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Cinema, televisão e vídeo:

uma proposta de abordagem semiótica da recepção

O objetivo deste trabalho é, em última instância, mostrar como, a partir de estratégias de


construção textual, os meios audiovisuais, e particularmente o vídeo, propõem um papel
para o espectador frente aos textos que produzem, conferindo-lhe maior ou menor grau de
autonomia na construção de uma significação. Toda atividade interpretativa demanda uma
participação do espectador, mas os limites em que se dá esta participação é o resultado não
apenas de uma situação de comunicação pragmática, mas de estratégias enunciativas. O que
se pretende neste trabalho é sugerir um quadro teórico inicial a partir do qual se possa, à luz
da teoria da enunciação, propor uma abordagem semiótica da recepção/interpretação de
mensagens no suporte videográfico. Para tanto, é necessário, antes de mais nada, definir
como pretende-se tratar a enunciação e os sujeitos enunciativos tendo como referência a
semiótica discursiva.

1 Enunciação: conceitos e papéis


Por mais distintas que sejam as abordagens propostas, o conceito de enunciação está
sempre relacionado a noção de ato. No campo estritamente lingüístico, denomina-se
enunciação um ato individual de utilização da língua: uma instância de mediação que
permite a passagem “de estruturas semióticas virtuais às estruturas realizadas sob a forma
de discurso”1. A enunciação é, por definição, uma instância conceitual: uma “colocação em
funcionamento” das estruturas pertinentes às diferentes linguagens (verbais e não-verbais).
Numa perspectiva mais ampla e extensiva a todas as demais formas de linguagem,
compreende-se como enunciação o ato de realização de um enunciado ou de um enunciado-
discurso2. Se a enunciação é a realização, o enunciado é o que dela resulta, o que é
realizado. Ou, em outros termos, o enunciado está para a enunciação como o produto está
para a sua produção: os dois termos se interdefinem.
Por sua natureza comunicativa (troca), o ato de enunciação inscreve-se também
dentro de uma categoria de atos que coloca em relação dois sujeitos: um sujeito que produz
o discurso-enunciado (“eu”) e um sujeito para quem se destina o discurso-enunciado
produzido. O texto é o resultado deste circulo hermenêutico da produção à interpretação. Se
existe uma enunciação, existe um “eu” e um “tu” pressupostos na produção e interpretação
do discurso-enunciado. Estes sujeitos lógicos (“eu”/ “tu”) ou estas instâncias pressupostas a
atualização de todo texto é o que teóricos como Greimas denominam de “sujeito da
enunciação”. O sujeito da enunciacão não se confunde com um sujeito ontológico ou
psicológico (sujeito empírico ou “real”). É um termo genérico que remete,
conceitualmente, a origem e destino do enunciado: “O sujeito da enunciação jamais pode
ser capturado e todos os “eus” que se podem encontrar no discurso enunciado não são
1
J. L. Fiorin, As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo. São Paulo, Ed. Ática,
1996, p.36.
2
Embora haja dentro da teoria semiótica uma definição precisa para “discurso” e para “texto”, podemos tratá-
los, neste contexto, como sinônimos. Pois, entendido como um todo de significação, o discurso nada mais é
que a realização de um texto.
sujeitos da enunciação, mas simulacros. O “eu” da enunciação está sempre subententido”,
explicou Greimas a propósito dos textos verbais3. Segundo Gianfranco Bettetini, o sujeito
da enunciação faz da sua subjacência a sua própria razão de ser. É, ao mesmo tempo, uma
instância que constrói e é construída pelo próprio texto: um princípio de ordenação e
organização do discurso.
Embora esteja sempre ancorada na noção de um “eu” e um “tu” implícitos em todo
ato enunciativo, a descrição e figurativização do sujeito da enunciação se dá de modos
distintos nos diferentes meios expressivos. O sujeito da enunciação nos textos verbais —
descrito, por exemplo, através dos dêiticos — possui, naturalmente, uma natureza diversa
da do sujeito da enunciação nos textos imagéticos, nos quais este se confunde com a
construção de “olhar” no interior do próprio discurso. No texto cinematográfico, por
exemplo, o que Gianfranco Bettetini define como o sujeito da enunciação fílmica
corresponde, na verdade, a um aparato conceitual ausente construído tecnicamente
(ângulos, movimentos de câmera, montagem, etc.). Segundo Bettetini, este aparato “vê” as
coisas antes do espectador e pelo espectador, induzindo projetivamente um comportamento
adequado de ‘leitura’. Constrói-se, desse modo, o próprio “olhar” do espectador para o
texto no interior desse próprio texto, colocando-o simbolicamente no lugar deste ausente: o
“ponto de vista” da câmera corresponde, em última instância, a própria noção do sujeito
enunciatário de um filme. Esse aparato corresponde também a ausência de “quem” é
colocado pelo espectador no lugar da câmera, ou seja o sujeito enunciador 4. Nos textos
cinematográficos, vê-se de modo ainda mais nítido este sincretismo entre enunciador e
enunciatário (= aparato técnico) que, conceitualmente, corresponde a própria idéia de
sujeito da enunciação qualquer que seja a natureza do texto em questão.
Partindo do desdobramento do sujeito da enunciação em duas posições actanciais,
Bettetini identifica, na maioria dos textos audiovisuais cinco sujeitos ativos no circuito
enunciativo: 1) o sujeito transmissor empírico (o produtor), 2) o sujeito enunciador (fonte
do discurso construída pelo próprio discurso), 3) o sujeito do enunciado (os personagens de
um filme ou de uma reportagem, por exemplo), 4) o sujeito enunciatário (o destinatário do
discurso construído pelo próprio discurso), 5) o sujeito receptor empírico (o espectador).
Neste esquema, nos interessa discutir mais de perto as noções de enunciador e enunciatário
que, com várias distinções terminológicas poucas mudanças conceituais, já foram descritos
em muitas outras teorias textuais. Na semiótica interpretativa de Umberto Eco, por
exemplo, encontram um paralelo na idéia de autor-modelo e leitor-modelo. Eco trata tanto
um quanto o outro como estratégias textuais. O leitor-modelo refere-se especificamente às
operações interpretativas, ao “conjunto de condições de êxito, textualmente estabelecidas,
que devem ser satisfeitas para que um texto seja plenamente atualizado no seu conteúdo
potencial. A partir das estratégias textuais, o receptor empírico também formula uma
“hipótese” de autor numa operação interpretativa denominada por Eco de autor-modelo 5.
Com denominações como leitor e autor “ideais” ou autor e leitor “implícitos”, conceitos
equivalentes aparecem também em Lotman, Barthes, Ducrot e Genette, entre outros.
Independente da denominação que recebam, estas instâncias funcionam, no circuito
enunciativo, como “seres do discurso”, papéis actanciais: simulacros dos agentes (sujeitos
de “carne e osso”) que participam do ato comunicativo. No estudo dos meios audiovisuais,
3
A.-J Greimas, La enunciación. Una postura epistemológica, Cuadernos de Trabajo N°21, Universidad
Autónoma de Puebla (ICSHY), Puebla (México), 1996.
4
G. Bettetini, La conversación audiovisual, Madrid, Cátedra, 1986, pp.143-145.
5
U. Eco, Lector in fabula, São Paulo, Perspectiva, 1986, pp.44-46.
tratar da enunciação é, antes de mais nada, tratar de como estes simulacros semióticos ou
sujeitos enunciativos — instâncias pressupostas (“eu”/ “tu”), “posições lógicas”, “sujeitos
semióticos” — substituem simbolicamente no texto os sujeitos empíricos envolvidos no ato
comunicativo. Tratar enunciação, para autores como Francesco Casseti é, enfim, tratar da
formulação dos vínculos construídos a partir do próprio texto entre os sujeitos semióticos e
os sujeitos empíricos6: é, em outras, palavras tentar entender como os diferentes tipos de
textos, ao mesmo tempo, constróem e propõem aos seus leitores sua própria leitura
(entendida, neste contexto, como o próprio projeto interpretativo do texto).
A partir do esquema de papéis proposto anteriormente, Gianfranco Bettetini propõe
que, nos meios audiovisuais de comunicação unidirecional — o cinema e a televisão, por
exemplo —, os textos prevêem a sua leitura nos moldes de uma “conversação textual” ou
de um “diálogo” entre os simulacros que o próprio texto representa dentro de si. Esta
“conversação” simbólica nada mais é que a estratégia comunicativa do texto construída a
partir de hipóteses sobre o comportamento interpretativo do provável espectador;
comportamento este que passa a “fazer parte” do próprio texto, induzindo o espectador a,
projetivamente, interagir como o texto como o texto deseja7. O texto é construído, então,
como uma espécie de jogo previsional de pergunta/resposta (pressupostos/subtendidos)
entre um enunciador e um enunciatário que, semioticamente, “encarnam” o “eu” e ao “tu”
pressupostos em todo discurso8. Nos discursos construídos nos moldes dessa “conversação”
textual, Bettetini considera que há um tipo de presença do próprio espectador no texto, na
medida em que este é construído pressupondo os passos de apreensão deste receptor
(compreensão, memorização, interpretação, etc.). O que significa dizer que a presença9
textual dos sujeitos empíricos (produtor/espectador) envolvidos no processo enunciativo se
dá através das instâncias simbólicas que os figurativiza no próprio texto.

1.1

1.2 Regimes enunciativos

Definidos os papéis (sujeitos enunciativos) e um modelo de referência


(“conversação textual”) a partir do quais discutir as estratégias enunciativas nos meios
audiovisuais, resta ainda delinear os regimes enunciativos que nortearão esta discussão. Os
6
Cf. F. Casetti, El film y su espectador, Madrid, Cátedra, 1989.
7
Cf. G. Bettetini, op. cit., p.138.
8
Para Bettetini, o texto audiovisual é concebido como uma seqüência de perguntas e respostas (pressupostos e
subentendidos), através das quais se dá a pressuposta “conversação textual”. Com base nisso, ele identifica
quatro tipos de “conversação” textual: l) A informação é recuperável através de saberes extratextuais, o que
significa que o enunciador aposta na capacidade do destinatário de completar o saber transmitido pelo texto
através de outros textos; 2) A informação-resposta não é dada no texto, de modo que o espectador é levado a
escolher sua própria interpretação; 3) O texto satisfaz uma instância interrogativa sem haver solicitado a
mesma (redundância informativa); 4) O texto é interrogado por um destinatário em instâncias que não foram
previamente construídas, ou seja, não há perguntas pré-construídas, nem estas são satisfeitas pelo texto (Cf.
G. Bettetini, op. cit, pp. 138-142).
9
De acordo com Nicola Abbagnano, o termo “presença” pode ser empregado com dois significados
principais: 1) designando a “existência de um objeto em certo lugar”; 2) designando “a existência do objeto
numa relação apta a conhecer imediatamente”; neste caso, diz-se que um objeto está presente quando “é visto
ou é dado a uma forma de intuição qualquer ou de conhecimento imediato” (Cf. N. Abbagnano, Dicionário
de Filosofia, São Paulo, Mestre Jou, 1982, p. 758). É com este último sentido que emprego o termo neste
contexto.
estudos teóricos sobre a enunciação, gestados a partir do texto verbal, definem, desde Émile
Benveniste (o primeiro a usar, em 1959, o termo “enunciação”), dois grandes regimes
enunciativos que se distinguem entre si pelo modo de projeção da enunciação no enunciado
(“traços do ato no produto”10): no primeiro deles, considera-se que não há “marcas” da
enunciação no enunciado, no segundo, admite-se que, ao contrário, há “marcas” da
enunciação no enunciado. No primeiro regime enunciativo, o próprio enunciado pode
comportar elementos que remetem ou que descrevem a instância da enunciação. Ou seja, há
elementos no produto que descrevem ou dizem algo sobre o seu próprio ato de produção.
No caso de um texto verbal, estas marcas estão associadas ao uso de pronomes, adjetivos,
advérbios e outros articuladores de espaço e tempo. Os textos em primeira pessoa são, nos
discursos verbais, um exemplo claro deste regime enunciativo que Benveniste denominou
de discurso (um enunciado que explicita o “eu” que fala e que é a fonte da enunciação) e
que ele contrapõe ao regime da história11.
Os textos em terceira pessoa são, ao contrário, o melhor exemplo, dentro dos
discursos verbais, do que Benveniste tratou como o regime da história, ou seja, seqüências
enunciadas desprovidas de marcas da sua enunciação (que escondem o “eu” fonte da
enunciação): produto que não “carrega” em si nenhuma “marca” do seu ato de sua
produção. Obtém-se, com este regime enunciativo, um efeito de objetividade, como se um
determinado enunciado falasse por si, como se uma determinada “estória” se contasse por
si. Nos textos literários, esta última estratégia corresponde ao emprego do discurso indireto
(mais objetivo) e a primeira, ao discurso direto (mais subjetivo). Se o discurso reconhece a
existência de uma fonte produtora do enunciado, a história, ao contrário, desconhece
deliberadamente a sua própria origem (uma “estória” contada por ninguém).
Tratar dos regimes enunciativos nos discursos midiáticos  como é o caso do
cinema, da televisão e do vídeo  é, em outros termos, tratar do que se pode denominar de
“mascaramento” ou de “desmascaramento” dos mecanismos e/ou da situação de mediação.
A primeira situação aproxima-se do que Benveniste tratou como o regime da história em
relação aos dispositivos enunciativos verbais. A segunda, ao regime do discurso de
Benveniste. Este “mascaramento” ou “desmascaramento” do mecanismo de mediação não
se limita, como pode parecer a primeira vista, a estratégia de se mostrar ou não mostrar um
dispositivo técnico de produção  como a câmera, por exemplo  ou de se mostrar ou não
uma situação concreta de produção  os preparativos de filmagem da cena exibida a
seguir, por exemplo. Os regimes enunciativos nos discurso midiáticos definem-se, antes de
mais nada, pelo modo como se instauram (como são “construídos”) os sujeitos envolvidos
no ato enunciativo: o “eu” que fala (instância de produção do discurso) e o “tu” para quem
se fala (instância de recepção dos discurso.

10
J. L. Fiorin, op. cit., p.31.
11
Segundo Benveniste, a história designa a “apresentação dos fatos sobrevindos a um certo momento do
tempo, sem nenhuma intervenção do locutor na narrativa”. Na narrativa histórica, segundo Benveniste, só se
verificarão formas de “terceira pessoa”: “o historiador não dirá jamais eu nem tu nem aqui nem agora, porque
não tomará jamais o aparelho formal do discurso que consiste em primeiro lugar na relação de pessoa eu:tu”.
Por oposição, Benveniste define como discurso “toda enunciação que suponha um locutor e um ouvinte e, no
primeiro, a intenção de influenciar, de algum modo, o outro”. No discurso, o locutor pode reproduzir as
palavras de um personagem ou intervir, ele próprio, para julgar os acontecimentos referidos: “o discurso
emprega livremente todas as formas pessoais do verbo, tanto o eu/tu como ele. Explícita ou não, a relação da
pessoa está presente em toda parte” (Cf. E. Benveniste, “As relações de tempo no verbo francês”, in
Problemas de Lingüística Geral I, Campinas, Pontes/Unesp, 1991, pp. 262-268).
Nos textos narrativos da cinema e da TV, o “desmascaramento” dos mecanismos de
mediação é, a um só tempo, causa e conseqüência da existência de “marcas” do sujeito da
enunciação no enunciado-discurso. O “mascaramento” dos mecanismos de mediação é, ao
contrário, causa e conseqüência da inexistência de “marcas” (ocultamento) do sujeito da
enunciação. Neste trabalho, a revelação (“desmascaramento”) ou o ocultamento
(“mascaramento”) deliberado dos mecanismos de mediação e do sujeito da enunciação,
mutuamente implicados, serão considerados, a princípio, como parâmetros definidores do
modelo enunciativo no cinema e na televisão, a partir dos quais, chegaremos a proposta
enunciativa do tipo de vídeo que interessa mais de perto a este trabalho — o vídeo de
criação ou vídeo de arte. Não se pode, no entanto, tratar do “mascaramento” ou
“desmascaramento” dos mecanismos de mediação e do sujeito da enunciação no cinema, na
TV e no vídeo sem levar em consideração, previamente, a situação comunicativa associada
a cada um destes meios. O modelo enunciativo está afinal, em todos eles, intrinsecamente
vinculado à situação comunicativa determinada pelas características materiais do medium.
Por isso, proponho tratarmos inicialmente das situações comunicativas envolvidas na
fruição do que, genericamente, pode ser tratado como discurso cinematográfico (cinema
clássico e experimental) e como discurso videográfico (TV e vídeo de criação).

1.2.1 Situações comunicativas: o cinema como referência

Sem distinção, agora, entre o que se chama de televisão (sistema broadcasting) e o


que se chama propriamente de vídeo (vídeo de criação), a situação comunicativa instaurada
pelo suporte eletrônico (tecnologia do vídeo) pode ser previamente definida como o avesso
da situação comunicativa instaurada pelo cinema. Um critério básico de distinção entre o
que se pode chamar genericamente de situação cinematográfica e situação televisiva é a
condição do espectador diante do que assiste. A situação espectatorial determina, em um e
outro meio, diferentes experiências psicológicas (concentração ou descontração,
centramento ou distanciamento) e diferentes níveis de contato com a “realidade”, diferentes
tipos de textos e diferentes modos de ‘leitura’ (estratégias enunciativas). Enfim, diferentes
modos de instauração de um sujeito frente a um texto, levando em consideração em todos
os momentos que se trata, essencialmente, de experiências de mediação. Por isso mesmo, é
importante tratar inicialmente da construção do sujeito na situação cinematográfica porque
foi esta, afinal, a primeira forma de arte tecnicamente mediada e, como tal, tornou-se uma
referência para as demais. No contexto deste trabalho, o cinema também pode ser
considerado um fio condutor aos outros media (TV/vídeo)
A situação cinematográfica é definida, basicamente, pela projeção do filme numa
sala escura. Isolado do mundo exterior e imóvel em sua cadeira, o espectador está
inteiramente voltado para a tela gigante a sua frente. De acordo com Hugo Mauerhofer,
uma conseqüência direta dos efeitos psicológicos provocados pelo imobilismo na sala
escura é a fuga voluntária da realidade. Mauerhofer explica que, do ponto de vista da
psicologia experimental, qualquer pessoa que permaneça algum tempo numa sala escura
demonstra uma sensação alterada de tempo e espaço que estimula o papel desempenhado
pela imaginação e favorece um ofuscamento das barreiras entre o consciente e o
inconsciente. Mauerhfer destaca ainda que a passividade e receptividade do espectador
diante da tela (imóvel, em silêncio e isolado do ambiente cotidiano) aproximam a situação
do espectador no cinema do estado do sono, razão pela qual “a experiência cinematográfica
oferece material plausível para as fantasias e os sonhos que acalentam inúmeras pessoas”12.
O cinema consegue se colocar, assim, como a mais real das irrealidades; anulando,
pelo menos enquanto dura a projeção, os limites entre o mundo ficcional e o chamado
mundo real (mundo natural). O espectador não assiste ao filme, ele vive o filme: “(...) com
uma vivência próxima do sonho e numa intensidade tal que não raro ele próprio se
surpreende gritando, “torcendo” ou transpirando de tensão”13. Nessa situação se produz,
segundo Bettetini, um tipo de imagem que se apresenta ao espectador como uma
especularidade direta na confrontação com o real. Esta indefinição deliberada entre o real e
o ficcional, decorrente da confusão entre percepção e representação produzida pelos
dispositivo de projeção, corresponde ao que se convencionou chamar de “impressão de
realidade” no cinema e que, neste trabalho, também será tratado como “efeito de realidade”.
Poucos textos conseguiram tratar tão bem da natureza e a profundidade desta
experiência quanto o próprio cinema através do filme A Rosa Púrpura do Cairo14, escrito e
dirigido por Woody Allen (EUA-1985): sem descaracterizar a situação cinematográfica e
sem privar o espectador do “mergulho” no mundo ficcional, Woody Allen consegue a
proeza de descrever, através de um filme que respeita todos os cânones narrativos do
cinema clássico, o próprio mecanismo de projeção no cinema. A Rosa Púrpura do Cairo é
uma excelente demonstração de que o “efeito de realidade” no cinema não tem nada a ver
com verossimilhança: ele refere-se, antes, a um certo estado alucinatório (como denominou
Edgar Morin) ou hipnótico (como denominou Roland Barthes) do espectador que, diante da
tela, vive o que vê como a única realidade existente.
Para Arlindo Machado, esta “impressão de realidade” não é produzida apenas pelas
condições de recepção — imobilismo, escuridão, isolamento do mundo exterior — que
caracterizam a situação cinema (expressão preferida por Mauehofer) ou a situação
cinematográfica. É produzida também pelas técnicas de “reproduzir a realidade” legadas
ainda pelo Renascimento italiano15. Inspirada no modelo da camera obscura, a câmera
cinematográfica permite a construção de uma imagem fundada na perspectiva artificialis
que, na cultura ocidental, transformou-se na norma referencial de representação mimética
do chamado mundo natural. O Quattrocento não nos ensinou apenas que a imagem
perspectivista é a imagem do real. Ensinou-nos também, através da perspectiva monocular,
12
H. Mauerhfer, “A psicologia da experiência cinematográfica”, in I. Xavier, A experiência do cinema:
antologia, Rio de Janeiro, Edições Graal/Embrafilme, 1983. pp.373-378.
13
A. Machado, Pré-cinemas & pós-cinemas, Campinas (SP), Papirus, 1997, p.46.
14
A Rosa Púrpura do Cairo conta a estória de Cecília (Mia Farrow), uma garçonete que se refugiava dos
problemas cotidianos (dívidas, agressões, o marido alcoólatra, etc.) no cinema. Cecília mergulhava,
transportava-se tão intensamente para o mundo ficcional do cinema que um dia, enquanto assiste pela quinta
vez a mesma película, um dos personagens do filme, Tom Baxter, o “homem dos seus sonhos”, salta da tela e
vem ao seu encontro na platéia. Tom Baxter decide, então, conhecer e aprender a viver no “mundo real” para
ficar ao lado de Cecília. Diante das dificuldades que o casal enfrenta numa Nova Jersey às voltas com a
grande Depressão Americana e do apelo dos demais personagens para que volte para à tela, Tom Baxter
convida Cecília para seguí-lo fazendo um caminho inverso ao que ele fez. Desta vez, é ela que “entra” dentro
do filme e experimenta o glamour do outro lado das telas, desfrutando da vida noturna de Nova Iorque na
companhia de Tom Baxter e dos seus amigos ricaços. A Rosa Púrpura do Cairo termina com a separação dos
dois e o retorno de Cecília ao “mundo real”. Numa das últimas cenas do filme de Woody Allen, Cecília
despede-se de Tom Baxter com um argumento que parece resumir todo o efeito produzido pelo cinema:
“Tenho que escolher o mundo real, apesar da tentação”, diz ela.
15
Cf. A. Machado, op. cit., p. 47.
a inscrever o sujeito da visão no interior desta realidade representada. Há na pintura
clássica um lugar “correto” (definido, fixo) do qual se deve olhar o quadro: o chamado
“ponto de mira”. Define-se, desse modo, um lugar para o espectador dentro do quadro.
No cinema, a chamada decupagem clássica, pressupõe, igualmente, “um espectador
a ser levado pela mão do realizador para dentro (grifo nosso) da tela”16. Também na
narrativa fílmica, “a visão monocular da câmera (...) é baseada no princípio de um ponto
fixo em função do qual se organizam os objetivos vistos, e em contrapartida ela determina a
posição do “sujeito”, o lugar mesmo que ele deve necessariamente ocupar” 17. O espectador
assume o ponto de vista da câmera e coloca-se também, desse modo, “dentro” da cena. A
linearização narrativa, hierarquização dos planos e todos os demais procedimentos da
decupagem clássica traduzem, através do material significante do meio cinematográfico, a
noção de um sujeito como “foco”, “centro” e origem da significação (ou sentido). É
preciso, por isso mesmo, construir através do próprio filme esse sujeito. Segundo Jean
Louis Baudry, o cinema consegue isso fazendo coincidir o ponto de vista da câmera com o
ponto fixo ou com o “sujeito” da perspectiva renascentista 18. Constrói-se assim, a partir do
modelo de representação herdado da pintura clássica, o sujeito ubíquo do cinema: um
sujeito “vidente” (que tudo vê) e voyeur, imóvel e centrado, que está sempre no mesmo
ponto — o ponto onde a câmera está.
Todo o mecanismo enunciativo do cinema clássico parece estar condicionado por
esta identificação primária19 entre a câmera e o sujeito. É esta relação de substituição de um
pelo outro a grande responsável pela “fantasmatização” (termo usado por Baudry) do
sujeito. No cinema, o espectador é previsto como um lugar de ausência para que o filme
possa se dar-a-ver como se fosse uma história contada por ninguém: o filme não “sabe”
que é olhado, “finge” que é uma atividade expressiva de caráter fielmente reprodutivo;
ignora que é visto para que o espectador possa ignorar-se como tal 20. Não há, no entanto,
cena sem olhar. O que pressupõe a existência, no cinema clássico, do espectador de “carne
e osso” e do espectador como realidade puramente simbólica. Este último corresponde ao
ponto de vista, a partir do qual se organiza o material fílmico, o que já foi tratado, enquanto
instância simbólica, como “sujeito da enunciação fílmica” (Bettetini e Casetti), “grande
narrador” (E. Branigan) ou “foco da enunciação” (C. Metz). A identificação do espectador
com o ponto de vista da câmera, a partir do qual se define esta instância organizadora do
discurso, é o que lhe permite, afinal, “entrar” no mundo ficcional .
É assim que se constrói, a partir da circularidade (intercâmbio) entre os sujeitos
empírico e simbólico, o sentido do filme. O primeiro (empírico) “esquece de si” para, na
condição do segundo (simbólico), viver o universo fílmico. Para que esta construção
simbólica do espectador dentro do filme aconteça é preciso, no entanto, que ele não perceba
que o próprio texto articula o seu simulacro (enunciatário), bem como o do
16
Cf. A. M. Balogh, “Fragmentos sobre universos fragmentados: mídia e temporalidade”, in Significação -
Revista Brasileira de Semiótica, São Paulo, Annablume, Set/1996, p.97.
17
Cinétique, n° 7/8, p.3 apud I. Xavier, O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência, Rio de
Janeiro, Paz e terra, 1984, p.128.
18
Jean Louis Baudry, “Cinema: efeitos ideológicos produzidos pelo aparelho de base”, in I. Xavier, op. cit.,
1983, pp.386-388.
19
Os teóricos franceses distinguem dois tipos de identificação do espectador no cinema: a chamada
identificação primária que se refere a identificação do espectador com a câmera — ele só poder ver o filme
através do “olho” da câmera — e a chamada identificação secundária que designa a identificação do
espectador com o que está sendo representado na tela (as situações, os personagens do próprio filme).
20
C. Metz, “História/discurso (notas sobre dois voyeurismos), in I. Xavier, op. cit., 1983, pp.409-410.
autor/produtor/diretor (enunciador). Por isso, no cinema clássico, a “regra” é esconder este
“olhar” que organiza o sentido, o “ponto de vista” sob o qual se organizam as coisas. O que
a narrativa canônica busca, enfim, é ocultar os “operadores” ou “sujeitos lógicos” do
sentido (instâncias abstratas), “mascarar” o eu e o tu que definem o fazer-se do filme
clássico21. Em suma, apagar as “marcas” da enunciação no enunciado: escondendo a
existência do sujeito da enunciação fílmica e do aparato técnico de mediação. Esse duplo
ocultamento é um dos fatores que favorecem, a nível semiótico, o mecanismo de projeção
do espectador no mundo ficcional (identificação secundária).
Os modelos teóricos da enunciação no cinema clássico, formulados nos anos 70/80
estão, em sua maioria, ancorados nesta identificação do público com posições de
subjetividade construídas pelo próprio texto, a partir da decupagem clássica 22. O que
deixava de fora, evidentemente, o projeto enunciativo dos movimentos de vanguarda
ligados, por exemplo, aos chamados “cinema poético” e “cinema puro”. Pois, a proposta
das vanguardas era, ao contrário, romper com este modelo de representação baseado nos
códigos de “objetividade” da perspectiva artificialis do Quattrocento que, como vimos,
tinha como características básicas a “reprodução” da realidade e a inscrição de um sujeito
na representação. A proposta estética do cinema de vanguarda era, antes de mais nada,
“desmontar os artifícios anestesiantes do dispositivo de projeção” 23, no seu duplo sentido:
projeção cinematográfica e projeção psicológica.
Na tentativa de desmontar o projeto ilusionista do cinema clássico, as vanguardas
romperam também com seu “contrato de leitura” (conjunto de “instruções” que o texto
carrega em si mesmo)24 ancorado numa interação dialógica entre o potencial comunicativo
do texto e o comportamento receptivo do espectador. Pois, o controle da resposta dos
espectadores é o um resultado direto do controle do fluir da ação — da linearização da
narrativa e da hierarquização dos planos, principalmente. Quando privilegia a exploração
dos efeitos visuais, propondo ao espectador a experiências puramente sensoriais, o cinema
de vanguarda coloca em crise a própria dimensão narrativa e figurativa do cinema de
linhagem griffithiana (cinema clássico). O rompimento com a narrativa realista e a
tendência ao abstracionismo — explorando grafismos, pinturas “animadas”, projeção
quadro a quadro — conduzem o cinema de vanguarda a um projeto estético pautado, antes
de mais nada, por uma proposta enunciativa nova: mostrar o meio enquanto meio,
“desmascarando” o seu modelo de representação. Os representantes do chamado “cinema
21
F. Casetti, op. cit., p.79.
22
Teóricos contemporâneos, como Miriam Hansen (Cf. “Early cinema, late cinema: permutations of the
public sphere”, Screen, 3/34, Autunm 1993), sustentam que, depois do “aprendizado” da televisão, o
espectador já não se comporta de forma tão passiva diante da tela do cinema. Até porque, o próprio cinema
também foi obrigado a modificar suas estratégias enunciativas diante da necessidade de produzir filmes
capazes de se integrarem ao circuito de produção/exibição da TV. Não pretendo, no entanto, entrar numa
discussão que mereceria, por si só, um outro trabalho. Para o objetivo deste trabalho — de fazer uma breve
comparação entre as formas extremas de fruição no cinema clássico e no vídeo de criação — é bastante tratar
dos mecanismos de projeção-identificação nos termos em que foram descritos pelas teorias da enunciação no
cinema propostas nos anos 70/80.
23
A. Machado, op. cit., p. 105.
24
Esta expressão é utilizada por Antonio Fausto Neto para designar o “conjunto de regras e instruções
construídas pelo campo da emissão para serem seguidas pelo campo da recepção”. Segundo o autor, “é
próprio dos contratos fazer o sujeito trabalhar, porém, sempre no interior das ‘engenharias’ e ‘gramáticas’ dos
próprios sistemas produtivos dos discursos” (Cf. A. F. Neto, “A deflagração do sentido: estratégias de
produção e de captura da recepção”, in M. W. de Sousa (ed.), Sujeito - o lado oculto do receptor, São Paulo,
Brasiliense/ECA-USP, 1995, pp.199-201).
puro” (vanguarda americana), principalmente, insistiram em “ensinar” ao espectador o que
era o “cinema em essência”25: luz, cor, imagem descontínua.
O surgimento da vídeo-arte, ainda nos anos 60, mostrou, depois, que o suporte
eletrônico estava mais vocacionado para a proposta estética e para o projeto enunciativo do
cinema de vanguarda, como bem explica Arlindo Machado: “(...) a estética do vídeo não
faz senão dar conseqüência a um conjunto de atitudes conceituais, técnicas e estéticas que
remontam às experiências não-narrativas ou não-figurativas do cinema de René Clair e
Dziga Vertov no começo do século e às invenções do underground americano (Deren,
Brakhage, Jacobs, etc.) posteriormente” 26. Arlindo Machado destaca ainda o quanto o
desdobramento do projeto estético do cinema experimental no vídeo de arte foi natural,
mencionando que muitos cineastas dos movimentos de vanguarda, como Hollis Franptom e
Ed Emshwiller, passaram a trabalhar com o suporte eletrônico, assim que os equipamentos
se tornaram, comercialmente, mais acessíveis. Historica e esteticamente, o cinema
experimental e a vídeo-arte convergem na mesma direção: insurgem-se contra a “janela”
renascentista, a “transparência” da imagem (realismo) e a representação “naturalista” do
mundo.

1.3 Discursos que se mostram como discurso

Feitas estas considerações sobre a natureza da fruição e da imagem cinematográfica


clássic, fica bem mais fácil entender porque a tela pequena e sem profundidade do monitor
do vídeo, a baixa definição e a textura granulosa da imagem eletrônica mostraram-se muito
mais adequados a um modelo de representação preocupado, desde o cinema experimental,
em dissolver o mecanismo ilusório de identificação e revelar o dispositivo de mediação (no
sentido etimológico do termo): “(...) a imagem eletrônica se mostra ao espectador não mais
como um atestado da existência prévia das coisas visíveis, mas explicitamente como uma
produção do visível, como um efeito de mediação. A imagem se oferece agora como
“texto” para ser decifrado ou “lido” pelo espectador e não mais como paisagem a ser
contemplada”27 . O emprego do suporte eletrônico permite que “as imagens sejam cada vez
mais imagens”: tão disponíveis à manipulação (anamorfoses e metamorfoses) que poderiam
mesmo ser chamadas de “imagem-objeto” (imagem com o atributo de “coisa”, imagem
“coisificada”); tão assumidas na sua condição de produto de “máquinas semióticas”
(sistema expressivo) que não podem mais ser vividas, precisam ser consumidas (ou “lidas”,
como prefere Arlindo Machado).
O cinema clássico e a televisão broadcasting, ao contrário do vídeo e do cinema
experimental, permanecem ainda hoje aliados aos “códigos” do modelo de representação
perspectivista (principalmente a “inscrição” do sujeito na representação). Estão
comprometidos, desse modo, com todo um conjunto de valores denominados por Omar
Calabrese28 de “clássicos” — definição de um “centro”, “linearidade”, “hierarquização,
25
Cf. I. Xavier, op. cit., 1984, pp.87-88.
26
Cf. A. Machado, “O diálogo entre cinema e vídeo”, in Revista USP (Dossiê Cinema Brasileiro), N°19,
1993, p. 129.
27
Cf. A. Machado, op. cit., 1997, p. 244.
28
Estas idéias estão diluídas ao longo do livro A idade neobarroca, São Paulo, Edições 70/Martins Fontes,
1988.
“continuidade” e “fechamento”, entre outros. O vídeo de criação e o cinema experimental,
definindo-se por oposição, estariam comprometidos com o conjunto de valores “barrocos”
— “descentramento”, “não-linearidade”, “não-hierarquização”, “descontinuidade” e
“abertura”, entre outros. A definição de uma proposta enunciativa, pautada por um ou outro
conjunto de valores, permite o alinhamento, de um lado, do cinema clássico e da TV
broadcasting (valores representativos “clássicos”) e do outro, do cinema experimental e do
vídeo de criação (valores representativos “barrocos”).
O que permite tratar o cinema de linhagem griffthiana e a TV broadcasting nos
mesmos termos é a definição, a partir do modelo de representação clássico, de um lugar
para o espectador no texto. Quando se insurgem contra este modelo, o cinema de vanguarda
e o vídeo de criação, aliam-se, ao contrário, negando a construção de um lugar para o
espectador no texto, recusando-se a definir posições de subjetividade no texto com as quais
o espectador venha a se identificar. Definir, dentro de um texto, este lugar para o
espectador/observador/leitor corresponde, numa linguagem mais técnica, a instalar
claramente no enunciado um sujeito da enunciação entendido nos termos em que propomos
— como uma instância simbólica que “substitui” os sujeitos empíricos envolvidos na
enunciação. Negar tal modelo de representação é, em outros termos negar a existência de
um sujeito-olho implícito (um “centro”), ausente da imagem, em torno do qual o sentido de
organiza29. É desarticular, enfim, a própria existência do sujeito da enunciação como
instância de organização da significação.
Embora alinhados pelo mesmo modelo de representação, o modo como o cinema e a
TV inscrevem o espectador no discurso que produzem é, em função de sua situação
comunicativa, completamente diferente. O mecanismo de projeção-identificação deflagrado
pela situação cinematográfica constrói este lugar de subjetividade no texto sem revelar ao
espectador que o faz: não existem, portanto, “marcas” do sujeito da enunciação no
enunciado. Para fazer frente as condições dispersivas de recepção, a situação televisão
baseia-se, ao contrário, na tentativa de simular um contato direto com o espectador
(interação) e, ao fazê-lo, acaba revelando qual é o seu lugar no texto com o qual interage:
existem, neste caso, “marcas” do sujeito da enunciação no enunciado.
No modelo de representação clássico do cinema e da TV, as estratégias de
“mascaramento” ou “desmascaramento” do sujeito da enunciação implicam,
conseqüentemente, no reconhecimento ou não do efeito de mediação (no sentido
etimológico do termo). As condições de recepção próprias da situação televisiva já
propiciam, por si só, um distanciamento do espectador em relação ao meio que permite vê-
lo como tal. A TV incorpora deliberadamente estas condições na definição de suas
estratégias enunciativas, “desmascarando” assim os seus mecanismos de mediação. O
cinema clássico, ao contrário, esforça-se para “mascará-lo” na tentativa de produzir uma
ilusão de “realidade”. Neste aspecto, a TV distancia-se do cinema clássico e aproxima-se
do vídeo, compartilhando com este a mesma situação comunicativa que pode ser
considerada como a principal responsável pelo “desmascaramento” do meio. Mas, não a
única. A imagem mosaicada (expressão de Mcluhan) do vídeo/televisão deixa à mostra o
seu próprio modo de constituição30 — os pontos luminosos que formam as figuras podem
29
I. Xavier, op. cit., 1984, pp.128-129.
30
A imagem eletrônica colorida consiste, basicamente, na mistura de milhares de pontos luminosos, de várias
intensidades, em três cores (luz) básicas: vermelho, verde e azul. Estes pontos luminosos, vistos de uma
determinada distância, combinam-se formando as imagens nos moldes de um “mosaico”. Em termos mais
técnicos, a imagem videográfica é o resultado de um scanning eletrônico sobre uma superfície fotocondutora.
ser vistos até a olho nu se nos aproximarmos atentamente do monitor —, “impedindo que a
restituição do mundo visível se dê à custa do mascaramento das técnicas construtivas”31.
Contrapondo o suporte cinematográfico — imagem fotográfica — e o suporte
videográfico (TV/vídeo) — imagem eletrônica —, parece possível falar de duas estratégias
enunciativas básicas que se definem, uma em relação à outra e em termos extremos, não
apenas pela situação espectatorial, mas também pelos valores envolvidos na sua própria
noção de representação. Estas estratégias correspondem a dois tipos de discurso que se
constituem numa das referências básicas para a definição das propostas enunciativas nos
diferentes media: há um tipo de discurso que se esforça para ocultar sua condição de
discurso e há um outro que, ao contrário, revela-se deliberadamente como tal. O primeiro
pode ser associado ao cinema clássico e o segundo, mais diretamente ao vídeo de criação.
Entre os dois, interpõe-se o discurso televisivo que desliza, através dos seus diferentes
gêneros, entre um e outro. Por isso, tentar compreendê-lo, ainda que de forma geral, é um
caminho para se entender melhor, a partir da análise comparativa, os modelos extremos do
cinema clássico e do vídeo de criação.

1.4 A TV e sua estratégia interpelativa

uma das principais características da situação televisiva, cuja compreensão é


fundamental para se entender depois o vídeo, é a tentativa de simular um contato direto
(interação) com o espectador. Uma simulação de contato que, em termos gerais, aproxima
ainda mais a TV da estratégia da “conversação textual” descrita por Bettetini e a qual quero
acrescentar o que julgo como um traço definidor do modelo enunciativo instaurado pela
situação televisiva: o seu caráter interpelativo. Um olhar dirigido diretamente à câmera ou
uma voz em off dirigida ao espectador instala, necessariamente, um tu frente a um eu (um
eu e um tu considerados como “operadores lógicos”). O que significa dizer, em outras
palavras, que a configuração interpelativa inscreve o enunciador e o enunciatário no
enunciado, apesar de, geralmente, apenas o enunciador ser figurativizado 32. O que mais
interessa à televisão, no entanto, é o reconhecimento de um interlocutor inerente ao gesto
interpelativo. Pois, como seu discurso é consumido em meio a dispersão do ambiente
doméstico e das atividades cotidianas, a televisão se preocupa, antes de mais nada, em criar
um vínculo comunicativo com o espectador (para o qual a simulação do contato direto
contribui enormemente).
Raymond Williams destaca dois valores inerentes ao que ele chama de
“passatempo” na TV33 e que, a meu ver, dão sustentação hoje a própria ‘lógica’
Para uma exposição detalhada sobre a constituição da imagem eletrônica veja: H. Zellt, Television
production handbook, 6th ed., Wadsworth, California, 1996, pp. 62-67; A. Machado, A arte do vídeo, São
Paulo, Brasiliense, 1988, pp. 41-50.
31
A. Machado, 1988, op. cit., p. 41.
32
Segundo Francesco Casetti, o tu instalado por um olhar dirigido à câmera, por exemplo, não corresponde a
ninguém em particular, não se remete a este ou aquele espectador. Refere-se apenas a possibilidade mesma de
que haja um espectador. Neste tipo de configuração, o espectador corresponde, concretamente, ao espaço
vazio diante da tela (fora de campo). Existem, no entanto, gêneros televisivos que figurativizam o
enunciatário: é o caso dos programas de auditório, do tipo Silvio Santos (SBT) ou Domingão do Faustão
(Globo), que fazem isso ao exibirem insistentemente imagens da platéia.
33
R. Williams trata como “passatempo” um tipo de gênero televisivo que, na televisão brasileira,
corresponderia, por exemplo, aos chamados programas de auditório. Para uma descrição mais detalhada das
interpelativa da programação da TV considerada no seu conjunto: a competição e a
aquisição. Na TV, a competição é, via de regra, apenas um meio de se chegar a aquisição
(de bens, serviços, prêmios, prestígio, etc.) que é, de fato, o grande fim. Não se pode
desconsiderar, afinal, que a televisão está, desde o seu surgimento, intrinsecamente ligada
ao mercado e a ‘lógica’ do consumo. A própria programação da televisão é tratada como
um produto que, como tal, também precisa ser promovido e vendido. Por isso, a
programação da TV preocupa-se, antes de mais nada, com sua auto-promoção com sua
auto-venda. O gesto interpelativo, por ser inerente à venda, passa a ser assim determinante
no formato da programação televisiva. Não faltam exemplos na televisão brasileira de
gêneros ancorados num modelo interpelativo pautado pelo binômio competição/aquisição.
Basta lembrar o número cada vez maior de programas de auditório e/ou esportivos que
convidam o espectador (interpela) a telefonar para um dado número do prefixo 0900
respondendo a uma pergunta proposta (tipo “sim” ou “não”, “isto” ou “aquilo”) e
concorrendo a prêmios.
O projeto de entertainment da TV é muito próxima da proposta dos vaudevilles,
café-concerto ou music hall — casas de diversão, do final do século XIX e início do século
XX, nas quais eram apresentados espetáculos populares, entre eles o cinema. Os
freqüentadores dos vaudevilles, geralmente operários, podiam assistir numa mesma visita a
encenações teatrais, comédias, danças e filmes, bebendo e conversando entre si. Nestes
espaços, os primeiros filmes ainda eram exibidos de forma privada através dos
kinetoscópios, máquinas de projeção com um visor individual por onde o espectador
observava as imagens. A televisão, segundo Miriam Hansen, retoma o modo de fruição
deste cinema pré-clássico que, tal como a TV hoje, não se pautava por qualquer mecanismo
de projeção-identificação psicológica do espectador. Desde o início, a TV apresenta-se,
deliberadamente, como um espaço lúdico (razão pela qual há tanto apelo aos “jogos”) e
espetacular (razão pela qual tudo é tratado como “espetáculo”), uma “máquina de diversão”
como os primeiros kinetoscópios. Por esta sua vocação de “máquina de entretenimento”, A
TV pode, se observada de uma perspectiva mais geral, ser descrita como um meio
despojado de qualquer pretensão de “mascarar” a natureza de sua experiência: uma
experiência de mediação fundada num apelo à intermediação (por isso, o papel tão
importante do apresentador de TV).
A própria grade da programação (horários cíclicos) e as interrupções regulares dos
intervalos comerciais já bastariam para explicitar, continuamente, esta experiência de
mediação. Mesmo em determinados tipos de textos televisivos que, isoladamente,
propõem-se a “ver os eventos por si só” (regime da história de Benveniste) é muito difícil
“esconder” a intermediação. As coberturas jornalísticas e as transmissões esportivas são
exemplos disso: especialmente nas transmissões diretas, é muito comum a exibição da
monitoragem portátil, dos fones de ouvido e das próprias câmeras que fazem o registro da
situação. A incorporação dos instrumentos de produção de reportagem à notícia assumem,
segundo Silvia Chiabai, “uma composição metalingüística” (grifo nosso) que, no caso
específico do telejornal, colabora para reiterar a sua “função de verdade” à medida em que
expõe a intermediação da própria linguagem 34 e, numa perspectiva mais geral, realça a
intermediação da própria TV.
“formas” na televisão veja: R. Williams, Television: technology and cultural form, 2a. Ed., London,
Routledge, 1990.
34
S. Chiabai, Telejornalismo: estética do engodo, Tese de Doutoramento, Programa de Comunicação e
Semiótica, PUC/SP, 1994, p.97.
Uma discussão mais profunda sobre a função metalingüística na TV, e em especial
no telejornalismo, envolve aspectos éticos/ideológicos que fogem aos objetivos específicos
deste trabalho. Por ora, é preciso destacar apenas que a prática desta (auto)metalinguagem
na TV não se limita, evidentemente, às coberturas telejornalísticas. Silvia Chiabai destaca
como exemplo privilegiado desta prática o programa “Videoshow”, exibido diariamente na
Rede Globo. O programa colabora para o “desmascaramento” da linguagem da própria TV,
exibindo o making off de vários programas da emissora, mostrando os bastidores e até os
erros dos atores nas gravações das novelas. Programas humorísticos que parodiam os
próprios programas da TV, como o “Casseta e Planeta” (Rede Globo), também colaboram
para que a TV se apresente assumidamente como medium. O próprio modelo enunciativo
interpelativo na TV, ao reconhecer um interlocutor do outro lado da tela, revela-se, por
outro caminho, a natureza do seu discurso midiático — discurso que é produto dos media,
discurso que se mostra como tal.
No cinema, a câmera interpelativa (quando um personagem se dirige à platéia) é a
única responsável por uma rara “consciência metalíngüística” (= “Estamos no cinema!”)
que “desmascara” o projeto ilusionista dos filmes clássicos. Na televisão o reconhecimento
do interlocutor produzido pelo gesto interpelativo também colabora para a dissolução da
ilusão de “realidade”. Mas, paradoxalmente, acaba servindo a um outro modelo enunciativo
que, a despeito das características do dispositivo e das condições de reprodução, tenta ainda
“borrar” os limites entre o mundo ficcional e o chamado mundo real. A sua “tela pequena”,
a baixa definição da sua imagem, a sua inserção na dispersivo ambiente doméstico,
inviabilizam a pretensão de se produzir qualquer “efeito de realidade” na televisão. TV é
TV: o meio se apresenta, deliberadamente, como um instrumento de intermediação entre a
realidade cotidiana e um espetáculo ficcional.
A simulação de um contato direto no discurso televisivo, no entanto, não deixa de
ser uma tentativa de fazer do nosso quarto ou das salas de nossas casas uma “extensão” do
espaço diegético. Quando um apresentador de televisão nos interpela de igual para igual,
quando simula um “face a face”, ele nos coloca (a nós e a ele) numa mesma dimensão
“existencial”: é como se pertencêssemos a um mesmo ‘mundo’, como se partilhássemos de
uma mesma natureza. Como o Tom Baxter de A Rosa Púrpura do Cairo, o apresentador de
TV desconhece sua condição de um “ser do discurso” e se imiscui no ‘mundo’ dos “seres
reais” do filme (= ‘mundo’ de Cecília). Com isso, também somos levados, do mesmo modo
que acontece com a personagem Cecília no filme de Woody Allen, a (con)fundir, pelo
menos entre um intervalo comercial e outro, os limites entre o mundo ficcional e o ‘real’,
entre a tela e o nosso sofá.
A natureza do próprio aparato técnico de produção/reprodução e as condições de
recepção da televisão reduzem, dramaticamente, as suas possibilidades de jogar com o
mesmo modelo projetivo da situação cinematográfica. Mas, não completamente, segundo
Francesco Casetti. Ele admite a existência de momentos em que a tela da televisão
“absorve”, “inclui” completamente o espectador (não é difícil, por exemplo, flagrar alguém
às lágrimas diante dos previsíveis reencontros dramáticos e das melosas declarações de
amor no último capítulo das novelas). O resultado disto, explica Casetti, é uma espécie de
“abolição” do mundo em volta e uma identificação com as imagens e sons35. No caso da
TV, essa identificação do espectador com o que vê não se confunde com o mecanismo de
projeção do cinema. É preferível associá-la a um mecanismo de empatia, o que é uma
35
F. Casetti, “Communicative situations: the cinema and television situation”, in Semiotica 112-1/2,
1996, p.39.
atitude bem diferente do comportamento projetivo por envolver a consciência do processo
de identificação por parte do espectador36.
Pode-se sugerir, em suma, que a simulação de um contato direto na TV estimula o
espectador, através de um modelo enunciativo interpelativo, a “borrar”, conceitual e
formalmente, os limites entre o ‘real’ e o ‘irreal’, oscilando entre os momentos de completa
“suspensão” (quando a TV tenta “ser” cinema) e os de plena consciência da mediação
(quando a TV se propõe a ser um grande interlocutor). A televisão acabaria lidando, assim,
com experiências de mediação de natureza distinta: de acordo com os gêneros estimularia
uma tendência maior ou menor para a “irrealidade”. Parece possível falar, neste contexto,
em diferentes “níveis de realidade”37 dentro da própria situação televisiva. Raymond
Williams chega a destacar como um dos elementos intrínsecos à televisão esta sua
capacidade de promover “uma confusão entre a realidade e a ficção”, não apenas no que diz
respeito a sua situação comunicativa, mas principalmente através do que ele denomina de
“um novo tipo de drama-documentário”38, muito freqüente, justamente, no mais “realista”
dos seus gêneros — o telejornal.
As situações propostas pelo “drama-documentário” — explica Williams — estão
associadas, em princípio, ao registro documental de fatos (eventos) acompanhados pela
inserção de elementos dramáticos (que podem, ou não, ser ficcionais). Pensando na
televisão brasileira, poderia exemplificar este tipo de “drama-documentário” relembrando
as freqüentes coberturas de seqüestros e/ou acidentes de grande repercussão pelo Jornal
Nacional da Rede Globo. São comuns neste tipo de reportagem as entradas “ao vivo”,
durante todo o telejornal, pontuadas por reconstituições (realizadas com atores ou
animações) do acidente e/ou seqüestro e pela inserção de “histórias dramáticas”
relacionadas às vítimas. Se a vítima for um ídolo nacional — como no acidente em que
morreu Ayrton Senna (1994) — tanto melhor o “drama-documentário”: “imagens de
arquivo do maior ídolo nacional não faltavam, e o hiato entre a confirmação da morte e o
sepultamento em São Paulo (com direito a megacobertura) foi coberto nos telejornais por
críticas pungentes, espécies de clipes mórbidos à beira da apelação: à cena do acidente
juntou-se o flagrante de um Senna circunspecto, pouco antes de iniciar a prova”, descreve
Silvia Chiabai39.
Se parece possível observar diferentes “níveis de realidade” dentro dos diversos
gêneros televisivos (e até dentro de um mesmo programa), parece ainda mais pertinente
tratar dos limites entre o ‘real’ e o ‘ficcional’ em relação às diferentes experiências de
mediação e situações comunicativas. Posso agora retornar ao cinema e ao vídeo para
mostrar como, em campos opostos, trabalham com esses limites. Mas antes, para não

36
Jesús González Requena sugere que todo relato narrativo pode produzir mecanismos tanto de projeção
quanto de empatia. A projeção é a parte da identificação narrativa que a consciência do espectador não
reconhece como tal. “os personagens que a encarnam constituem focos de identificação, mas são negados pelo
mecanismo projetivo: eu não sou ele! ”, explica Requena. A empatia é a parte da identificação narrativa que a
consciência do espectador reconhece: através da empatia o espectador se reconhece como emotivamente
solidário com um determinado personagem, compartilha seus sentimentos e ações, reconhece-se em suas
ações e sofrimentos (Cf. J. G. Requena, El discurso televisivo: espectáculo de la posmodernidad, Madrid,
Cátedra, 1995, p.117).
37
A expressão foi inspirada na discussão sobre a “tendência a irrealidade” no cinema e na TV proposta por
Francesco Casetti no artigo “Communicative situations: the cinema and television situation”, in Semiotica
112-1/2, 1996.
38
R. Williams, op. cit., p.72.
39
S. Chiabai, op. cit., p.135.
suscitar qualquer discussão de caráter ontológico sobre o conceito de ‘realidade’— o que
não vem ao caso —, substituirei os termos ‘ficcional’’ e ‘real’, a partir de agora, pelas
expressões ‘mundo diegético’ e ‘mundo não-diegético, respectivamente. Estas parecem
mais adequadas a este contexto argumentativo. Neste trabalho, os termos diegético e não-
diegético (derivados de diegese) remetem, de modo mais amplo, a tudo o que é e a tudo o
que não é produto de um ato discursivo40. Grosso modo, estas expressões corresponderiam
ao ‘mundo’ dos “seres do discurso” e ao ‘mundo’ dos seres reais. Designados com maior
rigor formal, essas duas expressões corresponderiam, respectivamente, aos níveis
intradiegético (interno ao discurso) e extradiegético (externo ao discurso) envolvidos em
qualquer situação enunciativa. A definição do próprio modelo enunciativo predominante
em cada meio depende dos “grau” de sobreposição de um nível no outro. A maior ou menor
interferência de elementos do nível extradiegético do nível intradiegético corresponderia ao
que foi denominado, anteriormente, de “níveis de realidade”.
Analisar o “nível de realidade” de um determinado texto audiovisual (midiático)
eqüivale a tratar, em outros termos, de produções discursivas que se revelam ou não como
tal. O que nos faz voltar aos argumentos iniciais deste trabalho, pois a construção de um
discurso que se apresenta, ou não, assumidamente como discurso depende do
“mascaramento” ou não dos mecanismos de mediação e da existência ou não de “marcas”
da enunciação no enunciado (tudo depende, enfim, de como o ato da enunciação se revela
através do próprio enunciado). O “nível de realidade” de um determinado texto fílmico,
televisivo ou videográfico traduz, necessariamente, tudo isso. Para facilitar a comparação
entre os media, parece possível estabelecer uma espécie de “escala” de “nível de realidade”
na situação comunicativa do cinema, da televisão e do vídeo. Esta “escala”, meramente
heurística, leva em consideração a relação do espectador com aquilo que ele vê: o seu maior
ou menor distanciamento, o seu maior ou menor descentramento diante daquilo que vê.
Enfim, seu comportamento de projeção ou empatia, entre outros.
Nesta “escala”, o projeto ilusionista do cinema clássico corresponderia à proposta de
indefinição dos limites do ‘mundo diegético’ e do ‘mundo não-diegético’. O que diz
respeito, basicamente, ao mecanismo de projeção: para o espectador envolvido na situação
cinematográfica só existe um ‘mundo’ — o da tela. Já na televisão, como vimos, o
espectador tenderia, por sua vez, a borrar estes limites, alternando os momentos de
“consciência” do ato enunciativo com outros de completa “absorção”; estendendo, em
alguns momentos, os apelos do ‘mundo diegético’ a sua vida cotidiana; respondendo aos
“seres do discurso” como se fossem seres humanos. Reconhecendo, de qualquer modo, a
existência dos dois ‘mundos’. É isto, afinal, o que faz da televisão um meio particularmente
controverso: este ‘deslocamento’ permanente entre instâncias factuais e ficcionais, esta
‘passagem’ contínua das experiências intradiegéticas às extradiegéticas, o que exige do
espectador uma competência41, antes de mais nada, para lidar com a própria situação
40
O termo diegese, do modo como foi empregado por Gérard Genette e Algirdas. J. Greimas, refere-se
especificamente ao aspecto narrativo do discurso (Cf. A. J. Greimas & J. Courtés, Dicionário de Semiótica,
São Paulo, Cultrix, 1983, p. 121). Nos estudos sobre o discurso cinematográfico, o termo remete a tudo aquilo
que se passa na tela: o enredo de um filme, por exemplo. Neste contexto, uso o termo com um sentido ainda
mais amplo — quase como um sinônimo de enunciado —, o que me permite empregá-lo também em relação
a textos não-narrativos.
41
A competência é definida, do ponto de vista semiótico, como a capacidade de produzir e analisar textos,
levando em conta os seus aspectos lingüísticos, pragmáticos e sociais. O termo também pode ser usado para
designar a capacidade técnico-expressiva de um sujeito para lidar com uma dada linguagem. É neste sentido
que G. Bettetini emprega a noção de competência e distingue, a partir do seu modelo da “conversação
comunicativa. O que não quer dizer que não se exija do espectador uma competência para
lidar com a grande rede intertextual em que se constitui, por si só, a própria programação de
uma emissora de TV.
Enquanto o cinema estimula a indefinição entre o ‘mundo diegético’ e o ‘não
diegético, enquanto a TV borra estas instâncias, o vídeo de criação ancora o seu projeto
enunciativo na definição deliberada e bem marcada destes limites. Desde o surgimento da
vídeo-arte nos anos 60, a partir das experiências técnico-formais de reelaboração eletrônica
da imagem, o vídeo de criação vem se pautando pela negação dos gêneros narrativos-
representativos e pela rejeição aos mecanismos de projeção-identificação psicológica do
espectador consolidados pelo cinema. Desvinculou-se assim de qualquer modelo de
representação mimética do chamado mundo real. O vídeo de criação se propõe ao
espectador como um texto: texto que se apresenta simplesmente como texto, resistindo, de
certo modo, a própria confrontação da sua relação com o ‘real’. O vídeo nem se coloca esta
questão: pois é, assumidamente, o produto de um ato discursivo e é nesta condição que se
apresenta à fruição. A consciência permanente do próprio ato de fruição define o que se
poderia chamar de situação videográfica, diante da qual a competência que se exige do
espectador é para lidar com o texto mesmo (ao contrário da TV que exige, competência
para lidar, antes de mais nada, com a situação comunicativa).

1.5

1.6 O “lugar” do espectador: o caso particular do vídeo

Toda essa discussão, até agora, sobre os limites entre o ‘mundo diegético’ e o
‘mundo não-diegético’ serve apenas para voltar a uma questão diluída ao longo desta
argumentação e cuja resposta nos conduzirá, mais adiante, ao problema da enunciação no
vídeo. A questão, objetivamente, é: como se dá a relação do espectador com o texto
cinematográfico, com o texto televisivo, com o texto videográfico? Que papel lhe cabe
diante de cada um desses tipos de texto? Melhor dizendo: qual é, afinal, o lugar do
espectador diante do que vê nos diferentes media? Responder a esta pergunta é, de certo
modo, sugerir modelos enunciativos para cada um destes meios. Modelo enunciativos que
se definem, antes de mais nada, pela pretensão de colocar o espectador dentro do texto ou
de deixá-lo fora do texto. O lugar do espectador dentro do texto é assegurado pela
indefinição ou pela confusão entre os limites do diegético e do não-diegético, o que se
consegue através da construção de instâncias simbólicas (enunciador/enunciatário) dentro
do próprio texto. Quando o texto não pretende que o espectador se identifique comas
posições de subjetividade que ele próprio definiu através de uma instância simbólica pode-
se dizer, ao contrário, que seu lugar é fora do texto.

textual”, a existência de espectadores “competentes” e “analfabetos”. Os primeiros são capazes de


“desvendar” as estratégias simbólicas propostas pelo “conversação textual”, escapando assim ao “controle” do
seu procedimento de leitura previsto no próprio texto. Por não disporem da mesma competência técnico-
expressiva, necessária para o “desvendamento” das estratégias construídas pelo autor, os outros seriam
levados a adotar , diante do texto, o “comportamento” fruitivo construído pelo próprio texto. Bettetini
observa, no entanto, que o comportamento do espectador médio é, quase sempre, o resultado de um
cruzamento entre “competência” e “analfabetismo”, aliado a outras condições concretas da situação
comunicativa (Cf. G. Bettetini, op. cit., pp. 113-114).
Mais uma vez, há, em termos extremos, uma clara distinção entre as formas de
fruição do cinema e do vídeo que pode servir como uma referência básica na reflexão
proposta por este trabalho. O primeiro estimula um comportamento mais passivo e o
segundo, uma atitude mais participativa. Quando instaura um “efeito de realidade”, o texto
cinematográfico transporta o espectador ao ‘mundo diegético’, levando-o a esquecer
completamente de sua função interpretativa durante a exibição de um filme. Isto é, o
modelo enunciativo do cinema transporta o espectador para dentro da tela na medida em
que anula a sua consciência do processo de fruição. No vídeo ocorre o contrário. Na medida
em que, conscientemente, participa da construção do sentido, o espectador permanece fora
da tela, fora de qualquer universo diegético e, conseqüentemente, livre para, de fora do
texto, usufruir de suas possibilidades de interpretação.
Apesar das críticas que recebeu por pressupor um comportamento excessivamente
programado do receptor, o modelo da “conversação textual” de Bettetini pode ser ainda um
caminho para se tentar compreender, em termos bem gerais, o “contato de leitura” proposto
ao espectador pelos textos destinados a uma difusão unidirecional, como é o caso do
cinema clássico e da televisão broadcasting. Este esquema, no entanto, parece mais
pertinente na compreensão dos chamados textos “fechados”, nos quais o espectador é
estimulado à construção de sentido dentro de limites bem delinedos pelo próprio texto. Nos
textos, enfim, em que há um lugar mais definido e estável para o espectador. Nesse tipo de
texto, há uma maior preocupação em “controlar” a reação interpretativa do espectador, em
“prefixar” o resultado fruitivo, em “definir” uma forma de “leitura” (e de organização
estrutural) para o discurso elaborado. O que está a merecer uma investigação mais profunda
é, ao contrário, a enunciação em um tipo de texto que estimula, a partir de suas várias
possibilidades de organização, uma “cooperação” decisiva do espectador na construção do
sentido. Por isso mesmo, tende a mantê-lo fora do texto, negando quaisquer mecanismos de
projeção-identificação psicológica. O que implica, é claro, em um novo tipo de “contrato de
leitura” com seu próprio conjunto de “instruções”42.
O “contrato de leitura” que um texto videográfico deste tipo propõe encontra um
paralelo no modelo de descrição das poéticas contemporâneas denominado por Umberto
Eco de “obra aberta”. Este modelo teórico formulado por Eco propõe-se a explicar um tipo
especial de relação entre a obra e o seu fruidor. Segundo ele, as “obras abertas”
caracterizam-se por um convite a “fazer a obra com o autor” (ainda que mentalmente).
Podem ser entendidas como a “proposta de um campo de possibilidades interpretativas,
como configuração de estímulos dotados de substancial indeterminação, de maneira a
induzir o fruidor a uma série de ‘leituras’ sempre variáveis” 43. Nestes projetos estéticos, a

42
Embora pressuponha a participação, é inerente a todo processo de cooperação, no entanto, a existência de
limites à interferência de quem coopera. Por isso, o reconhecimento de um processo cooperativo na fruição do
discurso videográfico não significa dizer que não existam “limites” impostos pelo emissor ao receptor: a
seqüência (ordem) definida para as imagens, por exemplo, já sugestiona o espectador na construção de
relações. Por mais polissêmicas que sejam as imagens, o espectador não pode estabelecer, diante de uma
determinada seqüência imagética, qualquer relação, mas dispõe, sem dúvida, de um campo de possibilidades
de leitura muito mais amplo. O que distingue um texto mais “fechado” de um um outro mais “aberto” é
justamente o modo e a intensidade desta cooperação, o que depende evidentemente das estratégias
enunciativas adotadas (Dentro desta perspectiva, trato com mais profundidade do modelo cooperativo do
vídeo em A enunciação no discurso videográfico: um estudo exploratório a partir de vídeos do festival
Mundial do Minuto, Dissertação de Mestrado, PUC/SP: Comunicação e Semiótica, 1997. Cf. também U. Eco,
Lector in fabula, São Paulo, Perspectiva, 1986).
43
Cf. U. Eco, Obra aberta, São Paulo, Perspectiva, 1991, pp 63,150.
atenção desloca-se da mensagem “para a relação comunicativa entre mensagem e receptor:
relação na qual a decisão interpretativa do receptor passa a constituir o valor efetivo da
informação possível”44. Quando propõe estruturas que incorporam a cooperação do fruidor
como parte da sua proposta de fruição, este tipo de texto abre mão, evidentemente, da
definição de um limite mais rígido na construção de sentido pelo espectador.
A conseqüência imediata desta nova forma de fruição é o rompimento do modelo
enunciativo pautado numa “leitura” mais dirigida como a pressuposta pela “conversação
textual” de Bettetini. Pois, como vimos, esse modelo já carrega, em si mesmo, uma
estratégia comunicativa destinada a levar o espectador a agir diante do texto como o texto
quer. O que significa dizer que este tipo de modelo enunciativo tende a produzir enunciados
unívocos. Ao privilegiar uma “cooperação” ativa do espectador na construção do sentido, a
“obra aberta”, ao contrário, permite que brotem enunciados plurívocos. O desprendimento
de um modelo de “leitura” dirigida para um outro que privilegia as possibilidades de
“leitura” coloca em questão o modelo enunciativo baseado na circularidade entre os sujeitos
da enunciação (“seres do discurso”) e os sujeitos empíricos (seres reais). Qual seria então,
no que diz respeito a enunciação, a diferença básica entre um texto “aberto” e um texto
“fechado”? Sem qualquer juízo valorativo, a diferença básica entre os dois estaria na opção
por um modelo enunciativo pautado pela definição ou pela não-definição de um lugar para
o espectador no próprio texto.
Como já vimos, tratar da definição ou não de um lugar para o espectador no texto é,
enfim, tratar da própria instauração do sujeito da enunciação, já que é através desta
instância simbólica que se articulam os mecanismos de projeção-identificação do
espectador. Resumidamente, pode-se dizer, então, que o modelo enunciativo do discurso
fílmico clássico procura a mascarar este “olhar” que organiza as coisas, tende sempre a
apagar as “marcas” do sujeito da enunciação no enunciado para não desmontar a
“máquina” de ficção identificada com o cinema. A televisão, ao se apresentar
assumidamente como uma “máquina” de mediação, já admite de saída um destinador e um
destinatário para o seu próprio discurso: ao contrário do cinema hollywoodiano, no qual o
sujeito enunciador só se apresenta explicitamente através dos créditos, a TV revela
continuamente o sujeito da enunciação implicado nos enunciados que produz. Mais uma
vez, fica ainda fácil perceber isso considerando a programação como um “macrodiscurso”
que — através das chamadas de cada programa, do anúncio da própria programação, das
vinhetas e dos slogans que identificam a emissora — está sempre falando de si e do seu
broadcaster (a emissora e seus representantes — apresentadores, por exemplo).
O vídeo de criação possui, em relação ao cinema e à TV, um diferencial
determinante na definição do seu modelo enunciativo. É um texto que não aspira a
ficcionalidade narrativa destes meios. É um texto descomprometido com qualquer
mecanismo de identificação ou de interação simbólicas com o espectador: um texto que é,
simplesmente, um texto. O vídeo não pretende construir nenhum ‘mundo’, a partir da
relação de um dispositivo de produção/reprodução com um sujeito. Por isso, não se
preocupa com a articulação de posições de subjetividade, a partir do que se vê na tela. A
tela é, também, simplesmente uma tela. A relação do espectador com o texto que vê na tela
é entendida, antes de mais nada, como um apelo visual e sensorial à construção mental e
conceitual. Se “o filme tradicional tende a suprimir todas as marcas do sujeito da
enunciação para que o espectador tenha a impressão de ser ele próprio esse sujeito” 45, o
44
U. Eco, op. cit., 1991, p. 131
45
O trecho entre aspas foi tomado de empréstimo a Christian Metz na seguinte passagem: “Se o filme
vídeo de criação, de modo mais radical, tende a desarticular a instância do sujeito da
enunciação para que o espectador assuma conscientemente o papel do articulador do
sentido naquilo que vê.

Conclusão

Diante de tudo o que foi exposto até aqui, é possível apontar esquematicamente pelo
menos três aspectos, mutuamente implicados, na definição das propostas enunciativas do
cinema clássico, da TV e do vídeo de criação: 1) os mecanismos de mediação; 2) o “nível
de realidade” do discurso; 3) o sujeito da enunciação. Tomando estes aspectos como
parâmetros, pode-se propor que: a) o modelo enunciativo do cinema clássico está ancorado
no “mascaramento” dos seus mecanismos de mediação, na indistinção entre o diegético e o
não-diegético, no apagamento ou ocultamento do sujeito da enunciação; b) a proposta
enunciativa da TV está ancorada no “desmascaramento” dos seus próprios mecanismos de
mediação, na confusão (“borrão”) entre o diegético e o não-diegético, na revelação do
sujeito da enunciação; c) o modelo enunciativo do vídeo está ancorado no
“desmascaramento” dos mecanismos de mediação (na sua exploração deliberada dos
recursos técnicos do meio), na distinção entre o diegético e o não-diegético, no
desaparecimento do sujeito da enunciação. Não é demais lembrar que o sujeito da
enunciação, nos termos em que vem sendo tratado neste trabalho, corresponde a posições
de subjetividade (instâncias simbólicas) construídas pelo texto para permitir a projeção-
identificação do espectador. A ausência de instâncias simbólicas no texto corresponde,
portanto, ao que entendo como desaparecimento do sujeito da enunciação, cuja principal
implicação, no campo da recepção, é a exigência de uma atitude cooperativa muito mais
intensa no processo interpretativo. No prática, esta estratégia textual significa uma
participação mais decisiva e autônoma do espectador na construção do sentido que, desse
modo, passa a ser um o resultado de circu nstâncias mais pragmáticas da comunicação

tradicional tende a suprimir todas as marcas do sujeito da enunciação, é para que o espectador tenha a
impressão de ser ele próprio esse sujeito, mas no estado de sujeito vazio e ausente, pura capacidade de ver
(todo “conteúdo” está do lado do visto): com efeito, é preciso que o espetáculo “surpreendido” seja
igualmente surpreendente, que porte (como em toda satisfação alucinatória) a marca da realidade exterior. O
regime da “história” permite conciliar tudo isso, já que a história, no sentido de Émile Benveniste, é sempre
(por definição) uma história de parte alguma contada por ninguém, mas que qualquer um recebe (sem o que
ela não existiria): em certo sentido, pois, é o “receptor” (ou melhor, o receptáculo) que a conta, mas ao mesmo
tempo ela não é em absoluto contada, já que o receptáculo não é previsto senão como um lugar de ausência,
no qual poderá ressoar melhor a pureza do enunciado sem enunciador” (Cf. C. Metz, op. cit., p. 409).

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