocês podem
apresentar contra o citado argumento.
Mas eu tenho ainda outras razões para rejeitar a exposição que limita esta
pequena frase unicamente ao Senhor Jesus Cristo e Sua obra salvadora.
Minha segunda razão é a seguinte; meu argumento é que os versículos 28 e
29, que vêm em seguida, militam em prol da nossa interpretação desta frase
como se aplicando ao marido e à esposa, como também a Cristo e à Igreja.
Paulo diz: “Assim devem os maridos amar a suas próprias mulheres, como
a seus próprios corpos. Quem ama a sua mulher, ama-se a si mesmo. Porque
nunca ninguém aborreceu a sua própria carne”. Bem, que faz ele? “Antes a
alimenta e sustenta” - sim, age como seu salvador, cuida dela, preserva-a.
“Porque nunca ninguém aborreceu a sua própria carne; antes a alimenta e
sustenta, como também o Senhor à igreja”, que é o Seu corpo - etc. Diz ele
que o marido deve tratar sua esposa como sua própria carne, seu próprio
corpo. Ele não negligencia o seu corpo, mas o alimenta e o sustenta. Noutras
palavras, ele é “o salvador do corpo”. Quão importante é tomar o versículo
sempre em seu contexto! Mesmo os intérpretes famosos podem cair neste
ponto. Eu argumento que esses dois versículos propugnam esta outra
interpretação aqui, e que esta não é uma frase isolada e independente, só
válida com referência ao Senhor Jesus Cristo. Paulo ainda está falando
sobre esposos e esposas: “Porque o marido é a cabeça da mulher, como
também Cristo é a cabeça da igreja: sendo ele próprio o salvador do corpo”.
Isto é verdadeiro em ambos os casos.

Mas, que dizer da palavra traduzida “portanto”, no princípio do versículo


24? Pois bem, é realmente interessante. Dei-me ao trabalho de consultar
alguns dos melhores dicionários sobre esse ponto. É uma palavra grega,
“alia”, e vejo que não é necessário traduzi-la sempre como uma espécie de
antítese a alguma coisa oposta ou em contraste. Vejam, por exemplo, o
Greek/English Lexicon of the New Testament (edição de 1952), de Amdt e
Gingrich, um dos melhores e mais bem credenciados. Os autores realmente
dizem que o termo significa “agora” ou “então”. Cito-os a seguir. Dizem
eles: “Emprega-se para fortalecer o mandado”; não para significar
contraste ou diferença, mas para fortalecer a ordem que ele está dando, E
eles de fato usam Efésios 5:24 como uma ilustração deste emprego
particular da palavra. Grimm-Thayer dá uma explicação semelhante.

Portanto, julgo que, com base em todos esses pontos, devemos rejeitar a
interpretação que diz que esta é uma frase independente, e que se
refere unicamente ao Senhor. Na verdade, por assim dizer, seria
completamente sem propósito neste ponto; seria uma confusão. O apóstolo
não é dado a fazer esse tipo de coisa. Assim, o que lemos é, pois, que “o
marido é a cabeça da mulher,

como também Cristo é a cabeça da igreja: sendo ele próprio o salvador do


corpo”. Então - “assim como a igreja está sujeita a Cristo, assim também
as mulheres sejam em tudo sujeitas a seus maridos.”

Qual é, então, a doutrina? Evidentemente é esta: a esposa é guardada,


preservada, velada, defendida e sustentada pelo seu esposo. Essa é a relação
-como Cristo alimenta e sustenta a Igreja, assim o esposo alimenta e
sustenta sua esposa - e a esposa deve compreender que essa é a sua posição
neste relacionamento. O marido é o preservador, o salvador do corpo. A
esposa deve começar com esta idéia, e deve agir sempre à luz disso.

Mas podemos ir além. Qual a relação do corpo com a cabeça? O que é


verdade sobre a Igreja em relação a Cristo, é verdade sobre a esposa em
relação ao esposo. Tomemos a ilustração que Paulo usa aqui e nos exemplos
que dei anteriormente sobre a Igreja como o corpo de Cristo, tais como os
de 1 Coríntios, capítulo 12, e Romanos, capítulo 12. Qual é o ensino? A
esposa é para o esposo o que o corpo é para a cabeça, o que a Igreja é para
Cristo. É de novo a idéia de “complemento”. O essencial no conceito cristão
do matrimônio é esta idéia de integralidade, de inteireza. Encontramo-la em
Gênesis, capítulo 2 -“adjuntora que esteja como diante dele” (“adjuntora
própria para ele”), tirada de Adão, parte dele; sim, mas complementando-o,
compondo uma integralidade. Essa é precisamente a idéia que você tem
inevitavelmente quando pensa no seu cotpo, no corpo como um todo. O
corpo não é uma coleção de partes, não é um certo número de dedos, mãos e
pés grudados uns nos outros, e de membros vagamente interligados. Essa
noção do corpo é completamente falsa. O corpo é uma unidade orgânica,
vital; é uno; é um todo. Pois bem, essa é a idéia que temos aqui. O marido e
sua mulher não são separados, não são como dois reinos que mantêm
relações diplomáticas, mas sempre em estado de tensão, e sempre correndo
o risco de entrar em conflito. Esse é o exato oposto do conceito
cristão daquilo que o casamento realmente é. Cristo e a Igreja são um, como
o corpo e a cabeça são um. Mas este ideal coaduna-se com diferentes
funções; e é isso que devemos entender - funções diferentes, propósitos
diferentes, deveres especiais que somente cada parte pode cumprir. Mas é
vital lembrar-nos de que cada parte é parte de um todo, e que todas as ações
separadas são parte integrante de uma ação unificada que leva a um
resultado incorporado.

Permitam-me desenvolver isto, irmãos, um pouco mais minuciosamente


com o fim de esclarecer esta questão do estado e relação matrimonial. Como
isto é importante! Já dei algumas razões disso. Creio que muita
irreligiosidade dos dias atuais é, em parte, uma reação contra aquele tipo de
vida vitoriana na qual muitos maridos e esposas pareciam ser grandes
cristãos, porém dos quais o povo dizia: “Se vocês os conhecessem em sua
vida privada!” Nada causa maior dano ao cristianismo do que a pessoa não
ser a mesma coisa na igreja e no lar, ou na rua e no escritório. E no lar que
se conhece realmente um homem. Quais são as relações ali? Por essa razão
estas coisas são importantes, não somente pelo que são em si mesmas, mas
como parte do nosso testemunho geral como cristãos.

Então, que é que isto nos ensina sobre o relacionamento entre a esposa e

o esposo nesta questão de sujeitar-se? Parece claro que não ensina uma pura
e simples passividade; a esposa não deve ser inteiramente passiva. E
uma interpretação errônea desta convivência dizer que a esposa nunca deve
falar, nunca deve dar opinião, mas deve ficar muda ou calada e
completamente passiva. Isso é forçar uma analogia e ilustração a ponto de
deixá-la sem sentido. Mas o que significa é isto: a esposa jamais deve tomar-
se culpada de ação independente. A analogia do corpo e da cabeça reforça
isso. O que compete ao meu corpo não é agir independentemente de mim.
Eu é que resolvo agir com minha mente, meu cérebro e minha vontade. Meu
corpo é o meio pelo qual eu o expresso. Se o meu corpo se puser a agir
isoladamente de mim, ficarei sofrendo de uma espécie de “convulsão”. E isto
exatamente o que significa “convulsão”: partes do corpo se movem de
maneira irracional. Não é uma ação feita com algum propósito; ele não quer
que elas ajam, mas não pode detê-las; agem independentemente da sua
mente e da sua vontade. Isso é caos, é convulsão. Aqui está a analogia: “Vós,
mulheres, sujeitai-vos a vossos maridos; sede em tudo sujeitas e obedientes a
vossos maridos”. Por quê? Porque como esposa, e neste relacionamento,
você não age independentemente do seu marido. Se o fizer, será o caos será
a convulsão.

Ou permitam-me subdividir o ponto ainda mais. A esposa não deve agir


antes do marido. O ensino todo indica que ele é a cabeça, é ele que exerce
o controle definitivo. Assim, ela não somente não age independentemente
dele; não age antes dele. Todavia, deixem-me salientar isso também: assim
como é certo dizer que ela não deve agir antes dele, é igualmente certo dizer
que ela não precisa retardar a ação, não deve “fazer cera”, não deve
recusar-se a agir. Voltemos à analogia do corpo. Pensemos em alguém que
sofreu um derrame. Esta pessoa quer agir, mas o membro está paralisado,
de modo que ele não consegue. Embora a pessoa esteja querendo
movimento, este não ocorre - o braço não está bem, resiste ao movimento.
Esta é uma parte do ensino; a sujeição envolve a idéia de que a mulher não
agirá antes do seu marido, nem tampouco retardará nem impedirá a ação,
não paralisará a ação. Estes pontos são vitais em todo este relacionamento
matrimonial; e é porque as pessoas não percebem e não sabem estas coisas
que o casamento está decaindo por toda parte ao redor de nós.
Independência, agir antes, não agir, “fazer cera”, recusar-se, é tudo errado;
e tudo isso porque os homens e as mulheres não entendem este conceito
cristão do casamento.

Podemos resumi-lo assim: o ensino é que a iniciativa e a liderança cabem em


última instância ao marido, mas a ação deve ser sempre coordenada. É
esse o sentido dessa figura - ação coordenada, mas a cabeça execendo a
liderança. Isto não sugere nenhum sentimento de inferioridade. A esposa
não é inferior ao seu marido; é diferente. Ela tem a sua própria e peculiar
posição, cheia de honra e respeito. Por isso, depois, o homem recebe a
incumbência de alimentar e sustentar sua esposa, amá-la e cuidar dela,
respeitá-la e honrá-la. Isto não envolve inferioridade. O que Paulo está
ensinando é que toda mulher cristã que compreender tudo isso, gostará de
agradar seu marido, ser-lhe benéfica, auxiliá-

Io, assessorá-lo, habilitá-lo a exercer as suas funções. Não estará fingindo


quando prometer “obedecer” (ou “ser submissa”) durante a cerimônia
nupcial. Que coisa triste! - recentemente um amigo me contou que um
clérigo que ia ministrar numa cerimônia matrimonial dissera que não ia
usar a expressão “e obedecer”. Achava que estava sendo moderno, que com
isso atrairia “os homens da rua” - mostrando que, afinal de contas, o
cristianismo não é estreito! Ele não percebeu que estava rejeitando a
doutrina bíblica. E quão completamente incoerente tais pessoas são!
Suponho que um homem como esse, se estivesse num jogo de futebol, se
gabaria do espírito de equipe. Embora estejam jogando individualmente e
todos tenham habilidade, os jogadores dão de si dizendo que só um deles é o
capitão. Cada um deles diz: “Não sou o capitão, eu me submeto ao capitão”.
Isso é maravilhoso, é o espírito de equipe; cada jogador obedece ao capitão.
Mas vocês não diriam isso com relação ao casamento! Isso é depreciativo
para a mulher, é antiquado, é Paulo, é o fariseu duro, isso é legalismo, é
o Velho Testamento! Entretanto, isso nega a doutrina toda, e é até
incoerente em sua pseudo-modemidade. A esposa cristã, compreendendo
estas coisas, quer dizer, “e obedecer-lhe” (“e ser-lhe submissa”), “amá-lo,
cuidar dele e obedecer-lhe”. Naturalmente! Por que está se casando? Não
seria para constituir “uma só carne”, uma integralidade? Não seria para
partilhar esta ação coordenada, esta inteireza, que deve ser demonstrada ao
mundo? Isso não é escravidão; é viver como a Igreja vive com relação ao
seu Senhor; isso manifesta o espírito essencial do cristianismo.

Mas, deixem-me dizer uma palavra final. Observaram que o fim da


exortação é, “De sorte que (então, agora então), assim como a igreja está
sujeita a Cristo, assim também as mulheres sejam em tudo sujeitas a seus
marido”? “Em tudo”! Realmente seria isso que significa? Aqui
respondemos de novo em termos da analogia das Escrituras em sua
inteireza. Quando as Escrituras fazem uma ampla e geral afirmação como
essa, sempre esperam que a interpretemos à luz do seu próprio ensino.
Assim, quando lemos aqui a afirmação de que a esposa deve ser sujeita a seu
marido em tudo, eqüivale exatamente a dizer que o cristão deve ser sujeito
ao Estado, aos poderes que existem, como em Romanos capítulo 13 e
noutros lugares. Significaria então, que a esposa terá que fazer literalmente
tudo que o seu marido lhe disser que faça, em todas as circunstâncias e
condições? Claro que não! Isso seria declarar ridículas as Escrituras. Há
condições aqui. Quais? Eis uma delas: uma regra fundamental das
Escrituras é que ninguém, homem ou mulher, jamais deve agir contra
a própria consciência. Dentro da relação conjugal, dentro dos termos do
casamento, o marido não tem direito de mandar na consciência da sua
esposa.

Aqui poderíamos citar um bom número de casos deveras interessantes. Às


vezes há muita confusão entre obedecer à consciência e manter uma
opinião. Não são a mesma coisa. As Escrituras nos exortam a obedecer à
consciência em todas as circunstâncias; isso porém não é a mesma coisa que
ficar agarrado à própria opinião. Deixem-me dar uma ilustração disto. Da
leitura do livro do Dr. John Macleod sobre a teologia escocesa, lembro-me
de um caso muito interessante que ensina justamente este ponto. Havia uma
discussão na Escócia, no século dezoito, sobre a relação do cristão com o
governo local, e uma parte da

igreja dividiu-se em duas seções, conhecidas como as seções “Cidadão” e


“Anticidadão” (“Burgher” e “anti-Burgher”). Foi tema de grande
controvérsia. Havia um ministro, de nome James Scott, cuja esposa era
verdadeiramente notável. Seu nome era Alison. Era filha daquele
extraordinário homem, Ebenezer Erskine 1, um dos fundadores da Secessão,
na Escócia. Alison tinha personalidade forte e era esposa de um homem
competente. Scott e sua esposa discordaram nesse ponto - ele fazendo parte
do partido “Anticidadão” e ela do partido “Cidadão”. Surgiram muitas
situações difíceis, e o Sr. Scott participou de uma reunião sinodal que de fato
censurou e depôs o pai, o tio e cunhado de sua esposa - ato deveras corajoso
da parte dele. Depois disso feito, teve que ir para casa e contar à esposa o
que fizera. Em reposta, Alison Scott fez esta famosa declaração: “James
Scott, você continua sendo o meu marido, mas não é mais o meu pastor”. E
também pôs isso em prática, pois que todo domingo ia a uma das igrejas do
partido “Cidadão”, e não à igreja na qual o seu marido dirigia o culto e
pregava. Que é que vocês fariam com um caso como esse? Eu não hesito em
dizer que Alison Scott estava inteiramente errada, porque estava pondo a
opinião acima da consciência. Certamente aí está um exemplo em que, por
todos os motivos, ela devia ter-se sujeitado à liderança e à direção do
seu marido. Não teria violado sua consciência; era pura questão de opinião.
Digo e repito que nunca devemos cometer o engano de confundir
consciência com opinião. A mulher pode dar opinião, mas quando vê que o
seu marido está determinado, deve cumprir a decisão dele.

Permitam-me dar outra ilustração para contrabalançar a que acabei de


contar. Uma das mais extraordinárias e comoventes experiências que tive
desde que sou pastor da Capela de Westminster, deu-se há uns dezoito
meses, se bem me lembro. Eu estava pregando à noite, no primeiro domingo
após o meu regresso das férias de verão; o texto era, “Somos embaixadores
da parte de Cristo” (2 Coríntios 5.20). Dei ênfase ao aspecto da vocação do
embaixador, e assim por diante. Saí do púlpito para o meu gabinete, e logo
me foi conduzida uma mulher que evidentemente estava muito agitada.
Disse-me que o sermão tinha sido pregado para ela. Fazia uns dez anos que
se casara. O marido sentiu que estava sendo chamado para o ministério e
renunciou a seu cargo de professor numa escola. Ela não concordou, de jeito
nenhum. Fez tudo que pôde para impedir seu marido, mas este continuou
convicto e foi avante em seu propósito, passando a haver uma grave crise
em sua vida conjugal. Contudo, durante o culto aquela mulher ficou
profundamente convicta sobre a questão, e me procurou para confessar isto
e dizer-me que ia correr para o telefone mais próximo e telefonar ao marido,
que estava na região oeste do país para submeter-se, no domingo
subseqüente, a um exame para entrar no ministério. Ela viu que estivera
errada em fincar o pé em sua opinião e, deste modo, opor-

se ao próposito de Deus para a vida do marido. Não era consciência; era


insistência numa opinião. Digo que jamais devemos violar a consciência,
mas também digo que devemos estar prontos a submeter-nos nas questões
de opinião. A posição da mulher na relação matrimonial não deve ser
pressionada a ponto de levá-la a ir contra a sua consciência; tampouco deve
ela permitir que o seu marido a leve a cometer pecado. Se o marido estiver
tentando fazer que a esposa cometa pecado, ela deverá dizer. “Não!” Não
dizer isso é tomar as Escrituras ridículas. Se o marido perdesse o equilíbrio
mental e se tomasse insano, evidentemente ela não lhe obedeceria em tudo.
As Escrituras nunca são ridículas; as Escrituras trazem em seu conteúdo o
seu sentido; e aí estão estes limites inevitáveis.

O quarto ponto que defendo é que a esposa não deve sujeitar-se a seu
marido a ponto de deixá-lo interferir em sua relação com Deus e com o
Senhor Jesus Cristo. Até este limite ela deve fazer tudo, mas isso não!

Finalmente, o adultério rompe o relacionamento conjugal; e se o marido se


fizer culpado de adultério, a esposa não estará mais obrigada a prestar-
lhe obediência em tudo. Poderá divorciar-se dele; as Escrituras lhe
permitem agir assim. Terá o direito de fazê-lo porque o adultério rompe a
unidade, rompe o relacionamento. Estarão separados daí em diante, e
deixarão de ser um só. Ele terá rompido a unidade, desfazendo-se da união.
Portanto, não devemos interpretar esta porção das Escrituras como se
ensinasse que a mulher está irrevogável e inevitalmente presa a um marido
adúltero pelo resto da sua vida. Ela pode resolver que sim - cabe a ela
decidir. Tudo que estou dizendo é que esta passagem bíblica não manda isso,
não o toma inevitável. Noutras palavras, há certos limites para estas
questões.

1
E. Erskine (1680-1756), um dos fundadores da Igreja da Secessão na Escócia, em 1733. Nota do tradutor.
Aí estão, pois, como as vejo, as principais deduções desta ilustração
maravilhosa. A grande verdade salientada é que a esposa deve ir até os
últimos limites da sujeição ao seu marido, por amor a Cristo e pelas razões
dadas, sob pena de violar os princípios que acabamos de formular. À esposa
que acaso esteja em dificuldades nesta questão, tomo a liberdade de sugerir
certos auxílios práticos. Se você está em dificuldade, faça a si mesma as
seguintes perguntas: por que me casei com este homem? O que aconteceu?
Isso não poderia ser reparado? Procure recuperar aquele objetivo, no
espírito de Cristo e do evangelho. “Ah, mas é impossível”, você dirá, “não
conseguirei”. Bem, então digo-lhe: como cristã tenha pena do homem, ore
por ele. Ponha em prática o ensino do apóstolo Pedro, em sua primeira
epístola, capítulo 3, onde ele diz claramente às esposas que sejam sujeitas a
seus maridos, e não somente aos que são cristãos: “Vós, mulheres, sede
sujeitas aos vossos próprios maridos; para que também, se alguns não
obedecem à palavra, pelo porte de suas mulheres sejam ganhos sem
palavra; considerando a vossa vida casta, em temor”. Tente pôr isso em
prática; procure ganhar seu marido com humildade e mansidão. “O enfeite
delas não seja o exterior, no frisado dos cabelos, no uso de jóias de ouro, na
compostura de vestidos; mas o homem encoberto no coração; no
incorruptível trajo de um espírito manso e quieto, que é preciso diante de
Deus.” Faça

tudo que puder, vá até aos limites, vá além dos limites mínimos
estabelecidos por estes princípios. E, finalmente, faça a si mesma esta
pergunta: poderei sin-ceramente comparecer, com minha atual atitude e
condição, perante o Senhor que, apesar de mim, da minha vileza e da minha
pecaminosidade, veio do céu, enfrentou a cruz do Calvário e Se entregou ali
por mim? Se você puder encará-10, tudo bem; nada terei que dizer. Mas se
você sentir condenada em Sua presença, quanto à sua atitude, quanto ao seu
relacionamento nalgum aspecto, vá acertar isso. De maneira que, quando
voltar a Ele de novo, estará com a consciência tranqüila, com espírito
aberto, e poderá regozijar-se em Sua santa presença. Esta é uma questão
cristã; é semelhante à relação da Igreja com Cristo, o corpo e a cabeça. Tão
logo vejamos as coisas neste termos, não haverá problemas; isso é um
grande privilégio, é uma coisa que Deus contempla com agrado e prazer.
“Vós, mulheres, sede sujeitas” - “um espírito manso e quieto, que é precioso
diante de Deus”, e, por mais que você tenha que sofrer aqui na terra, sua
recompensa no céu será grandiosa.
O VERDADEIRO AMOR Efésios 5:25-33

Até aqui estivemos examinando o que o apóstolo diz às esposas; agora


chegamos ao que ele tem para dizer aos maridos. Isto se vê na
notável declaração que ele faz desde o versículo 25 até o fim do capítulo. É
notável em dois aspectos importantes: naquilo que ele nos fala dos deveres
dos maridos e, mais notável ainda, no que nos fala da relação do Senhor
Jesus Cristo com a Igreja cristã. Isso é sempre uma das coisas assombrosas
das epístolas deste homem; quando menos esperamos, encontramos uma
pérola do maior valor. Aqui, nesta parte essencialmente prática desta
epístola, repentinamente ele nos lança a mais sublime e maravilhosa
declaração, jamais feita por ele em parte alguma, acerca da natureza da
Igreja cristã e da sua relação com o Senhor Jesus Cristo. Vocês podem
observar que, ao tratar desta questão de esposos, e de como estes devem
portar-se com suas esposas, ele trata também desse outro assunto, e de
ambos trata desta maneira maravilhosa.

As duas coisas, vocês verão, estão entrelaçadas; assim, nosso primeiro


trabalho será chegar a algum tipo de divisão de matéria. Ele passa de um
assunto para o outro, e depois volta ao primeiro. Muitas vezes é esse o seu
método; nem sempre faz uma exposição completa de um lado e o aplica; ele
dá uma parte da sua exposição, aplica-a, e depois outra parte, e a aplica.
Sugiro esta classificação: nos versículos 25,26 e 27 ele nos diz o que Cristo
fez pela Igreja, e por que o fez. Depois, no versículos 28 e 29, dá nos uma
dedução preliminar disso quanto ao dever de um marido para com a sua
esposa, especialmente em termos da união que subsiste entre Cristo e a
Igreja, e o marido e a esposa. Depois, numa parte do versículo 29 e nos
versículos 30 e 32 desenvolve a sublime doutrina da união mística entre
Cristo e a Igreja. E então, nos versículos 31 e 33, tira suas deduções práticas
finais.

Parece-me ser essa a análise dos versículos que estamos estudando. No


entanto, para podermos captar o seu ensino mais claramente, sugiro que
o focalizemos desta maneira: primeiro, iniciamos com a sua injunção geral:
“Vós, maridos, amais vossa mulheres”. É o que ele deseja acentuar acima de
tudo. Noutras palavras, a idéia determinante com respeito ao marido deve
ser o amor. Vocês se lembram de que a idéia determinante com respeito às
esposas era a sujeição - “Vós, mulheres, sujeitai-vos a vossos maridos”.
Sujeição da parte da mulher, amor da parte do marido! Devemos ver isso
com clareza. Naturalmente, não significa que é só o marido que deve amar.
Alguém poderia observar: “Paulo não diz uma palavra aqui sobre as
mulheres amarem seus maridos”.

Dizer isso é entender de maneira completamente equivocada o objetivo do


apóstolo. Ele não nos está dando aqui um tratado exaustivo sobre o
matrimônio. Em sua idéia da sujeição da esposa o amor está implícito.
Devemos entender o que o apóstolo está interessado em fazer. Realmente, o
seu interesse se concentra num único ponto básico, a saber, harmonia, paz e
unidade como se mostram na relação conjugal e no lar. Sendo esse o seu
tema dominante, ele apanha nos dois lados o elemento que precisa ser
ressaltado acima de todos os demais. O que se requer que a mulher
mantenha sob sua atenta vigilância, na manutenção da harmonia, é o
elemento da submissão; ao passo que o esposo deve velar pelo elemento de
amor. Assim, Paulo toma a principal característica, a principal contribuição
que cada um dos parceiros deve fazer neste magnífico relacionamento que
pode demonstrar a glória da vida cristã com tanta clareza. Portanto, a
mensagem dirigida aos maridos é: “Amai vossas mulheres”.

Isto é sumamente importante, particularmente em conexão com o ensino


anterior. Ele salvaguarda o ensino anterior, e é importante que o vejamos
desse modo. Ele esteve salientando que o marido “é a cabeça da mulher,
como também Cristo é a Cabeça da igreja”. Vimos que o marido está na
posição de liderança, que ele é o senhor da esposa. Esse é o ensino do Velho e
do Novo Testamentos, e o apóstolo esteve dando ênfase a isto. Mas
imediatamente acrescenta: “Vós, maridos, amai vossas mulheres”, como
que dizendo ao marido: “Você é a cabeça, é o lider, é, por assim dizer, o
senhor neste relacionamento; todavia, uma vez que ama sua esposa, a
liderança nunca se tomará uma tirania e, embora seja “senhor”, nunca será
um tirano”. Essa é a conexão que há entre os dois preceitos.

Isto se encontra muito geralmente no ensino do Novo Testamento. Deixem-


me dar um exemplo. De muitas maneiras, o melhor comentário sobre esta
matéria é o que se encontra na Segunda Epístola de Paulo a
Timóteo, capítulo l2, versículo 7, onde ele diz: “Porque Deus não nos deu o
espírito de temor, mas de fortaleza, e de amor, e de moderação” (disciplina).
Temos aí a mesma coisa outra vez. “Deus não nos deu o espírito de temor.”
Bem, o que é que Ele deu? “O espírito de fortaleza” (ou “de poder”); mas,
para que ninguém pense que isso é algo tirânico, ele acrescenta, “e de
amor”. É o poder do amor. Não é um poder nu e cru, não é o poder de um
ditador, ou de alguém um tanto tirano, não se está pensando aí num homem
que se arroga certos direitos, pisa nos sentimentos da esposa e noutras
coisas, e se assenta no lar como um ditador. Num estudo anterior me referi
ao que talvez seja o maior defeito da perspectiva vitoriana da vida, e mesmo
do seu cristianismo; e era justamente isso. Tendiam a acentuar um lado em
detrimento do outro. E muitos dos nossos problemas hoje se devem a uma
reação, a uma violenta e exagerada reação contra a falsa ênfase daquele
período particular.

Portanto, devemos manter sempre este equilíbrio. Precisamos lembrar-nos


de que o poder deve ser temperado pelo amor; deve ser controlado pelo
amor, é o poder do amor. Nenhum marido tem direito de dizer que é a
cabeça da esposa, se não ama a sua esposa. Se não for assim, ele não estará
cumprindo

a injunção bíblica. Estas coisas andam juntas. Noutras palavras, é uma


manifestação do Espírito, e o Espírito Santo não outorga somente poder,
mas outorga amor e também disciplina. Assim, quando o marido exerce o
seu privilégio de cabeça da esposa e de chefe da família, ele o faz deste
modo. Ele deve ser sempre dominado pelo amor e pela disciplina. Deve
disciplinar-se a si próprio. Pode haver a tendência de agir como ditador,
mas ele não deve fazê-lo -“fortaleza (“poder”), amor, moderação”
(disciplina). Tudo isso está implícito, na passagem em foco, nesta grande
palavra, “amor”.

Assim, o governo do marido terá que ser um governo de amor; é uma


liderança de amor. Não é a idéia de um papa ou de um ditador; não um caso
de “ipse dixit” (falou, está falado); ele não fala “ex-cathedra” (de
cadeira, arrogando-se autoridade soberana). Não, é o poder do amor, é a
disciplina do Espírito, resguardando este poder, esta autoridade e esta
dignidade que são outorgados ao marido. Essa é, evidentemente, a idéia
fundamental e determinante em toda esta questão - “Maridos, amai vossas
mulheres”.

Agora, no entanto, podemos começar a considerar em geral o caráter ou a


natureza desse amor. Isto de novo é muito necessário nos tempos atuais.
Há duas coisas que sobressaem com grande evidência no mundo de hoje - o
abuso da idéia de poder, e o abuso maior ainda da idéia de amor. O mundo
nunca falou tanto de amor como fala hoje em dia. Entretanto, será que já
existiu uma época em que houve menos amor? Estes termos grandiosos se
rebaixaram tão completamente que muitos não têm idéia do significado da
palavra “amor”.

“Maridos, amai vossas mulheres.” Que é este amor? Afortunadamente para


nós, o apóstolo no-lo diz; e o faz de dois modos. “Vós, maridos, amai
vossas mulheres, como também Cristo amou a igreja.” Há duas definições
aí. A primeira está na própria palavra “amor”. A própria palavra que o
apóstolo empregou aqui para “amor” é sumamente eloqüente em seu ensino
e em seu significado. Na língua grega, como era falada nos dias do apóstolo
Paulo, havia três palavras que podem ser traduzidas pela palavra “amor”.
É muitos importante que possamos discernir claramente as diferenças que
há entre elas; porque grande parte do frouxo modo de pensar hoje nesta
esfera é devida à incapacidade de avaliar isto. Uma das três - e esta não
ocorre no Novo Testamento - é a palavra “eros”, que descreve um amor
inteiramente ligado à carne. O adjetivo “erótico”, comumente empregado
hoje, lembra-nos do conteúdo da palavra. Certamente é uma espécie de
amor. Todavia é um amor ligado à carne, é desejo, é algo carnal; e a
característica desse tipo de amor é que ele é egoísta. Ora, ele não é
necessariamente errado por ser egoísta, mas essa espécie de amor é
essencialmente egoísta; nasce, como digo, do desejo. Ele deseja algo, e nisto
coloca o seu maior interesse. Esse é o seu nível. É, por assim dizer, a parte
animal do homem. E é isso que geralmente passa por “amor” no mundo
atual. O mundo se gloria em seus “maravilhosos” romances, e nos conta
como eles são magníficos. Nada se diz, notem isto, acerca do fato de que o
homem foi infiel à sua esposa, e vice-versa, e que filhos pequenos vão sofrer.
Outro “maravilhoso romance” entrou na vida do homem e da mulher
amante. Não se menciona que

ambos têm sobre si a culpa do rompimento dos seus votos e de profanarem a


santidade; o que se publica é este maravilhoso “jogo do amor”, este
maravilhoso romance! Vê-se esse tipo de coisa nos jornais todos os dias. Isso
não passa de desejo erótico, egoístico, carnal, luxurioso. Mas quero fazê-los
lembrar-se de que “eros” é certamente considerado pelo mundo atual como
sendo amor.

Quanto às duas palavras geralmente traduzidas por “amor” no Novo


Testamento, uma delas na verdade significa “gostar de”. Entra como raiz
em palavras como “filantrópico” e“FiladéIfia”. Ailustração clássica do seu
emprego acha-se no último capítulo do Evangelho Segundo João, no
incidente que narra como Pedro e os outros foram pescar de noite e,
voltando-se, de repente viram o Senhor Jesus na praia. Ali Ele preparou um
desjejum para eles, e começou a falar-lhes. Lemos o seguinte: “... disse Jesus
a Simão Pedro: Simão, filho de Jonas, amas-me mais do que estes? E ele
respondeu: sim, Senhor; tu sabes que te amo. Disse-lhe: apascenta os meus
cordeiros”. Pois bem, o ponto interessante aí e que quando Pedro diz, “Tu
sabes que te amo”, emprega a expressão: “Tu sabes que gosto de ti”. O
Senhor, empregando a terceira palavra, que não estudamos ainda,
pergunta-lhe se ele de fato O ama, mas Pedro responde: “Tu sabes que gosto
de ti”. “Tornou a dizer-lhe segunda vez: Simão, filho de Jonas, amas-me?
Disse-lhe: sim, Senhor; tu sabes que gosto de ti” -“Disse-lhe: apascenta as
minhas ovelhas”. Então chegamos ao versículo 17: “Disse-lhe terceira vez:
Simão, filho de Jonas, amas-me?” Aqui o Senhor Jesus faz uma coisa muito
interessante, não emprega a mesma palavra que empregara; agora utilizava
a palavra empregada por Pedro. “Disse-lhe terceira vez: Simão, filho de
Jonas, realmente gostas de mim?” Baixou o nível da Sua idéia. “Realmente
gostas de mim?” “Simão entristeceu-se por lhe ter dito pela terceira vez:
amas-me? e disse-lhe: Senhor, tu sabes tudo; tu sabes que eu te amo”. Pedro
entristeceu-se porque o Senhor parecia duvidar de que gostava dEle; assim,
tendo em vista o seu recente fracasso, só podia confiar-se ao conhecimento
do Senhor e dizer-lhe: “Tu sabes que eu te amo”. Mas tenhamos em mente
que a palavra traduzida por “amar” pode significar “gostar de”. __

A outra palavra do Novo Testamento eleva-se a muito maior altura. É a


palavra sempre empregada na Bíblia para expressar o amor de Deus por
nós. “Deus amou o mundo de tal maneira” - “agapao”. Ora, esta é a
palavra empregada no texto que estamos considerando. “Maridos, amai
vossas mulheres” neste sentido, amar como Deus ama. Não existe nada mais
elevado que isto. Ou, expressemo-lo doutra maneira. Tomemos a lista que
descreve o fruto do Espírito, em Gálatas 5:22.0 apóstolo está fazendo um
contraste entre as obras da carne e o fruto do Espírito, e diz: “O fruto do
Espírito é caridade” (ou “amor”), não uma sensação erótica, nem
meramente gostar de, mas o amor que se assemelha ao amor de Deus -
amor, gozo, paz, etc. Esse é o amor, diz o apóstolo, que os maridos devem ter
e mostrar para com as suas mulheres. Vocês vêem como tudo isso se articula
tão perfeitamente com o versículo 18: “E não vos embriagueis com vinho,
em que há contenda, mas enchei-vos do Espírito”. Se estivermos cheios do
Espírito, estaremos cheios do fruto do Espírito, e o fruto

do Espírito é “amor”.

O apóstolo está se dirigindo a pessoas cheias do Espírito, pois somente estas


podem mostrar este amor. É ocioso dizer isto ao não cristão. Ele é
incapaz disso; não pode amar com esta classe de amor. Mas diz o apóstolo
que os cristãos devem manifestar esta espécie de amor porque estão cheios
do Espírito. Portanto, uma das maneiras pelas quais demonstro que estou
cheio do Espírito, não é tanto que eu experimente êxtases e manifeste certos
fenômenos; é a maneira como me porto com minha esposa quando estou em
casa, é este amor que é “o fruto do Espírito”.

A própria palavra que o apóstolo escolhe induz-nos imediatamente à precisa


idéia que almeja transmitir. Permitam-me, pois, expressá-la nestes termos:
coloquemos em foco toda esta questão de casamento e de relação conjugal.
Não estou dizendo que o apóstolo ensina que aquele primeiro elemento
pertencente à carne não deve entrar nisso. Esse entendimento é um erro
completo. Há gente que ensina isso. O ensino católico romano
concernente ao celibato baseia-se, em última análise, nesse falso conceito.
Tenho visto que há muitos cristãos com dificuldades sobre a questão.
Parecem pensar que o cristão deixou de ser humano, deixou de ser natural;
e consideram o sexo um mal. Ora, isso não somente não é ensino cristão; é
um engano, um erro. Esse elemento de “eros” deve entrar, está incluído. O
homem é homem. Deus o fez assim. Deus nos deu os dons que temos, o sexo
inclusive. Nada há de errado no elemento erótico propriamente dito; de fato
vou além, e digo que ele deve estar presente. Refiro-me a isto porque com
freqüência me pedem que trate destas coisas. Conheço cristãos que com
muita sinceridade, em vista deste errôneo conceito sobre o sexo e daquilo
que é natural, chegaram mais ou menos à conclusão de que qualquer cristão
pode desposar qualquer mulher cristã. Dizem que a única coisa que importa
e conta agora é que são cristãos. Omitem completamente o elemento
natural. Mas a Bíblia não age assim. Embora cristãos, está certo sentir-nos
mais atraídos por uma pessoa do que por outra. O natural entra em conta, e
não devemos excluí-lo. Jamais devemos assumir a posição de que qualquer
de nós pode casar-se com qualquer outro. Poderiam viver juntos, mas isso
seria excluir o elemento natural.

Tenho-me esforçado bastante para mostrar que o ensino cristão nunca


elimina o natural, o modo como fomos criados. E Deus nos criou de molde a
que cada um sinta mais atração por uma pessoa do que por outra; e isso é
mútuo. Isso está certo; não o ponhamos de lado. Isso está sendo suposto
aqui. O apóstolo está pressupondo que este homem e esta mulher estão
casados porque se sentiram mutuamente atraídos, porque, se preferirem,
para usar a frase comum, “se apaixonaram”. Os cristãos devem portar-se
desse modo, como toda gente. Isso não é algo mecânico. O cristão não diz:
“Agora que sou cristão, vou dar uma olhada por aí e resolver com quem me
casarei”, com a cabeça fria, por assim dizer. Não é esse o ensino bíblico. Isto
pode parecer excêntrico e divertido para alguns, mas há muitos cristãos que
agem baseados exatamente nesse princípio. Falo com base na minha
experiência pastoral. São pessoas sinceras, porém,

considerando o sexo um mal, tomam esta posição falsa. Não obstante, não
devemos excluir o natural. O apóstolo está pressupondo que este homem e
esta mulher sentiram esta atração mútua, e que, com base nisso, contraíram
núpcias.

Mais que isso, o apóstolo pressupõe que ambos gostam um do outro. O que
quero dizer é que eles gostam da companhia um do outro. Deixem-me
acentuar que isso também faz parte do casamento cristão. Há certas
afinidades naturais, e as ignoramos, para nosso risco. De novo, muitas vezes
vejo isto. Duas pessoas imaginavam que, porque são cristãs, nada mais
importa, e se casam firmadas nisso. Contudo, na vida conjugal é muito
importante que as duas pessoas gostem uma da outra. Se não, se se casarem
apenas com base no fator físico, logo se acabará. Esse casamento não tem
nada que o faça perdurar; mas, por outro lado, um dos fatores da
permanência é que ambos gostem um do outro. Há certos imponderáveis no
estado matrimonial. É bom que os cônjuges tenham as mesma afinidades, os
mesmos interesses, sintam-se atraídos pelas mesmas coisas. Não importa
quanto se amem, se houver diferenças fundamentais neste sentido, isto
levará a problemas. O problema da vida conjugal e da vida em harmonia
será muito maior. É importante, digo eu, que este segundo elemento, a
expressão que Pedro insistiu em usar, “gosto de ti”, desempenhe o seu papel.

O apóstolo está pressupondo ambas as considerações. É provável que alguns


cristãos tivessem contraído núpcias enquanto eram pagãos, e que o
seu casamento incluísse tanto “eros” como “phileo”. Muito bem, afirma
Paulo, aí é que entra o cristianismo. Agora, uma vez que vocês se tomaram
cristãos, entra o elemento adicional; e este eleva os outros dois, santifica-os,
dá-lhes glória, dá-lhes esplendor. Essa é a diferença que Cristo produz no
casamento. Somente o cristão pode subir a este nível. Podem existir
casamentos felizes e bem sucedidos sem isto; ainda existem, graças a Deus.
Há casamentos felizes ao nível humano e natural, e se baseiam nos fatores
expressos nas duas primeiras palavras de que tratei. Se se tomar o primeiro
elemento, mais este gostar um do outro, e um certo temperamento, pode-se
produzir casamentos muito felizes e bem sucedidos. Mas nunca chegarão a
este nível superior. Todavia, é a este ponto que o apóstolo quer que nos
elevemos. Acima de tudo o que é possível ao homem natural, entra em ação
este amor verdadeiro, este amor que é de Deus, o amor definido em 1
Coríntios capítulo 13.

É claro que, ao escolher a palavra, o apóstolo nos diz muita coisa. É,


portanto, dever de todo marido que ouve ou lê esta exortação, examinar-se à
luz desta palavra. Estão presentes em você os três elementos? Acaso tudo é
coroado e glorificado por este “amor” que só pode ser atribuído ao próprio
Deus?

No entanto, para não ficarmos em dificuldade em relação a isto, o apóstolo


passa a dar-nos mais uma ilustração, no segundo ponto que ele defende. Diz
ele: “Vós, maridos, amai vossas mulheres, como também” - “como também
Cristo amou a igreja”. Aqui, de novo, ele mostra quão desejoso está de
ajudar-nos. A simples menção do nome de Cristo o leva imediatamente a
desenvolver a proposição. Ele não pode limitar-se a dizer pura e
simplesmente, “Como também Cristo amou a igreja”, ele tem que
prosseguir e dizer, “e a si mesmo se

entregou por ela, para a santificar, purificando-a com a lavagem da água,


pela palavra, para a apresentar a si mesmo, igreja gloriosa, sem mácula,
nem ruga, nem coisa semelhante, mas santa e irrepreensível”. Ele diz tudo
isso para ajudar o marido a amar sua esposa como deve.

Então, por que ele desenvolve a matéria deste modo? Creio que há três
razões principais: a primeira é que ele quer que cada um de nós conheça o
grande amor de Jesus por nós. Ele quer que compreendamos a verdade
acerca de Cristo, de nós mesmos e de nossa relação com Ele. Por que é que
ele se preocupa com tudo isso? Transparece este seu argumento: é somente
quando compreendemos a verdade sobre a relação de Cristo com a Igreja,
que podemos realmente agir como os maridos cristãos devem agir. Para que
isto fique claro, ele termina dizendo: “Grande é este mistério; digo-o,
porém, a respeito de Cristo e da igreja”. Mas por que ele está falando a
respeito de Cristo e da Igreja? Por que nos levou a esse mistério? A fim de
que os maridos saibam amar suas esposas. E é aqui que as pessoas levianas
e superficiais, que zombam da doutrina, põem à mostra a sua insensatez e a
sua ignorância. “Ah”, dizem elas, “aquela gente está interessada só em
doutrina; nós somos pessoas práticas.” Entretanto você nào pode ser prático
sem doutrina; você não pode amar de verdade a sua esposa, se não
compreende alguma coisa desta doutrina acerca deste grande
mistério. “Ah”, dizem outras, “é muito difícil, não conseguirei seguí-la.”
Todavia, se você quiser viver como cristão, terá que seguí-la, terá que
aplicar sua mente a isso, terá que pensar, que estudar, terá que entender,
terá que agarrar-se a isso. Essa verdade aqui está para você, e se você lhe
der as costas, estará rejeitando uma coisa que Deus lhe dá, e você estará
sendo um terrível pecador. Rejeitar a doutrina é um pecado terrível. Jamais
coloque a prática contra a doutrina, porque você não poderá ter a prática
sem ela. Daí o apóstolo dar-se ao trabalho de elaborar esta magnífica
doutrina acerca da relação de Cristo com a Igreja, não somente para expô-
la, por importante que seja, mas para que eu e você, em nossos lares,
possamos amar nossas esposas como devemos - “como também Cristo amou
a igreja”.

Assim, agora podemos examinar o problema da seguinte maneira: o


princípio que deve determinar a nossa prática é que o relacionamento
entre marido e mulher é, na essência e por natureza, a mesma relação que
existe entre Cristo e a Igreja. Então, como abordá-la? Devemos começar
estudando a relação entre Cristo e a Igreja e, depois, somente depois,
poderemos examinar a questão do relacionamento entre o marido e a
esposa. Isso é o que o apóstolo está fazendo. “Vós, maridos, amai vossas
mulheres, como também Cristo amou a igreja.” Dito isto, ele nos fala
exatamente como Cristo amou a Igreja. Então ele diz: vão e procedam de
igual modo; essa é a primeira regra. Essa é a primeira grande doutrina.

Começamos, pois, considerando a relação de Cristo com a Igreja. Eis aqui


algo que interessa a todos; não somente aos maridos, mas a todas as pessoas.
O que nos é dito a respeito da relação de Cristo com a Igreja é verdade
quanto a cada um de nós. Cristo é o esposo da Igreja, Cristo é o esposo de
cada crente
individual. Vocês perguntarão: onde você vê este ensino? Vejo-o, por
exemplo, na Epístola aos Romanos, capítulo 7, versículo 4: “Assim, meus
irmãos, também vós estais mortos para a lei pelo corpo de Cristo, para que
sejais doutro (AV: “para que desposeis outro”), daquele que ressuscitou
dentre os mortos, a fim de que demos fruto para Deus”. Cristo é o esposo da
Igreja, a Igreja é a esposa de Cristo. Cada um de nós pode, nesse sentido,
ver no Senhor Jesus Cristo o nosso esposo, e, da mesma forma,
coletivamente, como membros da Igreja cristã.

Que nos diz o apóstolo sobre isto? A primeira coisa que ele fala é sobre a
atitude do Senhor Jesus Cristo para com a Igreja, sobre como Ele a vê. Aí
há instrução para os maridos. Qual é a sua atitude? Como você vê a sua
esposa? Precisamente aqui o apóstolo nos diz algumas coisas maravilhosas.
Amados irmãos, porventura dão-se conta de que estas coisas são
verdadeiras quanto a vocês, na qualidade de membros da Igreja cristã?
Observem as características da atitude do Senhor Jesus para com a Sua
esposa, a Igreja. Ele a ama: “como também Cristo amou a igreja”. Que
expressão eloqüente! Ele a amou apesar de sua indignidade, Ele a amou
apesar das deficiências que a caracterizam. Observem o que Ele fez por ela.
Ela precisa ser lavada, purificada. Ele viu os seus andrajos, a sua vileza;
mas amou-a. Esse é o ponto culminante da doutrina da salvação. Ele nos
amou, não por alguma coisa que visse em nós; amou-nos a despeito do que
havia em nós, “sendo nós ainda pecadores”. Ele amou ímpios, amou-nos
quando ainda éramos "inimigos” (Romanos 5:8,10). Em toda a
nossa indignidade e vileza, Ele nos amou. Amou a Igreja, não porque fosse
gloriosa e bela - não; mas para poder tomá-la tal. Dêem atenção à doutrina,
e vejam o que ela tem para dizer aos maridos. O marido se depara com
deficiências e dificuldades, coisas que ele acha que pode criticar em sua
esposa, mas deve amá-la “como Cristo amou a igreja”. Essa é a espécie de
amor que ele deve demonstrar. Isso basta quanto ao primeiro princípio.

O segundo princípio é o seguinte: “e a si mesmo se entregou por ela”. Não


somente estava pronto a sacrificar-Se por ela. Sacrificou-se de fato por ela.
Tal é o amor de Cristo pela Igreja! Ele só poderia salvá-la dando a Sua vida
por ela; e a deu. Essa é a característica do Seu amor.

A seguir, atentem para o Seu grande interesse por ela e por seu bem-estar.
Ele olha por ela. Preocupa-Se com ela. Ele vê as possibilidades dela, por
assim dizer. Deseja que ela seja perfeita. Por isso Paulo prossegue: “Para a
santificar, purificando-a com a lavagem da água, pela palavra, para a
apresentar a si mesmo igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa
semelhante, mas santa e irrepreensível”. Vocês vêem como Ele Se interessa
por ela, como a ama, como Se orgulha dela. São essas as características do
amor de Cristo pela Igreja - este grande desejo de que ela seja perfeita. E
Ele não ficará satisfeito enquanto ela não for perfeita. Ele quer poder
apresentá-la a Si mesmo “igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa
semelhante”. Quer que ela seja perfeita, além de toda crítica. Quer que o
mundo inteiro a admire. Por isso lemos no capítulo 3 desta epístola, no
versículo 10, que Cristo fez isso tudo “para que agora, pela

igreja, a multiforme sabedoria de Deus seja conhecida dos principados e


potestades nos céus”. É o orgulho do esposo por Sua esposa; Ele Se orgulha
da sua beleza, da sua aparência, de tudo que lhe diz respeito; quer mostrá-la
à família, a todas as Suas criaturas. Essa é a espécie de relacionamento que
existe entre o Senhor Jesus Cristo e Sua Igreja. Primeiro estou extraindo o
princípio dos pormenores, porque estes nos ajudam a entender esta relação
maravilhosa e mútua. E, assim, a figura é do Senhor Jesus alegrando-Se na
relação, feliz nela, triunfante nela, gloriando-Se nela. Não há nada que Ele
não faça por Sua esposa, a Igreja.

Essa é a primeira grande matéria que emerge na abordagem apostólica


deste vasto e elevado assunto. Temos de começar com esta figura de Cristo e
a Igreja. Vocês vêem como Ele a considera, e o que Ele fez por ela por
considerá-la desse modo, o que Ele tem em vista para ela - Seu objetivo
final. E em razão disso há este extraordinário conceito da relação mística,
da união mística, a idéia de que eles são uma só carne, e de que ela é o Seu
corpo. “Vós, maridos, amai vossas mulheres, como também Cristo amou a
igreja”.

Aí está, pois, o nosso primeiro grande princípio - Cristo ama a Igreja. O


relacionamento entre Cristo e a Igreja é aquela que deve existir entre
marido e mulher. Assim, comecem com isso. Examinem a grande doutrina
da Igreja. Venham todos vocês, casados e não casados. Essa verdade diz
respeito a todo nós, porque estamos na Igreja. Que maravilha, perceber que
estamos nesta relação com Cristo! É assim que Ele os vê, essa é a Sua
atitude para com vocês. Este é o princípio: este amor, este amor divino é
absolutamente superior ao erótico e ao filantrópico - o mais alto que o
mundo pode conhecer. A grande característica deste amor divino - e é nisto
que ele é essencialmente diferente dos outros - é que é mais governado pelo
desejo de dar do que de ter. “Deus amou o mundo de tal maneira”. Como?
“Que deu”. Não há nada de errado com os outros tipos de amor - já o tenho
dito - porém, mesmo quando os temos em sua melhor expressão, eles são
sempre autocentralizados, estão sempre pensando em si mesmos. Mas a
característica do amor cristão é que não pensa em si mesmo. Cristo
entregou-Se; morreu pela Igreja - “até à morte”. O sacrifício caracteriza
este amor. Este amor é um amor que dá; não está sempre considerando o
que vai ter, mas o que pode dar em benefício do outro. “Vós, maridos, amai
vossas mulheres, como também Cristo amou a igreja.”

Tendo, assim, examinado em geral a atitude de Cristo para com a Igreja,


podemos agora começar a mostrar como essa atitude se manifesta na
prática. Depois veremos o Seu objetivo final e, por último, a relação e união
mística. Demos graças a Deus porque, ao considerarmos o casamento, que é
tão comum e, aparentemente, vulgar, descobrimos, se somos cristãos, que
temos que considerá-lo de tal maneira que nos leva ao próprio centro da
verdade cristã, ao cerne da teologia e da doutrina, aos mistérios de Deus em
Cristo, como se vê na Igreja e através dela. Queira Deus abençoar-nos nessa
consideração!

A ESPOSA DE CRISTO Efésios 5:25-33

A proposição fundamental do apóstolo, como vimos, é que não poderemos


compreender os deveres dos esposos e esposas, se não compreendermos a
verdade sobre Cristo e a Igreja; portanto, começamos com essa verdade,
como faz o apóstolo. O esposo deve amar sua esposa, “como também Cristo
amou a igreja”. Temos recordado o conteúdo da palavra “amor”. É a
palavra mais elevada que a Bíblia conhece. É o mesmo tipo de amor com o
qual Cristo amou a Igreja; na verdade com o qual Deus amou o mundo.
Daí, vamos concentrar-nos neste amor do Senhor Jesus Cristo pela Igreja.
Até aqui só o examinamos de maneira geral. Vimos Sua atitude em geral
para com a Igreja - Seu interesse por ela, Seu prazer nela, o modo pelo qual
Ele a defende, guarda e protege. Isso foi exposto até aqui.

Devemos avançar ainda além desse aspecto, porque o apóstolo se empenha


em lembrar-nos que esta atitude de Cristo para com a Igreja é algo que se
manifesta na prática. Esse é o assunto que agora vamos examinar.
“Vós, maridos, amai vossa mulheres, como também Cristo amou a igreja, e
a si mesmo se entregou por ela.” Não é suficiente considerar Sua atitude
para com a Igreja, o modo como Ele vê e considera a Igreja. Isso é uma
coisa que se manifesta na prática, afirma Paulo. E devemos dar ênfase a
isto, porque esta é a ênfase de Paulo aqui.

Portanto, o princípio é que o amor não é uma coisa teórica. O amor não é
meramente algo sobre o que falar; o amor não é apenas uma coisa sobre o
que escrever, nem meramente uma coisa sobre a qual escrever poesia. O
amor não é meramente o tema de alguma grande ária numa ópera, nem de
alguma grande canção, nem das canções populares da moda. O amor não é
uma coisa que se deva examinar só teórica ou exteriormente. O amor é a
coisa mais prática do mundo. Esse é o grande princípio que aprendemos
aqui. Não há, talvez, nenhuma palavra que esteja sendo mais envilecida
atualmente que a palavra “amor”. É óbvio que muita gente não tem idéia do
que ela significa. Talvez o mundo jamais tenha usado expressões de afeto
com tanta liberdade e com tanta freqüência; mas nunca houve tão pouco
amor. Todo mundo se dirige a todo mundo com expressões carinhosas; os
superlativos não faltam. Pessoas que mal se conhecem trocam entre si estas
expressões de ternura por todo lado; mas não há conteúdo nelas. É por isso
que há pessoas que, a julgar pelo que falam, fazem-nos imaginar que são as
mais amorosas que o mundo já conheceu, e que, na verdade, não sabem
nada sobre o amor e podem divorciar-se quase que no dia

seguinte. Por alguma razão, espalhou-se a idéia de que o amor é assunto de


conversa e tema de canção. Aí é onde os poetas podem ser deveras
perigosos. Acaso já notaram o extraordinário contraste entre as coisas que
os poetas em geral cantam em seus poemas, e a vida que levam? Não é coisa
trágica que isso pode acontecer com homens capazes de escrever linda e
maravilhosamente sobre o amor? Quando você lê as biografias destes
homens, você fica chocado, espantado, e custa a acreditar nos fatos. Isso
tudo porque eles nunca entenderam o sentido do amor. Pensam nele de
maneira teórica, como uma coisa bela, mas a verdade sobre o amor é que é a
coisa mais prática do mundo.

Esse é o ensino do próprio Senhor Jesus. “Aquele que tem os meus


mandamentos e os guarda, esse é o que me ama” (João 14:21). Como isto
soa prosaico para nós, com todo o nosso assim chamado conceito romântico
do amor! É claro que não é romântico; é ridículo, é sentimental, é carnal.
“O amor é isto”, Cristo diz, “guardar os meus mandamentos”. Pois não é
aquilo que eu e você dizemos que prova definitivamente que de fato estamos
manifestando amor; é o que fazemos. Certamente esta é a questão essencial
no relacionamento entre marido e mulher. A questão não é se o homem pode
escrever cartas maravilhosas e empregar grandiosas expressões e protestos
do seu amor; o teste do amor de um homem é sua conduta em casa, dia após
dia. Não o que ele foi antes do casamento, não o que ele é na lua de mel, não
o que ele é durante os primeiros meses de vida conjugal. A pergunta vital é:
como é ele quando há problemas e dificuldades, provações, doença, e
quando vão chagando a meia idade e a velhice?

Muitos casamentos se rompem porque as pessoas não compreendem, de


início, o que significa o amor. Lembremo-nos da descrição que dele faz
o apóstolo em 1 Coríntios capítulo 13, onde salienta o seu caráter
essencialmente prática. Diz ele que o amor não faz isto, faz aquilo, e resume
tudo dizendo: “A caridade (“o amor”) nunca falha”. Essa é a prova do
amor! Se quiserem verificar se o amor de um homem para com sua esposa é
o que deve ser, não procurem ouvir o que ele diz; observem o que ele faz e o
que ele é. Essa é a prova!

O apóstolo põe tudo às claras aqui, e o faz desta maneira admirável: “Vós,
maridos, amai vossas mulheres, como também Cristo amou a igreja”.
Como sabemos que Ele amou a Igreja? Eis a resposta: “e a si mesmo se
entregou por ela”. Isso é amor - “a si mesmo se entregou por ela”. Mas
Paulo não para aí. “Vós, maridos, amai vossas mulheres, como também
Cristo amou a igreja, e a si mesmo se entregou por ela, para (a fim de) a
santificar, purificando-a com a lavagem da água, pela palavra, para (a fim
de) a apresentar a si mesmo igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem
coisa semelhante, mas santa e irrepreensível.”

Vejamos o texto cuidadosamente e façamos uma análise dele. Há três ramos


no que o apóstolo diz aqui. Ou seja, este amor de Cristo, esta atitude
de Cristo para com a Igreja manifesta-se na prática em três aspectos
principais: primeiro, há o que Ele já fez pela Igreja. Cristo amou a Igreja e
“se entregou” - Ele já fez isso - “e a si mesmo se entregou por ela”. Aqui,
naturalmente,

estamos no centro vital e no cerne da verdade cristã. Sem isso não haveria
Igreja cristã. Esta é a primeira coisa, e é absolutamente essencial; este é o
alicerce. E, portanto, o apóstolo diz, quando escreve aos coríntios: “ninguém
pode pôr outro fundamento” (1 Coríntios 3:11). Este fundamento é só Jesus
Cristo e o que Ele fez. Por isso Paulo decidiu nada saber entre eles, “senão a
Jesus Cristo, e este crucificado” (1 Coríntios 2:2). Não existiria igreja em
Corinto, senão por isso; tampouco existiria em nenhum outro lugar. E,
naturalmente, esta é uma verdade que deve ser ressaltada em toda parte. E
bom trazer à memória a narrativa das palavras de despedida do apóstolo
aos presbíteros desta igreja de Éfeso. Encontrarão o registro disso no
capítulo vinte do Livro de Atos dos Apóstolos. Diz ele: “Olhai por vós, e por
todo o rebanho... para apascentardes a igreja de Deus, que ele resgatou com
seu próprio sangue”. Isso faz parte do grande romance de Cristo e a Igreja,
o Esposo e a esposa. Para que esta fosse Sua esposa, precisou comprá-la
antes. O apóstolo o expressa em termos da Igreja em sua totalidade, mas,
lembremo-nos, e fiquemos bem seguros disto em nossas mentes, que esta
verdade se aplica a cada um de nós individualmente, a cada cristão, a cada
membro da Igreja. O apóstolo não hesita em dizê-lo quanto ao seu próprio
caso. Diz ele em Gálatas, capítulo 2, versículo 20: “...na fé do Filho de Deus,
o qual me amou, e se entregou a si mesmo por mim”. Cristo amou a Igreja e
Se entregou por ela - sim, mas também “por mim”, a favor de cada um de
nós, como indivíduos.

O apóstolo já introduzira este grande tema nesta mesma epístola. Vê-se no


capítulo primeiro, versículo 7, onde ele diz: “Em quem temos a redenção
pelo seu sangue, a remissão das ofensas, segundo as riquezas da sua graça”.
É também o grande tema do capítulo dois: “Mas agora em Cristo Jesus, vós,
que antes estáveis longe, já pelo sangue de Cristo chegastes perto”. Como
chegaram perto? - “pelo sangue de Cristo”. Porque ele é a nossa paz... e,
derribando a parede de separação que estava no meio...”. Eliminou a
separação. Como? “Na sua carne.” “E pela cruz reconciliar ambos com
Deus em um corpo, matando com ela as inimizades.” E assim por diante. E
na verdade, neste capítulo que estamos considerando (Efésios capítulo
cinco) ele introduzira o mesmo pensamento nos dois primeiros versículos:
“Sede pois imitadores de Deus, como filhos amados; e andai em amor, como
também Cristo vos amou, e se entregou a si mesmo por nós, em oferta e
sacrifício a Deus, em cheiro suave.” Ele continua repetindo isso; e nós
também devemos continuar repetindo-o. Alguns insensatos dirão: “Ah, a
cruz só se aplica à minha conversão, à minha salvação original, e então
prossigo...”. Não! Os crentes nunca ultrapassam isso! É algo que jamais
deveríamos desejar esquecer; é algo que tem continuidade. Isto não somente
constitui o alicerce e a base, é a fonte da vida e do poder que
têm continuidade - “amou a igreja, e a si mesmo se entregou por ela.”

Então, o que Paulo está dizendo - e é doutrina suprema - é que tudo o que o
Senhor Jesus Cristo fez, Ele o fez pela Igreja. “Cristo amou a igreja, e a
si mesmo se entregou por ela”. Não há doutrina que lhe seja superior! O
nosso Senhor lembra ao Pai disto em Sua grande oração sacerdotal
registrada no

capítulo dezessete de João. Eis como o expressa: “Pai, é chegada a hora;


glorifica a teu Filho, para que também o teu Filho te glorifique a ti; assim
como lhe deste poder sobre toda a carne, par que dê a vida eterna a todos
quantos lhe deste”. Estes constituem o Seu povo, a Sua Igreja. Diz Ele: “Eu
rogo por eles: não rogo pelo mundo, mas por aqueles que me deste, porque
são teus”. E aqui se nos faz lembrar que Ele morreu pela Igreja. Nunca
devemos perder isto de vista. Ele morreu pela Igreja; não morreu por
ninguém mais. Como Calvino e outros expositores no-lo fazem lembrar, é
porque a Sua morte foi morte eterna, e por ser Ele o Filho de Deus, é
suficiente para o mundo inteiro; mas é eficiente somente para a Igreja. Seu
propósito, ao morrer, foi redimir a Igreja. Ele Se entregou pela Igreja, por
todos os que lhe pertencerem quando estiver inteiramente completa e
perfeita. Tudo é do conhecimento de Deus desde a eternidade, e o Filho veio
e Se entregou pela Igreja.

Portanto, o que temos que lembrar é que jamais seriamos dEle, e jamais
gozaríamos quaisquer benefícios desta vida cristã, se Ele não tivesse feito o
que fez. Eu e você fomos resgatados e redimidos antes que púdessemos
pertencer à Igreja, Nenhuma outra coisa nos toma cristãos. Lembremo-nos
disto de passagem. Você pode ser o homem da mais alta moralidade do
mundo, mas isso jamais fará de você um cristão; jamais fará de você um
membro de Cristo, jamais fará de você um membro da Igreja. Há somente
uma coisa que introduz alguém na Igreja, e é que Cristo o comprou com o
Seu sangue, que Cristo morreu por ele, redimiu-o. Este é o único meio pelo
qual se pode entrar na Igreja verdadeira - não na Igreja visível, mas na
Igreja verdadeira, na Igreja invisível - o corpo espiritual de Cristo. Somos
salvos pelo “precioso sangue de Cristo” (1 Pedro 1:19).

Observem, no entanto, que o grande interesse de Paulo aqui é,


particularmente, acentuar a verdade do ponto de vista de mostrar a
grandeza do amor de Cristo pela Igreja. Por que fez Ele estas coisas por nós,
e como as fez? Temos a reposta em muitos lugares nas Escrituras. Como o
marido deve amar a sua esposa? Como Cristo amou a Igreja e Se entregou
por ela. Que é que isso envolve? Talvez a melhor colocação sobre a matéria
seja a que se encontra na Epístola aos Filipenses, capítulo 2, versículo 5:
“De sorte que haja em vós o mesmo sentimento que houve também em
Cristo Jesus, que sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual
a Deus, mas aniquilou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se
semelhante aos homens; e, achado na forma de homem, humilhou-se a si
mesmo, sendo obediente até à morte, e morte de cruz”. Que significa isso?
Significa que foi assim que Cristo amou a Igreja e Se entregou por ela. Ele
não levou a Si próprio em consideração. “Não teve por usurpação ser igual
a Deus”; o que significa que Ele não considerou a Sua igualdade com Deus
como uma presa a que agarrar-se. Ele era o eterno Filho de Deus, tinha
compartilhado a glória com Seu Pai e com o Espírito Santo desde toda a
eternidade, mas não Se apegou a isso, dizendo: “Por que deverei ir para a
terra, por que deverei pôr de lado os sinais da Minha glória, por que
deverei rebaixar-Me e ser esbofeteado e cuspido?” Não! Ele “não teve por
usurpação ser

igual a Deus”, não considerou isso como uma coisa à qual devesse apegar-Se
a todo custo por ser Suà, de direito. Em vez disso, “aniquilou-se a si
mesmo”. Ele não tinha necessidade de fazer isso; não havia compulsão
nenhuma neste sentido, exceto a compulsão do amor. Se o Senhor Jesus
Cristo tivesse levado a Si próprio em consideração, se tivesse considerado
Sua glória e Sua dignidade eternas, não teria vindo a existir a Igreja, de
modo nenhum. Ele foi Aquele por intermédio de quem todas as coisas foram
criadas; todos os anjos O adoravam, e todos os grandes poderes e
principados Lhe prestavam homenagem. Eles O adoravam como Filho de
Deus e O glorificavam. Que seria, se Ele dissesse: “Ah, eu não posso, não
posso pôr nada disso de lado! Tenho que ter este respeito que me é devido,
tenho que manter a minha posição”. Ele fez exatamente o oposto: “Ele se fez
sem nenhuma reputação” (AV) - “aniquilou-se a si mesmo”. Nasceu como
um bebê, semelhante ao homem, na forma de homem. Não somente isso; até
Se tomou um servo. Não Se preocupou conSigo, em absoluto. Se o tivesse
feito, nenhum de nós seria salvo, e não haveria Igreja. Ele não falou dos
Seus direitos, não falou dos Seus deveres; não disse: “Por que hei de
sofrer, de humilhar-Me?” Não levou em conta o custo, não levou em conta a
vergonha. Ele sabia o que era envolver-Se, sabia que seria esbofeteado por
aqueles fariseus, escribas, saduceus e doutores da lei, sabia que o povo iria
escarnecer dEle, iria atirar pedras nEle, iria cuspir nEle - sabia que iria
passar por tudo isso, embora sem ter feito nada para merecê-lo. Então, por
que agiu assim? Pela Igreja; por Seu amor à Igreja. “Humilhou-se a si
mesmo”; “aniquilou-se a si mesmo”. Só tinha um pensamento - o bem da
Igreja, o corpo que se tomaria Sua esposa. Ele a estava comprando, não
estava pensando em ninguém mais, senão nfela. Não em Si mesmo, mas
nela! “Haja em vós o mesmo sentimento”, em vós, maridos! “Vós, maridos,
amai vossa mulheres, como também Cristo amou a igreja, e a si mesmo se
entregou por ela.”

Há ainda outro aspecto disto que devemos salientar a fim de trazer à luz a
profundidade do ensino. O Senhor Jesus fez isso por nós, pela Igreja,
enquanto ainda éramos pecadores, enquanto ainda éramos ímpios,
enquanto ainda éramos inimigos. Em sua argumentação em Romanos
capítulo 5, Paulo emprega precisamente estes termos: “Cristo... morreu a
seu tempo pelos ímpios”, “sendo nós ainda pecadores”. “Porque se nós,
sendo inimigos, fomos reconciliados com Deus pela morte de seu Filho,
muito mais, estando já reconciliados, seremos salvos pela sua vida,” Notem
os termos. Éramos “ímpios”, éramos “inimigos”, éramos “pecadores”,
éramos vis, não havia absolutamente nada que nos recomendasse. Você que
acha que deve ler romances e que se delicia com a estória de Cinderela, olhe
para isto. Olhe para a Igreja em sua baixeza, em seus farrapos, em seu
pecado, em sua inimizade, em toda a sua fealdade. O Filho de Deus, o
Príncipe da Glória, amou-a quando ela era daquele jeito, e apesar disso;
amou-a até o ponto de entregar-Se por ela, de morrer por ela.
“Vós, maridos, amai vossas mulheres, como também Cristo amou a igreja.”
Nós não somos chamados a amá-las na medida em que Ele amou a Igreja.
Mas Ele, apesar de tudo, amou até o ponto de entregar-Se; Seu sangue foi
literalmente

derramado por nós.

“Pois bem”, diz o apóstolo, “vocês que estão nesta relação matrimonial,
vêem um no outro coisas de que não gostam e que não aprovam -
deficiências, faltas, falhas, pecados - e são críticos, e se firmam em sua
dignidade, e condenam, e brigam, e se separam. Por que? Simplesmente
porque são incapazes de lembrar a maneira pela qual foram salvos e se
tomaram cristãos e membros da Igreja cristã.” O apóstolo lhes lembra que
se o Senhor Jesus Cristo reagisse ante eles como eles reagem face uns aos
outros, não haveria Igreja. “O amor nunca falha”, o amor continua
amando, apesar de tudo. Esse é o amor com o qual Cristo amou a Igreja.

Haverá alguma coisa tão errada, tomo a indagar, como separar da prática a
doutrina? Como somos culpados disso! Quantos de nós compreenderam
que sempre devemos pensar na vida conjugal em termos da doutrina da
expiação? É esse o nosso modo costumeiro de pensar no casamento -
esposos, esposas, todos nós? É assim que instintivamente pensamos no
casamento - em termos da doutrina da expiação? Onde achamos o que os
livros dizem acerca do casamento? Em que seção? Na que trata da ética.
Mas não pertence a essa seção. Devemos considerar o casamento em termos
da doutrina da expiação.

Os cristãos mais tolos são os que não gostam de doutrina e menosprezam a


importância da teologia e do ensino. E isso não explicaria por que
eles fracassam na prática? Não podemos separar estas coisas. Não devemos
relegar a doutrina da expiação simplesmente à nossa conversão ou ao
estudo. Por que será que tantos cristãos não freqüentam o culto vespertino?
“Oh”, dizem eles, “o sermão vai ser sobre a cruz, vai ser sobre o perdão, que
é o início da vida cristã. Faz anos que sou cristão e, naturalmente, isso não
me diz nada”. Cristão estulto! Cansou-se de ouvir falar da cruz? Você sabe
tudo sobre isso, entende isso tão exaustivamente que o tema não comove
mais? “Ah”, você dirá, “quero um ensino mais alto agora, quero agora
ensinamentos pormenorizados sobre como devo viver a vida santificada.”
Você nunca viverá a vida santificada, a não ser que esteja sempre ali graças
a essa cruz, e a não ser que ela esteja governando toda a sua vida, e
influenciando toda a sua perspectiva e cada uma das suas atividades.
Estamos aqui na chamada seção prática da Epístola aos Efésios, na segunda
metade, onde Paulo se ocupa destas questões comuns; sim, mas
é precisamente neste contexto que ele subitamente nos põe face a face com
a doutrina da Igreja e com a doutrina da expiação. Você não pode deixar
atrás a cruz, você nunca será um cristão tão adiantado que isso possa ser
considerado como um mero começo, no que se refere a você. Esse é o meio
pelo qual se leva o casamento, e tudo mais, ao naufrágio. Não! “Amor tão
admirável, tão divino, exige a minha alma, a minha vida, todo o meu ser" -
sempre! Eu começo ali, mas continuo ali; e ai de mim, se alguma vez eu
deixar de estar ali!

Esse é o primeiro ponto defendido pelo apóstolo - o amor de Cristo. Depois


ele passa para o segundo ponto - aquilo que Cristo, devido Seu
grandioso amor, está fazendo, ou continua a fazer pela Igreja. Ele o expressa
com, “a si mesmo se entregou por ela, para a santificar, purificando-a com a
lavagem da

água, pela palavra” (versículo 26). Aqui está outra declaração gloriosa e
sumamente vital. Observem que este versículo tem duas funções principais.
A primeira é a que já mencionei, que nos lembra o que o Senhor Jesus
Cristo está continuando a fazer pela Igreja. Mas há um segundo objetivo
também. Diz-nos por que Ele fez a primeira coisa. “A si mesmo se entregou
por ela; para (a fim de)” - este é Seu objetivo. Por que Cristo morreu?
Morreu “a fim de santificá-la e purificá-la com a lavagem da água pela
palavra”. Esse é o ensino que temos aqui, concernente à doutrina da
santificação. Acha-se tudo aqui - a expiação, a justificação; e agora a
santificação.

O primeiro ponto que estabelecemos e salientamos é o seguinte: o perdoar-


nos e o libertar-nos da condenação e do inferno nunca constituem um fim
em si mesmos, e nunca devem ser considerados como tal. São apenas
um meio para um fim ulterior. Não podemos deter-nos no perdão e na
justificação.

Vamos examinar mais de perto o que o apóstolo ensina aqui sobre esta
grande doutrina da santificação. O primeiro princípio é que nada é
tão completamente antibíblico como separar justificação e santificação.
Muitos o fazem. Dizem eles: “Você pode crer no Senhor Jesus Cristo como
seu Salvador, e seus pecados serão perdoados, e você será justificado. E
poderá parar aí”. Dizem mais: “Naturalmente você não deve fazer isso, deve
prosseguir e dar o segundo passo. Contudo existem muitos cristãos”, dizem
eles, “que param aí. Crêem em Cristo para a salvação e são justificados e
perdoados; certamente são cristãos, porém não se ocupam da santificação”.
E então eles o exortam a “aceitar” a santificação como anteriormente
“aceitaram” a justificação. Tal ensino é uma completa negação daquilo que
o apóstolo diz aqui, e é completamente anti-bíblico. A morte de Cristo não
visa meramente a dar-nos perdão, e a justificar-nos, e a tomar-nos
legalmente justos aos olhos de Deus. “A si mesmo se entregou por ela, para
(a fim de)...”. É somente uma primeira ação de uma série; não é uma ação
final, em nenhum sentido, e jamais deveríamos parar ali.
O apóstolo não ensina esta verdade somente aos efésios; ele a ensina a todas
as igrejas. Vocês a encontrarão na Epístola aos Romanos, capítulo
oito, versículo 3 e 4. Também em Tito 2:14: “Jesus Cristo, o qual se deu a si
mesmo por nós para nos remir de toda a iniqüidade, e purificar para si um
povo seu especial, zeloso de boas obras”. É por isso que Ele Se entregou por
nós; não meramente para que pudéssemos ser perdoados, nem meramente
para salvar-nos do inferno, mas para purificar e separar para Si este povo
peculiar, zeloso de boas obras. O Senhor Jesus disse tudo isso em Sua oração
sacerdotal (João 17:19): “E por eles me santifico a mim mesmo, para que
também eles sejam santificados na verdade”.

Parar na justificação não é somente errado quanto ao pensamento; é


impossível por esta razão: que é uma obra realizada por Cristo; é Ele que
faz isto em nós. Ele Se entregou pela Igreja. Por que? Para poder santificar
e purificar a Igreja. Ele é que vai fazer isso. Todo o problema surge do fato
de que alguns persistem em considerar a santificação como uma coisa que
compete a nós

realizar. Isso jamais é ensinado em parte alguma das Escrituras. O ensino


das Escrituras é o seguinte: Cristo pôs Seu coração e Seu afeto na Igreja. Lá
estava ela, sob condenação, em seu pecado, em seus trapos e em sua baixeza!
Ele veio, houve a encarnação, Ele tomou sobre Si a “semelhança da carne do
pecado” (Romanos 8:3). Ele tomou os pecados dela sobre Si, e os suportou
em Seu próprio corpo no madeiro. Ele sofreu o castigo, Ele morreu, Ele fez
a expiação e nos reconciliou com Deus. Assim a Igreja está livre da
condenação. Mas isso não O satisfaz. Ele quer que ela seja gloriosa, Ele quer
apresentá-la “a si mesmo igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa
semelhante”. Portanto, Ele começa imediatamente a prepará-la para esse
destino. Não pode parar no primeiro passo; Ele vai adiante, para santificá-
la. Noutras palavras, Sua morte na cruz por nós e por nossos pecados foi
simplesmente o primeiro passo neste grande processo. E Ele não se detém
no primeiro passo. Ele tem um propósito completo para a Igreja, e o vai
cumprindo passo a passo.

Gostaria de expressar isto vigorosamente. Em última análise, eu e você não


temos escolha nesta questão da santificação. É algo que Cristo realiza.
Ele morreu por você, e depois, tendo morrido por você, Ele vai lavá-lo,
santificá-lo, purificá-lo - e Ele mesmo fará isso. Que ninguém se engane
sobre isto. Se Ele morreu por você, levará adiante o processo de santificação
em você, e finalmente o tomará perfeito. Há algo de alarmante em tomo
disto; no entanto, é ensino bíblico essencial. Se eu e você não nos
submetermos voluntariamente a este ensino, Ele tem outro meio de
purificar-nos; e o usará - “Porque o Senhor corrige a quem ama, e açoita a
qualquer que recebe por filho” (Hebreus 12:6). Ele não permitirá que você
fique onde estava, em sua imundície e vileza, dizendo: “Está tudo bem
comigo, Cristo morreu por mim, eu estou perdoado, sou cristão”. Ele não
aceitará isso! Ele o amou, você Lhe pertence; e Ele o tomará puro. Se você
não vier voluntariamente, e do modo certo, Ele o colocará naquela academia
de ginástica sobre a qual lemos em Hebreus. Ele aparará as arestas,
eliminará a imundície e a vileza; Ele lavará você. Isso pode acontecer por
meio de uma enfermidade que Ele fará sobrevir a você. Estes pregadores
da “cura divina” que dizem que Deus nunca envia doença, estão
simplesmente negando as Escrituras. Como um dos Seus métodos, Ele
castiga. As circunstâncias que o cercam podem ser más, você pode perder o
emprego, ou uma pessoa que lhe é cara pode morrer. Cristão! Uma vez que
você Lhe pertence, uma vez que Cristo morreu por você, Ele o tomará
perfeito. Lute contra Ele quanto quiser em sua estultícia, Ele o lançará por
terra, Ele o purificará, Ele o aperfeiçoará. Esse é o ensino; é uma coisa que
Ele realiza. A santificação não é determinada por mim e por você - “E a si
mesmo se entregou por ela, para (a fim de) a santificar, purificando-a com a
lavagem da água, pela palavra”. O primeiro princípio que devemos
entender é que a santificação é primária e essencialmente uma coisa que o
Senhor Jesus Cristo faz para nós. Ele tem os Seus meios para fazê-lo.
Naturalmente, a santificação inclui obediência da nossa parte. Mas você não
precisa colocar aí a sua ênfase principal. A decisão pela santificação não é
nossa; É dEle. Foi tomada na eternidade, antes da

fundação do mundo. É Sua atividade, Sua operação; e, tendo morrido por


você, Ele o fará. Resista a Ele, e o risco será seu. Ele levará cada um dos
filhos, que foram chamados, para aquela glória final e sempitema. Como
Hebreus o expressa, se Ele não tratar você deste modo, significará que você
é um “bastardo”, e não um filho legftimo (Hebreus 12:5-11).

Esse é, pois, o grande princípio que constitui a base deste ensino apostólico.
Como Cristo o leva a efeito? Veja-se a resposta na palavra “santificar";
“como também Cristo amou a igreja, e a si mesmo se entregou por ela, para
a santificar". Esta palavra “santificar" é empregada de muitas maneiras
na Bíblia, mas o seu sentido primário é, “ser separado” ou “separar"; “ser
separado para Deus, para Sua posse peculiar e para Seu uso". Você verá em
Êxodo 19, por exemplo, que o monte no qual Deus se encontrou com Moisés
e lhe deu os Dez Mandamentos, foi “santificado” desse modo. É chamado
“monte santo” porque foi separado. Não houve alteração na montanha, mas
foi separada para os propósitos de Deus, para o uso de Deus, para ser
possessão peculiar de Deus. Os vasos que eram usados no cerimonial do
templo eram igualmente santificados ou separados. Não houve mudança
material nos copos e nos pratos, todavia como deviam ser utilizados somente
no templo e para o serviço de Deus, não podiam ser empregados no uso
comum. Ser santificado significa ser separado para Deus e para o Seu uso e
propósito especial, como Sua possessão peculiar. Portanto, somos um “povo
para Sua possessão pessoal”.

Aparece então um sentido secundário. Dado que são assim separados, são
também “feitos santos”. Ora, aqui em nossa passagem não pode ser
levantada dúvida quanto ao sentido da palavra “santificação”. Traz aquela
primeira conotação. “Para a santificar.” Tem o sentido de “separar para
Si”, “separar de tudo mais, para Sua possessão pessoal, para Seu próprio
uso, para Seu prazer". Ela não significa mais que isso aqui, pois notamos
que o apóstolo acrescenta a palavra “purificar”, dando-nos o segundo
significado de santificar. Ele faz uma divisão em dois passos. Aqui está a
Igreja em seus farrapos, em sua imundície e vileza! Cristo morreu por ela,
salvou-a da condenação. Ele a toma de onde estava e a separa para Si. Ela é
transportada “da potestade das trevas... para o reino do Filho do seu amor”
(Colossenses 1:13) - isto é, ela é removida do mundo para a posição especial
que, como Igreja, deve ocupar.

Esta é uma coisa maravilhosa. É o que o Senhor Jesus Cristo fez com a
Igreja. A mesma coisa ocorre quando um homem vê que o seu afeto e o seu
amor se fixam numa jovem dentre milhares. Ele a escolhe para si, e a
seleciona dentre todas as demais. “Ela há de ser minha”, diz ele. Assim, ele a
separa, isola-a, “santifica-a”, considera-a uma jovem única. Ele a quer para
si. Essa é a verdade pura e simples acerca de cada cristão entre nós, de cada
membro da Igreja num sentido real. Vocês já tinham compreendido isso -
que o Senhor da glória, o eterno Filho de Deus, nos separou, nos isolou para
Si, para que pudéssemos ser “um povo para sua possessão particular”?

Permitam-me recordar-lhes de novo o versículo 9 do capítulo 2 da Primeira


Epístola de Pedro, que expõe esta verdade tão gloriosamente. Sabem
de fato qual é a verdade a respeito de vocês neste exato momento? “Sois a
geração eleita, o sacerdócio real (reino de sacerdotes), a nação santa
(separada)”. Não somos perfeitos e sem pecado, mas somos uma “nação
santa” no sentido de que somos um grupo, uma nação de gente separada. E
Pedro prossegue, “o povo adquirido” (“um povo peculiar”), “um povo para
sua possessão pessoal e peculiar” - “para que anuncieis as virtudes daquele
que vos chamou das trevas para sua maravilhosa luz”. Foi isso que Cristo
fez pela Igreja. Ele nos chamou; esse é um sentido da palavra “ecclesia” - os
“chamados para fora de”. Somos chamados para fora do mundo, agregados
aqui para formar este corpo, esta esposa para Cristo. E então Cristo
continua a ocupar-Se de nós.

Noutras palavras, para utilizar a linguagem de Pedro nesse mesmo capítulo


outra vez, eu e você, como cristãos, somos “peregrinos e forasteiros” neste
mundo. Notem como ele o expressa: “Amados, peço-vos, como a peregrinos
e forasteiros” (versículo 11). Não pertencemos mais a este mundo. Fomos
tirados dele, fomos separados, santificados. Aqui somos
somente estrangeiros e peregrinos; não pertencemos a esses domínios, como
outrora. O apóstolo Paulo já dissera isso tudo no fim do capítulo dois desta
Epístola aos Bfésios. Diz ele: “Já não sois estrangeiros, nem forasteiros, mas
concidadãos dos santos, e da família de Deus. “Vocês eram estrangeiros
para esta realidade antes, mas agora estão nela e são estrangeiros para
aquela - santificados, separados para Ele. Interpretado, isso significa que
agora a esposa não é mais livre para fazer certas coisas que fazia antes, mas
vive para o seu esposo, e ele vive para ela. O marido não atenta para outras
mulheres porque a sua esposa é a que ele selecionou, separou, santificou
para si. É como Cristo vê a Igreja. É como o marido deve considerar sua
esposa. E nós, povo cristão, na qualidade de esposa de Cristo, devemos
considerar-nos como não sendo mais livres, não mais pertencentes a nós
mesmos, não mais decidindo o que fazer, não mais pertencendo ao mundo.

Colocarei isso tudo na forma de uma questão. Dirijo-me a cristãos,


membros da Igreja. Mais adiante faremos a aplicação aos maridos. Eis a
questão que dirijo a todo aquele que se diz crente no Senhor Jesus Cristo, a
todo aquele que diz: “Eu creio que Cristo morreu por mim e pelos meus
pecados, para me resgatar”. Você está ciente do fato de que Cristo o separou
e o está santificando? Porque, acredite-me, se não está, você está se iludindo
e se enganando a si mesmo ao pensar que Ele morreu por você. Quando
Cristo morre por uma pessoa, Ele a move e a coloca nesta posição peculiar.
“E a si mesmo se entregou por ela, para (a fim de)". Este foi o primeiro
passo do movimento, mas Ele nunca se detém aí. Esse é o passo preliminar
que leva à santificação. Assim, é tolice pretender que Cristo morreu por nós,
a não ser que saibamos que Ele nos separou. Você tem a certeza de que não
pertence mais ao mundo, que houve mudança em você, você foi removido,
que foi transportado “da potestade das trevas para o reino do Filho do seu
amor”? Você se sente estrangeiro aqui? Você diz com Paulo, “a nossa cidade
(“a nossa cidadania”) está nos céus”? (Filipenses 3:20). “E a si mesmo se
entregou por ela, para (a fim de) colocá-la de lado para

si mesmo, para ser sua possessão peculiar.” Ah, que privilégio ser cristão,
pertencer às fileiras daqueles por quem Cristo morreu, e a quem Ele
está preparando para Si próprio - separados do mundo para a glória que
haveremos de gozar com Ele! Maridos, amem assim as suas esposas.

A PURIFICAÇÃO DA ESPOSA Efésios 5:23-33

Em nossas considerações sobre a declaração que o apóstolo faz concernente


aos deveres dos maridos para com as suas esposas, estamos dando atenção
ao ensino concernente ao Senhor Jesus em Sua relação com a Igreja.
Temos visto o Seu interesse por ela, a Sua atitude com respeito a ela; e
estamos salientando como esta atitude e este interesse se expressaram na
ação, na prática. Temos visto o que o Senhor fez pela Igreja - “a si mesmo se
entregou por ela”. Também temos considerado o que Ele ainda está fazendo
pela Igreja. Aquela primeira obra Ele fez uma vez para sempre - entregou-
Se por ela. Mas não a deixa ali; continua a fazer algo para a Igreja e pela
Igreja.

Também estivemos examinando a palavra “santificar” e seu significado. O


Senhor separou a Igreja para Si; somos o Seu “povo peculiar”, um povo
para ser Sua possessão especial, peculiar, pessoal - Sua esposa. Ele a pôs
numa posição especial, à parte, a fim de poder fazer certas coisas por ela.

Desse ponto partimos agora. A palavra subseqüente que vamos ver é


“purificar”. “Para a santificar, purifícando-a com a lavagem da água,
pela palavra.” É por meio da palavra “purificar” que a idéia de purificação
— que normalmente chamamos “santificação” - realmente entra em cena.

Aqui devemos ter o cuidado de observar o pleno conteúdo da palavra


“purificar”. Há alguns que a limitam unicamente ao ato de sermos lavados
da culpa dos nossos pecados. Entretanto, é óbvio que isso não é suficiente.
Já vimos esse aspecto na declaração de que Ele Se entregou pela Igreja e a
separou. Aí está implícita a idéia de que somos libertos da culpa do pecado,
porém não me disponho a contender com os que desejam incluí-la na
palavra “purificar”. Certamente Cristo nos purifica da culpa do nosso
pecado; mas esta palavra nos leva mais longe ainda. Penso que posso provar
que não se trata apenas de uma questão de opinião. O próprio fato de que
Paulo acrescenta que a purificação é efetuada “com a lavagem da água, pela
palavra” é prova de que é um processo contínuo e em desenvolvimento. A
lavagem da culpa do pecado é feita uma vez para sempre. É uma ação
única, singular; contudo, aqui a ação é continuada, “purificando-a com a
lavagem da água, pela palavra”. Essa afirmação mostra que não se trata
meramente de uma questão de livrar-nos da culpa. Mas então, o versículo
27 estabelece o ponto de maneira ainda mais positiva - “Para a santificar,
purificando-a com a lavagem da água, pela palavra, para a apresentar a si
mesmo igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante,
mas santa e irrepreensível”. Estas palavras definem o objetivo final de
Cristo - que

a Igreja não somente seja liberta da culpa do pecado, porém que seja inteira
e completamente liberta do pecado em todos os seus aspectos e formas.
Seguramente Toplady expõe esta idéia com perfeição, quando assim a
expressa:

Sê do pecado a dupla cura, limpa-me da sua culpa e do seu poder.

O Novo Testamento nunca pára na culpa; sempre vai adiante, rumo a esta
ulterior idéia da purificação do poder do pecado também. Na verdade,
quero acrescentar algo mais a isso. Esta purificação não é só da culpa do
pecado e do poder do pecado, e sim também da corrupção do pecado. Esse
terceiro aspecto é esquecido com muita freqüência. Vocês verão que muitas
associações em sua “Base de fé” mencionam o poder do pecado, mas omitem
a corrupção do pecado. Todavia, de muitas maneiras a coisa mais terrível a
respeito da Queda é que ela corrompeu a nossa natureza. O pecado é
poderoso dentro de nós em grande medida por causa da nossa natureza
corrompida. É isto que o apóstolo descreve de maneira tão impressionante
no capítulo 7 da Epístola aos Romanos, versículo 18. “Porque eu sei”, diz
ele, “que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum.” Pois bem,
isso é corrupção; não é poder. Leva ao poder; mas é porque a nossa
natureza é corrupta, manchada, suja e tomada impura pela Queda, que o
pecado é tão poderoso dentro de nós. Portanto, precisamos ser purificados
não somente da culpa e não somente do poder do pecado,
mas particularmente desta terrível corrupção do pecado - sua mácula e sua
perversão.

O pecado penetrou na tessitura da natureza humana; nossa natureza é vil,


retorcida e perversa. Quão vitalmente importante é que compreendamos
que essa verdade atinge a nós todos por natureza! Não é que somos neutros
por natureza, e que de fora somos tentados. Não! Nós nascemos em pecado,
fomos formados em iniqüidade. “Em pecado me concebeu minha mãe” - é o
ensino das Escrituras (Salmo 51:5). O apóstolo já estabelecera isto
claramente no início do capitulo 2 de Efésios, onde ele diz, “estando nós
ainda mortos em nossas ofensas” (versículo 5; cf. vers. I9) - etc., e fala dos
“desejos da carne e dos pensamentos”. Essa é outra maneira de descrever
esta “lei do pecado que está nos meus membros” (Romanos 7:23). Não é
apenas um poder, é uma infecção, é de fato, como digo, uma corrupção. É
como um rio corrompido em sua fonte, ao contrário de um rio que se
corrompe durante o seu curso. É disso que temos que ser purificados antes
de podermos ser apresentados pelo Senhor a Si mesmo como “igreja
gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante, mas santa e
irrepreensível”.

Portanto, a questão para nós é: como se realiza isto? Diz o apóstolo que é
feito “com a lavagem da água, pela palavra”. Aqui temos uma frase
muitas vezes mal entendida e mal interpretada. Muitos vêem aqui o ensino
do que chamam “regeneração batismal” - segundo o qual somos
inteiramente libertos e purificados do pecado pelo batismo. Esse erro
começou a engatinhar na Igreja nos primeiros séculos; erro perpetuado pelo
ensino da igreja católica romana e por outras formas de catolicismo, até aos
dias atuais. Não vou tratar a fundo

disso porque me parece uma interpretação tão completamente artificial das


palavras, impondo-lhes um sentido que, tomadas com naturalidade, e pelo
que valem pura e simplesmente, elas nunca teriam sugerido. Naturalmente,
essa interpretação foi apresentada com vistas aos interesses do poder da
Igreja; e todos os que ainda a ensinam, seja qual for a forma de catolicismo
que digam
ter, continuam sendo culpados do mesmo erro. O ponto aqui não é alguma
ação mágica que se dá no batismo, nem tampouco a fórmula particular
utilizada. Alguns têm salientado esta última, dizendo que o que importa é a
palavra dita pelo homem que está ministrando o batismo à criança, e que a
fórmula fornece o poder eficaz. De novo, isso não passa de sacerdotalismo;
nada mais é que um modo de reforçar a autoridade de um sacerdócio.

Que é então o significado desta palavra? Obviamente, há uma referência ao


batismo aqui, ao fato e ao ato do batismo. Naturalmente, isso não
deve espantar-nos, porque estamos lidando com pessoas que tinham sido
pagãs. Ouviram o evangelho, creram nele, e então antes de serem admitidas
na Igreja, tiveram que ser batizadas; e, tendo sido batizadas, foram
recebidas como membros da Igreja cristã. Por isso o batismo permanecia
em suas mentes como uma coisa destinada a representar esta purificação,
esta libertação de uma esfera e transferência para outra esfera. E assim
vemos o apóstolo Paulo, ao escrever à igreja de Corinto, expressá-lo assim (1
Coríntios 6:9-11): “Não sabeis”, diz ele, “que os injustos não hão de herdar
o reino de Deus? Não erreis: nem os devassos, nem os idólatras, nem os
adúlteros, nem os efeminados, nem os sodomitas, nem os ladrões, nem os
avarentos, nem o bêbados, nem os maldizen-

tes, nem os roubadores herdarão o reino de Deus. E é o que alguns têm


sido, mas haveis sido lavados, mas haveis sido santificados, mas haveis sido
justificados em nome do Senhor Jesus, e pelo Espírito do nosso Deus.” Aí
outra vez a idéia de “lavagem” é empregada. Diz ele: “Vocês eram daquele
jeito; agora não estão mais naquela condição; agora são santos na Igreja -
foram lavados”. Um dos própositos do batismo é representar essa mudança.

É muito semelhante o pensamento do apóstolo Pedro, registrado em sua


primeira epístola, capítulo 3, versículo 20 e seguintes. Ele está falando
dos “espíritos em prisão; os quais noutro tempo foram rebeldes, quando a
longa-nimidade de Deus esperava, nos dias de Noé, enquanto se preparava a
arca; na qual poucas (isto é, oito) almas se salvaram pela água: que
também, como uma verdadeira figura, agora vos salva, batismo, não do
despojamento da imundícia da carne, mas da indagação de uma boa
consciência para com Deus, pela ressurreição de Jesus Cristo; o qual está à
destra de Deus, tendo subido ao céu”. Temos aí, com bastante clareza, a
idéia da qual estamos tratando, no exame da proposição que está diante de
nós. O batismo é uma figura, e é uma representação, de maneira simbólica,
daquilo que o Senhor Jesus Cristo faz por nós neste processo de
santificação. O objetivo do batismo é, pois, representar isso e selar isso em
nós, em nossas mentes e em nossos corações. Não faz mais que isso. Em si e
por si, o batismo não é nada. Meramente sermos batizados não nos
muda. Crer que nos muda constitui um falso conceito das ordenanças, A
expressão

técnica utilizada pelos católicos romanos e por todo o seu ensino é que “os
sacramentos” agem e são eficazes “ex opere operato". Noutras palavras,
que eles, operam por si mesmos, sem nenhuma atividade da parte de quem
os recebe. O próprio ato do batismo regenera crianças e adultos.

Não há esse ensino nas Escrituras. O batismo, como diz Pedro, é uma
“figura”, “uma verdadeira figura”; é uma representação dramática. A
mesma coisa se dá com a Ceia do Senhor, naturalmente. Não cremos que o
pão se transforma no corpo de Cristo. Éuma representação. O nosso Senhor
diz, com efeito, “Vejam este pão; quando vierem comê-lo, ele lhes fará
lembrar o Meu corpo partido, ele o representará e o figurará para vocês. E
igualmente com o vinho; “este cálice é o Novo Testamento”. Essa é a nossa
resposta aos católicos romanos que dizem que o vinho vira sangue. Dizem
eles que devemos entender literalmente estas palavras. Pois bem, se as
tomarmos literalmente, o que o nosso Senhor disse, foi, “Este cálice”; Ele
não disse, “Este vinho”, mas disse, “Este cálice é o Novo Testamento no meu
sangue”, provando que é simplesmente representativo e simbólico.

Assim com o batismo. Que é que o batismo representa? Evidentemente


representa o sermos lavados da culpa do pecado. Ali estávamos nós,
pecadores, em pecado, sob a ira de Deus. Fomos libertos disso por nossa fé
no Senhor Jesus Cristo, pelo que Ele fez por nós. O batismo nos lembra essa
libertação. Em segundo lugar, lembra-nos o fato de que estamos sendo
purificados do poder e da corrupção do pecado. É uma espécie de
“lavagem", uma representação simbólica de um processo de limpeza, de
purificação. Inclui essa idéia também. E, em terceiro lugar, representa todo
o nosso conceito do ato de sermos batizados em Cristo pelo Espírito Santo.
Vocês se lembram de como Paulo, escrevendo aos coríntios (1 Coríntios
capítulo 10), afirma que os israelitas foram batizados em Moisés pela
“nuvem” que estava sobre eles. Eles não foram imersos na nuvem, a nuvem
estava sobre eles. E do mesmo modo o batismo representa o fato de que
fomos dessa forma batizados em Cristo pelo Espírito Santo. Essa é toda a
idéia que Paulo tem em mente aqui - nossa união com Cristo. “Somos
membros”, diz ele, “do seu corpo, da sua carne e dos seus ossos”. Como
acontece isso? Acontece porque “somos batizados em Cristo por um
Espírito”; o batismo representa isso também. Assim, ei-lo aqui! É
uma representação externa e simbólica das três coisas que Paulo ressalta
tão proeminentemente nesta seção particular.

É óbvio, então, que o principal objetivo de Paulo aqui é mostrar-nos como


Cristo está purificando a Igreja e a está preparando para Si; e que Ele o faz
por intermédio do Espírito Santo. Evidentemente não é acidental que,
quando o Senhor Jesus estava no Jordão, por ocasião do Seu batismo, o
Espírito Santo desceu sobre Ele, na forma e semelhança de pomba.
Portanto, no batismo sempre devemos estar pensando nesse aspecto, na
vinda do Espírito Santo sobre nós, a fim de que Ele nos batize em Cristo e
dê seguimento a esta obra e processo de santificação.

Daí, então, a nossa reflexão sobre a frase em seus termos reais. Éuma frase

muito difícil, e sempre causou muita discussão - “a lavagem da água”. Mas a


expressão realmente importante aqui é, sem dúvida, “pela palavra”.
“Purificando-a com a lavagem da água, pela palavra”, ou (se vocês acharem
útil mudar a ordem dos termos), “purificando-a pela palavra por meio da
lavagem da água”. O que é vital aqui é a expressão “pela palavra”, que deve
ser ligada ao termo “purificando-a”. Há uma representação disso no
batismo, mas não é nada mais que uma representação. A verdadeira obra de
santificação é realizada pela Palavra, ou por meio da Palavra, e o Espírito
Santo realiza esta obra em nós por intermédio da Palavra. Esta é uma
verdade sumamente importante, que o cristão deve captar e entender. O
instrumento utilizado pelo Espírito Santo em nossa purificação é a Palavra.

Este é o ensinamento essencial do Novo Testamento sobre a santidade e a


santificação; é algo feito em nós pelo Espírito Santo com o uso da Palavra.
E vamos acentuar que isso é um processo. É uma purificação progressiva,
até ficarmos livres de toda mancha, ou ruga, ou coisa semelhante; fazendo-
nos irrepreensíveis, seremos inteiramente santos. Há pessoas que ensinam
que o que acontece com o cristão é que ele é um homem salvo, porém que
permanece em seu pecado. Na medida em que ele “permaneça em Cristo”,
será mantido sem pecar, mas não há mudança quanto à corrupção do
pecado. Isso só se resolve quando ele morre. No entanto, é evidente que, de
acordo com o ensino apostólico em foco, isso está completamente errado.
Lemos aqui sobre um processo de purificação; ele prossegue. Conforme o
homem avança na vida cristã, deverá haver cada vez menos corrupção do
pecado nele; deverá tomar-se progressivamente santificado à medida que
este processo prossiga. Ele não é apenas capacitado a resistir ao poder do
pecado; ele está sendo purificado da corrupção do pecado; ele está sendo
progressivamente levado a um estado no qual será finalmente aperfeiçoado.
E isto é feito por meio da Palavra. “Pela palavra.”

O grande princípio a que devemos apegar-nos é que as operações do


Espírito Santo em nós são geralmente na Palavra e pela Palavra. Por isso
é sempre perigoso separar da Palavra o Espírito Santo. Muitos têm feito
isto, e tem havido graves abusos. Na verdade, o virtual abandono da fé
cristã pelos chamados quaeres deve-se exatamente a isto; eles dão tanta
ênfase à “luz interior”, que ignoram a Palavra. Tendem a dizer que a
Palavra não tem importância; o que importa é esta luz interior. E chegaram
a uma posição em que ficam mais ou menos desligados das doutrinas do
Novo Testamento, sendo que o Senhor Jesus Cristo é pouco necessário ao
seu sistema. E há outros que a tal ponto deram ênfase ao Espírito Santo, que
O separaram da Palavra. Não querem aprender, não querem receber
instrução; vivem no terreno dos sentimentos, da disposição e das
experiências, e se metem em êxtases que muitas vezes não somente os levam
ao “naufrágio da fé”, mas também a imoralidade grosseira, a excessos e a
fracassos. A Palavra e o Espírito Santo geralmente andam juntos. A Palavra
foi dada pelo Espírito, e Ele usa a Sua Palavra. Ela é o instrumento que Ele
utiliza. Não estou negando que o Espírito possa falar-nos diretamente;

mas estou dizendo que isso é a exceção. E vou além; digo que qualquer coisa
que possamos pensar que é obra do Espírito em nós deve sempre ser
provada pela Palavra. O Espírito Santo nunca fará nada que entre em
contradição com a Sua Palavra. Assim, somos exortados a “provar os
espíritos”, a “examinar os espíritos”, a “testar os espíritos”. Nem todos os
espírito são de Deus; portanto, você precisa submeter à prova todo espírito
particular. O que nos fornece tal prova? A Palavra. Portanto, esta obra é
realizada pelo Espírito, mas é realizada pela Palavra e por meio da Palavra.

Permitam-me demonstrar este ponto, porque é de vital importância. Para


mostrar como quase toda a obra que o Espírito realiza no crente é feita por
meio da Palavra, comecemos com a nossa regeneração. Tiago o expressa
desta maneira: “Pelo que, rejeitando toda a imundícia e superfluidade de
malícia, recebei com mansidão a palavra em vós enxertada, a qual pode
salvar as vossas almas”. A Palavra! Outra vez Tiago faz esta colocação:
“Segundo a sua vontade, ele nos gerou pela palavra da verdade, para que
fôssemos com primícias das suas criaturas” (Tiago 1:21,18). Pedro ensina a
mesma coisa: “Sendo de novo gerados”, diz ele, “não de semente
corruptível, mas da incorruptível, pela palavra de Deus, viva, e que
permanece para sempre” (1 Pedro 1:23). A regeneração é obra do Espírito
Santo, mas Ele a realiza pela Palavra - “sendo de novo gerados, não de
semente corruptível, mas da incorruptível, pela palavra de Deus”. É a
Palavra, e esta empregada pelo Espírito, que nos dá vida nova. Veja-se
ainda Paulo, na Primeira Epístola aos Tessalonicenses, capítulo 2, versículo
13: “Pelo que também damos sem cessar graças a Deus, pois, havendo
recebido de nós a palavra da pregação de Deus, a recebestes, não como
palavra de homens, mas (segundo é, na verdade), como palavra de Deus, a
qual também opera (eficazmente) em vós, os que crestes”. Esta Palavra está
operando efícazmente em nós, que cremos. Ela nos introduziu na vida
eterna; ela continua a operar efícazmente em nós. “Operai a vossa salvação
com temor e tremor; porque Deus é o que opera em vós tanto o querer como
o efetuar” (Filipenses 2:12-13). Como Deus faz isso? Por meio da Palavra.

Permitam-me dar mais exemplos desta mesmíssima coisa. O Senhor Jesus


mesmo ensino isto clara e objetivamente. No capítulo oito do
Evangelho Segundo João vocês encontrarão um relato de como o Senhor
estava pregando um dia, e nos é dito que, quando ouviram as Suas palavras,
muitos creram nEle. Depois lemos o seguinte (versículo 31 e 32): “Jesus
dizia, pois, aos judeus que criam nEle: Se vós permanecerdes na minha
palavra, verdadeiramente sereis meus discípulos; e conhecereis a verdade, e
a verdade vos libertará”. Vocês notam que eles têm que permanecer na Sua
Palavra e, se o fizerem, a verdade os libertará. Ou, ouçam-no de novo em
João 15, versículo 3: “Vós já estais limpos”, diz Ele, “pela palavra que vos
tenho falado". É a Palavra que limpa. E ainda há dois exemplos disto no
capítulo dezessete do Evangelho Segundo João. O primeiro está no versículo
17: “Santifica-os na verdade; a tua palavra é a verdade”. Ele está deixando
os Seus discípulos no mundo, e o inimigo está atacando. Diz Ele: “Não peço
que os tires do mundo, mas que os livres (os

limpes, os guardes) do mal”. “Santifica-os na verdade; a tua palavra é a


verdade.” E depois observamos a tremenda declaração de Jesus, e que diz:
“E por eles me santifico a mim mesmo”. Ele está falando agora em colocar-
Se à parte para a morte na cruz. Por que fará isso? “Para que também eles
sejam santificados na verdade.” Este é, pois, o grande princípio que vemos
ensinado por toda parte no Novo Testamento. Cristo está purificando a
Igreja mediante a obra do Espírito Santo que Ele enviou, e que utiliza a
Palavra ao realizar a obra.

Contudo, isso nos deixa com esta questão vital: qual é esta Palavra que o
Espírito Santo usa? Devemos ser santificados por meio desta Palavra. Em
que consiste a Palavra da santificação? Qual é o ensino que leva à nossa
progressiva santificação e libertação do poder e da corrupção do pecado?
Eis aqui, de novo, um ponto vital em toda esta questão da doutrina da
santificação; porque existe o real perigo de estreitarmos esta mensagem
concernente à santificação, e de reduzi-la a um ensino ou fórmula especial
quanto à santificação. Todos conhecemos bem esse ensino. Há os que dizem
que a santificação é “muito simples” (e esta expressão é deles). Eles têm, eles
pretendem ter uma mensagem especial sobre a santificação e a santidade
que, segundo eles, é “muito simples”. Realmente esta se resume nisto:
“Confie e obedeça” “Solte-se e deixe com Deus”. Dizem eles que esse é o
ensino das Escrituras concernente à santificação. Daí vocês verão que, com
muita freqüência, para não dizer geralmente, eles apresentam o seu ensino
em termos de algumas histórias do Velho Testamento, com relação às quais
eles podem deixar sua imaginação correr solta. A única coisa que lhes
interessa é apresentar esta fórmula, esta fórmula simples, dizem eles, acerca
da santificação. “É muito simples, você pára de pelejar e lutar, e apenas
“confia e obedece”; “você a recebe pela fé”, acredita que a tem, e
segue adiante.” Dizem eles que não há nada mais que dizer ou fazer.

Entretanto, será que isso corresponde fielmente à Palavra? Será essa “a


palavra” que leva à nossa santificação? Porventura alguma passagem
das Escrituras apresenta a santificação apenas como uma “fórmula” que
você imagina e depois ignora mais ou menos todas as epístolas do Novo
Testamento e seu ensino, e encontra ilustrações deste processo simples em
várias narrativas do Velho Testamento? Certamente isso é mutilar o ensino
escriturístico. Qual é a Palavra que nos ensina a santificação, e que nos
santifica? Naturalmente, a resposta é que é a Bíblia toda, toda a verdade
que se encontra na Bíblia, ou em qualquer destas epístolas do Novo
Testamento. Por que o apóstolo Paulo escreveu esta carta aos efésios?
Escreveu-a para que a santificação deles progredisse. Eles tinham crido na
verdade, como ele os leva a lembrar no capítulo primeiro. Mas ele quer que
eles cresçam na graça, quer que se desenvolvam, quer que se livrem do
pecado - da culpa, do poder e da corrupção do pecado. Quer que vejam que
o objetivo é que sejam perfeitos e santos, inteiramente sem culpa e sem
mancha; e ele escreve a fim de que eles sejam trazidos a esse ponto. É
preciso que passem por este processo. Toda esta epístola fala sobre a
santificação. Esta é “a palavra”. Não é uma pequena fórmula “muito

simples” que você tão somente aplica, e então “a” tem. Absolutamente não!
Você tem que aprofundar-se em tudo que o defronta nesta epístola.
Noutras palavras, a Palavra pela qual somos santificados é o conjunto total
do ensino bíblico. Consiste, em particular, de todas as grande doutrinas
ensinadas através das páginas da Bíblia inteira; e é somente quando
compreendemos isto que vemos como aquela outra idéia que estreita e reduz
o ensino da santificação e da santidade a apenas uma pequena fórmula é
ignorar, em última análise, a maior parte da Bíblia.

Em que consiste esta Palavra pela qual o Espírito Santo nos santifica?
Primeiro e acima de tudo é a Palavra acerca de Deus. Quando se ensina
a santificação não se começa pelo homem. Todavia é como se faz
comumente, não é? Dizem: há alguma falha em sua vida? Você é infeliz?
Tropeçou nalguma coisa? Está em situação desconfortável? Sua vida é um
fracasso? Eles começam por aí. “Escute”, dizem eles, “você pode ficar livre
dessas aflições. Tudo que precisa fazer é entregar esses problemas; basta
entregá-los ao Senhor, e Ele o livrará deles. Ele os tirará de você e, depois,
tudo que lhe restará fazer é permanecer no Senhor, e Ele o manterá bem.
Não é isso típico de muito ensino sobre santificação e santidade? Começa
com o homem e seu problema - “Como posso ser mais feliz?”, “Segredo
Cristão de uma Vida Feliz”, etc. Mas não é assim que a Bíblia ensina a
santificação.

Como, então, a Bíblia ensina a santificação? Começa-se olhando para a face


de Deus! Não se começa com o homem; começa-se com Deus. Não
há maneira mais profunda de ensinar a santificação e a santidade do que
simplesmente ensinar as doutrinas concernentes ao ser, à natureza e ao
caráter de Deus! Você não começa consigo próprio e com os seus problemas
e necessidades; começa com Deus. Não começa com os seus desejos, começa
com o Todo-Poderoso - “santo, santo, santo, Senhor Deus Todo-Poderoso”!
Haverá alguma coisa que favoreça a santificação e a santidade tanto como
isso? A Bíblia está repleta deste ensino. Recordemos aquela grandiosa
exposição acerca da vocação do profeta Isaías, registrada no capítulo 6: “No
ano em que morreu o rei Uzias, eu vi o Senhor assentado sobre um alto e
sublime trono; e o seu séquito enchia o templo. Os serafins estavam acima
dele; cada um tinha seis asas: com duas cobria o seu rosto, e com duas
cobria os seus pés e com duas voava, Eles clamavam uns para os outros,
dizendo: santo, santo, santo é o Senhor dos Exércitos: toda a terra está cheia
da sua glória. E os umbrais das portas se moveram com a voz do que
clamava, e a casa se encheu de fumo. Então disse eu: ai de mim, que vou
perecendo! Porque eu sou um homem de lábios impuros, e habito no meio
de um povo de impuros lábios: e os meus olhos viram o rei, o Senhor dos
Exércitos”. Esse é o modo pelo qual a Bíblia ensina a santidade e
a santificação!

Por que somos como somos? Por que há tantas falhas em nossas vidas, e
tanto pecado? A resposta acha-se aqui; simplesmente não conhecemos a
Deus! “Pai justo”, disse o Senhor Jesus, “o mundo não te conheceu; mas eu
te conheci.” “Oh”, disse Ele, “se eles tão somente te conhecessem, não
viveriam

como vivem, mas não te conhecem!” Eles falam de Deus, e argumentam,


mas não O conhecem. “Pai justo, o mundo não te conheceu.” Mesmo
conosco, que somos cristãos, o problema é que não conhecemos a Deus.
Esqueçam das suas fórmulas, esqueçam-se de si próprios e daquilo que os
está mantendo na fossa. Não é esse o seu problema. A sua natureza e
corrupta, e se vocês se livrarem desse problema particular, terão alguma
outra coisa contra o que lutar. O verdadeiro problema é que não
conhecemos a Deus. Os homens que buscavam a Deus e buscavam Sua face
é que foram mais santos. O de que necessitamos primordialmente não é de
alguma experiência, é deste conhecimento de Deus, dos atributos de Deus -
Sua glória, Sua inefabilidade, Sua santidade, Sua onipotência, Sua
eternidade, Sua onisciência, Sua onipresença. Se eu e você simplesmente
tivéssemos a percepção de que onde quer que estivermos, e o que quer que
fizermos, Deus nos estará vendo, isso tranformaria as nossas
vidas! Portanto, a Bíblia, esta Palavra a respeito da qual o nosso Senhor está
falando, é a Palavra acerca de Deus, o “Pai justo”.

Isso é o ensino do Novo Testamento concernente à santidade. Começa-se


com esta primeira doutrina, que é central, abrangente e determinante. Vê-
se não somente em Isaías; Ezequiel mostra a mesma coisa. Ele teve esta
visão de Deus, sentiu-se com a mesma impureza e foi ao chão. Jó, como
sabemos, estivera falando muito sobre Deus, e criticando; porém, enfim ele
vê, e diz: “agora te vêem os meus olhos”. Agora ele diz: “A minha mão
ponho na minha boca”, e, “me abomino e me arrependo no pó e na cinza”
(40:4 e 42:5-6). Acaso vocês têm ouvido muitos ensinamentos sobre o ser e o
caráter de Deus em suas reuniões de edificação espiritual? Quantas vezes
vocês ouviram sermões sobre a natureza, o ser e os atributos de Deus? Tudo
isso é tomado como coisa aceita tacitamente. Começamos conosco mesmos e
com nossos problemas, e queremos saber como podemos livrar-nos dos
problemas ou receber alguma bênção especial. A abordagem é errônea. A
Palavra - “a tua palavra” - é a coisa essencial. E ela é intrinsicamente uma
Palavra acerca de Deus, uma revelação do ser e do caráter de Deus. “Com a
lavagem da água, pela palavra.”

A mesma Palavra também nos revela o nosso estado pecaminoso. Ela nos diz
como era o homem originariamente. Não há melhor maneira de pregar
a santificação do que pregar sobre Adão, como este era antes da Queda.
Assim é que o homem estava destinado a ser. Quantas vezes vocês ouviram
sermões sobre Adão em reuniões sobre santificação e santidade? Ou
sermões sobre a Queda - a queda do homem e suas terríveis conseqüências?
Santificação? Leiam a Epístola aos Romanos, capítulo 5, versículos 12 a 21
sobre o fato de estarmos em Adão e envolvidos em seu pecado. Aí está a raiz
do problema; e devemos entendê-lo bem. A Palavra nos ensina acerca disso
tudo. Esse é o ensino do Novo Testamento acerca da santificação - esta
elevada doutrina presenta nestas epístolas, em vez de histórias sobre
algumas personalidades do Velho Testamento, que podemos usar como
ilustrações em prol da nossa teoria! A santificação se baseia na exposição da
verdade concernente à aversão de Deus pelo pecado e ao castigo com que
Deus ameaça todo pecado. Que vem em

seguida? Os Dez Mandamentos! Eles comprovam o fato do pecado,


pontuam-no, focalizam-no, fazem-nos compreender o pecado - de sorte que
eles fazem parte deste ensino. Não nos detemos nas “dez palavras”, mas elas
entram em ação, para convencer-nos da nossa necessidade. A Lei foi “um
aio, para nos conduzir a Cristo” (um preceptor, um mestre, para nos levar a
Cristo) uma revelação da santidade de Deus. Por isso os chamados “pais”
(da Igreja) costumavam pintar os Dez Mandamentos nas paredes das suas
igrejas. A Lei não é meio de salvação, mas é um meio de mostrar-nos a nossa
necessidade dela, e a continuada necessidade de sermos purificados. Depois,
o misericordioso propósito redentor de Deus, a aliança da redenção anterior
à fundação do mundo, o Pai, o Filho e o Espírito Santo planejando juntos a
libertação do homem. Paulo já nos falara a respeito disso no início desta
epístola: “Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo" - eis como se
começa a pregar a santificação - “o qual nos abençoou com todas as bênçãos
espirituais nos lugares celestiais em Cristo; como também nos elegeu nele
antes da fundação do mundo, para que fôssemos santos e irrepreensíveis
diante dele em amor.” É isso! E depois, tudo sobre a pessoa e a obra do
próprio Senhor Jesus Cristo, tudo que Ele fez e tudo que suportou. Na
verdade, não há melhor maneira de pregar sobre a santificação do que
pregar sobre a cruz, pois, se eu olhar para a cruz e a “contemplar”, chegarei
a esta conclusão:

Amor tão admirável, tão divino, exige minha alma, minha vida, todo o meu
ser.

“Mas, ah”, dizem “agora estamos preocupados com a nossa santidade;


concluímos a parte inicial da salvação, concluímos o que se refere ao perdão
dos pecados. Não se prega a cruz numa conferência sobre santidade. Claro
que não! Agora estamos interessados em fórmulas pró santificação. Não se
prega a cruz aqui!” No entanto, haverá alguma coisa tão bem planejada
para fomentar a santidade e a santificação como a cruz?

Quando a cruz assombrosa contemplei, na qual morreu o Príncipe da


glória, meus lucros eu tomei por perda e escória, e desprezo sobre meu
orgulho lancei.

Somos o que somos porque nunca vimos o pleno significado da cruz. Essa é
a causa do nosso fracasso e da nossa fraqueza. Nunca chegamos a
compreender o amor de Cristo por nós. Oh, se tão somente enxergássemos
de fato o sentido da cruz! Se tão somente tivéssemos a experiência do conde
Zinzendorf, que olhando aquele quadro da cruz, clamou -

“Tu fizeste isto por mim, que posso fazer por Ti?”

Ao contemplá-la, disse ele também: “Tenho uma só paixão, é Cristo, e


somente Cristo.”

Esta é a Palavra - todas as grandes doutrinas, incluindo-se também o


Espírito Santo, Sua pessoa, Sua obra, Seu poder. Depois o que? Batizar-nos
em Cristo, nossa união com Cristo! Depois esta doutrina da Igreja. Esta é a
Palavra que promove a santificação. E devemos ir com todas estas doutrinas
até à doutrina da Segunda Vinda. Aqui está, no versículo 27: “para a
apresentar a si mesmo igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa
semelhante, mas santa e irrepreensível.” Quando foi a última vez que vocês
ouviram um sermão sobre a Segunda Vinda numa reunião sobre a
santidade? “Mas”, dizem ,“isso é um erro. Para isso vamos a uma reunião
que trate do Segundo Advento, não a uma reunião sobre santidade e
santificação!” E assim se vê como nos desviamos das Escrituras.
Introduzimos vários departamentos especiais na vida da
Igreja. Santificação? “Você não precisa da cruz aqui, não precisa do
Segundo Advento aqui; só precisa desta coisa “muito simples”!” Somente
quando compreendo o propósito do Senhor para mim no glorioso dia por
vir, quando Ele apresentará a Si mesmo a Igreja como uma Igreja gloriosa,
sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante, é que a minha santificação é
fortalecida. É esse ensino que me concita à santificação.

Eis como o apóstolo João diz a mesma coisa: “Amados, agora somos filhos
de Deus, e ainda não é manifestado o que havemos de ser. Mas sabemos que,
quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele; porque assim como é o
veremos”. E depois: “E qualquer que nele tem esta esperança purifica-se
a si mesmo, como também ele é puro” (I João 3:2-3). A doutrina da
Segunda Vinda leva à santificação, à purificação. A Palavra sobre a qual o
apóstolo está falando aqui, é a completa Palavra das Escrituras - toda a
doutrina, toda a redenção, do começo ao fim, a Bíblia inteira. “Com a
lavagem da água, pela palavra.”

Tendo apresentado esta gloriosa doutrina, termino com uma palavra de


exortação. Uma vez que tudo isso é verdade, que espécie de pessoas
deveríamos ser? Uma vez que tudo isso é verdade, como Paulo o explica,
vocês não podem ser como eram; devem separar-se do mal. Prossigam com
a sua santificação. “Purifiquemo-nos de toda a imundícia da carne e do
espírito, aperfeiçoando a santificação no temor de Deus”; “Alimpai as mãos,
pecadores; e, vós de duplo ânimo, purificai os corações” (2 Coríntios 7:1;
Tiago 4:8). Estas são as exortações das Escrituras. Todavia, muitos se
levantam e fogem das grandes doutrinas.

Assim, vemos aqui o processo de santificação executado pelo Senhor Jesus


Cristo mediante a instrumentalidade do Espírito Santo que Ele enviou,
é realizado pela Palavra, nela e por intermédio dela. “Santifica-os na
verdade: a tua palavra é a verdade.” E não importa em que circunstâncias
você a vê, ela o humilhará, e o guiará em sua santificação. Acima de tudo,
no entanto, comece com Deus: “Bem-aventurados os limpos de coração;
porque eles verão a Deus” (Mateus 5:8). Temos tempo para desperdiçar ou
poupar? O de que necessitamos

não é de livrar-nos daquele pequeno problema em nossas vidas; é estarmos


prontos para a glória. É quando fitamos a face de Deus que percebemos
a necessidade de santificação, e nos é exposto o meio pelo qual pode ser
realizada a nossa santificação, e é função do Espírito fazê-lo. Ele nos conduz
à Palavra, Ele nos abre a Palavra, Ele a implanta em nossa mente, em nosso
coração, em nossa vontade, Ele nos revela o Senhor, e assim a nossa
santificação, a nossa purificação prossegue dia após dia, semana após
semana, ano após ano, E como ainda veremos, Ele prosseguirá com isto até
completar-se a obra, e seremos santos e irrepreensíveis em Sua santa
presença. Esta é a obra que o Senhor continua realizando em Seu povo, a
Igreja.

A CEIA DAS BODAS DO CORDEIRO Efésios 5:25-33

Ainda vamos continuar examinando esta extraordinária declaração na qual


o principal objetivo do apóstolo é ensinar aos maridos seus deveres
para com suas esposas; e ele o faz em termos do relacionamento do Senhor
Jesus Cristo com a Igreja. O apóstolo toma ora um assunto ora outro, mas
nós decidimos que o melhor procedimento, para melhor compreensão do
seu ensino, é tomá-los separadamente. Temos considerado primeiro o que
ele diz sobre a relação de Cristo com a Igreja para que, tendo visto essa
doutrina em sua inteireza e plenitude, pudéssemos estar em condições de
aplicá-la aos maridos em seu relacionamento com suas esposas.

Já consideramos como o nosso Senhor morreu pela Igreja, entregou-Se por


ela, e como Ele prossegue a separá-la para Si (santifica-a, põe-na à
parte, dedica Sua peculiar afeição a ela) para poder purificá-la e continuar
este processo de purificação espiritual.

Há ainda duas expressões por considerar em conexão com este continuado


tratamento que o Senhor dá à Igreja. São as duas palavras que se acham
no versículo 29, onde lemos que “nunca ninguém aborreceu a sua própria
carne; antes a alimenta e sustenta, como também o Senhor à igreja”. Paulo
não diz que “no passado o Senhor alimentou e sustentou a Igreja”; o
propósito é mostrar que Ele continua realizando essa obra. Isto se coaduna
inteiramente com o que nos é dito acerca da purificação, que evidentemente
é um contínuo processo de santificação. Este alimentar e sustentar também
é uma coisa que continua, e não é apenas uma ação realizada uma vez para
sempre no passado. Por isso, os que reduzem a uma ação unicamente
passada aquilo de que tratamos até o versículo 26, parecem-me estar
omitindo todo o fio do ensino desta seção. A morte do Senhor Jesus
aconteceu uma vez por todas, mas todo o restante tem continuidade, com
este objetivo culminante em vista.

Examinemos, pois, estas três palavras; são muito interessantes. “Antes a


alimenta.” Esta expressão explica-se a si mesma. Seu sentido essencial é o
de prover alimento, comida, nutrição. Cristo Se preocupa com a saúde, o
crescimento, o desenvolvimento e o bem-estar da Sua Igreja, pelo que Ele a
alimenta. De certo modo, o apóstolo tratou deste tema no capítulo 4, onde o
expressa nestes termos: “E ele mesmo deu uns para apóstolos, e outros para
profetas, e outros para evangelistas, e outros para pastores e doutores”.
Para que? “Para aperfeiçoamento dos santos”; para este processo que
continua. É algo que prossegue, “para a obra do ministério, para
edificação” - para a construção - “do

corpo de Cristo; até que todos cheguemos...” - aí está de novo o objetivo


final! Assim, aqui, temos outro modo de dizer a mesma coisa, e é
maravilhoso compreendermos, como membros da Igreja cristã, que o
Senhor alimenta dessa maneira a vida da Igreja.

É uma expressão do Seu amor e do Seu cuidado por nós, suprindo-nos do


alimento espiritual de que necessitamos. A Bíblia é dada por Deus, pelo
Senhor Jesus Cristo, mediante o Espírito, como alimento para a alma. É
uma parte da nutrição que Ele nos dá. E todo o ministério da Igreja, como
no-lo recorda o capítulo 4, é destinado ao mesmo fim. Noutras palavras, não
há escusa para a Igreja quando ela é ignorante ou subdesenvolvida ou fraca
ou marasmática. Igualmente não há escusa para nenhum cristão individual.
O próprio Senhor Jesus nos alimenta.

Pedro, em sua segunda epístola, diz-nos que o Senhor “nos deu tudo o que
diz respeito à vida e piedade” (1:3). É isso que toma grave a situação do
cristão queixoso. Nunca poderemos pleitear a escusa de que não houve
alimento suficiente porque estávamos num deserto. O alimento está
disponível, o “maná celestial” (cf. João 6:31-32,49-51) é fornecido; tudo que
se pode necessitar está aí, na Bíblia. Aí está o alimento concentrado, não
adulterado, como o mesmo Pedro o expõe em sua primeira epístola, no
capítulo 2: “o leite racional, não falsificado, para que por ele vades
crescendo”. O Senhor o providenciou. Esta é uma coisa magnífica, para
nossa ponderação - que o Senhor está alimentando a Igreja. O marido, em
seu cuidado pela esposa, trabalha para providenciar alimento e tudo de que
ela necessite. Os pais que cuidam dos seus filhos têm para estes o alimento
certo, e abundante, na hora certa. Que preocupação demonstram eles neste
aspecto! O Senhor está fazendo isso por nós de maneira infinitamente mais
grandiosa.

Como estamos reagindo a isso? Damo-nos conta de que Ele nos está
alimentando? Uma parte do Seu cuidado consiste em prover atos de
culto público. O culto público não é uma instituição humana, uma invenção
do homem. Não é uma coisa dirigida como uma instituição; e as pessoas não
vêm à casa de Deus - pelo menos não devem vir - por uma questão de dever.
Devem vir porque compreendem que não poderão crescer se não vierem.
Vêm para alimentar-se, para encontrar alimento para a alma. O Senhor o
providenciou. Deus sabe que eu não vou ao púlpito só porque resolvo ir. Não
fora pela vocação do Senhor, eu não o faria. Tudo que fiz foi resistir a essa
vocação. Este é o Seu método. Ele chama homens, separa-os, dá-lhes a
mensagem, e o Espírito está presente para dar iluminação. Tudo isso faz
parte do método pelo qual o Senhor alimenta a Igreja.

Tomemos em seguida a palavra “sustenta” (Almeida, Atualizada: “dela


cuida”). Esta palavra é empregada somente duas vezes no Novo Testamento.
É uma palavra que comunica uma idéia bem definida, geralmente a de
vestir. É disso que a noiva, a esposa, necessita. Essas são as duas primeiras
coisas em que você pensa - o alimento e o vestuário. Mas o termo transmite
mais uma idéia, a saber, a de cuidar de, olhar por, proteger. É expressão de
solicitude. Quando

você alimenta e sustenta uma pessoa, você mostra, com uma vigilância
constante, um cuidado e um anelante desejo de que ela floresça, desenvolva-
se e cresça. Essas são as idéias dadas pelo termo “sustenta” (“cuida”),
acrescentado ao termo “alimenta”.

Nosso maior problema é que não temos uma verdadeira concepção do


interesse do Senhor por nós e do Seu zelo por nós. Essa é a nossa
carência fundamental - não conhecemos o Seu amor. Muitas vezes as
pessoas se preocupam, e naturalmente com razão, com o seu amor a Ele;
mas eu e você nunca O amaremos, enquanto não começarmos a conhecer
alguma coisa do Seu amor por nós. Você pode produzir excitação ou alguma
coisa carnal, mas não pode produzir amor. No caso da Igreja, o amor é
sempre uma resposta, uma reação: “Nós o amamos a ele porque ele nos
amou primeiro” (1 João 4:19). Somos incapazes, até que, subitamente, Ele
irradia sobre nós os fulgentes raios do Seu amor; e quando nos damos conta
disso, começamos a amar. E chegamos a dar-nos conta disso mediante este
modo muito prático de entender algo do que Ele fez por nós, e do que Ele
provê para nós, alimentando-nos e sustentando-nos, cuidando de nós.
Quanto mais enxergarmos isso, e nos dermos conta disso, mais
maravilhados ficaremos, e mais O amaremos, em resposta ao Seu amor.

Não devemos deter-nos em Sua obra por nós na cruz. Começamos aí, mas
vemos que, tendo terminado essa obra, Ele prossegue e faz toda esta imensa
e ampla provisão para nós, e cuida providencialmente de nós, nas coisas que
nos sucedem, dirigindo-nos e guiando-nos. De mil e uma maneiras Ele
alimenta e sustenta a vida da Igreja, pela qual Ele morreu. Não significa que
olvidamos a cruz, ou que voltamos as costas para ela, porém que, em
acréscimo, percebemos mais esta obra que Ele realiza por nós.
Por que o Senhor faz tudo isso? Por que morreu pela Igreja? Por que este
processo de santificação e purificação? Por que a alimentação e o sustento,
o cuidado? Qual o propósito disso tudo? A resposta acha-se na tremenda
declaração do versículo 27: “Pva a apresentar a si mesmo igreja gloriosa,
sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante, mas santa e irrepreensível”.
Tudo visa a esse fim. Tudo que estivemos examinando é o objetivo imediato,
mas tendo em vista esse objetivo final. Esse é o propósito, essa é a grande
finalidade para a qual o Senhor fez e continua fazendo as coisa que
estivemos considerando.

No entanto, para apanharmos a força total desta expressão, devemos mudar


um pouco a tradução. Uma tradução mais fiel é, certamente, esta: “Para ele
próprio a apresentar a si mesmo”. Temos que introduzir adicionalmente
ali a expressão, “ele próprio”. E a razão do acréscimo é que nos lembra logo
que todas as analogias, mesmo as analogias das Escrituras, são
inadequadas. São apenas tentativas de oferecer-nos vislumbres do
entendimento daquilo que a verdade é realmente. Mas nenhuma ilustração é
suficiente. Aqui, o apóstolo está ilustrando esta relação entre Cristo e a
Igreja em termos de marido e mulher; e todavia, imediatamente
encontramos algo que mostra que a analogia é inadequada, não indo
suficientemente longe. Todos sabemos que o procedi-

raento normal é que alguém entregue a noiva ao noivo - o pai, ou um


parente, ou um amigo. Ele conduz a noiva até ao noivo, na cerimônia
matrimonial. Tendo sido ajudada por outros em todos o seus preparativos -
em sua criação e educação, e mesmo em seu vestuário etc. - a noiva é
apresentada ao noivo por outra pessoa. Contudo, nesta passagem não é
assim. Aqui, o Senhor apresentará Sua noiva a Si mesmo. “Para apresentá-
la a si mesmo.”

Este é simplesmente outro modo de salientar aquilo que constitui o grande


tema da Bíblia toda - que em sua inteireza a nossa salvação procede do
Senhor. E Sua realização. Ele mesmo apresenta Sua noiva a Si mesmo
porque ninguém mais pode fazê-lo, ninguém mais é competente para fazê-
lo. Somente Ele pode fazê-lo. Ele fez tudo por nós, do princípio ao fim, e
concluirá a obra apresentando-nos a Si mesmo com toda esta glória aqui
descrita.
O quadro que temos diante de nós, portanto, é o de nosso Senhor e Salvador
divisando prospectivamente o momento, o dia em que irá apresentar a
Igreja a Si mesmo. E como será a Igreja? Será “uma igreja gloriosa” -
que significa uma Igreja caracterizada por glória. Aqui está uma expressão
com a qual estamos familiarizados, no sentido individual, nas Escrituras. O
destino final de cada um de nós, o último evento da nossa salvação
individual é a glorificação - justificação, santificação, glorificação. Às vezes
a glorificação é descrita como “redenção”, como, por exemplo, na grande
declaração de 1 Coríntios, capítulo Ia, versículo 30: “o qual para nós foi
feito por Deus sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção”. Isso
realmente significa “glorificação”. Ou, como Paulo o expressa em Romanos
8:30: “aos que justificou, a estes também glorificou”. Esse é o fim. Ou como
o temos na Epístola aos Filipenses, no fim do capítulo três: “Mas a nossa
cidade está nos céus, donde também esperamos o Salvador, o Senhor Jesus
Cristo, que transformará o nosso corpo abatido (ou o corpo da nossa
humilhação), para ser conforme o seu corpo glorioso (o corpo da Sua
glorificação) segundo o seu eficaz poder de sujeitar também a si todas as
coisas”. Isso é para nos acontecer individualmente; mas a Igreja também,
em seu conjunto total, haverá de ser glorificada.

É isso que significa a frase “igreja gloriosa”. Ela estará num estado de
glória. O apóstolo nos ajuda a entendê-lo, primeiro descrevendo sua
aparência externa. Descreve isto em termos de duas negativas. A Igreja, em
sua glória, não terá mácula nem ruga. Não haverá nela nem mancha nem
desonra. É muito difícil percebermos bem isso. Enquanto a Igreja caminha
neste mundo de pecado e vergonha, ela se suja de lama e lodo. Portanto, há
manchas e nódoas nela. E é muito difícil livrar-se delas. Todos os
medicamentos que conhecemos, todos os produtos de limpeza são incapazes
de remover estas manchas e nódoas. Algreja não é limpa aqui, não é pura;
embora esteja sendo purificada, ainda há muitas manchas nela.

Entretanto, quando ela chegar àquele estado de glória e de glorificação,


ficará sem uma única mancha; não haverá nódoa alguma nela. Quando Ele
a apresentar a Si mesmo, com todos os principados e poderes, e com todas
as

compactas fileiras de potestades celestes e contemplar esta coisa


maravilhosa, a sondá-la e a examiná-la, não haverá nela nenhuma mácula,
nenhuma nódoa. O exame mais cuidadoso não será capaz de detectar a
menor partícula de indignidade ou de pecado. O apóstolo já introduzira esta
idéia no capítulo 3, versículo 10, onde ele diz: “Para que agora, pela igreja,
a multiforme sabedoria de Deus seja conhecida dos principados e potestades
nos céus”. Estes principados e potestades estarão olhando para ela; e o
Senhor, em Seus gozo, não somente a apresentará a Si mesmo, mas o fará na
presença deles. A noiva e o Noivo estarão diante das hostes da eternidade, e
Ele solicitará a sua inspeção. Pedirá que a observem, e elas não poderão
achar mancha alguma, nem mácula, nem nódoa nenhuma nela - “sem
mácula”.

Sim, e graças a Deus, “nem ruga” - “sem mácula, nem ruga”. As rugas,
como sabemos, são sinais de velhice, ou de doença, ou de algum tipo
de transtorno constitucional. As rugas são um sinal de imperfeição.
Quando envelhecemos, desenvolvemos rugas. A gordura desaparece da pele.
A enfermidade também pode privar-nos dessa camada de gordura, e assim
fazer-nos parecer prematuramente velhos. Não importa qual seja a causa -
qualquer espécie de aflição ou de ansiedade leva às rugas. É sinal de fadiga
e de decadência, de idade avançada e de bancarrota. Neste mundo a Igreja
tem muitas rugas; parece idosa, velha. Contudo, graças a Deus, diz o
apóstolo Paulo, quando chegar o grande dia em que Cristo vai apresentar a
Igreja a Si mesmo em toda a sua glória, não somente não haverá nela
mácula nenhuma; também não haverá nenhuma ruga.Tudo será apagado e
alisado, sua pele será perfeita, cheia e bem formada. É impossível descrever
esta perfeição. A idéia toda é, num sentido, sugerida no Salmo 110, onde ao
salmista, numa prospectiva profética, é propiciado um vislumbre deste
estado de perfeição: “O teu povo”, diz ele no versículo três, “se apresentará
voluntáriamente no diz do teu poder, com santos ornamentos: como vindo
do próprio seio da alva, será o orvalho da tua mocidade”. A Igreja terá
renovada a sua mocidade. Ousaria eu expressá-lo assim? O Especialista em
Beleza terá dado Seu toque final à Igreja, a massagem terá sido tão perfeita
que não restará nem uma ruga sequer. Ela parecerá jovem e na florescência
da juventude, com a cor das faces, com a pele perfeita, sem mácula nem
ruga. E permanecerá assim, para todo o sempre. O corpo da
sua humilhação terá desaparecido, terá sido transformado e transfigurado
no corpo da sua glorificação.

É isto que nos é dito em geral aqui, acerca da Igreja. Permitam-me, porém,
lembrá-los de que em Filipenses 3, versículos 20 e 21, Paulo nos diz que
essa mesma coisa nos irá acontecer individualmente. É coisa maravilhosa de
se ver. Estes nossos corpos, individualmente, o seu e o meu, vão ser
glorificados. Nenhuma enfermidade restará, nenhum vestígio de doença ou
de falha ou de sinais de velhice; haverá uma grandiosa renovação da nossa
mocidade. E viveremos naquela eternidade de perpétua juventude, sem
decadência nem doença, nem qualquer diminuição da glória a nós
pertencente. Assim será a aparência externa da Igreja. Não se esqueçam de
que a idéia que o apóstolo

deseja transmitir é a do prazer do Noivo na Sua noiva. Ele a está


preparando para “aquele dia”. Será realizada a Sua grandiosa celebração; é
Sua intenção mostrá-la ao universo inteiro.

Essa verdade, no entanto, não se refere somente ao exterior, e sim também à


sua interioridade. De um modo deveras extraordinário, o Salmo 45 é
uma perfeita descrição profética disso tudo: “A filha do rei é toda ilustre
(ou “gloriosa”) no seu palácio”. O salmista não se contenta em dizer que “as
suas vestes são de ouro tecido”, e que “levá-la-ão ao rei com vestidos
bordados”; ele ressalta igualmente que ela será “toda ilustre (“toda
gloriosa”) no seu palácio”.

Isso é o que o apóstolo apresenta aqui - ela será “santa e irrepreensível”.


Será positivamente santa. A declaração do apóstolo é essencialmente
positiva. A santidade, a retidão ou justiça da Igreja não é mera “ausência”
do pecado e de pecados; é a participação na retidão de Deus.

Aí é onde os homens meramente moralistas ficam sem entender nada. Eles


não têm concepção de coisa nenhuma, senão de uma moralidade negativa;
para eles a moralidade significa não fazer certas coisas. Não é o que a Bíblia
quer dizer com retidão; o termo bíblico significa “ser como Deus”! Deus é
santo, e a Igreja se toma santa, com esta esplêndida retidão, com esta
perfeição. É muito mais que mera ausência do mal. É essencialmente
positiva retidão íntegra, verdade, beleza e tudo aquilo que é glorioso em sua
essência como o é em Deus. A Igreja compartilha disto. Ela está agora
revestida da justiça de Cristo. Graças a Deus, Ele vê isso, e não a nós. Mas,
naquele dia, haverá mais que isso. Ela será na verdade semelhante a Ele,
positivamente, inteiramente justa e santa.

E então, para garantia de que o entendamos, o apóstolo diz,


“irrepreensível”, isto é, “sem culpa”. Já dissera isto no versículo 4 do
capítulo primeiro: “Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o
qual nos abençoou com todas as bênçãos espirituais no lugares celestiais em
Cristo; como também nos elegeu nele antes da fundação do mundo”. Para
que? “Para que fôssemos santos e irrepreensíveis diante dele em caridade”
(“em amor”). Foi o prelúdio. Os temas dominantes sempre estão no
prelúdio. Agora Paulo toma o tema que apenas mencionara lá; aqui, no
capítulo cinco, ele o desenvolve mais completamente. A Igreja, então, vai
estar neste glorioso estado.

Permitam-me resumir tudo isso da seguinte maneira: os termos empregados


pelo apóstolo Paulo são destinados a comunicar perfeição de beleza, saúde e
simetria físicas, a perfeição absoluta de caráter espiritual. Pensem na
noiva mais bela que já viram. Multipliquem isso pela infinidade, e ainda
nem começarão a compreender isto. Mas é como será a Igreja. Nunca
existiu nem existirá beleza perfeita neste mundo. Um rosto bonito, quem
sabe, porém com mãos feias. Há sempre alguma coisa, algum tipo de defeito,
não há? Todavia, ali não haverá nenhum. E essa é, suponho, a suprema
qualidade desta beleza que esta sendo descrita - sua simetria, sua perfeição
absoluta em todos os aspectos.

Esta é a realidade à qual devemos aspirar mais que tudo. Somos todos
muito assimétricos. Alguns estão cheios de conhecimento intelectual, de
conhecimento teórico da doutrina, e nunca se movem além disso. Outros
não têm

doutrina, mas falam de suas atividades e de suas vidas - são igualmente


defeituosos. O homem que só tem entendimento teórico destas coisas, e que
não demonstra o poder delas em sua vida, é um indigno representante do
seu Senhor. A mesma coisa com o outro! O homem prático, assim chamado,
não tem tempo para doutrina; o outro, não tem nada senão doutrina: ambos
estão igualmente enganados. Graças a Deus pelo dia que há de vir, quando
seremos completos, não nos faltando nada, e bem proporcionados e
equilibrados. Ah, a gloria da beleza aqui descrita e para a qual o nosso
bendito Senhor e Salvador nos está preparando dia após dia, semana após
semana, mês após mês, e ano após ano! Falo a cristãos. Vocês já se tinham
dado conta disto, sobre si próprios? Tinham compreendido que privilégio é
serem membros da Igreja cristã? É isto que significa ser cristão! Você que
está pronto a correr para o salão de beleza, porventura está correndo ao
salão de beleza de Cristo? E o que a Igreja faz. Você tem um real
entendimento da Igreja como a noiva de Cristo por quem Ele morreu e por
quem continua fazendo todas estas coisas? Sabe que Ele cuida de você, que
o sustenta? Sabe que o seu nome está escrito em Seu coração, bem como em
Suas próprias mãos? Ele nos amou com um amor eterno, Ele morreu por
nós, Ele nos separou para Si, Ele fez toda esta provisão para nós,
em preparação para aquele grande dia em que nos apresentará a Si mesmo
Igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante, mas havendo
nós de ser santos e irrepreensíveis.

Este é o processo em andamento. E é bom lembrá-los de novo de que o


processo prosseguirá sem interrupção, até ser concluído. Nada poderá detê-
lo, nada terá permissão para detê-lo, porque ela é a Sua noiva. E se posso
aventurar-me a empregar este antropomorfismo, Seu grande prazer de Si e
dela é tal, que Ele não pode permitir que nada detenha ou impeça a obra!
Ela está em andamento, digo eu; e continuará em andamento. Aqui está a
garantia bíblica. O apóstolo já no-la dera no capítulo 3, versículos 20 e 21:
“Ora”, diz ele, “àquele que é poderoso para fazer tudo muito mais
abundantemente além daquilo que pedimos ou pensamos, segundo o poder
que em nós opera, a esse glória na igreja, por Jesus Cristo, em todas as
gerações, para todo o sempre”. Esse é o poder que opera em nós, e
continuará operando. Ele não parou com a Sua morte; Ele não pára na
justificação; Ele continua a operar com o Seu poder em nós. Ele faz tudo o
que o apóstolo vem descrevendo, para que seja “a esse glória na igreja, por
Jesus Cristo, em todas as gerações para todo o sempre”.

Esse poder é irresistível. Farei, pois, mais uma vez esta exortação: se você é
de fato um filho de Deus e um membro da Igreja, um membro do corpo
de Cristo, permitam-me admoestá-lo, à luz deste elevado e glorioso ensino
de que este corpo está sendo aperfeiçoado e afinal será perfeito. Portanto,
não resista ao Senhor, não resista aos ungüêntos, aos emolientes e ao gentil
ensinamento que de várias outras maneiras, Ele oferece pela instrução na
Palavra. Porque, acredite-me, se você se manchar profundamente com o
pecado, Ele tem alguns ácidos muito fortes que poderá usar, e que de fato
usará, para arrancar você do pecado! “Porque o Senhor corrige o que ama,
e açoita a qualquer que recebe por

filho” (Hebreus 12:6). Estamos acostumados, quando celebramos a ceia do


Senhor, a recordar o que o apóstolo diz sobre isso em 1 Coríntios 11:23-
28. “Examine-se pois o homem a si mesmo”. O argumento é que, se nos
examinarmos a nós mesmos e nos julgarmos a nós mesmos, não seremos
julgados; mas se deixarmos de fazê-lo, Ele no-lo fará; Ele o fará por nós.
Não há dúvida acerca disto; é absolutamente categórico: “Examine-se pois o
homem a si mesmo, e assim coma deste pão e beba deste cálice. Porque o
que come e bebe indig-namente - quer dizer, de maneira descuidada, sem
pensar no que está fazendo. Pois sim, ele pode pensar um pouco no
cristianismo no domingo, mas esquecê-lo nos seis dias da semana, e então
vir a uma celebração da Ceia porque é membro da igreja. Se você age dessa
maneira, diz o apóstolo, cuidado: “Examine-se pois o homem a si mesmo, e
assim coma deste pão e beba deste cálice. Porque o que come e bebe
indignamente, come e bebe para sua própria condenação” - e condenação
significa julgamento - “não discernindo o corpo do Senhor”. Esse homem
não compreende o que está fazendo. “Por causa disto” -porque não se
examinam a si mesmos, porque não percebem que a Igreja é a noiva de
Cristo e que Ele vai aperfeiçoá-la e glorificá-la - “por causa disto, há entre
vós muitos fracos e doentes, e muitos que dormem.” “Muitos fracos”,
quer dizer, pessoas que nunca se sentem bem sem saber por que razão. “E
doentes”, isto é, estão positivamente mal. “Por causa disto” - porque não se
examinam a si mesmos, o Senhor tem esse outro modo de levar a efeito esse
aperfeiçoamento. Leiam as biografias dos santos, e verão que muitos deles
deram graças a Deus por alguma doença que lhes sobreveio. Para mim, um
dos melhores exemplos disto é o caso do grande doutor Thomas Chalmers,
que provavelmente nunca teria sido um pregador evangélico se não tivesse
sofrido uma moléstia que o manteve preso ao leito por quase doze meses.
Foi essa a maneira pela qual Deus o levou a enxergar plenamente a verdade.
“Por causa disto, há entre vós muitos fracos e doentes” - sim - “e muitos que
dormem” - o qual significa que estão mortos. É um grande mistério, e não
tenho a pretensão de compreendê-lo, mas o ensino do apóstolo é simples e
claro. O que ele diz é, “Se nos julgássemos a nós mesmos” - se nos
examinássemos, e nos tratássemos e nos puníssemos a nós mesmos - “não
seriamos julgados. Mas quando somos julgados” - que significa isso? -
“somos repreendidos pelo Senhor, para não sermos condenados com
o mundo”.

Isso tudo, interpretado, significa justamente o que estou tentando dizer -


isto é, uma vez que a Igreja é a noiva de Cristo, e uma vez que o Seu anelo
por ela O leva a olhar para o futuro, para aquele grande dia em que ela será
uma “igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante”, mas
será “santa e irrepreensível diante dele em amor” (cf. Efésios 1:4), Ele leva
avante a Sua obra até aquele fim. E se não correspondermos a Ele, e não nos
rendermos ao Seu carinho e às manifestações do Seu temo amor e dos Seus
galanteios, assevero em Seu nome, que Ele o ama tanto que purificará você e
o levará lá. Talvez lhe aplique o ácido da “fraqueza”, ou o da “doença”, mas
será para o seu bem. Não me entenda mal. Não significa que toda vez que
você estiver doente

será necessariamente por castigo. As Escrituras não dizem isso; mas dizem
que pode ser. Isso tem acontecido muitas vezes. Pode-se ler muitos exemplos
disso nas Escrituras. Paulo compreendeu que o espinho na came lhe fora
dado para mantê-lo humilde e para que ele não se exaltasse (2 Coríntios
12:7-10). Há pessoas tolas e tagarelas que dizem que jamais é da vontade do
Senhor que alguém fique doente. As Escrituras ensinam que “o Senhor
corrige o que ama”, e esta é uma das maneiras de que se utiliza - “há entre
vós muitos fracos e doentes, e muitos que dormem”. Se você é realmente um
filho de Deus, tenha cuidado, esteja alerta. Desde que você pertence ao
corpo do qual Ele é a Cabeça, Ele o purificará, Ele o aperfeiçoará, Ele fará
que você venha a ser aquilo que Ele determinou que fosse.

O que acabo de dizer nos deixa com uma questão final. Quando irá
acontecer tudo isso? Parece não haver nenhuma dúvida quanto a isso. Tem
que ver com a “Segunda Vinda” do nosso Senhor. Será quando Ele vier e
levar a Igreja para estar com Ele. Esse é o ensino das Escrituras. “Vou
preparar-vos lugar. E, se eu for, e vos preparar lugar, virei outra vez e vos
levarei para mim mesmo, para que onde eu estiver estejais vós também
(João 14:2-3).

Na oração sacerdotal registrada em João capítulo 17, temos exatamente o


mesmo ensino. A vontade de Cristo é que a Igreja veja “aquela glória que
tinha contigo (com o Pai) antes que o mundo existesse” (versículo 5). É isso
que eu e você, como cristãos, vamos ver. “Assim como é o veremos” (1 João
3:2). Agora Ele voltou a ter a glória que desde a eternidade partilhara com o
Pai. Ele pôs de lado os sinais dessa glória enquanto esteve cá na terra. É por
isso que eu nunca aprovo nenhuma tentativa de pintar retratos do Senhor
Jesus. E pura imaginação, e quase certamente errônea. Não existem fatos
concernentes à Sua aparência física. As Escrituras silenciam sobre este
ponto. Ele esteve aqui “em semelhança da carne do pecado” (Romanos 8:3),
e há aquela insinuação no capítulo 8 do Evangelho Segundo João, versículo
57, de que Ele parecia muito mais velho do que era. Jesus dizia de Si
mesmo: “antes que Abrão existisse eu sou”. Os judeus diziam: “De que é
que ele está falando? Ele ainda não tem cinqüenta anos”. Ele tinha cerca de
trinta e três anos, mas eles falavam em cinqüenta. Isso tem pouca
importância - o que importa é que quando Ele subiu ao céu a glória
retomou, e agora Ele Se acha em Seu estado glorificado. Paulo O viu de
relance, no caminho de Damasco, em toda a Sua glória. Foi tão maravilhoso,
que ficou cego e caiu ao solo. Mas eu e você iremos vê-lo “assim como é”.
Precisamos ser glorificados antes de podermos suportar essa visão, porém
com absoluta certeza isso nos acontecerá. E O “veremos face a face”
(1 Coríntios 13:12). Na qualidade de noiva de Cristo, estaremos lá, ao lado
dEle, partilhando esta glória.

Quando será? Será quando tudo estiver completo, quando a plenitude dos
gentios e a de Israel forem salvas, e a Igreja estiver inteira e completa.
Nenhuma pessoa estará perdida ou faltando, nem uma só. O diabo não
frustará esta realização; ele já é um inimigo derrotado. O apóstolo sempre
se deleita em dizer isto. Ele o diz gloriosamente na Epístola aos Filipenses,
capítulo primeiro,

versículo 6: “Tendo por certo isto mesmo, que aquele que em vós começou a
boa obra, a aperfeiçoará até” - até quando? - “até ao dia de Jesus Cristo”.
Esse é o dia, “o dia do Senhor”, “o dia de Jesus Cristo”, “o dia de Cristo”,
“o grande e glorioso dia”, “aquele dia” que “se vai aproximando” (cf.
Filipenses 1:6,10; Atos 2:20; Hebreus 10:25 etc.). Ou como Paulo o expressa
no final do capítulo 3 de Filipenses: “Mas a nossa cidade está nos céus,
donde também esperamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo, que” - quando
vier - “transformará o nosso corpo abatido, para ser conforme o seu corpo
glorioso, segundo o seu eficaz poder de sujeitar também a si todos as
coisas”. Nada pode detê-lo! Outra vez o apóstolo, escrevendo aso romanos,
no capítulo 8, nos versículos 22 e 23, diz: “Porque sabemos que toda a
criação geme e está juntamente com dores de parto até agora. E não só ela,
mas nós mesmos, que temos as primícias do Espírito, também gememos em
nós mesmos, esperando a adoção” - Que é isso? - “a saber, a redenção” - a
glorificação - “do nosso corpo. Isso significa ficar a Igreja livre das
manchas, nódoas e rugas, e de todas as coisas semelhantes a essas, e estar
completa e gloriosa em Sua presença.

Vocês já notaram isto no capítulo 19 do Livro de Apocalipse, versículos 6 a


9?: “E ouvi como que a voz de uma grande multidão, e como que a voz
de muitas águas, e como que a voz de grandes trovões, que dizia: aleluia
pois já o Senhor Deus Todo-Poderoso reina. Regozijemo-nos, e alegremo-
nos, e demos-lhe glória; porque vindas são as bodas do Cordeiro, e já a sua
esposa se aprontou. E foi-lhe dado que se vestisse de linho fino, puro e
resplandecente; porque o linho fino são as justiças dos santos. E disse-me:
escreve bem-aventurados aqueles que são chamados à ceia das bodas do
Cordeiro”. Ah, o privilégio de ser convidado para a ceia das bodas do
Cordeiro, quando Ele vai apresentar a esposa a Si mesmo! Ela estará
vestida com vestes de justiça por fora, e por dentro será perfeita. Ah, que
bênção, estar presente naquela maravilhosa festa de casamento! Não nos
surpreende que Judas termine a sua pequena epístola dizendo: “Ora, àquele
que é poderoso para vos guardar de tropeçar, e apresentar-
vos irrepreensíveis, com alegria, perante a sua glória, ao único Deus,
Salvador nosso, por Jesus Cristo, nosso Senhor, seja glória e majestade,
domínio e poder, antes de todos os séculos, agora, e para todo o sempre”.

Como deveríamos sentir-nos? Deveríamos sentir-nos exatamente como se


sente toda mulher comprometida para casar-se. Deveríamos estar
olhando para o futuro, para o grande dia, ansiosos por ele, vivendo para ele.
Isto deveria estar no centro das nossas vidas, com a exclusão de tudo mais.
Deveríamos ser alentados por isto, estimulados e motivados por isto, e
sempre olhando e aguardando isto - o dia das bodas, a cerimônia, os amigos
assistindo, o banquete, a maravilha, a glória e o esplendor disso tudo!

“Para a apresentar a si mesmo igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem
coisa semelhante, mas santa e irrepreensível.” Ele olhando-a nos olhos;
ela olhando-O nos olhos! Foi esse o objetivo do nosso bendito Senhor
quando Ele veio à terra, viveu, morreu e ressuscitou. É Seu objetivo por nós.
Ele morreu por nós para podermos chegar lá! Ele nos separou para
podermos chegar lá! Ele nos

está purificando para podermos chegar lá! Ele nos alimenta para podermos
chegar lá! Ele nos sustenta e cuida de nós para podermos chegar lá! Queira
Deus dar-nos graça para compreendermos o privilégio de ser um membro
da Igreja cristã! Oxalá nos sejam dadas também graça e força e
entendimento para captarmos algo da glória que nos aguarda, de modo que
canalizemos para ela o nosso afeto, e não para as coisas da terra!

UMA SÓ CARNE Efésios 5:25-33


Continuamos considerando a doutrina do relacionamento de Cristo com a
Igreja. Mas ela não termina com o que vimos. Temos que ir além; e
veremos que a doutrina do apóstolo sobe a alturas ainda maiores. Vocês
devem ter imaginado que não poderia haver nada mais elevado que o
versículo 27, onde nos é dado um vislumbre daquilo que nos espera como
noiva de Cristo, como membros da Igreja cristã. Entretanto a doutrina vai
mais longe; há ainda uma coisa mais maravilhosa, e quase inacreditável; é a
extraordinária doutrina da união mística entre Cristo e a Igreja. O
argumento do apóstolo é que não compreendemos verdadeiramente o que
significa o casamento enquanto não compreendermos esta doutrina da
união de Cristo e a Igreja. Veremos que cada uma destas doutrinas ajuda a
iluminar a outra. A união mística entre Cristo e a Igreja nos ajuda a
entender a união entre marido e mulher e, por sua vez, a união entre marido
e mulher lança boa dose de luz sobre a união mística entre Cristo e a Igreja.
Isso é o que há de maravilhoso quanto a toda esta exposição. A analogia e a
ilustração humanas ajudam-nos a entender a verdade divina, porém, em
última análise, é a compreensão da verdade divina que nos capacita a
entender tudo mais; por isso o apóstolo passa de uma para a outra.

Devemos, pois, dirigir-nos a esta elevada doutrina da união entre Cristo e a


Igreja. Sem dúvida, somos todos consolados pelo que Paulo diz no
versículo 32: “Grande é este mistério”. É, de fato, um grande mistério.
Portanto, devemos abordá-la com cuidado, e também com espírito de
oração. É certo que, sem a unção que somente o Espírito Santo nos pode
dar, não seremos capazes de entendê-la, de modo nenhum. Para os não
regenerados, para os incrédulos, para o mundo, isto não passa de puro
absurdo; e é o que o mundo diz que é. Mesmo para o cristão é um grande
mistério. Contudo, graças a Deus, o emprego do termo “mistério” no Novo
Testamento nunca traz a idéia de que é uma coisa que não se pode
compreender de maneira alguma. “Mistério” significa algo inacessível à
mente humana desassistida. Não importa quão vigorosa seja essa mente. O
maior cérebro do mundo, o maior filósofo, se se trata de um homem não
regenerado, não somente é um novato; é menos que um bêbe; na
verdade está morto, no sentido espiritual. Não tem absolutamente nenhum
entendimento de um assunto como este. Esta é uma verdade espiritual, e só
se compreende de maneira espiritual. O melhor comentário sobre isto é,
mais uma vez, a Primeira Epístola aos Coríntios, capítulo 2, versículo 6, até
o fim do capítulo. Portanto, não admira que um assunto assim elevado
tenha sido freqüentemente mal
interpretado, e mal interpretado de maneira drástica.

Tomemos, por exemplo, o ensino da igreja católica romana sobre este ponto.
Essa igreja traduz por “sacramento” a palavra que a Versão
Autorizada verte para “mistério” (e também Almeida). Dizem os católicos
romanos (Vulgata): “Grande é este sacramento”, e a partir desta afirmação
é que eles elaboram a sua doutrina de que o matrimônio é um dos sete
sacramentos. Falam em “sete sacramentos” - não apenas nos dois que os
protestantes reconhecem, a saber, o batismo e a ceia do Senhor - e dos sete o
matrimônio é um. Sua suposta prova disso é este versículo. Sobre tal
fundamento, eles apresentam a sua noção de que o matrimônio é
sacramento e, portanto, naturalmente, só pode ser efetuado por um
sacerdote. Isto é apenas uma ilustração do modo pelo qual eles elevam o
sacerdócio e introduzem um elemento mágico no cristianismo. Tudo visa a
esse fim. Todavia isso mostra como as Escrituras podem ser
pervertidas, usadas falsamente e forçadamente adaptadas aos interesses de
uma teoria dominante da qual você parte. Se você começa exaltando a sua
igreja e o sacerdócio, você terá que cercá-los por todos os lados, e por todos
os meios possíveis - e é o que eles fazem. A “extrema unção” é, de novo, uma
coisa que só pode ser ministrada por um sacerdote, de maneira que é um
sacramento; e assim por diante. Todas estas coisas têm por fim reforçar este
poder puramente artificial do sacerdote. Estou fazendo esta advertência
simplesmente para mostrar como uma afirmação como esta pode ser mal
interpretada. O que mostra, finalmente, quão inteira e completamente
errada é essa interpretação católica romana, é o que o apóstolo prossegue
dizendo precisamente neste versículo - “digo-o, porém, a respeito de Cristo e
da Igreja”. Esse é o mistério ao qual se refere. Isto lança alguma luz sobre o
casamento humano entre um homem e uma mulher, mas ele está falando “a
respeito de Cristo e da Igreja.” Assim, o real mistério é a relação entre
Cristo e a Igreja. Daí, os católicos romanos são levados a acreditar que a
relação entre Cristo e a Igreja é um sacramento. Mas não dizem isso, pois
para eles seria um disparate dizê-lo. Todavia, aí está um dos modos pelos
quais este assunto pode ser totalmente mal compreendido.

Rejeitando o conceito romanista, examinemos de novo a frase: “Grande é


este mistério”. Paulo quer dizer que se trata de um assunto muito
profundo; assunto que requererá todos os recursos dos seus leitores, e que
mostra a necessidade daquilo pelo que ele já tinha orado, em benefício
destas pessoas, no capítulo Is - que tivessem “iluminados os olhos do
entendimento” pelo Espírito Santo. Se não fizermos a abordagem desse
modo, ungidos pelo Espírito, seremos confrontados por três grandes
perigos. O primeiro é o de não estudarmos o assunto. É pena, mas esta é a
posição de muitos cristãos. “Ah”, dizem eles, “é difícil esta questão”, e,
porque é difícil, nem tentam entendê-lo, e passam para a proposição
subseqüente. Certamente não temos necessidade de ficar com essa atitude. E
uma coisa que jamais pode ser defendida, nem deve ser praticada. O
simples fato de que há dificuldades nas Escrituras não significa
que devemos passar de largo por elas. Elas estão lá para nosso
conhecimento e nossa

instrução; e por mais difíceis que sejam as questões, devemos fazer o


máximo para compreendê-las e apreender o sentido delas. Essa é uma das
razões para a existência da Igreja cristã. É por isso que o Senhor “deu uns
para apóstolos, e outros para evangelistas, e outros para doutores”
(“mestres”); etc. É para instruir-nos nestas coisas; é para nós lutarmos com
elas. Não devemos dizer, “Ah, isto é muito difícil”, e precipitar-nos em busca
de outra coisa. Você jamais compreenderá o seu próprio casamento, se você
é casado, a não ser que procure entender isto. Foi para ajudar-nos a
entendê-lo que o apóstolo escreveu isto.

O segundo perigo é tratar deste assunto pondo de lado o mistério ou


diminuindo o mistério. Tem havido muitos, comentadores inclusive, que
têm agido assim. Eles têm tido tanto receio desta “união mística”, e deste
ensino sobre ela, que a reduziram a uma simples questão de semelhança
geral, a uma simples unidade de interesses, e assim por diante. No entanto,
isso é pôr para fora o “mistério”. Dizem eles: “Isto é apenas uma hipérbole,
é uma linguagem altamente dramática empregada pelo apóstolo”. Mas isso
é ignorar o fato de que Paulo deliberadamente nos diz que se trata de um
“grande mistério”. Não devemos reduzir o “mistério”, não devemos fazer
dele uma coisa de somenos. Este é um perigo que nos confronta em muitos
pontos da vida cristã, e no ensino cristão. É o perigo que nos confronta com
relação às nossas duas ordenanças -o perigo de, em nosso temor de falar
demais, falar muito pouco! Devemos evitar esse perigo.

O terceiro perigo é o de querer elaborar isso tudo com muitas minúcias.


Decidindo que é nosso dever enfrentar o assunto e tentar entendê-lo e
desenvolvê-lo, de tal maneira o desenvolvemos que ele acaba ficando sem
mistério nenhum. É óbvio que isso é igualmente errôneo, porque o próprio
apóstolo diz: “Grande é este mistério”. Não significa, digo eu, que não
compreendemos absolutamente nada dele, e sim que não o compreendemos
perfeitamente, que não o compreendemos inteiramente, que ainda há
alguma coisa que nos escapa, alguma coisa que nos deixa ofegantes de
espanto e admiração.

Tratemos de evitar essas armadilhas particulares ao enfrentarmos este


grande mistério. Esta é uma verdade maravilhosa; e aqui subimos
àquelas alturas rarefeitas que só se encontram nas Escrituras.

Qual é o ensino do apóstolo a respeito desta relação mística entre Cristo e a


Igreja? Podemos começar com uma coisa que já conhecemos bem, porque a
encontramos antes, nesta epístola. A primeira coisa que ele nos diz é que
a Igreja é o “corpo” de Cristo: “Assim devem os maridos amar a suas
próprias mulheres, como a seus próprios corpos” (versículo 28). Depois ele
acrescenta, no versículo 29: “Porque nunca ninguém aborreceu a sua
própria carne; antes a alimenta e sustenta, como também o Senhor à
igreja”. E em seguida, mais particularmente: “Porque somos membros do
seu corpo”. Ele já tinha apresentado este ensinamento no final do capítulo
primeiro e, depois, no capítulo 4, versículo 16. Mas o apóstolo tem o cuidado
de fazer-nos lembrar isto porque seu desejo é expor o princípio do caráter
íntimo do relacionamento. E a relação existente entre a cabeça e os
membros de um corpo. O que ele está interessado

em salientar é que o relacionamento entre marido e mulher não é mera


relação externa. Há uma relação externa, mas é muito mais que isso. A
característica essencial do casamento não é simplesmente que duas pessoas
vivem juntas. Esse é apenas o começo; há muita coisa além disso; e há algo
mais profundo aqui, uma coisa muito mais maravilhosa. A Igreja, afirma
Paulo, é realmente uma parte de Cristo. Como os membros do corpo são
uma parte do corpo, do qual a cabeça é a parte principal, assim Cristo é a
Cabeça da Igreja. Como Paulo o coloca no fim do capítulo primeiro, “E
sujeitou todas as coisa a seus pés, e sobre todas as coisas o constituiu como
cabeça da igreja, que é o seu corpo, a plenitude daquele que cumpre tudo
em todos”. E de novo, no capítulo 4: “Antes, seguindo a verdade em
caridade, cresçamos em tudo naquele que é a cabeça, Cristo, do qual todo o
corpo, bem ajustado, e ligado pelo auxílio de todas as juntas, segundo ajusta
operação de cada parte, faz o aumento do corpo, para sua edificação em
amor”. Devemos apegar-nos a esse princípio, pois ele é uma preliminar
essencial para a compreensão da doutrina da união mística.

Isso, porém, é apenas introdução. Ele vai adiante e, no versículo 30,


acrescenta: “Porque somos membros do seu corpo” - e então faz este
extraordinário acréscimo: “da sua carne e dos seus ossos”. Ele está falando
sobre o relacionamento da Igreja com o Senhor Jesus Cristo. É aqui que
realmente penetramos o mistério. A noção da Igreja como o corpo de Cristo,
embora difícil, não é tão difícil como este acréscimo, “da sua carne e dos
seus ossos”. Alguns têm procurado evitar totalmente isto assinalando que
em certos manuscritos não está presente este acréscimo; mas todas as
maiores autoridades concordam que essa frase está presente nos melhores
manuscritos. Portanto, não podemos resolver o problema dessa forma. E, na
verdade, todo o contexto, e a subseqüente citação de Gênesis capítulo 2,
toma essencial que a mantenhamos aqui; doutro modo, não haveria razão
nem propósito na citação. É evidente que, tanto no contexto como aqui,
Paulo está se referindo a Gênesis capítulo 2.

Aqui entramos no âmago deste mistério. Devemos ter em mente que a


intenção do apóstolo, seu propósito, continua sendo o mesmo. Se ele
ficasse somente com a afirmação de que a Igreja é o corpo de Cristo,
haveria o perigo de continuarmos a pensar nisso em termos de uma ligação
frouxa. É claro que não devemos pensar assim, porquanto quem sabe
alguma coisa sobre o corpo, sabe que ele não consiste de uma frouxa ligação
de um certo número de partes. Nunca será demais repetir que o corpo não
consiste de alguns dedos afixados nas mãos, e as mãos afixadas nos
antebraços, e assim por diante. Não! O essencial quanto a um corpo é que se
trata de uma unidade orgânica vital. E é para ressaltar e salvaguardar esse
princípio que o apóstolo faz o acréscimo e diz: “Porque somos membros do
seu corpo, da sua carne e dos seus ossos”.

A única maneira de solucionar o problema, parece-me, é seguir a pista que


nos é dada pelo próprio apóstolo, e retomar à afirmação que ele cita do
capítulo 2 do Livro de Gênesis, versículo 23: “E disse Adão” - referindo-se à
mulher — “Esta é agora osso dos meus ossos, e came da minha carne”.
Aqui, de novo, está uma afirmação que tem sido mal interpretada. Há os
que dizem que o apóstolo,

neste versículo 30 do capítulo 5 de Efésios, está se referindo à encarnação,


que é apenas um modo indireto de dizer que quando o Senhor Jesus Cristo
veio a este mundo, assumiu a natureza humana, assumiu, noutras palavras,
nossa carne e nossos ossos. Mas essa interpretação é completamente
impossível. O que o apóstolo está dizendo não é que o Senhor Jesus Cristo, a
segunda Pessoa da bendita e santa Trindade, assumiu “nossa” carne e
“nossos” ossos; o que ele diz é que “nós” assumimos Sua carne e Seus ossos,
que nós somos membros do Seu corpo, da Sua carne e dos Seus ossos. É o
contrário do que foi dito acima, de modo que não é aquela a explicação.

Tem havido, pois, graves incompreensões disto em termos da ordenança da


ceia do Senhor. Há os que dizem que quando o apóstolo escreve,
somos membros do Seu corpo, da Sua carne e dos Seus ossos, ele está se
referindo ao corpo glorificado do nosso Senhor. O corpo que o Senhor Jesus
Cristo assumiu foi glorificado, e eles dizem que somos literalmente partes e
membros do Seu corpo glorificado. Entretanto, certamente há uma
ponderação que elimina isso, de uma vez para sempre, a saber, que o corpo
glorificado está no céu. Portanto, isso não pode ser aplicado a nós. Todavia,
ainda além disso, como digo, eles levantam toda a questão da Comunhão,
isto é, a ceia do Senhor. Os católicos romanos dizem que não há dificuldade
quanto a isto. Seu ensino é que, à mesa da Comunhão, o sacerdote realiza
um milagre, transforma um pedaço de pão na “carne e nos ossos” do
Senhor Jesus Cristo. Essa é a doutrina da transubstan-ciação. O que está no
prato parece pão, mas isso é só o “acidente”, a “substância” sofre mudança.
Permanece o elemento puro e simples, mas o que é oferecido aos
comungantes é agora, de fato, o corpo de Cristo. De modo que, quando você
come, está comendo “sua carne e seus ossos”, e assim se toma parte dEle.
Eles extraem esse ensino do capítulo 6 do Evangelho Segundo João, em sua
tentativa de buscar-lhe suporte.

Depois a doutrina luterana, a qual não é transubstanciação, e sim o que se


chama de “consubstanciação”, vem a ser praticamente a mesma coisa.
Eles dizem que o pão não é realmente transformado no corpo de Cristo, mas
que o corpo glorificado de Cristo penetra no pão e fica ali com ele. Daí, você
tem o pão mais o corpo glorificado de Cristo, e come ambos.

Certamente deve estar patente que isto é meramente insinuar uma coisa que
de modo algum é sugerida pelo apóstolo, quer no próprio versículo, quer
no contexto inteiro. É uma tentativa de explicar o mistério de um modo
não coerente com o contexto; e, em última análise, quase acaba com o
mistério.
Seguramente, se seguirmos o rumo ditado pelo apóstolo, chegaremos à
verdade explicação. Ele está obviamente citando Gênesis 2:23: “E disse
Adão: esta é agora osso dos meus ossos, e carne da minha carne: esta será
chamada varoa”. Mas por que seria chamada “varoa”? A resposta dada é:
“porquanto do varão foi tomada". A verdadeira definição de mulher é, pois,
alguém que do varão foi tomado. Esse é o verdadeiro sentido da palavra
“mulher”. A mulher, por definição, por origem, por nome, é alguém que foi
tirado do varão. Contudo, observem de novo o modo pelo qual isso foi feito.
“E disse o Senhor Deus: não

é bom que o homem esteja só: far-lhe-ei uma adjutora que esteja como
diante dele” (versículo 18). De novo se nos diz, no fim do versículo 20: “mas
para o homem não se achava adjutora que estivesse como diante dele.” Os
animais foram criados, e são magníficos, mas nenhum deles é um ajudador
à altura do homem. Há uma diferença essencial entre o homem e o animal.
Afinal de contas, o homem é uma criação especial; não evoluiu dos animais.
O melhor animal é essencialmente diferente do mais rebaixado tipo de
homem; este pertence a uma outra ordem, a uma esfera completamente
diferente. O homem é único, foi feita à imagem de Deus. Portanto, embora
os animais sejam maravilhosos, não havia um que pudesse fazer companhia
ao homem, a companhia de que o homem necessita. Assim, vamos adiante, e
lemos: “Então o Senhor Deus fez cair um sono pesado sobre Adão, e este
adormeceu: e tomou uma das suas costelas, e cerrou a carne em seu lugar. E
da costela que o Senhor Deus tomou do homem, formou uma mulher”. A
mulher foi tirada do homem, foi extraída da sua substância, da “sua carne”
e dos “seus ossos”. Deus toma uma parte do homem, e dela faz uma mulher.
Que é, então a mulher? Ela é da mesma substância do homem, “da sua
carne e dos seus ossos”. Deus efetuou a operação. O homem foi posto num
estado de profundo sono, e então a operação foi realizada, a parte foi
tomada, e dessa parte foi feita a mulher.

“Grande é este mistério: digo-o, porém, a respeito de Cristo e da igreja."


Somos membros do Seu corpo, da Sua carne e dos Seus ossos. Como? A
mulher foi criada no princípio em decorrência de uma operação que Deus
fez no homem. Como é que a Igreja veio a existir? Em decorrência de uma
operação que Deus fez no segundo homem, em Seu unigênito e bem-amado
Filho, no monte do Calvário. Caiu um profundo sono sobre Adão. Um
profundo sono caiu sobre o Filho de Deus, Ele entregou o espírito, Ele
expirou, e aí, nessa operação, a Igreja foi tomada. Assim como a mulher foi
tomada de Adão, a Igreja foi tomada de Cristo. A mulher foi tomada do
lado de Adão; a Igreja provém do sangue vertido, do lado ferido do Senhor
(cf. João 19:34). Essa é a origem dela; e assim ela é “carne da sua carne e
osso dos seus ossos”. “Grande é este mistério”.

Vocês deram-se conta disso? Não é por acidente que Cristo é mencionado no
Novo Testamento como “o segundo homem” e como “o último Adão”
(1 Coríntios 15:45,47). Aqui o apóstolo ensina que esta verdade também se
aplica a Ele neste aspecto. Normalmente pensamos em nossa relação com
Ele no sentido individual, e isso está certo. Tomemos o ensino concernente à
relação do cristão com o Senhor Jesus Cristo como se acha em Romanos,
capítulo 5, onde outra vez temos esta mesma comparação entre o primeiro
homem e o segundo; fala-nos sobre como estamos todos envolvidos na
transgressão de Adão, e como estamos envolvidos na justiça de Cristo.
Como aquela relação, assim é esta. Ali a ênfase recai no pessoal. Aqui, recai
na Igreja como um todo, na relação comunitária; e esta é a grande e
misteriosa verdade que Paulo está ensinando. Assim como é certo dizer da
mulher, que ela foi tirada do lado do homem, da sua substância, da “sua
carne e seus ossos”, também é certo dizer que

a Igreja é tirada de Cristo, e nós somos parte dEle, membros do Seu corpo e
dos Seus ossos. Ele é o último Adão, o segundo homem. E como Deus operou
no primeiro homem para produzir a sua esposa, sua coadjutora satisfatória,
assim Ele operou no segundo homem, para fazer a mesma coisa, de maneira
infinitamente mais gloriosa.

Todavia, vamos avançar mais ainda. Fazemo-lo com temor e tremor;


prossigamos, porém. O apóstolo está acentuando que somos parte da
própria natureza de Cristo. Note-se que ele emprega a expressão “a si
mesmo” no versículo 28. “Nunca ninguém aborreceu a sua própria carne”,
diz ele no versículo 29; “antes a alimenta e sustenta, como também o Senhor
à igreja.” E no versículo 28: “Antes devem os maridos amar a suas próprias
mulheres, como a seus próprios corpos. Quem ama a sua mulher, ama-se a
si mesmo.” Ainda a mesma idéia! O corpo é uma parte do homem, e
portanto, quando ele dá atenção ao seu corpo, está dando atenção a si
mesmo. Ele não pode divorciar-se de si mesmo. O que ele faz por seu corpo,
está fazendo por si mesmo; e isso porque o seu corpo é parte de si mesmo.
Essa é a relação entre Cristo e a Igreja. Não significa que somos divinos.
Precisamos ser cuidadosos quanto a isso. Nós, cristãos, não somos deuses,
nem somos divinos. Mas o que significa é que o Senhor Jesus Cristo é o
autor e o iniciador de uma nova humanidade. Uma humanidade começou
em Adão; uma nova humanidade começou no Senhor Jesus Cristo.
Partilhamos disso! Somos participantes disso! É por isso que Pedro diz em
sua segunda epístola, capítulo primeiro, versículo 4, que somos
(ou poderemos ficar sendo) “participantes da natureza divina”. Somos
participantes desta natureza que o Mediador agora tem, sendo que Ele veio
mediante a encarnação e fez tudo que veio fazer. DELE derivamos nossa
vida, nosso ser, e somos verdadeiramente partes dEle.

Mas precisamos dar o passo final, e ir aos versículos 31 e 32: “Por isso
deixará o homem seu pai e sua mãe, e se unirá a sua mulher; e serão dois
numa carne. Grande é este mistério: digo-o, porém, a respeito de Cristo e da
Igreja”. Aqui, de novo, só poderemos entender o que o apóstolo quer dizer
se retomarmos ao capítulo dois de Gênesis. A passagem acima é uma citação
direta de Gênesis 2:24. No entanto, o que ela significa exatamente? Há
muitos que ficam assustados neste ponto, e dizem: “Ah, isso é um grande
mistério, e devemos ter o cuidado de não forçá-lo demais”. Daí dizem eles
que o apóstolo introduziu as palavras, “e serão dois numa came”, citação de
Gênesis 2:24, simplesmente para arrematar a citação que fez. O apóstolo,
contudo, não faz esse tipo de coisa; o apóstolo não faz citações, a menos que
tenha um objetivo e um propósito. Dizem aquelas pessoas: “Naturalmente é
patente que isso não tem nada a ver com o Senhor Jesus Cristo e a Igreja.
Aqui, na verdade, Paulo está apenas falando sobre maridos e esposas; não
está falando da Igreja neste ponto”. Mas não posso aceitar isso, pois Paulo
diz: “Isto” - que acabo de dizer - “éum grande mistério, mas eu estou
falando a respeito de Cristo e da igreja.”

Acredito que esta expressão concernente a “uma came” aplica-se à relação


entre Cristo e a Igreja como se aplica à relação entre marido e mulher.

Mas, tenhamos cuidado, porque isso é um grande mistério. Não estou


tentando nem pretendendo dizer que o entendo plenamente, porém, ao
mesmo tempo, não desejo subtrair-me ao mistério. Desejo apegar-me a este
ensino concernente a esta relação mística, a esta unidade extraordinária, a
esta indivisão de que Paulo está falando. Parece-me que a explicação é como
segue: voltem para Gênesis capítulo 2, e isto é o que verão. Adão era
originariamente um homem uno, perfeito, completo. E, contudo, havia uma
espécie de carência, faltava-lhe uma ajudadora que lhe fosse satisfatória.
Assim, o que nos é dito é que Deus fez a operação, e este homem, outrora
uno, começa a ser dois - Adão e Eva, homem e mulher. A mulher foi tomada
dele, de modo que é uma parte dele; ela não foi criada do pó, como o fora o
homem. Ela foi tirada do homem e, assim, é uma parte do homem.
Entretanto, a coisa não pára aí - e é nisto que eu vejo despontar este
mistério. Num sentido eram agora dois, mas noutro sentido não eram:
“Por isso deixará o homem seu pai e sua mãe, e se unirá a sua mulher; e
serão dois numa carne”. Aí está a essência do mistério. Há um sentido em
que eles são dois, e há um sentido em que não são dois. Jamais devemos
esquecer esta unidade, esta indivisão, esta idéia de “uma carne”.

Subamos, então, ao pico culminante do mistério. Adão era incompleto sem


Eva; e a deficiência, a falta, foi suprida pela criação de Eva. Portanto,
há um sentido em que podemos dizer que Eva completa a “plenitude” de
Adão, supre o que faltava em Adão. E é exatamente isso que Paulo diz
acerca da Igreja em sua relação com Cristo. Afortunadamente para nós, ele
já dissera isso no capítulo primeiro, versículo 23, onde lemos: “Que é o seu
corpo” - ele está falando da Igreja - “e sobre todas as coisa o constituiu
como cabeça da igreja, que é o seu corpo, a plenitude daquele que cumpre
tudo em todos”. A Igreja é a “plenitude” de Cristo. É a Igreja, diz ele, que
“completa”, por assim dizer, esta plenitude de Cristo. E minha opinião é que
aqui, no capítulo 5, ele está apenas repetindo aquela verdade. Como Adão e
Eva se tomaram uma came, e como Eva, por assim dizer, completa a
plenitude de Adão, assim a Igreja completa a plenitude de Cristo. Esse é o
sentido ligado à palavra “plenitude” em toda parte no Novo Testamento, no
que concordam as autoridades lingüísticas. Cristo não é a plenitude da
Igreja; a Igreja completa a Sua plenitude, “a plenitude daquele que cumpre
tudo em todos.”

Podemos examinar a questão deste modo: o Senhor Jesus Cristo, como o


eterno Filho de Deus, é e sempre foi, desde toda a eternidade, perfeito
e completo - “nele habita corporalmente toda a plenitude da divindade”
(Colos-senses 2:9). Ele é e sempre foi co-igual e co-etemo com o Pai. Toda a
plenitude da divindade está em cada uma das três Pessoas. Nada Lhes falta,
não há nada que precisa ser completado, não há carência de nada nessa
plenitude. Mas, como o Mediador, Cristo não estará completo sem a Igreja.
Ora, isto é um mistério, o mais glorioso dos mistérios. Jesus Cristo como
Mediador não será plenitude completo, enquanto não foram reunidas todas
as almas pelas quais Ele morreu - “a plenitude dos gentios” e “todo o Israel”
(cf. Romanos 11:12,26). Só então Ele estará completo, só então a plenitude
estará completa.

Este é o grande mistério da salvação, e é por isso que precisamos ser tão
cuidadosos. Mas a doutrina da salvação sugere isto, que o bendito e eterno
Filho de Deus, para salvar-nos, impôs a Si próprio uma limitação. Ao Se
revestir da natureza humana, revestiu-Se de uma limitação. Ele continua
sendo Deus, eternamente - não há limite nisso, não há diminuição da Sua
divindade. E um grande mistério, e não devemos tentar entendê-lo no
sentido final. Não pode ser compreendido.Todavia este é o ensino. Ali está
Ele, Uno eImutável! Sim, mas Ele Se fez homem, e Se fez sujeito à
ignorância de fraqueza, enquanto esteve neste mundo, enviado “em
semelhança da carne do pecado” (Romanos 8:3). E como Mediador, digo e
repito, Ele não será completo enquanto a Igreja não estiver completa. Ele
tem uma esposa, à qual deve unir-se, tornando-se ambos “uma carne”.
Quando o Senhor Jesus Cristo voltou para o céu, não deixou para trás o Seu
corpo; levou-o conSigo. Essa natureza humana está nEle agora, e sempre
estará. Ele continua sendo a segunda Pessoa da bendita e santa
Trindade, porém esta natureza humana que eu e vocês temos agora, lá está
nEle, e nEle estaremos por toda a eternidade. Ele Se sujeitou a algo.
Aventuro-me àquilo que é quase uma especulação, mas o apóstolo cita estas
palavras: “Por isso deixará o homem seu pai e sua mãe, e se unirá a sua
mulher; e serão dois numa carne”. Não forço os pormenores, no entanto isto
eu digo - que o Senhor Jesus Cristo deixou as mansões da glória e veio a este
mundo terrenal em busca da Sua esposa. Houve um “deixar” em Seu caso,
como no caso do homem que deixa seu pai e sua mãe para unir-se à sua
esposa. Sim, Cristo deixou as mansões da glória - como no-lo recorda
Charles Wesley -

O trono de Seu Pai deixou em cima, tão livre e infinita é Sua graça!

Deixou o céu e as mansões da glória por amor a Sua esposa. Houve um


pavoroso momento em que Ele bradou: “Deus meu, Deus meu, por que
me desamparaste?” Por aquele momento Ele foi separado de Seu Pai. E por
que? Ah, para que pudesse comprar e salvar esta Sua esposa que, agora,
em decorrência dessa operação, é uma parte do Seu corpo, da Sua carne e
dos Seus ossos.

Este é, digo eu, o supremo mistério. Não há nada mais maravilhoso, não há
nada mais glorioso do que isto. Somos participantes da Sua natureza
humana, estamos unidos a Ele, e o estaremos por toda a eternidade. Por isso
nos dizem as Escrituras que estaremos acima dos anjos e os “julgaremos”.
“Não sabeis vós”, diz Paulo em 1 Coríntios 6, “que os santos hão de julgar o
mundo, que havemos de julgar os anjos?” Até os anjos! Por que? Porque
somos elevados acima deles, estamos no Filho, somos parte dEle, estamos
unidos a Ele, somos “uma carne” com Ele. A Igreja é a esposa de Cristo, e
quando pensamos nesta relação, devemos sempre fixar-nos neste mistério e
dar-nos conta de que somos membros do Seu corpo, da Sua came e dos Seus
ossos. Sobretudo, porém, demonos conta do que Ele fez para que viéssemos
a ser dEle. Ele deixou o trono de

Seu Pai nas alturas, “humilhou-se a si mesmo”, “esvaziou-se a si mesmo” - é


assim que Ele ama a Igreja! “Vós, maridos, amai vossas mulheres,
como também Cristo amou a igreja, e a si mesmo se entregou por ela.”

OS PRIVILÉGIOS DA ESPOSA Efésios 5:25-33

Estivemos traçando nosso curso através desta grande afirmação,


primariamente destinada à edificação dos maridos, mas que, como vimos,
tem uma gloriosa mensagem para todo o povo cristão. Isto porque, ao
dirigir sua mensagem ao marido, o apóstolo o faz empregando a
comparação com o relacionamento que existe entre Cristo e a Igreja. Essa é
a analogia que o marido sempre deverá ter em mente.

Há, porém, mais uma coisa que nos cabe fazer antes da aplicação do ensino
aos deveres particulares dos maridos para com as suas esposas. Há implícita
naquilo que o apóstolo vem dizendo, mais uma coisa que será de grande
importância quando chegarmos à aplicação prática, mas que é
de inestimável valor para cada um de nós, cristãos, quando nos damos conta
da nossa relação com o Senhor Jesus Cristo, e de que, juntos, somos a
esposa de Cristo. Deixem-me explicar isto.

Dado tudo que estivemos considerando, segue-se necessariamente que o


marido concede certas coisas a Sua esposa; e agora vamos ver o que o
Senhor Jesus Cristo, como Esposo da Igreja, lhe concede. Ao fazê-lo,
compreenderemos melhor o glorioso privilégio de sermos cristãos e
membros da Igreja cristã. Demoro-me nesta verdade porque é minha
crescente e profunda convicção que o maior problema, a maior dificuldade
hoje é que cristãos como nós não se dão conta do privilégio e da dignidade
de serem membros da Igreja cristã e do corpo de Cristo. Bem sei, e
concordo, que está certo preocupar-nos com as condições do mundo. Não
poderemos ser cristãos, se não tivermos essa preocupação; todavia não
consigo entender como se pode ser complacente quanto às condições da
Igreja. Para mim a coisa mais triste e mais séria dos dias atuais é a omissão
do povo cristão de considerar o que o Novo Testamento diz acerca de nós
mesmos, e o que significa ser membro do corpo de Cristo. Num mundo
que dá tanta importância a honras, glórias e posições, não é espantoso
darmos tão pouca atenção ao fato de sermos membros da Igreja? Muitos
parecem entender isso como sendo eles que conferem à Igreja alguma
dignidade, em vez de perceberem que esse é o supremo e o mais glorioso
privilégio que se pode ter ou conhecer. Outros acham que ser membro da
Igreja é um trabalho e um dever, e ficam mais satisfeitos consigo mesmos se
desempenham alguma função. Ora, isso revela uma completa incapacidade
de entender o que significa realmente sermos membros do Seu corpo, o qual
é a esposa do Senhor Jesus Cristo.

Vejamos, pois, algumas das coisas que Ele nos concede, coisas que dizem

respeito a nós como povo cristão e membros da Igreja. Se a Igreja tão


somente percebesse estas coisas, deixaria de estar cheia de racionalizações
defensivas, deixaria de ser frouxa e desanimada, e de apresentar o infeliz
aspecto que apresenta; transbordaria de genuíno gozo, alegria e glória.

Que é que Cristo nos concede? Primeiramente, Sua vida. Já estudamos essa
verdade, mas preciso mencioná-la outra vez, neste contexto. Ele nos dá uma
parte da Sua própria vida - tomamo-nos partícipes da Sua vida. É o
que acontece quando alguém se casa, não é? Ele vivia sua própria vida,
porém agora não a vive exclusivamente; sua esposa se toma participante da
sua vida. Como é uma parte dele, ela se toma participante da sua vida, das
suas atividades e de tudo que lhe diz respeito. A primeira coisa que um
homem casado tem que aprender é que, quando se vê confrontado por
situações diversas, agora lhe compete fazer algo novo. Antes, o principal
problema para ele era: como isto me afeta, qual a minha reação a isto?
Entretanto, agora ele não pára aí. Agora ele tem que pensar em como isto
afeta sua esposa. Já não leva uma vida isolada, digamos, por sua própria
conta; sempre terá que considerar outra pessoa, que é partícipe da sua vida.
Certas coisas podem ser-lhe aceitáveis, mas agora há alguém mais que ele
tem de levar em consideração.

Eu poderia desenvolver isto; poderia falar baseado em muita experiência


pastoral sobre problemas e dificuldades de que já tive de tratar porque
os maridos se esquecem justamente deste ponto. Permitam-me dar-lhes
uma ilustração disso. Uso-a porque é uma experiência que muitas vezes tive
de enfrentar, e a respeito da qual muitas vezes fui mal compreendido.
Mas, correndo esse risco, conto-a de novo, com o fim de ilustrar este ponto.
Um homem me procura e me diz que se sente chamado para servir nalgum
campo missionário estrangeiro. Bem, isso é excelente. No entanto, então eu
tenho que lhe fazer uma pergunta - e sempre a faço, se o homem é casado:
que diz sua esposa sobre isso? Algumas vezes tenho de lidar com homens
que não parecem preocupados com isso, e parecem considerar a matéria
como se fosse de decisão puramente pessoal. Todavia não é! O homem não
tem direito de isolar-se sobre uma questão como essa, deixando de lado a
sua esposa. Uma vez que ambos são uma carne, ele tem de considerar as
opiniões da sua esposa. Já estivemos tratando dos deveres das esposas para
com os seus maridos. Há muito que dizer sobre esse outro lado também;
mas o ponto que estou firmando é que é um cristão bem pobre aquele que
diz: “Se me sinto chamado para uma obra particular, não importa o que a
minha esposa diga”. Claro que importa! Isso mostra uma compreensão
completamente falsa deste ensino.

Vejamos, no entanto, outro aspecto do assunto, e tratemos de aperceber-nos


de que somos partícipes da vida do Senhor Jesus Cristo. É um pensamento
tremendo, mas temos direito de dizer que estamos sempre em Sua mente;
que em toda a Sua perspectiva temos nossa parte e nosso lugar. Estamos
“em Cristo”, somos participantes da Sua vida. Escrevendo aos colossenses,
o apóstolo utiliza esta extraordinária frase no capítulo 3, versículo 4:
“Quando Cristo, que é a nossa vida, se manifestar”. Ele é “a nossa vida", o
que é outra

maneira de dizer que somos participantes da Sua vida. Ora, não há nada
que supere isso! De fato, já estivemos examinando isso quando estávamos
estudando a afirmação de que somos membros do Seu corpo, da Sua carne e
dos Seus ossos. Agora o estamos examinando de um ângulo ligeiramente
diferente; não tanto do ângulo da união mística, e sim da consciência pessoal
do Senhor de que Ele está dando Sua vida, partilhando-a, e de que nós
somos incluídos nela e nos tomamos parte integrante da Sua vida.
Prossigamos, porém, para mostrar isto em suas várias manifestações. Uma é
que Ele nos outorga Seu nome. Tomamos sobre nós o Seu nome porque Ele
mesmo no-lo dá. Somos chamados “cristãos”, e essa é a maior
verdade concernente a nós. Não somos mais o que éramos; mudamos de
nome. Quando a mulher se casa, muda de nome. Quão importante é isso,
para ajudar-nos a entender o ensino do grande apóstolo neste capítulo cinco
desta Epístola aos Efésios! Quanta coisa ele tem para dizer também acerca
deste insensato movimento moderno chamado “feminismo”! Quando uma
mulher se casa, renuncia ao seu nome e toma o nome do seu marido, Isso é
bíblico, e também é o costume do mundo inteiro. Isso nos ensina sobre a
relação entre marido e mulher. Não é o marido que muda de nome, mas a
esposa. Há uma notável ilustração disto, de tempos recentes. Refiro-me a ela
porque espero que ajude a fixar estas verdades em nossas mentes. A nação
toda sabe o que aconteceu no caso da princesa Margaret, como o nome do
marido dela é apresentado sempre que ela é mencionada; e isso está certo.
Não proceder assim é antibíblico. O nome do marido é que é tomado, não o
da mulher. Não importa quem sejam os cônjuges, esta é a posição
escriturística.

Contudo, examinemos isso tudo do nosso ponto de vista, como membros da


Igreja cristã. Cristo colocou Seu nome em nós. Não se pode fazer
maior cumprimento do que esse. Essa é a mais clara expressão deste
relacionamento matrimonial. O Novo Testamento nos apresenta isto de
muitas maneiras. “Já não há judeu nem gentio, bárbaro nem cita, escravo
nem livre” (cf. Gálatas 3:28 e Colossenses 3:11). Costumava haver. Aqueles
eram os nomes que tínhamos antes. Não mais, porém! Agora somos cristãos,
temos um novo nome. Ou tomemos o modo pelo qual este mesmo apóstolo o
expressa em sua Segunda Epístola aos Coríntios, capítulo 5: “Daqui por
diante a ninguém conhecemos segundo a carne”. “Eu costumava conhecer
as pessoas segundo a carne”, é o que ele diz; “como judeu, eu costumava
dizer: “Quem é esse homem? É judeu? Se não é, não passa de um cão”.
“Entretanto”, diz ele, “não penso mais segundo essas categorias; agora
utilizo novos termos. O que desejo saber é: “Este homem é cristão?” Não me
interessa qual era o seu nome antigo; este é o nome em que estou
interessado agora - “cristão!” Leva ele o nome de Cristo sobre si?”
Assim nos damos conta de que o Senhor Jesus Cristo nos dá o Seu nome. A
realidade disto é tal, diz ainda o apóstolo, escrevendo aos gálatas, que chega
a este ponto: “vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim”. Essa é a idéia.
Em certo sentido, Paulo está submerso, desaparecido, todavia ele continua,
e diz: “a vida que agora vivo na carne, vivo-a na fé do Filho de Deus, o qual
me amou, e se

entregou a si mesmo por mim” (2:20). Que esplêndida exposição é essa,


desta relação matrimonial! Há um sentido em que toda a vida do cristão
está no Esposo e, no entanto, ele não se perdeu inteiramente, ele ainda está
lá - “a vida que agora vivo na carne”.

Aí está o grande mistério do relacionamento matrimonial! Mas devemos


apegar-nos a este grande fato - que levamos sobre nós o nome do Senhor
Jesus Cristo. O que importa, e deve importar, para cada um de nós é que
mudamos de nome. Aqui, no terreno da Igreja, os outros nomes
absolutamente não importam. Não importa o nome que a pessoa tenha, qual
a sua posição ou o seu ofício, qual a sua capacidade, e tudo mais. A única
coisa que importa a seu respeito agora, é que ela tem sobre si o nome de
Cristo. Somos todos um aí, estamos todos juntos em Cristo. Ele nos tomou
para Si - a Igreja é a esposa de Cristo. Eis o que praticamente Ele nos diz:
“Esqueça esse velho nome, tome sobre si este Meu nome; você Me
pertence”. Encontramos isto no Livro de Apocalipse, capítulo 3, versículo
12: “A quem vencer, eu o farei coluna no templo do meu Deus e dele nunca
sairá; e escreverei sobre ele o nome do meu Deus, e o nome da cidade
do meu Deus, a nova Jerusalém, que desce do céu, do meu Deus, e também o
meu nome”. É isso!

Teu novo nome escreve em meu coração,

Teu novo e melhor nome de amor.

Está é a coisa espantosa que acontece com todos os que de fato são cristãos,
com todos os membros deste corpo, que é a esposa de Cristo. Foi-lhes dado
pelo Príncipe da glória e, maravilha das maravilhas é o Seu nome! Não
há honra ou glória maior do que esta. Você desaparece num novo nome, e é
o nome mais elevado de todos. Lemos que vem o dia em que “ao nome de
Jesus” se dobrará “todo o joelho dos que estão nos céus, e na terra, e
debaixo da terra” -e esse é o nome que nos é dado, a nós que fomos
constituídos em esposa de Cristo.

Então vemos que disso decorre o fato de que somos participantes da Sua
dignidade, da Sua grandiosa e gloriosa posição. O apóstolo já dissera
algo equivalente no capítulo 2, onde nos dissera a admirável verdade de que
Deus “nos ressuscitou juntamente com ele (com Cristo) e nos fez assentar
nos lugares celestiais, em Cristo Jesus”. Essa verdade agora nos abrange. Se
somos cristãos, estamos “em Cristo”, o que significa que estamos assentados
com Ele “nos lugares celestiais”. Onde quer que o esposo esteja, ali está a
esposa também, e a reputação, a dignidade e a posição que pertencem a ele,
pertencem a ela. Não tem a menor importância quem ela era; no momento
em que ela se toma sua esposa, participa de todas as coisas com ele. E ai
daquele que não lhe conceda a posição e a dignidade a que faz jus! Não há
maior insulto ao esposo do que recusar a honrar a sua esposa. Esta verdade,
diz o Novo Testamento, vale para o cristão. Isto nos é dito repetidamente.
Uma declaração disso ocorre no capítulo 17 do Evangelho Segundo João,
versículo 22, onde o Senhor Jesus diz:

“E eu dei-lhes a glória que a mim me deste”. A glória que o Pai Lhe dera,
diz Ele, Ele deu a Seu povo. É uma coisa que invariavelmente sucede no
casamento: a esposa, sendo uma parte do marido e tendo sobre si o nome do
marido, compartilha toda a posição dele. “Dei -lhes a glória que a mim me
deste”.

Tomemos, porém, outra colocação do assunto. O Senhor Jesus Cristo disse a


respeito de Si mesmo: “Eu sou a luz do mundo” (João 8:12). É
Sua reivindicação, e não existe reivindicação superior a essa. Sem mim, o
mundo fica em trevas, diz Ele. Sou a luz que o mundo pode receber sempre,
sendo que tudo mais não passa de tentativas feitas pelos homens para
descobrirem alguma luz; e invariavelmente fracassam. Fora de Cristo não
há luz. Mas, observem o que Ele diz a nosso respeito: “Vós sois a luz do
mundo” (Mateus 5:14). Noutras palavras, uma vez que Ele é o que é, e dada
a nossa relação com Ele, igualmente viemos a ser a luz do mundo. É-nos
muito difícil compreender isso, não é? Somos apenas um pequeno grupo
nesta nossa terra pagã (Inglaterra!), somente dez em cem a dizer-se cristãos,
e só a metade destes freqüentando a casa de Deus. Daí, ficamos cheios de
desculpas, e nos sentimos um tanto envergonhados de nós mesmos.
Contudo, a verdade acerca de nós é esta: somos a luz do mundo! Foi o
Senhor Jesus Cristo que o disse. Este mundo mau e trevoso não conhece
nenhuma luz, não tem nenhuma luz, exceto a luz que eu e vocês estamos
disseminando.

No entanto, pensemos na questão quanto ao aspecto da nossa dignidade, da


nossa glória - o que Ele é, Ele faz que sejamos. Isso é inevitável por causa da
nossa relação. Há muitas outras exposições magníficas disto. Ouçam,
de novo, o Senhor dizer, no Livro de Apocalipse, à igreja de Laodicéia, a
respeito de toda gente: “Ao que vencer lhe concederei que se assente comigo
no meu trono; assim como eu venci, e me assentei com meu Pai no seu
trono” (3:21). Posto que a Igreja é a esposa de Cristo, ela vai sentar-se com
Ele no Seu trono. “Ela é plebéia”, dirão vocês. Sim, mas não importa; ela se
casou com o Principe, e compartilha o trono com Ele. Essa é a dignidade,
esse é o privilégio que Ele nos confere!

Em seguida, atentem para isto: o apóstolo Paulo, procurando ensinar aos


membros da igreja de Corinto algo desta grandeza e desta glória, faz a
seguinte colocação, no capítulo 6 da primeira epístola, versículo 2: “Não
sabeis vós que os santos hão julgar o mundo?” E mais adiante: “Não sabeis
vós que havemos de julgar os anjos?” Isto se refere a mim e a vocês. Vejam
esses tristes membros da igreja de Corinto. “Que há com vocês?”, pergunta
o apóstolo. “Por que estão brigando uns com os outros? Por que vocês se
orgulham deste ou daquele homem, e ficam levando uns aos outros às
barras do tribunal por suas contendas? Não percebem que todos vocês,
como cristãos, estão em tal relação com Cristo, que irão julgar o mundo,
que irão julgar os anjos?” Eis aí a dignidade que nos pertence.

Permitam-me expressá-lo deste modo: pensem no cristão em relação aos


anjos. Já se deram conta de que nos está determinado um destino que
nos colocará acima dos anjos? Os anjos são seres maravilhosos, “magníficos
em

poder” (Salmo 103:20); mas estamos destinados a uma posição que será
superior à dos anjos! O autor da Epístola aos Hebreus faz esta
colocação: “Porque não foi aos anjos que sujeitou o mundo futuro, de que
falamos. Mas em certo lugar testificou alguém, dizendo: que é o homem,
para que dele te lembres? ou o filho do homem, para que o visites? Tu o
fizestes um pouco menor do que os anjos, de glória e de honra o coroaste, e
o constituíste sobre as obras de tuas mãos; todas as coisas lhe sujeitaste
debaixo dos pés” (Hebreus 2:5-8). “Mas”, diz alguém, “não vejo todas as
coisas sujeitas ao homem; de que é que você está falando?” “Oh não”, diz o
autor daquela epístola, “... ainda não vemos que todas as coisas lhe estejam
sujeitas; vemos, porém, coroado de glória e de honra aquele Jesus que fora
feito um pouco menor do que os anjos, por causa da paixão da morte”
(versículo 9). Estas palavras significam que eu e vocês vamos ocupar aquela
posição. Aos olhos de Deus já a ocupamos; não vemos isto, no entanto, já é
coisa certa quanto a nós. Estamos acima dos anjos porque somos a esposa
de Cristo; e como Ele está acima deles nos lugares celestiais, temos essa
dignidade, essa grandeza e essa posição agora mesmo.

Isso nos leva ao ponto subseqüente, ou seja, que participamos não somente
da Sua vida, mas também dos Seus privilégios. No momento em que
uma mulher desposa um homem, passa a participar dos privilégios dele.
Sejam estes quais forem, ela se toma participante deles. O apóstolo está
dizendo aqui que isto se aplica à Igreja. Participamos do que? Participamos
do amor do Pai. Há um versículo que, de muitas maneiras, é para mim o
versículo mais espantoso da Bíblia. É o versículo 23 do capítulo 17 do
Evangelho Segundo João. Diz o Senhor: “para que o mundo conheça que tu
me enviastes a mim, e que os tens amado a eles como me tens amado a
mim”. É uma afirmação que significa que Deus o Pai nos ama, na qualidade
de povo cristão, como ama a Seu próprio Filho. O que significa que, devido
à nossa relação com o Filho, estamos nessa relação com Deus. Pensem num
homem, sem filhas, cujo filho homem se casou. Ele agora diz à esposa do seu
filho: “Você é minha filha. Nunca antes tive uma filha, mas agora você é
minha filha”. E a considera como tal. Ela e seu filho são um; portanto, ele
estende a ela o seu amor paterno - “para que o mundo conheça que os tens
amado, como me amas”. O privilégio é esse. Opera deste modo - dá-nos
acesso ao Pai. Um pai está sempre pronto a receber a esposa do seu
filho. Antes ela não tinha acesso a ele; não havia nenhum relacionamento
entre ela e o pai; mas no momento em que o filho se casa, ela passa a ter
direito de acesso à presença do pai. Como o Pai está pronto a receber seu
filho e a dar-lhe privilégios que não concederia aos seus servidores favoritos
e mais dignos de confiança, assim agora ele os concede à nora, porque é
esposa do seu filho. Povo cristão, será que tiramos proveito destes altos
privilégios? Será que nos apercebemos de que temos direito de entrada e
acesso à presença do Pai? Apesar de ser Ele o Governador do universo, se
vocês tiverem alguma necessidade, lembrem-se de que têm direito de chegar
à Sua presença. Por amor a Seu Filho, Ele não os rejeitará. Esposa de
Cristo, Ele sempre lhe dará ouvidos, Ele sempre terá tempo para você. Não
há maior privilégio do que este. Ele nos ama como

ama a Seu Filho, e nos dá este direito de entrada e acesso à Sua santa
presença.
Mais ainda, estou simplesmente dando títulos para que reflitam e meditem.
Devemos dedicar muito do nosso tempo a estes pontos, pensando neles.
Quando vocês se ajoelharem para orar, não comecem a falar
imediatamente; parem e pensem. Pensem mesmo antes de dobrar os joelhos.
Procurem dar-se conta do que estão fazendo; lembrem-se do que são, e
porque são o que são; tragam à memória aquilo que lhes diz respeito, e os
direitos e privilégios que lhes são dados. Depois, passem a considerar as
possessões que o Senhor nos dá. Somos participantes das Suas possessões. O
apóstolo Paulo, numa extraordinária exposição escrita à igreja de Corinto,
diz, como se fosse, o seguinte: “Com que vocês se preocupam? Por que se
dividem e têm ciúme e inveja uns dos outros? Que é que há com vocês?
Todas as coisas são suas. Tudo! Não importa o que seja, tudo e todos são
seus. Por que? Porque vocês são de Cristo, e Cristo é de Deus.” Estudem
isso com esmero, no final do capítulo 3.

Tomo a inquirir: não estou certo quando digo que a verdadeira tragédia
hoje está na falha evidenciada pela Igreja de não compreender a verdade
sobre si mesma? “Tudo é vosso” - tudo! Em certo sentido, o cosmo é nosso,
porque pertencemos a Cristo. O apóstolo Paulo ficava emocionado com este
conhecimento; e a prova do nosso cristianismo, a prova da nossa
espiritualidade, é se nos comovemos e vibramos com estas coisas. Pode ser
que estejamos passando por períodos difíceis, que estejamos sendo
perseguidos, que estejamos sendo desprezados, que estejam rindo de nós
porque somos cristãos. Sabem o que devemos dizer a nós mesmos? Devemos
dizer: “se nós somos filhos, somos logo herdeiros também, herdeiros de
Deus e co-herdeiros de Cristo” (Romanos 8:17). Pouco importa o que o
mundo pense ou diga - “tudo é vosso”; os cristãos são “co-herdeiros de
Cristo”.

Mas eu gosto particularmente da maneira como isto é expresso pelo autor


da Epístola aos Hebreus, no capítulo 2, versículo 5. Já o citei, mas volto a
fazê-lo: “Porque não foi aos anjos que sujeitou o mundo futuro, de que
falamos”. É uma pena que a Versão Autorizada e a Versão de Almeida
façam a tradução dessa maneira negativa. O sentido é: ele não sujeitou o
mundo futuro, do qual falamos, aos anjos, mas a nós. Qual é este “mundo
futuro” de que ele fala? É este velho mundo em que eu e vocês vivemos
atualmente. Sim! No entanto, não como ele é agora. É o mesmo mundo de
hoje, mas como será quando Cristo voltar e destruir todos os Seus inimigos,
todo o mal, e todo vestígio e todos os restos do mal; quando ocorrer o
grande incêndio, a grande purificação, a regeneração, quando surgirem
“novos céus e nova terra, em que habita a justiça” (2 Pedro 3:13; cf. Mateus
19:28). Esse é o “mundo futuro” do qual ele está falando. E esta é uma parte
vital da mensagem cristã essencial. Este mundo, no qual estamos neste
momento, é apenas um mundo passageiro; este não é o mundo real, o
mundo duradouro. O que vemos é o mundo resultante do que o homem fez
dele. Vemos o caos que o homem produziu. Naturalmente, o mundo mesmo
está muito interessado no vísivel e no atual; e todo mundo fica
se perguntando que será que a última conferência vai realizar - haverá
desarma-

mento, será abolida a guerra, tudo será perfeito por todo o tempo restante?
Mas tudo em vão. Este mundo é mau, e o mal e o pecado continuarão a
manifestar-se, enquanto não chegar o dia do juízo determinado por Deus.
Todavia, há um “mundo futuro”; é a Nova Jerusalém que descerá do céu,
este velho mundo restaurado com toda a sua pristina glória, este velho
mundo como Deus o fez no princípio, mas ainda mais glorioso. Isso
acontecerá na segunda vinda de Cristo. Ele mesmo o habitará, e Sua esposa
com Ele. Esse é “o mundo futuro, de que falamos”. Quem irá viver nesse
mundo, quem herdará esse mundo? Bem, diz a epístola que não serão os
anjos. “Porque não foi aos anjos que sujeitou o mundo futuro, de que
falamos”, e sim a nós. Somos nós os herdeiros desta glória vindoura.
Amados irmãos, vocês refletiram nisso alguma vez? Lembraram-se disso
alguma vez? Pode ser que estejam tendo tempos difíceis, lutando com
o mundo, a carne e o diabo; podem estar enfrentando dificuldades e
obstáculos. Dêem as costas para isso! Não olhem só para isso! “Não
atentando nós nas coisas que se vêem, mas nas que se não vêem; porque as
que se vêem são temporais, e as que se não vêem são eternas” (2 Coríntios
4:18). Levantem a cabeça; vocês compartilham a herança de Cristo, as Suas
possessões! Vocês O desposaram -ou melhor, Ele os desposou - e coloca todas
estas coisas em suas mãos. Vocês são participantes das possessões de Cristo.

Permitam-me salientar de novo que somos partícipes dos interesses de


Cristo, dos Seus planos e dos Seus propósitos. “Cooperadores de Deus”
(1 Coríntios 3:9). Não pense em sua igreja local, ou nalguma outra igreja,
apenas em termos de si próprio e daquilo que você faz. A mesma coisa se
aplica à sua denominação ou movimento. Eleve-se a um nível superior e
considere os interesses do Senhor. Tomo a citar, “Vós sois a luz do mundo”.
O Senhor tem um propósito com respeito a este mundo, e eu e você estamos
envolvidos nesse propósito e somos participantes dele. O marido conta tudo
à sua esposa. Ela conhece todos os seus segredos, todos os seus desejos, toda
ambição, toda esperança, todos os projetos que penetram sua mente. Ela e
ele são um. Ele lhe diz coisas que não diria a ninguém mais; ela participa de
tudo, nada fica para trás, nada se lhe oculta. Essa é a relação de marido e
mulher. É igualmente a relação entre Cristo e a Igreja; somos Seus parceiros
neste serviço de salvar homens. Vocês sabem desse interesse? Sentem-no,
pensam nisso, dão valor ao privilégio de serem participantes do segredo?
Sentem alguma porção do fardo, e O estão ajudando? O cristão é para isso,
a esposa é para isso - uma ajuda satisfatória - e a Igreja é a esposa de Cristo.
Quantas vezes vocês oram pelo bom êxito da pregação do evangelho? Até
que ponto vocês estão interessados na mensagem evangelística da Igreja?
Vocês pensam nisto, sentem-se parte disto, oram por isto? A esposa digna do
título não precisa ser exortada a interessar-se pelas ocupações do marido;
ela considera seu maior privilégio ajudar seu marido; interessa-se
vitalmente por tudo que ele faz e pelo seu sucesso em tudo. A Igreja é a
esposa de Cristo; Ele partilha tudo conosco. Tratemos de nos conscientizar
destas coisas e de elevar-nos à dignidade e ao privilégio que lhes são
próprios.

Mas, deixem-me mencionar uma coisa que, para mim, é um dos seus mais
fascinantes e encantadores aspectos. O Senhor não partilha conosco
somente as Suas possessões, os Seus interesses, os Seus planos e os Seus
propósitos; também partilha conosco os Seus servos. Você pode ter sido uma
Cinderela (Gata Borralheira); a Igreja toda era uma Cinderela, em seus
trapos, com sua dura vida de escrava, fazendo todos os trabalhos caseiros
em lugar de suas irmãs. Mas Cinderela casou-se com o príncipe; e o que
sucede? Em vez de mourejar como escrava daquela maneira, agora ela tem
os seus servos. Que servos? Os dele! Uma vez que ela se tomou esposa deste
príncipe, todos os servos dele são servos dela e lhe prestam serviço como
prestam serviço a ele. Vocês já se deram conta de que esta verdade se aplica
a nós? Voltemos mais uma vez à Epístola aos Hebreus, capítulo primeiro. O
escritor compara e contrasta o Senhor Jesus Cristo com os anjos e eis como
se expressa: “a qual dos anjos disse jamais: assenta-te à minha destra até
que ponha a teus inimigos por escabelo de teus pés?" E a seguir: “Não são
porventura todos eles espíritos ministradores, enviados para servir a favor
daqueles que hão de herdar a salvação?” (versículos 13 e 14).

O sentido é que, devido sermos cristãos, os anjos de Deus nos servem: aí está
como a epístola descreve um anjo. Este é um “espírito
ministrador”, enviado para nos servir e para ministrar a nosso favor, que
somos herdeiros do “mundo futuro” do qual ela está falando. Receio que
negligenciamos o ministério dos anjos; não pensamos suficientemente nisso.
Entretanto, quer estejamos cientes quer não, há anjos que cuidam de nós;
eles estão ao redor de nós. Não os vemos, mas isso não importa. As coisas
mais importantes nós não vemos; só enxergamos as coisa visíveis. Contudo,
estamos cercados de anjos; são designados para tomar conta de nós e para
ministrar a nosso favor- anjos da guarda. Não tenho a pretensão de
entender isso tudo; nada sei além daquilo que a Bíblia me diz - no entanto
isto eu sei: os servos do Senhor, os anjos, são meus servos. Eles estão ao
redor de todos nós, cuidando de nós e manipulando as coisas por nós de um
modo que não podemos compreender. E sei mais, que quando morrermos,
eles nos levarão para o lugar que nos está destinado. Foi o próprio Senhor
Jesus Cristo que ensinou essa verdade na parábola do rico e Lázaro, em
Lucas capítulo 16. É-nos dito que o rico morreu e foi sepultado. Mas o que
aconteceu com Lázaro? Ele “foi levado pelos anjos para o seio de Abraão”.
Porventura, damo-nos conta de que os anjos de Deus ministram a nosso
favor porque somos a esposa do Filho? Desde sua origem eles
têm ministrado para Ele e nEle têm esperado; e devido à nossa nova
relação, agora são nossos servos, ministrando para nós. Queira Deus dar-
nos a graça de perceber que estamos rodeados de tais ministérios e
ministrações, e de tais ministros! Nada pode fazer-nos dano definitivamente;
aí estão eles, enviados pelo Senhor para velar por nós.

Lembrem-se, porém, de que também somos participantes dos Seus


problemas, dificuldades e sofrimentos. Ele disse: “Se a mim me
perseguiram, também vos perseguirão a vós” (João 15:20). Também falou
de ódio. Partilha-

mos algo dos Seus problemas? Estamos cientes disto? “Meus fílhinhos”, diz
Paulo aos gálatas, “por quem de novo sinto as dores de parto, até que Cristo
seja formado em vós” (4:19). Ele sentia alguma coisa dessas dores. Todavia,
de modo ainda mais notável ele diz, em Colossenses 1:24: “Regozijo-me
agora no que padeço por vós, e na minha carne cumpro o resto das aflições
de Cristo, pelo seu corpo, que é a igreja”. O apóstolo Paulo estava tão
consciente desta relação com o Senhor Jesus Cristo, que dizia que estava
cumprindo em seu corpo o que restava dos sofrimentos de Cristo. A esposa
digna deste título sofre sempre que o seu marido sofre; sofre em seu coração
quando o vê sofrer; ela o partilha com ele, suporta-o com ele. Assim o
apóstolo Paulo completou em seu próprio corpo algo do que restava dos
sofrimentos de Cristo à medida que Este leva a efeito o Seu propósito no
mundo, a agonia do Filho de Deus, que continuará até chegar o “dia da
coroação”. A Igreja é a esposa de Cristo. Será que nós, como partes e
porções do corpo, temos alguma experiência desta agonia, deste
sofrimento, dos sofrimentos da Cabeça?

Finalmente, participaremos de toda a glória das Suas prospectivas. Tomo a


referir-me ao “mundo futuro”. “Quando Cristo, que é a nossa vida,
se manifestar, então também vós vos manifestareis com ele em glória”
(Colossenses 3:4). “Igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa
semelhante, mas santa e irrepreensível” - quando Ele vier em sua glória. Se
todos nós tivermos morrido, viremos com Ele; se estivermos vivos, seremos
tranformados e arrebatados para encontrar-nos com Ele nos ares.
Estaremos na glória etema com o Filho de Deus (cf. 1 Coríntios 15:51-52 e 1
Tessalonicenses 4:17). Esta é Sua oração especial ao Pai: “Pai, aqueles que
me deste quero que, onde eu estiver, também eles estejam comigo, para que
vejam a minha glória que me deste”. “Eu dei-lhes a glória que a mim me
deste.” Participaremos dela com Ele por toda a eternidade. Haverá alguma
coisa comparável a isto, a sermos membros do corpo de Cristo, a sermos
como partes da Igreja, a esposa de Cristo?

Que vergonha, por nossa fraqueza, nosso desalento, nossas queixas, nossa
letargia, nossa quase-inveja do mundo e da sua vida pretensamente
maravilhosa, da sua pretensa alegria e do seu pretenso gozo. É um mundo
agonizante; é um mundo mau; está sob condenação; vai desaparecer. O
mundo já “está passando”. Mas eu e você temos esta glória vindoura que
podemos divisar, a glória que compartiremos com o Senhor Jesus Cristo
naquele grande dia. A glória daquele “mundo futuro” é indescritível; e nele
viveremos e reinaremos com o Senhor.

Havendo tomado a Igreja como Sua esposa, Ele lhe outorga isso tudo. Suas
prospectivas são nossas, Sua glória é nossa, tudo é nosso. “Os
mansos herdarão a terra" (Salmo 37:11; Mateus 5:5). Reinaremos com Ele
sobre o universo todo; julgaremos os anjos. Eu e vocês! Assim é o cristão!
Assim é a Igreja cristã, na qualidade de esposa de Cristo!

OS DEVERES DO ESPOSO Efésios 5:25-33


Nas considerações feitas sobre esta exposição, vimos que há dois temas
principais. Um é o tema sobre o relacionamento entre o Senhor Jesus Cristo
e a Igreja, e o outro é sobre o relacionamento entre o marido e a esposa. O
ensino do apóstolo é que só poderemos compreender verdadeiramente a
relação de marido e mulher quando compreendermos a grandiosa doutrina
de Cristo e a Igreja. Por isso estivemos considerando primeiro a doutrina de
Cristo e a Igreja, e, tendo feito isso, agora estamos em condições de começar
a aplicação disso, particularmente ao marido, embora, como vêem, o
apóstolo tenha o cuidado de, no fim (versículo 33), considerá-la também
segundo o aspecto e o ponto de vista da esposa. A aplicação da doutrina é
introduzida pelas expressões “assim” e “como”. “Vós, maridos, amai vossas
mulheres, como também” - e depois, no fim, “Assim também vós, cada um
em particular, ame a sua própria mulher como a si mesmo”. Noutras
palavras, ele está desenvolvendo a comparação que nos desvendara, da
relação de Cristo com a Igreja em termos da relação do marido com a
esposa.

Como chegamos, pois, à aplicação, parece-me que a melhor maneira de


tratá-la é dividi-la em duas partes. A primeira é a porção na qual são
ensinados certos princípios concernentes aos maridos e suas mulheres.
Depois, tendo firmado os princípios gerais, podemos marchar para a
segunda, que consiste da aplicação prática detalhada dos princípios à
situação concreta.

Os princípios gerais, como os vejo, são os seguintes: primeiro, devemos dar-


nos conta, quanto ao casamento, como na verdade com tudo mais na
vida cristã, de que o segredo do sucesso está em pensar e entender. Isso
certamente está evidente na superfície da passagem. Nada acontece
automaticamente na vida cristã. Esse é um princípio deveras profundo, pois
acredito que, na maioria, os nossos problemas surgem do fato de que
tendemos a pressupor que eles acontecem automaticamente. Insistimos em
agarrar-nos a uma idéia semi-mágica da regeneração que ensina que, em
vista do que aconteceu conosco, o restante da estória é simplesmente este:
“E viveram felizes para sempre”. É claro, no entanto, que sabemos que isso
não é verdade. Há problemas na vida cristã; e uma vez que tanta gente não
entende que isso não é uma coisa que se dá automaticamente, metem-se em
problemas e dificuldades. Obviamente, o antídoto contra isso é pensar, é ter
compreensão, é raciocinar exaustivamente sobre a questão. O mundo não
faz isso. Em última análise, o problema que há com o mundo, segundo o
ensino da Bíblia, é que ele não pensa. Se as pessoas

tão somente pensassem, muitos dos seus problemas seriam resolvidos.

Tomem o problema da guerra, por exemplo. A guerra é uma coisa


inerentemente ridícula; é insana. Então, por que guerreiam? A resposta
é: porque não pensam. Agem instintivamente, deixam-se governar por
instintos primitivos, como a cobiça, a avareza, a ira etc., e atacam antes de
pensar. Se tão somente parassem para pensar, não haveria mais guerra. A
falácia do humanista é, por certo, que ele crê que tudo quanto resta fazer é
dizer aos homens que pensem. Mas, desde que são pecadores, não pensarão.
Estas forças elementais são tão mais fortes que as forças racionais, que “o
homem em pecado” é sempre irracional.

Havendo-nos tomado cristãos, continuamos precisando observar este


mesmo princípio. Mesmo o cristão não pensa automaticamente; ele precisa
ser ensinado a pensar - daí estas epístolas do Novo Testamento. Por que
foram escritas? Se o homem, ao tomar-se cristão, pensa automaticamente a
coisa certa, por que o apóstolo escreveu estas epístolas? Ou, se você pode
receber a sua santificação como um ato, como uma bênção, por que estas
epístolas foram escritas? Aí estão elas, repletas de arrazoados, de
argumentos, de demonstrações, de analogias e comparações. Por que? Para
ensinar-nos a pensar, para ensinar-nos a resolver as coisas e a obter
entendimento.

Pensar é essencial, como o demonstra o apóstolo, em conexão com todo este


assunto sobre o casamento. O mundo vê o casamento da seguinte
maneira: principia mais ou menos tomando certas coisas importantes como
líquidas e certas. Apóia-se no que denomina “amor”, apóia-se nos
sentimentos. Duas pessoas dizem que “se apaixonaram” mutuamente, e, à
vista disso, casam-se. Não se detêm para pensar e questionar, exceto
excepcionalmente. São motivadas, animadas e levadas pela sensação de que
tudo está fadado a ir bem, que com certeza a sua felicidade será duradoura
e nunca poderá falhar. Tudo isso é fomentado pela literatura popular, pelos
filmes exibidos nos cinemas e pela televisão em casa. Mas depois você lê os
jornais e suas reportagens, e vê que falha. Por que? Eis a resposta: porque
nunca pensaram bastante na questão; e, portanto, seu casamento não pode
resistir às provas, pressões e tensões que inevitavelmente sobrevêm na vida
do dia a dia, com a sua rotina enfadonha, o seu cansaço físico e muitas
outras coisas que causam dificuldades. E desde que essas pessoas nunca
pensaram no assunto suficientemente, não têm nada a que recorrer. Agiram
baseados num sentimento, num impulso; agiram emocionalmente. A mente
quase não entrou nisso, dando como resultado que quando se vêem
confrontadas por dificuldades, não têm argumentos a que recorrer.
Não sabem o que fazer; parece-lhes que tudo se foi; e assim, entram em
pânico e imediatamente iniciam um processo de divórcio; e muitos repetem
esse modo de proceder várias vezes. A causa do problema está na ausência
de compreensão, na falta de aplicação do pensamento.

Quando se considera a posição cristã, vê-se que a principal diferença é esta:


o cristão é exortada a pensar e a compreender, e recebe uma base sobre
a qual poderá fazê-lo. Esse é o sentido e o propósito deste ensino que nos é
dado;

assim, ficaremos sem desculpa se o negligenciarmos. O mundo não tem esse


ensino, mas nós não nos achamos mais nessa situação. Portanto, a primeira
coisa que este parágrafo nos lembra é que precisamos pensar. Até se nos diz
como fazê-lo, e isso é posto diante de nós com pormenores. Esse é o
primeiro princípio.

O segundo princípio é que, como cristãos, a nossa concepção do casamento


deve ser positiva. O perigo está em pensarmos que o casamento entre
cristãos é essencialmente idêntico ao de todos os demais, sendo a
única diferença que, num caso, os nubentes são cristãos, e no outro caso não.
Pois bem, se continua sendo esse o nosso conceito do casamento, então nosso
estudo deste importante parágrafo foi inteiramente em vão. O casamento
cristão, o conceito cristão do casamento é essencialmente diferente de todos
os outros conceitos. Seguramente é isto que vai emergindo à medida que
abrimos caminho através deste parágrafo.

Obtemos aqui um conceito do casamento que só é possível dentro da fé


cristã; chega ele à elevada posição ocupada pela relação que há entre o
Senhor Jesus Cristo e a Igreja. Assim, a atitude do cristão para com o
casamento é sempre positiva, e ele há de estar sempre se esforçando em
busca deste ideal. O conceito cristão não deve ser negativo no sentido de
que, visto que certos novos fatores vieram a fazer parte dele, este casamento
deve durar, ao passo que o casamento não cristão provavelmente não
durará. Isso é puramente negativo. Não deve ser que meramente evitamos
certas coisas próprias dos outros; temos que ter esta concepção ideal,
positiva do casamento. É uma coisa em que devemos pensar sempre em
termos da relação que há entre o Senhor Jesus Cristo e a Igreja. Devemos
aprender a provar-nos a nós mesmos constantemente com as seguintes
perguntas: a minha vida matrimonial corresponde de fato àquela relação?
Manifesta a referida relação? Está sendo governada por ela?
Noutras palavras, na posição cristã não paramos de pensar nessas coisas
depois de alguns meses de casados. Continuamos pensando, e pensamos
cada vez mais, e quanto mais cristãos nos tornamos e mais crescemos na
graça, tanto mais pensamos no casamento, e mais interessados ficamos em
que o casamento se amolde ao padrão celestial, a este glorioso ideal da
relação entre o Senhor Jesus Cristo e a Igreja. Isso é algo difícil de expressar
com palavras. O que estou tentando comunicar é que a grande diferença
entre o casamento de cristãos e o de não cristãos há de ser que, no caso dos
cristãos, o casamento se torna progressivamente mais maravilhoso, mais
glorioso, à medida que se vai amoldando ao ideal e o vai alcançando cada
vez mais. Certamente todos nós vemos a significação disso quando o
aplicamos àquilo que é tão comum acontecer com o casamento, não somente
entre os não cristãos, e sim também, lastimavelmente, entre os cristãos! A
concepção cristã do casamento é uma concepção que continua a crescer, a
desenvolver-se e a ampliar-se.

Meu terceiro e último princípio geral decorre da exposição toda - isto é, em


última análise a verdadeira causa do fracasso no casamento é sempre o
ego e suas diversas manifestações. Naturalmente, essa é a causa de
problemas em

toda parte e em todas as esferas. O ego e o egoísmo são as maiores forças


destruidoras do mundo. Todos os grandes problemas que o mundo
defronta, quer vejamos a matéria do ponto de vista das nações e dos
estadistas, quer do ponto de vista das condições industriais e sociais, quer de
qualquer outro ponto de vista - todos estes problemas por fim retomam ao
ego, a “meus direitos”, a “o que eu quero”, e a “quem é ele?” ou “quem é
ela?”. O ego, com as suas horrendas manifestações, sempre leva a algum
problema porque, se dois “egos” entram em oposição, estarão fadados a um
conflito. O ego sempre quer tudo para si. Isso é certo quanto ao meu ego,
mas é igualmente certo quanto ao seu ego. De imediato haverá dois poderes
autônomos, cada qual oriundo do ego, e o conflito será inevitável. Tais
conflitos ocorrem em todos os níveis, desde um casal até grandes
comunidades, impérios e nações.

O ensino do apóstolo nos versículos em estudo visa mostrar-nos como evitar


as calamidades resultantes do ego. Por isso caprichei para salientar
o versículo 21 antes de começar a considerar a questão do casamento. Ele é
a chave do parágrafo inteiro - “Sujeitando-vos uns aos outros no temor de
Deus”. Esse é o princípio básico, e deve ser próprio de todos os membros da
Igreja cristã. Casados ou não, todos devemos sujeitar-nos uns aos outros no
temor de Deus. Depois o apóstolo prossegue e aplica o princípio ao caso
particular do homem e da mulher, do marido e sua esposa, e ele o faz com
tanta simplicidade e clareza que certamente ninguém poderá enganar-se.
Que é essencial sobre o casamento? Diz ele que é esta unidade - esta dupla,
estes dois passaram a ser uma só carne. Daí, temos que parar de pensar
neles como dois; tomaram-se um. Portanto, toda e qualquer tendência de
afirmar o ego, logo entra em conflito com a concepção fundamental do
casamento. No casamento, diz o apóstolo, deveria ser inimaginável o
surgimento de tal conflito, porquanto pensar neste dois como dois é negar o
princípio básico do casamento, segundo o qual eles são um. “E serão dois
numa came.” A esposa é “o corpo” do marido, como a Igreja é o corpo de
Cristo - e assim por diante. Assim, temos aqui, acima de tudo mais,
a denúncia final do ego e todas as suas horríveis manifestações; e o texto
nos mostra a única maneira pela qual podemos ficar definitivamente livres
dele.

Esses são os três principais princípios que, no casamento, estão subjacentes


à aplicação prática da doutrina da relação existente entre o Senhor Jesus
Cristo e a Igreja. Ora, o marido deve ser governado por estes princípios.
Como isto funciona na prática? Primeiramente, o marido deve compreender
que a sua esposa é uma parte dele. Ele não se aperceberá disto
instintivamente; terá que ser ensinado; e a Bíblia o ensina em todas as suas
partes. Noutras palavras, o marido deve entender que ele e sua mulher não
são dois: são um. O apóstolo fica repetindo isso: “Assim devem os maridos
amar a suas próprias mulheres, como a seus próprios corpos.” “Quem ama
a sua mulher, ama-se a si mesmo”; “e serão dois numa carne.” “Porque
somos membros do seu corpo, da sua carne e dos seus ossos.” Isso tudo é
certo quanto à nossa relação com o Senhor, e também é certo quanto a esta
outra relação.

Desejo, pois, expressá-lo deste modo - que não nos será suficiente consi-
derar nossas esposas como companheiras. São companheiras, mas são mais
que isso. Dois homens podem ser companheiros de negócio, porém a
analogia não é essa. A analogia supera isso. Não é uma questão de
companheirismo, embora inclua essa idéia. Há outra frase freqüentemente
usada - pelo menos era comum

- que coloca isso muitíssimo melhor e que me parece ser uma


afirmação inconsciente do ensino cristão. É a expressão empregada por
homens ao se referirem a suas esposa dizendo, “minha melhor metade”.
Ora, isso está exatamente correto. Ela não é uma companheira, é a outra
metade do homem. “E serão dois numa carne”. “Minha melhor metado.” A
própria palavra “metade” exprime toda a argumentação que o apóstolo
elabora aqui. Não estamos lidando com duas unidades, duas entidades, e
sim das duas metades de um ser - ”E serão dois numa carne”. Portanto, à
luz disso, o marido não deve pensar mais no sentido singular e individual.
Isso tem de ser completamente impossível no casamento, diz o apóstolo,
porque, “Quem ama a sua mulher, ama-se a si mesmo”. Em certo sentido ele
não está amando uma outra pessoa; está amando a si mesmo. Essa é a
diferença que o casamento faz.

Ao nível prático, portanto, o pensamento do marido deve incluir sua esposa


também. Nunca deverá ele pensar em si isolada ou separadamente.
No momento em que fizer isso romperá o princípio mais fundamental do
casamento. Toda gente vê isso quando sucede no nível físico, porém o dano
real é feito antes disso, nos níveis intelectual e espiritual. Num sentido, no
momento em que um homem pensa em si isoladamente, já rompeu o
casamento. Ele não tem direito de fazer isso! Há um sentido em que ele não
pode fazê-lo, porque a esposa é uma parte dele. Contudo, se isso acontecer,
certamente ele infligirá grave dano à sua esposa; e será um dano em que ele
mesmo estará envolvido, porque-ela é parte dele. Portanto, ele estará agindo
contra si próprio -oxalá percebesse isso! Por conseguinte, o seu pensamento
nunca deverá ser pessoal no sentido de ser individualista. Ele é somente a
metade, e o que ele faz envolve necessariamente a outra metade. A mesma
coisa aplica-se aos seus desejos. Jamais deverá ter ele algum desejo só para
si. Ele não é mais um só ser isolado, não é mais um ser livre, nesse sentido;
sua esposa está envolvida em todos os seus desejos. Compete-lhe, pois, ver
que esteja sempre plenamente desperto para estas considerações. Noutras
palavras, ele nunca deverá pensar em sua esposa como um acréscimo.
Menos ainda - lamento ter que usar esta expressão
- como um obstáculo; mas há muitos que fazem isso.

Resumindo, isto constitui um grande mandamento aos homens casados, que


nunca sejam egoístas. Tampouco a mulher deve ser egoísta, é claro. Tudo se
aplica ao outro lado, mas aqui estamos tratando particularmente dos
maridos. Já vimos que a mulher deve sujeitar-se. Ao fazê-lo, ela age com
base no mesmo princípio; agora este é o lado do marido, nesta questão.
Portanto, ele sempre deve lembrar-se deliberadamente daquilo que vale
para ele no estado matrimonial e que deve governar e dominar todo o seu
pensar, todo o seu querer, todo o seu desejar, na verdade a totalidade da sua
vida e das suas atividades.

Podemos, no entanto, ir adiante e expressar isto mais vigorosamente. O

versículo 28 termina com as palavras: “Quem ama a sua mulher, ama-se a si


mesmo”; mas nos lembramos de que o apóstolo, ao descrever a relação entre
o Senhor e a Igreja, utilizou a analogia do corpo. “Assim”, diz ele mais, no
mesmo versículo, “Assim devem os maridos amar a suas próprias mulheres,
como a seus próprios corpos”. Depois ele o desenvolve no versículo 29:
“Porque nunca ninguém aborreceu a sua própria carne; antes a alimenta e
sustenta, como também o Senhor à igreja”. Aí, então, está o ensino - que não
somente devemos estar cientes de que o marido e a esposa são um, mas
também o marido deve levar em conta que a esposa é de fato uma parte
dele, segundo a analogia do corpo. A atitude de um homem para com a sua
esposa, diz o apóstolo, deve ser, por assim dizer, a sua atitude para com o
seu corpo. Essa é a analogia - e é mais que analogia. Já consideramos o
assunto como é ensinada no fím do capítulo 2 de Gênesis. A mulher foi
tirada originariamente do homem. Temos ali a prova do fato de que ela é
uma parte do homem, e isso descreve a característica da unidade. Ao
homem se diz, pois, isto: “Assim devem os maridos amar a suas próprias
mulheres, como a seus próprios corpos”. Pois bem, a pequenina
palavra “como” é muito importante e vital, porque facilmente poderemos
entendê-la mal. Paulo não diz: “Assim devem os maridos amar a suas
próprias mulheres da mesma maneira como amam a seus próprios corpos”.
O sentido não é esse. O sentido é: “Assim devem os maridos amar a suas
próprias mulheres porque elas são os seus próprios corpos”. O homem ama
sua mulher como seu corpo - é isso que o apóstolo está dizendo. Não é
“como” ele ama seu corpo assim deve amar sua esposa. Não! O homem deve
amar sua esposa como (sendo) seu corpo, como uma parte dele. Assim como
Eva era uma parte de Adão, tirada do seu lado, assim é a esposa para o
homem, porque é parte dele.

Estou dando ênfase a isto pelo motivo que o apóstolo expõe claramente, a
saber, para mostrar que existe este elemento de indissolubilidade quanto
ao casamento, indissolubilidade que, conforme entendo o ensino bíblico, só
pode ser desfeita pelo adultério. Todavia, o que nos interessa dizer agora é
que o apóstolo faz esta colocação a fim de que o marido veja que não pode
desligar-se da sua esposa. Você não pode desligar-se do seu corpo; assim,
você não pode desligar-se da sua esposa. Ela faz parte de você, diz o
apóstolo; portanto, lembre-se disso sempre. Você não pode viver isolado,
não pode viver separado. Se compreender isso, não correrá o risco de
pensar em separação, não correrá o risco de anelar, querer, desejar a
separação. Menos ainda poderá haver algum antagonismo ou ódio.
Observem como ele se expressa: “Nunca ninguém”, diz ele para
ridicularizar a coisa, “nunca ninguém aborreceu a sua própria carne; antes
a alimenta e sustenta, como também o Senhor à igreja”. Assim, todo
e qualquer elemento de ódio entre marido e mulher é pura loucura; mostra
que o homem ignora totalmente o que significa o casamento. “Nunca
ninguém aborreceu a sua própria carne” - mas a sua esposa é a sua própria
carne, e o seu corpo; portanto, ele deve amar sua esposa como seu próprio
corpo.

A que isto leva na prática? Chego aqui a um ensino muito detalhado do qual
todos têm necessidade, os cristãos e os demais. Todos falhamos, Deus o

sabe; todos pecamos deixando de entender este ensino e de aplicá-lo


pormen-orizadamente. O princípio é que a esposa é, por assim dizer, o
corpo do homem. Assim, o que o seu corpo é para a sua personalidade, a sua
esposa deveria ser para ele. Disso provém o ensino detalhado do apóstolo.
Como o homem deve tratar sua esposa? Permitam-me dar primeiro alguns
itens negativos. Ele não deve abusar dela. É possível a um homem abusar do
seu corpo, e muitos o fazem - comendo demais, bebendo demais, e de várias
outras maneiras. Isso é abusar do corpo, maltratá-lo, ser maldoso para com
ele. Ora, diz o apóstolo, o homem que faz isso é insensato, porque, se
maltrata o seu corpo e abusa dele, quem vai sofrer é ele. Você não pode
desligar-se do seu corpo; e se pensa que pode, e abusa do seu corpo, você é
quem irá sofrer. Sua mente sofrerá, seu coração sofrerá, todo o seu viver
sofrerá. Talvez você diga: “Não me importo com meu corpo, estou vivendo a
vida do intelecto”; mas, se continuar agindo assim, logo verá que já não
possui o intelecto que outrora possuía, e que não será capaz de pensar como
antes. Se abusar do seu corpo, será você que irá sofrer. Não sofrerá só o seu
corpo, mas você mesmo sofrerá também. É exatamente a mesma coisa na
relação matrimonial. Se um homem abusar da sua esposa, ele sofrerá,
bem como sua esposa. Assim, além do erro inerente ao abuso, o homem
será insensato. Se um homem abusar da sua esposa, ocorrerá colapso não
somente na esposa, mas também no homem, e no relacionamento entre
ambos. Certamente é o que está acontecendo comumente no mundo hoje.
Deveria ser uma coisa inimaginável, um cristão abusar da sua esposa.

Mas não somente não deve o marido abusar da sua esposa; em segundo
lugar, não deve negligenciá-la. Retomemos à analogia do corpo. Um
homem pode negligenciar seu corpo. Acontece muitas vezes e, de novo, isto
sempre leva à dificuldades. Negligenciar o corpo é mau, é tolo, é errado. O
homem foi constituído de tal maneira que ele é corpo, mente e espírito, e os
três estão em íntima relação uns com os outros. Seguramente estamos todos
cientes disto. Tome-se um exemplo em termos da fragilidade do corpo. Se
sofro de laringite, não posso pregar, ainda que queira fazê-lo. Posso estar
com a mente cheia de idéias, e posso estar dominado pelo desejo de pregar,
porém, se a minha garganta estiver inflamada, não poderei falar. E assim é
com o corpo todo. Se você negligenciar o corpo, sofrerá por isso. Muitos
homens têm feito isso, muitos eruditos têm feito isso, e pela negligência dos
seus corpos o trabalho deles padeceu. Isso por causa da unidade essencial
que há entre estas partes das nossas personalidades.
Dá-se exatamente a mesma coisa na relação matrimonial, diz o apóstolo.
Quão maiores dificuldades são causadas na esfera do casamento
simplesmente pela negligência! Recentemente foi publicado nos jornais um
documentário médico dando provas de que atualmente numerosas mulheres
foram empurradas ao vício de fumar. Por que? Simplesmente porque foram
negligenciadas por seus maridos. Os maridos passam suas noites fora, em
esportes ou em bares ou jogando com os amigos; e a pobre esposa é deixada
em casa com as crianças e com o trabalho. O marido vem para casa na hora
de ir para a cama e dormir; de

manhã se levanta e sai. A negligência de que a esposa é vítima está levando a


estas condições nervosas que se revelam no ato de fumar excessivamente
e noutras manifestações de tensão nervosa. É lamentável que um homem se
case e depois se ponha a negligenciar a esposa. Noutras palavras, eis um
homem que se casou, mas que em questões essenciais continua vivendo
como se ainda fosse um solteirão. Continua com sua vida desligada,
continua passando o tempo com os seus amigos.

Eu poderia desenvolver isto com muita facilidade, porém os fatos são tão
conhecidos que isso se toma desnecessária. Na verdade tenho a impressão
de que existe mesmo nos círculos cristãos, até nos círculos evangélicos
conservadores, a tendência de esquecer este ponto particular. O casado não
deve continuar agindo como se fosse solteiro; sua esposa deve estar
envolvida em tudo. Recentemente recebi convite para uma realização social
relacionada com uma organização evangélica conservadora; mas o convite
foi dirigido somente a mim, sem incluir minha esposa. Automaticamente o
recusei, como sempre faço quando acontece esse tipo de coisa. Este é um
caso de organização cristã conservadora que obviamente não tem uma idéia
clara sobre estas questões. Aventuro-me a estabelecer como regra que o
cristão não deve aceitar convite para programas sociais sem sua esposa. É
irreparável o dano feito a muitos casamentos porque os homens se
encontram em seus clubes sem suas esposas. Isso é errado, pois é a negação
de princípios primordiais. O homem e a mulher devem fazer juntos as
coisas. Naturalmente, em seu trabalho profissional o homem tem de estar
só, e há outras ocasiões em que tem de estar só; mas se se tratar de uma
ocasião social, de algo de que a esposa pode participar, ela deverá participar,
e cabe ao marido providenciar para que ela participe. Sugiro que todos os
maridos cristãos recusem sem pestanejar todo convite que venha para eles e
não inclua as suas respectivas esposas.

Todavia, há outro aspecto desta questão que por vezes me causa grande
preocupação. Constantemente ouço falar daquilo que às vezes
denominam “viúvas cristãs conservadoras”. A expressão significa que o
marido desse tipo particular de mulher fica fora de casa todas as noites,
numa ou noutra reunião. Sua explicação, na verdade seu argumento, é que
ele está envolvido numa boa obra cristã; mas parece esquecer que é casado.
No outro extremo está, é certo, aquele tipo de cristão que não faz nada,
indulgente consigo mesmo e com sua preguiça, e que fica o tempo todo em
casa. Ambos os extremos sempre são errôneos; entretanto, no momento
estou condenando este extremo em particular - o caso do homem que vive
tão ocupado com a obra cristã, que negligência a sua esposa. Conheço
muitos exemplos disto. Recentemente me falaram de um deles, no norte da
Inglaterra - o caso de um homem que todas as noites estava falando em
reuniões, organizando isto e aquilo. O homem que me contou isso confessou-
me que ele mesmo estivera começando a fazer a mesma coisa, mas foi
despertado sobre o problema quando conheceu a mulher do outro homem, a
respeito de quem toda gente estava falando. O meu interlocutor me disse
que a pobre mulher parecia uma escrava - exausta, esgotada, cansada,
negligenciada

e infeliz, e com o coração atribulado. A conduta desse marido é gravemente


pecaminosa. Embora se faça isso em nome do trabalho cristão ativo, o
homem não pode e não deve subtrair-se dessa maneira à sua vida
matrimonial, porque a esposa é parte integrante dele — a sua “melhor
metade”, não sua escrava. Portanto, os maridos cristãos devem examinar-se
sobre esta questão. O lar não é um dormitório para onde o marido volta só
para dormir. Não! Tem de haver ali um relacionamento ativo, ideal,
positivo; e sempre devemos manter isto na parte frontal da nossa mente. O
homem deve, pois, buscar de Deus sabedoria para saber dividir-se nesta
relação. Mas, não interessa o que o homem é; se é casado, não deve portar-
se como solteiro, mesmo com relação à obra cristã, porque, agindo assim
estará negando o próprio ensino do evangelho que ele diz que prega.
Justamente aí pode haver egoísmo inconfesso. Sei que isso geralmente
acontece como resultado de nada menos que a irreflexão, a negligência;
todavia esta em geral leva ao egoísmo. Em todo caso, o cristão não deve
fazer-se culpado de irreflexão, de negligência.
Daí parto para a terceiro elaboração prática do ensino. O marido não deve
aproveitar-se da sua esposa, não deve negligenciar sua esposa e, em
terceira lugar, nunca deve desconsiderá-la como alguém sem valor. O fator
positivo sempre deve estar presente. A esposa não é apenas a governanta da
casa dele; há este elemento positivo. Qual a melhor maneira de expor isto?
Tomo a liberdade de adotar os termos do próprio apóstolo. Ele faz esta
colocação: “Assim devem os maridos amar a suas próprias mulheres, como
a seus próprios corpos. Quem ama a sua mulher, ama-se a si mesmo. Porque
nunca ninguém aborreceu a sua própria came; antes” - o quê? “a alimenta e
sustenta, como também o Senhor à igreja”. Vocês recordam como, quando
consideramos estas palavras, ficamos admirados e estonteados pelo modo
como o Senhor nos alimenta e cuida de nós. Mas é como o marido deve
portar-se para com a sua esposa. “Alimenta e sustenta”, ou “cuida dela”. De
novo, não se pode fazer isso sem exercer o pensamento.

Mais uma vez, isto pode ser elaborado em termos da analogia segundo a
qual o homem não aborrece, não odeia o seu próprio corpo, porém o
alimenta e cuida dele. Como o faz? Podemos fazer a seguinte divisão:
primeiramente há a questão da dieta. O homem tem que pensar em sua
dieta, em sua alimentação. Ele tem que nutrir-se suficientemente, que fazê-
lo com regularidade, e assim por diante. Tudo isso tem que ser planejado em
termos de marido e mulher. O homem deve pensar no que ajudará sua
mulher, no que a fortalecerá. Quando tomamos nossas refeições não
pensamos só em calorias, proteínas, gordura e carboidratos; não somos
puramente científicos, somos? Outro fator entra na questão dos alimentos.
Também somos influenciados pelo que agrada o paladar, pelo que nos dá
satisfação e prazer. É assim que o marido deve tratar sua mulher. Deve
pensar no que lhe agrada, no que lhe dá prazer, naquilo de que ela gosta e
que a satisfaz. Naturalmente, antes de casar-se ele renunciava ao seu gosto
para fazer isso; mas, depois de casado, já não o faz. Não é essa
a dificuldade? Muito bem, diz o apóstolo, você não deve parar, deve
continuar

pensando; e como você é cristão, deve dedicar-se a pensar e a cuidar cada


vez mais, não cada vez menos. Esse é o argumento dele. Não estamos todos
sob condenação? No entanto este é o ensino apostólico, o ensino do Novo
Testamento. Quanto à dieta, considere a personalidade integral e a alma da
sua mulher. É preciso que haja este pensamento ativo acerca do
desenvolvimento da esposa e da sua vida, neste admirável relacionamento
que o próprio Deus estabeleceu.

Ha ainda a questão dos exercícios. A analogia do corpo sugere logo isso.


Para o corpo o exercício é essencial; é igualmente essencial na
relação matrimonial. Pode significar uma coisa simples como esta - apenas
conversar. Ah, sei que muitas vezes a causa de problemas no casamento é a
falta de conversação! Todos sabemos quanta coisa se pode dizer como
desculpa. O homem está cansado, esteve trabalhando em seu emprego ou no
seu escritório o dia inteiro, e chega em casa enfadado, cansado, e quer
descanso e paz. Sim, mas essa verdade vale também para a sua esposa, com
a diferença de que talvez ela tenha estado sozinha o dia inteiro, ou só tenha
tido a companhia de criancinhas. Quer nos sintamos desse modo quer não,
temos que conversar. A esposa precisa de exercício neste sentido. Fale com
ela sobre seus negócios, sobre suas preocupações, sobre suas ocupações;
envolva-a nisso tudo. Ela é seu corpo, faz parte de você; portanto, deixe que
ela fale sobre isso. Consulte-a, permita que ela apresente o seu modo de
entender as coisa. Ela faz parte da sua vida, pelo que envolva-a na
totalidade da sua vida. Obrigue-se você mesmo a conversar. Noutras
palavras, é preciso que nós nos esforcemos a pensar, a cuidar. Repito que
conheço todas as desculpas e que bem sei como muitas vezes isso pode ser
difícil; faço, porém, a seguinte colocação - parece-me um belo argumento.
Um homem estava igualmente cansado e trabalhando arduamente antes de
casar-se; mas nos dias anteriores às núpcias, fosse o que fosse que estava
fazendo, tinha o maior desejo de conversar com a noiva e de pô-la a par de
tudo. Por que é que isso deveria parar após o casamento? Não deve parar,
diz o apóstolo. O marido e a mulher são um. Olhe para ela, e tenha por ela a
mesma consideração que você tem por seu corpo, e lembre-se deste elemento
de exercício. Leve-a a participar de tudo, planejadamente. Será magnífico
para ela, para o seu desenvolvimento; e será bom para você, porque o
casamento completo crescerá e se desenvolverá, se você agir assim.

E isso nos leva ao quarto ponto, o qual é o elemento de proteção. Eis aí este
corpo; ele necessita de alimento, necessita de exercício; porém, em
acréscimo, todo homem tem que aprender a entender o seu próprio corpo.
O apóstolo desenvolve o seu argumento. O apóstolo Pedro, vocês se
lembram, se expressa deste modo: diz ele ao marido que se lembre de que
sua esposa é o “vaso mais fraco” (1 Pedro 3:7). Significa que estes nossos
corpos estão sujeitos a certas coisas. Todos somos diferentes, mesmo no
sentido físico. Alguns de nós talvez estejam mais sujeitos a sentir frio, ou
calafrio, de um modo que não parece molestar outras pessoas. Alguns de
nós são constituídos de molde a ter estes problemas menores; e estamos
sujeitos a estranhas infecções e a diversas outras

coisas que nos sobrevêm para provar-nos. Que faz o homem prudente? Ele
toma muito cuidado com estas coisas; usa um pesado sobretudo no inverno,
e talvez um cachecol; e se abstém de fazer certas coisas. Ele se protege, e
protege sua fraca constituição contra alguns dos perigos que nos
confrontam na vida. “Assim devem os maridos amar a suas próprias
mulheres.” Você descobriu que a sua esposa tem alguma fraqueza peculiar
em sua constituição pessoal? Descobriu que ela tem certas características
especiais? É nervosa e tímida, ou muito franca? Não importa qual seja em
particular; ela tem certas características que, num sentido, são fraquezas.
Qual é a sua reação a elas? Você fica irritado, ou aborrecido? E tende a
condená-las e a eliminá-las? Proceda como procede com o seu corpo, diz o
apóstolo. Proteja-a contra elas, vele por ela contra essas fraquezas. Se sua
esposa nasceu com temperamento inquieto, poupe-a disso, proteja-a. Faça
tudo que puder para salvaguardá-la das suas fraquezas, debilidades e
fragilidades; como procede com o seu corpo, proceda com sua mulher.

Depois, naturalmente, há grandes infecções que nos sobrevêm - gripes,


febres, coisas que matam pessoas aos milhares. Coisas correspondentes
também podem sobrevir à vida conjugal - tentações, problemas, tribulações,
que provarão o casamento até os últimos limites.

Que fazemos quanto a estas coisas? Mais uma vez, que é que você faz com o
seu corpo quando você pega esse tipo de enfermidade, quando sofre
aquele ataque de gripe, com temperatura devastadora? A resposta é que
você se mete na cama, com uma garrafa ou bolsa de água quente, sujeita-se
a uma dieta apropriada, e assim por diante. Você faz tudo que pode para
tratar da febre e ajudar seu corpo a resistir. “Assim devem os maridos amar
a suas próprias mulheres como a seus próprios corpos.” Se houver alguma
tentação ou ansiedade ou problema peculiar, excepcional, alguma coisa que
prove ao máximo a sua mulher, então, digo eu, o marido deve deixar seus
interesses pessoais para proteger sua esposa, ajudá-la e apoiá-la. Ela é o
“vaso mais fraco”.

Isso nos leva ao último ponto. Você procura proteger o seu corpo das
infecções, submetendo-se a várias inoculações. Aplique isso tudo ao
estado matrimonial. Faça tudo que puder para estruturar a resistência da
sua mulher, a fim de prepará-la para enfrentar os males da vida. Cabe a
você estruturá-la. Não faça tudo você mesmo, vamos dizer; mas edifique-a,
estruture-a de modo que ela venha a ser capaz de agir também; de maneira
que, se você for levado pela morte, ela não fique sem eira nem beira. Temos
que pensar em todas estas coisas, e minuciosamente, como fazemos com os
cuidados com o corpo. E se sobrevier a doença, cuide dela de maneira fora
do comum, dê-lhe medicamentos apropriados, altere o seu programa para
fazer aquelas coisas incomuns que promoverão e produzirão o
restabelecimento da saúde, do vigor e da felicidade.

Paramos por aqui. Todavia aí estivemos examinando um grande princípio


que é da maior importância. O homem tem que amar sua esposa “como” -
porque ela é - seu próprio corpo. “Porque nunca ninguém aborreceu a
sua própria came; antes a alimenta e sustenta” (ou “cuida dela”), “como
também o Senhor à igreja.” “Vós, maridos, amai vossas mulheres, como
também Cristo amou a igreja.” .

RELAÇÕES TRANSFORMADAS Efésios 5:25-33

Chegamos às nossas considerações finais desta exposição sumamente


importante e extraordinária. O apóstolo está tratando primordialmente
dos deveres dos maridos para com as suas esposas, embora no último
versículo, vocês podem notar, ele retome aos deveres das mulheres para com
os seus maridos, a fim de poder apresentar o seu ensino concernente ao
matrimônio como um todo e de forma completa. Ao aplicar isso tudo, vimos
que a grande questão consiste em compreender o ensino. Dentre todos os
tipos de pessoas, o cristão deve ser alguém que pensa e raciocina, que faz
uso da sua mente. Não há nada de mágico quanto à vida cristã. O grande
ato de regeneração é operação de Deus, porém no momento em que
recebemos a vida, passamos a ser capazes de pensar e de raciocinar, e de
usar o nosso entendimento. Assim é que todas estas epístolas do Novo
Testamento são dirigidas ao entendimento. No início desta epístola o
apóstolo orou no sentido de que os efésios tivessem “iluminados os olhos do
vosso entendimento” - iluminados pelo Espírito Santo. Temos visto, pois,
que o que o apóstolo faz aqui é proclamar esta grandiosa doutrina
sobre Cristo e a Igreja e então dizer, “Assim, desse modo mesmo.”

Há uns poucos pontos de que devemos tratar a fim de que a nossa exposição
fique completa. Há certas injunções práticas dadas pelo apóstolo aqui, todas
relacionadas com esta grande analogia utilizada por ele. O grande princípio
vital é essa unidade. O que temos que compreender é a unidade essencial
entre o marido e a esposa - “estes dois devem fazer-se (ou tomar-se) uma
came”. Esta unidade é comparável à unidade existente entre o homem e
seu próprio corpo, e também à união mística entre Cristo e a Igreja.

A unidade é o princípio central do matrimônio; e desde que muitas pessoas


deste mundo moderno nunca tiveram nenhuma concepção daquilo que
está envolvido no casamento, do ponto de vista da unidade, elas o buscam
tão solta e despreocupadamente e rompem tanto os seus votos e
compromissos, que o divórcio veio a ser um dos maiores problemas da nossa
época. Jamais chegaram a formular um parecer sobre esta unidade;
continuam pensando em termos da sua individualidade e, assim, vemos duas
pessoas afirmando os seus direitos e, portanto, acabando em choques,
discórdia e separação. A resposta a isso tudo, afirma Paulo, está em
compreender este grande princípio da unidade.

O apóstolo tinha elaborado a matéria em termos do corpo, mas agora ele a


coloca muito explicitamente fazendo-nos recordar de novo o que nos é dito
no capítulo dois de Gênesis em conexão com a feitura de Eva, tirada de
Adão, para

que Adão tivesse uma “adjutora” (uma auxiliadora satisfatória). No


momento em que Deus formou Eva, para que o homem e a mulher
pudessem entrar neste estado matrimonial, foi feita a declaração de que o
homem deveria deixar seu pai e sua mãe e unir-se à sua mulher, “e serão
ambos uma carne”. O apóstolo cita as mesmas palavras no versículo 31:
“Por isso deixará o homem seu pai e sua mãe, e se unirá a sua mulher; e
serão dois numa carne”. Esta é uma ordem dada ao homem que está para
tomar-se marido. Ele tem que deixar seu pai e sua mãe. Por que? Por causa
desta nova unidade que vem a existir entre ele e sua mulher. “Por isso”, diz
o apóstolo. Por isso, quê? Qual a razão? Ele acabara de dizê-la: “porque
somos membros do Seu corpo, da Sua came e dos Seus ossos.” Essa é a
relação de marido e mulher e, por causa disso - “por isso” - o homem
deve deixar seu pai e sua mãe para que possa, assim, unir-se à sua mulher.

Este é um ponto sumamente importante. É, de certa forma, a prova final da


unidade que existe no verdadeiro casamento, e é uma indicação externa
da unidade. O apóstolo está dizendo, noutras palavras, que quando o
homem se casa, entra numa nova unidade que rompe as relações anteriores.
Ele não está mais ligada e preso às relações anteriores porque está entrando
num novo e mais íntimo relacionamento de unidade. Enquanto não se
casara, a principal lealdade do homem era para com seu pai e sua mãe; mas
já não é mais o caso; agora ele tem que “deixar seu pai e sua mãe” e entrar
nesta nova relação. Essa é uma afirmação estonteante, especialmente em
vista da abundância de ensinamentos nas Escrituras acerca da relação entre
pais e filhos. A família é a unidade fundamental na vida e, portanto, o
apóstolo irá dizer no capítulo subseqüênte: “Vós, filhos, sede obedientes a
vossos pais no Senhor, porque isso é justo”. Mas, essa afirmação deve ser
tomada à luz disto, que quando um homem se casa, não é mais filho nesse
sentido. Ele deixa seu pai e sua mãe e entra numa nova unidade. Sai donde
estava para entrar nesta nova unidade, nesta nova relação. Ele agora é o
chefe de uma nova unidade, a cabeça de uma nova família.

Em grande parte é neste ponto que as tensões tendem a surgir de forma


sumamente aguda, e ocorrem as dificuldades no relacionamento
matrimonial. Obviamente, em todas estas questões, as proposições bíblicas
devem ser tomadas em seu contexto, e com razão. Jamais devemos ser
legalistas sobre estas coisas. Vejam esta afirmação sobre o homem “deixar
seu pai e sua mãe”. Isso não significa, é claro, que nunca mais deverá ter
algo que ver com eles. O termo é “deixará”, pelo que devemos examinar o
sentido de “deixar”. É, naturalmente, uma questão muito prática, mas o que
é importante é a compreensão espiritual daquilo que está envolvido. Às
vezes isto é tratado, como venho dizendo, de maneira legalista, e as pessoas
se tomam austeras, quase grosseiras com o pai e a mãe. Não é esse o ensino
do apóstolo. No entanto ele está interessado no princípio, e é a isto que
devemos dar maior atenção. Na prática, significa que este homem terá que
considerar-se, doravante, não primordialmente como filho dos seus pais, e
sim, como marido da sua esposa. Toda a sua vida estivera se considerando a
si próprio como filho dos seus pais, e com razão. “Honra a teu pai e a tua
mãe”, é um dos Dez Mandamentos. Todavia agora ele

tem que fazer um grande ajustamento mental; tem que pensar em tudo, tem
de assumir novas responsabilidades e de adotar nova maneira de viver. Não
está mais numa condição de subserviência; agora é o chefe de uma nova
família. Deve considerar-se como tal e comportar-se como tal. Na realidade,
deixar pai e mãe significa que não deve permitir que seu pai e sua mãe
mandem nele como sempre mandavam, até então. Neste ponto surgem
dificuldades. Durante vinte, vinte e cinco, trinta anos aquela antiga relação
estivera em existência - pai e mãe, filho. Tomara-se um hábito, e, seguindo-
o, pensava-se instintivamente. Mas agora este homem está casado. É-lhe
difícil - e quiça mais difícil para seu pai e sua mãe - aceitar a nova situação
que passou a existir; mas o ensino dado aqui é que o homem precisa deixar
seu pai e sua mãe para unir-se à sua esposa. Ele tem que manter e
salvaguardar o seu novo estado e, como lhes digo, defendê-lo contra a
interferência por parte dos seus pais. E em seu próprio comportamento, não
deve agir mais simples e unicamente como agia antes, porque agora está
unido à sua mulher. Ele não é mais o que era outrora. É o que era - mais
alguma coisa, e esse mais alguma coisa cria a diferença entre a velha e a
nova relação.

Esse é o sentido da expressão “deixará seu pai e sua mãe”; o homem tem
que firmar a nova posição que passou a existir em decorrência do seu
casamento. E, naturalmente, quando o examinamos do ponto de vista do pai
e da mãe, a situação deverá ser igualmente clara. Eles precisam reajustar-se,
do mesmo modo que o filho. Terão que compreender que a primeira
lealdade do seu filho agora é para com a esposa dele, e que ele será um
pobre espécime da humanidade, um pobre marido e, finalmente, um pobre
filho, se não demonstrar essa lealdade. Eles não devem interferir nesta nova
vida conjugal. No passado sempre mandaram em seu filho, de várias
maneiras, e estavam certos nisso. Já não devem fazê-lo mais; devem
reconhecer que surgiu uma coisa inteiramente nova, e que não devem
pensar mais em seu filho simplesmente como seu filho. Agora ele está
casado, foi criada um nova unidade, e o que quer que façam para ele, ao
mesmo tempo o estarão fazendo para a sua esposa. Portanto, é evidente que
não deverão tratá-lo como o tratavam anteriormente. Tudo isso
está incluído nesta idéia de um homem deixar seu pai e sua mãe para poder
unir-se a sua esposa. Realmente, a essência do ensino do apóstolo acerca do
matrimônio é que todas as partes envolvidas têm que entender que uma
nova unidade veio à existência. Não existia, porém agora existe. O novel
marido tem que compreender que não é mais o que era; a novel esposa tem
que compreender que ela também não é mais o que era em seu
relacionamento com seus pais. Os pais, em ambos os lados, têm que
compreender que não são mais o que eram antes. Tudo é diferente. Terá que
haver um reajustamento em todos os aspectos envolvidos, devido à nova
unidade que passou a existir em decorrência de um casamento. “Por isso
deixará o homem seu pai e sua mãe.”

De acordo com o ensino bíblico, não há nenhum acontecimento mais


drástico do que esta dupla ação - “deixar” e “unir-se”. A família é a
unidade fundamental da nossa vida terrena, muito embora o homem
continue sendo filho

dos seus pais, e embora, naturalmente, pertença à sua família no sentido


geral, o importante quanto a ele é que agora é o chefe de uma nova família,
e deve ser tratado com a dignidade correspondente ao seu novo estado. Deve
pensar sobre si deste modo; não deve voltar a pensar em si como ele era
antes; e não deve permitir que seus pais pensem nele desse modo. “Deixará
o homem seu pai e sua mãe, e se unirá a sua mulher; e serão dois numa
carne.” No momento em que compreendemos isso, o casamento passa a ser
uma das coisas momentosas, de fato a coisa mais momentosa da vida. Daí,
quando vocês estiveram assistindo a uma cerimônia nupcial, deverão estar
cientes de que esta nova unidade está vindo à existência, de que devem
reajustar o seu modo de pensar e, daí em diante, pensar na noiva e no noivo
segundo esta nova relação. Este novo estado matrimonial tem agora
precedência sobre todos os outros relacionamentos humanos. O homem
deixa pai e mãe; a mulher faz a mesma coisa; e é na medida em que este
princípio é captado e posto em ação que se obterá o estado matrimonial
ideal aqui esboçado, e se verá a diferença que há entre o casamento cristão e
o não cristão. Essa é, pois, a primeira injunção prática que o apóstolo nos
dá.

A segunda é: “Assim também vós, cada um em particular, ame a sua


própria mulher como a si mesmo”. Num sentido já tratamos do ponto que
o apóstolo está desenvolvendo quando consideramos o homem em relação
ao seu corpo, e quanto aos seus pensamentos acerca da sua esposa. O
melhor comentário sobre a matéria é a que se acha na Epístola aos
Colossenses, capítulo três, versículo dezenove, onde o apóstolo diz: “Vós,
maridos, amai a vossas mulheres, e não vos irriteis contra eles.” A ênfase
negativa aqui nos ajuda a entender a positiva neste último versículo do
capítulo cinco da Epístola aos Efésios. O grande perigo evidentemente é
quanto ao marido dominador. A ênfase recai no fato de que ele é o chefe, o
líder, que está na posição de responsabilidade. Assim foi estabelecido no
princípio por Deus. Portanto, o perigo com o qual o homem sempre se
defronta, como o apóstolo o coloca aqui, é “irritar-se”, é “ser áspero”. O
antídoto é: “Vós, maridos, cada um em particular, ame a sua própria
mulher como a si mesmo”. Você não é áspero consigo mesmo; portanto, não
seja áspero com sua esposa, não seja tirano, não seja dominador.

Quando esta declaração foi escrita pelo apóstolo, foi uma das mais
espantosas jamais postas no papel antes. Quando lemos sobre o conceito
pagão do matrimônio, especialmente sobre a atitude típica dos maridos para
com as esposas - e, na verdade, não somente o conceito pagão, mas também
o que se lê no Velho Testamento - vemos quão revolucionário e
transformador é o ensino apostólico. As esposas virtualmente nada eram
senão escravas. Toda a noção de poligamia dá essa idéia. Há a heróica
ilustração de mulheres rebelando-se contra esse conceito no capítulo
primeiro do Livro de Ester, no caso de Vasti, esposa de Assuero. Entretanto,
coisas desse tipo eram excepcionais. Toda a idéia era realmente de
escravidão, e assim os maridos eram geralmente culpados desta aspereza,
desta atitude dominadora. A esposa era apenas como

um vassalo, uma mercadoria, por assim dizer. Mas logo que a mensagem
cristã entra, toda a idéia sofre mudança, é transformada. Foi em questões
como esta que a fé cristã sacudiu e venceu o mundo antigo no primeiro
século. Nada parecido com isso fora ensinado antes. Foi em parte como
resultado desta nova espécie de vida vivida pelo povo cristão, que o
evangelho do nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo espalhou-se por aquele
mundo antigo. É assim que os cristãos dão testemunho da verdade do
evangelho. A idéia de que os cristãos dão testemunho levantando-se e
falando numa reunião não aparece muito no Novo Testamento, se é que
aparece alguma vez. O testemunho era dado em sua vida normal diária. Um
homem falar com amabilidade e afetuosamente à sua esposa era uma coisa
quase desconhecida; e era quando viam isto que as pessoas começavam a
perguntar: que é isto? Especialmente quando o viam num homem que havia
sido muito diferente como pagão. Uma nova ternura se introduzira na vida
humana.

O verdadeiro casamento é uma ilustração do ensino neotestamentário sobre


o amor; é o que vocês vêem em 1 Coríntios capítulo 13 sendo posto
em prática na relação matrimonial. Foi introduzido no versículo dezoito,
que é a chave disso tudo: “E não vos embriagueis com vinho, em que há
contenda, mas enchei-vos do Espírito”. Se vocês forem cheios do Espírito,
serão diferentes em todas as esferas e em todas as relações. O apóstolo nos
está dando aqui uma ilustração disso - o lar. Se há de se ver isto nalgum
lugar, só poderá ser no lar; esse é o lugar onde se pode avaliar o homem e a
mulher — o lar, o que eles são ali. Agora, diz o apóstolo, seja conhecido no
lar que vocês são cheios do Espírito, de modo que todo aquele que os visitar
fique zonzo, fique perplexo, e indague: que é isto? Não há maior
recomendação da verdade e do poder da fé cristã do que um casal cristão,
um casamento cristão, um lar cristão. Isso ajudou a revolucionar o mundo
antigo. Lembrem-se, então, da segunda injunção dada ao marido. A ele é
dada esta posição de dignidade, liderança e chefia; e se ele compreender o
que isto significa, nunca abusará disso, nunca fará mau uso disso sendo
áspero ou ditatorial ou maldoso ou injusto. Ser culpado de tal conduta
é uma negação do princípio do matrimônio, e significa que o Espírito
está ausente.

Tendo dito isso, vejamos o outro lado. A terceira injunção é: “e a mulher


reverencie o marido”. O apóstolo empregou uma palavra deveras
surpreendente aqui. A tradução pelo verbo reverenciar está certa, porém
seu sentido real é “temer”. “E a mulher tema o marido.” Mas devemos
lembrar que existem diferentes tipos de temor. Há um temor que, como nos
lembra João em sua primeira epístola (capítulo 4), “tem consigo a pena”.
Esse não é o temor de que Paulo fala aqui; ele fala de um temor “reverente”.
O que isto significa realmente é “deferência”. “Mulheres, tratai vossos
maridos com deferência, “com obediência reverente”. Aqui, de novo, está
uma idéia já introduzida pelo apóstolo quando estava dando instruções
sobre as esposas. Ele dissera: “Vós, mulheres, sujeitai-vos a vossos maridos,
como ao Senhor. Porque o marido é a cabeça da mulher, como também
Cristo é a Cabeça da igreja: sendo ele próprio o salvador

do corpo. De sorte que, assim como a igreja está sujeita a Cristo, assim
também as mulheres sejam em tudo sujeitas a seus maridos”. Aqui ele volta
ao mesmo ponto. “Que a mulher trate seu marido com a devida deferência,
com obediência reverente.”

Talvez o melhor comentário disto seja o que se acha na Primeira Epístola de


Pedro, capítulo 3, versículo 6, onde Pedro, a seu modo, trata exatamente
do mesmo assunto. Pedro retorna ao grande exemplo e modelo deste ensino
em particular. Ele se expressa desta forma: “Semelhantemente, vós,
mulheres, sede sujeitas aos vossos próprios maridos” - a mesma idéia,
“deferência” - “para que também, se alguns não obedecem à palavra, pelo
porte de suas mulheres sejam ganhos sem palavra” (versículo 1). Pedro aqui
apresenta um assunto ligeiramente diferente, ao qual me referirei já, já.
Contudo, para inculcar isto nas mulheres, ele continua e diz (no versículo
5): “Porque assim se adornavam também antigamente as santas mulheres
que esperavam em Deus, e estavam sujeitas aos seus próprios maridos”. E
então, no versículo 6, “Como Sara obedecia a Abraão, chamando-lhe
senhor; da qual vós sois filhas, fazendo o bem, e não temendo nenhum
espanto”. Interpretado, significa o seguinte: a mulher deve tratar seu
marido com deferência; noutras palavras, ela deve reconhecer este conceito
bíblico e cristão do casamento, deve considerar o marido como sua cabeça, a
cabeça desta nova unidade. Ambos são um, mas há uma cabeça para esta
unidade, como há uma cabeça para o nosso corpo, assim com Cristo é a
Cabeça da Igreja. Sendo que o marido é a cabeça, a esposa deve tratá-lo
com a devida deferência de quem está compreendendo esse relacionamento.
Assim, o que isto significa para a esposa é que a deferência que
ela demonstrava antes para com os seus pais, agora deve demonstrar para
com o seu marido. Esse é o sentido da injunção do Salmo 45, versículo 10,
que faz esta colocação: “esquece-te do teu povo e da casa de teu pai”. Essa
injunção foi dirigida à Igreja cristã; isso é o que ela tem que fazer depois de
unir-se ao seu Noivo celestial. Entretanto, é aplicável também no caso da
esposa no relacionamento matrimonial. “Esquece-te do teu povo e da casa
de teu pai”. Assim como o homem recebe ordem de deixar seu pai e sua
mãe, a mulher deve esquecer seu povo e a casa de seu pai. Volto a repetir
que temos que usar o bom senso para interpretar palavras que tais. A
mulher não deve esquecê-los no sentido absoluto, mas sim no sentido de que
não mais deve ser governada por seus pais. O homem não deve ser
dominado por seus pais, e a mulher não deve ser dominada por seus pais.

Pode ocorrer a alguém fazer esta pergunta: porque, em conexão com o claro
ensino sobre o matrimônio, é-nos dito que o homem deve deixar pai e mãe e
unir-se à sua mulher, ao passo que não há nenhuma afirmação
correspondente acerca da mulher, quer em Gênesis capítulo 2, quer em
Efésios capitulo 5. Ao que me parece, a resposta é muito simples. A mulher
está sempre na posição de mostrar deferência. O homem está nesta posição
antes de casar-se; porém, desse ponto em diante, passa a ser a cabeça. A
mulher cabe ter deferência para com os seus pais; casada, passa a tê-la para
com o seu marido. Ela está sempre na

posição de demonstrar deferência; nunca é a cabeça. Mas o homem, que


anteriormente era criança e filho, agora é a cabeça e recebe deferência da
sua esposa. Como temos elaborado isso minuciosamente, acaso não fica
evidente que é porque as pessoas não têm nenhuma idéia deste ensino que
há tanto problema nos casamentos e, daí, tantos rompimentos?

Não há nada que seja tão fatal para um casamento como o fato de um dos
parceiros estar tendo deferência para com terceiros. Agindo assim,
estão rompendo a unidade, estão deixando de compreender o fato desta
nova unidade e a chefia do homem na nova unidade. Assim, a esposa deve
tratar de ter esta deferência reverente para com o seu marido. Ela precisa
fazer um ajustamento mental e espiritual, como o seu esposo também
precisou fazer no caso dele. Ela já não recebe ordens dos seus pais, não se
submete a eles, submete-se ao seu esposo. Naturalmente, continua mantendo
a sua relação de filha; todavia precisa velar no sentido de que a sua atitude
seja certa, e de que seja certa a atitude de seu pai e de sua mãe. Daí, muitas
vezes há falhas nesse ponto, de um lado e do outro. Sucede que o homem
que se casa, deixa-se absorver pela família da sua esposa, ou esta se deixa
absorver pela família do marido. Isso é um erro, nos dois lados, e jamais se
deve permitir que aconteça. Esta é uma nova família. A relação de amor
deve ser mantida com os pais, nos dois lados, mas nunca em termos de
deferência e submissão. E a essência, todo o segredo do casamento cristão, e
da vida conjugal feliz, está em que o homem e a mulher que se
casam compreendam isto no princípio, atuem com base nisso e se
mantenham firmes nisso, custe o que custar. Se houver interferência dos
pais, de um lado ou do outro, eles estarão pecando e estarão mostrando sua
incapacidade de compreender o ensino bíblico concernente ao matrimônio, e
de viver em conformidade com esse ensino. “E a mulher reverencie o
marido.” Esse é o grande ajustamento que ela faz. Sujeita-se a ele. É preciso
que ela não entre em competição com ele, que não rivalize com ele; ela
precisa reconhecer que a essência do casamento consiste em que ela tenha
esta deferência para com ele.

Há uma estranha frase empregada pelo apóstolo Pedro que devemos


examinar, ainda que de relance: “Como Sara”, diz ele, “obedecia a
Abraão, chamando-lhe senhor”. Vocês já estiveram interessados nas
mudanças da moda com relação a essa matéria? Pode-se ler sobre o povo do
século dezoito e observar como a esposa habitualmente se referia ao sei
marido como Sr. Fulano de Tal. Vocês podem rir disso, podem ridicularizá-
lo, e eu estarei com vocês; mas estou absolutamente certo de que fomos
longe demais no outro extremo. Há um equilíbrio certo nestas questões.
Sara chamava Abraão de “senhor” e, com isso, aceitava o princípio bíblico.
Em seguida lemos, “da qual vós sois filhas, fazendo o bem, e não temendo
nenhum espanto”. O sentido é este: as esposas cristãs devem tratar seus
maridos com deferências, e Pedro lhes diz que devem fazê-lo a despeito do
que digam as mulheres pagãs das redondezas. Ali estava algo novo, raro,
excepcional, e, naturalmente, produzia grande reboliço. Quando as
mulheres pagãs inquietas e rebeldes - com razão - vissem uma mulher
comportando-se desta maneira, tendo e demonstrando esta deferência

para com o seu marido, muitas delas a agrediriam e a perseguiriam. Eis o


que Pedro está dizendo: continuem fazendo isso, porque é certo; não deixem
que elas lhes amedrontem, não deixem que a perseguição que elas movem
faça a menor diferença para vocês. Que lhes insultem quanto quiserem; não
lhes dêem atenção. Não temam nenhum espanto. E na verdade, mesmo que
o marido o entenda mal e seja abusivo, continuem agindo assim, diz o
apóstolo; “não temendo nenhum espanto”. Façam o que é certo. Não fiquem
aborrecidas com o que as outras diga. Este mundo pagão do século vinte, no
qual vivemos, continua dizendo a mesma coisa; as mulheres cristãs ouvirão
dizer-lhes que estão sendo tolas, que estão negando os seus direitos como
mulheres. Não dêem nenhuma atenção, diz Pedro; deixem que as pessoas do
mundo digam o que quiserem. Que é que elas entendem? Não têm a
mentalidade cristã, não são cheias do Espírito. Estejam sempre cientes de
que vocês devem fazer o que é certo, o que é bom; e não se amendrontem,
não fujam, não permitam que elas interfiram em sua conduta e em seu
comportamento. Essa é, pois, a última injunção do apóstolo. Só podemos
anotar o maravilhoso equilíbrio que sempre se mantém nas Escrituras.

O apóstolo Paulo resume tudo no versículo 33: “Assim também vós, cada
um em particular, ame a sua própria mulher como a si mesmo, e a
mulher reverencie o marido”. Na medida em que os dois façam isso, não
haverá risco de disputa acerca de “direitos” ou de “posição” ou de “minha
categoria”. Aqui está um homem incumbido da chefia; sim, mas sendo que
ele ama sua esposa como a si mesmo, nunca abusa da sua posição. E aqui
está uma mulher que se sujeita a este grande e glorioso ideal. Ela não tem
por que temer que será tirado proveito dela, ou que ela será pisada. Marido
e mulher se tratam como tais, e o equilíbrio é perfeito e total. Devemos
entender, naturalmente, que nesta proposição o apóstolo Paulo está
escrevendo baseado no pressuposto de que o marido e a esposa são cristãos.
O apóstolo Pedro, como vimos em sua primeira epístola, capítulo 3, estava
escrevendo em parte com base no pressuposto de que o marido podia não
ser um cristão; mas tudo o que temos aqui é baseado na pressuposição de
que ambos os cônjuges são cristãos. E como o apóstolo Paulo não trata de
nenhuma outra coisa, eu também me abstenho de fazê-lo. É assim que um
homem cristão e uma mulher cristã se casam e se tomam esta nova unidade
- e tomo a repetir que não há maneira mais maravilhosa que essa, pela qual
dar testemunho da diferença que faz ser cristão.

Certamente, uma das maiores necessidades deste mundo moderno a que


pertencemos acha-se precisamente neste ponto. Muita gente está
perturbada com a discórdia entre as nações. Isso está certo, e também está
certo ficarmos profundamente preocupados com os conflitos internos das
nações. As pessoas estão dando as suas opiniões, estão falando com ousadia
e estão condenando este ou aquele lado. Mas quando conseguimos saber
alguma coisa sobre as vidas particulares de algumas das pessoas mais
eloqüentes naqueles assuntos, vemos que em suas próprias vidas de casados
fazem exatamente as mesmas coisas que estão condenando! Que coisa
ridícula! Uma grande diferença entre o cristia-

nismo e o secularismo é que o secularismo está sempre falando sobre


generalidades, esquecendo-se do individual. O cristianismo compreende que
a multidão, a nação, afinal de contas não é senão uma coleção de indivíduos.
Tenho muito pouco interesse por aquilo que um estadista tem para dizer, se
ele não põe em prática em sua vida pessoal os seus princípios. Que direito
ele terá de falar sobre a santidade das Alianças Internacionais, e de dizer o
que as pessoas devem ou não fazer em grupos, se ele não estiver pondo em
prática em sua vida particular os preceitos que dá aos homens e mulheres
em suas várias esferas? É quando os indivíduos são levados a agir
corretamente que a nação passa a agir corretamente. As épocas mais
gloriosas da história da Inglaterra seguiram-se aos tempos em que foi
pregado o evangelho pessoal, e quando numerosos indivíduos se tomaram
cristãos. Somente assim começamos a chegar perto de constituir uma nação
cristã. Contudo, será inútil dizer às pessoas que adotem princípios cristãos
em sua conduta, se elas não forem pessoalmente cristãs, e se não
compreenderem a fé cristã num sentido pessoal. Essa é a minha resposta
aos que criticam a firme pregação evangélica e a exposição da Bíblia,
dizendo: “Eu pensava que você tinha algo que dizer sobre as conferências
pró desarmamento, ou sobre o que está acontecendo na África do Sul, e aí
está você falando de maridos e esposas. Eu gostaria de saber como resolver
os grandes problemas mundiais”. Espero que, a esta altura, esteja claro que
unicamente a pregação evangélica, bíblica, trata destes grande problemas;
tudo mais não passa de falatório. Vocês podem organizar marchas e fazer os
seus protestos. Tudo isso dá em nada, e não faz a mínima diferença para
ninguém. Mas se vocês tiverem um grande número de indivíduos cristãos
numa nação ou no mundo, então, e só então, poderemos esperar uma
conduta cristã aos níveis nacional e internacional. Não dou ouvidos a um
homem que me diz como resolver os problemas do mundo, se ele não é
capaz de resolver os seus problemas pessoais. Se o lar de um homem vive em
estado de beligerância, suas opiniões sobre o estado em que se encontra a
nação ou sobre o estado em que se acha o mundo são puramente teóricas.
Todos podemos falar, porém o problema é como aplicar a doutrina cristã à
vida prática. E é precisamente neste ponto que temos que “encher-nos do
Espírito”.

Portanto, à luz dos diversos princípios surgidos, podemos tirar certas


conclusões quanto ao casamento cristão. A primeira é a importância de
2 Coríntios 6:14: “Não vos prendais a um jugo desigual com os infiéis”.
Tendo compreendido alguma coisa sobre a verdadeira natureza do
casamento, e do casamento cristão em particular, esta não seria uma
dedução lógica? O cristão não deve casar-se com elemento não cristão; se o
fizer, estará procurando problema. Não se pode manter os dois lados, o
equilíbrio indicado neste último versículo, a não ser que os dois cônjuges
sejam cristãos. “Não vos prendais a um jugo desigual com os infiéis.”

A segunda é que há somente uma coisa que destrói o casamento, e essa é o


adultério. “E serão dois numa carne”, e é só quando essa “uma carne” se
rompe que o casamento se rompe. De acordo com o ensino bíblico - e vocês o

encontrarão no Sermão do Monte e noutras partes - nada é causa para o


divórcio e para o rompimento de um casamento, fora o adultério. Essa é a
causa, porque rompe a “uma carne”.

A terceira e última conclusão é que a coisa suprema sempre é considerar


nosso Senhor Jesus Cristo. Se um marido e sua mulher O consideram
juntos, não há por que preocupar-nos quanto ao seu relacionamento mútuo.
Nossas relações, afetos e amores humanos são consolidados por nosso
comum amor a Cristo. Se ambos estão vivendo para Ele, para a Sua glória e
para o Seu louvor, se ambos têm nas profundezas das suas mentes a
analogia de Cristo e a Igreja, e o que Ele fez pela Igreja para resgatá-la, e
para que eles, como indivíduos, pudessem tomar-se filhos de Deus - se eles
estão dominados por esse pensamento e por ele governados, não haverá
perigo de que a sua relação tome-se um desastre. A chefia do marido será da
mesma espécie da Chefia de Cristo sobre a Igreja. Ele Se entregou por ela;
morreu por ela; alimenta e sustenta sua vida, vive por ela, intercede por ela,
e a Sua preocupação é no sentido de que ela seja gloriosa e sem mácula, sem
culpa, sem mancha, nem ruga, nem coisa semelhante. Esse é o segredo - que
estejamos sempre olhando para Ele, cientes de que o casamento é apenas
um pálido reflexo da relação existente entre Cristo e Sua Igreja. Portanto, o
princípio do sucesso no casamento é este: “Haja em vós o mesmo sentimento
que houve também em Cristo Jesus”. Maridos, “assim também vós, cada
um em particular, ame a sua própria mulher como a si mesmo, e a mulher
reverencie o marido.” “Vós, maridos, amai vossas mulheres, como também
Cristo amou a igreja, e a si mesmo se entregou por ela.” Graças a
Deus, fomos trazidos a uma nova vida, é-nos dado um novo poder, e tudo
mudou - “as coisas velhas já passaram; eis que tudo se fez novo” (2
Coríntios 5:17). Todos os relacionamentos da vida passam por uma
transfiguração e transformação, elevam-se e se enobrecem, e somos
capacitados a viver segundo o modelo e exemplo do Filho de Deus.
O LAR
Efésios 6:1-4

1. Vós, filhos, sede obedientes a vossos pais no Senhor, porque isto é justo.

2. Honra a teu pai e a tua mãe, que é o primeiro mandamento com


promessa;

3. Para que te vá bem, e vivas muito tempo sobre a terra.

4. E vós, pais, não provoqueis a ira a vossos filhos, mas criai-os na


doutrina e admoestação do Senhor.

FILHOS SUBMISSOS

Efésios 6:1-4

Aqui chegamos, não somente ao começo de um novo capítulo da Epístola


aos Efésios, mas também a uma nova subdivisão, e a um novo assunto - a
relação de filhos e pais. Ao iniciarmos, é muito importante que tenhamos em
mente que esta porção é apenas mais uma ilustração do grande princípio
estabelecido por Paulo no capítulo anterior, e que ele o desenvolve em
termos de nossos variados relacionamentos humanos.

Esse princípio é declarado no versículo dezoito do capítulo cinco: “E não


vos embriagueis com vinho, em que há contenda, mas enchei-vos do
Espírito”. Essa é a chave - e tudo que ele diz daí em diante é apenas uma
ilustração de como a vida do cristão (ou da cristã) cheio do Espírito, é vivida
em vários aspectos. Outro princípio geral subsidiário foi declarado no
versículo vinte e um: “Sujeitando-vos uns aos outros no temor de Deus”.
Noutras palavras, devemos ter em mente que o apóstolo está afirmando que
a vida cristã é uma vida inteiramente nova, totalmente diferente da vida
“natural”, mesmo em suas melhores condições. Ele estava primordialmente
interessado em contrastar esta nova vida com a antiga vida pagã que estas
pessoas estiveram vivendo antes de sua conversão; e a diferença é
virtualmente a que existe entre o ébrio e o homem cheio do Espírito de
Deus. Lembro-lhes isto a fim de salientar o fato de que o que temos aqui não
é apenas ética ou moralidade; trata-se da aplicação da doutrina cristã e da
verdade cristã.

Tendo desenvolvido este princípio em termos de maridos e esposas, o


apóstolo começa agora a fazer o mesmo em termos das relações dentro
da família, principalmente as que existem entre pais e filhos e filhos e pais.
Todos concordarão que este é um assunto tremendamente importante nos
dias atuais. Estamos vivendo num mundo que testemunha um alarmante
esfacelamento nas questões de disciplina. A insubmissão é excessiva, a
disciplina entrou em colapso nestas unidades fundamentais da vida - no
casamento e nas relações familiais. Há um generalizado espírito de
insubmissão, e as coisas que outrora se tomavam mais ou menos como
líquidas e certas, atualmente não só estão sendo postas em dúvida e
questionadas, mas também estão sendo ridicularizadas e repudiadas. É fora
de dúvida que estamos vivendo numa época em que há um fermento do mal
agindo ativamente na sociedade toda. Podemos ir mais longe - e estou
dizendo uma coisa com a qual todos os observadores da vida concordam,
sejam cristãos ou não - e dizer que de muitas maneiras estamos face a face
com um total colapso, um total esfacelamento daquilo que se chama

“civilização” e sociedade. E não há área de convivência em que isto seja


mais evidente e óbvio do que nesta questão do relacionamento entre pais e
filhos. Sei que muito do que estamos testemunhando é provavelmente uma
reação contra uma coisa que, infelizmente, era por demais comum no fim da
era vitoriana e nos primeiros anos do presente século. Terei mais que dizer
sobre isso mais tarde, porém faço agora esta menção de passagem para
expor com clareza o problema. Sem dúvida há uma reação contra o severo,
legalista e quase cruel tipo vitoriano de pai. Não estou escusando a situação
atual, entretanto é importante que compreendamos isso e que tentemos
rastreá-lo até as suas origens. Mas seja qual for a causa, não há dúvida de
que isso é parte integrante deste colapso em toda a questão de disciplina, lei
e ordem.

A Bíblia, em seu ensino e em sua história, diz-nos que isto é uma coisa que
sempre acontece nas épocas de irreligiosidade, nas épocas em que não há
temor a Deus. Temos um notável exemplo naquilo que o apóstolo Paulo diz
sobre o mundo, na Epístola aos Romanos, na segunda metade do capítulo
primeiro, do versículo 18 até o fim. Nessa passagem ele faz uma descrição
das pavorosas condições do mundo por ocasião do nascimento de Cristo.
Eram condições de consumada impiedade. E nas várias manifestações dessa
impiedade enumeradas por ele, o apóstolo inclui esta mesma questão que
agora estamos considerando. Primeiro ele diz: “Deus os entregou a um
sentimento perverso, para fazerem coisas que não convêm” (versículo 28).
Segue-se então a descrição -“Estando cheios de toda a iniqüidade,
prostituição, malícia, avareza, maldade; cheios de inveja, homicídio,
contenda, engano, malignidade; sendo murmura-dores, detratores,
aborrecedores de Deus, injuriadores, soberbos, presunçosos, inventores de
males, desobedientes aos pais e às mães; néscios, infiéis nos contratos, sem
afeição natural, irreconciliáveis, sem misericórdia...” Nessa lista horrível,
Paulo inclui esta idéia de desobediência aos pais. Vemo-lo, ainda, na sua
Segunda Epístola a Timóteo, provavelmente a última carta escrita por
ele, dizer, no capítulo 3, no versículo primeiro: “nos últimos dias sobrevirão
tempos trabalhosos”. Em seguida expõe as características desses tempos:
“Porque haverá homens amantes de si mesmos, avarentos, presunçosos,
soberbos, blasfemos, desobedientes a pais e mães, ingratos, profanos, sem
afeto natural, “irreconciliáveis, caluniadores, incontinentes, cruéis, sem
amor para com os bons, traidores, obstinados, orgulhosos, mais amigos dos
deleites do que amigos de Deus”. Até o afeto natural acabou!

Nos dois casos o apóstolo nos faz lembrar que numa época de apostasia,
numa época de grosseira impiedade e irreligião, quando os próprios
fundamentos se abalam, uma das mais chocantes manifestações de
impiedade é “desobedientes a pais e mães”. Assim, não é nem um pouco
surpreendente que ele chame a atenção para isso aqui, quando nos dá
ilustrações de como a vida “cheia do Espírito” de Deus se manifesta.
Quando será que as autoridade civis ouvirão e compreenderão que há uma
indissolúvel ligação entre a impiedade e a falta de moralidade e de
comportamento decente? Há uma ordem nestas coisas. “Porque do céu se
manifesta a ira de Deus”, diz o apóstolo em Romanos 1:18, “sobre toda

a impiedade e injustiça dos homens”.

Se existe a impiedade, sempre existirá a injustiça. Contudo, a tragédia é que


as autoridades civis - independentemente do partido político que esteja
no poder - parecem todas mais governadas pela psicologia moderna do que
pelas Escrituras. Todas elas estão convencidas de que podem lidar com a
injustiça diretamente, pelo que ela é em si mesma. Mas isso é impossível. A
injustiça é sempre resultante da impiedade; e a única esperança de
recuperar algum grau de justiça na vida é haver um avivamento da piedade.
É precisamente o que o apóstolo está dizendo aos efésios e a nós outros. Os
períodos melhores e moralmente superiores da história da Inglaterra, e de
todos os demais países, sempre foram os períodos subseqüentes a poderosos
despertamentos religiosos. Este problema de insubmissão e de falta de
disciplina, o problema da infância e da juventude, há cinqüenta anos não se
fazia presente como hoje. Por que? Porque a vigorosa tradição do
Despertamento Evangélico do século 18 ainda estava produzindo efeito. No
entanto, como isso passou, estes terríveis problemas morais e sociais estão
de volta, como o apóstolo nos ensina, e como sempre estão de volta através
dos séculos.

Portanto, as condições atuais exigem que examinemos a exortação do


apóstolo. Acredito que os pais e os filhos cristãos, as famílias cristãs, têm
uma oportunidade única de testemunhar ao mundo hoje simplesmente
sendo diferentes. Podemos ser verdadeiros evangelistas demonstrando em
nosso viver esta disciplina, esta lei e ordem, esta genuína relação entre pais e
filhos. Podemos ser instrumentos nas mãos de Deus para levar muitos ao
conhecimento da verdade. Pensemos, pois, nisso dessa maneira.

Há, porém, uma segunda razão pela qual todos temos necessidade deste
ensino, porquanto, segundo as Escrituras, não é só necessário aos que não
são cristãos do modo como venho indicando, mas também o povo cristão
precisa desta exortação porque muitas vezes o diabo entra em cena neste
ponto de modo mais sutil e procura fazer-nos desviar da rota cristã. No
capítulo quinze do Evangelho Segundo Mateus, o Senhor Jesus Se dedica a
tratar deste ponto com as pessoas religiosas dos Seus dias, porque, de
maneira muito sutil, estavam se evadindo das claras injunções dos Dez
Mandamentos. Os Dez Mandamentos os mandavam honrar seus pais,
respeitá-los e cuidar deles; porém o que estava acontecendo era que
algumas dessas pessoas, que se diziam ultra-religiosas, em vez de fazer o que
o mandamento lhes dizia, declaravam, noutras palavras: “Ah, dediquei este
meu dinheiro ao Senhor; portanto, não posso cuidar dos senhores, meus
pais”. Assim se expressa Cristo: “vós dizeis: se um homem disser ao pai ou à
mãe: aquilo que poderias aproveitar de mim é Corbã, isto é, oferta
ao Senhor” (Marcos 7:11). Diziam: “Isto é Corbã, isto é dedicado ao Senhor.
Claro que eu gostaria de cuidar de vocês, de ajudá-los, e assim por diante,
no entanto dediquei isto ao Senhor”. Desta maneira estavam negligenciando
seus pais e seus deveres para com eles.
Esse era um perigo sutil, e esse perigo continua presente conosco. Há jovens
que estão fazendo grande dano à Causa cristã por se deixarem iludir por

Satanás neste ponto. São rudes para com seus pais e, o que é mais grave, são
rudes para com seus pais em termos das suas idéias cristãs e do seu
serviço cristão. Assim, são pedras de tropeço para os pais não convertidos.
Tais cristãos não conseguem ver que não deixamos de lado estes grandes
mandamentos quando nos tomamos cristãos, mas, que, ao contrário,
devemos vivê-los e exemplificá-los em nosso viver mais do que
anteriormente.

Notemos, pois, à luz destas coisas, como o apóstolo expõe a matéria. Ele
começa - fazendo uso do mesmo princípio utilizado no caso da
relação matrimonial - com os filhos. Quer dizer que ele começa com aqueles
que devem obediência, que devem sujeitar-se. Ele começara com as esposas,
seguindo depois com os maridos. Aqui ele começa com os filhos, e depois
prossegue com os pais. Age assim porque está ilustrando este ponto
fundamental: “Sujeitando-vos uns aos outros no temor de Deus”. A
injunção é, “Vós, filhos, sede obedientes a vossos pais”. E depois lhes lembra
o mandamento, “Honra a teu pai e a tua mãe”. Notamos de passagem o
interessante ponto que mostra que temos aqui, mais uma vez, algo que
diferencia o cristianismo do paganismo. Nestas questões os pagãos não
ligavam a mãe ao pai, mas só falavam do pai. Entretanto, a posição cristã,
como na verdade a posição judaica, nos termos dados por Deus a Moisés,
coloca a mãe com o pai. A injunção é que os filhos devem obedecer aos pais,
e a palavra “obedecer” significa não somente dar ouvidos a, e sim
dar ouvidos com a compreensão de estar sob autoridade, dar ouvidos “sob”.
É ver com respeito um mandamento, e não somente dar-lhe ouvidos; é
reconhecer a posição de subserviência a ele e tratar de pô-lo em prática.

É sumamente importante, porém, que isto seja governado e dominado pela


idéia de “honrar”. “Honra a teu pai e a tua mãe." Significa
“respeitar”, “reverenciar”. É uma parte essencial do mandamento. Os filhos
não devem dar aos pais uma obediência mecânica e com má vontade. Isso é
completamente errôneo; é observar a letra, e não o espírito. Foi o que o
Senhor condenou tão fortemente nos fariseus. Não, eles devem observar o
espírito bem como a letra da lei. Os filhos devem reverenciar e respeitar
seus pais, devem dar-se conta da situação que prevalece entre eles, e devem
alegrar-se com isso. Devem considerá-lo um grande privilégio e, portanto,
devem sempre esforçar-se para mostrar esta reverência, este respeito em
todas as suas ações.

O apelo dirigido pelo apóstolo implica que os filhos cristãos devem


constituir um total contraste com os filhos não cristãos, que
geralmente mostram falta de reverência para com seus pais, e perguntam:
“Quem são eles?”, “Por que eu deveria dar-lhes ouvidos?” Consideram seus
pais como “ultrapassados”, e os tratam desrespeitosamente. Firmam-se em
seus direitos e em seu “modernismo” em tudo que se refere à conduta. Isso
estava acontecendo na sociedade paga da qual estes efésios eram oriundos, e
está acontecendo na sociedade pagã que nos cerca nos dias atuais. Lemos
constantemente nos jornais sobre como esta insubmissão está se alastrando,
e como as crianças, dizem eles, “estão amadurecendo mais cedo”. Isto não
existe, é claro. A fisiologia não muda. O que está mudando é a mentalidade e
as perspectivas que levam à

agressividade, à insubmissão ao governo dos princípios e dos ensinamentos


bíblicos. Ouve-se falar disso por todos os lados - de jovens que falam desres-
peitosamente com seus pais, que os olham com desrespeito, que zombam
de tudo que eles falam, e que se firmam nos seus direitos. Esta é uma das
mais feias manifestações da pecaminosidade e da rebeldia da época atual.
Pois bem, acima disso e contra todo esse comportamento, diz o apóstolo:
“Filhos, obedeçam aos seus pais; honrem seu pai e sua mãe, tratem-nos com
respeito e reverência, mostrem que compreendem a sua posição e o que ela
significa”.

Vejamos, porém, as razões pelas quais o apóstolo dá essa injunção. A


primeira é - sigo esta ordem particular por um motivo que aparecerá mais
tarde - “Porque isto é justo”. Com isto ele quer dizer: é justo, é algo
essencialmente certo e bom em si mesmo. E vocês ficam surpresos pelo
apóstolo expressar-se desse modo? Há certos cristãos - indivíduos que
geralmente se arrogam incomum grau de espiritualidade - que sempre
fazem objeção a esta espécie de raciocínio. Dizem eles: “Eu não penso mais
segundo o nível natural; agora sou cristão”. Mas o grande apóstolo não
falava dessa maneira. Diz ele: “Vós, filhos, sede obedientes a vossos pais”.
Por que eu deveria obedecer a meus pais?, diz alguém. Sua primeira
resposta é: “Porque isto é justo”; é certo fazer isso. O cristão não despreza o
nível natural; ele começa com esse nível.
O que Paulo quer dizer por “justo” é, noutras palavras, o seguinte: retomar
à ordem da criação estabelecida no princípio, no Livro de Gênesis. Já
vimos que, ao tratar do assunto sobre maridos e esposas, ele fizera
exatamente a mesma coisa, retrocedendo e citando o capítulo dois de
Gênesis: “Por isso deixará o homem seu pai e sua mãe, e se unirá à sua
mulher; e serão dois numa came”. Não hesitara, ao tratar da relação
matrimonial, em dizer, com efeito: “Só lhes estou pedindo que façam o que é
fundamental, o que é natural, o que prevalece desde o princípio, no
concernente a homem e mulher, a marido e esposa”. E agora ele nos diz que,
quanto a esta questão de filhos, o princípio básico está lá no começo, sempre
foi assim, faz parte da ordem da natureza, é um dos componentes das regras
fundamentais da vida. Isso é algo que se vê não somente entre os seres
humanos; opera até mesmo entre os animais. No mundo animal, a mãe
cuida do filhote recém-nascido, vigia-o, alimenta-o, protege-o. Não somente
isso; ela o ensina a fazer várias coisas - ensina a avezinha a usar suas asas, o
animalzinho a andar, embora tropeçando, a esforçar-se, a lutar. Esta é a
ordem da natureza. A tenra criatura, em sua fraqueza e ignorância,
necessita da proteção, da direção, do auxílio e da instrução que os pais lhe
dão. Portanto, diz o apóstolo, “sede obedientes a vossos pais... porque isto é
justo”. Os cristãos não estão divorciados da ordem natural que se acha em
toda parte na criação.

É triste ter que dizer isto a cristãos. Como é possível se desviarem, neste ou
naquele ponto, de uma coisa que é tão patentemente óbvia e que pertence
à ordem e ao curso da natureza? Mesmo a sabedora do mundo reconhece
isto. Há pessoas ao nosso redor que não são cristãs, porém que são firmes
crentes na disciplina e na ordem. Por que? Por que tudo na vida e tudo na
natureza indicam isto. Ora, a prole ser rebelde contra os seus pais e recusar-
se a ouvi-los e

obedecer-lhes, isso é ridículo e tolo. Às vezes vemos animais fazendo isso e


achamos divertido. Todavia, quanto mais ridículo é quando quem faz esse
tipo de coisa é um ser humano! Os filhos não obedecerem aos pais é
antinatural; com isso estão violando algo que evidentemente faz parte da
tessitura da natureza humana e que se vê em toda parte, de cima a baixo. A
vida foi planejada sobre esta base. E, naturalmente, se não fosse, logo se
tomaria caótica e sua existência teria fim.

“Isto é justo”! Há algo sobre este aspecto do ensino do Novo Testamento que
me parece deveras maravilhoso. Ele demonstra que não se deve separar
o Velho Testamento do Novo. Não há nada que manifeste maior ignorância
do que um cristão dizer: “Claro, como agora sou cristão, não estou
interessado no Velho Testamento”. Isso está completamente errado porque,
como o apóstolo nos lembra aqui, o Deus que criou todas as coisas no
princípio é o Deus que salva. É o mesmo e único Deus do princípio ao fim.
Deus criou o homem e a mulher, os pais e os filhos, tudo mediante a
natureza. Ele o fez dessa maneira, e a vida é para funcionar segundo estes
princípios. Assim, o apóstolo inicia a sua exortação dizendo virtualmente:
“Isto é justo, isto é básico, isto é fundamental, isto faz parte da ordem da
natureza. Não se afastem disto; se o fizerem, estarão negando o Deus que
estabeleceu a vida dessa forma e a fez funcionar de acordo com estes
princípios. A obediência é justa.”

Pois bem, tendo falado assim, o apóstolo parte para o seu segundo ponto.
Isto não é somente justo, diz ele, é também “o primeira mandamento
com promessa”. “Honra a teu pai e a tua mãe, que é o primeiro
mandamento com promessa.” O que ele quer dizer é que honrar os pais não
só é essencialmente correto, mas também é de fato uma das coisas que Deus
assinalou nos Dez Mandamentos. Este é o quinto mandamento, “Honra a
teu pai e a tua mãe”. Eis aqui, de novo, um ponto interessante. Num sentido
não havia nada de novo nos Dez Mandamentos. Então, por que foram
dados? Pela seguinte razão: a humanidade, os filhos de Israel inclusive, em
seu pecado e em sua loucura, tinham-se esquecido e se extraviado destas leis
fundamentais de Deus pertinentes à totalidade da vida. Portanto, foi como
se Deus dissesse: “Vou declará-los outra vez, um por um; vou escrevê-los e
sublinhá-los para que as pessoas os vejam claramente”. Sempre fora errado
ser desobediente aos pais; sempre fora errado furtar e cometer adultério.
Essas leis não passaram a existir quando foram outorgados os Dez
Mandanentos. O que os Dez Mandamentos foram destinados a fazer era
inculcá-las nas mentes do povo, colocá-las claramente e dizer: “Estas são as
coisas que deverão observar”. O primeiro mandamento com promessa, o
quinto do Decálogo! Deus agiu de maneira incomum para chamar a atenção
para isso.

O que o apóstolo quer dizer com a expressão “primeiro mandamento com


promessa”? É uma questão difícil, e não podemos dar uma resposta
definitiva e final. Obviamente não significa que este é o primeiro
mandamento com uma promessa anexada a ele, pois é de se notar que
nenhum dos outros mandamentos traz uma promessa anexa. Se fosse certo
dizer que os mandamentos 6,7,8,9 e 10

trazem promessas anexas, puder-se-ia dizer: Paulo, por certo, quer dizer
que este é o “primeiro” dos mandamentos a que Deus juntou uma
promessa". Mas não há promessa ligada aos outros, de modo que esse
sentido não prevaleçe. Então, o que significa? Talvez queira dizer que neste
quinto mandamento começamos a receber instrução com respeito às nossas
relações uns com os outros. Até aqui se trata das nossas relações com Deus,
com Seu nome, com Seu dia, e assim por diante. Entretanto, aqui Ele pende
para as nossas relações uns com os outros; assim pode ser o primeiro,
naquele sentido. Sobretudo, porém, pode significar que é o primeiro
mandamento, não tanto quanto à ordem numérica, mas quanto à categoria,
no sentido de que Deus estava desejoso de inculcar isto nas mentes dos filhos
de Israel em tal medida, que acrescentou esta promessa para que o
mandamento fosse cumprido. O primeiro em categoria, poderíamos dizer, o
primeiro em importância! Não que definitivamente algum deles seja mais
importante que os outros, pois todos são importantes. Não obstante, há uma
importância relativa e, daí, vejo-o desse modo, esta é uma daquelas leis que,
quando negligenciadas, levam ao colapso da sociedade. Gostemos disso ou
não, o esfacelamento da vida doméstica levará finalmente ao esfacelamento
em todas as áreas. Este é, seguramente, o mais perigoso e o mais ameaçador
aspecto das condições da sociedade nos tempos atuais. Uma vez que se
destrua a idéia de família, a unidade familial, a vida em família - uma vez
que isto se vá, logo não haverá nenhuma outra forma de lealdade. Esta é
a coisa mais grave de todas. E talvez seja esta a razão pela qual Deus
tenha anexado esta promessa ao quinto mandamento.

Contudo, eu creio que aqui se sugere mais uma idéia. Há algo sobre esta
relação de filhos e pais que é único, no sentido de que aponta para uma
relação mais elevada. Afinal de contas, Deus é nosso Pai. Esse é o termo que
Ele mesmo emprega; esse é o termo que o Senhor Jesus utiliza em Sua
oração modelar - “Pai nosso, que estás nos céus”. O pai terreno é, pois, por
assim dizer, uma lembrança daquele outro Pai, do Pai celestial. Na relação
dos filhos com os pais temos um quadro descritivo da relação original da
humanidade com Deus. Somos todos “filhos” quando face a face com Deus.
Ele é nosso Pai, “somos também sua geração” (Atos 17:28). Assim, de
maneira maravilhosa, a relação entre o pai e o filho é uma réplica e uma
figura, um retrato, uma pregação de toda esta relação que subsiste
especialmente entre Deus e os que são cristãos. No capítulo três desta
epístola há uma referência a este assunto, nos versículos catorze e
quinze. Diz o apóstolo: “por causa disto me ponho de joelhos perante o Pai
de nosso Senhor Jesus Cristo, do qual toda a família nos céus e na terra
toma o nome”. Alguns dizem que a tradução aqui deveria ser: “Deus é o Pai
de todos os pais”. Seja isso ou não, há de qualquer forma a sugestão de que
a relação de pai e filho sempre deve fazer-nos lembrar nossa relação com
Deus. Nesse sentido, esta relação em particular e única. Isto não se aplica à
relação de marido e mulher que, como vimos, lembra-nos Cristo e a Igreja.
Mas esta outra relação nos lembra Deus como Pai, e a nós como filhos. Há
algo de muito sagrado acerca da família, acerca desta relação entre pais e
filhos; e Deus, podemos assim dizer,

nos disse isso nos Dez Mandamentos. Quando Ele estabeleceu este
mandamento, “Honra a teu pai e a tua mãe”, anexou ao mandamento uma
promessa.

Que promessa? “Para que te vá bem, e vivas muito tempo sobre a terra”.
Não pode haver dúvida de que, quando a promessa foi dada
originariamente aos filhos de Israel, significava o seguinte: “Se querem
viver nesta terra da promessa para a qual os estou levando, observem e
guardem estes mandamentos, este em particular. Se querem ter um longo
período de bem-aventurança e felicidade naquela terra prometida, se
querem viver lá sob a minha bênção, observem e guardem estes
mandamentos, particularmente este”. Não há dúvida de que foi essa a
promessa original.

No entanto, agora o apóstolo generaliza a promessa porque está lidando


aqui com gentios, como também com judeus, que se haviam tomado
cristãos. Assim, ele diz, noutras palavras: ora, se querem que tudo esteja
bem com vocês, e se querem ter uma vida longa e farta na terra, honrem a
seu pai e a sua mãe. Quer dizer então que, se eu for um filho ou filha
obediente, necessariamente vou ter vida longa? Não, não há essa
decorrência. Mas certamente a promessa significa que, se você quiser ter
uma vida abençoada, uma vida abundante sob a bênção de Deus, observe,
guarde este mandamento. Deus poderá decidir mantê-lo durante longo
tempo na terra, como um exemplo e uma ilustração. Entretanto, seja qual
for a sua idade quando deixar este mundo, saberá que está sob as bênçãos
de Deus e em Suas dadivosas mãos. Não devemos considerar estas coisas de
maneira mecânica. O que se quer transmitir é que agradam a Deus as
pessoas que guardam este mandamento, e que, se nós nos aplicarmos a
guardar estes mandamentos, e em particular este, pelo motivo certo, Deus
nos verá com agrado, sorrirá para nós e nos abençoará. Graças a Deus por
esta promessa!

Isso nos traz ao terceiro e último ponto. Vocês vêem como Paulo se expressa:
“Vós, filhos, sede obedientes a vossos pais. Honra a teu pai e a tua mãe”. A
natureza o ordena, mas não somente a natureza; a Lei o ordena.
Mas devemos ir além - à Graça! Esta é a ordem - Natureza, Lei, Graça.
“Vós, filhos, sede obedientes a vossos pais “no Senhor”. É importante ligar a
frase “no Senhor” à palavra certa. Não é “Vós, filhos, sede obedientes a
vossos pais no Senhor”. E, antes, “Vós, filhos, sede obedientes no Senhor a
vossos pais.” Noutras palavras, o apóstolo está repetindo o que dissera no
caso dos maridos e das esposas. “Vós, mulheres, sujeitai-vos a vossos
maridos, como ao Senhor.” “Vós, maridos, amai vossas mulheres, como
também Cristo amou a igreja." Quando chegarmos às palavras apostólicas
sobre os servos, vê-lo-emos dizer: “Vós, servos, obedecei a vossos senhores
segundo a carne... como a Cristo”. Isso é o que significa no Senhor. Noutras
palavras, este é o motivo supremo. Devemos obedecer a nossos pais, honrá-
los e respeitá-los porque isto faz parte da nossa obediência a nosso Senhor e
Salvador Jesus Cristo. Em última instância, é por isso que devemos fazê-lo.
A natureza o ordena, a Lei o salienta, porém, como cristãos, temos mais este
motivo, esta grande e poderosa razão -Cristo nos pede que o façamos; é Seu
mandamento; é uma das maneiras pelas

quais demonstramos nosso relacionamento com Ele e nossa obediência a


Ele. “Vós, filhos, sede obedientes a vossos pais, como ao Senhor”. Existem
as referidas razões subsidiárias, mas vocês não devem deter-se nelas;
devem obedecer ao mandamento por amor a Cristo.

Aqui, de novo, permitam-me acentuar o fato de que este é um ensino


altamente típico do Novo Testamento. O cristianismo nunca põe de lado
a natureza. Não me entendam mal; não me refiro à “natureza decaída”.
Refiro-me à “natureza” que originariamente Deus criou e ordenou. O
cristianismo jamais contradiz a natureza nesse sentido. Havia gente, nos
primórdios da era cristã, que pensava que sim, e mesmo quanto à relação
matrimonial. Paulo teve que escrever o capítulo sete de 1 Coríntios por essa
razão. Alguns, em Corinto, estavam argumentando deste modo: “Tomei-me
cristão, mas minha esposa não. Então, como sou cristão e ela não, vou deixá-
la”. E as esposas diziam a mesma coisa. Mas isso está errado, afirma Paulo.
O cristianismo nunca nos impõe que neguemos ou que contrariemos a
natureza; não fomos destinados a ser antinatu-rais. O que o cristianismo faz
é elevar e santificar o natural.

A mesma coisa é válida quanto à Lei. O cristianismo não põe de lado a Lei
como retrato da vida. O que faz é acrescentar-lhe graça, capacitando-nos
a cumprir a Lei. Aos filhos diz: “Honra a teu pai e a tua mãe”. A Lei deu
essa ordem, o cristianismo faz o mesmo; todavia este nos dá um motivo
ainda maior para obedecê-la, dá-nos discernimento e compreensão disso.
Nós, que somos cristãos, estamos cientes de que o fazemos “como ao
Senhor”, ao Senhor que desceu do céu. Ele desceu do céu para honrar a Lei
do Seu Pai. Ele guardou a Lei, viveu de acordo com a Lei. E nos redimiu
para que pudéssemos ser “um povo seu especial, zeloso de boas obras” (Tito
2:14), para que pudéssemos “cumprir” a Lei. Ele Se entregou por nós “para
que a justiça da lei se cumprisse em nós, que não andamos segundo a carne,
mas segundo o espírito” (Romanos 8:4). A graça eleva o mandamento ao
nível mais alto, e devemos obedecer a nossos pais, honrá-los e respeitá-los,
para agradar ao nosso Senhor e Salvador, que nos vê. O apóstolo já tinha
dito isso no capítulo três, versículo 10, de Efésios: “Para que agora, pela
igreja, a multiforme sabedoria de Deus seja conhecida dos principados e
potestades nos céus”. Vocês dão-se conta de que quando os anjos, os
principados e as potestades olham para nós, povo cristão, e nos vêem
exemplificando estas coisas em nossa vida diária, admiram-se de que Ele, o
Filho, tenha conseguido formar de nós um tal povo, capacitando-nos a viver
de acordo com os mandamentos de Deus num mundo pecaminoso
como este?

Façam-no “como ao Senhor”. Obedeçam ao pai e à mãe “no Senhor”. Esse


é, de todos, o mais nobre e o maior incentivo. Dá prazer ao Senhor; é
uma comprovação do que Ele disse; estamos consubstanciando o Seu ensino.
Ele disse que veio ao mundo para redimir-nos, para lavar-nos dos nossos
pecados, para dar-nos uma nova natureza, para transformar-nos em novos
homens e novas mulheres. Pois bem, diz o apóstolo, provem isso, mostrem
isso na prática. Filhos, mostrem isso obedecendo aos seus pais; vocês serão
diferentes de todos

os outros tipos de filhos; serão diferentes daqueles filhos arrogantes,


agressivos, vaidosos, jactanciosos e maldizentes que os rodeiam nos dias
atuais. Mostrem que são diferentes, que o Espírito de Deus está em vocês,
que vocês pertencem a Cristo. Vocês têm uma oportunidade maravilhosa; e
isto dará ao Senhor grande alegria e grande prazer.

Vamos, no entanto, mais longe ainda. “Vós, filhos, sede obedientes a vossos
pais” por este motivo também, que quando Cristo estava neste mundo, Ele o
fazia. E o que vemos em Lucas 2:51: “E desceu com eles, e foi para Nazaré,
e era-lhes sujeito”. Estas palavras se referem ao Senhor Jesus aos doze anos
de idade. Ele tinha ido a Jerusalém com José e Maria. Faziam a viagem
de volta, e tinham viajado durante um dia, antes de descobrirem que Ele
não estava entre os viajores. Regressaram e O encontraram no templo
arrazoando com os doutores da Lei, argumentando com eles e interrogando-
os, refutando-os e deixando-os confusos, abalados e espantados. Disse Ele:
“Não sabeis que me convém tratar dos negócios de meu Pai?” Ele tivera sua
realização inicial com doze anos de idade. Mas depois se nos diz que Ele
voltou com eles para Nazaré - “E desceu com eles para Nazaré, e era-lhes
sujeito”. O Filho de Deus encarnado sujeitando-Se a José e Maria! Embora
tendo no íntimo a consciência de que estava no mundo para tratar dos
negócios de Seu Pai, humilhou-Se e foi obediente aos Seus pais.
Contemplemo-lO, demo-nos conta de que Ele estava fazendo isso
primordialmente para agradar a Seu Pai no céu, para que pudesse cumprir
Sua Lei em todos os aspectos e deixar-nos exemplo, para seguirmos os Seus
passos.

Aí vocês têm, pois, as razões desta injunção, e certamente nada mais há que
dizer. É justo cumpri-la. É uma determinação da natureza. A injunção
foi estabelecida pela Lei de Deus, subscrita e sublinhada. Agrada ao Senhor.
A obediência é prova de que Lhe queremos bem, pois estamos fazendo o que
Ele mesmo fez quando aqui esteve, neste mundo pecaminoso e mau. Queira
Deus iluminar-nos, a todos e a cada um de nós, para que vejamos a
importância de observar e guardar esta injunção!

Veremos que, como sempre, o apóstolo prossegue. Seu ensino é equilibrado,


de modo que ele também tem uma palavra para os pais. O que dissemos
pode ser mal entendido. Se os pais se detiverem aí, far-se-ão culpados de
grave incompreensão. Paulo não terminou; ainda virá uma palavra para os
pais. Mas até aqui a palavra é para os filhos. E quando lermos isto à luz do
que o apóstolo diz aos pais, seremos capazes, talvez, de tratar de alguns dos
problemas que confrontam certos filhos, não importa de que idade, cujos
pais quem sabe não são cristãos e que ficam a indagar o que fazer. Queira
Deus dar-nos graça para observarmos esta injunção!

PAIS NÃO CRISTÃOS

Efésios 6:1-4

Vimos que este assunto, sobre os pais e seus filhos, que é sempre importante,
é extraordinariamente importante na época atual. E é importante para
todos nós. Não diz respeito apenas aos filhos como tais, e aos jovens; e
não somente aos casais que têm filhos; é um assunto pertinente e aplicável a
todos nós. Há uma coisa particularmente patética no fato de que certos
cristãos parecem manter-se alheios a estas questões. Tenho ouvido falar de
alguns, por exemplo, que acham que o assunto relacionado com maridos e
esposas não tem nada a ver com eles porque não são casados. Isso é de
entristecer, porque, casados ou não, pais ou não, os cristãos devem
interessar-se pelos princípios da verdade. Além disso, se você não é casado,
pode ter um amigo casado que esteja em dificuldade quanto à sua vida
conjugal; assim, se você pretende agir como cristão, deve ser capaz de
ajudar essa pessoa. Para isso, você precisa saber como dar ajuda, e só
poderá descobrir como prestar ajuda mediante a compreensão do ensino
escriturístico. Portanto, ninguém deve desligar-se e achar que não tem nada
a ver com tal problema. Você pode ser solteiro ou solteira, ou, tendo-
se casado, pode não ter filhos, mas deve ter simpatia e compaixão pelos que
são pais na presente época deste difícil mundo moderno. É seu dever e sua
tarefa ajudá-los e dar-lhes assistência. Estas injunções particulares não se
destinam somente a pessoas particulares; são para todos nós.

Mas, além de tudo, devemos estar interessados na ampla exposição da


verdade divina e em observar como Deus, em Sua infinita bondade,
sabedoria e complacência vem ao nosso encontro nas várias situações que
enfrentamos em nosso jomadear por este mundo. As próprias autoridades
civis reconhecem a importância do problema todo no presente. Uma
importante comissão encarregada de toda a questão da educação declarou
recentemente que um dos problemas mais urgentes com que se defronta a
Inglaterra hoje é o esfacelamento do lar e da vida em família. Portanto,
estamos vendo uma coisa da qual todo o futuro da sociedade, e deste país,
poderá depender. De todas as pessoas, nós, cristãos, é que devemos dar
urgente atenção a estas questões para podermos dar exemplo para os outros
e mostrar-lhes como se vive como filhos e pais, e como a família e a vida
doméstica devem ser conduzidas.

Até aqui estivemos examinando a situação somente do ponto de vista dos


filhos, e a injunção a eles dada é que sejam obedientes a seus pais.
Entretanto, aqui no versículo quatro, o apóstolo nos apresenta o outro lado.
“E vós, pais”, diz ele, “não provoqueis a ira a vossos filhos.” Não é que este
acréscimo

neutralize o que o apóstolo dissera acerca dos filhos; antes, é dado para
salvaguardar isso, e para tirar todo obstáculo que acaso esteja no caminho
da obediência dos filhos aos seus pais. É outra notável ilustração do
equilíbrio e da eqüidade das Escrituras. Como poderá alguém, diante deste
equilíbrio perfeito, desta eqüidade, desta constante colocação dos dois lados
justapostos - como poderá alguém negar que esta é a inspirada Palavra de
Deus? Temos visto o seu caráter divino no caso dos maridos e das esposas, e
aqui o vemos de novo no caso dos pais e dos filhos; e o veremos mais tarde,
no caso dos senhores e dos servos.

A obediência exigida dos filhos deve ser prestada a toda espécie de pai. Há
pais sobre os quais pesa a culpa de provocarem seus filhos à ira. Ora,
deixemos claro que o ensino do apóstolo é que os filhos devem obedecer
mesmo a esses pais. E uma exortação geral. A ordem deve ser obedecida
independentemente do caráter dos pais, e se aplica até ao caso de pais não
cristãos.

Quero examinar cuidadosamente este aspecto da matéria porque posso


dizer verazmente, baseado numa longa experiência pastoral, que este é um
dos problemas mais comuns de que tenho tratado, quando as pessoas
vinham falar-me das dificuldades em sua vida pessoal. Vocês se lembram do
que o Senhor Jesus disse em Mateus 10:34: “Não cuideis que vim trazer a
paz à terra; não vim trazer paz, mas espada”. Disse Ele que o Seu ensino
não ia abrandar as coisas, porém, antes, ia criar divisão entre pai e filho,
mãe e filha, e assim por diante, sendo este o motivo, que quando uma pessoa
se toma cristã, ocorre uma mudança tão profunda que imediatamente
produz efeito em todas as esferas. E não há área em que se sinta isto mais
agudamente do que a das relações mais íntimas e mais pessoais; pois no
momento em que a pessoa se toma cristã, compreende que a lealdade final é
a Deus e ao Senhor Jesus Cristo. Isso inevitavelmente tem seus efeitos sobre
todas as outras formas de lealdade. Por isso diz o Senhor que Ele será uma
causa de divisão - “E assim os inimigos do homem serão os seus familiares”
(Mateus 10:36). É preciso estar preparado, diz Ele, para estas
possibilidades, e a experiência prática comprova a situação.

O problema que surge agudamente e com freqüência é o de filhos que se


tomaram cristãos e seus pais não. Surge imediatamente um estado de
tensão. Que deverão fazer estes filhos? Como deverão comportar-se? Estou
simplesmente salientando que o apóstolo diz que estes filhos, estes jovens
devem obedecer ao mandamento. O que ele está dizendo é: “Filhos, sejam
obedientes a seus pais, quer sejam cristãos quer não, não importa como eles
sejam”. É uma exortação geral, uma injunção geral; mas, infelizmente, é
um ponto em que grande dano inconsciente tantas vezes é feito por muitos
jovens cristãos. Há, talvez, mais falhas neste ponto do que noutro qualquer.
Como se condizirão estes filhos quanto a seus pais não cristãos? Esse é o
problema. Inconscientemente esses filhos causam, como freqüência, muito
dano por não entenderem o ensino bíblico sobre este ponto, e por falta de
equilíbrio em toda a sua perspectiva. Muitas vezes eles são a causa do
antagonismo dos seus pais para com a fé cristã. Esta é, pois, uma questão
importantíssima.

Há apenas uma ressalva que é preciso acrescentar a esta injunção geral,


“Vós, filhos, sede obedientes a vossos pais”, e é nessa ressalva que nossa
relação com Deus está envolvida num sentido vital. Peso minhas palavras
com particular cuidado neste ponto. Se os seus pais estão querendo proibi-lo
de cultuar a Deus e de Lhe prestar obediência, nesse caso não obedeça a
seus pais. Se deliberadamente o estão incitando ou tentando compeli-lo ao
pecado, a praticar atos pecaminosos, outra vez você deve recusar
obediência. No entanto essa é a única ressalva. Fora disso (e dou ênfase ao
fato), devemos ir aos últimos limites; e mesmo nesta questão quando temos
de encarar a questão quanto a eles estarem bloqueando nossa relação com
Deus, devemos ir até os últimos limites da conciliação e da concessão.

É justamente aqui, vejo-o na experiência pastoral, que muita gente fica em


dificuldade. O que quero dizer é que muitos, como cristãos, se firmam em
coisas que para mim são pormenores completamente sem importância.
Certamente isso é muito natural. Somos extremistas por natureza; e,
havendo nos tomado cristãos, sabemos exatamente como devemos viver.
Nosso grande perigo nesse ponto - e o diabo sem dúvida entra aí - é firmar-
nos em pontos totalmente ridículos, realmente secundários, e que não
afetam em nada a nossa posição cristã.

Deixem-me dar uma ilustração. É o que acontece frequentemente, conforme


minha experiência, sobre a questão da cerimônia religiosa de casamento, ou
sobre tudo que se refere ao matrimônio. Dois jovens cristãos decidem casar-
se e, em ambos os casos, os pais não são cristãos. Os dois jovens
cristãos desejam ardentemente que isto venha a ser um excelente exemplo
de casamento cristão, e tencionam convidar os seus amigos cristãos para a
cerimônia. Todavia, como é natural, os pais também estarão presentes -
estes pais não cristãos, dos dois lados - e igualmente alguns dos seus amigos
e parentes não cristãos. Tenho visto com muita freqüência que a tendência
destes excelentes jovens cristãos é de fincar o pé em minúcias insignificantes
da cerimônia religiosa, e acabam fazendo mais mal do que bem. Noutras
palavras, dizem eles que tudo terá de ser exclusivamente cristão, evangélico;
e tendem a exercer tanta pressão sobre isso, que acabam ofendendo os não
crentes que se acham presentes. É justamente aí, penso eu, que eles deixam
de exercer o juízo e de pôr em prática o equilíbrio que se vê nas Escrituras.
Naturalmente deverá haver uma cerimônia nupcial evangélica, mas há
muitas questões incidentais nos arranjos que me parecem simplesmente
indiferentes. Se havemos de ser verdadeiramente cristãos, devemos fazer as
concessões que pudermos, e devemos fazer o possível para facilitar as coisas
para os outros, na esperança de que, quando eles virem o que realmente é
um casamento cristão, sintam-se atraídos para a fé. Contudo, se tomarmos
uma posição rígida e não fizermos nenhuma concessão nalgum ponto ou
nalgum detalhe, e teimarmos em que tudo deverá ser feito à nossa maneira -
noutras palavras, se estivermos mais interessados em causar boa impressão
aos nossos amigos cristãos do que em ajudar nossos pais incrédulos - então
não estaremos cumprindo esta injunção apostólica de

obediência a nossos pais. É o que quero dizer quando falo de firmeza


somente nas questões verdadeiramente vitais, e não meramente em
minúcias triviais e incidentals.

Ademais, é importante que, quando nos firmamos numa posição, que o


façamos num espírito correto. Ao nos firmarmos nalgum princípio
cristão, jamais deveremos fazê-lo de maneira desdenhosa ou impaciente.
Muito menos de maneira arrogante ou crítica. Muitas vezes nos traímos
pela maneira como dizemos as coisas. Tenho notado que as pessoas que têm
esse defeito, freqüentemente manifestam sua atitude errada até quando
discutem comigo os arranjos para as bodas. Com um sorriso forçado,
dizem-me: “Naturalmente, meus pais não são cristãos”; e os deixam de lado
pura e simplesmente. No momento em que a pessoa fala desse jeito, sei que
já está no erro. Qualquer posição que tal pessoa queira tomar sobre bases
cristãs, é quase certo que será inútil, e terá a probabilidade de fazer muito
mais mal do que bem. Se os seus pais não são crentes, não fale com eles
daquela maneira, não os repudie, não fale com descaso acerca deles. Você
deve sentir-se pesaroso por eles e, portanto, precisa falar deles com pesar e
tristeza. Mas acho que é ir longe demais empregar falatório e dureza
anticristãos.

Tais “filhos” não estão obedecendo a seus pais, não estão honrando seu pai e
sua mãe. Você deve honrar seu pai e sua mãe, sejam eles cristãos ou não;
esta é a injunção. Muitas vezes é difícil, porém esta é a injunção; e repito
que só há um limite, a saber, o ponto em que eles tentem definida e
deliberadamente impedi-lo de adorar a Deus e de servi-10, ou tentem
deliberadamente levá-lo a cometer algum pecado. O espírito com que
agimos nesse ponto é de vital importância; e toda vez que chegarmos ao
ponto onde somos forçados a resistir e desobedecer, devemos fazê-lo de tal
maneira que eles percebam que isso nos entristece e nos magoa, que o
lamentamos, e que para nós é uma terrível decisão. Para um filho ter de
resistir ao pai é uma das coisas mais solenes e mais graves que se possa
requerer que façamos nesta vida; por conseguinte, sempre que seja feito em
nome de Cristo e de Deus, deve ser feito com o coração
quebrantado. Devemos fazer com que os nossos pais sintam que isto nos está
magoando, está nos causando pesar e nos está custando muito, que
cortaríamos a nossa mão direita para evitá-lo; mas que não temos escolha
nessa questão.

Se for feito dessa maneira, poderá ser utilizado por Deus para influenciá-
los; entretanto, se for feito com arrogância, desdém e crítica, certamente
causará dano. Não terá valor algum e afastará as pessoas de Cristo, fará
que pensem e digam: “Desde que estes filhos se tomaram cristãos, mostram-
se cabeçudos, sabichões, duros, rígidos e legalistas”. Isso colocará uma
terrível barreira entre eles e a perspectiva de chegarem ao conhecimento de
Deus e de nosso Senhor e Salvador. Toda posição que formos compelidos a
tomar, sempre deverá ser tomada com o coração oprimido, com espírito
abatido e humilde. Devemos fazê-los sentir que os nossos corações estão
sangrando quando somos compelidos por esta coisa maravilhosa que Deus
nos fez, e que nos levou a opor-nos aos nossos pais. Sempre devemos pensar
desse modo.

Permitam-me dar algumas razões pelas quais devemos agir assim para
podermos ser auxiliados e guiados toda vez que nos acharmos nessa
situação. Por que deverá o cristão portar-se da maneira que estive
indicando, tanto negativa como positivamente? A resposta é, porque o filho
cristão deve ser o melhor tipo de filho que existe. Essa é uma afirmação
geral, uma afirmação universal. Seja o que for que o cristão fizer, deve fazê-
lo o melhor que puder. Firmo isto como uma proposição geral. O filho
cristão deve ser melhor do que qualquer outro filho, o marido cristão, o
melhor marido, a esposa cristã, a melhor esposa, a família cristã, o melhor
tipo de família de todo o mundo, o negociante cristão, o melhor homem de
negócio concebível, o profissional cristão, o melhor em sua profissão. Não
digo isso do ponto de vista da habilidade, e sim de todos os outros aspectos.
Tudo que o cristão faz deve ser feito com todas as suas forças, com uma
eficácia e com um entendimento de que ninguém mais seja capaz.
Naturalmente é isso que deve estar por trás de todas essas injunções
pormenorizadas que estamos estudando. O cristão, lembrem-se, é um
homem cheio do Espírito. “E não vos embriaguei com vinho, em que
há contenda, mas enchei-vos do Espírito”. Ora, quando um filho é “cheio
do Espírito”, por definição esse filho será exemplar, será um filho
absolutamente melhor do que qualquer outro que não tenha essa
experiência.

A que, então, isso nos leva? À conclusão de que os filhos cristãos devem ser
os melhores do mundo, porque unicamente eles têm uma real e
verdadeira compreensão desta relação. Há um esfalecelamento da família e
da vida doméstica hoje porque ambos os lados, os pais e os filhos, não
entendem o sentido destas coisas. Nada sabem da relação de pais e filhos do
ângulo bíblico. Não podem ver estas coisas “no Senhor”, como devemos vê-
las; porém, desde que estamos “no Senhor”, temos um novo entendimento
destas coisas. Vemos que esta relação de pai e filho é um reflexo e um
quadro descritivo da relação de Deus e o cristão, que é Seu filho. Assim,
temos esta noção exaltada, elevada da paternidade e da relação dos filhos
com seus pais. Posto que unicamente o filho cristão (ou filha) compreende
estas questões e esta relação, ele ou ela sempre deve sobrepujar os outros na
prática. Como cristãos, não agimos automaticamente. O cristão sempre sabe
por que faz o que faz. Ele tem suas razões, tem estas explicações e
exposições das Escrituras; ele entende a situação.

Então é somente o cristão que tem o espírito certo - “enchei-vos do


Espírito”. Todo o problema nestas questões é, em última análise, um
problema de espírito. A atitude moderna é, “Por que eu deveria dar ouvidos
aos meus pais? Quem são eles? Ultrapassados ou, em todo caso, antiquados!
De que é que eles entendem?” Esse é o espírito que está causando muito
problema hoje em dia. Por outro lado, os pais são igualmente culpados da
mesma falha quanto ao espírito correto. “Estes filhos são um estorvo”,
dizem eles muitas vezes. “Gostaríamos de sair à noite, como era nosso
costume, porém chegaram os filhos e não podemos fazer mais isso.” O
espírito já está errado, e é por isso que há tantos fracassos. Estes problemas
são todos questões do “espírito”, e é por isso que os patéticos políticos e
estadistas, com os seus Atos do Parlamento, não

estão nem começando a ver a natureza do problema com que estão lidando.
Não se pode legislar sobre estas questões; é questão de espírito.

É muito importante que o filho cristão tenha o espírito certo nestas


questões; e a última coisa de que deveria ser culpado é de um espírito
egoísta. Já me referi a isso anteriormente. Aqui está uma situação muito
delicada. Estes jovens cristãos estão para se casar, e aí estão estes pais não
cristãos. A tentação que vem a estes jovens crentes é, “Devo insistir nisto e
naquilo; sou cristão, entendo disso e, portanto, tudo deve ser feito como
digo”. O espírito já está errado. O seu desejo é fazer o que considera certo,
mas, que dizer destes outros? “Digo, porém, a consciência, não a tua, mas a
do outro.” “Todas as coisas me são lícitas, mas nem todas as coisas convêm”
(1 Coríntios 10:23,29). Que dizer do irmão mais fraco? Que dizer daquele
que nem sequer é cristão? Não se deverá ter nenhuma consideração para
com eles? Acaso seu único interesse é que tudo seja feito de tal maneira que
se veja que você está absolutamente certo e cumpriu a letra da lei nos
mínimos detalhes? Essa é a essência do farisaísmo! Esse é o espírito que
“dizima a hortelã, o endro e todo tipo de ervas, e esquece as coisas mais
importantes da lei, tais como o amor e a misericórdia”. Conceda-nos Deus
sabedoria nestas questões! Tenho visto tanto dano feito à causa de Cristo
por se falhar neste ponto, que lhe dou ênfase especial. Jamais devemos agir
com espírito egoístico e de justiça própria.
Deixem-me, porém, acrescentar mais uma coisa. O cristão está numa
posição excepcionalmente vantajosa nestas coisas porque, como cristão, há
de entender as dificuldades dos seus pais. Tome-se o caso de filhos não
crentes entrando em conflito com seus pais não crentes. Que acontece?
Imediatamente há um choque de personalidades, um choque das vontades, e
os dois lados não se entendem de modo nenhum. O filho diz: “Os pais não
têm direito de dizer isto”; e os pais olham para os filhos e dizem: “Estes
filhos são impossíveis, estão completamente errados”. Os dois lados mantêm
posição radical, sem nenhuma tentantiva para compreender o ponto de vista
oposto. Todavia, nunca se deveria ter base para dizer isso do cristão. Ele
leva esta grande vantagem sobre o não cristão: na qualidade de cristão,
compete-lhe saber por que os seus pais não podem compreendê-lo e por que
se comportam desse modo. Não os considera apenas como pais difíceis, não
se preocupa apenas com as personalidades deles. Ao invés disso, como
cristãos, ele diz: “Naturalmente, em certo sentido eles não podem fazer
outra coisa; é muito triste, é trágico, mas não devo ficar aborrecido com eles
porque eles não têm a mínima possibilidade de ver a questão segundo a
posição cristã. Eles não são cristãos, e pedir-lhes que assumam a posição
cristã quando eles não são cristãos, é pedir-lhes o impossível. Eu mesmo já
estive nessa situação; eu era cego. Graças a Deus, os meus olhos foram
abertos e agora veja o caminho certo; mas eles não, pelo que devo ter
simpatia por eles e devo ajudá-los e aplacar-lhes o ânimo”. Essa é a
vantagem de que o cristão goza. “Vós, filhos, sede obedientes a vossos pais
no Senhor”; você tem esta compreensão. Não se limite a opor-se, como uma
personalidade contra outra; veja que é a cegueira do pecado que está
causando o problema. Não os veja simples-

mente como pais que estão contra você; veja, antes, o pecado que se
intromete e causa a divisão. Foi isso que o Senhor quis dizer sobre “trazer
espada” e causar esse tipo de divisão. Não devemos ficar surpresos com isso,
mas não devemos reagir violentamente. Nossa abordagem da questão toda
deve ser com espírito de compreensão e simpatia.

Isso leva ao meu último motivo. Façamos eu e você o que fizermos como
cristãos, façamos o que fizermos como filhos cristãos, toda vez que
nos pusermos contra este choque, esta divisão, e nos acharmos até
compelidos a dizer, “Não”, a nossos pais, devemos estar sempre certos de
que o que predomina em nossas mentes nesse ponto é o interesse pelas almas
dos nossos pais. “Honra a teu pai e a tua mãe”. O fato de você agora ser
cristão e eles não, não significa que você deva zombar deles, tratá-los com
descaso e desdém, e repudiá-los. É seu dever honrá-los, e você poderá
honrá-los mais que tudo estando preocupado com as suas almas. Se como
povo cristão não nos interessarmos em nosso espírito e em nosso coração
pelas almas daqueles que se acham ligados a nós nesta relação tão íntima,
então não estaremos obedecendo aos nossos pais, não estaremos “honrado
nosso pai e nossa mãe” do modo indicado pelas Escrituras.

Tratemos, pois, de salvaguardar-nos, com estas considerações, da frívola,


superficial e mecânica espécie de conduta que freqüentemente nos é
recomendada, senão imposta, por pessoas cristãs bem intencionadas mas
ignorantes. Há muitos assim. Dizem eles: “Agora que você se converteu, é
isso que deve fazer”, e quase chegam a animá-lo a voltar-se contra os seus
pais. Jamais lhes permita fazê-lo, Estas normas e leis fundamentais duram e
permanecem. A única divisão legítima é a causada por Cristo. Jamais
deveremos criar divisões; devemos fazer o máximo para evitá-las, e devemos
ir até os últimos limites para evitá-las. A única divisão válida é aquela
inevitável e tremenda divisão feita pela espada do Espírito manejada pelo
Filho de Deus, nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Jamais devemos fazer-
nos difíceis, jamais devemos fincar pé em coisas irrelevantes; jamais
devemos fazer qualquer coisa que cause divisão. A única divisão inevitável e
permissível é a produzida pela espada que o Senhor Jesus disse que veio
trazer (Mateus 10:34-38).

Voltamos agora a nossa atenção para os pais. “Pais”, diz o apóstolo, “E vós,
pais, não provoqueis a ira a vossos filhos”. Notem que ele só menciona
os pais, sem incluir as mães. Ele acabara de citar as palavras da Lei —
“Honra a teu pai e a tua mãe” - mas agora distingue os pais porque todo o
seu ensino é que, como vimos, o pai é aquele que ocupa a posição de
autoridade. É o que sempre vemos no Velho Testamento; é como sempre
Deus ensinou as pessoas a comportar-se; assim, naturalmente, Paulo dirige
esta injunção particular aos pais. Mas não é para limitar-se aos pais; inclui
as mães também; e numa época como a nossa, chegamos a uma situação em
que a ordem quase se inverteu! Vivemos numa espécie de sociedade
matriarcal em que os pais, infelizmente, e os maridos abdicaram de tal
maneira da sua posição no lar, que quase tudo está sendo deixado com as
mães. Portanto, temos que compreender que o que aqui

se diz aos pais aplica-se igualmente às mães. Aplica-se a quem está na


posição de ter que exercer a disciplina. Noutras palavras, o que nos
apresenta este versículo quatro, e está implícito nos versículos anteriores, é
todo o problema da disciplina.

Devemos examinar cuidadosamente este assunto e, por certo, é um assunto


bastante extenso. Não há assunto, volto a dizê-lo, de importância
tão urgente neste país, e em todos os outros países, como todo este problema
de disciplina. Estamos presenciando um colapso da sociedade, e isto
ocorre principalmente em conexão com esta questão de disciplina. Nós a
temos em casa, nós a temos nas escolas, nós a temos na indústria; está em
toda parte. O problema confrontado pela sociedade hoje, em todas as
atividades da vida é, em última análise, o problema da disciplina.
Responsabilidade, relações, como conduzir a vida, como deve transcorrer a
vida! Todo o futuro da civilização, parece-me, repousa nisto. A pregação não
tem como propósito principal tratar das questões políticas e sociais, embora
possamos lançar importante luz sobre elas.

Dizem que a mais importante divisão do mundo atual é a produzida pela


“Cortina de Ferro”. Em vista disso, aventuro-me a fazer esta asserção,
esta profecia: se o Ocidente for derrotado, será por uma única razão -
corrupção interna. Não há problema de disciplina do outro lado porque há
uma ditadura lá e, portanto, eles têm que mostrar eficiência. Nós não
acreditamos na ditadura; não há, pois, nada mais importante para nós do
que o problema da disciplina. Se continuarmos a gastar nossas vidas em
festas, trabalhando cada vez menos e exigindo cada vez mais dinheiro, cada
vez mais prazer e uma pretensa felicidade, cada vez mais indulgência para
com as luxúrias da carne, recusando a aceitar nossas responsabilidades,
haverá um só resultado - fracasso abjeto e total. Por que os godos, os
vândalos e outros bárbaros conquistaram o Império Romano? Por terem
poder militar superior? Claro que não! Os historiadores sabem que
há somente uma resposta: a queda de Roma sobreveio em razão do espírito
de indulgência que invadira o mundo romano - os jogos, os prazeres, os
banhos. A corrupção moral que penetrara no coração do Império Romano
foi a causa do “declínio e queda” de Roma. Não foi um poder de fora, e sim
a corrupção interna que causou a ruína de Roma. E o fato realmente
alarmante hoje é que estamos presenciando uma decadência semelhante,
neste e na maioria dos outros países ocidentais. Este relaxamento, esta
indisciplina, toda a perspectiva e o espírito atuais são característicos de um
período de decadência. A mania de prazer, a mania de esportes, a mania de
bebidas e drogas tem escravizado as multidões. Este é o problema essencial,
esta completa ausência de disciplina, de ordem, de verdadeiras noções de
governo!

Ao que me parece, estas questões são levantadas com muita clareza por
meio daquilo que o apóstolo nos diz aqui, e prosseguirei para apresentá-
las pormenorizadamente, a fim de mostrar como as Escrituras nos
esclarecem com relação a elas. Antes de fazê-lo, porém, permitam-me
mencionar uma coisa que ajudará e estimulará todo o seu processo de
pensamento. Um dos nossos

problemas atuais é que não pensamos mais por nós mesmos. Os jornais o
fazem por nós, as pessoas entrevistadas no rádio e na televisão o fazem por
nós, e nós nos sentamos e escutamos. Essa é uma das manifestações do
colapso da autodisciplina. Precisamos aprender a disciplinar as nossas
mentes. Portanto, farei duas citações das Escrituras, uma sobre um lado,
outra sobre o outro lado desta situação toda. O problema da disciplina está
entre ambos. Eis o limite de run lado: “O que retém a sua vara aborrece (ou
“odeia”) a seu filho” (Provérbios 13:24). O outro é: “Pais, não provoqueis a
ira a vossos filhos”. Todo o problema da disciplina está entre estes dois
limites, e ambos se acham nas Escrituras. Equacionem o problema nas
Escrituras, procurem apegar-se aos grandes princípios bíblicos que
comandam esta vital, esta urgente questão, este enorme problema que
confronta todas as nações ocidentais, se não outras também, nesta hora.
Todos os nossos problemas resultam do fato de que vamos a um extremo ou
ao outro. Isso nunca se vê nas Escrituras. O que caracteriza o ensino
das Escrituras, sempre e em toda parte, é seu equilíbrio perfeito, uma
eqüidade que nunca falha, a maneira extraordinária pela qual a graça e a
lei se combinam. Consideraremos estas questões pormenorizadamente.

A DISCIPLINA E A MENTALIDADE MODERNA Efésios 6:1-4

Continuamos nosso estudo daquilo que constitui uma das questões básicas e
fundamentais concernentes à totalidade da vida e da conduta, É um
problema não só para o povo cristão, mas também para a sociedade toda. O
que particularmente nos afeta, a nós cristãos, é que, como as Escrituras no-
lo recordam, somos postos como “luzeiros no mundo” (Filipenses 2:15)
como “sal” da sociedade, e como “cidade edifícada sobre um monte”
(Mateus 5:13-14). Não há esperança para o mundo separadamente da luz
que lhe vem do ensino cristão. É, pois, duplamente importante que, como
povo cristão, observemos diligentemente e tratemos de compreender o
ensino apostólico. Cabe-nos dar exemplo ao mundo sobre como se deve
viver verdadeiramente a vida. E temos uma oportunidade única, eu acho,
numa época como esta, de mostrar o conceito cristão, bíblico e equilibrado
concernente a este tormentoso problema de disciplina.

Este urgente problema não se limita, é claro, à questão dos filhos. O mesmo
princípio está implícito na atitude moderna para com o crime, a guerra e
toda e qualquer forma de punição, cujo princípio faz parte do mesmo e
mais amplo problema. Aqui, porém, estamos vendo como ele afeta em
particular a disciplina dos filhos e a disciplina do lar. Temos visto que há
duas exortações fundamentais que parecem governar todo pensamento
genuíno acerca desta questão de disciplina. De um lado, temos a conhecida
exortação, “Quem poupa a vara estraga a criança” (cf. Provérbios 13:24), e
as outras formas dessa exortação que se encontram em vários pontos do
Livro de Provérbios e nas demais partes da literatura da “Sabedoria” do
Velho Testamento. Esse é um lado. O outro é, “Pais, não provoqueis a ira a
vossos filhos”. Existem as duas posições fundamentais. Dentro da elipse
formada entre estes dois focos acharemos a doutrina bíblica concernente a
este assunto.

Primeiramente o examinaremos de modo geral. O que nos choca logo de


início é a grande mudança que se operou durante o presente século quanto a
todo este problema de disciplina, e especialmente durante os últimos trinta
anos, aproximadamente. Mas isto vem ocorrendo durante este século todo.
Tem ocorrido uma revolução completa na atitude das pessoas para com esta
matéria. Anteriormente havia o que o povo hoje gosta de apelidar
zombeteiramente de perspectiva vitoriana com relação a esta problemática
da disciplina. Admitamos pronta e francamente que não há nenhuma
dúvida de que era excessiva. Era

repressiva, às vezes brutal, na verdade se pode dizer que às vezes era até
desumana. O pai vitoriano e o avô vitoriano são tipos bem conhecidos
e reconhecíveis. Havia um elemento - na verdade um elemento considerável
- de tirania em sua concepção da paternidade e da disciplina familiar. Os
filhos eram dirigidos severa e rigorosamente, e se costumava dizer: “Os
filhos são para a gente ver, não para ouvir”. Certamente essa idéia era posta
em ação. Os filhos não tinham permissão para expressar suas opiniões, e às
vezes nem fazer perguntas; era-lhes dito o que fazer, e eles tinham que fazê-
lo; e se recusavam, eram punidos com muita severidade. Não precisamos
tomar muito tempo com isto; tem sido atacado, ridicularizado e
caricaturado tanto, que seguramente toda gente já está familiarizada com o
quadro. Na maioria, provavelmente, não somos suficientemente idosos para
lembrar-nos disso na prática, exceto aqueles que, digamos, já passaram dos
sessenta anos de idade; entretanto, todos nós conhecemos bem a descrição
geral e a idéia. Essa era a situação há cerca de um século, e continuou até à
primeira guerra mundial, mais ou menos.

No entanto, desde então tem havido uma mudança total; e hoje somos
confrontados por uma situação que é quase o exato oposto, pois agora
nos inclinamos a eliminar completamente a disciplina. Como eu já disse, faz
parte de uma atitude geral para com a guerra, para com o crime, para com
a punição em geral, e principalmente para com o castigo físico e a pena
capital. Introduziu-se uma nova atmosfera que rejeita por completo as
idéias que constituíam a perspectiva vitoriana. Na verdade podemos
descrever isto como uma oposição às idéias de justiça e retidão, de ira e
punição. Todos estes termos são abominados e odiados. Em geral, o homem
moderno tem radical aversão por elas. Vemos isso exemplificado em nossos
jornais, nas tendências que se pode observar nos Atos do Parlamento, e nas
mudanças que se introduzem crescentemente. Raramente se ouvem estes
grandes vocábulos - integridade, verdade, justiça, retidão. As palavras
muito usadas hoje são paz, felicidade, prazer, repouso, tolerância. O homem
moderno tem se revoltado contra os grandiosos termos que sempre
caracterizaram os tempos heróicos da história da humanidade, porém em
grande parte é uma reação contra as severidades da era vitoriana.

O que toma a situação tão grave é que geralmente esta atitude é


apresentada em termos do cristianismo, e especialmente em termos do
ensino do Novo Testamento - e isso, em particular, em contraste com o
ensino do Velho Testamento. Muitas vezes a situação é descrita assim:
“Naturalmente, o problema com aqueles vitorianos era, como aconteceu
com os puritanos, que eles viviam no Velho Testamento, adoravam o Deus
do Velho Testamento. “Todavia”, acrescentam, “é evidente que nós não
cremos mais nisso; seu Deus não passava de um Deus tribal; esse não é o
Deus do cristão, não é o Pai de Jesus”. Alegam que estas idéias modernas
concernentes à disciplina estão baseadas no Novo Testamento, e que eles
têm a verdadeira concepção neotestamentária de Deus. Portanto, não estão
interessados, dizem eles, em justiça e retidão, em ira e punição. Nada
importa, a não ser o amor e a compreensão.

Este é o ponto em que tudo se toma tão grave. E é interessante notar que

homens que nem sequer alegam ser cristãos estão dizendo estas coisas.
Pode-se até ler declarações em livros, artigos e periódicos que não hesitam
em afirmar que a posição cristã geralmente está sendo expressa hoje, não
pela Igreja, e sim por alguns dos escritores populares, livre-pensadores, que
franca e declaradamente não são cristãos. Dizem-nos que a causa cristã vai
mal, que a Igreja não a está promovendo, e que na verdade o cristianismo
está sendo apresentado hoje por homens de fora da Igreja. Diz-se que eles
estão fazendo a verdadeira exposição do ensino do Novo Testamento,
contrariamente ao ensino do Velho Testamento. Existe esta curiosa aliança
de algumas pessoas que se chamam cristãs, e outras que afirmam
abertamente que não são cristãs; mas juntas concordam que o cristianismo
e o Novo Testamento ensinam este conceito moderno quanto à disciplina, e
que, portanto, estão afastadas do antigo conceito vitoriano, e
particularmente do conceito típico do Velho Testamento.

Resumindo, podemos dizer que a idéia básica subjacente a este conceito é


que a natureza humana é essencialmente boa. Essa é a filosofia
fundamental. Daí, o que é necessário é induzir, encorajar e desenvolver a
personalidade da criança. Portanto, não deve haver nenhuma repulsa,
nenhum domínio; não deve haver nenhuma punição, e nenhuma
administração de corretivos porque isso tende a ser repressivo. Sendo esse o
princípio dominante, naturalmente produz os efeitos correspondentes em
todos os departamentos da vida.

Vejam, por exemplo, os métodos de ensino. Esta é, certamente, uma das


questões mais urgentes com que a Inglaterra se defronta hoje. Durante
os últimos vinte anos, aproximadamente, os métodos de ensino têm sido
determinados quase inteiramente por esta maneira de ver, por esta nova
psicologia que considera a natureza humana como essencialmente boa. A
idéia é que não se pode forçar ou coagir a criança. Uma das primeiras
personalidades a descrever este ensino foi a doutora Maria Montessori, cujo
método de ensino, a grosso modo, chegou a isto - que devemos deixar que as
crianças decidam por si mesmas e escolham por si mesmas o que querem
aprender. É certo que antes da sua época o método era compulsório, e as
pessoas tinham de usá-lo, querendo ou não. As crianças tinham de aprender
de cor a tabuada, e muitas outras coisas. Isso era feito mecanicamente, sem
nenhuma tentativa de tomá-lo interessante para as crianças. Simplesmente
lhes diziam que tinham que aprender o alfabeto, a tabuada e a gramática.
Tudo era metido nos ouvidos delas, e elas tinham de repeti-lo
mecanicamente até o saberem de memória e poderem repeti-lo de cor. Ora,
tudo isso está completamente errado, dizem-nos, porque não desenvolve a
personalidade da criança. É preciso que o ensino seja interessante, e que
tudo seja explicado à criança. Ela não deve aprender a matéria de maneira
mecânica, mas deve compreender o que está aprendendo; estas são as
explicações que nos dão. O método antigo foi descartado em termos deste
novo conceito da natureza humana, desta nova atitude para com a vida que
se diz cristã. Assim, na questão da teoria e dos métodos educacionais, houve
esta profunda revolução. Agora estamos começando a descobrir alguns dos
seus resultados. Vocês vêem industriais e outros a queixar-se de que muitos
que se candidatam a cargos de

auxiliar de escritório e datilografo não sabem soletrar ou ignoram a simples


aritmética. A minha preocupação, porém, não é com os resultados práticos
e econômicos, e sim com os princípios subjacentes.

Ainda, com respeito à questão da punição, isso também veio a ser, em


grande parte, uma coisa do passado. Dizem-nos que não devemos punir;
que devemos apelar para as crianças, mostrar-lhes o erro, defrontá-las com
um bom exemplo e, depois, recompensá-las positivamente. Devemos
conceder, por certo, que há uma boa dose de verdade em tudo isso, mas o
perigo é que geralmente os homens vão de um extremo ao outro, e hoje em
dia, em grande parte, a noção de punição desapareceu. Na verdade há
alguns que insistem nesta noção até o ponto de dizer que nunca se deve
punir uma criança. Alguns chegam a dizer que, se uma criança fizer algo de
errado, devemos receber o castigo em lugar dela; com isso, envergonhará a
criança e a levará a abandonar essa prática errônea e má. Lembro-me
muito bem de que, há uns trinta anos, um homem pôs isso literalmente em
prática em sua família. Tinha ele um filho que, como todos os filhos, era
freqiientemente dado à desobediência e a fazer coisas erradas; mas este
homem, havendo-se apegado a esta nova teoria, decidiu que não
castigaria mais a criança, de jeito nenhum, e sim aplicaria o castigo a si
próprio. Por exemplo, em vez de punir o filho, ele, o pai, não jantaria no dia
da falta praticada. Devo acrescentar que a experiência não durou muito
tempo. No interesse da sua própia saüde, logo teve que retomar ao velho
método!

Essa é uma ilustração típica da atitude moderna. A natureza humana,


alegam, é essencialmente boa, e você apenas deve apelar para o que há
de melhor e mais elevado nela. Jamais será preciso punir, jamais reprimir,
jamais exercer disciplina. Basta que você exponha o ideal e que sofra em si
mesmo o castigo pelo mal praticado por outros; e os ofensores reagirão bem.
Gente desse tipo acreditava que se tivessem agido desse modo com Hitler,
não teria havido guerra; poderiam ter mudado Hitler se o tivessem
procurado e falado com ele com delicadeza e bondade, e lhe tivessem
mostrado como estavam prontos a sofrer. Havia um pregador muito popular
em Londres, antes da segunda guerra mundial, que de fato propôs que ele e
alguns outros fossem colocar-se entre os exércitos do Japão e da China, que
estavam em combate naquele tempo. Não o fizeram, mas estavam
convencidos de que, se tão somente se postassem entre aqueles exércitos
rivais, e se sacrificassem, a guerra terminaria imediatamente.

Isso tudo, repito, está baseado na idéia de que a natureza humana é


essencialmente boa; assim, você só tem que apelar para ela. Nunca
precisará recorrer a castigos. E se chegar a aplicar algum castigo, que nunca
seja corporal, dizem-nos; o castigo deve ser reformatório. Este é um ponto
interessante. O novo conceito é que a ação punitiva - se tanto se pode dizer
em seu favor - visa a reformar, não exercer retribuição ou desforra. Dizem-
nos que sempre devemos ser positivos, que sempre devemos pretender
estruturar um novo tipo de personalidade e de caráter. Que resultado dá?
Vejam a questão das prisões. A idéia moderna é que o trabalho das prisões
não é punir os transgressores, mas reformá-los. Assim, cada vez mais nos
dizem que o que é necessário nas prisões
é a abolição de restrições e castigos. Devemos abolir o chicote e todas as formas de castigo corporal, e
as prisões devem ser dirigidas por psiquiatras. A prisão é um lugar em que o homem deve receber
tratamento psicológica e psiquiátrico. Não se deve punir o prisioneiro pelo que ele fez porque
essencialmente é um bom homem. O que se deve fazer é estruturar a bondade nele existente e induzi-
la, fazê-la externar-se. Mostrem a ele o mal e o erro de certas idéias que ele tem, e daquilo que ele tem
feito contra a sociedade, e logo ele virá a reconhecer os seus erros e a abandoná-los. A grande
necessidade é estruturar “o outro lado”. E assim, por meio do tratamento psiquiátrico, o homem será
reformado e o seu caráter e a sua personalidade serão estruturados.

Essa é a idéia dominante hoje quanto ao tratamento do crime e sua punição. A pena capital foi
abolida, todas as formas de punição corporal precisam ser abolidas; na verdade, toda espécie de
severidade precisa ser abolida; todas a ênfase deve ser dada a este tratamento pela psiquiatria -
a abordagem psicológica, a estruturação, o trabalho fundado neste algo positivo que há na natureza
humana! E, naturalmente, a mesma idéia entra na questão do manejo das crianças. Toda a tendência
hoje, se uma criança não se porta na escola como deve, é de enviá-la a um psiquiatra de crianças;
todas precisam receber tratamento psicológico. Essencialmente todas são boas; portanto, não deve
haver punição. Deve-se jogar fora a vara, a bengala. O que é preciso é induzir, extrair este bem
inerente e oculto. Daí, quando o professor não consegue manter a disciplina, a criança é enviada ao
psiquiatra, ao psicólogo de crianças, para exame e prescrição do tratamento apropriado.

O que ressalto é que tudo isso está sendo feito em nome do cristianismo, e com a alegação de que é o
Novo Testamento contra o Velho Testamento. Esta, segundo se nos diz, é a abordagem que Cristo faz
destas questões. Portanto, em muitos sentidos, toda a posição cristã está envolvida neste ponto, bem
como todo o futuro da Igreja. Aí está um conceito que pessoas incrédulas estão defendendo e
apoiando - com tudo que podem - todavia isso está sendo feito em nome do cristianismo e do Novo
Testamento.

Ampliemos o nosso exame desta questão. Qual é o ensino bíblico, o ensino cristão sobre isso? Não
hesito em asseverar que a atitude bíblica e cristã para com estes dois extremos é que ambos estão
errados; que a posição vitoriana estava errado, e que a posição moderna está mais errada ainda.
Entretanto, estamos especialmente interessados no argumento atual e predominante. Voltarei mais
tarde à idéia vitoriana, a qual pode ser tratada em termos desta exortação: “E vós, pais, não
provoqueis a ira a vossos filhos”; pois era exatamente isso que faziam; e esta atitude moderna é em
grande parte uma reação a isso. Mas vejamos essa posição moderna primeiro.

Minha primeira razão para afirmar que, do ponto de vista bíblico e cristão, esta idéia moderna
quanto ao problema da disciplina está completamente errada, é que o oposto de um tipo errado de
disciplina certamente não é não ter nenhuma disciplina. Todavia, é o que está sucedendo hoje. Os
vitorianos, dizem eles, estavam errados; daí, que haja literalmente nenhuma disciplina, nenhuma

punição; deixem a criança fazer o que quiser, e quase todos os outros


fazerem o que quiserem. Há um engano fundamental aqui. O oposto da
disciplina errada não é ausência de disciplina, e sim a disciplina certa, a
disciplina verdadeira. É o que vemos aqui, em Efésios, capítulo 6. “Vós,
filhos, sede obedientes a vossos pais”, “E vós, pais, não provoqueis a ira a
vossos filhos”. Disciplinem os filhos, sim, porém que não seja uma disciplina
errônea; que seja o tipo certo de disciplina. “Não os provoqueis a ira, mas
criai-os na doutrina e admoestação do Senhor.” Pois bem, essa é uma
verdadeira disciplina. No entanto, a tragédia de hoje, com o seu pensamento
superficial, consiste na suposição de que o oposto da disciplina errada é não
se ter nenhuma disciplina. Esse é um completo engano, do ponto de vista do
pensamento comum e da filosofia, se é que não o é de nenhum outro ponto
de vista.

Permitam-me colocar o assunto doutro modo. Toda e qualquer posição que


diga, “somente a lei”, ou que diga, “somente a graça”, é
necessariamente errada porque na Bíblia temos “a lei” e “a graça”. Não é,
“a lei ou a graça”; é “a lei e a graça”. A graça estava presente na lei do
Velho Testamento. Todas as ofertas queimadas e todos os sacrifícios e
holocaustos o indicam. Foi Deus quem os ordenou. Que ninguém jamais
diga que não existia a graça na lei de Deus, nos termos em que ela foi dada a
Moisés e aos filhos de Israel. Em última instância, a lei se baseia na graça; é
lei contendo em si a graça. E, por outro lado, jamais devemos dizer que a
graça significa ausência da Lei; isso é antinomismo, o qual é condenado em
toda parte no Novo Testamento. Havia alguns cristãos primitivos que
diziam: “Ah, não estamos mais debaixo da lei, estamos sob a graça; quer
dizer que o que fazemos não importa. Uma vez que não estamos mais
debaixo da lei, mas sim debaixo da graça, vamos pecar, para que a
graça seja mais abundante! Vamos fazer o que quisermos; isso não importa.
Deus é amor, fomos perdoados, estamos em Cristo, nascemos de novo;
portanto, façamos tudo que quisermos”. Estas falsas deduções são tratadas
nas Epístolas aos Romanos, aos Coríntios e aos Tessalonicenses, e também
nos três primeiros capítulos do Livro de Apocalipse. É um trágico engano
pensar que quando temos a graça, não há nela nenhum elemento da lei, mas
que há uma espécie de licença. Isso é uma contradição do ensino bíblico
concernente à lei e à graça. Existe graça na lei; existe lei na graça. Como
cristãos não estamos “sem lei”, afirma Paulo, porém estamos “debaixo da
lei de Cristo” (1 Coríntios 9:21).

Naturalmente há disciplina. De fato, o cristão deve ser muito mais


disciplinado que o homem que está debaixo da lei, porque enxerga
mais claramente o seu significado, e tem maior poder. Ele tem uma
compreensão mais verdadeira e, portanto, deve ter uma vida melhor e mais
disciplinada. Não há menos disciplina no Novo Testamento do que no Velho
Testamento; há na verdade mais, e num nível mais profundo. Em todo caso,
como o apóstolo Paulo ensina, escrevendo aos gálatas, não devemos
repudiar a lei, pois “a lei nos serviu de aio, para nos conduzir a Cristo”
(Gálatas 3:24). Não coloquemos estas coisas como se fossem opostas. A lei foi
dada por Deus a fim de que os homens fossem, por assim dizer,
encarcerados e encerrados em Cristo, que havia de vir, que

haveria de outorgar-lhes esta grande salvação. Eu afirmo, pois, que esta


idéia moderna entende de forma completamente errada tanto a lei como a
graça. É uma balbúrdia completa, uma confusão total; na verdade, não é
bíblica, de modo nenhum. Não passa de filosofia humana, de psicologia
humana. Emprega termos cristãos, mas os esvazia do seu sentido
verdadeiro.
Em terceiro lugar, o ensino moderno - e esta é uma das coisas mais graves a
seu respeito - demonstra um entendimento completamente falso da
doutrina bíblica sobre Deus. Este é o ponto desesperadamente sério. O
homem moderno não formula sua descrição de Deus com base na Bíblia; ele
o faz segundo o seu cérebro e o seu coração. Ele não crê na “revelação”. Foi
por isso que, há cerca de um século e meio, ele começou a sua pretensa Alta
Crítica da Bíblia. O homem criou um Deus à sua imagem, um Deus que tem
que ser o exato oposto do pai vitoriano. Cito a seguir a descrição feita por
um eminente escritor do presente século: “Você não vê”, escreve ele, “que o
Deus do Velho Testamento é o seu pai vitoriano; e que é um erro total?”
Assim, o Velho Testamento foi virtualmente posto de lado. “O Deus em que
cremos”, dizem os homens, “é o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo.”
Mas o Senhor Jesus Cristo cria no Deus do Velho Testamento. Disse Ele:
“Não cuideis que vim destruir a lei ou os profetas: não vim abrogar, mas
cumprir” (Mateus 5:17). Ele cria no Deus que dera uma revelação de Si a
Moisés no monte, e nos Dez Mandamentos. Nosso Senhor e Salvador cria e
aceitava todo o ensino do Velho Testamento.

Os modernistas não têm direito de alegar que a nova linha é de Cristo. Não
é Seu ensino; é deles. O Deus que se nos revelou mediante a Bíblia é Deus
santo. Tanto o Novo Testamento como também o Velho Testamento nos
dizem que devemos servir “a Deus agradavelmente com reverência e
piedade; porque o nosso Deus é um fogo consumidor” (Hebreus 12:29,
citando Deuteronômio 4:24). Na verdade o Novo Testamento ensina que no
Velho Testamento nos é dada apenas uma pálida noção da santidade, da
majestade, da glória e da grandeza de Deus. Lá era apenas uma
representação externa. Deus é infinitamente santo. “Deus é luz, e não há
nele trevas nenhumas” (1 João 1:5). Deus é reto, Deus é sempre justo. Deus
é amor, eu sei, contudo é também todas estas outras coisas; e não há
contradição nelas. Todas elas são uma, e todas estão presentes ao mesmo
tempo, e com eterno poder e plenitude, na Deidade. Essa é a revelação das
Escrituras. E a idéia de que Deus é Alguém que pode tolerar o pecado e
fingir que não o vê, e o acoberta, e perdoa todos os transgressores, e nunca
se sente irado e nunca pune ninguém, é, eu o digo, não só negar o
Velho Testamento, mas também é negar o Novo Testamento. Foi o Senhor
Jesus Cristo quem falou do lugar “onde o seu bicho não morre, e o fogo
nunca se apaga” (Marcos 9:44). É Ele que nos fala da separação de ovelhas
e cabritos; é Ele que diz a certos homens, “Nunca vos conheci: apartai-vos
de mim”; “Apartai-vos de mim para o lugar preparado para o diabo e seus
anjos” (cf. Mateus 7:23; 25:41). Nada poderia ser mais monstruoso do que
este ensino moderno disfarçar-se servindo-se do nome do Novo Testamento
e do nome do Senhor Jesus Cristo. É uma negação da doutrina bíblica sobre
Deus, como ela se encontra em ambos

os Testamentos. Deus é um Deus santo, um Deus justo, um Deus reto, que


deixou claro que castigaria o pecado e a transgressão, e que o fez muitas
vezes, no transcorrer da história. Castigou Seu povo, os filhos de Israel, por
suas transgressões; enviou-os em cativeiro; levantou os assírios e os caldeus
como Seus instrumentos para castigá-los. O apóstolo Paulo ensina
claramente na Epístola aos Romanos (1:18-32) que Deus pune o pecado, e
muitas vezes o faz deixando o inundo entregue ao seu mal, à sua iniqüidade.
E cada vez fica mais evidente que Ele está fazendo isso na presente hora,
sendo que os homens, cegados pela psicologia moderna, não conseguem
enxergar isso, pois não entendem a verdade bíblica sobre Deus.

Por que é que o mundo se acha nessa dificuldade? Por que estamos todos,
por assim dizer, tremendo quanto ao que irá acontecer em seguida? Por
que estamos todos alarmados acerca destes novos e terríveis armamentos e
da possibilidade de uma guerra atômica? A explicação, eu opino, é que Deus
nos está punindo deixando-nos entregues a nós mesmos, porque nos temos
recusado a submeter-nos a Ele e a Suas santas e justas leis. Nosso
afastamento do ensino bíblico concernente a Deus, e como conseqüência
disso, de todo a verdade revelada sobre disciplina, governo e ordem,
resultou na própria punição para a qual os homens se acham tão cegos.

Em quarto lugar, há uma total incapacidade e incompreensão do que o


pecado fez ao homem. As idéias modernas de que o homem é fundamental
e essencialmente bom, e de que, se você tão-somente extrair e induzir o que
nele há de bom, tudo estará bem; de que basta fazer-lhe um apelo, e nunca
puni-lo, mas simplesmente você receber pessoalmente a punição, e os
transgressores se comoverão com isso e ficarão tão compungidos face ao
apelo moral que você lhes está dirigindo, que pararão de agir mal e
começarão a comportar-se bem -todas estas idéias, digo eu, são a
conseqüência da rejeição da doutrina bíblica sobre o pecado. A simples
resposta para essas idéias é que a natureza do homem é má, que, em
conseqüência da Queda, o homem é totalmente mau. É um rebelde, é
infrator da lei, é governado por forças perversas e, portanto, é impermeável
a todos os apelos que lhe sejam dirigidos.
O mundo moderno está provando isso através de amarga experiência. O
método moderno tem sido experimentado durante bom número de
anos. Contudo que dizer dos resultados? Problemas que se acumulam -
delinqüência juvenil, desordem nos lares, furto, violência, assassinatos,
assaltos e toda a sociedade moderna em confusão! À nova teoria foi dado
um período de prova de mais de trinta anos, e os problemas resultantes se
multiplicam de uma semana para outra e quase de um dia para outro. Mas
não se pode esperar outra coisa! O homem não é fundamentalmente bom.
“Toda a imaginação dos pensamentos de seu coração era só má
continuamente” (Gênesis 6:5), é a descrição de como eram os homens nos
dias anteriores ao Dilúvio. O homem não é uma boa criatura, apenas
necessitada de um pouco de estímulo; sua natureza é retorcida, perversa e
vil. Ele é rebelde, odeia a luz, ama as trevas; é uma criatura caracterizada
pela luxúria e pela paixão. E a falta de reconhecer isto é

responsável por esta desastrosa conceituação moderna.

No entanto, em quinto lugar, há também uma compreensão completamente


errônea das doutrinas da expiação e da redenção, bem como da doutrina
cardeal da regeneração. Ainda estou por encontrar um pacifista que
compreenda a doutrina da expiação! Ainda estou por encontrar um
defensor do conceito moderno sobre disciplina e castigo que compreenda a
doutrina da expiação. A doutrina bíblica da expiação nos diz que, na cruz
do Calvário, o justo, o santo e reto Deus estava punindo o pecado na pessoa
do Seu próprio Filho, para que fosse “justo e justificador daquele que tem fé
em Jesus” (Romanos 3:25-26). “O Senhor fez cair sobre ele a iniqüidade de
nós todos” (Isaías 53:6). “Àquele que não conheceu pecado, o fez pecado por
nós; para que nele fôssemos feitos justiça de Deus” (2 Coríntios 5:21).
“Pelas suas feridas fostes sarados” (1 Pedro 2:24). “Ao Senhor agradou
moê-lo” (Isaías 53:10). A justiça e a retidão de Deus exigiam isso, a ira de
Deus sobre o pecado insistia nisso. Todavia é aí que vemos verdadeiramente
o amor de Deus, amor tão grande que a ira se derramou sobre o Seu próprio
Filho, com toda a Sua inocência, para que eu e você pudéssemos ser
resgatados e libertados. Mas os modernistas não compreendem a expiação,
ou não crêem nela. Não vêem nada, senão sentimentalidade na cruz; vêem
soldados cruéis dando cabo do Filho de Deus que, não obstante, sorri para
eles e diz: “Eu vos perdoo, apesar do que me fizestes.”

Isso é o que eles dizem; mas a Bíblia não ensina isso. Ela está repleta de
ensinamentos concernentes a ofertas e sacrifícios queimados, sobre a
necessidade de derramamento de sangue sacrificial, declarando que “sem
derramamento de sangue não há remissão (de pecados)” (Hebreus 9:22).
Esse é o ensino do Velho e do Novo Testamentos, e esta idéia moderna é uma
completa negação desse ensino. A necessidade de punição é ensinada de
capa a capa; e vemos isto em sua expressão suprema na cruz do monte
Calvário.

Tomemos, por outro lado, a doutrina da regeneração. Se o homem fosse


essencialmente bom, não precisaria “nascer de novo”, não precisaria da
regeneração. Entretanto, a regeneração é uma doutrina central na Bíblia;
nossa única esperança está em que sejamos feitos “participantes da
natureza divina”. Assim, este novo ensino é uma negação das doutrinas
bíblicas fundamentais e, apesar disso, ele vem e se mascara, apresentando-se
em nome do cristianismo. O ensino bíblico é que enquanto a pessoa não
estiver “sob a graça", terá que ser mantida “sob a lei”, para que o pecado e
o mal sejam mantidos dentro de certos limites. E foi o que Deus fez! Quem
designou os magistrados? Deus! Leiam Romanos capítulo 13.0 magistrado,
diz-nos essa passagem, “não traz debalde a espada”. Quem designou os reis
e governantes? Deus! Quem designou os Estados? Deus. Para manter o
pecado e o mal dentro de certos limites. Se Ele não tivesse feito isso, o
mundo teria apodrecido e virado pó há séculos. Deus instituiu a lei devido à
natureza pecaminosa do homem, e para restringir e proteger do mal o
homem até quando ele viesse a estar “sob a graça”. Foi Deus que, nos dias
de Moisés, deu a lei, e a deu por essa razão. E obviamente, se a lei

há de ser eficaz, precisa conter sanções. Não haveria utilidade em ter-se uma
lei se, quando um homem fosse preso em nome da lei, imediatamente
lhe dissessem: “Ora, não se preocupe; nós o prendemos, mas não haverá
punição”. Haveria eficácia nisso?

Há certamente uma ilustração contemporânea que deveria satisfazer nossas


mentes, quanto a esta questão. Considerem a matança que está sendo feita
nas estradas. Que é que está sendo feito a respeito? As autoridades
estão fazendo apelos, divulgando documentários, introduzindo novos
regulamentos, conseguindo que o rádio e a televisão fiquem repetindo
advertências, principalmente antes da Páscoa e do Natal. Mas, estas coisas
produzem algum efeito? Muito pouco! Por que? Porque o homem é um
rebelde, porque ele é naturalmente um transgressor da lei. Há somente um
modo pelo qual o Estado pode lidar com este problema, a saber, pela
punição dos transgressores. Essa é a única linguagem que eles podem
entender. O pecado nunca entendeu outro tipo de linguagem. Vá ao
transgressor com um espírito de suave moderação, e ele se aproveitará de
você. O governo britânico experimentou esse método com Hitler; isso foi, do
apaziguamento. Se conseguimos ver que foi um método errado ali, por que
não conseguimos ver que é errado com todos os outros indivíduos? Não há
propósito em fazer apelos em termos de suave apazi -guamento a homens
que são maus e que são governados pela luxúria e pela paixão.

O ensino bíblico é que tais pessoas precisam ser punidas, e devem sentir sua
punição. Se não derem ouvidos à lei, então devem ser-lhes aplicadas
as sanções da lei, Quando Deus outorgou Sua lei, fê-la acompanhar de
sanções que deveriam ser aplicadas em seguida à transgressão. Quando a lei
era quebran-tada, as sanções eram executadas. Deus não outorgou uma lei
dizendo que a desobediência às suas exigências não tem importância. Deus
põe em execução a Sua lei. E quando examinamos a história da Inglaterra,
para não ampliar o campo, sempre veremos que os períodos mais
disciplinados e mais gloriosos dessa história foram os períodos
imediatamente subseqüentes a uma reforma religiosa. Vejam o período
elisabetano, logo em seguida à Reforma Protestante, quando os homens
trouxeram de volta a Bíblia - O Velho e o Novo Testamentos - e a puseram
em prática, aplicando suas leis. O período de Elizabeth 1, o período de
Cromwell e o período que se seguiu ao Despertamento Evangélico do século
dezoito ilustram o princípio bíblico. O ensino bíblico é que, uma vez que o
homem é uma criatura decaída, posto que é um pecador e um rebelde, visto
que é uma criatura marcada pela luxúria e pela paixão e por
elas governada, forçosamente tem que ser restringida, tem que ser mantida
debaixo de regras. O princípio aplica-se igualmente aos menores e aos
adultos que se façam culpados de má conduta e delito, e de afastamento das
leis do país e da lei e de Deus. Experimentem algum outro método, e terão
um retomo ao caos, como já estamos começando a sentir. O ensino bíblico,
fundado no caráter de Deus e em Seu Ser, e reconhecendo que o homem se
acha num estado de pecado, exige que a lei seja imposta a fim de que o
homem seja levado a ver e a conhecer

a Deus; e depois, para que seja introduzido na graça; de modo que,


finalmente, ele venha a assimilar e obedecer a lei superior sob a qual terá
prazer em agradar a Deus e em honrar e cumprir Seus santos
mandamentos.

Devemos, pois, partir do princípio de que o ensino de toda a Bíblia é que


deve existir disciplina, deve existir castigo. Isso, no entanto, nos deixa com
esta interrogação: como, exatamente, essa punição deve ser aplicada, e
particularmente no lar cristão? E é aí que o nosso texto é tão importante.
Devemos exercer disciplina, mas não devemos “provocar a ba a nossos
filhos”. Há um modo errado e um modo certo de exercer disciplina, e a
nossa preocupação a segub será descobrir o método certo, o método
verdadeiro, o método bíblico de exercer a disciplina que nos é ordenada pela
santa lei de Deus. O conceito moderno, embora às vezes se arrogue o nome
de Cristo, é uma negação de todas as doutrinas básicas e fundamentais da fé
cristã. Não é de admirar que pessoas incrédulas o estejam defendendo em
alto e bom som, com relação à pena capital, à guerra, à educação, à reforma
dos cárceres, e a muitas outras coisas. Não admba, digo, que o estejam
defendendo, porque não esperamos delas um entendimento bíblico e cristão.
Mas o cristão precisa ter, deve ter esse entendimento.

DISCIPLINA COM EQUILÍBRIO Efésios 6:1-4

Chegamos agora à questão de como exercer a disciplina. O apóstolo trata


disso, em particular, neste versículo quatro. Não há dúvida quanto à
necessidade da disciplina, e de que ela deve ser imposta. Mas, como fazê-lo?
É aí que muitas vezes se formou grande confusão. Já concordamos que, fora
de questão, nossos avós vitorianos erraram nesse ponto e que com
freqüência não exerciam disciplina de maneira certa e bíblica. Também
vimos que o que temos hoje é, em grande parte, uma violenta reação contra
aquilo. Isso não justifica a situação atual, porém nos ajuda a compreendê-la.
O importante é que não devemos cair no erro de voltar da situação atual
para o outro extremo, igualmente errado, E aqui, se tão somente seguirmos
as Escrituras, teremos um conceito equilibrado. A disciplina é essencial e
deve ser imposta; no entanto o apóstolo nos exorta a sermos cuidadosos
quanto à maneira de exercê-la, porque poderemos causar mais dano do que
benefício, se não o fizermos do modo certo,

É claro que, em geral, há pouca necessidade deste ensino na época atual


porque, como venho indicando, o problema hoje é que as pessoas não
acreditam em nenhuma disciplina. Portanto, há pouco necessidade de dizer-
lhes que não exerçam disciplina de maneira errônea. Temos de instar com o
homem moderno a reconhecer a necessidade de disciplina e a pô-la em
prática. Mas na esfera da Igreja - e talvez na esfera das igrejas cristãs
evangélicas em particular, e especialmente nos Estados Unidos da América -
o que o apóstolo diz neste versículo quatro será cada vez mais necessário. É
da seguinte maneira que surge essa necessidade. O perigo sempre presente é
o de reagir violentamente. É sempre errado quando a nossa atitude é
determinada por outra atitude que consideramos errada. Nosso conceito
nunca deve ser resultante de uma reação meramente negativa. Este
princípio vale não somente com respeito a este assunto particular, e sim
também em muitos aspectos e departamentos da vida. Muitíssimas vezes
deixamos que a nossa atitude seja governada e determinada por algo
errôneo. Permitam-me apresentar uma ilustração atual desta tendência. Há
cristãos, em certas partes do mundo, que estão reagindo tão violentamente a
um tipo errôneo de fundamentalismo dos dias atuais que estão quase
perdendo seu conhecimento das doutrinas cristãs essenciais. É seu
aborrecimento com alguma coisa errada que determina a posição deles. Isso
é sempre errado. Nossa posição deve ser positivamente determinada pelas
Escrituras. Não devemos ser apenas reacionários. E nesta questão
particular de disciplina no lar, e das crianças, há o perigo real de que bons
cristãos evangélicos, bíblicos, tendo visto

claramente que a atitude moderna é inteira e completamente errada, e


estando determinados a não aceitá-la, partam para o outro extremo e
retrocedam à antiga idéia vitoriana. Portanto, eles têm necessidade da
exortação que encontramos nestes versículos desta epístola.

O apóstolo divide o seu ensino em duas seções, negativa e positiva. Este


problema ele diz que não se limita aos filhos; os pais e as mães também têm
que ter cuidado. Negativamente, ele lhes diz: “Não provoqueis a ira a vossos
filhos”. Positivamente, diz: “Mas criai-os na doutrina e na admoestação do
Senhor”. Na medida em que nos lembrarmos dos dois aspectos, tudo irá
bem.

Começamos com a negativa: “Não provoqueis a ira a vossos filhos”. Estas


palavras podem ser traduzidas, “não exaspereis vossos filhos, não irriteis
vossos filhos, não provoqueis vossos filhos, levando-os a ficarem
ressentidos”. Esse é um perigo muito real quando exercemos a disciplina. E
se cometermos esse erro, faremos muito mais mal do que bem. Não teremos
sucesso na aplicação da disciplina aos nossos filhos, só produzindo neles tão
violenta reação, tanta ira e ressentimento, que a situação será quase pior do
que se não praticarmos disciplina alguma. Todavia, como vimos, ambos os
extremos são complem-tamente errôneos. Noutras palavras, devemos
exercer esta disciplina de maneira tal, que não irritemos nossos filhos, não
os provoquemos levando-os a um ressentimento pecaminoso. Exige-se de
nós que mantenhamos o equilíbrio.

Como fazê-lo? Como os pais devem exercer esta disciplina? E não somente
os pais, mas também os professores e todo aquele que têm a incumbência de
dirigir os mais novos. Mais uma vez devemos retomar ao capítulo 5,
versículo 18. “E não vos embriagueis com vinho, em que há contenda,
mas enchei-vos do Espírito.” A chave é sempre essa. Quando estávamos
tratando desse versículo, vimos que a vida vivida no Espírito, a vida do
homem cheio do Espírito, é sempre caracterizada por duas coisas
importantes - poder e domínio. É um poder disciplinado. Lembrem-se de
como Paulo o expressa, escrevendo a Timóteo: “Porque Deus não nos deu o
espírito de temor, mas de fortaleza, e de amor, e de moderação (de
disciplina)” (2 Timóteo 1:7). Não um poder descontrolado, mas um poder
controlado pelo amor e pela moderação, pela disciplina! É sempre essa a
característica da vida daquele que é “cheio do Espírito”.

Noutras palavras, o cristão é completamente diferente do homem que se


acha sob a influência do vinho, do homem embrutecido pelo vinho. Há
sempre excesso ou contenda nesse caso, e o homem reage violentamente.
Pode-se irritar facilmente um ébrio e provocá-lo, levando-o a uma reação
violenta. Falta-lhe equilíbrio, falta-lhe juízo, ofende-se por qualquer
trivialidade e, por outro lado, fica contente em demasia com coisas triviais.
Invariavelmente peca por reação excessiva. O cristão, porém, diz o apóstolo,
sempre deve manifestar a antítese desse tipo de comportamento.

Então, como devo exercer a disciplina? “Não provoqueis a ira a vossos


filhos.” Este deve ser o primeiro princípio a governar a nossa açãç>.
Seremos incapazes de exercer a verdadeira disciplina, se primeiro não
formos capazes de

exercer domínio próprio e de disciplinar o nosso gênio. O problema com o


homem “cheio de vinho” é que ele não pode dominar-se; ele é dominado
por seus instintos e paixões, e por sua natureza inferior. O álcool põe fora de
ação os centros mais elevados do cérebro, incluindo-se o senso de
autodomínio. O álcool é uma dessas drogas depressivas que eliminam as
mais refinadas capacidades de discriminação do cérebro, os centros mais
elevados, dando como resultado que os fatores instintivos, elementares,
ganhem expressão. É o que acontece com o homem cheio de vinho; daí seus
excessos e sua falta de domínio próprio. Entretanto os cristãos são cheios do
Espírito, e as pessoas cheias do Espírito sempre são caracterizadas pelo
domínio próprio. Quando você for disciplinar um filho, terá que dominar-se
primeiro a si próprio. Se tentar disciplinar seu filho quando você estiver de
mau humor, é certo que fará mais malefício do que benefício. Que direito
terá de dizer ao filho que ele precisa de disciplina, quando evidentemente
você mesmo precisa dela? O domínio próprio, o domínio do gênio, é um
requisito essencial para podermos comandar outros. Mas o problema é esse,
não é? Vemos isso nas ruas, em toda parte. Vemos pais aplicando castigo
com raiva, muitas vezes a tremer de irritação. Não têm domínio próprio, e o
resultado é que acabam exasperando o filho. Assim, o primeiro princípio é
que devemos começar por nós mesmos. Precisamos estar certos de que
estamos tendo domínio próprio, de que estamos calmos. Seja o que for que
tenha acontecido, seja qual for a provocação, não devemos reagir com
violência similar à do bêbado; é preciso haver esta disciplina pessoal, este
autodomínio que habilita o homem a examinar a situação objetivamente e a
lidar com ela de maneira equilibrada e bem controlada. Como isto é
importante! As nações precisam aprender justamente esta lição. Suas
conferências fracassam porque os homens se portam como crianças, ou
pior; não se dominam, reagem violentamente. Esta condição
de “embriaguez”, estas reações violentas, são uma causa da guerra. São as
causas principais de todos os fracassos da vida - no casamento, no lar e em
todas as outras esferas. Todavia, em lugar nenhum esta lição é mais
importante do que na área da disciplina aplicada aos nossos filhos.

Em certo sentido, o segundo princípio decorre do primeiro. Se cabe ao pai


aplicar esta disciplina da maneira certa, ele jamais deverá agir
caprichosamente. Não há nada mais irritante para quem está se
submetendo à disciplina do que a percepção de que a pessoa que a está
ministrando é caprichosa e incerta. Não há nada mais aborrecido para um
filho do que o tipo de pai cujos sentimentos e atos nunca podem ser
previstos, pessoa variável, cujas condições pessoais são sempre incertas. Não
há pior tipo de pai do que aquele que, um dia, com temperamento bondoso,
é indulgente e deixa o filho fazer quase tudo que quer, contudo no dia
seguinte fuzila de raiva se o filho mal chega a fazer alguma coisa. Isso toma
a vida impossível para o filho. Uma atitude excêntrica do pai é, de novo,
indicativa da condição de quem está “cheio de vinho”. As reações de um
homem embriagado são imprevisíveis; não se pode dizer se ele vai mostrar-
se jovial ou com mau gênio; ele não é governado pela razão, não tem

domínio próprio, não tem equilíbrio. Tal pai, tomo a dizê-lo, não exerce uma
disciplina verdadeira e proveitosa, e a situação do filho fica impossível. Este
é provocado e irritado, vindo a irar-se, e perde todo o respeito pelo pai.

Estou me referindo não somente a reações temperamentais, e sim também à


conduta. O pai que não é coerente em sua conduta não pode exercer
disciplina no caso do filho. O pai que faz uma coisa hoje e o contrário
amanhã, não é capaz de ministrar boa disciplina. Tem que haver coerência,
não somente na reação, mas também na conduta e no comportamento do
pai; precisa haver um padrão quanto à vida do pai, pois o filho está sempre
observando e vigiando. No entanto, se o filho vê que o pai é variável e que
faz exatamente aquilo que proíbe ao filho, de novo não se pode esperar que
o filho se beneficie com qualquer disciplina ministrada por um tal pai. Não
pode haver nada de variável, caprichoso, incerto ou inconstante nos pais, se
é que estes querem exercer disciplina.

Outro princípio muito importante é que os pais nunca devem ter a mente e
os ouvidos fechados para os argumentos do filho. Não há nada que
aborreça tanto aquele que está sendo disciplinado como a percepção de que
todo o procedimento é completamente irracional. Noutras palavras, é um
pai totalmente mau aquele que não se dispõe a levar em consideração
quaisquer circunstâncias, ou que não quer ouvir nenhuma explicação
concebível. Alguns pais e mães, em seu desejo de exercer disciplina, são
propensos a tomar-se inteiramente irracionais, e eles mesmos podem estar
equivocados. O relato que receberam a respeito do filho pode ser errôneo,
ou podem existir circunstâncias peculiares que eles ignoram; porém ao filho
não é dada permissão nem sequer para expor a sua situação ou para dar
algum tipo de explicação. Naturalmente se pode ver que o filho poderá tirar
proveito disso. O que estou dizendo é que jamais devemos ser irracionais.
Deixe que o filho dê a sua explicação e, se não for uma explicação
verdadeira, castigue-o por isso, bem como pelo ato particular que constitui a
transgressão visada. Mas, negar-se a ouvi-lo, proibir toda espécie de réplica,
é indesculpável.
Este princípio nos fica claro quando vemos um Estado portando-se mal.
Não nos agrada um Estado policial, temos orgulho da Lei do Habeas
Corpus neste país, lei que declara que é um grave mal manter um homem
na prisão sem lhe conceder um julgamento. Somos eloqüentes sobre isto,
porém muitas vezes fazemos exatamente a mesma coisa em nossos lares.
Não é dada ao filho nenhuma oportunidade para expor o seu caso, nem por
um momento a razão tem vez na situação, recusamo-nos a sequer admitir a
possibilidade de que haja alguma explicação a respeito da qual até então
nada ouvimos. Tal conduta é sempre errada; é provocar a ira a nossos
filhos. Com todo a certeza, isso vai exasperá-los e irritá-los, levando-os a um
estado de rebelião e antagonismo.

No entanto, há outro princípio a considerar - o pai nunca deve ser egoísta.


“Pais, não provoqueis a ira a vossos filhos.” Isto acontece às vezes devido
ao puro e simples egoísmo dos pais. Minha denúncia visa aquelas pessoas
que não reconhecem que o filho tem sua própria vida e sua própria
personalidade, e que parecem achar que os filhos são inteiramente para o
prazer delas ou para o seu

uso. Têm uma noção essencialmente falsa da paternidade e do que ela


significa. Não entendem que são apenas tutores e guardiães destas vidas que
nos são entregues, que não somos seus donos, que elas não nos “pertencem”,
que não são “mercadorias” ou “bens”, que não temos direitos absolutos
sobre elas. Mas há muitos pais que se comportam como se tivessem esse
direito de propriedade; e a personalidade do filho não recebe nenhum
reconhecimento. Não há nada mais deplorável ou repreensível do que um
pai dominador. Refiro-me ao tipo de pai ou mãe que impõe a sua
personalidade ao filho, e que está sempre esmagando a personalidade do
filho; o tipo de pai ou mãe que exige tudo e tudo espera do filho. Geralmente
estes pais são descritos como possessivos. Sua atitude é sumamente cruel e,
infelizmente, pode persistir na vida adulta dos filhos.

Algumas das maiores tragédias que encontrei em minha experiência


pastoral eram resultantes disso. Conheço muitas pessoas cujas vidas
foram totalmente arruinadas por pais egoístas, possessivos, dominadores.
Conheço muitos homens e muitas mulheres que nunca se casaram por esta
razão. Fizeram com que eles se sentissem criminosos só por pensarem em
deixar pai e mãe; tiveram que dedicar a vida toda aos pais. Por que teriam
vindo ao mundo, senão para isso? Não lhes fora permitido ter sua vida
própria, independente, nem desenvolver a sua personalidade; um pai
despótico ou uma mãe dominadora esmagara a vida, a individualidade e a
personalidade do filho ou da filha. Isso não é disciplina; é tirania do tipo
mais repugnante, e uma contradição do claro e simples ensino das
Escrituras. É totalmente indesculpável e, à medida que oprime a
personalidade do filho, produz ressentimento. Como evitá-lo?
Estejamos certos de que estamos completamente livres disso. “E não vos
embriagueis com vinho, em que há contenda.” O bêbado só pensa em si, seu
único interesse é sua própria satisfação. Se pensasse nos outros, nunca se
embriagaria, porque bem sabe que isso os faz sofrer. A embriaguez é uma
manifestação de egoísmo, é auto-indulgência consumada. Não devemos ter
esse espírito com respeito a coisa nenhuma, e particularmente nesta relação
sumamente delicada entre pais e filhos.
Contudo, repito: a punição, a disciplina, jamais deverá ser ministrada de
maneira mecânica. Há gente que acredita na disciplina pela disciplina. Esse
não é o ensino bíblico, mas sim a filosofia do sargento instrutor. Não há
nada que dizer a favor dela; não tem nada de inteligente! Isso é o que há de
horrível com tal disciplina. No Exército e nas outras forças armadas a
disciplina é pouco ou nada inteligente; é feita em termos de números, e a
personalidade não é levada em conta. Pode ser que essa forma de disciplina
seja necessária lá, porém quando penetra na esfera do lar, é imperdoável.
Noutras palavras, é preciso haver uma razão para aplicar-se a disciplina de
maneira correta e genuína; não deve ser aplicada de maneira mecânica.
Sempre deverá ser inteligente; sempre deverá existir uma razão para a sua
aplicação, e essa razão deve ser exposta com simplicidade e clareza. Nunca
deve ser aplicada à semelhança de alguém que aperta um botão, e espera o
resultado inevitável. Isso não é disciplina ver-

dadeira; nem humana é. Pertence aos domínios da mecânica. Mas a


disciplina verdadeira sempre se baseia no entendimento; tem mensagem
própria; tem explicação para dar.

Observem que em todo o transcurso do nosso estudo, estamos vendo que é


necessário atingir um equilíbrio. Ao criticarmos o conceito moderno que
não reconhece nenhuma disciplina, observamos que ele parte do
pressuposto de que tudo que se tem que fazer é dar explicações e fazer
apelos, e tudo estará bem. Vimos claramente que esse conceito não é válido,
nem na teoria, nem na prática; todavia, é igualmente errado arrojar-se para
o outro extremo e dizer: “Isto tem que ser feito porque eu mando. Não há
nada que perguntar, e não será dada nenhuma explicação.” A disciplina
cristã, equilibrada, nunca é mecânica; é sempre dinâmica, é sempre pessoal,
é sempre compreensível e, acima de tudo, é sempre altamente inteligente.
Sabe o que faz e nunca peca por excesso. Não perde o domínio próprio, não
é uma espécie de cachoeira a derramar-se de maneira descontrolada e
violenta. Há sempre este fator inteligente e compreensível no âmago e no
centro da verdadeira disciplina.

Isso leva inevitavelmente ao sexto princípio. A disciplina nunca deve ser


demasiado severa. Aí talvez esteja o perigo que confronta muitos bons
pais atualmente, quando vêem a rebeldia generalizada que os cerca, e a
lamentam e a condenam. Correm o perigo de influenciar-se tão
intensamente por sua revolta, que vão direto ao outro extremo e se tomam
severos demais. O oposto da ausência de disciplina não é a crueldade, e sim
a disciplina equilibrada, controlada. Um antigo adágio nos fornece a regra e
a lei fundamentais acerca de toda esta matéria. É que “a punição deve ser
proporcional ao crime.” Noutras palavras, devemos ter o cuidado de não
aplicar a punição máxima a todas as transgressões, grandes ou pequenas.
Isto simplesmente eqüivale a dizer de novo que a punição não deve ser
mecânica; pois se a punição dada for desproporcional ao mau
comportamento, ao crime, ou seja ao que for, não pode ser
boa. Inevitavelmente dará à pessoa punida uma sensação de injustiça, um
sentimento de que a punição é tão severa, tão fora de proporção com o mal
praticado, que constitui um ato de violência, não de correção saudável. Isso
inevitavelmente produz esta “ira” de que o apóstolo fala. O filho se irrita e
acha que a punição é irracional. Embora talvez esteja disposto a admitir
alguma culpa, ele está seguro de que a culpa não foi tão grave para merecer
aquilo tudo. Para expressá-lo doutro modo, jamais devemos humilhar outra
pessoa. Se ao punir ou ministrar disciplina ou correção cometermos o erro
de humilhar o filho, é claro que nós mesmos precisaremos ser disciplinados.
Nunca humilhemos ninguém! Certamente devemos castigar, se necessário,
mas que seja uma punição razoável, baseada no entendimento. E nunca o
façamos de modo que o filho pense que está sendo espezinhado e
completamente humilhado em nossa presença, e pior ainda, na presença de
outros.

Tudo isso, bem sei, pode ser muito difícil; porém, se somos “cheios do
Espírito”, faremos bom julgamento nestas questões. Aprenderemos que
nossa ministração da disciplina jamais deverá ser apenas um meio de aliviar
nossas
tensões emocionais. Isso é sempre errado; e nunca devemos deixar-nos governar pelo prazer de punir;
tampouco, como já salientei, devemos pisar na personalidade e na vida do indivíduo com quem
estamos lidando. O Espírito nos admoesta a sermos extremamente cuidadosos neste ponto. No
momento em que a personalidade é posta para fora e esta rígida, dura e áspera idéia de
punição entra, somos culpados das coisas contra as quais Paulo nos adverte. Então estaremos
irritando e provocando a ira a nossos filhos, e os estaremos tornando rebeldes. Perderemos o respeito
deles e os faremos pensar que estão senso maltratados; um senso de injustiça se inflamará dentro
deles, e acharão que estamos sendo cruéis. Isso não beneficia nenhuma das partes e, portanto,
jamais deveremos tentar aplicar disciplina desse modo.

Assim chegamos àquilo que, de muitas maneiras, é a última das nossas considerações em termos
negativos. Nunca devemos deixar de reconhecer o crescimento e o desenvolvimento dos nossos filhos.
Este é outro alarmante defeito paterno que, graças a Deus, não se vê hoje com tanta freqüência
como antigamente. Ainda existem, no entanto, alguns pais que continuam a considerar os seus filhos a
vida toda como se nunca tivessem saído da meninice. Os filhos podem ter vinte e cinco anos de idade,
mas são tratados como se tivessem cinco. Esses pais não reconhecem que esta pessoa, este indivíduo,
este filho que Deus lhes deu por Sua graça, é alguém que está crescendo e se desenvolvendo e
amadurecendo. Não reconhecem que a personalidade do filho está florescendo, que ele está obtendo
conhecimento, que sua experiência está se alargando, e que o filho está se desenvolvendo como
acontecera com eles próprios. Isso é de particular importância no estágio da adolescência; daí, um
dos maiores problemas sociais de hoje é o que está relacionado com o manejo e o tratamento do
adolescente. É o problema das escolas dominicais, como também das escolas diárias. Os professores
da escola dominical atestam que têm pouca dificuldade enquanto as crianças não chegam à
adolescência, mas que, aí, tendem a perdê-las. Os pais acham a mesma coisa. Este período da
adolescência é, notoriamente, a idade mais difícil, pela qual todos têm que passar e, portanto,
precisa de graça especial, compreensão, e do mais cuidadoso manejo.

Como pais, nunca deveremos ser culpados de não reconhecer este fator, e temos que procurar ajustar-
nos a ele. Pelo fato de você poder dominar o seu filho, digamos até à idade de nove ou dez anos, não
deve dizer: “Vou continuar agindo assim, dê no que der. A vontade dele tem que ser dobrada pela
minha. Não me importa o que ele sinta, ou o que ele entenda, as crianças sabem muito pouca coisa, de
modo que continuarei a impor-lhe a minha vontade”. Pensar e agir assim significa que certamente
você provocará a ira a seu filho e, com isso, irá causar-lhe grande dano. Irá causar-lhe dano
psicológico, e até poderá causar-lhe dano físico. Criará nele vários tipos de enfermidades
psicossomáticas, tão comuns nos dias atuais. Essa espécie de comportamento por parte dos pais
é prolífico na produção desses efeitos e resultados. Nunca deveremos ser culpados desse erro.

“Como evitarei todos estes males?”, você perguntará. Uma boa regra é

que nunca devemos impingir nossas idéias em nossos filhos. Até certa idade
é certo e bom ensinar-lhes certas coisas e insistir nelas, e não haverá
dificuldade nisso, se for feito corretamente. Eles até gostarão disso. Mas
depressa chegarão a uma idade em que começarão a ouvir conceitos e idéias
dos seus amigos, provavelmente na escola ou noutras agremiações. É
quando a crise começa a desabrochar. Todo o instinto dos pais leva-os,
muito acertadamente, a proteger o filho, porém, outra vez, isso pode ser
feito de tal maneira que causa mais dano do que benefício. Se você der ao
filho a impressão de que ele tem que acreditar nestas coisas simplesmente
porque você acredita nelas, e porque seus pais também acreditavam,
inevitavelmente criará uma reação. E antibíblico agir assim. E não somente
é antibíblico, mas também põe à mostra uma triste falta de compreensão da
doutrina neotestamentária da regeneração.

Surge neste ponto um importante princípio que se aplica não somente a esta
esfera, mas também a muitas outras. Constantemente estou tendo que
dizer a pessoas que se tomaram cristãs e cujos entes queridos não são
cristãos, que tenham muito cuidado. Eles mesmos vieram a enxergar a
verdade cristã, e não podem entender por que estes outros membros da
família - marido, esposa, pai, mãe, ou filho - não a enxergam. Toda a
tendência desses cristãos é de impacientar-se com eles e de forçá-los à fé
cristã, de impingir neles sua crença. De modo nenhum se deve fazer isso. Se
a pessoa em questão não foi regenerada, não poderá exercer fé. Precisamos
ser “vivificados”, antes de podermos crer. Quando a pessoa está morta “em
ofensas e pecados” (Efésios 2:1), não pode crer; portanto, não se pode
impingir fé nos outros. Eles não enxergam a verdade, não podem
compreendê-la. “Ora, o homem natural não compreende as coisas do
Espírito de Deus, porque lhe parecem loucura; e não pode entendê-
las, porque elas se discernem espiritualmente” (1 Coríntios 2:14). Muitos
pais caíram neste erro justamente neste ponto. Tentaram arrastar seus
filhos, no estágio do adolescência, para a fé cristã; tentaram impingir-lhes
seus conceitos, tentaram compeli-los a dizerem coisas nas quais na verdade
não criam. Este método é sempre errado.

“Bem, o que se pode fazer?”, serei interrogado. Nosso interesse é tentar


ganhá-los, é tentar mostrar-lhes a excelência e a racionalidade do que somos
e do que cremos. Devemos ser muito pacientes com eles e tolerar as
dificuldades que apresentam. Eles têm os seus problemas, embora estes não
signifiquem nada para você. Contudo, para eles esses problemas são muito
reais. Toda a arte de exercer disciplina está em reconhecer esta outra
personalidade o tempo todo. Você deve colocar-se no lugar do seu filho, por
assim dizer, e com real simpatia, amor e compreensão tentar ajudá-lo. Se os
filhos recusarem e rejeitarem os seus esforços, não reaja violentamente, mas
faça-os perceber que você sente muito, que você se entristece por amor
deles, e que você acha que algo muito precioso está se perdendo. E, ao
mesmo tempo, deve fazer-lhes tantas concessões quantas puder. Não deve
ser duro e rígido, não deve negar-lhes nada automaticamente sem qualquer
razão, simplesmente porque é o pai e este é seu método e seu modo de agir.
Ao contrário, deve preocupar-se em fazer toda legítima

concessão que puder, ir tão longe quanto puder em matéria de concessão,


mostrando com isso que você respeita a personalidade e a individualidade
do seu filho. Isso, em si e por si, é sempre bom e certo, e sempre redundará
em benefício.

Permitam-me resumir a minha argumentação. A disciplina deve ser sempre


praticada com amor, e se você não puder praticá-la com amor, não
tente aplicá-la de modo nenhum. Nesse caso, terá necessidade de tratar de si
próprio primeiro. O apóstolo já nos disse que devemos falar a verdade com
amor, num sentido mais geral, porém exatamente a mesma coisa aplica-se
aqui. Fale a verdade, mas com amor. Com a disciplina é precisamente a
mesma coisa; deve ser governada e dirigida pelo amor. “E não vos
embriagueis com vinho, em que há contenda (ou “excesso”), mas enchei-vos
do Espírito.” Qual é “o fruto do Espírito”? “Caridade (ou “amor”), gozo,
paz, longanimidade, benignidade bondade, fé, mansidão, temperança”. Se
como pais, estamos cheios do Espírito, e produzimos tal fruto, a disciplina
não será grande problema para nós. “Caridade, gozo, paz, longanimidade” -
sempre com amor, sempre para o bem do filho. O objetivo da disciplina não
é manter o seu padrão ou dizer: “Decidi que tem que ser assim, e assim
será”. Você não deve pensar primordialmente em si próprio, e sim no filho.
O bem do filho deve ser o seu motivo dominante. Você deve ter um conceito
correto da paternidade e considerar o filho como uma vida que Deus lhe
deu. Para que? Para guardar para você e moldar segundo o seu modelo,
para impor-lhe a sua personalidade? Absolutamente não! Pelo contrário, foi
colocado sob os seus cuidados e sob a sua responsabilidade por Deus, para
que a alma dele finalmente venha a conhecê-10 e a conhecer o Senhor
Jesus Cristo. O filho é uma entidade como você, dada, enviada por Deus a
este mundo como você. Assim, você deve olhar para os seus filhos
primariamente como almas, e não como você olha para um animal que você
possui, ou para certos bens que lhe pertencem. Seu filho é uma alma
queDeus lhe deu, e você deve agir como seu tutor e seu depositário.

Finalmente, a disciplina sempre deve ser exercida de modo que leve os filhos
a respeitarem seus pais. Nem sempre eles entenderão e, provavelmente, por
vezes acharão que não merecem castigo. Entretanto, se somos “cheios
do Espírito”, o efeito de nossa ação disciplinar será que eles nos amarão e
nos respeitarão; e virá o dia em que nos agradecerão por havermos agido
assim. Mesmo quando queiram defender-se, haverá alguma coisa dentro
deles que lhes dirá que estamos certos. Terão um respeito fundamental pelo
nosso caráter. Eles ficam vigiando as nossas vidas; observam a disciplina e o
autodomínio que exercemos sobre nós mesmos, e vêem que o que fazemos
com eles não é algo caprichoso, que não estamos apenas dando escape às
nossas tensões emocionais e procurando alívio. Saberão que os amamos, que
estamos interessados em seu bem-estar e em beneficiá-los neste mundo
pecaminoso e mau; e assim haverá este respeito, esta admiração, esta
apreciação e este amor subjacentes.
“E vós, pais, não provoqueis a ira a vossos filhos.” Que tremenda coisa a
vida é! Como são maravilhosas todas estas relações - marido, esposa, pais,

filhos! Vemos pessoas no mundo que nos cerca precipitando-se para o casamento
e precipitando-se para sair do casamento. Quanto aos filhos, muitos deles não
têm a mínima idéia do que a paternidade realmente significa! Para muitos pais os
filhos não passam de um estorvo, ora exageradamente mimados,
ora severamente punidos; muitas vezes deixados sozinhos em casa enquanto os
pais saem para se divertirem; enviados a internatos escolares para que os pais
tenham liberdade! Quão pouco se pensa no filho, em seu sofrimento, nas
pressões que se exercem sobre a sua natureza sensível! A tragédia disso tudo é
que as vidas dessas pessoas não são governadas pelos ensinamentos do Novo
Testamento; não são “cheias do Espírito”; não tratam seus filhos como Deus nos
trata, em Seu infinito amor, bondade e compaixão. Imagine, se Deus nos tratasse
como freqüentemente tratamos nossos filhos! Ah, a longanimidade de Deus! Ah,
a paciência de Deus! Ah, a admirável maneira pela qual Ele tolera as
nossas maldades como fez com as maldades dos filhos de Israel da antiqüidade!
Para mim, não há nada mais admirável que a paciência de Deus, e Sua
longanimidade para conosco. Digo ao povo cristão, e a todos quantos de algum
modo são responsáveis pela disciplina de crianças e jovens, “haja em vós o
mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus” (Filipenses 2:5). E que o
mesmo amor esteja também em nós, para que não provoquemos a ira a nossos
filhos e, com isso, os envolvamos, e a nós também, em todas as más
conseqüências do nosso fracasso.

EDUCAÇÃO CRISTÃ NO LAR Efésios 6:1-4

Já vimos que a exortação do apóstolo, dirigida aos pais, tem duas facetas. Há a
faceta negativa a qual nos diz que não devemos fazer nada que exaspere os nosso
filhos, que os irrite, que os provoque; e a faceta positiva: “criai-os na doutrina e
admoestação do Senhor”. Voltemo-nos, pois, agora, para esta faceta positiva da
injunção apostólica.

A própria maneira pela qual Paulo coloca a sua exortação é interessante - “criai-
os”, diz ele, e esse é apenas outro modo de dizer, “edificai-os, educai-os para a
maturidade”. Noutras palavras, a primeira coisa que os pais têm de fazer é
compreender a sua responsabilidade para com os filhos. Como temos acentuado,
eles não são nossa propriedade, não pertencem definitivamente a nós, são-nos
entregues por Deus por algum tempo. Com que propósito? Não para obtermos o
que quisermos deles e usá-los simplesmente para nosso agrado, para gratificar os
nosso desejos. Não; o que nos compete é dar-nos conta de que eles precisam ser
“edificados”, “criados”, “educados”, “preparados”, não somente para a vida
deste mundo, e sim especialmente para o estabelecimento de uma correta relação
das suas almas com Deus. Estas injunções nos lembram a grandeza da vida; e
não há nada mais triste e trágico quanto ao mundo atual do que a incapacidade
das multidões para receberem essa grandeza.

Que coisa tremenda é existirmos e vivermos como indivíduos! E quando


consideramos a esfera do lar e da família, esse fato se toma mais
maravilhoso ainda. Que grande concepção da paternidade e sua função o ensino
do apóstolo nos dá! Diz ele que os filhos nos são dados para que os criemos, os
edifiquemos e os treinemos como convém. Os jornais nos lembram
constantemente o cuidado e a atenção que as pessoas dedicam à criação de
diversos tipos de animais. Não é fácil treinar um animal, seja um cavalo ou um
cão ou outro qualquer. Requer muito tempo e atenção. É preciso pensar na
alimentação, planejar os exercícios, providenciar adequado abrigo; é preciso
proteger o animal de vários perigos; e assim por diante. As pessoas pagam
grandes quantias, gastam muito tempo e dedicam muito do seu pensamento para
a criação e o treinamento de um animal que pode vir a ganhar prêmios
nas exposições. Mas às vezes temos a impressão de que muito pouco
tempo, cuidado, atenção e pensamento são dedicados à criação dos filhos. Essa é
uma importante razão por que o mundo está como está hoje, e por que
nos defrontamos com agudos problemas sociais nesta época. Se as pessoas
tão somente dedicassem tanta consideração à criação dos seus filhos como
dedicam

à criação de animais e ao cultivo de flores, a situação seria muito diferente.


Elas lêem livros e ouvem palestras sobre esses assuntos e querem saber
exatamente o que precisam fazer. Mas quanto tempo é dedicado à
consideração do grande assunto da criação dos filhos? Esta é tomada como
coisa sabida, é feita de qualquer maneira, e as conseqüências são
dolorosamente óbvias.

Portanto, se é que havemos de cumprir a injunção apostólica, devemos


sentar-nos por um momento e ponderar sobre o que fazer. Quando chega o
filho, devemos dizer a nós mesmos: somos os guardiães e os depositários
desta alma. Que terrível responsabilidade! Nos negócios e nas profissões os
homens estão bem cientes da grande responsabilidade que pesa sobre eles
quanto às decisões que têm de tomar. Todavia, estarão eles cientes da
responsabilidade infinitamente maior que eles têm com respeito aos seus
próprios filhos? Dedicarão a isso a mesma soma de tempo, pensamento e
atenção - para não dizer ainda mais tempo? Pesará tanto essa
responsabilidade sobre eles como a que sentem quanto a estas outras áreas?
O apóstolo nos concita a considerarmos esta como a maior atividade da
vida, a maior coisa que existe para manejar e negociar.

O apóstolo não pára ai: “... criai-os”, diz ele, “na doutrina e admoestação do
Senhor”. Os dois vocábulos que ele utiliza são carregados de interesse.
A diferença entre eles é que o primeiro, “doutrina” (ou “educação” ou
“ensino”), é mais geral do que o segundo. É a totalidade do ensino, da
instrução, da criação do filho. Portanto, inclui a disciplina geral. E, como
todas as autoridades concordam em assinalar, sua ênfase recai nas ações. O
segundo vocábulo, “admoestação”, refere-se mais às palavras ditas.
“Doutrina” é mais geral e inclui tudo o que fazemos pelas crianças. Inclui
em geral todo o processo de cultivo da mente e do espírito, a moralidade e o
comportamento moral, a personalidade completa da criança. Essa é a nossa
tarefa. É olhar pela criança, cuidar dela, protegê-la. Já encontramos esse
termo quando estivemos tratando da relação de maridos e esposas, onde nos
foi dito que o Senhor “alimenta e sustenta” a Igreja (ou “alimenta a Igreja e
dela cuida”, Efésios 5:29). “Porque nunca ninguém aborreceu a sua próprio
carne; antes a alimenta e sustenta, como também o Senhor à Igreja." Aqui
nos é dito que façamos a mesma coisa quanto aos nossos filhos.

A palavra “admoestação” tem praticamente o mesmo sentido que


“doutrina” exceto que dá maior ênfase ao falar. Assim, há dois aspectos
desta matéria. Primeiro temos que tratar da conduta e do comportamento
gerais, das coisas que temos que realizar mediante ações. Depois, em
acréscimo, há certas admoes-tações que devem ser dirigidas ao filho,
palavras de exortação, palavras de encorajamento, palavras de reprovação,
palavras de censura. O termo empregado por Paulo inclui todas estas
coisas; na verdade inclui tudo o que dizemos aos filhos em palavras reais,
quando estamos definindo posições e indicando o que é certo e o que é
errado, animando, exortando, e assim por diante. Esse é o sentido da
palavra "admoestação”.

Os filhos devem ser criados “na doutrina e na admoestação” - e em seguida


vem o acréscimo mais importante - “do Senhor”: “doutrina e admoestação
do

Senhor”. É aí onde os pais cristãos, engajados em seus deveres para com os


seus filhos, estão numa categoria completamente diferente de todos os
outros pais. Noutras palavras, este apelo dirigido aos pais cristãos não
eqüivale simplesmente a exortá-los a criarem os seus filhos em termos da
moralidade geral ou das boas maneiras ou de uma conduta recomendável
em geral. Naturalmente isso está incluído; todos devem fazê-lo; os pais não
cristãos devem fazê-lo. Devem estar preocupados com boas maneiras, com
boa conduta em geral, com a fuga do mal; devem ensinar seus filhos a serem
honestos, cumpridores do dever, respeitosos, e tudo mais. Essa é somente a
moralidade comum, e o cristianismo não partiu daí. Mesmo escritores
pagãos, interessados na boa ordem da sociedade, sempre exortaram os seus
semelhantes a ensinar esses princípios. A sociedade não pode sobreviver sem
um mínimo de disciplina, lei e ordem, em todos os níveis e em todas as
idades. O apóstolo, porém, não está se referindo somente a isso; diz ele que
os filhos dos cristãos devem ser criados “na doutrina e admoestação do
Senhor”.

É neste ponto que o pensamento e o ensino peculiar e especificamente


cristãos devem entrar. Em primeiro lugar, nas mentes dos pais cristãos
sempre deve estar a idéia de que os filhos precisam ser criados no
conhecimento do Senhor Jesus Cristo como Salvador e como Senhor. Essa é
a tarefa peculiar para a qual somente os pais cristãos são chamados. Esta
não é somente a sua tarefa suprema; seu maior desejo, sua maior ambição
quanto aos seus filhos deve ser que eles venham a conhecer o Senhor Jesus
Cristo como seu Salvador e como seu Senhor. Seria esta a nossa maior
ambição com respeito aos nossos filhos? Isto vem em primeiro lugar?
Queremos que venham a “conhecer Aquele a quem conhecer é a vida
eterna”, que O conheçam como Seu Salvador e que O possam seguir como
seu Senhor? “Na doutrina e admoestação do Senhor!” São estes, pois, os
termos empregados pelo apóstolo.

Chegamos agora à questão prática sobre como se deve fazer isto. Aqui, de
novo, está uma questão que requer a nossa mais urgente atenção. Na
própia Bíblia há abundante ênfase posta no treinamento dos filhos. Tomem,
por exemplo, certas palavras que se acham no capítulo seis de
Deuteronômio. Moisés tinham chegado ao fim da vida, e os filhos de Israel
estavam prestes a entrar na terra prometida. Ele os fez lembrar-se da lei de
Deus e lhes disse como deviam viver quando entrassem na terra da sua
herança. E, entre outras coisas, foi muito cuidadoso ao dizer-lhes que
deviam ensinar a lei aos seus filhos. Não bastava que a conhecessem e a
praticassem, deviam passar adiante o seu conhecimento. Os filhos deveriam
receber o ensino, e nunca mais esquecê-lo. Por isso ele repetiu a injunção,
registrando-a duas vezes no mesmo capítulo. Ela volta a aparecer no
capítulo 11 de Deuteronômio, e freqüentemente, aqui e ali, através de todo o
Velho Testamento. Semelhantemente se acha no Novo Testamento.

É muito interessante observar, na longa história da Igreja cristã, como este


assunto particular sempre reaparece e recebe grande proeminência em
todos os períodos de avivamento e despertamento. Os reformadores
protestantes preocu-

param-se com isso e deram grande proeminência à instrução das crianças


em questões morais e espirituais. Os puritanos lhe deram ainda maior
proeminência e os líderes do Despertamento Evangélico, há duzentos anos,
fizeram também a mesma coisa. Livros têm sido escritos e muitos sermões
têm sido pregados sobre este assunto.

Naturalmente isto acontece porque, quando as pessoas se tomam cristãs,


isto afeta inteiramente as suas vidas. Não é uma coisa meramente individual
e pessoal; afeta a relação matrimonial e, assim, há muito menos divórcios
entre os cristãos do que entre os não cristãos. Afeta a vida da família; afeta
os filhos, afeta o lar, afeta todos os departamentos da vida humana. As
épocas mais grandiosas da história da Inglaterra, e doutros países, sempre
foram os anos que se seguiram a um despertamento religioso, a um
avivamento da religião verdadeira. O tom moral da sociedade se elevou
nesses períodos; mesmo os que não se tomaram cristãos foram influenciados
e afetados pelo avivamento.

Noutras palavras, não há esperança de tratamento dos problemas morais da


sociedade, a não ser em termos do evangelho de Cristo. O que é direito
jamais será estabelecido se não houver vida piedosa; mas quando as pessoas
se tomam confiantes em Deus, começam a aplicar os seus princípios o tempo
todo, e se vê justiça na nação em geral. Contudo, infelizmente, temos que
encarar o fato de que, por alguma razão, este aspecto da questão tem sido
tristemente negligenciado no presente século. É parte do colapso que
estivemos considerando, na vida, na moral e na família, no lar, e noutros
aspectos da vida. É parte da louca afobação em que todos estamos vivendo e
pela qual estamos tão influenciados. Por uma razão ou outra, a família não
tem o valor de outrora, já não é o centro e a unidade que era anteriormente.
Toda a idéia de família de algum modo sofreu declínio; e deploravelmente,
isto em parte é um fato nos círculos cristãos também. A importância central
da família, que se vê na Bíblia e em todos os grandes períodos a que nos
referimos, parece que desapareceu. Não se lhe dão mais a atenção e a
proeminência que outrora recebia. Isso toma muitíssimo importante que
descubramos os princípios que devem governar-nos neste sentido.

Primeiro e antes de tudo, a criação dos filhos "na doutrina e admoestação


do Senhor” é algo que deve ser feito no lar e pelos pais. Esta é a ênfase
presenta na Bíblia toda. Não é uma coisa que se possa confiar à escola, por
melhor que ela seja. É dever dos pais, seu primordial e essencial dever. É
sua responsabilidade, e eles não devem passá-la a outrem. Dou ênfase a isto
porque estamos todos cientes do que está acontecendo cada vez mais no
presente século. Cada vez mais os pais estão transferindo as suas
responsabilidades e os seus deveres para as escolas.

Considero isto uma coisa sumamente grave. Não há influência mais


importante na vida de uma criança do que a influência do lar. O lar é a
unidade fundamental da sociedade, e as crianças nascem num lar, para
integrar uma família. Ali temos o círculo que vai constituir a principal
influência na vida delas. Não há dúvida sobre isso. Este é o ensino bíblico, de
capa a capa; e é
sempre nas civilizações, assim chamados, em que as idéias concernentes ao lar começam a deteriorar-
se, que a sociedade acaba por desintegrar-se. E assim, cabe ao povo cristão considerar e reconsiderar
com muito cuidado toda a questão das escolas com internato, quanto a se é direito mandar os filhos
para algum tipo de vida institucional onde passam a metade de cada ano, ou mais, longe de casa e da
sua influência especial e peculiar. Poderá isso conciliar-se com o ensino bíblico? A questão é urgente
porque isto se tornou mais ou menos o costume e a prática de virtualmente todos os cristãos
evangélicos que dispõem de recursos para isso.

O ensino das Escrituras é que o bem-estar do filho, a alma do filho, sempre deve ser a consideração
primordial; e todos as questões de prestígio - para não empregar outra expressão - e todas as questões
de ambição devem ser rigorosamente postas de lado. Qualquer coisa que milite contra a alma do filho
e contra o seu conhecimento de Deus e do Senhor Jesus Cristo, deve ser rejeitada. Invariavelmente, o
primeiro objeto de consideração deve ser a alma e sua relação com Deus. Por melhor que seja a
educação oferecida por um internato escolar, se esta milita contra o bem-estar da alma, deve ser posta
de lado. A promoção desse bem-estar é o elemento essencial da “doutrina e admoestação do
Senhor”, e constitui a principal tarefa e dever dos pais.
No Velho Testamento se vê com muita clareza que o pai era um espécie de sacerdote em sua casa e
entre os seus familiares; ele representava a Deus. Era responsável não somente pela moralidade e pelo
comportamento dos seus filhos, mas também por sua instrução. A ênfase da Bíblia, em todas as
suas partes, é que este é o principal dever e missão dos pais. E continua sendo assim. Se afinal somos
cristãos, temos que entender que esta grande ênfase se baseia nas unidades fundamentais ordenadas
por Deus - o casamento, a família e o lar. Não se pode facilitar nestas coisas. E inútil dizer, como
muitos dizem, sobre o envio dos filhos a internatos ou educandários: “E o que toda gente está
fazendo, e isso garante um excelente sistema de educação”. A questão deveras importante é: isso
ébíblico, é cristão, é realmente servir aos interesses atuais e eternos da alma do filho?

Aventuro-me a profetizar que a recuperação da espiritualidade e da moralidade na Grã-Bretanha


poderá muito bem vir nesta linha de ação. Os cristãos deverão voltar a pensar por si mesmos.
Precisamos tornar a ser pioneiros, como o povo de Deus no passado em geral era, sendo então
seguidos pelos outros. Devemos ponderar sobre até que ponto o sistema de internatos, mantendo os
filhos longe de casa, é responsável pelo descalabro da moralidade neste país. Não estou pensando
apenas nos pecados individuais das pessoas, e sim em toda a atitude dos filhos para com os seus
respectivos lares. O lar não deve ser um lugar onde os filhos passam suas férias e os seus
feriados. Entretanto, há muitas crianças cujos lares não passam disso; e seus pais, em vez de tratá-los
como devem, tendem a dar-lhes tratamento indulgente por estarem em casa por pouco tempo. Nesse
caso, perdeu-se toda a idéia de disciplina, e da criação dos filhos “na doutrina e admoestação do
Senhor”. Mas, talvez argu-

mentem, existem muitas circunstâncias especiais. Havendo realmente


circunstâncias especiais, eu concordo. Todavia, se não houver circunstâncias
especiais, o princípio que expus deve ser a regra; e são bem poucas as
circunstâncias especiais. A tarefa primordial do lar e dos pais é muito clara.

Que é que os pais devem fazer? Devem suplementar o ensino ministrado


pela Igreja, e devem aplicar o ensino da Igreja. Tão pouco se pode fazer
num sermão! Este deve ser aplicado, explicado, ampliado, suplementado. É
onde os pais têm seu papel a desempenhar. E se isso sempre foi certo e
importante, quanto mais hoje! Pergunto aos pais cristãos: vocês já
pensaram seriamente neste assunto? Vocês enfrentam, talvez, tarefa maior
do que a que seus pais jamais enfrentaram, e pela seguinte razão:
considerem o que ora se ensina às crianças nas escolas. A teoria e hipótese
da evolução orgânica lhes está sendo ensinada como sendo um fato. Não a
apresentam como mera teoria ainda não comprovada, porém lhes dão a
impressão de que é um fato absoluto, e de que todas as pessoas possuidoras
de conhecimento científico e de boa cultura acreditam nela. E os que não a
aceitam são considerados estranhos. Temos que enfrentar essa situação. A
Alta Crítica referente à Bíblia está sendo ensinada, com os seus supostos
“resultados seguros”. Nas escolas há professores que conheço pessoalmente,
os quais estão utilizando livros-textos publicados há trinta ou quarenta
anos. Poucos deles têm consciência das mudanças ocorridas, mesmo entre o
propugnadores da Alta Crítica. Ensinam-se nas escolas coisas perversas às
crianças, e estas as ouvem pelo rádio e as vêem na televisão. Toda a ênfase é
contra Deus, contra a Bíblia, contra o vero cristianismo, contra
o miraculoso e contra o sobrenatural. Quem avançará contra estas
correntes? Essa é precisamente a incumbência dos pais - “Criai-os na
doutrina e admoestação do Senhor”. Isto exige dos pais grande esforço na
presente época, porque as forças contra nós são muito poderosas. Os pais
cristãos hoje têm esta missão extraordinariamente difícil de proteger os seus
filhos contra essas poderosas forças adversas que estão tentando doutriná-
los.

Eis, pois, o cenário! Para ser prático, quero, em segundo lugar, mostrar
como não deveria ser feito. Há um modo de tentar lidar com esta situação
que é completamente desastroso, e que faz mais mal do que bem. Como não
fazer isso? Nunca devemos fazê-lo de maneira mecânica, quase que “por
números”, como se fosse uma espécie de tábua de exercícios. Lembro-me
duma experiência que tive, com relação a isto, faz uns dez anos. Fui
hospedar-me com alguns amigos, quando estive pregando em certo lugar, e
encontrei a esposa, a mãe da família, num estado de aguda angústia.
Conversando com ela, descobri a causa da sua angústia. Certa senhora
estivera fazendo palestras justamente naquela semana, sobre o tema:
“Como criar todos os filhos, em sua família, como bons cristãos”. Foi um
trabalho esplêndido! A preletora tinha cinco ou seis filhos, e organizara o
seu lar e a sua vida de tal maneira que terminava todo o seu trabalho
doméstico às nove horas da manhã, e depois se dedicava a várias atividades
cristãs. Todos os seus filhos eram excelentes cristãos; e tudo era tão fácil, tão
maravilhoso! A mãe que me falava, que tinha dois filhos, estava

dominada por um sentimento de verdadeira aflição, achando-se um


completo e total fracasso. Que poderia dizer-lhe? Isto: “Espere um
momento; que idade têm os filhos daquela senhora?” Acontece que eu sabia
a idade deles, e a senhora em aflição também sabia. Nenhum deles, naquela
ocasião, tinha mais de dezesseis anos, ou por aí. Eu continuei: “Espere e
veja. Aquela senhora lhe disse que todos os filhos dela são cristãos, e o que
você precisa é de um esquema que deve executar com regularidade.
Esperem um momento; a situação poderá ser diferente dentro de poucos
anos.” E, lastimavelmente, veio a ser muito diferente. É duvidoso se mais de
um daqueles filhos são cristãos. Vários deles são francamente anticristãos e
deram as costas a tudo que tinham recebido da mãe. Não é possível levar os
filhos a serem cristãos daquela maneira. Não é um processo mecânico e de
forma alguma pode ser feito de modo tão frio e clínico. Ouvi dizer que a
mesma senhora fez a mesma palestra noutro lugar. Ali esteve presente uma
pessoa que tinha algum entendimento e algum discernimento. Tendo ouvido
a preleção, esta outra senhora fez o que considerei um comentário muito
bom. Quando deixava o recinto, virou-se para algumas amigas e
disse: “Graças a Deus que ela não é minha mãe!” É para fazer rir, mas, ao
mesmo tempo, há algo de trágico nisso. O sentido daquele comentário era
que não havia amor ali, não havia calor. Eis aí uma mulher que se
orgulhava de si mesma; fazia tudo “por números”, mecanicamente. Que
mãe maravilhosa ela era! Esta outra mulher percebeu que não havia amor
ali, que não havia compreensão real, que não havia nada que aquecesse o
coração do filho. O filho não é uma máquina, e, portanto, não se pode fazer
este trabalho mecanicamente.

Tampouco se deverá agir de maneira inteiramente negativa ou repressiva.


Se você der aos filhos a impressão de que ser religioso é ser infeliz, e que a
vida religiosa consiste de proibições e de constantes repressões, você os
lançará nas garras do diabo, e no mundo. Nunca seja inteiramente negativo
e repressivo. Constantemente encontro tragédias nesse campo. Pessoas há
que conversam comigo depois do culto e me dizem: “Esta é a primeira vez
que entro num templo, depois de uns vinte anos”. Eu lhes pergunto: “Como
é isso?” Então me contam que haviam reagido contra a aspereza e contra o
caráter repressivo da religião em que tinham sido criadas. Não possuíam
nenhuma concepção válida do cristianismo. O que viam não era
cristianismo, mas uma severa religião feita pelo homem, um puritanismo
falso. É pena, todavia ainda existe gente que representa uma caricatura do
puritanismo verdadeiro, e nunca chegaram a compreender os seus reais
ensinamentos. Viram o lado negativo, porém nunca viram o lado positivo.
Isto causa grande dano.

Em terceiro lugar, ao criarmos os nossos filhos “na doutrina e admoes-tação


do Senhor”, nunca deveremos fazê-lo de modo tal, que os tome pequenos
fingidos e hipócritas. Também tenho visto muito disso. Para mim é muito
triste, muito revoltante mesmo, ouvir crianças dizerem frases piedosas que
não entendem. Mas seus pais se orgulham delas e dizem: “Ouçam-nas, não
é maravilhoso?” As crianças são novas demais para compreenderem tais
coisas. Sei que muitas crianças gostam de brincar de pregar. Essa conduta
infantil pode
ser desculpável, porém quando se vêem pais achando isso maravilhoso e
mandando as crianças fazerem isso diante da extasiada contemplação
de adultos, é quase blasfêmia. Certamente é muito prejudicial às crianças.
É transformá-las em pequenos fingidos e hipócritas.

Minha última negativa neste ponto é que nunca deveremos forçar a criança
a tomar uma decisão. Que problema e que estrago essa atitude
produz! “Não é maravilhoso?", dizem os pais, “o meu pequeno Fulano, um
simples rapazinho, decidiu-se por Cristo.” Fora feita pressão
constrangedora na reunião. No entanto, nunca se deveria fazer isso; é fazer
violência à personalidade da criança. Em acréscimo, naturalmente, é
demonstrar profunda ignorância do método de salvação. É possível levar
uma criança a decidir-se por qualquer coisa. Os pais têm poder e habilidade
para isso; mas é errado, é anticristão, não é espiritual. Noutra palavras,
jamais devemos ser muito diretos nesta questão, especialmente com uma
criança; jamais devemos agir demasiado emocionalmente. Se o seu filho fica
aborrecido quando você lhe fala de assuntos espirituais, ou se quando você
fala com o filho de alguém e ele se aborrece, é evidente que o seu método é
errado. Jamais se deve levar o filho a aborrecer-se com os assuntos
espirituais. Se acontecer isso é porque estamos sendo diretos demais, ou
estamos apelando demais para o emocional, ou estamos coagindo a criança.
Não é assim que se faz esta obra.

Também nesta área sei de algumas verdadeiras tragédias. Lembro-me do


caso de dois jovens em particular, antes de chegarem à idade de quinze
ou dezesseis anos. Seus pais sempre os impulsionavam para diante. Num
caso, um dos pais costumava escrever sobre os seus filhos e dava a
impressão de que eles eram cristãos notáveis. Todavia, estes jovens
repudiaram inteira e completamente a fé cristã, e hoje não vêem nela nada
de proveitoso. Os pais cristãos sempre devem lembrar-se de que estão
lidando com uma vida, uma personalidade, uma alma. Meu conselho é: não
coajam os seus filhos. Não os forcem a decidir-se. Conheço a ansiedade dos
pais. É muito natural; porém, se somos espirituais, se somos “cheios do
Espírito”, nunca faremos violência a uma personalidade, nunca faremos
qualquer pressão injusta sobre os filhos. Portanto, os nosso ensinamentos
nunca deverão ser exageradamente diretos, nem exa-geradamente
emocionais. Jamais deveremos agir de maneira que os filhos sejam levados a
sentir-se desleais para conosco, se não professarem a fé. Isso é imperdoável.
Pois bem, qual é o método verdadeiro? Permitam-me dar algumas
sugestões. Houve tempo em que era costume haver nas casas - e ainda o vejo
às vezes - um pequeno quadro afixado na parede, com esta frase inscrita:
“Cristo é o Chefe desta casa”. Não sou defensor dessa prática, mas havia
uma coisa boa nessa idéia. Lemos no Velho Testamento que foram dadas
instruções aos filhos de Israel, nestes termos: “E as escreverás (as palavras
do Senhor) nos umbrais de tua casa, e nas tuas portas” (Deuteronômio 6:9),
em razão de que somos criaturas esquecidiças. Os protestantes primitivos
costumavam pintar os Dez Mandamentos nas paredes dos seus templos, em
parte pela mesma razão.

Entretanto, quer exibamos um quadro quer não, sempre devemos dar a


idéia de que Cristo é o Chefe da casa ou do lar.

Como dar essa idéia? Principalmente por nossa conduta geral e por nosso
exemplo! Os pais devem viver de modo que os filhos sempre percebam que
eles estão subordinados a Cristo, que Cristo é o seu Chefe. Esse fato deve ser
óbvio em sua conduta, em seu comportamento. Acima de tudo, deve
imperar uma atmosfera de amor. “E não vos embriagueis com vinho, em
que há contenda, mas enchei-vos do Espírito.” Esse é o nosso texto
dominante, nesta como em todas as demais aplicações particulares. O fruto
do Espírito é amor, e se o lar estiver impregnado de uma atmosfera do amor
produzido pelo Espírito, a maior parte dos seus problemas será solucionada.
É isso que realiza a obra; não as pressões e os apelos, e sim uma atmosfera
de amor.

Que mais? Conversação geral! À mesa ou onde quer que estejamos, a


conversação geral é sumamente importante. Ouvimos, talvez, as notícias
pelo rádio, e começa a conversação sobre as notícias. Grandes temas são
mencionados - negócios internacionais, política, problemas industriais etc.
Uma parte da nossa tarefa, na criação dos nosso filhos “na doutrina e
admoestação do Senhor", é ver que mesmo essa conversação geral seja
sempre conduzida em termos cristãos. Sempre devemos introduzir o ponto
de vista cristão. Os filhos vão ouvir outras pessoas falando acerca das
mesmas coisas. Talvez, ao caminharem pela rua, ouçam dois homens
argumentando sobre as mesmas coisas que ouviram discutidas em casa.
Depressa notarão uma grande diferença: toda a abordagem era diferente
em casa.
Noutra palavras, o ponto de vista cristão deve ser introduzido na totalidade
da vida. Quer vocês estejam discutindo questões internacionais quer locais,
ou assuntos pessoais ou de negócios - seja o que for, tudo deverá
ser considerado sob o título geral de cristianismo. Este é um ponto deveras
vital, pois quando se faz isto, os filhos inconscientemente se dão conta do
fato de que há um princípio normativo nas vidas dos seus pais; seu modo de
pensar e tudo a seu respeito é diferente de tudo o que eles vêem e ouvem no
mundo incréu. Toda a atmosfera é diferente. Assim os filhos,
gradativamente, e em parte inconscientemente, vão sabendo que existe um
ponto de vista cristão. Essa é uma realização veraz, Uma vez que se apossam
desse fato, o problema fica muito mais fácil.

O ponto subseqüente é a resposta a perguntas. Aí os pais cristãos têm uma


grande oportunidade. Às vezes é extremamente difícil, eu sei; mas nos é
dada a oportunidade de responder perguntas. Gosto da maneira como esta
matéria é apresentada no capítulo seis de Deuteronômio, versículos vinte em
diante: “Quando teu filho te perguntar pelo tempo adiante, dizendo: Quais
são os testemunhos, e estatutos, e juízos que o Senhor nosso Deus vos
ordenou? Então dirás a teu filho: Éramos servos de Faraó no Egito, porém
o Senhor nos tirou com mão forte do Egito", e assim por diante. Noutras
palavras, virá o dia em que os filhos farão perguntas como estas: “ Por que
vocês não fazem isto ou aquilo? O pai e a mãe do meu amiguinho fazem
isto; por que vocês não fazem?” Aí vocês

estarão recebendo uma oportunidade para criar o seu filho “na doutrina e
admoestação do Senhor.” Contudo, se havemos de aproveitá-la,
precisamos saber a resposta certa e ter habilidade para apresentá-la. Não
poderão “dar a razão da esperança que há em vós” (1 Pedro 3:15), não
poderão criar seus filhos “na doutrina e admoestação do Senhor”, se não
conhecerem a Bíblia e os seus ensinamentos. “Por que vocês fazem isto, por
que não fazem aquilo? Os pais dos meus amigos passam as noites em casas
de diversão; vocês não. Passam as noites em clubes, passam as noites
dançando; vocês não. Por que? Qual a diferença?” Quando interrogados
dessa maneira, vocês não devem menosprezar o filho e dizer: “Ora, somos
diferentes, você vê, e é como preferimos.” Não; antes, vocês dirão ao seu
filho: “No fundo, somo todos iguais, para começar; e não é por sermos
naturalmente melhores do que os outros que nos portamos desta maneira
diferente. Não é essa a explicação. Não é porque nós temos certos
temperamentos e os outros pais têm outros diferentes. Todos nascemos “em
pecado”, todos somos, por natureza, escravos de várias coisas. Há algo de
errado dentro de todos nós, há um mau princípio em nós, e nenhum de nós
conhece verdadeiramente a Deus. Você vê, a diferença é esta, que Deus nos
fez ver como são erradas certas coisas. Mas nós continuaríamos
sendo semelhantes aos pais dos seus amigos, se não tivéssemos crido e
conhecido que Deus enviou ao mundo o Seu Filho único, o Senhor Jesus
Cristo, a respeito de quem você já ouviu, para resgatar-nos, para libertar-
nos”. É assim que se introduz o evangelho; vocês terão que décidir quanto
comunicar. Depende da idade do filho. Mas respondam as suas perguntas,
façam-no saber, façam-no saber com exatidão, quando ele fizer suas
perguntas, por que vocês vivem como vivem. Vocês não devem impingir
nada nele, não devem pregar para ele; mas, se ele fizer perguntas, falem
com ele, falem com muita simplicidade. Digam-lhe cada vez mais coisas, à
medida que ele vá crescendo; mas estejam sempre prontos para responder
suas perguntas. Procurem conhecer bem os fatos, compreender bem o
evangelho, estruturem-se sobre o evangelho para poder transmiti-lo e
infundi-lo. Assim vocês poderão criar os seus filhos “na doutrina e
admoestação do Senhor”.

Depois, vocês poderão orientar a leitura deles. Levem-nos a lerem boas


biografias. As biografias exercem atração sobre eles. Orientem a leitura
deles de várias maneiras; induzam-lhes a mente na direção certa, e
procurem familiarizá-los com as glórias da fé cristã em ação.

Que mais? Sempre tenham o cuidado de, toda vez que fizer alguma refeição,
dar graças a Deus por ela, e pedirem a bênção de Deus sobre ela.
Quase ninguém faz isso hoje em dia, exceto os que de fato são cristãos. Se os
seus filhos se habituarem a ouvi-los darem graças, e a repetirem a ação de
graças, e a suplicarem bênção, isto lhes fará algum bem. Vão além. Tenham
o que se chama altar familiar (ou culto doméstico), o que significa que pelo
menos uma vez por dia vocês e os seus se reunirão como família ao redor da
Palavra de Deus. O pai, como chefe da casa, deverá ler uma porção das
Escrituras e elevar uma oração singela. Não precisa ser longa, mas que leve
ao reconhecimento de Deus e a

agradecer a Deus a dádiva do Senhor Jesus Cristo. Vocês devem levar os


filhos a ouvirem com regularidade a Palavra de Deus. Se lhes fizerem
perguntas sobre ela, respondam-lhes. Dêem-lhes a instrução que puderem.
Sejam prudentes, sejam judiciosos. Não façam da sua instrução uma coisa
desagradável, odiosa, maçante; façam dela algo que eles mesmos busquem,
de que gostem, em que achem prazer.

Noutras palavras - em suma - o que nos compete fazer é apresentar um


cristianismo atraente. Devemos dar aos nossos filhos a idéia de que o
cristianismo é a coisa mais maravilhosa do mundo; e de que não há nada no
mundo que se compare a ser cristão. Devemos criar dentro deles o desejo de
serem parecidos conosco. Eles nos observam e vêem a alegria que sentimos,
e o modo como nos maravilhamos e nos enchemos de admiração pela vida
cristã. Oxalá digam a si mesmos: espero chegar à idade dos meus pais, para
poder ter o gozo que obviamente eles têm. Nosso método jamais deverá ser
mecânico, legalista, repressivo. Nosso testemunho nunca deve ser forçado,
mas, em tudo o que somos, fazemos e dizemos, saibam eles que somos
“escravos cativos de Jesus Cristo”, que Deus, em Sua graça, abriu os nossos
olhos e nos despertou para a coisa mais gloriosa do mundo, e que o nosso
maior desejo para com eles é que entrem no mesmo conhecimento e tenham
o mesmo gozo, e tenham o mais alto privilégio possível neste mundo, o de
servir ao Senhor e de viver para o louvor da glória da Sua graça (cf. Efésios
1:6,12,14). Seja qual for o seu trabalho, seja negócio ou profissão liberal ou
trabalho manual ou pregação, façam todas as coisas para a glória de Deus,
e, desse modo, estarão criando os seus filhos “na doutrina e admoestação do
Senhor”.
TRABALHO
Efésios 6:5-9

5 Vós, servos, obedecei a vosso senhores segundo a carne, com temor


e tremor, na sinceridade de vosso coração, como a Cristo;

6 Não servindo à vista, como para agradar aos homens, mas como servos
de Cristo, fazendo de coração a vontade de Deus;

7 Servindo de boa vontade como ao Senhor, e não como aos homens.

8 Sabendo que cada um receberá do Senhor todo o bem que fizer, seja
servo, seja livre.

9 E vós, senhores, fazei o mesmo para com eles, deixando as


ameaças, sabendo também que o Senhor deles e vosso está no céu, e que
para com ele não há acepção de pessoas.

AS COISAS QUE PERTENCEM A DEUS Efésios 6:5-9

Chegamos aqui a mais outra aplicação firmado pelo apóstolo no capítulo


anterior, principalmente nos versículos 18 e 21. O pensamento
dominante, como antes, é: “E não vos embriagueis com vinho, em que há
contenda (ou “excesso”), mas enchei-vos do Espírito”. Depois, o princípio
geral da ampliação disso acha-se no versículo 21: “Sujeitando-vos uns aos
outros no temor de Deus”. É essencial ter em mente que esse é o cenário de
fundo. Aqui vamos examinar a terceira ilustração usada pelo apóstolo para
mostrar como, sendo cheios do Espírito, devemos sujeitar-nos uns aos
outros.

Estas palavras não são dirigidas ao mundo como tal. O mundo é incapaz de
fazer o que se ensina aqui. A obediência piedosa só é possível aos que
são “cheios do Espírito”. Igualmente, de novo esta passagem nos recorda
certas verdades importantes. Uma delas é que o nosso cristianismo deve
cobrir a nossa vida inteira e afetar todas as nossas relações. Nada que o
cristão faça é igual ao que é feito pelo não cristão. Este pode fazer as
mesmas coisas, porém as realiza de modo diferente. O cristianismo não se
restringe aos domingos; é algo que se manifesta na totalidade da vida. Não
existe no mundo nada mais prático do que a fé cristã e do que o ensino
cristão. A maneira pela qual o apóstolo se empenha em elaborar o seu
princípio central nestes diversos departamentos da vida é em si mesma uma
prova disso. Ele não se contenta em dizer: “Ora, aqueles que, dentre vós,
são cheios do Espírito, devem sujeitar-se uns aos outros”, parando aí. Como
sábio mestre, ele sabe que é necessário descer a minúcias, tomar estes pontos
um a um e aplicá-los. Por isso ele usa esses exemplos, e são exemplos típicos
da vida diária, especialmente onde as tensões e pressões da vida tendem a
manifestar-se com maior freqüência. É evidente que essa foi a regra que
deve tê-lo guiado na escolha destas ilustrações particulares. A relação mais
delicada é a relação matrimonial, pelo que, por essa mesma razão, as
tensões, as pressões e as torções propendem a chegar ao nível máximo ali.
Depois, em seguida à relação matrimonial, vem a família. Esta é, de novo,
uma relação muito íntima e delicada, e o diabo sempre está ocupado em
seus esforços para romper o lar e sua santidade.

A terceira relação é a de senhores e servos. Esta segue as outras duas como


uma esfera em que as tensões, as pressões e as torções particularmente
tendem a ocorrer. As condições dominantes na esfera industrial hoje são
uma prova suficiente dessa afirmação. Mas essa relação particular sempre
causou muita dificuldade através de toda a história da raça humana. O
Velho Testamento e os

livros de história fornecem abundantes ilustrações. E continua sendo um


dos agudos problemas com que se defrontam a Grã-Bretanha e todos os
países do mundo na presente hora. Aventuro-me a ir mais longe; sempre
será um grande problema. Enquanto o homem estiver em pecado, e
enquanto, em conseqüência disso, ele for sempre primária e essencialmente
egoísta e egocêntrico, haverá necessariamente tensões nesta relação
particular. Durante o presente século, na verdade durante a segunda metade
do século anterior também, multiplicamos mecanismos para tratar deste
problema particular de maneira deveras excepcional. Organizações,
sociedades, Atos do Parlamento, tratam de todo o problema do trabalho,
das relações entre senhor e servo. Contudo, a despeito de todas essas
medidas, continua sendo um dos maiores problemas que
confrontam empregadores e empregados, políticos e muitos outros. Não
deveríamos ficar surpresos com isso, porque o homem em pecado é
essencialmente egocêntrico e egoísta. E como isso vale para todos, seja qual
for a sua situação na vida, é inevitável que haja estes problemas,
dificuldades e pressões. Felizmente para nós, o apóstolo dá-se ao trabalho de
tratar do assunto, e de fazê-lo minuciosamente.

Certamente, este é um assunto vasto, complexo e muito difícil. Portanto,


devemos focalizá-lo com particular cautela. Proponho-me a oferecer uma
série de pontos para consideração. É bom lembrar que nenhum deles diz
tudo; cada um deles é condicionado pelos restantes. A principal dificuldade
em conexão com este problema é que muitas vezes ele é tratado mediante
lemas que as pessoas lançam umas às outras. Mas os lemas não fornecem
soluções. Esta questão precisa ser ponderada acuradamente e considerada
com muito cuidado, à plena luz dos ensinamentos bíblicos.

À luz do que o apóstolo nos diz aqui, começo acentuando que há certas
características gerais do ensino cristão que enfeixam esta matéria em
particular. A primeira é que é inteiramente única, singular. O que estamos
estudando é algo que não se encontra em nenhum outro lugar. Há outros
ensinos parecidos, porém é que foram copiados deste. Há muitos tipos de
filósofos que se apropriaram do ensino cristão. Embora não cristãos, viram
a excelência de certos aspectos do ensino cristão e os copiaram e os usaram,
adequando-os aos seus propósitos. Assim, há ensinamentos que imitam o
ensino cristão, mas que sempre deixam fora o que há de mais vital. Desse
modo, eles confirmam a singularidade deste ensino e sua diferença essencial
de todos os demais.

A segunda característica é que este ensino pressupõe que, devido sermos


cristãos, devemos passar por uma profunda mudança no âmago das
nossas vidas. Eu já disse que este ensino não se dirige ao mundo. Seria
completamente inútil tomá-lo e aplicá-lo a assembléias de trabalhadores ou
de empregadores não cristãos. Fazê-lo significaria que não cremos na
regeneração; significaria que não acreditamos que, por natureza, o homem
é totalmente pervertido, em conseqüência do pecado; significaria que não
concordamos que o homem é essencialmente egoísta e egocêntrico.
Entretanto, todo o ensino se baseia nessa suposição. Portanto, estas epístolas
são endereçadas unicamente às igrejas, aos

membros da Igreja cristã. Não são comparáveis a artigos jornalísticos da


imprensa diária. Não existem jornais nos tempos antigos, mas, mesmo
que existissem, estas epístolas jamais teriam aparecido neles. Estas epístolas
são para as igrejas, para os membros delas, somente para os cristãos;
noutras palavras, para pessoas que nasceram de novo, que têm uma nova
natureza, uma nova perspectiva, que são “novas criaturas”, pessoas a
respeito das quais é verdade que “as coisas velhas já passaram; eis que tudo
se fez novo” (2 Coríntios 5:17).

O apóstolo fez lembrar extensamente aos efésios estas verdades nos três
primeiros capítulos. Depois resumiu tudo no capítulo 4, começando no
versículo 17, e especialmente na frase, “vós não aprendestes assim a Cristo”
(versículo 20). Depois, outra vez, no capítulo 5, versículo 8, “noutro tempo
éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor”. Os efésios eram novas criaturas,
e o apóstolo pressupõe isso em seu ensino.

Este princípio tem particular significação hoje. Existem pessoas cujos


nomes e cujas afirmações aparecem constantemente na impresa. São
pessoas tidas como peritas no conceito cristão sobre a indústria e questões
similares, mas, muitas vezes, as suas declarações indicam claramente que
jamais captaram o princípio que enunciei. Acham elas que o cristianismo é
ensino que pode ser oferecido ao mundo como ele é, e concitam o povo para
que o ponha em prática. Com isso, negam os princípios fundamentais do
cristianismo e desperdiçam o seu fôlego. Seus esforços nunca produzem os
resultados desejados. “Em verdade vos digo que já receberam o seu
galardão”, diz o Senhor Jesus sobre tais pessoas (Mateus 6:2), e o galardão é
a publicidade que recebem; porém elas nem chegam a tocar na situação;
não conseguem fazer nenhuma diferença no curso dos acontecimentos.
Todavia, acima de tudo, digo eu, suas idéias são uma completa negação de
toda a base do ensino cristão, o qual pressupõe que uma radical e tremenda
transformação aconteceu nas pessoas às quais dirige os seus apelos.

A seguir, no entanto, em terceiro lugar, o ensino do apóstolo pressupõe mais


uma coisa, a saber, que os cristãos têm conhecimento da doutrina e
têm capacidade para pôr em ação essa doutrina. Esse conhecimento e essa
capacidade são pressupostos no ensino neotestamentário sobre o viver
cristão. O Novo Testamento não nos diz: “Como cristão, você é obrigado a
ter certos problemas e dificuldades. Você quer saber como portar-se como
empregado, como empregador, o que deve fazer. Ah, a única coisa a fazer é:
“Leve isto ao Senhor”; basta orar sobre isto, e Ele lhe mostrará o que fazer;
na verdade, Ele o fará para você”. Mas não é esse o ensino do Novo
Testamento, de modo nenhum. No ensino do Novo Testamento, primeiro nos
é dada a doutrina, o ensino; depois nos é dito que devemos aplicar isso às
nossas circunstâncias pessoais. Obviamente, se não conhecermos a doutrina,
não poderemos aplicá-la; se formos faltos de compreensão do ensino, não
poderemos pô-lo em ação. Primeiro temos a instrução; temos que recebê-la
e compreendê-la; depois dizemos: “Agora, à luz desta instrução, isto é o que
tenho que fazer”. Essa é a

doutrina neotestamentária da santificação; e o que temos aqui é


simplesmente um exemplo prático e uma ilustração de como demonstrar, de
maneira prática, que estamos sendo santificados. Essa é a vida santificada,
nesta questão de “servos e senhores”. Contudo, sem conhecer e crer a
doutrina, não se pode fazê-lo.

A última observação geral que ofereço é, mais uma vez, um comentário


sobre o equilíbrio e a validade do ensino. Começa com os servos. Em cada
caso, vocês se lembram, o apóstolo começa com os que são instados a
sujeitar-se - a esposa ao marido, os filhos aos pais, e agora os servos aos
senhores segundo a came. Mas, com que cuidado ele coloca os dois lados!
Nunca age com injustiça, nunca de maneira desleal. Aos maridos ele fala
dos seus deveres, aos pais dos seus deveres, e aos senhores lhes lembra seus
deveres deste modo - “E vós, senhores, fazei o mesmo para com eles,
deixando as ameaças, sabendo também que o Senhor deles e vosso está no
céu, e que para com ele não há acepção de pessoas”. Lembro-lhes o
equilíbrio porque é uma das grandes glórias deste ensino; é o que o toma
inteiramente único. Não há outro ensino que faça isso como as Escrituras o
fazem. Para mim isto é, em si mesmo, prova suficiente de que este ensino é a
própria Palavra de Deus. Deus das alturas olha para nós e para todas as
divisões e distinções que tanto valorizamos; Ele coloca todas estas coisas no
nível certo, mostra a perspectiva certa, isto é, que todas as coisas estão sob o
Seu poder.

Assim nos vemos encaminhados ao grande problema. “Servos” - como o


interpretamos? Neste ponto as nossas versões são um tanto infelizes; não
nos dão a verdadeira idéia do sentido da palavra. Realmente significa
“escravos”. Escravos! O apóstolo não estava tratando do caso de servos
pagos. No mundo civilizado daquele tempo havia servos assalariados; havia
servos domésticos que eram contratados e recebiam salário. Não é deles, no
entanto, que o apóstolo está tratando primariamente; está tratando de
escravos. A escravidão era universal na época, e muitos cristãos primitivos
eram literalmente escravos. A palavra que o apóstolo empregou é, em si
mesma, prova suficiente disso. Empregou o termo que é sempre empregado
para escravos, não para servos assalariados; porém, se resta alguma dúvida,
é dirimida pelo versículo 8 -“Sabendo que cada um receberá do Senhor todo
o bem que fizer, seja servo” -isto é, um escravo - “seja livre”. Assim, o
contraste é entre um escravo e um homem livre. Noutras palavras, o
apóstolo está definida e especificamente tratando aqui da questão da
escravidão e de como o escravo deve conduzir-se. Por isso não podemos
expor este parágrafo sem encarar o problema da escravidão, e em
particular o ensino bíblico concernente à escravidão.

Não é preciso dizer que estamos examinando um assunto altamente difícil e


controvertido. Há pessoas que dizem que a sua principal razão para não
serem cristãs é a atitude da Bíblia, e em particular do Novo Testamento,
para com a escravidão. Argumentam que isso é suficiente para condená-la
e, portanto, não têm por que importar-se com ela. Na verdade, isso muitas
vezes tem sido uma causa de grande perplexidade para muitos cristãos.
Imaginem como deve ter

sido a situação há cento e sessenta anos, quando Wilberforce estava


promovendo sua grande campanha em favor da abolição da escravatura nas
possessões ultramarinas da Grã-Bretanha. Façam retroceder suas mentes
também para a década de sessenta do século passado, quando foi travada a
guerra civil nos Estados Unidos por causa da mesma questão. Vê-se logo
como este problema é realmente sutil, difícil e complexo. E ainda existe
muita confusão a respeito dele. Mas quero anotar, ademais, que, ao
examinarmos esta questão, concomi-tantemente estaremos examinando
também um bom número de problemas correlates. Estaremos examinando
todo o problema da relação entre o cristão e o Estado, todo o problema da
relação do cristão e o comércio e os negócios na presente época, e em
particular entre o cristão e os sindicatos de operários. Na verdade,
estaremos examinando todo o problema da atitude do cristão para com as
condições sociais, a política, as reformas, e até possíveis revoluções
e rebeliões. Tudo isso está implícito aqui.

O Novo Testamento trata de grandes princípios; ele os impõe à nossa


atenção. Seria insensato dizer: “Bem, se trata da escravidão, que é que isso
tem a ver comigo?" A resposta é que a escravidão é apenas uma das
possíveis relações entre os homens; e o apóstolo está preocupado com o
comportamento, a conduta e a reação de cristãos que estejam nalguma
posição de submissão a outros; cristãos empregados em qualquer serviço.
Isto vai mais longe; todos somos submissos ao Estado, às leis sociais e às
condições sociais. Daí, este assunto, se é que havemos de estudá-lo honesta e
completamente, nos introduzirá naquelas diversas esferas. Aqui o tema é a
escravidão, e surge a questão: como o escravo cristão deve conduzir-se?
Deverá procurar libertar-se? Deverá tentar abolir a escravidão? Isto
imediatamente leva a todas as outras questões, a todas as formas
concebíveis de emprego, a todas as espécies de relações sociais e econômicas.
Esta é mais uma razão pela qual devemos dar graças a Deus pelas
Escrituras. Há pessoas que olham estas coisas superficialmente e que dizem
que serem cristãs não as ajuda a decidir se devem ou não filiar-se a
um sindicato de trabalhadores, pois na Bíblia não há nada sobre sindicatos
simplesmente porque não os havia nos tempos antigos. Entretanto, o
princípio normativo dessa questão está aqui, neste parágrafo. Portanto, o
que nos compete é compreender o parágrafo, apegar-nos ao princípio, e
depois aplicá-lo ao particular aspecto do problema com o qual nos
defrontamos.

Indubitavelmente, a melhor maneira de abordar toda esta complexa


matéria é tomar em conjunto o relevante ensino da Bíblia em sua inteireza.
Há bom número de passagens que tratam disso. Vejam, por exemplo,
Mateus 22, versículo 15 a 21, onde se nos diz que certos fariseus e
herodianos se aproximaram do Senhor Jesus e Lhe fizeram a sua pergunta-
armadilha: “É lícito pagar o tributo a César, ou não?” Notem a resposta do
Senhor: “Mostrai-me a moeda do tributo”. Examinou-a e disse: “De quem é
esta efígie e esta inscrição?” Eles disseram: “De César”. Então Ele lhes deu
esta resposta decisiva: “Dai pois a César o que é de César, e” - uma coisa
sobre a qual eles não tinham perguntado, mas Ele acrescentou - “a Deus o
que é de Deus”. Diz-
nos a passagem que “eles, ouvindo isto, maravilharam-se, e, deixando-o, se retiraram”. Podemos
entender a consternação deles. Receberam em troca mais do que esperavam; ouviram um
ensinamento que nunca tinham previsto.

Outro exemplo muito interessante desta mesma coisa, um exemplo freqüentemente deixado de lado,
acha-se em Mateus, capítulo 17, versículos 24 a 27: “E, chegando eles a Capernaum, aproximaram-se
de Pedro os que cobravam as didracmas, e disseram: o vosso mestre não paga as didracmas? Disse
ele: Sim. E, entrando em casa, Jesus se lhe antecipou, dizendo: Que te parece, Simão? De quem
cobram os reis da terra os tributos, ou o censo? Dos seus filhos, ou dos alheios? Disse-lhe Pedro: dos
alheios. Disse-lhe Jesus: logo, estão livres os filhos; mas, para que não os escandalizemos, vai ao mar,
lança o anzol, tira o primeiro peixe que subir, e, abrindo-lhe a boca, encontrarás um estater; toma-o,
e dá-o por mim e por ti”.

Outra afirmação crucial é a que se acha na Epístola aos Romanos, no início do capítulo 13: “Toda a
alma esteja sujeita às potestades superiores; porque não há potestade que não venha de Deus; e as
potestades que há foram ordenadas por Deus. Por isso, quem resiste à potestade resiste à ordenação
de Deus; e os que resistem trarão sobre si mesmos a condenação. Porque os magistradores não
são terror para as boas obras, mas para as más”. Depois temos a Epístola a Filemom, que trata direta
e especificamente de toda a questão da escravatura. Há também uma referência ao mesmo assunto,
ao mesmo princípio, na Primeira Epístola de Pedro, capítulo 2, começando no versículo 13: “Sujeitai-
vos pois a toda a ordenação humana por amor do Senhor; quer ao rei, como superior; quer
aos governadores como por ele enviados para castigo dos malfeitores, e para louvor dos que fazem o
bem”. E o apóstolo prossegue: “Como livres, e não tenho a liberdade por cobertura da malícia, mas
como servos de Deus... Vós, servos, sujeitai-vos com todo o temor aos senhores, não somente aos bons
e humanos, mas também aos maus”. E convém lembrar que as ordens sobre a obediência
às “potestades que há” foram escritas quando o imperador não era outro senão aquele déspota cruel,
Nero. Os cristãos deviam sujeitar-se a ele e a todas as autoridades semelhantes.

Aí temos exemplos de ensino direto, porém, em acréscimo, há ensino indireto. Um exemplo disso é o
que consta no Livro de Daniel, onde temos relatos da conduta e comportamento de Daniel,
especialmente nos capítulos 3 e 6. Há também um ensinamento implícito, muito interessante, no
capítulo dezesseis do Livro de Atos dos Apóstolos, onde se conta que o apóstolo Paulo e Silas foram
presos, agredidos, açoitados, e lançados no cárcere interior. Mais tarde se nos diz que as autoridades
mandaram libertá-los, mas o apóstolo se opôs e disse que, como eram cidadãos romanos que foram
submetidos erroneamente àquele tratamento e à prisão, viessem elas mesmas, pessoalmente, e
os libertassem. Esta é uma interessante luz indireta sobre toda a questão em foco. E há mais um
exemplo em Atos, capítulo 25, onde o apóstolo Paulo apela para César. Como cidadão romano, tinha
direito de fazer isso, e exerceu esse direito.

Enquanto examinamos estas passagens das Escrituras, sinto-me cons-

trangido, mais uma vez, a fazer alguns comentários gerais. Primeiro, será
que alguma vez vocês ficaram chocados pelo fato de haver relativamente
pouco ensinamento nas Escrituras sobre este assunto, direta e
especificamente? Elas tratam dele de maneira geral, e estabelecem
princípios que devem comandar esta questão. Mas, por que seria que a
Bíblia não dá mais atenção a tais problemas? Por que não nos dá mais
ensinamento direto a respeito do problema imediato que se nos apresenta,
problema sempre presente, era após era, na vida da raça humana? Por que
essa escassez de ensinamento? A resposta, com certeza, deve ser que o
principal interessa da Bíblia toda está na relação do homem com Deus. Toda
a sua força, toda a sua ênfase é posta nesse problema. Como vemos ilustrado
na resposta do Senhor aos fariseus e herodianos, é isso que toma tão
significativo o incidente. De muitas maneiras estas duas seitas eram
representantes típicos do homem moderno. Eles perguntaram: “Mestre,
é lícito pagar tributo a César, ou não?” Hoje as perguntas são: “Que é que a
Igreja tem para dizer sobre “apartheid”, sobre as vítimas da segregação
racial? Que é que a Igreja tem para dizer sobre economia? Que é que a
Igreja tem para dizer sobre a guerra?” Embora os temas reais possam
mudar quanto à forma, o princípio que está por trás das questões
permanece sempre o mesmo. Nunca há uma palavra acerca da relação do
homem com Deus! O tema, em todas as suas variações, é sempre a relação
entre seres humanos - os direitos do homem, como os homens tratam os seus
semelhantes, e assim por diante. A resposta do Senhor Jesus também
continua sendo a mesma. Ele introduz o “E" - aquilo que esquecemos,
aquilo que nos mete em confusão quanto a estes problemas particulares - “E
a Deus o que é de Deus”. Esse é um exemplo perfeito da ênfase típica da
Bíblia. Seu interesse é a relação do homem com Deus. Essa é a sua grande
mensagem, a sua mensagem principal.

Tomemos outra ilustração. Um escriba aproximou-se do Senhor Jesus e Lhe


perguntou: “Qual é o primeiro de todos os mandamentos?" Esse
escriba também, como os fariseus e os seus colegas, passava muito tempo em
discussões sobre os pormenores da lei, e a pergunta virtualmente foi: qual é
o maior destes seiscentos e treze mandamentos? Um dizia este, outro dizia
aquele; os argumentos eram intermináveis. O homem foi ao Senhor e Lhe
perguntou: “Qual deles dizes que é o maior?” E o Senhor respondeu:
“Amarás, pois, ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua
alma e de todo o teu entendimento, e de todas as tuas forças.” Esse é o
primeiro mandamento - o principal. “E o segundo” - sim, mas é apenas o
segundo - “semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo”
(Marcos 12:28-31). O Senhor não coloca o segundo em primeiro lugar. As
relações humanas não vêm primeiro; nunca vêm primeiro na Bíblia;
primeiro vem sempre a relação do homem com Deus. O Senhor Jesus rompe
toda a atitude legalista e velhaca. Diz Ele que o problema com os fariseus e
os escribas é: “Dizimais a hortelã, o endro e o cominho, e deprezais o mais
importante da lei.” “Percorreis o mar e a terra para fazer um prosélito...
mas esquecestes o amor de Deus” (cf. Mateus 23:15,23). Omitiam a coisa
principal, a coisa grandiosa, a coisa central, aquilo que a Bíblia

salienta de capa a capa. Com estes pensamentos em mente, leiam de novo a


nossa passagem, em Efésios 6: “Vós, servos, obedecei a vossos
senhores segundo a carne, com temor e tremor, na sinceridade de vosso
coração, como a Cristo; não servindo à vista, como para agradar aos
homens, mas como servos de Cristo, fazendo de coração a vontade de
Deus”. O Senhor eleva a questão à esfera de Deus e da nossa relação com
Ele. E Paulo tem o cuidado de dizer a mesma coisa aos senhores: “Sabendo
também que o Senhor deles e vosso está no céu, e que para com ele não há
acepção de pessoas”. Então, tratemos de manter em mente a regra que não
varia.

Meu segundo comentário é detestado por muitos hoje, que se dizem homens
práticos, homens de negócio. A Bíblia sempre considera a vida neste mundo
como tendo importância secundária; é apenas uma peregrinação,
uma jornada. Que somos? “Peregrinos e forasteiros”, diz Pedro (1 Pedro
2:11). Vemos esta ênfase em todo o Velho Testamento; isto vem resumido
magni-ficamente no capítulo onze da Epístola aos Hebreus, essa galeria de
retratos dos santos e dos heróis da fé. Essa passagem nos diz que aqueles
homens estavam esperando “a cidade que tem fundamentos, da qual o
artífice e construtor é Deus”. Consideravam-se “estrangeiros e peregrinos
na terra”. Eram viajores. É por isso que Moisés, um deles, “tinha em vista a
recompensa”. Por isso preferiu sofrer opressão com Cristo e Seu povo a
“por um pouco de tempo ter o gozo do pecado”. Estes vultos bíblicos
viveram neste mundo com muito desprendimento. Não quiseram
estabelecer-se neste mundo; sabiam que estavam destinados a outro. Ê o
outro reino que importa, é o outro, o reino eterno, que conta. Este ensino se
acha em todo o Novo Testamento. Os ensinamentos do Senhor Jesus estão
repletos dele, e o vemos nas epístolas, como, por exemplo, nas
palavras: “Pensai nas coisas que são de cima, e não nas que são da terra”
(Colossenses 3:2). Também é esse o grandiosa tema do Livro de Apocalipse.

É muito importante que nos lembremos disto, porque são essas verdades
que constituem o princípio que comanda o ensino da Bíblia sobre a
escravidão e todas estas outras questões. O princípio normativo é a relação
do homem com Deus, e o conceito de que a presente vida é algo passageiro,
temporário e fugaz. Não significa, é claro, que esta vida e este mundo deva
ser ignorados; não significa que devam ser desprezados como se não
tivessem nenhuma importância. Menos ainda significa que o cristão deva
decidir-se a tomar-se monge, eremita ou anacoreta, segregando-se do
mundo. Esta foi, por certo, uma compreensão completamente equivocada
do ensino em foco. Todavia significa, sim, que não colocamos esta vida em
primeiro lugar, não pensamos somente neste mundo. Este mundo só é
considerado e entendido à luz do outro mundo. Somos peregrinos da
eternidade; somos “uma colônia do céu”; “a nossa cidadania está no céu”;
ao céu pertencemos (Filipenses 3:20-21). Ainda estamos vivendo neste
mundo, mas o nosso verdadeiro lar está no outro; lá se acha o centro dos
nossos interesses; a sede do nosso governo está no céu. Não sei de coisa
alguma que, nesta época, seja mais importante que a compreensão
deste princípio determinante - o homem em sua relação com Deus, o homem
em sua

correta relação com este mundo. Este mundo e o homem são secundários,
não primordiais. Primeiro Deus, primeiro o céu, primeiro “a glória”. Esta
existência é temporária, preparatória, não duradoura. Estamos de
passagem . Não negligenciamos este mundo, não procuramos evadir-nos do
mundo; mas o mantemos em sua posição certa e subordinada. É à luz desse
princípio, e dele somente, que podemos compreender o ensino de que
estamos tratando.

Nossa dedução do que acima foi dito é que esta ênfase particular sempre
deve constituir a característica primária da Igreja e seu ensino. O que
compete à Igreja é expor as Escrituras; e estes são os princípios normativos
que encontramos nas Escrituras. Portanto, devem ser estes os princípios
normativos presentes na pregação e no ensino da Igreja. A incumbência
primordial da Igreja não consiste em tratar das condições deste mundo, e
sim, antes, da relação do cristão com elas, e da sua conduta enquanto estiver
inserido nelas. Assim como a Bíblia sempre coloca sua principal ênfase no
homem em sua relação com Deus e em sua temporária relação com este
mundo passageiro, assim deve proceder a Igreja.

A Igreja não deve gastar seu tempo e suas energias tratando das condições
deste mundo como tais. Essa não é sua tarefa principal. E é interessante
notar que ela não considerou isso como sua tarefa nos primeiros séculos.
Não há censura no Novo Testamento contra a escravidão. Eu reitero que a
tarefa da Igreja não é tratar das condições como tais, porém, ao contrário,
com a maneira pela qual o cristão deve agir nas condições existentes, e com
o modo como ele deve conduzir-se e portar-se. Jamais deveremos perder de
vista essa verdade. Opino que, em grande parte, a condição atual da Igreja
se deve ao fato de que este grande princípio foi esquecido. Não é meu desejo
causar controvérsia -estou simplesmente expondo as Escrituras - entretanto
não consigo achar nas Escrituras nenhuma justificativa para a idéia dos
supostos lordes espirituais da Câmara dos Lordes. Não consigo achar nas
Escrituras nada que justifique bispos e arcebispos tomarem assento na
Câmara dos Lordes e participarem de debates sobre política e sobre as
condições e as questões sociais. Apresso-me a acrescentar o seguinte:
tampouco há justificação bíblica para os ministros não conformistas ou da
Igreja Livre gastarem seu tempo pregando sobre política, economia e
questões sociais. Ambos os grupos estão errados, tanto um quanto outro. A
missão da Igreja é lembrar constantemente aos homens sua relação com
Deus, a exemplo do que o Senhor Jesus fez. As pessoas nos procuram
com suas perguntas, e nos compete ver que a ênfase esteja em Deus, que as
suas relações com Deus sejam postas em primeiro lugar, e que também
lhes ensinemos a correta atitude que devem ter para com a presente vida e
este mundo. A tragédia da situação atual do mundo é, principalmente, que a
maioria não vê nem percebe que os males do mundo se devem ao seu
paganismo, à sua falta de fé, à sua irreligiosidade. Na Grã-Bretanha e em
todas as outras terras os homens e as mulheres se esqueceram de Deus, da
sua relação com Deus e do seu destino eterno. Apesar de ser essa a situação,
a Igreja passa a maior parte do tempo tratando de questões secundárias, de
questões transitórias, de questões

das quais a Bíblia trata apenas incidentalmente, e meramente como


ilustrações dos grandes princípios gerais. Porventura, não é trágico que,
enquanto os líderes da Igreja, assim chamados, estão sempre falando destes
outros assuntos que o Senhor sempre coloca em posição subsidiária, a
grande e central necessidade do homem vai ficando marginalizada?

Há outro aspecto geral desta questão que devo mencionar, antes de


passarmos a tratar do ensino em seus pormenores. Há cristãos que
tentaram abstrair-se totalmente do mundo, por assim dizer. Houve, e ainda
há, aqueles que dizem que é errado um cristão votar em eleições locais ou
gerais. Acham que é pecado um cristão envolver-se com política local ou
nacional.

Essa atitude é, de novo, um entendimento completamente errôneo do


ensino; é um erro tão grave como os outros já mencionados, pois se afasta
do equilíbrio perfeito das Escrituras. Não devemos sair do mundo, não
deixamos de ser cidadãos deste mundo; e devemos exercer certas funções
como cidadãos, enquanto estivermos neste mundo. Sim, mas devemos
manter-nos no lugar certo, na posição certa. E sempre uma questão de
prioridades e de ênfase, do que vem em primeiro lugar e do que vem em
segundo.
Resumindo o que vimos: este assunto está cercado de tantas dificuldades e
perplexidades, que a única maneira segura de abordá-lo é examiná-
lo cuidadosamente nas Escrituras, reunir todos os pontos, comparar
Escritura com Escritura, e jamais forçar um texto, isolando-o do seu
contexto. Toda proposição deve ser tomada em seu contexto, tomada como
um todo, e então colocada juntamente com as demais. Somente assim
poderemos descobrir os grandes princípios do ensino bíblico. Também
devemos examinar-nos a nós mesmos, à luz da Palavra. Se não pudermos
dizer que o nosso primeiro e principal interesse é a nossa relação com Deus,
então, seja o que for que creiamos acerca destas várias questões, será mais
ou menos irrelevante. Se não pudermos dizer que vemos nossa vida neste
mundo como temporária, passageira e fugaz, outra vez estaremos errados.
Se de qualquer maneira ou forma, em nosso pensamento e em nosso falar,
dermos a impressão de que este mundo e esta vida são tudo para nós, e que
sempre estarão no centro dos nossos interesses, digo que já não estamos
mais numa posição condizente com o NovoTestamento. Os problemas estão
aí, e temos que fazer alguma coisa com eles; temos que compreender nossa
relação com eles. Contudo, se falharmos, não agindo do modo ensinado pela
Bíblia, se deixarmos de lembrar que tudo é efêmero e temporário, e que
o que realmente importa é que também pertencemos a outro reino, não
estamos na posição cristã, de maneira nenhuma e, portanto, quase
certamente as nossas deduções serão errôneas.

Ditas estas coisas, podemos agora começar a considerar o ensino das


Escrituras, primeiramente e antes de tudo, com vistas à escravidão,
mas também, por inferência, com vistas a cada uma das situações em que
nos envolvemos com outras pessoas - no emprego, ou sob o Estado, ou em
qualquer que sej a. E também devemos ter em nossas mentes a questão
sobre se a rebelião é sempre justificada ou justificável. Nossos ancestrais
tiveram que enfrentar

estes problemas nos séculos passados; e no mundo são muitos os que têm
que encarar urgentemente estes problemas no presente. O fato de que talvez
sejam menos graves na Grã-Bretanha não é razão para não pensarmos
neles. Devemos saber o que faríamos, se surgisse tal situação aqui. Em todo
caso, devemos ser capazes de ajudar outros. É possível que você tenha
amigos ou parentes noutros países, que lhe escrevam e lhe perguntem:
“Vocé é cristão, diga-me, que devo fazer?” È nosso dever conhecer o ensino
bíblico para podermos aplicá-lo a nós mesmos e ajudar outros a fazê-lo a si
mesmos. Queira Deus dar-nos graça para fazermos isso, para a glória do
Seu santo nome!

AS PRIORIDADES DO CRISTÃO Efésios 6:5-9

Tendo notado os princípios bíblicos envolvidos na obediência do cristão a


senhores, empregadores, governos e outros, em seguida consideramos
a aplicação prática dos princípios, lembrando que a função da Igreja não é
tratar das condições políticas ou sociais ou econômicas como tais. Todavia,
neste ponto alguns objetam e dizem: “Mas, que dizer dos profetas do Velho
Testamento? Não estavam sempre tratando destes problemas e condições
de natureza prática?” A resposta é simples: a nação de Israel também era a
Igreja. Naquele tempo não havia divisão entre o Estado e a Igreja; o Estado
e a Igreja eram um. De modo que, quando os profetas dirigiam as suas
advertências à nação, as estavam dirigindo ao povo de Deus, aos crentes. O
que sempre cabe à Igreja é tratar das condições da Igreja e, como naqueles
dias a Igreja e o Estado eram um, competia à Igreja tratar de problemas
políticos e outros. Mas no momento em que chegamos ao Novo Testamento,
encontramos uma situação inteiramente diversa. Aqui a Igreja é separada
do mundo e reunida aparte dele. Ela tem sua relação com o Estado, porém
já não é unida a ele. E vital que observemos esta distinção. Não há
contradição entre o Velho e o Novo Testamentos; a atenção é sempre dada à
Igreja, ao povo de Deus, e ao povo de Deus em sua relação com Ele como
peregrinos da eternidade.

Portanto, a dedução que tiramos é que, primariamente, a tarefa da Igreja é


evangelizar, é levar as pessoas ao conhecimento de Deus. Depois, tendo
feito isso, deve ensiná-las a viver sob Deus, como Seu povo. A Igreja não está
aqui para reformar o mundo, pois o mundo não pode ser reformado. A
ocupação da Igreja é evangelizar, é pregar o evangelho da salvação a
homens cegados pelo pecado e que se acham sob o domínio e o poder do
diabo. No instante em que a Igreja começa a entrar nos detalhes da política
e da economia, está fazendo uma coisa que milita contra a sua missão
primordial de evangelizar.

Como um exemplo óbvio, vejam o caso da Igreja e o comunismo. Meu ponto


de vista é que não cabe à Igreja cristã denunciar o comunismo. Ela
está despendendo muito tempo fazendo isso no presente. É errado por esta
razão, que a tarefa primária da Igreja é evangelizar os comunistas, abrir-
lhes os olhos, levá-los à convicção de pecado e à conversão. Seja qual for a
posição dos homens, ou seus conceitos políticos, sejam eles comunistas ou
capitalistas ou qualquer outra coisa, devemos considerá-los a todos como
pecadores, e igualmente pecadores. Estão todos perdidos, condenados, e
todos precisam ser convertidos, todos precisam nascer de novo. Assim, a
Igreja olha o mundo e os seus povos
de maneira inteiramente diferente dos não cristãos. Se, pois, a Igreja gastar o seu tempo denunciando
o comunismo, estará mais ou menos fechando tão herme-ticamente quanto possível a porta da
evangelização entre os comunistas. Diz o comunista: “O seu cristianismo é anticomunista e pró-
capitalista; não vou dar ouvidos a essa mensagem”. Daí não podermos evangelizá-lo. A Igreja não
foi destinada a tratar diretamente de posições políticas e outras; sua tarefa é pregar o evangelho a
todos e a cada um, não importa o que sejam, e levá-los ao conhecimento de Cristo. Ela deve abster-se
de entrar em pormenores, para que a sua missão primordial de evangelização não sofra impedimento
e atraso, e para que não suceda que ela mesma feche a porta contra a própria coisa que ela alega
estar fazendo. E isso que se deduz em geral do ensino bíblico. Sempre devemos fazer o que o apóstolo
faz aqui, o que vimos que o Senhor Jesus fez, e o que todos os escritores e mestres bíblicos fazem, quer
do Velho Testamento, quer do Novo.

Quais são, porém, os princípios pormenorizados que deduzimos disso

tudo?

O primeiro princípio é que, obviamente, o cristianismo não suprime a nossa relação com as condições
sociais, políticas e econômicas existentes. É necessário dizer isso porque alguns dos cristãos primitivos
erraram neste ponto, e há muitos que ainda erram. Há os que continuam pensando como
pensavam alguns cristãos primitivos que, uma vez que um homem se tornava cristão, não estava mais
preso à sua esposa, se ela não era cristã. Por isso Paulo teve que escrever o capítulo sete da Primeira
Epístola aos Coríntios. Isso estava acontecendo nos dois lados. O homem, por exemplo, argumentava
desta maneira: “Nós nos casamos quando éramos pagãos e incrédulos, mas agora sou cristão e vejo
tudo diferentemente. Minha mulher não é cristã, de modo que não estou mais preso a ela, pois isto
seria um obstáculo para a minha vida cristã”. Amesma coisa com a mulher. Os cônjuges convertidos
tendiam a abandonar os cônjuges não convertidos. Mas o apóstolo lhes escreveu e lhes disse que não
fizessem isso. Havia filhos tendentes a proceder da mesma maneira. Haviam sido convertidos, mas os
seus pais continuavam pagãos; então diziam: “Naturalmente os nossos pais não mandam mais em
nós. Eles não entendem, são pagãos e, portanto, não precisamos sujeitar-nos mais a eles e à sua
direção”. Paulo, no entanto, os ensina de outro modo. E assim foi com esta questão dos servos em sua
relação com os senhores. De fato, vemos na Segunda Epístola aos Tessalonicenses, no capítulo três,
que havia alguns cristãos que até pararam de trabalhar. Argumentavam que agora estavam num
novo reino e iam passar o tempo aguardando a volta do Senhor. Por isso, abandonaram as suas
tarefas diárias e só ficavam a olhar para os céus e a esperar o aparecimento do Senhor. O apóstolo
teve que lhes dizer com toda a franqueza: “se alguém não quer trabalhar, também não coma”. O que
estavam fazendo era devido à completa incompreensão do cristianismo.

No caso do relacionamento entre servos e senhores, a tendência era de argumentarem erroneamente,


baseados no fato de que somos todos iguais aos

olhos de Deus, e de dizerem: “Porventura o apóstolo Paulo não ensina que


“não há judeu nem grego; não há servo nem livre; não há macho nem
fêmea; porque todos vós sois um em Cristo Jesus”? Somos todos iguais
agora. Já não há diferença entre homens e mulheres; assim, que as mulheres
sejam ministras do evangelho e preguem, e que os servos não sejam mais
sujeitos aos seus senhores. O fato de sermos cristãos aboliu as relações
antigas.” Outra vez uma completa incompreensão do cristianismo! O que o
apóstolo ensina aí é que não há diferença do ponto de vista da possibilidade
de salvação. No entanto, isso não acaba com as ordens da sociedade, não
elimina a diferença inerente que há entre um homem e uma mulher, nem
estes outros diversos relacionamentos.

A história da Igreja cristã mostra que as pessoas constantemente caem neste


erro. A seita conhecida como anabatismo, que surgiu no século dezesseis, fez
isso, e dizia que os cristãos nada deviam ter com o Estado.
Procuravam isolar-se, segregar-se do mundo em todos os sentidos. Ainda há
gente que tem a propensão de seguir nesse rumo; alguns acham que é
errado o cristão pagar taxas e tarifas e, para outros, é um erro o cristão
participar da política. Não votam nas eleições, e assim por diante. Ora, isso
tudo decorre de não levarmos em conta este primeiro princípio - que o fato
de nos termos tomado cristãos não dissolve nem elimina a nossa relação com
o Estado e com as condições sociais, políticas e econômicas.

Aqui o apóstolo chega ao ponto de dizer

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