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Repertório, Salvador, nº 17, p.129-135, 2011.

TEATRO, PALAVRA,
PERFORMANCE: PENSAR
A VOZ PARA ALÉM DA
EXPRESSÃO*
Gilberto Icle1 e Celina Nunes de Alcântara2

Resumo: Este texto problematiza a questão da voz no Abstract: This paper discusses the voice in the work of
trabalho do ator, a partir das novas configurações cêni- the actor from the point of view of the new scenic con-
cas das últimas décadas. Parte-se da perspectiva da ex- figurations of the last few decades. We depart from the
pressão, como dimensão a ser ultrapassada, para pensar perspective of expression as a dimension to be overco-
outras possibilidades para a presença da voz no teatro. me in order to reflect upon other possibilities for the
Apresenta-se a voz como materialidade, ultrapassando, presence of the voice in theatre. The voice is presen-
assim, o nível semântico que a caracteriza. Opera-se em ted as materiality, thus, going beyond the semantic level
três blocos argumentativos. No primeiro, mostra-se a that characterizes it. We operate in three argumentative
articulação da voz com a palavra. No segundo, efetiva- blocks. In the first, we show the articulation between
se a relação da voz na sua possibilidade de ato, portanto, the voice and the word. In the second, the relationship
como performance. Por fim, o terceiro bloco argumen- of the voice in its possibility to act, as performance,
tativo, circunscreve a voz na sua possibilidade ética de is effected. Finally, the third argumentative block cir-
constituição de si mesma aduzindo o elemento poético cumscribes the voice in its ethical potentiality for the
da voz em sua dimensão constitutiva e ascética. constitution of oneself, adducing the poetic element of
the voice in its constitutive and ascetic dimension.
Palavras-chave: Teatro. Voz. Performance. Ator.
Keywords: Theatre. Voice. Performance. Actor.

As mudanças na cena contemporânea impuse-


ram consideráveis deslocamentos nos modos de
realização do espetáculo euro-americano e nas pe-
dagogias que envolvem o que chamamos de teatro,
*
Texto realizado a partir de pesquisa financiada pelo seja na formação do ator, seja nos usos sociais do
CNPq. teatro.
1
Ator e diretor do grupo Usina do Trabalho do Ator. Co- Muitas dessas mudanças encontram-se na esteira
ordenador do GETEPE/UFRGS. Doutor em Educação.
e em associação com transformações na Filosofia,
Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. na Antropologia, nas ciências de um modo geral,
2
Atriz do grupo Usina do Trabalho do Ator. Participante do e, também, na vida cotidiana. Uma dessas ruptu-
GETEPE/UFRGS. ras trata da reconfiguração da noção de expressão,
Mestre e doutoranda em Educação. Professora do Depar- no seio do pensamento contemporâneo euro-ame-
tamento de Arte Dramática da Universidade Federal do Rio ricano. A expressão, tida como manifestação de
Grande do Sul.
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um universo interior, fez parte, por longo tempo, tir da ideia de que existem planos da vocalidade
da estruturação de um discurso verdadeiro sobre que ultrapassam, transbordam e diferem da noção
arte e sobre pensamento. Entretanto, a Filosofia, a de voz compreendida como expressão.
partir, sobretudo, do que se convencionou chamar Portanto, o que este texto quer, ainda que breve-
de virada linguística, tem problematizado de modo mente, é poder pensar na voz do ator, não apenas
pontual a figura da expressão como elemento por como expressão, como constituição de um aparato
intermédio do qual, termos associados como in- de habilidades técnicas capazes de fazerem funcio-
terpretação, represen- nar o aparelho vocal
tação, discurso, signo, em benefício de uma
voz, oralidade, têm comunicação eficaz
sido problematizados em cena, mas antes
e complexificados. como lócus e potên-
O teatro é sensí- cia de acontecimento
vel a tais mudanças corpóreo vocal. Com
e, por vezes, prota- efeito, o trabalho vo-
gonista, ele mesmo, cal do ator não pode
de mudanças que im- prescindir completa-
pulsionam outras áre- mente de sua dimen-
as de conhecimento. são expressiva, no
Lehmann sintetiza, sentido do significa-
sob o jargão Teatro do do que quer ex-
pós-dramático, algumas pressar, ou seja, das
dessas modificações ideias presentes em
que emergem do tra- um texto, mas o que
balho de encenadores este texto gostaria de
contemporâneos, em propor é a possibili-
especial, a partir da dade de se pensar a
década de 1970. voz para além da ex-
Dentre tantas ca- pressão – ao menos
racterísticas apre- a partir de três di-
sentadas pelo autor mensões distintas e
alemão, uma é funda- solidárias: na sua ar-
mental para localizar- ticulação com a pala-
mos o foco deste ar- vra; na sua existência
tigo: a materialidade como performance;
do corpo, da presença Celina Nunes de Alcântara, no espetáculo CINCO TEMPOS e na sua configura-
que constitui o acon- PARA A MORTE, foto de Claudio Etges (grupo Usina do ção como uma poiéti-
tecimento teatral. Para Trabalho do Ator, Porto Alegre ca de si mesma.
Lehmann, “o teatro Este trabalho par-
não é apenas o lugar dos corpos submetidos a lei te, entrementes, da noção de que a voz no teatro é
da gravidade, mas também o contexto real em que antes de tudo uma experiência, uma experiência de
ocorre um entrecruzamento único de vida real co- voz, uma voz experiência. A voz não existe para
tidiana e de vida esteticamente organizada” (2007, nós, atrizes e atores, homens e mulheres de teatro,
p.18). Nesse sentido, tanto o ato como a apreciação senão na relação com o Outro da cena. Mas é o es-
estética “[...] têm lugar como uma ação real em um tatuto dessa relação, dessa experiência, que preten-
tempo e lugar determinados”(2007, p.18). Assim, demos discutir aqui, pensando alguns aspectos que
neste artigo, pretendemos discutir como a presen- vão ultrapassar a expressão em benefício da mate-
ça encontra termo no trabalho vocal do ator, a par- rialidade, da corporalidade e da constituição de si.
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Para pensar a voz, para além da expressão, va- nessa perspectiva, a de compreender a voz na es-
mos propor algumas operações teórico-práticas pessura de seu referente. Para além de seu nível se-
que possibilitem articular diferentes campos de mântico, a voz, para ele, configura não apenas o
saber e conhecimentos especializados. A primeira meio, mas também o suporte por intermédio do
operação é explorar a relação entre voz e palavra, qual o indivíduo dá voz à sua oralidade.
para procurar perceber o que há para além da ex- Na cena contemporânea, alguns exemplos de
pressão. utilização da voz são extremos em relação à sua cor-
A relação que se faz comumente entre teatro poralidade, evidenciando um papel não semântico
e voz é aquela em que se busca por uma relação para a oralidade. A performance como linguagem
de eficácia, num sentido primeiro, mas não único, é exemplar nesse sentido, pois em muitos casos o
uma técnica vocal capaz de nos possibilitar dizer, uso da voz é apenas efeito de presença e não articu-
interpretar, proferir, declamar, entoar, cantarolar, lação semântica. Conforme Lehmann, assim, tem-
enfim, executar infinitas gamas de arranjos vocais se a impressão, ao nos defrontarmos como uma
que dão conta de como performance nessa
proceder com um tex- perspectiva, de que
to em situação de per- “as figuras cêni-
formance. Tratar-se-ia cas” (2007, p.49)
de melhor expressar falam diante da
tanto os sentimentos inexistência de um
da personagem, quan- diálogo. Ou ainda,
to as intenções do que nesse contexto
diretor, do autor, do performático,“seria
grupo ou companhia mais correto dizer
e/ou do próprio ator. que elas são faladas
Nesse caso, toma-se o pelo autor do rotei-
texto por sua natureza ro cênico ou que o
escrita. Esse tipo de público empresta a
compreensão, da voz elas sua voz inte-
como expressão, pensa rior” (LEHMANN,
o trabalho vocal como 2007, p.49).
sendo um trabalho so- Esse tipo de po-
bre a palavra oralizada, ética teatral não é
sobretudo naquilo que tão rara e o que se
ela é capaz de esclare- convencionou cha-
cer do sentido da cena, mar de teatro pós-
da trama, do nível se- dramático elenca
mântico da obra. uma série de ar-
Não se trata aqui tistas da cena que,
de negar o valor de um na sua diversidade
trabalho sobre o texto poética, sustentam
para melhor expressá- diversas formas de
lo, mas, antes, de ten- Celina Nunes de Alcântara, no espetáculo CINCO TEMPOS trabalhos vocais
tar pensar esse univer- PARA A MORTE, foto de Claudio Etges (grupo Usina do nos quais se
so (da prática vocal Trabalho do Ator, Porto Alegre
em teatro) de modo a [...] opera uma pecu-
transcender essa relação primeira com o texto, ex- liarização mas sobretudo uma disseminação das
trapolando seu poder de expressão. vozes, [...]. Encontram-se a modulação e a gra-
Zumthor (1993) tem um papel fundamental dação da voz solo, como nos monólogos de Jutta
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Lampe, Edith Clever ou Jeanne Moureau; a con- que vai além da simples transmissão de significa-
centração coral e a dessacralização da palavra; a ex- dos. Como podemos pensar essas experiências do
posição da physis das vozes no grito, no gemido, ator – que obviamente envolvem a expressão - para
nas vociferações animalescas, na sua espacializa- além do que se expressa?
ção arquitetônica. Simultaneidade, poliglotismo, Talvez pensá-la naquilo que ela pode proporcio-
coro e ‘arias-gritos’ (Wilson) contribuem para
nar de significância, não pelo que é dito através das
que o texto se torne um libreto semanticamente
irrelevante e um espaço sonoro sem limites pre- palavras (compreensão intelectual), mas, justamen-
cisos - basta pensar em Schleef, Fabre e Lauwers te, por aquilo que é expresso por um todo corporal
em grupos teatrais como Maatschappij Discor- que tem, nas palavras, parte da configuração dessa
dia, Hollandia, La Fura dels Baus e Théâtre du expressão.
Radeau. Desfazem-se as fronteiras entre a lin- Uma segunda operação a ser realizada aqui é
guagem como expressão da presença viva e a pensar a voz como ato, como performance vocal,
linguagem como material linguístico preestabe- como experiência de performatividade, como per-
lecido. (LEHMANN, 2007, p. 257) formance da oralidade.
A ideia de que jogamos, de que teatralizamos
Os grupos e trabalhos teatrais, mencionados todo o tempo, não é nova, e não há novidade em
acima, fazem operar a voz como uma es-
pécie de dispositivo vocal no qual a sono-
ridade produzida pelos atores não assume
o protagonismo das funções que a orali-
dade pode ter em cena. Assim, trata-se de
exemplos extremos de espetáculo e per-
formances, com ou sem palavras, mas com
oralidade, nos quais a voz funciona como
elemento de composição, antes que como
instrumento de interpretação de um sig-
nificado preestabelecido. O corpo da voz,
nesses casos, constitui por si só a signifi-
cação. Ela – a voz - deixa de ser apenas o
suporte de um significado para se presenti-
ficar como materialidade e nessa condição
significar. Nesse sentido, a realidade das
vozes torna-se por si um tema.
Mas, para além desses casos extremos
e experimentais, podemos pensar, ainda,
no corpo que a voz tem quando expres-
sa um texto, quando um ator diz algo a
outro, ou quando ele endereça à plateia a
sua fala. Afinal, a voz não é apenas a ex-
tensão do corpo, ela é corpo, constitui-se
por qualidades psicofísicas que podem ser
dimensionadas por características comu-
mente atribuídas ao corpo: variação de to-
nicidade, níveis diferenciados de energia,
possibilidade de transformação a partir de
um trabalho técnico preciso, entre outras. Ciça Reckziegel e Gisela Habeyche, no espetáculo CINCO
Trata-se, portanto, de pensar naquilo que TEMPOS PARA A MORTE, foto de Claudio Etges (grupo Usina
transborda a expressão, que a ultrapassa, do Trabalho do Ator, Porto Alegre
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dizer que, na vida cotidiana, já performatizamos, a (1975) é um de seus maiores expoentes. Pode-se
nós mesmos, para jogar os jogos sociais. Utiliza- encontrar, na teoria dos atos de fala de Austin, a
mos, portanto, a voz nessa dimensão de ato, não distinção entre atos de fala constatativos de atos de
apenas como portadora de uma mensagem, de um fala performativos. Para o Austin de How to do things
conteúdo, mas também na sua espessura corporal, with words (1975), uma sentença performativa ou pro-
na sua ação física. Essa ideia já estava apontada em ferimento performativo é um ato de fala que indica a
Nicolas Evreinoff (1930), na sua obra fundante, realização de uma ação. Nele, dizer é fazer. Isso ex-
Le théâtre dans la vie, de 1929. Essa obra inaugura, plica porque, para Austin, o performativo não trata
de certa forma, a discussão sobre a teatralidade, de um mero dizer que buscaria tão só descrever
mostrando como vivemos nossas vidas a partir de um fato ou um estado de coisas, de constatá-los
um instinto teatral que nos conduz a atuar o tempo – e aqui se depreende o sentido dos atos de fala
todo. O teatro, ou ainda, o espetáculo de teatro, se- constatativos. Trata-se, entretanto, de um uso da
ria para esse autor um caso extremo da teatralidade linguagem, em cujos proferimentos, se ultrapassa-
cotidiana. Essas ideias impulsionaram o que mais riam os limites do próprio meio (a fala, o corpo) e
tarde Erving Goffman iria estudar como “as rela- da própria significação (pela fala, pelo corpo).
ções face a face” na “presentificação do eu na vida Essa discussão, no campo da Filosofia, con-
cotidiana” (1975). Pensar o cotidiano como teatral, figurou o que se convencionou chamar de virada
teatralizado, foi o ponto de partida dos Performances linguística, produzindo uma nova concepção de lin-
Studies, teorização circunscrita entre as Artes do es- guagem e de palavra e tendo para o teatro acento
petáculo e a Antropologia, a partir do encontro do singular nas últimas décadas.
diretor norte-americano Richard Schechner e do A Filosofia da Linguagem, a Literatura e outros
antropólogo Victor Turner. campos do saber aludem ao corpo da voz como
Nessa perspectivas teóricas, a performance é a possibilidade de materialidade da própria voz.
compreendida como o espaço no qual o fazer se Trata-se de um ponto fundamental para o trabalho
confunde com o ser, pois do ator, pois ele carrega em si a discussão da pre-
sença, ou da co-presença do ator. Quando estamos
tudo que é é. Dentro do ser há o agir, ação que em cena, afinal, tocamos o Outro da cena (plateia e
realiza algo, de tomar para si algo. Tal noção não demais atores) com nossas vozes. Agimos na ma-
é difícil de ser compreendida. Estamos sentados terialidade daquilo que se expressa e não apenas na
em um café neste momento. Você está conver- expressão de algo. Seria o mesmo que dizer que se
sando comigo e eu conversando com você; logo
trata de acreditar no poder corporal da voz.
ali, um homem está bebendo algo enquanto lê um
A terceira operação que este texto propõe, para
jornal; e movendo-se por entre as mesas, os gar-
çons estão trazendo para as pessoas seus drinks, pensar a voz para além da expressão, seria pensá-la
recolhendo os pratos, e por aí vai. Cada um aqui, como poiética de si mesma. Isso significa dizer que
mesmo aqueles que nada fazem, estão fazendo expressar as intenções de um texto, fazer sua mate-
algo. O universo é pleno de agir. (SCHECHNER rialidade corporal ressoar na plateia, interpretar as
et al., 2010, p. 27) nuanças de significado de um referente qualquer,
constitui, sob o ponto de vista da experiência da
Com efeito, trata-se de pensar a voz justamente voz, não apenas a realização de uma tarefa, mas a
na sua possibilidade performática, como perfor- constituição, a formação do próprio ator.
mance, ou seja, como ato, não reduzida, portan- Essa intuição já estava claramente plasmada nas
to, à transmissão de uma mensagem, mas a uma ideias de Constantin Stanislavski (2007), para quem
ação que transforma aquele que a pronuncia, tanto o trabalho sobre si mesmo constituiria a instância
quanto aquele que é co-presente ao ato performáti- fundamental para a preparação do ator. Não é difí-
co, tal como nos diria Paul Zumthor (1993). cil perceber que, na história da Pedagogia do Ator,
Essa mesma ideia, a da palavra como perfor- durante o século XX, diretores-pedagogos, os mais
mance, é também explorada pela noção de perfor- diversos, pensaram no ator não apenas como um
matividade, da qual o filósofo inglês John Austin executor, como um intérprete das ideias do dra-
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É evidente que o trabalho vocal,


para eles, constituía uma instân-
cia eficaz de tornar-se sujeito na
e da sua prática. Cada um, na sua
perspectiva de trabalho, fez pro-
posições que demandavam do
ator engajamento e transforma-
ção em um nível que podemos
chamar de psicofísico.
Nesse sentido, o trabalho so-
bre a voz talvez possa ser pen-
sado como uma ascese (FOU-
CAULT, 2004) que se erige no
campo teatral. As práticas que
fundamentam o trabalho em tea-
tro estão impregnadas de formas
e exercícios que podem remeter
a uma ascética, tanto no sentido
do que se refere a um cultivo do
corpo biológico, quanto naquilo
que se relaciona à espiritualida-
de, como autoconhecimento.
Isso porque tais exercícios bus-
cam uma expressividade física,
a partir da unidade entre aquilo
que é espiritual e corpóreo; ou
seja, entre aquilo que vamos
nomear, precária e provisoria-
mente, de plano do intangível
(emoção, sentimento, élan, vida)
e a concretude da ação que se
desenrola no tempo e no espaço.
É importante deixar claro, desde
já, que essas são dimensões inse-
Dedy Ricardo e Thiago Pirajira, no espetáculo CINCO TEMPOS PARA A paráveis; e se procedemos a uma
MORTE, foto de Claudio Etges (grupo Usina do Trabalho do Ator, Porto Alegre
separação neste contexto refle-
xivo, o fazemos na tentativa de
maturgo, mas como um criador, como um artista
delinear com mais clareza aquilo que seria o cerne
que se faz, que faz a si mesmo na sua poiética teatral,
dessas práticas que, por sua vez, engendram uma
inclusive sendo intérprete do dramaturgo.
possibilidade ascética naquilo que elas provocam
Não podemos nos esquecer de considerar as
de transformação e constituição de si nos indivídu-
contribuições de Bertolt Brecht, Antonin Artaud,
os/sujeitos dessas práticas.
Eugenio Barba, Jerzy Grotowski, como fundamen-
Entretanto, esse acesso a si mesmo não se ope-
tais para pensarmos o modo como as práticas vo-
ra senão no próprio processo criativo, na criação.
cais foram se constituindo no campo teatral. Por
Por isso, a poiética, na perspectiva de René Passeron
isso mesmo, cabe aduzir a centralidade que tais di-
(1997), refere-se ao que ele nomeia como conduta
retores deram à constituição de si mesmo, como
criadora, mas apenas àquilo que ela tem de criador,
ser ético, conduta que era demandada dos atores.
ou seja, de prática. A sensibilidade não está ausen-
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te da conduta criadora, entretanto, o artista não é 2005, p. 91). Ou seja, é aí que a voz assume sustân-
mais sensível do que qualquer outro, mas ele é da- cia, materialidade, podendo nos tocar numa medi-
queles que passam ao ato. da que é física, uma vez que “nas vibrações de uma
Portanto, o que procuramos desenvolver neste voz se desenrola um fio que liga, às palavras, os si-
texto – e na nossa prática, como artistas da cena e nais vindos da experiência” (LOPES, 2005, p.91).
professores de teatro – é compreender a dimensão Voz que expressa, mas também que cria, que é
poética e poiética da voz no trabalho do ator. Para corpo e que toca o corpo, que abriga e acolhe, mas
isso, a inspiração de Sara Lopes (2005), para quem também que expulsa e pulsa.
a voz pode ser obra de arte, que se articula à ideia
de uma voz que, na sua experiência teatral, pode REFERÊNCIAS
fazer aflorar a constituição de um ator, a partir de
uma conduta ética, no próprio processo do fazer, AUSTIN, John. How to do things with words. Cam-
na própria conduta criativa, na coisa se fazendo, bridge: Harvard University Press, 1975.
no devir. BARBA, Eugenio. La canoa di carta. Bologna: Il Mu-
Para a autora, compreender a voz como objeto lino, 1993.
de arte implica perceber suas funções e caracterís- EVREINOFF, Nicolas. Le thêátre dans la vie. Paris :
ticas, como material da linguagem da representa- Librairie Stock, 1930.
ção teatral, ou seja, em sua função poética. Para FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. São
Lopes, a função poética diz respeito ao uso da voz Paulo: Martins Fontes, 2004.
que extrapola o uso cotidiano, a função utilitária da GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida
linguagem, de transmissão de ideias ligadas ao sig- cotidiana. Petrópolis, RJ: Vozes, 1975.
nificado das palavras, pois ela cria “o gesto vocal” LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. São
(LOPES, 2005, p.91), aquilo que ao mesmo tempo Paulo: Cosacnaify, 2007.
comenta e diz de si mesmo. LOPES, Sara Pereira. A voz em sua função poé-
É esse gesto que identifica, com efeito, o sen- tica. Cadernos da Pós-Graduação, Instituto de Artes:
tido da palavra proferida pela figura do narrador, UNICAMP, Campinas, ano7,v.7, n.1, 2005.
na filosofia de Walter Benjamin (PEREIRA, 2006). PASSERON, René. Da estética à poiética. Porto
Palavra vocalizada que traz as marcas de um tempo Arte, Revista do Mestrado em Artes Visuais, Por-
e de um espaço diverso daquele em que se enuncia, to Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do
palavra matizada pela voz da tradição, pela experi- Sul, v.8, n.15, p.103-116, nov. 1997.
ência do tempo na voz corporificada. PEREIRA, Marcelo de Andrade. Saber do tempo:
Essa dimensão poética se diferencia da dimen- tradição, experiência e narração em Walter Benja-
são cotidiana, justamente porque, como nos ensi- min. Educação & Realidade, Porto Alegre: Univer-
nou Barba (1993), ela é constituída, para além do sidade Federal do Rio Grande do Sul, v. 31, n.2,
nível da expressão, mas não existindo fora dele, da- p.61-78, jul./dez.2006.
quilo que o diretor italiano chamou de pré-expres- SCHECHNER, Richard; ICLE, Gilberto; PEREI-
sividade: um nível de organização do bios cênico no RA, Marcelo de Andrade. O que pode a Perfor-
qual o corpo, e também o corpo da voz, encontra mance na Educação? Uma entrevista com Richard
respaldo para se tornar crível, além de inteligível. Schechner. Educação & Realidade, Porto Alegre:
Trata-se, assim, de uma voz que se constitui, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, v.35,
ao mesmo tempo, de procedimento técnico e mo- n.2, p.23-35, mai./ago. 2010.
vimento interno, o que possibilita a expressão di- STANISLAVSKI, Constantin. El trabajo del actor
ferenciada no acontecimento teatral. Ao fim e ao sobre si mesmo en el proceso creador de la vivencia. Barce-
cabo, o legado stanislavskiano, no qual a organi- lona: Alba Editoral, 2007.
cidade é fruto de uma busca interna para conferir ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz. São Paulo: Com-
autenticidade ao nível semântico da expressão, não panhia das Letras, 1993.
cessa de nos perseguir. “É pela vocalidade poéti-
ca que os significados se tornam coisas” (LOPES,
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