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CONFISSÕES

SANTO AGOSTINHO

Digitação: Lucia Maria Csernik


2007

LIVRO PRIMEIRO
CAPÍTULO II

Objeção contra o maniqueísmo

Bastava-me, Senhor, para calar aqueles enganados enganadores e muitos charlatães –


pois o que se ouvia de sua boca não era a tua palavra – bastava-me, certamente, o argumento
que há muito tempo, estando ainda em Cartago, costumava propor-lhes Nebrídio, impressionando
a todos os que então o ouvimos.
“Que poderia fazer contra ti – dizia aquela não sei que raça de trevas, que os maniqueus
costumam opor-te como massa hostil – se não quisesses lutar contra ela?”
Se respondessem que te podia ser nociva em algo, então serias violável e corruptível. Se
dissessem que não te podia prejudicar nada, não haveria razão para luta. Luta essa em que uma
parte de ti mesmo, um de teus membros, produto de tua própria substância, se misturava às
forças adversas, a naturezas não criadas por ti. Assim se corromperia, degradando-se a ponto de
mudar sua felicidade em miséria e de necessitar de auxílio para se libertar e purificar. E essa parte
de ti seria a alma que teu Verbo devia salvar da escravidão, ele que é livre de impurezas, ele que
é imaculado da corrupção, ele que é intacto sem ser corruptível, sendo feito de uma só e mesma
substância.
E assim, se declaram incorruptível tudo o que és, isto é, a substância que te forma, todas
essas proposições são erros execráveis; e se eles te consideram corruptível, essa mesma
afirmação também é falsa, e abominável logo à primeira vista.
Bastava-me, pois, este argumento contra aqueles que eu queria expulsar de vez de meu
peito angustiado. De fato, sentindo e dizendo tais coisas de ti, não tinham outra saída senão um
horrível sacrilégio de coração e de língua.

CAPÍTULO III

Deus e o mal

Mas eu, mesmo quando afirmava e cria firmemente que és incorruptível, inalterável,
absolutamente imutável, Senhor meu, Deus verdadeiro que não só criaste nossas almas e nossos
corpos, e não somente nossas almas e corpos, mas todas as criaturas e todas as coisas. Todavia,
faltava-me ainda uma explicação, a solução do problema da causa do mal. Qualquer que ela
fosse, estava certo de que deveria buscá-la onde não me visse obrigado, por sua causa, a julgar
mutável a um Deus imutável, porque isso seria transformar-me no mal que procurava.
Por isso, buscava-a com segurança, certo de que era falsidade o que diziam os
maniqueus; deles fugia com toda a alma, porque via suas indagações sobre a origem do mal
cheias de malícia, preferindo crer que tua substância era passível de sofrer o mal do que a deles
ser susceptível de o cometer.
Esforçava-me por compreender a tese que ouvira professar, de que o livre-arbítrio da
vontade é a causa de praticarmos o mal, e de teu reto juízo é a causa do mal que padecemos.
Mas era incapaz de entendê-lo com clareza. E esforçando-me por afastar desse abismo os olhos
do meu espírito, nele me precipitava de novo, e tentando reiteradamente fugir dele, sempre
voltava a recair.
O fato de eu ter a consciência de possuir uma vontade, como tinha consciência de minha
vida, era o que me erguia para a tua luz. Assim, quando queria ou não queria alguma coisa,
estava certíssimo de que era eu, e não outro, o que queria ou não queria, e então me convencia
de que ali estava a causa do meu pecado. Quanto ao que fazia contra a vontade, notava que isso
mais era padecer do mal do que praticá-lo; julgava que isso não era culpa, mas castigo, que me
instava a confessar justamente ferido por ti, considerando tua justiça.
Mas de novo refletia: “Quem me criou? Não foi o bom Deus, que não só é bom, mas a
própria bondade? De onde, então, me vem essa vontade de querer o mal e de não querer o bem?
Seria talvez para que eu sofra as penas merecidas? Quem depositou em mim, e semeou minha
alma esta semente de amargura, sendo eu totalmente obra de meu dulcíssimo Deus? Se foi o
demônio que me criou, de onde procede ele? E se este, de anjo bom se fez demônio, por decisão
de sua vontade perversa, de onde lhe veio essa vontade má que o transformou em diabo, tendo
ele sido criado anjo por um Criador boníssimo?”
Tais pensamentos de novo me deprimiam e sufocavam, mas não me arrastavam até
aquele abismo de erro, onde ninguém te confessa, e onde se antepõe a tese que tu és sujeito ao
mal a considerar o homem capaz de o cometer.

CAPÍTULO IV

A substância de Deus

Empenhava-me então por descobrir as outras verdades, como havia descoberto que o
incorruptível é melhor que o corruptível, e por isso confessava que tu, qualquer que fosse tua
natureza, devias ser incorruptível. Porque ninguém pôde nem poderá jamais conceber algo melhor
do que tu, que és o sumo bem por excelência. Por isso, sendo certíssimo e inegável que o
incorruptível é superior ao corruptível, o que eu já fazia, meu pensamento já poderia conceber
algo melhor do que o meu Deus, se não fosses incorruptível.
Portanto, logo que vi que o incorruptível deve ser preferido ao corruptível, imediatamente
deveria buscar-te no incorruptível, para depois indagar a causa do mal, isto é, a origem da
corrupção, que de nenhum modo pode afetar tua substância. É certo que, nem por vontade, nem
por necessidade, nem por qualquer acontecimento imprevisto, pode a corrupção afetar nosso
Deus, porque ele é Deus, e não pode querer senão o que é bom, e ele próprio é o sumo bem; e
estar sujeito à corrupção não é nenhum bem.
Tampouco poder ser obrigado, contra a tua vontade, seja ao que for, porque tua vontade
não é maior do que teu poder. Seria maior caso pudesses ser maior do que és, pois a vontade e o
poder de Deus são o mesmo Deus. E que pode haver de imprevisto para ti, se conheces todas as
coisas, e se todas elas existem porque as conheces?
Mas, por que tantas palavras para demonstrar que a substância de Deus não é corruptível,
já que se o fosse não seria Deus?

CAPÍTULO V

A origem do mal

Eu buscava a origem do mal, mas de modo errôneo, e não via o erro que havia em meu
modo de buscá-la. Desfilava diante dos olhos de minha alma toda a criação, tanto o que podemos
ver – como a terra, o mar, o ar, as estrelas, as árvores e os animais – como o que não podemos
ver – como o firmamento, e todos os anjos e seres espirituais. Estes, porém, como se também
fossem corpóreos, colocados em minha imaginação em seus respectivos lugares. Fiz de tua
criação uma espécie de massa imensa, diferenciada em diversos gêneros de corpos; uns, corpos
verdadeiros, e espíritos, que eu imaginava como corpos.
E eu a imaginava não tão imensa quanto ela era realmente – o que seria impossível – mas
quanto me agradava, embora limitada por todos os lados. E a ti, Senhor, como a um ser que a
rodeava e penetrava por todas as partes, infinito em todas as direções, como se fosses um mar
incomensurável, que tivesse dentro de si uma esponja tão grande quanto possível, limitada, e toda
embebida, em todas as suas partes, desse imenso mar.
Assim é que eu concebia a tua criação finita, cheia de ti, infinito, e dizia: “Eis aqui Deus, e
eis aqui as coisas que Deus criou; Deus é bom, imenso e infinitamente mais excelente que suas
criaturas; e, como é bom, fez boas todas as coisas; e vede como as abraça e penetra! Onde está
pois o mal? De onde e por onde conseguiu penetrar no mundo? Qual é a sua raiz e sua semente?
E se tememos em vão, o próprio temor já é certamente um mal que atormenta e espicaça sem
motivo nosso coração; e tanto mais grave quanto é certo que não há razão para temer. Portanto,
ou o mal que tememos existe, ou o próprio temor é o mal. De onde, pois, procede o mal se Deus,
que é bom, fez boas todas as coisas? Bem superior a todos os bens, o Bem supremo, criou sem
dúvida bens menores do que ele. De onde pois vem o mal? Acaso a matéria de que se serviu para
a criação era corrompida e, ao dar-lhe forma e organização, deixou nela algo que não converteu
em bem?
E por que isto? Acaso, sendo onipotente, não podia mudá-la, transformá-la toda, para que
não restasse nela semente do mal? Enfim, por que se utilizou dessa matéria para criar? Por que
sua onipotência não a aniquilou totalmente? Poderia ela existir contra sua vontade? E, se é
eterna, por que deixou-a existir por tanto tempo no infinito do passado, resolvendo tão tarde servir-
se dela para fazer alguma coisa? Ou, já que quis fazer de súbito alguma coisa, sendo onipotente,
não poderia suprimir a matéria, ficando ele só, bem total verdadeiro, sumo e infinito? E, se não era
conveniente que, sendo bom, não criasse nem produzisse bem algum, por que não destruiu e
aniquilou essa matéria má, criando outra que fosse boa e com a qual plasmar toda a criação?
Porque ele não seria onipotente se não pudesse criar algum bem sem a ajuda dessa matéria que
não havia criado.”
Tais eram os pensamentos de meu pobre coração, oprimido pelos pungentes temores da
morte, e sem ter encontrado a verdade. Contudo, arraigava sempre mais em meu coração a fé de
teu Cristo, nosso Senhor e Salvador, professada pela Igreja Católica; fé ainda incerta, certamente,
em muitos pontos, e como que flutuando fora das normas da doutrina. Minha alma porém não a
abandonava, e cada dia mais se abraçava a ela.

CAPÍTULO VI

O absurdo dos horóscopos

Também já havia rechaçado as enganosas predições e ímpios delírios dos astrólogos.


Ainda por isso, meu Deus, quero confessar-te tuas misericórdias desde o mais íntimo de
minha alma! Foste tu, e só tu – pois, quem pode afastar-nos da morte do erro, senão a Vida que
desconhece a morte, a Sabedoria que ilumina as pobres inteligências sem precisar de outra luz, e
que governa o mundo até as folhas que tremulam nas árvores? Foste tu que medicaste a
obstinação com que me opunha ao sábio velho Vindiciano e ao magnânimo jovem Nebrídio, que
diziam – o primeiro, com veemência, o segundo com alguma hesitação, mas frequentemente –
não existir a tal arte de predizer as coisas futuras, e que as conjecturas dos homens muitas vezes
têm concurso do acaso e que, de tanto repetir, acertavam em predizer algumas coisas, sem que
os mesmos que as diziam o soubessem.
Foste tu que me fizeste encontrar um amigo mui afeiçoado a consultar os astrólogos, não
entendido nessa ciência, mas que consultava por curiosidade. Conhecia ele uma história, que
ouvira do pai, segundo dizia. Ignorava ele até que ponto essa história era valiosa para destruir a
autoridade daquela arte.
Esse homem, chamado Firmino, educado nas artes liberais e instruído na eloqüência, veio-
me consultar, como amigo íntimo, sobre alguns assuntos nos quais alimentava esperanças
mundanas, para ver qual seria meu vaticínio conforme suas constelações, como eles dizem. Eu,
que já começara a me inclinar à opinião de Nebrídio, embora não me negasse a fazer-lhe o
horóscopo e expor-lhe as suas conclusões, acrescentei, contudo, que estava quase persuadido de
que tudo aquilo era ridícula quimera.
Então, ele me contou que seu pai tinha grande interesse na leitura de tais livros, e que
tivera um amigo igualmente apaixonado. Conversando sobre a matéria, empolgaram-se cada vez
mais no estudo daquelas tolices, e chegaram ao ponto de observar os momentos do nascimento
até dos animais domésticos, notando a posição das estrelas a fim de coligir dados experimentais
daquela pseudo-arte.
Firmino me relatava ter ouvido o pai contar que, estando sua mãe para o dar à luz, também
estava grávida uma serva daquele amigo de seu pai, coisa que não poderia passar despercebida
a seu senhor, que cuidava com extrema diligência e precisão de conhecer até o parto das
cadelas.
E sucedeu que, contando com o maior esmero os dias, horas e suas menores parcelas, da
esposa e da escrava, ambas as mulheres deram à luz no mesmo momento, o que os obrigou a
fazer, até em seus menores detalhes os mesmos horóscopos para os nascidos, um para o filho e
outro para o pequeno servo.
Tendo começado o trabalho de parto, informaram um ao outro o que se passava em suas
casas, e enviaram mensageiros um ao outro, a fim de anunciar com igual rapidez o nascimento

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