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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

SETOR DE CIÊNCIAS JURÍDICAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO

Disciplina: Fundamentos do Direito Processual


Civil
Professores: Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio
Cruz Arenhart e Miguel Gualano de Godoy
Mestrando: Pedro Ivo Lins Moreira

Considerações sobre o caso Uzuegbunam et al. v. Preczewski et al.

I. Introdução

Recentemente, a Suprema Corte dos Estados Unidos examinou um interessante


caso envolvendo alunos do Gergia Gwinnet College que foram proibidos de expressar
sua religião pelos funcionários no campus do College.

Os alunos foram impedidos sob o argumento de que a conduta contrastava com a


política da instituição, que na época proibia certo tipos de manifestações que pudessem
perturbar a paz e o conforto das pessoas.

Diante desta proibição, os alunos Uzuegbunam e Bradford decidiram processar os


funcionários da faculdade, alegando que eles violaram a Primeira Emenda da
Constituição. Na ocasião, postularam a tutela de seu direito e os chamados “danos
nominais”.

Diante dessas circunstâncias, o próprio Georgia Gwinnet College resolveu fazer


uma mudança em sua política interna, de modo que os seus funcionários abandonaram
as medidas de controle e restrição acusadas de violar o direito à liberdade de expressão
religiosa.

Considerada atendida a tutela principal, passou-se a discutir se o caso deveria ter


seguimento para o exame dos “danos nominais”. Os julgadores do Décimo Primeiro
Circuito entenderam que o caso não deveria prosseguir porque a questão principal já
havia sido devidamente resolvida, de modo que a remanescente questão sobre o dano
nominal não seria capaz de legitimar o prosseguimento do feito.
Por esta razão pela qual os alunos recorreram à Suprema Corte Norte-Americana,
no intuito de verem reconhecido o direito de prosseguir com o feito para que fosse
examinado o mérito acerca dos “danos nominais”.

No exame do certiorari, a maioria dos componentes entenderam, na linha da


compreensão defendida pelo Justice Clearence Thomas, que o caso deveria prosseguir
porque os danos nominais servem para reparar lesões passadas. Porém, o destaque do
julgamento foi o voto dissidente do Chief Justice John Roberts questionando a posição
de seus pares, especialmente diante de sua compreensão sobre o papel do Poder
Judiciário.

II. A crítica da expansão radical da atuação do Poder Judiciário

O cerne do debate envolve duas concepções sobre o papel do Poder Judiciário: i)


diante de um caso constitucionalmente relevante, os juízes podem (ou devem) ignorar
questões processuais e materiais que envolvem a situação concreta no âmbito da esfera
individual dos envolvidos para debater e deliberar o mérito da questão constitucional
diante de sua relevância; ou ii) resolvida a controvérsia concreta por uma via alternativa,
deveriam os juízes evitar adentrar no debate constitucional, notadamente quando a
hipótese envolver temas sensíveis que ainda não se encontram amadurecidos no seio
social.

No caso Uzuegbunam, parece ter ficado claro que os danos nominais perseguidos
pelos ex-alunos possuíam natureza meramente simbólica. Na medida em que tal
pretensão se afasta da finalidade da efetiva reparação, ela poderia ser considerada um
artifício para forçar a obtenção de uma declaração do Poder Judiciário sobre a questão
constitucional.

Apesar de sua visão minoritária, o Chief Justice John Roberts lembrou


importantes ensinamentos do federalista Alexander Hamilton. O ponto alto de sua
argumentação é no sentido de que a tomada de posição constitucional pela Suprema
Corte pode vincular ou inviabilizar a discussão de questões sensíveis no âmbito político
pelo Poder Executivo e Poder Legislativo1.
1
“Ao solicitar a ratificação da Constituição, Alexander Hamilton escreveu a famosa frase ‘o judiciário,
pela natureza de suas funções, será sempre o menos perigoso dos poderes’. O Federalista n. 78, pág. 465
(C. Rossiter ed. 1961). Era assim, explicou Hamilton, porque o Judiciário ‘terá menor a menor capacidade
incomodar ou prejudicar os direitos políticos da Constituição’. Considerando que ‘[o] executivo não
apenas distribui as honras, mas também tem a espada da comunidade’, e ‘[o] legislativo não apenas
Segundo o Chief Justice, só deveria ocorrer um julgamento dessa natureza quando
estivesse em jogo questões “reais, sérias e vitais” para os indivíduos e não um mero
debate abstrato sobre direitos fundamentais. Na sua visão, a Suprema Corte não deve
atuar quando, na prática, o resultado do julgamento não puder resultar em efetiva
reparação de direitos em favor da parte vencedora. Do contrário, ela estaria “decidindo
casos na atmosfera rarefeita de uma sociedade em debate” o que a transformaria em
uma “fonte mais barata de aconselhamento jurídico”.

Outro ponto sensível tratado pelo Chief Justice Roberts, diz respeito à
possibilidade do réu afastar a atuação do Poder Judiciário simplesmente reconhecendo e
se dispondo a reparar todos os direitos pleiteados contra si. Em outros termos, o Chief
Justice Roberts reconhece que a reparação integral poderia ser considerado um
mecanismo legítimo para suprimir o enfrentamento da questão constitucional2.

III. O judicial review como um recurso escasso

Em recente justificativa escrita sobre a sua participação no mestrado, o discente


Alberto Luiz Hanemann Bastos fez interessantes considerações sobre a chamada
avoidance doctrine ou last resort doctrine. Ele cita a lição de Lisa Kloppenberg para
explicar que, de acordo com essa concepção teórica, os Tribunais, “em respeito ao
princípio da separação dos poderes da República, devem evitar prolatar decisões cujo
teor se debruce sobre temas polêmicos da seara constitucional”.

Nessa linha, o Chief Justice Roberts parece levar bastante à sério a compreensão
de que o Poder Judiciário não deve rivalizar com os demais poderes, pois compreende
que essa atuação pode influenciar no debate político ou no poder de conformação dos
demais Poderes, acirrando tensões democráticas envolvendo desacordo moral razoável.

Sendo assim, a elevação do rigor dos filtros processuais e jurídicos podem servir
não só para equacionar o volume de trabalho, mas principalmente como válvula de
escape para que a Suprema Corte não adentre, de forma inoportuna, no mérito de

comanda o orçamento, mas prescreve as regras pelas quais os deveres e direitos de cada cidadão devem
ser regulados’, pode-se dizer que o Judiciário ‘não tem nem FORÇA, nem VONTADE, mas apenas
julgamento’. Ainda assim, esse poder de julgamento pode vincular o Executivo e o Legislativo - e os
Estados. Será modesto apenas se ficar confinado à sua própria esfera”. (Tradução livre)
2
Essa questão foi abordada em obter dictum em um certiorari, cujo objeto era um pouco diverso.
Discutiu-se a possibilidade do prosseguimento do feito diante de uma proposta de acordo rejeitada.
Prevaleceu a posição da Justice Ginsburg, no sentido de que um acordo rejeitado não produz efeitos. vide
Campbell-Ewald Co. v. Gomez, 577 US 153, 166 (2016).
questões constitucionais, cabendo reservar sua agenda apenas para situações
extremamente relevantes envolvendo reais violações de direito que precisam ser
remediadas.

Fora dessas circunstâncias justificadoras de uma atuação firme por parte do Poder
Judiciário, a Corte deveria homenagear as vias para desviar do enfrentamento do mérito,
evitando-se com isso uma atuação meramente consultiva que busca fazer prevalecer a
sua leitura da constituição sobre as demais que poderiam ser feitas pelos outros Poderes
ou pela própria sociedade.

Portanto, mesmo que o caso desperte interesse constitucional e envolva uma


situação exemplar, inclusive para fins de transcendência, ainda assim deveria ser
preservada a autocontenção da Corte nos casos em que a controvérsia individual possa
ser legitimamente contida pelos filtros processuais ou tenha sido substancialmente
solucionada.

Segundo essa perspectiva, o judicial review funcionaria como uma espécie de


recurso escasso nas mãos do Poder Judiciário que, para evitar desgaste ou até mesmo o
seu exaurimento, deveria selecionar muito bem os casos para os quais investiria esse seu
precioso ativo.

IV. O caso Uzuegbunam à luz da jurisdição constitucional brasileira e do


Anteprojeto do CPConst

A ideia de fornecer novos caminhos para evitar o enfrentamento do mérito


constitucional parece estar presente no Anteprojeto do Código de Processo
Constitucional (CPConst).

Consta no item 15 que o Supremo Tribunal Federal examinará a conveniência e a


oportunidade da admissão do recurso extraordinário. Já o item 16 estabelece que o
julgamento da preliminar da repercussão geral ocorrerá após o relator reconhecer não
ser hipótese de inadmissibilidade do recurso extraordinário por qualquer outra razão.

Na linha do que propõe o Chief Justice Roberts, essas disposições poderiam ser
utilizadas como válvula de escape para que o Poder Judiciário resguarde sua atuação
apenas para os casos em que sua atuação se revelar estritamente necessária.
Transportando o caso de Uzuegbunam para a realidade brasileira, seria possível
sustentar que o Supremo Tribunal Federal poderia negar a admissão do recurso por
entender que a solução individual do caso tornava o debate inoportuno ou inconveniente
ou poderia compreender que já não havia mais interesse-utilidade na medida.

Por outro lado, o CPConst também abre margem para o conhecimento do recurso
do caso Uzuegbunam (vide parte final do item 16). Vale dizer: quando não houver vício
formal grave e a relevância e a transcendência recomendem a análise do caso, o
Supremo Tribunal Federal poderá ultrapassar a barreira dos filtros processuais e partir
para o enfrentamento da questão constitucional.

Nessas circunstâncias, não parece que o texto do Anteprojeto do CPCConst


consiga oferecer resposta clara sobre a admissão ou não de recursos por vícios
processuais. Em última análise, o fator preponderante para fins de conhecimento ou não
do recurso continuará sendo o voluntarismo e a discricionariedade judicial.

Talvez o maior mérito do Anteprojeto do CPConst seja tornar mais claros e


explícitos os filtros que estão sendo utilizados pela jurisdição constitucional brasileira, a
exemplo da discricionariedade (até então implícita), que há anos vem sendo apontada
pela comunidade jurídica. A inserção desta realidade no texto da lei servirá para
oferecer: i) maior legitimidade aos Ministros – que não mais precisarão ocultar a veia
política (ou discricionária) contidas em suas manifestações; ii) parâmetros mais
concretos de controle e fiscalização por parte da população.

Em tese, o judicial review deveria desencadear reações contrárias dos outros


poderes toda vez que seu uso desequilibrado for capaz de rivalizar com o espaço de
liberdade democrática. Contudo, quando essa reação esperada não ocorre, o que temos é
uma janela para que o próprio Poder Judiciário faça uma releitura do seu papel no
Estado de Direito.

A inércia e o silêncio sistemáticos dos demais poderes sobre a “judicialização da


vida” acaba sendo compreendido como uma autorização velada para o agigantamento
da atuação dos Tribunais e para o deslocamento da resolução de temas políticos
sensíveis para a jurisdição constitucional.

Por conta disso, casos como Uzuegbunam et al. v. Preczewski são importantes
para ilustrar o problema de situações constitucionais sensíveis terem seu debate
influenciado ou prejudicado pelo veredito de um punhado de juízes. Sem qualquer
intenção de apequenas a função do Poder Judiciário, não há dúvidas de que Parlamento
constitui o ambiente democrático adequado para resolver esse tipo de disputa.

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