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DURKHEIM: O ESTUDO DO SUICÍDIO

Três ideias, todas fundamentais para a perspectiva sociológica, foram apresentadas neste
capítulo:
1. Os seres humanos são sociais.
2. O homem existe dentro de padrões sociais e é influenciado por eles.
3. Os seres humanos são socializados.
Segundo Alan Wolfe (1993), a sociologia é uma perspectiva que contrasta nitidamente com
tudo o que a precedeu. Wolfe considera-a uma descoberta da "sociedade" e do "eu". Antes
da sociologia, a ciência política e a economia pareciam ser suficientes: os governantes
controlavam as pessoas, e as leis moldavam as decisões económicas. Se acrescentarmos a
psicologia, o estudo do ser humano individualmente considerado, qual a necessidade da
sociologia? A sociologia estuda a sociedade, não o Estado; vê os homens como seres
sociais, e não simplesmente como seres políticos; considera que a sociedade é composta e
mantida coesa por padrões sociais, e não simplesmente pêlos comandos de seus líderes
políticos. Enfoca os padrões sociais, e não simplesmente os económicos, e considera dignas
de estudo todas as relações humanas, e não apenas as económicas. E Wolfe afirma: é no
"eu" que a sociologia se concentra, e não simplesmente no indivíduo, pois com o eu o
indivíduo liga-se à sociedade em todos os momentos e é socializado por ela no que faz. A
sociedade cria o indivíduo, e este é sempre influenciado pela socialização. A ciência
política, a economia e a psicologia são todas importantes. Mas para Wolfe — assim como
para a maioria dos sociólogos — também é importante a sociologia, a ciência social que se
desenvolveu por último, aquela que enfoca a sociedade — o homem como um ser social, o
homem como alguém sujeito a um sem-número de padrões sociais, e o homem formado e
reformado por meio da socialização.
Provavelmente mais do que qualquer outra, a obra de Emile Durkheim representa a
perspectiva da sociologia. Durkheim dedicou sua vida intelectual a conquistar um lugar
para a sociologia no mundo académico. Antes dele, a sociologia lutava arduamente pelo
reconhecimento num mundo que reverenciava a psicologia e a biologia. Depois dele,
reconheceu-se amplamente que os seres humanos são sociais, afe-tados por padrões sociais
e socializados. Também foi amplamente reconhecido que a sociologia é uma ciência. Parte
de seu êxito pode ser encontrada em sua obra mais célebre — O suicídio: um estudo
sociológico. Examinemos brevemente essa obra para perceber como Durkheim apresentou
ao mundo as linhas gerais da ciência da sociedade.
A teoria de Durkheim
Durkheim interessou-se pelo estudo das taxas de suicídios por julgar que um estudo assim
ajudaria a alçar a sociologia à categoria de disciplina científica. Ele queria mostrar a
importância dos "fatos sociais", expressão que empregava para designar os padrões sociais.
O suicídio, afirmou Durkheim, sempre será uma escolha pessoal, e há todo tipo de razões
psicológicas que levarão um ator e não outro a decidir suicidar-se. Contudo, até mesmo
nessa escolha extremamente individual atuam fatos sociais — a taxa (alta ou baixa) de
suicídios numa sociedade influencia a probabilidade de suicídio de um indivíduo. Essa taxa
permanece estável ao longo do tempo; por exemplo, podemos constatar que numa
sociedade ocorrem seis suicídios por ano para cada 100 mil pessoas, enquanto em outra, 12
para cada 100 mil. Essa diferença se verificará no decorrer de um longo período, e por isso
podemos dizer que uma sociedade apresenta uma taxa de suicídios duas vezes maior do que
a da outra.
Contudo, o que causa taxas elevadas ou reduzidas de suicídio? Na opinião de Durkheim, a
causa era outro fato social, que ele denominava "solidariedade social", o grau em que uma
sociedade é integrada, unida, mantida coesa como um todo sólido. O oposto da
solidariedade social elevada é um alto grau de individualismo: se as pessoas são altamente
individualistas, a solidariedade social é baixa. É isso o que a modernidade traz, pensava
Durkheim.
A baixa solidariedade social (um fato social) levará a uma taxa de suicídios elevada. O
individualismo acarretará uma dependência maior com relação ao eu, menos recurso a um
alicerce nos padrões do grupo em busca de orientação e sentido. O suicídio torna-se então
uma opção mais realista para muitos.
As evidências de Durkheim
Durkheim era um cientista. Queria testar sua ideia de maneira meticulosa e sistemática.
Ele teve acesso a dados sobre suicídios em registros governamentais de vários países e
províncias europeias. Primeiro, dividiu esses países e províncias em católicos e
protestantes. Acreditava que, como o protestantismo ressaltava a relação individual com
Deus e o catolicismo salientava a Igreja como uma comunidade integrada reverenciando em
conjunto, os países e províncias protestantes apresentariam taxas de suicídios mais
elevadas. Foi exatamente isso que ele constatou. A probabilidade de suicídio era
significativamente maior nas comunidades protestantes do que nas católicas. A teoria de
Durkheim foi fortalecida, porém não provada: não há nessa constatação evidências
suficientes para concluir que a solidariedade social era a verdadeira influência. Afinal,
talvez os católicos tenham taxas de suicídios mais baixas do que os protestantes por
motivos outros que não a solidariedade.
Durkheim continuou a testar sua teoria. Afirmou que, se ela fosse correta, as pequenas
comunidades (possuidoras de maior solidariedade social) apresentariam taxas de suicídios
mais baixas do que as cidades grandes. Examinando seus dados, ele constatou que isso
também era verdade. E foi além: por conseguinte, raciocinou, as pessoas casadas devem ser
mais integradas na comunidade do que as solteiras, as mulheres mais do que os homens,
pessoas com filhos mais do que as sem filhos, pessoas sem instrução universitária mais do
que as com formação superior (porque a faculdade tende a romper laços com grupos e a
incentivar o individualismo). Casamento, família e ausência de educação superior implicam
maior probabilidade de fazer parte de um grupo, de uma tradição, de uma sociedade. Ser
solteiro, sem filhos e ter educação superior desincentivam a inserção em um grupo, tradição
ou sociedade. Em cada urn desses casos, Durkheim constatou que sua teoria foi
comprovada: as pessoas solteiras, as do sexo masculino, as sem filhos e as com instrução
superior apresentaram taxas de suicídios mais altas.
Durkheim prosseguiu. E quanto à comunidade judaica? Terá ela uma taxa de suicídios mais
alta ou mais baixa? Por um lado, os judeus na Europa eram as pessoas mais instruídas; por
outro, sua comunidade caracterizava-se por uma solidariedade social muito elevada.
Durkheim descobriu o que já esperava: a comunidade judaica apresentava uma taxa de
suicídios mais baixa do que a protestante e a católica. Também é fácil perceber por que a
instrução não fazia grande diferença: a instrução ocorria dentro da comunidade, e sua
finalidade era ensinar as tradições e ideias da comunidade. Em vez de a educação superior
incentivar o individualismo, ela incentivava de fato a solidariedade social.
Qual o significado disso? Durkheim demonstra dois conceitos importantes
simultaneamente. Primeiro, que a existência de fatos sociais (forças sociais, padrões
sociais) influencia a ação individual. Ao que parece, não tomamos nossas decisões
unicamente com base em fatores da personalidade individual. Em vez disso, nossas
decisões são tomadas em um contexto social mais amplo, influenciadas por forças sociais
das quais nem ao menos temos consciência. Nossa sociedade, se tiver baixa solidariedade
social, influenciará um número maior dentre nós a optar pelo suicídio.
Em segundo lugar, para sua época, o estudo de Durkheim também é ciência de boa
qualidade. Mostra como um cientista pensa e depois testa seu raciocínio de maneira criativa
e sistemática. Além disso, o estudo é publicado em vim livro para que todos nós possamos
ver. Seus dados podem ser analisados e/ou criticados por terceiros. Não precisamos nos fiar
na palavra de Durkheim para aceitar suas conclusões ou evidências.
Ampliando sua teoria
Durkheim mostrou uma outra característica do bom cientista. Ele ampliou sua teoria,
demonstrando que a solidariedade social tem uma relação muito mais complexa com a taxa
de suicídios. Onde há pouquíssima solidariedade social, ocorre uma taxa elevada de
suicídios egoístas. Porém, Durkheim acreditava ainda que níveis demasiadamente elevados
de solidariedade social também levavam a taxas cie suicídios altas, o que ele denominava
suicídios altruístas.
O suicídio altruísta, refletiu Durkheim, resulta do fato de que o indivíduo acaba por sentir
seu valor pessoal apenas por intermédio do grupo, adquirindo um sentido pessoal apenas a
partir de algo maior do que o eu. O ego torna-se nada; abrir mão da própria vida pelo grupo
passa a ser louvável. O fracasso pessoal significa que a pessoa falhou com o grupo, o que
resulta em desonra e vergonha, levando a uma grande probabilidade de suicídio. Durkheim
testou novamente sua teoria. O Exército apresenta uma solidariedade social muito elevada
— e também uma taxa de suicídios alta. No Exército, oficiais de carreira, voluntários e
veteranos (os mais bem integrados) apresentavam taxas de suicídios mais elevadas do que
os demais. Se Durkheim fosse vivo na época da Segunda Guerra Mundial, teria apontado
como exemplos de suicídio altruísta os pilotos japoneses kamikazes e os oficiais japoneses
que perderam batalhas importantes. Provavelmente o melhor exemplo da atualidade é o
suicídio em massa em Jonestown, na Guiana, onde, em novembro de 1978, mais de 900
pessoas, que haviam deixado os Estados Unidos para seguir um líder carismático e viviam
juntas em uma comunidade, suicidaram-se a mando desse líder.
A teoria de Durkheim é interessante porque nos mostra que a relação entre solidariedade
social e taxas de suicídios é curvilinear, isto é, as taxas são mais elevadas nos dois extremos
da escala: em sociedades onde existem taxas muito elevadas ou muito baixas de
solidariedade social.
Durkheim foi além. Tentou isolar outro fato social: o grau de mudança na sociedade.
Também isso, afirmou, afeta a taxa de suicídios. As sociedades que passam por mudanças
rápidas perturbam os mundos sociais do indivíduo, o qual descobrirá que os grupos dos
quais faz parte já não oferecem orientações apropriadas para a ação. Os velhos padrões não
funcionam mais; o indivíduo terá de tomar cada vez mais decisões por conta própria, com
cada vez menos alicerce na vida social. Aqui Durkheim não está descrevendo a
solidariedade social, e sim mostrando se a sociedade é ou não um guia adequado para o
presente. Em épocas de rápida mudança, o indivíduo chega a um estado de anomia, termo
que Durkheim empregava para designar ausência de regras e de guias, um "estado de
inexistência de normas". Ele apropriadamente denominou suicídios anômicos os que
resultavam desse estado.
Durkheim mais uma vez testou sua ideia. Se sua teoria estivesse correta, então em períodos
de revolução a taxa de suicídios de uma sociedade aumentaria. Ele descobriu que isso de
fato ocorria. Também encontrou taxas de suicídios mais altas durante épocas de depressão
económica e em períodos de rápida prosperidade. Aplicou sua ideia a categorias de pessoas
cujas vidas mudam subitamente: aos que se tornam repentinamente pobres ou ricos, aos que
chegam muito rápido à fama ou caem depressa no anonimato, aos que são libertados de
campos de prisioneiros de guerra ou aos que inesperadamente perdem um amigo ou um
membro da família.
Para completar sua teoria, Durkheim discorreu sobre um quarto tipo de suicídio provocado
por um controle demasiado exercido pelas normas da sociedade. O exemplo extremo é uma
sociedade escravocrata na qual, para o escravo, a vida caracteriza-se por pouquíssima
mudança, pouquíssima esperança de uma vida melhor, pois a sociedade tudo controla e a
mudança é mínima. Esse tipo de suicídio ele denominou fatalista. Durkheim não testou essa
ideia, apenas mencionou alguns exemplos.
A Figura 2.1 mostra os quatro extremos de mudança social e solidariedade social na teoria
de Durkheim. Uma sociedade sem nenhum desses extremos terá a taxa de suicídios mais
baixa. Lembre-se: o que Durkheim está tentando fazer é isolar forças sociais, ou o que ele
chama de "fatos sociais", e mostrar que estes influem significativamente em nossas vidas.
Todos vivemos em um contexto social que inclui uma taxa de mudança social, um nível de
solidariedade social e uma taxa de suicídios. O que fazemos em nossa vida pessoal está
ligado, de muitos modos complexos, a esse contexto social.

ANOMICO(M udança m uito rápida na sociedade)

Egoísta Nível (
de Altruísta: nível de solidariedade muito forte
solidariedade
m uito baixo

FATALISTA (Quase nenhum a mudança)

FIGURA 2.1As condições da sociedade em que o suicídio é mais


prevalecente.

A influência de Durkheim
O estudo de Durkheim sobre o suicídio inspirou muitos trabalhos proveitosos. O conceito
de anomia foi aplicado a várias teorias e incentivou pesquisas na área do desvio.
Influenciou também uma importante tradição da pesquisa sociológica: a que usa análises
estatísticas pormenorizadas para testar ideias. Seu estudo das taxas de suicídios abriu
caminho para aqueles que se interessam pelas taxas de natalidade, mortalidade, divórcios
etc. Durkheim demonstra que a ciência pode ser aplicada para se compreender a sociedade,
e mostra a realidade e a importância das forças sociais.
Muitos sociólogos aplicaram a sua própria sociedade e época a teoria de Durkheim. Ela
ainda é válida. Podemos testá-la com dados de hoje. Será que as categorias de pessoas para
quem Durkheim previu as taxas de suicídios mais elevadas ainda apresentam as taxas mais
altas? Os solteiros? Os do sexo masculino? Os recém-divorciados? Os que enviuvaram
recentemente? Os protestantes? Os moradores das metrópoles? Com base no que tem
ocorrido nos últimos 30 anos, para que categorias de pessoas poderíamos prever taxas de
suicídios em rápida elevação? Os judeus (à medida que vão sendo menos integrados a uma
comunidade judaica)? As mulheres (à medida que se tornam mais independentes e menos
integradas à família e à comunidade)?
Seu estudo também inspirou críticas, levando alguns sociólogos a seguir por rumos que ele
não tomou. Jack Douglas, por exemplo, criticou Durkheim por não levar em conta o modo
como as pessoas percebem o suicídio, dizendo que a maneira como os grupos de pessoas
vêem o suicídio — como o definem — é mais importante do que os fatos sociais abstratos
da solidariedade social e mudança social que Durkheim isolou. Outros não apreciam o uso
acentuado de estatística, e outros ainda criticam o viés dos dados governamentais.
Ainda assim, não dispomos de teorias sobre taxas de suicídios melhores que a de
Durkheim. Embora seus dados possam não ser tão adequados quanto gostaríamos que
fossem e que parte de suas pesquisas e de seu pensamento talvez não se amolde aos padrões
atuais, O Suicídio continua a ser uma contribuição duradoura para o campo da sociologia. E
representa muito bem três das ideias contidas nos Capítulos l e 2: os seres humanos são
sociais, vivemos dentro de padrões sociais, e a sociologia é uma disciplina científica.
O Suicídio não ilustra muito bem a outra ideia ressaltada no começo deste capítulo — a de
que os seres humanos são socializados. Contudo, outras obras de Durkheim o fazem, em
especial As formas elementares da vida religiosa e alguns de seus ensaios sobre educação
moral. Durkheim acreditava que a sociedade socializa seus membros para aceitarem uma
moralidade comum, que ele denominava "consciência coleti-va". A aceitação desta é um
dos pré-requisitos de qualquer sociedade duradoura. As regras da sociedade têm de tornar-
se as nossas; a existência da sociedade depende de crermos que suas regras são corretas.

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Estes dois primeiros capítulos foram uma introdução à disciplina chamada sociologia.
Apresentamos várias ideias, relacionadas a seguir.
1. A sociologia é uma disciplina académica que começou no século XIX. É o estudo do ser
humano como um ser social. É uma disciplina científica, e desde o princípio caracterizou-se
pela discordância e debate. Essas ideias foram salientadas no Capítulo 1.
2. A sociologia começa com a ideia de que os seres humanos são sociais de modos muito
fundamentais. Mencionamos seis cleles: depender dos outros para sobreviver, aprender a
sobreviver, viver em organizações, desenvolver qualidades humanas, desenvolver nossas
qualidades individuais e ser atores sociais.
3- A sociologia ressalta que os homens existem dentro de padrões sociais e que esses
padrões influenciam grandemente tudo o que fazemos.
4. A sociologia é também o estudo da socialização, o processo pelo qual o indivíduo
aprende os costumes da sociedade. Há muitos exemplos da importância da socialização
para o que todos nós somos.
5. O estudo de Durkheim intitulado O Suicídio exemplifica muito bem boa parte do que é a
sociologia. Salienta o fato de que existimos em sociedade, que a sociologia pode ser uma
ciência e que os padrões sociais realmente são importantes para nós. Os capítulos seguintes,
baseados nestes dois primeiros, mostrarão os
muitos modos como indivíduo e sociedade estão intimamente ligados.

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