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Tema: Diversão e Tédio Humano

Blaise Pascal. Pensamentos. São Paulo: Abril.


127, 131, 137, 139, 143, 164, 168, 169, 171

127 - Condição do homem: inconstância, tédio, inquietação.


131 - Tédio - Nada é mais insuportável ao homem do que um repouso total, sem
paixões, sem negócios, sem distrações, sem atividade. Sente então seu nada, seu
abandono, sua insuficiência, sua dependência, sua impotência, seu vazio. Incontinenti
subirá do fundo de sua alma o tédio, o negrume, a tristeza, a pena, o despeito, o
desespero.
137 - Sem examinar todas as ocupações particulares, basta incluí-las nos
divertimentos.
* 139 - Divertimentos Quando, às vezes, me pus a considerar as diversas
agitações dos homens, e os perigos e os castigos a que eles se expõem, na corte e na
guerra, originando tantas contendas, tantas paixões, tantos cometimentos audazes, e
muitas vezes funestos, descobri que toda a felicidade dos homens vem de uma só coisa,
que é não saberem ficar quietos dentro de um quarto. O homem que tem suficientes
bens para viver, se soubesse ficar em casa com prazer, não sairia dela para ir ao mar ou
ao cerco de uma praça. Não se pagaria tão caro um posto no exército, se não se achasse
insuportável não sair da cidade; e só se procuram as conversas e os passatempos dos
jogos porque não se sabe ficar em casa com prazer.
Mas quando pensei mais de perto no assunto, e quando, depois de haver
encontrado a causa de todas as nossas infelicidades, quis descobrir-lhes a razão, achei
que há uma muito efetiva, que consiste na infelicidade natural de nossa condição fraca e
mortal, e tão miserável, que nada nos pode consolar, quando nela pensamos de perto.
Seja qual for a condição que imaginemos, pela reunião de todos os bens que
podem pertencer-nos, vemos que a realeza é o mais belo posto do mundo. Imaginemos,
entretanto, um rei acompanhado de todas as satisfações que dela decorrem, mas sem
divertimentos; que considere e reflita sobre o que é, e essa felicidade enlanguescente
não se sustentará mais. Acabará forçosamente percebendo as coisas que o ameaçam, as
revoltas que podem surgir, e, enfim, a morte e as moléstias inevitáveis. De maneira que,
se ficar sem aquilo que se chama divertimento, ei-lo infeliz, [mais] infeliz que o mais
ínfimo de seus súditos, que goza e se diverte.
Daí vem que o jogo e a conversa das mulheres, as guerras, os grandes empregos
sejam tão procurados. Não que haja efetivamente felicidade nisso, nem que se imagine
que a verdadeira beatitude consista em se ter o dinheiro que se pode ganhar no jogo, ou
na lebre que se persegue: nada disso nos interessaria se nos fosse oferecido. Não é essa
vida mole e tranqüila, que nos deixa tempo para pensar na nossa infeliz condição, que
procuramos; como não são os perigos da guerra, nem os aborrecimentos dos empregos;
é o ruído, que nos desvia de pensar na nossa condição e nos diverte.
Daí amarem tanto os homens o ruído e a agitação; daí ser a prisão um suplício
tão horrível; daí o prazer da solidão se tornar uma coisa incompreensível. E daí, por fim,
ser o maior objeto de felicidade da condição dos reis essa preocupação constante dos
outros em diverti-los e em proporcionar-lhes toda espécie de prazeres.
O rei está rodeado de pessoas que só pensam em diverti-lo e em impedi-lo de
pensar em si mesmo. Porque, se pensa em si mesmo, é infeliz, por mais rei que seja.
Eis aí tudo quanto os homens puderam inventar para se tornarem felizes. E a
atitude dos filósofos, que crêem que o mundo é muito pouco razoável por passar o dia
todo a correr atrás de uma lebre que ninguém desejaria comprar, demonstra que nada
conhecem da nossa natureza. Essa lebre não nos livra da visão da morte e das misérias,
mas a caça - que nos desvia dela - dela nos livra.
O conselho que davam a Pirro, de entregar-se ao repouso que procurava através
de tantas fadigas, apresentava grandes dificuldades.
Dizer a um homem que viva em repouso é o mesmo que lhe dizer viva feliz; é o
mesmo que lhe aconselhar uma condição totalmente feliz e gue possa ser examinada à
vontade, sem que se encontre nela motivo de aflição; é aconselhar-lhe. . . Não é,
portanto, compreender a natureza.
Por isso, os homens que percebem naturalmente a sua condição evitam por todos
os modos o repouso e tudo fazem para procurar o tumulto. Não que não tenham um
instinto que os leve a conhecer a verdadeira beatitude. . . A vaidade, o prazer de mostrá-
lo aos outros.
Assim, erramos ao criticá-los; o erro deles não seria de procurar o tumulto, se só
o procurassem como um divertimento; o mal é que o procuram como se a posse das
coisas que buscam devesse torná-los perfeitamente felizes, e nisso sim, há razão para
qualificar esta pretensão como vã; de maneira que em tudo isso, tanto os que criticam
como os que são criticados não entendem a verdadeira natureza do homem.
E, assim, quando os advertimos de que o que procuram com tanto ardor não
pode satisfazê-los, se respondessem, como deveriam se raciocinassem bem, que
procuram nisso apenas uma ocupação violenta e impetuosa que os desvie de pensar em
si mesmos, e que é por isso que se propõem um objeto atraente que os encante e os
atraia com ardor, deixariam os adversários sem resposta. Mas não respondem assim,
pois não se conhecem a si mesmos. Não sabem que é a caça e não a presa que procuram.
(A dança: é preciso pensar onde _ se vai pôr os pés. - O fidalgo crê sinceramente
que a caça é um grande e régio prazer; mas o monteiro não é da mesma opinião.)
Imaginam que, se tivessem obtido esse cargo, repousariam em seguida com
prazer, e não sentem a natureza insaciável de sua concupiscência. Acreditam buscar
sinceramente o repouso, e, na verdade, só buscam a agitação. Têm um instinto secreto,
que os leva a procurar divertimentos e ocupações exteriores, nascido do ressentimento
de suas contínuas misérias; e têm outro instinto secreto, resto da grandeza de nossa
primeira natureza, que os faz conhecer que a felicidade só está, de fato, no repouso, e
não no tumulto; e, desses dois instintos contrários, forma-se neles um intento confuso,
que se oculta da vista no fundo da alma, e os leva a procurar o repouso pela agitação, e a
imaginar sempre que a satisfação que não têm acabará chegando, se, superando algumas
dificuldades que antevêem, conseguirem abrir por ali uma porta ao repouso.
Assim se escoa a vida toda. Procuramos o repouso combatendo alguns
obstáculos; e quando estes são superados o repouso torna-se insuportável. Pois ou
pensamos nas misérias presentes ou naquelas que nos ameaçam. E mesmo que nos
sentíssemos bem protegidos por todos os lados, o tédio, por sua autoridade privada, não
deixaria de sair do fundo do coração, onde tem raízes naturais, e de nos encher o espírito
com o seu veneno.
Assim, o homem é tão infeliz que se aborreceria mesmo sem nenhum motivo de
aborrecimento, pelo próprio estado de sua compleição; e é tão vão que, estando cheio de
mil causas essenciais de tédio, a menor coisa, como um taco e uma bola que empurra,
basta para diverti-lo.
- Mas, direis, que objetivo procura ele em tudo isso? - O de se gabar amanhã
entre os amigos de haver jogado melhor do que o outro. Por isso, também, outros suam
em seus gabinetes para mostrar aos sábios que resolveram um problema de álgebra que
ainda ninguém resolvera; e muitos outros se expõem a perigos extremos para se
gabarem em seguida de uma praça que tomaram, estupidamente em minha opinião; e,
enfim, outros se matam para notar essas coisas, não para se tornarem avisados, mas
somente para mostrar que as sabem; e esses são os mais tolos do bando, pois o são com
conhecimento, enquanto se pode pensar dos outros que deixariam de sê-lo se tivessem
esse conhecimento.
Tal homem passa a vida sem tédio, jogando um pouco de dinheiro todos os dias.
Dai-lhe todas as manhãs o dinheiro que ele poderia ganhar cada dia, sob condição de
não jogar, torná-lo-eis infeliz.
Dir-se-á, talvez, que é porque procura o divertimento do jogo, e não o ganho.
Fazei-o então jogar por nada, não se entusiasmará e se aborrecerá.
Não é, portanto, só o divertimento que ele procura: um divertimento mole e sem
paixão o aborrecerá. É preciso que se entusiasme e se iluda a si mesmo, imaginando que
seria feliz ganhando o que não desejaria que lhe dessem a fim de não jogar, a fim de
formar para si próprio um motivo de paixão e excitar com isso seu desejo, sua cólera,
seu temor ante o objeto que ele mesmo criou, como as crianças que se assustam diante
do rosto que elas próprias lambuzam de tinta.
Como se explica que esse homem, que perdeu há poucos meses o filho único, e
que, atormentado por processos e brigas, estava hoje cedo tão perturbado, já não pense
nisso agora? Não vos admireis: ele está todo ocupado em ver por onde passará o javali
que os cães perseguem com tanto ardor há seis horas. Não precisa de nada mais.
Por mais cheio de tristeza que um homem se encontre, se porventura
conseguirmos que entre num divertimento, será feliz durante esse tempo; e o homem
mais feliz, se não se estiver divertindo e ocupando com alguma paixão mi com alguma
distração que impeça o tédio de se espalhar, ficará logo triste e infeliz.
Sem divertimento não há alegria, com divertimento não há tristeza. E o que
forma a felicidade das pessoas de grande condição é que têm uma porção de gente para
diverti-las, e o poder de se manterem nesse estado.
Reparai nisto. Que representa o fato de ser superintendente, chanceler, primeiro
presidente, senão o de se encontrar alguém numa condição na qual desde cedo grande
número de pessoas vêm de todos os lados para não deixar-lhe uma só hora no dia em
que possa pensar em si próprio? E quando o senhor que cai em desagrado é enviado
para qualquer retiro campestre, onde não lhe faltam nem riquezas, nem criados para
assisti-lo em suas necessidades, não deixa de sentir-se miserável e abandonado, porque
ninguém o impede de pensar em si mesmo.
143 - Divertimento - Sobrecarregamos os homens, desde a infância, com o
cuidado de sua honra, de sua riqueza, de seus amigos, e ainda com o cuidado da riqueza
e da honra desses amigos. Fatigamos os homens com negócios, com o estudo de línguas
e exercícios, e fazemos-lhes sentir que não poderão ser felizes sem que a sua saúde,
honra e fortuna, e as de seus amigos estejam em ordem, e que basta faltar-lhes uma
destas coisas para se tornarem infelizes. E damos-lhes encargos e negócios que os
atormentam desde que desponta o dia. - Eis aí, direis, uma estranha maneira de fazê-los
felizes! Que se poderia fazer de melhor para torná-los infelizes? Como! Que se poderia
fazer? Bastaria tirar-lhes todas essas ocupações; então se veriam a si mesmos,
pensariam no que são, donde vêm e para onde vão. Nunca será demais, portanto, ocupá-
los, nem jamais os distrairemos demasiado. E é por isso que, depois de carregá-los de
negócios, se lhes sobra tempo para descanso, nós os aconselhamos a empregá-lo em
divertimentos e no jogo, e a andarem sempre inteiramente ocupados.
Como é oco e cheio de baixeza o coração do homem!
164 – Quem não vê a vaidade do mundo é bem vão em si mesmo. Mas, também,
quem não a vê, exceto os jovens que estão todos no barulho, no divertimento e no
pensamento do futuro? Mas tirai o seu divertimento e os vereis consumir-se de
desgosto; sentem então o seu nada, sem conhecê-lo; com efeito, é mesmo ser infeliz
ficar numa tristeza insuportável logo que se está reduzido a uma auto-análise, sem ter
diversão para seus males.
* 168 - Divertimento . Não tendo conseguido curar a morte, a miséria, a
ignorância, os homens lembraram-se, para ser felizes, de não pensar nisso tudo.
169 - . . . Não obstante essas misérias, o homem quer ser feliz, e somente quer
ser feliz, e não pode deixar de querer sê-lo. Como fará então? Fora preciso, para tanto,
tornar-se imortal; não o podendo, lembrou-se de não pensar no caso.
171 - Miséria - A única coisa que nos consola das nossas misérias é o
divertimento e, no entanto, essa é a maior das nossas misérias. Com efeito, é isso que
nos impede principalmente de pensar em nós e que nos perde insensivelmente. Sem
isso, ficaríamos desgostosos, e esse desgosto nos levaria a procurar um meio mais
sólido de sair dele. Mas o divertimento alegra-nos e leva-nos insensivelmente à morte.

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