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Pascal Bruckner, O dever da felicidade

Por Luciana Thomé - Porto Alegre - 22.10.2014

A felicidade não deve ser o objetivo maior da humanidade. De acordo com o escritor, ensaísta e
filósofo francês Pascal Bruckner, é perigoso achar que a existência só tem validade se a pessoa for
feliz. A felicidade é apenas uma das possibilidades na vida. Há várias outras, como a paixão e a
liberdade.
Reconhecido crítico do multiculturalismo e da sociedade e cultura da França, Bruckner abordou o
tema da felicidade no livro A euforia perpétua, lançado em 2002. Autor de obras de ficção e de não
ficção, ele falou sobre a obrigação de sermos felizes o tempo todo em sua conferência no Fronteiras
do Pensamento, no Salão de Atos da UFRGS, em Porto Alegre.
O conferencista iniciou contando uma anedota que aconteceu no período do Renascimento. No
século XV, em Florença, o frade dominicano Jerônimo Savonarola criou os “carrascos da vaidade".
As mulheres da sociedade viram queimar os seus pentes, suas maquiagens, seus perfumes e suas
roupas, em sinal de arrependimento pelos prazeres que elas podiam ter com esses objetos. Na
“fogueira das vaidades", a nobreza e a aristocracia da época jogaram todas as coisas que poderiam
ligá-las a esse mundo, significando o seu desdém pelos prazeres terrestres. Savonarola, depois de
ter jogado objetos e, inclusive, alguns heréticos na fogueira, acabou, ele próprio, morrendo
queimado durante a Inquisição.
Segundo o filósofo, nossa ideia de felicidade vem do cristianismo, com elementos herdados das
filosofias grega e latina. “A felicidade é um elemento que pertence ao passado; é um elemento que
pertence ao futuro; mas que não pode, em caso algum, fazer parte do presente. Em outras palavras,
como diz Santo Agostinho, nos lembramos de ter sido felizes no paraíso terrestre, e esperamos ser
felizes no além – se tivermos a sorte de poder ir para o lado do Nosso Senhor. Mas agora, no
momento presente, não devemos e não podemos ser felizes simplesmente porque não pode haver
felicidade sobre esta Terra." Este castigo se origina do fato de que, de acordo com o que é pregado,
todos estamos na Terra em razão do pecado original. E, por esse motivo, devemos trabalhar o
quanto pudermos, durante o breve intervalo de nossa existência, pela redenção. Este era o conceito
de felicidade para os nossos ancestrais.
Até o início do século XIX, a expectativa de vida de homens e mulheres era de 30 ou 40 anos.
Dessa forma, o intervalo durante o qual poderíamos ter a nossa salvação era extremamente curto.
E a Igreja Católica, quando era a única que reinava na cristandade ao lado do Império Bizantino,
criou alguns caminhos de penitência para aligeirar o peso dos pecados sobre os ombros dos fiéis.
“O medo do inferno era um elemento de terror permanente. E face a isso a Igreja teve a ideia genial
de inventar, no século II, o purgatório, que é uma espécie de gigantesca sala de espera das almas,
que vegetam no limbo, esperando para serem salvas, levadas ao paraíso ou perdidas afundando
nos tormentos do inferno."
O purgatório é um segundo momento de graça, que permite ao pecador não ficar totalmente preso
ao desespero. “Assim, os pais da Igreja e pregadores como Jacques Bossuet, o pregador oficial do
rei Luís XIV, fustigavam os ricos de seu tempo e os advertiam para que cessassem de fazer festas,
de se deleitar com as boas carnes, cessassem de se excitar com uniões culpadas, para se focarem
na ideia de que toda a nossa vida se concentra em um único instante, o da morte, onde o rico vai
passar pelo juízo supremo." A morte, na iconografia cristã, não é apenas o fim das atividades físicas
do corpo, mas pode ser uma porta que abre para o paraíso ou a danação eterna. “Do lado de cá ou
de lá do Atlântico, temos os mesmos fundos religiosos. E, para nossos ancestrais, a felicidade era
algo perigoso", ressaltou.
Bossuet defendia que o ser humano que deseja gozar das voluptuosidades terrenas é um louco,
pois, tomando o prazer e o gozo por objetivos, constrói sua vida sobre a areia, em bases frágeis.
“Então, para nossos ancestrais, o objetivo da existência era se preparar, de alguma forma, para a
redenção." Hoje em dia, este dispositivo cristão nos parece abominável. Mas, então, como saímos
desta história?
Durante o fim da Idade Média, uma potente força de vida tomou conta das multidões europeias.
“Este apetite de viver foi encorajado por um número de fenômenos materiais que vão de melhorar
o rendimento dos campos agrícolas e aprimorar as técnicas industriais, até algumas descobertas
médicas que mudaram o ponto de vista que o homem podia ter sobre si mesmo." Bruckner citou o
bispo e cientista inglês Francis Bacon, que explicou em um livro célebre que o objetivo do ser
humano nesta Terra não é sofrer, é melhorar seu estado. E, em consequência, a ciência, a técnica,
o progresso e as máquinas podem corrigir a queda do pecado original e reparar a natureza impura
do homem, tornando-a um pouco melhor.
O conferencista citou duas conquistas médicas, a aspirina e o uso do ópio, para aliviar as dores,
técnicas que diminuíram as pregações da “vontade de Deus" sobre as doenças e a morte. A partir
do momento em que a dor pode cessar com um medicamento, toda a potência da palavra divina foi
questionada. O primeiro choque foi no Iluminismo. As sociedades foram aos poucos saindo da
miséria, do fanatismo, da ignorância e da pobreza. “Uma conjunção de fatores permitiu que a
humanidade saísse da sua pré-história".
Bruckner relembrou um poema de Voltaire, intitulado O mundano e publicado em 1736, que resume
muito bem esta situação e a mudança provocada. Por causa dele, Voltaire foi perseguido pela Igreja
e teve seus livros queimados. “Nos versos de Voltaire, o paraíso terrestre é onde eu estou. Ele dizia:
se o paraíso futuro existe, tudo bem. Mas, da minha parte, eu prefiro as sensações presentes. Se
me oferecem uma boa comida, não vou recusar só porque o bispo pode discordar. Ou se me
oferecem uma boa cama, não vou negar para me deitar no chão." Espírito que serviu de inspiração
para muitos pensadores que vieram depois, como Albert Camus, que escreveu “meu reino é deste
mundo". Ou seja, tudo se joga aqui na Terra, é aqui onde tudo se passa. “Isso quer dizer que a
felicidade para Voltaire não é ontem nem amanhã. É aqui e agora. Esta Terra não está condenada
a ser um vale de lágrimas. Esta Terra pode ser tornar um vale de rosas. A esperança de viver melhor
não é uma utopia aberrante nascida do espírito de alguns iluminados. É, ao contrário, um sonho
completamente razoável, que será realizado pela coalizão da boa vontade", explicou.
Voltaire, Rousseau, Diderot, Adam Smith e outros pensadores vão inverter as prioridades e fazer
da felicidade o objetivo do ser humano. A felicidade se torna um ideal, e os Estados Unidos incluem
a busca da felicidade como um dos direitos universais de sua constituição. “Isso provocou o que eu
chamo de deslegitimação da infelicidade. Numa sociedade clássica, a infelicidade era a regra e o
gozo era a exceção. As coisas se inverteram, e isso provocou alguns problemas que ainda hoje não
conseguimos resolver", destacou. Podemos julgar a religião de forma severa. Mas ela tinha como
principal objetivo dar um sentido ao sofrimento e à morte. Numa sociedade hedonista como a nossa,
não sabemos mais exatamente qual papel atribuir à doença, ao luto, às tristezas e à morte.
“Estamos profundamente nus diante desses fenômenos que se abatem sobre nós."
Bruckner comentou que toda a mentalidade mudou brutalmente nos anos 1960. Após a Segunda
Guerra Mundial, o capitalismo foi confrontado com problemas de superprodução. A prioridade,
então, não era mais produzir, mas sim consumir. Para vender o que era produzido, foi inventado
um mecanismo de crédito. O crédito revolucionou nossa relação com a felicidade. “Quando nossos
pais e avós queriam comprar uma casa ou carro, eles se submetiam ao regime de espera.
Poupavam para poder comprar em dez ou vinte anos a casa ou o carro dos sonhos." O crédito
passou a aliviar a frustração e a organizar a insatisfação: “Você quer um bem? Ele é seu! Assine
esse papel e iremos adiantar o dinheiro para você!". O resultado é a aceleração dos fenômenos de
crédito, que, no caso dos Estados Unidos, acabou ruindo, com milhares de pessoas incapazes de
pagar as dívidas.
Os anos 1960 também difundiram a sociedade individualista. Nela, nenhuma instância coletiva, nem
religião, nem classes sociais, nem governos, tem o direito de ditar a conduta de uma pessoa. “No
domínio da felicidade, isso passou a querer dizer que entre eu e a minha felicidade não há mais
nenhum obstáculo. Se eu não sou feliz, eu sou o único responsável. Então, eu tenho que me sentir
culpado. Isso explica por que a felicidade vai permanecer sendo o maior mercado do próximo
século", afirmou.
Passamos, então, do direito da felicidade ao dever da felicidade. A medicina permite aumentar a
duração da nossa vida, e viver em boas condições. Também há a medicina estética, prometendo
remodelar qualquer parte do corpo. Ao mesmo tempo, a saúde, longe de se tornar algo natural e
que seria impensável aos nossos ancestrais, se transforma no principal problema dos nossos
contemporâneos. “O que deveria ser ocasião de felicidade e celebração dá origem a uma grande
inquietude", explicou, comentando que existe uma nova concepção de saúde que é um ideal
inacessível e somos sempre lembrados de que podemos ficar doentes.
“Nossa concepção de felicidade hoje é fundada sobre uma ilusão. Anexamos a felicidade à grande
epopeia prometeica da existência. Pensamos que a felicidade pode ser objeto de uma filosofia ou
de uma terapia, e que nós podemos encomendá-la como pedimos um prato em um restaurante. E
que ela depende apenas da nossa vontade. Assim, temos uma visão não simplesmente consumista
da felicidade, pois se fosse suficiente comprar um objeto para ser feliz seria muito mais simples.
Mas nossa concepção é construtivista, como uma casa que devemos edificar ao longo da nossa
existência. As fundações na infância, a calçada, depois o teto, a velhice. Uma concepção que me
parece muito ingênua."
A vida é mais caótica do que isso. Não é possível planejar ou reter a felicidade. O conferencista
citou uma frase do poeta e roteirista de cinema Jacques Prévert (“Reconheço a felicidade pelo
barulho que ela faz ao partir"), reforçando a ideia de que só somos felizes na inconsciência de sê-
lo. “A felicidade é algo que nos acontece. Não é algo que provocamos apenas pela força do desejo.
Se fosse assim, seríamos permanentemente felizes. Mas isso não acontece", ponderou.
A felicidade ainda carrega uma noção religiosa, que é preciso adaptar para o nosso século, como
a graça. Ou seja, uma analogia à visitação, à providência, a um espírito feliz que por algumas horas,
dias ou meses nos inunda de alguma coisa boa. E que um dia, sem a gente perceber, vai embora
e nos deixa em estado de nostalgia, e na esperança de seu retorno e de sua volta. De acordo com
ele, mesmo assim, é possível ter uma percepção mais espontânea quanto à felicidade. “Deixemos
ao acaso o cuidado de organizar nossos momentos de felicidade. Deixemos à nossa sensibilidade
a inteligência de reconhecer a felicidade quando ela chega para nós. E deixemos à nossa prudência
o cuidado de evitar as infelicidades quando elas passam perto da gente."
Pascal Bruckner encerrou a conferência com um poema de um artista alemão do século XV, cujo
nome ou rastro ele nunca encontrou, mas que resume bem o ideal da felicidade.

“Eu nasci
eu não sei quando
Eu estou aqui
eu nem sei porquê.
Eu vou
eu não sei para onde
E, no entanto, inexplicavelmente, eu sou feliz."

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