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UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA

CAROLINY PEREIRA

FRAGMENTOS INSTANTÂNEOS –
um estudo do mecanismo cinematográfico bergsoniano na pintura Nu descendo
uma escada, de Marcel Duchamp

UBERLÂNDIA
2012
CAROLINY PEREIRA

FRAGMENTOS INSTANTÂNEOS –
um estudo do mecanismo cinematográfico bergsoniano na pintura Nu descendo
uma escada, de Marcel Duchamp

Dissertação apresentada ao Programa de


Mestrado em Artes da Universidade Federal de
Uberlândia, como requisito parcial para
obtenção do título de mestre em Artes.

Área de concentração: Fundamentos e


reflexões em artes

Orientador: Prof. Dr. Marco Antônio


Pasqualini de Andrade

UBERLÂNDIA
2012
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Sistema de Bibliotecas da UFU, MG, Brasil.

P436f Pereira, Caroliny, 1983-


2012 Fragmentos Instantâneos: um estudo do mecanismo cinematográfico
bergsoniano na pintura Nu descendo uma escada, de Marcel Duchamp /
Caroliny Pereira. -- 2012.
131 f.: il.

Orientador: Marco Antônio Pasqualini de Andrade.


Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Uberlândia,
Programa de Pós-Graduação em Artes.
Inclui bibliografia.

1. Artes - Teses. 2. Artistas franceses - Séc. XX - Teses. 3. Pintura


moderna - Séc. XX – Teses. 4. Nu na arte – Teses. 5. Duchamp, Marcel,
1887-1968 - Teses. I. Andrade, Marco Antônio Pasqualini de. II.
Universidade Federal de Uberlândia. Programa de Pós-Graduação em
Artes. III. Título.
CDU: 7
Dedico este trabalho aos meus filhos, que
fazem todos os sentidos fazerem sentido:
Pablo, que colore a vida com sua alegria
e Miguel que nasceu junto com a pesquisa e
aprendeu a subir os degraus enquanto eu
construía a escada.
AGRADECIMENTOS

Agradeço ao Programa de Mestrado em Artes da Universidade Federal de


Uberlândia, à coordenadora Beatriz Rauscher e à secretária Regina.

Ao Prof. Dr. Marco Antônio Pasqualini de Andrade, pela orientação gentil e


precisa.

Aos professores Cláudia França e Jairo Carvalho Dias pelas contribuições valiosas
no exame de qualificação.

Aos professores Heliana Ometto Nardin e Renato Palumbo pelas aulas oferecidas.

À minha mãe, pela ajuda de sempre, sempre.

Aos familiares que me incentivaram e estiveram comigo,


Fauster pelo companheirismo, Janaína pela solicitude incomparável e Aline.

Aos colegas que se tornaram grandes amigos e cúmplices na pesquisa, Carlos Arthur
Avezum Pereira e Vitor Marcelino.

Aos amigos Wagner Schwartz e Thiago Araújo pelo olhar cuidadoso.

À Rafael Reis Pombo pela revisão cuidadosa do texto.

E a tantos outros que de alguma maneira participaram dessa construção e estão


contidos nas entrelinhas da pesquisa.

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, pelo


incentivo financeiro.
Vejo a escrita como um trabalho não solitário, pois, me faz contactar com
vários, e ficar rodeada por seres que me atravessam incessantemente, os autores dos
livros dos quais me referencio, os sons que penetram minha pele fazendo vibrar
cada célula, as imagens que me perfuram dilatando os poros, os cheiros, a
temperatura que desenha e dimensionam a velocidade com que os acontecimentos
são absorvidos, os pensamentos que transbordam em palavras transpostas em um
texto.
A escrita performativa, microperformativa, que me possibilita a verbalização
subjetiva através de uma objetividade formal, quando crio um texto que difere de
um trabalho em arte apenas por sua estrutura formal, já que ambos nascem do
mesmo ensejo e desejo, de me colocar para o outro o que não cabe em mim, a
partir das relações cravadas entre artistas e teóricos e, artistas-teóricos e objetos
poéticos e, objetos poéticos e textos de arte e, textos teóricos e motivações internas
e sinapses. Numa conjunção que não é soma, mas multiplicação, pois não opera
com unidades e sim multiplicidades, que sobram de tanto preencher.
Autora
RESUMO

A pesquisa intitulada Fragmentos instantâneos, um estudo do mecanismo


cinematográfico bergsoniano na pintura Nu descendo uma escada de Marcel
Duchamp, trata-se de uma pesquisa em fundamentos e reflexões em artes, no qual
são realizados estudos da pintura Nu descendo uma escada, de Marcel Duchamp, e
do conceito de mecanismo cinematográfico, do filósofo Henri Bergson. A pesquisa
inicia-se a partir dos questionamentos sobre a possibilidade de haver um ponto de
intersecção entre um trabalho em arte e um conceito filosófico, os quais foram
profundamente relevantes na modernidade e profícuos de desdobramentos na
contemporaneidade e, nas discussões tanto no campo das artes, quanto na filosofia.
Em outras palavras este trabalho foi realizado objetivando-se verificar em quais
aspectos há convergências e divergências entre a pintura de Duchamp e o conceito
de Bergson. A pesquisa foi realizada visando possibilitar a instauração de um
diálogo entre arte e filosofia, dado através de um elemento que seria o amplexo de
ambos, o cinema.

PALAVRAS-CHAVE: Nu descendo uma escada; Duchamp; mecanismo


cinematográfico; movimento; Bergson.
ABSTRACT

The research called Snapshots Fragments; a study of Bergsonian cinematographic


mechanism in the Marcel Duchamp´s painting Nude Descending a Staircase, is
based in arts and reflections in which paint is performed a study of the cinematic
mechanism concept from the philosopher, Henri Bergson. The research starts from
the questions about wich intersection point can exist between an art work and a
philosophical concept, that were deeply relevant and fruitful in modernity with
contemporary developments in both discussions: arts and philosophy. In other
words, this work was done intending to find similarities and differences between
Duchamp's painting and Bergson´s concept. The research was developed aiming to
enable the dialogue establishment between art and philosophy, given through an
element that would be the embrace of both: the movie.

KEYWORDS: Nude Descending a Staircase; Marcel Duchamp; cinematic


mechanism; movement; Bergson.
LISTA DE FIGURAS

1. DUCHAMP, Marcel. Encore à cet astre . 1911 ............................................. 19

2. DUCHAMP, Marcel. Nu descendo uma escada n°2. 1912 ............................... 21

3. DUCHAMP, Marcel. Nu descendo uma escada n°1. 1911 ............................... 22

4. MAREY, Étiènne. Cronofotografia. 1883 ........................................................... 35

5. MUYBRIDGE, Eadweard. Cavalo galopando. 1878 ......................................... 35

6. PICASSO, Pablo. Mulher e pera. 1909 ................................................................ 40

7. BRAQUE, George. Natureza-morta com às de paus. 1911 ............................... 40

8. LÉGER, Fernand. Soldado com cachimbo. 1916 ................................................ 44

9. DUCHAMP, Marcel. Sonata. 1911 ..................................................................... 47

10. DELAUNAY, Robert. Tour Eiffel. 1910 ............................................................ 47

11. CARRÁ, Carlo. O cavaleiro. 1913 ....................................................................... 52

12. BOCCIONI, Umberto. Carica di Lancieri. 1915 ............................................... 52

13. BOCCIONI, Umberto. Desenvolvimento de uma garrafa no espaço, 1912.....55

14. SEURAT, George. Torre Eiffel, 1889 ................................................................. 62

15. BALLA, Giacomo. Jovem executado na varanda. 1912 ...................................... 62

16. MAREY, Étiènne. Estabelecendo um plano inclinado, cronofotografia, s/d. ... 67

17. MUYBRIDGE, Eadweard. Mulher descendo as escadas, cronofotografia,


1887............................................................................................................................... 67

18. MAREY, Étiènne. Estudo sobre a marcha da figura humana (detalhe). 1884....68

19. DUCHAMP, Marcel. Nu descendo uma escada n°2. (detalhe) 1912 ................ 68

20. Marcel Duchamp descendo uma escada. 1952. Crédito: Elias Elisofon ............. 68

21. DUCHAMP, Marcel. Jovem triste num trem. 1911–12. ................................... 72

22. TINGUELY, Jean. Homage to New York, 1960 ............................................... 74

23. Representação de um cubo quadrimensional ...................................................... 77

24. BALLA, Giacomo. Dinamismo de um cão na coleira, 1911 ............................ 104

25. DUCHAMP, Marcel, Nu descendo uma escada n. 1, 1911 ............................. 109


26. DUCHAMP, Marcel, Nu descendo uma escada n. 3, 1916 ............................. 109

27. DUCHAMP, Marcel. Nu descendo uma escada n. 1; n. 2; n.3, 1911; 1912;


1916............................................................................................................................117

28. DUCHAMP, Marcel. Roda de Bicicleta, 1913/1964........................................111

29. DUCHAMP, Marcel. Anémic cinéma, 1926. ................................................... 117

30. MIRÓ, Joan. Femme nue montant l’escalier, 1937 ........................................... 119

31. RICHTER, Gerhard. Ema (Nua em uma escada). 1966 ................................... 121

32. RICHTER, Gerhard. Ema (Nua em uma escada). 1992 ....... 1Erro! Indicador não
definido.
SUMÁRIO

Introdução...................................................................................................................11

I. Preparando a escada, os degraus, o balaustre e o corrimão..................................16

II. A atenção, o instante, o fragmentário - intermitências do moderno................26

III. O cinema...........................................................................................................33

IV. O cubismo.........................................................................................................39

V. O futurismo......................................................................................................48

VI. Boccioni e Duchamp.....................................................................................53

VII. 1º Patamar: Duchamp (Nu...) entre o cinema, o cubismo e o futurismo.60

VIII. O tempo em Duchamp.............................................................................66

IX. O movimento em Nu descendo uma escada.............................................71

X. As influências das descobertas científicas na pintura de Duchamp...........76

XI. 2º Patamar: Silêncio (intervalo) - 4’33’’...................................................79

XII. O movimento em Bergson e suas propagações....................................86

XIII. O mecanismo cinematográfico...........................................................93

XIV. Fragmentos instantâneos..................................................................101

XV. Nu x 3 – as três pinturas Nu descendo uma escada.........................107

XVI. 3º Patamar: “A osmose estética”.....................................................112

XVII. Descendo da escada e subindo na roda.......................................115

XIII. Os graus – imagens ressonantes...................................................118

XIX. Um espirro para a sequência.......................................................122

XX. Em movimento permanente........................................................123

Referências...........................................................................................126
11

INTRODUÇÃO

Como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de


acontecer?[...] Como que estou escrevendo na hora mesma
em que sou lido.
(LISPECTOR, 1978)

Entre o que um objeto de arte revela e o perceptor que o experiencia, podem


ser suscitadas questões que habitam fora do domínio matérico do objeto.

E se pretende-se apreender mais amplamente o objeto de arte, muitas vezes


também é necessário reportar-se, nesse entremeio, a uma compreensão mais expansiva.
O que habita nesse entre? Que movimento é esse que permite a interlocução da
experiência? A que velocidade é preciso estar para entrar em frequência com o objeto?
Qual a abertura necessária para que o fluxo da arte penetre? O quanto o desvio pode
redirecionar? Que medida qualitativa de ilusão um instantâneo pode fornecer sobre
um movimento que não cessa sem deixar de se tornar outro?

Questões genéricas que pertencem a inquietações específicas. Ao observar,


olhar e refletir sobre Nu descendo uma escada, de 1912, do artista francês Marcel
Duchamp (1887-1968), estas são algumas questões que movem o meu pensamento. E
o que move o objeto em questão? Respostas com ponto final ou reticências?

Partindo desses questionamentos pretende-se, nesse estudo, efetuar uma


reflexão sobre a pintura Nu descendo uma escada a partir do conceito de “mecanismo
cinematográfico,” proposto pelo filósofo francês Henri Bergson (1859-1941). Estaria aí
a localização do ponto de inflexão da pesquisa.

O trajeto percorrido na presente pesquisa foi por vezes bifurcado, na tentativa


de enveredar de modo mais profícuo da discussão desejada. O filósofo Henri Bergson
coloca em seu texto A intuição filosófica1 (1911) que a linguagem é insuficiente para
adentrar a intuição filosófica, sendo a metáfora o meio mais próximo de atingir a
intuição ou o cerne da ideia.

Atingir esse epicentro, no entanto, pode necessitar a retomada de questões que


estejam vinculadas a outras áreas de conhecimento.

1
O texto: Intuição filosófica encontra-se inserido no livro: BERGSON, Henri. O pensamento e o
movente. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
12

A questão matricial da proposição do conceito com que operaremos, o


“mecanismo cinematográfico”, foi elaborada para se discutir aspectos relacionados ao
cinema dito “primitivo”, ou seja, aquele do início do século XX. A discussão da
pesquisa suscita-se a partir de inquietações provocadas pela pintura Nu descendo uma
escada. Há, pois, um elemento de ligação entre ambas as áreas, cinema e pintura. Esse
fio integrativo é dado pelo movimento, que possibilita efetuar a interligação da relação
entre o mecanismo cinematográfico e a obra pictórica.

A estrutura formal do texto foi pensada de maneira a propor uma coerência


entre os conceitos abordados no estudo da pintura, a própria pintura e a forma do
texto. Para tal, o texto foi construído de modo que cada “secção” remetesse à ideia de
degraus da escada duchampiana, de instantes infinitesimais que constituem um
movimento quando este é apreendido pelo intelecto.

Pensar e refletir sobre questões importantes na modernidade, como a


fragmentação, a velocidade, o tempo, ajudam a se ter mais clareza na percepção e
compreensão do período em que estamos inseridos – a contemporaneidade. Para isso
buscamos, através da pintura Nu descendo uma escada, pensar como a arte pode se
deslocar no tempo e ressoar em momentos posteriores de maneira tão penetrante e de
modo a instaurar um caminho singular a partir de sua existência.

O interesse inicial da pesquisa estava alocado na discussão acerca do conceito de


movimento virtual, proveniente da filosofia bergsoniana, conjuntamente com uma
reflexão sobre as artes visuais contemporâneas.

Com o decorrer da pesquisa foi-se delimitando as questões conceituais, bem


como o(s) artista(s), até se chegar a um ajuste sincrônico. Embora não signifique que a
sincronia seja a condição necessária para que a pesquisa ocorra, ela foi importante para
construir a possível convecção entre o objeto de arte e o conceito reflexivo.

Chega-se, enfim, à proposta de tomar não a generalidade do pensamento de


Bergson, mas eleger um conceito, o de mecanismo cinematográfico, e delimitar o
estudo a uma obra de arte, a pintura Nu...2 de Duchamp.

2
Sempre que aparecer no texto: Nu..., é referente à obra pictórica de Duchamp Nu descendo uma
escada n.2.
13

O início do cinema, nas primeiras décadas do século XX, seria então, a


conjunção que possibilita, uma conexão entre ambos, Henri-Robert-Marcel Duchamp
e Henri Bergson.

Estudos a respeito da personalidade de Duchamp, assim como também de sua


obra, geralmente são levados para o campo da psicologia e psicanálise, o que de fato é
plausível e o próprio Duchamp deixa pistas para que tal abordagem seja coerente. O
estudo que desenvolveremos, portanto, deter-se-á nos aspectos concernentes aos
conceitos filosóficos que propomos, bem como em relações efetuadas com a própria
arte e algumas passagens que tocam levemente outros campos, como a matemática, na
qual Duchamp se mostrou influenciado.

Duchamp é um artista de grande relevância não somente para as artes plásticas,


mas também para a música e para a literatura. Isso é perceptível nos vários
movimentos artísticos que se sucederam a ele, nos quais, com bastante frequência,
encontramos ressonâncias duchampianas. O crítico de arte Michel Archer aponta a
influência de Duchamp nos artistas Robert Rauschenberg e Jasper Johns – artistas
representantes do movimento artístico “Neodadá”.

Com os readymades, Duchamp pedia que o observador pensasse sobre o que


definia a singularidade da obra em meio à multiplicidade de todos os outros
objetos. Seria alguma coisa a ser achada na própria obra de arte ou nas
atividades do artista ao redor do objeto? Tais perguntas reverberaram por
toda a arte dos anos 60 e além deles. (ARCHER, 2001, p. 3).

Na arte conceitual, percebe-se uma influência de Duchamp no que concerne à


proposição da arte enquanto ideia. Na arte conceitual, o questionamento dos
elementos que permitem a constituição do objeto de arte, bem como a própria
definição de arte, eram levados a um alto grau de interrogação. Alguns artistas faziam
desse próprio questionamento a sua arte.

Algumas pesquisas acadêmicas recentes tiveram como foco o estudo de obras de


Duchamp, ou do próprio Duchamp. Dentre elas, há a dissertação de Gabriel Pedrosa,
apresentada em 2010, na USP – Universidade de São Paulo, intitulada Desfuncional,
em que o autor estuda, além de algumas pinturas de Magritte, obras de Duchamp, em
sua maioria os denominados readymades, compreendidos entre os anos de 1913 e
1919. Nesta pesquisa, Pedrosa discute esses trabalhos em arte a partir da
14

desfuncionalidade da linguagem e da cultura, tendo como referenciais teóricos Gilles


Deleuze, Jacques Derrida, Félix Guatarri e Roland Barthes.

Outra dissertação, de 2008, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que


inclui Duchamp na pesquisa, é Arte Sonora: entre a plasticidade e a sonoridade – um
estudo de caso e pequena perspectiva histórica, de Ricardo Cutz Gaudenzi. Nesta
pesquisa, há uma interface entre as artes visuais e a música. O autor trabalha com o
termo “arte sonora” e investiga os dispositivos sonoros que contribuíram para os
processos de artistas como Duchamp, Jonh Cage, Pierre Schaeffer e Luigi Russolo.

Wilton Luiz Duque Lyra é um pesquisador cuja tese é intitulada


Intercomunicação entre matemática-ciência-arte: um estudo das implicações das
geometrias na produção artística desde o gótico até o surrealismo, defendida na
Universidade de São Paulo, em 2008. Trata-se do estudo dos aspectos da geometria
não euclidiana que influenciaram a arte, tomando como ponto de partida a arte do
período gótico até o surrealismo, onde se encontram Duchamp, Salvador Dalí e Pablo
Picasso.

Produções nacionais fora do contexto acadêmico também tiveram grande


relevância, como o livro Reduchamp, publicado em 1976, de Augusto de Campos
conjuntamente com a poesia de Julio Plaza. É um livro-poema em que Campos,
teórico e poeta brasileiro concretista, faz um poema-ensaio, que abrange o período
criativo de Duchamp e aspectos biográficos do artista. Plaza, que além de teórico
também é artista, executa os desenhos, chamados de iconogramas.

Há um interesse em diversas áreas em estudar Duchamp, justamente por sua


multidiversidade em pensar a arte. No entanto, existem valas nas discussões efetuadas
entre os conceitos filosóficos tais como os bergsonianos, que são provenientes do
mesmo período que Duchamp e a própria obra de Duchamp. A articulação de sua
pintura Nu descendo uma escada, obra que foi e é de grande relevância no contexto
artístico mundial, com o cinema, também não foram desenvolvidas com o devido
aprofundamento e intensidade com que requisitam ser discutidas.

Como é perceptível pelas dissertações, teses e livros citados, o interesse por


Duchamp leva a reflexões que borram as áreas de conhecimento, permitindo múltiplas
abordagens de campos que se intercomunicam. Este trabalho se insere nessa
perspectiva, unindo filosofia e arte.
15

Iniciemos a preparação da escada reflexiva duchampiana da pintura Nu


descendo uma escada, para subi-la ao longo da dissertação!
16

I – Preparando a escada

O papel é curto.
Viver é comprido.
Oculto ou ambíguo,
Tudo o que digo
tem ultrasentido
Se rio de mim,
me levem a sério.
Ironia estéril?
Vai nesse ínterim,
meu inframistério.

(LEMINSKI, 1994)

Uma escada
um corpo - nu
em movimento.

Dispa-se do que é evidente e óbvio, não hesite, avante. Colora a vida com
bastante ironia e metáfora, não tropece, fatie, e eis que nos é apresentada a
despersonificação: Duchamp, em Nu descendo uma escada n. 2.

Henri-Robert-Marcel Duchamp, artista francês, nasceu em Blainville no dia 28


de julho de 1887. Filho de Marie-Caroline Lucie Nicolle e Eugène Duchamp, as
inclinações artísticas vieram provavelmente de sua descendência materna, pois seu avô,
Emile-Frédéric Nicolle, a certa idade, passou a dedicar muito do seu tempo à pintura e
à gravura, além de, segundo Tomkins (2004), ter sido um desenhista de primeira
ordem. Sua mãe, Lucie, se aventurava na pintura, apesar de não possuir muito talento.

Seus irmãos, Gaston Emile Duchamp (1875-1963), pintor, conhecido como


Jacques Villon e Raymond Duchamp-Villon (1876-1918), escultor. Na família foram
os primeiros da geração de Duchamp a abrirem a Marcel as portas para a arte.

Em 1905, Marcel Duchamp começa a fazer desenhos humorísticos para as


revistas Le Rire e Le Courrie Français, graças à influência de seu irmão Jacques Villon.
Em 1906, muda-se para Paris, mas ainda continua a executar os desenhos
humorísticos.
17

A ideia em pintar o Nu... é proveniente de um desenho (figura 1) que


Duchamp realizou em 1911 para a ilustração do poema Encore à cet astre3 (Essa estrela
novamente) de Jules Laforgue4.

4
Jules Laforgue, (1860-1887) foi um poeta e romancista pertencente à fase tardia do simbolismo, seu
nome foi associado frequentemente ao decadente – fase cultural datada no final do século XIX e que
se opunha ao naturalismo e ao realismo. Foi discípulo da filosofia pessimista de Shopenhouer.
18

Essa estrela novamente

Encore à cet astre Tipo de sol! Você sonha: – Vê-los,


Estes fantoches morfinados, bebedores de leite de
Espèce de soleil! tu songes : - Voyez-les, asno
Ces pantins morphinés, buveurs de lait d'ânesse E de café; sem trégua, em vão, eu os acaricio.
Et de café; sans trêve, en vain, je leur caresse A espinha de meus incêndios, eles serão estiolados! –
L'échine de mes feux, ils vont étiolés! -
- Eh! c'est toi, qui n'as plus que des rayons – Ei! É você que não possui mais do que raios
gelés! congelados!
Nous, nous, mais nous crevons de santé, de Nós, nós, mas nós estamos morrendo de saúde, de
jeunesse! juventude!
C'est vrai, la Terre n'est qu'une vaste kermesse, É verdade, a Terra não é mais do que uma vasta
Nos hourrahs de gaîté courbent au loin les blés. quermesse,
Toi seul claques des dents, car tes taches Nossos urros se curvam bem longe o trigo.
accrues,
Te mangent, ô Soleil, ainsi que des verrues Você sozinho bate os dentes, porque suas manchas
Un vaste citron d'or, et bientôt, blond moqueur, aumentam
Après tant de couchants dans la pourpre et la Te comem, ó Sol, também as verrugas
gloire, Um vasto limão de ouro, e daqui a pouco, um loiro
Tu seras en risée aux étoiles sans coeur, gozador,
Astre jaune et grêlé, flamboyante écumoire!”
Jules Laforgue (LAFORGUE, 1986, p. 442). Depois de tantos pôr do sol na austeridade e na
glória,
Você estará sorrindo para as estrelas sem coração,
Astro amarelo e granizo, escumadeira em chamas!
(LAFORGUE, 1986, p. 442, Tradução nossa).
19

Figura 1- DUCHAMP, Marcel. Encore à cet astre .

1911. Grafite sobre papel artesanal


bege. 25.1 x 16.4 cm. Philadelphia,
Museum of Art. Fonte:
http://www.philamuseum.org/collections/
permanent/51447.html?mulR=3437|43
20

Duchamp foi amplamente influenciado pela literatura, e Laforgue foi um dos


poetas pelos quais Duchamp mais se interessou. Várias das ilustrações que ele fez
para a revista Le Rire foram a partir de poemas ou narrativas em prosa de Laforgue.
No entanto, ele afirmava que estava mais interessado nos títulos, como Comice
agricole (Encontro agrícola) do que nos poemas propriamente ditos, pois os títulos
davam a ele o jogo irônico das palavras, o que será uma característica visivelmente
marcante em toda a sua obra. Parecia estar aí a origem verbal de sua criação poética.
De acordo com o teórico Octavio Paz (1914 – 1998), Duchamp acreditava
que todas as artes possuíam uma “metarionia” que era inerente a cada uma delas. “É
uma ironia que destrói sua própria negação e, assim, se torna afirmativa.” (PAZ,
2002, p. 11). Com o jogo efetuado entre o título da pintura e a própria pintura,
Duchamp atingia um grau ainda maior de ironia, pois, ao “deslocar” o título do
objeto de arte, conferia à este um duplo sentido, um provocado pelo próprio objeto
de arte e outro obtido pela aparente desconexão entre o título e o objeto de arte.

No desenho Encore à cet astre, a figura central representada está a subir uma
escada, enquanto que em Nu descendo uma escada n.2 (figura 2), ela desce.
Duchamp afirma ter sido neste desenho que a ideia de trabalhar o nu, ou o título de
Nu descendo uma escada foi introduzida.

Era apenas um croqui a lápis, simples e vago, de um nu que sobe a escada,


e provavelmente olhando para ele eu devo ter me perguntado, por que
não fazê-lo descer? Você sabe, como naquelas imensas escadarias que
aparecem nas comédias musicais. (DUCHAMP apud TOMKINS, 2004,
P. 94).

Duchamp realizou, após esse desenho, um estudo em pintura à óleo


intitulado Nu descendo uma escada n.1 (figura 3 ), em 1911, e realizou a pintura
que de fato é tratada como o Nu descendo uma escada (o Nu descendo uma escada
n.2 ) em 1912. Quatro anos depois, em 1916, a pedido de seu amigo Walter
Conrad Aresnberg, Duchamp executou uma reprodução fotográfica do Nu
descendo uma escada n. 2, que foi posteriormente intitulado Nu descendo uma
escada n. 3.
21

Figura2 - DUCHAMP, Marcel. Nu descendo uma escada n°2

1912, Óleo sobre tela, 147 x 89,2 cm. Philadelphia, Museum of Art. Fonte: ARGAN, 1992. p.
440
22

Figura 3 - DUCHAMP, Marcel. Nu descendo uma escada n°1

1911, Óleo sobre cartão em painel 95,9 x 60,3


cm. Philadelphia, Museum of Art. Fonte:
http://www.philamuseum.org/collections/per
manent
23

A operacionalização do caráter humor-irônico de Duchamp já é visível em


Nu descendo uma escada. A ironia está contida na pintura por vias que se fazem
paralelas, mas que se encontram, como na ilusão provocada pela perspectiva. Uma é
o aspecto da figura representada, que freneticamente se movimenta a descer a
escada, mas que, aparentemente desacelera e coloca-se estática no último degrau,
como que em câmera lenta. Uma ironia à frenética incitação à aceleração,
produzida pela inserção em grande escala das máquinas na produção industrial, no
início do século XX. Ao inverso dos futuristas, que estavam interessados na
representação do movimento em aceleração.

A outra ironia está na relação do título da pintura com a imagem pintada.


Duchamp intitula a figura representada de “nu”. Esse nu, porém é assemelhado a
uma fuselagem, a uma carcaça metálica não orgânica. “Pessimismo e humor: um
mito feminino, a mulher nua, convertido em um aparelho ameaçador e fúnebre.”
(PAZ, 2002, p. 13).

Duchamp caminha na contramão da história da arte: desmonta o nu,


subverte-o, fazendo com que ele desça uma escada quase que num tropeço.

Durante dois mil anos, o nu funcionou não propriamente como um tema


na arte, mas como uma forma de arte, e como tal ele sempre seguiu certas
convenções. Nus se masculinos, são vistos em poses heroicas, celebrando
feitos de força, expirando nos campos de batalha ou simbolizando a
autoridade divina ou secular; se femininos, eles aparecem reclinados,
banhando-se, despejando líquidos de urnas ou (como as cariátides)
sustentando tetos. Não se movem, e seguramente não descem lances de
escadas. Que tipo de piada Duchamp estava querendo contar?
(TOMKINS, 2004, p. 94).

Essa foi, possivelmente, uma das questões que impossibilitaram a entrada


desta pintura no Salão dos Independentes de 1912, quando Duchamp a submeteu
para a mostra cubista, organizada pelo grupo de Puteaux, e do qual os pintores Jean
Metzinger e Albert Gleizes eram os líderes.

Um nu despencando escada abaixo, semelhante a uma maquinaria


desajustada. Certamente foi inadequada para as proposições cubistas da época. “Eles
tomaram o quadro como uma piada endereçada à estética cubista; acharam também
que, em espírito, ele estava muito próximo de algumas pinturas futuristas.”
(TOMKINS, 2004, p. 97).
24

A grande repercussão de Nu... não foi em Paris5, mas em Nova York, na


Exposição Internacional de Arte Moderna, em 1913, conhecida como Armory
Show, organizada por Walt Kuhn e Arthur B. Davies. Dentre as 1300 obras
expostas na Mostra, a pintura de Duchamp foi a que causou o maior impacto. Foi a
obra mais requisitada a ser vista, e o público ficou escandalizado ao ver o quadro.
Para muitos observadores, a pintura parecia um resumo de tudo que havia de
arbitrário, irracional e incompreensível na nova arte europeia. (TOMKINS, 2004,
p. 136).

[...] the Cubist room – Know as the Chamber of Horrors – with the lines
waiting to see Duchamp’s Nude Descending a Staircase. There were
about 1300 works in the exhibition, a third European, and many a visitor
must have echoed Prendergast’s remark when he came down from
Boston to see the show: “Too much – O my God! – art
here.”(ALTSHULER, 1994, p. 65)6.

Mas, ao contrário da reação ocorrida com as demais obras europeias, como as


de Brancusi e de Matisse, que foram o maior alvo das críticas tradicionalistas, as
reações e críticas endereçadas a Duchamp eram efetuadas com um certo bom
humor. Duchamp acreditava que as reações a sua pintura estavam vinculadas
principalmente ao título da pintura. Pois, “[...] presume-se que nus artísticos não
desçam escadas e que pinturas não tenham seus títulos escritos na tela.”
(TOMKINS, 2004, p. 136). Isso levava o público a acreditar, assim como supunham
os cubistas, que Duchamp estava zombando dos cubistas e das regras tradicionais da
arte europeia.

Duchamp se tornara um mito nos Estados Unidos sem mesmo ter a noção
da repercussão que seu quadro havia causado, pois, na França, a exposição não havia
sido muito bem divulgada e demorou pelo menos uma semana para que a notícia
de que ele estava famoso nos Estados Unidos chegasse até ele.

5
Superando as dúvidas de Gleizes e Metzinger, a pintura de Duchamp, após ter sido recusada no
Salão dos Independentes, foi exposta em março de 1912, na Dalmau em Barcelona, na primeira
exposição cubista importante fora da França. Em outubro do mesmo ano a pintura também foi
mostrada na importante exposição Section d’Or, organizada pelo grupo de Puteaux, em Paris. Em
ambas as exposições, portanto, o quadro não teve grande repercussão.
6
[...] a sala cubista - conhecida como a Câmara dos Horrores - com filas de espera para ver Nu
Descendo uma Escada de Duchamp. Havia cerca de 1.300 obras em exposição, um terceiro
europeu, e muitos outros visitantes devem ter ecoado a observação de Prendergast quando ele
desceu de Boston para ver o show: "Demais - Oh meu Deus! - A arte aqui." (ALTSHULER,
1994, p. 65, tradução nossa).
25

Nu descendo uma escada é uma obra de ruptura em dois sentidos: primeiro


porque, depois dele, Duchamp “abandona” a pintura e se propõe a pensar a arte não
mais como uma “pintura-pintura”, “[...] que ele chama de olfativa (por seu odor a
terembentina) e retiniana (puramente visual).” (PAZ, 2002, p. 9). Mas como uma
substituição desta por uma “pintura-ideia”, na qual a capacidade de formular
questões se torna o ato de criação, em detrimento do processo de expressão do
artista. Estas questões desencadearão, em Duchamp, a elaboração da sua fecunda
ideia da “beleza da indiferença7”.

Em Nu descendo uma escada também está contida a “dimensão-velocidade”


que Duchamp irá adotar em sua produção artística: a vertigem do retardamento,
facundo de uma potência avassaladora que irrompe o trajeto contínuo de uma
tendência que segue em linha reta. Desvia o percurso, curva a linha criando espirais
que se formam com o movimento da figura que desce a escada.

Os quadros de Duchamp são a presentificação do movimento: a análise, a


decomposição e o reverso da velocidade. [...] o espaço caminha, se
incorpora [sic] e, tornado máquina filosófica e hilariante, refuta o
movimento com o retarde, o retarde com a ironia. (PAZ, 2002, p. 8).

Após essa pintura Duchamp se desloca; viaja a Munique e lá tem a ideia do


trabalho que será a sua “obra-prima”, Noiva despida por seus celibatários, mesmo.

Abre-se a porta, um empurrão, e eis que começa a descida na escada.

7
A beleza da indiferença, na qual Duchamp se interessa, refere-se a uma experiência livre da noção
de beleza como belo, ou seja, ele tenta escapar da noção de beleza vinculada ao juízo de gosto.
Está “[...] equidistante do romantismo de Villiers e da cibernética contemporânea.” (PAZ, 2002, p.
15). Seria como uma nulificação do juízo de gosto. Essa noção foi mais amplamente desenvolvida
em sua obra a partir dos readymades. Em palestra proferida por Duchamp em 1961, na qual ele
fala sobre aspectos retrospectivos da sua produção artística, Duchamp caracterizará essa beleza:
“[...] uma questão que quero muito estabelecer é que a escolha desses readymades nunca foi ditada
pelo prazer estético, a escolha era baseada em uma reação de indiferença visual e ao mesmo tempo
ausência total de bom ou mau gosto... na verdade, uma completa anestesia.” (DUCHAMP apud
DANTO, 2000, p. 9). O interesse de Duchamp era por uma arte que fosse reversa ao prazer
estético. Aí estaria a beleza da indiferença.
Krauss (1998) coloca que a beleza da indiferença também estaria no irrompimento da subjetivação
do sujeito-artista ao escolher o objeto, ao produzir, com os readymades, uma arte totalmente
desvinculada dos sentimentos pessoais. Duchamp despersonifica o objeto e essa despersonificação
é transposta para o observador, que, confrontado com esse objeto “neutro” “tem a sensação de que
este irrompeu na corrente do tempo estético de alguma parte.” (p.101).
26

II – A atenção, o instante, o fragmentário, intermitências do moderno

Nós praticamente só percebemos o passado, o presente


puro sendo o avanço invisível do passado consumindo
o futuro.
(BERGSON, 2006a)

Estudos e experiências sobre o movimento produzido cientificamente,


remontam ao início do século XIX, com os desenhos de Parès, em 1825. Ele
executou desenhos de um pássaro e uma gaiola em dois pequenos quadrados de
papel-cartão, e que ao girá-los, produzia o efeito de um só desenho, como se o
pássaro estivesse dentro da gaiola. “Esse fenômeno, que é em si mesmo todo o
cinema, baseia-se no princípio da persistência das impressões da retina...”
(BENJAMIN, 2006, p. 725). Porém, é somente no final daquele século, com o
desenvolvimento do cinematógrafo que as experiências cinematográficas terão
maior repercussão.

O início do século XX é um período representativo para o renascimento


moderno. Henri Bergson (1859 – 1941) formula seus questionamentos sobre o
movimento, principalmente em sua obra Evolução Criadora, de 1907. O físico
alemão Albert Einstein (1879 – 1955) publica a Teoria da Relatividade Especial em
1905 e, em 1902, o matemático francês Jules Henri Poincaré (1954 – 1912) escreve
o livro A ciência e a hipótese, em que irá abordar suas questões a respeito do espaço
e da geometria não euclidianos.

Correntes de reflexão filosófica como o Logicismo e o Formalismo teorizam


sobre a autonomia da matemática em relação aos conceitos de tempo e movimento.
Predominava nesse período uma tendência positivista e cientificista, em que os
dados obtidos através dos estudos de alguns fenômenos deveriam ser empiricamente
observados, mensurados e inscritos em cadeias de causa e efeito. Os fenômenos
analisados nessa perspectiva deveriam então repetir-se, meticulosamente iguais, para
que o resultado permitisse a formulação de leis universais de funcionamento.
27

Teorias filosóficas como a fenomenologia8 começam a ser difundidas pela


Europa. E, além das discussões acerca do movimento, Bergson desenvolve suas
teorias a respeito da duração e da simultaneidade. “O idealismo e o espiritualismo
reaparecem, pois, como um sério elemento de crítica às concepções maciças do
positivismo.” (MICHELLI, 1991, p. 174).

Nesse período, a França, assim como praticamente toda a Europa, está numa
fase de expansão com relação ao desenvolvimento tecnológico proveniente da
Revolução Industrial, ocorrida inicialmente na Inglaterra em meados do século
XVIII.

Com essa nova perspectiva de vida, muitas pessoas migram do campo para a
cidade, gerando um aumento populacional dos centros urbanos, muitas vezes sem
um planejamento prévio. O ritmo da cidade é alterado, assim como o estilo de vida
de seus habitantes: aumenta também a quantidade de veículos nas ruas e isso
demanda alterações na infraestrutura e na arquitetura da cidade; o ritmo de trabalho
é acelerado em função da demanda da produção da indústria. Tudo isso irá alterar o
modo como as pessoas vivem, pensam e se relacionam, assim como irá também
modificar a maneira com que elas percebem o mundo.

Como necessidade de enfrentar esses problemas levantados pelo


desenvolvimento urbano desordenado, em decorrência da Revolução industrial,
nasce da convergência da arquitetura, sociologia e economia, o urbanismo, uma
disciplina que estuda o planejamento da cidade, bem como seu desenvolvimento.

O que antes parecia ser uma questão basicamente quantitativa (o rápido


crescimento demográfico), revela-se uma questão qualitativa e estrutural;
já os primeiros urbanistas reconhecem que a cidade pré-industrial não é
capaz de se adequar às exigências de uma sociedade industrial. [...] A
história do urbanismo é, portanto, a história do conflito entre uma ciência
voltada para o interesse da comunidade e a aliança dos interesses e
privilégios privados. (ARGAN, 1992, p. 186).

O historiador de arte italiano Giulio Carlo Argan (1992) sustenta que a


transição do final do século XIX para o início do XX foi um período delicado

8
A fenomenologia foi uma vertente filosófica cujo início se deu no princípio do século XX , pelo
filósofo Edmund Husserl (1859-1938). A fenomenologia é um método de investigação filosófica
que toma como princípio o estudo da consciência e dos objetos da consciência.
28

porém importante para a cultura artística, pois começa-se a ter uma preocupação
maior não mais apenas com o mundo externo apenas, mas também com a
psicologia do indivíduo. Surge então, o Impressionismo, movimento artístico
interessado na experiência de capturar a paisagem urbana ou rural, a partir do ponto
de vista de como o artista vê o mundo, e não de como este é dado genericamente.

A experiência temporal é uma importante questão abordada nesse período e,


em decorrência dela, vários estudos se desenvolvem, dentre eles os que se referem
tanto ao “instante”, a “atenção” e a “fragmentação” quanto ao “movimento”, que nos
deteremos mais incisivamente.

No final do século XIX, o conceito de “atenção”, por se tratar de um


problema essencialmente moderno, será amplamente discutido nas ciências
humanas e, mais precisamente, na psicologia científica. “A desatenção em especial
no contexto das novas formas de produção industrializada, começou a ser vista
como um perigo e um problema sério.” (CRARY, 2001, p. 83). O problema da
atenção teve seu início desencadeado basicamente pela crise do sujeito perceptivo,
ocorrida por volta de 1880, quando pesquisas no campo da psicologia tentam
mensurar o limite qualitativo e a capacidade quantitativa da atenção de um sujeito.

O médico alemão Wilhelm Maximilian Wundt (1832 - 1920) associou seu


modelo de atenção à vontade e concluiu que, nesse processo, as atividades
sensoriais, motoras e mentais ficam inibidas, para que assim haja a focalização no
ato da atenção.

Um observador normal é conceituado não apenas em relação aos objetos


de atenção, mas também em relação ao que não é percebido, às distração,
margens e periferias excluídas ou reprimidas do campo perceptivo.
(CRARY, 2001, p. 87).

***

O modelo de atenção proposto por Wundt converge com o estudo sobre o


processo da percepção desenvolvido no século XVII pelo filósofo alemão Gottfried
Wilhelm Leibniz, já que, para Leibniz, de acordo com Gil (1996), uma
macropercepção, ou seja, uma percepção consciente é composta por infinitas
29

micropercepções, percepções inconscientes. Estas, por sua vez, seriam formadas por
imagens anódinas que passam despercebidas.

Uma percepção macro, ou seja, uma macropercepção é composta por uma


infinitude de pequenas percepções ou micropercepções, que são compostas de
imagens-nuas. As imagens-nuas são aquelas que passam despercebias diante da
vastidão com que absorvemos as macropercepções. Segundo José Gil (1996, p. 15),
são aquelas imagens despojadas da sua significação verbal. Elas compõem a maioria
das percepções que temos cotidianamente. A elas se associam pensamentos fugidios
e imperceptíveis a que Leibniz chamava “pensamentos voadores”; são elas que
provocam os sonhos (Freud). São como imagens anódinas que passam
despercebidas no fluxo das macropercepções.

Para Leibniz, “[...] o contínuo infinito das pequenas percepções assegura a


passagem da clareza das macropercepções conscientes ao fundo obscuro da
mônada.” (LEIBNIZ, apud GIL, 1996, p. 14). Pois a mônada finita não comporta
em sua face consciente a expressão do universo infinito.

***

Como Jonathan Crary aponta: o conceito de atenção se trata de um conceito


volátil e que contém em si todas as condições para a sua desintegração, ou seja,
todas as possibilidades da desatenção. Atenção e desatenção, apesar de contrárias,
existem em um único continuum, pois a atenção seria para o autor um “[...]
processo dinâmico, que se intensificava e diminuía, subia e descia, fluía e refluía de
acordo com um conjunto indeterminado de variáveis.” (2001, p. 87). A atenção é,
portanto, duplamente volátil. O é enquanto significação, por se tratar de um
instante fugaz, que muda incessantemente, e enquanto conceito, já que contém em
si, por ser volátil, todos os aspectos que possibilitam a transição dela para seu
contrário, ou seja, da atenção para a desatenção.

Descrita inicialmente na maioria das pesquisas do final do século XIX como


aquilo que fixa a percepção, para que esta não se dilua no fluxo caótico das
sensações absorvidas pelo excesso de informações cotidianas, percebeu-se
posteriormente que a atenção estava mais associada à duração do que à apreensão da
presença.
30

A atenção remete ao instante, momento fugaz que, ao ser capturado, esvai-se


no tempo, movimento contínuo que escorrega ao se tentar capturar, pois sua
presentificação é intensa e efêmera. A compreensão do instante também foi uma das
grandes buscas de filósofos e críticos que, segundo Leo Charney, por meio da
categoria do instante, “[...] procuraram resgatar a possibilidade da experiência
sensorial em face do caráter efêmero da modernidade”. (2001, p. 387).

Pensar o instante, assim como a atenção, a fragmentação e a memória são


importantes para o desenvolvimento de um pensamento relacionado a um novo
mecanismo que também chegaria com a modernidade, no início do século XX: o
dispositivo cinematográfico.

O instante é aquele momento que nos permite a experiência da sensação


imediata e cuja intensidade e potência possuem tamanho grau que se esvanece
assim que sentida. Na modernidade, a discussão acerca do instante estava
intimamente ligada à experiência da sensação, devido ao fato de as intensas e
constantes transformações ocorridas na sociedade como um todo afetarem as
configurações imagéticas dos indivíduos, desviando, distraindo e superestimulando
a percepção. “O rápido agrupamento de imagens em mudança, a descontinuidade
acentuada no alcance de um simples olhar e a imprevisibilidade de impressões
impetuosas [...]” (SIMMEL apud CHARNEY, 2001, p. 386) acabavam por
requisitar a experiência de um instante como experiência fragmentária, capaz de
abarcar uma vivência do instante como completude da presença sentida.

De Acordo com Charney, teóricos como Walter Benjamin, Jean Epstein,


Walter Pater e Martin Heidegger “[...] procuraram resgatar a possibilidade da
experiência sensorial em face do caráter efêmero da modernidade.” (CHARNEY,
2001, p. 387). Isso permitiu pensar o conceito de instante como fixador da sensação,
mesmo confrontando com o fato de que nenhum instante pode ser fixado. Segundo
Charney, esse dilema levou os pensadores supracitados a bifurcarem para dois
outros conceitos interligados e que trabalhariam a noção de moderno como aquilo
que é momentâneo. O primeiro estaria ligado ao movimento, que esvazia a
presença em sua natureza sempre mutável e, por isso, não detém o presente. Como
consequência disjuntiva desse fluxo contínuo e incessante do movimento, estaria a
31

sensação, que capta o instante no instante, e a cognição, que apreende o instante


somente após ele ter passado.

“Se a cognição do instante e a sua sensação não podem habitar o mesmo


instante, então o presente está sempre perdido [...]” (CHARNEY, 2001, p. 389),
pois só temos consciência do instante a partir do momento que a presença já se
extinguiu, ou seja, deixou de ser presente. O que reconhecemos então é o passado
da presença. Não podemos jamais estar presentes em um presente.

Essa ambivalência não quer dizer que o presente não exista, mas que a sua
existência está mais sincronizada com a sensação do que com a cognição. Sua
apreensão está ligada ao sentido experimentado da sensação corporal. Essa
perspectiva permite pensar que a captura do momentâneo, ou seja, do presente, está
na instantaneidade de uma sensação obtida através da visão quando esta não é dada
de modo racional. “Essa experiência nos preenche com a sensação de estar presente
no presente.” (CHARNEY, 2001, p. 390).

A atitude instantânea de apreender o presente fugidio acarreta uma


percepção desse instante como fragmentário, em que a compreensão dos
acontecimentos se dá sempre numa continuidade seccionada.

Pensar o moderno como momentâneo, uma estrutura fragmentária, foi o


desenvolvimento do pensamento de Walter Benjamin acerca do ambiente da
modernidade urbana – principalmente a parisiense - do fim do século XIX e início
do século XX. Segundo Charney, para Benjamin, as mudanças ocorridas na
estrutura da experiência na modernidade influenciaram as experiências do tempo,
da arte e da história.

À sensação momentânea dada através da visão, Benjamin chamou de “o


Agora da reconhecibilidade”. Seria o instante em que o que foi encontra-se com o
agora. Aquele momento em que o presente funde se com o passado, permitindo a
experiência da reconhecibilidade através da visão. Essa percepção visual imediata
seria como uma “percepção do choque” da imagem que está em constante
movimento, sempre a escapar, “[...] pois a contemplação não é mais possível no
tempo da reprodutibilidade técnica.” (SILVA, 2009, P. 30).
32

Para Benjamin, a imagem seria a dialética

[...] imobilizada num instante. Pois enquanto a relação do presente com o


passado é puramente temporal e contínua, a relação do Então como
Agora é dialética: não é de natureza temporal, mas de natureza imagística.
(BENJAMIN apud CHARNEY, 2001, p. 393).

A dialética acontece porque o “agora”, instante da presença, rompe a


continuidade temporal entre o passado e o presente, e a sua possibilidade acontece
somente como reconhecibilidade quando um instante ocorre na forma de uma
imagem, por ser a imagem “a melhor opção para a percepção imediata”.

Em seu Trabalhos das passagens, Benjamin explicita o desenvolvimento de


seu pensamento sobre a modernidade ao construir um texto cujo próprio método é
fragmentário, feito de colagens conceituais e citações descontínuas. Esse método
fragmentário Benjamin associou à montagem, aludindo ao cinema.

A fotogenia existe no instante e nele define a sua possibilidade. E a


significação mais ampla do instante surgiu do deslocamento de espaço e
tempo característicos da modernidade e incorporados ao cinema.
(CHARNEY, 2001, p. 396).

O desenvolvimento das técnicas cinematográficas também acontece nesse


momento e essa nova arte contribui para estas reflexões acerca da modernidade
como instante fragmentário, descontínuo e momentâneo.
33

III – O cinema

Vsievolódovitch: - ....no Apocalipse, o anjo jura que não


haverá mais tempo.
- Sei. Isso é muito verdadeiro; preciso e nítido. Quando o
homem em seu todo atingir a felicidade, não haverá mais o
tempo, por que eu não sei. É uma ideia muito verdadeira.
Kiríllov: - Então onde irão escondê-lo?
Stravrogin: - Não irão escondê-lo em lugar nenhum. O
tempo não é um objeto, mas uma ideia. Vai extinguir-se na
mente.
(DOSTOIÉVSKI, 2005)

Os estudos sobre o movimento incitaram a criação de um domínio técnico


que posteriormente se qualificará também como artístico e que está imbricado nas
questões concernentes à modernidade. Em meio aos questionamentos, reflexões e
experiências vividas na modernidade, assim como o incessante desejo pelo estudo e
análise do movimento, vários inventos são criados, dentre eles o fenacistiscópio,
aparelho desenvolvido em 1833 pelo físico belga Joseph Plateau. O fenacistiscópio
consiste em dois discos equidistantes, com uma abertura em seus radicais e com
vários desenhos sequenciais cada um. Esses discos, ao girarem sincronicamente
numa velocidade angular correta, produzem a ilusão de um movimento, resultado
semelhante ao obtido na animação de desenhos. Posteriormente, verificou-se que
esse mecanismo poderia ser aplicado à fotografia. Para essa aplicação, no entanto,
foi necessário aguardar as placas de gelatino-brometo9, que possibilitaram a
realização dos primeiros instantâneos.

Em 1874, o astrônomo Pierre Janssen (1824 - 1907) criou um revólver


fotográfico para registrar a observação da passagem de Vênus sobre o sol em 1874,
registrando uma fotografia a cada 70 segundo. Isso permitiu o ensejo para as
experiências cronofotográficas posteriores, como o fuzil fotográfico de Étiènne
Marey (1830 – 1904) em 1882, que obtinha 12 imagens por segundo. Essas
invenções, até então, destinavam-se puramente a uma análise científica do
movimento, seja humano ou animal.

9
As placas de gelatino-brometo são compostas de gelatina e sais de brometo de prata. Utilizadas no
processo fotográfico por substituir a chapa de colódio, foi usada primeiramente em chapa de vidro
e posteriormente em película. Estas placas são muito mais sensíveis que as de colódio úmido e
duravam mais tempo que as de colódio seco.
34

O fuzil fotográfico de Marey, além de registrar as imagens sucessivas,


também as copiava em uma chapa de vidro e, com isso, ele transferia a ideia de
sucessão para justaposição. Cada momento era justaposto ao próximo, criando uma
colagem entre os instantes que antes eram seriais. De acordo com Charney, “Marey
transformou momentos seriais em um tipo de colagem, cada momento sobreposto
no próximo, o que recriava o movimento.” (CHARNEY, 2001, p. 401).

Essa técnica convergia para a ideia de Walter Benjamin sobre a estrutura


fragmentária da modernidade. Charney, a respeito do trabalho de François
Dagognet sobre Marey (figura 4), esclarece que o objetivo de Marey

[...] não era apresentar a superfície do mundo, como no positivismo, mas


o de revelar o oculto, secreto e invisível. [...] Para Dagognet, “Marey de
fato dedicou-se somente a uma questão: capturar e registrar o que escapa
à nossa visão ... Ele exteriorizou, expôs ... o que se oculta ou, por sua
pequenez, nos escapa.”(CHARNEY, 2001, p. 401).

Porém, mesmo quando acelerada a sucessividade das imagens justapostas,


ficavam lacunas, o que deixava a evidência e algumas vezes o desconforto de uma
visualização de um movimento descontínuo, cortado. O fotógrafo inglês Eadweard
Muybridge (1830 – 1904) então soluciona essa questão ao introduzir um quadro
preto entre um fotograma e outro. Muybridge já havia feito várias experimentações
fotográficas e umas das mais relevantes foi seu estudo sobre um cavalo a galope
(figura 5), em que ele disponibilizou 12 câmeras estereoscópicas distantes 21
polegadas cada uma. Elas registraram os 20 pés tomados por um passo do cavalo,
capturando retratos em um milésimo de um segundo e que, depois, quando
sobrepostos, davam a impressão do galopar do cavalo.
35

Figura4 - MAREY, Étienne. Cronofotografia

1883. Fonte: http://stage.itp.nyu.edu/history/timeline/marey.html

Figura 5 - MUYBRIDGE, Eadweard. Cavalo galopando.

1878. Fotografia. Fonte: http://digitaljournalist.org/issue0309/lm20.html


36

Através de um aparelho híbrido chamado cinematógrafo, inventado pelos


irmãos Lumière por volta de 1895, um aprimoramento dos aparelhos anteriores que
consistia na captura, revelação e projetação de vários instantâneos fotográficos, ou
fotogramas, dispostos sequencialmente e que produziam a ilusão de um movimento
contínuo, o cinema ganha autonomia e começa a despontar como uma
possibilidade artística.

O elemento específico do cinema, de acordo com Jean Epstein é a fotogenia,


e ela seria para o cinema, o que a cor é para a pintura e o volume é para a escultura.
“Essa fotogenia indefinível marcou a especificidade do cinema como uma forma de
arte única da experiência moderna.” (CHARNEY, 2001, p. 395). A transposição do
domínio fotográfico para o cinema se deu pela aceleração da passagem dos
fotogramas, possível através do cinematógrafo.

A fotogenia é o momento fecundo, intenso, porém momentâneo: não dura


mais do que alguns segundos, pois, se prolongasse, perderia o prazer que a
instantaneidade fornece. “O aspecto fotogênico é um componente das variáveis
espaço-tempo [...] um aspecto é fotogênico caso se desloque e varie
simultaneamente no espaço-tempo.” (EPSTEIN apud CHARNEY, 2001, p. 396).
Ela habita o instante e se presentifica enquanto duração na efemeridade.

Na fotografia, a fotogenia também existe, mas se refere àquela fotografia que


possui a capacidade de capturar além dos elementos formais do espaço, que captura
o instante capaz de atravessar a realidade e nos tocar. Nem todas as fotografias, no
entanto, possuem fotogenia. Roland Barthes definiu a fotogenia na fotografia como
o punctum, “[...] um extracampo sutil, como se a imagem lançasse o desejo para
além daquilo que ela dá a ver.” (BARTHES, 1984, p. 89).

A fotogenia, como punctum fotográfico, está contida na fotografia como


uma incisão, um rasgo na dureza da realidade, Roland Barthes nos mostra que “[...]
punctum é também picada, pequeno buraco, pequena mancha, pequeno corte – e
também lance de dados.” (BARTHES, 1984 p. 46).

Como representação prática, punctum é o ponto que possibilita a falha, e


segundo Paul Virilio, é a dimensão perdida, ausente de tempo e espaço, mas que
37

justamente por ser falta, possibilita ao reencontro, tornando-o ponto de referência


do espectador.

Uma obscuridade tão necessária à revelação das aparências físicas quanto a


câmera escura o é em relação às aparências objetivas da fotografia e do
‘fotograma’ cinematográfico. (VIRILIO, 1993, p. 83).

A fotogenia é aquilo que faz com que determinada cena salte aos olhos do
espectador, trazendo o prazer sentido ao assistir a cena. Alocada no punctum do
fotograma, onde o ponto de referência se faz através da falha que permite o
reencontro do espectador com o instante fecundo do prazer, a fotogenia produz a
presença do instantâneo.

Mas eis que, ao defini-lo dessa forma, Epstein depara-se com o paradoxo,
pois ao tentar teorizar e formalizar a essência do cinema como algo que escapa à
racionalidade e a compressibilidade, já que ela é indefinível por depender de sua
intangibilidade, de seu estado de “sempre-indo-embora”, ele acaba por ter que
assumir essa incapacidade de definição concreta na sua própria teorização. “A
definição de fotogenia de Epstein desconstruía-se a si própria – alegando
concretude, ela reconfirmava a intangibilidade da fotogenia.” (CHARNEY, 2001,
p. 396).

A essência do cinema estaria, portanto, na fotogenia – capacidade de alojar a


efemeridade – ou seja, na sua capacidade de constante movimento e mudança no
espaço e no tempo, na sua “[...] interação entre a fixidez do instante e a mobilidade
do tempo – imputação de um movimento contínuo por uma cadeia de instantes
descontínuos.” (CHARNEY, 2001, p. 400).

O movimento para Marey, segundo Charney, era composto por uma série
de fragmentos progressivos e os espaços localizados nos interstícios são, na
realidade, o próprio movimento.

Marey e Muybridge anteciparam de um modo simples e esquemático a


estética do cinema que estava por vir: ambos utilizaram novas tecnologias
para representar o movimento contínuo como uma cadeia de momentos
fragmentários. Seja pela forma de colagem de Marey ou pelo
reconhecimento mais explícito de separação de Muybridge, os dois
esforços deixaram claro que na constituição e reconstituição do
movimento nunca é possível recapturar o movimento por completo. As
38

fissuras entre os instantes separados nos lembram que estamos vendo algo
que simplesmente reproduz o movimento contínuo, mas que jamais
poderá ser um. (CHARNEY, 2001, p. 402).

A impossibilidade de uma recapturação íntegra do movimento contínuo, a


qual Marey e Muybridge anunciavam, converge como pensamento bergsoniano
sobre o mecanismo cinematográfico, como veremos posteriormente.
39

IV - O cubismo

Em meio às tendências cientificistas predominantes no início do século XX e


as fortes reminiscências de uma arte que se propunha enfaticamente a transposição
retiniana da imagem observada para a pintura, como ocorria no impressionismo,
surge o cubismo. Movimento artístico nascido na Europa, no início do século XX,
mais precisamente em 1908.

Em sua negação à pintura apenas como capturação imediata do objeto


observado, os cubistas incitavam à superação subjetiva da objetividade, numa
pintura que fosse mais cérebro do que olho. E era justamente esse interesse o que
aproximava Duchamp do cubismo, ou seja, sua abordagem intelectual.

É plausível afirmar que o cubismo tenha sido influenciado pelas novas ideias
e reflexões elaboradas nas pesquisas sobre o tempo, tanto nos campos da matemática
e geometria como da filosofia e da física, sobretudo quando o poeta Guillaume
Apollinaire (1880 – 1918) escreve, no que seria tratado como o manifesto do
cubismo:

A geometria está para as artes plásticas assim como a gramática está para a
arte de escrever. [...] Hoje os cientistas não se atêm mais às três dimensões
da geometria euclidiana. Os pintores foram levados naturalmente e,
digamos, intuitivamente a se preocuparem com novas medidas possíveis
do espaço que, na linguagem dos modernos, são indicadas todas juntas
com o termo de quarta dimensão. (APOLLINAIRE, apud MICHELLI,
1991, p. 174).

Na medida em que foram surgindo adeptos do cubismo, aumentava também


a evidência de que haviam divergências estilísticas. A cisão se tornou clara com o
livro Du cubisme, de Apollinaire, lançado em 1912.

O cubismo foi dividido basicamente em quatro vertentes: órfico


(posteriormente denominado apenas orfismo), analítico, sintético e instintivo, e
apenas duas – analítica e sintética - foram tidas como puras. A vertente analítica ou
científica é iniciada por volta do final de 1909. Apesar de ser contraditória a
terminologia utilizada para nomear esse período, pois Picasso (figura 6) e Braque
(figura 7), grandes expoentes do cubismo, repudiavam a ideia de uma abordagem
40

Figura6 - PICASSO, Pablo. Mulher e pera Figura 7 - BRAQUE, George. Natureza- morta
com às de paus

1909; óleo sobre tela, 92,1 x 70,8 cm, Museum of 1911; óleo e papel colado sobre tela, 81 x 60 cm.
modern art de Nova York – Moma. Fonte: Paris, Musée National d’Art Moderne. Fonte:
http://www.moma.org/collection/object.php?object ARGAN, 1992. p. 429
_id=80394
41

intelectual e metódica, foi assim que essa fase foi difundida. Os principais expoentes
dessa vertente são, além dos dois artistas citados, Albert Gleizes, Jean Metzinger.

Essa tendência cientificista remonta ao pintor Georges Seurat (1859-1891),


que partira a principio do objetivismo impressionista defendendo a prioridade do
olho sobre o pensamento. No decorrer de suas pesquisas, aproximou-se do
cubismo, pois chegara a uma pintura de “absoluto controle, completamente filtrada
pela inteligência, dominada pela regra, ordenada no contraste geométrico das linhas
que definem os volumes dos corpos e seguem os limites dos contrastes das
tonalidades das tintas.” (MICHELLI, 1991, p. 176).

No cubismo analítico, há a predominância dos planos simples e contínuos,


com uma ressonância de profundidade. O objeto pintado é desmembrado como se
houvesse uma quebra em seu todo para que, fragmentado, pudesse ser analisado e
fixado na superfície da tela. A cor é deixada para segundo plano, sendo
preferencialmente utilizados tons neutros, cinzas, pretos, terras e verdes apagados,
justamente para que pudesse haver evidência sobre a forma.

No cubismo, o objeto é desmontado, como se sua volumetria fosse


planificada no espaço, eliminando a distinção entre o espaço e o objeto. Segundo
Argan (1992), para o cubismo, a forma do espaço deveria ser homogênea. E, se o
fosse, não poderia ser interrompida pela consistência material e impenetrável das
coisas. Por isso, o objeto deveria ser justaposto ao espaço, de maneira que parecesse
fundido a ele. “As únicas dimensões certas, na realidade, são a altura e a largura, que
se traduzem respectivamente na vertical e horizontal; a terceira dimensão é ilusória.”
(p. 427).

O problema da terceira dimensão, ou seja, da totalidade dimensional da


forma, que se apresenta na ilusão da pintura através do artifício da profundidade, é
solucionado por meio das “[...] linhas oblíquas (já indicativas de profundidade) e
curvas (já indicativas de volume), assim trazendo para o plano o que se apresenta
como profundidade ou relevo [...]” (ARGAN, 1992, p. 427), e não pela perspectiva.
Há a intervenção da consciência e da memória para que possamos apreender o
objeto planificado na pintura como remetendo ao objeto tridimensional real e, por
42

isso, usa-se sobretudo objetos de uso cotidiano e absolutamente comuns, como


pratos, mesa, garrafa, frutas, para que essa noção do objeto tenha êxito.

Com a noção do objeto obtida anteriormente, por meio de um


conhecimento dado em momento anterior, entra em jogo o fator tempo, já que, ao
planificar o objeto sobre uma certa deformação, mesmo assim ainda conseguimos
associá-lo ao objeto tridimensional, pois temos um prévio conhecimento dele e
porque “[...] na ordem mental não há diferença de valor entre o que se vê e o que se
sabe.” (ARGAN, 1992, p. 427). Utilizando o exemplo de Argan sobre uma pintura,
do prato que é redondo, mas que ao planificar segundo as regras do cubismo torna-
se elíptico,

é como se primeiro víssemos o prato como forma elíptica, e depois,


mudando a posição no espaço, como forma redonda, ou como se
movendo-nos em torno do objeto e mudando o ponto de vista, víssemos
o prato primeiro elíptico e, depois, como redondo. (ARGAN, 1992, p.
430).

Seria como se nessa realidade, inteiramente mental, visualizássemos o objeto


em vários momentos distintos e consequentemente em várias posições e formas
distintas, o que seria impossível pela visão empírica.

Ao apresentar simultaneamente no espaço imagens sucessivas no tempo, a


pintura cubista realiza “uma unidade espácio-temporal absoluta (quarta dimensão),
de maneira que o mesmo objeto poderá aparecer em diversos pontos no espaço e o
espaço se desenvolver não só em torno, mas também dentro e através do objeto.”
(ARGAN, 1992, p. 304).

A estruturação da forma através da geometrização é evidente, conferindo à


pintura, ou melhor, ao quadro cubista, um caráter de forma-objeto, que possui
autonomia enquanto realidade e função específica, “[...] que nada mais exista a não
ser por força própria da pintura.” (MICHELLI, 1991, p. 180). Essas proposições
cubistas são advindas de Paul Cézanne (1839 – 1906), que já propunha de maneira
ainda implícita, essas questões.

Cézanne foi uma referência para grande parte dos artistas que sobrevieram a
ele, seja como convergência ou divergência, e no que concerne a sua ressonância
nos cubistas estava no seu modo de ver e pintar o objeto:
43

O esforço de Cézanne de reproduzir a forma plástica das coisas para dar


uma ideia do seu peso e substância levava-o inexoravelmente a olhar os
objetos já não de um único, mas de vários pontos de vista. [...] Desse
modo de “ver” resultava que, simultaneamente, um objeto tendia a
mostrar mais lados de si mesmo. (MICHELLI, 1991, p. 181, 182).

Essa nova maneira de perceber o objeto confluiu para que os cubistas


criassem uma pintura em que a perspectiva, assim como uma dimensão espacial
calcada na ideia da distância, do vazio e da medida, enfim do espaço material, fosse
excluída, em favor de um único plano. Com isso, uma nova dimensão do espaço
pictórico era criada, um espaço que possibilitava que o objeto se mostrasse aberto,
sobreposto, estendido, ou seja, um espaço evocativo, não ilusório.

A outra grande vertente cubista foi o cubismo sintético, cujo maior defensor
e representante foi Juan Gris (1887 – 1927). Segundo Argan, essa vertente era um
desvio, em sentido “idealista”, do propósito “cognitivo” do cubismo analítico.

Juan Gris encontrou na luz o elemento fundamental para construir a sua


síntese da forma. De acordo com Argan (1992), para Juan Gris, a luz era uma
substância espacial que revela os objetos. Ela não existe em si, mas apenas como
medida dos valores cromáticos.

Nessa vertente, o objeto já está livre da perspectiva, a imagem do objeto é


reconstituída, desprendida da perspectiva, o espaço é representado como uma
planificação. Se antes o objeto era representado como formas geométricas, essa
representação passou a se modificar gradualmente, até ser substituída por formas
mais livres: o objeto é resumido. “A síntese se dá levando em consideração todas ou
apenas algumas partes do objeto, que aparecem no plano da tela em todos os seus
lados.” (MICHELLI, 1991, p. 185).

Fernand Léger (figura 8) e Robert Delaunay retomam a utilização da cor


como forma de explicitação dessa liberdade, antes severamente repreendida pelas
rigorosas linhas retas e pelos tons e cores apagadas. Essa liberdade, porém, não está
desconectada da realidade, pelo contrário, pois é a partir dela que a pintura suscitará
uma outra realidade.

Ser livre, mas nem por isso perder o contato com a realidade, que o drama
dessa figura épica que se chama ora inventor ora artista ou poeta. [...] A
vida dos fragmentos: uma unha vermelha, um olho, uma boca. Os efeitos
44

Figura 8 - LÉGER, Fernand. Soldado com cachimbo

1916. 130 x 97 cm. Óleo sobre tela. Bruxelas,


Coleção Philippe Dotremont. Fonte: READ,
2000.
45

elásticos produzidos por cores complementares que transformam objetos


em alguma outra realidade. A vida dos fragmentos: uma unha vermelha,
um olho, uma boca. Ele é preenchido por tudo isso, bebe na totalidade
dessa instantaneidade vital que atravessa em todas as direções. Ele é uma
esponja: sensação de ser uma esponja, transparência agudeza, novo
realismo. (LÉGER apud READ, 2000, p. 88)

Fixar as diversas vistas de um objeto em um único plano. Possibilitar através


da pintura que um objeto mostre todas as suas faces, momentos e variedades
contínuas e ininterruptas.

Marcel Duchamp se vincula ao cubismo após sua rápida trajetória no


fauvismo, e está interessado mais em “[...] inventar ou encontrar um caminho
próprio em vez de ser simples intérprete de uma teoria.” (DUCHAMP apud
TOMKINS, 2005, p.57). A primeira obra cubista de Duchamp foi Sonata (figura
9), mas ela não ficou pronta a tempo de participar da mostra cubista Salão dos
Independentes, em 1911.

O interesse de Duchamp pelo movimento cubista estava na convergência do


pensamento cubista, ao propor uma arte que negava a pintura retiniana, ou seja,
aquela pintura que tem como fundamento principal apenas a captura e impressão da
paisagem observada para a pintura.

É interessante observar que o cubismo, assim como veremos a seguir com o


futurismo, é um movimento carregado de contradições, e essas contradições
ressoam também nas críticas que foram elaboradas sobre esses movimentos. Isso
porque todo processo dialético carrega em si o princípio de sua antítese.

No cubismo, sua antítese está ancorada na questão do movimento. A


estaticidade com que as pinturas cubistas, principalmente as da fase analítica, são
estruturadas, não condizem com o propósito de multifacetalidade temporal. O que
acaba prendendo a pintura em um locus fechado.

O pintor Robert Delaunay (1885 – 1941) critica esse aspecto cartesiano de


concepção da imagem racionalista, concebida pelo cubismo analítico, e cria uma
pintura originada da captura do instante da decomposição e desintegração do
objeto no dinamismo (figura 10).
46

Nesse aspecto, Duchamp se aproxima de Delaunay, já que ele também era


opositor dessa tendência cartesiana do cubismo.

Segundo Argan (1992), a pesquisa de Delaunay, que desencadeia no


dinamismo, tenderá para uma impressão de “[...] um caráter mais arrojado de
‘vanguarda’ ao Cubismo” (p. 306), aproximando-se do movimento futurista.
47

Figura 9: DUCHAMP, Marcel. Sonata Figura 10: DELAUNAY, Fernand. Tour Eiffel

1911. Óleo sobre tela, 145x 113 cm. Philadelphia,


Museum of Art. Fonte: 1910, tela, 198x 136 cm. Nova York, R.
http://www.marcelduchamp.net/Sonata.php Guggenheim Museum.
Fonte: ARGAN, 1992. p. 432.
48

V - O futurismo
Alerta, artista, alerta,
Não te entregues ao sono...
És refém da eternidade
E prisioneiro do tempo.
(PASTERNAK apud TARKOVISK, 1998)

Em 1909, dois anos antes de Duchamp iniciar o estudo para Nu descendo


uma escada, é escrito o Manifesto futurista, pelo poeta italiano Filippo Marinetti
(1876 – 1944), após uma experiência automobilística que resultou em um
capotamento no esgoto de uma fábrica. Iniciava aí o movimento futurista.

Nascido da conjunção entre o desejo incessante pela velocidade do avanço


tecnológico e a síntese do movimento, o futurismo toma o conceito de velocidade
como um valor artístico. Caracterizado principalmente pela celebração da
velocidade e do avanço tecnológico e pela representação do movimento como um
fluxo contínuo através da realização de uma pintura dinâmica.

A velocidade converteu-se numa metáfora do progresso temporal tornada


explícita e visível. O objeto em movimento torna-se o veículo do tempo
percebido, e o tempo torna-se uma dimensão visível do espaço, uma vez
que o movimento temporal assume a forma do movimento mecânico.
(KRAUSS, 1998, p. 51).

Como podemos observar na citação de Rosalind Krauss, o futurismo também


está interessado na questão do tempo e do movimento, como um gerador que
imputa o ensejo para a criação em arte. Nesse movimento artístico, porém, há um
outro componente fundamental: a máquina. No futurismo ela será a protagonista
que irá desencadear toda a discussão acerca do movimento e do tempo e na qual
convergirá para a velocidade como um valor plástico.

Argan (1992) caracteriza o Futurismo como o primeiro movimento artístico


que se pode chamar de vanguarda, pois as vanguardas são um “[...] fenômeno típico
dos países culturalmente menos desenvolvidos, apresentam-se como uma rebelião
contra a cultura oficial geralmente moderada.” (p. 313). Mas também por ser um
movimento que exigiu um ímpeto voraz, uma ruptura total com os padrões
tradicionais da arte ocidental.

Por volta de 1910, quando o entusiasmo pelo progresso industrial sucede-


se à consciência da transformação em curso nas próprias estruturas da vida
49

e da atividade social, formar-se-ão no interior do Modernismo as


vanguardas artísticas preocupadas não mais apenas em modernizar ou
atualizar, e sim em revolucionar radicalmente as modalidades e finalidades
da arte. (ARGAN, 1992, p. 185).

O futurismo é um movimento sintomático de uma situação histórica, como


já foi colocado anteriormente a respeito de como o desenvolvimento tecnológico e
a aceleração da velocidade nesse período modificaram as relações entre os
indivíduos. Contudo segundo Mario de Michelli, o erro do futurismo foi “[...] não
considerar o destino do homem na engrenagem dessa era mecânica.” (MICHELLI,
1991, p. 212).

Tanto Argan quanto Michelli consideram o futurismo um movimento


aplacado por contradições e falhas, e, de acordo com Michelli, apenas Carrá e
Boccioni perceberam essa falha. Porém, a direção que o futurismo tomou foi a de
colocar o progresso humano e o tecnológico no mesmo plano.

O dinamismo será o conceito chave que irá permear praticamente toda a


discussão futurista, porque nele está contido a noção de movimento, na qual os
futuristas estão interessados: a velocidade como aceleração que muda as coisas
incessantemente.

Através do conceito de dinamismo, os futuristas entendiam que poderiam


solidificar a impressão sem que fosse preciso isolar o aspecto dinâmico do objeto, ou
seja, o seu movimento.

A busca no dinamismo da vida e do movimento das coisas já era incipiente


nos impressionistas, mas estes não conseguiram solucionar essa questão, pois não
chegaram a uma representação coesa da forma estática da pintura na qual
transparecesse a ideia de movimento.

Salvo o pintor Edgar Degas, que em sua pintura, L’absinthe, de 1876, que
trabalha a cena da pintura à maneira de um fotograma, possibilitando que entremos
no quadro pela sua diagonal, a partir de uma perspectiva enviesada. Efetua um
desvio abrupto no ângulo pertencente a alguns objetos da pintura. “Assim Degas
desfaz a ligação que ainda vinculava a sensação visual impressionista à emoção
romântica.” (ARGAN, 1992, p. 109).
50

No futurismo, a tentativa de solução foi, de acordo com Read (2000), um


tanto quanto ingênua, já que a concepção para tal representação buscada por eles se
dava através da multiplicação serial ou radial da forma.

O som também podia ser representado como uma sucessão de ondas; a


cor podia ser um ritmo prismático. Os diferentes aspectos da visão podiam
ser combinados em um ‘processo de interpenetração: simultanidade-fusão
(p. 110).

Esse aspecto de sucessividade dava a impressão de que o objeto se propagava


como ondas que ressoam na atmosfera, fazendo com que os corpos se movam e se
interpenetrem, o que, de acordo com Read (2000), levava a pintura futurista a ser
mais um símbolo plástico do movimento do que propriamente uma representação
dele.

A penetração dos planos, conquistada pelos futuristas através da herança


cromática impressionista, fazia com que objeto e ambiente se fundissem, criando
um espaço em que a construção do objeto estivesse imersa nele e vice-versa. “Essa
‘penetração de planos’ nada mais é que a simultaneidade da influência das diversas
estruturas objetivas formais-cromáticas.” (MICHELLI, 1991, p. 222).

Nota-se que os futuristas também estavam atentos às pesquisas sobre o


movimento que vinham sendo desenvolvidas tanto na França por Marey quanto na
Inglaterra por Muybridge. Uma das cronofotografias mais difundidas foi o estudo
do cavalgar, que podemos observar como recorrente em pinturas futuristas de Carrá
(figura 11) e Boccioni (figura 12).

A representação desse dinamismo, que os futuristas se esforçaram em


representar, continha muitas das ideias propostas por Bergson como a de intuição10.

Retomando o Nu... de Duchamp, um primeiro olhar para essa pintura pode


indicar que ela tenha semelhanças com as propostas artísticas italianas, mas
Duchamp difere essencialmente dos artistas futuristas e a similitude da aparência
entre ambos não passa de ilusão de uma imagem fugidia de quando se percebe algo
perifericamente. Duchamp advém do cubismo analítico e Nu descendo uma escada
“[...] é um dos eixos da pintura moderna: o fim do cubismo e o começo de algo que
10
Aprofundaremos na discussão acerca da intuição bergsoniana na “secção” destinada a Bergson e
ao movimento.
51

ainda não termina” (PAZ, 2002, p. 12), talvez justamente pelo movimento se
propagar indefinidamente.

Duchamp e os futuristas se distanciam essencialmente porque, mesmo que o


interesse pelo movimento esteja presente nos dois, os futuristas estão interessados na
velocidade, na aceleração, no fluxo intenso e incansável que o desenvolvimento
tecnológico e o industrialismo trazem para as grandes cidades, no “conceito de
velocidade como um valor plástico”, sugerindo tornar-se “o objeto em movimento
o veículo do tempo percebido, e o tempo torna-se uma dimensão visível do espaço,
uma vez que o movimento temporal assume o movimento mecânico” (KRAUSS,
2001, p. 52), ou seja, a busca da simultaneidade e da síntese do movimento.

A busca por essa síntese do movimento é visível nas experiências dos


futuristas ao executarem o que denominam de pintura dinâmica, realizada através
da justaposição de instantes do movimento em uma imagem fixa.

Se para os futuristas o movimento é velocidade, ”uma força física que


deforma os corpos até o limite de sua elasticidade, assim revelando, no efeito, o
dinamismo invisível da causa” (ARGAN, 1992, p. 438), para Duchamp, o
movimento “determina uma mudança não apenas em conformação, mas ainda na
estrutura do objeto” (ARGAN, 1992, p. 438).

Sobre os futuristas, Duchamp dizia que eram como “impressionistas urbanos


que buscam impressões da vida nas cidades e não nos meios rurais” (DUCHAMP
apud TOMKINS, 20000, p. 93), e que, ao fazerem isso, estavam caindo em sua
própria armadilha, ou seja, da pintura “retiniana”.
52

Figura 11 - CARRÁ, Carlo. O cavaleiro

1913. Milão, Civico Museo D’Arte Contemporanea Fonte:


http://www.malaspina.com/jpg/carra.jpg

Figura 12 - BOCCIONI, Umberto. Carica di Lancieri

1915. 32 x 50 cm. Milão, Museo del Novecento. Fonte:


http://www.artdreamguide.com/_arti/boccioni/_opus/513.htm
53

VI - Boccioni e Duchamp

Assim como Delaunay e Duchamp, Boccioni11 percebe que a solução


dialética proposta pelos cubistas está ancorada em uma racionalidade clássica que
não consegue romper com a fixidez da imagem representada na pintura e “chega a
definir o movimento físico, a velocidade, por exemplo, como fator de coesão que
permite a fusão entre objeto e espaço” (ARGAN, 1992, p. 313), avançando com
relação aos cubistas na solução da representação do movimento.

Boccioni lança, em 1910, o Manifesto das técnicas da pintura futurista,


explicitando o ardor pela velocidade e pelo dinamismo:

Proclamamos: [...]
2. Que o dinamismo universal deve ser traduzido em pintura como
sensação dinâmica; [...]
4. Que o movimento e a luz destroem a materialidade dos corpos.
Combatemos:
1. Contra as tintas betuminosas pelas quais se tenta obter a pátina do
tempo nos quadros modernos; [...]
3. Contra o nu na pintura, tão tedioso e opressivo quanto o adultério na
literatura. (BOCCIONI, in CHIPP, 1993, p. 296).

O contraponto principal entre a obra de Boccioni e a pintura de Duchamp,


está na descoberta da “síntese dinâmica”, teorizada pelo próprio Boccioni, que seria
divergente da análise cubista calcada na racionalização.

Boccioni, assim como Duchamp, interessa-se pelo movimento, mas a


velocidade de ambos não é compartilhada. Boccioni estuda o movimento enquanto
dimensão velocidade através de uma figura que caminha apressadamente, já
Duchamp desacelera o movimento da figura para que possa, através do
retardamento, analisá-lo em sua fusão imóvel/móvel.

A síntese dinâmica seria obtida através da emotividade imediata e traumática,


que, para Boccioni, ainda era a condição primeira da arte. Isto ressoa nas questões
abordadas anteriormente na “secção” sobre o “moderno”. Seria como uma analogia

11
Dentre a vasta gama de artistas que possibilitam uma relação concisa com Duchamp, a escolha de
efetuá-la com Boccioni deu-se por dois motivos principais: primeiro pela proximidade de
interesse no estudo e representação do movimento e, em segundo lugar, pela aproximação de
Boccioni com as teorias bergsonianas de intuição, duração e movimento.
54

ao instante que é ávido porém fugaz, saturado de intensidade, mas esvaído pelo
tempo que não para.

O problema da síntese dinâmica, para Boccioni, estava em conseguir fundir


dois modos distintos de existir de um objeto, ou seja, quando ele está em
movimento e, conjuntamente, quando ele está em repouso, já que a forma do
objeto em movimento difere da forma de quando o objeto está em repouso.

A primeira escultura de Boccioni que expressa essa síntese do movimento é


Desenvolvimento de uma garrafa no espaço, 1912, (figura 13). Em suas pesquisas,
Boccioni utiliza de dois conceitos para se chegar à síntese do movimento:
“movimento absoluto” e “movimento relativo”.

Esses dois modos de movimento se referem aos modos de existência distintos


do objeto. De acordo com Krauss (1998), o “movimento absoluto” envolve a
essência estrutural e material do objeto, são suas características inerentes,
independente se ele está em movimento ou não. Seria a imagem invariável, que não
sofre alterações.

O segundo modo se refere ao “movimento relativo”, que são “[...] distensões e


mudanças da forma que ocorreriam quando uma figura em repouso fosse
precipitada em movimento” (KRAUSS, 1998, p. 52). Ou seja, são as variações que o
objeto sofre quando se desloca em relação ao ambiente móvel ou imóvel. Em
Desenvolvimento de uma garrafa no espaço, o movimento relativo é representado
por vários aspectos da obra, ainda segundo Krauss: “[...] as contingências da luz, a
localização ou a casualidade do ponto de vista do observador” (1998, p. 54). Pois é a
relação do ponto de vista em que o observador está localizado com o ambiente
pertencente à escultura que irá definir esse movimento.
55

Figura13 - BOCCIONI, Umberto. Desenvolvimento de uma garrafa no espaço

1912, bronze; 39.5 x 39.5 x 32.8 cm. São Paulo, Museu de Arte Contemporânea. Fonte:
http://www.cursodehistoriadaarte.com.br/lopreto/index.php/arte-escultura-umberto-boccioni-1882-1916/
56

A simultaneidade que cria a fusão dos movimentos – absoluto e relativo –


também cria “linhas-força” que, de maneira similar à simultaneidade, criam
direções opostas da mesma força. Do conhecimento que obtemos do objeto através
da construção constituinte de sua massa e forma, há a direção centrípeta e ao
reverso há a direção centrífuga, dada a partir da construção do aparecimento do
objeto conjuntamente com suas relações com a atmosfera e os demais objetos. Essa
simultaneidade de direções contrárias seria a totalidade do objeto.

Concebemos o objeto como núcleo (construção centrípeta) do qual


partem as forças (linhas-forma-força) que o definem no ambiente
(construção centrígufa) e determinam o seu caráter essencial.
(MICHELLI, 1991, p. 220).

De acordo com Boccioni, com a fusão desses dois movimentos o observador


conseguiria perceber a formação do desenvolvimento do objeto em repouso,
concomitantemente com o mesmo em movimento a partir do seu deslocamento no
espaço.

A síntese seria uma maneira de substituir o conceito de divisão consequente


do conceito de continuidade, criando assim um signo, uma forma singular. E isso
seria possível através do dinamismo, que seria a ação simultânea entre os dois
movimentos: absoluto e relativo, ou entre o ambiente e o objeto.

É interessante observar que Boccioni propõe a síntese em sua escultura


Desenvolvimento de uma garrafa no espaço, mas concebe a forma da escultura
como similar a um relevo, ou seja, mesmo imergindo a escultura em um espaço-
tempo, ela é dada apenas para uma frontalidade. Boccioni trabalha a síntese para um
observador que não precisa circundar a obra para que possa apreendê-la, pois ele a
captará através de sua inteligência incorpórea. É como se Boccioni fundisse em um
único espaço ideal todos os ângulos, remetendo à escultura neoclássica, que já se
preocupava com essas questões – de deixar todos os pontos de vistas possíveis da
escultura disponíveis para a visibilidade do observador – mas com recursos
diferentes. O ganho da escultura futurista, de acordo com Krauss (1998), foi o de
introduzir nesse idealismo o conceito de tecnologia.

Nessa escultura, Desenvolvimento de uma garrafa no espaço, é possível ver


claramente a ideia de Boccioni a respeito dessa simultaneidade entre o movimento
57

absoluto e o movimento relativo, entre a as forças centrípeta originária do


conhecimento que temos do objeto e a centrífuga originada do aparecimento do
objeto em relação com o ambiente em que ele está inserido.

Sintetizando o movimento através da aceleração da velocidade ao ponto de


deixar borrar o exterior do objeto, deixando apenas o seu interior intacto, Boccioni
mantém o núcleo, mas deixa o oco, para que possa construir a partir desse centro
estático, uma oposição à representação de um exterior em movimento. “Essa
imagem de imobilidade, que corre pelo interior da obra como uma viga-mestra, se
lê como um símbolo de invariabilidade.” (KRAUSS, 1998, p. 55). Age como
correspondente ao movimento absoluto, enquanto que o movimento relativo seria
dos invólucros externos do objeto que, da maneira como são dispostos, dão a ilusão
de um movimento contínuo.

Muitas terminologias utilizadas por Boccioni são correspondentes às


formuladas por Bergson. O intuito de Boccioni de sintetizar o movimento através
da simultaneidade remete à ideia bergsoniana de duração e intuição. A sintonia com
o conceito de duração estaria na maneira com que Boccioni pensava o modo como
acessamos a realidade. Para ele, a apreensão desta se dava através de sua totalidade, e
isso implica o abarcamento de todos os elementos que constituem o todo, tanto os
contingentes quanto os essenciais, pois ele percebe o todo como uma
multiplicidade, em seu movimento incessante.

Boccioni procurou representar o movimento a partir de um “conhecimento”


intuitivo, o único capaz de acessar a realidade total porque também está em
constante movimento ou desenvolvimento. Pois, a realidade jamais está pronta,
fechada, está sempre em uma “evolução criadora,” localiza-se na integridade do seu
devir. O conhecimento intelectual, estático e contemplativo, seria incompleto, pois
perceberia o movimento sempre a partir de um contato fisiológico.

Para tal, a poética de Boccioni parte do entendimento do quadro como:

[...] a própria vida intuída em suas transformações dentro do objeto e não


fora dele [...] concebendo o objeto a partir de dentro, isto é, vivendo-o,
daremos a sua expansão, a sua força, a sua manifestação, que criarão
simultaneamente a sua relação com o ambiente [...] o ato com que o
artista mergulha no objeto vivendo o seu movimento característico,
58

revela-nos que não há na natureza linhas perpendiculares ou linhas


horizontais absolutas. (BOCCIONI apud MICHELLI, 1991, p. 218).

* * *

O ambiente que a escultura de Boccioni habita assemelha-se, quanto a alguns


aspectos topológicos ao Nu... de Duchamp: ambos são mundos onde a perceptiva
de visibilidade do objeto é dada de maneira integral, ou seja, “[...] transcende a
pobreza da visão parcial. É um mundo através do qual muitas visões são interligadas
sinteticamente, sendo, nesse sentido, um modelo pragmático do aspecto da
experiência de um observador.” (KRAUSS, 1998, p. 66).

Isso permite que o observador permaneça em um único local e possa


apreender todos os movimentos e pontos de vista pertencentes ao objeto, sem que
seja preciso se deslocar, no caso da escultura.

Quanto à pintura de Duchamp, o ambiente é similar na medida em que o


mundo habitado por ela nos disponibiliza, através do retardamento do movimento
que Duchamp provoca, uma totalidade das vistas e posições que não
conseguiríamos acessar por pertencerem ao fluxo contínuo da “realidade movente”.

* * *

Duchamp desmembra a figura e esse desmembramento ocasiona uma


multiplicação de seus componentes numa repetição rítmica como se a figura fosse
ressoando, como ondas que se propagem na atmosfera. Já para Boccioni, a forma
deve ser única, sintetizando a anatomia do corpo e a anatomia do espaço.

O movimento elástico que possibilita a deformação do objeto por meio de um


alongamento da linha conferindo à esta um dinamismo que propulsa como um
movimento de aceleração, Boccioni lança o movimento e encontra na sensação o
eixo que estabiliza os vetores que atravessam e envolvem o artista.

Para ir em direção ao estilo plástico da nossa época é preciso viver a


sensação que chega até nós da renovação impressionista, esquecer a
fixidez da contemplação tradicional a partir do verdadeiro e conceber e
determinar numa forma a relação plástica que existe entre conhecimento
59

do objeto e o seu aparecimento... A impressão viverá, portanto, na


duração através da forma única do seu desenvolvimento. (BOCCIONI
apud MICHELLI, 1991, p. 219).

A questão da simultaneidade, para Boccioni, também lança uma modificação


quanto ao modo como as relações no geral são estabelecidas na modernidade,
certamente provenientes de uma aceleração na realidade movente, e como isso, de
certa forma, antecipa questões que serão elaboras na contemporaneidade. A
simultaneidade para Boccioni, então, seria “[...] como o expoente lírico da moderna
concepção da vida, baseada na rapidez e na contemporaneidade de conhecimento e
comunicação.” (MICHELLI, 1991, p. 222).

Outra similaridade entre Desenvolvimento de uma garrafa no espaço, de


Boccioni e o Nu descendo uma escada de Duchamp está no movimento espiral em
que ambos estão inseridos. Em Boccioni, os perfis da garrafa em movimento estão
representados em espiral porque isso os liberta,

[...] em termos conceituais dessa posição fisicamente estática. Permite-lhes


tornar-se uma inteligência incorpórea circulando por um espaço ideal a
fim de apreender o objeto simultaneamente de todos os ângulos.
(KRAUSS, 1998, p. 56).

E apesar de estar construído para uma observação frontal do observador, o


movimento relativo construído com a espiral cria o dinamismo necessário para que
a escultura represente a ilusão de um movimento contínuo.

No Nu..., a espiral se refere à estrutura da escada em que a figura desce. Esse


formato em espiral também confere à pintura uma dimensão dinâmica, mas não
sintetiza as silhuetas do nu. Ela exalta o caráter fragmentário ocasionado pelo fatiar
do movimento através das linhas horizontais e paralelas em ascendência.
60

VII - Duchamp (Nu...) entre o cinema, o cubismo e o futurismo12

Cubismo e futurismo são movimentos praticamente sincrônicos, distanciados


pelo deslocamento geográfico: o primeiro localizado principalmente na França e o
segundo na Itália e posteriormente na Rússia.

Tanto o cinema como os movimentos cubista e futurista, trazem


semelhanças quanto a algumas referências conceituais discutidas. Conceitos esses
que, por sua vez, estão diretamente ligados à operacionalização técnica dos
trabalhos em artes criados dentro dessas correntes de pensamento e criação. No
entanto, esses procedimentos operacionais e conceituais, os aproximam e
distanciam simultaneamente, e esse mesmo movimento elástico de distanciamento e
aproximação faz com que ambos se relacionem com a pintura Nu...

Iniciemos por alguns aspectos operacionais e conceituais que aproximam


esses movimentos artísticos do Nu descendo uma escada:

A técnica do divisionismo, que consiste em “[...] pintar segundo as leis


científicas dos contrastes simultâneos [...]” (MICHELLI, 1991, p.173), não devia
misturar as cores, mas aproximá-las uma das outras na pureza de sua decomposição,
para que assim, pudesse se chegar a uma ilusão retiniana. Essa técnica foi uma
herança do movimento impressionista, mais precisamente advinda de George
Seurat em suas conclusões obtidas a partir de experimentações pictóricas para
chegar a uma pintura que fosse pura impressão objetiva da natureza.

Seurat (figura 14) dividia as cores para que estas pudessem ser sintetizadas
através do mecanismo de associação retiniana, em que as cores fundem umas nas
outras e, dessa maneira, percebermos não fragmentos, mas unidades chegando na
harmonia de todos os elementos que vibram na luz. Essa operação se dava através da
12
Poder-se-ia pensar em uma analogia com o termo “cubofuturismo”, porém, este suscita questões
que são externas às proposições de Duchamp para a sua pintura Nu descendo uma escada.
Cubofuturismo foi um movimento artístico de caráter literário e pictórico, que ocorreu
principalmente na Rússia entre 1912-1915. Havia influências tanto cubistas quanto futuristas neste
movimento e seu principal expoente foi o pintor Mikhail Larionov. Como a pintura Nu descendo
uma escada, foi criada entre 1911 e 1912, é cronologicamente impossível que Duchamp tenha
sido influenciado por este movimento, durante a criação de sua pintura, já o contrário não é
improvável que tenha ocorrido. Mas, como o interesse histórico que sucedeu a pintura de
Duchamp é secundário neste momento, a possível influência da pintura de Duchamp neste
movimento será suspensa em detrimento de uma abordagem mais incisiva das influências que o
Nu descendo uma escada, pode ter sofrido pelo cubismo, futurismo e pelo cinema.
61

possibilidade de ilusão que nossa retina tem de tomar com unitário o que são
fragmentos, devido à distância espacial do observador em relação à pintura. Essa
imagem seria composta como que de pixels, ou seja, pequenos elementos da
imagem sintética que correspondem a grãos fotográficos.

Giacomo Balla, pintor futurista (figura 15), age diferentemente quanto à


utilização da técnica divisionista e divide as cores para que a representação sintética
do movimento seja independente do objeto em movimento.

São técnicas semelhantes que aproximam e distanciam, como num efeito


óptico, pois a técnica divisionista que aproxima Seurat de Balla, também distancia-
os, pelo fato de que, em Balla, ela é utilizada para exaltar o caráter sintético do
movimento, que se dá como instantes infinitesimais, ou fragmentos repetidos, e em
Seurat é utilizada para que a impressão da paisagem obtida pelo pintor pudesse ser
transposta o mais objetivamente possível, de modo que associação entre as cores
fosse feita pela retina e não por uma associação psicológica subjetiva.

Isso era, de fato, o que Duchamp sempre se negou a realizar quando buscou
o cubismo em detrimento do impressionismo. Porém utilizo esta técnica como
associação à Duchamp na medida em que ela está inserida em um desvio que a leva
para a outra margem.

Duchamp não utiliza a técnica divisionista, de fato, mas o conceito de


divisionismo permeia por sua pintura, já que, quando secciona o movimento
divide-o para criar uma multiplicação das silhuetas da figura que se desloca.

Fatiar o movimento através do cinematógrafo, para que através da


inteligência possamos apreendê-lo como instantes sucessivos que se propagem
como ressonâncias do som no espaço e no tempo.

Duchamp fatia, mas não porque quer obter a síntese. Ele fatia porque quer
mostrar as “vísceras” do movimento através de sua estaticidade analítica, como se
62

Figura14 - SEURAT, George. Torre Eiffel Figura 15 - BALLA, Giacomo. Jovem executado em
uma varanda

1912. 125 x 125 cm. Milão, Galleria d’Arte


Moderna. Fonte: http://ap.over-blog.org.over-
blog.org/article-10999273.html

1889, tela. 24,1 X 15,2. Fonte:


http://www.georgesseurat.org/The-Eiffel-Tower-
1889.html
63

através da análise do movimento pudesse penetrar na anatomia do corpo que se


movimenta. E isso o faz divergir do futurismo.

De acordo com Michelli, Seurat havia estudado os textos científicos do


fisiologista Hermann Helmholtz e de Maxwell, e aprendido com eles que “[...] o que
atinge a retina e atinge o jogo cromático da natureza são os contrastes – contrastes de
tom, de tinta, de linha.” (MICHELLI, 1991, p.175).

Em Duchamp, em Nu descendo uma escada, o divisionismo está presente na


maneira como ele trata o movimento total, como fragmentações do todo. A imagem
da pintura, dessa maneira, torna-se a representação de frações de um todo. Mas,
divergente de Seurat, que utiliza a técnica do divisionismo como uma subversão da
realidade movente para alcançar a ilusão. O deslocamento espacial requisitado na obra
de Seurat é que permite que tomemos o todo, ou a unidade da pintura, a partir da
ilusão provocada pela divisão das cores. Duchamp faz o reverso: subverte a ilusão do
movimento fragmentado, para tomá-la como a própria realidade.

Robert Delaunay, assim como Paul Signac e Seurat, buscaram em textos


científicos respaldo para as suas proposições plásticas. Ambos estudaram os textos
científicos de Michel Eugène Chevreul a respeito da sua teoria das cores,
principalmente em seu livro De la Loi du Contrast Simultané des Couleurs (A lei do
contrate simultâneo das cores). De fato, Delaunay tinha um fascínio pela cor, e a
maneira como ele se referia a ela, nos mostra que seu interesse por ela ia além do seu
aspecto perceptível visual: “ [...] só a cor é ao mesmo tempo forma e tema.”
(DELAUNAY apud READ, 2000, p.94).

Mesmo que Delaunay contivesse um espírito científico apurado, proveniente


do neo-impressionismo de Seurat, havia nele características sutis que colocavam sua
pintura para além das questões científicas e contribuíam para uma intuição cristalina
da realidade. Delaunay construía algumas de suas pinturas a partir de associações de
imagens. Essas imagens distintas eram conjuntadas pela simultaneidade através da
“ [...] compenetração dos planos coloridos, que fazem com que elas passem com
incessante intercâmbio da realidade objetiva à realidade da imaginação.”
(MICHELLI, 1991, p. 186).

O modo como Delaunay trabalhava a simultaneidade entre as imagens


colocava-o mais próximo do futuristas. A ideia de movimento que Delaunay trabalha
64

em grande parte de suas pinturas e principalmente na pintura Torre Eiffel, de 1910, é


um movimento que remete ao dinamismo. Esse dinamismo é criado a partir da
sincronização entre dois ritmos antagônicos, gerados um, através do espaço urbano e
outro, pelo espaço cósmico.

O dinamismo que aproxima os futuristas de Duchamp também é o mesmo que


os afasta. Aproxima porque ambos encontram nele a técnica para construir uma
pintura que rompa com a dialética cartesiana contida no cubismo, conferindo à
pintura um caráter de mobilidade.

Porém afasta porque, enquanto os futuristas ancoram suas pesquisas do


movimento na velocidade, como “ [...] uma força física que deforma os corpos até o
limite de sua elasticidade, assim revelando, no efeito, o dinamismo invisível da causa
[...]” (ARGAN, 1992, p. 438), capaz de sintetizar a forma, em Duchamp, o
dinamismo permitirá que o objeto seja desmontado, provocando uma modificação
tanto na sua estrutura interna quanto em sua morfologia.

Como pudemos constatar, os movimentos artísticos cubismo e futurismo são


repletos de contradições. A contundência dessa característica surge quando nos
deparamos com a pintura Nu descendo uma escada, de Duchamp, que nos aproxima e
ao mesmo tempo também distancia desses dois movimentos. Ela traz questões dos dois
e ao mesmo tempo diverge de ambos.

A ação repetitiva de uma pessoa que desce uma escada é uma ação mecânica
quase maquínica. Ao executar esse movimento “ [...] a pessoa passa do estado do
organismo vivo para o de engenho ou máquina: o funcionamento biológico se
transforma em funcionamento mecânico.” (ARGAN, 1992, p.438).

Esse movimento repetitivo faz com que o sujeito tenha cada vez mais
familiaridade com a máquina, pois, de acordo com Argan, numa civilização de
técnica, “ [...] a transformação do funcionamento biológico em funcionamento
tecnológico é o destino que nos aguarda.” (1992, p. 438). Movimento que, de tanto
se repetir, fragmenta, descaracteriza a unidade e multiplica-se em fatias incompletas.

Os indícios cubistas nesta pintura estão no desmembramento da figura que


“ [...] sugere as impressões múltiplas que temos de uma pessoa num dado momento”
(TOMKINS, 2007, p. 78). A diferença é que Duchamp ao pintar o Nu... estava
65

interessado nesse desmembramento da figura em deslocamento, enquanto que os


cubistas operavam com figuras imóveis.

O desmembramento que Duchamp faz na figura é para que possamos visualizar


todas as silhuetas possíveis da trajetória do movimento no espaço e, dessa forma, difere
da maneira cubista que, desmembra os perfis da figura para que possamos visualizar a
todas as faces em só golpe de vista.
66

VIII - O tempo no Nu

Contrapondo-se às ideias futuristas de aceleração e do movimento como fluxo


contínuo e dinâmico, Duchamp estava interessado nas experiências de análise e
decomposição do movimento por meio da desaceleração e, por isso, buscou nas
experimentações cronofotográficas do francês Étienne-Jules Marey (figura 16) as que
ele teve acesso através da publicação na revista francesa La Nature, de 1983 e do inglês
Eadweard Muybridge (figura 17), fontes para as suas análises.

Vários elementos na composição do quadro Nu descendo uma escada remetem


a elementos utilizados por Marey para estudar o movimento. Um elemento, cuja
evidência é nítida, são os pinos e linhas (figura 18) que o fisiologista francês colocava
em seus modelos para facilitar a visualização das posições que o corpo ocupa no
deslocamento da linha percorrida no espaço. Em Nu descendo uma escada, esses
elementos aparecem nas articulações da figura, (figura 19) e correspondem
praticamente às mesmas localizações que aparecem em Marey.

Algumas experiências cronofotográficas consistiam em tirar sucessivas


fotografias de vários instantes de um movimento, capturadas em uma única chapa
fotográfica, utilizando uma câmera fotográfica que continha um obturador circular
com fissuras que permitiam a exposição com vários intervalos regulares por segundo, o
que possibilitava um registro realista da trajetória do movimento.

Com a cronofotografia, era possível analisar o movimento de modo mais


preciso, pois ela efetuava uma espécie de decomposição deste, como se o tempo fosse
desacelerado e recortado. Assim, era possível ver o que o olho não conseguia captar.

O tempo em Nu descendo uma escada é, assim como o tempo


cronofotográfico, desacelerado, como se pertencesse ao que Duchamp chamava de
retarde, um atraso, como se estivesse a um passo atrás, diferente do tempo futurista,
amalgamado no tempo presente, e em favor do tempo que virá, e cujo passado é
negado.
67

Figura 16 - MAREY, Étienne. Estabelecendo um plano inclinado

cronofotografia, s/d. Fonte: http://www.expo-marey.com/novo4.htm

Figura 17 - MUYBRIGE, Eadweard. Mulher descendo as escadas.

1887. Fotografia. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Muybridge-1.jpg


68

Figura 18 - MAREY, Étienne. Estudo sobre a Figura 19 - DUCHAMP, Marcel. Nu descendo


marcha da figura humana (detalhe). uma escada n°2 (detalhe)

Cronofotografia.1884. Fonte: 1912, Óleo sobre tela, 147 x 89,2 cm. Pormenor
http://www.aloj.us.es/galba/monograficos/VELAZQU da pintura Nu descendo uma escada com
EZ/FotoMarey.htm inserção de pormenor da fotografia de Marey
Estudo sobre a marcha da figura humana.
Filadélfia, Museum of Art. Fonte: ARGAN,
1992.

Figura 20 - Marcel Duchamp descendo uma escada

Fotografia. 1952, Nova York. Crédito: Elias


Elisofon. Fonte:
http://bigblogis.blogspot.com/2008/01/descend
o-escadas.html
69

Duchamp também buscou referências no cinema, e mais especificamente no


que o cinema é de fato, já que para ele havia uma distinção entre o que “ o cinema
é” e o que são “ efeitos do cinema” . Duchamp “ [...] considera que o cinema
permite explorar a decomposição e a análise do movimento, enquanto que o ‘ efeito
de cinema’ apenas permite a realização da sua síntese ilusória.” (CASTELO
BRANCO, 2010, p. 05).

O interesse de Duchamp pela análise do movimento, em detrimento da síntese,


é perceptível nessa pintura, na qual ele decompõe o movimento em instantes
sucessivos e estáticos e em uma sucessão de imagens fixas e, como ele mesmo diz:
“ [...] o meu objetivo era a apresentação estática do movimento [...] sem tentar criar
através da pintura efeitos de cinema.” (DUCHAMP, apud CASTELO BRANCO,
2010, p. 5-6).

O tempo de Nu descendo uma escada assemelha-se ao tempo cinematográfico,


em que o presente não é um instante vinculado à sua própria atualidade. Ele se fixa na
pintura, mas transborda em secções que se fundem, formando uma “ [...] espécie de
estratos, que se comunicam entre si para afunilar-se, exercendo pressão sobre uma
ponta do presente.” (PELBART in ALLIEZ, 2000, p. 90).

Mas também se diferencia do cinema, pois fixa-se sobre uma superfície plana
que é dada de um vez só, enquanto que no cinema as imagens mostram-se a medida
que a película cinematográfica é desenrolada. O fato de a pintura de Duchamp conter
todos os seus elementos sobre um único plano, dado de uma só vez, faz com que seus
presentes sejam encaixados, como que unidos por uma linha que segura todos os
instantes amarrados entre si. Por isso, o tempo do Nu... não é o tempo puro, devolvido
a si mesmo: uma ainda está subordinado à linha espacial.

Nu... enverga e arranha o tempo. Compreende este como vibrações que


ressoam sobre uma superfície plana. Instala-se o paradoxo. A pintura se mostra por
inteira, mas a mesma superfície que permite que a pintura seja vista de uma só vez,
também a esconde sob as arranhaduras buracos e fendas.

Em uma superfície nada está escondido, mas nem tudo é visível [...]
declinação infinita que, de um lado a outro da fenda, reencadeia todas as
imagens, todas as cores, abrindo-as umas às outras, segundo uma conexão
que transversal que afirma seus cortes e distâncias, uma conexão que vai
romper os tons. (MARTIN in ALLIEZ, 2000, p. 102).
70

Duchamp faz do tempo gomos de instantes. Formalmente em seu Nu..., isso é


visível nos contornos que ele faz entre uma silhueta e outra. Com isso, a superfície da
pintura abre uma fenda, constituída por esses contornos escuros, como se o
movimento se distendesse e ao mesmo tempo absorvesse todos os instantes não visíveis
ao olho. Neles estão contidos tudo aquilo que escapa à fragmentação ao se tentar
recompor o movimento total.
71

IX - O movimento em Nu

A arte pictórica brota do movimento, é movimento


fixado e percebido através de movimentos.
Paul Klee

O ensejo de Duchamp pelo movimento é visível a partir de sua pintura Jovem


Triste num trem (figura 21), realizada em outubro de 1911. Nessa pintura, já estão
contidos os procedimentos técnicos e operatórios que Duchamp utilizou para realizar o
Nu...

O movimento que Duchamp apresenta em Nu... é o de uma ação repetitiva de


um nu descendo uma escada. Imagens sucessivas de um corpo em movimento.

Duchamp fatia a figura em movimento e, através desse procedimento,


decompõe-no. “ Transpassa imobilidade e movimento, fundi-os para melhor
dissolvê-los.” (PAZ, 2004, p.12). Repete, funde os instantes do movimento
transpassando a ideia de imobilidade e movimento. Ele consegue esse “ efeito” na
pintura através da repetição de linhas curvas dispostas sucessivamente, que cortam em
diagonal o espaço do quadro e o contraste da figura clara em relação ao fundo escuro,
remetendo às experiências cronofotográficas, nas quais esse contrate é mais nítido e
permite uma melhor visibilidade da análise do movimento.

O movimento em Nu..., é uma queda, é um movimento de declínio, e nos


mostra o desdém de Duchamp com relação à tendência de exaltação à máquina. Por
isso, o retarde do nu é um antimecanismo. Duchamp, “ [...] ao inverso dos futuristas
foi um dos primeiros a denunciar o caráter ruinoso da atividade mecânica moderna.”
(PAZ, 2002, p. 13).

A sua estrutura, que não nos remete a um nu feminino, também não confere a
ela uma figuração maquinária, está mais próximo de uma ” [...] fuselagem
surpreendida não em pleno voo, mas sim em uma lenta queda [...]” (PAZ, 2002, p.
13) confirmando a ironia de Duchamp perante tantos aos modelos habitualmente
utilizados na arte tradicional.
72

Figura 21- DUCHAMP, Marcel. Jovem triste num trem,

1911– 12, 100 x 73 cm. Veneza, Peggy


Guggenheim Collection,
Fonte: The Solomon R. Guggenheim
Foundation, Peggy
73

Entre Duchamp e os futuristas existe uma convergência no interesse de ambos


pelo movimento. A semelhança entre Nu descendo uma escada e os futuristas é
aparentemente coerente, mas outros fatos o levam a distanciar, portanto, é uma
semelhança superficial. Um primeiro aspecto é cronológico: o primeiro esboço do
Nu... é datado de 1911, e a primeira exposição futurista em Paris foi realizada em
janeiro de 1912. Mesmo que o manifesto já tinha sido publicado, em 1909, no jornal
francês Le Figaro e que Duchamp conhecesse Gino Severini, pintor e escultor
pertencente ao grupo futurista, neste período ele trabalhava praticamente sozinho,
apenas com seus irmãos Raymond Duchamp-Villon e Jacques Villon, e não
frequentava os cafés parisienses, local onde aconteciam as frequentes reuniões entre os
artistas.

O segundo sentido superficial da semelhança futurista está no fato de que,


apesar de ambos se interessarem pelo movimento, Duchamp está envolvido por um
movimento em retarde, em desaceleração. Como se essa desaceleração pudesse, ao
invés de fazer com que a máquina alcançasse seu ápice de funcionamento em uma
velocidade em ascendência, fosse a propulsora do desencadeamento de uma crítica à
funcionalidade à máquina.

Talvez por esses motivos, Duchamp se interessaria, mais tarde, pelas máquinas
autodestrutivas de Jean Tinguely13, (figura 22) cujo funcionamento opera-se de modo
imprevisível. O movimento em desaceleração nulificava o sentido e a significação da
máquina.

A redução da cabeça em movimento a uma linha nua parecia-me defensável.


Uma forma passando pelo espaço atravessaria uma linha; e, ao mover-se a
forma, a linha por ela atravessada seria substituída por outra linha – e outra e
mais outra. Portanto, senti-me justificado ao reduzir a figura em movimento
a uma linha e não a um esqueleto. Reduzir, reduzir, reduzir, tal era o meu
pensamento - mas ao mesmo tempo meu objetivo estava interiorizando, e
não voltando-se para o exterior. (DUCHAMP in CHIPP, 1993, p. 398).

Com a desaceleração, Duchamp reduzia. Essa redução provoca um movimento


de preenchimento interior a partir da redução externa. Reduz-se a forma, que é a

13
Em entrevista à Cabanne, Duchamp afirma seu gosto por Tinguely ao falar dos jovens artistas que
estavam em evidência: “Gosto muito também de Tinguely, mas ele é mais mecânico.” (DUCHAMP
em entrevista à CABANNE, 2008, p. 167).
74

Figura22 - TINGUELY, Jean. Homage to New York

1960. Nova York, Moma. Fonte:


http://www.medienkunstnetz.de/works/hom
age-to-new-york/
75

exterioridade do corpo. Ao se movimentar no espaço, essa forma atravessa uma linha14.


Como o movimento é ininterrupto, a linha é substituída por outra cada vez que os
instantes infinitesimais mudam de posição. Esse movimento, em que a redução
externa, da forma, objetiva o interior, no sentido em que este começa a sobressair,
poderia ser pensado como um movimento de endosmose15. Ou seja, a linha que antes
era apenas uma fronteira de delimitação da forma, absorve elementos que eram
externos, e ganha evidência sobre a forma.

Sobre a pintura Nu descendo uma escada, Duchamp escreveu:

[...] é uma organização de elementos cinéticos, uma expressão do tempo e


do espaço através da apresentação abstrata do movimento. Pintura é
necessariamente, uma justaposição de duas ou mais cores sobre uma
superfície. Propositalmente restringi o Nu ao colorido da madeira, para que
não fosse suscitada a questão da pintura per se. Há, admito, muitos modos
pelos quais essa ideia poderia se expressar. A arte seria uma musa muito pobre
se assim não fosse. Mas é preciso lembrar que, quando consideramos o
movimento da forma através do espaço em dado tempo, entramos no reino
da geometria e da matemática, exatamente como quando construímos uma
máquina para esse fim. Agora, se eu mostrar a subida de um avião, tentarei
mostrar o que ele está fazendo. Não faço uma natureza-morta com ele.
Quando a visão do Nu espocou em mim, eu sabia que ele quebraria para
sempre as cadeiras escravizadoras do naturalismo. (DUCHAMP apud READ,
2000, p. 113,114).

Com essa afirmação, Duchamp mostra o interesse no movimento para além das
artes ao elaborar Nu descendo uma escada. Há uma relação entre o movimento
representado na pintura, através do deslocamento da forma no espaço, com o
movimento pensado na matemática e na geometria.

14
Veremos mais adiante, em secções subsequentes, que essa linha na qual o objeto em movimento
perpassa corresponde à linha percorrida pelo móvel.
15
A respeito da endosmose veremos a definição na secção que trata do movimento e do mecanismo
cinematográfico.
76

X - As influências das descobertas científicas na pintura de Duchamp

O movimento da forma, em um dado tempo, leva-nos


fatalmente a geometria e a matemática; é a mesma coisa
quando se constrói uma máquina.
(DUCHAMP apud CABANNE, 2008)

De fato, é inegável que algumas descobertas científicas tenham influenciado a


obra de Duchamp. A conexão entre ambos se torna plausível quando, além das fortes
evidências em seus trabalhos, também tomamos consciência de que Duchamp se
relacionava diretamente com Maurice Princet e não raro com textos de Henri
Poincaré e Pascal Esprit Jouffret, dois grandes matemáticos franceses, que escreviam
livros para leigos.
Princet foi um matemático francês que exerceu influência direta sobre os
artistas. Estava associado a Picasso, assim como a todo o grupo de artistas de Puteaux, e
teria sido o responsável pela introdução da teoria da quarta dimensão, advinda de
Henri Poincaré no grupo cubista que Duchamp também frequentava.

Duchamp deixou algumas pistas de seu interesse pela geometria não


euclidiana16 em algumas entrevistas e notas escritas por ele e publicadas na “ caixa
verde” . Algumas dessas notas que Duchamp escreveu teriam saído diretamente,
segundo Tomkins (2004), da obra de Gaston de Pawlowski, Voyage au pays de la
quatrimière dimension, livro editado em 1912 a partir de uma série publicada em
jornais franceses.

Linda Dalrymple Henderson, teórica de arte, escreveu em 1998 um livro


intitulado Duchamp in context: Science and Technology in the Large Glass and
Related Works, em que ela explora esse interesse de Duchmp pela matemática e
geometria não euclidiana e efetua um estudo dessa relação da matemática e da
geometria em trabalhos de Duchamp, principalmente em O grande vidro.

Referindo-se ao momento em que pintou o Nu... e há algum tempo depois,


quando fazia estudos para O grande vidro (A noiva despida por seus celibatários,
mesmo), Duchamp declarou: “ interessava a quarta dimensão naquele momento. Na

16
A geometria não euclidiana é resultante da busca por alternativas ao 5º postulado euclidiano: o
postulado das paralelas. Nele inscreve-se, segundo Greenberg, que “[...] não podemos estender
segmentos de retas cada vez mais longe, para ver se elas se encontram, mas não podemos fazer isso
para sempre. Nosso único recurso é verificar o paralelismo indiretamente, usando outros critérios,
que não os da definição.” (GREENBERG in LYRA, 2008, p. 29).
77

caixa verde há uma pilha de notas sobre a quarta dimensão. (DUCHAMP apud
CABANNE, 2008, p. 66).

O interesse de Duchamp por essas questões físicas e matemáticas, como a quarta


dimensão e o uso da perspectiva, é, no entanto, mais poético do que matemático, pois
ele queria criar suas próprias leis para a aplicação da quarta dimensão à arte. A
princípio, Duchamp estava interessado na possibilidade de um ser tridimensional
visualizar uma figura quadrimensional. Para isso, ele buscou referenciais teóricos que
tratassem a quarta dimensão como um elemento espacial, tais como a análise sobre o
espaço perceptivo de Henri Poincaré, as regras da perspectiva tridimensional e as leis
da geometria quadrimensional.

Duchamp tentou criar a quadridimensão a partir da utilização do método de


representação de uma figura quadrimensional, através da junção dos vértices de dois
cubos. Esse método é de fácil entendimento matemático (figura 23), porém de difícil
visualização. De acordo com Henderson (1998), o êxito de Duchamp foi tentar
estabelecer modos através do qual a visão quadridimensional deveria operar.

Figura 23- Cubo quadrimensional.

Representação de um cubo quadrimensional, origindando um hipercubo.


Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Quarta_dimens%C3%A3o

A ideia de Duchamp de reduzir a forma à linha e a linha ao ponto incita que


não existe um desenvolvimento perspectivo do espaço, e corrobora para o continnum
da quarta dimensão, “ [...] um corpo tridimensional quando visto em um continnum
quadrimensional é visto como um todo” (LYRA, 2008, p. 94). Esse procedimento é
visível no processo de redução que Duchamp realiza no Nu descendo uma escada, no
qual não é mais visível o plano a partir da perspectiva, mas a partir das secções de
linhas que constituem a figura que desce a escada.
78

Duchamp desenvolveu uma técnica que intitulou de “ paralelismo elementar”


para pintar Nu descendo uma escada. Essa técnica foi elaborada a partir de seu acesso
às fotografias ou melhor, às cronofotografias de Marey, que foram publicadas na
revista francesa La Nature.

A primeira utilização dessa técnica por Duchamp foi na elaboração da pintura


Jovem triste num trem, de 1911, em ele que trabalha com dois movimentos paralelos
correspondentes um ao outro. Com essa operação, Duchamp consegue uma
deformação da figura humana através de sua secção em lâminas paralelas, como se
fossem “ frames17” dispostos sucessivamente. Cada lâmina subsequente, porém, é
levemente deslocada da lâmina anterior.

Esse procedimento é o mesmo utilizado por Duchamp em Nu descendo uma


escada. A figura ressoa como se uma força elástica distendesse sua silhueta,
multiplicando-a. A multiplicação da figura faz com que a imagem ganhe o aspecto de
que está ressonando no espaço, distendendo-se e multiplicando os planos do quadro.

O dualismo entre objeto e espaço [...] não se resolve com uma operação
dialética, que ainda consiste na introdução de uma estrutura lógica a priori
no contexto da realidade. Ele se resolve na realidade física do movimento.
Espaço e objeto não são duas entidades definidas e imóveis, que se põem em
movimento quando entram em relação recíproca: são dois sistemas em
movimento relativo, e o que vemos não é uma forma antes imóvel e depois
decomposta e recomposta por um ritmo de movimento, mas é a própria
forma do movimento. É significativa a coincidência cronológica entre a
pesquisa figurativa de Duchamp e a pesquisa científica de Einstein sobre a
relatividade dos movimentos. (ARGAN, 1992, p. 306).

17
Frames são os fotogramas, o quadro, as imagens estáticas nas quais é constituído o movimento
cinematográfico.
79

13
XI - (silêncio) Intervalo 4’ 33’’

A palavra não tem a menor possibilidade de expressar alguma


coisa. Tão logo começamos a por nossos pensamentos em palavras e
frases, tudo sai errado.
(DUCHAMP apud TOMKINS, 2004)

They did not speak. They did not sing, they remained,
all of them, silent, almost determinedly silent; but from
the empty air they conjured music. Everything was music...
(KAFKA, 1971)
80
81
82
83
84

13
A cisão efetuada pelo branco, 4 páginas e 33 linhas em branco, refere-se a dois aspectos.
O primeiro aspecto refere-se à obra do músico norte-americano Jonh Cage (1912-1992) intitulada
4’33’’ (quatro minutos e trinta e três segundos), e cuja partitura faz com que o intérprete fique
sentado diante do piano, sem tocar nenhuma nota musical durante os 4’33’’. O que o público ouve
são os sons que o ambiente disponibiliza, como: tosses, rangidos, sussurros etc. Era nesse som
cotidiano que Cage estava interessado.
Para Cage, o silêncio tem uma importância fundamental nesse momento de sua produção poética.
Nele é possível instaurar o tempo enquanto categoria musical, não mais como objeto-tempo,
metáfora da dimensão da existência ou representação do mundo. O tempo passa a ser uma
experiência do movimento da vida. O silêncio seria como uma abertura para a fruição do fluxo da
vida, gerado por outros tipos de sons que são “abafados” pelos sons definidos pela tradição musical. O
silêncio, portanto, seria o campo de possibilidades em que os sons se interpenetram: “[...] na poética
cageana, o silêncio é indissociável da noção de tempo.” (TERRA, 2000, p. 83).
Cage se opunha ao sistema tonal temperado, composto pela escala cromática, que divide a oitava em
12 semitons cromáticos iguais. Ele estava interessado na arte que se baseasse no acaso, e que a
personalidade do artista ficasse cada vez mais desvinculada do trabalho em arte – isso converge com a
proposta duchampinana para a obra de arte e o processo de criação em arte, introduzida mais
explicitamente com os ready-mades. O pensamento de Cage de que o objeto de arte deveria ser
excluído da personalidade do artista o distanciava das propostas expressionistas abstratas e o
aproximava mais de Duchamp. Convergia para uma elaboração do processo de descobrimento da
criação em arte a partir dos elementos da vida cotidiana.
Os readymades são objetos industrializados de uso cotidiano que Duchamp escolhia
“ocasionalmente”, e que inferia sobre eles dois deslocamentos: alterava-lhes o nome, efetuando uma
transferência de sentido, como o exemplo mais popular da Fonte: um urinol cuja interferência de
Duchamp se dava pela alteração da posição do objeto no espaço. O segundo deslocamento é uma
transferência espacial, Duchamp deslocava os objetos de seu contexto utilitário, colocando-os em
espaços artísticos institucionalizados. Com isso, ele colocava em xeque várias questões relacionadas à
arte. A que nos interessa no momento é a que diz respeito à questão autoral do trabalho de arte.
Os acontecimentos da vida cotidiana são obtidos através de ações quaisquer, ou seja, desprovida de
uma significação particular ou transcendental. Ao colocar que o descobrimento da arte pode ser
pensado a partir desses acontecimentos corriqueiros, é como se Cage e Duchamp, pensassem a
criação em arte não mais como aquele evento “divino”, executado pelo artista, como um ser provido
de um dom e que suas ações são diferentes da de uma ação cotidiana. O objeto de arte, ao se tornar
um objeto advindo do acaso, da vida cotidiana, desvincula-se de seu criador, que perde o caráter
autoral, o artista pode ser qualquer um.
Pois bem, pensar que esse objeto ou esse “som” cotidiano pode ser pensado como um trabalho em
arte aproxima-se do pensamento do estudo do movimento na modernidade, em que o movimento
não é pensado mais como instantes privilegiados, como se pensava na antiguidade, mas sim como
instantes quaisquer, sucessivos.
Cage acreditava que a arte deveria colocar o artista em sincronia com a natureza, com a maneira com
que ela atua, e não com sua aparência exterior. Deveria ser uma “[...] brincadeira sem propósito [...],
não era uma tentativa de ordenação do caos, nem sugeria melhorias à criação [...] mas simplesmente a
de despertar-nos para a própria vida que estamos vivendo.” (CAGE apud TOMNKS, 2004, p. 454).
A aproximação mais intensa entre Duchamp e Cage se deu quando, em 1960, Cage pediu a
Duchamp que lhe ensinasse xadrez e, durante 1 a 2 vezes por semana eles se reuniam na casa de
Duchamp para que Duchamp lhe desse as aulas.
Posteriormente, Cage convidou Duchamp a participar de um evento musical, Reunion, em 5 de
março de 1968. O evento consistia em jogar xadrez. Primeiro jogavam Cage e Duchamp, foi a única
vez que Cage ganhou de Duchamp, depois Cage jogava com Teeny, esposa de Duchamp. Todos os
integrantes estavam equipados com microfones de contanto conectados à placa de som e, quando
alguém movimentava uma peça do xadrez “[...] ouvia-se uma gama de barulhos eletrônicos
amplificados, enquanto imagens osciloscópicas apareciam em televisores que ficavam à vista do
público.” (TOMKINS, 2005, p. 494).
O intervalo efetuado através das páginas em branco, está relacionado a “amostra temporal" e também
à explicitação do que ocorre entre uma imagem e outra, ou entre um frame e outro, que constituem
o filme cinematográfico, com a diferença de que, na película cinematográfica, o intervalo entre os
fotogramas é preto.
85

O intervalo, pensado como aquele momento não apreensível pelo intelecto quando este, em sua
busca pela fixidez do movimento real, fragmenta-o. Porém, ao fragmentar o movimento, a
inteligência não consegue reconstituir o movimento total, pois lhe escapa justamente o elemento
constituinte da fragmentação, o intervalo. Momento em que a guilhotina é acionada e efetua-se o
corte, rompendo toda a duração real. O intervalo é o instante em que a borda de um fotograma toca
a do outro, escapando à capturação fotográfica, como uma paragem virtual e escorrega no espaço.
Mais uma vez, o intervalo é vazio, mas não ausência, pois se localiza no entre e abrange uma força
que tenciona ambas as partes nas quais intervala. É vazio e profícuo de som, oriundo das páginas
passadas pelo dedo do leitor.
86

XII - O movimento em Bergson e suas propagações

A duração é o progresso contínuo do passado que rói o


futuro e que incha avançando.
(Bergson, 2006a)

Antes de abordarmos o conceito de movimento pelo viés bergsoniano, cabe


efetuarmos uma breve definição geral do conceito. Platão pensa o movimento a partir
da imobilidade. Segundo Rossetti (2004), a filosofia das ideias, e nela particularmente o
platonismo, nega o movimento e pensa a realidade a partir de imutável.

No pensamento platônico, o movimento possui duas formas: alteração - que é a


modificação interna das coisas - e translação - deslocamento das coisas no espaço, ou
seja, mudança de posição. A ciência moderna se valerá desta segunda forma para
pensar o movimento, o que reduz a mudança apenas ao deslocamento dos objetos no
espaço.

Para a matemática, assim como na física, o movimento corresponde a uma


linha. Escapa-lhe, com isso, o tempo real, pois a linha é imóvel, e o movimento, assim
como o tempo, é movente. A linha é algo pronto; o tempo se refaz a todo instante
porque não para.

A ciência só incide sobre o tempo e o movimento eliminando os seus aspectos:


essencial e qualitativo, ou seja, a duração do tempo e a mobilidade do movimento. Os
tratados de mecânica, no entanto, tiveram o cuidado de definir apenas a equivalência
entre duas durações, ao invés de definir a duração propriamente dita, trabalhando
assim com a simultaneidade, e não com a duração.

Dois intervalos de tempo são iguais, quando dois corpos idênticos, colocados
em idênticas circunstâncias no começo de cada um destes intervalos, e
submetidos às mesmas influências de todo gênero, tiverem percorrido o
mesmo espaço no fim destes intervalos. (BERGSON, 1988, p. 82).

Medir o tempo ou o movimento, na física, significa medir a sua trajetória no


espaço, na linha percorrida: “[...] contamos apenas um certo número de extremidades
de intervalos ou de momentos, isto é em suma, paradas virtuais do tempo.”
(BERGSON, 2006b, p. 6). Acelerá-lo, mesmo que infinitamente, em nada mudaria a
medida do tempo da qual a ciência tende a mensurar, porque ela não penetra na
87

própria duração. Seria o mesmo que constatar apenas uma simultaneidade entre o
espaço percorrido e o ato puro do movente.

Algo diferente ocorre se efetuarmos uma modificação na velocidade da duração


na evolução. A mudança da velocidade do tempo, do ponto de vista da consciência,
acarreta uma modificação profunda: o tempo percebido hoje é diferente do percebido
ontem. Por ser o conteúdo a mesma coisa que a sua duração, qualquer aceleração ou
desaceleração no fluxo modifica totalmente a estrutura interna da evolução. Ou seja,
modificar a velocidade do tempo vivido implica uma mudança no interior da vida,
porque esta se dá não em imagens estáticas sucessivas, mas em imagens que se
compõem e se criam na medida em que o tempo age sobre elas.

O tempo não mensurável, mas vivido e sentido, pertence ao domínio da vida


interior. Penetrar nesse fluxo é deixar que o tempo se apresente sem querer medi-lo,
apreendê-lo ou detê-lo, deixar que a sincronia entre a atenção que se fixa e o tempo
que escapa aconteça para que seja possível a investigação da duração.

O problema do movimento formulado por Bergson está diretamente ligado ao


problema do tempo, que por muito ficou renegado a uma mera transposição dos
conceitos espaciais. Espaço e tempo eram tratados no mesmo plano, como teorias
espelhadas.

Desde o princípio da metafísica com Zenão de Eléia (cerca de 504/01-? A.C.)14,


o tempo foi pensado como um correspondente terminológico do espaço. Pensava-se o
espaço e, a partir de então, transferia-se as mesmas conclusões para o tempo,
substituindo apenas a “justaposição” espacial por “sucessão” temporal.

A ciência, interessada na mensuração, quantificação e análise do tempo e do


movimento, detém-se nos aspectos que a inteligência fornece para que tal operação
ocorra, o que para Bergson é natural. O que não é compreensível, para ele, é a filosofia
de Herbert Spencer (1820 – 1903), calcada na doutrina da evolução, não se ater na
natureza da própria duração.

A formulação bergsoniana de movimento, portanto, está relacionada à


introdução da ideia de tempo, que Bergson injeta a partir de sua reformulação da

14
Bergson data o início da metafísica no dia em que Zenão de Eléia “[...] assinalou as contradições
inerentes ao movimento e à mudança tal como a inteligência se os apresenta.” (BERGSON, 2006b, p.
10).
88

teoria de Spencer sobre a evolução, e na qual este não se detém no estudo da própria
mudança.

Na filosofia bergsoniana, pensar o tempo implica em pensar a duração. Essa foi


a grande contribuição de Bergson para a filosofia, pois, apesar de o conceito já existir,
Bergson traz uma outra abordagem para ele. É a partir da “duração” que Bergson irá
instaurar as suas questões a respeito da intuição filosófica, realidade movente.

A essência da duração é o fluir, é a própria mudança, dada na continuidade da


transição. É indivisível e substancial, é criação contínua, jorro ininterrupto de
novidade. Acessar a duração pura possibilita “[...] figurar-se toda e qualquer criação,
novidade ou imprevisibilidade.” (BERGSON, 2006b, p. 13).

Para Bergson, o movimento não nasce de algo imóvel15: o princípio do


movimento é intrínseco ao seu próprio mover-se. Para ele, a realidade é movimento,
ou seja, “[...] mudança contínua e constante de um devir que dura modificando-se
incessantemente” (ROSSETTI, 2004, p. 51). O movimento é indivisível e, por isso,
constitui uma totalidade que é una.

A partir do momento em que Bergson caracteriza o movimento como sendo


indivisível, isso pode levar à confusão entre o movimento e o espaço. Pois, quando se
diz que o movimento é indivisível, ele é também distinto do espaço, do espaço
percorrido pelo móvel. Ao passar, o móvel desenha uma linha, chamada de linha
imaginária. Ela é espacial, composta por infinitos pontos, é a linha percorrida, e a
confusão está em achar que o móvel pode deter-se em algum desses pontos, que são
apenas paradas virtuais do movimento, ou seja, o que pode ser dividido e habitar o
espaço é a linha percorrida e não o movimento.

Da confusão entre o movimento e o espaço percorrido pelo móvel,


derivaram, na nossa opinião, os sofismas16 da escola de Eléia; porque o
intervalo que separa dois pontos é divisível indefinidamente, e se o

15
A respeito da distinção entre a metafísica da intuição de Bergson e a metafísica da inteligência,
sobretudo a “Teoria das Ideias” de Platão, que pensa o movimento a partir da imobilidade ver:
capítulo II – Movimento, do título: ROSSETTI, Regina. Movimento e totalidade em Bergson: a
essência imanente da realidade movente. São Paulo: Edusp, 2004.
16
Sofismas ou sofistas foi um grupo de mestres filósofos gregos, datando o seu auge na segunda metade
do século V a.C. Tinham o hábito de discursar sobre suas ideias através de aparições públicas. Eles
realizavam muitas viagens para propagarem seus discursos e atraírem jovens estudantes. Os
ensinamentos sofistas baseavam-se nas estratégias de argumentação do discurso. Com o intuito de
conquistar fama e riqueza, tornaram-se grandes mestres da retórica e da eloquência. Nota da autora.
89

movimento fosse composto de parte como a do próprio intervalo, nunca o


intervalo poderá ser ultrapassado. (BERGSON, 1988, p. 80).

O movimento é presente, ato puro de percorrer, heterogêneo e irredutível,


enquanto o espaço percorrido é passado, divisível, é a trajetória percorrida pelo móvel.
Esta, segundo o filósofo Gilles Deleuze (1985), é a tese fundamental de Bergson sobre
o movimento, que também é enunciada por Deleuze da seguinte maneira: não se pode
reconstituir o movimento com cortes imóveis, ou seja, uma sucessão de posições no
espaço ou uma sucessão de momentos, de instantes no tempo – que são apenas as suas
paradas reais ou virtuais. Isso seria decalcar o tempo sobre o espaço, espacializar o
tempo.

Um movimento somente é único quando ele é um movimento inteiro entre


duas paragens. Se houver alguma parada entre uma paragem e outra, já se constitui
outro movimento. Podemos dividir a trajetória criada pelo movimento, mas não a
criação do movimento, “[...] que é um ato de progresso e não uma coisa.”
(BERGSON, 2001, p. 274).

A percepção do movimento se faz, na maioria das vezes, através de um misto


espaço-temporal, mistura endosmótica em que o espaço, que é externo, mistura-se
com o tempo, duração pura, interna. Como se as multiplicidades quantitativa – ao
qual o espaço pertence – e a qualitativa – em que o tempo está inserido – fundissem-
se.

Ocorre uma mistura entre a duração pura e o espaço. O espaço, de um lado,


fornece a forma de “[...] suas distinções extrínsecas” justapostas e a duração, por outro
lado, introduz as suas “sucessões internas heterogêneas e contínuas17”, no movimento,
por este ter sido submetido à mesma análise da duração, para Bergson e Deleuze
também ocorre uma mistura:

[...] de uma parte, o espaço percorrido pelo móvel, que forma uma
multiplicidade numérica indefinidamente divisível, da qual todas as partes,
reais ou possíveis, são atuais e só diferem em grau; de outra parte, o
movimento puro, que é alteração, multiplicidade virtual qualitativa, como a

17
Da divisão desse misto originam-se as multiplicidades: virtual e atual. Para um aprofundamento
maior do conceito de multiplicidade abordado por Deleuze ver o capítulo 2: A duração como dado
imediato, do título de Deleuze: DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São
Paulo: Editora 34, 1999.
90

corrida de Aquiles, que se divide em passos, mas que muda de natureza toda
vez que se divide. (DELEUZE in ALLIEZ, 1996 p, 36).

Deleuze, em Cinema 1: a imagem-movimento, livro em que o filósofo irá


trabalhar com questões específicas do cinema a partir de conceitos bergsonianos, como
movimento e imagem-movimento, apresenta as três teses principais de Bergson a
respeito do movimento a partir de seu livro A evolução criadora, de 1907.

A primeira seria a fundamental, e dela derivam as outras duas. Enuncia-se: o


movimento não é o espaço percorrido e por isso não se confunde com este. O
movimento é indivisível e pertence à multiplicidade qualitativa, onde qualquer
reconstituição efetuada através de cortes imóveis, ou seja, posições no espaço e no
tempo, implica uma variação do todo. E, por mais que essa reconstituição fosse feita
com acréscimos da ideia abstrata de instantes sucessivos, ainda assim essa
reconstituição seria uma representação decalcada de um tempo mecanizado e
homogêneo, à maneira do nu duchampiano que desce as escadas como que
tropeçando.

Essa fragmentação descaracteriza o movimento a ponto de torná-lo outro. “Por


mais infinitamente que se tente aproximar dois instantes ou duas posições, o
movimento se fará sempre no intervalo entre os dois, logo, às nossas costas. [...] Cada
movimento terá, portanto, sua própria duração qualitativa.” (DELEUZE, 1985, p. 9).

A segunda tese de Bergson, como foi mencionado, provêm da primeira.


Inscreve-se da seguinte maneira: a reconstituição do movimento por meio de instantes
sucessivos não reduz tudo a uma mesma ilusão do movimento total apenas, mas duas
que são distintas entre si, uma antiga e outra moderna.

A antiguidade toma o movimento como eterno e imutável, a partir de formas e


ideias, remetendo a elementos inteligíveis. “O movimento assim concebido será,
portanto, a passagem regulada de uma forma à outra, isto é, uma ordem de poses ou de
instantes privilegiados, como uma dança.” (DELEUZE, 1985, p. 12).

Na modernidade, a partir da revolução científica, o movimento ainda é


remetido à passagem de instantes, mas não a instantes privilegiados, e sim qualquer
instante. Substitui-se a ideia de poses, que são formas transcendentes, nas quais
efetuam uma síntese inteligível, por cortes, materiais imanentes, onde se executa a
91

análise sensível. Desta concepção última do movimento derivam a astronomia


moderna

[...] ao determinar uma relação entre uma órbita e o tempo de seu percurso
(Kepler); a física moderna, ao vincular o espaço percorrido ao tempo da
queda de um corpo (Galileu); a geometria moderna, ao destacar a equação de
uma curva plana [...] (Descartes); enfim, o cálculo infinitesimal, a partir do
momento em que se experimentou levar em conta cortes infinitamente
aproximáveis (Newton e Leibniz). (DELEUZE, 1985, p. 12).

Todos esses avanços científicos compartilham a ideia da substituição das poses


por formas instantâneas quaisquer. Nessa perspectiva, o cinema, na visão de Bergson,
parecia ser o último desencadeamento dessa linhagem. Os elementos e condições do
cinema são determinantes. Primeiramente é necessário que haja a fotografia
instantânea; em segundo lugar, que cada instantâneo seja equidistante um do outro e,
finalmente, que essa sequência equidistante seja transportada para um filme, onde será
requisitada por um mecanismo que puxa as imagens (as garras de Lumiére), e então
esses momentos “quaisquer” dão a impressão de um movimento contínuo.

A terceira tese, também contida em A evolução criadora, é a de que o instante é


um corte em duas instâncias, um corte imóvel do movimento, e o movimento um
corte móvel do Todo, ou da duração. Esse corte móvel ocorre porque o movimento é
uma translação no espaço, e, segundo Deleuze (1985), toda vez que há transição de
parte do Todo, há uma mudança qualitativa que modifica o todo.

Poderíamos dizer, então, que o movimento possui duas faces inseparáveis,


como verso e o anverso e que não podem existir uma sem a outra. “O movimento
reporta os objetos de um sistema fechado a duração aberta e a duração aos objetos do
sistema que ela força a se abrirem. [...] Pelo movimento o todo se divide nos objetos, e
os objetos se reúnem no todo.” (DELEUZE, 1985, p. 20).

Portanto, não há apenas cortes imóveis do movimento, que seriam as imagens


instantâneas. Há também as imagens-movimento “[...] que são cortes imóveis da
duração, imagens-mudança, imagens-relação, imagens-volume, para além do próprio
movimento.” (DELEUZE, 1985, p. 20).

Esse aspecto que salta ao movimento, ou que caracteriza a mobilidade do corte


incidido na duração, Deleuze chamará de “extracampo.” É aquilo que está presente no
quadro, ou em cada frame, mas não se ouve, nem se vê. O quadro tratado no cinema
92

refere-se ao “[...] enquadramento, a determinação de um sistema fechado,


relativamente fechado, que compreende tudo o que está presente na imagem.”
(DELEUZE, 1985, p. 21). Ele é sempre geométrico ou físico “[...] em relação às partes
do sistema que ele ao mesmo tempo separa e reúne.” (DELEUZE, 1985, p. 23).

Duchamp trabalha as imagens sucessivas à maneira de frames e que, por isso,


levam à ideia de propagação pelo espaço. Seu movimento é interrompido pela
fatiação. Suas secções do movimento são instantes quaisquer. São cortes móveis do
movimento total, ou seja, na duração do tempo que se desenrola, e cortes imóveis da
linha percorrida no espaço da pintura.

Assim como na duração só é homogêneo o que não dura, isto é, o espaço, em


que se alinham as simultaneidades, assim também o elemento homogêneo do
movimento é o que menos lhe pertence, o espaço percorrido, isto é, a
imobilidade. (BERGSON, 1988, p. 81).
93

XIII - O mecanismo cinematográfico

O que é real é a mudança contínua de forma: a forma é apenas uma


fotografia de uma transição.
(BERGSON, 2001)

Bergson foi um dos primeiros filósofos a introduzir o cinema no pensamento


filosófico18. E, mesmo que tenha ocupado um lugar secundário em relação à sua
filosofia, Bergson teve uma relevância notável na teoria do cinema e na estética, e foi o
primeiro a utilizar a expressão “imagem em movimento”.

O conceito de mecanismo cinematográfico é introduzido por Bergson para sua


reflexão sobre o cinema. Esse conceito, no entanto, sofrerá muitas críticas, mas não
diminuirá a importância da reflexão de Bergson nas artes e na filosofia.

Para se chegar ao mecanismo cinematográfico, partiremos de duas “ilusões


teóricas da inteligência” colocadas por Bergson em Evolução Criadora. A primeira é
relacionada à imutabilidade e “[...] consiste em acreditar que é possível pensar o
instável por intermédio do estável, o movente por intermédio do imóvel.”
(BERGSON, apud ROSSETTI, 2004, p. 270). A segunda refere-se à idéia do nada,
pensar o ser a partir do nada, ou seja, servir-se do vazio para se pensar o pleno.
Deteremo-nos somente na primeira ilusão para abordar o mecanismo
cinematográfico.

A abordagem bergsoniana de mecanismo cinematográfico inscreve-se sobre a


dualidade epistemológica que Bergson coloca entre o intelecto e a intuição. O
intelecto é por natureza espacializado, é o mecanismo de aquisição de conhecimento
absoluto, através da quantificação, fragmentação, análise e abstração.

Para Bergson, a inteligência é um modo de conhecimento parcial e limitado da


realidade e “[...] somente tem uma apreensão instantânea e, portanto, paralisada, do
movimento. Isso ocorre porque a inteligência utiliza-se de um mecanismo de
conhecimento que resume os movimentos a um certo número de vistas estáveis e
distintas.” (ROSSETTI, 2004, p. 59). Escapa à inteligência o fluxo real e natural do

18
Outros filósofos posteriormente também efetuaram reflexões acerca do cinema, dentre eles estão:
Jean Epstein, Gilles Deleuze, Roland Barthes, entre outros.
94

movimento que é o constante devir, e, justamente porque ela está voltada para o
resultado da ação, que é a ação exterior do movimento, a inteligência não consegue
captá-lo.

Divide-se o movimento, obtêm-se pontos sucessivos, o que se passa entre um


intervalo e outro dos pontos? A inteligência mais que rapidamente intercala novas
posições, e assim indefinitamente, até que estas intercalações desapareçam no
infinitamente pequeno, não deixando “espaço” para a mobilidade penetrar e se fazer
movimento contínuo. A inteligência busca a fixidez, guarda apenas as posições
oriundas da fragmentação efetuada no movimento e deixadas como pontos na linha
percorrida. “Nada mais natural se a inteligência estiver destinada, sobretudo a preparar
e a iluminar nossas ações sobre as coisas.” (BERSGON, 2006b, p. 8).

Ainda que anote o momento da passagem, ainda que pareça se interessar


então pela duração, limita-se, ao fazê-lo, a constatar a simultaneidade de duas
paradas virtuais: parada do móvel que ela considera e parada de um outro
móvel cujo curso seria supostamente o do tempo. (BERGSON, 2006b p. 8).

Como a inteligência busca somente a fixidez, ao invés de conceber que o


movimento que se desenrola sobre o tempo também é móvel, supõe que ele se aplica
sobre o espaço e que o movimento, ou o móvel, está nos pontos sucessivos da linha
percorrida. O movimento, enquanto passagem de um ponto a outro, é uma síntese
mental, inextenso, é uma ilusão de movimento contínuo produzida pela mente.

* * *

{Existem dois fenômenos de ilusão de movimento produzidos pela mente,


similares à ideia de mecanismo cinematográfico com que Bergson trabalha. Ambos
foram descritos por Max Wertheimer (um dos pioneiros da teoria da Gestalt), em
1912, em sua obra Estudos Experimentais na Visualização do Movimento. Um é
denominado de “movimento beta” (β): é uma ilusão da percepção. Essa ilusão é
produzida pela maneira com que as imagens são apresentadas à visão. Dispondo-se
duas ou mais imagens, colocadas uma ao lado da outra com certo distanciamento e
apresentadas alternadamente, sucessivamente, dão a ilusão que estão se movimentando.

O outro fenômeno se refere ao “movimento phi” (ϕ). Este é semelhante ao


descrito no movimento Beta, a diferença é que, neste fenômeno, a velocidade da
95

alternância das imagens apresentadas é acelerada. A aceleração nesse fenômeno


modifica a qualidade da ilusão, se no movimento beta tínhamos a ilusão de que o
objeto se deslocava no espaço, no movimento phi a aceleração produz duas variações
de ilusão, a ilusão de que as formas estão no mesmo lugar, mas que estão piscando, e
através da produção de um ponto fantasma, temos a ilusão de que este ponto fantasma
está perseguindo as formas.

Ação pura, independente, é rara, mas existe. Wertheimer descobriu em seus


experimentos com movimento estroboscópico que o que seus observadores
percebiam sob certas condições não era um objeto que se movia de uma
posição para outra, mas, ao invés, ‘movimento puro’, ocorrendo entre dois
objetos e sem relação com nenhum deles. [...] uma experiência semelhante
àquela de ouvir um som musical deslocar ao longo dos movimentos
ascendentes e descendentes de uma melodia. (ARNHEIM, 2004, p. 365).

Esses fenômenos têm sido utilizados para explicar a ilusão de movimento


produzida pelas imagens cinematográficas. Interessante notar que Beta (β) também se
refere à versão de um produto que ainda não está pronto, que se encontra na fase de
desenvolvimento. Introduzindo essa significação ao fenômeno Beta, poderíamos
pensar que ao produzir a ilusão de movimento, a alternância das imagens produz em
nossa mente uma espécie de ausência, inacabamento da forma. Pois só temos a ilusão
do movimento a partir do momento em que a alternância das imagens é dada a tal
velocidade que conseguimos perceber a ausência da imagem e supomos que existe um
descolamento.

Phi (ϕ), além de se referir ao movimento “phi”, também se refere à proporção


áurea, que na arte é utilizada desde a antiguidade para se chegar à proporção ideal de
uma forma, é representada matematicamente pelo número aproximado: 1,618. No
cinema o diretor russo Sergei Eisenstein utilizou o número phi no filme O
Encouraçado Potemkin para marcar os inícios de cenas importantes da trama,
medindo a razão pelo tamanho das fitas de película.

A frequência com que os dois fenômenos são confundidos incita a efetuarmos


uma relação possível entre ϕ e β, na qual o produto esboçado, inacabado, mas já
disponibilizado, é também aquele em que, se acelerarmos a velocidade, obteremos o
“equilíbrio perfeito” da “forma ideal”. Ou seja, a transição do esboço para a finalização
da ideia ou do objeto, no caso em evidência da pesquisa, do objeto de arte, ocorre por
meio de uma modificação em grau da matéria.
96

No caso de Duchamp, pensar essa transição é pensar que a variação foi ainda
mais aguda. Ocorreu não só na transição da dimensão virtual, da ideia, para o trabalho
em arte, mas também na própria modificação da figura representada no quadro. O
esboço de Nu descendo uma escada e o desenho Encore à cet astre sofreram um
deslocamento brutal. No esboço, a figura sobe a escada está quase a sair da cena.

Ao passar para o primeiro estudo, Nu descendo uma escada n.1, a figura vira-se
de volta, decide descer a escada “novamente” e faz dos degraus descidos graus de
ressonância que não cessam, mas que, ao invés de acelerar o movimento, aceleram o
tempo e por isso modificam-se. Veste a carapaça metálica e justifica o título com uma
ironia perspicaz.

Ao alcançar o avanço numérico, Nu descendo uma escada n. 2, começa o


desequilíbrio. Tropeça, escorrega e despenca escada abaixo. O intervalo temporal
1912-1916 - data em que é executada a cópia fotográfica intitulada de Nu descendo
uma escada n. 3 - é suficiente apenas para a modificação cromática, mas não para deter
o possível tombo do nu a descer a escada, que irá finalizar sua trajetória enquanto
materialidade quando ocorre a bifurcação serial, quando o tempo cronológico se
descola do tempo da pintura.}

* * *

Nosso entendimento do movimento percebe este como instantâneos da


continuidade do movimento e da duração. As vistas seccionadas e justapostas, obtidas
pela decomposição do movimento a partir de instantes sucessivos, tornam o
movimento uma recomposição artificial, possível de dobrar-se “[...] às exigências da
linguagem esperando que se preste às do cálculo.” (BERGSON, 2006b, p.9).

Ao invés de apreender o movimento através da intuição - fluxo contínuo do


devir do movimento nas suas variadas formas - a inteligência fragmenta o movimento
e o vê surgir a partir da imobilidade. Bergson pensa esse método e mecanismo de
conhecimento da inteligência como semelhante ao mecanismo cinematográfico. No
cinema, o movimento da imagem é reconstituído a partir de fotografias, ou seja,
instantâneos tirados previamente e que, justapostos sequencialmente e projetados
97

numa tela, obtêm a ilusão de movimento. Esse artifício do cinema é análogo ao nosso
mecanismo de conhecimento.

Mas é preciso que haja o movimento em algum lugar. Assim, as fotografias que
são imóveis ganham mobilidade a partir do aparelho cinematográfico. “A fita
cinematográfica se desenrola, fazendo com que, uma a uma, as fotografias da cena se
sucedam uma às outras, que cada ator da cena readquira as suas atividades sucessivas no
movimento invisível da fita cinematográfica.” (BERGSON, 2001, p. 271). O cinema
utiliza, mais precisamente, 24 exposições de fotos paradas por segundo de movimento,
sendo que cada fotograma é projetado duas vezes através de um mecanismo chamado
obturador.

De acordo com Bergson, a inteligência interessada na fixidez, ao observar o


movimento, acaba buscando apenas a linha percorrida, ou seja, o espaço percorrido
pelo móvel. Isso é possível porque o observador, quando utiliza esse mecanismo de
conhecimento – cinematográfico – mantêm-se fora do movimento e isso o faz crer na
possibilidade de que a linha percorrida seja o próprio movimento.

Há algo, porém, que escapa ao mecanismo cinematográfico, do que se passa


entre uma fotografia e outra, ou seja, da transição, nada apreendo. “Na transição há
mais do que a série de estados, cortes possíveis.” (BERGSON, 2001, p. 277). Por mais
que multipliquemos o intervalo, “[...] entre dois estados consecutivos: face ao
movimento intermédio, sentiríamos sempre a decepção [...]”, pois “[...] o movimento
desliza pelo intervalo, porque qualquer tentativa para reconstituir a mudança com
estados implica a proposição absurda segundo a qual o movimento é feito de
imobilidades.” (BERGSON, 2001, p. 273).

O fato de a reconstituição bergsoniana do movimento no cinema ser por meio


de cortes imóveis não o difere da percepção natural ou do que fazia o pensamento
antigo, como exemplificado por Zenão, “para o qual o cinema sempre romperia com
as condições da percepção natural.” (DELEUZE, 1985, p. 10).

Mas, assim, o cinema seria apenas uma reprodução da ilusão universal da


percepção natural. Deleuze (1985, p. 10), então, objeta para o fato de que a ilusão
produzida pelo cinema é desencadeada pelo corte que existe entre um fotograma e
outro. Desse corte se origina a imagem média na qual o movimento não é
98

acrescentado, pois o movimento pertence a ela como um dado imediato, é uma


imagem-movimento. O mesmo ocorre com nossa percepção natural. “Mas aí a ilusão
é corrigida antes da percepção pelas condições que a tornam possível no sujeito.
Enquanto no cinema ela é corrigida ao mesmo tempo em que a imagem aparece, para
um espectador fora de condições.” (DELEUZE, 1985, p. 10).

Bergson coloca que o cinema nunca conseguirá representar a duração como


uma pintura, isso se deve ao fato de que a pintura é dada de uma vez, então
apreendemos ela totalmente de uma só vez, enquanto no cinema as imagens vão se
mostrando à medida que o filme cinematográfico vai se desenrolando. Neste, então, a
apreensão do todo se faz por etapas, e a linearidade do conjunto só é possível pelo
acesso incessante da memória, que faz a ligação das imagens sucessivas.

Esta análise e crítica que Bergson faz sobre o cinema, utilizando o conceito de
“mecanismo cinematográfico”, são referentes ao cinema primitivo, e principalmente ao
que foi realizado até a primeira década do século XX. Lendo teóricos que
desdobraram os conceitos bergsonianos, podemos apreender que, para Deleuze, de
acordo com Roberto Machado, a respeito da crítica de Bergson,

[...] o cinema leva ao extremo a ilusão da falsa reconstituição do movimento,


pois o que apresenta como imagens são cortes instantâneos submetidos à
sucessão de um tempo uniforme e abstrato: o tempo da câmera.
(MACHADO, 2009, p. 248).

Quando tentamos recapturar o movimento, nós o reproduzimos e acessamos


através da ligação que o fotograma efetua com o real, a zona da representação, o que
torna o movimento reapresentado. O deslocamento entre o movimento contínuo, da
realidade movente, e a sua reprodução através do mecanismo cinematográfico, infere
sobre a maneira como o movimento é percebido. A partir do momento em que a
representação do movimento é inscrita sobre lacunas, o movimento se torna
fragmentário, e aí está a diferença entre a representação e a reapresentação do
movimento.

A diferença da reapresentação (do movimento) está inscrita na representação


do movimento pelas lacunas que o tornam descontínuo e fragmentário, ao
passo que o movimento original – o movimento presente – era
aparentemente contínuo. (CHARNEY, 2001 p. 402).

A fragmentação ocorre porque a representação é dada sempre num momento


posterior ao acontecimento, ou o movimento presente. A inteligência que permite a
99

visualização desse movimento recapturado age como um retarde sobre o movimento


contínuo, que é apreendido de maneira integral apenas pela intuição.

A representação é sempre artificial e não consegue captar o movimento real.


Isso porque está atrasada e opera com o instante que já se passou. Representar o
movimento é apreendê-lo pela cognição, o que implica tomá-lo como uma série de
posições, sucessivas e justapostas, similares às imagens de um filme cinematográfico,
no qual o filme pode se desenrolar em uma velocidade muito mais rápida que em nada
afetaria nas imagens que constituem o filme.

O que percebemos como nosso movimento, na verdade, já aconteceu: nossa


cognição do fato físico do movimento está sempre deslocada.

Mas deve-se atentar para o fato de que o cinema, além de reproduzir o


movimento de forma artificial, através dos cortes que efetua na duração e no seu
processo de capturação e fixação da imagem, na composição e decomposição, segundo
Deleuze, o movimento também disponibiliza um movimento que não é artificial.

Os meios de reprodução são artificiais, mas não os resultados. O cinema


inventa a percepção de um movimento puro. Do ponto de vista da
percepção cinematográfica, o movimento não é acrescentado à imagem, ele
se encontra em cada imagem. Uma síntese perceptiva imediata apreende a
imagem como movimento, uma imagem-movimento. (MACHADO, 2009,
p. 250-251).

Esse movimento inventado e que não é artificial, pelo fato de que nossa
percepção corrige o “erro,” ou a ilusão no momento em que esta se dá através da
síntese efetuada pelas imagens apresentadas à percepção, que são cortes móveis na
duração. Quando o espectador está diante da tela, ele experiencia um movimento
contínuo. Na pintura Nu descendo uma escada, o observador vê, ao contrário, uma
sucessão de instantes, em que o intervalo entre uma fatia e outra do movimento, dado
pelo contorno preto entre uma silhueta e outra da figura representada na pintura, age
como uma arranhura, deixando pequenos rasgos do movimento real aparecerem. Pois
ali, no intervalo, está apenas a paragem virtual. Essa sucessão de instantes também está
presente nas cronofotografias de Marey e Muybrodge em que:

Na tentativa de captar a continuidade do movimento, Marey e Muybridge


indicaram com sucesso sua impossibilidade – eles captaram a natureza do
movimento como uma série de instantes e fragmentos, como uma
descontinuidade ilusória. (CHARNEY, 2001, p. 401).
100

As lacunas que existiam no processo cronofotográfico de Marey indicavam a


visibilidade de algo que está embutido no movimento, mas que não é disponibilizado
pela visão, “revelam que o movimento é na realidade movimentos, que o movimento
de seres humanos e de outros animais ocorre somente por meio da mesma série de
fragmentos progressivos em última instância associados ao cinema.” (CHARNEY,
2001, p. 401).

Portanto, o movimento estaria na imagem média, produzida pelo intervalo


existente entre os fotogramas.
101

XIV - Fragmentos instantâneos

Os olhos vêem o café preto, há um controle dos sentidos, é uma


verdade; mas o resto, é sempre tautologia.
(DUCHAMP apud TOMKINS, 2004)

Se a concepção de movimento em Bergson está relacionada a um devir


contínuo, e que está em constante mudança e duração, a maneira que temos de acessar
esse movimento real e total seria através da “intuição”. Jean-Louis Vieillard-Baron
(2009), estudioso de Bergson, coloca que a intuição em Bergson trata de uma

[...] simpatia pela qual nos transportamos para o interior de um objeto para
coincidir com sua qualidade própria. Essa maneira de apreender o real não
nos é natural no estado atual do nosso pensamento; ela demanda uma ruptura
com os hábitos, uma conversação com o espírito e um trabalho de reflexão.
(VIEILLARD-BARON, 2009, p. 108).

Duramos, da mesma forma que o movimento da totalidade e todo o universo


dura, e estamos em constante mudança, porque também somos movimento. Para
Bergson, só existe um único movimento, mas que possui direções internas contrárias,
o que permite existir a matéria, numa distensão do movimento - e que também dura,
mesmo que de maneira tênue, quase evanescente - e o espírito, numa contração da
matéria.

A intuição, então, é o método que nos possibilita acessar o movimento real e


total, porque ela nos permite conhecer o movimento da vida interior e entrar no fluxo
interno do movimento. Esse movimento da vida interior a que Bergson se refere é o
que primeiramente nos é dado. Ele é “[...] o acesso privilegiado para o movimento da
totalidade por ser a forma mais evidente de duração por nós sentida.” (ROSSETTI,
2001, p. 116). Ou seja, ele é o ponto de partida para a intuição do todo movente.
Dessa maneira, compreenderíamos a verdade da realidade movente e total, pois,
segundo Bergson, a descrição do movimento da vida interior é semelhante à descrição
do movimento da totalidade.

Mas, geralmente, nos damos conta da mudança de um estado para outro


somente quando ela atingiu um grau de mutabilidade elevado, ou seja, “[...] quando já
houve um acúmulo suficiente de mutação no interior do próprio estado, e afirmamos
que ele foi substituído por outro.” (ROSSETTI, 2001, p. 119). Para Bergson,
102

utilizamos a inteligência como método de conhecimento, ou seja, o que ele


denominou mecanismo cinematográfico, e esse método só permite que tenhamos
acesso ao movimento na sua exterioridade, já que a inteligência está fora do
movimento. E, por isso, acabamos por compreender o movimento como uma sucessão
de instantes imóveis, fragmentos que recompõem de maneira ilusória o movimento.

Uma percepção macro e atual é composta por uma infinitude de pequenas


percepções. De acordo com Deleuze (1996), uma percepção atual se rodeia de uma
nebulosidade de imagens virtuais, que são lembranças de ordem diferente, e que se
distribuem sobre círculos moventes cada vez mais distantes, cada vez mais amplos, que
se fazem e se desfazem no plano em que habitam. “Com efeito, como mostrava
Bergson, a lembrança não é uma imagem atual que se formaria após o objeto
percebido, mas a imagem virtual que coexiste com a percepção atual do objeto.”
(DELEUZE, in ALLIEZ, 1996, p. 49).

Como só conseguimos apreender a percepção quando esta se tornou macro,


devido à “limitação” de nosso intelecto, ao deixar escapar os virtuais que compõem as
percepções micro - como se estas escorregassem nos intervalos que a inteligência não
consegue penetrar – apreendemos o movimento somente como imagens seccionadas
de uma linha percorrida.

Como já foi abordado anteriormente, Duchamp diverge claramente das


proposições futuristas acerca do interesse destes, pela aceleração do movimento em
seus trabalhos em arte. Há, porém, distinções sutis que devem ser trabalhadas com
cautela. Duchamp se interessa pela desaceleração e pela análise do movimento, os
futuristas pela velocidade e pela síntese do movimento.

Bersgon e Duchamp estavam interessados nos avanços que as pesquisas sobre o


movimento, advindas do cinematógrafo, haviam suscitado. E também nas primeiras
projeções cinematográficas, ocorridas no final de 1895.

Bergson foi uma grande influência no pensamento e na cultura do século XX,


assim como para o grupo de artistas de Puteaux, que encontrou na estética
bergsoniana elementos importantes para suas formulações poéticas. Dentre as questões
bergsonianas que instigaram os cubistas está: a percepção da vida como uma incessante
mudança, devir contínuo, e que é acessada através da intuição.
103

Patrícia Castello Branco (2010) aponta a influência de Bergson nos futuristas


“[...] no que diz respeito à ideia de fluxo, de duração e de simultaneidade” e
percebemos que o método de construção da pintura futurista provinha da justaposição
de instantes sobre uma imagem fixa. Ou seja, os instantes capturados do movimento e
sobrepostos um sobre o outro produzem uma espécie de fusão dos instantes em uma
única imagem fixa, o que dava a sensação de uma percepção simultânea do objeto
estando em dois pontos diferentes.

A técnica futurista efetua uma multiplicação dos membros. Na pintura de Balla


(figura 24), isso é perceptível na maneira como ele pintura as patas do cachorro e a
mão que segura a cólera, ocasionando uma visualização da forma representada como
se ela tivesse parada. Como se o movimento retilíneo uniformemente fosse de tal
maneira acelerado, sendo a aceleração é demasiadamente constante e veloz, que o
objeto em movimento parece estar parado ou até mesmo retrocedendo.

A síntese do movimento que os futuristas buscavam relaciona-se diretamente


com a síntese formulada na filosofia bergsoniana, pois, para Bergson, o espaço é
homogêneo, e mesmo quando se divide só há partes do próprio espaço, essas partes
serão sempre pontos do espaço. Mesmo que se considere a existência de um móvel
sobre esse espaço, obter-se-á apenas posições. “Se a consciência percepciona outra
coisa além de posições é porque se lembra das posições sucessivas e as sintetiza.”
(BERGSON, 1988, p. 79).

A síntese que ocorre na consciência é qualitativa, porque não se desdobra em


um meio homogêneo. Se assim ocorresse, ter-se-ia que unir as posições entre si,
indefinidamente. A síntese qualitativa é, portanto, “[...] uma organização gradual das
nossas sensações sucessivas umas com as outras, uma unidade análoga à de uma frase
melódica.” (BERGSON, 1988, p. 79).
104

Figura 24 - BALLA, Giacomo. Dinamismo de um cão na coleira

1911: tela, 0,91 x 1 m. Buffalo, coleção George Goodyear. . Fonte:


http://oglobo.globo.com/pais/noblat/posts/2010/03/22/pintura-dinamismo-de-um-
cao-na-coleira-1912-276550.asp
105

É importante ressaltar que há distinção entre dois elementos no movimento


quando este está em síntese, um se refere ao espaço percorrido, que é uma quantidade
homogênea, o segundo é o ato pelo qual percorremos. Este é uma intensidade ou
qualidade e só tem realidade em nossa consciência.

De acordo com Bergson, nessa síntese ocorre um fenômeno parecido com o


que ocorre na física, chamado endosmose. Seria como uma mistura entre o exterior –
espaço percorrido - e o interior – sensação puramente intensiva da mobilidade.

Assim como Bergson faz a sua crítica ao mecanismo cinematográfico, os


futuristas também se posicionam quanto ao cinema e,

[...] consideram que o cinema, constituído por imagens fixas sucessivas, não
reproduz o movimento. Apenas dá uma ilusão de movimento. [...] Desloca-
o nos fotogramas do filme, contrariamente ao fotodinamismo que analisa o
movimento nos seus detalhes. E o cinema também não sintetiza o
movimento. Não faz mais do que reconstruir fragmentos de realidade
dispersos. (BRAGAGLIA, apud CASTELO BRANCO, 2010, p. 4-5).

Duchamp se interessa pelas novas possibilidades que o desenvolvimento do


cinema permite, mas não está interessado nos efeitos de ilusão que o cinema produz.
Para ele, a sua relação de aproximação com essa nova arte é devida à sucessão de
imagens fixas, ou seja, os instantes estáticos que constituem as imagens do cinema. Na
elaboração de Nu..., o método para a composição da pintura parte dessa sucessão de
imagens fixas, como se o movimento fosse fragmentado em sucessivos instantes
estáticos e como se, ao recompor esses fragmentos, Duchamp decompusesse o
movimento.

Contudo, percebe-se uma aproximação da pintura Nu descendo uma escada


n°2 com o conceito de mecanismo cinematográfico trabalhado por Bergson, pois o
que Duchamp recorta são os instantes, ou pontos que a linha percorrida pelo móvel
deixa na trajetória percorrida no espaço, nos dando a visibilidade de uma sucessão de
imagens estáticas. Ou, ainda, poderíamos dizer que Duchamp, ao analisar o
movimento através da decomposição de imagens fixas sucessivas, nos abre o tempo
para uma visualização do trajeto que o móvel percorre com a linha imaginaria captada
pelo que Bergson denominou mecanismo cinematográfico.

Meu objetivo era a representação estática do movimento - uma composição


estática de indicações das diversas tomadas por uma forma em movimento -
sem qualquer intuito de obter efeitos cinematográficos por meio da pintura.
(DUCHAMP in CHIPP, 1993, p. 398).
106

Um movimento sanfonado, em espiral, que se desenrola enviesado, deixando


sempre alguma coisa entre as dobras, que mesmo abertas deixam vincos de um
movimento que foi transposto artificialmente para um espaço emoldurado.
107

XV - Nu x 3 – as três pinturas Nu descendo uma escada

É sempre a ideia de diversão que me levava a fazer as coisas, e


repeti-la três vezes... Pra mim a cifra três tem uma importância
[...] do ponto de vista da numeração: um é a unidade, dois é o
duplo, a dualidade e três é o resto. Desde que você chegou à
palavra três, você terá três milhões e é a mesma coisa que três.
(DUCHAMP apud CABANNE, 2008)

O primeiro Nu, a pintura Nu descendo uma escada n. 1 (figura 3, p. 22),


Duchamp realizou em 1911, como um estudo para a pintura Nu descendo uma escada
n. 2. Em Nu... n. 1, a figura representada assume uma postura ereta. A escada e a
figura aparecem nesta pintura como elementos independentes, como se a escada
pertencesse a um movimento diferente daquele da figura que a desce. A figura é
alinhada, apesar de visivelmente seccionada. Ela segue uma linha que conseguimos
acompanhar com o olho. A harmonia das cores utilizadas ainda possui uma influência
cubista, assim como a composição do quadro.

O Nu descendo uma escada n. 2 (figura 2, p. 21) é a pintura difundida como


sendo o “Nu descendo uma escada” de Duchamp, ou seja, a “obra”. Ela foi elaborada
em janeiro de 1912. Seus tons tendem para uma variação em escala do castanho,
mantendo ainda uma harmonia advinda das influências do cubismo sobre Duchamp.
Há uma variação da forma em relação à versão n. 1: a postura da figura nesta pintura
apresenta um desequilíbrio. A linha percorrida por ela é mais seccionada, não
conseguimos seguir a trajetória do movimento em espiral do nu a descer a escada de
forma tão nítida como ocorre na pintura n. 1. Duchamp insere alguns elementos
gráficos, como linhas semicirculares e semicírculos seccionados, que acentuam a
intencionalidade do movimento na forma.

O terceiro, Nu descendo uma escada n. 3 (figura 26, p. 109), Duchamp pintou


a pedido de seu amigo Arensberg – o detentor da pintura Nu descendo uma escada n.
2 – que lhe pediu uma cópia fotográfica. Duchamp a fez retocada com pastel e
nanquim, entre 1912 e 1916.
108

Neste Nu... n. 3, as cores são mais claras e frias, tendendo para o azul. Essa
tonalidade remete ao alumínio, o que enfatiza o caráter (anti)mecânico e industrial em
que Duchamp ainda estava interessado nesse período.
109

Figura 25: DUCHAMP, Marcel. Nu Figura 26: DUCHAMP, Marcel. Nu


descendo uma escada n°1 descendo uma escada n°3.

1911, Óleo sobre cartão em painel 95.9 x 1916, Óleo sobre cartão em painel 147
60.3 cm. Filadélfia, Museum of Art. x 89,2 cm. Filadélfia, Museum of Art.
Fonte: Fonte:
http://www.philamuseum.org/collections http://www.philamuseum.org/collectio
/permanent ns/permanent
110

1911, 1912, -1916, variações temporais que permitem a recontinuação do


movimento iniciado em uma escada em espiral. Variações temporais que transformam
a pintura, inferindo sobre a variação cromática e composicional do quadro.

De fato, os “Nus” de Duchamp não são um tríptico, mas o devido ao fato de


ambos possuírem o mesmo título e praticamente a mesma composição formal, além da
maneira como as três pinturas são dispostas no Museu da Filadélfia (figura 27), instiga-
nos a uma abordagem conjuntiva das três pinturas.

O intervalo espacial e temporal que existe entre as três obras efetua um


deslocamento na natureza de cada pintura. Os passos são escamoteados pelos intervalos
espacio-temporais e a cada recomeço da descida na escada, a pintura sofre
modificações.

O salto maior é dado no intervalo de tempo mais curto, entre o Nu descendo


uma escada n. 1 e o Nu descendo uma escada n. 2. Há entre ambos uma ampliação da
dimensão do quadro e a composição deste possui uma variação contundente.

Cada pintura pertence a um mundo, e requisita um ambiente específico que


condensa toda uma gama de elementos espacio-temporais que dão a ela um caráter
singular perante os demais objetos artísticos.

Os três Nus possuem especificidades que são inerentes a cada um. Possuem seus
próprios movimentos e durações, mas ambos se relacionam entre si. Há uma
confluência entre as três pinturas. Apesar de cada uma ser um mundo possível e
possuir uma ambientação própria, cada pintura ressoa na outra, como séries
ressonantes.

Portanto, o espaço pertencente a cada quadro não se limita ao enquadramento


da moldura, extrapola as delimitações formais e eles esbarram uns nos outros, como se
o espaço existente entre cada um fosse como um intervalo entre um instante e outro
do movimento fragmentado.
111

Figura 27 - DUCHAMP, Marcel. Nu descendo uma escada n. 1; n. 2; n.3

1911; 1912; 1916. Filadélfia. Museum of Art. Fonte: Palettes Marcel


Duchamp – Le Temps Spirale....
112

XVI – “A osmose estética”

A arte é uma abertura para regiões que não são


governadas pelo espaço e tempo.
(DUCHAMP apud TOMKINS, 2004)

No posicionamento de Duchamp perante a velocidade no seu processo de


criação, observa-se uma confluência entre a maioria de seus trabalhos de arte com o
Nu descendo uma escada, no que diz respeito à desaceleração profícua.

Ao colocar questões importantes da arte em xeque, como o “ato criador” do


trabalho de arte, Duchamp, reformula a concepção do conceito de “criação” na arte.

Após pintar Nu descendo uma escada, Duchamp, em 1913, realizou um ato que
de certa maneira desestabilizou a estrutura do pensamento da arte até então produzida,
no que concerne ao processo de criação em arte e ao que se refere o objeto de arte.
Seus efeitos ressoaram indefinidamente no âmbito artístico.

Duchamp “escolheu” um objeto, um objeto “qualquer”, e o deslocou de seu


contexto, ou seja, de seu ambiente de origem. Colocou-o em uma galeria de arte, e
batizou-o como um ready-made. Esse ato de escolher um objeto qualquer e instituí-lo
como artístico abre uma fenda no plano em que a arte estava amalgamada e insere
uma série de novas reflexões para o domínio da arte.

Para Duchamp, a criação artística ia além da concepção de criação como um


meio de expressão do artista. Ele acreditava que o artista seria como um médium, o
intercessor entre o objeto de arte e o público. “É um produto de dois pólos; há o polo
daquele que faz a obra e o polo daquele que a vê.” (DUCHAMP em entrevista a
Cabine, 1997, p. 122). Portanto, a arte só se instauraria como tal na medida em que
houvesse a intersecção entre os dois polos. Esse processo de transferência que ocorre
entre o artista e o público é o que Duchamp chama de “osmose estética”.

O desejo de inserir o espectador no processo criativo da obra de arte foi uma


característica inaugurada principalmente no século XX, questão essa que se tornou
essencial no pensamento de Duchamp a partir de 1912. Mallarmé, poeta simbolista, foi
113

um dos primeiros a aliciar o leitor como participante do processo criativo de uma obra
de arte.

Essa comunicação osmótica, existente entre o artista e o espectador, “[...]


envolve o inconsciente do espectador, mas a elaboração do juízo consiste numa
atividade consciente que exerce sobre esse fundo inconsciente no qual participa o
próprio inconsciente do público.” (GIL, 2005, p. 143).

De acordo com Duchamp, o ato criador possui uma zona de indiscernibilidade,


na qual o artista não consegue ter a consciência de como funciona.

No ato criativo, o artista passa da intenção à realização, por meio de uma


cadeia de reações totalmente subjetivas. Sua luta para chegar à realização é
feita de trabalhos, sofrimentos, satisfações, recusas, decisões, que não podem e
não devem ser plenamente conscientes, pelo menos no plano estético.
(DUCHAMP, in TOMKINS, 2004, p. 518).

O resultado dessa transferência subjetiva de intenções é uma diferença,


diferença entre a intenção do ato de criação e a realização do objeto de arte. Essa
diferença Duchamp chama de “coeficiente artístico”, e ela independe da qualidade da
arte, “[...] é como uma relação aritmética entre o que permanece inexpresso embora
intencionado, e o que é expresso não intencionalmente.” (DUCHAMP, in
TOMKINS, 2004, p. 518).

Nessa perspectiva, Duchamp aponta para um aspecto nebuloso no processo de


criação em arte. Essa nebulosidade opera como uma dimensão do objeto que possui
duas variantes. Uma é o que está contido no objeto, porém não foi intencionado pelo
artista. Outra é o que foi intencionado, mas não foi realizado. Entre esses dois aspectos
nebulosos, no ponto x – variável – dessa zona de indiscernibilidade, estaria o
“coeficiente artístico”. É um estado bruto da arte, “[...] ainda num estado bruto que
precisa ser ‘refinado’ pelo público como açúcar puro extraído do melado; o índice
deste coeficiente não tem influência alguma sobre tal veredicto.” (DUCHAMP, in
TOMKINS, 2004, p. 518). Ainda é necessário um burilamento, ocorrido através da
osmose estética.

Há no ato criativo de Duchamp uma incipiência do virtual contido no plano


indefinível, no qual o artista não tem consciência do que de fato é.

Duchamp costumava dizer que o artista nunca sabia realmente o que estava
fazendo, ou porque o fazia. Uma de suas teorias prediletas era que o artista
114

executava somente uma parte do processo criativo, já que cabia ao


observador completar esse processo por meio da interpretação da obra, além
de estabelecer-lhe o valor permanente. (TOMKINS, 2004, p. 22).

Há dois aspectos singulares no que diz respeito ao posicionamento de Duchamp


diante do ato criativo. Um se refere ao caráter dissociativo do objeto de arte com o
autor, no que concerne ao ato de criação como um ato de pura expressão do artista
através da arte. O outro, no qual Duchamp traz uma novidade, refere-se à parcela
essencial do espectador na significação da arte a partir da percepção dele no objeto de
arte.

A percepção da obra de arte, segundo José Gil,

[...] é um tipo de experiência que se caracteriza precisamente pela dissolução


da percepção. O espectador vê primeiro como espectador para depois entrar
num outro tipo de conexão com o que vê e que o faz participar da obra.
(GIL, 1996, p. 18).

O que possibilita a construção de um sujeito criador, “[...] da ‘osmose’ que se


estabelece entre eles (sujeito e obra), da própria lógica das formas.” (GIL, 1996, p. 18).

“Os conjuntos são fechados, e tudo o que é fechado é artificialmente fechado.”


(DELEUZE, 1985, p. 19). Com relação ao Nu descendo uma escada, podemos
perceber esse sistema fechado na fragmentação do movimento que artificialmente é
reproduzido através da pintura. Isso porque, como apontamos, ao representar o
movimento, perdemos o movimento real, que sempre escapa à cognição. Então,
quando representado, está em atraso, como um retarde.

Porém “[...] o todo não é um conjunto fechado, mas, ao contrário, aquilo pelo
que o conjunto nunca é absolutamente fechado, nunca está completamente isolado,
aquilo que o mantém aberto em algum ponto, como se fosse um fio tênue o ligasse ao
resto do universo”. (DELEUZE, 1985, p. 19).

A relação que o observador de Nu descendo uma escada mantém com a


pintura, através da “osmose estética”, confere a ela um novo sentido. A pintura, que
antes poderia ser entendida como um conjunto fechado, liga-se ao ambiente e ao
observador por meio da percepção, que age como uma linha que conecta a arte, a
realidade movente e o observador.
115

XVII - Descendo da escada e subindo na roda

Depois de 1912,

[...] não só os métodos e materiais tradicionais, mas também toda a noção


relativa à sensibilidade do artista – como princípio norteador da criação –
simplesmente desapareceram de sua abordagem para dar lugar ao desenho de
mecanismos, anotações escritas, ao espírito de ironia e a experiências com o
acaso, tudo como um substituto que antes era controlado conscientemente
pelo artista. (TOMKINS, 2004, p. 143).

Após suas experimentações e estudos sobre o movimento na pintura, Duchamp


ainda continua interessado nas possibilidades que o movimento pode oferecer, porém,
através de outras materialidades. Em muitos trabalhos que Duchamp realizou após
1912 é visível esse inesgotamento. A diferença acentuada se dá na característica do
movimento.

Em 1913, Duchamp “cria” o ready-made intitulado Roda de bicicleta (figura


28). O ato de escolher “aleatoriamente” um objeto cotidiano não excetua, portanto, o
movimento. Mesmo que a roda não esteja em movimento efetivo e esteja disposta no
espaço de maneira diferente da habitual, a imagem de uma roda de bicicleta contém a
ideia de movimento intrínseca a ela.

Duchamp modifica a característica do movimento com o qual trabalhará. Se


antes ele estava interessado na decomposição do movimento espiralado, com o Nu...,
posteriormente, com Roda de bicicleta, o movimento é curvilíneo, movimento
cíclico, trajeto em si mesmo. O círculo da roda, porém, não fecha, ou detém o
movimento de Duchamp, que o desdobra em espiral novamente. Algum tempo
depois, Duchamp retoma o interesse pela espiral, porém, ela é desenvolvida a partir de
outras possibilidades, através do movimento óptico curvilíneo.

O movimento em espiral desenvolvido no Nu descendo uma escada continua a


acontecer na obra de Duchamp e, pouco mais tarde, quando ele se interessa pelos
efeitos ópticos, ele irá aparecer novamente.

Em Anémic Cinéma (cinema anêmico), de 1926, (figura 29) um filme que


Duchamp realizou conjuntamente com Man Ray e Marc Allégret, havia um efeito
óptico obtido por meio de uma relação contraditória com a forma. “Anemic” é um
116

anagrama de “Cinema”. E os efeitos ópticos de espirais criados por Duchamp eram


resultados de “[...] uma pequena coisa que girava, que criava um efeito visual de um
saca-rolhas.” (DUCHAMP em entrevista com CABANNE, 2008, p. 126).

Duchamp estava instigado com os efeitos das espirais que ele conseguia nesse
pequeno filme e que, pelo deslocamento do ponto de vista – em perspectiva
cavaleira19, isto é, vista de baixo, ou do teto – davam um efeito de terceira dimensão.

Essas espirais, porém, não eram espirais de fato, mas círculos concêntricos que
se inscreviam um dentro do outro e que formavam uma espiral, no sentido visual, mas
não geométrico.

A contradição está em obter um efeito por meio de uma simulação de algo que
seria apenas um efeito visual, pois foi justamente a veemência no desinteresse pela
pintura puramente visual que o distanciou dos impressionistas. Mas Duchamp se
retifica justificando que eram coisas para serem feitas poucas vezes: “[...] não se pode
ficar fazendo durante quinze anos ou durante dez anos. Depois de algum tempo
acaba.” (DUCHAMP apud CABANNE, 2008, p. 128).

Em Anémic cinema, Duchamp trabalha com movimentos curvilíneos. Há, além


do movimento óptico originado pelos círculos concêntricos, o movimento em espiral
produzido pelas palavras. Ambos os movimentos são espiralados, porém, são obtidos
de maneiras diferentes, o primeiro é resultante de uma ilusão produzida pela mente do
observador, o segundo por meio da disposição das palavras.

Nota-se em Duchamp um interesse pelo transitório, pelo movimento: ele é um


artista nômade; sua produção, apesar de relativamente pequena, é de tamanha
heterogeneidade e força que ganha dimensões que se amplificam indefinidamente.
Duchamp transita em vários movimentos artísticos, colocava-se como ele próprio diz:
“[...] um protótipo de sua geração20”.

19
Perspectiva paralela oblíqua, também chamada de cavaleira, é uma perspectiva que ocorre quando o
observador está situado no infinito e a partir dele são geradas retas paralelas também dispostas ao
infinito que incidem de forma não perpendicular no Plano do Quadro.
20
Em entrevista a Cabanne (2008), Duchamp comenta que toda geração possui um protótipo, e que
ele seria um protótipo da sua geração.
117

Figura 28 - DUCHAMP, MARCEL. Roda de


Bicicleta

1913/1964. Ready-made: roda de bicicleta,


diâmetro 64,8 cm, montada sobre um banco,
60,2 cm de altura, original desaparecido.
Edição numerada. Nova York, Sidney Janis
Gallery. Fonte:
http://www.centrepompidou.fr/education/ress
ources/ENS-Duchamp_en/popup02.html

Figura 29 - DUCHAMP, Marcel. Anemic cinema

1926. Curta-metragem. França. Fonte:


http://olugardosangue.blogspot.com/2008/04/anemic-cinema-marcel-duchamp-
1926.html
118

XIII - Os graus – imagens ressonantes

O mecanismo de Duchamp só funciona somente


quando lubrificado pelo humor.
(SUQUET apud TOMKINS, 2004)

A personalidade excêntrica, assim como seu posicionamento singular diante da


arte e da vida, fez de Duchamp um ícone referencial para diversos artistas, de diversas
áreas de atuação e diferentes localizações espaço-temporais. Nu descendo uma escada,
além da grande repercussão no Armory Show, foi referência para vários artistas, na
arte moderna e contemporânea, que desenvolveram essa ressonância a partir de graus
diferentes de materialidades.

Em 1924 e 1937, Duchamp é ressoado no pintor espanhol Joan Miró (1893 –


1983). Nessa época, Miró morava em Paris, mas seu primeiro contato com Nu
descendo uma escada de Duchamp foi em abril de 1912, quando a pintura foi
mostrada em Barcelona, na primeira grande exposição cubista fora da França. Joan
Miró, então com então dezenove anos, ainda estudante de arte, ficou um tanto quanto
impressionado com a pintura de Duchamp. Doze anos mais tarde, sua inquietação
resultou em dois trabalhos: Nu descendo uma escada, de 1924, e, mais tarde, Mulher
nua subindo uma escada (figura 30), de 1937.

Mulher nua subindo uma escada diverge do posicionamento da figura


representada no Nu descendo uma escada de Duchamp e aproxima-se mais do
desenho Encore a cet astre, que Duchamp realizou anteriormente ao Nu.

Miró criou este desenho durante a Guerra Civil Espanhola, ocorrida entre 1936
e 1939. É um desenho que se aproxima do de Duchamp quanto às características
formais. O movimento em ascendência, no entanto, é mais uma crítica a esse período
do que uma exaltação. A mulher representada por Miró possui distorções e um esforço
para subir a escada que espelham esse período histórico.
119

Figura 30 - MIRÓ, Joan. Femme nue montant l’escalier

1937. Lápis e carvão sobre cartolina. 78 x 55,8


cm. Barcelona, Fundación Joan Miró. Fonte:
http://fundaciomiro-
bcn.org/coleccio_obra.php?idioma=2&obra=74
5.
120

Mas seria a partir do final dos anos 1950 que a obra de Duchamp viria a se
tornar uma referência influente, principalmente nos movimentos neo dada, neo
realismo e pop art. Em 1966, o pintor alemão Gerhard Richter (1932 - ) executou Ema
(Nua em uma escada), uma pintura a óleo (figura 31).

Antes de se dedicar à pintura, Richter teve algumas experiências com a


fotografia, que utilizará como ferramenta para compor suas pinturas.

A influência de Duchamp sobre a pintura de Richter, Ema (Nua em uma


escada), é nítida, mas há distância em alguns aspectos formais. A figura nua
representada na pintura de Ritcher aparece na posição frontal e é borrada,
diferentemente do que ocorre no nu de Duchamp. A escada não é em espiral e o
borrado na pintura não interfere que visualizemos que seja uma figura feminina.

Ritcher utiliza da pintura de Duchamp, assim como os outros dois artistas que
veremos a seguir, como uma obra de referência, citando-a, seja através de alguns
indícios formais elaborados e/ou pelo título da pintura. A citação algumas vezes utiliza
alguns elementos-chave que caracterizam a obra, mas não necessariamente discute os
mesmos temas ou conceitos. Algumas obras de citação utilizam a própria obra
referência como tema e elemento de discussão.

Ema (nua em uma escada) é uma pintura hiperrealista, baseada em uma


fotografia. A impressão de retarde também acontece nesta pintura de Richter por meio
do recurso esfumaçado no lado esquerdo do quadro. Outro aspecto que aproxima
Richter de Duchamp é o fato de que, anos mais tarde, Richter apresentou na Bienal de
Sydney (2000) um trabalho, no qual ele realizou uma reprodução fotográfica a partir
da pintura Ema..., (figura 32) assemelhando ao Nu descendo uma escada n. 3 de
Duchamp.

Nota-se, nestes trabalhos ressonantes do Nu duchampiano, que este se tornou


uma imagem significativa, recorrente, icônica, para vários artistas contemporâneos.
121

Figura 31: Figura 32:


RICHTER, Gerhard. Ema (Nua em uma RICHTER, Gerhard. Ema (Nua em uma escada).
escada). 1966. 200 x 130 cm. Óleo sobre tela. 1992. 194 x 126 cm. Fotografia. Sydney,
Cologne, Museum Ludwig. Fonte: Biennale of Sydney. Fonte: http://www.gerhard-
http://www.gerhard- richter.com/exhibitions/detail.php?exID=170&sh
richter.com/art/paintings/photo_paintings/det ow_per_page=32&page_selected=1&paintID=127
ail.php?5778 72
122

XIX - Um espirro para a sequência

Pensar o tempo atual, o tempo em que estamos inseridos, ou seja, a


contemporaneidade requer uma série de investimentos profundos. Pois, a
apreensão deste “momento” se revela mais nebulosamente do que quando
voltamos nosso olhar para trás. Mesmo que esse tempo passado não se dê por
inteiro, já que o tempo em si é uma multiplicidade, e que sendo assim, não é
dada como um percurso linear, mas como um emaranhado, e, portanto, não
podemos segui-lo como um continuum.

A ideia do tempo cronológico (cronos), contínuo, mensurado através do


relógio, como uma linha, é válida quando se quer tentar deter o tempo através de
uma mensuração. Mas essa ideia sempre estará deslocada da ideia do tempo
acontecimento (aion), amorfo, tempo puro, “[...] na sua lógica não dialética,
impessoal, impassível, incorpórea: ‘a pura reserva’, virtualidade pura que não para
de sobrevir.” (PELBART in ALLIEZ, 2000, p. 89).

Há diversas maneiras e pontos de vistas variados de abordagens sobre o


que é contemporâneo. Deteremo-nos na perspectiva de reflexão do
contemporâneo que mais se aproxima de um desdobramento dos conceitos que
discutimos no decorrer do texto. Ser contemporâneo na perspectiva de Giorgio
Agamben (1942 - ), filósofo italiano, é aquele sujeito que está fora do seu tempo.

Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente


contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem
está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual;
mas exatamente por isso, exatamente através desse deslocamento e
desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e
apreender o seu tempo. (AGAMBEN, 2009, p. 58).

Antevendo o porvir, Duchamp se desloca de seu tempo, e ao retardar o


movimento em sua pintura ele se coloca em uma outra dimensão temporal,
habita a lentidão. Interessante perceber que essa será a velocidade com que a
produção poética de Duchamp irá se caracterizar.
123

XX - Em movimento permanente

[...] há escadas para subir e escadas para descer; o que não


foi dito na ocasião é que também pode haver escadas para
ir para trás.
(CORTAZÁR, 2008)

Eis que o movimento desacelera e, entre subir e descer a escada, é


necessário uma paragem para o reposicionamento corporal. Nesse instante de
movimento ínfimo, possibilita a retomada algumas questões importantes que
foram discutidas com a pesquisa.

Inicialmente, a pesquisa se propunha a efetuar uma interlocução entre a


arte contemporânea e o conceito de movimento virtual em Bergson. Visto que o
tema estava alargado, efetuamos um afunilamento até se chegarmos ao estudo da
pintura Nu descendo uma escada e o conceito bergsoniano de mecanismo
cinematográfico.

O afunilamento foi se dando a partir dos estudos sobre o movimento em


Bergson, bem como seu de conceito de virtual. Sobre o conceito de virtual,
verificou-se que, quando se tentava estabelecer a sua relação com o objeto de
arte já realizado, ou seja, pronto, a conexão ficava desajustada, incongruente.

Pois bem, isso ocorre porque o virtual opera com o esboço, é um vir a ser,
está em latência. Então, sempre quando tentávamos relacioná-lo ao objeto de
arte, algo ficava alocrônico. Percebemos que o objeto, por estar realizado, se
relacionava com o possível. O virtual8 pode estar contido em outra dimensão da
arte: no processo de criação. Por isso, todas as leituras e estudos realizados nessa
direção forma suspensos, para que possa ser desenvolvido posteriormente, num
possível desdobramento da pesquisa.

Vimos, na pesquisa, que Bergson utiliza o conceito de movimento


cinematográfico para efetuar a sua crítica à metafísica da inteligência,

8
Sobre o conceito de virtual e possível, ver: Bergson (2006b), capítulo III; Deleuze (1999) e
(1996); Levy (1996).
124

proveniente de Platão. E, em decorrência dela, o filósofo francês desenvolve a sua


metafísica da intuição, calcada na duração como realidade movente.

Contraposta à intuição, estaria a inteligência e, consequentemente, o


conceito que Bergson formula de mecanismo cinematográfico.

Intuição e inteligência representam duas direções opostas do trabalho


consciente: a intuição marcha no sentido da própria vida, a
inteligência em sentido inverso, e acha-se, pois, naturalmente regulada
sobre o movimento da matéria. (BERGSON apud PAIVA, 2009, p.
57).

O mecanismo cinematográfico seria então equiparado à inteligência, seria


uma direção contrária do mesmo movimento, total, da intuição.

Duchamp, ao pintar Nu descendo uma escada, está interessado na análise


do movimento e se utiliza de possibilidades que o cinema disponibiliza, ou seja, a
sucessividade de imagens fixas, provenientes dos estudos de movimentos de
Marey e Muybridge para compor sua pintura.

Com isso, Duchamp se aproxima de Bergson na contramão da via. Ele se


conecta a Bergson justamente através do que o filósofo critica: a ilusão de
movimento provocada pelo cinema, que se dá como análoga ao processo que a
inteligência “utiliza” ao apreender o movimento, que Bergson chamou de
mecanismo cinematográfico.

Como a linha textual seccionada pelo espaço que existe entre as palavras,
assim é Nu descendo uma escada: uma linha percorrida fatiada em intervalos
infinitesimais, já que não conseguimos perceber o movimento em sua totalidade
senão através da intuição. Deparamo-nos com uma pintura análoga a um texto
que apreendemos primeiro a partir da inteligência e que só depois transforma-se
em acesso intuitivo através da experiência entrópica que efetuamos.

Duchamp intui, vive e cria a partir dessa intuição, mas, ao traduzir o


movimento em uma pintura, ele também o apreende através da inteligência e
esta só capta a linha percorrida, pois não absorve a realidade movente, que é
movimento total.
125

Podemos observar a descontinuidade em Nu descendo uma escada em


algumas linhas retilíneas que Duchamp pinta e que são seccionadas. Em outras
ele nos oferece uma precisão certeira, mas evoca o contorno e não deixa dúvidas
de que o que ele fatia não se funde em uma simultaneidade de acontecimentos.
Deixa claro que o que busca é a análise do movimento através de sua secção.

“Duchamp nos mostrou que todas as artes, sem excluir a dos olhos, nascem
e terminam em uma zona invisível.” (PAZ, 2002, p. 9). Seria essa zona invisível a
zona virtual do processo de criação, que é real, mas não é atual, e que por isso
não podemos vê-la, ou percebê-la? Esta zona invisível estaria contida de forma
nebulosa, como imagens virtuais que a todo o momento estão reagindo sobre o
atual, atualizando-se, produzindo uma diferença no conjunto, já que ao se
moverem mudam toda a configuração do todo, devido a seu aspecto de
multiplicidade qualitativa.

Portanto, a descida chega ao seu momento de paragem, movimento


mínimo, como um retarde ínfimo. Uma paragem virtual, de um todo que não
cessa, “non finit”, pois, o movimento total se propaga indefinidamente. E, mesmo
quando a linha textual é interrompida pela racionalização que se faz necessária,
devido às contrações que o espaço requisita no tempo, há a reverberação através
da ressonância quântica de nossa memória, que se propaga como o som, ou
como a luz pelo universo.

Todos os movimentos de contração e distensão efetuados pela descida na


escada duchampiana, através dos estudos, reflexões, conexões entre os conceitos
abordados e a arte, transformam-se por ora em uma dança microperceptiva que
continua latente, porém não visível. Degraus esboçados de um estado em
desaceleração: “era só começo o nosso fim”...
126

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