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O CALAFRIO

Henry James

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HENRY JAMES
O CALAFRIO
Título original: The Turn of the Screw
HENRYJAMES

Autor de vasta produção literária, Henry James nasceu em


Nova Iorque em 1843 e faleceu em Londres em 1916.
De ascendência irlandesa por parte do avô paterno, Henry James vai ser profundamente
influenciado, a nível da sua formação literária, pelo ambiente familiar. Seu pai, ele próprio
escritor e teósofo na linha de Swedenborg, era um autêntico viajante e cosmopolita, pretendendo
fazer dos seus filhos autênticos "cidadãos do mundo", com uma base cultural e humanística
suficientemente ampla para mais tarde poderem assumir as suas opções de forma livre e
responsável.
Deste modo, o jovem Henry vai receber uma formação de alto nível, que lhe é ministrada por
professores particulares até à idade de 12 anos. Está-se então em 1855, e a família James parte
para uma estada de três anos na Europa. Genebra é o primeiro local de residência europeia, a que
se seguirá Londres. Entretanto, James frequentará em Paris, durante este período, uma escola
baseada nos princípios de Fourier, bem como um curso de Verão em Bona. A Small Boy and
Others e Notes ofa Son and a Brother, correspondentes aos dois primeiros volumes da sua
Autobiografia, são as obras que nos permitem conhecer este período da sua vida, período em que
vai despertar o seu amor e o seu fascínio pela Europa,
pela sua arte e pela sua cultura.
Regressado à pátria em 1860, James sofre, num incidente aparentemente anódino durante a
extinção de um pequeno incêndio campestre, uma "lesão horrível", cuja natureza nunca revelou e
que o perseguiu durante toda a sua existência, lançando uma sombra misteriosa sobre a sua vida
privada: James nunca casará ou manterá qualquer relação fixa: aliás, a sua biografia é parca em
vivências que não estejam ligadas à literatura, e o próprio André Gide notava que o "peso da
carne está ausente" do seu mundo.
Como consequência imediata deste evento, não participa, ao contrário dos seus irmãos, na
Guerra da Secessão, inscrevendo-se em 1862 na Universidade de Harvard para aí cursar Direito
na respectiva faculdade. Contudo, pronto interrompe os estudos, começando a escrever,
encorajado por homens de visão com Wiliam HoweIs e Charles Norton, este último professor de
Belas-artes naquela universidade. Aparecem assim, em publicações de grande prestígio, como
The Atlantic Monthly e The Nation, de recente fundação, críticas e recensões, bem como uma
novela publicada em folhetins, intitulada Watch and Ward (Atlantic Montht
1871) - que aborda o problema de um tutor que se apaixona e casa com a sua pupila -, e a farsa
Pyramus and Thisbe, suas preocupações estilísticas começam então a emergir, notaria-se a busca
duma estética original que o acompanhará ao longo de
toda a sua longa carreira de escritor e que está igualmente ligada ao conflito em si existente,
entre uma tendência natural para abstração e uma exigência de concretude, entre o "romance" de
tema pitoresco ou fantástico, ao estilo de Hawthornee e o realismo de estilo francês, denunciador
de certo moralismo falso e mesqinho.
Recomeça então a viajar, voltando à Europa.
Reencontra Londres e descobre a Itália, deixando-se fascinar
como herói da sua primeira obra de ficção de relevo: A Passior
te Pilgrim (1871) aborda um dos seus grandes temas, quiçá o mais importante de todos os que
abordará: as reacções dum ávido peeregrino" americano que se vê confrontado com o fascinante
e complexo mundo europeu das artes e dos negócios. Aliás, este "ritre pendular" de oscilação
entre os dois continentes, corresponde à própria vivência de James, repartida entre a sua terra
natal a pátria espiritual, entre o ser americano de temperamento e coração e o ser europeu de
pensamento e espírito. Finalmente, acaba
por se fixar em Londres a partir de 1876. Começam então a surgir as suas obras: Roderick
Hudson (1876), TheAmerican (1877), Europeans (1878) e Daisy Miller (1879), um dos seus
grandes sucessos, sem dúvida devido ao encanto da personagem principal.
Uma jovem americana simples e ingénua, que chega à Europa e
é protagonista de várias aventuras e desventuras. Mais tarde, em 1883, o próprio Henry James
publicará a adaptação desta obra para o teatro.
A estes, muitos outros títulos se vão seguir, com uma periodicidade muitas vezes plurianual.
Aliás, com excepção da poesia, cultivou todos os géneros, escrevendo mais de uma dezena de
romances e centenas de outros escritos mais breves, que vão desde o conto à novela, da crítica
literária aos livros de viagens. Contudo, há uma especial incidência de obras do gênero narrativo,
quais denotam duas preocupações básicas: primeiro, o facto literário em si, e a novela como obra
de arte auto-suficiente e, ao mesmo tempo, como tradução e revelação da vida; segundo, o
comportamento humano em sociedade, a relação humana imediata, reacções que o homem
desperta no homem.
Ainda assim, há que referir como importantes dentro da sua
biobibliografia os contos de pendor insólito e sobrenatural, nos quais o mal e a preversão, sempre
presentes no mundo de James, tomam a forma de Incubo, de espectro ou de alucinação. Estão
neste caso os textos apresentados em The Two Magics (1898), de que faz parte O Calafrio (The
Turn of the Screw), agora apresentado.
Observador atento da realidade humana, Henry James conviveu com quase todos os grandes
autores do seu tempo, como Flaubert, Balzac, Zola, Tennyson, Elliot, Brown, Ruskin e
Turgenev, caldeando na sua experiência uma civilização homogénea, resultante do triângulo
formado por Nova lorque, Londres e Paris - civilização de que foi o primeiro narrador e que deu
ao romance anglo-americano uma originalidade e uma forma estética novas. De igual modo, o
romance em geral muito ficou a dever, pela forma penetrante e incisiva como apresentou
personagens e situações.
Por tudo isto, Henry James é um dos autores mais importantes do nosso tempo, cuja obra urge
ser conhecida e divulgada.
A história mantivera-nos reunidos em volta da lareira, com a
respiração suspensa, mas, para além do comentário óbvio de que
essa história era horripilante, como convinha a uma narrativa estranha, contada numa velha
mansão na véspera do Natal, recordo-me de não ter sido feito mais nenhum comentário, até que
alguém observou ser este o único caso, do seu conhecimento, em que o fantasma aparecia a uma
criança. Devo notar de que se tratava aqui de uma aparição, numa casa tão velha como esta em
que agora nos encontramos, uma aparição de um tipo particularmente estranho, a qual se
manifestava a um rapazinho, no momento em que estava a dormir com a mãe no mesmo quarto,
e que a acordara, aterrorizado. Antes que ela conseguisse acalmá-lo e adormecê-lo de novo, viu
também a mesma figura que tanto assustara o filho.
Foi esta observação, não naquele momento mas um pouco mais
tarde, que provocou a resposta de Douglas, para cujas consequências interessantes chamo a vossa
atenção. Alguém contou ainda uma outra história, sem grande sucesso, e eu reparei que Douglas
não lhe prestava a menor atenção. Interpretei isto como um sinal
de que ele tinha, por sua vez, algo para nos contar e que, portanto, só nos restava aguardar.
Assim sucedeu, dali a duas noites. Porém, ainda nesse mesmo serão, deu-nos conta do que tinha
em mente.
Em relação ao fantasma ou ao que quer que fosse de que nos
falou Griffin, concordo plenamente que o facto de ele se ter revelado em primeiro lugar a um
rapazinho de tão tenra idade torna a história particularmente chocante. Mas não se trata do
primeiro caso deste gênero, em que figura uma criança. Se isso vos provoca um arrepio, que
diríeis se o caso se passasse com duas crianças?
- Diremos, é claro - exclamou alguém -, que com duas crianças causaria dois arrepios! E
diremos ainda que estamos mortos
por saber o que se passou com elas...
Parece que ainda estou a ver Douglas, de costas para a lareira, de mãos nos bolsos, inclinado
para o seu interlocutor:
-Até hoje ninguém, a não ser eu, tem conhecimento disto. E demasiado trágico.
Esta frase foi repetida por várias vezes, o que lhe dava cada vez maior sensação, enquanto o
nosso amigo preparava com toda a calma o seu triunfo e ia dizendo, a percorrer com os olhos o
resto do auditório:
Excede tudo quanto possam imaginar. Não conheço nada
com que possa fazer comparação.
- Em questão de horror? - lembro-me de ter perguntado.
Ele parecia querer dizer que a coisa não era tão simples como isso; que se tornava difícil
qualificá-la. Passou a mão sobre os olhos e fez uma expressão dolorosa:
- Quanto a horror é, na verdade, horrível.
- Oli, que maravilha! - exclamou uma das senhoras.
Dougglas não lhe deu atenção. Olhou para mim, mas era como se
não me visse e estivesse a contemplar aquilo de que eu falava.
-É uma coisa horrivelmente estranha, dolorosa e cheia de místério.
- Bem, nesse caso - propus -, senta-te lá e começa.
Ele voltou-se para a fogueira, empurrou um tição com o pé e
ficou-se a olhá-lo por uns momentos. Depois voltou-se de novo
para nós, dizendo:
- Não posso começar. Tenho de mandar vir uma coisa da cidade.
Isto provocou um gemido geral de protesto e censura; ao que ele respondeu, explicando no seu
tom preocupado:
- A história está escrita. Tenho-a fechada numa gaveta que
não é aberta há anos. Posso escrever ao meu criado e mandar-lhe a chave, ele envia-me o
embrulho tal como está.
Parecia dirigir-se a mim ao propor isto, como quem procura
uma ajuda para não hesitar. Era como se tivesse quebrado uma
crosta de gelo, formada por muitos Invernos. O silêncio dele tivera a sua razão de ser. Os outros
estavam aborrecidos com a demora,mas a mim, o que me encantava eram os escrúpulos dele.
Insisti para que escrevesse, de forma a ir na primeira remessa de correio logo pela manhã, e
prometesse contar-nos assim que tivesse alguma coisa. Também quis saber se aquela experiência
lhe dizia respeito. A resposta dele foi imediata:
- Oli, não, graças a Deus!
- Mas foi você que a escreveu? Registou o que ouviu contar?
- Apenas a impressão. Está tudo aqui... - e batia com a mão
no peito. - Conservei-a sempre.
- Então o manuscrito... ?
- Tem a tinta esbatida e a letra é de uma beleza sem igual -
hesitou de novo. - Uma letra de mulher. Ela morreu deve fazer
uns vinte anos. Antes de morrer enviou-me o manuscrito.
Agora todos escutavam cheios de interesse e houve alguém que
se mostrou malicioso, ou, pelo menos, que insinuou, dando a perceber, que havia qualquer coisa
mais para além da história. Ele não aceitou isso sem um sorriso mas também sem irritação.
- Era uma criatura encantadora, mas tinha mais dez anos que
eu. Foi preceptora da minha irmã - informou calmamente. -
Nunca conheci ninguém da sua classe tão adorável. Merecia toda
a nossa estima. Isto passou-se há muito tempo, e o episódio em
questão é ainda mais anterior. Eu andava então na universidade
e conheci-a da segunda vez que fui de férias. Nesse ano demorei-me muito tempo em casa. Fazia
um tempo delicioso; quando ela estava livre dávamos longos passeios no jardim, a conversar, e,
nessas conversas, eu verifiquei quanto ela era inteligente e simpática. Oli, sim, não sorriam,
fiquei a gostar muito dela e ainda hoje me sinto feliz quando penso que ela também gostava de
mim. Se não gostasse não me teria falado na história. Nunca a tinha contado a ninguém. Não foi
só por ela mo ter dito, eu sabia que era verdade. Tinha a certeza, via que era assim. Quando
ouvirem, vão ver.
- Porquê, a coisa tinha-a assustado muito?
Ele continuava a fitar-me:
- Vocês vão ver - repetiu. - Vão ver.
Eu também o fitei:
- Já percebi. Ela estava apaixonada.
Ele riu pela primeira vez
- És mesmo esperto. Sim, estava apaixonada. Isto é, tinha
estado. Isso veio a lume, tinha de ser, sem isso ela não poderia contar a história. Eu percebi, e ela
viu que eu percebera; mas nenhum de nós se referiu a isso. Lembro-me perfeitamente da hora e
do local... um canto do relvado, à sombra das enormes faias, numa tarde quente de Verão. O
cenário não era arrepiante, mas... oh!.... - E Douglas afastou-se do lume e voltou a deixar-se cair
na cadeira.
-Vais receber a tua encomenda na quinta-feira de manhã? -
perguntei eu.
- Provavelmente só na distribuição da tarde.
- Bem, nesse caso, logo a seguir ao jantar...
- Reunimo-nos todos aqui? - e olhava em redor. - Não se vai
ninguém embora? - O seu tom era de esperança.
- Ficamos todos.
- Eu vou ficar. Eu vou ficar - gritavam as senhoras, mesmo
aquelas cuja partida já estava destinada.
Entretanto Mrs. Griffin quis um esclarecimento:
- Por quem estava ela apaixonada?
- Veremos isso na história - resolvi eu declarar.
- Oli, não consigo esperar pela história!
-A história não diz -replicou Douglas. - Pelo menos de uma
maneira clara e literária.
- Isso é que é pena. Seria a única maneira de eu perceber.
- E tu não nos queres dizer, Douglas? - perguntou alguém.
Ele pôs-se novamente de pé:
- Sim, amanhã digo. Agora tenho de ir para a cama. Boa
noite! - pegou rapidamente num castiçal e deixou-nos um pouco
espantados. Da extremidade daquele vasto salão onde nos encontrávamos, ouvimos os seus
passos pela escada acima, até que Mrs. Griffin falou de novo:
- Bem, eu posso não saber por quem ela estava apaixonada,
mas quem estava apaixonado por ela sei eu.
- Ela era dez anos mais velha... - observou o marido.
-Mais uma razão ... naquela idade... mas a discrição dele é uma
coisa bonita.
- Já lá vão quarenta anos! - fez notar Griffin.
- Até que por fim ele resolveu falar.
- E isso vai ser o grande acontecimento de quinta-feira à noite! - Todos concordaram comigo a
tal ponto que tudo o mais deixou de nos interessar. A última história ficará incompleta, como se
fosse o primeiro episódio de um folhetim. Despedimo-nos, empunhámos os nossos castiçais e
fomos todos para a cama.
No dia seguinte fiquei a saber que, no correio da manhã, seguira
para Londres uma carta contendo a chave do apartamento dele.
Porém, a despeito, ou antes, talvez em virtude desse conhecimento, deixámo-loficar sozinho até
depois do jantar, de facto até a uma hora mais de acordo com a espécie de emoções por que todos
nós ansiávamos. Ele, então, tornou-se tão comunicativo quanto nós desejávamos e explicou-nos
o porquê. Estávamos uma vez mais em volta da lareira, onde na véspera ele nos deixara, cheios
de curiosidade. Pelos vistos a narrativa, para ser bem compreendida, necessitava de algumas
palavras de explicação prévia.
Devo confessar desde já que a história que aqui vos apresento
é uma transcrição minha, feita muito mais tarde. Antes de morrer, o pobre Douglas, ao ver
aproximar-se o fim, entregou-me o manuscrito que, daquela vez, lhe chegara às mãos, três dias
mais tarde, e que ele começou a ler imediatamente na quarta noite, produzindo enorme sensação
no nosso círculo de ouvintes atentos. As
senhoras que estavam para ir embora e que tinham decidido ficar, acabaram mesmo por partir,
graças a Deus, já tinham tudo combinado, mas confessaram ir a morrer de curiosidade, mercê de
algumas informações que Douglas nos fora dando acerca do assunto. Estas partidas tornou o
nosso auditório mais compacto e seleto, agrupado em volta do lume e sujeito a uma emoção
colectiva. A primeira informação dizia que a história começara um pouco antes da altura em que
principiava a ser narrada. Isto explicava-se pelo facto de a velha amiga, a mais jovem de um
rancho de filhas de um pároco da província, ter vindo, aos vinte anos, para Londres, muito
insegura, a fim de responder pessoalmente, após breve troca de correspondência, a um anúncio.
Ao apresentar-se numa casa de Harley Street, que então se lhe afigurou vasta e imponente,
essa jovem verificou que o autor do anúncio, o seu patrão em perspectiva, era um senhor ainda
jovem e solteiro, uma personagem que aquela rapariguinha ingénua, nascida num presbitério do
Hampshire, só em sonhos, ou pela descrição de algum antigo romance, ousara conceber.
Podemos facilmente imaginar o tipo que, felizmente, ainda hoje se encontra: belo, senhor de si,
simpático, desprendido, alegre e amável. Ela achou-o logo galante e encantador; porém, o que
mais a impressionou e lhe deu aquela coragem que, mais tarde, viria a revelar, foi o facto de ele
lhe haver apresentado a missão dela, como um favor que ela lhe fazia e do qual ele
ficaria imensamente grato. Imaginava-o rico, mas deveras extravagante, via-o a evoluir num
cenário de alta sociedade, de gente encantadora, de roupas caras, de belas relações com outras
mulheres. Residia numa enorme casa recheada com recordações de viagens e espólios de caça;
mas desejava que ela se dirigisse imediatamente para a sua casa de campo, uma velha mansão
familiar no Essex.
Em virtude do falecimento do seu irmão mais novo, militar, e de sua cunhada, que haviam
morrido na índia, dois anos antes, ficara ele responsável pelos dois sobrinhos, uma menina e um
rapaz.
Para um homem na sua posição, sem a mínima experiência do assunto e com muito pouca
paciência, estas duas crianças representavam um fardo muito pesado. Haviam-lhe causado já
enormes preocupações e, sem dúvida, muitos erros da sua parte, mas sentia uma pena imensa das
pobres criaturinhas e fazia tudo quanto estivesse nas suas mãos por elas. Neste sentido
mandara-as para a sua outra casa, uma residência muito mais apropriada, e ali as mantivera
entregues às pessoas mais competentes que pudera arranjar para cuidar delas, chegando mesmo a
prescindir de alguns dos seus criados. Ia até lá sempre que podia, a fim de ver como corriam as
coisas. O pior é que as crianças não possuíam mais nenhuns parentes e os negócios dele
absorviam-lhe o tempo todo.
Cedera-lhes a posse de Bly, que era um local saudável e seguro, e colocara à frente da sua
propriedade uma excelente criatura, Mrs. Grose, que apesar da sua função de governanta,
mantinha o estatuto de simples empregada, que a candidato a preceptora iria certamente estimar.
Fora, noutros tempos, criada particular da mãe dele.
Neste momento exercia as funções de governanta e, provisoriamente, a de ama da rapariguinha,
a quem se afeiçoara muito, uma vez que não tinha filhos. Havia bastante mais pessoal, porém
ajovem senhora que ia ser contratada como preceptora teria sobre eles a máxima autoridade.
Durante as férias encarregar-se-ia igualmente do rapaz, que estava então internado num colégio,
muito embora fosse demasiado novo para isso, mas, dadas as circunstâncias, que outra coisa se
poderia ter feito? E uma vez que as férias estavam à porta, ele regressaria a casa dentro de
poucos dias. As duas crianças tinham estado primeiramente entregues aos cuidados de uma
outra jovem, que, infelizmente, morrera. Ela desempenhara impecavelmente a sua missão,
tratava-se de
pessoa altamente respeitável, porém a sua morte, estranhament
prematura, não deixara outra alternativa senão o internamento
dojovem Miles num colégio. Desde então Mrs. Grose ocupava-se
da educação e da manutenção de Flora, fazendo por ela tudo quanto estava na sua mão. Havia
ainda uma cozinheira, uma criada de dentro, uma empregada de vacaria, um antigo criado da
cavalariça e um velho jardineiro, todos eles igualmente respeitáveis.
Nessa altura da narrativa apresentada por Douglas alguém pôs
a questão:
- E de que é que morreu a primeira preceptora? De um excesso de respeitabilidade?
O nosso amigo apressou-se a retorquir:
- Já lá vamos. Não me quero antecipar.
- Desculpe, mas acho que é isso mesmo que o senhor tem estado a fazer...
- No caso da sua sucessora eu teria querido saber se o cargo envolvia... Qualquer perigo de
morte? - disse Douglas, completando meu pensamento. - Ela quis saber e ficou a saber. Como, é
o que vocês irão ouvir amanhã. Entretanto a perspectiva afigurou-se-lhe um tanto ou quanto
sombria. Ela era jovem, inexperientE, nervosa! Aguardavam-na uma série de tarefas difíceis,
pouca companhia, na realidade um grande isolamento. Hesitou. Pediu uns poucos de dias para
reflectir e considerar. Porém, o montante de ordenado excedia de longe as suas modestas
expectativas, assim, numa segunda entrevista deixou-se seduzir e aceitou.
Nesta altura Douglas fez uma pausa, que me permitiu interrompê-lo, para esclarecimento de
todos nós:
- A explicação disso, claro está, foi o facto de ela ter ficado seduzida pelos encantos desse
homem maravilhoso. E sucumbiu..
Douglas ergueu-se, como fizera na noite anterior, dirigiu-sE
para o lume, deu um toque com o pé numa das brasas, e ficou uns
momentos de costas para nós.
- Ela só o viu duas vezes - disse, por fim.
- Sim, mas foi isso precisamente, o encanto da sua paixão!
Com grande surpresa minha, Douglas, ao ouvir isto, voltou-se@
para mim:
- Foi esse o encanto da sua paixão - prosseguiu. - Porque
houve outros que não tinham sucumbido. Ele confessou-lhe
francamente as dificuldades que tivera até ali, que muitos pretendentes achavam as condições
inaceitáveis. De certo modo sentiam receio. Achavam tudo aquilo sombrio, estranho; sobretudo
por causa da principal condição que ele punha.
- E qual era?...
- Que ela nunca o incomodasse... mas nunca, nunca, em caso
algum; não apelasse para ele, não se queixasse nem escrevesse,
fosse por que motivo fosse, resolveria as questões sozinha, receberia o dinheiro através de um
advogado, encarregar-se-ia de tudo e deixá-lo-ia em paz. Ela prometeu fazer tudo isso, e quando
ele, aliviado, contentíssimo, lhe pegou por um momento na mão para lhe agradecer o sacrifício,
ela sentiu-se logo recompensada.
- Mas então foi essa toda a sua recompensa? - perguntou uma
das senhoras.
- Nunca mais o voltou a ver!?
- Oh! - exclamou a dama.
E uma vez que o nosso amigo nos deixou imediatamente a seguir, foi esta a única palavra que se
proferiu até à noite seguinte, quando ele se instalou ao canto da lareira, na poltrona, e abriu as
capas vermelhas e desbotadas de um álbum antigo com filetes doirados. A narrativa
prolongou-se por várias noites, mas, logo na primeira, a mesma senhora fez outra pergunta:
- Qual é o título da sua história?
- Não tenho título para ela.
- Oh, mas eu tenho! - exclamei. Douglas, porém, não me deu
ouvidos e começou a ler a narração com uma clareza tal, que só se podia comparar, aos nossos
ouvidos, com a beleza da letra da sua autora.

Recordo-me de que tudo começou com uma série de altos e baixos, de bons e maus
pressentimentos. Depois de me ter levantado de manhã, na cidade, para ir ao encontro do meu
patrão, seguiram-se dois dias verdadeiramente muito maus, em que todas as minhas dúvidas se
reavivaram a ponto de eu me convencer de que cometera um erro. Foi neste estado de espírito
que passei as longas horas de viagem, na diligência, aos solavancos, até ao local onde me devia
esperar um carro da casa. Tinham-me avisado de que
eram essas as condições e, de facto, no fim daquela tarde de Junho, aguardava-me uma cómoda
charrete. A viagem, àquela hora, com um tempo maravilhoso, através do campo, afigurou-se-me
uma mensagem de boas-vindas, e, quando entrámos na alameda, o meu ânimo reacendeu-se com
um vigor tal que não devia ser senão a prova de quanto ele havia esmorecido ultimamente.
Calculo que esperara ou receara algo de tão medonho que aquilo que via se me afigurou uma boa
surpresa. Recordo-me da agradável impressão que me causou a vasta fachada, com as suas
janelas abertas e as
cortinas leves através das quais duas criadas espreitavam para fora; lembro-me das flores
coloridas, do ruído das rodas sobre a areia, das copas frondosas das árvores por cima das quais as
gralhas voavam em círculo, crocitando no céu doirado. Aquele cenário possuía uma grandeza
que o tornava bem diferente da minha exígua habitação. Logo apareceu à porta, com uma
rapariguinha pela mão, uma criatura muito cortês que me fez uma vénia respeitosa como se eu
fosse a dona da casa ou uma visitante ilustre. Em Harley Street tinha ficado com uma ideia
diferente da casa, não a fazia tão grandiosa. Isto mais afirmou a minha convicção de que o seu
dono era um autêntico fidalgo e levou-me a pensar que o que
me esperava ia exceder tudo quanto ele me prometera.
Até ao dia seguinte nada veio causar-me a menor preocupação,
uma vez que fiquei extasiada, durante as próximas horas, com o
primeiro contacto com a mais nova das crianças. A rapariguinha
que acompanhava Mrs. Grose impressionou-me desde logo como
sendo uma criaturinha tão encantadora que não podia deixar de fazer felicidade a quem lidasse
com ela. Era a criança mais linda que eu vira até então e, mais tarde, estranhei que o meu patrão
não tivesse referido a isso em particular. Nessa noite pouco dormi, encontrava-me demasiado
excitada, tudo me admirava, me fazia pensar, acentuava em mim a noção de estar sendo tratada
com máxima liberalidade. Aquele quarto enorme e luxuoso, um dos melhores da casa, o leito
espaçoso e imponente, pelo menos era a impressão que me dava, as tapeçarias com figuras, os
espelhos compridos onde, pela primeira vez, me via de corpo inteiro. Tudo me impressionava,
bem como o maravilhoso interesse pela minha modesta função, que tantas coisas me
proporcionava por acréscimo. Também, logo de início, tive a convicção de que iria ter um bom
relacionamento com Mrs. Grose, coisas que, durante a v agem, me preocuparam bastante. O
único sinal que nesta primeirra
abordagem me poderia ter dado que pensar seria o facto de ela se ter mostrado
extraordinariamente satisfeita com a minha vinda
Logo na primeira meia hora percebi que aquela mulher robusta
feia, simples e asseada fazia todos os esforços para não manifestar demasiado o seu
contentamento. Já então eu tinha perguntado a mim própria a razão disto e, se reflectisse um
pouco, poderia ter ficado desconfiada.
Porém sentia-me encantada por não vislumbrar qualquer motivo de contrariedade relacionado
com algo de tão delicioso como
era a imagem da minha pupila. A recordação da sua beleza angélica fora decerto a principal
causa do desassossego que me fizera erguer repetidas vezes de madrugada e passear pelo quarto,
a fin de me compenetrar bem de tudo o que me rodeava; observei da minhajanela aberta a suave
madrugada de Verão, contemplei as outras alas da casa até onde a vista alcançava, escutei, na
penumbra da aurora, o pipilar dos primeiros pássaros, enquanto os meus ouvidos aprendiam
ainda outros ruídos menos naturais, não vindos
de fora, mas sim lá de dentro, que não tinha a certeza de escutar
Por momentos, julguei reconhecer ao longe, o grito débil de uma criança; de outra vez
sobressaltei-me quando senti uns passos leves no corredor, em frente à minha porta. Porém, estas
impressões não tinham importância bastante para que as retivesse na ment
e, só mais tarde, à luz, ou melhor, na escuridão de outras e subsequentes razões, é que voltei a
recordá-las. Vigiar, ensinar, "formar" a pequena Flora seria, sem dúvida nenhuma, uma tarefa
deliciosa e útil. Na véspera ficara combinado que, depois daquele primeiro dia, eu iria ficar com
ela no meu quarto, para isso já ali fora colocada a sua caminha. Dali em diante ela ficaria
inteiramente a meu cargo, dormiria ainda esta vez junto de Mrs. Grose em atenção à minha
inevitável estranheza e à natural timidez da criança. Apesar dessa timidez que ela própria, da
maneira mais estranha, confessara francamente, permitindo, com a doce serenidade de um
menino Jesus de Rafael, que a discutíssemos na sua presença, fiquei com a certeza de que iria
gostar de mim. O que, em
parte, me fazia estimar desde já Mrs. Grose, era o prazer que esta manifestava em face da minha
satisfação por me encontrar sentada à mesa da ceia, iluminada por quatro velas, com a minha
aluna na sua cadeirinha alta e com o seu bibe, a comer pão com manteiga e leite. Naturalmente
havia coisas entre nós que, na presença de Flora, não passavam de olhares significativos e
maravilhados, alusões obscuras e cheias de rodeios.
- E quanto ao rapazinho? Parece-se com ela? É também assim
tão extraordinário?
Tinha ficado assente entre nós não fazermos elogios demasiado claros à frente das crianças.
- Oli, miss, ele é mais que extraordinário! Se pensar bem desta menina... então ele... - Ela estava
de pé, com um prato na mão, olhando enlevada a nossa companheira, que nos fitava, ora a uma
ora a outra, com o seu olhar pacífico e celestial, que de modo algum nos constrangia.
- Então se penso bem desta...
- Vai ficar deslumbrada de todo com o menino!
- Bem, acho que foi para isso que eu vim para cá, para ficar
deslumbrada, contudo - senti um impulso que me levou a acrescentar - recordo que me
deslumbro com facilidade. Já o mesmo me sucedeu em Londres.
Parece-me ainda estar a ver o rosto largo de Mrs. Grose ao ouvir isto:
- Em Harley Street - disse ela.
- Em Harley Street.
- Bem, miss. A menina não foi a primeira nem será a última.
- Oli - esforcei-me por desatar a rir -, não tenho pretenções
de ser a única. De qualquer modo, ouvi dizer que o meu outro aluno chega amanhã?
- Não é amanhã, miss. É na sexta-feira. Vem, como a menina,
na diligência. Vem entregue ao condutor e daqui vai esperá-lo a mesma charrete que a foi esperar
a si.
Quis logo ali saber, se seria possível, como eu tanto gostaria, ir esperá-lo à diligência, na
companhia da sua irmãzinha. Proposta esta que Mrs. Grose acolheu com tamanha satisfação que
eu tomei a sua atitude como uma garantia de que estaríamos sempre de acordo. Oli, como ela se
mostrava feliz por eu me encontrar ali!
O que eu senti no outro dia creio que não se pode verdadeiramente considerar a contrapartida da
euforia que me tomou à chegada, foi, quanto muito, apenas uma ligeira opressão produzida por
uma tomada de consciência mais profunda das novas circunstâncias da minha vida, que medi e
pesei mais pormeenorizadamente. De facto, o seu volume e extensão, para os quais não estava
preparada, deixaram-me por fim um tanto ou quanto assustada e ao mesmo tempo bastante
orgulhosa. No meio desta agitação não seria fácil estabelecer um horário rígido de lições; entendi
que, neste primeiro dia, era mais acertado tentar ganhar a confiança da minha aluna por todos os
meios ao meu alcance. Passámos arribas o
dia ao ar livre; combinei com ela, o que muito lhe agradou, que seria ela só quem iria fazer-me
as honras da casa. Ela mostrou-me tudo, passo a passo, quarto por quarto, revelando-me todos os
segredos, explicando-me tudo na sua linguagem infantil, o que deu em resultado ficarmos
grandes amigas, quando ainda não tinha decorrido a primeira hora. Durante o percurso
impressionou-me o facto de ela, novinha como era, manifestar uma tão grande coragem e
à-vontade quando percorria os quartos vazios, os corredores escuros e as escadas de caracol, isto
até mesmo no cimo de
uma torre de ameias, que me causou vertigens. Enquanto me conduzia, ia fazendo mais
descrições que perguntas. Não voltei a Bly desde o dia em que me despedi e quer-me parecer que
hoje, os meus olhos mais experientes, não lhes atribuiriam tanta importância.
Porém, naquele momento em que a minha pequena guia, com os
seus cabelos de oiro e o seu vestidinho azul, corria à minha frente a dobrar as esquinas e a
palmilhar os estreitos corredores, eu tive a visão de um castelo de romance, habitado por um
rosado fantasma, castelo esse que, ao contrário da tradição, possuía todo o colorido dos livros de
histórias e dos contos de fadas. Não seria tudo
aquilo um livro de contos sobre o qual eu adormecera enquantolia?
Não senhor; aquilo era uma casa feia e antiga, mas cómoda, meio abandonada, dentro da qual
eu imaginava sermos um punhado de passageiros perdidos num barco à deriva. E, por estranho
que pareça, era eu quem ia ao leme!
A coisa veio-me à ideia dali a dois dias, quando fui de carro com Flora esperar o rapazinho,
conforme sugerira Mrs. Grose, e sobretudo mercê de um incidente ocorri do na segunda noite,
que me perturbou profundamente. O primeiro dia, como já disse, decorrera tranquilo; mas
terminou de maneira diferente. Nessa tarde o correio, que chegava sempre tarde, trazia uma carta
para mim, a qual continha, além de umas breves palavras do meu patrão, outra carta dentro, essa
dirigida a ele, ainda por abrir. O bilhete dele rezava assim:

Reconheço nisto a letra do director do colégio, que é um


grande chato. Leia-a, porfavor, e resolva o assunto, mas não
me diga nada. Nem uma palavra. Estou de partida!

Abri o sobrescrito com grande esforço, tão grande que levei muito tempo a recuperar; por fim
levei a missiva para o meu quarto e só ali no momento de ir para a cama. Teriafeito melhor se a
deixasse para o dia seguinte, pois valeu-me mais outra noite de insónia.
Não tendo ninguém que me aconselhasse, sentia-me desolada. Finalmente, achei por bem
abrir-me com Mrs. Grose.
- Que quer isto dizer? O menino foi mandado embora do colégio?
Reparei no olhar que ela me lançou. Depois, muito confusa, procurou disfarçar:
- Mas então não os mandam a todos?...
- Para casa? Pois mandam, mas só durante as férias. Miles não
pode voltar!
Consciente de estar a ser observada por mim, ela corou:
- Não o querem lá?
- Recusam-no determinantemente.
Ao ouvir isto, ela ergueu os olhos que antes desviara. Vi que estavam cheios de lágrimas.
- Que fez ele?
Hesitei. Por fim, achei por bem estender-lhe o documento, que
ela recusou, pondo as mãos atrás das costas e abanando tristemente a cabeça.
- Isso não é da minha conta, miss.
A minha conselheiro não sabia ler! Reconheci o meu erro... que atenuei o melhor que pude.
Abri novamente a carta e li-lha.
Depois dobrei-a de novo, com as mãos trémulas, e meti-a na algibeira.
- A coisa é mesmo má? - inquiriu com as lágrimas nos olhos.
- É isso que eles aí dizem?
- Não entram em pormenores, apenas lamentam não o poderem manter lá. Isso só pode
significar uma coisa. - Mrs. Grose
escutava, muda de emoção; evitou perguntar o que é que aquilo
significava. Portanto, a fim de pôr as coisas com certa coerência e fazendo unicamente apelo à
minha inteligência, prossegui: - Ele representa um perigo para os outros!
Ao ouvir isto, num daqueles impulsos próprios das pessoas simples, ela indignou-se:
- Master Miles, um perigo... ele?!
Na sua exclamação havia um tal acento de boa fé que, muito embora eu não tivesse ainda visto
a criança, o meu próprio receio fez-me recuar ante o absurdo de tal ideia. E dei comigo a fazer
coro com a minha amiga, exclamando sarcasticamente:
- Um perigo para os seus pobres colegas inocentes!...
- É horrível - exclamou Mrs. Grose-que eles digam uma coisa dessas! Afinal o menino só tem
dez anos!
- Pois, pois. Parece incrível!
A mulher ficara evidentemente satisfeita por me ouvir dizer isto, e exclamou ainda:
- Quando o vir, miss, então me dirá!
Senti imediatamente crescer a minha impaciência por o conhecer, curiosidade essa que foi
aumentando nas últimas horas até se tornar quase dolorosa. Percebi que Mrs. Grose tinha
consciência da emoção que provocara em mim, por isso prosseguiu, num tom afirmativo:
- E a menina não lhe fica atrás, benza-a Deus! -Acrescentou:
Olhe-me só para ela!
Voltei-me, e vi que Flora, que eu deixara dez minutos antes no quarto de estudo, munida de
uma folha de papel e de um lápis, ocupada a fazer ós bem redondinhos, encontrava-se entre
portas. Ela tinha uma maneira muito sua de se mostrar indiferente aos deveres aborrecidos:
olhava para mim com os seus grandes olhos luminosos e infantis a fitar-me, como quem diz que
era levada a fazer aquilo em virtude da grande amizade que tinha pela minha pessoa. Isto
bastava-me para perceber perfeitamente a comparação de Mrs. Grose. Assim, tomei a minha
aluna nos braços e cobri-a de beijos, de mistura com um soluço de arrependimento.
Contudo, durante o resto da tarde procurei novas ocasiões de
contactar com a minha colega, especialmente mais para a noite, quando comecei a perceber que
ela me evitava. Recordo-me de que a alcancei nas escadas e quando chegámos lá a baixo eu
detive-a, poisando-lhe a mão no braço:
- Pelo que a senhora me disse esta manhã - comecei -, deu-me a entender que ele nunca se
portou mal...
Ela deitou a cabeça para trás. Percebi que, desta vez e muito honestamente, ela tomara uma
atitude:
- Se ele nunca... Eu não disse isso!
Fiquei de novo preocupada.
- Então houve alturas que...
- Sim, miss, felizmente!
Depois de reflectir, concordei:
- Quer dizer que se um rapazinho nunca...
- Para mim não presta!
Pressionei-a para que concretizasse:
- A senhora prefere que eles sejam travessos? - E concordei
com ela: - Sou da mesma opinião! - exclamei. - Mas não a ponto de contaminarem os outros...
- Contaminarem?
Aquele termo forte deixara-a baralhada. E eu expliquei:
- Corromperem.
Ela olhou para mim, como se percebesse o sentido, mas soltou
uma risada estranha:
- Está com medo que ele a corrompa?
Fez a pergunta com tanto à-vontade e de um modo tão risonho
que eu ri também, com um riso um pouco idiota, tal como o dela, e, de momento, pus de lado as
minhas apreensões ridículas.
No dia seguinte, porém, quando se aproximava a hora de partir para a estação, ataquei de novo:
- Quem era a rapariga que aqui esteve antes de mim?
-A última preceptora? Também era nova e bonita, quase tão
bonita como a menina.
-Ah, espero que essas qualidades lhe tenham servido-recordo-me de ter arriscado. - O patrão,
pelos vistos, gosta que sejamos novas e bonitas!
- Oli, lá issogostava - concordou Mrs. Grose. - Era assim que
ele as queria a todas! - Mal acabara de falar, logo se arrependeu: - Isto é, é assim que ele as
quer... o patrão.
Fiquei impressionada:
- Mas de quem é que me estava a falar?
Ela ficou impassível, mas corou:
- Ora, do patrão, pois de quem havia de ser?
Isto pareceu-me tão evidente que logo se me desvaneceu a impressão de que ela dissera mais do
que pretendia; e, porisso, sóperguntei aquilo que me interessava saber:
- Ela via alguma coisa no rapaz...
- Alguma coisa que não estava certa? Nunca mo disse.
Tive escrúpulos de falar, mas ultrapassei-os:
Ela era cuidadosa... exigente?
Mrs. Grose parecia esforçar-se por responder com honestidade:
- Em certas coisas... era.
- Mas... não em todas?
Ela iludiu de novo a resposta:
- Olhe, miss, ela já morreu. Não sou de mexericos.
- Compreendo o que sente - apressei-me a retorquir. Mas
achei que isso não me impedia de prosseguir: - Ela morreu aqui?
- Não. Tinha-se despedido.
Havia qualquer coisa nas respostas secas de Mrs. Grose que me
soava falso, por isso prossegui:
- Despediu-se para ir morrer? - Mrs. Grose ficara-se a olhar
para fora da janela, mas eu achava que tinha o direito de saber o que se passava com asjovens
que eram contratadas para trabalhar em Bly. - Quer dizer que ela adoeceu e foi para casa?
- Ela não adoeceu cá em casa, pelo menos que se saiba. Foi-se
embora no fim do ano, disse que ia para casa passar umas curtas férias, a que tinha direito,
devido ao tempo que estivera aqui. Tínhamos cá, nessa altura, uma rapariga, como criada dos
meninos, que era boa e muito esperta. Foi ela quem tomou conta deles no intervalo. Mas a outra
nunca mais voltou, e quando eu estava ainda à espera, soube, pelo patrão, que ela tinha morrido.
- Mas de quê? - quis eu ainda saber.
-Ele nuncamo disse! Mas, porfavor, miss - acrescentou Mrs.
Grose -, tenho de voltar ao meu serviço.

O gesto da parte de Mrs. Grose de me voltar as costas, não teve, felizmente, o efeito de diminuir
a nossa mútua estima. Depois de eu ter trazido para casa ojovem Miles, ficámos mais solidárias
que nunca quanto à nossa convicção geral de que era uma monstruosidade a ideia de que aquela
criança que acabava de chegar ser perigosa. Cheguei um pouco atrasada ao local onde nos
devíamos encontrar, e, ao vê-lo à porta da estalagem, onde a diligência o dei xara, a olhar muito
sério para mim, senti que ele possuía, tanto interior como exteriormente, o mesmo grau de
frescura e pureza que eu via na sua irmã. Era incrivelmente belo, e Mrs. Grose dissera
a verdade exacta: na sua presença só podíamos sentir por ele uma grande ternura apaixonada. O
que me tocou o coração nessa altura, foi algo de maravilhoso que existia nele e que nunca
encontrei com a mesma intensidade em qualquer outra criança: aquele seu jeito de dar a entender
que não conhecia mais nada neste mundo senão amor. Seria impossível conciliar uma má
reputação com semelhante doçura e inocência.
E quando regressei com ele a Bly sentia-me confusa, para não
dizer indignada, ao pensar naquela horrível carta que eu tinha fechada à chave numa das gavetas
do meu quarto. Assim que consegui trocar duas palavras em particular com Mrs. Grose,
declarei-lhe que achava aquilo grotesco.
Ela percebeu logo onde eu queria chegar:
- Refere-se àquela acusação cruel?
- Não tem o menor fundamento. Olhe só para ele, minha
amiga!
Ela sorriu com tolerância por eu julgar que tinha feito alguma descoberta:
- Garanto-lhe que não me canso de olhar, miss! Então, que
tenciona fazer? - acrescentou logo.
- Em relação à carta? - Eu já tinha resolvido. - Não respondo nada.
- E quanto ao tio?
Fui categórica:
- Nada, igualmente.
- E quanto ao menino?
- Também não lhe digo nada - respondi, encantada.
Ela limpou vigorosamente a boca ao avental:
- Nesse caso pode contar comigo. Fica por nossa conta!
- Fica por nossa conta! - repeti, esperançada, apertando-lhe
a mão como que para confirmar o nosso voto.
Ela apertou a minha durante um momento e, depois, com a outra, pôs-se a alisar o avental:
- Olhe, miss, se não levasse a mal...
- Dava-me um beijo? De maneira nenhuma! - abracei a excelente mulher e, depois disso,
sentimo-nos ambas mais fortalecidas.
Era isto, pelo menos, o que sentíamos naquela altura, uma época tão recheada de
acontecimentos que hoje, ao recordá-la, tenho de fazer todos os esforços para a tornar
compreensível. O que mais me espanta é o facto de eu ter aceitado aquela situação. De acordo
com a minha companheira, tínhamos decidido que o caso ficaria por nossa conta, e eu
encontrava-me de tal modo enfeitiçado que não me apercebia sequer da dificuldade de
semelhante esforço. Estava positivamente a ser levada por uma vaga de paixão e piedade. Por
uma questão de ignorância, de confusão e talvez até de vaidade, achava muito simples
encarregar-me de um rapazinho, cuj a educação para o mundo estava apenas no início. Hoje não
consigo recordar-me de quais os planos que eu tinha para quando terminassem as suas férias e
ele tivesse de retomar os estudos.
Estávamos todos de acordo em que durante esse Verão delicioso
ele teria lições comigo; porém, hoje reconheço que durante as primeiras semanas quem estava a
aprender era eu. Logo de início aprendi uma coisa que nunca ninguém me tinha ensinado na
minha pacata existência: aprendi a divertir-me e a divertir os outros sem pensar no dia de
amanhã. De certo modo, era esta a primeira vez que eu tomava contacto com o espaço, o ar livre,
a liberdade, toda a música do Verão e todo o mistério da natureza. Gozava também da
consideração manifestada pelos outros e isso era-me muito agradável. Oh, tudo isto constituía
uma armadilha, não deliberada, mas muito forte, dirigida à minha imaginação, à minha
delicadeza, talvez mesmo à minha vaidade; a tudo o que em mim existia de excitável. A melhor
maneira de exprimir tudo isto será dizer que eu me encontrava desprevenida. As crianças nãome
causavam quaisquer problemas, eram de uma gentileza extrema. Eu, às vezes, tentava imaginar,
mas mesmo isso de uma forma muito vaga, o que é que o árduo futuro (porque futuro é
geralmente árduo!) lhes reservaria de doloroso. Eles possuíam o encanto da saúde e da
felicidade; e, contudo, se eu tivesse a meu cargo um par de realezas, de autênticos
principezinhos, em relação aos quais tudo
teria de ser previsto, ordenado e preparado previamente, a única forma que eu antevia, na minha
imaginação, para o seu futuro, seria um prolongamento do parque e dos jardins. Foi talvez o que
sobreveio depois, que conferiu àquela época todo o encanto da sua calma e da sua tranquilidade,
daquele silêncio dentro do qual se ocultava algo de maléfico. A mudança brusca só é comparável
ao
salto de uma fera.
Nas primeiras semanas de férias os dias eram bastante longos;
assim, na sua máxima duração, permitiram que eu tivesse oportunidade de gozar uma hora só
minha, como eu costumava dizer, aquela hora em que os meus alunos já tinham jantado e ido
para a cama e em que eu tinha na minha frente um intervalo antes de ser altura de eu própria me
deitar. Por muito que gostasse de estar acompanhada, aquele momento era de todos o que eu
mais apreciava no dia. Apreciava, sobretudo, a hora em que a luz ia desaparecendo, ou, melhor,
se demorava ainda, e em que os derradeiros apelos das aves se erguiam no céu vermelho, vindos
das altas copas do arvoredo. Eu gostava então de dar uma volta pelos jardins e gozar, quase com
uma sensação de posse, que muito me divertia e lisonjeava, a beleza e a majestade daqueles
lugares. Era um prazer, nesses momentos, o sentir-me tranquila e realizada; convencer-me,
também, de que talvez, mercê da minha discrição, do meu bom senso e da minha calma
dignidade, eu estava dando
satisfação (se é que ele alguma vez pensava nisso!) à pessoa a cuja pressão eu cedera. Aquilo
que estava a fazer, fora precisamente o que ele expressamente me pedira e esperava de mim, e o
facto de eu ser capaz de cumprir proporcionava-me uma alegria ainda maior do que eu esperava.
Numa palavra, confesso que me considerava então uma rapariga extraordinária. Confortava-me a
ideia de que isto, mais tarde ou mais cedo, viria a ser notado. Pois bem, de futuro, devo mesmo
ter sido extraordinária para enfrentar todos aqueles acontecimentos estranhos que então
começaram a anunciar-se.
Aquilo sucedeu de súbito, uma bela tarde, mesmo a meio da minha hora livre: as crianças
estavam deitadas e eu tinha ido dar o meu passeio. Uma das coisas que de modo algum faço
questão de ocultar aqui, é a ideia que me acompanhava sempre durante esses passeios, de que
seria maravilhoso se me aparecesse ali alguém, como num conto de fadas, alguém que surgisse
na volta de um caminho e me sorrisse com ar de aprovação. Eu não pedia mais que isso: só
queria que ele soubesse. E a única maneira de descobrir que ele sabia era ver essa certeza a
iluminar o seu rosto amável.
Era isto que eu tinha presente, ou seja o rosto dele, quando, pela primeira vez, no fim de um
longo dia de Junho, estaquei de súbito ao sair de um maciço de arbustos e ao avistar a casa na
minha frente. O que me fez parar, e comum sobressalto maior doque seria de esperar de qualquer
visão, foi a sensação de que a minha fantasia se tornara realidade. Ele estava ali mesmo! Mas lá
no alto, para além do relvado, no cimo da torre onde me levara a pequena Flora naquele primeiro
dia. Essa torre fazia parte de um conjunto de duas construções desproporcionadas, coroadas de
ameias, a que chamavam a Torre Nova e a Torre Velha, se bem que eu não
lhes distinguisse a diferença. Situavam-se nos dois extremos da casa e representavam,
provavelmente, um absurdo arquitectónico, atenuado talvez pelo facto de nãoestarem totalmente
desocupadas nem serem demasiado altas. Ditavam, na sua relativa antiguidade, de uma
reminiscência romântica que já pertencia a um passado respeitável. Eu admirava-as e elas
falavam à minha imaginação, todos nos sentíamos impressionados, sobretudo quando elas se
erguiam na penumbra, com a grandeza das suas ameias;
contudo, não era naquelas alturas que se me afigurava o lugar indicado para surgir a imagem que
eu tantas vezes evocara.
Recordo-me de essa figura ter produzido em mim, aorevelar-se
assim naquele crepúsculo luminoso, dois choques distintos de
emoção: uma primeira e uma segunda surpresa. Esta última foi a
constatação do erro que fora a primeira: o homem que eu tinha
diante dos olhos não era aquele que eu, na minha precipitação, primeiramente imaginara. Isto
causou-me uma tal confusão como
nenhuma outra coisa me causou até hoje. Ver um desconhecido,
num sítio isolado, causa medo a qualquer jovem educada e recatada; e a figura que eu via diante
dos olhos, verifiquei-o em poucos segundos, não era de modo algum a imagem que tinha na
minha mente. Não a vira em Harley Street, nunca a vira em parte alguma. Além disso, aquele
local, só pelo facto desta presença, tornou-se, subitamente, sem que eu soubesse porquê, um
local desolado. Pelo menos para mim, ainda hoje, no momento em que escrevo estas linhas,
revivo essa sensação. Era como se o resto do cenário tivesse sido ferido de morte. Parece-me
ainda que escuto o súbito silêncio que envolveu todos os ruídos da tarde. As gralhas pararam de
crucitar no céu doirado, e aquela hora deliciosa perdeu instantaneamente toda a sua voz.
Contudo, a natureza não sofrera nenhuma outra alteração a não ser aquela de que me apercebi
com um espanto ainda maior. O céu continuava doirado, o ar transparente e o homem que me
fitava do alto das muralhas era tão real como um quadro na sua moldura. Foi por isso que me
recordei, com extraordinária rapidez, de todas as pessoas que ele poderia ser...
mas não era. Contemplámo-nos à distância durante o tempo suficiente para eu perguntar a mim
própria, com toda a intensidade, quem ele seria e de sentir, perante a minha incapacidade de o
saber, um espanto cada vez maior.
A principal interrogação, ou, pelo menos, uma das que me surgiu depois, foi a de saber quanto
tempo isto durou. Bem, quanto a mim, durou o tempo suficiente para eu encarar uma dúzia de
possibilidades, nenhuma delas aceitável, de haver dentro de casa (sobretudo há quanto tempo?)
uma pessoa que eu desconhecesse. O tempo suficiente para eu me insurgir contra a ideia de que
na minha posição eu nunca poderia ignorar tal facto. Pelo menos durou o tempo suficiente para
eu ter a impressão de que o visitante me olhava lá do alto, naquela claridade moribunda, com
à-vontade, o
que me provocava um certo ar de admiração, em face da surpresa
que a sua presença provocava. Encontrávamo-nos suficientemente afastados para trocarmos
qualquer palavra, mas houve um momento em que ele se aproximou e em que tenha sido mais
normal rompermos o silêncio, como resultado daqueles instantes em que nos olhámos fixamente.
Ele encontrava-se no ângulo mais afastado, oposto à casa, muito direito, apojado ao parapeito
com ambas as mãos. Vejo-o ainda tão claramente como a estas letras que acabo de escrever;
depois, passado precisamente um minuto, como que para prolongar o espectáculo, mudou
vagarosamente de lugar;
sim, reparei bem que durante o trajecto nunca desviou os olhos do meu rosto, e parece-me ainda
estar a ver as mãos a poisarem sobre as ameias, uma após a outra. Parou no outro canto, mas
durante menos tempo e, enquanto se afastava, continuava ainda a fitar-me. Depois, só sei que
desapareceu.
Confesso que fiquei ali pregada ao chão, de espanto, à espera do que se seguiria. Será que havia
algum segredo em Bly, o segredo de um louco, de algum parente cuja existência devia manter-se
secreta? Não sei quanto tempo duraram as minhas cogitações, quanto tempo ali permaneci; só
me recordo de que a noite já tinha caído quando regressei a casa. Neste intervalo f'ui tomada de
uma tal agitação que devo ter percorrido quilómetros às voltas pelo parque; porém, este primeiro
alarme, em comparação com o que veio depois, não passara de um simples arrepio. O mais
estranho de tudo foi o meu encontro, no vestíbulo, com Mrs. Grose. Parece-me estar a ver a cena,
a impressão que recebi ao entrar naquele vasto compartimento com os seus tectos claros e
apainelados, os seus retratos, os seus tapetes vermelhos, e do olhar agradavelmente surpreendido,
pois dera pela minha falta. A sua atitude de simples alívio deu-me a entender que ela nada
soubera do incidente que eu estava ansiosa por lhe contar. Não tinha imaginado que a
a vista do seu rosto amigável me iria fazer hesitar, e foi isto que me deu a medida da importância
que tivera para mim aquela revelação. Uma das coisas que se me afigura mais estranha em toda
esta história é o facto de eu sentir tanto medo e, ao mesmo tempo querer poupar a minha
companheira. Por isso tomei imediatamente a resolução, ali na frente dela, naquele átrio
acolhedor, de inventar um pretexto paraaminha demora no parque. Falei da beleza da noite, do
espesso orvalho que me humedecera os pés e tratei de me retirar o mais depressa possível para o
meu quarto.
Aí o problema era outro; foi uma coisa estranha, durante muitos dias, o que se passou comigo.
Havia ocasiões, ou, pelo menos, havia momentos que eu roubava às minhas obrigações, em que
tinha de me encerrar ali para reflectir. Não era tanto o meu estado de nervos que me obrigava a
isso, com medo de que ele viesse a alterar-se. Porque a evidência que se me impunha era o receio
de nunca poder chegar a uma conclusão quanto ao visitante que se me afigurava estar tão
intimamente relacionado comigo. Em breve percebi que, mesmo sem fazer inquentos formais, eu
poderia levantar complicações domésticas. O choque que sofrera espevitara todos os meus
sentidos; ao cabo de três dias e como resultado de
uma simples observação, fiquei com a certeza de não ter sido intrujada pelos criados nem vítima
de qualquer brincadeira da parte destes. Que à minha volta ninguém sabia nada daquilo que eu
também ignorava. Havia apenas uma certeza: alguém tivera um
atrevimento monstruoso. Era isso que eu repetia a mim mesma
quando me fechava no meu quarto. tínhamos sido todos sujeitos
a uma intrusão: um viajante sem escrúpulos, curioso de visitar casas antigas, penetrara ali sem
ser notado, gozara o espectáculo do melhor ponto de vista, e depois retirara-se tão
sorrateiramente como entrara. O facto de me olhar de um modo tão atrevido fazia parte da sua
indiscrição. Sendo assim, podíamos ter a certeza de não voltarmos a vê-lo.
Apesar disso, não deixei de estar preocupada, e a única compensaçãoque tinha era o meu
agradável trabalho, ou seja a minha vida junto de Miles e de Flora, a qual me absorvia a ponto de
me fazer esquecer a outra preocupação. O interesse que para mim representavam essas leves
obrigações, faziam-me sorrir ao recordar os receios que antes alimentara em relação à rotina do
meu cargo.
Pelos vistos, ele nada tinha de rotineiro nem maçador; como poderia ele deixar de ser um
encanto quando dele fazia parte a própria beleza? Era a essência do romance e da poesia
encarnados na infância. Não quero di zer com isso que os nossos estudos fossem apenas
constituídos por versos e prosa; isto significa, sim, a espécie de
interesse que os meus alunos me despertavam. Só posso dizer que, em lugar de me sentir farta
deles, eu pensava, o que é espantoso para uma perceptora, e as minhas colegas que o digam, que
cada dia me traziam novas descobertas. Havia contudo um ponto que continuava obscuro: o
comportamento do rapaz no colégio. Mas em breve consegui encarar esse mistério sem
sobressalto. Estaria mais perto da verdade se dissesse que foi ele próprio quem resolveu o
assunto sem proferir uma palavra. A sua atitude tornava absurda qualquer acusação. A minha
conclusão formou-se em face da sua inocência que desabrochava como uma flor: ele é que era
demasiado puro e justo para o mundo sujo e perverso que era o colégio,
e pagara por isso. Depois de reflectir maduramente cheguei à
conclusão de que tão altas qualidades, uma tal superioridade,
provocam na maioria dos casos, até mesmo da parte de alguns professores estúpidos e tacanhos,
um certo espírito de vingança.
Ambas as crianças possuíam uma grande gentileza e suavidade. Era esse o seu único defeito,
muito embora não fizesse de
Miles um lorpa. Mas tornava-as ... como é que hei-de dizer? Quase impessoais, e, de certo
modo, isentos de castigos. Eram como esses querubins da tradição que, pelo menos
normalmente, não tinham nada a censurar. Recordo-me, sobretudo em relação a Miles, de não
haver nada, mas absolutamente nada a dizer. É natural que qualquer criança tenha sempre tido
alguns "antecedentes", porém, neste encantador rapazinho, existia qualquer coisa de
extraordinariamente sensível e ao mesmo tempo extraordinariamente bem humorada, que parecia
todos os dias renascer. Nunca havia sofrido o menor desgosto, e eu considerava isto como uma
prova de que ele nunca teria sido castigado. Se ele fosse mal comportado ficaria com a "niarca" e
eu teria percebido por ricochete, teria detectado os vestígios da desonra por ele sofrida. Eu nada
conseguira descobrir e, portanto, para mim ele era um anjo.
Nunca falava do colégio, nunca mencionava o nome de um mestre
ou de um camarada; eu, pela minha parte, sentia-me demasiado
indignada para me referir a eles. É claro que estava obsecada e o mais espantoso é que, mesmo
então, tinha plena consciência disso.
Mas não me importava, era como que um antídoto contra o desgosto, e eu tinha vários nessa
altura. Recebera diversas cartas de casa que me preocupavam, pois as coisas por lá não corriam
nada bem.
Mas em face da felicidade que aquelas crianças me proporcionavam, que importava o resto?
Era isto que eu dizia a mim mesmo naqueles escassos momentos de solidão. A beleza deles
trazia-me encantada.
Mas prossigamos. Houve um domingo em que choveu torrencialmente, de manhã, de tal modo
que não foi possível ir à igreja. Em vistas disto, ao fim do dia, combinei com Mrs. Grose que, se
o tempo aliviasse, iríamos às cerimónias da tarde. Por sorte a chuva parou e eu preparei-me para
o nosso passeio que, através do parque e seguindo depois a estrada da aldeia, não levaria mais de
30 vinte minutos. Ao descer as escadas para me juntar à minha colega no vestíbulo, lembrei-me
de um par de luvas, no qual eu estivera a dar uns pontos que necessitavam. Eu referira-me a isso,
enquanto tomava o chá com as crianças, como de costume aos domingos, naquele santuário de
cobres e mogno, que era a sala de jantar dos adultos. Tinha lá deixado as luvas e voltei atrás para
as
recuperar. O dia estava bastante cinzento, mas havia ainda luz suficiente para que eu, ao entrar
ali, distinguisse junto à varanda, agora fechada, não só o que procurava, como também, do lado
de fora, uma pessoa a olhar directamente para mim. Bastou-me dar um passo dentro da sala; a
minha visão foi instantânea. Percebi logo tudo. A pessoa que me olhava era a mesma que me
aparecera da outra vez. Agora voltava a aparecer-me, não direi mais distintamente, porém, mais
de perto, oque representava uma aproximação nas nossas relações. Esta ideia causou-me um
arrepio. Era o
mesmo homem, a mesma pessoa, visto tal como da primeira vez,
apenas da cintura para cima, pois a varanda, apesar de ser no rés-do-chão, não tinha vidros até
abaixo. Encostava o rosto ao vidro, e este facto fez-me reconhecer quanto a primeira visão fora
nítida.
Só ali se demorou uns escassos segundos, o tempo suficiente para me certificar de que ele
também me vira e reconhecera; mas era como se eu o tivesse fitado durante anos e o conhecesse
desde sempre. No entanto, algo aconteceu desta vez que não tinha acontecido antes: o olhar
profundo e penetrante que me dirigiu à distância, através dos vidros, desviou-se por momentos,
durante os quais continuei a observá-lo, para se fixar sucessivamente noutras coisas. Percebi isso
imediatamente, o que me causou novo choque, pois ele não viera ali por minha causa, viera à
procura de outra pessoa.
Esta certeza, pois tratava-se de uma certeza que se viera juntar aos meus receios, produziu em
mim o efeito mais extraordinário, ou seja, o despertar súbito de um sentimento de coragem e
dever. E digo de coragem porque, sem dúvida nenhuma, eu já fora longe de mais. Corri porta
fora até à entrada, saí para a alameda, atravessei o terraço a correr, dobrei a esquina e cheguei ao
local onde estava antes a visão. Só que já lá não havia nada. O meu visitante desaparecera.
Estaquei, quase caí no chão, tamanho foi o meu
alívio; mas demorei-me a recordar a cena, dando-lhe tempo de
reaparecer. Refiro-me ao tempo, mas não sei dizer quanto seria.
Não consigo recordar, perdi completamente a noção das coisas,
mas acho que não podia ter durado aquilo que hoje me parece. O
terraço e tudo o resto, o relvado e o jardim, o que me era dado ver do parque, tudo estava
completamente deserto. Havia ali árvores e arbustos, mas eu estava bem segura de que ele não se
escondia atrás de nenhum deles. Ele estava ali ou não estava? Se eu não o via era porque ele não
estava lá. Depois disto, em lugar de voltar por onde viera, dirigi-me instintivamente para a
varanda. Na minha confusão achava que devia ir-me colocar no lugar onde ele
estivera. E foi o que fiz. Encostei o rosto à vidraça e olhei para dentro tal como ele fizera. Como
para demonstrar a mim própria exactamente o que ele conseguia dali alcançar. Mrs. Grose entrou
naquele momento na sala. Era como que a repetição da cena anterior. Ela viu-me, tal como eu
vira o meu visitante; estacou exactamente como eu fizera; a minha preesença ali produzira-lhe o
mesmo choque que eu sentira. Fez-se pálida e eu perguntei a mim mesma se outro tanto me
acontecera a mim. Fitou-me por momentos e depois retirou-se, seguindo a mesma trajectória que
eu, o que me levou a crer que viria cá para fora ao meu encontro. Fiquei onde
estava e, enquanto aguardava, mil coisas me passaram pela cabeça. Mas de todas apenas uma se
me afigura digna de menção: eu perguntava a mim mesma por que motivo ela ficara assustada?

Oh, mas assim que virou à esquina e apareceu à minha frente,


logo explicou:
- Que aconteceu? - perguntou ela, toda ofegante.
Não respondi logo e deixei-a aproximar:
A mim ... ? - devo ter mostrado uma expressão muito estranha. - Percebe-se muito?
- Está branca como um lençol. Está até mesmo desfigurada!
Reflecti; em face disto eu podia, sem escrúpulos, fingir-me de inocente. A necessidade que eu
sentira de respeitar a ingenuidade de Mrs. Grose, deixara de pesar sobre os meus ombros, e se
naquele momento hesitei, não foi em virtude daquilo que lhe ocultara. Estendi-lhe a mão e ela
apertou-ma; mantive-a assim por um momento, presa a mim. Havia uma espécie de conivência
no seu ar de tímido espanto.
- A senhora vinha chamar-me para irmos à igreja, mas eu não
posso ir.
- Aconteceu alguma coisa?
- Aconteceu. Agora é preciso que saiba. Achou-me um ar muito estranho?
- Quando a vi através da janela? Estava horrível!
- Bem - disse eu. - Apanhei um grande susto. -, O olhar de
Mrs. Grose exprimia claramente que ela não queria mostrar-se
assustada, mas sabia muito bem quais eram as suas obrigações para se recusar a partilhar
comigo qualquer dissabor. Ela devia amparar-me.
Ao ver-me através da vidraça a senhora assustou-se?
Mas aquilo que eu tinha visto antes era bem pior.
A mão dela apertou mais a minha:
- Então, que foi?
- Um homem muito esquisito. A olhar cá para dentro...
- Quem era esse homem muito esquisito?
- Não faço a mínima ideia.
Mrs. Grose olhou em vão à nossa volta.
- E para onde é que ele foi?
- Isso ainda sei menos.
- Já o tinha visto antes?
- Já. Uma vez. Na Velha Torre.
Ela continuava a fitar-me cada vez mais intensamente.
- E diz que ele era um estranho?
- Não tenho a mínima dúvida.
- Contudo não me disse nada...
- Não disse... por várias razões. Mas já que o adivinhou...
Os olhos muito abertos de Mrs. grose acusaram a insinuação.
- Ah, mas eu não adivinhei nada! - respondeu simplesmente. - Como poderia eu adivinhar, se a
menina nem sequer sabe
quem ele é!
- Não faço sequer a mínima ideia.
- Só o viu uma vez na Torre?
- Sim, e agora de novo aqui, a fitar-me!
Ela olhou de novo em volta.
- E que fazia ele na Torre?
- Estava ali parado a olhar para mim.
Ela reflectiu por uns momentos:
- Acha que ele era um senhor?
Não tive necessidade de reflectir.
- Não. - Ela mostrava-se cada vez mais espantada. - Não
era um senhor..
- Não era ninguém cá da casa? Ninguém da aldeia?
- Ninguém. Ninguém. Nunca falei nisso, mas tenho a certeza.
Ela soltou um suspiro de alívio: pelos vistos, achava preferível que assim fosse. E logo a seguir:
- Mas se ele não é um senhor, que é então?
- Queé que ele é? É um horror.
- Um horror?
- Sim, ele é... Juro que não sei!
Mrs. Grose olhou uma vez mais em redor; fixou a vista no longínquo horizonte, e depois
declarou a despropósito, voltando-se para mim:
- Já devíamos estar na igreja.
- Não estou em estado de ir à igreja.
- Não acha que lhe faria bem?
- Não lhes faria bem a eles - E fiz um gesto na direcção da
casa.
- As crianças?
- Agora não as posso deixar sozinhas.
- Tem receio ... ?
Falei sem rodeios:
- Tenho medo dele.
Ao ouvir isto, o rosto largo de Mrs. Grose revelou-me, pela
primeira vez, um vislumbre de conhecimento. Julguei ver ali a
sombra de uma ideiaque eu não lhe transmitira ainda, pois era para mim bastante obscura. E
logo pensei que poderia tirar alguma coisa dela; pensei que isso estaria relacionado com o desejo
que ela mostrara de saber mais coisas.
- Quando foi isso... da Torre?
- Em meados do mês. A esta mesma hora.
- Quase à noitinha? - disse Mrs. Grose.
- Oh, não, ainda não fazia escuro. Vi-o tão bem como a estou
a ver a si!
- Mas como é que ele entrou para lá ?
- E como é que saiu? - desatei a rir. - Não tive oportunidade de lho perguntar! - E
prosseguiu: - Desta vez não conseguiu
entrar cá dentro.
- Só espreitou?
- Espero que não passe daí! - Ela largara a minha mão e fazia menção de se afastar. Esperei um
momento e depois disse-lhe:
- Vá até à igreja. Adeus. Eu fico de atalaia.
Ela voltou-se para mim lentamente:
- Receia pelas crianças?
Fitámo-nos longamente:
- E a senhora não receia?
Em lugar de me responder, ela aproximou-se da janela, e, durante um minuto, apoiou a cara na
vidraça.
- A senhora daí vê o mesmo que ele via - prossegui, entretanto.
Ela não se moveu, mas perguntou:
- Quanto tempo é que ele aqui esteve?
- Até eu correr para a rua. Vim à procura dele.
Mrs. Grose acabou por se voltar para mim; o seu rosto estava
ainda mais transtornado e declarou:
- Se fosse eu não teria coragem de vir cá para fora.
- Eu também não tinha-repliquei arir. - Mas vim. Sei quais
são os meus deveres.
- Também sei quais são os meus-replicou, acrescentando: -
Com quem se parece ele?
- Quem me dera poder dizer-lhe. Mas ele não se parece com ninguém.
- Com ninguém? - repetiu ela.
- Não traz chapéu. - Depois, ao ver que este pormenor já lhe
dizia qualquer coisa, fui acrescentando: - Tem o cabelo ruivo, muito ruivo e encaracolado, um
rosto pálido, sobre o comprido, feições regulares e umas patilhas muito esquisitas, tão vermelhas
como os cabelos. As sobrancelhas são mais escuras e muito arqueadas, capazes de se moverem
para cima e para baixo. Tem uns olhos penetrantes, estranhos, horríveis; mas só sei que são
bastante pequenos e muito fixos. A boca é grande, de lábios delgados, e tem a cara rapada com
excepção das patilhas. Não sei porquê, faz-me lembrar um actor.
- Um actor! -Naquele momento Mrs. Grose nada tinha de actriz, e eu prossegui: -Nunca vi
nenhum, mas acho que devem ser
assim. Este é alto, direito, mas não tem nada, oh, absolutamente nada de um cavalheiro.
O rosto da minha companheira empalidecia cada vez mais. à
medí da que eu falava, arregalava os olhos e abria e fechava a boca.
- Um cavalheiro, ele? Um cavalheiro? Isso sim!...
- Então a senhora conhece-o?
Ela quis voltar atrás:
- Mas é bonito?
Vi maneira de a fazer falar:
- muito!
- E como está ele vestido?
- Os fatos não são dele. São fatos janotas, mas não são dele.
Mrs. Grose desatou a gemer, fazendo gestos afirmativos:
- Pois são os fatos do patrão!
- Então a senhora sempre o conhece!
Ela hesitou um segundo, e exclamou:
- É o Quint!
- Quint?
- Peter Quint... o empregado dele, o seu criado particular,
quando cá vivia.
- Quando o patrão cá vivia?
Ainda ofegante, mas sem desviar de mim os olhos, ela prosseguiu:
- Ele nunca usou os chapéus do patrão, mas os coletes, isso sim, por vezes faltavam alguns!
Estiveram ambos cá, no ano passado. Depois o patrão foi-se embora e o Quint ficou sozinho.
Eu inquiri, também um pouco ofegante:
- Sozinho?
- Sozinho, connosco. - E depois acrescentou num tom mais
dramático: - Ficou ele responsável por tudo.
- E depois que lhe aconteceu?
Ela calou-se tanto tempo que eu me senti ainda mais intrigada.
- Foi-se.
- Foi para onde?
Ao ouvir isto, a expressão dela tornou-se muito estranha:
- Sabe-se lá para onde é que ele foi! Morreu!
- Morreu?- quase dei um grito.
Ela endireitou o corpo, como que para expressar com mais firmeza o que a sua resposta tinha de
estranho:
- Sim. Mr. Quint morreu!

Não foi só este incidente que nosfez encarar arealidade daquilo que, dali em diante, teríamos de
aceitar, ou seja a minha terrível sensibilidade às impresões que acabo de descrever e o
conhecimento que a minha companheira tinha desse sentimentalismo: um conhecimento a que se
misturavam em parte a consternação e o dó. Depois da revelação que eu tivera nessa tarde e que
me deixara prostrada por mais de uma hora, nenhuma de nós estava capaz de tomar parte em
qualquer cerimónia, a não ser numa sessão de lágrimas e protestos, de orações e promessas, que
se seguiram à nossa retirada para o quarto de estudo, onde nos fechámos à chave, a fim de
pormos tudo em pratos limpos. Depois disto a situação ficou bem esclarecida. Ela não tinha visto
nada, nem sequer a sombra de uma sombra, e o assunto não dizia respeito a ninguém da casa a
não ser a mim, a preceptora. No entanto, a boa mulher
acreditava piamente em tudo quanto eu lhe dissera, sem por um
momento sequer duvidar da minha sanidade mental; acabou por
me demonstrar uma enorme ternura, uma deferência em face do
privilégio mais que discutível que eu usufruía, ternura essa que eu ainda hoje recordo como o
sentimento mais doce de que fui alvo em toda a minha vida.
O que ambas combinámos foi que, a partir dessa noite, suportaríamos tudo em conjunto; e não
me parece que, apesar de toda a sua excepção, a parte do fardo que ela carregava fosse a menor.
Desde esse dia fiquei consciente de quanto seria capaz de fazer para proteger os meus alunos; já
não estava tão certa do mesmo em relação à minha companheira. A minha convivência não seria,
nessa altura, muito estimulante, tal como a dela também não o era para mim. Reconhecemos
ambas que era absolutamente necessário eu sair da câmara dos horrores que eram os meus
receios. Eu podia ir tomar ar ao pátio e aí, ao menos, Mrs. Grose podia ir ter comigo.
Recordo-me perfeitamente de como essa força tomou posse de mim, antes de nós entrarmos para
passarmos a noite. Tínhamos então já discutido em todos os pormenores aquilo que eu tinha
visto.
- Ele procurava alguém com os olhos, diz a menina, uma outra
pessoa ... ?
- Quem ele procurava era o pequeno Miles - sentia-me agora dotada de uma enorme
clarividência. - Era o menino que ele
procurava.
- Mas como é que sabe?
- Eu sei! Eu sei! - A minha exaltação crescia. - E você, minha querida, também sabe!
Ela não negou, mas de resto eu não precisava que ela o confirmasse. Mrs. Grose murmurou dali
a momentos:
- E se ele o tivesse visto?
- Ao pequeno Miles? Era isso que ele queria!
Ela mostrou-se de novo muito assustada:
- O menino? Deus nos acuda! Esse homem! Querer aparecer às
crianças!
Tal hipótese afigurava-se-me horrível, no entanto eu sentia no meu íntimo que tinha poder para
dominar a situação, o que de resto acabei por vir a provar. Tinha a certeza absoluta de que
voltaria a ver aquilo que já vira uma vez, mas algo me dizia que, se eu tivesse a coragem de me
oferecer como único objecto dessa experiência, se eu aceitasse, se me sujeitasse a tal situação,
poderia servir de vítima expiatória, e assim manteria a tranquilidade do resto da família. As
crianças, pelo menos, queria eu defender a todo o transe. Recordo-me, por fim, de ter dito a Mrs.
Grose nessa noite:
- Só me espanta o facto de os meus alunos nunca se terem referido...
Ela olhou-me fixamente enquanto eu me calava.
A estada dele aqui, ao tempo que viveram com ele?
Ao tempo que viveram com ele, ao seu nome, à sua presença,
à sua história, enfim. Nunca aludiram a isso.
- Oli, a menina não se lembra. Elas nunca ouviram falar nisso.
- Nas circunstâncias da sua morte? - reflecti profundamente. - Flora talvez não. Mas Miles deve
lembrar-se, ele deve saber.
- Ah, não lhe faça perguntas! - exclamou Mrs. Grose.
Eu retribuí-lhe o olhar:
- Não tenha receio. - Eu continuava a reflectir: - Acho muito estranho...
- Que o menino nunca falasse dele?
- Que nunca tenha feito a mais leve referência a ele. E a senhora diz que eram "grandes
amigos"?
- Oli, não me refiro ao menino! - declarou Mrs. Grose, enfaticamente. - Isso não passava de uma
maluqueira de Quint. As brincadeiras que tinha com Miles, quero eu dizer,
desmoralizavam-no. - Ela calou-se por um momento e depois acrescentou: - Quint era um sujeito
muito livre.
Esta frase, juntamente com a recordação que me ficara da cara do homem (mas que cara!)
causou-me uma súbita sensação de
nojo.
- Demasiado livre com o meu menino?
- Demasiado livre com toda a gente!
De momento abstive-me de analisar esta descrição relativamente aos diversos membros do
pessoal: meia dúzia de criadas e empregados que ainda faziam parte desta pequena colónia. Uma
coisa, porém, vinha aumentar a nossa apreensão; era o facto de nunca, naquela simpática
mansão, se ter ouvido falar em qualquer história desagradável relacionada com um ou outro
membro da criadagem. Ninguém ali tinha má fama, e Mrs. Grose dava a impressão de querer
agarrar-se a mim para conseguir guardar silêncio. Acabei por lhe fazer, à experiência, uma
última pergunta. Era perto da meia-noite, já ela estava com a mão no fecho da porta da
sala de estudo, para se ir embora:
- Então, pelo que me disse (e isto é de grande importância), o homem era mesmo ordinário, na
opinião de toda a gente?
- De toda a gente, não. Eu sabia, mas o patrão não sabia.
- E a senhora nunca lho disse?
- Bem, ele não gostava de queixinhas. Era muito severo nesse capítulo, e desde que as pessoas
se portassem correctamente para com ele...
- O resto não lhe importava? - Isto condizia com a impressão
que eu tinha dele: um sujeito que detestava complicações, não muito exigente quanto às pessoas
com quem convivia. Mesmo assim, insisti: - Se fosse comigo, tenho a certeza de que o teria
avisado!
Ela sentiu a minha recriminação:
- Confesso que fiz mal, mas, na verdade, tive medo.
- Medo de quê?
- Das coisas que o homem me pudesse fazer. Quint era tão esperto, tão estranho...
Esta resposta impressionou-me mais do que quis dar a perceber:
- E a senhora não receava mais nada? Por exemplo, a influência que ele pudesse ter...
- Influência ... ? -repetiu ela, com uma expressão de angústia e expectativa, enquanto eu não
prossegui:
- Na vida de crianças inocentes. Elas estavam à sua guarda...
- Não, à minha guarda, não! - retorquiu ela. - O patrão tinha confiança nele e trouxe-o para cá
porque ele não estava bem
de saúde, ao que parecia, e o ar do campo talvez lhe fizesse bem. Portanto, quem mandava era
ele. Sim... - acabou por confessar. - Mesmo no que respeitava às crianças.
- Ele mandava nas crianças... essa criatura? - tive de reprimir um gemido. - E a senhora era
capaz de suportar isso?
- Não, não podia suportar... ainda hoje não posso... - E a pobre mulher desatou a soluçar.
A partir do dia seguinte a palavra de ordem era não deixar as
crianças sós, nem um minuto, como já disse. No entanto, não sei quantas vezes, nós ambas,
voltámos a discutir o assunto com paiXão. Mas por muito que tivéssemos discutido o caso, no
domingo à noite, eu continuava com a sensação, sobretudo durante as primeiras horas em que
pouco dormi, como era de calcular, de que ela me escondia qualquer coisa.
Eu própria não ocultara coisa alguma, havia, porém, palavras
que Mrs, Grose nunca pronunciara. E no entanto, pela manhã,
sentia-me convencida de que ela não o fazia por falta de franqueza, mas sim porque, de parte a
parte, estávamos rodeadas de terror. Na realidade, na manhã seguinte, quando o Sol já ia alto, eu
julguei ter encontrado todas as interpretações que os factos ocorridos poderiam apresentar,
mesmo depois dos cruéis acontecimentos que sobrevieram mais tarde. O que eu retinha destas
reflexões era a figura sinistra do homem enquanto vivo (a do morto podia esperar) e dos meses
que ele passara em Bly, os quais todos somados constituíam uma larga temporada. Esse
malfadado período só terminara quando, pela madrugada de um dia de Inverno, um camponês
que ia cedo para o trabalho, o encontrou morto na estrada da
aldeia; essa catástrofe era explicada, pelo menos superficialmente, por uma ferida que ele
apresentava bem à vista na cabeça, fenda essa que poderia ter sido causada, como depois se
confirmou através de um inquérito, por uma escorregadela fatal, às escuras, na ladeira coberta de
gelo, ao regressar da taberna. Embora ele tivesse sido encontrado ao fundo de um caminho que
não era o seu...
solo escorregadio, a volta errada, a escuridão, o excesso de álcool, tudo serviu para explicar o
caso no fim do inquérito e de interminável falatório; havia, no entanto, aspectos da vida dele,
ocorrências estranhas, momentos de perigo, desordens secretas, vícios mais que suspeitos, que
poderiam ter contado muito na tragédia.
Sinto dificuldade em traduzir por palavras o que era então o
meu estado de espírito; só sei que, nesse momento, conseguia extrair uma alegria extraordinária
do rasgo de heroismo que aquela circunstância exigia de mim. Compreendia que me era pedido
um serviço admirável e difícil; e seria formidável que ele fosse apreciado - oh, sim! pela pessoa
que mais me interessava -, ficando assim provado que eu fora bem sucedida onde qualquer outra
jovem teria falhado. Foi para mim grande consolo, e hoje felicito-me ao recordá-lo, o facto de eu
ter correspondido tão pronta e simplesmente ao que esperavam de mim. Eu estava ali com o fim
de defender aquelas duas criaturinhas tão amáveis e tão desamparadas que não podiam deixar de
comover e despertar a afeição de qualquer pessoa. Elas e eu fazíamos parte de um todo,
estavamos unidas pelo mesmo perigo. Elas só me tinham a mim e eu...
bem, eu tinha-as a elas. Numa palavra, aquilo representava para mim uma oportunidade única e
assumia aos meus olhos uma
imagem muito emocionante. Eu era para eles o escudo, tinha de
permanecer na sua frente. Quanto mais visões eu tivesse menos
eles seriam importunados. Comecei a observá-los com uma
atenção tão implacável e obstinada que, se acaso se prolongasse muito, se transformaria em
loucura. O que me valeu, reconheço-o agora, foi que tudo aquilo assumiu um novo aspecto. Já
não se tratava de suspeitas, estas foram substituídas por terríveis provas.
Provas, sim, digo eu, a partir do momento em que tomei conta do caso.
Tudo começou uma tarde, quando passeava no parque na
companhia da menina. Miles ficara em casa, instalado no sofá vermelho do vão da janela;
queria terminar o livro que andava a ler, e eu encorajei-o nesse projecto, tão louvável num
rapazinho, cujo único defeito, talvez, era de ser um pouco irrequieto. A irmã, pelo contrário,
mostrara logo vontade de sair, e assim andei a passear com ela durante uma hora, procurando as
sombras, porque o Sol ainda ia alto e o dia estava excepcionalmente quente. Quando passeava
com ela, e o mesmo acontecia tratando-se do irmão, era uma
faceta encantadora comum aos dois, eu sentia que eles me deixavam andar sozinha sem, no
entanto, me abandonar. Acompanhavam-me sem imporem a sua presença. Nunca se tornavam
importunos nem tão pouco distraídos. A atenção que eu tinha de lhes dispensar limitava-se a
vê-los divertir-se imensamente
sozinhos; isto era um espectáculo que parecia montado expressamente por eles e em que eu
desempenhava o papel de espectadora activa. Eu movia-me num mundo inventado por eles e eles
nunca invadiam o meu; o meu papel era o de uma pessoa ou coisa importante que de momento se
tornava necessária para o seu jogo, ao mesmo tempo que, para mim, isso constituía uma grande
honra. Não me lembro do que eu representava naquela ocasião; só sei que era algo de muito
interessante e muito tranquilo e que Flora estava interessadíssima na sua invenção.
Encontrávamo-nos à beira do lago e, como tínhamos começado havia pouco com as lições de
geografia, o lago era o mar dazof.
De súbito, no meio destes elementos, tive consciência de que, do outro lado do mar dAzof,
tínhamos um observador muito interessado. A maneira como me apercebi disso foi a coisa mais
estranha deste mundo, mais estranho que isto, só o que se lhe seguiu depois.
Eu sentara-me a trabalhar, pois o meu papel permitia-me estar
sentada, no velho banco de pedra sobranceiro ao lago; e, nessa posição comecei a aperceber-me,
sem mesmo olhar directamente para lá, de que, a certa distância, se encontrava uma terceira
pessoa. As velhas árvores, as moitas espessas produziam uma vasta e agradável sombra, rodeada,
no entanto, pela claridade deslumbrante daquele dia de calor. Não podia haver dúvidas: eu tinha
a certeza do que iria ver do outro lado do lago, logo que erguesse os olhos. De
momento mantinha-os fixos no ponto que acabava de dar no
bordado, e ainda agora me parece sentir o espasmo do esforço que fazia para não os erguer antes
de decidir que atitude tomar. Tinha na minha frente uma figura estranha, uma figura que achava
não ter o direito de se encontrar ali. Lembro-me de que passei em revista outras possibilidades,
dizendo comigo que nada mais natural que tratar-se de um dos empregados da casa, por
exemplo, ou
de um moço de recados, do carteiro, do empregado de uma loja de aldeia. Nada disto me
convenceu, pois eu estava certa, mesmo sem olhar, que o sujeito tinha a aparência e a atitude do
nosso visitante. Nada mais natural que tratar-se de uma dessas outras hipóteses, mas nenhuma
era a verdadeira.
Quanto à identidade da aparição, eu iria ter uma certeza, tão
depressa o pequeno relógio da minha coragem marcasse o segundo exacto; entretanto, transferi
o olhar para a pequena Flora que, naquele momento, se encontrava a cerca de dez metros de
distância. O meu coração quase parou de susto ao pensar que ela poderia ver o mesmo que eu;
fiquei de respiração suspensa à espera que ela me avisasse, soltando um grito, ou através de
qualquer outro
pequeno sinal de interesse ou de alarme. Esperei, mas nada aconteceu. Senti então (e isto era
mais trágico que tudo o que eu possa relatar), que, naquele minuto, ela estava incapaz de emitir
qualquer som espontâneo; e dei igualmente conta de que ela, no mesmo instante, voltava as
costas à água. Estava ainda nessa posição quando eu, por fim, ergui os olhos. E isto sempre com
a impressão de que continuávamos ambas a ser observadas. Ela pegara num pequeno pedaço de
madeira que apresentava um buraco no meio e isso dera-lhe a ideia de ali espetar um pau a servir
de mastro e fazer dele um barco. Quando olhei para ela, vi-a muito ocupada a enfiar o pau no
buraco. A preocupação de ver o que ela estava afazer, deu-me tempo a acalmar e a esperar o que
se seguiria. Ergui então os olhos e encarei o que tinha à minha frente.
Logo que me foi possível fui ter com Mrs. Grose. Não consigo
descrever de forma inteligível a maneira como passei o intervalo decorrido. No entanto, ainda
me parece estar a ouvir o grito que soltei ao lançar-me nos braços dela:
- Eles sabem!... É horrível! Eles sabem! Eles sabem tudo!
- Sabem o quê?! - Senti a incredibilidade dela enquanto me
abraçava.
- Ora, tudo quanto nós sabemos... e Deus sabe que mais...
Logo que ela me soltou do braço, consegui relatar com coerência, talvez até para mim própria
pela primeira vez, o que se passara.
- Foi há coisa de duas horas, no jardim - mal pude articular
estas palavras. - Flora também viu!
Para Mrs. Grose foi como se eu lhe tivesse dado um soco no estômago.
- Ela disse-lhe? - gaguejou.
- Não me disse uma palavra. Pois isso é que é horrível. Guardou a coisa para si! Uma criança de
oito anos! Esta criança! Eu não cabia em mim de espanto.
Quanto a Mrs. Grose abria cada vez mais a boca:
- Então como é que sabe?
- Eu estava lá... e vi com os meus próprios olhos, vi que ela deu perfeitamente conta.
- Deu pela presença dele, quer a menina dizer?
- Dele, não, dela. - Enquanto falava tive consciência do que
a minha expressão devia traduzir, pois via o reflexo na cara da minha companheira. - Desta vez
foi outra pessoa; mas também uma figura indubitavelmente má e perversa: uma mulher toda de
preto, pálida e horrível... com um aspecto... com uma cara!... Do outro lado do lago. Eu tinha ido
para ali com a menina... estávamos ambas muito sossegadas... e então ela apareceu...
- Apareceu como, de onde veio ela?
- Lá do lugar de onde eles vêem! Pareceu ... estava ali ... mas não se aproximou muito.
- Mas então... mesmo sem se aproximar...
- Dava-me a sensação de que ela estava tão próxima como eu
estou da senhora!
A minha companheira recuou instintivamente um passo.
- Era alguém que a menina nunca tinha visto?
- Eu, não, mas Flora conhecia-a. E a senhora também. - E depois para demonstrar que eujá
percebera tudo, acrescentei: - Era a minha predecessora, aquela que morreu!
- Miss Jessel?
- Miss Jessel. Não me acredita? - insisti.
Ela voltou-me as costas, num desespero:
- Como pode estar tão certa?
No estado de nervos em que me encontrava, isto provocou-me
um rasgo de impaciência.
- Se não acredita pergunte a Flora. Ela tem a certeza. - Porém, mal acabara de falar, logo me
arrependi: - Não, pelo amor de Deus, não lhe pergunte nada! Ela dir-lhe-ia que não viu nada,iria
mentir.
Por muito desesperada que estivesse, Mrs. Grose não deixou de
protestar:
- Ah, como é que sabe?
- Tenho a certeza. Flora não quer que eu saiba disto.
- Só se for para não lhe causar desgosto...
- Não, não, a coisa é muito... muito mais complicada. Quanto
mais penso nisto, mais vou percebendo, e quanto mais percebo
mais receio. Só não sei o que é que eu não vejo, no meio disto tudo!
Mrs Grose tentou perceber onde eu queria chegar.
- Quer dizer que receia vê-la de novo?
- Oli, não. Isso agora já não me aflige! - E expliquei: - O que eu receio é não a ver!
A minha companheira, porém, mostrou-se intrigada.
- Não estou a perceber...
- O que eu receio é que a menina continue a vê-la sem me dizer nada... e é certamente isso o que
ela vai fazer.
Ante esta perspectiva, Mrs. Grose ficou sucumbida, mas logo se recompôs. Parecia convencida
de que seria pior se cedêssemos ao pânico:
- Ora, ora, minha querida, não vamos perder a cabeça! Afinal
de contas, se a menina não se importa... - Resolveu até dizer uma graça: - Se calhar até gosta!
- Gosta de semelhantes coisas... uma migalha de gente?
-Não será isso a melhor prova da sua total inocência? - inquiriu corajosamente a minha amiga.
Por momentos quase me convenceu.
- Oli, temos de nos agarrar a essa ideia ... temos de nos agarrar a isso! Se não for a prova do que
a senhora diz... então é prova de só Deus sabe o quê! Porque aquela mulher é o horror dos
horrores!
Ao ouvir isto, Mrs. Grose fixou, por momentos, os olhos no chão.
Por fim ergueu-os e inquiriu:
- Diga-me como é que sabe?
- Nesse caso admite que eu tenho razão! - gritei.
- Diga-me só como é que sabe? - limitou-se a repetir.
- Como é que eu sei? Bastou-me vê-la. Ver o ar com que ela
olhava...
- Olhava para si, quer a menina dizer... com um ar tão perverso?
- Oli, meu Deus! Não! Isso não me impressionava. Mas ela não
me lançou sequer um olhar. Só fixava a menina.
Mrs. Grose tentou imaginar a cena.
- Ela fixava a menina?
- Ah, com um olhar horrível!
A mulher fitou os meus olhos como se quisesse ver neles essa
imagem.
- Fixava-a com ódio?
- Mil vezes pior que isso! Deus nos acuda!
- Pior que isso? - murmurou sem compreender.
- Com um ar de resolução... indescritível. Uma espécie de intenção furiosa.
Isto fê-la empalidecer:
- Intensão?
- A intensão de se apoderar dela.
Mrs. Grose, sempre sem despregar os olhos de mim, teve um arrepio e aproximou-se da janela;
e enquanto ela ali ficava a olhar lá para fora, eu completei a minha afirmação:
- E Flora tem plena consciência disso.
Passados momentos ela voltou-se:
- A mulher estava vestida de preto, diz a menina?
- Estava de luto. Com roupas pobres, quase miseráveis. Mas
era bonita... sim... extraordinariamente bonita. - Vi então o que o meu relato, pouco a pouco,
dera a perceber à vítima das minhas confidências, porque ela ficou a reflectir no que eu acabava
de dizer. E insisti: - Muito, muito interessante. Maravilhosamente bela. Mas infame!
Ela voltou-se para mim lentamente:
- Miss Jessel... era infame. - Tomou uma vez mais a minha
mão entre as dela, apertando-a com força, como se quisesse fortalecer-me contra o pânico que a
sua declaração poderia suscitar em mim: - Os dois eram infames - declarou finalmente.
Assim, por uns momentos, ambas nos quedamos a enfrentar a
situação; e eu senti um certo alívio por a perceber, enfim, claramente.
- Aprecio a sua discrição - declarei - em me ter ocultado isso até hoje, mas chegou a altura de
me revelar tudo. - Ela pareceu concordar, mas continuou a guardar silêncio, em vista do qual eu
prossegui: - Quero saber tudo. De que morreu ela? Diga-me, havia alguma coisa entre eles?
- Havia tudo entre eles.
- Apesar da diferença...?
- Da diferença de classe, de condição... - declarou ela tristemente. - Ela era uma senhora.
Reflecti e procurei rever a figura dela.
- Sim, era uma senhora.
- E ele tão inferior! - tornou Mrs. Grose.
Achei que não devia insistir na diferença de classe, diante de uma criada, mas isso não influía
na opinião desta, quanto ao que ela considerava o rebaixamento da minha predecessora. Havia
outra maneira de rodear a questão, e foi o que fiz: referir-me ao belo criado "particular" do meu
patrão, aquele sujeito descarado, senhor de si, depravado, sem educação.
- O homem, esse era nojento?
Mrs. Grose ponderou a resposta, como se se tratasse de uma
questão de categorias:
- Nunca conheci ninguém assim. Fazia tudo quanto lhe apetecia.
- Com ela?
- Com eles todos.
Naquele momento era como se Miss Jessel tivesse reaparecido
diante dos olhos da minha amiga. Pelo menos era como se, por um instante, ela invocasse a sua
figura tão real como eu a vira havia pouco. E afirmei com decisão:
- Decerto, também era isso que ela queria!
Pela expressão de Mrs. Grose vi que ela concordava, mas logo
acrescentou:
- Pobre mulher... pagou bem caro!
- Então sabe de que ela morreu? - perguntei.
- Não, não sei nada... Não quis saber, e ainda bem. Dou graças a Deus por ela já estar fora
daqui!
- Mas deve fazer uma ideia...
- Do motivo por que ela se foi embora? Oh, sim, quanto a isso... Ela não poderia ter continuado
aqui. Imagine... uma preceptora... Então eu fiz uma ideia... e ainda hoje faço... foi tudo horrível!
-Eu também faço ideia - repliquei. Com isto devo ter mostrado um ar de terrível frustração, e
isso despertou-lhe mais uma vez uma grande compaixão por mim.
A minha resistência cedeu, e, tal como lhe acontecera a ela da outra vez, desatei a chorar. Ela
apertou-me ternamente contra o peito e eu rompi em lamentos:
- Não consigo! - solucei, num desespero. - Não consigo salvá-los, nem protegê-los! É tudo
muito pior que imaginara. Eles estão perdidos!

O que eu declarara a Mrs. Grose era bem verdade, aquele caso


apresentava aspectos tão complicados e nebulosos que eu não me
atrevia a desvendar. Por isso, quando voltámos a reunirmo-nos
para discutir o assunto, concordámos em que era essencial não nos perdermos em divagações
fantasiosas. Quanto mais não fosse, devíamos manter a cabeça no lugar, embora isso se tornasse
difícil em face daquilo que a nossa prodigiosa experiência nos revelara.
Altas horas da noite, quando todos dormiam, conversámos de novo no meu quarto. No decorrer
da conversa, ela procurou certificar-se daquilo que eu realmente vira. Para a convencer não fiz
mais que perguntar-lhe, se acaso eu estivesse "a inventar, como é que eu poderia ter descrito os
sinais dos personagens, até ao mais ínfimo pormenor, de modo que ela imediatamente os
conseguisse identificar. Por vontade dela, e ninguém a pode censurar por isso, enterrava-se o
assunto; porém, eu declarei que pela minha parte,
estava disposta a prosseguir nas investigações no sentido de encontrar uma solução.
Tranquilizei-a, afirmando que acabaria por me acostumar às aparições, pois ambas
concordávamos que elas iriam repetir-se. Também lhe garanti que o facto de me expor a
elas, -Constituía para mim a menor das preocupações. O que eu achava intolerável era a minha
nova suspeita, mas, até para isso, as últimas horas do dia tinham-me trazido um certo alívio.
Ao deixar Mrs. Grose, depois da segunda crise de desânimo, eu
voltei novamente a ocupar-me dos meus alunos, pensando que a
sua doce convivência seria um remédio que nunca falharia contra as minhas preocupações. Por
outras palavras, procurei sobretudo aproximar-me de Flora, e senti-me desvanecida ao verificar
que ela tinha o discernimento suficiente para pôr logo o dedo na ferida.
Olhou para mim com um ar de amorosa interrogação e acusou-me
claramente de ter "chorado". Eujulgava ter feito desaparecer já todos os vestígios das lágrimas,
mas fiquei satisfeita, pelo menos naquele momento, de não o ter conseguido inteiramente, pois
graças a isso é que eu recebia agora aquela prova de compadecido interesse. Considerar esta
atitude uma falsidade precoce, seria prova de
grande cinismo, por isso eu preferi, enquanto me fosse possível, pôr de parte as minhas
desconfianças e preocupações. Como isso, porém, não dependia unicamente da minha vontade,
limitei-me a repetir vezes e vezes, pela noite fora, a Mrs. Grose, que bastaria ouvir a voz dos
nossos amiguinhos, apertá-los contra o peito, encostar às nossas caras às suas caminhas suaves,
para que todas as nossas dúvidas caíssem por terra, para vermos apenas a sua beleza e
fragilidade. Pena era, contudo, que eu tivesse de recapitular
a certeza do que vira, de repetir para mim própria o entendimento que eu percebera entre as
duas partes e que me revelara ser aquele encontro uma questão de hábito. Pena, igualmente, que
eu tivesse de recapitular as razões, porque eu não duvidara de que a menina vira a nossa visitante
tão distintamente como eu estava agora vendo Mrs. Grose, por que razão ela fingira não ter visto
nada e por que, ao mesmo tempo, procurara, disfarçadamente, saber, se eu tinha visto alguma
coisa! Pena, também, que eu precisasse
de recordar as várias e habilidosas actividades a que ela se entregara para distrair a minha
atenção: redobrara de actividade e de interesse pela brincadeira, cantara, tagarelara, acabando por
me convidar a correr com ela ao desafio.
No entanto, se eu não tivesse cedido fazer esta recapitulação, ter-me-iam escapado dois ou três
pequenos elementos de conforto, que ainda me restavam. Por exemplo, não teria sido capaz de
asseverar à minha amiga que, ao menos eu, não me havia traído. Não teria sido obrigada, como
último recurso ou em desespero de causa, não sei como chamar-lhe, a recorrer à inteligência até
ao ponto de encostar a minha colega à parede. É certo que ela, pouco a pouco e depois de
pressionada, acabara por me contar muita coisa; havia, porém, um certo ponto obscuro que por
vezes me aflorava a fronte como a asa de um morcego; e recordo-me de que nessa ocasião, em
que a casa adormecia, o perigo e a vigília em comum
pareciam tornar o momento propício. Resolvi dar um último puxão à cortina e disse:
- Recuso-me a acreditar numa coisa tão horrível. Não, minha
querida, partamos do princípio que eu não acredito. Mas se eu
acreditasse, percebe?, há um pormenor que, pormuito que lhe custe, gostaria que me dissesse.
Que é que a senhora tinha na ideia, naquela altura em que estava preocupada com a carta do
colégio, antes de Miles cáchegar, quando disse, em face da minha insistência, que não podia
afirmar "que ele se tivesse portado sempre bem"? A verdade é que, durante estas semanas em
que ele tem estado perto de mim e em que o tenho observado, ele foi sempre um prodígio de bom
comportamento. Portanto, a senhora teria afirmado o mesmo se não houvesse uma excepção.
Qual foi essa excepção e a que momento das suas observações é que a senhora se estava a
referir?
A pergunta era bastante directa e, de qualquer modo, não estávamos com disposição para
conversas fiadas. O certo é que, antes que o romper do dia nos obrigasse a separarmo-nos, eu
obtive a resposta à minha pergunta. O que a minha amiga tivera em mente revelava-se um
elemento importantíssimo. Tratava-se nada mais nada menos do facto de Quint e o rapazinho
terem andado continuamente juntos durante um período de vários meses. Cheguei à conclusão de
que ela se arriscara a comentar junto de Miss Jessel a inconveniência e a estranheza de tal
procedimento. Ao que Miss Jessel respondera com toda a altivez que "não se metesse onde não
era chamada", e, então, a boa mulher resolvera falar directamente com o pequeno Miles.
Dissera-lhe, confessou-me, que não gostava de ver um jovem esquecer-se da sua condição. Eu
insisti, claro, em saber mais pormenores.
A senhora fez-lhe notar que Quint não passava de um reles
criado? Claro que fiz! Foi a resposta dele que achei estranha...
- Então? Ele foi repetir as suas palavras a Quint? - perguntei.
- Não, nada disso. O que acho estranho é que ele não foi repetir nada. -A mulher conseguia
surpreender-me. Acrescentou: - Tenho a certeza de que ele não repetiu nada. Mas negou certos
factos.
- Quais factos?
- Que tinham estado juntos. Como se Quint fosse o seu preceptor (mas que rico perceptor!), e a
Miss Jessel estivesse apenas ao serviço da menina. Refiro-me àquelas vezes em que ele saía com
o tipo e passavam juntos horas e horas. Míles aíportou-se mal. Negou.
- Estou a ver. Mentiu!
- Oh - resmungou Mrs. Grose. Não gostara da minha sugestão, mas veio confirmá-la,
observando: - Bem vê, ao fim e ao cabo, Miss Jessel não se importava. Não lho tinha proibido.
- Foi com isso que ele se justificou?
Ela admitiu, mais uma vez.
- Não, ele nunca falou nisso.
- Nunca falou dela, relacionando-a com Quint?
Mrs. Grose corou, percebendo perfeitamente onde eu queria chegar.
- Nunca deu a entender nada. Negou - repetiu ela. - Só negou.
Eu insisti, meu Deus, e de que maneira!
- Então a senhora percebeu que ele sabia o que se passava entre aqueles dois patifes?
- Isso não sei, não sei! - gemeu a pobre mulher.
- A senhora sabe, minha querida - repliquei eu. - Só que não
tem a minha independência de espírito e prefere esconder, por timidez, por modéstia e por
delicadeza, e recordação daquilo que no passado, quando tinha de lutar sozinha, sem a minha
ajuda, a tornava deveras infeliz. Mas eu quero que me diga tudo. Houve al guma coisa no
rapaz - prossegui eu - que a levou a crer que ele estava a encobrir a relação de ambos?
- Oli, ele não conseguia evitar...
- Que a senhora soubesse a verdade? Também me parece! Mas,
santo Deus! - exclamei. - Isso mostra bem até que ponto eles tinham conseguido industriá-lo!
- Ah, tudo isto é uma grande tragédia! - murmurou Mrs. Grose num tom lúgubre.
- Agora percebo o seu ar estranho - tornei eu - quando lhe
falei na carta do colégio!
- E a menina não ficou menos transtornada - replicou ela vivamente. - Mas se ele se portou tão
mal como se sabe, por que é que agora se porta como um anjo?
- Sim, e depois de se ter mostrado um patife no colégio... Como pode isto ser? Bem - prossegui
cada vez mais angustiada, - vamos recapitular o caso, para não voltarmos a falar disto tão cedo.
Vamos lá ver! - exclamei num tom que fez que a minha amiga me fitasse, espantada. - Há
hipóteses que eu nem sequer me atrevo a encarar.-Voltei pois ao primeiro caso que ela me
referira, dizendo que o rapaz tinha, por vezes, um deslize: - Se a senhora, falando de Quint, disse
que ele não passava de um reles criado, calculo que uma das coisas que Miles lhe respondeu é
que a senhora não era mais que ele... - Como ela concordasse, eu prossegui: - E a senhora
perdoou-lhe?
- E a menina não lhe perdoava?
- Oh, sim!
No meio do silêncio rimos as duas. Então eu prossegui:
- De qualquer modo, enquanto ele estava com o homem...
- Miss Flora estava com a rapariga. Convinha a todos!
A mim também. Isto é, vinha confirmar inteiramente aquilo
que eu me esforçava por não querer admitir. Mas tentei afastar essa ideia e limitar-me-ei aqui a
mencionar a última observação que fiz a Mrs. Grose.
- Confesso que o facto de ele ter mentido e de se ter mostrado descarado, são aspectos menos
agradáveis que eu esperava obter das suas informações. Contudo -murmurei -, vou tê-los em
conta, pois fazem-me sentir que, mais que nunca, devo estar alerta.
Logo a seguir corei, ao ver pela expressão da minha amiga, que ela perdoara mais
completamente do que eu algum dia seria capaz de fazer, apesar de toda a minha ternura. Isto
ficou ainda mais confirmado quando ela me disse, ao sair da sala de estudo.
- Por certo não vai pedir-lhe contas...
- De manter uma relação que me esconde? Ah, lembre-se de
que até obter mais provas, eu não acuso ninguém. - E acrescentei antes de fechar a porta que
dava para o corredor dos aposentos dela: - Tenho de aguardar.

Esperei e tornei a esperar, e, à medida que o tempo passava, a


minha consternação ia atenuando. De facto, os dias passados em
contacto íntimo com os meus pupilos, sem que se verificassem novos incidentes, bastavam para
passar como que uma esponja sobre os anteriores motivos de queixa e até mesmo sobre as
recordações odiosas que pairavam sobre nós. Já me referi ao extraordinário encanto das duas
crianças, e é fácil imaginar que eu recorria de bom grado a esse consolo. Mais estranho, contudo,
do que eu possa exprimir, era o esforço de lutar contra as novas informações que eu possuía. Mas
a tensão seria ainda maior se eu não conseguisse por vezes sair vitoriosa dessa luta. Perguntava
também a mim própria
como é que os meus pupilos podiam deixar de suspeitar que eu desconfiava deles e o facto de
isso os tornar mais interessantes não me ajudava nada a disfarçar. Eu tremia só de pensar que
eles podiam aperceber-se de quanto se haviam tornado objectos de interesse. Em todo o caso,
encarando as coisas pelo lado pior, como me acontecia muitas vezes, qualquer ameaça que
pairasse sobre a sua inocência constituía para mim mais uma razão para correr riscos.
Momentos havia em que me dava vontade de os apertar contra o
peito, num impulso irresistível. E logo a seguir, cogitava. "Mas que pensarão eles disto? Será que
eu me traí?" Não seria de admirar que eu entrasse em pânico ao pensar até que ponto me poderia
ter traído; mas nos momentos de paz, que ainda me era dado gozar, o encanto dos meus
companheiros representava para mim um sortilégio a que se tornava difícil fugir, mesmo
suspeitando que ele podia ser fingido. Ocorrera-me que aqueles meus súbitos assomos de paixão
por eles, poderia causar-lhes suspeitas, por isso perguntava a mim própria se não haveria algo de
estranho nas redobradas demonstrações de ternura das duas crianças.
Naquela época eles gostavam de mim de uma forma extravagante e pouco natural; o que, de
resto, se explicava da parte de uns
jovens habituados a mimos e a serem alvo de atenções. As homenagens que eles eram tão
pródigos em prestar-me, acalmavam-me os nervos tal e qual como se eu nunca tivesse suspeitado
que havia outra coisa por detrás disso. Penso que nunca haviam feito, como agora, tantas coisas
para agradar à sua pobre guardiã; isto é, para além de estudarem impecavelmente as lições, o que
sem dúvida era para mim o mais importante, surpreendiam-me cada vez mais em matéria de
distracções e divertimentos: liam-me trechos,
contavam-me histórias, -representavam charadas, faziam-me gatimanhas, disfarçavam-se de
animais ou de figuras históricas e, sobretudo, surpreendiam-me com as "peças" que aprendiam de
cor e me recitavam sem descanso. Nunca conseguiria descrever, por mais que quisesse, as
conversas íntimas e os comentários que preenchiam o nosso tempo. Ambos haviam demonstrado,
desde o princípio, uma enorme aptidão para tudo, uma capacidade inaudita. Cumpriam as suas
pequenas tarefas como se isso lhes desse grande prazer; executavam verdadeiros prodígios de
memória, só pelo gosto de se exibirem. Apareciam subitamente disfarçados, não só de tigres,
como também de romanos, de shakespearianos, de astrónomos, de navegadores. Isto tinha algo a
ver, sem dúvida, com uma coisa que hoje acho dificil de explicar. Refiro-me ao facto de eu não
me mostrar nada apressada em arranjar um novo colégio para Miles. Recordo-me de que,
naquele momento, me contentava em não abordar a questão, e essa atitude devia-se sem
dúvida ao facto da eterna exibição que ele fazia da sua inteligência. Ele era demasiado esperto
para se deixar adular por uma pobre preceptora, filha de um pastor de província. E o aspecto
mais estranho, senão o mais refinado da teia que eu tecia na minha ima ginação e não ousava
exprimir, é que ele se encontrava sob qualquer influência oculta, actuando sobre a sua vida
intelectual como um tremendo incitamento.
Se podia parecer estranho que se adiasse a entrada de um rapazinho tão dotado para o colégio,
não era menos estranho que esse mesmo rapazinho tivesse antes sido expulso. Deixem-me
acrescentar que agora, na companhia deles (e eu procurava nunca me afastar), não conseguia
descobrir nada de suspeito. Vivíamos num ambiente de música, de afecto, de exibição, de
representações teatrais privadas. O sentido musical de qualquer deles era muito apurado,
sobretudo o rapaz tinha uma facilidade fantástica de apreender e reproduzir. O piano da sala de
estudo ressoava com as mais estranhas fantasias; ou quando não fosse isso, havia conspirações
pelos cantos em consequência das quais um deles se safava
sempre com qualquer "surpresa". Eu própria tinha irmãos e para
mim não constituía novidade o facto de as meninas, por vezes,
manifestarem uma verdadeira idolatria pelos rapazes. O que ultrapassava tudo era existir um
rapazinho no mundo que revelasse uma tal consideração pela inteligência e pelo sexo da irmã
mais nova. Dizer apenas que estavam sempre de acordo seria minimizar a perfeita qualidade das
suas relações. Acontece-me por vezes recordar pequenas manifestações de solidariedade entre
eles, como seja, ficar um a entreter-me enquanto o outro se escapava.
Suponho que havia um certo aspecto ingénuo em toda aquela
diplomacia; mas se a punham em prática, em relação à minha pessoa, era sem um mínimo de
grosseria. Foi noutro sector que, volvidos uns tempos, a grosseria se veio a revelar.
Verifico que estou a marcar passo, mas tenho de entrar de cabeça no horrível assunto. Ao
prosseguir a narrativa do que havia de monstruoso em Bly, não apenas ponho em questão a
minha fé, o que pouco me preocupa, como também (e isto é outro assunto) volto a viver aquilo
que sofri e volto a percorrer o mesmo caminho até ao fim. De certa altura em diante,
afigura-se-me hoje que tudo não passava de puro sofrimento, mas o melhor é continuar, sem que
nada o fizesse prever, assaltou-me aquele mesmo arrepio que eu sentira na noite da chegada e
que eu teria esquecido por completo se acaso a minha estada ali não fosse tão conturbada. Não
me
tinha ainda deitado, ficara a ler à luz de duas velas. Havia uma sala cheia de livros em Bly,
alguns deles romances do século passado, os quais, devido à sua fama pouco ortodoxa, nunca
tinham entrado em minha casa, com excepção de um ou outro exemplar, às escondidas, mas que
despertavam a minha curiosidade juvenil.
Recordo-me de que estava a ler um, chamado Amélia, de Fielding, e sei que estava bem
acordada. Também me recordo de ter a consciência de que era muito tarde, mas de não querer
olhar para o relógio. Lembro-me, enfim, de me ter assegurado de que os cortinados brancos que
tapavam a caminha de Flora, como era moda então, estavam bem corridos, a fim de protegerem o
sono da criança. O que sei é que, muito embora estivesse profundamente interessada no romance,
ao fim de uma das páginas, foi como se se quebrasse o encanto e dei comigo a fitar a porta do
meu quarto.
Pus-me à escuta e voltei então a sentir a mesma impressão que tivera na primeira noite, de que
havia algo estranho dentro daquela casa. Notei que uma leve aragem entrava pela janela aberta e
fazia oscilar o estore, meio corrido. Então, com uma determinação que espantaria quem estivesse
aassistir àcena, pousei olivro, pus-me de pé, peguei na vela, saí para o corredor que esta mal
iluminava e, sem fazer ruído, fechei a porta à chave atrás de mim.
Não sei hoje dizer o que me levou a fazer isso, mas, erguendo a vela acima da cabeça, percorri o
corredor até avistar ajanela que ficava na volta da escada. Nessa altura tive consciência de três
coisas quase simultâneas: após lançar um fogacho, a minha vela apagou-se. Apercebi-me, através
da janela, de que a madrugada tornara a vela desnecessária. E, no instante seguinte, vi que havia
alguém nas escadas. Falei em sequências, mas quanto a mim não precisei de tempo para me
preparar para um segundo encontro com Quint. A aparição viera até ao meio do patamar e ali, ao
ver-me, parara a olhar para mim, tal como fizera da outra vez na Torre e no jardim. Ele
reconhecia-me e eu conhecia-o; e, assim, à
fria luz da madrugada, sob o brilho da vidraça e da madeira polida da escada, encarámo-nos
com igual intensidade. Desta vez ele era uma presença viva, detestável e ameaçadora. Mas não
era isso que me espantava. O mais estranho é que todo o medo me abandonara e eu estava
deliberadamente pronta a enfrentá-lo.
Após esse momento senti-me horrivelmente angustiada, mas,
graças aDeus, não sentia terror. Ele apercebera-se disso e eu verifiquei-o com satisfação. Senti
que se lhe fizesse frente por mais um minuto, levaria a melhor... Assim, aquele minuto foi tão
horrível como se se tratasse de uma luta com um ser humano: porque se tratava de um ser
humano e era como se eu estivesse a enfrentar sozinha um inimigo, um aventureiro, de
madrugada, numa casa adormecida. Só o prolongado silêncio com que nos fitávamos de tão perto
conferia à cena o seu aspecto sobrenatural. Se acaso eu tivesse deparado com um criminoso
àquela hora e em semelhante lugar teríamos, pelo menos, falado um com o outro. Ter-se-ia
passado alguma coisa entre nós e, quando não se passasse, um de nós ter-se-ia, por certo,
movido. Aquele momento prolongou-se tanto,
que acabei por duvidar de que eu própria estivesse viva. Não sei descrever o que se passou
depois, basta-me dizer que o próprio silêncio se tornara a medida da minha força. Vi-o por fim
voltar-se, como se o miserável tivesse recebido uma ordem. Não deixei de lhe fitar as costas,
mais repelentes que se ele fosse corcunda, enquanto ele descia as escadas e desaparecia na
escuridão.

Demorei-me ainda um bocado no cimo das escadas, muito embora com a sensação de que o meu
visitante se fora embora de vez.
Depois regressei ao meu quarto. A primeira coisa que vi, à luz davela que ficara acesa, foi a
cama de Flora vazia: e este facto deixou-me sufocada com todo o terror que ainda há pouco
conseguira dominar. Corri para o sítio onde a deixara deitada, agora com os lençóis e a colcha de
seda todos amarfanhados, e sobre os quais os cortinados haviam sido corridos para disfarçar;
então, com grande alívio meu, escutei um som que fazia eco ao ruído dos meus passos: notei
uma agitação no estore e a menina surgiu, toda corada, por detrás dele. Tinha um ar cândido na
sua camisinha de dormir, com os pés descalços e os caracóis loiros a brilhar! Parecia muito grave
e senti, de súbito, desvanecer-se aquela sensação de vitória que experimentara havia pouco, ao
ouvi-la perguntar com
ar de censura:
- Onde é que esteve, sua mázona?
Em lugar de a repreender pela irregularidade do seu procedimento, dei comigo a inventar uma
desculpa. Ela própria deu a sua explicação, que eu não estava no quarto, e então saltara da cama
para me procurar. Só nessa altura, com o alívio de a ver aparecer, me senti desmaiar e me deixei
cair na cadeira; ela veio ter comigo, deitou-se nos meus joelhos e deixou-se abraçar, com a luz da
vela a bater em cheio no seu rostozinho ainda afogueado de sono.
Lembro-me de ter fechado os olhos por um momento, incapaz de
aguentar por mais tempo o encanto que se desprendia do azul dos olhos dela.
- Foste àjanela procurar-me? Pensaste que eu podia estar no
jardim? - perguntei.
- Sim, pareceu-me que andava lá uma pessoa - E sorria-me
sem pestanejar.
Eu olhei-a intensamente:
- Oh, e viste alguém?
- Não - retorquiu ela imediatamente, com infantil inconsequência, e um certo tom de censura.
Nesse momento, no estado de nervos em que me encontrava,
tive a certeza de que ela me mentia. E se um momento antes cerrara os olhos, isso fora antes de
me ocorrerem as diversas maneiras que tinha de abordar o problema. Uma delas tentou-me a tal
ponto que, para lhe resistir, tive de abraçar a menina com verdadeiro ímpeto, coisa que ela
suportou sem dar parte fraca. Por que não havia eu de pôr tudo em pratos limpos e interrogá-la
logo ali? Dizer-lhe: "Tu viste, tu viste, e bem sabes que eu também sei que tu viste! Por que não
confessas francamente para encararmos a coisa juntas e sabermos em que ponto estamos e o que
significa tudo isto?" Tal ideia, porém, caiu logo pela base. Se eu a tivesse seguido teria evitado...
enfim, aquilo que adiante se verá. Em vez disso
pus-me de pé e olhando para a cama, optei por outra alternativa e inquiri:
- Por que correste os cortinados a fingir que estavas ali?
Flora reflectiu e respondeu, com o seu sorriso aliciante:
- Porque não queria assustá-la!
- Mas se eu estivesse lá fora, como disseste...
Ela não se deixou enredar e voltou os olhos para a vela, como se a minha pergunta fosse
absurda, ou, pelo menos, irrelevante, e respondeu sensatamente:
- Oli, mas a senhora havia de voltar, minha querida. E voltou!
Dali a pouco, estando ela já deitada, tive de lhe segurar a mão durante muito tempo para
confirmar, de facto, o meu regresso.
A partir da li, pode-se imaginar o que eram asminhasnoites. Ficava sentada até sabe-se lá a que
horas; escolhia os momentos em que a minha companheira de quarto estava sem dúvida
nenhuma a dormir, para sair em bicos de pés e fazer rondas silenciosas pelos corredores. Cheguei
mesmo a ir até ao ponto onde vira Quint pela última vez. Mas não voltei a encontrá-lo e posso
afirmar desde já que nunca mais o vi dentro daquela casa. No entanto falhei uma
vez, nas escadas, um encontro diferente. Ao olhar lá de cima avistei a presença de uma mulher
sentada num dos primeiros degraus, de costas para mim, toda curvada e com a cabeça apoiada
nas mãos, numa atitude de desespero. Mal a avistara, logo ela desapareceu sem olhar para trás.
Apesar disso fiquei a saber perfeitamente qual era o rosto que ela não me quisera mostrar. E
perguntei a mim própria, se acaso eu estivesse lá em baixo, se teria tido a mesma coragem para
lhe fazer frente que revelara aquando do encontro com Quint. Ora bem, os meus nervos
continuavam a ser submetidos a duras provas. Onze noites após o meu último encontro com o
dito cavalheiro (trazia-as bem contadas) tive um aviso que, por ser totalmente inesperado, me
causou o maior dos choques. Era aquela precisamente a primeira noite em que eu, exausta de
tantas vigílias, tinha posto na minha ideia ir para a cama à
hora habitual. Adormeci imediatamente, para acordar, conforme
verifiquei, à umahora. Sentei-me logo na cama, tão desperta como se tivesse sido sacudida pela
mão de alguém. Havia deixado uma luz acesa, e tive logo a certeza de que Flora é que a apagara.
Saltei para o chão, às escuras, e corri para a cama dela, que achei vazia.
Um olhar para a janela revelou-me o que se passava e depois de
acender um fósforo fiquei elucidada.
A criança levantara-se outra vez e, depois de apagar a lamparina, enfiara-se atrás do estore e
espreitava lá para fora, a observar alguma coisa ou a responder a alguém. Que ela via agora fosse
o que fosse, ao contrário do que sucedera da outra vez, provava-me o facto de não se dar conta
de que eu reacendera a luz nem do ruído que fazia a calçar à pressa os chinelos e a enfiar o
roupão. Ali, oculta, protegida, sentada no parapeito, pois os batentes abriam para fora, traiu-se.
Fazia um luar muito claro e isso levou-me a
tomar uma rápida decisão. Ela estava frente a frente com a aparição que tínhamos visto no lago,
e podia comunicar com ela como antes não lhe fora possível. Tudo quanto eu tinha a fazer era
alcançar, através do corredor, a outra janela voltada para aquele mesmo lado. Cheguei à porta
sem que ela me ouvisse, saí e fiquei à escuta do outro lado. Enquanto estava no corredor não tirei
os olhos da porta do quarto do irmão, que ficava apenas a uns dez passos de distância, e de novo
fui assaltada pelo mesmo estranho impulso, a que chamo tentação. E se eu entrasse ali e me
dirigisse à janela? E se eu, arriscando-me à estranhesa que isso poderia causar ao rapaz, lhe
revelasse o motivo que ali me levava e tivesse a coragem de assim acabar com todo aquele
mistério? Este pensamento levou-me atéjunto da porta, mas parei ali, àescuta, tentando imaginar
o que iria encontrar. E se o leito estivesse vazio e ele
também se tivesse posto de atalaia? Decorreu um minuto de sílêncio, findo o qual o meu impulso
esmoreceu. Estava tudo calmo; o rapaz devia estar inocente; eu iria correr um grande risco. E
fui-me embora. Lá em baixo, no jardim, estava uma figura, uma figura que procurava ser vista e
que naquele momento absorvia a atenção de Flora. Não se tratava, porém, do visitante mais
directamente relacionado com o meu rapaz. Hesitei de novo, mas agora por outras razões, e
apenas por poucos segundos. E tomei uma decisão.
Havia muitos quartos vazios em Bly. Tratava-se de escolher o
mais adequado. O que me pareceu melhor foi aquele a que chamavam a Torre e que ficava
mesmo por cima do jardim, à esquina da casa. Era um enorme compartimento quadrado,
mobilado como quarto de dormir, embora as suas enormes dimensões o tornassem incómodo,
por isso havia anos que não era utilizado, muito embora Mrs. Grose o mantivesse num arranjo
impecável. Eu visitara-o por várias vezes e sabia muito bem lá ir ter. Dominando o arrepio que
me causara a sua falta de uso, só me restava atravessá-lo e
abrir, sem ruído, um dos estores. Feito isto, encostei o rosto ao vidro e, como a escuridão lá de
fora fosse menor que a que reinava dentro do quarto, pude ver que me encontrava em boa
direcção. Depois vi alguma coisa mais. A Lua tornava a noite extraordinariamente clara e
mostrava-me uma pessoa no meio do relvado, diminuída pela distância, imóvel, a olhar como
que fascinada para o lado onde eu estava. Olhava não para mim, mas para algo que se encontrava
mais acima. Sem dúvida que estava ali alguém, devia estar na Torre; porém, a figura do relvado
não era de modo algum aquela que eu esperava e ao encontro da qual tão ousadamente me
dirigira. A figura do relvado (senti-me mal ao verificá-lo), era o próprio Miles!

Só no dia seguinte falei com Mrs. Grose, uma vez que o esforço
que fazia para nunca perder de vista os meus alunos, tornava difícil qualquer conversa em
particular. Ambas sentíamos cada vez mais a necessidade de não provocar, tanto da parte das
crianças como dos criados, a menor suspeita de complicação secreta ou discussão de mistérios. A
este respeito, o aspecto dela, sempre da maior compostura, bastava para me dar uma grande
segurança. No seu rosto fresco não transparecia nada que pudesse transmitir aos outros as
horríveis confidências que eu lhe fazia. Tenho a certeza de que acreditava inteiramente em mim;
se assim não fosse, não sei o que faria, não teria sido capaz de suportar sozinha aquele fardo.
Ela era, porém, um monumento à falta de imaginação. Não lhe era possível ver nas crianças a
nosso cargo nada mais que a sua beleza e amabilidade, asuaboa disposição e esperteza. Averdade
é que ela não tinha qualquer comunicação directa com a fonte das minhas preocupações. Se estas
se mostrassem afectadas ou abaladas, ela teria ficado igualmente marcada, mas tal como as
coisas se apresentavam, enquanto ela observava as crianças com o seu ar de serenidade, com os
fortes e brancos braços cruzados, entendia que, embora houvesse desgastes, nada estava
definitivamente perdido. No seu espírito, os voos da sua imaginação haviam dado
lugar a uma certa tranquilidade. à medida que o tempo passava, sem que se verificasse nenhum
incidente, percebi que ela achava os nossos meninos muito bem capazes de olharem por si, e que
dedicava muito maior atenção ao triste caso da sua colega, ou seja eu.

Isto, para mim, representava um grande descanso, sabia de


certeza que o meu rosto nunca revelaria nada, mas seria uma preocupação a mais, ter de me
preocupar com o dela.
No momento a que me refiro, ela tinha vindo ter comigo ao terraço, pois o sol da tarde tornava
aquele local muito agradável. Sentámo-nos ambas, enquanto as crianças brincavam, divertidas,
ali perto. Passeavam ambas, lado a lado, sobre a relva, o rapaz lia alto um livro de histórias, com
o braço por cima da irmã, para tornar o contacto mais íntimo. Mrs. Grose observava-os com um
ar complacente. Eu percebi então a artimanha com que ela procurava esconder de mim o reverso
da medalha. Eu confiara-lhe os segredos mais horríveis, mas ela reconhecia em mim uma certa
superioridade, em virtude das minhas habilitações e do lugar que eu ali ocupava. Acolhia todos
os meus desabafos e tenho a certeza de que
aceitaria igualmente de braços abertos qualquer sugestão que eu fizesse, por mais estranha que
fosse. Esta fora sempre a atitude dela até chegar ao ponto em que lhe transmiti o que Miles me
dissera quando o descobri, àquela hora tão insólita, quase no mesmo sítio onde ele se encontrava
agora. Tínhamos entrado pela janela, no intuito de não fazermos barulho, para não alertar
ninguém de casa. Creio, no entanto, não lhe ter dado a entender, totalmente, a brilhante
inspiração com que o garoto respondera às minhas perguntas directas, depois de eu o ter trazido
para casa. Assim que eu
aparecera no terraço iluminado pelo luar, ele correra logo para mim. Eu pegara-lhe na mão e
conduzira-o através da casa escura, pelas escadas acima, onde Quint vagueara na ânsia de o
encontrar, ao longo do corredor onde estivera à escuta, até chegarmos ao seu quarto deserto.
Durante o percurso não tínhamos trocado uma só palavra. Eu
cogitava se ele estaria a arquitectar na sua cabecinha alguma história plausível e não demasiado
grotesca. Saboreava já o meu triunfo quando lhe descobrisse a artimanha. Ele não tinha maneira
de se desculpar, como poderia justificar-se? Também eu me sentia aflita. Pela primeira vez
via-me con frontada com todos os riscos inerentes a uma resposta directa. Recordo-me de que ao
entrarmos no quarto, onde a cama não fora desfeita e onde o luar que entrava pelajanela sem
cortina tornava tudo tão claro, que não era preciso riscar um fósforo, me deixei cair sentada na
borda do leito, dominada pela ideia de que ele tinha consciência de me ter posto à sua mercê.
Poderia fazer o que quisesse, com toda a sua esperteza, desde que eu pudesse continuar a adiar
indefinidamente a acusação de culpa criminosa contra aqueles dois empregados, culpados de
bruxarias e malefícios. Eu estava, na verdade, num
beco sem saída. Quem poderia perdoar-me e absolver-me de introduzir nas nossas relações tão
perfeitas, um elemento de tal forma horrendo? Não, não, seria inútil apelar para Mrs. Grose.
Assim precisamente daquilo que no fundo, verifico-o agora, me intrigava e perturbava.
Refiro-me à extraordinária beleza e à fantástica simpatia de ambos. É tudo falso - prossegui. - É
tudo uma política, uma fraude!
- Oh, isso da parte daqueles amorzinhos ... ?
- Que ainda não passam de duas crianças? Sim senhor, parece loucura, mas é verdade! - Só o
facto de pôr a coisa em palavras me ajudava a reconstituir tudo, a recapitular: - Eles não se
portam bem, estão apenas ausentes. É fácil viver com eles, simplesmente porque vivem uma vida
à parte. Eles não pertencem a mim nem a si. Pertencem a ele e a ela!
- A Quint e àquela mulher?
- Isso mesmo. A Quint e àquela mulher! Eles pretendem apoderar-se dos meninos!
Ao ouvir isto, a pobre Mrs. Grose olhou-os cada vez mais atentamente:
- Mas para quê?
- Por via da maldade que, durante aqueles horríveis tempos,
o casal instilou em ambos. E a fim de os levar ainda a praticar esse mal, para que continuem a ser
presas dos demónios. É para isso que aqueles dois cá voltam!
- São destinos! - murmurou baixinho a minha amiga. Esta
exclamação era banal, mas mostrava bem que as minhas provas a
tinham convencido daquilo que acontecera nos tempos maus, pois
a verdade é que ela já tinha passado tempos bem piores que aqueles que atravessávamos. Quanto
a mim, o que vinha confirmar a devassidão profunda que eu imaginava existir naquele casal de
patifes, era aexperiência dela. Foi sem dúvida em consequência de antigas recordações que ela
proferiu dali a momentos:
- Eram na verdade dois velhacos! Mas que podem fazer eles
agora?
- Agora! - exclamei com tanta força que Flora e Miles ao passarem de longe pararam um
instante a olhar para nós. -Não acha que fazem bastante? - perguntei num tom mais baixo,
enquanto as crianças, depois de nos terem acenado a sorrir e atirado beijos, prosseguiam na sua
farsa. Ficámos caladas uns minutos até que eu adiantei: - Eles podem destruí-los! - Ao ouvir isto,
a minha companheira voltou-se para mim, num apelo mudo, e por isso tornei-me mais
explícita: - Por enquanto ainda não sabem como, mas estão a tentar furiosamente. Por ora só têm
sido vistos de longe e em lugares estranhos e altos, no cimo da Torre, nos telhados, do lado de
fora das janelas, na margem oposta do lago; mas existe de parte a parte um enorme desejo de
encurtar as distâncias e de ultrapassar os obstáculos. Por isso o êxito dos tentadores é apenas uma
questão de tempo. Basta-lhes insistir nas situações de
perigo.
- Para atraírem as crianças?
- E fazê-las perecer! - Mrs. Grose começou a erguer-se lentamente e eu tive o cuidado de
acrescentar: - A menos que consigamos impedi-los!
Ela ficou de pé, na minha frente, a reconsiderar o assunto, enquanto eu permanecia sentada.
- O tio deles é que deve tomar medidas. Tem de os levar daqui
para fora.
- E quem é que o vai convencer disso?
Ela estivera de olhos perdidos ao longe, mas logo voltou para
mim um rosto transtornado:
- Tem de ser a menina!
- Quer que eu lhe escreva a dizer que esta casa está assombrada e que os sobrinhos estão a ficar
loucos?
- E se estiverem mesmo?
- E se eu estiver também, quer a senhora dizer? Que belas notícias para lhe serem enviadas por
uma pessoa que lhe merecia confiança e cuja maior preocupação devia ser a de nunca lhe causar
aborrecimentos!
Mrs. Grose reflectia, sempre a olhar para as crianças:
- Sim, o que ele mais detesta é que o aborreçam. Foi esse o motivo principal...
- Porque aqueles sujeitos perversos o iludiram durante tanto
tempo! Acredito, se bem que a indiferença dele me pareça horrível. Mas de qualquer modo,
como eu não sou desonesta, não quero iludi-lo.
Por única resposta, a minha companheira sentou-se, agarrou-me no braço, e disse, passado uns
momentos:
- Seja lá como for, faça que ele venha até cá.
Eu olhei para ela, espantada:
- Faço que ele venha... - De súbito fiquei com medo do que ela poderia fazer. - Ele!? - exclamei.
- Ele devia estar aqui... devia ajudar.
Ergui-me de súbito e devo ter apresentado uma expressão mais
transtornada que nunca.
- Está a ver-me a pedir-lhe que venha até cá? - Não, olhando-me bem de frente, ela não podia
admitir semelhante coisa. Podia sim, como mulher que era, imaginar o que eu própria estava
pensando: que ele ficaria a rir, a gozar, cheio de desprezo pelo meu falhanço ao ver-me só, e por
descobrir a trama subtil que eu imaginara para atrair a sua atenção para os meus míseros
encantos.
Ela ignorava, de resto todos ignoravam, a que ponto eu me sentia orgulhosa por o servir e por
cumprir aquilo que ajustara com ele. Contudo, ela percebeu a gravidade da ameaça que lhe fiz:
- Se algum dia a senhora perder a cabeça a ponto de apelar para ele em meu nome...
Ela mostrou-se realmente assustada:
- Diga, menina...
- Vou-me embora imediatamente, despeço-me dele e de si.

Era preciso estar junto deles, mas falar-lhes representava, por vezes, um esforço superior às
minhas forças e até dificuldades por vezes tremendas. Esta situação durou um mês e com alguns
agravamentos, mais concretamente, uma certa atitude irónica, cada vez mais acentuada, da parte
dos meus alunos. Não se tratava de simples imaginação minha, estou hoje tão certa disso como
estava naquela altura, percebia-se perfeitamente que eles tinham consciência do meu problema e
que essa estranha relação condicionava de certo modo e durante muito tempo o ambiente em que
nos movíamos. Não quero dizer com isto que eles fizessem ostensivamente um ar de troça ou
qualquer atitude igualmente grosseira, pois não era esse o caso. O que pretendo explicar é que o
elemento que ficava oculto e, por dizer, tornou-se entre nós mais importante que qualquer outra
coisa fez que as nossas boas relações nunca
tivessem resultado sem uma grande dose de acordos tácitos. Era como se, a todo o momento,
tropeçássemos em objectos junto dos quais devíamos estacar, ou tivéssemos de retroceder ao
caminhar por estradas sem saída. Como se batêssemos, sem querer, com uma porta que
tivéssemos aberto indiscriminadamente, pois quando se bate com uma porta faz-se sempre mais
barulho que se quer. Todos os caminhos vão dar a Roma, e ocasiões havia em que nos
apercebíamos que cada assunto de estudo ou de conversa conduzia a um terreno proibido.
Terreno proibido era, sem dúvida, a
questão dos mortos que regressam em geral e em particular de
tudo quanto pode sobreviver na recordação dos amigos que perdemos. Em certos dias eu iria
jurar que um deles dava uma cotovelada ao outro e lhe segredava: "Ela pensa que hoje vai
conseguir, mas não vai!" "Conseguir" significava, por exemplo, não fazer referência à pessoa que
os preparara antes de mim em certa disciplina.
Revelavam um interesse extraordinário por passagens da minha
própria história que eu já lhes contara repetidas vezes. Sabiam tudo o que me tinha acontecido,
conheciam a história das minhas inocentes aventuras e as dos meus irmãos e irmãs, do cão e do
gato lá de casa, estavam a par das pequenas manias do meu pai, da disposição dos móveis da
minha casa, das conversas das velhotas lá daaldeia. Havia assuntos suficientes, desde que se
soubesse discorrer depressa e conhecer por instinto onde se devia dar a volta.
Eles sabiam dedilhar com arte as cordas da minha imaginação e
da minha memória. E quando hoje me recordo, tudo isso me deixa
a impressão de ter estado constantemente a ser observada à sucapa. De qualquer modo, não era
apenas sobre a minha vida, o meu passado e os meus amigos que podíamos conversar à vontade;
por vezes, sem mais quê nem para quê, começavam com as recordações. Pediam-me, sem
qualquer outro motivo especial, para lhes repetir mais uma vez a história da Mãe Pata, ou para
confirmar pormenores já sabidos acerca da esperteza do cavalo do meu pai.
Era sobretudo nessas ocasiões, dado o aspecto que as coisas tinham assumido, que o meu
problema se tornava mais agudo. O
facto de os dias irem passando sem que tivesse lugar mais nenhum encontro devia, ao que
parece, ter acalmado os meus nervos. Depois do incidente daquela noite, em que avistei a mulher
ao fundo das escadas, nada mais vi, dentro ou fora de casa, que não desejasse ver. Muitas vezes
penso que iria deparar com Quint ao virar de uma esquina, e houve momentos sinistros que
sugeriam a aparição de Miss Jessel.
O Verão chegara e fora-se embora; o Outono viera apagar metade da luminosidade. O local,
com o céu acinzentado e os ramos das árvores murchos, os seus espaços nus e as folhas mortas
espalhadas no chão, lembrava um teatro no fim do espectáculo, cheio de papéis amachucados.
Havia uma qualidade do ar, certas condições dos sons e do silêncio, impressões intraduzíveis
daquele momento mágico que eu agora revivia, a revelação daquela tarde de Junho em que Quint
me apareceu e daquela outra ocasião em que eu, depois de o ter avistado dajanela, o fora
procurar em vão no labirinto dos arbustos. Reconheci os sinais, os presságios; reconheci o
momento e olocal. Porém, tudo continuava deserto e a mim nada
me molestava; se é que isso se pode dizer a respeito de umajovem cuja sensibilidade tinha sido
estimulada, e a que ponto. Naquela minha conversa com Mrs. Grose acerca da cena passada com
Flora junto ao lago, eu surpreendera a boa mulher ao afirmar que, neste momento, custar-me-ia
muito mais perder os meus poderes de vidente que continuar com eles. E com isto exprimia
sinceramente o que sentia. A verdade é que, quer as crianças vissem as aparições ou não vissem,
uma vez que nada estava ainda definitivamente provado, o certo é que eu preferia, de longe,
expor-me eu própria como salvaguarda. Estava pronta para o pior que pudesse vir. O que eu
temia, naquele momento, é que os meus olhos pudessem estar fechados quando os deles estavam
bem abertos. Pois
bem, os meus olhos estavam certamente bem fechados, pelos vistos, facto pelo qual podia
parecer uma blasfémia não agradecer a Deus. Mas havia uma razão: eu ter-lhe-ia agradecido com
todas as forças da minha alma se não tivesse a convicção, igualmente forte, de que os meus
alunos estavam na posse do segredo.
Não sei se conseguirei reconstituir hoje as estranhas fases da
minha obsessão. Havia momentos na nossa convivência em que eu
estaria capaz de jurar que, na minha presença e sem que eu disso tivesse conhecimento, eles
viam personagens que bem conhecia e escolhiam com satisfação. Era nesses momentos que eu
gostaria de exclamar, se acaso essa minha atitude não se revelasse mais prejudicial que o facto de
me calar: "Eles estão aí, eles estão aí, seus
patifezinhos! Agora não podem negá-lo!" Ao que os mariolas responderam, com a maior
cordialidade e meiguice, através da@
quais se veria luzir um lampejo de troça, como o cintilar de um peixe nas profundezas das
águas. Este choque era, de verdade, ainda mais doloroso para mim que aquele que sofrera na
noite em que saíra à procura de Quint ou Miss Jessel na escuridão da noite e deparara com o
rapazinho que me olhava com aquele olhar inocente que a horrível aparição devia ter procurado
captar lá do alto da
muralha. Nesse momento ficara aterrada com a minha descoberta e era precisamente em estado
de pânico que eu tirava as minhas
conclusões. Eles atormentavam-me tanto que, por vezes, nos
momentos mais difíceis, me fechava no quarto, batendo a porta com estrondo, para considerar a
maneira como poderia lá chegar.
Era ao mesmo tempo um alívio fantástico e um desespero
renovado. Pesava e repesava o problema, enquanto percorriao quarto de um lado para o outro,
mas ia-me abaixo quando tinha de pronunciar os nomes monstruosos. Conforme eles se
desvaneciam nos meus lábios, dizia para mim mesma que pronunciando-os fazia surgir algo de
infame, violando a decisão de manter uma real delicadeza. Dizia para comigo: "Eles são
suficientement educados para se manterem em silêncio, e tu, em quem se confia tens a baixesa de
falar!" Sentia-me então corar e cobria a cara com
as mãos. Depois de estas cenas secretas desatava a falar mais qomo nunca até se produzirem um
dos nossos silêncios palpáveis e misteriosos - não posso classificá-los de outra maneira.
Momento de estranhas vertigens, de desvairo (faltam-me os termos), qe davam lugar a uma
paragem da vida, nada tendo a ver com o pouco ou muito ruído que estivéssemos a fazer. Uma
pausa de que me apercebia no meio da maior algazarra, de uma recitação, de acordes de piano.
Isto significava que os outros se encontravam aí, Muito embora não se tratasse de anjos, eles
"Passavam", como fazem os franceses. Enquanto ali se encontravam, eu tremia de receio, não
fossem eles dirigirem às suas pequenas vítimas qualquer mensagem infernal, qualquer imagem
mais nítida como aquela que já tinham manifestado.
O que eu não podia esquecer era a ideia cruel de que Miles e Flora viam mais coisas, coisas
terríveis e insuspeitadas, recordações de contactos passados. Tudo isto causava um esfriamento
que todos nós nos esforçávamos por disfarçar. à força do hábito conseguimos um treino tal que,
quase automaticamente, assinalávamos o fim do incidente com movimentos idênticos. Era
impressionante ver como as crianças, nessas ocasiões, acabavam sempre por me
beijar fogosamente, sem vir nada a propósito, e era certo e sabido que um ou outro me fazia a
pergunta clássica que já nos tinha ajudado em muitas ocasiões dificeis:
- Quando é que acha que ele virá? Pensa que devíamos escrever-lhe?
Ensinara-nos a experiência que bastava esta pergunta para
pôr fim ao mal-estar. Ele, claro está, era o tio de Harley Street. E nós vivíamos tão envolvidos
em fantasia que achávamos possível a sua chegada a qualquer momento. O procedimento dele
não era de molde a alimentar semelhante teoria, mas se não fosse essa mistificação nunca
teríamos fornecido uns aos outros tão belas exibições de comédia. Ele nunca escrevia aos
sobrinhos; isto pode
parecer egoísmo da sua parte, mas, por outro lado, fazia parte da confiança que tinha em mim e
de que eu me orgulhava; porque a maneira como um homem rende homenagem a uma mulher é,
muitas vezes, através de uma das leis mais sagradas do seu próprio
bem-estar. Por isso considerava que estava a cumprir a minha
obrigação quando dava a entender aos meus alunos que as suas
cartas para o tio não passavam de meros exercícios literários.
Eram demasiado belas para seguirem pelo correio, ficava eu com
elas; ainda hoje as conservo. Este facto vinha aumentar mais ainda o efeito satírico de eu ser
assediada com a suposição de que ele podia chegar a qualquer momento. Era como se os nossos
amiguinhos soubessem perfeitamente o que isso representaria para mim.
Além de tudo, quando agora olho para trás, o que me parece ainda mais extraordinário é o facto
de eu nunca ter perdido a paciência com eles. Deviam ser de facto umas crianças adoráveis, uma
vez que nunca os odiei, mesmo naquela altura . Mas será que o desespero acabaria por me trair?
Não interessa, uma vez que o alívio acabou por se fazer sentir. Chamo-lhe alívio, embora fosse
apenas aquele alívio que dá o quebrar de uma corda muito tensa, ou o deflagrar da trovoada após
um dia sufocante. Foi, pelo menos, uma mudança, e esta veio sem ser esperada.

Certo domingo, quando caminhávamos em direcção à igreja,


Miles seguia ao meu lado, a irmã um pouco à frente de mim e de
Mrs. Grose. A manhã rompera clara e fresca. Durante a noite sentira-se já uma amostra dos frios
do Outono e o ar transparente trazia até nós o som alegre dos sinos. Era por mero acaso que ia
nesse instante precisamente a pensar como era gratificante verificar a obediência total dos meus
jovens alunos. Como é que eles aturavam a minha presença constante? Dado o avanço que
levavam as nossas companheiras, podia parecer que eu atrelara a miim o rapaz, a fim de evitar
qualquer assomo de rebelião. Eu parecia um carcereiro que estava sempre de olho atento para
prever qualquer surpresa. Porém, tudo isto era fruto de um conjunto especial de factos que se
poderiam considerar fantásticos. Com as suas roupas de domingo confeccionadas pelo alfaiate do
tio, que tinha carta branca em matéria de coletes vistosos, com o seu ar distinto,
dada a sua situação e o seu sexo, Miles bem podia de um momento para o outro reivindicar a
sua liberdade, que eu não tinha nada a dizer. Ia precisamente a pensar o que faria quando
surgisse tal revolução. E chamo-lhe revolução porque vejo agora que foram,, palavras que ele
disse, que marcaram o subir do pano diante do meu tremendo drama e que precipitaram a
catástrofe.
- Oiça lá, minha querida, por favor, diga-me uma coisa: quando é que vou voltar para o colégio?
Dita assim, esta frase pode parecer inocente, sobretudo sendo proferida naquela vozinha doce e
meiga que, para qualquer pessoa, mas principalmente para a sua querida professora, tinha
entoações tão suaves que era como se estivesse a atirar flores. Havia nele qualquer coisa que as
pessoas ficavam logo "apanhadas", e fiquei de tal modo "apanhada" que estaquei subitamente,
como uma das árvores do parque tivesse desabado à minha frente. Entre nós surgia algo de novo
e ele apercebia-se muito bem disso. Não precisava de se fazer mais inocente que o costume para
mo dar a entender. Senti que ele reconhecia estar a ganhar terreno pelo facto de eu não ter
encontrado, de momento, nada para lhe responder.
Demorei tanto que ele acabou por prosseguir com o seu sorriso sugestivo, mas esfingico:
- Compreende, minha querida, que um rapaz não pode passar
todo o tempo junto de uma senhora...
Aquele "minha senhora" vinha-lhe constantemente aos lábios, tratando-se da minha pessoa, e
expresssava melhor que tudo o resto dos sentimentos que eu tinha desejado incutir aos meus
alunos em relação à sua preceptora, ou seja, uma familiaridade afectiva e respeitosa. Mas nesse
momento senti, e de ,que maneira, que também eu tinha de escolher os termos. Recordo-me de
que para ganhar tempo, pus-me a rir e pareceu-me ver, pela expresão do seu belo rosto, como
estaria feia e ridícula. Retorqui:
- Sempre com a mesma senhora, queres tu dizer?
Ele nem sequer pestanejou. Estava tudo claro entre nós.
- É certo que ela é uma "perfeita" senhora, mas, afinal de contas, eu sou rapaz, não
compreende?... E estou a ficar crescido.
Fiquei a olhá-lo com afecto durante uns momentos e respondi,
sentindo-me totalmente desamparada:
- É verdade, estás a ficar muito crescido!
Ainda hoje estou convencida de que ele percebia a minha atrapalhação e gozava com isso.
- E tem de confessar que me porto muitíssimo bem, é ou não é
verdade?
Apoiei a minha mão no seu ombro, pois muito embora sentisse
que seria melhor continuarmos a andar, de momento não me sentia capaz disso e retorqui:
- É verdade, Miles.
- Com excepção daquela noite, lembra-se?
- Que noite? - Eu não conseguia olhá-lo de frente.
- Na que eu vim cá para baixo... saí de casa...
- Ah, sim, mas já não me recordo por que fizeste isso!
- Não se recorda?... - Ele falava no tom suavemente indignado de uma criança a censurar um
adulto: - Foi para lhe mostrar
que também era capaz de me portar mal!
- Pois claro!
- E sou capaz de voltar a fazer o mesmo!
Eu tinha ainda esperança de conseguir manter-me senhora da
situação:
- Decerto. Mas não vais fazê-lo.
- Não. Não volto a fazer isso. Não teve importância nenhuma.
- Não teve importância - repeti. - Temos de ir andando.
Voltámos a caminhar e ele enfiou o braço no meu:
- Então quando é que eu volto para o colégio?
Virei-me para ele, com o meu ar mais sisudo:
- Gostavas muito de lá estar?
Ele reflectiu um momento e respondeu:
- Gosto de estar em todo o lado!
- Oli, nesse caso também gostas de estar aqui... - retorqui-lhe.
- Sim, mas isto não é tudo. É verdade que a senhora sabe
muito, no entanto...
- Queres dizer que tu já sabes quase tanto como eu. - arrisquei-me, ao vê-lo calar-se.
- Mas não sabe metade daquilo que eu quero saber... - confessou ele com sinceridade. - Porém
não é só isso...
- Que é, então?
- Bem... quero conhecer mais coisas da vida...
- Estou a entender...
Tínhamos chegado à frente da igreja, onde se encontrava já um
grupo de pessoas, algumas delas fazendo parte do pessoal de Bly.
Apressei o passo. Queria chegar antes que a questão se aprofundasse mais. Pensava
ansiosamente que o rapaz teria de ficar ali calado durante mais de uma hora, e aspirava por entrar
na relativa penumbra da igreja e de me ajoelhar no banco, certa de que ali encontraria algum
auxílio espiritual. Parecia-me estar a correr ao desafio contra a atrapalhação em que ele pretendia
lançar-me, e
já pensava ter levado a melhor quando ele me atirou com esta, no momento em que
atravessávamos o cemitério:
- Quero estar junto de rapazes iguais a mim!
Quase dei um salto:
- Existem poucos rapazes iguais a ti, Miles! A não ser, talvez, a nossa querida
Flora... - acrescentei a rir.
- Não diga que me quer comparar a uma rapariguinha...
Esta resposta desconcertou-me:
- Então tu não adoras a nossa menina?
- Oh,. se eu não gostasse dela... se eu não gostasse... e a senhora também... - repetia ele, como
que a tentar reparar a falta. No entanto deixara o seu pensamento incompleto, o que tornava
inevitável nova paragem antes de entrarmos na igreja. De facto, aí ele pousou-me a mão no
braço. Mrs. Grose e Flora tinham entrado já, bem como os outros fiéis, e nós estávamos parados
no meio das velhas pedras tumulares, a meio do atalho,junto de uma antiga sepultura de forma
oval.
- Então? Se não gostasses dela...
Fiquei à espera, enquanto ele olhava em redor para as outras
sepulturas:
- A senhora sabe o que quero dizer! - Não se mexia dali, e, de repente, passou-se qualquer coisa
que me fez sentar de chofre sobre a pedra para descansar: - O meu tio também pensa o mesmo
que a senhora?
Demorei propositadamente a resposta:
- E como é que tu sabes o que eu penso?
- Oli, é claro que não sei! Estranho é que a senhora nunca me
tenha dito nada. Mas o que eu queria saber é se ele sabe alguma coisa?
- Alguma coisa de quê, Miles?
Percebi imediatamente que, fosse qual fosse a minha resposta,
ela teria a ver com a tranquilidade do meu patrão. No entanto, tinha bem consciência de que isso
não seria nada em comparação com os sacrifícios que estávamos a fazer em Bly.
- Não lhe parece que seria bom informá-lo?
- Mas de que maneira?
- Fazendo-o vir até cá.
- E quem vai conseguir isso?
- Eu! - declarou o rapaz com uma enorme espontaneidade.
Lançou-me um olhar carregado e entrou sozinho na igreja.

O caso estava arrumado a partir do momento em que eu não entrara atrás dele. Com isto dava a
entender a profunda agitação em que ficára e o facto de ele se ter apercebido disto, vinha agravar
ainda mais o assunto. Deixei-me ficar sentada sobre o túmulo, a remoer o sentido daquilo que o
meujovem amigo dissera. Apercebi-me de tudo o que tacitamente aceitara e sentia-me
envergonhada pelo exemplo de desleixo que dava aos meus alunos e a toda a congregação com a
minha ausência na igreja. Acima de tudo, dizia para comigo, Miles ganhara um ponto e a prova
disso era este meu colapso. Ele apercebera-se de que havia algo que me causava medo e iria
utilizar esse medo para atingir os seus fins, ou seja alcançar mais liberdade. O meu maior receio
era ter de enfrentar a
terrível questão dos motivos pelos quais ele fora expulso do colégio, uma vez que o que estava
por detrás disso era toda uma série de horrores. A vinda do tio para tratar comigo de todas essas
coisas era uma solução que eu deveria desejar, mas custava-me tanto encará-la com todas as suas
funestas consequências que o meu desejo era adiá-la o mais possível. Para meu desespero, o
rapaz estava com razão, e teria todo o direito de me dizer: "De duas uma, ou a senhora resolve
com o meu tio o mistério desta interrupção dos meus estudos, ou então não pode esperar que eu
continue a levar
junto de si uma vida que não é nada natural para um rapaz." O que não era nada natural nesse
mesmo rapaz era o facto de ele me aparecer subitamente senhor de si e de um plano.
Era isso o que me desorientava e me impedia de entrar na igreja. Dei uma volta por fora,
hesitante, e verifiquei que me sentia irremediavelmente ' magoada em relação a ele. Neste
momento não era possível remediar a situação e ir ajoelhar-me no banco a seu lado; era certo e
sabido que ele enfiaria o seu braço no meu e me obrigaria a ficar ali sentada, em silêncio,
ignorando de todo a nossa conversa. Pela primeira vez desde que o conhecera, só desejava estar
longe. Ao passar por debaixo da janela de onde vinham os sons da cerimónia que estava a
decorrer lá dentro, assaltou-me um impulso, sobre o qual fiz um grande esforço para não ceder.
Era fácil,
para mim, acabar com aquele tormento. Tinha agora uma boa
oportunidade. Bastava ir-me embora, ninguém me poderia deter,
bastava voltar as costas e pôr-me a andar. Era questão apenas de retornar a casa, que àquela hora
devia estar quase deserta, com opessoal todo na igreja arranjar as minhas coisas e sair. Numa
palavra, ninguém me poderia censurar se eu me fosse embora, em desespero de causa. Mas seria
fugir se apenas me ausentasse até ao jantar? E parecia-me ouvir já as inocentes perguntas dos
meus alunos por não me terem visto regressar da igreja com a sua comitiva: "Por onde é que
andou, sua marota? Quis pregar-nos um susto e distrair a nossa atenção do ofício? Deixou-nos
mesmo à porta?"
Eu não seria capaz de responder a tais perguntas, nem encarar seus belos e falsos olhares.
Contudo era precisamente isso que me esperava, e, em face de tal perspectiva, tomei a minha
resolução.
De momento abandonei o cemitério e, sempre a reflectir, voltei a atravessar o parque. Pensei
que ao chegar a casa, essa resolução seria inabalável. A calma dominical, quer lá dentro quer no
exterior, sem que se avistasse vivalma, dar-me-ia uma oportunidade rara de reflectir. Se
conseguisse ir-me embora depressa, evitaria cenas e trocas de palavras. Porém tinha de andar
com rapidez, e
faltava ainda resolver a importante questão do transporte. Atormentada por esse obstáculo,
lembro-me de me ter sentado no vestíbulo, ao fundo das escadas. Ao deixar-me cair no último
degrau, recordei-me que fora ali, precisamente um mês antes, que eu vira, na escuridão da noite,
e também atormentada por dolorosos pensamentos, aquela sinistra figura de mulher. Ao
lembrar-me disso levantei-me e corri para a sala de estudo onde deviam encontrar-se diversos
objectos que me pertenciam e que queria levar comigo. Porém, ao abrir a porta de repelão,
verifiquei que mais uma vez os meus olhos tinham perdido a venda. O que eu via, fez vacilar a
minha resistência.
Sentada à minha secretária, na luz clara do meio-dia, estava
uma figura que, se não houvesse precedentes, eu poderia tomar
por uma das criadas que tivesse ficado de guarda à casa e que, sabendo-se segura, se apoderara
da secretária, das minhas canetas e do meu papel, e se entregara à difícil tarefa de escrever ao
namorado. Notava-se, de facto, um esforço no gesto com que a criatura apoiava a cabeça nas
mãos; porém, assim que eu entrei, reparei imediatamente que ela não mudara de posição ao
ouvir-me aproximar. Foi então que ela revelou a sua identidade; ergueu-se., como se não me
tivesse ouvido, mas com um ar de grande melancolia, cansaço e indiferença, e revelou-se então
como sendo a minha vil predecessora. Ali estava ela, na minha frente, trágica e
desprezível. Enquanto eu a fitava, a fim de gravar bem na memória a sua imagem, ela
desapareceu, no seu fato escuro como a noi te, com a sua beleza pálida e o seu ar incrivelmente
angustiado.
Durante os momentos em que me fitou parecia querer dizer que tinha tanto direito como eu de
se sentar àquela secretária. Nesses escassos momentos experimentei a desagradável sensação de
ser eu a intrusa. Foi como protesto contra este sentimento que lhe gritei:
- Sua miserável!
Ouvi o som da minha voz ecoar através do corredor e da casa vazia. Ela olhou-me como se não
me ouvisse, mas já então eu tinha recuperado a calma. No momento seguinte não havia nada
dentro da sala senão a luz do Sol e dentro de mim a sensação de que eu devia ficar.

Estava de tal modo convencido que o regresso dos outros iria ser assinalado por uma série de
demonstrações estranhas em relação à minha ausência da igreja, que fiquei preocupada ao vê-los
apenas calados e discretos. Em lugar de me censurarem, as crianças não fizeram qualquer alusão
ao facto de eu as ter abandonado e, por isso, ao ver a expressão estranha que apresentava Mrs.
Grose, limitei-me a observá-la. Precisava de me certificar se eles tinham comprado o seu
silêncio, silêncio este que eu estava resolvida a quebrar na primeira oportunidade. Esta
apresentou-se-me antes
da merenda. Arranjei maneira de ficar cinco minutos com ela a sós no seu quartinho, onde a fui
encontrar sentada, muito triste, na sua cadeira frente ao lume. Havia pouca luz e cheirava a pão
acabado de cozer. Parece-me ainda estar a
vê-la, naquele compartimento bem arrumado e impecavelmente limpo, com as gavetas fechadas
e um ar resoluto.
- Sim, eles pediram-me para eu não dizer nada! E eu prometi, para lhes fazer a vontade. Mas
que foi que lhe sucedeu?
- Eu tinha saído apenas para dar um passeio - respondi. -
Tinha de voltar para casa a fim de me encontrar com uma pessoa amiga.
Ela mostrou-se surpreendida:
- Uma pessoa sua amiga?...
- Sim, até cá tenho duas! - respondi a rir. - Mas as crianças
deram-lhe alguma razão para não quererem que a senhora me dissesse nada?
- Acerca da menina ter desaparecido? Sim, disseram que a menina preferia que eu não falasse. É
verdade?
A minha expressão alarmou-a:
- Não. Antes pelo contrário! - Mas logo acrescentei: - Não
lhe disseram porquê?
- Não. O menino Miles apenas explicou: "Temos de fazer o que
ela quiser!"
- Quem me dera que ele fizesse aquilo que eu quero! E que disse Flora?
- A menina Flora concordou logo e disse: "Pois é, pois é!" E então eu também concordei.
Reflecti um momento e depois retorqui:
- Claro, concordaram todos. É como se vos estivesse a ouvir.
Mas eu e Miles já pusemos tudo em pratos limpos!
- Tudo? - A minha companheira arregalava os olhos.
- Tudo como?
- Tudo. Não se aflija. Tomei uma decisão. Voltei para trás, minha amiga, a fim de ter uma
conversa com Miss Jessel.
Por esta altura eu adoptara o sistema de espicaçar a curiosidade de Mrs. Grose antes de lhe dizer
o mais importante. Agora vi que ela aguardava, firme, as minhas palavras:
- Uma conversa? Quer dizer que ela falou consigo?
- Quase. Quando cheguei dei com ela na sala de estudo.
- E que disse ela?
Parece-me ainda estar a ouvir a boa mulher e a sua pergunta
ingénua.
- Disse que sofre tormentos...
Isto deixou-a de boca aberta e gaguejou:
- Quer dizer... os tormentos... dos condenados?
- Dos condenados. Dos malditos. É por isso, para os partilhar
que ela quer... - Eu própria gaguejava perante o horror de tudo
aquilo. Porém a minha companheira, dotada de menos imaginação, interrompeu-me:
- Para os partilhar...?
- É para isso que ela quer Flora.
Se eu a não tivesse preparada, é possível que não conseguiss
convencê-la a dar-me crédito, mas nada disso sucedeu:
- Como já lhe disse, não há perigo.
- Porquê, a menina tomou uma decisão? Em relação a quê?
- A tudo isto.
- E a que é que chama "tudo isto"?
- Ao facto de ter de chamar cá o tio, etc.
- Oh, miss, faça isso, pelo amor de Deus!
- Pois faço. Faço mesmo. Acho que é a única solução. O que eu
fiquei a perceber da minha conversa com Miles é que ele julga que eu tenho receio de que o tio
se convença que se enganou a meu respeito. E acha que pode tirar partido disso, mas verá que se
engana. Sim, sim, vou dizer tudo ao tio. E diante do rapaz, se for preciso. Porque, se me
acusarem de não ter feito nada para ele voltar para o colégio...
- Diga, diga, diga, miss... - insistia a minha companheira.
- A razão disso é essa coisa horrível.
Isto era de mais para a minha pobre colega, por isso não admira que ela estivesse confusa:
- Qual delas?
- Ora, a carta que recebemos do antigo colégio.
- Vai mostrá-la ao patrão?
- Era isso o que eu devia ter feito logo.
- Oli, não! - exclamou peremptoriamente Mrs. Grose.
- Vou pôr-lha diante dos olhos - prossegui, inexorável -, e
explicar-lhe que não podia resolver o caso de um aluno que fora expulso...
- Mas nós nunca chegámos a saber porquê! - declarou Mrs.
Grose.
- Por mau comportamento! Que outra razão podia haver, uma
vez que ele é tão bonito, tão inteligente e perfeito? Se ele fosse estúpido, ou atrasado, ou doente,
ou tivesse mau feitio... Mas não, ele é encantador, portanto só pode ser isso. E atrás disso virá o
resto. Afinal de contas - prossegui -, a culpa é toda do tio. Se ele trouxe para cá aquela gente...
- A verdade é que ele não fazia a mais pequena ideia. A culpa
foi toda minha... - Ela fizera-se muito pálida.
- Bem, a senhora não vai sofrer nada - tranquilizei-a.
- As crianças é que não devem sofrer - teimou ela com ênfase.
- Que é que eu lhe hei-de dizer, então?
- Não precisa de lhe dizer nada. Quem lho diz sou eu.
Reflecti um pouco e inquiri:
- É a senhora que lhe vai escrever? - Depois, recordando-se
que ela era analfabeta, emendei:
- Como é que vai comunicar com ele?
- Vou contar tudo à polícia. Ela que lhe escreva.
- E acha bem que a polícia fique a saber a nossa história?
A minha pergunta foi feita num tom mais sarcástico do que era
minha intenção, e isto desarmou-a. Vieram-lhe as lágrimas aos
olhos e suplicou:
- Oli, escreva-lhe antes a menina!
- Muito bem. Vou escrever logo à noite.
E, com isto, separámo-nos.

Nessa noite cheguei mesmo a fazer alguns preparativos. O tempo transformara-se, levantara-se
vento e eu, junto ao candeeiro
do meu quarto, com Flora a dormir tranquilamente ao meu lado, sentei-me diante de uma folha
de papel em branco a escutar o
cair da chuva e as rajadas do vento. Por fim, peguei numa vela e saí do quarto. Atravessei o
patamar e pus-me à escuta, em frente da porta de Miles. O que me levava a escutar era a minha
obsessão de descobrir se havia algum sinal a indicar que ele não estava a dormir, porém, a
manifestação que tive foi a que menos esperava. A voz dele soou na escuridão, com um tom
jovial:
- Se está aí, faça favor de entrar!
Entrei de vela na mão e fui dar com ele na cama, bem acordado, mas muito bem disposto.
- Que é que anda por aí a fazer? - inquiriu com tanta amabilidade que, se acaso Mrs. Grose o
ouvisse, chegaria a duvidar de que eu tivesse tido com ele a tal conversa.
Fiquei de pé, sempre a segurar na vela.
- Como soubeste que estava aqui?
- Ora essa, porque a ouvi. Ou julga que não fez barulho? Parecia um regimento de cavalaria! - E
ria-se com vontade.
- Então, não estavas a dormir?
- Não tinha sono. Fiquei acordado a pensar.
Coloquei propositadamente a vela um pouco afastada e já que
ele me estendia a mão num gesto amigável, sentei-me na borda da cama.
- E em que é que estavas a pensar?- perguntei.
- Ora, em que havia de ser, minha querida? Pensava em si.
- Oh, sinto-me muito lisongeada, mas preferia que dormisses.
- Bem, também estava a cogitar em toda esta nossa trapalhada.
Notei que a mãozinha dele estava muito fria.
- Que trapalhada, Miles?
- Ora, a maneira como a senhora me educa. E tudo o mais!
Fiquei sem respirar durante um momento. Mesmo à luz fraca
da vela conseguia ver que ele sorria para mim.
- Que queres tu dizer com "tudo o resto".
- Oh, a senhora sabe. A senhora bem sabe!
Fiquei um momento sem conseguir falar, de mão dada com ele.
Enquanto nos fitávamos nos olhos, eu sentia que o meu silêncio traduzia toda a acusação dele, e
que nada neste mundo era tão estranho, talvez, como a nossa relação actual.
- Vais voltar para o colégio, podes estar certo, se é isso que te preocupa. Mas não para o mesmo.
Havemos de arranjar outro melhor. Como podia eu adivinhar que era isso que te afligia se nunca
me falaste, nunca me disseste nada?
O rosto dele, na brancura da almofada, fazia lembrar o de uma criança triste, num hospital. E
enquanto pensava assim, daria tudo quanto tinha para ser eu a enfermeira ou a irmã de caridade
com poderes para o curar. Mesmo assim, talvez eu ainda pudesse fazer alguma coisa por ele.
- Sabes que nunca me falaste do colégio! Refiro-me ao último
onde estiveste. Nunca lhe fizeste a mínima referência.
Ele parecia reflectir e sorria docemente. Mas estava a ganhar
tempo, esperava uma indicação.
-Nunca lhe falei nele ... ? - Não era eu quem poderia ajudá-lo, mas sim aquela coisa que eu vira!
Algo no tom da sua voz e na expressão do seu rosto causou-me
um aperto no coração como nunca sentira. Era doloroso ver o espírito dele terrivelmente dividido
entre a maldição que lhe caíra em cima e uns restos de inocência.
- Nunca me falaste nisso, desde o dia em que chegaste. Nunca
te referiste aos teus professores, a qualquer dos teus camaradas, a nada que se tivesse lá passado.
Por aí, já podes ver que estou absolutamente às escuras. Desde a primeira hora em que te conheci
até à conversa que tivemos esta manhã, nunca me falaste da tua vida passada. Parecia que te
contentavas perfeitamente com o presente.
Era extraordinário como o conhecimento que eu tinha da sua
precocidade, ou da influência maléfica ou como quer que se lhe possa chamar a coisa que eu
sabia ele ser vítima, fazia que eu o tratasse como um adulto.
- Pensei que gostarias de continuar como até agora.
Pareceu-me que ele corava ligeiramente. De qualquer modo,
soltou um leve suspiro de convalescente e abanou a cabeça com
tristeza:
- Não, não, quero ir-me embora daqui!
- Estás farto de viver em Bly?
- Oh, não, gosto de Bly.
- Então?
- Oh, a senhora sabe as necessidades que tem um rapaz!
Pensei que ele sabia disso melhor que eu, e procurei desviar o assunto:
- Queres ir para junto do teu tio?
Ele fez mais uma vez uma expressão irónica e agitou-se nas almofadas:
- Ah, não pense que se pode descartar assim!
- Mas eu não pretendo descartar-me, meu querido!
- Mesmo que o quisesse, não podia. Mas não pode. Não pode!
continuava a fitar-me nos olhos. - O meu tio tem de vir cá e a
senhora tem de resolver tudo com ele.
- E se o fizermos - retorqui vivamente -, podes ter a certeza de que ele te leva logo daqui para
fora.
- Mas então não percebe que é isso mesmo que eu quero? Vai
ter de lhe confessar que deixou correr as coisas, vai ter muitíssimo que lhe explicar!
O entusiasmo com que ele falava ajudou-me a querer ir mais
além:
- E tu, Miles, também tens muito que contar! Há coisas que ele há-de querer saber.
- É provável. Mas que coisas?
- Aquelas que nunca quiseste contar-me. Ele precisa de saber o que há-de fazer contigo. Não
pode mandar-te para o mesmo colégio...
- Também não desejo ir para lá - interrompeu ele. - Preciso de novos campos de acção.
Disse isto com espantosa serenidade, até com um certo descaramento. E foi talvez este tom que,
acima de tudo, me deu a perceber que seria a tragédia, o horror do seu regresso ao antigo colégio
ao fim de três meses de liberdade e libertinagem. Achei essa ideia insuportável. Cheia de ternura,
curvei-me e abracei-o:
- Meu querido, meu querido Miles!...
Ele deixou-se beijar com amável indiferença, dizendo simplesmente:
- Está bem, está bem, velhota!
- Achas que não há mesmo mais nada, nada, que me queiras dizer?
Ele voltou-se um pouco para a parede e ergueu uma das mãos
olhando para ela como fazem, às vezes, as crianças doentes, e murmurou:
- Já lhe disse tudo... já lhe disse tudo esta manhã.
Oh, que pena eu tinha dele!
- Disseste que não querias que eu te maçasse?
Ele voltou os olhos para mim, como quem diz que eu o entendera e declarou baixinho:
- Quero que me deixe em paz.
Havia na sua resposta uma certa e estranha dignidade, que me
levava a deixá-lo, mas que ao mesmo tempo me retinha ali, depois de me ter levantado. Só Deus
sabe quanto me custava aborrecê-lo, mas sentia que voltar-lhe as costas neste momento,
equivalia a abandoná-lo, ou antes, a perdê-lo.
- Já comecei uma carta para o teu tio - disse eu.
- Então acabe-a!
Aguardei um momento e perguntei:
- Que é que te aconteceu?
Ele ergueu para mim os olhos:
- Quando?
- Antes de te vires embora do colégio. E antes de entrares para lá.
Continuou calado, mas sem desviar os olhos dos meus:
- Que é que me aconteceu?
Pareceu-me que no tom destas palavras transparecia pela primeira vez uma ponta de
reconhecimento de culpa,,o que me fez cair de joelhos ao pé da cama e tentar agarrar a
possibilidade de ele confessar:
- Meu querido, meu querido Miles, se soubesses como desejo
ajudar-te! Não pretendo mais nada, só isso. Antes queria morrer que magoar-te de alguma forma.
Antes queria morrer que fazer-te mal fosse no que fosse! Meu querido Míles! - exclamei a dar
tudo por tudo. - Só quero salvar-te! - Mas logo percebi que fora longe de mais.
A resposta a este apelo não se fez esperar, mas veio sob a forma de um arrepio tremendo, uma
rajada de vento gelado, uma sacudidela tão grande do quarto como se a casa tivesse vindo abaixo
com o vendaval. O rapaz soltou um grito agudo que não se sabia bem se era de júbilo ou de
terror. Eu pus-me em pé de um salto. Olhei em volta e vi que tudo estava às escuras. As cortinas
não se moviam e a janela continuava fechada. Então exclamei:
- Oli, a vela apagou-se!
- Fui eu que a soprei, minha querida! - murmurou Miles.

No dia seguinte, depois das lições, Mrs. Grose arranjou um momento para, em segredo, me
perguntar:
- Já escreveu a carta, miss?
- Sim, já escrevi.
O que não acrescentei é que a carta, fechada e selada, se encontrava ainda no meu bolso. Tinha
muito tempo diante de mim antes que fossem horas de o mensageiro ir à aldeia. Entretanto, no
que respeita aos meus alunos, a manhã não poderia ter decorrido melhor. Dava a impressãoque
ambos estavam empenhados em me fazer esquecer qualquer recente mal-entendido. Resolveram
brilhantemente alguns problemas de aritmética que eu considerava quase para além dos meus
conhecimentos, e participaram, mais divertidos que nunca, em diversos jogos relacionados com
História e Geografia. No caso de Miles, tornava-se evidente o seu desejo de mostrar que era
capaz de me deixar atrapalhhada com a maior das
facilidades. Ainda hoje estou convencida de que aquela criança vivia num mundo dividido entre
a beleza e a depravação, que não era possível traduzir por palavras. Possuía uma distinção muito
própria em tudo quanto fazia e, aos olhos de qualquer estranho, podia parecer um verdadeiro
gentleman. Eu tinha de fazer um esforço para não trair o meu espanto por tudo aquilo que sabia a
seu respeito.Tinha de disfarçar o interesse com que o contemplava e abafar os suspiros de
desânimo que me provocava a lembrança da sua misteriosa expulsão do colégio. Digamos que,
mercê daquele malfadado sortilégio de que ele fora vítima, todo o conhecimento do mal lhe
havia sido revelado. Porém, o meu sentido da justiça e exigia uma prova de que esse mal alguma
vez se tivesse traduzido em
actos.
De qualquer modo foi com o seu ar mais cavalheiresco que ele
naquele dia de triste memória, logo após a refeição, me perguntou se eu queria que ele tocasse
para mim durante uma meia hora.
David oferecendo-se a Saul para tocar citara, não teve maior sentido de oportunidade. Tratava-se,
realmente, de uma encantadora exibição de tacto, da magnanimidade, que ao cabo e ao resto
equivalia a dizer-me de caras: "Os verdadeiros gentis-homens, cujas histórias costumamos ler,
nunca tiram demasiado partido das suas vantagens. Eu sei qual é agora a sua ideia: a senhora
quer que
a deixem em paz e não andem atrás de si; vai deixar de andar atrás de mim, de me espiar, não me
vai reter junto de si. Vai-me deixar ir e vir. Pois bem, eu'venho'ter consigo como vê! Mas não
vou! Para isso temos muito tempo. Adoro a sua companhia e só quero mostrar-lhe que me
considero satisfeito por agora." Como podem calcular, não resisti a este apelo e acompanhei-o,
de mãos dadas, até à sala de estudo. Aí, ele sentou-se em frente do velho piano e
tocou como nunca tinha tocado. Se alguém me dissesse que era
melhor para ele andar aos pontapés a uma bola, concordo inteiramente. Ao cabo de um certo
tempo, cuja duração me passara totalmente despercebida, graças ao sortilégio da música, tive um
sobressalto, com a sensação de ter adormecido no meu posto. Isto passava-se após arefeição e eu
estava sentada junto à lareira, mas tinha bem a certeza de não ter adormecido. Acontecera uma
coisa muito pior: havia esquecido tudo! Onde estivera Flora durante todo esse tempo? Quando
fiz tal pergunta a Miles, ele continuou a
tocar ainda um momento sem responder, e depois só disse:
- Como quer que eu saiba, minha querida? - E rompeu às
gargalhadas, que prolongou com uma série extravagante de notas
musicais, à laia de acompanhamento para o seu riso.
Corri ao meu quarto, mas Flora não estava lá. Desci as escadas e procurei em diversos
compartimentos. Como não a encontrava, parti do princípio que estaria junto de Mrs. Grose, e fui
em busca desta a fim de me tranquilizar. Encontrei-a no mesmo sítio onde havíamos tido a nossa
conversa, na véspera, mas ela revelou a
mais profunda ignorância em face da minha pergunta. Imaginara
que eu tinha levado comigo as duas crianças logo após a refeição; e estava no direito de assim
pensar, pois era esta a primeira vez que eu deixava uma delas afastar-se de mim sem aviso
prévio. A menina devia estar, certamente, com as criadas, o que havia a fazer era ir procurá-la
sem manifestar sinais de susto. Foi isso que combinámos. Quando dali a dez minutos nos
encontrámos no vestíbulo, verificámos que as nossas investigações não tinham dado resultado.
Durante um minuto, sem que ninguém nos observasse, demos mutuamente parte dos nossos
receios e verifiquei que a minha amiga acabara por ficar ainda mais apreensiva que eu.
- Deve estar lá em cima - sugeriu ela. - Num dos quartos onde ainda não procurámos.
- Não. Ela deve estar longe. - Eu tinha agora essa certeza. -
Foi lá para fora.
Mrs. Grose alarmou-se:
- Sem nada na cabeça!
-E essamulher nãoanda sempre de cabeça descoberta?-perguntei intencionalmente.
- Não me diga que a menina está com ela!
- Pois está - declarei. - Temos de a encontrar!
Pousei a mão no braço da minha amiga, mas esta, aturdida pelo que acabava de ouvir, nem deu
por isso, e perguntou:
- E onde está o menino Miles?
- Oli, esse deve estar com Quitits, lá em cima, na sala de estudo.
- Meu Deus!
O meu aspecto e o tom da minha voz, tenho a certeza, nunca
tinham sido tão calmos e seguros:
- O truque resultou - declarei. - Conseguiram os seus fins.
Ele inventou aquele bendito pretexto para me ter segura, enquanto a irmã safa.
- Bendito pretexto? - repetiu Mrs. Grose, chocada.
- Maldito, se prefere - prossegui com ênfase. - Ele também
se arranjou. Mas venha daí.
Mrs. Grose ergueu os olhos assustados para o andar de cima:
- Então vai deixá-lo ... ?
- Tanto tempo com Quint? Sim, já não me importo.
Em momentos como este ela acabava sempre por me agarrar na
mão. E assim, naquela altura, ainda me teria podido impedir de
sair para a rua. Porém, depois de reflectir um instante acerca da minha súbita desistência,
perguntou vivamente:
- É por ter já escrito a carta?
Como única resposta tirei rapidamente a carta do bolso e,
tomando uma decisão, coloquei-a em cima da vasta mesa de entrada:
- Luke que aleve para o correio - declarei. Abri a porta e comecei a descer os degraus. A minha
companheira ficara para trás. A tempestade da noite anterior abrandara, mas a tarde estava
húmida e cinzenta. Eu já chegara ao atalho, ainda ela estava à porta.
- A menina vai assim, sem agasalho?
- Que importa isso se Flora também não levou nenhum? Não
vou perder tempo a vestir outra coisa! - exclamei. - Faça como
quiser, mas eu vou andando. Entretanto pode ver nos quartos lá
em cima.
- Com eles lá! Oh! - E a pobre mulher dizendo isto, correu
atrás de mim.
Dirigimo-nos ao lago, como era chamado em Bly, e que aos meus
olhos parecia UMa extensão de água bastante vasta. Eu tinha
pouca experiência, e das raras vezes que me arriscara, na companhia dos meus alunos, a dar um
passeio no velho barco de fundo chato, ficara impressionada com a sua agitação. O local de
embarque distava cerca de meia milha de casa, mas eu tinha a convicção de que Flora, onde quer
que estivesse, estava longe. Ela não se resolveria a sair à sucapa por motivo de uma pequena
aventura, e desde aquele dia memorável em que ambas tínhamos partilhado uma grande aventura
junto ao lago, eu percebera, durante os nossos passeios, que era para esse lado que ela se sentia
mais atraí da. Por isso é que eu indicara a Mrs. Grose aquela direcção, mas ela, ao aperceber-se
disso, mostrou-se relutante:
- Vai para a beira do lago, miss?.. Acha que ela caiu... lá
dentro?
- Pode ser, embora pense que ele não tem grande profundidade. Mas o que acho mais provável é
que ela esteja no ponto onde
ambas vimos aquilo de que lhe falei.
- E que ela fingiu não ter visto?...
- Sim, com todo o descaramento! Fiquei sempre com a impressão de que ela queria lá voltar
sozinha. E agora o irmão conseguiu
fazer-lhe a vontade.
Mrs. Grose continuava parada no mesmo sítio.
- Pensa então que eles falam os dois acerca dessas pessoas?
Disso tinha plena certeza, por isso respondi:
- Sim, e dizem coisas que, se nós as ouvíssemos, nos deixariam pasmadas.
- Mas então, se ela lá está...
- O quê?
- Se Miss Jessel lá estiver?
- Está, não tenha dúvidas. Vai ver.
- Isso não quero, muito obrigada! - E a minha amiga mostrou-se tão firme na sua recusa que me
pus a andar sem ela. Quando cheguei junto ao lago, vi que ela me seguira, pois receara que me
pudesse suceder alguma coisa, e preferira estar junto a mim. Ao avistarmos a maior parte da
superfície do lago deserto, ela soltou um suspiro de alívio. Não havia sinais de Flora, nem ali,
nem na outra margem que se podia avistar, excepto numa extensão deaproximadamente
vintejardas em que um espesso matagal desciaaté à água. O lago era comprido e tão estreito que,
se não se lhe vissem as extremidades, podia passar por um rio. Enquanto olhávamos a sua
vastidão deserta, senti a apreensão da minha amiga e tranquilizei-a:
- Não, não. Descanse. Ela levou o barco.
A minha companheira olhou para o ancoradouro vazio e depois
para a outra margem e inquiriu:
- Mas então onde está ele?
- O facto de o não vermos é a maior das provas. Ela utilizou-O para atravessar o lago e depois
escondeu-o.
- E conseguiu isso sozinha? Uma criança?
- Ela não está sozinha. E, nestas alturas, não é criança: é uma mulherzinha muito, muito velha...
Continuei a olhar a margem enquanto Mrs. Grose, como sempre, reflectia no novo elemento que
eu lhe apresentava e acabava
por o aceitar. Disse-lhe então que o barco podia muito bem estar oculto em qualquer pequeno
refúgio formado por uma saliência ou reentrância da margem ou por um tufo de arbustosque
descessem até à água.
- Mas se o barco pode estar ali, onde diabo está ela? - perguntava ansiosamente a minha colega.
- É isso que temos de descobrir. - E recomecei a andar.
- Temos então de dar a volta ao lago?
- Pois, a volta toda. Não demoraremos mais de dez minutos,
mas ela deve ter preferido ir de barco, era mais directo.
- É o destino! - exclamou de novo a minha amiga.
A sequência dos meus raciocínios era sempre demasiado rápida para ela. Seguia atrás de mim, e
quando íamos a meio do caminho, que se tornara difícil mercê do piso irregular e das ervas que o
cobriam, parei a fim de a deixar tomar fôlego. Amparei-a com um braço, afirmando que a sua
companhia me era de um grande auxilio, e com isto partimos de novo até que deparámos com o
barco precisamente no sítio onde eu imaginava que ele estaria. Tinha sido propositadamente
deixado onde não podia ser visto e estava amarrado à estaca de uma vedação que descia até à
água e lhes servira de apoio para o desembarque. Ao contemplar os dois pesados remos
recolhidos para dentro do barco reflecti no esforço que aquela façanha representaria para uma
rapariguinha tão pequena, mas nada me espantava em face dos prodígios que já me foram dados
a observar. Havia uma abertura na vedação, através da qual passámos, e isso levou-nos a uma
pequena clareira. Então ambas
exclamámos ao mesmo tempo:
- Lá está ela!
Um pouco adiante de nós, Flora estava de pé, sobre a relva, e sorria como se tivesse acabado de
executar uma façanha. Mas logo a seguir curvou-se para arrancar do chão um enorme ramo de
feno seco, como se tivesse vindo ali propositadamente para isso.
Tive logo a certeza de que ela estivera no bosque. Não deu um passo para vir ao nosso encontro,
e tive consciência do ar solene com que nos aproximámos. Ela sorria sempre, mas tudo isto se
passava no meio de um silêncio que começava a parecer de mau agoiro. Foi Mr. Grose quem
quebrou o encanto: atirou-se de joelhos para o chão, e puxando a criança para si, envolveu o seu
corpinho num longo e terno abraço. Eu limitava-me a observar aquele mudo amplexo quando vi
o rosto de Flora a espreitar por cima do ombro da nossa companheira. Estava agora muito séria,
perdera o seu ar alegre
mas isto aumentou mais ainda o impulso de inveja que senti de
Mrs. Grose pela simplicidade da relação que havia entre ambas!
Entretanto, nada mais se passava, a não ser o facto de Flora ter deixado cair o feno que
arrancara do chão. O que ela e eu havíamos dito uma à outra sem palavras era que, dali em
diante, não haveria mais subterfúgios, e as reticências existentes nas nossas relações ficaram
ainda mais acentuadas com o olhar franco que ela me dirigiu. Que era como quem diz: "Diabos
me levem se eu disser alguma coisa!"
Mas acabou por ser ela a falar, com o ar mais cândido deste mundo, mostrando-se admirada por
nos ver sem agasalhos:
- Onde é que deixaram os vossos casacos?
- Onde tu deixaste o teu, minha querida - respondi prontamente.
Ela recuperara o bom humor e parecia satisfeita com a minha
resposta, pois prosseguiu:
- E onde está Miles?
A coragem com que ela fez esta pergunta quase me desarmou.
Era como que o brilhar de uma lâmina suspensa sobre as nossas
relações, que eu vinha segurando havia semanas, e que agora desabava com toda a força.
- Dir-te-ei se tu me disseres... - comecei eu, interrompendo-me com uma tremura na voz.
- Se eu disser o quê?
Mrs. Grosse trespassou-me com os olhos, mas era demasiado
tarde e eu terminei, com toda a meiguice:
- Se tu me disseres, meu amor, onde está Miss Jessel?

Tal como sucedera com Miles no cemitério, não havia mais


segredos entre nós. Uma vez que semelhante nome nunca tinha sido pronunciado, o ar chocado
com que a criança me olhou foi como se as minhas palavras tivessem estilhaçado uma vidraça. A
isto juntou-se um grito que Mrs. Grose soltouaomesmotempo, um grito de susto, ou, melhor, de
alguém ferido, ao qual, dali a segundos, veio acrescentar-se um estremecimento da minha parte.
Agarrei no braço da minha colega e gritei:
- Ela aí está! Ela aí está!
Miss Jessel encontrava-se na nossa frente, na outra margem,
precisamente no sítio onde a víramos daquela vez. Recordo-me,
por estranho que pareça, de que o meu primeiro impulso foi de satisfação por ter conseguido
obter uma prova. Uma vez que ela ali aparecera, eu ficava justificada. Ela estava ali, portanto eu
não era maldosa nem estava louca. Ela tinha vindo até ali para aparecer a Mrs. Grose, mas
sobretudo por causa de Flora. E talvez nunca eu tivesse experimentado uma sensação tão
estranha em toda a minha monstruosa experiência, como aquele momento em que senti até uma
certa gratidão por aquele fantasma pálido e maldito. Ela
estava muito direita no lugar onde eu e a minha companheira nos havíamos encontrado havia
pouco e toda a sua expressão revelava bem os seus maléficos intentos. A emoção produzida em
mim pela súbita aparição durou apenas alguns segundos e, enquanto Mrs. Grose fitava, absorta, o
ponto para onde eu tinha apontado, os meus olhos procuraram avidamente a segurança. A
maneira como Flora reagia, afectou-me então muito mais que se a tivesse visto simplesmente
agitada, porque também não era terror que eu esperava ver da parte dela. Uma vez que a nossa
perseguição já a devia ter posto de sobreaviso, não podia agora deixar de se trair de
alguma forma. Portanto, assim que olhei para ela, fiquei impressionada por lhe ver uma atitude
que não esperava. No seu rosto rosado não se divisava a mais leve crispação, nem sequer olhava
na direcção do prodígio que eu apontara. Em vez disso, era para mim que ela dirigia um olhar
muito grave, uma expressão absolutamente nova e sem precedentes, que parecia estar a ler dentro
de mim e a acusar-me, a julgar-me. Isto é que tornava verdadeiramente monstruosa a
personalidade daquela rapariguinha. Fiquei pasmada em face do seu disfarce, e muito embora
nesse preciso instante eu tivesse acerteza absoluta de que ela estava a ver a aparição tão bem
como eu, senti a necessidade imediata de me defender e exigi o seu testemunho:
- Ela está ali, minha desgraçada! Está ali, ali, ali! E tu estás a vê-la tal e qual como eu!
Ainda havia pouco afirmara eu a Mrs. Grose que, naqueles momentos, Flora não era uma
criança, mas sim uma mulher muito.
muito velha, e nada vinha confirmar melhor essas minhas palavras que a maneira como ela me
fitava, sem nada deixar transparecer, para além de uma expressão cada vez mais séria e
consternada, que passava depois a um ar de nítida reprovação. Se hoje ela quiser recapitular direi
que nessa altura me sentia muito mais desorientada pela atitude da pequena que por qualquer
outra coisa, mas logo a seguir dei-me conta de que teria também de me haver com Mrs. Grose, e
de que maneira! A minha velha amiga fez-me esquecer tudo, excepto o seu rosto muito corado,
quando me gritou, num protesto indignado:
- Que ideia foi essa, miss? Parece impossível! Que diabo está a ver, não me dirá?
Agarrei-me a ela ainda com mais força, pois enquanto falava
a figura horrenda continuava sem arredar pé dali. A visão durava havia mais de um minuto, e não
desaparecia, enquanto eu sacudia a minha colega, querendo obrigá-la a ver, sempre a apontar,
com a minha mão estendida.
- Então a senhora não a vê, tal como nós? É alta como uma fogueira. Olhe só, alminha de Deus!
Olhe!...
Ela bem olhava para onde eu dizia, mas só respondia com um
gemido que traduzia negação, repulsa, e dó em relação a mim. Ao mesmo tempo revelava
também o seu alívio por ser excluída da visão e simultaneamente o desgosto de não poder ser
minha testemunha. E eu que bem precisava disso, pois, pelo facto de os olhos dela estarem
irremediavelmente fechados para o fenômeno, previa já quanto a minha posição era falsa e como
a minha pálida predecessora iria tirar partido da minha derrota. E sobretudo afligia-me a maneira
como iria haver-me com Flora em face da sua estranhíssima atitude. Isso verifiquei
imediatamente ao ouvir Mrs. Grose exclamar violentamente, com ar de triunfo:
- Não está ali ninguém, minha querida senhora, nem nunca
esteve! Como podia isso ser, minha querida, se a pobre Miss Jessel está bem morta e enterrada?
Nós sabemos, nãoé verdade, meu amor? - E apelava despropositadamente para a criança. - Isto é
tudo um engano, é uma trapalhada, uma confusão. O que é preciso é irmos já para casa o mais
depressa possível!
A nossa companheira aquiesceu prontamente e, assim, ela e
Mrs. Grose puseram-se de pé, unidas contra mim. Flora continuava a olhar-me com o seu arzinho
de reprovação, agarrada às saias da nossa amiga, e eu quase pedi perdão a Deus por achar que
naquele momento toda a sua beleza desaparecera. Já tinha dito que ela assumira uma expressão
horrivelmente dura; ficara mesmo quase feia.
- Não sei o que a senhora quer dizer. Eu cá não vejo ninguém.
Não vejo nada. Nunca vi. Acho que a senhora é má. Não gosto de
si! - Depois desta tirada que mais parecia de uma garota atrevida e malcriada, agarrou-se mais às
saias de Mrs. Grose, escondendo a cara. Nessa posição desatou a gritar: - Quero ir-me embora!
Quero ir-me embora! Leve-me para longe dela!
- De mim? - arquejei.
- De si, de si! - gritou.
A própria Mrs. Grose olhou para mim, desolada. Nada mais me
restava que comunicar de novo com a figura que se mantinha na
outra margem, imóvel e rígida, como se quisesse captar á distância o som das nossas vozes. Uma
presença bem real, mas que, para minha justificação, era como se ali não estivesse. A infeliz
criança falara como se cada uma das suas palavras lhe tivesse sido dita e eu, no meio do meu
desespero, nada mais consegui senão abanar a cabeça tristemente, dizendo:
- Se eu alguma vez tivesse tido dúvidas, agora desapareciam.
Há muito que pressentia a verdade, e ela agora está bem patente.
- Não há dúvida que te perdi: tentei intervir e tu, manejada por ela, cuja figura maldita acabámos
de ver junto ao lago, cedeste. Fiz tudo quanto podia, mas perdi-te. - E dirigindo-me a Mrs. Grose,
gritei-lhe: - Vá-se embora, vá!
Em face disto ela obedeceu com um ar profundamente infeliz,
mas convencido, mesmo no meio da sua cegueira, que algo de horrível se passara. Retirou-se, o
mais depressa possível, pelo caminho por onde viéramos.
Não consigo recordar-me do que se passou logo a seguir, assim
que fiquei só. Só sei que decorrido, talvez, um quarto de hora, o contacto áspero da terra e um
penetrante cheiro a humidade revelaram-me que estivera deitada no chão, numa crise de
desespero, a chorar e a gemer. Quando ergui a cabeça vi que o dia estava no fim. Levantei-me e
olhei para o lago cinzento e para a escuridão da sua margem. Em seguida encetei o regresso a
casa. Ao chegar junto à vedação reparei, com surpresa, que o barco havia desaparecido, e
isto explicou-me uma vez mais a maneira como Flora conseguira
a sua façanha.
Quando entrei em casa, não vi nem uma nem outra, Flora tivera
a feliz ideia (se é que a palavra feliz não tem aqui um sentido grotesco) de querer passar a noite
junto de Mrs. Grose, mas, em compensação, se assim se pode chamar a isso, antes de tudo
acontecer, tive a presença de Miles junto de mim durante tanto tempo como nunca sucedera.
Nenhuma das noites que eu passara em Bly fora tão agoirenta como esta, no entanto, este
desfecho causava-me uma tristeza calma.
Não perguntei sequer pelo rapaz. Subi ao meu quarto a fim de
mudar de roupa e logo vi a confirmação do afastamento definitivo de Flora: tudo quanto lhe
pertenciahavia sido dali retirado. Quando mais tarde, já sentada à lareira da sala de estudo, a
criada do costume me veio trazer o chá, também me abstive de perguntar pelo meu aluno. Ele
agora era livre, totalmente livre! Conquistara a sua liberdade. E foi pois por sua livre vontade que
ele, às oito horas, se veio sentar junto de mim, depois de a criada ter vindo buscar o tabuleiro.
Apaguei as velas e puxei a cadeira para mais perto do fogo; sentia um ffio mortal, como se nada
fosse capaz de
me aquecer. Quando ele apareceu, estava eu iluminada apenas
pela lareira, sozinha com os meus pensamentos. O rapaz parou
junto à porta a olhar para mim, como que a querer partilhá-los, depois deixou-se cair numa
cadeira na minha frente, e para ali ficámos, numa imobilidade absoluta. No entanto, sentia que
ele queria estar junto de mim.

Acordei no dia seguinte, antes de romper a manhã, com Mrs.


Grose à minha beira. Trazia más notícias. Flora estava cheia de febre, passara a noite muito
agitada, com pesadelos, e a causa destes não era a sua antiga preceptora, mas sim a actual. Não
protestava contra a ideia de ver aparecer Miss Jessel, não queria era ver-me a mim. Levantei-me
logo, tinha mil perguntas a fazer; tanto mais que a minha amiga parecia vir disposta a
enfrentar-me. Percebi isso assim que lhe perguntei se acreditava mais na criança que em mim:
- Ela teima em negar que tenha visto fosse quem fosse?
A minha visitante pareceu muito pouco à vontade.
- Oli, miss, não posso insistir muito nesse assunto. De resto, confesso que nem é preciso. Ela
parece ter ficado de repente muito mais velha.
- Ah, estou a ver. Ela sente que é absolutamente necessário
fazer-se acreditar, por isso dá-se ares de uma pessoa muito respeitável. Na verdade, fala pela
boca de MissJessel. Muitorespeitável, na verdade, esta garota! Afirmo-lhe que tive ontem a mais
estranha das impressões. Ia jurar que é assim. Ela nunca mais me vai falar!
Mrs. Grose guardou silêncio durante um bocado e, depois confirmou as minhas palavras com
uma franqueza que devia ter a sua justificação:
- Na verdade, miss, penso que vai ser assim. Ela parece bem
decidida! Então agora é que é o grande problema! - disse.
Pela expressão da minha companheira percebi até que ponto era verdade.
- De três em três minutos ela pergunta se a senhora vai entrar...
- Estou a ver, estou a ver. - Também eu estava impressionada. - E desde ontem que ela não fala
de outra coisa, para além de
recusar a minha presença, não disse nada sobre Miss Jessel?
- Nem uma palavra, miss. E, como sabe - prosseguiu a minha
amiga -, eu bem ouvi ela dizer junto do lago que, pelo menos naquela altura, não estava ali
ninguém...
- Pois. E a senhora continua a acreditar nela...
- Eu não a contradigo. Que quer que eu faça?
- Nada. A senhora tem pela frente a criaturinha mais esperta que jamais conheci. Eles os dois,
esses dois amigos, fizeram das crianças os dois seres mais manhosos que é possível imaginar. A
matéria era fácil de manejar! Flora descobriu a maneira de se mostrar ofendida e há-de
aproveitar-se bem da situação para atingir os seus fins.
- Mas quais fins, miss?
- Ora, o de me desacreditar junto do tio. Vai querer fazer-me
passar pela mais infame das criaturas!
A expressão de Mrs. Grose, que devia estar a imaginar a cena,
fez-me estremecer, era como se ela estivesse a ouviraconversa dos dois:
- Ele, que tinha a menina em tão boa conta!
- Agora reparo que era bem estranha a sua maneira de o mostrar! - observei rindo. - Mas isso já
não interessa. O que Flora pretende é ver-se livre de mim.
A minha companheira confirmou:
- Ela afirma que nem sequer volta a olhar para si.
- Portanto, o que a senhora pretende de mim é mandar-me embora o mais rapidamente
possível? - perguntei. Mas antes que ela me respondesse, ataquei: - Mas eu tenho outra i deia,
produto das minhas reflexões. Até aqui parecia-me que o melhor era ir-me embora. No domingo
estive quase a fazê-lo. Mas isso não é solução. Quem se deve ir embora é a senhora. E tem de
levar consigo Flora.
Ao ouvir isto, a minha visitante quis saber:
- Mas para onde, santo Deus?
- Para longe daqui. Para longe deles. Sobretudo para longe de
mim. Neste momento, sobretudo, para longe de mim. Leve-a direitinha para junto do tio.
- Só para lhe fazer queixa de si?
- Não, não é só para isso. Também é para me deixar só com
aquilo que me resta para minha defesa.
Ela não percebia.
- E que é que lhe resta?
- Em primeiro lugar a sua lealdade, e depois a de Miles.
Mrs. Grose olhou-me fixamente:
- Acha que ele...?
- Fica do meu lado, se lhe derem uma oportunidade? Sim, arrisco-me a esperar. De qualquer
modo quero experimentar. Vá-se embora daqui com Flora o mais depressa que puder, e deixe-me
sozinha com ele. - Eu própria estava admirada com a coragem que ainda me restava, e, ao
mesmo tempo, desconcertada por ver que, em face disto, a minha amiga ainda hesitava.
Prossegui: - Há uma coisa, antes de partirem, os irmãos não se devem encontrar nem por um
minuto. - Então ocorreu-me que, apesar de Flora estar de momento fechada no quarto, isso já
podia ter acontecido quando regressava do lago. Podia ser demasiado tarde, por isso perguntei
ansiosamente: - Quer dizer que eles já se encontraram?
Ela corou ao ouvir isto.
- Ali, miss! Não sou assim tão idiota! Fui obrigada a sair do pé dela por duas ou três vezes, mas
deixei sempre lá uma criada. E agora ficou sozinha, mas fechada à chave. Contudo, passaram-se
tantas coisas...
- Mas então ... ?
- A menina tem assim tanta confiança no rapazinho?
- Não tenho confiança em ninguém senão na senhora. Mas desde ontem que me surgiu uma
nova esperança. Penso que aquele
patifezinho me quer dar uma oportunidade. Estou convencida disso. A noite passada esteve
sentado comigo à lareira, muito calado e às escuras, como se quisesse dizer alguma coisa. - Mrs.
Grose olhou através da janela para a manhã que clareava e perguntou:
- E disse?...
- Não - confessei. - Esperei e tornei a esperar, mas nada.
- Nem sequer proferiu uma palavra acerca da irmã ou da ausência desta. Mesmo
assim - prosseguiu -, depois do tio falar com a irmã, não posso consentir que ele fale com o rapaz
sem me dar um certo tempo, sobretudo no pé em que as coisas estão.
Nesse capítulo a minha amiga mostrou-se mais relutante que
eu imaginara:
- Que quer isso dizer... "um certo tempo"?
- Bem, um dia ou dois, para acertarmos as coisas. Nessa altura tenho a certeza de que ele já
estará do meu lado, e a senhora pode imaginar a importância que isso tem para mim. Se nada
resultar, falhei, e a senhora, lá na cidade, dirá o que entender a meu favor. - Depois de eu lhe
expor assim a situação, ela continuou tão perdida noutros pensamentos, que eu fui em seu
auxílio: -A não ser, claro está, que a senhora não queira ir.
Vi então na cara dela que estava decidida, estendeu a mão num
gesto afirmativo e declarou:
- Eu vou. Eu vou. Vou mesmo esta manhã!
Mostrei-me generosa:
- Se preferir demorar-se ainda um pouco, prometo que Flora
não me verá.
- Não, não! Este lugar... Ela tem de sair daqui. - Olhou para
mim com um ar muito grave e confessou: - A miss tem toda a razão. Eu própria...
- Então ... ?
- Não posso aqui ficar.
O olhar que ela me lançou deixou-me cheia de esperança:
- Quer a senhora dizer que, de ontem para cá, viu...?
Ela abanou a cabeça num gesto digno:
- Não... mas ouvi...
- Ouviu... o quê?
- Coisas horriveis... da boca daquela criança... horrendas! - E suspirava de trágico
alívio. - Palavra de honra, miss, ela diz coisas... - E, ao evocá-las, não resistiu, deixou-se cair a
chorar em cima do meu sofá, dando largas à sua angústia, como já acontecera antes.
O meu alívio, porém, era de outra espécie, e exclamei:
- Oli, graças a Deus!
Ela ergueu de súbito a cabeça, limpou os olhos, e gemeu:
- Graças a Deus! Porquê?
- Porque isso me justifica!
- Não tenha dúvidas!
A ênfase com que ela dissera isso já me bastava, mas insisti:
- É assim tão horrível?
A minha colega não sabia como explicar:
- É mesmo chocante.
- Que é que ela diz de mim?
- Sim, vou-lhe dizer, já que mo pergunta. É incrível ouvir tais coisas na boca de uma menina;
não posso imaginar onde ela as foi aprender...
- A linguagem que ela utiliza quando fala de mim? Eu sei!
- retorqui, com um riso significativo.
As minhas palavras deixaram a pobre mulher ainda mais consternada:
- Bem, eu também devia saber... uma vez que já as tinha ouvido antes! Mas não aguento! - Ao
dizer isto caíram-lhe os olhos.
- uma razão, porque a quero tirar daqui. Para longe disto tudo. Para longe deles...
- Acha que ela vai ficar diferente ... vai ficar livre ... ? -agarrei-me a ela, quase com
alegria: - Então, apesar do que me dizia on tem, a senhora acredita?
- Nessas coisas - Esta expressão, na linguagem simples da
boa mulher, não exigia mais explicações. Assim ela admitia tudo, como nunca o fizera então. E
confessou: - Acredito.
Sim, isto foi um alívio, estávamos novamente ao lado uma da
outra. Com esta certeza, pouco me importava o que pudesse
acontecer. Aquele meu sustentáculo em face da adversidade era o mesmo a que eu recorrera
aquando daminhafalta de confiança dos primeiros tempos. E agora, se a minha amiga se
apresentava como garante da minha honestidade, pelo resto respondia eu.
Contudo, no momento da despedida, havia uma coisa que me
embaraçava:
- Lembrei-me agora de uma coisa - comecei. - A minha carta a dar o alarme vai chegar à cidade
primeiro que vocês.
Senti agora, mais que nunca, até que ponto ela tinha sido pouco franca e como isso agora lhe era
doloroso:
- A sua carta não chegou. Não saiu daqui.
- Então... que foi feito dela?
- Sabe-se lá! Talvez o menino Miles...
- Acha que ele a tirou? - gaguejei.
Ela hesitou, mas acabou por dizer:
- Ontem, quando eu entrava com Míss Flora, não vi onde a
menina a tinha deixado. Mais tarde, à noitinha, tive ocasião de perguntar a Luke e ele declarou
que não lhe mexera nem a vira. - Depois disto trocámos ambas um olhar de entendimento, até
que foi ela quem primeiro quebrou o gelo, declarando quase em tom de alívio:
- Portanto, já vê@
- Sim, estou a ver que se Miles a tirou, provavelmente leu-a e destruiu-a.
- E não está a ver outra coisa mais?
Encarei-a com um sorriso triste:
-Estou a ver que neste momento os seus olhos estão mais abertos que os meus.
Assim era, de facto, mas ela corou.
- Isto revela-nos o que ele deve ter feito no colégio!
E, na sua simplicidade, abanava judiciosamente a cabeça.
- Roubou!
Reflecti e arrisquei:
- Sim, talvez...
Ela olhou-me, como que espantada com a minha calma:
- Roubou cartas!
Ela não podia compreender as razões da minha calma, de resto bastante superficial, e por isso
expliquei:
- Espero que tenha tirado mais proveito que desta vez! A minha carta de pouco lhe serviu, afinal
era apenas a pedir uma entrevista ao tio. A estas horas, já deve estar arrependido de ter ido tão
longe por tão pouca coisa, e se calhar o que ele pretendia ontem à noite era confessar-me a sua
falta. - De repente pareceu-me que tudo estava explicado, aproximei-me da porta e
exclamei: - Válá, vá-se embora! Eu cá estou para o fazer confessar. Se ele confessar, está salvo...
E se ele se salva...
- A menina salva-se também? - E com isto a boa mulher beijou-me, dizendo por
despedida: -Mesmo sem a ajuda dele, eu hei-de salvar a minha menina!

No entanto, senti-lhe a falta mal ela virou costas! Foi então que vi realmente nas complicações
em que estava metida. Se alguma vantagem teve o facto de me encontrar sozinha com Miles, foi
o de me dar a possibilidade de avaliar a situação. O momento em que me senti mais preocupada,
foi quando me disseram, no andar de baixo, que a carruagem que levava Mrs. Grose e a minha
aluna tinha já saído o portão. Disse então para comigo que estava agora sozinha em face do
perigo, e durante o resto do dia tive ocasião de
me convencer de que havia sido deveras temerária. Aminha situação era mais dificil que eu
previra. Pela primeira vez, eu podia avaliar o reflexo que toda esta situação tinha provocado no
resto do pessoal da casa. Os acontecimentos despertavam-lhes a curiosidade; a partida
precipitada da minha colega tinha-lhes sido explicado sumariamente. As criadas e os criados
mostravam-se perturbados. Isto afectava-me os nervos, até me convencer que tinha de reagir. Se
queria evitar o naufrágio total, tinha de me agarrar com força ao leme; e posso afirmar que logo
nessa manhã fiz o
possível por me mostrar muito calma e altiva. Estava satisfeita por ter muito que fazer, e o facto
de contar só comigo tornava-me extremamente firme. Foi com este sentimento que nessa manhã
percorri a casa toda, mostrando que estava pronta a enfrentar qualquer investida. Assim,
paraexemplo de quem pudesse estar a observar-me, mantinha-me impassível, embora com o
coração apertado.
A pessoa que parecia menos se aperceber disso, pelo menos até
à hora do jantar, foi o jovem Miles. Nas minhas deambulações pela casa, nunca lhe pus a vista
em cima, mas fiz de propósito para tornar pública a mudança que se operara nas nossas relações,
em consequência do que ele tinha feito na véspera, isto é, entretendo-me com o seu piano para
possibilitar a fuga de Flora. Tudo isto ficara bem explícito pelo facto deela ter sido depois
encerrada no seu quarto e pela sua partida de casa. E a mudança nos nossos hábitos estava
patente no abandono das lições. Quando abri a porta do
quarto de Miles, este já lá não estava, e disseram-me depois que ele tomara o pequeno-almoço
em companhia da irmã e de Mrs,
Grose, na presença de duas criadas, e que depois saíra. Ia dar um passeio, afirmara. Nada
melhor que esta atitude reflectia a brusca alteração das minhas funções. Não se sabia ainda o que
ficaria decidido! Eu, pelo menos, sentia-me aliviada por ter deixado de fingir. Se algo de anormal
se passara era a pretenção absurda de que havia ainda alguma coisa que eu lhe pudesse ensinar.
Mercê
de pequenos subterfúgios, tornara-se evidente que ele, mais ainda que eu, se esforçava por
defender a minha dignidade. Eu tivera de apelar para ele, a fim de não ter de me esforçar tanto.
De qualquer modo, ele agora estava livre, nunca mais eu procuraria tirar-lhe essa liberdade;
melhor ainda, conforme já lhe demonstrei quando ele estivera junto de mim, na véspera, na sala
de estudo, nunca mais lhe dirigira qualquer ameaça ourepreensão. A esse respeito, eu tinha agora
outras ideias. Mas a dificuldade em aplicá-las só me surgiu ao ver-me de novo na presença dele,
cuja atitude impecável não fora minimamente alterada por tudo quanto sucedera.
Para manter a casa com o cerimonial que eu pretendia, dei ordem para servirem as refeições, a
mim e ao rapaz, "lá em baixo". como nós dizíamos. Portanto, fiquei à espera dele na sala
aparatosa, junto de cujas janelas eu recebera de Mrs. Grose, no tal domingo fatídico, aquilo a que
se poderia chamar o primeiro aviso. Neste momento, verifiquei de novo, pois já o sentira por
diversas vezes, até que ponto o meu sucesso dependia da minha força de vontade, a força de
fechar os olhos, quando possível, em face da evidência de
que tudo aquilo contra que lutava era revoltante e antinatural. Só poderia resistir, apelando para
as próprias "forças" da natureza, considerando a minha provação como um percurso
desagradável e estranho, sim, mas em direcção a um objectivo que, para ser alcançado,
necessitava apenas de mais um esforço sobrehumano.
No entanto, seria preciso um tacto extraordinário, digamos, um dom, para atingir sozinha esse
objectivo. Como conseguiriaeu deixar de fazer referência ao que tinha acontecido? Mas, por
outro lado, como seria possível falar nesses factos sem mencionar o que havia neles de terrível e
de obscuro? Pois bem, a resposta não se fez
esperar, e foi-me dada pelo tacto incomparável do meujovem companheiro. Era como se este
tivesse encontrado mais, uma vez, como já sucedera noutras ocasiões, durante as lições, a
maneira de me facilitar a tarefa. Estando ambos, frente a frente, na sala de jantar, ele indicou-me
francamente o caminho a seguir. A travessa do assado estava em cima da mesa, e eu mandara
embora a criada.
Antes de se sentar à mesa, Miles ficou um momento de mãos nos bolsos, a olhar para a perna de
carneiro, como se tencionasse dizer qualquer graçola acerca dela. Mas aquilo que lhe saiu dos
lábios, passado uns momentos, foi:
- Diga-me, minha querida, ela está assim tão doente?
- A nossa Flora? Não é coisa muito grave. Londres vai fazer-lhe bem. Estava a dar-se mal em
Bly. Senta-te e come o teu assado.
Ele obedeceu prontamente, levando o prato que eu lhe servira
para o seu lugar. Depois de sentado prosseguiu:
- Começou a dar-se mal assim de repente?
- Não foi tão de repente como julgas. Já se vinha arrastando.
- Então, por que não a mandou embora antes?
- Antes de quê?
- Antes de ficar tão doente que não pudesse viajar.
-Mas ela pode viajar. Não poderia se continuasse aqui. Foi embora mesmo a tempo. A viagem
vai dissipar as más influências - fiz-me atrevida - e fazê@las desaparecer.
- Percebo, percebo - retorquiu Miles.
Continuou a comer com as suas maneiras impecáveis que me
evitaram, desde o primeiro dia, qualquer reparo mais desagradável. Fosse qual fosse o motivo
que o levou a ser expulso do colégio, não foi certamente por se portar mal à mesa. Hoje, como
sempre, mostrava-se irrepreensível. Era indubitável que pretendia dar a entender que se
apercebia sozinho do que se estava a passar, e mantinha-se silencioso enquanto procurava
tornar-se senhor da
situação. Ojantar terminou rapidamente. Pela minha parte só fingi que comia, e mandei logo
levantar a mesa. Entretanto, Miles estava de costas para mim, com as mãos enfiadas nos bolsos, a
olhar pelajanela, através da qual eu tivera aquela visão que me abalara tanto. Continuámos
calados enquanto a criada esteve presente, tão calados, pensei disparatadamente, como um casal
que, na viagem de núpcias se sente envergonhado diante da criada do hotel. Logo que a rapariga
saiu Miles voltou-se para mim e disse:
- Com que então estamos sós!
- Mais ou menos - retorqui. - Não totalmente sós. Não gostaríamos disso, pois não?
- Acho que não! Claro, temos os outros...
- Sim, é verdade, temos os outros... - concordei.
- Mesmo assim - prosseguiu ele, sempre de mãos nos bolsos,
- na minha frente esses não contam muito, não acha?
Senti-me desfalecer, mas procurei não dar parte fraca:
- Depende do que pretendes dizer com isso...
- Pois, depende... - respondeu ele no mesmo tom.
Voltou-se e foi até à janela em passos lentos, a cogitar, e ali ficou com a testa colada aos vidros,
a contemplar os raros arbustos e a triste paisagem de Novembro. Quanto a mim, tinha sempre o
disfarce do meu trabalho, e sentei-me com ele no sofá, procurando assim distrair-me e
preparar-me para o que desse e viesse, como já sucedera das outras vezes, quando pressentia que
as crianças recebiam certos contactos dos quais eu estava excluída. Porém, a impressão que senti
nesse momento ao contemplar o ar embaraçado com que o rapaz me voltara as costas, é que eu, a
partir de agora, não estava a ser excluída. Esta sensação tornou-se tão intensa que acabei por
sentir nitidamente que quem estava sendo excluído era ele. Os vidros dajanela devolviam-me a
sua imagem, a imagem do seu desânimo. Ele estava de fora, fosse lá do que fosse. Isso era
maravilhoso, mas deixava-me desorientada. No entanto senti um lampejo de esperança: seria que
ele procurava,
através do vidro, algo que não conseguia ver? Não seria a primeira vez que tal lhe acontecia? A
primeira, a primeira vez! Achei que era um milagre! Ele parecia ansioso, embora procurasse
disfarçar;
estivera ansioso durante todo o dia, mesmo enquanto estava sentado à mesa, com toda a
compostura. Apelara para toda a sua
capacidade para se mostrar despreocupado. Quando, por fim, se
voltou, era como se essa força o tivesse abandonado. E murmurou:
- Ora, ainda bem que não me dou mal em Bly!
- Nestas últimas vinte e quatro horas deves ter andado mais
pela propriedade que nunca -arrisquei. -Espero que tenhas gozado bem o passeio...
- Oh, sim, fui até muito longe. Dei a volta toda. Andei milhas e milhas. Nunca me senti tão
livre!
Ele tinha uma maneira muito própria de se exprimir, e eu procurei acompanhá-lo, dizendo:
- E então, estás satisfeito?
Ele continuou a sorrir e, por fim, respondeu apenas com estas
palavras:
- E a senhora, está satisfeita? - A sua intenção com estas
palavras era bastante clara. Mas antes que eu tivesse tempo de ripostar, ele prosseguiu, como
quem quer remediar uma impertinência: - É formidável a maneira como a senhora aceita isto,
porque, é evidente, uma vez que estamos sós, quem está mais tempo sem companhia é a senhora.
Espero que não lhe custe muito!
- Estar só contigo? - inquiri. - Por que me havia de custar?
Muito embora não tenhas obrigação de me fazer companhia, pois
és muito superior a mim, gosto imenso de estar contigo. Se assim não fosse, por que ficaria eu
aqui?
Ele olhou-me de frente, agora muito sério, e o seu rosto pareceu-me então mais belo que nunca.
- Foi por isso que ficou?
- Com certeza. Fiquei, porque, além de ser tua amiga e me
preocupar imenso contigo, espero poder encontrar uma solução
que te convenha. - A minha voz tremia tanto que eu não conseguia disfarçar. - Recordas-te do
que te disse naquela noite de tempestade em que estive sentada na borda da tua cama? Disse que
não havia no mundo nada que não fosse capaz de fazer por ti!
- Lembro-me, sim! - Também ele estava cada vez mais nervoso e procurava dominar o tom de
voz, só que o fazia melhor que
eu, a ponto de conseguir rir-se, como se tudo aquilo fosse uma brincadeira. - Mas, se bem me
recordo, disse-me isso para me pedir qualquer coisa...
- Em parte, foi... - anui. - Mas bem sabes que não fizeste o
que eu te pedi...
- Oh, claro! -retorquiu ele com falsajovialidade. - A senhora pretendia que eu lhe dissesse uma
coisa...
- Isso mesmo. Queria que tu me dissesses logo ali aquilo que
tu sabes.
- Então foi por isso que aqui ficou?
Ele falava com uma despreocupação através da qual eu conseguia discernir uma sombra de
ressentimento; mas eu ainda não queria acreditar que isso fosse um sinal de rendição da sua
parte.
Era como se aquilo que eu tanto desejara só agora me pudesse causar espanto.
-Pois bem, tenho de confessar. Foi precisamente para isso que
cá fiquei.
Ele demorou tanto a dar-me uma resposta, que cheguei a duvidar de que tivesse acreditado na
minha afirmação. Finalmente murmurou:
- Quer que lhe responda aqui, agora?
- Já não é sem tempo!
Ele olhou vagamente em redor e eu tive a impressão estranha
de lhe notar, pela primeira vez, algo parecido com receio. Era como se, de repente, ele tivesse
medo de mim, o que eu considerava um bom sinal. Contudo, apesar do esforço que fiz para me
mostrar severa, a voz saiu-me com um tom de meiguice quase grotesco, e disse:
- Estás assim tão desejoso de sair outra vez?
- Se estou! - sorria-me corajosamente, e corou, demonstrando
assim o esforço que, estava a fazer. Pegou no boné e ficou a torcê-lo nas mãos, num gesto que
me fez sentir o horror da minha posição, muito embora achasse que estava quase a atingir o meu
objectivo.
De qualquer modo, o que eu estava a fazer, era um acto de violência, que consistia em instilar
um sentimento de culpa numa criaturinha indefesa, que fora para mim a revelação de uma
convivência maravilhosa. Não seria mesquinho da minha parte criar naquele ser tão encantador
semelhante mal-estar? Penso que neste momento estou a analisar a situação com uma
clarividência que não possuia nessa altura, e julgo ver os nossos pobres olhos, dotados de uma
certa antevisão da angústia que nos esperava.
Lutávamos assim com terrores e escrúpulos, como dois lutadores que receiam aproximar-se um
do outro. Mas o que nenhum de nós queria era magoar o adversário. Era isso que nos mantinha
em suspenso.
- Vou dizer-lhe tudo - declarou Miles. - Isto é, dir-lhe-ei
tudo quanto quiser saber. A senhora vai continuar aqui comigo, vamos ficar ambos satisfeitos, e
eu quero dizer-lhe tudo. Tudo, tudo. Mas agora, não.
-Por que não agora?
A minha insistência fez que ele se afastasse e se dirigisse à janela, estabelecendo entre nós um
silêncio tal, que se poderia ouvir cair um alfinete. Depois voltou-se bruscamente para mim com o
ar de quem tem, de facto, alguém lá fora à sua espera e declarou:
- Agora, tenho de ir ter com Luke.
Custou-me tê-lo obrigado a dizer uma mentira tão mesquinha.
Mas a verdade é que as mentiras dele confirmavam a minha verdade. Dei mais meia dúzia de
pontos na malha e retorqui:
- Pois então vai lá ter com Luke, e depois vens cumprir o que
prometeste. Só que, em troca disto, vou fazer-te um pedido muito menos importante.
Ele olhou-me como se se achasse ainda em condições de entrar
num acordo e perguntou:
- Muito menos importante?...
- Sim, uma pequena parte do resto. Diz-me lá - fingi-me
muito preocupada com o meu trabalho, dando à voz um tom indiferente -, foste tu que tiraste,
ontem à tarde, a carta que eu deixei sobre a mesa da entrada?

Enquanto eu observava a maneira como ele acolhia esta pergunta, a minha atenção foi
subitamente desviada por algo que me causou um sobressalto e me fez agarrar Miles num
movimento espontâneo, apertando-o contra o peito. Ao mesmo tempo procurava apoio junto do
móvel mais próximo e tentava instintivamente manter o rapaz de costas para a janela. Mal vira a
aparição, já sabia de quem se tratava. Peter Quint surgira como uma sentinela em frente da
prisão. Logo a seguir percebi que se aproximava e,junto ao vidro, mostrava o seu rosto lívido de
condenado. Não é
exagero dizer que, no mesmo instante, a minha decisão estava tomada, e também não acredito
que nenhuma outra mulher, em tão
curto espaço de tempo, fosse capaz de recuperar o comando dos
acontecimentos. Naquele horrível instante compreendi imediatamente que o que havia a fazer era
manter o rapaz alheio ao que se estava a passar. O que havia nisso de extraordinário é que eu
sabia, com uma certeza inexplicável, que ia conseguir. Era como se estivesse a lutar com um
demónio pela posse de uma alma. Então verifiquei que essa almahumana que eu apertava nos
meus braços tinha a testa coberta de gotas de suor. O rosto que se encostava ao
meu estava tão pálido como o outro, do lado de fora do vidro, e dele veio um som perfeitamente
distinto, mas que era como se viesse de muito, muito longe, e que acolhi como um perfume
celeste.
- Sim, fui eu que tirei a carta.
Ao ouvir isto, soltei um suspiro de contentamento e abracei-o
com mais força, sentindo o seu coraçãozinho a bater febrilmente, enquanto os meus olhos
fixavam a figura que estava atrás dos vidros e que, naquele momento, mudava de posição.
Comparei-a à pouco a uma sentinela, mas agora o seu gesto vagaroso lembrava mais o de um
animal feroz a rondar a presa. Porém, a minha coragem era tal que tinha de fazer um esforço para
não a deixar manifestar-se. Entretanto, o rosto maldito encostara-se de novo à vidraça, de olhar
fixo, como quem está à espreita. Na esperança de poder iludi-lo e com a certeza absoluta de que
a criança de nada se apercebera, prossegui:
- Por que é que a tiraste?
- Para ver o que é que a senhora dizia a meu respeito.
- Então abriste a carta?
- Abri, sim.
Afastei-o um pouco de mim e fitei-lhe o rosto, do qual haviam
desaparecido todos os vestígios de ironia, o que me dava bem a
medida da sua angústia. O que eu considerava um milagre era verificar que, finalmente, mercê da
minha vitória sobre o demónio, ele deixara de ver a aparição e o contacto fora cortado. Ele sabia
que estava ali uma presença, mas ignorava de quem, assim como também ignorava que eu dava
por essa presença e sabia de quem se tratava. Mas de resto, que importava agora? Quando voltei
a olhar pela janela verifiquei que esta estava deserta e que, graças à minha influência pessoal, o
contacto fora interrompido. Já não
estava nada ali. Senti que tinha ganho a batalha e que iria agora saber tudo.
- E não encontraste nada! - exclamei, eufórica.
Ele respondeu com o mesmo acenar de cabeça, triste:
- Nada!
- Nada, nada! - gritei eu de contentamento.
- Nada, nada - repetiu ele, desconsolado.
Beijei-o na testa. Estava encharcada.
- E que fizeste à carta?
- Queimei-a.
- Queimaste-a? -Tinha de ser, agora ou nunca. - E foi isso
que fizeste no colégio? - Eu ia saber, finalmente, tudo.
- No colégio?
- Roubaste cartas... ou outras coisas?
- Outras coisas? - Ele parecia estar muito longe dali, de modo que só percebeu a pergunta ao
cabo de um certo esforço. Até que murmurou: - Está a perguntar se eu roubei?
Senti-me corar até à raiz dos cabelos ao ouvir-me a mim própria emitir tal sugestão, tratando-se
de um jovem cavalheiro, mas também não era menos estranho ver a maneira como ele escutava
isso sem reagir, o que de certo modo revelava a sua decadência moral.
- Foi por esse motivo que não pudeste voltar para lá?
Isto pareceu causar-lhe uma certa surpresa.
- Como é que a senhora sabia que eu não podia voltar?
- Eu sei tudo.
Ele lançou-me um olhar estranho e longo.
- Tudo?
- Tudo. Portanto o que tu fizeste foi...? - Não tive coragem de fazer outra vez a pergunta.
Porém, Miles respondeu muito simplesmente:
- Não, não roubei.
A minha expressão deve ter-lhe revelado que acreditava nele
piamente, no entanto sacudi-o, mas agora com ternura, como que num protesto por ele me ter
mantido atormentada durante tanto tempo.
- Então, que foi que tu fizeste?
Ele olhou, angustiado, para o tecto em volta da sala e respirou fundo por duas ou três vezes,
com dificuldade. Era como se estivesse no fundo do mar e erguesse os olhos para uma réstea de
luz:
- Bem, disse umas coisas...
- Só isso?
- Eles acharam que era suficiente!
- Para te expulsarem?
Nunca um aluno "expulso" apresentou tão poucos motivos como
este rapazinho! Pareceu pesar a minha pergunta, mas acabou por
responder num tom indiferente:
- Bem, acho que não devia ter dito aquelas coisas.
- Mas a quem as disseste?
Ele tentou lembrar-se, mas não conseguiu.
- Já nem sei!
Quase sorria para mim na sua derrota, que agora era praticamente tão completa que eu devia ter
ficado por ali. Mas sentia-me empolgado, cega com a minha vitória, embora o resultado desta,
que eu esperava ser o de nos aproximar, começasse já a afastar-nos um do outro.
- Disseste a todos?
- Não, foi só... - mas abanou tristemente a cabeça. - Não me
lembro dos nomes.
- Eram assim tantos?
- Não, eram poucos. Só aqueles de quem gostava.
Aqueles de quem ele gostava? Eu não me sentia esclarecida, antes cada vez mais confusa, e dali
a pouco já pensava, com susto, que ele poderia estar inocente. Foi como se caísse num poço,
porque se ele estava inocente, então, que tinha eu feito? Paralisada com esta ideia, afrouxei um
pouco o meu abraço. Ele afastou-se e ficou voltado para a janela. Não o impedi, pois entendia
que não havia agora motivo para o impedir disso.
- E eles foram repetir o que tu disseste? - prossegui dali a momentos.
Ele estava agora longe de mim, respirando ainda com dificuldade, mas sem revolta por se
encontrar ali preso contra sua vontade.
Olhou uma vez mais lá para fora, para o dia cinzento, como se nada mais lhe restasse, além de
uma angústia indizível. Mas replicou:
- Sim, eles devem ter ido repetir o que eu disse. Aqueles de
quem eles gostavam - acrescentou.
Não era bem aquela a explicação que eu esperava, mas prossegui:
- Essas coisas acabaram por chegar aos ouvidos...
-Dos professores? Oh, pois! -respondeu ele simplesmente.-
Mas eu não sabia que tinham feito queixa.
- Os professores? Não fizeram. Nunca disseram do que se tratava. Foi por isso que te perguntei.
Ele ergueu para mim o seu rosto febril:
- Sim, foi muito mal feito!
- O quê?
-Aquilo que eu por vezes disse. A ponto de eles escreverem para cá!
Não sei descrever o que havia de trágico e contraditório em semelhante discurso na boca
daquela criaturazinha, só sei que dali a instantes dei comigo a exclamar impulsivamente:
- Isso foi tudo um disparate! -Mas logo acrescentei, num tom
severo: - E que coisas foram essas que tu disseste?
A minha severidade dirigira-se a quem o tinhajulgado e castigado. Contudo, ele retraiu-se de
novo, e esse movimento fez-me dar um grito e lançar-me para ele, pois uma vez mais, encostado
ao vidro, a fim de anular a sua confissão e calar a sua resposta, encontrava-se o hediondo autor
de todo o nosso infortúnio - o pálido rosto do condenado! Senti uma náusea ao ver por terra a
minha vitória e o retorno da antiga luta, porém, o meu movimento impulsivo só teve como
resultado trair-me. Percebi desde logo, por instinto, que orapaz apenas desconfiavam,
porenquanto, nada via. Dei largas ao meu impulso e gritei para ajanela ao ver que o ar espantado
dele era a prova da sua libertação:
- Vá-se embora! Vá-se embora! Vá-se embora!
Ao mesmo tempo apertava Miles de encontro ao peito.
- É ela que ali está? - perguntou ele, ofegante, dirigindo os
olhos para onde eu falara.
Então estranhei a palavra ela, e repeti-a, mas ele explicou com fúria:
- Miss Jessel, Miss Jessel!
Escutei com espanto a pergunta dele, relacionando-a com o que
se tinha passado com Flora, e isto causou-me um certo alívio. Expliquei:
- Não se trata de Miss Jesel! Mas a coisa está ali, najanela, na nossa frente' Está ali o miserável,
o maldito, está ali pela última vez!
Ao ouvir isto, ele fez um movimento com a cabeça como um cão
que se enganou no rasto a seguir. Depois, voltou-se para mim,
sufocado, num acesso de raiva, a olhar em redor a sala que ele achava vazia, mas que para mim
estava cheia com aquela presença maléfica. E inquiriu:
- Era ele?
Eu estava tão resolvida a tirar a prova que perguntei, num tom glacial:
- "Ele", quem?
- Peter Quint, sua malvada! - Tornou a olhar em redor, numa súplica muda. - Mas onde está ele?
Ainda tenho nos ouvidos o som desse nome que era o reconhecimento final da minha vitória!
-Que interessa isso agora, meu querido? Que interessa isso, de hoje em diante? Eu
reconquistei-te - declarei, dirigindo-meao malvado. - E ele perdeu-te para sempre! - Depois, para
concretizar o meu triunfo, gritei para Miles: - Olha, olha para ali!
Mas ele já se tinha voltado com um repelão e olhava, de olhos
esbugalhados, sem no entanto ver mais nada além do ar calmo lá de fora.
Porém, com o choque daquela perda de que eu tanto me orgulhava, soltou um grito como o de
alguém que cai num abismo.
Agarrei-o pois com a mesma força com que o teria sustido numa
queda. Agarrei-o, sim, apertei-o de encontro ao peito, podem calcular com que paixão, mas dali a
minutos comecei a perceber o que é que eu tinha nos braços...
Estávamos agora sós, no silêncio da tarde, e o coraçãozinho dele, despojado de quem o
dominara, havia cessado de bater.

Fim

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