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CAROLINY PEREIRA
FRAGMENTOS INSTANTÂNEOS –
um estudo do mecanismo cinematográfico bergsoniano na pintura Nu descendo
uma escada, de Marcel Duchamp
UBERLÂNDIA
2012
CAROLINY PEREIRA
FRAGMENTOS INSTANTÂNEOS –
um estudo do mecanismo cinematográfico bergsoniano na pintura Nu descendo
uma escada, de Marcel Duchamp
UBERLÂNDIA
2012
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Aos professores Cláudia França e Jairo Carvalho Dias pelas contribuições valiosas
no exame de qualificação.
Aos professores Heliana Ometto Nardin e Renato Palumbo pelas aulas oferecidas.
Aos colegas que se tornaram grandes amigos e cúmplices na pesquisa, Carlos Arthur
Avezum Pereira e Vitor Marcelino.
18. MAREY, Étiènne. Estudo sobre a marcha da figura humana (detalhe). 1884....68
19. DUCHAMP, Marcel. Nu descendo uma escada n°2. (detalhe) 1912 ................ 68
20. Marcel Duchamp descendo uma escada. 1952. Crédito: Elias Elisofon ............. 68
30. MIRÓ, Joan. Femme nue montant l’escalier, 1937 ........................................... 119
31. RICHTER, Gerhard. Ema (Nua em uma escada). 1966 ................................... 121
32. RICHTER, Gerhard. Ema (Nua em uma escada). 1992 ....... 1Erro! Indicador não
definido.
SUMÁRIO
Introdução...................................................................................................................11
III. O cinema...........................................................................................................33
IV. O cubismo.........................................................................................................39
V. O futurismo......................................................................................................48
Referências...........................................................................................126
11
INTRODUÇÃO
1
O texto: Intuição filosófica encontra-se inserido no livro: BERGSON, Henri. O pensamento e o
movente. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
12
2
Sempre que aparecer no texto: Nu..., é referente à obra pictórica de Duchamp Nu descendo uma
escada n.2.
13
I – Preparando a escada
O papel é curto.
Viver é comprido.
Oculto ou ambíguo,
Tudo o que digo
tem ultrasentido
Se rio de mim,
me levem a sério.
Ironia estéril?
Vai nesse ínterim,
meu inframistério.
(LEMINSKI, 1994)
Uma escada
um corpo - nu
em movimento.
Dispa-se do que é evidente e óbvio, não hesite, avante. Colora a vida com
bastante ironia e metáfora, não tropece, fatie, e eis que nos é apresentada a
despersonificação: Duchamp, em Nu descendo uma escada n. 2.
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Jules Laforgue, (1860-1887) foi um poeta e romancista pertencente à fase tardia do simbolismo, seu
nome foi associado frequentemente ao decadente – fase cultural datada no final do século XIX e que
se opunha ao naturalismo e ao realismo. Foi discípulo da filosofia pessimista de Shopenhouer.
18
No desenho Encore à cet astre, a figura central representada está a subir uma
escada, enquanto que em Nu descendo uma escada n.2 (figura 2), ela desce.
Duchamp afirma ter sido neste desenho que a ideia de trabalhar o nu, ou o título de
Nu descendo uma escada foi introduzida.
1912, Óleo sobre tela, 147 x 89,2 cm. Philadelphia, Museum of Art. Fonte: ARGAN, 1992. p.
440
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[...] the Cubist room – Know as the Chamber of Horrors – with the lines
waiting to see Duchamp’s Nude Descending a Staircase. There were
about 1300 works in the exhibition, a third European, and many a visitor
must have echoed Prendergast’s remark when he came down from
Boston to see the show: “Too much – O my God! – art
here.”(ALTSHULER, 1994, p. 65)6.
Duchamp se tornara um mito nos Estados Unidos sem mesmo ter a noção
da repercussão que seu quadro havia causado, pois, na França, a exposição não havia
sido muito bem divulgada e demorou pelo menos uma semana para que a notícia
de que ele estava famoso nos Estados Unidos chegasse até ele.
5
Superando as dúvidas de Gleizes e Metzinger, a pintura de Duchamp, após ter sido recusada no
Salão dos Independentes, foi exposta em março de 1912, na Dalmau em Barcelona, na primeira
exposição cubista importante fora da França. Em outubro do mesmo ano a pintura também foi
mostrada na importante exposição Section d’Or, organizada pelo grupo de Puteaux, em Paris. Em
ambas as exposições, portanto, o quadro não teve grande repercussão.
6
[...] a sala cubista - conhecida como a Câmara dos Horrores - com filas de espera para ver Nu
Descendo uma Escada de Duchamp. Havia cerca de 1.300 obras em exposição, um terceiro
europeu, e muitos outros visitantes devem ter ecoado a observação de Prendergast quando ele
desceu de Boston para ver o show: "Demais - Oh meu Deus! - A arte aqui." (ALTSHULER,
1994, p. 65, tradução nossa).
25
7
A beleza da indiferença, na qual Duchamp se interessa, refere-se a uma experiência livre da noção
de beleza como belo, ou seja, ele tenta escapar da noção de beleza vinculada ao juízo de gosto.
Está “[...] equidistante do romantismo de Villiers e da cibernética contemporânea.” (PAZ, 2002, p.
15). Seria como uma nulificação do juízo de gosto. Essa noção foi mais amplamente desenvolvida
em sua obra a partir dos readymades. Em palestra proferida por Duchamp em 1961, na qual ele
fala sobre aspectos retrospectivos da sua produção artística, Duchamp caracterizará essa beleza:
“[...] uma questão que quero muito estabelecer é que a escolha desses readymades nunca foi ditada
pelo prazer estético, a escolha era baseada em uma reação de indiferença visual e ao mesmo tempo
ausência total de bom ou mau gosto... na verdade, uma completa anestesia.” (DUCHAMP apud
DANTO, 2000, p. 9). O interesse de Duchamp era por uma arte que fosse reversa ao prazer
estético. Aí estaria a beleza da indiferença.
Krauss (1998) coloca que a beleza da indiferença também estaria no irrompimento da subjetivação
do sujeito-artista ao escolher o objeto, ao produzir, com os readymades, uma arte totalmente
desvinculada dos sentimentos pessoais. Duchamp despersonifica o objeto e essa despersonificação
é transposta para o observador, que, confrontado com esse objeto “neutro” “tem a sensação de que
este irrompeu na corrente do tempo estético de alguma parte.” (p.101).
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Nesse período, a França, assim como praticamente toda a Europa, está numa
fase de expansão com relação ao desenvolvimento tecnológico proveniente da
Revolução Industrial, ocorrida inicialmente na Inglaterra em meados do século
XVIII.
Com essa nova perspectiva de vida, muitas pessoas migram do campo para a
cidade, gerando um aumento populacional dos centros urbanos, muitas vezes sem
um planejamento prévio. O ritmo da cidade é alterado, assim como o estilo de vida
de seus habitantes: aumenta também a quantidade de veículos nas ruas e isso
demanda alterações na infraestrutura e na arquitetura da cidade; o ritmo de trabalho
é acelerado em função da demanda da produção da indústria. Tudo isso irá alterar o
modo como as pessoas vivem, pensam e se relacionam, assim como irá também
modificar a maneira com que elas percebem o mundo.
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A fenomenologia foi uma vertente filosófica cujo início se deu no princípio do século XX , pelo
filósofo Edmund Husserl (1859-1938). A fenomenologia é um método de investigação filosófica
que toma como princípio o estudo da consciência e dos objetos da consciência.
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porém importante para a cultura artística, pois começa-se a ter uma preocupação
maior não mais apenas com o mundo externo apenas, mas também com a
psicologia do indivíduo. Surge então, o Impressionismo, movimento artístico
interessado na experiência de capturar a paisagem urbana ou rural, a partir do ponto
de vista de como o artista vê o mundo, e não de como este é dado genericamente.
***
micropercepções, percepções inconscientes. Estas, por sua vez, seriam formadas por
imagens anódinas que passam despercebidas.
***
Essa ambivalência não quer dizer que o presente não exista, mas que a sua
existência está mais sincronizada com a sensação do que com a cognição. Sua
apreensão está ligada ao sentido experimentado da sensação corporal. Essa
perspectiva permite pensar que a captura do momentâneo, ou seja, do presente, está
na instantaneidade de uma sensação obtida através da visão quando esta não é dada
de modo racional. “Essa experiência nos preenche com a sensação de estar presente
no presente.” (CHARNEY, 2001, p. 390).
III – O cinema
9
As placas de gelatino-brometo são compostas de gelatina e sais de brometo de prata. Utilizadas no
processo fotográfico por substituir a chapa de colódio, foi usada primeiramente em chapa de vidro
e posteriormente em película. Estas placas são muito mais sensíveis que as de colódio úmido e
duravam mais tempo que as de colódio seco.
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A fotogenia é aquilo que faz com que determinada cena salte aos olhos do
espectador, trazendo o prazer sentido ao assistir a cena. Alocada no punctum do
fotograma, onde o ponto de referência se faz através da falha que permite o
reencontro do espectador com o instante fecundo do prazer, a fotogenia produz a
presença do instantâneo.
Mas eis que, ao defini-lo dessa forma, Epstein depara-se com o paradoxo,
pois ao tentar teorizar e formalizar a essência do cinema como algo que escapa à
racionalidade e a compressibilidade, já que ela é indefinível por depender de sua
intangibilidade, de seu estado de “sempre-indo-embora”, ele acaba por ter que
assumir essa incapacidade de definição concreta na sua própria teorização. “A
definição de fotogenia de Epstein desconstruía-se a si própria – alegando
concretude, ela reconfirmava a intangibilidade da fotogenia.” (CHARNEY, 2001,
p. 396).
O movimento para Marey, segundo Charney, era composto por uma série
de fragmentos progressivos e os espaços localizados nos interstícios são, na
realidade, o próprio movimento.
fissuras entre os instantes separados nos lembram que estamos vendo algo
que simplesmente reproduz o movimento contínuo, mas que jamais
poderá ser um. (CHARNEY, 2001, p. 402).
IV - O cubismo
É plausível afirmar que o cubismo tenha sido influenciado pelas novas ideias
e reflexões elaboradas nas pesquisas sobre o tempo, tanto nos campos da matemática
e geometria como da filosofia e da física, sobretudo quando o poeta Guillaume
Apollinaire (1880 – 1918) escreve, no que seria tratado como o manifesto do
cubismo:
A geometria está para as artes plásticas assim como a gramática está para a
arte de escrever. [...] Hoje os cientistas não se atêm mais às três dimensões
da geometria euclidiana. Os pintores foram levados naturalmente e,
digamos, intuitivamente a se preocuparem com novas medidas possíveis
do espaço que, na linguagem dos modernos, são indicadas todas juntas
com o termo de quarta dimensão. (APOLLINAIRE, apud MICHELLI,
1991, p. 174).
Figura6 - PICASSO, Pablo. Mulher e pera Figura 7 - BRAQUE, George. Natureza- morta
com às de paus
1909; óleo sobre tela, 92,1 x 70,8 cm, Museum of 1911; óleo e papel colado sobre tela, 81 x 60 cm.
modern art de Nova York – Moma. Fonte: Paris, Musée National d’Art Moderne. Fonte:
http://www.moma.org/collection/object.php?object ARGAN, 1992. p. 429
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intelectual e metódica, foi assim que essa fase foi difundida. Os principais expoentes
dessa vertente são, além dos dois artistas citados, Albert Gleizes, Jean Metzinger.
Cézanne foi uma referência para grande parte dos artistas que sobrevieram a
ele, seja como convergência ou divergência, e no que concerne a sua ressonância
nos cubistas estava no seu modo de ver e pintar o objeto:
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A outra grande vertente cubista foi o cubismo sintético, cujo maior defensor
e representante foi Juan Gris (1887 – 1927). Segundo Argan, essa vertente era um
desvio, em sentido “idealista”, do propósito “cognitivo” do cubismo analítico.
Ser livre, mas nem por isso perder o contato com a realidade, que o drama
dessa figura épica que se chama ora inventor ora artista ou poeta. [...] A
vida dos fragmentos: uma unha vermelha, um olho, uma boca. Os efeitos
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Figura 9: DUCHAMP, Marcel. Sonata Figura 10: DELAUNAY, Fernand. Tour Eiffel
V - O futurismo
Alerta, artista, alerta,
Não te entregues ao sono...
És refém da eternidade
E prisioneiro do tempo.
(PASTERNAK apud TARKOVISK, 1998)
Salvo o pintor Edgar Degas, que em sua pintura, L’absinthe, de 1876, que
trabalha a cena da pintura à maneira de um fotograma, possibilitando que entremos
no quadro pela sua diagonal, a partir de uma perspectiva enviesada. Efetua um
desvio abrupto no ângulo pertencente a alguns objetos da pintura. “Assim Degas
desfaz a ligação que ainda vinculava a sensação visual impressionista à emoção
romântica.” (ARGAN, 1992, p. 109).
50
ainda não termina” (PAZ, 2002, p. 12), talvez justamente pelo movimento se
propagar indefinidamente.
VI - Boccioni e Duchamp
Proclamamos: [...]
2. Que o dinamismo universal deve ser traduzido em pintura como
sensação dinâmica; [...]
4. Que o movimento e a luz destroem a materialidade dos corpos.
Combatemos:
1. Contra as tintas betuminosas pelas quais se tenta obter a pátina do
tempo nos quadros modernos; [...]
3. Contra o nu na pintura, tão tedioso e opressivo quanto o adultério na
literatura. (BOCCIONI, in CHIPP, 1993, p. 296).
11
Dentre a vasta gama de artistas que possibilitam uma relação concisa com Duchamp, a escolha de
efetuá-la com Boccioni deu-se por dois motivos principais: primeiro pela proximidade de
interesse no estudo e representação do movimento e, em segundo lugar, pela aproximação de
Boccioni com as teorias bergsonianas de intuição, duração e movimento.
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ao instante que é ávido porém fugaz, saturado de intensidade, mas esvaído pelo
tempo que não para.
1912, bronze; 39.5 x 39.5 x 32.8 cm. São Paulo, Museu de Arte Contemporânea. Fonte:
http://www.cursodehistoriadaarte.com.br/lopreto/index.php/arte-escultura-umberto-boccioni-1882-1916/
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* * *
* * *
Seurat (figura 14) dividia as cores para que estas pudessem ser sintetizadas
através do mecanismo de associação retiniana, em que as cores fundem umas nas
outras e, dessa maneira, percebermos não fragmentos, mas unidades chegando na
harmonia de todos os elementos que vibram na luz. Essa operação se dava através da
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Poder-se-ia pensar em uma analogia com o termo “cubofuturismo”, porém, este suscita questões
que são externas às proposições de Duchamp para a sua pintura Nu descendo uma escada.
Cubofuturismo foi um movimento artístico de caráter literário e pictórico, que ocorreu
principalmente na Rússia entre 1912-1915. Havia influências tanto cubistas quanto futuristas neste
movimento e seu principal expoente foi o pintor Mikhail Larionov. Como a pintura Nu descendo
uma escada, foi criada entre 1911 e 1912, é cronologicamente impossível que Duchamp tenha
sido influenciado por este movimento, durante a criação de sua pintura, já o contrário não é
improvável que tenha ocorrido. Mas, como o interesse histórico que sucedeu a pintura de
Duchamp é secundário neste momento, a possível influência da pintura de Duchamp neste
movimento será suspensa em detrimento de uma abordagem mais incisiva das influências que o
Nu descendo uma escada, pode ter sofrido pelo cubismo, futurismo e pelo cinema.
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possibilidade de ilusão que nossa retina tem de tomar com unitário o que são
fragmentos, devido à distância espacial do observador em relação à pintura. Essa
imagem seria composta como que de pixels, ou seja, pequenos elementos da
imagem sintética que correspondem a grãos fotográficos.
Isso era, de fato, o que Duchamp sempre se negou a realizar quando buscou
o cubismo em detrimento do impressionismo. Porém utilizo esta técnica como
associação à Duchamp na medida em que ela está inserida em um desvio que a leva
para a outra margem.
Duchamp fatia, mas não porque quer obter a síntese. Ele fatia porque quer
mostrar as “vísceras” do movimento através de sua estaticidade analítica, como se
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Figura14 - SEURAT, George. Torre Eiffel Figura 15 - BALLA, Giacomo. Jovem executado em
uma varanda
A ação repetitiva de uma pessoa que desce uma escada é uma ação mecânica
quase maquínica. Ao executar esse movimento “ [...] a pessoa passa do estado do
organismo vivo para o de engenho ou máquina: o funcionamento biológico se
transforma em funcionamento mecânico.” (ARGAN, 1992, p.438).
Esse movimento repetitivo faz com que o sujeito tenha cada vez mais
familiaridade com a máquina, pois, de acordo com Argan, numa civilização de
técnica, “ [...] a transformação do funcionamento biológico em funcionamento
tecnológico é o destino que nos aguarda.” (1992, p. 438). Movimento que, de tanto
se repetir, fragmenta, descaracteriza a unidade e multiplica-se em fatias incompletas.
VIII - O tempo no Nu
Cronofotografia.1884. Fonte: 1912, Óleo sobre tela, 147 x 89,2 cm. Pormenor
http://www.aloj.us.es/galba/monograficos/VELAZQU da pintura Nu descendo uma escada com
EZ/FotoMarey.htm inserção de pormenor da fotografia de Marey
Estudo sobre a marcha da figura humana.
Filadélfia, Museum of Art. Fonte: ARGAN,
1992.
Mas também se diferencia do cinema, pois fixa-se sobre uma superfície plana
que é dada de um vez só, enquanto que no cinema as imagens mostram-se a medida
que a película cinematográfica é desenrolada. O fato de a pintura de Duchamp conter
todos os seus elementos sobre um único plano, dado de uma só vez, faz com que seus
presentes sejam encaixados, como que unidos por uma linha que segura todos os
instantes amarrados entre si. Por isso, o tempo do Nu... não é o tempo puro, devolvido
a si mesmo: uma ainda está subordinado à linha espacial.
Em uma superfície nada está escondido, mas nem tudo é visível [...]
declinação infinita que, de um lado a outro da fenda, reencadeia todas as
imagens, todas as cores, abrindo-as umas às outras, segundo uma conexão
que transversal que afirma seus cortes e distâncias, uma conexão que vai
romper os tons. (MARTIN in ALLIEZ, 2000, p. 102).
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IX - O movimento em Nu
A sua estrutura, que não nos remete a um nu feminino, também não confere a
ela uma figuração maquinária, está mais próximo de uma ” [...] fuselagem
surpreendida não em pleno voo, mas sim em uma lenta queda [...]” (PAZ, 2002, p.
13) confirmando a ironia de Duchamp perante tantos aos modelos habitualmente
utilizados na arte tradicional.
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Talvez por esses motivos, Duchamp se interessaria, mais tarde, pelas máquinas
autodestrutivas de Jean Tinguely13, (figura 22) cujo funcionamento opera-se de modo
imprevisível. O movimento em desaceleração nulificava o sentido e a significação da
máquina.
13
Em entrevista à Cabanne, Duchamp afirma seu gosto por Tinguely ao falar dos jovens artistas que
estavam em evidência: “Gosto muito também de Tinguely, mas ele é mais mecânico.” (DUCHAMP
em entrevista à CABANNE, 2008, p. 167).
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Com essa afirmação, Duchamp mostra o interesse no movimento para além das
artes ao elaborar Nu descendo uma escada. Há uma relação entre o movimento
representado na pintura, através do deslocamento da forma no espaço, com o
movimento pensado na matemática e na geometria.
14
Veremos mais adiante, em secções subsequentes, que essa linha na qual o objeto em movimento
perpassa corresponde à linha percorrida pelo móvel.
15
A respeito da endosmose veremos a definição na secção que trata do movimento e do mecanismo
cinematográfico.
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16
A geometria não euclidiana é resultante da busca por alternativas ao 5º postulado euclidiano: o
postulado das paralelas. Nele inscreve-se, segundo Greenberg, que “[...] não podemos estender
segmentos de retas cada vez mais longe, para ver se elas se encontram, mas não podemos fazer isso
para sempre. Nosso único recurso é verificar o paralelismo indiretamente, usando outros critérios,
que não os da definição.” (GREENBERG in LYRA, 2008, p. 29).
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caixa verde há uma pilha de notas sobre a quarta dimensão. (DUCHAMP apud
CABANNE, 2008, p. 66).
O dualismo entre objeto e espaço [...] não se resolve com uma operação
dialética, que ainda consiste na introdução de uma estrutura lógica a priori
no contexto da realidade. Ele se resolve na realidade física do movimento.
Espaço e objeto não são duas entidades definidas e imóveis, que se põem em
movimento quando entram em relação recíproca: são dois sistemas em
movimento relativo, e o que vemos não é uma forma antes imóvel e depois
decomposta e recomposta por um ritmo de movimento, mas é a própria
forma do movimento. É significativa a coincidência cronológica entre a
pesquisa figurativa de Duchamp e a pesquisa científica de Einstein sobre a
relatividade dos movimentos. (ARGAN, 1992, p. 306).
17
Frames são os fotogramas, o quadro, as imagens estáticas nas quais é constituído o movimento
cinematográfico.
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13
XI - (silêncio) Intervalo 4’ 33’’
They did not speak. They did not sing, they remained,
all of them, silent, almost determinedly silent; but from
the empty air they conjured music. Everything was music...
(KAFKA, 1971)
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13
A cisão efetuada pelo branco, 4 páginas e 33 linhas em branco, refere-se a dois aspectos.
O primeiro aspecto refere-se à obra do músico norte-americano Jonh Cage (1912-1992) intitulada
4’33’’ (quatro minutos e trinta e três segundos), e cuja partitura faz com que o intérprete fique
sentado diante do piano, sem tocar nenhuma nota musical durante os 4’33’’. O que o público ouve
são os sons que o ambiente disponibiliza, como: tosses, rangidos, sussurros etc. Era nesse som
cotidiano que Cage estava interessado.
Para Cage, o silêncio tem uma importância fundamental nesse momento de sua produção poética.
Nele é possível instaurar o tempo enquanto categoria musical, não mais como objeto-tempo,
metáfora da dimensão da existência ou representação do mundo. O tempo passa a ser uma
experiência do movimento da vida. O silêncio seria como uma abertura para a fruição do fluxo da
vida, gerado por outros tipos de sons que são “abafados” pelos sons definidos pela tradição musical. O
silêncio, portanto, seria o campo de possibilidades em que os sons se interpenetram: “[...] na poética
cageana, o silêncio é indissociável da noção de tempo.” (TERRA, 2000, p. 83).
Cage se opunha ao sistema tonal temperado, composto pela escala cromática, que divide a oitava em
12 semitons cromáticos iguais. Ele estava interessado na arte que se baseasse no acaso, e que a
personalidade do artista ficasse cada vez mais desvinculada do trabalho em arte – isso converge com a
proposta duchampinana para a obra de arte e o processo de criação em arte, introduzida mais
explicitamente com os ready-mades. O pensamento de Cage de que o objeto de arte deveria ser
excluído da personalidade do artista o distanciava das propostas expressionistas abstratas e o
aproximava mais de Duchamp. Convergia para uma elaboração do processo de descobrimento da
criação em arte a partir dos elementos da vida cotidiana.
Os readymades são objetos industrializados de uso cotidiano que Duchamp escolhia
“ocasionalmente”, e que inferia sobre eles dois deslocamentos: alterava-lhes o nome, efetuando uma
transferência de sentido, como o exemplo mais popular da Fonte: um urinol cuja interferência de
Duchamp se dava pela alteração da posição do objeto no espaço. O segundo deslocamento é uma
transferência espacial, Duchamp deslocava os objetos de seu contexto utilitário, colocando-os em
espaços artísticos institucionalizados. Com isso, ele colocava em xeque várias questões relacionadas à
arte. A que nos interessa no momento é a que diz respeito à questão autoral do trabalho de arte.
Os acontecimentos da vida cotidiana são obtidos através de ações quaisquer, ou seja, desprovida de
uma significação particular ou transcendental. Ao colocar que o descobrimento da arte pode ser
pensado a partir desses acontecimentos corriqueiros, é como se Cage e Duchamp, pensassem a
criação em arte não mais como aquele evento “divino”, executado pelo artista, como um ser provido
de um dom e que suas ações são diferentes da de uma ação cotidiana. O objeto de arte, ao se tornar
um objeto advindo do acaso, da vida cotidiana, desvincula-se de seu criador, que perde o caráter
autoral, o artista pode ser qualquer um.
Pois bem, pensar que esse objeto ou esse “som” cotidiano pode ser pensado como um trabalho em
arte aproxima-se do pensamento do estudo do movimento na modernidade, em que o movimento
não é pensado mais como instantes privilegiados, como se pensava na antiguidade, mas sim como
instantes quaisquer, sucessivos.
Cage acreditava que a arte deveria colocar o artista em sincronia com a natureza, com a maneira com
que ela atua, e não com sua aparência exterior. Deveria ser uma “[...] brincadeira sem propósito [...],
não era uma tentativa de ordenação do caos, nem sugeria melhorias à criação [...] mas simplesmente a
de despertar-nos para a própria vida que estamos vivendo.” (CAGE apud TOMNKS, 2004, p. 454).
A aproximação mais intensa entre Duchamp e Cage se deu quando, em 1960, Cage pediu a
Duchamp que lhe ensinasse xadrez e, durante 1 a 2 vezes por semana eles se reuniam na casa de
Duchamp para que Duchamp lhe desse as aulas.
Posteriormente, Cage convidou Duchamp a participar de um evento musical, Reunion, em 5 de
março de 1968. O evento consistia em jogar xadrez. Primeiro jogavam Cage e Duchamp, foi a única
vez que Cage ganhou de Duchamp, depois Cage jogava com Teeny, esposa de Duchamp. Todos os
integrantes estavam equipados com microfones de contanto conectados à placa de som e, quando
alguém movimentava uma peça do xadrez “[...] ouvia-se uma gama de barulhos eletrônicos
amplificados, enquanto imagens osciloscópicas apareciam em televisores que ficavam à vista do
público.” (TOMKINS, 2005, p. 494).
O intervalo efetuado através das páginas em branco, está relacionado a “amostra temporal" e também
à explicitação do que ocorre entre uma imagem e outra, ou entre um frame e outro, que constituem
o filme cinematográfico, com a diferença de que, na película cinematográfica, o intervalo entre os
fotogramas é preto.
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O intervalo, pensado como aquele momento não apreensível pelo intelecto quando este, em sua
busca pela fixidez do movimento real, fragmenta-o. Porém, ao fragmentar o movimento, a
inteligência não consegue reconstituir o movimento total, pois lhe escapa justamente o elemento
constituinte da fragmentação, o intervalo. Momento em que a guilhotina é acionada e efetua-se o
corte, rompendo toda a duração real. O intervalo é o instante em que a borda de um fotograma toca
a do outro, escapando à capturação fotográfica, como uma paragem virtual e escorrega no espaço.
Mais uma vez, o intervalo é vazio, mas não ausência, pois se localiza no entre e abrange uma força
que tenciona ambas as partes nas quais intervala. É vazio e profícuo de som, oriundo das páginas
passadas pelo dedo do leitor.
86
Dois intervalos de tempo são iguais, quando dois corpos idênticos, colocados
em idênticas circunstâncias no começo de cada um destes intervalos, e
submetidos às mesmas influências de todo gênero, tiverem percorrido o
mesmo espaço no fim destes intervalos. (BERGSON, 1988, p. 82).
própria duração. Seria o mesmo que constatar apenas uma simultaneidade entre o
espaço percorrido e o ato puro do movente.
14
Bergson data o início da metafísica no dia em que Zenão de Eléia “[...] assinalou as contradições
inerentes ao movimento e à mudança tal como a inteligência se os apresenta.” (BERGSON, 2006b, p.
10).
88
teoria de Spencer sobre a evolução, e na qual este não se detém no estudo da própria
mudança.
15
A respeito da distinção entre a metafísica da intuição de Bergson e a metafísica da inteligência,
sobretudo a “Teoria das Ideias” de Platão, que pensa o movimento a partir da imobilidade ver:
capítulo II – Movimento, do título: ROSSETTI, Regina. Movimento e totalidade em Bergson: a
essência imanente da realidade movente. São Paulo: Edusp, 2004.
16
Sofismas ou sofistas foi um grupo de mestres filósofos gregos, datando o seu auge na segunda metade
do século V a.C. Tinham o hábito de discursar sobre suas ideias através de aparições públicas. Eles
realizavam muitas viagens para propagarem seus discursos e atraírem jovens estudantes. Os
ensinamentos sofistas baseavam-se nas estratégias de argumentação do discurso. Com o intuito de
conquistar fama e riqueza, tornaram-se grandes mestres da retórica e da eloquência. Nota da autora.
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[...] de uma parte, o espaço percorrido pelo móvel, que forma uma
multiplicidade numérica indefinidamente divisível, da qual todas as partes,
reais ou possíveis, são atuais e só diferem em grau; de outra parte, o
movimento puro, que é alteração, multiplicidade virtual qualitativa, como a
17
Da divisão desse misto originam-se as multiplicidades: virtual e atual. Para um aprofundamento
maior do conceito de multiplicidade abordado por Deleuze ver o capítulo 2: A duração como dado
imediato, do título de Deleuze: DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São
Paulo: Editora 34, 1999.
90
corrida de Aquiles, que se divide em passos, mas que muda de natureza toda
vez que se divide. (DELEUZE in ALLIEZ, 1996 p, 36).
[...] ao determinar uma relação entre uma órbita e o tempo de seu percurso
(Kepler); a física moderna, ao vincular o espaço percorrido ao tempo da
queda de um corpo (Galileu); a geometria moderna, ao destacar a equação de
uma curva plana [...] (Descartes); enfim, o cálculo infinitesimal, a partir do
momento em que se experimentou levar em conta cortes infinitamente
aproximáveis (Newton e Leibniz). (DELEUZE, 1985, p. 12).
18
Outros filósofos posteriormente também efetuaram reflexões acerca do cinema, dentre eles estão:
Jean Epstein, Gilles Deleuze, Roland Barthes, entre outros.
94
movimento que é o constante devir, e, justamente porque ela está voltada para o
resultado da ação, que é a ação exterior do movimento, a inteligência não consegue
captá-lo.
* * *
No caso de Duchamp, pensar essa transição é pensar que a variação foi ainda
mais aguda. Ocorreu não só na transição da dimensão virtual, da ideia, para o trabalho
em arte, mas também na própria modificação da figura representada no quadro. O
esboço de Nu descendo uma escada e o desenho Encore à cet astre sofreram um
deslocamento brutal. No esboço, a figura sobe a escada está quase a sair da cena.
Ao passar para o primeiro estudo, Nu descendo uma escada n.1, a figura vira-se
de volta, decide descer a escada “novamente” e faz dos degraus descidos graus de
ressonância que não cessam, mas que, ao invés de acelerar o movimento, aceleram o
tempo e por isso modificam-se. Veste a carapaça metálica e justifica o título com uma
ironia perspicaz.
* * *
numa tela, obtêm a ilusão de movimento. Esse artifício do cinema é análogo ao nosso
mecanismo de conhecimento.
Mas é preciso que haja o movimento em algum lugar. Assim, as fotografias que
são imóveis ganham mobilidade a partir do aparelho cinematográfico. “A fita
cinematográfica se desenrola, fazendo com que, uma a uma, as fotografias da cena se
sucedam uma às outras, que cada ator da cena readquira as suas atividades sucessivas no
movimento invisível da fita cinematográfica.” (BERGSON, 2001, p. 271). O cinema
utiliza, mais precisamente, 24 exposições de fotos paradas por segundo de movimento,
sendo que cada fotograma é projetado duas vezes através de um mecanismo chamado
obturador.
Esta análise e crítica que Bergson faz sobre o cinema, utilizando o conceito de
“mecanismo cinematográfico”, são referentes ao cinema primitivo, e principalmente ao
que foi realizado até a primeira década do século XX. Lendo teóricos que
desdobraram os conceitos bergsonianos, podemos apreender que, para Deleuze, de
acordo com Roberto Machado, a respeito da crítica de Bergson,
Esse movimento inventado e que não é artificial, pelo fato de que nossa
percepção corrige o “erro,” ou a ilusão no momento em que esta se dá através da
síntese efetuada pelas imagens apresentadas à percepção, que são cortes móveis na
duração. Quando o espectador está diante da tela, ele experiencia um movimento
contínuo. Na pintura Nu descendo uma escada, o observador vê, ao contrário, uma
sucessão de instantes, em que o intervalo entre uma fatia e outra do movimento, dado
pelo contorno preto entre uma silhueta e outra da figura representada na pintura, age
como uma arranhura, deixando pequenos rasgos do movimento real aparecerem. Pois
ali, no intervalo, está apenas a paragem virtual. Essa sucessão de instantes também está
presente nas cronofotografias de Marey e Muybrodge em que:
[...] simpatia pela qual nos transportamos para o interior de um objeto para
coincidir com sua qualidade própria. Essa maneira de apreender o real não
nos é natural no estado atual do nosso pensamento; ela demanda uma ruptura
com os hábitos, uma conversação com o espírito e um trabalho de reflexão.
(VIEILLARD-BARON, 2009, p. 108).
[...] consideram que o cinema, constituído por imagens fixas sucessivas, não
reproduz o movimento. Apenas dá uma ilusão de movimento. [...] Desloca-
o nos fotogramas do filme, contrariamente ao fotodinamismo que analisa o
movimento nos seus detalhes. E o cinema também não sintetiza o
movimento. Não faz mais do que reconstruir fragmentos de realidade
dispersos. (BRAGAGLIA, apud CASTELO BRANCO, 2010, p. 4-5).
Neste Nu... n. 3, as cores são mais claras e frias, tendendo para o azul. Essa
tonalidade remete ao alumínio, o que enfatiza o caráter (anti)mecânico e industrial em
que Duchamp ainda estava interessado nesse período.
109
1911, Óleo sobre cartão em painel 95.9 x 1916, Óleo sobre cartão em painel 147
60.3 cm. Filadélfia, Museum of Art. x 89,2 cm. Filadélfia, Museum of Art.
Fonte: Fonte:
http://www.philamuseum.org/collections http://www.philamuseum.org/collectio
/permanent ns/permanent
110
Os três Nus possuem especificidades que são inerentes a cada um. Possuem seus
próprios movimentos e durações, mas ambos se relacionam entre si. Há uma
confluência entre as três pinturas. Apesar de cada uma ser um mundo possível e
possuir uma ambientação própria, cada pintura ressoa na outra, como séries
ressonantes.
Após pintar Nu descendo uma escada, Duchamp, em 1913, realizou um ato que
de certa maneira desestabilizou a estrutura do pensamento da arte até então produzida,
no que concerne ao processo de criação em arte e ao que se refere o objeto de arte.
Seus efeitos ressoaram indefinidamente no âmbito artístico.
um dos primeiros a aliciar o leitor como participante do processo criativo de uma obra
de arte.
Duchamp costumava dizer que o artista nunca sabia realmente o que estava
fazendo, ou porque o fazia. Uma de suas teorias prediletas era que o artista
114
Porém “[...] o todo não é um conjunto fechado, mas, ao contrário, aquilo pelo
que o conjunto nunca é absolutamente fechado, nunca está completamente isolado,
aquilo que o mantém aberto em algum ponto, como se fosse um fio tênue o ligasse ao
resto do universo”. (DELEUZE, 1985, p. 19).
Depois de 1912,
Duchamp estava instigado com os efeitos das espirais que ele conseguia nesse
pequeno filme e que, pelo deslocamento do ponto de vista – em perspectiva
cavaleira19, isto é, vista de baixo, ou do teto – davam um efeito de terceira dimensão.
Essas espirais, porém, não eram espirais de fato, mas círculos concêntricos que
se inscreviam um dentro do outro e que formavam uma espiral, no sentido visual, mas
não geométrico.
A contradição está em obter um efeito por meio de uma simulação de algo que
seria apenas um efeito visual, pois foi justamente a veemência no desinteresse pela
pintura puramente visual que o distanciou dos impressionistas. Mas Duchamp se
retifica justificando que eram coisas para serem feitas poucas vezes: “[...] não se pode
ficar fazendo durante quinze anos ou durante dez anos. Depois de algum tempo
acaba.” (DUCHAMP apud CABANNE, 2008, p. 128).
19
Perspectiva paralela oblíqua, também chamada de cavaleira, é uma perspectiva que ocorre quando o
observador está situado no infinito e a partir dele são geradas retas paralelas também dispostas ao
infinito que incidem de forma não perpendicular no Plano do Quadro.
20
Em entrevista a Cabanne (2008), Duchamp comenta que toda geração possui um protótipo, e que
ele seria um protótipo da sua geração.
117
Miró criou este desenho durante a Guerra Civil Espanhola, ocorrida entre 1936
e 1939. É um desenho que se aproxima do de Duchamp quanto às características
formais. O movimento em ascendência, no entanto, é mais uma crítica a esse período
do que uma exaltação. A mulher representada por Miró possui distorções e um esforço
para subir a escada que espelham esse período histórico.
119
Mas seria a partir do final dos anos 1950 que a obra de Duchamp viria a se
tornar uma referência influente, principalmente nos movimentos neo dada, neo
realismo e pop art. Em 1966, o pintor alemão Gerhard Richter (1932 - ) executou Ema
(Nua em uma escada), uma pintura a óleo (figura 31).
Ritcher utiliza da pintura de Duchamp, assim como os outros dois artistas que
veremos a seguir, como uma obra de referência, citando-a, seja através de alguns
indícios formais elaborados e/ou pelo título da pintura. A citação algumas vezes utiliza
alguns elementos-chave que caracterizam a obra, mas não necessariamente discute os
mesmos temas ou conceitos. Algumas obras de citação utilizam a própria obra
referência como tema e elemento de discussão.
XX - Em movimento permanente
Pois bem, isso ocorre porque o virtual opera com o esboço, é um vir a ser,
está em latência. Então, sempre quando tentávamos relacioná-lo ao objeto de
arte, algo ficava alocrônico. Percebemos que o objeto, por estar realizado, se
relacionava com o possível. O virtual8 pode estar contido em outra dimensão da
arte: no processo de criação. Por isso, todas as leituras e estudos realizados nessa
direção forma suspensos, para que possa ser desenvolvido posteriormente, num
possível desdobramento da pesquisa.
8
Sobre o conceito de virtual e possível, ver: Bergson (2006b), capítulo III; Deleuze (1999) e
(1996); Levy (1996).
124
Como a linha textual seccionada pelo espaço que existe entre as palavras,
assim é Nu descendo uma escada: uma linha percorrida fatiada em intervalos
infinitesimais, já que não conseguimos perceber o movimento em sua totalidade
senão através da intuição. Deparamo-nos com uma pintura análoga a um texto
que apreendemos primeiro a partir da inteligência e que só depois transforma-se
em acesso intuitivo através da experiência entrópica que efetuamos.
“Duchamp nos mostrou que todas as artes, sem excluir a dos olhos, nascem
e terminam em uma zona invisível.” (PAZ, 2002, p. 9). Seria essa zona invisível a
zona virtual do processo de criação, que é real, mas não é atual, e que por isso
não podemos vê-la, ou percebê-la? Esta zona invisível estaria contida de forma
nebulosa, como imagens virtuais que a todo o momento estão reagindo sobre o
atual, atualizando-se, produzindo uma diferença no conjunto, já que ao se
moverem mudam toda a configuração do todo, devido a seu aspecto de
multiplicidade qualitativa.
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