Você está na página 1de 9

Princípio da competência adequada, conflitos coletivos

multipolares e competências materiais distintas

PRINCÍPIO DA COMPETÊNCIA ADEQUADA, CONFLITOS COLETIVOS


MULTIPOLARES E COMPETÊNCIAS MATERIAIS DISTINTAS
Principle of adequate jurisdiction, multipolar collective conflicts and distinct material
jurisdictions
Revista de Direito do Consumidor | vol. 128/2020 | p. 403 - 414 | Mar - Abr / 2020
DTR\2020\6386

Fredie Didier Jr.


Pós-doutorado (Universidade de Lisboa). Livre-docente (USP). Doutor (PUC-SP). Mestre
(UFBA). Professor-associado na Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia
(graduação, mestrado e doutorado). Diretor Acadêmico da Faculdade Baiana de Direito.
Membro da Associação Internacional de Direito Processual (IAPL), do Instituto
Iberoamericano de Direito Processual, do Instituto Brasileiro de Direito Processual, da
Associação Norte e Nordeste de Professores de Processo e da Associação Brasileira de
Direito Processual. Advogado. fredie@terra.com.br

Hermes Zaneti Jr.


Pós-doutor em Processos Coletivos pela Università degli Studi di Torino (Unito). Doutor
em Teoria e Filosofia do Direito na Università degli Studi di Roma Ter (Uniroma3).
Doutor e Mestre (UFRGS). Professor na Faculdade de Direito da Universidade Federal do
Espírito Santo. Promotor de Justiça no Estado do Espírito Santo. Membro do Instituto
Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Membro do Instituto Ibero-Americano de Direito
Processual (IIDP). Membro da Associação Brasileira do Ministério Público de Meio
Ambiente (Abrampa) e da Associação Nacional do Ministério Público do Consumidor
(MPCon). hermeszanetijr@gmail.com

Área do Direito: Consumidor


Resumo: Este ensaio examina um problema comum e grave, mas curiosamente pouco
percebido e estudado, sobre a competência adequada para as ações coletivas: de quem
é a competência quando a ação coletiva veicular conflito envolvendo mais de uma
coletividade (grupos atingidos) e a competência absoluta variar em razão do grupo de
pessoas? A relação entre competência adequada, conflitos coletivos multipolares e
competências materiais distintas é o objeto da análise. O propósito é sugerir diretrizes
para resolver esse tipo de problema, a partir da análise de um caso concreto.

Palavras-chave: Processo coletivo – Competência adequada – Multipolaridade


Abstract: This essay examines a common and serious, but curiously little understood and
studied, problem about proper jurisdiction for class action: which jurisdiction is the
competent one when a collective action conveys a conflict involving more than one
collectivity (affected groups) and exclusive jurisdiction varies due to the group involved?
The relationship between adequate jurisdiction, multipolar collective conflicts and distinct
material jurisdiction is the object of the analysis. The purpose is to suggest guidelines for
solving this kind of problem, from the analysis of a concrete case.

Keywords: Collective redress – Adequacy of jurisdiction – Multipolarity


Sumário:

1.Nota introdutória - 2.Conceitos fundamentais: processo coletivo, grupo, membro do


grupo e condutor do processo coletivo - 3.Princípio da competência adequada -
4.Competência material, conflitos coletivos multipolares e litispendência por duplicidade
com autores diferentes - Referências bibliográficas

1.Nota introdutória
1
A competência jurisdicional é um dos pontos sensíveis na Dogmática do processo civil
coletivo. O desenvolvimento do princípio da competência adequada para o processo
Página 1
Princípio da competência adequada, conflitos coletivos
multipolares e competências materiais distintas

2
coletivo é uma boa novidade da última década .

Há inúmeras questões práticas que podem ser mais bem resolvidas a partir das
diretrizes decorrentes da concretização desse princípio.

Este pequeno artigo examina um problema comum, grave, elegante, mas curiosamente
pouco percebido e estudado, sobre a competência para as ações coletivas: de quem é a
competência quando a ação coletiva veicular conflito envolvendo mais de uma
coletividade e a competência absoluta variar conforme a discussão gire em torno de
direitos deste ou daquele grupo?

A relação entre competência adequada, conflitos coletivos multipolares e competências


materiais distintas é o objeto da análise deste ensaio. Queremos jogar luz sobre o
problema e contribuir para a reflexão que permita solucionar a questão preservando o
devido processo legal coletivo. Esse é o propósito deste singelo texto, que proporá
diretrizes para resolver esse tipo de problema, a partir da análise de um caso concreto.

2.Conceitos fundamentais: processo coletivo, grupo, membro do grupo e condutor do


processo coletivo

É preciso apresentar quatro definições importantes para a compreensão da tutela


jurisdicional coletiva: processo coletivo, grupo, membro do grupo e condutor do
processo coletivo.

Processo coletivo. O processo é coletivo se a relação jurídica litigiosa (a que é objeto do


processo) é coletiva. Uma relação jurídica é coletiva se em um de seus termos, como
sujeito ativo ou passivo, encontra-se um grupo (comunidade, categoria, classe etc.;
designa-se qualquer um deles pelo gênero grupo) e, se no outro termo, a relação
jurídica litigiosa envolver direito (situação jurídica ativa) ou dever ou estado de sujeição
(situações jurídicas passivas) de um determinado grupo. Assim, presentes o grupo e a
situação jurídica coletiva, temos um processo coletivo.

O processo coletivo, portanto, é aquele em que se postula um direito coletivo lato sensu
(situação jurídica coletiva ativa)ou que se afirme a existência de uma situação jurídica
coletiva passiva (deveres individuais homogêneos, p. ex.) de titularidade de um grupo
de pessoas.

Observe-se, então, que o núcleo do conceito de processo coletivo está em seu objeto
litigioso e na tutela do grupo: coletivo é o processo que tem por objeto litigioso uma
situação jurídica coletiva ativa ou passiva de titularidade de um grupo de pessoas.

Grupo. Grupo é o sujeito de direito que é titular da situação jurídica coletiva afirmada
em um processo coletivo. É, assim, sujeito de um dos polos da relação jurídica afirmada
(litigiosa) no processo coletivo. Categoria, classe, comunidade e coletividade são termos
sinônimos, embora se prefira o termo grupo.

Membro do grupo. O grupo é sempre um conjunto de outros sujeitos de direito. Os


sujeitos de direito que compõem o grupo são os membros do grupo. O membro do grupo
pode ser um indivíduo ou um outro grupo – há, assim, grupo de indivíduos ou grupo de
grupos.

É possível conceber, por exemplo, um grupo de todas as comunidades indígenas


brasileiras, ou de todas as comunidades indígenas amazônicas – grupos de grupos; é
possível, obviamente, cogitar grupo composto pelos indivíduos vítimas de um fato do
produto (adquirentes de carro que veio com defeito de fábrica, p. ex.). Lembre-se, a
pretensão coletiva não é de titularidade do membro do grupo, mas do próprio grupo.

Também é possível conceber um grupo a partir das ações coletivas e individuais


tramitando quando do julgamento dos casos repetitivos, que serão afetados pela tese
jurídica fixada no incidente de resolução de demandas repetitivas ou nos recursos
extraordinário ou especial repetitivos; esse grande grupo é formado somente por
Página 2
Princípio da competência adequada, conflitos coletivos
multipolares e competências materiais distintas

aqueles que estão em juízo discutindo a tese jurídica objeto do julgamento de casos
repetitivos, que se subdividirá em tantos grupos quantas sejam as soluções defendidas
para essa tese jurídica, e pelos grupos tutelados nas ações coletivas ajuizadas.

Nas ações coletivas, o membro do grupo pode ser beneficiado com a decisão favorável
ao grupo, independentemente de qualquer manifestação sua para aderir ao grupo. No
julgamento de casos repetitivos, outra espécie de processo coletivo, o sujeito de direito
que deseje ser membro do grupo – na hipótese de não haver ação coletiva pendente –
precisa manifestar sua intenção em fazer parte do grupo, ajuizando sua ação individual.
Em ambos os casos, ações coletivas e casos repetitivos, o membro do grupo, no direito
brasileiro, tem a possibilidade de se excluir do grupo.

Condutor do processo coletivo. A parte do processo coletivo costuma ser, como regra,
um terceiro, legitimado extraordinário, que nem é o grupo nem é membro do grupo. O
Ministério Público, ao propor uma ação coletiva, por exemplo, atua como legitimado
extraordinário, pois pretende defender em juízo situação jurídica que não titulariza; o
Ministério Público não é, no caso, o grupo cujo direito se busca tutelar, nem é membro
desse grupo. Essa é a regra do processo coletivo brasileiro.

Excepcionalmente, há o caso da comunidade indígena, que, no Brasil, pode ser parte em


processo coletivo; nesse caso, o próprio grupo é o condutor do processo coletivo.
Trata-se de hipótese rara e possivelmente a única do Direito brasileiro. Não obstante,
concepção mais atuais sobre a legitimidade na tutela coletiva defende que, ao longo do
processo coletivo, se deva, na medida do possível, promover a participação do grupo,
por meio de audiências públicas e prestação de contas. Essa participação dá mais
legitimidade à decisão e amplia a possibilidade de acerto e efetividade prática daquilo
que for decidido, especialmente em relação às políticas públicas, mas não se pode
esquecer que, em grande medida, a tutela dos direitos fundamentais é contramajoritária
e a participação não é pressuposto para sua tutela.

O membrodo grupo também raramente pode ser o condutor do processo coletivo. No


Brasil, o membro do grupo pode ser o condutor do processo coletivo nos casos da ação
popular ou quando conduz o processo-piloto no julgamento de casos repetitivos. Nesses
dois casos, atua em nome próprio para defesa dos interesses do grupo, mesmo que
também defenda interesses próprios. A possibilidade de conflito de interesses entre esse
legitimado e o grupo deve ser hipótese de exclusão de sua legitimidade. Há casos, ainda,
que, embora não possa ser o proponente da ação coletiva, o membro do grupo poderá
dele fazer parte como terceiro interveniente.

3.Princípio da competência adequada


3
A competência é um dos elementos básicos que compõe a noção de devido processo . O
devido processo legal impõe um processo adequado, que, entre outros atributos, é
aquele que se desenvolve perante um juízo adequadamente competente. A exigência de
uma competência adequada é um dos corolários dos princípios do devido processo legal,
da adequação e da boa-fé, de modo que se pode inclusive falar em um princípio da
4
competência adequada.

Como a ação coletiva atinge direitos que pertencem a coletividades, muitas delas
compostas por pessoas que não possuem qualquer vínculo entre si, além de poderem
estar espalhadas por vasto território, até mesmo pela integridade do território nacional,
é preciso ter muito cuidado na identificação das regras de competência relacionadas a
essas ações, para que se identifique o juízo concretamente competente, porque
adequado – e não simplesmente competente de acordo com a regra abstrata prevista
5
em lei.

A análise das regras existentes no Direito brasileiro tem de passar pelo filtro do princípio
da competência adequada (corolário dos princípios do devido processo legal e da
adequação). Não é possível aplicar as regras legais de competência sem que se faça o
Página 3
Princípio da competência adequada, conflitos coletivos
multipolares e competências materiais distintas

juízo de ponderação a partir do exame das peculiaridades do caso concreto.

A natureza da tutela jurisdicional coletiva exige uma interpretação mais flexível das
regras de competência. A competência a ser fixada, nesses casos, pressupõe uma
análise da legislação a partir de diretrizes que informam a sua adequação; não basta o
exame literal da lei.

A tarefa não é simples, principalmente tendo em vista os princípios da tipicidade e da


indisponibilidade da competência, tradicionalmente vistos como estruturantes do sistema
de distribuição das competências no Direito brasileiro. A solução da questão passa,
sobretudo, não pela superação desses importantes princípios, mas, sim, pela
necessidade de dar uma correta interpretação às regras de competência. Conforme
afirma Guilherme Hartmann, a competência adequada se relaciona com um “pensar
proporcional sobre as regras de competência, suplementando as lacunas existentes no
6
ordenamento jurídico” .

O ideal é trabalhar com a competência adequada a partir da definição da “melhor


jurisdição”, na qual seja possível utilizar o direito material adequado e os instrumentos
processuais que garantam a defesa e a efetividade da prestação jurisdicional, de modo
que sejam afastados “esquemas abstratos rígidos de competência, especificamente
quando estes se apresentem inadequados concretamente, com base em critérios não
7
arbitrários e racionalmente justificados” .

Nesse sentido, Antonio do Passo Cabral defende que “se o sistema de competências
pode ser orientado por princípios, afigura-se correto concluir que o juízo sobre a
8
competência não deve ser puramente definido num exame de legalidade estrita” . O
autor segue explicando que,

“se a tutela jurisdicional deve ser prestada de maneira ótima, por meio de técnicas
processuais apropriadas para cada caso, as partes têm direito a que seu litígio, uma vez
judicializado, seja decidido pelo juízo mais adequado dentre aqueles com competência
para tanto. E essa análise deve ser extraída de circunstâncias concretas que devem ser
9
sopesadas pelo juiz.”

A definição da “melhor jurisdição”, por sua vez, apesar de elástica, deve ser controlada
caso a caso, a partir da concretização dos direitos fundamentais em disputa. O princípio
da adequação da competência, como todo princípio, permite certa discricionariedade,
que não é nova em nosso sistema jurídico, já bastante aquinhoado com normas desse
tipo.

De acordo com o que explica Paula Sarno Braga,

“a busca pelo órgão jurisdicional competente para a causa implica interpretação,


integração e aplicação das normas legais e constitucionais pertinentes, extraindo-se
delas competências explícitas e implícitas, e adequando-as, quando for o caso, às
10
necessidades da situação concreta.”

Guilherme Hartmann resumiu as diretrizes que devem informar a interpretação das


normas de competência e, assim, a identificação da competência adequada, afirmando
ser preciso que a adequação leve em conta a facilitação do acesso à justiça e do
exercício do direito de defesa ou a consecução da eficiência jurisdicional (qualitativa e
quantitativa). Segundo o autor,

“desse modo, presta-se auxílio à tarefa judicial de compatibilização do juiz natural com
outras matizes principiológicas que orbitam o devido processo legal, cabendo ao sujeito
imparcial analisar a dimensão de peso, no sentido da qualidade das razões e dos fins a
11
que se referem as atinentes diretrizes, para lhes atribuir importância concreta.”

O órgão jurisdicional competente deve ser aquele que, no exame das capacidades
institucionais (que envolvem variáveis estruturais e funcionais dos diferentes órgãos,
Página 4
Princípio da competência adequada, conflitos coletivos
multipolares e competências materiais distintas

12
aferíveis por indicadores objetivos) , seja o mais adequado para julgar o caso, a fim de
que seja alcançado o melhor resultado jurisdicional – o que resume a perspectiva
qualitativa da eficiência.
13
A teoria das capacidades institucionais parte da premissa de que

“instituições reais possuem capacidades diferentes não somente porque possuem


funções distintas, mas porque se servem de instrumental fático e normativo diferente
para ressaltar virtudes específicas tidas como condições de possibilidade para o exercício
14
adequado das funções para as quais foram desenhadas.”

Dessa forma, comparam-se os limites e habilidades de cada uma delas para que seja
determinada qual das instituições reúne as melhores condições para resolver o problema
15
em discussão .

Já do ponto de vista quantitativo, o exame da adequação da competência deve levar em


conta a redução dos custos sociais de litigância, de modo que seja promovida a maior
produtividade, ou seja, a obtenção de maior proveito com menores custos. “Perpassa,
portanto, pela capacidade de minimizar os custos sociais da resolução de conflitos, de
modo a garantir que a destinação de recursos, que sempre é escassa, se dê para um
16
número maior de casos em relação aos que já são atendidos pelo Judiciário”.

A eficiência quantitativa é vetor especialmente importante nos casos de julgamento de


casos repetitivos, uma das espécies de processo coletivo, pois é uma das justificativas
da sua existência (a resolução de um grande número de casos a partir de um único
julgamento).

Mas não é só. O caráter coletivo do julgamento de casos repetitivos – ao que se pode
somar o intuito de formação de um precedente com a fixação de tese a ser aplicada a
inúmeros casos, que faz com que o julgamento de casos repetitivos sirva à proteção da
segurança jurídica e da igualdade – implica a prevalência de um interesse pertencente à
sociedade, que deve ser levado em consideração para o exame da eficiência qualitativa
e, assim, da competência adequada.

O princípio também é importante para o processo coletivo das ações coletivas. O


legislador brasileiro optou pela técnica dos foros concorrentes (diversos juízos
competentes) para ações coletivas, nas hipóteses em que se afirme a existência de dano
nacional ou regional. Nesses casos, o réu pode ser demandado em qualquer capital de
Estado-membro ou em Brasília (art. 93 do CDC (LGL\1990\40)). Pode o demandante,
portanto, ficar em uma situação que lhe permita proceder ao forum shopping, escolha do
juízo de competência concorrente para apreciar determinado caso de acordo com seus
interesses, quer para dificultar a defesa do réu, quer porque saiba que determinado juízo
tem posicionamentos mais favoráveis a seus interesses. Trata-se de fenômeno muito
17
frequente no âmbito do Direito internacional .

De acordo com o princípio da competência adequada, o próprio órgão julgador, no


controle de sua competência, utilizando a regra da kompetenz-kompetenz (o juiz é
competente para controlar a sua própria competência), evitaria julgar causas para as
quais não fosse o juízo mais adequado, quer em razão do direito ou dos fatos debatidos
(p. ex.: extensão e proximidade com o ilícito), quer em razão das dificuldades de defesa
do réu. Também seria evitado o uso da competência para obter vantagens processuais,
trabalhando como limite para que a regra da competência por prevenção não se torne
uma disputa pelo foro.

Justamente,

“para evitar os abusos, desenvolveu-se uma regra de temperamento, conhecida como


forum non conveniens, que deixa ao arbítrio do juízo acionado a possibilidade de recusar
a prestação jurisdicional se entender comprovada a existência de outra jurisdição
internacional invocada como concorrente e mais adequada para atender aos interesses
Página 5
Princípio da competência adequada, conflitos coletivos
multipolares e competências materiais distintas

18
das partes, ou aos reclamos da justiça em geral.”
19
A doutrina do forum non conveniens também é aplicável a processos coletivos .

Um bom exemplo de aplicação do princípio da competência adequada em ações coletivas


pôde ser observado no julgamento do Conflito de Competência 144.922/MG, rel. Diva
Malerbi, 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, j. em 22.06.2016, que expressamente
considerou o juízo federal da 12ª Vara Federal de Belo Horizonte como aquele que
possuía as “melhores condições de dirimir as controvérsias” decorrentes do rompimento
da Barragem do Fundão, em Mariana.

4.Competência material, conflitos coletivos multipolares e litispendência por duplicidade


com autores diferentes

Para enfrentar a próxima questão, é preciso partir de algumas premissas: a) as


situações jurídicas coletivas são titularizadas por grupos; b) é possível haver conflito
entre grupos, dando ensejo a processo duplamente coletivo (ou até mesmo com
situações jurídicas coletivas sendo defendidas em múltiplos polos, no caso dos processos
multipolares); c) um mesmo grupo pode ser composto por diversos subgrupos.

Examinemos, agora, o seguinte caso, que é real. A análise deste caso pode ajudar a
induzir diretrizes para a solução de conflitos coletivos semelhantes.

Defensoria Pública ajuíza ação civil pública contra a Empresa Brasileira de Correios e
Telégrafos, pleiteando a retomada da entrega do serviço postal em certas áreas urbanas
consideradas perigosas – a entrega postal havia sido suspensa como forma de proteção
da segurança dos carteiros (trabalhadores). A ação foi proposta na Justiça Federal (art.
109, I, CF/1988 (LGL\1988\3)). A ação coletiva, nesse caso, pretendia ver tutelado
direito de um grupo de moradores, considerados consumidores lesados pelo deficiente
serviço prestado pela ECT.

Embora isso não tenha sido posto nem discutido e o pedido se direcionasse à ECT, a
demanda atinge, também, situação jurídica da coletividade dos carteiros. Os carteiros
são celetistas; a segurança do trabalho é um dos mais evidentes direitos coletivos
trabalhistas deste grupo. Imagine, então, que o sindicato dos carteiros tivesse ajuizado
uma ação coletiva, na Justiça do Trabalho, exatamente para ver reconhecido e efetivado
o direito à segurança, concretizado na suspensão de entrega de correspondência nas
mesmas áreas tidas como perigosas.

Note que, no fim das contas, essas ações coletivas, propostas por sujeitos distintos, em
juízos distintos, para a tutela de direitos distintos, levariam ao Judiciário, rigorosamente,
o mesmo conflito coletivo: o conflito envolvendo o grupo de moradores e o grupo dos
carteiros; o primeiro, titular de direito (afirmado) consumerista em face da ECT,
competência da Justiça Federal; o segundo, titular de direito (afirmado) trabalhista em
face da ECT, competência da Justiça Federal. Observe, também, que o juízo federal terá
de, necessariamente, examinar o problema trabalhista, e o juízo trabalhista terá de,
necessariamente, examinar o problema consumerista. Atente, finalmente, que há uma
duplicidade evidente aqui: ao tutelar o direito dos moradores/consumidores, atinge-se o
direito dos carteiros e vice-versa.

Em casos assim, não é adequado adotar a solução ortodoxa de suspensão de um dos


processos à espera da solução do outro, como se de conexão se tratasse. É preciso
perceber, aqui, uma nova espécie de litispendência, distinta da conhecida tríplice
20
identidade: uma litispendência por duplicidade com autores diferentes . E essa reunião
não necessariamente será no juízo prevento, até porque, nesse caso, estamos diante de
juízos com competência material distinta.

A solução desse problema passa, então, pela adoção de algumas diretrizes: a) não se
deve e nem se pode admitir a existência de decisões contraditórias; b) é preciso garantir
a participação processual paritária dos interesses dos grupos em conflito, pouco importa
Página 6
Princípio da competência adequada, conflitos coletivos
multipolares e competências materiais distintas

onde as causas tramitem; c) o STJ já decidiu que, havendo continência entre ações
coletivas que tramitam na Justiça Estadual e na Justiça Federal, é possível haver reunião
dos processos na Justiça Federal (n. 489 da súmula do STJ; reunião de processos com
mudança de competência material, como se vê); d) competência mais especializada
pode prevalecer em relação a competência comum; e) grupo mais homogêneo (a
perspectiva dos membros do grupo diante do conflito tende a ser a mesma ou ao menos
muito parecida) e delimitado deve ser levado em consideração para a fixação da
competência, relativizando a orientação anterior; f) seria necessária a observância da
conveniência da adoção de práticas de cooperação judiciária para mais bem decidir essa
espécie de conflito.

Aplicadas essas diretrizes, o caso deveria ser resolvido pela Justiça do Trabalho, que
deveria julgar “ambas” (na verdade, como se disse, é a mesma ação coletiva, ajuizada
por entes diversos) as demandas coletivas: o grupo dos carteiros é mais bem delimitado
e homogêneo e a Justiça do Trabalho é mais especializada.

Não se pode ignorar que casos assim tendem a ensejar processos estruturais – no fim
das contas, o que se pretende é a reestruturação do modo como o serviço de correio
deve ser prestado, considerando a situação de ilicitude consistente na falta do serviço e
na exigência da prestação de serviço em áreas perigosas. Em litígios estruturais, o
estímulo à autocomposição ganha relevância ainda maior, seja pela concertação entre os
juízos para prática de atos de cooperação judiciária, nos termos do § 2º do art. 69 do
CPC (LGL\2015\1656), seja pelo estímulo a que as próprias partes cheguem à solução
consensual dos conflitos nos termos dos §§ 2º e 3º do art. 3º do CPC (LGL\2015\1656).

Referências bibliográficas

ARGUELHES, Diego Werneck; LEAL, Fernando. O argumento das “capacidades


institucionais” entre a banalidade, a redundância e o absurdo. Revista do Programa de
Pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, n. 23, ano
2011.

BRAGA, Paula Sarno. Competência adequada. Revista de Processo, São Paulo, v. 219, p.
13-41, maio 2013.

CABRAL, Antonio do Passo. Juiz natural e eficiência processual: flexibilização, delegação


e coordenação de competências no processo civil. Tese (Concurso de Professor Titular de
Direito Processual Civil) – Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.

DIDIER JR., Fredie. Contradireitos, objeto litigioso do processo e improcedência. Revista


de Processo, São Paulo, v. 223, p. 87-10, set. 2013.

DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de direito processual civil. 3. ed.
Salvador: Editora JusPodivm, 2008. v. 4.

FRIEDENTHAL, Jack H.; MILLER, Arthur R.; SEXTON, John E.; HERSHKOFF, Helen. Civil
procedure – Cases and materials. 9. ed. St. Paul: Thomson/West, 2005.

HARTMANN, Guilherme Kronemberg. Controle da competência adequada no processo


civil. Tese (Doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.

JATAHY, Vera Maria Barrera. Do conflito de jurisdições. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

1 Este artigo é também resultado do grupo de pesquisa “Transformações nas teorias


sobre o processo e o Direito processual”, vinculado à Universidade Federal da Bahia, e
do grupo de pesquisa “Fundamentos do Processo Civil Contemporâneo”, vinculado à
Universidade Federal do Espírito Santo, ambos cadastrados no Diretório Nacional de
Página 7
Princípio da competência adequada, conflitos coletivos
multipolares e competências materiais distintas

Grupos de Pesquisa do CNPq respectivamente nos endereços


[dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/7958378616800053] e
[dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/0258496297445429]. O Grupo de Pesquisa
Fundamentos do Processo Civil Contemporâneo (FPCC) é financiado pela FAPES –
Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado do Espírito Santo. ambos os
grupos são membros fundadores da “ProcNet – Rede Internacional de Pesquisa sobre
Justiça Civil e Processo contemporâneo” (http://laprocon.ufes.br/rede-de-pesquisa).

2 DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de direito processual civil. 3. ed.
Salvador: Editora JusPodivm, 2008. v. 4. p.141.

3 Nesse sentido, Paula Sarno Braga explica: “Toda essa exigência de competências
pré-definidas por normas de acordo com a Constituição - não passíveis de disposição,
transferência ou moldagem de forma diversa -, nada mais é do que uma manifestação
do devido processo legal, que impõe que o poder seja exercido por procedimento
regulado por lei, e conduzido por uma autoridade natural - i. e., previamente
individualizada, constituída, e cujos poderes de ação e atuação sejam delimitados
objetiva e abstratamente em lei.” (BRAGA, Paula Sarno. Competência adequada. Revista
de Processo, São Paulo, v. 219, p. 13-41, maio 2013).

4 Sobre o tema em geral, BRAGA, Paula Sarno. Competência adequada. Revista de


Processo, São Paulo, v. 219, p. 13-41, maio 2013.

5 No mesmo sentido: BRAGA, Paula Sarno. Competência adequada. Revista de Processo,


São Paulo, v. 219, p. 13-41, maio 2013.

6 HARTMANN, Guilherme Kronemberg. Controle da competência adequada no processo


civil. Tese (Doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.
p. 110.

7 HARTMANN, Guilherme Kronemberg. Controle da competência adequada no processo


civil. Tese (Doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.
p. 121.

8 CABRAL, Antonio do Passo. Juiz natural e eficiência processual: flexibilização,


delegação e coordenação de competências no processo civil. Tese (Concurso de
Professor Titular de Direito Processual Civil) – Faculdade de Direito da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017. p. 370.

9 CABRAL, Antonio do Passo. Juiz natural e eficiência processual: flexibilização,


delegação e coordenação de competências no processo civil. Tese (Concurso de
Professor Titular de Direito Processual Civil) – Faculdade de Direito da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017, p. 371.

10 BRAGA, Paula Sarno. “Competência adequada”. Revista de Processo, São Paulo, v.


219, p. 13-41, maio 2013.

11 HARTMANN, Guilherme Kronemberg. Controle da competência adequada no processo


civil. Tese (Doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.
p. 126.

12 CABRAL, Antonio do Passo. Juiz natural e eficiência processual: flexibilização,


delegação e coordenação de competências no processo civil. Tese (Concurso de
Professor Titular de Direito Processual Civil) – Faculdade de Direito da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017. p. 374-393.

13 Originalmente, a teoria das capacidades institucionais visava comparar as


capacidades entre o Poder Judiciário e outras instituições, como o Congresso Nacional.
Página 8
Princípio da competência adequada, conflitos coletivos
multipolares e competências materiais distintas

Aqui, a ideia foi desenvolvida para comparar as competências entre os órgãos


jurisdicionais. No julgamento da Petição 3.240/DF, o STF enfrentou duas questões e
seguiu essa linha de aplicação da teoria: (i) se os atos de improbidade administrativa
praticados por agentes políticos caracterizam apenas crime de responsabilidade,
excluindo o ilícito civil e (ii) se é possível estender o foro privilegiado expressamente
previsto na Constituição para as infrações penais comuns às ações de improbidade. Luís
Roberto Barroso, em seu voto, critica o sistema de competência por prerrogativa de
função, com base, justamente, na teoria das capacidades institucionais. Para o Ministro,
o juiz de primeiro grau tem melhores condições de conduzir a instrução processual.
Compara, então, as habilidades e limitações do juiz de primeiro grau e do STF. Nesse
caso, o Ministro utilizou a teoria das capacidades institucionais para comparar órgãos
jurisdicionais, como se faz neste texto. Isso demonstra uma preocupação do Supremo
Tribunal Federal em pensar no sistema de competência pelo aspecto qualitativo (STF,
Pleno, AgRg na Petição 3.240/DF, rel. Min. Teori Zavascki, red. p/ acórdão Min. Luís
Roberto Barroso, j. 10.05.2018).

14 ARGUELHES, Diego Werneck; LEAL, Fernando. O argumento das “capacidades


institucionais” entre a banalidade, a redundância e o absurdo. Revista do Programa de
Pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, n. 23, 2011.
p. 316.

15 ARGUELHES, Diego Werneck; LEAL, Fernando. O argumento das “capacidades


institucionais” entre a banalidade, a redundância e o absurdo. Revista do Programa de
Pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, n. 23, 2011.
p. 313-314.

16 HARTMANN, Guilherme Kronemberg. Controle da competência adequada no processo


civil. Tese (Doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.
p. 136.

17 .JATAHY, Vera Maria Barrera. Do conflito de jurisdições. Rio de Janeiro: Forense,


2003. p. 37.

18 .JATAHY, Vera Maria Barrera. Do conflito de jurisdições. Rio de Janeiro: Forense,


2003. p. 37.

19 .Cf. FRIEDENTHAL, Jack H.; MILLER, Arthur R.; SEXTON, John E.; HERSHKOFF,
Helen. Civil procedure – Cases and materials. 9. ed. St. Paul: Thomson/West, 2005. p.
348 e ss.

20 Sobre o tema, DIDIER Jr., Fredie. Contradireitos, objeto litigioso do processo e


improcedência. Revista de Processo, São Paulo, v. 223, p. 87-10, set. 2013.

Página 9

Você também pode gostar