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1.Nota introdutória
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A competência jurisdicional é um dos pontos sensíveis na Dogmática do processo civil
coletivo. O desenvolvimento do princípio da competência adequada para o processo
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Princípio da competência adequada, conflitos coletivos
multipolares e competências materiais distintas
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coletivo é uma boa novidade da última década .
Há inúmeras questões práticas que podem ser mais bem resolvidas a partir das
diretrizes decorrentes da concretização desse princípio.
Este pequeno artigo examina um problema comum, grave, elegante, mas curiosamente
pouco percebido e estudado, sobre a competência para as ações coletivas: de quem é a
competência quando a ação coletiva veicular conflito envolvendo mais de uma
coletividade e a competência absoluta variar conforme a discussão gire em torno de
direitos deste ou daquele grupo?
O processo coletivo, portanto, é aquele em que se postula um direito coletivo lato sensu
(situação jurídica coletiva ativa)ou que se afirme a existência de uma situação jurídica
coletiva passiva (deveres individuais homogêneos, p. ex.) de titularidade de um grupo
de pessoas.
Observe-se, então, que o núcleo do conceito de processo coletivo está em seu objeto
litigioso e na tutela do grupo: coletivo é o processo que tem por objeto litigioso uma
situação jurídica coletiva ativa ou passiva de titularidade de um grupo de pessoas.
Grupo. Grupo é o sujeito de direito que é titular da situação jurídica coletiva afirmada
em um processo coletivo. É, assim, sujeito de um dos polos da relação jurídica afirmada
(litigiosa) no processo coletivo. Categoria, classe, comunidade e coletividade são termos
sinônimos, embora se prefira o termo grupo.
aqueles que estão em juízo discutindo a tese jurídica objeto do julgamento de casos
repetitivos, que se subdividirá em tantos grupos quantas sejam as soluções defendidas
para essa tese jurídica, e pelos grupos tutelados nas ações coletivas ajuizadas.
Nas ações coletivas, o membro do grupo pode ser beneficiado com a decisão favorável
ao grupo, independentemente de qualquer manifestação sua para aderir ao grupo. No
julgamento de casos repetitivos, outra espécie de processo coletivo, o sujeito de direito
que deseje ser membro do grupo – na hipótese de não haver ação coletiva pendente –
precisa manifestar sua intenção em fazer parte do grupo, ajuizando sua ação individual.
Em ambos os casos, ações coletivas e casos repetitivos, o membro do grupo, no direito
brasileiro, tem a possibilidade de se excluir do grupo.
Condutor do processo coletivo. A parte do processo coletivo costuma ser, como regra,
um terceiro, legitimado extraordinário, que nem é o grupo nem é membro do grupo. O
Ministério Público, ao propor uma ação coletiva, por exemplo, atua como legitimado
extraordinário, pois pretende defender em juízo situação jurídica que não titulariza; o
Ministério Público não é, no caso, o grupo cujo direito se busca tutelar, nem é membro
desse grupo. Essa é a regra do processo coletivo brasileiro.
Como a ação coletiva atinge direitos que pertencem a coletividades, muitas delas
compostas por pessoas que não possuem qualquer vínculo entre si, além de poderem
estar espalhadas por vasto território, até mesmo pela integridade do território nacional,
é preciso ter muito cuidado na identificação das regras de competência relacionadas a
essas ações, para que se identifique o juízo concretamente competente, porque
adequado – e não simplesmente competente de acordo com a regra abstrata prevista
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em lei.
A análise das regras existentes no Direito brasileiro tem de passar pelo filtro do princípio
da competência adequada (corolário dos princípios do devido processo legal e da
adequação). Não é possível aplicar as regras legais de competência sem que se faça o
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A natureza da tutela jurisdicional coletiva exige uma interpretação mais flexível das
regras de competência. A competência a ser fixada, nesses casos, pressupõe uma
análise da legislação a partir de diretrizes que informam a sua adequação; não basta o
exame literal da lei.
Nesse sentido, Antonio do Passo Cabral defende que “se o sistema de competências
pode ser orientado por princípios, afigura-se correto concluir que o juízo sobre a
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competência não deve ser puramente definido num exame de legalidade estrita” . O
autor segue explicando que,
“se a tutela jurisdicional deve ser prestada de maneira ótima, por meio de técnicas
processuais apropriadas para cada caso, as partes têm direito a que seu litígio, uma vez
judicializado, seja decidido pelo juízo mais adequado dentre aqueles com competência
para tanto. E essa análise deve ser extraída de circunstâncias concretas que devem ser
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sopesadas pelo juiz.”
A definição da “melhor jurisdição”, por sua vez, apesar de elástica, deve ser controlada
caso a caso, a partir da concretização dos direitos fundamentais em disputa. O princípio
da adequação da competência, como todo princípio, permite certa discricionariedade,
que não é nova em nosso sistema jurídico, já bastante aquinhoado com normas desse
tipo.
“desse modo, presta-se auxílio à tarefa judicial de compatibilização do juiz natural com
outras matizes principiológicas que orbitam o devido processo legal, cabendo ao sujeito
imparcial analisar a dimensão de peso, no sentido da qualidade das razões e dos fins a
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que se referem as atinentes diretrizes, para lhes atribuir importância concreta.”
O órgão jurisdicional competente deve ser aquele que, no exame das capacidades
institucionais (que envolvem variáveis estruturais e funcionais dos diferentes órgãos,
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aferíveis por indicadores objetivos) , seja o mais adequado para julgar o caso, a fim de
que seja alcançado o melhor resultado jurisdicional – o que resume a perspectiva
qualitativa da eficiência.
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A teoria das capacidades institucionais parte da premissa de que
Dessa forma, comparam-se os limites e habilidades de cada uma delas para que seja
determinada qual das instituições reúne as melhores condições para resolver o problema
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em discussão .
Mas não é só. O caráter coletivo do julgamento de casos repetitivos – ao que se pode
somar o intuito de formação de um precedente com a fixação de tese a ser aplicada a
inúmeros casos, que faz com que o julgamento de casos repetitivos sirva à proteção da
segurança jurídica e da igualdade – implica a prevalência de um interesse pertencente à
sociedade, que deve ser levado em consideração para o exame da eficiência qualitativa
e, assim, da competência adequada.
Justamente,
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das partes, ou aos reclamos da justiça em geral.”
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A doutrina do forum non conveniens também é aplicável a processos coletivos .
Examinemos, agora, o seguinte caso, que é real. A análise deste caso pode ajudar a
induzir diretrizes para a solução de conflitos coletivos semelhantes.
Defensoria Pública ajuíza ação civil pública contra a Empresa Brasileira de Correios e
Telégrafos, pleiteando a retomada da entrega do serviço postal em certas áreas urbanas
consideradas perigosas – a entrega postal havia sido suspensa como forma de proteção
da segurança dos carteiros (trabalhadores). A ação foi proposta na Justiça Federal (art.
109, I, CF/1988 (LGL\1988\3)). A ação coletiva, nesse caso, pretendia ver tutelado
direito de um grupo de moradores, considerados consumidores lesados pelo deficiente
serviço prestado pela ECT.
Embora isso não tenha sido posto nem discutido e o pedido se direcionasse à ECT, a
demanda atinge, também, situação jurídica da coletividade dos carteiros. Os carteiros
são celetistas; a segurança do trabalho é um dos mais evidentes direitos coletivos
trabalhistas deste grupo. Imagine, então, que o sindicato dos carteiros tivesse ajuizado
uma ação coletiva, na Justiça do Trabalho, exatamente para ver reconhecido e efetivado
o direito à segurança, concretizado na suspensão de entrega de correspondência nas
mesmas áreas tidas como perigosas.
Note que, no fim das contas, essas ações coletivas, propostas por sujeitos distintos, em
juízos distintos, para a tutela de direitos distintos, levariam ao Judiciário, rigorosamente,
o mesmo conflito coletivo: o conflito envolvendo o grupo de moradores e o grupo dos
carteiros; o primeiro, titular de direito (afirmado) consumerista em face da ECT,
competência da Justiça Federal; o segundo, titular de direito (afirmado) trabalhista em
face da ECT, competência da Justiça Federal. Observe, também, que o juízo federal terá
de, necessariamente, examinar o problema trabalhista, e o juízo trabalhista terá de,
necessariamente, examinar o problema consumerista. Atente, finalmente, que há uma
duplicidade evidente aqui: ao tutelar o direito dos moradores/consumidores, atinge-se o
direito dos carteiros e vice-versa.
A solução desse problema passa, então, pela adoção de algumas diretrizes: a) não se
deve e nem se pode admitir a existência de decisões contraditórias; b) é preciso garantir
a participação processual paritária dos interesses dos grupos em conflito, pouco importa
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onde as causas tramitem; c) o STJ já decidiu que, havendo continência entre ações
coletivas que tramitam na Justiça Estadual e na Justiça Federal, é possível haver reunião
dos processos na Justiça Federal (n. 489 da súmula do STJ; reunião de processos com
mudança de competência material, como se vê); d) competência mais especializada
pode prevalecer em relação a competência comum; e) grupo mais homogêneo (a
perspectiva dos membros do grupo diante do conflito tende a ser a mesma ou ao menos
muito parecida) e delimitado deve ser levado em consideração para a fixação da
competência, relativizando a orientação anterior; f) seria necessária a observância da
conveniência da adoção de práticas de cooperação judiciária para mais bem decidir essa
espécie de conflito.
Aplicadas essas diretrizes, o caso deveria ser resolvido pela Justiça do Trabalho, que
deveria julgar “ambas” (na verdade, como se disse, é a mesma ação coletiva, ajuizada
por entes diversos) as demandas coletivas: o grupo dos carteiros é mais bem delimitado
e homogêneo e a Justiça do Trabalho é mais especializada.
Não se pode ignorar que casos assim tendem a ensejar processos estruturais – no fim
das contas, o que se pretende é a reestruturação do modo como o serviço de correio
deve ser prestado, considerando a situação de ilicitude consistente na falta do serviço e
na exigência da prestação de serviço em áreas perigosas. Em litígios estruturais, o
estímulo à autocomposição ganha relevância ainda maior, seja pela concertação entre os
juízos para prática de atos de cooperação judiciária, nos termos do § 2º do art. 69 do
CPC (LGL\2015\1656), seja pelo estímulo a que as próprias partes cheguem à solução
consensual dos conflitos nos termos dos §§ 2º e 3º do art. 3º do CPC (LGL\2015\1656).
Referências bibliográficas
BRAGA, Paula Sarno. Competência adequada. Revista de Processo, São Paulo, v. 219, p.
13-41, maio 2013.
DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de direito processual civil. 3. ed.
Salvador: Editora JusPodivm, 2008. v. 4.
FRIEDENTHAL, Jack H.; MILLER, Arthur R.; SEXTON, John E.; HERSHKOFF, Helen. Civil
procedure – Cases and materials. 9. ed. St. Paul: Thomson/West, 2005.
JATAHY, Vera Maria Barrera. Do conflito de jurisdições. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
2 DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de direito processual civil. 3. ed.
Salvador: Editora JusPodivm, 2008. v. 4. p.141.
3 Nesse sentido, Paula Sarno Braga explica: “Toda essa exigência de competências
pré-definidas por normas de acordo com a Constituição - não passíveis de disposição,
transferência ou moldagem de forma diversa -, nada mais é do que uma manifestação
do devido processo legal, que impõe que o poder seja exercido por procedimento
regulado por lei, e conduzido por uma autoridade natural - i. e., previamente
individualizada, constituída, e cujos poderes de ação e atuação sejam delimitados
objetiva e abstratamente em lei.” (BRAGA, Paula Sarno. Competência adequada. Revista
de Processo, São Paulo, v. 219, p. 13-41, maio 2013).
19 .Cf. FRIEDENTHAL, Jack H.; MILLER, Arthur R.; SEXTON, John E.; HERSHKOFF,
Helen. Civil procedure – Cases and materials. 9. ed. St. Paul: Thomson/West, 2005. p.
348 e ss.
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