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O MAGO-PROFETA E A REALEZA

ESCANDINAVA: O PAPEL DE MERLIN NA BRETA SÖGUR (c. 1200).


Prof. Dr. Marcus Baccega (UFMA)1.

RESUMO: O propósito desta comunicação será discutir a recepção escandinava da figura


mitopoética de Merlin, o mago-demiurgo do Reino de Logres, responsável por parte
considerável do enredo das narrativas acerca do Rei Artur, dos Cavaleiros da Távola Redonda
e do Santo Graal. Nos ciclos continentais da Matéria da Bretanha, Merlin era personagem
preeminente até o momento em que o índice avançado de clericalização das narrativas
arturianas implicou sua elisão, no denominado Ciclo da Post-Vulgata ou Ciclo do Pseudo-
Boron (c. 1235-1250). Todavia, na Breta Sögur, recepcionada pelos islandeses da era
posterior à Viking (783-1066), Merlin ainda conserva a função de narrema-semantema
estruturante da aventura cavaleiresca em demanda pelo Santo Vaso e pela restauração de
Camelot. Do ponto de vista cronológico, tal se deve ao fato de a
tradução/compilação/recriação dos mitemas arturianos ter-se dado, na Escandinávia, antes dos
dois grandes ciclos de prosificação da Matéria da Bretanha, o Ciclo do Lancelot-Graal e o
Ciclo da Post-Vulgata. Cumpre indagar, no entanto, que papel exerceu o mago Merlin nos
mitemas escandinavos relativos ao Ciclo Arturiano, no que se refere à reestruturação das
relações de poder ao longo do processo de cristianização dos germânicos peninsulares. Nossa
hipótese, proveniente da confluência dos aportes da História da Cultura e do conceito de
representação (Roger Chartier), é de que Merlin significou o lugar mito-político em que as
antigas tradições mágicas e xamânicas puderam ser cristianizadas e convertidas em um novo
regime retórico-disciplinar e legitimação das monarquias escandinavas.
PALAVRAS-CHAVE: Breta Sögur, Matéria da Bretanha, Escandinávia, Retórica,
Mitologia.

Dentre os personagens constitutivos dos enredos da Matéria da Bretanha, intertexto


multissecular e transcultural que narra, à maneira de uma grande epopeia, em verso ou prosa,
as aventuras cavaleirescas do Rei Arthur, dos 150 Cavaleiros da Távola Redonda e sua mítica
demanda pelo Santo Graal, a presente comunicação pretende salientar a figura do misterioso
Mago Merlin. Se não resta dúvida de que o mais célebre personagem do Ciclo Arturiano é o
próprio monarca de Camelot, transformado em exemplum retórico-disciplinar para a realeza
cristã na Idade Média, talvez Merlin nos venha à mente logo depois.

Tal personagem sofreria, ao longo da evolução escrita do mito arturiano, entre os


séculos XII e XVI, uma investida clerical que procurou, quando não era possível elidir
totalmente sua função e presença nas tramas romanescas relativas a Arthur e ao Santo Graal,

1
Professor Adjunto de História Medieval e Teoria da História na Universidade Federal do Maranhão (UFMA).
Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-Doutorado na Universidade de Paris 1 –
Panthéon Sorbonne. E-mail: marcusbaccega@uol.com.br
eclipsá-lo quanto possível. Nosso propósito, neste texto, é analisar a função deste mitema
obscuro – o Mago Merlin – no nível, ritmo e intensidade de recepção da Matéria da Bretanha
no mundo escandinavo medieval, na transição entre os séculos XII e XIII. Em nossa
abordagem, privilegiamos a perspectiva de que as narrativas arturianos não configuram, no
período medieval, uma literatura, no sentido contemporâneo. Trata-se, muito mais, de uma
construção gramatical de narremas-semantemas que engendram um mito arturiano, dentro da
moldura mitológica maior, o Cristianismo (ELIADE, 2002: 11-12)

Convém, para tanto, alinhavar algumas considerações acerca da gesta plurissecular


deste mitema. Mesmo antes da compilação dos manuscritos arturianos nos vernáculos
continentais da Idade Média Central – notadamente o médio francês, o português, o médio
alto alemão e o médio inglês – a figura de Merlin encontra sua raiz mais profunda em uma
narrativa celta da região de Gales, atribuída ao clérigo semianônimo Giraldus Cambrensis.
Em seu Itinerarium Kambriae, datado de c. 1188, tal compilador se refere, em Caerlon, a
primeira corte do Rei Artur, à presença de um mago, Myrddin, uma possível prefiguração do
Mago Merlin. Giraldus institui um vínculo entre os videntes celtas de Gales e a vidente
Cassandra, de Troia, reverberando a tendência messiânica de tais populações celtas, bem
como seu desejo de estabelecer uma mitologia das origens que os vinculasse aos troianos
(BIRKHAN, 2004: 19-25). Myrddin surge, por conseguinte, como um personagem híbrido,
fruto de uma fusão política entre os imaginários céltico e greco-romano, evidenciando um
fenômeno de transculturação que tomaria corpo durante todo o período medieval.

A genealogia de Merlin, no entanto, conheceria sua principal desenvolvimento no


continente, em especial na Pequena Bretanha. Será neste primeiro momento que o
personagem assumirá, na gênese do Reino de Logres, um papel tanto etiológico (como causa
ativa da formação da monarquia arturiana) como escatológico (prevendo a ascensão de Arthur
ao trono e seu destino na batalha final de Camlann, contra o traidor Mordred).

Nestes termos, a primeira metade do século XIII testemunhou o aparecimento dos dois
grandes ciclos de prosificação da Matéria da Bretanha, que será então expresso em estilo
formal e linguagem próxima àquela das crônicas, relatos constitutivos do gênero
historiográfico. A denominada Vulgata da Matéria da Bretanha representa a primeira
prosificação pela qual passou o conteúdo anterior em versos, ao redor de 1220. Abrange a
sequência narrativa dos romans Estoire de Merlin, Estoire dou Graal, Lancelot du Lac
(roman redigido em três livros, que ocupa mais de metade desse primeiro ciclo), La Queste
del Saint Graal e La Mort le roi Artu. Detectou-se que Lancelot du Lac, La Queste del Saint
Graal e La Mort le roi Artu foram redigidos antes de Estoire dou Graal e Estoire de Merlin,
cabendo a maior antiguidade ao primeiro.

Como supõe Paul Zumthor (ZUMTHOR, 1987: 310), o Lancelot du Lac pode ter sido
compilado por um grupo de clérigos da Champanha, inspirados pela obra de Chrétien de
Troyes, também conviva da corte de Marie de Champanha. O foco narrativo anônimo justifica
sua veracidade por meio da evocação do Mago Merlin, que teria ditado seu conteúdo a seu
secretário, Blaise. Neste ponto, o Mago de Broceliande exerce a função de auctoritas retórica
para legitimar a veridicidade das narrativas acerca do condestável de Logres.

Como expõe Heitor Megale (MEGALE, 2002: 47-48), a constituição plena do Ciclo
da Vulgata exigia a redação das Suites ao roman sobre o Mago Merlin, com as necessárias
acomodações para tornar coerentes tais narrativas. Esse primeiro ciclo de prosificação
denominou-se também Ciclo do Lancelot-Graal, o que desvela a fusão das matérias narrativas
pertinentes ao Cavaleiro Lancelot do Lago, mais antiga, e ao Santo Graal, posterior. A
propósito, a narrativa relativa a Lancelot não figura no Ciclo da Post-Vulgata. O Ciclo do
Lancelot-Graal conheceu incontáveis cópias que geraram uma abundante tradição manuscrita
no Ocidente europeu medieval, o que atesta uma difusão ímpar, sem qualquer paralelo
conhecido, da Matéria da Bretanha no universo medieval. No Ciclo da Post-Vulgata, a
Estoire dou Graal passa também a ser referida como O Livro de José de Arimateia. Alguns
autores referem-se a Lancelot du Lac, Queste del Saint Graal e La mort le Roi Artu, em
conjunto, como Lancelot en prose, apesar de outros empregarem tal expressão apenas para
designar o Lancelot du Lac.

Observe-se que as expressões Ciclo da Vulgata e Ciclo da Post-Vulgata devem-se à


terminologia proposta pela estudiosa Fanny Bogdanow, em seu ensaio The Romance of the
Grail (1966). A título de esclarecimento, essa autora analisou, no concernente a A Demanda
do Santo Graal, o códice D 874, da coleção Rawlinson, da Bodleian Library, de Oxford, um
manuscrito gótico de fins do século XIV (MEGALE, 2002: 70).

O Ciclo da Vulgata findou por ser atribuído a um só compilador, apesar da


improbabilidade de se deverem todos os romans a uma pena solitária. Esse escriba seria
Walter Map (ou Gautier Map), porém já há tempos é denominado Pseudo-Map, pois já era
falecido tal compilador quando da primeira prosificação.

Os antropólogos culturais estadunidenses Scott Littleton e Linda Malcor assinalam, no


entanto, que o compilador exibia bons conhecimentos da geografia da região de Poitou, parcas
noções sobre aquela relativa ao sudeste da Bretanha e praticamente nenhuma acerca de Gales.
Para os mencionados antropólogos, existiria um consenso entre os especialistas no Ciclo da
Vulgata: o roman teria, efetivamente, sido escrito nas cercanias de Poitou, em cerca de 1200-
1210 d.C., combinando elementos de Le Chevalier de la Charrette, de Chrétien de Troyes, e
de Lanzelet, do poeta Ulrich von Zatzikhoven, escrito entre 1194 e 1205 (LITTLETON,
MALCOR, 2000: 82-84).

O(s) compilador(es) ocultou-se ou ocultaram-se sob o epíteto de Walter Map para


atrair, em procedimento muito comum para a Idade Média, seu prestígio e a consequente
aceitação de seus manuscritos. O que se pôde averiguar, posteriormente, foi a possível autoria
da Estoire dou Graal e da Estoire de Merlin, atribuídas ambas ao verdadeiro Robert de
Boron.

Desde a primeira prosificação, percebe-se uma diretriz ideológica de cristianização do


conteúdo da Matéria da Bretanha, o que conduz Paul Zumthor, em seu Essai de poétique
médiévale (ZUMTHOR, 1972: 426) a pensar em uma scriptura virtualis comparável àquela
dos livros componentes da Bíblia, asseverando que todos os romans de fins do século XII e
do XIII representam uma forma de reinterpretação da Bíblia. Em virtude dessa associação, o
que Megale conclui é que a Matéria da Bretanha adaptou-se a diversos cânones estilísticos e
influxos religiosos, de modo que os heróis são orientados para a demanda do Graal como
metáfora da graça cristã, havendo uma contraposição entre o inicial ethos cavaleiresco e o
ascetismo de heróis como Galaad e Percival. De acordo com Megale, o processo de
cristianização já se vislumbra desde a Estoire dou Graal, autorrepresentada como proveniente
das palavras do próprio Deus, por meio de um livro que Cristo teria cedido às cópias
(MEGALE, 2002: 49-50).

No mesmo esteio, a Estoire de Merlin, que narra a história do Reino de Artur até o
nascimento de Lancelot, mescla as aventuras da corte aos milagres de Cristo. A Demanda do
Santo Graal, por sua vez, associaria narrativas celtas da Bretanha à moral cristã e a uma
vivência acentuada da fé em Cristo, isto a tal ponto que Albert Pauphilet contempla em A
Demanda do Santo Graal do Ciclo da Vulgata um verdadeiro arquétipo da existência cristã, a
partir das ideias de um espírito monástico, que acalenta o ascetismo e o misticismo guerreiro
das ordens militares, sendo, para esse estudioso, um roman da Ordem de Cister (MEGALE,
2002: 49-50).
Entretanto, o Ciclo do Lancelot-Graal ostenta, antes mesmo de A Demanda do Santo
Graal, o mais profano dos romans de cavalaria, o Lancelot du Lac, cujo protagonista exalta a
cavalaria mas se conduz contra seus princípios heroicos e virtuosos, ao tornar-se amante da
Rainha de Camelot, instaurando uma dupla (in)fidelidade a Arthur e Guinevere. Esse
encaminhamento atinge seu clímax em La Mort le Roi Artu, que recupera os valores cristãos,
determinando a culpabilidade e a sanção ao adultério de Lancelot e a Rainha.

O triângulo amoroso então desenhado era compatível com a tradição de poligamia


vigente entre celtas e alanos, as culturas das quais provieram os elementos fundamentais para
a forja do mito arturiano, mas não poderia resistir, como resulta óbvio, às investidas clericais
para tornar as narrativas do Graal um corpus doutrinário cristão. Mesmo não eliminando a
presença do adultério e do próprio cavaleiro Lancelot, é emblemático que esse último
perdesse a centralidade de que fruía no primeiro ciclo de prosificação da Matéria da
Bretanha, preeminência que se passa a associar a Arthur e, principalmente, Galaad, no Ciclo
da Post-Vulgata. Não por acaso, esse segundo ciclo de prosificação das narrativas arturianas
já não abrange um roman específico para Lancelot do Lago.

Com efeito, houve uma expressiva redução no Ciclo da Post-Vulgata com a


eliminação da matéria narrativa específica relativa a Lancelot, sendo A Demanda do Santo
Graal e A Morte do Rei Arthur acopladas em um único volume, reduzindo-se a matéria da
última. O Livro de José de Arimateia encerra praticamente o mesmo conteúdo da versão
primeira da Estoire dou Graal do Ciclo do Lancelot-Graal. Essa segunda fase de
prosificação, inicialmente atribuída a Robert de Boron, fez-se conhecer como Ciclo do
Pseudo-Boron ou da Post-Vulgata.

O processo de clericalização e filtragem ideológica doutrinal que mediou a transição


entre os dois ciclos de prosificação também determinou a exclusão de um roman que se
dedicasse, especificamente, às origens e à história do Mago Merlin. Filho de uma virgem e de
um demônio íncubo, a personagem ainda contou com certa tolerância clerical, até c. 1235, em
virtude de sua redenção da condição diabólica, decorrência da santidade de sua mãe.

Como aponta Paul Zumthor, Merlin era o sábio conselheiro na Corte de Camelot, um
profeta com poderes mágicos, que anuncia a grandeza do futuro reino de Arthur. À medida
que a Reforma Pontifical atingia seu declínio terminal – talvez datável do pontificado de
Bonifácio VIII, ou da formulação de suas bulas Ausculta filie (1301 d.C.) e Unam sanctam
(1302 d.C.) – a ortodoxia doutrinal adensou-se. Neste contexto, um profeta como Merlin,
portador de uma mensagem providencial – recordando-se o Credo niceno (325 d.C.), em que
o Espírito Santo é locutus per prophaetas – não filiado aos quadros eclesiais e ainda cortesão
e conselheiro privilegiado de um rei, não poderia mais ser tolerado, menos ainda com um
papel exegético sobre a Providência, o que o clero reivindica tenazmente como seu
monopólio.

A Estoire dou Graal apresenta uma introdução coerente ao principal roman, A


Demanda do Santo Graal. O historiador inglês Richard Barber propõe outro argumento,
afirmando que o vínculo entre os romans não elidiu completamente suas contradições. A
Estoire de Merlin compunha o ciclo de prosificação do verdadeiro Robert de Boron (Ciclo da
Vulgata), ao qual subjaz uma coerência narrativa entre os textos acerca de Arthur e do Graal
(BARBER, 2004: 71-72), o que confirma que o segundo ciclo de prosificação ducentista
deve-se mesmo a um Pseudo-Boron, como evidenciou Heitor Megale. Todavia, uma Estoire
dou Graal também compõe o Ciclo da Post-Vulgata. Mais uma menção introdutória ao Graal
ocorre em Lancelot du Lac, provavelmente fruto de outra interpolação tardia. Nesse roman,
institui-se, pela primeira vez, a aventura cavaleiresca para descobrir-se quem é o virtuoso
cavaleiro digno do Graal.

No Ciclo do Lancelot-Graal, a narrativa referente a Merlin recria a história da


Britânia, desde o nascimento do mago até o de Arthur, enfatizando a vitória celta sobre o
poderio romano. É Merlin quem prediz como será a glória de Camelot e profetiza, pela
primeira vez, que a aventura da busca do Cálice Sagrado de Cristo caberá aos virtuosos
vassalos de Arthur, os Cavaleiros da Távola Redonda.

Já nas três grandes versões de A Demanda do Santo Graal de meados e da segunda


metade do século XIII, a bretã de c. 1235, a portuguesa de 1248 e a alemã de c. 1290, quem
anuncia a Arthur e seus convivas, reunidos à ceia na noite de Pentecostes, a aventura da busca
do Santo Vaso e apresenta à corte o virtuoso cavaleiro digno do Graal, Galaad, é um monge
branco de Cister. Neste ponto, o índice de clericalização do repertório arturiano já está
bastante avançado. Entretanto, apesar de eclipsada, a figura de Merlin aparece por vezes, na
trama narrativa, como instância de memória e de explicação para a aventura dos cavaleiros e
os mistérios que precisam elucidar, em busca do Santo Graal.

Ademais, Merlin não apenas se constituiu, em termos de regime mitopoético, como


fusão de narremas clássicos, como a profetiza Cassandra de Troia ou as sibilas romanas, mas
incorporou outros elementos culturais – notadamente célticos e alanos – fundidos pelo
denominador comum cultural que foi a mitologia cristã.

Certamente, o mago-profeta de Camelot é uma refiguração dos antigos sacerdotes


druidas, responsáveis não apenas pelo culto cotidiano e a mediação permanente entre o
humano e o sagrado, mas também, xamãs que eram, pelos dons de profecia. Não por acaso, os
druidas sempre protagonizaram a relevante função de orientar os bardos, responsáveis pela
transmissão oral da herança mitopoética do grupo e seu direito consuetudinário, e aconselhar
as chefaturas guerreiras. Os druidas estavam incumbidos, do mesmo modo, de reatualizar
constantemente as núpcias sagradas entre o Sol, princípio masculino, e a Floresta, princípio
feminino. Desta união nasce, por excelência, o herói, o deus ctônio-terrestre, herdeiro das
concepções celtas de filho da aveleira, do arado e do Sol (FRANCO JR, 1996: 145-151),
encarnado, por exemplo, no cavaleiro Tristão e seu amor selvagem, nas palavras de Georges
Duby (DUBY, 2001: 18).

Neste lastro, não é difícil perceber que, na gramática simbólica do mito arturiano,
Merlin desempenha o papel de engendrar, por meio não apenas da profecia, mas do sortilégio,
a concepção do herói guerreiro e monarca de Camelot, Arthur. Na Estoire de Merlin, que
também é a narrativa da gesta da Britânia e seus desdobramentos no plano mágico e “real”,
consta que Merlin realizou um encantamento para que Uther Pendragon, rei de Logres e toda
a Grande Bretanha à ocasião, pudesse adquirir a forma física do Duque da Cornualha, também
referido como Duque de Tintagel.

A finalidade do rei era conseguir os favores amorosos da esposa do duque, Igraine, por
quem se havia apaixonado. Desta relação nasceria Arthur. Em um segundo momento, Igraine
acabaria por se casar com Uther e tornar-se rainha de toda a Grã-Bretanha. Tal relato, presente
à Estoire de Merlin, encontra eco na Historia Regum Britanniae (c. 1136), do prelado inglês
Geoffrey of Monmouth, futuro cortesão do Rei Henrique II Plantageneta (1152-1189), em que
o Duque da Cornualha é nomeado como Gorlois.

Mais ainda, Merlin é herdeiro dos anciãos-sacerdotes alanos, povo nômade cujas
tradições, de acordo com os estudos de Linda Malcor e Scott Littleton, estariam na origem
talvez mais remota do mito arturiano, ainda em sua fase pagã. Os assírios denominavam tal
povo como cimérios, ao passo que os gregos do Período Arcaico (séculos XII a VI a.C.)
referiam-se a eles como citas, alterando-se o nome para sarmacianos no Período Clássico
(séculos VI a IV a.C.), sendo finalmente alcunhados alanos pelos romanos. Apesar da
economia eminentemente nômade, fundamentada no pastoreio do cavalo e apenas
posteriormente sedentarizada, suas lápides fúnebres e gravuras com motivos equestres
indicam maior proximidade em relação às culturas mediterrâneas da Antiguidade Clássica,
distanciando-os de outras formações sociais não sedentárias, como os hunos, turcos ou
mongóis, bem como dos atuais iranianos, de ascendência persa.

Seus homens e mulheres eram versados no manuseio de arcos e armaduras. Em seus


cultos às divindades e aos ancestrais, consoante narram as canções Nart, reuniam-se ao redor
de fogueiras e, com copas sagradas, que se supunha conter o sangue sagrado dos ancestrais,
sorviam o sangue de seus sacerdotes e anciãos. Em suas práticas rituais, as espadas sagradas e
copas eram reputadas artefatos de deuses, e as primeiras eram fincadas ao solo ou em árvores,
ou precipitadas em lagos (como ocorre com Excallibur) tomando sua virtude divina,
justamente, das potências naturais.

Como tal personagem, complexo e multifacetado, encontra e é encontrado no seio dos


escandinavos? Em primeiro lugar, convém ressaltar que a Breta Sögur, datando do início do
século XIII, ao adicionar os motivos arturianos ao grande corpus das sagas escandinavas, na
condição de uma das riddarasögur (sagas de cavalaria), filia-se, ao primeiro ciclo de
prosificação da Matéria da Bretanha, vale assinalar, o Ciclo da Vulgata. Por conseguinte, a
cultura escandinava recepciona os diversos mitemas arturianos a partir da tradução e
adaptação de manuscritos, em cuja gramática narrativa os personagens Merlin e Lancelot
ainda são engrenagens fundamentais para a articulação do mito.

Por outro lado, como atesta Johnni Langer, o século XIII, etapa histórica posterior à
denominada Era Viking (783-1066), é o momento em que as sagas serão compiladas,
desejadas e incentivadas pelas realezas então cristianizadas e em processo gradualmente
acelerado de centralização (LANGER, 2010: 192). As incipientes monarquias escandinavas,
na verdade, fomentam a escrituração de sua tradição mitopoética de modo integral.
Abrangem-se tradições acerca dos ancestrais e dos deuses (fornaldarsögur), da realeza e sua
genealogia (konnungasögur), do processo de cristianização da região, com os relatos acerca
dos bispos (biskupasögur), das famílias “norueguesas” que colonizaram a Islândia
(íslendigasögur) e dos eventos coetâneos a este período (sturlungasögur). O propósito, sem
dúvida, era construir uma memória histórica e uma narrativa genealógica e identitária que
pudesse legitimar as pretensões de poder de reis e potentados locais (Jarls).
Neste contexto, o Mago Merlin não apenas tornou mais palatável a Matéria da
Bretanha a este ambiente germânico de recente conversão ao Cristianismo, ao evocar práticas
mágicas germânicas tradicionais e ainda pagãs, mas, sobretudo, por associar, amalgamar, e
consagrar a instância de mediação simbólica transcultural entre os remanescentes pré-cristãos
e um ethos, não apenas cavaleiresco, mas – poderíamos dizer – feudalizante. Com efeito,
Merlin é um mago-profeta homem, como homens são os clérigos católicos, mas se associa,
inclusive amorosamente, ao universo feminino com frequência, em especial em seus abrigos
secretos na floresta de Broceliande, como atestam as fadas Morgana e Viviane. Ademais, o
mago deveu sua redenção da condição demoníaca, que teria, de outra forma, herdado do pai, à
santidade e castidade de sua mãe.

Como mago-profeta, por conseguinte, o Merlin escandinavo masculiniza a prática,


essencialmente feminina, da magia profética (spá) e da magia ativa, do encantamento que
pode alterar o destino e os elementos da natureza (seiðr). A sacerdotisa (gyðia), nas
formações sociais escandinavas de então, era a própria mulher do lar. Possuía especial
destaque a profetiza (völva), capaz de atuar as magias seiðr e galdr. De tal modo, ao
masculinizar e projetar a magia xamânica sobre uma aventura cristológica como a demanda
pelo Santo Graal, Merlin converte-se em vetor de subordinação da magia pagã aos quadros
cristãos clericais. Antes do século X, a comunicação com os mortos, conhecimento do
presente, passado e futuro, na mitologia escandinava, facultava-se apenas às mulheres,
humanas ou trolls, deusas e valquírias.

Por certo havia entes masculinos versados nas artes mágicas, como o próprio deus
Odin, conhecedor do passado, presente e futuro, bem como homens que se dedicavam ao
seiðr e à galdr. Contudo, recaia sobre os mesmos o estigma da efeminação, claramente
incompatível com a investida cristianizadora e feudalizante que se observa sobre a
Escandinávia na Idade Média Central. Neste sentido, Merlin representa um vetor de
habilitação do masculino para as práticas mágicas, o que se complementa pelo fato de que o
profeta pagão de Camelot é um cortesão, um conviva dos reis Vortigern, Uther Pendragon e,
finalmente, de Arthur. Não se trata aqui de simples detalhe, haja vista a subordinação das
atuações mágicas de Merlin ao rei, o que implica, ao nível simbólico, um imperativo de
concentração do poder político sob a égide régia.

Por fim, apenas um personagem, um narrema-mitema, híbrido desde a concepção,


como Merlin, poderia ser o fator etiológico de uma cristianização híbrida da memória mágica
escandinava. O mago representa o ponto de precipitação e convergência das práticas mágicas
e proféticas de populações tão variadas como celtas e alanos, fundidas com as tradições do
Mundo Clássico pelo grande crisol cristão. Portanto, Merlin será, para o historiador da
cultural, um importante lugar da memória para se investigar a gesta complexa da cultura
ocidental e sua projeção na Escandinávia, sendo que, a partir do século XV, o Ocidente viria a
impor-se ao restante do mundo com a construção de uma inaudita economia-mundo europeia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Corpus documental:

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Fontes secundárias:

BARBER, Richard. The Holy Grail. Imagination and belief. Cambridge: Harvard University
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LANGER, Johnni. “Seiðr e magia na Escandinávia medieval: reflexões sobre o episódio de


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