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Febre Reumática
Maria Helena Kiss
Conceito
A febre reumática é uma doença autoimune que ocorre após uma infecção de orofaringe causada por
estreptococos beta-hemolíticos do grupo A (EBHGA) e que pode acometer o coração, as articulações, o sistema
nervoso central, a pele e o tecido subcutâneo.1–3
Epidemiologia
Infecções de orofaringe por EBHGA, sintomáticas ou assintomáticas, sempre precedem o aparecimento da febre
reumática, tanto nos primeiros surtos como nas recidivas.
Em condições normais, a frequência de febre reumática situa-se em torno de 0,5 a 3% após episódios de
faringoamigdalite estreptocócica. Para pacientes que já são portadores de febre reumática, as taxas de recorrência da
doença são significativamente maiores, de 40 a 50%, após novas faringoamigdalites estreptocócicas. 2
O principal problema da febre reumática está relacionado com o comprometimento cardíaco (cardite), que ocorre
em 50 a 75% das crianças por ocasião do primeiro surto da doença. Desde o início dos anos de 1970 a febre
reumática está praticamente extinta nos países desenvolvidos, onde são registradas incidências anuais de 0,5 caso de
febre reumática por 100.000 crianças em idade escolar, enquanto nos países em desenvolvimento a febre reumática
é ainda uma doença endêmica com incidências anuais que variam de 100 a 200 casos por 100.000 crianças em idade
escolar e com taxas de prevalência de cardiopatia reumática de 18,6/1.000, o que a torna uma das causas mais
importantes de morbimortalidade cardiovascular nesses países.4
Existem poucos dados sobre a frequência da febre reumática no Brasil. Estudos realizados em Belo Horizonte,
Minas Gerais, em 1995, mostram uma prevalência da febre reumática de 3,6/1.000 na população escolar da rede
pública. No Brasil, atualmente, a cardiopatia reumática constitui a causa mais frequente de indicação de cirurgias
cardíacas em adultos.5
Países como a Costa Rica conseguiram uma diminuição dramática na prevalência da febre reumática em curto
período de tempo em consequência do aumento da utilização da penicilina benzatina. 4
Etiopatogenia
A febre reumática é sempre consequente a uma infecção de orofaringe por EBHGA. Infecções cutâneas ou em
outras localizações, desacompanhadas da amigdalite estreptocócica, não causam febre reumática.
Apesar da relação etiológica clara com o EBHGA, a patogênese da febre reumática ainda não está
completamente estabelecida. Alguns fatores parecem interferir na frequência e nas taxas de morbimortalidade da
doença:
• Suscetibilidade genética à doença associada a antígenos leucocitários humanos (HLA, human leukocyte antigen)
de classe II, em especial o DR7 e DR-53, observados em uma amostra da população brasileira com febre
reumática.6 Estudos realizados em outros países mostram associações a outros antígenos, como HLA-DR2, DR4,
DR117,8
• Fatores ligados ao EBHGA – alguns sorotipos do EBHGA são considerados reumatogênicos por estarem
frequentemente associados a epidemias de febre reumática
• Fatores ligados ao ambiente – as más condições socioeconômicas, frequentemente associadas a más condições
de higiene e moradia, assistência médica precária e desnutrição parecem desempenhar papéis importantes e
justificam, ao menos em parte, a maior frequência da febre reumática em países subdesenvolvidos e, talvez, a maior
gravidade do quadro clínico, com taxas mais elevadas de morbimortalidade.
Apesar de a patogênese da febre reumática ainda não estar totalmente esclarecida, os dados disponíveis apontam
para a presença de respostas imunes humoral e celular direcionadas contra antígenos e superantígenos
estreptocócicos, semelhantes, do ponto de vista antigênico, a estruturas humanas (anticorpos dirigidos contra o
componente carboidrato do estreptococo e contra a miosina cardíaca), com ativação dos linfócitos T e B, das
moléculas de adesão (em especial VCAM-1, vascular cell adhesion molecule-I) e de citocinas. A lesão do endotélio
da valva cardíaca por anticorpos anticarboidrato exporia estruturas subendoteliais (vimentina, laminina e células
intersticiais valvares) levando a uma reação em cadeia de destruição valvar. A inflamação e a neovascularização
resultantes possibilitariam a infiltração de células T perpetuando, assim, o ciclo de lesão valvar.3,8
A ausência de evidências conclusivas sobre o papel patogênico dos anticorpos de reação cruzada
(estreptocócicos/humanos) in vivo e a ausência de modelos animais compatíveis dificultam a consolidação dessas
teorias.
Quadro clínico
A febre reumática ocorre de 2 semanas a 6 meses após uma faringoamigdalite estreptocócica, que pode ser
sintomática (60 a 70%) ou assintomática (30 a 40%). Acomete, preferencialmente, crianças em idade escolar, sem
predomínio de sexos, com exceção da coreia, mais frequente em meninas. 2
Artrite
É considerada a manifestação clínica mais comum da febre reumática, com uma frequência que varia entre 60 e
85%. Quando aparece isoladamente, desacompanhada de outro sinal maior, a artrite costuma ser a manifestação que
envolve as maiores dificuldades diagnósticas.9,10 As características da artrite da febre reumática estão listadas a
seguir:2,9
• Início: 1 a 3 semanas após infecção de orofaringe por estreptococos beta-hemolíticos do grupo A (EBHGA)
• Características: poliartrite aguda, migratória, de grandes articulações, bastante dolorosa. O comprometimento de
pequenas articulações e coluna é raro (0,5 a 15%)
• Duração: 1 a 5 dias em cada articulação. A duração total do surto articular varia de 1 a 3 semanas
• Tratamento: anti-inflamatórios não hormonais. Excelente resposta em 24 a 48 h
• Prognóstico: bom, não deixa sequelas.
• Artrites infecciosas:
○ Virais: rubéola, caxumba, hepatite
○ Bacterianas: gonococos, meningococos, endocardite bacteriana, doença de Lyme
○ Reativas: pós-entéricas ou pós-infecções do trato geniturinário
• Artrites associadas a doenças hematológicas: anemia falciforme
• Artrites associadas a neoplasias: leucemia linfoblástica aguda
• Artrites associadas a outras doenças reumáticas: lúpus eritematoso sistêmico, artrite reumatoide juvenil,
vasculites.
Em cerca de 20 a 30% das crianças com febre reumática e artrite, o comprometimento articular não corresponde
ao padrão habitual da poliartrite migratória, descrito anteriormente. Artrites com evoluções mais prolongadas,
comprometimentos frequentes de pequenas articulações e coluna e presença de rigidez matinal, são algumas das
características desse quadro articular atípico, que podem dificultar o diagnóstico correto de febre reumática (Tabela
99.1).
O comprometimento articular atípico da febre reumática apresenta características semelhantes às descritas para
as artrites reativas pós-estreptocócicas, inicialmente não incluídas no diagnóstico de febre reumática. Porém, a
observação de que cerca de 30% dos casos de artrite reativa pós-estreptocócica podem apresentar cardite reumática
na evolução, tornou necessária a inclusão desse tipo de comportamento articular no espectro da artrite da febre
reumática (Tabela 99.2).
Alguns pacientes com febre reumática apresentam apenas artralgia de uma ou mais articulações. Esse sintoma
faz parte dos sinais menores dos critérios diagnósticos da febre reumática, mas só deverá ser valorizado como tal
na ausência de artrite como sinal maior.
O diagnóstico diferencial da artrite da febre reumática é amplo e a exclusão de outras patologias pode requerer,
além da história e de dados epidemiológicos compatíveis, a solicitação de exames laboratoriais direcionados às
demais causas possíveis.
Fatores que podem dificultar o diagnóstico da artrite reumática:
• Introdução de anti-inflamatórios para pacientes com quadros articulares sem características, em fases iniciais.
Essa conduta pode impedir a caracterização correta da artrite (migratória, poliarticular) e dificultar o diagnóstico de
febre reumática
• Valorização inadequada de artralgias, de dores em membros ou ainda de histórias mal definidas de quadros
articulares anteriores, especialmente se associadas a alterações das provas de fase aguda e/ou evidência de
estreptococcia. É importante enfatizar que a inclusão de artralgia como sinal menor da febre reumática só é válida
na ausência de artrite.
Cardite
Em crianças brasileiras admitidas em serviços especializados, a frequência da cardite situa-se em torno de 65%,
constituindo-se na manifestação clínica mais importante da febre reumática, pelas elevadas taxas de morbidade e
mortalidade que a acompanham4,9 (ver Tabela 99.2).
A cardite é a manifestação mais importante da febre reumática por ser a única associada à mortalidade. Nos
países em desenvolvimento, a valvopatia reumática crônica é a doença cardiovascular adquirida mais frequente no
adolescente e adulto jovem e constitui a principal causa de óbito por doença cardíaca em pessoas com menos de 40
anos.3,4
Por ordem decrescente de frequência, as valvas afetadas pela febre reumática são: mitral, aórtica, tricúspide e,
excepcionalmente, pulmonar. O sopro cardíaco mais característico da febre reumática é consequente à insuficiência
mitral: holossistólico, de alta frequência, com irradiação para a axila.
A presença de um sopro mesodiastólico no foco mitral (sopro de Carey-Coombs) confirma o diagnóstico de
valvite mitral reumática. Sopro de estenose mitral pode estar presente, indicando a existência de cardite anterior.
A insuficiência cardíaca é incomum nos primeiros surtos de cardite, aumentando de frequência em surtos
subsequentes.
A pericardite é infrequente na febre reumática e sua ocorrência praticamente sempre acompanha um quadro de
pancardite, não existindo como forma isolada de envolvimento reumático cardíaco.
Cardites discretas, não acompanhadas de outros sintomas da doença, podem passar despercebidas e serem
diagnosticadas apenas em exames médicos de rotina ou por ocasião de surtos subsequentes.
O diagnóstico diferencial da cardite costuma oferecer menos dificuldades, principalmente na presença de
envolvimento valvar. Os principais diagnósticos diferenciais da cardite reumática estão relacionados a seguir:9–11
Em situações de dúvida à ausculta cardíaca, a realização do ecocardiograma pode ser de grande auxílio, com o
objetivo de distinguir entre insuficiência valvar patológica e febre reumática e sopros funcionais ou decorrentes de
outras causas.
Coreia de Sydenham
A presença dos movimentos incoordenados que caracterizam a coreia em crianças é altamente sugestiva do
diagnóstico de febre reumática. A frequência da coreia aumentou nas duas últimas décadas, passando de 5 a 10%
para 20 a 40%, tanto no Brasil, como em outros países em desenvolvimento. A coreia acomete, preferencialmente,
meninas em idade escolar e no início da adolescência9,10 (Tabela 99.3).
Por apresentar um período de latência prolongado (1 a 6 meses) entre a infecção estreptocócica e o início das
manifestações clínicas, é comum na coreia não serem observadas alterações de exames laboratoriais, inclusive
evidências da estreptococcia anterior (Tabela 99.4).
Tabela 99.3 Coreia da febre reumática.1,2
Anticoncepcionais
Outras causas Hipertireoidismo
Hipoparatireoidismo
Doença de Wilson
As formas familiares de coreia são muito raras e, em casos de coreia isolada, o FAN (fator antinuclear) deve ser
solicitado para o diagnóstico diferencial com lúpus eritematoso sistêmico, principalmente em meninas em idade
escolar ou adolescentes. Os anticorpos antifosfolipídios (anticardiolipina IgG e IgM, anticoagulante lúpico) deverão
ser solicitados para o diagnóstico de síndrome antifosfolipídio.3
Nódulos subcutâneos
Manifestação rara, que ocorre em menos de 3% das crianças com febre reumática, em geral associada à cardite.
Costuma aparecer várias semanas após o início do surto.
Caracteristicamente, os nódulos são duros, indolores, imóveis, localizados nas superfícies das articulações,
sobre proeminências ósseas e no couro cabeludo. Suas dimensões variam de milímetros até 5 cm.10 Os principais
diagnósticos diferenciais dos nódulos subcutâneos são:
Os nódulos subcutâneos benignos têm localização preferencial em região pré-tibial e no couro cabeludo e
histologicamente assemelham-se aos da artrite reumatoide do adulto. Têm regressão espontânea, com recorrências
frequentes. Sua presença não confere maior risco de doença reumática subsequente.
Eritema marginado
De frequência desconhecida, é considerado bastante raro como manifestação da febre reumática. 9,11
Apresenta associação frequente a cardite, caracterizando-se por lesões de bordas nítidas avermelhadas,
serpiginosas, com centro claro, não pruriginosas e de localização preferencial em tronco e porções proximais dos
membros. Costumam ser evanescentes, com duração de algumas horas ou mesmo minutos e podem ocorrer em
caráter intermitente por meses. Os principais diagnósticos diferenciais do eritema marginado são:
• Infecções – septicemias
• Reações a medicamentos
• Doenças reumáticas
• Idiopático.
Epistaxes e dores abdominais não são consideradas manifestações da febre reumática, porém podem ocorrer na
fase inicial da doença.
Exames laboratoriais
Apesar de não serem específicos da febre reumática, os exames laboratoriais têm por finalidade demonstrar a
presença da reação inflamatória, evidenciar a infecção estreptocócica anterior, auxiliar na exclusão de outras
doenças e servir como base para o acompanhamento do processo inflamatório.
Infecção estreptocócica
Três parâmetros são utilizados para evidenciar a infecção estreptocócica anterior:12
• A determinação do grupo de estreptococos cultivado (grupo A) é fundamental, pois outros estreptococos são
habitualmente encontrados na flora bacteriana da orofaringe (p. ex., estreptococos alfa-hemolíticos)
• Por ocasião do aparecimento dos sintomas de febre reumática (2 a 3 semanas após a infecção estreptocócica), a
cultura de orofaringe apresenta taxa de positividade muito baixa, em torno de 20 a 30%
• Algumas crianças (13 a 49%) são portadoras assintomáticas do EBHGA, portanto, seu isolamento não
corresponde necessariamente à infecção, a menos que tenha confirmação sorológica.
Ⴇ Testes rápidos. Os testes rápidos para a detecção do antígeno estreptocócico apresentam sensibilidade (90 a
95%) e especificidade (100%) bastante elevadas e a ausência de sua utilização na prática clínica diária está
relacionada principalmente com seu custo elevado e baixa disponibilidade.
• A elevação dos títulos de ASLO inicia-se por volta do sétimo ao décimo dia após infecção e atinge o pico entre
4 e 6 semanas. Pode manter-se elevado por meses e até 1 ano após a infecção
• Em casos de normalidade de ASLO é sempre conveniente sua repetição após 2 a 3 semanas, pela possibilidade
de se detectar elevação dos títulos e, portanto, estabelecer o diagnóstico de infecção estreptocócica recente
• ASLO, praticamente único anticorpo antiestreptocócico realizado em condições habituais, tem uma sensibilidade
que não ultrapassa 80%, ou seja, aproximadamente 20% dos pacientes com amigdalite estreptocócica podem não ter
elevação de ASLO
• É importante enfatizar que crianças em idade escolar apresentam infecção estreptocócica frequentemente e,
portanto, títulos elevados de ASLO, entre 200 e 400 U Todd (unidades Todd) podem ser encontrados em crianças
sadias, principalmente naquelas menos favorecidas economicamente. 13
Ⴇ Amigdalite. A amigdalite clínica (dor de garganta) não deverá ser utilizada como evidência de infecção
estreptocócica anterior, uma vez que a maioria das amigdalites em crianças é viral e não existem dados clínicos
seguros para distinguir entre amigdalites viral e bacteriana. Por outro lado, conforme referido anteriormente, cerca
de 30 a 40% das amigdalites estreptocócicas dos pacientes reumáticos são assintomáticas ou leves.
Diagnóstico
Não existe um exame laboratorial, sinal ou sintoma específico de febre reumática.
Os critérios de Jones (modificados), utilizados como guia para o diagnóstico da febre reumática, têm com base
a divisão dos achados clínicos e laboratoriais da doença em sinais maiores e menores, associados à evidência da
infecção estreptocócica anterior. Revisões recentes normatizaram a utilização desses critérios, tendo em vista as
diferentes possibilidades clínicas3 (Tabela 99.5).
Tabela 99.5 Critérios para o diagnóstico da febre reumática e da doença reumática cardíaca (WHO,
2002-2003), com base nos critérios de Jones modificados, 1992.3
Critérios Sinais maiores: cardite, poliartrite, coreia, nódulos subcutâneos, eritema marginado
Sinais menores:
• Clínicos: febre, poliartralgia
• Laboratoriais:
• Coreia reumática
• Início insidioso de cardite reumática**
• Valvite reumática crônica (primeira avaliação em pacientes com doença valvar:
estenose mitral, doença mitral mista ou doença aórtica)***
• Dois sinais maiores ou um sinal maior e dois menores associados à evidência de
infecção estreptocócica prévia (ver critérios anteriores)
• Dois sinais menores associados à evidência de infecção estreptocócica prévia§
• Não são necessários outros sinais maiores ou evidência de infecção estreptocócica
• Não são necessários quaisquer outros sinais para o diagnóstico de doença cardíaca
reumática
*Pacientes com quadros articulares considerados atípicos, acompanhados de sinais menores (três ou mais) e evidência
de infecção estreptocócica prévia poderão apresentar comportamento evolutivo de febre reumática. Nesses casos, o
diagnóstico provável de febre reumática deve ser considerado, recomendando-se a introdução de profilaxia secundária e
o seguimento cuidadoso, em especial para pacientes de grupos etários de maior vulnerabilidade. **Endocardite
bacteriana deve ser excluída. ***Doença cardíaca congênita deve ser excluída. §Alguns pacientes com surtos recorrentes
poderão não preencher esses critérios.
Tratamento
Uma vez estabelecido o diagnóstico de febre reumática, a terapêutica envolve três fases que, de modo geral, são
realizadas simultaneamente:
Antibióticos bacteriostáticos como cloranfenicol, tetraciclinas e sulfas não erradicam o EBHGA da orofaringe e,
portanto, não são indicados para a profilaxia primária.
A penicilina benzatina mantém-se como a melhor opção para profilaxia primária da febre reumática e, quando
sua utilização não for possível pelas várias razões citadas anteriormente, é importante que a escolha seja direcionada
para antibióticos bactericidas para EBHGA, com espectros de ação reduzidos (menor possibilidade de surgimento
de resistência bacteriana), boa tolerância, esquema posológico confortável e baixo custo.
Contatos domiciliares de um caso de febre reumática devem ser submetidos à cultura de orofaringe e tratados
quando o resultado for positivo. Muitas vezes, pela dificuldade em realizar culturas, a profilaxia primária é
recomendada para todos os contatos domiciliares, especialmente crianças em idade escolar e adolescentes. 11
Amigdalectomia em pacientes reumáticos com o objetivo de diminuir a frequência das infecções estreptocócicas
e, portanto, as recorrências da febre reumática não tem indicação.
Tratamento sintomático
Anti-inflamatórios não esteroides
De forma geral, os anti-inflamatórios não esteroides (AINEs) são excelentes para o controle da febre e da artrite
e suas indicações na febre reumática estão limitadas aos casos que não apresentam evidências de cardite, uma vez
que na presença de envolvimento cardíaco existe indicação ao uso de corticosteroide, que torna desnecessária a
introdução simultânea de anti-inflamatório não esteroide.
O ácido acetilsalicílico (AAS) costuma ter um efeito dramático na inflamação articular, com desaparecimento
dos sinais e sintomas em 24 a 48 h. Outros anti-inflamatórios não esteroides, como o naproxeno, parecem ser
seguros e igualmente eficazes.24
A poliartrite migratória, característica da febre reumática, responde muito bem ao uso de AAS ou naproxeno,
com melhora rápida do processo inflamatório, o que não costuma ocorrer com os quadros articulares atípicos mais
prolongados, também observados na febre reumática, e nos quais se notam melhores resultados com o uso de
indometacina (Tabela 99.7).
Crianças com quadros articulares mal caracterizados, em fases muito iniciais, poderão ser tratadas com
analgésicos, como o paracetamol, para tornar possível a melhor caracterização do quadro articular e,
consequentemente, diagnóstico e tratamento mais adequados.
Uma vez que os AINE são sintomáticos e não interferem no curso da febre reumática, a duração do tratamento
deve ser estimada de modo a cobrir o período de atividade da doença, em geral, com duração de seis a doze
semanas. Na ausência de cardite, o tratamento com AINE deve ser mantido por 6 semanas, mas poderá ser
diminuído desde que as provas de atividade inflamatória (proteína C reativa e velocidade de hemossedimentação)
estejam normais.3
*Duração total do tratamento poderá variar dependendo do quadro clínico e das provas de atividade inflamatória. AAS =
ácido acetilsalicílico; VO = via oral.
Corticosteroides
São utilizados em todas as crianças com comprometimento cardíaco. O corticosteroide de escolha é
habitualmente a prednisona, utilizada inicialmente em dose alta. Com a melhora dos sintomas e/ou tendência à
normalização das provas de atividade inflamatória, inicia-se a redução lenta até a retirada completa da substância em
cerca de oito a doze semanas, tempo médio de duração do surto de cardite (Tabela 99.8).
O uso de corticosteroide para o tratamento da febre reumática é antigo e, ao longo dos anos, vários estudos
prospectivos ou fundamentados em análises de bancos de dados não conseguiram demonstrar superioridade
evidente dos corticoides em reduzir o risco de lesão valvar crônica ou a duração da doença aguda. Sua utilização na
cardite prende-se à sua ação como anti-inflamatório de alta potência, existindo estudos que sugerem o uso de anti-
inflamatórios não esteroides para os casos de cardites leves, com bons resultados.25–29
A pulsoterapia com metilprednisolona, na dose de 30 mg/kg/dose, máximo de 1 g, por 3 a 4 dias consecutivos e
eventual repetição, é utilizada para o tratamento das cardites graves e, apesar da melhora laboratorial não diferir da
observada com o uso de prednisona, a melhora clínica parece ser mais rápida e o período de internação hospitalar
menor.30
O uso de gamaglobulina por via intravenosa para o tratamento da cardite apresenta resultados semelhantes aos
observados com os corticosteroides e, a exemplo desses, não reduz o risco de lesão cardíaca em seguimentos de 1
ano.16
Para crianças com comprometimento cardíaco, orienta-se o repouso no leito ou a limitação das atividades
físicas, por períodos variáveis (1 a 6 meses), dependendo da gravidade da cardite. Diuréticos, digitálicos, restrição
hídrica e sódica poderão ser necessários em casos de insuficiência cardíaca.
Coreia
Pacientes com coreia devem ser mantidos em ambientes tranquilos, com poucos estímulos externos. Várias
substâncias, como tranquilizantes e sedativos, poderão ser utilizadas de forma isolada ou em associação.
O haloperidol é uma boa opção terapêutica no controle sintomático dos movimentos coreicos, com melhora
clínica após 5 a 6 dias, em média, e desaparecimento dos sinais em 30 a 40 dias, possibilitando à criança um
retorno mais rápido às atividades diárias. Apesar de serem raras as reações graves ou irreversíveis associadas ao
uso de haloperidol, é necessário cautela na sua administração e, quando doses superiores a 5 mg/dia forem
necessárias é recomendável o monitoramento contínuo em ambiente hospitalar, pelos riscos de impregnação. 31
O ácido valproico pode ser uma alternativa terapêutica válida para crianças que apresentem toxicidade ou não
possam ser supervisionadas durante a administração do haloperidol. O tempo de resposta é discretamente maior e
apesar da possível hepatoxicidade, em geral, nenhuma complicação importante está associada ao uso da substância.
O uso de carbamazepina na dose de 4 a 10 mg/kg/dia acompanha-se de melhora clínica evidente após dois a
catorze dias, com desaparecimento da coreia em duas a doze semanas e duração total do tratamento de um a quinze
meses, sem o aparecimento de efeitos colaterais.32
Apesar da ausência de evidências sobre o benefício do uso de corticosteroides, alguns estudos sugerem a
eficácia do uso de prednisona em altas doses (2 mg/kg/dia), durante 4 semanas, na redução da intensidade e duração
dos sintomas.33
Profilaxia secundária
Independentemente da gravidade do surto inicial, pacientes portadores de febre reumática apresentam riscos
elevados (20 a 50%) de recorrência da doença após infecções estreptocócicas de orofaringe. Novos surtos de
atividade da doença poderão agravar lesões cardíacas preexistentes ou propiciar seus surgimentos, razão pela qual a
profilaxia secundária é obrigatória e seu objetivo básico é prevenir o aparecimento de infecções estreptocócicas de
orofaringe e, portanto, impedir as recorrências de febre reumática.
Há cerca de 40 anos, a substância de escolha para a profilaxia secundária é a penicilina benzatina por ser a que
dá proteção mais efetiva contra a faringoamigdalite estreptocócica e contra recorrências de febre reumática, quando
comparada a outras substâncias, como, por exemplo, a penicilina oral ou a sulfadiazina. 34
Dúvidas quanto aos intervalos de administração do medicamento, dose, duração da profilaxia vêm sendo
discutidas ao longo dos anos e várias controvérsias persistem.
O EBHGA apresenta sensibilidade elevada e mantida em níveis muito baixos de penicilina, não havendo
descrição do surgimento de cepas resistentes na atualidade. Para uma profilaxia secundária adequada, os níveis
séricos de penicilina benzatina devem ser mantidos acima de 0,02 mg/mℓ.
Com a utilização de 1.200.000 U de penicilina benzatina a cada 4 semanas, a taxa de recorrência da febre
reumática situa-se entre 5 e 8% em seguimentos de 5 a 6 anos, sendo esta a principal razão para a Organização
Mundial da Saúde e a Associação Americana de Cardiologia recomendarem o uso de penicilina benzatina a cada 3
semanas para o tratamento profilático da febre reumática, em países em desenvolvimento, como o Brasil. 3,22,35
Vários estudos demonstram que os níveis séricos da penicilina benzatina, e mesmo a manutenção desses níveis,
variam segundo a dose de penicilina administrada, referindo-se que, com doses de 1.800.000 ou 2.400.000 U,
níveis séricos adequados possam ser mantidos mesmo após 4 semanas. Com base nesses estudos, sugere-se que a
dose preconizada de penicilina benzatina deva ser pelo menos de 1.200.000 U, mesmo porque a maioria das
crianças com febre reumática são escolares com pesos superiores a 25 kg, ressaltando-se que o cálculo da dose de
penicilina para crianças é de 50.000 U/kg.36,37
A duração da profilaxia secundária baseia-se principalmente na presença ou ausência de cardite. Segundo a
Associação Americana de Cardiologia, pacientes que tiveram cardite devem manter a profilaxia durante a vida
inteira e aqueles que não tiveram cardite devem manter a profilaxia até 18 anos e pelo menos durante 5 anos após o
último episódio.22
Pacientes com regurgitação mitral leve ou cardite curada e baixo risco de contato com estreptococos poderão
suspender a profilaxia aos 25 anos e após dez anos do último episódio.38
Sendo assim, a duração da profilaxia secundária é sempre prolongada e sua eventual suspensão deve levar em
conta os fatores de risco de recorrência de cada paciente (idade, risco profissional de exposição ao EBHGA,
condições socioeconômicas etc.), a presença de cardite e sua gravidade e, ainda, o fato de as recorrências ocorrerem
principalmente nos cinco primeiros anos após o surto da doença.
A profilaxia secundária, realizada com penicilina oral ou outras substâncias, como as sulfas e a eritromicina, em
geral não apresenta boa eficácia, basicamente devido às baixas taxas de adesão. Contudo, mesmo com boa adesão, o
risco de recorrência é maior com a profilaxia oral, habitualmente não recomendada.
A baixa adesão ao tratamento parece ser a principal causa de recorrência da febre reumática. Alguns fatores de
risco devem ser considerados:1
• Adolescência
• Data do último surto: quanto maior o intervalo de tempo após o surto, menor a adesão
• Baixo nível socioeconômico
• Baixo nível cultural da família
• Ausência de hospitalização no surto agudo
• Comparecimento às consultas médicas desacompanhado dos pais ou responsáveis.
Alergia à penicilina
A alergia à penicilina é rara. Estudos em populações militares mostram incidências de 0,8%, sendo as reações
em crianças ainda mais raras. O Grupo Internacional de Estudos em Febre Reumática coloca a frequência de
reações alérgicas à penicilina benzatina em 3,2% e a anafilaxia em 0,2%, considerando ainda que reações alérgicas
graves são raras em pacientes em profilaxia prolongada e os benefícios sempre superam os riscos.
Na ausência de reações, após a primeira aplicação de penicilina benzatina, a presença de reações à segunda dose
é extremamente rara, quando esta for administrada 1 a 2 meses após a dose anterior. 18
Testes cutâneos para detecção de alergia à penicilina costumam ser inadequados, pela não utilização dos
determinantes antigênicos primários ou mesmo secundários da penicilina e, ainda, por erros técnicos. A utilização
prévia de penicilina pelo paciente e a informação de alergia nos familiares são dados importantes na caracterização
da provável alergia e a primeira aplicação da penicilina benzatina deve ser realizada em local com disponibilidade de
recursos para atendimento imediato caso haja reações alérgicas graves.
Alergia à penicilina