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Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares, vol.1. n. 1, 2004.

IMAGEM E CULTURA POPULAR


uma abordagem fotográfica documental
Everaldo Rocha

A abordagem visual da cultura popular expressa nas fotos aqui


apresentadas, uma entre tantas possíveis, traz implícito um
conceito fotográfico ao mesmo tempo que revela uma necessi-
dade. Necessidade subjetiva, expressão de visões do mundo
em que vivo – testemunho de acontecimentos grandiosos ou de
fatos corriqueiros, em momentos de gravidade ou de festa, sem-
pre buscando mostrar a beleza e a dignidade do nosso povo.

O conceito fotográfico, que procuro fa- caráter trissígnico. São eles:


zer presente em minha atividade com a aspecto indicial: uma vez que a imagem
fotografia documental e que já chamei fotográfica é obtida por meio de cone-
anteriormente de “imagem-narrativa”,1 xão física (sensibilização pela luz) entre
busca imprimir uma dimensão de tem- o referente/objeto e o suporte, qualquer
poralidade à imagem fotográfica, bem que seja o material fotossensível;
como aquela que lhe é obviamente ine-
rente, ou seja, busca fazer da imagem fo- aspecto icônico: evidencia-se pela seme-
tográfica, além de testemunho, narrati- lhança entre a foto e o objeto fotografa-
va. Inspirado nesse conceito e em sua re- do, embora mesmo essa semelhança, ou
lação com o tema apresentado nas foto- sua admissão, esteja baseada em códi-
grafias, é que gostaria de orientar a re- gos visuais pré-assimilados culturalmen-
flexão aqui proposta. te, o que nos leva ao terceiro aspecto;
aspecto simbólico: revela-se pela
Em primeiro lugar, quando analisamos a constituição do código de representação
fotografia como linguagem, ultrapassan- visual implícito na fotografia (e anterior
do a idéia de mero registro técnico, é a ela), a perspectiva monocular originada
preciso distinguir três aspectos que lhe no Renascimento, culturalmente
são inerentes e dizem respeito a sua di- assimilada num processo cotidiano de
mensão semiótica, imprimindo-lhe um educação visual. Diz respeito, também,

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à contextualização presente na foto e em sua influência (em minha experiência) na
seu objeto/referente, e, ainda, ao universo noção de edição de fotografia.
cultural de quem a observa; juntos, esses Convém esclarecer que, ao mencionar a
elementos viabilizam leituras tão influência de uma linguagem audiovisu-
variadas quanto subjetivas. al (que pode conter imagem e som) em
Levando em consideração esses aspec- outra “apenas” visual, não estamos ig-
tos, gostaria de retornar à idéia de uma norando as especificidades relativas ao
imagem-narrativa. Esse conceito, que som no audiovisual. Afinal, os primeiros
abordei em monografia2 de graduação no filmes do cinema não eram sonoros, e foi
curso de Cinema da UFF (habilitação de naquela época, dos filmes “mudos”, que
Comunicação Social), refere-se a um de- começaram a se formar a sintaxe e a se-
terminado tipo de fotografia documen- mântica cinematográficas, assim como
tal, que contém, em sua concepção e re- começaram a ser produzidas teorias so-
alização, uma dimensão de temporalida- bre a linguagem, que até hoje se refle-
de que vai além daquela implícita em sua tem na produção audiovisual em todo o
evidente característica de registro (aspec- mundo.
tos indicial e icônico). Assim sendo, a influência dessa lingua-
Essa dimensão se faz presente na medi- gem na noção aqui apresentada de edi-
da em que, ao se conceber uma aborda- ção fotográfica deu-se, sobretudo, pela
gem fotográfica documental sobre deter- da idéia de montagem cinematográfica,
minado tema, essa concepção ocorre particularmente, nos conceitos de mon-
como uma narrativa, buscando imprimir tagem presentes nas teorias de Kuleshov
em cada parte sua (cada imagem) uma (geografia criativa), Pudovkin (paralelis-
intensidade de presença que permita a mo, simbolismo, contraste) e Eisenstein3
cada imagem ser representativa do uni- (montagem dentro do plano).
verso apresentado (em termos de infor- Sem a pretensão de recorrer a definições
mação e de interpretação subjetiva), ao extensas e detalhadas, gostaria de ilus-
mesmo tempo que possa compor com as trar a menção a essas teorias, para uma
demais imagens uma narrativa conjunta. melhor compreensão da relação aqui es-
Quando pensamos em narrativas consti- tabelecida com a idéia de edição foto-
tuídas por conjuntos de imagens, come- gráfica e a constituição de “narrativas”
çamos a abordar outro aspecto da foto- fotográficas.
grafia documental, ligado à reportagem Kuleshov chamou geografia criativa ao
fotográfica, que é a edição das imagens. encadeamento de planos filmados em
Permitam-me, aqui, comentar outra con- locais distantes ou descontínuos, dando
tribuição presente no conjunto de fotos a impressão de continuidade espacial e
aqui expostas (vide anexo) e fundamen- criando, assim, um espaço fílmico
tal em minha concepção fotográfica. Tra- distinto das locações que existiam na
ta-se da linguagem cinematográfica e de realidade.

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Pudovkin, ao abordar o que chamou de metáforas (imagens materiais ar-
montagem relacional,4 um “método que ticuladas de forma a sugerir rela-
controla a ‘direção psicológica’ do es- ções imateriais) e das metoními-
pectador”, definiu, entre outros, concei- as (uso da parte para designar o
tos como paralelismo, simbolismo e con- todo). Inspirado nos ideogramas,
Eisenstein acreditava na possibi-
traste, a saber:
lidade de se construir conceitos
Paralelismo – utiliza a intercalação de abstratos por intermédio apenas
planos com ações distintas, que ocorrem dos recurso cinematográficos, de
paralelamente; forma que o cinema pudesse atin-
gir diretamente o ensaio, sem pas-
Simbolismo – utiliza imagens (planos) sar pela narração.
como metáforas na construção da se-
Voltando nosso foco para a fotografia e,
qüência narrativa;
particularmente, para um tipo de fotogra-
Contraste – recorre à ênfase na signifi- fia documental que pretende ser, além de
cação provocada pelo contraste entre os documento, narrativa, podemos perceber,
planos montados em contigüidade. então, como os conceitos de montagem
Já Eisenstein, na busca de uma dialética cinematográfica aqui apresentados po-
cinematográfica, mostrava os contras- dem inspirar uma concepção de edição
tes, ou “conflitos”, não apenas no enca- fotográfica, o que tentaremos exemplifi-
deamento dos planos na seqüência, mas car com a seqüência de fotos em anexo.
também no interior do próprio plano. Ele- Mais ainda, tem essa concepção, em mi-
mentos como claro e escuro, expressões nha experiência, influenciado a própria
dos atores, peças do cenário ou as dire- realização da reportagem (ou do-
ções do movimento dentro do plano eram cumentação) fotográfica.
utilizados para enfatizar ou criar tensões
Outra contribuição, também essencial,
na narrativa, rejeitando a linearidade nar-
somada à influência recíproca entre a
rativa tradicional. Como observou Arlin-
prática do fotojornalismo e o estudo (e
do Machado5 a respeito dos estudos de
exercício) da linguagem e fotografia ci-
Eisenstein sobre os ideogramas chineses:
nematográficas na formação dessa visão
Juntam-se dois pictogramas para fotográfica, foi o contato com a prática
sugerir uma nova relação não pre- do tai-chi-chuan. O sentido de dilatação
sente nos elementos isolados; e do tempo, provocado pelo despertar da
assim, chega-se ao conceito abs- atenção em movimento, favorece tam-
trato e ‘invisível’. Esse é, justa- bém uma nova percepção do espaço e das
mente, o ponto de partida do ci- temporalidades nele contidas.
nema intelectual de Eisenstein:
um cinema que, partindo do pri-
mitivo pensamento por imagens, A percepção das temporalidades
consiga articular conceitos com singulares, de cada lugar, acontecimento
base no puro jogo poético das ou contexto sociocultural, é, ao mesmo

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tempo que uma busca, uma tarefa tesãos – no campo, no mar e na
necessária para aqueles que procuram cidade – é, ela própria uma for-
interpretar/representar com imagens o ma artesanal de comunicação. Ela
mundo em que vivem e as realidades de não está interessada em transmi-
que se aproximam. Como já disse tir o puro em-si da coisa narrada,
como uma informação ou relató-
Cartier-Bresson, fotografar é “colocar na
rio. Ela mergulha a coisa na vida
mesma linha de mira o olho, a cabeça e o do narrador para em seguida
coração”.6 retirá-la dele. Assim, se imprime
Contrair é expandir... na narrativa a marca do narrador,
como a 7mão do oleiro na argila
O movimento deve ser absoluta- do vaso.
mente contínuo;
Seu oponente não é capaz de de-
tectar seus movimentos, mas você
é capaz de antecipar os dele;
Seu corpo deve ser tão leve e tão
ágil que uma pena não poderá
tocá-lo sem ser sentida, e uma
mosca não poderá nele pousar
sem colocá-lo em movimento.
(Wang Chung-Yueh, século
XVIII, divulgado por Wu Yu-
Seong, século XIX)
De certa forma, é como se uma “decupa-
gem”, em câmera lenta, dos acontecimen-
tos, nos ajudasse a ver brotarem as ima-
gens que contêm uma intensidade signi-
ficativa daquilo que testemunhamos.
Essa emergência (no sentido de emergir)
do cotidiano compõe com a percepção
de cada um desses acontecimentos, se-
jam festas populares, trabalho cotidiano
ou situações de conflito, como elemen-
tos de seu (nosso) tempo, do qual a foto-
grafia (e a concepção fotográfica) aqui
exposta pretende ser testemunho e nar-
rativa.
A narrativa, que durante tanto
tempo floresceu num meio de ar-

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Procissão marítima de São Pedro – Pedra de Guaratiba, 1990

Festa de São Pedro – Pedra de Guaratiba, 1990

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Procissão marítima de São Pedro – Pedra de Guaratiba, 1990

Tropeiro – Campo Grande, Rio de Janeiro, 1990

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Ferreiro – Campo Grande, Rio de Janeiro, 1990

Festa de São Jorge – Campo Grande, Rio de Janeiro, 1993

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Jongo da Serrinha, Dia Nacional da Consciência Negra – Praça Onze, Rio de Janei-
ro, 1991

Protesto pela passagem de um ano da chacina da Candelária, Rio de Janeiro, 1994

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NOTAS
1. Usei essa expressão ao definir o conceito
de um tipo de fotografia documental, que
aqui procuro melhor explicitar. A referên-
cia original encontra-se em monografia de
conclusão de curso de graduação em Co-
municação Social – Cinema, pela UFF.
2. “Terra de Santa Cruz: Imagem-Narrativa
das Singularidades” – Depto. de Cinema e
Vídeo, IACS/UFF, 1994.
3. In Xavier, Ismail (org.). A Experiência do
Cinema, antologia. Rio de Janeiro: Ed.
Graal/Embrafilme, 1983.
4. Pudovkin, V. “Métodos de tratamento do
material (montagem estrutural)”.
5. Machado, Arlindo. Serguei M. Eisenstein.
São Paulo: Ed. Brasiliense, 1982.
6. Cartier-Bresson, Henri. Eu, fotógrafo n.
27, Rio de Janeiro: Edições Jornal do Bra-
sil, dez/1970.
7. Benjamin, Walter. “O Narrador: conside-
rações sobre a obra de Nikolai Leskov”, in
Obras Escolhidas, vol. 1. São Paulo: Ed.
Brasiliense,1986.

Everaldo Rocha é fotógrafo, professor no


curso de Cinema da Universidade Estácio de
Sá e mestre em Comunicação, Imagem e
Informação (UFF).

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