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IMAGINANDO NOVOS PAPEIS PARA MULHERES NEGRAS: A FICÇÃO

ESPECULATIVA DE OCTAVIA BUTLER E TANANARIVE DUE

Fernanda Sousa Carvalho1

Resumo: Até recentemente, os papeis reservados às mulheres afrodescendentes na literatura eram limitados,
reproduzindo os estereótipos associados a elas em sociedades racistas e sexistas. Entretanto, a representação literária
dessas mulheres tem mudado cada vez mais, especialmente em obras de escritoras negras que usam a ficção
especulativa para imaginar papeis diferentes daqueles que lhes são socialmente impostos. Este trabalho busca ilustrar as
possibilidades que a ficção especulativa oferece para a discussão das questões de raça, gênero e sexualidade através da
análise de dois romances de escritoras afro-americanas: Fledgling (2006), de Octavia Butler, e The Living Blood (2001),
de Tananarive Due. Essas obras desafiam noções socialmente construídas que caracterizam mulheres negras como
hiper-sexualizadas, meros objetos de desejo e força de trabalho, para imaginar um mundo em que a chamada raça negra,
a sexualidade feminina e a maternidade têm um papel fundamental para o futuro da humanidade. Suas protagonistas são
mulheres negras que causam estranhamento por contradizerem os estereótipos e possuírem poderes sobrenaturais que
são garantidos por suas identidades de raça representadas por seu sangue. Dessa forma, os romances analisados neste
trabalho desafiam os discursos racistas e sexistas que têm contribuído para a opressão e marginalização de mulheres
negras ao longo da história ao imaginar condições que levam a seu empoderamento e agência social.

Palavras-chave: Mulheres negras. Ficção especulativa. Gênero.

A autora norte-americana Octavia Butler uma vez relatou:


Quando comecei a ler ficção científica, fiquei desapontada pela pouca ... criatividade e
liberdade usadas para representar as muitas variações raciais, étnicas e de classe. Além
disso, não pude deixar de notar o quão poucas eram as personagens femininas significantes
na ficção científica. Felizmente, tudo isso tem mudado nos últimos anos. Pretendo que
minha escrita contribua para essa mudança.2 (apud. MELZER, 2006, p. 36, tradução
minha.)

De fato, a obra de Butler contribui para uma maior representatividade de mulheres na ficção
científica, além de oferecer novas possibilidades de caracterizar e discutir as relações entre raça,
gênero, sexo e classe na construção da identidade. O uso de gêneros que especulam sobre modos
alternativos de vida, agrupados sob o gênero guarda-chuva denominado ficção especulativa, tem se
mostrado uma ferramenta produtiva para esse tipo de representação, que não só reflete a realidade
de um modo distorcido, mas também, e justamente por essa distorção, a critica e apresenta
alternativas para ela.
Este trabalho analisa dois romances de escritoras afro-americanas, Octavia Butler e
Tananarive Due, de modo a ilustrar como os elementos da ficção especulativa têm permitido

1
Pesquisadora independente. Professora de língua inglesa no Brasas English Course, Belo Horizonte, Minas Gerais,
Brasil.
2
When I began to read science fiction, I was disappointed at how little … creativity and freedom was used to portray
the many racial, ethnic, and class variations. Also, I could not help noticing how few significant woman characters there
were in science fiction. Fortunately, all this has been changing over the past few years. I intend my writing to contribute
to the change.

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discutir as questões de gênero, sexualidade e raça. Argumenta-se que as obras aqui analisadas
criticam a opressão historicamente experienciada por mulheres negras, particularmente na
sociedade norte-americana, ao representá-las de forma alternativa aos estereótipos comumente
relacionados a elas. Dessa forma, as personagens femininas nessas obras assumem papeis sociais
também alternativos àqueles considerados cabíveis na experiência cotidiana de mulheres negras.
Octavia Butler é considerada a primeira mulher negra a escrever ficção científica
(LAWRENCE, 2010, p. 8) e acumulou inúmeros prêmios antes de sua morte repentina aos
cinquenta e oito anos em 2006. Tananarive Due já a chamou de matriarca da família da ficção
especulativa negra (2008, p. 179). A importância de Butler como escritora é tão notável que se
argumenta que ela tenha transformado as configurações da ficção científica com suas inovações
(PAPKE, 2013, p. 79). Tais inovações estão relacionadas ao engajamento da autora com discursos
anticoloniais, feministas, diaspóricos e de mulheres negras, questões que não eram abordadas por
escritores de ficção científica até então. Suas estórias apresentam temas relacionados ao esforço da
humanidade em lidar com as questões de identidade e hegemonia (HAMPTON, 2010, p. 247),
questionando noções fixas de gênero, sexualidade e raça e, consequentemente, contestando o
racismo e o sexismo.
O romance analisado aqui, Fledgling, é o último escrito por Butler. A narrativa liga o mito
do vampiro à existência de uma espécie diferente, os Ina, cujos membros alimentam de sangue
humano, são fisicamente mais fortes e podem viver por mais tempo que os seres humanos. A
protagonista, Shori, é uma híbrida de Ina e humano que havia perdido sua memória num ataque e
redescobre sua identidade e os eventos que causaram sua amnésia ao longo da estória. Ela é fruto de
um experimento genético desenvolvido por mulheres Ina que combinaram seus próprios genes com
aqueles de uma humana negra. Uma mulher de cinquenta e três anos que aparenta ser uma menina
negra de dez, Shori representa a esperança de sobrevivência para os Ina porque sua pele negra
oferece mais proteção contra a luz do sol. Apesar de ser mais forte e de envelhecer mais lentamente
que os humanos, os Ina são limitados pela fotossensibilidade de sua pele excessivamente pálida, sua
incapacidade de permanecer alerta durante o dia e sua dependência do sangue humano para
sobreviver. Os humanos, por usa vez, se beneficiam de suas relações com os Ina que se alimentam
deles, uma vez que a saliva desses últimos tem poderes cicatrizantes e garante longevidade. A
existência de uma Ina negra geneticamente criada, então, também expande as possibilidades de uma
vida simbiótica entre as duas espécies. Contudo, com o desenrolar da narrativa, Shori descobre que
existe um grupo de Inas que querem destruí-la e assim eliminar a possibilidade de hibridismo. O

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romance usa o já conhecido potencial subversivo da figura do vampiro no que diz respeito a normas
sexuais, e o combina com a questão da miscigenação para desafiar noções fixas sobre raça e
sexualidade que têm sido usadas para rotular e controlar indivíduos.
Tananarive Due mistura ficção científica com horror em suas narrativas e se diz inspirada
pelo trabalho de Octavia Butler, opnião da qual alguns críticos compartilham a ponto de se
referirem a ela como “nova Butler” (LAWRENCE, 2010, p. 8). Embora sua obra ainda não receba
tanta atenção acadêmica quanto a de Butler, Due tem sido cada vez mais reconhecida como um
nome proeminente na literatura afro-americana e na ficção especulativa. Segundo Tonja Lawrence,
Due apresenta em suas obras uma perspectiva baseada na África (2010, p. 46). Numa entrevista a
Yolanda Hood, a própria Due afirma que uma vez que ela se identifica como uma mulher, seus
livros são dirigidos a mulheres e ela tenta semear as sementes do empoderamento para suas leitoras,
“um empoderamento com relação à perda, à dúvida, à doença, à morte”3 (apud. HOOD, 2005, p.
162). De fato, suas personagens femininas negras se tornam mais e mais poderosas ao longo de suas
estórias em termos de autoconfiança e importância em suas comunidades.
The Living Blood é o segundo romance da série African Immortals. Nas palavras da autora,
essa obra retrata “uma colônia de homens imortais mantendo em segredo uma reserva de sangue
milagroso enquanto uma mulher e sua filha poderosa lideram o movimento para distribui-lo para a
humanidade”4 (apud. HOOD, 2005, p. 162). A mulher é a jovem afro-americana Jessica, cujo
destino muda depois que seu marido lhe confere imortalidade através de seu sangue. O marido,
David, é na verdade Dawit, membro de um antigo clã exclusivamente de homens, os Life Brothers,
detentores de imortalidade e poderes sobrenaturais. Os Life Brothers vivem ao longo dos séculos
viajando pelo mundo, mas sua identidade deve ser mantida em segredo, até mesmo das famílias
humanas que eles constroem ocasionalmente. No primeiro romance, My Soul to Keep (1998), Dawit
mata Jessica e a filha mais velha do casal e tenta ressuscitá-las com seu sangue imortal. Apenas
Jessica sobrevive e Dawit tem que fugir, uma vez que por esse ato ele subvertera a regra do clã de
não compartilhar seu poder sagrado com mulheres. The Living Blood começa com Jessica dando à
luz sua segunda filha, Fana, da qual ela não sabia que já estava grávida antes do desaparecimento de
Dawit. A menina logo mostra possuir poderes sobrenaturais ainda mais fortes do que aqueles dos
outros imortais. Ao longo do romance, o leitor descobre que Jessica, com a ajuda de sua irmã
médica, monta uma clínica clandestina na África do Sul, depois em Botswana, onde ela usa seu

3
“an empowerment from loss, from doubt, from illness, from death”.
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“a colony of male immortals hoarding the miraculous blood while a female and her powerful daughter lead the
movement to distribute it to humankind”

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sangue para curar crianças gravemente doentes. Porém, à medida que sua filha se revela mais e mais
poderosa, ela tem que ir à Etiópia para tentar encontrar seu marido e a colônia de homens imortais e
convencê-los a ajudá-la a entender e ensinar Fana a controlar seus poderes. Enquanto isso, um
médico afro-americano desesperado para salvar a vida de seu filho mestiço que sofre de leucemia,
tenta rastrear Jessica e sua irmã, o mesmo que fazem alguns homens mal-intencionados que
planejam lucrar com o sangue imortal. Como o próprio título do romance sugere, o sangue está no
centro das relações representadas na estória é a chave para o futuro de cooperação racial e de gênero
imaginado por Due. O potencial desse sangue sobrenatural de trazer vida é explicado no romance,
assim como sua origem. Trata-se do sangue de Cristo, que corre nas veias dos membros do clã
africano, num simbolismo que remete à fé cristã dos afro-americanos. Embora alguns críticos leiam
os imortais nesse romance como figuras vampíricas (BROOKS, 2011, p. 3; LAWRENCE, 2010, p.
89), argumenta-se aqui que eles são diferentes de vampiros por compartilharem seu sangue imortal
ao invés de beberem o sangue dos mortais. Esse fato oferece pontos interessantes para a discussão
sobre raça e sexualidade, especialmente se for considerado que Jessica, uma mulher negra, é aquela
que decide usar o sangue da vida (“the living blood”) para curar mortais e que Fana, uma jovem
menina negra, é o ser imortal mais poderoso que irá liderar o futuro de sua comunidade.
Embora de formas distintas, os romances de Butler e Due analisados aqui conectam raça e
sexualidade através do significado do sangue nas vidas das personagens, apontando para problemas
contemporâneos relacionados a essas questões e sugerindo pontos de vista alternativos sobre elas.
Mais especificamente, as narrativas se referem a formas de racismo e sexismo que mulheres negras
geralmente sofrem, rebatendo-as ao dar às mulheres protagonistas o poder de superar tal opressão e
assumir papeis de provedoras em suas comunidades. Argumenta-se aqui que Butler e Due usam o
simbolismo do sangue para caracterizar as protagonistas como mulheres afrodescendentes e
também para criar a forma pela qual essas mulheres virão ter mais agência.
A luta de mulheres negras contra a opressão sexual, o machismo e a exploração caminha
lado a lado com sua luta contra o racismo. Patricia Hill Collins afirma que para entender as
sexualidades de mulheres negras é necessário analisar o heterossexismo como um sistema de
opressão e conceituar sua conexão com a raça, a classe e o gênero como sistemas que também
oprimem (2000, p.128-29). A autora explica que esse arcabouço enfatiza, entre outras, a dimensão a
simbólica do heterossexismo, a qual diz respeito aos significados sexuais usados para avaliar as
sexualidades de mulheres negras. A opressão sofrida por essas mulheres, portanto, pode ser

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entendida através de uma análise de estereótipos geralmente usados para caracterizar tais mulheres
e por práticas sociais que reforçam tais estereótipos.
Ainda segundo Collins (2004), a estereotipação do corpo da mulher negra o apresenta como
hipersexualizado. Ela explica que essa noção de heterossexualidade como a categoria normal,
natural e normativa de sexualidade tem sido enfatizada de tal modo que outras possibilidades são
consideradas desvios (p. 29). Essa ideologia heterossexista tem implicações raciais. Apoiadas por
noções essencialistas sobre diferenças raciais, a sexualidade de pessoas negras foi construída para
parecer anormal e excessiva em relação à heterossexualidade de pessoas brancas, que é
frequentemente considerada como o padrão normativo de comportamento e desejo sexuais (p. 129).
Consequentemente, a hipersexualidade atribuída às pessoas negras é considerada como tão inerente
a seus corpos como a raça que a cor de sua pele supostamente marca.
O corpo negro feminino tem sofrido um tipo de opressão diferente daquele sofrido pelo
corpo negro masculino, pelo fato de ser ele o corpo capaz de gerar em si novos corpos racializados.
Esse corpo é, assim, objeto de intensa regularização, a qual pode ser especialmente notada em
temos de sexualidade e parece ter começado no período da escravidão nos Estados Unidos. De
acordo com Naomi Zack, o corpo feminino negro tem sido visto, desde aquela época, como uma
ferramenta para a reprodução da força de trabalho e para a satisfação tanto do desejo sexual quanto
dos interesses econômicos do senhor (1997, p. 150). A dimensão econômica da sexualização de
escravas negras, portanto, se baseia no controle da fertilidade e capacidade de nutrição
(principalmente pela amamentação e cuidados maternos) dessas mulheres para sustentar o senhor
branco e sua família, em detrimento do cuidado para com sua própria família negra.
Depois da abolição da escravidão nos Estados Unidos, a capacidade reprodutora de mulheres
negras começou a ser vista como economicamente prejudicial para a sociedade em geral, resultando
numa imagem negativa das mulheres negras como mães irresponsáveis, cujos filhos se tornam um
fardo para a previdência social (COLLINS, 2004, p. 132). Collins relaciona esse estereótipo da mãe
da previdência social à imagem da matriarca negra, que representa a mulher sexualmente agressiva,
a qual ameaça a masculinidade dos homens negros porque não permite que eles assumam papeis de
patriarcas (p. 84). Ambas as imagens, assim como aquela da mulher sexualmente insaciável e
promíscua, são usadas para representação mulheres que não estão associadas ao ideal de
passividade geralmente atribuído a uma imagem idealizada da mulher.
Na ficção especulativa escrita por mulheres negras, essas imagens estereotipadas têm sido
frequentemente contestadas. Em tais obras, como afirma Kinitra Brooks, o corpo negro feminino

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“demonstra um poder que permite explorações pessoais do prazer e da dor e as possibilidades de
mudança sócio-política dentro da comunidade negra”5 (2011, p. 1, tradução minha). Nos romances
de Butler e Due, a possibilidade de viver uma sexualidade livre e assumir o papel de mãe provedora
em benefício de sua comunidade substitui a existência marginalizada e oprimida historicamente
reservada a mulheres negras em sociedades norte-americanas. A sexualidade pode ser lida nessas
estórias na caracterização dos desejos e práticas do corpo negro feminino através do simbolismo do
sangue que remete às noções de sexualidade e nutrição.
Em Fledgling, os relacionamentos que os Inas mantêm com os humanos e uns com os outros
são possíveis através do sangue. A sexualidade Ina é alternativa e subversiva em relação às normas
sexuais humanas tradicionais. O desejo sexual é aguçado pela mordida de um Ina quando se
alimenta do sangue de seu simbionte humano, culminando assim no ato sexual. O intenso prazer
que ambas as partes sentem nesse momento se deve à dependência física que elas têm uma da outra.
Essa relação é explicada como algo biológico: o veneno na saliva do Ina faz com que o corpo do
simbionte humano produza um excesso de sangue que, se não for sugado regularmente pelo Ina,
pode causar nesse simbionte um ataque cardíaco (BUTLER, p. 80). Embora os efeitos da saliva dos
Inas no corpo dos simbiontes seja descrito como um vício, eles trazem mais benefícios do que
danos. Além da melhoria do sistema imunológico, longevidade, condições físicas e até da memória
dos humanos, o veneno aumenta o prazer que eles sentem durante o ato sexual com o Ina. Por essa
razão, o sangue parece ser o que possibilita relações sexuais mais profundas entre os Inas e seus
humanos, o que não depende da idade, gênero, ou orientação sexual do simbionte, mas da atração
que o sangue humano exerce sobre o Ina.
O aspecto mais provocador do romance de Butler está no fato de que ela caracteriza as
mulheres Ina como mais poderosas que os homens, física e socialmente. Butler, nesse sentido,
imagina um mundo em que o determinismo biológico resulta numa superioridade das mulheres,
sendo a sociedade Ina um tipo de matriarcado – elas são sujeitos ativos dos quais os homens
dependem. Como uma mulher híbrida de negra humana e Ina, cujo veneno é descrito como ainda
mais poderoso que aquele de outras mulheres Ina, a caracterização de Shori é ainda mais
desafiadora para ideologias sexistas. O fato de Shori ser uma mulher de cinquenta e três anos que
aparenta ser uma menina de dez desafia representações estereotípicas do corpo negro feminino
como hipersexualizado e mero objeto de desejo masculino. Ela é livre e poderosa o bastante para

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“demonstrates a power that allows for personal explorations of pleasure and pain and the possibilities for socio-
political change within the black Community”.

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escolher seus próprios parceiros, que são múltiplos e variados, e com os quais estabelece relações
de mútua proteção e nutrição.
No romance de Due, um ponto fundamental é o fato de que o clã imaginário é composto
exclusivamente de homens. Seu sangue sagrado não pode ser compartilhado com as mulheres
mortais com as quais eles se relacionam ao longo do tempo e do espaço. O romance apresenta uma
agência masculina malograda em contraste com uma agência feminina benéfica, já que as duas
mulheres que acabam se tornando imortais são as que decidem usar o sangue da vida para salvar
humanos.
Fana, a protagonista, é concebida como imortal acidentalmente e por essa condição é mais
forte que os Life Brothers, inclusive que o primeiro imortal e líder deles, Khaldun. Por isso, ela é
vista como uma ameaça por alguns membros do clã que querem destruí-la. Semelhante a Shori, essa
menina negra é poderosa de tal forma que nenhum homem, mortal ou imortal, pode controlá-la. O
próprio fato de que Fana, embora ainda uma menina, seja um ser poderoso, sugere que no mundo
imaginário de Due o que está reservado a mulheres negras é semelhante à narrativa de Butler: elas
são portadoras do futuro da espécie, não apenas por seu potencial reprodutivo, mas também por sua
agência irrefutável. Essa imagem se afasta de representações tradicionais de mulheres negras que
têm sido historicamente discriminadas e silenciadas nas Américas.
Por fim, deve-se observar que a abjeção implícita na sexualidade de Shori não está presente
em Jessica. Isso pode ser explicado pelas conotações negativas sugeridas pela caracterização do
vampiro como bebedor de sangue, que está na base da sexualidade exacerbada associada a essa
figura. Ao invés de se alimentar do sangue de outras pessoas, Jessica doa o seu. O soro feito a partir
de seu sangue imortal é caracterizado como precioso no romance, desesperadamente buscado por
doentes e por homens ambiciosos. O sangue imortal não faz de Jessica e Fana monstros femininos,
mas sim agentes sociais e nutridoras ponderosas. Acredita-se aqui que isso se deve à conotação
religiosa do sangue usada no romance – trata-se do sangue de Cristo, investido dos significados
bíblicos de purificação, redenção e vida. Pode-se dizer que o simbolismo do sangue é usado no
romance de Due para sugerir empoderamento sexual e de gênero, enquanto no de Butler ele implica
sexualidade exacerbada e liberdade sexual.
Pode-se concluir que nos dois romances, a sexualidade das mulheres negras é apresentada de
forma divergente dos estereótipos geralmente associados a elas na experiência cotidiana. Elas são
sexualmente ativas, sentem desejo e são desejadas, mas não da forma abjeta geralmente associada a
elas na literatura e cultura popular. Seus poderes sobrenaturais, sua assertividade, independência e o

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papel de nutridoras que assumem se opõem aos estereótipos da mulher sexualmente agressiva, da
mãe da previdência social, e da mãe assexuada. As narrativas de Butler e Due sugerem que, por
causa do grande poder das mulheres protagonistas, a nutrição e o cuidado que oferecem são
estendidos a humanidade em geral. Nesse sentido, pode-se concluir que as mulheres negras nessas
estórias são empoderadas por seu potencial de proporcionar alimento e proteção, contestando assim
a abjeção e opressão que essas mulheres têm sofrido historicamente

Referências

BUTLER, Octavia. Fledgling. New York: Seven Stories, 2005.


BROOKS, Kinitra. Finding the Humanity in Horror: Black Women’s Sexual Identity in Fighting
the Supernatural. Poroi 7.2 (2011): Article 7. Disponível em: <
http://ir.uiowa.edu/poroi/vol7/iss2/7/>. Acesso em: 3 de maio de 2015.
COLLINS, Patricia Hill. Black Feminist Thought: Knowledge, Consciousness, and the Politics of
Empowerment. 2 ed. New York: Routledge, 2000. Print.
---. Black Sexual Politics. New York: Routledge, 2004.
DUE, Tananarive. The Living Blood. New York: Atria, 2001. Print. African Immortals Series.
---. “On Octavia Butler.” In: Marleen S. Barr. Afro-Future Females: Black Writers Chart Science
Fiction’s Newest New-Wave Trajectory. Columbus: The Ohio State UP, 2008. p. 179-81.
HAMPTON, Gregory Jerome. Changing Bodies in the Fiction of Octavia Butler: Slaves, Aliens,
and Vampires. Lanham: Lexington Books, 2010. Kindle Edition.
HOOD, Yolanda. Interview with Tananarive Due. Femspec 6.1 (2005): 155-64.
LAWRENCE, Tonja. An Africentric Reading Protocol: The Speculative Fiction of Octavia Butler
and Tananarive Due. 2010. Tese de doutorado. - Wayne State University, Detroit.
MELZER, Patricia. Alien Constructions: Science Fiction and Feminist Thought. Austin: University
of Texas Press, 2006.
PAPKE, Mary E. Necessary interventions in the face of very curious compulsions: Octavia Butler’s
naturalist science fiction. Studies in American Naturalism 8.1 (Summer 2013): 79-92.
ZACK, Naomi. The American Sexualization of Race. In: Naomi Zack. Race/Sex: Their Sameness,
Differences, and Interplay. New York: Routledge, 1997. p. 145-55.

Imagining New Roles for Black Women: Octavia Butler's and Tananarive Due's Speculative
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Astract: Until recently, the roles assigned to women of African descent in literature were limited,
reproducing the stereotypes associated to them in racist and sexist societies. However, the literary
representation of those women has been increasingly changing, especially in works by black women
writers who use speculative fiction to imagine roles that are different from those socially imposed to
them. This paper seeks to illustrate the possibilities that speculative fiction offers to the discussion
of race, sexuality, and gender issues by analyzing two African-American writers’ novels: Fledgling
(2006), by Octavia Butler, and The Living Blood (2001), by Tananarive Due. These works
challenge socially constructed notions that characterize black women as hypersexualized, mere
objects of desire and labor force, so as to imagine a world in which the so-called black race, female
sexuality, and maternity have a fundamental role in humanity’s future. Their protagonists are young
black women who cause estrangement for contradicting traditional stereotypes and for possessing
supernatural powers that are granted by their race identities represented by their blood. Therefore,
the novels analyzed here challenge the racist and sexist discourses that have contributed to the
oppression and marginalization of black women throughout history by imagining conditions that
lead to their empowerment and social agency.

Keywords: Black women. Speculative fiction. Gender.

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