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Patricia Bastos de Azevedo

Ensino de história e memória social:


A construção da história-ensinada em uma sala de
aula dialógica.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


graduação em Educação, da Faculdade de Educação da
Universidade Federal Fluminense, como exigência para
a obtenção do grau de Mestre.

Orientadora:
Profª. Drª. Cecília Maria Goulart

Niterói 2003
Dissertação de Mestrado
Niterói / UFF
Patricia Bastos de Azevedo

Ensino de história e memória social:


A construção da história-ensinada em uma sala de aula dialógica.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


graduação em Educação, da Faculdade de Educação da
Universidade Federal Fluminense, como exigência para
a obtenção do grau de Mestre.
17/12/2003

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________

Profª Drª Cláudia Alves


Universidade Federal Fluminense

____________________________________________

Profª Drª Sandra Escovedo Selles


Universidade Federal Fluminense

_____________________________________________

Profº Dr. Ralph Bannell


Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

______________________________________________
Profª. Drª. Cecília Maria Goulart
Universidade Federal Fluminense
Agradecimentos

A realização deste trabalho implicou um esforço pessoal e profissional muito grande


que, para se tornar possível, contou com a ajuda de muitas pessoas, as quais agradeço a
colaboração:

Ao meu colega, professor André, que muito gentilmente abriu sua sala de aula para
observação. Aos alunos da turma 801 e à direção da Escola Municipal José de Anchieta,
que me acolheram de braços abertos. A Fundação Municipal de Educação de Niterói que
permitiu a realização desta pesquisa.

A Professora Cecília Goulart, minha orientadora, que partilhou comigo avanços e


recuos no percurso de construção desta pesquisa e foi uma amiga atenciosa e uma
interlocutora atenta e questionadora, me provocando constantemente a aprofundar o meu
olhar no ato de pesquisar e escrever.

A Célia Linhares, Márcia Motta, Edwirges Zaccur, Helena Fontoura, Cláudia Alves,
Sandra Selles e Osmar Fávero, professores do curso de Mestrado, que me auxiliaram a
construir o caminho que trilhei durante a produção desta pesquisa.

Ao professor Ralph Bannell, por sua especial atenção e importante contribuição na


delimitação e construção teórica do corpo desta dissertação.

A minha mãe, Agilda Bastos de Azevedo, que me deu minha maior herança o gosto
pela leitura e o amor ao estudo.

A minha irmã, Carla Andréa, que sempre esteve perto, me apoiando e torcendo por
minhas conquistas, e ao meu muito amado sobrinho Yuri José.

As minhas amigas de caminhada no mestrado, Edna Telma, Cyntia, Rejane, Renata,


Rosane, Paola, Helenice, Inez, Ângela Brito, Ângela Borba, Tânia, Valdete, Simone e
Marta.
Aos meus amigos da vida, que estão sempre próximas e apoiando minhas buscas e
escolhas, Maria Aparecida (Cida), Isanete (Isa), Cáudia, Michelline, Shirley, Marta,
Eduardo António e ao meu amigo José Silva (Zé).

A grande amiga Gabriela, que ouviu por telefone as leituras incansáveis dos textos
que eu escrevia e me ajudou a perceber o objeto de minha pesquisa em seu estágio mais
embrionário. A seu marido Tarcisio, que me socorria quando eu e meu computador
brigávamos.

A minha cunhada Maithé que torceu muito e que lá do céu deve ainda estar
torcendo.

E por último e de grande importância, meu marido e grande amor Admarco, que
esteve ao meu lado todos os dias e noites aturando as minhas loucuras e sendo mesmo que
de forma passiva co-autor desta dissertação.

E a todos os professores e alunos que passaram pela minha vida e me ajudaram a ser
a professora que sou hoje.
Sumário

Introdução 3

I. Capítulo
6
Os caminhos que trilhamos para a história-ensinada

1.1. Situando a nossa pesquisa 6


1.2. Breve histórico do ensino de história 11
1.3. Porque pesquisamos ensino de história 16
1.4. A temática na literatura 22

II. Capítulo
2. Dialogando com a teoria da ação comunicativa
As contribuições da teoria habermasiana para a construção teórica da pesquisa
25
2.1. Nossa escolha teórica 25
2.2. Quem é Habermas 26
2.3. Uma outra via para sair da filosofia do sujeito 27
2.3.1. Mundo da vida 28
2.3.2. Razão situada 31
2.3.3. Pretensão de validez 34
2.3.4. Argumentação 36
2.4. Nossa matriz teórica e o ensino de história 39

III. Capítulo
3. Ensino de história e a produção de uma memória
A memória social como elemento constitutivo da História e do ensino de
história 43

3.1. Memória intersubjetiva 44


3.2. Memória Social e Memória Coletiva 49

IV. Capítulo
4. Metodologia 55

4.1. O local da pesquisa 55


4.1.1. Fundação Municipal de Educação de Niterói 55
4.1.2. Escola Municipal José de Anchieta 56
4.1.3. O professor e a sala de aula 57
4.2. O ato de fala em sala de aula 60
4.3. A definição e a organização do corpus da pesquisa: os blocos de aulas e
os episódios 61
4.4. Expressões utilizadas 63
4.4.1. Procedimento pedagógico 64
4.4.2. Eixo pedagógico 64
4.5. O espaço físico da sala de aula 65
4.6. A vídeo-gravação 65
4.7. A transcrição 66
4.7.1. A transcrição 66
4.7.2. Códigos utilizados na transcrição 67
4.8. Idade dos alunos 67
4.9. Análise e compreensão dos dados 69

V. Capítulo
5. Análise dos episódios selecionados 72

5.1. Análise do primeiro bloco de aulas 72


5.2. Análise do segundo bloco de aulas 94
5.3. Análise do terceiro bloco de aulas 113

VI Capítulo
128
6. Conclusões

Bibliografia 140

Anexo I

Anexo II
Resumo

Buscamos identificar em nossa pesquisa como os elementos História e memória


social se constituem no espaço da sala de aula de história, produzindo assim a história-
ensinada.

A teoria habermasiana da Ação Comunicativa é o nosso principal alicerce teórico,


desta forma buscamos relacionar esta teoria com a construção da memória social e seu
papel no fazer pedagógico da sala de aula de história.

A coleta de dados foi realizada através de vídeo-gravação e observação em uma


turma de 7a. Série (8a. Anos escolar), na Escola Municipal José de Anchieta, localizada no
município de Niterói. Escolhemos uma turma em que o principal procedimento pedagógico
do professor é o diálogo. Analisamos as interações discursivas entre professor e alunos em
nove aulas, buscando a relação dos elementos – História, memória e diálogo – na
construção da história-ensinada. A possibilidade da teoria da Ação comunicativa
fundamentar o processo pedagógico é evidenciada, destacando-se o diálogo, em
movimentos dinâmicos, como o centro do procedimento pedagógico realizado em sala de
aula.

Palavras-chaves: Ensino de História; memória social; ação comunicativa e


interações discursivas.
Abstract

This research aims to identify how aspects of History and social memory within the
classroom produce a teaching history. Habermann Theory of Comunicative Action is the
theoretical background of the research. Thus, the study has focused not only in the
relationship between social memory construction and this theory, but also how it plays a
role in the pedagogical action in history lessons. Data collection was undertaken using both
video recording and a 7th grade classroom observation in a school in Niteroi. The class was
chosen considering the teacher dialogic teaching approach. Discursive interactions between
teachers and pupils in nine lessons were analysed. In these interactions the relationship
among history, memory and dialogue to build a teaching history were searched. The
possibility of the theory of comunicative action to back the pedagogical process is
highlighted as central to the dinamics of dialogue in classroom.
Introdução

Os anos de 1999 e 2000 foram tempos ricos para a reflexão sobre o ensino de
história. Vários ambientes escolares pararam para pensar a história nacional e local
embalados pelos 500 anos de “descoberta” do Brasil. Revistas especializadas em educação
sagraram o ensino de história como temática de grande relevância. Nunca – O que somos
nós? – foi divulgado e tão alardeado na história, nos espaços escolares e na grande mídia.

Os holofotes lançados sobre os 500 anos de “descoberta” do Brasil iluminaram o


ensino de história. A sua prática pedagógica inundou revistas e jornais que se debruçaram
sobre a temática educacional. O caminho feito pelo ensino de história e por suas práticas
atuais tornou-se elemento de análise, neste momento histórico, permeado pelos festejos de
uma história específica.

Nesse mesmo período – 1999-2000 – na Rede Municipal de Educação de Niterói –


Fundação Municipal de Educação – foram estabelecidas as coordenações por áreas
(disciplinas), organizando-se reuniões mensais com os professores das respectivas
disciplinas. Nos encontros dos professores de história uma queixa era constante: os alunos
não conseguem aprender os conteúdos estabelecidos.

Estas queixas nos remetem a algumas questões que são relevantes na construção do
processo pedagógico do ensino de história: Como é construída ao longo da vida de cada
indivíduo sua identidade histórica? Que importância esta identidade, que existe e está em
formação nos estudantes, tem ou poderia ter no processo do ensino de história? Como a
memória social dialoga com os processos históricos existentes no ensino de história?
Todas estas questões e o momento histórico em que vivíamos formam o contexto para esta
presente dissertação.

Sendo professora de história do ensino fundamental na Fundação Municipal de


Educação de Niterói, os espaços das reuniões de coordenação suscitaram gradativamente
várias questões e inquietações, gerando uma busca por possíveis caminhos para o ensino de
história.

A busca por possíveis caminhos nos evoca a imagem de um peregrino com seu
cajado, uma bolsa com farnel e o constante caminhar. O peregrino não caminha alheio ao
ambiente que o cerca, ele interage com as pessoas e com a paisagem. Conversa, indaga e
olha para quem ele encontra no seu caminhar. Ao final de sua jornada o peregrino retorna
para sua casa e conta o que viu e descobriu. O peregrino é diferente do andarilho, que vaga
sem destino ou objetivo. O peregrino é um viajante, aquele que faz uma romaria, uma
viagem para lugares distante, buscando conhecer novas culturas, ou caminha por trilhas
conhecidas. O que marca o peregrino é o fato de caminhar, retornar a casa e contar as suas
descobertas.

Nossa pesquisa foi um peregrinar por velhos caminhos em busca do novo, o que não
percebemos no caótico dia-a-dia da casa-escola escola-casa, aulas sucessivas, diários de
classes a preencher, conselhos de classes a ir, avaliações a aplicar e mais aulas a serem
dadas. Nessa pesquisa fomos um pouco peregrino, saímos do espaço escolar como
professora, voltamos a ele como pesquisadora – peregrina escolar – olhamos o ato de
ensinar com os olhos de quem quer descobrir o novo no velho. Escutamos as pessoas –
professor e alunos – e agora estamos voltando para casa contando o que nós vimos nessa
longa peregrinação.

A peregrinação nos fez ver o ensino de história por outro foco e desta forma
enxergarmos para além dos conteúdos programáticos e pensarmos sobre a perspectiva da
memória. Sob esta nova perspectiva buscamos conjugar História-memória-ensino de
história. Como relacionar estas três questões nos levou à teoria habermasiana – a Teoria da
Ação Comunicativa – que norteia toda esta dissertação.

O cajado é o apoio do peregrino que ele usa para subir as escarpas, evitar a queda na
solidão do caminhar. O cajado muitas vezes é o companheiro de todas as horas. A teoria
habermasiana em muitos momentos foi o nosso cajado, nos auxiliando a compreender a
sala de aula que analisamos e a escolher entre tantas informações a qual dirigir a nossa
atenção. Argumentamos com os dados e buscamos estabelecer pretensões de validez
consensuais, em que a voz dita não fosse apenas e somente a da pesquisadora que investiga
a sala de aula de história, mas a nossa voz. A voz da professora, a voz da aluna, voz da
mestranda, a voz do professor, que gentilmente abriu as portas de sua sala de aula e nos
deixou entrar, e a voz dos alunos.

As vozes dos alunos muitas vezes são caladas e colocadas em segundo plano. Esta
voz recebeu uma atenção especial, pois buscamos nela a memória social que o ensino de
história, em sua face mais tradicional, cala, promovendo assim a amnésia social. Buscamos
ouvir o som do murmúrio que não se cala, mas é ignorado. Como o peregrino, ouvimos os
diálogos estabelecidos em sala de aula com especial atenção. O diálogo foi o nosso farnel,
o alimento na jornada. No diálogo buscamos os detalhes infinitesimais, as pequenas
mudanças e os padrões contínuos nas as interações discursivas. Os diálogos alimentaram as
nossas indagações e nos mostravam o caminho que trilhávamos, o ato de ensinar história.

Contamos a nossa caminhada partindo da visita que fizemos a origem do ensino de


história e suas principais influências (Cap. I); estabelecemos um diálogo com a teoria
habermasiana da Ação Comunicativa (Cap. II); relacionamos a teoria proposta por
Habermas com a temática da memória social (Cap. III). Apresentamos do mesmo modo a
metodologia que construímos para dar corpo à coleta e à análise dos dados (Cap. IV e V,
respectivamente). A conclusão é a finalização do nosso trabalho, são as descobertas que
fizemos e o caminho que vislumbramos como possibilidade para o ensino de história.

A dissertação que escrevemos é o produto atual desta busca e a possibilidade de um


caminho que encontramos para o ensino de história. Vários caminhos existem e estão aí
para serem exploradas, apenas apontamos um possível caminho a ser trilhado; fruto de
nossa pesquisa e reflexão. Como o peregrino, contamos o que encontramos no caminho e
acenamos com a possibilidade que o ato de caminhar nos proporciona.
I. Capítulo

1. Os caminhos que trilhamos para pensar a história-ensinada

1.1. Situando a pesquisa

A pesquisa que desenvolvemos nesta dissertação tem o objetivo de fazer uma


análise qualitativa do ensino de história efetivado em uma turma da Escola Municipal José
de Anchieta na localidade Morro do Céu, no bairro Caramujo, no município de Niterói.

A pesquisa teve com principal critério de busca uma sala de aula em que o principal
instrumento pedagógico fosse o diálogo. A partir deste critério pedagógico centrado no ato
de fala, desenvolvemos uma compreensão e análise do ato de ensinar e buscar, à luz da
teoria da ação comunicativa habermasiana, encontros e desencontros desta teoria com o
espaço real de uma sala de aula no ato da história-ensinada1. O ensino de história em geral
é marcado por uma vertente de cunho nacionalista e burguês; na presente pesquisa
buscamos rupturas com essa tradição e saídas para um novo caminhar.

O ensino de história tem sua gênese vinculada ao nascimento do Estado nacional e


ao ideário nacional. O conteúdo desta disciplina escolar é marcadamente positivista de
aspecto evolucionista2, destacando em sua origem a ruptura do passado, medieval e clerical,
com o presente e a construção contínua e evolutiva do futuro. É a modernidade se fazendo
e deixando seu legado ideológico na ciência História; a pretensão existente na modernidade
de romper com o passado fazendo um novo presente.(Habermas, 2000, p.12)

1
História-ensinada é uma expressão utilizada nesta pesquisa de modo próprio, conforme está explicado
adiante, neste mesmo capítulo que será mais adiante explicitada.
2
“Com a escola positivista, o documento triunfa. O seu triunfo como bem exprimiu Fustel de Coulanges,
coincide com o do texto. A partir de então, todo o historiador que trate de historiografia ou do mister de
historiador recordará que é indispensável o recurso do documento.” (Le Goff, 1996, p. 539) , buscando nos
documentos a fonte da pesquisa que está sendo desenvolvida. O possitivismo evolucionista de Spencer que
propõe o conceito de progresso a todos os ramos das ciências, tem grande influência na historiografia e na
busca da modernidade de ruptura com o passado medievo e clerical.
A origem da disciplina escolar História marca sua trajetória pedagógica de forma
relevante. Podemos encontrar sinais de uma historiografia evolucionista positivista até a
atualidade nos livros didáticos e nos currículos e conteúdos definidos pelas várias
secretarias de educação. A linha histórica – idade antiga, idade média, idade moderna e
idade contemporânea – tem sua origem na modernidade e na perspectiva que ela produz de
novos tempos, os tempos modernos (Habermas, 2000, p. 9). Esta divisão impregna de tal
forma o ensino que serve como divisora dos conteúdos nos ciclos e séries3 que compõem o
ensino fundamental. A História, baseada na lógica da burguesia européia ocidental, está
pautada em uma concepção evolucionista e progressista, marcadamente linear, nos
“princípios sobre os quais continua se apoiando essa velha senhora européia que
chamamos de história”. (Gruzinsk, 2000, p. 387). Princípios que fundamentam
fundamentaram e ainda fundamentam o ensino de história praticado nas salas de aula,
valorizando uma memória em detrimento de outra.

Os pilares que servem como sustentação para a História4 direcionam o foco do olhar
e destacam uma faceta da memória (Ver capítulo III). Ou melhor, constroem uma memória
específica, que tem uma função ideológica muitas vezes escondida ou camuflada. “O
mundo da pseudoconcreticidade é um claro escuro de verdade e engano. O seu elemento
próprio é o duplo sentido (Kosik, 1995, p. 15). Nessa perspectiva, o olhar histórico é
desfocado e obscurecido para uma outra memória específica, tornando pessoas comuns não
presentes na historiografia, que, quando presentes, são colocadas em uma perspectiva
marginal, desbotada, produzindo uma amnésia, naturalizando a memória oficial e elevando-
a à categoria de dogma — imutável, perene, eterno – focando a história nos dignos de
memória, um culto a personalidades e vultos.

Até que ponto é eficiente a produção desta amnésia? Na sala de aula de história, a
memória valorizada e apresentada, que remete à História dos dignos de memória, muitas

3
Art. 23. A educação básica poderá organizar-se em séries anuais, períodos semestrais, ciclos, alternância
regular de períodos de estudos, grupos não-seriados, com base a idade, na competência e em outros critérios,
ou por forma diversa de organização, sempre que o interesse do processo de aprendizagem assim o
recomendar. (Saviani, 1999, p. 170)
4
História com H maiúsculo nos remeterá neste texto a história oficial, produzida pela instituições
historiográficas e aceita pelo poder estabelecido.
vezes, entra em conflito com uma outra memória — a memória subterrânea – que é
construída em outros espaços da vida dos estudantes, negada nos espaços escolares e
direcionada para o porão do saber. A “memória subterrânea que, como parte integrante
das culturas minoritárias e dominadas, se opõe à memória oficial”. (Pollak. 1989, p. 5,
grifo do autor)

A memória subterrânea é aquela que não está posta como História. Desta forma, é
destituída de seu status e ignorada no ensino de história, em que poderia ser resgatada,
produzindo no espaço escolar um diálogo entre os saberes que estão presentes em duas
perspectivas: da História ciência e da história memória de vida.

No sentido dos parágrafos anteriores, um novo fazer pedagógico pode ser concebido
na condução do ensino de história. Este fazer pedagógico estabelecido deve ser alvo de
análise e crítica no espaço da sala de aula. O ato de fala pode ser o fio condutor para uma
nova prática e uma nova perspectiva paradigmática de encontro entre os dois saberes,
muitas vezes em disputa na sala de aula de história. Nessa opção pelo ato de fala, as
pretensões de validez existentes nas memórias travarão a batalha do argumento e o que está
subterrâneo tornar-se-á dito e se fará presente, e o ensino de história será refletido e
produzido.

A História que fundamenta o ensino de história é produto da ação do historiador.


Sendo assim, é um recorte da totalidade que se apresenta de forma científica. Quando é
transposta para a sala de aula causa uma estranheza ao aluno. O acontecimento em uma
perspectiva historiográfica não tem a mesma dinâmica das lembranças cotidianas ou da
literatura. Uma História em geral desencarnada, sem o ritmo do cotidiano, que foge ao que
nos é comum, está contada e apresentada de uma forma diferente do mundo da vida. Como
se não fosse um olhar para tal mundo, como se fosse um olhar para uma outra
materialidade, distante do mundo que nos cerca e forma.

O enquadramento da memória, seguindo uma estrutura historiográfica, em geral,


salienta uma face em detrimento de outra, negando a participação de certos atores históricos
e lançando holofotes em outros. Prioriza uma História, negando a existência de outras
histórias. Mesmo a História que tenha como premissa destacar os alijados da grande
história oficial é um recorte e um olhar que usa a lente de uma teoria e de um foco.

“Esse trabalho de enquadramento da memória têm seus atores profissionais da


história”. (Pollak 1989, p. 10) Os profissionais da História constroem uma versão do
passado podendo em sua construção promover uma amnésia social, escamoteando os
conflitos, processos discriminatórios e personagens populares, confeccionando uma
memória estática, que terá um papel que direciona a uma perspectiva de futuro
estabelecido, este tipo de historiografia excludente permeia o ensino de história na maioria
das salas de aula. Que futuro será esse? E o que quer esse futuro? São perguntas que,
quando respondidas, apontam a uma postura política e filosófica do historiador que
construiu essa História, salientando uma memória específica e uma naturalização do posto
negando a possibilidade de mudanças e de reconstrução de uma História que traga
holofotes para outros atores, e sendo uma ação reflexiva coletivizada, que poderá produzir
um futuro mais democrático.

Nas palavras de Motta:

“A história é uma operação intelectual que, ao criticar as fontes,


reconstruí-las à luz de uma teoria, realiza uma interpretação do passado, onde o
que importa não é só a noção de um consenso, mas também a do conflito”.
(Motta. 1998, p.197)

O consenso e o conflito, próprios do fazer de algumas linhas historiográficas, em


geral são ignorados no espaço da sala de aula e a História que é ensinada transforma-se em
um conteúdo de cunho positivista e evolucionista não salientando as escolhas próprias do
ato de interpretação e reconstrução. Silencia-se sobre o ato de construção da História e
coloca-a como uma reprodução fiel do passado.

O silêncio sobre o passado pode produzir uma amnésia, mas também pode ser um
alicerce para outras discussões: o que foi apagado, quando trazido à tona, poderá conduzir à
construção de um novo caminhar da memória. Observamos o modo como datas, símbolos
de uma História dominante e européia, muitas vezes são revertidas e transformadas em
novos símbolos e marcos históricos. O calendário do Sindicato Estadual dos Profissionais
da Educação — Estado do Rio de Janeiro (SEPE-RJ), publicado em 2002, por exemplo, já
apresenta datas comemorativas alternativas e novas leituras para datas já existentes. O dia
19 de abril, tradicionalmente o dia do índio, é apresentado como Dia de Luta dos Povos
Indígenas, salientando a existência desses povos e sua permanente luta, até a atualidade, por
melhores condições de vida. O 13 de maio, dia de libertação dos escravos, é apresentado
como Dia Nacional de Denúncia contra o Racismo, trazendo o foco do nosso olhar para o
racismo existente na sociedade brasileira e no mundo. A História que valorizava a Princesa
Isabel e conduzia à amnésia a luta dos escravos contra o processo de escravidão é
denunciada. A memória da luta é valorizada e reconduzida aos espaços de diálogo. É a
história subterrânea ganhando espaços e se tornando História, visível e marcada nos
espaços dos movimentos sociais, políticos e da coletividade. “Uma vez rompido o tabu,
uma vez que as memórias subterrâneas conseguem invadir o espaço público,
reivindicações múltiplas e dificilmente previsíveis se acoplam a essa disputa da memória”.
(Pollak. 1989, p. 05)

O ensino de história tem um longo caminho a seguir na busca de uma concepção em


que a memória social trazida pelo estudante ao espaço da sala de aula tenha sua vez e valor,
dialogando com a historiografia produzida, fazendo com que cada sujeito presente na
dinâmica da sala de aula seja efetivamente um sujeito histórico reflexivo.
Tradicionalmente o ensino de história atua com um reprodutor da historiografia posta e
escolhida pelo sistema escolar, conduzindo o ato de ensinar a uma reprodução do
estabelecido e definido como “verdade” ou de ‘maior valor”. Estas questões nos remetem a
uma questão muitas vezes apresentadas como corriqueira e ultrapassada porém de profunda
relevância ao ensino que é o construção do ideário nacional – desenvolveremos está
questão a seguir neste capítulo.

O diálogo no espaço da sala de aula pode promover uma ação reflexiva entre
memória e história – elementos tão complementares e de profunda diferença que co-
habitam o ensino de história. Não estamos negando a existência dos conflitos entre a
história e a memória, tampouco as categorizando como sinônimas: a pretensão desta
pesquisa é salientar a necessidade de uma articulação entre esses dois saberes presentes na
sala de aula de história, que muitas vezes são negados pelo ensino de história e pelas
práticas pedagógicas consagradas nos espaços escolares. Tentamos trazer para a memória
uma questão que é muitas vezes esquecida nas salas de aula de história — a História produz
uma pretensão de validez, esta possui uma postura ideológica e função social. Quando o
ensino de história torna-se cativo da História e não avalia o papel deste ensino na Escola, se
faz instrumento de reprodução de uma memória específica e produtora de uma amnésia
desejada. Quem deseja essa memória/amnésia? Quem sabe, quando o ensino de história
transpuser a barreira da repetição da História estabelecida — geralmente apresentada em
livros didáticos que têm um papel ideológico camuflado em seu corpo, muito vinculado ao
ideário nacional a que já nos referimos anteriormente. A opção por uma conduta
pedagógica que transporte para a sala de aula de história o fazer-se produtor da história e,
não, aprendiz do passado, repetindo o posto pela historiografia e ignorando como essa
argumentação foi conduzida e transformada em História, descortina-se como uma nova
trajetória e possível caminhada.

1.2. Breve histórico do ensino de história

“Quando o governo se estreita sobre poucas cabeças, perde


força, e o corpo político a sua solidez: à proporção que ele se estende
sobre um maior número, o todo proposto, e faz-se inabalável na sua
unidade”.

José Bonifácio de Andrade e Silva

A origem do ensino de história no Brasil é marcada pelas estruturas históricas


existentes no mundo e no Brasil do século XIX. O Brasil havia se tornado independente,
em 1822, e deveria, como país, possuir uma identidade que o definisse como nação. A
questão da nacionalidade e a definição de uma identidade permeavam as questões históricas
tanto no Brasil quanto no mundo.
O nacionalismo, em uma vertente burguesa européia, torna-se o elo e o apaziguador
dos conflitos existentes na sociedade. Como um novo pensar profano desvinculado da
religiosidade, poderia promover a união entre a nova elite e o povo? A nova elite que
surgia necessita de um sentimento que torne a população sua aliada. O novo poder
estabelecido não era sagrado. Sendo assim a posição da nova elite como poder não estava
estabelecida como vontade de Deus; como manter a fidelidade e a cooperação? Foi a
grande questão produzida pelo novo caminho da sociedade que se formou e se fortaleceu
abrigada nas asas do novo modo de pensar o mundo, o pensamento burguês. O
nacionalismo surge como instrumento de produção desse comprometimento e fidelidade
aos Estados/Nações que estavam formando-se no novo5 panorama político-social do
mundo.

O surgimento de uma história que produziria uma origem e um destino para o povo
de um determinado território – a nação – serviria para unir os vários setores de uma
sociedade em uma fronteira emocional e física que estava sendo erguida. A produção do
sentimento de pertença que estabelece um nós e um eles torna-se fundamental, tanto para as
questões políticas como para as econômicas. O conceito de nação é naturalizado, tornando-
se um elemento definidor da identidade social dos vários setores sociais das nações que
estão sendo construídas ou definidas. O ensino de história torna-se um espaço de
propagação do ideal nacional: a história formando a memória social, produzindo uma
lembrança artificial, trazendo o foco do olhar para o ser nacional. A nação torna-se um
espaço mítico; a terra e o povo que ocupam espaço físico determinado para o Estado/Nação
têm uma memória que justifica sua estada ali e seu papel para manutenção ou expansão
deste espaço.

O Brasil, com o advento da independência, torna-se um “Estado”, ou melhor, um


território com seu próprio governo, não mais comandado por Portugal. A elite que se
estabelece no governo do novo país, o Brasil, também necessita de um elo entre ela e a
população que deveria legitimar o poder vigente. A legitimação é a semente para o
nascimento da historiografia brasileira.

5
O “novo” é emblemático na modernidade, por isso usamos repetidamente no decorrer do texto. A
modernidade se define como novo tempo e assim o que virá a partir dela é adjetivado como tal.
A historiografia brasileira tem seu início com a fundação do Instituto Histórico e
Geográfico do Brasil – IHGB, em 1838. Com um concurso no qual os participantes
definiriam como a História brasileira deveria ser escrita. O vencedor do concurso foi o
alemão Karl Friedrich von Martius – naturalista, botânico – que foi viajante no Brasil,
durante o século XIX. Desenvolveu a teoria de miscigenação racial, de base botânica,
apontando a formação do Brasil a partir do hibridismo racial – brancos, negros e índios. O
naturalista alemão priorizou a contribuição do branco português na construção da nação
brasileira, desprezando a participação do negro – nesse período é importante destacar, o
Brasil utilizava a mão-de-obra escrava e idealizava a figura indígena, apresentando-o de
forma romantizada. Podemos observar esta forma de olhar os nativos em vários romances
escritos no século XIX, como os escritos por José de Alencar.

A vitória de von Martius no concurso do IHGB não definiu a linha da historiografia


brasileira. No século XIX, a História brasileira foi produzida na perspectiva factual,
seguindo o estilo historicista. A história teria seu início com a chegada dos portugueses em
1500, ignorando totalmente a presença de uma história anterior.

Uma história que valorizava o papel do branco, da aristocracia e do império. Não


apresentava os negros, os índios e os mestiços, tratando apenas das pessoas dignas de valor
que mereciam ser lembradas. Uma história focada na elite brasileira, na boa sociedade, de
cunho aristocrático e escravista, que permaneceu como governo brasileiro, mesmo depois
da independência.“História branca, elitista e imperial que, se deu contribuição,
surpreende ao informar sobre os costumes e crenças dos tupis, chamou-os quase sempre de
bárbaros e selvagens e praticamente silenciou sobre os negros”. (Vainfas, 1999, p. 09).

Na virada do século XIX para o XX, Capristano de Abreu destacou-se no cenário


historiográfico brasileiro. Em 1907, publicou o livro Capítulos de História Colonial, cujo
foco de pesquisa era a sociedade colonial em seus desequilíbrios e contrastes, as
diversidades regionais, afirmando não existir uma consciência nacional ao final de três
séculos de colonização, desconstruindo a tese de Varnhagen, do sucesso da colonização
portuguesa e de sua influência – vocação – para manter a unidade brasileira. Salientamos
que, no final do século XIX, em 15 de novembro de 1889, o Brasil havia proclamado sua
república deixando de ser um império governado por uma coroa portuguesa – Dom Pedro I
– e descendente – Dom Pedro II. Continuamos a ver uma memória em detrimento de outra,
com um viés político estabelecido e focado no poder vigente.

Caio Prado Júnior, na década de 30 do século XX, apresenta uma visão econômica
de cunho marxista, denominada pela historiografia como “Sentido da Colonização”. Marco
importante e fundamental para a historiografia brasileira, e de profunda influência para o
caminhar do ensino de história no Brasil. Em seu livro Formação do Brasil
Contemporâneo, o mesmo autor analisa o caminho colonial e o efeito sobre a formação da
identidade brasileira.

Outros historiadores contribuíram para a construção da historiografia brasileira,


como Gilberto Freyre, com o livro Casa Grande e Senzala – que apontava para uma
tolerância racial. Esta vertente produz um estereótipo – o Brasil como um país sem
preconceitos raciais, muito presente nos conteúdos ensinados na sala de aula de história.
Estes movimentos historiográficos brevemente citados são as principais influências na
construção do ensino de história no Brasil e dos conteúdos ensinados.

O ensino de história surge com o advento da Independência do Brasil, apontando


para sua importância em uma vertente que possibilitasse a construção da noção de nação e a
unidade nacional. A historiografia brasileira torna-se real com a fundação do Instituto de
História e Geografia do Brasil, conforme já foi mencionado. O ensino de história é
introduzido como disciplina no Colégio Pedro II no mesmo ano da criação do IHGB
(1838). A campanha para construir uma identidade nacional toma corpo não só no Brasil
como na Europa; a hegemonia burguesa traçando o perfil da sociedade segundo seus
valores.

Eric Hobsbawm, em seu livro “Nações e Nacionalismo desde 1780”, apresenta um


panorama da construção do ideário nacional, no século XIX e sua importância para
consolidação dos Estados Nacionais, buscando uma definição territorial e a consolidação de
uma unidade fortalecedora do espaço econômico. A produção de um sentimento de
pertença faz-se necessária e fundamental para a nova classe que se estabelece no poder.
Não havendo mais a sagração divina dos nobres, o que manteria a fidelidade e o
comprometimento da população? O ideário de nação serve a este propósito, e neste
processo o ensino de história torna-se um dos elementos operacionalizadores deste projeto.

O nacionalismo estende sua ideologia sobre o ensino de história durante mais de um


século, sua face vai sendo alterada para adaptar-se as necessidades políticas presente na
temporalidade em que o ensino de história está se estabelecendo. Durante a ditadura militar
brasileira o ensino de história esteve sob rígida vigilância dos militares e no ensino
fundamental, foi aglutinado com o ensino da geografia, tornando-se “estudos sociais”. No
período da ditadura militar, uma tradição foi sendo tecida e um dos instrumentos de
promoção desta tradição foram as salas de aulas e os conteúdos de história, alguns
elementos operacionalizantes desta memória oficial. Somente a força bélica não garantiria
o poder, existia também a necessidade de um reconhecimento coletivo que legitimasse a
instituição e as pessoas que estavam no comando. Segundo Habermas,

“Instituições fortes formaram tradições e práticas auto-referentes, as quais


preenchem duas funções principais: externamente, elas possibilitam a representação
de um papel autodefinido, porém dependente de um reconhecimento geral, isto é,
uma interpretação da própria realização eficaz em nível de esfera pública, ou melhor,
a simbolização do próprio significado; internamente, elas articulam uma auto
compreensão normativa compartilhada intersubjetivamente por todos os membros e
correligionários”. (Habermas. 2003, p. 78)

Para existir uma compreensão intersubjetiva de uma instituição, no nosso caso o


Estado brasileiro, durante o período de ditadura militar, algumas estruturas físicas e
emocionais foram construídas e, assim, possibilitaram seu status e manutenção e a
construção de uma verdade de caráter universalista, produzindo uma memória naturalizada
do poder vigente e do Estado estabelecido; possibilitando a existência do mundo da
pseudoconcreticidade que tem como elemento próprio o duplo sentido que se apresenta
como verdade, mas se estabelece no engano obscurecedor. Indica a essência, mas a
esconde; manifesta o fenômeno, porém de forma a enganar o olhar, salientando elementos
que colocam na sobra outros fatos6 que trariam para o foco uma deferente forma de

6
A palavra fatos tem o caráter histórico nesta frase, pois uma História que tem como elemento a construção
do mundo da pseudoconcreticidade lança holofotes em elementos históricos ou fatos e esconde ou obscurece
outros salientando uma memória em detrimento de outra.
enxergar o fenômeno. (Kosik,1976, p.15) O ensino de história teve seu papel de
fundamental importância na construção de uma História que visava salientar uma memória
oficial, única e estável, que estabelecesse uma totalidade acabada e solidificada, perene, que
afastava a existência ativa do sujeito histórico. A historiografia utilizada salientava uma
vertente ufanista focada nos vultos históricos e na personificação da história. Este aspecto
esteve profundamente incutido no ensino de história.

O breve levantamento histórico feito nesta fase do presente estudo tem o objetivo de
resgatar na memória, durante a leitura desta pesquisa, o quanto o ensino de história esteve
vinculado à produção de uma memória naturalizada, conduzindo à construção de uma
compreensão determinada da realidade. O ensino de história esteve, por mais de um
século, a serviço do poder estabelecido, servindo para operacionalizar o que diz o texto em
epígrafe nesta seção, de José Bonifácio de Andrade e da Silva, promovendo uma memória
que formasse uma unidade e, assim, estabelecesse um poder.

1.3. Porque pesquisamos ensino de história

No caminhar dessa pesquisa duas expressões aparentemente equivalentes são


elementos constantes. São elas: ensino de história e história ensinada. Em vários
momentos estas duas expressões são usadas indistintamente, conceituando a mesma coisa –
o fazer pedagógico em sala de aula de história no ensino fundamental. Porém
reconhecemos uma sutil diferença entre essas duas expressões, a primeira, ensino de
história, traz em si a condição de sua própria gênese e vínculo a uma História pré-
determinada e de cunho nacionalista; a segunda expressão, história ensinada, nos remete à
prática pedagógica do ato de ensinar história. Estas diferenças fizeram com que seja
utilizado ao longo deste trabalho a palavra história-ensinada. Usamos o hífen para
produzir uma palavra que represente o fazer pedagógico e a união essencial destas duas
palavras formando uma expressão. Este binômio não foi cunhado nessa pesquisa. Fizemos
apenas uma apropriação de uma expressão utilizada por Selva Guimarães Fonseca –
história ensinada – e a redimensionamos. Aqui fazemos uma releitura desta expressão e a
dimensionamos repleta de teoria e ação que constituem esta pesquisa.

História-ensinada ultrapassa o ensinar no sentido tradicional, geralmente pautado na


narração, apresentando uma historiografia escolhida pelo professor, ou pela escola, ou pelos
sistemas públicos superiores ao qual as escolas estão vinculadas. Esta palavra – história-
ensinada – é uma tentativa de qualificar o fazer pedagógico como uma ação de primeiro
escalão e não um fazer secundário baseado em uma historiografia determinada – seja pelo
livro didático ou pelo conteúdo programático – que desqualifica o papel do professor e
transforma o estudante em recebedor, ignorando sua ação e seu papel enquanto sujeito
histórico.

Nessa perspectiva, história-ensinada também se distancia de uma vertente muito


comum, que dimensiona o professor de história apenas como um vulgarizador da
historiografia. “O ensino de história, como os das outras disciplinas, encontra-se
estruturado de tal forma que à universidade, ou 3o. grau, compete a produção do
conhecimento histórico (ou seja, é o espaço do chamado ‘discurso competente’), enquanto
às escolas de 1o. e 2o. graus cabe a sua reprodução”.(Cabrini. 1994, p.19) Esta visão
direciona o fazer de sala de aula para um lugar de menor valor e de postura passiva,
aprisionando na prática historiografia contida nos conteúdos programáticos. Desvaloriza
assim um dos elementos fundantes desta pesquisa que é a memória, que ao nosso ver
permeia tanto a história e suas construções historiográficas como a prática pedagógica.

O nacionalismo dá a orientação que seguirá a prática do ensino de história nos


espaços escolares, as temáticas nacionais determinaram os conteúdos programáticos
estabelecidos no ensino de história. Como a própria gênese desta expressão nos indica era
um ensino de uma determinada história, com uma finalidade definida e uma memória a
promover – a memória oficial e excludente, que dá voz a uma memória específica e cala as
vozes de uma grande parcela da população.

Nas palavras de Carbonari:


Os tratados antigos se referiam à importância da transmissão histórica em
termos de dar lições do passado, exercer uma função ‘moralizadora’, ser mater et
magiter vitae (mãe e mestra da vida), entendendo que a História instruía com
exemplo, corrigia os erros e servia para a ação dos futuros governantes. (Carbonari.
2000, p. 9)

Nessa vertente, ensinar história significa conduzir os passos da juventude a um


caminho específico, sem promover uma reflexão sobre o passado, conduzindo a uma
naturalização do mesmo e destituindo o pontencial social que este processo pedagógico
tem. A opção por construir uma nova palavra em detrimento de uma expressão usual vem
ao encontro de uma busca pessoal constante por delimitar esse campo de pesquisa que está
crescendo e se pontecializando ao longo das últimas décadas do século XX (Fonseca,
2003).

A expressão ensino de história traz em si uma carga histórica presente em sua


gênese, remissiva à construção desta disciplina e de seu papel histórico-social. A utilização
desta outra expressão – história-ensinada – significa buscar a valorização do magistério e
da prática pedagógica, tirando-a da sombra da historiografia e salientando sua vertente
epistemológica e histórica.

O fazer de sala de aula, assim pensando, constrói conhecimento, redimensiona e


questiona a História posta. A memória social e individual se faz presente de várias formas
no fazer pedagógico da história. Essa memória invasiva, muitas vezes causadora de um
mal-estar pedagógico, pode e deve ser elemento de coalizão e não de beligerância. A
história é um fazer científico e como tal não tem o mesmo ritmo da memória que habita o
mundo da vida. Esta memória é generalista e fugidia, em constante transformação e re-
significação; própria do fazer cotidiano. Desta forma, como nos apresenta Paul Ricoeur, a
História tem uma dinâmica própria do seu fazer e como tal diferencia-se do fazer cotidiano,
causando estranheza e exotismo quando se lê um texto historiográfico, parecendo-nos uma
escrita produzida fora do mundo da vida. Muitas vezes essa escrita da história é antagônica
ao mundo que cerca o estudante da sala de aula de história. Essa dinâmica diferente própria
da História está presente também no ensino de história, criar um espaço de diálogo entre a
historiografia e o cotidiano é um dos grandes desafios da história-ensinada. Nas palavras
de Ricoeur,

“A história introduz antes de mais nada maneiras de recortar o tempo que


não são nem aquelas da conversação ordinária, nem tampouco as na narrativa
literária. Pomian, em seu livro A ordem do tempo, evoca quatro categorias
temporais da história: o acontecimento, a série repetitiva, a época e a estrutura. Isso
me parece uma maneira interessante de distinguir entre o tempo da história e o tempo
da literatura ou entre o tempo da vida quotidiana e o da narrativa.” (Ricoeur. 2002, p.
369)

Essa diferença própria da historiografia tende a ser minimizada ou transformada


quando ganha o espaço da sala de aula. Dessa forma, ensinar história é muito mais que
reproduzir estudos desenvolvidos nos espaços acadêmicos, ou vulgarizá-los, como alguns
livros de literatura, novelas e textos jornalísticos o fazem e chegam até nós. A história-
ensinada tem um papel social e pedagógico e como tal produz, como já afirmamos, um
fazer epistemológico. A construção de um conhecimento que transpassa o espaço físico da
escola e o espaço conceitual da história é o combustível motriz da história-ensinada.

Assim acreditamos que existe uma diferença clara entre ensino de história, história
ensinada e história-ensinada. Salientar esta diferença é definir, clarear e mostrar a matriz
ideológica e conceitual que norteia esta pesquisa. A não utilização de história ensinada,
como Selva Guimarães Fonseca, utiliza não é uma negação da abordagem conceitual
referente a esta expressão apresentada por ela. Buscamos salientar a indissociabilidade
entre estas duas palavras, definindo sua existência e a diferença central entre o fazer
pedagógico – história-ensinada – e a historiografia. Não estamos propondo uma
independência entre ambas e, sim, uma diferença que inclui a valorização da prática
pedagógica, valorizando o potencial democrático que a história-ensinada possui.

Esta pesquisa tem o caráter de reflexão/ação referente à história-ensinada, buscando


continuar uma caminhada já existente e que ainda conta com poucos caminhantes, porém
de essencial importância para própria definição deste campo que constrói sua face e
propaga sua voz. Selva Guimarães Fonseca, nas duas ultimas frases de seu livro Caminhos
da história ensinada, nos conclama a fazer esta caminhada, abraçar a luta e propagar a
causa.

“Estas possibilidades de mudança dependem, dentre outras, do compromisso


dos profissionais de História com a construção da cidadania e da democracia; uma
vez que lidamos cotidianamente com tradições, idéias, símbolos e significados que
dão sentido às diferentes experiências históricas vividas pelos homens.

É um longo caminho, do qual este trabalho procura fazer parte”. (Fonseca.


2001, p.156)

Colocamos-nos como profissionais da História que são educadores e valorizamos


este papel, sua função social e relevância na construção de uma sociedade mais
democrática. Nessa busca constante e utópica, a pesquisa aqui desenvolvida objetiva uma
condução pedagógica centrada na ação comunicativa proposta por Habermas como
elemento de uma prática que valoriza a linguagem e seu potencial social. Como Habemas,
nos apresenta, “a expressão ‘emancipação’ tem seu lugar no âmbito do intercâmbio dos
sujeitos consigo mesmo, ou seja, ele se refere a transformações descontínuas na
autocompreensão prática das pessoas”. (1993, p.100) Por isso, salientamos o potencial
democrático e social da história-ensinada.

Habermas escreve em seu livro “O passado como futuro” que a emancipação está
centrada em uma visão de valorização do sujeito, própria da razão positivista kantiana,
centrada na filosofia do sujeito. Diante desta questão, ele propõe uma razão centrada na
linguagem, que represente os coletivos sociais.

Tendo Habermas como principal interlocutor nesta pesquisa, e os conceitos de


entendimento e agir comunicativo como elementos motrizes, identificamos história-
ensinada como uma ruptura conceitual com a expressão ensino de história, cunhada no
berço da modernidade e calcada em uma filosofia centrada no sujeito. O encaminhamento
feito no presente estudo traz para o espaço do ensino de história elementos conflituosos
tanto nas práticas pedagógicas como nas produções historiográficas, que são os elementos
memória social e memória intersubjetiva. Acreditamos que a formação do “EU” e de sua
subjetividade se dê no todo social, no mundo da vida. Esta relação guiada pela
comunicação constitui a subjetividade se contrapondo à filosofia do sujeito.

Nas palavras de Habermas:

“Somente na medida em que crescemos no interior desse ambiente social,


podemos constituir-nos como indivíduos capazes de agir de maneira responsável e
desenvolver – pelo caminho da internacionalização dos controles sociais – a
capacidade de seguir por conta própria as expectativas tidas como legítimas ou ir
contra elas.” (Habermas. 1990, p.215)

A formação da subjetividade, centrada em um fazer social que se constitui


intersubjetivamente no mundo da vida, traz em si uma gama de elementos fundantes da
memória social e como tal produtora da memória individual, que preferimos chamar de
memória intersubjetiva, pois destaca o caráter relacional entre o sujeito e o mundo da vida.
Esta memória intersubjetiva se faz atuante na sala de aula de história, entra sem pedir
permissão. Está presente na estranheza que a História causa no estudante e em seus
argumentos contrários ao que é ensinado pelo professor ou apresentado pelo livro didático.
A memória que compõe a História, a memória social e a memória intersubjetiva existentes
na sala de aula, estas podem tornar-se elementos operacionalizadores da história-ensinada.

O aluno se constitui como um sujeito do seu tempo e de sua sociedade. Desta forma
as tradições culturais estão presentes na construção de sua individuação, isto é, o entorno
nos influencia e nos forma. Ao crescermos no ambiente social, podemos construir uma
autonomia capaz de analisar as tradições que nos cercam e estabelecer critérios para
aceitação das mesmas; estabelecendo critérios para nossas ações, ou até opondo-nos as
tradições estabelecidas. O EU pós-convencional, autônomo. Não estamos propondo um
individualismo capaz de fugir do meio social. Habermas não propõe esse individualismo,
ele aponta que o mundo da vida nos forma, mas que somos capazes de ir além do que está
estabelecido.

História-ensinada é um diferencial tanto pedagógico quanto filosófico, sua definição


enquanto estrutura visa, como já apresentamos, clarificar o encaminhamento feito por essa
pesquisa e a esperança embutida no nosso falar, que acredita num porvir social mais
democrático.

1.4. A temática na literatura

Na revisão bibliográfica por nós realizada, nos deparamos com uma realidade pouco
animadora ligada à pequena produção disponível sobre o tema ensino de história. Quando
o ensino de história entra em foco, surgem dois caminhos que tendem a rivalizar – entre
uma análise de cunho historiográfico e uma análise educacional – sendo a articulação
desses dois elementos o ponto nevrálgico para a prática pedagógica da sala de aula. O
ensino de história tornou-se cativo da História produzida nos centros de investigação
oficiais e que determinaram por muito tempo o que deveria ser ensinado nas salas de aulas.
Nessa perspectiva o que é aplicado na sala de aula conduz a uma historiografia determinada
que ignora, na maioria das vezes, o fato de que os estudantes que compõem a sala de aula,
em geral, não são partes integrantes dessa História, e como tal não são valorizados como
sujeitos históricos. Nessa direção, a pesquisa nesta área é muito importante.

Observamos durante o levantamento bibliográfico que os debates estão centrados


em algumas temáticas relativas ao ensino de história. São elas:

1. Revisão dos conteúdos aplicados em sala de aula;


2. Ensino de história focado em história conceitual ou temática;
3. Análise dos parâmetros curriculares nacionais referentes ao ensino de história;
4. Pedagogia do ensino de história centrado em projetos;
5. Didática do ensino de história.

Os debates citados foram encontrados principalmente em artigos de revistas


dedicadas à educação, que tiveram sua publicação no período de 1999 e 2000. Na maioria,
constavam relatos de projetos desenvolvidos durante este período, que tinham como eixo
central a comemoração dos “500 anos de descoberta” do Brasil.
Em levantamento mais recete, em publicações do primeiro semestre de 2003,
destacamos dois livros que iniciam outras discussões, mas continuam seguindo a tendência
apontada acima. O primeiro é o livro organizado por Martha Abreu e Rachel Soihet –
Ensino de História: conceito, temáticas e metodologia – com base nos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCNs). As autoras tecem uma reflexão relacionando a pesquisas
historiográficas e sua articulação com o ensino de história. O segundo e o livro escrito por
Selva Guimarães Fonseca – Didática e prática de ensino de história: Experiências,
reflexões e aprendizados – em que a autora analisa a trajetória pedagógica e suas
dimensões, fazendo sugestões metodológicas em um segundo momento do livro.

Nos levantamentos feitos referentes a projetos, dissertações e teses, defendidas no


Rio de Janeiro, que têm como eixo central o ensino de história, nos últimos dez anos, foram
encontrados:

1. Uma dissertação de mestrado – Mais história e ainda mais docência: Por


uma epistemologia da prática docente no ensino de História. Niterói, UFF;
2. Uma tese de doutorado – Ensino de história: entre saberes e prática. Rio
de Janeiro, PUC;
3. Um projeto de doutorado – Um objeto de ensino chamado história (a
disciplina história na trama da didatização) Rio de Janeiro, PUC.

Tendo como ponto principal a teoria dos saberes, distinguindo-se da pesquisa


desenvolvida por nós nesta dissertação. No levantamento realizado, estas foram as últimas
pesquisas realizadas nas pós-graduações no Rio de Janeiro nos últimos dez anos. As
citadas foram realizadas no período entre 2000 e 2002.

Nossa pesquisa tem como eixo norteador e principal a questão de indagação sobre a
história-ensinada, o ato de fala em sala de aula e a memória social. Nessa perspectiva,
a pesquisa desenvolvida caminhará por espaços pouco visitados. A articulação entre
memória e História tem sido um ponto de profundo conflito nos debates historiográficos e,
podemos afirmar, ignorado quando encaminhado para o ensino de história. A existência de
uma memória presente na sala de aula, trazida pelo estudante, é geralmente descartada nas
práticas pedagógicas, já que estas centram sua ação em fatos e conseqüências propostos por
uma historiografia que define o processo histórico em um caráter linearizado por uma
conduta factual e cronológica. Escapar desta prática é o grande desafio. E conduzir uma
investigação que saliente a importância de uma articulação entre memória e História na
prática da história-ensinada via diálogo, é uma caminhada, com poucos recursos externos
que ajudem nos passos a serem trilhados.
II Capítulo

2. Dialogando com a teoria da ação comunicativa


As contribuições da teoria habermasiana para a construção teórica da pesquisa

2.1. Nossa escolha teórica

A teoria do agir comunicativo e a guinada paradigmática centrada na linguagem


proposta por Habermas permeiam toda a construção teórica desta dissertação. Escolhemos
este autor por encontrarmos em sua teoria uma ruptura real e possível com a teoria centrada
no sujeito kantiano e com o positivismo7 proposto por Auguste Comte. O agir
comunicativo nos remete à democracia do paradigma da linguagem, fazendo da razão um
processo mediado pela argumentação, situada no mundo da vida. Habermas constrói em
sua teoria da ação comunicativa uma ruptura como a razão pura kantiana8, estabelecendo a
razão situada que veremos a seguir.

Habermas rompe de forma crítica com o cientificismo positivista, pois postula a


adoção do pensamento reflexivo, pautado na busca cooperativa pelo melhor argumento.
Constrói também uma outra forma de dimensionar a razão, construindo um escape para a
racionalidade kantiana baseada no apriorismo, questão que será tratada mais adiante neste
capítulo. Esta ruptura conceitual indica um outro caminho de pensar o mundo e de fazer
ciência. Na construção teórica de Habermas encontramos um solo fértil para o
encaminhamento da pesquisa que realizamos.

7
“Positivismo. Este termo foi empregado pela primeira vez por Saint-Simon, para designar o método exato
das ciências e sua extensão para a filosofia. Foi adotado por Augusto Comte para a sua filosofia e, graças a
ele, passou a designar a grande corrente filosófica que, na segunda metade do séc. XIX, teve numerosíssimas
e variadas manifestações em todo o países do mundo ocidental.
(...)
“O método da ciência é pura descrição, no sentido de descrever os fatos e mostrar as relações constantes entre
os fatos expressos pela lei, que permitem a previsão dos próprios fatos (Comte)” (Abbagnano, 2000, 776-777)
8
Kant chamou de pura, absolutamente pura, o conhecimento “no qual, em geral, não se mistura nenhuma
experiência ou sensação, sendo por isso possível completamente a priori”. Neste sentido, razão pura “é a que
contém os princípios para conhecer algo absolutamente a priori”. (Abbagmano, 2000, p. 813)
Conjugamos a teoria habermasiana com o interesse central desta dissertação que é o
ensino de história e buscamos, à luz do paradigma da linguagem proposto por Habermas,
uma compreensão do processo que se realiza em sala de aula, na escola, a que chamamos
de história-ensinada.

A opção por Habermas está calcada na construção conceitual que conduz todos os
atores sociais que pensam e falam ao processo da racionalidade, o que nos possibilita
valorizar assim duas pessoas fundamentais no caso desta pesquisa, o professor e o aluno.
O ato de fala coloca-se no centro da pesquisa; é a partir deste ato que compreendemos as
ações que se desenvolvem.

2.2. Quem é Habermas

Jürgen Habermas é um intelectual alemão – filósofo e sociólogo – pertencente à


segunda geração dos frankfurtianos. Trabalhou no Instituto de Pesquisa Social no período
de 1956 e 1959, sendo assistente de pesquisa de Adorno, e por isso considerado mais tarde
seu legítimo herdeiro. Naquele período desenvolveu a pesquisa empírica de seu livro
“Estudante e Política”, publicado em 1961. Logo após, defende sua tese de livre-docência
– Mudança da Esfera Pública – que foi publicada em 1962. Sua defesa de livre-docência
ocorreu em Marburgo, pois Adorno recusou-se a orientar sua tese. A partir de 1961,
Habermas assume a atividade acadêmica como professor, até 1994, quando se aposenta,
mas suas contribuições para o mundo acadêmico não terminam com a aposentadoria, já que
se mantém produzindo até a atualidade.

A partir da década de 70, Habermas inicia sua crítica ao paradigma da razão


baseado na filosofia da consciência e propõe sua substituição pelo paradigma da linguagem
como critério de racionalidade por excelência. Nesse processo Habermas constrói a Teoria
do Agir Comunicativo, propondo uma saída para a filosofia do sujeito, construindo uma
teoria pautada na razão comunicativa9.

2.3. Uma outra via para sair da filosofia do sujeito

A partir da década de 70, Habermas inicia a construção teórica que chamará de


“Agir comunicativo” que passa a ocupar o centro de sua reflexão. Em suas palavras
podemos vislumbrar a importância desta teoria para Habermas.

“O meu interesse fundamental está voltado prioritariamente para a


reconstrução das condições realmente existentes, na verdade sob a premissa de
que os indivíduos socializados, quando no seu dia-a-dia se comunicam entre si
através da linguagem comum, não têm como evitar que se empregue essa
linguagem comum num sentido voltado ao entendimento. E ao fazerem isso, eles
precisam tomar como ponto de partida determinadas pressuposições pragmáticas,
nos quais se faz valer algo parecido com uma razão comunicativa. É tudo muito
simples: sempre que nós pensamos no que estamos dizendo, levantamos com
relação ao que é dito a pretensão de que é verdadeiro, correto ou sincero; e
através disso irrompe em nosso dia-a-dia um fragmento de idealidade. Pois essas
pretensões à validez só podem ser resgatadas, no final das contas, através de
argumentos; ao mesmo tempo, nós sabemos, porém que certos argumentos, que
hoje nos parecem consistentes, poderão revelar-se falsos no futuro, à luz de novas
experiências e informações.” (Habermas, 1993, p. 98)

A linguagem nessa perspectiva torna-se o local da racionalidade por excelência e os


meios lingüísticos, espaço do entendimento. Desta forma Habermas centra sua teoria na
linguagem e nos meios pelos quais ela se faz materialidade, no mundo da vida. O conceito
de mundo da vida é aprofundado a seguir neste capítulo. O paradigma proposto por
Habermas salienta o entendimento entre os sujeitos socializados. A linguagem torna-se o
espaço no qual a racionalidade pode ser vista e se corporifica gerando conhecimento.

A linguagem cotidiana – ação comunicativa diária – não é constantemente um


espaço de reflexão da razão. A ação comunicativa em sua dimensão reflexiva se estabelece

9
Os dados bibliográficos foram retirados de Aragão, 2002
como um local de reflexão da racionalidade. Desta forma existem critérios para efetivação
da razão comunicativa que trataremos a seguir (ver argumentação).

Nos quatro itens que se seguem destacamos os principais conceitos da teoria da


Ação Comunicativa de Habermas que utilizaremos na presente dissertação: mundo da vida,
razão situada, pretensão de validez e argumentação.

2.3.1. Mundo da vida

“O mundo da vida só pode ser apreendido a tergo.” (Habermas, 2000, p. 417)

O conceito de mundo da vida é um conceito chave para Habermas. Este conceito


corresponde a uma visão de mundo compartilhado, isto é, os atores da fala possuem um
pano de fundo comum que proporciona elementos da tradição cultural que fornecem
condutores de ações e lentes para a interpretação dos mundos.

Para Habermas o mundo da vida possui uma característica de permanência cultural


contida em sua capacidade de ser propagado às gerações futuras, parecendo como pano de
fundo das práticas comunicativas, como elementos oriundos das práticas sociais de que são
constituídos e constituem as tradições culturais e os objetos simbólicos representativos dos
diversos grupos (Aragão, 2002, p. 60). São as tradições culturais constituídas no mundo da
vida, partilhadas pelos atores da fala, que fornecem os elementos que comporão este ato.

Os elementos culturais que compõem o pano de fundo também fornecem uma outra
característica fundante do mundo da vida, o seu aspecto empírico contextual, isto é, quando
uma pretensão de validez proferida entra em confronto com as tradições culturais aceitas e
valorizadas, estabelece-se um espaço de questionamento, tendo-se a sua validade analisada.
Nessa perspectiva o mundo da vida deixa o seu status a priori e é colocado como um espaço
operacionalizante, isto é, ele – o mundo da vida – existe e está posto. Com o nascimento
tomamos contato com suas estruturas, valores e verdades, tudo isso nos constitui enquanto
sujeitos e nos municia na nossa trajetória pelo mudo da vida; porém durante a caminhada
pela vida nos confrontamos com as “verdades” e estabelecemos um questionamento quanto
sua validez no que está posto. O ato de questionarmos o posto e travarmos com ele uma
argumentação que pode possibilitar uma nova forma de ser, desconstrói o apriorismo do
mundo da vida e o traz para o espaço da construção e da argumentação. As normas e regras
sociais tornam-se pretensões de validezes e como tais, passíveis de julgamento.

O EU pós-convencional é o sujeito capaz de ir além das pretensões estabelecidas no


mundo da vida, desta forma ele pode ir além dos controles sociais e das expectativas tidas
como legítimas, podendo assim construir uma postura individuada de aceitação, negação ou
re-significação do estabelecido no mundo da vida.

Segundo Habermas, é na ação comunicativa que o mundo da vida se reproduz em


seu todo. A linguagem é o lugar em que descobrimos e descortinamos o mundo da vida,
desde o nosso nascimento. Somos colocados em um mundo que existe muito antes de nós e
provavelmente existirá depois que não estivermos mais aqui. Porém como nos
movimentamos e vivemos nesse mundo se não conhecemos seu manual de instrução?
Nesse aspecto a linguagem tem papel fundante, na descoberta do mundo da vida e de nossa
participação para a construção do mesmo. Habermas diz

“que o mundo da vida se reproduz à medida que se cumprem estas três


funções que ultrapassam a perspectiva do ator: o prosseguimento das tradições
culturais, a integração de grupos por meio de normas e valores e a socialização das
gerações que se sucedem.” (Habermas, 2000, p. 417)

As tradições trazem em si uma perspectiva de continuidade e de perenidade que as


vincula à relação transcendental do mundo da vida, de que já tratamos neste texto. Cabe-
nos destacar que são essas tradições que compõem o pano de fundo do mundo da vida e nos
fornecem elementos para o nosso trânsito na sociedade e nas relações coletivas que nos
cercam. O pano de fundo cultural nos proporciona a gradativa entrada no mundo dos
falantes e a nossa competência comunicativa.
O mundo da vida, segundo a teoria habermasiana, é partilhado intersubjetivamente;
suas normas e estruturas foram e são construídas pelo todo da sociedade. O mundo da vida
se constitui como um espaço em constante construção e reconstrução, presente no próprio
dinamismo da humanidade. Também é apresentado como horizonte para a prática da ação
comunicativa e “um amplo pano de fundo consensual, sem o qual a prática cotidiana não
poderia funcionar de forma nenhuma.” (Habermas, 1993, p. 105)

Em relação à subjetividade e ao mundo da vida, Habermas afirma:

“Por causa da autoridade epistêmica, que um falante detém para as


expressões verdadeiras de cada uma das ‘vivências’, delimitamos um ‘mundo
interior’ em relação ao mundo objetivo e ao mundo social” (Habermas, 2002, p.
62)

O mundo subjetivo ou mundo interior é formado por todas as “vivências que um


falante pode fazer, no mundo expressivo da auto-apresentação do conteúdo das sentenças
da primeira pessoa, quando deseja abandonar algo de si diante de um público.”(Habermas,
2002, p. 63)

O mundo interior se forma intersubjetivamente no mundo da vida, porém tem seu


valor e papel na formação do todo social. “O sujeito final deve encontrar-se ‘no mundo’,
sem perder absolutamente sua espontaneidade ‘testemunhadora do mundo’.”’ (Habermas,
2002, p. 31) O ato testemunhador do mundo nos coloca como co-partícipe de sua
construção e manutenção. Cada vez que nos admiramos, irritamos ou nos questionamos
com o que está posto, exercemos a nossa função criadora e produtora do todo social e
articuladora da construção da cultura social constantemente em produção e formadora do
pano de fundo do mundo da vida.

O mundo da vida se constitui, nesse sentido, como lugar em que nos movimentamos
e somos co-autores de sua existência e ele co-autor de nossa subjetividade na coletividade
social que nos forma e é por nós formada. É no mundo da vida que nos tornamos atores e
produtores do ato de fala. A fala constitui o mundo da vida assim como é constituída por
ele. É uma ação de reciprocidade e de revelação, pois se é na fala que o mundo da vida se
materializa é no mundo da vida que a fala torna-se encarnada.

2.3.2. Razão situada

Habermas constrói o conceito de razão comunicativa em substituição ao conceito


de razão pura kantiana. A razão tem um papel ideal e estável na concepção de Kant,
estando a razão fora do mundo da vida e de seu dinamismo, a validez é constante, na
perspectiva de Kant, pois tem sua base na razão estática, pura, sendo assim não tendo base
na experiência. A validez na visão kantiana é incondicionada, isto é, está eternamente na
mesma condição, não sofrendo alteração mediante as relações estabelecidas pela sociedade
ou pelo caminhar histórico.

Em Kant, os conceitos existem a priori10, isto é, eles existem antes mesmo de


utilizá-los ou de se fazerem necessários no cotidiano. Quando nos deparamos com um
objeto, estaremos percebendo-o pela sensibilidade que nos fornece intuições; a análise
desse objeto é feita a posteriori, porém a forma deste existe antes no nosso espírito, na
intuição pura que se existe a priori (Kant, 2002) A razão em Habermas é diametralmente
oposta à perspectiva construída por Kant. Nas palavras de Habermas podemos depreender
sua concepção da razão kantiana:

“Do mundo inteligível temos apenas uma ‘idéia’, diz Kant, nenhum
‘conhecimento’. Depois que a idéia cosmológica foi ultrapassada, na suposição de um
mundo objetivo comum, a orientação para as exigências de validez incondicionadas
põe os recursos do mundo eternamente inteligível em liberdade para a aquisição do
conhecimento empírico.”(Habermas, 2002, p. 45)

10
“O conceito puro contém somente a forma do pensamento de um objeto em geral. Tão-somente as
intuições ou os conceitos puros são possíveis a priori. Os empíricos só a posteriori.’ (Kant, 2002, p. 89)
O conhecimento empírico se forma a posteriori, é na relação com o objeto e o
entorno que ele – o conhecimento – é construído. Em Habermas, este entorno e a nossa
relação com ele criam o processo racional. Uma razão situada é condicional, produzida no
mundo da vida e efetivada processualmente na linguagem. Ao nos depararmos com o
novo, travamos com ele uma relação de conhecimento e estabelecemos uma análise
balisada nas pretensões de validez por nós construídas ao longo da vida.

A razão em Habermas é situada e a validez é uma pretensão apresentada no


argumento (ver Argumentação, mais adiante). Tal pretensão só tem valor se for aceita
intersubjetivamente. Desta forma a validez em Habermas não é incondicionada e, sim,
processual, se estabelecendo no espaço social, cultural e político dos proponentes. Assim,
o autor a situa no mundo da vida.

A razão comunicativa é estabelecida no processo de argumentação, desta forma ela


não está vinculada a nenhum conteúdo substantivo de qualquer mundo da vida ou tradição
cultural. Porém o mundo da vida traz para a argumentação elementos de suas tradições
culturais, o que nos parece em primeiro momento uma contradição. A razão é processual
desta forma ela está sendo feita no ato argumentativo, ela não está estabelecida no mundo
da vida. Os atores do processo são sujeitos do seu mundo da vida e por isso são co-autores
deste mundo e o mundo da vida os forma também, desta forma se constitui uma relação
cooperativa e ativa. Sendo assim a razão se estabelece em contato com o mundo da vida
porém é construída no ato argumentativo, diferente de uma racionalidade estabelecida e
fixa oriunda das tradições e dos preceitos existentes.

Na perspectiva kantiana, a verdade se orienta por diretrizes comuns a todos os


sujeitos. Estas diretrizes são estáveis, pois estão calcadas no apriorismo da razão e como tal
tem seu papel de legisladora e legitimadora da validez. As validezes são certezas
estabelecidas na transcendentalidade, pois a razão não tem relação direta com o
entendimento do objeto e, sim, com o juízo que é aplicado pela intuição que assim
determina a valoração do objeto em questão. Como Habermas nos aponta em relação à
validez em Kant:
“Os participantes da comunicação podem se entender por cima dos limites dos
mundos da vida divergentes, porque eles, com a visão de um mundo objetivo comum,
se orientam pela exigência da verdade, isto é, da validade incondicional de sua
afirmação.”(Habermas, 2002, p.46)

Para Habermas, o mundo da vida dá elementos de intercessão entre os falantes; é o


horizonte que os aglutina. “O mundo da vida constitui um horizonte e, ao mesmo tempo,
oferece um acervo de evidências culturais do qual os participantes da comunicação tiram,
em seus esforços de interpretação, padrões exegéticos consentidos.”(Habermas, 2000, p.
416). O mundo da vida é o “lócus” da racionalidade, pois é nele, pela lienguagem, que os
elementos fundamentais da pretensão de validez são construídos e constituídos e ganham
materialidade e valoração na argumentação.

O mundo da vida, segundo Habermas, só pode ser conhecido pelas costas, somente
na fala tem sua materialidade e se revela aos falantes. Porém, ele é conhecido e
experimentado pelos atores desde seu nascimento – mediado pelos atos de fala, esta
experiência é intersubjetiva dando aos atores poder de formar-se nesse mundo e formá-lo
deixando suas marcas. Como Habermas nos fala:

“Os contextos dos mundos da vida e as práticas lingüísticas nas quais os


sujeitos socializados ‘desde sempre’ se encontram, revelam o mundo da perspectiva
das tradições e costumes instituidores de significados. Os pertencentes a uma
comunidade de linguagem local experimentam tudo o que ocorre no mundo à luz de
uma pré-compreensão ‘gramatical’ habitual, não como objetos neutros.” (Habemas,
2002, p.46)

O contexto do mundo da vida disponibiliza elementos que são utilizados na


racionalidade processual que no ato da argumentação promoverá a aceitabilidade ou
refutação da pretensão de validez apresentada. A razão é processual, isto é, ela ocorre no
mundo da vida e tem em seu processo elementos da tradição cultural que cerca todos os
atores.

A razão em Habermas é construída intersubjetivamente e recebe o nome de


pretensão de validez podendo assim ser julgada, salientado assim seu caráter de razão
situada. Nessa perspectiva a argumentação ganha um papel de profunda relevância e
importância na construção de uma razão situada.

A razão para Habermas está situada em uma estrutura chamada mundo da vida. É
este mundo da vida que dá validez ou não para a argumentação. Por isso a validez é
pretensão e como tal é julgável pelos atores no ato de fala. A argumentação constitui a
forma reflexiva da ação comunicativa.

2.3.3. Pretensão de validez

A pretensão de validez norteia o argumento dos atores na ação comunicativa em sua


forma reflexiva. Não como uma validez estável e perene, sim como uma pretensão que está
situada no todo social desta ação e deve passar pela avaliação de seus pares. Uma
pretensão de validez está contextualizada no mundo da vida, produzindo assim um processo
argumentativo em uma razão situada e, por isso, sendo reconhecida ou não pelos seus pares
como validez. A pretensão de validez está situada no mundo da vida e este municia sua
estruturação quanto pretensão e, fornece instrumentos para o seu julgamento, isto é, quando
uma pretensão é apresentada e reconhecida como uma expressão controversa estabelecesse-
se um processo argumentativo. A pretensão de validez deve ser reconhecida pelos atores
da fala e validada no processo da argumentação, quando a pretensão de validez não é
reconhecida no processo perde seu valor como pretensão e é refutada.

Como está categorizada como pretensão de validez e não como conceito existente a
priori ou dogma estável e perene, cabe a possibilidade do julgamento. Quando é
dimensionada como verdade, ela muda de posição e torna-se o juiz, logo não cabendo nessa
perspectiva o espaço para a argumentação, pois seu valor e seu papel já estão definidos a
priori. Nessa forma de olhar e qualificar uma afirmativa – pretensão de validez –, quando
apresentamos uma informação material ou ideológica, estaremos submetendo-a um
julgamento e a um reconhecimento. Como nos apresenta Habermas:
“Essa suposição diz que um sujeito agindo intencionalmente está em
condição, sob circunstâncias apropriadas, de dar fundamento mais ou menos plausível,
pelo qual ele (ou ela) se conduziu ou expressou (ou se deixou reagir) assim e não de
outra forma. Afirmações incompreensíveis e estranhas, bizarras e enigmáticas
provocam interesse, porque elas implicitamente contrariam uma suposição inevitável
no agir comunicativo e, por isso, provocam irritação.”(Habermas, 2002, p. 47)

Quando o sujeito apresenta uma pretensão de validez estranha ao pano de fundo


cultural e não é reconhecido pelos atores da fala, pode causar interesse em um primeiro
contato, pois está fora do mundo da vida e assim é exótica, porém se não apresentar uma
validade argumentativa será refutado como pretensão e pode causar irritabilidade nos atores
da fala. Aquilo que não reconhecemos imediatamente, nos faz lançar um segundo olhar
investigativo sobre ele, porém quando travarmos um contato e este objeto e, ele não
apresentar validez via racionalidade comunicativa, será destituído do papel de pretensão de
validez e poderá ser refutado.

A razão norteia a pretensão de validez, porém a validade é refutável, isto é, está


sujeita aos argumentos dos seus pares e a suas avaliações enquanto uma pretensão de
validez. Sendo refutável pela razão, não é um saber a priori e, sim, um saber
contextualizado e reflexivo construído no processo do viver. O saber é destituído do seu
lugar de estabilidade privilegiado, passando a ação a ter primazia no paradigma centrado na
linguagem proposto por Habermas. A ação é uma construção, cabendo aos atores uma
participação ativa e interventora na produção, e o saber em uma perspectiva acabada é
entendido como elemento estável. Na racionalidade comunicativa o conhecimento é
processual e efetivado na ação comunicativa inerente ao mundo da vida, passando a ação da
construção do conhecimento a ser valorizada. Como Habermas nos fala:

“Essa diferença de status dos saberes da ação não se esclarece sozinha a partir
da destrancentalização do sujeito agente, que foi transferido do reino dos seres
inteligíveis para o mundo da vida articulado lingüisticamente dos sujeitos
socializados.”(Habermas, 2002, p. 52)
O paradigma centrado na linguagem rompe com o paradigma do sujeito, desta
forma o saber que norteava a validez passa a ser um saber julgável, isto é, um “conceito ou
uma verdade” na racionalidade comunicativa deve ser reconhecido socialmente para assim
ser considerado legítimo. Somente o reconhecimento coletivizado de um saber o torna
legítimo e a legitimidade é construída no espaço da argumentação, logo o saber é
conduzido à arena dos argumentos e sendo assim é julgado. A colocação do saber em
Habermas é oposta ao saber em Kant. Na concepção kantiana o saber tem o papel e o
poder de juiz, pois existe a priori e sendo assim estabelece as regras de aceitação. Na
perspectiva habermasiana, o saber se constitui no mundo da vida e como tal é formado por
este mundo e também é agente formador dele – o mundo da vida, podendo assim ser
construído.

O mundo da vida é o pano de fundo legitimador da pretensão de validez, por isso é


pretensão e como tal pode ser destituída de valor e refutada ao final de uma argumentação.
A validez nesse paradigma só tem valor enquanto sua aceitabilidade social. Constituindo-
se como uma validez situada no seu tempo e lugar, é partilhada pelo grupo no qual este
“valor” se constitui. Não é uma validez efêmera, fugidia e diluída; sim uma valoração
social coletiva, sendo assim dinâmica e em constante construção, como o próprio corpo
social que a compõe.

A pretensão de validez é um elemento essencial na compreensão da guinada


lingüística proposta por Habermas que tem na argumentação seu principal espaço de
materialidade.

2.3.4. Argumentação

A argumentação é o espaço pelo qual a racionalidade comunicativa se propaga e se


faz materialidade. Quando uma pretensão de validez surge no espaço de comunicação
como uma hipótese de verdade, é via argumentação que ela tem sua validade aceita ou
negada. É o argumento que torna a pretensão de validez materializada e permite seu
julgamento pela racionalidade situada existente. Pela ação comunicativa reflexiva é que a
argumentação torna-se o elemento operacionalizador da busca pelo melhor argumento. O
argumento é o meio sinestésico em que a racionalidade comunicativa se faz instrumento
para a aceitação ou não de uma pretensão de validez hipoteticamente apresentada.

Quando um proponente apresenta sua pretensão de validez, seu conhecimento é


apresentado e torna-se um elemento julgável. Lembremos que como pretensão a validez
está categorizada em um conhecimento construído no mundo a vida, seja nas tradições
culturais ou na relações sociais, e assim podem ser julgadas pelos atores capazes de agir e
falar.

O argumento é o instrumento pelo qual as pretensões de validez são apresentadas e


confrontadas. Na concepção de ação comunicativa habermasiana, os falantes, quando
discordam do ponto apresentado, ou melhor, de uma questão pretensamente apresentada
como verdadeira, esta será analisada e julgada à luz da racionalidade presente no mundo da
vida, pela ação do diálogo argumentativo. Todos os componentes da ação argumentativa,
na sua forma reflexiva, deverão estar em igualdade de conhecimento e oportunidade de
fala.

“Por meio de argumentações, o caráter cooperativo das disputas em torno


do melhor argumento se esclarece por uma finalidade relativa a uma função que é
constitutiva para esses jogos de linguagem; os participantes querem se convencer
mutuamente. Ao mesmo tempo que prosseguem o agir cotidiano comunicativo, se
orientam, do nível reflexivo das exigências de validez tematizadas, para como
diante do objetivo do entendimento, porque um proponente só pode ganhar o jogo
quando convence seus oponentes da correção de sua exigências de validez”.
(Habermas, 2002, p.65)

A pretensão de validez que for considerada legítima, a melhor, não tem sua validade
aceita pelo subterfúgio dos acordos. A pretensão de validez é legitimada por meio de um
acordo coletivo e racionalmente situado, uma valoração coletiva em que os argumentos e
contra argumentos fundamentaram a pretensão de validez decorrente desta ação
argumentativa. Uma produção coletiva dos atores da fala, em uma ação comunicativa
basilada na democracia argumentativa.

A argumentação tem um papel fundamental na aprendizagem, pois é pelo


argumento que uma pretensão de validez é aceita ou não, cabendo ao ator da fala organizar-
se como proponente de validez. O discurso argumentativo é o espaço principal para a
reestruturação de uma pretensão e a construção de outras. Como podemos ler em
Habermas,

“A aceitabilidade racional das expressões correspondentes se fundamenta na


capacidade de convencimento dos melhores argumentos. Por isso, aqueles
enfeixados no consentimento racionalmente motivado da tomada de posição de
todos que participam na prática da permuta de fundamentos”.(Habermas, 2002, p.
66)

A aceitabilidade se faz no âmbito racional em que os argumentos visem o


entendimento e sejam compostos por elementos presentes no mundo da vida dos atores do
ato de fala. Um argumento, ou os argumentos presentes na ação comunicativa, vai se
formando na troca do ato de fala, não para embasar uma contra-argumentação que é calcada
no ato falho do seu interlocutor e, sim, na construção argumentativa que vise analisar
criticamente todos os elementos do discurso e este seja clarificado e potencializado como o
melhor argumento, compondo a pretensão de validez de todos os atores que participaram do
processo de argumentação em questão.

Habermas nos aponta quatro pressupostos importantes na construção e no ato da


argumentação que leremos no trecho abaixo:

“(a) publicidade e inclusão: ninguém que, à vista de uma exigência de validez


controversa, possa trazer uma contribuição relevante, deve ser excluído; (b) direitos
comunicativos iguais: a todos são dadas as mesmas chances de expressar sobre as
coisas; (c) exclusão de enganos e ilusão: os participantes devem pretender o que
dizem; e (d) não-coação; a comunicação deve estar livre de restrições, que impedem
que o melhor argumento venha à tona e determine a saída da discussão. Os
pressupostos (a), (b) e (d) estabelecem as regras do processo de argumentação de
universalismo igualitário, que tem por conseqüência, considerando as perguntas
morais-práticas, que os interesses e orientações de valores de cada envolvido sejam
considerados igualmente. E porque nos discursos práticos os participantes são
simultaneamente os envolvidos, assume o pressuposto (c) que, considerando as
perguntas teórico-empíricas, exige exclusivamente uma ponderação correta e imparcial
dos argumentos e de ser sensível contra o auto-engano criticamente, tanto em relação à
auto compreensão como referentemente à compreensão do mundo dos
outros”.(Habermas 2002, p. 67)

A argumentação é a instrumentalização da ação comunicativa, é nesse espaço


privilegiado que os atores colocam suas pretensões e as abrem para um debate, segundo a
teoria habermasiana, democrático e formado de racionalidade. O ponto culminante da
argumentação é o consenso, neste todos os atores do ato de fala chegam juntos a um acordo
coletivo e consensual em relação a uma pretensa validez.

O entendimento é o objetivo central do processo argumentativo que nos leva a uma


compreensão nascida da criticidade. A ação comunicativa é uma ação social e tem a
finalidade de produzir entendimentos entres os atores via linguagem submetendo a
pretensão a uma atitude argumentativa de caráter critico que revelam as várias facetas da
humanidade e dos mundos da vida em que a racionalidade esta inserida.

2.4. Nossa matriz teórica e o ensino de história

No primeiro capítulo desta dissertação fazemos um breve passeio histórico pelo


ensino de história e sua origem que revela profundamente seu papel e matriz teórica ainda
muito calcados no nacionalismo, revelando o quanto sua condução propaga uma memória.
As questões teóricas referentes à memória serão tratadas no próximo capítulo desta
dissertação. Neste momento queremos definir a intercessão entre a teoria habermasiana, o
ensino de história e a memória, este, portanto, é o objetivo da presente seção neste capítulo
da dissertação.

O ensino de história como produtor de memória estável e elevada à categoria de


verdade está em crise, assim como as formas tradicionais de construção e manutenção
dessas memórias fabricadas ao longo dos últimos três séculos, onde a modernidade se
assentou e o nacionalismo foi naturalizado, tornando-se, segundo esta vertente, uma
concepção natural e inerente à humanidade. O nacionalismo muitas vezes é tratado como
um elemento cultural transcendente, fundamentando uma racionalidade identitária e de
segregação do diferente, aquele que não pertence à identidade nacional, onde um nascer em
um Estado definiria o quem nós somos.

Habermas, ao analisar as festividades da República Federal da Alemanha, aponta


uma questão central em todos os países: as cerimônias públicas comemorativas que têm
como intuito o fortalecimento do sentimento nacional, porém chocam-se com o cadinho de
culturas diferentes que os diversos países tornaram-se nas últimas décadas. Podemos
perceber o caminho que Habermas indica para análise no trecho a seguir:

“as formas tradicionais de memória coletiva da nação, iniciadas pelos


dirigentes e praticadas pelo povo, caíram hoje no redemoinho da reflexão. E,
através da ampliação discursiva e da pluralização interna do processo de decisão,
os símbolos e cerimônias perderam o seu caráter “naturalmente” obrigatório
(urwüchsig), isto é, o caráter de algo que abriga, independente da consciência e
da reflexão.” (Habermas, 2003, p. 79)

Assim como as práticas tradicionais de memória, o ensino de história encontra-se


nesse redemoinho de reflexões, principalmente porque sua gênese é oriunda de uma
estratégia de promoção do nacionalismo e próxima a Estado/Nação constituído. Este
processo de questionamento da História posta como verdade e estática chega aos espaços
escolares e invade a sala de aula de história. Os alunos questionam o professor sobre o
valor de se estudar história. Ao questionarem sobre o seu valor eles apontam também uma
problemática central da historiografia que aparece no ensino de história, o seu
distanciamento do universo que cerca o aluno que está nas nossas salas de aula.

As reflexões sobre a história-ensinada em sala de aula podem apontar novos olhares.


Podemos nos questionar se uma ação reflexiva sobre o posto e imposto e, também sobre as
memórias que habitam no mundo vida pode também causar um esvaziamento desta
memória existente. Memórias estas que podem ser artificiais ou não, que se fazem
presentes no mundo da vida, trazendo tudo para o redemoinho das reflexões e
desqualificando estas memórias como objetos de valor. Um risco que podemos apontar
para este viés de condução do próprio ensino de história, mas que também aponta uma nova
possibilidade para o fazer didático da sala de aula.

O ensino de história na maioria das vezes está dimensionado nos dignos de memória
e fundamentando uma memória vinculada ao Estado/Nação funcionando como um mito
(Dosse, 2002, p.401), causando estranheza ao aluno e provocando um desinteresse.

Muitas vezes a memória invade os espaços da sala de aula destituindo o que foi
apresentado pelo professor como válido, pois traz em si o pano de fundo cultural que forma
os alunos e se diferencia profundamente do ensino de história. O mundo da vida se fazendo
presente nos espaços escolares e nas relações pedagógicas e a cultura social historicamente
constituída que questiona as verdades apresentadas pela História.

A memória como elemento invasivo questiona o posto como verdade naturalizada,


pois a verdade estabelecida no ensino de história entra em choque com as pretensões
existentes no mundo da vida. Esta questão nos aproxima da teoria habermasiana e da
perspectiva de compreender as relações estabelecidas na sala de aula via atos de fala.

Dois elementos são fundamentais na construção teórica desta dissertação: primeiro,


a ação comunicativa na sua forma reflexiva como possibilidade pedagógica e segundo, a
memória social como elemento fundante das argumentações construídas no espaço da sala
de aula.

Para Habermas, a ação comunicativa é necessária na construção da memória social


no mundo da vida, promovendo a manutenção das tradições culturais, valores sociais e
costumes, sendo passados de uma geração para outra. Desta forma a ação comunicativa é o
meio pelo qual a memória social se efetiva no mundo da vida e desta forma se faz presente
na continuidade estabelecida pelas gerações futuras.

Acreditamos que uma matriz teórica que conjugue os elementos do diálogo e


memória possibilita um novo olhar sobre o fazer pedagógico do ensino de história. Esta
conjugação possibilita a valorização tanto do ato de ensinar como do papel da história na
atualidade. Esses dois elementos – história e ensino – são apontados como em crise pela
sociedade pós-moderna. Dosse ao final de seu texto “O método histórico e os vestígios
memoriais” vislumbra o papel da história na sociedade atual. Diz o autor:

“Indo da conjuntura memorial atual, caracterizada pela fraqueza do


horizonte de expectativa, pela ausência do projeto em nossa sociedade moderna, é
preciso lembrar o papel da história como ética de responsabilidade para o
presente. A história não tem mais sentido, mas o luto das visões teleológicas pode
transformar-se numa chance para revisitar, a partir do passado, os múltiplos
possíveis do presente, a fim de pensar o mundo de amanhã.” (Dosse, 2002, p.
407)

A sala de aula de história, vinculada a uma ação comunicativa na sua forma


reflexiva, potencializa o espaço coletivo de argumentação, possibilitando a significação ou
a re-significação das tradições culturais estabelecidas no mundo da vida.

O ensino de história tradicionalmente naturaliza algumas tradições culturais –


artificiais ou espontâneas. A ação comunicativa em sua ação cotidiana serve para a
manutenção destas tradições culturais, fortalecendo a memória social. O espaço da sala de
aula pode viabilizar um diálogo democrático que permita que o cotidiano que nos cerca seja
visto para o além do estabelecido e naturalizado. Conduzir o que está estabelecido como
memória social para o espaço do diálogo, possibilitando a manutenção, destruição ou
reconstrução dessas tradições que nos cercam, pode ser efetivado no espaço da sala de aula
de história.

A ação comunicativa na sua forma reflexiva, mediada pelo argumentação, pode


viabilizar o fazer pedagógico. A sala de aula não é um espaço de diálogo comum, ela é
permeada por critérios e estruturas construídas na tradição escolar. Quando fazemos deste
espaço um espaço de diálogo reflexivo podemos resgatar o sujeito histórico muitas vezes
calados nas práticas cotidianas. Mesmo correndo o risco de desconstruir tradições
estabelecidas no imaginário social, o ensino de história não pode se furtar a promover uma
reflexão sobre o que está sendo ensinado. Nesta reflexão as vozes dos alunos trarão muito
da memória social e logo serão também elementos nesta prática estabelecida, que
chamamos de história-ensinada.

Pensar o mundo de amanhã pode e deve ser o papel do ensino de história, desta
forma sua função social e cultural continua viva e vicejando. Nesta pesquisa buscamos os
elementos que constroem uma prática pedagógica para a construção do amanhã.
III. Capítulo

3. Ensino de história e a produção de uma memória


A memória social como elemento constitutivo da História e do ensino de história

O presente capítulo tem o objetivo de definir os elementos constitutivos da memória


e sua relação com o ensino de história. Trataremos a MEMÓRIA em seus aspectos
subjetivo e social bem como a ação consentida e invasiva que a memória tem no espaço da
sala de aula. Relacionaremos o estudo de aspectos teóricos da memória com a teoria
habermasiana que é a base de nossa pesquisa.

Nesta dissertação, buscamos então uma articulação entre memória e história. Essa
articulação torna-se fundamental quando transposta para o espaço da sala de aula, pois a
sala de aula de história é um local em que memória e história tornam-se elementos em geral
promotores de conflito e mal estar pedagógico. O ensino de história tradicionalmente é
produtor ou melhor propagador de uma memória social específica, muito vinculada ao
nacionalismo e ao poder vigente (ver cap. I). O ensino de história nesta vertente
nacionalista e elitista exclui personagens semelhantes aos alunos e calam a memória
relacionadas a estes personagens, porém essa memória calada continua presente no mundo
da vida, logo os alunos se relacionam com esta memória e a trazem para a sala de aula. Ao
trazer uma memória diferente da história que está sendo ensinada promovem muitas vezes
conflitos ou mal estar pedagógico.

A dissociação entre história e memória durante muito tempo sagrou as


produções historiográficas, provocando uma ruptura com as tradições e construindo um
apagamento da memória. De acordo com Dosse (2002):

“A memória coletiva apresenta-se como um rio que amplia seu leito à


medida em que corre sobre uma linha contínua, ao passo que a história corta,
delimita períodos e privilegia as diferenças, as mudanças e outras
descontinuidade”.(Dosse, 2002, p. 402)
Este rio que amplia seu leito e corre em uma linha contínua estende-se sobre o
espaço da sala de aula e torna-se visível nas falas dos alunos e também do professor. A
memória social serve como parâmetro para as análises e lente para o nosso olhar sobre a
História, estendendo suas margens para o ato de ensinar história e se materializa nas falas
do professor e dos alunos. A história-ensinada tende a conjugar elementos tanto da
memória social como da História em seus procedimentos pedagógicos.

A História atualmente tem re-significado a memória e seu papel nas produções


historiográficas; é o que Dosse chama de guinada historiográfica como podemos ler no
trecho a seguir:

“O deslocamento do olhar do historiador corresponde inteiramente à


guinada historiográfica atual, segundo a qual a tradição só vale como
tradicionalidade, sob o ponto de vista do quanto ela afeta o presente. A distância
temporal não é mais então uma deficiência, mas sim um trunfo para uma
apropriação dos diversos estratos de sentido de acontecimento passados
transformados em acontecimentos ‘supersignificados’”. (Dosse, 2002, p. 405)

Os acontecimentos que Dosse define como supersignificados estão na base cultural


de uma sociedade e como pano de fundo cultural. Podemos nesse momento começar a
vislumbrar a relação possível entre a teoria habermasiana e a memória que tratamos nessa
dissertação. A articulação entre memória e história no espaço da sala de aula pode ter na
ação comunicativa em sua forma reflexiva um espaço profícuo para sua operacionalização.

As duas seções que se seguem articulam o papel da memória e o papel da memória


social em nossa dissertação.

3.1. Memória intersubjetiva

A memória é um dos elementos constitutivos do individuo em sua parcela mais


unitária e em sua parcela mais coletiva. A memória é o que nos individualiza, nos aglutina
e nos coletiviza. Eu sou um e sou vários, sou o produto e o produtor de uma sociedade e
esta sociedade me forma e é formada por mim. A memória que faz do ator um indivíduo
faz também dele um membro de um todo. Nessa perspectiva pensar memória e história é
uma questão fundamental para a pesquisa que aqui se desenvolve e produz esta dissertação.

A História é produto e produtora de uma memória e o ensino de história também.


A historiografia – produto da pesquisa do historiador – revela muito do passado, mas
também do tempo presente em que o historiador escreveu, somos sujeitos do nosso tempo;
nosso tempo é constituído também pelo tempo que já se foi, o passado, e pelas relações e
ações que produzimos nesta articulação. Quando estudamos o passado estamos evocando
sua continuidade no presente ou reconhecendo a ruptura forjada pela sociedade atual em
relação aos acontecidos já vividos. Somos produtos e produtores da cultura que nos cerca,
esta cultura nos dá o arcabouço que nos constitui enquanto indivíduos – a nossa unidade
indivisível – e também enquanto atores intersubjetivamente constituídos. É pela linguagem
que nos tornamos “sujeitos memórias”, isto é, com as relações estabelecidas na dinâmica do
viver, travamos contatos com o todo social e com a estrutura cultural, que Habermas chama
de mundo da vida. É no mundo da vida e pela linguagem que construímos o nosso acervo
de identidade e recebemos no arcabouço cultural que utilizamos no processo de
argumentaçã. Na linguagem e pela linguagem que nos constituímos como sujeitos, nesse
espaço físico e cultural que é o mundo da vida.

Embora alicerçada por bases teóricas diferentes das que trazemos para o presente
estudo, Smolka (2000) contribui para a reflexão sobre a relação
linguagem/memória/história, quando nos diz:

“A realidade psicológica, de natureza fundamentalmente social, é


necessariamente mediada/constituída por signos. A palavra, como signo por
excelência, constitui modos específicos de ação significativa, de modo que a
memória humana e a história tornam-se possível no/pelo discurso. Assim onde
existe imagem, imaginação, imaginário, memória, aí incide necessariamente o
signo, e mais particularmente, a palavra – verbum.” (Smolka, 2000, p.14)

A linguagem traz para o espaço físico o que existe no mundo da vida como pano de
fundo, a memória em sua face individual e social. Ou melhor, no seu aspecto intersubjetivo,
a memória ganha corpo pelo ato de fala, torna-se materialidade, quando é transposta para o
espaço da linguagem. Nessa materialidade, compõe os espaços sociais em seu todo,
compondo deste modo também o espaço escolar, contexto de nosso estudo. Esse aspecto é
fundamental na construção argumentativa desta pesquisa, pois acreditamos que a memória
é constitutiva dos atores e é elemento operacionalizante do processo argumentativo no qual
são avaliadas as pretensões de validez. Como a memória é remissiva, isto é, sua estrutura
está ancorada no passado, recente ou remoto, reconhecemos seu papel fundamental para o
ensino de história. De acordo com Russo (2001):

“A memória, para prolongar essa definição lapidar, é uma reconstrução


psíquica e intelectual que acarreta de fato uma representação seletiva do passado,
um passado que nunca é aquele do indivíduo somente, mas de um indivíduo
inserido num contexto familiar, social, nacional. Portanto toda memória é, por
definição, ‘coletiva’, como sugeriu Maurice Halbwachs. Seu atributo mais
imediato é garantir a continuidade do tempo e permitir resistir à alteridade, ao
‘tempo que muda’, às rupturas que são o destino de toda vida humana; em suma,
ela constitui – eis uma banalidade – um elemento essencial da identidade, da
percepção de si e dos outros”. (Russo, 2001, p. 94)

A alteridade, ao nosso ver, fundamenta um princípio importante no ato de fala e na


ação comunicativa. Quando reconhecemos o outro como legítimo outro e a nós como
legítimos outros também, podemos travar com esse outro um processo argumentativo.
Porém o pano de fundo que nos aproxima e possibilita o ato de argumentar é constituído de
elementos oriundos da memória cultural que nos forma desde o nosso nascimento e assim é
um elemento contido no processo de racionalidade comunicativo que, de acordo com a
teoria habermasiana, é situada no mundo da vida que se constitui no todo social em que está
inserida a memória intersubjetiva.

O pano de fundo cultural nos dá elementos que servem como orientadores para
nossa comunicação cotidiana, desta forma a memória está inserida nesse espaço – o mundo
da vida – trazendo elementos culturalmente construídos e que aceitamos como “verdades” e
“valores”. Essas verdades e valores são elementos que instrumentalizarão nossa ação de
comunicação diária e também quando estabelecemos um processo argumentativo.
A memória não é a reprodução de um passado com fidedignidade e, sim, uma
representação do mesmo, isto é, quando lembramos o passado estabelecemos critérios de
importância e/ou grandeza. Nossa memória é seletiva, escolhemos alguns elementos que a
compõem e a eles privilegiamos, seja por fatores emocionais ou sociais. A memória é
fugidia, flexível e socialmente composta. Alguns elementos são individuais ou também
presentes na memória de uma sociedade e/ou valorizados por ela; isso faz com que
determinado acontecimento tenha mais importância e por isso seja mais lembrado que
outro, fazendo com que fique mais presente nas memórias. Conforme ilustra Bosi (2001):

“Deixamos de ser, por um momento, os visionários da cidade antiga que só


existia em nós, e que, de repente, ganha a sanção de uma testemunha: para ser
uma lembrança coletiva, portanto uma realidade social. O mapa de nossa
infância sofre contínuos retoques à medida que nos abrimos para outros
depoimentos”. (Bosi, 2001, p.413)

A memória partilhada ganha contornos e cores novas, frutos da partilha. Não é mais
memória própria – propriedade individual – é memória nossa, com elementos construídos
na coletividade. Essa relação com a memória dinâmica da memória se operacionaliza na
linguagem, no ato de fala; corporificando a memória pela fala, estamos re-visitando e
construindo uma nova representação do passado, ou aprimorando a já existente com fatos,
cores, sons, cheiros e tantos elementos que fazem do lembrado algo vivo e dinâmico. A
memória é dinâmica e em construção, pois quando a compartilhamos estamos relembrando
e refazendo o caminho de visita a sua origem. Todo caminhar novo traz novos
conhecimentos, novos achados e promove também alguns apagamentos, próprios do
dinamismo da memória. Cada passo refeito traz consigo elementos do presente,
modificando o olhar e proporcionando novas impressões.

A História, como a memória, também é uma representação do passado, porém suas


características a diferenciam, às vezes provocando um grave afastamento das duas –
memória e História. Essa pesquisa tenta aproximar esses dois elementos e fazê-los dialogar
no espaço da sala de aula de história. Embora uma citação extensa, vale a pena ler o que
nos diz Montenegro (2001) sobre o assunto:
“...enquanto a memória é múltipla, a história ‘é uma e podemos dizer que
não há senão uma história’; por outro, a memória trabalha com o vivido, o que
ainda está presente no grupo, enquanto a história trabalha e constrói uma
representação de fatos distantes, ou mesmo onde ou quando se encerra a
possibilidade de encontrar testemunhas daquelas lembranças”

(...)

“Afinal, o vivido que guardamos em nossas lembranças e que circunscreve


ou funda o campo da memória se distingue da história. Entretanto, se são
distintos, arriscaríamos afirmar também que são inseparáveis. Afinal,
compreendemos a história como uma construção que, ao resgatar o passado
(campo também da memória), aponta para formas de explicação do presente e
projeta o futuro. Este operar, próprio do fazer histórico na sociedade, encontraria
em cada indivíduo um processo interior semelhante (passado, presente e futuro)
através da memória”. (Montenegro, 2001, p. 17)

A memória desse modo está presente cotidianamente na ação pedagógica própria do


ensino de história que tem, desde sua gênese, a promoção de uma memória muito vinculada
ao nacionalismo e à construção de um sentimento de pertença a um espaço físico
denominado nação, apontado pelos historiadores como “comunidade imaginada”. “Esse
processo é contínuo e sujeito a inúmeras invenções, reelaborações e disputas em torno dos
aspectos que poderão servir para diferenciar uma nação de outras.”(Gontijo, 2003, p.55)

No Brasil, a construção de uma identidade nacional torna-se necessária com a


Independência, em 1822, e é marca fundamental no ensino de história que operacionaliza a
construção dessa identidade coletiva. O ensino de história tem seu nascimento marcado
pelo nacionalismo e pela construção de uma história nacional. Desta forma, não podemos
negar que promover a memória sempre foi uma preocupação no processo pedagógico
presente no ensino de história. Porém que memória está presente no ensino de história
tradicional que é a grande questão? A diferença crucial entre a memória tradicional,
presente no ensino de história, e a memória proposta pelo que chamamos de história-
ensinada (ver cap. I) está na ação comunicativa reflexiva como fio condutor deste
fazer/ensino, diferente da visão tradicional existente no ensino de história que visava
promover uma memória e criar uma tradição reconhecida por todos. Estamos propondo
uma relação argumentativa em que a historiografia presente no ato da história-ensinada seja
avaliada por seus argumentos históricos e que suas pretensões de validez sejam checadas no
ato da argumentação coletiva feita na sala de aula de história.

Propomos que o pano de fundo composto pelas tradições culturais, que


normalmente entram pela porta de serviço na sala de aula de história, seja recebido pela
entrada social e se coloque como elemento fundamental das argumentações surgidas no
processo pedagógico estabelecido.

A memória e suas subjetivações tornar-se-ão o elemento propulsor que pode


estabelecer uma articulação reflexiva entre memória e História.

3.2. Memória Social e Memória Coletiva

A historiografia é escrita a partir da pesquisa do que está posto no mundo da vida,


do que existe como materialidade em suas fontes11, ou na fala dos atores que viveram o fato
a ser pesquisado12, construindo ou não uma peça harmônica que representa o passado. Esta
representação está delimitada a uma temporalidade recortada pelo historiador e a um foco
específico que determina a sua pesquisa. A memória está inserida em um todo maior que é
o mundo da vida. A História não está fora do mundo da vida, a nosso ver, porém se
relaciona com ele de forma diferente. A História revela um olhar, a lente que o historiador
usa em sua pesquisa; quando terminada a pesquisa esta ganha uma conservação própria do
ato de fazer História, diferente da memória que continua em constante construção.
Montenegro (2001) contribuiu para tal reflexão, afirmando que:

“A história opera sempre com o que está dito, com o que é colocado para e
pela sociedade, em algum momento, em algum lugar. Desses elementos, o
historiador constrói sua narrativa, sua versão, seu mosaico. Esse fato evidente se
apresenta bastante distinto do que foi vivido; no entanto, ele se ancora nos

11
Fonte ...
12
Quando a História está baseada metodologicamente na história oral, os relatos dos fatos e acontecimentos
substituem o que tradicionalmente chamamos de fonte.
elementos resgatados da realidade, em outras histórias já produzidas”.
(Montenegro, 2001, p.19)

O elemento próprio da memória, por sua vez, é a flexibilidade, sua eterna


construção e sua relação coletiva, isto é, a memória se constitui de elementos coletivos, do
todo que a forma. Sendo assim, cabe-nos salientar sua identidade e papel social. Se a
memória se constitui principalmente em sua coletividade, no mundo da vida, constitui-se
socialmente, logo é memória social, pois identificamos a memória mesmo no seu aspecto
individual como um lugar intersubjetivo, isto é, uma memória pessoal que ganha contornos
e elementos próprios do coletivo. No ato de fala, o que eu penso é ouvido pelos atores que
participam deste ato, eles interferem na minha fala e são interferidos por ela. A ação
comunicativa faz com que a minha memória seja partilhada e habite a memória do outro e a
do outro habite a minha. Como diz Montenegro:

“a memória tem como característica fundante o processo reativo que a


realidade provoca no sujeito. Ela se forma e opera a partir da reação, dos efeitos,
do impacto sobre o grupo ou o indivíduo, formando um imaginário que se
constitui em uma referência permanente de futuro”. (Montenegro, 2001, p.19)

A memória tem sua base referencial no passado, porém se relaciona com o presente
e com sua perspectiva de futuro, são as reações que o indivíduo e a sociedade têm em
relação a uma lembrança que a constituem e a definem. Uma memória coletivizada ganha
contornos diferentes a cada rememoração, isto é, cada vez que a memória é visitada pelos
atores que a possuem, é reorganizada e reage ao presente de sua leitura e à perspectiva de
futuro embutida nela.

Santos (1998) nos apresenta uma possibilidade de união entre memória e História,
salientando que não precisamos necessariamente trabalhar a distinção, como podemos ler
no trecho que a seguir:
“Acredito que não precisamos operar com esta distinção entre história e
memória, uma vez que tanto o estudo de memórias coletivas pode ser
compreendido como histórico, pois sempre há um grau de arbitrariedade na
abordagem das redes de sociabilidade, como abordagens históricas podem ser
legitimadas apesar do caráter arbitrário e impessoal de suas interpretações, uma
vez que qualquer atividade interpretativa reflete não penas o presente, mas
também as heranças do passado que convivem e determinam o presente. (...) Se
indivíduos sempre constroem seu passado de acordo com preocupações e
situações estabelecidas no presente, isto não quer dizer que este presente não
contenha experiências ou traços do passado incapazes de serem percebidas em
sua totalidade”.(Santos, 1998, p.10)

A distinção entre memória e história, portanto, existe no próprio meio em que


ambas se propagam: a memória se propaga e se corporifica no mundo da via; a História tem
seu habitat na historiografia. Esta se materializa na escrita, que garante à História uma
continuidade e estabilidade. A leitura desta produção historiográfica é flexível, pois se faz
no mundo da vida e sofre a influência do olhar do leitor, porém ao nosso ver existe uma
distinção. Concordamos com Santos quanto ao caráter interpretativo da História e sua
influência enquanto ato constituído historicamente e assim sofrendo influência do passado e
do presente em sua ação. Porém, como Ricoeur (2002), reconhecemos a história como um
recorte do tempo diferenciando-se da memória que se estabelece na totalidade.

Destacamos no trecho acima a relação dialética existente no fazer história, que se


relaciona tanto com o presente como com o passado que constitui o historiador e
fundamenta o nosso tempo, o presente. Esta interação, presente e passado, segundo a nossa
compreensão, forma a História.

A memória na perspectiva que destacamos tem em sua essência um caráter derivado


da sociedade. Sua formação e seu papel são compostos por um todo social e nas relações
estabelecidas no mundo da vida – o que me individualiza é composto por toda a sociedade,
a memória que é só minha tem em sua formação a memória do outro, logo ela – a memória
– não é só minha mais nossa, social. Mesmo os elementos mais individuais e que somente
em mim, ou para mim são importantes, constroem um todo social, pois esses elementos
individuais são partilhados no ato de fala e nele – ato de fala – são re-elaborados pelo
indivíduo, seja pela própria organização decorrente do próprio ato, seja pelo diálogo
estabelecida no ato de comunicação partilhada pelos atores seja na ação comunicativa
reflexiva.

A sala de aula, no caso de nossa pesquisa a sala de aula de história, tem em si vários
monumentos à memória. A própria ralação aluno/professor decorre de uma tradição
historicamente construída e repleta de elementos ritualísticos. O ato de ensinar traz em si
uma memória social que transpassa os muros do prédio escola. A existência de uma
memória social que estabelece o horizonte de cultura que alicerça o ato de ensinar faz da
história-ensinada mais do que o ensino da historiografia determina, faz da sala de aula de
história um lugar de resgate de memória, de transformação e produção de novas memórias.
O ato de falar, impregnado de memória, materializa-a, quando colocamos nossa prática
baseada em uma ação comunicativa em uma tentativa de não coação, mas de
democratização da fala, percebemos que elementos da memória, muitas vezes descartados,
se fazem presentes na dinâmica argumentativa estabelecida por esta prática. As vozes,
muitas vezes caladas, são expressas e trazem para a materialidade as memórias silenciadas
e colocadas no porão do esquecimento. Santos(1998) nos diz:

“Halbwachs nos permite compreender que lugares da memória apresentam


um poder – fixo em pedras, monumentos e construções arquitetônicas, mas
presente também em rituais e comemorações – capaz tanto de impor a
representação de um grupo sobre outros, quanto de abrir um espaço para que
grupos oprimidos possam fortalecer suas identidades através da recuperação de
traços da memória”. (Santos, 1998, p.10)

A memória social é um espaço de incompletude, isto é, está sempre em


transformação e construção. Cada elemento do presente transforma o que é lembrado do
passado, transformando a memória. A memória tem sua temporalidade em constante
prosseguir, ela não se fecha no tempo do acontecimento, pois está sofrendo a influência do
acontecimento presente e influencia o presente com sua referência. Como já tratamos (ver
cap. I), os lugares da memória e de datas comemorativas muitas vezes são re-significados
por grupos oprimidos e, ao fazer esta re-significação, recuperam traços de suas memórias e
se tornam agentes de propagação de sua cultura. O trecho abaixo, que destacamos de
Santos (1998), nos ajuda a pensar na incompletude própria da memória.

“Memória, imagens, identidades construídas são sempre incompletas porque


correspondem a uma multiplicidade de experiências vividas por indivíduos e
grupos sociais que não se encontram parados no tempo, mas em contínua
transformação”. (Santos, 1998, p.11)

A memória na perspectiva que adotamos – de memória social – caminha em um


espaço socialmente construído e em constante transformação, por isso pode ser adjetivada
como fugidia, flexível e coletiva, o que é próprio de sua incompletude. É pela linguagem
que a memória ganha corpo, se encarna. Como Smolka (2000) bem conclui: “ a linguagem
não é apenas instrumental na (re) construção das lembranças; ela é constitutiva da
memória, em suas possibilidades e seus limites, em seus múltiplos sentidos, e é
fundamental na construção da história”.(Smolka, 2000, p.16)

Na linguagem e pela linguagem é que se promove o que Habermas (2000) chama


características transcendentais do mundo da vida. São estas características que garantem o
prosseguimento das tradições e a integração dos grupos, bem como as normas e valores
socializados pelas gerações que se sucedem, isto é, elementos constitutivos de uma tradição
cultural que são passados para as gerações futuras e fundamentam sua visão acerca do
mundo que as cerca. Forma assim um pano de fundo comum com seus diversos elementos
culturais que operacionalizam a racionalidade situada e garantem a aceitação ou não de
uma pretensão.

A linguagem dá materialidade à memória, mas não a aprisiona. Ela continua fugidia,


flexível e coletiva, pois, quando a memória ganha o corpo da linguagem, sofre a ação dos
atores que participam do ato de fala e logo é novamente reconstruída, re-significada, re-
elaborada, mantendo aquelas características constituitivas.

O caráter perene da memória, e também sua flexibilidade, nos garante os


argumentos que utilizamos diante das questões que nos são apresentadas durante o nosso
caminhar. A perspectiva transcendental (ver cap. II) do mundo da vida tem seu berço na
memória social. Esta relação constante de re-leitura e re-significação das tradições
culturais garante a vida da memória social, pois possibilita seu dinamismo e contínuo viver.
O aprisionamento que podemos ver em espaços dedicados à manutenção da cultura, tais
como museus ou entidades memorialistas, também fundamentou o ensino de história. Esta
imobilidade fortaleceu um distanciamento da história-ensinada do mundo da vida durante
muito tempo, o que hoje em dia vem sendo superado.

A proposta de uma ação reflexiva entre o ensino de história e a memória é o grande


desafio dessa pesquisa. Acreditamos que uma sala de aula calcada no diálogo pode
fomentar a ação comunicativa e pelo argumento trazer para o espaço da sala de aula
elementos próprios da memória social e construtores da pretensão de validez existente no
aluno.

O ensino de história durante muito tempo esteve vinculado a promoção de uma


memória (ver cap. I), favorecendo a uma elite relacionada ao poder vigente e ao
nacionalismo. Ainda podemos ver esta matriz pedagógica muito presente nas práticas do
ensino de história. Este capítulo preocupou-se em apresentar uma relação possível entre
memória e História no espaço da sala de aula de história. Destacando as diferenças básicas
entre memória e História e o meio pelo qual acreditamos esta relação pode ser construída.
A possibilidade de relação entre memória e História nos aponta uma confluência com a
teoria habermasiana e os aspectos em que a teoria da ação comunicativa pode contribuir
enquanto possibilidade de relacionarmos na história-ensinada dois elementos muitas vezes
conflituosos – história e memória. Ao destacarmos esta relação entre memória e história
estamos promovendo uma ação de cunho reflexivo diferente do ensino de história
tradicionalmente que visava à propagação do nacionalismo e à montagem e manutenção de
uma memória oficial.

A conjugação da teoria habermasiana com as questão próprias da historiografia – a


memória – pode parecer em um primeiro momento inusitada e até conflitante, mas
acreditamos que esta articulação é uma via de mão dupla bem sinalizada e que promete idas
e vindas, ou melhor, argumentações profícuas e relevantes para pensarmos e analisamos a
história-ensinada.

IV. Capítulo

4. Metodologia

4.1. O local da pesquisa

4.1.1. Fundação Municipal de Educação de Niterói

A Rede Pública Municipal Educação de Niterói tem suas escolas públicas


vinculadas a Fundação Municipal de Educação (FME), com o total de 11 escolas que
atendem ao 3º e 4º ciclos do Ensino Fundamental, contando com 42 professores de história
em efetivo exercício.

As diretrizes pedagógicas são indicadas pela Proposta Pedagógica “Construíndo a


Escola de Nosso Tempo”, lançada em 1998 e tendo sua primeira edição em 1999. A
proposta traça os compromissos políticos educacionais da FME e a nova estrutura
organizacional da Rede Municipal de Educação, que a partir de 1999 foi organizada em
ciclos. As escolas da FME anteriormente eram regidas pelo sistema de progressão
automática, isto é, os alunos não eram retidos nas séries sendo promovidos
automaticamente de série para série.

A implantação dos ciclos tem o objetivo de eliminar gradativamente a distorção


conhecimento/série provocada pelo processo de progressão automática existente na Rede
Municipal de Educação.
São os objetivos gerais do ciclo apresentados pela Proposta Pedagógica
“Construindo a Escola do Nosso Tempo”.

1. Respeitar o tempo do aluno, priorizando a evolução de conceitos.


2. Valorizar as possibilidades de cada aluno em suas etapas de construção dos
saberes.
3. Reconhecer que o sujeito supera-se constantemente no processo de investigação
estrutural.
4. Reconhecer que o aluno traz consigo uma bagagem de conhecimento que não
pode ser desprezada.

A estrutura organizacional da Rede Municipal de Educação de Niterói (Anexo I)


divide-se em três modalidades:

I. Educação infantil;
II. Ensino Fundamental Regular;
III. Ensino Fundamental Supletivo.

Nossa pesquisa foi desenvolvida em uma turma do 8º ano, 4º ciclo do Ensino


Fundamental Regular, em uma sala de aula de história. A Proposta Pedagógica
“Construíndo a Escola do Nosso Tempo” fornece um quadro de conceitos referentes ao
ensino de história (Anexo II), que tem como objetivo indicar os temas básicos, de acordo
com os eixos temáticos definidos pelos Parâmetros Curriculares Nacionais de História,
instituído pelo MEC, em 1998. Os temas básicos são indicativos, não têm um papel
limitador, não apresentando conteúdos específicos para cada ciclo e, sim, conceitos que
servem como indicadores para possíveis conteúdos. Cabe a cada escola e ao grupo de
professores de cada área de conhecimento a organização, o planejamento e a distribuição
dos conteúdos curriculares de cada ano e ciclo.

4.1.2. Escola Municipal José de Anchieta

A pesquisa de campo foi realizada na Escola Municipal José de Anchieta (EMJA),


localizada em Niterói, no Bairro do Caramujo – Morro do Céu, na turma 801, 4o ciclo do
ensino fundamental, 8o ano escolar. Este ano escolar equivale a 7a série do antigo segundo
segmento do ensino fundamental.

A comunidade em que está localizada a Escola Municipal José de Anchieta se


caracteriza pela pobreza. Os alunos atendidos por esta unidade escolar são oriundos
principalmente deste entorno. Salientamos que o depósito Sanitário de Niterói – o lixão de
Niterói, está localizado nesta comunidade. É importante destacar que várias famílias
moradoras dessa comunidade retiram do lixão seu sustento e, a moradia de algumas
famílias está situada em áreas que são destinadas ao depósito de lixo, isto é, dentro do
lixão, junto com todo o material envido para ele.

A Escola Municipal José de Anchieta é um espaço social permeado de contrastes.


Quando subimos o Morro do Céu temos a nossa direita o “lixão” e a nossa esquerda uma
área verde com a presença de mata atlântica e de um córrego. Neste lado esquerdo
podemos observar ainda a existência de várias casas grandes e confortáveis. Na rua
anterior a escola está localizada um condomínio em que a maioria das casas enquadram-se
também no padrão de casas confortáveis. Do lado direito, mais próximo ao lixão, as casas
são menores e indicam um quadro de grande pobreza. No interior do lixão também
encontramos moradias e podemos observar barracos feitos de madeira e papelão. Neles
muitas famílias moram ou guardam seu material coletado. Esta comunidade de contrastes
sociais, culturais e ecológicos forma a clientela que em sua maioria freqüenta a Escola
Municipal José de Anchieta. Alguns alunos são oriundos de comunidades próximas, como
o bairro do Caramujo e o bairro da Ititioca.

4.1.3. O professor e a sala de aula

Diante da questão central desta dissertação – analisar a relação memória-História-


história-ensinada – buscamos uma sala de aula que possibilitasse a interseção dos três
elementos básicos de nossa pesquisa. O conhecimento prévio desta unidade escolar
EMJA13 e do perfil didático do professor André14, que tem seu procedimento pedagógico
centrado no uso do diálogo em sala de aula, nos fez identificar neste quadro os elementos
que poderiam suscitar um caminho para as questões que buscamos compreender nesta
pesquisa. Para a escolha da turma que seria vídeo-gravada foi usado o critério “da escolha
do professor”, isto é, solicitamos que o professor indicasse e escolhesse uma de suas turmas
para ser realizada a vídeo-gravação e a posterior análise dos dados. O professor André
indicou a turma 801, pois acreditava que seria interessante uma turma em que seu trabalho
estivesse sendo iniciado, já que a maioria dos alunos que compunham está turma não
haviam sido alunos deste professor nos anos anteriores.
A memória é um dos elementos constitutivos da História e, constantemente, invade
o espaço da sala da aula. Esta questão nos fez buscar a possibilidade do encontro desses
dois elementos na história-ensinada. Nessa busca por um espaço de interseção
encontramos eco na teoria habermasiana. Este eco que fundamenta nosso referencial
teórico definiu o perfil do professor que buscaríamos para efetivar a pesquisa de campo. O
professor que buscávamos deveria ter seu procedimento pedagógico centrado no diálogo; o
uso da palavra deveria ser o eixo central do seu fazer em sala de aula. O diálogo como
procedimento pedagógico central do ensino de história forneceria os elementos que
buscávamos para análise e indicaria os caminhos que possibilitassem a relação memória
social e história-ensinada, via ação comunicativa. Na teoria habermasiana, o ato de fala
revela o mundo da vida, possibilitando que deixemos de vê-lo apenas pelas costas
(Habermas, 2000, p.417). Tendo este elemento pertinente a teoria habermasiana como base
definimos a sala de aula em que realizaríamos a pesquisa de campo.
Compreendemos que o procedimento pedagógico centrado no diálogo possibilita a
materialização no espaço da sala de aula das memórias sociais e revelam o pano de fundo
cultural do mundo da vida. Conforme apresentamos, a nossa base teórica está alicerçada na
teoria da ação comunicativa habermasiana. Nessa abordagem o espaço de materialização
do mundo da vida é a linguagem. É pela linguagem e na linguagem que o mundo da vida

13
Fui professora de história no 3º e 4º ciclo desta unidade escolar no período de 1999 a 2000, me afastando-
me da mesma no início do mestrado, em 2001.
14
A Fundação Municipal de Educação de Niterói promovia reuniões mensais com todos os professores,
divididas por disciplinas, desta forma havia um prévio conhecimento dos profissionais que compõem a rede e
seus procedimentos pedagógicos. Desta forma acreditamos que o professor André preenchia as características
básicas que buscávamos para a realização desta pesquisa.
se reproduz em seu todo e, para se reproduzir, deve ultrapassar a perspectiva do ator, isto é,
no prosseguimento das tradições culturais que são passadas de gerações em gerações. O
reconhecimento e a integração das normas e valores que constituem uma determinada
sociedade e a socialização entre as diversas gerações compõem o todo social (Habermas,
2000, p. 418).
Encontrar um ponto de interseção entre memória e ensino de história eanalisar como
este ponto se efetiva no espaço da sala de aula, é a questão central de nossa pesquisa.
Sendo assim, retomamos a teoria que nos alicerça e nos embasa e a partir dela construímos
o viés metodológico que permeia a nossa compreensão dos dados coletados.
Nas palavras de Habermas podemos vislumbrar elementos que direcionariam a
operacionalização da coleta dos dados na pesquisa de campo;

“Na perspectiva de um observador, nós somos capazes de identificar uma


ação; mas não estamos em condições de escrever com segurança a execução de um
plano específico de ação; para chegar a isso teríamos que conhecer a respectiva
intenção que comanda a ação. Nós podemos inferir essa intenção lançando mão de
indicadores, os quais a descrevemos hipoteticamente ao agente; para nos certificarmos
da intenção, teríamos que ser capazes de assumir a perspectiva do participante. Ora, a
atividade não-linguistica não oferece por si mesma essa perspectiva – ela não revela a
partir de si mesma o modo como foi planejada. Somente os atos de fala conseguem
preencher essa condição.”(Habermas, 1990, p.66)

O diálogo é a nosso ver o elemento que nos revelará as relações estabelecidas no


espaço da sala de aula de história e a relação existente entre memória social e ensino de
história, além de a perspectiva do processo argumentativo ser o elo entre memória social e
História na história –ensinada.

Em busca de uma compreensão da interseção entre a memória e o ensino de história


efetivado na história-ensinada, buscamos uma sala de aula em que o diálogo e as ações
dialógicas fossem o principal instrumental pedagógico utilizado, pois acreditamos que
somente pelo ato de fala identificaríamos e poderíamos tecer a compreensão sobre a relação
existente entre história-ensinada, memória e História. Buscamos indícios que apontassem
como o ato de ensinar pode promover memória e fazer as memórias que compõem o pano
de fundo cultural do mundo da vida estarem em diálogo argumentativo em sala de aula.
A sala de aula em que se dá a ação do professor selecionado está embasada no
diálogo e no uso da palavra por todos os atores, isto é, tanto professor como os alunos
podem fazer uso da palavra no espaço pedagógico, já que este foi o ponto de partida para
identificarmos o local em que seria realizada a pesquisa. O diálogo como fio condutor do
procedimento pedagógico foi o critério principal para elegermos o professor André e a sua
sala de aula como o espaço em que coletaríamos os dados que seriam analisados e
compreendidos por nós.

4.2.O ato de fala em sala de aula

Compreendemos o ato de fala em sala de aula como uma ação orientada para um
fim, isto é, os diálogos tecidos no espaço de sala de aula têm uma finalidade, a de ensinar,
no nosso caso ensinar história. Assim sendo, acreditamos que a ação comunicativa
constitui por excelência o fazer em sala de aula. O ato de fala no espaço da sala de aula
visa buscar um objetivo orientando as atividades discursivas a uma finalidade.

Podemos compreender esta relação apontada em nossa pesquisa nas palavras de


Boufleur (1997):

“Nossa intuição quanto à possível fecundidade da reflexão habermasiana para


a educação se deve à constatação de que os objetivos gerais da educação se colocam na
perspectiva de uma integração social em que se buscam reproduzir e renovar as
tradições culturais, estabelecer as solidariedades e os padrões de convivência e
socialização as novas gerações, permitindo o desenvolvimento de identidades pessoais.
Nesse sentido queremos propor o espaço da educação como um espaço privilegiado do
agir comunicativo.” (Habermas, 1997, p. 17)

Encontramos em Boufleur um espaço de diálogo e um ponto de encontro com a


busca que empreendemos em nossa pesquisa. O ensino de história tem em sua gênese uma
relação fundamental com a reprodução de uma memória específica e a construção de uma
tradição que se instala no seio da sociedade. Desta forma o ensino de história está
tradicionalmente assentado na reprodução e transmissão de uma tradição cultural.

O ato de fala na sala de aula de história traz em si elementos de reprodução da


cultura e é pela fala do professor e pela fala do aluno, que muitas vezes tem o caráter
invasivo e polêmico, que buscamos encontrar a efetivação desta transmissão. Acreditamos
que ao investigarmos os atos de fala produzidos em sala de aula, encontramos elementos
discursivos que possibilitem a compreensão da reprodução e a renovação das tradições
culturais, e também como a memória social se faz presente no ato de ensino/aprendizagem.
Desta forma, a vídeo-gravação viabilizou o registro mais eficiente dos atos de fala e das
falas gestuais, que, a nosso ver, também compõem o processo comunicativo existente em
sala de aula.

O uso da vídeo-gravação possibilitou a compreensão, de forma densa e abrangente,


da práxis educativa. Privilegiando os participantes das interações educacionais que formam
o espaço da sala de aula, podemos analisar e compreender as escolhas discursivas que são
feitas e o seu papel para compor a história-ensinada. Acreditamos também que a palavra
dita em sala de aula traz para esse espaço a possibilidade da construção argumentativa e a
materialização pela fala, trazendo para o espaço físico do diálogo os argumentos oriundos
da memória social e o descortinamento do pano de fundo cultural do mundo da vida.

Construímos uma análise das aulas vídeo-gravadas e buscamos uma compreensão


da história-ensinada neste espaço da sala de aula e a possibilidade de efetivação da ação
comunicativa em sua perspectiva reflexiva e o papel da memória social na História e no
ensino de história.

4.3. A definição e a organização do corpus da pesquisa: os blocos de aulas e os


episódios
Iniciamos a coleta e a vídeo-gravação no dia 17 de fevereiro de 2003 e terminamos
os nossos registros no dia 19 de maio de 2003.

O professor não recebeu nenhum treinamento ou indicativo de como deveria


organizar as suas aulas; não interferimos na escolha do conteúdo e nem na forma como este
conteúdo seria ensinado aos alunos. Pedimos que o professor organizasse suas aulas de
forma habitual. Participaram das de aulas aproximadamente 35 alunos.

As aulas na turma 801 aconteciam às segundas-feiras em três tempos seguidos de 45


minutos. Foram vídeo-gravadas o total de 30 horas aulas. Estivemos presente no campo
por 21h 50 m, ao longo dos meses de fevereiro, março, abril e maio de 2003.

Diante de todo material coletado e transcrito elegemos para análise as aulas


realizadas em três dias que compõem o total de nove aulas, com a duração de 6h 45m.
Cada dia compõe um bloco de três aulas.

1ºbloco – Dia 17 de fevereiro de 2003. É o primeiro dia efetivamente de aula do


professor.

2º bloco – Dia 10 de março de 2003, terceiro dia de aula.

3º bloco – Dia 24 de março de 2003, quinto dia de aula.

Os blocos de aulas foram eleitos por representarem, respectivamente, a introdução


do procedimento pedagógico utilizado pelo professor em sala de aula, a compreensão do
procedimento utilizado pelo professor por parte dos alunos; e a construção de uma nova
relação com o uso da fala no espaço da sala de aula.

A opção tomada de realizar recortes episódicos tem o papel de salientarmos as


continuidades e rupturas que se efetivaram nos blocos de aulas. Desta forma selecionamos
dezessete episódios que foram analisados de forma cronológica. Eles têm seus
acontecimentos efetivados sucessivamente; não rompemos esta estrutura cronológica em
nenhum momento nas seqüências dos episódios.
A escolha por uma análise cronológica tem o objetivo de identificar a relação
estabelecida no processo de ensino/aprendizagem e as rupturas que o processo efetivou na
prática da sala de aula.

Os episódios do I ao XIV foram analisados individualmente. Os episódios XV,


XVI e XVII foram analisados em grupo, pois identificamos neles uma relação de
semelhança, isto é, o uso das perguntas proferidas pelos alunos caracterizaram um
diferencial, que usamos como marcador para a utilização de uma análise coletiva dos
episódios. Este procedimento de análise foi usado por encontrarmos relação na produção
dos atos de fala que compõem estes episódios, permitindo a análise de forma comparativa.

Os episódios do 1º bloco de aulas têm características diferentes dos outros blocos.


Neste bloco utilizamos a transcrição da aula do dia 17 de março em sua totalidade. Os
episódios foram construídos com o objetivo efetivar uma análise dos dados coletados que
compõem o 1º bloco de aulas, por encontrarmos nesse bloco de aulas continuidades e
rupturas que formaram marcadores para iniciarmos ou interrompermos os episódios de I a
VII.

Os episódios do 2º e 3º bloco de aulas foram selecionados no total de dados


coletados nos dias 10 e 24 de março. Identificamos nesses episódios elementos de
continuidade e rupturas no processo de ensino/aprendizagem, como nos episódios do 1º
bloco, porém não utilizamos a totalidade de dados que compunham cada bloco de aulas,
diferenciando-se assim do 1º bloco de aulas.

Os episódios têm o objetivo de organizar a apresentação da análise dos dados,


possibilitando ao leitor uma melhor compreensão da investigação e mesmo dos dados
coletados em nossa pesquisa. Encontramos também no recorte episódico uma
operacionalização mais eficiente na construção da compreensão e análise dos dados.

4.4. Expressões utilizadas


4.4.1. Procedimento pedagógico

Para nos referirmos ao fazer do professor em sala de aula, usamos a expressão


procedimento pedagógico, pois encontramos nessa expressão maior relação com a teoria
que alicerça nossa dissertação. Não utilizamos estratégia de ensino ou outra expressão
semelhante porque a palavra “estratégia” tem um valor e papel na teoria habermasiana. A
teoria habermasiana da ação estratégica tem por finalidade garantir o sucesso de uma
pretensão, mesmo que seja por gratificação ou manipulação. Neste sentido fizemos a opção
de usar uma expressão que não tenha semelhança, para que qualquer relação com este
elemento teórico habermasiano não seja viabilizado.

O agir estratégico em Habermas tem base na racionalidade teleológica dos planos


individuais, diferente da ação comunicativa que visa promover um acordo constituído
comunicativamente (Habermas, 1990, p.72). Com vista a essa relação constitutiva da teoria
habermasiana utilizamos a expressão procedimento pedagógico para determinar o conjunto
de ações pedagógicas promovidas pelo professor no espaço da sala de aula.

4.4.2. Eixo pedagógico

A expressão eixo pedagógico serve para definirmos os procedimentos recorrentes


no fazer pedagógico do professor em sala de aula. São os seguintes eixos que encontramos
na análise dos dados:

a. Generalização – que se subdivide em três categorias: 1ª


Generalização do mundo da vida, 2ª Generalização temporal; e 3ª
Generalização pedagógica;
b. Diálogo cooperativo;
c. Perguntas e respostas
d. Silêncio cooperativo.

Os eixos são identificados durante a análise nos episódios. No final da análise dos
dados estruturamos sua função e papel nos procedimentos pedagógicos do professor André.
4.5. O espaço físico da sala de aula

A sala de aula em que coletamos os dados é composta de carteiras perfiladas


individualmente. Cada aluno ocupava o lugar que escolhesse durante as aulas, havendo
constantemente uma troca de lugares.

Na parede frontal estava localizado o quadro de giz, que o professor utilizava


esporadicamente para fazer anotações referentes à matéria que estava sendo ensinada.

4.6. A vídeo-gravação

Optamos pela vídeo-gravação por identificamos nela a melhor forma de registramos


os atos de fala no espaço da sala de aula.

No primeiro dia utilizamos o tripé localizado na frente da turma próximo ao quadro


de giz. Esta estratégia de filmagem mostrou-se inadequada, pois o foco da câmera e o
posicionamento fixo fizeram com que fossem perdidos alguns movimentos e falas.

Nos outros dias, não utilizamos o tripé. Posicionamos-nos a frente da turma, com a
tela da filmadora aberta, desta forma podemos acompanhar o movimento do professor e dos
alunos, ajustando o foco. Este posicionamento mostrou-se mais adequado e garantiu uma
filmagem mais abrangente.

Quanto ao posicionamento na frente da turma: Nos primeiros 45m podemos


observar alunos olhando diretamente para a filmadora. Com o passar das aulas este fato foi
tornando-se sem importância e podemos observar na vídeo-gravação que os alunos não
olham mais diretamente para a filmadora e em determinados momentos temos a impressão
que a filmadora e a pesquisadora não são percebidas pelos alunos.
Durante o processo de coleta de dados não interferimos diretamente nas atividades,
apenas observamos e manuseamos o instrumento utilizado para coleta de dados.

4.7. A transcrição

4.7.1. A transcrição

A transcrição foi feita em três momentos distintos.

1º. Assistimos a video-gravação de forma geral, atenta principalmente à


movimentação em sala de aula;

2º. Na transcrição propriamente dita, cada 1h 15min de aula equivale a 4h 30min de


transcrição.

3º. Os códigos utilizados na transcrição foram colocados no terceiro momento,


silêncio, ruídos, falas simultâneas, etc; cada 1h 45min equivale a 2h de posicionamento dos
marcadores.

A transcrição foi feita ao final de cada vídeo-gravação. O contato simultâneo entre


os dados coletados e a transcrição produziu um efeito muito interessante, ao nosso ver. O
olhar no espaço físico da pesquisa foi ficando mais atento e investigativo, modificando a
forma de olharmos a tela da filmadora e modificando gradativamente o foco da lente e o
posicionamento da pesquisadora fisicamente em sala de aula, tornando o momento da
vídeo-gravação um momento também de compreensão e contato com os dados.

Ao transcrevermos, os dados imediatamente após a vídeo-gravação fomos


construindo uma forma de operar com o ‘zoom’ e com o foco da filmadora que facilitou o
momento de análise e compreensão dos dados. Podemos perceber movimentos com a
cabeça, direcionamento do olhar do professor quando proferia determinadas perguntas, isto
é, todo o gestual comunicacional que forma o diálogo.

4.7.2. Códigos utilizados na transcrição

• Comentários contextuais (EM CAIXA ALTA ENTRE PARÊNTESES);


• Ruídos que impossibilitaram a transcrição ****;
• Pausa “...” ;
• Falas inaudíveis **;
• Palavra inaudível *;
• Letras MAIÚSCULAS e em negrito indicando o aluno que profere a frase,
visando manter o anonimato dos alunos;

A transcrição manteve as falas em sua integridade, sendo apenas adicionadas


notações não verbais – pontuação.

4.8. Idade dos alunos

A teoria da ação comunicativa orientada para o entendimento mútuo indicou que a


faixa etária poderia ser considerada para implementarmos a nossa pesquisa. Como pode ser
notado, a nossa busca por um procedimento metodológico foi muito calcada na teoria
habermasiana, pois Habermas em seus trabalhos indica uma série de procedimentos
metodológicos para a execução de uma pesquisa que tenha sua teoria como constitutivo
fundamental. Uma das questões é a idade dos alunos que formaria a turma em que
estaríamos efetivamente coletando os dados.

A ação comunicativa reflexiva tem a perspectiva do agir orientado para o


entendimento mútuo. Os atores do ato de fala devem ser capazes de sair da perspectiva
apenas do eu e serem capazes de colocar-se na perspectiva do outro, promovendo a
efetivação da alteridade. Com vista a esse processo, Habermas faz um passeio por algumas
construções teóricas – tais como a teoria de Piaget, Mead, R. Selma e Kolberg – para assim
indicar em que momento do viver efetivamos a argumentação como elemento da ação
comunicativa. Em R. Selma, Habermas considera a maneira como se constitui o falante
completamente reversível, isto é, quando se identifica a relação de si com a terceira pessoa.
Na teoria de R. Selman, Habermas (1989) identifica o nível 3 como a “adoção da
perspectiva da terceira pessoa e mútua (com cerca de 10 a 15 anos)”.

“Aí são geradas noções do que poderíamos chamar de “ego observador”, de


tal modo que os adolescentes efetivamente se vêem a si próprios (e percebem as outras
pessoas como vendo a si próprios) ao mesmo tempo como atores e como objetos,
simultaneamente agindo e refletindo sobre os efeitos de ação sobre si próprios,
refletindo sobre si-proprios em interação com si-próprio.” (Habermas, 1989, p. 177)

O processo de ação comunicativa reflexiva teria nessa perspectiva seu início no


jovem adolescente promovendo assim o processo de saída de si para colocar-se na terceira
pessoa e assim estabelecer um diálogo com vias ao entendimento mútuo. Como o próprio
Habermas nos fala:

“é característica do Nível 3 inclui e coordena simultaneamente as perspectivas


do si-proprio e do(s) outro(s) e, assim o sistema ou situação e todos as partes são vistos
da perspectiva da terceira pessoa ou do outro generalizado (...) No Nível 3, as
limitações e futilidade última das tentativas de compreender as interações com base no
modelo do regresso infinito tornam-se aparentes e a perspectiva da terceira pessoa
desse nível permite ao adolescente sair fora abstratamente de uma interação –
interpessoal, bem como simultânea e mutuamente coordenar e considerar as
perspectivas (e suas interações) do si-próprio e do(s) outro(s).” (Habermas 1989, p.
177)

A sala de aula que foi vídeo-gravada atendia alunos do 4º ciclo do ensino


fundamental e os alunos estavam na faixa etária de 13 a 16 anos. Com vistas aos
indicativos etários propostos por Habermas, acreditamos que, ao procedermos à pesquisa de
campo nesta turma, poderíamos identificar a construção do processo de argumentação.
Com vistas a este direcionamento que a própria teoria habermasiana nos indica os alunos
que compõem a turma 801 preenchem o requisito de idade adequada e estão estabelecendo
ou já estabeleceram a capacidade de colocar-se na terceira pessoa.

O olhar que lançamos busca identificar as relações possíveis entre história-ensinada,


História e memória, via espaço argumentativo constituído em sala de aulas Sendo assim a
turma 801, segundo a teoria que Habermas, indica como processo reflexivo que construiu
para embasar sua teoria da ação comunicativa e, tem em si a possibilidade de estabelecer no
ato de fala um processo argumentativo.

4.9. Análise e compreensão dos dados

A compreensão e a análise dos dados foram construídas tendo em vista


principalmente a teoria habermasiana, como já nos referimos em seções anteriores deste
capítulo. Encontramos em Habermas elementos que indicaram a trajetória que trilharíamos
durante a análise dos dados que trouxemos do campo. Conjugamos a teoria habermasiana a
aspectos do paradigma incidiário para melhor construir a nossa análise e a compreensão dos
dados.

A teoria habermasiana nos indicou o local para encaminharmos a pesquisa e que


dados deveríamos coletar. O paradigma indiciário nos indicou como olhar e encontrar os
elementos para a análise e, novamente junto a teoria habermasiana, construímos nossa
compreensão sobre os dados analisados.

Os episódios foram sendo delineados com a análise dos detalhes que definiam
continuidades e rupturas; como nos trechos explicativos em que uma pergunta sinaliza o
término do episódio, ou temas que definem trechos compostos de diálogos e argumentos.
O residual ou singular, aquilo que escapa ao primeiro olhar, o que nos parece periférico,
como marcadores que solicitam assentimento, como “certo?” “tá bom?”, esses detalhes
fugidios formam o todo do diálogo e, em geral, nos passam despercebidos. Na construção
da análise os detalhes foram saltando aos olhos e formaram os sinais que indicaram a
trajetória que percorreríamos em nossa análise e construíram nossa compreensão acerca do
todo que são as aulas de história ministradas pelo professor André para a turma 801.

A escolha de uma determinada palavra em detrimento de outra, o ato de concordar


com o proferido ou negar, são dados considerados muitas vezes considerados como
marginais. Em nossa análise seguimos estas pequenas evidências, e como caçadores,
farejamos, registramos, interpretamos e classificamos as pistas, muitas vezes infinitesimais.
No episódio IX podemos observar marcadores de ruídos como indícios de não compreensão
da questão proposta pelo professor. Pequenos detalhes que a busca por pistas e as idas e
voltas que fizemos ao lermos os dados transcritos, nos fizeram perceber.

“esses dados marginais, para Morelli eram reveladores porque constituíam os


momentos em que o controle do artista, ligado à tradição cultural, distendiam-se para
dar lugar a traços puramente individuais, ‘que lhe escapam sem que ele se dê conta’.”
(Ginzburg, 1989, p.150)

Os dados marginais, que são encontrados nas pequenas expressões e nas escolhas de
determinadas palavras em detrimento de outras, são marcadores do fazer do professor, uma
ação individual que não revela somente a tradição cultural, mas uma intencionalidade
reflexiva própria do fazer daquele professor. Indica uma opção que diferencia a sua prática
das práticas normalmente difundidas. Estes detalhes infinitesimais que escapam ao olhar
mais generalizador. Quando nos aproximamos e procuramos exatamente o que o diferencia
e muitas vezes é desprezado, identificamos o que marca o perfil da história-ensinada na sala
de aula deste professor. O olhar mais atento também salienta os traços comuns e cotidianos
que são demarcados pela tradição cultural que impregna o espaço escolar. O diferente que
causa estranheza muitas vezes é negado. A simples mudança de direção ou a tomada da
palavra sem permissão prévia são consideradas como dados e sinais que fornecem
elementos para a compreensão das questões de nossa pesquisa.
“Não se deve perguntar como as coisas se passam, mas sim como elas se
distinguem de tudo que aconteceu até agora.” (Amorim, 1991, p.129) Os procedimentos
efetivados no espaço da sala de aula provocaram várias rupturas, se distinguindo e
sinalizando a mudança de trajetória efetivada nesse espaço. Os três episódios finais do
capitulo V caracterizam esta mudança nas estruturas estabelecidas e indicam uma nova
trajetória que estava se efetivando no espaço da sala de aula.

“Se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas – sinais, indícios – que


permitem decifrá-la.” (Ginzburg, 1989, p.177) Os dados, mais que transcrições de
diálogos sucessivos são elementos que necessitam de trabalho e lapidação. A busca por
sinais e indícios faz com que um caminho seja traçado e o nosso olhar torne-se mais agudo.
Assim buscamos as condições que compuseram o que foi dito, o seu efeito sobre os atores
da fala e que efeito o ato de fala provocou. Repostas coletivas e individuais, perguntas não
concluídas, falas simultâneas e tantos elementos que compões o espaço do ato de fala são
os sinais que buscamos para procedermos nossa análise e construirmos à nossa
compreensão.

Os sinais e indícios foram olhados à luz da teoria que fundamenta esta pesquisa e
com isso fomos construindo gradativamente compreensões acerca de cada indício
encontrado. Os indícios compreendemos como atos de fala, ações que em sua maioria
buscam entendimento, por isso chamamos de ação e, segundo a teoria habermasiana as
ações são intencionais (Habermas, 1997). Construímos compreensão, pois buscamos o
sentido que compõe as ações em seu contexto social e cultural.

A nossa construção metodológica foi sendo construída no fazer da pesquisa,


buscamos no ato os elementos que constituem o que estamos produzimos nesta dissertação.
Podemos afirmar que nossa metodologia foi construída em ato.
V. Capítulo

5. Análise dos episódios selecionados

As primeiras aulas do professor na turma foram no dia 10 de fevereiro de 2003;


nessas aulas houve as apresentações de todos e a distribuição dos livros didáticos15.
A análise dos episódios foi dividida em três grupos de aulas. O primeiro grupo
referente ao dia dezessete de fevereiro, o segundo grupo ao dia dez de março e o terceiro
grupo ao dia vinte e quatro de março. O primeiro bloco de aulas é composto do episódio I
até o episódio VII, o segundo bloco de aulas é composto do episódio VIII até o episódio
XII e o terceiro grupo de aulas do episódio XIII até o episódio XVII.

5.1. Análise do primeiro bloco de aulas

Episódio I

Professor:
116 A matéria que eu estou trazendo no primeiro bimestre, o que é isso, uma
2 coisa chamada posse e uma coisa chamada propriedade.
3 Para definir posse e propriedade, devemos partir de uma coisa anterior,
4 partir da sociedade em que a gente vive.
5 A gente vive numa sociedade onde tudo se compra e tudo se vende. Tudo na
6 sociedade em que a gente vive pode ser comprado e pode ser vendido. Entre
7 aspa! Tudo em linhas gerais pode ser comprado pode ser vendido.
8 Como se chama esse tipo de sociedade?

15
Durante o período em que acompanhei as aulas da turma, o livro didático não foi utilizado. Entretento, o
professor indicou a sua leitura em casa, fazendo ressalvas sobre partes com que ele não concordava.
Aparentemente por divergências de interpretação.
16
As linhas das fala foram numeradas para facilitar a referência ao analisá-las.
Este episódio marca o início das aulas do dia 17 de fevereiro. Nestas aulas, o
professor apresenta o conteúdo a ser ensinado no bimestre, POSSE E PROPRIEDADE
(L. 1 e 2). A frase inicial do episódio terá um valor fundamental durante as aulas que foram
vídeo-gravadas, pois ao apresentar o tema gerador do conteúdo que será ensinado o
professor apresenta um dos critérios aceitos por ele para conduzir o ato de fala durante as
suas aulas de história. Analisaremos mais adiante como são formados os critérios de
condução dos atos fala.

O episódio I revela vários elementos que serão recorrentes nos procedimentos


pedagógicos utilizados pelo professor durante suas aulas. Primeiro, como já apresentamos,
o critério central para a estruturação das falas que é a temática do bimestre – propriedade e
posse. Na frase em que o professor diz “A matéria que eu estou trazendo no primeiro
bimestre, o que é isso, uma coisa chamada posse e uma coisa chamada propriedade...”, ele
indica o caminho que o ato de fala percorrerá durante todo o bimestre e, ao acompanharmos
os episódios selecionados, poderemos observar que este critério é efetivado. Isto é, as falas
relativas ao conteúdo ensinado são valorizadas e têm seu espaço nos debates que se
estabelecem. O outro elemento fundamental que revela seu procedimento pedagógico é a
visão que o professor André tem em relação ao conteúdo próprio do ensino de história. É a
referência da relação existente entre o presente e o passado, isto é, direciona o olhar para a
História, partindo dos elementos constitutivos do presente e que tem seu eco, ou melhor,
sua origem e/ou início no passado. Aponta assim o passado como elemento fundamental e
que tem sua continuidade na atualidade. Podemos observar esta opção para analisar os
conteúdos de história na frase (L. 3 e 4). Nela o professor fala que antes de olhar o tema
central – propriedade e posse – “devemos partir de uma coisa anterior, partir da sociedade
em que a gente vive”. Podemos vislumbrar neste trecho do episódio elementos discursivos
semelhantes ao que Dosse (2002) define como “supersignificados”. Elementos que são
contínuos numa sociedade produzindo um fio de ligação entre o presente e o passado (ver
cap. III) e sendo o ponto que fundamenta a guinada da produção na historiográfica atual.

Tendo o presente como referência para olhar o passado, o professor inicia sua
explicação do conteúdo. Nas linhas (L. 5, 6 e 7) podemos encontrar elementos que
caracterizam a definição de sociedade utilizada pelo professor, materializando em sua fala a
percepção que ele possui do mundo que o cerca. Também podemos perceber que ele
presume que sua percepção se iguala à que os alunos possuem em relação ao mundo. A
escolha da expressão “A gente vive” traz em si uma expectativa de equivalência de visão de
mundo. Quando o professor solicita que os alunos nomeiem a sociedade em que vivem,
acredita que eles partilhem a mesma vida, na mesma sociedade, o mesmo pano de fundo
que ele identifica e compreende que segundo sua percepção é equivalente ao dos alunos,
logo nomearão o mundo da vida de forma semelhante ou talvez igual.

Neste primeiro episódio podemos observar um eixo pedagógico recorrente nas aulas
deste professor, que é a generalização. A generalização do mundo da vida é um eixo
pedagógico importante no procedimento deste professor; ele parte do pressuposto de que o
mundo em que ele vive é igual ao dos alunos. Os referenciais sociais, o pano de fundo, que
constituem suas referências culturais e os valores impressos no ato de fala, são também
partilhados pelos alunos. A generalização do mundo da vida utilizada pelo professor nos
aponta um dado importante na compreensão dos procedimentos utilizados por ele; sua visão
de partilha do mundo com os alunos, isto é, quando pressupõe uma igualdade entre sua
percepção do mundo e a dos alunos está embutido nesta visão a certeza da partilha do
mundo da vida, logo os seus acervos das tradições culturais construídas pela sociedade são
semelhantes.
Na frase final (L. 8) deste episódio destacamos um indicativo do principal
instrumento pedagógico utilizado pelo professor a “palavra”, isto é, pela sua palavra e pela
palavra dos alunos operacionaliza suas aulas. A pergunta “Como se chama esse tipo de
sociedade?” introduz o ato de fala como fio condutor de suas aulas e transmissor dos
conteúdos. Nesta frase (L. 8) encontramos também um dos eixos pedagógicos recorrentes
no procedimento deste professor – as perguntas para construir o discurso pedagógico,
buscando nas respostas dos alunos o fornecimento de elementos para a construção da sua
fala e do discurso que utilizará nas salas de aula de história.
Ao fazer a pergunta referente ao tipo desta sociedade, o professor permite que
vislumbremos a interseção dos três eixos já citados – a generalização temporal, pois parte
do presente para o passado; a generalização do mundo da vida, pois pressupõe que as
percepções sobre o mundo que ele possui são idênticas às dos alunos, e a pergunta para
construir o discurso pedagógico, que tem como objetivo encaminhar o ato de fala para uma
verdade referente ao conteúdo apresentada pelo professor. O ensino de história traz em sua
estrutura múltiplas pretensões de validez que são ditas pelo professor no ato de ensinar,
materializando em sua fala todo o arcabouço histórico e do mundo da vida que o cerca.
A fala do professor nesse episódio dos indica um traço tradicional do procedimento
pedagógico estabelecido nos espaços escolares – pergunta, resposta, avaliação – porem
podemos observar no vídeo uma fala estabelecida no gestual e na organização do próprio
discursos que visa trazer o aluno para o espaço de construção do argumento que o professor
está estabelecendo na construção do conteúdo que irá ensinar.

Episódio II

Aluno A
Sociedade de compra.
1
Aluno B
2 Sociedade de consumo.
Professor
3 Isso, sociedade de consumo, tudo pode ser consumido nessa sociedade
4 em que a gente vive. Pois bem, é dentro dessa sociedade de consumo
5 que a gente vai ter posse e propriedade, depois a gente vai ver essas
6 coisas ao longo da história. Vai ver que a propriedade e a posse
7 tiveram sempre o mesmo caráter, valor que tem hoje na sociedade em
8 que a gente vive.
9 Vocês concordam comigo que nas sociedades de consumo tudo pode ser
10 comprado, tudo pode ser vendido?
Alunos
11 Concordo (EM CORO)

A palavra é o principal meio pelo qual o professor André organiza sua forma de dar
aula. A palavra dita ganha destaque no seu procedimento pedagógico e é por meio da fala
que o professor apresenta sua percepção da história e do mundo da vida.
São as primeiras respostas dos alunos, as primeiras perguntas feitas pelo professor e
representam o início do uso da palavra pelos alunos (L. 1 e 2); é um processo importante na
condução das aulas, criando a possibilidade do uso da palavra por todos os atores que
compõem este espaço de sala de aula. Nas respostas deste episódio podemos, perceber o
intuito dos alunos em acertar a pergunta feita pelo professor.

A resposta dada pelo aluno A (L. 1) tem um caráter mais imediato, próximo ao
cotidiano, isto é, ao ato de comprar e vender presente na vida, nessa perspectiva constrói
uma definição para a sociedade em que vive “sociedade de compra”. A resposta dada pelo
aluno B (L. 2) demonstra uma interferência da cultura escolar que se materializa na escolha
que ele faz quando prefere a palavra consumo, definindo a sociedade em que vive como
“sociedade de consumo”. Sociedade de consumo é uma adjetivação mais próxima ao
discurso utilizado pelo professor. A resposta do aluno B é mais valorizada pelo professor,
pois esta apresenta elementos próprios da fala utilizada pela historiografia, revelando
aparentemente conhecimento de alguns conceitos históricos apreendidos no espaço escolar
e o uso de um vocabulário que pertencente também a História. Consumo é um conceito
filosófico muito presente nas teorias historiográficas aplicadas no ensino de história,
remissivo à concepção marxista de grande influência no trabalho com os conteúdos de
história (ver cap I).

Quando o professor concorda (L. 3) com a resposta dada pelo aluno B, ele repete a
frase falada por este aluno, confirmando a validez presente na resposta do aluno. Após a
confirmação, a fala do professor é seguida por uma generalização que chamamos de
pedagógica e de uma generalização do mundo da vida – “sociedade de consumo, tudo pode
ser consumido nessa sociedade em que a gente vive.”. A generalização pedagógica tem o
caráter de apresentar semelhanças ou igualdades entre elementos ou tempos diferentes, mas
que se assemelham ou produzem uma continuidade no presente. Compreendemos esta
generalização pedagógica como um procedimento utilizado pelo professor para construir os
conteúdos do ensino de história. A generalização pedagógica une vários elementos, tais
como tempo, espaço e fatos; tornando-os equivalentes.

A generalização que chamamos de temporal é um procedimento pedagógico


utilizado pelo professor, que tem como objetivo destacar a importância de se olhar para o
presente em busca do encontro com o passado. Desta forma, a sociedade presente é o pano
de fundo temporal que servirá para remeter o olhar do aluno para o passado. Olhando o
hoje, e encontrando nele elementos de igualdade com o tempo já vivido. Nesta perspectiva,
o professor encaminha um dos seus procedimentos pedagógicos buscando no hoje
elementos de permanência do passado. Caracterizamos como generalização porque sua fala
indica uma igualdade aparente, apresentando elementos semelhantes como sendo elementos
iguais. Destacamos que o presente tem em si elementos do passado, mas não com o mesmo
formato, podemos ver semelhanças e continuidades e, não, repetições. Encontramos
semelhanças ao longo da pesquisa, como já apontamos, com o que Dosse chama de
supersignificados, porém neste episódio destacamos que a construção da fala do professor
aponta elementos mais próximos do que chamamos de generalizações, pois encontramos
fortemente o marcador de igualdade na expressão “sempre o mesmo caráter”.

A perspectiva da relação presente/passado é encaminhada por um processo de


generalização temporal. Em vários momentos podemos perceber este procedimento nas
falas do professor (L. 6, 7 e 8), a perspectiva de continuidade no presente das relações
político-sociais existentes entre propriedade e posse, apresentando o tema como elemento
sempre contido na sociedade sem alteração nas suas características. Isso aponta para um
princípio de equivalência dos acontecimentos que gera a generalização. Percebemos nas
falas contidas neste episódio uma naturalização dos conceitos propriedade e posse, feita
pelo professor, quando indica sua permanência estável na sociedade e presume, desta
forma, que todos compreendem propriedade e posse da mesma forma. Observamos ao
longo do período de investigação sua construção histórica no corpo pedagógico de suas
aulas e acreditamos que essa generalização é usada para organizar os conceitos de forma
pedagógica, visando facilitar a compreensão dos alunos. Mesmo assim destacamos que as
generalizações podem fortalecer o apagamento da história de grupos e acontecimentos que
clamam por voz.

A memória que muitas minorias buscam pode estar novamente sendo enviadas para
o porão do esquecimento. Ao negar as sociedades pré-históricas coletivas e os próprios
índios brasileiros que tinham e tem até hoje uma relação com a propriedade e a posse,
diferente da visão branca ocidental, centrada na terra e na exploração da força, humana para
determinarem e estabelecerem seu poder diante de uma coletividade. Destacar posse e
propriedade como conceitos perenes que vêm sendo transpassandos por vários séculos, sem
mudanças, nos parece um procedimento pedagógico de aproximação dos conteúdos de
história para o presente e o do cotidiano dos alunos. Salientamos porém que as
generalizações podem causar enganos, quando não são lembrados os processos culturais
que diversos conceitos históricos, entre eles propriedade e posse, sofreram ao longo do
tempo, tanto na sociedade em que vivemos, como nas próprias produções historiográficas.

Quando damos voz aos alunos, as diferenças dos mundos da vida podem surgir no
espaço da sala de aula para se confrontarem as generalizações que são tão comuns nas
práticas pedagógicas. Os alunos podem perceber alguns conceitos de forma diferente da
apresentada pelo professor, desta forma, quando confrontam com seu cotidiano os
conceitos ensinados e, pela palavra, expressam essa percepção diferenciada, trazendo as
diferenças de seu olhar para sala de aula, materializando esta diferença pela palavra, as
generalizações perdem sua função de produzir a equivalência. As generalizações têm seu
papel na prática pedagógica, porém seu uso deve ser seguido de alguns cuidados.
Observamos que ao longo de suas aulas o professor André tem esses cuidados ao utilizar-se
das generalizações.

A pergunta (L. 9 e 10) formulada busca identificar nos alunos dois elementos
fundamentais para a continuidade do procedimento pedagógico utilizado pelo professor: 1)
a busca pela aceitação da pretensão de validez apresentada na pergunta quando utiliza a
expressão “Vocês concordam comigo...”; e 2) a confirmação de que os alunos estão
participado da aula quando busca uma resposta coletiva e utiliza “Vocês” para apresentar
uma pergunta coletiva, esperando também uma resposta coletiva. A resposta em coro (L.
11) serve para indicar que grande parte dos alunos está ativamente participando da aula.
Podemos observar na vídeo-gravação que quase a totalidade da turma responde
coletivamente a pergunta. A resposta em coro atende à expectativa de uma resposta
coletiva solicitada pelo professor e assegura, mesmo que superficialmente, que os alunos
estão integrados à dinâmica da aula.

Perguntar sobre as afirmativas proferidas categoriza esta frase (L. 9 e 10) como uma
pergunta para avaliar a aceitação do argumento que o professor está apresentando em sua
explicação, isto é, pretende verificar o grau de aceitação de uma pretensão de validez.
Quando o professor questiona a aceitabilidade do seu proferimento e busca a confirmação
da aceitação nos alunos, via uma resposta afirmativa, está estabelecendo pela primeira vez
no seu discurso a possibilidade da argumentação como um fio condutor para a fala na sala
de aula, pois viabiliza a possibilidade dos alunos fazerem intervenções em suas explicações.
A viabilização dessas intervenções, que apontamos como indicativo da possibilidade de
efetivar uma ação comunicativa reflexiva, nos faz destacar este trecho no episódio II.

Episódio III

Professor
1 Vocês vão concordar comigo, ou não; que nem sempre tudo que a gente
2 consome, que nem sempre tudo que a gente compra, nem sempre é
3 necessário para vida. Vocês concordam comigo?
Aluno C
Eu concordo também.
4
Aluno A
5 Eu concordo
Professor.
6 Por que?
Aluno C
7 O senhor está falando, é mais inteligente é esperto, é o professor, eu
8 concordo.
Alunos
9 (RISOS)
Professor
10 (O PROFESSOR RI) Queria saber por que nem tudo que a gente compra é
11 uma necessidade nossa?
12 O que você compra e não é uma necessidade sua?
Alunos
13 **** (VÁRIOS FALAM AO MESMO TEMPO. SOLICITAM ATENÇÃO DO
14 PROFESSOR, FALAM JUNTOS.)

Na fala inicial deste episódio (L. 1, 2 e 3), podemos observar a retomada de um


procedimento pedagógico que será um traço constante no ato de ensinar do professor
André: a busca pela confirmação de uma afirmação proferida por ele na explicação do
conteúdo. O professor inicia esse trecho de fala com um questionamento referente à
validade de seu discurso “Vocês vão concordar comigo ou não...” e termina o trecho com a
mesma pergunta “Vocês concordam comigo?”. Esse traço marcante na ação pedagógica
desenvolvida pelo professor nós caracterizamos como perguntas para avaliar a aceitação de
validez contida no seu discurso17. Usamos validez nos aproximando da teoria
habermasiana, pois o professor quando busca no aluno a aceitação de sua fala está se
sujeitando à negação do que foi dito. Desta forma esta afirmação caracteriza-se como
validez, mesmo que essa validez seja para o ator da fala uma verdade, em um processo
comunicativo ele pode ser questionado e assim efetivar um processo de argumentação entre
as validezes que serão apresentadas, em uma busca racional pelo melhor argumento.

Alguns alunos usam a palavra para concordar com o professor (L. 4, 5 e 6). O
professor continua buscando a aceitação e pergunta “Por quê?”. Esta pergunta gera uma
resposta profundamente interessante para compreendermos a mudança significativa que
ocorrerá gradualmente no processo pedagógico desta sala de aula. O aluno C responde “O
senhor está falando, é mais inteligente é esperto, é o professor, eu concordo”, alguns
elementos que ao nosso ver, são reveladores da tradição cultural que permeia o fazer
pedagógico. Estas tradições são partilhadas pelos atores da fala, socializando normas e
valores pelas várias gerações que partilham o mundo da vida. Desta forma as tradições
culturais e os objetos simbólicos escolares fornecem elementos que compõem o ato de fala
na sala de aula. Quando o aluno C diz – “O senhor está falando...” – podemos identificar
um traço cultural muito importante na fala do aluno; a palavra do professor tem valor e é
aceita como uma “verdade”. Durante muito tempo, na tradição escolar, cabia ao professor
falar e ao aluno receber. A palavra do professor tinha status de verdade e não cabia
questionamento. Quando o aluno C afirma que “o senhor está falando” compreendemos
que ele está utilizando este arcabouço formado pela tradição para embasar sua fala. A
continuação da fala re-afirma as palavras iniciais e termina literalmente corporificando esta
tradição “é o professor, eu concordo”.

17
No discurso do professor está contida uma série de conceitos e verdades defendidas por ele, porém, quando
ele busca confirmação no aluno, reconhecemos que estes conceitos e verdades tornam-se validez, pois podem
ser avaliados no processo argumentativo. Sendo assim utilizamos validez nos aproximando da teoria
habermasiana da ação comunicativa reflexiva.
Como utilizamos a video-gravação para registrar esta aula, podemos analisar outros
elementos que estão além da palavra oral, os gestuais que compõem a palavra corporal. Ao
proferir esta fala (L. 7 e 8) o aluno C imprime em seu rosto um sorriso e um olhar
brincalhão, próprio de quem também está fazendo uma galhofa. Compreendemos que este
ato tem implícito um questionamento em relação a esse poder dado ao professor
estabelecido pela tradição escolar. A fala corporal, a nosso ver, não está contradizendo o
dito. Apresenta uma outra possibilidade não materializada na oralidade, mas presente no
gestual que compõe o ato de fala. Este gestual também apresenta uma mudança de
valoração que o professor vem sofrendo ao longo dos anos, é a mudança gradativa das
relações entre professor e alunos. Não abordaremos esta temática na presente dissertação,
porém destacamos que o mundo da vida está em constante re-significação e as tramas das
tradições culturais são tecidas cotidianamente, transformando o pano de fundo cultural e o
acervo que ele compõe.

O riso (L. 9) compartilhado por todos indica o quanto de validade tem o ato de fala
do aluno C. Quando o professor também partilha este riso (L.10) ,ele confirma ambas as
pretensões apresentadas por este aluno. Abre-se nesse momento um novo olhar sobre a
aula que está acontecendo naquele espaço, e a turma que mantinha um relativo silêncio
explode em falas. É a descoberta de que suas vozes podem ser ouvidas e vários
experimentam falar (L. 13 e 14).

Ao salientarmos a fala do professor (L. 6), como a grande desencadeadora da


avalanche de falas proferidas pelos alunos, o “por quê” tem uma função investigativa e
organizadora das diversas falas. Ao questionar o aluno, o professor solicita dele uma
resposta que traga em si um argumento para a questão. O aluno C responde a pergunta e
mostra aos colegas que o uso da palavra era permitido. A ruptura do silêncio vem
acompanhada de um experimentar do uso da fala, o falar por falar, causando muito ruído e
impedindo o registro das falas pelo áudio. Ao nosso ver, o ruído, mais que sons sem
significados aparentes, é um novo estado em sala de aula, que rompe com aprisionamento
do silêncio amordaçado que culturalmente desqualifica o uso da palavra pelos alunos no
espaço da sala de aula. Aparentemente a resposta dada pelo aluno C é descontextualizada,
não respondendo à questão central da pergunta – a necessidade ou não de tudo que é
consumido. Porém podemos compreender esta resposta como um movimento duplo: 1º) a
busca por responder com acertividade, isto é, acertar a resposta, buscar falar o que o
professor espera que o aluno dê como resposta; 2º) ousar dizer que, como o
professor havia dado implicitamente a resposta em sua pergunta, eles confirmavam
essa resposta. Uma reposta aparentemente estranha e descontextualizada deveria
causar algum tipo de irritação ou estranheza, mas o que vimos é uma concordância
generalizada, tanto por parte do professor como pelos alunos que aceitam a fala do
aluno C.

Nesse episódio as relações de poder estabelecidas e existentes na escola estão


visíveis, porém podemos observar também a semente do processo argumentativo.
Não uma fala de contestação desconectada, tão comum no espaço da sala de aula,
muito confundida com crítica, porém que não estabelece construção de
conhecimento e cai na fala pela fala. O aluno C constrói uma crítica, de forma
gaiata e descontraída, que ecoa na turma e tem no riso do professor um ato de
aceitação.

Não rompe propriamente as formas de poder estabelecidas, mas gera a


possibilidade de uma outra forma de poder. Poder este que o professor possui
oriundo do berço histórico da função – mestre – porém que não necessariamente é
sinônimo de autoritarismo. Administrar a autoridade em sala de aula com
adolescente é acima de tudo uma ação de avanços e recuos, risos e sobrancelhas
serradas. O aluno C reconhece e conhece este jogo e em sua fala (L. 7 e 8) e tenta,
no subtexto de sua fala, estabelecer os parâmetros que estão sendo erguidos para
aula de história neste ano de 2003.

A resposta do aluno C não rompe apenas o silêncio existente ou a respostas já


pré-determinadas pelas perguntas do professor. Esta resposta introduz um
significado diferenciado a para fala que poderemos compreender melhor nos
episódios que se seguirão.
Episódio IV

Professor
1 Ei, ei, um de cada vez!
2 Fala você.
3 Vamos organizar, quem quiser falar fala, mas um de cada vez!
4 Por que nem tudo que a gente consome, que a gente compra, é uma
5 necessidade nossa?
6 O que vocês compram, que não é uma necessidade nossa?
Aluno D
7 Ei professor, professor. (COM O DEDO LEVANTADO – FALANDO JUNTO COM
8 OS OUTROS)
Aluno E
9 Biscoito. (FALA JUNTO COM ALUNO D)
Professor
10 Por que você acha que biscoito não é uma necessidade su?.
11 Pera ai... pera ai... O Wiliam**** (TODOS FALAM AO MESMO TEMPO,
12 VÁRIOS PRODUTOS E OUTROS DISCORDAM DO QUE SE FALOU)
13 Um de cada vez... O Wiliam, agora.
Aluno W
14 Por que tem comida em casa.
Professor
15 Você acha que biscoito não alimenta?
16 (VÁRIOS FALAM AO MESMO TEMPO IMPEDINDO O REGISTRO DO ÁUDIO)
17 Um de cada vez, vamos organizar.
Aluno D
18 Ei, professor, vai dizer que tá lá em casa, as compra do mercado acabou,
19 tá lá aquele pacote de Traquinas olhando pra você, tá com fome, não vai
20 comer, porque não é comida. Ta bom...
Professor
21 Olha só... olha só... vamos pensar uma outra coisa.
22 Biscoito é uma comida (APLAUSOS)
23 Pera ai, biscoito é o que?
24 (VÁRIOS FALAM AO MESMO TEMPO, CONCORDANDO, DISCORDANDO,
25 AFIRMANDO QUE BISCOITO É COMIDA, MAS NÃO É IMPORTANTE... UNS 2 MIN.
26 DE FALATÓRIO, E VOZES ELEVADAS, UNS FALANDO ALTO E OUTROS PEDINDO
27 SILÊNCIO).****

Podemos dividir este episódio em três momentos distintos e simultâneos: 1) Grande


número de marcadores de organização de fala; 2) o aparecimento do primeiro processo de
argumentação, pois há um questionamento explícito da pretensão de validez apresentada
pelo W; 3) a palavra do professor como uma autoridade que deve e pode interferir e
determinar o fim do conflito de validez.

Como o instrumento pedagógico central das aulas de histórias do professor André é


o uso da palavra, o ato de fala podendo ser18 partilhado por todos, ou melhor, todos os
atores presentes na sala de aula em questão podem requisitar e utilizar-se do direto da fala,
podemos identificar vários organizadores de fala, para que o uso da palavra seja o mais
cooperativo possível. Os organizadores de fala usados pelo professor, tais como – “Ei, ei,
um de cada vez!” “ Fala você.” “Pera ai... pera ai...” “Olha só... olha só...” – têm o
papel de tornar as várias falas um ato de comunicação organizado. A comunicação é uma
ação cooperativa, falas simultâneas não ouvidas por todos, ou competitivas em volume e
quantidade, não caracterizam, segundo nossa concepção, uma ação comunicativa. A
cooperação na disputa em torno do melhor argumento tem um caráter aglutinador e
dialético, que identificamos na ação comunicativa. Desta forma, podemos apontar a
interferência do professor como uma operacionalização da fala, visando o entendimento e
efetivando um papel que é esperado culturalmente que ele cumpra.

O professor organiza seu procedimento pedagógico de forma que os vários alunos


tenham voz, porém atua para que as várias falas componham uma relação coletiva e
cooperativa. Compreendemos que esse aspecto do procedimento pedagógico do professor
tem elementos que compõem a teoria da ação comunicativa reflexiva, mas não caracterizam
esta teoria em sua totalidade. Sua tentativa é de promover uma fala cooperativa em que a
disputa seja pautada no argumento.

O professor interfere direcionando as falas para um processo de debate coletivo.


Neste processo, podemos identificar elementos da argumentação habermasiana, ao conduzir
um processo que valoriza a argumentação. Quando o professor interfere e concede a
palavra ao aluno William (L. 13) e pede que o aluno diga por que biscoito não é uma
necessidade; o aluno William responde (L. 14) que “tem comida em casa”. Nessa lógica o

18
Podemos observar na vídeo-gravação alguns alunos em constante silêncio. Não aprofundaremos está
questão pois não é o silêncio o ponto central da presente dissertação e, sim, a fala, mas destacamos a
existência deste dado e a relevância do mesmo.
biscoito não é comida, é desnecessário e tem o papel de dar prazer e, não, alimentar. O
professor pergunta se ele está afirmando que “biscoito não é alimento”. A pergunta do
professor tem um caráter pedagógico organizador, visando fazer com que os alunos
construam mais suas respostas. Nessa fala surge um novo elemento que é gerador de um
outro momento.

A aluna E discorda do aluno William (L. 18, 19 e 20), construindo um argumento


em que biscoito é comida, e na hora da fome o biscoito serve, sim, para alimentar. Pela
primeira vez uma pretensão de validez proferida é questionada e um impasse se estabelece.
Na video-gravação podemos observar vários alunos concordando e discordando com
movimentos de cabeça. Identificamos no áudio ruídos ao fundo referente a várias vozes.
Não se estabelece nesse momento um processo argumentativo efetivamente, mas podemos
compreender a existência de duas afirmativas divergentes, uma do aluno William e outra da
aluna E. A nosso ver, o estabelecimento de pretensões diferentes sobre uma questão –
biscoito é alimento ou não – indica que o germe da argumentação reflexiva já existe e
futuramente o uso do debate se tornará um instrumento recorrente no procedimento
pedagógico do professor André. Poderemos observar esta estruturação da argumentação ao
longo dos episódios.

O processo de debate que destacamos no parágrafo anterior não apresenta todos os


elemento que Habermas (ver cap. II, seção 4) aponta como uma comunicação voltada para
o entendimento, ou melhor, uma argumentação reflexiva em que o melhor argumento viria
à tona e promoveria a saída para a questão que gerou polêmica. Podemos perceber que o
professor interfere (L. 22) e define a validez e a saída para a disputa, porém identificamos
elementos que indicam a possibilidade do estabelecimento do processo argumentativo que
poderia ter sido efetivado.

Compreendemos que alguns aspectos devem ser destacados: a) O início de uma


ação comunicativa reflexiva, em que uma afirmativa é tematizada, isto é, um argumento é
contestado por outro ator da fala; b) O professor em um primeiro momento busca no aluno
uma organização de seu argumento (L. 10); c) A intervenção do professor determinando o
fim da disputa (L. 22). Este três aspectos são destacados, pois identificamos neles
elementos de uma possibilidade para a argumentação reflexiva. Os alunos W e E tiveram
garantidas a inclusão de suas falas no processo pedagógico, a validez apresentada por
ambos, de certa forma antagônicas, foram apresentadas e explicitadas. Reconhecemos
nestes aspectos a garantia de inclusão e de direitos comunicativos iguais, que são elementos
da teoria do ato de argumentação habermasiana.

A interferência do professor interrompe o fluxo argumentativo. Esta interrupção


pode ter sido ocasionada por alguns pontos que iremos apresentar e que consideramos
como possibilidade para a ação do professor:

a) A percepção de que o processo argumentativo não chegaria a um consenso;


b) A busca para organizar as falas para indicar um cominho mais promissor para as
questões que estão sendo ensinadas;
c) A utilização de sua autoridade para finalizar a disputa e estabelecer um ponto
final ou um consenso provisório.

A interrupção apresenta elementos muito importantes para compreendermos o


espaço desta sala de aula. O professor tem seu papel historicamente produzido como fruto
de uma tradição cultural escolar, que lhe permite julgar os argumentos e estabelecer uma
validez. Esta condição de juiz e legislador não causa estranheza aos alunos, ao contrário
eles esperam que o professor cumpra esse papel socialmente consentido. Podemos
perceber isso quando ele define biscoito como alimento e vários alunos aplaudem a sua
afirmação. O aluno W não apresenta um novo argumento e aceita a fala do professor sem
estabelecer um questionamento ou um protesto. Ele apenas escuta a afirmação do professor
e a aula prossegue e a questão biscoito é substituída por outra, sem nenhum protesto ou
tentativa por parte dos alunos de aprofundamento da questão que aparentemente suscitou
várias falas. Podemos observar, ao final do episódio, a presença de um trecho de
aproximadamente dois minutos de ruídos. Nesse trecho alguns alunos continuaram falando
sobre a questão, porém não efetivaram nenhum comentário contrário à afirmativa do
professor e a aula continuou.

Os elementos da teoria habermasiana que apontamos existem no campo da


possibilidade da construção de uma ação argumentativa mais efetiva. Identificamos que
alguns elementos presentes nesta teoria sinalizam como possibilidades futuras no exercício
pedagógico do fazer ensino existente na sala de aula. A tentativa de aproximação do
empírico com o teórico e o resultado de uma busca para o fazer pedagógico da sala de aula,
na nossa pesquisa do ensino de história. Organizar a sala de aula como um espaço
democrático e argumentativo demanda uma construção contínua e lenta, identificamos no
procedimento pedagógico do professor André uma busca gradativa para essa possibilidade,
que continuaremos apontando nos episódios que se seguem.

Episódio V

Professor
1 **** Olha, pera ai... O que a gente vai consumir por necessidade, o
2 que a gente vai consumir por desejo?
3 Eu quero ter, vamos por aí, um iate. É uma necessidade minha ou é um
4 desejo?
5 Eu vou comprar uma ...
Aluno F
6 Um celular.
Professor
7 Um celular, pera ai, pera aí (ALGUNS ALUNOS TÊM CELULAR E USAM DE
8 FORMA QUE SEJAM VISTOS.)
Aluno G
9 Celular é uma necessidade. (ELA ESTÁ COM CELULAR SOBRE A MESA)
Professor
10 Celular desejo nosso ou necessidade?
11 Sem celular algum de vocês é capaz de viver?
Alunos
12 Eu sou...(Em coro)
Alunos
13 Eu não...(Em coro) ****
Aluno E
14 Eu vou dizer uma coisa do celular, qualquer hora que a gente quer ligar
15 liga.
Professor
16 Posso falar?
Aluno E
17 Pode falar.
Professor
18 Tô perguntando o que é um celular. É um desejo seu ou uma
19 necessidade sua?
Aluna E
20 Acho que é os dois.
Professor
21 A única forma que você tem de falar com uma pessoa é pelo celular?
Aluno E
22 Não tem o outro... é... é...pode ser do outro telefone, o
convencional.****
Aluno E
23 O lugar que não tem um orelhão. Mas essas pessoas que moram no
24 mato, não tem nenhum telefone. Se eu estiver em perigo, vou usar o
25 celular.
Professor
26 Aí você ta falando que sua vida ... você vai viver em constante ... que a
27 sua vida vai correr perigo a toda hora e a todo lugar... ****

As questões centrais deste episódio são as necessidades e os desejos. O professor


apresenta em sua fala um objeto (L. 3 e 4), o “iate”, e questiona se é desejo ou necessidade.
O aluno F aponta logo outro elemento para fazer parte do debate (L. 6) o “celular”.
Compreendemos que o celular está muito mais presente nas questões referentes ao mundo
da vida dos alunos e é um elemento de desejo próximo para a maioria dos adolescentes,
enquanto o iate está muito distante de uma perspectiva de desejo possível, não parecendo
fazer parte dos desejos e nem das necessidades dos alunos. A interferência do aluno F leva
o discurso do professor para um elemento mais próximo e presente no cotidiano dos alunos.
Como podemos perceber na vídeo-gravação, alguns alunos ostentam o celular sobre a mesa.
Desta forma, o celular torna-se um objeto muito mais concreto como um desejo ou uma
necessidade para aquele grupo de alunos do que o iate proposto pelo professor.

Quando o aluno propõe que o celular seja o objeto para ser avaliado como
necessidade ou desejo, podemos compreender dois movimentos nesse diálogo: 1º) o
argumento presente no discurso do professor, o “iate”, não tem eco nos alunos e o aluno F
indica que o “celular” pode promover um debate mais interessante e inclusivo para a
maioria dos alunos; e 2º) que desejos e necessidades se modificam ou são diferentes de
acordo com o pano de fundo que temos. Desta forma um argumento pode nos parecer
comum e até corriqueiro, pois faz parte de um pano de fundo cultural que nos forma, mas
pode não ser compreendido ou causar estranheza em outros atores, pois os mundos da vida
que são compartilhados no ato de fala trazem em si elementos das tradições culturais que se
movimentam no processo da racionalidade que permeia os argumentos utilizados. A busca
pelo entendimento faz com que se percebam as diferenças culturais e se processe o
encontro de um consenso.

O professor aceita sem questionamento a proposta do celular como o objeto que será
analisado (L. 7) quanto a seu valor social, isto é, se é uma necessidade ou um desejo. A
aluna G logo se pronuncia quanto ao valor social do celular, afirmando “Celular é uma
necessidade”, o professor faz em seguida um questionamento explícito sobre a pretensão
de validez contida nesta afirmação (L. 10 e 11), perguntando se a aluna seria capaz de viver
sem esse objeto. A turma em coro responde simultaneamente “sim” e “não” formando dois
grupos com opiniões discordantes. Inicia-se um debate entre os vários atores da sala. A
aluna E se coloca (L. 14 e 15), defendendo a importância do celular e a sua praticidade
quando há necessidade de comunicação. O professor retoma argumentando (L. 18 e 19) se
é uma necessidade ou desejo. A aluna E (L. 20) argumenta que são as duas coisas e o
professor continua (L. 21) perguntando se ela somente pode se comunicar à distância
usando o celular. A aluna E responde (L. 22) que existem outros tipos de telefone. A turma
concorda e discorda coletivamente causando um grande ruído no áudio, impossibilitando a
transcrição das várias falas simultâneas. A aluna E continua seu argumento (L. 23 e 24),
relacionando o celular a uma forma de preservar sua vida quando estiver em perigo. O
professor argumenta (L. 25 e 26) que ela pressupõe que sua vida vai estar em constante
perigo. Nesse momento a turma fica muito agitada e vários alunos falam ao mesmo tempo.

O debate sobre o celular aponta alguns elementos que são importantes para o
aparecimento do questionamento explícito em relação ao desejo ou à necessidade do
celular:

a) O celular parece ser um objeto de desejo para a maioria dos adolescentes desta
turma;

b) O episódio sugere que o celular seja um objeto que projeta socialmente o aluno
que o possui, de forma tão explícita que alguns alunos o colocam sobre a mesa,
mostrando que o possuem;
c) Em uma comunidade em que a violência é tão constante o celular é muito mais
que um objeto de status é um instrumento de defesa;
d) A percepção que o professor possui do objeto diferencia-se muito da aluna E,
salientando a diferença do pano de fundo que os cerca;
e) Os argumentos revelam as tradições culturais que os cercam e a percepção que
temos dos mundos da vida. Quando o professor aparentemente não compreende
o argumento da aluna, ele está olhando o “celular” de seu lugar de vida, com as
lentes que o formam;
f) A argumentação promove um movimento de saída do lugar em que o ator está e
o impulsiona a mudar o foco de olhar.

O episódio VI terminou com o sinal do recreio que também interrompeu o processo


de debate que estava sendo estabelecido, não produzido assim um consenso. Porém
podemos destacar alguns elementos próprios do ato de argumentação que se
aproximadamente assemelham a teoria habermaziana:

a. explicitação de uma validez controversa em que ambos os atores trazem


contribuições relevantes;
b. é dada aos atores uma aparente igualdade de chances para expressar suas
opiniões;
c. os atores falam o que pensam, não se utilizando de enganos ou
subterfúgios;
d. a comunicação se faz em um espaço de não coação.

A não coação pode ser observada claramente neste episódio. A aluna utiliza-se da
palavra para apresentar uma validez que se sustenta em bases diferentes das apresentadas
pelo professor. O questionamento lança para o espaço pedagógico a argumentação,
promovendo uma comunicação reflexiva em que a busca do entendimento é a finalidade do
processo argumentativo. A racionalidade posta é processual e o embate dos argumentos
corporifica os mundos da vida dos atores da fala e a necessidade de construção da
alteridade no processo argumentativo.
Episódio VI

Professor
1 Casa, escola ....
2 Temos idéias que essas necessidades básicas são iguais para todo
3 mundo.
4 Vamos ver que vai variar muito pouco as necessidades das pessoas. Tá
5 certo?...
6 Tem determinadas coisas sem elas as pessoas não vivem...
7 A gente deseja coisas diferentes e precisamos de coisa semelhantes...
8 Diga um desejo seu ...
Aluno E
9 Namorar.
Professor
10 Diga um desejo seu ...
Aluno H
11 Um micro computador.
Professor
12 Diga um desejo seu, Natália.
Aluno J
13 Honda Biz.
Professor
14 Comprar uma Honda Biz.
Aluno E
15 Sexo, sexo...
Professor
16 Vamos falar de desejos materiais...

A fala é o principal recurso utilizado pelo professor e, ao final dos episódios


selecionados da aula do dia 17 de fevereiro, podemos destacar um critério básico para a
organização das falas que é o tema central da aula – propriedade e posse – e os sub-temas
que o compõem, no bloco de aulas do dia 17. O sub-tema é necessidade e desejo.
Necessidade e desejo estão vinculados a um outro sub-tema que é o da sociedade de
consumo. Todos estes temas e sub-temas organizam as diversas falas e os discursos que
formaram os episódios. Esses temas e sub-temas são o fio condutor das falas e podemos
observar que as falas giram em sua maioria em torno das temáticas estabelecidas. Quando
a fala torna-se exótica ao discurso que está sendo elaborado, promove um segundo olhar
sobre o ato de fala, mas também promove uma relação de estranheza e negação de diversas
falas. Podemos observar alguns elementos nesse processo que serão destacados nesta
dissertação.

A fala da aluna E (L. 9) apenas compõe o exercício oral que o professor está
fazendo com os alunos, não é destacada nem negada, apenas é ouvida e o professor
continua a perguntar a outras alunas. Na continuação do exercício ela toma a palavra sem
ser solicitada (L. 15) e o professor não aceita a resposta e a desconsidera (L. 16),
solicitando que fossem falados desejos materiais. A fala da aluna E fugiu ao tema e aos
sub-temas da aula e o professor a desconsiderou como incorreta em relação ao exercício
que estava sendo executado com a turma. Dois elementos, ao nosso ver, devem ser
destacados neste episódio:

1º) a existência implícita de uma regra para as falas, isto é, os discursos estão
centrados nos tema e sub-temas;

2º) o professor tem autoridade para desconsiderar uma fala quando ela estiver fora
da regra implícita.

O episódio VI é composto por um exercício oral. Nele o professor indaga sobre os


desejos de alguns alunos. Um detalhe nos chamou atenção no vídeo: a pergunta não foi
dirigida a aluna E – ela tomou posse da palavra fazendo-se ouvir. A reação do professor foi
de ignorá-la. Ela falou (L. 9), mas sua fala não foi destacada ou repudiada no contexto do
exercício. Em seguida o professor solicita que outro aluno diga o seu desejo (L. 10) e este
aluno responde (L. 11). O professor pergunta a outro que o responde também (L. 12 e 13).
A aluna E interfere novamente e fala o seu desejo (L. 15). O professor dessa vez não
ignora resposta dela e solicita que ela fale de desejos materiais (L. 16).

Este exercício aponta como a palavra pode ser um elemento de conflito e embate.
Nos espaços da sala de aula este embate torna-se constante e às vezes gera beligerância,
causando uma improdutividade pedagógica, transformando a sala de aula em um campo de
guerra minado, gerando muitos feridos, entre eles o professor.
O episódio VI não se caracteriza por um espaço de beligerância, mas podemos
observar elementos geradores deste tipo de acontecimento. O uso da palavra como
procedimento pedagógico básico abre espaço para a materialização de elementos
contraditórios e talvez conflituosos no espaço da sala de aula. Quando a aluna E apresenta
“namorar e sexo” como desejos o professor opta por não considerá-los como elementos de
desejo e consumo. Entendemos que esses dois elementos são muito vinculados aos sub-
temas propostos pelo professor e poderiam gerar um debate muito produtivo. Poderemos
perceber como os dois desejos expressos pela aluna serão recorrentes e invadiram o espaço
da sala de aula de forma que não se consegue que eles sejam calados nas próximas aulas.
Destacaremos esse processo invasivo e verbalizado em outros episódios próximos.

Episódio VII

Professor
1 Numa sociedade de consumo a gente compra muito mais do que
2 precisa.
3 Vocês concordam?... Vocês concordam com que eu disse ou não?
4 Outra idéia?....
5 A gente é estimulado a comprar sempre...**** Nessa sociedade
6 comprar é muito importante...
7 A Jéssica falou uma coisa super importante.
8 Fala ai. (JÉSSICA FALA, MAS O ÁUDIO NÃO REGISTRA)
9 Nessa sociedade de consumo tem gente que tem necessidade e não tem
10 como comprar, não tem dinheiro pra comprar para sua sobrevivência...
11 **** Tem gente que precisa morar e não tem dinheiro para morar..
12 Tem gente que come, que mora e ainda compra suas necessidades...
13 Tem gente que satisfaz todos os seus desejos e necessidades.
14 Nessa sociedade de consumo tem gente que compra todos os seus
15 desejos, tem gente que não consegue compra, nem aquilo para as suas
16 necessidades.
17 Fala Tatiane... (O AUDIO NÃO REGISTRA A FALA DE OUTRA ALUNA E NEM
18 DA ALUNA TATIANE)
19 É... a parir disso vamos discutir o que é propriedade o que é posse... ok!
20 Vamos escrever isso.
21 O que é sociedade de consumo.
22 O que eu quero mostrar é que nessa sociedade, há um grupo que tem
23 para consumir e existe um grupo que não tem... nada...
O episódio VII é o trecho final da aula. Após a última fala do professor, o sinal de
saída tocou e a turma foi dispensada.

O professor nesse episódio organiza uma explicação de fechamento das aulas


daquele dia, analisando a sociedade de consumo e sua relação com propriedade e posse.
Solicita que os alunos escrevam o que é uma sociedade de consumo. Podemos perceber
nesse episódio a importância da escrita como elemento documental na tradição escolar.
Mesmo sendo o procedimento pedagógico da aula vinculado ao ato de fala, temos na sua
finalização o registro escrito. Apresentando aparentemente uma ruptura de ritmo, o
professor traz à tona um elemento essencial da cultura escolar, a escrita como o registro
através do qual podemos refletir sobre o aprendido. A escola tem sua base em uma cultura
grafada. A fala pode ser um elemento operacionalizador do procedimento pedagógico, mas
a produção escrita é o seu destino final. A escrita é a forma documental do ensinado e o
trabalho proposto cumpre a função de deixar registrado o produzido na aula. A
materialidade da fala não basta na cultura escolar ela tem que ser materializada na escrita.

O episódio VII nos faz vislumbrar o papel do ato de fala na escola e a cultura
documental que forma o pano de fundo escolar.

Os episódios a seguir foram vídeo-gravados no dia 10 de março compondo o


segundo bloco de três aulas.

5.2. Análise do segundo bloco de aulas

Episódio VIII

Prof.
1 Atenção****
2 Atenção esse pessoal aí perto da porta...
3 Vamos relembrar?...
4 Chegamos a uma conclusão, é que... na nossa sociedade é... tudo pode ser
5 comprado, não é isso gente?
6 Tudo pode ser consumido?
7 Que na nossa sociedade existem pessoas... que têm o suficiente pra
8 satisfazer... é ... os seus desejos e as suas necessidades. Tem outras que não
9 tem é... esse direito ... vamos dizer assim direito... de satisfazer nem suas
10 próprias necessidades básicas.
11 Há uma diferença grande entre pessoas que podem consumir seus desejos e
12 suas necessidades e há pessoas que não podem consumir nem o suficiente para
13 as suas necessidades básicas...
14 Ai a gente chegou na noção.. de que?...
15 De propriedade, ta é. A propriedade é tudo aquilo que alguém pode comprar,
16 que alguém pode dispor, tá...
17 Então a nossa sociedade esta sociedade de consumo,** ela é baseada na ... ela
18 é baseada na propriedade, certo?
19 Como essa sociedade? Ela é baseada na compra da terra, na nossa sociedade
20 certo?
21 Ai a gente começou a ver .... sempre foi assim? Né? ...
22 As pessoas sempre consumiram dessa forma, assim?... As pessoas sempre
23 foram proprietárias por que compravam alguma coisa? Ou vendiam alguma
24 coisa?
25 Qual era a sociedade que elas conheciam? É isso que a gente vai começar a
26 pensar a partir de agora! Certo?...
27 Essa sociedade que todo mundo é proprietário de alguma coisa ... tá certo?
28 Por menor... por menor que seja seu poder aquisitivo, seu poder de consumo
29 ... essa pessoa é proprietária de alguma coisa. Todo bem material é ** é
30 alguma coisa, mesmo que seja o seu próprio corpo a sua própria consciência, a
31 sua própria vontade... bom tá? ...
32 Bem existe a propriedade material, que é comprada e que é vendida e existe
33 uma outra propriedade que diz respeito ao nosso corpo e a nossa mente... que
34 diz respeito ao nosso... intelecto.
35 Na sociedade de consumo há pessoas que acabam vendendo o seu próprio
36 corpo... a sua própria alma. Alguém poderia dar um exemplo de alguém...

A terceira frase (L. 3) do episódio VIII apresenta uma pergunta que não necessita de
uma resposta oral. O professor utiliza a interrogação apenas para chamar a atenção dos
alunos que estão falando, distraídos, e não se organizam para o início da aula. Este tipo de
pergunta aparece do mesmo modo em outros episódios. Nelas o professor solicita a
atenção da turma por meio de uma pergunta que possui uma resposta física e não oral, isto
é, os alunos devem sentar-se e colocar-se em uma atitude de escuta, esta é a resposta
esperada. Os alunos em geral correspondem à intenção do professor. No episódio acima
após a pergunta do professor, os alunos fizeram um aparente silêncio, arrumaram-se nas
cadeiras e a aula é iniciada.

A pergunta “Vamos relembrar?” traz consigo alguns elementos que serão


desenvolvido pelo professor nesse episódio: 1) focalização do procedimento pedagógico
para o início da aula no ato de fala, pois utiliza uma pergunta para organizar a turma.
Sabemos que existem outros tipos de procedimentos e estratégias que surtem efeitos
semelhantes à pergunta utilizada pelo professor; 2) a utilização de uma pergunta para
introduzir um longo trecho explicativo, 3) a necessidade do silêncio e da atenção da turma.
A explicação somente é iniciada quando um relativo19 silêncio é estabelecido.

O silêncio no episódio VIII tem um papel aglutinador. As aulas do professor André


são pautadas na palavra, como afirmamos recorrentemente, desta forma o ato de ouvir é
também um elemento essencial nesse procedimento pedagógico, logo o silêncio tem um
papel aglutinador e promotor da cooperação. O diálogo como ação comunicativa reflexiva
requer elementos promotores da inclusão e da contribuição de todos os participantes, logo,
quando um ator fala, espera-se que o outro esteja em uma atitude de escuta.

No episódio VIII observamos um longo período em que o professor fala sozinho e


suas perguntas são feitas e respondidas por ele mesmo. As perguntas visam dar
encadeamento ao discurso do professor referente ao conteúdo que será ensinado durante o
grupo de aulas daquele dia.

O trecho (L. 4, 5 e 6) apresenta uma seqüência de perguntas que não esperam


respostas dos alunos. São fornecedoras de elementos para a estruturação do conteúdo que o
professor apresenta a turma. Nessas perguntas há uma pretensão de validez – a de que
todas as pessoas são consumidoras, logo vivemos em uma sociedade de consumo. Nas
duas perguntas “Chegamos a uma conclusão, é que... na nossa sociedade é... tudo pode ser
comprado, não é isso gente?” “Tudo pode ser consumido?” o professor constrói uma
generalização do mundo da vida. Está partindo da premissa de que todos os grupos das
sociedades estão baseados no consumo, desta forma somente há uma sociedade. A

19
Usamos a expressão relativo pois podemos perceber na vídeo-gravação que alguns alunos falam, mas não
interferem no andamento da explicação dada pelo professor e nem no registro do áudio.
sociedade teria um perfil único e vinculado ao binômio capitalismo/consumo. Esta
abordagem fortalece o apagamento de diversos grupos que têm o pano de fundo cultural
diferente da sociedade de consumo. A generalização é um elemento constante no
procedimento pedagógico desenvolvido pelo professor André em suas estruturas
discursivas.

Esse longo trecho que compõe o episódio VIII apresenta características importantes
no procedimento pedagógico utilizado pelo professor. Ele está recorrendo a outro tipo de
generalização, a generalização temporal (L. 19, 20 e 21) em que ele afirma que sempre foi
assim, trazendo o elemento “terra” do passado remoto para a contemporaneidade definindo-
o com o mesmo perfil. A ‘terra” e a “propriedade” nem sempre foram como na atualidade.
A terra durante um longo período da humanidade foi coletiva e não caracterizava uma
propriedade individual ou limitada, logo a terra de hoje não é a terra da pré-história, da
antiguidade, do mundo medievo e da modernidade. A terra da contemporaneidade tem
características de seu tempo. Como cada época tem elementos específicos de sua
temporalidade. Muitos elementos ecoam até o tempo atual construindo uma identidade e
um valor subjetivo e monetário ao substantivo “terra” e uma valoração para quem possui
uma “propriedade”. Ao adjetivar a “terra” de forma semelhante ao passado, tenta provocar
no aluno uma sensação de semelhança e de identificação com o tempo já vivido. Ao
aproximar o passado do presente o professor indica a pretensão de promover uma
identificação histórica, salientado que o construído e percebido no hoje têm sua formação
no passado e vários elementos e objetos culturais, que em nossa sociedade atual possuem
valor, trazem em sua constituição social dados e valores de um tempo remoto que são
continuamente re-significados e se constituem em uma tradição social rememorada no
presente através do ato de fala.

A memória que o professor utiliza para encarnar a sua afirmação envolve o olhar
sobre a terra de forma subjetiva que se caracteriza pelo valor supersignificado que ela
possui. Isto é, está além do tempo presente e do seu valor do agora, transformando esta
afirmativa em um elemento aceitável e correto que tem seu processo de racionalidade
baseado nos elementos contidos na tradição, que tem uma continuidade e relevância.
Chamamos de generalização temporal a estruturação do discurso feito com base na
aproximação temporal que pode provocar no aluno uma compreensão de igualdade,
fortalecendo o sentimento de identificação com o passado. Rompe a estranheza causada
pelo distanciamento temporal e destaca a igualdade, favorecendo a possibilidade de diálogo
entre o passado e o presente. Também ao aproximar o passado, a memória social tem um
papel fundamental, pois se torna dita e se faz presente no espaço escolar e garante de certa
forma o prosseguimento das tradições culturais de diversos, grupos muitas vezes calados na
tradição escolar.

A frase “Ai a gente começou a ver .... sempre foi assim? Né? ...” veicula novamente
uma generalização temporal e termina com uma pergunta que não requer uma resposta
verbal necessariamente e sim serve como um instrumento para avaliar se a afirmativa
proferida foi aceita pelos atores da fala. Podemos observar que as frases que se seguem em
geral terminam com expressões semelhantes. São elas: Certo? (L. 22) Tá certo? (L. 23)
Bom tá? (L. 26) e servem como elementos de avaliação da aceitação da afirmativa proposta
pelo professor. O episódio VIII tem uma característica essencialmente explicativa, isto é, o
professor inicia a aula com uma apresentação dos elementos considerados por ele como
válidos para a construção dos atos de falas que comporão o discurso que será tecido durante
todas as aulas do dia 10 de março. As perguntas que têm como finalidade avaliar as
validades e a aceitação das afirmativas são elementos constates na fala do professor e sua
utilização aparece com freqüência em trechos explicativos do conteúdo programático do
bimestre. Compreendemos que estas perguntas, mais que avaliar se estão sendo aceitas
como validez, têm o objetivo de avaliar o grau de compreensão das explicações dadas.
Fazemos esta análise pois este tipo de pergunta é muito recorrente em trechos compostos
por explicações da matéria ensinada e, em geral, não necessitam de confirmação verbal,
mas observamos a confirmação da turma com gestos afirmativos, balançando a cabeça,
sinal de aceitabilidade do que foi falado pelo professor.

Este episódio não se caracteriza como uma ação dialógica, porém podemos observar
um elemento que a nosso ver é de suma importância na construção do processo
argumentativo o espaço do silêncio, o ouvir o outro e a possibilidade de ser ouvido pelo
mesmo. Esse contrato implícito direciona um viés de construção de uma estrutura
argumentativa.
A frase (L. 35 e 36) fecha o episódio VIII, que se caracteriza por ser um episódio de
caráter explicativo e sem interferência dos alunos, abrindo do início ao episódio IX. O
trecho final do episódio é interrompido por um aluno; o episódio a seguir terá seu início
exatamente na interrupção efetivada por esse aluno.

Episódio IX

Aluno J
1 A prostituta...
Professor
2
A prostituta vende o quê?
Alunos
3 O corpo...( RESPONDEM EM CORO, COMO O PROFESOR FALOU MUITO NA
4 INTRODUÇÃO OS ALUNOS JÁ ESTAVAM SE SACUDINDO NAS CADEIRAS,
5 ASSOBIANDO, OLHANDO PARA O LADO.

Professor 6
7 O corpo ... agora me dá um exemplo de alguém que vendeu a alma?...
8 O que seria vender a alma?****
Vender a mente... vender uma idéia ... vender um pensamento...
Aluno C
9 O demônio ... o demônio .... o demônio... ( O ALUNO FALAVA MAIS ALTO,
10 DESTACANDO SUA VOZ NO MEIO DAS DIVERSAS FALAS SIMULTÂNEAS, MAS NÃO
11 CONSEGUIMOS IDENTIFICAR QUEM FALAVA..)
Aluno C
12 Igual a isso aqui...( A GRAVAÇÃO NÃO REGISTROU O QUE ELE APONTAVA.)
Professor
13 Vender uma idéia ... vender a mente ... vender sei lá o quê... não
14 necessariamente é vender uma coisa ruim*
15 Pode ... não pode... ser uma coisa boa?
16 Sei lá uma idéia... aqui ...alguém que venda ...
Alunos
(VÁRIOS ALUNOS FALAM, IMPOSSIBLITANDO A TRANSCRIÇÃO DO AUDIO.)
17
Aluno H
18 Jornal...
Professor
19 Jornal...
Alunos
J E W 20 É mesmo...(OS DOIS ALUNOS RESPONDEM JUNTOS.)
Aluno J
21 É mesmo professor...****
Professor
22 Pera ai... pera ai...Como é que é ... pera ai ...
Aluno J
23 Uma pintura, um quadro... uma coisa que eu pinto...
Professor
24 Uma obra de arte... uma pintura* Mas o que eu queria dizer...
Alunos
25 Quadros.(APROXIMADAMENTE 5 ALUNOS RESPONDEM JUNTOS.)
Professor
26 Mais eu posso me vender quadro...?
Alunos
27 Não (EM CORO)
Professor
28 Olha só... pera aí...
Aluno L
29 No carnaval...
Aluno M
30 Meu corpo é pintado...****
Professor
32 Pera ai... olha gente ...
33 Vamos falar de alguma coisa que você não quer fazer... não faz parte de sua
34 personalidade fazer...; mas para sobreviver você tem que fazer? Por
35 dinheiro fazer?

O episódio IX caracteriza-se por um longo trecho de diálogo entre o professor e os


alunos. Os alunos intervêm buscando acertar a resposta à pergunta feita pelo professor. A
procura pelo acerto produz um movimento que a nosso ver é muito importante: a busca pela
compreensão sobre o que o professor está falando e que ele chama de “vender a alma”. Na
busca pelo acerto os alunos vão construindo hipóteses e o professor vai descartando as
hipóteses que ele considera erradas em relação à “vender a alma” apenas com uma negação.

O aluno responde (L. 1) prontamente a questão antes mesmo do professor propor,


isto é, antes que o professor formule a pergunta. O professor retoma a fala (L. 2) com uma
outra pergunta relativa ao que a prostituta vende, gerando uma resposta coletiva (L. 3). O
professor confirma a resposta da turma “O corpo...” e faz uma nova pergunta “...agora me
dá um exemplo de alguém que vendeu a alma?”. Esta pergunta gera um grande alarido. A
nosso ver o alarido é decorrente dos alunos não compreende o que seria “vender a alma’.
Uma voz se destaca sobre todas as vozes simultâneas “O demônio... o demônio... o
demônio...”. Esta voz que se ouve ao longe, na confusão de vozes, indica uma provável
forma de “vender a alma”. O aluno C vincula a expressão “vender alma” a elementos
religiosos muito presentes nas tradições populares e a uma religiosidade de cunho
evangélica presente na construção mítico-religiosa da atualidade e muito difundida em
comunidades de baixa renda20.

O corpo como mercadoria que podendo ser vendido é tão condenável pela sociedade
e o favorecimento é crime perante a lei21, porém é um fato posto em diversas sociedades e
de profunda relevância no sustento em comunidades periféricas e de grande pobreza.
Quando os alunos falam da prostituição – vender o corpo – reconhecem o corpo na
perspectiva de produto comercializável, distinguindo com uma clareza aparente da venda
da força de trabalho. Quando o professor pergunta “A prostituta vende o quê?”, a resposta
é em coro, apresentando uma compreensão coletiva do significado deste signo. A memória
social22 referente à prostituição se materializa na fala dos alunos (L 3). Não é apenas uma
resposta simples, a venda do corpo é uma fala coletiva e instantânea, podemos observar na
vídeo-gravação que todos os alunos respondem simultaneamente a pergunta feita pelo
professor, isto é, a palavra materializa vários elementos presentes no pano de fundo social e
nos faz compreender que “vender o corpo” é uma atitude que os alunos compreendem
diferentemente da questão “vender a alma”.

A resposta, quando relacionada à venda do corpo, é imediata – estabelece o sentido


em sua totalidade. A palavra prostituta está repleta de valores morais, sociais e
econômicos; é uma palavra reconhecida intersubjetivamente quanto a seu valor e papel
social. Quando o professor questiona o “venda da alma” (L. 9), os alunos ficam confusos,
criando um grande alarido. Os alunos ficam buscando por tentativa uma resposta que seja

20
Podemos observar na comunidade a existência de algumas igrejas evangélicas de diferentes denominações.
Não fizemos levantamento sobre a vinculação religiosa dos alunos da turma 801.
21
“Prostituição é o comércio habitual do próprio corpo, para a satisfação sexual de indiscriminado número de
pessoas. Embora, antigamente, só houvesse a prostituição feminina, hoje também existe a masculina, que se
inclui no mesmo conceito. São três as condutas previstas pelo art. 228: a. Induzir (...) ou atrair (...) alguém a
prostituição. b. Facilitar (...). c. Impedir que alguém abandone a prostituição.” (Delmanto ... et al, 2002, p.
490)
22
Não estamos indicando ou denunciando a existência da prostituição infantil na comunidade do Morro do
Céu, estamos somente analisando as falas dos alunos e a partir dessa falas identificamos elementos que
revelam um conhecimento da existência da prostituição.
considerada pelo professor como correta. Na construção cultural que envolve a
comunidade do Morro do Céu a “venda da alma” tem uma perspectiva diferente da do
professor, está mais vinculada ao satanismo e à religiosidade, como podemos identificar na
fala do aluno E (L. 6). A vinculação se faz a um aspecto ideológico ou de submissão a uma
vontade superior ou mais forte imposta por um outro ser humano por meio de pressão o
poder armado. Revela-nos que há uma diferença cultural e de percepção do mundo da vida
entre o professor e os alunos, relativa à questão “vender a alma”.

A compreensão de que existem produtos imateriais que podem ser vendidos por seu
possuidor surge como um elemento destoante do cotidiano que forma esta coletividade.
Vender algo que não seja um objeto está muito vinculado à força de trabalho e ao seu
corpo. Identificamos um elemento da memória social construída historicamente no seio da
população mais pobre em que sua força de que trabalho e de seu corpo provem o seu
sustento, remetendo-nos ao passado do Brasil e a como o trabalho é pensado e executado
nesta sociedade. Cabe a camada mais rica “pensar” e vender sua capacidade de fazê-lo e
aos pobres, a tarefa de trabalhar. O corpo e a força de trabalho são compreendidos como
moedas ou elementos de troca na sociedade de consumo, mas a alma – a idéia ou a
fidelidade a um princípio – causa estranheza quando ganha o papel de mercadoria vendável.

Podemos ver nesse episódio como é construído um processo gradativamente


argumentativo em que a validez apresentada pelo professor causa estranheza e produz
questionamentos relativos a “vender a alma”. Podemos observar uma busca pelo
entendimento por parte dos alunos quando eles apresentam uma série de possibilidades para
“vender a alma”.

A estranheza causada pela expressão utilizada pelo professor “vender a alma”


parece estar na diferença que professor e alunos têm em relação ao mundo da vida e ao
elemento alma.

O episódio IX caracteriza-se principalmente pela tentativa dos alunos de encontrar


um exemplo para o que o professor chama de “vender a alma”. A questão proposta pelo
professor “vender a alma” parece tão estranha aos alunos, geradora de tanta polêmica, que é
o principal tema dos atos de fala do episódio X.
Episódio X

Professor
1 Pera ai... olha gente**
2 Vamos falar de alguma coisa que você não quer fazer... não faz parte de
3 sua personalidade fazer...; mas para sobreviver você tem que fazer?
Por dinheiro fazer?
Aluno C
4 Pular no circo...(RISOS)
****
Professor
5. Exemplo de alguma coisa com idéia... ****
Alunos
6 Corpo...
7 A fé...
8 Música...
9 Modelo... (VÁRIOS ALUNOS FALAM DIVERSOS EXEMPLOS SIMULTANEA
10 MENTE IMPOSSIBILITANDO A IDENTIFICAÇÃO.).
11 Tem muita gente falando junto...
12 Pêra ai calma...****
Professor
13 Na política alguém que troca de partido...
Aluno M
14 Caraca... todo dia... a gente vê...****
Aluno J
15 Nicolau ... Lalau
Professor
16 Nicolau é um caso de corrupção
Aluno N
17 E os políticos?...
Professor
18 O Nicolau se corrompeu... é diferente...
Aluno
19 N Não é nada... tudo corrupto# Muda de partido por causa de dinheiro...
Professor
20 O Nicolau deveria defender a justiça... fazer a justiça... ai ele se
21 corrompeu...
22 É diferente.
23 Alguém pode me dar outro exemplo...
Aluno O
24 Fernandinho Beiramar...
Professor
25 Ai já tá mais para (PELO VÍDEO, OBSERVAMOS O MOVIMENTO DOS LÁBIOS
26 E, PODEMOS PRESUMIR QUE ELE FALOU NARCOTRÁFICO) ****
Aluno J
27 Vender uma idéia de samba...
Aluna E
28 Pagar alguém para matar uma outra pessoa...
Professor
29 Um assassino profissional... é isso?
Aluno E
30 É ... é.
Aluno
31 A pessoa mata... (VÁRIOS FALAM AO MESMO TEMPO, NÃO IDENTIFICAMOS
32 QUEM FALOU.)****
Prof.
33 Eu não estou ouvindo... quero ouvir...
34 Fala ai...
Alunos
35 Uma pessoa faz uma coisa... errada* mata..
36 Paga alguém para assumir a culpa...
Professor
36 Se vendeu para a justiça... É...
37 Então olha só... olha só...
38 Então a gente viu... mesmo, mesmo... aquilo que é propriedade sua ... é
39 imaterial, que não é matéria, sentimentos, a nossa personalidade,
40 daquilo que é a nossa imagem... nosso próprio corpo. Tudo isso pode
41 ser também comprado e vendido nessa nossa sociedade... numa
42 sociedade, certo, numa sociedade de consumo.
43 Isso significa que... na nossa sociedade... nessa sociedade de consumo,
44 a propriedade pode ser qualquer coisa que possa ser comprada ou
45 possa ser vendida...
46 Existe a propriedade material, os bens, móveis * e imóveis e existem os
47 bens que são imateriais... que são de uma forma abstrata, certo? Que
48 de qualquer forma também podem ser comprados e vendidos, certo?
49 Nossa primeira diferenciação entre propriedades. Tá...
50 Agora ... uma propriedade também pode ser diferenciada quanto ao
51 número de dono que essa propriedade possui, certo?...
Alunos
52 Certo...(EM CORO)

A questão “vender a alma” continua a causar polêmica no episódio X; a presença de


ruídos e de marcadores de silêncio são constantes. Os alunos falam juntos tentando
encontrar uma resposta que seja reconhecida pelo professor como a resposta correta a
“vender a alma”. Diante desta confusão, o aluno C faz um comentário quebrando o ritmo
das falas “Pular no circo ...” é acompanhado pelos risos dos colegas. Essa fala,
aparentemente fora do contexto do diálogo que está estabelecido, introduz uma
descontração e a aula prossegue. Podemos observar que o aluno C geralmente quando fala
tem um tom de brincadeira e galhofa como tom marcante de suas falas. A resposta
aparentemente fora do contexto da aula não sofreu nenhum tipo de punição, ao contrário os
colegas corroboraram com risos do gracejo. O momento de gracejo produzido pelo aluno C
aliviou a tensão no embate existente e promoveu a continuação do debate de forma
amistosa.

Os ruídos constantes e as várias falas simultâneas aparecem como um elemento


revelador de tensão. Na vídeo-gravação podemos observar que vários alunos falam entre si
e suas expressões demonstram não estarem compreendendo o que o professor está falando.
O gracejo do aluno C, mais que demonstrar claramente que a fala do professor é muito
estranha ao que os alunos entendem como “vender a alma”, provoca um momento de
descontração e o riso, diminuindo a tensão que estava se aprofundando. Não estamos
desqualificando a tensão como elemento produtor de conhecimento, porém a tensão muitas
vezes desloca a atenção do processo de argumentação, tão profícuo para a aprendizagem,
salientando o conflito. Não estamos negando também o conflito como uma possibilidade
para gerar a aprendizagem, estamos destacando que muitas vezes o processo torna-se
extremamente belicoso e improdutivo, gerando apenas conflito e animosidade,
inviabilizando a relação entre professor e aluno e vitimizando a todos, inviabilizando a
construção coletiva do ensino/aprendizagem23.

O professor tenta exemplificar o que seria “vender a alma” (L. 5) construindo uma
relação com a palavra “idéia”. Os alunos começam a responder uma seqüência de palavras
“ Corpo..”, “ A fé...”, “Música...”, ‘Modelo...”, apresentando uma série de variáveis para a
questão proposta pelo professor e buscando um exemplo para o que ele está chamando de

23
Observamos um discurso constante de valoração do conflito: não estamos nos contrapondo a esta vertente,
porém destacamos que muitas vezes e em sua maioria o conflito em sala de aula é um espaço de guerra, com
frontes definidas e erguidas. Esta guerra, que muitas vezes é analisada como conflito, que nos posicionamos
contra. O espaço da sala de aula deve ser um espaço de construção e criação, a guerra historicamente é uma
ação permeada pela destruição e morte, elementos estes que não são em nossa visão compatíveis com o ato de
ensinar.
“idéia” e que se relaciona com “vender a alma”. As falas simultâneas e os marcadores de
organização utilizados pelo professor são constantes nesse episódio; a falta de clareza que
o tema produz continua causando estranheza e uma certa irritabilidade nos alunos. Neste
episódio podemos observar que as interferências do professor para promover uma
organização nas falas é um elemento constante (L.10,11, 32 e 33). Entendemos que isto se
dê pela incompreensão que o tema gera nos alunos, já que eles ainda não conseguem
traduzir em um exemplo que seria “vender a alma” ou uma “idéia”, segundo a visão do
professor.

O professor segue por outro caminho tentando buscar exemplos próximos ao


cotidiano para dar corpo ao que ele está chamando de “vender a alma” ou uma “idéia”.
Observamos na fala “Na política alguém troca de partido...” que, mesmo sendo uma
afirmativa, indica uma pergunta implícita que tem em sua estrutura uma resposta que seria
proferida pelo professor. Indica também um procedimento muito utilizado pelo professor
que são perguntas que ele mesmo responde e servem para organizar de sua fala e as
afirmativas que estão sendo apresentado por ele. Antes que o professor faça a pergunta e
organize o discurso explicativo, um aluno interfere respondendo e estabelecendo uma
afirmação que gera uma outra afirmação por parte do aluno J que reponde “Nicolau ...
Lalau ...”. A resposta fornecida pelo aluno é negada pelo professor que constrói uma
afirmação discordando do que o aluno está propondo “Nicolau é um caso de corrupção.”,
diferenciando corrupção das questões ideológicas relativas ao que ele chama de “vender a
alma”. Para os alunos “vender a alma” está muito vinculado a fazer o mal (L. 19) e como
se ganha o dinheiro e é na relação de como se ganha o dinheiro que se estabelece o preço da
alma.

A fala do professor em relação ao tema está em uma perspectiva diferente da


compreendida pelos alunos. O discurso do professor não é compreendido, porque está
situado em um horizonte diferente do conhecido pela turma e a relação que possui em
relação à expressão “vender a alma”, sendo assim esta pretensão de validez causa muita
polêmica e quase nenhuma conclusão.
O aluno discorda do professor (L. 19), afirmando não haver diferença e que
corrupção é “vender a alma” e logo o Lalau vendeu a sua alma e os políticos que mudam de
partido também venderam suas almas. O aluno constrói uma validade oposta à apresentada
pelo professor, que diferencia Lalau dos políticos. Ele não aceita esta diferença; constrói
uma argumentação refutando a validez apresentada pelo professor, considerando que
ambos, tanto o Lalau como os políticos, venderam suas almas.

O professor argumenta que “O Nicolau deveria defender a justiça ... fazer a justiça
... ai ele se corrompeu...” “É diferente...” nega a afirmação apresentada pelo aluno que
iguala os políticos corruptos ao caso do juiz Nicolau. A fala do professor apresenta uma
contestação a fala proferida pelo aluno N. A seguir o professor introduz uma outra
pergunta que não chega ser concluída “Alguém pode me dar outro exemplo...”. O aluno O
toma a palavra respondendo a pergunta que ainda não foi formulada e revela em sua
resposta uma outra vertente para a questão “vender a alma”, vinculando a uma outra forma
de desobedecer a lei e promover o mal a coletividade. Quando o aluno O responde
“Fernandinho Beiramar...” e o professor discorda falando “Ai já ta mais para
NARCOTRÁFICO” a presença do ruído é muito forte, reconhecemos nesses ruídos elementos
próprios de temas polêmicos que suscitam diferentes compreensões sobre a mesma questão.
As conversas paralelas que no áudio aparecem como ruídos, pois não conseguimos
transcrever o seu conteúdo, no vídeo podemos identificar em alguns grupos de alunos que
estão falando uma busca por uma resposta que seja considerada pelo professor como
correta.

O relação existente entre a expressão “vender a alma’ e “vender uma idéia” para o
professor e para os alunos são tão diferentes que quase impossibilita o processo
argumentativo que está sendo instalado. Em alguns momentos nos parece que professor e
alunos falam, mas não se ouvem. Identificamos em nossa análise muitas semelhanças entre
o que o professor aponta como “vender a alma” e “vender uma idéia” com os exemplos que
os alunos estão apresentaram. O prosseguimento de um ato de fala voltado à reflexão
poderia ter produzido um consenso e a construção coletiva de uma validez referente a
“vender a alma” e a “vender uma idéia” e os dois grupos – professor e alunos –
identificariam a semelhança e argumentariam sobre a diferença. Porém a sensação que
temos é a escuta não está se efetivando, logo o consenso fica inviabilizado.

O professor termina este episódio com um trecho explicativo. Neste trecho ele tenta
construir uma relação entre o que os alunos falaram e o que ele considera como “vender a
alma” e como esta questão se relaciona com o conteúdo que está sendo ensinado –
propriedade e posse. O professor opta por uma explicação relativa à questão “vender a
alma” que não garante a compreensão dos alunos em relação ao tema. Ao definir bens em
materiais e imateriais, ele não exemplifica o que seriam e, desta forma, a questão que gerou
uma grande polêmica continua sem resposta para os alunos e de alguma forma também para
o professor. Destacamos nesse episódio a dificuldade que existe ao definirmos alguns
conteúdos que nos parecem óbvios e claros e que muitas vezes são compreendidos pelos
alunos de forma diferente, e até contrária, ao que pretendíamos ensinar. Acreditamos que o
ponto nevrálgico desta questão seja o pré-conceito que temos que o pano de fundo que nos
constitui – professores – é idêntico ou semelhante ao dos nossos alunos.

Esse episódio não se caracteriza propriamente como um espaço dialógico – os


alunos tentam acertar a resposta que o professor quer que eles dêem. Porém um outro
elemento é muito importante, a nosso ver, a construção de uma ação pedagógica pautada no
dialogismo se estabelece na prática e, a prática é permeada de avanço e recuos, de idas e
vindas, que se materializam no ato de ensinar. Ato este que é feito em ato, mesmo que
planejemos com antecedência a dinâmica da construção em sala de aula modifica o rumo.
Observamos que esse episódio grita este descaminho que o ato de ensinar se faz no espaço
da sala de aula. Podemos observar como o professor André luta para trilhar o caminho que
ele traçou e como os alunos destroem este rumo em suas tentativas de acertos.

Episódio XI

Professor
1 Existem pessoas... melhor...
2 Existem propriedades que tem só um dono e existem propriedades que
3 tem vários donos...certo? E existem propriedade que todo mundo é
4 dono... correto?...
5 A propriedade privada, a propriedade coletiva e existe a propriedade
6 pública... certo?...
7 Existem três tipos de propriedades...
8 Então uma propriedade... uma propriedade privada, é uma propriedade
9 particular, certo?... Ela tem um número limitado de dono... ela tem 1, 2,
10 3, 4 ...donos, nessa sociedade mas ela tem um número limitado de dono,...
11 uma propriedade coletiva ela tem um número maior de dono, certo?...
12 Uma propriedade pública ela pertence a todo mundo... uma propriedade
13 pública ela pertence a uma sociedade qualquer.
14 Vamos dar um exemplo de propriedade coletiva?
Aluno
15 Colégio ...
Professor
16 O colégio não é uma sociedade coletiva...**
17 Não é uma sociedade coletiva.(UM ALUNO APRESENTA UMA RESPOSTA QUE
O ÁUDIO NÃO REGISTRA)
Aluno Q
18 Minha casa!
Professor
19 Não é uma sociedade coletiva.... (VÁRIOS ALUNOS FALAM AO MESMO
20 TEMPO IPOSSIBILITANDO A TRANSCRIÇÃO)
Professor
21 Gente por favor...****
22 Não é uma propriedade coletiva(UM ALUNO RESPONDE MAS O ÁUDIO
REGISTRA)
Aluno Q
19 A praia...
Professor
20 Não é uma propriedade coletiva...
Aluna E
21 Minha roupa... minha roupa

O episódio XI tem características semelhantes aos episódios IX e X. O trecho


inicial do episódio XI (L. 1 a 14) é marcado pela diferença que o professor faz de três tipos
de propriedades – privada, pública e coletiva. Esse trecho é marcado pelas expressões
“Certo?” “Correto?”. Como já destacamos em outro episódio, estes marcadores são
freqüentemente utilizados em trecho explicativos. Ao final do uso desses marcadores o
professor efetua uma breve pausa e lança um olhar global para a turma. Nesse olhar
identificamos alguns elementos que revelam dois movimentos importantes na prática do
professor. 1º) O olhar é utilizado para verificar se os alunos em geral estão atentos a sua
fala e, 2º) A busca por respostas não orais que revelem a compreensão dos conteúdos que
estão sendo ensinados.

A explicação do conteúdo é rápida e com poucos elementos descritivos que


salientem as diferenças existentes entre os três tipos de propriedades. A explicação breve e
pouco descritiva revela um dado que consideramos importante – a pressuposição que os
alunos convivem com essa diferença no dia-a-dia e logo não necessitam de um
aprofundamento na explicação. Ao pressupor que os alunos identificariam cada tipo de
propriedade o professor efetua uma generalização dos mundos da vida. Parte da premissa
de que os alunos em seu cotidiano convivem com os três tipos de propriedades, desta forma
uma explicação breve bastaria para que eles identificassem as diferenças e pudessem
categorizar os três diferentes tipos de propriedades. Ao terminar a explicação, o professor
solicita que os alunos dêem exemplos de propriedades coletivas. Os exemplos que se
seguiram não caracterizaram propriedades coletivas, os exemplos falados foram de
propriedades públicas (L. 15 e 19) e propriedades privadas (L. 18 e 21).

Os episódios IX, X e XI nos revelam um elemento muito comum nas diversas


práticas pedagógicas que é o pressuposto de que todos percebem ou identificam elementos
que formam o cotidiano que nos cerca de forma semelhante ou iguais. Se assim fosse todos
compreenderiam as explicações simplificadas de elementos que pertencem à cotidianidade
produzindo uma generalização do mundo da vida. Porém o pano de fundo cultural que nos
forma possui pequenas e grandes diferenças, desqualificando algumas semelhanças ou
igualdades. A existência de diferentes mundos da vida dificulta a utilização de
generalizações, pois podem provocar enganos e pequenas confusões. Nos episódios que
destacamos, as falas revelam como alguns elementos que acreditamos ser de um domínio
publico possuem nuances produzindo diferentes percepções sobre o mesmo elemento.

A fala revela o mundo da vida dos atores. Quando os alunos se expressam pela
palavra, eles revelam sua compreensão acerca do conteúdo ensinado e dos elementos
culturais que formam seu pano de fundo e fornecem elementos que serão utilizados para a
construção desta compreensão. Desta forma, as generalizações podem ser destituídas de
seu valor no debate, pois as diferenças de compreensão acerca de um tema refutam as
igualdades que são a principal premissa na construção de uma generalização. Ao pressupor
que os três tipos de propriedades fazem parte do cotidiano dos alunos, o professor produziu
uma generalização do mundo da vida e as respostas dos alunos revelam como essa
generalização não atende o seu objetivo que é salientar a diferença existente entre os três
tipos de propriedades.

A propriedade coletiva, uma realidade em áreas de lazer de condôminos e clubes,


não faze parte do cotidiano dos alunos que freqüentam a turma em que foi realizada a
pesquisa. Os alunos moram em sua maioria no bairro Caramujo e no Morro do Céu24 sendo
assim as áreas que se caracterizam como propriedade coletiva não fazem parte do cotidiano
da maioria dos alunos que freqüentam da E.M. José de Anchieta. Não estamos afirmando
que o professor desconhece a realidade social dos seus alunos, estamos destacando um
procedimento pedagógico muito comum em várias salas de aulas dos diversos graus de
ensino. A generalização é um procedimento pedagógico muito utilizado em diversas salas
de aula e tem sua fundamentação no pressuposto de que o cotidiano que nos cerca é
semelhante e o percebemos da mesma forma. Ao explicarmos um conteúdo que se
relaciona com esse cotidiano, construímos generalizações que não servem como explicação
e muitas vezes podem promover enganos e dúvidas.

Episódio XII

Professor
1 Uma empresa de ônibus tem um ou mais dono, essa empresa de ônibus
2 é uma propriedade particular...
3 Claro ...** coletiva é quando todos os membros dessa coletividade são
4 donos.
5 Uma propriedade particular pode ter muitos donos... mas não serão
6 todos os membros da coletividade que serão donos dela. Certo?... Uma
7 casa por mais donos que essa casa tenha não serão todos os vizinhos
8 donos dela. Certo?... Ta bom?...

24
Uma das poucas áreas de lazer da comunidade é um pequeno campo de futebol na entrada do bairro
próximo a uma pequenina praça que não possuí nenhum brinquedo.
9 Presta atenção nisso aqui, tá aqui a diferença uma propriedade coletiva
10 pertence a todos os membros da coletividade ...
11 Aqui no Morro do Céu se tiver uma propriedade que pertença a todos
12 os moradores do bairro essa propriedade é coletiva...
13 Tiver aqui no Caramujo, um mercado, uma padaria que tiver dez donos,
14 essa propriedade é PRIVADA...
15 Então olha.só... (OLHA PARA A TURMA ESPERANDO SILÊNCIO)
16 Uma propriedade coletiva deve pertencer a todos o membros de uma
17 comunidade...
18 Só aos membros daquela comunidade...
19 Uma propriedade que seja só aos moradores do Caramujo **(OUTRA
20 PESSOA) não pode vir pra cá ** não pode vir pra cá...
21 Então essa propriedade será uma sociedade coletiva... Propriedade
22 particular tem um ou mais donos... agora será sempre uma sociedade
23 particular....
24 Por que? Porque ela não pertence a todos os membros de uma
25 coletividade...
26 Exercício para casa... ****

O professor apresenta uma nova explicação relativa à propriedade coletiva e privada


e, nessa explicação, identificamos uma busca de aproximação com o cotidiano dos alunos,
destacando elementos da paisagem que forma a comunidade da qual os alunos são
oriundos. O transporte público é usado como exemplo de empresa privada (L.1 e 2). Esse
exemplo a nosso ver tem o objetivo de salientar que mesmo um objeto ou bem que é
utilizado por uma coletividade, mas possuí um ou mais donos, é uma propriedade privada,
construindo uma diferença entre a propriedade pública que é usada por todos e não possui
um dono específico.

Podemos observar nesse episódio dois elementos importantes na compreensão do


procedimento pedagógico utilizado pelo professor: 1º) A reestruturação da explicação, ao
compreender que os alunos não conseguiram identificar a diferença existente entre
propriedade pública, propriedade privada e propriedade coletiva; 2º) A tentativa de
construir uma aproximação do conteúdo com o cotidiano experimentado pelos alunos.

Na linguagem o mundo da vida se corporifica, segundo Habermas, sendo assim


quando a fala torna-se um instrumento pedagógico, a possibilidade de que os mundos da
vida se revelem na sala de aula é muito mais provável. Como a fala é o meio pelo qual o
procedimento pedagógico se faz na sala de aula de nossa pesquisa, podemos observar o
professor André nesse episódio, reorganizando sua fala e tentando aproximar o conteúdo
para o vivenciado pelo aluno. A nova explicação que ele dá, a nosso ver, é fruto do ato de
escuta das falas dos alunos. Nelas os alunos revelaram como a propriedade em seu sentido
amplo é compreendida por eles, diferenciando do conceito que o professor está ensinado.

A escuta ao que o aluno fala é um ponto que destacamos no procedimento


pedagógico do professor André, aproximando seu procedimento pedagógico à ação
comunicativa reflexiva proposta por Habermas.

5.3. Análise do terceiro bloco de aulas

Os episódios que se seguem são relativos ao grupo de três aulas do dia vinte e
quatro de março.

Episódio XIII

Professor
1 As terras eram coletivas. Quando os portugueses chegam aqui eles
2 modificam esse sistema... Por quê?
Aluno J
3 Eles queriam privacidade...
Professor
4 Como assim privacidade?... Como... como?...
Aluno J
5 Eles queriam que dividissem...queriam tudo para eles...
Professor
6 Certo... O que eles fazem?...
Aluno J
7 Cada um tinha sua casa, cada um tinha seu pedaço de terra para plantar...
Professor
8 Cada um quem?
Aluno H
9 Cada um dos portugueses.
Aluno J
10 Cada um dos índios.

A aula do dia vinte e quatro de março caracteriza-se por possuir conteúdos mais
específicos do ensino de história, porém podemos observar o encadeamento da fala do
professor e a relação de aproximação do conteúdo com as experiências vividas pelos
alunos.

O episódio XIII é o início das aulas do dia vinte e quatro. Podemos observar que a
frase inicial (L. 1 e 2) diferencia-se das outras contidas no episódio I (L. 1 e 2) e no
episódio VII (L. 1, 2 e 3). Nesses episódios o marcador de organização é uma constante, as
falas iniciais têm basicamente esta função nesses episódios – organizar a sala de aula e
promover o silêncio – no episódio XIII a fala inicial organiza-se de forma diferente. O
elemento que define a sua estrutura é o conteúdo de história e a proposta de iniciar a aula
com um diálogo. As aulas têm seu início com uma pergunta marcando a organização
pedagógica que estava sendo aplicada e reconhecida pelos alunos.

Na pergunta inicial “As terras eram coletivas. Quando os portugueses chegam aqui
eles modificam esse sistema... por quê?’. Como já afirmamos, a fala inicial tem um caráter
organizacional; essa forma diferente de iniciar a aula salienta a evolução das relações
existentes entre professor e alunos. O ato de fala como um procedimento pedagógico já
está se estabelecendo na turma de tal forma que os alunos esperam o professor sentados e
em relativo silêncio, desta forma a possibilidade de iniciar a aula com o conteúdo d
disciplina é prontamente utilizada pelo professor. Outro elemento nos chamou muita
atenção. O professor não utiliza a abertura das aulas com um longo trecho explicativo e
aparentemente monológico, como podemos observar nos episódios I e VIII. No episódio
XIII a aula tem início com um diálogo em que o professor solicita de um aluno uma
organização maior e precisa de sua fala.

As perguntas do professor e as respostas do aluno J destacam um procedimento


pedagógico muito importante. Nessa seqüência de perguntas e respostas podemos perceber
o professor como um provocador que solicita que o aluno organize e amplie suas respostas.
A reposta do aluno J “Eles queriam privacidade.” não responde acertadamente a pergunta
feita pelo professor, mas podemos observa que existe uma relação com o questionado. O
problema está na estruturação da resposta e na escolha das palavras. Quando o professor
pergunta “Como assim privacidade? ... Como... como?” e gesticula, indicando confusão e
pedindo esclarecimento, ele faz uma provocação e solicita reformulação por parte do aluno
J, diferente de episódios anteriores em que o professor apenas desconsidera a resposta e a
qualifica como errada. Nesse episódio a relação com o erro é diferente, há uma busca pelo
acerto de ambos os lados, isto é, tanto professor como aluno buscam uma resposta, o
professor questionando e provocando, e o aluno J, re-organizando a fala e construindo uma
resposta mais clara e específica.

As perguntas e respostas que são um marcador constante nas aulas do professor


André, sofrem gradativamente uma transformação em sua estrutura e uso. Podemos
observar que, nos episódios dos dois grupos de aulas anteriores, as perguntas tinham um
caráter muito pautado na avaliação, seja do conteúdo que os alunos possuíam, ou dos
conteúdos apreendidos por eles durante a explicação proferida pelo professor. As
perguntas que serão usadas no grupo de aula do dia vinte e quatro assumem outra
perspectiva. Já podemos estabelecer esta mudança observando o episódio XIII. Neste
episódio as perguntas feitas pelo professor ao aluno J têm o objetivo de produzir uma
reflexão e elaboração do que está sendo falado pelo aluno, diferente da maioria das
perguntas anteriores que tinham o objetivo de avaliar o aluno.

Estabelece-se nesse episódio uma relação de orientação para a construção da


resposta do aluno J: a orientação não caracteriza uma imposição, a nosso ver este processo
de guiar o aluno se estabelece na própria tradição do ensinar, tradição esta que não impede
a descoberta ou a construção de uma alternativa para a dificuldade. Identificamos
elementos tradicionais do processo de ensino, mas também destacamos um
encaminhamento para uma nova forma de fazer ensino.
Episódio XIV

Professor
1 Tem outra forma de poder além do dinheiro?
Aluna L
2 Poder político.
Professor
3 Também, mais ligado a idéia,mais ligado à forma como os portugueses
4 eram?...
5 Por exemplo...Um capitão donatário podia implantar em sua capitania a
6 religião dos negros?
Alunos
7 Não (EM CORO)
Professor
8 Ou chegar e implantar a religião dos índios?
Alunos
9 Não (EM CORO)
Professor
10 Hein? Que religião?
Alunos
11 Católica (EM CORO)

Como já destacamos no episódio anterior, o episódio XIV também é marcado por


perguntas e respostas. As perguntas são em suas totalidades proferidas pelo professor e as
respostas pelos alunos. Um marcador diferencia as perguntas do episódio anterior. Nesse
episódio elas são em sua maioria respondidas pelos alunos em coro, isso garante que a
maioria da turma está partícipe do diálogo e podemos observar a construção coletiva de um
novo procedimento pedagógico pautado no diálogo, seja coletivo – quando as perguntas são
respondidas em coro ou uma pergunta direcionada a um aluno – quando as perguntas são
direcionadas a um aluno apenas, mas partilhada pela turma.

A diferença básica entre as perguntas que vão sendo construídas é o objetivo.


Diferente dos episódios anteriores, que tinham em sua maioria o objetivo de avaliar o
conhecimento do aluno, as perguntas deste bloco de aulas têm como foco a organização e a
ampliação do conteúdo. A diferença básica entre estes dois estilos de perguntas está na
relação de poder e expectativa. Uma pergunta que visa avaliar tem em si pré-estabelecido a
existência de uma resposta correta que o aluno deve acertá-la. As perguntas organizativas
não estabelecem previamente uma resposta única e visam à construção do conhecimento e
não a apreensão apenas do conteúdo pelos alunos. Temos a impressão de passividade nos
alunos, nas perguntas que visam avaliar. Não cabe ao aluno tecer impressões e reflexões
sobre o conteúdo. Quando as perguntas têm o caráter exploratório e organizatório, há uma
mudança substancial, o aluno torna-se sujeito da construção do conhecimento e tece em
suas respostas reflexões e impressões sobre o conteúdo que está sendo ensinado.

Ao perguntar “Tem outra forma de poder além do dinheiro?”, o professor


estabelece dois elementos para a construção da respostas; 1º) dinheiro é poder e, 2º) a
possibilidade de outro poder que não seja o dinheiro. A resposta da aluna L aponta para
uma outra forma de poder o “Poder político.”. O professor reconhece esse tipo de poder e
especifica mais a sua pergunta “Também, mais ligado a idéia.... mais ligado à forma como
os portugueses eram?”. A reação da turma à pergunta é de silêncio, não é proferida
nenhuma resposta, o professor re-organiza sua pergunta “Um capitão donatário podia
implantar em sua capitania a religião dos negros?”. A resposta em coro é “Não” e, faz
outra pergunta “Ou chegar e implantar a religião dos índios?” novamente em coro “Não”
e, faz outra pergunta “Hein? Que religião?”. A turma responde em coro “Católica”. As
perguntas direcionam a reflexão e, assim, as respostas e a relação existente entre poder e
religião. Podemos observar uma mudança palpável estabelecida no procedimento
pedagógico, o professor pela fala encaminha a reflexão, buscando nos alunos elementos
para construir sua explicação.

No episódio IX, a questão era “vender a alma” e o professor apenas negava as


respostas apresentadas por diversos alunos, diferente deste episódio em que o professor por
meio de perguntas promove a reflexão sobre o tema que ele vai ensinar e promove a
construção pelos alunos de uma resposta. A resposta já estava pré-estabelecida pelo
professor quando profere a pergunta? É uma questão que nos faz refletir. A creditamos
que a expectativa de uma determinada resposta, sim, porém como os alunos chegaram a
esta resposta é que nos chama a atenção e faz pensar na mudança efetivada na dinâmica do
fazer história-ensinada.
A construção coletiva de uma resposta para a questão – outra forma de poder – que
está relacionada ao que o professor chama de “idéia”. A construção coletiva é um marco
diferencial das buscas anteriores que eram marcadas pela individualidade e pela busca do
acerto. Na busca pelo acerto, o professor apenas negava ou confirmava a resposta dada por
um determinado aluno. Também destacamos a reestruturação que as perguntas feitas pelo
professor sofreram. Elas agora são divididas em pequenas sub-perguntas que facilitam o
encaminhamento e a construção da resposta. A condução das respostas coletivas produz
uma diferença significativa na organização da construção da resposta final. O objetivo da
pergunta inicial do episódio XIV (L. 1) é alcançado e podemos observar no vídeo que a
turma coloca-se de forma mais atenta e cooperativa, como se todos alunos e o professor
estivessem incorporados ao processo e à busca pela resposta.

Os episódios XV, XVI e XVII estão apresentados em seqüências e a análise dos


mesmos aparece ao final dos episódios. Fizemos esta opção porque estabelecemos nesses
episódios uma análise comparativa dos mesmos.

Episódio XV

Aluno J
1 Professor? (LEVANTA A MÃO SOLICITANDO A PALAVRA)
Professor
2 Fala?
Aluno J
3 Capitania tem a ver com capital?...
4 Ou com capitão?
Professor
5 Capitania tem a ver com capitão e não com capital...
6 Mas com capitão...
7 Capitania significa em linhas gerais um lugar, um espaço de poder que
8 tinha um capitão, quem domina é um capitão. Um delegado **, ta? ...
Episódio XVI

Aluno P
1 Como eles dividiam tudo isso? ... Como eles sabiam o início?
Professor
2 Como eles dividiam essas terras?
Aluno P
3 Existiam mapas assim?
Professor
3 Existiam! * existiam!
Aluno Q
4 Eles sabiam? (FAZ UM DESENHO COMO SE ESTIVESSE DESENHANDO).
Professor
5 Não mapas como a gente tem hoje... Existiam a visão já cartográfica do
6 mundo ... Tinha uma imaginação ... de como seriam essas terras e eles
7 representavam essa terra através de mapas .. tá? Ta?...

Episódio XVII

Aluno J
1 O que é sesmaria? ...
Professor
2 O nome sesmaria? ...
Aluno J
3 É ...
Professor
4 É uma medida, que eu não vou saber te explicar exatamente agora ...
5 É uma medida de terra ...
6 Que eu não vou saber te explicar agora ...
7 Depois posso ver e fazer isso ...
8 Sei que é ligado a uma medida...

Os episódios XV, XVI e XVII destacam-se pelo aparecimento de perguntas


elaboradas pelos alunos. Podemos observar que as perguntas em sua maioria eram feitas
pelo professor e cabia aos alunos respondê-las. Nos episódios que apresentamos em
seqüência, as perguntas são elaboradas pelos alunos e têm o objetivo de compreenderem
melhor o que está sendo ensinado.

As perguntas do episódio XV (L.3 e 4), solicitam que o professor explique qual a


origem da palavra capitania: “Capitania tem haver com capital?... Ou com Capitão”. É
muito interessante a relação que o aluno J faz e que aparece nessa pergunta. Ele relaciona
capitania com capital, já que estão estudando propriedade e posse, e o professor relaciona
este tema com os sub-temas sociedade de consumo e capitalismo. Podemos observar como
a pergunta do aluno é pertinente e nos aponta os indicativos de sua reflexão sobre o tema da
aula e os caminhos que percorreu para a construção da pergunta. Aparentemente a
pergunta do aluno J encontra-se fora da temática que está sendo ensinada, mas, ao
refazermos o caminho que a aula de história vem percorrendo, podemos encontrar nessa
pergunta uma reflexão sobre o conteúdo e como a matéria vem sendo ensinada,
relacionando o presente com o passado e, relacionando propriedade e posse com a
sociedade de consumo.

As perguntas do episódio XVI têm um dado diferente daquelas do episódio anterior.


Os alunos P e Q fazem perguntas que tem relação com outra disciplina, a geografia.
Quando o aluno P pergunta “Existiam mapas assim?”, ele relaciona a história com o
conteúdo especifico de geografia que são as representações geográficas em mapas e
também relaciona o passado com um elemento existente no tempo presente, que são os
limites territoriais e de propriedade. Quando o aluno P pergunta (L. 1) sobre os limites,
acreditamos que ele quer saber como eles eram reconhecidos pelos donos e pelos outros
que possuíam também terras vizinhas. Encontramos nessa perguntas elementos da reflexão
que provavelmente o aluno construiu durante as aulas: a) a relação entre propriedade e
limites das propriedades; b) a importância da marcação e o reconhecimento do limite das
propriedades para assegurar a posse e; c) a representação cartográfica dos limites territoriais
das propriedades. Esses indicativos de reflexão se revelam nas perguntas proferidas pelo
aluno, a linguagem corporifica e coletiviza as reflexões e trazem para o espaço físico da
sala de aula o que o aluno pensa e como ele está organizando o ensinado.
No episódio XVII podemos observar outro tipo de pergunta que muitas vezes são
caladas em nossas salas de aulas. A palavra sesmaria25 provavelmente já havia sido ouvida
pela turma em muitas outras ocasiões, pois o conteúdo sobre o início da colonização do
Brasil é ensinado aos alunos no primeiro e segundo ciclos do ensino fundamental – antiga
primeira a quarta série – e sesmaria é um elemento contido nesse conteúdo. Ao perguntar
“O que é sesmaria?”, o aluno torna visível uma dúvida que muitas vezes é omitida e
dificulta a compreensão do conteúdo que esta sendo ensinado. Destacamos também que
algumas expressões são tão naturalizadas no ato de ensinar um conteúdo que é esperado
que os alunos tenham conhecimento de determinados conteúdos e expressões que são
clássicas da linguagem usada na disciplina que está sendo ensinada. São repetidos
expressões e conteúdos sem aprofundamento, partindo do pressuposto de que todos já
conhecem e sabem. A pergunta do aluno J denuncia uma prática muito comum nas
escolas. Esta denuncia somente tornou-se real e ocupou o espaço da sala de aula porque a
palavra tem o lugar de destaque no procedimento pedagógico do professor André, desta
forma o que em geral é ignorado invade a sala de aula e solicita do professor uma posição
diante do revelado no ato de fala.

No episódio XVII (L. 4, 5, 6, 7 e 8) o professor reconhece que não tem o exato


conhecimento sobre um determinado elemento da matéria e fala para o aluno J que não
sabe explicar com exatidão como era utilizada a medida de terra denominada sesmaria e diz
“Depois posso ver e fazer isso...”. Nesse momento o professor coloca-se como alguém que
também está aprendendo e que estuda para ensinar e que buscará a informação solicitada.
O reconhecimento do limite pessoal do professor diferencia uma prática pedagógica que
está pautada no ato de fala. Ao abrir espaço para os alunos falarem e apresentarem suas
dúvidas e opiniões, o professor possibilita a existência de questionamentos e contra-
argumentos, sua palavra torna-se elemento do processo de aprendizagem e deixa de lado
um lugar comum nas práticas pedagógicas que é a posição de verdade e de dogma imutável,
não cabendo ao professor cometer erros e esquecimentos.

25
Sesmaria, s.f. Terreno inculto ou abandonado era doado; antiga medida agrária que corresponde a 3.000
braças ou 6.600 m.
Um outro elemento diferencia o grupo de aulas do dia vinte e quatro de março dos
grupos de aulas anteriores e a condução temporal, isto é, o presente era o condutor do
conteúdo que estava sendo ensinado, conduzindo o aluno a pensar sobre a sua sociedade e a
relação com o tema do bimestre. O grupo de aulas do dia vinte e quatro de março é
marcado pela análise e reflexão sobre o passado e a origem do Brasil e de sua
colonização26. O passado é o foco das aulas, porém podemos destacar que essa relação
presente/passado estabelecida pelo professor como procedimento pedagógico apresenta
uma relevância muito grande na construção do bloco de aulas do dia 24 de março. Os
alunos comportam-se de forma a compreender o passado e o passado não é apresentado
como exótico ou distante, ele se relaciona com o presente e o compõe. A pergunta (L. 1),
feita pelo aluno P no episódio XVI, aponta este trânsito presente/passado/presente, pois ele
questiona o passado partindo de uma referencia do presente que são os mapas que
estabelecem as divisões de propriedades territórios e países.

Ao analisarmos os dezessete episódios que selecionamos, podemos encontrar uma


estruturação gradual do procedimento pedagógico estabelecido pelo professor André e
também pelos alunos da turma 801. O estabelecimento do processo pedagógico foi
gradativo. No primeiro grupo de aulas – do dia 17 de fevereiro – encontramos vários
marcadores de silêncio e organizadores de fala. Estes marcadores vão diminuindo com o
prosseguimento das aulas e, com o passar dos dias, vão sendo construídos códigos e
condutas que não são verbalizadas ou estabelecidas como normas, porém existe uma ordem
implícita e normas tácitas que gerenciam as palavras. Essas normas são fruto da cultura
escolar que estabelece valor diferenciado à palavra do professor e à palavra do aluno e ao
uso da fala. O professor tem garantido a obrigação de falar e ao aluno cabe ouvir e
responder perguntas. Porém estas regras culturais vão sendo rompidas e uma nova
condução vai-se corporificando e a palavra do aluno torna-se um elemento constitutivo do
ensino/aprendizagem.

A seguir destacamos algumas outras marcas que se mostram relevantes no


desenvolvimento do processo pedagógico observado e analisado.

26
Não faremos nenhuma reflexão sobre a polêmica que existe sobre a palavra colonização; apenas
destacamos que esse tema é gerador de várias reflexões tanto na historiografia como no ensino de história.
Diálogo cooperativo

Podemos observar que no último grupo de aulas a palavra é usada quase que
equivalentemente pelo professor e pelos alunos e as perguntas, antes uma prerrogativa do
professor, passam ser proferidas pelo aluno também. O diálogo torna-se um elemento
constante e dinamizador das aulas. As longas explicações monológicas vão sendo
substituídas pelo diálogo cooperativo, o professor continua tendo a função de ensinar, mas
o ato de falar é partilhado com os alunos, isto é, ele canaliza as informações e o
conhecimento que os alunos possuem, traçando uma trajetória para o conteúdo que está
sendo ensinado.

As estruturações das perguntas ao longo dos episódios revelam uma


intencionalidade do professor, que busca na fala dos alunos elementos para construção de
seu discurso. As respostas dos alunos são incorporadas às explicações e, assim, o professor
conduz suas aulas de forma cooperativa.

Movimentação em sala de aula

A movimentação do professor e o lugar que o professor se posiciona em sala de aula


também vão se modificando com o transcorrer das aulas. No primeiro bloco de aulas ele se
posicionava geralmente à frente da turma, próximo ao quadro de giz, fazendo poucas
incursões ao fundo da sala. Somente durante a aplicação de exercício se direcionou ao final
da sala, olhando os cadernos dos alunos. No segundo bloco de aulas, podemos observar
que vai mais para o fundo da sala e durante a explicação fala de vários lugares,
aproximando-se dos alunos que estão estabelecendo diálogo com ele. No terceiro grupo de
aulas, podemos observar que não existe mais um lugar específico em que o professor se
posiciona, ele transita pela sala, aproximando-se sempre dos alunos que estão falando com
ele. A movimentação em sala de aula nos parece um elemento revelador de aproximação e
mudança na postura. Acreditamos que esta mudança de posicionamento em sala e de
movimentação seja decorrente de um planejamento do professor, visando estabelecer uma
aproximação dele aos alunos.

Silêncio cooperativo
No último bloco de aulas podemos observar que a quase totalidade da turma
encontra-se em uma atitude de participação. A existência de alunos estabelecendo
conversas paralelas é mínima. Podemos ver no vídeo os alunos posicionando o corpo para
acompanhar o professor com o olhar. Esta conduta corporal de buscar visualmente o
professor, nós identificamos como uma maior ação participativa na aula.

Os ruídos constantes no primeiro bloco de aula vão diminuindo e quase não existem
no terceiro bloco de aulas. O quase término dos ruídos no áudio apontam para o
estabelecimento de uma organização das falas em sala de aula e a aceitação de uma
dinâmica implantada pelo professor; o silêncio cooperativo é um acordo coletivo. O que
chamamos de silêncio cooperativo? É o estabelecimento de uma dinâmica no uso da
palavra. Com isso os diversos atores da fala são ouvidos pelo grupo em que estão
inseridos. O professor André consegue estabelecer uma dinâmica de diálogo em que os
alunos ouvem seus colegas e ouvem o professor, promovendo um silêncio para a palavra do
outro ser ouvida. Desta forma o silêncio é uma atitude de escuta, possibilitando a
construção da ação comunicativa reflexiva.

No primeiro grupo de aulas o uso da palavra produzia disputas, alguns alunos


chegavam a gritar para que sua voz superasse as dos outros alunos. No episódio III (L. 13 e
14) podemos identificar um momento que durou aproximadamente 3 minutos, em que os
alunos falavam quase todos juntos e sem estabelecer diálogo. Como já expressamos, temos
a sensação de que é a palavra pela palavra, o uso experimental do direito a voz. No
episódio IV (L. 7 e 8) o aluno D e o E falam simultaneamente, solicitando a atenção do
professor e a busca por serem ouvidos. Retornando os episódios do primeiro bloco de
aulas, podemos observar a existência de vários marcadores de ruídos que impossibilitaram
a transcrição. Foram registrados comentários relativos a várias falas simultâneas. No
segundo bloco de aulas, os marcadores vão diminuindo gradativamente e no terceiro bloco
são praticamente inexistentes. Estes dados a nosso ver revelam uma construção coletiva de
uma conduta em sala de aula, estabelecendo o uso da palavra de forma cooperativa. O falar
é seguido de escuta e somente o silêncio cooperativo pode promover.
O silêncio cooperativo não desqualifica as conversas paralelas como um espaço de
construção do conhecimento. Destacamos o valor do silêncio cooperativo no espaço da
sala de aula, pois muitas vezes este espaço é invadido por um ruído que não produz
conhecimento e sim amplifica o não diálogo e impossibilita o fazer em sala de aula.

Como já salientamos anteriormente esta pesquisa tem o foco no ato de fala, porém
destacamos o silêncio cooperativo como um elemento essencial para o estabelecimento da
ação comunicativa. Com base na teoria habermasiana, podemos afirmar que o direito
comunicativo deve ser democrático, pressupondo que todos os falantes devem ser ouvintes
atentos, de forma cooperativa, para poder assim estabelecer-se um processo argumentativo.
O silêncio não aparece a nosso ver como um estado de inércia ou paralisação; o silêncio
cooperativo é uma ação coletiva que faz do ato de fala um exercício que solicita a
participação conjunta de todos os atores.

O papel das perguntas e das respostas

As perguntas têm o papel de elo no procedimento pedagógico do professor André.


São usadas para efetivar os atos de fala, são o principal meio pelo qual a palavra torna-se
dita. O aluno se comunica com o professor essencialmente usando as perguntas para
efetivarem suas falas e o professor constantemente se direciona aos alunos por meio de
perguntas.

Um outro elemento que já apresentamos, mas consideramos importante e por isso


retomamos a reflexão neste momento, são as respostas que o professor estabelece como
erradas. No segundo bloco de aulas, nos episódios de VIII a XIII, o professor
constantemente nega as respostas dadas pelos alunos, caracterizando-as como incorretas.
Esta negação como já destacamos nos parece um momento de surdez, isto é, o professor
aparentemente não ouve os argumentos dos alunos, desta forma o diálogo que se
desenvolve parece uma fala de surdos. Porém podemos identificar no desenvolvimento do
diálogo que nossa percepção inicial não estava plenamente correta, pois no episódio XII o
professor desenvolve uma explicação que tenta reunir os diversos elementos falados pelos
alunos e estabelecer a diferença entre as diferentes propriedades, privada, pública e
coletiva. No terceiro bloco de aulas podemos identificar um outro procedimento
pedagógico em relação às respostas. O professor elabora outras perguntas conduzindo a
uma resposta que seja considerada por ele mais pertinente à pergunta. A forma como o
professor encaminha as respostas, ao ponto que ele deseja chegar, marca uma mudança de
atitude perante a turma e efetiva uma interferência muito mais eficiente que a simples
negação da resposta, caracterizando-a como erro.

As modificações nos procedimentos pedagógicos revelam uma construção coletiva


pela busca da melhor forma de ensinar. Estas buscas e caminhos compõem/surgem o que
chamamos de história-ensinada. A simples negação das respostas não bastavam para que
respostas mais completas ou corretas fossem construídas. Traçar outro procedimento e
corrigir a trajetória é uma ação constante no ato de ensinar. Os três blocos de aulas foram
selecionados por caracterizarem esse caminho que professor e aluno trilham ao longo do
ano. Encontros e desencontros e busca pelo acerto fazem da sala de aula um espaço vivo.

Critério para o ato de fala

Encontramos critérios implícitos para o ato de fala nas aulas de história da turma
801. O ato de fala como principal procedimento pedagógico pode parecer uma total
flexibilidade e fluidez no uso da palavra. Podemos identificar claramente nos dezessete
episódios que o ato de fala é direcionado constantemente para o conteúdo que está sendo
ensinado, construindo um critério claro para o uso individual e coletivo da palavra.
Retomamos o episódio I, na fala inicial “A matéria que estou trazendo no primeiro
bimestre, o que é isso, uma coisa chamada posse e uma coisa chamada propriedade.”. A
partir desta primeira frase podemos ver uma trajetória em que o conteúdo vai sendo
ensinado e poucas falas diferentes do tema, fora da temática geradora do bimestre, são
incorporadas ao ato de fala.

Identificamos o conteúdo como critério para o ato de fala porque podemos também
destacar a existência de falas descontextualizadas, ou que fogem a esse critério, porém a
existência dessas falas é mínima e na maioria das vezes são ignoradas ou mesmo negadas
no ato de fala. O critério em momento algum é explicitado, porém existe de forma tácita e
se estabelece ao longo das aulas, sendo executado no espaço da sala de aula.
As generalizações

As generalizações como já destacamos são elementos constantes na fala do


professor André. Destacamos três tipos recorrentes de genaralizações:

a) Generalização do mundo da vida – o professor parte do pressuposto de


que o pano de fundo que o cerca é idêntico ao dos alunos, desta forma
tece em suas explicações igualdades e simplificações, tendo como
premissa de que os mundos são iguais e desta forma perceberão de forma
igual um determinado componente deste mundo.
b) Generalização temporal – traça uma equivalência entre fatos do passado,
seja recente ou remoto, apresentando-os como iguais.
c) Generalização pedagógica – constrói uma equivalência mais generalizada
entre tempo, acontecimento e espaço.

As generalizações vão diminuindo com o decorrer das aulas e no último bloco de


aulas elas são inexistentes, apontando para um procedimento pedagógico mais cooperativo
e de uso coletivo da palavra.

Nossa pesquisa buscou uma sala de aula em que o ato de fala fosse o principal
instrumento pedagógico utilizado pelo professor no ato de ensinar. Nosso olhar estava
vestido principalmente da teoria da ação comunicativa. Encontramos nesse mergulho no
campo vários elementos que nos aproximaram mais ainda deste referencial teórico. No
capítulo a seguir apresentaremos as conclusões que construímos durante o processo de
pesquisa e escrita desta dissertação.
VI Capítulo

6. Conclusões

A procura pela articulação entre Ensino de História e Memória Social orientou o


processo de caminhada e construção desta dissertação. Nesta busca encontramos vários
elementos que produziram o alicerce para a nossa análise do material coletado no campo.
A análise dos dados nos fez lançar um novo olhar para a teoria que nos norteia, este
processo de ida da teoria para os dados e dos dados para a teoria produziu um fio que
alinhavou toda nossa pesquisa. Na continuidade deste texto, estaremos definindo este fio
que produziu uma possibilidade de articulação real entre Ensino de História e a Memória
Social.

O ensino de história tem sua gênese vinculada à construção e à propagação de uma


memória; de cunho elitista, fortificando a estada e a manutenção do poder vigente,
promovendo uma memória oficial e de caráter nacionalista. Esta marca identitária do
ensino de história nos remeteu à questão que norteia esta dissertação, o ensino de história
como produtor de memória.

Desde o início de nossa pesquisa uma premissa se fez presente em nossa busca – a
memória é um elemento constante no processo pedagógico do ensino de história. Seja na
propagação de uma memória específica e oficial, ou de uma memória invasiva que se
constitui geralmente via voz dos alunos e nas reflexões dos professores acerca da matéria
ensinada, revelando desta forma o pano de fundo cultural do mundo da vida. A premissa de
que a memória tem um papel e efeito concreto na história-ensinada nos proporcionou as
questões iniciais desta dissertação: Como esta materialização da memória se faz? De que
forma esses elementos muitas vezes invasivos e provocadores de mal-estar pedagógico, se
constituem no espaço da sala de aula de história? E como a memória social pode dialogar
com o ensino de história?

A teoria habermasiana da Ação Comunicativa nos proporcionou elementos para


buscarmos como a memória se materializa no espaço da sala de aula. Na perspectiva desta
teoria todos os atores envolvidos no processo da história-ensinada são sujeitos e co-
partícipes do ensino de história. O ato de fala torna-se o centro de nossa pesquisa e é por
meio dele que buscamos a possibilidade de articulação entre ensino de história e memória
social.

Ao nascermos nos deparamos com um mundo que existe há muito tempo e que para
garantirmos nosso bem estar devemos ser capazes de viver neste mundo e compreendermos
suas regras existentes e estruturas culturais. A linguagem é o meio pelo qual este mundo
nos é apresentado e nós nos relacionamos com ele e com os atores que o compõem. As
práticas culturais são partilhadas pelos atores no ato da fala e, pela fala, vai se
descortinando o pano fundo cultural do mundo da vida. Para Habermas (1993), os
indivíduos não têm como evitar o emprego da linguagem voltada ao entendimento, pois
somente nessa ação cooperativa se estabelece a socialização no dia-a-dia. Nesse processo
de comunicação se estabelece uma racionalidade comunicativa processual; é no espaço da
ação comunicativa que os diversos atores da fala buscam o entendimento via argumentação
e se estabelece ou se busca estabelecer o entendimento mútuo. A razão comunicativa,
segundo Habermas, está sempre presente na possibilidade de comunicação através do ato
de fala, mas nem sempre se concretiza no processo.

Este processo de entendimento está presente no processo de ensino/aprendizagem.


A palavra tem um papel fundamental nas ações pedagógicas desenvolvidas nas salas de
aulas, seja a sala de aula tradicional ou não. Buscamos assim uma sala de aula em que o
diálogo fosse o principal procedimento pedagógico utilizado e, assim, analisamos as
interações discursivas entre professor e alunos, buscando estabelecer a possível relação
entre ensino de história e memória social.

Nossos dados foram coletados por meio de vídeo-gravação e de observação em uma


turma do 8ª ano de escolaridade, na Escola Municipal José de Anchieta, localizada no
município de Niterói. O professor desta turma foi escolhido por apresentar um diferencial
importante em sua prática pedagógica. O procedimento central de suas aulas é o diálogo,
isto é, no diálogo e pelo diálogo que se efetiva a história-ensinada nesta sala de aula.
Selecionamos nove aulas para análise dos dados, estas aulas foram dadas em três
dias diferentes, a cada dia eram dadas três aulas. Para encaminharmos a análise fizemos
um recorte episódico, dando origem a dezessete episódios. Analisamos os episódios
buscando os elementos marginais, as pequenas nuances, que marcam as diferenças do fazer
que estávamos observando. Nos detalhes infinitesimais que revelam as diferenças típicas
do ato que investigamos e também destaca no cotidiano o pano de fundo cultural das
práticas escolares e dos mundos da vida.

O pano de fundo cultural do mundo da vida invade a sala de aula em grandes


rompantes, como um estouro de boiada, ou em atitudes fugidias, como o tecer da teia de
uma aranha, que se espreitas pelos cantos e de repente quando vemos está pronta a grande
teia, que pega os inseto mais desavisados. O estoura da boiada é facilmente distinguido,
pelo barulho que causa e pela desordem que provoca. Porém o movimento que provocou o
ato muitas vezes nos escapa, pois está situado em pequenos detalhes, em expressões
fugidias e nas diversidades de olhares que lançamos sobre o mesmo objeto.

Quando falamos a nossa impressão acerca de um objeto, fato ou conceito,


materializa-se o que está em nosso entorno, o pano de fundo cultural do mundo da vida que
nos cerca. No nono episódio podemos perceber um grande movimento provocado por uma
expressão utilizada pelo professor, “vender a alma”. A expressão “vender a alma” tem para
o professor um valor e um sentido diferente do que os alunos compreendem. Para os
alunos “vender a alma” está muito vinculado à religiosidade e ao ato de fazer o mal. Para o
professor “vender a alma” está vinculado às questões ideológicas.

O procedimento pedagógico centrado no diálogo possibilitou que a polêmica se


materializasse nos atos de fala. Em uma sala de aula em que a palavra do professor fosse
revestida do valor de verdade, cabendo aos alunos o papel de ouvir, dificilmente este tipo
de polêmica poderia acontecer. Observamos então dois movimentos importantes no nono
episódio; 1º) a presença invasiva em que as diferentes percepções oriundas do pano de
fundo cultural se fazem presentes nas falas dos alunos e do professor”; 2º) o diálogo como
um espaço de materialização deste pano de fundo cultural do mundo da vida.
O nono episódio tem uma marca fundamental que é o grande alarido e a
instabilidade que a expressão “vender a alma” provoca na sala de aula. Em uma visão
superficial parece realmente uma confusão que o estouro da boiada provoca, deixando
praticamente destruído tudo em sua trajetória. Porém quando buscamos os detalhes
percebemos o movimento que já estava se instalando no espaço da sala de aula de história.
O diálogo como espaço cooperativo e a busca por um entendimento mútuo. No décimo
episódio esta busca pelo entendimento é marcante. O papel do professor como promotor do
entendimento e construtor de um possível consenso também se destaca neste episódio. Nos
episódios que se seguem podemos observar gradativamente como é que os espaços
argumentativos vão sendo efetivados, tornando-se uma marca diferenciadora da prática
pedagógica deste professor.

Uma prática pedagógica centrada no ato de fala possibilita a construção gradativa


do ensino gerador de conhecimento e estimula a partilha deste conhecimento construído,
isto é, quando abrimos espaço para o diálogo livre sem coações, ou com coações mínimas,
podemos encontrar a formação de um espaço de cooperação e aprendizagem mútua, em que
professor e alunos estão construindo o conhecimento, no nosso caso específico a história-
ensinada.

Estudamos a sala de aula como um espaço de coações mínimas, pois os elementos


sócio-culturais que estão presentes na escola e no ato de ensinar têm em seu cerne atitudes
de coação, mas também entendemos que estas coações, os grilhões da escola, podem ser
minimizadas ou até mesmo transformadas pelos os atores, quando eles optam por construir
um ensino/aprendizagem pautado no ato de fala argumentativo reflexivo que saliente a
cooperação e a democracia.

A busca pelo entendimento mútuo pode ser um marcador pedagógico diferencial nas
práticas escolares. A ação comunicativa pode viabilizar uma prática mais democrática, pois
preconiza via argumentação o estabelecimento do consenso. Reconhecemos que a teoria da
ação comunicativa apresenta um ideal de comunicação pouco existente nos espaços
escolares. Os espaços escolares em geral são cheios de elementos limitadores que
funcionam como coações sociais e subjetivas condicionando o ato da fala. Porém quando
nos propomos a pautar nossas ações por uma conduta de cunho democrático e nos
nutrirmos do otimismo encantador inerente à teoria da ação comunicativa, podemos
transformar otimismo e esperança em ação coletiva e efetivar uma transformação.

Na sala de aula em que coletamos os dados pudemos perceber que a garantia


democrática do uso da palavra foi fomentando uma busca coletiva pelo conhecimento e
pela compreensão do conteúdo que estava sendo ensinado. O estabelecimento de uma ação
cooperativa que busca a efetivação do ensino/aprendizagem surgiu do próprio processo
estabelecido em sala de aula, que já trazia desde seu início elementos que materializaram
esta possibilidade. O diálogo como procedimento pedagógico central marca este
diferencial e a viabilidade da construção argumentativa do conhecimento.

O início da relação professor-aluno revela um tatear exploratório. O professor


estimula os alunos a participarem das aulas via uso da palavra e os alunos vão
experimentando o quanto o uso da fala lhes é permitido. É o início de um relacionamento
que se efetivará durante o período observado, sendo que os primeiros contatos vão
indicando como esta relação vai sendo estabelecida. Em nossa análise destacamos este
início, pois já nos primeiros momentos das aulas as interações discursivas vão se
estabelecendo e apresentando detalhes reveladores do processo pedagógico que se
estabelece.

No início, que chamamos de primeiro movimento do processo pedagógico, a


descoberta por parte dos alunos de que poderiam falar produziu um grande ruído no espaço
da sala de aula. No terceiro episódio, temos estabelecido implicitamente que o uso da
palavra é permitido e explodem várias falas. As falas revelavam uma necessidade de
experimentar a oportunidade que lhes havia sido dada e o silêncio é rompido por falas
simultâneas. O professor nesse processo tem um papel fundamental de organizador das
falas e estimulador do uso da palavra com a finalidade de efetivar o ensino/aprendizagem.
Gradativamente, este movimento de experimentação vai sendo substituído pelo que
chamamos de silêncio cooperativo.

O silêncio cooperativo caracteriza um segundo movimento e é efetivado no


processo constituído em sala de aula. A efetivação desta nova conduta do uso da palavra, e
também do não uso da mesma, foi sendo tecido gradativamente no neste espaço. Um
exercício coletivo e cooperativo entre professor e alunos. Os alunos vão reconhecendo a
necessidade da escuta para que seja implementada realmente uma relação de diálogo. Há
uma modificação corporal nos alunos, eles se colocam na cadeira de forma mais atenta,
posicionando-se em uma atitude de escuta.

O silêncio cooperativo é uma ação, pois evoca, como já afirmamos, uma atitude de
escuta. Os alunos não ficam em um silêncio passivo e opressor, em que a palavra é de uso
exclusivo do professor; o silêncio nessa perspectiva tem a dimensão da escuta. A escuta é
uma ação participativa que proporciona elementos para referendarem a aceitação do que
está sendo dito, ou conduzir a construção de argumentos para contestar a pretensão
proposta.

Adjetivamos o silêncio como cooperativo, pois identificamos uma atitude de mão-


dupla e uma ação voltada ao entendimento. O ouvinte não está em uma atitude combativa
de escuta, visando buscar o ato falho do outro e assim explorar o erro em um possível
embate argumentativo. O silêncio nesse aspecto tem o papel de salientar a escuta e
promover o diálogo e a troca democrática de papéis – o falante que usa a palavra e o
ouvinte que a escuta cumprem simultaneamente os dois papéis no ato da comunicação. A
comunicação voltada ao entendimento mútuo promove a interação.

Compreendemos a educação como uma ação social entre os diversos atores que
estão presentes no espaço da sala de aula. Como toda ação social preconiza a interação,
podemos caracterizar a educação como uma ação social, tendo em vista que a educação se
faz efetivamente no processo de interação entre os vários atores que estão presentes nos
espaços escolares. O professor não exerce sua função sem alunos, assim como, os alunos
não vão para a escola se lá não houver professores. Desta forma a educação é efetivada na
integração dos vários atores que formam o processo de ensino/aprendizagem. Nessa
perspectiva pensamos educação como um ato socialmente composto e fruto de um
engajamento coletivo dos atores que fazem a escola.

A educação como uma ação social que envolve vários atores tem em sua gênese o
caráter interativo e socializante dos diversos sujeitos que promovem o seu ato – seja
professor, aluno ou a coletividade que compõe o espaço escolar. A linguagem nesse
processo torna-se a fonte de integração social. Nessa perspectiva identificamos um dos
elementos fundamentais para o que Habermas define como agir comunicativo,
preconizando a força consensual do entendimento lingüístico. A linguagem torna-se o elo
de ligação entre os diversos atores possibilitando por meio do ato de fala a busca do
entendimento mútuo. A educação dimensionada em seus aspectos coletivo e cooperativo
torna-se um espaço profícuo para o desenvolvimento da ação comunicativa.

A comunicação efetivada no espaço da sala de aula se diferencia da comunicação


cotidiana. O processo lingüístico que se desenvolve neste espaço é marcado por uma ação
que se direciona a um objetivo, ou deveria ser norteada ele, produzir a aprendizagem. O
ensino/aprendizagem se efetiva de forma mais geral ou mais específica em uma disciplina
ou em um determinado conteúdo. A efetivação desse processo de aprendizagem visa
reproduzir as tradições culturais preconizadas pelo conteúdo previamente selecionado.
Estes conteúdos são repletos de pretensões de validez socialmente aceitas ou
cientificamente comprovadas e compõem o pano de fundo cultural da escola. O processo
ensino/aprendizagem nesse aspecto está vinculado à reprodução e à renovação das tradições
culturais. O ensino de história tem em sua gênese e configuração um forte envolvimento
com este aspecto socializante e efetivador das tradições culturais e da renovação e a
produção das mesmas.

Os conteúdos de história trazem em suas estruturas diversas versões do passado,


apresentadas na historiografia que deu fundamento para a formulação dos conteúdos
propostos. A história-ensinada nesse aspecto tem sua relação direta com a reprodução e a
renovação das tradições culturais. Esta reprodução e renovação das tradições culturais vão
além dos espaços escolares, compondo também o imaginário social, sendo assim também
formadora da memória social.

A reprodução e renovação das tradições culturais são parte integrante do ensino de


história e este processo pode ser mais democrático e socializante. Nessa perspectiva a
teoria do agir comunicativo pode contribuir para promover na prática educativa uma
relação de cunho mais democrático, rompendo com as estruturas monológicas tradicionais e
promovendo uma relação de cunho mais dialógico e consensual.

O diálogo argumentativo coloca no espaço do debate as pretensões de validez não


consensuais, ou que despertaram alguma polêmica e crítica. Nesse espaço democrático os
argumentos são avaliados à luz de uma racionalidade processual, podendo viabilizar o
estabelecimento do consenso. Observamos em vários momentos de nossa análise que o
processo argumentativo se efetiva como um espaço potencializador da aprendizagem, pois
além de materializar as discordâncias também esclarece as dúvidas que uma explicação
pode produzir.

A argumentação traz para o espaço comum algumas questões confusas e obscuras,


possibilitando que o ato reflexivo se torne coletivo e cooperativo, pois a fala do outro
descortina um outro olhar, proporcionando uma compreensão intersubjetiva do conteúdo,
tanto para os alunos como para o professor. Retomamos o décimo episódio para
exemplificar esta compreensão intersubjetiva. Os alunos tentam acertar através de uma
série de possibilidades o que seria “vender a alma”, segundo a visão do professor. Estas
variáveis vão delineando a percepção que os alunos têm da expressão. Ao final do episódio
o professor constrói uma explicação que contém vários elementos oriundos das tentativas
dos alunos. Podemos observar um movimento presente na construção da explicação
proferida pelo professor. Um movimento de escuta das falas dos alunos e uma estruturação
dos argumentos utilizando as falas dos alunos e assim buscando promover o entendimento e
efetivar a aprendizagem.

A efetivação de um processo argumentativo nos moldes habermasianos, em sua


totalidade, não foi identificado na análise dos dados, porém identificamos um processo
embrionário de efetivação da ação comunicativa reflexiva27. Este processo embrionário
torna-se claro quando identificamos os movimentos que são construídos no espaço da sala
de aula de história.

27
Salientamos que em momento algum foi pedido ao professor que orientasse sua prática pedagógica pela
teoria habermasiana. Buscamos perceber se a teoria da ação comunicativa tem possibilidade de ser efetivada
no espaço da sala de aula.
As perguntas que em um primeiro momento eram prerrogativas do professor vão
sendo buriladas e se constituindo como um ato de reciprocidade entre professor e alunos,
constituindo assim um terceiro movimento que visa o entendimento mútuo e a compreensão
do conteúdo que está sendo ensinado. O diálogo como elemento que fundamenta o
procedimento pedagógico do professor vai percorrendo gradativamente o caminho que gera
a história-ensinada. O diálogo pauta uma busca coletiva pelo entendimento; entendimento
este que possui várias dimensões.

Nessa perspectiva, o ensino/aprendizagem é uma ação cooperativa e pode se basear


em uma ação de cunho comunicativo, possibilitando a coordenação de ações voltadas ao
entendimento.

Retomamos nesse ponto a questão central de nossa pesquisa, a relação existente


entre ensino de história e memória social. A memória social, permitida ou não, invade o
espaço da sala de aula. No ensino de história esta invasão é mais constante e muitas vezes
promotora de mal-estar pedagógico. Podemos observar como esta memória se faz presente
de forma disfarçada ou ostensiva no espaço da sala de aula de história.

O professor trabalha no primeiro e no segundo bloco de aula com a perspectiva


presente/passado. Solicita que os alunos partam da sociedade em que vivem para pensar a
temática do bimestre – propriedade e posse. Esta abordagem traz para o meio do processo
ensino/aprendizagem todo pano de fundo cultural do mundo da vida e esse pano de fundo
se corporifica no ato de fala dos alunos. Destacamos que nossos dados foram coletados em
uma turma em que o principal procedimento pedagógico do professor é o diálogo. O
estabelecimento do diálogo trouxe para o debate em sala de aula elementos oriundos do
cotidiano dos alunos e apontou as diferenças culturais existentes entre professor e alunos,
bem como o quanto em nossas práticas pedagógicas presumimos que o nosso olhar sobre o
que nos cerca é partilhado por todos. As diferenças de percepção de determinados
conceitos e objetos, tais como: “Biscoito é alimento ou não?” ou, “Celular é necessidade
ou desejo?” Estabeleceram breves momentos argumentativos, nos quais as pretensões de
validez apresentadas foram questionadas e, como validades criticáveis, possibilitaram a
efetivação do processo argumentativo.
A existência da polêmica por si só não garantiria o estabelecimento do processo
argumentativo. Este processo só pode ser efetivado, mesmo que de forma precária, porque
o diálogo de cunho democrático era o fio condutor do procedimento pedagógico
estabelecido e, desta forma, os atores da fala puderam expressar suas discordâncias e
aceitações em relação à pretensão proferida. Não estamos afirmando que o processo
argumentativo, segundo a teoria habermasiana, foi efetivado nos episódios que analisamos,
estamos apontando que este processo teve início e que esse viés de possibilidade pode ter
espaço na ação pedagógica nos espaços de sala de aula.

Outro elemento é fundamental neste processo, a importância do pano de fundo


cultural na construção argumentativa que utilizamos para apresentarmos uma pretensão de
validez ou criticar uma pretensão apresentada por um outro ator. Nesse aspecto muitas
vezes o ensino de história não viabiliza uma relação argumentativa, porque na maioria das
vezes ele está baseado na pretensão que a História é única e o papel do aluno é aprendê-la.

Em uma perspectiva dialógica, a História que é ensinada no espaço da sala de aula é


apresentada como uma versão da história e, sendo assim, pode ser criticada. Não estamos
desmerecendo a importância dos conteúdos selecionados para as diversas séries e ciclos,
nos diversos níveis do ensino, somente estamos tentando indicar uma possibilidade para a
caminhada. Na perspectiva que apresentamos nessa dissertação buscamos a possibilidade
de relação entre ensino de história e memória social. E vislumbramos esta possibilidade via
ação comunicativa reflexiva.

A nossa análise apontou o diálogo como instrumento pedagógico que pode


viabilizar a efetivação do agir comunicativo voltado ao entendimento. Confirmamos um
elemento que fundamentou nossa investigação desde seu estágio mais embrionário – que a
memória social invade o espaço da sala de aula queiramos ou não. Administrar esta
invasão requer muito mais que boa vontade, requer de nós um aprofundamento pedagógico
e a condução de uma postura pedagógica mais democrática. Encontramos na teoria
habermasiana da ação comunicativa elementos para construirmos uma história-ensinada
mais comprometida com a formação do cidadão que pode perceber os diferentes mundos da
vida e partilhar o cotidiano com o diferente: valorizando o respeito coletivo, as diferenças
que estão na escola e no mundo, que porém muitas vezes nós as ignoramos, ou as
relegamos ao esquecimento em prol de uma suposta verdade única.

Percebemos nessa pesquisa como a História não é única, como o pano de fundo
cultural dos mundos da vida também não o são. E essas multiplicidades de realidades e
visões acerca do mundo da vida se fazem presente no espaço da sala de aula. E nos lançam
uma pergunta: O que ensinar então? Talvez devamos pensar em um ensino das histórias e
implantarmos no espaço pedagógico um processo argumentativo, que busque mais que
salientar as diferenças, busque produzir o entendimento mútuo e a cooperação solidária
entre os atores.

Não propomos uma solução para os problemas que afligem a sala de aula de
história, e muito menos solução para a questão que nos motivou no início desta pesquisa.
Fizemos nossa jornada e como peregrino contamos o que descobrimos e indicamos algumas
possibilidades de caminhos. Acreditamos firmemente que a escola é um espaço que pode,
ou melhor, tem o dever de promover a democracia. Vislumbramos, na teoria da Ação
Comunicativa, elementos que viabilizam a implementação do processo democrático em
sala de aula. Reconhecemos alguns limites sociais que impossibilitam e a aplicação plena
desta teoria, porém elementos fundamentais são viáveis no cotidiano da sala de aula.

A publicidade e a inclusão de todos os atores; a aceitação de que a controvérsia


promove o debate e pode possibilitar contribuições importantes para o processo de ensino
aprendizagem. Excluir os enganos, subterfúgios e ilusões. Promover a não-coação
comunicativa e buscar o melhor argumento, possibilitando assim a existência de consenso.
Estes são elementos da teoria da Ação Comunicativa que identificamos como possíveis de
serem efetivadas no espaço escolar.

Nesta perspectiva dialógica e argumentativa, a memória social torna-se mais visível


e co-partícipe da história-ensinada, pois se materializará nos atos de falas. E os elementos
naturalizados na memória social, tais como: “Sempre foi assim”; “A história foi sempre a
mesma”; e tantos outros que invadem a sala de aula podem ser desnaturalizados e, quem
sabe, nossa ação pedagógica seja mais eficaz e promotora de uma democracia mais real.
A memória social não se cala. Mesmo que a ignoremos ela se introduz na sala de
aula. Na sala de aula de história sua intromissão é mais freqüente e contumaz, pois a
memória é um elemento inerente do ensino de história. Acreditamos que o diálogo
argumentativo cria a possibilidade de articularmos memória social e História, viabilizando
uma análise coletiva e cooperativa, produtora de uma memória social fruto da reflexão, que
pode transbordar o fazer da sala de aula de história para outros espaços sociais.
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