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Aldous Huxley

1. Admirável Mundo Novo


HUXLEY, Aldous. Admirável Mundo Novo. São Paulo: Globo,2009. (Coleção Globo de bolso)

"Um Estado totalitário verdadeiramente eficiente seria aquele em que os chefes políticos de um
Poder Executivo todo-poderoso e seu exército de administradores controlassem uma população
de escravos que não tivessem de ser coagidos porque amariam sua servidão. Fazer com que eles
a amem é a tarefa confiada, nos Estados totalitários de hoje, aos ministérios da propaganda,
diretores de jornais e professores." (Aldous Huxley, 2009, p. 20)

"À medida que diminui a liberdade política e econômica, a liberdade sexual tende a aumentar
como compensação." (Aldous Huxley, 2009, p. 23)

"Grande é a verdade, mas ainda maior, do ponto de vista prático, é o silêncio em torno da
verdade. Pela simples abstenção de mencionar certos assuntos, pela interposição do que o Sr.
Churchill denomina uma" cortina de ferro" entre as massas e os fatos ou argumentos que os
chefes políticos locais consideram indesejáveis, os propagandistas totalitários têm influenciado a
opinião com muito mais eficácia do que poderiam tê-lo feito pelas mais eloquentes invectivas,
pelas mais convincentes refutações lógicas. Mas o silêncio não basta. Se se quiser evitar a
perseguição, a liquidação e outros sintomas de atrito social, os aspectos positivos da propaganda
deverão ser tão eficazes como os negativos. Os mais importantes Projetos Manhattan do futuro
serão vastas pesquisas, sob patrocínio governamental, em torno do que os políticos e os cientistas
participantes chamarão "o problema da felicidade" - em outras palavras, o problema de fazer
com que as pessoas amem sua servidão." (Adoux Huxley, 2009, p. 20)

"Um edifício cinzento e acachapado, de trinta e quatro andares apenas. Acima da entrada
principal, as palavras CENTRO DE INCUBAÇÃO E CONDICIONAMENTO DE LONDRES
CENTRAL e, num escudo, o lema do Estado Mundial: COMUNIDADE, IDENTIDADE,
ESTABILIDADE." (Aldous Huxley, 2009, 27)

"Mãe, monogamia, romantismo. A fonte jorra bem alto; o jato é impetuoso e branco de espuma.
O impulso não tem mais que uma saída. Não é de admirar que esses pobres pré-modernos fossem
loucos, perversos e desventurados. Seu mundo não lhes permitia aceitar as coisas naturalmente,
não os deixava ser sãos de espírito, virtuosos, felizes. Com suas mães e seus amantes; com suas
proibições, para as quais não estavam condicionados; com suas tentações e seus remorsos
solitários; com todas as suas doenças e intermináveis dores que os isolavam; com suas incertezas
e sua pobreza - eram forçados a sentir as coisas intensamente. E, sentindo-as intensamente
(intensamente e, além disso, em solidão, no isolamento irremediavelmente individual), como
poderiam ter estabilidade? (Aldous Huxley, 2009, p. 82)

“- Naturalmente, não é preciso que você o deixe. Basta arranjar outro, de tempos em tempos, eis
tudo. Ele tem outras mulheres, não é?

Lenina reconheceu que sim.

- É claro. Pode-se confiar que Henry Foster se portará como um perfeito cavalheiro, sempre
correto. E, além disso, é preciso pensar no Diretor. Você sabe como ele dá importância...

Lenina fez um sinal afirmativo:

- Ele me deu um tapinha no traseiro esta tarde.

- Aí está! - exclamou Fanny, com ar triunfante. - Isso mostra exatamente quais são as ideias dele:
o mais estrito respeito pelas convenções." (Aldous Huxley, 2009, p.82)

"- Estabilidade - disse o Administrador. - Estabilidade. Não há civilização sem estabilidade


social. Não há estabilidade social sem estabilidade individual." (Aldous Huxley, 2009, p.82)

"Lenina meneou a cabeça.

- Não sei por que - disse, pensativa -, mas já faz algum tempo que não me sinto muito inclinada à
promiscuidade. Há ocasiões em que isso acontece. Você nunca sentiu a mesma coisa, Fanny?

A outra inclinou a cabeça num gesto de simpatia e compreensão.

- Mas é preciso fazer o esforço necessário - disse em tom sentencioso. - É preciso portar-se
convenientemente. Afinal, cada um pertence a todos.

- Sim, cada um pertence a todos - Lenina repetiu lentamente a fórmula e, suspirando, calou-se
um momento, depois, tomando a mão de Fanny e apertando-a de leve.

- Você tem razão, Fanny. Como sempre. Farei o esforço necessário." (Aldous Huxley, 2009, p.
84)
"Cem repetições, três noites por semana, durante quatro anos", pensou Bernard Marx, que era
especialista em hipnopedia. "Sessenta e duas mil repetições fazem uma verdade. Imbecis!"
(Aldous Huxley, 2009, p.89)

"" Mas as roupas velhas são horríveis", continuava o murmúrio infatigável. "Nós sempre
jogamos fora as roupas velhas. Mais vale dar fim que conservar, mais vale dar fim..."

"Mais vale dar fim que consertar. Quanto mais se remenda, menos se aproveita. Quanto mais se
remenda..."" (Aldous Huxley, 2009, p. 91 e 92)

"- Lenina Crowne? - disse Henry Foster, repetindo como um eco a pergunta do Predestinador
Adjunto, enquanto cerrava o fecho das calças. - Ah, é uma garota esplêndida. Maravilhosamente
pneumática. Admiro-me de você não a ter experimentado ainda.

- Não sei como - retrucou o Predestinador-Adjunto. - Hei de experimentá-la, certamente. Na


primeira oportunidade.

De onde estava, do outro lado do vestuário, Bernard Marx o viu o que eles diziam e empalideceu.

(...)

"Falam nela como se fosse um pedaço de carne." Bernard rangeu os dentes. "Experimentá-la
assim ou assado! Como se fosse carne de ovelha. Eles a rebaixam à categoria de um pedaço de
carne de ovelha. Ela me disse que ia pensar, que me daria uma resposta esta semana. Oh, Ford,
Ford, Ford!" Gostaria de ir lá e esmurrá-los - com força, muitas e muitas vezes.

- Sim, eu aconselho você a experimentá-la - dizia Henry Foster.

(...)

"Tal como carne, como um pedaço de carne."

(...)

"E, o que é ainda pior, ela própria se considera uma carne."" (Aldous Huxley, 2009, p.85, 87, 96
e 97)

"- Como já lhes disse, havia uma coisa chamada Cristianismo.

(...)
-A ética e a filosofia do subconsumo...

(...)

-Absolutamente essenciais quando havia subprodução; mas, na era das máquinas e da fixação do
nitrogênio, um verdadeiro crime contra a sociedade.

-Cortou-se a extremidade superior de todas as cruzes para delas se fazerem TT. Havia também
uma coisa chamada Deus.

(...)

- Agora temos o Estado Mundial. E as comemorações do Dia de Ford, os Cantos Comunitários,


os Ofícios de Solidariedade.” (Aldous Huxley, 2009, p.95 e 96)

"- No trabalho, nas diversões; aos sessenta anos, nossas forças e nossos gostos são o que eram
aos dezessete. Os velhos, nos tristes dias de outrora, renunciavam, retiravam-se, de dedicavam-se
à religião, passavam o tempo lendo e pensando, pensando!

- Atualmente, tal é o progresso, os velhos trabalham, os velhos copulam, os velhos não têm um
instante, um momento de ócio para furtar ao prazer, nem um minuto para se sentarem a pensar;
ou se, alguma vez, por um acaso infeliz, um abismo de tempo se abrir na substância sólida de
suas distrações, sempre haverá o soma, o delicioso soma, meio grama para um descanso de meio
dia, um grama para um fim de semana, dois gramas para uma excursão ao esplêndido Oriente,
três para uma sombria eternidade na Lua; de onde, ao retornarem, se encontrarão na outra
margem do abismo, em segurança na terra firme das distrações e do trabalho cotidiano, correndo
de um cinema sensível a outro, de uma mulher pneumática a outra, de um campo de Golfe
Eletromagnético a..." (Aldous Huxley, 2009, p. 99 e 100)

“Os dias passaram. O êxito subiu à cabeça de Bernard como um vinho capitoso e reconciliou-o
completamente (como deve fazê-lo um bom produto inebriante) com um mundo que, até então,
achara muito pouco satisfatório. Enquanto esse mundo reconhecesse sua importância, a ordem
das coisas parecia-lhe boa. Mas, embora reconciliado pelo êxito, recusava-se a abandonar o
direito de criticar essa ordem. Porque o fato de criticar exaltava nele o sentimento de sua
importância, dava-lhe a impressão de ser maior. Além disso, ele acreditava sinceramente que
havia coisas a criticar. (Ao mesmo tempo, agradava-lhe genuinamente ter sucesso e possuir todas
as mulheres que quisesse).” (Aldous Huxley, 2009, p.249)
"Uma nova teoria biológica era o título do trabalho que Mustafá Mond acabava de ler. Ficou
sentado algum tempo, as sobrancelhas franzidas meditativamente; depois tomou a pena e
escreveu sobre a página de rosto: "A maneira pela qual o autor trata matematicamente a
concepção de finalidade é nova e extremamente engenhosa, mas herética e, no que diz respeito à
ordem social presente, perigosa e potencialmente subversiva. Não publicar." Sublinhou essas
palavras. "O autor será mantido sob vigilância especial. Sua transferência para o Posto de
Biologia Marinha de Santa Helena poderá tornar-se necessária." Uma lástima, pensou, enquanto
assinava. Era um trabalho magistral. Mas se se começasse a admitir explicações de ordem
finalística... bem, não se sabia qual poderia ser o resultado. Era o tipo de ideia que poderia
facilmente descondicionar os espíritos menos estáveis das castas superiores - que poderia fazê-
los perder a fé na felicidade como Soberano Bem e levá-los a crer, ao invés disso, que o objetivo
estava em alguma parte além e fora da esfera humana presente; que a finalidade da visa não era a
manutenção do bem-estar, e sim uma certa intensificação, um certo refinamento da consciência,
uma ampliação do saber... O que, refletiu o Administrador, bem podia ser verdade. Mas
inadmissível nas circunstâncias presentes. Retomou a pena e, sob as palavras " Não publicar",
riscou um segundo traço, mais espesso, mais preto do que o primeiro; depois suspirou. "Como
seria divertido", pensou, "se não se tivesse de pensar na felicidade!"" (Aldous Huxley, 2009, p.
272 e 273)

“- Quanto eu a amo, Lenina — conseguiu ele dizer, quase com desespero.

Como um emblema da onda interior de júbilo repentino, o sangue subiu às faces de Lenina.

- É verdade, John?

- Mas eu não tinha a intenção de dizê-lo - exclamou o Selvagem, unindo as mãos como num
paroxismo de angústia. - Não antes de... Escute, Lenina, em Malpaís as pessoas casam-se.

- As pessoas... o quê? - A irritação recomeçara a invadir sua voz. De que estaria ele falando
agora?

- Para sempre. Fazem-se a promessa de viverem juntos para sempre.

- Que ideia horrorosa! - Lenina ficou sinceramente chocada.” (Aldous Huxley, 2009, p.293)

Oh! Olhem, olhem! - Falavam em voz baixa e assustada. - Que é que ela tem? Por que será que
ela é tão gorda?

Nunca tinham visto um rosto como o de Linda - nunca tinham visto um rosto que não fosse
jovem e liso, nem um corpo que não fosse fino e aprumado. Todas aquelas sexagenárias
moribundas tinham o aspecto de mocinhas. Aos quarenta e quatro anos, Linda parecia, por
contraste, um monstro de senilidade flácida e deformada.

- Não é que ela é horrível? - Tais os comentários murmurados. - Olhem os dentes dela!” (Aldous
Huxley, 2009, p.309 e 310)

“- Por vezes, mil instrumentos melodiosos sussurram em meus ouvidos, e, por vezes, vozes.

A fisionomia do Selvagem iluminou-se de súbito prazer.

- O senhor também o leu? - perguntou. - Julguei que ninguém tivesse ouvido falar nesse livro
aqui na Inglaterra.

-Quase ninguém. Sou uma das raríssimas exceções. O senhor compreende, ele está proibido.
Mas, como sou eu que faço as leis aqui, posso também transgredi-las. Impunemente, Sr. Marx -
acrescentou, dirigindo-se a Bernard. - O que, lamento dizê-lo, o senhor não pode fazer.

Bernard mergulhou num acabrunhamento ainda mais profundo.

- Mas por que é que ele está proibido? - perguntou o Selvagem. Na excitação de conhecer um
homem que havia lido Shakespeare, esquecera momentaneamente tudo o mais.

O Administrador encolheu os ombros.

- Porque é antigo; essa a razão principal. Aqui não queremos saber de coisas antigas.

- Mesmo quando são belas?

- Sobretudo quando são belas. A beleza atrai, e nós não queremos que ninguém seja atraído pelas
coisas antigas. Queremos que amem as novas.

- Mas as novas são tão estúpidas e horríveis! Esses espetáculos em que não há senão helicópteros
voando de um lado para outro e em que se sente quando as pessoas se beijam! - Fez uma careta. -
Bodes e macacos! - somente nas palavras de Otelo podia encontrar um veículo adequado para
seu desprezo e seu ódio.

- Animaizinhos simpáticos e inofensivos, em todo o caso - murmurou o Administrador, como


num parêntese.

- Por que não lhes faz ver Otelo?

- Já lhe disse: é antigo. Além do que, não o compreenderiam.” (Aldous Huxley, 2009, p.335 e
336)
“- Porque o nosso mundo não é o mesmo mundo de Otelo. Não se pode fazer um calhambeque
sem aço, e não se pode fazer uma tragédia sem instabilidade social. O mundo agora é estável. As
pessoas são felizes, têm o que desejam e nunca desejam o que não podem ter. Sentem-se bem,
estão em segurança; nunca adoecem; não têm medo da morte; vivem na ditosa ignorância da
paixão e da velhice; não se acham sobrecarregadas de pais e mães; não têm esposas, nem filhos,
nem amantes, por quem possam sofrer emoções violentas; são condicionadas de tal modo que
praticamente não podem deixar de se portar como devem. E se por acaso alguma coisa andar
mal, há o soma. Que o senhor atira pela janela em nome da liberdade, Sr. Selvagem.” (Aldous
Huxley, 2009, p.337)

“- Apesar de tudo - insistiu obstinadamente - Otelo é bom, Otelo é melhor do que esses filmes
sensíveis.

- Sem dúvida - aquiesceu o Administrador. - Mas esse é o preço que temos de pagar pela
estabilidade. É preciso escolher entre a felicidade e aquilo que antigamente se chamava a grande
arte. Nós sacrificamos a grande arte. Temos, em seu lugar, os filmes sensíveis e o órgão de
perfumes.

- Mas eles não significam nada.

- Significam o que são; representam para os espectadores uma porção de sensações agradáveis.”
(Aldous Huxley, 2009, p.337)

“Sem dúvida. A felicidade real sempre parece bastante sórdida em comparação com as
supercompensações do sofrimento. E, por certo, a estabilidade não é, nem de longe, tão
espetacular como a instabilidade. E o fato de se estar satisfeito nada tem da fascinação de uma
boa luta contra a desgraça, nada do pitoresco de um combate contra a tentação, ou de uma
derrota fatal sob os golpes da paixão ou da dúvida. A felicidade nunca é grandiosa.” (Aldous
Huxley, 2009, p.337)

“- Porque não temos nenhuma vontade de que nos cortem a cabeça - respondeu. - Nós
acreditamos na felicidade e na estabilidade. Uma sociedade composta de Alfas não poderia
deixar de ser instável e infeliz.” (Aldous Huxley, 2009, p.339)

“- Pois, se quiser, pode chamar-lhe uma experiência de reenfrascamento. Começou no ano 473
D.F. Os Administradores fizeram evacuar a ilha de Chipre e, uma vez retirados todos os seus
habitantes, recolonizaram-na com um lote especialmente preparado de vinte e dois mil Alfas.
Entregaram-lhes todo um equipamento agrícola e industrial, e deixaram-lhes a responsabilidade
de dirigir seus negócios. O resultado correspondeu exatamente a todas as predições teóricas. A
terra não era convenientemente trabalhada; houve greves em todas as fábricas; as leis eram
desrespeitadas, as ordens desobedecidas; todas as pessoas destacadas para um serviço inferior
passavam o tempo intrigando para obter cargos mais elevados e todas as pessoas que ocupavam
cargos mais elevados tramavam contra-intrigas para, a qualquer preço, ficar onde estavam. Em
menos de seis anos, viram-se às voltas com uma guerra civil de primeira ordem. Quando, dos
vinte e dois mil, dezenove mil tinham sido mortos, os sobreviventes fizeram uma petição
unânime aos Administradores Mundiais para que estes retomassem o governo da ilha, o que foi
feito. E assim acabou a única sociedade de Alfas que o mundo jamais viu.” (Aldous Huxley,
2009, p.341)

“Essas três horas e meia de folga suplementar estavam tão longe de ser uma fonte de felicidade,
que as pessoas se viam obrigadas a gastá-las em fugas pelo soma.” (Aldous Huxley, 2009, p.342)

“Além disso, temos que pensar na nossa, estabilidade. Não queremos mudar. Toda mudança é
uma ameaça à estabilidade. Essa é outra razão que nos torna pouco propensos a utilizar
invenções novas. Toda descoberta da ciência pura é potencialmente subversiva: até a ciência
deve, às vezes, ser tratada como um inimigo possível. Sim, a própria ciência.” (Aldous Huxley,
2009, p.343)

“Sim - continuou Mustafá Mond - essa é outra parcela no custo da estabilidade. Não é somente a
arte que é incompatível com a felicidade, também o é a ciência. Ela é perigosa; temos de mantê-
la cuidadosamente acorrentada e amordaçada.

- O quê? - exclamou Helmholtz, assombrado. - Mas nós vivemos repetindo que a ciência é tudo.
É um lugar-comum hipnopédico.

- Três vezes por semana, dos treze aos dezoito anos - recitou Bernard.

- E toda a propaganda da ciência que fazemos no Colégio...

- Sim, mas que espécie de ciência? - perguntou sarcasticamente Mustafá Mond. - Os senhores
não receberam instrução científica, de modo que não têm condições de julgar. Quanto a mim, fui
um bom físico, no meu tempo. Bom demais, bastante bom para compreender que toda a nossa
ciência é simplesmente um livro de cozinha, com uma teoria ortodoxa de arte culinária que
ninguém tem o direito de contestar e uma lista de receitas às quais não se deve acrescentar nada,
salvo com autorização do cozinheiro-chefe. Sou eu o cozinheiro-chefe, agora. Mas houve tempo
em que eu era apenas um jovem lava-pratos cheio de curiosidade. Pus-me a cozinhar um pouco a
meu modo. Cozinha heterodoxa, cozinha ilícita. Um pouco de ciência verdadeira, em suma.”
(Aldous Huxley, 2009, p.343 e 345)

“Às vezes lamento haver renunciado à ciência. A felicidade é uma soberana exigente, sobretudo
a felicidade dos outros. Uma soberana muito mais exigente do que a verdade, quando não se está
condicionado para aceitá-la sem restrições. - Suspirou, tornou a calar-se, e logo recomeçou, com
mais vivacidade: - Enfim, o dever é o dever. Não podemos consultar as nossas preferências
pessoais. Interesso-me pela verdade, gosto da ciência. Mas a verdade é uma ameaça, a ciência é
um perigo público. Ela é tão perigosa hoje quanto foi benfazeja no passado. Deu-nos o equilíbrio
mais estável que a história registra. O da China era, em comparação, irremediavelmente
inseguro. Os próprios matriarcados primitivos não eram tão estáveis quanto nós. Graças, repito-
o, à ciência. Mas não podemos permitir que ela desfaça a boa obra que realizou. Por isso
limitamos com tanto cuidado o círculo das pesquisas; por isso estive a ponto de ser mandado
para uma ilha. Nós permitimos apenas que ela se ocupe dos problemas mais imediatos do
momento. Todas as outras pesquisas são ativamente desestimuladas. É curioso - prosseguiu,
depois de pequena pausa - ler o que se escrevia na época de Nosso Ford sobre o progresso
científico. Segundo parece, imaginavam que se podia permitir que ele continuasse
indefinidamente, sem consideração a qualquer outra coisa. O saber era o mais alto bem; a
verdade, o valor supremo; tudo o mais era secundário e subordinado. É certo que as coisas já
então estavam começando a mudar. Nosso Ford mesmo fez muito para diminuir a importância da
verdade e da beleza, em favor do conforto e da felicidade. A produção em massa exigia essa
transferência. A felicidade universal mantém as engrenagens em funcionamento regular; a
verdade e a beleza são incapazes de fazê-lo. E, é claro, cada vez que as massas tomavam o poder
público, era a felicidade, mais do que a verdade e a beleza, o que importava. Não obstante, e
apesar de tudo, a pesquisa científica irrestrita ainda era permitida. Continuava-se a falar na
verdade e na beleza como se fossem os bens supremos. Até a época da Guerra dos Nove Anos.
Ela fez com que mudassem de tom, posso garantir-lhes. Que valor podem ter a verdade, a beleza
e o conhecimento quando as bombas de carbúnculo estouram em torno de nós? Foi então que a
ciência começou a ser controlada: depois da Guerra dos Nove Anos. Nesse ponto, as pessoas
estavam dispostas a deixar controlar até os seus apetites. Qualquer sacrifício em troca de uma
vida sossegada. Desde então, nós temos continuado a controlar. Isso não foi muito bom para a
verdade, sem dúvida. Mas foi excelente para a felicidade. É impossível obter alguma coisa por
nada. A felicidade tem de ser paga. O senhor tem que pagar, Sr. Watson; tem que pagar porque
se interessa demais pela beleza. Eu me interessava demais pela verdade; também paguei.”
(Aldous Huxley, 2009, p.346, 347 e 348)
“- Um homem que sonha menos coisas do que as que existem no céu e na terra - respondeu
prontamente o Selvagem.“ (Aldous Huxley, 2009, p. 355 apud Hamlet, 1, 5)

- Perfeitamente. Daqui a pouco vou ler-lhe uma das coisas que ele sonhou. Por enquanto, ouça o
que diz este velho Arquichantre. - Abriu o livro no lugar marcado com uma tira de papel e
começou a ler: - "Nós não pertencemos a nós mesmos, assim como não nos pertence aquilo que
possuímos. Não fomos nós que nos fizemos, não podemos ter a jurisdição suprema sobre nós
mesmos. Não somos nossos próprios senhores. Somos a propriedade de Deus. Não é para nós
uma felicidade encararmos as coisas desse modo? Será a qualquer título uma felicidade, um
conforto, considerarmos que pertencemos a nós mesmos? Os que são jovens e prósperos podem
acreditar nisso. Podem crer que é uma grande coisa serem capazes de conseguir tudo segundo
seus desejos, como supõem - não dependerem de ninguém, não terem de pensar em nada que não
esteja ao alcance da vista, dispensarem a obrigação molesta da gratidão constante, da prece
contínua, da incessante referência a tudo o que fazem à vontade de outro. Mas, com o correr do
tempo, acabam percebendo, como todos, que a independência não foi feita para o homem - que é
um estado antinatural - que pode satisfazer por algum tempo, mas não nos leva com segurança
até o fim... " – Mustafá Mond parou, pousou sobre a mesa o primeiro livro e, tomando o outro,
virou-lhe as páginas. - Veja isto, por exemplo - disse, e com sua voz profunda começou a ler
novamente: - "Um homem envelhece; percebe em si mesmo aquela sensação radical de fraqueza,
de atonia, de mal-estar que acompanha o avançar da idade; e, sentindo-se assim, julga estar
apenas doente, aquieta seus temores com a idéia de que esse estado penoso é devido a alguma
causa particular, da qual espera curar-se como de uma moléstia. Vãs imaginações! A moléstia é a
velhice; e trata-se de uma doença horrível. Dizem que é o medo da morte, e do que vem depois
da morte, que leva os homens a voltar-se para a religião à medida que os anos se acumulam.
Todavia, a experiência pessoal me trouxe a convicção de que, completamente à parte de tais
temores e imaginações, o sentimento religioso tende a desenvolver-se quando envelhecemos;
tende a desenvolver-se porque, à medida que as paixões se acalmam, que a fantasia e a
sensibilidade vão sendo menos excitadas e menos excitáveis, a razão é menos perturbada em seu
exercício, menos obscurecida pelas imagens, desejos e distrações que a absorviam; então, Deus
emerge como se tivesse saído detrás de uma nuvem; nossa alma vê, sente a fonte de toda luz,
volta-se natural e inevitavelmente para ela; porque, tendo começado a esvair-se dentro de nós
tudo aquilo que dava ao mundo das sensações sua vida e seu encanto, não sendo mais a
existência material sustentada por impressões externas e internas, sentimos a necessidade de nos
apoiarmos em algo que permaneça, que nunca nos traia - uma realidade, uma verdade, absoluta e
eterna. Sim, voltamo-nos inevitavelmente para Deus; pois esse sentimento religioso é por
natureza tão puro, tão delicioso para a alma que o experimenta, que compensa todas as nossas
outras perdas

Mustafá Mond fechou o livro e recostou-se na sua poltrona.

- Uma das numerosas coisas do céu e da terra com que não sonharam aqueles filósofos é isto - e
agitou a mão; - nós, o mundo moderno. "Só se pode ser independente de Deus enquanto se tem
juventude e prosperidade; a independência não nos levará até o fim em segurança." Pois bem,
agora nós temos juventude e prosperidade até o fim. O que resulta daí? Evidentemente, que
podemos prescindir de Deus. "O sentimento religioso nos compensará de todas as nossas
perdas." Mas não há, para nós, perdas a serem compensadas; o sentimento religioso é supérfluo.
E por que iríamos em busca de um sucedâneo dos desejos infantis, se esses desejos nunca nos
faltam? De um sucedâneo das distrações, quando continuamos desfrutando todas as velhas
tolices até o fim? Que necessidade temos de repouso, quando nosso corpo e nosso espírito
continuam deleitando-se na atividade? De consolo, quando temos o soma. De alguma coisa
imutável, quando temos a ordem social?

- Então o senhor acha que não existe um Deus?

- Ao contrário, penso que muito provavelmente existe.

- Então por que... ?

Mustafá Mond atalhou-o.

- Mas ele se manifesta de modo diferente a homens diferentes. Nos tempos pré- modernos,
manifestava-se como o ser descrito nesses livros. Agora...

- Como se manifesta ele agora? - perguntou o Selvagem.

- Bem, ele se manifesta como uma ausência; como se absolutamente não existisse.

- A culpa é sua.

- Diga, antes, que a culpa é da civilização. Deus não é compatível com as máquinas, a medicina
científica e a felicidade universal. É preciso escolher. Nossa civilização escolheu as máquinas, a
medicina e a felicidade. Eis por que é preciso que eu guarde esses livros no cofre. Eles são
indecentes. As pessoas ficariam escandalizadas se...

O Selvagem interrompeu-o.

- Mas não é natural sentir que há um Deus?

- O senhor poderia igualmente perguntar se é natural fechar as calças com zíper- retrucou o
Administrador sarcasticamente. - Faz-me lembrar outro desses antigos, chamado Bradley. Ele
definia a filosofia como a arte de encontrar más razões para aquilo que se crê por instinto. Como
se nós acreditássemos em alguma coisa, seja o que for, por instinto! Cremos nas coisas porque
somos condicionados a crer nelas. A arte de encontrar más razões para aquilo que se crê por
outras más razões, isso é a filosofia. As pessoas crêem em Deus porque foram condicionadas
para crer em Deus.
- Ainda assim - insistiu o Selvagem - é natural crer em Deus quando se está só, completamente
só, à noite, pensando na morte...

- Mas agora nunca se está só - disse Mustafá Mond. - Fazemos com que todos detestem a
solidão, e organizamos a vida de tal forma que seja quase impossível conhecê-la.". (Aldous
Huxley, 2009, p.355-359)

“- Lembra-se daquela passagem do Rei Lear? - disse por fim. - "Os deuses são justos e de nossos
vícios amáveis fazem instrumentos para nos torturar; o lugar sombrio e corrupto em que ele te
engendrou custou-lhe os olhos;" e Edmund responde – o senhor se lembra, ele está ferido e
agonizante: "Disseste bem; é a verdade. A roda deu a volta completa, e eis-me aqui". Que diz a
isso? Não lhe parece que há um Deus dirigindo as coisas, punindo, recompensando?

- E lhe parece? - interrogou, por sua vez, o Administrador. - O senhor pode entregar-se com uma
neutra a todos os vícios amáveis que quiser, sem correr o risco de ter os olhos furados pela
amante de seu filho. "A roda deu a volta completa, e eis-me aqui." Mas onde estaria Edmund, em
nossos dias? Sentado numa poltrona pneumática, com o braço em torno da cintura de uma
mulher, chupando seu chiclete de hormônio sexual e assistindo a um filme sensível. Os deuses
são justos. Sem dúvida. Mas o seu código de leis é ditado, em última instância, pelas pessoas que
organizam a sociedade; a Providência recebe a palavra de ordem dos homens.

- Tem certeza disso? - perguntou o Selvagem. - Tem plena certeza de que Edmund, naquela
poltrona pneumática, não foi punido tão severamente quanto o Edmund ferido e esvaindo-se em
sangue? Os deuses são justos. Não terão usado seus vícios amáveis para degradá-lo?

- Degradá-lo de que posição? Como cidadão feliz, laborioso, consumidor de riquezas, ele é
perfeito. Naturalmente, se o senhor escolher um critério de avaliação diferente do nosso, então
talvez possa dizer que ele foi degradado. Mas é preciso que nos atenhamos a um só conjunto de
postulados. Não se pode jogar o GolfeEletromagnético segundo as regras da Balatela Centrífuga.

- Mas o valor de uma coisa não está na vontade de cada um. A sua estima e dignidade vem tanto
do seu valor real, intrínseco, como da opinião daquele que a tomou.

- Vamos, vamos - protestou Mustafá Mond. - Isso é ir um pouco longe demais, não lhe parece?

- Se os senhores se permitissem pensar em Deus, não se deixariam degradar por vícios amáveis.
Teriam uma razão para suportar as coisas com paciência, para fazer coisas com coragem! Vi isso
entre os índios.

- Estou certo que sim - respondeu Mustafá Mond. - Mas acontece que nós não somos índios. Um
homem civilizado não tem por que suportar seja lá o que for de seriamente desagradável. E,
quanto a fazer coisas, Ford os preserve de ter jamais tal idéia na cabeça! Toda a ordem social
ficaria desorganizada se os homens se pusessem a fazer coisas por iniciativa própria.

- E o desprendimento, então? Se tivessem um Deus, teriam um motivo para o desprendimento.

- Mas a civilização industrial somente é possível quando não há desprendimento.

É necessário o gozo até os limites impostos pela higiene e pelas leis econômicas. Sem isso, as
rodas cessariam de girar.

- Teriam uma razão para a castidade! - disse o Selvagem, corando levemente ao pronunciar as
palavras.

- Mas a castidade significa paixão, a castidade significa neurastenia. E a paixão e a neurastenia


significam instabilidade. E a instabilidade é o fim da civilização. Não se pode ter uma civilização
duradoura sem uma boa quantidade de vícios amáveis.

- Mas Deus é a razão de ser de tudo o que é nobre, belo, heróico. Se tivessem um Deus...

- Meu jovem amigo, a civilização não tem nenhuma necessidade de nobreza ou de heroísmo.
Essas coisas são sintomas de incapacidade política. Numa sociedade convenientemente
organizada como a nossa, ninguém tem oportunidade para ser nobre ou heróico. É preciso que as
coisas se tornem profundamente instáveis para que tal oportunidade possa apresentar-se. Onde
houver guerras, onde houver obrigações de fidelidade múltiplas e antagônicas, onde houver
tentações a que se deva resistir, objetos de amor pelos quais se deva combater ou que seja preciso
defender, aí, evidentemente, a nobreza e o heroísmo terão algum sentido. Mas não há guerras em
nossos dias. Toma-se o maior cuidado em evitar amores extremados, seja por quem for. Não há
nada que se assemelhe a obrigações de fidelidade antagônicas; todos são condicionados de tal
modo que ninguém pode deixar de fazer o que deve. E o que se deve fazer é, em geral, tão
agradável, deixa-se margem a tão grande número de impulsos naturais, que não há,
verdadeiramente, tentações a que se deva resistir. E se alguma vez, por algum acaso infeliz,
ocorrer de um modo ou de outro qualquer coisa de desagradável, bem, então há o soma, que
permite uma fuga da realidade. E sempre há o soma para acalmar a cólera, para nos reconciliar
com os inimigos, para nos tornar pacientes e nos ajudar a suportar os dissabores. No passado,
não era possível alcançar essas coisas senão com grande esforço e depois de anos de penoso
treinamento moral. Hoje, tomam-se dois ou três comprimidos de meio grama, e pronto. Todos
podem ser virtuosos agora. Pode-se carregar consigo mesmo, num frasco, pelo menos a metade
da própria moralidade. O cristianismo sem lágrimas, eis o que é o soma.

- Mas as lágrimas são necessárias. Não se lembra do que disse Otelo? "Se depois de toda
tempestade vêm tais calmarias, então que soprem os ventos até acordar a morte!" Há uma
história que os velhos índios costumavam contar, a respeito da Donzela de Mátsaki. Os jovens
que desejavam desposá-la deviam passar a manhã capinando o seu jardim com uma enxada.
Parecia fácil, mas havia moscas e mosquitos encantados. A maioria dos jovens simplesmente não
podia suportar as picadas. Mas aquele que pôde suportá-las ficou com a moça.” (Aldous Huxley,
2009, p.259-363)

“- Livraram-se deles. Sim, é bem o modo dos senhores procederem. Livrar-se de tudo o que é
desagradável, em vez de aprender a suportá-lo. Se é mais nobre para a alma sofrer os golpes de
funda e as flechas da fortuna adversa, ou pegar em armas contra um oceano de desgraças e,
fazendo-lhes frente, destruí-las... Mas os senhores não fazem nem uma coisa nem outra. Não
sofrem e não enfrentam. Suprimem, simplesmente, as pedras e as flechas. É fácil demais.”
(Aldous Huxley, 2009, p.364)

“- Nós, não. Preferimos fazer as coisas confortavelmente.

- Mas eu não quero conforto. Quero Deus, quero a poesia, quero o perigo autêntico, quero a
liberdade, quero a bondade. Quero o pecado.

- Em suma - disse Mustafá Mond - o senhor reclama o direito de ser infeliz.

- Pois bem, seja - retrucou o Selvagem em tom de desafio. - Eu reclamo o direito de ser infeliz.

- Sem falar no direito de ficar velho, feio e impotente; no direito de ter sífilis e câncer; no direito
de não ter quase nada que comer; no direito de ter piolhos; no direito de viver com a apreensão
constante do que poderá acontecer amanhã; no direito de contrair a febre tifóide; no direito de ser
torturado por dores indizíveis de toda espécie.

Houve um longo silêncio.

- Eu os reclamo todos - disse finalmente o Selvagem.

Mustafá Mond encolheu os ombros.

- A vontade - respondeu.” (Aldous Huxley, 2009, p.366)


Agostinho de Hipona
1. Confissões

"Mas alguém te invocará antes de te conhecer? Porque, te ignorando, facilmente estará em perigo
de invocar outrem." (Santo Agostinho, 2004, p. 29)

"Que és, portanto, ó meu Deus? Que és, repito, senão o Senhor Deus? E que Senhor pode haver
fora do Senhor, ou que Deus além de nosso Deus? Ó Deus sumo, excelente, poderosíssimo,
onipotentíssimo, misericordiosíssimo e justíssimo.

Tão oculto e tão presente, formosíssimo e fortíssimo, estável e incompreensível; imutável,


mudando todas as coisas; nunca novo e nunca velho; renovador de todas as coisas, conduzindo à
ruína os soberbos sem que eles o saibam; sempre agindo e sempre em repouso; sempre
granjeando e nunca necessitado; sempre sustentando, enchendo e protegendo; sempre criando,
nutrindo e aperfeiçoando, sempre buscando, ainda que nada te falte.

Amas sem paixão; tens zelos, e estás tranquilo; te arrependes, e não tens dor; te iras, e continuas
calmo; mudas de obra, mas não de resolução; recebes o que encontras, e nunca perdestes nada;
não és avaro, e exige lucros. A ti oferecemos tudo, para que sejas nosso devedor; porém, quem
terá algo que não seja teu, pois, pagas dívidas que a ninguém deves, e perdoas dívidas sem que
nada percas com isso?" (Santo Agostinho, 2004, p. 31-32)

"Mas ai dos que nada dizem de ti, pois, embora seu muito falar, não passam de mudos
charlatães." (Santo Agostinho, 2004, p.32)

"Creio, e por isso falo" (Santo Agostinho, 2004, p. 33)

"Pouco a pouco comecei a me dar conta de onde estava, e a querer dar a conhecer meus desejos a
quem os podia satisfazer, embora realmente não o pudessem, porque meus desejos estavam
dentro, e eles fora; e por nenhum sentido podiam entrar em minha alma." (Santo Agostinho,
2004, p. 34)

"Ó meu Deus, meu Deus! Que de misérias e enganos não experimentei então, quando se me
propunha, em criança, como norma de viver, obedecer aos mestres que me instigavam a brilhar
neste mundo, e me ilustrar nas artes da língua, fiel instrumento para obter honras humanas e
satisfazer a cobiça!" (Santo Agostinho, 2004, p. 38)

"Assim, quando tu, nosso rei, disseste: Delas é o reino dos céus - quiseste sem dúvida louvar na
pequenez de sua estatura um símbolo de humildade." (Santo Agostinho, 2004, p. 50)

"Hoje, porém, tenho mais compaixão do homem que se alegra em seus vícios, que do que sofre
pela perda de um prazer funesto ou pela perda de uma mísera felicidade. Esta misericórdia é
certamente mais verdadeira, mas nela a dor não encontra nenhum prazer. E embora seja certo
que se aprove quem por caridade se compadece do miserável, contudo, quem é fraternalmente
compassivo preferiria que não houvesse razões para compadecer. Porque assim como não é
possível que exista uma benevolência malévola, tampouco o é que haja alguém verdadeira e
sinceramente misericordioso a desejar que haja miseráveis para deles se compadecer.

Há, pois, dores que merecem compaixão, porém, nenhuma que mereça amor. Por isso tu, Deus,
que amas as almas muito mais elevadamente que nós, te compadeces delas de modo muito mais
puro, porque não sentes nenhuma dor. Mas quem será capaz de chegar a isso?

Mas eu, desventurado, amava então a dor, e buscava motivos para senti-la. Naquelas desgraças
alheias, falsas e mímicas, agradava-me tanto mais a ação do ator, e me mantinha tanto mais
atento quanto mais copiosas lágrimas me fazia derramar.

Mas, que admira que eu, infeliz ovelha transviada de teu rebanho, por não aceitar tua proteção,
estivesse atacado de ronha asquerosa? De aqui nasciam, sem dúvida, os desejos daquelas
emoções de dor que, todavia, não queria que fosse muito profundas em mim porque não desejava
padecer coisas como as que via representadas. Comprazia-me que aquelas coisas, ouvidas ou
fingidas, me tocassem só superficialmente. Mas, como acontece aos que coçam a ferida com as
unhas, terminava por provocar em mim mesmo um tumor abrasador, podridão e pus repelente.

Tal era minha vida. Mas, seria isto vida, meu Deus?" (Santo Agostinho, 2004, p.65)

"De fato, tuas obras espirituais são superiores a estas corporais, ainda que estas sejam brilhantes
e celestes. Mas eu tinha sede e fome não daquelas primeiras, mas de ti mesmo, ó verdade, na
qual não há mudança bem obscuridade momentânea!" (Santo Agostinho, 2004, p. 69)

"Oh! quão longe estavas daquelas minhas quimeras, fantasmas de corpos que jamais existiram!
em comparação, são mais reais as imagens dos corpos existentes; e, mais reais ainda que essas
imagens, esses mesmos corpos, os quais, todavia, não são tu! Mas também não és a alma que dá
vida aos corpos - vida essa que é melhor e mais real que os corpos - mas é a vida das almas, a
vida das vidas, que vives, imutável por ti mesma: a vida de minha alma."(Santo Agostinho,
2004, p. 70)

"Afastando-me da verdade, parecia-me caminhar para ela, porque não sabia que o mal é apenas a
privação do bem, até chegar ao seu limite, o próprio nada. E como poderia ter eu tal
conhecimento, se com os olhos não conseguia ver mais do que corpos, e com a alma não ia além
de fantasmas?" (Santo Agostinho, 2004, p. 71)

"Diremos, por isso, que a justiça é vária e inconstante? O que acontece é que os tempos a que ela
preside não caminham no mesmo passo, porque são tempos. Mas os homens, cuja vida terrestre é
breve, por não saberem harmonizar as causas dos tempos idos, e das gentes que não viram nem
conheceram, com as que agora vêem e experimentam e, como também vêem facilmente o que no
mesmo corpo, na mesma hora e lugar convém a cada membro, a cada tempo, a cada parte e a
cada pessoa, escandalizam-se com as coisas daqueles tempos, enquanto aceitam as de agora."
(Santo Agostinho, 2004, p. 72)

"Nesse sonho viu-se de pé sobre uma régua de madeira; e um jovem resplandecente, alegre e
risonho que vinha ao seu encontro, triste e amarga. Este lhe perguntou a causa da sua tristeza e
lágrimas diárias, não por curiosidade, como sói acontecer, mas para instruí-la; e respondendo-lhe
ela que chorava a minha perdição, mandou-lhe, para sua tranquilidade, que prestasse atenção e
visse que onde ele estava também estaria eu. Apenas olhou, viu-me junto de si, de pé sobre a
mesma régua." (Santo Agostinho, 2004, p. 76)

"Eu era miserável, como o é toda alma prisioneira do amor pelas coisas temporais; se sente
despedaçar quando as perde, sentindo então sua miséria, que a torna miserável antes mesmo de
as perder." (Santo Agostinho, 2004, p. 85)

"Outros prazeres havia neles que cativavam mais fortemente minha alma, como conversar, rir,
agradar-nos mutuamente com amabilidade, ler juntos livros bem escritos, gracejar uns com os
outros e divertir-nos juntos; às vezes discutir, mas sem ódio, como quando discordamos de nós
mesmos para, com tais discórdias muito raras, temperar as muitas conformidades; ensinar ou
aprender reciprocamente muitas coisas, suspirar impacientes pelos ausentes e receber alegres os
recém-chegados. Estes sinais, e outros semelhantes, que procedem de corações que se amam, e
que se manifestam no rosto, na fala, nos olhos, e em mil outros gestos graciosos, inflamavam
nossas almas, como em uma centelha, fazendo de muitas uma só." (Santo Agostinho, 2004, p.
87)

"Porque tua lei é a verdade, e a verdade és tu mesmo." (Santo Agostinho, 2004, p. 88)

"Porque, para onde quer que se volte a alma humana, onde quer que se estabeleça fora de ti,
sempre encontrará dor, mesmo que sejam as belezas que estão fora de ti e fora de si mesma; e
todavia, estas nada seriam se não existissem em ti. Elas nascem e morrem; e, nascendo,
começam a existir, e crescen para alcançar a perfeição e, uma vez perfeitas, começam a
envelhecer e morrem. Embora nem tudo envelheça, tudo perece. Logo, quando os seres nascem e
se esforçam por existir. Esta é sua condição. Eis tudo o que lhes deste, porque são partes de
coisas que não existem simultaneamente mas, morrendo e sucedendo-se umas às outras, formam
o conjunto de que são partes." (Santo Agostinho, 2004, p. 88,89)

“Por que, perversa, segues o apelo de tua carne? Seja esta, convertida, a te seguir. Tudo o que
por elas sentes é parte, mas ignoras o todo de que é parte, ainda que te dê prazer. Mas, se os
sentidos de tua carne fossem idôneos para compreender o todo, e se, para teu castigo, não
tivessem sido justamente limitados a compreender apenas partes do universo, certamente
desejarias que passasse tudo o que presentemente existe, para melhor desfrutar do conjunto.

O que falamos também ouves com os ouvidos da carne, e com certeza não queres que as sílabas
se detenham, mas que voem, para que as outras lhes sucedam, e assim ouvires o conjunto. O
mesmo acontece com todas as coisas que compõem um todo, quando essas partes constituintes
não existem simultaneamente: há mais encanto no todo do que nas partes percebidas
separadamente. Mas melhor do que todas elas, é o que as fez, que é nosso Deus, que não passa,
porque nada vem depois dele." (Santo Agostinho, 2004, p. 89,90)

"Se te agradam as almas, ama-as em Deus, porque, embora mutáveis, se fixas nele, terão
estabilidade; de outro modo, passariam e pereceriam." (Santo Agostinho, 2004, p. 90)

"Eis onde jaz enferma a alma que ainda não se apoiou na firmeza da verdade. É levada e trazida,
atirada e rechaçada, segundo os sopros das línguas que ventam dos peitos dos que opinam! E de
tal modo a luz lhe é toldada, que não distingue a verdade, apesar de estar ela à nossa vista."
(Santo Agostinho, 2004, pg. 93
“Eu não imaginava mais que formas corpóreas; carne, acusava a carne; espírito errante, não
conseguia voltar para ti; e vagueava atrás de sombras que nada são nem em ti, nem em mim, nem
nos corpos; não eram sugeridas por tua verdade, mas imaginadas por minha vaidade, de acordo
os corpos." (Santo Agostinho, 2004, p.95)

"E defendia antes que tua substância imutável era obrigada a errar, para não confessar que a
minha, mutável, se desencaminhara espontaneamente, ou que era castigada pelo erro." (Santo
Agostinho, 2004, p.95)

“Mas qual o fruto disso, se eu te concebia, Senhor meu Deus, ó Verdade, como um corpo
luminoso e infinito, e eu como uma parcela desse corpo? Que rematada perversidade! " (Santo
Agostinho, 2004, p.97)

"E que prejuízo sofriam teus pequeninos em serem de menor inteligência, se não se afastavam de
ti, para que, seguros no ninho de tua Igreja, se cobrissem de penas, e lhes alimentassem as asas
da caridade com o sadio alimento da fé?" (Santo Agostinho, 2004, p.98)

"Ó Deus e Senhor nosso! Esperemos, ao abrigo de tuas asas; protege-nos, leva-nos! Tu levarás os
pequeninos, e até encanecidos tu os levarás; nossa firmeza só é firmeza quando está em ti; mas
quando depende de nós, então é debilidade. Nosso bem vive sempre em ti, e somos perversos
porque nos afastamos de ti. Voltemos já, Senhor, para não nos aniquilarmos, porque em ti vive
nosso bem, sem deficiência alguma; sem medo de não o encontrar quando voltarmos para nossa
origem e, embora ausentes, nem por isso desaba nossa casa, tua eternidade." (Santo Agostinho,
2004, p. 98)

"Afastem-se e fujam de ti os irrequietos e os pecadores. Tu os vês, e distingues suas sombras. E


eis que, apesar deles, todas coisas continuam belas; somente eles são feios." (Santo Agostinho,
2004, p.99-100)

"Que se convertam, e logo estarás em seus corações, nos corações dos que te confessam, dos que
se lançam em ti, dos que choram em teu regaço depois de percorrerem penosos caminhos. E tu,
bondoso, enxugarás suas lágrimas; e chorarão ainda mais, mas serão felizes por chorar, porque és
tu, Senhor, e nenhum homem de carne e sangue, tu, Senhor, que os criaste, que os consolas e
robusteces.

E onde estava eu quando te buscava? Certamente, estavas diante de mim, mas eu me havia
afastado de mim mesmo, e não me encontrava, e muito menos a ti!" (Santo Agostinho, 2004,
p.100)

"Porque tu és grande, Senhor, e pondes os olhos nas coisas humildes, e as elevadas as conheces
de longe, e não te aproximas senão dos contritos de coração. Nem és encontrado pelos soberbos,
ainda que sua curiosa perícia seja capaz de contar as estrelas do céu e as areias do mar; seja
capaz de medir as regiões do céu e de investigar o curso dos astros." (Santo Agostinho, 2004,
p.101)

"Não procuram religiosamente saber de onde lhes vem o talento com que investigam essas coisas
e, achando que tu as criaste, não se entregam a ti, para que conserves o que lhes deste, nem se te
oferecem em sacrifício, como se tivessem feito a si mesmos;" (Santo Agostinho, 2004, p.101)

"Tua sabedoria escapa aos números." (Santo Agostinho, 2004, p.101)

"Perca-se tudo! Deixemos essas coisas vãs e fúteis. Entreguemo-nos por completo à busca da
verdade. A vida é miserável, e a hora da morte, incerta. Se esta me surpreender de repente, em
que estado sairei deste mundo? E onde aprenderei o que deixei de aprender aqui? Não serei antes
castigado por essa negligência? Mas, e se a própria morte cortar e for o fim a todo cuidado e
sentimento? Também seria conveniente investigar este ponto. Mas afastemos tais pensamentos!
Não é por acaso nem é em vão que se difunde por todo o mundo a fé cristã, com grande
prestígio. Deus jamais teria criado tantas e tais coisas por nós, se com a morte do corpo
terminasse também a vida da alma. Porque hesitar, pois, em abandonar as esperanças do mundo
para me consagrar à busca de Deus e da bem aventurança?" (Santo Agostinho, 2007, pg. 134)

"Eu era bastante néscio para ignorar que ninguém, como está escrito, é casto sem que tu lhes dês
força. (Santo Agostinho, 2007, pag. 135)
"Foste tu, e só tu - pois, quem pode afastar-nos da morte do erro, senão a vida que desconhece a
morte, a Sabedoria que ilumina as pobres inteligências sem precisar de outra luz, e que governa o
mundo até as folhas que tremulam nas árvores?" (Santo Agostinho, 2007, pag. 147)

"A descoberta de Deus

Estimulado por essas leituras a voltar a mim mesmo, entrei, guiado por ti, no profundo do meu
coração, e o pude fazer porque te fizeste minha ajuda. Entrei, e vi com os olhos da alma, acima
desses mesmos olhos, acima de minha inteligência, a luz imutável; não esta vulgar e visível a
todos os olhos de carne, nem outra do mesmo gênero, embora maior. Era muito mais clara e
enchendo com sua força todo o espaço. Não, não era esta luz, mas uma luz diferente de todas
estas.

Ela não estava sobre meu espírito como o azeite sobre a água, como o céu sobre a terra, mas
estava acima de mim porque me criou; eu lhe era inferior por ter sido criado por ela. Quem
conhece a verdade conhece esta luz, e quem a conhece, conhece a eternidade. O amor a conhece!

Ó eterna verdade, amor verdadeiro, amada eternidade! Tu és meu Deus. Por ti suspiro dia e noite.
Quando te conheci pela primeira vez, erguest-me para me fazer ver que havia algo para ser visto,
mas que eu ainda era incapaz de ver. E deslumbraste a fraqueza de minha vista com o fulgor de
teu brilho, e eu estremeci de amor e temor. Pareceu-me estar longe de ti numa região
desconhecida, como se ouvira tua voz do alto: "Sou o pão dos fortes: cresce, e comer-me-ás. Não
me transformarás em ti, como fazes com o alimento de tua carne, mas tu serás mudado em mim".

E conheci então que "castigaste o homem por causa de sua iniquidade", e "que secaste minha
alma como uma teia de aranha"; e eu disse: Porventura não existe a verdade, por não ser difusa
pelos espaços finitos e infinitos? E tu me gritaste de longe: Na verdade, Eu sou o que sou. E eu
ouvi como se ouve no coração, sem deixar motivo para dúvidas; antes, mais facilmente duvidaria
de minha vida que da existência da verdade, que se manifesta à inteligência pelas coisas da
criação." (Santo Agostinho, 2007, p. 155)

"Deus e as criaturas

E contemplei as outras coisas que estão abaixo de ti, e vi que nem existem absolutamente, e nem
absolutamente deixam de existir. Certamente existem, porque precedem de ti; mas não existem,
pois não são o que tu és, porque só existe verdadeiramente o que permanece imutável. Com isso,
para mim é bom apegar-me a Deus, porque, se não permanecer nele, tampouco poderei
permanecer em mim. Ele, porém, permanecendo em si, renova todas as coisas, e tu és o meu
Senhor, porque não necessita de meus bens." (Santo Agostinho, 2007, pg. 155)

"Portanto, tudo o que existe é bom; e o mal, cuja origem eu procurava, não é uma substância,
porque se o fosse seria um bem.” (Santo Agostinho, 2007, p.155)

"Vi pois, e foi para mim evidente, que tu eras o autor de todos os bens, e que não há em absoluto
substância alguma que tenha sido criada por ti. E como não as fizeste rodas iguais, todas as
coisas existem, porque cada uma por si é boa, e todas juntas muito boas, porque nosso Deus fez
todas as coisas muito boas." (Santo Agostinho, 2007, p. 156)

"Indaguei o que era a iniquidade, e não achei substância, mas a perversão de uma vontade que se
afasta da suprema substância, de ti, meu Deus - e se inclina para as coisas baixas, e que derrama
suas entranhas, e se intumesce exteriormente." (Santo Agostinho, 2007, p.158
"Buscava saber de onde vinha minha faculdade de apreciar a beleza dos corpos - quer celestes,
quer terrenos - e o que me permitia julgar rápida e cabalmente das coisas mutáveis quando
dizia:" Isto deve assim, aquilo não deve ser assim". Procurando a origem de minha faculdade de
julgar rápida quando assim julgava, achei a eternidade imutável e verdadeira, acima de meu
espírito mutável." (Santo Agostinho, 2007, p. 159)

"Livrou-se da multidão de fantasmas contraditórios, para descobrir que a luz a inundava quando,
sem nenhuma dúvida, afirmava que o imutável deve ser preferido ao mutável; e também de onde
lhe vinha o conhecimento do próprio imutável, porque, se não tivesse dele alguma noção, nunca
o preferiria ao mutável com tanta certeza. E, finalmente, chegou àquele que é num único
lampejo." (Santo Agostinho, 2007, p.159)
C. S. Lewis
1. A abolição do homem

LEWIS, C.S.. A Abolição do Homem, ou, Reflexões sobre a educação, especialmente


sobre o ensino de inglês nas últimas séries: tradução Remo Mannarino Filho; revisão da
tradução Luiz Gonzaga de Carvalho Neto; revisão técnica Geuid Dib Jardim. São Paulo:
Martins Fonte, 2005.

"O dever do educador moderno não é o de derrubar florestas, mas o de irrigar desertos. A defesa
adequada contra os sentimentos falsos é inculcar os sentimentos corretos. Ao sufocar a
sensibilidade dos nossos alunos, apenas conseguiremos transformá-los em presas mais fáceis
para o ataque do propagandista. Pois a natureza agredida há de se vingar, e um coração duro não
é uma proteção infalível contra um miolo mole." (C.S. Lewis, 2005, p. 12)

"Nenhuma emoção é, em si mesma, um julgamento; nesse sentido, todas as emoções e


sentimentos são alógicos. Mas eles podem ser razoáveis ou irrazoáveis na medida em que se
conformam à Razão ou não conseguem conformar-se. O coração nunca toma o lugar da cabeça,
mas ele pode, e deve, obedecer-lhe." (C.S. Lewis, 2005, p.17, 18)

"Produzimos homens sem peito e esperamos deles virtude e iniciativa. Caçoamos da honra e nos
chocamos ao encontrar traidores entre nós. Castramos e ordenamos que os castrados sejam
férteis." (C.S. Lewis, 2005, p. 24)

"O peito, a Magnanimidade, o Sentimento - esses são os indispensáveis dignitários de ligação


entre o homem cerebral e o homem visceral. Pode-se dizer que mesmo que é por esse elemento
intermediário que o homem é homem, pois pelo seu intelecto ele é apenas espírito, e pelo seu
apetite ele é apenas animal." (C.S. Lewis, 2005, p. 22, 23)

"Eu preferiria jogar cartas contra um homem que fosse inteiramente cético em relação à ética,
mas que tivesse sido criado para acreditar que "um cavalheiro não trapaceia", do que contra um
irrepreensível filósofo moral que tenha crescido entre vigaristas." (C.S. Lewis, 2005, p. 22)
"A capacidade da mente humana para inventar novos valores não é maior do que a de imaginar
uma nova cor primária, ou, na verdade, a de criar um novo sol e um novo céu no qual ele se
mova." (C.S. Lewis, 2005, p. 43)

"Somente aqueles que praticam o Tao poderão compreendê-lo.” (C.S. Lewis, 2005, p. 47)

"Sob esse ponto de vista, o que chamamos de poder do homem sobre a Natureza se revela como
um poder exercido por alguns homens sobre outros, com a Natureza como instrumento." (C.S.
Lewis, 2005, p. 53)

"Nos sistemas antigos, tanto o tipo de homem que os educadores pretendiam produzir quanto
seus motivos para fazê-lo estavam prescritos pelo Tao - uma norma que sujeitava os próprios
professores e frente à qual não pretendiam ter a liberdade da transgressão. Não reduziam os
homens a um esquema por eles estabelecido. Transmitiam o que tinham recebido: iniciavam o
jovem neófito nos mistérios da humanidade que a todos concernia. Exatamente como as velhas
aves ensinando as novas a voar. Mas isso vai mudar. Os valores agora são menos fenômenos
naturais. Juízos de valor serão produzidos no aluno como parte do condicionamento. Qualquer
que seja o Tao, ele será o produto, e não a razão, da educação. Os Manipuladores se livraram
disso tudo. É mais uma parte da Natureza que eles conquistaram. A origem última de toda ação
humana já não é, para eles, algo dado. Eles a têm sob seu domínio - tal como a eletricidade: é
função dos Manipuladores controlá-la, não obedecer-lhe. Sabem como produzir a consciência e
decidem qual tipo de consciência irão produzir. Estão fora desse processo e acima dele. Pois
estamos chegando ao último estágio da luta humana contra a Natureza. A última vitória foi
obtida. A natureza humana foi conquistada e conquistou qualquer que seja o sentido que essas
palavras possam ter agora." (C.S. Lewis, 2005, p. 58, 59)

"O que quero dizer é que aqueles que se abstêm de todos os juízos de valor jamais terão como
encontrar um fundamento para preferir um impulso aos demais, exceto pela força emocional
desse impulso." (C.S. Lewis, 2005, p.62)

"Será da hereditariedade, da digestão, da temperatura ambiente ou da associação de ideias que


brotarão os motivos dos Manipuladores. O seu racionalismo extremado, de "ver o que está por
trás" de todas as motivações "reacionais", faz com que se tornem criaturas de comportamento
inteiramente irracional."(C.S. Lewis, 2005, p.64)
Portanto, no momento mesmo da vitória do Homem sobre a Natureza, encontramos toda a raça
humana sujeita a alguns poucos indivíduos, e estes indivíduos sujeitos àquilo que neles mesmos
é puramente "natural" - aos seus impulsos irracionais. A Natureza, livre dos valores, controla os
Manipuladores e, por intermédio deles, toda a humanidade. A conquista do Homem sobre a
Natureza revela-se, no momento da sua consumação, a conquista da Natureza sobre o Homem."
(C.S. Lewis, 2005, p.64)

"Reduzimos as coisas à mera condição de Natureza com o propósito de "conquistá-las". Estamos


sempre obtendo conquistas sobre a Natureza, justamente porque "Natureza" é o nome daquilo
que, sob certo aspecto, conseguimos conquistar. O preço da conquista é tratar as coisas como
mera Natureza. Toda conquista sobre a Natureza faz com que ela expanda os seus domínios. As
estrelas não se tornam Natureza até que sejamos capazes de medi-las e pesá-las; a alma não se
torna Natureza até que possamos psicanalisá-la. Arrancar poderes da Natureza é também ceder
coisas à Natureza. Mas, se dermos o último passo e reduzirmos a nossa própria espécie à
condição de mera Natureza, todo o processo terá sido posto a perder. Pois, se chegarmos a esse
ponto, aquele que lucra e aquele que foi sacrificado serão uma só e mesma coisa." (C.S. Lewis,
2005, p. 67, 68)

"É a oferta do bruxo: entregue a sua alma e em troca ganhe poder. Mas, uma vez que nossas
almas, isto é, nós mesmos, forem entregues, o poder dado em troca não nos pertencerá. Seremos
na verdade escravos e marionetes daquele a quem cedemos a nossa alma. O poder de tratar a si
como um mero "objeto natural", e de fazer dos seus próprios juízos de valor uma matéria bruta
para a manipulação científica, é um poder ao alcance do Homem." (C.S. Lewis, 2005, p. 68, 69)

"se o homem resolver tratar a si próprio como matéria bruta, matéria bruta ele será; não uma
matéria bruta a ser moldada por ele mesmo, como se imagina ingenuamente, mas pelos seus
apetites, isto é, pela simples Natureza, na pessoa dos seus desumanizados Manipuladores." (C.S.
Lewis, 2005, p. 69)

"Só há duas possibilidades: ou somos espíritos reacionais obrigados para sempre a obedecer aos
valores absolutos do Tao, ou então não passamos de mera natureza a ser manuseada e esculpida
em novas formas para o deleite dos mestres, que por sua vez serão motivados unicamente por
seus impulsos "naturais". Somente o Tao é capaz de prover uma lei de ação humana comum que
possa abarcar legisladores e legislados igualmente." (C.S. Lewis, 2005, p. 69)
"No próprio Tao, desde que permaneçamos dentro dele, encontramos a realidade concreta cuja
participação nos torna verdadeiramente humanos: a verdadeira vontade comum e razão comum
da humanidade, vivas e crescendo como uma árvore, ramificando-se conforme variam as
situações, encontrando novas aplicações, sempre mais belas e dignas. Quando falamos de dentro
do Tao, podemos falar do Homem exercendo poder sobre si mesmo num sentido
verdadeiramente análogo ao do autocontrole de um indivíduo. Mas, a partir do instante em que
pisamos fora desse terreno e passamos a considerar o Tao como um mero produto subjetivo, essa
possibilidade desaparece. A partir daí, a única coisa em comum entre todos os homens é um
mero universal abstrato, um M.D.C., e a conquista do Homem sobre si mesmo passa a significar
apenas o controle dos Manipuladores sobre a matéria humana manipulada, o mundo da pós-
humanidade que, consciente ou inconscientemente, quase todos os homens de todas as nações
estão atualmente tentando produzir.”

"O grande esforço da bruxaria e o grande esforço científico são irmãos gêmeos: um deles era
doente e morreu, o outro era forte e sobreviveu. Mas eram gêmeos. Nasceram do mesmo
impulso. Reconheço que alguns (certamente não todos) dos primeiros cientistas eram movidos
por um genuíno amor pelo conhecimento. Mas, se analisarmos o feitio daquela época como um
todo, poderemos distinguir o impulso ao qual me refiro. Existe algo que une a bruxaria e a
ciência aplicada ao mesmo tempo que as separa da "sabedoria" dos tempos antigos. Para os
sábios da antiguidade, o problema principal era como conformar a alma à realidade, e a solução
encontrada foi o conhecimento, a autodisciplina e a virtude. Tanto para a bruxaria quanto para a
ciência aplicada, o problema é como subjugar a realidade aos desejos dos homens, e a solução
encontrada foi uma técnica; e ambas, ao praticarem essa técnica, se põem a fazer coisas até então
consideradas repulsivas e impiedosas - tais como desenterrar e retalhar cadáveres." (2005, p. 72,
73)

"Até esse momento, o tipo de explicação que abole o objeto explicado pode até nos trazer algum
resultado, ainda que a um preço demasiado alto. Mas não se pode fazer isso sempre: cedo ou
tarde chega-se a abolir a própria explicação. Não se pode "ver o que está por trás" das coisas para
sempre. Todo o propósito que existe em ver o que está por trás de alguma coisa reside justamente
nisso: em ver, através dessa coisa, um objeto real. É bom que a janela seja translúcida,
justamente porque a rua ou o jardim além dela são opacos. E se também fosse possível ver
através do jardim? Não há nenhuma utilidade em tentar "enxergar o que está por trás" dos
primeiros princípios. Se você "enxergar o que está por trás" de todas as coisas sem exceção,
então tudo se tornará transparente para você. Mas um mundo completamente transparente é um
mundo invisível. "Ver o que está por trás" de todas as coisas é o mesmo que não ver nada. (2005,
p. 76, 77)
2. Cristianismo Puro e Simples

“Está claro que os envolvidos na discussão conhecem uma lei ou regra de conduta leal, de
comportamento digno ou moral, ou como quer que o queiramos chamar, com a qual efetivamente
concordam. E eles conhecem essa lei. Se não conhecessem, talvez lutassem como animais
ferozes, mas não poderiam "discutir" no sentido humano desta palavra. A intenção da discussão é
mostrar que o outro está errado. Não haveria sentido em demonstrá-lo se você e ele não tivessem
algum tipo de consenso sobre o que é certo e o que é errado, da mesma forma que não haveria
sentido em marcar a falta de um jogador de futebol sem que houvesse uma concordância prévia
sobre as regras do jogo. Ora, essa lei ou regra do certo e do errado era chamada de Lei Natural.”
(LEWIS, 2005, p.10)

3. Os Quatro Amores

"O homem se aproxima mais de Deus quando, num certo sentido, menos ele se assemelha menos
a Deus. Pois que diferença pode ser maior do que aquela que existe entre plenitude e
necessidade, soberania e humildade, justiça e penitência, poder ilimitado e pedido de ajuda?"

"Assim sendo, como um escritor melhor que eu afirmou, nossa imitação de Deus nesta vida, isto
é, nossa imitação voluntária, distinta de qualquer das semelhanças que Ele imprimiu em nossa
natureza ou estado - deve ser uma imitação do Deus encarnado: nosso modelo é o Jesus, não só o
do calvário, mas o da carpintaria, das estradas, das multidões, das exigências clamorosas e más
disposições, da falta de paz e privacidade, das interrupções. Pois isto, tão estranhamente diverso
de tudo que possamos atribuir à vida divina em si, não tem semelhança apenas aparente, mas é a
vida divina operando sob condições humanas."

"O amor-Necessidade clama a Deus de nossa pobreza; o amor-Doação deseja servir ou mesmo
sofrer por Deus; o amor-Apreciativo exclama: "Nós te damos graças por tua glória". O amor-
Necessidade diz a respeito de uma mulher: "Não posso viver sem ela"; o amor-Doação anseia por
fazê-la feliz, dar-lhe conforto e proteção - e, se possível, a riqueza. O amor-Apreciativo
contempla e prende a respiração, fica em silêncio e se rejubila de que tal maravilha possa existir,
mesmo que não seja para ele; não ficará inteiramente deprimido se a perder, pois prefere isso a
jamais tê-la visto."

“Para algumas pessoas, talvez principalmente para os ingleses e os russos, o que chamamos de
amor pela natureza seja um sentimento permanente e sério. Quero indicar aqui aquele amor da
natureza que não pode ser simplesmente classificado como um exemplo de nosso amor pela
beleza.

Como é lógico, muitos objetos naturais-árvores, flores e animais - são belos. Mas os amantes da
natureza que tenho em mente não se preocupam muito com os objetos desse tipo que sejam belos
em si. O homem que se preocupa com eles os perturba. Um botânico entusiasta constitui uma
companhia odiosa para eles. Está sempre parando para chamar sua atenção para algum detalhe.

Também não estão procurando vistas ou paisagens.

Wordsworth, que fala por eles, protesta contra isto: leva a uma comparação de cena com cena,
faz com que se habitue com magras novidades de cor e proporção. Enquanto está ocupado com
esta atividade crítica e discriminativa perde as coisas que realmente importam - as disposições do
tempo e da estação, o espírito do lugar. E naturalmente Wordsworth está certo. Essa a razão
porque, se você ama a natureza desse modo, um pintor de paisagens (fora de casa) é uma
companhia ainda pior do que um botânico.

São a disposição ou o espírito que importam. Os amantes da natureza querem receber o mais
plenamente possível o que quer que a natureza esteja dizendo, em cada momento e lugar
determinados. A evidente riqueza, graça e harmonia de algumas cenas não são mais apreciadas
por eles do que a tristeza, desolação, terror, monotonia, ou melancolia visionária de outras.
Mesmo aquilo que é informe recebe deles uma reação positiva. E mais uma palavra proferida
pela natureza. Eles se abrem para a absoluta qualidade de toda paisagem campestre, a cada hora
do dia. Querem absorvê-la, deixando-se colorir completamente por ela.

Esta experiência, como muitas outras, depois de ter sido exaltada até os céus no Século
Dezenove, foi descartada pelos modernistas. Precisamos de fato admitir a favor dos opositores
que Wordsworth, quando não estava comunicando idéias no papel de poeta, mas apenas falando
sobre elas como filósofo (ou filosofastro), disse algumas coisas bem tolas. E tolo, a não ser que
você tenha descoberto qualquer evidência nesse sentido, acreditar que as flores gozam do ar que
respiram, e mais tolo ainda não acrescentar que, se isto fosse verdade, as flores iriam
indiscutivelmente sentir tanto dores como prazeres. Não foram muitos os que aprenderam uma
filosofia moral através de um impulso primaveril.

Se isso tivesse acontecido, não seria necessariamente a espécie de filosofia que Wordsworth teria
aprovado. Poderia ser a da competição desenfreada, como julgo ser para alguns modernistas.
Amam a natureza até o ponto em que, para eles, ela apela aos deuses sombrios no sangue; não
apesar do sexo, fome e poder absoluto operarem ali sem compaixão ou vergonha, mas
exatamente por isso."

"Muitas pessoas, inclusive eu, jamais poderiam, a não ser por aquilo que a natureza nos faz, ter
qualquer conteúdo para colocar nas palavras que devemos usar ao confessar nossa fé. A natureza
jamais me ensinou que existe um Deus de glória e de infinita majestade. Tive de aprender isso de
outra forma. Mas a natureza deu à palavra glória um significado para mim. Ainda não sei onde
poderia tê-lo encontrado a não ser nela. Não vejo como o temor de Deus poderia ter qualquer
significado para mim além dos mínimos esforços para manter-me seguro, se não tivesse tido
oportunidade de ver despenhadeiros medonhos e penhascos inacessíveis. E se a natureza jamais
tivesse despertado em mim certos anseios, áreas imensas do que agora posso chamar de amor de
Deus jamais existiriam, no que me é dado ver.”

"O fato de o cristão poder usar assim a natureza não é nem mesmo o início de uma prova de que
o cristianismo é verdadeiro. Os que sofrem às mãos de deuses sombrios podem igualmente fazer
uso dela (suponho eu) para o seu credo. Esse é justamente o ponto. A natureza não ensina."

"Quando as duas pessoas que descobrem estar palmilhando a mesma estrada secreta são de sexos
diferentes, a amizade que surge entre elas irá facilmente transformar-se - talvez depois da
primeira meia hora - em amor erótico. De fato, a não ser que sejam repulsivos um ao outro
fisicamente ou que um ou ambos já tenham outros compromissos, é quase certo que isso
aconteça mais cedo ou mais tarde. E, inversamente, o amor erótico pode levar à amizade entre os
amantes. Mas isto, longe de anular a distinção entre os dois amores, a coloca numa luz mais
clara. Se alguém que era primeiro, num sentido profundo e pleno, seu amigo, revelar-se gradual
ou repentinamente como seu amante, você não irá certamente partilhar com um terceiro o amor
erótico do amado. Mas não terá ciúme algum em partilhar a amizade. Nada enriquece mais o
amor erótico do que a descoberta de que o ente amado pode entrar numa amizade profunda,
verdadeira e espontânea com os amigos que já possuíamos: sentir que nós dois não estamos
apenas unidos pelo amor erótico, mas que nós três, ou quatro, ou cinco, somos viajantes em
busca da mesma coisa, tendo todos a mesma visão."

"As religiões inventadas com um propósito social, como a adoração do imperador romano ou as
modernas tentativas de vender o cristianismo como um meio de salvar a civilização, não têm
muito resultado. Os pequenos grupos de amigos que voltam as costas ao mundo são aqueles que
realmente o transformam. A matemática egípcia e babilônica era prática e social, aplicada a
serviço da agricultura e da mágica. Mas a matemática livre dos gregos, utilizada pelos Amigos
como um passatempo, veio a ser mais importante para nós."

"Eros quer corpos nus, a Amizade personalidades nuas."


"Quando falei de amigos lado a lado ou ombro a ombro, estava apontando um contraste
necessário entre a sua postura e a dos amantes que descrevemos como face a face. Não quero
forçar a imagem além desse contraste. A busca ou visão comum que une os amigos não faz com
que se absorvam um no outro de forma a permanecerem ignorantes ou esquecidos um do outro.
Pelo contrário, esse é exatamente o meio em que seu amor e conhecimento mútuos existem.
Ninguém conhece tão bem uma pessoa como um seu amigo. Cada passo na jornada comum testa
a sua substância, e compreendemos muito bem esses testes porque estamos também nos
submetendo a eles. Assim sendo, cada vez que é aprovado, nossa confiança, nosso respeito,
nossa admiração florescem num Amor Apreciativo de um tipo singularmente robusto e bem
informado. Se, no princípio, tivéssemos dado mais atenção a ele do que aquilo em que nossa
amizade está envolvida, não teríamos chegado a conhecê-lo e amá-lo tanto.

Você não vai descobrir o guerreiro, o poeta, o filósofo ou o cristão se ficar olhando para ele
como se fosse sua amante: é melhor lutar a seu lado, ler com ele, discutir e orar com ele."

"O Cristo que disse aos discípulos "Vocês não escolheram a Mim! Eu é que escolhi vocês!" pode
dizer a todo grupo de amigos cristãos:

Vocês não se escolheram uns aos outros, mas Eu os escolhi uns para os outros. A Amizade não é
uma recompensa de nosso bom gosto e discriminação, mas o instrumento através do qual Deus
revela a cada um as qualidades de todos os demais."

"O desejo sexual, sem Eros, deseja a coisa em si; Eros deseja o ser amado.

A coisa é um prazer transitório; isto é, um acontecimento que ocorre no interior de nosso próprio
corpo. Usamos uma expressão idiomática infeliz quando dizemos a respeito de um homem
sensual rondando as ruas que ele quer uma mulher. Num sentido rigoroso da idéia, uma mulher é
justamente o que ele não quer. Ele deseja um prazer em que a mulher acontece ser a peça
necessária. O quanto ele se preocupa com a mulher como tal pode ser medido pela sua atitude
cinco minutos depois do prazer (ninguém guarda o maço de cigarros depois de tê-los fumado).
Eros, por sua vez, faz com que o homem não deseje uma simples mulher, mas uma mulher
especial. De algum modo misterioso mas indiscutível, o amante deseja a amada, ela mesma, e
não o prazer que lhe pode proporcionar. Amante nenhum no mundo jamais procurou os abraços
da mulher amada como resultado de um cálculo, embora inconsciente, de que seriam mais
agradáveis do que os de qualquer outra."

"Escritores cristãos (Milton especialmente) falaram algumas vezes da liderança do marido com
uma complacência de gelar o sangue. Devemos voltar às nossas Bíblias. O marido é o cabeça da
esposa somente até o ponto em que seja para ela o que Cristo é para a igreja. Deve amá-la como
Cristo amou a igreja - leia adiante - e deu sua vida por ela (Ef 5:25)."

"Como Vênus em Eros não almeja realmente o prazer, também Eros não visa a felicidade.
Podemos julgar que o faz, mas uma vez feito o teste o resultado é outro.

Todos sabem que é inútil tentar separar amantes provando que seu casamento será infeliz. Não só
pelo fato de que não irão acreditar em suas palavras, pois mesmo que acreditassem não seriam
dissuadidos. Quando Eros está em nós essa é justamente uma de suas marcas: preferimos ser
infelizes com o ente amado a ser felizes em quaisquer outros termos."

"Não permita que sua felicidade dependa de algo que pode perder."

"Quando contemplarmos a face de Deus saberemos que sempre a conhecemos. Ele participou,
fez, sustentou e moveu, momento a momento, interiormente, todas as nossas experiências
terrenas de amor inocente. Tudo o que era amor nelas, mesmo na terra, era muito mais dEle do
que nosso, e nosso apenas por ser dEle. No céu não haverá angústia nem necessidade de afastar-
nos de nossos entes queridos. Primeiro porque já fizemos isso; dos retratos para o Original, dos
regatos para a Fonte, das criaturas que Ele fez dignas de amor para o Próprio Amor. Mas, em
segundo lugar, porque os encontraremos todos nEle. Amando-O mais do que a eles, iremos amá-
los mais do que o fazemos agora."

"O próprio Eros é o mais semelhante ao amor divino. C. S. Lewis diferencia ele de Vênus. O
primeiro é caracterizado pelo desejo pelo ser amado, o segundo pelo desejo da prática sexual.
Eros se relaciona com o parceiro, é um amor mais humano, Vênus é a necessidade e a busca pela
realização sexual, um amor mais animal. Essa diferença se faz importante, já que o ato sexual
nem sempre é realizado com fins românticos ou por amor.

Eros, como nenhum dos outros dois amores citados, é o que proporciona mais prazer e
intimidade, sua lógica é a própria ilógica, onde não há lugar para pensamentos racionais e nem
contas matemáticas."

3. Além do Planeta Silencioso

"-Um prazer atinge sua plenitude somente quando é relembrado. Hhōmem, você está falando
como se o prazer fosse uma coisa, e a lembrança, outra. Tudo é uma coisa só. Os
séroni_poderiam explicar melhor isso do eu. Mas não melhor do que eu poderia dizer num
poema. O que você chama de lembrança é a última parte do prazer, como o _crah é a última
parte do poema. Quando você e eu nos conhecemos, o encontro terminou bem rápido: não foi
nada. Agora, ele está crescendo à medida que nos lembramos dele. Mesmo assim, sabemos muito
pouco a respeito dele. O que vier a ser quando eu me lembrar dele na hora da minha morte, o
que ele operar em mim em todos os meus dias até aquela hora... esse é o verdadeiro encontro. O
outro é só o início." (C.S. Lewis, 2010, p. 97 e 98)

"-Na realidade - prosseguiu -, o poema é um bom exemplo. O verso mais esplêndido atinge seu
completo esplendor somente por intermédio de todos os versos que o acompanham. Se você
voltasse a ele, haveria de considerá-lo menos esplêndido do que imaginava. Você o mataria. Isso
num bom poema." (C.S. Lewis, 2010, p. 98)

"E como poderíamos suportar viver e deixar o tempo passar se estivéssemos sempre chorando
pela volta de um dia ou de um ano, se não soubéssemos que cada dia numa vida preenche a vida
inteira com expectativas e lembranças, as quais, na verdade, são aquele dia?" (C.S. Lewis, 2010,
p. 100)

"O corpo é movimento. Se estiver a uma velocidade, dá para sentir um cheiro. Se a outra
velocidade, ouve-se um som. A outra velocidade ainda, vê-se uma imagem. E a última
velocidade, não se vê, nem se ouve, nem se sente o cheiro, nem se conhece o corpo de modo
algum. Mas preste atenção, Pequenino, as duas extremidades convergem.

-Como assim?

-Se o movimento for mais veloz, o que se move estará mais próximo de estar em dois lugares ao
mesmo tempo.

-É verdade.

-Mas se o movimento fosse ainda mais rápido... é difícil explicar porque você não conhece
muitas palavras... você percebe que, se você acelerasse cada vez mais, no final o objeto em
movimento estaria em todos os lutar mesmo tempo, Pequenino.

-Acho que percebo isso.

-Bom, então, é isso o que está em primeiro lugar em relação a todos os corpos: tão veloz que
está em repouso, tão verdadeiramente corpo que deixou totalmente de ser corpo. Mas não vamos
falar nisso. Vamos começar por onde estamos, Pequenino. A coisa mais veloz que toca nossos
sentidos é a luz. Na realidade, não vemos a luz, apenas vemos coisas mais lentas iluminadas por
ela, de tal modo que para nós a luz está no limite: é a última coisa que sabemos antes que as
coisas fiquem velozes demais para nós." (C.S. Lewis, 2010, p. 126 e 127)

"Mas nenhum mundo é feito para durar para sempre, muito menos uma raça." (C.S. Lewis, 2010,
p. 136)

"Eles ficaram espantados com o que Ransom tinha para lhes contar sobre a história humana -
guerra, escravidão e prostituição.

-É porque não eles não têm Oyarsa - disse um dos alunos.

-É porque cada um deles quer ser um pequeno Oyarsa - disse Augray.

-Eles não podem deixar de agir assim - disse o velho sorn. - É preciso que haja governo. No
entanto, como podem as criaturas se governar? Os animais devem ser governados por hnau; os
hnau, por eldila; e os eldila, por Maleldil. Essas criaturas não têm eldila. São como quem tentasse
se levantar puxando os próprios cabelos. Ou quem tentasse observar toda uma região estando no
mesmo nível dela. Como uma fêmea tentando procriar sozinha."

“Duas coisas a respeito do nosso mundo ficaram gravadas em especial na mente deles. Uma era
o extraordinário grau de nossa energia que os problemas de erguer e carregar as coisas
absorviam. O outro era o fato de termos apenas uma espécie de hnau: para eles, isso devia ter
amplas consequências no estreitamento da nossa solidariedade e até mesmo no pensamento.

-Seu pensamento deve estar à mercê do seu sangue - disse o velho sorn. - Porque vocês não têm
como compará-lo com o pensamento que corre num sangue diferente." (C.S. Lewis, 2010, p. 139
e 140)

"Os contadores de histórias no nosso mundo nos fazem pensar que, se existir vida além do nosso
próprio ar, ela será do mal." (C.S. Lewis, 2010, pag. 165)

4. O Problema do Sofrimento

LEWIS, C.S. O problema do sofrimento: tradução Alípio de Franca Neto. São Paulo:
Editora Vida, 2006.
"A Moralidade, assim como o assombro numinoso, é um salto. Nela, o ser humano vai além de
qualquer coisa que possa ser "mostrada" nos fatos da experiência. E ela apresenta uma
característica por demais surpreendente para ser ignorada. As moralidades aceitas pela
humanidade podem diferir - embora, no fundo, de maneira não tão ampla quanto por vezes se
afirma -, mas todas concordam em prescrever um comportamento que as pessoas que o adotam
não conseguem pôr em prática. Todos os seres humanos, da mesma forma, permanecem
condenados - não por códigos de ética que lhes são estranhos, mas pelos deles próprios." (C.S.
Lewis, 2006, p. 26-27)
Søren Kierkegaard
1. Desespero Humano
KIERKEGAARD, Søren. O Desespero Humano. São Paulo: Martin Claret, 2001. Col. A
Obra-prima de Cada Autor

"Com efeito, a regra cristã quer que tudo, tudo, possa ser pretexto para edificar. Uma
especulação cristã que não o consiga, será, por isso mesmo, acristã. Dessa forma, uma exposição
cristã deve evocar, sempre, as palavras do médico à cabeceira do enfermo." (Søren Kierkegaard,
2002, p. 14)

"O homem é uma síntese de infinito e de finito, de temporal e de eterno, de liberdade e de


necessidade, é, em resumo, uma síntese. É a relação de dois termos uma síntese. O "eu" não
existe ainda sob este ponto de vista." (Søren Kierkegaard, 2002, p. 19)

Søren Kierkegaard, Prefácio de O Desespero Humano

“Exórdio à “Doença até à Morte”

Esta enfermidade não é para morte (João 11, 4) e contudo Lázaro morreu; mas como os
discípulos não compreendessem a continuação: Lázaro, o nosso amigo, dorme, mas eu vou
acordá-lo do seu sono, Cristo disse-lhes sem ambigüidade: Lázaro está morto (11, 14). Lázaro,
portanto, está morto, e contudo a sua doença não era mortal, mas o fato é que está morto, sem
que tenha estado mortalmente doente.

Cristo pensava nesse momento, sem dúvida, no milagre que mostrasse aos contemporâneos, ou
seja, àqueles que podem crer, a glória de Deus, no milagre que acordou Lázaro de entre os
mortos; de modo que não só essa doença não era mortal, mas ele o predisse, para maior glória de
Deus, a fim de que o filho de Deus por tal fosse glorificado.

Mas, ainda que Cristo não tivesse acordado Lázaro, nem por isso seria menos verdade que essa
doença, a própria morte, não é mortal!

Desde o instante em que Cristo se aproxima do túmulo e exclama: Lázaro, levanta-te e caminha!
(11, 43) já estamos certos de que essa doença não é mortal. Mas até sem essas palavras, não
mostra ele, ele que é a Ressurreição e Vida (11, 25), só pelo aproximar-se do túmulo, que essa
doença não é mortal? e simples fato da existência de Cristo, não é isso evidente? Que proveito
haveria, para Lázaro, em ter ressuscitado para ter de acabar por morrer! Que proveito, sem a
existência daquele que é a Ressurreição e a Vida para qualquer homem que n ‘Ele creia! Não,
não é por causa da ressurreição de Lázaro que essa doença não é mortal, mas por Ele existir, por
Ele. Visto que na linguagem humana a morte é o fim de tudo, e, como é costume dizer-se,
enquanto há vida há esperança. Mas, para o cristão, a morte de modo algum é o fim de tudo, e
nem sequer um simples episódio perdido na realidade única que é a vida eterna; e ela implica
para nós infinitamente mais esperança do que a vida comporta, mesmo transbordante de saúde e
de força.

Assim, para o cristão, nem sequer a morte é a doença mortal, e muito menos todos os
sofrimentos temporais: desgostos, doenças, miséria, aflição, adversidades, torturas do corpo ou
da alma, mágoas e luto. E de tudo isso que coube em sorte aos homens, por muito pesado, por
muito duro que lhes seja, pelo menos àqueles que sofrem, a tal ponto que os faça dizer que a
morte não é pior, de tudo isso, que se assemelha à doença, mesmo quando não o seja, nada é aos
olhos do cristão doença mortal.

Tal é a maneira magnânima como o cristianismo ensina ao cristão a pensar sobre todas as coisas
deste mundo a morte incluída.É quase como se lhe fosse necessário orgulhar-se de estar
altivamente para além daquilo que correntemente é considerado infelicidade, daquilo que
vulgarmente se diz ser o pior dos males… Mas em compensação o cristianismo descobriu uma
miséria cuja existência o homem, como homem, ignora; e essa miséria é a doença mortal.

O homem natural pode enumerar à vontade tudo o que é horrível — e tudo esgotar, o cristão ri-se
da soma. A diferença que há entre o homem natural e o cristão é semelhante à da criança e do
adulto. O que faz tremer a criança nada é para o adulto. A criança ignora o que seja o horrível, o
homem sabe e treme. O defeito da infância está, em primeiro lugar, em não conhecer o horrível,
e em seguida, devido à sua ignorância, em tremer pelo que não é para fazer tremer. Assim o
homem natural; ele ignora onde de fato jaz o horror, o que todavia não o livra de tremer. Mas é
do que não é horrível que ele treme. Assim o pagão na sua relação com a divindade; não só ele
ignora o verdadeiro Deus, mas adora, para mais, um ídolo como se fosse um deus.

O cristão é o único que conhece a doença mortal. Dá-lhe o cristianismo uma coragem ignorada
pelo homem natural — coragem recebida com o receio dum maior grau de horrível. Certo é que
a coragem a todos é dada; e que o receio dum maior perigo nos dá forças para afrontar um
menor; e que o infinito temor dum único perigo nos torna como inexistentes todos os outros. Mas
a lição horrível do cristão está em ter aprendido a conhecer a doença mortal.”

"A superioridade do homem sobre o animal está pois em ser suscetível de desesperar. A do
cristão sobre o homem natural, em sê-lo com consciência, assim como a sua beatitude está em
poder curar-se." (Søren Kierkegaard, 2002, pág. 21)
"A tarefa deve ser tornada difícil, visto que apenas a dificuldade inspira os nobres de espírito."
Brennan Manning
1. O Evangelho Maltrapilho

"Talvez a verdadeira dicotomia dentro da comunidade cristã da atualidade não seja entre
conservadores e liberais, ou entre criacionistas e evolucionistas, mas entre os despertos e os
adormecidos." (2005, p 39)
J.R.R. Tolkien
1. As Cartas de J.R.R. Tolkien

TOLKIEN, J.R.R. As Cartas de J.R.R. Tolkien/ organização de Humphrey Carpenter, com


assistência de Christopher Tolkien; tradução de Gabriel Brum Oliva. Curitiba: Arte e Letra
Editora, 2006.

“Bem, aí está você: um hobbit entre os Urukhai. Mantenha sua hobbitez no coração e pense que
todas as histórias assim se parecem quando você está nelas. Você está dentro de uma história
muito grande!” (J.R.R. Tolkien, 2006, p. 80)

“Sim, penso nos orcs como uma criação tão real quanto qualquer coisa na ficção "realista": suas
palavras vigorosas descrevem bem a tribo; apenas na vida real eles estão em ambos os lados, é
claro. Pois o "romance" se originou da "alegoria" e suas guerras ainda são produzidas a partir da
"guerra interior" da alegoria na qual o bem está de um lado e várias formas de maldade estão no
outro. Na vida real (exterior), os homens estão nos dois lados: o que significa uma aliança
diversificada de orcs, feras, demônios, homens simples naturalmente honestos e anjos. Mas faz
alguma diferença quem seus capitães são e se eles são órquicos per se!” (J.R.R. Tolkien, 2006, p.
84)

“Meu querido:

Decidi enviar-lhe outra carta aérea, e não um aerógrafo, na esperança de que assim eu possa
animá-lo um pouco mais..... Sinto tanto sua falta e acho tudo isso muito difícil de suportar por
conta própria e por você. O absoluto desgaste estúpido da guerra, não apenas material mas moral
e espiritual, é tremendo para aqueles que têm de suportá-lo. E sempre foi (apesar dos poetas) e
sempre será (apesar dos propagandistas) - não que, é claro, não tenha sido, seja e será necessário
enfrentá-lo em um mundo maligno. Mas tão curta é a memória humana e tão evanescentes são
suas gerações que em cerca de apenas 30 anos haverá poucas ou nenhuma pessoa com aquela
experiência direta que sozinha toca o coração. A mão queimada é que mais ensina a respeito do
fogo.

Às vezes fico estarrecido ao pensar na soma total da desgraça humana em todo o mundo no atual
momento: os milhões separados, irritados, consumindo-se em dias não-proveitosos - bem
distante da tortura, da dor, da morte, da privação e da injustiça. Se a angústia fosse visível, quase
todo este planeta ignorante estaria envolto em um denso vapor escuro, oculto da assombrosa
visão dos céus! Todas as coisas e atos possuem um valor em si mesmos, à parte de suas "causas"
e "efeitos". Homem algum pode estimar o que realmente está acontecendo na atual sub specie
aeternitatis. Tudo o que sabemos, e isso em grande parte por experiência direta, é que o mal
trabalha com um vasto poder e sucesso perpétuo - em vão, apenas preparando sempre o terreno
para que o bem inesperado brote. Assim o é em geral e assim o é em nossas próprias vidas..... No
entanto ainda há alguma esperança de que as coisas possam ser melhores para nós, mesmo no
plano temporal, na misericórdia de Deus. E embora precisemos de toda nossa coragem e
atrevimento humanos (a vasta soma da coragem e resistência humanas é estupenda, não?) e toda
nossa fé religiosa para enfrentar o mal que pode se abater sobre nós (como se abate sobre outros,
caso Deus assim o queira), ainda podemos orar e ter esperança. Assim o faço. E você foi uma
dádiva tão especial para mim, em uma época de pesar e sofrimento mental e seu amor,
desabrochando quase que imediatamente no momento em que você nasceu, predisse-me, em
palavras como que proferidas, que sou sempre confortado pela certeza de que não há fim para
isso.” (J.R.R. Tolkien, 2006, pg. 77-78)

“Aqui encontramos, entre outras coisas, o primeiro exemplo do motivo (que se tornará
dominante nos Hobbits) de que as grandes políticas da história mundial, "as rodas do mundo",
são fre-qüentemente giradas não pelos Senhores e Governadores, ou mesmo os deuses, mas pelos
aparentemente desconhecidos e fracos - devido à vida secreta que há na criação, e à parte
incompreensível a toda sabedoria, exceto a do Um, que reside nas intrusões dos Filhos de Deus
no Drama. É Beren, o mortal proscrito, que é bem-sucedido (com o auxílio de Lúthien, uma
simples donzela, mesmo que uma elfa pertencente à realeza) onde todos os exércitos e guerreiros
falharam: ele penetra na fortaleza do Inimigo e arranca uma das Silmarilli da Coroa de Ferro.
Dessa maneira, ele obtém a mão de Lúthien e o primeiro casamento de mortal e imortal é
realizado.” (J.R.R. Tolkien, 2006, p.146)

“Mas com a história do garotinho (que é um fato completamente atestado, é claro), com seu
aparente final triste e depois com seu repentino e inesperado final feliz, eu fiquei profundamente
comovido e tive aquela emoção peculiar que todos temos — embora não com freqüência. E
muito diferente de qualquer outra sensação. E, de repente, percebi o que era: exatamente a coisa
sobre a qual eu estava tentando escrever e explicar — naquele ensaio sobre contos de fadas que
tanto eu gostaria que você tivesse lido que acho que vou enviá-lo para você. Para esse ensaio
cunhei a palavra “eucatástrofe”: a repentina mudança feliz em uma história que o atinge com
uma alegria que o leva às lágrimas (que eu argumento ser o que os contos de fadas devem
produzir como maior função). E lá estava eu, conduzido à visão de que ela produz seu efeito
peculiar porque é um súbito lampejo de Verdade, toda a sua natureza encadeada em causa e
efeito materiais, a cadeia da morte, sente um alívio repentino como se um membro principal
deslocado repentinamente tivesse voltado ao lugar. Ela percebe — se a história possuir
“verdade” literária no segundo plano (para o qual ver o ensaio) — que de fato é assim como as
coisas realmente funcionam no Grande Mundo para o qual nossa natureza é criada. E eu concluí
dizendo que a Ressurreição foi a maior “eucatástrofe” possível no maior Conto de Fadas — e
produz aquela emoção essencial: a alegria cristã que produz lágrimas por ela ser qualitativamente
tão parecida com o pesar, pois ela vem daqueles lugares onde Alegria e Pesar são um só,
reconciliados, assim como o egoísmo e o altruísmo se perdem no Amor. E claro que não quero
dizer que os Evangelhos contam apenas o que é conto de fadas; mas quero fortemente dizer que
eles realmente contam um conto de fadas: o maior. O homem, o contador de histórias, teria de
ser redimido de uma maneira consoante com sua natureza: por uma história comovente. Mas
devido ao autor, se ele for o Artista supremo e o Autor da Realidade, essa história também foi
criada para Ser, para ser verdadeira no Plano Primário. De maneira que no Milagre Primário (a
Ressurreição), e também nos milagres cristãos menores, embora em menor quantidade, você tem
não apenas aquele lampejo súbito da verdade por trás da aparente Anankê 2 de nosso mundo, mas
um lampejo que na verdade é um raio de luz que penetra as próprias fissuras do universo ao
redor de nós. Eu estava passeando com minha bicicleta um dia, não muito tempo atrás, para além
da Enfermaria Radcliffe, quando tive uma daquelas clarezas que às vezes aparecem em sonhos
(mesmo os produzidos por meio de anestésicos). Lembro de dizer em voz alta com absoluta
convicção: “Mas é claro! É claro que é assim que as coisas realmente funcionam”. Mas eu não
pude reproduzir qualquer argumento que levou a isso, embora a sensação fosse a mesma de ser
convencido pela razão (mesmo que sem raciocínio). E desde então tenho pensado que uma das
razões pela qual não é possível recapturar o maravilhoso argumento ou segredo quando se
desperta é simplesmente porque não havia um: mas havia (freqüentemente talvez) uma
apreciação direta pela mente (isto é, a razão), porém sem a cadeia de argumentos de que temos
conhecimento em nossa vida regulada pelo tempo. Contudo, é assim que pode ser. Indo para
coisas menores: eu sabia que havia escrito uma história de valor em “O Hobbit” quando ao lê-lo
(depois que o livro ficou velho o suficiente para estar distante de mim) tive repentinamente, em
uma medida razoavelmente forte, a emoção “eucatastrófica” com a exclamação de Bilbo: “As
Águias! As Águias estão chegando!” .... E no último capítulo do Anel que já escrevi espero que
você perceba, quando recebê-lo (ele logo estará a caminho), que o rosto de Frodo fica pálido e
convence Sam de que está morto, justamente quando Sam perde a esperança.” (J.R.R. Tolkien,
2006, p.100-101)

"Embora neste caso, como nada conheço do imperialismo britânico ou americano no Extremo
Oriente que não me encha de arrependimento e náusea, receio que eu não seja sequer apoiado
por um vislumbre de patriotismo no que resta desta guerra." (J.R.R. Tolkien, 2006, p. 115)
H.R. Rookmaaker
1. A arte não precisa de justificativa

"Há algo mais a pensar. Apesar de o século 18 não ser abertamente anticristão, havia uma
profunda busca por um mundo descristianizado. A religião não era um problema, desde que ela
fosse de ordem puramente particular e não interferisse nas coisas importantes deste mundo, como
a ciência, a filosofia, a erudição e as belas artes. Assim, desenvolveu-se o princípio da
neutralidade: no trabalho erudito, deveríamos deixar para trás as coisas irrelevantes e totalmente
subjetivas, tais como nossas convicções religiosas. Precisávamos buscar aquilo que fosse
objetivo, que fosse verdade independentemente da nossa fé." (H.R. Rookmaaker, 2010, p 15-16)

“UMA CRISE EM NOSSA CULTURA

A maior parte dos ativistas, críticos e artistas que tentaram renovar as artes e dar ao nosso mundo
uma face mais bela argumentaram de uma ou de outra forma que não era suficiente enfrentar os
problemas da arte. Eles compreendiam, de forma mais ou menos clara, que a crise nas artes era a
expressão de uma crise mais profunda, de natureza espiritual e que afeta todos os aspectos da
sociedade, inclusive a economia, a tecnologia e a moralidade. A qualidade da nossa vida é
maculada e palavras como alienação, desespero e solidão - desumanização, em suma - são todas
relevantes e têm sido frequentemente usadas.

Não analisaremos todas elas. Certamente, os problemas estão relacionados ao fato de que desde a
Idade da Razão nossa cultura tem visto o relacionamento da humanidade com a natureza apenas
como forma de dominar a realidade e utilizá-la em nosso favor. Porém, conforme a irônica
análise de C.S. Lewis em Abolição do Homem, dominar a natureza e ser capaz de usar suas
forças é privilégio para poucos. Portanto, os poucos se tornam capazes de exercer poder sobre
muitos. O resultado é a manipulação e a perda do verdadeiro poder para viver a vida que o
indivíduo deseja. Esforços contrários são feitos por toda parte a fim de mudar as coisas ou tentar
vencer os males do sistema. Os marxistas se destacam nesse sentido. Muitos os ouvem, já que
eles pelo menos apontam os males. A questão é se o remédio deles não é pior que a doença. Se a
alienação significar apenas que nosso relacionamento com as coisas está rompido, se a
dominação da natureza ainda for vista como um objetivo, se os valores materiais ainda forem o
alvo primário, e se o problema do pecado continuar a ser evitado, então as questões mais sérias
permanecerão.
Ainda sim, se trabalharmos por uma sociedade melhor e pela resolução da crise nas artes, as
mudanças virão. É importante pensar bem nesses problemas. Será preciso tempo. Mas todos nós
precisamos agir, inclusive os artistas.” (H.R. Rookmaaker, 2010, p 20-21)

"Com frequência as pessoas dizem aos artistas: "Não há problema em ser artista, desde que sua
arte possa ser usada para evangelizar". E assim a arte tem se tornado uma ferramenta para o
evangelismo. Mas sejamos precisos: não há nada de errado nisso. Precisamos é nos atentar para o
fato de que a arte não pode ser usada para mostrar a validade do cristianismo - deve ser o
contrário. O cristianismo é verdadeiro; as coisas, as ações e esforços humanos só alcançam seu
significado a partir de seu relacionamento com Deus. Se Cristo veio para nos tornar humanos, a
humanidade e a realidade encontram seu fundamento nele. Então, a arte não deve ser usada para
pregação, mesmo que isso seja útil. Existe outra forma pela qual a arte pode ser ou é
significativa." (H.R. Rookmaaker, 2010, p 36-37)

"Somos cristãos quer durmamos, comemos ou trabalhemos; qualquer coisa que fizermos,
faremos como filho de Deus. Nosso cristianismo não serve apenas para os momentos piedosos
ou atos religiosos. E o propósito da vida não é o evangelismo; é a busca do reino de Deus." (H.R.
Rookmaaker, 2010, p 38)

"O mesmo é verdade a respeito dos seres humanos. Somos significativos por quem somos, não
pelo que temos. Nosso significado não está nas posses que temos nem em nossas qualidades ou
talentos. Os pregadores com talento para discursar não perderão sua humanidade nem seu
significado perante Deus e o próximo caso adoeçam e não possam mais falar. O significado está
no que somos, não no que temos." (H.R. Rookmaaker, 2010, p 46)
Friedrich Nietzsche
"Aquele que luta com monstros deveria tomar cuidado para não se tornar, através disto, um
monstro. E se você encara por muito tempo um abismo, o abismo também encara você."
Mário de Andrade
1. Pequena História da Música
"Quem trouxe para nós a idéia prática do homem-só, destruindo as bases em que organizaram-se
as civilizações da Antiguidade européia, foi Jesus. Foi o Cristianismo que firmou no indivíduo a
noção da culpa em relação ao indivíduo mesmo e substituiu, por assim dizer, a consciência
estatal anterior, por uma consciência individual nova. Com isso um ideal novo de civilização ia
nascer, provindo não mais da noção de Sociedade, mas da de Humanidade. Porque só mesmo a
mesquinhez do indivíduo traz a idéia de humanidade..." (Mário de Andrade, 2007, pg. 33)

Giovanni Reale

História da Filosofia Antiga

"Mas quem são esses deuses? São - como há tempo se reconheceu acertadamente - forças
naturais diluídas em formas humanas idealizadas, são aspectos do homem sublimados,
hipostasiados; são forças do homem cristalizadas em belíssimas figuras. Em suma: os deuses da
religião natural grega são homens amplificados e idealizados; são, portanto, quantitativamente
superiores a nós, mas não qualitativamente diferentes. Por isso a religião pública grega é
certamente uma forma de religião naturalista. É tão naturalista que, como justamente observou
Walter Otto, a "santidade aí não pode encontrar lugar", uma vez que pela sua própria essência os
deuses não querem, nem poderiam, elevar o homem acima de si mesmo. De fato, se a natureza
dos deuses e dos homens, como dissemos, é idêntica e se diferencia somente por grau, o homem
vê a si mesmo nos deuses, e, para elevar-se a eles, não deve de modo algum entrar em conflito
com ele mesmo, não deve comprimir a própria natureza ou aspectos da própria natureza, não
deve em nenhum sentido morrer em parte a si mesmo; deve simplesmente ser si mesmo." (pag.
21 e 22)

“A mentalidade técnico-científica habituou-nos a crer que só é válido o que é verificável,


acertável, controlável pela experiência e pelo cálculo e o que é fecundo de resultados tangíveis.
Ao mesmo tempo, a nova mentalidade de política nos habituou a crer que só tem relevância
aquilo que faz mudar as coisas: não a teoria, mas a práxis – diz-se – é o que conta; de nada
adianta contemplar a realidade, mas mergulhar nela ativamente.”

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