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Cisnes negrosC Especial Pandemia

5 de agosto de 2020

A Nova (Des)Ordem Mundial: Efeitos da Pandemia


Helena Carreiras
O IDN Brief especial pandemia chega agora ao fim com um número dedicado ao impacto da COVID-19 na ordem mundial
e nos equilíbrios geoestratégicos. Foram 9 edições, em que 90 especialistas partilharam as suas análises sobre os efeitos
desta pandemia em múltiplas dimensões: da segurança sanitária à ação das forças armadas, da gestão de crises à segurança
humana, da defesa Europeia à relação transatlântica, da cibersegurança aos equilíbrios de poder mundiais. Esta edição fecha
com registos de diagnóstico e prospetiva sobre as dinâmicas da tensão e competição entre Estados Unidos e a China, o lugar
da Europa e dos seus principais protagonistas, o espaço para o multilateralismo e o papel da ciência, a contradição entre o
reforço dos interesses nacionais e as exigências de cooperação, a emergência, estabilidade ou irrelevância estratégica de
diferentes espaços regionais, a produção do inimigo, a desconfiança e o medo dos outros. Continuaremos, com outros forma-
tos e iniciativas, a acompanhar os cenários desta crise em desenvolvimento e de uma magnitude sem precedentes, na qual
a expressão ‘saudades do futuro’ adquire um sentido muito particular, alimentando tanto visões pessimistas como demandas
de ação e transformação.

A AMÉRICA LATINA NA NOVA DESORDEM INTERNACIONAL GEOPOLÍTICA MUNDIAL EM CONTEXTO DE PAN-


Andrés Malamud DEMIA: EUA VS. CHINA
Luís Tomé
COVID-19 E VOLATILIDADE INTERNACIONAL
Daniel Pinéu A SAÚDE DE UM PAÍS E DE UM SISTEMA:
A FEDERAÇÃO RUSSA EM CONTEXTO DE PANDEMIA
QUO VADIS TURQUIA? O MUNDO PÓS-COVID-19 DAS POTÊN- Maria Raquel Freire
CIAS REGIONAIS
Domingos Rodrigues WINNERS AND LOSERS IN THE INTERNATIONAL SYSTEM
AFTER COVID-19
A EROSÃO DA GLOBALIZAÇÃO: DESAFIOS GEOESTRATÉGICOS Mariano Aguirre
João Mira Gomes
COVID-19 E A (DES)PROMOÇÃO DA PAZ
NOVA SOCIEDADE GLOBAL DE RISCO, NOVA GUERRA FRIA Paula Duarte Lopes
José Pedro Teixeira Fernandes
A PANDEMIA, AS FRONTEIRAS E A UNIÃO EUROPEIA
LIDERAR NA COOPERAÇÃO E NA SOLIDARIEDADE – O CAMINHO Raquel Vaz-Pinto
PARA A EUROPA NUMA ORDEM MUNDIAL EM MUDANÇA
Licínia Simão A GLOBALIZAÇÃO PÓS-COVID-19 E O MEDO DOS
OUTROS. O QUE SE SEGUE?
CHINA: A OPORTUNIDADE PERDIDA
Teresa Rodrigues
Luís Cunha

O IMPACTO INTERNACIONAL DA PANDEMIA


Luís Moita DIRETORA
Helena Carreiras
COORDENADOR EDITORIAL
Luís Cunha
CENTRO EDITORIAL
António Baranita e Luísa Nunes
PROPRIEDADE, DESIGN GRÁFICO E EDIÇÃO
Instituto da Defesa Nacional
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A Nova (Des)Ordem Mundial: Efeitos da


Pandemia

A América Latina na Nova maiores capacidades estatais, verbalmente a Amazónia fica bem;
como o confinamento obrigatório. morrer por ela, não obrigado.
Desordem Internacional A heterogeneidade latino-americana Na nova desordem internacional, a
Andrés Malamud manifesta-se, sobretudo, na mesa ainda não está servida, mas os
Instituto de Ciências Sociais-Universidade de criminalidade e na inserção comensais já se preparam. A América
Lisboa
internacional. Enquanto os países Latina não será um deles; e, quanto
do Cone Sul – Argentina, Chile e ao menu, a África e até a Europa
Quem não está na mesa está Uruguai – têm taxas de homicídios surgem mais apetitosas. Há quem
no menu, dizem os especialistas de um dígito, comparáveis aos acredite que alguma potência latino-
em negociações internacionais. Estados Unidos, no México há 20 americana ainda pode ressurgir e
É legítimo perguntar-se em qual assassinatos anuais para cada puxar mais uma cadeira. Uma de
estará a União Europeia, ora 100.000 habitantes – e no Brasil, 30. duas: ou essas pessoas sabem
gigante económico, ora pigmeu Na Venezuela pararam de contar algo que ignoramos ou então falam
estratégico. No caso da América depois dos 90. Esta heterogeneidade português, a língua das descobertas
Latina, qualquer dúvida sobra: está a ser potenciada pela pandemia, e das ilusões.
não estará sentada à mesa. Resta e uma das consequências será a
saber se tem envergadura para maior fragmentação regional.
chegar ao menu. A América Latina são duas: uma ao COVID-19 e Volatilidade
A América Latina abrange
19 países que partilham o
norte do Canal de Panamá e outra Internacional
ao sul. Do Panamá para cima, os
presidencialismo como regime EUA constituem o principal parceiro Daniel Pinéu
político e a desigualdade como comercial, destino migratório e Amsterdam University College
estrutura social. De resto, fonte de remessas. Do Panamá
predomina a heterogeneidade. A para abaixo, é a China que investe, A pandemia não está diretamente a
Covid-19 tem vindo a iluminar as empresta e compra. Há quem tema, causar realinhamentos geopolíticos
caraterísticas comuns. Onde há então, um conflito entre as duas fundamentais, mas está a acelerar e
presidentes sensatos, como no superpotências pela influência exacerbar um conjunto de tendências
Uruguai ou até na Argentina, as regional. Isso é altamente improvável de alto impacto, aumentando
taxas de mortalidade continuam por três razões. Primeiro, os EUA a volatilidade internacional. É
bem abaixo das portuguesas; onde consideram que o seu perímetro de difícil estimar os seus efeitos a
há presidentes menos dotados, segurança acaba no Caribe, e nunca médio-longo prazo, mas importa
como no Brasil e no México, as invadiram os países mais ao sul. salientar três fatores com graves
cifras aproximam-se do horror Segundo, a estratégia chinesa na consequências a nível da segurança
espanhol. Quanto à desigualdade, região tem sido entrar onde os EUA internacional:
os elevados graus de informalidade se retraiam, nunca confrontando: 1. É incontornável o impacto
laboral – até 70% no Peru – encheram vazios, não pisaram geoeconómico da pandemia: entre
tornaram inefetivas políticas que calos. Terceiro, a região carece de os 20 países mais afetados estão
funcionaram bem em países com relevância estratégica: defender seis dos sete países do G-7, e quatro
dos cinco BRICS. Para além das político, solidário. Este gradual com riscos regionais acrescidos –
óbvias consequências em termos de desmantelamento das instituições, e.g., o conflito entre a Etiópia e o
mortes, estamos a testemunhar um mas sobretudo das normas, da Egipto, a atuação israelita em Gaza.
abrandamento económico global, de ordem liberal dos últimos 75 anos A pandemia é assim catalisadora,
efeitos profundos e desigualmente é tão mais perigoso quanto é mais do que causa direta, de maior
distribuídos. Os países fustigados ainda incerto o cariz da ordem insegurança global.
pela crise de 2008 estão agora a que lhe sucederá. A pandemia
perder quaisquer benefícios da parca vem, assim, evidenciar os riscos
recuperação económica da última associados à crescente competição Quo Vadis Turquia? O
década. Milhões de jovens – mais estratégica entre países, e ao Mundo Pós-COVID-19 das
de 40% da população mundial está crescente abandono de soluções
abaixo dos 25 anos – enfrentarão de cooperação multilateral, num Potências Regionais
aumento de desemprego, falta contexto em que ameaças como Domingos Rodrigues
de oportunidades e restrições à o COVID-19 são patentemente Adjunto da Direção do Instituto da Defesa
mobilidade internacional, bem impossíveis de prevenir e solucionar Nacional
como crises de insegurança de forma ‘uni- ou bilateral’, carecendo
alimentar que têm grassado em 55 da produção de bens públicos e de Mais do que um corte radical com
países desde 2019. Esta dinâmica governança global. o passado, que permita definir um
interage com outras tendências, 3. Com o enfoque mediático e antes e um depois do “COVID-19”,
como a degradação ambiental e a político firmemente centrado acreditamos estar perante
ameaça que ela representa para a na pandemia e na tentativa de um período de aceleração de
sobrevivência da espécie humana mitigação dos efeitos económicos tendências previamente definidas. A
– como estimular uma recuperação imediatos, e com mecanismos de redistribuição do poder mundial tem
económica sem acelerar a crise cooperação multilateral entorpecidos sido assegurada pelas estratégias
climática –, ou o crescimento brutal ou marginalizados, cada vez mais que cada ator internacional tem
da desigualdade – quem determina vemos atores estatais e não- assumido, sendo que, segundo
o futuro económico e tecnológico estatais a usar esta oportunidade as diversas análises, varia desde
pós-Covid. para adotarem políticas agressivas unipolar a multipolar, onde existem
2. A pandemia tem revelado e oportunistas que, na busca de ainda referências a uma eventual
as fragilidades de uma ordem ganhos de curto prazo, exponenciam nova Guerra Fria – salvaguardando
mundial pós-liberal. Tendências os riscos para a segurança as devidas distâncias.
como a deterioração da relação internacional. Sobretudo em países Este equilíbrio geopolítico surge
transatlântica, o papel disruptivo da com Estados frágeis, com fraca de uma menor intervenção externa
Rússia sob o comando de Putin, ou capacidade de resposta aos efeitos dos Estados Unidos, e consequente
a rivalidade estratégica China-EUA, da pandemia, o padrão que liga a perda da supremacia global, e a
bem como a abdicação da liderança insegurança alimentar e económica a abertura de caminho a potências
global por parte da administração escaladas de violência, com grupos revisionistas, sejam elas a China,
Trump, não foram causados pela radicais a aproveitarem-se disso com uma sólida estratégia global, a
pandemia, mas são exacerbadas por para maior recrutamento e ações “esforçada” Rússia ou ainda a União
ela. Entre a pulsão desreguladora mais violentas, tem-se repetido em Europeia, procurando o regresso à
do neoliberalismo económico, e países como a Nigéria, Moçambique, importância de outros tempos, numa
o avanço da democracia iliberal Paquistão, Afeganistão, ou Síria. permanente luta entre o sonho e a
de cariz populista/nacionalista, o Atores estatais, por seu lado, têm realidade, muito ao estilo das “Três
multilateralismo liberal tem sofrido aproveitado a oportunidade para Irmãs” de Tchekhov.
uma pesada erosão a nível global, (i) aumentar o uso de tecnologias Este movimento de contração leva
e regional – veja-se o esmorecer de vigilância social e política em a que o espaço não reclamado
dos processos de integração na massa, sob a égide da saúde e seja imediatamente ocupado por
América Latina e Ásia, e a crescente segurança públicas, e (ii) prosseguir outros atores, em especial pelos
disfunção da UE enquanto projeto uma política externa mais agressiva que procuram consolidar interesses

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regionais. É o caso da Turquia e do antiaérea), conseguindo manter efeitos ainda não conseguimos
seu incontornável presidente Recep linhas de contato com o Ocidente. antecipar plenamente. Elencando as
Tayyip Erdogan. Esse realismo estratégico turco tem vítimas do vírus:
Mestre na provocação política, o permitido que efetivamente atue Confiança: é um dos aspetos
presidente turco tem conseguido no seu designado “espaço vital”, mais atingidos pelo vírus. Bastará
manter-se no poder desde 2003, com na “disputa energética” ao largo de observar a deterioração das relações
uma impressionante capacidade de Chipre, mas também nos conflitos da entre Estados, as acusações mútuas,
resistir aos diversos contratempos Síria e da Líbia, onde, pela projeção a irresponsabilidade de governantes,
e ao declínio político e económico – do poder militar, assegura a defesa a manipulação de números, a
apesar dos bons resultados iniciais de interesses territoriais, económicos ocultação de informação e a falta de
do “calvinismo islâmico”. e políticos. solidariedade nos momentos mais
Através de um modelo de Mas é através do desenvolvimento delicados, mesmo entre parceiros e
democracia iliberal, revisionista, do soft power que Ancara tem a aliados;
nacionalista e islâmico, em que o oportunidade de alcançar os mais Sistema multilateral: o sistema
populismo assume a coluna vertebral profundos objetivos. Com uma institucional é outra vítima do vírus.
da estratégia – veja-se a recente dinâmica que se inicia no contato Era já uma tendência bem visível;
“re-islamização” da Ayasofya (Santa com as comunidades turcófonas, mas as decisões da administração
Sofia) –, Erdogan exerce um total passando para as muçulmanas, a americana, a que se juntam a
controlo doméstico. Com recurso Turquia assegura o desenvolvimento debilidade de algumas organizações,
a uma forte retórica internacional de uma forte rede cultural, escolar, como a OMS, e a opacidade de
e silenciando todos os opositores comercial e, por fim, política. grandes atores internacionais levam
turcos – sejam eles dissidentes, O sucesso é evidente. a que se torne ainda mais premente
como os seguidores do seu ex- A forte aposta do presidente reconstruir o sistema de alianças
aliado Fettulah Gülen, académicos, Erdogan numa matriz de política multilaterais; e reformar o sistema
professores, oficiais de justiça, externa expansionista, em que das Nações Unidas.
militares, jornalistas, políticos gere cuidadosamente os aliados de Globalização: O vírus veio reforçar o
esquerdistas e secularistas ou diferentes quadrantes, tem permitido papel do Estado enquanto regulador
representantes curdos –, assegura a Ancara constituir-se como um e protetor. Ficaram patentes
uma plena harmonização interna. player regional preponderante e, excessivas dependências externas,
Tal permite-lhe concentrar-se na com isso, voltar a situar a Turquia vulnerabilidades resultantes da
janela de oportunidade agora criada no centro do tabuleiro geopolítico deslocalização que não ponderou
na arena internacional. Apesar internacional. devidamente imperativos
dos repetidos confrontos, e de se É este o tempo das potências estratégicos de segurança e
constituir como um aliado incerto, regionais? fragilidades da alienação de sectores
Erdogan nunca ultrapassa um limite produtivos essenciais.
pragmático, mantendo a sua visão
grandiosa, neo-otomanista e de A Erosão da Globalização: 2. Desafios geoestratégicos após
“profundidade estratégica”, em que Desafios Geoestratégicos Covid-19
procura recuperar a capacidade de a Depois de descrever a doença
Turquia se assumir, no mínimo, como João Mira Gomes
Embaixador
identifiquemos uma terapia.
potência regional. Como exemplos Deveríamos atender ao seguinte:
desse pragmatismo encontramos: Preservar a relação transatlântica:
a continuidade do relacionamento 1. Vítimas da crise Covid-19
a OTAN é confrontada com um
comercial, e mesmo militar, com A Covid-19 é um fator de desafio que atinge o cerne da
Israel; a ameaça, mas não emprego transformação de movimentos relação transatlântica: o facto de
efetivo, da arma de utilização única e tendências. Alguns já eram um presidente dos EUA encarar a
dos “refugiados”; e a compra, mas percetíveis; mas a pandemia UE como um adversário e os laços
não operacionalização, dos mísseis funcionou como um enorme entre Aliados como uma equação de
russos S-400 (sistema de defesa acelerador de partículas, cujos “deve e haver”. Acredito na validade
da relação transatlântica e deveremos Nova Sociedade Global de dominante a estes problemas irá
encará-la de forma estratégica, manter uma globalização económico-
independentemente de conjunturas Risco, Nova Guerra Fria comercial liberal, ou se predominarão
políticas. É um esforço que recai formas de protecionismo/nacionalismo
sobre todos os governos aliados; a José Pedro Teixeira Fernandes económico.
Investigador do IPRI-Universidade Nova de
Aliança é, antes de mais, um espaço Lisboa 3. A par de uma nova sociedade
de concertação política assente nos Professor-coordenador do ISCET global de risco e da desglobalização,
mesmos valores e princípios. há outras tendências a afirmarem-
A hora da Europa: Chegou a “hora da 1. Nos anos 1980, no contexto da se no mundo. Sob o comando de Xi
Europa”. Como afirmava recentemente Guerra Fria, o sociólogo germânico Jinping, a China está a aproveitar
o ministro dos Negócios Estrangeiros Ulrich Beck formulou o conceito a concentração das atenções
francês, a Europa deverá agir de sociedade de risco. Na época, mundiais na pandemia da Covid-19,
como uma “potência de equilíbrio”, o nuclear era o arquétipo do risco para avançar com o seu interesse
estabelecendo a ponte entre EUA, mais destrutivo para a humanidade. nacional e poder global. No passado,
Rússia e China ao mesmo tempo A ameaça de uma mutual assured o Estado chinês procurava não criar
que consolida a “soberania europeia”. destruction – destruição mútua tensões no ambiente de segurança
Antes do vírus, o termo “autonomia garantida, MAD na sigla inglesa internacional, aproveitando
estratégica” era relacionado com –, entre os EUA e antiga União ocasionais oportunidades para
segurança e defesa; hoje, essa Soviética, levando o resto do mundo avançar nos seus objetivos
autonomia estratégica deverá ser um consigo, e de uma possibilidade nacionais. Fazia-o tentando evitar
dos pilares da “soberania europeia”; (bem real) de acidentes nucleares, reações internacionais significativas,
e expressar-se não só em termos como o acidente de Chernobil na ajustando a sua política (recuando,
políticos, económicos, financeiros; Ucrânia soviética mostrou, pairavam se necessário) de forma a tranquilizar
mas, e é muito relevante, também no ar. Mas no mundo do século XXI o mundo exterior. Agora, de Hong
em princípios e valores. A Europa outros riscos emergiram. A pandemia Kong ao Mar da China Meridional,
não poderá abandonar o moral high da Covid-19 evidenciou, cruamente, passando pela Índia até ao Japão e
ground. uma sociedade global de risco para Austrália, na Ásia-Pacífico, chegando
Como lidar com a China: é a qual ninguém estava preparado, à União Europeia, a Ocidente, há
uma questão essencial porque a nem as grandes potências globais – uma China determinada a prosseguir
bipolaridade da Guerra Fria está a EUA e a China –, nem qualquer outra o seu interesse nacional sem
ser substituída pela que opõe os EUA parte do mundo. grandes subtilezas diplomáticas.
à China. O vírus foi um acelerador 2. É demasiado cedo para se poder 4. Em termos geoestratégicos,
da deterioração já evidente antes da antecipar com elevado grau de a rivalidade EUA-China está a
pandemia. Por outro lado, é cada certeza a plenitude dos impactos da assemelhar-se, cada vez mais, a
vez mais percetível que Pequim vai Covid-19 na ordem mundial e nos uma nova Guerra Fria. A disputa
ocupando o espaço geoestratégico equilíbrios geoestratégicos. Para comercial bilateral anterior deu
abandonado pelos americanos. A já, o impacto é sobretudo o de um lugar a várias frentes com múltiplas
uma China mais agressiva, a Europa acelerador das tendências anteriores, ramificações, as quais vão da
deverá responder com mais canais as quais apontavam para uma questão de Hong Kong à disputa
de contacto, tão dialogantes quanto erosão da ordem político-económica comercial sino-australiana, passando
firmes. A reconstrução da ordem mundial existente, com os EUA no pelas instituições de governação
mundial não poderá ser feita ao centro desta. Ao nível geoeconómico, global ligadas às Nações Unidas. As
arrepio, ou ignorando Pequim. há um intensificar das tendências de controvérsias à volta da Organização
Concluindo: caberá aos europeus um desglobalização pré-existentes na Mundial de Saúde (OMS), acusada
papel crucial na aplicação da terapia economia e comércio internacionais pelo governo dos EUA de estar ao
face à Covid-19. Esperemos que a UE – e agora também de mobilidade serviço da China, são uma outra
saiba estar à altura dos desafios. É a de pessoas –, de consequências ponta visível desse conflito. Mesmo
hora da Europa! potencialmente desastrosas. num cenário de hipotética vitória de
Não é claro se a resposta política Joe Biden nas próximas eleições

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presidenciais dos EUA, e mesmo assegurar que a União Europeia está Europa precisa desesperadamente
com o abandono da política America ativamente envolvida na definição e onde começa a fazer importantes
First e regresso ao multilateralismo, da sua segurança e na resposta aos investimentos.
o conflito sino-americano está já grandes desafios globais. Mas, com a competição (e eventual
demasiado enraizado para não ser O atual contexto de forte tensão e conflito) entre potências a assumir-
uma linha maior da política mundial. conflito entre os Estados Unidos se como uma das características da
Ainda que a contragosto, obrigará os e a China, com as suas múltiplas ordem mundial que se anuncia, o
europeus a escolherem campos. dimensões e potenciais efeitos risco é que as fontes de insegurança
negativos, deve fazer a Europa atuais, radicadas na desigualdade,
refletir sobre as suas prioridades. A na globalização da pobreza e na
Liderar na Cooperação e na atual crise pandémica demonstrou falta de sustentabilidade ambiental,
Solidariedade – o Caminho a importância de reforçar os fóruns permaneçam uma prioridade
multilaterais, de fomentar diálogos marginal. E é aqui, neste domínio
para a Europa numa Ordem construtivos e encontrar alternativas profundamente humano, que
Mundial em Mudança ao isolacionismo nacionalista, que a herança liberal, multilateral e
contribuirão em muito para dissipar cosmopolita europeia poderá
Licínia Simão instabilidade e uma nova Guerra fazer a diferença num mundo
Professora de Relações Internacionais e
Investigadora, Universidade de Coimbra
Fria entre Washington e Pequim, pós-pandémico. As respostas ao
Ministério da Defesa Nacional que exigiria escolhas complexas aos sofrimento humano e a criação
europeus. de estruturas que cuidem e que
A crise pandémica que vivemos Por isso mesmo, a pergunta protejam de forma sustentável e
à escala global desde o início de essencial é a de saber como pode que reforcem os mecanismos de
2020 encontrou a União Europeia a Europa assegurar as fontes de solidariedade e diálogo político,
(UE) num momento de transição. poder cruciais nas décadas que poderá ditar uma forma de liderança
Transição nas instituições europeias, se avizinham? Se a superioridade europeia para a qual, nem os EUA,
com uma nova Comissão Europeia militar, incluindo através das nem a China, estão disponíveis neste
acabada de entrar em funções, armas nucleares, permanecerá um momento. Assim, caberá à Europa
anunciando uma “Europa (mais) indicador incontornável, a realidade definir a natureza da sua ação
geopolítica”, mas ainda sem um de ameaças híbridas e de fontes geopolítica. E nesse processo valerá
orçamento comunitário aprovado e de insegurança não-convencionais a pena ponderar a opção de assumir-
com o processo de saída da UE, por tem permitido uma nova corrida se como um polo incontornável de
parte do Reino Unido, por concluir. aos armamentos, marcada pela valorização do multilateralismo,
Uma transição também no que toca busca da superioridade tecnológica da cooperação e do combate às
ao paradigma liberal europeu, já e profundamente interligada por desigualdades globais gritantes, que
que, em grande parte dos Estados- políticas de controlo e uso de a pandemia veio mais uma vez expor
membros da UE, encontramos hoje informação e comunicação de uma e reforçar.
forças conservadoras e em alguns forma intensiva. Com o advento
casos antidemocráticas com uma do capitalismo de vigilância ou do
significativa expressão política, social capitalismo digital, o domínio do China: a Oportunidade
e económica, e simultaneamente, ciberespaço é já fonte de tensão,
ao nível das políticas europeias, como bem ilustram as acusações
Perdida
encontramos padrões de incoerência de ciberataques efetuados com Luís Cunha
entre uma autoimagem liberal e o intuito de roubar a investigação Investigador do Instituto do Oriente
cosmopolita da UE e a sua ação, científica em curso nos Estados ISCSP-Universidade de Lisboa
Instituto da Defesa Nacional
frequentemente assente em lógicas Unidos e na Europa para uma vacina
de interesse próprio e de poder. COVID. Também a competição numa
“Guerra”. Fria, comercial,
Assim, não é ainda claro o que nova era espacial abre portas no
tecnológica, cibernética, diplomática.
essa vontade europeia de “ser domínio da segurança e da defesa
A virulência semântica invadiu as
geopolítica” implicará, mas deverá e no domínio económico, de que a
parangonas da imprensa. Com – na oposição a uma China É possível que a China saia deste
crescente frequência, a China crescentemente imperativa e imperial período crítico com uma economia
ocupa o epicentro de uma disputa na defesa dos seus interesses. capaz de ascender à posição cimeira
que coloca em confronto modelos O modo como a liderança da China mundial antes do previsto. Por outro
conflituantes de liderança mundial. encarou a crise desencadeada pelo lado, o tecnonacionalismo promovido
Depois de quatro décadas a vírus com origem no país refletiu, por Pequim ganha terreno. Mas no
fomentar o crescimento da China, simultaneamente, os predicados de plano geopolítico, a ofensiva de
os Estados Unidos descobrem, com uma liderança forte no plano interno charme deu lugar a uma postura
falso espanto, que o seu rival asiático e as fragilidades da política externa revisionista e até confrontacional,
não é socializável de acordo com os chinesa. Ao aproveitar a crise global que resultou na formação de
padrões liberais e democratizantes para acelerar a sua ambiciosa uma corrente reativa centrada
das sucessivas presidências agenda geopolítica e geoeconómica, em Washington com sucursal em
americanas. A empolada narrativa a China acabou por desbaratar o Bruxelas.
em redor de uma “traição sínica” capital diplomático granjeado no O sinólogo Jean François Billeter
mobiliza a elite política americana e aparente sucesso do combate ao sustenta que a China deu início
ameaça perdurar. Covid-19 e na ajuda solidária aos a uma “guerra política” contra o
Apanhada no fogo cruzado entre países mais afetados. Dito de outro Ocidente. Recorda que desde a
grandes poderes, a União Europeia modo, as debilidades reveladas fundação do Império chinês há
ensaia uma via contaminada, mostraram que a China ainda não “no topo um poder indivisível, de
mas aparentemente autónoma, está pronta para ser líder mundial. iniciativa estratégica, que recorre
no relacionamento com a China. Coincidindo com a crise pandémica, em igual medida ao civil e militar,
Quer marcar presença na agenda assistiu-se à extinção prematura da que não reconhece qualquer outro
geopolítica, mostrando-se mais fórmula “um país, dois sistemas”, contrapoder e não tem, na sua
assertiva e contundente. São de com a criminalização da autonomia essência, limite”.
isso exemplo as surpreendentes de Hong Kong, à renovada expansão Xi Jinping, o Presidente-Imperador, é
declarações da Comissária Europeia aeronaval da China no Mar da um líder transformacional, sem limite
acusando a China de fazer ataques China Meridional, em regime de constitucional para o seu mandato. A
informáticos a hospitais e centros exclusividade e interdição, e ao sua mundivisão com “características
de computadores. Logo após uma reacender do latente conflito chinesas” continuará a provocar
conferência de alto nível com o fronteiriço com a Índia. Quanto a ondas de choque no sistema
presidente e primeiro-ministro Taiwan, é cada vez mais improvável internacional.
chineses… uma reunificação pacífica, até porque
A crise pandémica é, para o bem Pequim nunca renunciou ao possível
e para o mal, a catalisadora de uso da força, legalmente consagrado O Impacto Internacional
uma clarificação geopolítica no na lei antissecessão.
relacionamento entre as principais O “livro branco” sobre a pandemia,
da Pandemia
potências do Ocidente e a China. divulgado pela China, enfatiza a Luís Moita
Uma espécie de depuração que solidariedade de Pequim para com Professor de Relações Internacionais
deixou a descoberto as fragilidades 200 países e regiões, incluindo
de muitas lideranças, um fator crítico a exportação de 70 biliões de A pandemia que assola o mundo
para o exercício responsável do máscaras. Mas a crise expôs condiciona tempos que parecem
poder, como Joseph Nye sublinhou cruamente a excessiva dependência propícios ao afloramento das nossas
numa sua obra ao relacionar as de muitos países relativamente patologias coletivas. Também
crises com “inteligência contextual”. à produção “Made in China”, assim no panorama internacional.
Paralelamente, agudizou-se a nomeadamente em matéria de Um dos processos que estava
polarização corporizada pelos like ventiladores e outro equipamento em marcha e que dir-se-ia ter
minded na órbita dos EUA – com médico. Sem surpresa, a aproveitado para mais se manifestar
destaque para a aliança Five Eyes, reindustrialização passou a estar na é a fragilização do multilateralismo.
países que partilham intelligence ordem do dia nos EUA e Europa. Se o ataque à Organização

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Mundial da Saúde é porventura o categoria de análise pouco pertinente Geopolítica Mundial em


episódio mais visível, ele encontra para o caso e que deveríamos
réplicas, por vezes quase subtis, abandonar –, interrogando-nos Contexto de Pandemia:
nas expressões dos egoísmos obsessivamente sobre qual das EUA vs. China
nacionais, numa circunstância potências vai sair vencedora deste
em que tudo aconselharia a embate. Para já não falar daqueles Luís Tomé
Diretor do Departamento de Relações
cooperação internacional. A videntes que, de há muito, anunciam
Internacionais da Universidade Autónoma de
questão sanitária serviu também de a terceira guerra mundial a explodir Lisboa (UAL)
pretexto para grosseiras violações das reivindicações territoriais no Mar Diretor do OBSERVARE-Observatório de
do direito internacional, impedindo do Sul da China. Relações Exteriores
o acolhimento de refugiados ou Acentuar essas contradições
negando porto de abrigo a barcos pode trazer popularidade, mas A crise associada à Covid-19
com náufragos salvos das águas. não resiste a uma análise mais sublinhou e acelerou tendências
E as vozes do Secretário-geral das consistente, tão grandes são hoje a que vinham de trás, e desencadeou
Nações Unidas e do Papa Francisco interdependência das sociedades, dinâmicas que poderão redefinir a
ficaram isoladas ao reclamarem os enraizamentos geográficos Geopolítica Mundial. Salientamos
aquele mínimo que seria o cessar- dos processos produtivos e a algumas associadas aos principais
fogo dos conflitos acesos, vozes interpenetração dos sistemas protagonistas, EUA e China.
infelizmente não secundadas por financeiros. Sobretudo pouco ajuda Em primeiro lugar, a falta de
outros responsáveis, ficando nós quando se torna imperioso incentivar vontade e/ou de habilidade dos
sem sabermos o que se passa na a colaboração das comunidades EUA, com o presidente Trump,
Líbia e no Iémen ou qual a situação científicas internacionalizadas com para liderar o mundo em face de
da ofensiva turca no norte da Síria. vista à segurança coletiva. Uma uma nova preocupação global, bem
Enquanto ficavam em surdina as das surpresas da atualidade é a do como para articular com os seus
ameaças nucleares norte-coreana carácter anticientífico do discurso dos aliados e parceiros, persistindo no
e iraniana, como se fossem crises grandes demagogos, dos fanatismos protecionismo e no antagonismo às
já resolvidas, a agenda mediática religiosos e dos movimentos instituições internacionais – visando
internacional tem estado em grande de extrema-direita. Contra essa agora, em particular, a Organização
parte dominada pelo adensar da tendência obscurantista, a Mundial do Comércio e, sobretudo,
confrontação EUA-China. De há valorização da ciência torna-se mais a Organização Mundial de Saúde
muito se esboçava este processo necessária. A investigação científica de onde Trump retirou os EUA. Esta
que se pode verdadeiramente tem um papel crucial na erradicação postura pode dever-se a um certo
designar como produção de inimigo. das epidemias e, em geral, na “cansaço hegemónico” ou a um
Quando o anticomunismo se segurança sanitária, por isso seria cíclico isolacionismo/retraimento
dissipou, fomos sendo preparados importante que os laboratórios de estratégico americano, mas é
para a identificação desse outro pesquisa se articulassem a fim de inquestionável a “marca Trump”.
inimigo que era o radicalismo repensarem as suas prioridades Paralelamente, a administração
islâmico, na sua forma extrema de e de partilhar de imediato as suas Trump falhou clamorosamente
terrorismo, e foi declarada a guerra descobertas. Certamente se impõe na gestão da pandemia – os EUA
ao terror. Agora que essa ameaça que os projetos de investigação no são o país do mundo com mais
perece diluída, a China funciona bem domínio militar, sobretudo a pesquisa infetados e mortos por Covid-19 –,
como novo inimigo. Novas guerras de novos sistemas de armas, sejam a que se soma uma queda do PIB
foram sendo travadas. Guerra reconvertidos para a prioridade que sem precedentes desde há muitas
comercial. Guerra tecnológica. é a saúde global. No futuro próximo décadas. Conjugados, estes fatores
Guerra sanitária. Temos dificuldade algo de importante será posto à resultam num novo questionamento
em viver sem inimigo. Nós próprios, prova: que a vacina a descobrir seja acerca da posição e do papel dos
académicos, caímos nessa armadilha declarada bem público mundial, à EUA no sistema internacional. Por
e dissecamos a nova forma do que margem de qualquer apropriação por outro lado, a diabolização da China
chamamos bipolaridade – uma um país ou uma firma. foi instrumentalizada por Trump para
desviar críticas, mas facto é que, em China, mas exacerbou tensões e A Saúde de um País e de
contexto de pandemia, a perceção fricções existentes há anos – de
da China como principal rival e disputas comerciais à questão de um Sistema: a Federação
ameaça se tornou relativamente Taiwan, Direitos Humanos, Mar Russa em Contexto de
consensual nos EUA. do Sul da China, tecnologia, etc.
Segundo, a maior assertividade –, num contexto agravado quer
Pandemia
da China de Xi Jinping, parecendo pela assertividade chinesa quer Maria Raquel Freire
abandonar quer o princípio de pela campanha rumo às eleições Professora de Relações Internacionais da
“manter um perfil baixo” associado à presidenciais americanas. Faculdade de Economia da Universidade de
“estratégia dos 24 caracteres” desde Finalmente, da crise pandémica Coimbra
Investigadora do Centro de Estudos Sociais
Deng Xiaoping, quer a tradicional resultam tremendos impactos (CES)
linha de “coexistência pacífica” e económicos que poderão ter
essencialmente não-confrontacional reflexos significativos nos equilíbrios O contexto atual de pandemia
– da intensificação do repovoamento geopolíticos e geoestratégicos tem tido um impacto significativo
e da militarização no Mar do Sul que conhecemos, e tanto entre na Federação Russa, tal como na
China à Lei de Segurança Nacional potências como nas várias regiões generalidade do globo. Contudo,
imposta a Hong Kong, passando do mundo. Por outro lado, as a Rússia parece apresentar duas
pelo confronto militar com a Índia estimativas apontam para uma tendências distintas: na sua política
pela primeira vez em décadas e por queda do PIB menos acentuada externa, o reforço dos equilíbrios
sucessivas fricções diplomáticas e uma recuperação mais rápida geoestratégicos em contexto de
e ameaças de sanções a vários quer na Ásia-Pacífico quer da relações difíceis com o Ocidente
países, dos EUA à Austrália ou ao China, por comparação a outras como visível na política do ‘pivot
Reino Unido –, o que representa regiões/economias. Isso não só Ásia’, incluindo uma aproximação
um “grande salto em frente” na reforçará ainda mais a centralidade cautelosa à China; e na sua
concretização do “sonho chinês” e da Ásia-Pacífico como a China política doméstica, a reversão dos
na afirmação das reivindicações e da sairá da “dupla crise” pandémica desequilíbrios multissetoriais que as
posição da China. Pode argumentar- e económica com o maior PIB do vulnerabilidades do sistema parecem
se que esta assertividade é inerente mundo em termos reais – com as expor, quer na dimensão política quer
ao regime do “autocrata acelerador” consequências daí decorrentes nas dimensões social e económica.
Xi Jinping e resulta também da em todas as outras dimensões do Contrariamente à tendência
autoconfiança do crescimento do poder e reduzindo a margem para registada em muitos países da União
“poder nacional abrangente” chinês. estratégias de desacoplamento face Europeia, onde o apoio doméstico
Contudo, Pequim pode estar a ir à China. às políticas nacionais de combate
longe de mais e depressa de mais, A escalada de tensões EUA-China ao vírus foi evidente, na Rússia os
arriscando-se a provocar uma frente em contexto de pandemia leva níveis de aprovação do presidente
anti-China. muitos a referir ou perspetivar Vladimir Putin têm vindo a decrescer,
Terceiro, a bipolaridade competitiva uma “nova Guerra Fria”. Podendo fruto de uma resposta à crise
EUA vs. China. Numa estrutura de isso acontecer, nem as crises nem considerada tardia e insuficiente,
poder mundial “uni-bi-multipolar”, a crescente bipolaridade têm, mas também de uma crise maior
esta crise reforçou a perceção de inevitavelmente, de degenerar em para além do impacto sanitário da
bipolaridade entre as superpotências conflito. E no plano das hipóteses, Covid-19. Com quebras acentuadas
aparentemente declinante e poderão até EUA e China acomodar- nos rendimentos provenientes
emergente. Paralelamente, em se um ao outro, acabando por da exportação de energia, com
tempos de crise, as rivalidades cooperar e articular na recriação destaque para as perdas no
geopolíticas tendem mais a da ordem mundial. No plano das preço do barril de petróleo, que se
intensificar-se do que a atenuar- hipóteses… seguem às tensões com a Arábia
se, e a crise pandémica parece Saudita e se somam ao impacto
confirmá-lo. A Covid-19 não é causa económico mais geral das sanções
da competição entre os EUA e a decorrentes da questão ucraniana,

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o peso no desempenho económico com a saúde deste a permanecer Southern countries, whether
é claro. As implicações sociais fragilizada. Quanto à dimensão they have taken the necessary
daqui decorrentes, e que não são externa, os equilíbrios em curso measures, would benefit from more
diferentes de muitos outros contextos na política externa russa deverão international aid, but donors, in
nacionais, com o desemprego em ser mantidos, pelo menos no curto- times of recession, adjustments
alta e os rendimentos em baixa, médio prazo, sendo que a saúde do and (predictably) tax raises, will
fragilizam o sistema político. sistema terá um impacto claro no be reluctant to increase their
Contudo, na Rússia, a manutenção que serão as suas opções de política contributions.
do putinismo tem contornos externa. The tension between great powers
próprios. A tentativa política de will escalate. Before the pandemic,
alteração dos desequilíbrios the United States was already in a
cada vez mais evidentes torna-se Winners and Losers in the deep political and social crisis and
clara na realização do referendo International System after weakening external legitimacy. The
para aprovação de alterações outcome is a power vacuum that
constitucionais várias. A possibilidade
Covid-19 accelerates the international system
de Putin permanecer no comando Mariano Aguirre to become more multipolar, strongly
parece, no entanto, enformada Associate fellow of the International Security based on national interests, in which
de fragilidade. A necessidade de Program in Chatham House no one will have enough strength to
Fellow of the Latin American Network for
acautelar a questão de ‘quem se impose its criteria. The dangerous
Inclusive and Sustainable Security of the
segue’, em contexto de autoritarismo, Friedrich Ebert Foundation tension between China and the
aumenta os problemas de United States will increase further,
legitimidade do próprio regime. The Covid-19 crisis will have a unless a Democratic Party president
Como alguns têm dito, Putin agiu no strong impact on the international reverses the trend. The international
sentido de “zerar” a contagem no system: inequalities will deepen, system will be characterized by an
poder, mas a Covid-19 acabou por political tensions between great overlap of multi- and bipolarity.
“zerar” muitas das suas realizações. powers will worsen, and ongoing But even if the tone of the
Nesta linha, a organização da parada armed conflicts will continue. confrontation is softened,
militar em Moscovo no passado People who work in the informal competition for areas of influence
dia 24 de junho, assinalando os 75 sector, living in overcrowded will increase. China has good cards
anos do fim da Segunda Guerra neighborhoods, lacking access in its hands: the global project for
Mundial, em contexto de pandemia, to public health, education, the new Silk Road, an advanced
parece sinalizar que esta tentativa transportation and security services, scientific-technological program, a
de reforço do apoio doméstico não have suffered dramatically. To the commitment to alternative energies,
se tem concretizado. Se por um 630 million surviving on $ 1.90 a and its investments and cooperation
lado a pandemia parece acentuar day, another 420 million will be policies will allow Beijing to continue
tendências em curso ao nível da added, according to an estimate by gaining global presence.
política externa, em particular o King’s College London. On the other hand, with Trump or
reforço das relações com a China, Those people have not been able Joe Biden in the White House, the
na dimensão doméstica veio reforçar to confine themselves or wash tension between the United States
os desequilíbrios crescentes e a their hands frequently. They have and Russia will increase, with a
vulnerabilidade da ‘grande potência’ received practically no aid from their revival of the nuclear arms race that
face ao próprio regime que a states nor have savings to wait for will encourage other countries to
sustenta. A pandemia, no entanto, the economy to recover. There will follow it. Moscow will continue with
não parece permitir antecipar be less formal work and informal its policies of rapprochement with
cenários de grandes mudanças. work will be riskier to do. Criminal China and Europe, and occasional
A exposição das fragilidades organizations and illicit trafficking of incursions into regional conflicts.
domésticas, que se estendem no people, goods (including medicines), The United States, focused on its
tempo, deverá encontrar resposta fauna and flora will arise stronger withdrawal from Afghanistan, the
no reforço do regime, mesmo from the crisis. Middle East, and part of its troops
from Europe and South Korea, will COVID-19 e a Europeia, as suspeitas levantadas
not challenge it. quanto ao papel da China e os
In Europe, Germany emerges (Des)Promoção da Paz nacionalismos que levaram ao
stronger from this crisis, confirming Paula Duarte Lopes fecho de fronteiras, fragilizaram o
its role as European leader. The big Universidade de Coimbra, Centro de Estudos sistema de cooperação internacional.
losers are Italy, Spain and the United Sociais, Faculdade de Economia Os mercados globalizados, tão
Kingdom. With its recovery funds, the enaltecidos, estão enfraquecidos:
European Union is trying to regain O regime internacional de não só foram abalados pelas
part of the political capital loss of the promoção de paz – missões de decisões dos Estados, como
2008 financial crisis, the incoherent paz, apoio ao desenvolvimento e demonstraram, mais uma vez,
response to migration flows and ações humanitárias – tem vindo que não são adequados para
Brexit. a consolidar uma abordagem gerir ou responder a emergências
Most of the countries of the Global caracterizada pela construção de humanitárias ou problemas sociais
South will be impacted by the global Estados de direito, pela promoção da de forma eficazmente digna e
recession resulting in a falling democracia e dos Direitos Humanos, sustentável. A tendência do aumento
demand for their primary resources pela construção de economias de poder das redes sociais foi
and manufactured products. The capitalistas, e pela transformação acelerada e reforçada com a ativação
number of people trying to migrate social no sentido de sociedades mais das redes científicas e profissionais,
combined with strengthened border inclusivas, justas e sustentáveis. transmitindo e partilhando, em tempo
controls will increase. Despite the call Toda esta dinâmica intervencionista real, (des)informação, experiências e
for a ceasefire by the United Nations tem assentado em pelo menos estratégias que permitiram tomadas
Secretary-General, armed conflicts dois pressupostos: (1) os países de decisão, melhores ou piores,
persist in Yemen, Libya, Syria and ditos desenvolvidos e democráticos ao nível mais local e individual,
other countries, in addition to non- estão melhor posicionados para ultrapassando, por vezes, os próprios
conventional violence between assegurarem estas intervenções; e Governos.
armed groups and states as, for (2) o esforço tem de ser multinacional O futuro mudou. A geopolítica do
example, in Colombia and Mexico. e em parceria, com o envolvimento intervencionismo em nome da
This crisis will be a mirror of how the de países, organizações paz, quer se concorde com ela
impacts of climate change could be internacionais e regionais, atores ou não, está mais frágil do que
like, but many governments will be privados e não-governamentais. nunca. A pandemia COVID-19
reluctant to take preventive measures Se, por um lado, a pandemia mostrou que: (1) a paz que se
in times of recession. COVID-19 veio reforçar a tem vindo a promover desde 1945
Regarding the multilateral system, necessidade de um regime não é resiliente e, portanto, não é
will affected governments realize internacional de solidariedade sustentável, nem nas geografias
that issues such as pandemics and e ajuda mútua, de coordenação intervencionadas, nem nos países
climate change must be dealt with e partilha de conhecimentos, ditos democráticos e desenvolvidos;
cooperatively, or will it continue to experiências, recursos materiais, e (2) o nacionalismo centrado sobre
be as an instrument at the service of financeiros e humanos, bem como de si próprio com laivos autárcicos
national interests only? políticas e estratégias, por outro lado, continua vivo e parece ser ativado
também tornou visível as fundações em momentos de emergência com
frágeis deste regime internacional demasiada facilidade. Um futuro
e a insustentabilidade da paz que mais sustentável terá de se basear
se pensava existir nos países ditos num recentrar de prioridades no
desenvolvidos e democráticos que o sistema internacional, apoiado
criaram e têm sustentado. nas organizações internacionais
A centralidade internacional dos e regionais existentes, e num
Estados está reforçada. A falta de recentrar simultâneo de prioridades
liderança por parte dos Estados nacionais, internas, que se esperam
Unidos da América e da União sejam promotoras de um modelo de

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governação participativo, responsivo sofrimento de muitos italianos, que A Globalização Pós-


e responsável, de uma economia foram flagelados sem piedade.
produtiva, inovadora e ambiental e Quero apenas destacar que Covid-19 e o Medo dos
socialmente sustentável, e de uma fomos capazes de articular para Outros. O que se Segue?
sociedade mais inclusiva, justa e o presente e para o futuro uma
resiliente, projetando estas dinâmicas solidariedade europeia colocando Teresa Rodrigues
Professora da Universidade Nova de Lisboa
a nível mundial. A liderança, desta no centro o mais importante: a vida
Investigadora do IPRI-NOVA
vez, tem de ser das Organizações dos seus cidadãos. O caminho
Internacionais com o apoio estrutural foi e será tortuoso, mas não é O mundo pré-Covid-19 era baseado
e estruturante dos Estados- possível chegar a bom porto se não na globalização tendencial dos
membros. Os cenários alternativos estivermos unidos. fluxos de pessoas, bens, capitais,
serão sempre muito mais pobres Senti a resposta europeia como informação e ideias, embora
e injustos, repetindo contextos fazendo parte de um modo de vida, o processo mostre diferenças
que já se provaram historicamente que vale a pena preservar. Mais geográficas e cronologias distintas.
insustentáveis. ainda, essa preservação passa Os rankings que “medem” a
por um maior protagonismo da presença global de cada país são
A Pandemia, as Fronteiras União Europeia no mundo e ao consensuais ao afirmar que desde
reforço da sua ligação a outras 2008 foram poucas as mudanças nas
e a União Europeia democracias no mundo tais como a posições ocupadas: EUA, República
Coreia do Sul ou a Nova Zelândia. Popular da China e Índia ganham; a
Raquel Vaz-Pinto
Investigadora IPRI-NOVA
Na verdade, esta pandemia expôs velha Europa enfrenta dificuldades
o modo negligente, senão mesmo e África perde. A pandemia
O ano de 2020 tem sido um desafio criminoso, como as ditaduras acelerou processos de mudança
enorme em todas as dimensões olharam para o problema. A que começaram a evidenciar-se
da nossa vida. E ainda faltam preocupação primeira foi a uma década antes, nomeadamente
uns bons meses. Desde logo, manutenção do poder das suas mudanças económicas –
tornou ainda mais tangível o elites e a desinformação. Os desaceleração do comércio
“internacional” no quotidiano. A exemplos são muitos tais como internacional face à produção;
pandemia demonstrou de forma o da Federação Russa ou o da deslocalização, digitalização
inequívoca como as nossas República Popular da China, cujos e emergência dos mercados
sociedades estão interligadas. números não são simplesmente eletrónicos, redução das fronteiras
Para quem ensina Relações verosímeis. entre produção/comercialização –
Internacionais é um exemplo claro Em suma, a pandemia tem e de recomposição dos discursos
da globalização. Ao longo destes vindo a transformar a sociedade antiglobalização e anti-imigração. É
meses sentimos vários estados de internacional. No caso da União este o mundo que o Covid-19 vem
alma e a resistência das nossas Europeia foi um catalisador para encontrar…e alterar.
sociedades foi claramente testada. uma melhor articulação no que toca Tudo começa com os fluxos
Não só a nível local como também à saúde pública e à sua inclusão humanos que espalham a doença,
a nível nacional, europeu e nos sectores estratégicos. Mas facilitados pela rapidez dos
internacional. Passámos a discutir talvez tenha ido um pouco mais transportes e intensidade das trocas
fronteiras que tivemos de encerrar longe. na aldeia global. A surpresa é que,
e outras que tivemos de abrir no ao contrário do que inicialmente
sentido da cooperação europeia. se pensou, a pandemia não foi
A título pessoal foi, sem dúvida, niveladora. Pareceu afetar mais os
a dimensão europeia que me países envelhecidos com Índice de
surpreendeu. Não quero com Desenvolvimento Humano (IDH)
isto homogeneizar as respostas mais elevado que as sociedades
nacionais que foram bem diferentes jovens africana e asiática, mas
entre si, ou menorizar o enorme enquanto os primeiros tiveram
capacidade para cuidar dos seus, conhecimento, até de soluções
mesmo com maior ou menor económicas de mitigação. Mas
sucesso e algum descontrole, e não anulou a desconfiança entre
resiliência para aguentar o seu Estados e regiões. Quando as
impacto económico, desconhecemos fronteiras reabrirem, a circulação
o que irá acontecer nos restantes, será mais limitada, “vigiada”. E
porque a pandemia não terminou. muitos ficarão confortáveis com esse
Também por este facto lidamos com facto. A escalas diferentes falamos
uma realidade geradora de uma sempre do mesmo, do “medo do
enorme perceção de insegurança, outro” numa sociedade ainda leve
que é simultaneamente individual e líquida, à procura de redefinição.
e comunitária e se alarga ao nível Desglobalização ou reglobalização, o
superior das relações internacionais. que se segue?
Acresce a facilidade com que os
números podem ser manipuláveis
e o tema apropriado em favor
de determinadas causas e como
justificação para a tomada de
medidas de exceção e tendências
políticas – fake news, “o mal que
vem da China”, a intencionalidade na
propagação do vírus, entre outras.
É difícil prever como será o mundo
pós-Covid-19. Sem dúvida um
mundo diferente, desde logo com
maiores barreiras físicas, num
quotidiano onde o uso de fluxos
digitais e a tecnologia substitui
tentativamente as deslocações, mas
que só será possível a curto prazo
em algumas regiões do mundo.
O medo dos outros legitimará
um retrocesso na mobilidade. O
ceticismo dos cidadãos do mundo
quanto à capacidade para controlar
este tipo de doença poderá traduzir-
se num “regresso ao passado”,
quando as viagens e o turismo
estavam limitados a grupos
com maior poder económico. O
retrocesso pode ocorrer também
em termos de consumo. O medo de
consumir produtos de certas regiões,
substituído pela produção local.
Na sua fase inicial a pandemia
permitiu um maior alinhamento
à escala global para encontrar
soluções de carater sanitário,
de I&D, de trocas cientificas de

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