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Práticas Corporais de Aventura Na Escola
Práticas Corporais de Aventura Na Escola
168-187, setembro/2016
http://dx.doi.org/10.5007/2175-8042.2016v28n48p168
RESUMO
Este texto apresenta uma análise documental sobre o conteúdo ‘Práticas Corporais de
Aventura’, indicado na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), como uma novidade
se comparado aos conteúdos tradicionais da Educação Física brasileira. Nosso objetivo
foi analisar se o referido conteúdo atende aos princípios da educação básica presentes
na BNCC, sobretudo em sua exposição na área de Linguagens, nos eixos e objetivos
da formação no ensino fundamental e médio, e nos apontamentos específicos para a
Educação Física; bem como avaliar a inserção e os detalhamentos do conteúdo para
cada um dos ciclos propostos. Também apontamos limites e possibilidades para a in-
serção deste conteúdo na Educação Física Escolar. Concluímos pela importância deste
conteúdo e advogamos que sua inclusão na Educação Física Escolar deva ser balizada
por propostas pedagógicas críticas.
1 Doutor em Sociologia Política. Professor da Faculdade de Educação Física e Dança da Universidade Federal
de Goiás (FEFD). Goiania/Goiás, Brasil. E-mail: betoinacio@gmail.com.
2 Mestranda em Ensino na Educação Básica. Faculdade de Educação Física e Dança da Universidade Federal de
Goiás (FEFD). Goiânia/Goiás, Brasil. E-mail: daysecamaracauper@gmail.com.
3 Especialista em Educação Física. Professora da Rede Municipal de Ensino de Goiânia. Goiânia/Goiás, Brasil.
E-mail: luzia.paulasilva@gmail.com.
4 Licenciado em Educação Física. Professor da Rede Municipal de Educação de Goiânia. Goiânia/Goiás, Brasil.
Email: gleisongomesu2@yahoo.com.br.
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5 O documento aqui utilizado foi a 2a versão da BNCC, publicizado em maio de 2016, disponível em http://
basenacionalcomum.mec.gov.br/#/site/inicio. O último acesso à mesma se deu em 29 de junho de 2016.
6 Os especialistas convidados a redigir textos críticos para a Educação Física são: José Angelo Gariglio (Uni-
versidade Federal de Minas Gerais), Lívia Tenório Brasileiro (Universidade Estadual de Pernambuco), Marta
Genú Soares (Universidade do Estado do Pará), Ricardo Rezer (Universidade Comunitária da Região de Cha-
pecó), Vânia de Fátima Matias de Souza (Universidade Estadual de Maringá), Anegleyce Teodoro Rodrigues
(Universidade Federal de Goiás). Os textos estão disponíveis em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/#/
site/inicio. As análises de outros dois especialistas - Valter Bracht (Universidade Federal do Espírito Santo), e
Rodolfo Rozengardt, das Universidad Nacional de La Pampa e Universidad Nacional de Avaellaneda, ambas
da Argentina, não estavam disponíveis em 20 de maio de 2016.
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o meio que nos cerca e de superação das documento que também se faz presente nas
propostas mercadológicas que vêm se agi- PCAs: formas alternativas de interagir com
gantando em tais práticas. o mundo, construir sentidos - mas também
Se estes dois últimos elementos, ex- sensações - distintos dos tradicionais, propi-
tremamente relevantes, não estiverem pre- ciando aos sujeitos a constituição de novas
sentes no conceito apresentado pela BNCC, subjetividades (INÁCIO; MARINHO, 2007).
como se tornarão objeto de reflexão dos Inácio et al (2005b) afirmam que tais
professores no momento do planejamento? práticas - quando conteúdo da Educação
Talvez o que a BNCC discorre sobre a área Física e mesmo no âmbito do lazer, podem
de Linguagens e sobre a Educação Física ser escrutinadas em quatro dimensões, entre
ofereça pistas que contribuam para a res- as diversas que as constituem, sejam elas: o
posta a essa indagação. Então, vamos a elas: acesso, a técnica, o distanciamento de um
O texto que apresenta a área de rendimento obrigatório e os espaços para
Linguagens no documento destaca já no sua realização. As reflexões do grupo sobre
primeiro parágrafo que: estes quatro elementos constituintes das
PCAs estão em consonância com a BNCC,
As relações pessoais e institucionais e quando esta indica que é de responsabili-
a participação na vida em sociedade
se dão pelas práticas de linguagem. É dade da Educação Física
por meio dessas práticas que os sujeitos
(inter)agem no mundo e constroem sig- tratar das práticas corporais em suas
nificados coletivos. As práticas de lin- diversas formas de codificação e sig-
guagem permitem a construção de re- nificação social, entendidas como
ferências e entendimentos comuns para manifestações das possibilidades ex-
a vida em sociedade e abrem possibili- pressivas dos sujeitos, por meio da ges-
dades de expandir o mundo em que se tualidade e do patrimônio cultural da
vive, ampliando os modos de atuação e humanidade, produzidas por diversos
de relacionar-se. (BRASIL, 2016, p.87). grupos sociais no decorrer da história.
(BRASIL, 2016, p.99).
A partir desta colocação, podemos
concordar com a inserção da Educação Fí- Ainda de acordo com o documento,
sica nesta área, bem como com o conteúdo para a área de linguagem nos anos finais do
específico PCAs; afinal, quando apontamos ensino fundamental, é recomendado que
que as mesmas oferecem possibilidades os componentes curriculares oportunizem
para outras relações com o ambiente e aos jovens experiências para além de seu
para superação do mercolazer que vem se cotidiano, “não como fim, mas como meio
disseminando nestas práticas, estamos co- para uma compreensão mais aprofundada
mungando com a BNCC, em sua descrição dos modos de se expressar e de participar
inicial da área de Linguagens. no mundo” (BRASIL, 2016, p.331). Sobre
A BNCC indica que a área deve essa questão afirmamos que as PCAs se
oportunizar aos sujeitos formas de ação configuram como um conteúdo que permite
e interação no mundo e também favore- contemplar a recomendação acima, quando
cer processos de construção de sentidos. insere a discussão sobre o meio ambiente e
Observamos que este é outro elemento do a sustentabilidade como eixos transversais.
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São vários os autores que confluem nesta cartas, vídeos, como meios de apreensão
mesma direção (INÁCIO, 2006; ABREU, do conteúdo específico das PCAs. Também
2010; TAHARA; CARNICELLI Fo., 2013; tem sido comum encontrar em relatos de
FRANCO, 2008). Assim, nos é possível professores que as inserem em suas aulas, a
inferir que o conteúdo PCAs, no interior elaboração de gráficos, mapas esquemáticos
da linguagem ‘Educação Física’, é adequa- ou figurativos dos espaços da escola e seu
do e desejável, haja vista a importância e entorno, particularmente quando o con-
o significado que estas práticas corporais teúdo específico é o esporte de orientação
vêm assumindo em tempos atuais (INÁCIO, (INÁCIO et al., 2015a).
2014; RODRIGUES; DARIDO, 2006). O quarto objetivo listado - com-
A fim de reforçar nossa argumentação preender a diversidade de manifestações
em defesa das PCAs, além dos princípios das práticas corporais como construtos so-
que compõem a área, vamos ampliar nossa cioculturais e suas relações com ideologias
análise também aos seus objetivos gerais. e com o poder - está em diversos estudos
De acordo com a BNCC, a área de Lingua- (FRANCO; CAVASINI; DARIDO, 2014.
gens é composta por seis objetivos que ARMBRUST; PEREIRA, 2010. BRUHNS,
1997). Para estes autores, assim como ou-
estão em consonância com as indicações
tros, as práticas corporais - de aventura ou
de diversos autores da Educação Física
não, são manifestações que representam
quando discutem a inserção dessas práticas
determinadas formas de culturas, sendo
na escola.
então, flexíveis, dinâmicas, cambiantes.
1. Interagir com outras linguagens;
Tais características contribuem para
2. Compreender as condições de
a compreensão e aceitação deste conteúdo
(re) produção das práticas de linguagens na na escola; afinal, nas PCAs estão inseridas
cultura corporal do movimento; inúmeras dimensões que marcam a vida mo-
3. Refletir sobre os usos das lin- derna em sociedade, tais como a sociabiliza-
guagens; ção, a cooperação, as técnicas, a democrati-
4. Compreender a diversidade de zação (ou não) do acesso, etc. Ainda neste
manifestações das práticas corporais como objetivo, quando os alunos apreendem as
construtos socioculturais e suas relações PCAs como construtos humanos, percebem
com ideologias e com o poder; que as mesmas podem ser reconfiguradas,
5. Interagir com o outro; moldadas, adequadas às suas necessidades,
6. Reconhecer as dimensões poética aos seus interesses e às suas possibilidades,
e estética das linguagens.7 independentemente da forma pela qual é
Podemos observar os três primeiros realizada hegemonicamente. Tal processo
objetivos acima em Inácio et al. (2005a) também lhes favorece, então, perceber re-
com o uso de estratégias baseadas especial- lações de poder e dominação ali presentes,
mente na escrita e na arte, quando propõe bem como criar estratégias e agir para sua
a elaboração de mapas, jornais escritos e superação.
7 Estes objetivos estavam presentes na primeira versão, listados com marcadores numéricos, como aqui. Contudo,
na 2ª versão, os mesmos foram diluídos num texto corrido. Preferimos manter a primeira formatação.
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BNCC são as práticas corporais, organizadas das práticas corporais de aventura. Sobre
da seguinte forma: brincadeiras e jogos; esta última, a base distingue que seu
esportes; exercícios físicos; ginásticas; lu-
tas; práticas corporais alternativas; práticas [...] aspecto central e diferenciador [...]
corporais de aventura, e danças. é que a vertigem e o risco controlado
são determinantes em sua organização.
Suas expressões e formas de experi-
A Educação Física contém uma série de mentação corporal estão centradas nas
possibilidades para enriquecer a experi- perícias e proezas provocadas pelas
ência das crianças, jovens e adultos na situações de imprevisibilidade que se
Educação Básica, permitindo o acesso a apresentam quando o praticante intera-
um vasto universo cultural. Esse univer- ge com um ambiente desafiador. (BRA-
so compreende saberes corporais, ex- SIL, 2016, p.106).
periências estéticas, emotivas, lúdicas,
agonísticas que se inscrevem, mas não
se restringem, à racionalidade típica As expressões vertigem, risco, perí-
dos saberes científicos que comumente cias, proezas, imprevisibilidade, ambiente
orienta as práticas pedagógicas na esco- desafiador, apresentadas acima, são elemen-
la. Experimentar e analisar as diferentes
formas de expressão que não se alicer-
tos constituintes das PCAs que merecem um
çam apenas nessa racionalidade é uma olhar mais atento ao serem analisados no
das potencialidades desse componente. contexto escolar. Tais expressões caracteri-
(BRASIL, 2016, p.102). zam, e bem, as PCAs quando desenvolvidas
como esporte ou mesmo no âmbito do lazer
Ressaltamos que os conteúdos tradi- mais ‘aventureiro’. Como já vimos no início
cionais da Educação Física brasileira, como deste texto, são diversas as nomenclaturas
os esportes e as brincadeiras e jogos, hege- que vêm sendo utilizadas para designar
mônicos na maioria das escolas, permane- estas práticas, tais como esportes de risco,
ceram na proposta. Enquanto os primeiros esportes alternativos, esportes extremos, por
continuarão sendo tematizados em todos onde se confirma o risco, a imprevisibili-
os cinco ciclos, os segundo ficarão restritos dade, a vertigem, como constituintes desta
aos anos iniciais do ensino fundamental, ou manifestação da cultura corporal.
seja, 1º e 2º ciclo. Contudo, será que estes mesmos
Além disso, foi reafirmada a necessi- elementos valem também para a escola?
dade de contemplar também as outras ma- Ou mais, será que estes elementos não
nifestações da cultura corporal a exemplo estão, também, presentes em práticas mais
dos conhecimentos sobre as ginásticas, as tradicionais - nas ginásticas, nas lutas, nos
danças e as lutas, que ora se faziam presen- esportes de maior contato?
tes nas aulas, ora ausentes, a depender do O que a base chama de ‘ambiente
interesse dos docentes e/ou de suas ligações desafiador’? Uma mesa de saltos, uma barra
com tais práticas. Assim como os esportes, assimétrica, uma rede de voleibol colocada
também as danças e as ginásticas serão a 2,44m, uma quadra de cimento, não são
conteúdos presentes em todos os ciclos, já todos estes ambientes desafiadores também?
as lutas ficarão restritas ao período que vai Em nossa análise, a base apresenta uma
do 2º ao 4º ciclo. Contudo, a novidade ficou lacuna aqui, ao dissertar sobre as PCAs
mesmo a cargo da inserção no documento desde sua forma tradicional, pouco focada
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BRINCADEIRAS E JOGOS
DANÇAS
ESPORTES
GINÁSTICAS
LUTAS
PRÁTICAS CORPORAIS
DE AVENTURA
Representação da distribuição dos objetivos de aprendizagem conforme a prática corporal nos cinco ciclos da
Educação Básica. Fonte: BRASIL, 2016.
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Se não este primeiro, avaliamos modalidade das danças, dos esportes, das
como possível outro argumento, justamente lutas, das ginásticas, das PCAs deve ou pode
um sobre o qual já tecemos crítica mais ser desenvolvida neste ou naquele ciclo.
acima, quando afirmamos que a BNCC Compreendemos e concordamos com esta
se move pelas PCAs mais conhecidas do ‘falta’ de orientação, novamente balizados
público em geral - aquelas que mais são pelo argumento das diversas culturas, inte-
disseminadas pela mídia e que permeiam o resses, etapas etc., tão próximas e ao mesmo
imaginário social. Tais práticas indicam um tempo tão distantes nos diversos territórios
padrão de risco significativo - ainda que con- que compõem este país.
trolado pelas técnicas e pelos equipamentos Apesar de não haver uma determina-
de segurança. Nesta direção podemos até ção, no caso das PCAs, a BNCC acaba por
comungar com a proposição do documento sugerir certa divisão entre as modalidades,
que recomenda as PCAs apenas a partir do quando optou por
6º. ano ou 3º ciclo.
Não desconhecemos – deveras, que [...] diferenciar, nos ciclos, as práticas
a avaliação do risco, a possibilidade de realizadas em diferentes espaços: meio
urbano no 3º ciclo e na natureza no
maior concentração e atenção e a capaci-
4º ciclo. Essa mudança leva em consi-
dade do trabalho em grupo, são caracterís- deração a possibilidade de realização
ticas mais presentes em fases pós-infância. dessas práticas, primeiramente, no am-
Entretanto, se reconhecermos as PCAs não biente escolar, ou no seu entorno e,
posteriormente, na natureza (BRASIL,
por suas modalidades mais conhecidas,
2016, p.404).
mas por seus Princípios Constituintes
(meio, tipo e direção do deslocamento,
Neste sentido, a Base propõe a ex-
com/sem aparato, individual ou coletivo,
perimentação de PCAs urbanas, e exempli-
com /sem colaboração), torna-se possível
fica: “parkour, skate, patins, bike” (BRASIL,
vislumbrar essas práticas mesmo para as
2016, p.404), para o 3º ciclo e PCAs na
séries iniciais, como pode ser observado em
Natureza, como por exemplo: “corrida de
Inácio et al. (2015). Inclusive, o conteúdo
orientação, trilhas interpretativas, arboris-
proposto apenas para os ciclos iniciais -
mo, mountain bike, rapel, tirolesa“ (BRASIL,
jogos e brincadeiras, pelas PCAs, podem
2016, p.405) para o 4º ciclo.
se constituir em mais que aventuras – em
Detalhando objetivos específicos
“Travessuras” (INÁCIO et al., 2005a).
para este conteúdo, a BNCC indica, indistin-
tamente para as práticas urbanas e práticas
As modalidades de PCAs e sua distribuição na natureza:
nos ciclos 1. Experimentar diferentes práticas
corporais de aventura.
A BNCC, como já foi dito ante- 2. Fruir/desfrutar de práticas corpo-
riormente, indica os conteúdos da cultura rais de aventura.
corporal a serem desenvolvidos na escola 3. Formular estratégias para identi-
e os distribui ao longo dos 12 anos de es- ficar os desafios e os riscos em realizar as
colarização. Destarte, não especifica qual práticas corporais de aventura.
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O tema luta ainda deve ser bastante onde moro, não existe locais apropria-
discutido como conteúdo da Educação dos para realização desta prática.
Física. O mesmo diz respeito às práticas
corporais de aventura com prática den-
O primeiro comentário de nossos pro-
tro da escola.
fessores diz respeito à não adequação
para a escola das Práticas Corporais de
Em relação ao conteúdo exercício físico Aventura, a não ser para conhecimento
e práticas corporais de aventura pensa- teórico, uma vez que aulas práticas fi-
mos ser temas complexos e fora da rea- cam com difícil viabilidade dentro do
lidade escolar, podendo ser transferido ambiente escolar.
para o ensino médio.
ABSTRACT
This text presents a documental analysis about the Adventure Bodily Practices content,
pointed at the National Curricular Common Base (BNCC), as a novelty comparing itself
to the traditional contents of Brazilian Physic Education. Our goal was to analyses if the
referred content meets the principles of basic education inside the BNCC, especially it’s
exposition in the Languages area, in the axis and goals of the formation in elementary
and high school, and in the specific orientations for Physic Education; also evaluate the
insertions and details of the content for each of the proposed cycles. We also pointed
out limits and possibilities for the insertion of this content in School Physic Education.
We concluded for the importance of this content, and we advocate that its inclusion of
School P.E. must be buoyed by critical pedagogical propositions.
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