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Doutor em Educação. Professor no curso de Filosofia da UVA. Professor Colaborador no
Programa de Mestrado Profissional em Saúde da Família da Universidade Estadual Vale do
Acaraú (UVA/Fiocruz-Renasf ). E-mail: marcosmcj@yahoo.com.br.
Conjectura: Filos. Educ., Caxias do Sul, v. 21, n. 2, p. 385-405, maio/ago. 2016 385
Formação, educação e cultura: reflexões sobre o ideal de formação cultural [bildung]
a elaboração do sistema educacional alemão
Introdução
Faz parte de uma análise filosófica a apreensão conceitual dos
elementos envolvidos naquilo que se pretende estudar, pois somente ao
apreender o processo de como algo veio a ser é que posso tentar vislumbrar,
através de um discurso racionalmente compreensível e justificável, o
que vem a ser a coisa mesma. O texto ora apresentado visa à apreensão
da formação cultural [Bildung] em sua formatação histórico-conceitual,
o que torna necessário compreender como a mesma foi formulada no
universo educacional alemão, que a teve como um conceito tão caro
como a Paideia para o grego, ou a Humanitas para o latino. (JAEGER,
2010, p. 13-14).
Interessante é notar que tal conceito expressa, essencialmente, uma
teoria da educação [Theorie der Erziehung] que não pode ser dissociada de
um desenvolvimento histórico da formação do próprio povo alemão.
Marcado por um ideal de reforma, próprio do fim do século XVIII, esse
conceito ocupa-se do movimentar de uma realidade em contínua evolução
e que objetivava modificar e fazer progredir as condições fatuais nas
quais o processo educativo atuava, o que implicava encontrar a solução
do que posso chamar de problema pedagógico, ou seja, o problema de
saber qual é a melhor maneira de formar o homem.
A complexidade de tal meta impõe considerar os aspectos filológicos,
históricos e filosóficos presentes na formulação desse conceito, pois seria
impossível pôr o tema aqui enfrentado nos justos, termos ignorando sua
contextualização inicial e seu desenvolvimento, pois é
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Starobinski irá buscar uma definição e um campo de atuação ao termo civilização: “A palavra
civilização pôde ser adotada tanto mais rapidamente quanto constituía um vocábulo sintético
para um conceito preexistente, formulado anteriormente de maneira múltipla e variada:
abrandamento de costumes, educação dos espíritos, desenvolvimento da polidez, cultura das
artes e das ciências, crescimento do comércio e da indústria, aquisição das comodidades materiais
e do luxo. Para os indivíduos, os povos, a humanidade inteira, ela designa em primeiro lugar
o processo que faz deles civilizados (termo preexistente), e depois o resultado cumulativo do
processo, é um conceito unificador.” (STAROBINSKI, 2001, p. 14). Porém notará o risco de
a mesma configurar apenas uma expressão exterior da polidez e se tornar uma mera convenção
social. (2001, p. 24).
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Segundo Arce (2002, p. 32), nesta época, “A Alemanha era um país dividido em reinos,
províncias e pequenos estados: a Confederação Germânica era dividida em 38 estados, cinco
reinos, 29 grão-ducados e quatro cidades livres, praticamente independentes, fato este que
dificultava muito seu desenvolvimento.”
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Segundo Ozment, isso se deu porque “decepcionados pela rápida degeneração da Revolução
Francesa, cujas promessas não haviam visto cumpridas, os legisladores alemães responsáveis
pela redação da versão definitiva do Código Geral Prussiano, o Allgemeine Landrecht, publicado
em 1794, o converteram em um corpo de leis mais conservador do que anteriormente havia-
se podido ver-se induzido a esperar os observadores”. (2005, p. 144-145).
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Sobre a influência das ideias de von Stein no pensamento alemão, ver Aris (2006, p. 361-390),
Ford (1922, p. 199-220).
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O trabalho filosófico mais representativo da ideologia que orientou a atuação pública de
Humboldt – e que pode ser lido como a propedêutica política de sua filosofia da educação, já
que é ali que o conceito de Bildung aparece desenvolvido de forma mais extensa pela primeira
vez – foi publicado, como boa parte de sua produção intelectual, apenas postumamente. Suas
ideias, para uma tentativa de determinar os limites da ação do Estado, foram escritas em 1792.
(H UMBOLDT, 1867, p. 78-84).
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A proposta educacional de Pestalozzi pode ser resumidamente apreendida através do testemunho
de MaClure: “Tendo passado sete verões na Suíça e, a cada vez, tendo estadias de vários meses
na escola de Pestalozzi, em Yverdon, eu nunca vi, seja dentro, seja fora da escola, os alunos sem
um de seus mestres dirigindo seus jogos, os quais sempre tinham uma finalidade educativa.
Os alunos estavam continuamente ocupados com alguma coisa útil para eles mesmos ou para
os outros, das cinco horas da manhã às oito horas da noite, com exceção das duas horas
destinadas às refeições, quando mestres e alunos comiam juntos. Sua atenção nunca era solicitada
por mais de uma hora para o mesmo exercício, moral ou físico; tudo era fundado sobre o livre
arbítrio; exclusão completa de qualquer tipo de correção. As atividades eram alegres, enérgicas
e tendiam rapidamente para o objetivo visado. Eu não me lembro de jamais ter escutado um
grito ou manifestação de sofrimento ou de desprazer, nem mesmo uma palavra de cólera por
parte dos mestres ou dos alunos durante todo o tempo em que eu vivi entre eles [...]. Uma das
mais benéficas conseqüências do sistema é o prazer que todos os alunos de Pestalozzi adquirem
pelo trabalho mental e pelo estudo [...]. Toda minha experiência me leva a acreditar firmemente
que a educação pode ser realizada com grande satisfação e prazer; assim, graças ao hábito de
tornar toda atividade útil ou necessária em passatempo ou jogo, meninas e meninos transformam
a própria vida em um jogo.” (Apud MACLURE, 1946, p. 91-92).
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“Torna-te quem és”, ou seja, “sejas sempre como tens aprendido a ser”, como reza a tradução espanhola
de Nuño, por nós utilizada (apud PÍNDARO, 1991, p. XVI [vv. 67-75]), é a frase inspirada na
II Ode Pítica de Píndaro que traz em si a sentença magna do seu projeto de formação: a função
educativa da atitude aristocrática baseada nos exemplos. “Para as crianças, o exemplo é belo” (1991,
p. XVI), por isso Jaeger vincula esse modelo ao próprio projeto da Paideia, pois revela aos homens
“a imagem mais alta do seu próprio ser”. (JAEGER, 2010, p. 263).
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Considerações finais
Findando esse processo, a expressão formação cultural se revestiu de
um significado duplo, a saber: o ideal pedagógico formativo assentado
em solo institucional, cultural, e o ideal de um autocultivo, não
necessariamente atrelado a uma instituição formativa. Portanto, se deve
compreender esse conceito como um processo do devir humano ou,
para usar a expressão de Elias (1994, p. 13), um verdadeiro “processo
civilizador”, mediante o qual o indivíduo natural devém um ser cultural.
Quanto a esse caráter específico da formação cultural como processo,
Severino (2006, p. 621) recorda que o sentido dessa categoria envolve
um complexo conjunto de dimensões do verbo formar: constituir,
compor, ordenar, fundar, criar, instruir-se, colocar-se ao lado de,
desenvolver-se, dar-se um ser. Segundo ele, deve-se observar o sentido
reflexivo imposto por esse verbo, indicador de uma ação cujo agente só
pode ser o próprio sujeito.
Percebe-se, assim, a força dialética da formação cultural: ela não é
apenas o resultado final de um processo pedagógico (apreensão do
conhecimento acumulado culturalmente), mas o próprio processo de
formação do homem integral. Assim, esse conceito filosófico-pedagógico
vincula-se à máxima de Píndaro,9 que Nietzsche assume como ideal em
suas obras: “Tornar-se o que se é.” Ou seja, ao movimento de constituição
da própria identidade. (WEBER, 2006, p. 126; NASSER, 2011, p. 190-
195). Nesse sentido, a formação cultural também é “um ideal pedagógico,
voltado à resolução do antagonismo entre a vida e o espírito, o genérico
e o individual, a natureza e a cultura”. (STIRNIMANN, 1997, p. 14). É
nesse domínio de seu significado que encontramos seu relacionar
intrínseco com o problema pedagógico, pois nele os polos antagônicos
da atividade humana seriam superados.
A pretensão de universalidade, própria do oitocentismo alemão
[Aufklaurung, Sturm um Drang, Classicismo, Romantismo, Idealismo], faz
com que a formação cultural seja a busca, própria do ser humano, da
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