ISSN 2446-6123
1. Introdução
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Como explica Catani (2008, p. 241-242, grifos do autor), “[...] Bourdieu substitui a noção de sociedade pela de
campo, pois entende que uma sociedade diferenciada não se encontra plenamente integrada por funções
sistêmicas, mas, ao contrário, é constituída por um conjunto de microcosmos sociais dotados de autonomia
relativa, com lógicas e necessidades próprias, específicas, com interesses e disputas irredutíveis ao
funcionamento de outros campos”.
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Montaño (2010) explica que o primeiro setor é o mercado, o segundo o Estado e o terceiro seria a sociedade
civil. Diz respeito a grupos da sociedade civil (sociedade civil ativa) que se organizam autonomamente para
resolver problemas locais. A base é o trabalho voluntário. O terceiro setor emerge para cobrir as lacunas
deixadas pelo afastamento do Estado no tocante ao financiamento das políticas sociais.
falhas e deficiências existentes nas ofertas públicas, pois como lembra Hirschman (1973, p.
13), sob “[...] qualquer sistema econômico, social ou político, indivíduos, firmas e
organizações em geral estão sujeitos a falhas de eficiência, racionalidade, legalidade, ética ou
de outros tipos de comportamento funcional”, independentemente do quão bem planejada e
organizada seja a estrutura.
Ainda segundo o mesmo autor, as possíveis reações dos consumidores diante da queda
da qualidade de um serviço podem variar, principalmente, entre duas formas de
comportamento: “voz” e “saída”. A utilização da “voz” fica caracterizada quando o
consumidor faz a organização (com a qual está insatisfeito) ouvir seu descontentamento, ao
passo que o recurso da “saída” fica marcado quando o indivíduo opta pelo abandono da
instituição a qual pertence e pela inserção em outra (HIRSCHMAN, 1973).
Considerando o exposto, busca-se, nesse texto, refletir sobre o comportamento dos
indivíduos que usufruem da educação superior pública frente ao declínio da eficiência do
Estado e a relativa queda da qualidade do ensino no setor, com base nas categorias
apresentadas e descritas por Albert Hirschman, a saber: “saída”, “voz” e “lealdade”.
Hirschman (1973) parte do pressuposto de que qualquer instituição está sujeita a falhas
e quedas de desempenho. E de que, frente a isso, os consumidores podem reagir de duas
principais maneiras: utilizando o recurso da “voz” e/ou o da “saída”.
A “voz” consiste em uma “ação política por excelência” (HIRSCHMAN, 1973, p. 26).
Tal mecanismo pode ser definido como qualquer tentativa de:
Deste modo, “[...] a escolha da voz, mais do que a saída, é uma tentativa de mudar os
hábitos, a política e os outputs da firma da qual compra ou da organização a que pertence”
(HIRSCHMAN, 1973, p. 40, grifos do autor). Implica “[...] na articulação de opiniões críticas
pessoais em vez de ser um voto particular, ‘secreto’, no anonimato de um supermercado [...]”
e pode ser expressa em manifestações e tumultos, englobando desde “tímidos murmúrios até
violentos protestos” (HIRSCHMAN, 1973, p. 26).
Para que a “voz” atue como mecanismo de recuperação, contudo, é fundamental que
se respeite o tempo necessário para que as organizações reajam à sua pressão. Caso contrário,
“[...] os membros ou clientes podem tornar-se tão insistentes e incômodos, que a certa altura,
seus protestos impedirão em vez de ajudar, quaisquer que sejam os esforços de recuperação”
(HIRSCHMAN, 1973, p. 41). Por todos esses aspectos, a “voz” é compreendida como um
recurso mais confuso, demorado e custoso.
A “saída”, diferentemente, corresponde à ação em que os membros de uma
organização optam por deixá-la. Indica a decisão pelo mercado e é a forma mais rápida e
silenciosa de manifestação de descontentamento. Como explica Hirschman (1973, p. 25-26):
O cliente que, insatisfeito com o produto de uma empresa, muda para o de outra,
usa o mercado para defender seu bem-estar ou para melhorar sua situação; e assim,
movimenta forças de mercado capazes e levar à recuperação da firma cuja
performance entrou relativamente em declínio. É este o tipo de mecanismo da
economia. É claro: ou há um afastamento, ou se continua comprando o produto da
firma; é impessoal – todo confronto entre cliente e firma, com suas consequências
imponderáveis e imprevisíveis, é evitado, e o sucesso ou fracasso da organização é
conhecido através de uma rede de estatísticas; e é indireto – qualquer recuperação
de uma empresa em declínio é cortesia da Mão Invisível, fruto não intencionado da
decisão de mudança do cliente.
[...] a presença de uma fácil alternativa ao transporte ferroviário faz com que as
falhas das ferrovias devam ser combatidas ao invés de perdoadas. Devido à
existência de ônibus e caminhões para transporte, a deterioração do serviço
ferroviário não é tão grave quanto seria se as estradas de ferro tivessem um
monopólio do transporte entre grandes distâncias. Dessa forma, o público a suporta
sem provocar as pressões difíceis e explosivas necessárias à reforma da
administração. Pode ser essa a razão pela qual o empreendimento público, não só
na Nigéria, mas também em muitos outros países, tem seu ponto fraco em setores
como educação e transporte, onde está submetido à concorrência. Em vez de
estimular um desempenho melhor ou um desempenho máximo, a presença do
substituto acessível e satisfatório para os serviços oferecidos pelo empreendimento
público priva-a de um precioso mecanismo de retorno, cuja efetividade máxima
requer a ligação de clientes à firma. Isso porque a direção garantida pelo Tesouro
Nacional é menos sensível a prejuízo na renda, causado pelas saídas dos clientes
para um concorrente, do que aos protestos de um público revoltado, que não tendo
outra alternativa, além da dependência, provocará um tumulto (1973, p. 52) 3.
Na intrincada correlação de forças entre “saída” e “voz”, figura ainda a “lealdade”, que
em resumidas palavras, pode ser compreendida como o ato de “[...] resistir à saída apesar do
descontentamento” (HIRSCHMAN, 1973, p. 99); ou a decisão pelo “[...] adiamento da saída,
apesar da insatisfação” (HIRSCHMAN, 1973, p. 104). Logo, quanto maior o grau de
“lealdade”, maior é a probabilidade de utilização da “voz” em contraposição à “saída”. A
esperança dos consumidores de que a organização retomará “[...] a direção correta, após o
desvio [...]” em um curto espaço de tempo, é um dos principais fatores que fomentam a
“lealdade” (HIRSCHMAN, 1973, p. 83).
A opção pela “saída” indica o abandono do recurso da “voz” e, de forma semelhante,
quando se utiliza da “voz” é porque a “saída” ainda não foi acionada. Entretanto, em
determinados momentos, os mecanismos de “saída” e de “voz” podem ser combinados. Isso
significa que embora “saída” e “voz” sejam categorias contrastantes, não são mutuamente
excludentes (HIRSCHMAN, 1973).
São ilustrativas, nesse sentido, as situações em que a simples presença da possibilidade
de “saída” infla o poder da “voz” dentro de uma estrutura. Como explica Hirschman (1973, p.
62), “[...] uma importante maneira de pressionar uma organização é ameaçar a saída a favor
de uma organização rival”. Assim, o “[...] funcionamento efetivo da voz como mecanismo de
recuperação é grandemente reforçado se ela for protegida pela ameaça da saída, seja ela
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Hirschman, na realidade, cita a si mesmo a partir do relatório Development projects observed. Washington:
Brookings Institution, 1967, pp. 146-147.
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Diferentemente das políticas públicas que são caracterizadas por serem ações permanentes, os programas
são medidas governamentais temporárias (VIEIRA; ALBUQUERQUE, 2001). A interpretação das afirmativas de
Hayek (1990) deixa entender que, no bojo do neoliberalismo, a intervenção estatal via programas é
considerada a menos danosa à sociedade. Isso porque os programas, por serem medidas focais e de caráter
emergencial, teriam menor probabilidade de induzir o inchaço da máquina estatal acomodamento social.
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O afastamento do Estado brasileiro do financiamento da educação superior pública é uma de suas manobras
para efetuar o pagamento dos juros dívida externa. Segundo dados da Auditoria Cidadã da Dívida (AUDITORIA
CIDADÃ DA DÍVIDA, 2016), até dezembro de 2015 essa dívida havia consumido 42% do gasto federal, cerca de
R$ 962 bilhões.
empresas, não depende diretamente dos recursos advindos dos consumidores dos serviços
públicos para se manter. A esfera estatal nutre-se de frações de mais-valia captadas na forma
de tributos, impostos e taxas (MARX, 1985).
Os ocupantes das vagas das universidades públicas são, predominantemente, as classes
privilegiadas e detentoras de maior poder aquisitivo, especialmente no que se refere aos
cursos mais concorridos e legitimados. Às camadas populares, fica, por exemplo, a
possibilidade de pleitear vagas nos cursos menos prestigiosos e nas instituições de educação
superior privadas (principalmente por meio de financiamento).
Baseando-se em Bourdieu (2014), pode-se compreender tal fenômeno como uma
expressão das estratégias de cercamento de capital cultural pelas elites. Não obstante as
estratégias governamentais de democratização do acesso ao ensino superior, a posse de
diploma de universidade pública ainda é um distintivo, um diferencial e um marcador de
pertencimento de classe.
Essas aproximações demonstram a atualidade e a possibilidade de transposição para o
ensino superior da tese de Bourdieu e Passeron (2014) de que a escola, da forma como está
posta nessa forma social, vem contribuindo, fundamentalmente, para que o poder e a cultura
permaneçam sob o domínio das classes privilegiadas e tendencialmente mais cultas. A
dinamicidade do ensino superior público contemporâneo corrobora a manutenção dos
dominantes na posição de dominantes e dos dominados na posição de dominados,
conservando a arquitetura social estabelecida socialmente e reforçando as desigualdades
sociais.
5. Considerações finais
6. Referências
BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência: Por uma sociologia clínica do campo
científico. São Paulo: Editora UNESP, 2004.
MARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro II. São Paulo: Nova Cultural, 1985.
MORAES, R. Neoliberalismo: de onde vem, para onde vai? São Paulo: SENAC, 2001.