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FATORES DE RISCO

E DE PROTEÇÃO
Coordenador: Neury José Botega

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INTRODUÇÃO

Os clássicos fatores de risco para o suicídio são numerosos e


relativamente conhecidos. Já os fatores de proteção são menos
destacados. É importante conhecer como esses conceitos se
estruturam e que tipo de estudo científico pode determinar as
características pessoais e ambientais que influenciam o risco suicida.

Denominamos grupo de risco um conjunto de pessoas que, por


apresentarem determinados atributos ou terem sido expostas a
determinadas circunstâncias (fatores de risco), passa a ter maior
probabilidade para desenvolver uma doença ou condição clínica.

Em certos tipos de investigações, comparam-se as proporções de


doentes em um grupo de pessoas expostas a determinada condição e
em outro grupo de pessoas não expostas à mesma condição. Esse
procedimento permite calcular um risco relativo, ou seja, quantas
vezes as pessoas expostas ao referido fator têm mais chance de
apresentar tal condição (Moscicki, 1997).

Observe que as afirmações que fazemos derivam da consolidação de


dados populacionais, oriundos de um grande número de indivíduos.
Então, como esse tipo de informação pode nos auxiliar na prática
clínica? Diante de uma única pessoa, recordamos as informações
proporcionadas por tais estudos e julgamos. Se esse paciente tem
vários fatores de risco para o suicídio, a probabilidade de ele vir a se
matar é considerável.

Trata-se de um salto referencial ― do populacional para a


singularidade de uma pessoa. É assim que costumamos proceder e,
entre os vários elementos depositados na balança das decisões
clínicas, não podem faltar os fatores de risco.

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FATORES DE RISCO

A natureza dos fatores de risco é variável, como se observa no Quadro


1. Há a influência da genética, os elementos da história pessoal e
familiar, os fatores culturais e socioeconômicos, os acontecimentos
estressantes, os traços de personalidade e os transtornos mentais,
para ficarmos com os mais importantes.

Alguns fatores são características pessoais imutáveis e, embora não


possam ser objeto de ações clínicas ou preventivas, são, na prática,
importantes sinalizadores de risco de suicídio, por exemplo:

 Sexo.
 História de abuso sexual.
 Tentativa de suicídio pregressa.

Outros fatores, como os transtornos mentais, os estados emocionais e


o acesso a meios letais, podem ser modificados e são alvo tanto da
atenção clínica dirigida a um paciente quanto das estratégias de
prevenção.

Quadro 1

Fatores de risco para o suicídio

SOCIODEMOGRÁFICOS
 Sexo (masculino).
 Idade (entre 19 e 49 anos e idosos).
 Estado civil (viúvos, divorciados e solteiros, principalmente do sexo
masculino).
 Orientação sexual (homossexual ou bissexual).
 Maior risco em ateus.
 Etnia (grupos étnicos minoritários).

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RELACIONADOS A TRANSTORNOS MENTAIS
 Depressão, transtorno bipolar, abuso/dependência de álcool e de outras
drogas, esquizofrenia.
 Transtornos de personalidade (especialmente borderline).
 Comorbidade psiquiátrica (coocorrência de transtornos mentais).
 História familiar de doença mental.
 Falta de tratamento ativo e mantido em saúde mental.
 Ideação ou plano suicida.
 Tentativa de suicídio pregressa.
 História familiar de suicídio.
PSICOSSOCIAIS
 Abuso físico ou sexual.
 Perda ou separação dos pais na infância.
 Instabilidade familiar.
 Ausência de apoio social.
 Isolamento social.
 Perda afetiva recente ou outro acontecimento estressante.
 Datas importantes (reações de aniversário).
 Desemprego.
 Aposentadoria.
 Violência doméstica.
 Desesperança, desamparo.
 Ansiedade intensa.
 Vergonha, humilhação (bullying).
 Baixa autoestima.
 Traços de personalidade (impulsividade, agressividade, labilidade do
humor, perfeccionismo).
 Rigidez cognitiva, pensamento dicotômico.
 Pouca flexibilidade para enfrentar adversidades.
OUTROS
 Acesso a meios letais (arma de fogo, venenos).
 Doenças físicas incapacitantes, estigmatizantes, dolorosas, terminais.
 Estados confusionais orgânicos.
 Falta de adesão ao tratamento, agravamento ou recorrência de doenças
preexistentes.
 Relação terapêutica frágil ou instável.
Fonte: Botega (2015).

A cultura exerce sua força tanto elevando o risco quanto protegendo


contra o suicídio. Na China e na Índia, por exemplo, a impulsividade
parece ter papel mais relevante na determinação de um suicídio do

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que os transtornos mentais. Já, em comunidades indígenas, a
preservação da identidade cultural é um importante fator de proteção
contra o suicídio (WHO, 2014).

Os fatores de risco têm intensidade e duração diversas e exercem seu


poder em diferentes fases da vida. Isso precisa ser levado em conta
quando pensamos em seu impacto sobre o indivíduo, um impacto
cujos efeitos podem aparecer tardiamente.

O abuso físico ou sexual sofrido por uma criança associa-se, na


idade adulta, a vários problemas comportamentais, entre os
quais, o suicídio (Norman et al, 2012).

Predisposição e acontecimentos que ficaram no passado distante


(fatores de risco distais ou predisponentes) costumam ser menos
lembrados quando da ocorrência de um suicídio. Em um primeiro
momento, nós – e os meios de comunicação – tendemos a procurar
pelo fator ou pelos fatores mais recentes (proximais ou precipitantes)
que podem explicar a morte (Moscicki, 1997). A Figura 1 contém
alguns dos principais predisponentes e precipitantes do suicídio.

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Figura 1: Alguns fatores de risco para o suicídio e sua incidência ao longo do tempo.
Fonte: Botega (2015).

O suicídio é multideterminado por fatores de diferentes naturezas,


externos e internos ao indivíduo, que se combinam de modo
complexo e variável. Vale relembrar que as causas de um suicídio,
incluindo o conjunto de fatores predisponentes, são invariavelmente
mais complexas do que um acontecimento recente (fator
precipitante), como, por exemplo, uma perda significativa ou um
rompimento amoroso.

É necessário considerar, também, como a ocorrência de um


acontecimento doloroso é vivenciada pela pessoa − se ela consegue
encontrar soluções para o problema ou valer-se de alternativas de
enfrentamento válidas e aceitáveis.

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FATORES DE PROTEÇÃO

A resiliência emocional, a capacidade para resolver problemas e certas


habilidades sociais podem reduzir o impacto das adversidades e,
dessa forma, contrabalançar o peso de certos fatores de risco
(Bertolote, 2004).

A literatura científica sobre fatores de risco é produzida há mais


tempo e muito mais extensa do que a literatura encontrada sobre os
fatores de proteção contra o suicídio. Estes são mais complexos em
sua definição e mais difíceis de serem operacionalizados e
mensurados (Quadro 2).

Quadro 2

Fatores de proteção contra o suicídio

PERSONALIDADE E ESTILO COGNITIVO


 Flexibilidade cognitiva.
 Disposição para aconselhamento frente a decisões importantes.
 Disposição para buscar ajuda.
 Abertura à experiência de outrem.
 Habilidade de comunicação.
 Capacidade para fazer boa avaliação da realidade.
 Habilidade para solucionar problemas da vida.
ESTRUTURA FAMILIAR
 Bom relacionamento interpessoal.
 Senso de responsabilidade em relação à família.
 Crianças pequenas na casa.
 Pais atenciosos e consistentes.
 Apoio em situações de necessidade.
SOCIAIS, CULTURAIS E ECONÔMICOS
 Integração e bons relacionamentos em grupos sociais (colegas, amigos,
vizinhos).
 Adesão a valores e normas socialmente compartilhados.
 Prática religiosa e outras práticas coletivas (clubes esportivos, grupos

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culturais).
 Rede social que propicia apoio prático e emocional.
 Atividade produtiva remunerada.
 Disponibilidade de serviços de saúde mental.
OUTROS
 Gravidez, puerpério.
 Boa qualidade de vida.
 Regularidade do sono.
 Boa relação terapêutica.
Fonte: Botega (2015).

Os fatores que nos protegem do suicídio são, justamente e sem


surpresa, os que, para a maioria das pessoas, podem conduzir a uma
vida mais saudável e produtiva, com maior sensação de bem-estar.
Fazem, ou deveriam fazer, parte do normal e, de modo geral,
relacionam-se a habilidades cognitivas, à flexibilidade emocional e à
integração social. Alguns deles como, por exemplo, estar empregado,
são o contrário de situações que podem predispor ao suicídio.

Diante da escassa literatura e do caráter de normalidade dos fatores


de proteção contra o suicídio, não devemos considerar, durante uma
avaliação de risco, que o fato de uma pessoa contar com fatores de
proteção possa, verdadeiramente, protegê-la se, ao mesmo tempo, ela
sofrer a influência de vários fatores ou, mesmo, de um forte fator de
risco para o suicídio. Por outro lado, uma linha valiosa de ação clínica
é o fortalecimento de fatores de proteção que se encontram
enfraquecidos ou ausentes.

Ao atendermos um adolescente deprimido, solitário, que reside longe


de sua família, não só pensamos em diminuir os fatores de risco para
o suicídio como também procuramos ajudá-lo a criar uma rede de
apoio social (fator de proteção) que, em situações estressantes, possa
lhe trazer ajuda prática e conforto emocional.

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RISCOS SOCIODEMOGRÁFICOS

Nesta aula, nos ocupamos dos fatores de risco sociodemográficos. Nas


aulas seguintes deste módulo, abordaremos outros fatores de risco
que, de modo marcante, se associam ao suicídio: os transtornos
mentais e o histórico de tentativa de suicídio.

Sexo
Na maioria dos países, incluindo o Brasil, as taxas de mortalidade por
suicídio são de 3 a 4 vezes maiores nos homens. Em pacientes
psiquiátricos, tal diferença é menos pronunciada. Já, nas tentativas de
suicídio, o predomínio é do sexo feminino, em uma relação de 3 por 1,
especialmente em mulheres mais jovens.

No Material Complementar “Paradoxo do gênero”, encontram-


se algumas hipóteses que explicam as distinções do
comportamento suicida entre homens e mulheres (Kutcher e
Chehil, 2007).

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Orientação sexual
De modo geral, os estudos mostram maior prevalência de
comportamento suicida em indivíduos homo e bissexuais,
particularmente em adolescentes e adultos jovens. Vários fatores
contribuem para essa situação:

 Estigma e discriminação sociais.


 Estresse ao revelar a condição a amigos e familiares.
 Inconformidade com o gênero.
 Agressão e violência sofridas.

Entre indivíduos homossexuais, mais homens tentam o suicídio


(Pompili et al, 2014).

Idade
Os coeficientes de suicídio tendem a aumentar com a idade. As
tentativas de suicídio, por sua vez, são mais comuns no grupo etário
mais jovem. Nesses casos, são usados métodos de menor letalidade.
Jovens que tentam o suicídio geralmente estão enfrentando situações
de conflito interpessoal e têm personalidade com menor estabilidade
emocional (Moscicki, 1997).

Situação conjugal
As taxas de suicídio de pessoas viúvas, separadas e divorciadas
costumam ser quatro vezes maiores do que as de pessoas casadas.
Solteiros apresentam taxa duas vezes maior do que a dos casados. A
presença de filhos pequenos na casa, por outro lado, é um fator de
proteção para as mulheres.

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Etnia
No Brasil, um país de grande miscigenação étnica, as informações
científicas disponíveis em relação a etnias destacam níveis elevados
de suicídio em populações indígenas.

Religiões
Há duas dimensões principais ligadas à religiosidade:

 A importância de um sistema de crenças.


 O estabelecimento de uma rede de apoio social.

Em relação ao papel da religião, protegendo ou não contra o suicídio,


temos que considerar duas dimensões principais a ela ligadas: a
importância de um sistema de crenças e o estabelecimento de uma
rede de apoio social que é influenciada, por sua vez, por forças de
coesão e de integração grupais.

Em geral, os estudos sobre religião e suicídio identificam menores


taxas de suicídio ou maior frequência de atitudes negativas em
relação ao suicídio em grupos ou indivíduos mais religiosos. No
entanto, muitas crenças e comportamentos influenciados pela religião
e pela cultura aumentam o estigma em relação ao suicídio e podem
desencorajar a procura de assistência em saúde mental.

Profissões
Entre as ocupações, médicos e dentistas destacam-se por
apresentarem taxas de suicídio cinco e duas vezes maiores,
respectivamente, do que a população geral. O risco também é elevado
para:

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 Enfermeiros.
 Assistentes sociais.
 Artistas.
 Matemáticos.
 Cientistas.

Embora não haja consistência entre os achados dos estudos, é


provável que fazendeiros e membros de forças policiais também
tenham risco mais elevado do que o encontrado na população geral.
Algumas explicações possíveis, e não exclusivas, para tais achados de
pesquisa incluem:

 Conhecimento e acesso a meios letais.


 Estressores específicos da profissão.
 Tendência para a agregação de mais indivíduos com transtornos
psiquiátricos em certas categorias profissionais (Boxer et al,
1995; Stack, 2001).

Cultura
Crenças sobre a vida, a morte e eventual vida após a morte são
altamente influenciadas pela religião e cultura. Sociedades que,
aberta ou veladamente, endossam o suicídio, como uma maneira
aceitável de lidar com a vergonha, a humilhação, a doença física ou o
sofrimento emocional, são menos proibitivas do que as que
concebem o suicídio como um ato pecaminoso ou criminoso. Certas
culturas, ou subgrupos culturais, aprovam abertamente o suicídio
como ato de martírio, de devoção religiosa, de nacionalismo ou de
crença política (Kutcher e Chehil, 2007).

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CONCLUSÃO

Ao longo desta aula, tivemos a oportunidade de examinar


informações sobre o suicídio publicadas nos principais periódicos
científicos. Assim, foi possível concluir que, pelo menos no campo da
pesquisa médica, a grande maioria das pesquisas tem apresentado
caráter pragmático. Foi criado um referencial teórico sobre o conjunto
de fatores de risco claramente associados ao suicídio, sem, no entanto,
oferecer uma consistente amarração teórica para os achados.

Nossos esforços deveriam superar a atual fase, em que se identificam


fatores de risco e fatores de proteção, e caminhar para teorias que
possam, de forma abrangente, integrar os novos achados ao corpo de
conhecimento teórico que procura compreender o comportamento
humano.

Os novos conhecimentos, para serem clinicamente úteis, deveriam


possibilitar um olhar mais profundo em relação ao comportamento
suicida, bem como fomentar a adoção de estratégias específicas de
tratamento e de prevenção mais eficientes para subgrupos
populacionais, ou mesmo para um indivíduo em particular:

Ao olhar uma árvore, um cientista natural não deveria ficar


constrangido por não conseguir prever quais folhas cairão
primeiro no outono, ou o percurso exato que elas farão até
que cheguem ao chão. É bem possível que vidas humanas
tenham bastante a ver com essas folhas. Sabe-se muito
pouco sobre cada folha, ou sobre uma vida em particular,
baseando-se exclusivamente no conhecimento que temos de
folhas em geral, de pessoas em geral, e sem que se proceda a
um estudo detalhado, ideográfico, de cada caso. Ainda que o
fizéssemos, continuaria sendo difícil saber como soprarão os
ventos, de um dia para o outro (Lykken, 1991, p. 18-19).

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REFERÊNCIAS

Bertolote JM. O suicídio e sua prevenção. In: Meleiro A, Teng CT, Wang
YP, editors. Suicídio: estudos fundamentais. São Paulo: Segmento
Farma; 2004, pp.193-206.

Boxer PA, Burnett C, Swanson N. Suicide and occupation: a review of


the literature. J Occup Environ Med 1995 Apr; 37(4):442–52.

Koenig HG, Larson DB. Religion and mental health: evidence for an
association. Int Review Psychiatry 2001;13(2):67-78.

Kutcher S, Chehil S. Manejo do risco de suicídio: um manual para


profissionais da saúde . Rio de Janeiro: Med Line/Lundbeck Institute;
2007.

Lykken DT. What’s wrong with Psychology anyway? In: Grove WM,
Cicchetti D, editors.Thinking Clearly about Psychology. Minneapolis:
University of Minnesota Press; 1991. p. 3-39.

Moscicki EK. Identification of suicide risk factors using epidemiologic


studies. Psychiatr Clin North Am. 1997 Sep; 20(3):499-517.

Norman RE, Byambaa M, De R, Butchart A, Scott J, Vos T. The long-


term health consequences of child physical abuse, emotional abuse,
and neglect: a systematic review and meta-analysis. PLoS Med. 2012
Nov; 9(11):e1001349.

Pompili M, Lester D, Forte A, Seretti ME, Erbuto D, Lamis DA, et al.


Bisexuality and suicide: a systematic review of the current literature. J
Sex Med 2014 Aug; 11(8):1903-13.

Stack S: Occupation and suicide. Soc Sci Q. 2001 Feb; 82(2):384–96.

World Health Organization. Preventing suicide: a global imperative.


Geneva: WHO, 2014.

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