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EXMO. SR. DR.

JUIZ FEDERAL DA 3ª VARA DA SEÇÃO JUDICIÁRIA


DE SÃO PAULO

Distribuição por dependência


à Medida Cautelar nº 96.0029505-0

O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL EM SÃO PAULO, no


exercício de suas atribuições constitucionais e legais
(CF, art. 129, III e Lei Complementar nº 75/93, art. 6º,
VII, a, b e c), vem, perante Vossa Excelência, com
fundamento na Lei nº 7347/85, propor

AÇÃO CIVIL PÚBLICA

em face da TV MANCHETE LTDA., com sede na cidade do Rio


de Janeiro - RJ, à Rua do Russel nº 766 - Glória e com
sucursal na cidade de São Paulo, à Av. Professora Ida
Colb nº 551 - Casa Verde, CGC nº 30.664.064/0001-58, e da
UNIÃO FEDERAL, pelas razões de fato e de direito que se
seguem.

1. SUMÁRIO DOS FATOS

Conforme exaustivamente demonstrado na Medida


Cautelar preparatória, TV MANCHETE LTDA. - empresa
concessionária do serviço público de radiodifusão de sons
e imagens (televisão) - exibiu reiterada e

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deliberadamente, por mais de três anos, em sede de
programa jornalístico e de variedades denominado
“PROGRAMA DE DOMINGO” matérias que, sob o pretexto de
divulgar obras e realizações de administradores públicos,
revelaram-se verdadeiro instrumento de promoção pessoal
do ex-Prefeito do Município de São Paulo, Sr. Paulo
Maluf.

Conforme se apurou em Expediente instaurado


pelo Ministério Público Federal para coleta de
informações preliminares sobre esses programas, o enfoque
dos mesmos nunca foi jornalístico, mas sim de propaganda
pessoal do ex-Prefeito Paulo Maluf, pois:

a. a narração da reportagem é feita sempre


enaltecendo virtudes do prefeito e das suas realizações,
sem qualquer preocupação em informar sobre os prós e
contras dos projetos, mesmo quando tratam-se de projetos
polêmicos e ainda em fase de críticas pela sociedade
(v.g. o PAS);

b. comumente a reportagem era acompanhada ao


fundo de música instrumental, de indisfarçável clima
sensacionalista, ou, como prefere o Sr. CARLOS ROBERTO
AMORIM DA SILVA, Diretor Geral do “Programa de Domingo”,
de dramatização (depoimento a fls. 40/42 do Expediente nº
24/96 e em anexo como doc. nº 3).

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c. as entrevistas - sempre sem identificação
do entrevistado - revelavam uma UNANIMIDADE de elogios ao
prefeito, comparando-o, destacadamente, a Deus.

Na petição inicial da Medida Cautelar


descreveu-se detalhadamente esses fatos, facilmente
detectáveis ao assistir-se os sete programas gravados nas
fitas que seguiram em anexo à mencionada Medida Cautelar
(programas veiculados em 23/6, 30/6, 7/7, 14/7, 18/8,
25/8 e 1/9/96 - fitas 1 a 5). Por esse motivo, e para
não se tornar repetitivo, reporta-se na presente aos
fatos descritos naquela exordial.

O fato relevante para a presente demanda -


indiscutível e confessadamente reconhecido pela direção
da empresa - é que no “Programa de Domingo”, formalmente
destinado à reportagens JORNALÍSTICAS e de interesse
VARIADO, foi exibida reiterada propaganda da
administração do Município de São Paulo, com indisfarçado
destaque à pessoa do prefeito.

A inserção em programa jornalístico de matéria


de efetiva propaganda de um administrador público
ludibria o telespectador e, por outro lado, demonstra
prestação indevida DE UM SERVIÇO PÚBLICO, com uso
indevido da concessão e violação aos princípios
constitucionais da moralidade e impessoalidade.

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A UNIÃO FEDERAL, por sua vez, na qualidade de
poder concedente, nada fez nesses mais de três anos para
que a concessionária cessasse com a conduta irregular.

Omitiu-se, apesar da notoriedade do fato.

Somente quando o Ministério Público Federal


iniciou a adoção de medidas para coibir a conduta ilegal
é que a UNIÃO, através de Ofício da Secretaria Executiva
do Ministério das Comunicações - Delegacia no Estado de
São Paulo, resolveu agir, notificando a TV MANCHETE LTDA.
a cessar a conduta (conforme fls. 89 da Medida Cautelar e
documento que ora se junta como nº ...).

Tem, pois, a presente ação, por objeto, (i)


condenar a TV MANCHETE LTDA. à obrigação de não-fazer,
especificamente não mais exibir programas do gênero ora
exposto; (ii) condenar a TV MANCHETE LTDA. por danos
morais, em face da lesão provocada aos telespectadores; e
(iii) condenar a UNIÃO FEDERAL à obrigação de fazer,
consistente na manutenção de estrita vigilância sobre a
programação exibida pela outra ré, enquanto poder
concedente.

2. A COMPETÊNCIA DESSE MM. JUÍZO

De se destacar inicialmente, que a presente


demanda NÃO tem caráter eleitoral.

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De fato, embora os mesmos acontecimentos tenham
repercussão na Justiça Eleitoral, o que se discute in
specie é a indevida utilização da concessão federal do
serviço de radiodifusão de sons e imagens (televisão) e
não a violação específica daquela legislação.

Com efeito, a prestação indevida, por


concessionária, de um serviço federal, lesa o patrimônio
público. Ademais, o próprio telespectador é lesado, pois
a pretexto de estar recebendo uma informação, assiste a
uma propaganda mal dissimulada de administrador público.

Há, pois, uma dupla lesão a interesses que


provocam a atuação do Ministério Público Federal: (a) ao
patrimônio público pela indevida prestação de um serviço
concedido e (b) à coletividade, difusamente, pela
transmissão de um propaganda dissimulada.

Cumpre salientar, aliás, que o próprio


Ministério Público Federal representou ao Ministério
Público Eleitoral para a adoção de medidas naquela
esfera. Nesse sentido, há notícia, inclusive, da
propositura pela digna Promotora de Justiça Eleitoral da
1ª Zona Eleitoral de São Paulo de Investigação Judicial
Eleitoral (processo nº 020/96).

O aspecto eminentemente eleitoral da questão,


portanto, não constitui objeto desta ação, pois trata-se
de assunto pertinente à Justiça Eleitoral.

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E nenhuma estranheza há em se propor duas
ações, em foros distintos, sobre os mesmos fatos.

Isso porque uma mesma conduta pode atingir


interesses juridicamente tutelados distintos, atraindo,
em conseqüência, sanções diferentes.

Da mesma forma se opera a questão de


responsabilidade criminal e cível, quando uma conduta
ilícita acarreta a sanção penal e a responsabilidade
civil.

Na espécie, a conduta da primeira ré implicou


em infração à legislação eleitoral, a par de caracterizar
prestação indevida de um serviço público concedido.

De se destacar, ainda, que na ação de


investigação judicial proposta no foro eleitoral busca-
se, acima de tudo, apurar eventual abuso de poder
econômico pelos beneficiados pela propaganda dissimulada,
principalmente por alguns dos programas terem sido
exibidos já no período eleitoral definido pela Lei nº
9.100/96.

Ademais, mencionada ação eleitoral foi proposta


em face das pessoas físicas, notadamente os Srs. Paulo
Salim Maluf, Celso Roberto Pitta do Nascimento e Pedro
Jack Kapeller (Diretor da TV MANCHETE) - vide cópia da

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inicial em anexo, doc. nº ... -, enquanto esta ação se
volta contra as pessoas jurídicas, que devem assumir o
ônus da conduta irregular.

Caracterizada, pois, a competência da Justiça


Comum, cabe, ainda, ressaltar que por tratar-se na
espécie da indevida prestação de um serviço federal
concedido, se justifica de plano o processamento e
julgamento na Justiça Federal (em razão da matéria).

Por fim, também em função da presença da UNIÃO


FEDERAL no pólo passivo, deve a causa ser processada
nesse Juízo.

3. O DIREITO

3.1 A imoralidade e a pessoalidade na


prestação do serviço público

Como visto, a TV Manchete deliberada e


reiteradamente vinha veiculando, como se matéria
jornalística fosse, indisfarçável propaganda da pessoa do
ex-Prefeito de São Paulo, Sr. Paulo Maluf.

A Requerida, no entanto, é uma concessionária


de serviço público federal de radiodifusão de sons e
imagens (CF art. 21, XII, a).

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É comezinho que a delegação da execução de um
serviço público a particulares (por concessão, permissão
ou autorização) não modifica a natureza do serviço.
Assim, embora seja uma emissora comercial que esteja
prestando o serviço de radiodifusão de sons e imagens, o
serviço que presta não perde a natureza de serviço
público.

O saudoso mestre HELY LOPES MEIRELLES, na sua


obra básica, já esclarecia que tanto a outorga como a
delegação são mera descentralização na prestação do
serviço público.

“Mas em ambas as hipóteses o serviço continua sendo


público ou de utilidade pública, apenas descentralizado,
contudo, sempre sujeito aos requisitos originários e sob
regulamentação e controle do Poder Público que os
descentralizou.” (In Direito Administrativo Brasileiro,
20ª ed., Ed. Malheiros, p. 305; grifos e destaques
nossos)

A Requerida, portanto, ao executar a prestação


dos serviços a ela delegados deve, imperativa e
necessariamente, atender aos preceitos constitucionais e
legais que regulam toda a prestação dos serviços
públicos.

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Nesse contexto, não há como se deixar de
observar os princípios da moralidade e da impessoalidade,
consagrados, inclusive, à nível constitucional (art. 37,
caput).

E, sem qualquer dúvida, a conduta da Requerida,


ao dissimular promoção pessoal do prefeito de São Paulo
em matéria de cunho supostamente jornalístico, é IMORAL.

“A lei pode ser cumprida moralmente ou imoralmente.


Quando sua execução é feita, p. ex., com intuito de
prejudicar alguém deliberadamente, ou com intuito de
favorecer alguém, por certo que se está produzindo um
ato formalmente legal, mas materialmente
comprometido com a moralidade administrativa.
(JOSÉ AFONSO DA SILVA, in Curso de Direito
Constitucional Positivo, Ed. Malheiros, 9ª ed. p. 571,
destaques e grifos não são do original)

E, como se não bastasse veicular propaganda


travestida de reportagem, a Requerida faz essa propaganda
voltada ainda diretamente para a pessoa do administrador.

Viola-se, assim, o princípio da impessoalidade,


inclusive no aspecto destacado no parágrafo primeiro do
art. 37:

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“Art. 37 ...
§ 1º - A publicidade dos atos, programas, obras,
serviços e campanhas dos órgãos públicos deverá ter
caráter educativo, informativo, ou de orientação social,
dela não podendo constar nomes, símbolos ou imagens
que caracterizem promoção pessoal de autoridade ou
de servidores públicos.” (Grifos e destaques nossos)

Nem se pretenda alegar que seria legítima a


exibição pela emissora das matérias em referência sob o
argumento de que estaria inserida no âmbito da liberdade
de imprensa ou no de liberdade de informação.

Como toda liberdade, também a de imprensa sofre


restrições, fixadas na própria Constituição Federal.

O ilustre Prof. JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA ao


enfrentar a questão, ressaltou:

“O sistema, logo se vê, não é tão rígido quanto sugere


ao intérprete mais afoito uma leitura apressada do art.
5º, IX, e do art. 220, § 2º. Para dimensionar
corretamente o complexo normativo, é mister atentar em
todos os dispositivos pertinentes, sem esquecer as
cláusulas de ressalva, e além disso confrontá-los e
conjugá-los com outros textos, que denotam, no

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legislador constituinte, o propósito de orientar para fins
positivos o exercício da liberdade consagrada no art. 5º,
nº IX, bem como o empenho em prevenir e reprimir
abusos. Assim é que o art. 221 trata de fixar os
princípios a que devem atender ‘a produção e a
programação das emissoras de rádio e televisão’, nos
termos seguintes: ‘preferência a finalidades educativas,
artísticas, culturais e informativas’ (nº 1) ...” (in RDA
201:45-56)

Também o eminente Professor JOSÉ AFONSO DA


SILVA ressalta que “O dono da empresa e o jornalista têm
um direito fundamental de exercer sua atividade, sua
missão, mas especialmente tem (sic) um dever. Reconhece-
se-lhe o direito de informar ao público os acontecimentos
e idéias, objetivamente, sem alterar-lhes a verdade ou
esvaziar-lhes o sentido original: do contrário, se terá
não informação, mas deformação.” (ob. citada, p. 224;
grifos e negritos nossos).

Na espécie, ao utilizar o formato


‘jornalístico’ para veicular verdadeira propaganda de
cunho pessoal do administrador, a Requerida está
desinformando, confundindo. Ora, assim como a emissora
tem assegurada a liberdade de imprensa, tem o
telespectador direito à informação (CF art. 5º, XIV).

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Não há como esquecer que a Requerida exerce uma
função pública, e, portanto, não pode se subtrair aos
deveres inerentes.

Aliás, o próprio Código Brasileiro de


Telecomunicações (Lei nº 4117/62) determina em seu art.
38, item a, que “os serviços de informação, divertimento,
propaganda e publicidade das empresas de radiodifusão
estão subordinadas às finalidades educativas e culturais
inerentes à radiodifusão, visando os superiores
interesses do País”.

3.2 Os danos morais devem ser reparados

Ficou, pois, fartamente demonstrado que a


conduta da TV Manchete é inconstitucional, por imoral e
pessoal.

A veiculação pela emissora das nefastas


matérias acarreta informação distorcida (desinformação,
portanto), com evidente prejuízo para o receptor, in
casu, o telespectador.

De se notar que a exibição de programação


indevida por canal de televisão atinge indiscutivelmente
o interesse difuso. BARBOSA MOREIRA, no artigo citado,
com a sua peculiar clareza lembra que "ao interesse em
que se observem os mandamentos do art. 221 da Lei Maior

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ajusta-se como luva a qualificação de difuso. Com
efeito: em primeiro lugar, ele se caracteriza, à
evidência, como 'transindividual', já que não pertence,
de modo singularizado, a qualquer dos membros da
comunidade, senão a um conjunto indeterminado - e, ao
menos para fins práticos, indeterminável - de seres
humanos. Tais seres ligam-se uns aos outros pela mera
circunstância de fato de possuírem aparelhos de televisão
ou, na respectiva falta, costumarem valer-se do aparelho
do amigo, do vizinho, do namorado, do clube, do bar da
esquina ou do salão do barbeiro. E ninguém hesitara em
qualificar de indivisível o objeto de semelhante
interesse, no sentido de que cada canal, num dado
momento, transmite a todos a mesma e única imagem".

E, em sendo difuso, o dano causado pela


exibição de programação indevida por emissora de
televisão sujeita-se à reparação através do Ação Civil
Pública (Lei nº 7347/95, art. 1º, IV).

Estando, pois, caracterizado na espécie o


conteúdo irregular (ou melhor, inconstitucional) da
programação exibida pela emissora-ré, não há como deixar
de reconhecer que necessariamente os telespectadores
consumiram a desinformação, crédulos ou não na mensagem
transmitida.

Aliás, mesmo quando o telespectador tinha


consciência da natureza propagandística das matérias,

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assolava-o o sentimento de descrédito no serviço público
prestado, pelo desvio na sua finalidade.

Em ambas hipóteses, sem dúvida, há um dano


moral consumado, a ser reparado.

No caso in concreto, inclusive, a reparação


desses danos morais são até relativamente de fácil
mensuração, podendo se adotar o valor comercial do tempo
utilizado com a veiculação das pseudo-reportagens.

4. O PEDIDO

Em face do exposto, o Ministério Público


Federal requer:

1. seja condenada a Ré TV MANCHETE LTDA. a:

1.1. não mais exibir reportagens ou quaisquer


tipos de matérias que sirvam de instrumento para a
promoção de administradores públicos, e, em especial,
aquelas relativas à Prefeitura de São Paulo, sob pena de
cominação de multa equivalente ao dobro do valor
comercial do tempo utilizado com a exibição indevida;

1.2. indenizar os danos morais ao interesse


difuso, mediante recolhimento ao fundo previsto no art.
13 da Lei nº 7347/95 de importância equivalente ao valor

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cobrado pela emissora na veiculação de comerciais no
horário em que foram exibidas as matérias, para todo o
período em que foram veiculadas, conforme se apurar em
liquidação de sentença;

2. condenar a ré UNIÃO FEDERAL a exercer


estrita vigilância sobre a programação da outra ré,
especialmente para coibir a utilização do serviço público
como meio de promoção de administradores públicos, sob
pena de cominação de multa diária;

3. a citação das Rés para, querendo,


contestar;

4. a condenação das Rés nos ônus da


sucumbência.

Requer a produção de provas por todos os meios


necessários e, especialmente, através do exame dos
programas gravados nas fitas que acompanham a Medida
Cautelar preparatória, além da sua transcrição (a mera
transcrição não permite constatar o elevado grau de
sensacionalismo inserido nas matérias).
Dá à causa o valor de R$ 100.000,00.

São Paulo, .

Luíza Cristina F. Frischeisen Marlon A. Weichert


Procuradores da República

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