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*434 - As principais forças dos pirrônicos (deixo as menores) são: que não
temos qualquer certeza da verdade desses princípios, fora da fé e da revelação, senão no
fato de os sentirmos naturalmente em nós. Ora, esse sentimento natural não é uma prova
convincente de sua verdade, uma vez que, não tendo certeza, fora da fé, se o homem foi
criado por um Deus bom, por um demônio mau, ou por acaso, ele está em dúvida se
esses princípios nos são dados como verdadeiros, ou falsos, ou incertos, segundo a
nossa origem. Além disso, ninguém tem certeza, fora da fé, se vela ou se dorme, visto
que, durante o sono, julgamos velar tão firmemente como fazemos; julgamos ver os
espaços, as figuras e os movimentos; sentimos correr o tempo, medimo-lo, e, enfim,
agimos como despertos. De sorte que - passando a metade da vida no sono, por nossa
própria confissão, onde, por mais que nos pareça, não temos nenhuma idéia da verdade,
todos os nossos sentimentos sendo, então, ilusões - quem sabe se essa outra metade da
vida em que pensamos velar não é outro sono um pouco diferente do primeiro do qual
despertamos quando pensamos dormir?
[E quem duvida de que, se sonhássemos acompanhados e, por acaso, os sonhos
concordassem, o que é bastante comum, e se velássemos sozinhos, não julgaríamos as
coisas invertidas? Finalmente, como muitas vezes sonhamos que estamos sonhando,
acumulando um sonho sobre outro, não poderá acontecer que esta metade da vida em
que pensamos velar seja ela mesma um sonho, no qual os outros se inseriam, de que
acordamos como mortos e durante o qual possuímos tão pouco os princípios da verdade
e do bem quanto durante o sono natural? Estes diferentes pensamentos que no momento
nos agitam não serão talvez apenas ilusões, semelhantes ao escoamento do tempo e aos
fantasmas vãos de nossos sonhos?
Eis as principais forças de um e de outro lado.
Deixo as menores, como os discursos que fazem os pirrônicos contra as
impressões do hábito, da educação, dos costumes do país e outras coisas semelhantes,
que, embora arrastem a maioria dos homens comuns que só dogmatizam sobre esses
vãos fundamentos, são derrubadas ao menor sopro dos pirrônicos. Basta ver seus livros,
se não estivermos bem persuadidos disso: bem depressa o ficaremos e talvez demais.
Detenho-me no único ponto forte dos dogmáticos, ou seja, que, falando de boa
fé e sinceramente, não podemos duvidar dos princípios naturais.
É contra isso que os pirrônicos opõem, numa palavra, a incerteza da nossa
origem, que encerra a da nossa natureza; é a isso que os dogmáticos ainda não
conseguiram encontrar resposta desde que o mundo é mundo.
Eis aberta entre os homens a guerra em que todos devem tomar partido,
enfileirando-se, necessariamente, ou no dogmatismo ou no pirronismo; pois quem
pensar em permanecer neutro será pirrônico por excelência. Essa neutralidade é a
essência da cabala [pirrônica]: quem não é contra eles é excelentemente por eles no que
nos surge a sua vantagem. Não são nem por si mesmos: são neutros, indiferentes,
superiores a tudo, sem excetuar-se a si mesmos.
Que fará, pois, o homem nesse estado? Duvidará de tudo? Duvidará que
desperta, que o beliscam, que o queimam? Duvidará que duvida? Duvidará que existe?
Não podemos chegar a este ponto; e tenho, como um fato, que nunca houve pirronismo
efetivo perfeito. A natureza sustenta a razão impotente e impede que extravague até esse
ponto.
Dirá, então, ao contrário, que possui certamente a verdade aquele que, por pouco
que o incitemos, não pode apresentar nenhum título desta verdade, e é forçado a
desistir?
Que quimera é, então, o homem? Que novidade, que monstro, que caos, que
motivo de contradição, que prodígio! Juiz de todas as coisas, imbecil verme da terra,
depositário da verdade, cloaca de incerteza e erro, glória e escória do universo.
Quem desfará essa confusão? A natureza confunde os pirrônicos, e a razão
confunde os dogmáticos. Que vos tornareis, pois, ó homens, que procurais a vossa
verdadeira condição por vossa razão natural? Não podeis evitar uma dessas seitas, nem
subsistir em nenhuma.
Conhecei, pois, soberbo, que paradoxo sois em vós mesmo. Humilhai-vos, razão
impotente; calai-vos, natureza imbecil; aprendei que o homem ultrapassa infinitamente
o homem, e ouvi do vosso senhor a vossa condição verdadeira, que ignorais. Escutai a
Deus.
Pois, enfim, se o homem nunca tivesse sido corrompido, gozaria com segurança,
em sua inocência, tanto da verdade como da felicidade. E se o homem só tivesse sido
corrompido, não teria qualquer idéia da verdade, ou da beatitude. Mas, infelizes que
somos, e mais do que se não houvesse grandeza em nossa condição, não temos uma
idéia da felicidade, e não podemos alcançá-la; sentimos uma imagem da verdade e só
possuímos a mentira: somos incapazes de ignorar em absoluto e de saber com certeza,
de tal maneira é manifesto que estivemos num grau de perfeição de que infelizmente
caímos!
Coisa assombrosa, no entanto, que o mistério mais distanciado do nosso
conhecimento, que é o da transmissão do pecado, seja uma coisa sem a qual não
podemos ter qualquer conhecimento de nós próprios! Sem dúvida, não há nada que
choque mais a nossa razão do que dizer que o pecado do primeiro homem tornou
culpados os que, estando tão afastados dessa fonte, parecem incapazes de participar
dela. Essa emanação não nos parece somente impossível, parece-nos até muito injusta.
Com efeito, que há de mais contrário às regras da nossa miserável justiça do que danar
eternamente uma criança. incapaz de vontade, por um pecado em que parece ter
participado tão pouco, pecado cometido seis mil anos antes de sua existência? Por certo,
nada nos choca mais rudemente do que tal doutrina; no entanto, sem esse mistério, o
mais incompreensível de todos, somos incompreensíveis a nós mesmos. O nó da nossa
condição forma suas dobras e voltas nesse abismo. De sorte que o homem é mais
inconcebível sem esse mistério do que esse mistério é inconcebível ao homem. Daí
parecer que Deus, querendo tornar a dificuldade de nosso ser ininteligível a nós
mesmos, escondeu-lhe tão alto o nó, ou melhor, tão baixo que fomos incapazes de
alcançá-lo; de modo que não é pelas soberbas agitações da nossa razão, mas pela
simples submissão da razão, que podemos realmente conhecer-nos.
Estes fundamentos, solidamente estabelecidos na autoridade inviolável da
religião, mostram-nos que há duas verdades de fé igualmente constantes: uma, que o
homem, no estado da criação ou no da graça, é alcançado acima de toda a natureza,
tornado como que semelhante a Deus e participante de sua divindade; outra, que no
estado de corrupção e de pecado, decai deste estado e torna-se semelhante aos animais.
[Essas duas proposições são igualmente firmes e certas. As Escrituras no-lo
declaram manifestamente, quando afirmam em certas passagens: Deliciae meae esse
cum filiis hominum. Effundam sp iritum meum super omnem carnem. Dii estis, etc., e
ainda noutras: Omnis caro foenum. Homo assimilatus est jumentis insipientibus, et
similis factus est illis. Dixi in corde meo defi/iis hominum. Ecl., 3.
[Por onde se vê claramente que o homem se torna semelhante a Deus pela graça
e participa de sua divindade. E sem a graça como que se aproxima das bestas
selvagens.]