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5 de agosto de 2020
A América Latina na Nova maiores capacidades estatais, verbalmente a Amazónia fica bem;
como o confinamento obrigatório. morrer por ela, não obrigado.
Desordem Internacional A heterogeneidade latino-americana Na nova desordem internacional, a
Andrés Malamud manifesta-se, sobretudo, na mesa ainda não está servida, mas os
Instituto de Ciências Sociais-Universidade de criminalidade e na inserção comensais já se preparam. A América
Lisboa
internacional. Enquanto os países Latina não será um deles; e, quanto
do Cone Sul – Argentina, Chile e ao menu, a África e até a Europa
Quem não está na mesa está Uruguai – têm taxas de homicídios surgem mais apetitosas. Há quem
no menu, dizem os especialistas de um dígito, comparáveis aos acredite que alguma potência latino-
em negociações internacionais. Estados Unidos, no México há 20 americana ainda pode ressurgir e
É legítimo perguntar-se em qual assassinatos anuais para cada puxar mais uma cadeira. Uma de
estará a União Europeia, ora 100.000 habitantes – e no Brasil, 30. duas: ou essas pessoas sabem
gigante económico, ora pigmeu Na Venezuela pararam de contar algo que ignoramos ou então falam
estratégico. No caso da América depois dos 90. Esta heterogeneidade português, a língua das descobertas
Latina, qualquer dúvida sobra: está a ser potenciada pela pandemia, e das ilusões.
não estará sentada à mesa. Resta e uma das consequências será a
saber se tem envergadura para maior fragmentação regional.
chegar ao menu. A América Latina são duas: uma ao COVID-19 e Volatilidade
A América Latina abrange
19 países que partilham o
norte do Canal de Panamá e outra Internacional
ao sul. Do Panamá para cima, os
presidencialismo como regime EUA constituem o principal parceiro Daniel Pinéu
político e a desigualdade como comercial, destino migratório e Amsterdam University College
estrutura social. De resto, fonte de remessas. Do Panamá
predomina a heterogeneidade. A para abaixo, é a China que investe, A pandemia não está diretamente a
Covid-19 tem vindo a iluminar as empresta e compra. Há quem tema, causar realinhamentos geopolíticos
caraterísticas comuns. Onde há então, um conflito entre as duas fundamentais, mas está a acelerar e
presidentes sensatos, como no superpotências pela influência exacerbar um conjunto de tendências
Uruguai ou até na Argentina, as regional. Isso é altamente improvável de alto impacto, aumentando
taxas de mortalidade continuam por três razões. Primeiro, os EUA a volatilidade internacional. É
bem abaixo das portuguesas; onde consideram que o seu perímetro de difícil estimar os seus efeitos a
há presidentes menos dotados, segurança acaba no Caribe, e nunca médio-longo prazo, mas importa
como no Brasil e no México, as invadiram os países mais ao sul. salientar três fatores com graves
cifras aproximam-se do horror Segundo, a estratégia chinesa na consequências a nível da segurança
espanhol. Quanto à desigualdade, região tem sido entrar onde os EUA internacional:
os elevados graus de informalidade se retraiam, nunca confrontando: 1. É incontornável o impacto
laboral – até 70% no Peru – encheram vazios, não pisaram geoeconómico da pandemia: entre
tornaram inefetivas políticas que calos. Terceiro, a região carece de os 20 países mais afetados estão
funcionaram bem em países com relevância estratégica: defender seis dos sete países do G-7, e quatro
dos cinco BRICS. Para além das político, solidário. Este gradual com riscos regionais acrescidos –
óbvias consequências em termos de desmantelamento das instituições, e.g., o conflito entre a Etiópia e o
mortes, estamos a testemunhar um mas sobretudo das normas, da Egipto, a atuação israelita em Gaza.
abrandamento económico global, de ordem liberal dos últimos 75 anos A pandemia é assim catalisadora,
efeitos profundos e desigualmente é tão mais perigoso quanto é mais do que causa direta, de maior
distribuídos. Os países fustigados ainda incerto o cariz da ordem insegurança global.
pela crise de 2008 estão agora a que lhe sucederá. A pandemia
perder quaisquer benefícios da parca vem, assim, evidenciar os riscos
recuperação económica da última associados à crescente competição Quo Vadis Turquia? O
década. Milhões de jovens – mais estratégica entre países, e ao Mundo Pós-COVID-19 das
de 40% da população mundial está crescente abandono de soluções
abaixo dos 25 anos – enfrentarão de cooperação multilateral, num Potências Regionais
aumento de desemprego, falta contexto em que ameaças como Domingos Rodrigues
de oportunidades e restrições à o COVID-19 são patentemente Adjunto da Direção do Instituto da Defesa
mobilidade internacional, bem impossíveis de prevenir e solucionar Nacional
como crises de insegurança de forma ‘uni- ou bilateral’, carecendo
alimentar que têm grassado em 55 da produção de bens públicos e de Mais do que um corte radical com
países desde 2019. Esta dinâmica governança global. o passado, que permita definir um
interage com outras tendências, 3. Com o enfoque mediático e antes e um depois do “COVID-19”,
como a degradação ambiental e a político firmemente centrado acreditamos estar perante
ameaça que ela representa para a na pandemia e na tentativa de um período de aceleração de
sobrevivência da espécie humana mitigação dos efeitos económicos tendências previamente definidas. A
– como estimular uma recuperação imediatos, e com mecanismos de redistribuição do poder mundial tem
económica sem acelerar a crise cooperação multilateral entorpecidos sido assegurada pelas estratégias
climática –, ou o crescimento brutal ou marginalizados, cada vez mais que cada ator internacional tem
da desigualdade – quem determina vemos atores estatais e não- assumido, sendo que, segundo
o futuro económico e tecnológico estatais a usar esta oportunidade as diversas análises, varia desde
pós-Covid. para adotarem políticas agressivas unipolar a multipolar, onde existem
2. A pandemia tem revelado e oportunistas que, na busca de ainda referências a uma eventual
as fragilidades de uma ordem ganhos de curto prazo, exponenciam nova Guerra Fria – salvaguardando
mundial pós-liberal. Tendências os riscos para a segurança as devidas distâncias.
como a deterioração da relação internacional. Sobretudo em países Este equilíbrio geopolítico surge
transatlântica, o papel disruptivo da com Estados frágeis, com fraca de uma menor intervenção externa
Rússia sob o comando de Putin, ou capacidade de resposta aos efeitos dos Estados Unidos, e consequente
a rivalidade estratégica China-EUA, da pandemia, o padrão que liga a perda da supremacia global, e a
bem como a abdicação da liderança insegurança alimentar e económica a abertura de caminho a potências
global por parte da administração escaladas de violência, com grupos revisionistas, sejam elas a China,
Trump, não foram causados pela radicais a aproveitarem-se disso com uma sólida estratégia global, a
pandemia, mas são exacerbadas por para maior recrutamento e ações “esforçada” Rússia ou ainda a União
ela. Entre a pulsão desreguladora mais violentas, tem-se repetido em Europeia, procurando o regresso à
do neoliberalismo económico, e países como a Nigéria, Moçambique, importância de outros tempos, numa
o avanço da democracia iliberal Paquistão, Afeganistão, ou Síria. permanente luta entre o sonho e a
de cariz populista/nacionalista, o Atores estatais, por seu lado, têm realidade, muito ao estilo das “Três
multilateralismo liberal tem sofrido aproveitado a oportunidade para Irmãs” de Tchekhov.
uma pesada erosão a nível global, (i) aumentar o uso de tecnologias Este movimento de contração leva
e regional – veja-se o esmorecer de vigilância social e política em a que o espaço não reclamado
dos processos de integração na massa, sob a égide da saúde e seja imediatamente ocupado por
América Latina e Ásia, e a crescente segurança públicas, e (ii) prosseguir outros atores, em especial pelos
disfunção da UE enquanto projeto uma política externa mais agressiva que procuram consolidar interesses
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regionais. É o caso da Turquia e do antiaérea), conseguindo manter efeitos ainda não conseguimos
seu incontornável presidente Recep linhas de contato com o Ocidente. antecipar plenamente. Elencando as
Tayyip Erdogan. Esse realismo estratégico turco tem vítimas do vírus:
Mestre na provocação política, o permitido que efetivamente atue Confiança: é um dos aspetos
presidente turco tem conseguido no seu designado “espaço vital”, mais atingidos pelo vírus. Bastará
manter-se no poder desde 2003, com na “disputa energética” ao largo de observar a deterioração das relações
uma impressionante capacidade de Chipre, mas também nos conflitos da entre Estados, as acusações mútuas,
resistir aos diversos contratempos Síria e da Líbia, onde, pela projeção a irresponsabilidade de governantes,
e ao declínio político e económico – do poder militar, assegura a defesa a manipulação de números, a
apesar dos bons resultados iniciais de interesses territoriais, económicos ocultação de informação e a falta de
do “calvinismo islâmico”. e políticos. solidariedade nos momentos mais
Através de um modelo de Mas é através do desenvolvimento delicados, mesmo entre parceiros e
democracia iliberal, revisionista, do soft power que Ancara tem a aliados;
nacionalista e islâmico, em que o oportunidade de alcançar os mais Sistema multilateral: o sistema
populismo assume a coluna vertebral profundos objetivos. Com uma institucional é outra vítima do vírus.
da estratégia – veja-se a recente dinâmica que se inicia no contato Era já uma tendência bem visível;
“re-islamização” da Ayasofya (Santa com as comunidades turcófonas, mas as decisões da administração
Sofia) –, Erdogan exerce um total passando para as muçulmanas, a americana, a que se juntam a
controlo doméstico. Com recurso Turquia assegura o desenvolvimento debilidade de algumas organizações,
a uma forte retórica internacional de uma forte rede cultural, escolar, como a OMS, e a opacidade de
e silenciando todos os opositores comercial e, por fim, política. grandes atores internacionais levam
turcos – sejam eles dissidentes, O sucesso é evidente. a que se torne ainda mais premente
como os seguidores do seu ex- A forte aposta do presidente reconstruir o sistema de alianças
aliado Fettulah Gülen, académicos, Erdogan numa matriz de política multilaterais; e reformar o sistema
professores, oficiais de justiça, externa expansionista, em que das Nações Unidas.
militares, jornalistas, políticos gere cuidadosamente os aliados de Globalização: O vírus veio reforçar o
esquerdistas e secularistas ou diferentes quadrantes, tem permitido papel do Estado enquanto regulador
representantes curdos –, assegura a Ancara constituir-se como um e protetor. Ficaram patentes
uma plena harmonização interna. player regional preponderante e, excessivas dependências externas,
Tal permite-lhe concentrar-se na com isso, voltar a situar a Turquia vulnerabilidades resultantes da
janela de oportunidade agora criada no centro do tabuleiro geopolítico deslocalização que não ponderou
na arena internacional. Apesar internacional. devidamente imperativos
dos repetidos confrontos, e de se É este o tempo das potências estratégicos de segurança e
constituir como um aliado incerto, regionais? fragilidades da alienação de sectores
Erdogan nunca ultrapassa um limite produtivos essenciais.
pragmático, mantendo a sua visão
grandiosa, neo-otomanista e de A Erosão da Globalização: 2. Desafios geoestratégicos após
“profundidade estratégica”, em que Desafios Geoestratégicos Covid-19
procura recuperar a capacidade de a Depois de descrever a doença
Turquia se assumir, no mínimo, como João Mira Gomes
Embaixador
identifiquemos uma terapia.
potência regional. Como exemplos Deveríamos atender ao seguinte:
desse pragmatismo encontramos: Preservar a relação transatlântica:
a continuidade do relacionamento 1. Vítimas da crise Covid-19
a OTAN é confrontada com um
comercial, e mesmo militar, com A Covid-19 é um fator de desafio que atinge o cerne da
Israel; a ameaça, mas não emprego transformação de movimentos relação transatlântica: o facto de
efetivo, da arma de utilização única e tendências. Alguns já eram um presidente dos EUA encarar a
dos “refugiados”; e a compra, mas percetíveis; mas a pandemia UE como um adversário e os laços
não operacionalização, dos mísseis funcionou como um enorme entre Aliados como uma equação de
russos S-400 (sistema de defesa acelerador de partículas, cujos “deve e haver”. Acredito na validade
da relação transatlântica e deveremos Nova Sociedade Global de dominante a estes problemas irá
encará-la de forma estratégica, manter uma globalização económico-
independentemente de conjunturas Risco, Nova Guerra Fria comercial liberal, ou se predominarão
políticas. É um esforço que recai formas de protecionismo/nacionalismo
sobre todos os governos aliados; a José Pedro Teixeira Fernandes económico.
Investigador do IPRI-Universidade Nova de
Aliança é, antes de mais, um espaço Lisboa 3. A par de uma nova sociedade
de concertação política assente nos Professor-coordenador do ISCET global de risco e da desglobalização,
mesmos valores e princípios. há outras tendências a afirmarem-
A hora da Europa: Chegou a “hora da 1. Nos anos 1980, no contexto da se no mundo. Sob o comando de Xi
Europa”. Como afirmava recentemente Guerra Fria, o sociólogo germânico Jinping, a China está a aproveitar
o ministro dos Negócios Estrangeiros Ulrich Beck formulou o conceito a concentração das atenções
francês, a Europa deverá agir de sociedade de risco. Na época, mundiais na pandemia da Covid-19,
como uma “potência de equilíbrio”, o nuclear era o arquétipo do risco para avançar com o seu interesse
estabelecendo a ponte entre EUA, mais destrutivo para a humanidade. nacional e poder global. No passado,
Rússia e China ao mesmo tempo A ameaça de uma mutual assured o Estado chinês procurava não criar
que consolida a “soberania europeia”. destruction – destruição mútua tensões no ambiente de segurança
Antes do vírus, o termo “autonomia garantida, MAD na sigla inglesa internacional, aproveitando
estratégica” era relacionado com –, entre os EUA e antiga União ocasionais oportunidades para
segurança e defesa; hoje, essa Soviética, levando o resto do mundo avançar nos seus objetivos
autonomia estratégica deverá ser um consigo, e de uma possibilidade nacionais. Fazia-o tentando evitar
dos pilares da “soberania europeia”; (bem real) de acidentes nucleares, reações internacionais significativas,
e expressar-se não só em termos como o acidente de Chernobil na ajustando a sua política (recuando,
políticos, económicos, financeiros; Ucrânia soviética mostrou, pairavam se necessário) de forma a tranquilizar
mas, e é muito relevante, também no ar. Mas no mundo do século XXI o mundo exterior. Agora, de Hong
em princípios e valores. A Europa outros riscos emergiram. A pandemia Kong ao Mar da China Meridional,
não poderá abandonar o moral high da Covid-19 evidenciou, cruamente, passando pela Índia até ao Japão e
ground. uma sociedade global de risco para Austrália, na Ásia-Pacífico, chegando
Como lidar com a China: é a qual ninguém estava preparado, à União Europeia, a Ocidente, há
uma questão essencial porque a nem as grandes potências globais – uma China determinada a prosseguir
bipolaridade da Guerra Fria está a EUA e a China –, nem qualquer outra o seu interesse nacional sem
ser substituída pela que opõe os EUA parte do mundo. grandes subtilezas diplomáticas.
à China. O vírus foi um acelerador 2. É demasiado cedo para se poder 4. Em termos geoestratégicos,
da deterioração já evidente antes da antecipar com elevado grau de a rivalidade EUA-China está a
pandemia. Por outro lado, é cada certeza a plenitude dos impactos da assemelhar-se, cada vez mais, a
vez mais percetível que Pequim vai Covid-19 na ordem mundial e nos uma nova Guerra Fria. A disputa
ocupando o espaço geoestratégico equilíbrios geoestratégicos. Para comercial bilateral anterior deu
abandonado pelos americanos. A já, o impacto é sobretudo o de um lugar a várias frentes com múltiplas
uma China mais agressiva, a Europa acelerador das tendências anteriores, ramificações, as quais vão da
deverá responder com mais canais as quais apontavam para uma questão de Hong Kong à disputa
de contacto, tão dialogantes quanto erosão da ordem político-económica comercial sino-australiana, passando
firmes. A reconstrução da ordem mundial existente, com os EUA no pelas instituições de governação
mundial não poderá ser feita ao centro desta. Ao nível geoeconómico, global ligadas às Nações Unidas. As
arrepio, ou ignorando Pequim. há um intensificar das tendências de controvérsias à volta da Organização
Concluindo: caberá aos europeus um desglobalização pré-existentes na Mundial de Saúde (OMS), acusada
papel crucial na aplicação da terapia economia e comércio internacionais pelo governo dos EUA de estar ao
face à Covid-19. Esperemos que a UE – e agora também de mobilidade serviço da China, são uma outra
saiba estar à altura dos desafios. É a de pessoas –, de consequências ponta visível desse conflito. Mesmo
hora da Europa! potencialmente desastrosas. num cenário de hipotética vitória de
Não é claro se a resposta política Joe Biden nas próximas eleições
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presidenciais dos EUA, e mesmo assegurar que a União Europeia está Europa precisa desesperadamente
com o abandono da política America ativamente envolvida na definição e onde começa a fazer importantes
First e regresso ao multilateralismo, da sua segurança e na resposta aos investimentos.
o conflito sino-americano está já grandes desafios globais. Mas, com a competição (e eventual
demasiado enraizado para não ser O atual contexto de forte tensão e conflito) entre potências a assumir-
uma linha maior da política mundial. conflito entre os Estados Unidos se como uma das características da
Ainda que a contragosto, obrigará os e a China, com as suas múltiplas ordem mundial que se anuncia, o
europeus a escolherem campos. dimensões e potenciais efeitos risco é que as fontes de insegurança
negativos, deve fazer a Europa atuais, radicadas na desigualdade,
refletir sobre as suas prioridades. A na globalização da pobreza e na
Liderar na Cooperação e na atual crise pandémica demonstrou falta de sustentabilidade ambiental,
Solidariedade – o Caminho a importância de reforçar os fóruns permaneçam uma prioridade
multilaterais, de fomentar diálogos marginal. E é aqui, neste domínio
para a Europa numa Ordem construtivos e encontrar alternativas profundamente humano, que
Mundial em Mudança ao isolacionismo nacionalista, que a herança liberal, multilateral e
contribuirão em muito para dissipar cosmopolita europeia poderá
Licínia Simão instabilidade e uma nova Guerra fazer a diferença num mundo
Professora de Relações Internacionais e
Investigadora, Universidade de Coimbra
Fria entre Washington e Pequim, pós-pandémico. As respostas ao
Ministério da Defesa Nacional que exigiria escolhas complexas aos sofrimento humano e a criação
europeus. de estruturas que cuidem e que
A crise pandémica que vivemos Por isso mesmo, a pergunta protejam de forma sustentável e
à escala global desde o início de essencial é a de saber como pode que reforcem os mecanismos de
2020 encontrou a União Europeia a Europa assegurar as fontes de solidariedade e diálogo político,
(UE) num momento de transição. poder cruciais nas décadas que poderá ditar uma forma de liderança
Transição nas instituições europeias, se avizinham? Se a superioridade europeia para a qual, nem os EUA,
com uma nova Comissão Europeia militar, incluindo através das nem a China, estão disponíveis neste
acabada de entrar em funções, armas nucleares, permanecerá um momento. Assim, caberá à Europa
anunciando uma “Europa (mais) indicador incontornável, a realidade definir a natureza da sua ação
geopolítica”, mas ainda sem um de ameaças híbridas e de fontes geopolítica. E nesse processo valerá
orçamento comunitário aprovado e de insegurança não-convencionais a pena ponderar a opção de assumir-
com o processo de saída da UE, por tem permitido uma nova corrida se como um polo incontornável de
parte do Reino Unido, por concluir. aos armamentos, marcada pela valorização do multilateralismo,
Uma transição também no que toca busca da superioridade tecnológica da cooperação e do combate às
ao paradigma liberal europeu, já e profundamente interligada por desigualdades globais gritantes, que
que, em grande parte dos Estados- políticas de controlo e uso de a pandemia veio mais uma vez expor
membros da UE, encontramos hoje informação e comunicação de uma e reforçar.
forças conservadoras e em alguns forma intensiva. Com o advento
casos antidemocráticas com uma do capitalismo de vigilância ou do
significativa expressão política, social capitalismo digital, o domínio do China: a Oportunidade
e económica, e simultaneamente, ciberespaço é já fonte de tensão,
ao nível das políticas europeias, como bem ilustram as acusações
Perdida
encontramos padrões de incoerência de ciberataques efetuados com Luís Cunha
entre uma autoimagem liberal e o intuito de roubar a investigação Investigador do Instituto do Oriente
cosmopolita da UE e a sua ação, científica em curso nos Estados ISCSP-Universidade de Lisboa
Instituto da Defesa Nacional
frequentemente assente em lógicas Unidos e na Europa para uma vacina
de interesse próprio e de poder. COVID. Também a competição numa
“Guerra”. Fria, comercial,
Assim, não é ainda claro o que nova era espacial abre portas no
tecnológica, cibernética, diplomática.
essa vontade europeia de “ser domínio da segurança e da defesa
A virulência semântica invadiu as
geopolítica” implicará, mas deverá e no domínio económico, de que a
parangonas da imprensa. Com – na oposição a uma China É possível que a China saia deste
crescente frequência, a China crescentemente imperativa e imperial período crítico com uma economia
ocupa o epicentro de uma disputa na defesa dos seus interesses. capaz de ascender à posição cimeira
que coloca em confronto modelos O modo como a liderança da China mundial antes do previsto. Por outro
conflituantes de liderança mundial. encarou a crise desencadeada pelo lado, o tecnonacionalismo promovido
Depois de quatro décadas a vírus com origem no país refletiu, por Pequim ganha terreno. Mas no
fomentar o crescimento da China, simultaneamente, os predicados de plano geopolítico, a ofensiva de
os Estados Unidos descobrem, com uma liderança forte no plano interno charme deu lugar a uma postura
falso espanto, que o seu rival asiático e as fragilidades da política externa revisionista e até confrontacional,
não é socializável de acordo com os chinesa. Ao aproveitar a crise global que resultou na formação de
padrões liberais e democratizantes para acelerar a sua ambiciosa uma corrente reativa centrada
das sucessivas presidências agenda geopolítica e geoeconómica, em Washington com sucursal em
americanas. A empolada narrativa a China acabou por desbaratar o Bruxelas.
em redor de uma “traição sínica” capital diplomático granjeado no O sinólogo Jean François Billeter
mobiliza a elite política americana e aparente sucesso do combate ao sustenta que a China deu início
ameaça perdurar. Covid-19 e na ajuda solidária aos a uma “guerra política” contra o
Apanhada no fogo cruzado entre países mais afetados. Dito de outro Ocidente. Recorda que desde a
grandes poderes, a União Europeia modo, as debilidades reveladas fundação do Império chinês há
ensaia uma via contaminada, mostraram que a China ainda não “no topo um poder indivisível, de
mas aparentemente autónoma, está pronta para ser líder mundial. iniciativa estratégica, que recorre
no relacionamento com a China. Coincidindo com a crise pandémica, em igual medida ao civil e militar,
Quer marcar presença na agenda assistiu-se à extinção prematura da que não reconhece qualquer outro
geopolítica, mostrando-se mais fórmula “um país, dois sistemas”, contrapoder e não tem, na sua
assertiva e contundente. São de com a criminalização da autonomia essência, limite”.
isso exemplo as surpreendentes de Hong Kong, à renovada expansão Xi Jinping, o Presidente-Imperador, é
declarações da Comissária Europeia aeronaval da China no Mar da um líder transformacional, sem limite
acusando a China de fazer ataques China Meridional, em regime de constitucional para o seu mandato. A
informáticos a hospitais e centros exclusividade e interdição, e ao sua mundivisão com “características
de computadores. Logo após uma reacender do latente conflito chinesas” continuará a provocar
conferência de alto nível com o fronteiriço com a Índia. Quanto a ondas de choque no sistema
presidente e primeiro-ministro Taiwan, é cada vez mais improvável internacional.
chineses… uma reunificação pacífica, até porque
A crise pandémica é, para o bem Pequim nunca renunciou ao possível
e para o mal, a catalisadora de uso da força, legalmente consagrado O Impacto Internacional
uma clarificação geopolítica no na lei antissecessão.
relacionamento entre as principais O “livro branco” sobre a pandemia,
da Pandemia
potências do Ocidente e a China. divulgado pela China, enfatiza a Luís Moita
Uma espécie de depuração que solidariedade de Pequim para com Professor de Relações Internacionais
deixou a descoberto as fragilidades 200 países e regiões, incluindo
de muitas lideranças, um fator crítico a exportação de 70 biliões de A pandemia que assola o mundo
para o exercício responsável do máscaras. Mas a crise expôs condiciona tempos que parecem
poder, como Joseph Nye sublinhou cruamente a excessiva dependência propícios ao afloramento das nossas
numa sua obra ao relacionar as de muitos países relativamente patologias coletivas. Também
crises com “inteligência contextual”. à produção “Made in China”, assim no panorama internacional.
Paralelamente, agudizou-se a nomeadamente em matéria de Um dos processos que estava
polarização corporizada pelos like ventiladores e outro equipamento em marcha e que dir-se-ia ter
minded na órbita dos EUA – com médico. Sem surpresa, a aproveitado para mais se manifestar
destaque para a aliança Five Eyes, reindustrialização passou a estar na é a fragilização do multilateralismo.
países que partilham intelligence ordem do dia nos EUA e Europa. Se o ataque à Organização
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o peso no desempenho económico com a saúde deste a permanecer Southern countries, whether
é claro. As implicações sociais fragilizada. Quanto à dimensão they have taken the necessary
daqui decorrentes, e que não são externa, os equilíbrios em curso measures, would benefit from more
diferentes de muitos outros contextos na política externa russa deverão international aid, but donors, in
nacionais, com o desemprego em ser mantidos, pelo menos no curto- times of recession, adjustments
alta e os rendimentos em baixa, médio prazo, sendo que a saúde do and (predictably) tax raises, will
fragilizam o sistema político. sistema terá um impacto claro no be reluctant to increase their
Contudo, na Rússia, a manutenção que serão as suas opções de política contributions.
do putinismo tem contornos externa. The tension between great powers
próprios. A tentativa política de will escalate. Before the pandemic,
alteração dos desequilíbrios the United States was already in a
cada vez mais evidentes torna-se Winners and Losers in the deep political and social crisis and
clara na realização do referendo International System after weakening external legitimacy. The
para aprovação de alterações outcome is a power vacuum that
constitucionais várias. A possibilidade
Covid-19 accelerates the international system
de Putin permanecer no comando Mariano Aguirre to become more multipolar, strongly
parece, no entanto, enformada Associate fellow of the International Security based on national interests, in which
de fragilidade. A necessidade de Program in Chatham House no one will have enough strength to
Fellow of the Latin American Network for
acautelar a questão de ‘quem se impose its criteria. The dangerous
Inclusive and Sustainable Security of the
segue’, em contexto de autoritarismo, Friedrich Ebert Foundation tension between China and the
aumenta os problemas de United States will increase further,
legitimidade do próprio regime. The Covid-19 crisis will have a unless a Democratic Party president
Como alguns têm dito, Putin agiu no strong impact on the international reverses the trend. The international
sentido de “zerar” a contagem no system: inequalities will deepen, system will be characterized by an
poder, mas a Covid-19 acabou por political tensions between great overlap of multi- and bipolarity.
“zerar” muitas das suas realizações. powers will worsen, and ongoing But even if the tone of the
Nesta linha, a organização da parada armed conflicts will continue. confrontation is softened,
militar em Moscovo no passado People who work in the informal competition for areas of influence
dia 24 de junho, assinalando os 75 sector, living in overcrowded will increase. China has good cards
anos do fim da Segunda Guerra neighborhoods, lacking access in its hands: the global project for
Mundial, em contexto de pandemia, to public health, education, the new Silk Road, an advanced
parece sinalizar que esta tentativa transportation and security services, scientific-technological program, a
de reforço do apoio doméstico não have suffered dramatically. To the commitment to alternative energies,
se tem concretizado. Se por um 630 million surviving on $ 1.90 a and its investments and cooperation
lado a pandemia parece acentuar day, another 420 million will be policies will allow Beijing to continue
tendências em curso ao nível da added, according to an estimate by gaining global presence.
política externa, em particular o King’s College London. On the other hand, with Trump or
reforço das relações com a China, Those people have not been able Joe Biden in the White House, the
na dimensão doméstica veio reforçar to confine themselves or wash tension between the United States
os desequilíbrios crescentes e a their hands frequently. They have and Russia will increase, with a
vulnerabilidade da ‘grande potência’ received practically no aid from their revival of the nuclear arms race that
face ao próprio regime que a states nor have savings to wait for will encourage other countries to
sustenta. A pandemia, no entanto, the economy to recover. There will follow it. Moscow will continue with
não parece permitir antecipar be less formal work and informal its policies of rapprochement with
cenários de grandes mudanças. work will be riskier to do. Criminal China and Europe, and occasional
A exposição das fragilidades organizations and illicit trafficking of incursions into regional conflicts.
domésticas, que se estendem no people, goods (including medicines), The United States, focused on its
tempo, deverá encontrar resposta fauna and flora will arise stronger withdrawal from Afghanistan, the
no reforço do regime, mesmo from the crisis. Middle East, and part of its troops
from Europe and South Korea, will COVID-19 e a Europeia, as suspeitas levantadas
not challenge it. quanto ao papel da China e os
In Europe, Germany emerges (Des)Promoção da Paz nacionalismos que levaram ao
stronger from this crisis, confirming Paula Duarte Lopes fecho de fronteiras, fragilizaram o
its role as European leader. The big Universidade de Coimbra, Centro de Estudos sistema de cooperação internacional.
losers are Italy, Spain and the United Sociais, Faculdade de Economia Os mercados globalizados, tão
Kingdom. With its recovery funds, the enaltecidos, estão enfraquecidos:
European Union is trying to regain O regime internacional de não só foram abalados pelas
part of the political capital loss of the promoção de paz – missões de decisões dos Estados, como
2008 financial crisis, the incoherent paz, apoio ao desenvolvimento e demonstraram, mais uma vez,
response to migration flows and ações humanitárias – tem vindo que não são adequados para
Brexit. a consolidar uma abordagem gerir ou responder a emergências
Most of the countries of the Global caracterizada pela construção de humanitárias ou problemas sociais
South will be impacted by the global Estados de direito, pela promoção da de forma eficazmente digna e
recession resulting in a falling democracia e dos Direitos Humanos, sustentável. A tendência do aumento
demand for their primary resources pela construção de economias de poder das redes sociais foi
and manufactured products. The capitalistas, e pela transformação acelerada e reforçada com a ativação
number of people trying to migrate social no sentido de sociedades mais das redes científicas e profissionais,
combined with strengthened border inclusivas, justas e sustentáveis. transmitindo e partilhando, em tempo
controls will increase. Despite the call Toda esta dinâmica intervencionista real, (des)informação, experiências e
for a ceasefire by the United Nations tem assentado em pelo menos estratégias que permitiram tomadas
Secretary-General, armed conflicts dois pressupostos: (1) os países de decisão, melhores ou piores,
persist in Yemen, Libya, Syria and ditos desenvolvidos e democráticos ao nível mais local e individual,
other countries, in addition to non- estão melhor posicionados para ultrapassando, por vezes, os próprios
conventional violence between assegurarem estas intervenções; e Governos.
armed groups and states as, for (2) o esforço tem de ser multinacional O futuro mudou. A geopolítica do
example, in Colombia and Mexico. e em parceria, com o envolvimento intervencionismo em nome da
This crisis will be a mirror of how the de países, organizações paz, quer se concorde com ela
impacts of climate change could be internacionais e regionais, atores ou não, está mais frágil do que
like, but many governments will be privados e não-governamentais. nunca. A pandemia COVID-19
reluctant to take preventive measures Se, por um lado, a pandemia mostrou que: (1) a paz que se
in times of recession. COVID-19 veio reforçar a tem vindo a promover desde 1945
Regarding the multilateral system, necessidade de um regime não é resiliente e, portanto, não é
will affected governments realize internacional de solidariedade sustentável, nem nas geografias
that issues such as pandemics and e ajuda mútua, de coordenação intervencionadas, nem nos países
climate change must be dealt with e partilha de conhecimentos, ditos democráticos e desenvolvidos;
cooperatively, or will it continue to experiências, recursos materiais, e (2) o nacionalismo centrado sobre
be as an instrument at the service of financeiros e humanos, bem como de si próprio com laivos autárcicos
national interests only? políticas e estratégias, por outro lado, continua vivo e parece ser ativado
também tornou visível as fundações em momentos de emergência com
frágeis deste regime internacional demasiada facilidade. Um futuro
e a insustentabilidade da paz que mais sustentável terá de se basear
se pensava existir nos países ditos num recentrar de prioridades no
desenvolvidos e democráticos que o sistema internacional, apoiado
criaram e têm sustentado. nas organizações internacionais
A centralidade internacional dos e regionais existentes, e num
Estados está reforçada. A falta de recentrar simultâneo de prioridades
liderança por parte dos Estados nacionais, internas, que se esperam
Unidos da América e da União sejam promotoras de um modelo de
agosto 2020
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