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A cultura é nossa porta de entrada no século XXI

Estamos sob os escombros de uma tragédia. Quando afastaram a presidenta Dilma usando
uma artimanha jurídica, o golpe foi dado no Brasil. Vivemos dias tenebrosos, com muito
sofrimento para o povo brasileiro. Mas isso não significa que tudo esteja perdido.

Neste dia Nacional da Cultura (5/11), nada a comemorar. É lastimável a destruição perpetrada
pela necropolítica de Bolsonaro. No entanto, devemos lembrar nossa enorme capacidade
histórica de resistência e a vitalidade latente que nos mantêm de pé e nos habilitam a
reconquistar o tempo perdido. Não é por capricho que a primeira providência de governos
autoritários e entreguistas seja atacar a cultura.

A extinção do Ministério da Cultura foi o marco do desmanche de políticas públicas que, pela
primeira vez desde a proclamação da República, trataram a cultura como direito e
reconheceram o papel Estado no desenvolvimento cultural e na democratização da cultura. A
extinção não é mera retaliação aos avanços produzidos pelas gestões lideradas pelo Partido
dos Trabalhadores (PT). É um ataque à dignidade dos brasileiros e à sua mais genuína e
poderosa qualidade de se expressar e se afirmar no mundo.

A demolição da cultura é diuturna e meticulosamente realizada por capachos incompetentes,


movidos a ódio e frustrações, deslumbrados com o poder de converter em destruição o
desprezo e o temor que sentem por tudo que é belo, criativo, alegre, crítico e libertador.

A política de sufocamento tem mais que extinção de órgãos públicos, corte de verbas e do
aparelhamento de instituições de Estado, como o IPhan (Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional), a Funarte (Fundação Nacional das Artes) e a Fundação Palmares , entre
outras. Está eivada de censura, calúnia, perseguição, irresponsabilidade e omissão criminosas.

Deixam queimar a memória, como a Cinemateca e o Museu Nacional. Colocam à venda ícones
como o edifício Gustavo Capanema, no Rio de Janeiro. Depredam e aparelham a Ancine, de
onde saíram os maiores incentivos à mais aclamada produção audiovisual brasileira em
décadas. O setor, que chegou a injetar mais de R$ 30 bilhões por ano na economia, oferecendo
renda per capta de quase R$ 34 mil reais, hoje sofre cortes irracionais de verbas e é achacado
pela censura e pelo dirigismo ideológico.

A gestão Bolsonaro insulta, persegue e marginaliza nossos povos ancestrais. Usa um capitão do
mato negro na Fundação Palmares para ficar mais doloroso, esvazia a Funai e desrespeita
imperativos constitucionais que preservam territórios e protegem as tradições culturais e
religiosas indígenas e quilombolas. Com igual truculência, discrimina e impede o acesso aos
direitos culturais dos movimentos periféricos, da população LGBTQI+, das mulheres, dos povos
da floresta e de pobres em geral.

O governo demoniza a Lei Rouanet, não por ter proposta de fomento às artes e à cultura, mas
somente para transformá-la em instrumento de proselitismo político, de pregação religiosa e
de favorecimento a aliados políticos e cúmplices ideológicos da extrema direita
fundamentalista.
Bolsonaro e os que o sustenta atacam aquilo que mais ameaça o projeto autoritário e ultra
neoliberal que representam. Sabem que é impossível dominar um povo e submeter uma nação
democrática e culturalmente forte.

A resistência não tem sido fácil, mas contamos algumas vitórias. Uma delas é a Lei Aldir Blanc
que, no auge da barbárie bolsonarista, garantiu auxílio emergencial aos artistas e fazedores de
cultura durante a pandemia de Covid 19.

Outras manifestações de dignidade, vigor coletivo e de desacordo com a necropolítica de


extrema direita associada ao neoliberalismo, vêm sendo dadas pela população brasileira com
eco e apoio mundo afora. Há um sentimento de urgência em pensar e propor caminhos para
os impasses que estamos enfrentando. Muitos desses impasses são históricos e infelicitam o
povo brasileiro desde sempre. Essa necessidade de reflexão nos fez organizar os Seminários
Cultura e Cidadania, que reunirá grandes nomes do Brasil e do exterior a partir do próximo dia
8 e, para o qual, convido todos e todas que anseiam por um espaço que promova o
enfrentamento de ideias e, ao mesmo tempo, reconheça territórios comuns para
sedimentarmos uma base coesa em torno da retornada democracia brasileira.

Precisamos restaurar e consolidar um sistema democrático apto a corrigir as mazelas nacionais


e a barrar o golpismo que nos assola toda vez que o Brasil adota um projeto consistente de
redução das desigualdades com possibilidade de superação de sua herança colonial e
escravagista.

Esse processo demanda reflexão, conhecimento e elaboração. Vai muito além das disputas
econômicas e políticas imediatas. Passa pela cultura, que deve ser pensada como argamassa
da coesão nacional, como espaço que abriga identidades culturais, regionais, étnicas, de
gênero e tantas outras; como espaço de comunicação e de ressignificação da vida coletiva.

A cultura é o nosso trunfo contra o autoritarismo e o avanço do ultra neoliberalismo com


contornos fascistas, que está em ascensão no mundo e tem forte ressonância no Brasil. Não é
apenas “Fora, Bolsonaro”. Temos que restabelecer o pacto social quebrado no golpe de 2016
para que possamos superar a distopia, reconstruir o Estado, arejar o ambiente social, retomar
o diálogo e reencontrar o Brasil que estão tentando tirar de nós.

A cultura deve nos guiar e inspirar. Ela agrega valores, possibilita uma visão generosa do
mundo e da humanidade, promove diálogo, conhecimento e lucidez. A cultura é a nossa porta
de entrada no Século 21, nossa melhor oportunidade de desenvolvimento sustentável e de
inclusão soberana do Brasil no mundo.

Viva a Cultura Brasileira!

Juca Ferreira, sociólogo, presidente do Instituto Cultura e Democracia, ministro da Cultura e


secretário de Cultura de São Paulo e Belo Horizonte

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