Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Merlin
Merlin
1
Professor Adjunto de História Medieval e Teoria da História na Universidade Federal do Maranhão (UFMA).
Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-Doutorado na Universidade de Paris 1 –
Panthéon Sorbonne. E-mail: marcusbaccega@uol.com.br
eclipsá-lo quanto possível. Nosso propósito, neste texto, é analisar a função deste mitema
obscuro – o Mago Merlin – no nível, ritmo e intensidade de recepção da Matéria da Bretanha
no mundo escandinavo medieval, na transição entre os séculos XII e XIII. Em nossa
abordagem, privilegiamos a perspectiva de que as narrativas arturianos não configuram, no
período medieval, uma literatura, no sentido contemporâneo. Trata-se, muito mais, de uma
construção gramatical de narremas-semantemas que engendram um mito arturiano, dentro da
moldura mitológica maior, o Cristianismo (ELIADE, 2002: 11-12)
Nestes termos, a primeira metade do século XIII testemunhou o aparecimento dos dois
grandes ciclos de prosificação da Matéria da Bretanha, que será então expresso em estilo
formal e linguagem próxima àquela das crônicas, relatos constitutivos do gênero
historiográfico. A denominada Vulgata da Matéria da Bretanha representa a primeira
prosificação pela qual passou o conteúdo anterior em versos, ao redor de 1220. Abrange a
sequência narrativa dos romans Estoire de Merlin, Estoire dou Graal, Lancelot du Lac
(roman redigido em três livros, que ocupa mais de metade desse primeiro ciclo), La Queste
del Saint Graal e La Mort le roi Artu. Detectou-se que Lancelot du Lac, La Queste del Saint
Graal e La Mort le roi Artu foram redigidos antes de Estoire dou Graal e Estoire de Merlin,
cabendo a maior antiguidade ao primeiro.
Como supõe Paul Zumthor (ZUMTHOR, 1987: 310), o Lancelot du Lac pode ter sido
compilado por um grupo de clérigos da Champanha, inspirados pela obra de Chrétien de
Troyes, também conviva da corte de Marie de Champanha. O foco narrativo anônimo justifica
sua veracidade por meio da evocação do Mago Merlin, que teria ditado seu conteúdo a seu
secretário, Blaise. Neste ponto, o Mago de Broceliande exerce a função de auctoritas retórica
para legitimar a veridicidade das narrativas acerca do condestável de Logres.
Como expõe Heitor Megale (MEGALE, 2002: 47-48), a constituição plena do Ciclo
da Vulgata exigia a redação das Suites ao roman sobre o Mago Merlin, com as necessárias
acomodações para tornar coerentes tais narrativas. Esse primeiro ciclo de prosificação
denominou-se também Ciclo do Lancelot-Graal, o que desvela a fusão das matérias narrativas
pertinentes ao Cavaleiro Lancelot do Lago, mais antiga, e ao Santo Graal, posterior. A
propósito, a narrativa relativa a Lancelot não figura no Ciclo da Post-Vulgata. O Ciclo do
Lancelot-Graal conheceu incontáveis cópias que geraram uma abundante tradição manuscrita
no Ocidente europeu medieval, o que atesta uma difusão ímpar, sem qualquer paralelo
conhecido, da Matéria da Bretanha no universo medieval. No Ciclo da Post-Vulgata, a
Estoire dou Graal passa também a ser referida como O Livro de José de Arimateia. Alguns
autores referem-se a Lancelot du Lac, Queste del Saint Graal e La mort le Roi Artu, em
conjunto, como Lancelot en prose, apesar de outros empregarem tal expressão apenas para
designar o Lancelot du Lac.
No mesmo esteio, a Estoire de Merlin, que narra a história do Reino de Artur até o
nascimento de Lancelot, mescla as aventuras da corte aos milagres de Cristo. A Demanda do
Santo Graal, por sua vez, associaria narrativas celtas da Bretanha à moral cristã e a uma
vivência acentuada da fé em Cristo, isto a tal ponto que Albert Pauphilet contempla em A
Demanda do Santo Graal do Ciclo da Vulgata um verdadeiro arquétipo da existência cristã, a
partir das ideias de um espírito monástico, que acalenta o ascetismo e o misticismo guerreiro
das ordens militares, sendo, para esse estudioso, um roman da Ordem de Cister (MEGALE,
2002: 49-50).
Entretanto, o Ciclo do Lancelot-Graal ostenta, antes mesmo de A Demanda do Santo
Graal, o mais profano dos romans de cavalaria, o Lancelot du Lac, cujo protagonista exalta a
cavalaria mas se conduz contra seus princípios heroicos e virtuosos, ao tornar-se amante da
Rainha de Camelot, instaurando uma dupla (in)fidelidade a Arthur e Guinevere. Esse
encaminhamento atinge seu clímax em La Mort le Roi Artu, que recupera os valores cristãos,
determinando a culpabilidade e a sanção ao adultério de Lancelot e a Rainha.
Como aponta Paul Zumthor, Merlin era o sábio conselheiro na Corte de Camelot, um
profeta com poderes mágicos, que anuncia a grandeza do futuro reino de Arthur. À medida
que a Reforma Pontifical atingia seu declínio terminal – talvez datável do pontificado de
Bonifácio VIII, ou da formulação de suas bulas Ausculta filie (1301 d.C.) e Unam sanctam
(1302 d.C.) – a ortodoxia doutrinal adensou-se. Neste contexto, um profeta como Merlin,
portador de uma mensagem providencial – recordando-se o Credo niceno (325 d.C.), em que
o Espírito Santo é locutus per prophaetas – não filiado aos quadros eclesiais e ainda cortesão
e conselheiro privilegiado de um rei, não poderia mais ser tolerado, menos ainda com um
papel exegético sobre a Providência, o que o clero reivindica tenazmente como seu
monopólio.
Neste lastro, não é difícil perceber que, na gramática simbólica do mito arturiano,
Merlin desempenha o papel de engendrar, por meio não apenas da profecia, mas do sortilégio,
a concepção do herói guerreiro e monarca de Camelot, Arthur. Na Estoire de Merlin, que
também é a narrativa da gesta da Britânia e seus desdobramentos no plano mágico e “real”,
consta que Merlin realizou um encantamento para que Uther Pendragon, rei de Logres e toda
a Grande Bretanha à ocasião, pudesse adquirir a forma física do Duque da Cornualha, também
referido como Duque de Tintagel.
A finalidade do rei era conseguir os favores amorosos da esposa do duque, Igraine, por
quem se havia apaixonado. Desta relação nasceria Arthur. Em um segundo momento, Igraine
acabaria por se casar com Uther e tornar-se rainha de toda a Grã-Bretanha. Tal relato, presente
à Estoire de Merlin, encontra eco na Historia Regum Britanniae (c. 1136), do prelado inglês
Geoffrey of Monmouth, futuro cortesão do Rei Henrique II Plantageneta (1152-1189), em que
o Duque da Cornualha é nomeado como Gorlois.
Mais ainda, Merlin é herdeiro dos anciãos-sacerdotes alanos, povo nômade cujas
tradições, de acordo com os estudos de Linda Malcor e Scott Littleton, estariam na origem
talvez mais remota do mito arturiano, ainda em sua fase pagã. Os assírios denominavam tal
povo como cimérios, ao passo que os gregos do Período Arcaico (séculos XII a VI a.C.)
referiam-se a eles como citas, alterando-se o nome para sarmacianos no Período Clássico
(séculos VI a IV a.C.), sendo finalmente alcunhados alanos pelos romanos. Apesar da
economia eminentemente nômade, fundamentada no pastoreio do cavalo e apenas
posteriormente sedentarizada, suas lápides fúnebres e gravuras com motivos equestres
indicam maior proximidade em relação às culturas mediterrâneas da Antiguidade Clássica,
distanciando-os de outras formações sociais não sedentárias, como os hunos, turcos ou
mongóis, bem como dos atuais iranianos, de ascendência persa.
Por outro lado, como atesta Johnni Langer, o século XIII, etapa histórica posterior à
denominada Era Viking (783-1066), é o momento em que as sagas serão compiladas,
desejadas e incentivadas pelas realezas então cristianizadas e em processo gradualmente
acelerado de centralização (LANGER, 2010: 192). As incipientes monarquias escandinavas,
na verdade, fomentam a escrituração de sua tradição mitopoética de modo integral.
Abrangem-se tradições acerca dos ancestrais e dos deuses (fornaldarsögur), da realeza e sua
genealogia (konnungasögur), do processo de cristianização da região, com os relatos acerca
dos bispos (biskupasögur), das famílias “norueguesas” que colonizaram a Islândia
(íslendigasögur) e dos eventos coetâneos a este período (sturlungasögur). O propósito, sem
dúvida, era construir uma memória histórica e uma narrativa genealógica e identitária que
pudesse legitimar as pretensões de poder de reis e potentados locais (Jarls).
Neste contexto, o Mago Merlin não apenas tornou mais palatável a Matéria da
Bretanha a este ambiente germânico de recente conversão ao Cristianismo, ao evocar práticas
mágicas germânicas tradicionais e ainda pagãs, mas, sobretudo, por associar, amalgamar, e
consagrar a instância de mediação simbólica transcultural entre os remanescentes pré-cristãos
e um ethos, não apenas cavaleiresco, mas – poderíamos dizer – feudalizante. Com efeito,
Merlin é um mago-profeta homem, como homens são os clérigos católicos, mas se associa,
inclusive amorosamente, ao universo feminino com frequência, em especial em seus abrigos
secretos na floresta de Broceliande, como atestam as fadas Morgana e Viviane. Ademais, o
mago deveu sua redenção da condição demoníaca, que teria, de outra forma, herdado do pai, à
santidade e castidade de sua mãe.
Por certo havia entes masculinos versados nas artes mágicas, como o próprio deus
Odin, conhecedor do passado, presente e futuro, bem como homens que se dedicavam ao
seiðr e à galdr. Contudo, recaia sobre os mesmos o estigma da efeminação, claramente
incompatível com a investida cristianizadora e feudalizante que se observa sobre a
Escandinávia na Idade Média Central. Neste sentido, Merlin representa um vetor de
habilitação do masculino para as práticas mágicas, o que se complementa pelo fato de que o
profeta pagão de Camelot é um cortesão, um conviva dos reis Vortigern, Uther Pendragon e,
finalmente, de Arthur. Não se trata aqui de simples detalhe, haja vista a subordinação das
atuações mágicas de Merlin ao rei, o que implica, ao nível simbólico, um imperativo de
concentração do poder político sob a égide régia.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Corpus documental:
Fontes secundárias:
BARBER, Richard. The Holy Grail. Imagination and belief. Cambridge: Harvard University
Press, 2004.
BIRKHAN, Helmut. Keltische Erzählungen vom Kaiser Arthur. Wien: Lit Verlag, 2004.
LE GOFF, Jacques. Heróis e Maravilhas da Idade Média. Rio de Janeiro: Vozes, 2009.
MEGALE, Heitor. “Search of the narrative structure of A Demanda do Santo Graal”. In:
VVAA. Arthurian Interpretations. Fall, Vol. 1, N° 1.
PATZUK-RUSSEL, Ryder. Places, Kings and Poetry. The shaping of Breta Sögur for the
Norse corpus. Háskóli Islands, 2012.