Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
1.1
10
J. L. Fiorin, op. cit., p.31.
11
Segundo Benveniste, a história designa a “apresentação dos fatos sobrevindos a um certo momento do
tempo, sem nenhuma intervenção do locutor na narrativa”. Na narrativa histórica, segundo Benveniste, só se
verificarão formas de “terceira pessoa”: “o historiador não dirá jamais eu nem tu nem aqui nem agora, porque
não tomará jamais o aparelho formal do discurso que consiste em primeiro lugar na relação de pessoa eu:tu”.
Por oposição, Benveniste define como discurso “toda enunciação que suponha um locutor e um ouvinte e, no
primeiro, a intenção de influenciar, de algum modo, o outro”. No discurso, o locutor pode reproduzir as
palavras de um personagem ou intervir, ele próprio, para julgar os acontecimentos referidos: “o discurso
emprega livremente todas as formas pessoais do verbo, tanto o eu/tu como ele. Explícita ou não, a relação da
pessoa está presente em toda parte” (Cf. E. Benveniste, “As relações de tempo no verbo francês”, in
Problemas de Lingüística Geral I, Campinas, Pontes/Unesp, 1991, pp. 262-268).
Nos textos narrativos da cinema e da TV, o “desmascaramento” dos mecanismos de
mediação é, a um só tempo, causa e conseqüência da existência de “marcas” do sujeito da
enunciação no enunciado-discurso. O “mascaramento” dos mecanismos de mediação é, ao
contrário, causa e conseqüência da inexistência de “marcas” (ocultamento) do sujeito da
enunciação. Neste trabalho, a revelação (“desmascaramento”) ou o ocultamento
(“mascaramento”) deliberado dos mecanismos de mediação e do sujeito da enunciação,
mutuamente implicados, serão considerados, a princípio, como parâmetros definidores do
modelo enunciativo no cinema e na televisão, a partir dos quais, chegaremos a proposta
enunciativa do tipo de vídeo que interessa mais de perto a este trabalho — o vídeo de
criação ou vídeo de arte. Não se pode, no entanto, tratar do “mascaramento” ou
“desmascaramento” dos mecanismos de mediação e do sujeito da enunciação no cinema, na
TV e no vídeo sem levar em consideração, previamente, a situação comunicativa associada
a cada um destes meios. O modelo enunciativo está afinal, em todos eles, intrinsecamente
vinculado à situação comunicativa determinada pelas características materiais do medium.
Por isso, proponho tratarmos inicialmente das situações comunicativas envolvidas na
fruição do que, genericamente, pode ser tratado como discurso cinematográfico (cinema
clássico e experimental) e como discurso videográfico (TV e vídeo de criação).
36
Jesús González Requena sugere que todo relato narrativo pode produzir mecanismos tanto de projeção
quanto de empatia. A projeção é a parte da identificação narrativa que a consciência do espectador não
reconhece como tal. “os personagens que a encarnam constituem focos de identificação, mas são negados pelo
mecanismo projetivo: eu não sou ele! ”, explica Requena. A empatia é a parte da identificação narrativa que a
consciência do espectador reconhece: através da empatia o espectador se reconhece como emotivamente
solidário com um determinado personagem, compartilha seus sentimentos e ações, reconhece-se em suas
ações e sofrimentos (Cf. J. G. Requena, El discurso televisivo: espectáculo de la posmodernidad, Madrid,
Cátedra, 1995, p.117).
37
A expressão foi inspirada na discussão sobre a “tendência a irrealidade” no cinema e na TV proposta por
Francesco Casetti no artigo “Communicative situations: the cinema and television situation”, in Semiotica
112-1/2, 1996.
38
R. Williams, op. cit., p.72.
39
S. Chiabai, op. cit., p.135.
suscitar qualquer discussão de caráter ontológico sobre o conceito de ‘realidade’— o que
não vem ao caso —, substituirei os termos ‘ficcional’’ e ‘real’, a partir de agora, pelas
expressões ‘mundo diegético’ e ‘mundo não-diegético, respectivamente. Estas parecem
mais adequadas a este contexto argumentativo. Neste trabalho, os termos diegético e não-
diegético (derivados de diegese) remetem, de modo mais amplo, a tudo o que é e a tudo o
que não é produto de um ato discursivo40. Grosso modo, estas expressões corresponderiam
ao ‘mundo’ dos “seres do discurso” e ao ‘mundo’ dos seres reais. Designados com maior
rigor formal, essas duas expressões corresponderiam, respectivamente, aos níveis
intradiegético (interno ao discurso) e extradiegético (externo ao discurso) envolvidos em
qualquer situação enunciativa. A definição do próprio modelo enunciativo predominante
em cada meio depende dos “grau” de sobreposição de um nível no outro. A maior ou menor
interferência de elementos do nível extradiegético do nível intradiegético corresponderia ao
que foi denominado, anteriormente, de “níveis de realidade”.
Analisar o “nível de realidade” de um determinado texto audiovisual (midiático)
eqüivale a tratar, em outros termos, de produções discursivas que se revelam ou não como
tal. O que nos faz voltar aos argumentos iniciais deste trabalho, pois a construção de um
discurso que se apresenta, ou não, assumidamente como discurso depende do
“mascaramento” ou não dos mecanismos de mediação e da existência ou não de “marcas”
da enunciação no enunciado (tudo depende, enfim, de como o ato da enunciação se revela
através do próprio enunciado). O “nível de realidade” de um determinado texto fílmico,
televisivo ou videográfico traduz, necessariamente, tudo isso. Para facilitar a comparação
entre os media, parece possível estabelecer uma espécie de “escala” de “nível de realidade”
na situação comunicativa do cinema, da televisão e do vídeo. Esta “escala”, meramente
heurística, leva em consideração a relação do espectador com aquilo que ele vê: o seu maior
ou menor distanciamento, o seu maior ou menor descentramento diante daquilo que vê.
Enfim, seu comportamento de projeção ou empatia, entre outros.
Nesta “escala”, o projeto ilusionista do cinema clássico corresponderia à proposta de
indefinição dos limites do ‘mundo diegético’ e do ‘mundo não-diegético’. O que diz
respeito, basicamente, ao mecanismo de projeção: para o espectador envolvido na situação
cinematográfica só existe um ‘mundo’ — o da tela. Já na televisão, como vimos, o
espectador tenderia, por sua vez, a borrar estes limites, alternando os momentos de
“consciência” do ato enunciativo com outros de completa “absorção”; estendendo, em
alguns momentos, os apelos do ‘mundo diegético’ a sua vida cotidiana; respondendo aos
“seres do discurso” como se fossem seres humanos. Reconhecendo, de qualquer modo, a
existência dos dois ‘mundos’. É isto, afinal, o que faz da televisão um meio particularmente
controverso: este ‘deslocamento’ permanente entre instâncias factuais e ficcionais, esta
‘passagem’ contínua das experiências intradiegéticas às extradiegéticas, o que exige do
espectador uma competência41, antes de mais nada, para lidar com a própria situação
40
O termo diegese, do modo como foi empregado por Gérard Genette e Algirdas. J. Greimas, refere-se
especificamente ao aspecto narrativo do discurso (Cf. A. J. Greimas & J. Courtés, Dicionário de Semiótica,
São Paulo, Cultrix, 1983, p. 121). Nos estudos sobre o discurso cinematográfico, o termo remete a tudo aquilo
que se passa na tela: o enredo de um filme, por exemplo. Neste contexto, uso o termo com um sentido ainda
mais amplo — quase como um sinônimo de enunciado —, o que me permite empregá-lo também em relação
a textos não-narrativos.
41
A competência é definida, do ponto de vista semiótico, como a capacidade de produzir e analisar textos,
levando em conta os seus aspectos lingüísticos, pragmáticos e sociais. O termo também pode ser usado para
designar a capacidade técnico-expressiva de um sujeito para lidar com uma dada linguagem. É neste sentido
que G. Bettetini emprega a noção de competência e distingue, a partir do seu modelo da “conversação
comunicativa. O que não quer dizer que não se exija do espectador uma competência para
lidar com a grande rede intertextual em que se constitui, por si só, a própria programação de
uma emissora de TV.
Enquanto o cinema estimula a indefinição entre o ‘mundo diegético’ e o ‘não
diegético, enquanto a TV borra estas instâncias, o vídeo de criação ancora o seu projeto
enunciativo na definição deliberada e bem marcada destes limites. Desde o surgimento da
vídeo-arte nos anos 60, a partir das experiências técnico-formais de reelaboração eletrônica
da imagem, o vídeo de criação vem se pautando pela negação dos gêneros narrativos-
representativos e pela rejeição aos mecanismos de projeção-identificação psicológica do
espectador consolidados pelo cinema. Desvinculou-se assim de qualquer modelo de
representação mimética do chamado mundo real. O vídeo de criação se propõe ao
espectador como um texto: texto que se apresenta simplesmente como texto, resistindo, de
certo modo, a própria confrontação da sua relação com o ‘real’. O vídeo nem se coloca esta
questão: pois é, assumidamente, o produto de um ato discursivo e é nesta condição que se
apresenta à fruição. A consciência permanente do próprio ato de fruição define o que se
poderia chamar de situação videográfica, diante da qual a competência que se exige do
espectador é para lidar com o texto mesmo (ao contrário da TV que exige, competência
para lidar, antes de mais nada, com a situação comunicativa).
1.5
Toda essa discussão, até agora, sobre os limites entre o ‘mundo diegético’ e o
‘mundo não-diegético’ serve apenas para voltar a uma questão diluída ao longo desta
argumentação e cuja resposta nos conduzirá, mais adiante, ao problema da enunciação no
vídeo. A questão, objetivamente, é: como se dá a relação do espectador com o texto
cinematográfico, com o texto televisivo, com o texto videográfico? Que papel lhe cabe
diante de cada um desses tipos de texto? Melhor dizendo: qual é, afinal, o lugar do
espectador diante do que vê nos diferentes media? Responder a esta pergunta é, de certo
modo, sugerir modelos enunciativos para cada um destes meios. Modelo enunciativos que
se definem, antes de mais nada, pela pretensão de colocar o espectador dentro do texto ou
de deixá-lo fora do texto. O lugar do espectador dentro do texto é assegurado pela
indefinição ou pela confusão entre os limites do diegético e do não-diegético, o que se
consegue através da construção de instâncias simbólicas (enunciador/enunciatário) dentro
do próprio texto. Quando o texto não pretende que o espectador se identifique comas
posições de subjetividade que ele próprio definiu através de uma instância simbólica pode-
se dizer, ao contrário, que seu lugar é fora do texto.
42
Embora pressuponha a participação, é inerente a todo processo de cooperação, no entanto, a existência de
limites à interferência de quem coopera. Por isso, o reconhecimento de um processo cooperativo na fruição do
discurso videográfico não significa dizer que não existam “limites” impostos pelo emissor ao receptor: a
seqüência (ordem) definida para as imagens, por exemplo, já sugestiona o espectador na construção de
relações. Por mais polissêmicas que sejam as imagens, o espectador não pode estabelecer, diante de uma
determinada seqüência imagética, qualquer relação, mas dispõe, sem dúvida, de um campo de possibilidades
de leitura muito mais amplo. O que distingue um texto mais “fechado” de um um outro mais “aberto” é
justamente o modo e a intensidade desta cooperação, o que depende evidentemente das estratégias
enunciativas adotadas (Dentro desta perspectiva, trato com mais profundidade do modelo cooperativo do
vídeo em A enunciação no discurso videográfico: um estudo exploratório a partir de vídeos do festival
Mundial do Minuto, Dissertação de Mestrado, PUC/SP: Comunicação e Semiótica, 1997. Cf. também U. Eco,
Lector in fabula, São Paulo, Perspectiva, 1986).
43
Cf. U. Eco, Obra aberta, São Paulo, Perspectiva, 1991, pp 63,150.
atenção desloca-se da mensagem “para a relação comunicativa entre mensagem e receptor:
relação na qual a decisão interpretativa do receptor passa a constituir o valor efetivo da
informação possível”44. Quando propõe estruturas que incorporam a cooperação do fruidor
como parte da sua proposta de fruição, este tipo de texto abre mão, evidentemente, da
definição de um limite mais rígido na construção de sentido pelo espectador.
A conseqüência imediata desta nova forma de fruição é o rompimento do modelo
enunciativo pautado numa “leitura” mais dirigida como a pressuposta pela “conversação
textual” de Bettetini. Pois, como vimos, esse modelo já carrega, em si mesmo, uma
estratégia comunicativa destinada a levar o espectador a agir diante do texto como o texto
quer. O que significa dizer que este tipo de modelo enunciativo tende a produzir enunciados
unívocos. Ao privilegiar uma “cooperação” ativa do espectador na construção do sentido, a
“obra aberta”, ao contrário, permite que brotem enunciados plurívocos. O desprendimento
de um modelo de “leitura” dirigida para um outro que privilegia as possibilidades de
“leitura” coloca em questão o modelo enunciativo baseado na circularidade entre os sujeitos
da enunciação (“seres do discurso”) e os sujeitos empíricos (seres reais). Qual seria então,
no que diz respeito a enunciação, a diferença básica entre um texto “aberto” e um texto
“fechado”? Sem qualquer juízo valorativo, a diferença básica entre os dois estaria na opção
por um modelo enunciativo pautado pela definição ou pela não-definição de um lugar para
o espectador no próprio texto.
Como já vimos, tratar da definição ou não de um lugar para o espectador no texto é,
enfim, tratar da própria instauração do sujeito da enunciação, já que é através desta
instância simbólica que se articulam os mecanismos de projeção-identificação do
espectador. Resumidamente, pode-se dizer, então, que o modelo enunciativo do discurso
fílmico clássico procura a mascarar este “olhar” que organiza as coisas, tende sempre a
apagar as “marcas” do sujeito da enunciação no enunciado para não desmontar a
“máquina” de ficção identificada com o cinema. A televisão, ao se apresentar
assumidamente como uma “máquina” de mediação, já admite de saída um destinador e um
destinatário para o seu próprio discurso: ao contrário do cinema hollywoodiano, no qual o
sujeito enunciador só se apresenta explicitamente através dos créditos, a TV revela
continuamente o sujeito da enunciação implicado nos enunciados que produz. Mais uma
vez, fica ainda fácil perceber isso considerando a programação como um “macrodiscurso”
que — através das chamadas de cada programa, do anúncio da própria programação, das
vinhetas e dos slogans que identificam a emissora — está sempre falando de si e do seu
broadcaster (a emissora e seus representantes — apresentadores, por exemplo).
O vídeo de criação possui, em relação ao cinema e à TV, um diferencial
determinante na definição do seu modelo enunciativo. É um texto que não aspira a
ficcionalidade narrativa destes meios. É um texto descomprometido com qualquer
mecanismo de identificação ou de interação simbólicas com o espectador: um texto que é,
simplesmente, um texto. O vídeo não pretende construir nenhum ‘mundo’, a partir da
relação de um dispositivo de produção/reprodução com um sujeito. Por isso, não se
preocupa com a articulação de posições de subjetividade, a partir do que se vê na tela. A
tela é, também, simplesmente uma tela. A relação do espectador com o texto que vê na tela
é entendida, antes de mais nada, como um apelo visual e sensorial à construção mental e
conceitual. Se “o filme tradicional tende a suprimir todas as marcas do sujeito da
enunciação para que o espectador tenha a impressão de ser ele próprio esse sujeito” 45, o
44
U. Eco, op. cit., 1991, p. 131
45
O trecho entre aspas foi tomado de empréstimo a Christian Metz na seguinte passagem: “Se o filme
vídeo de criação, de modo mais radical, tende a desarticular a instância do sujeito da
enunciação para que o espectador assuma conscientemente o papel do articulador do
sentido naquilo que vê.
Conclusão
Diante de tudo o que foi exposto até aqui, é possível apontar esquematicamente pelo
menos três aspectos, mutuamente implicados, na definição das propostas enunciativas do
cinema clássico, da TV e do vídeo de criação: 1) os mecanismos de mediação; 2) o “nível
de realidade” do discurso; 3) o sujeito da enunciação. Tomando estes aspectos como
parâmetros, pode-se propor que: a) o modelo enunciativo do cinema clássico está ancorado
no “mascaramento” dos seus mecanismos de mediação, na indistinção entre o diegético e o
não-diegético, no apagamento ou ocultamento do sujeito da enunciação; b) a proposta
enunciativa da TV está ancorada no “desmascaramento” dos seus próprios mecanismos de
mediação, na confusão (“borrão”) entre o diegético e o não-diegético, na revelação do
sujeito da enunciação; c) o modelo enunciativo do vídeo está ancorado no
“desmascaramento” dos mecanismos de mediação (na sua exploração deliberada dos
recursos técnicos do meio), na distinção entre o diegético e o não-diegético, no
desaparecimento do sujeito da enunciação. Não é demais lembrar que o sujeito da
enunciação, nos termos em que vem sendo tratado neste trabalho, corresponde a posições
de subjetividade (instâncias simbólicas) construídas pelo texto para permitir a projeção-
identificação do espectador. A ausência de instâncias simbólicas no texto corresponde,
portanto, ao que entendo como desaparecimento do sujeito da enunciação, cuja principal
implicação, no campo da recepção, é a exigência de uma atitude cooperativa muito mais
intensa no processo interpretativo. No prática, esta estratégia textual significa uma
participação mais decisiva e autônoma do espectador na construção do sentido que, desse
modo, passa a ser um o resultado de circu nstâncias mais pragmáticas da comunicação
tradicional tende a suprimir todas as marcas do sujeito da enunciação, é para que o espectador tenha a
impressão de ser ele próprio esse sujeito, mas no estado de sujeito vazio e ausente, pura capacidade de ver
(todo “conteúdo” está do lado do visto): com efeito, é preciso que o espetáculo “surpreendido” seja
igualmente surpreendente, que porte (como em toda satisfação alucinatória) a marca da realidade exterior. O
regime da “história” permite conciliar tudo isso, já que a história, no sentido de Émile Benveniste, é sempre
(por definição) uma história de parte alguma contada por ninguém, mas que qualquer um recebe (sem o que
ela não existiria): em certo sentido, pois, é o “receptor” (ou melhor, o receptáculo) que a conta, mas ao mesmo
tempo ela não é em absoluto contada, já que o receptáculo não é previsto senão como um lugar de ausência,
no qual poderá ressoar melhor a pureza do enunciado sem enunciador” (Cf. C. Metz, op. cit., p. 409).